quinta-feira, 24 de junho de 2010

Xógun, volume I - James Clavell.txt

Xógun - volume I
James Clavell

PRÓLOGO
A ventania atingiu-o com violência, ele sentiu-lhe fundo a
vergastada e soube que se não atracassem dentro de três dias, morreriam todos. Mortes demais nesta viagem, pensou, sou piloto-mor
de uma frota morta. De cinco navios sobrou um - vinte e oito
homens de uma tripulação de cento e sete -, e agora apenas dez
podem andar e o resto está às portas da morte, o capitão-mor
entre eles. Não há comida, quase não há água e a que há é salobra e lodosa.
O nome dele era John Blackthorne. Estava sozinho no convés, à exceção do vigia no gurupés - Salarnon, o mudo -, que
se encolhia a sotavento, perscrutando o mar à sua frente.
O navio adernou com uma rajada repentina e Blackthorne
agarrou-se ao braço da cadeira de convés amarrada perto do
timão, no tombadilho, até que ele se aprumasse, os costados rangendo. Ele era o Erasmus, de duzentas e sessenta toneladas, uma
belonave mercante de três mastros, proveniente de Rotterdam,
armado com vinte canhões e único sobrevivente da primeira frota
expedicionária enviada da Neerlândia para devastar o inimigo no
Novo Mundo. Os primeiros navios holandeses a violar os segredos
do estreito de Magalhães. Quatrocentos e noventa e seis homens,
todos voluntários. Todos holandeses, com exceção de três ingleses
- dois pilotos, um oficial. Suas ordens: saquear as possessões
espanholas e portuguesas no Novo Mundo e incendiá-las; estabelecer concessões de comércio permanentes; descobrir novas ilhas
no oceano Pacífico que pudessem servir como bases permanentes
e reivindicar o território para a Neerlândia; e, dentro de três anos,
voltar para casa.
A Neerlândia protestante estava em guerra com a Espanha
católica há mais de quatro décadas, combatendo para se livrar do
jugo de seus odiados senhores espanhóis. A Neerlândia, às vezes
chamada de Holanda, Terra dos Holandeses ou Países Baixos,
ainda era legalmente parte do império espanhol. A Inglaterra, sua
única aliada, o primeiro país da cristandade a romper com a corte
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papal em Roma e a tornar-se protestante uns setenta e tantos anos
antes, também estava em guerra com a Espanha nos últimos vinte
anos, e se aliara abertamente aos holandeses há uma década.
O vento avivou-se ainda mais e o navio balançou. Estava
navegando sem velas, exceto pelo joanete, para tempestades. Ainda
assim, a maré e a tempestade impeliam-no com força rumo ao
horizonte enegrecido. Há mais tempestade lá, disse Blackthorne a
si mesmo, e mais recifes e mais bancos de areia. E mar desconhecido. Bom. Enfrentei o mar a vida toda e sempre venci. Vencerei sempre.
Primeiro piloto inglês a atravessar o estreito de Magalhães.
Sim, o primeiro - e o primeiro a singrar aquelas águas asiáticas -, não considerando alguns bastardos portugueses ou espanhóis sem mãe, que ainda pensam que são os donos do mundo.
Primeiro inglês naqueles mares ...
Tantos primeiros. Sim. E tantas mortes para derrotá-los.
Provou o vento novamente, cheirou-o, mas não havia indício
de terra. Sondou o oceano, mas estava de um cinza sombrio e
ameaçador. Nem um punhado de algas ou alguma mancha parda
para dar sinal de algum banco de areia. Viu a crista de outro
recife, longe, a estibordo, mas isso não lhe disse nada. Fazia um
mês agora que esses afloramentos o ameaçavam, mas nem um
vislumbre de terra. Esse infinito do oceano, pensou. Bom. É para
isso que você foi treinado - navegar em mar desconhecido, fazer
mapas dele e voltar para casa. A quantos dias de casa? Um ano,
onze meses e dois dias. O último desembarque, no Chile, cento e
trinta e três dias à popa, do outro lado do oceano que Magalhães
cruzou pela primeira vez oitenta anos atrás, chamado Pacífico.
Blackthorne estava faminto, e tinha a boca e o corpo doídos
por causa do escorbuto. Forçou os olhos para examinar a bússola,
e o cérebro para calcular uma posição aproximada. Uma vez que
a situação estivesse registrada no seu portulano - seu manual de
mar -, ele estaria salvo nessa mancha de oceano. E se estivesse
a salvo, seu navio também o estaria, e então, juntos, poderiam
encontrar o Japão, ou mesmo o rei cristão Prestes João e seu
império dourado que, segundo a lenda, se estendia ao norte de
Catai, fosse onde fosse que Catai ficasse.
E com a minha parte das riquezas, velejarei de novo, rumo
oeste, para casa, primeiro piloto inglês a jamais circunavegar o
globo, e nunca abandonarei o lar novamente. Nunca. Pela cabeça
do meu filho!
A chicotada do vento interrompeu seu devaneio e manteve-o
desperto. Dormir agora seria tolice. Você nunca acordará desse
sono, pensou, e esticou os braços para relaxar os músculos das
costas com cãibras e estreitou mais a capa junto ao corpo. Viu
que as velas estavam ajustadas e o timão amarrado com segurança.
O vigia do gurupés estava acordado. Então, pacientemente, afundou na cadeira e rezou por terra.
- Vá para baixo. Fico com este turno de vigia, se lhe agrada. - O terceiro imediato, Hendrik Specz, estava se içando para
o passadiço, o rosto acinzentado de cansaço, os olhos encovados,
a pele amarelada e com pústulas. Encostou-se pesadamente contra
a bitácula para se firmar, sentindo um pouco de ânsia de vômito.
- Cristo abençoado, mijo no dia em que saí da Holanda!
- Onde está o imediato, Hendrik?
- No beliche dele. Não pode sair do beliche de scheit vull.
E não sairá, pelo menos antes do Dia do Juízo.
- E o capitão-mor?
- Gemendo por comida e água. - Hendrik cuspiu. - Dissê-lhe que vou assar um capão para ele e lhe levar numa bandeja
de prata, com uma garrafa de conhaque para ajudar o frango a
descer. Scheit-huist! Coot!
- Cale a boca!
- Vou calar, piloto. Mas ele é um imbecil roído de vermes,
e morreremos por causa dele. - O jovem teve ânsias e cuspiu
um catarro mosqueado. - Que Cristo abençoado me ajude!
- Vá para baixo. Volte ao amanhecer.
Hendrik arriou pesadamente sobre a outra cadeira de convés.
- Há o fedor da morte lá embaixo. Fico de vigia, se lhe agrada.
Qual é a rota?
- Qualquer lugar para onde o vento nos leve.
- Onde está a terra que você nos prometeu? Onde está o
Japão, onde está, pergunto eu?
- Em frente.
- Sempre em frente! Gottinhimmel, não fazia parte das
nossas ordens navegar para o desconhecido. Devíamos estar de
volta a casa nesta altura, a salvo, de barriga cheia, não à caça de
fogo-de-santelmo.
- Vá para baixo ou cale essa boca!
Sombriamente, Hendrik desviou o olhar do homem alto e
barbado. Onde estamos agora? queria perguntar. Por que não
posso ver o portulano secreto? Mas sabia que não se fazem essas
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perguntas a um piloto, particularmente a este. Ainda assim, pensou, gostaria de estar tão forte e saudável como quando parti da
Holanda. Então não esperaria. Esmagaria seus olhos cinza-azulados agora e arrebentaria esse meio sorriso de enlouquecer no rosto
dele e o mandaria para o inferno, que é o que você merece. Aí eu
seria capitão-piloto e teríamos um neerlandês comandando o navio
- não um estrangeiro -, e os segredos estariam seguros para
nós. Porque logo estaremos em guerra contra você, inglês. Queremos a mesma coisa: dominar o mar, controlar todas as rotas de
comércio, dominar o Novo Mundo, e estrangular a Espanha.
- Talvez o Japão não exista - resmungou Hendrik. - É
uma lenda Gottbewonden.
- Existe. Entre as latitudes trinta e quarenta norte. Agora
cale a boca ou vá para baixo.
- Há morte lá embaixo, piloto - resmungou Hendrik, e
olhou para a frente, como que devaneando. Blackthorne mudou de
posição na sua cadeira de convés, o corpo doendo mais hoje. Você
tem mais sorte do que a maioria, pensou, mais sorte do que
Hendrik. Não, não mais sorte. Você é mais cuidadoso. Guardou
suas frutas, enquanto os outros consumiram as deles despreocupadamente. Contra as suas advertências. Portanto agora o seu escorbuto ainda está brando, enquanto os outros têm hemorragias constantes, diarréia, os olhos injetados e lacrimejantes, e os dentes
perdidos ou soltos na cabeça. Por que será que os homens nunca
aprendem?
Sabia que todos o temiam, até o capitão-mor, e que a maioria o odiava. Mas isso era normal, pois era o piloto quem comandava no mar; era ele quem determinava a rota e dirigia o navio,
ele quem os trazia de porto em porto.
Qualquer viagem, hoje, era perigosa, porque as poucas cartas
de navegação que existiam eram tão vagas que se tornavam praticamente inúteis. E não havia absolutamente nenhum modo de
determinar a longitude.
- Descubra como determinar a longitude e você será o
homem mais rico do mundo - dissera-lhe seu velho professor,
Alban Caradoc. - A rainha, que Deus a abençoe, lhe dará dez
mil libras e um ducado pela resposta ao enigma. Os portugueses
comedores de bosta lhe darão mais: um galeão de ouro. E os espanhóis sem mãe lhe darão vinte! Se não tem terra à vista, você
está sempre perdido, mocinho. - Caradoc fizera uma pausa e
meneara lentamente a cabeça, como sempre.
- Você está perdido, mocinho. A menos que ...
- A menos que tenha um portulano! - exclamara Blackthorne alegremente, sabendo que aprendera bem a lição. Estava
com treze anos naquela altura e já fazia um ano que era aprendiz
de Alban Caradoc, piloto e construtor naval, que se transformara
no pai que ele perdera, e que nunca lhe batera mas ensinara, a
ele e aos outros rapazes, os segredos da construção naval e da
intimidade com o mar.
Um portulano era um livrinho que continha a observação
detalhada de um piloto que estivera lá antes. Registrava percursos
por bússolas magnéticas entre portos e cabos, promontórios e canais. Assentava a sondagem, profundidades e cor da água, e a
natureza do leito do mar. Continha o como-chegamos-lá-e-comovoltamos: o tempo das tempestades e o de ventos propícios; onde
querenar o navio e onde abastecer de água; onde havia amigos e
onde inimigos; bancos de areia, recifes, marés, céus; numa palavra, todo o necessário para uma viagem segura.
Os ingleses, holandeses e franceses tinham portulanos para
suas próprias águas, mas as águas do resto do mundo tinham sido
navegadas apenas por capitães de Portugal e Espanha, e esses dois
países consideravam todos os portulanos secretos. Portulanos que
revelavam os caminhos marítimos do Novo Mundo ou elucidavam
os mistérios do estreito de Magalhães e do cabo da Boa Esperança
- ambos descobertas portuguesas -, e desse modo os caminhos
marítimos para a Ásia, eram guardados como tesouros nacionais
pelos portugueses e espanhóis, e procurados com igual ferocidade
pelos inimigos holandeses e ingleses.
Mas um portulano era apenas tão bom quanto o piloto que
o escrevera, o escriba que o copiara a mão, o raríssimo impressor
que o imprimira, ou o acadêmico que o traduzira. Um portulano
podia, por isso, conter erros. Até erros intencionais. Um piloto
nunca sabia com certeza até que tivesse estado lá pessoalmente.
Pelo menos uma vez.
Ao mar o piloto era o líder, o único guia, o árbitro final do
navio e da tripulação. Sozinho, comandava do tombadilho.
Isso é vinho forte, disse Blackthorne a si mesmo. E uma vez
provado, era para não ser esquecido nunca, ser procurado sempre,
o sempre necessário. É uma das coisas que mantêm a gente viva,
enquanto outros morrem.
Levantou-se e satisfez suas necessidades nos embornais. Mais
tarde a areia esgotou na ampulheta ao lado da bitácula, ele virou-a
o tocou o sino do navio.
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- Pode ficar acordado, Hendrik?
- Sim. Sim, acho que sim.
- Mandarei alguém para substituir o vigia do gurupés. Veja
que ele fique ao vento e não a sotavento. Isso o manterá atento e
desperto. - Por um momento perguntou a si mesmo se não deveria
virar o navio contra o vento e seguir para a noite, mas decidiu
em contrário, desceu para a gaiúta e abriu a porta do castelo de
proa. A cabina se estendia por toda a largura do navio, e tinha
beliches e espaços de redes para cento e vinte homens. O calor
envolveu-o, ele se sentiu grato por isso e ignorou o mau cheiro
sempre presente, vindo dos porões abaixo. Nenhum dos vinte e
tantos homens moveu-se do seu beliche.
- Vá para cima, Maetsukker - disse em holandês, a língua
franca dos Países Baixos, que ele falava perfeitamente, assim como
o português, o espanhol e o latim.
- Estou às portas da morte - disse o homenzinho de feições astutas, encolhendo-se mais fundo no beliche. - Estou doente. Olhe, o escorbuto levou todos os meus dentes. Que Jesus nos
ajude, vamos todos morrer! Não fosse por você, estaríamos todos
em casa agora, a salvo! Sou um mercador. Não sou um marujo.
Não faço parte da tripulação... Pegue algum outro. Johann
está... - Deu um berro quando Blackthorne o arrancou para
fora do beliche e o arremessou contra a porta. Sua boca ficou
salpicada de sangue e ele, completamente atordoado. Um pontapé
brutal no lado fê-lo sair da letargia.
- Ponha a cara lá em cima e fique lá até morrer ou até que
desembarquemos.
O homem escancarou a porta com um puxão e fugiu agoniado.
Blackthorne olhou os outros. Sustentaram-lhe o olhar fixamente. - Como está se sentindo, Johann?
- Razoavelmente, piloto. Talvez eu viva.
Johann Vinck tinha quarenta e três anos, era o chefe de
artilharia e imediato do contramestre, o homem mais velho a bordo. Estava sem cabelos e sem dentes, da cor de um carvalho velho
o igualmente forte. Seis anos antes navegara com Blackthorne na
malfadada busca da passagem nordeste, e cada um conhecia a
capacidade do outro.
- Na sua idade a maioria dos homens já morreu, de modo
que você está à frente de todos nós. - Blackthorne tinha trinta
o seis.
Vinck sorriu melancolicamente. - É o conhaque, piloto, isso
mais a fornicação e a vida santa que levei.
Ninguém riu. Então alguém apontou para um beliche. -
Piloto, o contramestre morreu.
- Então levem o corpo para cima! Lavem-no e fechem-lhe
os olhos! Você, você e você!
Os homens desta vez saíram rapidamente dos beliches e, juntos, meio arrastaram, meio carregaram o cadáver para fora da
cabina.
- Pegue o quarto do amanhecer, Vinck. E Ginsel, você é
vigia da proa.
- Sim, senhor.
Blackthorne voltou ao convés.
Viu que Hendrik ainda estava acordado, que o navio estava
em ordem. O vigia substituído, Salamon, cambaleou à sua frente,
mais morto do que vivo, os olhos inchados e vermelhos por causa
do vento. Blackthorne atravessou o convés até a outra porta e
desceu. O passadiço levava à grande cabina na popa, que era alojamento e paiol do capitão-mor. Essa cabina ficava a estibordo, e
a outra, a bombordo, geralmente se destinava aos três imediatos.
Agora era compartilhada por Baccus van Nekk, o chefe dos mercadores, Hendrik, o terceiro imediato, e o rapaz, Croocq. Estavam
todos muito doentes.
Dirigiu-se para a cabina grande. O capitão-mor, Paulus Spillbergen, estava deitado semiconsciente no beliche. Era um homem
pequeno, corado, normalmente muito gordo, mas agora muito
magro, a pele da barriga pendendo frouxamente em dobras. Blackthorne pegou um frasco de água de uma gaveta secreta e ajudou-o
a tomar um pouco.
- Obrigado - disse Spillbergen fracamente. - Onde está
a terra? Onde está a terra?
- À frente - replicou o outro, já sem acreditar nisso, depois guardou o frasco de água, fez-se surdo aos lamentos e partiu,
sentindo renovar-se o ódio pelo capitão.
Há quase um ano, exatamente, haviam atingido a Terra do
Fogo, com ventos favoráveis à travessia do desconhecido no estreito de Magalhães. Mas o capitão-mor ordenara um desembarque
para procurar ouro e riquezas.
- Jesus Cristo, olhe para terra, capitão-mor! Não há riqueza alguma nesses ermos.
- A lenda diz que é rica em ouro e podemos reivindicar a
terra para a gloriosa Neerlândia.
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- Os espanhóis têm soldados aqui há cinqüenta anos.
Talvez. Mas talvez não tão ao sul, piloto-mor.
- Neste sul remoto, as estações são invertidas. Maio, junho,
julho e agosto são de inverno rigoroso. O portulano diz que a
época é crítica para atravessar o estreito. Os ventos mudam dentro de poucas semanas, depois teremos que ficar aqui e o inverno
aqui dura meses.
- Quantas semanas, piloto?
- O portulano fala em oito. Mas as estações não são sem-.
pre iguais ...
- Então exploraremos por umas duas semanas. Isso nos dá
muito tempo, e depois, se necessário, iremos para o norte novamente e saquearemos mais algumas cidades, hein, cavalheiros?
- Temos que tentar agora, capitão-mor. Os espanhóis têm
muito poucos navios de guerra no Pacífico. Digo que temos que
ir em frente agora.
Mas o capitão-mor o ignorara e colocara o assunto à votação
dos outros capitães - não dos outros pilotos, um inglês e três
holandeses -, e conduzira inúteis incursões de pilhagem a terra.
Os ventos mudaram cedo naquele ano e eles tiveram que
passar o inverno lá, o capitão-mor com medo de seguir para o
norte por causa das frotas espanholas. Passaram-se quatro meses
até que pudessem velejar. Nessa altura, cento e cinqüenta e seis
homens haviam morrido de inanição, frio e defluxo, e os outros
estavam comendo as peles de bezerro que cobriam os cordames.
As terríveis tempestades dentro do estreito dispersaram a esquadra. O Erasmus foi o único navio que apareceu no local de encontro, ao largo do Chile. Esperaram um mês pelos outros e depois,
com os espanhóis se aproximando, zarparam rumo ao desconhecido. O portulano secreto se detinha no Chile.
Blackthorne voltou pelo corredor e destrancou a porta da
sua cabina, trancando-a de novo atrás de si. A cabina era de vigas
baixas, pequena e arrumada, e ele teve que se curvar ao cruzá-la
para se sentar à sua escrivaninha. Destrancou uma gaveta e desembrulhou com todo o cuidado a última das maçãs que armazenara tão cuidadosamente por todo o caminho desde a ilha Santa
María, ao largo do Chile. A fruta estava machucada, minúscula,
com bolor na parte estragada. Ele cortou um quarto. Havia alguns
vermes dentro. Comeu-os junto com a polpa, atento à velha lenda
do mar de que os vermes de maçã eram exatamente tão eficazes
contra o escorbuto quanto a própria fruta, e que, esfregados nas
gengivas, ajudavam a impedir que os dentes caíssem. Mastigou
suavemente, porque os dentes doíam e as gengivas estavam sensíveis e inflamadas, depois tomou uns goles de água do odre de
vinho. Tinha um gosto salobro. Em seguida embrulhou o resto
da maçã e fechou-o a chave.
Um rato correu nas sombras, delineado pela lanterna de óleo
pendurada acima da cabeça de Blackthorne. Os costados rangeram
agradavelmente. Algumas baratas se atropelaram pelo chão.
Estou cansado. Estou muito cansado.
Deu uma olhada no beliche. Comprido, estreito, o convidativo enxergão de palha.
Estou tão cansado.
Vá dormir uma hora, disse a sua metade má. Dez minutos,
que sejam, e você estará revigorado por uma semana. Faz dias
que você só dorme algumas horas, e a maior parte disso lá em
cima, ao frio. Você tem que dormir. Dormir. Eles contam com
você...
- Não vou dormir, durmo amanhã - disse ele em voz alta,
e fez força com a mão para destrancar o baú e tirar o portulano.
Viu que o outro, em português, estava seguro e intacto, e isso o
deixou contente. Pegou uma pena limpa e começou a escrever:
"12 de abril de 1600. Quinta hora. Crepúsculo. 133.° dia desde a
ilha Santa María, Chile, no grau 32 norte da linha de latitude.
Mar ainda alto, vento forte e o navio mastreado como antes. Cor
do mar de um monótono cinza esverdeado e insondável. Ainda
estamos correndo com o vento num curso de 270 graus, virando
para nor-noroeste, avançando rapidamente, cerca de duas léguas,
cada uma de três milhas, por hora. Grandes recifes em forma de
triângulo foram avistados a meio grau de longitude apontando
para nordeste em direção norte, a meia légua de distância.
"Três homens morreram de escorbuto à noite: Joris, veleiro,
Reiss, artilheiro, e o segundo imediato, De Haan. Depois de encomendar-lhes as almas a Deus, visto que o capitão-mor ainda está
doente, lancei-os ao mar sem mortalhas, pois não havia ninguém
para fazê-las. Hoje o Contramestre Rijckloff morreu.
"Não pude medir o desvio do sol ao meio-dia de hoje, novamente por causa da nebulosidade. Mas calculo que ainda estejamos na rota e que o desembarque no Japão ocorra logo..."
- Mas quão logo? - perguntou à lanterna que pendia acima de sua cabeça, oscilando com o jogo do navio. Como fazer
uma carta? Deve haver um modo, disse ele a si mesmo pela
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milionésima vez. Como determinar a longitude? Deve haver um
modo. Como conservar os vegetais frescos? O que é escorbuto?...
- Dizem que é um defluxo do mar, rapaz - dissera Alban
Caradoc. Era um homem generoso, de ventre avantajado, com
uma encaracolada barba grisalha.
- Mas não se podem ferver as verduras e conservar o caldo?
- Estragam, mocinho. Ninguém jamais descobriu um modo
de armazená-las.
- Dizem que Francis Drake vai zarpar em breve.
- Não. Você não pode ir, menino.
- Tenho quase catorze anos. Você deixou Tim e Watt se
engajarem e Drake precisa de pilotos aprendizes.
- Eles têm dezesseis anos. Você só tem treze.
- Dizem que ele vai tentar atravessar o estreito de Magalhães, depois subir a costa para a região inexplorada, para as Califórnias, para encontrar os estreitos de Amian, que unem o Pacífico ao Atlântico. Das Califórnias, para a Terra Nova e para a
passagem noroeste finalmente...
- A suposta passagem noroeste, mocinho. Ninguém comprovou essa lenda ainda.
- Ele fará isso. É almirante agora e seremos o primeiro
navio inglês a atravessar o estreito de Magalhães, o primeiro no
Pacífico, o primeiro. Nunca terei outra chance como essa.
- Oh, sim, terá, e ele nunca violará o segredo do caminho
de Magalhães, a menos que possa roubar um portulano ou capturar um piloto português para guiá-lo. Quantas vezes eu preciso
lhe dizer: um piloto tem que ter paciência. Aprenda paciência,
menino. Você tem ...
- Por favor?
- Não.
- Por quê?
- Porque ele ficará fora dois, três anos, talvez mais. Os
fracos e os jovens ficarão com a pior comida e com o mínimo de
água. E dos navios que vão, só o dele retornará. Você nunca
sobreviveria, menino.
- Então vou me engajar apenas para o navio dele. Sou forte. Ele me aceitará!
- Ouça, menino, estive com Drake no Judith, seu navio de
cinqüenta toneladas, em San Juan de Ulua, quando nós e o Almirante Hawkins, que estava no Minion, abrimos nosso caminho a
força para fora da enseada, por entre os espanhóis comedores de
bosta. Estávamos comerciando escravos da Guiné para o Spanish
Main 1, mas não tínhamos licença espanhola para o comércio e
eles lograram Hawkins e armaram uma cilada para a nossa esquadra. Tinham treze navios grandes, nós, seis. Afundamos três dos
deles, e eles nos afundaram o Swallow, o Angel, o Caravelle e o
Jesus of Lubeck. Oh, sim, Drake conseguiu nos arrancar da emboscada e nos trouxe para casa. Com onze homens a bordo para
contar a história. Hawkins tinha quinze. Isso de quatrocentos e
oito excelentes lobos-do-mar. Drake é inclemente, menino. Quer
glória e ouro, mas só para si, e muitos homens morreram para
provar isso.
- Mas eu não morrerei. Serei um dos...
- Não. Você é aprendiz por doze anos. Tem mais dez, depois está livre. Mas até lá, até 1588, vai aprender como construir
navios e como comandá-los. Obedecerá a Alban Caradoc, mestre
construtor naval, piloto e membro da Trinity House, ou nunca
terá uma licença. E se não tiver uma licença, jamais pilotará qualquer navio em águas inglesas, nunca comandará o tombadilho de
qualquer navio inglês em quaisquer águas, porque essa foi a lei
do bom Rei Harry, Deus conserve a sua alma. Foi lei da grande
prostituta Maria Tudor, que sua alma esteja no inferno, é lei da
rainha, que ela possa reinar para sempre, é lei da Inglaterra, e é
a melhor lei marítima que jamais existiu.
Blackthorne lembrou-se de como odiara seu mestre então, e
odiara a Trinity House, o monopólio criado por Henrique VIII
em 1514 para o treinamento e licenciamento de todos os pilotos
e mestres ingleses, e odiara seus doze anos de semi-escravidão,
sem os quais sabia que nunca conseguiria a única coisa no mundo
que queria. E odiara Alban Caradoc ainda mais quando, para
glória eterna de Drake, este e sua corveta de cem toneladas, a
Golden Hind, voltaram miraculosamente à Inglaterra após desaparecerem por três anos, o primeiro navio inglês a circunavegar
o globo, trazendo a bordo o saque mais rico jamais trazido àquelas
praias: um incrível milhão e meio de esterlinos em ouro, prata e
especiarias.
Que quatro dos cinco navios estivessem perdidos e oito em
cada dez homens estivessem perdidos, e Tim e Watt estivessem
perdidos, e um piloto português capturado houvesse conduzido a
expedição para Drake através de Magalhães para o Pacífico, não
lhe diminuíram o ódio; que Drake tivesse enforcado um oficial,
t Costa norte da América do Sul e as regiões adjacentes do mar das
Caraíbas. (N. do T.)
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excomungado o Capelão Fletcher e fracassado na tentativa de
encontrar a passagem noroeste não diminuíram a admiração nacional por ele. A rainha tomou cinqüenta por cento do tesouro e
o armou cavaleiro. A pequena nobreza e os comerciantes que
haviam levantado o dinheiro para a expedição receberam trezentos por cento de lucro e suplicaram para subscrever a sua próxima
viagem de corsário. E todos os marujos imploraram para navegar
com ele, porque ele realmente conseguia pilhagem, realmente voltava para casa, e, com a parte de cada um no butim, os poucos
felizardos que sobrevivessem estariam ricos pela vida toda. Eu
teria sobrevivido, disse Blackthorne a si mesmo. Teria. E minha
parte do tesouro depois teria sido suficiente para.. .
- Rotz vooruiiiiiiiiiit! Recife à frente!
De imediato ele mais sentiu do que ouviu o grito. Depois,
misturado à ventania, ouviu novamente o grito lamentoso.
Saiu da cabina, subiu a gaiúta até o tombadilho, o coração
martelando, a garganta ressecada. Era noite escura agora, chovia
torrencialmente, e ele momentaneamente exultou, pois sabia que
os coletores de chuva, de lona, feitos há tantas semanas atrás,
logo estariam transbordando. Abriu a boca à chuva quase horizontal e provou-lhe a doçura, depois voltou as costas às rajadas de
água e vento.
Viu que Hendrik estava paralisado de terror. O vigia do gurupés, Maetsukker, agachado perto da proa, gritava incoerentemente, apontando para a frente. Então também olhou para além
do navio.
O recife estava umas poucas duzentas jardas à frente, grandes
garras negras marteladas pelo mar faminto. A linha espumante de
rebentação se estendia a bombordo e estibordo, quebrada intermitentemente. O temporal levantava imensas faixas de espuma e
as atirava contra a escuridão da noite. Uma adriça de vante rompeu-se e o topo do mastro mais alto e imponente foi arrebatado.
O mastro estremeceu na base mas agüentou, e o mar continuou
impelindo o navio inexoravelmente para a morte.
- Todas as mãos no convés! - berrou Blackthorne, e tocou
o sino com violência.
O barulho arrancou Hendrik do seu estupor. - Estamos perdidos! - gritou em holandês. - Oh, que Jesus nos ajude!
- Ponha a tripulação no convés, seu bastardo! Você estava
dormindo! Vocês dois estavam dormindo! - Blackthorne empurrou-o na direção da gaiúta, agarrou-se ao timão, soltou-lhe a
amarra de proteção dos raios, amarrou-se e girou o timão com
dificuldade para bombordo.
Aplicou toda a sua força contra o leme que disparava, impelido pela torrente. O navio estremeceu inteiro, depois a proa
começou a pender com rapidez cada vez maior à medida que o
vento a forçava para baixo. Os joanetes de tempestade enfunaram
e corajosamente tentaram carregar todo o peso do navio, e todas
as cordas agüentaram o esforço, rangendo. O mar elevou-se acima
deles e estavam avançando paralelamente ao recife quando Blackthorne viu o vagalhão. Berrou um aviso aos homens que estavam
vindo do castelo de proa e agarrou-se para salvar a vida.
O mar se abateu sobre o navio, que adernou, e Blackthorne
pensou que aquilo era o fim, mas o barco se sacudiu como um
terrier molhado e voltou para fora da depressão. A água caía em
cascatas através dos embornais e ele ofegava, respirando com dificuldade. Viu que o cadáver do contramestre, colocado no convés para sepultamento no dia seguinte, se fora, e que a onda
seguinte se aproximava ainda mais forte. Quando os atingiu, apanhou Hendrik e o ergueu, resfolegante e lutando. Outra onda
estrondeou através do convés. Blackthorne passou um braço pelos
raios do timão e a água passou por ele. Hendrik estava cinqüenta
jardas a bombordo. A retração da água tragou-o, depois um vagalhão gigantesco atirou-o acima do navio, manteve-o lá por um
instante, gritando, depois levou-o, reduziu-o a pasta contra a crista
de um rochedo e o devorou. O navio apontou para o mar, tentando avançar. Outra adriça cedeu e a roldana e o guincho giraram furiosamente, até se enroscar com o cordame.
Vinck e outro homem se arrastaram pelo tombadilho e se
debruçaram sobre o timão, para ajudar. Blackthorne podia ver o
recife intruso a estibordo, mais perto agora. À frente e a bombordo havia mais afloramentos, mas ele viu brechas aqui e ali.
- Suba, Vinck! Traquetes, ho!
Pé ante pé Vinck e dois marujos se arrastaram para os ovéns
do cordame do mastro de proa, enquanto outros, embaixo, se
inclinavam sobre as cordas para lhes dar uma mão.
- Atenção à frente! - berrou Blackthorne.
O mar espumava ao longo do convés. Levou outro homem
e trouxe o cadáver do contramestre novamente para bordo. A proa
elevou-se fora da água e veio abaixo mais uma vez, trazendo mais
água para bordo. Vinck e os outros homens amaldiçoaram a vela
que escapara das cordas. Abruptamente ela enfunou, soltando um
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estouro como uma canhonada quando o vento a inflou, e o navio
deu uma guinada.
Vinck e seus ajudantes ficaram pendurados lá, balançando
sobre o mar, depois começaram sua descida.
- Recife, recife à frente! - berrou Vinck.
Blackthorne e o outro homem giraram o timão para estibordo. O navio hesitou, depois virou e soltou um guincho quando
os rochedos, ligeiramente à flor da água, lhe encontraram o costado. Mas foi um golpe oblíquo e a ponta do rochedo esmigalhouse. Os costados permaneceram ilesos e os homens a bordo começaram a respirar mais uma vez. Blackthorne viu uma brecha no
recife à frente e dirigiu o navio para ela. O vento estava mais
forte agora, o mar mais furioso. O navio desviou com uma rajada
e o timão escapou-lhe das mãos. Juntos agarraram-no e lhe estabeleceram a rota de novo, mas ele se sacudiu e girou como bêbado. O mar inundou o convés e irrompeu contra o castelo de
proa, esmagando um homem contra o tabique, o convés inteiro
alagado como o de cima.
- As bombas! - gritou Blackthorne. Viu dois homens descerem.
A chuva açoitava-lhe o rosto e ele mantinha os olhos meio
fechados por causa da dor. A luz da bitácula e a da popa tinhamse apagado há muito. Depois, quando outra rajada atirou o navio
para mais longe de sua rota, o marujo escorregou e novamente o
timão escapou do aperto. O homem guinchou quando um raio do
leme lhe esmagou o lado da cabeça e o prostrou à mercê do mar.
Blackthorne puxou-o para cima e segurou-o até que o vagalhão
espumante passasse. Então viu que o homem estava morto e deixou-o afundar-se na cadeira de convés, até que a onda seguinte
varreu-o de lá.
O corte através do recife estava três pontos a barlavento e,
por mais que tentasse, Blackthorne não conseguia alcançá-lo. Procurou desesperadamente um outro canal mas sabia que não havia
nenhum, de modo que deixou o navio virar para sotavento momentaneamente para ganhar velocidade, depois virou-o com dificuldade para barlavento novamente. A embarcação conseguiu se
pôr na rota e manteve o curso.
Houve um estremecimento lamentoso, atormentado, quando a quilha raspou nas saliências aguçadas embaixo, e todos a bordo
imaginaram ver os costados de carvalho rebentar em pedaços e o
mar jorrar. O navio oscilou para a frente, fora de controle agora.
Blackthorne gritou por ajuda mas ninguém o ouviu, então
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bateu-se sozinho com o timão, contra o mar. Foi atirado para o
lado uma vez, mas tateou de volta e agarrou-o novamente, perguntando na sua mente anuviada como o leme sobrevivera tanto tempo.
Na parte mais estreita do passo, o mar se transformou num
redemoinho, dirigido pela borrasca e cercado pelos rochedos.
Ondas imensas se esmagavam contra o recife, depois retrocediam
oscilantes para combater o intruso, até que começaram a lutar
entre si e atacaram de todos os quadrantes da bússola. O navio
foi sugado para o turbilhão, adernando e indefeso.
- Mijo em você, tempestade! - enfureceu-se Blackthorne.
- Tire suas mãos do meu navio!
o timão escapou de novo e atirou-o para longe. O convés
balançou de modo a causar náuseas.
o gurupés atingiu um rochedo e despedaçou-se, parte do cordame com ele. O navio se aprumou. O mastro de proa estava
retesado como um arco e trincou com um estalo. Os homens no
convés lançaram-se ao cordame com machados para cortá-lo a
esmo, enquanto o navio se debatia pelo canal enraivecido. Soltaram o mastro com alguns golpes e ele caiu para o lado, levando um homem consigo, apanhado no emaranhado de cordas. O
homem gritou, mas não havia nada que os outros pudessem fazer,
então observaram quando ele e o mastro apareceram e desapareceram, depois não voltaram mais.
Vinck e os outros que estavam à esquerda olharam para trás,
para o tombadilho, e viram Blackthorne desafiando a tempestade
como um louco. Persignaram-se e redobraram suas preces, alguns
chorando de medo e temerosos pela própria vida.
o estreito alargou-se por um instante e o navio diminuiu a
marcha, mas à frente estreitou-se agourentamente de novo e os
rochedos pareceram crescer, para se elevarem acima deles. A correnteza ricocheteou para um lado, levando o navio consigo, virou-o
de través novamente e lançou-o com violência para a destruição.
Blackthorne parou de amaldiçoar a tempestade, forçou o
timão para bombordo e pendurou-se nele, seus músculos contraídos ante o esforço. Mas o navio não reconhecia mais o seu leme,
tampouco o mar.
-- Vire, sua prostituta do inferno! - ofegou ele, sua força
esgotando-se rapidamente. - Ajudem-me!
A correnteza acelerou e ele sentiu o coração prestes a estourar, mas ainda se esforçou contra a pressão do mar. Tentou manter os olhos atentos, mas sua visão vacilou, as cores erradas e
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fanadas. O navio estava na garganta e morto, mas exatamente
nesse momento a quilha se esmagou num baixio de lama. O choque virou-lhe a proa. O leme cedeu à força do mar. E então o
vento e o mar uniram-se para ajudar e, juntos, lançaram-no para
a frente do vento, fazendo-o disparar através do estreito para a
segurança. Para a baía à frente.
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Livro um
CAPITULO I
Blackthorne acordou de repente. Por um instante pensou estar
sonhando, pois se encontrava em terra firme e num quarto inacreditável. Pequeno, muito limpo e coberto de esteiras macias.
Ele estava deitado num espesso acolchoado, com outro atirado por
cima do corpo. O teto era de cedro polido e as paredes, de ripas
de cedro, em quadrados, revestidas com um papel opaco que tornava a luz suave e agradável. Ao lado dele havia uma bandeja
vermelha com tigelinhas. Uma delas continha legumes cozidos,
frios, que ele devorou avidamente, quase sem notar o sabor picante. Outra continha uma sopa de peixe, e ele a tomou de um trago.
Outra ainda estava cheia de um mingau grosso de trigo ou cevada,
de que ele deu cabo rapidamente, comendo com os dedos. A água
numa cuia de formato curioso estava morna e com um gosto estranho - levemente amargo, mas saboroso.
Então notou o crucifixo no nicho.
Esta casa é espanhola ou portuguesa, pensou, contrariado.
Isto será o Japão ou Catai?
Um painel da parede abriu-se deslizando. Uma mulher de
meia-ldade, atarracada, rosto redondo, estava ajoelhada ao lado
da porta, curvando-se e sorrindo. Tinha a pele dourada, os olhos
pretos e estreitos, e o longo cabelo negro habilmente arrumado no
alto da cabeça. Vestia um quimono de seda cinza, meias soquetes brancas com uma sola grossa, e uma larga faixa púrpura na
cintura.
- Goshujinsama, gokibun wa ikaga desu ka? - disse ela.
Esperou enquanto ele a fitava inexpressivamente, depois disse a
mesma coisa outra vez.
- Estamos no Japão? - perguntou ele. - Japão? Ou Catai?
Ela fixou-lhe o olhar sem compreender, e disse uma outra
coisa que ele não conseguiu entender. Nisso percebeu que estava
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nu. Sua roupa não estava à vista. Por meio de sinais, mostrou a
ela que queria se vestir. Depois apontou para as tigelas de comida
e ela entendeu que ele ainda estava com fome.
Sorriu, curvou-se e correu a porta.
Ele deitou-se de costas, exausto, com a desagradável e nauseante imobilidade do chão fazendo sua cabeça rodar. Com um
esforço, tentou se recompor. Lembro de estar lançando a âncora,
pensou. Com Vinck. Acho que era Vinck. Estávamos numa enseada, o navio havia se chocado contra um banco de areia e parado.
Podíamos ouvir as ondas quebrando na praia, mas estava tudo a
salvo. Havia luzes em terra e depois eu estava na minha cabina e
na escuridão. Não me lembro de nada. Depois havia luzes na escuridão e vozes estranhas. Eu estava falando inglês, depois português. Um dos nativos falava um pouco de português. Ou será que
era um português? Não, acho que era nativo. Perguntei a ele onde
estávamos? Não lembro. Em seguida estávamos de volta ao recife,
o vagalhão surgiu outra vez, fui arrastado para o mar e para o
afogamento - estava gelado -, não, o mar estava morno, parecia
uma cama de seda, com a espessura de uma braça. Devem ter me
carregado para terra firme e colocado aqui.
- Deve ter sido esta cama que me pareceu tão macia e
quente - disse em voz alta. - Nunca tinha dormido sobre seda
antes. - Sua fraqueza o dominou e ele dormiu um sono sem
sonhos.
Quando despertou, havia mais comida em tigelas de louça e
sua roupa estava ali ao lado, numa pilha caprichosa. Fora lavada,
passada e remendada com pontos minúsculos, perfeitos.
Mas sua faca desaparecera, assim como suas chaves.
É melhor arrumar uma faca, e logo, pensou ele. Ou uma
pistola.
Seus olhos toparam com o crucifixo. Apesar da veneração,
sentiu crescer a excitação. A vida toda ouvira histórias contadas
por pilotos e marinheiros sobre as riquezas inacreditáveis do império secreto de Portugal no Oriente, sobre como haviam convertido os pagãos ao catolicismo e assim os reduziram à escravidão,
sobre o lugar onde o ouro era tão fácil de conseguir quanto lingotes de ferro, e as esmeraldas, rubis, diamantes e safiras eram
tão abundantes quanto seixos numa praia.
Se o que se refere ao catolicismo for verdade, disse ele a si
mesmo, talvez o resto também seja. O resto sobre as riquezas.
Sim. Mas quanto mais depressa eu estiver armado, de volta ao
Erasmus e atrás do canhão, melhor.
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Comeu, vestiu-se e ergueu-se vacilante, sentindo-se fora de
seu elemento como sempre acontecia quando estava em terra.
Faltavam as botas. Dirigiu-se para a porta, cambaleando ligeiramente, e estendeu uma mão para se apoiar, mas os frágeis quadrados de ripas não agüentaram seu peso e se despedaçaram, rasgando o papel. Ele se aprumou. No corredor, a mulher fitava-o
de olhos arregalados, horrorizada.
- Desculpe - disse ele, estranhamente embaraçado com a
própria falta de jeito. A pureza do quarto fora de certo modo
maculada. - Onde estão minhas botas?
A mulher o encarava sem compreender. Então, pacientemente, ele repetiu a pergunta acompanhando-a de sinais, e ela se
precipitou para uma passagem, ajoelhou-se, abriu outra porta de
ripas, e fez-lhe sinal que a seguisse. Havia vozes nas proximidades,
e o som de água corrente. Ele atravessou a porta e encontrou-se
em outro cômodo, também quase sem mobília. Abria-se para uma
varanda com degraus que levavam a um pequeno jardim cercado
por um muro alto. Ao lado dessa entrada principal estavam duas
velhas, três crianças de quimono vermelho e um velho, obviamente um jardineiro, com um ancinho na mão. Imediatamente todos
se curvaram com gravidade e mantiveram a cabeça baixa.
Para seu assombro, Blackthorne viu que o velho, à exceção
de uma tanga estreita, mínima, que mal e mal lhe cobria o sexo,
estava nu.
- 'dia - disse ele, sem saber o que dizer.
Eles permaneceram imóveis, ainda curvados.
Confuso, ele os observou, depois, desajeitadamente, curvouse também. Todos se endireitaram e lhe sorriram. O velho inclinou-se mais uma vez e voltou a seu trabalho no jardim. As crianças olharam-no atentamente e, rindo, saíram correndo. As velhas
desapareceram no interior da casa. Mas ele podia sentir-lhes os
olhos pregados nele.
Viu as botas ao pé da escada. Mas antes que pudesse pegálas, a mulher de meia-ldade já estava de joelhos, para seu constrangimento, ajudando-o a calçá-las.
- Obrigado - disse ele. Pensou um instante e depois apontou para si mesmo: - Blackthorne - disse vagarosamente -
Blackthorne. - Em seguida apontou para ela: - Qual é o seu
nome?
Ela o olhava sem compreender.
- Black-thorne - repetiu ele com cuidado, apontando-se,
e depois apontando para ela: - Qual é o seu nome?
25

Ela franziu o cenho e depois, num transbordamento de compreensão, apontou para si mesma e disse: - Onna! Onna!
- Onna! - repetiu ele, ambos orgulhosos de si mesmos.
- Onna.
Ela assentiu, feliz: - Onna!
O jardim não se parecia com nada que ele tivesse visto antes:
uma pequena cascata, um riacho, uma pontezinha, caminhos de
seixos, cuidados com esmero, rochas, flores e arbustos. É tão
limpo, pensou ele. Tão caprichoso.
- Incrível! - disse.
- Nquerrrriv? - repetiu ela, solícita.
- Nada - disse ele. Depois, sem saber o que mais podia
fazer, afastou-a com um gesto. Obediente, ela curvou-se polidamente e deixou-o.
Blackthorne sentou-se ao sol cálido, encostado a um mourão.
Sentindo-se muito fraco, ficou observando o velho arrancar ervas
daninhas de um jardim já completamente sem ervas daninhas.
Gostaria de saber onde estão os outros. Será que o capitão-mor
ainda está vivo? Quantos dias será que eu dormi? Lembro que
acordei, comi e dormi de novo, uma comida tão desagradável
quanto os sonhos.
As crianças passaram alvoroçadas, correndo umas atrás das
outras, e a nudez do jardineiro fez com que Blackthorne se sentisse embaraçado por elas, pois quando o homem se dobrava ou
se abaixava podia-se ver tudo, e ele estava pasmo de que as crianças parecessem não notar. Por cima do muro viu os telhados de
telhas e de colmo de outras construções e, bem a distância, altas
montanhas. Um vento fresco varria o céu, fazendo avançar os
cúmulos. Havia abelhas à procura de alimento e fazia um dia de
primavera adorável. Seu corpo implorava por mais sono, mas ele
se obrigou a levantar e dirigiu-se para o portão do jardim. O jardineiro sorriu, curvou-se, correu a abrir o portão, curvou-se e
fechou-o atrás dele.
A aldeia erguia-se em torno da enseada em forma de crescente, voltada para leste, umas duzentas casas talvez, diferentes
de todas as que já vira, aninhadas ao pé da montanha que se
estendia até a praia. Acima havia campos dispostos em plataformas e estradas de cascalho, rumando para o norte e para o sul.
Abaixo, o lado que dava para o mar era pavimentado com pedras
arredondadas, e havia uma rampa de lançamento, também de pedra, indo da praia até o mar. uma enseada boa e segura, um
quebra-mar de pedra, homens e mulheres limpando peixe e te26
cendo redes, um barco de projeto inigualável sendo construído no
lado norte. A leste e ao sul, ao largo, havia ilhas. Os recifes deviam estar ali, ou além do horizonte.
Na enseada havia muitos outros barcos de formas esquisitas,
na maioria embarcações de pesca, alguns com uma vela grande,
vários a remo - os remadores mantinham-se em pé e empurravam a água, ao invés de estarem sentados e puxando a água, como
ele teria feito. Alguns dos barcos dirigiam-se para mar aberto,
outros apontavam para o embarcadouro de madeira, e o Erasmus
fora ancorado com habilidade, a cinqüenta jardas da praia, em
boa profundidade, com três cabos na proa. Quem fez isso? perguntou Blackthorne a si mesmo. Havia barcos dos lados do navio,
e ele podia ver nativos a bordo. Mas nenhum dos seus companheiros. Onde poderiam estar?
Olhou em torno na aldeia e tomou consciência das muitas
pessoas que o observavam. Quando viram que ele as havia notado,
todas se curvaram e, ainda pouco â vontade, ele curvou-se em
retribuição. Reiniciou-se uma atividade feliz e eles passaram de
um lado para o outro, parando, regateando, curvando-se uns para
os outros, aparentemente esquecidos dele, como muitas borboletas
multicores. Mas ele sentiu olhos a estudá-lo de cada janela e desvão de porta enquanto caminhava para a praia.
O que há com eles que parece tão esquisito? perguntou
a si mesmo. Não é só a roupa e o comportamento. É... eles não
têm armas, pensou, atônito. Nada de espadas ou pistolas! Por que
será?
Lojas abertas, repletas de mercadorias estranhas e fardos,
alinhavam-se na ruazinha. O soalho das lojas era elevado e os
vendedores e compradores ajoelhavam-se ou acocoravam-se nos
limpos soalhos de madeira. Ele viu que a maioria usava tamancos
ou sandálias de junco, alguns as mesmas meias brancas com sola
grossa, cortadas entre o artelho grosso e o artelho seguinte para
segurar as correias, mas todos deixavam os tamancos e as sandálias do lado de fora. Os que estavam descalços limpavam os pés
e deslizavam em sandálias limpas, de uso interno, à espera deles.
Isso é muito sensato, se se pensa na coisa, disse Blackthorne a si
mesmo, admirado.
Então viu o homem aproximando-se e o medo fluiu-lhe, nauseante, dos testículos para o estômago. O padre era obviamente
português ou espanhol, e embora seu manto ondeante fosse alaranjado não havia dúvida alguma quanto ao rosário e ao crucifixo ao cinto, ou quanto à fria hostilidade em seu rosto. O manto
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estava sujo da viagem e as botas em estilo europeu manchadas de
lama. Olhava a enseada, para o Erasmus, e Blackthorne sabia que
ele devia reconhecer o navio como holandês ou inglês, novo para
a maioria dos mares, mais delgado e veloz, um navio mercante
de combate, copiado e melhorado a partir dos navios piratas ingleses que haviam causado tanta devastação ao Spanish Main.
Com o padre estavam dez nativos, de cabelos e olhos pretos, um
vestido como ele, exceto por ter chinelos de tiras. Os outros usavam mantos multicoloridos ou calças folgadas ou simplesmente
tangas. Mas nenhum deles estava armado.
Blackthorne quis correr enquanto havia tempo, mas sabia
que não tinha forças para isso e não havia lugar algum onde se
esconder. Sua altura, o tamanho e a cor dos cabelos o tornavam
discrepante naquele mundo. Pôs-se de costas contra o muro.
- Quem é você? - disse o padre em português. Era um
homem magro, moreno, bem nutrido, com seus vinte e cinco anos,
e uma longa barba.
- Quem é você? - disse Blackthorne, sustentando-lhe o
olhar.
- Aquele é um navio pirata neerlandês. Você é um herege
holandês. São piratas. Deus tenha piedade de vocês!
- Não somos piratas. Somos pacíficos mercadores, exceto
para os nossos inimigos. Sou o piloto daquele navio. Quem é você?
- Padre Sebastio. Como foi que chegou aqui? Como?
- Fomos atirados na praia. Que lugar é este? O Japão?
- Sim, o Japão, Nippon - disse o padre com impaciência.
Voltou-se para um dos homens, mais velho do que os demais,
pequeno e magro, com braços fortes e mãos calejadas, o alto da
cabeça raspado e o resto do cabelo puxado para cima num rabo
fininho, tão grisalho quanto suas sobrancelhas. O padre faloulhe num japonês vacilante, apontando para Blackthorne. Ficaram
todos chocados e um deles fez o sinal-da-cruz, protegendo-se.
- Holandeses são hereges, rebeldes e piratas. Qual é o seu
nome?
- Este povoado é português?
Os olhos do padre estavam duros e injetados. - O chefe da
aldeia diz que avisou as autoridades sobre você. Seus pecados
deram cabo de você. Onde está o resto da sua tripulação?
- Fomos desviados da rota. Só precisamos de comida, água
e tempo para consertar o nosso navio. Depois partiremos. Podemos pagar cada.. .
- Onde está o resto da sua tripulação?
- Não sei. A bordo. Acho que estão a bordo.
O padre interrogou novamente o chefe, que respondeu e gesticulou para a outra extremidade da aldeia, explicando detalhadamente. O padre voltou-se para Blackthorne. - Aqui os criminosos
são crucificados, piloto. Você vai morrer. O daimio está vindo
com os samurais. Deus tenha piedade de você.
- O que é "daimio"?
- Um senhor feudal. É o dono desta província toda. Como
você chegou aqui?
- E "samurais"?
- Guerreiros, soldados, membros da casta guerreira - disse
o padre, com irritação crescente. - De onde veio e quem é você?
- Não reconheço o seu sotaque - disse Blackthorne, para
desconcertá-lo. - Você é espanhol?
- Sou português - enfureceu-se o padre, mordendo a isca.
- Já lhe disse, sou o Padre Sebastio, de Portugal. Onde você
aprendeu um português tão bom, hein?
- Mas Portugal e Espanha são o mesmo país, agora -
disse Blackthorne, com escárnio. - Vocês têm o mesmo rei.
- Somos uma nação separada. Somos um povo diferente.
Sempre fomos. Hasteamos nossa própria bandeira. Nossas possessões ultramarinas são separadas, sim, separadas. O Rei Filipe concordou com isso quando roubou meu país. - O Padre Sebastio
controlou-se com esforço, os dedos tremendo. - Tomou meu país
à força de armas há vinte anos! Seus soldados e aquele tirano
espanhol gerado pelo Demônio, Duque de Alba, aniquilaram o
nosso verdadeiro rei. Que va! Agora o filho de Filipe reina, mas
também não é nosso verdadeiro rei. Brevemente teremos o nosso
próprio rei de volta. - E acrescentou, maldoso: - Você sabe
que isso é verdade. O que o perverso Alba fez ao seu país, fez
ao meu.
- Isso é mentira. Alba foi um flagelo na Neerlândia, mas
nunca a conquistou. Ela ainda é livre. Sempre será. Mas em Portugal ele esmagou um pequeno exército e o país todo capitulou.
Não há coragem. Vocês podiam expulsar os espanhóis, se quisessem, mas nunca o farão. Não têm cojones. Exceto para queimar
inocentes em nome de Deus.
- Que Deus o queime no fogo do inferno por toda a eternidade - vociferou o padre. - Satã vaga pelo mundo, mas será
aniquilado. Os hereges serão aniquilados. Você é maldito diante
de Deus!
Malgrado seu, Blackthorne sentiu o terror religioso começar
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a se erguer dentro dele. - Os padres não têm o ouvido de Deus,
nem falam com a sua voz. Somos livres do seu jugo miserável, e
vamos permanecer livres!
Fazia só quarenta anos que Maria Tudor, a Sanguinária, fora
rainha da Inglaterra e o espanhol Filipe II, o Cruel, seu marido.
Essa filha de Henrique VIII, profundamente religiosa, trouxera
de volta à Inglaterra os padres católicos, os inquisidores, os julgamentos de heresia e o domínio do papa estrangeiro, e revogara
as restrições do pai e as mudanças históricas da Igreja de Roma
na Inglaterra, contra a vontade da maioria. Reinara durante cinco
anos, e o reino fora dilacerado pelo ódio, o medo e a carnificina.
Mas havia morrido e Elizabeth se tornara rainha aos vinte e
quatro anos. Blackthorne sentia-se pleno de admiração e amor
filial quando pensava em Elizabeth. Fazia quarenta anos que ela
guerreava contra o mundo. Havia superado e batido papas, o
Santo Império Romano, a França e a Espanha, todos juntos.
Excomungada, desprezada, injuriada no exterior, levou-nos para
a enseada - a salvo, fortes, independentes.
- Somos livres - disse Blackthorne ao padre. - Vocês
estão arruinados. Temos nossas próprias escolas agora, nossos livros, nossa Bíblia, nossa Igreja. Vocês, espanhóis, são todos iguais.
Lixo! Vocês, frades, são todos iguais. Adoradores de ídolos!
O padre ergueu o crucifixo e segurou-o entre si e Blackthorne
como um escudo.
- Oh, Deus, proteja-nos deste mal! Não sou espanhol, já
lhe disse! Sou português. E não sou frade. Sou irmão da Sociedade
de Jesus!
- Ah, um deles, um jesuíta!
- Sim. Que Deus tenha piedade da sua alma! - O Padre
Sebastio disse rispidamente alguma coisa em japonês e os homens
lançaram-se na direção de Blackthorne. Este se apoiou contra o
muro e atingiu um homem com força, mas os outros caíram-lhe
em cima como um enxame e ele se sentiu sufocar.
- Nanigoto da?
Abruptamente a escaramuça cessou.
O jovem estava a dez passos de distância. Usava calções,
tamancos e um quimono leve, e trazia duas espadas embainhadas
presas ao cinto. Uma parecia uma adaga. A outra, uma espada
para ser manejada com as duas mãos, mortífera, era comprida e
ligeiramente curva. O homem tinha a mão direita casualmente
sobre o punho dela.
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- Nanigoto da? - perguntou rudemente, e como ninguém
respondesse instantaneamente: - NANIGOTO DA?
Os japoneses caíram de joelhos, cabeça inclinada até o pó.
Somente o padre permaneceu em pé. Fez uma mesura e começou
a explicar vacilante, mas o homem, desdenhoso, ignorou-o rudemente e apontou para o chefe: - Mura!
Mura, o chefe da aldeia, manteve a cabeça baixa e começou
a explicar rapidamente. Apontou várias vezes para Blackthorne,
uma para o navio e duas para o padre. Agora não havia movimento algum na rua. Todas as pessoas visíveis estavam ajoelhadas
o de cabeça bem baixa. O chefe terminou.
Arrogantemente o homem armado fez algumas perguntas, a
que o outro respondeu com deferência e presteza. Então o soldado disse algo ao chefe, acenou com desprezo declarado para o
padre, depois para Blackthorne, e o homem grisalho traduziu para
o padre, que enrubesceu.
O homem que era uma cabeça mais baixo e muito mais jovem
do que Blackthorne, com um belo rosto ligeiramente marcado de
varíola, fixou o olhar no estrangeiro: - Onushi ittai doko kara
kitanida? Doko no kuni no monoda?
Disse o padre, nervosamente: - Kasigi Omi-san pergunta
de onde você vem e qual é a sua nacionalidade.
- O Sr. Omisan é o daimio? - perguntou Blackthorne, com
medo das espadas, malgrado seu.
- Não. É um samurai, o samurai encarregado da aldeia.
O sobrenome dele é Kasigi. Omi é o nome. Aqui eles sempre põem
o sobrenome na frente. "San" significa "honorável", e se acrescenta a todos os nomes como polidez. Você faria melhor aprendendo a ser polido e tratando de encontrar bons modos rapidamente. Aqui não se tolera falta de modos. - Sua voz tornou-se
cortante. - Responda logo, vamos!
- Amsterdam. Sou inglês.
O choque do Padre Sebastio foi evidente. Disse "inglês, Inglaterra" ao samurai e iniciou uma explicação, mas Omi, impaciente, interrompeu-o abruptamente e vociferou uma torrente de
palavras.
- Omi-san pergunta se você é o comandante. O chefe da
aldeia diz que só alguns de vocês, hereges, estão vivos, e a maioria está doente. Há um capitão-mor?
- Sou o comandante - respondeu Blackthorne, ainda que,
na verdade, agora que estavam em terra, o capitão-mor estivesse
no comando. - Estou no comando - acrescentou, sabendo que
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o Capitão-Mor Spillbergen não podia comandar nada, em terra
ou em curso, mesmo quando estava apto e bem.
Outra enxurrada de palavras do samurai. - Omi-san diz
que, como você é o comandante, tem permissão para andar pela
aldeia livremente, por onde quiser, até que o senhor dele chegue.
O senhor dele, o daimio, decidirá a sua sorte. Até lá você tem
permissão para viver como hóspede na casa do chefe da aldeia e
para ir e vir como lhe convier. Mas não deve sair da aldeia. Seus
homens estão confinados na casa onde se encontram e não estão
autorizados a deixá-la. Compreendeu?
- Sim. Onde está a minha tripulação?
o Padre Sebastio apontou vagamente para um amontoado de
casas perto de um desembarcadouro, obviamente desolado com
a decisão e a impaciência de Omi. - Lá! Aproveite sua liberdade, pirata. Seu mal deu cabo de...
- Wakarimasu ka? - disse Omi diretamente a Blackthorne.
- Ele disse: "Você compreende?"
- Como é"'sim" em japonês?
o Padre Sebastio disse ao samurai: - Wakarimasu.
Desdenhosamente, Omi afastou-se com um gesto. Todos se
curvaram profundamente. Exceto um homem, que se ergueu deliberadamente, sem se curvar.
Com uma velocidade cegante, a espada mortífera descreveu
um sibilante arco prateado no ar e a cabeça do homem tomboulhe de sobre os ombros, e uma fonte de sangue jorrou sobre a
terra. O corpo agitou-se algumas vezes até ficar imóvel. Involuntariamente o padre havia recuado um passo. Ninguém mais na
rua movera um músculo. Permaneciam de cabeça baixa e imóveis. Blackthorne estava rígido, horrorizado.
Omi pôs o pé descuidadamente sobre o cadáver.
- Ikinasai! - disse, gesticulando para que se fossem.
Os homens à sua frente curvaram-se de novo, até o chão.
Depois ergueram-se e se afastaram, impassíveis. A rua começou a
se esvaziar. E as lojas.
o Padre Sebastio baixou os olhos para o corpo. Gravemente
fez o sinal-da-cruz sobre ele e disse: - In nomine Patris et Filii
et Spiritus Sancti. - Devolveu o olhar do samurai, sem medo
agora.
- Ikinasai! - A ponta da espada que surgira de repente
continuava no corpo. Após um longo momento o padre voltou-se
e afastou-se. Com dignidade. Omi observou-o um instante, depois
deu uma olhada a Blackthorne. Este recuou e, quando se viu a
32
uma distância segura, dobrou rapidamente uma esquina e desapareceu.
Omi começou a rir ruidosamente. A rua estava vazia agora.
Quando a risada se esgotou, ele agarrou a espada com ambas as
mãos e começou metodicamente a cortar o corpo em pedacinhos.
Blackthorne estava num pequeno barco, o barqueiro remando
alegremente em direção ao Erasmus. Não tivera dificuldade em
conseguir o barco e podia ver homens no convés principal. Eram
todos samurais. Alguns tinham peitoral de aço, mas a maioria
usava simples quimonos, como eram chamados os trajes, e as duas
espadas. Todos usavam o cabelo do mesmo jeito: o topo da
cabeça raspado e o cabelo, atrás e dos lados, reunido num
rabo, com óleo, depois dobrado sobre a coroa e habilmente
amarrado. Apenas os samurais podiam usar esse estilo e, para eles,
era obrigatório. Apenas os samurais podiam usar as duas espadas
- sempre a comprida, mortífera, para ser usada com as duas
mãos, e a curta, parecida com adaga -, e para eles as espadas
eram obrigatórias.
Os samurais alinharam-se ao longo das amuradas do navio
dele, observando-o.
Cheio de inquietação, subiu ao passadiço e dirigiu-se para o
convés. Um samurai, mais elaboradamente vestido do que os
outros, veio-lhe ao encontro e curvou-se. Blackthorne aprendera
bem e correspondeu à reverência de maneira idêntica, e todo
mundo no convés sorriu cordialmente. Ele ainda sentia o horror da
matança repentina na rua, e os sorrisos deles não lhe acalmaram
os pressentimentos. Foi até a gaiúta e parou abruptamente. Colada
na porta, de lado a lado, havia uma larga faixa de seda vermelha
e, ao lado dela, um pequeno sinal numa escrita estranha e coleante. Hesitou, examinou a outra porta, mas também essa estava
lacrada com uma faixa semelhante, e havia um sinal igual pregado
ao tabique.
Estendeu a mão para remover a seda.
- Hotté oké! - Para deixar a coisa absolutamente clara, o
samurai de guarda meneou a cabeça. Já não estava sorrindo.
- Mas este navio é meu e eu... - Blackthorne conteve a
própria ansiedade, de olhos nas espadas. Tenho que ir lá para
baixo, pensou. Tenho que pegar os portulanos, o meu e o secreto.
Jesus Cristo, se forem encontrados e dados aos padres ou aos japo33
neses, estamos liquidados. Qualquer tribunal do mundo - afora na
Inglaterra e na Neerlândia - nos condenaria como piratas com
essa evidência. Meu portulano dá datas, lugares, quantidades de
saques pilhados, o número de mortos nos nossos três desembarques
nas Américas e na África espanhola, o número de igrejas saqueadas, e como queimamos cidades e embarcações. E o português?
Esse é a nossa sentença de morte, pois naturalmente foi roubado.
No mínimo fora comprado de um traidor português, e pela lei
deles qualquer estrangeiro apanhado de posse de qualquer dos
portulanos deles, para não mencionar um que desvendasse o
estreito de Magalhães, devia ser morto imediatamente. E se o
portulano fosse encontrado a bordo de um navio inimigo, o navio
devia ser queimado e todos a bordo executados sem piedade.
- Nan noyoda? - disse um dos samurais.
- Você fala português? - perguntou Blackthorne nessa
língua.
o homem resmungou: - Wakarimasen.
Um outro se aproximou e respeitosamente falou ao chefe,
que assentiu concordando.
- Portugueis amigu - disse o samurai em português com
um sotaque pesado. Abriu o alto do quimono e mostrou o pequeno
crucifixo de madeira que lhe pendia ao pescoço.
- Cristão! - Apontou para si mesmo e sorriu. - Cristão.
- Apontou para Blackthorne: - Cristão, ka?
Blackthorne hesitou, assentiu: - Cristão.
- Portugueis?
- Inglês.
o homem tagarelou com o chefe, depois ambos deram de
ombros e olharam para ele: - Portugueis?
Blackthorne balançou a cabeça, não querendo discordar deles
em nada. - Meus amigos? Onde?
o samurai apontou na direção da extremidade leste da aldeia.
- Amigos.
- Este é o meu navio. Quero ir lá embaixo. - Disse isso
de várias maneiras e com sinais, e eles compreenderam.
- Ah, so desu! Kinjiru! - disseram enfaticamente, indicando os avisos, e sorriram.
Estava absolutamente claro que ele não era autorizado a
descer. "Kinjiru" deve significar "proibido", pensou Blackthorne
irritado. Bem, que vá para o inferno! Agarrou o trinco da porta e
abriu-a parcialmente.
- KINJIRU!
34
Fizeram-no voltar-se com um empurrão para encará-los. Suas
espadas estavam meio desembainhadas. Imóveis os dois homens
esperaram que ele mudasse de idéia. Alguns outros, no convés,
observavam impassíveis.
Blackthorne sabia que não tinha opção a não ser recuar, de
modo que sacudiu os ombros e afastou-se para examinar as amarras e o navio o melhor que podia. As velas esfarrapadas estavam
arriadas e amarradas. Mas as cordas eram diferentes de quaisquer
outras que, já tivesse visto, de modo que presumiu que tivessem
sido os japoneses que haviam posto a embarcação em segurança.
Começou a descer o passadiço e parou. Suou frio quando viu
todos a fitá-lo malevolamente e pensou: Jesus Cristo, como pude
ser tão estúpido! Curvou-se polidamente e imediatamente a hostilidade desvaneceu-se e todos se curvaram, novamente sorridentes.
Mas ele ainda sentia o suor escorrendo-lhe pela espinha e odiou
tudo o que se relacionava ao Japão, desejou estar com a sua tripulação, de volta a bordo, armado, e ao largo.
- Pelo Senhor Jesus, acho que você está errado, piloto -
disse Vinck. Seu sorriso desdentado era largo e obsceno. - Se
a gente conseguir suportar a lavagem que eles chamam de comida,
este é o melhor lugar onde já estive. Tive duas mulheres em três
dias e elas são como coelhos. Fazem qualquer coisa desde que a
gente lhes mostre como.
- Tem razão. Mas não se pode fazer nada sem carne ou
conhaque. Nem por muito tempo. Estou esgotado, e só pude dar
uma - disse Maetsukker, contraindo o rosto estreito. - Esses
bastardos amarelos não vão compreender que precisamos de carne,
cerveja e pão. E conhaque ou vinho.
- Isso é o pior! Senhor Jesus, meu reino por um grogue!
- Baccus van Nekk estava cheio de melancolia. Aproximou-se,
parou junto de Blackthorne e examinou-o atentamente. Era muito
míope e perdera o último par de óculos na tempestade. Mas
mesrro com eles, sempre parava tão perto das pessoas quanto
possí iel. Era chefe dos mercadores, tesoureiros e representante da
Companhia das Índias Orientais Holandesas, que havia levantado
o dinheiro para a viagem. - Estamos em terra, a salvo, e ainda
não bebi nada! Nem uma linda gota! Terrível. Você conseguiu
alguma bebida, piloto?
- Não. - Blackthorne não gostava que ninguém ficasse
35
tão perto, mas Baccus era um amigo e quase cego, por isso não
se afastou.
- Só água quente com ervas.
- Eles simplesmente não vão compreender o que é grogue.
Nada para beber além de água quente e ervas. Que o bom Deus
nos ajude! Imagine se não houver álcool no país todo! - Suas
sobrancelhas se ergueram. - Faça-me um enorme favor, piloto,
peça alguma bebida, sim?
Blackthorne encontrara a casa que lhes fora designada na
extremidade oriental da aldeia. O guarda samurai o deixara passar,
mas seus homens confirmaram que não podiam sair além do
portão do jardim. A casa tinha muitos cômodos, como a sua,
mas era maior e equipada com muitos criados de idades variadas,
tanto homens quanto mulheres.
Onze de seus homens estavam vivos. Os mortos tinham sido
levados pelos japoneses. Generosas porções de verduras frescas
haviam começado a afugentar o escorbuto, e todos eles, exceto
dois, estavam sarando rapidamente. Aqueles dois tinham sangue
nos intestinos e hemorragias nas vísceras. Vinck lhes fizera uma
sangria, mas isso não ajudara. Esperava que morressem ao anoitecer. O capitão-mor, em outro quarto, ainda estava muito doente.
Sonk, o cozinheiro, um homenzinho atarracado, estava dizendo com uma risada: - É bom aqui, como diz Johann, piloto,
com exceção da comida e de não haver grogue. Está tudo bem
com os nativos desde que não se ande de sapatos na casa deles.
Esses bastardinhos amarelos ficam loucos se a gente não tira o
sapato.
- Ouçam - disse Blackthorne -, há um padre aqui. Um
jesuíta.
- Jesus Cristo! - As pilhérias desapareceram completamente quando ele lhes falou sobre o padre e sobre a decapitação.
- Por que ele cortou a cabeça do homem, piloto?
- Não sei.
- É melhor voltarmos para bordo. Se os papistas nos pegam
em terra ...
Havia um medo intenso na sala agora. Salamon, o mudo,
observava Blackthorne. Mexia a boca, uma bolha de catarro aparecendo nos cantos.
- Não, Salamon, não há engano algum - disse Blackthorne
gentilmente, respondendo à pergunta silenciosa. - Ele disse que
era jesuíta.
- Cristo, jesuíta, dominicano ou seja que diabo for, não
36
faz a mínima diferença - disse Vinck. - É melhor voltarmos
para bordo. Piloto, você pede àquele samurai, hein?
- Estamos nas mãos de Deus - disse Jan Roper. Era um
dos mercadores aventureiros, um homem jovem, de olhos apertados, com uma testa alta e um nariz fino. - Ele nos protegerá
contra os adoradores de Satã.
Vinck olhou para Blackthorne. - E quanto aos portugueses,
piloto? Viu algum por aí?
- Não. Não há sinal algum deles na aldeia.
- Vão todos se aglomerar aqui assim que souberem de nós.
- Maetsukker disse isso por todos e o jovem Croocq deixou
escapar um gemido.
- Sim, e se há um padre, tem que haver outros. - Ginsel
lambeu os lábios secos. - E depois, os amaldiçoados conquistadores deles nunca estão muito longe.
- Tem razão - acrescentou Vinck, inquieto. - Eles são
como piolhos.
- Jesus Cristo! Papistas! - resmungou alguém. - E conquistadores!
- Mas estamos no Japão, piloto? - perguntou Van Nekk.
- Ele lhe disse isso?
- Sim. Por quê?
Van Nekk aproximou-se e baixou a voz. - Se os padres
estão aqui e alguns nativos são católicos, talvez a outra parte seja
verdade, a que fala de riquezas, ouro, prata e pedras preciosas.
- Um silêncio se abateu sobre eles. - Viu alguma coisa, piloto?
Algum ouro? Alguma gema nos nativos, ou ouro?
- Não. Nada. - Blackthorne pensou um instante. - Naao
lembro de ter visto. Nenhum colar, pérola ou bracelete. Ouçam,
há mais uma coisa a dizer-lhes. Fui a bordo do Erasmus, mas
ele está lacrado. - Relatou o que acontecera e a ansiedade deles
aumentou.
- Jesus, se não podemos voltar para bordo e há padres
em terra e papistas... Temos que dar o fora daqui. - A voz
de Maetsukker começou a tremer. - Piloto, o que vamos fazer?
Vão nos queimar! Conquistadores... esses bastardos vão saber
como usar as espadas.
- Estamos nas mãos de Deus - lembrou Jan Roper confiantemente. - Ele nos protegerá do Anticristo. Foi essa a promessa dele. Não há nada a temer.
- O modo como o samurai Omi-san gritou com o padre ...
tenho certeza de que o odeia - disse Blackthorne. - Isso é
37

bom, hein? O que eu gostaria de saber é por que o padre não
estava usando os trajes normais. Por que o manto alaranjado?
Nunca vi isso antes.
Sim, é curioso - disse Van Nekk.
Blackthorne encarou-o: - Talvez a posição deles aqui não
seja forte. Isso poderia nos ajudar enormemente.
- O que devemos fazer, piloto? - perguntou Ginsel.
- Ter paciência e esperar até que o chefe deles, o daimio,
chegue. Ele nos deixará partir. Por que não? Não lhe fizemos
mal algum. Temos mercadorias para comerciar. Não somos piratas. Não temos nada a temer.
- Absolutamente certo, e não se esqueçam de que o piloto
disse que os selvagens não são todos papistas - disse Van Nekk,
mais para encorajar a si mesmo do que aos outros. - Sim. É
bom que os samurais odeiem o padre. E são os samurais que
estão armados. Não é tão mau assim, hein? Simplesmente estar
atentos aos samurais e recuperar nossas armas, é essa a idéia.
Estaremos a bordo antes que vocês se dêem conta.
- O que acontecerá se o daimio for papista? - perguntou
Jan Roper.
Ninguém lhe respondeu. Depois Ginsel disse: - Piloto, o
homem com a espada? Ele cortou o outro em pedaços, depois
de lhe arrancar a cabeça?
- Sim.
- Cristo! São bárbaros! Lunáticos! - Ginsel era um jovem
alto, de boa aparência, braços curtos e pernas muito arqueadas.
O escorbuto lhe levara todos os dentes. - Depois que lhe arrancou a cabeça fora, os outros simplesmente se afastaram? Sem
dizer nada?
- Sim.
- Jesus Cristo, um homem desarmado, assassinado assim?
Por que ele fez isso? Por que o matou?
- Não sei, Ginsel. Mas você nunca viu tamanha rapidez.
Num momento a espada estava embainhada, no momento seguinte
a cabeça do homem estava rolando.
- Deus nos proteja!
- Meu amado Senhor Jesus - murmurou Van Nekk -,
se não pudermos voltar ao navio... Deus amaldiçoe aquela tempestade, sinto-me tão indefeso sem os óculos!
- Quantos samurais estavam a bordo, piloto? - perguntou
Ginsel.
- Vinte e dois no convés. Mas havia mais na praia.
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- A ira do Senhor recairá sobre os pagãos e pecadores, e
eles arderão no inferno por toda a eternidade.
- Gostaria de ter certeza disso, Jan Roper - disse Blackthorne, um nervosismo na voz, como se sentisse o medo de que
a vingança de Deus se derramasse pela sala. Estava muito cansado
e queria dormir.
- Pode ter certeza, piloto. Oh, sim, eu tenho. Rezo para que
seus olhos se abram para a verdade de Deus. Para que você
venha a entender que estamos aqui apenas por sua causa, o que
restou de nós.
- O quê? - disse Blackthorne perigosamente.
- Por que foi, realmente, que você convenceu o capitãomor a tentar encontrar o Japão? Não fazia parte das nossas ordens. Devíamos pilhar o Novo Mundo, levar a guerra para dentro
das fronteiras do inimigo, depois ir para casa.
- Havia navios espanhóis ao sul e ao norte, e lugar
algum para onde fugir. Perdeu a memória junto com os miolos?
Tivemos que navegar para oeste, era a nossa única chance.
- Em momento algum eu vi inimigos, piloto. Nenhum de
nós viu.
- Ora, vamos, Jan - disse Van Nekk, cansado. - O piloto
fez o que julgou melhor. Claro que os espanhóis estavam lá.
- Sim, essa é a verdade, e estávamos a milhares de léguas
de quaisquer amigos e em águas inimigas, por Deus! - falou
Vinck rapidamente. - Essa é a verdade de Deus, e a verdade de
Deus foi que pusemos a coisa em votação. Nós todos dissemos sim.
- Eu não.
- A mim ninguém perguntou - disse Sonk.
- Oh, Jesus Cristo!
- Acalme-se, Johann - disse Van Nekk, tentando aliviar a
tensão.
- Somos os primeiros a atingir o Japão. Lembram-se das
histórias todas, hein? Se conservarmos os miolos, estaremos ricos.
Temos mercadorias para comerciar e há ouro aqui, tem que haver.
Onde mais poderíamos vender nossa carga? Não lá no Novo
Mundo, caçados e acossados. Estavam nos caçando e os espanhóis sabiam que estávamos ao largo de Santa María. Tivemos
que abandonar o Chile e não havia como escapar de volta através
do estreito - claro que eles estariam de tocaia à nossa espera,
claro que estariam! Não, aqui estava a nossa única chance e foi
uma boa idéia. Nossa carga trocada por especiarias, ouro e prata,
hein? Pensem no lucro - o normal é de mil vezes. Estamos nas
39

ilhas das especiarias. Vocês conhecem as riquezas do Japão e de
Catai, vocês sempre ouviram falar nelas. Nós todos ouvimos. Por
que outro motivo nós todos nos engajamos? Ficaremos ricos,
vocês verão!
- Somos homens mortos, como os outros todos. Estamos
na terra de Satã.
- Cale a boca, Roper! - disse Vinck, zangado. - O piloto
agiu certo. Não é culpa dele que os outros tenham morrido, não
é culpa dele. Sempre morrem homens nestas viagens.
Os olhos de Jan Roper estavam injetados, as pupilas minúsculas. - Sim, Deus guarde a alma deles. Meu irmão foi um.
Blackthorne olhou dentro daqueles olhos fanáticos, odiando
Jan Roper. Interiormente perguntava a si mesmo se realmente
havia navegado para oeste a fim de se esquivar dos navios inimigos. Ou teria sido porque ele era o primeiro inglês atravessando
o estreito, o primeiro em posição, pronto e capaz de penetrar
para oeste, e por isso o primeiro com a chance de circunavegar o
globo?
- Os outros não morreram por causa da sua ambição, piloto? Deus o castigará! - sibilou Jan Roper.
- Agora cale a boca. - A palavra de Blackthorne foi gentil
e final.
Jan Roper sustentou-lhe o olhar com a mesma cara gelada
de traços acentuados, mas ficou de boca fechada.
- Bom. - Blackthorne sentou-se pesadamente no chão e
apoiou-se contra um dos pilares.
- O que devemos fazer, piloto?
- Esperar e sarar. O chefe deles virá logo, então teremos
tudo arranjado.
Vinck olhava para o jardim lá fora, para o samurai sentado
imóvel sobre os calcanhares, ao lado do portão. - Olhem aquele
bastardo. Está lá há horas, nunca se mexe, nunca diz nada, nem
cutuca o nariz.
- Mas ele não representa problema algum, Johann. Nenhum
em absoluto - disse Van Nekk.
- Sim, mas tudo o que fizemos até agora foi dormir, fornicar e comer a lavagem.
- Piloto, ele é apenas um homem. Nós somos dez - disse
Ginsel tranqüilamente.
- Pensei nisso. Mas ainda não estamos bem o suficiente.
Vai levar uma semana para que o escorbuto passe - respondeu
Blackthorne, preocupado. - Há muitos deles a bordo. Eu não
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gostaria de me ocupar sequer de um sem uma lança ou uma
pistola. Vocês são vigiados à noite?
- Sim. Trocam a guarda três ou quatro vezes. Alguém viu
uma sentinela pegar no sono? - perguntou Van Nekk.
Balançaram a cabeça.
- Poderíamos estar a bordo esta noite - disse Jan Roper.
- Com a ajuda de Deus subjugaremos os pagãos e tomaremos
o navio.
- Limpe a merda dos seus ouvidos! O piloto acabou de lhe
dizer! Você não ouve? - exclamou Vinck, contrariado.
- Está certo - concordou Pieterzoon, um artilheiro. -
Pare de importunar o velho Vinck!
Os olhos de Jan Roper apertaram-se ainda mais. - Cuidado
com a sua alma, Johann Vinck. E com a sua, Hans Pieterzoon.
O Dia do Juízo se aproxima. - Afastou-se e foi sentar na
varanda.
Van Nekk rompeu o si encio. - Tudo vai dar certo. Vocês
verão.
- Roper está certo. Foi a ganancia que nos pôs aqui
disse o jovem Croocq, a voz trêmula. - Foi o castigo de Deus
que...
- Pare com isso!
O rapaz estremeceu. - Sim, piloto. Desculpe, mas bem ...
- Maximilian Croocq era o mais novo deles, tinha só dezesseis
anos, e fora engajado para a viagem porque seu pai era o capitão
de um dos navios e eles iam fazer fortuna. Mas vira o pai ter uma
péssima morte quando saquearam a cidade espanhola de Santa
Magdellana, na Argentina. O butim fora bom, e ele vira o que era
estupro e o experimentara, odiando a si mesmo, saturado de cheiro
de sangue e de matança. Mais tarde vira morrer mais amigos seus
e os cinco navios tornarem-se um, e agora se sentia como o mais
velho de todos. - Desculpe. Desculpe.
- Há quanto tempo estamos em terra, Baccus? - perguntou Blackthorne.
- Este é o terceiro dia. - Van Nekk aproximou-se de novo,
pôs-se de cócoras. - Não me lembro da chegada com muita clareza, mas quando acordei os selvagens estavam por todo o navio.
Mas muito polidos e gentis. Deram-nos comida e água quente.
Levaram embora os mortos e lançaram as âncoras. Não lembro
muito, mas acho que nos rebocaram para um ancoradouro seguro.
Você delirava quando o carregaram para a praia. Quisemos conservá-lo conosco, mas não deixaram. Um deles falava algumas
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palavras em português. Parecia ser o chefe, tinha o cabelo grisalho. Não entendia "piloto-mor", mas conhecia "capitão". Ficou
absolutamente claro que ele queria que o nosso "capitão" tivesse
alojamento diferente do nosso, mas disse que não precisávamos
nos preocupar, porque você seria bem cuidado. Nós também. Depois nos guiou para cá, a maioria veio carregada, e disse que
devíamos ficar dentro de casa até que o capitão dele viesse. Não
queríamos deixar que o levassem, mas não havia nada que pudéssemos fazer. Você perguntará ao chefe sobre vinho ou conhaque,
piloto? - Van Nekk lambeu os lábios, sedento, e acrescentou:
- Agora que penso nisso, ele também mencionou "daimio".
O que vai acontecer quando o daimio chegar?
- Alguém tem uma faca ou pistola?
- Não - disse Van Nekk, coçando distraído os piolhos
na cabeça. - Levaram todas as nossas roupas para limpar e ficaram com as armas. Não pensei nada sobre isso na hora. Também pegaram minhas chaves, assim como a minha pistola. Eu
tinha todas as minhas chaves numa argola. A da sala forte, da
caixa-forte e do paiol.
- Está tudo muito bem trancado a bordo. Não é preciso se
preocupar com isso.
- Não gosto de estar sem as minhas chaves. Fico muito
nervoso. Malditos olhos os meus. Eu saberia como usar um conhaque bem agorinha. Até um frasco de cerveja.
- Jesus! O samiri cortou-o em pedaços, foi? - disse Sonk
a ninguém em particular.
- Pelo amor de Deus, cale a boca. É "samurai". Você sozinho é suficiente para fazer um homem se borrar todo - disse
Ginsel.
- Espero que aquele padre bastardo não venha aqui -
disse Vinck.
- Estamos seguros nas mãos do bom Deus. - Van Nekk
ainda estava tentando soar confiante. - Quando o daimio vier,
seremos libertados. Recuperaremos nosso barco e nossas armas.
Vocês verão. Venderemos toda a nossa mercadoria e voltaremos
à Holanda e a salvo, depois de termos dado a volta ao mundo, os
primeiros holandeses a conseguirem isso. Os católicos irão para o
inferno e isso é o fim da história.
- Não, não é - disse Vinck. - Papistas fazem a minha
pele se arrepiar toda. Não posso evitar isso. Isso e a idéia de conquistadores. Acha que chegarão em grande número, piloto?
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- Não sei. Diria que sim! Gostaria que tivéssemos toda a
nossa esquadra aqui.
- Pobres bastardos - disse Vinck. - Pelo menos estamos
vivos.
- Talvez tenham voltado para casa - disse Maetsukker.
- Talvez tenham voltado de Magalhães, quando a tempestade
nos dispersou.
- Espero que você esteja certo - disse Blackthorne. - Mas
acho que estão completamente perdidos.
Ginsel estremeceu. - Pelo menos estamos vivos.
- Com papistas aqui e esses pagãos miseráveis, eu não daria
um peido de puta velha pelas nossas vidas.
- Maldito o dia em que saí da Holanda! - disse Pieterzoon.
- Maldito grogue! Se eu não estivesse mais bêbado do que a
cadela de um violinista, ainda estaria em Amsterdam, com a minha velha.
- Amaldiçoe o que quiser, Pieterzoon. Mas não a bebida.
É a substância da vida.
- Eu diria que estamos num cano de esgoto, enterrados até
o queixo, e a maré está subindo depressa. - Vinck girou os olhos
nas órbitas. - Sim, muito depressa.
- Nunca pensei que atingiríamos terra - disse Maetsukker.
Parecia-se com um furão, exceto que não tinha dentes. - Nunca.
E menos ainda o Japão. Papistas nojentos e fedorentos! Nunca
sairemos vivos daqui! Gostaria que tivéssemos algumas armas. Que
desembarque podre! Eu não quis dizer nada, piloto - apressou-se
a esclarecer, quando Blackthorne o olhou -, apenas má sorte,
isso é tudo.
Mais tarde os criados lhes trouxeram comida de novo. Sempre a mesma coisa: verduras - cozidas e cruas - com um pouco
de vinagre, sopa de peixe e o mingau de trigo ou cevada. Todos
desprezaram os pedacinhos de peixe cru e pediram carne e bebida.
Mas não foram compreendidos, e depois, quase ao pôr-do-sol,
Blackthorne foi embora. Cansara-se dos medos deles, dos ódios e
obscenidades. Dissê-lhes que voltaria após o amanhecer.
Nas ruas estreitas, as lojas estavam movimentadas. Achou a
sua rua e o portão da casa. As manchas na terra tinham sido
varridas e o corpo desaparecera. É quase como se eu tivesse sonhado a coisa toda, pensou. O portão do jardim abriu-se antes que
ele pudesse tocá-lo.
O velho jardineiro, ainda de tanga, embora o vento estivesse
fresco, sorriu e curvou-se. - Konbanwa.
43

- Alô - disse Blackthorne, sem pensar. Subiu os degraus,
parou, lembrando-se das botas. Tirou-as e foi descalço até a varanda e o quarto. Atravessou um corredor, mas não conseguiu
encontrar seu quarto.
- Onna! - chamou.
Apareceu uma velha. - Hai?
- Onde está Onna?
A velha franziu o cenho e apontou para si mesma. - Onna?
- Oh, pelo amor de Deus - disse Blackthorne, irritado.
- Onde é o meu quarto? Onde está Onna? - Correu outra porta
de treliça. Quatro japoneses estavam sentados no chão em torno
de uma mesa, comendo. Ele reconheceu um deles como o homem
grisalho, o chefe da aldeia, que estivera com o padre. Todos se
inclinaram. - Oh, perdão! - disse ele, e fechou a porta.
- Onna! - chamou.
A mulher pensou um instante, depois chamou-o com um gesto. Ele a seguiu por outro corredor. Ela puxou uma porta para o
lado. Ele reconheceu seu quarto pelo crucifixo. Os acolchoados já
estavam estendidos.
- Obrigado - disse, aliviado. - Agora, vá buscar Onna!
A velha afastou-se, silenciosa. Ele sentou-se, a cabeça e o
corpo doendo, e desejou que houvesse uma cadeira, perguntando
a si mesmo onde as guardavam. Como chegar a bordo? Como
conseguir algumas armas? Deve haver um modo. Ouviu passos
abafados voltando e viu três mulheres agora, a velha, uma garota
de rosto redondo, e a de meia-ldade.
A velha apontou para a garota, que parecia um pouco assustada. - Onna.
- Não. - Blackthorne levantou-se, mal-humorado, e sacudiu um dedo na frente da mulher de meia-ldade. - Esta é
Onna, por Deus! Você não sabe seu nome? Onna! Estou com
fome. Posso comer alguma coisa? - Esfregou o estômago, parodiando fome. Elas se entreolharam. Então a mulher de meia-ldade
sacudiu os ombros, disse alguma coisa que fez as outras rir, foi
até a cama e começou a se despir. As outras duas se acocoraram,
de olhos arregalados e expectantes.
Blackthorne estava apavorado. - O que está fazendo?
- Ishimasho! - disse ela, puxando para o lado a larga faixa
de cintura e abrindo o quimono. Tinha os seios chatos e murchos,
e uma vasta barriga.
Estava absolutamente claro que ela ia se pôr na cama. Ele
balançou a cabeça, dissê-lhe que se vestisse, pegou-lhe o braço e
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começaram todos a tagarelar e a gesticular, e a mulher a ficar
bastante zangada. Tirou a longa combinação e, nua, tentou voltar
para a cama. O alvoroço se interrompeu e todas se curvaram
quando o chefe da aldeia chegou silenciosamente pelo corredor.
- Nanda? Nanda? - perguntou.
A velha explicou o que estava acontecendo. - Você quer
esta mulher? - perguntou, incrédulo, num português com sotaque
pesado, quase incompreensível, apontando para a mulher nua.
- Não. Não, claro que não. Só queria que Onna me trouxesse comida. - Blackthorne apontou-a impaciente. - Onna!
- "Orna" quer dizer "mulher". - O japonês apontou para
cada uma: - Onna, onna, onna. Você quer onna?
Blackthorne sacudiu a cabeça, cansado. - Não. Não, obrigado. Cometi um engano. Desculpe. Qual é o nome dela?
- Por favor?
- Qual é o nome dela?
- Ah! Nami é Haku. Haku.
- Haku?
- Hai. Haku!
- Desculpe, Haku-san. Pensei que "onna" fosse seu nome.
O homem explicou a Haku e ela não ficou nem um pouco
satisfeita. Mas ele disse alguma coisa e elas todas olharam para
Blackthorne, riram por trás das mãos e saíram. Haku afastou-se
nua, levando o quimono no braço, com uma vasta dose de dignidade.
- Obrigado - disse Blackthorne, furioso com a própria
estupidez.
- Esta minha casa. Meu nami Mura.
Mura-san. O meu é Blackthorne.
Por favor?
Meu nami. Blackthorne.
Ah, Berr-rakk-fon. - Mura tentou várias vezes mas não
conseguiu dizer o nome. Acabou desistindo e continuou a estudar
o colosso à sua frente. Era o primeiro bárbaro que via, com exceção do Padre Sebastio e do outro padre, muitos anos atrás. Mas
de qualquer modo, pensou, os padres têm cabelo e olhos pretos
e altura normal. Mas este homem alto, de cabelo dourado, barba
dourada, olhos azuis e uma estranha palidez na pele onde ela é
coberta e uma vermelhidão onde é exposta. Surpreendente! Eu
pensava que todos os homens tivessem cabelo preto e olhos escuros. Nós todos temos. Os chineses têm, e a China não é o mundo todo, com exceção da terra dos bárbaros portugueses do sul?
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Surpreendente! E por que o Padre Sebastio odeia tanto este
homem? Porque é um adorador de Satã? Eu não pensaria isso,
porque o Padre Sebastio poderia expulsar o Diabo se quisesse.
Puxa, nunca tinha visto o bom padre tão zangado! Nunca. Surpreendente!
Olhos azuis e cabelo dourado são a marca de Satã?
Mura olhou Blackthorne e lembrou-se de como tentara interrogá-lo a bordo do navio e depois, quando este capitão ficara
inconsciente, resolvera trazê-lo para sua casa porque era o líder
e devia merecer consideração especial. Haviam-no deitado sobre
o acolchoado e o despiram, muito curiosos.
- As partes sem par dele certamente são impressionantes,
neh? - dissera Saiko, a mãe de Mura. -- Pergunto a mim mesma
quão grandes não devem ser quando eretas.
- Grandes - respondera ele, e todos riram, a mãe, a esposa, os amigos, os criados e o médico.
- Suponho que as mulheres deles devam ser... devam ser
igualmente dotadas - dissera Niji, sua esposa. - Que absurdo,
garota - dissera a mãe. - Um bom número das nossas cortesãs
poderiam alegremente fazer a acomodação necessária. - Meneou
a cabeça, espantada. - Nunca tinha visto nada como ele em toda
a minha vida. Muito esquisito mesmo, neh?
Lavaram-no e ele não saíra do estado de coma. O médico não
achara prudente mergulhá-lo num banho propriamente dito até
que despertasse. - Talvez devêssemos nos lembrar, Mura-san, de
que não sabemos como o bárbaro realmente é - dissera com
cauteloso bom senso. - Sinto muito, mas poderíamos matá-lo por
engano. Obviamente ele está no limite de suas forças. Devemos
praticar a paciência.
- Mas e os piolhos no cabelo dele? - perguntara Mura.
- Por enquanto terão que ficar aí. Compreendo que todos
os bárbaros os tenham. Sinto muito, mas eu aconselharia paciência.
- O senhor não acha que poderíamos ao menos lavar a
cabeça dele? - dissera a esposa. - Seríamos muito cuidadosas.
Tenho certeza de que a senhora supervisionaria nossos pobres
esforços. Isso ajudaria o bárbaro e manteria nossa casa limpa.
- Concordo. Podem lavar a cabeça dele - dissera a mãe
com determinação. - Mas eu certamente gostaria de saber qual
é o tamanho dele quando ereto.
Agora Mura deu uma olhada para baixo da cintura de Blackthorne involuntariamente. Depois se lembrou do que o padre lhes
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dissera sobre aqueles satanistas e piratas. Deus, o Pai, nos proteja
deste mal, pensou. Se soubesse que ele era tão terrível, nunca o
teria trazido para a minha casa. Não, disse a si mesmo. Você é
obrigado a tratá-lo como um hóspede especial até que Omi-san
determine outra coisa. Mas você teve bom senso ao mandar avisar
o padre e Omi-san imediatamente. Muito bom senso. Você é o
chefe, você protegeu a aldeia e você, sozinho, é responsável.
Sim. E Omi-san o responsabilizará pela morte desta manhã e
pela impertinência do morto, e com toda a razão.
- Não seja estúpido, Tamazaki! Está pondo em risco o bom
nome da aldeia, neh? - prevenira ele uma dúzia de vezes ao
amigo, o pescador. - Pare com a sua intolerância. Omi-san não
tem opção a não ser escarnecer dos cristãos. O nosso daimio não
detesta cristãos? O que mais Omi-san pode fazer?
- Nada, concordo, Mura-san, por favor, desculpe-me. -
Tamazaki sempre respondera assim formalmente. - Mas os budistas devem ter mais tolerância, neh? Os dois não são zen-budistas? - O zen-budismo era autodisciplinador; contava fortemente
com a auto-ajuda e a meditação para encontrar a Iluminação. A
maioria dos samurais pertencia à seita zen-budista, já que ela convinha perfeitamente, parecia até destinada a um guerreiro orgulhoso, que buscava a morte.
- Sim, o budismo ensina a tolerância. Mas quantas vezes
eu preciso lembrar-lhe que eles são samurais, e isto é Izu e não
Kyushu, e mesmo que fosse Kyushu, você ainda seria o errado.
Sempre. Neh?
- Sim. Por favor, desculpe-me, sei que estou errado. Mas
algumas vezes sinto que não posso viver com a minha humilhação
interior quando Omi-san é tão insultante para com a verdadeira fé.
E agora, Tamazaki, você está morto por sua própria escolha,
porque insultou Omi-san não se curvando simplesmente porque
ele disse "... este malcheiroso padre da religião estrangeira". Ainda que o padre realmente cheire e a verdadeira fé seja estrangeira.
Meu pobre amigo. A verdade não vai alimentar sua família agora
ou remover o estigma da minha aldeia.
Oh, Madona, abençoe o meu velho amigo e dê-lhe a alegria
do paraíso.
Espero muitos problemas com Omi-san, disse Mura a si mesmo. E como se isso não fosse mau o bastante, agora ainda vem o
nosso daimio.
Uma ansiedade penetrante o invadia sempre que pensava no
seu senhor feudal, Kasigi Yabu, daimio de Izu, tio de Omi - a
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crueldade e a falta de honra do homem, o modo como trapaceava
com todas as aldeias quanto à parte justa de cada uma na pesca
e na colheita, e o peso opressivo do seu governo. Quando a guerra
chegar, perguntou Mura a si mesmo, por que lado Yabu vai se
declarar, o do Senhor 1 Ishido ou o do Senhor Toranaga? Estamos
numa armadilha entre os gigantes, e empenhados com ambos.
Ao norte, Toranaga, o maior general vivo, senhor de Kwanto,
as Oito Províncias, o daimio mais importante da terra, generalchefe dos exércitos do leste; a oeste, os domínios de Ishido, senhor
do castelo de Osaka, conquistador da Coréia, protetor do herdeiro,
general-chefe dos exércitos do oeste. E ao norte, o Tokaido, a
grande estrada costeira, que une Yedo, capital de Toranaga, a
Osaka, capital de Ishido - trezentas milhas para oeste sobre as
quais suas legiões têm que marchar.
Quem vencerá a guerra?
Ninguém.
Porque a guerra deles vai envolver o império novamente, as
alianças se romperão, províncias lutarão contra províncias, até ser
aldeia contra aldeia, como sempre foi. Exceto nos últimos dez
anos. Nos últimos dez anos, inacreditavelmente, houvera uma
ausência de guerra chamada paz por todo o império, pela primeira
vez na história.
Eu estava começando a gostar da paz, pensou Mura.
Mas o homem que fez a paz está morto. O soldado camponês
que se tornou samurai e depois general e depois o maior general
e finalmente o táicum, o absoluto Senhor Protetor do Japão,' está
morto há um ano, e seu filho de sete anos de idade é jovem demais para herdar o poder supremo. Assim, o menino, como nós,
é um refém. Entre os gigantes. E a guerra é inevitável. Agora nem
mesmo o táicum pode proteger seu amado filho, sua dinastia, sua
herança, ou seu império.
Talvez seja como deve ser. O táicum conquistou a terra, fez
a paz, forçou todos os daimios a abaixar-se como camponeses à
sua frente, reorganizou feudos conforme a própria veneta - promovendo alguns, dissolvendo outros - e depois morreu. Era um
gigante entre pigmeus. Mas talvez esteja certo que toda a sua obra
e grandeza morressem com ele. O homem não é apenas uma flor
levada pelo vento, e somente as montanhas, o mar, as estrelas e
esta Terra dos Deuses são reais e duradouros?
1 O Autor usou a palavra "lord" para designar "senlior feudal". Neste
sentido, a tradução usou a palavra "senhor" por extenso. (N. do E.)
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Estamos todos numa armadilha e isso é um fato; a guerra
virá logo, e isso é um fato; Yabu decidirá sozinho de que lado
estamos, e isso é um fato; a aldeia será sempre uma aldeia, porque os campos macios são ricos, o mar abundante, e esse é um
último fato.
Mura trouxe a mente firmemente de volta ao pirata bárbaro
à sua frente. Você é um demônio, enviado para nos flagelar, pensou, e só nos causou problemas desde que chegou. Não podia ter
escolhido outra aldeia?
- O capitão-san quer onna? - perguntou solicitamente. Por
sugestão sua, o conselho da aldeia fizera arranjos materiais para
os bárbaros, tanto por polidez quanto por ser um meio simples de
mantê-los ocupados até que as autoridades chegassem. Que a aldeia se entretivesse com as histórias subseqüentes das ligações,
mais do que se compensasse pelo dinheiro que tivera de ser investido.
- Onna - repetiu, naturalmente presumindo que, como o
pirata estava de pé, ficaria igualmente contente de se pôr de bruços, sua Lança Sagrada calidamente envolvida antes de dormir,
e de qualquer modo tinham-se feito todos os preparativos.
- Não! - Blackthorne queria apenas dormir. Mas como
sabia que precisava que aquele homem estivesse do seu lado, forçou um sorriso, indicou o crucifixo.
- Você é cristão?
Mura assentiu. - Cristão.
- Eu sou cristão.
- Padre diz não. Não cristão.
- Sou cristão. Não católico. Mas ainda sou cristão.
Mura não conseguiu compreender. E não houve como Blackthorne pudesse explicar, embora tentasse muito.
- Quer onna?
- O ... o dimio ... quando vem?
- Dimio? Não entende.
- Dimio ... ah, quero dizer, daimio.
- Ah, daimio. Hai, daimio! - Mura sacudiu os ombros.
- Daimio vem quando vem. Dormir. Primeiro limpar. Por favor.
- O quê?
- Limpar. Banho, por favor.
- Não entendo.
Mura chegou mais perto e franziu o nariz com desagrado.
- Fede. Mau. Como todos os portugueis. Banho. Esta casa
limpa.
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- Tomo banho quando tiver vontade e não cheiro mal! -
encolerizou-se Blackthorne. - Todo mundo sabe que os banhos
são perigosos. Você quer que eu pegue o defluxo? Acha que sou
algum maldito estúpido? Suma daqui e me deixe dormir!
- Banho! - ordenou Mura, chocado com a explosão de
raiva do bárbaro, o cúmulo dos maus modos. E não era só que o
bárbaro cheirasse mal, como de fato cheirava, mas, pelo que lhe
constava, fazia três dias que ele não se banhava corretamente, e
a cortesã com toda a razão se recusaria a deitar-se com ele, por
maior que fosse a sua paga. Esses estrangeiros horríveis, pensou.
Surpreendente! Como seus hábitos são surpreendentemente imundos! Não importa. Sou o responsável por você. Você aprenderá
bons modos. Vai tomar banho como um ser humano e a Mãe vai
saber aquilo que quer saber. - Banho!
- Agora saia antes que eu o rebente em pedaços! - Blackthorne encarou-o furioso, gesticulando para que se fosse.
Houve uma pausa momentânea e os outros três japoneses
apareceram com três das mulheres. Mura explicou resumidamente
o que estava acontecendo, depois disse a Blackthorne com determinação: - Banho. Por favor.
- Fora!
Mura avançou sozinho para dentro do quarto. Blackthorne
levantou o braço para a frente, não querendo ferir o homem, só
para empurrá-lo. De repente soltou um berro de dor. De algum
modo Mura lhe atingira o cotovelo com o lado da mão e agora
o braço de Blackthorne pendia, momentaneamente paralisado. Furioso, atacou. Mas o quarto rodou, ele caiu de cara no chão, houve
outra dor paralisante, penetrante, nas suas costas e ele não pôde
se mover. - Por Deus... - Tentou levantar-se mas as pernas
se curvaram ao seu peso. Depois, calmamente, Mura estendeu o
dedo pequeno, mas duro como ferro, e tocou um centro nervoso
na nuca de Blackthorne. Houve uma dor ofuscante.
- Meu bom Jesus...
- Banho? Por favor?
- Sim, sim - ofegou Blackthorne através de sua agonia,
atônito de ter sido dominado com tanta facilidade por um homem
tão minúsculo e agora jazer indefeso como qualquer criança, pronto para ter a garganta cortada.
Anos antes Mura aprendera as artes do judô e caratê, assim
como a lutar com espada e lança. Isso fora quando ele era um
guerreiro e lutara por Nakamura, o general camponês, o táicum
- muito antes de o táicum tornar-se táicum -, quando os campo50
neses podiam ser samurais e os samurais podiam ser camponeses,
ou artesãos, ou mesmo modestos mercadores, e guerreiros novamente. Estranho, pensou Mura distraidamente, olhando para o
gigante caído, que praticamente a primeira coisa que o táicum
tenha feito quando se tornou todo-poderoso tenha sido ordenar
que todos os camponeses deixassem de ser soldados e imediatamente depusessem todas as armas. O táicum lhes; proibira as armas
para sempre e estabelecera o sistema de castas imutáveis, que
agora controlava todas as vidas no império: os samurais acima de
todos, abaixo deles os camponeses, depois os artesãos, em seguida
os mercadores, seguidos pelos atores, os párias e os bandidos, e
finalmente, na base da escala, os eta, os não-humanos, os que
lidavam com corpos mortos, com a defumação do couro e a manipulação de animais mortos, que também eram os carrascos públicos, os mutiladores e os que marcavam com ferro quente. Claro
que todo bárbaro estava abaixo de consideração nessa escala.
- Por favor, desculpe-me, capitão-san - disse Mura, fazendo uma profunda reverência, envergonhado pela perda de dignidade do bárbaro, que jazia deitado ali, gemendo como um bebê
de peito. Sim, sinto muito, pensou, mas tinha que ser feito. Você
me provocou além de tudo o que era razoável, mesmo para um
bárbaro. Grita como um lunático, perturba minha mãe, rompe a
tranqüilidade de minha casa, incomoda os criados, e minha esposa já teve que substituir uma porta shoji. Eu não podia permitir
que a sua óbvia falta de educação continuasse sem oposição. Ou
permitir-lhe ir contra os meus desejos na minha própria casa. Na
realidade é para o seu próprio bem. E depois, não é tão mau
assim, porque vocês, bárbaros, na realidade não têm dignidade a
perder. Exceto os padres - eles são diferentes. Ainda cheiram
horrivelmente, mas são os ungidos de Deus, o Pai, portanto têm
muita dignidade. Mas você... você é um mentiroso e um pirata.
Não tem honra. Que surpreendente! Bradando ser cristão! Infelizmente isso não vai ajudá-lo em absoluto. O nosso daimio odeia
a verdadeira fé e os bárbaros, e os tolera só porque tem que tolerá-los. Mas você não é português nem cristão, portanto não é
protegido pela lei, neh? Assim, ainda que você seja um homem
morto, ou pelo menos um homem mutilado, é meu dever fazer
que você siga o seu destino estando limpo. - Banho muito bom!
Ajudou os outros homens a carregar Blackthorne, ainda entorpecido, através da casa, pelo jardim, ao longo de um caminho
coberto do qual ele sentia muito orgulho, e para dentro da casa
de banho. As mulheres vinham atrás.
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Tornou-se uma das grandes experiências de sua vida. Na
época soube que contaria e recontaria a história aos amigos incrédulos, esvaziando barris de saque quente, como era chamado
o vinho nacional do Japão; aos seus companheiros mais velhos,
pescadores, aldeães, aos filhos deles, que também não lhe acreditariam de imediato. Mas-eles, por sua vez, regalariam os próprios
filhos com o relato, e o nome de Mura, o pescador, viveria para
sempre na aldeia de Anjiro, que ficava na província de Izu, na
costa sudeste da ilha principal de Honshu. Tudo porque ele, Mura,
o pescador, teve a boa fortuna de ser chefe da aldeia no primeiro
ano após a morte do táicum e, portanto, temporariamente, responsável pelo chefe dos estranhos bárbaros que surgiram do mar
oriental.
CAPÍTULO 2
- O daimio, Kasigi Yabu, senhor de Izu, quer saber quem
é você, de onde vem, como chegou aqui e que atos de pirataria
cometeu - disse o Padre Sebastio.
- Continuo lhe dizendo que não somos piratas. - A manhã
estava clara e quente, e Blackthorne estava ajoelhado diante da
plataforma na praça da aldeia, a cabeça ainda doendo por causa
da pancada. Conserve a calma e ponha o cérebro a funcionar,
disse a si mesmo. Você está em julgamento pela vida de todos.
Você é o porta-voz e isso é tudo. O jesuíta é hostil, é o único
intérprete disponível, e você não tem meios de saber o que ele
está dizendo, só pode ter certeza de que ele não vai ajudá-lo...
"Ponha. os miolos -a trabalhar, rapaz", quase podia ouvir-o velho
Alban Caradoc dizendo. "É quando a tempestade está pior e o
mar mais terrível que você precisa dos seus miolos especiais. É
isso que o mantém vivo e mantém vivo o seu navio - se você é
o piloto. Ponha os miolos a funcionar e tome seu suco todos os
dias. .. " °
O suco de hoje é bile, pensou Blackthorne de cara fechada.
Por que ouço a voz de Alban com tanta clareza?
- Primeiro diga ao daimio que estamos em guerra, que
somos inimigos - disse. - Diga-lhe que a Inglaterra e a Neerlândia estão em guerra com a Espanha e Portugal.
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- Previno-o de novo para simplesmente falar e não torcer
os fatos. A Neerlândia, ou Holanda, Zelândia, Províncias Unidas,
ou seja como for que vocês, imundos rebeldes holandeses, a chamem, é uma pequena província revoltosa do império espanhol.
Você é o líder de traidores que se encontram em estado de insurreição contra o rei legítimo.
- A Inglaterra está em guerra e a Neerlândia está sep ...
- Blackthorne não continuou porque o padre não estava mais
ouvindo, e sim traduzindo.
O daimio estava sobre a plataforma, baixo, atarracado e dominador. Ajoelhara-se confortavelmente, os calcanhares cuidadosamente dobrados sob o corpo, ladeado por quatro lugar-tenentes,
um dos quais era Kasigi Omi, seu sobrinho e vassalo. Todos usavam quimonós de seda e, sobre ele, sobrecotas ornadas, com cintos largos apertando-os até a altura do peito e imensos ombros
engomados. E as inevitáveis espadas.
Mura estava ajoelhado sobre o pó. Era o único aldeão presente, e os únicos outros espectadores eram os cinqüenta samurais
que tinham vindo com o daimio. Sentavam-se em filas disciplinadas, silenciosas. A tripulação do navio estava atrás de Blackthorne
e, como ele, todos de joelhos, com guardas por perto. Tiveram
que carregar o capitão-mor consigo quando foram mandados para
ali, embora ele ainda estivesse passando pessimamente. Autorizaram-no a permanecer deitado, ainda em semicoma. Blackthorne e
todos os outros se curvaram quando chegaram diante do daimio,
mas isso não fora suficiente. Os samurais os fizeram ajoelhar-se
à força e empurraram-lhes a cabeça até o pó, à maneira dos camponeses. Ele tentara resistir e gritara ao padre que explicasse que
o costume deles não era aquele, que ele era o líder e um emissário
de seu país e devia ser tratado como tal. Mas o cabo de uma
lança o fizera cambalear. Seus homens se agruparam para um ataque impulsivo, mas ele lhes gritara que parassem e ajoelhassem.
Felizmente obedeceram. O daimio proferiu alguma coisa gutural
e o padre traduziu isso como uma advertência para que ele dissesse a verdade, e a dissesse rapidamente. Blackthorne pedira uma
cadeira mas o padre disse que os japoneses não usavam cadeiras
e não havia nenhuma no Japão.
Blackthorne estava concentrado no padre enquanto este falava com o daimio, procurando um indício, uma passagem entre
os recifes.
Há arrogancia e crueldade no rosto do daimio, pensou. Aposto como é um verdadeiro bastardo. O japonês do padre não é
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fluente. Ah, viu isso? Irritação e impaciência. O daimio pediu
outra palavra, uma palavra mais clara? Acho que sim. Por que
o jesuíta está usando vestes alaranjadas? O daimio é católico?
Olhe, o jesuíta é muito respeitoso e está suando um bocado. Aposto que o daimio não é católico. Preste atenção! Talvez ele não
seja católico. Se for, não lhe dará acolhida alguma. Como será
que você pode usar esse bastardo miserável? Como falar diretamente com ele? Como é que você vai lidar com o padre? Como
desacreditá-lo? Qual é a isca? Vamos, pense! Você sabe o suficiente sobre jesuítas...
- O daimio diz para você se apressar e responder às perguntas dele.
- Sim. Claro, desculpe. Meu nome é John Blackthorne. Sou
inglês, piloto-mor de uma frota neerlandesa. Nosso porto de partida é Amsterdam.
- Frota? Que frota! Está mentindo. Não há frota alguma.
Por que um inglês é piloto de um navio holandês?
Tudo na sua hora. Primeiro, por favor, traduza o que eu
disse.
Vamos!
Blackthorne decidiu jogar. Sua voz endureceu abruptamente
o rompeu o calor da manhã. - Que va! Primeiro traduza o que
eu disse, espanhol! Agora!
O padre corou. - Sou português! Já lhe disse. Responda à
pergunta.
- Estou aqui para falar com o daimio, não com você. Traduza o que eu disse. seu lixo sem mãe! - Blackthorne viu o padre
avermelhar-se ainda mais e sentiu que isso não passara despercebido ao daimio. Seja prudente, preveniu a si mesmo. Esse bastardo amarelo vai cortá-lo em pedaços mais depressa do que um cardume de tubarões se você passar da conta. - Diga ao senhor
daimio! - Blackthorne fez deliberadamente uma profunda reverência para a plataforma e sentiu um suor gelado começar a porejar enquanto se comprometia irreversivelmente com o rumo da
sua ação.
O Padre Sebastio sabia que seu treinamento deveria fazê-lo
impermeável aos insultos do pirata e ao plano evidente de desacreditá-lo frente ao daimio. Mas pela primeira vez isso não ocorreu e ele se sentiu perdido. Quando o mensageiro de Mura levara
a notícia do navio à sua missão na província vizinha, ele ficara
agitado com as implicações. Não pode ser holandês nem inglês!
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pensara. Nunca houvera um navio herético no Pacífico, com
exceção dos do arquidiabólico corsário Drake, e nunca ali na
Ásia. As rotas eram secretas e guardadas. Ele se preparara imediatamente para partir e enviara uma mensagem urgente, por pombo-correio, a seu superior em Osaka, desejando ter podido consultá-lo primeiro, sabendo que era jovem, quase inexperiente
o novo no Japão, há uns escassos dois anos ali, ainda não ordenado e sem competência para lidar com essa emergência. Correra para Anjiro, esperando e rezando para que a notícia não fosse verdadeira. Mas o navio era holandês e o piloto, inglês, e toda a
sua repugnância pelas satânicas heresias de Lutero, Calvino, Henrique VIII e a arquiinimiga Elizabeth, filha bastarda deste último, o dominara completamente. E ainda lhe anuviara o discernimento.
- Padre, traduza o que o pirata disse - ouviu o daimio
dizer.
Ó bendita mãe de Deus, ajude-me a fazer a sua vontade.
Ajude-me a ser forte diante do daimio, dê-me o dom das línguas
o deixe-me convertê-lo à verdadeira fé.
o Padre Sebastio reuniu toda a habilidade que tinha e começou a falar com mais confiança.
Blackthorne ouviu com cuidado, tentando distinguir as palavras e os significados. O padre falou "Inglaterra", "Blackthorne", o apontou para o navio, lindamente ancorado na baía.
- Como chegou aqui? - perguntou o Padre Sebastio.
- Pelo estreito de Magalhães. Estamos a cento e trinta e
seis dias de lá. Diga ao daimio...
- Está mentindo. O estreito de Magalhães é secreto. Você veio pela África e índia. Você terá que dizer a verdade de qualquer modo. Usam tortura aqui.
- O estreito era secreto! Um português nos vendeu um
portulano. Um dos seus vendeu vocês por um pouco do ouro de Judas. Vocês são todos estrume! Agora os navios de guerra ingleses, e holandeses, conhecem o caminho através do Pacífico. Há
uma esquadra - vinte navios de linha ingleses, navios de guerra
com sessenta canhões - atacando Manila bem neste instante. O
seu império está acabado!
- Está mentindo!
Sim, pensou Blackthorne, sabendo que não havia meio de
provar a mentira exceto indo até Manila. - Essa esquadra vai
devastar as suas rotas marítimas e aniquilar as suas colônias. Há
outra esquadra holandesa com chegada aqui prevista para qualquer semana. O porco luso-espanhol está de volta ao chiqueiro, e
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o pênis do seu geral jesuíta está no ânus dele, que é o lugar onde
deve estar! - Voltou-se e curvou-se para o daimio.
- Deus o amaldiçoe e à sua boca imunda!
- Ano mono wa nani o moshité oru! - vociferou o daimio
com impaciência.
O sacerdote falou mais rápida e asperamente, e citou "Magalhães" e "Manila", mas Blackthorne achou que o daimio e seus lugar-tenentes não pareciam compreender com muita clareza.
Yabu estava se cansando daquele julgamento. Olhou para a
enseada, para o navio que o obcecava desde que recebera a mensagem secreta de Omi, e perguntou novamente a si mesmo se
aquele era o presente dos deuses que esperava.
- Já inspecionou a carga, Omi-san? - perguntara assim
que chegara naquela manhã, respingado de lama e muito cansado.
- Não, senhor. Achei melhor lacrar o navio até que o senhor viesse pessoalmente, mas os porões estão cheios de engradados e fardos. Espero ter agido corretamente. Aqui estão todas as
chaves. Confisquei-as.
- Bom. - Yabu viera de Yedo, capital de Toranaga, a
mais de cem milhas de distância, com a urgência de um mensageiro, furtivamente, e com grande risco pessoal, e era vital que
regressasse tão rapidamente quanto viera. A jornada levara quase
dois dias por estradas enlameadas e riachos transbordantes devido
à primavera, parcialmente a cavalo e parcialmente de palanquim.
- Irei até o navio imediatamente.
- Deveria ver os estrangeiros, senhor - dissera Omi com
uma risada. - São inacreditáveis. A maioria tem olhos azuis,
como gatos siameses, e cabelo dourado. Mas a melhor notícia é
que eles são piratas...
Omi lhe falara sobre o padre, sobre o que este relatara a
respeito daqueles corsários, o que o pirata dissera e o que acontecera; a animação de Yabu triplicara. Dominara a impaciência
para ir a bordo e quebrar os lacres. Em vez disso tomara um
banho, trocara a roupa e ordenara que os bárbaros fossem trazidos à sua presença.
- Você, padre - disse com voz cortante, praticamente incapaz de compreender o mau japonês do sacerdote. - Por que
ele está tão furioso com você?
- Ele é mau. Pirata. Adora o Diabo.
Yabu inclinou-se para Omi, o homem à sua esquerda. - Você
entende o que ele está dizendo, sobrinho? Está mentindo? O que
acha?
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- Não sei, senhor. Quem sabe no que é que os bárbaros realmente acreditam? Imagino que o padre acha que o pirata é adorador do Diabo. Claro que isso tudo é um absurdo.
Yabu deu as costas ao padre, detestando-o. Gostaria de poder
crucificá-lo hoje e apagar o cristianismo dos seus domínios de uma
vez por todas. Mas não podia. Embora ele e todos os outros
daimios tivessem poder total em seus respectivos territórios, ainda
estavam sujeitos à autoridade superior do conselho de regentes, a
junta militar dirigente à qual o táicum legara legalmente o poder
durante a minoridade de seu filho, e sujeitos também aos editos
que o táicum emitira em vida, que ainda estavam todos legalmente em vigor. Um desses, promulgado anos antes, tratava dos bárbaros portugueses e ordenava que fossem todos protegidos e que,
dentro dos limites do bom senso, sua religião devia ser tolerada
e seus padres autorizados, dentro dos limites do bom senso, a fazer
prosélitos e a converter. - Você, padre! O que mais o pirata
disse? O que estava lhe dizendo? Vamos! Perdeu a língua?
- Pirata diz coisas ruins. Ruins. Sobre mais velejares de
guerra piratas, muitos.
- O que quer dizer com "velejares de guerra"?
- Desculpe, senhor, não entendo.
- Velejares de guerra não faz sentido, neh?
- Ah! Pirata diz outros guerra barcos estar em Manila, nas
Filipinas.
- Omi-san, você compreende o que ele está dizendo?
- Não, senhor. A pronúncia é assustadora, é quase uma
linguagem desarticulada. Está dizendo que há mais navios piratas
a leste do Japão?
- Você, padre! Esses navios piratas estão ao largo da nossa
costa? A leste? Hein?
- Sim, senhor. Mas acho que ele mente. Falou em Manila.
- Não compreendo. Onde é Manila?
- A leste. Uma viagem de muitos dias.
- Se aparecerem navios piratas aqui, daremos a eles uma
agradável acolhida, seja Manila onde for.
- Por favor, desculpe-me, não o compreendo.
- Não importa - disse Yabu, com a paciência esgotada.
Já decidira que os estrangeiros deviam morrer e antecipava com
prazer essa perspectiva. Obviamente aqueles homens não se incluíam no edito do táicum, que especificava "bárbaros portugueses",
e de qualquer modo eram piratas. Pelo que podia se lembrar, sem57

pre odiara os bárbaros, seu mau cheiro, sua imundície e seus nojentos hábitos de comer carne, sua religião estúpida, sua arrogância, e suas maneiras detestáveis. Mais do que isso, ele se sentia
humilhado, como todos os daimios, pela opressão deles sobre a
Terra dos Deuses. Fazia séculos que existia um estado de guerra
entre China e Japão. A China não permitia o comércio. A seda
chinesa era vital para tornar suportável o longo, quente e úmido
verão japonês. Durante gerações apenas uma quantidade mínima
de seda contrabandeada escorregara pelas malhas da fiscalização,
para ser encontrada no Japão a um custo enorme. Então, sessenta
e tantos anos atrás, os primeiros bárbaros chegaram. O imperador
chinês em Pequim deu-lhes uma minúscula base permanente em
Macau, no sul da China, e concordou em comerciar seda por
prata. O Japão tinha prata em abundância. Logo o comércio estava florescendo. Ambos os países prosperaram. Os intermediários, os portugueses, enriqueciam, e seus padres - jesuítas na
maioria - logo se tornaram vitais para o comércio. Só eles haviam
tentado aprender japonês e chinês, e por isso podiam agir como
negociadores e intérpretes. À medida que o comércio foi crescendo, os padres foram se tornando mais essenciais. Agora o comércio anual era imenso e tocava a vida de cada samurai. De modo
que os padres tinham que ser tolerados, assim como a difusão da
sua religião, ou os bárbaros levantariam âncoras e o comércio
cessaria.
Havia atualmente uma grande quantidade de daimios cristãos importantes, e muitas centenas de milhares de convertidos,
na maioria em Kyushu, a ilha meridional que ficava mais próxima
da China e abrigava o porto português de Nagasaki. Sim, pensou Yabu, temos que tolerar os padres e os portugueses, mas não
estes bárbaros, os novos, os inacreditáveis homens de cabelo dourado e olhos azuis. Sentiu-se invadido pela animação. Agora, finalmente, poderia satisfazer a curiosidade de saber como um bárbaro morreria quando submetido à tortura. E tinha onze homens,
onze testes diferentes, para experimentar. Nunca se interrogara
por que a agonia dos outros o agradava. Apenas sabia que agradava e que por isso era algo a procurar e a gozar.
- Este navio, estrangeiro, não português e pirata - disse
Yabu -, está confiscado com tudo o que contém. Todos os piratas estão condenados à. .. - Ficou boquiaberto quando viu o
chefe dos piratas subitamente saltar para cima do padre, arrancar-lhe o crucifixo de madeira do cinto, quebrá-lo em pedaços e
atirá-los no chão, depois gritar bem alto alguma coisa. Quando
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os guardas se lançaram para ele, espadas em riste, o pirata imediatamente caiu de joelhos e fez-lhe uma profunda reverência.
- Parem! Não o matem! - Yabu estava atônito de que
alguém pudesse ter a impertinência de agir com tal falta de educação na sua frente. - Esses bárbaros são absolutamente inacreditáveis!
- Sim - disse Omi, a mente fervilhando com as questões
que aquela atitude implicava.
O padre ainda estava ajoelhado, contemplando fixamente os
pedaços da cruz. Todos viram-no estender a mão, trêmula, e recolher o lenho violado. Disse alguma coisa ao pirata em voz baixa,
quase gentil. Seus olhos se fecharam, as mãos se postaram e os
lábios começaram a mover-se lentamente. O chefe pirata olhava
os japoneses imóvel, os olhos azul-pálidos sem piscar, felinos, diante da sua tripulação.
- Omi-san - disse Yabu -, primeiro quero ir até o navio,
depois começaremos. - Sua voz se turvou quando ele contemplou o prazer que prometera a si mesmo. - Quero começar com
aquele de cabelo vermelho ali na ponta, o homem baixinho.
Omi inclinou-se mais, para chegar mais perto, e baixou a voz
excitada. - Por favor, desculpe-me, mas isso nunca aconteceu
antes, senhor. Desde que os bárbaros portugueses chegaram aqui.
O crucifixo não é o símbolo sagrado deles? Não são sempre respeitosos com os padres? Exatamente como os nossos cristãos? Os
padres não têm controle absoluto sobre eles?
- Vá direto ao ponto.
- Nós todos detestamos os portugueses, senhor. Exceto os
cristãos entre nós, neh? Talvez esses bárbaros lhe sejam de mais
valia vivos do que mortos.
- Como?
- Porque são únicos. São anticristãos! Talvez um homem
sábio pudesse encontrar um meio de usar o ódio deles - ou a
irreligiosidade - a nosso favor. São propriedade sua, pode fazer
com eles o que quiser. Neh?
Sim. E quero-os sob tortura, pensou Yabu. Sim, mas você
pode gozar disso a qualquer momento. Ouça Omi. É um bom
conselheiro. Mas merece confiança agora? Será que tem um motivo secreto para dizer isso? Pense.
- Ikawa Jikkyu é cristão - ouviu o sobrinho dizer, citando
o seu odiado inimigo, um dos parentes e aliados de Ishido, assentado nos seus limites ocidentais. - Não é lá que esse padre imundo tem o seu lar? Talvez estes bárbaros pudessem lhe dar a chave
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para abrir toda a província de Ikawa. Talvez a de Ishido. Talvez
até a do Senhor Toranaga - acrescentou Omi delicadamente.
Yabu estudou o rosto de Omi, tentando alcançar o que estava por trás dele. Depois desviou o olhar para o navio. Não tinha
dúvida alguma, agora, de que fora enviado pelos deuses. Sim.
Mas como um presente ou como um flagelo?
Renunciou ao próprio prazer pela segurança do seu clã. -
Concordo. Mas primeiro baixe a crista desses piratas. Ensinê-lhes
boas maneiras. Especialmente a ele.
- Pela morte do bom Jesus! - resmungou Vinck.
- Devíamos fazer uma prece - disse Van Nekk.
- Acabamos de fazer uma.
- Talvez fosse melhor fazermos outra. Senhor Deus no paraíso, eu saberia como usar uma pinta de conhaque agora!
Estavam amontoados numa cela profunda, uma das muitas
que os pescadores usavam para armazenar peixe seco ao sol. Os
samurais os haviam arrebanhado através da praça, desceram uma
escada, e agora estavam trancados no subterrâneo. A cela tinha
cinco passos de comprimento, cinco de largura e quatro de altura,
com chão e paredes de terra. O teto era feito de pranchas de madeira com um pé de terra em cima e um único alçapão.
- Saia de cima do meu pé, seu gorila amaldiçoado!
- Cale a boca, seu apanhador de merda! - disse Pieterzoon
amavelmente. - Ei, Vinck, afaste-se um pouco, seu velho peido
desdentado, você ocupa mais espaço do que qualquer um! Por
Deus, eu poderia usar uma cerveja gelada! Afaste-se.
- Não posso, Pieterzoon. Estamos mais apertados aqui do
que a bunda de uma virgem.
- É o capitão-mor. Ficou com o espaço todo. Dêem-lhe um
empurrão. Acordem-no! - disse Maetsukker.
- Hein? O que é que há? Deixem-me em paz. O que está
acontecendo? Estou doente. Tenho que ficar deitado. Onde estamos?
- Deixem-no em paz. Ele está doente. Vamos, Maetsukker,
levante-se, pelo amor de Deus. - Zangado, Vinck empurrou
Maetsukker e atirou-o contra a parede. Não havia espaço suficiente para todos se deitarem, ou mesmo sentarem confortavelmente,
ao mesmo tempo. O capitão-mor, Paulus Spillbergen, estava deitado ao comprido sob o alçapão, onde havia o melhor ar, a cabeça
apoiada no seu capote enrolado. Blackthorne estava encostado a
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um canto, olhando fixamente para o alçapão. A tripulação o deixara em paz e permanecera à distância dele, preocupada, da melhor maneira que pudera, reconhecendo-lhe, de longa experiência,
o estado de espírito e a violência tempestuosa e explosiva que sempre espreitava logo abaixo da sua aparência tranqüila.
Maetsukker perdeu o controle e desferiu um soco na virilha
de Vinck. - Deixe-me em paz ou eu o mato, seu bastardo!
Vinck voou para cima dele, mas Blackthorne agarrou a ambos e bateu-lhes a cabeça contra a parede.
- Calem-se, todos vocês - disse calmamente. Fizeram o que
lhes foi ordenado. - Vamos nos dividir em grupos. Um grupo
dorme, outro senta, e outro fica em pé. Spillbergen fica deitado
até se recuperar. Aquele canto é a latrina. - Dividiu-os. Quando
se reorganizaram, a situação tornou-se mais suportável. Temos
que dar o fora daqui dentro de um dia ou estaremos fracos demais, pensou Blackthorne. Quando descerem a escada para nos
trazer comida ou água. Terá que ser esta noite ou amanhã à noite.
Por que nos puseram aqui? Não representamos ameaça. Poderíamos ajudar o daimio. Será que ele vai compreender? Era o meu
único meio de mostrar-lhe que o padre é o nosso verdadeiro inimigo. Será que vai compreender? O padre compreendeu.
- Talvez Deus possa perdoar-lhe pelo sacrilégio, mas eu
não - dissera o Padre Sebastio, muito calmamente. - Não descansarei enquanto você e o seu mal não forem aniquilados.
O suor pingava-lhe pelas faces e o queixo. Enxugou-o distraidamente, ouvidos sintonizados na cela, como ficavam quando
ele estava a bordo e dormindo, ou de guarda e devaneando: apenas para tentar ouvir o perigo antes que ele ocorresse.
Temos que dar o fora daqui e tomar o navio. Gostaria de
saber o que Felicity está fazendo. E as crianças. Vejamos, Tudor
tem sete anos agora e Lisbeth ... Estamos a um ano, onze meses
e seis dias de Amsterdam, mais trinta e sete dias abastecendo e
vindo de Chatham para cá, mais os onze dias de idade que ela
já tinha antes do embarque em Chatham. É essa a idade dela,
exatamente - se tudo estiver bem. Deve estar. Felicity estará
cozinhando, tomando precauções, limpando e tagarelando enquanto as crianças crescem, tão fortes e destemidas quanto a mãe. Será
ótimo estar em casa de novo, caminharmos juntos pela praia e
pelas florestas e clareiras e pela beleza que é a Inglaterra.
Através dos anos ele se treinara a pensar neles como personagens de uma peça. Pessoas que a gente amou e por quem sofreu, numa peça que não termina nunca. De outro modo a dor
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de estar longe seria excessiva. Quase que podia contar os dias que
passara em casa nos onze anos de casamento. Poucos, pensou,
muito poucos. - É uma vida dura para uma mulher, Felicity
- ele lhe dissera antes. E ela dissera: - Qualquer vida é dura
para uma mulher. - Tinha dezessete anos então, era alta, seu
cabelo era comprido e sensu...
Seus ouvidos lhe disseram para se acautelar.
Os homens estavam sentados, encostados ou tentando dormir.
Vinck e Pieterzoon, bons amigos, conversavam tranqüilamente.
Van Nekk, como os outros, fitava o espaço. Spillbergen estava
meio desperto, e Blackthorne pensou que o homem era mais forte
do que deixara qualquer um crer.
Houve um súbito silêncio quando ouviram os passos acima
da cabeça. Os passos pararam. Vozes abafadas, ásperas, numa língua de sons estranhos. Blackthorne pensou reconhecer a voz do
samurai - Omi-san? Sim, era esse o nome dele -, mas não conseguiu ter certeza. Num instante as vozes cessaram e os passos se
afastaram.
- Acha que vão nos alimentar, piloto? - disse Sonk.
- Sim.
- Eu saberia o que fazer com um drinque. Uma cerveja
gelada, por Deus - disse Pieterzoon.
- Cale a boca - disse Vinck. - Você sozinho é suficiente
para fazer um homem tranqüilo transpirar.
Blackthorne tinha consciência da sua camisa encharcada. E
do mau cheiro. Pelo Senhor Deus, eu tomaria um banho, pensou,
o repentinamente sorriu, lembrando-se.
Mura e os outros o haviam carregado para dentro da sala
quente naquele dia e o deitaram num banco de pedra, com os
membros ainda adormecidos e movendo-se lentamente.
As três mulheres, lideradas pela velha, começaram a despi-lo
o ele tentara detê-las, mas cada vez que se movia um dos homens
lhe apertava um nervo e o deixava impotente; apesar do muito
que xingou e praguejou, continuaram a despi-lo até deixá-lo nu.
Não que se sentisse envergonhado de ficar nu na frente de uma
mulher, acontecia simplesmente que o ato de despir-se era sempre
realizado privadamente e esse era o costume. Além disso não
gostava de ser despido por ninguém, especialmente por aqueles
nativos incivilizados. Mas ser despido publicamente como um bebê
indefeso e lavado como um bebê com água quente, contendo sabão
o perfume, enquanto todos tagarelavam e sorriam vendo-o de costas, era demais. Depois tivera uma ereção e, quanto mais tentava
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impedir que acontecesse, pior se tornava - pelo menos foi o que
pensou, mas as mulheres não. Os olhos delas cresceram e ele começou a corar. Jesus, Senhor Deus, Um e único, não posso estar
corando, mas estava e isso pareceu aumentar-lhe o tamanho. A
velha bateu palmas de admiração e disse alguma coisa a que todos
assentiram com mais veemência.
Mura dissera com enorme gravidade: Capitão-san, Mãesan lhe agradece, o melhor dia da vida dela, agora morre feliz!
- e inclinaram-se, ele e os outros, ao mesmo tempo. Foi nessa
altura que Blackthorne percebeu o cômico da situação e começou
a rir. Os outros ficaram surpresos, depois se puseram a rir também, a risada levou-lhe a potência embora, a velha ficou um
pouco triste, e disse isso, o que o fez rir ainda mais, assim como
a todos. Em seguida deitaram-no gentilmente no imenso calor da
água profunda, que ele não conseguiu suportar muito tempo; estenderam-no ofegante sobre o banco mais uma vez. As mulheres
o enxugaram e depois apareceu um velho cego. Blackthorne jamais conhecera massagem. Inicialmente tentara resistir aos dedos
esquadrinhadores, mas depois deixou-se seduzir pela mágica deles
o se viu quase como uni gato enquanto os dedos descobriam as
nodosidades e davam passagem ao sangue ou ao elixir que espreitava por sob pele, músculos e tendões.
Depois ajudaram-no a ir para a cama, estranhamente fraco,
meio em sonho, e a garota estava lá. Foi paciente com ele, e
depois de dormir, quando ele teve força, tomou-a com cuidado.
Não lhe perguntou o nome e de manhã, quando Mura, tenso
o muito assustado, o arrancara ao sono, ela já se tinha ido.
Blackthorne suspirou. A vida é maravilhosa, pensou.
Na cela, Spillbergen gemia novamente, Maetsukker embalava-lhe a cabeça e lamentava-se não de dor, mas de medo, e o
rapaz Croocq estava a ponto de estourar. Jan Roper disse: - Há
algum motivo para sorrir, piloto?
- Vá para o inferno.
- Com todo o respeito, piloto - disse Van Nekk cuidadosamente, trazendo à tona o que estava em primeiro lugar na cabeça de todos -, você foi muito imprudente atacando o padre
na frente do miserável bastardo amarelo.
Houve um assentimento geral, embora expresso com precaução.
- Se não tivesse feito isso, acho que não estaríamos nesta
pocilga imunda. - Van Nekk não se aproximou de Blackthorne.
- Tudo o que você tem a fazer é pôr a cabeça no pó quando o
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lorde bastardo estiver por perto e eles ficarão tão mansos quanto
cordeiros.
Esperou uma resposta, mas Blackthorne não deu nenhuma,
simplesmente voltou-se para o alçapão. Foi como se ninguém tivesse dito nada. A apreensão deles aumentou.
Paulus Spilibergen ergueu-se sobre um cotovelo com dificuldade. - Do que é que você está falando, Baccus?
Van Nekk, com os olhos doendo mais do que nunca, foi até
ele e explicou sobre o padre e a cruz, o que acontecera e por que
estavam ali.
- Sim, isso foi perigoso, piloto-mor - disse Spillbergen.
- Sim, eu diria que foi absolutamente errado. Passem-me um
pouco de água. Agora os jesuítas não vão nos deixar em paz em
hipótese alguma.
- Você devia ter quebrado o pescoço dele, piloto. Porque
de qualquer modo os jesuítas não vão nos deixar em paz - disse
Jan Roper. - São piolhos imundos, e estamos aqui neste buraco
fedorento por castigo de Deus.
- Isso é absurdo, Roper - disse Spillbergen. - Estamos
aqui porq...
- É um castigo de Deus! Devíamos ter queimado todas as
igrejas em Santa Magdellana e não apenas duas. Devíamos ter
queimado. Fossas de Satã!
Spillbergen, fracamente, afastou uma mosca com um tapa.
- As tropas espanholas estavam se reagrupando e nos excediam
em quinze para um. Dêem-me um pouco de água! Saqueamos a
cidade, conseguimos o butim e esfregamos o nariz deles no pó.
Se tivéssemos ficado lá, teríamos sido mortos. Pelo amor de Deus,
alguém me dê um pouco de água. Teríamos sido todos mortos se
não tivéssemos rec.. .
- Que importa isso quando se está fazendo a obra de Deus?
Faltamos a ele.
- Talvez estejamos aqui para fazer a obra de Deus - disse
Van Nekk, apaziguador, pois Roper era um bom homem, embora
fervoroso, um mercador esperto e sócio de seu filho. - Talvez
possamos mostrar aos nativos daqui o erro das suas práticas. Talvez possamos convertê-los à verdadeira fé.
- Absolutamente certo - disse Spillbergen. Ainda se sentia fraco, mas sua força estava voltando. - Acho que você devia
ter consultado Baccus, piloto-mor. Afinal ele é o mercador-chefe.
É muito bom para negociar com selvagens. Passem a água, eu
disse!
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- Não há água, Paulus. - O abatimento de Van Nekk
aumentou. - Não nos deram nem comida nem água. Não nos
deram nem um pote para mijar.
- Bem, peça um! E água! Deus do paraíso, estou com sede.
Peça água! Você!
- Eu? - perguntou Vinck.
- Sim. Você!
Vinck olhou para Blackthorne, mas Blackthorne simplesmente observava o alçapão, distraído, de modo que Vinck parou embaixo da abertura e gritou: - Ei! Você aí em cima! Dê-nos água!
Queremos comida e água!
Não houve resposta. Ele gritou de novo. Nenhuma resposta.
Os outros gradualmente se puseram a gritar também. Todos, exceto Blackthorne. Logo o pânico e a náusea do confinamento exíguo se insinuou na voz deles e começaram a uivar como lobos.
O alçapão se abriu. Omi olhou-os lá embaixo. A seu lado
estava Mura. E o padre.
- Água! E comida, por Deus! Tirem-nos daqui! - E logo
se puseram todos a berrar novamente.
Omi fez um gesto para Mura, que assentiu e se afastou. Um
momento depois, voltou com outro pescador, carregando um grande barril entre eles. Esvaziaram-lhe o conteúdo - peixe podre e
água do mar - sobre a cabeça dos prisioneiros.
Os homens se espalharam na cela, tentaram escapar, mas
nenhum conseguiu. Spillbergen ficou soterrado, quase sufocado.
Alguns homens escorregaram e foram pisados. Blackthorne não
se moveu do canto onde estava. Simplesmente encarou Omi,
odiando-o.
Então Omi começou a falar. Houve um silêncio amedrontado, rompido por algumas tossidelas e pelas ânsias de vômito de
Spillbergen. Quando Omi terminou, o padre surgiu na abertura,
nervoso.
- As ordens de Kasigi-Omi são estas: vocês começarão a
se comportar como seres humanos decentes. Vocês não farão mais
barulho. Se fizerem, da próxima vez serão esvaziados na cela cinco
barris. Depois dez, depois vinte. Receberão comida e água duas
vezes por dia. Quando tiverem aprendido a se comportar, terão
permissão para subir ao mundo dos homens. O Senhor Yabu graciosamente poupou-lhes a vida, estipulando que vocês o sirvam
com lealdade. Todos menos um. Um deve morrer. Ao crepúsculo.
Vocês devem escolher quem morrerá. Mas você - apontou para
Blackthorne - não deve ser escolhido. - Ansioso, o padre tomou
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fôlego profundamente, fez uma meia mesura ao samurai, e recuou.
Omi perscrutou o buraco lá embaixo. Podia ver os olhos de
Blackthorne e sentiu-lhe o ódio. Vai levar muito tempo para domar
o espírito desse homem, pensou. Não importa. Há bastante tempo.
O alçapão foi fechado com força.
CAPÍTULO 3
Yabu deitou-se no banho quente, mais contente e confiante
do que jamais estivera na vida. O navio pusera à mostra sua riqueza e essa riqueza dava-lhe um poder que ele nunca sonhara
possível.
- Quero que tudo seja levado para terra amanhã - dissera.
- Recoloquem os mosquetes nos engradados. Camuflem tudo
com redes ou sacos de aniagem.
Quinhentos mosquetes, pensou exultante. Com mais pólvora
e balas do que Toranaga tem em todas as Oito Províncias. E vinte
canhões. Cinco mil balas de canhão, uma abundância de munição.
Tudo da melhor qualidade européia. - Mura, você providenciará
carregadores. Igurashi-san, quero todo este armamento, inclusive
os canhões, no meu castelo de Mishima o mais breve possível e
em segredo. Você será responsável.
- Sim, senhor. - Estavam no porão principal do navio, e todos o fitavam boquiabertos: Igurashi, um homem alto, flexível,
de um olho só, seu principal assistente, Zukimoto, seu mestre
quarteleiro, junto com dez aldeães cobertos de suor que haviam
aberto os engradados sob a supervisão de Mura, e sua guarda
pessoal de quatro samurais. Sabia que eles não compreendiam a
sua alegria ou a necessidade de agirem às ocultas. Bom, pensou.
Quando os portugueses chegaram pela primeira vez ao Japão,
em 1542, introduziram os mosquetes e a pólvora. Dezoito meses
depois os japoneses os estavam fabricando. A qualidade não era
tão boa quanto a do equivalente europeu, mas isso não tinha im
portância, porque as armas foram consideradas meramente como
uma novidade e, por um longo tempo, usadas apenas para a caça
- e mesmo para isso os arcos eram muito mais precisos. Além
disso, o mais importante, a arte bélica japonesa era quase ritual:
combate individual corpo a corpo, sendo a espada a arma mais
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honrosa. O uso de armas de fogo foi considerado covarde e desonroso, e completamente contra o código dos samurais, o bushido,
o Caminho do Guerreiro, que compelia os samurais a lutar com
honra, viver com honra, e morrer com honra; a ter uma eterna e
inquestionável lealdade ao seu senhor feudal; a não temer a morte
- procurá-la, mesmo, em seu serviço; e a ter orgulho do próprio
nome e mantê-lo imaculado.
Durante anos Yabu tivera uma teoria secreta. Finalmente,
pensou exultante, você pode desenvolvê-la e pô-la em prática.
Quinhentos samurais escolhidos, armados com mosquetes mas treinados como uma unidade, atuando como ponta de lança para os
seus doze mil soldados convencionais, apoiados por vinte canhões
usados de um modo especial por homens especiais, igualmente
treinados como uma unidade. Uma nova estratégia para uma nova
era! Na guerra que se aproxima, as armas de fogo talvez sejam
decisivas!
E o bashido? perguntavam-lhe sempre os espíritos de seus
ancestrais.
E o bushido? perguntava-lhes ele sempre de volta.
Nunca lhe responderam.
Nunca, nem em seus sonhos mais extravagantes, pensara que
jamais teria recursos para conseguir quinhentas armas. Mas agora
as tinha de graça e só ele sabia como usá-las. Mas a favor de
que lado? O de Toranaga ou de Ishido? Ou deveria esperar, e
talvez ser o eventual vencedor?
- Igurashi-san, você viajará à noite e manterá segurança
estrita.
- Sim, senhor.
- Isto deve permanecer em segredo, Mura, ou a aldeia será
eliminada.
- Não se dirá nada, senhor. Posso falar pela minha aldeia.
Não posso falar pela viagem ou por outras aldeias. Quem pode
saber onde há espiões? Mas por nós nada será dito.
Depois Yabu fora até a sala-forte. Continha o que presumiu
que fosse pilhagem pirata: placas de ouro e prata, cálices, candelabros e ornamentos, algumas pinturas religiosas em molduras
ornamentadas. Um baú continha roupas de mulher, elaboradamente bordadas a fio de ouro e pedras coloridas.
- Fundirei a prata e o ouro em lingotes e os porei no
tesouro - dissera Zukimoto. Era um homem hábil, pedante, na
casa dos quarenta anos, que não era samurai. Anos antes fora
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um sacerdote-guerreiro budista, mas o táicum, o Senhor Protetor,
havia aniquilado o seu mosteiro numa campanha para expurgar
a terra de certos mosteiros e seitas budistas de guerreiros militantes, que não aprovavam sua soberania absoluta. Por meio de suborno Zukimoto conseguira escapar daquela morte prematura e
se tornara mascate, em seguida um pequeno mercador de arroz.
Há dez anos juntara-se ao comissariado de Yabu e agora era
indispensável. - Quanto às roupas, talvez o fio de ouro e as
gemas tenham valor. Com a sua permissão, vou mandar empacotá-las e enviá-las a Nagasaki, com alguma coisa mais que eu
possa aproveitar. - O porto de Nagasaki, na costa extremomeridional da ilha de Kyushu, ao sul, era o entreposto e mercado
legal dos portugueses. - Os bárbaros talvez paguem bem por
essas bugigangas.
- Bom. E quanto aos fardos no outro porão?
- Todos contêm um tecido pesado. Praticamente inútil para
nós, senhor, sem nenhum valor comercial em absoluto. Mas isto
deve agradar-lhe. - Zukimoto abrira a caixa-forte.
A caixa continha vinte mil moedas de prata cunhadas. Dobrões espanhóis. Da melhor qualidade.
Yabu mexeu-se na água. Enxugou o suor do rosto e do
pescoço com a toalhinha branca e mergulhou mais fundo no
banho quente perfumado. Se há três dias, disse ele a si mesmo,
um adivinho tivesse antecipado que tudo isto aconteceria, você
lhe teria comido a língua por dizer mentiras impossíveis.
Três dias atrás ele estava em Yedo, a capital de Toranaga. A
mensagem de Omi chegara ao pôr-do-sol. Evidentemente o navio
tinha que ser investigado de imediato. Mas Toranaga ainda se
encontrava em Osaka para a confrontação final com o Senhor
General Ishido e, na sua ausência, convidara Yabu e todos os
daimios amigos da vizinhança a esperar até que retornasse. Um
convite assim não podia ser recusado sem sinistros resultados.
Yabu sabia que ele e os outros daimios independentes e respectivas famílias eram meramente proteção adicional à segurança de
Toranaga e, embora naturalmente a palavra jamais devesse ser
usada, eram reféns contra o regresso de Toranaga da inexpugnável fortaleza do inimigo em Osaka, onde o encontro estava se
realizando. Toranaga era presidente do conselho de regentes que
o táicum designara no seu leito de morte para governar o império
durante a minoridade de seu filho Yaemon, agora com sete anos
de idade. Havia cinco regentes, todos eminentes daimios, mas
apenas Toranaga e Ishido tinham poder efetivo.
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Yabu considerara cuidadosamente todas as razões para ir a
Anjiro, os riscos envolvidos, e as razões para ficar. Depois mandara chamar a esposa e a consorte favorita. Uma consorte era
uma amante formal, legal. Um homem podia ter tantas quantas
quisesse, mas apenas uma esposa de cada vez.
- Meu sobrinho Omi acaba de me enviar uma mensagem
secreta falando que um navio bárbaro aportou em Anjiro.
- Um dos Navios Negros? - perguntara a esposa, excitada.
Referia-se aos imensos e incrivelmente ricos navios mercantes que,
levados pelas monções, cobriam anualmente o percurso entre
Nagasaki e a colônia portuguesa de Macau, que ficava a quase
mil milhas ao sul, na China continental.
- Não. Mas talvez seja rico também. Vou partir imediatamente. Você deve dizer que fiquei doente e não posso ser perturbado por motivo algum. Estarei de volta dentro de cinco dias.
- Isso é incrivelmente perigoso - advertiu-o a esposa. -
O Senhor Toranaga deu ordens específicas para que ficássemos.
Estou certa de que ele fará outro acordo com Ishido e é poderoso
demais para ser insultado. Senhor, nunca poderíamos ter certeza de
que ninguém suspeitaria da verdade, há espiões por toda parte. Se
Toranaga regressasse e descobrisse que o senhor partiu, sua ausência seria mal interpretada. Seus inimigos lhe envenenariam -a
mente contra o senhor.
- Sim - acrescentara a consorte. - Por favor, desculpeme, mas o Senhor Toranaga nunca acreditaria que o senhor lhe
desobedeceu apenas para examinar um navio bárbaro. Por favor,
mande outra pessoa.
- Mas não se trata de um navio bárbaro comum. Não é
português. Ouçam-me. Omi diz que é de um país diferente. Os
homens falam entre si uma língua de som diferente, e têm olhos
azuis e cabelos dourados.
- Omi-san ficou louco. Ou tomou saque demais - dissera
a esposa.
- Isto é importante demais para brincadeiras, tanto dele
quanto suas.
A esposa se curvara, pedira desculpas e dissera que ele estava
absolutamente certo em corrigi-la, mas que a observação não visava à troça. Ela era uma mulher pequena, magra, dez anos mais
velha do que ele, que lhe dera um filho por ano durante oito anos
até que seu útero murchasse, e dos filhos, cinco foram homens.
Três haviam-se tornado guerreiros e morrido bravamente na guerra
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contra a China. Outro se tornara sacerdote budista e o último,
agora com dezenove anos, era desprezado pelo pai.
A esposa, Senhora Yuriko, era a única mulher que ele jamais
temera, a única a que jamais dera valor - com exceção da mãe,
já falecida -, e que governava a casa com açoite de seda.
- Desculpe-me novamente, por favor - disse ela. - Omisan entrou em pormenores sobre a carga?
- Não. Não a examinou, Yuriko-san. Diz que, como o
navio era tão incomum, lacrou-o imediatamente. Nunca houve
um navio não português, neh? Diz também que é um navio de
guerra. Com vinte canhões nos conveses.
- Ah! Então alguém deve ir imediatamente.
- Vou eu mesmo.
- Por favor, reconsidere. Mande Mizuno. Seu irmão é inteligente e prudente. Imploro-lhe que não vá.
- Mizuno é fraco e não merece confiança.
- Então ordenê-lhe que cometa seppuku e dê um jeito nele
- disse ela asperamente. Seppuku, às vezes chamado de haraquiri,
o suicídio ritual por estripamento, era o único modo de um samurai expiar com honra uma vergonha, um pecado, ou uma falta,
e era prerrogativa exclusiva da casta dos samurais. Todos eles
- tanto homens quanto mulheres - eram preparados desde a
infância, tanto para o ato mesmo quanto para participar da cerimônia como auxiliar. As mulheres cometiam seppuku somente
com uma faca na garganta.
- Mais tarde, não agora - disse Yabu à esposa.
- Então mande Zukimoto. Ele, com certeza, merece confiança.
- Se Toranaga não tivesse ordenado que todas as esposas
e consortes também permanecessem aqui, eu mandaria você. Mas
isso também seria muito arriscado. Tenho que ir. Não tenho
opção. Yuriko-san, você me diz que meu tesouro está vazio. Diz
que não tenho mais crédito com os imundos usurários. Zukimoto
diz que estamos cobrando o imposto máximo dos meus camponeses. Preciso ter mais cavalos, equipamentos, armas, e mais samurais. Talvez o navio forneça os meios.
- As ordens do Senhor Toranaga foram absolutamente claras, senhor. Se ele voltar e descobrir...
- Sim. Se ele voltar, senhora. Ainda acho que ele se colocou numa armadilha. O Senhor Ishido tem oitenta mil samurais
apenas no Castelo de Osaka e em torno dele. Toranaga ir até lá
com umas poucas centenas de homens foi atitude de um louco.
70
- Ele é muito astuto para se arriscar desnecessariamente
- disse ela confiante.
- Se eu fosse Ishido e o tivesse no meu laço, matá-lo-la imediatamente.
- Sim - disse Yuriko -, mas a mãe do herdeiro ainda
está como refém em Yedo até que Toranaga regresse. O Senhor
General Ishido não vai ousar tocar em Toranaga até que ela esteja
de volta, em segurança, a Osaka.
- Eu o mataria. Não faz diferença que a Senhora Ochiba
viva ou morra. O herdeiro está a salvo em Osaka. Com Toranaga
morto, a sucessão é certa. Toranaga é a única ameaça real ao
herdeiro, o único com a possibilidade de usar o conselho de regentes, usurpar o poder do táicum e matar o menino.
- Por favor, desculpe-me, senhor, mas talvez o Senhor General Ishido consiga o apoio dos outros três regentes e desacredite
Toranaga, e esse é o fim de Toranaga, neh? - disse a consorte.
- Sim, senhora, se Ishido pudesse ele o faria, mas não acho
que possa. Ainda. Nem Toranaga. O táicum escolheu os cinco
regentes de modo muito inteligente. Desprezaram-se tanto, uns aos
outros, que é quase impossível se porem de acordo em qualquer
coisa. - Antes de tomar o poder, os cinco grandes daimios haviam
publicamente jurado fidelidade eterna ao táicum moribundo, ao
seu filho e aos seus desígnios. Haviam prestado juramentos públicos, sagrados, de concordar quanto a um critério de unanimidade
no conselho, e feito o voto de entregar o reino intacto a Yaemon
quando este atingisse o décimo quinto aniversário. - Critério
de unanimidade significa que nada pode ser realmente mudado
até que Yaemon herde.
- Mas algum dia, senhor, quatro regentes se unirão contra
um, por ciúme, medo ou ambição, neh? Os quatro vão distorcer
as ordens do táicum o suficiente para conseguirem a guerra, neh?
- Sim. Mas será uma guerra curta, senhora, e esse um
sempre será esmagado e suas terras divididas pelos vencedores,
que terão, então, que designar um quinto regente e, com o tempo,
serão quatro contra um e novamente um será esmagado e suas
terras confiscadas, tudo conforme o que o táicum planejou. Meu
único problema é decidir quem será o um desta vez, Ishido ou
Toranaga.
- É Toranaga quem vai ficar isolado.
- Por quê?
- Os outros o temem demais porque todos sabem que ele,
secretamente, quer ser xógum, por mais que proteste o contrário.
71

Xógum era o último posto que um mortal podia atingir no
Japão. "Xógum" significava supremo ditador militar. Apenas um
daimio de cada vez podia possuir o título. E apenas Sua Alteza
Imperial, o imperador reinante, o Divino Filho do Céu, que vivia
segregado com as famílias imperiais em Kyoto, podia outorgar o
título.
Com a atribuição do título de xógum, vinha o poder absoluto
- o selo e o mandato do imperador. O xógum governava em
nome do imperador. Todo poder derivava do imperador, porque
ele descendia diretamente dos deuses. Portanto, todo daimio que
se opusesse ao xógum estava automaticamente em revolta contra
o trono, era imediatamente banido e todas as suas terras confiscadas.
O imperador reinante era adorado como divindade porque
era descendente em linha direta da deusa do Sol, Amaterasu
Omikami, um dos filhos dos deuses Izanagi e Izanami, que, do
firmamento, haviam formado as ilhas do Japão. Por direito divino,
o imperador reinante possuía toda a terra, reinava e era obedecido sem contestação. Mas na prática há mais de seis séculos o
poder efetivo provinha de trás do trono.
Seis séculos atrás houvera um cisma quando duas das três
grandes famílias samurais rivais, semi-reais - Minowara, Fujimoto e Takashima -, apoiaram pretendentes rivais ao trono e
mergulharam o reino numa guerra civil. Depois de sessenta anos
os Minowara prevaleceram sobre os Takashima, e os Fujimoto, a
família que permanecera neutra, esperaram sua vez.
A partir daí, ciosamente preservando o próprio poder, os
xóguns Minowara dominaram o reino, decretaram a hereditariedade do seu xogunato e começaram a casar algumas filhas com a
linhagem imperial. O imperador e toda a corte imperial eram
mantidos completamente isolados em palácios e jardins murados
no pequeno enclave de Kyoto, muitas vezes na penúria, com as
atividades perpetuamente limitadas a observar os rituais de xintó,
a antiga religião animista do Japão, e a ocupações intelectuais,
tais como caligrafia, pintura, filosofia e poesia.
A corte do Filho do Céu era fácil de dominar porque, embora
possuísse toda a terra, não tinha rendimento. Somente os daimios,
samurais, possuíam rendimentos e o direito a cobrar impostos.
Era por isso então que, embora todos os membros da corte imperial estivessem acima de todos os samurais em posição, viviam
de um estipêndio atribuído à corte conforme o capricho do xógum,
do kwampaku - o conselheiro-chefe civil - ou da junta militar
72
governante no momento. Poucos eram generosos. Alguns imperadores tiveram até que negociar as próprias assinaturas por comida.
Muitas vezes não havia dinheiro suficiente para uma coroação. Os
xóguns Minowara acabaram perdendo o poder para outros, os
descendentes dos Takashima ou dos Fujimoto. E como as guerras
civis continuassem ferrenhas através dos séculos, o imperador
tornou-se cada vez mais um instrumento do daimio que fosse
forte o bastante para tomar posse física de Kyoto. No momento
em que o novo conquistador de Kyoto massacrava o xógum
reinante e sua linhagem, devia - desde que fosse Minowara,
Takashima ou Fujimoto -, com humildade, jurar fidelidade ao
trono e, submisso, convidar o impotente imperador a lhe conceder o agora vago posto de xógum. Depois, como seus antecessores, tentaria estender o próprio poder para fora de Kyoto até
ser, por sua vez engolido por outro. Imperadores casavam-se,
abdicavam ou ascendiam ao trono conforme o capricho do xógum. Mas sempre a estirpe do imperador reinante permanecia
inviolada e contínua.
De modo que o xógum era todo-poderoso. Até ser derrubado. Muitos foram depostos através dos séculos, enquanto o
império se fragmentava em várias facções menores. Nos últimos
cem anos, nenhum daimio isolado tivera poder suficiente para se
tornar xógum. Doze anos antes o General Nakamura, camponês,
tivera o poder e obtivera o mandato do atual imperador, Go-Nijo.
Mas Nakamura não pôde ocupar o cargo de xógum, apesar do
muito que o desejara, porque nascera camponês. Tivera que se
contentar com o título civil, muito inferior, de kwampaku, conselheiro-chefe, e mais tarde, quando renunciara a esse título em
favor do filho menor de idade, Yaemon - embora conservando
o poder, como era de hábito -, tivera que se contentar com o
de táicum. Por costume histórico, somente os descendentes das
prolíferas, antigas e semidivinas famílias Minowara, Takashima e
Fujimoto tinham direito ao posto de xógum.
Toranaga descendia dos Minowara. Yabu podia traçar a
própria linhagem até um vago ramo secundário da família Takashima, o suficiente para uma conexão, se ele algum dia pudesse se
tornar supremo.
- Iülh, senhora - disse Yabu -, claro que Toranaga quer
ser xógum, mas nunca conseguirá. Os outros regentes o desprezam
e temem. Neutralizam-no, conforme planejou o táicum. - Inclinou-se para a frente e estudou a esposa atentamente. - Você
diz que Toranaga vai perder para Ishido?
73

- Ficará isolado, sim. Mas no final não acho que perderá,
senhor. Imploro-lhe que não desobedeça ao Senhor Toranaga, e
não saia de Yedo apenas para examinar o navio bárbaro, não
importa quão incomum Omi diga que ele é. Por favor, mande
Zukimoto a Anjiro.
- E se o navio contiver um tesouro? Prata ou ouro? Você
confiaria em Zukimoto ou em qualquer um dos nossos oficiais?
- Não - dissera a esposa.
Então, naquela noite, ele se insinuara para fora de Yedo
secretamente, com apenas quinze homens, e agora tinha riqueza
e poder para além de todos os seus sonhos, e cativos inigualáveis,
um dos quais ia morrer naquela noite. Providenciara para que
uma cortesã e um menino estivessem prontos para mais tarde.
Ao amanhecer, no dia seguinte, retornaria a Yedo. Ao pôr-do-sol,
no dia seguinte, as armas e o tesouro iniciariam sua viagem
secreta.
Iülh, as armas! pensou ele, exultante. As armas e o plano,
juntos, me darão poder para fazer Ishido vencer, ou Toranaga,
seja quem for que eu escolha. Então me tornarei um regente, no
lugar do perdedor, neh? Depois o regente mais poderoso. Por
que não até xógum? Sim. Tudo é possível agora.
Deixou-se devanear agradavelmente. Como usar as vinte mil
moedas de prata? Posso reconstruir o calabouço do castelo. E
comprar cavalos especiais -para os canhões. E expandir a nossa
rede de espionagem. E quanto a Ikawa Jikkyu? Será que mil moedas seriam suficientes para subornar os cozinheiros de Ikawa
Jikkyu para envenená-lo? Mais que suficientes! Quinhentas, talvez
até cem moedas, nas mãos certas, fosse muito. Nas mãos de quem?
O sol vespertino infiltrava-se obliquamente pela pequena janela aberta na parede de pedra. A água do banho estava muito
quente, aquecida por uma lareira a lenha construída na parede
interna. A casa era de Omi e se erguia numa pequena colina que
dominava a aldeia e a enseada. O jardim dentro de seus muros
era esmerado, sereno e suficiente.
A porta da sala de banho se abriu. O homem cego inclinou-se.
- Kasigi Omi-san me mandou, senhor. Sou Suwo, o massagista
dele. - Era alto, muito magro e velho, com o rosto enrugado.
- Bom. - Yabu sempre tivera horror a ficar cego. Pelo
que podia se lembrar, sempre tivera sonhos em que acordava na
escuridão, sabendo que era dia, abrindo a boca para gritar, sabendo que era desonroso gritar, mas gritando assim mesmo. Depois
o despertar verdadeiro e o suor escorrendo.
74
Mas esse horror à cegueira pareceu aumentar-lhe o prazer de
ser massageado pelo cego.
Viu a cicatriz de corte na têmpora direita do homem e a
fenda profunda no crânio, logo abaixo dela. É um corte de
espada, disse a si mesmo. Será que foi isso que causou a cegueira?
Será que ele já foi samurai um dia? De quem? Será que é um
espião?
Yabu sabia que o homem fora revistado muito cuidadosamente pelos seus guardas antes de ser autorizado a entrar, portanto não temia uma arma oculta. Sua estimada espada comprida
estava ao seu alcance, uma lâmina antiga feita pelo mestre espadeiro Murasama. Observou o velho tirar o quimono de algodão
e pendurá-lo sem procurar o suporte. Tinha mais cicatrizes de
espada no peito. Sua tanga estava muito limpa. Ajoelhou-se, esperando pacientemente.
Yabu saiu do banho quando o outro ficou pronto e deitou-se
no banco de pedra. O velho enxugou Yabu cuidadosamente,
passou óleo perfumado nas mãos e começou a massagear os
músculos do pescoço e das costas do daimio.
A tensão começou a desaparecer à medida que os dedos
muito fortes se moviam sobre Yabu, esquadrinhando em profundidade com surpreendente habilidade. - Isso é bom. Muito bom
- disse um momento depois.
- Obrigado, Yabu-sama - disse Suwo. "Suma", que significava "senhor", era uma cortesia obrigatória quando alguém se
dirigia a um superior.
- Você serve Omi-san há muito tempo?
- Há três anos, senhor. Ele é muito gentil com um homem
velho.
- E antes disso?
- Vaguei de aldeia em aldeia. Alguns dias aqui, meio ano
ali, como uma borboleta na brisa de verão. - A voz de Suwo
era tão calmante quanto suas mãos. Decidira que o daimio queria
conversar e esperou pacientemente pela próxima pergunta. Parte
da sua arte era saber o que lhe era exigido e quando. Às vezes
seus ouvidos lhe diziam isso, mas na maior parte delas eram os
dedos que pareciam destrancar o segredo da mente do homem ou
da mulher. Seus dedos estavam lhe dizendo que se acautelasse
contra aquele homem, que ele era perigoso e inconstante, por volta
dos quarenta anos, bom cavaleiro e excelente espadachim. Além
disso que seu fígado estava mal e ele morreria dentro de dois anos.
75

O saque, e provavelmente os afrodisíacos, o matariam. - O senhor é forte para a sua idade, Yabu-sarna.
- Você também. Quantos anos tem, Suwo?
O velho riu, mas seus dedos não paravam nunca. - Sou o
homem mais velho do mundo, do meu mundo. Todas as pessoas
que conheci estão mortas há muito tempo. Devo ter mais de oitenta anos, não estou certo. Servi o Senhor Yoshi Chikitada, avô do
Senhor Toranaga, quando o feudo do clã não era maior do que
esta aldeia. Até me encontrava no acampamento no dia em que
foi assassinado.
Yabu deliberadamente manteve o corpo relaxado com um
esforço de vontade, mas sua mente se aguçou e ele começou a
ouvir atentamente.
- Aquele foi um dia horrível, Yabu-sama. Não sei qual era
a minha idade, mas minha voz ainda era firme. O assassino foi
Obata Hiro, um filho do aliado mais poderoso dele. Talvez o
senhor conheça a história, como o jovem decepou a cabeça do
Senhor Chikitada com um único golpe de espada. Era uma lâmina
Murasama, e foi isso o que deu início à superstição de que todas
as lâminas Murasama trazem azar para o clã Yoshi.
Será que ele está me contando isso por causa da minha espada Murasama? - perguntou Yabu a si mesmo. Muita gente
sabe que eu tenho uma. Ou é apenas um velho, lembrando-se de
um dia especial na sua longa vida? - Como era o avô de Toranaga? - perguntou, simulando falta de interesse, testando Suwo.
- Alto, Yabu-sama. Mais alto do que o senhor e muito mais
magro quando o conheci. Tinha vinte e cinco anos no dia em que
morreu. - A voz de Suwo animou-se. - lülh, Yabu-sama, ele
aos doze anos já era um guerreiro, e nosso suserano aos quinze,
quando seu pai foi morto numa escaramuça. Naquela época o
Senhor Chikitada era casado e já havia gerado um filho. Foi uma
pena que ele tivesse que morrer. Obata Hiro era amigo dele, assim
como vassalo, tinha dezessete anos, mas alguém lhe envenenou a
mente, dizendo que Chikitada planejara matar-lhe o pai traiçoeiramente. Claro que eram tudo mentiras, mas isso não trouxe
Chikitada de volta para nos guiar. O jovem Obata ajoelhou-se
diante do corpo e inclinou-se três vezes. Disse que fizera aquilo
por respeito filial ao pai e agora desejava reparar o insulto a nós
e ao nosso clã cometendo seppuku. Deram-lhe permissão. Primeiro lavou a cabeça de Chikitada com as próprias mãos e colocou-a
em posição de reverência. Depois se rasgou de lado a lado e mor76
reu bravamente com grande cerimônia, um dos nossos homens
agindo como auxiliar e removendo-lhe a cabeça com um único
golpe. Mais tarde o pai veio buscar a cabeça do filho e a espada
Murasama. As coisas ficaram ruins para nós. O único filho do
Senhor Chikitada foi levado como refém para algum lugar e sobre
nossa parte do clã se abateram tempos de desgraça. Isso foi ...
- Você está mentindo, velho. Você nunca esteve lá. - Yabu
se voltara e estava encarando o homem, que ficara paralisado
instantaneamente. - A espada foi quebrada e destruída depois da
morte de Obata.
- Não, Yabu-sama. Essa é a lenda. Eu vi o pai chegar e
pegar a cabeça e a espada. Quem quereria destruir uma obra de
arte como aquela? Teria sido sacrilégio. O pai dele a recuperou.
- O que fez com ela?
- Ninguém sabe. Alguns dizem que a atirou no mar porque
gostava do nosso Senhor Chikitada e o honrava como a um irmão.
Outros dizem que a enterrou e que está à espera do neto, Yoshi
Toranaga.
- O que você acha que ele fez com ela?
- Atirou-a no mar.
- Você viu?
- Não.
Yabu deitou-se novamente e os dedos recomeçaram o trabalho. O pensamento de que mais alguém sabia que a espada não
fora quebrada excitou-o estranhamente. Você devia matar Suwo,
disse a si mesmo. Por quê? Como poderia um cego reconhecer a
lâmina? É parecida com qualquer outra lâmina Murasama, e o
punho e a bainha foram trocados muitas vezes, ao longo dos anos.
Ninguém pode saber que a sua espada é a espada, que passou de
mão em mão com sigilo crescente à medida que o poder de Toranaga foi aumentando. Por que matar Suwo? O fato de ele estar
vivo acrescenta um atrativo a mais, estimula você. Deixe-o vivo,
você pode matá-lo a qualquer momento. Com a espada.
Esse pensamento agradou a Yabu enquanto se deixava devanear mais uma vez, muito confortavelmente. Um dia, breve, prometeu a si mesmo, serei poderoso o bastante para usar minha
lâmina Murasama na presença de Toranaga. Um dia, talvez, contarei a ele a história da minha espada. - O que aconteceu depois?
- perguntou, querendo ser embalado pela voz do velho.
- Simplesmente caímos num período de desgraça. Aquele
foi o ano da grande carestia, e com a morte do meu amo, fiquei
77

ronin. - Os ronins eram samurais ou camponeses-soldados, sem
terra ou sem amo, que, devido a desonra ou perda do amo, eram
forçados a perambular pela terra até que algum outro senhor aceitasse seus serviços. Era difícil para um ronin encontrar novo trabalho. A comida era escassa, quase todos os homens eram soldados, e os estrangeiros raramente mereciam confiança. A maioria
dos bandos de salteadores e corsários que infestavam a terra e a
costa eram ronins. - Aquele ano foi muito ruim, assim como o ano
seguinte. Combati para todo mundo, uma batalha aqui, uma escaramuça ali. Comida era a minha paga. Então ouvi dizer que havia
comida em abundância em Kyushu e comecei a me dirigir para
oeste. Naquele inverno encontrei um santuário. Dei um jeito para
ser contratado por um mosteiro budista como guarda. Combati
por eles durante meio ano, protegendo o mosteiro e seus campos
de arroz contra os bandidos. O mosteiro ficava perto de Osaka e,
naquela época, muito tempo antes de o táicum destruir a maior
parte deles, os bandidos eram tão numerosos quanto mosquitos de
brejo. Um dia caímos numa emboscada e fui abandonado como
morto. Uns monges me acharam e curaram meu ferimento. Mas
não puderam me devolver a vista.
Seus dedos se aprofundavam cada vez mais. - Colocaramme junto de um monge cego, que me ensinou a fazer massagem
e a ver de novo com os dedos. Agora meus dedos me dizem mais
do que meus olhos diziam, acho.
"A última coisa que me lembro de ter visto com os olhos foi
a boca escancarada do bandido e seus dedos macerados, a espada
como um arco resplandecente e depois, depois do golpe, o aroma
de flores. Vi o perfume em todas as suas cores, Yabu-sama. Isso
tudo foi há muito tempo, muito antes de os bárbaros chegarem
à nossa terra, cinqüenta, sessenta anos atrás, mas eu vi as cores
do perfume. Vi o nirvana, acho, e num momento fugacíssimo, o
rosto de Buda. A cegueira é um preço baixo para uma dádiva
assim, neh?"
Não houve resposta. Suwo não esperava que houvesse. Yabu
estava dormindo, conforme o planejado. Gostou da minha história, Yabu-sama? - perguntou Suwo silenciosamente, divertido
como um velho devia estar. Foi tudo verdade, menos uma coisa.
O mosteiro não ficava perto de Osaka, mas do outro lado da sua
fronteira ocidental. O nome do monge? Su. tio do seu inimigo,
Ikawa Jikkyu.
Eu poderia quebrar-lhe o pescoço com tanta facilidade, pen78
sou. Seria um favor para Omi-san. Seria uma bênção para a aldeia.
E retribuiria, em minúscula medida, a dádiva do meu benfeitor.
Devo fazê-lo agora? Ou mais tarde?
Spillbergen estendeu as hastes de palha de milho, enfeixadas,
o rosto retesado. - Quem quer pegar primeiro?
Ninguém respondeu. Blackthorne parecia estar cochilando,
encostado ao canto de onde não se movera. Era quase crepúsculo.
- Alguém tem que pegar primeiro - irritou-se Spillbergen.
- Vamos, não há muito tempo.
Haviam lhes dado comida e um barril de água, e outro barril
como latrina. Mas nada com que lavar o lixo fedorento ou com
que se limparem. E as moscas apareceram. O ar estava fétido, a
terra lamacenta. A maioria dos homens se despira até a cintura,
suando de calor. E de medo.
Spillbergen olhou de rosto em rosto. Voltou a Blackthorne.
- Por que você foi eliminado? Hein? Por quê?
Os olhos se abriram, estavam gelados. - Pela última vez:
eu ... não ... sei ...
- Não é justo. Não é justo.
Blackthorne voltou ao devaneio. Deve haver um meio de dar
o fora daqui. Deve haver um meio de recuperar o navio. Aquele
bastardo vai nos matar a todos no final, isso é tão certo como
haver uma estrela do norte. Não há muito tempo, e fui eliminado
porque eles têm algum fétido plano especial para mim.
Quando o alçapão se fechara, haviam todos olhado para ele,
o alguém dissera: - O que vamos fazer?
- Não sei - respondera ele.
- Por que você não deve ser escolhido?
- Não sei.
- Que o Senhor Jesus nos ajude - choramingara alguém.
- Tratem de dar um jeito nessa sujeira - ordenara ele.
- Empilhem a imundície ali!
- Não temos esfregões ou ...
- Usem as mãos!
Fizeram como lhes ordenou, com ele os ajudando, e limparam o capitão-mor da melhor maneira que puderam. - Você se
sentirá bem agora.
- Como ... como vamos escolher alguém? - perguntou
Spillbergen.
- Não vamos. Vamos lutar com eles.
79

- Com quê?
- Iremos como ovelhas para o açougueiro? Você irá?
- Não seja ridículo, eles não me querem, não seria certo
que eu fosse o escolhido.
- Por quê? - perguntou Vinck.
- Sou o capitão-mor.
- Com todo o respeito, senhor - disse Vinck ironicamente -, talvez devesse se oferecer como voluntário. Faz parte da
sua posição.
-- Ótima sugestão - disse Pieterzoon. - Apóio a proposta,
por Deus!
Houve um assentimento geral e todos pensaram: Senhor
Jesus, qualquer um, menos eu.
Spillbergen começara a gritar e a dar ordens, mas viu os olhos
impiedosos. Então parou e olhou firme para o chão, nauseado.
Depois disse: - Não. Não... não seria justo que alguém se oferecesse como voluntário. Vamos... nós... vamos tirar à sorte.
Palhas, a que for mais curta do que as outras. Poremos nossas
mãos... nos poremos nas mãos de Deus. Piloto, você segura as
palhas.
- Não. Não quero ter nada a ver com isso. Digo que devemos combater.
- Eles nos matarão a todos. Você ouviu o que o samurai
disse: nossas vidas serão poupadas, menos uma. - Spillbergen enxugou o suor do rosto e uma nuvem de moscas se levantou, para
pousar de novo.
- Dêem-me água. É melhor que morra um do que todos nós.
Van Nekk encheu a cuia no barril e deu-a a Spillbergen.
- Somos dez. Incluindo você, Paulus - disse ele. - As possibilidades são boas.
- Muito bom, a menos que você seja o escolhido. - Vinck
deu uma olhada em Blackthorne. - Podemos enfrentar aquelas
espadas?
- Você consegue ir mansinho para o torturador se for o
escolhido?
- Não sei.
- Vamos tirar à sorte - disse Van Nekk. - Deixemos que
Deus decida.
- Pobre Deus! - disse Blackthorne. - As imbecilidades
pelas quais é responsabilizado!
- De que outro modo escolher, então? - gritou alguém.
- Não escolhemos.
80
- Faremos como Paulus diz. Ele é o capitão-mor - disse
Van Nekk.
- Tiraremos à sorte. É melhor para a maioria. Vamos votar.
Somos todos a favor?
Todos disseram que sim. Menos Vinck. - Estou com o
loto. Para o inferno com essas palhas imundas!
Vinck acabara sendo persuadido. Jan Roper, o calvinista,
conduzira as preces. Spillbergen quebrou os dez pedaços de palha
com exatidão. Depois partiu um deles ao meio.
Van Nekk, Pieterzoon, Sonk, Maetsukker, Ginsel, Jan Roper,
Salamon, Maximillian Croocq e Vinck.
- Quem quer pegar o primeiro? - repetiu ele.
- Como vamos saber se ... se aquele que pegar a palha
errada, a curta, irá? Como vamos saber? - A voz de Maetsukker
estava inflamada de terror.
- Não vamos saber. Não com certeza. Devíamos saber com
certeza - disse Croocq, o rapaz.
- Isso é fácil - disse Jan Roper. - Juremos que o faremos
em nome de Deus. Em nome dele. Mo ... morrer pelos outros
em nome dele. Então não há motivo de preocupação. O ungido
como cordeiro de Deus irá diretamente para a glória eterna.
Todos concordaram.
- Vamos, Vinck. Faça como Roper diz.
- Muito bem. - Os lábios de Vinck estavam ressecados.
- Se... se... for eu... juro por Deus que irei com eles se ...
se eu pegar a palha errada. Em nome de Deus.
Todos o imitaram. Maetsukker estava tão assustado, que teve
que ser instigado antes de afundar de volta no pântano do pesadelo que estava vivendo.
Sonk escolheu primeiro. Pieterzoon foi o segundo. Depois
Jan Roper, em seguida Salamon e Croocq. Spillbergen sentiu-se
morrer, porque haviam combinado que ele não escolheria e ficaria
com a última palha, e agora as probabilidades estavam se tornando
terríveis.
Ginsel estava salvo. Restavam quatro.
Maetsukker chorava abertamente, mas empurrou Vinck para
o lado e pegou uma palha. Não conseguiu acreditar que não era
ele o escolhido.
O pulso de Spillbergen tremia e Croocq ajudou-o a firmar
o braço. Fezes escorriam-lhe despercebidas pelas pernas abaixo.
- Qual eu pego? - perguntava Van Nekk a si mesmo, desesperado. Oh, Deus me ajude! Mal podia ver as palhas através da
pi81

névoa da sua miopia. Se ao menos pudesse ver, talvez tivesse uma
pista para escolher. Qual?
Pegou a palha e trouxe-a bem junto aos olhos, para ver sua
condenação com clareza. Mas a palha não era curta.
Vinck observou os próprios dedos escolhendo a penúltima
palha, ela caiu no chão, mas todos viram que era a mais curta.
Spillbergen abriu a mão apertada e todos viram que a última palha
era comprida. O capitão-mor desmaiou.
Ficaram todos olhando fixamente para Vinck. Desamparado,
ele os olhou, sem os ver. Meio que sacudiu os ombros, meio que
sorriu, afastou as moscas, distraído. E caiu. Abriram espaço para
ele, mantendo-se a distância como se fosse um leproso.
Blackthorne ajoelhou-se no lodo, ao lado de Spillbergen.
- Está morto? - perguntou Van Nekk, numa voz quase
inaudível.
Vinck soltou uma gargalhada estrepitosa, que os acabrunhou
a todos, e parou, tão violentamente quanto começara. - Sou eu
quem... quem está morto - disse. - Estou morto!
- Não tenha medo. Você é o ungido de Deus. Está nas
mãos de Deus - disse Jan Roper, a voz confiante.
- Sim - disse Van Nekk. - Não tenha medo.
- É fácil agora, não é? - Os olhos de Vinck foram de rosto
em rosto, mas nenhum conseguiu sustentar-lhes a fixidez. Somente
Blackthorne não desviou o olhar.
- Traga água, Vinck - disse tranqüilamente. - Vá até o
barril e traga água. Vá.
Vinck encarou-o. Depois pegou a cuia, encheu-a de água e
deu-a a ele. - Senhor Jesus Deus, piloto - murmurou -, o que
vou fazer?
- Primeiro me ajude com Paulus, Vinck! Faça o que eu
digo! Ele vai ficar bom?
Vinck pôs de lado a própria aflição, ajudado pela calma de
Blackthorne. O pulso de Spillbergen estava fraco. Vinck ouviu-lhe
o coração, separou as pálpebras e observou um momento. - Não
sei, piloto. Jesus, não consigo pensar adequadamente. O coração
dele está bem, acho eu. Precisa de uma sangria, mas... mas não
tenho como... eu... eu ... não posso me concentrar... Dême... - Parou, exausto, sentou-se contra a parede. Um tremor
começou a torturá-lo.
O alçapão se abriu.
Omi erguia-se cáustico contra o céu, seu quimono avermelhado pelo sol morrendo.
82
Vinck tentou mover as pernas, mas não conseguiu. Havia
encarado a morte muitas vezes na vida, mas nunca como desta
vez, passivamente. Fora decretada pelas palhas. Por que eu? urrava o seu cérebro. Não sou pior do que os outros e sou melhor
do que muitos. Amado Deus do paraíso, por que eu?
Haviam baixado uma escada. Omi fez sinal para que o escolhido subisse, e rápido. - Isogi! Vamos!
Van.Nekk e Jan Roper rezavam em silêncio, de olhos fechados. Pieterzoon não conseguia olhar. Blackthorne olhava fixamente para Omi e seus homens.
- Isogi! - vociferou Omi novamente.
Mais uma vez Vinck tentou se levantar. - Ajude-me, alguém. Ajudem-me a me levantar!
Pieterzoon, que estava mais perto, curvou-se e passou a mão
sob o braço de Vinck, ajudando-o a se erguer. Então Blackthorne
foi para o pé da escada, os dois pés plantados firmemente na lama.
- Kinjiru! - berrou, usando a palavra do navio. Um arquejo precipitou-se pela cela. A mão de Omi apertou o punho da
espada e ele se aproximou da escada. Imediatamente Blackthorne
a girou, desafiando Omi a pôr um pé ali. - Kinjiru! - disse
de novo.
Omi parou.
- O que está acontecendo? - perguntou Spillbergen, assustado, assim como todos os demais.
- Dissê-lhe que é proibido! Nenhum homem da minha tripulação vai caminhar para a morte sem uma luta.
- Mas... mas nós combinamos!
- Eu não.
- Você ficou louco!
- Está certo, piloto - sussurrou Vinck. - Eu... nós combinamos e era justo. É a vontade de Deus. Eu vou... é... Encaminhou-se às apalpadelas para o pé da escada mas Blacktherne permaneceu implacavelmente no caminho, encarando Omi.
- Você não vai sem uma luta. Ninguém vai.
- Afaste-se da escada, piloto! Estou lhe ordenando! -Spillbergen ficou tremulamente no seu canto, tão longe da abertura quanto possível. Sua voz soou estridente: - Piloto!
Mas Blackthorne não estava ouvindo. - Preparem-se!
Omi recuou um passo e gritou ordens ríspidas a seus homens.
CAPITULO 4
83

Imediatamente um samurai, seguido de perto por dois outros, começou a descer os degraus, espadas desembainhadas. Blackthorne
girou a escada e investiu contra o homem da dianteira, tentando
estrangulá-lo e desviando-se do violento golpe de espada.
- Ajudem! Vamos! Pelas suas vidas!
Blackthorne mudou de posição para arrancar o homem dos
degraus, enquanto o segundo homem se atirava para baixo. Vinck
saiu de seu estado cataléptico e se lançou contra o samurai, frenético. Interceptou o golpe que teria cortado fora o pulso de
Blackthorne, segurou o braço que empunhava a espada e esmagou
o outro punho contra a virilha do homem. O samurai resfolegou
o chutou com raiva. Vinck mal pareceu notar o golpe. Subiu os
degraus e se atirou ao homem pela posse da espada, suas unhas
partindo para arrancar-lhe os olhos. Os outros dois samurais estavam contidos pelo espaço limitado e por Blackthorne, mas um
pontapé de um deles apanhou Vinck no rosto e ele cambaleou.
O samurai na escada desferiu um golpe contra Blackthorne, errou,
então a tripulação inteira se arremessou contra a escada.
Croocq martelou o punho contra o peito do pé do samurai
o sentiu um ossinho ceder. O homem tentou atirar a espada para
fora do buraco - não queria armar o inimigo - e tombou pesadamente na lama. Vinck e Pieterzoon caíram em cima dele. O
samurai invasor revidou ferozmente quando os outros acorreram
para cima dele. Blackthorne agarrou a adaga do japonês e começou a subir a escada, Croocq, Jan Roper e Salamon atrás dele.
Ambos os samurais recuaram e permaneceram à entrada, com as
espadas assassinas perversamente a postos. Blackthorne sabia que
sua adaga era inútil contra as espadas. Ainda assim atacou, os
outros dando-lhe cobertura de perto. No momento em que sua
cabeça surgiu acima do solo, uma das espadas passou vibrando,
errando por uma fração de polegada. Um pontapé violento de um
samurai que permanecera invisível até então atirou-o de novo no
subterrâneo.
Ele voltou e saltou de novo, evitando a massa de homens
engalfinhados que tentavam subjugar o samurai no lodo fedorento. Vinck chutou o homem na nuca e ele cedeu, molemente. Vinck
martelou-o mais e mais, até que Blackthorne o puxasse para trás.
- Não o mate, podemos usá-lo como refém! - gritou, e
torceu desesperadamente a escada, tentando puxá-la para dentro
da cela. Mas era comprida demais. Lá em cima, à entrada do
alçapão, os outros samurais de Omi esperavam impassíveis.
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- Pelo amor de Deus, piloto. Pare com isso! - ofegou
Spillbergen. - Vão nos matar a todos, você nos matará a todos!
Alguém o detenha!
Omi estava gritando mais ordens, e mãos fortes lá em cima
impediram Blackthorne de bloquear a entrada com a escada.
- Cuidado! - gritou.
Três samurais, de faca na mão e usando apenas tangas, saltaram agilmente para dentro da cela. Os dois primeiros, esquecidos do próprio risco, deliberadamente estatelaram-se sobre Blackthorne, atirando-o indefeso ao chão, depois atacaram-no ferozmente.
Blackthorne foi esmagado pela força dos homens. Não podia
usar a faca, sentia sua vontade de lutar diminuir e desejou ter a
habilidade de Mura na luta desarmada. Desamparado, sabia que
não poderia sobreviver muito tempo mais, mas fez um esforço
final e conseguiu libertar um braço. A pancada violenta de uma
mão dura como rocha ribombou-lhe na cabeça e outra explodiu-lhe
cores no cérebro, mas ele ainda conseguiu revidar.
Vinck estava prestes a arrancar os olhos de um dos samurais
quando o terceiro saltou-lhe em cima. Maetsukker gritou quando
uma adaga lhe fez um talho no braço. Van Nekk investia às cegas
e Pieterzoon dizia: - Pelo amor de Cristo, bata neles, não em
mim -, mas o mercador não ouvia, pois estava devorado pelo
terror.
Blackthorne agarrou um dos samurais pela garganta, as mãos
escorregadias devido ao suor e ao lodo, e estava quase de pé como
um touro enlouquecido, tentando livrar-se deles, quando houve
um último golpe e ele mergulhou na escuridão. Os três samurais
abriram caminho a pontapés e a tripulação, agora sem líder, recuou do círculo perfurante das três adagas. Os samurais agora
dominavam a cela com suas adagas rodopiantes, não tentando
matar ou mutilar, mas apenas forçar os homens ofegantes e assustados contra as paredes, para longe da escada onde Blackthorne e
o primeiro samurai jaziam inertes.
Omi desceu arrogantemente para o buraco e agarrou o homem
mais próximo, que era Pieterzoon. Deu-lhe um tranco na direção
da escada. Pieterzoon gritou e tentou desvencilhar-se do aperto de
Omi, mas uma faca retalhou-lhe o pulso e outra abriu-lhe o braço.
Implacavelmente, o marujo aos berros foi impelido para a escada.
- Que Cristo me ajude, não sou eu quem vai, não sou eu,
não sou eu... - Pieterzoon tinha os dois pés no degrau e recuava para cima e para longe do sofrimento das facas, depois
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gritou: - Ajudem-me, pelo amor de Deus! - uma última vez,
virou-se e precipitou-se alucinado para fora.
Omi seguiu-o sem se apressar.
Um samurai retirou-se. Depois outro. O terceiro apanhou a
faca que Blackthorne usara. Voltou as costas desdenhosamente,
passou por cima do corpo prostrado do companheiro inconsciente,
e subiu.
A escada foi puxada para cima. Ar, céu e luz desapareceram.
Os ferrolhos foram passados com estrépito. Agora havia apenas
escuridão, e nela peitos arquejantes, corações disparados, suor correndo e o mau cheiro. As moscas voltaram.
Por um momento ninguém se moveu. Jan Roper tinha um
pequeno corte na face, Maetsukker sangrava muito, os outros se
encontravam em estado de choque. Exceto Salamon. Abriu caminho às apalpadelas até Blackthorne, puxou-o para longe do
samurai inconsciente. Moveu a boca, emitindo sons guturais, e
apontou para a água. Croocq foi buscar um pouco numa cuia,
ajudou-o a apoiar Blackthorne, ainda inanimado, contra a parede.
Juntos começaram a limpar a sujeira do rosto dele.
- Quando aqueles bastardos... quando lhe saltaram em
cima, pensei ouvir o pescoço ou o ombro dele ceder - disse o
rapaz, arfando. - Ele parece um cadáver, Jesus!
Sonk forçou-se a se levantar e aproximou-se deles. Cuidadosamente moveu a cabeça de Blackthorne de um lado para o outro,
apalpou-lhe os ombros. - Parece em ordem. Temos que esperar
até que ele volte a si para dizer.
- Oh, Deus - começou Vinck a se lamuriar. - Pobre
Pieterzoon ... estou condenado ... estou condenado ...
- Você estava indo. O piloto o deteve. Você estava indo
como prometeu, eu vi, por Deus. - Sonk sacudiu Vinck, mas ele
não prestou atenção. - Eu vi você, Vinck. - Voltou-se para
Spillbergen, afastando as moscas. - Não foi isso mesmo que
aconteceu?
- Sim, ele estava indo. Vinck, pare de se lamentar! A culpa
foi do piloto. Dêem-me água.
Jan Roper apanhou água com a cuia, bebeu-a e passou um
pouco no corte do rosto. - Vinck devia ter ido. Era o cordeiro
de Deus. Recebeu o sacramento. Agora a alma dele está perdida.
Oh, Deus tenha piedade, ele arderá por toda a eternidade.
- Dêem-me água - choramingou o capitão-mor.
Van Nekk pegou a cuia de Jan Roper e passou-a a Spillbergen. - Não foi culpa de Vinck - disse, cansado. - Ele não
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conseguia se levantar, você não se lembra? Pediu que alguém o
ajudasse. Eu estava com tanto medo que também não conseguia
me mexer, e não era eu quem tinha que ir.
-- A culpa não foi de Vinck - disse Spillbergen. - Não.
Foi dele.
Todos olharam para Blackthorne. - Ele está louco.
- Todos os ingleses são loucos - disse Sonk. - Já conheceram algum que não fosse? Arranhe a superfície e você encontrará um maníaco... e um pirata.
- Bastardos, todos eles! - disse Ginsel.
- Não, não todos eles - disse Van Nekk. - O piloto
estava só fazendo o que achava certo. Ele nos protegeu e nos
trouxe por dez mil léguas.
- Protegeu-nos! Éramos quinhentos quando começamos, e
cinco navios. Agora há nove de nós!
- Não foi por culpa dele que a esquadra se separou. Não
foi culpa dele que as tempestades nos jogassem...
- Não fosse por ele, teríamos ficado no Novo Mundo, por
Deus. Foi ele quem disse que podíamos chegar ao Japão. E pelo
amor de Jesus, olhem onde estamos agora.
- Concordamos em tentar atingir o Japão. Todos concordamos - disse Van Nekk, exausto. - Todos votamos.
- Sim. Mas foi ele quem nos convenceu.
- Cuidado! - Ginsel apontou para o samurai, que estava
se mexendo e gemendo. Sonk rapidamente deslizou para cima
dele, esmagando-lhe o punho no maxilar. O homem apagou-se
de novo.
- Pela morte de Cristo! Para que os bastardos o deixaram
aqui? Poderiam tê-lo carregado para fora facilmente. Não podíamos fazer nada.
- Acha que pensaram que ele estivesse morto?
- Não sei! Devem tê-lo visto. Por Jesus, eu tomaria uma
cerveja gelada! - disse Sonk.
- Não bata nele de novo, Sonk, não o mate. É um refém.
- Croocq olhou para Vinck, que se apertara contra a parede,
trancado no seu lamuriento ódio por si mesmo. - Deus nos
ajude a todos. O que farão com Pieterzoon? O que farão conosco?
- A culpa é do piloto - disse Jan Roper. - Só dele.
Van Nekk, compassivo, observou Blackthorne atentamente.
- Agora não importa. Importa? De quem é ou de quem foi a
culpa?
87

Maetsukker cambaleava, o sangue ainda correndo pelo antebraço. - Estou ferido, alguém me ajude.
Salamon fez um torniquete com um pedaço da camisa e estancou o sangue. O corte no bíceps de Maetsukker era profundo,
mas nenhuma veia ou artéria fora cortada. As moscas começaram
a importunar o ferido.
- Malditas moscas! E Deus amaldiçoe o piloto com o inferno - disse Maetsukker. - Estava combinado. Mas, oh, não, ele
tinha que salvar Vinck! Agora o sangue de Pieterzoon está nas
mãos dele e nós todos sofreremos por causa dele.
- Cale a boca! Ele disse que nenhum homem da tripulação ...
Houve passos em cima. O alçapão abriu-se. Aldeães começaram a esvaziar barris de peixe podre e água do mar na cela. Quando o chão ficou inundado até seis polegadas de altura, pararam.


Os gritos começaram quando a lua ia alta.
Yabu estava ajoelhado no jardim interno da casa de Omi.
Imóvel. Observava o luar batendo na árvore florida, os ramos de
azeviche contra o céu mais claro, as flores em cachos, agora ligeiramente matizadas. Uma pétala caiu em espiral e ele pensou:
"Beleza
Não é menor
Por cair
Na brisa".
Outra pétala pousou. O vento suspirou e levou outra. A árvore tinha mal e mal a altura de um homem, enfiada entre rochas
cobertas de musgo que pareciam ter crescido da terra, tão inteligentemente haviam sido colocadas.
Yabu precisou de toda a sua vontade para se concentrar na
árvore, no céu e na noite, para sentir o toque suave do vento,
aspirar-lhe o perfume do mar, para pensar em poemas e, ao mesmo tempo, manter os ouvidos atentos ao sofrimento. Sua coluna
parecia flexível. Apenas a vontade o fazia esculpido como as rochas. Essa lucidez dava-lhe um nível de sensualidade indizível.
E esta noite era mais forte e mais violenta do que jamais fora.
- Omi-san, quanto tempo nosso senhor ficará lá? - perguntou a mãe de Omi num sussurro assustado, dentro da casa.
- Não sei.
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- Os gritos são terríveis. Quando vão parar?
- Não sei - disse Omi.
Estavam sentados atrás de uma tela, no segundo melhor quarto. O melhor quarto, o da mãe, fora cedido a Yabu, e estes dois
quartos davam para o jardim que ele construíra com tanto esforço. Podiam ver Yabu através da gelosia, a árvore traçando-lhe desenhos rígidos no rosto, o luar reluzindo nos punhos de suas espadas.
Estava usando um haori escuro, um gibão, sobre o quimono
escuro.
- Quero ir dormir - disse a mulher, tremendo. - Mas
não posso dormir com todo esse barulho. Quando vai terminar?
- Não sei. Seja paciente, mãe - disse Omi suavemente.
- O barulho, cessará logo. Amanhã o Senhor Yabu voltará para
Yedo. Por favor, seja paciente. - Mas Omi sabia que a tortura
continuaria até o amanhecer. Fora planejada assim.
Tentou se concentrar. Como seu senhor feudal meditava em
meio aos gritos, tentou novamente seguir-lhe o exemplo. Mas o
berro seguinte o trouxe de volta e ele pensou: Não posso, não
posso, ainda não. Não tenho o controle dele, ou o poder.
Isso é poder? perguntou a si mesmo.
Podia ver claramente o rosto de Yabu. Tentou ler a estranha
expressão na face do daimio: o leve retorcer dos lábios cheios
com um salpico de saliva nos cantos, olhos transformados em fendas escuras, movendo-se apenas com as pétalas. É quase como se
ele estivesse a ponto de atingir um orgasmo, sem se tocar. Isso é
possível? Era a primeira vez que Omi se via em contato íntimo
com o tio, pois era um elo muito secundário na cadeia do clã, e
seu feudo de Anjiro, bem como a área circundante, pobre e sem
importância. Omi era o mais novo de três filhos, e o pai, Mizuno,
tinha seis irmãos. Yabu era o mais velho, o chefe do clã Kasigi;
Mizuno era o segundo filho. Omi estava com vinte e um anos e
tinha um filho bebê.
- Onde está a sua miserável esposa? - sussurrou a velha,
queixosa. - Quero que ela me esfregue as costas e os ombros.
- Ela teve que ir visitar o pai, não se lembra? Ele está
muito doente, mãe. Deixe-me fazê-lo para a senhora.
- Não. Você pode mandar chamar uma empregada daqui a
pouco. Sua esposa não tem consideração. Poderia ter esperado
alguns dias. Faço todo esse trajeto desde Yedo para visitá-los.
Levei duas semanas fazendo uma viagem terrível, e o que acontece? Estou aqui há apenas uma semana e ela parte. Devia ter
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esperado! Boa para nada, isso é o que ela é. Seu pai cometeu um
péssimo engano arranjando o seu casamento com ela. Você deveria dizer a ela que ficasse longe definitivamente. Divorcie-se dessa
boa-para-nada de uma vez por todas. Não sabe nem me fazer uma
massagem nas costas de modo adequado. Esses gritos medonhos!
Por que não param?
- Vão parar. Muito brevemente.
- Você devia lhe dar uma boa surra.
- Sim. - Omi pensou na esposa, Midori, e o coração deu
um pulo no peito. Era tão bonita, agradável, gentil e inteligente,
tinha uma voz tão clara e sua música era tão boa quanto a de
qualquer cortesã de Izu.
- Midori-san, você deve partir imediatamente - dissera-lhe
ele em particular.
- Omi-san, meu pai não está tão doente assim, e meu lugar
é aquí, servindo sua mãe, neh? - respondera eia. - Se nosso
daimio vai chegar, esta casa tem que ser preparada. Oh, Omi-san,
isto é tão importante, o momento mais importante de toda a sua
vida de devoção, neh? Se o Senhor Yabu ficar impressionado, talvez lhe dê um feudo melhor, você merece tanto! Se qualquer coisa
acontecesse enquanto eu estivesse longe, eu nunca me perdoaria,
e esta é a primeira vez que você tem uma oportunidade de se
superar e ela deve ser bem sucedida. Ele tem que vir. Por favor,
há tanta coisa para fazer!
- Sim, mas eu gostaria que você partisse imediatamente,
Midori-san. Fique só dois dias, depois volte correndo para casa.
Ela rogara mas ele insistira, e ela partira. Quisera-a longe de
Anjiro antes que Yabu chegasse e enquanto o homem fosse um
hóspede em sua casa. Não que o daimio fosse se atrever a tocá-la
sem permissão - isso era impensável, porque ele, Omi, teria então
o direito, a honra e o dever, por lei, de destruir o daimio. Mas
notara Yabu a observá-la logo depois de se casarem, em Yedo, e
quisera afastar uma possível fonte de irritação, tudo o que pudesse perturbar ou estorvar seu senhor enquanto estivesse ali. Era
tão importante impressionar Yabu-sarna com sua lealdade filial,
sua precaução e sua opinião. E por enquanto tudo tivera um êxito
que ultrapassava a possibilidade. O navio fora um achado, a tripulação, outro. Tudo era perfeito.
- Pedi ao kami da nossa casa que zele por você - dissera
Midori antes de se ir, referindo-se ao espírito xintó particular que
tinha a casa deles a seu cuidado -, e mandei uma oferenda ao
templo budista, para preces. Disse a Suwo que se exceda em per90
feição, e mandei um recado a Kiku-san. Oh, Omi-san, por favor,
deixe-me ficar.
Ele sorrira e a pusera a caminho, com lágrimas a borrar-lhe
a maquilagem.
Omi sentia-se triste por estar sem ela, mas contente de que
tivesse partido. Os gritos a teriam feito sofrer muitíssimo.
Sua mãe estremeceu com o tormento que o vento trazia, moveu-se ligeiramente para minorar a dor nos ombros, sentindo as
juntas péssimas. É a brisa marítima do oeste, pensou. No entanto,
aqui é melhor do que em Yedo. Pantanoso demais lá, e mosquitos
demais também.
Podia apenas ver o suave contorno de Yabu no jardim. Secretamente ela o odiava e queria vê-]o morto. Uma vez que Yabu
estivesse morto, Mizuno, seu marido, seria daimio de Izu e chefiaria o clã. Isso seria excelente, pensou ela. Então todos os outros
irmãos, esposas e filhos seriam subservientes a ela e, naturalmente, Mizuno-san faria de Omí o herdeiro, quando Yabu morresse e
se fosse.
Outra dor no pescoço fê-la mover-se ligeiramente.
- Vou chamar Kiku-san - disse Omi, referindo-se à cortesã
que esperava pacientemente por Yabu no quarto ao lado, com o
menino. - Ela é muito, muito hábil.
- Estou bem, apenas cansada, neh? Oh, muito bem. Ela
pode me fazer uma massagem.
Omi dirigiu-se ao quarto ao lado. A cama estava pronta. Consistia em cobertores de cima e de baixo chamados futons, colocados sobre o chão de esteiras. Kiku curvou-se, tentou sorrir e murmurou que ficaria honrada em tentar usar sua modesta habilidade
na muito honorável mãe da casa. Estava até mais pálida do que
de costume e Omi podia ver que os gritos também a estavam desgastando. O menino estava tentando não demonstrar o próprio
medo.
Quando os gritos começaram, Omi tivera que usar a sua habilidade para persuadi-la a ficar. - Oh, Omi-san, não posso suportar, é terrível. Sinto muito, por favor, deixe-me ir. Quero tapar os
ouvidos, mas o som me passa pelas mãos. Pobre homem, é terrível - dissera ela.
- Por favor, Kiku-san, por favor, seja paciente. Yabu-sarna
ordenou isso, neh? Não há nada que se possa fazer. Vai parar logo.
- É demais, Omí-san. Não posso suportar.
Por um costume inviolado, dinheiro em si não podia comprar uma garota se ela, ou seu patrão, quisesse se recusar ao clien91

te, fosse ele quem fosse. Kiku era uma cortesã de primeira classe,
a mais famosa de Izu, e embora Omi estivesse convencido de que
ela sequer se comparava a uma cortesã de segunda classe de Yedo,
Osaka ou Kyoto, ali estava no auge, devidamente orgulhosa e
exclusiva. E ainda que ele tivesse combinado com a patroa dela,
a Mama-san Gyoko, pagar cinco vezes o preço habitual, ainda
não tinha certeza de que Kiku ficaria.
Agora observava-lhe os dedos ligeiros no pescoço de sua mãe.
Era linda, pequenina, a pele quase translúcida e muito macia.
Normalmente ela estaria fervilhando de interesse pela vida. Mas
como poderia um tal brinquedo estar feliz sob a opressão dos gritos, perguntou ele a si mesmo. Ficou a apreciá-la, saboreando-lhe
o corpo, a tepidez...
Abruptamente os gritos pararam.
Omi escutou, a boca meio aberta, esforçando-se por apreender o mais leve ruído, esperando. Notou que os dedos de Kiku
pararam, a mãe não reclamou, escutando com a mesma atenção.
Olhou pela gelosia para Yabu. O daimio permanecia imóvel como
uma estátua.
- Omi-san! - chamou Yabu finalmente.
Omi levantou-se, foi até a varanda encerada e curvou-se.
- Sim, senhor.
- Vá ver o que aconteceu.
Omi inclinou-se novamente e atravessou o jardim, saindo para
o caminho calçado com seixos minúsculos que descia a colina até
a aldeia e levava à praia. A distância podia ver o fogo de um dos
desembarcadouros e os homens ao lado dele. E, na praça que dava
para o mar, o alçapão do buraco e quatro guardas.
Andando em direção à aldeia, viu que o navio dos bárbaros
estava seguro nas âncoras, com lâmpadas de óleo nos conveses e
nos botes. Aldeães - homens, mulheres e crianças - ainda estavam desembarcando a carga, e barcos de pesca e botes iam e vinham como muitos pirilampos. Fardos e engradados empilhavamse em ordem na praia. Sete canhões já se encontravam lá e outro
estava sendo rebocado por cordas de um bote para uma rampa,
depois para a areia. Ele estremeceu, embora o vento não estivesse
nada frio. Normalmente os aldeães estariam cantando enquanto
trabalhavam, tanto de felicidade quanto para ajudá-los a puxar
em uníssono. Mas naquela noite a aldeia estava inusitadamente
silenciosa, embora todas as casas estivessem acordadas e cada mão
estivesse sendo utilizada, mesmo a mais doente. Pessoas se apressavam de um lado para o outro, faziam mesuras e rapidamente
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seguiam em frente de novo. Silêncio. Até os cães estavam quietos.
Isto nunca foi assim, pensou ele, com a mão desnecessariamente
apertada sobre a espada. É quase como se o kami da nossa aldeia
nos tivesse abandonado.
Mura veio da praia ao seu encontro, prevenido desde o momento em que Omi abrira o portão do jardim. Fez uma reverência. - Boa noite, Omi-sama. O navio estará descarregado por
volta do meio-dia.
- O bárbaro morreu?
- Não sei, Omi-sama. Vou até lá e descubro imediatamente.
- Pode vir comigo.
Obedientemente, Mura o seguiu, meio passo atrás. Omi ficou
curiosamente contente com a sua companhia.
- Pelo meio-dia, você disse? - perguntou Omi, não gostando do silêncio.
- Sim. Está tudo correndo bem.
- E a camuflagem?
Mura apontou para grupos de velhas e crianças que estavam
tecendo esteiras rústicas, Suwo com elas.
- Podemos desmontar os canhões e cobri-los. Precisaremos
de no mínimo dez homens para carregar cada um. Igurashi-san
mandou chamar mais carregadores na aldeia vizinha.
Bom.
Estou me empenhando para que o sigilo seja mantido,
senhor.
Igurashi-san vai convencê-los da necessidade disso, neh?
- Omi-sama, teremos que gastar todos os nossos sacos de
arroz, toda a nossa linha, todas as nossas redes, e toda a nossa
palha para esteiras.
- E daí?
- Como vamos pescar ou enfardar a nossa colheita, depois?
- Encontrarão um jeito - A voz de Omi endureceu. - O
imposto de vocês foi aumentado em metade para esta estação.
Yabu-san ordenou isso esta noite.
- Já pagamos o imposto deste ano, e o próximo.
- Isso é privilégio de camponês, Mura. Pescar, arar, colher
e pagar impostos. Não é?
- Sim, Omi-sama - disse Mura calmamente.
- Um chefe de aldeia que não consegue controlar sua aldeia
é um objeto inútil, neh?
- Sim, Omi-sama.
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- Aquele aldeão. Era um louco e um insultante. Há outros
como ele?
- Nenhum, Omi-sarna.
- Espero que não. Maus modos são imperdoáveis. A família
dele fica multada no valor de um koku de arroz. Em peixe, arroz,
cereais ou outra coisa. A ser pago dentro de três luas.
- Sim, Omi-sarna.
Tanto Mura quanto Omi, o samurai, sabiam que a soma estava totalmente além dos meios da família. Havia apenas o barco
de pesca e o meio hectare de arroz que os três irmãos Tamazaki
- agora dois - compartilhavam com as esposas, quatro filhos e
três filhas, e a viúva de Tamazaki e três filhos. Um koku de arroz
era uma medida que se aproximava à quantidade de arroz necessária para manter viva uma família durante um ano. Cerca de
cinco alqueires. Talvez trezentas e cinqüenta libras de arroz. Todos
os pagamentos no reino eram medidos por kokus. E todos os
impostos.
- Onde é que esta Terra dos Deuses vai parar se nos esquecermos dos bons modos? - perguntou Omi. - Tanto para com
os que estão abaixo de nós quanto para com os que estão acima?
- Sim, Omi-sarna. - Mura estava calculando onde conseguir aquele koku, porque a aldeia teria que pagá-lo se a família
não pudesse. E onde obter sacos de arroz, linha e redes. Alguns
poderiam ser aproveitados da viagem. Teriam que pedir dinheiro
emprestado. O chefe da aldeia vizinha devia-lhe um favor. Ah!
A filha mais velha de Tamazaki não é uma belezinha de seis anos,
e seis anos não é uma idade perfeita para uma menina ser vendida? E o melhor mercador de crianças em toda Izu não é o
terceiro primo da irmã de minha mãe, o avarento e detestável
bruxo velho? Mura suspirou, sabendo que agora tinha uma série
de furiosas sessões de ajustes pela frente. Não importa, pensou.
Talvez a criança traga até dois kokus. Com certeza vale muito mais.
- Peço desculpas pela conduta inconveniente de Tamazaki
e peço-lhe perdão - disse.
- Foi inconveniência dele, não sua - replicou Omi, de
modo igualmente polido.
Mas ambos sabiam que era responsabilidade de Mura e seria melhor que não houvesse outros Tamazaki. No entanto, ficaram
ambos satisfeitos. Um pedido de desculpas fora oferecido, aceito,
mas recusado. Assim a honra dos dois homens estava satisfeita.
Dobraram a esquina do desembarcadouro e pararam. Omi
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hesitou, depois afastou Mura com um gesto. O chefe da aldeia
curvou-se e partiu, agradecido.
- Ele está morto, Zukimoto?
- Não, Omi-san. Só desmaiou de novo.
Omi dirigiu-se ao grande caldeirão de ferro que a aldeia usava
para derreter a gordura das baleias que às vezes apanhavam em
alto-mar, nos meses de inverno, ou para derreter cola de peixe,
uma atividade da aldeia.
O bárbaro estava mergulhado até os ombros na água fervendo. Tinha o rosto púrpura, os lábios repuxados para trás sobre os
dentes estragados.
Ao pôr-do-sol Omi observara Zukimoto, arrotando vaidade,
supervisionar enquanto o bárbaro era amarrado como uma galinha, os braços em torno dos joelhos, as mãos frouxamente junto
dos pés, e colocado em água gelada. O tempo todo o bárbaro
baixinho de cabelo vermelho com que Yabu quisera começar havia
balbuciado, rido e chorado, o padre cristão lá, no começo, sussurrando suas malditas orações. Depois o fogo começara a ser
atiçado. Yabu não estivera na praia, mas suas ordens tinham sido
específicas e foram seguidas diligentemente. O bárbaro começara
a gritar e delirar, depois tentara bater a cabeça contra a beirada
de ferro do caldeirão, coisa que o impediram de fazer. Depois veio
mais oração, choro, desmaio, despertar, guinchos de pânico, antes
que a dor realmente começasse. Omi tentara assistir como assistiria à imolação de uma mosca, tentando não ver o homem. Mas
não conseguira e fora embora o mais depressa possível. Descobrira que não apreciava a tortura. Não havia dignidade nela, concluíra, contente pela oportunidade de saber a verdade, já que
nunca presenciara torturas antes. Não havia dignidade nem para
o torturado nem para o torturador. Removia a dignidade, e sem
essa dignidade qual era a finalidade última da vida? perguntou
a si mesmo.
Zukimoto calmamente cutucou a carne parcialmente cozida
das pernas do homem com um bastão, como se faria com um
peixe cozinhado em fogo brando para ver se estava pronto. - Ele
voltará a si logo. Extraordinário o tempo que está durando. Não
acho que sejam feitos como nós. Muito interessante, hein? -
disse Zukimoto.
- Não - disse Omi, detestando-o.
Zukimoto ficou imediatamente em guarda e sua untuosidade
reapareceu. - Não quis dizer nada, Omi-san - disse com uma
profunda reverência. - Absolutamente nada.
95

- Claro. O Senhor Yabu está contente de que você tenha
trabalhado tão bem. Deve exigir grande habilidade não alimentar
o fogo em demasia e ao mesmo tempo alimentá-lo o suficiente.
- É muito gentil, Omi-san.
- Já tinha feito isso antes?
- Não deste modo. Mas o Senhor Yabu me honra com seus
favores. Simplesmente procuro agradá-lo.
- Ele quer saber quanto tempo o homem viverá.
- Até o amanhecer. Com cuidado.
Omi estudou o caldeirão pensativamente. Depois caminhou
da praia para a praça. Todos os samurais se levantaram e se
curvaram.
- Está tudo tranqüilo lá embaixo, Omi-san - disse um
deles com uma risada, dando uma batida no alçapão. - Primeiro
houve um pouco de conversa, parecia zangada, e algumas pancadas. Depois, dois deles, talvez mais, se puseram a choramingar
como crianças assustadas. Mas estão quietos há muito tempo.
Omi escutou. Ouviu a lama patinhar e um sussurro distante.
Um gemido ocasional. - E Masijiro? - perguntou, citando o
samurai que, por ordem sua, fora deixado lá embaixo.
- Não sabemos, Omi-san. Não chamou nem uma vez, isso
é certo. Provavelmente está morto.
Que ousadia de Masijiro ser tão inútil, pensou Omi. Ser subjugado por homens indefesos, a maioria doente! Repugnante! Melhor que esteja morto. - Nada de comida ou água amanhã. Ao
meio-dia removam os corpos, neh? E quero que o líder seja trazido para cima. Sozinho.
- Sim, Omi-san.
Omi voltou para a fogueira e esperou até que o bárbaro abrisse os olhos. Depois regressou ao jardim e relatou o que Zukimoto
dissera, a tortura mais uma vez vindo penetrante com o vento.
- Você olhou para os olhos do bárbaro?
- Sim, Yabu-sarna.
Omi estava ajoelhado atrás do daimio, a dez passos. Yabu
permanecera imóvel. O luar lançava sombras sobre o quimono
dele e fazia um falo do punho da espada.
- O que... o que você viu?
- Loucura. A essência da loucura. Nunca vi olhos como
aqueles. E terror sem limites.
Três pétalas caíram suavemente.
- Faça um poema sobre ele.
96
Omi tentou forçar o cérebro a trabalhar. Depois, desejando
ser mais adequado, disse:
Os berros vinham em lufadas, mais vagos agora, parecendo
que a distância tornava essa diminuição de intensidade mais cruel.
Depois de um instante, Yabu disse:
Omi pensou sobre isso um longo instante, em meio à beleza
da noite.
Pouco antes da primeira luz da manhã, os gritos cessaram.
A mãe de Omi dormiu. Yabu também.
A aldeia ainda estava agitada ao amanhecer. Ainda restavam
quatro canhões para trazer à praia, cinqüenta barriletes de pólvora,
mil balas de canhão.
Kiku estava deitada sob o cobertor, olhando as sombras na
parede shoji. Não dormira, embora estivesse mais exausta do que
nunca. Os roncos resfolegantes da velha no quarto contíguo abafavam a suave e profunda respiração do daimio ao seu lado. O
menino dormia silenciosamente nos outros cobertores, um braço
passado sobre os olhos por causa da luz.
Um leve tremor percorreu o corpo de Yabu e Kiku susteve
o fôlego. Mas ele continuou dormindo e isso a agradou, pois sabia
que muito breve poderia partir sem o perturbar. Enquanto espera- Seus olhos
Eram simplesmente o fim
Do inferno...
Toda dor
Articulada.
- Se você permite
Que o calafrio penetre
No profundo, fundo âmago
Você se torna um com eles,
Inarticulado.
CAPITULO 5
97

va pacientemente, forçou-se a pensar em coisas agradáveis. "Lembre-se sempre, criança", inculcara nela sua primeira professora, "de
que ter maus pensamentos é realmente a coisa mais fácil do mundo. Se você deixar a mente por conta própria, ela vai sugá-la
para baixo, numa infelicidade sempre crescente. Ter bons pensamentos, porém, exige esforço. Isso é uma das coisas de que a disciplina - treinamento - trata. Portanto treine sua mente para
se deter em perfumes doces, o toque desta seda, tenras gotas de
chuva contra o shoji, a curva deste arranjo de flores, a tranqüilidade do amanhecer. Depois, finalmente, você não precisará fazer
um esforço tão grande e isso será de valor para você mesma, um
valor para a nossa profissão - e trará honra para o nosso mundo,
o mundo do salgueiro."
Pensou na gloriosa sensualidade do banho que tomaria em
breve e que expulsaria aquela noite, e depois nas carícias calmantes das mãos de Suwo. Pensou nas risadas que daria com as outras
garotas e com Gyoko-san, a Mama-san, quando trocariam tagarelices, rumores e histórias, e no quimono limpo, oh, tão limpo, que
usaria naquela noite, o dourado com flores amarelas e verdes, e
as fitas de cabelo que combinavam. Depois do banho, pentearia
o cabelo e do dinheiro da noite passada haveria muito para saldar
sua dívida com a patroa, Gyoko-san, algum para mandar ao pai,
que era um camponês fazendeiro, e ainda algum para si mesma.
Logo encontraria seu amante e seria uma noite perfeita.
A vida é muito boa, pensou.
Sim. Mas é muito difícil afastar os gritos. Impossível. As
outras garotas ficarão igualmente infelizes, e coitada de Gyokosan! Mas não importa. Amanhã partiremos todas de Anjiro e voltaremos para casa, a nossa adorável casa de chá em Mishima, a
maior cidade de Izu, que circunda o maior castelo do daimio em
Izu, onde a vida começa e existe.
Que pena que a Senhora Midori tenha mandado me buscar.
Seja séria, Kiku, disse a si mesma categoricamente. Você não
deveria lamentar. Não está lamentando, neh? Foi uma honra servir o nosso senhor. Agora que você foi honrada, seu valor para
Gyoko-san é maior do que nunca, neh? Foi uma experiência e
agora você será conhecida como a Senhora da Noite dos Gritos
e, se tiver sorte, alguém escreverá uma balada sobre você e talvez
a balada seja cantada até em Yedo. Oh, isso seria muito bom!
Depois o seu amante certamente comprará o seu contrato, você
estará segura e contente e terá filhos.
Ela sorriu para si mesma. Ah, que histórias os trovadores
98
farão sobre esta noite, que serão contadas em todas as casas de
chá de Izu. Sobre o senhor daimio, sentado imóvel em meio aos
gritos, o suor escorrendo. O que foi que ele fez na cama? - todos
quererão saber. E por que o menino? Como foi? O que foi que a
Senhora Kiku fez e disse, e o que o Senhor Yabu fez e disse?
O pilão sem par dele era insignificante ou farto? Foi uma vez,
duas ou nenhuma? Nada aconteceu?
Mil perguntas. Mas nenhuma feita ou respondida diretamente, nunca. Isso é prudente, pensou Kiku. A primeira e última regra
do mundo do salgueiro era sigilo absoluto, nunca falar sobre um
cliente ou seus hábitos ou o que era pago, e assim ser completamente digna de confiança. Se alguma outra pessoa falasse, bem,
era problema dela, mas com paredes de papel e casas tão pequenas, sempre havia histórias correndo da cama para a balada -
nunca a verdade, sempre exageros, porque o povo é o povo, neh?
Mas nada da senhora. Uma sobrancelha arqueada talvez, ou um
dar de ombros hesitante, um alisar delicado de um penteado perfeito ou de uma dobra do quimono era tudo o que se permitia.
E sempre suficiente, se a garota tivesse juízo.
Quando os gritos cessaram, Yabu permanecera como estátua
ao luar pelo que parecera uma eternidade e depois se levantara.
Imediatamente ela correra de volta para o outro quarto, o quimono de seda suspirando como o mar de meia-noite. O menino
estava assustado, tentando não demonstrá-lo, e enxugou as lágrimas que a tortura causara. Ela lhe sorrira tranqüilizadora, forçando uma calma que não sentia.
Então Yabu apareceu à porta. Estava banhado em suor, o
rosto tenso e os olhos semicerrados. Kiku ajudou-o a tirar as
espadas, depois o quimono encharcado e a tanga. Enxugou-o,
ajudou-o a pôr um quimono fresco e amarrou o cinto de seda.
Começara a saudá-lo, mas ele lhe pusera um dedo gentil sobre os
lábios.
Depois se dirigira para a janela e olhara a lua declinando,
como que enlevado, balançando-se levemente sobre os pés. Ela
permaneceu tranqüila, sem medo, pois o que havia a temer? Ele
era' um homem e ela uma mulher, treinada para ser mulher, para
dar prazer, do modo que fosse. Mas não para dar ou receber dor.
Havia outras cortesãs especializadas nessa forma de sensualidade.
Um apertão aqui e ali, talvez uma mordida, bem, isso era parte
do prazer-dor de dar e receber, mas sempre dentro da razão,
pois a honra estava envolvida e ela era uma dama do Mundo
do Salgueiro de primeira classe, nunca para ser menosprezada,
99

a ser sempre honrada. Mas parte do seu treinamento era saber
como manter um homem dócil dentro dos limites. Às vezes um
homem ficava indócil e então era terrível. Pois a dama estava
sozinha. Sem direitos.
Seu penteado estava impecável com exceção de minúsculas
mechas de cabelo, cuidadosamente soltas sobre as orelhas para
sugerir um desalinho erótico, mas, ao mesmo tempo, para realçar
a pureza do conjunto. O quimono vermelho e preto, axadrezado,
bordado com o mais puro. verde, que lhe aumentava a brancura
da pele, estava apertado à minúscula cintura por uma larga faixa
rija, um obi, de um verde iridescente. Ela podia ouvir a arrebentação na praia agora e um vento leve que farfalhava o jardim.
Finalmente Yabu se voltara e olhara para ela, depois para o
menino.
O menino tinha quinze anos, era o filho de um pescador
local, aprendiz, no mosteiro das proximidades, de um monge budista que era artista, pintor e ilustrador de livros. O menino era um
dos que gostavam de ganhar dinheiro, daqueles que apreciavam
sexo com meninos e não com mulheres.
Yabu fez-lhe um gesto. Obedientemente o menino, que agora
também superara o medo, afrouxou a faixa do quimono com uma
elegância estudada. Não usava tanga mas uma combinação de
mulher que chegava quase ao chão. Tinha o corpo macio, curvilíneo e quase sem pêlos. Kiku lembrou-se de como o quarto estivera tranqüilo, os três aproximados pela tranqüilidade e pelos gritos extintos, ela e o menino esperando que Yabu indicasse o que
era ordenado. Yabu em pé ali entre os dois, balançando-se levemente, olhando de um para o outro.
Finalmente fizera um sinal para ela. Graciosamente ela desatara a fita do obi, desenrolara-o gentilmente e deixara-o cair. As
dobras de seus três quimonos, leves como teia, abriram-se sussurrantes e revelaram a combinação que lhe acentuava os quadris.
Yabu se deitou e, a uma ordem sua, os dois se deitaram também,
um de cada lado dele.
Ele pôs-lhes as mãos sobre si e abraçou aos dois. Aqueceu-se
rapidamente, mostrando-lhes como usar as unhas nos flancos dele,
urgindo-os, seu rosto uma máscara, mais depressa, mais depressa
e depois o estremecimento, o grito violento de dor absoluta. Por
um instante, ficou deitado, arquejando, os olhos apertados, o peito
arfante, depois se virara e quase instantaneamerfte caíra no sono.
No silêncio eles contiveram o fôlego, tentando esconder a
própria surpresa. Acabara tão depressa.
100
O menino arqueara uma sobrancelha, espantado. - Será que
fomos inábeis, Kiku-san? Quero dizer, tudo aconteceu tão depressa
- sussurrou ele.
- Fizemos tudo o que ele quis - disse ela.
- Ele certamente atingiu as nuvens e a chuva - disse o
menino. - Pensei que a casa fosse desabar.
Ela sorriu. - Sim.
- Estou contente. Primeiro fiquei com muito medo. É muito bom agradar.
Juntos, enxugaram Yabu gentilmente e cobriram-no com o
acolchoado. Depois o menino deitou-se de costas langorosamente,
meio apoiado num cotovelo e reprimindo um bocejo.
- Por que você não dorme também? - disse ela.
o menino puxou o quimono mais para junto do corpo e
mudou de posição para ajoelhar diante dela, que estava sentada
ao lado de Yabu, a mão direita acariciando suavemente o braço
do daimio, acalmando seu sono trêmulo.
- Nunca tinha estado com um homem e uma mulher ao
mesmo tempo, Kiku-san - sussurrou o menino.
- Nem eu.
o menino franziu o cenho. - Nunca estive com uma garota,
também. Quero dizer, nunca me deitei com uma.
- Gostaria de ter a mim? - perguntou ela polidamente.
- Se esperar um pouquinho, tenho certeza de que nosso senhor
não acordará.
o menino franziu a testa de novo. Depois: - Sim, por favor -, e mais tarde: - Foi muito estranho, Senhora Kiku.
Ela sorriu interiormente. - Qual você prefere?
o menino pensou um longo tempo, os dois deitados em paz,
nos braços do outro. - Este jeito dá muito mais trabalho.
Ela afundou a cabeça no ombro dele e beijou-lhe a nuca para
esconder o sorriso. - Você é um amante máravilhoso - sussurtanto trabalho. - Acariciou-o
deixou-o e foi para os outros
um
rou. - Agora deve dormir, após
até que pegasse no sono, depois
acolchoados.
A outra cama estava fria. Ela não quis se mover para o calor
de Yabu com receio de perturbá-lo. Logo seu lado estava quente.
As sombras da shoji estavam nítidas. Os homens são uns
bebês, pensou ela. Tão cheios de orgulho tolo. Todo o sofrimento
desta noite por uma coisa tão transitória. Por uma paixão que em
si mesma não passa de uma ilusão, neh?
o menino mexeu-se no sono. Por que foi que você se ofere101

ceu a ele? perguntou ela a si mesma. Pelo prazer dele - por
ele e não por mim, embora tenha me divertido, passado o tempo
e dado a ele a tranqüilidade de que necessitava. Por que você não
*dorme um pouquinho? Mais tarde. Dormirei mais tarde, disse a
si mesma.
Quando chegou a hora, deslizou da tepidez e levantou-se. Seus
quimonos se abriram num sussurro e o ar esfriou-lhe a pele. Rapidamente cingiu os trajes com perfeição e amarrou o obi. Um
rápido mas cuidadoso toque no penteado. E na maquilagem.
Partiu sem nenhum ruído.
O samurai de sentinela na entrada da varanda inclinou-se e
ela retribuiu a reverência, e logo se encontrava à luz do amanhecer. Sua empregada estava à espera.
- Bom dia, Kiku-san.
- Bom dia.
O sol causou uma sensação ótima e lavou a noite. É muito
bom estar viva, pensou ela.
Deslizou os pés para dentro das sandálias, abriu a sombrinha
carmesim e atravessou o jardim, para o caminho que levava à aldeia, através da praça, à casa de chá que era sua residência temporária. A empregada seguiu-a.
- Bom dia, Kiku-san - chamou Mura, curvando-se. Estava
descansando momentaneamente na varanda de sua casa, tomando
chá, o fraco chá verde do Japão. Sua mãe o servia.
- Bom dia, Kiku-san - ecoou esta última.
- Bom dia, Mura-san. Bom dia, Saiko-san, a senhora está
com ótima aparência - replicou Kiku.
- Como vai? - perguntou a mãe, seus velhíssimos olhos
cravados na garota. - Que noite terrível! Tome um chá conosco,
por favor. Você parece pálida, criança.
- Obrigada, mas, por favor, desculpe-me, preciso ir para
casa agora. A senhora realmente me faz uma grande honra. Talvez mais tarde.
- Claro, Kiku-san. Você honra nossa aldeia com sua presença.
Kiku sorriu e fingiu não notar os olhares inquisitivos. Para
deixar mais picante o dia deles, e o dela, fingiu uma dorzinha nas
regiões inferiores.
Isto vai correr pela aldeia inteira, pensou feliz, enquanto se
curvava, estremecia novamente e se afastava como se estivesse
estoicamente dissimulando uma dor intensa, as dobras dos quimonos oscilando à perfeição, e a sombrinha inclinada para dar-lhe
102
exatamente aquela luz mais maravilhosa. Estava muito contente
de ter ganhado aquele quimono e a sombrinha. Num dia insípido
o efeito nunca teria sido tão dramático.
- Ah, pobre, pobre criança! É tão bonita, neh? Que vergonha! Terrível! - disse a mãe de Mura com um suspiro de cortar
o coração.
- O que é terrível, Saiko-san? - perguntou a esposa de
Mura, vindo para a varanda.
- Você não viu o sofrimento da pobre garota? Não viu
como ela estava bravamente tentando escondê-lo? Pobre criança!
Apenas dezessete anos e ter que passar por tudo isso!
- Ela tem dezoito anos - disse Mura secamente.
- Tudo o quê, senhora? - disse uma das empregadas ansiosamente, juntando-se a eles. A velha olhou em torno para ter
certeza de que todos a escutavam e abaixando a voz: - Ouvi
dizer - deixou escapar -, ouvi dizer que ela ficará... ficará
inutilizada ... por três meses.
- Oh, não! Pobre Kiku-san! Oh! Mas por quê?
- Ele usou os dentes. Fiquei sabendo da melhor fonte.
- Oh!
- Oh!
- Mas por que foi que ele quis o menino, senhora? Com
certeza, ele não. .
- Ah! Vão embora! De volta ao trabalho, boas-para-nada!
Isto não é para os ouvidos de vocês! Vamos, fora, todas! O patrão
o eu temos que conversar.
Enxotou-as todas da varanda. Até a esposa de Mura. E sorveu o chá, afável e muito contente.
Mura rompeu o silêncio. - Dentes?
- Dentes. Corre o boato de que os gritos o fazem grande
porque ele foi assustado por um dragão quando era pequeno -
disse ela num fôlego só. - Ele sempre tem um menino junto
para lembrá-lo de quando era menino, petrificado, mas na realidade o menino fica lá só para se deitar com ele, para exauri-lo
- de outro modo ele arrancaria tudo com os dentes, pobre garota.
Mura suspirou. Foi até o pequeno telheiro ao lado do portão
dianteiro e peidou involuntariamente quando começou a se aliviar
no balde. Gostaria de saber o que realmente aconteceu, disse a si
mesmo, excitado. Por que será que Kiku-san estava sofrendo?
Talvez o daimio realmente use os dentes! Que extraordinário!
Saiu, sacudindo-se para não sujar a tanga, e rumou através da
103

praça, profundamente absorto. Puxa, como eu gostaria de ter uma
noite com a Senhora Kiku! Que homem não gostaria? Quanto será
que Omi-san teve que pagar à Mama-san dela - que no final
nós é que vamos ter que pagar? Dois kokus? Dizem que a Mamasan dela, Gyoko-san, pediu e obteve dez vezes a paga regular.
Conseguiu cinco kokus por uma noite. Kiku-san certamente valeria isso, neh? Corre o boato de que ela tem tanta prática aos
dezoito anos quanto uma mulher duas vezes mais velha. Consta
que é capaz de prolong... lülh, que alegria ela é! Se fosse eu,
como eu começaria?
Distraidamente ajeitou-se dentro da tanga enquanto os pés o
levavam para fora da praça, pelo caminho batido até o pátio de
funeral.
A pira fora preparada. A delegação de cinco homens da
aldeia já se encontrava lá.
Era o lugar mais agradável da aldeia, onde as brisas do mar
eram mais frescas no verão e a vista, melhor. Perto ficava o santuário xintó da aldeia, um minúsculo telhado de palha sobre um
pedestal para o kami, o espírito, que vivia ali, ou poderia querer
viver ali, se lhe agradasse. Um teixo retorcido, plantado antes de
a aldeia nascer, inclinava-se ao vento.
Mais tarde Omi subiu o caminho. Com ele vieram Zukimoto
e quatro guardas. Manteve-se a distância. Quando se curvou formalmente para a pira e para o corpo amortalhado, quase desconjuntado, que jazia sobre ela, todos se curvaram com ele em homenagem ao bárbaro que morrera para que os companheiros pudessem
viver.
A um sinal dele, Zukimoto avançou e acendeu a pira. Zukimoto havia pedido a Omi o privilégio e a honra lhe fora concedida. Curvou-se uma última vez. Depois, quando o fogo estava
bem aceso, todos se afastaram.
Blackthorne mergulhou a mão na borra do barril, cuidadosamente mediu meia xícara de água e deu-a a Sonk. Sonk tentou tomá-la aos goles para fazê-la durar, a mão tremendo, mas não
conseguiu. Sorveu de um trago o líquido morno, lamentando tê-lo
feito no momento em que ele passou pela sua garganta ressecada,
e tateou fatigado de volta a seu lugar junto da parede, passando
por cima dos que estavam no turno de ficar deitado. O chão agora
era um lodo profundo, o mau cheiro e as moscas hediondos. Uma
tênue claridade chegava ao buraco através das ripas do alçapão.
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Vinck era o seguinte na fila da água. Pegou sua xícara e ficou
contemplando-a, sentado perto do barril, Spillbergen do outro lado.
- Obrigado - murmurou melancolicamente.
- Apresse-se! - disse Jan Roper, com o corte no rosto já
supurando. Era o último na fila e, estando tão próximo, sua
garganta o torturava. - Apresse-se, Vinck, pelo amor de Cristo!
- Desculpe. Pegue, tome você - murmurou Vinck, estendendo-lhe a xícara, esquecido das moscas que o cobriam.
- Beba, seu idiota! É a última que vai receber até o pôr-dosol! Beba! - Jan Roper empurrou a xícara de volta para as mãos
do homem. Vinck não levantou os olhos para ele, mas obedeceu,
infeliz, e mais uma vez deslizou de volta ao seu inferno particular.
Jan Roper pegou sua xícara de água de Blackthorne. Fechou
os olhos e fez uma oração de graças silenciosa. Era um dos que
estavam em pé, sentindo doer os músculos das pernas. A xícara
mal e mal continha dois goles.
Quando todos haviam recebido sua ração, Blackthorne afundou a mão no barril e sorveu agradecido. Tinha a boca e a língua ásperas, queimadas e cobertas de pó.
Estava infestado de moscas, suor e imundície. O peito e as
costas estavam seriamente machucados.
Observou o samurai que fora deixado na cela. Estava amontoado contra a parede, entre Sonk e Croocq, ocupando tão pouco
espaço quanto possível, e não se movia há horas. Fitava friamente
o vazio, vestido só com a tanga, com escoriações violentas por
todo o corpo, um grosso vergão em torno do pescoço.
Quando Blackthorne voltara a si, a cela se encontrava em
completa escuridão. Os gritos enchiam o buraco, e ele pensou que
tivesse morrido e estivesse nas sufocantes profundezas do inferno.
Sentiu-se sugado para uma lama viscosa e que causava arrepios
além de qualquer medida, gritara e farejara em pânico, incapaz
de respirar, até que, após uma eternidade, ouvisse: - Está tudo
bem, piloto, você não morreu, está tudo bem. Acorde, acorde,
pelo amor de Cristo, isto não é o inferno mas poderia muito bem
ser. Ó abençoado Senhor Jesus, ajude-nos a todos!
Quando recuperou totalmente a consciência, contaram-lhe
sobre Pieterzoon e os barris de água do mar.
- Oh, Senhor Jesus, tire-nos daqui! - choramingou alguém.
- O que estão fazendo com o coitado do Pieterzoon? O que
estão fazendo com ele? Oh, Deus nos ajude. Não posso agüentar
esses gritos.
105

- Oh, Senhor, deixe o coitado morrer! Deixe-o morrer!
- Cristo Deus, pare esses gritos! Por favor, pare esses
gritos!
O buraco e os gritos de Pieterzoon haviam dado a medida
de todos, forçando-os a olhar para dentro de si mesmos. E nenhum
homem gostara do que vira.
A escuridão ainda torna as coisas piores, pensara Blackthorne.
Fora uma noite interminável no buraco.
Com o crepúsculo os gritos se extinguiram. Quando o amanhecer escoara até eles, viram o samurai esquecido.
- O que vamos fazer com ele? - perguntara Van Nekk.
- Não sei. Parece tão assustado quanto nós - dissera
Blackthorne, o coração latejando.
- É melhor que ele não comece nada, por Deus.
- Oh, Senhor Jesus, tirem-me daqui... - começou a voz
de Croocq num crescendo. - Socooooooorro!
Van Nekk, que estava perto dele, sacudiu-o e acalmou-o.
- Está tudo bem, mocinho. Estamos nas mãos de Deus. Ele está
zelando por nós.
- Olhem o meu braço - gemeu Maetsukker. O ferimento
já havia supurado. Blackthorne levantou-se tremulamente. - Estaremos todos delirando como loucos dentro de um ou dois dias
se não sairmos daqui - disse, a ninguém em particular.
- A água quase acabou - disse Van Nekk.
- Vamos racionar a que há. Um pouco agora, mais um
pouco ao meio-dia. Com sorte haverá o suficiente para três turnos.
Deus amaldiçoe todas as moscas!
Então encontrara a xícara e lhes dera uma ração, e agora
estava sorvendo a sua, tentando fazê-la durar.
- E quanto a ele, o japonês? - disse Spillbergen. O capitão-mor passara melhor do que nunca durante a noite porque
tapara os ouvidos aos gritos com um pouco de lama e, como
estava ao lado do barril de água, cuidadosamente saciara a sede.
- O que vamos fazer com ele?
- Ele deveria receber um pouco de água - disse Van Nekk.
- Pois sim! - disse Sonk. - Digo que não deve receber
coisa nenhuma.
Todos votaram e concordou-se em que o samurai não tomaria
água.
- Não concordo - disse Blackthorne.
- Você não concorda com nada que a gente diga - disse
Jan Roper.
106
- Ele é o inimigo. É um diabo pagão e quase nos matou.
- Você também quase me matou. Meia dúzia de vezes. Se
o seu mosquete tivesse disparado em Santa Magdellana, você teria
me estourado os miolos.
- Eu não estava mirando você. Estava mirando satanistas
fedorentos.
- Eram sacerdotes desarmados. E havia tempo de sobra.
- Eu não estava mirando você.
- Você quase me matou meia dúzia de vezes, com a sua
maldita raiva, sua maldita beatice e sua maldita estupidez!
- Blasfêmia é pecado mortal. Proferir o nome dele em vão
é pecado. Estamos nas mãos dele, não nas suas. Você não é um
rei e isto não é um navio. Não é nosso.. .
- Mas vai fazer o que eu disser!
Jan Roper olhou em torno da cela, inutilmente em busca de
apoio.
- Faça o que quiser - disse sombriamente.
- Eu farei.
O samurai estava tão sedento quanto eles, mas meneou a
cabeça à xícara que lhe foi oferecida. Blackthorne hesitou, colocou-a junto dos lábios inchados do samurai, mas o homem afastou-a com um golpe, entornando a água, e disse alguma coisa
asperamente. Blackthorne preparou-se para aparar o golpe seguinte. Mas ele não veio nunca. O homem não tornou a se mover,
simplesmente mergulhou o olhar no vazio.
- Ele está louco. São todos loucos - disse Spilibergen.
- Sobra mais água para nós. Bom - disse Jan Roper. -
Deixem-no ir para o inferno, que é o que merece.
- Qual é o seu nome? Narni? - perguntou Blackthorne.
Repetiu de maneiras diferentes, mas o samurai parecia não ouvir.
Deixaram-no em paz. Mas observavam-no como se fosse
um escorpião. Ele não os olhava. Blackthorne tinha certeza de
que o homem estava tentando tomar alguma decisão, mas não
tinha idéia do que pudesse ser.
Que será que ele tem na cabeça? perguntou Blackthorne
a si mesmo. Por que recusou a água? Por que foi deixado aqui?
Será que foi um engano de Omi? Não é provável. Será que foi
um plano? Não é provável. Poderíamos usá-lo para sair daqui?
Não é provável. O mundo inteiro é improvável, só é provável
que vamos ficar aqui até que nos deixem sair... se deixarem.
E se deixarem, o que virá a seguir? O que aconteceu a Pieterzoon?
As moscas enxameavam com o calor do dia.
107

Oh, Deus, como gostaria de me deitar, como gostaria de
tomar aquele banho, não teriam que me carregar desta vez.
Nunca tinha percebido como um banho é importante. Aquele
velho cego com os dedos de aço! Eu poderia usá-lo por uma ou
duas horas.
Que desperdício! Todos os nossos navios, homens e esforço
para isto. Um fracasso total. Bem, quase. Alguns ainda estamos
vivos.
- Piloto! - Van Nekk o estava sacudindo. - Você adormeceu. Ele... ele está se curvando para você há um minuto ou
mais. - Fez um gesto para o samurai, que estava ajoelhado e
de cabeça inclinada à sua frente.
Blackthorne esfregou a exaustão dos olhos. Fez um esforço
e retribuiu a reverência.
- Hai? - disse bruscamente, lembrando-se da palavra japonesa para "sim".
O samurai segurou a faixa do seu quimono rasgado e enrolou-a em torno do pescoço. Ainda ajoelhado, deu uma ponta a
Blackthorne e a outra a Sonk, baixou a cabeça e fez-lhes sinal para
que a puxassem com força.
- Está com medo de que o estrangulemos - disse Sonk.
- Jesus Cristo, acho que isso é o que ele quer que façamos.
- Blackthorne deixou cair o cinto e sacudiu a cabeça. - Kinjiru
- disse, pensando em como essa palavra era inútil. Como você
diz a um homem que não fala a sua língua que é contra o seu
código cometer assassínio, matar um homem desarmado, que você
não é um executor, que o suicídio é condenado por Deus?
O samurai pediu de novo, claramente implorando-lhe, mas
Blackthorne sacudiu a cabeça novamente. - Kinjiru. - O homem
olhou em torno ansiosamente. De repente se pôs em pé e mergulhou a cabeça bem fundo na latrina, tentando se afogar. Jan
Roper e Sonk imediatamente puxaram-no para trás, sufocado e
debatendo-se.
- Deixem-no - ordenou Blackthorne. Obedeceram. Ele
apontou para a latrina.
- Samurai, se é isso o que você quer, vá em frente!
O homem estava com ânsias de vômitos, mas compreendeu.
Olhou para a tina repugnante e soube que não teria forças para
manter a cabeça lá o tempo suficiente. Na mais profunda infelicidade, voltou a seu lugar junto da parede.
- Jesus - murmurou alguém.
Blackthorne raspou meia xícara de água no barril, levan108
tou-se, sentindo as juntas rijas, aproximou-se do japonês e ofereceu-lhe a água. Ele olhou para além da xícara.
- Pergunto a mim mesmo quanto tempo ele consegue
agüentar - disse Blackthorne.
- Para sempre - disse Jan Roper. - São animais. Não
são humanos.
- Pelo amor de Cristo, quanto tempo mais vão nos manter
aqui? - perguntou Ginsel.
- O tempo que quiserem.
- Teremos que fazer qualquer coisa que eles queiram -
disse Van Nekk. - Teremos que fazer, se quisermos continuar
vivos e sair deste buraco do inferno. Não teremos, piloto?
- Sim. - Blackthorne avaliou, agradecido, as sombras do
sol. - É pleno meio-dia, o turno muda.
Spillbergen, Maetsukker e Sonk começaram a se queixar, mas
ele os fez levantar-se com imprecações e quando haviam todos
se redistribuído, deitou-se agradavelmente. A lama era repelente
e as moscas piores que nunca, mas o prazer de poder estirar-se por
inteiro foi enorme.
O que fizeram com Pieterzoon? - perguntou a si mesmo,
sentindo a fadiga tragá-lo. Oh, Deus nos ajude a sair daqui. Estou
com tanto medo!
Ouviram passos lá em cima. O alçapão se abriu. O padre
apareceu, ladeado de samurais.
- Piloto. Você deve subir. Deve subir sozinho - disse ele.
CAPITULO 6
Todos os olhos no poço se dirigiram para Blackthorne.
- O que querem comigo?
- Não sei - disse o Padre Sebastio gravemente. - Mas
você deve subir imediatamente.
Blackthorne sabia que não tinha escolha, mas não queria se
afastar da parede protetora, tentando reunir mais força.
- O que aconteceu com Pieterzoon?
O padre contou. Blackthorne traduziu para os outros que não
falavam português.
109

- O Senhor tenha piedade dele - sussurrou Van Nekk por
sobre o silêncio horrorizado. - Pobre homem. Pobre homem.
- Sinto muito. Não houve nada que eu pudesse fazer -
disse o padre com uma grande tristeza. - Não acho que ele me
reconhecesse ou a qualquer outro no momento em que o puseram
na água. Já havia perdido o juízo. Dei-lhe absolvição e rezei por
ele. Talvez, com a piedade de Deus... In nomine Patris et Filii
et Spiritus Sancti. Amém. - Fez o sinal-da-cruz sobre a cela.
- Imploro-lhes que renunciem às suas heresias e serão aceitos de
volta na fé de Deus. Piloto, você tem que subir.
- Não nos deixe, piloto, pelo amor de Deus! - gritou
Croocq.
Vinck cambaleou rumo à escada e começou a subir. - Podem pegar a mim, não ao piloto. Eu, não ele. Diga-lhe... -
Parou, desamparado, os dois pés nos degraus. Uma longa lança
estava a uma polegada de sua cabeça. Tentou agarrar-lhe o cabo,
mas o samurai estava preparado e se Vinck não tivesse saltado,
teria sido empalado.
Esse mesmo samurai apontou para Blackthorne e fez-lhe sinal
que subisse. Rudemente. Blackthorne continuou imóvel. Outro
samurai empurrou um longo bastão farpado para dentro da cela
e tentou fisgar Blackthorne.
Ninguém se moveu para ajudar Blackthorne exceto o samurai
na cela. Agarrou a fisga rapidamente e disse alguma coisa, ríspido, ao homem lá em cima, que hesitou; depois olhou para Blackthorne, deu de ombros e falou:
- Que foi que ele disse?
O padre respondeu: - É um dito japonês: "O destino de
um homem é o destino de um homem, e a vida não passa de uma
ilusão".
Blackthorne fez um gesto de cabeça ao samurai e se dirigiu
para a escada sem olhar para trás. Subiu. Quando se viu em plena
luz do sol, semicerrou os olhos por causa da dolorosa claridade,
os joelhos cederam e ele desabou sobre a terra arenosa.
Omi estava de um lado. O padre e Mura erguiam-se perto
dos quatro samurais. Alguns aldeães a distância olharam um momento, depois deram as costas e se foram.
Ninguém o ajudou.
Oh, Deus, dê-me força, orou Blackthorne. Tenho que me pôr
de pé e fingir ser forte. É a única coisa que eles respeitam. Ser
forte. Não demonstrar medo. Por favor, ajude-me.
Rangeu os dentes, tomou impulso contra a terra e levantou110
se, oscilando ligeiramente. - Que diabo você quer de mim, seu
bastardinho sifilítico? - disse diretamente a Omi, depois acrescentou para o padre: - Diga ao bastardo que eu sou um daimio
no meu país e que espécie de tratamento é este? Diga-lhe que não
queremos briga com ele. Diga-lhe que nos deixe sair ou será pior
para ele. Diga-lhe que sou um daimio, por Deus. Sou herdeiro de
Sir William de Micklehaven, possa o bastardo estar morto há
muito tempo. Diga-lhe!
A noite fora terrível para o Padre Sebastio. Mas durante a
vigília ele viera a sentir a presença de Deus e ganhara uma segurança que nunca experimentara antes. Agora sabia que poderia
ser um instrumento de Deus contra os pagãos, que estava escudado contra os pagãos e a astúcia do pirata. De algum modo
sabia que aquela noite fora uma preparação, uma encruzilhada
para ele.
- Diga-lhe.
O padre disse em japonês: - O pirata diz que é um senhor
em seu país. - Ouviu a resposta de Omi. - Omi-san diz que
não importa se você é um rei no seu país. Aqui você vive na
dependência do capricho do Senhor Yabu, você e todos os seus
homens.
- Diga-lhe que ele é um bosta.
- Você deveria tomar cuidado e não insultá-lo.
Omi começou a falar de novo.
- Omi-san diz que vão lhe dar um banho. E comida e bebida. Se se comportar, não será posto de volta no buraco.
- E os meus homens?
O padre perguntou a Omi.
- Vão continuar lá embaixo.
- Então diga-lhe que vá para o inferno. - Blackthorne
encaminhou-se para a escada, para voltar para baixo. Dois dos
samurais o impediram e, embora lutasse, dominaram-no facilmente.
Omi falou ao padre, depois a seus homens. Soltaram-no e
Blackthorne quase caiu.
- Omi-san diz que, a menos que você se comporte, outro
dos seus homens será trazido para cima. Há muita lenha e muita
água.
Se eu concordar agora, pensou Blackthorne, eles terão encontrado o meio de me controlar e ficarei em poder deles para sempre. Mas o que importa isso? Estou em poder deles agora e, no
Ill

final, terei que fazer o que quiserem. Van Nekk tinha razão. Terei
que fazer qualquer coisa.
- O que ele quer que eu faça? O que quer dizer com "comportar-me"?
- Omi-san diz que significa obedecer. Fazer o que lhe disserem que faça. Comer excremento, se for necessário.
- Diga-lhe que vá para o inferno. Diga-lhe que mijo em
cima dele e em cima do país dele inteiro. E em cima do daimio dele.
- Recomendo que concorde com...
- Diga-lhe o que eu disse, exatamente, por Deus!
- Muito bem, mas eu o preveni, piloto.
Omi ouviu o padre. Os nós na mão sobre a espada embranqueceram. Todos os seus homens mudaram de posição, inquietos,
com os olhos apunhalando Blackthorne. Então, calmamente, Omi
deu uma ordem.
Imediatamente dois samurais desceram ao buraco e trouxeram
Croocq, o rapaz. Arrastaram-no até o caldeirão, amarraram-no,
enquanto outros traziam lenha e água. Puseram o rapaz petrificado no caldeirão cheio até a borda e acenderam o fogo.
Blackthorne olhava os movimentos de boca de Croocq, que
não conseguia emitir som, e o terror que o dominava por completo. A vida não tem valor em absoluto para essa gente, pensou.
Deus os amaldiçoe com o inferno, vão ferver Croocq e isso
é tão certo quanto eu estar nesta terra esquecida por Deus.
A fumaça se elevava da areia. Gaivotas grasnavam em torno
dos barcos de pesca. Um pedaço de lenha da fogueira caiu e foi
chutado de volta por um samurai.
- Diga-lhe que pare - disse Blackthorne. - Peça-lhe que
pare.
Sim.
Obedecerá a todas as ordens?
Na medida do possível, sim.
Omi falou novamente. O Padre Sebastio fez uma pergunta
e ele assentiu.
- Ele quer que você responda diretamente a ele. A palavra
japonesa para "sim" é "hai". Ele pergunta se você obedecerá a
todas as ordens.
- Na medida do possível, hai.
O fogo estava começando a esquentar a água e um gemido
nauseado irrompeu da boca do rapaz. As chamas do fogo aceso
112
sobre os tijolos sob o ferro lambiam o metal. Mais madeira foi
empilhada.
- Omi-san diz que você se deite. Imediatamente.
Blackthorne fez conforme o ordenado.
- Omi-san diz que não o insultou pessoalmente, nem havia
motivo algum para que você o insultasse. Como você é um bárbaro e ainda não sabe proceder melhor, não será morto. Mas
aprenderá bons modos. Compreende?
- Sim.
- Ele quer que você responda diretamente a ele.
Houve um grito lamentoso do rapaz. Durou momentos intermináveis e então o rapaz desmaiou. Um dos samurais segurou-lhe
a cabeça fora da água.
Blackthorne olhou para Omi. Lembre-se, ordenou a si mesmo, lembre-se de que o rapaz está nas suas mãos, a vida de todos
os seus homens está nas suas mãos. Sim, começou a metade ma
dele, mas não há garantia de que o bastardo vá respeitar um
acordo.
- Compreende?
- Hai.
Viu Omi levantar o quimono e puxar o pênis para fora da
tanga. Esperava que o homem lhe urinasse no rosto. Mas Omi
não fez isso. Urinou-lhe nas costas. Pelo Senhor Deus, jurou
Blackthorne a si mesmo, eu me lembrarei deste dia e de algum
modo, em algum lugar, Omi pagará.
- Omi-san diz que é falta de educação você dizer que vai
mijar em cima de alguém. Muita falta de educação. É falta de
educação e muita estupidez dizer que vai mijar em cima de alguém
quando você está desarmado. É muita falta de educação e uma
estupidez ainda maior dizer que vai mijar em cima de alguém
quando está desarmado, impotente e despreparaçlo para permitir
que seus amigos, sua família ou seja quem for morra primeiro.
Blackthorne não disse nada. Não desviava os olhos de Omi.
Wakarimasu ka? - disse Omi.
Ele pergunta se você compreende.
Hai.
Okiro.
Diz para você se levantar.
Blackthorne se levantou, uma dor martelando-lhe a cabeça.
Tinha os olhos pregados em Omi e Omi sustentava-lhe o olhar.
- Você irá com Mura e obedecerá às ordens dele.
Blackthorne não retrucou nada.
113
Omi-san diz: você concorda em se comportar?

- Wakarimasu ka? - perguntou Omi rispidamente.
- Hai. - Blackthorne estava medindo a distância entre si
o Omi. Já podia sentir os próprios dedos no pescoço e no rosto
do homem, e rezou para ser rápido e forte o bastante para arrancar os olhos de Omi antes que o tirassem de cima dele. - E o
rapaz? - perguntou.
O padre falou com Omi, hesitante.
Omi deu uma olhada no caldeirão. A água ainda estava apenas morna. O rapaz desmaiara, mas estava incólume. - Tirem-no
daí - ordenou. - Tragam um médico se for preciso.
Seus homens obedeceram. Viu Blackthorne se dirigir para o
rapaz e auscultar-lhe o coração.
Omi fez um gesto para o padre. - Diga ao chefe que o
jovem também pode ficar fora do buraco hoje. Se o chefe se comportar e o jovem se comportar, outro bárbaro talvez saia do buraco amanhã. Depois outros. Talvez. Ou mais de um. Depende de
como se comportem os que estiverem aqui em cima. Mas você
- olhou para Blackthorne - é responsável pela mínima infração
a qualquer regra ou ordem. Compreende?
Depois de o padre traduzir, Omi ouviu o bárbaro dizer "sim"
o viu parte da raiva sanguínea e vítrea desaparecer-lhe dos olhos.
Mas o ódio permaneceu. Que tolice, pensou Omi, e quanta ingenuidade ser tão aberto. Pergunto a mim mesmo o que ele não
teria feito se eu tivesse jogado mais tempo, fingido voltar atrás na
minha promessa ou restringido o que prometera.
- Padre, qual é mesmo o nome dele? Diga devagar.
Ouviu o padre dizer o nome diversas vezes, mas ainda lhe
soava como linguagem inarticulada.
- Você consegue dizer? - perguntou a um de seus homens.
- Não, Omi-san.
- Padre, diga-lhe que daqui em diante o nome dele é Anjin
- Piloto -, neh? Quando merecer, será chamado de Anjin-san.
Expliquê-lhe que não existem sons na nossa língua para dizermos
o verdadeiro nome dele. - Omi acrescentou secamente: - Convença-o de que isto não tem a intenção de ser insultante. Adeus,
Anjin, por enquanto.
Todos se curvaram para ele. Retribuiu a saudação polidamente e se afastou. Quando estava bem longe da praça e certo de que
ninguém o observava, permitiu-se dar um largo sorriso. Domar o
chefe dos bárbaros tão rapidamente! Ter percebido imediatamente
como dominá-lo, e a eles!
Como esses bárbaros são extraordinários, pensou. Iiilh, quan114
to mais depressa o Anjin falar a nossa língua, melhor. Então saberemos como esmagar os bárbaros cristãos de uma vez por
todas!


- Por que você não lhe urinou na cara? - perguntou Yabu.
- Primeiro pretendia fazer isso, senhor. Mas o piloto ainda
é um animal indomado, totalmente perigoso. Fazer isso, bem, para
nós, tocar o rosto de um homem é o pior dos insultos, neh? Então
raciocinei que se o insultasse tão profundamente ele perderia o
controle. De modo que lhe urinei nas costas, o que acho que foi
suficiente.
Estavam sentados na varanda de sua casa, sobre almofadas
de seda. A mãe de Omi servia o chá com toda a cerimônia -
fora bem treinada para isso, quando jovem. Ofereceu a xícara
com uma reverência a Yabu. Este curvou-se e polidamente ofereceu-a a Omi, que naturalmente recusou com uma reverência mais
profunda; então Yabu aceitou-a e sorveu a bebida com prazer,
sentindo-se completo.
- Estou muito impressionado com você, Omi-san - disse.
- Seu raciocínio é excepcional. O modo como você planejou e
lidou com toda essa história foi esplêndido.
- E muito gentil, senhor. Meus esforços poderiam ter sido
muito melhores, muito melhores.
- Onde foi que aprendeu tanto sobre a mente dos bárbaros?
- Quando tinha catorze anos, tive um professor durante um
ano, um monge chamado Jiro. Tinha sido padre cristão, pelo
menos um aprendiz de padre, mas felizmente percebera os erros
dessa estupidez. Nunca me esqueci de uma coisa que ele me contou. Disse que a religião cristã era vulnerável porque ensinava que
a divindade principal, Jesus, disse que todas as pessoas deviam
"amar-se" mutuamente. Não ensinou nada sobre honra ou dever,
apenas amor. E também que a vida era sagrada. "Não matarás",
neh? E outras tolices. Esses novos bárbaros bradam ser cristãos
também, embora o padre negue isso, então pensei que talvez
sejam apenas de uma seita diferente, e essa é a causa da inimizade deles, exatamente como algumas seitas budistas que se odeiam
entre si. Achei que, se eles "se amam uns aos outros", talvez pudéssemos controlar o líder tirando a vida ou mesmo ameaçando
tirar a vida de um de seus homens. - Omi sabia que essa conversa era perigosa por causa da morte sob tortura, a morte infa115

me. Sentiu a advertência não pronunciada de sua mãe atravessando o espaço entre eles.
- Mais chá, Yabu-sama? - perguntou ela.
- Obrigado - disse Yabu. - Está muito bom, muito.
- Obrigada, senhor. Mas, Omi-san, o bárbaro está definitivamente dominado? - perguntou, mudando o rumo da conversa.
- Talvez você devesse dizer ao nosso senhor se acha que isso é
temporário ou permanente.
Omi hesitou. - Temporário. Mas acho que ele deveria aprender a nossa língua o mais depressa possível. Isso é muito importante para o senhor. Provavelmente terá que destruir um ou dois
para manter a ele e ao resto sob controle, mas até lá ele terá
aprendido como se comportar. Uma vez que possa falar diretamente com ele, Yabu-sama, poderá usar-lhe o conhecimento. Se
o que o padre disse é verdade - que ele pilotou o navio por dez
mil ris -, ele deve ser mais do que só um pouco inteligente.
- Você é mais do que só um pouco inteligente. - Yabu
riu. - Você fica encarregado desses animais. Omi-san, treinador
de homens!
Omi riu com ele. - Tentarei, senhor.
- Seu feudo fica aumentado de quinhentos kokus para três
mil. Você terá controle sobre vinte ris. - Uma ri, era uma medida de distância, aproximadamente uma milha. - Como símbolo
da minha afeição, quando voltar a Yedo lhe mandarei dois cavalos, vinte quimonos de seda, uma armadura, duas espadas, e armamento suficiente para equipar mais cem samurais, que você
recrutará. Quando a guerra vier, você se reunirá imediatamente
ao meu estado-maior pessoal, na qualidade de hatamoto. - Yabu
estava se sentindo expansivo: hatamoto era um assistente pessoal
especial de um daimio, que tinha o direito de se aproximar do
senhor e de usar espadas na presença dele. Estava encantado com
Omi e sentia-se descansado, até renascido. Dormira deliciosamente bem. Ao despertar, estava sozinho, o que era de esperar, pois
ele não pedira nem à garota nem ao menino que ficassem. Tomara um pouco de chá e comera frugalmente uma sopa de arroz.
Depois um banho e a massagem de Suwo.
Foi uma experiência maravilhosa, pensou. Nunca me havia
sentido tão próximo da natureza, das árvores, das montanhas e
da terra, da incalculável tristeza da vida e sua transitoriedade. Os
gritos haviam rematado tudo à perfeição.
- Omi-san, há uma rocha no meu jardim em Mishima que
eu gostaria que você aceitasse, também para comemorar este
116
acontecimento, esta noite maravilhosa e nossa boa fortuna. Vou
mandá-la com as outras coisas - disse ele. - A pedra vem de
Kyushu. Dei-lhe o nome de "A Pedra da Espera", porque estávamos esperando que o senhor táicum ordenasse um ataque quando
a encontrei. Isso foi, oh, há quinze anos. Eu fazia parte do exército dele que esmagou os rebeldes e dominou a ilha.
- O senhor me concede muita honra.
- Por que não colocá-la aqui, no seu jardim, e rebatizá-la?
Por que não chamá-la de "A Pedra da Paz do Bárbaro", para
comemorar a noite e a interminável espera de paz pela qual o
bárbaro passou?
- Talvez eu possa ser autorizado a chamá-la de "A Pedra
da Felicidade", para lembrar a mim e a meus descendentes das
honras que o senhor me faz, tio? ~
- Não, o melhor é simplesmente chamá-la de "&Bárbaro
à Espera". Sim, gosto disso. Isso nos aproxima muito mais, a ele
e a mim. Ele estava esperando, assim como eu estava esperando.
Eu vivi, ele morreu. - Yabu olhou para o jardim, meditando.
- Bom, "O Bárbaro à Espera"! Gosto do nome. Há uns curiosos
salpicos num lado da rocha que me lembram lágrimas, e veios de
quartzo azul mesclado com um tom avermelhado que me lembram
a carne, a impermanência da carne! - Yabu suspirou, desfrutando a própria melancolia. Depois acrescentou: - É bom para um
homem plantar uma pedra e dar-lhe um nome. O bárbaro levou
muito tempo para morrer, neh? Talvez ele venha ao mundo novamente como japonês, para compensá-lo pelo sofrimento. Não seria
maravilhoso? Então um dia, talvez, seus descendentes veriam a
pedra e ficariam contentes.
Omi emitiu uma profusão de agradecimentos sinceros, e protestou que nunca merecera tanta bondade. Yabu sabia que a bondade não era maior do que a merecida. Poderia facilmente ter
dado mais, mas lembrara-se do velho adágio de que sempre se
pode aumentar um feudo, mas reduzi-lo causa inimizade. E traição.
- Oku-san - disse ele à mulher, dando-lhe o título de Mãe
Honorável -, meu irmão deveria ter-me falado mais cedo sobre
as grandes qualidades de seu filho mais novo. Omi-san teria progredido muitíssimo mais. Meu irmão é reservado demais, descuidado demais.
- Meu marido zela demais pelo senhor para preocupá-lo,
meu senhor - replicou ela, consciente da crítica subjacente. Estou contente de que meu filho tenha tido uma oportunidade de
servi-lo e que lhe tenha agradado. Meu filho simplesmente cum117

priu o próprio dever, neh? É nosso dever - de Mizuno-san e de
todos nós - servir.
Ouviram o tropel de cavalos subindo a colina. Igurashi, assistente-chefe de Yabu, transpôs o jardim a passos largos. - Está
tudo pronto, senhor. Se deseja voltar para Yedo rapidamente, devíamos partir agora.
- Bom. Omi-san, você e seus homens irão com o comboio
e darão assistência a Igurashi-san até vê-lo entrar em segurança
no castelo.
Yabu viu uma sombra atravessar o rosto de Omi. - O
que é?
- Só estava pensando nos bárbaros.
- Deixe alguns guardas para eles. Comparados ao comboio,
não têm importância alguma. Faça o que quiser com eles. Ponha-os de volta no buraco, faça como quiser. Quando e se você
obtiver alguma coisa útil deles, mande-me um recado.
- Sim, senhor - retrucou Omi. - Deixarei dez samurais
e instruções específicas com Mura. Eles não vão causar dano em
cinco ou seis dias. O que deseja que se faça com o navio?
- Mantenha-o em segurança aqui. Você é responsável por
ele, naturalmente. Zukimoto mandou cartas a um negociante em
Nagasaki para oferecer-lhe a compra aos portugueses. Os portugueses podem vir buscá-lo.
Omi hesitou. - Talvez devesse conservar o navio, senhor, e
fazer os bárbaros treinar alguns dos nossos marinheiros para manejá-lo.
- Para que preciso de navios bárbaros? - riu Yabu zombeteiramente. - Devo me tornar um imundo mercador?
- Claro que não, senhor - disse Omi rapidamente. - Simplesmente pensei que Zukimoto poderia encontrar um uso para
um vaso assim.
- Para que preciso de um navio mercante?
- O padre diz que é um navio de guerra, senhor. Parecia
com medo dele. Quando a guerra começar, um navio de guerra
poderia...
- Nossa guerra será realizada em terra. O mar é para mercadores, que são todos usurários imundos, para piratas ou para
pescadores. - Yabu levantou-se e começou a descer os degraus
em direção ao portão do jardim, onde um samurai segurava a
rédea de seu cavalo. Parou e olhou fixamente para o mar. Sentiu
os joelhos enfraquecer. Omi seguiu-lhe o olhar.
Um navio estava contornando o promontório. Era uma
118
grande galera com uma infinidade de remos, o mais veloz dos
vasos costeiros japoneses porque não dependia nem do vento nem
da maré. A bandeira no topo do mastro ostentava o escudo de
Toranaga.
Toda Hiro-matsu, chefe supremo das províncias de Sagami
e Kokuzé, o general e conselheiro de mais confiança de Toranaga,
comandante-chefe de todos os seus exércitos, desceu a passos largos pela prancha de desembarque até o desembarcadouro, sozinho. Era alto para um japonês, pouco menos de seis pés, um
homem de compleição taurina com maciços maxilares, que carregava seus sessenta e sete anos com vigor. Seu quimono militar era
de um marrom severo, com exceção dos cinco pequenos escudos
Toranaga - três ramos de flores de bambu entrelaçados. Usava
um peitoral lustroso e protetores de braços de aço. Apenas a espada curta lhe pendia da cintura. A outra, a mortífera, ele a
levava frouxamente na mão. Estava pronto a desembainhá-la e
matar imediatamente para proteger seu suserano. Tinha esse costume desde os quinze anos de idade.
Ninguém, nem mesmo o táicum, conseguira mudá-lo.
Um ano antes, quando o táicum morrera, Hiro-matsu se tornara vassalo de Toranaga. Toranaga lhe dera Sagami e Kokuzé,
duas das suas oito províncias, para governar, quinhentos mil kokus
anuais, e também o deixara conservar o seu hábito. Hiro-matsu
era ótimo em matar.
Ao longo da praia alinhavam-se todos os aldeães - homens,
mulheres, crianças -, de joelhos e cabeça baixa. Diante deles, os
samurais em filas disciplinadas, formais. Yabu estava à frente, com
seus lugar-tenentes.
Se Yabu fosse uma mulher ou um homem mais fraco, sabia
que estaria batendo no peito, gemendo e arrancando os cabelos.
Era coincidência demais. Pois o famoso Toda Hiro-matsu estar
ali, naquele dia, significava que Yabu fora traído - ou em Yedo,
por alguém da sua casa, ou ali, em Anjiro, por Omi, um dos
homens de Omi ou um dos aldeães. Fora surpreendido em desobediência. Um inimigo tirara partido do seu interesse pelo navio.
CAPITULO 7
119

Ajoelhou-se, curvou-se e todos os samurais o imitaram. Amaldiçoou o navio e quem navegava nele.
- Ah, Yabu-sama - ouviu Hiro-matsu dizer, e viu-o ajoelhar-se na esteira que fora estendida para ele e retribuir a mesura.
Mas a reverência foi menos profunda que o correto e Hiro-matsu
não esperou que ele se curvasse de novo, de modo que soube, sem
que lhe dissessem, que se encontrava em seriíssimo perigo. Viu o
general sentar-se sobre os calcanhares. "Punho de Aço" era como
o chamavam pelas costas. Apenas Toranaga ou um dos três conselheiros teria o privilégio de hastear a bandeira de Toranaga. Por
que enviar um general tão importante no meu encalço?
- O senhor me honra vindo a uma das minhas pobres aldeias, Hiro-matsu-sama - disse.
- Meu senhor me enviou. - Hiro-matsu era conhecido pela
sua rudeza. Não tinha nem malícia nem astúcia, apenas uma fidelidade absoluta a seu suserano.
- Estou honrado e muito contente - disse Yabu. - Precipitei-me de Yedo para cá por causa do navio bárbaro.
- O Senhor Toranaga convidou todos os daimios amigos a
esperar em Yedo até que ele regressasse de Osaka.
- Como está o nosso senhor? Espero que esteja tudo bem
com ele.
- Quanto mais depressa o Senhor Toranaga estiver a salvo
em seu castelo de Yedo, melhor. Quanto mais depressa o conflito
com Ishido for declarado e nós reunirmos nossos exércitos, investirmos contra o Castelo de Osaka e o queimarmos até os tijolos,
melhor. - Os maxilares do velho se avermelhavam à medida que
sua ansiedade por Toranaga aumentava; odiava estar longe dele.
O táicum construíra o Castelo de Osaka para ser invulnerável.
Era o maior do império, com masmorras e fossos interligados,
castelos menores, torres e pontes, e espaço para oitenta mil soldados dentro de seus muros. Em torno dos muros e na cidade
imensa estavam outros exércitos, igualmente disciplinados e igualmente bem armados, todos fanáticos partidários de Yaemon, o
herdeiro. - Eu lhe disse uma dúzia de vezes que era louco em
se pôr nas mãos de Ishido. Doido!
- O Senhor Toranaga tinha que ir, neh? Não tinha escolha.
- O táicum ordenara que o conselho de regentes, que governava
em nome de Yaemon, se reunisse por dez dias no mínimo duas
vezes por ano e sempre no Castelo de Osaka, trazendo consigo
um máximo de quinhentos secretários para dentro dos muros. E
todos os outros daimios ficavam igualmente obrigados a visitar o
120
castelo com as respectivas famílias, para prestar homenagem ao
herdeiro, também duas vezes por ano. Assim eram todos controlados, ficavam todos indefesos parte do ano, todos os anos. - O
encontro estava marcado, neh? Se ele não fosse seria traição, neh?
- Traição contra quem? - Hiro-matsu ficou ainda mais
vermelho. - Ishido está tentando isolar nosso amo. Ouça, se eu
tivesse Ishido em meu poder como ele tem o Senhor Toranaga,
eu não hesitaria um momento, fossem quais fossem os riscos. A
cabeça de Ishido lhe teria sido arrancada dos ombros há muito
tempo, e seu espírito estaria à espera do renascimento. - Involuntariamente o general estava torcendo a bainha da espada que
carregava na mão esquerda. A direita, áspera e calosa, esperava
pronta, no colo. Ele estudou o Erasmus. - Onde estão os canhões?
- Mandei trazê-los para terra. Por segurança. Toranagasama vai fazer outro acordo com Ishido?
- Quando parti de Osaka, tudo estava tranqüilo. O conselho
se reuniria dentro de três dias.
- O conflito vai se tornar declarado?
- Eu gostaria que sim. Mas e o meu senhor? Se quiser fazer
um acordo, fará. - Hiro-matsu olhou de novo para Yabu. - Ele
ordenou que todos os daimios aliados o esperassem em Yedo. Até
que regressasse. Isto não é Yedo.
- Sim. Achei que o navio era importante o bastante para a
nossa causa para que o investigasse imediatamente.
- Não havia necessidade, Yabu-san. Deveria ter mais confiança. Nada acontece sem o conhecimento do nosso amo. Ele
teria mandado alguém para investigar. Aconteceu de mandar a
mim. Há quanto tempo o senhor está aqui?
- Um dia e uma noite.
- Então levou dois dias para vir de Yedo?
Sim.
- Veio muito depressa. Merece ser cumprimentado.
Para ganhar tempo Yahu começou a contar a Hiro-matsu
sobre sua marcha forçada. Mas tinha a mente em outros assuntos
mais vitais. Quem seria o espião? Como Toranaga recebera a informação sobre o navio tão rapidamente quanto ele? E quem
falara a Toranaga sobre a sua partida? Como poderia manobrar
agora e lidar com Hiro-matsu?
Hiro-matsu ouviu-o, depois disse penetrantemente: - O Senhor Toranaga confiscou o navio e todo o conteúdo.
Um silêncio chocado varreu a praia. Estavam em Izu, feudo
121

de Yabu, e Toranaga não tinha direitos ali. Nem Hiro-matsu tinha
qualquer direito de ordenar qualquer coisa. A mão de Yabu se
apertou sobre a espada.
Hiro-matsu esperava com calma estudada. Fizera exatamente
como Toranaga ordenara e agora estava comprometido. Era matar
ou ser morto, implacavelmente.
Yabu sabia que agora também devia se comprometer. Não
havia mais o que esperar. Se se recusasse a ceder o navio, teria
que matar Hiro-matsu Punho de Aço, porque Hiro-matsu Punho
de Aço jamais partiria sem ele. Havia talvez uns duzentos samurais de elite na galera atracada ao cais. Também teriam que morrer. Poderia convidá-los a desembarcar, iludi-los e em poucas
horas poderia facilmente ter samurais suficientes em Anjiro para
dominá-los a todos, pois ele era um mestre na emboscada. Mas
isso forçaria Toranaga a enviar tropas contra Izu. Você será engolido, disse Yabu a si mesmo, a menos que Ishido venha socorrê-lo. E por que Ishido deveria socorrê-lo quando seu inimigo
Ikawa Jikkyu é parente dele e quer Izu para si? Matar Hiro-matsu
abrirá as hostilidades, porque Toranaga terá um motivo de honra
para investir contra você, o que forçaria a mão de Ishido, e Izu
seria o primeiro campo de batalha.
E as minhas armas? Minhas lindas armas e meu belo plano?
Perderei minha chance de imortalidade para sempre se tiver que
cedê-los a Toranaga.
Tinha a mão sobre a espada Murasama. Sentia o sangue no
braço da espada e a cegante premência de começar. Descartara
imediatamente a possibilidade de não mencionar os mosquetes. Se
houvera traição quanto à notícia do navio, certamente também
houvera quanto à especificação da carga. Mas como Toranaga
obteve a notícia tão depressa? Por pombo-correio! É a única resposta. De Yedo ou daqui? Quem possui pombos-correio aqui? Por
que eu não tenho um serviço assim? É culpa de Zukimoto, ele
devia ter pensado nisso, neh? Decida-se. Guerra ou não?
Yabu invocou a má vontade de Buda, de todos os kamis, de
todos os deuses que jamais existiram ou ainda estavam por ser
inventados sobre o homem ou os homens que o haviam traído,
sobre seus pais e seus descendentes em dez mil gerações. E cedeu.
- O Senhor Toranaga não pode confiscar o navio porque já
é um presente para ele. Ditei uma carta com essa finalidade. Não
foi, Zukimoto?
- Sim, senhor.
- Claro que se o Senhor Toranaga quiser considerá-lo con122
fiscado, ele pode. Mas era para ser um presente. - Yabu ficou
contente de ouvir que sua voz soava autêntica. - Ele ficará feliz
com o butim.
- Agradeço-lhe em nome do meu amo. - Novamente
Hiro-matsu se maravilhava com a antevisão de Toranaga. Este
havia predito que isso aconteceria e que não haveria luta. "Não
acredito", dissera Hiro-matsu. "Nenhum daimio suportaria tal
usurpação dos seus direitos. Yabu não suportará. Eu certamente
não suportaria. Nem mesmo do senhor." "Mas você teria obedecido às ordens e me teria falado sobre o navio", respondera Toranaga. "Yabu deve ser manobrado, neh? Preciso da violência e da
astúcia dele. Neutraliza Ikawa Jikkyu e defende meu flanco."
Ali na praia, sob o sol forte, Hiro-matsu forçou-se a fazer
uma reverência polida, detestando a própria duplicidade. - O
Senhor Toranaga ficará encantado com a sua generosidade.
Yabu observava-o de perto. - Não é um navio português.
- Sim. Foi o que ouvimos dizer.
- E é pirata. - Viu os olhos do general estreitarem-se.
- Hein?
Enquanto lhe contava o que o padre dissera, Yabu pensava:
Se isso for novidade para você como foi para mim, não significa
que Toranaga teve a mesma informação original que eu? Mas se
você conhecer o conteúdo do navio, então o espião é Omi, um
dos samurais dele ou um aldeão. - Há uma grande abundância
de tecido. Algum dinheiro. Mosquetes, pólvora e munição.
Hiro-matsu hesitou. Depois disse: - O tecido é seda chinesa?
- Não, Hiro-matsu-san - disse Yabu, usando o "san".
Eram ambos igualmente daimios. Mas agora que ele estava magnanimamente "dando" o navio, sentia-se seguro o suficiente para
usar o termo menos respeitoso. Gostou de ver que a palavra não
passou despercebida pelo homem mais velho. Sou daimio de Izu,
pelo sol, pela lua e pelas estrelas!
- É muito incomum, um tecido grosso, pesado, totalmente
inútil para nós - disse. - Mandei trazer para terra tudo o que
valia a pena aproveitar.
- Bom. Por favor, ponha tudo a bordo do meu navio.
- O quê? - As vísceras de Yabu quase explodiram.
- Tudo. Imediatamente.
- Agora?
- Sim. Sinto muito, mas o senhor naturalmente compreenderá que quero retornar a Osaka o mais depressa possível.
123

- Sim, mas ... mas haverá espaço para tudo?
- Ponha os canhões de volta no navio bárbaro e lacre o
navio. Dentro de três dias chegarão barcos para rebocá-lo até
Yedo. Quanto aos mosquetes, pólvora e munição, há... - Hiromatsu parou, evitando a armadilha que repentinamente percebeu
estar preparada para ele.
"Há espaço suficiente para os quinhentos mosquetes", dissera-lhe Toranaga. "E para toda a pólvora e os vinte mil dobrões de
prata. Deixe os canhões no convés do navio e o tecido nos porões.
Deixe Yabu falar à vontade mas dê-lhe ordens, não lhe dê tempo
para pensar. Não fique irritado ou impaciente com ele. Preciso
dele, mas quero essas armas e esse navio. Cuidado porque ele vai
tentar pegá-lo numa armadilha a fim de fazê-lo revelar que conhece a carga com exatidão. Ele não deve descobrir o nosso
espião."
Hiro-matsu amaldiçoou a própria inabilidade para jogar esses
jogos necessários. - Quanto ao espaço necessário - disse abruptamente -, talvez o senhor devesse me dizer. E qual é a carga,
exatamente? Quantos mosquetes, quanta munição, e assim por
diante? O metal está em barras ou em moedas? É prata ou ouro?
- Zukimoto!
- Sim, Yabu-sama.
- Traga a lista do conteúdo. - Cuido de você mais tarde,
pensou Yabu. Zukimoto saiu correndo.
- Deve estar cansado, Hiro-matsu-san. Talvez tomasse um
chá? Preparamos acomodações para o senhor. Os banhos são totalmente inadequados, mas talvez um o refrescasse um pouco.
- Obrigado. O senhor é muito previdente. Um pouco de
chá e um banho seriam excelentes. Mais tarde. Primeiro conte-me
tudo o que aconteceu desde que o navio chegou aqui.
Yabu contou-lhe os fatos, omitindo a parte sobre a cortesã
e o menino, que não tinha importância. Por ordem de Yabu, Omi
contou a sua história, exceto a sua conversa particular com Yabu.
E Mura contou a sua, excluindo a parte sobre a ereção de Anjin,
o que, raciocinou Mura, embora interessante, poderia ofender
Hiro-matsu, cujas ereções, na idade dele, devem ser poucas e espaçadas.
Hiro-matsu olhou para a coluna de fumaça que ainda se erguia da pira. - Quantos piratas sobraram?
- Dez, senhor, incluindo o líder - disse Omi.
- Onde está ele agora?
- Na casa de Mura.
124
- O que ele fez? Qual foi a primeira coisa que fez lá depois
de sair do buraco?
- Foi direto para a casa de banho, senhor - disse Mura
rapidamente. - Agora está dormindo, senhor, como um morto.
- Não precisou carregá-lo desta vez?
- Não, senhor.
- Parece que ele aprende depressa. - Hiro-matsu deu uma
olhada em Omi, novamente. - Acha que podem ser ensinados a
se comportar?
- Não. Não com certeza, Hiro-matsu-sarna.
- Você poderia limpar a urina de um inimigo das suas
costas?
- Não, senhor.
- Nem eu. Nunca. Os bárbaros são muito estranhos. -
Hiro-matsu voltou a atenção para o navio. - Quem vai supervisionar o carregamento?
- Meu sobrinho, Omi-san.
- Bom. Omi-san, quero partir antes do pôr-do-sol. Meu
capitão o ajudará a ser muito rápido. Dentro de três bastões. - A
unidade de tempo era o tempo que um bastão de incenso padrão
levava para queimar, aproximadamente uma hora.
- Sim, senhor.
- Por que não vem comigo para Osaka, Yabu-san? - disse
Hiro-matsu, como se se tratasse de um pensamento repentino.
- O Senhor Toranaga ficaria encantado em receber todas estas
coisas das suas mãos. Pessoalmente. Por favor, há bastante espaço.
- Quando Yabu começou a protestar, permitiu-lhe que continuasse por um tempo, conforme Toranaga ordenara, e depois
disse, conforme Toranaga ordenara: - Eu insisto. Em nome do
Senhor Toranaga, eu insisto. Sua generosidade precisa ser recompensada.
Com a minha cabeça e as minhas terras? perguntou Yabu a
si mesmo amargamente, sabendo que não havia nada que pudesse
fazer agora senão aceitar agradecido. - Obrigado. Ficaria honrado.
- Bom. Muito bem, está tudo feito - disse Punho de Aço
com um alívio evidente. - Agora um pouco de chá. E um
banho.
Polidamente Yabu conduziu-o pela colina, até a casa de Omi.
O velho foi lavado e esfregado e depois se deitou agradavelmente
no calor e no vapor. Mais tarde as mãos de Suwo o puseram
novo. Um pouco de arroz, peixe cru e verduras em conservas,
125
consumidos frugalmente a sós. Chá bebido em boa porcelana.
Um rápido cochilo sem sonhos.
Após três bastões a shoji se abriu. A guarda pessoal sabia
muito bem que não devia entrar no quarto sem ser convidada;
Hiro-matsu já estava acordado e a espada meio desembainhada
o pronta.
- Yabu-sarna está esperando lá fora, senhor. Diz que o
navio está carregado.
- Excelente.
Hiro-matsu se dirigiu para a varanda e satisfez suas necessidades no balde. - Seus homens são muito eficientes, Yabu-san.
- Os seus homens ajudaram, Hiro-matsu-san. São mais que
eficientes.
Sim, e pela altura do sol, é bom que sejam mesmo, pensou
Hiro-matsu, depois disse cordialmente: - Nada como uma boa
urinada quando se está com a bexiga cheia, já que há muito
vigor atrás do jato. Neh? Faz a gente se sentir jovem novamente.
Na minha idade é preciso sentir-se jovem. - Afrouxou a tanga
confortavelmente, esperando que Yabu fizesse alguma observação
cortês em anuência, mas não houve nenhuma. Sentiu a irritação
começar a erguer-se, mas refreou-a. - Mande levar o líder pirata
para o meu navio.
- O quê?
- O senhor foi muito generoso fazendo presente do navio
o do conteúdo. A tripulação é conteúdo. Portanto leve o líder
pirata para Osaka. O Senhor Toranaga quer vê-lo. Naturalmente
o senhor faz o que quiser com o resto deles. Mas durante a sua
ausência, por favor providencie para que os seus assistentes entendam que os bárbaros são propriedade do meu amo e que é melhor
que haja nove em bom estado de saúde, vivos e aqui quando ele
os quiser.
Yabu correu para o molhe, onde Omi deveria estar.
Quando deixara Hiro-matsu no banho, havia subido o caminho que passava, sinuoso, perto do pátio de funeral. Ali se
curvara rapidamente para a pira e continuara, ladeando os campos em degraus de trigo e frutas, para finalmente dar num
pequeno altiplano bem acima da aldeia. Um bem cuidado santuário de kami guardava aquele lugar agradável. Uma árvore antiga
provia sombra e tranqüilidade. Fora até lá para acalmar a raiva
o para pensar. Não se atrevera a se aproximar do navio, de Omi
126
ou de seus homens porque sabia que teria ordenado que a maioria,
se não todos, cometessem seppuku, o que teria sido um desperdício,
e teria massacrado a aldeia, o que teria sido tolice - somente
camponeses apanhavam peixe e cultivavam o arroz que produzia
a riqueza dos samurais.
Enquanto estivera sentado, encolerizara-se sozinho e tentara
estimular o cérebro, o sol declinou e dissipou a névoa do mar.
As nuvens que encobriam as montanhas distantes a oeste se fragmentaram por um instante e ele vira a beleza dos altos picos
cobertos de neve. A vista o acalmara e ele começara a relaxar e
a pensar num plano.
Ponha os seus espiões para descobrir o espião, disse a si
mesmo. Nada do que Hiro-matsu disse indicou se o traidor é
daqui ou de Yedo. Em Osaka você tem amigos poderosos, o
próprio Senhor Ishido entre eles. Talvez um deles possa descobrir
esse espírito maligno. Mas mande uma mensagem secreta à sua
esposa, para o caso de o informante estar lá. E quanto a Omi?
Deixar à responsabilidade dele encontrar o informante aqui? Será
ele o informante? Não é provável, mas não é impossível. É
mais que provável que a traição tenha começado em Yedo. Uma
questão de tempo. Se Toranaga, em Osaka, recebeu a informação
no momento em que o navio chegou aqui, então Hiro-matsu
teria vindo para cá antes. Você tem informantes em Yedo. Deixe-os provar o próprio valor.
E quanto aos bárbaros? Agora são o seu único lucro do
navio. Como é que você pode usá-los? Espere, Omi não lhe deu
a resposta? Poderia usar o conhecimento que eles têm do mar
o dos navios para negociar com Toranaga pelas armas, neh?
Outra possibilidade: tornar-se vassalo de Toranaga completamente. Dar-lhe o seu plano. Pedir-lhe que o autorize a liderar
o Regimento das Armas - para glória dele. Mas um vassalo
não deve nunca esperar que seu senhor o recompense por seus
serviços ou mesmo os reconheça. Servir é um dever, dever é
samurai, samurai é imortalidade. Seria o melhor caminho, pensou
Yabu, o melhor. Mas eu posso realmente ser vassalo dele? Ou de
Ishido?
Não, isso é impensável. Aliado sim, vassalo não.
Bom, então os bárbaros são um recurso no final das contas.
Omi tem razão novamente.
Sentira-se mais tranqüilo e então, quando chegara a hora e
um mensageiro lhe trouxera a informação de que o navio estava
127

carregado, dirigira-se a Hiro-matsu para descobrir que perdera
até os bárbaros.
Estava espumando de raiva quando chegou ao molhe.
- Omi-san!
- Sim, Yabu-sarna?
- Traga o líder bárbaro aqui. Vou levá-lo para Osaka.
Quanto às ordens, veja que sejam todas bem cumpridas enquanto
eu estiver fora. Quero-os em boas condições e bem-comportados.
Use o buraco, se for preciso.
Desde que a galera chegara, a mente de Omi se encontrava
em confusão e ele se sentia muito preocupado pela segurança
de Yabu. - Deixe-me ir também, senhor, Talvez eu possa ajudar.
- Não, agora quero que você tome conta dos bárbaros.
- Por favor. Talvez, de algum modo insignificante, eu possa
retribuir sua gentileza para comigo.
- Não há necessidade - disse Yabu, mais afavelmente do
que gostaria. Lembrou-se de que aumentara o rendimento de Omi
para três mil kokus e ampliara seu feudo por causa da prata e
das armas. Que agora haviam desaparecido. Mas vira o interesse
do jovem e sentira uma cordialidade involuntária. Com vassalos
assim, eu vou cavar um império, prometeu a si mesmo. Omi
vai comandar uma das unidades quando eu recuperar minhas
armas. - Quando a guerra vier, bem, terei um trabalho muito
importante para você, Omi-san. Agora vá e traga o bárbaro.
Omi levou quatro guardas consigo. E Mura para traduzir.
Blackthorne foi arrancado do sono. Precisou de um minuto
para clarear a mente. Quando a névoa se dissipou, Omi estava
olhando fixamente para ele.
Um dos samurais puxara o acolchoado de cima dele, outro
o sacudira para despertá-lo, os outros dois seguravam varas de
bambu, finas e de aparência maligna. Mura tinha um rolo curto
de corda na mão.
Mura ajoelhou-se e curvou-se. - Konnichi wa. Bom dia.
- Konnichi wa. - Blackthorne se pôs de joelhos também
e, embora estivesse nu, curvou-se com igual polidez.
É somente uma cortesia, disse a si mesmo. É costume deles
e eles fazem reverência por educação, de modo que não há vergonha nisso. A nudez é ignorada, isso também é um costume
deles, e também não há vergonha na nudez.
- Anjin? Por favor, vestir - disse Mura.
128
Anjin? Ah, lembro agora. O padre disse que eles não conseguem pronunciar o meu nome, então me deram o nome de
"Anjin", que significa "piloto", sem a intenção de insultar. E
serei chamado de Anjin-san - Sr. Piloto - quando merecer.
Não olhe para Omi, advertiu a si mesmo. Ainda não. Não
se lembre da praça da aldeia, de Omi, de Croocq e de Pieterzoon.
Uma coisa de cada vez. É isso o que você vai fazer. Foi o que
você jurou diante de Deus: uma coisa de cada vez. A vingança
será minha, por Deus.
Blackthorne viu que suas roupas tinham sido limpas de novo
e abençoou quem as limpara. Despojara-se delas na casa de banho
como se estivessem contaminadas de peste. Fizera-os esfregar-lhe
as costas três vezes. Com a esponja mais áspera e com pedrapomes. Mas ainda sentia a urina queimando.
Desviou os olhos de Mura e fitou Omi. Sentiu um prazer
envolvente por saber que seu inimigo estava vivo e perto dele.
Curvou-se, imitando mesuras que já vira, e manteve-se na
posição um instante. - Konnichi wa, Omi-san - disse. Não há
vergonha alguma em falar a língua deles, nem em dizer "bom dia"
ou em fazer uma reverência primeiro, como é hábito deles.
Omi retribuiu a reverência.
Blackthorne notou que não foi exatamente igual à sua, mas
por enquanto bastava.
- Konnichi wa, Anjin - disse Omi.
A voz era cortês, mas não o suficiente.
- Anjin-san! - Blackthorne olhou diretamente para ele.
Suas vontades se chocaram e Omi foi desafiado como um
homem o é jogando cartas ou dados. Pago para ver: não tem
educação?
- Konnichi wa, Anjin-san - disse Omi finalmente, com
um breve sorriso.
Blackthorne vestiu-se rapidamente.
Vestiu calças folgadas e um codpiece n, meias, camisa e casaco, o longo cabelo em ordem, amarrado num rabo, e a barba
aparada com a tesoura que o barbeiro lhe emprestara.
- Hai, Omi-san? - perguntou Blackthorne quando terminou de se vestir, sentindo-se melhor mas muito cauteloso, desejando ter mais palavras para usar.
- Por favor, mão - disse Mura.
1 Peça do vestuário renascentista semelhante a um suporte atlético que
se colocava por cima da calça. (N. do T.)
129

Blackthorne não compreendeu e disse isso com sinais. Mura
ergueu as próprias mãos e parodiou o ato de amarrá-las.
- Mão, por favor.
- Não. - Blackthorne disse diretamente a Omi e balançou
a cabeça.
- Não é necessário - disse em inglês -, não é necessário
em absoluto. Dei a minha palavra. - Manteve a voz gentil e
razoável, depois acrescentou com rudeza, imitando Omi: - Wakarimasu ka, Omi-san?
Omi riu. Depois disse: - Hai, Anjin-san. Wakarimasu. -
Voltou-se e saiu.
Mura e os outros arregalaram os olhos, atônitos. Blackthorne
seguiu Omi para o sol. Suas botas tinham sido limpas. Antes que
pudesse enfiá-las, a empregada "Onna" já estava de joelhos, ajudando-o.
- Obrigado, Haku-san - disse ele, lembrando-se do verdadeiro nome dela. Qual é a palavra para "obrigado"? perguntou
a si mesmo. Caminhou na direção do portão, Omi na frente.
Estou atrás de você, seu maldito bast... Espere um minuto!
Lembra-se do que prometeu a si mesmo? E por que xingá-lo, mesmo interiormente? Ele não o xinga. Imprecações são para os fracos ou para os imbecis. Não são?
Uma coisa de cada vez. Já basta que você esteja atrás dele.
Você sabe disso claramente e ele também. Não cometa erros, ele
sabe disso muito claramente.
Os quatro samurais ladeavam Blackthorne na descida da colina, a enseada ainda oculta, Mura discretamente dez passos atrás,
Omi na frente.
Será que vão me levar para o subterrâneo novamente? perguntou-se Blackthorne. Por que queriam me amarrar as mãos?
Omi não disse ontem - Jesus Cristo, foi ontem só? -: "Se você
se comportar pode ficar fora do buraco. Se se comportar, amanhã
outro homem poderá ser tirado do buraco. Talvez. E até mais
homens, talvez"? Não foi isso o que ele disse? Eu me comportei?
Gostaria de saber como Croocq está. O rapaz estava vivo quando
o carregaram para a casa onde a tripulação ficou primeiro.
Blackthorne sentia-se melhor hoje. O banho, o sono e a comida fresca haviam começado a recuperá-lo. Sabia que se fosse
cuidadoso e pudesse descansar, dormir e comer, dentro de um
130
mês estaria em condições de correr ou nadar uma milha, comandar um navio de combate e levá-lo à volta do mundo.
Não pense nisso ainda! Simplesmente preserve a sua força.
Um mês não é muito para se esperar, hein?
A caminhada colina abaixo e através da aldeia o estava fatigando. Você é mais fraco do que pensava... Não, você é mais
forte do que pensava, ordenou a si mesmo.
Os mastros do Erasmus salientavam-se acima dos telhados de
cerâmica e Blackthorne sentiu o coração acelerar. Adiante a rua
fazia uma curva, acompanhando o contorno do flanco da colina,
descia até a praça e terminava. Um palanquim com cortinas parado ao sol. Quatro carregadores em tangas sumárias de cócoras
ao lado dele, distraidamente cutucando os dentes. No momento
em que viram Omi puseram-se de joelhos, fazendo uma longa e
profunda reverência.
Omi mal lhes fez um gesto de cabeça quando passou por eles,
mas nesse momento uma garota atravessou o portão, indo para
o palanquim, e ele parou.
Blackthorne susteve o fôlego e também parou.
Uma jovem empregada veio correndo segurar uma sombrinha
verde para dar sombra à garota. Omi curvou-se, a garota retribuiu,
o se puseram a conversar alegremente, a imponente arrogância de
Omi desaparecida.
A garota usava um quimono cor de pêssego, uma larga faixa
de ouro à cintura e sandálias com tiras de ouro. Blackthorne notou
o olhar que ela lhe deu. Era claro que ela e Omi falavam a seu
respeito. Não sabia como reagir, ou o que fazer, de modo que não
fez nada além de esperar pacientemente, exultando com a vista
dela, sua pureza e o calor da sua presença. Perguntou a si mesmo
se ela e Omi eram amantes, ou se ela era a esposa de Omi, e pensou: Ela existe realmente?
Omi perguntou-lhe alguma coisa e ela respondeu, agitando o
leque verde que cintilou tenuemente e dançou à luz do sol, sua
risada musical, sua extraordinária delicadeza. Omi também estava
sorrindo, depois deu meia-volta sobre os calcanhares e se afastou
a r issos largos, novamente samurai.
Blackthorne seguiu-o. Viu que os olhos dela se detinham nele
quando passou e disse: - Konnichi wa.
- Konnichi wa, Anjin-san - respondeu ela, e sua voz o
comoveu. Tinha mal e mal cinco pés de altura e era perfeita.
Quando se curvou ligeiramente, a brisa agitou a seda do quimono
131

e mostrou um vislumbre de quimono interior escarlate, o que ele
achou surpreendentemente erótico.
O perfume da garota ainda o rodeava quando ele dobrou a
esquina. Viu o alçapão e o Erasmus. E a galera. A garota desapareceu-lhe da mente. Por que as nossas vigias de armas estão
vazias? Onde estão nossos canhões e, em nome de Cristo, o que
uma galera de escravos está fazendo aqui, o que aconteceu no
buraco?
Uma coisa de cada vez.
Primeiro, o Erasmus: o toco do mastro de proa que a tempestade havia arrebatado sobressaía de modo desagradável. Isso
não importa, pensou ele. Poderíamos zarpar facilmente. Poderíamos soltar as amarras - a brisa noturna e a maré nos levariam
silenciosamente e poderíamos carenar amanhã, bem longe desta
ilha minúscula. Meio dia para assentar o mastro sobressalente e
então todas as velas enfeixadas e rumo ao alto-mar! Talvez fosse
melhor não lançar ferros mas escapar para águas mais seguras.
Mas quem tripularia? Você não pode levar o navio sozinho.
De onde veio esse navio de escravos? E por que está aqui?
Podia ver aglomerados de samurais e marinheiros lá embaixo,
no desembarcadouro. O vaso com sessenta remos - trinta de
cada lado -- estava em ordem e equilibrado, os remos ensarilhados com cuidado, prontos para partida imediata. Ele estremeceu
involuntariamente. A última vez que vira uma galera fora ao
largo da Costa do Ouro, dois anos antes, quando sua esquadra
zarpara, os cinco navios juntos. Era um rico navio mercante costeiro, português, fugindo dele contra o vento. O Erasmus não pôde
alcançá-lo, capturá-lo nem afundá-lo.
Blackthorne conhecia bem a costa norte-africana. Fora piloto
e capitão durante dez anos da London Company of Barbary
Merchants, a sociedade anônima que equipava navios mercantes
de combate para romper o bloqueio espanhol e comerciar com a
costa da Barbaria. Pilotara para a África setentrional e ocidental,
para o sul até Lagos, para o norte e o leste através do traiçoeiro
estreito de Gibraltar - sempre patrulhado pelos espanhóis -,
até Salerno, no reine de Nápoles. O Mediterrâneo era perigoso
para a navegação inglesa e holandesa. O inimigo espanhol e português estava lá maciçamente e, pior que isso, os otomanos, os
turcos infiéis, infestavam a região com galeras de escravos e navios
de combate.
Essas viagens tinham sido muito proveitosas e ele pudera
comprar seu próprio navio, um brigue de cento e cinqüenta tone132
ladas, para fazer comércio por conta própria. Mas fora afundado
por ordem sua e ele perdera tudo. Tinham sido surpreendidos a
sotavento, numa calmaria ao largo da Sardenha, quando a galera
turca saíra do sol. A luta fora cruel e depois, pelo crepúsculo, o
esporão da nau inimiga atingira-lhes a popa e eles foram abordados rapidamente. Ele nunca esquecera o grito penetrante:
"Allahhhhhhhhhhhhhhhh!", quando os corsários saltaram as amuradas. Estavam armados com espadas e mosquetes. Ele havia reagrupado seus homens e o primeiro ataque fora rechaçado, mas o
segundo os subjugou e ele ordenara que incendiassem o paiol de
armas. Com o navio em chamas, resolveu que era melhor morrer do que ser posto aos remos. Sempre tivera um terror mortal
por ser capturado vivo e ser transformado em escravo de galera
- o que não era um destino inusitado para um marujo capturado.
Quando o paiol foi pelos ares, a explosão arrancou a quilha
do navio e destruiu parte da galera corsária. Na confusão que se
seguiu, ele conseguiu nadar para a chalupa e escapar com quatro
tripulantes. Foi preciso deixar para trás os que não conseguiram
nadar com ele, e ainda se lembrava dos gritos por ajuda, em nome
de Deus. Mas Deus virara o rosto para aqueles homens naquele
dia, portanto pereceram ou foram postos aos remos. Deus mantivera o rosto voltado para Blackthorne e os quatro homens, e eles
conseguiram atingir Cagliari, na Sardenha. De lá rumaram para
casa, sem um tostão.
Isso fora há oito anos, o mesmo ano em que a peste irrompera de novo em Londres. Peste, carestia e tumultos de desempregados famintos. Seu irmão mais novo e família tinham sido
destruidos. Seu primogênito também perecera. Mas no inverno a
peste sumiu, ele conseguiu um novo navio com facilidade e partiu
para o mar, a fim de refazer fortuna. Primeiro para a London
Company of Barbary Merchants. Depois uma viagem às índias
Ocidentais, à caça de espanhóis. Em seguida, um pouco mais rico,
navegara para Kees Veerman, o holandês, na sua segunda viagem
em busca da lendária passagem nordeste para Catai e as ilhas das
Especiarias, na Ásia, que se supunha existirem nos mares de Gelo,
ao norte da Rússia czarista. Procuraram durante dois anos, então
Kees Veerman morrera nos desertos árticos, assim como oitenta
por cento da tripulação, e Blackthorne dera meia-volta, levando
o resto dos homens para casa. Então, há três anos, fora seduzido pela recentemente formada Companhia das índias Orientais
Holandesas e pedira para pilotar sua primeira expedição ao Novo
Mundo. Comentava-se à boca pequena que eles haviam adquirido,
133

a um custo imenso, um portulano português contrabandeado que
supostamente revelava os segredos do estreito de Magalhães, e
queriam pô-lo à prova. Naturalmente os mercadores holandeses
teriam preferido usar um dos seus próprios pilotos, mas não havia
nenhum que se comparasse em qualidade com os ingleses treinados pela monopolística Trinity House, e o valor espantoso do portulano forçou-os a arriscar com Blackthorne. Mas ele fora a melhor escolha: era o melhor piloto protestante vivo, sua mãe fora
holandesa e ele falava holandês perfeitamente. Blackthorne concordara, entusiasmado, aceitara os quinze por cento do lucro total
como paga, e, como era de costume, jurara solenemente, diante
de Deus, fidelidade à companhia, fazendo o voto de levar a esquadra e de trazê-la de volta para casa.
Por Deus, vou levar o Erasmus de volta, pensou Blackthorne.
E com tantos homens quantos ele deixar vivos.
Atravessavam a praça agora. Ele desviou os olhos da galera
e viu os três samurais guardando o alçapão. Estavam comendo
em tigelas, manejando habilmente os pauzinhos que Blackthorne
os vira usando muitas vezes mas com que não conseguia lidar.
- Omi-san! - Por meio de sinais, explicou que queria ir
até o alçapão, só para dar um alô aos amigos. Só por um instante.
Mas Omi balançou a cabeça, disse alguma coisa que ele não compreendeu e continuou através da praça, para a praia lá embaixo,
passando pelo caldeirão e em frente, rumo ao molhe.
Blackthorne seguiu-o obedientemente. Uma coisa de cada
vez, disse a si mesmo. Seja paciente.
Quando atingiram o quebra-mar, Omi voltou-se e chamou os
guardas do buraco. Blackthorne viu-os abrir o alçapão e descer.
Um deles fez um sinal a aldeães, que trouxeram a escada e um
barril cheio de água fresca e o carregaram para baixo. O vazio foi
trazido para cima. Assim como a latrina.
Aí está! Se você for paciente e aceitar o jogo com as regras
deles, pode ajudar a sua tripulação, pensou ele com satisfação.
Havia grupos de samurais reunidos perto da galera. Um
homem alto, velho, mantinha-se à parte. Pela deferência que o
Daimio Yabu lhe demonstrava, e pelo modo como os outros saltavam à sua mais ligeira observação, Blackthorne imediatamente
percebeu a sua importância. Será que é o rei deles? perguntou
a si mesmo.
Omi ajoelhou-se com humildade. O velho fez uma meia mesura, voltou os olhos para Blackthorne.
Reunindo tanta dignidade quanto conseguiu, Blackthorne
134
ajoelhou-se, estendeu as mãos sobre o chão de areia do quebramar, como Omi fizera, e se curvou tão baixo quanto o samurai.
- Konnichi wa, sama - disse polidamente.
Viu o velho fazer uma meia mesura novamente.
Houve uma discussão entre Yabu, o velho e Omi. Yabu falou
a Mura. Mura apontou para a galera. - Anjin-san. Por favor, lá.
- Por quê?
- Vá! Agora. Vá!
Blackthorne sentiu o pânico despertar. - Por quê?
- Isogi! - comandou Omi, fazendo-lhe um gesto na direção da galera.
- Não, eu não ...
Houve uma ordem imediata de Omi, quatro samurais caíram
em cima de Blackthorne e lhe seguraram os braços para trás.
Mura estendeu a corda e começou a atar-lhe as mãos as costas.
- Seus filhos das putas! - gritou Blackthorne. - Eu não
vou subir a bordo desse maldito navio de escravos!
- Nossa Senhora! Deixem-no em paz. Ei, seus macacos bebedores de mijo, deixem o bastardo em paz! Kinjiru, neh? Ele é
o piloto? O anjin, ka?
Blackthorne mal podia crer nos próprios ouvidos. Aquela
linguagem violenta e injuriosa, em português, viera do convés da
galera. Então viu o homem começar a descer a prancha de desembarque. Tão alto quanto ele e mais ou menos da mesma idade,
mas de cabelo preto e olhos escuros e descuidadamente vestido
com roupas de marujo, florete do lado, pistolas ao cinto. Um crucifixo cravejado de pedras preciosas pendia-lhe do pescoço. Usava
um gorro vistoso e um sorriso rasgava-lhe o rosto.
- Você é o piloto? O piloto do holandês?
- Sim - Blackthorne ouviu-se responder.
- Bom. Bom. Eu sou Vasco Rodrigues, piloto desta galera!
- Voltou-se para o velho e falou uma mistura de japonês e português, chamando-o ora de macaco-sama, ora de Toda-sarna, que,
pelo modo como pronunciava, soava "Toady-sama". Por duas
vezes sacou da pistola, apontou enfaticamente para Blackthorne e
enfiou-a de volta no cinto, falando em japonês escabrosamente
entremeado de vulgaridades em português de sarjeta, que somente
homens do mar compreenderiam.
Hiro-matsu falou brevemente, os samurais soltaram Blackthorne e Mura o desamarrou.
- Assim é melhor. Ouça, piloto, este homem é como um
rei. Dissê-lhe que fico responsável por você e que lhe arrebenta135

ria a cabeça, tão depressa quanto vou beber com você! - Rodrigues curvou-se para Hiro-matsu, depois sorriu para Blackthorne.
- Curve-se para o bastardo-sarna.
Como que em sonho, Blackthorne fez o que lhe dizia o outro.
- Você faz isso como um japona - disse Rodrigues com
um sorriso irônico. - É mesmo o piloto?
- Sim.
- Qual é a latitude de The Lizard?
- Quarenta e nove graus e cinqüenta e seis minutos norte,
e cuidado com os recifes situados a sul-sudoeste.
- Você é o piloto, por Deus! - Rodrigues apertou a mão
de Blackthorne calorosamente. - Venha a bordo. Há comida,
conhaque, vinho e grogue. Todos os pilotos deviam amar todos os
pilotos, que são o esperma da terra. Amém! Certo?
- Sim - disse Blackthorne fracamente.
- Quando ouvi dizer que íamos levar um piloto conosco,
eu disse: ótimo. Faz anos que não tenho o prazer de falar com
um verdadeiro piloto. Venha a bordo. Como foi que você passou
por Malaca, sua cobra? Como evitou as nossas patrulhas no oceano Indico, hein? O portulano, de quem você roubou?
- Para onde vão me levar?
- Para Osaka. O grão-senhor e alto executor em pessoa quer
vê-lo.
Blackthorne sentiu voltar o pânico. - Quem?
- Toranaga! Senhor das Oito Províncias, fiquem elas onde
o Diabo quiser! O daimio-chefe do Japão. Um daimio é como um
rei ou um senhor feudal, mas melhor. São todos déspotas.
- O que ele quer comigo?
- Não sei, mas é por isso que estamos aqui, e se Toranaga
quer vê-lo, piloto, ele o verá. Dizem que ele tem um milhão desses
fanáticos de olhos oblíquos que morreriam pela honra de lhe limpar a bunda se ele fesolvesse que o prazer dele era esse! "Toranaga quer que você traga o piloto, Vasco", disse o intérprete dele.
"Traga o piloto e a carga do navio. Leve o velho Toda Hiro-matsu
lá para examinar o navio e..." Oh, sim, piloto, foi tudo confiscado, pelo que ouvi, o navio e tudo o que está dentro.
- Confiscado?
- Pode ser um boato. Os japonas às vezes confiscam coisas com uma mão e as devolvem com a outra, ou fingem que nunca
deram a ordem. É difícil compreender esses bastardinhos sifilíticos!
Blackthorne sentiu os olhos gelados dos japoneses cravados
nele e tentou ocultar o medo. Rodrigues seguiu-lhe o olhar. Sim, estão ficando impacientes. Já falamos o bastante. Venha a
bordo. - Voltou-se, mas Blackthorne o deteve.
- E os meus amigos, a minha tripulação?
- Hein?
Blackthorne contou-lhe rapidamente sobre o buraco. Rodrigues interrogou Omi num japonês estropiado. - Diz que eles
ficarão bem. Ouça, não há nada que você ou eu possamos fazer
agora. Você terá que esperar... nunca se pode saber com um
japona. Eles têm seis caras e três corações. - Rodrigues fez uma
reverência como um cortesão europeu a Hiro-matsu. - É assim
que fazemos no Japão. Como se estivéssemos na corte daquele
fornicador do Filipe II, que Deus leve logo aquele espanhol para
o túmulo. - Mostrou-lhe o caminho para o convés. Para surpresa
de Blackthorne, não havia correntes nem escravos.
- Qual é o problema? Está doente? - perguntou Rodrigues.
- Não. Pensei que isto fosse um navio de escravos.
- Não os têm no Japão. Nem nas minas. É loucura, mas é
isso. Você nunca viu doidos como estes e eu dei a volta ao mundo
três vezes. Temos remadores samurais. São soldados, soldados pessoais do sodomita velho... e você nunca viu escravos remando
melhor ou homens lutando melhor. - Rodrigues riu. - Põem
a bunda diante dos remos e eu os incito para ver esses pederastas
sangrar. Nunca desistem. Fizemos o caminho todo de Osaka até
aqui, trezentas e tantas milhas marítimas, em quarenta horas.
Desça. Vamos zarpar brevemente. Tem certeza de que está bem?
- Sim. Sim, acho que sim. - Blackthorne estava olhando
para o Erasmus, atracado a cem jardas. - Piloto, não há um jeito
de ir a bordo, há? Não me deixaram voltar a bordo, não tenho
roupas e eles lacraram o navio no momento em que chegamos.
Por favor?
Rodrigues examinou atentamente o navio.
- Quando foi que perderam o mastro de proa?
Pouco antes de desembarcarmos aqui.
Ainda há um sobressalente a bordo?
Sim.
Qual é o porto de origem?
Rotterdam.
Foi construído lá?
Sim.
- Estive lá. Bancos de áreia péssimos mas uma boa enseada.
Tem boas linhas, o seu navio. É novo ... nunca tinha visto um
desse tipo antes. Nossa Senhora, deve ser veloz, muito veloz. Mui137
136

to difícil de lidar. - Rodrigues olhou para ele. - Você pode
pegar o equipamento rapidamente? - Pegou o marcador de meia
hora, de vidro e areia, ao lado da ampulheta, ambos presos à
bitácula, e virou-o.
- Sim. - Blackthorne tentou evitar que lhe transparecesse
no rosto a esperança crescente que sentia.
- Haveria uma condição, piloto. Nada de armas, nas mangas ou em qualquer lugar. Sua palavra de piloto. Eu disse aos
macacos que seria responsável por você.
- Concordo. - Blackthorne olhou a areia caindo silenciosamente pelo gargalo do marcador de tempo.
- Eu lhe estouro a cabeça, piloto ou não, se houver o simples cheiro de trapaça, ou corto-lhe a garganta. Se eu concordar.
- Dou-lhe minha palavra, de piloto para piloto, por Deus.
E sífilis nos espanhóis!
Rodrigues sorriu e bateu-lhe ruidosa e cordialmente nas costas. - Fstou começando a gostar de você, Inglês.
- Como sabe que sou inglês? - perguntou Blackthorne,
sabendo que o seu português era perfeito e que nada que tivesse
dito poderia diferenciá-lo de um holandês.
- Sou um adivinho. Todos os pilotos não são? - Rodrigues riu.
- Conversou com o padre? O Padre Sebastio lhe disse?
- Não converso com padres se posso evitar. Uma vez por
semana é mais que suficiente para qualquer homem. - Rodrigues
cuspiu com destreza nos embornais e foi para o passadiço de
bombordo, que dava para o quebra-mar. - Toady-sama! Ikimasho ka?
- Ikimasho, Rodrigu-san. Ima!
- Será ima. - Rodrigues olhou para Blackthorne pensativamente. - "Ima" significa "agora", "imediatamente". Vamos
partir imediatamente, Inglês.
A areia já fizera um montinho no fundo do vidro.
- Quer pedir a ele, por favor? Se posso ir a bordo do meu
navio?
- Não, Inglês. Não pedirei porra nenhuma!
Blackthorne repentinamente se sentiu vazio. E muito velho.
Observou Rodrigues ir até a grade do tombadilho e berrar para
um pequeno e distinto marujo que se encontrava no convés elevado da proa.
- Ei, capitão-san. Ikimasho? Traga os samurais para bordo,
ima! Ima, wakarimasu ka?
138
- Hai, Anjin-san.
Imediatamente Rodrigues tocou o sino do navio sonoramente
seis vezes e o capitão-san começou a gritar ordens aos marujos e
samurais em terra e a bordo. Acorreram todos para o convés, a
fim de se prepararem para a partida, e, na confusão disciplinada,
controlada, Rodrigues tranqüilamente pegou o braço de Blackthorne e o empurrou na direção do passadiço de estibordo, longe
da praia.
- Há um escaler lá embaixo, Inglês. Não se mova depressa,
não olhe em torno, e não preste atenção a não ser em mim. Se
eu lhe disser que volte, faça-o rapidamente.
Blackthorne atravessou o convés, desceu a escada do costado, dirigindo-se para o pequeno bote japonês. Ouviu vozes zangadas atrás dele e sentiu os cabelos na nuca levantando-se, pois
havia muitos samurais por todo o navio, alguns armados com
arcos e flechas, poucos com mosquetes.
- Não é preciso se preocupar com ele, capitão-san, sou responsável. Eu, Rodrigu-san, ichi ban Anjin-san, pela Virgem!
Wakarimasu ka? - A voz de Rodrigues dominava as outras vozes,
mas elas estavam ficando cada vez mais zangadas.
Blackthorne estava quase no escaler agora e viu que não
havia cavilhas de remos. Não sei remar como eles, disse a si mesmo. Não posso usar o bote! P longe demais para nadar. Ou não é?
Hesitou, examinando a distância. Se dispusesse de todo o
vigor, não teria esperado um instante. Mas agora?
Ouviu pés se atropelarem escada abaixo atrás dele e lutou
contra o impulso de se virar.
- Sente na popa - ouviu Rodrigues dizer com urgência.
- Apresse-se!
Fez o que lhe dizia o outro, que saltou agilmente, agarrou
os remos e, ainda em pé, remou com grande habilidade.
Um samurai estava no topo da escada, muito perturbado, com
dois outros ao seu lado, arcos preparados. O capitão samurai chamou, inconfundivelmente acenando para que voltassem.
A algumas jardas do vaso, Rodrigues voltou-se. - Vou até
lá - gritou, apontando para o Erasmus. - Ponha os samurais
a bordo! - Deu as costas resolutamente ao seu navio e continuou
remando, empurrando os remos à moda japonesa. - Se eles puserem flechas nos arcos, me diga! Vigie-os cuidadosamente! O que
estão fazendo agora?
- O capitão está muito zangado. Você não vai se meter em
apuros, vai?
139

- Se não zarparmos na hora, o velho Toady pode ter motivo de queixa. O que aqueles arqueiros estão fazendo?
- Nada. Estão escutando o que ele diz. Ele parece indeciso.
Não. Agora um deles está puxando uma seta.
Rodrigues preparou-se para parar. - Nossa Senhora, eles têm
pontaria demais para a gente arriscar qualquer coisa! A seta ainda
está no arco?
- Sim ... mas espere um momento! O capitão está ... alguém se aproximou dele, um marujo, acho. Parece que está perguntando alguma coisa sobre o navio. O capitão está olhando
para nós. Disse alguma coisa ao homem com a seta. Agora o
homem a está guardando. O marujo está apontando para alguma
coisa no convés.
Rodrigues arriscou uma olhada rápida e furtiva para ter certeza e respirou com mais facilidade. - É um dos imediatos. Vai
levar a nossa meia hora toda para acomodar os remadores.
Blackthorne esperou, a distância aumentou. - O capitão está
olhando para nós novamente. Não, está tudo bem. Ele se foi. Mas
um dos samurais está nos vigiando.
- Deixe que vigie. - Rodrigues relaxou mas não diminuiu
o ritmo nem olhou para trás. - Não gosto de ficar de costas
para samurais, não quando eles estão de armas nas mãos. O que
não quer dizer que alguma vez eu tenha visto um dos bastardos
desarmado. São todos bastardos!
- Por quê?
- Eles adoram matar, Inglês. O costume é até dormirem
com as espadas. Este país é ótimo mas os samurais são perigosos
como víboras e muito mais vis.
- Por quê?
- Não sei, Inglês, mas são - replicou Rodrigues, contente
de conversar com alguém da sua espécie. - Claro, todos os japonas são diferentes de nós, não sentem dor ou frio como a gente,
mas os samurais são ainda piores. Não têm medo de nada, e
menos ainda da morte. Por quê? Só Deus sabe, mas é a verdade.
Se os superiores deles dizem "mate", eles matam, "morra", eles
caem em cima das espadas ou rasgam a própria barriga. Matam
e morrem tão facilmente quanto nós mijamos. As mulheres samurais também, Inglês. Matam para proteger o amo, que é como
chamam os maridos aqui, ou matam a si mesmas se lhes disserem
que façam isso. Fazem isso cortando a garganta. Aqui um samurai
pode ordenar à esposa que se mate e ela tem que fazer isso, por
lei. Jesus, Nossa Senhora, as mulheres são uma coisa diferente,
140
uma espécie diferente, Inglês, não há nada na Terra como elas,
mas os homens... Samurais são répteis e o mais seguro a fazer é
tratá-los como cobras venenosas. Você está bem agora?
- Sim, obrigado. Um pouco fraco, mas bem.
- Como foi a sua viagem?
- Dura. Quanto a eles, os samurais, como fazem para se
tornar samurais? Simplesmente pegam duas espadas e fazem aquele corte de cabelo?
- É preciso nascer samurai. Claro, há todos os níveis de
samurai, de daimios, no topo, até o que chamamos de soldado
raso, na base. Na maior parte é hereditário, como conosco. Antigamente, assim me disseram, era a mesma coisa que na Europa
de hoje: camponeses podiam ser soldados e soldados camponeses,
com cavaleiros hereditários e nobres armados cavaleiros. Alguns
soldados camponeses chegaram ao mais alto grau. O táicum
foi um.
- Quem é ele?
- O grande déspota, o dirigente do Japão todo, o grande
assassino de todos os tempos. Eu lhe falo dele um dia. Morreu há
um ano e agora está ardendo no inferno. - Rodrigues cuspiu no
mar. - Hoje em dia você tem que nascer samurai para ser um
deles. É tudo hereditário, Inglês. Nossa Senhora, você não tem
idéia de quanto valor eles dão a herança, família, nível e aparência. Você viu como Omi se curva diante daquele diabo de Yabu,
e ambos rastejam na frente do velho Toady-sama. "Samurai" vem
da palavra japonesa que significa "servir". Mas embora todos se
curvem e se desmanchem em rapapés diante do superior, são todos
samurais igualmente, com privilégios especiais de samurai. O que
está acontecendo a bordo?
- O capitão está tagarelando com outro samurai e apontando para nós. O que há de especial com eles?
- Aqui os samurais governam tudo, possuem tudo. Têm seu
próprio código de honra e conjunto de regras. Arrogantes? Nossa
Senhora, você não faz idéia! O mais inferior deles pode matar
legalmente qualquer não-samurai, qualquer homem, mulher ou
criança, por qualquer razão ou nenhuma razão. Podem matar, legalmente, só para testar o fio das malditas espadas deles, já os vi
fazer isso, e têm as melhores espadas do mundo. Melhor do que
aço de Damasco. O que aquele fornicador está fazendo agora?
- Só olhando. Está com o arco nas costas agora. - Blackthorne estremeceu. - Odeio aqueles bastardos mais do que aos
espanhóis.
141

Novamente Rodrigues riu enquanto remava. - Para dizer a
verdade, eles me talham o mijo também! Mas se você quer ficar
rico depressa, tem que trabalhar com eles, porque possuem tudo.
Tem certeza de que está bem?
- Sim, obrigado. O que você estava dizendo? Os samurais
possuem tudo?
- Sim. O país todo está dividido em castas, como na índia.
Samurais no topo, camponeses os seguintes em importância. -
Rodrigues cuspiu no mar. Só os camponeses podem possuir
terra. Compreende? Mas a produção é todinha dos samurais. São
donos do arroz todo, que é a única safra importante, e dão uma
parte aos camponeses. Somente os samurais têm permissão para
carregar armas. Para todo mundo, exceto para um samurai, atacar
um samurai é rebelião, punível com morte instantânea. E qualquer um que veja um ataque assim e não o comunique na hora
é igualmente responsável, assim como as viúvas, e mesmo as crianças. A família toda é condenada à morte se não comunica o que
viu. Por Nossa Senhora, eles são cria de Satã, os samurais! Vi
crianças sendo retalhadas em pedacinhos. - Rodrigues pigarreou
e cuspiu. - Ainda assim, se você sabe uma ou duas coisas, este
lugar é o paraíso na terra. - Ele deu uma olhada para trás, para
a galera, a fim de se tranqüilizar, depois sorriu, irônico. - Bem,
Inglês, nada como um passeio de bote em torno da baía, hein?
Blackthorne riu. Os anos se desvaneceram quando ele se regalou com o movimento familiar das ondas, o cheiro de sal marinho, gaivotas grasnando e brincando no céu, a sensação de liberdade, a sensação de estar chegando depois de muito, muito tempo.
- Pensei que você não fosse me ajudar a ir até o Erasmus!
- Esse é o problema com todos os ingleses. Não têm paciência. Ouça, aqui você não pede nada aos japoneses - samurais
ou outros, é tudo a mesma coisa. Se fizer, eles vão hesitar, depois
perguntar ao superior pela decisão. Aqui você tem que agir. Claro
- sua risada sincera atravessou as ondas -, às vezes você pode
ser morto se age errado.
- Você rema muito bem. Estava perguntando a mim mesmo
como usar os remos quando você chegou.
- Você não acha que eu o deixaria ir sozinho, acha? Qual
é o seu nome?
- Blackthorne. John Blackthorne.
- Já esteve no norte alguma vez, Inglês? No norte longínquo?
- Estive com Kees Veerman no Der Lifle. Há oito anos.
142
Foi a segunda viagem dele para encontrar a passagem nordeste.
por quê?
- Gostaria de ouvir sobre isso, e sobre todos os lugares
onde você esteve. Acha que algum dia encontrarão o caminho?
O caminho setentrional para a Ásia, a leste ou oeste?
- Sim. Vocês e os espanhóis bloqueiam ambas as rotas meridionais, de modo que teremos que encontrá-lo. Sim, encontraremos. Ou os holandeses. Por quê?
- E você pilotou pela costa da Barbaria, hein?
- Sim. Por quê?
- E conhece Trípoli?
- A maioria dos pilotos já esteve lá. Por quê?
- Pensei que já o tinha visto uma vez. Sim, foi em Trípoli.
Alguém me apontou você. O famoso piloto inglês. Que foi com
o explorador holandês, Kees Veerman, até os mares de Gelo, e
que uma vez foi capitão com Drake, hein? Na Armada? Que
idade tinha na época?
- Vinte e quatro. O que você estava fazendo em Trípoli?
- Estava pilotando um navio pirata inglês. Meu navio tinha
sido pego nas índias por aquele pirata, Morrow, Henry Morrow.
Queimou meu navio até a linha d'água depois de tê-lo saqueado,
e ofereceu-me o lugar de piloto... o dele estava inutilizado, disse
ele... sabe como é. Ele queria ir dali (estávamos nos abastecendo
de água ao largo de Hispaniola quando ele nos capturou) para o
sul, ao longo do Spanish Main, depois de volta através do Atlântico para tentar interceptar, perto das Canárias, o barco espanhol
do carregamento anual de ouro, depois seguir em frente através
do estreito de Trípoli, caso o perdêssemos, para procurar outras
presas, depois para o norte novamente, para a Inglaterra. Fez a
oferta usual de libertar meus companheiros, dar-lhes comida e
botes em troca, se eu me juntasse a ele. Eu disse: "Claro, por que
não? Desde que não peguemos nenhum navio português, que você
me desembarque perto de Lisboa e não roube meus portulanos".
Discutimos muito, como de hábito, você sabe como é. Então jurei
por Nossa Senhora, ambos juramos pela cruz, e estava feito. Tivemos uma boa viagem e alguns gordos mercadores espanhóis
caíram na nossa rede. Quando estávamos ao largo de Lisboa, ele
me pediu que ficasse a bordo, deu-me o recado habitual da boa
Rainha Bess, de como ela pagaria uma recompensa principesca a
qualquer piloto português que se juntasse a ela e ensinasse a habilidade aos outros pilotos de Trinity House, e de como daria cinco
mil guinéus pelo portulano do estreito de Magalhães, ou do cabo
143

da Boa Esperança. - Ele tinha o sorriso largo, dentes brancos e
fortes, e o bigode e a barba pretos bem tratados. - Eu não os
tinha. Pelo menos foi o que lhe disse. Morrow cumpriu a palavra,
como todos os piratas deveriam cumprir. Desembarcou-me com
os meus portulanos. Claro que mandara copiá-los, já que ele
mesmo não sabia ler nem escrever. Até me deu minha parte do
dinheiro. Já navegou com ele alguma vez, Inglês?
- Não. A rainha o armou cavaleiro anos atrás. Nunca servi
em nenhum dos navios dele. Fico contente de saber que foi justo
com você.
Estavam se aproximando do Erasmus. Samurais observavamnos lá de cima, de modo esquisito.
- Essa foi a segunda vez que pilotei para hereges. Na primeira vez não tive tanta sorte.
- Oh?
Rodrigues fixou os remos, o bote desviou habilmente para o
lado e ele se agarrou às cordas de abordagem. - Suba, mas deixe
a conversa comigo.
Blackthorne começou a subir enquanto o outro piloto amarrava o bote com segurança. Rodrigues foi o primeiro no convés.
Curvou-se como um cortesão. - Konnichi wa a todos os sarnas
comedores de grama!
Havia quatro samurais no convés. Blackthorne reconheceu
um deles como um guarda do alçapão. Embaraçados, curvaram-se
rigidamente para o português. Blackthorne imitou a este último,
sentindo-se desajeitado; teria preferido curvar-se corretamente.
Rodrigues caminhou diretamente para a escada da gaiúta. Os
lacres estavam em perfeita ordem, no lugar. Um dos samurais o
interceptou.
- Kinjiru, gomen nasai. É proibido, sinto muito.
- Kinjiru, hein? - disse o português, abertamente não impressionado. - Sou Rodrigu-san, anjin de Toda Hiro-matsu-sama.
Este lacre - apontou para o selo vermelho com a escrita esquisita -, Toda Hiro-matsu-sama, ka?
- Iyé - disse o samurai, sacudindo a cabeça. - Kasigi
Yabu-sama!
- IYE? - disse Rodrigues. - Kasigi Yabu-sama? Sou de
Toda Hiro-matsu-sama, que é rei mais importante do que o sodomita do seu, e Toady-sama é de Toranaga, que é o maior sodomita-sama do mundo todo. Neh? - Arrancou o selo da porta,
levou uma mão a uma das pistolas. As espadas estavam meio fora
das bainhas, e ele disse calmamente a Blackthorne: - Prepare-se
144
para abandonar o navio - e ao samurai disse grosseiramente:
- Toranaga-sama! - Apontou com a mão esquerda a bandeira
que tremulava no topo do mastro do seu navio.
- Wakarimasu ka?
Os samurais hesitaram, as espadas prontas. Blackthorne preparou-se para mergulhar.
- Toranaga-sama! - Rodrigues lançou o pé contra a porta,
o trinco estalou e a porta se abriu com violência. - WAKARIMASU KA?
- Wakarimasu, Anjin-san. - Rapidamente os samurais largaram as espadas, curvaram-se, pediram desculpas, curvaram-se
novamente e Rodrigues disse roucamente: - Assim é melhor -
e foi em frente.
- Jesus Cristo, Rodrigues - disse Blackthorne quando se
viram no convés inferior. - Você faz isso sempre e se safa?
- Faço com muita freqüência - disse o português, enxugando o suor da testa -, até quando seria preferível nunca ter
começado.
Blackthorne encostou-se ao tabique. - Sinto como se alguém
me tivesse dado um pontapé no estômago.
- É o único jeito. Você tem que agir como um rei. Ainda
assim, com um samurai, nunca se pode saber. São tão perigosos
quanto um padre mijado com uma vela na bunda, sentado em
cima de um barrilete de pólvora quase cheio!
- O que foi que disse a eles?
- Toda Hiro-matsu é conselheiro-chefe de Toranaga, é um
daimio maior do que o daimio local. Foi por isso que cederam.
- Como é ele, Toranaga?
- É uma longa história, Inglês. - Rodrigues sentou num
degrau, tirou a bota e esfregou o tornozelo. - Quase quebrei o
pé na sua porta comida de piolhos.
- Não estava trancada. Você poderia simplesmente tê-la
aberto.
- Eu sei. Mas não teria sido tão eficaz. Pela Virgem abençoada, você tem muito que aprender!
- Você me ensinará?
Rodrigues calçou a bota nova. - Isso depende - disse.
- De quê?
- Teremos que ver, não? Fui só eu que falei até agora, o
que é justo: eu estou bem, você não. Logo chegará a sua vez.
Qual é a sua cabina?
Blackthorne estudou-o por um momento. O cheiro embaixo
145

dos conveses era denso, estragado. - Obrigado por me ajudar a
vir a bordo.
Seguiu em direção à popa. A porta estava destrancada. A
cabina fora revistada e tudo o que era removível fora levado. Não
havia livros, roupas, instrumentos ou penas. Seu baú também
estava destrancado. E vazio.
Branco de raiva, dirigiu-se para a cabina grande, Rodrigues
observando-o atentamente. Até o compartimento secreto fora descoberto e pilhado.
- Levaram tudo. Filhos de piolhos infestados de peste!
- O que você esperava?
- Não sei. Pensei... com os lacres. . . - Blackthorne foi
até a sala forte. Estava nua. Assim como o paiol. Os porões continham apenas os fardos de tecido de lã. - Deus amaldiçoe os
japonas! - Voltou à sua cabina e fechou o baú com estrépito.
- Onde estão? - perguntou Rodrigues.
- O quê?
- Os seus portulanos. Onde estão os seus portulanos?
Blackthorne olhou-o penetrantemente.
- Nenhum piloto se preocuparia com roupas. Você veio
aqui por causa dos portulanos. Não veio?
- Sim.
- Por que está tão surpreso, Inglês? Por que você acha que
eu vim a bordo? Para ajudá-lo a pegar mais trapos? Estão todos
puídos e você precisará de outros. Tenho um monte para você.
Mas onde estão os portulanos?,
- Sumiram. Estavam no meu baú.
- Não vou roubá-los, Inglês. Só quero lê-los. E copiá-los,
se for necessário. Cuidarei deles como se fossem os meus, portanto não precisa se preocupar. - A voz endureceu. - Por favor,
pegue-os, Inglês, só nos resta pouco tempo.
- Não posso. Sumiram. Estavam no meu baú.
- Você não os teria deixado aí, vindo para um porto estrangeiro. Não se esqueceria da primeira regra de um piloto: escondêlos cuidadosamente, e deixar apenas cópias falsas desprotegidas.
Vamos!
- Foram roubados!
- Não acredito em você. Mas admitirei que os tenha escondido muito bem. Procurei durante horas e não encontrei nem
sombra deles.
- O quê?
- Por que tão surpreso, Inglês? Está com a cabeça enfiada
146
na bunda? Naturalmente vim de Osaka até aqui para examinar os
seus portulanos!
- Você já esteve a bordo?
- Nossa Senhora! - disse Rodrigues com impaciência. -
Sim, claro, duas ou três horas atrás, com Hiro-matsu, que queria
dar uma olhada. Ele rompeu os lacres e depois, quando fomos
embora, o daimio local lacrou o navio de novo. Apresse-se, por
Deus. A areia está esgotando.
- Foram roubados! - Blackthorne contou-lhe como haviam
chegado e como despertara em terra. Depois chutou o baú para o
outro lado da sala, enfurecido com os homens que haviam saqueado o seu navio. - Foram roubados! Todas as minhas cartas!
Todos os meus portulanos! Tenho cópias de alguns na Inglaterra,
mas o meu portulano desta viagem sumiu e o. . . - Ele se deteve.
- E o portulano português? Vamos, Inglês, tinha que ser
português.
- Sim, e o português sumiu também. - Controle-se, pensou. Sumiram e acabou. Quem será que os tem? Os japoneses?
Ou será que os deram ao padre? Sem os portulanos e as cartas
você não pode pilotar de volta para casa. Nunca chegará a casa...
Isso não é verdade. Pode voltar com cuidado, e uma sorte enorme... Não seja ridículo! Está a meio caminho em torno do globo,
em terra inimiga, em mãos inimigas, e não tem nem portulano
nem cartas. - Oh, Jesus, dê-me forças!
Rodrigues observava-o atentamente. Finalmente disse: - Sinto muito por você, Inglês. Sei como se sente. Aconteceu comigo
uma vez. Foi um inglês também, o ladrão. Possa o navio dele
estar no fundo do mar e ele estar ardendo no inferno para sempre.
Vamos, vamos voltar.
Omi e os outros esperaram no molhe até que a galera contornasse o promontório e desaparecesse. Para oeste, laivos de noite
já manchavam o céu carmesim. Para leste, a noite unia céu e mar,
sem horizonte.
- Mura, quanto tempo vai levar para recolocar todos os
canhões no navio?
- Se passarmos a noite trabalhando, pelo meio-dia de amanhã estará terminado, Omi-san. Se começarmos ao amanhecer,
terminaremos bem antes do pôr-do-sol. Seria mais seguro trabalhar
durante o dia.
147

- Trabalhem durante a noite. Tragam o padre ao buraco
imediatamente.
Omi deu uma olhada em Igurashi, o primeiro lugar-tenente
de Yabu, que ainda estava olhando na direção do promontório, o
rosto tenso, a lívida cicatriz sobre a cavidade do seu olho vazado
lugubremente ensombrecida. - Seria bem-vindo se ficasse, Igurashi-san. Minha casa é pobre, mas talvez possamos recebê-lo confortavelmente.
- Obrigado - disse o homem mais velho, voltando-se para
ele -, mas nosso amo disse que eu retornasse a Yedo imediatamente, portanto retornarei imediatamente. - Sua preocupação
transparecia ainda mais. - Gostaria de estar naquela galera.
- Sim.
- Odeio a idéia de Yabu-sarna estar a bordo com apenas
dois homens. Odeio.
- Sim.
Apontou para o Erasmus. - Um navio do Demônio, é isso
o que é! Tanta riqueza, depois nada.
- Será com certeza? Será que o Senhor Toranaga não ficará satisfeito, enormemente satisfeito, com o presente do Senhor
Yabu?
- Aquele ladrão de províncias é tão cheio de si e da própria importância que não vai sequer notar o montante de prata
que roubou do nosso amo. Onde estão os seus miolos?
- Presumo que tenha sido apenas a preocupação com um
possível perigo contra o nosso senhor que o induziu a fazer essa
observação.
- Tem razão, Omi-san. Não tive a intenção de insultar.
Você foi muito inteligente e útil para o nosso amo. Talvez também tenha razão quanto a Toranaga - disse Igurashi, mas estava
pensando. Aproveite a sua riqueza recente, seu pobre tolo! Conheço meu amo melhor do que você, e o seu feudo aumentado
não lhe fará bem em absoluto. A sua promoção teria sido uma
retribuição justa pelo navio, o dinheiro e as armas. Mas agora
isso tudo 'sumiu. E por sua causa, meu amo está em perigo.
Você mandou a mensagem e o tentou, dizendo: "Veja os bárbaros primeiro". Deveríamos ter partido ontem. Sim, então
meu amo estaria longe daqui agora, em segurança, com o dinheiro
e as armas. Você é um traidor? Está agindo para si mesmo ou
para o seu estúpido pai, ou para um inimigo?,Para Toranaga,
talvez? Não importa. Pode acreditar em mim, Omi, seu jovem
tolo comedor de bosta, você e o seu ramo do clã Kasigi não vão
148
durar muito nesta terra. Eu lhe diria isso na cara, mas então
teria que matá-lo e isso seria menosprezar a confiança do meu
amo. É ele quem deve dizer quando, não eu.
- Obrigado pela sua hospitalidade, Omi-san - disse. -
Ficarei ansioso por revê-lo em breve, mas agora vou me pôr a
caminho.
- Faria uma coisa para mim, por favor? Transmita os
meus respeitos a meu pai. Eu ficaria muito agradecido.
- Eu ficaria muito feliz em fazer isso. Ele é um excelente
homem. E ainda não cumprimentei a você pelo novo feudo.
- O senhor é muito gentil.
- Obrigado novamente, Omi-san. - Ergueu a mão numa
saudação amigável, fez um gesto aos seus homens, e conduziu a
falange de cavaleiros para fora da aldeia.
Omi foi até o buraco. O padre estava lá. Omi podia ver que o
homem estava zangado e esperou que ele fizesse alguma coisa
abertamente, publicamente, para trucidá-lo.
- Padre, diga aos bárbaros que subam, um de cada vez.
Diga-lhes que o Senhor Yabu disse que eles podem viver novamente no mundo dos homens. - Omi mantinha a linguagem
deliberadamente simples. - Mas à menor infração a uma regra,
dois deles serão colocados de novo no buraco. Eles devem se comportar e obedecer a todas as ordens. Está claro?
- Sim.
Omi fez o padre repetir. Quando teve certeza de que o homem
sabia tudo corretamente, fê-lo falar para dentro do buraco. Os
homens subiram, um a um. Estavam todos atemorizados. Alguns
tiveram que ser ajudados. Um homem estava sentindo dores
fortes e gritava sempre que alguém lhe tocava o braço.
- Devia haver nove.
- Um está morto. O corpo está lá embaixo, no buraco
- disse o padre.
Omi pensou um instante. - Mura, queime o cadáver e
conserve as cinzas junto com as do outro bárbaro. Ponha esses
homens na mesma casa onde estavam antes. Dê-lhes muita verdura e peixe. E sopa de cevada e frutas. Mande lavá-los. Eles
fedem. Padre, diga-lhes que, se se comportarem e obedecerem,
continuarão recebendo comida.
Omi observou e ouviu cuidadosamente. Viu-os reagir com
reconhecimento e pensou, com desprezo: Que estúpidos! Privo-os
por apenas dois dias, depois concedo-lhes uma ninharia e agora
149

eles comeriam bosta, realmente comeriam. - Mura, ensine-os a
se curvar adequadamente e leve-os daqui.
Depois voltou-se para o padre. - Bem?
- Eu vou agora. Vou minha casa. Deixo Anjiro.
- É melhor que parta e fique longe para sempre, você e
todos os padres como você. Talvez a próxima vez que venha ao
meu feudo seja porque alguns dos meus camponeses cristãos ou
vassalos estejam pensando em traição - disse, usando a ameaça
velada e o estratagema clássico que os samurais anticristãos usavam para controlar a difusão indiscriminada do dogma estrangeiro
nos seus feudos, pois, embora os padres estrangeiros fossem protegidos, os japoneses convertidos não o eram.
- Cristãos bons japoneses. Sempre. Somente bons vassalos.
Nunca tiveram maus pensamentos. Não.
- Fico contente em ouvir isso. Não se esqueça de que o
meu feudo se estende a vinte ris em todas as direções. Compreendeu?
- Compreendo. Sim. Compreendo muito bem.
Viu o padre curvar-se rigidamente - até os padres bárbaros
deveriam ter boas maneiras - e se afastar.
- Omi-san? - disse um dos seus samurais. Era jovem e
muito bonito.
- Sim?
- Por favor, desculpe-me, sei que não se esqueceu, mas
Masijiro-san ainda está no buraco. - Omi se aproximou do alçapão e olhou fixamente para o samurai lá embaixo. Imediatamente o homem se pôs de joelhos, curvando-se respeitoso.
Os dois dias o haviam envelhecido. Omi sopesou seu serviço
passado e o valor futuro. Então pegou a adaga do cinto do
jovem samurai e atirou-a no buraco.
Ao pé da escada, Masijiro arregalou os olhos para a faca,
não acreditando no que via. Lágrimas começaram a correr-lhe
pelo rosto.
- Não mereço esta honra, Omi-san - disse abjetamente.
- Sim.
- Obrigado.
O jovem samurai ao lado de Omi disse: - Posso, por favor,
pedir que ele seja autorizado a cometer seppuku aqui, na praia?
- Ele falhou lá dentro. Fica lá dentro. Ordene aos aldeães
que encham o buraco. Eliminem qualquer vestígio dele. Os bárbaros o conspurcaram.
150
Kiku riu e balançou a cabeça. - Não, Orni-san, sinto muito,
por favor, nada de mais saquê para mim ou o meu cabelo vai
desabar, eu vou desabar, e então onde estaríamos?
- Eu desabaria com você e nós nos deitaríamos e estaríamos
no nirvana, fora de nós mesmos - disse Omi, feliz, a cabeça
girando por causa do vinho.
- Ah, mas eu estaria roncando, e o senhor não pode se
deitar com uma horrível garota bêbada que ronca e ter muito
prazer nisso. Certamente não, sinto muito. Oh, não, Omi-sama do
Novo Feudo Enorme, o senhor merece muito mais do que isso! -
Ela verteu outro dedal do vinho quente no minúsculo cálice de
porcelana e ofereceu-o com as duas mãos, o indicador e o polegar
esquerdos delicadamente segurando o cálice, o indicador direito
tocando-lhe a face inferior.
- Aqui está, porque o senhor é maravilhoso!
Ele aceitou e bebeu, apreciando o calor e o sabor adocicado
da bebida. - Estou tão contente por ter conseguido convencê-la
a ficar um dia extra, neh? Você é tão bonita, Kiku-san.
- O senhor é bonito, e o prazer é meu. - Os olhos dela
dançavam à luz da vela encerrada numa flor de papel e bambu
que pendia da viga de cedro.
Aquele era o melhor conjunto de quartos na casa de chá
perto da praça. Ela se inclinou para servir-lhe mais arroz da
tigela simples de madeira que estava sobre a mesa baixa laqueada
na frente dele, mas Omi sacudiu a cabeça.
- Não, não, obrigado.
- Devia comer mais, um homem forte como o senhor.
- Estou satisfeito, realmente.
Ele não retribuiu o oferecimento porque ela mal havia tocado
a pequena salada - pepinos cortados em fatias finas e minúsculos
rabanetes esculpidos, em conserva no vinagre doce -, que fora
tudo o que aceitara da refeição toda. Tinha havido pedacinhos
de peixe cru sobre bolas de arroz em papa, sopa, a salada, e verduras frescas servidas com um molho picante de soja e gengibre. E
arroz. Ela bateu palmas suavemente e a shoji foi aberta imediatamente pela sua empregada particular.
- Sim, ama?
- Suisen, leve todas estas coisas embora e traga mais saquê
e outro bule de chá. E frutas. O saquê deve estar mais quente do
que da última vez. Vamos, boa-para-nada! - Tentou soar imperiosa.
151

Suisen tinha catorze anos, era meiga, ansiosa por agradar, e
uma aprendiz de cortesã. Estava com Kiku há dois anos e Kiku
era responsável pelo seu treinamento.
Com um esforço, Kiku afastou os olhos do puro arroz branco
que adoraria ter comido e ignorou a própria fome. Você comeu
antes de chegar e comerá depois, lembrou-se a si mesma. Sim,
mas ainda assim é tão pouco! "Ah, mas as damas têm um apetite
minúsculo, realmente minúsculo", costumava dizer sua professora.
"Os hóspedes comem e bebem - quanto mais melhor. As damas
não, e certamente nunca com os hóspedes. Como podem conversar
ou entreter ou tocar o samisen ou dançar se estiverem enchendo
a boca? Você comerá mais tarde, seja paciente. Concentre-se no
seu hóspede."
Enquanto observava Suisen criticamente, avaliando-lhe a habilidade, contava histórias a Omi para fazê-lo rir e esquecer o mundo exterior. A jovem se ajoelhou ao lado dele, arrumou as tigelinhas e os pauzinhos sobre a bandeja de laca numa disposição
agradável, conforme fora ensinada. Depois pegou o frasco de saquê
vazio, inclinou-o para ter certeza de que estava vazio - teria
sido muita falta de educação sacudi-lo -, em seguida se levantou
com a bandeja, levando-a silenciosamente até a porta shoji, ajoelhou-se, pôs a bandeja no chão, abriu a porta, levantou-se, atravessou a porta, ajoelhou-se de novo, levantou a bandeja, colocou-a no chão novamente, do lado de fora, sempre em silêncio,
e fechou a porta completamente.
- Realmente preciso arrumar outra criada - disse Kiku,
sem estar descontente. Essa cor fica bem nela, estava pensando.
Preciso mandar buscar mais um pouco dessa seda em Yedo. Que
vergonha ser tão cara! Não importa, com todo o dinheiro que
foi dado a Gyoko-san pela noite passada e por hoje, haverá mais
que o suficiente, da minha parte, para comprar para a pequena
Suisen vinte quimonos. É uma criança tão meiga, e realmente
muito graciosa. - Ela faz tanto barulho... perturba o aposento
todo ... sinto muito.
- Não a notei. Só a você - disse Omi, terminando o vinho. Kiku agitou o leque, seu sorriso iluminando-lhe o rosto. -
O senhor faz que eu me sinta muito bem, Omi-san. Sim. E amada.
Suisen trouxe o saquê rapidamente. E o chá. A ama verteu
no cálice um pouco de vinho para Omi e passou-o a ele.
A jovenzinha discretamente encheu os cálices. Não derramou uma
gota e achou que o som que o líquido fazia caindo no cálice tinha
exatamente o timbre suave que devia ter, por isso suspirou inti
152
mamente, com um alívio imenso, sentou-se sobre os calcanhares,
e esperou.
Kiku estava contando uma história divertida que ouvira de
uma das amigas em Mishima, e Omi ria. Enquanto fazia isso,
ela pegou uma das pequenas laranjas e, usando as longas unhas,
abriu-a como se fosse uma flor, os gomos da fruta as pétalas, as
divisões da pele as folhas. Removeu um gomo do núcleo e ofereceu-o com as duas mãos, como se fosse o modo usual de uma
dama servir a fruta ao seu convidado.
- Aceita uma laranja, Omi-san?
A primeira reação de Omi foi dizer: Não posso destruir essa
beleza. Mas isso seria inepto, pensou ele, deslumbrado pelo talento dela. Como posso cumprimentá-la, e à sua anônima professora?
Como posso retribuir a felicidade que ela me deu deixando-me
ver-lhe os dedos criar uma coisa tão preciosa e no entanto tão
efêmera?
Segurou a flor nas mãos um instante, depois agilmente removeu quatro gomos equidistantes uns dos outros, e comeu-os com
prazer. Isso deixou uma nova flor. Ele removeu mais quatro
gomos, criando um terceiro desenho floral. Em seguida pegou
um gomo e moveu um segundo, de modo que os três remanescentes ainda fizessem outra flor.
Então pegou dois gomos e recolocou o último no centro da
base da laranja, como se fosse uma lua crescente dentro de um sol.
Comeu um muito lentamente. Quando terminou, pôs o outro
no centro da mão e ofereceu a ela. - Este você deve aceitar
porque é o penúltimo. É o meu presente para você.
Suisen mal podia respirar. Para que era o último?
Kiku pegou a fruta e comeu-a. Era a melhor que jamais
provara.
- Este último - disse Omi, colocando a flor inteira gravemente sobre a palma da mão direita - é o meu presente aos
deuses, sejam eles quem forem, estejam onde estiverem. Nunca
comerei esta fruta novamente, a menos que venha das suas mãos.
- Isso é demais, Omi-san! - disse Kiku-san. - Liberto-o
do seu voto! Isso foi dito sob a influência do kami que vive em
todas as garrafas de saquê!
- Recuso-me a ser libertado.
Estavam os dois muito felizes juntos.
- Suisen - disse ela -, deixe-nos agora. E por favor,
criança, por favor, tente fazê-lo com graça.
- Sim, ama. - A jovem dirigiu-se para o aposento contíguo
153

e examinou se os futons estavam meticulosamente em ordem, os
instrumentos do amor' e as pérolas do prazer perto, à mão, e as
flores perfeitas. Uma ruga imperceptível foi alisada na coberta já
alisada. Depois, satisfeita, Suisen se sentou, suspirou de alívio,
abanou-se com o leque lilás para diminuir o calor do rosto, e
esperou, contente.
No cômodo ao lado, que era o mais requintado da casa de
chá, o único com um jardim só seu, Kiku pegou o longo sainisen.
Era de três cordas, parecido com uma guitarra, e o primeiro
acorde sublime de Kiku encheu o quarto. Depois ela começou
a cantar. Primeiro suave, depois penetrante, suave de novo, depois
mais baixo, mais suave suspirando suavemente, sempre suavemente, ela cantou sobre o amor, o amor não correspondido, a
felicidade e a tristeza.
- Ama? - O sussurro não teria perturbado o mais leve
dos sonos, mas Suisen sabia que a ama preferia não dormir depois
das nuvens e da chuva, mesmo que a chuva fosse forte. Preferia
descansar, meio desperta, em meio à tranqüilidade.
- Sim, Sui-chan? - sussurrou Kiku tão quietamente quanto
a criada, usando "chan", como se faria com uma criança favorita.
- A esposa de Omi-san voltou. O palanquim dela acabou
de subir pelo caminho em direção de casa.
Kiku deu uma olhada em Omi. Tinha o pescoço confortavelmente apoiado sobre o travesseiro de madeira macia, os braços
cruzados. Seu corpo era forte e sem marcas, a pele firme e
dourada, com reflexos aqui e ali. Ela o acariciou suavemente, o
suficiente para fazer o toque passar-lhe para o sonho, mas não o
suficiente para despertá-lo. Depois deslizou de sob o acolchoado
e passou o quimono em torno do corpo.
Levou muito pouco tempo para refazer a maquilagem enquanto Suisen lhe penteava e escovava o cabelo e o amarrava de
novo no estilo shimoda. Depois patroa e empregada caminharam
silenciosamente pelo corredor, saíram para a varanda, atravessaram o jardim e dirigiram-se para a praça. Havia botes, como pirilampos, cobrindo o percurso entre o navio bárbaro e o quebra-mar,
onde ainda havia sete canhões para serem carregados. A noite ainda ia alta, faltava muito para o amanhecer.
As duas mulheres passaram rápidas e silenciosas ao longo da
estreita alameda entre um amontoado de casas e começaram a
subir o caminho.
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Carregadores exaustos e cobertos de suor recuperavam as
forças junto do palanquim no topo da colina, do lado de fora
da casa de Orni. Kiku não bateu no portão do jardim. Havia velas
acesas na casa e criados correndo de um lado para o outro. Fez
um gesto para Suisen, que imediatamente se dirigiu para a varanda,
para a porta dianteira, bateu e esperou. Num instante a porta se
abriu. A criada assentiu com a cabeça e desapareceu. Outro instante e a criada voltou. Chamou Kiku com um aceno e fez uma
profunda reverência quando esta passou com dignidade. Outra
criada precipitou-se na frente e abriu a shoji do melhor aposento.
A cama da mãe de Omi estava intacta. Ninguém dormira
ali. A mãe estava sentada, rigidamente ereta, perto do pequeno
nicho que sustentava o arranjo de flores. Uma pequena janela
shoji abria-se para o jardim. Midori, esposa de Omi, estava em
frente à sogra.
Kiku ajoelhou-se. Faz só uma noite que eu estive aqui, aterrorizada na noite dos gritos? Curvou-se, primeiro para a mãe de
Omi, depois para a esposa, sentindo a tensão entre as duas mulheres. Por que será que há sempre tanta violência entre sogra e
nora? perguntou a si mesma. A nora não se torna sogra, um
dia? Por que então ela sempre trata a própria nora com língua
viperina e faz da vida dela uma miséria, e por que a garota faz
o mesmo quando chega a sua vez? Ninguém aprende?
- Sinto muito perturbá-la, Ama-san.
- É muito bem-vinda, Kiku-san - replicou a velha. -
Não há problema algum, espero?
- Oh, não, mas eu não sabia se a senhora gostaria ou
não que eu despertasse seu filho - disse, já sabendo a resposta.
- Achei que era melhor perguntar-lhe, já que - voltou-se, sorriu,
curvou-se ligeiramente para Midori, de quem gostava muito -
a senhora voltou.
- E muito gentil, Kiku-san disse a velha -, e muito
previdente. Não, deixe-o em paz.
- Muito bem. Por favor, desculpe por perturbá-la assim,
mas achei que era melhor perguntar. Midori-san, espero que a
viagem não tenha sido muito má.
- É lamentável, mas foi horrível - disse Midori. - Estou
contente de estar de volta e odiei estar longe. Meu marido está
bem?
- Sim, muito bem. Riu muito esta noite e pareceu estar
feliz. Comeu e bebeu frugalmente e está dormindo sonoramente.
155

- A Ama-san estava começando a me contar algumas das
coisas terríveis que aconteceram enquanto estive fora e...
- Você não devia ter ido. Era necessária aqui - interrompeu a velha, com rancor na voz. - Ou talvez não. Talvez devesse
ter ficado longe definitivamente. Talvez você tenha trazido um
mau kami para a nossa casa junto com a sua roupa de cama.
- Eu nunca faria isso, Ama-san - disse Midori pacientemente. - Por favor, acredite que eu preferiria me matar a trazer
a mais leve mácula ao seu bom nome. Por favor, perdoe-me por
ter estado ausente e pelos meus erros. Sinto muito.
- Desde que aquele navio diabólico chegou aqui so tivemos
problemas. Isso é mau karni. Muito mau. E onde você estava
quando foi necessária? Tagarelando em Mishima, enchendo a
barriga e bebendo saque.
- Meu pai morreu, Ama-san. Um dia antes de eu chegar.
- Hum, você não teve nem a cortesia ou a previdência
de estar junto do leito de morte de seu pai. Quanto mais depressa
você deixar nossa casa permanentemente, melhor para todos nós.
Quero chá. Temos uma hóspede aqui e você nem se lembrou o
suficiente da sua educação para oferecer-lhe um refrigério!
- Foi pedido, imediatamente, no momento em que ela.. .
- Não chegou imediatamente!
A shoji se abriu. Uma empregada, nervosa, trouxe chá e
alguns doces. Primeiro Midori serviu a velha, que imprecou asperamente contra a criada e deu uma dentada sem dentes num
doce, sorvendo ruidosamente a sua bebida. - Deve desculpar a
criada, Kiku-san - disse. - O chá está sem gosto. Sem gosto!
E escaldante. Suponho que só se pode esperar que isso aconteça
nesta casa.
- Tome, por favor, fique com o meu. - Midori soprou
gentilmente sobre o chá para esfriá-lo.
A velha pegou-o com má vontade. - Por que nao ser correto
da primeira vez? - Mergulhou num silêncio mal-humorado.
- O que pensa de tudo isso? - perguntou Midori a Kiku.
- O navio, Yabu-sarna e Toda Hiro-matsu-sama?
- Não sei o que pensar. Quanto aos bárbaros, quem sabe?
Certamente são uma extraordinária coleção de homens. E o grande daimio, Punho de Aço? É muito curioso que tenha chegado
quase ao mesmo tempo que o Senhor Yabu, neh? Bem, a senhora
deve me desculpar, não, por favor, preciso ir embora.
- Oh, não, Kiku-san, não quero nem ouvir falar nisso.
156
- Aí está, Midori-san - interrompeu a velha com impaciência. - Nossa hóspede está desconfortável e o chá, terrível.
- Oh, o chá é suficiente para mim, Ama-san, realmente.
Não, se me desculparem, estou um pouco cansada. Talvez antes
de partir, amanhã, eu possa ser autorizada a vir vê-las. É sempre
um imenso prazer conversar com as senhoras.
A velha permitiu-se ser bajulada e Kiku seguiu Midori à
varanda e ao jardim.
- Kiku-san, você é tão atenciosa - disse Midori, segurandolhe o braço, aquecida pela beleza dela. - Foi muito gentil de
sua parte, obrigada.
Kiku deu uma olhada para trás, para a casa, e arrepiou-se:
- Ela é sempre assim?
- Hoje foi cortês, comparada a algumas vezes. Se não fosse
por Omi e por meu filho, juro que lhe sacudiria o pó de sob
meus pés, rasparia a cabeça e me tornaria monja. Mas tenho Omi
e o meu filho, e isso compensa tudo. Só agradeço a todos os
kamis por isso. Felizmente Ama-san prefere Yedo e não consegue
ficar muito tempo longe de lá. - Midori sorriu tristemente. -
A gente se treina para não ouvir, você sabe como é. - Suspirou,
muito bonita ao luar. - Mas isso não tem importância. Conte-me
o que aconteceu desde que parti.
Fora por isso que Kiku viera à casa com tanta urgência,
pois obviamente nem a mãe nem a esposa gostariam que o sono
de Omi fosse perturbado. Viera para contar tudo à adorável
Senhora Midori, de modo que ela pudesse ajudar a proteger
Kasigi Omi, assim como ela mesma tentaria fazê-lo. Contou-lhe
tudo o que sabia, exceto o que acontecera no quarto com Yabu.
Acrescentou os rumores que ouvira e as histórias que as outras
garotas lhe haviam passado ou inventado. E tudo o que Omi lhe
dissera - suas esperanças e temores e planos -, tudo sobre ele,
exceto o que acontecera no quarto naquela noite. Sabia que isso
não era importante para a esposa.
- Tenho medo, Kiku-san, medo pelo meu marido.
- Tudo o que ele aconselhou foi sábio, senhora. Acho que
tudo o que fez foi correto. O Senhor Yabu não recompensa
ninguém levianamente e três mil kokus é um aumento respeitável.
- Mas o navio é do Senhor Toranaga agora, e todo aquele
dinheiro.
- Sim, mas Yabu-sama oferecer o navio como presente foi
uma idéia de gênio. Omi-san deu a idéia a Yabu, e certamente
isso em si já é pagamento suficiente, neh? Omi-san deve ser reco157

nhecido como um vassalo proeminente. - Kiku torceu a verdade
só um pouquinho, sabendo que Omi estava em grande perigo, e
toda a sua casa. O que tem que ser será, lembrou a si mesma.
Mas não há mal em desanuviar o rosto de uma bela mulher.
- Sim, posso ver isso - disse Midori. Faça que isso seja
verdade, rezou. Por favor, faça que isso seja verdade. Abraçou a
garota, os olhos cheios de lágrimas. - Obrigada. Você é muito
gentil, Kiku-san, muito gentil. - Ela tinha dezessete anos.
CAPÍTULO 8
- O que acha, Inglês?
- Acho que vai haver uma tempestade.
- Quando?
- Antes do pôr-do-sol.
Era quase meio-dia e os dois estavam em pé no tombadilho
da galera, sob um céu de chumbo. Era o segundo dia ao mar.
- Se este navio fosse seu, o que você faria?
- A que distância estamos do nosso ponto de chegada? perguntou Blackthorne.
- Chegaremos depois do pôr-do-sol.
- A que distância estamos da terra mais próxima?
- Quatro ou cinco horas, Inglês. Mas correr para um abrigo
vai nos custar meio dia e não posso me permitir isso. O que você
faria?
Blackthorne pensou um instante. Durante a primeira noite a
galera rumara velozmente para o sul, seguindo a costa leste da
península de Izu, ajudada pela grande vela do mastro no meio do
navio. Quando passaram diante do cabo mais ao sul, cabo Ito,
Rodrigues estabelecera a rota oeste-sul-oeste, e trocara a segurança
da costa por mar aberto, rumando para o cabo Shinto, a duzentas
milhas.
- Normalmente numa galera como esta acompanhamos a
costa, por segurança - dissera Rodrigues -, mas isso toma tempo demais e o tempo é importante. Toranaga me pediu que levasse
Toady a Anjiro e voltasse. Rapidamente. Há um prêmio para mim
se formos bem rápidos. Um dos pilotos deles seria exatamente tão
bom quanto eu num trajeto curto como este, mas o pobre filho
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de uma puta morreria de medo de levar um daimio tão importante
quanto o Toady, particularmente longe da vista de terra. Eles não
são de oceano, os japoneses. Ótimos piratas, lutadores e marinheiros costeiros. Mas o mar alto os assusta. O velho táicum até
fez uma lei dizendo que os poucos navios oceânicos japoneses viajem sempre com pilotos portugueses a bordo. Essa lei ainda está
em vigor.
- Por que ele fez isso?
Rodrigues dera de ombros. - Talvez alguém lhe tenha sugerido.
- Quem?
- O seu portulano roubado, Inglês, o português. De quem
era?
- Não sei. Não havia nome nele, nenhuma assinatura.
- Onde o conseguiu?
- Do mercador-chefe da Companhia Holandesa das índias
Orientais.
- De onde ele conseguiu?
Blackthorne sacudira os ombros.
A risada de Rodrigues não continha humor. - Bem, nunca
esperei que você me dissesse, mas seja quem for que o tenha roubado e vendido, espero que queime no fogo do inferno para
sempre!
- Você é empregado desse Toranaga, Rodrigues?
- Não. Estávamos só visitando Osaka, o meu capitão e eu.
Isto foi só um favor para Toranaga. Meu capitão me ofereceu
voluntariamente. Sou piloto do... - Rodrigues se detivera. -
Sempre esqueço que você é inimigo, Inglês.
- Portugal e Inglaterra foram aliados durante séculos.
- Mas agora não somos. Vá lá para baixo, Inglês. Você está
cansado, eu também, e homens cansados cometem erros. Volte
para o convés quando estiver descansado.
Blackthorne descera para a cabina do piloto e se deitara no
beliche. O portulano de Rodrigues para a viagem encontrava-se
sobre a arca que estava presa ao tabique do mesmo modo que a
cadeira do piloto no tombadilho. O livro tinha capa de couro e
era muito usado, mas Blackthorne não o abriu.
- Por que deixá-lo aí? - havia perguntado antes.
- Se não deixar, você vai procurá-lo. Mas estando aí você
não o tocará, nem o olhará, sem ser convidado. Você é um piloto, não um mercador ou soldado corrupto e ladrão.
- Vou lê-lo. Você faria isso.
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- Não sem ser convidado, Inglês. Nenhum piloto faria isso.
Nem eu faria!
Blackthorne olhara o livro um instante, depois fechara os
olhos. Dormiu profundamente, aquele dia todo e parte da noite.
Faltava pouco para o amanhecer quando despertou, como sempre.
Levou tempo para se acostumar ao movimento desajeitado da
galera e à batida do tambor que mantinha os remos movendo-se
como um só. Estava confortavelmente deitado de costas, os braços sob a cabeça. Pensou no seu navio e afastou a preocupação
quanto ao que aconteceria quando chegassem a Osaka. Uma coisa
de cada vez. Pense em Felicity, em Tudor, no lar. Não, agora não.
Pense que se os outros portugueses são como Rodrigues, você tem
uma boa chance agora. Vai pegar um navio de volta para casa.
Pilotos não são inimigos, e dane-se o resto! Mas você não pode
dizer isso, mocinho. Você é inglês, o herege odiado e anticristo.
Os católicos são os donos deste mundo. Eram os donos. Agora,
nós e os holandeses vamos esmagá-los.
Que absurdo tudo isso! Católicos, protestantes, calvinistas,
luteranos e todas as outras merdas iguais. Você devia ter nascido
católico. Foi só o destino que levou seu pai para a Holanda, onde
conheceu uma mulher, Anneke van Croste, que se tornou mulher
dele, e onde viu católicos espanhóis, padres espanhóis e a Inquisição pela primeira vez. Ainda bem que ele abriu os olhos, pensou
Blackthorne. Ainda bem que os meus estão abertos.
Depois foi para o convés. Rodrigues estava sentado na sua
cadeira, os olhos estriados de vermelho pela falta de sono, dois
marujos japoneses ao leme como antes.
- Posso pegar este turno para você?
- Como se sente, Inglês?
- Descansado. Posso pegar o turno para você? - Blackthorne viu Rodrigues medindo-o. - Eu o acordo se o vento mudar, ou outra coisa acontecer.
- Obrigado, Inglês. Sim, vou dormir um pouco. Mantenha
esta rota. Quando virar a ampulheta, vá quatro graus mais para
oeste, na virada seguinte, mais seis, sempre para oeste. Terá que
apontar a nova rota na bússola para o timoneiro. Wakarimasu ka?
- Hai! - Blackthorne riu. - Quatro pontos para oeste.
Desça, piloto, o seu beliche é confortável.
Mas Vasco Rodrigues não desceu. Simplesmente puxou a sua
capa mais para junto do corpo e instalou-se mais profundamente
na cadeira do convés. Pouco antes da virada da ampulheta, despertou momentaneamente, examinou a mudança de rota sem se
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mover e imediatamente caiu no sono de novo. Uma hora, quando
o vento virou, ele despertou e, vendo que não havia perigo, novamente adormeceu.
Hiro-matsu e Yabu vieram ao convés durante a manhã.
Backthorne notou a surpresa deles ao vê-lo pilotando o navio e
Rodrigues dormindo. Não falaram com ele, mas voltaram à conversa que estavam tendo e, mais tarde, desceram novamente.
Por volta do meio-dia Rodrigues se levantou da cadeira de
convés para olhar na direção nordeste, farejando o vento, todos
os sentidos concentrados. Os dois homens estudaram o mar, o céu
e as nuvens invasoras.
- O que você faria, Inglês, se este fosse o seu navio? -
disse Rodrigues novamente.
- Eu escaparia para a costa se soubesse onde ela está, para
o ponto mais próximo. Esta nave não vai agüentar muita água e
há uma tempestade bem ali. A umas quatro horas daqui.
- Não pode ser tai-fim - resmungou Rodrigues.
- O quê?
- Tai-fim. São imensos vendavais, as piores tempestades que
você jamais viu. Mas não estamos na época de tai-fim.
- Quando é a época?
- Não é agora, inimigo. - Rodrigues riu. - Não, não
agora. Mas isso poderia ser mau o bastante, de modo que vou
aceitar o seu conselho. Mude a rota para norte.
Enquanto Blackthorne mostrava o novo curso e o timoneiro
virava o navio com destreza, Rodrigues foi até a amurada e gritou
para o capitão: - Isogi! Capitão-san. Wakarimasu ka?
- Isogi, hai!
- O que é isso? Apresse-se?
Os cantos dos olhos de Rodrigues se enrugaram, risonhos.
- Não faz mal que você saiba um pouco de japonês, hein? Claro,
Inglês, "isogi" quer dizer "apressar-se". Tudo de que você precisa aqui são umas dez palavras e então você pode fazer esses
sodomitas cagarem se quiser. Se forem as palavras certas, é claro,
e se eles estiverem com disposição. Vou descer agora, para comer
alguma coisa.
- Você também cozinha?
- No Japão, todo homem civilizado tem que cozinhar, ou
tem que treinar pessoalmente um dos macacos para cozinhar,
senão morre de fome. Tudo o que comem é peixe cru e verduras
cruas num vinagre doce de conserva. Mas a vida aqui pode ser
incrível se você souber como.
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- "Incrível" é bom ou mau?
- Na maioria das vezes é muito bom, mas às vezes é terrivelmente mau. Tudo depende de como a gente se sente, e você
faz perguntas demais.
Rodrigues foi lá para baixo. Trancou a porta de sua cabina
o cuidadosamente examinou o fecho da sua arca. O fio de cabelo
que colocara sutilmente continuava lá. E um fio semelhante, igualmente invisível para qualquer um menos para ele, que colocara
na capa do portulano, também permanecia intacto.
Não se pode ser cuidadoso demais neste mundo, pensou Rodrigues. Será que há algum perigo em que ele saiba que você é
o piloto da Nao del Trato, o grande Navio Negro que vem de
Macau este ano? Talvez. Porque então você teria que explicar que
o navio é um leviatã, um dos maiores e mais ricos navios do mundo, mais de mil e seiscentas toneladas. Você poderia se sentir tentado a falar-lhe sobre a carga, sobre comércio e sobre Macau, e
todo tipo de coisas esclarecedoras que são muitíssimo particulares e
muitíssimo secretas. Mas estamos em guerra, nós contra os ingleses
o holandeses.
Abriu o fecho bem oleado e tirou seu portulano particular
para verificar algumas posições para a enseada mais próxima e
seus olhos viram o pacote lacrado que o Padre Sebastio lhe dera
pouco antes de deixarem Anjiro.
Será que isso contém os portulanos do inglês? - perguntou
a si mesmo novamente.
Sopesou o pacote e olhou os lacres jesuítas, altamente tentado a rompê-los. Blackthorne lhe contara que a esquadra holandesa viera pelo estreito de Magalhães e pouca coisa mais. O inglês
faz muitas perguntas e não fala nada voluntariamente, pensou
Rodrigues. É astuto, inteligente e perigoso.
Será que isto são os portulanos dele ou não? Se forem, que
serventia têm para os santos padres?
Estremeceu ao pensar em jesuítas, franciscanos, dominicanos,
em todos os monges e padres e na Inquisição. Há padres bons e
maus, na maior parte maus, mas ainda assim sãb padres. A Igreja
tem que ter padres, e sem eles para interceder por nós somos
ovelhas perdidas neste mundo satânico. Oh, Nossa Senhora, proteja-me do mal e dos maus padres!
Ainda na enseada de Anjiro, Rodrigues estava na sua cabina
com Blackthorne, quando a porta se abrira e o Padre Sebastio
entrara sem ser convidado. Os dois tinham comido e bebido, e as
sobras ainda se encontravam nas tigelas de madeira.
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- Você reparte o pão com hereges? - perguntara o padre.
_ É perigoso comer com eles. São infectos. Ele lhe disse que é
pirata?
- É cristão ser cavalheiro com os inimigos, padre. Quando
estive nas mãos deles, foram justos comigo. Só estou retribuindo
a caridade deles. - Havia se ajoelhado e beijado a cruz do padre.
Depois se levantara e, oferecendo vinho, dissera: - Em que posso
ajudá-lo?
- Quero ir para Osaka. No navio.
- Vou perguntar a eles imediatamente. - Saíra, perguntara
ao capitão, e a solicitação subira gradualmente até Toda Hiromatsu, que respondera que Toranaga não dissera nada sobre levar
um padre estrangeiro de Anjiro, de modo que lamentava não
poder levar o padre estrangeiro de Anjiro.
O Padre Sebastio quisera conversar em particular com ele,
então mandara o inglês para o convés e depois, na intimidade da
cabina, o padre lhe exibira o pacote lacrado.
- Gostaria que entregasse isto ao padre-lnspetor.
- Não sei se Sua Eminência ainda estará em Osaka quando
eu chegar lá. - Rodrigues não gostava de ser portador de segredos jesuítas. - Talvez eu tenha que voltar para Nagasaki. Meu
capitão-mor pode ter me deixado ordens.
- Então entregue ao Padre Alvito. Certifique-se de que vai
entregar isto apenas nas mãos dele.
- Muito bem - dissera ele.
- Quando foi que se confessou pela última vez, meu filho?
-- No domingo, padre.
- Gostaria de se confessar agora?
- Sim, obrigado. - Ficara agradecido de que o padre lhe
perguntasse, pois nunca se sabia quando é que a vida da gente
dependia do mar, e depois da confissão se sentira muito melhor,
como sempre.
Agora na cabina, Rodrigues recolocou o pacote no lugar,
enormemente tentado. Por que o Padre Alvito? O Padre Martim
Alvito era o principal negociador comercial e fora intérprete pessoal do táicum durante muitos anos e, por isso, íntimo da maioria
dos daimios influentes. O Padre Alvito se alternava entre Nagasaki
e Osaka e era um dos pouquíssimos homens, e o único europeu,
que tivera acesso ao táicum a qualquer momento - um homem
enormemente inteligente, que falava um japonês perfeito e conhecia mais sobre eles e seu modo de vida do que qualquer outro
homem na Ásia. Agora era o mediador português mais influente
163

junto ao conselho de regentes, junto a Ishido e Toranaga em particular.
Só os jesuítas para colocar um de seus homens numa posição
vital assim, pensou Rodrigues com admiração. Certamente não
fosse pela Companhia de Jesus a torrente da heresia nunca teria
parado, Portugal e Espanha poderiam ter-se tornado protestantes
e teríamos perdido nossa alma imortal para sempre. Minha Nossa
Senhora!
- Por que você pensa em padres o tempo todo? - perguntou Rodrigues a si mesmo em voz alta. - Sabe que isso o deixa
nervoso! - Sim. Mas ainda assim, por que o Padre Alvito? Se
o pacote contém os portulanos, destina-se a um dos daimios cristãos, a Ishido, a Toranaga? Ou simplesmente a Sua Eminência, o
padre-lnspetor? Ou ao meu capitão-mor? Ou os portulanos serão
enviados a Roma, para os espanhóis? Por que o Padre Alvito?
O Padre Sebastio poderia facilmente ter dito que o entregasse a
qualquer um dos outros jesuítas.
E por que Toranaga quer o inglês?
No meu coração sei que devo matar Blackthorne. É o inimigo, é um herege. Mas há alguma coisa mais. Tenho a sensação de
que esse inglês é um perigo para todos nós. Por que devo pensar
isso? É um piloto, um ótimo piloto. Forte, inteligente. UM bom
homem. Não há nada com que se preocupar. Então por que estou
com medo? Gosto muito dele, mas sinto que deveria matá-lo rapidamente, e quanto mais depressa melhor. Não por raiva. Só para
nos proteger. Por quê? Tenho medo dele.
O que fazer? Deixá-lo nas mãos de Deus? A tempestade está
se aproximando e vai ser péssima.
- Deus me amaldiçoe e à minha falta de miolos! Por que
não tenho mais facilidade em saber o que fazer?
A tempestade chegou antes do pôr-do-sol e reteve-os em mar
alto. A terra estava a dez milhas de distância. A baía para onde
se precipitavam ficava em frente e era abrigo suficiente. Não havia
bancos de areia ou recifes entre os quais navegar, mas dez milhas
eram dez milhas e o mar estava se avolumando rapidamente, impelido pelo vento saturado de chuva.
A ventania soprava de nordeste, atingindo-os a estibordo, e
mudava perversamente de direção, quando rajadas se lançavam
em torvelinho de leste e de norte, desordenadamente, o mar bravíssimo. A rota era noroeste, de modo que estavam bem em meio
164
às vagas, balançando furiosamente, ora na depressão entre duas
ondas, ora na crista. A galera era de estrutura rasa e fora
construída para velocidade e águas calmas, e embora os remadores
fossem resolutos e muito disciplinados, era difícil manter os remos
no mar e o impulso regular.
- Você terá que fixar- os remos e correr com o vento -
gritou Blackthorne.
- Talvez, mas ainda não! Onde estão os seus cojones, Inglês?
- Estão onde devem estar, por Deus, e onde quero que
fiquem!
Os dois homens sabiam que se virassem contra o vento nunca
poderiam avançar contra a tempestade, de modo que a maré e o
vento os levariam para longe do refúgio e para alto-mar. Se corressem com o vento, a maré e o vento os levariam para longe do
refúgio e para alto-mar igualmente, só que mais depressa. Ao sul
ficava a Grande Fossa. Não havia terra ao sul por mil milhas,
ou, se não se tivesse sorte, por mil léguas.
Estavam presos a cordas amarradas à bitácula e satisfeitos de
si quando o convés arfou e jogou. Os dois se agarraram às amuradas e montaram nelas.
Até o momento, a água ainda não chegara a bordo. O navio
estava pesadamente carregado e afundava mais na água do que
qualquer um dos dois gostaria. Rodrigues se preparara adequadamente nas horas de espera. Fora tudo fixado com sarrafos, os
homens prevenidos. Hiro-matsu e Yabu disseram que ficariam
embaixo por um tempo, mas depois vieram para o convés. Rodrigues dera de ombros e lhes dissera claramente que seria muito
perigoso. Tinha certeza de que não compreenderam.
- O que é que eles vão fazer? - perguntara Blackthorne.
- Quem é que sabe, Inglês? Mas não vão chorar de medo,
pode ter certeza.
No poço do convés principal, os remadores davam duro. Normalmente haveria dois homens em cada remo, mas Rodrigues
ordenara três, por uma questão de força, segurança e velocidade.
Havia outros esperando sob os conveses para render esses remadores quando ele desse ordem. Na coberta de proa o capitão mestre dos remos era experimentado e sua batida era lenta, sincronizada com as ondas. A galera continuava avançando, embora a
cada momento a batida parecesse mais pronunciada e o restabelecimento da normalidade mais lento. Depois as rajadas se tornaram
intermitentes e fizeram o mestre dos remos perder o ritmo.
- Atenção à frente! - gritaram Blackthorne e Rodrigues
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quase no mesmo fôlego. A galera jogou com violência, vinte remos
impeliram o ar em vez de o mar e foi o caos a bordo. O primeiro
vagalhão abalroara o navio e a amurada de bombordo fora arrastada pela água.
- Vá lá para a frente! - ordenou Rodrigues. - Faça-os
armar os remos a meia altura de cada lado! Minha Nossa Senhora,
depressa, depressa!
Blackthorne sabia que sem a corda salva-vidas poderia facilmente ser lançado ao mar. Mas os remos tinham que ser armados
ou estariam todos perdidos.
Soltou o nó e investiu com dificuldade pelo convés escorregadio e nauseante, descendo a escadinha para o convés principal.
Abruptamente a galera deu uma guinada e ele foi arrastado para
baixo, suas pernas levadas por alguns remadores que também
haviam soltado as cordas de segurança para tentar, arduamente,
controlar os remos. A amurada estava sob água e um homem foi
lançado ao mar. Blackthorne deixou-se ir também. Sua mão agarrou a amurada, seus tendões se estiraram, mas ele agüentou; depois
a outra mão alcançou a borda e, sufocando, ele forçou o corpo
para trás. Seus pés encontraram o convés e ele se sacudiu, agradecendo a Deus, e pensando: lá se foi a sua sétima vida. Alban
Caradoc sempre dissera que um bom piloto tinha que ser como
um gato, exceto que tinha que ter no mínimo dez vidas, enquanto
um gato se satisfazia com nove.
Um homem estava a seus pés e ele o arrancou ao repuxo do
mar, segurou-o até que estivesse a salvo, depois ajudou-o a voltar
a seu lugar. Olhou para trás para amaldiçoar Rodrigues por deixar
o timão escapar-lhe das mãos. Rodrigues acenou, apontou e gritou, o grito engolido por uma lufada. Blackthorne viu que a rota
havia mudado. Agora estavam quase contra o vento, e percebeu
que a guinada fora planejada. É prudente, pensou. Isso nos dará
um intervalo para nos organizarmos, mas o bastardo poderia terme prevenido. Não gosto de perder vidas desnecessariamente.
Respondeu ao aceno e se lançou ao trabalho de recompor os
remadores. A voga se interrompera totalmente, exceto pelos dois
remos mais à frente, que os mantinham contra o vento. Com
sinais e berros, Blackthorne conseguiu que armassem os remos,
dobrou os homens que estavam trabalhando, e foi novamente para
a popa. Os homens eram estóicos e embora alguns estivessem
muito enjoados ficaram e esperaram pela ordem seguinte.
A baía estava mais próxima, mas ainda parecia a um milhão
de léguas de distância. Para nordeste o céu estava escuro. A chuva
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açoitava-os e as rajadas de vento se tornavam mais fortes. No
Erasmus Blackthorne não se teria preocupado. Poderiam ter atingido a enseada com facilidade ou poderiam ter voltado despreocupadamente para a rota real, avançando para o seu ponto de
chegada correto. Seu navio fora construido e mastreado para enfrentar o vento. Esta galera não.
- O que acha, Inglês?
- Faça o que quiser, não importa o que eu pense - gritou
ele contra o vento. - Mas o navio não vai agüentar muita água
e iremos para o fundo como uma pedra, e na próxima vez que
eu for até a proa, avise-me que está pondo o navio contra o vento.
Melhor ainda: ponha-o a barlavento enquanto eu estiver com a
minha corda e então nós dois chegaremos a porto seguro.
- Foi a mão de Deus, Inglês. Uma onda lhe deu um empurrão na traseira e fê-lo girar.
- Isso quase me atirou ao mar.
- Eu vi.
Blackthorne estava medindo o desvio. - Se permanecermos
neste curso, nunca chegaremos à baía. Passaremos velozmente pelo
promontório a uma milha ou mais.
- Vou ficar contra o vento. Depois, quando o tempo estiver
adequado, vamos nos arremessar para a praia. Sabe nadar?
- Sim.
- Bom. Eu nunca aprendi. Perigoso demais. Melhor afundar
rapidamente do que aos poucos, hein? - Rodrigues estremeceu
involuntariamente. - Bendita Nossa Senhora, proteja-me de um
túmulo de água! Esta porca barriguda e prostituta deste navio vai
chegar à enseada esta noite! Tem que chegar. Meu nariz diz que
se virarmos e corrermos, vamos nos atrapalhar. Estamos carregados demais.
- Alivie a carga. Atire-a ao mar.
- O Rei Toady nunca concordaria. Tem que chegar com ela,
senão não faz diferença que chegue.
- Perguntê-lhe.
- Nossa Senhora, você é surdo? Eu lhe disse! Sei que ele
não concordará! - Rodrigues aproximou-se mais do timoneiro e
certificou-se de que ele compreendera que devia manter-se contra
o vento de qualquer jeito.
- Vigie-os, Inglês! Você está com o comando. - Desamarrou a sua corda e desceu a escadinha pisando firme. Os remadores olharam-no atentamente enquanto ele se dirigia ao capitão-san
no convés de popa para explicar por meio de sinais e com palavras
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o plano que tinha em mente. Hiro-matsu e Yabu vieram ao convés. O capitão-san explicou-lhes o plano. Estavam ambos pálidos,
mas permaneciam impassíveis e não haviam vomitado. Olharam
na direção da terra, através da chuva, sacudiram os ombros e
foram para baixo novamente.
Blackthorne contemplava a baía a bombordo. Sabia que o
plano era perigoso. Teriam que esperar até passar pelo promontório, depois teriam que se pôr a sotavento, virar para noroeste
novamente e lutar pela vida. A vela não os ajudaria. Teria que
ser a força deles somente. O lado meridional da baía era todo denteado de rochedos e recifes. Se eles calculassem mal o tempo,
seriam atirados contra a praia ali e destroçados.
- Inglês, ponha-se à proa!
O português estava fazendo-lhe sinais. Postou-se na proa.
- E quanto à vela? - gritou Rodrigues.
- Não. Vai prejudicar mais do que ajudar.
- Fique aqui, então. Se a batida do capitão enfraquecer, ou
se o perdermos, você toma o lugar dele. Está certo?
- Nunca manobrei um destes antes, nunca controlei remos.
Mas tentarei.
Rodrigues olhou em direção à terra. O promontório aparecia
e desaparecia na chuva impulsora. Logo teria que investir. Os vagalhões estavam crescendo e já havia jatos de espuma desprendendo-se das cristas. A corrida entre os promontórios parecia
péssima. Esta vai ser imunda, pensou ele. Depois cuspiu e decidiu-se.
- Vá para a popa, Inglês. Pegue o leme. Quando eu fizer
sinal, vá oeste-norte-oeste para aquele ponto. Está vendo?
- Sim.
- Não hesite e mantenha esse curso. Observe-me com atenção. Este sinal significa virar a bombordo, este para trás, este
mantenha o passo.
- Muito bem.
- Pela Virgem, você vai esperar as minhas ordens e obedecer a elas?
- Quer que eu pegue o leme ou não?
Rodrigues sabia que estava numa armadilha. - Tenho que
confiar em você, Inglês, e detesto isso. Vá para a popa. - Viu
Blackthorne ler o que ele tinha por trás dos olhos e se afastar.
Depois mudou de idéia e chamou por ele: - Ei, seu pirata arrogante! Vá com Deus!
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Blackthorne voltou-se, agradecido: - Você também, espanhol!
- Mijo em todos os espanhóis e longa vida para Portugal!
- Mantenha o passo!
Atingiram a enseada, mas sem Rodrigues. Foi atirado ao mar
quando a sua corda se partiu.
O navio estava prestes a se pôr em segurança, quando o vagalhão veio de norte e, embora tivessem agüentado muita água
até então, inclusive perdendo o capitão japonês, agora foram inundados e impelidos para trás, na direção da praia infestada de rochedos.
Blackthorne viu quando Rodrigues se foi e ficou a olhá-lo,
ofegando, e debatendo-se no mar encrespado. A tempestade e a
maré haviam-nos levado bem longe para o lado sul da baía e estavam quase sobre os rochedos, todos a bordo sabendo que o navio
estava perdido.
Quando Rodrigues foi varrido para o lado, Blackthorne atirou-lhe um salva-vidas de madeira. O português debateu-se na
direção do salva-vidas mas o mar arrastou-o para fora do seu
alcance. Um remo espatifou-se contra ele, que o agarrou. A chuva
golpeava com violência e a última coisa que Blackthorne viu de
Rodrigues foi um braço e o remo quebrado e, bem à frente, a
rebentação enfurecida contra a praia atormentada. Poderia ter
mergulhado, nadado até ele e sobrevivido, talvez, havia tempo,
talvez, mas seu primeiro e último dever era para com o navio e
seu navio estava em perigo.
Então, deu as costas a Rodrigues.
O vagalhão levara alguns remadores consigo e outros estavam
lutando para preencher os lugares vazios. Um imediato havia bravamente desatado a corda de segurança. Saltou para a coberta de
proa, se amarrou e reiniciou a batida. O líder do cantochão também recomeçou, os remadores tentaram impor ordem ao caos.
- Isogiiiiiiii! - gritou Blackthorne, lembrando-se da palavra. Atirou seu peso sobre o leme para ajudar a pôr a proa mais
contra o vento, depois foi para a amurada e bateu o tempo, gritando um-dois-um-dois e tentando encorajar a tripulação.
- Vamos, seus bastardos, puuuuuuuuuxem!
A galera estava sobre os rochedos, pelo menos os rochedos
estavam bem junto à popa, a bombordo e a estibordo. Os remos
afundavam e puxavam, mas o navio continuava não fazendo caminho,
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o vento e a maré venciam, arrastando-o sensivelmente
para trás.
- Vamos, puxem, seus bastardos! - gritou novamente
Blackthorne, a mão batendo a cadência.
Os remadores extraíram forças dele.
Primeiro agüentaram a parada com o mar. Depois conquistaram-no.
O navio afastou-se dos rochedos. Blackthorne manteve o
curso para a praia a sotavento. Pouco depois encontravam-se em
águas mais calmas. O vendaval continuava, mas bem acima deles.
A tempestade continuava, mas longe, em alto-mar.
- Lancem a âncora de estibordo!
Ninguém compreendeu as palavras, mas todos os marujos
sabiam o que ele queria. Correram para cumprir a ordem. A
âncora desceu com estrépito. Ele deixou o navio adernar levemente para testar a firmeza do leito marítimo, e o imediato e os remadores compreenderam a manobra.
- Lancem a âncora de bombordo!
Quando o navio ficou em segurança, ele olhou em direção
à popa.
A linha da praia mal podia ser vista através da chuva. Ele
avaliou o mar e considerou as possibilidades.
O portulano português está lá embaixo, pensou, extenuado.
Posso pilotar o navio até Osaka. Poderia pilotá-lo de volta a
Anjiro. Mas você agiu corretamente desobedecendo a ele? Não
desobedeci a Rodrigues. Eu estava no tombadilho. Sozinho.
- Vire para sul - gritara Rodrigues quando o vento e a
maré os lançaram perigosamente perto das rochas. - Vire e corra
com o vento!
- Não! - gritara ele de volta, acreditando que a única
chance que tinham era tentar atingir a enseada e que em mar
aberto estariam perdidos. A gente consegue!
- Deus o amaldiçoe, vai matar a todos nós!
Mas não matei ninguém, pensou Blackthorne. Rodrigues,
você sabia e eu sabia que a responsabilidade de decidir era minha
- se houvesse tempo para uma decisão. Eu estava certo. O navio
está salvo. Nada mais importa.
Acenou para o imediato, que veio correndo da coberta de
proa. Os dois timoneiros estavam prostrados, braços e pernas quase
arrancados das juntas. Os remadores pareciam cadáveres, caídos
sobre os remos. Outros, igualmente enfraquecidos, vieram lá de
170
baixo para ajudar. Hiro-matsu e Yabu, ambos muito abalados,
foram ajudados a subir ao convés, mas uma vez chegados lá, mantiveram-se ambos eretos.
- Hai, Anjin-san? - perguntou o imediato. Era um homem
de meia-ldade, com os dentes brancos e fortes e um rosto largo e
castigado pelo tempo. Tinha uma contusão lívida marcando-lhe
a face no ponto onde o mar o havia martelado contra a amurada.
- Você agiu muito bem - disse Blackthorne, não se importando com o fato de que suas palavras não seriam compreendidas. Sabia que o tom seria claro, assim como o seu sorriso.
- Sim, muito bem. Você é capitão-san agora. Wakarimasu? Você!
Capitão-san!
O homem arregalou os olhos para ele, boquiaberto, depois
curvou-se para dissimular tanto a surpresa quanto o prazer. -
Wakarimasu, Anjin-san. Hai. Arigato goziemashita.
- Ouça, capitão-san - disse Blackthorne -, dê comida e
bebida aos homens. Comida quente. Vamos passar a noite aqui.
- Por meio de sinais, fê-lo compreender.
Imediatamente o novo capitão se virou e gritou com nova
autoridade. Imediatamente os marujos correram para obedecerlhe. Muito orgulhoso, o novo capitão olhou para o tombadilho.
Gostaria de poder falar a sua língua bárbara, pensou, feliz. Então
poderia agradecer-lhe, Anjin-san, por ter salvado o navio e a vida
do nosso Senhor Hiro-matsu. A sua mágica deu-nos novas forças.
Sem ela não teríamos escapado. Você talvez seja pirata, mas é um
grande marujo, e enquanto for o piloto eu lhe obedecerei com a
minha vida. Não sou digno de ser capitão, mas tentarei merecer
a sua confiança. - O que quer que eu faça em seguida? - perguntou.
Blackthorne estava olhando por cima do costado. O leito marítimo estava turvo. Mentalmente tomou algumas posições e quando teve certeza de que as âncoras não haviam se soltado e o mar
era seguro, disse: - Desça o esquife. E arrume um bom remador.
Novamente com sinais e palavras, Blackthorne fê-lo compreender. O esquife foi descido e tripulado imediatamente.
Blackthorne dirigiu-se para a amurada e teria descido pelo
costado se uma voz áspera não o detivesse. Olhou em torno. Hiromatsu estava ali, com Yabu ao lado.
O velho estava muito contundido em torno do pescoço e nos
ombros, mas ainda segurava a espada comprida. Yabu punha sangue pelo nariz, tinha o rosto machucado, o quimono manchado,
171

e tentava estancar o fluxo com um pedacinho de pano. Estavam
ambos impassíveis, aparentemente inconscientes dos próprios ferimentos e do vento frio.
Blackthorne curvou-se polidamente. - Hai, Toda-sama?
As palavras ásperas se repetiram, o velho apontou com a
espada para o esquife e balançou a cabeça.
- Rodrigu-san lá! Blackthorne apontou para a praia ao
sul como resposta. - Vou olhar!
- Iyé! - Hiro-matsu meneou a cabeça de novo e falou,
visivelmente recusando a sua permissão por causa do perigo.
- Sou Anjin-san deste puto deste navio e se quero ir até a
praia, vou até a praia. - Blackthorne manteve a voz muito polida, mas forte, e era igualmente óbvio o que queria dizer. - Sei
que esse esquife não vai agüentar nesse mar. Hai! Mas vou até a
praia naquele ponto. Está vendo aquele ponto, Hiro-matsu-sama?
Ao lado daquela pequena rocha. Vou começar a contornar o promontório ali. Não tenho pressa de morrer e não tenho lugar algum
para onde fugir. Quero recuperar o corpo de Rodrigu-san. - Passou uma perna por sobre o costado. A espada embainhada moveuse uma fração. Ele gelou. Mas seu olhar fixo estava tranqüilo, o
rosto decidido.
Hiro-matsu encontrava-se num dilema. Podia compreender
que o pirata queria encontrar o corpo de Rodrigu-san, mas era
perigoso ir até lá, e o Senhor Toranaga lhe dissera que levasse o
bárbaro em segurança, portanto ele seria levado em segurança.
Estava igualmente claro que o homem pretendia ir.
Vira-o durante a tempestade, em pé no convés inclinado,
como um kami maligno do mar, destemido, em seu elemento, fazendo parte da tempestade, e pensara com severidade: é melhor
ter esse homem e todos os bárbaros como ele em terra, onde podemos lidar com eles. No mar estamos em suas mãos.
Podia ver que o pirata estava impaciente. Como são insultantes, disse a si mesmo. Ainda assim eu devia agradecer-lhe. Todos
estão dizendo que foi o único responsável por trazer o navio para
a enseada, que Rodrigu-anjin perdeu a coragem e deixou que fôssemos carregados para longe da costa, mas você manteve o curso.
Sim. Se tivéssemos rumado para o largo certamente teríamos soçobrado e então eu teria falhado a meu amo. Ó Buda, proteja-me
disso!
Sentia doer todas as juntas. Estava exausto devido ao esforço
que lhe fora exigido para permanecer estóico diante de seus
172
homens, de Yabu, da tripulação, e mesmo do bárbaro. O Buda.
estou tão cansado. Gostaria de poder deitar num banho, ficar lá
um bom tempo ... e ter um dia de sossego, sem sofrimento. Só
um dia. Pare com esses seus estúpidos pensamentos de mulher!
Você sofre há quase sessenta anos. O que é o sofrimento para um
homem? Um privilégio! Dissimular a dor é a medida de um
homem. Agradeça a Buda por ainda estar vivo para proteger seu
amo, quando você deveria estar morto uma centena de vezes.
Agradeço a Buda.
Mas odeio o mar. Odeio o frio. E odeio a dor.
- Fique onde está, Anjin-san - disse, apontando com a
bainha da espada para ser mais claro, desanimadamente divertido
com o fogo de um azul gelado nos olhos do homem. Quando teve
certeza de que o homem compreendera, deu uma olhada no imediato. - Onde estamos? De quem é este feudo?
- Não sei, senhor. Acho que estamos em algum ponto da
província de Ise. Poderíamos mandar alguém à aldeia mais
próxima.
- Você pode nos pilotar até Osaka?
- Desde que fiquemos muito perto da praia, senhor, e que
vamos lentamente, com grande cautela. Não conheço estas águas
e nunca poderia garantir a sua segurança. Não tenho conhecimento suficiente e não há ninguém a bordo, senhor, que tenha. Exceto esse piloto. Se dependesse de mim, eu o aconselharia a ir por
terra. Poderíamos conseguir-lhe cavalos ou palanquins.
Hiro-matsu sacudiu a cabeça irascivelmente. Ir por terra estava fora de questão. Tomaria tempo demais o caminho era
montanhoso e havia poucas estradas - e teriam que atravessar
muitos territórios controlados por aliados de Ishido, o inimigo.
Além desse perigo, havia também os numerosos grupos de bandidos, que infestavam os desfiladeiros. Isso significava que ele teria
que levar todos os seus homens. Poderia abrir caminho a força
entre os bandidos, certamente, mas nunca conseguiria forçar uma
passagem se Ishido ou seus aliados resolvessem impedi-lo. Tudo
isso o atrasaria ainda mais, e suas ordens eram entregar a carga,
o bárbaro e Yabu, rapidamente e em segurança.
- Se acompanharmos a costa, quanto tempo levaremos?
- Não sei, senhor. Quatro ou cinco dias, talvez mais. Eu
me sentiria muito inseguro, não sou capitão, sinto muito.
O que significa, pensou Hiro-matsu, que preciso da cooperação deste bárbaro. Para impedi-lo de ir até a praia, terei que mandar amarrá-lo. E quem sabe se, amarrado, ele vai cooperar?
173

- Quanto tempo teremos que ficar aqui?
- O piloto disse a noite toda.
- A tempestade terá acabado então?
- É o que deve acontecer, senhor, mas nunca se sabe.
Hiro-matsu estudou a costa montanhosa, depois o piloto, vacilando.
- Posso oferecer uma sugestão, Hiro-matsu-san? - disse
Yabu.
- Sim, sim, naturalmente - disse o outro com impaciência.
- Como parece que precisamos da cooperação do piloto
para nos levar a Osaka, por que não deixá-lo ir até a praia, mas
com homens para protegê-lo, e ordenar que voltem antes do pordo-sol? Quanto a ir por terra, concordo que seria perigoso demais
para o senhor. Eu nunca me perdoaria se alguma coisa lhe acontecesse. Uma vez que a tempestade se dissipe, o senhor estará mais
seguro no navio e chegará a Osaka muito mais depressa, neh?
Com certeza, pelo crepúsculo de amanhã.
Relutante, Hiro-matsu assentiu. - Muito bem. - Chamou
um samurai com um gesto. Takatashi-san! Pegue seis homens
e vá com o piloto. Traga o corpo do português de volta se conseguirem encontrá-lo. Mas se um cílio que seja deste bárbaro for
lesado você e os seus homens cometerão seppuku imediatamente.
- Sim, senhor.
- E mande dois homens à aldeia mais próxima para descobrir onde é, exatamente, que estamos e no feudo de quem.
- Sim, senhor.
- Com a sua permissão, Hiro-matsu-san, vou comandar o
destacamento até a praia - disse Yabu. - Se chegássemos a
Osaka sem o pirata, eu ficaria tão envergonhado que me sentiria
obrigado a me matar. Gostaria de ter a honra de executar as suas
ordens.
Hiro-matsu assentiu, intimamente surpreso de que Yabu resolvesse enfrentar por si um perigo como aquele. E desceu para o
convés inferior.
Quando Blackthorne entendeu que Yabu ia até a praia com
ele, sua pulsação se acelerou. Eu tinha esquecido Pieterzoon, a
minha tripulação, o buraco - e os gritos, Omi ou qualquer parte
do que aconteceu. Cuidado com a sua vida, bastardo.
174
CAPITULO 9
Rapidamente se encontraram em terra. Blackthorne pretendia
chefiar a expedição, mas Yabu usurpou-lhe a posição e impôs uma
marcha forçada, que ele teve dificuldade em acompanhar. Os
outros seis samurais vigiavam-no cuidadosamente. Não tenho lugar
algum para fugir, seus imbecis, pensou ele, interpretando mal a
preocupação deles, enquanto seus olhos automaticamente esquadrinhavam a baía, à procura de bancos de areia ou recifes escondidos, medindo posições, guardando coisas importantes na cabeça
para uma futura transcrição.
O caminho levou-os primeiro ao longo da praia de cascalho,
depois a uma pequena subida sobre rochas polidas pelo mar, até
uma vereda que ladeava o penhasco e se insinuava precariamente
em torno do promontório, ao sul. A chuva havia parado, mas não
a ventania. Quanto mais perto chegavam da língua de terra, totalmente exposta, mais alto a rebentação - atirando-se contra os
rochedos lá embaixo - respingava no ar. Logo se viram encharcados.
Embora Blackthorne estivesse sentindo frio, Yabu e os outros, que tinham os quimonos leves descuidadamente franzidos
pelos cintos, não pareciam ser afetados pela umidade nem pelo
frio. Deve ser como Rodrigues disse, pensou ele, sentindo o medo
voltar. Os japoneses simplesmente não são feitos como nós. Não
sentem frio, fome, privações ou ferimentos como nós. Comparados
a nós, são mais como animais, de nervos embotados. Acima deles
o penhasco se elevava a duzentos pés. A areia estava a cinqüenta
pés abaixo. Além e em toda a volta havia montanhas e nem uma
casa ou cabana em toda a área da baía. Isso não era de surpreender, pois não havia espaço para campos, os seixos da praia rapidamente transformando-se em rochas e depois em montanha de
granito, com árvores nas vertentes mais altas.
Muito insegura, de superfície movediça, a vereda descia e
subia ao longo da face do penhasco. Blackthorne caminhava inclinando-se contra o vento, e notou que as pernas de Yabu eram
fortes e musculosas. Escorregue, seu filho de uma puta, pensou
ele. Escorregue, arrebente-se nas rochas lá embaixo. Será que isso
o faria gritar? O que o faria gritar?
Com um esforço, desviou os olhos de Yabu e voltou a sondar
a praia. Cada fenda, cada greta, cada fresta. A espuma no vento
continuava a açoitar e arrancou-lhe lágrimas. O mar se derramava
175

de um lado e de outro, redemoinhava, arrastava-se em torvelinho.
Ele sabia que havia uma esperança mínima de encontrar Rodrigues, haveria muitas cavernas e lugares escondidos que nunca poderiam ser investigados. Mas precisava vir à praia para tentar.
Devia a Rodrigues a tentativa. Todos os pilotos rezavam por uma
morte em terra e um sepultamento em terra. Todos eles já haviam
visto demasiados cadáveres inchados pelo mar, cadáveres meio comidos e cadáveres mutilados pelos caranguejos.
Contornaram o promontório e se detiveram a sotavento. Não
havia necessidade de ir mais além. Se o corpo não estava a barlavento, então estava escondido ou fora engolido ou já carregado
para o alto-mar, para o abismo. A meia milha de distância, uma
pequena aldeia de pescadores aninhava-se na praia branca de espuma. Yabu fez sinal a dois samurais. Imediatamente eles se curvaram e saíram correndo naquela direção. Uma última olhada,
depois Yabu enxugou a chuva do rosto, relanceou o olhar para
Blackthorne e fez sinal para retornarem. Blackthorne assentiu e
reiniciaram a caminhada. Yabu à frente, os outros samurais ainda
a observá-lo cuidadosamente, e novamente ele pensou em como
eram estúpidos.
Então, quando estavam a meio caminho de volta, viram Rodrigues.
o corpo estava preso numa fenda entre duas grandes rochas,
acima da rebentação, mas parcialmente atingido por ela. Um braço
estava esticado para a frente. O outro ainda estava agarrado ao
remo quebrado, que se movia levemente com o fluxo e refluxo da
água. Foi esse movimento que atraiu a atenção de Blackthorne
quando se inclinou contra o vento, arrastando-se com dificuldade
no rastro de Yabu.
o único caminho para baixo era por sobre o abrupto penhasco. A descida seria de apenas cinqüenta ou sessenta pés, mas era
um declive íngreme e quase não havia apoios para os pés.
o a maré? - perguntou Blackthorne a si mesmo. Está subindo, não descendo. Vai levá-lo de volta para o mar. Jesus, a
coisa parece que está feia lá embaixo. E agora?
Aproximou-se mais da borda e imediatamente Yabu lhe cortou o caminho, balançando a cabeça, e os outros samurais o
rodearam.
- Só estou tentando olhar melhor, pelo amor de Cristo! Não estou tentando escapar! Para onde, diabos, eu posso fugir?
Recuou um pouco e olhou atentamente para baixo. Os outros
lhe seguiram o olhar e tagarelaram entre si, Yabu falando mais
176
que todos. Não há chance alguma, decidiu Blackthorne. É perigoso demais. Voltaremos ao amanhecer, com cordas. Se estiver
aqui, estará aqui, e eu o sepultarei em terra. Relutantemente, voltou-se e, fazendo isso, a beirada do penhasco desmoronou e ele
começou a escorregar. Imediatamente Yabu e os outros o agarraram e o puxaram de volta, e foi quando, num átimo, percebeu
que estavam preocupados apenas com a sua segurança. Só estão
tentando me proteger!
Por que me quereriam a salvo? Por causa de Tora...? Como
era o nome? Toranaga? Por causa dele? Sim, mas também, talvez,
porque não há mais ninguém a bordo para o p
que me deixaram vir à praia, por isso que cederam? Sim, deve
ser. Então, agora, tenho poder sobre o navio, sobre o velho daimio,
e sobre este bastardo. Como posso usá-lo?
Ele descontraiu-se, agradeceu-lhes e deixou os olhos vagar lá
embaixo. - Temos que pegá-lo, Yabu-san. Hai! O único caminho
é este. Sobre o penhasco. Eu o trarei para cima, eu, Anjin-san!
- Novamente avançou como se fosse descer e novamente o retiveram. Então disse com preocupação fingida: - Temos que pegar
Rodrigu-san. Olhem! Não temos tempo, a claridade está sumindo.
- Iyé, Anjin-san - disse Yabu.
Blackthorne erguia-se sobranceiro a Yabu. - Se não vai me
deixar ir, Yabu-san, então mande um de seus homens. Ou vá você
mesmo. Você!
O vento feria-os com violência, uivando contra a face do
penhasco. Viu Yabu olhar para baixo, avaliando a descida e a luz
enfraquecida, e soube que Yabu estava fisgado. Caiu na armadilha, bastardo, sua vaidade lhe preparou uma armadilha. Se descer
até lá, vai se machucar. Mas não se mate, por favor, só quebre as
pernas ou os tornozelos. Depois se afogue.
Um samurai começou a descer mas Yabu ordenou-lhe que
voltasse.
- Volte ao navio. Traga algumas cordas imediatamente -
disse ele.
O homem saiu correndo.
Yabu descalçou as sandálias de tiras com um chute. Tirou
as espadas do cinto e colocou-as em segurança. - Vigiem-nas e
vigiem o bárbaro. Se alguma coisa acontecer a ele ou a elas, eu
os faço sentar-se em cima das suas próprias espadas.
- Por favor, deixe-me ir, Yabu-sarna - disse Takatashi.
- Se o senhor se ferir ou se perder eu.. .
- Acha que pode ter êxito onde eu falhe?
177

Não, senhor, naturalmente que não.
- Bom.
- Por favor, espere pelas cordas, então. Nunca me perdoarei se alguma coisa lhe acontecer. - Takatashi era baixo e sólido,
com uma barba cheia.
Por que não esperar ás cordas? perguntou Yabu a si
mesmo. Seria razoável, sim. Mas não seria inteligente. Olhou para
Blackthorne e assentiu brevemente. Sabia que fora desafiado. Contara com isso. E tivera esperança de que acontecesse. Por isso me
ofereci para esta missão, Anjin-san, disse ele a si mesmo, silenciosamente divertido. Você realmente é muito simples, Omi tinha
razão. `
Yabu despiu o quimono ensopado e, vestido somente com a
tanga, dirigiu-se para a borda do penhasco e testou-a com as solas
dos seus tabis de algodão - seus sapatos-meias. É melhor ficar
com eles, pensou, sentindo sua vontade e seu corpo, forjados por
uma vida toda de treinamento a que todo samurai tinha que se
submeter, dominar o frio que o trespassava. Os tabis me darão
uma preensão mais firme - por um tempo. Você vai precisar de
toda a força e habilidade para chegar lá embaixo vivo. Vale a
pena?
Durante a tempestade e a arremetida para a praia, ele subira
ao convés e, sem que Blackthorne notasse, tomara lugar aos remos. Prazerosamente, usara sua força com os remadores, detestando o miasma lá embaixo e o enjôo que sentia. Resolvera que
era melhor morrer ao ar do que sufocado lá embaixo.
Trabalhando com os outros ao frio, começara a observar os
pilotos. Vira claramente que, ao mar, o navio e todos a bordo
estavam em poder daqueles dois homens. Os pilotos se encontravam no seu elemento, cavalgando os conveses arfantes tão descuidadamente quanto ele um cavalo a galope. Nenhum japonês
a bordo se igualava a eles. Em habilidade, coragem ou conhecimento. E gradualmente essa consciência havia gerado um conceito
grandioso: modernos navios bárbaros cheios de samurais, pilotados por samurais, capitaneados por samurais, manobrados por
samurais. Samurais dele.
Se eu tivesse de começo três navios bárbaros, poderia facilmente controlar as rotas marítimas entre Yedo e Osaka. Baseado
em Izu, poderia estrangular toda a navegação ou deixá-la passar.
Portanto, praticamente todo o arroz e toda a seda. Não seria eu,
então, um árbitro entre Toranaga e Ishido? No mínimo, no mínimo, não seria um equilíbrio entre eles?
178
Nenhum daimio jamais gostara do mar.
Nenhum daimio tem navios ou pilotos.
Com exceção de mim.
Eu tenho um navio - tive um navio - e agora poderia ter
meu navio de volta - se for esperto. Tenho um piloto e, conseqüentemente, um treinador de pilotos, se conseguir afastá-lo de
Toranaga. Se conseguir dominá-lo.
Uma vez que se torne meu vassalo, por vontade própria, treinará meus homens. E construirá navios.
Mas como torná-lo um autêntico vassalo? O buraco não lhe
dobrou o espírito.
Primeiro, isolá-lo e mantê-lo isolado - não foi isso o que
Omi disse? Depois esse piloto seria persuadido a aprender boas
maneiras e falar japonês. Sim. Omi é muito esperto. Esperto demais, talvez - pensarei em Omi mais tarde. Concentre-se no
piloto. Como dominar um bárbaro, um cristão comedor de imundície?
O que foi que Omi disse? "Eles dão valor à vida. Sua divindade principal, Jesus Cristo, ensina-os a se amarem uns aos outros
e a darem valor à vida." Eu poderia devolver-lhe a vida? Poupá-la,
sim, isso seria muito bom. Como dobrá-lo?
Yabu ficara tão dominado pela animação, que mal notara o
movimento do navio ou os vagalhões. Uma onda cascateou aos
borbotões sobre ele. Viu-a envolver o piloto. Mas não havia medo
no homem, em absoluto. Yabu ficou atônito. Como é que alguém
que humildemente permitira a um inimigo urinar-lhe nas costas
podia salvar a vida de um insignificante vassalo? Como é que
aquele homem podia ter a força para esquecer tal desonra eterna
o manter-se ereto ali no tombadilho, invocando os deuses do mar
para a batalha, como um herói lendário - e para salvar os mesmos inimigos? E depois, quando o vagalhão arrastara o português
o eles estavam todos se debatendo, o Anjin-san miraculosamente
rira da morte e dera-lhes a força para se afastarem dos rochedos.
Nunca os entenderei, pensou.
À beira do penhasco, Yabu olhou para trás uma última vez.
Ah, Anjin-san, sei que está pensando que me encaminho para a
morte, que me pegou numa armadilha. Sei que você mesmo não
iri i até lá embaixo. Estive a observá-lo bem de perto. Mas cresci
nas montanhas e aqui no Japão escalamos por orgulho e por prazer. Por isso desço agora nos meus termos, não nos seus. Tentarei,
o se morrer não tem importância. Mas se tiver êxito, então você,
enquanto homem, saberá que sou melhor que você, nos seuv ter179
te. Ele se arrastou penosamente mais para cima e estremeceu com
uma pontada de dor no tornozelo. Qualquer outra saída ao longo
da praia estava bloqueada pelo mar. Viu que a marca da maré no
penhasco estava acima da altura de um homem em cima da base.
Olhou para o esquife. Ainda estava perto do navio. Na praia,
Takatashi ainda ia correndo. As cordas não vão chegar a tempo,
disse a si mesmo.
Seus olhos esquadrinharam a área diligentemente. Não havia
como subir o penhasco. Nenhum rochedo oferecia abrigo. Nenhuma caverna. Dentro da água havia saliências, mas ele nunca
conseguiria alcançá-las. Não sabia nadar e nao havia nada para
usar como jangada.
Os homens lá em cima observavam-no. O bárbaro apontou
para os afloramentos dentro do mar e fez movimentos de natação,
mas ele balançou a cabeça. Procurou cuidadosamente de novo.
Nada.
Não há escapatória, pensou. Você agora está comprometido
com a morte. Prepare-se.
Karma, disse a si mesmo, e deu as costas para eles, acomodando-se mais confortavelmente, e usufruindo a iluminação que
lhe adveio subitamente. Último dia, último mar, última luz, último
prazer, último tudo. Que belos o mar, o céu, o frio e o sal. Começou a pensar no poema-canção final que deveria compor agora,
por hábito. Sentiu-se afortunado. Tinha tempo para pensar claramente.
Blackthorne estava gritando: - Ouça, seu filho de uma puta!
Encontre uma saliência, tem que haver uma saliência em algum
lugar!
Os samurais lhe barravam a frente, fitando-o como se fosse
louco. Estava claro para eles que não havia saída e que Yabu
estava simplesmente se preparando para uma morte suave, como
eles fariam se estivessem lá. E ressentiam-se daqueles desvarios
como sabiam que Yabu se ressentiria.
- Procurem ali embaixo, todos vocês. Talvez haja uma saliência! - Um deles aproximou-se da borda, olhou para baixo,
sacudiu os ombros, e falou aos companheiros, que também sacudiram os ombros. Cada vez que Blackthorne tentava se aproximar mais da borda para procurar uma saída eles o detinham. Ele
poderia facilmente ter empurrado um deles para a morte e sentiu-se tentado a isso. Mas compreendeu-os e aos seus problemas.
Pense num modo de ajudar aquele bastardo. Você tem que salvá-lo, para salvar Rodrigues.
182
- Ei, seu japona miserável, mijão, bunda-mole! El, Kasigi
Yabu! Onde estão os seus cojones? Não desista! Só os covardes
desistem! Você é um homem ou uma ovelha? - Mas Yabu não
prestava atenção. Estava tão imóvel quanto a rocha sobre a qual
se sentara.
Blackthorne pegou uma pedra e atirou-a nele. Caiu despercebida na água e os samurais gritaram zangados com Blackthorne.
Sabia que a qualquer momento eles iriam lhe cair em cima e
amarrá-lo. Mas como poderiam fazer isso? Não têm corda.. .
Corda! Arranje uma corda! Sabe fazer uma corda!
Seus olhos toparam com o quimono de Yabu. Começou a
rasgá-lo em tiras, testando-lhes a força. A seda era muito forte.
- Vamos! - ordenou aos samurais, tirando a própria camisa.
- Façam uma corda. Hai?
Eles compreenderam. Rapidamente desataram os cintos, despiram os quimonos e imitaram-no. Ele começou a unir as extremidades e os cintos.
Enquanto terminavam a corda, Blackthorne cuidadosamente
se deitou e avançou lentamente por sobre a borda, fazendo dois
deles segurar-lhe os tornozelos por medida de segurança. Não precisava da ajuda deles, mas quis tranqüilizá-los.
Estendeu a cabeça tão longe quanto pôde, consciente da preocupação deles. Depois começou a investigar como se faz ao mar.
Quadrante por quadrante. Usando cada ângulo da sua visão, mas
principalmente os laterais.
Uma busca completa. Nada.
Mais uma vez.
Nada.
De novo.
O que é aquilo? Bem acima da linha da maré? É uma rachadura no penhasco? Ou uma sombra?
Blackthorne mudou de posição, agudamente consciente de
que o mar já havia quase coberto a rocha onde Yabu estava sentado, e quase todas as outras entre ele e a base do penhasco.
Agora podia ver melhor e apontou.
- Ali! O que é aquilo?
Um dos samurais estava de quatro e seguiu o dedo esticado
de Blaekthorne, mas não viu nada.
- Ali! Não é uma saliência?
Com as mãos, formou a saliência e com dois dedos fez um
homem. Pôs o homem em pé sobre a saliência e, com outro dedo,
fez um longo fardo sobre o ombro do homem, de modo que agora
183

havia um homem sobre a saliência - aquela saliência - com
outro sobre o ombro.
- Depressa! Isogi! Façam-no compreender. Kasigi Yabusama! Wakarimasu ka?
O homem arrastou-se para cima e falou rapidamente com os
outros, que também olharam. Agora todos viam a saliência. E
começaram a gritar. Nenhum movimento de Yabu. Parecia uma
pedra. Continuaram e Blackthorne juntou seus gritos aos deles,
mas era como se não emitissem som algum.
Um deles falou brevemente aos outros, todos assentiram e se
curvaram. Ele retribuiu a reverência. Então, com um repentino
grito de " Bansaüüüü!", atirou-se do penhasco lançando-se para a
morte. Yabu saiu violentamente do seu transe, olhou em torno
atarantado e arrastou-se mais para cima. Os outros samurais gritaram e apontaram, mas Blackthorne não ouvia nem via nada
senão o cadáver que jazia lá embaixo, já sendo levado pelo mar.
Que espécie de homens são esses? pensava. Isso foi coragem
ou somente insanidade? Aquele homem deliberadamente cometeu
suicídio apenas com a finalidade, possivelmente remota, de atrair
a atenção de outro homem que havia capitulado. Não faz sentido!
Eles não fazem sentido.
Viu Yabu cambalear. Esperou que ele rastejasse para a segurança abandonando Rodrigues. Isso é o que eu teria feito. É?
Não sei. Mas Yabu meio engatinhou, meio deslizou, arrastando o
homem inconsciente através dos baixios invadidos pela rebentação
até a base do penhasco. Encontrou a saliência. Tinha mal e mal
um pé de largura. Penosamente empurrou Rodrigues para lá,
quase o perdendo uma vez, depois puxou a si mesmo.
A corda tinha vinte pés de comprimento. Rapidamente os
samurais acrescentaram as tangas. Agora, se Yabu se pusesse ereto,
mal poderia tocar-lhe a ponta.
Eles gritaram para encorajá-lo e se puseram à espera.
Apesar do ódio, Blackthorne teve que admirar a coragem de
Yabu. Por uma meia dúzia de vezes as ondas quase o tragaram.
Por duas vezes Rodrigues esteve perdido, mas de cada vez Yabu
arrastou-o de volta, segurando-lhe a cabeça fora da água sôfrega,
muito depois do ponto em que Blackthorne sabia que ele mesmo
teria desistido. De onde você tira a coragem, Yabu? É gerada pelo
Demônio? Em todos vocês?
Para descer, em primeiro lugar, fora necessário coragem. Primeiro Blackthorne pensara que Yabu agira por bravata. Mas logo
vira que o homem estava enfrentando o penhasco e quase vencen184
do. Depois amortecera a queda tão agilmente quanto qualquer
acrobata. E capitulara com dignidade.
Jesus Cristo, admiro esse bastardo, e detesto-o.
Por quase uma hora Yabu resistiu ao mar e ao seu corpo
fraquejando, e então, ao crepúsculo, Takatashi voltou com as cordas. Fizeram uma espécie de berço e o escorregaram pelo penhasco com uma habilidade que Blackthorne nunca vira em terra.
Rapidamente Rodrigues foi trazido para cima. Blackthorne
teria tentado socorrê-lo, mas um japonês com cabelo cortado rente
já estava de joelhos ao lado dele. Ficou observando enquanto
aquele homem, obviamente um médico, examinava a perna quebrada. Depois um samurai segurou os ombros de Rodrigues enquanto o doutor apoiava o seu peso sobre o pé e o osso deslizava
de volta sob a carne. Seus dedos sondaram a perna, apertaram,
apoiaram e amarraram-na à tala. Começou a enrolar ervas de
aparência insalubre em torno do ferimento inflamado, quando
Yabu foi trazido para cima.
O daimio recusou qualquer ajuda, mandou o médico de volta
para Rodrigues com um gesto, sentou-se e esperou.
Blackthorne olhou para ele. Yabu sentiu-lhe os olhos. Os dois
homens se encararam.
- Obrigado - disse Blackthorne finalmente, apontando
para Rodrigues. - Obrigado por salvar-lhe a vida. Obrigado,
Yabu-san. - Curvou-se vagarosamente. Isto é pela sua coragem,
seu filho de olhos pretos de uma puta de merda apodrecida!
Yabu retribuiu a reverência de modo igualmente rígido. Mas
por dentro sorria.
185
CAPÍTULO 10
A viagem da baía para Osaka foi rotineira. Os portulanos de
Rodrigues eram explícitos e muito precisos. Durante a primeira
noite, Rodrigues recuperara a consciência. No começo achou que
estivesse morto, mas a dor logo o fez pensar diferente.
- Eles endireitaram a sua perna e enfaixaram-na - disse
Blackthorne. - E enfaixaram o ombro também. Estava deslocado. Não vão lhe fazer uma sangria, por mais que eu tenha tentado
convencê-los.
- Quando chegar a Osaka os jesuítas podem fazer isso. - Os
atormentados olhos de Rodrigues cravaram-se nele. - Como vim
parar aqui, Inglês? Lembro-me de ser atirado ao mar, e nada mais.
Blackthorne contou-lhs.
- Então agora lhe devo a vida. Deus o amaldiçoe.
- Do tombadilho parecia que podíamos atingir a baía. Da
proa, o seu ângulo de visão era alguns graus diferente. A onda foi
má sorte.
Isso não me preocupa, Inglês. Você estava no tombadilho
e tinha o timão. Ambos sabíamos disso. Não, amaldiçôo você com
o inferno porque agora lhe devo uma vida. Nossa Senhora, minha
perna! - Lágrimas brotaram-lhe por causa da dor e Blackthornc
deu-lhe uma caneca de grogue. Velou-o a noite toda. A tempestade arrefeceu. O médico japonês veio várias vezes: forçou Rodrigues a tomar um remédio quente, colocou-lhe toalhas quentes
sobre a testa e abriu as vigias. Cada vez que o médico ia embora
Blackthorne as fechava, pois todo mundo sabia que a doença era
conduzida pelo ar, que quanto mais firmemente fechada estivesse
a cabina, mais segura e saudável seria para um homem tão mal
quanto Rodrigues.
Finalmente o médico gritou com ele e postou um samurai
junto às vigias, que permaneceram abertas.
189

Ao amanhecer Blackthorne foi para o convés. Hiro-matsu e
Yabu estavam ambos lá. Fez-lhes uma mesura como um cortesão.
- Konnichi Wa. Osaka?
Retribuíram-lhe a saudação. - Osaka. Hai, Anjin-san
disse Hiro-matsu.
- Hai! Isogi, Hiro-matsu-sarna. Capitão-san! Levantar ferros!
- Hai, Anjin-san.
Sorriu involuntariamente para Yabu. Yabu correspondeu ao
sorriso, depois afastou-se coxeando. É um homem fantástico, pensou Blackthorne, embora seja um demônio e um assassino. Você
também não é assassino? Sim, mas não desse jeito, disse a si
mesmo.
Blackthorne pilotou o navio até Osaka com facilidade. A viagem durou aquele dia e aquela noite, e pouco antes do amanhecer
do dia seguinte encontravam-se próximos das entradas de Osaka.
Um piloto japonês subiu a bordo para levar o navio ao ancoradouro e Blackthorne, aliviado da responsabilidade, desceu, satisfeito, para dormir. Mais tarde o capitão acordou-o com uma sacudidela, curvou-se e gesticulou que Blackthorne devia se preparar
para ir com Hiro-matsu assim que atracassem.
- Wakarimasu ka, Anjin-san?
- Hai.
O marujo foi embora. Blackthorne estirou os músculos das
costas, doloridos, então viu Rodrigues a observá-lo.
- Como se sente?
- Bem, Inglês. Considerando que a minha perna está em
chamas, minha cabeça estourando, quero mijar, e minha língua
está com o gosto que deve ter um barril de bosta de porco!
Blackthorne deu-lhe o urinol, depois esvaziou-o pela vigia.
Tornou a encher a caneca com grogue.
- Você é uma enfermeira abominável, Inglês. É por causa
do seu coração preto. Rodrigues riu e foi bom ouvi-lo rir
novamente. Seus olhos se dirigiram para o portulano que estava
aberto sobre a mesa, e para a sua arca. Viu que fora destrancada.
- Eu lhe dei a chave?
- Não. Eu revistei você. Precisava do portulano verdadeiro.
Dissê-lhe isso quando acordou na primeira noite.
- É justo. Não me lembro, mas é justo. Ouça, Inglês, pergunte a qualquer jesuíta por Vasco Rodrigues em Osaka e eles
o guiarão até mim. Venha me ver... e poderá tirar uma cópia
do meu portulano, se quiser.
190
- Obrigado. Já tirei uma cópia. Pelo menos copiei o que
pude, e li o resto com todo o cuidado.
- Puta que o pariu! - disse Rodrigues em espanhol.
- A sua.
Rodrigues voltou a falar português. - Falar espanhol me dá
ânsia de vômito, embora se possa praguejar melhor nessa língua
do que em qualquer outra. Há um pacote na minha arca. De-me,
por favor.
- O que tem os lacres jesuítas?
- Sim.
Ele lhe deu o pacote. Rodrigues examinou-o, apalpou os
selos intactos, depois pareceu mudar de idéia, pôs o pacote sobre
o áspero cobertor sob o qual estava deitado, e recostou a cabeça
de novo. - Ah, Inglês, a vida é tão estranha!
- Por quê?
- Se eu viver, será por causa da graça de Deus, ajudado
por um herege e por um japonês. Mande o comedor de grama
descer, de modo que eu possa agradecer-lhe, hem?
- Agora?
- Mais tarde.
- Está bem.
- Essa sua esquadra, essa que você diz que está atacando
Manila, a de que você falou com o padre... qual é a verdade,
Inglês?
- Uma esquadra de navios nossos vai destroçar o seu império na Asia.
- Existe uma esquadra?
- Claro.
- Quantos navios estavam na sua esquadra?
- Cinco. O resto está ao largo, a uma semana mais ou
menos. Vim na frente para sondar terreno e fui apanhado pela
tempestade.
- Mais mentiras, Inglês. Mas não me importo... contei
meus captores. Não há
tantas mentiras quanto você aos
algum nem esquadra.
- Espere e verá.
- Esperarei. - Rodrigues bebeu lentamente.
Blackthorne espreguiçou-se e foi até a vigia, querendo parar
com aquela conversa, e olhou para a praia e a cidade lá fora.
- Pensei que Londres fosse a maior cidade do mundo, mas
comparada a Osaka é uma cidadezinha.
- Eles têm dúzias de cidades como esta - disse Rodrigues,
navio
191

contente também por parar o jogo de gato e rato, que, sem tortura,
nunca levaria a nada. - Miyako, a capital, ou Kyoto, como é chamada às vezes, é a maior cidade do império, mais de duas vezes o
tamanho de Osaka, assim dizem. Depois vem Yedo, capital de Toranaga. Nunca estive lá, assim como nenhum padre e nenhum português. Toranaga mantém a cidade dele trancada, uma cidade proibida. No entanto - acrescentou Rodrigues, deitando-se no beliche e
fechando os olhos, o rosto tenso de dor -, no entanto isso não
é diferente do resto. O Japão todo está oficialmente proibido
para nós, com exceção dos portos de Nagasaki e Hirado. Nossos
padres não prestam muita atenção às ordens, no que agem acertadamente, e vão aonde lhes agrada ir. Mas nós, marujos, não
podemos, nem os mercadores, a menos que seja com um passe
especial dos regentes, ou de um grande daimio, como Toranaga.
Qualquer daimio pode apreender um dos nossos navios - como
Toranaga fez com o seu - fora de Nagasaki ou Hirado. É a lei
deles.
- Quer descansar agora?
- Não, Inglês. Conversar é melhor. Ajuda a afastar a dor.
Minha Nossa Senhora, que dor de cabeça! Não posso pensar claramente. Vamos conversar até você desembarcar. Venha aqui e me
olhe - há muita coisa que quero lhe perguntar. De-me mais um
pouco de grogue. Obrigado, obrigado, Inglês.
- Por que vocês são proibidos de ir aonde quiserem?
- O quê? Oh, aqui no Japão? Foi o táicum, foi ele que
começou o problema todo. Desde que viemos pela primeira vez,
em 1542, para dar início à obra de Deus e para trazer-lhes a
civilização, nós e nossos padres podíamos nos mover livremente,
mas, quando o táicum conseguiu o poder todo, começou com as
proibições. Muitos acreditam... você poderia mudar minha perna
de posição? Tire o cobertor de cima do meu pé, está queimando... sim... oh, minha Nossa Senhora, tenha cuidado.., aí,
obrigado, Inglês. Sim, onde é que eu estava? Oh, sim... muitos
acreditam que o táicum era o pênis de Satã. Há dez anos emitiu
editos contra os santos padres, Inglês, e contra todos os que quisessem difundir a palavra de Deus. E baniu a todos, menos os mercadores, há uns dez, doze anos atrás. Foi antes de eu vir para
estas águas. .. estou aqui há sete anos, para lá e para cá. Os
santos padres dizem que foi por causa dos sacerdotes pagãos,
os budistas, os fedorentos e invejosos adoradores de ídolos. Esses
pagãos viraram o táicum contra os nossos santos padres, encheram-no de mentiras, quando já o haviam quase convertido. Sim,
192
o grande assassino em pessoa quase teve a alma salva. Mas perdeu
a oportunidade de salvação. Sim.. Em todo caso, ordenou que
todos os nossos padres deixassem o Japão... Eu lhe disse que
isso foi há uns dez anos e pouco?
Blackthorne assentiu com a cabeça, contente por deixá-lo
divagar e contente por ouvir, desesperado por aprender.
- O táicum reuniu todos os padres em Nagasaki, pronto
para embarcá-los para Macau com ordens escritas de nunca
regressarem, sob pena de morte. Então, igualmente de repente,
deixou-os todos em paz e não fez mais nada. Eu lhe disse que os
japoneses são confusos. Sim, deixou-os em paz e logo estava tudo
como antes, exceto que a maioria dos padres ficou em Kyushu,
onde eram bem-vindos. Eu lhe contei que o Japão é feito de três
grandes ilhas, Kyushu, Shikoku e Honshu? E milhares de ilhas
pequenas. Há outra ilha bem ao norte - alguns dizem que já
é continente -, chamada Hokkaido, mas só nativos peludos
vivem lá.
"O Japão é um mundo de cabeça para baixo, Inglês. O Padre
Alvito me contou que ficou tudo como se nada tivesse jamais
acontecido. O táicum tão amigável quanto antes, embora nunca
se tenha convertido. Mal e mal mandou fechar uma igreja e baniu
só dois ou três dos daimios cristãos - mas isso foi só para se
apoderar das terras deles - e nunca pôs em prática os editos de
expulsão. Então, há três anos, ficou louco de novo e martirizou
vinte e seis padres. Crucificou-os em Nagasaki. Por nenhuma
razão. Era um maníaco, Inglês. Mas depois de assassinar os vinte
e seis, não fez mais nada. Morreu logo depois. Foi a mão de
Deus, Inglês. A maldição de Deus estava sobre ele e está sobre
os seus descendentes. Tenho certeza disso."
- Vocês têm muitos convertidos aqui?
Mas Rodrigues não pareceu ouvir, perdido na sua própria
semiconsciência. - São animais, os japoneses. Contei-lhe sobre
o Padre Alvito? É o intérprete, chamam-no de Tsukku-san, Sr.
Intérprete. Era o intérprete do táicum, Inglês, agora é o intérprete
oficial do conselho de regentes e fala japonês melhor do que
muitos japoneses e sabe mais sobre eles do que qualquer homem
vivo. Contou-me que há um monte de terra de cinqüenta pés de
altura em Miyako, a capital, Inglês. O táicum tinha o nariz e as
orelhas de todos os coreanos mortos na guerra reunidos e enterrados ali. A Coréia é parte do continente, e a oeste de Kyushu. É
verdade! É verdade! Pela Virgem abençoada, nunca houve um
193

assassino como ele, e são todos igualmente ruins. - Os olhos de
Rodrigues estavam fechados e sua testa ardia.
- Vocês tem muitos convertidos? - perguntou Blackthorne
de novo, com cuidado, querendo desesperadamente saber quantos
inimigos havia ali. Para espanto seu, Rodrigues disse: - Centenas
de milhares, e mais a cada ano. Desde a morte do táicum temos
tido mais conversões do que nunca, e os que eram cristãos em
segredo agora vão ã igreja abertamente. A maioria na ilha de
Kyushu é católica agora. A maioria dos daimios de Kyushu são
convertidos. Nagasaki é uma cidade católica, os jesuítas são os
donos dela, dirigem-na e controlam o comércio. O comércio todo
passa por Nagasaki. Temos uma catedral, uma dúzia de igrejas,
e muitas mais espalhadas por Kyushu, mas ainda há poucas aqui
na ilha principal, Honshu, e... - A dor o interrompeu novamente. Após um instante, continuou: - Há tres ou quatro milhões de pessoas só em Kyushu. Serão todos católicos logo, logo.
Há mais uns vinte e tantos milhões de japoneses nas ilhas e em
breve...
- Isso não é possível! - Blackthorne imediatamente se
amaldiçoou por interromper o fluxo de informações.
- Por que eu mentiria? Houve um recenseamento há dez
anos. O Padre Alvito disse que foi ordenado pelo táicum e ele
deve saber, pois estava lá. Por que mentiria? - Os olhos de
Rodrigues estavam febris e ele estava perdendo o controle sobre
a boca. - Isso é mais do que a população de Portugal todo, a
Espanha toda, a França toda, a Neerlândia espanhola e a Inglaterra, tudo junto, e você quake poderia juntar aí o Santo Império
Romano inteiro também!
Senhor Jesus, pensou Blackthorne, a Inglaterra toda não tem
mais que trés milhões de habitantes. E isso inclui o País de Gales.
Se há tantos japoneses assim, como vamos poder lidar com
eles? Se há vinte milhões, isso significa que, se quisessem, poderiam facilmente reunir um exército com mais homens do que a
nossa população inteira. E se são todos tão ferozes quanto os
que eu vi - e por que não seriam? -, pelas chagas de Cristo,
eles seriam imbatíveis. E se também são parcialmente católicos,
e se os jesuítas estão aqui maciçamente, os efetivos deles aumentarão, e não há fanático que se compare a um convertido fanático. Então que chance temos nós e os holandeses na Asia?
Absolutamente nenhuma.
- Se você acha que é muito - estava dizendo Rodrigues
-, espere até ir à China. São todos amarelos lá, todos com
194
cabelos e olhos pretos. Oh, Inglês, digo-lhe que você tem tanta
novidade para aprender! Estive em Cantão no ano passado, nas
vendas de seda. Cantão é uma cidade murada no sul da China,
sobre o rio Pérola, ao norte da nossa Cidade do Nome de Deus,
Macau. Há um milhão desses pagãos comedores de cachorros só
dentro daqueles muros. A China tem mais gente do que todo o
resto do mundo reunido. Deve ter. Pense nisso! - Um espasmo
de dor percorreu-lhe o corpo e ele pressionou o estômago com
a mão ilesa. - Tive alguma hemorragia? Em algum lugar?
- Não. Verifiquei isso. É só a sua perna e o ombro. você
não está ferido por dentro, Rodrigues, pelo menos não acho
que esteja.
- Como está a perna? Muito mal?
- Foi lavada e limpa pelo mar. O corte estava limpo e a
pele também, no momento.
- você derramou conhaque em cima e acendeu fogo?
- Não. Eles não me deixariam. Ordenaram que eu me afastasse. Mas o médico parece saber o que está fazendo. A sua
gente virá a bordo logo?
- Sim. Assim que atracarmos. Isso é mais que provável.
- Bom. você estava dizendo? Sobre a China e Cantão?
- Eu estava falando demais, talvez. Temos tempo bastante
para falar nisso.
Blackthorne viu a mao ilesa do português brincar com o
pacote lacrado e novamente perguntou a si mesmo que significado tinha aquilo.
- Sua perna vai ficar boa. Você vai saber disso no decorrer
da semana.
- Sim, Inglês.
- Não acho que vá degenerar... não tem pus... você está
pensando com clareza, de modo que o seu cérebro está em ordem.
Você ficará ótimo, Rodrigues.
- Ainda lhe devo a vida. - Um arrepio percorreu o português. - Quando estava me afogando, tudo em que podia pensar
era nos caranguejos subindo e me entrando pelos olhos. Podia
senti-los agitando-se dentro de mim, Inglês. Foi a terceira vez
que fui atirado ao mar e de cada vez é pior.
- Fui posto a pique quatro vezes. Trés por espanhóis.
A porta da cabina se abriu, o capitão inclinou-se e fez sinal
para que Blackthorne subisse.
- Hai! - Blackthorne levantou-se. - você não me deve
nada, Rodrigues - disse gentilmente. - Deu-me a vida e socor195

reu-me quando eu estava desesperado, e agradeço-lhe isso. Estamos quites.
- Talvez, mas ouça, Inglês, uma verdade para você, como
pagamento parcial: nunca se esqueça de que os japoneses têm
seis caras e três corações. É um ditado deles que um homem tem
um falso coração na boca para que todo mundo veja, outro no
peito para mostrar aos amigos muito especiais e à família, e o
verdadeiro, o real, o secreto,' que nunca é conhecido por ninguém
exceto por eles mesmos, escondido só Deus sabe onde. São traiçoeiros para além da crença.
- Por que Toranaga quer me ver?
- Não sei. Pela Virgem abençoada! Não sei. Volte para
me ver, se puder.
- Sim. Boa sorte, espanhol!
- Espanhol é a mãe! Ainda assim, vá com Deus!
Blackthorne retribuiu o sorriso, sem reservas. Subiu para o
convés e ficou atarantado com o impacto de Osaka, sua imensidade, o laborioso formigueiro humano, e o enorme castelo que
dominava a cidade.
De dentro da vastidão do castelo vinha a beleza sublime do
torreão - a torre central - com sete ou oito pavimentos de
altura, coruchéus pontudos com telhados curvos em cada nível,
as telhas todas douradas e os muros azuis. É ali que Toranaga
deve estar, pensou, sentindo repentinamente uma farpa de gelo
nas entranhas.
Um palanquim fechado levou-o a um casarão. Ali deram-lhe
um banho, comeu, inevitavelmente a sopa de peixe, peixe cru e
defumado, um pouco de verduras em conserva, e bebeu a água
quente com ervas. Ao invés de sopa de trigo, esta casa ofereceulhe uma tigela de arroz. Ele só tinha visto arroz em Nápoles. Era
branco e saudável, mas para ele insosso. Seu estômago gritava
por carne e pão, pão fresco sequinho, pesado de manteiga, um
bife de lombo, tortas, frangos, cerveja, ovos.
No dia seguinte uma criada veio buscá-lo. As roupas que
Rodrigues lhe dera foram lavadas e passadas. Ela ficou olhando
enquanto ele se vestia, e ajudou-o a calçar os sapatos-meias rabis.
Do lado de fora havia um novo par de sandálias de tiras. Faltavam
as botas. Ela balançou a cabeça e apontou pari as sandálias e
depois para o palanquim com cortinas. Uma falange de samurais
o rodeava. O chefe fez-lhe sinal que se apressasse e entrasse no
palanquim.
Puseram-se em movimento imediatamente. As cortinas esta196
yam hermeticamente fechadas. Após uma eternidade, o palanquim
parou.
- Você não vai ficar com medo - disse ele em voz alta,
e saiu.
O gigantesco portão de pedra do castelo estava à sua frente
fixado a um muro de trinta pés, com ameias interligadas, bastiões
o fortificações exteriores. A porta era imensa, com placas de
ferro, e estava aberta, o rastrilho de ferro forjado levantado. Além
havia uma ponte de madeira, com vinte passos de largura e
duzentos de comprimento, que se estendia sobre o fosso e terminava numa enorme ponte levadiça, e outro portão, aberto no
segundo muro, igualmente imenso.
Centenas de samurais estavam por toda parte. Todos usavam
o mesmo uniforme cinza-escuro - quimonos presos com cinto,
cada um com cinco pequenas insígnias circulares, uma em cada
braço, uma de cada lado do peito e uma no meio das costas.
A insígnia era azul, aparentemente uma flor ou várias flores.
-- Anjin-san!
Hiro-matsu estava sentado rigidamente num palanquim aberto, levado por quatro carregadores de libré. Seu quimono era
marrom-escuro, o cinto preto, o mesmo dos cinqüenta samurais
que o rodeavam. Eles, igualmente, tinham cinco insígnias no quimono, mas escarlates, como a que tremulava no topo do mastro,
o monograma de Toranaga. Esses samurais carregavam longas
lanças, com minúsculas bandeiras na ponta.
Blackthorne curvou-se sem pensar, levado pela majestade de
Hiro-matsu. O velho curvou-se também, formalmente, a espada
comprida solta, no colo, e fez-lhe sinal que o seguisse.
O oficial do portão avançou. Houve uma leitura cerimoniosa
do papel que Hiro-matsu lhe estendeu, muitas mesuras e olhares
para Blackthorne. Em seguida passaram para a ponte, com uma
escolta dos cinzentos engatando ao lado deles.
A superfície do fosso profundo estava cinqüenta pés abaixo.
Estendia-se por cerca de trezentos passos até o outro lado, depois
acompanhava os muros quando estes se voltavam para o norte. Senhor Deus, pensou Blackthorne, eu odiaria ter que tentar um ataque
aqui. Os defensores poderiam deixar a guarnição do muro exterior
perecer, queimar a ponte, e estariam a salvo lá dentro. Jesus, o
muro externo deve ter aproximadamente uma milha quadrada e
olhe, deve ter vinte, trinta pés de espessu;a - o de dentro
também. E é construído com enormes blocos de pedra. Cada um
deve ter dez pés por dez! No mínimo! Perfeitamente cortados e
197

fixados no lugar sem argamassa. Devem pesar cinqüenta toneladas no mínimo. Melhor do que qualquer um que pudéssemos
fázer. Armas de assédio? Certamente poderiam bombardear os
muros externos, mas as armas defensoras revidariam o ataque
com a mesma intensidade. Seria duro pegá-los aqui em cima, e
não há nenhum ponto mais alto do qual arremessar granadas
para dentro do castelo. Se o muro externo fosse tomado, os defensores ainda poderiam fazer os atacantes voar para longe das
ameias. Mas mesmo que se pudessem colocar armas de assédio
ali, voltá-las contra o muro seguinte e bombardeá-lo, não lhe
causaria dano algum. Poderiam danificar o portão, mas para que
serviria isso? Como se poderia cruzar o fosso? É vasto demais para
os métodos normais. O castelo deve ser inexpugnável - com
soldados suficientes. Quantos soldados há aqui? Quantos habitantes da cidade encontrariam abrigo lá dentro?
Faz a Torre de Londres parecer uma pocilga. E a Hampton
Court toda caberia num canto!
No portão seguinte houve outra verificação cerimoniosa dos
papéis. A estrada virou para a esquerda imediatamente, descendo
uma vasta avenida alinhada de casas pesadamente fortificadas por
trás de muros maiores e menores, facilmente defendíveis, depois
se multiplicava num labirinto de degraus e caminhos. Depois
havia outro portão e mais verificação, outro rastrilho e outro vasto
fosso e novas voltas e volteios até que Blackthorne, que era um
observador acurado, com uma extraordinária memória e senso de
direção, se perdesse em hesitação numa confusão premeditada
pelos planejadores do castelo. E o tempo todo inúmeros cinzentos
os olhavam de taludes, trincheiras, ameias, parapeitos e bastiões.
E havia mais deles em pé, guardando, marcando, treinando ou
cuidando de cavalos em estábulos abertos. Soldados por toda parte,
aos milhares. Todos bem armados e meticulosamente vestidos.
Blackthorne amaldiçoou a si mesmo por não ter sido esperto
o bastante para arrancar mais coisas de Rodrigues. A parte a
informação sobre o táicum e os convertidos, fornecidas já com
muita vacilação, Rodrigues fora tão fechado quanto um homem
deve ser - como você foi, evitando as perguntas dele.
Concentre-se. Procure indícios. O que há de especial neste
castelo? É o maior. Não, alguma coisa diferente. O quê?
Os cinzentos são hostis aos marrons? Não posso dizer, são
todos tão sérios.
Blackthorne observou-os cuidadosamente e se concentrou nos
detalhes. A esquerda havia um jardim multicolorido, cuidadosa198
mente tratado, com pequenas pontes e um minúsculo riacho. Os
muros agora estavam mais próximos uns dos outros, as ruas
mais estreitas. Estavam se aproximando do torreão. Não havia
gente da cidade lá dentro, mas centenas de criados e... Nao há
canhões! É isso que é diferente! Você não viu nem um canhão.
Nem um.
Senhor Deus do paraíso, nenhum canhão... por isso não
há armas de assédio! Se você tivesse armas modernas e os defensores não, conseguiria explodir os muros, as portas, lançar granadas no castelo, incendiá-lo e tomá-lo?
Não conseguiria atravessar o primeiro fosso.
Com armas de assédio você talvez tornasse as coisas difíceis
para os defensores, mas eles poderiam resistir para sempre -
se a guarnição fosse resoluta, se houvesse quantidade suficiente
deles, com comida suficiente, água e munição.
Como atravessar os fossos? De barco? Balsas com torres?
Sua mente tentava delinear um plano quando o palanquim
parou. Hiro-matsu desceu. Estavam num estreito beco sem saída.
Um imenso portão de madeira reforçada com ferro estava encravado no muro de vinte pés, que se fundia com ,as fortificações
externas do local fortificado acima, ainda distante do torreão,
que dali ficava oculto em grande parte. Ao contrário de todos os
outros portões, este era guardado pelos marrons, os únicos que
Blackthorne viu dentro do castelo. Era claro que ficaram mais
que contentes de ver Hiro-matsu.
Os cinzentos deram meia-volta e partiram. Blackthorne notou
os olhares hostis que receberam dos marrons.
Então eles são inimigos!
o portão girou nos gonzos e ele seguiu o velho para dentro.
Sozinho. Os outros samurais ficaram do lado de fora.
o pátio interno era guardado por mais marrons, assim como
o jardim que ficava além. Cruzaram o jardim e entraram na fortaleza. Hiro-matsu descalçou as sandálias e Blackthorne o imitou.
o corredor interno era ricamente atapetado com tatamis, as
mesmas esteiras de junco, limpas e macias aos pés, que havia no
chão de quase todas as casas, mesmo as mais pobres. Blackthorne
já havia notado que eram todas do mesmo tamanho, cerca de
seis pés por três.
o de se pensar, disse a si mesmo; nunca vi esteiras moldadas
ou cortadas em grandes dimensões. E nunca encontrei um aposento de formato indefinido! Todos os cômodos até agora não
eram exatamente quadrados ou retangulares? Claro! Isso quer
199

dizer que todas as casas - ou cômodos - devem ser construídos
para conter um número exato de esteiras. Por isso são todas de
tamanho padrão! Que coisa estranha!
Subiram escadas em caracol, facilmente defendíveis, seguiram por outros corredores e mais escadas. Havia muitos guardas,
sempre marrons. Raios de sol vindos das seteiras na parede traçavam desenhos intricados. Blackthorne podia ver que agora estavam bcm acima dos tres principais muros circundantes. A cidade
e a enseada eram uma colcha desenhada lá embaixo.
O corredor dobrou uma esquina brusca e terminou cinqüenta
passos à frente.
Blackthorne sentiu gosto de bile na boca. Não se preocupe,
disse a si mesmo, vote já resolveu o que vai fazer. Está comprometido.
Uma multidão de samurais, com seu jovem oficial a frente,
protegia a última porta - cada um deles com a mão direita
sobre o punho da espada, a esque;da na bainha, todos imóveis
e prontos, fitando os dois homens que se aproximavam.
Hiro-matsu sentiu-se tranqüilizado pela prontidão deles. Selecionara pessoalmente aqueles guardas. Odiava o castelo e pensou
novamente em como fora perigoso para Toranaga colocar-se em
poder do inimigo. Assim que desembarcara, na véspera, acorrera
ao encontro de Toranaga, para lhe contar o que acontecera e
descobrir se ocorrera alguma coisa desfavorável na sua ausência,
Mas continuava tudo tranqüilo, embora seus espiões sussurrassem
sobre perigosas formações do inimigo a norte e a leste, e que
seus principais aliados, os regentes Onoshi e Kiyama, os daimios
cristãos mais importantes, iam se passar para Ishido. Hiro-matsu
trocara a guarda e as senhas, e novamente implorara a Toranaga
que partisse, o que fora em vão.
A dez passos do oficial ele se deteve.
CAPÍTULO 11
Yoshi Naga, oficial do turno, era um perigoso e arisco jovem
de dezessete anos. - Bom dia, senhor. Seja bem-vindo.
- Obrigado. O Senhor Toranaga está a minha espera.
- Sim. - Mesmo que Hiro-matsu não fosse esperado, Naga
200
o teria admitido do mesmo modo. Toda Hiro-matsu era uma das
trés únicas pessoas no mundo que tinham permissão para se dirigir à presença de Toranaga de dia ou de noite, sem audiência
marcada.
- Revistem o bárbaro - disse Naga. Era o quinto filho de
Toranaga com uma das consortes, e idolatrava o pai.
Blackthorne submeteu-se quietamente, entendendo o que eles
estavam fazendo. Os dois samurais eram muito habilidosos. Nada
lhes teria escapado.
Naga fez sinal para o resto de seus homens. Moveram-se
para o lado. Ele abriu pessoalmente a pesada porta.
Hiro-matsu entrou na imensa sala de audiência. Pouco além
da soleira, ajoelhou-se, colocou as espadas no chão a sua frente,
estendeu as mãos no chão ao lado delas e inclinou profundamente
a cabeça, esperando nessa posição abjeta.
Naga, sempre vigilante, indicou a Blackthorne que fizesse o
mesmo. Blackthorne avançou. A sala tinha quarenta passos quadrados e dez de altura, com tatamis da melhor qualidade, impecáveis e com quatro dedos de espessura. Havia duas portas na
parede oposta. Perto do estrado, num nicho, um pequeno vaso
de cerâmica com um único ramo de flor de cerejeira, que enchia
o quarto de cor e perfume.
Ambas as portas estavam guardadas. A dez passos do estrado,
rodeando-o, encontravam-se mais vinte samurais, sentados de pernas cruzadas.
Toranaga estava sentado sobre uma única almofada no estrado. Estava tratando de uma pena quebrada na asa de um falcão
encapuzado, tão delicadamente quanto um entalhador de marfim.
Nem ele nem ninguém na sala mostrou ter notado a presença
de Hiro-matsu ou prestado atenção a Blackthorne quando este
avançou e parou ao lado do velho. Mas ao contrário de Hiromatsu, Blackthorne se inclinou como Rodrigues lhe mostrara,
depois, tomando fôlego profundamente, sentou-se de pernas cruzadas e olhou fixamente para Toranaga.
Todos os olhos faiscaram na direção de Blackthorne.
Na soleira da porta, a mão de Naga estava sobre a espada.
Hiro-matsu já havia agarrado a sua, embora ainda estivesse de
cabeça inclinada.
Blackthorne sentiu-se nu, mas se havia comprometido e agora
só podia esperar. Rodrigues dissera: "Com os japoneses, você tem
que agir como um rei", e embora aquilo não fosse agir como
um rei, era mais que suficiente.
201

Toranaga levantou os olhos lentamente.
Uma gota de suor começou a brotar na têmpora de Blackthorne, quando tudo o que Rodrigues lhe dissera sobre os samurais pareceu se cristalizar naquele único homem. Sentiu o suor
escorrer pouco a pouco pelo rosto até o queixo. Forçou-se a
manter os olhos azuis firmes e sem piscar, o rosto calmo.
o olhar de Toranaga era igualmente fixo.
Blackthorne sentiu o poder quase esmagador do homem
estender-se até ele. Forçou-se a contar até seis, lentamente, depois
inclinou a cabeça e curvou-a levemente de novo, esboçando um
pequeno e calmo sorriso.
Toranaga olhqu-o brevemente, o rosto impassível, depois
baixou o olhar e se concentrou novamente no que estava fazendo.
A tensão na sala diminuiu.
o falcão não era do país e estava na plenitude. O treinador,
um velho e enrugado samurai, estava de joelhos diante de Toranaga, segurando o falcão como se fosse algodão de vidro. Toranaga cortou a pena quebrada, mergulhou a minúscula agulha de
bambu na cola e inseriu-a no cabo da pena, depois delicadamente
enfiou a pena recém-cortada até a outra extremidade. Ajustou o
ângulo até considerá-lo perfeito e amarrou-a com um fio de
seda. Os minúsculos sinos nos pés do falcão retiniram e ele acalmou-lhe o medo.
Yoshi Toranaga, senhor de Kwanto - as Oito Províncias
cabeça do clã Yoshi, general-chefe dos exércitos do leste,
presidente do conselho de regentes, era um homem baixo com
uma grande cintura e um largo nariz. Tinha as sobrancelhas
espessas e escuras, o bigode e a barba ralos e salpicados de cinza.
Os olhos dominavam-lhe o rosto. Tinha cinqüenta e oito anos e
era forte para a idade. Usava um quimono simples, um uniforme
marrom comum, com cinto de algodão. Mas suas espadas eram
as melhores do mundo.
- Aí está, minha beleza - disse ele com uma ternura de
amante. - Agora você está inteira de novo. - Acariciou a ave
com uma pena enquanto ela se sentava sempre encapuzada no
pulso enluvado do treinador. Ela se arrepiou e se alisou com o
bico, satisfeita. - Vamos fazê-la voar ainda esta semana.
o treinador curvou-se e saiu.
Toranaga voltou os olhos para os dois homens à porta. -
Bem-vindo, Punho de Aço, estou contente em vê-lo - disse.
- Então esse é o seu famoso bárbaro?
- Sim, senhor. - Hiro-matsu aproximou-se, deixando as
202
espadas na soleira conforme o costume, mas Toranaga msishu
para que ele as levasse consigo.
- Eu me sentiria desconfortável se você não as tivesse nas
mãos - disse Toranaga.
Hiro-matsu agradeceu-lhe. Ainda assim, sentou-se a cinco
passos de distância. Por costume, nenhuma pessoa armada podia
sentar-se mais perto do que isso de Toranaga. Na primeira
fileira dos guardas estava Usagi, marido da neta de Hiro-matsu,
seu parente predileto, a quem este fez um breve aceno de cabeça.
O jovem curvou-se profundamente, honrado e contente por ter
sido notado. Talvez eu devesse adotá-lo formalmente, pensou
Hiro-matsu alegremente, aquecido pela lembrança da neta favorita e do primeiro bisneto, que lhe haviam apresentado no ano
anterior.
- Como estão suas costas? - perguntou Toranaga solicitamente.
- Bem, obrigado, senhor. Mas devo dizer-lhe que estou
contente por me ver fora daquele navio e em terra de novo.
- Ouvi dizer que você tem um novo brinquedo aqui com
que passar as horas, neh?
O velho deu uma gargalhada. - Só posso lhe dizer, senhor,
que as horas não foram ociosas. Fazia anos que eu não tinha
tanto trabalho.
Toranaga riu com ele. - Então deveríamos recompensá-la.
Sua saúde é importante para mim. Posso mandar a ela um símbolo dos meus agradecimentos?
- Ah, Toranaga-sarna, o senhor é tão gentil. - Hiro-matsu
ficou sério. - Poderia recompensar a todos nós, senhor, deixando
este ninho de vespas imediatamente, e voltando para o seu castelo em Yedo, onde seus vassalos podem protegê-lo. Aqui estamos
vulneráveis. A qualquer momento Ishido poderia...
- Partirei. Assim que a reunião do conselho de regentes
termine. - Toranaga voltou-se e chamou com um gesto o português de rosto magro que estava pacientemente sentado à sua
sombra. - Quer traduzir para mim agora, meu amigo?
- Certamente, senhor. - O padre tonsurado avançou e com
uma graça vinda da prática ajoelhou-se em estilo japonês junto do
estrado. Tinha o corpo tão enxuto quanto o rosto, os olhos escuros
e líquidos, um ar de serena concentração ao seu redor. Usava
meias tabis e um quimono ondeante que, nele, parecia estar na
pessoa certa. Um rosário e uma cruz de ouro entalhado pendiam203

lhe do cinto. Saudou Hiro-matsu como a um igual, depois olhou
amavelmente para Blackthorne.
- Meu nome é Martim Alvito, da Companhia de Jesus,
piloto-mor. O Senhor Toranaga me pediu que lhe servisse de
intérprete.
- Primeiro diga-lhe que somos inimigos e que...
- Tudo na sua hora - interrompeu-o o Padre Alvito suavemente. E acrescentou: - Podemos falar português, espanhol
ou, naturalmente, latim, o que você preferir.
Blackthorne não tinha visto o padre até que o homem avançara. O estrado o escondera, e os outros samurais. Mas estivera
à espera dele, prevenido por Rodrigues, e detestou o que viu:
a elegância desenvolta, a aura de força e poder natural dos jesuítas. Presumira que o padre fosse muito mais velho, considerando
sua posição influente e o que Rodrigues lhe falara dele. Mas
eram praticamente da mesma idade, ele e o jesuíta. Talvez o padre
fosse poucos anos mais velho.
- Português - disse ele, com severidade, esperando que
isso pudesse lhe dar uma leve vantagem. - Você é português?
- Tenho esse privilégio.
- É mais jovem do que eu esperava.
- O Sr. Rodrigues é muito gentil. Dá-me mais crédito
do que mereço. A você descreveu com perfeição. Assim como à
sua bravura.
Blackthorne viu-o voltar-se e falar fluente e afavelmente
com Toranaga um instante, e isso o perturbou ainda mais. Apenas
Hiro-matsu, de todos os homens na sala, ouviu e observou com
atenção. Os outros fitavam o vazio, como se fossem de pedra.
- Agora, capitão-piloto, começaremos. Você, por favor,
ouvirá tudo o que o Senhor Toranaga disser, sem interrupções -
começou o Padre Alvito. - Depois responderá. Daqui em diante
estarei traduzindo o que você disser quase simultaneamente, portanto, por favor, responda com grande cuidado.
- De que se trata? Não confio em você!
Imediatamente o Padre Alvito traduziu o que ele disse, e o
rosto de Toranaga se turvou visivelmente.
Tenha cuidado, pensou Blackthorne, ele está brincando com
você como com um peixe! Três guinéus de ouro contra um ceitil
mascado como ele pode acabar com você. Traduza ele corretamente ou não, você tem que criar a impressão correta em Toranaga. Pode ser a única chance que você jamais tenha tido.
- Pode confiar em mim para traduzir exatamente o que
204
você disser, da melhor maneira que eu puder. - A voz do padre
era suave, sob controle absoluto. - Esta é a corte do Senhor
Toranaga. Sou o intérprete oficial do conselho de regentes, do
Senhor General Toranaga e do Senhor General Ishido. O Senhor
Toranaga honra-me com sua confiança há muitos anos. Sugirolhe que responda com sinceridade porque posso lhe garantir que
ele é um homem muito sagaz. Também devo assinalar que não
sou o Padre Sebastio, que, talvez, é excessivamente zeloso e, infelizmente, não fala japonês muito bem nem tem muita experiência
no Japão. A sua presença repentina afastou a graça de Deus para
longe dele, que, lamentavelmente, permitiu que seu passado pessoal o dominasse - seus pais, irmãos e irmãs foram massacrados
do modo mais hediondo na Neerlândia pelas suas... pelas forças
do Príncipe de Orange. Peço que tenha indulgência e compaixão
por ele. - Sorriu benevolamente. - A palavra japonesa para
"inimigo" é "teki". Você pode usá-la se quiser. Se apontar para
mim e usar essa palavra, o Senhor Toranaga compreenderá claramente o que quer dizer. Sim, sou seu inimigo, Capitão-Piloto
John Blackthorne. Completamente. Mas não sou seu assassino.
Isso você fará por si mesmo.
Blackthorne viu-o explicar a Toranaga o que dissera e ouviu
a palavra "teki" várias vezes. Perguntou a si mesmo se realmente
significava "inimigo". Claro que sim, pensou. Este homem não é
como o outro.
- Por favor, por um momento esqueça que eu existo -
disse o Padre Alvito. - Sou meramente um instrumento para
transmitir as suas respostas ao Senhor Toranaga, exatamente
como farei com as perguntas dele. - O Padre Alvito se acomodou, voltou-se para Toranaga e curvou-se polidamente.
Toranaga falou brevemente. O padre começou a traduzir
quase simultaneamente, poucas palavras depois, com uma voz que
era um perigoso espelho de inflexão e significado secreto.
- Por que você é inimigo de Tsukku-san, meu amigo e intérprete, que não é inimigo de ninguém? - O Padre Alvito acrescentou, à guisa de explicação: - Tsukku-san é o meu apelido,
porque os japoneses também não conseguem pronunciar o meu
nome. A língua deles não tem o som "1" nem "th". Tsukku é uma
adaptação da palavra japonesa "tsuyaku", "interpretar". Por favor,
responda à pergunta.
- Somos inimigos porque nossos países estão em guerra.
- Oh? Qual é o seu país?
- A Inglaterra.
205

- Onde fica?
- É um reino insular, mil milhas ao norte de Portugal.
Portugal é parte de uma península na Europa.
- Há quanto tempo estão em guerra com Portugal?
- Desde que Portugal se tornou um Estado vassalo da
Espanha. Isso foi em 1580, vinte anos atrás. A Espanha conquistou Portugal. Na realidade estamos em guerra com a Espanha.
Estamos em guerra com ela há quase trinta anos.
Blackthorne notou a surpresa de Toranaga e seu olhar inquisitivo ao Padre Alvito, que fitava a distância serenamente.
- Diz que Portugal é parte da Espanha?
- Sim, Senhor Toranaga. Um Estado vassalo. A Espanha
conquistou Portugal e agora são de fato o mesmo país, com o
mesmo rei. Mas os portugueses são subservientes aos espanhóis
em muitas partes do mundo e seus líderes são tratados como
pessoas sem importância no império espanhol.
Houve um longo silêncio. Então Toranaga falou diretamente
ao jesuíta, que sorriu e respondeu detalhadamente.
- O que ele disse? - perguntou Blackthorne rispidamente.
O Padre Alvito não respondeu, mas traduziu como antes,
quase simultaneamente, imitando-lhe a inflexão, continuando o
seu virtuosístico desempenho de interpretação.
Toranaga respondeu diretamente a Blackthorne, com voz dura
e cruel. - O que eu disse não é da sua conta. Quando quiser
que você saiba alguma coisa eu lhe direi.
- Sinto muito, Senhor Toranaga, não tinha a intenção de
ser rude. Posso dizer-lhe que viemos em paz...
- Não pode me dizer nada no momento. Vai conter a
língua até que eu lhe solicite uma resposta. Compreendeu?
- Sim.
Erro número um. Vigie-se. Você não pode cometer erros,
disse ele a si mesmo.
- Por que estão em guerra com a Espanha? E com Portugal?
- Parcialmente porque a Espanha está inclinada a conquistar o mundo e nós, ingleses, e nossos aliados, os neerlandeses,
recusamo-nos a ser conquistados. E parcialmente por causa das
nossas religiões.
- Ah! Uma guerra religiosa? Qual é a sua religião?
- Sou cristão. Nossa igreja...
- Os portugueses e os espanhóis são cristãos! Você disse
que sua religião era diferente. Qual é a sua religião?
206
- É a cristã. É difícil explicar de modo simples e rápido,
Senhor Toranaga. São ambas...
- Não há necessidade de ser rápido, Senhor Piloto, apenas
preciso. Tenho muito tempo. Sou muito paciente. Você é um
homem culto, obviamente não é um camponês, portanto pode ser
simples ou complicado conforme deseje, exatamente o necessário
para ser claro. Se se desviar do ponto eu o trarei de volta. Estava
dizendo?
- Minha religião é cristã. Há duas religiões cristãs importantes, a protestante e a católica. A maioria dos ingleses são protestantes.
- Adoram ao mesmo Deus, à Nossa Senhora e à Criança?
- Não, senhor. Não do modo como os católicos o fazem.
- O que ele quer saber? Será que é católico? Devo responder o
que acho que ele quer saber ou o que acho que é verdade? Será
que é anticristão? Mas ele não chamou o jesuíta de "meu amigo"?
Será que Toranaga é um simpatizante dos católicos, será que vai
se tornar católico?
- Você acredita que Jesus é Deus?
- Acredito em Deus - disse ele cuidadosamente.
- Não se esquive a uma pergunta direta! Acredita que
Jesus é Deus? Sim ou não?
Blackthorne sabia que em qualquer corte católica do mundo
ele já teria sido condenado há muito por heresia. E na maioria
das cortes protestantes, se não em todas. O simples fato de hesitar
antes de responder a uma pergunta assim já era uma admissão
de dúvida. Dúvida era heresia.
- Não se pode responder a perguntas sobre Deus com um
"sim" ou "não". Tem que haver gradações de "sim" ou "não".
Ninguém sabe com certeza sobre Deus até que esteja morto. Sim,
acredito que Jesus era Deus, mas não, não sei com certeza até
estar morto.
- Por que foi que você quebrou a cruz do padre quando
chegou ao Japão?
Blackthorne não esperava essa pergunta. Toranaga sabe de
tudo o que aconteceu desde que cheguei? - Eu... eu queria
mostrar ao Daimio Yabu que o jesuíta, o Padre Sebastio, o
único intérprete que havia lá, que ele era meu inimigo, que não
merecia crédito, pelo menos na minha opinião. Porque eu tinha
certeza de que ele necessariamente não traduziria com exatidão,
não como o Padre Alvito está fazendo agora. Acusou-nos de sermos piratas, por exemplo. Não somos piratas, viemos em paz.
207

- Ah, sim! Piratas. Voltarei à pirataria num instante. Você
diz que ambas as seitas são cristãs, ambas veneram Jesus, o Cristo?
A essência do ensinamento dele não é "amarem-se uns aos outros"?
- Sim.
- Então como podem ser inimigos?
- O credo deles... a versão deles do cristianismo é uma
falsa interpretação das Escrituras.
- Ah! Finalmente estamos chegando a alguma coisa. Então
vocês estão em guerra devido a uma diferença de opinião sobre
o que é Deus e o que não e?
- Sim.
- É uma razão muito estúpida para fazer guerra.
- Concordo - disse Blackthorne. Olhou para o padre. -
Concordo de todo o coração.
- Quantos navios tem a sua esquadra?
- Cinco.
- E você era o primeiro-piloto?
- Sim.
- Onde estão os outros?
- Ao mar - disse Blackthorne cuidadosamente, continuando a mentira e presumindo que Toranaga tivesse sido instruído
por Alvito para perguntar certas coisas. - Fomos divididos por
uma tempestade e dispersamo-nos. Onde estão exatamente eu não
sei, senhor.
- Seus navios eram ingleses?
- Não, senhor, holandeses. Da Holanda.
- Por que um inglês está encarregado de navios holandeses?
- Isso não é raro, senhor. Somos aliados. Pilotos portugueses às vezes comandam navios e esquadras- espanhóis. Tomei
conhecimento de que pilotos portugueses comandam alguns dos
seus navios oceânicos, e por lei.
- Não há pilotos holandeses?
- Muitos, senhor. Mas para uma viagem tão longa os
ingleses são mais experimentados.
- Mas por que você? Por que quiseram que você conduzisse os navios deles?
- Provavelmente porque minha mãe era holandesa, falo a
língua fluentemente e sou experimentado. Fiquei contente com a
oportunidade.
- Por quê?
- Foi a minha primeira oportunidade para singrar estas
208
águas. Não havia navios ingleses planejando vir tão longe. Foi
uma chance de circunavegar.
- Você pessoalmente, piloto, juntou-se à esquadra por causa
da sua religião e para combater seus inimigos da Espanha e
Portugal?
- Sou um piloto, senhor, antes de mais nada. Nenhum inglês
ou holandês jamais esteve nestes mares antes. Somos principalmente uma esquadra mercante, embora tenhamos cartas de corso para
atacar o inimigo do Novo Mundo. Viemos ao Japão para fazer
comércio.
- O que são cartas de corso?
- Licenças legais emitidas pela coroa, ou governo, autorizando-nos a combater o inimigo.
- Ah, e os seus inimigos estão aqui. Planeja combatê-los
aqui?
- Não sabíamos o que esperar quando chegássemos aqui,
senhor. Viemos apenas para comerciar. Seu país é quase desconhecido, uma lenda. Os portugueses e espanhóis são muito sigilosos
sobre esta área.
- Responda à pergunta: seus inimigos estão aqui. Planeja
combatê-los aqui?
- Se eles me atacarem, sim.
Toranaga mudou de posição irritado. - O que vocês fazem
no mar ou em seus países é assunto de vocês. Mas aqui há uma
lei para todos e os estrangeiros estão na nossa terra unicamente
por permissão. Qualquer desordem ou rixa públicas são imediatamente punidas com morte. Nossas leis são claras e serão obedecidas. Compreendeu?
- Sim, senhor. Mas viemos em paz. Viemos para fazer comércio. Poderíamos. discutir o assunto, senhor? Preciso carenar o
meu navio e fazer alguns reparos. Podemos pagar tudo. Depois há
a quest.. .
- Quando eu quiser falar sobre comércio ou qualquer outra
coisa eu lhe direi. Enquanto isso, por favor, limite-se a responder
às perguntas. Portanto você se juntou à expedição para fazer
comércio, por lucro, não por dever ou lealdade? Por dinheiro?
- Sim. É o nosso costume, senhor. Ser pago e ter uma
parte do saq... do comércio todo e de todos os bens inimigos
capturados.
- Então você é um mercenário?
- Fui contratado como primeiro-piloto para conduzir a
expedição. Sim. - Blackthorne podia sentir a hostilidade de
209

Toranaga, mas não compreendia por quê. O que foi que eu disse
de errado? O padre não disse que eu assassinaria a mim mesmo?
- É um hábito normal entre nós, Toranaga-sarna - repetiu.
Toranaga começou a conversar com Hiro-matsu e trocaram
pontos de vista, ambos num acordo óbvio. Blackthorne pensou
ver asco no rosto deles. Por quê? Obviamente era alguma coisa
relacionada com "mercenário", pensou. O que há de errado nisso?
As pessoas todas não são pagas? De que outro modo ganhar
dinheiro suficiente para viver? Mesmo que se herde terra, ainda se...
- Você disse antes que veio para fazer comércio pacificamente - estava dizendo Toranaga. - Por que, então, carrega
tantas armas e tanta pólvora, mosquetes e munição?
- Nossos inimigos espanhóis e portugueses são muito numerosos e fortes, Senhor Toranaga. Temos que nos proteger e .. .
- Está dizendo que suas armas são meramente defensivas?
- Não. Usamo-las não só para nos proteger mas também
para atacar nossos inimigos. E nós as produzimos em abundância
para comércio, as armas de melhor qualidade do mundo. Talvez
pudéssemos negociá-las com o senhor, ou outras mercadorias que
trazemos.
- O que é um pirata?
- Um fora-dá-lei. Um homem que rouba, mata ou pilha
por lucro pessoal.
- Não é o mesmo que um mercenário? Não é isso que vote
é? Um pirata e um chefe de piratas?
- Não. A verdade é que meus navios têm cartas de corso
dos dirigentes legais da Holanda, autorizando-nos a combater
em todos os mares e lugares dominados até agora pelos nossos
inimigos. E a encontrar mercados para nossos produtos. Para os
espanhóis e a maioria dos portugueses, sim, somos piratas, e
hereges religiosos, mas, repito, a verdade é que não somos.
O Padre Alvito terminou de traduzir, depois começou a
falar tranqüila mas firmemente, direto a Toranaga.
Como gostaria de poder falar assim diretamente também,
pensou Blackthorne, blasfemando intimamente. Toranaga olhou
para Hiro-matsu e o velho fez algumas perguntas ao jesuíta, que
respondeu prolixamente. Depois Toranaga se voltou para Blackthorne e sua voz tornou-se ainda mais severa.
- Tsukku-san diz que esses "holandeses", os neerlandeses,
eram vassalos do rei espanhol até alguns anos atrás. É verdade?
- Sim.
210
- Em conseqüência, os neerlándeses, seus aliados, encontram-se em estado de rebelião contra o rei legal?
- Estão em luta contra os espanhóis, sim. Mas.. .
- Isso não é rebelião? Sim ou não?
- Sim. Mas há circunstâncias atenuantes. Sérias atenu.. .
- Não existem "circunstâncias atenuantes" quando se trata
de rebelião contra um senhor soberano.
- A menos que se vença.
Toranaga olhou atentamente para ele. Depois riu estrondosamente. Disse alguma coisa a Hiro-matsu no meio da gargalhada
e Hiro-matsu assentiu.
- Sim, Sr. Estrangeiro com o nome impossível, sim.
Você citou o único fator atenuante. - Outra casquinada, depois
o humor desapareceu de modo tão repentino como começara. Voces vão vencer?
- Hai.
Toranaga falou novamente mas o padre não traduziu de imediato. Estava sorrindo de modo peculiar, os olhos fixos em
Blackthorne. Suspirou e disse: - Tem tanta certeza?
- Foi isso o que ele disse ou é o que você está dizendo?
- O Senhor Toranaga disse isso. Minha... ele disse isso.
- Sim. Diga-lhe que sim, tenho muita certeza. Posso explicar por quê?
O Padre Alvito falou com Toranaga muito mais tempo do
que levaria para traduzir essa simples pergunta. Você está tão
calmo quanto aparenta? - queria perguntar-lhe Blackthorne.
Qual é a chave que o desvenda? Como o destruo?
Toranaga falou e tirou um leque da manga.
O Padre Alvito começou a traduzir novamente com a mesma
descortesia sinistra, cheio de ironia. - Sim, piloto, você pode
me dizer por que acha que vencerá esta guerra.
Blackthorne tentou permanecer confiante, consciente de que
o padre o estava dominando. - Atualmente dominamos os mares
da Europa, a maioria dos mares da Europa - disse, corrigindose. Não se deixe arrebatar. Diga a verdade. Torça-a um pouco,
exatamente como é certo que o jesuíta está fazendo, mas diga a
verdade. - Nós, ingleses, esmagamos duas imensas armadas espanholas e portuguesas - invasões - e é pouco provável que
eles sejam capazes de organizar outras. Nossa pequena ilha é uma
fortaleza e estamos seguros agora. Nossa Marinha domina o mar.
Nossos navios são mais rápidos, mais modernos, e mais bem
armados. Com mais de cinqüenta anos de terror, Inquisição e
211
carnificina, os espanhóis não venceram os holandeses. Nossos
aliados estão ilesos e fortes e uma coisa mais: estão fazendo o
império espanhol sangrar até a morte. Venceremos porque somos
os donos dos mares e porque o rei espanhol, na sua vaidosa
arrogância, não vai querer deixar livre um povo hostil.
-- São os donos dos mares? Dos nossos também? Os que
contornam nossas costas?
- Não, claro que não, Toranaga-sarna. Não tive a intenção
de ser arrogante. Referia-me, naturalmente, aos mares europeus,
embora...
- Bom, fico contente de que isso esteja claro. Estava dizendo? Embora...?
- Apesar de que, em todos os altos-mares, logo estaremos
varrendo o inimigo - disse Blackthorne claramente.
- Você disse "o inimigo". Talvez nós também sejamos seus
inimigos? E então? Tentarão afundar nossos navios e nos assolar?
- Não posso conceber a idéia de ser seu inimigo.
- Eu posso, com muita facilidade. E então?
- Se o senhor viesse contra a minha terra, eu o atacaria
e tentaria vencê-lo - disse Blackthorne.
- E se o seu governante ordenasse que nos atacasse aqui?
- Eu daria conselho em contrário. Veementemente. Nossa
rainha daria ouvidos. Ela é .. .
- Você é governado por uma rainha e não por um rei?
- Sim, Senhor Toranaga. Nossa rainha é sábia. Ela não
daria.., não poderia dar uma ordem tão imprudente.
- E se desse? Ou se o seu governante legal o fizesse?
- Então eu encomendaria a alma a Deus porque certamente
morreria. De um modo ou de outro.
- Sim. Morreria. Você e todas as suas legiões. - Toranaga
fez uma pausa. Em seguida perguntou: - Quanto tempo você
levou para chegar aqui?
- Quase dois anos. Exatamente um ano, onze meses e dois
dias. Uma distância marítima aproximada de quatro mil léguas,
cada uma de três milhas.
O padre traduziu, depois acrescentou alguma coisa brevemente. Toranaga e Hiro-matsu interrogaram o padre, que assentiu
e respondeu.
Toranaga usava o leque pensativamente.
- Converti as medidas e o tempo, Capitão-Piloto Blackthorne, para as medidas deles - disse o padre polidamente.
- Obrigado.
212
Toranaga falou novamente: - Como chegou aqui? Por que
rota?
- Pelo estreito de Magalhães. Se dispusesse de meus mapas
e portulanos, poderia lhe mostrar com clareza, mas foram roubados... foram removidos do meu navio com as minhas cartas
de corso e todos os meus papéis. Se o senhor.. .
Blackthorne parou quando Toranaga falou bruscamente com
Hiro-matsu, que estava igualmente perturbado.
- Afirma que todos os seus papéis foram removidos...
roubados?
- Sim.
- Isso é terrível, se for verdade. Abominamos o roubo no
Nippon... Japão. A punição para roubo é a morte. O assunto
será investigado instantaneamente. Parece incrível que qualquer
japonês fizesse tal coisa, embora haja infames bandidos e piratas
aqui e ali.
- Talvez só tenham sido tirados do lugar - disse Blackthorne. - E colocados em segurança em alguma outra parte. Mas
são valiosos, Senhor Toranaga. Sem as minhas cartas marítimas,
eu seria como um homem cego num labirinto. Gostaria que eu
lhe explicasse minha rota?
- Sim, mas mais tarde. Primeiro diga-me por que percorreram toda essa distância.
- Viemos para comerciar, pacificamente - repetiu Blackthorne, contendo a impaciência. - Para comerciar e voltar para
casa. Para fazê-lo mais rico e a nós mais ricos. E para tentar .. .
- Vocês mais ricos e nós mais ricos? O que é mais importante aí?
- Ambas as partes devem lucrar, naturalmente, e o comércio deve ser justo. Estamos visando ao comércio a longo prazo;
ofereceremos termos melhores do que os dos portugueses e espanhóis, e um serviço melhor. Nossos mercadores lackthorne
parou ao ouvir o som de vozes altas do lado de fora da sala. Hiromatsu e metade dos guardas dirigiram-se imediatamente para a
soleira, e os outros se moveram para formar um cerrado aglomerado de proteção ao estrado. Os samurais diante das portas internas puseram-se de prontidão, igualmente.
Toranaga não se movera. Falou ao Padre Alvito.
- Deve vir para cá, Capitão Blackthorne, para longe da
porta - disse o padre com uma premência cuidadosamente contida. - Se dá valor à vida, não se mova repentinamente nem diga
213

nada. - Moveu-se lentamente para a porta interna à esquerda e
sentou-se perto dela.
Blackthorne curvou-se inquieto para Toranaga, que o ignorou, e caminhou com cautela na direção do padre, profundamente
consciente de que sob aquele ponto de vista a entrevista fora um
desastre. - O que está acontecendo? - perguntou num sussurro
ao se sentar.
Os guardas em torno se retesaram ameaçadores e o padre
disse rapidamente alguma coisa para tranqüilizá-los. - Será um
homem morto na próxima vez que falar - disse a Blackthorne,
pensando: quanto mais depressa, melhor. Com uma lentidão compassada, pegou um lenço da manga e enxugou o suor das mãos.
Exigira-lhe todo o treinamento e resistência permanecer calmo e
amável durante a entrevista do herege, que fora pior do que até
o padre-lnspetor esperara.
- Você terá que estar presente? - perguntara o padre-lnspetor na noite anterior.
- Toranaga solicitou-me especificamente.
- Acho que é muito perigoso para você e para todos nós.
Talvez pudéssemos pretextar uma doença. Se você estiver lá, terá
que traduzir o que o pirata disser, e pelo que descreve o Padre Sebastio ele é um demônio na terra, tão astucioso quanto um judeu.
- É muito melhor que eu esteja lá, Eminência. Pelo menos
serei capaz de interceptar as mentiras menos óbvias de Blackthorne.
- Por que será que veio até aqui? Por que agora, quando
tudo estava se tornando perfeito de novo? Será que eles realmente
têm outros navios no Pacífico? É possível que tenham enviado
uma esquadra contra a Manila espanhola? Não que eu me importe
um nadinha com essa cidade pestilenta ou qualquer uma das colônias espanholas nas Filipinas, mas uma esquadra inimiga no
Pacífico! Isso teria terríveis implicações para nós na Asia. E se
ele conseguisse que Toranaga lhe desse ouvidos, ou Ishido, ou
qualquer um dos daimios mais poderosos, bem, ficaria enormemente difícil, para dizer o mínimo.
- Blackthorne é um fato. Felizmente estamos numa posição
de poder lidar com ele.
- Deus é meu juiz, mas eu quase acreditaria que os espanhóis, ou mais provavelmente os seus lacaios desencaminhados, os
franciscanos e os beneditinos, deliberadamente o guiaram para cá
a fim de nos importunar.
- Talvez tenham feito isso, Eminência. Não há nada que os
214
monges não fariam para nos destruir. Mas é apenas ciúme por
estarmos tendo êxito onde eles fracassam. Certamente Deus lhes
mostrará o erro do seu procedimento! Talvez o inglês se "remova"
por si mesmo antes de causar qualquer dano. Seus portulanos provam que ele é o que é. Um pirata e um líder de piratas!
- Leia-os para Toranaga, Martim. As partes onde ele descreve o saque de povoados indefesos da Africa ao Chile, e a lista
do saque e toda a matança.
- Talvez devêssemos esperar, Eminência. Sempre podemos
exibir os portulanos. Esperemos que ele se condene sem isso.
O Padre Alvito enxugou as palmas das mãos novamente.
Podia sentir os olhos de Blackthorne sobre ele. Deus tenha piedade de você, pensou. Pelo que disse hoje a Toranaga, sua vida
não vale um níquel falsificado, e pior ainda, sua alma está além
de qualquer redenção. Será crucificado, mesmo sem a evidência
dos seus portulanos. Deveríamos mandá-los de volta ao Padre
Sebastio, de modo que ele possa devolvê-los a Mura? O que faria
Toranaga se os papéis nunca fossem descobertos? Não, isso seria
perigoso demais para Mura.
A porta na extremidade mais afastada abriu-se com um estremecimento.
- O Senhor Ishido quer vê-lo, senhor - anunciou Naga.
- Ele... ele está aqui no corredor e quer vê-lo. Imediatamente,
diz ele.
- Voltem a seus lugares, todos vocês - disse Toranaga aos
seus homens. Foi imediatamente obedecido. Mas todos os samurais
se sentaram encarando a porta, com Hiro-matsu à testa deles, as
espadas afrouxadas nas bainhas. - Naga-san, diga ao Senhor
Ishido que ele é sempre bem-vindo. Peça-lhe que entre.
O homem alto entrou a passos largos na sala. Dez dos seus
samurais - cinzentos - o seguiram, mas permaneceram à soleira
e, a um sinal dele, sentaram-se de pernas cruzadas.
Toranaga curvou-se com uma formalidade precisa e a reverência foi retribuída com a mesma exatidão.
O Padre Alvito bendisse a própria sorte por estar presente.
O conflito pendente entre os dois líderes rivais afetaria completamente o curso do império e o futuro da Mãe Igreja no Japão,
portanto qualquer indício ou informação que pudesse ajudar os
jesuítas a decidir onde lançar sua influência seria de uma importância incomensurável. Ishido era zen-budista e fanaticamente anticristão, Toranaga era zen-budista e abertamente simpatizante.
Mas a maioria dos daimios cristãos apoiava Ishido, temendo 215

justificadamente, acreditava o Padre Alvito - a ascendência de
Toranaga. Os daimios cristãos achavam que, se Toranaga eliminasse a influência de Ishido do conselho de regentes, usurparia o
poder todo para si. E uma vez que detivesse o poder, acreditavam eles, poria em execução os editos de expulsão do táicum e
arrasaria a verdadeira fé. Se, no entanto, Toranaga fosse eliminado, a sucessão, uma débil sucessão, estaria garantida e a Mãe
Igreja prosperaria.
Como a fidelidade dos daimios cristãos vacilava, semelhantemente ao que ocorria com todos os outros daimios da terra, e o
equilíbrio do poder entre os dois líderes flutuasse continuamente,
ninguém sabia com certeza que lado era, na realidade, o mais
poderoso. Nem ele, o Padre Alvito, o europeu mais bem informado do império, podia dizer com certeza que lado os daimios
cristãos realmente apoiariam quando o conflito se tornasse declarado, ou que facção prevaleceria.
Viu Toranaga descer do estrado, atravessando o círculo de
segurança formado por seus homens.
- Bem-vindo, Senhor Ishido. Por favor, sente-se ali. - Toranaga fez um gesto na direção da única almofada sobre o estrado. - Gostaria que se sentisse confortável.
- Não, obrigado, Senhor Toranaga. - Ishido Kazunari era
magro, moreno e muito vigoroso, um ano mais novo do que
Toranaga. Eram inimigos de longa data. Oito mil samurais no
interior e nos arredores do Castelo de Osaka atendiam às suas
ordens, pois era o comandante da guarnição - e portanto o comandante da guarda pessoal do herdeiro -, general-chefe dos
exércitos de oeste, conquistador da Coréia, membro do conselho
de regentes, e antigamente inspetor-geral de todos os exércitos do
falecido táicum, os quais, legalmente, eram compostos por todos
os exércitos de todos os daimios no reino inteiro. - Não, obrigado - repetiu. - Ficaria embaraçado de estar confortável e o
senhor não, neh? Um dia eu lhe tomarei a almofada, mas não hoje.
Uma torrente de cólera percorreu os marrons ante a ameaça
implícita de Ishido, mas Toranaga respondeu amavelmente. -
Veio num momento muito oportuno. Eu estava acabando de entrevistar o novo bárbaro. Tsukku-san, por favor, diga-lhe que se
levante.
O padre fez conforme o solicitado. Sentiu a hostilidade de
Ishido vindo do outro lado da sala. Além de ser anticristão, Ishido
sempre fora veemente na sua condenação a todos os europeus e
queria o império totalmente fechado para eles.
216
Ishido olhou para Blackthorne com acentuado desagrado.
- Ouvi dizer que era feio, mas não imaginava que fosse tanto.
Corre o boato de que é pirata. É mesmo?
- O senhor pode duvidar disso? E também e mentiroso.
- Então, antes de crucificá-lo, deixe-o comigo por meio dia.
O herdeiro poderia achar divertido vê-lo antes com a cabeça no
lugar. - Ishido riu asperamente. - Ou talvez devesse ser ensinado a dançar como um urso, então o senhor poderia exibi-lo por
todo o império: "O Monstro Vindo do Leste".
Embora fosse verdade que Blackthorne tivesse, singularmente, vindo dos mares orientais - ao contrário dos portugueses, que
sempre vinham do sul e por isso eram chamados de bárbaros meridionais -, Ishido estava espalhafatosamente insinuando que
Toranaga, que dominava as províncias orientais, era o verdadeiro
monstro.
Mas Toranaga simplesmente sorriu, como se não tivesse compreendido.
- É um homem de muito humor, Senhor Ishido - disse.
- Mas concordo em que quanto mais depressa o bárbaro for eliminado, melhor. É enfadonho, arrogante, fala grosso e de modo
singular, sim, mas é de pouco valor, e sem educação. Naga-san,
mande alguns homens e ponha-o coin os criminosos comuns.
Tsukku-san, diga-lhe que os acompanhe.
- Capitão-piloto, deve seguir esses homens.
- Para onde estou indo?
O padre hesitou. Estava contente por ter vencido, mas o
adversário era corajoso e tinha uma alma imortal que ainda podia
ser salva. - Vai para a prisão - disse.
- Por quanto tempo?
- Não sei, meu filho. Até que o Senhor Toranaga resolva.
CAPITULO 12
Enquanto observava o bárbaro deixar a sala, Toranaga desviou a mente pesarosamente da surpreendente entrevista e se atracou ao problema mais imediato de Ishido.
Toranaga havia resolvido não dispensar o padre, sabendo que
217

isso enfureceria ainda mais Ishido, embora tivesse a certeza de
que a presença contínua do padre poderia ser perigosa. Quanto
menos os estrangeiros soubessem, melhor. Quanto menos qualquer
pessoa souber, melhor, pensou ele. A influência de Tsukku-san
sobre os daimios cristãos será a meu favor ou contra mim? Até
hoje confiei nele implicitamente. Mas houve uns momentos estranhos com o bárbaro que ainda não compreendi.
Ishido deliberadamente não seguiu as cortesias habituais e
foi instantaneamente ao ponto. - Devo perguntar-lhe novamente: qual é a sua resposta ao conselho de regentes?
- Repito novamente: como presidente do conselho de regentes, não acredito que seja necessária qualquer resposta. Fiz
algumas conexões de família secundárias que não têm importância. Nenhuma resposta se faz necessária.
- O senhor contratou o casamento de seu filho, Naga-san,
com a filha do Senhor Masamune, o de uma de suas netas com o
filho e herdeiro do Senhor Zataki, o de outra neta com o filho do
Senhor Kiyama. Todos os casamentos se relacionam com senhores
feudais ou com parentes próximos deles, portanto não são secundários e são absolutamente contrários às ordens de nosso amo.
- Nosso falecido amo, o táicum, morreu há um ano. Infelizmente. Sim. Lamento a morte do meu cunhado e preferiria que
ainda estivesse vivo, guiando os destinos do império. - Toranaga
acrescentou prazerosamente, revolvendo uma faca numa ferida
permanente: - Se meu cunhado fosse vivo, não há dúvida de que
aprovaria essas ligações de família. Suas instruções aplicavam-se
aos casamentos que ameaçassem a sucessão da casa dele. Não
ameaço a casa dele nem ao meu sobrinho Yaemon, o herdeiro.
Estou satisfeito como senhor de Kwanto. Não procuro mais território. Estou em paz com meus vizinhos e desejo que a paz continue. Por Buda, não serei o primeiro a romper a paz.
Durante seis séculos o reino vivera alarmado por constantes
guerras civis. Há trinta e cinco anos, um daimio menor, chamado
Goroda. tomara posse de Kyoto, instigado principalmente por
Toranaga. Nas duas décadas seguintes esse guerreiro miraculosamente dominara metade do Japão, erguera uma montanha de crânios e se declarara ditador - ainda sem poder suficiente para
solicitar ao imperador reinante a concessão do título de xógum,
embora descendesse vagamente de um ramo dos Fujimoto. Então,
há dezesseis anos, Goroda fora assassinado por um de seus generais e seu poder caíra nas mãos de um príncipe vassalo e seu mais
brilhante general, o camponês Nakamura.
218
Em quatro rápidos anos, o General Nakamura, auxiliado por
Toranaga, Ishido e outros, aniquilou os descendentes de Goroda
e colocou o Japão inteiro sob o seu controle absoluto e único, a
primeira vez na história em que um homem dominava o reino
todo. Triunfante, foi a Kyoto para se curvar diante de Go-Nijo,
o Filho do Céu. Como nascera camponês, Nakamura tivera que
aceitar o título menor de kwampaku, conselheiro-chefe, ao qual
renunciou mais tarde em favor do filho, tomando para si o título
de táicum. Mas todos os daimios se curvaram à sua frente, mesmo
Toranaga. Inacreditavelmente, houvera paz completa durante doze
anos. No ano passado o táicum morrera.
- Por Buda - repetiu Toranaga -, não serei o primeiro
a romper a paz.
- Mas irá à guerra?
- Um homem sábio se prepara para a traição, neh? Há
homens maus em todas as províncias. Alguns em altos postos.
Ambos conhecemos a extensão ilimitada da traição no coração dos
homens. - Toranaga retesou-se. - Onde o táicum deixou um
legado de unidade, agora estamos divididos no meu leste e no seu
oeste. O conselho de regentes está dividido. Os daimios estão em
disputas. Um conselho não pode governar sequer uma aldeia infestada de caprichos e venetas, quanto mais um império. Quanto
mais depressa o filho do táicum atingir a idade, melhor. Quanto
mais depressa houver outro kwampaku, melhor.
- Ou talvez um xógum? - disse Ishido, de modo insinuante.
- Kwarnpaku, xógum ou táicum, o poder é o mesmo -
disse Toranaga. - Qual e o valor real de um título? O poder é
a única coisa importante. Goroda nunca se tornou xógum. Nakamura ficou mais que satisfeito como kwampaku e depois como
táicum. Ele governava e isso é o que importa. Que importa que
um dia meu cunhado tenha sido camponês? Que importa que
minha família seja antiga? Que importa que o senhor seja de origem humilde? O senhor é um general, um suserano, até faz parte
do conselho de regentes.
Importa muito, pensou Ishido. Você sabe disso. Eu sei. Cada
daimio sabe. Até o táicum sabia. - Yaemon tem sete anos. Dentro de outros sete se tornará kwampaku. Até lá...
- Dentro de oito anos, General Ishido. É essa a nossa lei
histórica. Quando meu sobrinho tiver quinze anos se tornará adulto e herdará. Até lá nós, os cinco regentes, governaremos em
nome dele. Foi assim que nosso amo quis.
219

- Sim. E também ordenou que os regentes não tomassem
reféns uns contra os outros. A Senhora Ochiba, a mãe do herdeiro, é refém no seu castelo de Yedo, contra a sua segurança
aqui, e isso também viola a vontade dele. O senhor concordou
formalmente em obedecer as cláusulas dele, assim como todos os
regentes. Até assinou o documento com seu próprio sangue.
Toranaga suspirou. - A Senhora Ochiba está visitando Yedo
onde sua única irmã se encontra em trabalho de parto. A irmã
dela é casada com meu filho e herdeiro. O lugar de meu filho é
em Yedo enquanto eu estou aqui. Há coisa mais natural do que
uma irmã visitar a outra num momento assim? Talvez eu já tenha
meu primeiro neto, neh?
- A mãe do herdeiro é a senhora mais importante do império. Não deve estar em... - Ishido ia dizer "mãos inimigas",
mas pensou melhor e continuou - numa cidade inabitual. - Fez
uma pausa, depois acrescentou claramente: - O conselho gostaria
que o senhor lhe ordenasse que voltasse para casa hoje.
Toranaga esquivou-se à armadilha. - Repito, a Senhora
Ochiba não é refém, portanto não está sob as minhas ordens,
como nunca esteve.
- Então deixe-me colocar a coisa de modo diferente. O conselho solicita a presença dela em Osaka imediatamente.
- Quem solicita isso?
- Eu. O Senhor Sugiyama. O Senhor Onoshi e o Senhor
Kiyama. E mais: todos concordamos em esperar aqui até que ela
esteja de volta a Osaka. Eis as assinaturas deles.
Toranaga ficou lívido. Manipulara tanto o conselho para que
a votação fosse sempre de dois a trés e nunca fora capaz de vencer
um quatro-a-um contra Ishido, mas tampouco Ishido conseguira
isso contra ele. Quatro a um significava isolamento e calamidade.
Por que Onoshi o desertara? E Kiyama? Ambos inimigos implacáveis, mesmo antes de se terem convertido à religião estrangeira.
E que influência tinha Ishido agora sobre eles?
Ishido sabia que abalara o inimigo. Mas faltava um movimento para tornar a vitória completa. Por isso pôs em prática o
plano que havia combinado com Onoshi. - Nós, regentes, estamos todos de acordo em que chegou o momento de acabar com
aqueles que planejam usurpar o poder do meu amo e matar o herdeiro. Os traidores serão condenados. Serão exibidos nas ruas
como criminosos comuns, com todos os descendentes, e depois
serão executados como criminosos comuns, còm todos os descen220
dentes. Fujimoto, Takashima, origem humilde, origem ilustre -
não importa quem. Até Minowara?
Um arquejo de cólera irrompeu de cada samurai de Toranaga, pois tal sacrilégio contra as famílias semi-reais era impensável. Foi quando o jovem samurai Usagi, marido da neta de
Hiro-matsu, pôs-se de pé, afogueado de raiva. Sacou a espada
mortífera e saltou para cima de Ishido, a lâmina nua pronta para
o golpe de duas mãos.
Ishido estava preparado para o golpe de morte e não fez
movimento algum para se defender. Era isto o que planejara, o
que esperava, e seus homens tinham ordens para não interferir
até que ele estivesse morto. Se ele, Ishido, fosse morto aqui, agora,
por um samurai de Toranaga, a guarnição de Osaka inteira cairia
sobre Toranaga legitimamente e o liquidaria, sem se importar com
a refém. Depois a Senhora Ochiba seria eliminada em retaliação,
pelos filhos de Toranaga, e os regentes remanescentes seriam forçados a mover-se em conjunto contra o clã Yoshi, que, isolado,
seria aniquilado. Só então a sucessão do herdeiro estaria garantida
o ele, Ishido, teria cumprido seu dever para com o táicum. Mas
o golpe não veio. No último momento Usagi recuperou o controle
o tremulamente embainhou a espada.
- Seu perdão, Senhor Toranaga - disse, ajoelhando-se miseravelmente. - Não pude suportar a vergonha de... de vê-lo
ouvindo esses. .. esses insultos. Peço permissão... peço desculpas e... peço permissão para cometer seppuku imediatamente,
pois não posso viver com essa vergonha.
Embora Toranaga tivesse permanecido imóvel, estivera pronto para interceptar o golpe e sabia que Hiro-matsu e os outros se
encontravam igualmente prontos, e que provavelmente Ishido só
ficaria ferido. Também compreendia por que Ishido fora tão insultante e incitante. Vou lhe devolver isto e com juros bem elevados, Ishido, prometeu ele silenciosamente.
Toranaga voltou a atenção ao jovem ajoelhado. - Como se
atreve a deduzir que qualquer coisa que o Senhor Ishido tenha
dito signifique, de algum modo, um insulto a mim? Claro que ele
nunca seria tão descortês. Como se atreve a ouvir conversas que
não lhe dizem respeito? Não, você não será autorizado a cometer
seppuku. Isso é uma honra. Você será crucificado hoje, como um
criminoso comum. Suas espadas serão quebradas e enterradas na
aldeia eta. Seu filho será enterrado na aldeia eta. Sua cabeça será
espetada a um chuço e exposta ao escárnio de toda a população,
221

com um aviso: "Este homem nasceu samurai por engano. Seu
nome cessou de existir!"
Com um esforço supremo, Usagi controlou a respiração, mas
o suor o encharcava e a vergonha por isso o torturava. Inclinou-se
para Toranaga, aceitando seu destino com calma aparente.
Hiro-matsu avançou e arrancou as duas espadas da cintura
do neto por afinidade.
- Senhor Toranaga - disse gravemente -, com a sua
permissão verificarei pessoalmente que as suas ordens sejam cumpridas.
Toranaga assentiu.
O jovem curvou-se uma última vez e começou a se levantar,
mas Hiro-matsu o empurrou de volta ao chão. - Os samurais
andam - disse. - Os homens também. Mas você não é uma coisa
nem outra. Vai rastejar para a morte.
Silenciosamente Usagi obedeceu.
E todos na sala se sentiram reconfortados pela força da autodisciplina do jovem agora, e pela dimensão da sua coragem. Ele
renascerá samurai, disseram a si mesmos, satisfeitos.
CAPÍTULO 13
Naquela noite Toranaga não conseguiu dormir. Isso era raro
nele, porque normalmente podia adiar o problema mais premente
para o dia seguinte, sabendo que, se estivesse vivo no dia seguinte,
resolveria o problema com o melhor de sua habilidade. Descobrira
há muito tempo, já, que o sono tranqüilo podia oferecer a resposta
a muitos enigmas, e se não podia, que importancia tinha, na realidade? A vida não era apenas uma gota de orvalho dentro de outra
gota de orvalho?
Mas naquela noite havia uma infinidade de questões desconcertantes a ponderar.
O que vou fazer com relação a Ishido?
Por que Onoshi passou para o inimigo?
Como vou lidar com o conselho?
Será que os padres cristãos se intrometeram de novo?
De onde virá a próxima tentativa de assassinato?
Quando devo tratar de Yabu?
E que devo fazer com o bárbaro?
Será que disse a verdade?
Curioso que o bárbaro tenha vindo dos mares orientais bem
nesta época. Será um presságio? Será que é o karma dele ser a
faísca que acenderá o barrilete de pólvora?
"Karma" era uma palavra indiana adotada pelos japoneses,
parte da filosofia budista que se referia ao destino de uma pessoa
nesta vida, seu destino imutavelmente fixado pelos feitos realizados
numa vida prévia, dando os bons atos uma posição melhor nestes
estratos de vida e os maus, o inverso. Exatamente como os feitos
desta vida afetariam o renascimento seguinte. Uma pessoa estava
sempre renascendo neste mundo de lágrimas até, finalmente, depois de padecer, sofrer e aprender ao longo de muitas vidas, se
tornar perfeito, quando ia para o nirvana, o Lugar da Paz Perfeita, e não precisava sofrer o renascimento nunca mais.
Estranho que Buda ou algum outro deus ou talvez apenas o
karma tivesse trazido o Anjin-san para o feudo de Yabu. Estranho
que tivesse aportado na aldeia exata onde Mura, o líder secreto
do sistema de espionagem de Izu, se instalara tantos anos atrás,
bem às vistas do táicum e do pai de Yabu, corroído de sífilis.
Estranho que Tsukku-san estivesse ali em Osaka para interpretar
e não em Nagasaki, onde normalmente se encontraria. Que também o padre chefe dos cristãos estivesse em Osaka, assim como o
capitão-mor dos portugueses. Estranho que o piloto, Rodrigues,
também estivesse disponível para levar Hiro-matsu a Anjiro, a
tempo para capturar o bárbaro com vida e tomar posse das armas.
Depois há Kasigi Omi, filho do homem que me dará a cabeça de
Yabu a um simples dobrar de dedinho meu.
Como a vida é bela e como é triste! Como é fugaz, sem passado nem futuro, apenas um infindável agora.
Toranaga suspirou. Uma coisa é certa: o bárbaro nunca partirá. Nem vivo nem morto. É parte do reino para sempre.
Seus ouvidos perceberam o som quase imperceptível de passos se aproximando e sua espada se preparou. Todas as noites ele
mudava de quarto de dormir, mudava os guardas e a senha ao
acaso, prevenindo-se contra os assassinos que estavam à espera.
Os passos se detiveram do lado de fora da shoji. Então ouviu a
voz de Hiro-matsu e o começo da senha: - Se a verdade já está
clara, para que serve a meditação?
- E se a verdade estiver oculta? - disse Toranaga.
- Já está clara - respondeu Hiro-matsu corretamente. A
citação era do velho professor de tantrismo, Saraha.
223
222

Sente-se.
O velho se sentou ao lado da porta, as costas eretas. - Redobrei a guarda.
- Ótimo.
Pouco depois Hiro-matsu disse: -- Quanto àquele louco, foi
tudo executado conforme o senhor ordenou. Tudo.
- Obrigado.
-- A mulher dele, minha neta, logo que ficou sabendo da
sentença, pediu-me permissão para se matar, para acompanhar o
marido e o filho ao Grande Vazio. Recusei e ordenei-lhe que
esperasse, aguardando a sua aprovação. - Hiro-matsu sangrava
por dentro. Como a vida é terrível!
- Agiu corretamente.
- Peço-lhe formalmente permissão para pôr fimm à vida. O
que ele fez colocou o senhor em perigo mortal, mas o erro foi
meu. Deveria ter descoberto a nulidade dele. Falhei ao senhor.
- Você não pode cometer seppuku.
- Por favor. Peço-lhe permissão formalmente.
- Não. Você é necessário vivo.
- Obedecerei. Mas por favor aceite as minhas desculpas.
- Suas desculpas estão aceitas.
Depois de um instante Toranaga disse: - E quanto ao bárbaro?
- Muitas coisas, senhor. Primeiro: se o senhor não tivesse
estado à espera do bárbaro hoje, estaria falcoando desde a primeira
luz do dia, e Ishido nunca o teria enredado num encontro tão
repulsivo. O senhor não tem escolha agora, senão declarar guerra
a ele. Isso se conseguir sair deste castelo e voltar a Yedo.
- Segundo?
- E terceiro e quadragésimo terceiro e centésimo quadragésimo terceiro? Não sou de modo algum tão inteligente quanto o
senhor, mas até eu pude ver que tudo em que fomos induzidos a
crer pelos bárbaros meridionais não é verdadeiro. - Hiro-matsu
estava contente por falar. Ajudava a mitigar a dor. - Mas se há
duns religiões cristãs que se odeiam mutuamente, e se os portugueses são parte de uma nação espanhola maior, e se o país deste
novo bárbaro - seja lá como se chame - está em guerra com
ambos e os vencer, e se esse mesmo país é uma nação insular
como a nossa, e, o maior "se" de todos, se ele estiver dizendo a
verdade e o padre tiver dito exatamente o que o bárbaro disse.
. .
Bem, o senhor pode reunir todos esses "se" e extrair-lhes um sentido, e um plano. Eu não consigo, sinto muito. Só sei o que vi em
Anjiro e a bordo do navio. Que o Anjin-san é muito forte de
cabeça - fraco de corpo atualmente, embora isso talvez se deva
à longa viagem - e no domínio do mar. Não compreendo nada
sobre ele. Como poderia ser todas essas coisas e, no entanto, permitir que urrí homem lhe urinasse nas costas? Por que salvou a
vida de Yabu depois do que o homem lhe fez, e também a vida
do seu inimigo confesso, o português Rodrigu? Minha cabeça roda
com tantas perguntas como se eu estivesse encharcado de saque.
- Hiro-matsu fez uma pausa. Estava absolutamente exausto. -
Mas acho que devíamos mantê-lo em terra, e a todos como ele,
se outros o seguirem, e matá-los a todos muito rapidamente.
- E quanto a Yabu?
- Ordene que ele cometa seppuku esta noite.
- Por quê?
- Não tem boas maneiras. O senhor previu o que ele faria
quando eu chegasse a Anjiro. Ia roubar a sua propriedade. E é
um mentiroso. Não se de ao trabalho de recebê-lo amanhã, conforme foi combinado. Ao invés disso, deixe-me levar-lhe sua ordem
agora. O senhor terá que matá-lo mais cedo ou mais tarde. Melhor
agora quando ele está acessível, sem nenhum de seus vassalos a
rodeá-lo. Aconselho-o a não perder tempo.
Houve uma batida suave na porta interna. - Tora-chan?
Toranaga sorriu como sempre fazia ao ouvir aquela voz muito
especial, com aquele diminutivo especial. - Sim, Kiri-san?
- Tomei a liberdade, senhor, de trazer chá para o senhor e
seu convidado. Posso entrar?
- Sim.
Os dois homens retribuíram-lhe a reverência. Kiri fechou a
porta e se ocupou em servir a bebida. Tinha cinqüenta e três anos,
uma pessoa farta, responsável pelas damas de companhia de Tora225
- Entre.
Só quando Toranaga viu, realmente, que se tratava do seu
conselheiro foi que a espada descansou. - Sente-se.
- Disseram-me que o senhor não estava dormindo. Pensei
que pudesse precisar de alguma coisa.
- Não. Obrigado. - Toranaga observou os sulcos mais
acentuados em torno dos olhos do velho. - Estou contente que
esteja aqui, velho amigo.
- Tem certeza de que está bem?
- Oh, sim.
- Então vou deixá-lo. Sinto tê-lo perturbado, senhor.
- Não, por favor, entre, estou contente de que tenha vindo.
224

naga. Kiritsubo-noh-Toshiko, apelidada de Kiri, a dama mais velha
da sua corte. Tinha o cabelo com salpicos grisalhos, o peito generoso, mas o rosto cintilante com uma alegria eterna. - Não
devia estar acordado, não, não a esta hora da noite, Tora-chan!
Logo vai amanhecer e suponho que aí o senhor sairá para as colinas com seus falcões, neh? Precisa dormir!
- Sim, Kiri-chan! - Toranaga deu-lhe um Capinha no vasto
traseiro afetuosamente.
- Por favor, não me chame de Kiri-chan! - Kiri riu. -
Sou uma velha e preciso de muito respeito. Suas outras damas já
me dão problemas suficientes. Kiritsubo-Toshiko-san, se lhe apraz,
meu Senhor Yoshi Toranaga-noh-Chikitada!
- Aí está, Hiro-matsu. Depois de vinte anos ela ainda tenta
me dominar.
- Desculpe, mas são mais de trinta anos, Tora-sarna - disse
ela com orgulho. - E o senhor era tão manejável na época quanto é agora!
Quando Toranaga estava na casa dos vinte anos, fora retido
como refém pelo despótico Ikawa Tadazaki, senhor de Suruga e
Totomi, pai do atual Ikawa Jikkyu, inimigo de Yabu. O samurai
responsável pelo bom comportamento de Toranaga acabara de
tomar Kiritsubo como segunda esposa. Ela estava com dezessete
anos então. O samurai, assim como a esposa, havia tratado Toranaga com generosidade, dera-lhe sábios conselhos, e depois, quando Toranaga se rebelara contra Tadazaki e se juntara a Goroda,
seguira-o com muitos guerreiros e lutara bravamente ao lado dele.
Mais tarde, no combate pela capital, o marido de Kiri fora morto.
Toranaga pedira-lhe que se tornasse uma de suas consortes e ela
aceitara, contente. Naqueles dias ela não era gorda. Mas era igualmente protetora e igualmente sábia. Tinha dezenove anos, ele
vinte e quatro, e desde então se tornara o centro da sua vida doméstica. Kiri era muito perspicaz e muito eficiente. Dirigia-lhe a
casa e mantinha-a sem problemas.
Tão sem problemas quanto qualquer casa com mulheres poderia ser, pensou Toranaga.
- Está engordando - disse ele, sem se importar com que
ela estivesse gorda.
- Senhor Toranaga! Na frente do Senhor Toda! Oh, sinto
muito, tenho que cometer seppuku, ou no mínimo raspar a cabeça
e me tornar monja! E eu que pensei que ainda fosse jovem e
esbelta! - Ela explodiu numa gargalhada. - Na realidade concordo em que tenho um traseiro gordo, mas o que posso fazer?
226
Simplesmente gosto de comer e isso é problema de Buda e o meu
karma, neh? - Ela ofereceu o chá. - Aqui está. Agora me retiro. Gostaria que eu mandasse a Senhora Sazuko?
- Não, minha zelosa Kiri-san, não, obrigado. Vamos conversar um pouco, depois vou dormir.
- Boa noite, Tora-sarna. Um sono suave e sem sonhos.
- Ela se curvou para ele, para Hiro-matsu, e saiu.
Eles sorveram o chá, degustando-o.
- Sempre lamentei - disse Toranaga - que não tivéssemos
tido um filho, Kiri-san e eu. Uma vez ela concebeu, mas abortou.
Foi quando estivemos na batalha de Nagakudé.
- Ah, aquela.
- Sim.
Isso foi pouco depois de o ditador Goroda ser assassinado,
quando o General Nakamura - o futuro táicum - tentava consolidar todo o poder nas próprias mãos. Naquela época a questão
ainda estava pendente, e Toranaga apoiava um dos filhos de
Goroda, o herdeiro legal. Nakamura investiu contra Toranaga
perto da pequena aldeia de Nagakudé, seu exército foi rechaçado
e dispersado e ele perdeu a batalha. Toranaga recuou inteligentemente, perseguido por um novo exército, agora comandado para
Nakamura por Hiro-matsu. Mas Toranaga evitou a armadilha e
escapou para as suas províncias, com o seu exército intacto, pronto
para lutar de novo. Cinqüenta mil homens morreram em Nagakudé, muito poucos dos quais eram de Toranaga. Na sua sabedoria, o futuro táicum susteve a guerra civil contra Toranaga, embora tivesse condição de vencer. Nagakudé foi a única batalha que
o táicum jamais perdeu e Toranaga o único general que jamais o
derrotou.
- Estou contente por nunca termos travado combate, senhor
- disse Hiro-matsu.
- Sim.
- O senhor teria vencido.
- Não. O táicum era o maior general e o mais sábio, o
homem mais inteligente que jamais houve.
Hino-matsu sorriu. - Sim. Com exceção do senhor.
- Não. Engano seu. Foi por isso que me tornei vassalo dele.
- Lamento que tenha morrido.
- Sim.
- E Goroda? Era um excelente homem, neh? Tantos homens
bons mortos. - Hiro-matsu inconscientemente virou e torceu a
bainha gasta. - O senhor terá que investir contra Ishido. Isso
227

forçará cada daimio a tomar posição de uma vez por todas. Acabaremos vencendo a guerra. Então o senhor poderá dissolver o
conselho e tornar-se xógum.
- Não busco essa honra - disse Toranaga de modo cortante. - Quantas vezes preciso dizer-lhe?
- Seu perdão, senhor. Mas sinto que seria melhor para o
Japão.
- Isso é traição.
- Contra quem, senhor? Contra o táicum? Ele está morto.
Contra suas últimas vontades e testamento? É um pedaço de papel.
Contra o menino Yaemon? Yaemon é o filho de um camponês
que usurpou o poder e a herança de um general cujos herdeiros
ele massacrou. Éramos aliados de Goroda, depois vassalos do
táicum. Sim. Mas estão ambos completamente mortos.
- Você aconselharia isso se fosse um dos regentes?
- Não. Mas não sou um dos regentes, e estou muito contente. Sou apenas seu vassalo. Tomei posição há um ano. Fiz isso
voluntariamente.
- Por quê? -- Toranaga nunca lhe perguntara isso antes.
- Porque o senhor é um homem, porque é Minowara e
porque fará o que for mais sábio. O que disse a Ishido é verdade:
não somos um povo para ser governado por um comitê. Necessitamos de um líder. A quem, dos cinco regentes, eu deveria ter
escolhido para servir? Ao Senhor Onoshi? Sim, é um homem muito sábio, e um bom general. Mas é cristão e um mutilado, tem a
carne tão apodrecida pela lepra que cheira mal a cinqüenta passos.
Ao Senhor Sugiyama? É o daimio mais rico, de uma familia tão
antiga quanto a sua. Mas é um vira-casaca sem entranhas e nós
o conhecemos há uma eternidade. Ao Senhor Kiyama? Sábio, corajoso, um grande general, e um velho camarada. Mas também é
cristão, e acho que já temos deuses bastantes nesta Terra dos
Deuses para não sermos arrogantes ao ponto de adorar a apenas
um. Ishido? Detesto esse lixo camponês traiçoeiro desde que o
conheço e a única razão por que nunca o matei é que ele era o
cão do táicum. - Seu rosto coriáceo fendeu-se num sorriso. -
Então, o senhor ve, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, o senhor não
me deixou escolha.
-- E se eu for contra o seu conselho? Se manipular o conselho de regentes, até Ishido, e puser Yaemon no poder?
Qualquer coisa que o senhor faça é sábia. Mas todos os
regentes gostariam de vê-lo morto. A verdade é essa. Sou pela
228
guerra imediata. Imediata. Antes que o isolem. Ou, mais provavelmente, o assassinem.
Toranaga pensou em seus inimigos. Eram poderosos e abundantes.
Precisaria de três semanas inteiras para regressar a Yedo,
viajando pela estrada Tokaido, a principal, que acompanhava a
costa entre Yedo e Osaka. Ir de navio era mais perigoso, e talvez
consumisse mais tempo, exceto de galera, que podia viajar contra
o vento e a maré.
A mente de Toranaga deteve-se de novo no plano pelo qual
se decidira. Não via defeito algum nele.
- Ouvi dizer em segredo, ontem, que a mãe de Ishido está
visitando o neto em Nagoya - disse, e Hiro-matsu imediatamente
se pôs atento. Nagoya era uma imensa cidade-estado, ainda não
comprometida com nenhum lado. - A senhora poderia ser "convidada" pelo prior a visitar o Templo Johji. Para ver as flores de
cerejeira.
- Imediatamente - disse Hiro-matsu. - Por pombo-correio. - O Templo Johji era famoso por três coisas: sua avenida
de cerejeiras, a militancia de seus monges zen-budistas, e a sua
fidelidade declarada e perene a Toranaga, que, anos antes, pagara
a construção do templo e se responsabilizava pela sua manutenção
desde então. - As flores já terão passado do auge, mas ela estará
lá amanhã. Não duvido que a veneranda senhora quererá ficar alguns dias, o lugar é tão calmante. O neto deveria ir também, neh?
- Não, apenas ela. Isso faria o "convite" do prior parecer
óbvio demais. Em seguida, mande uma mensagem secreta a meu
filho, Sudara: "Deixo Osaka no momento em que o conselho
concluir esta sessão - dentro de quatro dias". Mande-a por mensageiro e confirme por pombo-correio amanhã.
A desaprovação de Hiro-matsu era flagrante. - Então posso
ordenar a vinda de dez mil homens imediatamente? Para Osaka?
- Não. Os que estão aqui bastam. Obrigado, velho amigo,
acho que vou dormir agora.
Hiro-matsu levantou-se e estirou os ombros. A soleira da
porta, disse: - Posso dar a Fujiko, minha neta, permissão para
se matar?
- Não.
- Mas Fujiko é samurai, senhor, e o senhor sabe como são
as mães em relação aos filhos. A criança era o primeiro filho dela.
- Fujiko pode ter muitos filhos. Que idade tem? Dezoito,
quase dezenove? Encontrarei um novo marido para ela.
229

Hiro-matsu balançou a cabeça. - Não aceitará nenhum. Conheço-a bem demais. Seu desejo mais profundo é pôr fim à vida.
Por favor?
- Diga à sua neta que não aprovo mortes inúteis. A permissão está recusada.
Finalmente Hiro-matsu se curvou, e começou a se retirar.
- Quanto tempo o bárbaro viveria na prisão? - perguntou
Toranaga.
Hiro-matsu não se voltou. - Depende de quão violento lutador ele é.
- Obrigado. Boa noite, Hiro-matsu. - Quando teve certeza
de estar sozinho, disse calmamente: - Kiri-san?
A porta interna se abriu, ela entrou e se ajoelhou.
- Mande uma mensagem a Sudara imediatamente: "Está
tudo bem". Mande por pombos de corrida. Solte tres ao mesmo
tempo ao amanhecer. Ao meio-dia faça o mesmo novamente.
- Sim, senhor. - Ela saiu.
Um conseguirá passar, pensou. Pelo menos quatro serão abatidos por flechas, espiões ou falcões. Mas a menos que Ishido
tenha desvendado o nosso código, a mensagem não vai significar
nada para ele.
O código era muito particular. Quatro pessoas o conheciam.
O filho mais velho, Noboru; o segundo filho e herdeiro, Sudara;
Kiri; e ele mesmo. Decifrada, a mensagem significava: "Ignorar
todas as outras mensagens. Acionar o plano 5". Conforme arranjos
prévios, o plano 5 continha ordens de reunir todos os líderes do
clã Yoshi e seus conselheiros mais dignos de confiança imediatamente na capital, Yedo, e de mobilizar para a guerra. A expressão
em código que indicava a guerra era "Céu Carmesim". Caso ele
fosse assassinado, ou capturado, Céu Carmesim tornava-se inexorável e desencadeava a guerra - um imediato e fanático assalto
contra Kyoto, conduzido por Sudara, o herdeiro, com todas as
legiões, para tomar posse daquela cidade e do imperador fantoche. Isso seria acompanhado de insurreições secretas e meticulosamente planejadas em cinqüenta províncias que tinham sido preparadas ao longo dos anos para tal eventualidade. Todos os alvos,
caminhos, cidades, castelos, pontes, tinham sido selecionados há
muito tempo. Havia armas, homens e determinação suficientes
para levar a coisa a efeito.
É um bom plano, pensou Toranaga. Mas fracassará se eu
mesmo não o comandar. Sudara falhará. Não devido à falta de
empenho, coragem, inteligência, nem por causa de traição. Meramente
230
porque Sudara ainda não tem conhecimento ou experiência
suficientes e não vai conseguir levar consigo um número suficiente
de daimios não comprometidos. E também porque o Castelo de
Osaka e o herdeiro, Yaemon, erguem-se invioláveis no caminho,
o ponto de fusão de toda a inimizade e inveja que mereci em
cinqüenta e dois anos de guerra.
A guerra de Toranaga começara quando ele tinha seis anos
o fora mantido como refém num acampamento inimigo, depois
libertado, depois capturado por outros inimigos, novamente feito
refém, e isso até ter doze anos. Aos doze comandara sua primeira
patrulha e vencera sua primeira batalha.
Tantas batalhas. Nenhuma perdida. Mas tantos inimigos. Que
agora estão se agrupando.
Sudara falhará. Você é o único que poderia vencer com Céu
Carmesim, talvez. O táicum poderia fazê-lo, totalmente. Mas seria
melhor não ter que pôr em prática Céu Carmesim.
CAPÍTULO 14
Para Blackthorne foi um amanhecer infernal. Estava travando uma luta de morte com um prisioneiro. O premio era uma
xícara de sopa de aveia. Os dois homens estavam despidos. Sempre que um condenado era colocado naquela vasta cela de madeira
o de um único andar, suas roupas eram levadas embora. Um
homem vestido ocupava mais espaço e as roupas podiam esconder
armas.
A sala escura e sufoçante tinha cinqüenta passos de comprimento e dez de largura, e estava abarrotada de japoneses nus e
transpirando. A luz se filtrava escassamente através das pranchas
o vigas que compunham os muros e o teto baixo.
Blackthorne mal e mal conseguia ficar ereto. Tinha a pele
machucada e arranhada pelas unhas quebradas do homem e pelo
madeirame das paredes. Finalmente foi de cabeça contra o rosto
do homem, agarrou-o pelo pescoço e martelou-lhe a cabeça contra
as vigas, até fazê-lo perder os sentidos. Depois atirou o corpo para
o lado, investiu por entre a massa transpirando, para o lugar que
reclamara no canto, e se preparou para outro ataque.
Acontecera que ao amanhecer fora hora de refeição e os
231

guardas começaram a passar as xícaras de sopa de aveia e água
pela pequena abertura. Era o primeiro alimento que lhes era dado
desde que ele fora posto ali ao crepúsculo da véspera. A fila para
comida e água fora excepcionalmente calma. Sem disciplina ninguém comeria. Então aquele homem simiesco - barba por fazer,
imundo, coberto de piolhos - lhe dera um soco nos rins e lhe
tomara a ração, enquanto os outros esperavam para ver o que ia
acontecer. Mas Blackthorne já participara de um sem-número de
rixas no mar para ser derrotado com um golpe traiçoeiro, portanto
fingiu estar indefeso, depois deu um pontapé com maldade e a
luta se travou.
Agora, no canto, Blackthorne viu, para espanto seu, que um
dos homens lhe oferecia a xícara de sopa e a de água que ele
presumira perdidas. Pegou-as e agradeceu ao homem.
Os cantos eram as áreas mais escolhidas. Uma viga corria
ao longo do chão de terra, dividindo a sala em duas seções. Em
cada seção havia três fileiras de homens, duas se encarando mutuamente, as costas contra a parede ou a viga, a terceira entre elas.
Apenas os fracos e os doentes ficavam na fileira central. Quando
os homens mais fortes, nas fileiras externas, queriam esticar as
pernas, tinham que fazê-lo por cima dos que estavam no meio.
Blackthorne viu dois cadáveres, inchados e cobertos de moscas, numa das filas do meio. Mas os homens enfraquecidos e moribundos ao redor pareciam ignorá-los. Não conseguia enxergar
à distância na escuridão abafada. O sol já estava ressecando a
madeira. Havia latrinas mas o mau cheiro era terrível porque os
doentes se haviam sujado e aos lugares onde se acotovelavam.
De vez em quando guardas abriam a porta de ferro e chamavam nomes. Os homens curvavam-se para os companheiros e
saíam, mas logo eram trazidos outros e o espaço era novamente
ocupado. Todos os prisioneiros pareciam ter aceitado a sua sorte
e tentavam, da melhor maneira que podiam, viver altruisticamente
em paz com os vizinhos imediatos.
Um homem contra a parede começou a vomitar. Foi rapidamente empurrado para a fileira do meio e tombou, meio sufocado, sob o peso das pernas.
Blackthorne teve que fechar os olhos e lutar para controlar
o próprio terror e claustrofobia. Bastardo de Toranaga! Rezo para
ter a oportunidade de pô-lo aqui dentro um dia.
Guardas bastardos! Na noite anterior, quando lhe ordenaram
que se despisse, lutara com amargo desespero, sabendo que estava
232
derrotado e lutando só porque se recusava a capitular passivamente. E depois fora empurrado porta adentro.
Havia quatro blocos de celas como aquele. Ficavam nos limites da cidade, numa construção por trás de altos muros de pedra.
Fora dos muros havia uma área isolada de terra batida, à margem
do rio. Cinco cruzes erguiam-se ali. Vários homens e uma mulher,
todos nus, tinham sido amarrados de pernas abertas às traves pelos
pulsos e tornozelos, e Blackthorne, enquanto caminhava pelo perímetro, seguindo seus guardas samurais, vira executores com longas lanças enfiá-las no peito das vítimas, enquanto a multidão
escarnecia.
Depois os cinco foram descidos, mais cinco foram içados,
alguns samurais avançaram e picaram os cadáveres em pedaços
com as longas espadas, rindo o tempo todo em que faziam isso.
Bastardos sanguinários, podres, ralé!
Sem que ninguém notasse, o homem com quem Blackthorne
lutara estava voltando a si. Jazia na fila do meio. O sangue coagulara de cada lado do rosto dele e o nariz estava esmagado.
Repentinamente pulou para cima de Blackthorne, ignorando os
homens no seu caminho. Blackthorne viu-o no último momento,
aparou freneticamente a investida furiosa e o prostrou por terra.
Os prisioneiros sobre quem ele caiu amaldiçoaram-no e um deles,
lerdo e com a compleição de um buldogue, atingiu-o violentamente na nuca com o lado da mão. Houve um estalo seco e a cabeça
do homem cedeu.
O homem buldogue levantou a cabeça meio raspada pelo
topete eriçado e infestado de piolhos e deixou-a cair. Levantou os
olhos para Blackthorne, disse alguma coisa guturalmente, sorriu
com as gengivas nuas, desdentadas, e sacudiu os ombros.
- Obrigado - disse Blackthorne, lutando para respirar, grato por seu atacante não ter a habilidade de Mura no combate
desarmado. - Meu namu Anjin-san - disse, apontando para si
mesmo. -- Você?
- Ah, so desu! Anjin-san! - O buldogue apontou para si
mesmo e tomou fôlego. - Minikui.
-- Minikui-san?
- Hai - e acrescentou uma torrente de palavras em japonês.
Blackthorne sacudiu os ombros, cansado. - Wakarimasen.
Não entendi.
- Ah, so desu! O buldogue conversou brevemente com os
vizinhos. Depois também sacudiu os ombros, Blackthorne o imi233

tou e juntos ergueram o morto e o colocaram com os outros cadáveres. Quando voltaram ao canto, ninguém lhes tomara o lugar,
A maioria dos prisioneiros estava dormindo ou espasmodicamente tentando dormir.
Blackthorne sentiu-se imundo, péssimo e às portas da morte.
Não se preocupe, disse a si mesmo, você ainda tem um longo
caminho pela frente antes de morrer... Não, não vou poder viver
muito tempo neste buraco do inferno. Há homens demais. Oh,
Deus, faça-me sair! Por que a sala está subindo e descendo assim,
o aquele é Rodrigues que vem flutuando das profundezas com
tenazes movendo-se no lugar dos olhos? Não consigo respirar, não
consigo respirar. Tenho que dar o fora daqui, por favor, por favor,
não ponham mais lenha na fogueira e o que você está fazendo
aqui, jovem Croocq, pensei que o tivessem deixado ir. Pensei que
tivesse voltado para a aldeia, mas agora estamos aqui na aldeia,
o como foi que cheguei aqui - está tão frio e há aquela garota,
tão bonita, lá embaixo, perto do cais, mas por que a estão arrastando para a praia, o samurai nu, Omi, rindo, lá? Por que para
a areia, marcas de sangue na areia, todos nus, eu nu, feiticeiras,
aldeães e crianças, e há o caldeirão e estamos no caldeirão e não,
não ponham mais lenha, não ponham mais lenha, estou me afogando num líquido imundo, oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus, estou
morrendo, morrendo, morrendo "In nomine Patris et Füii et
Spiritui Sancti". Este é o último sacramento e você é católico,
somos todos católicos, e você vai arder ou se afogar em mijo e
arder no fogo, o fogo, o fogo, o logo...
Arrastou-se para fora do pesadelo, os ouvidos explodindo com
o tranqüilo caráter decisivo do último sacramento. Por um momento não soube se estava desperto ou adormecido porque seus
incrédulos ouvidos ouviram a bênção em latim novamente e seus
incrédulos olhos estavam vendo um velho e enrugado espantalho
de europeu dobrado sobre a fileira do meio, a quinze passos de
distância. O velho desdentado tinha um longo cabelo imundo, uma
barba emaranhada,' unhas quebradas e usava um camisolão puído
o sujo. Tinha uma mão levantada como uma garra de abutre e
segurava a cruz de madeira acima do corpo meio oculto. Um raio
de sol iluminou-o momentaneamente. Depois ele fechou os olhos
do homem, murmurou uma prece e levantou os olhos. Viu Blackthorne olhando-o fixamente.
- Mãe de Deus, você é real? - disse o homem, numa voz
baixa e áspera, falando um espanhol grosseiro, de camponês, e
persignando-se.
234
- Sim - disse Blackthorne em espanhol. - Quem é você?
O velho aproximou-se às apalpadelas, resmungando consigo
mesmo. Os outros deixaram-no passar, pisando-os ou pulando-os,
sem dizer palavra. Ele sustentou o olhar de Blackthorne com
olhos reumosos, o rosto verruguento. - Oh, Virgem abençoada,
o señor é real. Quem é? Sou... Sou o Frei... Frei Domingo...
Domingo... Domingo da Sagrada... Sagrada Ordem de São
Francisco. .. a Ordem. .. - por um instante suas palavras se
tornaram uma confusão de japonês, latim e espanhol. A cabeça
dele estremeceu e ele enxugou a saliva sempre presente que lhe
escorria para o queixo. - O señor é real?
- Sim, sou real. - Blackthorne se sentiu aliviado.
O padre murmurou outra ave-maria, as lágrimas correndo-lhe
pelas faces.
Beijou a cruz repetidamente e se teria posto de joelhos se
houvesse espaço. O buldogue sacudiu o vizinho para acordá-lo e
ambos se puseram de cócoras para dar espaço suficiente para que
o padre se sentasse.
- Pelo abençoado São Francisco, minhas preces foram atendidas. Pensei estar vendo outra aparição, señor, um fantasma.
Sim, um mau espírito. Vi tantos, tantos... há quanto tempo o
señor está aqui? É difícil ver na escuridão e meus olhos não são
bons... Há quanto tempo?
- Desde ontem. E o senhor?
- Não sei, señor. Muito tempo. Fui posto aqui em setembro, no ano do Senhor de 1555 - { a
- Estamos em maio agora. De 1600.
- 1600?
Um gemido distraiu a atenção do monge. Levantou-se e abriu
caminho por sobre os corpos como uma aranha, encorajando um
homem aqui, tocando outro ali, no seu japonês fluente. Não conseguiu encontrar o moribundo, de modo que sussurrou os últimos
ritos na direção daquela parte da cela e abençoou a todos, com o
que ninguém se importou.
- Venha comigo, meu filho.
Sem esperar, o monge coxeou ao longo da prisão, através do
amontoado de homens, na escuridão. Blackthorne hesitou, não
querendo sair do seu lugar. Mas acabou se levantando e o seguiu.
A dez passos, olhou para trás. Seu lugar desaparecera. Parecia
impossível que ele alguma vez tivesse estado ali.
Continuou por todo o comprimento do barraco. No canto
235

oposto havia, inacreditavelmente, um espaço aberto. Exatamente
o espaço suficiente para um homem pequeno se deitar. Continha
alguns potes e tigelas e uma velha esteira de palha.
Frei Domingo avançou por entre os homens até o espaço
o chamou-o com um gesto. Os japoneses ao redor olhavam silenciosos, deixando Blackthorne passar.
- E o meu rebanho, señor. São todos meus filhos em Jesus
abençoado. Converti a tantos aqui... este, João, aquele, Marcos,
o Matusalén... - O velho parou para tomar fôlego. - Estou
muito cansado. Cansado. Tenho que... tenho... - Suas palavras foram-se arrastando e ele adormeceu.
Ao crepúsculo chegou mais comida. Quando Blackthorne começou a se levantar, um dos japoneses das proximidades fez-lhe
sinal que ficasse sentado e trouxê-lhe uma tigela bem cheia. Outro
homem gentilmente acordou o padre com um tapinha, oferecendo
a comida.
- Iyé - disse o velho, balançando a cabeça, um sorriso no
rosto, e empurrou a tigela de volta às mãos do homem.
- Iyé, Farddah-sarna.
O padre permitiu-se ser persuadido e comeu um pouco, depois
se levantou, as juntas estalando, e estendeu a tigela a um dos que
estavam na fileira do centro. Esse homem tocou a mão do padre
com a testa e foi abençoado.
- Estou tão contente por ver outra pessoa da minha espécie
- disse o padre, sentando-se novamente ao lado de Blackthorne,
sua voz de camponês abafada e sibilante. Apontou debilmente para
a outra extremidade da cela. - Uma de minhas ovelhas disse que
o señor usou a palavra "piloto", "anjin". O señor é piloto?
- Sim.
- Há outros da sua tripulação aqui?
- Não, estou só. Por que está aqui?
- Se está só... o señor veio de Manila?
- Não. Nunca estive na Asia antes - disse Blackthorne
cuidadosamente, num excelente espanhol. - Foi minha primeira
viagem como piloto. Fui.., fui desviado da rota. Por que o senhor
está aqui?
- Os jesuítas me puseram aqui, meu filho. Os jesuitas e suas
imundas mentiras. O señor se desviou da rota? Não é espanhol,
não... nem português... - O monge perscrutou-o desconfiado,
e Blackthorne foi rodeado pela sua respiração malcheirosa. - O
navio era português? Diga a verdade, diante de Deus!
236
- Não era, padre. Não era português. Diante de Deus!
- Oh, Virgem abençoada, obrigado! Por favor, desculpe-me,
señor. Tive medo... sou velho, doente e estúpido. Seu navio era
espanhol, vindo de onde? Estou tão contente... de onde o señor
e, originalmente? Da Flandres espanhola? Ou do ducado de Brandenburgo, talvez? De algum lugar nos nossos domínios na Germãnia? Oh, é tão bom falar minha abençoada língua materna de
novo! O señor naufragou como nós? Depois foi perfidamente atirado nesta prisão, falsamente acusado por aqueles diabólicos jesuítas? Que Deus os amaldiçoe e lhes mostre o erro de sua traição!
- Os olhos dele cintilaram ferozmente. - O señor disse que
nunca esteve na Asia antes?
- Não.
- Se nunca esteve na Asia antes, então será como uma
criança na escuridão. Sim, há tanta coisa para dizer! O señor sabe
que os jesuítas são meramente comerciantes, mercadores de armas
e usurários? Que controlam toda a seda que é comerciada aqui,
todo o comércio com a China? Que o Navio Negro anual vale um
milhão em ouro? Que forçaram Sua Santidade a conceder-lhes
poder total sobre a Asia - a eles e a seus cães, os portugueses?
Que todas as outras religiões são proibidas aqui? Os jesuitas negociam ouro, comprando e vendendo por lucro - para eles e para
os pagãos -, contra as ordens diretas de Sua Santidade o Papa
Clemente, do Rei Filipe, e contra as leis desta terra? Que eles
secretamente contrabandeiam armas para o Japão, para os reis
cristãos aqui, incitando-os à rebelião? Que se imiscuem em política, são alcoviteiros dos reis, mentem, trapaceiam e prestam falso
testemunho contra nós! Que o superior deles em pessoa enviou
uma mensagem secreta ao nosso vice-rei espanhol em Luzón pedindo-lhe conquistadores para conquistar a terra - imploraram
por uma invasão espanhola para ocultar mais erros dos portugueses. Todos os nossos problemas podem ser atribuídos a eles,
señor. Foram os jesuítas que mentiram, trapacearam e espalharam
veneno contra a Espanha e o nosso amado Rei Filipe! Suas mentiras me colocaram aqui e causaram o martírio de vinte e seis
santos padres! Pensam que só porque fui camponês um dia, não
compreendo... mas sei ler e escrever, señor, sei ler e escrever!
Fui um dos secretários de Sua Excelência, o vice-rei. Pensam que
nós, franciscanos, não compreendemos... - Neste ponto ele
irrompeu noutra mistura de espanhol e latim.
O espirito de Blackthorne ressuscitou, sua curiosidade aguçada com o que o padre dissera. Que armas? Que ouro? Que
237

comércio? Que Navio Negro? Um milhão? Que invasão? Que reis
cristãos?
Você não está iludindo esse coitado doente? - perguntou
si mesmo. Ele pensa que você é um amigo, não um inimigo.
Não menti para ele.
Mas não deixou implícito que era amigo?
Respondi-lhe diretamente.
Mas disse voluntariamente alguma coisa?
Não.
Isso é justo?
I a primeira regra de sobrevivência em águas inimigas: não
dizer nada voluntariamente.
O furor do monge aumentou de intensidade. Os japoneses
próximos mudaram de posição inquietos. Um deles se levantou,
sacudiu o padre gentilmente e falou com ele. Frei Domingo
gradualmente saiu do acesso de cólera, os olhos clarearam. Olhou
para Blackthorne com reconhecimento, respondeu ao japonês, e
acalmou o resto.
- Sinto muito, señor - disse, sem fôlego. - Eles... eles
acharam que eu estava zangado com.., com o señor. Deus me
perdoe minha raiva tola! Só estava... que va, os jesuítas vêm do
inferno, junto com os hereges e pagãos. Posso lhe contar muita
coisa sobre eles. - O monge enxugou a baba do queixo e tentou
se acalmar. Apertou o peito para aliviar a dor ali. - O señor
estava dizendo? Seu navio foi atirado na praia?
- Sim. De certo modo. Encalhado - respondeu Blackthorne. Mudou as pernas de posição com todo o cuidado. Os
homens que estavam observando e ouvindo deram-lhe mais espaço. Um se levantou e fez-lhe sinal que se esticasse. - Obrigado
- disse ele imediatamente. - Oh, como se diz "obrigado", padre?
- "Domo". As vezes se diz "arigato". Uma mulher tem que
ser muito polida. Diz "arigato goziemashita".
Obrigado. Qual é o nome dele? - Blackthorne indicou o
homem que se levantara.
Esse é González.
Mas qual é o nome japonês?
- Ah, sim! Akabo. Mas isso só significa "carregador",
señor. Eles não têm nome. Só os samurais têm.
- O quê?
-- Só os samurais têm nomes, prenomes e sobrenomes. E a
lei deles, señor. Todos os outros têm que se satisfazer com o nome
238
do que são: carregador, pescador, cozinheiro, executor, fazendeiro, e assim por diante. Os filhos e filhas praticamente são apenas
Primeira Filha, Segunda Filha, Primeiro Filho, e assim por diante.
As vezes chamam um homem de "pescador que mora perto do
olmo" ou "pescador com os olhos maus". - O monge sacudiu os
ombros e reprimiu um bocejo. - Os japoneses comuns não têm
direito de usar nome. As prostitutas dão a si mesmas nomes como
Carpa, Lua, Pétala, Enguia, Estrela. E estranho, señor, mas é a lei
deles. Nós lhes damos nomes cristãos, nomes verdadeiros, quando
os batizamos, trazendo-lhes a salvação e a palavra de Deus... -
Suas palavras ficaram no ar e ele adormeceu.
- Domo, Akabo-san - dìsse Blackthorne ao carregador.
O homem sorriu acanhado, curvou-se e respirou fundo.
Mais tarde o monge despertou, disse uma prece rápida e se
coçou. - Só ontem, o señor disse? Chegou aqui só ontem?
O que aconteceu com o señor?
- Quando desembarcamos, havia um jesuíta lá - disse
Blackthorne. - Mas o senhor, padre, estava dizendo que foi
acusado? O que lhe aconteceu? E ao seu navio?
- Nosso navio? O señor estava vindo de Manila, como nós'?
Ou... oh, que tolice a minha! Agora me lembro, o señor foi
desviado da rota, vindo de casa, e nunca esteve na Asia antes.
Pelo abençoado corpo de Cristo, é tão bom conversar com um
homem civilizado de novo, na minha abençoada língua materna!
Que va, faz tanto tempo. Minha cabeça dói, dói, señor. Nosso
navio? Estávamos voltando para casa finalmente. Voltando de
Manila para Acapulco, na terra de Cortez, o México, de lá, por
terra, até Vera Cruz. Em seguida outro navio e a travessia do
Atlântico, depois de muito, muito tempo, para casa. Minha aldeia
é fora de Madri, señor, nas montanhas. Chama-se Santa Verónica.
Estive fora quarenta anos, señor. No Novo Mundo, no México, e
nas Filipinas. Sempre com nossos gloriosos conquistadores, que a
Virgem vele por eles! Eu estava em Luzón quando destruímos
o rei nativo pagão, Lumalon, conquistamos Luzón e assim levamos
a palavra de Deus às Filipinas. Muitos dos nossos convertidos japoneses lutaram conosco, señor. Que combatentes! isso foi em
1575. A Mãe Igreja está bem plantada lá, meu filho, e nunca se
viu um jesuíta ou português imundo. Vim para o Japão por quase
dois anos, depois tive que partir para Manila de novo, quando os
jesuítas nos traíram.
O monge parou e fechou os olhos, devaneando. Mais tarde
239
a

do táicum vieram e tomaram todo o nosso dinheiro e mercadorias, nosso capitão-mor insistiu em ir à capital para protestar. Não
havia motivo para o confisco. Não éramos súditos de Sua Majestade Imperial Católica o Rei Filipe da Espanha, governante do
maior e mais rico império do mundo? O monarca mais poderoso
do mundo? Não éramos amigos? O táicum não estava pedindo à
Manila espanhola que comerciasse diretamente com o Japão, para
quebrar o infame monopólio dos portugueses? Era tudo um engano, o confisco. Tinha que ser.
"Fui com o nosso capitão-mor porque sabia falar um pouco
de japonês - não muito naquele tempo. Señor, o San Felipe perdeu o rumo e veio -dar em terra em outubro de 1597. Os jesuítas
- um se chamava Padre Martim Alvito - ousaram se oferecer
para servirem de mediadores nossos, lá em Kyoto, a capital. O
despropósito! Nosso superior franciscano, Frei Braganza, estava
na capital, e era um embaixador - um verdadeiro embaixador da
Espanha na corte do táicum! O abençoado Frei Braganza estava
na capital, em Kyoto, há cinco anos, señor. O próprio táicum,
pessoalmente, pedira ao nosso vice-rei em Manila que enviasse
monges franciscanos e um embaixador para o Japão. Então o
abençoado Frei Braganza veio. E nós, señor, nós do San Felipe,
sabíamos que ele merecia confiança, que não era como os jesuítas.
"Depois de muitos e muitos dias de espera, tivemos uma entrevista com o táicum - era um homenzinho minúsculo, horroroso, señor -, e pedimos que nos devolvesse nossas mercadorias
e nos desse outro navio, ou passagem em outro, pelo que o nosso
capitão-mor se prontificou a pagar generosamente. A entrevista
transcorreu bem, achamos nós, e o táicum nos dispensou. Dirigimo-nos ao nosso monastério em Kyoto e esperamos, e nos meses
seguintes, enquanto esperávamos pela decisão dele, continuamos
a levar a palavra de Deus aos pagãos. Realizávamos os nossos
serviços abertamente, não como ladrões na noite, como fazem os
jesuítas." A voz de Frei Domingo estava cortante de desdém.
"Usávamos nossos hábitos e paramentos, não íamos disfarçados
de sacerdotes nativos, como eles fazem. Levamos a Palavra ao
povo, aos defeituosos, aos doentes e aos pobres, não como os jesuítas, que só mantêm relações com príncipes. Nossas congregações aumentaram. Tínhamos um hospital para leprosos, nossa própria igreja, e o nosso rebanho prosperava, señor. Grandemente.
Estávamos prestes a converter muitos dos reis deles e então, um
dia, fomos traídos.
"Um dia, em janeiro, nós, franciscanos, fomos todos levados
242
diante do magistrado e acusados sob determinação pessoal do
táicum, señor, acusados de violadores da lei deles, perturbadores
da paz, e condenados à morte por crucificação. Havia quarenta e
três de nós. Nossas igrejas .espalhadas pelo país deviam ser destruídas, todas as nossas congregações deviam ser dissolvidas, as franciscanas, não as jesuíticas, señor. Só nós, señor. Fomos falsamente
acusados. Os jesuítas envenenaram os ouvidos do táicum e o convenceram de que éramos conquistadores, que queríamos invadir
estas praias, quando foram os jesuítas que imploraram a Sua Excelência, o nosso vice-rei, que enviasse um exército de Manila. Vi
a carta pessoalmente! Do superior deles! São demônios que fingem servir à Igreja e a Cristo, mas servem apenas a si mesmos.
Cobiçam o poder, poder a qualquer preço. Escondem-se por trás
de uma capa de pobreza e devoção, mas embaixo disso alimentam-se como reis e acumulam fortunas. Que va, señor, a verdade
é que eles estavam com inveja das nossas congregações, inveja da
nossa igreja, inveja da nossa verdade e do nosso modo de vida.
O daimio de Hizen, Dom Francisco - o nome japonês é Harima
Tadao, mas foi batizado como Dom Francisco -, intercedeu por
nós. Ele é como um rei, todos os daimios são como reis, e ele é
franciscano e intercedeu por nós, mas em vão.
"No fim, vinte e seis foram martirizados. Seis espanhóis, dezessete dos nossos noviços japoneses, e três outros. O abençoado
Braganza foi um deles, e havia três meninos entre os noviços. Oh,
señor, os fiéis estiveram lá aos milhares naquele dia. Cinqüenta,
cem mil pessoas assistiram ao martírio abençoado em Nagasaki,
disseram-me. Foi um triste dia frio de fevereiro e um triste ano
também. Foi o ano dos terremotos, dos tufões, enchentes, tempestades, incêndios, foi o ano em que a mão de Deus se abateu
pesada sobre o grande assassino e até pôs abaixo o grande castelo
dele, Fushimi, fazendo a terra tremer. Foi aterrorizante mas maravilhoso presenciar o dedo de Deus punindo pagãos e pecadores.
"Assim eles foram martirizados, seis bons espanhóis. Nosso
rebanho e nossa igreja foram devastados e o hospital, fechado."
As lágrimas escorriam pelo rosto do velho. "Eu. .. eu fui
um dos escolhidos para o martírio, mas... mas a honra não seria
minha. Fizeram-nos vir caminhando de Kyoto e quando chegamos
a Osaka puseram alguns de nós numa das nossas missões aqui e
o resto.., o resto teve uma orelha cortada, depois teve que desfilar pelas ruas como criminosos comuns. Então puseram os abençoados irmãos a caminhar para oeste. Durante um mês. A jornada
abençoada terminou numa colina chamada Nishizaki, que domina
243

a grande enseada de Nagasaki. Implorei ao samurai que me deixasse ir com eles, señor, mas ele me ordenou que voltasse à missão aqui em Osaka. Por nenhuma razão. E então, meses mais
tarde, fomos colocados nesta cela. Éramos três, acho que éramos
três, mas eu era o único espanhol. Os outros eram noviços, nossos
irmãos leigos, japoneses. Alguns dias depois os guardas chamaram
o nome deles. Mas nunca chamaram o meu. Talvez seja a vontade
de Deus, señor, ou talvez aqueles jesuítas imundos me deixem
vivo apenas para me torturar - eles, que me tiraram a chance de
ser martirizado junto com os meus. É duro, señor, ser paciente.
Tão difícil.
"
O velho monge fechou os olhos, rezou e chorou até pegar
no sono.
Embora quisesse muito, Blackthorne não conseguiu dormir,
mesmo já sendo noite. Sentia a carne arrepiar-se com as mordidas
de piolhos. A cabeça fervilhando de terror.
Sabia, com uma terrível clareza, que não havia meio de escapar. Sentia-se subjugado e no limiar da morte. Na altura em
que a noite se tornou mais escura, o terror o engoliu, e, pela primeira vez na vida, ele cedeu e chorou.
- Sim, meu filho? - murmurou o monge. - O que e?
- Nada, nada - disse Blackthorne, com o coração ribombando. - Durma de novo.
- Não é preciso ter medo. Estamos todos nas mãos de Deus
- disse o monge, e adormeceu novamente.
O grande terror cedeu lugar a um terror com que se podia
viver. Sairei daqui de algum modo, disse Blackthorne a si mesmo,
tentando acreditar na mentira.
Ao amanhecer chegou comida e água. Blackthorne estava
mais forte agora. Estupidez ceder assim, advertiu-se ele. Estúpido,
fraco e perigoso. Não faça isso de novo ou você começa a definhar, fica louco e morre com certeza. Colocarão você na terceira
fileira e você morrerá. Tenha cuidadó, seja paciente e vigie-se.
- Como está hoje, señor?
- Ótimo, obrigado, padre. E o senhor?
- Razoavelmente bem, obrigado.
- Como digo isso em japonês?
- Domo, genki desu.
- Domo, genki desu. Ontem, padre, o senhor esteve falando
sobre os Navios Negros portugueses... como são eles? Já viu
algum?
- Oh, sim, señor. São os maiores navios do mundo, quase
244
duas mil toneladas. São necessários duzentos homens e rapazes
para tripular um, señor, e com tripulação e passageiros o total
seria de quase mil almas. Disseram-me que esses galeões navegam
bem a barlavento mas se arrastam quando o vento vem de través.
- Quantos canhões eles levam?
- As vezes vinte ou trinta, em três conveses.
Frei Domingo estava contente por responder a perguntas,
conversar e ensinar, e Blackthorne estava igualmente contente de
ouvir e aprender. O conhecimento desconexo do monge era inestimável e abrangia muita coisa.
- Não, señor - estava dizendo agora. - "Domo" é "obrigado" e "doto" é "por favor". "Agua" é "mizu". Lembre-se sempre de que os japoneses dão muito valor às boas maneiras e à
cortesia. Uma vez, quando eu estava em Nagasaki... Oh, se ao
menos eu tivesse tinta, uma pena e papel! Ah, já sei... aqui,
desenhe as palavras no pó, isso o ajudará a se lembrar...
- Domo - disse Blackthorne. Depois de memorizar mais
algumas palavras, perguntou: - Há quanto tempo os portugueses
estão aqui?
- Oh, a terra foi descoberta em 1542, señor, o ano em que
nasci. Foram três homens: Da Mota, Peixoto e o nome do outro
não consigo lembrar. Eram todos comerciantes portugueses, fazendo comércio ao longo das costas da China e provenientes de
um porto no Sião. O señor já esteve no Sião?
- Não.
- Ah, há muito que ver na Asia. Esses três homens estavam
comerciando, mas foram apanhados por uma grande tempestade,
um tufão, atirados para fora da rota e atracaram em segurança
em Tanegashima, em Kyushu. Foi a primeira vez que um europeu
pôs os pés em solo japonês, e imediatamente o comércio começou.
Poucos anos mais tarde, Francisco Xavier, um dos membros fundadores dos jesuítas, chegou aqui. Isso foi em 1549... um mau
ano para o Japãq,se~ñor. Um dos nossos irmãos deveria ter vindo
primeiro, então teriamos nós herdado este reino, não os portugueses. Francisco Xavier morreu três anos depois, na China, sozinho e desamparado... Já lhe disse, señor, que já há um jesuíta
na corte do imperador da China, num lugar chamado Pequim?...
Oh, devia ver Manila, señor, e as Filipinas! Temos quatro catedrais, quase três mil conquistadores e perto de seis mil soldados
japoneses espalhados pelas ilhas, e três mil irmãos...
A mente de Blackthorne encheu-se de fatos e palavras e frases
japonesas. Perguntou sobre a vida no Japão, os daimios, os sa245

murais, o comércio, Nagasaki, guerra, paz, jesuítas, franciscanos,
portugueses na Asia, Manila espanhola, e sempre mais sobre o
Navio Negro que vinha anualmente de Macau. Durante três dias
e três noites Blackthorne sentou-se junto ao Frei Domingo, interrogou, ouviu, aprendeu, dormiu com pesadelos, para despertar
e fazer mais perguntas e obter mais informações.
Então, no quarto dia, chamaram seu nome.
- Anjin-san!
CAPITULO 15
Em meio ao silêncio absoluto, Blackthorne pôs-se de pé.
- Sua confissão, meu filho, faça-a rapidamente.
- Eu... eu não acho... eu... - Blackthorne percebeu,
no torpor da sua mente, que estava falando inglês, então apertou
os lábios com força e começou a caminhar. O monge ergueu-se
com dificuldade, supondo que as palavras dele fossem holandesas
ou alemãs, agarrou-lhe o pulso, coxeando ao seu lado.
- Rápido, señor. Eu lhe darei a absolvição. Seja rápido, pela
sua alma imortal. Faça-a rapidamente, simplesmente, que o señor
confessa diante de Deus todas as coisas passadas e presentes.
. .
Estavam se aproximando do portão de ferro, o monge segurando-se a Blackthorne com uma força surpreendente.
- Faça-a agora! A Virgem abençoada velará pelo señor!
Blackthorne puxou o braço com um repelão, e disse asperamente em espanhol: - Vá com Deus, padre.
A porta se fechou com estrépito atrás dele.
O dia estava incrivelmente fresco e agradável, as nuvens serpeando ao vento suave que soprava de sudeste.
Ele inalou o ar a grandes sorvos, o ar limpo, glorioso, e sentiu o sangue precipitar-se pelas veias. A alegria de viver invadiu-o.
Vários prisioneiros despidos estavam no pátio junto com um
oficial, carcereiros munidos de lanças, etas, e um grupo de samurais. O oficial vestia um quimono escuro, um manto com ombros
engomados, em forma de asas, e um pequeno chapéu escuro. Esse
homem deteve-se diante do primeiro prisioneiro, leu um rolo de
papel muito fino e, quando acabou, cada homem começou a caminhar lenta e penosamente atrás dos seus guardiães, em direção
246
às grandes portas do pátio. Blackthorne foi o último. Ao contrário
dos outros, deram-lhe uma tanga, um quimono de algodão e tamancos de tiras. E seus guardas eram samurais.
Resolvera escapar no momento em que ultrapassassem o portão, mas quando se aproximaram da soleira, os samurais o rodearam mais de perto e o fecharam no círculo. Atingiram a passagem
juntos. Uma vasta multidão observava, asseada e bem vestida, com
sombrinhas carmesins, amarelas e douradas. Já havia um homem
amarrado a uma das cruzes que se erguiam contra o céu. Ao lado
de cada cruz dois etas esperavam, com as longas lanças cintilando
ao sol.
O passo de Blackthorne retardou-se. Os samurais se chegaram
mais, apressando-o. Entorpecido, ele pensou que seria melhor morrer agora, rapidamente, então preparou a mão para dar um bote
sobre a espada mais próxima. Mas não houve oportunidade que
pudesse aproveitar, porque os samurais desviaram da arena e caminharam na direção do perímetro urbano, dirigindo-se para as
ruas que levavam à cidade e, depois, rumo ao castelo.
Blackthorne esperou, mal e mal respirando, querendo ter certeza. Atravessaram a multidão, que recuou e se curvou, atingiram
uma rua e agora não havia engano algum.
Blackthorne sentiu-se renascer.
Quando conseguiu falar, disse: - Aonde estamos indo? -,
sem se importar com que as palavras não seriam compreendidas
ou com o fato de estar falando inglês. Estava delirante. Seus
passos mal tocavam o chão, as tiras dos tamancos não estavam
desconfortáveis, o contato do quimono não era desagradável. Na
realidade, sentia-se muito bem, pensou. Um pouco leve demais,
talvez, mas num dia excelente como este... exatamente o tipo de
coisa para se usar ao tombadilho!
- Por Deus, é maravilhoso falar inglês de novo - disse ele
ao samurai. - Jesus Cristo, pensei que fosse um homem morto.
Lá se foi a minha oitava vida. Sabiam disso, amigos velhos? Agora
só tenho mais uma. Bem, não importa! Os pilotos têm dez vidas
no mínimo, como Alban Caradoc costumava dizer. - Os samurais
pareciam estar se irritando com aquela conversa incompreensível.
Controle-se, disse Blackthorne a si mesmo. Não vá fazê-los
mais suscetíveis do que já são.
Notou então que todos os samurais eram cinzentos. Homens
de IshiI~. Ele havia perguntado ao Padre Alvito o nome do
homem que se opunha a Toranaga. Alvito dissera "Ishido". Isso
fora pouco antes de lhe ordenarem que se levantasse e o levarem
247

embora. Todos os cinzentos são homens de Ishido? E todos os
marrons de Toranaga?
- Aonde estamos indo? Para lá? - Apontou o castelo, que
pairava acima da cidade. - Para lá, hai?
- Hai - assentiu o líder com cabeça de bala de canhão,
a barba grisalha.
o que será que Ishido quer comigo? - perguntou-se Blackthorne.
o líder dobrou outra rua, sempre se afastando da enseada.
Foi quando Blackthorne o viu: um pequeno brigue português, com
a bandeira azul e branca oscilando à brisa, dez canhões no convés
principal. O Erasmus poderia pegá-lo facilmente, disse Blackthorne
a si mesmo. Como estará a minha tripulação? O que estarão fazendo lá na aldeia? Pelo sangue de Cristo, gostaria de vê-los. Fiquei tão contente em deixá-los naquele dia e voltar para a minha
casa, onde estava Onna - Haku -, a casa de... como era o
nome? Ah, sim, Mura-san. E a garota, aquela na minha cama, e a
outra, a beleza de anjo que conversou naquele dia com Omi-san?
A do sonho que também estava dentro do caldeirão.
Mas para que lembrar esse absurdo? Enfraquece a mente.
"Você tem que ser muito forte de cabeça para viver com o mar",
dissera Alban Caradoc. Coitado do Alban.
Alban Caradoc sempre parecera imenso, quase divino, vendo
tudo, sabendo tudo, por tantos anos. Mas morrera aterrorizado.
Fora no sétimo dia da Armada. Blackthorne estava comandando
um brigue de cem toneladas partido de Portsmouth, transportando
armas e pólvora, munição e comida para os galeões de guerra de
Drake, ao largo de Dover, que acossavam e cortavam a esquadra
inimiga que vinha atacando o canal na direção de Dunquerque,
onde se encontravam as legiões espanholas, esperando para baldear
e partir rumo à conquista da Inglaterra.
A grande esquadra espanhola fora devastada pelas tempestades e pelos navios de guerra mais odiosos, velozes e ágeis que
Drake e Howard jamais haviam construído.
Blackthorne se encontrava num ataque turbilhonante perto
da nau capitânea do Almirante Howard, Renown, quando o vento
mudara, revigorado por um temporal, de rajadas monstruosas, e
ele tivera que decidir entre tentar seguir a barlavento para escapar
a canhonada que irromperia do grande galeão Santa Cruz, bem
à frente, ou correr com o vento sozinho, através da esquadra inimiga, visto que o restante dos navios de Howard já havia dado
meia-volta, rumando mais para o norte.
248
- Rumo norte a barlavento! - gritara Alban Caradoc. Ele
estava com o co-piloto. Blackthorne era o capitão-piloto e o responsável, no seu primeiro comando. Alban Caradoc insistira em vir para a luta, embora não tivesse o direito de estar a bordo, exceto pelo fato de ser inglês e todos os ingleses terem o direito
de estar a bordo naquele período sombrio da história.
- Pare aí! - ordenara Blackthorne e girara a cana do leme
para sul, rumando para a boca da esquadra inimiga, sabendo que
o outro caminho os condenaria aos canhões do galeão, que agora
se erguia sobranceiro à sua frente.
Então foram para o sul, correndo com o vento, por entre os
galeões. A canhonada de três conveses do Santa Cruz passou-lhes
acima da cabeça com segurança, e Blackthorne disparou duas salvas contra o inimigo, picadas de pulgas num vaso tão imenso. Em
seguida se lançou de vento em popa através do centro da formação
inimiga.
Os galeões de cada lado não queriam disparar contra aquele
navio solitário, pois as descargas poderiam danificar uns aos outros, por isso os canhões permaneceram silenciosos. O navio de
Blackthorne estava atravessando e escapando quando uma canhonada do Madre de Dios os acertou em cheio. Os dois mastros
tombaram como setas, homens enredados na mastreação. A metade a estibordo do convés principal desaparecera, havia mortos
o moribundos por toda parte.
Ele vira Alban Caradoc deitado contra uma carreta de canhão despedaçada, incrivelmente minúsculo sem as pernas. Acorrera para lá, soerguera o velho marujo cujos olhos quase lhe saltavam das órbitas e que soltava gritos horríveis. - Oh, Cristo, não
quero morrer, não quero morrer, socorro, ajudem-me, ajudem-me
ajudem-me, ajudem-me, oh, Jesus Cristo, a dor, socooooorro! -
Blackthorne sabia que só havia uma coisa a fazer por Alban
Caradoc: pegou uma malagueta e bateu com toda a força.
Então, semanas mais tarde, teve que contar a Felicity que o
pai dela morrera. Só lhe disse que Alban Caradoc fora morto
instantaneamente. Não lhe contou que tinha sangue nas mãos,
sangue que jamais sairia.. .
Blackthorne e os samurais atravessavam agora uma rua larga
o sinuosa. Não havia lojas, apenas casas, de um lado e de outro,
cada uma dentro do seu terreno e atrás de cercas altas, tudo -
casas, cercas e a rua mesma - surpreendentemente limpo.
Essa limpeza parecia inacreditável a Blackthorne porque em
Londres -nas cidades grandes e pequenas da Inglaterra - e da
249

Europa - lixo, fezes noturnas e urina eram atirados nas ruas,
para serem varridos ou deixados amontoar-se até que os pedestres, carros e cavalos já não pudessem passar. Só então a maioria
dos municípios talvez providenciasse a limpeza. Os varredores de
Londres eram grandes manadas de porcos conduzidos através das
principais vias públicas durante a noite. Mas quem, na maior parte, fazia a limpeza de Londres eram os ratos, as matilhas de cães
o gatos selvagens, assim como os incêndios. E as moscas.
Mas Osaka era muito diferente. Como é que fazem? perguntou-se ele. Não há o conteúdo de urinóis, montes de bosta de
cavalo, sulcos de rodas, nada de imundície ou refugo de qualquer
espécie. Apenas terra socada, varrida e limpa. Muros de madeira
o casas de madeira, tudo brilhante e tratado com esmero. E onde
estão os bandos de pedintes e aleijados que infestam cada cidade
da cristandade? E os bandos de salteadores e jovens selvagens que
inevitavelmente estariam se esgueirando nas sombras?
As pessoas que passavam curvavam-se polidamente, algumas
se ajoelhavam. Carregadores de kaga apressavam-se levando palanquins ou as kagas de um passageiro só. Grupos de samurais
- cinzentos, nunca marrons - caminhavam pelas ruas despreocupadamente.
Estavam subindo uma rua ladeada de lojas quando as pernas
de Blackthorne cederam. Ele tombou pesadamente e caiu de
quatro.
Os samurais o ajudaram a se levantar mas, no momento, suas
forças o haviam abandonado e ele não conseguiria andar.
- Gomen nasal, doto ga matsu. Sinto muito, por favor, espere - disse ele, com cãibra nas pernas. Esfregou os músculos da
barriga da perna e bendisse Frei Domingo pelas coisas inestimáveis
que lhe ensinara.
O líder dos samurais olhou para ele e falou demoradamente.
- Gomen nasal, nlhon go ga hanase-masen. Sinto muito, não
falo japonês - respondeu Blackthorne, lentamente mas com clareza. - Dozo, ga-matsu.
- Ah! So desu, Anjin-san. Wakarimasu - disse o homem,
compreendendo-o. Deu uma ordem áspera e um dos samurais saiu
correndo. Dali a pouco Blackthorne se levantou, tentou caminhar,
penosamente, mas o chefe dos samurais disse: - !yé - e fez-lhe
sinal que esperasse.
Logo o samurai voltou com quatro carregadores semidespidos
o uma kaga. Os samurais mostraram a Blackthorne como se recostar e se segurar na correia que pendia da vara central.
250
O grupo se pôs a caminho novamente. Logo Blackthorne recuperou as forças e teria preferido voltar a andar, mas sabia que
ainda estava fraco. Preciso descansar um pouco, pensou. Não
tenho reservas. Preciso de um banho e de comida. Comida verdadeira.
Subiram largos degraus que uniam uma rua a outra e entraram em outro setor residencial que ladeava um bosque compacto,
com árvores altas, e recortado de caminhos. Blackthorne apreciou
muitíssimo estar longe das ruas, o gramado macio e bem cuidado,
o caminho que se insinuava por entre as árvores.
Quando já se haviam aprofundado no bosque, outro grupo
de uns trinta e tantos cinzentos se aproximou, surgido de uma
curva à frente. Avançaram, pararam, e após o cerimonial habitual
dos capitães se saudando, os olhos de todos voltaram-se para
Blackthorne. Houve um vaivém de perguntas e respostas e depois,
quando esses homens começaram a se reagrupar para partir, o
líder deles calmamente puxou a espada e cravou-a no líder dos
samurais de Blackthorne. Simultaneamente o novo grupo caiu
sobre o resto dos samurais. A emboscada foi tão repentina e tão
bem planejada que os dez cinzentos foram todos mortos quase ao
mesmo instante. Nem um deles teve tempo de sacar a espada.
Os carregadores da kaga estavam de joelhos, aterrorizados,
com a testa apertada contra a grama. Blackthorne erguia-se ao
lado deles.
O capitão-samurai, um homem forte com um vasto ventre,
mandou sentinelas para cada extremidade do caminho. Os outros
reuniram as espadas dos mortos. O tempo todo os homens não
prestaram atenção alguma a Blackthorne, até que ele começou a
recuar. Imediatamente houve uma ordem sibilante do capitão, claramente significando que ele ficasse onde estava.
A uma outra ordem, todos os cinzentos despiram os quimonos uniformes. Por baixo usavam uma heterogênea coleção de
trapos e quimonos velhos. Todos cobriram o rosto com máscaras
que já estavam amarradas em torno do pescoço de cada um. Um
homem apanhou os uniformes cinza e sumiu com eles no bosque.
Devem ser bandidos, pensou Blackthorne. Senão, por que as
máscaras? O que querem comigo?
Os bandidos conversaram tranqüilamente entre si, vigiando-o
enquanto limpavam as espadas nas roupas dos samurais mortos.
- Anjin-san? Hai? - Os olhos do capitão acima da máscara
de pano eram redondos, negros e perscrutantes.
- H -. replicou Blackthorns, sentindo a pele arrepiar-se.
251

O homem apontou para o chão, obviamente lhe dizendo que
não se mexesse. - Wakarimasu ka?
- Hai.
Mediram-no de alto a baixo. Então uma das sentinelas avançadas - já sem uniforme, mas mascarado, como todos os outros
- surgiu dos arbustos um instante, a uns cem passos de distância.
Acenou e desapareceu de novo.
Imediatamente os homens rodearam Blackthorne, preparando-se para partir. O capitão bandido fixou o olhar nos carregadores, que tremiam como cães de um dono cruel, e afundou-lhes a
cabeça ainda mais na grama.
Então vociferou uma ordem. Os quatro lentamente levantaram a cabeça, incrédulos. Novamente a mesma ordem. Eles se
curvaram, recuaram rastejando, depois, simultaneamente, deram
às pernas e sumiram por entre o cerrado.
O bandido sorriu satisfeito e fez sinal a Blackthorne que
começasse a andar de volta à cidade.
Ele os seguiu, indefeso. Não havia como escapar.
Estavam quase na extremidade do bosque quando pararam.
Ouviram ruídos à frente e um outro grupo de trinta samurais contornou a curva. Marrons e cinzentos, os marrons na vanguarda, o
líder num palanquim, alguns cavalos de carga seguindo atrás.
Pararam imediatamente. Ambos os grupos moveram-se para posições de briga, olhando-sc hostilmente, com setenta passos separando-os. O líder dos bandidos avançou para o espaço entre eles,
gesticulou e gritou colericamente para os outros samurais, apontando para Blackthorne e depois para o ponto onde ocorrera a
emboscada. Puxou a espada, segurando-a ameaçadoramente no ar,
obviamente dizendo ao outro grupo que saísse do caminho.
As espadas de todos os seus homens cantaram nas bainhas.
A uma ordem sua, um dos bandidos postou-se atrás de Blackthorne, a espada levantada e pronta, e novamente o líder se pôs
a falar em altos brados.
Por um instante, nada aconteceu. Então Blackthorne viu o
homem no palanquim descer e imediatamente o reconheceu. Era
Kasigi Yabu. Yabu gritou com o líder dos bandidos, mas o homem
sacudiu a espada furiosamente, ordenando-lhes que saíssem do caminho. Terminou o discurso com determinação. Então Yabu deu
uma ordem curta, e investiu com um penetrante grito de batalha,
coxeando ligeiramente, espada ao ar, seus homens arremetendo
com ele, os cinzentos logo atrás.
Blackthorne caiu de joelhos para escapar do golpe de espada
que o teria cortado ao meio, mas o golpe foi mal calculado e o
líder dos bandidos se virou e disparou para a mata, seguido de
seus homens.
Num instante os marrons e os cinzentos estavam junto de
Blackthorne, que se ergueu com dificuldade. Alguns samurais saíram à caça dos bandidos por entre os arbustos, outros se puseram
a vasculhar a trilha, e o resto se dispersou a título de proteção.
Yabu parou à beira do mato, gritou ordens imperiosamente, depois
voltou lentamente, coxeando de modo mais pronunciado.
- So desu, Anjin-san - disse ele, ofegando por causa do
esforço.
- So desu, Yabu-san - retrucou Blackthorne, usando a
mesma frase que significava alguma coisa como "bem" ou "realmente" ou "a verdade é essa". Apontou na direção que os bandidos haviam tomado. - Domo. Curvou-se polidamente, de igual
para igual, e disse outra bênção por Frei Domingo. - Gomen
nasal nlhon go ga hanase-masen. Sinto muito, não sei falar japonês.
- Hai - disse Yabu, nem um pouco impressionado, e acrescentou alguma coisa que Blackthorne não compreendeu.
Tsuyaku ga imasu ka? - perguntou Blackthorne. Tem um
intérprete?
- Iyé, Anjin-san. Gonien nasal.
Blackthorne sentiu-se um pouco mais à vontade. Agora podia
comunicar-se diretamente. O vocabulário era parco, mas já era
um começo.
Como eu gostaria de ter um intérprete, estava pensando Yabu
intensamente. Por Buda!
Gostaria de saber o que aconteceu quando você se encontrou
com Toranaga, Anjin-san, que perguntas ele fez e o que você respondeu, o que lhe disse sobre a aldeia, as armas, a carga, o navio,
a galera e Rodrigu. Gostaria de saber tudo o que foi dito, e como
foi dito, e onde você esteve e por que está aqui. Então eu teria
uma idéia do que se passa pela cabeça de Toranaga, o modo como
está pensando. E poderia planejar o que vou lhe dizer hoje. Do
modo como se encontra a situação agora, estou completamente
desamparado.
Por que Toranaga recebeu você imediatamente, assim que
chegamos, e não a ruim? Por que, desde que atracamos até hoje,
não recebi nenhuma mensagem ou ordem dele, além da saudação
polida e obrigatória e de "Espero com prazer a oportunidade de
vê-lo brevemente"? Por que mandou me chamar hoje? Por que
nosso encontro foi adiado duas vezes? Teria sido por causa .de
s
252
253

alguma coisa que você tenha dito? Ou Hiro-matsu? Ou se trata
apenas de um atraso normal, causado por todas as outras preocupações dele?
Oh, sim, Toranaga, você tem problemas quase insuperáveis.
A influência de Ishido está se espalhando como fogo. E já está
sabendo sobre a traição do Senhor Onoshi? Sabe que Ishido me
ofereceu a cabeça e a província de Ikawa Jikkyu se eu, secretamente, me juntasse a ele?
Por que você escolheu o dia de hoje para mandar me chamar? Que bom kami me pôs aqui para salvar a vida de Anjin-san,
só para zombar de mim porque não posso conversar diretamente
com ele, nem por intermédio de alguma outra pessoa?
Por que você o pôs na prisão, para ser executado? Por que
os bandidos tentaram capturá-lo para exigir resgate? Resgate pago
por quem? E por que Anjin-san ainda está vivo? Aquele bandido
poderia facilmente tê-lo cortado ao meio.
Yabu notou as linhas profundamente vincadas que não estavam no rosto de Blackthorne na primeira vez que o vira. Parece
faminto, pensou Yabu. É como um cão selvagem. Mas não um cão
qualquer e sim o líder da matilha, neh?
Oh, sim, piloto, eu daria mil kokus para ter um intérprete
digno de confiança bem agora. Vou ser seu amo. Você vai construir meus navios e treinar meus homens. Tenho que manipular
Toranaga de algum jeito. Se não conseguir, não importa. Na
minha próxima vida, estarei mais bem preparado.
- Bom cão! - disse Yabu em voz alta para Blackthorne e
sorriu levemente. - Tudo o que você precisa é uma mão firme,
alguns ossos e algumas chicotadas. Primeiro vou entregá-lo ao
Senhor Toranaga... depois que você tiver tomado um banho.
Você fede, senhor piloto!
Blackthorne não compreendeu as palavras, mas sentiu cordialidade nelas e viu o sorriso de Yabu. Retribuiu ao sorriso. -
Wakarimasen. Não entendo.
- Hai, Anjin-san.
O daimio deu-lhe as costas e relanceou os olhos à procura
dos bandidos. Pôs as mãos em concha em torno da boca e gritou.
Imediatamente todos os marrons regressaram. O samurai-chefe dos
cinzentos estava em pé no centro da trilha e também ele mandou
interromper a busca. Nenhum dos bandidos foi trazido de volta.
Quando esse capitão dos cinzentos se aproximou de Yabu,
houve muita discussão, apontaram para a cidade e para o castelo,
e era óbvio o desentendimento entre eles.
254
Finalmente Yabu prevaleceu, a mão sobre a espada, e fez
sinal a Blackthorne para que subisse no palanquim.
- Iyé - disse o capitão.
O impasse entre os dois começou a tomar ares de gravidade
e tanto os cinzentos quanto os marrons remexeram-se nervosamente.
- Anjin-san desu shunjin Toranaga-sarna...
Blackthorne apanhava uma palavra aqui, outra ali. "Watakushi" queria dizer "eu", junto com "hitachi" significava "nós";
"shunjin" significava "prisioneiro". E então se lembrou do que
Rodrigues dissera, sacudiu a cabeça e interrompeu abruptamente:
- Shunjin, iyé! Wakarimasu ka Anjin-san!
Os dois homens o encararam.
Blackthorne rompeu o silêncio e continuou num japonês
vacilante, sabendo que falava sem fazer as relações gramaticais e
de modo infantil, mas esperando que suas palavras fossem compreendidas: - Eu amigo. Não prisioneiro. Compreender, por
favor. Amigo. Sinto muito, amigo quer banho. Banho, compreendem? Cansado. Com fome. Banho. - Apontou para o torreão do
castelo. - Vou lá! Agora, por favor. Senhor Toranaga um, Senhor Ishido dois. Vou agora. - E com um tom arrogante imposto
ao último "ima", subiu desajeitadamente no palanquim e reclinouse sobre as almofadas, os pés pendendo para fora.
Então Yabu riu, e todos se juntaram a ele.
- Ah so, Anjin-sarna! - disse ele, com uma reverência
zombeteira.
- Iyé, Yabu-sarna, Anjin-san - corrigiu-o Blackthorne, satisfeito.
Sim, seu bastardo. Sei uma ou duas coisinhas agora. Mas não
me esqueci de você. E logo estarei caminhando sobre a sua sepultura.
CAPÍTULO 16
- Talvez tivesse sido melhor me consultar antes de remover
o meu prisioneiro da minha jurisdição, Senhor Ishido - disse
Toranaga.
- O bárbaro estava na prisão comum, com pessoas comuns.
255

Naturalmente presumi que o senhor não tivesse mais interesse
algum por ele, do contrário eu não o teria tirado de lá. Claro que
nunca pretendi interferir nos seus assuntos privados. - Ishido
estava aparentemente calmo e respeitoso, mas por dentro estava
muito agitado. Sabia que fora surpreendido numa indiscrição. Era
verdade que devia ter perguntado a Toranaga primeiro. A polidez
mais banal exigia isso. Ainda assim, isso não teria importado em
absoluto se ainda detivesse o bárbaro em seu poder, nos seus quartéis; simplesmente teria cedido o estrangeiro quando quisesse, se
o quando Toranaga o pedisse. Mas como alguns de seus homens
tinham sido interceptados e infamemente mortos, e depois o daimio
Yabu e alguns dos homens de Toranaga tinham tomado posse física do bárbaro, a posição mudava completamente. Perdera em
dignidade, quando toda a sua estratégia para a destruição pública
de Toranaga era precisamente colocar o outro nessa posição. -
Novamente peço desculpas.
Toranaga relanceou o olhar para Hiro-matsu. Aquele pedido
de desculpas soava como música. Os dois homens sabiam quanto
esforço custara a Ishido. Encontravam-se na grande sala de audiências. Por acordo prévio, os dois antagonistas tinham apenas
cinco guardas presentes, homens de confiança garantida. O resto
esperava do lado de fora. Yabu também esperava lá fora. E o
bárbaro estava se banhando.
Bom, pensou Toranaga, sentindo-se muito contente consigo
mesmo. Pensou rapidamente em Yabu e resolveu não vê-lo ainda
o continuar a brincar com ele. Pediu a Hiro-matsu que o despachasse e voltou-se de novo para Ishido. - Naturalmente suas desculpas são aceitas. Felizmente não houve nenhum dano.
- Então posso levar o bárbaro ao herdeiro... assim que ele
esteja apresentável?
- Enviá-lo-ei assim que tivermos terminado com ele.
- Posso perguntar quando será isso? O herdeiro o esperava
esta manhã.
- Não deveríamos nos preocupar demais com isso, o senhor
o eu, neh? Yaemon tem só sete anos. Estou certo de que um menino de sete anos pode se controlar com paciência. Neh? A paciência é uma forma de disciplina e exige prática. Não é mesmo?
Explicarei o mal-entendido pessoalmente. Vou lhe dar outra aula
de natação esta manhã.
-Oh?
- Sim. O senhor também devia aprender a nadar, Senhor
Ishido. É um excelente exercício e poderia ser de grande utilidade
256
durante a guerra. Todos os meus samurais sabem nadar. Insisto
em que todos eles aprendam essa arte.
- Os meus passam o tempo praticando arco e flecha, esgrima, equitação e tiro.
- Os meus juntam a isso a poesia, a caligrafia, a arte de
arranjar flores, a cerimônia de cha-no-yu. Os samurais devem ser
bem versados nas artes da paz para serem fortes nas artes bélicas.
- A maioria dos meus homens já é mais que perito nessas
artes - disse Ishido, consciente de que sua própria escrita era
pobre, e a leitura limitada. - Os samurais são gerados para a
guerra. Conheço a guerra muito bem. Isso é suficiente no momento. Isso é obediência ao testamento do nosso amo.
- A aula de natação de Yaemon é à hora do Cavalo. - O
dia e a noite eram, cada um, divididos em seis partes iguais. O dia
começava com a hora da Lebre, das cinco às sete da manhã, depois do Dragão, das sete às nove. Seguiam-se as horas da Cobra,
do Cavalo, do Bode, do Macaco, do Galo, do Cão, do Javali, do
Rato e da Raposa, e o ciclo terminava com a hora do Tigre, entre
as três e as cinco da manhã - Gostaria de participar da aula?
- Não, obrigado. Sou velho demais para mudar meus hábitos - disse Ishido fracamente.
- Ouvi dizer que o capitão de seus homens recebeu ordem
de cometer seppuku.
- Naturalmente. Os bandidos deviam ter sido apanhados.
No mínimo um deles devia ter sido capturado. Aí teríamos descoberto os outros.
- Estou atônito de que essa podridão tenha podido agir tão
perto do castelo.
- Concordo. Talvez o bárbaro pudesse descrevê-los.
- O que um bárbaro saberia dizer? - Toranaga riu. -
Quanto aos bandidos, eram ronins, não eram? Os ronins são muito
numerosos entre os seus homens. Talvez algumas investigações ali
fossem frutíferas. Neh?
- As investigações estão sendo apressadas. Em muitas direções. - Ishido ignorou o sarcasmo velado sobre os ronins, os
sem-amo, samurais mercenários, quase párias, que haviam, aos
milhares, se reunido sob a bandeira do herdeiro quando Ishido
espalhara em segredo o rumor de que, em nome do herdeiro e
da mãe do herdeiro, aceitaria a fidelidade deles, perdoaria - inacreditavelmente - e esqueceria suas imprudências, seu passado,
e lhes recompensaria a lealdade, no decorrer do tempo, com a
prodigalidade do táicum. Ishido sabia que fora uma manobra bri257

lhante. Deu-lhe uma enorme quantidade de samurais treinados;
garantiu a lealdade deles, pois os ronins sabiam que nunca teriam
chance igual; trouxera para seu lado todos os encolerizados, muitos dos quais tinham sido reduzidos a ronins pelas conquistas de
Toranaga e de seus aliados. E finalmente eliminara do reino um
perigo - um aumento na população de bandidos -, pois praticamente o único modo de vida suportável e acessível a um samurai
desgraçado o bastante para se tornar ronin era transformar-se em
monge ou em bandido.
- Há muitas coisas que não entendo sobre essa emboscada
- disse Ishido, a voz impregnada de veneno. - Sim. Por que,
por exemplo, bandidos tentariam capturar esse bárbaro para trocá-lo por resgate? Há muitos outros na cidade, muitíssimo mais
importantes. Não foi isso que o bandido disse? Era resgate o que
queriam. Resgate de quem? Qual é o valor do bárbaro? Nenhum.
E como ficaram sabendo onde ele estaria? Foi só ontem que dei
a ordem de trazê-lo para o herdeiro, pensando que isso divertiria
o menino. Muito curioso.
- Muito - disse Toranaga.
- Depois há a coincidência de o Senhor Yabu estar nas vizinhanças com alguns dos seus homens e alguns dos meus na hora
exata. Muito curioso.
- Muito. Naturalmente ele estava lá porque eu mandara
chamá-lo, e seus homens estavam lá porque combinamos - por
sugestão sua - que seria uma boa política, e um modo de começar a sanar a brecha entre nós, os seus homens acompanharem
os meus por toda parte enquanto estou nesta visita oficial.
- Também é estranho que os bandidos, que foram suficientemente corajosos e bem organizados para assassinar os primeiros
dez sem que houvesse combate, agissem como coreanos quando
nossos homens chegaram. Os dois lados estavam em condições de
igualdade. Por que os bandidos não lutaram ou não levaram o
bárbaro para as colinas imediatamente, ao invés de ficarem estupidamente num caminho principal para o castelo? Muito curioso.
- Muito. Com certeza levarei uma guarda dobrada comigo,
amanhã, quando for falcoar. A título de prevenção. É desconcertante saber que há bandidos tão perto do castelo. Sim. Talvez o
senhor gostasse de caçar também? Fazer um de seus falcões competir contra os meus? Estarei caçando nas colinas ao norte.
- Não, obrigado. Estarei ocupado amanhã. Talvez depois
de amanhã? Ordenei a vinte mil homens que varressem todas as
florestas, bosques e clareiras em torno de Osaka. Não haverá
258
um bandido dentro de vinte ris em dez dias. Isso eu posso lhe
prometer.
Toranaga sabia que Ishido estava usando os bandidos como
desculpa para aumentar o número de seus homens nas proximidades. Se diz vinte, quer de fato dizer cinqüenta. A armadilha está
chegando mais perto, disse ele a si mesmo. Por que tão depressa?
Que nova traição aconteceu? Por que Ishido está tão confiante?
- Ótimo. Então, depois de amanhã, Senhor Ishido. Manterá seus
homens longe da minha área de caça? Não gostaria que meu
jogo fosse perturbado - acrescentou.
- É claro. E o bárbaro?
- Ele é e sempre foi minha propriedade. Assim como o
navio. Mas poderá ficar com ele quando eu tiver terminado. E
depois pode mandá-lo para o pátio de execução, se quiser.
-- Obrigado. Sim. Farei isso. - Ishido fechou o leque e
escorregou-o para dentro da manga. - Ele não tem importância.
O importante e a razão pela qual vim vê-lo é que... oh, a propósito, ouvi dizer que a senhora minha mãe está visitando o mosteiro de Johji.
- Oh? Eu teria pensado que a estação já está um pouco
avançada para apreciar as flores de cerejeira. Certamente já terão
passado do auge agora.
- Tem razão. Mas afinal, se ela quer vê-las, por que não?
Nunca se pode contrariar os mais velhos. Têm lá as suas manias
e vêem as coisas de modo diferente, neh? Mas sua saúde não é
boa. Preocupo-me com ela. Tem que ser muito cuidadosa... resfria-se com muita facilidade.
- Com minha mãe acontece o mesmo. É preciso vigiar a
saúde dos velhos. - Toranaga tomou nota mentalmente, para
enviar uma mensagem imediata lembrando ao prior que velasse
atentamente pela saúde da velha. Se morresse no mosteiro, a repercussão seria terrível. Ele ficaria em desgraça perante o império.
Todos os daimios perceberiam que no jogo de xadrez pelo poder
ele usara uma velha indefesa, a mãe do inimigo, como refém e
falhara na sua responsabilidade por ela. Tomar um refém era, na
verdade, muito perigoso.
Ishido ficara quase cego de raiva quando soubera que sua
venerada mãe se encontrava em poder de Toranaga, em Nagoya.
Cabeças rolaram. Imediatamente trouxera à tona planos para a
destruição de Toranaga, e tomara a resolução solene de investir
contra Nagoya e aniquilar o Daimio Kazamaki - sob cuja responsabilidade ela estivera ostensivamente -, no momento em que
259

as hostilidades começassem. Enviara uma mensagem particular ao
prior, através de intermediários, dizendo que a menos que ela
fosse retirada do mosteiro em segurança dentro de vinte e quatro
horas, Naga, o único filho de Toranaga que se encontrava ao alcance, e qualquer uma de suas mulheres que pudesse ser apanhada, infelizmente despertariam no dia seguinte na aldeia de leprosos,
sendo alimentados por eles e servidos por uma de suas prostitutas.
Ishido sabia que enquanto sua mãe estivesse em poder de Toranaga
ele teria que agir com cautela. Mas deixara bem claro que se não
a deixassem partir, ele poria o império a ferro e fogo. - Como
está a senhora sua mãe, Senhor Toranaga? - perguntou polidamente.
- Muito bem, obrigado. - Toranaga permitiu-se demonstrar
a própria felicidade, tanto pela lembrança da mãe quanto pelo
conhecimento da fúria impotente de Ishido. - Está notavelmente
bem para setenta e quatro anos. Só espero estar tão forte quanto
ela quando tiver essa idade.
Você tem cinqüenta e oito. Toranaga, mas nunca chegará aos
cinqüenta e nove, prometeu Ishido a si mesmo. - Por favor, transmita-lhe meus melhores votos de uma vida permanentemente feliz.
Obrigado novamente e sinto muito que o senhor tenha sido incomodado. - Curvou-se com grande polidez e então, contendo com
dificuldade o imenso prazer que sentia, acrescentou: - Oh, sim,
o assunto importante pelo qual eu queria vê-lo é que a última
reunião formal dos regentes foi adiada. Não vamos nos reunir hoje
ao por-do-sol.
Toranaga conservou o sorriso no rosto mas por dentro ficou
petrificado.
- Oh? Por quê?
- O Senhor Kiyama está doente. Os senhores Sugiyama e
Onoshi concordaram em adiar. Eu também. Alguns dias não têm
importância, não é, em se tratando de assuntos tão importantes?
- Podemos fazer a reunião sem o Senhor Kiyama.
- Combinamos que não podemos. - Os olhos de Ishido
escarneciam.
- Formalmente?
- Aqui estão nossos quatro selos.
Toranaga estava perturbadíssimo. Qualquer atraso o colocava
num risco incomensurável. Poderia negociar a mãe de Ishido por
uma reunião imediata? Não, porque levaria tempo demais para as
ordens irem e voltarem e ele concederia uma vantagem muito
grande por nada. - Quando será a reunião, então?
- Suponho que o Senhor Kiyama esteja bem amanhã, ou
talvez depois de amanhã.
- Ótimo. Mandarei meu médico particular ir vê-lo.
- Estou certo de que ele apreciaria isso. Mas o seu médico
proibiu qualquer visita. A doença poderia ser contagiosa, neh?
- Qual é a doença?
- Não sei, senhor. Foi o que me disseram.
- O médico é bárbaro?
- Sim. Informaram que é o principal médico dos cristãos.
Um médico-sacerdote cristão para um daimio cristão. Os nossos
não são bons o bastante para um daimio tão... tão importante
- disse Ishido, com um riso zombeteiro.
A preocupação de Toranaga aumentou. Se o médico fosse
japonês, havia muitas coisas que ele poderia fazer. Mas com um
médico cristão - inevitavelmente um padre jesuíta -, bem, ir
contra um deles, ou mesmo se intrometer com um deles, poderia
afastar todos os daimios cristãos, coisa que ele nao podia se permitir arriscar. Sabia que sua amizade com Tsukku-san nao o ajudaria contra os daimios cristãos Onoshi e Kiyama. Fazia parte dos
interesses cristãos apresentar uma frente unida. Dentro em breve
teria que se aproximar deles, dos padres bárbaros, para fazer um
acerto, descobrir o preço da cooperação deles. Se Ishido realmente
tem Onoshi e Kiyama consigo - e todos os daimios cristãos seguiriam esses dois se eles agissem em conjunto -, então estou
isolado, pensou Toranaga. E o único recurso que me resta é Céu
Carmesim.
- Visitarei o Senhor Kiyama depois de amanhã - disse ele,
fixando um último prazo.
- Mas e o contágio? Eu nunca me perdoaria se alguma
coisa lhe acontecesse enquanto se encontra aqui em Osaka, senhor.
É nosso hóspede, está sob os meus cuidados. Devo insistir em que
não faça isso.
- Fique descansado, Senhor Ishido, o contágio que me derrubará ainda não nasceu, neh? O senhor se esquece da predição
do adivinho. - Quando a delegação chinesa viera ao táicum, seis
anos antes, para tentar encerrar a guerra nipo-sino-coreana, um
famoso astrólogo viera com ela. Esse chinés predissera muitas
coisas que depois se concretizaram. Num dos jantares de cerimônia incrivelmente pródigos, o próprio táicum pedira ao adivinho
que predissesse a morte de alguns de seus conselheiros. O astrólogo dissera que Toranaga morreria a golpe de espada quando
atingisse a meia-ldade. Ishido, o famoso conquistador da Coréia
260
261

- ou Chosen, como os chineses chamavam aquela terra -, morreria com saúde, velho, os pés firmes na terra, o homem mais
famoso de sua época. Mas o táicum morreria na cama, respeitado,
venerado, com muita idade, deixando um filho saudável para sucedê-lo. Isso agradara tanto ao táicum, que ainda não tinha filhos,
que ele resolvera deixar a delegação regressar à China e não matar
os emissários como planejara devido às suas insolências anteriores. Ao invés de negociar a paz, como esperara, o imperador chinês, por intermédio da delegação, meramente oferecera "investi-lo
rei do País de Wa", que era como os chineses chamavam o Japão.
O táicum mandara-os vivos para casa e não dentro das minúsculas
caixas que já haviam sido preparadas para eles, e reiniciara a
guerra contra a Coréia e a China.
- Não, Senhor Toranaga, não esqueci - disse Ishido, lembrando-se muito bem. - Mas o contágio pode ser desconfortável.
Por que estar desconfortável? Poderia contrair sífilis como seu
filho Noboru, sinto muito, ou lepra, como o Senhor Onoshi.
Ele ainda é jovem, mas sofre muito. Oh, sim, sofre.
Toranaga ficou momentaneamente perturbado. Conhecia a
devastação causada por ambas as doenças muitíssimo bem. Noboru, o mais velho de seus filhos vivos, contraíra a sífilis chinesa
aos dezessete anos - dez anos antes - e todas as curas dos
médicos japoneses, chineses, coreanos e cristãos não tinham conseguido debelar a doença que já o desfigurara, mas não o mataria. Se me tornar todo-poderoso, prometeu Toranaga a si mesmo,
talvez possa exterminar essa doença. Será que realmente vem das
mulheres? Como é que as mulheres a pegam? Pobre Noboru. Não
fosse a sífilis seria meu herdeiro, porque é um brilhante soldado,
um administrador melhor do que Sudara, e muito astuto. Deve ter
feito muitas coisas ruins numa vida anterior para ter que carregar
esse peso nesta.
- Por Buda, não desejo nenhuma das duas para ninguém
- disse ele.
- Acredito - disse Ishido, acreditando de fato que Toranaga, se pudesse, bem que gostaria que ele tivesse a ambas. Curvou-se mais uma vez e saiu.
Toranaga rompeu o silêncio: - Bem?
- Ficar ou partir, agora - disse Hiro-matsu -, é a mesma
coisa: catástrofe, porque agora o senhor foi traído e está isolado.
Se ficar para a reunião - e não vai haver reunião por uma semana - Ishido terá mobilizado suas legiões em torno de Osaka
e o senhor nunca escapará, aconteça o que acontecer à Senhora
262
Ochiba em Yedo. E Ishido está claramente resolvido a arriscá-la
para pegar o senhor. É óbvio que o senhor foi traído e os quatro
regentes tomarão uma decisão contra o senhor. Se partir, ainda
assim eles poderão sancionar qualquer ordem que Ishido deseje
dar. O senhor tem que suster uma decisão de quatro a um. Jurou
fazer isso. Não pode ir contra a sua palavra solene como regente.
- Concordo.
O silêncio se fez, interminável.
Hiro-matsu esperou, com ansiedade crescente. - O que vai
fazer?
- Primeiro vou nadar - disse Toranaga, com surpreendente
jovialidade. - Depois verei o bárbaro.
A mulher atravessou silenciosamente o jardim particular de
Toranaga no castelo, dirigindo-se para a pequena cabana de sapé
que se erguia numa clareira entre bordos. Seu quimono e obi de
seda eram os mais simples, ainda que fossem os mais elegantes
que os mais famosos artesãos da China conseguiam fazer. Usava
o cabelo à última moda de Kyoto, preso no alto e mantido no
lugar por longos alfinetes de prata. Uma sombrinha colorida protegia-lhe a pele muito delicada. Era minúscula, apenas cinco pés,
mas perfeitamente proporcionada. Em torno do pescoço usava
uma fina corrente de ouro e, pendendo dela, um pequeno crucifixo, também de ouro.
Kiri esperava na varanda da cabana. Sentara-se pesadamente
à sombra, suas nádegas transbordando da almofada, e observou
a mulher aproximando-se pelo caminho de pedras que tinham
sido colocadas com tanto cuidado no musgo que pareciam ter
crescido ali.
- Está mais bela do que nunca, mais jovem do que nunca,
Toda Mariko-san - disse Kiri sem inveja, retribuindo-lhe a
mesura.
- Gostaria que fosse verdade, Kiritsubo-san - retrucou
Mariko, sorrindo. Ajoelhou-se sobre uma almofada, e inconscientemente arranjou as saias num formato delicado.
É verdade. Quando foi que nos encontramos pela última
vez? Há dois... três anos? Você não mudou um fio de cabelo
em vinte anos. Deve fazer quase vinte anos desde que nos vimos
pela primeira vez. Lembra-se? Foi numa festa que o Senhor Goroda deu. Você tinha catorze anos, era recém-casada e extraordinária.
263

- E assustada.
- Não, não você. Assustada não.
- Foi há dezesseis anos, Kiritsubo-san, não vinte. Sim, lembro-me muito bem. - Bem demais, pensou ela, entristecida. Foi
o dia em que meu irmão me cochichou que acreditava que nosso
venerado pai ia se vingar do seu suserano, o Ditador Goroda, que
ia assassiná-lo. Seu suserano!
Oh, sim, Kiri-san, lembro-me daquele dia, daquele ano e
daquela hora. Foi o início de todo o horror. Nunca admiti para
ninguém que sabia o que iria acontecer antes que acontecesse.
Nunca preveni meu marido, ou Hiro-matsu, pai dele - ambos
fiéis vassalos do ditador -, de que havia uma traição planejada
por um de seus maiores generais. Pior, nunca preveni Goroda,
meu suserano. Por isso falhei no meu dever para com meu suserano, para com meu marido, para com a família dele, que, devido
ao meu casamento, é a minha única família. Oh, minha Nossa
Senhora, perdoe o meu pecado, ajude-me a me purificar. Mantiveme em silêncio para proteger meu amado pai, que profanou a
honra de mil anos. Ó meu Deus, Ó Senhor Jesus de Nazaré, salvem
esta pecadora da danação eterna...
- Foi há dezesseis anos - disse Mariko serenamente.
- Eu estava carregando o filho do Senhor Toranaga naquele
ano - disse Kiri, e pensou: se o Senhor Goroda não tivesse sido
perfidamente traído e assassinado pelo seu pai, o meu Senhor
Toranaga nunca teria precisado lutar na batalha de Nagakudé,
eu nunca teria apanhado um resfriado e meu filho nunca teria
sido abortado. Talvez. Mas talvez não. Era apenas karma, meu
karma, acontecesse o que acontecesse, neh? - Ah, Mariko-san
- disse ela, sem maldade -, isso é muito tempo, parece quase
outra vida. Mas você não tem idade. Por que não posso ter o seu
rosto, o seu belo cabelo e caminhar tão graciosamente? - Kiri
riu. - A resposta é simples: porque como demais!
- O que importa? Você goza do favor do Senhor Toranaga,
neh? Portanto está realizada. É sábia, afetuosa, íntegra e feliz.
- Preferia ser magra, poder continuar comendo e gozando
do favor dele - disse Kiri. - Mas e você? Não é feliz?
- Sou apenas um instrumento do meu Senhor Buntaro. Se
o senhor meu marido está feliz, então, é claro, eu estou feliz. O
seu prazer é o meu prazer. É o mesmo que com você - disse
Mariko.
- Sim. Mas não é o mesmo. - Kiri abanou o leque, a
seda dourada refletindo o sol da tarde. Estou tão contente por
264
não ser você, Mariko, com toda a sua beleza, e seu brilho, coragem e erudição. Não! Eu não suportaria estar casada com aquele
homem odioso, feio, arrogante, violento, por um dia, quanto mais
por dezessete anos. É tão diferente do pai, o Senhor Hiro-matsu.
Aquele, sim, é um homem maravilhoso. Mas Buntaro? Como é que
os pais têm filhos tão terríveis? Gostaria de ter um filho, oh,
como gostaria! Mas você, Mariko, como agüentou tantos maustratos todos esses anos? Como suportou as suas tragédias? Parece
impossível que não haja sombra delas no seu rosto ou na sua alma.
- É uma mulher surpreendente, Toda Buntaro Mariko-san.
- Obrigada, Kiritsubo Toshiko-san. Oh, Kiri-san, é tão bom
ver você.
- O mesmo digo eu. Como está seu filho?
- Lindo-lindo-lindo. Saruji tem quinze anos agora, imagine!
Alto, forte, igualzinho ao pai, e o Senhor Hiro-matsu deu um
feudo a Saruji e ele... você sabe que ele vai se casar?
- Não, com quem?
- Ela é uma neta do Senhor Kiyama. O Senhor Toranaga
combinou tudo muito bem. Um casamento excelente para a nossa
família. Só gostaria que a garota fosse... fosse mais atenciosa
com meu filho, mais adequada. Sabe, ela... - Mariko riu, um
pouco acanhada. - Pronto, estou falando como todas as sogras
que sempre existiram. Mas acho que você concordaria, ela realmente ainda não está treinada.
- Você terá tempo para fazer isso.
- Oh, espero que sim. Tenho sorte por não ter uma sogra.
Não sei o que faria.
- Você a encantaria e a treinaria como faz com toda a
gente da sua casa, neh?
- Gostaria que isso também fosse verdade. - As mãos de
Mariko estavam imóveis ao colo. Ela observou uma libélula pousar,
depois disparar como uma seta. - Meu marido ordenou-me que
viesse aqui. O Senhor Toranaga quer ver-me?
- Sim. Quer que você sirva de intérprete para ele.
Mariko ficou espantada. - Com quem?
- Com o novo bárbaro.
- Oh! Mas... e o Padre Tsukku-san? Está doente?
- Não. - Kiri brincou com o leque. - Acho que so nos
deixaram a curiosidade de saber por que o Senhor Toranaga quer
você aqui e não o padre, como na primeira entrevista. Por que
será, Mariko-san, que temos que guardar o dinheiro todo, pagar
todas as contas, treinar todos os criados, comprar toda a comida
265

o todo o vestuário da casa - na maioria das vezes, até as roupas
dos nossos senhores -, e eles na realidade não nos contam nada,
não e?
- Talvez seja para isso que a nossa intuição existe.
- Provavelmente. - O olhar de Kiri era franco e cordial.
- Mas imagino que se trate de um assunto muito particular.
Por isso você juraria pelo seu Deus cristão não divulgar nada
sobre este encontro. A ninguém.
O dia pareceu perder o calor.
- Naturalmente - disse Mariko, inquieta. Compreendeu
muito claramente que o que Kiri queria dizer era que ela não
devia contar nada ao marido, ao pai dele, nem ao confessor.
Como o marido lhe ordenara que viesse, obviamente a uma solicitação do Senhor Toranaga, seu dever para com o suserano superava o dever para com o marido, de modo que ela poderia livremente omitir informações. Mas e o confessor? Poderia não dizer
nada a ele? E por que era ela a intérprete e não o Padre Tsukkusan? Sabia que mais uma vez, contra sua vontade, estava envolvida no tipo de intriga política que lhe havia atormentado a vida,
o mais uma vez desejou que sua família não fosse antiga e Fujimoto, que nunca tivesse nascido com o dom das línguas, que lhe
permitira aprender as quase incompreensíveis línguas portuguesa
o latina, e que nunca tivesse nascido em absoluto. Mas então,
pensou ela, eu nunca teria visto meu filho, nem aprendido sobre
o menino Jesus ou a verdade Dele, ou sobre a vida eterna.
É o seu karma, Mariko, disse a si mesma tristemente, só
karma. - Muito bem, Kiri-san. - E acrescentou, com um pressentimento: - Juro pelo senhor meu Deus que não divulgarei
nada do que for dito aqui hoje, nem em qualquer outra vez que
eu esteja interpretando para o meu suserano.
- Também imagino que você talvez precisasse excluir parte
dos seus próprios sentimentos para traduzir exatamente o que for
dito. Este novo bárbaro é estranho e diz coisas peculiares. Tenho
certeza de que o meu senhor escolheu você, entre todas as possibilidades, por razões especiais.
- Sou do Senhor Toranaga, para que ele faça o que desejar.
Ele não precisa nunca ter qualquer receio pela minha lealdade.
- Isso nunca esteve em questão, senhora. Não falei com má
intenção.
Começou a cair uma chuva de primavera que salpicou as
pétalas, o musgo e as folhas, e desapareceu, deixando ainda mais
beleza no seu rastro.
266
- Eu lhe pediria um favor, Mariko-san. Poderia colocar o
crucifixo por baixo do quimono?
Os dedos de Mariko lançaram-se para ele defensivamente.
- Por quê? O Senhor Toranaga nunca fez objeção à minha conversão, nem o Senhor Hiro-matsu, o cabeça do meu clã! Meu
marido tem... meu marido me deixa té-lo e usá-lo.
- Sim. Mas crucifixos deixam este bárbaro louco de raiva
e o meu Senhor Toranaga não o quer furioso, e sim calmo.
Blackthorne nunca vira alguém tão diminuto. - Konnichi
wa - disse ele. - Konnichi wa, Toranaga-sarna. - Curvou-se
como um cortesão, fez um gesto de cabeça ao menino ajoelhado
e de olhos arregalados ao lado de Toranaga, e à mulher gorda
sentada atrás dele. Estavam todos na varanda que rodeava a
pequena cabana. A construção continha uma única sala pequena
com biombos rústicos, vigas desbastadas, telhado de sapé, e uma
área atrás que servia de cozinha. Erguia-se sobre estacaria de
madeira, a um pé ou pouco mais acima do tapete de pura areia
branca. Tratava-se de uma casa de chá cerimonial para o ritual
do cha-no-yu, construída com materiais raros apenas para aquela
finalidade, embora às vezes, como aquelas casas ficassem isoladas,
em clareiras, fossem usadas para encontros e conversas privados.
Blackthorne juntou o quimono em torno do corpo e sentou sobre
a almofada que fora colocada sobre a areia, na frente deles. -
Gomen nasal. Toranaga-sarna, nlhon go ga hanase-masen. Tsuyaku
go imasu ka?
- Sou sua intérprete, senhor - disse Mariko imediatamente, num português quase impecável. - Mas o senhor fala
japonês.
- Não, senhorita, só algumas palavras ou frases - respondeu Blackthorne, perplexo. Esperava que o Padre Alvito fosse o
intérprete, e que Toranaga estivesse acompanhado de samurais e
talvez do Daimio Yabu. Mas não havia nenhum samurai nas proximidades, embora muitos rodeassem o jardim.
- Meu Senhor Toranaga pergunta onde... Primeiro, talvez
lhe deva perguntar se prefere falar em latim?
- Como desejar, senhorita. - Como todo homem educado,
Blackthorne sabia ler, escrever e falar latim, porque era a única
linguagem erudita em todo o mundo civilizado.
Quem é essa mulher? Onde aprendeu um português perfeito
assim? E latim? Onde mais senão com os jesuítas, pensou ele.
267

Numa das escolas deles. Oh, como são inteligentes! A primeira
coisa que fazem é construir uma escola.
Fazia só setenta anos que Inácio de Loyola formara a Companhia de Jesus e agora suas escolas, as melhores da cristandade,
estavam espalhadas pelo mundo e sua influência apoiava ou destruía reis. Contava com a consideração do papa. Havia detido
a torrente da Reforma e agora estava recuperando territórios
imensos para a Igreja.
- Falaremos português, então - disse ela. - Meu amo de seja saber onde o senhor aprendeu "algumas palavras e frases".
- Havia um monge na prisão, senhorita, um monge fran
ciscano, e ele me ensinou coisas como "comida", "amigo", "ba
nho", "ir", "vir", "verdade", "falso", "aqui", "lá", 'eu", "você",
"por favor", "obrigado", "querer", "não querer", "prisioneiro",
"sim", "não", e assim por diante. É só um começo, infelizmente.
Quer dizer ao Senhor Toranaga, por favor, que agora estou mais
bem preparado para responder às perguntas dele, para ajudar, e
muito contente por estar fora da prisão? Agradeço a ele por isso.
Blackthorne observou quando ela se voltou e falou a Tora
naga. Sabia que teria que falar com simplicidade, de preferência
com sentenças curtas, e teria cuidado, porque, ao contrário do
padre, que traduzia simultaneamente, esta mulher esperava até
que ele acabasse, depois fazia uma sinopse, ou uma versão do
que fora dito - o problema habitual com todos os intérpretes,
exceto com os melhores, embora mesmo estes, como com o jesuíta,
permitissem que sua personalidade interferisse no que era dito,
voluntária ou involuntariamente. O banho, a massagem, a comida
e as duas horas de sono haviam-no revigorado incalculavelmente.
As criadas de banho, todas de peso e força, haviam-no esfregado,
ensaboaram-lhe o cabelo, trançando-o depois num rabo capricha
do, e o barbeiro lhe aparara a barba. Deram-lhe uma tanga limpa,
um quimono e um sash, e tubis e sandálias para os pés. Os f atoas
sobre os quais dormira estavam limpíssimos, assim como o quarto.
Parecera tudo um sonho e, acordando de um sono sem sonhos,
perguntara-se momentaneamente qual era o sonho, aquele ou a
prisão.
Aguardara com impaciência, esperando ser conduzido de
novo à presença de Toranaga, planejando o que dizer e o que
revelar, como superar o Padre Alvito em esperteza e como ganhar
ascendência sobre ele. E sobre Toranaga. Pois sabia, para além de
qualquer dúvida, por causa do que Frei Domingo lhe contara
sobre os portugueses, sobre a política japonesa e o comércio, que
268
agora podia ajudar Toranaga, o qual, em troca, poderia facilmente lhe dar as riquezas que desejava.
o agora, sem padre algum com quem lutar, sentiu-se ainda
mais confiante. Só preciso de um pouco de sorte e paciência.
Toranaga ouvia atentamente a intérprete que parecia uma
boneca.
Eu poderia levantá-la do chão com uma mão, pensou Blackthorne, e se passasse as duas mãos em torno da cintura dela,
meus dedos se tocariam. Que idade terá? Perfeita! Casada? Não
usa aliança. Ah, isso é interessante. Não está usando jóia de tipo
algum. Exceto os alfinetes de prata no cabelo. Nem a outra
mulher, a gorda.
Rebuscou a memória. As outras duas mulheres na aldeia
também não usavam jóias, coisa que ele também não vira em
nenhuma das mulheres da casa de Mura. Por quê?
o quem é a gorda? Esposa de Toranaga? Ou a ama do
menino? Será que o menino é filho de Toranaga? Ou neto, talvez?
Frei Domingo disse que os japoneses têm só uma esposa de
cada vez, mas tantas consortes - amantes legais - quantas
desejem.
Será que a intérprete é consorte de Toranaga?
Como seria estar com uma mulher assim na cama? Eu teria
medo de esmagá-la. Não, não se quebraria. Há mulheres na
Inglaterra quase tão pequenas. Mas não como ela.
o menino era pequeno, ereto, de olhos redondos, com o
cabelo preto e cheio amarrado numa cauda curta. Sua curiosidade
parecia enorme. Sem pensar, Blackthorne piscou. O menino deu
um pulo, depois riu, interrompeu Mariko e apontou e falou. Eles
o ouviram indulgentemente e ninguém o mandou calar-se. Quando
terminou, Toranaga falou brevemente para Blackthorne.
- O Senhor Toranaga pergunta por que fez isso, senhor?
- Oh, só para divertir o rapazinho. É uma criança como
qualquer outra, e as crianças no meu país geralmente riem quando
a gente faz isso. Meu filho deve estar mais ou menos com essa
idade agora. Tem sete anos.
- O herdeiro tem sete anos - disse Mariko após uma
pausa, depois traduziu o que ele dissera.
- Herdeiro? Isso quer dizer que o menino é o único filho
do Senhor Toranaga? - perguntou Blackthorne.
- O Senhor Toranaga instruiu-me para dizer-lhe que, por
favor, se limite apenas a responder às perguntas, por enquanto.
- E acrescentou: - Se for paciente, Capitão-Piloto Blackthorne,
269

estou certa de que terá uma oportunidade de perguntar tudo o
que desejar mais tarde.
- Muito bem.
- Como seu nome é muito difícil de dizer, senhor, pois não
temos os sons para pronunciá-lo... posso, para o Senhor Toranaga, usar o nome japonês, Anjin-san?
- Naturalmente. - Blackthorne ia perguntar o nome dela,
mas lembrou-se do que ela dissera e da necessidade de ser paciente.
- Obrigada. Meu senhor pergunta se tem outros filhos.
- Uma filha. Nasceu pouco antes de eu partir da Inglaterra.
Portanto tem uns dois anos agora.
- O senhor tem uma esposa ou muitas?
- Uma. E o nosso costume. Como os portugueses e espanhóis. Não temos consortes, consortes formais. - E a sua primeira esposa, senhor?
- Sim.
- Por favor, qual é a sua idade?
- Trinta e seis.
- Na Inglaterra, onde o senhor vive?
- Nos subúrbios de Chatham. E um pequeno porto perto
de Londres.
- Londres é a cidade principal?
- Sim.
- Ele pergunta que línguas o senhor fala.
- Inglês, português, espanhol, holandês e, naturalmente,
latim.
- O que é "holandês"?
- Uma língua falada na Europa, na Neerlândia. E muito
semelhante ao alemão.
Ela franziu o cenho. - Holandês é uma língua pagã? Alemão
também?
- Ambos os países são não-católicos - disse ele, cuidadoso.
- Desculpe, isso não é o mesmo que pagão?
- Não, senhorita. O cristianismo está dividido em duas religiões distintas e muito separadas. Catolicismo e protestantismo.
São duas versões do cristianismo. A seita no Japão é católica. No
momento as duas seitas estão muito hostis uma com a outra. -
Ele reparou na surpresa dela e sentiu a impaciência crescente de
Toranaga por estar sendo deixado fora da conversa. Seja cuidadoso, advertiu a si mesmo. Ela com certeza é católica. Mude de
assunto. E seja simples. - Talvez o Senhor Toranaga não queira
270
discutir religião, senhorita, já que isso foi parcialmente tratado
no nosso primeiro encontro.
- O senhor é um cristão protestante?
- Sim.
- E os cristãos católicos são seus inimigos?
- A maioria deles me consideraria herege e inimigo deles, sim.
Ela hesitou, voltou-se para Toranaga e começou a falar falou
longamente.
Havia muitos guardas em torno do perímetro do jardim.
Todos bem afastados, todos marrons. Então Blackthorne notou
dez cinzentos sentados num grupo em ordem à sombra, todos de
olhos no menino. Que significado tinha aquilo?
Toranaga estava interrogando Mariko de novo, depois falou
diretamente a Blackthorne.
- Meu senhor quer saber a seu respeito e sobre sua família
- começou Mariko. - Sobre o seu país, a rainha e os governantes anteriores, os hábitos, os costumes, e a história. O mesmo
com relação a todos os outros países, particularmente Portugal e
Espanha. Tudo sobre o mundo em que o senhor vive. Sobre os
seus navios, armas, comidas, comércio. Sobre suas guerras e batalhas, como dirigem um navio, como o senhor conduziu seu
navio e o que aconteceu na viagem. Ele quer compreender...
Desculpe, por que ri?
- Só porque isso parece ser praticamente tudo o que sei,
senhorita.
-- Isso é precisamente o que meu amo deseja. "Precisamente" é a palavra correta?
- Sim, senhorita. Posso cumprimentá-la pelo seu português,
que é impecável?
O leque esvoaçou ligeiramente. - Obrigada, senhor. Sim,
meu amo quer saber a verdade sobre tudo, o que é fato e o que
seria sua opinião.
- Ficaria contente em dizer-lhe. Talvez leve um pouco de
tempo.
- Meu amo tem tempo, diz ele.
Blackthorne olhou para Toranaga: - Wakarimasu.
- Se me desculpar, senhor, meu amo me ordena que lhe
diga que sua pronúncia está um pouco errada. - Mariko mostrou-lhe como dizer, ele repetiu e agradeceu. - Sou a Senhora
Mariko Buntaro, não senhorita.
271

- Sim, senhora. - Blackthorne deu uma olhada em Toranaga. - Por onde ele gostaria que eu começasse?
Ela perguntou. Um sorriso fugaz passou pelo rosto forte de
Toranaga. - Pelo começo, diz ele.
Blackthorne sabia que se tratava de outro julgamento. Com
que, dentre todas as ilimitadas possibilidades, começaria? A quem
falaria? A Toranaga, ao menino ou à mulher? Obviamente, se
só houvesse homens presentes, seria a Toranaga. Mas agora? Por
que as mulheres e o menino estavam presentes? Aquilo devia ter
algum significado.
Resolveu se concentrar no menino e nas mulheres. - Em
tempos antigos meu país era governado por um grande rei que
tinha uma espada mágica chamada Excalibur, e sua rainha era a
mais linda mulher da terra. Seu principal conselheiro era um
mágico, Merlin, e o nome do rei era Artur - começou ele
confiantemente, contando a lenda que seu pai, na infância perdida
num nevoeiro, costumava contar-lhe. - A capital do Rei Artur
chamava-se Camelot, aquele era um tempo feliz, sem guerras,
com boas colheitas e... - De repente ele percebeu a enormidade do seu engano. O cerne da história eram Guinevere e Lancelot, uma rainha adúltera e um vassalo infiel; Mordrer, filho
ilegítimo de Artur, que traiçoeiramente vai à guerra contra o pai;
e um pai que mata esse filho em batalha, só para ser mortalmente
ferido por ele. Oh, Jesus Deus, como pude ser tão estúpido?
Toranaga não é como um grande rei? Estas não são as damas
dele? Esse não é o seu filho?
- Está doente, senhor?
- Não... não, desculpe... foi só que...
- Estava falando sobre esse rei e sobre boas colheitas...
- Sim. E... como a maioria dos países, nosso passado e
obscurecido por mitos e lendas, a maioria dos quais sem importância - disse ele claudicante, tentando ganhar tempo.
Ela o encarava perplexa. Os olhos de Toranaga tornaram-se
mais perscrutadores e o menino bocejou.
- O senhor estava dizendo?
- Eu... bem... - Então teve um clarão de inspiração.
- Talvez o melhor que eu poderia fazer seria desenhar um mapa
do mundo, senhora, do modo como o conhecemos - disse num
fôlego so. - Gostaria que eu fizesse isso?
Ela traduziu e ele notou um vislumbre de interesse em Toranaga, mas nada no menino ou nas mulheres. Como envolvê-los?
- Meu amo diz que sim. Mandarei buscar papel...
272
- Obrigado. Mas isto servirá por ora. Mais tarde, se me der
material para escrever, poderei desenhar um mais preciso.
Blackthorne levantou-se da almofada e se ajoelhou. Com os
dedos começou a traçar um mapa grosseiro na areia, de cabeça
para baixo a fim de que eles pudessem ver melhor. - A terra é
redonda, como uma laranja. Este mapa é como a sua crosta, só
que em oval, norte-sul, plano e esticado um pouquinho no topo
o na base. Um holandês chamado Mercator inventou o modo de
fazer isto com precisão há vinte anos. É o primeiro mapa-múndi
preciso. Podemos até navegar com ele... ou com os globos de
Mercator. - Blackthorne fizera um esboço dos continentes com
traços arrojados. - Isto é norte e isto é sul, leste e oeste. O Japão
fica aqui, o meu país do outro lado do mundo... aqui. Isto tudo
é desconhecido e inexplorado... - Sua mão eliminou tudo na
América do Norte, ao norte de uma linha indo do México à Terra
Nova, tudo na América do Sul além do Peru e de uma estreita
faixa costeira em torno daquele continente, depois tudo a norte
o a leste da Noruega, tudo a leste da Moscóvia, toda a Asia, todo
o interior da Africa, tudo ao sul de Java e a extremidade da
América do Sul.
- Conhecemos as linhas costeiras, mas pouca coisa mais.
O interior da Africa, das Américas e da Ásia são mistérios quase
completos para nós. - Ele parou para que ela pudesse assimilar.
Ela traduziu com mais facilidade agora e ele sentiu que o seu
interesse crescia. O menino mexeu-se e chegou um pouco mais
para perto.
- O herdeiro deseja saber onde estamos nós, no mapa.
- Aqui. Isto é Catai, na China, acho. Não sei a que distância
estamos da costa. Levei dois anos para navegar daqui até aqui.
- Toranaga e a gorda esticaram o pescoço para ver melhor.
- O herdeiro pergunta por que somos tão pequenos no seu
mapa.
- E só uma escala, senhora. Neste continente, da Terra
Nova, aqui, ao México, aqui, há quase mil léguas, cada uma de
três milhas. Yedo está a umas cem léguas daqui.
Houve um silêncio, depois eles conversaram entre si.
- O Senhor Toranaga deseja que o senhor lhe mostre no
mapa como chegou ao Japão.
- Por aqui. Este é o estreito de Magalhães - ou passo -,
na extremidade da América do Sul. É chamado assim por causa
do navegador português que o descobriu, há oitenta anos. Desde
então os portugueses e espanhóis o mantiveram secreto, para seu
273

uso exclusivo. Fomos os primeiros estrangeiros a atravessar o
passo. Eu tinha um dos portulanos secretos deles, um tipo de
mapa, mas ainda assim precisei esperar seis meses para conseguir
passar, porque os ventos estavam contra nós.
Ela traduziu o que ele disse, Toranaga olhou, incrédulo.
- Meu amo diz que o senhor está enganado. Todos os
bár. ... todos os portugueses vêm do sul. É essa a rota deles, a
única rota.
- Sim. É verdade que os portugueses preferem esse caminho
- o cabo da Boa Esperança, como o chamamos -, porque eles
têm dúzias de fortes ao longo dessas costas - Africa, Índia e as
ilhas das Especiarias - onde se abastecer e passar o inverno. E
os seus galeões-belonaves patrulham e monopolizam as rotas marítimas. Entretanto, os espanhóis usam o estreito de Magalhães
para chegar às suas colônias americanas no Pacífico, e às Filipinas, ou então atravessam por aqui, pelo estreito istmo do Panamá,
indo por terra para evitar meses de viagem. Para nós era mais
seguro navegar pelo estreito de Magalhães, do contrário teríamos
que cruzar o fogo de todos esses fortes portugueses inimigos. Por
favor, diga ao Senhor Toranaga que agora conheço a posição de
muitos deles. Muitos utilizam soldados japoneses, aliás - acrescentou com ênfase. - O frade que me deu a informação na prisão
era espanhol e hostil aos portugueses, e a todos os jesuítas.
Blackthorne viu uma reação imediata no rosto dela e, quando
traduziu, no rosto de Toranaga. De tempo a ela, e conserve as
coisas simples, preveniu-se ele.
- Soldados japoneses? Quer dizer, samurais?
- Ronins seria mais exato, imagino.
- O senhor disse um mapa "secreto"? Meu senhor quer
saber como o obteve.
- Um homem chamado Pieter Suyderhof, da Holanda, era
o secretário particular do primaz de Goa - esse é o título do
padre católico chefe, e Goa é capital da India portuguesa. A
senhora sabe, naturalmente, que os portugueses estão tentando
dominar aquele continente à força. Na qualidade de secretário
particular desse arcebispo, que também era vice-rei português na
época, todo tipo de documento lhe passava pelas mãos. Depois
de muitos anos ele conseguiu alguns portulanos - mapas - e os
copiou. Isso revelou os segredos do caminho através do passo de
Magalhães e também como contornar o cabo da Boa Esperança,
e os bancos de areia e recifes de Goa ao Japão, via Macau. Meu
portulano era o de Magalhães. Estava com os meus papéis que
274
sumiram do meu navio. São vitais para mim, e poderiam ser de
um imenso valor ao Senhor Toranaga.
- Meu amo diz que já enviou ordens para procurá-los.
Continue, por favor.
- Quando Suyderhof regressou à Holanda, vendeu-os à
Companhia dos Mercadores da Índia Oriental, que recebera o
monopólio da exploração do Extremo Oriente.
Ela o olhava friamente. - Esse homem era um espião pago?
- Foi pago pelos mapas, sim. É o costume deles, é como
recompensam um homem. Não com um título ou com uma terra,
só com dinheiro. A Holanda é uma república. Claro, senhora,
meu país e nosso aliado, a Holanda, estão em guerra com a
Espanha e Portugal, e isso há anos. A senhora compreenderá
que, na guerra, é vital descobrir os segredos do inimigo.
Mariko voltou-se e falou longamente.
- Meu senhor diz: por que esse arcebispo empregaria um
inimigo?
- A história que Pieter Suyderhof contou foi que esse
arcebispo, que era jesuíta, estava interessado apenas em comércio.
Suyderhof dobrou os lucros deles, por isso era muito "mimado".
Tratava-se de um mercador extremamente inteligente - os holandeses geralmente são superiores aos portugueses nisso -, de modo
que suas credenciais não foram examinadas com muito cuidado.
Além disso, muitos homens de olhos azuis e cabelo claro, alemães
e outros europeus, são católicos. - Blackthorne esperou até que
isso fosse traduzido, depois acrescentou cuidadosamente: - Ele
era o chefe da espionagem holandesa na Asia, um soldado do
país, e colocou alguns de seus homens em navios portugueses.
Por favor, diga ao Senhor Toranaga que sem o comércio com o
Japão a India portuguesa não conseguirá viver muito tempo.
Toranaga rnanteve o olhar no mapa enquanto Mariko falava.
Não houve reação ao que ela disse. Blackthorne perguntou-se se
ela traduzira tudo.
Depois veio o pedido: - Meu amo gostaria de ter um mapa
detalhado, feito em papel, o mais rápido possível, com todas as
bases portuguesas assinaladas e a quantidade de ronins em cada
unia. Por favor, continue.
Blackthorne sabia que dera um gigantesco passo à frente.
Mas o menino bocejou e ele resolveu mudar a rota, sempre se
dirigindo para a mesma enseada. - O nosso mundo não é sempre
do modo como parece. Por exemplo, ao sul desta linha, que
chamamos de equador, as estações são invertidas. Quando estamos
275

r
no verão, eles estão no inverno; quando estamos no verão, eles
estão congelando.
- Por que isso?
- Não sei, mas é verdade. O caminho para o Japão passa
através de um destes estreitos meridionais. Nós, ingleses, estamos
tentando encontrar uma rota pelo norte, seja nordeste, através da
Sibéria, seja noroeste, através das Américas. Estive ao norte até
este ponto. Toda a região, aqui, é de gelo e neve perpétuos, e faz
tanto frio na maior parte do ano que se a gente não usa luvas de
pele, os dedos congelam em poucos momentos. O povo que vive
aqui é chamado de Japão. As roupas deles são feitas de pele de
animais. Os homens caçam e as mulheres fazem todo o trabalho.
Parte do trabalho das mulheres é confeccionar a roupa toda. Para
fazer isso, a maior parte das vezes têm de mastigar as peles para
amaciá-las antes de poderem costurá-las.
Mariko riu alto.
Blackthorne sorriu, sentindo-se mais confiante. - É verdade,
senhora. É honto.
- Sorewa honro desu ka? - perguntou Toranaga com impaciência. O que é verdade?
Rindo ainda mais, ela lhe contou o que fora dito. Puseram-se
todos a rir.
- Vivi entre eles por quase um ano. Ficamos presos no
gelo e tivemos que esperar o degelo. A comida deles é peixe,
focas, ocasionalmente ursos polares, e baleias, que comem cruas.
O maior refinamento deles é comer gordura de baleia crua.
- Ora, vamos, Anjin-san!
- É verdade. E vivem em pequenas casas redondas, feitas
inteiramente de gelo, e nunca tomam banho.
- O quê? Nunca? - espantou-se ela.
Ele sacudiu a cabeça, e resolveu não lhe contar que os
banhos eram raros na Inglaterra, mais raros até que em Portugal
e na Espanha, que eram países quentes.
Ela traduziu. Toranaga balançou a cabeça, não acreditando.
- Meu amo diz que isso é exagero demais. Ninguém poderia viver sem banho. Nem povos incivilizados.
- A verdade é essa, ¡tonto - disse ele calmamente, e levantou a mão. - Juro por Jesus de Nazaré e pela minha alma, juro
que é verdade.
Ela o observou em silêncio. - Tudo?
- Sim. O Senhor Toranaga queria a verdade. Por que eu
mentiria? Minha vida está nas mãos dele. É fácil provar a ver276
dade... não, para ser honesto seria muito difícil provar o que
eu disse, os senhores teriam que ir lá e ver por si mesmos. Certamente os portugueses e espanhóis, que são meus inimigos, não
vão me apoiar. Mas o Senhor Toranaga pediu a verdade. Ele pode
confiar em mim para dizê-la.
Mariko pensou um instante. Depois escrupulosamente traduziu. Finalmente: - O Senhor Toranaga diz que é inacreditável
que um ser humano viva sem banho.
- Sim. Mas as terras frias são assim. Os hábitos são diferentes dos seus, e dos meus. Por exemplo, no meu país, todo
mundo crê que os banhos são perigosos para a saúde. Minha avó,
Granny Jacoba, costumava dizer: "Um banho ao nascer e outro
ao esticar as canelas".
- É muito difícil de acreditar.
- Alguns dos seus hábitos aqui são muito difíceis de acreditar. Mas é verdade que tomei mais banhos neste curto período de
tempo que estou no seu país do que em toda a minha vida
antes. Admito francamente que me sinto melhor com eles. -
Ele sorriu. - Não acredito mais que os banhos sejam perigosos.
Portanto lucrei vindo aqui, não?
Após uma pausa Mariko disse: - Sim - e traduziu.
- Ele é surpreendente... surpreendente, neh? - disse Kiri.
- Qual é a sua opinião sobre ele, Mariko-san? - perguntou
Toranaga.
- Estou convencida de que está dizendo a verdade, ou
acredita estar. Parece claro que ele talvez lhe pudesse ser de
grande valor, meu senhor. Temos um conhecimento tão diminuto
do mundo exterior. Isso é valioso para o senhor? Não sei. Mas
é quase como se ele tivesse caído das estrelas, ou aparecido do
fundo do mar. Se é inimigo dos portugueses e espanhóis, suas
informações, se dignas de confiança, talvez pudessem ser vitais
aos seus interesses, neh?
- Concordo - disse Kiri.
- O que pensa, Yaemon-sarna?
- Eu, tio? Oh, penso que ele é feio e não gosto do cabelo
dourado dele, nem desses olhos de gato, e ele não parece humano
absolutamente - disse o menino esbaforidamente. - Estou contente por não ter nascido bárbaro como ele, mas samurai como
o meu pai, podemos ir nadar mais um pouco, por favor?
- Amanhã, Yaemon - disse Toranaga, contrariado por
não ser capaz de conversar diretamente com o piloto.
277

Enquanto conversavam entre si, Blackthorne decidiu que chegara a hora. Mariko voltou-se para ele de novo.
- Meu amo pergunta por que o senhor esteve no norte.
- Eu era piloto de um navio. Estávamos tentando encontrar
uma passagem nordeste, senhora. Muitas coisas que eu posso lhe
contar soarão risíveis, eu sei - começou ele. - Por exemplo,
há setenta anos os reis da Espanha e Portugal assinaram um
tratado solene que dividia a posse do Novo Mundo, o mundo
não descoberto, entre eles. Como o seu país cai na metade portuguesa, oficialmente o seu país pertence a Portugal - o Senhor
Toranaga, a senhora, todo mundo, este castelo e tudo dentro dele
foi doado a Portugal.
- Oh, por favor, Anjin-san. Perdoe-me, mas isso é um
absurdo!
- Concordo com que a arrogância deles é inacreditável.
Mas é verdade.
Imediatamente ela começou a traduzir e Toranaga riu ironicamente.
- O Senhor Toranaga diz que então ele poderia igualmente
dividir os pagãos entre ele e o imperador da China, neh?
- Por favor, diga ao Senhor Toranaga que me desculpe mas
não é a mesma coisa - disse Blackthorne, consciente de que
estava em terreno perigoso. - Isso está escrito em documentos
que dão a cada rei o direito de reivindicar para si qualquer território não-católico descoberto por seus súditos, aniquilar o governo
existente e substituí-lo por um governo católico. - No mapa, o
dedo dele traçou uma linha de norte a sul, que cortava o Brasil
em dois. - Tudo o que se encontra a leste desta linha pertence
a Portugal, tudo o que se encontra a oeste pertence à Espanha.
Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil em 1500, por isso Portugal é dono do Brasil, destruiu toda a cultura nativa e os dirigentes
legais, e enriqueceu com o ouro e a prata extraídos das minas
e pilhados dos templos nativos. Todo o resto das Américas descoberto até agora é da Espanha: o México, o Peru, este continente
meridional quase todo. Eles arrasaram as nações incas, aniquilaram a cultura deles e escravizaram centenas de milhares de indivíduos. Os conquistadores têm armas modernas, os nativos não
tinham nenhuma. Com os conquistadores chegam os padres. Logo
alguns príncipes estão convertidos e as inimizades começam a
ser utilizadas. Então príncipe é atirado contra príncipe e o reino
é engolido gradativamente. Agora a Espanha é a nação mais rica
278
do nosso mundo, devido ao ouro e à prata inca e mexicana que
foram pilhados e enviados para a Espanha.
Mariko estava séria agora. Captara rapidamente o significado
da lição de Blackthorne. Assim como Toranaga.
- Meu amo diz que isso é conversa sem valor. Como é que
eles podem se atribuir tais direitos?
- Não se atribuíram - disse Blackthorne gravemente. -
Foi o papa quem lhes concedeu, o Vigário de Cristo na terra em
pessoa. Em troca da difusão da palavra de Deus.
- Não acredito! - exclamou ela.
- Por favor, traduza o que eu disse, senhora. É honro.
Ela obedeceu e falou longamente, obviamente perturbada.
Depois:
- Meu amo... meu amo diz que o senhor está apenas
querendo envenená-lo contra os seus inimigos. Qual é a verdade?
Pela sua vida, senhor?
- O Papa Alexandre VI estabeleceu a primeira linha de
demarcação em 1493 - começou Blackthorne, abençoando Alban
Caradoc que lhe martelara tantos fatos quando ele era jovem, e
ao Frei Domingo por informá-lo sobre o orgulho japonês e lhe
dar tantos indícios sobre a mente japonesa. - Em 1506, o Papa
Júlio II sancionou modificações no Tratado de Tordesilhas, assinado pela Espanha e Portugal em 1494, que alterou a linha um
pouco. O Papa Clemente VII sancionou o Tratado de Saragoza em
1529, há uns setenta anos, que traçou uma segunda linha aqui -
seu dedo desenhou uma linha longitudinal na areia, cortando a
extremidade do Japão meridional. - Isso dá a Portugal direito
exclusivo sobre o seu país, sobre todos estes países - do Japão e
China à Africa - no caminho de que eu falei. Para explorar
com exclusividade, por qualquer meio, em troca de difundirem o
catolicismo.
Novamente ele esperou e a mulher vacilou, confusa. Blackthorne podia sentir a crescente irritação de Toranaga por ter que
esperar que ela traduzisse.
Mariko forçou os lábios para falar e repetiu o que ele dissera.
Depois ouviu Blackthorne de novo, detestando o que ouvia. Isso
é realmente possível? perguntava a si mesma. Como poderia
Sua Santidade fazer coisas assim? Dar nosso país aos portugueses?
Deve ser mentira. Mas o piloto jurou por Jesus.
- O piloto diz, senhor - começou ela -, que... que
no tempo em que essas decisões foram tomadas por Sua Santidade
o papa, o mundo deles todo, inclusive o país de Anjin-san, era
279
cristão católico. O cisma ainda não... não ocorrera. Portanto,
portanto essas... essas decisões foram, naturalmente, acatadas
por... por todas as nações. Ainda assim, acrescentou ele, embora
os portugueses tenham exclusividade para explorar o Japão, a
Espanha e Portugal estão incessantemente discutindo sobre a posse,
por causa da riqueza do nosso comércio com a China.
- Qual é a sua opinião, Kiri-san? - disse Toranaga, tão
chocado quanto elas. Apenas o menino brincava com o leque,
desinteressadamente.
- Ele acredita estar dizendo a verdade - disse Kiri. - Sim,
penso isso. Mas como prová-la... ou parte dela?
- Como você provaria, Mariko-san? - perguntou Toranaga, muito perturbado com a reação de Mariko ao que fora dito,
mas muito contente por ter concordado em tê-la como intérprete.
- Eu perguntaria ao Padre Tsukku-san. Depois também
enviaria alguém, um vassalo de confiança, pelo mundo para ver.
Talvez com o Anjin-san.
- Se o padre não apoiar essas declarações - disse Kiri -,
isso não significará necessariamente que o Anjin-san esteja mentindo, neh? - Kiri estava contente por haver sugerido que Mariko
fosse a intérprete quando Toranaga procurou uma alternativa
para Tsukku-san. Sabia que Mariko merecia confiança e que,
uma vez tendo jurado pelo seu Deus estrangeiro, manteria silêncio
mesmo sob o mais rigoroso interrogatório de qualquer padre
cristão. Quanto menos esses demônios souberem, melhor, pensou
Kiri. E que tesouro de conhecimento esse bárbaro tem!
Kiri viu o menino bocejar de novo e ficou contente com
isso. Quanto menos a criança compreendesse, melhor, disse ela
a si mesma: Depois, em voz alta: - Por que não mandar chamar
o líder dos padres cristãos e perguntar sobre esses fatos? Vamos
ver o que ele diz. Eles têm o rosto aberto, na maioria, e quase não
têm sutileza.
Toranaga assentiu, de olhos em Mariko. - Pelo que você
sabe sobre os bárbaros meridionais, diria que as ordens do papa
seriam obedecidas?
- Sem dúvida.
- As ordens dele seriam consideradas como se o próprio
Deus cristão estivesse falando?
- Sim.
- Todos os cristãos católicos obedeceriam às ordens dele?
- Sim.
- Até os nossos cristãos aqui?
280
-- Penso que sim.
- Até você?
- Sim, senhor. Se se tratasse de uma ordem direta de Sua
Santidade a mim, pessoalmente. Sim, pela salvação da minha alma.
- O olhar dela mantinha-se firme. - Mas até lá não obedecerei
a homem algum além do meu suserano, ao cabeça da minha
família, ou ao meu marido. Sou japonesa, cristã, sim, mas primeiro sou samurai.
- Acho que seria bom, então, que essa santidade permanecesse longe das nossas praias. - Toranaga pensou um instante.
Depois resolveu o que fazer com o bárbaro, Anjin-san. - Digalhe... - Parou. Os olhos de todos estavam postados na vereda
e na anciã que se aproximava. Usava o hábito com capuz das
monjas budistas. Com ela vinham quatro cinzentos. Pararam e ela
entrou sozinha.
CAPÍTULO 17
Todos fizeram uma profunda reverência. Toranaga notou que
o bárbaro o imitou e não se levantou nem olhou, coisa que todos
os bárbaros, exceto Tsukku-san, teriam feito. O piloto aprende
depressa, pensou ele, com a cabeça ainda ardendo com o que
ouvira. Estava fervilhando de perguntas, mas, usando a sua disciplina, afastou-as temporariamente para se concentrar no perigo
presente.
Kiri acorreu para ceder à velha a almofada, ajudou-a a
sentar-se, depois se ajoelhou atrás dela, numa assistência imóvel.
- Obrigada, Kiritsubo-san - disse a mulher, retribuindo a
reverência deles. Chamava-se Yodoko. Era a viúva do táicum e
agora, desde a morte dele, monja budista. - Desculpe por ter
vindo sem ser convidada e por interrompê-lo, Senhor Toranaga.
- A senhora é sempre bem-vinda e dispensa convites, Yodoko-sarna.
- Obrigada, sim, obrigada. - Ela deu uma olhada em
Blackthorne e apertou os olhos para tentar enxergar melhor. -Mas acho que realmente interrompi. Não consigo ver quem...
Ele é bárbaro? Meus olhos estão ficando cada vez piores. Não é
Tsukku-san, e?
281

- Não, este é o novo bárbaro - disse Toranaga.
- Oh, ele! - Yodoko examinou mais perto. - Por favor,
diga-lhe que não enxergo bem, por isso a minha indelicadeza.
Mariko fez o que lhe foi dito. - Ele diz que muita gente
no país dele é míope, Yodoko-sarna, mas usam óculos. Perguntou
se nós os temos. Dissê-lhe que sim, alguns de nós, trazidos pelos
bárbaros meridionais. Que a senhora costumava usá-los, mas não
os usa mais.
- Sim. Prefiro a névoa que me rodeia. Sim, não gosto muito
do que vejo hoje em dia. - Yodoko voltou-se e olhou para o
menino, fingindo ter acabado de vê-lo. - Oh! Meu filho! Então
você está aí. Estava à sua procura. Como é bom ver o kwampaku!
- Curvou-se respeitosamente.
- Obrigado, Primeira Mãe. - Yaemon sorriu e também se
inclinou. - Oh, a senhora devia ter ouvido o bárbaro. Desenhou
um mapa do mundo para nós e nos contou coisas engraçadas
sobre povos que nunca tomam banho! Nunca, a vida toda, e vivem
em casas de neve e usam peles como maus kamis!
A velha dama bufou. - Quanto menos vierem aqui, melhor,
acho eu, meu filho. Nunca consegui compreendê-los e sempre
cheiram pessimamente. Nunca consegui entender como o senhor
táicum, seu pai, podia tolerá-los. Mas ele era um homem e você
é um homem, e vocês têm mais paciência do que uma mulher
inferior. Você tem um bom professor, Yaemon-sarna. - Seus
olhos esvoaçaram para Toranaga de novo. - O Senhor Toranaga
tem mais paciência do que qualquer outra pessoa no império.
- A paciência é importante para um homem, e vital para
um líder - disse Toranaga. - E a sede de conhecimento é uma
boa qualidade também, hem, Yaemon-sarna? E o conhecimento
vem de lugares estranhos.
- Sim, tio. Oh, sim. Ele tem razão, não tem, Primeira Mãe?
- Sim, sim. Concordo. Mas estou contente por ser mulher
e não ter que me preocupar com essas coisas, neh? - Yodoko
abraçou o menino, que fora se sentar ao lado dela. - Então, meu
filho, por que estou aqui? Para buscar o kwampaku. Por quê?
Porque o kwampaku está atrasado para a refeição e para a aula
de escrita.
- Detesto aulas de escrita e vou nadar!
- Quando eu tinha a sua idade - disse Toranaga com uma
gravidade zombeteira -, também costumava detestar a escrita.
Mas depois, quando tinha vinte anos, tive que parar de lutar em
batalhas e voltar para a escola. Achei isso muito pior.
282
- Voltar para a escola, tio? Depois de deixá-la para sempre?
Oh, que coisa terrível!
- Um chefe tem que escrever bem, Yaemon-sarna. Não só
com clareza mas com beleza, e o kwampaku mais que ninguém.
De que outro modo ele vai poder escrever a Sua Alteza Imperial
ou aos grandes daimios? Um chefe tem que ser melhor que seus
vassalos em tudo, sob todos os aspectos. Um chefe tem que fazer
muitas coisas difíceis.
- Sim, tio. É muito difícil ser kwampaku. - Yaemon franziu o cenho dando-se ares de importância. - Acho que vou fazer
minhas lições agora e não quando tiver vinte anos, porque então
terei importantes assuntos de Estado.
Ficaram todos muito orgulhosos dele. - Você é muito sábio,
meu filho - disse Yodoko.
- Sim, Primeira Mãe. Sou sábio como meu pai, conforme
diz minha mãe. Quando é que a mãe vai voltar para casa?
Yodoko levantou os olhos e fitou Toranaga. - Logo.
- Espero que volte bem logo - disse Toranaga. Sabia que
Yodoko fora enviada por Ishido para buscar o menino. Toranaga
trouxera-o, e aos guardas, diretamente ao jardim, para irritar ainda
mais o inimigo. E também para mostrar ao menino o estranho
piloto e assim privar Ishido do prazer de proporcionar essa experiência à criança.
- É muito exaustivo ser responsável pelo meu filho - estava dizendo Yodoko. - Seria muito bom ter a Senhora Ochiba
aqui em Osaka, de volta a casa, al eu poderia regressar ao templo,
neh? Como está ela, e a Senhora Genjiko?
- Estão ambas com excelente saúde -- dissê-lhe Toranaga,
rindo consigo mesmo. Nove anos atrás, numa inusitada demonstração de amizade, o táicum o convidara reservadamente a se
casar com a Senhora Genjiko, a irmã mais nova da Senhora
Ochiba, sua consorte favorita. - Assim nossas casas estarão
reunidas para sempre, neh? - dissera o táicum.
- Sim, senhor. Obedecerei, embora não mereça essa honra
- respondera Toranaga respeitosamente, desejando o vínculo com
o táicum. Mas sabia que embora Yodoko, a esposa do táicum,
talvez aprovasse, a consorte Ochiba o detestava e usaria sua
grande influência sobre o táicum para impedir o casamento. Além
disso, seria mais prudente evitar ter a irmã de Ochiba como
esposa, pois isso daria a ela poderes enormes sobre ele, sendo que
o menor de todos não seria a chave do seu cofre. Mas, se ela
se casasse com o filho dele, Sudara, então Toranaga, enquanto
283

chefe supremo da família, teria o domínio completo. Fora necessária toda a sua habilidade para arranjar o casamento entre
Sudara e Genjiko, mas acontecera, e agora Genjiko lhe era de
um valor incalculável como defesa contra Ochiba, porque Ochiba
adorava a irmã.
-- Minha nora ainda não está em trabalho de parto - esperava-se que começasse ontem -, mas imagino que a Senhora
Ochiba parta assim que não houver mais perigo.
- Depois de três meninas, já é tempo de Genjiko lhe dar
um neto, neh? Farei algumas preces pelo nascimento.
- Obrigado - disse Toranaga, gostando dela como sempre,
sabendo que era sincera no que dizia, ainda que ele só representasse perigo para a sua casa.
- Ouvi dizer que a sua Senhora Sazuko está grávida.
- Sim. Sou muito afortunado. - Toranaga aqueceu-se com
a lembrança da sua mais nova consorte, a juventude dela, sua
força, seu carinho. Espero que seja um filho, disse a si mesmo.
Sim, seria muito bom. Dezessete é uma boa idade para se ter
o primeiro filho, se se tem a saúde perfeita como a dela. - Sim,
sou muito afortunado.
- Buda o abençoou. - Yodoko sentiu uma pontada de inveja. Parecia tão injusto que Toranaga tivesse cinco filhos vivos,
quatro filhas, e já tivesse quatro netas. Com essa criança de Sazuko, que logo chegaria, e os muitos anos de vigor que lhe restavam
e as muitas consortes em sua casa, poderia gerar muitos filhos
mais. Quanto a ela, todas as suas esperanças estavam centradas
naquela única criança de sete anos, seu filho tanto quanto de
Ochiba. Sim, é igualmente meu filho, pensou ela. Como odiei
Ochiba no começo...
Viu que todos a fitavam e se alarmou. - Sim?
Yaemon estava de testa franzida. - Eu disse se podemos
ir e ter a minha aula, Primeira Mãe. Disse duas vezes.
- Desculpe, meu filho, eu estava devaneando. E o que
acontece quando se fica velho. Sim, vamos então. - Kiri ajudou-a
a se levantar. Yaemon saiu correndo na frente. Os cinzentos já
estavam de pé. Um deles alcançou o menino e afetuosamente o
colocou sobre os ombros. Os quatro samurais que a haviam escoltado esperavam separadamente.
- Caminhe comigo um pouco, Senhor Toranaga, sim? Preciso de um braço forte para me apoiar.
Toranaga pôs-se de pé com surpreendente agilidade. Ela
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tomou-lhe o braço, mas não lhe usou a força. - Sim. Preciso de
um braço forte. Yaemon também. Assim como o reino.
- Estou sempre pronto para servi-la -- disse Toranaga.
Quando estavam afastados dos outros, ela disse calmamente: -
Torne-se regente único. Tome o poder e governe sozinho. Até
que Yaemon atinja a idade.
- O testamento do táicum proíbe isso. Mesmo que eu quisesse. E não quero. As restriçúes que ele fez impedem que um
regente tome o poder. Não busco o poder isolado. Nunca busquei.
- Tora-chan - disse ela, usando o apelido que o táicum
lhe dera há tanto tempo -, temos poucos segredos, você e eu.
Poderia fazê-lo, se quisesse. Respondo pela Senhora Ochiba. Tome
o poder. Torne-se xógum e faça...
- Senhora, o que diz é traição. Não pretendo ser xógum.
- Naturalmente, mas, por favor, ouça-me uma última vez.
Torne-se xógum, faça de Yaemon seu único herdeiro, único. Ele
poderia ser xógum depois de você. Ele nao é Fujimoto pela
Senhora Ochiba, pelo avô dela, Goroda, e, através dela, por toda
a antiguidade? Fujimoto!
Toranaga olhou-a fixamente. - Acha que os daimios concordariam com essa reivindicação ou que Sua Alteza, o Filho do
Céu, poderia aprovar a designação?
- Não. Não para Yaemon mesmo. Mas se você fosse xógum primeiro, e o adotasse, poderia persuadi-los, a todos eles. Nós
o apoiaremos, a Senhora Ochiba e eu.
- Ela concordou com isso? - perguntou Toranaga, atônito.
Não. Nunca discutimos o assunto. A idéia é minha. Mas
concordará. Respondo por ela. Antecipadamente.
- Esta conversa é impossível, senhora.
- Você pode lidar com Ishido, e com todos eles. Sempre
pôde. Tenho medo do que ouço, Tora-chan, rumores de guerra,
tomadas de posiçúes, e os séculos de escuridão começando novamente. Quando a guerra começar, continuará para sempre e devorará Yaemon.
- Sim. Também acredito nisso. Sim, se começar, vai durar
para sempre.
- Então tome o poder! Faça o que quiser, a quem quiser,
como quiser. Yaemon é um menino de valor. Conheço você como
conheço a ele. Tem a mente do pai e, com a sua orientação, todos
lucraremos. Ele devia receber a herança.
- Não me oponho a ele, nem a sua sucessão. Quantas vezes
preciso dizer?
285

- O herdeiro será destruído a menos que você o apóie ativamente.
- Eu o apóio! - disse Toranaga. - Sob todos os aspectos.
Foi isso o que combinei com o táicum, seu falecido marido.
Yodoko suspirou e puxou o hábito mais para junto do corpo.
- Estes velhos ossos estão com frio. Tantos segredos e batalhas,
traições e mortes e vitórias, Tora-chan. Sou apenas uma mulher,
e muito, muito só. Estou contente por me ter dedicado a Buda
agora e que a maioria dos meus pensamentos se volte para Buda
e para a minha próxima vida. Mas nesta tenho que proteger meu
filho e dizer estas coisas a você. Espero que perdoe minha impertinência.
- Sempre procuro e aprecio o seu conselho.
- Obrigada. - As costas dela se endireitaram um pouco.
- Ouça, enquanto eu estiver viva, nem o herdeiro nem a Senhora
Ochiba se voltarão jamais contra você.
- Sim.
- Vai considerar o que propus?
- A vontade do meu falecido amo o proíbe. Não posso ir
contra a vontade dele nem contra a minha promessa sagrada como
regente.
Caminharam em silêncio. Então Yodoko suspirou. - Por
que não tomá-la por esposa?
Toranaga estacou. - Ochiba?
- Por que não? É totalmente válida como escolha política.
Uma escolha perfeita para você. E bela, jovem, forte, sua linhagem é a melhor, parte Fujimoto, parte Minowara, e ela tem uma
imensa alegria de viver. Você não tem esposa oficial agora, portanto por que não? Isso solucionaria o problema da sucessão e
impediria que o reino se dilacerasse. Você certamente teria outros
filhos com ela. Yaemon o sucederia, depois os filhos dele ou os
outros filhos dela. Você poderia tornar-se xógum. Teria o poder
do reino e o poder de um pai, portanto poderia educar Yaemon
ao seu modo. Você o adotaria formalmente e ele seria seu filho
tanto quanto os outros que você tem. Por que não se casar com
a Senhora Ochiba?
Porque ela é um gato selvagem, uma tigresa traiçoeira com
o rosto e corpo de uma deusa, que pensa ser uma imperatriz e age
como tal, pensou Toranaga. Eu nunca poderia confiar nela na
minha cama. E o tipo de pessoa de quem tanto se pode esperar
que lhe enfie uma agulha nos olhos durante o sono, quanto lhe
286
faça uma carícia. Oh, não, ela não! Mesmo que eu a desposasse
apenas em nome... com o que ela nunca concordaria... oh,
não! E impossível! Por todo tipo de razões, inclusive porque me
odiava e conspirou a minha ruína e a da minha casa, desde que
concebeu pela primeira vez, há onze anos.
Mesmo nessa altura, mesmo aos dezessete anos, ela se empenhou pela minha destruição. Ah, tão suave aparentemente, como
o primeiro pêssego maduro do verão, e igualmente perfumada.
Mas por dentro uma espada de aço, com uma cabeça à altura,
jogando com seus encantos, logo deixando o táicum louco por
ela até conseguir a exclusão de todas as outras. Sim, ela intimidou
o táicum desde os quinze anos, quando ele a tomou formalmente.
Sim, e não se esqueça que na realidade foi ela que o levou para
a cama, e não ele a ela, por mais que ele tenha acreditado nisso.
Sim, mesmo aos quinze anos Ochiba sabia o que procurava e como
obtê-lo. Então aconteceu o milagre: deu, finalmente, um filho ao
táicum, ela, a única a conseguir isso, dentre todas as que ele teve
na vida. Quantas mulheres? Cem, no mínimo, já que ele era um
arminho que derramou o sumo do prazer em mais alcovas paradisíacas do que dez homens comuns! Sim. E mulheres de todas
as idades e castas, casuais ou consortes, desde uma princesa
Fujimoto até uma cortesã de quarta classe. Mas nenhuma jamais
engravidou, embora mais tarde muitas das que o táicum repudiou
ou de quem se divorciou tenham tido filhos com outros homens.
Nenhuma, exceto a Senhora Ochiba.
Mas ela lhe deu o primeiro filho aos cinqüenta e três anos,
uma pobre coisinha doentia, que morreu muito depressa, fazendo
que o táicum rasgasse a roupa, quase louco de dor, responsabilizando a si mesmo e não a ela. Depois, quatro anos mais tarde,
miraculosamente ela concebeu de novo, miraculosamente teve
outro filho, miraculosamente saudável desta vez, ela com vinte
e um anos agora. Ochiba, a Incomparável, chamara-a o táicum.
O táicum seria mesmo o pai de Yaemon ou não? O que
eu não daria para saber a verdade! Será que jamais a conheceremos? Provavelmente não, mas o que eu não daria por uma prova,
de um modo ou de outro!
Estranho que o táicum, tão inteligente para com todo o
resto, não fosse esperto com Ochiba, idolatrando a ela e a Yaemon
até a insanidade. Estranho que de todas as mulheres devesse ser
ela a mãe do herdeiro, ela cujo pai, cujo padrasto e cuja mãe
foram mortos por causa do táicum.
Teria ela tido a esperteza de dormir com outro homem,
287

tomar-lhe a semente, depois destruir esse mesmo homem para se
salvaguardar? E não uma vez, mas duas?
Poderia ser tão traiçoeira? Oh, sim.
Casar com Ochiba? Nunca.
- Fico honrado de que a senhora tenha feito tal sugestão
- disse alto.
- Você é um homem, Tora-chan. Poderia manobrar uma
mulher como ela facilmente. É o único homem no império que
poderia, neh? Seria um casamento maravilhoso para você. Veja
como ela luta para proteger os interesses do filho agora, e é apenas uma mulher indefesa. Seria uma esposa digna de você.
- Não creio que ela sequer considerasse a idéia.
- E se o fizesse?
- Eu gostaria de ficar sabendo. Reservadamente. Sim, isso
seria uma honra inestimável.
- Muitos acreditam que apenas você se ergue entre Yaemon
e a sucessão.
- Muitos são tolos.
- Sim. Mas você não é, Toranaga-sarna. Nem a Senhora
Ochiba.
Nem você, minha senhora, pensou ele.
CAPITULO 18
Na hora mais escura da noite, o assassino pulou o muro e
entrou no jardim. Estava quase invisível. Usava roupas pretas,
bem justas, os tubis eram pretos, e um capuz e uma máscara pretos cobriam-lhe a cabeça. Era um homem pequeno. Correu sem
fazer nenhum ruído até a fortaleza interna de pedra, e parou pouco
antes dos muros altíssimos. Cinqüenta jardas à frente, dois marrons guardavam a porta principal. Habilmente ele atirou um gancho revestido de pano, amarrado a uma corda de seda muito fina.
O gancho prendeu-se à borda de pedra da seteira. Ele subiu pela
corda, espremeu-se através da fenda, e desapareceu lá dentro.
O corredor estava quieto e iluminado por velas. Ele o percorreu rápida e silenciosamente, abriu uma porta externa, e saiu para
o parapeito. Outro hábil arremesso, uma subida curta e ele se viu
no corredor acima. As sentinelas que se encontravam nos cantos
das ameias não o ouviram, embora estivessem alerta.
Ele se comprimiu contra um nicho de pedra quando outros
marrons passaram tranqüilamente por perto, patrulhando. Depois
que se afastaram, ele deslizou por toda a extensão do corredor.
Na virada, parou. Silenciosamente observou à sua volta. Um samurai guardava a porta na outra extremidade. Velas tremulavam
no silêncio. O guarda estava sentado de pernas cruzadas. Bocejou,
encostou-se ao muro e espreguiçou-se. Seus olhos fecharam-se por
um instante. Imediatamente o assassino se arremessou. Sempre
sem ruído. Formou um laço com a corda de seda nas mãos, atirou-o ao pescoço do guarda e apertou com força. Os dedos do
guarda tentaram arrancar o garrote, mas ele já estava morrendo.
Um golpe curto com a faca entre as vértebras, tão hábil quanto o
de um cirurgião, e o guarda ficou imóvel.
O homem empurrou a porta lentamente. A sala de audiência
estava vazia, as portas internas sem guardas. Ele puxou o cadáver
para dentro e fechou a porta de novo. Sem hesitação, atravessou
o espaço e escolheu a porta interna à esquerda. Era de madeira
pesadamente reforçada. O homem passou a faca curva para a mão
direita. Bateu suavemente.
- "No tempo do Imperador Shirakawa disse ele,
dando a primeira parte da senha.
Do outro lado da porta houve uma sibilação de aço saindo
da bainha e a resposta: - ... vivia um homem sábio chamado
Entaku-ji... "
que escreveu a trigésima primeira sutra". Tenho despachos urgentes para o Senhor Toranaga.
A porta se abriu e o assassino arremeteu. A faca subiu até
a garganta do primeiro samurai, pouco abaixo do queixo, desceu
com a mesma rapidez, para se enterrar identicamente no segundo
guarda. Uma leve torção e a faca saiu de novo. Ambos os homens
estavam mortos e de pé. O assassino agarrou um e deixou-o descer suavemente; o outro caiu, mas sem ruído. O sangue escorria
pelo chão e os corpos se contraíam nas agonias da morte.
O homem apressou-se por esse corredor interno. Estava fracamente iluminado. Então uma shoji se abriu. Ele se deteve no
mesmo instante e lentamente olhou em torno.
Kiri o encarava, pasmada, a dez passos. Trazia uma bandeja
nas mãos.
Ele viu que as duas xícaras sobre a bandeja não tinham sido
usadas, e a comida não fora tocada. Um filete de vapor subia do
288
289

bule de chá. Ao lado dele, crepitava uma vela. Então a bandeja
caiu, as mãos dela foram para o obi, puxaram uma adaga, sua
boca moveu-se mas não emitiu som, e ele já estava correndo para
o canto do corredor.
Na extremidade, uma porta se abriu e um samurai alarmado,
caindo de sono, pôs a cara para fora.
O assassino se atirou contra ele e despedaçou uma shoji à
direita, que era a que procurava. Kiri estava gritando, o alarma
soava, e ele correu, com passo firme na escuridão, através da antesala, por sobre as mulheres despertando e suas criadas, para o
corredor interno do outro lado.
Ali estava escuro como breu mas ele, imperturbável, procurou
às apalpadelas até encontrar a porta certa. Correu a porta e saltou
sobre a figura deitada no futon. Mas o braço com a faca foi agarrado por um aperto como que de torques e o homem foi arrastado para o chão. Lutou com destreza, libertou-se e golpeou de
novo, mas errou, emaranhado com o acolchoado. Arremessou-o
longe e se atirou à figura, a faca erguida para o ataque de morte.
Mas o homem se esquivou com inesperada agilidade e um pé
enrijecido afundou-se na virilha do invasor. Este sentiu a explosão
de dor, enquanto sua vítima escapava para um canto seguro.
Nisso uma multidão de samurais se aglomerou à soleira da
porta, alguns com lanternas, e Naga, usando apenas uma tanga,
o cabelo em desalinho, saltou entre o assassino e Blackthorne,
espada em riste.
- Renda-se!
O assassino simulou um ataque, gritou "Namu Amida Butsu"
- "Em nome de Buda Amida" -, voltou a faca contra si mesmo
e com ambas as mãos cravou-a sob a base do queixo. O sangue
jorrou e ele caiu de joelhos, Naga desferiu um único golpe, sua
espada um arco turbilhonante, e a cabeça rolou.
Em meio ao silêncio, Naga levantou a cabeça do chão, segurando pelo topete do cabelo penteado à samurai, e arrancou a
máscara. O rosto era comum, os olhos ainda volteando nas órbitas.
- Alguém o conhece?
Ninguém respondeu. Naga cuspiu no rosto, jogou enraivecido
a cabeça para um de seus homens, rasgou as roupas pretas e ergueu o braço direito do homem, para descobrir o que estava procurando. A pequena tatuagem - o símbolo chinês de Amida, o
Buda especial - estava gravada na axila.
- Quem é o oficial do turno?
- Eu, senhor. - O homem estava branco de choque.
290
Naga lançou-se para ele e os outros abriram caminho. O oficial não fez nenhuma tentativa de evitar o feroz golpe de espada
que lhe arrancou a cabeça, parte do ombro e um braço.
- Hayabusa-san, ordene que todos os samurais deste turno
se dirijam ao pátio - disse Naga a um oficial. - Dobre a guarda
para o próximo turno. Tirem o corpo daqui. Os demais..
Parou quando Kiri se aproximou da soleira, ainda com a adaga
na mão. Ela olhou para o cadáver, depois para Blackthorne.
- O Anjin-san não está ferido? - perguntou.
Naga olhou para o homem que respirava com dificuldade.
Não viu ferimentos nem sangue. Apenas um homem desgrenhado
que quase fora morto. Pálido, mas sem medo aparente. - Está
ferido, piloto?
- Não compreendo.
Naga se aproximou dele e puxou-lhe o quimono de dormir
para ver se o piloto fora ferido.
- Ah, compreendo agora. Não. Não ferido - Naga ouviu
o gigante dizer, e viu-o sacudir a cabeça.
- Bom - disse ele. - Não parece ferido, Kiritsubo-san.
Viu o Anjin-san apontar para o corpo e dizer alguma coisa.
- Não o compreendo - retrucou Naga. - Anjin-san, fique
aqui - e a um dos homens disse: - Traga-lhe comida e água,
se ele quiser.
- O assassino estava com a tatuagem de Amida, neh? -
perguntou Kiri.
- Sim, Senhora Kiritsubo.
- Demônios... demônios.
- Sim.
Naga fez-lhe uma mesura, depois olhou para um dos amedrontados samurais. - Você, venha comigo. Traga a cabeça. -
Afastou-se a passos largos, perguntando a si mesmo como contaria
ao pai. Oh, Buda, obrigado por proteger meu pai.
- Era um ronin - disse Toranaga bruscamente. - Você
jamais lhe encontrará a trilha, Hiro-matsu-san.
- Sim. Mas Ishido é responsável. Não teve honra para fazer
isto, neh? Nenhuma. Usar esse lixo de assassinos! Por favor, rogolhe que me deixe convocar nossas legiões agora. Paro com isto de
uma vez por todas.
- Não. - Toranaga olhou novamente para Naga. - Tem
certeza de que o Anjin-san não está ferido?
291

- Tenho, senhor.
- Hiro-matsu-san, rebaixe todos os guardas deste turno por
falhar com o dever. Estão proibidos de cometer seppuku. Ordeno
que vivam com essa vergonha diante de todos os meus homens
como soldados da mais baixa categoria. Mande arrastar os guardas
mortos pelos pés através do castelo e da cidade até o pátio de
execução. Que os cães se alimentem dos seus restos.
Depois olhou para o filho. Antes, naquela noite, chegara uma
mensagem urgente do mosteiro de Johji, em Nagoya, sobre a ameaça de Ishido contra Naga. Toranaga ordenara imediatamente que o
filho se confinasse e se rodeasse de guardas, e os outros membros
da família em Osaka - Kiri e a Senhora Sazuko - fossem igualmente guardados. A mensagem do prior acrescentava que ele considerava prudente libertar a mãe de Ishido imediatamente e mandá-la de volta para a cidade com suas criadas. "Não ouso arriscar
a vida de um de seus ilustres filhos tolamente. Pior ainda, a saúde
dela não está boa. Está gripada. É melhor que morra em sua casa
e não aqui."
- Naga-san, você é igualmente responsável pela entrada do
assassino - disse Toranaga, com voz fria e áspera. - Cada samurai é responsável, estivesse ou não no turno, dormindo ou acordado. Você fica multado em metade de seu rendimento anual.
- Sim, senhor - disse o jovem, surpreso por poder conservar alguma coisa, inclusive a cabeça. - Por favor, rebaixe-me
também. Não posso viver com a vergonha. Não mereço nada além
de desprezo pelo meu fracasso, senhor.
- Se eu quisesse rebaixá-lo, teria feito isso. Parta imediatamente para Yedo. Irá com vinte homens esta noite e se apresentará ao seu irmão. Chegará lá em tempo recorde! Vá! - Naga
curvou-se e se afastou, pálido. A Hiro-matsu, Toranaga disse, de
modo igualmente áspero: - Quadruplique a minha guarda. Cancele a caça de hoje, e a de amanhã. Deixo Osaka no dia seguinte
ao da reunião de regentes. Você fará todos os preparativos e até
lá ficarei aqui. Não receberei ninguém que não seja convidado.
Ninguém.
Fez um gesto com a mão, numa despedida encolerizada.
- Saiam todos vocês. Hiro-matsu, fique.
A sala esvaziou-se. Hiro-matsu ficou contente pelo fato de
que a sua humilhação seria em particular, pois, de todos eles, enquanto comandante da guarda de corpo, era ele o mais responsável. - Não tenho desculpas, senhor. Nenhuma.
Toranaga estava perdido em pensamentos. Não havia raiva
292
visível agora. - Se você quisesse contratar os serviços do Amida
Tong secreto, como os encontraria? Como se aproximaria deles?
- Não sei, senhor.
- Quem saberia?
- Kasigi Yabu.
Toranaga olhou pela seteira. Flocos de aurora misturavam-se
com a escuridão a leste. - Traga-o aqui ao amanhecer.
- Acha que ele é o responsável?
Toranaga não respondeu e voltou às suas meditações.
Finalmente o velho soldado não agüentou mais o silêncio.
- Por favor, senhor, deixe-me sair da sua presença. Estou tão
envergonhado com o nosso fracasso...
- É quase impossível prever um atentado assim - disse
Toranaga.
- Sim. Mas devíamos tê-lo agarrado lá fora, nunca perto
do senhor.
- Concordo. Mas não o considero responsável.
- Eu me considero. Há uma coisa que devo dizer, senhor,
pois sou responsável pela sua segurança até que esteja de volta a
.Yedo. Haverá mais atentados contra o senhor, e todos os nossos
espiões relatam um movimento maior de tropas. Ishido está se
mobilizando.
- Sim - disse Toranaga casualmente. - Depois de Yabu,
quero ver Tsukku-san, depois Mariko-san: Dobre a guarda do
Anjin-san.
- Chegaram mensagens esta noite de que o Senhor Onoshi
tem cem mil homens melhorando suas fortificações em Kyushu
- disse Hiro-matsu, acossado pela sua preocupação com a segurança de Toranaga.
- Perguntarei a ele sobre isso, quando nos encontrarmos.
O equilíbrio de Hiro-matsu rompeu-se. - Não o entendo,
em absoluto. Devo dizer-lhe que arrisca tudo estupidamente. Sim,
estupidamente. Não me importo que o senhor me tome a cabeça
por lhe dizer isso, mas é a verdade. Se Kiyama e Onoshi votarem
com Ishido, o senhor estará perdido! Será um homem morto.
Arriscou tudo vindo aqui e perdeu! Escape enquanto pode. Pelo
menos terá a cabeça sobre os ombros!
- Ainda não estou em perigo.
- O ataque desta noite não lhe diz nada? Se não tivesse
mudado de quarto novamente, estaria morto agora.
- Sim, talvez, mas provavelmente não - disse Toranaga.
- Havia muitos guardas do lado de fora do meu quarto esta
293

noite, assim como na noite passada. E você também estava de
guarda esta noite. Nenhum assassino conseguiria chegar perto de
mim. Nem este, que estava tão bem preparado. Conhecia o caminho, até a senha, neh? Kiri-san diz que o ouviu usando-a. Portanto acho que ele sabia em que quarto eu me encontrava. Não
era eu a presa. Era o Anjin-san.
- O bárbaro?
- Sim.
Toranaga antecipara que o bárbaro correria perigo após as
extraordinárias revelações daquela manhã. Evidentemente para
alguns o Anjin-san era perigoso demais para continuar vivo. Mas
Toranaga nunca presumira que se organizasse um ataque dentro
dos seus aposentos privados, nem que acontecesse tão depressa.
Quem está me traindo? Não fez caso da possibilidade de alguma
informação ter transpirado através de Kiri, ou de Mariko. Mas
castelos e jardins sempre têm lugares secretos de onde espreitar,
pensou. Estou no centro da fortaleza do inimigo, e onde tenho um
espião, Ishido e os outros terão vinte. Talvez fosse apenas um
espião.
- Dobre a guarda do Anjin-san. Ele vale dez mil homens
para mim.
Depois que a Senhora Yodoko partira aquela manhã, ele retornara à casa de chá no jardim e notara imediatamente a profunda debilidade do Anjin-san, os olhos anormalmente brilhantes
e a sua fadiga opressiva. Então controlara a própria excitação e
a necessidade quase subjugante de esquadrinhar mais fundo, e o
dispensara, dizendo que continuariam no dia seguinte. O Anjinsan fora entregue as cuidados de Kiri, com instruções de mandarlhe um médico, fazê-lo recuperar as forças, dar-lhe alimento bárbaro se ele desejasse, e até ceder-lhe o quarto de dormir que o
próprio Toranaga usava muitas noites. - Dê-lhe tudo o que achar
necessário, Kiri-san - dissera a ela em particular. - Preciso dele
perfeito de mente e corpo, e muito rapidamente.
Então o Anjin-san pedira que ele libertasse o monge da prisão, pois o homem era velho, estava doente. Respondera que consideraria o pedido e mandara o bárbaro embora com agradecimentos, sem lhe dizer que já ordenara aos samurais que fossem à
prisão imediatamente, buscar aquele monge que talvez fosse igualmente valioso, tanto para ele quanto para Ishido.
Toranaga sabia da existência daquele padre há muito tempo,
sabia que era espanhol e hostil aos portugueses. Mas o homem
fora enviado para lá por ordem do táicum, portanto era prisio294
neiro do táicum e ele, Toranaga, não tinha jurisdição sobre ninguém em Osaka. Deliberadamente enviara o Anjin-san para aquela
prisão não só para fingir a Ishido que o estrangeiro não tinha
valor, como também com a esperança de que o impressivo piloto
fosse capaz de extrair os conhecimentos do monge.
O canhestro atentado à vida do Anjin-san, na cela, fora frustrado, e imediatamente se colocara uma tela de proteção em torno
dele. Toranaga recompensara o vassalo espião, Minikui, um carregador de kaga, tirando-o de láá em segurança, dando-lhe quatro
kagas e o direito hereditário de usar o trecho da estrada Tokaido
- a grande via que unia Yedo a Osaka -, entre o segundo e o
terceiro estágios, que ficavam em seus domínios perto de Yedo,
e o mandara secretamente para fora de Osaka no primeiro dia.
No decorrer dos outros dias, seus outros espiões enviaram relatórios de que os dois homens eram amigos agora, o monge falando e o Anjin-san fazendo perguntas e ouvindo. O fato de que
Ishido provavelmente também tivesse espiões na cela não o incomodou. O Anjin-san estava protegido e seguro. Então, inesperadamente Ishido tentara dar sumiço nele.
Toranaga lembrou-se de como se divertira com Hiro-matsu
planejando a "emboscada" - sendo os "bandidos ronins" um dos
pequenos grupos isolados de samurais seus, de elite, que estavam
escondidos dentro e em torno de Osaka - e sincronizando o
aparecimento de Yabu, que, sem suspeitar de nada, efetuara o
"resgate". Haviam rido juntos, sabendo que mais uma vez tinham
usado Yabu como títere para esfregar o nariz de Ishido no seu
próprio excremento.
Tudo correra lindamente. Até hoje.
Hoje o samurai que enviara para buscar o monge regressara
de mãos vazias.
- O padre morreu - relatara o homem. - Quando seu
nome foi chamado, ele não saiu, Senhor Toranaga. Entrei para
procurá-lo, mas estava morto. Os criminosos em torno dele disseram que quando os carcereiros chamaram o nome ele simplesmente desabou. Estava morto quando o desvirei. Por favor, desculpe-me, o senhor me mandou buscá-lo e eu falhei. Eu não sabia
se o senhor queria a cabeça dele, ou a cabeça no corpo, já que era
um bárbaro, então trouxe o corpo ainda com a cabeça. Alguns
dos criminosos em torno dele disseram que eram seus convertidos.
Queriam conservar o corpo e tentaram fazer isso, por isso matei
alguns e trouxe o cadáver. Cheira mal e tem vermes, mas está no
pátio, senhor.
295

Por que o monge morreu? perguntou-se Toranaga mais
uma vez. Então viu Hiro-matsu a olhá-lo inquisitivamente. -.
Sim?
- Só perguntei quem quereria o piloto morto.
- Os cristãos.
Kasigi Yabu seguiu Hiro-mãtsu pelo corredor, sentindo-se
ótimo ao amanhecer. Havia um agradável travo de sal na brisa,
que lhe lembrava Mishima, sua cidade. Estava contente porque
finalmente veria Toranaga e a espera terminara. Banhara-se e
vestira-se com cuidado. As últimas cartas foram escritas para a
mulher e a mãe, e as últimas vontades lacradas, para o caso de a
entrevista não lhe ser favorável. Estava usando a sua lâmina
Murasama, dentro da bainha honrada por muitas batalhas.
Dobraram outra esquina, então inesperadamente Hiro-matsu
abriu uma porta reforçada com ferro e tomou a dianteira, subindo
os degraus de pedra para a torre central daquela parte das fortificações. Havia muitos guardas a postos e Yabu pressentiu perigo.
As escadas subiam em espiral e terminavam num reduto
facilmente defendível. Guardas abriram a porta de ferro. Ele saiu
para o parapeito. Será que Hiro-matsu recebeu ordens de me
atirar lá embaixo, ou vai me mandar pular? perguntou a si
mesmo sem medo.
Para surpresa sua, Toranaga encontrava-se ali e, inacreditavelmente, levantou-se para saudá-lo, com uma deferência jovial
que Yabu não tinha o direito de esperar. Afinal de contas, Toranaga era senhor das Oito Províncias, enquanto ele era apenas
senhor de Izu. Algumas almofadas tinham sido cuidadosamente
colocadas. Havia um bule de chá envolto num abafador de seda.
Uma garota ricamente trajada, de rosto quadrado e não muito
bonita, estava se curvando profundamente. Chamava-se Sazuko e
era a sétima consorte oficial de Toranaga, a mais jovem, visivelmente grávida.
- Que prazer em vê-lo, Kasigi Yabu-san! Sinto muito tê-lo
feito esperar.
Agora Yabu teve certeza dç que Toranaga resolvera arrancar-lhe a cabeça de um jeito ou de outro, pois, por costume
universal, o seu inimigo nunca é mais polido do que quando
está planejando a sua destruição. Ele tirou as duas espadas, colocou-as cuidadosamente sobre as lajes de pedra, permitiu-se ser
afastado delas e sentou-se no lugar de honra.
296
Pensei que seria interessante observar o alvorecer, Yabusan. Acho a vista daqui magnífica. Melhor até que a do torreão
do herdeiro, neh?
- Sim, é linda - disse Yabu sem reservas, nunca tendo
estado tão alto no castelo antes, mas certo agora de que a observação de Toranaga sobre "o herdeiro" insinuava que as suas
negociações secretas com Ishido eram conhecidas.
- Estou honrado em poder compartilhá-la com o senhor.
Abaixo deles estavam a cidade adormecida, a enseada e as
ilhas, Awaji a oeste, a linha da costa esbatendo-se para leste, a luz
crescente no céu oriental recortando as nuvens com salpicos carmesins.
- Esta é a minha Senhora Sazuko. Sazuko, este é meu aliado, o famoso Senhor Kasigi Yabu de Izu, o daimio que nos trouxe
o bárbaro e o navio do tesouro! - Ela curvou-se, cumprimentando-o, ele curvou-se, e ela retribuiu a reverência. Ofereceu a
Yabu a primeira xícara de chá, mas ele, polidamente, declinou a
honra, dando início ao ritual, e pediu-lhe que a passasse a Toranaga, que recusou e o instou a aceitá-la. Finalmente, dando continuidade ao ritual, Yabu, na qualidade de convidado de honra,
permitiu-se ser persuadido. Hiro-matsu aceitou a segunda xícara,
seus dedos nodosos segurando a porcelana com dificuldade, a
outra mão agarrada ao punho da espada, solta no colo. Toranaga
aceitou a terceira xícara e sorveu o chá, depois, juntos, entregaramse à natureza e assistiram ao nascer do sol. Iodo silêncio do céu.
Gaivotas grasnavam. Os sons da cidade começaram. O dia
tinha nascido.
A Senhora Sazuko suspirou, com os olhos úmidos. - Faz-me
sentir como uma deusa estar tão alto e presenciar tanta beleza,
neh? É tão triste que tenha acabado para sempre, senhor. Tão
triste, neh?
- Sim - disse Toranaga.
Quando o sol estava a meio caminho acima do horizonte, ela
se curvou e saiu. Para surpresa de Yabu, os guardas a imitaram.
Ficaram sozinhos. Os três.
- Fiquei contente em receber o seu presente, Yabu-san. Foi
muito generoso, o navio todo e tudo dentro dele - disse Toranaga.
- Tudo o que tenho é seu - disse Yabu, ainda profundamente emocionado pelo amanhecer. Gostaria de ter mais tempo,
pensou. Que elegante da parte de Toranaga fazer isso! Dar-me
um final de tamanha imensidade. - Obrigado por este amanhecer.
297

- Sim - disse Toranaga. - Era minha vez de dar. Fico
contente de que tenha apreciado o meu presente, como apreciei
o seu.
Houve silêncio.
- Yabu-san, o que sabe sobre o Amida Tong?
- Só o que a maioria das pessoas sabe: que é uma sociedade
secreta de dez - unidades de dez -, um líder e nunca mais de
nove acólitos em cada área, mulheres e homens. Prestam os mais
sagrados e secretos juramentos de Buda Amida, o dispensador do
amor eterno, de obediência, castidade e morte, juram passar a
vida treinando para se tornarem uma perfeita arma letal; matar
apenas por ordem do líder, e se falharem ao tentar matar a pessoa
escolhida, seja homem, mulher ou criança, tirar a própria vida
imediatamente. São fanáticos religiosos que têm certeza de ir
diretamente desta vida para o convívio de Buda. Nenhum deles
foi jamais capturado vivo. - Yabu sabia do atentado contra a
vida de Toranaga. Toda Osaka sabia agora, e também sabia que
o senhor de Kwanto, as Oito Províncias, se trancara por trás de
portas de aço. - Eles matam com perfeição, seu próprio sigilo
é completo. Não há chance de vingança contra eles porque ninguém sabe quem são, onde vivem, ou onde treinam.
- Se quisesse contratá-los, como faria?
- Eu faria a notícia correr por três lugares: o Mosteiro
Heinan, os portões do santuário de Amida, e o mosteiro de Johji.
Dentro de dez dias, se eu fosse considerado aceitável como contratador, seria abordado por intermediários. É tudo tão secreto
o tortuoso que, mesmo que se quisesse traí-los ou capturá-los,
nunca seria possível. No décimo dia, pedem uma soma em dinheiro, em prata, dependendo a quantia da pessoa a ser assassinada.
Não há como pechinchar, paga-se o que eles pedem com antecedência. Apenas garantem que um deles tentará matar dentro de
dez dias. Diz a lenda que se é bem sucedido, o assassino volta
ao templo e então, com grande cerimônia, comete um suicídio
ritual.
- Então acha que nunca conseguiríamos descobrir quem
pagou pelo ataque de hoje?
- Acho.
- Acha que haverá outro?
- Talvez. Talvez não. Eles tratam para um atentado de
cada vez, neh? Mas o senhor seria prudente em melhorar a sua
segurança - entre seus samurais, e também entre suas mulheres.
298
As mulheres Amida são treinadas para usar veneno, assim como
a faca e o garrote, pelo que dizem.
- Você já os utilizou?
- Não.
- Mas seu pai sim?
- Não sei, não com certeza. Disseram-me que o táicum
lhe pediu que os contratasse uma vez.
- O ataque teve êxito?
- Tudo o que o táicum fez teve êxito. De um modo ou de
outro.
Yabu sentiu alguém se aproximar por trás e presumiu que
fossem os guardas voltando secretamente. Estava medindo a distância até suas espadas. Tento matar Toranaga? perguntou
novamente a si mesmo. Tinha resolvido fazer isso e agora não
sei. Mudei. Por quê?
- Quanto você teria que pagar a eles pela minha cabeça?
- perguntou Toranaga.
- Não há prata suficiente em toda a Asia para me tentar a
empregá-los com essa finalidade.
- Quanto uma outra pessoa teria que pagar?
- Vinte mil kokus... cinqüenta mil... cem... talvez mais,
não sei.
- Você pagaria cem mil kokus para se tornar xógum? A
sua linhagem remonta aos Takashima, neh?
- Eu não pagaria nada - disse Yabu com orgulho. - O
dinheiro e imundo, um brinquedo para mulheres ou para mercadores nojentos. Mas se isso fosse possível, o que não é, eu daria
minha vida, a de minha esposa, minha mãe e de toda a minha
família, exceto meu filho, e de todos os meus samurais em Izu,
com mulheres e filhos, para ser xógum um dia.
- E o que daria pelas Oito Províncias?
- O mesmo que antes, exceto a vida de minha esposa,
minha mãe e meu filho.
- E pela província de Suruga?
- Nada - disse Yabu com desprezo. - Ikawa Jikkyu
não vale nada. Se eu não lhe arrancar a cabeça e a de toda a sua
descendência nesta vida, farei isso na próxima. Urino em cima
dele e da sua semente por dez mil vidas.
- E se eu o desse a você? E Suruga inteira... e talvez a
província vizinha, Totomi?
Yabu de repente se cansou do jogo de gato-e-rato e da conversa sobre Amida. - O senhor resolveu tirar-me a vida, Senhor
299

Toranaga. Muito bem. Estou pronto. Agradeço-lhe pelo amanhecer. Mas não tenho vontade de empanar essa elegância com mais
conversa. Portanto vamos em frente.
- Mas não resolvi tirar-lhe a vida, Yabu-san - disse Toranaga. - De onde lhe veio a idéia? Algum inimigo andou lhe
envenenando o espírito? Ishido talvez? Você não é o meu aliado
predileto? Acha que o receberia aqui, sem guardas, se o considerasse hostil?
Yabu voltou-se lentamente. Esperara encontrar samurais atrás
de si, espadas em riste. Não havia ninguém. Olhou de novo para
Toranaga. - Não compreendo.
- Trouxe-o aqui para que pudéssemos conversar em particular. E para assistir ao amanhecer. Gostaria de governar as
províncias de Izu, Suruga e Totomi... se eu não perder esta
guerra?
- Sim. Muitíssimo - disse Yabu, suas esperanças crescendo.
- Tornar-se-la meu vassalo? Aceitar-me-la como seu suserano?
Yabu não hesitou: - Nunca! Como aliado, sim. Como meu
líder, sim. Menos que o senhor sempre, sim. Minha vida e tudo
o que possuo do seu lado, sim. Mas Izu é minha. Sou daimio de
Izu e nunca cederei a ninguém o poder sobre Izu. Fiz esse
juramento a meu pai e ao táicum, que confirmou nosso feudo
hereditário, primeiro a meu pai, depois a mim. O táicum confirmou a posse de Izu a mim e a meus sucessores para sempre. Ele
era nosso suserano e jurei nunca aceitar outro até que seu herdeiro
atingisse a maioridade.
Hiro-matsu torceu ligeiramente a espada na mao. Por que
Toranaga não me deixa acabar com isto de uma vez por todas?
Foi combinado. Por que toda essa conversa cansativa? Estou com
dores, com vontade de urinar e preciso me deitar.
Toranaga coçou a virilha. - O que Ishido lhe ofereceu?
- A cabeça de Jikkyu.. no momento em que a sua tiver
rolado. E a província dele.
- Em troca de quê?
- De apoio, quando a guerra começar. Atacar o seu flanco
meridional.
- Você aceitou?
- O senhor me conhece muito bem.
Os espiões de Toranaga na casa de Ishido haviam sussurrado
que o acordo estava selado, e que incluía responsabilidade pelo
300
assassinato de seus três filhos, Noboru, Sudara e Naga. - Nada
mais? Só apoio?
- Por todos os meios à minha disposição - disse Yabu
delicadamente.
- Incluindo assassinato?
- Quando a guerra começar, pretendo combater com toda
a minha força. Pelo meu aliado. Do modo que eu puder para
garantir-lhe o êxito. Precisamos de um regente único durante a
minoridade de Yaemon. A guerra entre o senhor e Ishido é inevitável. É o único jeito.
Yabu estava tentando ler a mente de Toranaga. Desprezava
a indecisão de Toranaga, sabendo que ele mesmo era o homem
melhor, que Toranaga precisava do seu apoio, que finalmente ele
o derrotaria. Mas enquanto isso o que fazer? perguntou a si
mesmo, e desejou que Yuriko estivesse ali para orientá-lo. Ela
saberia o rumo mais prudente. - Posso ser muito útil ao senhor.
Posso ajudá-lo a tornar-se regente único - disse, decidindo
jogar.
- Por que deveria eu querer me tornar regente único?
- Quando Ishido atacar, posso ajudar a vencê-lo. Quando
ele quebrar a paz - disse Yabu.
- Como?
Ele lhes contou o plano com os canhões.
- Um regimento de quinhentos samurais-armas? - explodiu
Hiro-matsu.
- Sim. Pense no poder de artilharia. Todos homens de
elite, treinados para agir como um homem só. Os vinte canhões
igualmente juntos.
- É um mau plano. Péssimo - disse Hiro-matsu. - Nunca
se poderia mantê-lo em segredo. Se começarmos, o inimigo também começará. Nunca haveria um término para tal horror. Não
há honra nisso e não há futuro.
- Esta guerra que se aproxima náo é a única em que estamos interessados, Senhor Hiro-matsu? - replicou Yabu. - Não
estamos preocupados apenas com a segurança do Senhor Toranaga? Não é esse o dever de seus aliados e vassalos?
- Sim.
- Tudo o que o Senhor Toranaga tem que fazer é vencer
a grande batalha. Isso lhe dará a cabeça de todos os seus inimigos
- e o poder. Digo que essa estratégia lhe dará a vitória.
- Eu digo que não. É um plano nojento, sem honra.
301

Yabu voltou-se para Toranaga. - Uma nova era requer que
se tenha pensamento claro sobre o significado de honra.
Uma gaivota passou-lhes acima da cabeça grasnando.
- O que disse Ishido sobre o seu plano? - perguntou
Toranaga.
- Não o discuti com ele.
- Por quê? Se considera seu plano valioso para mim, seria
igualmente valioso para ele. Talvez até mais.
- O senhor me deu um amanhecer. Não é um camponês
como Ishido. É o líder mais sábio e experimentado do império.
Qual será a verdadeira razão? estava se perguntando
Toranaga. Ou será que você também contou a Ishido? - Se esse
plano fosse adotado, os homens seriam metade seus e metade
meus?
- Combinado. Eu os comandaria.
- Meu designado seria o segundo em comando?
- Combinado. Eu precisaria do Anjin-san para treinar os
meus homens com as armas e os canhões.
- Mas ele seria minha propriedade permanente, você o
trataria como faria com o herdeiro? Seria totalmente responsável
por ele e agiria com ele precisamente como eu dissesse?
- Combinado.
Toranaga observou as nuvens carmesins um instante. Esse
plano é um completo absurdo, pensou. Terei que declarar Céu
Carmesim eu mesmo e arremeter sobre Kyoto à testa de todas
as minhas legiões. Com mil homens contra dez vezes esse número.
- Quem será o intérprete? Não posso destacar Toda Mariko-san
para sempre.
- Por algumas semanas, senhor? Verei que o bárbaro aprenda a nossa língua.
- Isso levaria anos. Os únicos bárbaros que jamais a dominaram foram os padres cristãos, neh? Gastaram anos. Tsukku-san
está aqui há quase trinta anos, neh? Ele não aprenderá rápido o
bastante, pelo menos não mais depressa do que poderíamos aprender as abomináveis línguas deles.
- Sim. Mas, prometo-lhe, este Anjin-san aprenderá muito
depressa. - Yabu contou-lhe o plano que Omi sugerira como se
fosse uma idéia sua.
- Isso poderia ser perigoso demais.
- Faria que ele aprendesse depressa, neh? E então estaria
domesticado.
302
Após uma pausa, Toranaga disse: - Como manteria o
sigilo durante o treinamento?
- Izu é uma península, a segurança é excelente lá. Vou me
basear perto de Anjiro, bem ao sul e longe de Mishima.
- Bom. Vamos estabelecer ligação por pombos-correio entre
Anuro, Osaka e Yedo imediatamente.
- Excelente. Preciso de apenas cinco ou seis meses e.. .
- Teremos sorte se dispusermos de seis dias! - bufou Hiromatsu. - Está dizendo que a sua famosa rede de espionagem
foi destruída, Yabu-san? Certamente o senhor recebeu relatórios?
Ishido não está se mobilizando? Onoshi não está se mobilizando?
Não estamos trancados aqui?
Yabu não respondeu.
- Bem? - disse Toranaga.
- Os relatórios indicam que tudo isso está acontecendo, e
mais - disse Yabu. - Se são seis dias, são seis dias, e isso é
karma. Mas eu o creio inteligente demais para ser emboscado
aqui. Ou incitado à guerra prematura.
- Se eu concordasse com o seu plano, você me aceitaria
como seu líder?
- Sim. E quando o senhor vencesse, eu ficaria honrado em
aceitar Suruga e Totomi como parte do meu feudo para sempre.
- Totomi dependeria do sucesso do seu plano.
- De acordo.
- Obedecerá a mim? Com toda a sua honra?
- Sim. Pelo bushido, por Buda, pela vida de minha mãe,
de minha esposa e pela minha prosperidade.
- Bom - disse Toranaga. - Vamos urinar sobre o trato.
Dirigiu-se para a beirada das ameias. Caminhou pela borda
da seteira, depois pelo parapeito. Setenta pés abaixo estava o
jardim interno. Hiro-matsu susteve o fôlego, horrorizado com a
bravata do amo. Viu-o voltar-se e chamar Yabu com um aceno,
para que se pusesse a seu lado. Yabu obedeceu. O mais leve toque
os faria rolar para a morte.
Toranaga afrouxou o quimono e a tanga para o lado; o
mesmo fez Yabu. Juntos urinaram e misturaram a urina e observaram-na borrifar o jardim lá embaixo.
- O último acordo que selei deste modo foi com o próprio
táicum - disse Toranaga, enormemente aliviado por ter podido
esvaziar a bexiga. - Foi quando ele resolveu me dar Kwanto, as
Oito Províncias, como feudo. Claro, naquela altura o inimigo,
Hojo, ainda era senhor delas, de modo que primeiro tive que
303

conquistá-las. Eram tudo o que restava da oposição contra nós.
Claro, também, que eu tive que renunciar aos meus feudos hereditários de Imagawa, Owari e Ise imediatamente, por honra. Ainda
assim, concordei e urinamos sobre o trato. - Caminhou pelo
parapeito com facilidade, ajeitando a tanga confortavelmente como
se estivesse em pé no próprio jardi n, e não pousado tão alto,
como uma águia. - Foi um bom negócio para nós dois. Dominamos Hojo e cortamos cinco mil cabeças naquele ano. Destruimos a ele e a toda a sua tribo. Talvez você tenha razão, Kasigi
Yabu-san. Talvez possa me ajudar, como ajudei ao táicum. Sem
mim o táicum nunca se teria tornado táicum.
- Posso ajudá-lo a se tornar regente único, Toranaga-sarna.
Mas não xógum.
- É claro. Essa é uma honra que eu não busco, por mais
que meus inimigos digam em contrário. - Toranaga pulou para
a segurança das lajes de pedra. Olhou para Yabu que ainda se
erguia sobre o estreito parapeito, arrumando o sash. Sentiu-se extremamente tentado a dar-lhe um rápido empurrão, pela insolência.
Em vez disso, sentou-se e soltou sonoros gases. - Assim está
melhor. Como está a sua bexiga, Punho de Aço?
- Cansada, senhor, muito cansada. - O velho dirigiu-se
para o lado e também a esvaziou sobre as ameias, mas não se
postou onde Toranaga e Yabu haviam estado. Estava contente
por não ter tido que selar o trato com Yabu. Esse acordo eu
nunca honrarei. Nunca.
- Yabu-san, tudo isto deve ser mantido em segredo. Penso
que você deve partir dentro dos próximos dois ou três dias -
disse Toranaga.
- Sim. Com as armas e o bárbaro, Toranaga-sarna?
- Sim. Irá de navio. - Toranaga olhou para Hiro-matsu.
- Prepare a galera.
- O navio está pronto. As armas e a pólvora continuam
nos porões - retrucou Hiro-matsu, seu rosto retratando a desaprovação.
- Ótimo.
Você conseguiu, Yabu queria gritar. Conseguiu as armas, o
Anjin-san, tudo. Conseguiu os seus seis meses. Toranaga nunca
irá à guerra rapidamente. Mesmo que Ishido o assassine nos
próximos dias, ainda assim você conseguiu tudo. O Buda, proteja
Toranaga até que eu esteja ao mar! - Obrigado - disse, com
uma sinceridade sem limites. - O senhor nunca terá um aliado
mais fiel.
304
Depois de Yabu se retirar, Hiro-matsu caiu em cima de Torapaga. - Isso foi uma péssima coisa. Estou envergonhado por
esse acordo. Estou envergonhado de que meu conselho conte tão
pouco. Obviamente vivi para além da minha utilidade para o
senhor e estou muito cansado. Esse pequeno daimio ordinário
sabe que o manipulou como a um fantoche. Ora, ele até teve o
descaramento de usar a espada Murasama na sua presença.
- Notei - disse Toranaga.
- Acho que os deuses o enfeitiçaram, senhor. O senhor
abertamente ignorou um insulto assim e permitiu que ele se regozijasse na sua frente. Abertamente permitiu que Ishido o envergonhasse diante de todos nós. Impediu a mim e a todos nós de
protegê-lo. Recusa à minha neta, uma dama samurai, a honra e
a paz da morte. Perdeu o controle do conselho, seu inimigo está
manobrando melhor e agora o senhor urina sobre um trato solene
que é um plano repugnante como jamais ouvi, e faz isso com um
homem que lida com imundície, veneno e traição, como o pai
antes dele. - Hiro-matsu tremia de raiva. Toranaga não respondeu, apenas o encarou calmamente, como se ele não tivesse dito
nada. - Por todos os kamis, vivos e mortos, o senhor está enfeitiçado! - Hiro-matsu explodiu. - Eu o questiono, grito, insulto-o, e o senhor apenas me encara! O senhor enlouqueceu ou fui
eu quem enlouqueceu. Peço permissão para cometer seppuku ou,
se o senhor não me conceder essa paz, rasparei a cabeça e me
tornarei monge, qualquer coisa, qualquer coisa, mas deixe-me ir.
- Você não fará nem uma coisa nem outra. Vai, sim, mandar buscar o padre bárbaro, Tsukku-san.
E Toranaga riu.
CAPÍTULO 19
O Padre Alvito, a cavalo, desceu a colina do castelo, à frente
da sua companhia habitual de batedores jesuítas. Estavam todos
vestidos como sacerdotes budistas, exceto pelo rosário e o crucifixo que levavam à cintura. Eram quarenta, todos japoneses e
filhos bem-nascidos de samurais cristãos, alunos do seminário de
Nagasaki que haviam acompanhado o padre a Osaka. Estavam
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todos bem montados e ajaezados, e tão disciplinados quanto o
séquito de qualquer daimio.
Alvito apressava-se num trote ligeiro, sem se dar conta do
sol quente, através dos bosques e das ruas da cidade, em direção
à missão jesuítica, um casarão de pedra em estilo europeu que se
erguia próximo aos desembarcadouros e que se elevava sobre sua
aglomeração de anexos, salas de contabilidade e depósitos, onde
toda a seda de Osaka era negociada e comprada.
O cortejo atravessou com estrépito os altos portões de ferro
abertos nos muros de pedra, entrou no pátio central, calçado, e se
deteve perto da porta principal. Já havia criados à espera para
ajudar o Padre Alvito a desmontar. Ele deslizou da sela e atiroulhes as rédeas. Suas esporas cantaram nas pedras quando ele
avançou a passos largos por sob a abóbada da construção principal, dobrou a esquina, ultrapassou a pequena capela, e atravessou
alguns arcos rumo ao pátio interno, que continha uma fonte e
um tranqüilo jardim. A porta da antecâmara estava aberta. Conteve a própria ansiedade, recompôs-se, e entrou.
- Ele está sozinho? - perguntou.
- Não, não está, Martim - disse o Padre Soldi. Era um
homem pequeno, benevolente, marcado de varíola, proveniente
de Nápoles, secretário do padre-lnspetor há quase trinta anos,
vinte e cinco dos quais na Asia. - O Capitão-Mor Ferreira está
com Sua Eminência. Sim, o pavão está com ele. Mas Sua Eminência disse que você devia entrar imediatamente. O que houve
de errado, Martim?
- Nada.
Soldi grunhiu e voltou à sua ocupação de apontar o cálamo.
- "Nada", disse o sábio padre. Bem, ficarei sabendo bem depressa.
- Sim - disse Alvito, que gostava do velho. Encaminhou-se
para a porta. Um fogo de lenha ardia sobre uma grelha, iluminando a bela mobília pesada, envelhecida pelo tempo e brilhando
de polida e bem cuidada. Um pequeno Tintoretto - uma Nossa
Senhora com a criança - que o padre-lnspetor trouxera consigo
de Roma, e que sempre agradara a Alvito, pendia acima da
lareira.
- Viu o inglês novamente? - disse o Padre Soldi atrás dele.
Alvito não respondeu. Bateu na porta.
- Entre.
Cario dell'Aqua, padre-lnspetor da Asia, representante pessoal do geral dos jesuítas, o jesuíta mais graduado, e portanto o
homem mais poderoso na Asia, também era o mais alto. Media
seis pés e três polegadas, com um físico proporcional. Seu manto
era laranja, e a cruz magnífica. Era tonsurado, tinha cabelo branco, sessenta e um anos e era napolitano de nascimento.
- Ah, Martim, entre, entre. Vinho? - disse ele, falando
português com uma maravilhosa fluidez italiana. - Viu o inglês?
- Não, Eminência. Apenas Toranaga.
- Foi mal?
- Sim.
- Aceita um pouco de vinho?
- Obrigado.
- Quão mal? - perguntou Ferreira. O soldado estava sentado ao lado do fogo na cadeira de couro e encosto alto, tão
orgulhoso e colorido quanto um falcão - o fidalgo, o capitãomor da Nao del Trato, o Navio Negro daquele ano. Estava com
seus trinta e poucos anos, era magro, baixo e temível.
- Acho que muito mal, capitão-mor. Por exemplo, Toranaga disse que a questão do comércio deste ano podia esperar.
- É óbvio que o comércio não pode esperar, nem eu -
disse Ferreira. - Vou levantar ferros com a maré. Pensei que
estivesse tudo combinado há meses. - Mais uma vez Ferreira
amaldiçoou os regulamentos japoneses que exigiam que toda a
navegação, mesmo a deles, tivesse licenças de entrada e saída.
- Não deveríamos ser obrigados a acatar estúpidos regulamentos nativos. O senhor disse que esse encontro era uma mera
formalidade, para apresentar os documentos.
- Deveria ter sido, mas me enganei. Talvez seja melhor
que eu explique...
- Tenho que regressar a Macau imediatamente para preparar o Navio Negro. Já adquiri um milhão de ducados das melhores sedas na feira de Cantão em fevereiro, e estaremos carregando
no mínimo cem mil onças de ouro chinês. Pensei ter deixado
claro que cada centavo de Macau, Malaca e Goa, e cada centavo
que os comerciantes e edis de Macau podem emprestar está investido na especulação deste ano. E cada centavo dos senhores.
- Estamos tão conscientes dessa importância quanto o senhor - disse Dell'Aqua enfaticamente.
- Sinto muito, capitão-mor, mas Toranaga é o presidente
do conselho de regentes e é costume dirigirmo-nos a ele - disse
Alvito. - Ele não discutiria o comércio deste ano nem as suas
autorizações. Inicialmente disse que não aprova assassinato.
- Quem aprova, padre? - disse Ferreira.
307
306

- Do que é que Toranaga está falando, Martim? - perguntou Dell'Aqua. - Isso é algum estratagema? Assassinato? O que
isso tem a ver conosco?
- O que ele disse foi: "Por que vocês, cristãos, quereriam
assassinar o meu prisioneiro, o piloto?"
- O quê?
- Toranaga acredita que o atentado da noite passada foi
contra o inglês, não contra ele. Também diz que houve outro
atentado na prisão. - Alvito mantinha os olhos fixos no soldado.
- Do que me acusa, padre? - disse Ferreira. - De uma
tentativa de assassinato? A mim? No Castelo de Osaka? Esta é a
primeira vez que venho ao Japão!
- O senhor nega qualquer conhecimento do assunto?
- Não nego que quanto mais depressa o herege estiver
morto, melhor - disse Ferreira friamente. - Se os holandeses
e os ingleses começarem a disseminar sua imundície pela Asia,
estaremos enrascados. Todos nós.
- Já estamos enrascados - disse Alvito. - Toranaga
começou dizendo que tomou conhecimento, através do inglês,
de que lucros incríveis estão sendo obtidos pelo monopólio português do comércio com a China, que os portugueses aumentam
de modo exorbitante o preço das sedas que apenas eles, portugueses, podem comprar na China, pagando por elas a única mercadoria que os chineses aceitam em troca: a prata japonesa - cujo
preço, novamente, os portugueses cotam de modo igualmente
ridículo. Toranaga disse: "Como existe hostilidade entre a China
e o Japão e todo o comércio direto entre nós é proibido, e só
os portugueses têm permissão para realizá-lo, a acusação de `usura', feita pelo piloto, deve ser formalmente respondida - por
escrito - pelos portugueses". Ele o "convida", Eminência, a fornecer aos regentes um relatório sobre todo o intercambio - prata
contra seda, seda contra prata, ouro contra prata. Acrescentou que
não se opõe, naturalmente, a que tenhamos grandes lucros, desde
que provenham dos chineses.
- O senhor certamente ignorará essa solicitação arrogante
- disse Ferreira.
- É muito difícil.
- Então providencie um falso relatório.
- Isso colocaria em risco toda a nossa posição, que está
baseada sobre a confiança - disse Dell'Aqua.
- O senhor consegue confiar num japonês? Claro que não!
Nossos lucros devem permanecer secretos. Aquele maldito herege!
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- Lamento dizer que Blackthorne parece estar particularmente bem informado. - Alvito olhou involuntariamente para
Dell'Aqua, relaxando a própria vigilância por um momento.
O padre-lnspetor não disse nada.
- O que mais disse o japonês? - perguntou Ferreira, fingindo não ter notado o olhar trocado entre os dois e desejando
estar a par de toda a extensão do conhecimento deles.
- Toranaga me pediu que lhe forneça, amanhã, ao meiodia, um mapa do mundo que mostre as linhas de demarcação
entre Portugal e Espanha, o nome dos papas que aprovaram os
tratados, e as datas. Dentro de três dias, "solicita" uma explanação escrita sobre as nossas "conquistas" no Novo Mundo e, "puramente por interesse meu", foram as suas palavras, o montante
de ouro e prata levado - ele na realidade usou o termo de Blackthorne, "pilhado" - levado do Novo Mundo para a Espanha e
Portugal. Também solicita outro mapa, que mostre a extensão
do império espanhol e do português há cem anos atrás, há cinqüenta anos, e atualmente, juntamente com as posições exatas das
nossas bases desde Malaca até Goa - aliás, ele as citou uma a
uma com precisão; os nomes estavam escritos num pedaço de
papel - e também o número de mercenários japoneses empregados por nós em cada uma das bases.
Dell'Aqua e Ferreira estavam atônitos. - Isso deve ser categoricamente recusado - trovejou o soldado.
- Não se recusa nada a Toranaga - disse Dell'Aqua.
- Acho, Eminência, que o senhor dá crédito excessivo à
importância dele - disse Ferreira. - Parece que esse Toranaga
é apenas outro déspota entre muitos, apenas outro pagão homicida, que certamente não é para ser temido. Recuse. Sem o nosso
Navio Negro, toda a economia deles entra em colapso. Estão
implorando pelas nossas sedas chinesas. Sem seda não haveria
mais quimonos. Precisam do nosso comércio. Que Toranaga se
dane. Podemos negociar com os reis cristãos - como se chamam,
mesmo? Onoshi e Kiyama - e os outros reis cristãos de Kyushu.
Afinal, Nagasaki fica lá, nós estamos maciçamente lá, e é lá que
acontece o comércio.
- Não podemos, capitão - disse Dell'Aqua. - Esta é sua
primeira visita ao Japão, por isso não tem idéia de nossos problemas aqui. Sim, eles precisam de nós, mas nós precisamos deles
mais ainda. Sem o favor de Toranaga - ou de Ishido - perderemos a influência sobre os reis cristãos. Perderemos Nagasaki e
309

tudo o que construímos no decorrer de cinqüenta anos. O senhor
precipitou o atentado contra o piloto herege?
- Eu disse abertamente a Rodrigues, e a qualquer um que
quisesse ouvir, logo de início, que o inglês era um pirata perigoso
que contaminaria qualquer pessoa com quem entrasse em contato,
e que, por isso, devia ser eliminado de qualquer modo possível.
O senhor disse o mesmo com palavras diferentes, Eminência. E o
senhor também, Padre Alvito. A questão não surgiu na nossa
reunião com Onoshi e Kiyama há dois dias? O senhor não disse
que esse pirata era perigoso?
- Sim, mas...
- Padre, o senhor me perdoará, mas às vezes é necessário
que os soldados façam o trabalho de Deus da melhor maneira
que podem. Devo dizer-lhes que fiquei furioso com Rodrigues por
não haver criado um "acidente" durante a tempestade. Ele, dentre
todos os outros, devia saber disso! Pelo corpo de Cristo, olhe o
que esse inglês diabólico já fez ao próprio Rodrigues. O pobre
imbecil está grato a ele por lhe ter salvado a vida, quando esse é
o truque mais óbvio do mundo para ganhar-lhe a confiança.
Rodrigues não foi logrado a ponto de permitir ao piloto herege
usurpar-lhe o tombadilho, certamente quase lhe causando a morte?
Quanto ao atentado no castelo, quem sabe o que aconteceu?
Deve ter sido ordenado por um nativo, é um truque japonés.
Não estou triste por terem tentado, só desgostoso por haverem
falhado. Quando eu tratar da eliminação dele, o senhor pode ficar
tranqüilo de que ele será eliminado.
Alvito tomou um gole de vinho. - Toranaga disse que estava
mandando Blackthorne para Izu.
- A península a leste? - perguntou Ferreira.
- Sim.
- Por terra ou de navio?
- De navio.
- Ótimo. Então lamento dizer-lhes que todos os marinheiros
podem se perder ao mar, numa lamentável tempestade.
- E eu lamento dizer-lhe, capitão-mor - retrucou Alvito
friamente -, que Toranaga disse: "Vou colocar uma guarda pessoal em torno do piloto, Tsukku-san, e se algum acidente lhe
ocorrer será investigado até o limite do meu poder e do poder dos
regentes, e se por acaso o responsável for um cristão, ou qualquer pessoa remotamente associada aos cristãos, é absolutamente
possível que os editos de expulsão sejam reexaminados e muito
310
possível que todas as igrejas, escolas e albergues cristãos sejam
imediatamente fechados".
- Deus impeça que isso aconteça - disse Dell'Aqua.
- Blefe - zombou Ferreira.
- Não, está enganado, capitão-mor. Toranaga é tão esperto
quanto um Maquiavel, e tão inclemente quanto Atila, o Huno.
- Alvito olhou para Dell'Aqua. - Seria fácil nos acusar se alguma coisa acontecesse ao inglês.
- Sim.
- Talvez o senhor devesse ir à fonte de seus problemas -
disse Ferreira bruscamente. - Elimine Toranaga.
- Isto não é hora para piadas - disse o padre-lnspetor.
- O que funcionou brilhantemente na Índia e na Malásia,
no Brasil, no Peru, no México, na Africa, e em toda parte,
funcionará aqui. Fiz isso pessoalmente em Malaca e em Goa uma
dúzia de vezes, com a ajuda de mercenários japoneses, e não
tinha nem de longe a sua influência e conhecimento. Usaremos
os reis cristãos. Ajudaremos um deles a eliminar Toranaga, se é
ele o problema. Algumas centenas de conquistadores seriam suficientes. Divida e reine. Abordarei Kiyama. Padre Alvito, o senhor
traduzirá.
. .
- O senhor não pode comparar japoneses com índios ou
com selvagens incultos como os incas. Não pode dividir e reinar
aqui. O Japão é diferente de qualquer outra nação. Completamente - disse Dell'Aqua, fatigado. - Devo pedir-lhe formalmente, capitão-mor, que não interfira na política interna deste país.
- Concordo. Por favor, esqueça o que eu disse. Foi indelicado e ingênuo falar tão abertamente. Felizmente as tempestades
são fato normal nesta época do ano.
- Se ocorrer uma tempestade, será pela mão de Deus. Mas
o senhor não atacará o piloto.
- Oh?
- Não. Nem ordenará a ninguém que o faça.
- Sou orientado pelo meu rei para destruir os seus inimigos. O inglês é um inimigo nacional. Um parasita, um pirata, um
herege. Se resolver eliminá-lo, será assunto meu. Sou capitãomor do Navio Negro deste ano, portanto governador de Macau
neste ano, com poderes vice-reais sobre estas águas neste ano, e
se quiser eliminá-lo, ou a Toranaga ou a quem quer que seja, eu
o farei.
311

- Então fará isso indo contra as minhas ordens diretas e
portanto correrá o risco de excomunhão imediata.
- Isto está além da sua jurisdição. Trata-se de assunto temporal, não espiritual.
- A posição da Igreja aqui está, lamentavelmente, tão interligada com a política e com o comércio de seda, que tudo lhe
toca a segurança. E enquanto eu viver, pela minha espera de
salvação, ninguém colocará em risco o futuro da Madre Igreja
aqui!
- Obrigado por ser tão explícito. Vou me empenhar por
me informar melhor sobre assuntos japoneses.
- Sugiro que faça isso, por amor a todos nós. O cristianismo
é tolerado aqui somente porque todos os daimios acreditam cabalmente que se nos expulsarem e arrasarem a fé, o Navio Negro
nunca voltará. Nós, jesuítas, somos procurados e temos alguma
influência apenas porque só nós falamos japonês e português e
podemos traduzir e interceder por eles em questões de comércio.
Infelizmente para a fé, isso no que eles crêem não é verdade.
Estou certo de que o comércio continuaria, independentemente
da nossa posição e da posição da Igreja, porque os comerciantes
portugueses estão mais preocupados com seus próprios interesses
egoístas do que com o serviço a Nosso Senhor.
- Talvez sejam igualmente evidentes os interesses egoístas
de clérigos que desejam nos forçar - a ponto de pedirem a Sua
Santidade os poderes legais para isso - a atracar no porto que
escolherem e comerciar com o daimio que preferirem, independentemente dos riscos!
- Esquece de si mesmo, capitão-mor!
- Não me esqueço de que o Navio Negro do ano passado
se perdeu entre o Japão e Malaca com todos os homens a bordo,
com mais de duzentas toneladas de ouro a bordo e quinhentos
mil cruzados em prata, depois de ser desnecessariamente adiado
para a estação do mau tempo por causa das suas solicitações pessoais. Ou que essa catástrofe quase arruinou todo mundo daqui
a Goa.
- Foi necessário por causa da morte do táicum e da política interna de sucessão.
- Não me esqueço de que o senhor pediu ao vice-rei de
Goa que cancelasse o Navio Negro três anos atrás, para enviá-lo
apenas quando o senhor dissesse, ao porto que o senhor escolhesse,
nem de que ele rejeitou o pedido, vendo-o como uma interferência arrogante.
312
- Isso foi para dobrar o táicum, para causar-lhe uma crise
econômica em meio à sua estúpida guerra contra a Coréia e a
China. Foi por causa dos martírios de Nagasaki que ele havia
ordenado, por causa do seu ataque insano à Igreja e dos editos
de expulsão que ele publicara, expulsando-nos a todos do Japão.
Se os senhores cooperassem conosco, se seguissem os nossos conselhos, o Japão inteiro seria cristão numa única geração! O que
é mais importante: o comércio ou a salvação das almas?
- Minha resposta é almas. Mas já que o senhor me esclareceu sobre assuntos japoneses, deixe-me colocá-los na perspectiva correta. Só a prata japonesa torna acessíveis a seda chinesa
o o ouro chinês. Os imensos lucros que auferimos e exportamos
para Malaca e Goa e depois para Lisboa sustentam todo o nosso
império asiático, todos os fortes, todas as missões, todas as expedições, todos os missionários, todas as descobertas, e pagam a
maioria, se não todos, dos nossos compromissos europeus, impedem
os hereges de nos aniquilar e os mantêm longe da Asia, que lhes
proporcionaria toda a riqueza de que necessitam para nos destruir,
o à fé. O que é mais importante, padre: a cristandade espanhola,
portuguesa e italiana, ou a cristandade japonesa?
Dell'Aqua cravou os olhos no soldado: - De uma vez por
todas, o-senhor-não-se-envolverá-em-política-lnterna-aqui!
Uma brasa caiu do fogo e rolou sobre o tapete. Ferreira,
que estava mais perto, chutou-a de volta. - E se devo ser .. .
ser dobrado, o que o senhor propõe que se faça com relação ao
herege? Ou a Toranaga?
Dell'Aqua sentou-se, acreditando ter vencido. - Não sei,
no momento. Mas o simples fato de pensar em eliminar Toranaga
é ridículo. Ele nos ve com muita simpatia, e à idéia de aumentar
o comércio - sua voz tornou-se mais fraca -, e, em conseqüência, aumentar os seus lucros.
- E os seus - disse Ferreira, tomando os freios novamente.
- Nossos lucros estão comprometidos com a obra de Nosso
Senhor. Como o senhor bem sabe. -- Dell'Aqua cansadamente verteu um pouco de vinho e ofereceu-o, para apaziguá-lo. -- Vamos,
Ferreira, não discutamos assim. Esse negócio do herege... é
terrível, sim. Mas discutir não serve para nada. Precisamos do seu
conselho, dos seus miolos e da sua força. Pode acreditar em ruim:
Toranaga é vital para nós. Sem ele para refrear os outros regentes,
este país inteiro recairá na anarquia.
- Sim, é verdade, capitão-mor - disse Alvito. - Mas não
compreendo por que ele continua no castelo e concordou com
313

um adiamento da reunião. $ incrível, mas ele parece ter sido
sobrepujado. Deve saber com certeza que Osaka é mais fechada
do que o cinto de castidade de um cruzado ciumento. Ele devia
ter partido há dias.
- Se ele é vital - disse Ferreira -, por que apoiar Onoshi
o Kiyama? Esses dois não se alinharam com Ishido, contra Toranaga? Por que o senhor não os aconselha em contrário? Discutiuse o assunto há apenas dois dias.
- Eles nos comunicaram sua decisão, capitão. Não a discutimos.
- Então talvez devesse ter discutido, Eminência. Se é tão
importante, por que não demovê-los? Com uma ameaça de excomunhão?
Dell'Aqua suspirou. - Gostaria que fosse tão simples.
Não se fazem coisas assim no Japão. Eles abominam interferência
externa nos seus assuntos internos. Mesmo uma sugestão de nossa
parte tem que ser oferecida com uma delicadeza extrema.
Ferreira esvaziou a taça de prata, serviu-se de mais um pouco
de vinho e se acalmou, sabendo que precisava dos jesuítas a seu
lado, que sem eles como intérpretes estaria desamparado. Você
tem que tornar esta viagem um êxito, disse a si mesmo. Você
pelejou e suou durante onze anos a serviço do rei para merecer,
com justiça - vinte vezes mais -, o mais rico prêmio que ele
tinha ao alcance para conceder-lhe: o comando supremo do
Navio Negro por um ano e a décima parte do que acompanha
essa honra, um décimo de toda a seda, todo o ouro, toda a prata,
o de todo o lucro decorrente de cada transação. Você está rico
para o resto da vida agora, por trinta vidas, se as tivesse, tudo
por causa desta única viagem. Se você a realizar.
A mão de Ferreira foi para o punho do florete, para a cruz
que fazia parte da filigrana de prata. - Pelo sangue de Cristo,
o meu Navio Negro zarpará no prazo de Macau para Nagasaki
o depois o navio do tesouro mais rico da história rumará para o
sul com a monção em novembro, para Goa, e em seguida para
casa! Como Cristo é meu juiz, é isso o que vai acontecer. - E
acrescentou em silêncio: nem que eu tenha que queimar o Japão
inteiro, toda Macau e toda a China para fazê-lo, por Nossa
Senhora!
- Nossas preces estão com o senhor, claro que estão -
retrucou Dell'Aqua, falando sinceramente. - Sabemos da importância da sua viagem.
- Então o que sugere? Sem autorizações e salvo-condutos
314
para comerciar, estou de mãos atadas. Não podemos evitar os
regentes? Talvez haja outro meio?
Dell'Aqua meneou a cabeça. - Martim? Você é o nosso perito em comércio.
- Sinto muito, mas não é possível - disse Alvito. Ouvira
a acalorada discussão com uma indignação crescente. Criatura
grosseira, arrogante, bastardo cretino, pensara; depois, imediatamente, ó Deus, de-me paciência, pois sem este homem e os outros
como ele a Igreja morrerá aqui. - Estou certo de que dentro
de um ou dois dias, capitão-mor, estará tudo resolvido. Uma
semana, no máximo. Toranaga tem problemas muito especiais no
momento. Dará tudo certo, tenho certeza.
- Esperarei uma semana. E só. - A ameaça subjacente no
tom de Ferreira era assustadora. - Gostaria de pôr as mãos
naquele herege. Eu lhe arrancaria a verdade. Toranaga disse alguma coisa sobre a suposta esquadra? Uma esquadra inimiga?
- Não.
- Gostaria de saber a verdade sobre isso, porque o meu
navio virá chafurdando como um porco cevado, os porões abarrotados com mais seda do que jamais se enviou de uma só vez.
Somos um dos maiores navios do mundo, mas não tenho escolta,
de modo que se uma única fragata inimiga se dispusesse a nos
capturar ao mar - ou aquela prostituta holandesa, o Erasmus
- estaríamos à sua mercê. Ela me faria arriar a bandeira imperial
de Portugal sem dificuldade alguma. O melhor é que esse inglês
não se faça ao mar com seu navio, com atiradores, canhões e
munição a bordo.
- E vero, e solamente vero - murmurou Dell'Aqua.
Ferreira terminou o vinho. - Quando é que Blackthorne
será enviado a Izu?
- Toranaga não disse - replicou Alvito. - Tenho a impressão de que será em breve.
- Hoje?
- Não sei. Os regentes devem se reunir dentro de quatro
dias. Imagino que seja depois disso.
- Ninguém deve se intrometer com Blackthorne - disse
Dell'Aqua lentamente. - Nem com ele nem com Toranaga.
Ferreira levantou-se. - Volto ao meu navio. Jantam conosco? Os dois? Ao pôr-do-sol? Teremos um frango excelente,
um pernil, um madeira e até pão fresco.
Obrigado, o senhor é muito gentil. - Dell'Aqua animou315
se ligeiramente. - Sim, será maravilhoso comer uma boa comida
novamente. O senhor é muito gentil.
- Será informado assim que eu tiver notícias de Toranaga,
capitão-mor - disse Alvito.
- Obrigado.
Quando'Ferreira saiu e o padre-lnspetor teve certeza de que
ele e Alvito não podiam ser ouvidos, perguntou ansiosamente:
- Martim, o que mais Toranaga disse?
- Quer uma explicação por escrito do incidente do transporte de armas e da requisição de conquistadores.
- Mamma mia...
- Toranaga estava cordial, até gentil, mas... bem, eu nunca
o vi assim antes.
- O que foi que disse, exatamente?
- "Tomei conhecimento, Tsukku-san, de que o chefe anterior da sua ordem de cristãos, Padre da Cunha, escreveu aos
governadores de Macau, Goa e ao vice-rei espanhol de Manila,
Don Sisco y Vivera, em julho de 1588, pelo seu calendário, pedindo uma invasão de centenas de soldados espanhóis armados
para apoiar alguns daimios cristãos numa rebelião que o chefe
cristão estava tentando incitar contra seu suserano legal, meu
falecido amo, o táicum. Quais são os nomes desses daimios? É
verdade que não se enviaram soldados, mas vasta quantidade de
armas foi contrabandeada de Macau para Nagasaki sob sigilo
cristão? É verdade que o Padre-Gigante secretamente apreendeu
essas armas quando voltou ao Japão pela segunda vez, na qualidade de embaixador de Goa, em março ou abril de 1590, e secretamente as contrabandeou de Nagasaki no navio português Santa
Cruz, de volta a Macau?" - Alvito enxugou o suor das mãos.
- Disse mais alguma coisa?
- Não de importância, Eminência. Não tive chance de
explicar, ele me dispensou imediatamente. A dispensa foi cortês,
mas foi uma dispensa.
- De onde é que esse maldito inglês está obtendo informações?
- Gostaria de saber.
- Essas datas e nomes. Você não está enganado? Ele as
disse exatamente assim?
- Não, Eminência. Os nomes estavam escritos num pedaço
de papel. Ele me mostrou.
- Letra de Blackthorne?
- Não. Os nomes estavam escritos foneticamente em japonês, em hiragana.
- Temos que descobrir quem está traduzindo para Toranaga. Essa pessoa deve ser surpreendentemente boa. Certamente
nenhum dos nossos? Não pode ser o Irmão Manuel, pode? -
perguntou asperamente, usando o nome de batismo de Masamanu
Jiro. Jiro era filho de um samurai cristão, que fora educado
pelos jesuitas desde a infancia e, sendo inteligente e devoto,
selecionado no seminário a ser treinado para se tornar um padre
completo, com os quatro votos, com os quais ainda não havia
nenhum japonês. Jiro estivera com a Companhia durante vinte
anos, depois, inacreditavelmente, partira antes de ser ordenado e
agora era um violento antagonista da Igreja.
- Não. Manuel ainda está em Kyushu, possa ele arder no
inferno para sempre. Continua sendo um violento inimigo de
Toranaga, nunca o ajudaria. Felizmente ele nunca compartilhou
segredos políticos. A intérprete foi a Senhora Maria - disse Alvito, usando o nome batismal de Toda Mariko.
- Toranaga lhe disse isso?
- Não, Eminência. Mas aconteceu de eu saber que ela está
visitando o castelo, e foi vista com o inglês.
- Tem certeza?
- Nossa informação é absolutamente exata.
- Bom - disse Dell'Aqua. - Talvez Deus esteja nos ajudando do seu modo inescrutável. Mande buscá-la imediatamente.
- Já estive com ela. Dei um jeito de encontrá-la por acaso.
Foi encantadora como sempre, respeitosa, piedosa como sempre,
mas disse enfaticamente antes que eu tivesse uma oportunidade
de interrogá-la: "Naturalmente, o império é uma terra muito
particular, padre, e algumas coisas, por costume, devem permanecer muito em particular. Acontece o mesmo em Portugal, e
dentro da Companhia de Jesus?"
- Você é o confessor dela.
- Sim. Mas ela não dirá nada.
- Por quê?
- Ela foi claramente prevenida e proibida de discutir o que
aconteceu e o que foi dito. Conheço-os bem demais. Nisso a
influência de Toranaga seria maior do que a nossa.
- A fé que ela tem é tão pequena? A educação que recebeu
foi tão ineficaz? Certamente que não. É tão devota e tão boa
cristã quanto qualquer mulher que eu já conheci. Um dia se
tornará, talvez, até a primeira abadessa japonesa.
316
317
- Sim. Mas agora não dirá nada.
- A Igreja está em perigo. Isso é importante, talvez importante demais - disse Dell'Aqua. - Ela compreenderia. É inteligente demais para não entender.
- Imploro-lhe que não lhe ponha a fé à prova nessa questão. Nós perderíamos. Ela me preveniu. Foi o que me disse, tão
claramente quanto se estivesse escrito.
- Talvez fosse bom pô-la à prova. Pela sua própria salvação.
- Ordenar isso ou não depende do senhor. Mas receio que
ela obedeça a Toranaga, Eminência, e não a nós.
- Pensarei sobre Maria. Sim - disse Dell'Aqua. Deixou
o olhar vagar sobre o fogo, o peso do seu posto esmagando-o.
Pobre Maria. Aquele maldito herege. Como evitarmos a armadilha? Como dissimular a verdade sobre as armas? Como pôde um
padre-superior e vice-provincial como Da Cunha, que era tão bem
treinado, tão experimentado, com sete anos de conhecimento prático em Macau e no Japão, cometer um erro tão terrível?
- Como? - perguntou às chamas.
Conheço a resposta, disse a si mesmo. É fácil demais. A
pessoa entra em pânico ou esquece a glória de Deus, ou torna-se
orgulhosa ou arrogante ou estupidificada. Quem, sob as mesmas
circunstâncias, talvez, não cometeria o mesmo erro? Ser recebido
pelo táicum ao crepúsculo com distinção, um encontro triunfal
com pompa e cerimónia - quase como um ato de contrição do
táicum, que estava aparentemente a ponto de converter-se. E
depois ser despertado no meio da mesma noite com os editos
de expulsão, decretando que todas as ordens religiosas deviam
deixar o Japão dentro de vinte dias sob pena de morte, para
nunca mais voltar e, pior ainda, que todos os convertidos japoneses, no país inteiro, eram obrigados a abjurar imediatamente ou
seriam exilados ou condenados à morte.
Levado pelo desespero, o superior impensadamente aconselhara os daimios cristãos de Kyushu - Onoshi, Misaki, Kiyama,
e Harima de Nagasaki - a se rebelarem para salvar a Igreja, e
escrevera freneticamente, pedindo conquistadores para dar reforço à revolta.
O fogo crepitou e dançou na grelha de ferro. Sim, tudo
verdade, pensou Dell'Aqua. Se ao menos eu tivesse sabido, se
ao menos Da Cunha me tivesse consultado antes... Mas como
poderia ele? Leva seis meses para enviar uma carta a Goa e
talvez outros seis meses para que outra carta chegue, e Da Cunha
318
escreveu imediatamente, mas era o superior, tinha poder de iniciativa e precisava enfrentar a calamidade de imediato.
Embora Dell'Aqua tivesse zarpado imediatamente ao receber
a carta, com credenciais de embaixador fornecidas às pressas
pelo vice-rei de Goa, levara meses para chegar a Macau, apenas
para ser informado de que Da Cunha morrera, e que ele e todos
os padres estavam proibidos de entrar no Japão sob pena de
morte.
Mas as armas já haviam partido.
Então, dez semanas depois, chegaram as notícias de que a
Igreja não fora arrasada no Japão, que o táicum não estava
pondo em prática suas novas leis. Apenas meia centena de igrejas
tinham sido queimadas. Apenas Takayama fora esmagada. E correu o boato de que, embora os editos oficialmente permanecessem
em vigor, o táicum agora estava preparado para permitir que
as coisas fossem como eram, desde que os padres fossem muito
mais discretos nas suas conversões, seus convertidos mais discretos
e mais bem-comportados, e que não houvesse mais ruidosos cultos
ou demonstrações públicas, nem queima de igrejas budistas por
fanáticos.
Então, quando a provação pareceu prestes a terminar, Del1'Aqua lembrara-se de que as armas haviam partido semanas
antes, com a autorização do superior, Padre da Cunha, e que
ainda permaneciam nos depósitos jesuíticos de Nagasaki.
Seguiram-se mais semanas de agonia até que as armas fossem
secretamente contrabandeadas de volta a Macau - sim, sob a
minha responsabilidade desta vez, lembrou-se Dell'Aqua, com a
esperança de que o segredo permanecesse enterrado para sempre.
Mas esses segredos nunca nos deixam em paz, apesar do muito
que se queira ou que se reze.
Qual será a extensão do conhecimento do herege?
Por mais de uma hora, Sua Eminência, sentado imóvel na
sua cadeira de couro e encosto alto, contemplou o fogo sem o
ver. Alvito esperou pacientemente perto da estante de livros, com
as mãos no colo. Raios de sol dançavam sobre o crucifixo de
prata na parede atrás do padre-lnspetor. Numa parede lateral
estava um pequeno óleo do pintor veneziano Ticiano, que Del1'Aqua comprara na juventude em Pádua, para onde fora enviado
pelo pai para estudar direito. Na outra parede alinhavam-se suas
bíblias e seus livros, em latim, português, italiano e espanhol.
E, da impressora de tipo móvel da Companhia em Nagasaki que
ele mandara vir a um custo tão elevado de Goa há dez anos,
319

duas prateleiras de livros e panfletos japoneses: livros religiosos
o catecismos de todo tipo, traduzidos com esmero para o japonês
pelos jesuítas; obras adaptadas do japonês para o latim, a fim
de ajudar os acólitos japoneses a aprender a língua; e por último,
dois livrinhos que não tinham preço: a primeira gramática de
português-japonês, o trabalho da vida do Padre Sancho Alvarez,
impressa seis anos antes, e seu companheiro, o inacreditável dicionário de português-latim-japonês, impresso no ano anterior em
caracteres romanos e em hiragana. Fora iniciado por ordem de
Dell'Aqua, vinte anos atrás, o primeiro dicionário de palavras
japonesas jamais compilado.
O Padre Alvito pegou o livro e o acariciou afetuosamente.
Sabia que se tratava de uma obra de arte única. Fazia oito anos
que ele mesmo compilava um trabalho assim, ainda longe de estar
terminado. Mas o dele seria um dicionário com explicações suplementares e muito mais pormenorizado - quase uma introdução ao Japão e aos japoneses -, e sabia, sem vaidade, que se
conseguisse terminá-lo, seria uma obra-prima em comparação ao
trabalho do Padre Alvarez, que se seu nome devesse ser lembrado
seria por causa do livro e do padre-lnspetor, que era o único pai
que ele jamais conhecera.
- Quer sair de Portugal e juntar-se ao serviço de Deus, meu
filho? - perguntara o gigante jesuíta no primeiro dia em que
o vira.
- Oh, sim, por favor, padre - respondera Alvito, espichando o pescoço para ele com uma ânsia desesperada.
- Que idade tem, meu filho?
- Não sei, padre, talvez dez, talvez onze, mas sei ler e
escrever, o padre me ensinou, e sou só. Não tenho ninguém, não
pertenço a ninguém...
Dell'Aqua o levara para Goa e depois para Nagasaki, onde
ingressara no seminário da Companhia de Jesus, o mais jovem
europeu na Asia. Depois ocorreu o milagre do dom das línguas
o postos de confiança como intérprete e conselheiro comercial,
primeiro para Harima Tadao, daimio do feudo de Hizen, em
Kyushu, onde ficava Nagasaki, e mais tarde, com o tempo, do
próprio táicum. Fora ordenado e mais tarde atingira até o privilégio do quarto voto. Era o voto especial, além dos votos normais
de pobreza, castidade e obediência, concedido apenas à elite dos
jesuítas: o voto de obediência ao papa - para ser um instrumento pessoal seu, para a obra de Deus, para ir aonde o papa
pessoalmente ordenasse e fazer o que ele pessoalmente desejasse;
320
para tornar-se como pretendia o fundador da Companhia, o soldado basco Loyola, um dos Regimini Militantes Ecleshe, um dos
soldados particulares especiais de Deus, a serviço do seu general
eleito na Terra, o Vigário de Cristo.
Tive muita sorte, pensou Alvito. Ó Deus, ajude-me a ajudar.
Finalmente Dell'Aqua se levantou, espreguiçou-se e se dirigiu para a janela. O sol cintilava nas telhas douradas do imponente torreão central do castelo, a elegância da estrutura toda
dissimulando sua força maciça. Torre do Demônio, pensou ele.
Quanto tempo se erguerá aí para lembrar a cada um de nós? Faz
só quinze... não, faz dezessete anos que o táicum pôs quatrocentos mil homens a construir e escavar, e sangrou o país para
pagá-lo, o seu monumento, e então, em dois rápidos anos, o Castelo de Osaka foi terminado. Homem inacreditável! Povo inacreditável! Sim. E lá se ergue ele, indestrutível! Exceto para o dedo
de Deus. Ele pode pô-lo abaixo num instante, se quiser. Ó Deus,
ajude-me a fazer a sua vontade.
- Bem, Martim, parece que temos trabalho a fazer. -
Dell'Aqua começou a andar de um lado para o outro, com a voz
agora tão firme quanto o passo. - Quanto ao piloto inglês: se
não o protegermos, será morto e correremos o risco do desfavor
de Toranaga. Se dermos um jeito de protegê-lo ele logo enforcará
a si mesmo. Mas ousaremos esperar? Sua presença é uma ameaça
para nós e não há como predizer quanto dano ele pode causar
antes dessa data feliz. Ou podemos ajudar Toranaga a eliminá-lo.
Ou, por último, podemos convertê-lo.
Alvito piscou. - O quê?
- Ele é inteligente, muito bem informado sobre o catolicismo. Muitos ingleses no íntimo não são católicos autênticos?
A resposta é sim se o rei ou a rainha deles for católico, e não se
for protestante. Os ingleses são negligentes sobre religião. São
nossos adversários fanáticos no momento, mas isso não é devido
à Armada? Talvez Blackthorne possa ser convertido. Essa seria a
solução perfeita, para a glória de Deus, e salvaria a alma desse
herege da danação, para onde ele certamente irá.
"Depois, Toranaga: daremos a ele os mapas que deseja. As
explicações sobre `esferas de influência'. Não é para isso, na realidade, que as linhas de demarcação servem, para separar a influência dos portugueses e dos amigos espanhóis? Si e vero! Digalhe que quanto aos outros assuntos importantes, ficarei honrado
em prepará-los pessoalmente para ele e os entregarei o mais breve
possível. Como precisarei verificar os fatos em Macau, poderia
321

ele, por favor, conceder um prazo razoável? E no mesmo tora
diga-lhe que está encantado em lhe informar que o Navio Negro
zarpará três semanas mais cedo, com a maior carga de seda e
ouro que já houve, que a nossa parte da carga e ... ", ele pensou um momento, "e no mínimo trinta por cento de toda a carga
serão vendidos através do intermediário indicado pessoalmente por
Toranaga."
- Eminência, o capitão-mor não vai gostar de zarpar mais
cedo e...
- Será responsabilidade sua conseguir de Toranaga a autorização para Ferreira. Vá vê-lo imediatamente com a minha resposta. Impressione-o com a nossa eficiência. Essa não é uma das
coisas que ele admira? Com autorizações imediatas, Ferreira fará
concessões quanto ao ponto secundário de chegar mais cedo na
estação, e quanto ao intermediário, que diferença há, para o capitão-mor, entre um nativo e outro? Ele receberá sua porcentagem
do mesmo jeito.
- Mas os senhores Onoshi, Kiyama e Harima geralmente
dividem a corretagem da carga entre si. Não sei se concordarão.
- Então resolva o problema. Toranaga concordará com o
adiamento em troca da concessão. As únicas concessões de que
ele necessita são poder, influência e dinheiro. O que podemos lhe
dar? Não podemos lhe entregar os daimios cristãos. Nós...
- Sim - disse Alvito.
- Ainda que pudéssemos, ainda não sei se devemos ou se
o faremos. Onoshi e Kiyama são inimigos ferrenhos, mas juntaram-se contra Toranaga porque têm certeza de que ele destruiria
a Igreja - e a eles - se algum dia conseguisse o controle do
conselho.
- Toranaga apoiará a Igreja. Ishido é o nosso verdadeiro
inimigo.
- Não compartilho da sua confiança, Martim. Não devemos
nos esquecer de que, pelo fato de Onoshi e Kiyama serem cristãos, todos os seus seguidores são cristãos, às dezenas de milhares.
Não podemos ofendê-los. A única concessão que podemos fazer
a Toranaga é alguma coisa relacionada a comércio. Ele é fanático
por comércio mas nunca tentou participar pessoalmente. Portanto
o que sugiro talvez o tente a conceder um adiantamento que talvez possamos estender para um adiantamento permanente. Você
sabe como os japoneses gostam dessa forma de solução - o
grande bastão equilibrado, cujos dois lados fingem não existir,
hem?
322
- Na minha opinião, é politicamente imprudente para o
Senhor Onoshi e o Senhor Kiyama voltarem-se contra Toranaga
nesta época. Deveriam seguir o velho provérbio de manter uma
linha de retirada aberta, não? Eu poderia sugerir-lhes que um
oferecimento a Toranaga de vinte e cinco por cento - de modo
que cada um tivesse uma parte igual, Onoshi, Kiyama, Harima e
Toranaga - seria uma pequena consideração para abrandar o
impacto da sua aliança "temporária" com Ishido contra ele.
- Então Ishido os destruirá e nos odiará mais, quando descobrir.
- Ishido já nos detesta incomensuravelmente agora. Não
confia neles mais do que eles confiam nele, e ainda não sabemos
por que se puseram do seu lado. Com o acordo de Onoshi e
Kiyama, nós colocaríamos formalmente a proposta, como se se
tratasse meramente de uma idéia nossa, destinada a manter imparcialidade entre Ishido e Toranaga. Em particular, podemos informar Toranaga da generosidade deles.
Dell'Aqua considerou as virtudes e os defeitos do plano. -
Excelente - disse afinal. - Ponha isso em prática. Agora, quanto
ao herege. Entregue os portulanos dele a Toranaga hoje. Volte a
Toranaga imediatamente. Diga-lhe que os portulanos nos foram
enviados secretamente.
- Como explico a demora em entregar-lhe?
- Você não explica. Apenas diz a verdade: foram trazidos
por Rodrigues, mas nenhum de nós percebeu que o pacote lacrado continha os portulanos desaparecidos. Realmente não o abrimos por dois dias. Foram mesmo esquecidos na excitação causada
pelo herege. Os portulanos provam que Blackthorne é pirata, ladrão e traidor. Suas próprias palavras darão cabo dele de uma vez
por todas, o que seguramente é justiça divina. Diga a verdade a
Toranaga: que Mura os deu ao Padre Sebastio, como de fato
aconteceu, que os enviou a nós, certo de que saberíamos o que
fazer com eles. Isso desobriga Mura, o Padre Sebastio, todo
mundo. Devemos comunicar a Mura, por pombo-correio, o que
foi feito. Tenho certeza de que Toranaga entenderá que no fundo
demos prioridade aos seus interesses sobre os de Yabu. Ele sabe
que Yabu fez um acordo com Ishido?
- Eu diria que sabe com certeza, Eminência. Mas corre o
boato de que Toranaga e Yabu são amigos agora.
- Eu não confiaria nesse filho de Satã.
- Tenho certeza de que Toranaga não confia. Assim como
323

Yabu não deve ter assumido nenhum compromisso verdadeiro
com ele.
De repente foram distraídos por uma altercação do lado de
fora. A porta se abriu e um monge encapuzado entrou descalço
na sala, empurrando o Padre Soldi. - Que as bénçãos de Jesus
Cristo recaiam sobre os senhores - disse ele, a voz rascante de
hostilidade. - Possa ele perdoar os seus pecados.
- Frei Pérez... o que está fazendo aqui? - explodiu
Dell'Aqua.
- Voltei a esta cloaca de país para divulgar a palavra de
Deus para os pagãos novamente.
- Mas está sob o edito de nunca regressar, sob pena de
morte imediata, por haver incitado tumultos. Escapou ao martírio
de Nagasaki por milagre e recebeu ordem de...
- Foi a vontade de Deus, e um imundo edito pagão de um
maníaco louco não tem nada a ver comigo - disse o monge. Era
um espanhol baixo, magro, com uma longa barba desgrenhada.
Estou aqui para continuar a obra de Deus. Como vai o
comércio, padre?
- Felizmente para a Espanha, muito bem - retrucou Alvito, gelidamente.
- Não gasto meu tempo com a contabilidade, padre. Gasto-o com o meu rebanho.
- Isso é louvável - disse Dell'Aqua de modo cortante.
- Mas gaste-o onde o papa ordenou: fora do Japão. Esta é nossa
província exclusiva. E também é território português, não espanhol. Preciso lembrar-lhe que três papas determinaram que todas
as ordens religiosas ficassem fora do Japão, com exceção de nós?
O Rei Filipe ordenou o mesmo.
- Poupe o fôlego, Eminência. A obra de Deus ultrapassa
ordens terrenas. Estou de volta, vou escancarar as portas das igrejas e rogar às multidões que se ergam contra os ímpios.
- Quantas vezes tem que ser advertido? Não pode tratar o
Japão como um protetorado inca, povoado de selvagens sem história nem cultura. Proíbo-o de pregar e insisto em que obedeça
às ordens de Sua Santidade.
- Converteremos os pagãos. Ouça, Eminência, há uma centena dos meus irmãos em Manila esperando para embarcar, todos
bons espanhóis, e vários dos nossos gloriosos conquistadores para
nos proteger, se isso for necessário. Pregaremos abertamente e
usaremos nossos hábitos abertamente, não disfarçados por aí em
idólatras saias de seda como os jesuítas!
324
- Não agite as autoridades ou reduzirá a Madre Igreja a
cinzas!
- Digo-lhe na cara que estamos retornando ao Japão e
ficaremos no Japão. Pregaremos a Palavra apesar do senhor -
apesar de qualquer prelado, bispo, rei ou até papa, pela glória de
Deus! - O monge bateu a porta atrás de si.
Vermelho de cólera, Dell'Aqua serviu-se de um copo de
madeira. Um pouco do vinho derramou-se sobre a superfície polida da sua escrivaninha. - Esses espanhóis nos destruirão a todos.
- Dell'Aqua bebeu lentamente, tentando se acalmar. Finalmente
disse: - Martini, mande alguns dos nossos para vigiá-lo. E é
melhor avisar Kiyama e Onoshi imediatamente. Não há como
prever o que acontecerá se esse imbecil se pavonear em público.
- Sim, Eminência. - A porta, Alvito hesitou: - Primeiro
Blackthorne, agora Pérez. E coincidência demais. Talvez os espanhóis em Manila soubessem sobre Blackthorne e o tenham deixado vir aqui só para nos atormentar.
- Talvez, mas provavelmente não. - Dell'Aqua terminou
o copo e pousou-o cuidadosamente. - Em todo caso, com a ajuda
de Deus e o zelo devido, nenhum dos dois conseguirá prejudicar
a Santa Madre Igreja, custe o que custar.
- Serei um maldito espanhol, se isto não é vida!
Blackthorne estava seraficamente deitado de bruços sobre espessos f utons, parcialmente envolto num quimono de algodão, a
cabeça apoiada nos braços. A garota corria-lhe as mãos pelas
costas, tateando-lhe os músculos ocasionalmente, amaciando-lhe a
pele e o espírito, fazendo-o quase querer ronronar de prazer.
Outra garota servia saque num minúsculo cálice de porcelana.
Uma terceira esperava de reserva, segurando uma bandeja de laca
com um cesto de bambu cheio de peixe frito à moda portuguesa,
outro frasco de saqué, e alguns pauzinhos.
-- Nam desu ka, Anjin-san? O que é isso, Honorávei Piloto?
O que disse?
- Não sei dizer isso em nlhon-go. - Sorriu para a garota
CAPITULO 20
325

que oferecia o saque. Apontou para o cálice. - Como se chama
isto? Namae ka?
- Sabazuki. - Ela disse a palavra três vezes, ele repetiu,
depois a outra garota, Asa, ofereceu o peixe e ele balançou a
cabeça. - Iyé, domo. - Não sabia como dizer "estou satisfeito
agora", então tentou dizer "não fome agora".
- Ah! ¡ama hara hette wa oranu - explicou Asa, corrigindo-o. Ele disse a frase várias vezes e todas riram com a sua
pronúncia, mas ele acabou conseguindo fazê-la soar corretamente.
Nunca aprenderei essa língua, pensou ele. Não há nada com
que relacionar os sons em inglês, em latim ou em português.
- Anjin-san? - Asa oferecia a bandeja novamente.
Ele balançou a cabeça e pousou gravemente a mão sobre o
estômago. Mas aceitou o saque e o tomou. Sono, a garota que lhe
massageava as costas, havia parado. Ele lhe pegou a mão, colocou-a sobre o seu pescoço e fingiu suspirar de prazer. Ela compreendeu imediatamente e continuou a massageá-lo.
Cada vez que terminava o pequeno cálice, enchiam-no de
novo imediatamente. É melhor ir devagar, pensou, este é o terceiro frasco e já posso sentir o calor nos artelhos.
As três garotas - Asa, Sono e Rako - haviam chegado com
o amanhecer, trazendo chá, que Frei Domingo lhe dissera que os
chineses às vezes chamavam de "t'ee", e que era a bebida nacional
da China e do Japão. Seu sono fora intermitente após o embate
com o assassino, mas a bebida quente e picante começara a restaurá-lo. Haviam trazido pequenas toalhas quentes e enroladas,
levemente perfumadas. Como ele não soubesse para que serviam,
Rako, a chefe das garotas, mostrou-lhe como usá-las no rosto e
nas mãos.
Depois escoltaram-no com seus quatro guardas samurais até
os banhos de vapor na extremidade daquela seção do castelo e o
entregaram às criadas de banho. Os quatro guardas transpiraram
estoicamente enquanto ele era lavado, sua barba aparada, o cabelo
ensaboado e o corpo massageado.
Após o banho ele se sentira miraculosamente revigorado. Deram-lhe outro quimono de algodão, fresco e até os joelhos, rabis
limpos, e as garotas o esperaram novamente. Levaram-no a outra
sala, onde se encontravam Kiri e Mariko. Mariko disse que o
Senhor Toranaga decidira mandar o Anjin-san para uma de suas
províncias dentro de poucos dias a fim de que se recuperasse, que
o Senhor Toranaga estava muito contente com ele e que não
havia necessidade de se preocupar com nada, pois estava sob os
326
cuidados pessoais do Senhor Toranaga agora. O Anjin-san, por
favor, começaria a preparar os mapas com o material que ela
providenciaria? Logo haveria outros encontros com o amo, que
prometera que ela em breve estaria disponível para responder a
qualquer pergunta que o Anjin-san quisesse fazer. O Senhor Toranaga estava muito ansioso para que Blackthorne aprendesse japonês, assim como estava ansioso por aprender sobre o mundo exterior, e sobre navegação. Em seguida Blackthorne fora conduzido
até o médico. Ao contrário dos samurais, os médicos usavam
cabelo cortado rente, sem rabo.
Blackthorne odiava os médicos e temia-os. Mas aquele era
diferente. Era gentil e inacreditavelmente limpo. Os médicos europeus na maioria eram tacanhos barbeiros, cobertos de piolhos e
imundos como todo mundo. Aquele médico tocou-o cuidadosamente, examinou-o polidamente e segurou o pulso de Blackthorne
para sentir-lhe a pulsação, olhou-lhe dentro dos olhos, da boca e
dos ouvidos, e bateu-lhe suavemente nas costas, joelhos e solas dos
pés. Tudo o que um médico europeu queria era olhar a sua língua e dizer: "Onde é que dói?", e fazer-lhe uma sangria para
libertar a impureza do seu sangue e dar-lhe um vomitório violento
para eliminar as impurezas das suas entranhas.
Blackthorne detestava ser sangrado e tomar purgantes, e cada
vez era pior que a precedente. Mas aquele médico não tinha escalpelos nem a tigela de sangria, nem o repugnante cheiro de
substância química que normalmente os rodeava, por isso seu coração começara a bater mais devagar e ele relaxou um pouco.
Os dedos do médico tocaram-lhe as cicatrizes na coxa de
modo inquisitivo. Blackthorne fez o som de um tiro, porque uma
bala de mosquete lhe havia atravessado a carne muitos anos antes.
O doutor disse: - Ah so desu -, e assentiu com um gesto de
cabeça. Mais apertos, profundos mas indolores, sobre os rins e o
estômago. Finalmente o médico falou a Rako, que assentiu, curvou-se e agradeceu-lhe.
- Ichi ban? - perguntara Blackthorne, querendo saber se
estava bem.
- Hai, Anjin-san.
- Honto ka?
Que palavra útil, honro! "É verdade?", "Sim, é verdade", pensou Blackthorne. - Domo, doutor-san.
- Do itashimashité - disse o médico, curvando-se. Não há
de quê.
Blackthorne retribuiu a mesura. As garotas o levaram em327

bora e foi só quando se viu deitado sobre os f utons, o quimono
de algodão afrouxado, Sono relaxando-lhe as costas, que ele se
lembrara de que estivera nu diante do médico, na frente das garotas e dos samurais, e que não notara isso nem se sentira envergonhado.
- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Rako. O que é,
Honorável Piloto? Por que ri? Os dentes brancos dela cintilavam.
Tinha as sobrancelhas depiladas e pintadas num crescente. Usava
o cabelo escuro preso no alto e um quimono rosa florido com um
obi verde-cinza.
- Porque estou feliz, Rako-san. Mas como lhe dizer isso?
Como lhe dizer que rio porque estou feliz e tirei o peso de cima
da cabeça pela primeira vez desde que saí de casa? Porque minhas
costas estão ótimas - eu me sinto inteiro ótimo. Porque tenho
a consideração de Toranaga-sarna e porque descarreguei três boas
canhonadas contra os malditos jesuítas e mais seis contra os portugueses sifilíticos! - Depois ele se pôs de pé com um salto,
amarrou o quimono, e começou desleixadamente a dançar uma
hornpipe t entoando uma cantiga do mar para marcar o compasso.
Rako e as outras ficaram curiosas. A shoji se abriu imediatamente e os guardas samurais apareceram, de olhos arregalados.
Blackthorne dançou e cantou vigorosamente até não conseguir
mais se conter, então explodiu numa gargalhada e caiu. As garotas bateram palmas. Rako tentou imitá-lo e caiu, porque a cauda
do quimono inibia-lhe os movimentos. As outras se levantaram e
convenceram-no a mostrar-lhes como fazê-lo, e ele tentou, as três
garotas em pé e alinhadas a observá-lo, segurando os quimonos
levantados. Mas não conseguiram, e logo estavam todas tagarelando, dando risadinhas e se abanando.
Abruptamente os guardas ficaram solenes e fizeram uma
profunda reverência. Toranaga apareceu na soleira, ladeado por
Mariko, Kiri e seus sempre presentes guardas samurais. As garotas
todas se ajoelharam, estenderam as mãos no chão e se curvaram,
mas a risada não lhes abandonou o rosto, tampouco sentiram qualquer receio. Blackthorne curvou-se polidamente também, não tão
baixo quanto as mulheres.
- Konnichi wa, Toranaga-sarna - disse ele.
j Dança rápida, geralmente executada por uma só pessoa, que se dançava ao som de um antigo instrumento de sopro, com o mesmo nome.
(N. do T.)
328
- Konnichi wa, Anjin-san - respondeu Toranaga. E fez uma
pergunta.
- Meu amo pergunta o que está fazendo, senhor - disse
Mariko.
- Era apenas uma dança, Mariko-san - disse Blackthorne,
sentindo-se imbecil. - Chama-se hornpipe. É uma dança de marinheiros, que executamos, cantando cantigas simultaneamente. Eu
só estava feliz... talvez tenha sido o saque. Sinto muito, espero
não ter perturbado Toranaga-sarna.
Ela traduziu.
- Meu amo diz que gostaria de assistir à dança e ouvir a
canção.
- Agora?
- Agora, naturalmente.
Imediatamente Toranaga sentou-se de pernas cruzadas e sua
pequena corte se espalhou pela sala, olhando todos para Blackthorne, expectantes.
Aí está, seu imbecil, disse Blackthorne a si mesmo. É nisso
que dá não se vigiar melhor. Agora tem que dançar e você sabe
que sua voz é desafinada e dança de modo desajeitado.
Ainda assim, ele amarrou o quimono bem apertado e se atirou à dança com prazer, rodopiando, chutando, girando; pulando,
sua voz rugindo vigorosamente.
Mais silêncio.
- Meu amo diz que nunca viu nada parecido em toda a
sua vida.
- Arigato goziemashita! - disse Blackthorne, suando em
parte pelo esforço, em parte pelo constrangimento. Então Toranaga pôs as espadas de lado, arregaçou o quimono até a cintura,
e se postou ao lado dele.
- O Senhor Toranaga dançará a sua dança - disse Mariko.
- Hem?
- Por favor, ensinê-lhe, diz ele.
Blackthorne começou. Demonstrou o passo básico, depois
repetiu-o várias vezes. Toranaga aprendeu depressa. Blackthorne
não ficou nem um pouco impressionado com a agilidade do velho
barrigudo e senhor de um amplo traseiro.
Blackthorne começou a cantar e a dançar, e Toranaga imitou-o, tentativamente no começo, para alegria dos assistentes. Depois Toranaga atirou longe o quimono, cruzou os braços e começou a dançar com entusiasmo ao lado de Blackthorne, que também
se livrou do quimono e cantou mais alto, marcando o tempo, quase
329

dominado pelo grotesco do que estavam fazendo, mas contagiado
agora pelo humor da situação. Finalmente Blackthorne deu uma
espécie de salto, girou, pulou e estacou. Bateu palmas e curvou-se
para Toranaga. Todos aplaudiram o amo, que estava muito contente.
Toranaga sentou-se no centro da sala, respirando com facilidade. Imediatamente Rako avançou para abaná-lo e as outras
correram a buscar-lhe o quimono. Mas Toranaga empurrou o seu
quimono na direção de Blackthorne e pegou o quimono simples
do outro.
- Meu amo diz que teria muito prazer em que o senhor
aceitasse isso como presente - disse Mariko. - Aqui se considera uma grande honra receber um quimono muito velho de um
suserano.
- Arigato goziemashita, Toranaga-sarna. - Blackthorne
curvou-se profundamente, depois disse a Mariko: - Sim, compreendo a honra que ele me faz, Mariko-san. Por favor, agradeça
ao Senhor Toranaga com as palavras formais corretas, que eu
infelizmente ainda não sei, e diga-lhe que vou guardá-lo como um
tesouro, e mais ainda à honra que ele me fez dançando a minha
dança comigo.
Toranaga demonstrou uma satisfação ainda maior.
Reverentemente, Kiri e as criadas ajudaram Blackthorne a
vestir o quimono do amo e mostraram-lhe como amarrar o sash.
O quimono era de seda marrom, com cinco elmos escarlates, e o
sash, de seda branca.
- O Senhor Toranaga diz que apreciou a dança. Um dia
talvez lhe mostre algumas das nossas. Ele gostaria que o senhor
aprendesse a falar.japonês tão rápido quanto possível.
- Eu também gostaria. -- Mas gostaria ainda mais, pensou
Blackthorne, de estar dentro das minhas próprias roupas, comendo
minha comida, na minha cabina, no meu navio, com meus canhões
armados, pistolas na cintura e o tombadilho coberto por uma infinidade de velas. - Quer perguntar ao Senhor Toranaga quando
é que posso ter meu navio de volta?
- Senhor?
- Meu navio, senhora. Por favor, perguntê-lhe quando posso
reaver meu navio. Minha tripulação, também. Toda a carga foi
removida - havia vinte mil moedas na caixa-forte. Estou certo
de que ele compreenderá que somos mercadores, e embora apreciemos sua hospitalidade, gostaríamos de comerciar - com as
330
mercadorias que trouxemos conosco - e partir para casa. Precisaremos de quase dezoito meses para voltar para casa.
- Meu amo diz que o senhor não precisa se preocupar.
Tudo será feito tão logo seja possível. Primeiro deve ficar forte e
saudável. O senhor partirá ao crepúsculo.
- Senhora?
- O Senhor Toranaga disse que o senhor partirá ao pôr-dosol. Falei erradamente?
- Não, não, em absoluto, Mariko-san. Mas há uma hora e
pouco, a senhora me disse que eu partiria dentro de alguns dias.
- Sim, mas agora ele diz que o senhor partirá esta noite.
- Ela traduziu tudo isso para Toranaga, que falou mais alguma
coisa.
- Meu amo diz que é melhor e mais conveniente para o
senhor partir esta noite. Não há por que se preocupar, Anjin-san,
o senhor está sob o cuidado pessoal dele. A Senhora Kiritsubo vai
para Yedo, a fim de esperar o regresso dele. O senhor irá com ela.
- Por favor, agradeça a ele por mim. l3 possível... posso
perguntar se seria possível libertar Frei Domingo? O homem tem
um vasto conhecimento.
Ela traduziu.
- Meu amo diz que sente muito, mas o homem morreu.
Mandou buscá-lo assim que o senhor pediu, ontem, mas ele já
estava morto.
Blackthorne acabrunhou-se. - Como morreu?
- Meu amo diz que morreu quando seu nome foi chamado.
- Oh! Pobre homem!
- Meu amo diz que a morte e a vida são a mesma coisa.
A alma do padre esperará até o décimo quarto dia e então renascerá. Por que se entristecer? É a lei imutável da natureza. - Ela
começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia, limitando-se
a acrescentar: - Os budistas crêem que temos muitos nascimentos ou renascimentos, Anjin-san. Até que finalmente nos tornemos
perfeitos e atinjamos o nirvana, o paraíso.
Blackthorne afastou a própria tristeza e se concentrou em
Toranaga e no presente. - Posso, por favor, perguntar a ele se a
minha tripulação... - Parou quando Toranaga desviou o olhar.
Um jovem samurai entrou às pressas na sala, curvou-se para Toranaga e esperou.
- Nan ja? - disse Toranaga.
Blackthorne não compreendeu nada do que foi dito. Só teve a
impressão de apreender o apelido do Padre Alvito, Tsukku. Viu os
331

olhos de Toranaga esvoaçarem na sua direção e notou o vislumbre
do sorriso. Perguntou a si mesmo se Toranaga mandara buscar o
padre por causa do que ele lhe dissera. Espero que sim, pensou,
e espero que Alvito esteja afundado no estrume até as narinas.
Está ou não está? Blackthorne resolveu não perguntar a Toranaga, embora se sentisse enormemente tentado.
- Kare ni matsu yoni - disse Toranaga bruscamente.
- Gyoi. - O samurai inclinou-se e saiu apressado. Toranaga voltou-se para Blackthorne: - Nan ja, Anjin-san?
- O senhor estava dizendo, capitão? - disse Mariko. -
Sobre a sua tripulação?
- Sim. Toranaga-sarna poderia tomá-los sob a sua proteção
também? Providenciar para que sejam todos bem tratados? Eles
também serão enviados para Yedo?
Ela perguntou. Toranaga enfiou as espadas na cintura do
quimono curto. - Meu amo diz que naturalmente os arranjos já
foram feitos. O senhor não precisa se inquietar quanto a eles. Ou
quanto ao seu navio.
- Meu navio está em ordem?
- Sim. Ele diz que o navio já está em Yedo.
Toranaga levantou-se. Começaram todos a se curvar, mas
Blackthorne interrompeu inesperadamente: - Uma última coisa...
- Parou e se amaldiçoou, percebendo que estava sendo descortês. Era óbvio que Toranaga encerrara a entrevista e já haviam
todos começado a se curvar, mas foram detidos pelas palavras de
Blackthorne e agora estavam todos embaraçados sem saber se
completavam a reverência, se esperavam, ou se começavam novamente.
- Nan ja, Anjin-san? - A voz de Toranaga soou irritadiça e inamistosa, pois também ele ficara momentaneamente perturbado.
- Gomen nasal, sinto muito, Toranaga-sarna. Não pretendi
ser descortês. Sá queria perguntar se a Senhora Mariko teria a
permissão de conversar comigo por alguns momentos antes que eu
parta. Isso me ajudaria.
Ela perguntou.
Toranaga meramente grunhiu uma afirmativa imperiosa e
saiu da sala, seguido de Kiri e da sua guarda pessoal.
Bastardos suscetíveis, todos vocês, disse Blackthorne a si
mesmo.
Jesus, como se tem que ser cuidadoso aqui! Ele enxugou a
testa com a manga e viu a aflição imediata no rosto de Mariko.
332
Rako ofereceu-lhe às pressas um pequeno lenço que eles sempre
pareciam ter pronto num sortimento aparentemente inexaurível,
guardado secretamente em algum lugar nas costas do obi. Ele
então percebeu que estava usando o quimono do "amo" e que não
se enxuga, por distração, o suor da testa com a manga do "amo",
por Deus, portanto havia cometido outro sacrilégio! Nunca aprenderei, nunca, Jesus do paraíso, nunca!
- Anjin-san? - Rako estava oferecendo saque.
Ele aceitou, agradeceu e bebeu. Imediatamente ela tornou a
encher o cálice. Ele notou um brilho de perspiração na testa de
todos.
- Gomen nasal - disse ele a todos, desculpando-se. Pegou
o cálice e ofereceu-o a Mariko, bem-humorado. - Não sei se é
costume polido ou não, mas a senhora aceitaria um pouco de
saque? Isso é permitido? Ou devo bater a cabeça no chão?
Ela riu. - Oh, sim, é muito polido, e não, por favor, não
machuque a cabeça. Não há necessidade de se desculpar comigo,
capitão. Homens não pedem desculpas a mulheres. Tudo o que
fazem é correto. Pelo menos é o que nós, senhoras, achamos.
- Ela explicou às garotas o que dissera e elas assentiram de modo
igualmente sério, mas tinham os olhos dançando nas órbitas. - O
senhor não tinha como saber, Anjin-san - continuou Mariko,
depois sorveu um minúsculo gole de saque e devolveu-lhe o cálice. - Obrigada, mas não vou tomar mais saque, obrigada. O
saque me vai direto para a cabeça e para os joelhos. Mas o senhor
aprende rapidamente, deve lhe ser muito difícil. Não se preocupe,
Anjin-san, o Senhor Toranaga disse que acha sua aptidão excepcional. Nunca lhe teria dado o quimono se não estivesse muito
satisfeito.
- Ele mandou buscar Tsukku-san?
- O Padre Alvito?
- Sim.
- Deveria ter perguntado a ele, capitão. A mim não disse
nada. E foi muito sábio nisso, pois as mulheres não têm sabedoria
nem conhecimento em assuntos políticos.
- Ah, so desu ka? Gostaria que todas as mulheres fossem
igualmente. .. sábias.
Mariko abanou-se, confortavelmente ajoelhada, as pernas dobradas sob o corpo. - Sua dança esteve excelente. As senhoras
no seu país dançam do mesmo modo?
- Não. Apenas os homens. Era uma dança de homens, de
marinheiros.
333

- Já que o senhor quer me fazer perguntas, posso lhe fazer
algumas primeiro?
- Certamente.
- Como é a senhora sua esposa?
- Tem vinte e nove anos. E alta, comparada com a senhora.
Pelas nossas medidas, tenho seis pés e duas polegadas de altura,
e ela tem mais ou menos cinco pés e oito polegadas. A senhora
tem cerca de cinco pés, portanto ela é uma cabeça mais alta e
igualmente maior... igualmente proporcionada. O cabelo dela é
da cor de. .. - Apontou as vigas de cedro polido e sem manchas
e todos os olhos se dirigiram para lá, depois voltaram a se fixar
nele. - Mais ou menos daquela cor. Loiro com um toque de
vermelho. Os olhos são azuis, muito mais do que os meus, azulesverdeados. Tem o cabelo comprido e o usa solto na maioria das
vezes.
Mariko traduziu para as outras, que olharam para as vigas
de cedro e para ele mais uma vez. Os guardas samurais também
ouviam atentamente. Uma pergunta de Rako.
- Rako-san perguntou se ela é como nós, de corpo?
- Sim. Mas os quadris são mais largos e mais curvos, o
peito é mais proporcionado e... bem, geralmente nossas mulheres
são mais arredondadas e têm seios muito mais cheios.
- Todas as mulheres, e os homens, são tão mais altos do
que nós?
- Geralmente sim. Mas alguns são tão baixos quanto os
daqui. Acho a sua pequenez encantadora. Muito agradável.
Asa perguntou alguma coisa e o interesse de todos se avivou.
- Asa perguntou como o senhor compararia as suas mulheres com as nossas em matéria de "travesseiro".
- Desculpe, não compreendi.
- Oh, por favor, desculpe-me. O "travesseiro'... assuntos
íntimos. É como nos referimos à união física de homem e mulher.
É mais polido que "fornicação", neh?
Blackthorne conteve o embaraço e disse: - Eu só.
. .
hum... só tive um... hum... uma experiéncia de "travesseiro"
aqui... foi, hum, na aldeia... e não me lembro com muita clareza porque, hum, estava tão exausto da viagem que estava meio
dormindo, meio desperto. Mas, hum, pareceu-me satisfatória.
Mariko franziu a testa. - O senhor "travesseirou" só uma
vez desde que chegou?
- Sim.
- Deve estar se sentindo muito incomodado, neh? Uma des334
tas senhoras ficaria encantada em "travesseiras" com o senhor,
Anjin-san. Ou todas elas, se o senhor quisesse.
- Hem?
- Certamente. Se não quiser nenhuma delas, não é preciso
se preocupar, elas não se ofenderão. Simplesmente me diga o tipo
de mulher de que gostaria e tomaremos todas as providências.
- Obrigado - disse Blackthorne -, mas não agora.
- Tem certeza? Por favor, desculpe-me, mas Kiritsubo-san
tem instruções específicas para que a sua saúde seja protegida e
melhorada. Como pode se sentir saudável sem "travesseiro"? É
muito importante para um homem, neh? Oh, sim, muito.
- Obrigado, mas eu. .. talvez mais tarde.
- O senhor teria muito tempo. Eu ficaria contente em voltar mais tarde. Haverá muito tempo para conversar, se o senhor
quiser. O senhor teria no mínimo quatro bastões de tempo -
disse ela, solícita. - Não vai partir antes do pôr-do-sol.
- Obrigado. Mas não agora - disse Blackthorne, contrariado pela rudeza e falta de delicadeza da sugestão.
- Elas realmente gostariam de obsequiá-lo, Anjin-san. Oh!
Talvez... talvez o senhor preferisse um menino?
- Hem?
- Um menino. É "igualmente simples, se é isso o que o
senhor deseja. - O sorriso dela era honesto, a voz sincera.
- Hem?
- Qual é o problema?
- A senhora está me oferecendo um menino? A sério?'
- Ora, sim, Anjin-san. Qual é o problema? Eu só disse que
mandaríamos vir um menino se o senhor desejasse.
- Eu não quero! - Blackthorne sentiu o rosto em chamas.
- Será que eu pareço um maldito sodomita?
Suas palavras açoitaram a sala ao seu redor. Todos arregalaram os olhos para ele, pasmados. Mariko curvou-se humildemente, manteve a cabeça encostada ao chão. - Por favor, perdoe-me, cometi um engano terrível. Oh, ofendi quando só tentava
agradar. Nunca conversei com um... um estrangeiro antes senão
com os santos padres, por isso não tinha como saber os seus.. .
seus costumes íntimos. Nunca me ensinaram sobre isso. Anjinsan... os padres não os discutiam. Aqui alguns homens às vezes
querem meninos.., os padres gostam de meninos de tempos em
tempos, dos nossos e dos deles... eu tolamente presumi que seus
hábitos fossem os mesmos que os nossos.
335

- Não sou um padre e isso não é um costume geral nosso.
O chefe dos samurais, Kazu Oan, observava irado. Estava
encarregado da segurança e da saúde do bárbaro, e vira, com os
próprios olhos, o inacreditável favor que o Senhor Toranaga demonstrara ao Anjin-san, que agora estava furioso. - O que há
com ele? - perguntou, desafiador, pois era óbvio que a estúpida
mulher dissera algo para ofender o seu importantíssimo prisioneiro.
Mariko explicou o que fora dito e o que o Anjin-san retrucara. - Realmente não compreendo com que ele está irritado,
Oan-san - disse ela.
Oan coçou a cabeça, incrédulo. - Ele ficou como um boi
enlouquecido só porque a senhora lhe ofereceu um menino?
- Sim.
- Desculpe, mas a senhora foi polida? Não terá usado uma
palavra errada, talvez?
- Oh, não, Oan-san, tenho certeza absoluta. Sinto-me péssima. Obviamente sou responsável.
- Deve ser alguma outra coisa. O quê?
- Não, Oan-san. Foi só isso.
- Nunca entenderei esses bárbaros - disse Oan exasperado.
- Por amor a todos nós, por favor acalme-o, Mariko-san. Deve
ser porque ele não "travesseira" há muito tempo. Você - ordenou a Sono -, traga mais saqué, saque quente, e toalhas quentes!
Você, Rako, esfregue a nuca do demônio. - As criadas saíram
voando para obedecer. Um pensamento súbito: - Talvez seja
porque ele é impotente. A história que ele contou sobre o "travesseiro" na aldeia foi bastante vaga, neh? Talvez o coitado tenha
ficado furioso porque não pode "travesseiras" em absoluto e a
senhora trouxe o assunto à tona?
- Desculpe, mas não penso assim. O médico disse que ele
é multo bem-dotado.
- Se ele fosse impotente... isso explicaria, neh? Seria o
suficiente para me fazer berrar, também. Sim! Pergunte a ele.
Mariko imediatamente fez como lhe foi ordenado e Oan
ficou horrorizado quando o sangue subiu novamente ao rosto do
bárbaro e uma enxurrada de repugnantes sons bárbaros encheu
a sala.
- Ele... ele disse que não. - A voz de Mariko não era
mais que um sussurro.
- Tudo isso significava "não"?
336
- Eles... eles usam muitas palavras descritivas quando
ficam alterados.
Oan estava começando a transpirar de ansiedade, pois era ele
o responsável. - Acalme-o!
Um dos outros samurais, um soldado mais velho, disse solicitamente: - Oan-san, talvez ele seja um daqueles que gostam
de cães, neh? Ouvimos algumas histórias estranhas em Kyushu
sobre os comedores de alho. Sim, gostam de cães e... Lembro
agora, sim, cães e patos. Talvez os cabeças douradas sejam como
os comedores de alho, já que fedem como eles, hem? Talvez ele
queira um pato.
- Mariko-san, perguntê-lhe! - disse Oan. - Não, talvez
seja melhor não. Simplesmente acalme... - Parou de repente.
Hiro-matsu vinha se aproximando da esquina oposta do corredor.
- Salve - disse o samurai resolutamente, tentando evitar que a
voz tremesse porque o velho Punho de Aço, na melhor das circunstâncias um disciplinados, estivera como um tigre com espinhos no traseiro por toda a semana, e naquele dia estava ainda
pior. Dez homens tinham sido rebaixados por desmazelo, o turno
da noite inteira tivera que desfilar em ignomínia por todo o castelo, dois samurais haviam recebido ordem de cometer seppuku
porque se atrasaram para o turno, e quatro dos coletores de fezes
noturnas foram atirados dos parapeitos por haverem derramado
parte de um recipiente no jardim do castelo.
- Ele está se comportando, Mariko-san? - Oan ouviu
Punho de Aço perguntar irritado. Estava certo de que a estúpida mulher, que causara todo o problema, iria torcer a verdade,
o que certamente lhes custaria a cabeça.
Para alívio seu, ouviu-a dizer: - Sim, senhor. Tudo está
ótimo, obrigada.
- Você partirá com Kiritsubo-san.
- Sim, senhor. - Hiro-matsu continuou a sua patrulha e
Mariko se inquietou por estar sendo mandada para longe. Seria
meramente para servir de intérprete entre Kiri e o bárbaro durante
a viagem? Com certeza isso não era tão importante. As outras
damas de Toranaga também iam? A Senhora Sazuko? Não será
perigoso para Sazuko ir por mar agora? Devo ir sozinha com Kiri,
ou meu marido também vai? Se ele ficar - e seria seu dever
ficar com seu senhor -- quem cuidará da casa? Por que temos
que ir de navio? Com certeza a estrada Tokaido ainda é segura?
Com certeza Ishido não vai nos causar dano? Sim, ele faria isso
337

- pense no nosso valor como reféns, a Senhora Sazuko, Kiritsubo, e as outras. Será que é por isso que temos que ir por mar?
Mariko sempre odiara o mar. Mesmo a vista dele quase a
punha doente. Mas se tenho que ir, tenho que ir, e ponto final.
Karma. Ela desviou a atenção do inevitável para o problema imediato do desconcertante bárbaro estrangeiro, que só lhe estava
causando pesar.
Quando Punho de Aço desapareceu na extremidade do corredor, Oan ergueu a cabeça e todos suspiraram. Asa surgiu apressada pelo corredor com o saque, seguida logo atrás de Sono, com
as toalhas quentes.
Todos observaram enquanto o bárbaro era servido. Viram a
máscara de sarcasmo que era o seu rosto, e o modo como aceitou
o saque sem prazer e as toalhas quentes com agradecimentos frios.
- Oan-san, por que não deixar uma das mulheres ir buscar
o pato? - sussurrou o velho samurai, solícito. - Simplesmente
o soltamos. Se ele o quiser, estará tudo bem, senão, fingirá não
tê-lo visto.
Mariko balançou a cabeça. - Talvez não devamos correr
esse risco. Parece, Oan-san, que este tipo de bárbaro tem alguma
aversão a falar sobre "travesseiro", neh? É o primeiro de sua
espécie a vir aqui, portanto teremos que ir às apalpadelas.
- Concordo - disse Oan. - Ele estava completamente dócil até que isso fosse mencionado. - Olhou carrancudo para Asa.
- Sinto muito, Oan-san. O senhor está absolutamente certo,
a culpa foi toda minha - disse Asa imediatamente, curvando-se,
a cabeça quase tocando o solo.
- Sim. Relatarei o caso a Kiritsubo-san.
- Oh!
- Realmente penso que a ama deve ser informada, a fim
de tomar cuidado quanto a discutir o assunto com este homem
- disse Mariko, diplomaticamente. - O senhor é muito sábio,
Oan-san. Sim. Mas talvez, de certo modo, Asa tenha sido um feliz
instrumento para poupar a Senhora Kiritsubo e mesmo o Senhor
Toranaga de um terrível embaraço! Pense apenas no que teria
acontecido se a própria Kiritsubo-san tivesse feito a pergunta
diante do Senhor Toranaga ontem! Se o bárbaro tivesse agido
assim na frente dele.
. .
Oan assustou-se. - Teria corrido sangue! A senhora tem
toda a razão, Mariko-san, devemos agradecer a Asa. Explicarei
a Kiritsubo-san que ela foi feliz na pergunta que fez.
Mariko ofereceu mais saque a Blackthorne.
338
- Não, obrigado.
- Peço desculpas novamente pela minha estupidez. O senhor
queria me fazer algumas perguntas?
Blackthorne os observava enquanto conversavam entre si,
aborrecido por não ser capaz de compreender, furioso por não
poder xingá-los claramente por seus insultos ou socar a cabeça dos
guardas uma contra a outra. - Sim. A senhora disse que a sodomia é normal aqui?
- Oh, perdoe-me, não poderíamos discutir outras coisas, por
favor?
- Certamente, senhora. Mas primeiro, para que eu possa
compreendê-los, vamos completar esse assunto. A sodomia é normal aqui, a senhora disse?
- Tudo o que se relacione com "travesseiro" é normal -
disse ela, desafiante, incitada pela falta de boas maneiras e a óbvia
imbecilidade dele, lembrando-se de que Toranaga lhe dissera que
informasse sobre coisas não políticas, mas que lhe relatasse mais
tarde todas as perguntas feitas. Além disso, ela não devia aceitar
qualquer absurdo da parte dele, pois o Anjin continuava sendo
um bárbaro, um provável pirata, e sob uma sentença formal de
morte, temporariamente suspensa ao bel-prazer de Toranaga. - O
"travesseiro" é absolutamente normal. E se um homem vai com
outro, ou com um menino, o que é que isso tem a ver com mais
alguém senão com eles? Que dano causa a eles, ou aos outros .. .
a mim ou ao senhor? Nenhum! - O que sou eu, pensou ela, uma
pária inculta, sem miolos? Um negociante estúpido para ser amedrontada por um mero bárbaro? Não. Sou samurai! Sim, você é,
Mariko, mas também é muito tola! E uma mulher e deve tratá-lo
como a qualquer homem para controlá-lo: lisonjeie-o, concorde
com ele e adoce-o. Você se esqueceu das suas armas. Por que ele
a faz agir como uma criança de doze anos de idade?
Deliberadamente ela amaciou o tom da voz. - Mas se o
senhor acha...
- A sodomia é um pecado repugnante, um mal, uma abominação amaldiçoada por Deus, e os bastardos que a praticam
são a escória do mundo! - Blackthorne ainda estava furioso com
o insulto de ela acreditar que ele pudesse ser um deles. Pelo sangue
de Cristo, como é que ela pôde? Controle-se, disse a si mesmo.
Está falando como um puritano fanático ou um calvinista! E por
que tanto acirramento contra eles? Não será porque estão sempre
presentes no mar, porque a maioria dos marinheiros já tentou
isso? Pois de que outra maneira podem permanecer sadios tantos
339

meses no mar? Não será porque você se sentiu tentado e odiou a si
mesmo por ter se sentido tentado? Não será porque quando jovem
você teve que lutar para se proteger e uma vez foi agarrado e
quase violentado, mas conseguiu se soltar e matou um dos bastardos, a faca rasgando a garganta dele, você com doze anos, a
primeira morte na sua longa lista de mortes? - É um pecado
amaldiçoado por Deus... e absolutamente contra as leis de Deus
e do homem.
- Com certeza essas são palavras cristãs que se aplicam a
outras coisas? - retrucou ela acidamente malgrado seu, provocada pela completa grosseria dele. - Pecado? Onde está o pecado
disso?
- A senhora devia saber. É católica, não? Foi educada por
jesuítas, não foi?
- Um padre me educou e me ensinou a falar latim e português e a escrever em latim e português. Não compreendo o
sentido que o senhor dá à palavra "católica", mas sou cristã, e já
faz quase dez anos que sou cristã, e não, eles não conversaram
conosco sobre "travesseiro". Nunca li os seus livros sobre o assunto, apenas livros religiosos. "Travesseiro" um pecado? Como poderia ser? Como é que qualquer coisa que dé prazer a um ser
humano pode ser pecado?
- Pergunte ao Padre Alvito!
Antes pudesse, pensou ela perturbada. Mas tenho ordens de
não discutir nada do que é dito aqui com ninguém além de Kiri e
do meu Senhor Toranaga. Pedi a Deus e à Nossa Senhora que me
ajudassem, mas eles não falaram comigo. Só sei que desde que
você chegou aqui, não houve nada além de problemas. Eu só tive
problemas... - Se é um pecado, como o senhor diz, por que é
que tantos dos nossos padres o fazem? Algumas seitas budistas
até o recomendam como uma forma de veneração. O momento
das nuvens e chuva não é o mais próximo do paraíso que os
mortais podem obter? Os padres não são maus homens, não todos.
E é sabido que alguns dos santos padres também apreciam o
"travesseiro" desse modo. Eles são maus? Claro que não! Por que
deveriam se privar de um prazer comum se as mulheres lhes são
proibidas? É absurdo dizer que qualquer coisa relacionada a "travesseiro" é pecado e amaldiçoada por Deus!
- Sodomia é uma abominação, contra toda a lei! Pergunte
ao seu confessor!
Você é que é a abominação, você, capitão-piloto, Mariko
tinha vontade de gritar. Como ousa ser tão rude e como pode ser
340
tão imbecil! Contra Deus, você disse? Que absurdo! Contra o seu
mau deus, talvez. Clama ser cristão, mas é óbvio que não é, e
óbvio que é tim mentiroso, um trapaceiro. Talvez você realmente
saiba coisas c~traordinárias e tenha estado em lugares estranhos,
mas não é cristão e é um sacrílego. Foi enviado por Satã? Pecado? Que grotesco!
Você arenga contra coisas normais e age como um louco.
Aborrece os santos padres, aborrece o Senhor Toranaga, causa
discussão entre nós, põe em dúvida as nossas crenças, e nos atormenta com insinuações sobre o que é verdade e o que não é -
sabendo que podemos provar a verdade imediatamente.
Quero dizer-lhe que desprezo a você e a todos os bárbaros.
Sim, os bárbaros me atormentaram a vida toda. Não odiavam
meu pai porque ele não confiava neles e abertamente rogou ao
ditador Goroda que os expulsasse da nossa terra? Os bárbaros
não envenenaram a mente do ditador a ponto de ele começar a
odiar meu,pai, seu general mais leal, o homem que o ajudara mais
até do que o General Nakamura ou o Senhor Toranaga? Os bárbaros não foram a causa de o ditador insultar meu pai, tornando-o
insano, forçando-o a fazer o impensável e desse modo causar todas
as minhas agonias?
Sim, fizeram tudo isso e mais. Mas também trouxeram a inigualável palavra de Deus, e nas minhas horas sombrias de necessidade, quando fui trazida de volta de um exílio hediondo para
uma vida ainda mais hedionda, o padre-lnspetor mostrou-me o
Caminho, abriu-me os olhos e minha alma e me batizou. E o
Caminho me deu forças para suportar, encheu-me o coração com
uma paz sem limites, libertou-me do meu tormento perpétuo, e
abençoou-me com a promessa de salvação eterna.
Aconteça o que acontecer, estou nas mãos de Deus. Oh,
minha Nossa Senhora, dé-me a sua paz e ajude esta pobre pecadora a vencer os inimigos.
- Peço desculpas pela minha rudeza - disse ela. - O
senhor tem razão em estar zangado. Sou apenas uma tola mulher.
Por favor, seja paciente e perdoe-me minha estupidez, Anjin-san.
Imediatamente a raiva de Blackthorne começou a desvanecer-se. Como é que um homem pode ficar zangado muito tempo
com uma mulher, se ela abertamente admite estar errada e ele
certo? - Também peço desculpas, Mariko-san - disse ele, um
pouco abrandado -, mas conosco, sugerir que um homem é pederasta, sodomita, é o pior tipo de insulto.
Então vocês são todos infantis e imbecis, assim como infa341

mes, grosseiros e sem educação, mas o que se pode esperar de
um bárbaro? disse ela a si mesma. Depois, aparentemente arrependida, disse em voz alta: - Claro que o senhor tem razão. Não
tive más intenções, Anjin-san, por favor aceite as minhas desculpas. Oh, sim - ela suspirou, sua voz tão delicadamente adocicada que mesmo o marido, num dos seus humores mais borrascosos, teria sido apaziguado -, oh, sim, o erro foi inteiramente
meu. Sinto muito.
O sol já tocara o horizonte e o Padre Alvito ainda esperava
na sala de audiências, os portulanos pesando-lhe nas mãos.
Maldito Blackthorne, pensou ele.
Era a primeira vez que Toranaga o fazia esperar, a primeira
vez em anos que ele esperava por qualquer daimio, inclusive o
táicum. Durante os últimos oito anos do governo do táicum, foralhe concedido o privilégio inacreditável de acesso imediato, exatamente como com Toranaga.
Mas com o táicum o privilégio fora merecido devido à sua
fluência em japonês e à sua sagacidade nos negócios. Seu conhecimento das engrenagens do comércio internacional ajudara ativamente a aumentar a incrível fortuna do táicum. Embora quase
inculto, o táicum tinha um vasto domínio da língua e seu conhecimento político era imenso. De modo que Alvito se sentara prazerosamente aos pés do déspota para ensinar e aprender e, se fosse
a vontade de Deus, para converter. Era essa a função específica
para a qual fora meticulosamente treinado por Dell'Aqua, que
providenciara os melhores professores práticos entre todos os jesuítas e entre os mercadores na Asia. Alvito tornara-se o confidente do táicum, uma das quatro pessoas - e o único estrangeiro
- a jamais ter visto todas as salas do tesouro pessoal do táicum.
A poucas centenas de passos estava o torreão do castelo.
Erguia-se sobranceiro a sete andares, protegido pela infinidade
de muros e portas e fortificações. No quarto andar havia sete
salas com portas de ferro. Cada uma estava abarrotada com lingotes de ouro e arcas com moedas douradas. No andar de cima
ficavam as salas de prata, explodindo de lingotes e arcas de moedas. E no superior a esse ficavam as sedas e porcelanas raras,
espadas e armaduras - o tesouro do império.
Pela nossa avaliação atual, pensou Alvito, o valor deve ser
de no mínimo cinqüenta milhões de ducados, mais do que o valor
da renda de um ano de todo o império espanhol, todo o império
342
português e a Europa, juntos! A maior fortuna particular em
dinheiro do globo.
Não é esse o grande prêmio? raciocinou ele. Quem quer
que controle o Castelo de Osaka não controla também essa riqueza inacreditável? E essa riqueza, por conseguinte, não lhe dá
poder sobre a terra? Osaka não foi feita inexpugnável apenas para
proteger a riqueza? A terra não foi sangrada para construir o
Castelo de Osaka, para torná-lo inviolável para proteger o ouro,
a fim de mantê-lo em segurança até que Yaemon atinja a maioridade?
Com um centésimo dessa riqueza poderíamos construir uma
catedral em cada capital, uma igreja em cada cidade, uma missão
em cada aldeia pelo país inteiro. Se ao menos isso fosse possível,
para usar o dinheiro pela glória de Deus!
O táicum amara o poder. E amara o ouro pelo poder que
conferia sobre os homens. O tesouro era o fruto de dezesseis anos
de poder incontestado, resultado dos presentes imensos, obrigatórios, que se esperava que todos os daimios, por costume, oferecessem anualmente, e proveniente dos seus próprios feudos. Por
direito de conquista, o táicum pessoalmente possuía um quarto do
país inteiro. Sua renda particular anual excedia cinco milhões de
kokus. E como era senhor de todo o Japão, com o mandato do
imperador, em teoria possuía a renda de todos os feudos. Não
cobrava impostos de nenhum. Mas todos os daimios, todos os
samurais, todos os camponeses, todos os artesãos, todos os mercadores, todos os assaltantes, todos os párias, todos os bárbaros,
até os etas, contribuíam voluntariamente, e em larga medida. Pela
própria segurança.
Enquanto a fortuna estiver intacta, Osaka estiver intacta e
Yaemon for o curador de facto, disse Alvito a si mesmo, o herdeiro governará quando atingir a idade, apesar de Toranaga, de
Ishido ou de qualquer outro.
Uma pena que o táicum tenha morrido. Com todas as suas
falhas, conhecíamos o demônio com quem tínhamos que lidar.
Pena, na realidade, que Goroda tenha sido assassinado, pois era
um verdadeiro amigo nosso. Mas está morto, assim como o
táicum, e agora temos novos idólatras para dobrar - Toranaga
e Ishido.
Alvito lembrou-se da noite em que o táicum morrera. Fora
convidado pelo próprio para a vigília - ele, junto com Yodokosama, a esposa do táicum, e a Senhora Ochiba, a consorte e mãe
343

do herdeiro. Haviam observado e esperado muito tempo naquela
noite de verão, perfumada mas interminável.
Então a agonia começara, e findara.
- Seu espírito partiu. Ele está nas mãos de Deus agora -
dissera ele suavemente ao ter certeza. Fizera o sinal-da-cruz e
abençoara o corpo.
- Que Buda leve meu senhor consigo e o faça renascer rapidamente, para que possa mais uma vez retomar o império nas
mãos - dissera Yodoko em lágrimas silenciosas. Era uma mulher
agradável, uma samurai patrícia que fora esposa e conselheira fiel
por quarenta e quatro dos seus cinqüenta e nove anos de vida.
Ela fechara os olhos e exaltara o cadáver, o que era privilégio
seu. Tristemente fizera uma reverência três vezes e depois o deixara, e à Senhora Ochiba. A agonia fora fácil. Durante meses o
táicum estivera doente e esperava-se o pior para aquela noite.
Poucas horas antes ele abrira os olhos, sorrira para Ochiba e para
Yodoko, e sussurrara, num fio de voz: - Ouçam, este é o meu
poema de morte:

Como orvalho nasci
Como orvaïho desapareço
O Castelo de Osaka e tudo o que jamais fiz
Não são mais que um sonho
Dentro de um sonho.

Um último sorriso, terno, do déspota para elas e para ele.
- Protejam meu filho, vocês todos. - E os olhos se tornaram
opacos para sempre.
O Padre Alvito lembrou-se de como se emocionara com o
último poema, tão típico do táicum. Como fora convidado, esperara que o senhor do Japão, no limiar da morte, se arrependesse
e aceitasse a fé e o sacramento com que brincara tantas vezes.
Mas isso não aconteceu.
- Você perdeu o reino de Deus para sempre, pobre homem
- murmurara ele tristemente, pois admirara o táicum como um
gênio militar e político.
-- E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta?
- disse a Senhora Ochiba.
- O quê? -- Ele não tinha certeza de ter ouvido corretamente, indignado com a inesperada malevolência sibilante dela.
Conhecia a Senhora Ochiba há quase doze anos, desde os quinze
anos dela, quando o táicum a tomara por consorte, e ela sempre
344
fora dócil, subserviente, mal e mal dizia uma palavra, sempre sorrindo docemente e feliz. Mas agora...
- Eu disse: "E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta?"
- Que Deus a perdoe! Seu amo morreu apenas há alguns
segundos...
- O senhor meu amo morreu, portanto a sua influência
sobre ele morreu. Neh? Ele o quis aqui, muito bem, era um direito dele. Mas agora ele se encontra no Grande Vazio e não
comanda mais. Agora comando eu. Padre, você cheira mal, sempre cheirou, e a sua sujeira polui o ar. Agora suma do meu castelo
e deixe-nos com a nossa dor!
A luz das velas adejou-lhe pelo rosto. Era uma das mais
belas mulheres do país. Involuntariamente ele fez o sinal-da-cruz.
A risada que ouviu era de aço. - Vá embora, padre, e não
volte nunca. Seus dias estão contados!
- Não mais do que os seus. Estou nas mãos de Deus, senhora. É melhor que de ouvidos a ele, a salvação eterna pode ser
sua se acreditar.
- Hem? Você está nas mãos de Deus? O Deus cristão, neh?
Talvez esteja. Talvez não. O que vai fazer, padre, se, quando morrer, descobrir que não há Deus algum, que não há inferno e que
a sua salvação eterna é apenas um sonho dentro de outro sonho?
- Eu acredito! Eu acredito em Deus, na ressurreição e no
Espírito Santo! - dissera ele. - As promessas cristãs são verdadeiras. São verdadeiras... eu acredito!
- Nan ja, Tsukku-san?
Por um instante só ouviu o japonês e não tinha significado
algum para ele.
Toranaga estava em pé na soleira da porta, rodeado por seus
guardas. O Padre Alvito curvou-se, recobrando-se, com suor nas
costas e no rosto. - Sinto muito por ter vindo sem ser convidado.
Eu... eu estava apenas sonhando acordado. Lembrava-me de que
tive a boa fortuna de testemunhar tantas coisas aqui no Japão.
Parece que vivi toda a minha vida aqui e em nenhum outro lugar.
- Quem lucrou com isso fomos nós, Tsukku-san.
Toranaga caminhou cansadamente para o estrado e sentou-se
sobre a almofada simples. Em silêncio, os guardas se dispuseram
numa tela protetora.
- O senhor chegou aqui no terceiro ano do Tensho, não foi?
- Não, senhor, foi no quarto. O ano do Rato - respondeu
ele, usando o calendário deles, que levara meses para compreen345

der. Todos os anos eram contados a partir de um ano em particular, escolhido pelo imperador reinante. Uma catástrofe ou uma
dádiva divina podiam encerrar uma era ou dar início a outra, conforme o capricho do imperador. Os sábios recebiam a ordem de
selecionar um nome de presságio particularmente bom nos antigos
livros da China para a nova era que podia durar um ou cinqüenta
anos. "Tensho" significava "justiça celeste". O ano anterior fora o
do Grande Macaréu, quando duzentas mil pessoas morreram. E
cada ano recebia um número, assim como um nome - seguindo a
mesma sucessão de nomes das horas do dia: Lebre, Dragão, Cobra, Cavalo, Bode, Macaco, Galo, Cão, Javali, Rato, Raposa e
Tigre. O primeiro ano do Tensho caíra no ano do Galo, de onde
se seguia que 1576 era o ano do Rato no quarto ano do Tensho.
- Muita coisa aconteceu nestes vinte e quatro anos, neh,
amigo velho?
- Sim, senhor.
- Sim. A ascensão de Goroda e a sua morte. A ascensão
do táicum e a sua morte. E agora? - As palavras ricocheteavam
nas paredes.
- Isso está nas mãos do Infinito. - Alvito usou uma palavra que podia significar Deus, mas também podia significar Buda.
- Nem o Senhor Goroda nem o senhor táicum acreditavam
em quaisquer deuses, ou em qualquer Infinito.
- O Senhor Buda não disse que há muitos caminhos para o
nirvana, senhor?
- Ah, Tsukku-san, você é um homem sábio. Como pode
alguém tão jovem ser tão sábio?
- Sinceramente gostaria de sê-lo, senhor. Então poderia ser
de mais valia.
O senhor queria me ver?
- Sim. Julguei importante o bastante para
vidado.
Alvito pegou os portulanos de Blackthorne e colocou-os no
chão, diante do outro, dando a explicação que Dell'Aqua sugerira. Viu o rosto de Toranaga se endurecer e ficou contente
com isso.
- Prova da pirataria dele?
- Sim, senhor. Os portulanos contêm até as palavras exatas
das ordens que receberam, que incluem: "se necessário, desembarcar à força e reivindicar qualquer território atingido ou descoberto". Se o senhor quiser, posso fazer uma tradução exata de
todas as passagens pertinentes.
346
- Faça uma tradução de tudo. Rapidamente - disse Toranaga.
- Há mais uma coisa que o padre-lnspetor achou que o
senhor devia saber. - Alvito contou a Toranaga tudo sobre os
mapas e relatórios e o Navio Negro conforme fora combinado,
e ficou encantado ao ver a reação de satisfação.
-- Excelente - disse Toranaga. - Tem certeza de que o
Navio Negro chegará mais cedo? Absoluta certeza?
- Sim - respondeu Alvito com firmeza. Ó Deus, deixe que
aconteça conforme esperamos!
- Bom. Diga ao seu suserano que estou ansioso por ler os
relatórios dele. Imagino que ele levará alguns meses obtendo os
fatos corretos?
- Ele disse que prepararia os relatórios o mais depressa
possível. Vamos lhe enviar os mapas como o senhor deseja. Seria
possível que o capitão-mor tivesse suas autorizações logo? Isso
ajudaria enormemente, se é para o Navio Negro chegar mais cedo,
Senhor Toranaga.
- O senhor garante que o navio chegará antes?
- Nenhum homem pode garantir o vento, a tempestade e
o mar. Mas o navio partirá de Macau mais cedo do que o previsto.
- O senhor as terá antes do pôr-do-sol. Há mais alguma
coisa? Não estarei disponível por três dias, até depois da conclusão
da reunião dos regentes.
- Não, senhor. Obrigado. Rezo para que o Infinito o conserve em segurança, como sempre. - Alvito curvou-se e esperou
ser dispensado, mas em vez disso foram os guardas que Toranaga
dispensou.
Era a primeira vez que Alvito via um daimio desacompanhado.
- Venha sentar-se aqui, Tsukku-san - Toranaga apontou
para o seu lado, sobre o estrado.
Alvito nunca fora convidado para o estrado antes. Isto é um
voto de confiança - ou uma sentença?
- A guerra se aproxima - disse Toranaga.
- Sim - respondeu ele, e pensou: esta guerra não vai terminar nunca.
- Os senhores cristãos, Onoshi e Kiyama, estranhamente se
opõem aos meus desejos.
- Não posso responder por nenhum daimio, senhor.
vir
sem
ser
con347

- Há maus rumores, neh? Sobre eles e sobre outros daimios
cristãos.
- Homens sábios terão sempre os interesses do império no
coração.
- Sim. Mas enquanto isso, contra a minha vontade, o império está se dividindo em dois campos. O meu e o de Ishido.
Portanto todos os interesses do império se encontram num lado
ou noutro. Não há posição intermediária. Onde se situam os interesses dos cristãos?
- Do lado da paz. O cristianismo é uma religião, senhor,
não uma ideologia política.
- O seu Padre Gigante é o cabeça da sua Igreja aqui. Ouvi
dizer que vocês.., que vocês podem falar em nome do papa.
- Estamos proibidos de nos envolver na sua política, senhor.
- Acha que Ishido vai favorecê-los? - A voz de Toranaga
tornou-se mais dura. - Ele é totalmente contra a sua religião.
Eu sempre lhes demonstrei o meu favor. Ishido quer pôr em execução os editos de expulsão do táicum imediatamente e fechar
totalmente o país a todos os bárbaros. Eu quero um comércio em
expansão.
- Nós não controlamos nenhum dos daimios cristãos.
- Como os influencio, então?
- Não sei o suficiente para tentar aconselhá-lo.
- Sabe o bastante, amigo velho, para compreender que se
Kiyama e Onoshi se erguem contra mim, ao lado de Ishido e o
resto da canalha, todos os outros daimios cristãos logo os seguirão, e então serão vinte homens a se erguer contra cada um dos
meus.
- Se a guerra vier, rezarei para que o senhor vença.
- Precisarei de mais do que de orações se vinte homens se
opuserem a cada um dos meus.
- Não há um meio de evitar a guerra? Uma vez começada,
ela nunca terminará.
- Também acredito nisso. Então todos perderão - nós, os
bárbaros, e a Igreja cristã. Mas se todos os daimios cristãos se
pusessem do meu lado agora - abertamente -, não haveria
guerra. As ambições de Ishido estariam permanentemente refreadas. Ainda que erguesse sua bandeira e se revoltasse, os regentes
poderiam aniquilá-lo como um verme de arroz.
Alvito sentiu o laço apertar-se em torno do pescoço. - Estamos aqui apenas para difundir a palavra de Deus. Não para
interferir na sua política, senhor.
348
- O seu líder anterior ofereceu os serviços dos daimios cristãos de Kyushu ao táicum antes que tivéssemos dominado aquela
parte do império.
- Ele errou fazendo isso. Não tinha autorização da Igreja
nem dos próprios daimios.
- Ofereceu navios ao táicum, navios portugueses para transportar nossas tropas para Kyushu, ofereceu soldados portugueses
com armas para nos ajudar. Mesmo contra a Coréia e contra a
China.
- Novamente, senhor, ele o fez incorretamente, sem a autorização de ninguém.
- Logo todos terão que tomar posição, Tsukku-san. Sim.
Muito em breve.
Alvito sentiu a ameaça fisicamente. - Estou sempre pronto
para servi-lo.
- Se eu perder, voce morrerá comigo? Cometerá jenshi.. .
seguir-me-á, ou virá comigo para a morte, como um partidário
leal?
- Minha vida está nas mãos de Deus. Assim como a minha
morte.
- Ah, sim. O seu Deus cristão! - Toranaga moveu as
espadas ligeiramente. Depois inclinou-se para a frente. - Onoshi
e Kiyama comprometidos comigo, dentro de quarenta dias, e o
conselho de regentes revoga os editos do táicum.
Até onde me atrevo a ir? perguntou-se Alvito, desamparado. Até onde? - Não podemos influenciá-los do modo como
o senhor crê.
- Talvez o seu líder devesse ordenar-lhes. Ordenar-lhes!
Ishido trairá a vocês e a eles. Conheço-o pelo que é. O mesmo
fará a Senhora Ochiba. Ela já não está influenciando o herdeiro
contra vocês?
Sim, queria gritar Alvito. Mas Onoshi e Kiyama já obtiveram
secretamente o juramento de Ishido, por escrito, de deixá-los designar os preceptores do herdeiro, um dos quais será cristão. E
Onoshi e Kiyama fizeram um juramento sagrado de que estão
convencidos de que você trairá a Igreja, assim que tiver eliminado
Ishido. - O padre-lnspetor não pode lhes dar ordens, senhor.
Seria uma interferência imperdoável na sua política.
- Onoshi e Kiyama em quarenta dias, os editos do táicum
revogados, e nada de padres imundos mais. Os regentes os proibirão de vir ao Japão.
- O quê?
349

- Vocês e os seus padres, apenas. Nenhum dos outros, os
Roupas Pretas fedorentos, pedintes, os peludos descalços! Aqueles
que berram ameaças estúpidas e não fazem senão criar problemas.
Eles. Vocês podem ter a cabeça de todos se quiserem. .. dos que
estão aqui.
Todo o ser de Alvito gritava por cautela. Toranaga nunca
fora tão aberto. Um escorregão e você o ofenderá e o fará inimigo da Igreja para sempre.
Pense no que Toranaga está oferecendo! Exclusividade no
império todo!
A única coisa que garantiria a pureza da Igreja e sua segurança enquanto crescesse forte. A única coisa de preço inestimável. A única coisa que ninguém pode oferecer - nem o papa!
Ninguém - exceto Toranaga. Com Kiyama e Onoshi a apoiá-lo
abertamente, Toranaga poderia esmagar Ishido e dominar o conselho.
O Padre Alvito nunca teria acreditado que Toranaga seria
tão abrupto. Ou oferecesse tanto. Onoshi e Kiyama poderiam ser
convencidos a voltar atrás? Aqueles dois se odiavam mutuamente.
Por razões que apenas eles conheciam, haviam-se unido para se
opor a Toranaga. Por quê? O que os faria trair Ishido?
- Não sou qualificado para responder-lhe, senhor, ou para
falar sobre um assunto assim, neh? Só posso dizer-lhe que nosso
único objetivo é salvar almas.
- Ouvi dizer que meu filho Naga está interessado na sua fé
cristã.
Toranaga está ameaçando ou oferecendo? perguntou-se
Alvito. Está oferecendo a permissão para Naga aceitar a fé -
que cartada gigantesca não seria! - ou está dizendo: "A menos
que vocês cooperem, eu lhe ordenarei que pare"? - O senhor seu
filho é um dos muitos nobres que têm a mente aberta sobre religião, senhor.
Subitamente Alvito entendeu a enormidadé do dilema que
Toranaga estava encarando. Ele está encurralado - tem que fazer
um acordo conosco, pensou o padre exultante. Tem que tentar!
Tem que nos dar o que quisermos - se nós quisermos fazer um
acordo com ele. Finalmente ele admite abertamente que os daimios cristãos detêm o equilíbrio do poder! O que quisermos! O
que mais poderíamos ter? Nada, em absoluto. Exceto.. .
Deliberadamente ele baixou os olhos para os portulanos que
abrira diante de Toranaga. Viu a mão dele estender-se e pôr os
portulanos em segurança na manga do quimono.
350
Ah, sim, Tsukku-san - disse Toranaga, sua voz melancólica e exausta. - Depois há os novos bárbaros, os piratas. O
inimigo do seu país. Logo estarão chegando aqui aos magotes,
não? Podem ser desencorajados... ou encorajados. Como este
pirata isolado. Neh?
O Padre Alvito sabia que agora tinham tudo. Devo pedir a
cabeça de Blackthorne numa bandeja de prata como a cabeça de
São João Batista, para selar o negócio? Devo pedir permissão para
construir uma catedral em Yedo, ou uma dentro dos muros do
Castelo de Osaka? Pela primeira vez na vida o padre se sentiu à
deriva, desorientado, diante do limiar do poder.
Não queremos mais do que é oferecido! Gostaria de poder
firmar o negócio agora! Se dependesse apenas de mim, eu arriscaria. Conheço Toranaga e arriscaria. Eu concordaria e faria um
juramento sagrado. Sim, eu excomungaria Onoshi e Kiyama se
eles não concordassem, para ganhar essas concessões para a Madre Igreja. Duas almas por dezenas de milhares, por centenas de
milhares, por milhões. É justo! Eu diria sim, sim, sim, pela glória
de Deus. Mas não posso firmar nada, como você bem sabe. Sou
apenas um mensageiro, e parte da minha mensagem.
. .
- Preciso de ajuda, Tsukku-san. Preciso e agora.
- Tudo o que puder fazer, eu farei, Toranaga-sarna. O senhor tem a minha promessa.
Então Toranaga disse com determinação: - Esperarei quarenta dias. Sim. Quarenta dias.
Alvito curvou-se. Notou que Toranaga retribuiu a reverência
mais profunda e formalmente do que jamais fizera antes, quase
como se estivesse se curvando para o próprio táicum. O padre
levantou-se, trêmulo. Saiu da sala, seguindo pelo corredor. Seu
passo acelerou-se. Começou a correr.
Toranaga observou o jesuíta pela seteira enquanto ele cruzava o jardim lá embaixo. A shoji abriu-se, mas ele expulsou os
guardas com rudeza e ordenou-lhes, sob pena de morte, que o
deixassem sozinho. Seus olhos seguiram Alvito atentamente, através do portão fortificado, no adro, até o padre se perder no labirinto de muros e fortificações. Então, no silêncio solitário, Toranaga começou a sorrir. Arregaçou o quimono e começou a dançar.
Uma hornpipe.
351

CAPÍTULO 21
Pouco depois do crepúsculo, Kiri desceu nervosamente as
escadas, seguida de duas criadas. Dirigiu-se para a sua liteira com
cortinas, parada ao lado da cabana no jardim. Um volumoso
manto cobria-lhe o quimono de viagem e fazia-a parecer ainda
mais corpulenta. Usava um vasto chapéu de aba larga amarrado
sob os maxilares.
A Senhora Sazuko esperava pacientemente por ela na varanda, pesadamente grávida, com Mariko ao lado. Blackthorne estava
encostado ao muro perto do portão fortificado. Usava um quimono acinturado dos marrons, meias tabi e tamancos militares. No
adro, fora do portão, a escolta de sessenta samurais pesadamente
armados estava disposta em fileiras, cada terceiro homem portando um archote. A frente desses soldados, Yabu conversava com
Buntaro - o marido de Mariko -, um homem pequeno, atarracado, quase sem pescoço. Ambos vestiam cotas de malhas, com
arcos e aljavas aos ombros, e Buntaro usava um elmo de guerra,
de aço, em forma de chifre. Carregadores e kagas acocoravam-se
pacientes, num silêncio bem disciplinado, perto da volumosa bagagem.
A promessa do verão soprava na brisa ligeira, mas ninguém
notou isso exceto Blackthorne, e até ele estava consciente da tensão que os rodeava a todos. Também estava intensamente consciente de que apenas ele estava desarmado.
Kiri caminhou lenta e penosamente para a varanda. - Não
devia estar esperando ao frio, Sazuko-san. Vai apanhar um resfriado! Deve pensar na criança agora. Estas noites de primavera
ainda estão cheias de umidade.
- Não estou com frio, Kiri-san. Está fazendo uma noite
adorável.
- Está tudo em ordem?
- Oh, sim, tudo perfeito.
- Gostaria de que não estivéssemos partindo. Sim. Odeio
partir.
- Não há por que se preocupar - disse Mariko, tranquilizadora, juntando-se a elas. Usava um chapéu de aba larga semelhante, mas o seu era brilhante onde o de Kiri era escuro. - Você
vai apreciar muito estar de volta a Yedo. Nosso amo seguirá dentro de poucos dias.
- Quem sabe o que o amanhã trará, Mariko-san?
352
- O amanhã está nas mãos de Deus.
- Amanhã será um dia adorável, se não for, não será! -
disse Sazuko. - Quem se preocupa com o amanhã? O agora é
bom. As senhoras são lindas e vamos todos sentir a sua falta,
Kiri-san, e a sua, Mariko-san! - Ela olhou para o portão, distraída pelo grito encolerizado de Buntaro com um dos samurais,
que havia deixado cair um archote. Yabu, mais velho do que Buntaro, estava nominalmente no comando do destacamento. Vira
Kiri chegar e, empertigado, cruzou o portão de volta. Buntaro o
seguiu.
- Oh, Senhor Yabu... Senhor Buntaro - disse Kiri, com
uma mesura nervosa. - Sinto muito tê-los feito esperar. O Senhor
Toranaga ia descer mas acabou resolvendo o contrário. Devem
partir agora, disse ele. Por favor, aceitem minhas desculpas.
- Não há necessidade de desculpas. - Yabu queria se
ver longe do castelo o mais breve possível, longe de Osaka e de
volta a Izu. Ainda mal podia acreditar que estava partindo com a
cabeça no lugar, com as armas, com tudo. Enviara mensagens
urgentes por pombo-correio à esposa em Yedo, para se certificar
de que estaria tudo preparado em Mishima, sua capital, e a Omi,
na aldeia de Anjiro. - Estão prontas?
Lágrimas brilharam nos olhos de Kiri. - Deixe-me apenas
recuperar o fôlego e entrarei na liteira. Oh, como gostaria de não
ter que partir! - Olhou em torno, procurando Blackthorne, e
finalmente deu com os olhos nele, na escuridão. - Quem é responsável pelo Anjin-san? Até que cheguemos ao navio?
Buntaro disse com impaciência: - Ordenei-lhe que caminhasse ao lado da liteira de minha esposa. Se ela não conseguir
controlá-lo, eu o farei.
- Talvez, Senhor Yabu, o senhor devesse escoltar a Senhora
Sazuko...
- Guardas!
O grito de advertência viera do adro. Buntaro e Yabu acorreram para o portan fortificado, com todos os homens atrás deles
e outros precipitando-se das fortificaçôes internas.
Ishido se aproximava pela avenida entre os muros do castelo,
à frente de duzentos cinzentos. Parou no adro, do lado de fora
do portão, e, embora nenhum homem parecesse hostil em
nenhum dos lados e nenhum tivesse a mão sobre a espada ou uma
seta no arco, puseram-se todos de prontidão.
Ishido fez uma elaborada reverência. - Uma noite excelente,
Senhor Yabu.
353

- Sim, sim, deveras.
Ishido fez um mecânico gesto de cabeça a Buntaro, que foi
igualmente gélido, retribuindo com a mínima polidez permissível.
Ambos tinham sido generais favoritos do táicum. Buntaro comandara um dos regimentos na Coréia quando Ishido estivera 'no
comando supremo. Um acusara o outro de traição. Apenas a intervenção pessoal e uma ordem direta do táicum haviam impedido a carnificina e uma vendetta.
Ishido examinou os marrons. Depois seus olhos descobriram
Blackthorne. Viu o homem fazer-lhe uma meia mesura. Através
do portão pôde ver as três mulheres e a outra liteira. Seus olhos
pousaram em Yabu novamente. - Poder-se-la pensar que estão
todos indo para uma batalha, Yabu-san, ao invés de se tratar
apenas de uma escolta cerimonial para a Senhora Kiritsubo.
- Hiro-matsu-san expediu ordens, por causa dos assassinos
Amida...
Yabu parou quando Buntaro avançou belicosamente e plantou suas pernas imensas no meio da soleira. - Estamos sempre
prontos para a batalha. Com ou sem armadura. Cada um dos
nossos homens enfrenta dez, e cinqüenta dos comedores de alho.
Nunca damos as costas e corremos como covardes remelentos,
abandonando nossos companheiros para serem esmagados!
O sorriso de Ishido veio cheio de desprezo, a voz uma ferroada. - Oh? Talvez o senhor tenha uma oportunidade dentro
em breve... de erguer-se entre homens autênticos, não entre
comedores de alho!
- "Dentro em breve" é quanto tempo? Por que não aqui?
Yabu colocou-se cuidadosamente entre eles. Também estivera na Coréia e sabia que havia verdade em ambos os lados e
que nenhum dos dois merecia confiança, Buntaro menos que
Ishido. - Não esta noite porque estamos entre amigos, Buntarosan - disse apaziguador, desejando desesperadamente evitar um
conflito que os encerraria para sempre dentró do castelo. -
Estamos entre amigos, Buntaro-san.
- Que amigos? Conheço os amigos... e conheço os inimigos! - Buntaro voltou-se para Ishido num repelão. - Onde
está esse homem autentico. .. esse homem autêntico de que o
senhor falou, Ishido-san? Hem? Ou homens? Deixe-o... deixe-os
todos rastejar para fora de suas tocas e erguer-se na minha
frente, eu, Toda Buntaro, senhor de Sakura, se algum deles tem
sangue!
Todos se prepararam.
354
Ishido encarava-o malevolamente.
- Não é o momento, Buntaro-san - disse Yabu. - Amigos ou inim.. .
- Amigos? Onde? Nesse monte de esterco? - Buntaro
cuspiu no pó.
A mão de um dos cinzentos voou para o punho da espada,
dez marrons o imitaram, cinqüenta cinzentos uma fração de segundo depois, todos à espera de que Ishido desse voz de ataque.
Então Hiro-matsu surgiu das sombras do jardim e atravessou
o portão para o adro, a espada mortífera frouxa nas mãos e meio
para fora da bainha.
- As vezes podem-se encontrar amigos no esterco, meu
filho - disse calmamente. As mãos se relaxaram sobre o punho
das espadas. Samurais nas ameias opostas - cinzentos e marrons
- afrouxaram a tensão dos arcos armados de setas. - Temos
amigos por todo o castelo. Por toda Osaka. Sim. Nosso Senhor
Toranaga está sempre nos dizendo isso. - Erguia-se como uma
rocha diante de seu único filho vivo, vendo o sangue luzir-lhe
nos olhos. No momento em que Ishido fora visto se aproximando,
Hiro-matsu tomara posição de combate no desvão interno do
portão. Depois, quando o primeiro perigo passara, movera-se com
silêncio felino para as sombras. Cravou o olhar nos olhos de
Buntaro. - Não é assim, meu filho?
Com um esforço enorme, Buntaro assentiu e recuou um
passo. Mas continuou bloqueando o caminho para o jardim.
Hiro-matsu voltou a atenção para Ishido: - Não o esperávamos esta noite, Ishido-san.
- Vim prestar minhas homenagens à Senhora Kiritsubo.
Só fui informado há poucos momentos de que alguém ia partir.
- Será que meu filho tem razão? Deveríamos nos preocupar
por não estarmos entre amigos? Somos reféns que devem implorar favores?
- Não. Mas o Senhor Toranaga e eu combinamos quanto
ao protocolo durante a sua visita. A notícia da chegada ou partida
de altas personalidades devia ser dada com um dia de antecedência, para que eu pudesse apresentar meus respeitos de modo adequado.
- Foi uma decisão repentina do Senhor Toranaga. Não considerou a questão de mandar uma de suas damas de volta a Yedo
importante o bastante para perturbá-lo - disse Hiro-matsu. -
Sim, o Senhor Toranaga está meramente se preparando para a
sua própria partida.
355

- Isso já foi decidido?
- Sim. Partirá no dia em que se encerrar a reunião dos
regentes. O senhor será informado no momento correto, conforme
o protocolo.
- Ótimo. Claro que a reunião pode ser novamente adiada.
O Senhor Kiyama piorou, aliás.
- Foi adiada? Ou não?
- Simplesmente mencionei que poderia ser. Esperamos ter
o prazer da presença do Senhor Toranaga por um longo tempo
ainda, neh? Ele caçará comigo amanhã?
- Solicitei-lhe que cancelasse todas as caçadas até a reunião.
Não considero seguro. Já nao considero nenhum setor desta área
seguro. Se assassinos imundos podem passar pelas suas sentinelas
com tanta facilidade, a traição fora dos muros não seria muito
mais fácil?
Ishido deixou passar o insulto. Sabia que isso e as afrontas
inflamariam seus homens ainda mais, mas ainda não lhe convinha acender o estopim. Ficara contente por Hiro-matsu ter intercedido, pois quase perdera o controle. O pensamento da cabeça
de Buntaro no p6, com os dentes batendo, o invadira voraz.
- Todos os comandantes daquela noite já foram mandados
para o Grande Vazio, como o senhor bem sabe. Os Amida serão
destruídos dentro de muito breve. Os regentes serão solicitados a
tratar deles de uma vez por todas. Agora talvez eu possa prestar
minhas homenagens a Kiritsubo-san.
Ishido avançou. Sua guarda pessoal de cinzentos o seguiu.
Mas todos estacaram com um estremecimento. Buntaro tinha uma
seta no arco e, embora a seta estivesse apontada para o chão, o
arco já estava vergado ao máximo. - Os cinzentos estão proibidos de atravessar este portão. Isso foi combinado pelo protocolo.
- Sou o governador do Castelo de Osaka e comandante da
guarda do herdeiro! Tenho o direito de ir a qualquer lugar!
Mais uma vez Hiro-matsu tomou o controle da situação. -
Realmente, o senhor é o comandante da guarda do herdeiro e
tem o direito de ir a qualquer lugar. Mas apenas cinco homens
podem acompanhá-lo através deste portão. Não foi isso o combinado entre o senhor e meu amo enquanto ele estiver aqui?
- Cinco ou cinqüenta, não faz diferença! Esse insulto é
int
- Insulto? Meu filho não teve a intenção de ofender. Está
obedecendo a ordens combinadas pelo senhor e pelo suserano
dele. Cinco homens. Cinco! - A palavra era uma ordem. Hiro356
matsu voltou as costas a Ishido e olhou para o filho. - O Senhor
Ishido nos honra querendo prestar suas homenagens à Senhora
Kiritsubo.
A espada do velho estava duas polegadas fora da bainha e
ninguém tinha certeza se era para saltar sobre Ishido se a luta
começasse ou decepar a cabeça do filho dele, se este apontasse
a seta. Todos sabiam que não havia afeição entre pai e filho,
apenas um respeito mútuo pela violência do outro. - Bem, meu
filho, o que diz ao comandante da guarda do herdeiro?
O suor escorria pelo rosto de Buntaro. Após um momento,
afastou-se para o lado e diminuiu a tensão do arco. Mas conservou a seta assestada. Ishido vira muitas vezes Buntaro em listas
de competição de tiro ao alvo a duzentos passos, seis setas disparadas antes que a primeira atingisse o alvo, todas igualmente
precisas. Teria com toda a satisfação ordenado o ataque agora e
esmagado aqueles dois, o pai e o filho, e todo o resto. Mas sabia
que seria gesto de um tolo começar com eles e não com Toranaga,
e, em todo caso, talvez quando começasse a verdadeira guerra,
Hiro-matsu se sentisse tentado a abandonar Toranaga e a lutar com
ele. A Senhora Ochiba dissera que abordaria o velho Punho de Aço
quando chegasse o momento. Ela jurara que ele nunca desertaria
o herdeiro, que uniria Punho de Aço a ela, afastando-o de Toranaga, talvez até conseguindo que ele assassinasse o amo e assim
evitasse qualquer conflito. Que poder, que segredo, que conhecimento tem ela sobre ele? perguntou-se Ishido mais uma vez.
Ele ordenara que a Senhora Ochiba, se possível, saísse em segredo
de Yedo, antes da reunião dos regentes. A vida dela não valeria
um grão de arroz após o impedimento de Toranaga - com que
todos os outros regentes haviam concordado. Impedimento e
seppuku imediato, forçado se necessário. Se ela escapar, ótimo. Se
não escapar, pouco importa. O herdeiro reinará dentro de oito
anos.
Atravessou o portão a passos largos, rumo ao jardim. Hiromatsu e Yabu acompanharam-no. Cinco guardas o seguiram. Curvou-se polidamente e desejou boa viagem a Kiritsubo. Depois,
satisfeito por tudo estar como devia, voltou-se e partiu com todos
os seus homens.
Hiro-matsu respirou de alívio e coçou a barba. - É melhor
partir agora, Yabu-san. Aquele verme de arroz não lhe causará
mais problemas.
- Sim. Imediatamente.
Kiri passou o lenço sobre o suor da testa. - Ele é um mau
357
kami! Tenho medo pelo nosso amo. - As lágrimas começaram
a fluir. - Não quero partir!
- Não se fará nenhum dano ao Senhor Toranaga, prometo.
lhe, senhora - disse Hiro-matsu. - A senhora deve partir,
Agora!
Kiri tentou sufocar os soluços e desatou o espesso véu glle
pendia da aba do seu vasto chapéu. - Oh, Yabu-sarna, o senhor
escoltaria a Senhora Sazuko para dentro? Por favor?
- E claro.
A Senhora Sazuko curvou-se e saiu às carreiras, seguida de
Yabu. A garota subiu correndo os degraus. Ao se aproximar do
topo da escada, escorregou e caiu.
- O bebé! - guinchou Kiri. - Ela se machucou?
Todos os olhos faiscaram na direção da garota prostrada.
Mariko correu até ela mas Yabu alcançou-a primeiro. Ergueu-a
do chão. Sazuko estava mais assustada do que ferida. - Estou
bem - disse, um pouco ofegante. - Não se preocupem. Estou
perfeitamente bem. Foi tolice minha.
Quando se certificou de que ela dizia a verdade, Yabu
voltou ao adro, preparando a partida imediata.
Mariko retornou ao portão, enormemente aliviada. Blackthorne olhava boquiaberto para o jardim.
- O que e? - perguntou ela.
- Nada - disse ele após uma pausa. - O que foi que a
Senhora Kiritsubo gritou?
- "O bebê! Ela se machucou?" A Senhora Sazuko está
grávida explicou Mariko. - Ficamos todos com medo de que
a queda pudesse tê-la ferido.
- Grávida de Toranaga-sarna?
- Sim - disse Mariko, olhando para a liteira atrás.
Kiri estava por trás das cortinas opacas agora, o véu solto
sobre o rosto. Pobre mulher, pensou Mariko, sabendo que ela
estava apenas tentando esconder as lágrimas. Eu, se fosse ela, estaria igualmente aterrorizada por deixar o meu senhor.
Seus olhos dirigiram-se para Sazuko, que acenou mais uma
vez do alto da escada, depois entrou. A porta de ferro fechou-se
clangorosa atrás dela. Soou como um dobre de morte, pensou
Mariko. Será que os veremos de novo algum dia?
- O que Ishido queria? - perguntou Blackthorne.
- Estava... não sei a palavra correta... estava investigando... fazendo uma ronda de inspeção sem prevenir.
- Por quê?
- Ele é o comandante do castelo - disse ela, não querendo
dizer a verdadeira razão.
Yabu gritou algumas ordens à frente da coluna e se pôs em
marcha. Mariko entrou na sua liteira deixando as cortinas parcialmente abertas. Buntaro fez sinal a Blackthorne que se movesse ao
lado dela.
Ele obedeceu.
Esperaram que a liteira de Kiri passasse. Blackthorne olhou
bxamente para a figura indistinta, toda velada, ouvindo soluços
abafados. As duas atemorizadas criadas, Asa e Sono, caminhavam
ao lado da liteira. Então ele olhou para trás uma última vez. Hiromatsu estava em pé junto da pequena cabana, sozinho, apoiado
na espada. Logo em seguida o jardim sumiu da sua vista quando
os samurais fecharam a imensa porta fortificada. A grande trave
de madeira foi colocada no lugar. Não havia guardas no adro
agora. Estavam todos nas ameias.
- O que está acontecendo? - perguntou Blackthorne.
- Por favor, Anjin-san?
- É como se eles estivessem sob cerco. Os marrons contra
os cinzentos. Estão esperando problemas? Mais problemas?
- Oh, sinto muito. É normal fechar as portas à noite -
disse Mariko.
Ele começou a caminhar ao lado dela quando a liteira se
pôs em movimento, Buntaro e o remanescente da retaguarda tomando posição atrás dele. Blackthorne observava a liteira à frente,
o passo oscilante dos carregadores e o vulto nebuloso por trás das
cortinas. Estava muito inquieto embora tentasse ocultá-lo. Quando
Kiritsubo de repente gritara, ele olhara para ela imediatamente.
Todos os demais olharam para a garota caída na escada. O impulso
dele foi olhar para lá igualmente, mas viu Kiritsubo de repente
correr com surpreendente velocidade para dentro da pequena
cabana. Por um instante pensou que seus olhos lhe estivessem
pregando uma peça, porque na noite o manto e o quimono escuros
dela, o chapéu escuro e o véu escuro tornavam-na quase invisível.
Viu quando a figura desapareceu um momento, depois reapareceu,
arremessou-se para dentro da liteira e cerrou as cortinas com um
puxão. Por um instante os olhos dos dois se cruzaram. Era Toranaga.
358
359

CAPITULO 22
O pequeno cortejo que rodeava as duas liteiras seguiu lenta
mente através do labirinto do castelo e através dos sucessivo$
pontos de controle. De cada vez houve reverências formais,
documentos foram meticulosamente examinados, um novo capitão
e grupo de escolta cinzentos rendeu os que os acompanhavam, e
eles foram liberados. A cada parada Blackthorne observava com
apreensão sempre crescente o capitão da guarda se aproximar para
inspecionar as cortinas cerradas da liteira de Kiritsubo. A cada
vez o homem se curvava polidamente para a figura indistinta;
ouvindo os soluços abafados, e acenava-lhes que prosseguissem:
Quem mais sabe? perguntava-se Blackthorne desesperadamente. As criadas devem saber - isso explicaria por que estão
tão assustadas. Hiro-matsu com certeza sabia, e evidentemente a
Senhora Sazuko, do engodo. Mariko? Acho que não. Yabu? Toranaga confiaria nele? Esse maníaco sem pescoço do Buntaro? Provavelmente não.
Obviamente isto é uma tentativa de fuga altamente secreta.
Mas por que Toranaga arriscaria a vida fora do castelo? Lá dentro não estava mais seguro? Por que o sigilo? De quem está
fugindo? De Ishido? Dos assassinos? Ou de alguma outra pessoa
no castelo? Provavelmente de todos eles, pensou Blackthorne, desejando que estivessem a salvo na galera e ao mar. Se Toranaga
for descoberto, vai chover bosta. A luta vai ser de morte. Estou
desarmado e mesmo que tivesse um par de pistolas ou um morteiro de vinte polegadas e cem rapazes bons de briga, os cinzentos
nos arrasariam. Não tenho para onde fugir nem onde me esconder.
- Está se cansando, Anjin-san? - perguntou Mariko delicadamente. - Se quiser, eu caminho e o senhor sobe na liteira.
- Obrigado - replicou ele acidamente, sentindo falta das
botas, ainda desajeitado com as sandálias de correias. - Minhas
pernas estão excelentes. Só queria que estivéssemos a salvo no mar.
- O mar é sempre seguro?
- As vezes, senhora. Nem sempre. - Blackthorne mal a
ouvia. Estava pensando. Por Jesus, espero não entregar Toranaga.
Isso seria terrível! Seria tão mais simples se eu não o tivesse visto.
Foi apenas má sorte, um daqueles acidentes que podem pôr a
perder um esquema perfeitamente planejado e executado. A velha,
Kiritsubo, é uma excelente atriz, e a jovem também. Foi só porque
360
não compreendi o que ela gritou que não caí no logro. Puro azar
eu ter visto Toranaga claramente - de peruca, quimono, manto,
iuaquilado, exatamente como Kiritsubo, mas sempre Toranaga.
Na parada seguinte, o novo capitão de cinzentos aproximouse da liteira mais do que todos antes, as criadas em pranto curvando-se e erguendo-se no caminho, querendo não dar a impressão de estarem erguendo-se no caminho. O capitão olhou para
Blackthorne e se aproximou. Após um exame incrédulo, falou
com Mariko, que meneou a cabeça e respondeu-lhe. O homem
grunhiu e dirigiu-se de volta a Yabu; devolveu os documentos e
acenou ao cortejo que fosse em frente.
- Que foi que ele disse? - perguntou Blackthorne.
- Quis saber de onde o senhor era... onde era a sua casa.
- Mas a senhora balançou a cabeça. Como é que isso serviu
de resposta?
- Oh, desculpe, ele disse. .. ele perguntou se os ancestrais
remotos do seu povo tinham relação com o kami, o espirito, que
vive ao norte, nos confins da China. Até bem pouco tempo atrás,
pensávamos que a China fosse o único outro lugar civilizado na
Terra. Além do Japão, neh? A China é tão vasta que é como o
,próprio mundo - disse ela, e encerrou o assunto. O capitão na
realidade perguntara se ela pensava que aquele bárbaro descendia
de Harimwakairi, o kami que velava pelos gatos, acrescentando
que aquele certamente fedia como um tourão no cio, conforme se
supunha que o kami cheirasse.
Ela retrucara que não pensava assim, intimamente envergonhada pela rudeza do capitão, pois o Anjin-san não cheirava mal
como o Tsukku-san ou o padre-lnspetor, ou os bárbaros habituais.
Seu aroma era quase imperceptível agora.
Blackthorne sabia que ela não estava dizendo a verdade.
Como gostaria de saber falar a algaravia deles, pensou. E gostaria
ainda mais de poder sumir desta ilha maldita, estar de volta a
bordo do Erasmus, com a tripulação em ordem, muita comida,
grogue, pólvora e munição, nossas mercadorias comerciadas e
nós todos a caminho de casa. Quando será isso? Toranaga disse
que seria logo. Será que se pode confiar nele? Como terá levado
o navio a Yedo? Rebocado? Os portugueses o pilotaram? Gostaria
de saber como está Rodrigues. Será que sua perna apodreceu?
Nesta altura ele já deve saber se vai viver com as duas pernas ou
só com uma - se a amputação não o matar -, ou se vai morrer.
Jesus Deus do paraíso, proteja-me dos ferimentos e de todos os
médicos. E dos padres.
361

Outro posto de controle. Blackthorne não conseguia entender
como é que todos permaneciam tão polidos e pacientes, sempre se
curvando, entregando os documentos e recebendo-os de volta,
sempre sorrindo, sem nenhum sinal de irritação em ambas as
partes. São tão diferentes de nós.
Olhou para o rosto de Mariko, parcialmente obscurecido pelo
véu e o largo chapéu. Achou-a muito bonita e ficou contente por
ter esclarecido o engano dela. Pelo menos não terei que agüentar
mais aquele absurdo, disse a si mesmo. Bastardos esquisitos, são
todos bastardos. Nojentos!
Depois que lhe aceitara o pedido de desculpas naquela manhã, ele começara a .perguntar sobre Yedo, sobre costumes japoneses, sobre Ishido e sobre o castelo. Evitara o tópico "sexo". Ela
respondera pormenorizadamente, mas evitara quaisquer explicações políticas, e suas réplicas foram informativas mas inócuas.
Em seguida ela e as criadas deixaram a sala para se prepararem
para a partida e ele ficara sozinho com os guardas samurais.
Viver rodeado de gente o tempo todo estava deixando-o irritado. Há sempre alguém por perto, pensou ele. Há gente demais.
São como formigas. Gostaria da tranqüilidade de uma porta de
carvalho trancada para variar, com o ferrolho do meu lado, não
do deles. Mal posso esperar para me ver a bordo de novo, ao
ar livre, ao mar. Nem que seja naquela gorda galera sacolejante.
Agora, enquanto atravessava o Castela de Osaka, percebia
que teria Toranaga dentro do seu próprio elemento, no mar, onde
ele era rei.
Teremos bastante tempo para conversar. Mariko traduzirá
e eu arranjarei tudo. Acordos de comércio, o navio, a devolução
da nossa prata, e pagamento se ele quiser fazer negócio com os
mosquetes e a pólvora. Combinarei para voltar no próximo ano
com uma carga completa de seda. Terrível o que aconteceu com
Frei Domingo, mas farei bom uso das informações dele. Vou
pegar o Erasmus, navegar rio Pérola acima até Cantão, e romperei
o bloqueio dos portugueses e dos chineses. Devolvam-me o meu
navio e estou rico. Mais rico do que Drake! Quando chegar em
casa, convoco todos os marujos de Plymouth ao Zuider Zee e
controlaremos o comércio da Asia toda. Onde Drake chamuscou
a barba de Filipe eu vou lhe arrancar os testículos. Sem seda,
Macau morre, sem Macau, Malaca morre, depois Goa! Podemos
enrolar o império português como a um tapete. "Deseja o comércio com a India, Majestade? Africa? Asia? Japão? Eis como
consegui-lo dentro de cinco anos!"
362
"Levante-se, Sir John!"
Sim, estava ao seu alcance tornar-se cavaleiro, e facilmente
afinal. E talvez mais. Capitães e navegadores tornam-se almirantes, cavaleiros, lordes, até condes. O único caminho de um inglês
plebeu para a segurança, a verdadeira segurança de posição dentro
do reino, era através do favor da rainha. E o caminho para o seu
favor era levar-lhe riqueza, ajudá-la a pagar a guerra contra a
Espanha fedorenta, e contra aquele papa bastardo.
Três anos me darão três viagens, regozijava-se. Oh, sei dos
ventos, monções e das grandes tempestades, mas o Erasmus estará
cochado e transportaremos cargas menores. Espere um minuto!
Por que não fazer o serviço adequadamente e esquecer as pequenas cargas? Por que não capturar o Navio Negro deste ano?
Depois você terá tudo!
Como?
Facilmente: se ele não tiver escolta e nós o apanharmos desprevenido. Mas não tenho homens suficientes. Espere, há homens
em Nagasaki! Não é lá que estão todos os portugueses? Domingo não disse que é quase como um porto português? Rodrigues
disse o mesmo! Nos navios não há marujos que foram levados
à força para bordo, não há sempre alguns que estarão prontos a
escapar para conseguir lucro rápido, seja quem for o capitão e
qual for a bandeira? Com o Erasmus e a nossa prata eu poderia
contratar uma tripulação. Sei que poderia. Não preciso de três anos.
Dois serão suficientes. Dois anos com o meu navio e uma tripulação, depois para casa. Serei rico e famoso. E finalmente nos
separaremos, o mar e eu. Para sempre.
Toranaga é a chave. Como é que você vai lidar com ele?
Passaram por outro posto de controle e dobraram uma esquina. À frente estava o último rastrilho e o último portão do castelo;
além dele, a última ponte levadiça e o último fosso. Uma infinidade de archotes transformava a noite em dia carmesim.
Foi quando Ishido avançou das sombras.
Os marrons o viram quase simultaneamente. A hostilidade os
invadiu a todos. Buntaro quase saltou por cima de Blackthorne
para chegar mais perto da vanguarda da coluna.
- Esse bastardo está louco por uma luta - disse Blackthorne.
- Senhor? Desculpe, senhor, mas o que disse?
- Apenas... disse que seu marido parece... Ishido parece
deixar seu marido muito enfurecido, e muito rapidamente.
Ela não respondeu.
363

Yabu deteve a coluna. Despreocupado ele estendeu o salvoconduto ao capitão do portão e dirigiu-se a Ishido. - Não esperava vê-lo de novo. Seus guardas são muito eficientes.
- Obrigado. - Ishido observava Buntaro e a liteira fechada
atrás dele.
- Uma vez seria suficiente para examinar nosso passe -
disse Buntaro, as armas chocalhando agourentamente. - Duas
vezes, no máximo. O que somos nós? Uma expedição de guerra?
É insultante!
- Não há intenção de insulto, Buntaro-san. Por causa do
assassino, ordenei que se reforçasse a segurança. - Ishido olhou
Blackthorne rapidamente e se perguntou de novo se devia deixá-lo
partir ou detê-lo, como queriam Onoshi e Kiyama. Depois olhou
novamente para Buntaro. Lixo, pensou. Logo a sua cabeça estará
na ponta de um chuço. Como é que um primor como Mariko
pôde permanecer casada com um gorila como você?
O novo capitão verificou meticulosamente um por um, certificando-se de que batiam com a lista. - Está tudo em ordem,
Yabu-sarna - disse ele ao voltar à vanguarda da coluna. - Não
precisam mais do passe. Conservamo-lo aqui.
- Ótimo. - Yabu voltou-se para Ishido. - Logo nos
encontraremos.
Ishido tirou um rolo de pergaminho da manga. - Gostaria
de perguntar à Senhora Kiritsubo se ela levaria isto para Yedo.
Para a minha sobrinha. É pouco provável que eu vá a Yedo por
algum tempo.
- Certamente. - Yabu estendeu a mão.
- Não se incomode, Yabu-san. Eu mesmo perguntarei. -
Ishido dirigiu-se para a liteira.
As criadas obsequiosamente interceptaram-no. Asa estendeu
a mão. - Posso pegar a mensagem, senhor? Minha am.. .
- Não.
Para surpresa de Ishido e de todos os que estavam perto,
as criadas não lhe saíram do caminho.
- Mas minha am.. .
- Afastem-se! - rosnou Buntaro.
As duas recuaram com humildade, assustadas agora.
Ishido curvou-se para a cortina. - Kiritsubo-san, gostaria
de saber se a senhora teria a gentileza de levar esta mensagem
minha para Yedo. Para minha sobrinha.
Houve uma ligeira hesitação em meio aos soluços e a figura
curvou-se em assentimento.
364
- Obrigado. - Ishido estendeu o delgado rolo de pergaminho a uma polegada da cortina.
Os soluços pararam. Blackthorne percebeu que Toranaga estava encurralado. A polidez exigia que pegasse o rolo e sua mão
o trairia.
Todos esperavam que a mão aparecesse.
- Kiritsubo-san?
Ainda nenhum movimento. Então Ishido rapidamente deu
uma passo à frente, abriu as cortinas com um puxão e no mesmo
instante Blackthorne soltou um berro e começou a dançar, pulando como um louco. Ishido e os outros volveram-se rapidamente
para ele, aturdidos.
Por um instante Toranaga ficou totalmente à vista atrás de
Ishido.
Blackthorne pensou que Toranaga talvez pudesse passar por
Kiritsubo a vinte passos, mas aqui, a cinco, era impossível, apesar
do véu que lhe cobria o rosto. E no interminável segundo que
antecedeu o gesto de Toranaga cerrando as cortinas com força,
Blackthorne percebeu que Yabu o reconhecera, Mariko com certeza, Buntaro provavelmente, e alguns samurais também provavelmente. Ele deu um bote e agarrou o rolo de pergaminho, atirou-o
por uma fenda nas cortinas e voltou-se, falando de modo ininteligível: - É má sorte, no meu país, um príncipe entregar uma
mensagem pessoalmente, como um bastardo comum... má sorte...
Tudo acontecera tão inesperadamente e tão depressa, que a
espada de Ishido não deixou a bainha até Blackthorne estar ajoelhado e delirando diante dele como um insano boneco de mola,
quando os reflexos do regente agiram e arremessaram a espada
com ímpeto contra a garganta do inglês.
Os olhos desesperados de Blackthorne encontraram Mariko.
- Pelo amor de Cristo, ajude... má sorte... má sorte!
Ela gritou. A lâmina parou a um fio de cabelo do pescoço
dele. Mariko, aflita, deu uma explicação do que Blackthorne dissera. Ishido baixou a espada, ouviu um instante, arrasou-a com um
palavrório furioso, depois gritou com veemência crescente e esbofeteou Blackthorne com as costas da mão.
Blackthorne ficou fora dê si. Cerrou as manoplas e se atirou
contra Ishido.
Se Yabu não tivesse sido rápido o bastante para agarrar o
braço de Ishido que levantava a espada, a cabeça de Blackthorne
teria rolado sobre o pó. Buntaro, uma fração de segundo depois,
agarrou Blackthorne, que já estava com as mãos em torno do
365

pescoço de Ishido. Foram necessários quatro marrons para arrancá-lo de cima de Ishido, depois Buntaro atingiu-o na nuca, deixando-o atordoado. Alguns cinzentos acorreram em defesa do
amo, mas os marrons rodearam Blackthorne e a liteiras e por
um momento a situação se equilibrou, com Mariko e as criadas
deliberadamente gemendo e gritando, ajudando a criar mais caos
e a desviar as atenções.
Yabu começou a aplacar a fúria de Ishido, Mariko, em
lágrimas, repetia interminavelmente numa forçada semi-histeria
que o bárbaro enlouquecido acreditava estar apenas salvando
Ishido, o grande comandante - que ele pensou que fosse um
príncipe - de um mau karni. - E tocar-lhes o rosto é o pior dos
insultos, exatamente como conosco, foi isso o que o deixou momentaneamente louco. Ele é um bárbaro insensato, mas é um
daimio em sua terra, e só estava tentando ajudá-lo, senhor!
Ishido cobriu Blackthorne de imprecações e deu-lhe um pontapé. Blackthorne estava voltando a si e ouvia o tumulto com
grande tranqüilidade. Aos poucos seus olhos se desanuviaram.
Havia cinzentos à sua volta, vinte para um, espadas desembainhadas, mas por enquanto ninguém estava morto e todos esperavam
disciplinadamente.
Blackthorne viu que todas as atenções se concentravam nele.
Mas agora sabia que tinha aliados.
Ishido virou-se para ele de novo e chegou mais perto, gritando. Ele sentiu o aperto dos marrons se intensificar e soube
que o golpe estava vindo, mas desta vez, ao invés de tentar se
libertar, coisa que os samurais estavam esperando, começou a
se deixar cair, depois imediatamente a se endireitar e tombar
outra vez, rindo insanamente, para em seguida se pôr a dançar
uma hornpipe corcoveante. Frei Domingo lhe dissera que todo
mundo no Japão acreditava que a única causa da loucura era
um kami, por isso os loucos, assim como todas as crianças bem
novas e os homens muito velhos, não eram responsáveis e tinham
privilégios especiais, às vezes. Então saltava em delírio, cantando
no ritmo para Mariko: - Ajude... preciso de ajuda, pelo amor
de Deus... não vou agüentar isto muito tempo mais... ajude .. .
- desesperadamente se comportando como um lunático, sabendo
que era a única coisa que poderia salvá-los.
- Ele está louco... está possesso - gritou Mariko, imediatamente entendendo o ardil de Blackthorne.
- Sim - disse Yabu, ainda tentando se recuperar do cho366
que de ter visto Toranaga, sem saber ainda se o Anjin-san estava
fingindo ou se realmente enlouquecera.
Mariko estava fora de si. Não sabia o que fazer. O Anjinsan salvou a vida do Senhor Toranaga, mas como é que sabia?
- não parava de repetir para si mesma, irracionalmente.
O rosto de Blackthorne estava exangue exceto no vergão
escarlate deixado pela bofetada. Não parava de dançar, esperando
freneticamente a ajuda que não vinha. Então silenciosamente
amaldiçoou Yabu e Buntaro como covardes sem mãe, e Mariko,
pela cadela estúpida que era. Parou repentinamente de dançar,
curvou-se para Ishido como um fantoche convulsivo e, meio
caminhando, meio bailando, dirigiu-se para o portão. - Sigamme, sigam-me! - gritou, a voz quase estrangulada, tentando
indicar o caminho como um Pied Piper'.
Os cinzentos barraram-lhe o caminho. Ele berrou com raiva
fingida e imperiosamente ordenou-lhes que saíssem da frente,
para logo em seguida cair numa gargalhada histérica.
Ishido agarrou um arco e uma flecha. Os cinzentos se afastaram. Blackthorne estava quase atravessando o portão. Voltou-se
sabendo que não adiantava nada correr, que estava encurralado.
Desamparado, recomeçou a dança furiosa.
- Ele é louco, um cachorro louco! Cachorros loucos têm
que ser controlados! - A voz de Ishido soou áspera. Armou o
arco e fez pontaria.
Imediatamente Mariko deu um pulo da sua posição protetora
perto da liteira de Toranaga e começou a caminhar na direção
de Blackthorne. - Não se preocupe, Senhor Ishido - gritou.
- Não há por que se preocupar... é uma loucura momentãnea... peço permissão... - Aproximando-se ela pôde ver a
exaustão de Blackthorne, o sorriso rígido de louco, e teve medo,
malgrado seu. - Posso ajudar agora, Anjin-san - disse precipitadamente. - Temos que tentar s... sair daqui. Eu o seguirei.
Não se preocupe, ele não vai atirar. Por favor, pare de dançar
agora.
Blackthorne parou imediatamente, voltou-se e caminhou tranqüilamente para a ponte. Ela o seguiu, um passo atrás conforme
o costume, esperando as setas, de ouvidos atentos.
Mil olhos observavam o gigante enlouquecido e a minúscula
mulher sobre a ponte, que se afastavam.
Yabu recobrou-se. - Se o quer morto, deixe-me fazé-lo,
1 Referência ao flautista de Hamelin, de Robert Browning. (N. do T.)
367

Ishido-sarna. É inconveniente para o senhor tomar-lhe a vida. Um
general não mata com as próprias mãos. Os outros devem fazer
isso por ele. - Chegou bem perto e baixou a voz. - Deixe-o
viver. A loucura foi conseqüência do seu tapa. Ele é um daimio
em sua terra e o tapa... foi como Mariko-san disse, neh?
Confie em mim, ele é valioso para nós vivo.
- O quê?
- Ele é mais valioso vivo. Confie em mim. O senhor pode
matá-lo a qualquer momento. Precisamos dele vivo.
Ishido leu desespero no rosto de Yabu, e verdade. Baixou
o arco. - Muito bem. Mas um dia eu vou querê-lo vivo. Vou
pendurá-lo pelos calcanhares sobre o abismo.
Yabu engoliu em seco e fez meia mesura. Nervosamente fez
um gesto para que o cortejo prosseguisse, receoso de que Ishido
se lembrasse da liteira e de "Kiritsubo".
Buntaro, fingindo deferência, tomou a iniciativa e pos os
marrons em marcha. Não questionou o fato de Toranaga ter
magicamente aparecido como um kami no meio deles, apenas
que o amo estava em perigo e quase indefeso. Viu que Ishido
não tirava os olhos de Mariko e do Anjin-san, mas ainda assim
se curvou polidamente para ele e se postou atrás da liteira de
Toranaga para proteger o amo das flechas, caso a luta começasse ali.
A coluna aproximava-se do portão agora. Yabu tomou posição como solitária defesa de retaguarda. Esperava que o cortejo
fosse detido a qualquer momento. Com certeza alguns cinzentos
deviam ter visto Toranaga, pensou ele. Quanto tempo vai levar
até que contem a Ishido?
Ele não vai pensar que eu fazia parte da tentativa de fuga?
E isso não vai me arruinar para sempre?
A meio caminho sobre a ponte, Mariko olhou para trás um
instante. - Eles vêm vindo, Anjin-san, as duas liteiras estão
atravessando o portão, estão na ponte agora!
Blackthorne não respondeu nem se voltou. Permanecer ereto
exigia-lhe toda a força de vontade remanescente. Perdera as
sandálias, o rosto queimava do tapa, e a cabeça martelava de dor.
Os últimos guardas deixaram-no atravessar o rastrilho. Também
deixaram Mariko passar sem detê-la. E depois as liteiras.
Blackthorne liderou a marcha descendo a suave colina, passando pelo pátio aberto, cruzando a última ponte. Foi só quando
se viu na área coberta de mato, totalmente fora da vista do
castelo, que desfaleceu.
368
CAPITULO 23
-- Anjin-san... Anjin-san!
Semiconsciente, ele deixou que Mariko o ajudasse a tomar
um pouco de saque. A coluna parara, os marrons cerradamente
dispostos em torno da liteira com cortinas, os cinzentos da escolta
à frente e atrás. Buntaro gritara para uma das criadas, que imediatamente providenciara o frasco numa das kagas de bagagem,
dissera aos seus guardas pessoais que mantivessem todos longe da
liteira de "Kiritsubo-san", depois correra para Mariko. - O
Anjin-san está bem?
- Sim. Sim, acho que sim - respondeu Mariko. Yabu
juntou-se a eles. Tentando desviar a atenção do capitão dos cinzentos, Yabu disse com negligência: - Podemos prosseguir, capitão. Deixaremos alguns homens e Mariko-san. Quando o bárbaro
se recuperar, ela e os homens seguirão.
- Com todo o respeito, Yabu-san, esperaremos. Estou encarregado de entregá-los todos a salvo na galera. Como um grupo
- disse o capitão.
Todos olharam quando Blackthorne engasgou ligeiramente
com o vinho.
- Obrigado - murmurou ele. - Estamos seguros agora?
Quem mais sabe que...
- O senhor está seguro agora! - interrompeu-o ela deliberadamente.
Estava de costas para o capitão e recomendou-lhe cautela
com os olhos. - Anjin-san, o senhor está seguro e não há motivo
de preocupação. Compreende? O senhor teve algum tipo de ataque. Olhe ao seu redor..- está em segurança agora!
Blackthorne fez conforme ela lhe ordenou. Viu o capitão e os
cinzentos, e compreendeu. Suas forças estavam voltando rapidamente agora, ajudadas pelo vinho. - Desculpe, senhora. Foi
apenas pánico, acho. Devo estar ficando velho. Fico fora de mim
com freqüência e depois nunca consigo me lembrar do que aconteceu. Falar português é exaustivo, não? - Passou para o latim.
- A senhora compreende?
- Certamente.
- Esta língua é "mais fácil"?
- Talvez - disse ela, aliviada por ele ter compreendido a
necessidade de cautela, mesmo usando o latim, que para os japoneses era uma língua quase incompreensível e impossível de ser
369

aprendida, exceto para um punhado de homens do império, todos
treinados pelos jesuítas e na maioria comprometidos com o sacerdócio. Ela era a única mulher em todo o seu mundo que sabia
falar, ler e escrever latim e português. - Ambas as línguas são
difíceis, cada uma tem perigos.
- Quem mais conhece os "perigos"?
- Meu marido e aquele que nos comanda.
- Tem certeza?
- Foi o que ambos deram a entender.
O capitão dos cinzentos agitou-se, impaciente, e disse alguma
coisa a Mariko.
- Ele perguntou se o senhor ainda está perigoso, se suas
mãos e pés devem ser amarrados. Respondi que não. O senhor
está curado do seu acesso agora.
- Sim - disse ele, passando de novo para o português.
- Tenho ataques com freqüência. Se alguém me bate no rosto,
fico louco. Sinto muito. Nunca consigo me lembrar do que acontece nessas ocasiões. E o dedo de Deus. - Viu que o capitão se
concentrava nos seus lábios e pensou: apanhei-o, seu bastardo,
aposto como você compreende português.
Sono, a criada, estava com a cabeça curvada ao lado das
cortinas da liteira. Ouviu e voltou até Mariko.
- Desculpe, Mariko-sarna, mas minha ama pergunta se o
louco já está bem para continuarmos. Ela pergunta se a senhora
lhe cederia sua liteira, porque minha ama acha que devemos nos
apressar por causa da maré. Todo o transtorno que o louco causou
deixou-a ainda mais perturbada. Mas, sabendo que o louco é
apenas afligido pelos deuses, ela fará preces para que ele recobre
a saúde, e lhe dará pessoalmente alguns remédios assim que estivermos a bordo.
Mariko traduziu.
- Sim. Estou bem agora. - Blackthorne levantou-se mas
oscilou sobre os pés.
Yabu vociferou uma ordem.
- Yabu-san diz que o senhor viaja na liteira, Anjin-san.
- Mariko sorriu quando ele começou a protestar. - Sou realmente muito forte e o senhor não precisa se preocupar. Caminharei ao seu lado e o senhor poderá conversar, se quiser.
Ele se permitiu ser ajudado até a liteira. Imediatamente se
puseram em movimento de novo. O passo bamboleante era calmante e ele se reclinou, exaurido. Esperou até que o capitão dos
cinzentos se afastasse em direção à vanguarda da coluna, e sussur370
rou em latim, prevenindo Mariko: - Aquele centurião compreende a outra língua.
- Sim. E acho que compreende um pouco de latim também.
respondeu-lhe ela, igualmente num sussurro quase inaudível.
Caminhou um momento. - Sinceramente o senhor é um homem
corajoso. Agradeço-lhe por tê-lo salvado.
- A senhora tem mais coragem do que eu.
-- Não, o Senhor Deus colocou meus pés no caminho e
tornou-me um pouco útil. Agradeço-lhe novamente.
A cidade à noite era um reino encantado. As casas ricas
tinham muitas lanternas coloridas, a óleo e a vela, pendendo dos
portões e nos jardins, as telas shoji difundindo uma deliciosa
transparência. Até as casas pobres eram alegradas pelas shojis.
Havia lanternas iluminando o caminho de pedestres e kagas, e
dos samurais, que andavam a cavalo.
- A iluminação das casas são lâmpadas de óleo, e também
usamos velas, mas com a chegada da noite muita gente vai para
a cama - explicou Mariko enquanto continuavam pelas ruas da
cidade, dando voltas e mais voltas, os pedestres curvando-se e
os muito pobres permanecendo de joelhos até que eles passassem.
O mar cintilava ao luar.
- Conosco acontece o mesmo. Como vocês cozinham? Num
fogão de madeira? - As forças de Blackthorne voltaram rapidamente e suas pernas já não pareciam de gelatina. Ela recusara
a liteira de volta, de modo que ele continuava sentado apreciando
o ar e a conversa.
-- Usamos um braseiro de carvão. Não comemos alimentos
como os seus, de modo que nossa cozinha é mais simples. Só
arroz e um pouco de peixe, cru na maior parte, ou cozido sobre
brasas com um molho picante e vegetais em conserva. Um pouco
de sopa talvez. Nada de carne... nunca comemos carne. Somos
um povo frugal, temos que ser, já que apenas parte da nossa
terra, talvez um quinto do solo, pode ser cultivado.., e somos
muitos. Entre nós é uma virtude ser frugal, mesmo considerando
a quantidade de comida que comemos.
- A senhora é corajosa. Agradeço-lhe. As flechas não foram
disparadas por causa do escudo das suas costas - disse ele em
latim.
- Não, capitão dos navios. Foi pela vontade de Deus.
- A senhora é corajosa e é linda.
Ela caminhou em silêncio por um instante. Ninguém me
havia chamado de linda antes... ninguém, pensou ela. - Não
371

sou corajosa e não sou linda. As espadas são lindas. A hora é
linda.
- A coragem é linda e a senhora a tem em abundância.
Mariko não respondeu. Estava se lembrando daquela manhã,
de todas as más palavras e maus pensamentos. Como pode um
homem ser tão corajoso e tão estúpido, tão gentil e tão cruel, tão
caloroso e tão detestável - tudo ao mesmo tempo? O Anjin-san
foi de uma coragem sem limites ao desviar a atenção de Ishido
da liteira, e totalmente esperto ao fingir loucura e assim tirar
Toranaga da armadilha. Como Toranaga foi sábio escapando
desse modo! Mas seja prudente, Mariko. Pense em Toranaga e
não nesse estrangeiro. Lembre-se do mal que ele representa e
pare de sentir essa tepidez úmida nos quadris, que você nunca
teve antes, a tepidez de que as cortesãs falam e os livros de histórias de "travesseiro" descrevem.
- Sim - disse ela. - A coragem é linda e o senhor a tem
em abundância. - Depois voltou ao português. - Latim é uma
língua tão fatigante!
- A senhora aprendeu na escola?
- Não, Anjin-san, foi mais tarde. Depois de me casar, vivi
no extremo-norte por muito, muito tempo. Estava sozinha, com
exceção de criados e aldeãs, e os únicos livros que tinha eram
em português e latim - algumas gramáticas, livros religiosos e
uma Bíblia. Aprender as línguas ajudou muitíssimo a passar o
tempo e ocupou-me a mente. Tive muita sorte.
- Onde estava seu marido?
- Na guerra.
- Quanto tempo a senhora esteve sozinha?
- Temos um ditado que diz que o tempo não tem uma medida única, que o tempo pode ser como a geada, a luz, uma
lágrima, ou cerco, tempestade, crepúsculo, ou até como uma
rocha.
- É um ditado sábio - disse Blackthorne. E acrescentou:
- O seu português é muito bom, senhora. E o latim. Melhor do
que o meu.
- O senhor tem mel na língua, Anjin-san!
- É honro!
- "Honro" é uma boa palavra. A honro é que um dia um
padre cristão chegou à aldeia. Éramos como duas almas perdidas.
Ficou quatro anos e ajudou-me imensamente. Fico contente por
saber falar bem - disse ela, sem vaidade. - Meu pai queria que
eu aprendesse línguas.
372
Muito bem. Mas a senhora não quer mais conversar?
Se lhe agrada, podemos conversar. O que quer saber?
Por que ficou sozinha uma rocha de tempo?
Meu marido me mandou embora. Minha presença o
ofendera. Foi perfeitamente correto ao fazer isso. Honrou-me não
se divorciando de mim. Depois honrou-me ainda mais aceitandome, e ao nosso filho, de volta. - Mariko olhou para ele. - Meu
filho tem quinze anos agora. Na realidade sou uma velha senhora.
- Não acredito, senhora.
- É honto.
- Que idade tinha quando se casou?
-- Muita, Anjin-san. Muita idade.
- Temos um ditado. A idade é como geada ou cerco ou
crepúsculo, e às vezes até como uma rocha. - Ela riu. Tudo nela
é tão gracioso, pensou ele, hipnotizado. - Na senhora, venerável
dama, a idade assenta lindamente.
- Para uma mulher, Anjin-san, a idade nunca é linda.
- A senhora é sábia e linda - disse ele em latim, que veio
facilmente e, embora soasse mais formal e imponente, era mais
íntimo. Vigie-se, pensou ele.
Ninguém nunca me chamou de linda antes, repetiu ela para
si mesma. Gostaria que fosse verdade. - Aqui não é prudente
notar a mulher de outro homem - disse em voz alta. - Nossos
costumes são muito severos. Por exemplo, se uma mulher casada
é encontrada sozinha com um homem numa sala com a porta
fechada, simplesmente sozinhos e conversando em particular, por
lei o marido dela, ou o irmão, ou o pai, tem o direito de matá-la
- Por quê?
- Achava que devemos conhecer o demônio com que temos
que lidar.
- Era um homem sábio.
Não. Não era sábio.
Por quê?
Um dia lhe contarei a história, é muita tristeza.
Por que a senhora ficou sozinha por uma rocha de tempo?
- Por que não descansa? Ainda temos um longo caminho
pela frente.
- A senhora quer sentar? - Novamente ele começou a se
levantar mas ela balançou a cabeça.
- Não, obrigada. Por favor, fique onde está. Gosto de caminhar.
373

instantaneamente. Se a garota não for casada, o pai pode, naturalmente, sempre fazer com ela o que lhe aprouver.
- Isso não é justo nem civilizado. - Ele lamentou o deslize
imediatamente.
- Consideramo-nos muito civilizados, Anjin-san. - Mariko
ficou contente por ser insultada de novo, pois isso quebrou o
encanto e afastou a tepidez que estava sentindo. - Nossas leis são
muito sábias. Há mulheres demais, livres e sem compromissos,
para que um homem tome uma que já pertence a outro. Na
verdade é uma proteção para as mulheres. O dever de uma
esposa é unicamente para com o marido. Seja paciente. Verá como
somos civilizados, como somos avançados. As mulheres têm um
lugar, os homens têm outro. Um homem pode ter apenas uma
esposa oficial de cada vez - mas, naturalmente, muitas consortes
-, mas as mulheres aqui têm muito mais liberdade do que as
senhoras espanholas e portuguesas, pelo que me disseram. Podemos ir livremente aonde quisermos, quando quisermos. Podemos
abandonar nossos maridos, se desejarmos, divorciarmo-nos deles.
Podemos nos recusar a casar, se quisermos. Somos donas de nossa
própria fortuna e propriedade, do nosso corpo e espírito. Temos
poderes tremendos, se desejarmos. Quem cuida de todos os seus
bens, do seu dinheiro, da sua casa?
- Eu, naturalmente.
- Aqui a esposa cuida de tudo. O dinheiro não é nada para
um samurai. Está abaixo da crítica para um homem autêntico.
Cuido de todos os negócios de meu marido. Ele toma todas as
decisões. Eu executo seus desejos e pago as contas. Isso o deixa
totalmente livre para cumprir seu dever para com seu senhor, o
qual é seu único dever. Oh, sim, Anjin-san, deve ser paciente antes
de criticar.
- Não havia a intenção de crítica, senhora. Simplesmente
nós acreditamos na santidade da vida, ninguém pode levianamente
ser condenado a morte a menos que um tribunal legal, um tribunal
legal da rainha, concorde.
Ela se recusou a ser abrandada. - O senhor diz muitas
coisas que eu não compreendo, Anjin-san. Mas não disse "não
justo e não civilizado"?
- Sim.
- Isso, então, é uma crítica, neh? O Senhor Toranaga pediume que lhe assinalasse que é inconveniente criticar sem conhecer.
Deve lembrar-se de que a nossa civilização, a nossa cultura, tem
milhares de anos de idade. Três mil estão documentados. Oh, sim,
374
somos um povo antigo. Tão antigo quanto os chineses. A quantos
anos remonta a sua cultura?
- Não muitos, senhora.
- Nosso imperador, Go-Nijo, é o centésimo sétimo de uma
linhagem intacta, que remonta a Jimmu-tenno, o primeiro elo
terrestre, que descendia de cinco gerações de espíritos terrestres
e, antes deles, de sete gerações de espíritos celestiais que vieram
de Kuni-toko-tachi-noh-Mikoto, o primeiro espírito, que apareceu
quando a terra se separou dos céus. Nem a China pode alardear
uma história assim. Há quantas gerações os seus reis governam
o seu país?
- Nossa rainha é a terceira da dinastia Tudor, senhora. Mas
está velha e não tem filhos, portanto será a última.
- Cento e sete gerações, Anjin-san, até a divindade - repetiu ela, orgulhosa.
- Se acredita nisso, senhora, como pode dizer também que
é católica?
Ele a viu se empertigar, depois encolheu os ombros.
- Sou cristã há apenas dez anos, portanto uma noviça, e
embora acredite no Deus cristão, em Deus Pai, Filho e Espírito
Santo, com todo o coração, nosso imperador descende diretamente
dos deuses ou de Deus. Ele é divino. Há muitas coisas que não
consigo explicar nem compreender. Mas a divindade do meu imperador está fora de questão. Sim, sou cristã, mas primeiro sou
japonesa.
Será que é essa a chave de todos vocês? Serem primeiro
japoneses? perguntou Blackthorne a si mesmo. Ele a observava,
atônito com o que ela dizia. Os costumes deles são malucos!
O dinheiro não significa nada para um verdadeiro homem? Isso
explica por que Toranaga foi tão desdenhoso quando mencionei
dinheiro no primeiro encontro. Cento e sete gerações? Impossível!
Morte instantânea só por estar inocentemente numa sala fechada
com uma mulher? Isso é barbarismo - um convite aberto ao
crime. Eles defendem e admiram o assassinato! Não foi o que
disse Rodrigues? Não foi o que fez Omi? Simplesmente não assassinou aquele camponês? Pelo sangue de Cristo, eu não pensava
em Omi há dias. Ou na aldeia. Ou no buraco ou em mim de
joelhos diante dele. Esqueça-o, ouça a ela, seja paciente, conforme
ela diz, faça-lhe perguntas porque ela fornecerá os meios de
dobrar Toranaga ao seu plano. Agora Toranaga está em dívida
com você. Você o salvou. Ele sabe disso, todo mundo sabe. Ela
não lhe agradeceu, não por salvá-la mas por ter salvado a ele?
375

A coluna movia-se através da cidade rumando para o mar.
Ele viu Yabu mantendo o passo e por um momento os berros de
Pieterzoon lhe soaram com força aos ouvidos. - Uma coisa de
cada vez - murmurou, quase que com seus botões.
- Sim - estava dizendo Mariko. - Deve ser muito difícil
para o senhor. Nosso mundo é tão diferente do seu. Muito diferente mas muito sábio. - Ela podia ver o vulto indistinto de
Toranaga dentro da liteira à frente, e mais uma vez agradeceu
a Deus pela sua fuga. Como explicar ao bárbaro a nosso respeito,
cumprimentá-lo pela sua coragem? Toranaga lhe ordenara que
explicasse, mas como? - Deixe-me contar-lhe uma história, Anjin-san. Quando eu era jovem, meu pai era um general a serviço
de um daimio chamado Goroda. Naquela época o Senhor Goroda
não era o grande ditador, mas um daimio ainda em luta pelo
poder. Meu pai convidou esse Goroda e seus principais vassalos
para um banquete. Nunca lhe ocorreu que não havia dinheiro
para comprar toda a comida, o saque, a louça de laca e os tatamis
que tal visita, por costume, exigia. Antes que o senhor pense que
minha mãe era má administradora, deixe-me dizer-lhe que não
era. Cada centavo da renda de meu pai ia para os seus próprios
samurais vassalos, e embora oficialmente ele só tivesse o suficiente
para quatro mil guerreiros, economizando, poupando e manipulando, minha mãe viu-o comandar em batalha cinco mil e trezentos homens, para glória do seu suserano. Nós, a família -
minha mãe, as consortes de meu pai, meus irmãos e irmãs -, mal
tínhamos o que comer. Mas que importava isso? Meu pai e seus
homens tinham as melhores armas e os melhores cavalos, e davam
o melhor de si ao seu senhor.
"Sim, não havia dinheiro suficiente para aquele banquete,
então minha mãe foi aos peruqueiros de Kyoto e vendeu-lhes o
cabelo. Lembro que foi como se as trevas se abatessem sobre ela.
Mas ela o vendeu. Os peruqueiros o cortaram no mesmo dia,
deram-lhe uma peruca barata, ela comprou tudo o que era necessário e poupou a honra de meu pai. Era dever dela pagar as
contas, e ela pagou. Cumpriu seu dever. Para nós, o dever é tudo
o que importa."
- O que disse ele, seu pai, quando descobriu?
- O que deveria dizer senão agradecer-lhe? Era dever dela
encontrar o dinheiro. Poupar-lhe a honra.
- Ela devia amá-lo muito.
- "Amor" é uma palavra cristã, Anjin-san. Amor é um
pensamento cristão, um ideal cristão. Não temos palavra para
376
"amor", do modo como compreendo o significado dela. Dever,
lealdade, honra, respeito, desejo, essas palavras e pensamentos
são o que temos, e tudo de que necessitamos. Ela o olhou e,
a despeito de si mesma, trouxe à mente o momento em que ele
salvara Toranaga e, com Toranaga, o seu marido. Nunca se esqueça de que estavam ambos acuados lá, estariam ambos mortos
agora, não fosse este homem.
Ela certificou-se de que não havia ninguém por perto. -
Por que o senhor fez o que fez?
- Não sei. Talvez porque. - Ele parou. Havia tantas
coisas que poderia dizer: "Talvez porque Toranaga estava indefeso e eu não queria ser retalhado... Porque se ele fosse descoberto seríamos todos apanhados... Porque eu sabia que ninguém
além de mim estava a par, e dependia de mim arriscar... Porque
eu não queria morrer - há tanto o que fazer para desperdiçar
minha vida, e Toranaga é o único que pode me devolver meu
navio e minha liberdade". Em vez disso, respondeu, em latim:
- Porque Deus disse: "Dai a César o que é de César".
- Sim - disse ela, e acrescentou na mesma língua: - Sim,
era isso o que eu estava tentando dizer. A César umas coisas, e a
Deus outras coisas. O mesmo acontece conosco. Deus é Deus e
nosso imperador vem de Deus. E César é César, para ser honrado
como César. - Sensibilizada pela compreensão e pela ternura
na voz dele, ela disse: - O senhor é sábio. As vezes penso que
compreende mais do que diz.
Você não está fazendo o que jurou nunca fazer? perguntou-se Blackthorne. Não está se fazendo de hipócrita? Sim e não.
Não devo nada a eles. Sou um prisioneiro. Roubaram-me o navio,
as mercadorias, e assassinaram um de meus homens. São pagãos
- bem, alguns são pagãos e o resto é católico. Não devo nada
a pagãos nem a católicos. Mas você gostaria de levá-la para a
cama e a estava elogiando, não estava?
Deus amaldiçoe todas as consciências!
O mar estava mais perto agora, a meia milha de distância.
Ele podia ver muitos navios, e a fragata portuguesa com suas
luzes de âncora. Seria uma presa e tanto, pensou ele. Com vinte
rapazes bons de briga eu a capturaria. Voltou-se para Mariko.
Mulher estranha, de uma estranha família. Por que ela ofendeu
Buntaro, aquele babuino? Como pôde dormir com aquilo, ou se
casar com aquilo? O que é "muita tristeza"?
- Senhora - disse ele, mantendo a voz gentil -, sua mãe
deve ter sido uma mulher excepcional. Fazer aquilo!
377

- Sim. Mas devido ao que fez, viverá para sempre. Agora
é uma lenda. Era tão samurai quanto... quanto meu pai.
- Pensei que apenas homens fossem samurais.
- Oh, não, Anjin-san. Homens e mulheres são igualmente
samurais, guerreiros com responsabilidades para com seus senhores. Minha mãe foi uma autêntica samurai, seu dever para com
o marido excedia a tudo.
- Ela está na sua casa agora?
- Não. Nem ela, nem meu pai, nem nenhum dos meus
irmãos, irmãs ou parentes. Sou a última da minha linhagem.
- Houve uma catástrofe?
Mariko de repente se sentiu cansada. Estou cansada de falar
latim e essa língua portuguesa de sons abomináveis e cansada de
ser professora, disse a si mesma. Não sou professora. Sou apenas
uma mulher que conhece o seu dever e quer cumpri-lo em paz.
Não quero sentir essa tepidez de novo, não quero nada desse
homem que me perturba tanto. Não quero nada dele.
- De certo modo, Anjin-san, foi uma catástrofe. Um dia
lhe falarei sobre isso. - Ela acelerou o passo ligeiramente e se
afastou, aproximando-se da outra liteira. As duas criadas sorriram
nervosas.
- Ainda temos muito que andar, Mariko-san? - perguntou
Sono.
- Espero que não - disse, ela, tranqüilizadora.
O capitão dos cinzentos assomou abruptamente da escuridão,
do outro lado da liteira. Ela perguntou a si mesma quanto do que
dissera ao Anjin-san fora ouvido às ocultas.
- Quer uma kaga, Mariko-san? Está ficando cansada? -
perguntou o capitão.
- Não, obrigada. - Ela retardou a marcha deliberadamente, afastando-o da liteira de Toranaga. - Não estou cansada
em absoluto.
- O bárbaro está se comportando? Não a está incomodando?
- Oh, não. Parece absolutamente calmo agora.
- Do que estavam falando?
- De todo tipo de coisa. Eu estava tentando explicar-lhe
algumas de nossas leis e costumes. - Pez um gesto na direção
do torreão do castelo, gravado contra o céu. -- O Senhor Toranaga me pediu que tentasse inculcar-lhe um pouco de bom senso.
- Ah, sim, o Senhor Toranaga. - O capitão olhou breve378
mente para o castelo, depois novamente para Blackthorne. -
Por que o Senhor Toranaga está tão interessado nele, senhora?
- Não sei. Suponho que seja porque ele é uma anomalia.
Dobraram uma esquina, para outra rua, com casas por trás
de jardins murados. Havia poucas pessoas à vista. Adiante havia
ancoradouros e o mar. Mastros erguiam-se acima das construções
e o ar estava denso com o cheiro de algas marinhas. - De que
mais falaram?
- Eles têm umas idéias muito estranhas. Pensam em dinheiro o tempo todo.
- Dizem que o país deles inteiro é feito de imundos mercadores piratas. Nem um samurai entre eles. O que o Senhor
Toranaga quer com ele?
- Sinto muito, mas não sei.
- Corre o boato de que ele é cristão, que clama ser cristão.
É mesmo?
- Não do nosso tipo de cristão, capitão. O senhor é cristão,
capitão?
- Meu amo é cristão, portanto sou cristão. Meu amo é o
Senhor Kiyama.
- Tenho a honra de conhecê-lo bem. Ele honrou meu marido tratando o casamento de uma de suas netas com meu filho.
- Sim, eu sei, Senhora Toda.
- O Senhor Kiyama melhorou? Tomei conhecimento de
que os médicos não deixaram ninguém vê-lo.
- Não o vejo há uma semana. Nenhum de nós. Talvez
seja a sífilis chinesa. Deus o proteja disso e amaldiçoe todos os
chineses! - Olhou de relance na direção de Blackthorne. - Os
médicos dizem que esses bárbaros trouxeram a peste para a China,
para Macau, e depois para as nossas praias.
- Sumus omnes in manu Dei - disse ela. Estamos todos
nas mãos de Deus.
- Ita, amen - retrucou o capitão sem pensar, caindo na
armadilha.
Blackthorne também percebera o deslize e viu um relâmpago
de raiva no rosto do capitão e ouviu-o dizer alguma coisa por
entre os dentes a Mariko, que corou e também parou. Ele deslizou
para fora da liteira e voltou até eles. - Se o senhor fala latim,
centurião, seria muito gentil em conversar um pouco comigo.
Estou ávido por aprender sobre este seu grande país.
379

- Sim, falo a sua lingua, estrangeiro.
- Não é a minha língua, centurião, mas a da Igreja e de
todas as pessoas cultas do meu mundo. O senhor a fala bem.
Como e quando aprendeu?
O cortejo estava passando por eles e todos os samurais,
tanto os cinzentos quanto os marrons, os observavam. Buntaro,
perto da liteira de Toranaga, parou e se voltou. O capitão hesitou,
depois recomeçou a andar e Mariko ficou contente por Blackthorne se ter juntado a eles. Caminharam em silêncio um instante.
- O centurião fala a língua fluentemente, esplendidamente,
não e? - disse ele a Mariko.
- Sim, de fato. O senhor a aprendeu num seminário, centurião?
- O senhor também, estrangeiro disse o capitão friamente, sem prestar atenção nela, detestando a lembrança do
seminário de Macau, para onde fora mandado criança por Kiyama,
para aprender as línguas. - Agora que falamos diretamente, digame com sinceridade por que o senhor perguntou a esta senhora:
"Quem mais sabe...?" Quem mais sabe o quê?
- Não me recordo. Minha mente estava delirando.
- Ah, delirando, hem? Então por que o senhor disse: "Dai
a César o que é de César"?
- Foi apenas um gracejo. Eu estava discutindo com esta
senhora, que me contou histórias esclarecedoras, mas às vezes
difíceis de compreender.
- Sim, há muito que compreender. O que o fez enlouquecer
no portão? E como se recuperou tão depressa do ataque?
- Foi a benevolência de Deus.
Estavam mais uma vez caminhando ao lado da liteira, o
capitão furioso por ter caído na armadilha com tanta facilidade.
Fora prevenido pelo Senhor Kiyama, seu amo, de que a mulher
era dona de uma esperteza sem limites: - Não se esqueça de
que ela traz a nódoa da traição dentro de todo o seu ser, e o
pirata foi gerado por Satanás. Observe, ouça e lembre-se. Talvez
ela se inculpe e se torne uma futura testemunha contra Toranaga,
para os regentes. Mate o pirata no momento em que a emboscada
tiver início.
As setas saíram da noite e a primeira cravou-se na garganta
do capitão, que, ao sentir os pulmões encher-se com fogo derretido
e a morte a engoli-lo, teve um último pensamento de espanto,
porque a emboscada não era para acontecer naquela rua, mas
380
mais adiante, junto aos ancoradouros, e o ataque não era para ser
contra eles, mas contra o pirata.
Outra seta se chocou contra a coluna da liteira a uma polegada da cabeça de Blackthorne. Duas setas atravessaram as cortinas
fechadas da liteira de Kiritsubo, à frente, e outra atingiu Asa na
cintura. Quando ela começou a gritar, os carregadores largaram as
liteiras e sumiram na escuridão. Blackthorne rolou no chão para
se proteger, levando Mariko consigo para o abrigo da liteira
tombada. Cinzentos e marrons dispersaram-se. Uma chuva de
setas derramou-se sobre as duas liteiras. Uma bateu surdamente
no chão no ponto onde Mariko estivera um instante antes. Buntaro
estava cobrindo a liteira de Toranaga com o corpo do melhor
modo que podia, uma seta cravada nas costas da sua armadura de
couro, bambu e malhas de ferro. Quando a saraivada cessou, ele
investiu e abriu as cortinas com um repelão. As duas setas encontravam-se enterradas no peito e no flanco de Toranaga, mas ele
estava ileso e arrancou as farpas da armadura de proteção que
usava sob o quimono. Depois lançou fora o chapéu de aba larga
e a peruca. Buntaro perscrutou a escuridão, à procura do inimigo,
em guarda, uma seta pronta no arco, enquanto Toranaga se desvencilhava das cortinas e, puxando a espada de sob a manta, se
punha de pé com um salto. Mariko começou a se arrastar na
direção de Toranaga, a fim de ajudá-lo, mas Blackthorne puxou-a
de volta com um grito de advertência, ao ver que novas setas
eram disparadas contra as liteiras, matando dois marrons e um
cinzento. Outra passou tão perto de Blackthorne, que lhe arrancou um pedaço de pele da bochecha. Uma outra prendeu-lhe a saia
do quimono na terra. Sono, a criada, estava ao lado da garota
desfigurada de dor, que corajosamente retinha os próprios gritos.
Então Yabu gritou, apontou e atacou. Divisavam-se alguns vultos
indefinidos sobre um dos telhados de telhas. Uma última saraivada
sibilou na escuridão, sempre visando as liteiras.
Buntaro e outros marrons bloquearam o caminho delas até
Toranaga. Um homem morreu. Uma flecha dilacerou uma junta
no ombro da armadura de Buntaro e ele grunhiu de dor. Marrons
e cinzentos encontravam-se perto do muro agora, em busca do
inimigo, mas os atacantes desapareceram no negrume da noite.
e, embora uma dúzia de marrons e cinzentos corressem para a
esquina a fim de interceptá-los, todos sabiam que não havia esperança de êxito. Blackthorne ergueu-se vacilante e ajudou Mariko
a se levantar. Ela estava abalada mas ilesa.
- Obrigada - disse ela, e correu na direção de Toranaga.
381

para ajudar a escondê-lo dos cinzentos. Buntaro gritava a alguns
de seus homens que apagassem as tochas perto das liteiras. Então
um dos cinzentos disse: - Toranaga! - e embora falasse baixo,
todos ouviram. A tremulante luz dos archotes, a maquilagem riscada pelo suor fazia Toranaga parecer grotesco.
Um dos oficiais cinzentos curvou-se, ansioso. Ali, inacreditavelmente, estava o inimigo de seu amo, livre, fora dos muros
do castelo.
- O senhor esperará aqui, Senhor Toranaga. Você - falou
ele com rispidez a um de seus homens -, apresente-se ao Senhor
Ishido imediatamente - e o homem disparou na corrida.
- Detenha-o - disse Toranaga tranqüilamente. Buntaro
disparou duas setas. O homem tombou agonizante. Num átimo
o oficial sacou da espada de duas mãos e saltou para Toranaga
com um grito de batalha, mas Buntaro estava preparado e aparou
o golpe. Simultaneamente, os marrons e os cinzentos, todos misturados, sacaram as espadas e atacaram. A rua foi engolida em
torvelinho pela escaramuça. Buntaro e o oficial golpeavam e se
esquivavam. Repentinamente um cinzento separou-se do bando
o investiu contra Toranaga, mas Mariko imediatamente agarrou
um archote, avançou e atirou-o no rosto do oficial. Buntaro cortou o atacante em dois, depois girou sobre os calcanhares, atirou
longe o segundo homem, e derrubou um outro que tentava atingir
Toranaga enquanto Mariko retrocedia rapidamente, com uma espada nas mãos agora, os olhos sempre em Toranaga ou em
Buntaro, o monstruoso guarda-costas.
Quatro cinzentos se agruparam e se lançaram contra Blackthorne, que ainda estava parado junto da sua liteira. Indefeso,
viu-os se aproximar. Yabu e um marrom deram um pulo para
interceptá-los, lutando demoniacamente. Blackthorne por sua vez
agarrou uma tocha com um salto e, como uma maça rodopiante,
momentaneamente deixou os atacantes desnorteados. Yabu matou
um deles, desmembrou outro, depois quatro marrons retrocederam para liquidar os dois últimos cinzentos. Sem hesitação, Yabu
o o marrom ferido se lançaram ao ataque mais uma vez, protegendo Toranaga. Blackthorne avançou, pegou uma arma comprida, meio espada, meio lança, e correu mais para perto de Toranaga. Este era a única pessoa que permanecia imóvel, de espada
embainhada, em meio à balbúrdia da rixa.
Os cinzentos lutavam corajosamente. Quatro se uniram para
uma investida suicida contra Toranaga. Os marrons esfacelaram
o ataque e ganharam mais terreno. Os cinzentos reagruparam-se e
382
atacaram de novo. Depois um superior ordenou que três deles
se retirassem e fossem em busca de reforços, e o resto guardasse a
retirada deles. Os três cinzentos arrancaram e, embora fossem
perseguidos e Buntaro acertasse um, dois escaparam.
O resto morreu.
CAPÍTULO 24
Eles estavam correndo através de ruas desertas, fazendo uma
volta para atingir o ancoradouro e a galera. Havia dez deles -
Toranaga liderando, Yabu, Mariko, Blackthorne, e seis samurais.
O resto, comandado por Buntaro, fora enviado com as liteiras e
a bagagem pela estrada prevista, com instruções de rumar com
calma para a galera. O corpo de Asa, a criada, encontrava-se numa
das liteiras. Durante um momento de trégua na luta, Blackthorne
lhe extraíra a flecha farpada. Toranaga vira o sangue escuro que
esguichou e vira, desconcertado, quando o piloto a enfaixara ao
invés de permitir que ela morresse calmamente com dignidade, e
depois, quando a luta cessara inteiramente, a suavidade com que
o piloto a colocara dentro da liteira. A garota era corajosa e não
se lamuriara em absoluto, só olhara para ele até que a morte
viera. Toranaga deixara-a na liteira acortinada como engodo e um
dos feridos fora colocado na segunda liteira, também como engodo.
Dos cinqüenta marrons que formavam a escolta, quinze tinham sido mortos e onze mortalmente feridos. Os onze tinham
sido rápida e honrosamente encaminhados ao Grande Vazio, três
pelas próprias mãos, oito solicitaram a ajuda a Buntaro. Depois
Buntaro reunira os remanescentes em torno das liteiras fechadas
e partira. Quarenta e oito cinzentos jaziam no pó.
Toranaga sabia que se encontrava perigosamente desprotegido, mas sentia-se contente. Tudo correra bem, pensou ele, considerando as vicissitudes da sorte. Como a vida é interessante! Primeiro pensei que fosse um mau presságio o piloto ter-me visto
trocando de lugar com Kiri. Depois o piloto me salvou e comportou-se como um louco à perfeição, e por causa dele escapamos
de Ishido. Eu não havia imaginado que Ishido estivesse no portão
principal, apenas no adro. Isso foi negligência. Por que Ishido
estava lá? Não é próprio dele ser tão cuidadoso. Quem o aeon383

selhou? Kiyama? Onoshi? Ou Yodoko? Uma mulher, sempre prática, poderia suspeitar de um subterfúgio assim.
Era um bom plano - a escapada secreta -, estabelecido há
semanas, pois era óbvio que Ishido tentaria mantê-lo no castelo,
voltaria os outros regentes contra ele prometendo-lhes qualquer
coisa, de bom grado sacrificaria seu refém em Yedo, a Senhora
Ochiba, e usaria qualquer meio de mantê-lo sob guarda até a reunião final de regentes, quando ele seria encurralado, impedido e
morto.
- Mas eles ainda o impedirão! - dissera Hiro-matsu, quando Toranaga mandara chamá-lo logo após o crepúsculo, na véspera, para explicar o que devia ser tentado e por que ele, Toranaga, estivera vacilando. - Mesmo que o senhor escape, os
regentes o impedirão pelas costas tão facilmente quanto o farão
na°sua cara. Depois o senhor será obrigado a cometer seppuku,
quando eles o ordenarem, e é certo que ordenarão.
- Sim - dissera Toranaga. - Na qualidade de presidente
dos regentes, sou obrigado a fazer isso se os quatro votarem contra mim. Mas aqui - ele tirara da manga um pergaminho enrolado - está a minha renúncia formal ao conselho de regentes.
Você a entregará a Ishido quando a minha fuga se tornar conhecida.
- O quê?
- Se eu renuncio deixo de ser obrigado pelo meu juramento
de regente. Neh? O táicum nunca me proibiu de renunciar, neh?
De isto a Ishido, também - dissera ele, estendendo a Hiro-matsu
o carimbo, o selo oficial do seu posto de presidente.
- Mas agora o senhor está totalmente isolado. Está condenado!
- Engana-se. Ouça, o testamento do táicum implantou um
conselho de cinco regentes no reino. Agora há quatro. Para ser
legal, antes que possam exercer o mandato do imperador, os quatro têm que eleger ou designar um novo membro, um quinto,
neh? Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama têm que concordar, neh?
O novo regente não tem que ser aceitável para todos eles? Claro!
Agora, companheiro, com quem, no mundo inteiro, esses inimigos
concordarão em partilhar o poder supremo? Hem? E enquanto
estiverem decidindo, não haverá decisões e...
- Estaremos nos preparando para a guerra, o senhor não
terá mais obrigaçoes e poderá soltar um pouco de mel aqui, um
pouco de fel ali e esses cagões peludos se devorarão entre si!
- dissera Hiro-matsu com ímpeto. - Ah, Yoshi Toranaga-noh384
Minowara, o senhor é um homem entre homens. Comerei meu
traseiro se o senhor não é o homem mais sábio do globo!
Sim, era um bom plano, pensou Toranaga, e todos desempenharam o seu papel: Hiro-Matsu, Kiri e a minha adorável
Sazuko. E agora estão trancados lá e permanecerão assim ou serão
autorizados a partir.
Acho que nunca serão autorizados a partir.
Sentirei em perdê-los.
Liderava o grupo com segurança, com passo rápido mas comedido, o passo com que caçava, o passo que podia manter continuamente por dois dias e uma noite, se necessário. Ainda usava
o manto e o quimono de viagem de Kiri, mas as saias estavam
arregaçadas.
Cruzaram outra rua deserta e rumaram por uma rua estreita.
Ele sabia que logo o alarme chegaria a Ishido e então a caçada
seria deflagrada com determinação. Há tempo suficiente, disse ele
a si mesmo.
Sim, foi um bom plano. Mas não previ a emboscada. Custoume três dias de segurança. Kiri tinha certeza de poder manter o
logro em segredo pelo menos durante três dias. Mas agora o segredo foi descoberto e não poderei embarcar e zarpar despercebido. Para quem era a emboscada? Para mim ou para o piloto?
Claro que para o piloto. Mas as setas não visavam as duas liteiras?
Sim, mas os arqueiros estavam bem longe e devia ser difícil enxergar, e seria mais sábio e mais seguro matar os dois, só por
precaução.
Quem ordenou o ataque, Kiyama ou Onoshi? Ou os portugueses? Ou os padres cristãos?
Toranaga voltou-se para examinar o piloto. Viu que ele não
estava esmorecendo, nem a mulher, que caminhava ao seu lado,
embora estivessem ambos cansados. No horizonte podia ver a
massa atarracada e vasta do castelo e o falo do torreão. Esta noite
foi a segunda vez que eu quase morri lá, pensou ele. Será que
esse castelo realmente vai ser a minha nemesis? O táicum me dizia
com freqüência: "Enquanto o Castelo de Osaka existir,. minha
linhagem nunca morrerá e você, Toranaga Minowara, seu epitáfio
será escrito em suas paredes. Osaka lhe causará a morte, meu fiel
vassalo!" E sempre a risada sibilante, molesta, que o deixava muito
nervoso.
Será que o táicum vive em Yaemon? Viva ou não, Yaemon
é o herdeiro legal.
Com um esforço, Toranaga desviou os olhos do castelo, do385

brou outra esquina e enveredou por um labirinto de alamedas.
Finalmente parou diante de um portão gasto pelo tempo. Havia
um peixe gravado em suas toras. Ele bateu em código. A porta
se abriu de imediato. Instantaneamente um samurai desgrenhado
curvou-se. - Senhor?
- fraga os seus homens e siga-me - disse Toranaga, e
pôs-se em movimento de novo.
-- Com prazer. - Esse samurai não usava o uniforme marrom, apenas coloridos trapos de ronin, mas fazia parte das tropas
de elite secretas que Toranaga havia contrabandeado para Osaka,
para o caso de uma emergência assim. Quinze homens, semelhantemente vestidos, e igualmente bem armados, seguiram-no e rapidamente tomaram posição à vanguarda e à retaguarda, enquanto
outro abalava para espalhar o alarme para outros destacamentos
secretos. Logo Toranaga tinha cinqüenta homens consigo. Mais
cem cobriam-lhe os flancos. Mil estariam prontos ao amanhecer,
se viesse a precisar deles. Ele descontraiu-se e afrouxou o passo,
sentindo que o piloto e a mulher estavam se cansando depressa
demais. Precisava deles fortes.
De pé em meio às sombras do depósito, Toranaga estudou
a galera, o embarcadouro e a praia. Yabu e um samurai estavam
ao seu lado. Os outros reunidos tinham sido deixados a cem passos
atrás, na viela.
Um destacamento de cem cinzentos esperava perto da escada
de costado da galera a uns cem passos de distância, do outro lado
de uma larga extensão de terra batida que impedia qualquer ataque de surpresa. A galera estava atracada a pilares fixados no
embarcadouro de pedra que avançava cem jardas para dentro do
mar. Os remos estavam armados com cuidado e Toranaga podia
ver, indistintamente, muitos marujos e guerreiros no convés.
- São nossos ou deles? - perguntou em voz baixa.
- A distância é muita para se ter certeza - respondeu
Yabu.
A maré estava alta. Além da galera, barcos de pesca aproximavam-se e partiam, com lanternas servindo de luzes de âncora
e de pesca. Ao norte, ao longo da praia, havia fileiras de barcos
de pesca de muitos tamanhos, abicados na areia e cuidados por
alguns pescadores. Quinhentos passos ao sul, ao longo de outro
embarcadouro de pedra, estava a fragata portuguesa, a Santa
Theresa. A luz dos archotes, enxames de carregadores azafamados
carregavam barris de fardos. Outro grande grupo de cinzentos
espalhava-se à toa por perto. Isso era habitual, porque todos os
navios portugueses atracados, e os estrangeiros em geral, deviam,
por lei, estar sob perpétua vigilância. Era só em Nagasaki que a
navegação portuguesa ocorria livremente.
Se a segurança pudesse ser reforçada lá, todos nós dormiríamos mais seguros à noite, disse Toranaga a si mesmo. Sim, mas
poderíamos mantê-los sob estrita vigilância e continuar tendo o
comércio com a China em índices sempre crescentes? Isso é uma
armadilha dentro da qual os bárbaros meridionais nos têm e de
onde não há escapatória, não enquanto os daimios cristãos dominarem Kyushu e os padres forem necessários. O melhor que podemos fazer é o que o táicum fez. Dar um pouco aos bárbaros,
fingir tomar de volta, tentar blefar, sabendo que, sem o comércio
com a China, a vida seria impossível.
- Com a sua permissão, senhor, atacarei imediatamente sussurrou o samurai.
- Aconselho o contrário - disse Yabu. - Não sabemos
se nossos homens estão a bordo. E poderia haver mil homens escondidos por toda parte aqui. Aqueles homens - apontou para
os cinzentos perto do navio português - darão o alarme. Nunca
conseguiríamos tomar o navio e zarpar antes que eles nos retivessem. Precisamos de dez vezes o número de homens que temos
agora.
- O Senhor Ishido logo estará informado - disse o samurai. - Então Osaka toda estará fervilhando com mais inimigos
do que moscas num campo de batalha recente. Tenho cento e
cinqüenta homens, contando com os que estão nos nossos flancos.
Serão suficientes.
- Não para que tenhamos segurança. Não se os nossos marinheiros não estiverem prontos aos remos. É melhor criar uma
situação que desvie a atenção dos cinzentos, e de quaisquer outros
que estejam escondidos. Aqueles, também - Yabu apontou novamente para os homens perto da fragata.
- Que tipo de situação? - perguntou Toranaga.
- Incendiar a rua.
- E impossível! - protestou o samurai, agastado. Incêndio
doloso era crime punível com a queima em público de toda a
família da pessoa culpada, de cada geração da família. A penalidade era a mais severa, por lei, porque um incêndio era o maior
perigo que podia haver para uma aldeia ou cidade do império.
386
387

Madeira e papel eram os únicos materiais de construção utilizados, com exceção de telhas em alguns telhados. Cada lar, cada
depósito, cada choupana e cada palácio era um isqueiro. - Não
podemos incendiar a rua!
- O que é mais importante - perguntou Yabu -, a destruição de algumas ruas ou a morte do nosso amo?
- O fogo se alastraria, Yabu-san. Não podemos queimar
Osaka. Há um milhão de pessoas aqui, mais que isso.
- É essa a sua resposta à minha pergunta?
Empalidecido, o samurai voltou-se para Toranaga: - Senhor,
farei qualquer coisa que o senhor peça. É isso o que quer que eu
faça?
Toranaga limitou-se a olhar para Yabu.
O daimio sacudiu o polegar desdenhosamente na direção da
cidade. - Há dois anos a metade dela se incendiou e olhe agora.
Há cinco anos foi o Grande Incêndio. Quantas centenas de milhares
se perderam então? O que isso importa? São apenas lojistas, mercadores, artesãos, e etas. Não é como se Osaka fosse uma aldeia
cheia de camponeses.
Toranaga havia avaliado o vento de há muito. Era leve e não
alastraria o fogo. Talvez. Mas uma labareda podia facilmente
transformar-se num holocausto, que devoraria a cidade inteira.
Exceto o castelo. Ah, se fosse apenas consumir o castelo, eu não
hesitaria nem um momento.
Girou sobre os calcanhares e voltou-se para os outros. -
Mariko-san, leve o piloto e nossos seis samurais e vá para a galera.
Finja estar quase em pânico. Diga aos cinzentos que houve uma
emboscada, de bandidos ou ronins, você não tem certeza. Digalhes onde aconteceu, que você foi mandada na frente com urgência pelo capitão da nossa escolta de cinzentos para levar mais cinzentos como ajuda, que a batalha ainda não terminou, que
você acha que Kiritsubo foi morta ou ferida. Que eles se apressem,
por favor. Se você for convincente, isso afastará daqui a maior
parte deles.
- Compreendi perfeitamente, senhor.
- Depois, não importa o que os cinzentos façam, vá para
bordo com o piloto. Se nossos marinheiros estiverem lá e o navio
seguro e protegido, volte à escada de embarque e finja desmaiar.
Esse é o nosso sinal. Faça isso exatamente no topo da escada.
- Toranaga pousou os olhos em Blackthorne. - Diga-lhe o que
você vai fazer, mas não que você vai desmaiar. - Afastou-se para
388
dar ordens ao resto de seus homens e instruções especiais aos seis
samurais.
Quando Toranaga terminou, Yabu puxou-o de parte. - Por
que mandar o bárbaro? Não seria mais seguro deixá-lo aqui? Mais
seguro para o senhor?
- Mais seguro para ele, Yabu-san, mas não para mim. Ele
é um ardil útil.
- Incendiar a rua seria ainda mais seguro.
- Sim. - Toranaga pensou que era melhor ter Yabu ao
seu lado do que ao lado de Ishido. Ainda bem que não o fiz
pular da torre ontem.
- Senhor?
- Sim, Mariko-san?
- Desculpe, mas o Anjin-san perguntou o que vai acontecer
se o navio estiver em poder do inimigo.
- Diga-lhe que não precisa ir com você se não for forte o
suficiente.
Blackthorne conservou a calma quando ela lhe disse o que
Toranaga mandara. - Diga ao Senhor Toranaga que o plano dele
não é bom para a senhora, que a senhora devia ficar aqui. Se tudo
estiver bem, eu posso dar o sinal.
- Não posso fazer isso, Anjin-san, não é o que o nosso amo
ordenou - dissê-lhe Mariko com firmeza. - Qualquer plano
idealizado por ele com certeza é muito sábio.
Blackthorne entendeu que não havia sentido em discutir.
Deus amaldiçoe a arrogância sanguinária e teimosa deles, pensou.
Mas, por Deus, que coragem eles têm! Os homens e esta mulher!
Ele a observara na emboscada, empunhando a longa espada
que tinha quase o mesmo tamanho que ela, pronta para lutar até
a morte por Toranaga. Vira-a usar a espada uma vez, com perícia, e embora fosse Buntaro quem tivesse matado o atacante, ela
lhe tornara isso mais fácil, forçando o homem a recuar. Ainda
havia sangue em seu quimono agora, rasgado em alguns lugares.
Seu rosto estava sujo.
- Onde aprendeu a usar a espada? - perguntara-lhe enquanto se apressavam na direção do embarcadouro.
- O senhor devia saber que todas as senhoras samurais
aprendem bem cedo a usar uma faca para defender a própria
honra e a de seus senhores - dissera ela simplesmente, e mostrara-lhe como o estilete era guardado no obi, pronto para uso imediato. - Mas algumas de nós, poucas, também aprendem a usar
espada e lança, Anjin-san. Alguns pais acham que as filhas, assim
389

como os filhos, devem ser preparadas para a batalha pelos seus
senhores. Claro que algumas são mais belicosas do que outras e
apreciam ir à batalha com o marido ou o pai. Minha mãe era
assim. Meu pai e ela resolveram que eu devia conhecer a espada
e a lança.
- Não fosse o capitão dos cinzentos estar no caminho, a
primeira seta teria ido bem na sua direção - dissera ele.
- Na sua direção, Anjin-san - corrigira ela, muito segura.
- Mas o senhor realmente me salvou a vida puxando-me para
a segurança.
Agora, olhando para ela, soube que não gostaria que nada
lhe acontecesse. - Deixe-me ir com os samurais, Mariko-san. A
senhora fica aqui. Por favor.
- Isso não é possível, Anjin-san.
- Então quero uma faca. Melhor ainda, dé-me duas.
Ela passou o pedido a Toranaga, que concordou. Blackthorne
escorregou uma por sob o sash, dentro do quimono. A outra,
amarrou-a com o cabo para baixo na face interna do antebraço
com uma tira de seda que rasgou da bainha do quimono.
- Meu amo pergunta se todos os ingleses portam facas secretamente na manga assim.
- Não. Mas muitos marujos sim.
- Não é comum aqui, nem com os portugueses - disse ela.
- O melhor lugar para uma faca sobressalente é a bota.
Então se pode causar um dano bem sério, muito depressa. Se
necessário.
Ela traduziu isso e Blackthorne notou os olhos atentos de
Toranaga e Yabu, e sentiu que os dois não gostaram da idéia de
vê-lo armado. Bom, pensou ele. Talvez eu possa continuar armado.
Novamente sentiu curiosidade em relação a Toranaga. Depois que a emboscada fora repelida e os cinzentos mortos, Toranaga, através de Mariko, lhe agradecera diante de todos os marrons pela sua "lealdade". Mais nada. Nenhuma promessa, nenhum
acordo, nenhuma recompensa. Mas Blackthorne sabia que isso
viria mais tarde. O velho monge lhe dissera que a lealdade era a
única coisa que eles recompensavam. - Lealdade e dever, señor
- dissera -, é o culto deles, esse bushido. Enquanto nós damos
a vida a Deus e a seu abençoado filho Jesus, e a Maria, mãe de
Deus, esses animais se dão a seus amos e morrem como cães.
Lembre-se, señor, pela salvação da sua alma, de que são animais.
Não são animais, pensou Blackthorne. E muito do que o
senhor disse, padre, é um erro e um exagero fanático.
390
- Precisamos de um sinal que diga se o navio é seguro ou
não - disse a Mariko.
Novamente ela traduziu, inocentemente desta vez. - O Senhor Toranaga diz que um dos nossos soldados fará isso.
- Não vejo bravura em mandar uma mulher para fazer o
serviço de um homem.
- Por favor, seja paciente conosco, Anjin-san. Não há diferença entre homens e mulheres. As mulheres são iguais, enquanto
samurais. Neste plano uma mulher seria muito melhor do que um
homem.
Toranaga disse concisamente alguma coisa a ela.
- Está pronto, Anjin-san? Devemos ir agora.
- O plano é péssimo e perigoso e estou cansado de ser um
maldito pato depenado sacrificai, mas estou pronto.
Ela riu, curvou-se para Toranaga, e saiu correndo. Blackthorne e os seis samurais correram atrás dela.
Ela foi muito veloz e ele não a alcançou quando dobraram
a esquina e rumaram para espaço aberto. Nunca se sentira tão
vulnerável. No momento em que apareceram, os cinzentos os
localizaram e arremeteram. Logo estavam cercados, Mariko palrando febrilmente com os samurais e os cinzentos. Depois ele
também se juntou à babel numa arquejante mistura de português,
inglês e holandês, gesticulando para que se apressassem, e tateou
na direção da escada de embarque a fim de se encostar nela, precisando fingir estar sem fôlego. Tentou ver dentro do navio, mas
não conseguiu distinguir nada, apenas muitas cabeças aparecendo
à amurada. Viu o crânio raspado de muitos samurais e muitos
marujos. Não conseguiu discernir a cor dos quimonos.
Atrás dele um dos cinzentos lhe falava rapidamente e ele
voltou-se dizendo que não compreendia, que ele fosse para lá,
depressa, para onde estava acontecendo a maldita batalha. -
Wakarimasu ka? Ponha o seu traseiro rabudo para fora daqui!
Wakarimasu ka? A luta é lá!
Mariko derramava freneticamente uma enxurrada de palavras
sobre o oficial superior dos cinzentos. O oficial encaminhou-se de
volta ao navio e gritou ordens. Imediatamente mais de cem samurais, todos cinzentos, começaram a brotar do navio. O oficial
mandou alguns para norte, ao longo da praia, para interceptar os
feridos e ajudá-los se necessário. Um foi enviado às pressas para
buscar ajuda dos cinzentos da galera portuguesa. Deixando dez
homens para trás a fim de guardar a escada de embarque, coman391

dou os demais numa investida à rua que subia coleando do embarcadouro, rumo à cidade propriamente dita.
Mariko aproximou-se de Blackthorne. - O navio lhe parece
em ordem? - perguntou.
- Está flutuando. - Com um grande esforço Blackthorne
agarrou as cordas da escada e se içou para o convés. Mariko
seguiu-o. Dois marrons vieram atrás dela.
Os marujos que se amontoavam junto à amurada de bombordo abriram caminho. Quatro cinzentos guardavam o tombadilho e havia mais dois na popa. Estavam todos armados de arco
e flechas, assim como de espadas.
Mariko interrogou um dos marinheiros. O homem respondeu-lhe serviçalmente. - São todos marinheiros contratados para
levar Kiritsubo-san para Yedo - disse a Blackthorne.
- Perguntê-lhe... - Blackthorne parou ao reconhecer o
pequeno e atarracado imediato que fizera capitão da galera depois
da tempestade.
- Konbanwa, capitão-san! Boa noite.
- Konbanwa, Anjin-san. Watashi iyé capitão-san ima -
retrucou o imediato com um sorriso, abanando a cabeça. Apontou para um marinheiro baixinho com o cabelo cinza-ferro preso
numa cauda eriçada, que se erguia sozinho no tombadilho. -
Imasu capitão-san!
- Ah, so desu? Halloa, capitão-san! - disse alto Blackthorne, curvando-se. Baixando a voz, disse a Mariko: - Descubra
se há cinzentos lá embaixo.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o capitão estava
retribuindo a mesura e gritava ao imediato. Este assentiu e respondeu pormenorizadamente. Alguns dos marinheiros também expressaram seu assentimento. O capitão e todos a bordo estavam
muito impressionados.
- Ah, so desu, Anjin-san! - Então o capitão gritou: -
Keirei! Saudação! - Todos a bordo, exceto os samurais, curvaram-se para Blackthorne em saudação.
- Este imediato disse ao capitão que o senhor salvou o
navio durante a tempestade - disse Mariko. - O senhor não
nos contou sobre a tempestade nem sobre a sua viagem.
- Há pouco que contar. Foi apenas mais uma tempestade.
Por favor, agradeça ao capitão e diga-lhe que estou feliz por me
encontrar a bordo de novo. Perguntê-lhe se estamos prontos para
partir quando os outros chegarem. - E acrescentou em voz baixa:
- Descubra se há mais cinzentos lá embaixo.
392
Ela fez conforme o ordenado.
O capitão aproximou-se e ela pediu mais informações e depois, pegando a deixa do capitão sobre a importância de Blackthorne a bordo, curvou-se para Blackthorne: - Anjin-san, ele lhe
agradece pela vida de seu navio e diz que estão prontos - e mais
baixo: - quanto ao resto, ele não sabe.
Blackthorne deu uma olhada na praia. Não havia sinal de
Buntaro nem da coluna ao norte. Os samurais enviados ao sul, na
direção do Santa Theresa, ainda se encontravam a umas cem jardas do seu destino, ainda despercebidos. - E agora? - disse ele,
quando já não conseguia agüentar a espera.
O navio está seguro? Resolva-se, dizia ela a si mesma.
- Aquele homem chegará lá a qualquer momento - disse
ele, olhando para a fragata.
- O quê?
Ele apontou. - Aquele... o samurai!
- Que samurai? Desculpe, não consigo enxergar a essa distância, Anjin-san. Posso ver tudo no navio, embora os cinzentos
na dianteira do navio estejam nebulosos. Que homem?
Ele lhe disse, acrescentando em latim: - Agora ele está a
uns cinqüenta passos de distância. Foi visto. Precisamos de ajuda
seriamente. Quem dá o sinal? Deve ser dado rapidamente!
- Meu marido, há algum sinal dele? - perguntou ela em
português.
Ele meneou a cabeça.
Dezesseis cinzentos erguem-se entre meu amo e a segurança,
pensou ela. Oh, minha Nossa Senhora, proteja-o!
Então, encomendando a alma a Deus, receosa de estar tomando a decisão errada, ela se dirigiu debilmente para o topo da
escada de embarque e fingiu desmaiar.
Blackthorne foi pego de surpresa. Viu a cabeça dela bater
desagradavelmente contra os sarrafos de madeira. Os marinheiros
começaram a se aglomerar, cinzentos convergiram do ancoradouro
e dos conveses, enquanto ele acorria. Levantou-a e carregou-a por
entre os homens, para o tombadilho.
- Tragam água... água, hai?
Os marujos olhavam-no sem compreender. Desesperado, ele
rebuscou na memória à procura da palavra japonesa. O velho
monge lhe dissera cinqüenta vezes. Cristo, como é? - Oh .. .
mizu, mizu, hai?
- Ah, mizu! Hai, Anjin-san. - Um homem se afastou às
carreiras. Houve um súbito grito de alarme.
393

Em terra, trinta dos samurais de Toranaga disfarçados de
ronins vinham disparados da viela. Os cinzentos que haviam começado a deixar o cais voltaram às pressas para junto da escada.
Os que estavam no tombadilho e na popa espicharam o pescoço
para ver melhor. Abruptamente um gritou ordens. Os arqueiros
armaram os arcos. Todos os samurais, marrons e cinzentos lá embaixo, sacaram as espadas, e muitos acorreram de volta ao molhe.
- Bandidos! - gritou um dos marrons, seguindo o plano.
Imediatamente os dois marrons no convés se separaram, um indo
para a frente, outro para a popa. Os quatro em terra se desdobraram em leque, misturando-se com os cinzentos à espera.
- Alto!
Os samurais ronins de Toranaga investiram. Uma seta atingiu um homem no peito e ele caiu pesadamente. Instantaneamente
o marrom na popa matou o arqueiro cinzento e se lançou sobre
o outro, mas este foi mais rápido e eles travaram espadas, o cinzento gritando uma advertência de traição aos outros. O marrom
no tombadilho de popa havia mutilado um dos cinzentos, mas os
outros tres o liquidaram rapidamente e correram para o topo da
escada, marujos se dispersando. Os samurais no embarcadouro
lutavam encarniçadamente, com os cinzentos sobrepujando os quatro marrons, sabendo que tinham sido traídos e que, a qualquer
momento, também eles seriam engolidos pelos atacantes. O líder
dos cinzentos no convés, um homenzarrão violento de barba grisalha, encarou Blackthorne e Mariko.
- Matem os traidores! - vociferou ele e, com um grito de
batalha, arremeteu.
Blackthorne vira-os olhar para Mariko, ainda deitada no seu
desmaio, todos com a morte nos olhos, e entendeu que, se não
conseguisse auxílio depressa, logo estariam ambos mortos, e que
o auxílio não viria dos marujos. Ele se lembrou de que apenas
samurais podiam lutar com samurais. Deslizou a faca para a mão
o arremessou-a num arco. Atingiu o samurai na garganta. Os
outros dois cinzentos arremeteram contra Blackthorne, espada em
riste. Ele empunhou a segunda faca e fincou pé junto de Mariko,
sabendo que não ousaria deixá-la desprotegida. Olhando de soslaio, viu que a batalha pela escada de costado estava quase vencida. Apenas três cinzentos ainda defendiam a ponte, apenas esses
três impediam o auxílio de afluir para bordo. Se ele pudesse continuar vivo por menos de um minuto, estaria salvo, e ela também.
Matem-nos, matem os bastardos!
394
Sentiu, mais do que viu, a espada descendo sobre a garganta
o pulou para trás, para fora do caminho da arma. Um cinzento
tentara transpassá-lo, enquanto o outro, hesitante, atacava Mariko,
espada erguida. Nesse momento Blackthorne viu Mariko recobrar
os sentidos. Ela se atirou contra as pernas do desprevenido samurai, fazendo-o estatelar-se no convés. Depois, arrastando-se por
sobre o cinzento morto, agarrou-lhe a espada da mão que ainda
se contraía e investiu contra o guarda com iim grito. O cinzento
se pusera em pé de novo e, urrando de raiva, atacou-a. Ela recuou
o golpeou bravamente, mas Blackthorne sabia que ela estava perdida, já que o homem era forte demais. De algum modo Blackthorne evitou outro golpe mortal do seu próprio antagonista,
afastou-o com um pontapé e lançou a faca contra o atacante de
Mariko. Acertou o homem nas costas, fazendo-o desviar-se do
alvo. Logo em seguida Blackthorne se viu no tombadilho, indefeso
o encurralado, um cinzento saltando os degraus na sua direção, o
outro, que acabara de vencer a luta na popa, correndo para cima
dele ao longo do convés. Ele saltou para a amurada e a segurança
do mar, mas escorregou no convés molhado de sangue.
Mariko, lívida, fitava de olhos arregalados o imenso samurai
que ainda a tinha acuada, oscilando sobre os pés, sua vida escoando-se depressa, mas não depressa o bastante. Ela o atacou
com todas as forças, mas ele aparou o golpe, segurou-lhe a espada e arrancou-lhe a arma das mãos. Reuniu suas últimas forças
o deu o bote no momento em que os samurais ronins irromperam
pela escada acima, por sobre os cinzentos mortos. Um se atracou
ao atacante de Mariko, outro disparou uma seta na direção do
tombadilho.
A seta dilacerou as costas do cinzento, fazendo-o perder o
equilíbrio com violência, e sua espada desviou-se de Blackthorne,
indo atingir a amurada. Com dificuldade Blackthorne tentou se
afastar, mas o homem alcançou-o, arrastou-o para o convés e
cravou-lhe os dedos nos olhos. Outra seta atingiu o segundo cinzento no ombro e ele largou a espada, gritando de dor e raiva,
tentando em vão arrancar a flecha. Uma terceira seta fê-lo contorcer-se. O sangue jorrou-lhe da boca aos borbotões e, sufocado,
os olhos vítreos, o samurai tateou rumo a Blackthorne e caiu sobre
ele quando o último cinzento chegou para a matança, uma curta
faca pontuda nas mãos. Desferiu o golpe, Blackthorne indefeso,
mas uma mão amiga segurou o braço da faca, depois a cabeça
do inimigo desapareceu de cima do pescoço, cedendo lugar a um
jorro de sangue. Os dois cadáveres foram puxados de cima de
395

Blackthorne e ele foi posto de pé. Enxugando o sangue do rosto,
viu vagamente que Mariko estava estendida no convés, samurais
ronins agitando-se em torno dela. Ele se soltou dos que o ajudavam e cambaleou na direção dela, mas seus joelhos cederam e ele
desabou.
CAPÍTULO 25
Blackthorne levou uns bons dez minutos para recuperar forças suficientes que lhe permitissem erguer-se sem auxilio. Nesse
meio tempo os samurais ronins liquidaram os feridos graves e
lançaram todos os cadáveres ao mar. Os seis marrons haviam perecido, e todos os cinzentos. Limparam o navio e deixaram-no
pronto para partida imediata; puseram os marujos aos remos e
postaram alguns junto dos pilares, esperando para soltar as cordas
de atracação. Todos os archotes tinham sido apagados. Alguns
samurais foram mandados para patrulhar a praia ao norte, a fim
de interceptar Buntaro. O grosso dos homens de Toranaga correu
na direção sul, para um quebra-mar de pedra, a uns duzentos
passos de distância, onde tomaram uma forte posição de defesa
contra os cem cinzentos da fragata que, tendo visto o ataque,
aproximavam-se velozmente.
Quando todos a bordo tinham sido conferidos e reconferidos, o líder pos as mãos em concha em torno dos lábios e chamou na
direção da praia. Imediatamente mais samurais disfarçados de
ronins, comandados por Yabu, saíram da noite e se desdobraram
em escudos protetores, a norte e a sul. Depois Toranaga apareceu
e começou a caminhar lentamente na direção da escada de embar
que, sozinho. Descartara-se do quimono de mulher e da capa
escura de viagem, e removera a maquilagem. Agora usava a sua
armadura, e sobre ela um quimono marrom simples, espadas ao
sash. A brecha atrás dele era fechada pelos últimos dos seus guar
das e a falange movia-se com passo comedido rumo ao molhe.
Bastardo, pensou Blackthorne. Você é um bastardo cruel, de
tripas geladas, sem coração, mas tem majestade, não há dúvida.
Vira Mariko ser carregada para baixo, ajudada por uma
jovem, e presumira que estivesse ferida, mas não gravemente, por
que todos os samurais com ferimentos graves eram mortos ime
396
diatamente, se quisessem, ou se não pudessem se matar, e ela era
samurai.
Tinha as mãos muito fracas, mas agarrou o leme, aprumou-se
ajudado por um marinheiro, e sentiu-se melhor, a leve brisa dissipando os vestígios de náusea. Ainda atordoado, oscilando sobre
os pés, observou Toranaga.
Houve um súbito clarão vindo do torreão e o débil ecoar de
sinos de alarme. Depois, dos muros do castelo, fogos começaram
a se lançar para as estrelas. Fogos de aviso.
Jesus Cristo, eles devem ter recebido a notícia, devem ter
sabido da fuga de Toranaga.
Em meio ao grande silêncio, viu Toranaga olhar para trás
e para cima. Luzes começaram a bruxulear por toda a cidade.
Sem pressa, Toranaga voltou-se e subiu a bordo.
Do norte, gritos distantes desciam com o vento. Buntaro!
Deve ser ele, com o resto da coluna. Blackthorne perscrutou a
escuridão à distância, mas não conseguiu ver nada. Ao sul a brecha entre os cinzentos atacantes e os marrons defensores estava
se fechando rapidamente. Blackthorne avaliou quantidades. Mais
ou menos iguais no momento. Mas por quanto tempo?
- Keirei! - Todos a bordo se ajoelharam e se curvaram
profundamente quando Toranaga veio ao convés. Toranaga fez
um gesto a Yabu, que o seguia. Imediatamente Yabu tomou o
comando, dando ordens para zarpar. Cinqüenta samurais da falange subiram correndo a escada de embarque para tomar posições
de defesa, de frente para a praia, armando os arcos.
Blackthorne sentiu alguém puxar-lhe a manga.
- Anjin-san!
- Hai? - Olhou para o rosto do capitão. O homem proferiu uma torrente de palavras, apontando para o leme. Blackthorne percebeu que o capitão presumia que ele estivesse no comando e pedia permissão para zarpar.
- Hai, capitão-san - respondeu. - Levantar ferros! Isogi!
- Sim, depressa, disse a si mesmo, perguntando-se como conseguira lembrar a palavra tão facilmente.
A galera afastou-se lentamente do molhe, ajudada pelo vento
e impelida pelos hábeis remadores. Então Blackthorne viu os
cinzentos atacarem o quebra-mar, e o violento assalto começou.
Naquele instante, saindo da escuridão por trás de um alinhamento
de botes encalhados na areia surgiram três homens e uma jovem
enredados num combate de retirada com nove cinzentos. Blackthorne reconheceu Buntaro e a jovem Sono.
397

Buntaro liderava a retirada para o molhe, a espada ensangüentada, setas fincadas na armadura sobre o peito e as costas. A
garota estava armada com uma lança, mas cambaleava, sem fôlego. Um dos marrons parou corajosamente para cobrir a retirada.
Os cinzentos o engoliram. Buntaro subiu correndo os degraus,
a garota ao lado dele com o último marrom, depois se voltou e
atacou os cinzentos como um touro enlouquecido. Os dois primeiros foram arremessados para fora do ancoradouro: um quebrou
as costas contra as pedras embaixo, o outro caiu berrando, sem
o braço direito. Os cinzentos hesitaram momentaneamente, dando
à jovem tempo para assestar a lança, mas todos a bordo sabiam
que era apenas um gesto. O último marrom se precipitou à frente
do amo e se lançou de cabeça contra o inimigo. Os cinzentos o
liquidaram, depois atacaram maciçamente.
Arqueiros do navio disparavam saraivada atrás de saraivada,
matando ou mutilando todos os cinzentos menos dois. Uma espada ricocheteou no elmo de Buntaro e bateu-lhe no ombro da
armadura. Buntaro golpeou o cinzento sob o queixo com o antebraço protegido de armadura, quebrando-lhe o pescoço, e se atirou contra o último.
Esse homem também morreu.
A garota estava de joelhos agora, tentando recobrar o fôlego.
Buntaro não perdeu tempo certificando-se de que os cinzentos
estavam mortos. Simplesmente decepou-lhes a cabeça com golpes
únicos, perfeitos, e depois, quando o molhe estava completamente
seguro, voltou-se para o mar, acenou para Toranaga, exausto
mas feliz. Toranaga retribuiu o aceno, igualmente satisfeito.
O navio estava a vinte jardas do molhe e a brecha continuava
se alargando.
- Capitão-san - chamou Blackthorne, gesticulando com
urgência -, volte ao ancoradouro! Isogi!
Obediente, o capitão gritou as ordens. Todos os remos pararam e começaram a se mover em sentido contrário. Imediatamente
Yabu arremeteu do outro lado do tombadilho e falou energicamente ao capitão. A ordem foi clara. O navio não devia retornar.
- Há muito tempo, pelo amor de Cristo! Olhe! - Blackthorne apontou para o trecho de terra batida, vazio, e o quebramar, onde os ronins estavam mantendo os cinzentos cercados.
Mas Yabu balançou a cabeça.
O afastamento era de trinta jardas agora e a mente de
Blackthorne gritava: o que é que há com você? Aquele é Buntaro,
o marido dela! - Você não pode deixá-lo morrer, é um dos
398
nossos! - gritou para Yabu e para o navio. - Ele! Buntaro! -
Voltou-se para o capitão. - De volta para lá. Isogi! - Mas
desta vez o marujo meneou a cabeça, sem ação, manteve a rota
de fuga e o mestre remador continuou a bater no grande tambor.
Blackthorne correu para Toranaga, que estava de costas para
ele, estudando a praia e o ancoradouro. Imediatamente quatro
samurais guarda-costas se puseram no caminho do piloto, espadas
levantadas. Ele chamou: - Toranaga-sarna! Dozo! Ordene que
o navio volte! Lá! Dozo - por favor! Volte!
- Iyé, Anjin-san. - Toranaga apontou uma vez para os
archotes de aviso no castelo e uma vez para o quebra-mar, e deulhe as costas de novo com determinação.
- Por que você, seu covarde de merda... - começou
Blackthorne, mas parou. Saiu correndo para a amurada e se
debruçou. - Naaaaadem! - gritou ele, fazendo os gestos. -
Nadem, pelo amor de Cristo!
Buntaro compreendeu. Pôs a jovem em pé, falou-lhe e empurrou-a ligeiramente na direção da beirada do ancoradouro, mas
ela gritou e caiu de joelhos diante dele. Obviamente não sabia
nadar.
Desesperadamente Blackthorne esquadrinhou o convés. Não
havia tempo para descer um bote. A distância era muita para
atirar uma corda. Ele não tinha forças suficientes para nadar até
lá e voltar. Não havia salva-vidas. Como um último recurso,
correu para os remadores mais próximos, dois a cada grande
remo, e interrompeu-lhes o movimento. Todos os remos a bombordo ficaram momentaneamente fora de tempo, remo batendo
contra remo. A galera girou desajeitadamente, a batida parou,
e Blackthorne mostrou aos remadores o que queria.
Dois samurais avançaram para contê-lo, mas Toranaga ordenou-lhes que se afastassem.
Juntos, Blackthorne e quatro marujos atiraram um remo
como um dardo. A madeira planou um instante, depois chocou-se
com a água habilmente, e o seu impulso carregou-a para o ancoradouro.
Naquele momento houve um grito de vitória no quebra-mar.
Reforços de cinzentos afluíam rapidamente da cidade e, embora
os samurais ronins estivessem rechaçando os atacantes presentes,
era apenas uma questão de tempo para que o muro fosse rompido.
- Vamos - gritou Blackthorne. - Isogüü!
Buntaro puxou a garota, fazendo-a levantar-se, apontou para
o remo e depois para o navio. Ela se curvou debilmente. Ele a
399

ignorou e voltou toda a atenção para a batalha, suas pernas
imensas firmes sobre o molhe.
A garota chamou alguém no navio. Uma voz de mulher
respondeu e ela pulou. Sua cabeça feriu a superfície. Ela se
debateu na direção do remo e agarrou-o. Ele lhe agüentou o peso
com facilidade e ela deu impulso com as pernas. Uma pequena
onda apanhou-a, Sono flutuou sobre ela com segurança e se
aproximou mais da galera. Então o medo fez que afrouxasse o
aperto e o remo escorregou para longe. Ela se debateu por um
momento interminável, depois desapareceu abaixo da superfície.
Não voltou mais.
Buntaro estava sozinho agora sobre o ancoradouro e observava a evolução da batalha. Mais cinzentos de reforço, alguns
a cavalo, vinham do sul para se unir aos outros e ele sabia que
logo o quebra-mar seria tragado por um mar de homens. Cuidadosamente olhou para o norte, oeste e sul. Depois deu as costas
à batalha e se dirigiu para a ponta do molhe. A galera estava
seguramente a setenta jardas dessa extremidade, parada, esperando. Todos os barcos de pesca haviam sumido da área há muito
tempo e esperavam tão longe quanto possível de ambos os lados
da enseada, suas luzes de âncora parecendo inúmeros olhos de
gatos na escuridão.
Quando atingiu o fim do cais, Buntaro tirou o elmo, o arco,
a aljava e a armadura, e colocou tudo ao lado das bainhas. A
espada mortífera e a espada curta, nuas, ele as colocou separadamente. Depois, despido até a cintura, apanhou seu equipamento
e atirou-o ao mar. Examinou reverentemente a espada mortífera,
depois jogou-a com toda a força, bem longe. Desapareceu quase
sem ruído.
Ele se curvou formalmente para a galera, para Toranaga,
que se dirigiu imediatamente para o tombadilho, onde podia ser
visto. Retribuiu a reverência.
Buntaro ajoelhou-se e colocou a espada curta cuidadosamente
sobre a pedra à sua frente, o luar rutilando sobre a lâmina, e
ficou imóvel, quase que como em oração, encarando a galera.
- Que diabos ele está esperando? - resmungou Blackthorne, a galera lugubremente silenciosa sem a batida do tambor.
- Por que não pula e nada?
- Está se preparando para cometer seppuku.
Mariko estava em pé ao seu lado, sustentada por uma jovem.
- Jesus, Mariko, a senhora está bem?
400
- Sim - disse ela, mal o ouvindo, o rosto abatido mas nem
por isso menos belo.
Ele viu a atadura grosseira no seu braço esquerdo perto do
ombro onde a manga fora cortada, o braço descansando numa
tipóia de tecido rasgado de um quimono. Havia sangue manchando a atadura e um filete correndo-lhe pelo braço.
- Estou muito contente... - Então apreendeu o que ela
dissera. - Seppuku? Ele vai se matar? Por quê? Ele tem tempo
de sobra para chegar até aqui! Se não souber nadar, olhe... há
um remo que lhe servirá facilmente de apoio. Ali, perto do molhe,
está vendo? A senhora não ve?
- Sim, mas meu marido sabe nadar, Anjin-san - disse ela.
- Todos os oficiais do Senhor Toranaga devem. .. devem aprender, ele insiste. Mas resolveu não nadar.
- Pelo amor de Cristo, por quê?
Uma súbita agitação irrompeu na praia, alguns mosquetes
dispararam, e o muro foi rompido. Alguns dos samurais ronins
recuaram e o feroz combate individual começou de novo. Desta
vez a ponta de lança do inimigo foi contida, e repelida.
- Diga-lhe que nade, por Deus
- Ele não fará isso, Anjin-san. Está se preparando para
morrer.
- Se quer morrer, pelo amor de Cristo, por que não vai
para lá? - perguntou Blackthorne, de dedo em riste para a luta.
- Por que não ajuda os seus homens? Se quer morrer, por que
não morre lutando, como um homem?
Mariko, sempre apoiada à jovem, não desviou o olhar do
ancoradouro.
- Porque poderia ser capturado, e se nadasse também poderia ser capturado, e depois o inimigo o exibiria diante do povo
comum, o envergonharia, faria coisas terríveis. Um samurai não
pode ser capturado e permanecer samurai. 1. a pior desonra, ser
capturado por um inimigo, por isso meu marido está fazendo o
que um homem, um samurai, deve fazer. Um samurai morre com
dignidade. Pois o que é a vida para um samurai? Nada em
absoluto. A vida é sofrimento, neh? É direito e dever dele morrer
com honra, diante de testemunhas.
- Que desperdício estúpido! - disse Blackthorne por entre
dentes.
- Seja paciente conosco, Anjin-san.
- Paciente para quê? Para mais mentiras? Por que a senhora não confia em mim? Não mereci isso? A senhora mentiu,
401

não mentiu? Fingiu desmaiar e isso era um sinal. Não era? Eu lhe
perguntei e a senhora mentiu.
- Recebi ordens... foi uma ordem para protegê-lo. Claro
que confio no senhor.
- A senhora mentiu - disse ele, sabendo que não estava
sendo razoável, mas perdera o controle, abominando a insana
desconsideração para com a vida e ansiando por sono e paz,
ansiando pela sua própria comida, sua própria bebida, seu próprio
barco e sua própria espécie. - Voces são todos animais - disse
ele em inglês, sabendo que não eram, e se afastou.
- O que ele estava dizendo, Mariko-san? - perguntou a
jovem, a muito custo disfarçando a própria repugnância. Era meia
cabeça mais alta do que Mariko, de ossatura maior, de rosto
quadrado com pequenos dentes pontiagudos. Era Usagi Fujiko,
sobrinha de Mariko, e tinha dezenove anos.
Mariko contou-lhe.
- Que homem horrível! Que maneiras abomináveis! Repulsivo, neh? Como a senhora tolera estar perto dele?
- Porque salvou a honra do nosso amo. Sem a sua bravura,
estou certa de que o Senhor Toranaga teria sido capturado...
nós todos teríamos sido capturados. - As duas mulheres estremeceram.
- Os deuses nos protejam dessa vergonha! - Fujiko deu
uma olhada em Blackthorne, que estava encostado à amurada do
convés, olhando a praia. Observou um momento. - Ele parece
um gorila dourado com olhos azuis... uma criatura para assustar
as crianças. Horrendo, neh? - Fujiko teve um calafrio, desviou
a atenção dele e olhou novamente para Buntaro. Após um momento, disse: - Invejo seu marido, Mariko-san.
- Sim - respondeu Mariko tristemente. - Mas gostaria
que ele tivesse um assistente. - Por costume outro samurai
sempre assistia a um seppuku, erguendo-se logo atrás do homem
ajoelhado, para decapitá-lo com um único golpe antes que a
agonia se tornasse insuportável e incontrolável e portanto envergonhasse o homem no momento supremo da sua vida. Sem um
auxiliar, poucos homens conseguiam morrer sem desonra.
- Karma - disse Fujiko.
- Sim. Tenho pena dele. Era a única coisa que temia: não
ter um assistente.
- Temos mais sorte do que os homens, neh? - As mulheres samurais cometiam seppuku enfiando a faca na garganta e
por isso não precisavam de assisténcia.
402
- Sim - disse Mariko.
Berros e gritos de batalha vieram soprados pelo vento, distraindo-os. O quebra-mar foi novamente rompido. Uma pequena
companhia de cinqüenta samurais ronins de Toranaga surgiu em
disparada do norte, com alguns cavaleiros entre eles. Novamente
a ruptura foi ferozmente contida, os atacantes rechaçados e mais
alguns momentos ganhos.
Tempo para que? estava se perguntando Blackthorne com
amargura. Toranaga está seguro agora. Está ao mar. Traiu a todos
voces.
O tambor começou de novo.
Os remos feriram a água, a proa afundou e começou a cortar
as ondas, e logo surgiu um sulco à ré. Fogos de aviso ainda
ardiam em cima dos muros do castelo. Quase toda a cidade estava
desperta.
A massa principal de cinzentos atacou o quebra-mar. Os
olhos de Blackthorne dirigiram-se para Buntaro. - Seu pobre
bastardo! - disse em ingles. - Pobre e estúpido bastardo!
Girou sobre os calcanhares e caminhou ao longo do convés
principal, em direção à proa, à espreita de recifes à frente. Ninguém, exceto Fujiko e o capitão, notou-o afastando-se do tombadilho.
Os remadores puxavam com excelente disciplina e o navio
avançava. O mar estava excelente, o vento favorável. Blackthorne
provou o sal e sentiu-o com alegria. Então detectou os navios
aglomerados à boca da enseada, meia légua à frente. Barcos
de pesca, sim, mas apinhados de samurais.
- Estamos enrascados - disse em voz alta, sabendo de
algum modo que se tratava de inimigos.
Blackthorne olhou para trás. Os cinzentos calmamente escalavam o quebra-mar, enquanto outros rumavam sem pressa para
o molhe, em direção de Buntaro, mas quatro cavaleiros - marrons - surgiram a galope pelo trecho de terra batida, vindos
do norte, com um quinto cavalo, um cavalo sobressalente, puxado
pelo comandante. Esse homem subiu com estrépito os largos degraus de pedra do embarcadouro com o cavalo sobressalente e
percorreu-lhe toda a extensão enquanto os outros tres se atiravam
contra os cinzentos invasores.
Buntaro também havia olhado em torno, mas permanecia
ajoelhado e, quando o homem susteve as rédeas atrás dele, afastou-o com um gesto e segurou a faca com ambas as mãos, a
lâmina voltada para o corpo.
403

Imediatamente Toranaga pôs as mãos em concha e gritou:
- Buntaro-san! Vá com eles agora! Tente escapar!
O grito estendeu-se sobre as ondas, foi repetido, e Buntaro
o ouviu claramente. Hesitou, atordoado, a faca suspensa no ar.
Novamente o chamado, insistente e imperioso.
Com esforço Buntaro se arrancou do mundo da morte e
gelidamente contemplou a vida e a fuga que era ordenada. O
risco era grande. Melhor morrer aqui, disse a si mesmo. Toranaga
não sabe disso? Aqui está uma morte honrosa. Lá, a captura
quase certa. Fugir para onde? Trezentas ris até Yedo? A captura
é certa!
Sentiu a força do braço, viu a adaga firme, decidida, a ponta
aguçada pairando perto do seu abdome nu, e ansiou pela agonia
libertadora da morte, afinal. Finalmente uma morte para expiar
toda a vergonha: a vergonha por seu pai se ajoelhando diante
do estandarte de Toranaga, quando deviam ter-se mantido fiéis
a Yaemon, herdeiro do táicum, conforme haviam jurado; a vergonha por haver matado tantos homens que honradamente serviam
à causa do táicum contra o usurpador, Toranaga; a vergonha pela
mulher, Mariko, e pelo único filho, ambos maculados para sempre, o filho por causa da mãe e ela por causa do pai, o monstruoso
assassino, Akechi Jinsai. E a vergonha de saber que por causa
deles seu próprio nome estava conspurcado para sempre.
Quantos milhares de agonias não suportei por causa dela?
Sua alma clamava pelo esquecimento. Agora tão perto, fácil,
honroso.
A próxima vida será melhor; como poderia ser pior?
Ainda assim, pousou a faca e obedeceu, e se lançou de volta
ao precipício da vida. Seu suserano ordenara o último sofrimento
e decidira cancelar a sua tentativa de encontrar a paz. O que mais
existe para um samurai além da obediência?
Levantou-se de repente, saltou para a sela, fincou os calcanhares nos flancos do cavalo e, junto com o outro homem, disparou. Outros ronins a cavalo saíram a galope da noite a fim de
guardar-lhes a retirada e liquidar os cinzentos na liderança. Depois
também desapareceram, com alguns cavaleiros cinzentos a persegui-los.
Uma gargalhada irrompeu por todo o navio.
Toranaga martelou a amurada com o punho, alegremente;
Yabu e os samurais riam a bandeiras despregadas. Até Mariko ria.
- Um homem se safou, mas e os mortos todos? - gritou
Blackthorne enraivecido. - Olhem para a praia... deve haver
404
trezentos, quatrocentos corpos lá. Olhem para eles, pelo amor de
Cristo!
Mas o seu grito não varou a gargalhada.
Então um grito de alarme do vigia de proa. E o riso extinguiu-se.
CAPÍTULO 26
- Podemos passar através deles, capitão? - perguntou
Toranaga calmamente. Estava observando os barcos de pesca
agrupados quinhentas jardas à frente, e a sedutora passagem que
haviam deixado entre si.
- Não, senhor.
- Não temos alternativa - disse Yabu. - Não há mais
nada que possamos fazer. - Olhou para trás para os cinzentos
concentrados que esperavam na praia .e no molhe, seus insultos
indistintos e escarnecedores cavalgando o vento.
Toranaga e Yabu encontravam-se na popa. O tambor silenciara e a galera arrastava-se em mar brando. Todos a bordo
esperavam para ver o que seria resolvido. Sabiam que estavam
encurralados. Em terra, catástrofe, à frente, catástrofe, se esperassem, catástrofe. A rede se fecharia cada vez mais e então seriam
capturados. Se fosse necessário, Ishido poderia esperar dias.
Yabu estava espumando. Se tivéssemos corrido para a boca
da enseada assim que embarcamos, ao invés de desperdiçar tempo
com Buntaro, estaríamos em segurança ao mar agora, dizia a si
mesmo. Toranaga está perdendo os miolos. Ishido acreditará que
o traí. Não há nada que eu possa fazer - a menos que consigamos abrir caminho, e ainda assim estou comprometido a lutar
por Toranaga contra Ishido. Nada que eu possa fazer. Exceto dar
a Ishido a cabeça de Toranaga. Neh? Isso faria de você um
regente e lhe traria o Kwanto, neh? E então, com os seis meses
de tempo e os samurais com mosquetes, por que não até presidente do conselho de regentes? Ou por que não o grande prêmio?
Eliminar Ishido e tornar-se general-chefe do herdeiro, senhor
protetor e governador do Castelo de Osaka, o general responsável
por toda a lendária riqueza do torreão, com poder sobre o impé405

rio durante a minoridade de Yaemon, e depois com poder inferior
apenas ao de Yaemon. Por que não?
Ou até o maior prêmio de todos: xógum. Elimine Yaemon e
você será xógum.
Tudo por uma única cabeça e alguns deuses benevolentes!
Os joelhos de Yabu se sentiram fracos à medida que sua
cobiça se elevava. Tão fácil de fazer, pensou ele, mas não há
como tomar a cabeça e escapar - ainda não há.
- Ordenar posições de ataque! - comandou Toranaga finalmente.
Quando Yabu deu as ordens e os samurais começaram a se
preparar, Toranaga voltou a atenção para o bárbaro, que ainda
estava perto da popa, onde parara quando o alarme fora dado,
encostado ao curto mastro principal.
Gostaria de poder compreendê-lo, pensou Toranaga. Num
momento tão corajoso, no momento seguinte tão fraco. Num momento tão valioso, no momento seguinte tão inútil. Num momento
matador, no momento seguinte covarde. Num momento dócil,
no momento seguinte perigoso. Ele é homem e mulher, yang e
yin. Não é mais que forças opostas, e imprevisível.
Toranaga estudara-o cuidadosamente durante a escapada do
castelo, durante a emboscada e depois. Ouvira de Mariko, do
capitão e dos outros o que acontecera durante a luta a bordo.
Testemunharam a sua raiva surpreendente há poucos momentos,
quando Buntaro fora deixado para trás, ouvira o grito e vira
com olhos furtivos a censura estampada no rosto do homem, e
depois, quando deveria ter havido riso, apenas raiva.
Por que não rir quando um inimigo é batido em esperteza?
Por que não rir para afastar a tragédia para longe quando o
karma interrompe a bela morte de um autêntico samurai, quando
o karma causa a morte inútil de uma linda garota? Não é apenas
através do riso que nos tornamos um com os deuses e assim podemos suportar a vida e superar todo o horror, o desperdício e o
sofrimento aqui na terra? Como nesta noite, assistindo ao encontro daqueles homens com seu destino, ali, naquela praia, naquela
noite suave, devido a um karma ordenado mil vidas atrás, ou
talvez há apenas uma.
Não é apenas através do riso que podemos permanecer humanos?
Por que o piloto não percebe que também é governado por
karma, assim como eu sou, como todos somos, como até esse
Jesus Cristo foi, pois se se soubesse a verdade se saberia que foi
406
apenas o seu karma que o fez morrer desonrado como um criminoso comum, entre outros criminosos comuns, na colina de que
os padres bárbaros falam.
Tudo karma.
Que barbaridade pregar um homem a um pedaço de madeira
e esperar que ele morra. São piores que os chineses, que se comprazem com a tortura.
- Perguntê-lhe, Yabu-san! - disse Toranaga.
- Senhor?
- Perguntê-lhe o que fazer. Ao piloto. Isto não e uma
batalha marítima? O senhor não me disse que o piloto é um gênio
ao mar? Ótimo, vejamos se o senhor tem razão. Deixe-o provar isso.
A boca de Yabu era apenas uma linha cruel e apertada,
Toranaga podia sentir o medo do homem e se deliciou com isso.
- Mariko-san - vociferou Yabu. - Pergunte ao piloto
como sair... como passar por entre aqueles navios.
Obedientemente Mariko afastou-se da amurada, a garota ainda lhe servindo de apoio. - Não, estou bem agora, Fujiko-san
- disse ela. - Obrigada. - Fujiko deixou-a ir e olhou Blackthorne com desagrado.
- Ele diz "com canhões", Yabu-san - disse Mariko.
- Diga-lhe que ele terá que fazer melhor do que isso se
quiser conservar a cabeça!
- Devemos ser pacientes com ele, Yabu-san - interrompeu Toranaga. - Mariko-san, diga-lhe polidamente o seguinte:
"Lamentavelmente não temos canhões. Não há outro meio de
passar? Por terra é impossível". Traduza exatamente o que ele
responder. Exatamente.
Mariko fez isso. - Sinto muito, senhor, mas ele disse "não".
Apenas isso: "Não". Sem polidez.
Toranaga moveu o sash e coçou-se sob a armadura. - Bem
- disse cordialmente -, o Anjin-san fala em canhões e ele
é o perito, portanto com canhões será. Capitão, vá até lá! -
Seu dedo áspero, calejado, apontou malevolamente para a fragata
portuguesa. - Prepare os homens, Yabu-san. Se os bárbaros
meridionais não me emprestarem canhões, o senhor terá que
tomá-los. Não e?
- Com um enorme prazer - disse Yabu suavemente.
- O senhor tinha razão, ele é um gênio.
- Mas o senhor encontrou a solução, Toranaga-san.
407

- É fácil encontrar soluções depois que a resposta foi dada,
neh? Qual é a solução para o Castelo de Osaka, aliado?
- Não há solução. Nisso o táicum foi perfeito.
- Sim. Qual é a solução para a traição?
- Naturalmente, morte ignominiosa. Não compreendo por
que me pergunta isso.
- Um pensamento fugaz... aliado. - Toranaga olhou de
relance para Blackthorne. - Sim, é um homem inteligente. Tenho
uma grande necessidade de homens inteligentes. Mariko-san, os
bárbaros me darão os canhões?
- Naturalmente. Por que não dariam? - Nunca ocorrera
a ela que eles não dariam. Ainda estava cheia de apreensão por
Buntaro. Teria sido tão melhor permitir-lhe morrer ali. Por que
colocar-lhe a honra em risco? Ela se perguntava por que Toranaga
ordenara que Buntaro partisse por terra, bem no último momento.
Toranaga poderia, com a mesma facilidade, ter ordenado que
ele nadasse para o barco. "Teria sido muito mais seguro e havia
muito tempo para isso. Ele poderia até ter ordenado isso assim
que Buntaro atingira a extremidade do molhe. Por que esperar!
Seu eu mais secreto respondia que o seu senhor devia ter tido
uma boa razão para esperar e ordenar o que ordenara.
- E se não derem? Está preparada para matar cristãos,
Mariko-san? - perguntou Toranaga. - Essa não é a lei mais
severa deles? "Não matarás"?
- Sim, é. Mas pelo senhor, iremos prazerosamente para o
inferno, meu marido, meu filho e eu.
- Sim. Você é uma verdadeira samurai e não me esquecerei
de que empunhou uma espada para me defender.
- Por favor, não me agradeça. Se ajudei, de algum modo
de pouca importância, foi porque era o meu dever. Se alguém
deve ser lembrado, por favor que seja o meu marido ou o meu
filho. Eles são de mais valia para o senhor.
- No momento você é mais valiosa para mim. E poderia
sê-lo mais ainda.
Diga-me como, senhor, e assim será feito.
- Repudie o Deus estrangeiro.
- Senhor. - O rosto dela congelou-se.
- Repudie o seu Deus. Você deve lealdades demais.
- Quer dizer, tornar-me apóstata, senhor? Renunciar ao
cristianismo?
- Sim, a menos que você ponha esse Deus no lugar que
lhe cabe: no fundo de seu espírito, não à tona.
408
- Por favor, desculpe-me, senhor - disse ela tremulamente
-, mas a minha religião nunca interferiu na minha lealdade para
com o senhor. Sempre a mantive como assunto particular, o tempo
todo. Como foi que lhe falhei?
Ainda não me falhou. Mas falhará.
Diga-me o que devo fazer para agradar-lhe.
Os cristãos podem se tornar meus inimigos, neh?
Os seus inimigos são os meus, senhor.
Os padres se opõem a mim agora. Podem ordenar aos
cristãos que se levantem contra mim.
Não podem, senhor, são homens de paz.
E se continuarem a se opor a mim? Se os cristãos fizerem
guerra contra mim?
- O senhor nunca precisará temer pela minha lealdade.
Nunca.
- Esse Anjin-san talvez diga a verdade e os seus padres
talvez falem com língua falsa.
- Há padres bons e maus, senhor. Mas o senhor é o meu
suserano.
- Muito bem, Mariko-san - disse Toranaga. - Aceitarei
isso. Ordeno-lhe que se torne amiga desse bárbaro, aprenda tudo
o que ele sabe, relate tudo o que ele disser, aprenda a pensar como
ele, não "confesse" nada sobre o que está fazendo, trate todos os
padres com desconfiança, relate tudo o que os padres lhe perguntarem ou lhe disserem. O seu Deus deve se encaixar no meio
disso, ou não se encaixar em parte alguma.
Mariko afastou um fio de cabelo dos olhos. - Posso fazer
tudo isso, senhor, e continuar cristã. Juro.
- Ótimo. Jure pelo seu Deus cristão.
- Juro diante de Deus.
Ótimo. - Toranaga voltou-se e chamou: - Fujiko-san!
Sim, senhor?
Trouxe criadas consigo?
Sim, senhor. Duas.
Ceda uma a Mariko-san. Mande a outra buscar chá.
Há saqué se o senhor quiser.
- Chá. Yabu-san, prefere chá ou saque?
- Chá, por favor.
- Traga saque para o Anjin-san.
A luz reluziu sobre o pequeno crucifixo de ouro que pendia
do pescoço de Mariko. Ela viu Toranaga olhá-lo fixamente. 409

O senhor... o senhor deseja que eu deixe de usá-lo? Que o lance
fora?
- Não - disse ele. - Use-o como lembrete do seu juramento.
Todos observaram a fragata. Toranaga sentiu que alguém o
olhava e correu os olhos em torno. Viu o rosto duro, os frios
olhos azuis e sentiu o ódio - não, ódio não, a desconfiança.
Como se atreve o bárbaro a suspeitar de mim?
- Pergunte ao Anjin-san por que ele simplesmente não
disse que há muitos canhões no navio bárbaro? Que fôssemos
buscá-los para nos escoltar para fora da armadilha?
Mariko traduziu. Blackthorne respondeu.
- Ele disse... - Mariko hesitou, depois continuou num
fôlego só: - Por favor, desculpe-me, ele disse: "E bom que ele
use a própria cabeça".
Toranaga riu. - Agradeça-lhe pela dele. Foi muito útil. Espero que ele a conserve sobre os ombros. Diga-lhe que agora somos
iguais.
- Ele disse: "Não, não somos iguais, Toranaga-sarna. Mas
de-me o meu navio e uma tripulação e eu limparei os mares. De
qualquer inimigo".
- Mariko-san, acha que ele me considera como aos outros
- os espanhóis e os bárbaros meridionais? - A pergunta foi
feita negligentemente.
A brisa soprou-lhe fios de cabelo por sobre os olhos. Mariko
os afastou de modo cansado. - Não sei, sinto muito. Talvez sim,
talvez não. Quer que eu lhe pergunte? Sinto muito, mas ele é .. .
é muito estranho. Receio não compreendê-lo. Em absoluto.
- Temos tempo de sobra. Sim. Oportunamente ele se explicará conosco.
Blackthorne vira a fragata silenciosamente soltar-se das amarras no momento em que a escolta de cinzentos saíra correndo.
Vira-a descer a chalupa, que rapidamente espiara o navio longe
do atracadouro no molhe, em meio à correnteza. Em seguida a
fragata deitara algumas amarras em águas profundas a pouca
distância da praia, ilesa, uma leve âncora de proa segurando-a
suavemente, paralela à praia. Essa era a manobra habitual de
todos os navios europeus em enseadas estrangeiras ou hostis
quando havia a ameaça de um perigo em terra. Ele também
sabia que embora não houvesse - nem tivesse havido - nenhum
410
movimento suspeito no convés, a esta altura todos os canhões
estariam preparados, os mosquetes distribuídos, as metralhas, balas de canhão e a munição preparadas em abundância, cutelos
esperando nas prateleiras - e homens armados nos ovéns. Haveria
olhos esquadrinhando em todos os sentidos. A galera teria sido
notada no momento em que mudara o curso. Os dois canhões de
popa e trinta peças de artilharia, que ficavam bem na sua direção,
estariam apontados para eles. Os atiradores portugueses eram os
melhores do mundo, depois dos ingleses.
E devem estar sabendo sobre.Toranaga, pensou Blackthorne
com grande amargor, porque são espertos e devem ter perguntado
aos seus carregadores ou aos cinzentos sobre o que estava acontecendo. Ou a esta altura os malditos jesuítas, que sabem de tudo,
já teriam enviado uma mensagem sobre a fuga de Toranaga, e
sobre mim.
Sentia os curtos cabelos em pé. Qualquer um daqueles canhões pode nos mandar para o inferno com uma única explosão.
Sim, mas estamos em segurança porque Toranaga se encontra a
bordo. Graças a Deus por Toranaga.
- Meu amo pergunta qual é o seu costume quando o senhor
quer se aproximar de uma belonave - estava dizendo Mariko.
- Se se tem um canhão, dispara-se uma saudação. Ou
podem-se emitir sinais com bandeiras, pedindo permissão para se
aproximar.
- E se não se têm bandeiras, pergunta o meu amo?
Embora ainda se encontrassem fora do alcance dos canhões,
para Blackthorne era quase como se já estivessem sob a mira de
um deles, ainda que as portinholas continuassem fechadas.
O navio carregava dezesseis canhões no convés principal, dois na
popa e dois na proa. O Erasmus poderia capturá-lo sem sombra
de dúvida, disse ele a si mesmo, desde que a tripulação fosse
adequada. Gostaria de capturá-lo. Acorde, pare de devanear, não
estamos a bordo do Erasmus e sim desta galera pesadona e aquele
navio português é a única esperança que temos. Por trás dos
canhões dele estaremos salvos.
- Diga ao capitão para hastear a bandeira de Toranaga no
topo do mastro. Isso será suficiente, senhora. Tornará a coisa
formal e informará a eles sobre quem está a bordo, embora eu
aposte que eles já sabem.
Isso foi feito rapidamente. Todo mundo na galera parecia
mais confiante agora. Blackthorne notou a mudança. Até ele se
sentiu melhor sob a bandeira.
411

- Meu amo pergunta como lhes dizemos que queremos emparelhar.
- Sem bandeiras sinalizadoras, ele tem duas escolhas: esperar fora do alcance dos canhões e enviar uma delegação num
pequeno bote, ou ir diretamente até uma distância de onde se possa
chamar a bordo.
- Meu amo pergunta qual é o seu conselho.
- Ir direto e emparelhar. Não há motivo para cautela. O
Senhor Toranaga está a bordo. É o daimio mais importante do
império. Claro que o navio nos ajudará... Oh, Jesus Deus!
- Senhor?
Mas ele não respondeu, então ela traduziu rapidamente o
que fora dito e ouviu a pergunta seguinte de Toranaga. - A fragata fará o qué? Por favor, explique o seu pensamento e o motivo
por que parou.
- De repente entendi, ele está em guerra com lshido agora.
Não está? Portanto a fragata pode não estar inclinada a ajudá-lo.
- Claro que o ajudará.
- Não. Que lado mais beneficia os portugueses, o do Senhor
Toranaga ou o de lshido? Se eles acreditarem que é o de lshido,
nos mandarão pelos ares.
- É impensável que os portugueses disparem contra qualquer navio japonês - disse Mariko imediatamente.
- Acredite-me, eles o farão, senhora. E aposto como aquela
fragata não nos deixará emparelhar. Eu não deixaria, se fosse o
piloto dela. Jesus Cristo! - Blackthorne arregalou os olhos na
direção da praia.
Os cinzentos insultantes haviam deixado o molhe e estavam
se espalhando paralelamente à praia. Nenhuma chance ali, pensou
ele. Os barcos de pesca continuavam a obstruir malevolamente
a garganta da enseada. Nenhuma chance lá, tampouco. - Diga
a Toranaga que há um outro meio de sair da enseada. Esperar
por uma tempestade. Talvez pudéssemos enfrentá-la, enquanto
os barcos de pesca não podem. Então poderíamos escorregar pela
rede.
Toranaga interrogou o capitão, que respondeu longamente,
depois Mariko disse a Blackthorne: - Meu amo pergunta se o
senhor acha que haverá uma tempestade.
- Meu nariz diz que sim. Mas não já. Dentro de dois ou
três dias. Podemos esperar tudo isso?
- O seu nariz lhe diz? Há um cheiro para tempestades?
- Não, senhora. É apenas uma expressão.
412
Toranaga ponderou. Depois deu uma ordem:
- Vamos nos aproximar até ser possível chamar a bordo,
Anjin-san.
- Diga-lhe, então, que vá diretamente em direção à popa.
Assim seremos um alvo menor. Diga-lhe que eles são traiçoeiros.
Sei quão seriamente traiçoeiros eles são quando os seus interesses
estão ameaçados. São piores do que os holandeses! Se aquele
navio ajudar Toranaga a escapar, lshido vai descontar em todos
os portugueses e eles não vão se arriscar a isso.
- Meu amo diz que logo teremos essa resposta.
- Estamos vulneráveis, senhora. Não temos chance alguma
contra aqueles canhões. Se o navio for hostil, mesmo que seja
simplesmente neutro, estamos afundados.
- Meu amo diz que sim, mas será seu dever persuadi-los a
serem benevolentes.
- Como posso fazer isso? Sou inimigo deles.
- Meu amo diz que na guerra, como na paz, um bom inimigo pode ser mais valioso do que um bom aliado. Ele diz que
o senhor conhece a mente deles... pensará num modo de convencê-los.
- O único meio seguro é pela força.
- "Ótimo. Concordo", diz o meu amo. Por favor, diga-me de
que modo o senhor atacaria aquele navio como pirata.
- O quê?
- Ele disse: "Ótimo. Concordo. De que modo o senhor
atacaria o navio como pirata, como o conquistaria? Preciso usar
os canhões deles". Desculpe, não ficou claro, Anjin-san?
- E eu digo novamente que vou mandó-lo pelos ares declarou Ferreira, o capitão-mor.
- Não - retrucou Dell'Aqua, olhando a galera do tombadilho.
- Atirador, ele já está ao alcance?
- Não, Dom Ferreira - respondeu o atirador-chefe. Ainda não.
- Por que mais estaria se aproximando de nós senão por
motivos hostis, Eminência? Por que simplesmente não escapou?
O caminho está limpo. - A fragata estava longe demais da
boca da enseada para que qualquer pessoa a bordo visse os
barcos de pesca aglomerados em emboscada.
413

- Meu amo pergunta como lhes dizemos que queremos emparelhar.
- Sem bandeiras sinalizadoras, ele tem duas escolhas: esperar fora do alcance dos canhões e enviar uma delegação num
pequeno bote, ou ir diretamente até uma distancia de onde se possa
chamar a bordo.
- Meu amo pergunta qual é o seu conselho.
- Ir direto e emparelhar. Não há motivo para cautela. O
Senhor Toranaga está a bordo. 1 o daimio mais importante do
império. Claro que o navio nos ajudará... Oh, Jesus Deus!
- Senhor?
Mas ele não respondeu, então ela traduziu rapidamente o
que fora dito e ouviu a pergunta seguinte de Toranaga. - A fragata fará o quê? Por favor, explique o seu pensamento e o motivo
por que parou.
- De repente entendi, ele está em guerra com Ishido agora.
Não está? Portanto a fragata pode não estar inclinada a ajudá-lo.
- Claro que o ajudará.
- Não. Que lado mais beneficia os portugueses, o do Senhor
Toranaga ou o de Ishido? Se eles acreditarem que é o de Ishido,
nos mandarão pelos ares.
- É impensável que os portugueses disparem contra qualquer navio japonés - disse Mariko imediatamente.
- Acredite-me, eles o farão, senhora. E aposto como aquela
fragata não nos deixará emparelhar. Eu não deixaria, se fosse o
piloto dela. Jesus Cristo! - Blackthorne arregalou os olhos na
direção da praia.
Os cinzentos insultantes haviam deixado o molhe e estavam
se espalhando paralelamente à praia. Nenhuma chance ali, pensou
ele. Os barcos de pesca continuavam a obstruir malevolamente
a garganta da enseada. Nenhuma chance lá, tampouco. - Diga
a Toranaga que há um outro meio de sair da enseada. Esperar
por uma tempestade. Talvez pudéssemos enfrentá-la, enquanto
os barcos de pesca não podem. Então poderíamos escorregar pela
rede.
Toranaga interrogou o capitão, que respondeu longamente,
depois Mariko disse a Blackthorne: - Meu amo pergunta se o
senhor acha que haverá uma tempestade.
- Meu nariz diz que sim. Mas não já. Dentro de dois ou
três dias. Podemos esperar tudo isso?
- O seu nariz lhe diz? Há um cheiro para tempestades?
- Não, senhora. É apenas uma expressão.
412
Toranaga ponderou. Depois deu uma ordem:
- Vamos nos aproximar até ser possível chamar a bordo,
Anjin-san.
- Diga-lhe, então, que vá diretamente em direção à popa.
Assim seremos um alvo menor. Diga-lhe que eles são traiçoeiros.
Sei quão seriamente traiçoeiros eles são quando os seus interesses
estão ameaçados. São piores do que os holandeses! Se aquele
navio ajudar Toranaga a escapar, Ishido vai descontar em todos
os portugueses e eles não vão se arriscar a isso.
- Meu amo diz que logo teremos essa resposta.
- Estamos vulneráveis, senhora. Não temos chance alguma
contra aqueles canhões. Se o navio for hostil, mesmo que seja
simplesmente neutro, estamos afundados.
- Meu amo diz que sim, mas será seu dever persuadi-los a
serem benevolentes.
- Como posso fazer isso? Sou inimigo deles.
- Meu amo diz que na guerra, como na paz, um bom inimigo pode ser mais valioso do que um bom aliado. Ele diz que
o senhor conhece a mente deles... pensará num modo de convencê-los.
- O único meio seguro é pela força.
- "Ótimo. Concordo", diz o meu amo. Por favor, diga-me de
que modo o senhor atacaria aquele navio como pirata.
- O quê?
- Ele disse: "Ótimo. Concordo. De que modo o senhor
atacaria o navio como pirata, como o conquistaria? Preciso usar
os canhões deles". Desculpe, não ficou claro, Anjin-san?


- E eu digo novamente que vou mandá-lo pelos ares
declarou Ferreira, o capitão-mor.
- Não - retrucou Dell'Aqua, olhando a galera do tombadilho.
- Atirador, ele já está ao alcance?
- Não, Dom Ferreira - respondeu o atirador-chefe. -
Ainda não.
- Por que mais estaria se aproximando de nós senão por
motivos hostis, Eminência? Por que simplesmente não escapou?
O caminho está limpo. - A fragata estava longe demais da
boca da enseada para que qualquer pessoa a bordo visse os
barcos de pesca aglomerados em emboscada.
413

- Não arriscamos nada, Eminência, e ganhamos tudo -
disse Ferreira. - Fingimos não saber que Toranaga está a bordo.
Achamos que bandidos, bandidos comandados pelo pirata herege,
iam nos atacar. Não se preocupe, será fácil provocá-los assim que
estiverem ao alcance.
- Não - ordenou Dell'Aqua.
O Padre Alvito voltou-se da amurada. - A galera ostenta
a bandeira de Toranaga, capitão-mor.
- Bandeira falsa! - disse Ferreira sardonicamente. - É
o truque marítimo mais velho do mundo. Não vimos Toranaga.
Talvez não esteja a bordo.
- Não.
- Pela morte de Deus, a guerra seria uma catástrofe! Vai
prejudicar, se não arruinar, a viagem do Navio Negro deste ano!
Não posso permitir isso! Não vou deixar que nada interfira nisso!
- Nossas finanças encontram-se em situação pior do que
as suas, capitão-mor - vociferou Dell'Aqua. - Se não comerciarmos este ano, a Igreja irá à bancarrota, fui claro? Não recebemos fundos de Goa ou de Lisboa há três anos e a perda do
lucro do ano passado. .. Deus me dé paciência! Conheço melhor
do que o senhor o que está em jogo. A resposta é não!
Rodrigues estava penosamente sentado na sua cadeira de
convés, a perna entalada descansando sobre um banquinho estofado que estava amarrado perto da bitácula. - O capitão-mor
tem razão, Eminência. Por que a galera se aproximaria de nós, se
não para tentar alguma coisa? Por que não escapou, hem? Eminência, temos uma oportunidade incrível aqui.
- Sim, e trata-se de uma decisão militar - disse Ferreira.
Alvito voltou-se bruscamente. - Não, Sua Eminência é o
árbitro nisto, capitão-mor. Não devemos ferir Toranaga. Devemos ajudá-lo.
- O senhor me disse dúzias de vezes que uma vez que a
guerra começasse duraria para sempre - disse Rodrigues. - A
guerra começou, não? Vimos que começou. Isso tem que prejudicar o comércio. Com Toranaga morto a guerra está acabada e
todos os nossos interesses estão ilesos. Digo que devemos mandar
esse navio para o inferno.
- Até nos livramos do herege - disse Ferreira, observando Rodrigues. - O senhor impede a guerra pela glória de Deus
e outro herege vai para o tormento.
- Seria uma imperdoável interferência na política deles -
disse Dell'Aqua, evitando a verdadeira razão.
414
- Interferimos o tempo todo. A Companhia de Jesus é
famosa por isso. Não somos camponeses simplórios, cabeçasduras!
- Não estou sugerindo que sejam. Mas enquanto eu estiver
a bordo o senhor não vai afundar aquele navio.
- Então tenha a gentileza de desembarcar.
- Quanto mais depressa o arquiassassino estiver morto,
melhor, Eminência - sugeriu Rodrigues. - Ele ou Ishido, que
diferença faz? São ambos pagãos, e o senhor não pode confiar
em nenhum dos dois. O capitão-mor tem razão, nunca teremos
uma oportunidade como esta de novo. E quanto ao nosso Navio
Negro? - Rodrigues era o piloto, com direito a quinze avos do
lucro todo. O verdadeiro piloto do Navio Negro morrera de sífilis
em Macau há três meses e Rodrigues fora tirado do seu navio,
o Santa Theresa, e colocado no novo posto, para sua eterna
alegria. A sífilis era a razão oficial, lembrou Rodrigues de cara
fechada, embora muitos dissessem que o outro fora esfaqueado
nas costas por um ronin, numa briga num depósito. Por Deus,
esta é a minha grande chance. Nada vai interferir nisso!
- Assumo toda a responsabilidade - estava dizendo Ferreira. - Trata-se de uma decisão militar. Estamos envolvidos
numa guerra nativa. Meu navio se encontra em perigo. - Voltouse para o atirador-chefe. - Já estão ao alcance?
- Bem, Dom Ferreira, depende do que o senhor deseja.
- O atirador-chefe soprou no pavio do círio de cera, o que o
fez incandescer e faiscar. - Eu poderia lhe acertar a proa agora,
ou a popa, ou atingir a meia-nau, o que o senhor preferir. Mas
se o senhor quer um homem morto, um homem em particular,
então mais um instante ou dois os colocaria ao alcance exato.
- Quero Toranaga morto. E o herege.
- Refere-se ao Inglês, o piloto?
- Sim.
- Alguém terá que apontar o japona. O piloto, eu reconheço, sem dúvida.
- Se o piloto tem que morrer para que se mate Toranaga
- disse Rodrigues - e para deter a guerra, então sou a favor,
capitão-mor. De outro modo ele devia ser poupado.
- Ele é um herege, um inimigo do nosso país, uma abominação, e já nos causou mais problemas do que um ninho de
víboras.
- Já assinalei que em primeiro' lugar o Inglês é um piloto,
e em último lugar é um piloto, um dos melhores do mundo.
415

- Pilotos devem ter privilégios especiais? Mesmo os hereges?
- Sim, por Deus. Poderíamos usá-lo, assim como eles nos
usam. Seria um maldito desperdício matar tanta experiência. Sem
pilotos não há um império incrível, não há comércio, não há
nada. Sem mim, por Deus, não há Navio Negro, não há lucro,
não há como voltar para casa, portanto a minha maldita opinião
é importante!
Houve um grito vindo do topo do mastro: - Ó do tombadilho, a galera está mudando o rumo! - A galera vinha rumando
direto para eles mas girara alguns pontos para bombordo.
Imediatamente Rodrigues gritou: - Posições de ação! Atenção a estibordo! Todas as velas, ho! Ancora para cima! - No
mesmo instante acorreram homens para obedecer.
- Qual é o problema, Rodrigues?
- Não sei, capitão-mor, mas estamos saindo para mar aberto. Aquela grande puta está indo a barlavento.
- O que importa isso? Podemos afundá-lo a qualquer momento - disse Ferreira. - Ainda temos que trazer suprimentos
para bordo e os padres têm que regressar a Osaka.
- Sim. Mas nenhuma nave hostil vai se pôr a barlavento
contra o meu barco. Aquela puta não depende do vento, pode ir
contra ele. Poderia estar dando a volta para nos atacar pela
proa, onde só temos um canhão, e nos abordar!
Ferreira riu desdenhosamente. - Temos vinte canhões a
bordo! Eles não têm nenhum! Acha que aquele imundo barco
pagão se atreveria a tentar nos atacar? Ora, você é muito simples
de cabeça!
- Sim, capitão-mor, é por isso que ainda tenho uma. O
Santa Theresa vai levantar ferros!
As velas estalaram soltando-se das cordas e o vento enfunouas, os mastros rangendo. Os dois turnos estavam no convés, em
posições de combate. A fragata começou a avançar, mas lentamente. - Vamos, sua cadela - instou Rodrigues.
- Estamos prontos, Dom Ferreira - disse o atirador-chefe.
- Estou com ela na mira. Não posso agüentar muito tempo.
Quem é esse Toranaga? Aponte-o!
Não havia tochas a bordo da galera; a única iluminação
vinha do luar. A galera ainda estava à popa, a umas cem jardas,
mas virou para bombordo e rumou para a margem oposta, os
remos mergulhando e caindo num ritmo constante. - Aquele é
o piloto? O homem alto no tombadilho?
416
- Sim - disse Rodrigues.
- Manuel e Pedrito! Acertem-no e ao tombadilho! - O
canhão mais próximo sofreu alguns ajustes leves. - Qual é o
Toranaga? Depressa! Timoneiros, dois pontos a estibordo!
- Dois pontos para estibordo, atirador!
Consciente do leito arenoso e dos recifes nas proximidades,
Rodrigues estava observando os ovéns, pronto para a qualquer
momento tomar o lugar do atirador-chefe, que por costume tinha
o comando numa canhonada de popa. - Ho, canhão no convés
principal de bombordo! - gritou o atirador. - Assim que tivermos disparado, vamos deixá-la virar a sotavento. Abram todas as
portinholas, preparem para a carga! - Os marujos obedeceram,
de olhos nos oficiais sobre o tombadilho. E nos padres. - Pelo
amor de Deus, Dom Ferreira, quem é esse Toranaga?
- Quem é, padre? - Ferreira nunca o vira.
Rodrigues reconhecera Toranaga claramente na coberta de
proa de samurais, mas não queria ser ele a apontá-lo. Deixemos
os padres fazerem isso, pensou. Vamos, padre, faça-se de Judas.
Por que devemos nós fazer sempre o trabalho nojento? Não que
eu me importe um dobrão furado por aquele pagão filho de uma
prostituta.
Os dois padres permaneciam em silêncio.
- Depressa, quem é Toranaga? - perguntou de novo o
atirador.
Impaciente, Rodrigues apontou-o. - Ali,
tardo, baixinho, atarracado, no meio daqueles
pagãos.
- Estou vendo, senhor piloto.
Os marujos fizeram os últimos ajustes de mira.
Ferreira tomou o círio da mão do imediato do atirador.
- Está apontada para o herege?
- Sim, capitão-mor. O senhor está pronto? Vou baixar a
mão. Será o sinal!
- Ótimo.
- Não matarás! - exclamou Dell'Aqua.
Ferreira virou-se rapidamente para ele. - São pagãos e
hereges!
- Há cristãos entre eles, e mesmo que não houvesse.
. .
- Não preste atenção a ele, atirador! - rosnou o capitãomor. - Disparamos quando vocês estiverem prontos!
Dell'Aqua avançou para a boca do canhão e se postou no
417
na popa. O basoutros bastardos

caminho. Seu corpanzil dominou o tombadilho e os marinheiros
armados que se mantinham emboscados. Sua mão estava sobre
o crucifixo. - Eu digo "Não matarás!"
- Matamos o tempo todo, padre - disse Ferreira.
- Eu sei, e estou envergonhado e imploro o perdão de Deus
por isso. - Dell'Aqua nunca estivera antes no tombadilho de um
navio de combate com canhôes preparados, mosquetes, dedos em
gatilhos, aprontando-se para a morte. - Enquanto eu estiver
aqui, não haverá mortes, e não desculparei morte por emboscada!
- E se nos atacarem? Tentarem tomar o navio?
- Rogarei a Deus que nos ajude contra eles!
- Que diferença faz, agora ou mais tarde?
Dell'Aqua não respondeu. Não matarás, pensou ele, e Toranaga prometera tudo, Ishido nada.
- O que vai ser, capitão-mor? O momento é agora! -
gritou o mestre atirador. - Agora!
Ferreira deu as costas aos padres, com brusquidão, jogou
o círio no chão e foi até o parapeito. - Preparem-se para repelir
um ataque - gritou. - Se ela se aproximar a mais de cinqüenta
jardas sem ser convidada, mandem-na pelos ares digam os padres
o que disserem!
Rodrigues estava igualmente furioso, mas sabia que era tão impotente quanto o capitão-mor contra o padre. Não matarás? Pelo
abençoado Senhor Jesus, e vocês? queria ele gritar. E os seus autos
de fé? E a Inquisição? E os seus padres que pronunciam a sentença de "culpado", "feiticeira", "satanista", ou "herege"? Lembra-se das duas mil feiticeiras queimadas só em Portugal, no
ano em que parti para a Asia? E quase cada aldeia e cidade em
Portugal e na Espanha, e os domínios visitados e investigados pelos
flagelos de Deus, como os inquisidores encapuzados orgulhosamente chamam a si mesmos, o cheiro de carne queimada no rastro
deles? Oh, Senhor Jesus Cristo, proteja-nos!
Afastou o próprio medo e aversão e se concentrou na galera.
Podia ver apenas Blackthorne, e pensou: ah, Inglês, é bom ver
você, em pé aí, no comando, tão alto e insolente. Tive medo
que você tivesse ido para o pátio de execução. Fico contente por
ter escapado, mas ainda assim é muita sorte que você não tenha
um único canhão a bordo, pois então eu o mandaria pelos ares,
o para o inferno, com tudo o que os padres pudessem dizer.
Oh, minha Nossa Senhora, proteja-me de um mau padre!
418
- Olá, Santa Theresa!
- Olá, Inglês!
- É você, Rodrigues?
- Sim!
- E a perna?
- A tua mãe!
Rodrigues ficou enormemente satisfeito com a risada trocista
que veio por sobre o mar que os separava.
Por meia hora os navios manobraram procurando posição,
perseguindo, mudando o curso e recuando, a galera tentando se
pôr a barlavento e obstruir a fragata a sotavento, a fragata a
ganhar espaço para navegar para fora da enseada se desejasse.
Mas nenhum dos dois conseguira obter uma vantagem, e fora
durante essa perseguição que os que estavam a bordo da fragata
viram os barcos de pesca aglomerados à boca da enseada pela
primeira vez e entenderam o seu significado.
- É por isso que estão vindo até nós! Por proteção!
- Mais uma razão para que nós a afundemos agora que está
encurralada. Ishido nos agradecerá para sempre - dissera Ferreira.
Dell'Aqua permanecera irredutível. - Toranaga é importante
demais. Insisto em que primeiro devemos conversar com Toranaga. O senhor sempre pode po-lo a pique. Ele não tem canhôes.
Até eu sei que só canhões podem lutar com canhôes.
Assim Rodrigues permitira um empate, uma pausa para
tomar fôlego. Ambos os navios estavam no centro da enseada, a
salvo dos barcos de pesca e a salvo um do outro, a fragata tremulando a barlavento, pronta para desviar instantaneamente, e a
galera, de remos travados, vindo à deriva, de lado, até a distância
de onde se pudesse chamar a bordo. Foi só quando Rodrigues viu
a galera travar todos os remos e colocar-se lado a lado com os
seus canhões que ele se voltou para barlavento para permitir ao
outro que se aproximasse até o raio de tiro, e se preparou para
a próxima série de movimentos. Graças a Deus, ao abençoado
Jesus, a Maria e a José, por termos canhôes e aquele bastardo
não ter nenhum, pensou Rodrigues de novo. O Inglês é esperto
demais.
Mas é bom ser enfrentado por um profissional, disse a si
mesmo. Muito mais seguro. Porque ninguém comete nenhum engano temerário e ninguém se machuca desnecessariamente.
- Permissão para ir a bordo?
- Quem, Inglês?
- O Senhor Toranaga, sua intérprete e guardas.
419

- Guardas, não - disse Ferreira, baixo.
Ele tem que trazer alguns - disse Alvito. É uma
questão de dignidade.
Que se dane a dignidade dele. Nada de guardas.
Não quero samurais a bordo - concordou Rodrigues.
Nao concordaria com cinco? - perguntou Alvito. -
a guarda pessoal dele? Você compreende o problema,
Apenas
Rodrigues.
Rodrigues pensou um instante, depois assentiu. - Cinco
está bem, capitão-mor. Destacaremos cinco homens como "guarda
pessoal" sua, cada um com um par de pistolas. Padre, o senhor
estabelece os detalhes agora. É melhor que o padre arranje os
detalhes, capitão-mor, ele sabe como. Vamos, padre, mas conte-nos
o que estiver sendo dito.
Alvito dirigiu-se para a amurada e gritou: - Você não ganha
nada com as suas mentiras! Preparem a alma para o inferno,
você e os seus bandidos! Vocês têm dez minutos, depois o capitãomor vai mandá-lo para o tormento eterno!
- Estamos hasteando a bandeira do Senhor Toranaga, por
Deus!
- Bandeira falsa, pirata!
Ferreira avançou um passo. - O que é que o senhor está
representando, padre?
- Por favor, tenha paciência, capitão-mor - disse Alvito.
- Isto é apenas uma questão formal. De outro modo Toranaga
ficará permanentemente ofendido por termos insultado a bandeira
dele, coisa que fizemos. Aquele é Toranaga, não é um daimio
qualquer! Talvez fosse melhor o senhor se lembrar que ele, pessoalmente, tem mais soldados em armas do que o rei da Espanha!
O vento suspirava no cordame, os mastros estalavam nervosamente. Então se acenderam tochas no tombadilho e todos
puderam ver Toranaga claramente. A voz dele veio por sobre
as ondas.
- Tsukku-san! Como ousa evitar a minha galera? Não há
pirata algum aqui, apenas naqueles barcos de pesca à boca da
enseada. Gostaria de emparelhar imediatamente!
Alvito gritou de volta em japonês, fingindo estar atônito:
- Mas Senhor Toranaga, desculpe, não podíamos imaginar! Pensamos que se tratasse de um truque. Os cinzentos disseram que
bandidos ronins haviam tomado a galera à força! Pensamos que
os bandidos, sob o comando do pirata inglês, estivessem navegando sob bandeira falsa. Irei imediatamente.
- Não. Eu emparelharei imediatamente.
- Rogo-lhe, Senhor Toranaga, permitir-me ir até aí para
escoltá-lo. Meu amo, o padre-lnspetor, está aqui e também o
capitão-mor. Eles insistem em que façamos alguns ajustes. Por
favor, aceite nossas desculpas! - Alvito passou para o português
e gritou bem alto para o contramestre: - Desça uma chalupa
-, depois, em japonês, para Toranaga: - O bote está sendo
descido, meu senhor.
Rodrigues ouviu a humildade nauseante na voz de Alvito e
pensou em como era muito mais difícil lidar com japoneses do
que com chineses. Os chineses compreendiam a arte da negociação, do compromisso, da concessão e da recompensa. Mas os
japoneses eram cheios de orgulho e quando o orgulho de um
homem era injuriado - de qualquer japonês, nao necessariamente
apenas de um samurai -, a morte era um preço pequeno para
reparar o insulto. Vamos, acabe com isso, queria ele gritar.
- Capitão-mor, irei imediatamente - disse o Padre Alvito.
- Eminência, se também viesse seria um cumprimento que faria
muito para apaziguá-lo.
- Concordo.
- Não é perigoso? - perguntou Ferreira. - Os senhores
poderiam ser usados como reféns.
- Assim que houver um sinal de traição - disse Dell'Aqua
-, ordeno-lhe, em nome de Deus, que destrua o navio e todos os
que navegam nele, estejamos nós a bordo ou não. - Avançou
a passos largos pelo tombadilho, desceu para o convés principal,
passou ao lado dos canhões, as saias do seu hábito oscilando
majestosamente. No topo da escada de embarque, virou-se e fez
o sinal-da-cruz. Em seguida desceu ruidosamente para o bote.
O contramestre zarpou. Todos os marinheiros estavam armados de pistolas, e sob o assento do contramestre havia um barrilete de pólvora com estopim.
Ferreira debruçou-se sobre a amurada e falou, baixo: -
Eminência, traga o herege com o senhor.
- O quê? O que disse? - Divertia Dell'Aqua brincar com
o capitão-mor, cuja contínua insolência o ofendera mortalmente,
pois é claro que ele resolvera há muito tempo reaver Blackthorne,
o tinha ouvido perfeitamente bem. Che stupido, estava pensando.
- Traga o herege consigo, hem? - repetiu Ferreira.
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420

No tombadilho Rodrigues ouviu o abafado: "Sim, capitãomor", e pensou: em que traição está pensando, Ferreira?
Mudou de posição na cadeira com dificuldade, o rosto exangue. A dor da perna judiava muito e exigia-lhe muita força reprimi-la. Os ossos estavam unindo-se bem e, a Senhora seja louvada,
o ferimento estava limpo. Mas a fratura continuava sendo uma
fratura e mesmo a leve oscilação do navio parado era incômoda.
Ele tomou um trago de grogue do velho cantil que pendia de uma
cavilha na bitácula.
Ferreira o observava. - A perna vai mal?
- Está muito bem. - O grogue amorteceu o ferimento.
- Vai estar bem o bastante para viajar daqui até Macau?
- Sim. E para enfrentar uma batalha marítima por todo
o trajeto. E para voltar no verão, se é isso que o senhor quer dizer.
- Sim, é isso que quero dizer, piloto. - Os lábios se
estreitaram de novo, apertados naquele sorriso zombeteiro. Preciso de um piloto em perfeitas condições.
- Estou em perfeitas condições. Minha perna está cicatrizando bem. - Rodrigues repeliu a dor. - O Inglês não virá a
bordo de boa vontade. Eu não viria.
- Cem guinéus dizem que você está errado.
- Isso é mais do que ganho num ano.
- Pagáveis depois de chegarmos a Lisboa, com os lucros
do Navio Negro.
- Feito. Nada o fará vir a bordo, não de boa vontade. Estou
cem guinéus mais rico, por Deus!
- Mais pobre! Você se esquece que os jesuítas o querem
mais do que eu.
- E por que quereriam?
Ferreira encarou-o e não respondeu, exibindo o mesmo sorriso evasivo. Depois, molestando-o, disse: - Eu escoltaria Toranaga para fora da enseada, em troca do herege.
- Fico contente por ser seu amigo e necessário ao senhor
e ao Navio Negro - disse Rodrigues. - Não gostaria de ser seu
inimigo.
- Ótimo que nos compreendamos um ao outro, piloto. Finalmente.


- Solicito escolta para sair da enseada. Preciso dela rapidamente - disse Toranaga a Dell'Aqua por intermédio do intérprete Alvito. Mariko estava ao lado, também ouvindo, com
422
Yabu. Toranaga erguia-se no convés de popa da galera, Dell'Aqua
abaixo, no convés principal, com Alvito ao lado, mas ainda assim
os olhos estavam quase ao mesmo nível. - Ou, se o senhor
preferir, a sua belonave pode remover os barcos de pesca do meu
caminho.
- Perdoe-me, mas isso seria um ato hostil indesculpável
que o senhor não recomendaria... não poderia recomendar à
fragata, Senhor Toranaga - disse Dell'Aqua, falando diretamente
a ele, achando a tradução simultânea de Alvito misteriosa como
sempre. - Isso seria impossível... um ato de guerra declarada.
- Então o que sugere?
- Por favor venha à fragata. Deixe-nos perguntar ao capitão-mor. Ele terá uma solução, agora que sabemos qual é o seu
problema. É ele o militar, não nós.
- Traga-o aqui.
- Ser-lhe-la mais rápido ir até lá, senhor. Além, é claro,
da honra que o senhor nos concederia.
Há apenas poucos momentos tinham visto mais barcos de
pesca carregados de arqueiros, lançados da praia meridional e,
embora estivessem seguros no momento, era claro que dentro
de uma hora a garganta da enseada inteira estaria entupida de
inimigos.
E ele sabia que não tinha escolha.
- Sinto muito, senhor - explicara-lhe o Anjin-san antes,
durante a malograda perseguição. Não consigo me aproximar
da fragata. Rodrigues é esperto demais. Posso impedi-lo de escapar
se o vento permanecer assim, mas não conseguirei pegá-lo, a menos que ele cometa um erro. Teremos que parlamentar.
- Ele cometerá um erro e o vento permanecerá assim? -
perguntara ele através de Mariko.
- O Anjin-san diz - respondera ela - que um homem
prudente nunca aposta no vento, a menos que se trate de um
vento alísio e se esteja em alto-mar. Aqui estamos numa enseada,
onde as montanhas fazem o vento soprar em círculos. O piloto,
Rodrigues, não cometerá nenhum erro.
Toranaga presenciara os dois pilotos opondo um ao outro
as respectivas habilidades, e entendeu, para além de qualquer
dúvida, que ambos eram mestres. E viera a entender também que
nem ele, nem suas terras, nem o império jamais estariam seguros
sem possuir navios bárbaros modernos e, com esses navios, controlar os próprios mares. O pensamento o deixara abalado.
- Mas como posso negociar com eles? Que desculpa acei423

tável poderiam dar para tal hostilidade declarada contra mim?
Agora o meu dever é afundá-los pelos insultos à minha honra.
Então o Anjin-san explicara o estratagema da bandeira falsa:
como todos os navios usavam o ardil para se aproximar do
inimigo, ou para tentar evitar o inimigo, e Toranaga ficara enormemente aliviado por haver uma solução aceitável para o problema, uma solução que lhe poupasse a dignidade.
- Penso que deveríamos ir imediatamente - estava dizendo
Alvito.
- Muito bem - concordou Toranaga. - Yabu-san, assuma
o comando do navio. Mariko-san, diga ao Anjin-san que ele deve
permanecer no tombadilho e que fica responsável pelo leme. Você
venha comigo.
- Sim, senhor.
Pelo tamanho da chalupa Toranaga entendera perfeitamente
que só poderia levar cinco guardas consigo. Mas isso fora igualmente previsto, e o plano final era simples: se não conseguisse
persuadir a fragata a ajudar, ele e seus guardas matariam o
capitão-mor, o piloto e os padres, e se entrincheirariam numa
das cabinas. Simultaneamente a galera se lançaria contra a fragata
pela proa, conforme sugerira o Anjin-san, e juntos tentariam
tomar a fragata de assalto. Tomariam a fragata ou não, mas em
qualquer caso haveria uma solução rápida.
- É um bom plano, Yabu-san - dissera ele.
- Por favor, permita-me ir no seu lugar para negociar.
- Eles não concordariam com isso.
- Muito bem, mas assim que estivermos fora da armadilha
expulse todos os bárbaros do nosso reino. Se o fizer, ganhará
mais daimios do que perderá.
- Considerarei o assunto - dissera Toranaga, sabendo que
aquilo era absurdo, que precisava dos daimios cristãos Onoshi e
Kiyama ao seu lado e, conseqüentemente, dos outros daimios
cristãos, caso contrário ele seria engolido. Por que Yabu quereria
ir à fragata? Que traição planejava para o caso de não haver
ajuda?
- Senhor - dizia Alvito por Dell'Aqua -, posso convidar
o Anjin-san a nos acompanhar?
- Por quê?
- Ocorreu-me que ele talvez gostasse de saudar seu colega,
o piloto Rodrigues. O homem está com uma perna quebrada e
não pode vir aqui. Rodrigues gostaria de revê-lo, agradecer-lhe
por lhe haver salvado a vida, se o senhor não se importasse.
424
Toranaga não conseguia pensar em nenhuma razão por que
o Anjin-san não devesse ir. O homem se encontrava sob a sua
proteção, portanto inviolável. - Se ele quiser, muito bem. Marikosan, acompanhe Tsukku-san.
Mariko curvou-se. Sabia que a sua tarefa era ouvir, relatar
o assegurar que tudo o que fosse dito seria relatado corretamente,
sem omissão.
Sentia-se melhor agora, o penteado e o rosto novamente
perfeitos, um quimono limpo emprestado pela Senhora Fujiko, o
braço esquerdo numa tipóia. Um dos imediatos, aprendiz de médico, pensara-lhe o ferimento. O corte não atingira nenhum tendão
o a ferida estava limpa. Um banho a teria revigorado completamente mas não havia instalações para isso.
Ela e Alvito caminharam até o tombadilho. Alvito viu a faca
no sash de Blackthorne e o modo como o quimono, embora sujo,
parecia assentar-lhe. Até onde ele terá ido no caminho para a
confiança de Toranaga? - perguntou-se ele.
- Salve, Capitão-Piloto Blackthorne.
- Apodreça no inferno, padre! - respondeu Blackthorne
afavelmente.
- Talvez nos encontremos lá, Anjin-san. Talvez. Toranaga
disse que o senhor pode vir a bordo da fragata.
Ordens dele?
Se o senhor quiser, ele disse.
Não quero.
Rodrigues gostaria de agradecer-lhe de novo e de revê-lo.
Transmita-lhe os meus respeitos e diga que o verei no
inferno. Ou aqui.
A perna o impede de fazer isso.
Como está a perna dele?
Sarando. Com a sua ajuda e a graça de Deus, dentro de
poucas semanas ele estará andando, se Deus quiser, embora fique
coxo para sempre.
- Diga-lhe que estimo suas melhoras. É melhor ir agora,
padre, está perdendo seu tempo.
- Rodrigues gostaria de vê-lo. Há grogue a mesa, um
excelente frango assado, molho, pão fresco, e manteiga. Seria triste,
piloto, desperdiçar tanta comida.
- O quê?
- Há um dourado pão fresco, capitão-piloto, biscoitos frescos, manteiga e um bom peso de carne. Laranjas frescas de Goa
o até um galão de vinho da Madeira, ou conhaque, se o senhor
425

preferir. Há cerveja, também. Depois há o frango de Macau,
quente e suculento. O capitão-mor é um epicurista.
- Deus o mande para o inferno!
- Mandará, quando lhe aprouver. Só lhe digo o que há.
- O que quer dizer "epicurista"? - perguntou Mariko.
- É uma pessoa que aprecia a comida e uma mesa refinada,
Senhora Maria - disse Alvito, usando o nome de batismo dela.
Notara a mudança repentina no rosto de Blackthorne. Quase
podia ver as glândulas salivares funcionando e sentir a agonia
do estômago roncando. Naquela noite, ao ver a refeição servida
na grande cabina, a prata cintilante, a toalha branca, e cadeiras,
autênticas cadeiras estofadas de couro, e ao cheirar os pães frescos,
a manteiga, as carnes suculentas, também ele fora dominado pela
fome, e não estava ansioso por comida, nem desacostumado à
cozinha japonesa.
É tão simples agarrar um homem, disse Alvito a si mesmo.
Tudo o que se precisa é conhecer a isca certa. - Até logo,
capitão-piloto! - Alvito deu-lhe as costas e dirigiu-se para a
escada de embarque.
Blackthorne seguiu-o.
- Qual é o problema, Inglês? - perguntou Rodrigues.
- Onde está a comida? Depois podemos conversar. Primeiro
a comida que você prometeu. - Blackthorne encontrava-se no
convés principal, desconfiado.
- Por favor, acompanhe-me - disse Alvito.
- Aonde o está levando, padre?
- Naturalmente para a grande cabina. Blackthorne pode
comer enquanto o Senhor Toranaga e o capitão-mor conversam.
- Não. Ele pode comer na minha cabina.
- É mais fácil, certamente, ir até onde está a comida.
- Contramestre! Veja que o piloto seja alimentado imediatamente. Leve para a minha cabina tudo de que ele necessita.
Inglês, quer grogue, vinho ou cerveja?
- Primeiro cerveja, depois grogue.
- Contramestre, providencie e leve-o para baixo. E ouça,
Pesaro, dê-lhe algumas roupas do meu baú, botas, tudo. E fique
com ele até que eu o chame.
Sem dar uma palavra Blackthorne seguiu Pesaro, o contramestre, um homenzarrão corpulento, gaiúta abaixo.
Alvito começou a voltar para junto de Dell'Aqua e Toranaga,
426
que conversavam por intermédio de Mariko, mas Rodrigues o
deteve.
- Padre! Espere um instante. O que foi que disse a ele?
- Apenas que você gostaria de vê-lo e que tínhamos comida
a bordo.
- Mas era eu quem queria oferecer a comida?
- Não, Rodrigues, eu não disse isso. Mas você não ofereceria
comida a um piloto amigo que estivesse com fome?
- Aquele pobre bastardo não está com fome, está faminto.
Se comer neste estado, vai se empanturrar como um lobo voraz,
depois vomitará tudo tão depressa quanto uma prostituta bêbada
e comilona. Agora, nós não gostaríamos que um de nós, mesmo
um herege, comesse como um animal e vomitasse como um
animal na frente de Toranaga, não é, padre? Não diante de um
maldito filho da puta, particularmente um que tem a mente tão
limpa quanto a racha de uma prostituta sifilítica!
- Você precisa aprender a conter a imundície de sua linguagem, meu filho - disse Alvito. - Isso vai mandá-lo para o inferno. Faria melhor em rezar mil ave-manias e jejuar durante dois
dias. Apenas pão e água. Uma penitência pela graça de Deus,
para lembrá-lo da sua mercê.
- Obrigado, padre, farei isso. De bom grado. E se eu pudesse me ajoelhar, me ajoelharia e beijaria o seu crucifixo. Sim,
padre, este pobre pecador lhe agradece pela paciência dada por
Deus. Preciso vigiar a minha língua.
Ferreira chamou à gaiúta: - Rodrigues, você vai descer?
- Permanecerei no convés enquanto aquela galera estiver
ali, capitão-mor. Se precisar de mim, estarei aqui. - Alvito
começou a se afastar. Rodrigues notou Mariko. - Um instante,
padre. Quem é a mulher?
- Dona Maria Toda. Um dos intérpretes de Toranaga.
Rodrigues sussurrou: - É boa intérprete?
- Muito boa.
- Estupidez permitir-lhe vir a bordo. Porque o senhor disse
"Toda"? Ela é uma das consortes do velho Toda Hiro-matsu?
- Não. É a esposa do filho dele.
- Estupidez trazê-la a bordo. - Rodrigues chamou um
dos marujos com um gesto. - Espalhe o aviso de que a mulher
fala português.
- Sim, senhor. - O homem se afastou correndo e Rodrigues voltou-se para o Padre Alvito.
O padre não ficou nem um pouco intimidado com a cólera
427

evidente. - A Senhora Maria fala latim também, e exatamente
com a mesma perfeição. Mais alguma coisa, piloto?
- Não, obrigado. Talvez o melhor seja eu começar com as
minhas ave-manias.
- Sim, deveria fazer isso. - O padre fez o sinal-da-cruz e
partiu. Rodrigues cuspiu nos embornais e um dos timoneiros estremeceu e se persignou.
- Vá se pendurar ao mastro pelo seu prepúcio verde de
podre! - sibilou Rodrigues.
- Sim, capitão-piloto, desculpe, senhor. Mas fico nervoso
perto do bom padre. Não tive má intenção. - O jovem viu os últimos grãos de areia passarem pela garganta da ampulheta e virou-a.
- Daqui a meia hora, desça, leve um maldito balde, água
e um esfregão com você e limpe a sujeira da minha cabina.
Diga ao contramestre que traga o Inglês para cima e deixe a
minha cabina limpa. E é melhor que fique bem limpa, ou usarei as
suas tripas como jarreteiras. E enquanto estiver fazendo isso, reze
ave-manias pela sua alma amaldiçoada.
- Sim, senhor piloto - disse o jovem debilmente. Rodrigues era um fanático, um louco por limpeza, e sua cabina era
como o Santo Graal. Tudo tinha que estar impecável, fizesse o
tempo que fizesse.
CAPÍTULO 27
- Deve haver uma solução, capitão-mor - disse Dell'Aqua
pacientemente.
- O senhor deseja um ato declarado de guerra contra uma
nação amiga?
- Claro que não.
Todos na grande cabina sabiam que estavam na mesma armadilha. Qualquer ato declarado os colocaria definitivamente ao lado
de Toranaga contra Ishido, coisa que deviam evitar de qualquer
modo, para o caso de Ishido ser o vencedor eventual. No momento Ishido controlava Osaka e a capital, Kyoto, e a maioria dos
regentes. E agora, através dos daimios Onoshi e Kiyama, controlava a maior parte da ilha meridional de Kyushu e, com Kyushu,
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o porto de Nagasaki, o centro principal de todo o comércio, e
assim controlava o comércio e o Navio Negro daquele ano.
- Por que tanta dificuldade? - disse Toranaga por intermédio do Padre Alvito. - Só quero expulsar os piratas da boca
da enseada, neh?
Toranaga estava desconfortavelmente sentado no lugar de
honra, na cadeira de encosto alto junto à grande mesa, Alvito
estava ao seu lado, o capitão-mor à sua frente, Dell'Aqua ao lado
do capitão-mor. Mariko permanecia de pé atrás de Toranaga e os
guardas samurais esperavam perto da porta, encarando os marujos armados. E todos os europeus tinham consciência de que
embora Alvito traduzisse para Toranaga tudo o que era dito na
sala, Mariko estava lá para se certificar de que nada fosse dito
abertamente entre eles contra os interesses do seu amo, e que a
tradução fosse completa e acurada.
Dell'Aqua inclinou-se para a frente. - Talvez, senhor, pudesse enviar mensageiros ao Senhor Ishido. Talvez a solução se
encontre na negociação. Poderíamos oferecer este navio como um
lugar neutro para a negociação. Talvez desse modo os senhores
pudessem encerrar a guerra.
Toranaga riu com escárnio. - Que guerra? Não estamos em
guerra, Ishido e eu.
- Mas, senhor, vimos a batalha na praia.
- Não seja ingênuo! Quem foi morto? Alguns ronins sem
valor. Quem atacou a quem? Apenas ronins, bandidos ou fanáticos enganados.
- E a emboscada? Tomamos conhecimento de que os marrons lutaram contra os cinzentos.
- Os bandidos estavam atacando a todos nós, marrons e
cinzentos. Meus homens meramente lutaram para me proteger.
Em escaramuças noturnas os enganos ocorrem com freqüência.
Se marrons mataram cinzentos ou cinzentos mataram marrons,
foi apenas um erro lamentável. O que representam uns poucos
homens para qualquer um de nós? Nada. Não estamos em guerra.
Toranaga leu-lhes a incredulidade no rosto, então acrescentou: - Diga-lhes, Tsukku-san, que no Japão as guerras são travadas por exércitos. Essas ridículas escaramuças e tentativas de
assassinato são meras sondagens, para serem ignoradas quando
falham. A guerra não começou esta noite. Começou quando o
táicum morreu. Antes disso, até; quando ele morreu sem deixar
um filho adulto para sucedê-lo. Talvez até antes disso, quando
Goroda, o senhor protetor, foi assassinado. Esta noite não tem
429

nenhum significado duradouro. Nenhum de vocês compreende o
nosso reino, ou a nossa política. Como poderiam? Naturalmente
Ishido está tentando me matar. Assim como muitos outros daimios. Fizeram isso no passado e farão no futuro. Kiyama e Onoshi
já foram tanto amigos quanto inimigos. Ouçam, se eu fosse morto,
isso simplificaria as coisas para Ishido, o verdadeiro inimigo, mas
só por um momento. Estou na armadilha dele agora, e se ele for
bem sucedido terá meramente uma vantagem momentânea. Se eu
escapar, nunca terá havido uma armadilha. Mas compreendam
claramente, todos vocês, que a minha morte não eliminará a causa
da guerra, nem impedirá conflitos posteriores. Só se Ishido morrer deixará de haver conflito. Portanto não há guerra declarada
agora. Nenhuma guerra. - Ele mudou de posição na cadeira,
detestando o odor na cabina, proveniente das comidas gordurosas
e dos corpos não lavados. - Mas temos de fato um problema
imediato. Quero os seus canhões. Quero-os agora. Piratas me cercam na boca da enseada. Eu disse antes, Tsukku-san, que logo
todos terão que tomar posição. Agora, de que lado está você, o
seu chefe e toda a Igreja cristã? E os meus amigos portugueses
estão comigo ou contra mim?
- Pode ter certeza, Senhor Toranaga - disse Dell'Aqua -,
de que todos nós apoiamos os seus interesses.
- Ótimo. Então elimine os piratas imediatamente.
- Isso seria um ato de guerra e não traria proveito algum.
Talvez possamos tratar de negócios, hem? - disse Ferreira.
Alvito não traduziu isso mas disse, ao contrário: - O capitão-mor diz que estamos apenas tentando evitar interferência na
sua política, Senhor Toranaga. Somos comerciantes.
Mariko disse em japonês para Toranaga: - Desculpe, senhor, isso não está correto. Não foi isso o que foi dito.
Alvito suspirou. - Simplesmente transpus algumas das palavras dele, senhor. O capitão-mor, sendo estranho aqui, não tem
consciência de certas cortesias. Não compreende nada sobre o
Japão.
- Você compreende, Tsukku-san? - perguntou Toranaga.
- Tento, senhor.
- Que foi que ele disse realmente?
Alvito contou-lhe.
Após uma pausa, Toranaga disse: - O Anjin-san me disse
que os portugueses têm grande interesse pelo comércio, e que em
comércio não têm boas maneiras nem humor. Compreendo e acei430
tarei a explicação, Tsukku-san. Mas daqui em diante, por favor,
traduza tudo exatamente como for dito.
- Sim, senhor.
- Diga isto ao capitão-mor: quando o conflito estiver concluído, expandirei o comércio. Sou a favor do comércio. Ishido não.
Dell'Aqua acompanhara a troca de idéias e esperava que
Alvito tivesse disfarçado a estupidez de Ferreira. - Não somos
políticos, senhor, somos religiosos e representamos a fé e os fiéis.
Realmente apoiamos os seus interesses. Sim.
- Concordo. Estava pensando... - Alvito parou de interpretar, seu rosto se iluminou e por um momento o japonês de
Toranaga escapou-lhe. - Desculpe, Eminência, mas o Senhor
Toranaga disse: "Estava considerando a possibilidade de lhe pedir
que construísse um grande templo em Yedo, como medida da minha confiança nos seus interesses". - Fazia anos, desde que Toranaga se tornara senhor das Oito Províncias, que Dell'Aqua vinha
manobrando para obter essa concessão. E obté-la agora, na terceira maior cidade do império, era uma concessão inestimável.
Dell'Aqua entendeu que chegara o momento de resolver o problema dos canhões. - Agradeça-lhe, Martim Tsukku-san - disse,
usando a codifrase que combinara previamente com Alvito -, e
diga que tentaremos sempre estar ao seu serviço. Oh, sim, e perguntê-lhe o que tem em mente sobre a catedral - acrescentou.
- Talvez eu possa falar um instante diretamente, senhor -
começou Alvito, dirigindo-se a Toranaga. - Meu amo lhe agradece e diz que o que o senhor pediu anteriormente talvez seja
possível. Ele se empenhará sempre por dar-lhe assistência.
- "Empenho" é uma palavra abstrata e insatisfatória.
- Sim, senhor. - Alvito relanceou os olhos para os guardas, que, naturalmente, ouviam sem dar a entender isso. - Mas
lembro-me de o senhor ter dito que às vezes é sábio ser abstrato.
Toranaga compreendeu imediatamente. Fez um gesto aos seus
homens, dispensando-os. - Esperem lá fora, todos vocês.
Apreensivos obedeceram. Alvito voltou-se para Ferreira. -
Não precisamos dos seus guardas agora, capitão-mor.
Depois de os samurais terem saído, Ferreira dispensou seus
homens e deu uma olhada em Mariko. Ele estava com pistolas ao
cinto e tinha outra na bota.
- O senhor não gostaria, talvez - disse Alvito a Toranaga -, que a Senhora Mariko se sentasse?
Toranaga entendeu de novo. Pensou um instante, depois
431

assentiu e disse, sem se voltar: - Mariko-san, leve um dos meus
guardas e encontre o Anjin-san. Fique com ele até que eu mande
chamá-la.
- Sim, senhor.
A porta fechou-se atrás dela.
Agora estavam a sós. Os quatro.
- Qual é a oferta? - perguntou Ferreira. - O que ele
está oferecendo?
- Tenha paciência, capitão-mor - respondeu Dell'Aqua, os
dedos tamborilando sobre o seu crucifixo, rezando pelo sucesso.
- Senhor - começou Alvito -, meu amo diz que tudo o
que o senhor pediu será tentado. Dentro dos quarenta dias. Ele
enviará a sua mensagem em particular. Serei eu o mensageiro,
com a sua permissão.
- E se ele não for bem sucedido?
- Não será por falta de tentativa, de persuasão ou de pensamento. Ele lhe dá a sua palavra.
- Diante do Deus cristão?
- Sim. Diante de Deus.
- Ótimo. Quero isso por escrito. Com o selo dele.
-- As vezes os acordos satisfatórios, os acordos delicados,
não devem ser transpostos para a escrita, senhor.
- Está dizendo que, a menos que eu ponha o meu acordo
por escrito, você não fará isso?
- Simplesmente me lembrei de um dos seus próprios ditos:
que a honra de um samurai é certamente muito mais importante
do que um pedaço de papel. O padre-lnspetor lhe dá a sua palavra
diante de Deus, a sua palavra de honra, como um samurai o faria.
A sua honra é totalmente suficiente para o padre-lnspetor. Só pensei que ele se entristeceria por não merecer confiança. O senhor
quer que eu peça uma assinatura?
Depois de um tempo, Toranaga disse: - Muito bem. A palavra dele diante do Deus Jesus, neh? A palavra dele diante do
Deus dele?
- Dou-a em seu nome. Ele jurou tentar pela cruz abençoada.
- Você também, Tsukku-san?
- O senhor tem igualmente a minha palavra, diante de
Deus, pela cruz abençoada, de que farei tudo o que puder para
ajudá-lo a persuadir os senhores Onoshi e Kiyama a se tornarem
seus aliados.
- Em troca farei o que prometi anteriormente. No quadra432
gésimo primeiro dia vocês podem lançar a pedra fundamental do
maior templo cristão do império.
- As escavações poderiam ser iniciadas imediatamente, senhor?
- Tão logo eu chegue a Yedo. Bem, bem. E quanto aos
piratas? Os piratas nos barcos de pesca? Vocês os liquidarão imediatamente?
- Se tivesse canhões, o senhor mesmo faria isso?
- É claro, Tsukku-san.
- Peço desculpas por ser tão tortuoso, senhor, mas tivemos
que elaborar um plano. Os canhões não nos pertencem. Por favor,
conceda-me um momento. - Alvito voltou-se para Dell'Aqua:
- Está tudo arranjado quanto à catedral, Eminência. - Depois,
para Ferreira, dando início ao plano combinado: - O senhor
ficará contente por não tê-lo afundado, capitão-mor. O Senhor
Toranaga perguntou se o senhor levaria dez mil ducados de ouro
para ele quando partir com o Navio Negro para Goa, a fim de
investir o dinheiro no mercado de ouro da Índia. Nós teríamos
muito prazer em colaborar na transação por intermédio das nossas
fontes habituais lá, colocando o dinheiro para o senhor. O Senhor
Toranaga diz que metade do lucro será seu. - Alvito e Dell'Aqua
haviam resolvido que, pela época em que o Navio Negro voltasse,
dentro de seis meses, Toranaga ou estaria novamente empossado
como presidente dos regentes, e conseqüentemente mais que satisfeito em permitir essa transação muito lucrativa, ou estaria morto.
- O senhor facilmente receberia um lucro líquido de quatro mil
ducados. Sem risco algum.
- Em troca de que concessão? Isso é mais do que o subsidio
anual que o rei da Espanha concede a toda a sua Companhia de
Jesus. Em troca de quê?
- O Senhor Toranaga diz que os piratas o impedem de deixar a enseada. Ele deve saber melhor do que o senhor se se trata
ou não de piratas.
Ferreira retrucou no mesmo tom sincero que ambos sabiam
ser de proveito apenas para Toranaga. - É desavisado depositar
confiança nesse homem. O inimigo dele detém todos os trunfos.
Todos os daimios cristãos estão contra ele. Com certeza os dois
principais; ouvi-os com meus próprios ouvidos. Disseram que esse
japona é o verdadeiro inimigo. Acredito neles e não neste idiota
sem mãe.
- Estou certo de que o Senhor Toranaga sabe melhor do
que nós quem e pirata e quem não é - disse Dell'Aqua impas433

sível, conhecendo a solução assim como Alvito. - Suponho que
o senhor não faça objeção a que o Senhor Toranaga lide com os
piratas sozinho?
- Claro que não.
- O senhor tem muitos canhões de reserva a bordo - disse
o padre-lnspetor. - Por que não lhe ceder alguns em particular?
Venda-lhe alguns, na realidade. O senhor vende armas o tempo
todo. Ele está comprando armas. Quatro canhões seriam mais que
suficientes. Seria fácil baldeá-los na chalupa, com pólvora e munição suficientes, sempre em particular. E o assunto fica resolvido.
Ferreira suspirou. - Os canhões, cara Eminência, são inúteis
a bordo da galera. Não há portinholas, não há cordas de canhão,
não há espeques de canhões. Eles não podem usar canhões, mesmo
que tivessem os atiradores, que não têm.
Os dois padres ficaram pasmados. - Inúteis?
- Totalmente.
- Mas com certeza, Dom Ferreira, eles podem adapt.
. .
- Aquela galera é incapaz de usar canhões sem uma reforma. Levaria no mínimo uma semana.
- Nan ja? - disse Toranaga desconfiado, percebendo que
alguma coisa estava errada, apesar do muito que tentavam esconder-lhe isso.
- Toranaga perguntou-lhe o que há - disse Alvito.
Dell'Aqua sabia que a areia corria contra eles. - Capitáomor, por favor, ajude-nos. Por favor. Peço-lhe francamente. Obtivemos enormes concessões para a fé. O senhor deve acreditar em
mim e, sim, deve confiar em nós. De algum modo deve ajudar o
Senhor Toranaga a sair da enseada. Rogo-lhe em nome da Igreja.
Só a catedral já é uma enorme concessão. Por favor.
Ferreira não se permitiu demonstrar nada do êxtase da vitória. Até acrescentou uma gravidade simulada à voz. - Já que o
senhor pede ajuda em nome da Igreja, Eminência, claro que farei
o que pede. Vou tirá-lo da armadilha. Mas em troca quero o
posto de capitão-mor do Navio Negro do próximo ano, seja o
deste ano bem sucedido ou não.
- Isso é uma concessão pessoal do rei da Espanha, dele
apenas. Não cabe a mim conferi-la.
- Depois: aceito o oferecimento do ouro dele, mas quero a sua garantia de que não terei problemas com o vice-rei de Goa,
nem aqui, nem por causa do ouro nem com os Navios Negros.
- Atreve-se a reter a mim e à Igreja em troca de resgate?
434
- Trata-se meramente de um acordo de negócios entre mim,
o senhor e esse macaco.
- Ele não é macaco algum, capitão-mor. É melhor que se
lembre disso.
- Depois: quinze por cento da
de dez.
- Impossível.
- Depois: para manter tudo em ordem, Eminência, a sua
palavra diante de Deus, agora, de que nem o senhor nem nenhum
dos padres sob a sua jurisdição jamais me ameaçará de excomunhão a menos que eu cometa um futuro ato de sacrilégio, coisa
que nenhum destes é. E a sua palavra de que o senhor e os santos
padres me apoiarão ativamente e ajudarão esses dois Navios Negros - também diante de Deus.
- E depois, capitão-mor? Ainda não acabou? Com certeza
há mais alguma coisa?
- Por último: quero o herege.


Da soleira da cabina, Mariko olhava fixamente para Blackthorne, deitado em semicoma no chão, vomitando. O contramestre
estava encostado ao beliche, olhando-a furtivamente, os cotos dos
seus dentes amarelos à mostra.
- Está envenenado? Ou está bêbado? - perguntou ela a
Totomi Kana, o samurai ao seu lado, tentando inutilmente cerrar
as narinas ao mau cheiro da comida e do vômito, ao mau cheiro
do horrendo marujo à sua frente, e ao sempre presente mau cheiro
dos porões que impregnava o navio inteiro. - Parece quase como
se ele tivesse sido envenenado, neh?
- Talvez tenha sido, Mariko-san. Olhe para aquela imundície! - O samurai apontou com desagrado para a mesa. Estava
coberta de travessas de madeira contendo os restos de um quarto
mutilado de rosbife, malpassado, metade da carcaça de uma galinha assada, pão partido, queijo, cerveja derramada, manteiga,
um prato de molho frio e gordo de toucinho, uma garrafa de
conhaque pela metade.
Nenhum dos dois jamais vira carne à mesa antes.
- O que querem? - perguntou o contramestre. - Nada de
macacos aqui, wakarimasu? Nada de macacos-sans nestu saiu! -
Olhou para o samurai e fez-lhe sinal que se fosse. - Fora! Dêem
o fora! - Seus olhos se fixaram em Mariko de novo. - Qual é
o seu nome? Namu, hem?
435
carga deste ano, em vez
- O que ele está dizendo, Mariko-san? - perguntou o
samurai.
O contramestre olhou de relance para o samurai um instante,
depois fitou Mariko.
- O que o bárbaro está dizendo, Mariko-san?
Mariko desviou os olhos hipnotizados da mesa e concentrouse no contramestre.
- Desculpe, senhor, não o compreendi. O que foi que disse?
- Hem? - A boca do contramestre se escancarou. Era um
homem gordo de olhos muito juntos e orelhas grandes, o cabelo
num rabicho ensebado. Um crucifixo pendia-lhe das dobras do
pescoço e pistolas dançavam-lhe no cinto. - Hein? Você sabe
falar português? Uma japona que sabe falar bom português? Onde
aprendeu a falar civilizado?
- O... o padre cristão me ensinou.
- Serei um maldito filho de uma prostituta! Minha Nossa
Senhora, uma flor-san que fala civilizado!
Blackthorne vomitou de novo e tentou debilmente levantar-se.
- O senhor pode... por favor, o senhor pode pôr o piloto
ali? - Ela apontou para o beliche.
- Sim. Se o macaco ajudar.
- Quem? Desculpe, o que disse? Quem?
- Ele! O japona. Ele.
As palavras a atingiram como uma pedrada e ela precisou de
toda a força de vontade para permanecer calma. Fez um gesto
para o samurai.
- Kana-san, ajude o bárbaro, por favor. O Anjin-san deve
ser posto ali.
- Com prazer, senhora.
Os dois homens ergueram Blackthorne e ele caiu com um
baque no beliche, a cabeça pesada demais, mexendo a boca estupidamente.
- Ele deve ser lavado - disse Mariko em japonês, ainda
meio atordoada pelo modo como o contramestre tratava Kana.
- Sim, Mariko-san. Ordene que o bárbaro mande chamar
alguns criados.
- Sim. - Seus olhos incrédulos voltaram inexoravelmente
para a mesa.
- Eles realmente comem isso?
O contramestre seguiu-lhe o olhar. Imediatamente se inclinou,
arrancou uma perna de galinha e ofereceu a ela. - Está com
436
fome? Aqui está, pequena flor-san, é bom. É carne fresca, um
autêntico capão de Macau.
Ela meneou a cabeça.
O rosto cinzento do contramestre fendeu-se num sorriso. Solicitamente mergulhou a perna da galinha no pesado molho e
segurou-a sob o nariz dela.
- O molho a torna melhor ainda. Ei, é bom poder conversar adequadamente, hem? Nunca fiz isso antes. Vamos, isto lhe
dará forças, no lugar onde a força é importante! E um capão de
Macau, estou lhe dizendo!
- Não... não, obrigada. Comer carne.., comer carne é
proibido. E contra a lei, contra o budismo e o xintoísmo.
- Em Nagasaki não é! - O contramestre riu. - Muitos
japonas comem carne o tempo todo. Todos comem quando podem
consegui-la, e também se encharcam com o nosso grogue. A senhora é cristã, hem? Vamos, experimente, pequena dona. Como
vai saber sem experimentar?
- Não, não, obrigada.
- Um homem não pode viver sem carne. Isso é comida de
verdade. Faz a gente forte, faz a gente se saracotear como um
arminho. Aqui está... - Ele ofereceu a perna de galinha a Kana.
- Você quer?
Kana abanou a cabeça, igualmente nauseado. - Iyé!
O contramestre deu de ombros e jogou descuidadamente a
perna de frango em cima da mesa. - Iyé será. O que fez no
braço? Feriu-se em combate?
- Sim. Mas não é grave. - Mariko moveu-se um pouco
para mostrar-lhe o ferimento e engoliu a dor.
- Pobre coisinha! O que quer aqui, senhorita, hem?
- Ver o An... ver o piloto. O Senhor Toranaga me mandou. O piloto está bêbado?
- Sim, e cheio de comida também. O pobre bastardo comeu
e bebeu depressa demais. Tomou meia garrafa de um trago. Os
ingleses são todos iguais. Não agüentam o grogue e não têm
co jones. - Mediu Mariko com os olhos. - Nunca vi uma florzinha
tão pequena quanto você. E nunca conversei com uma japona que
soubesse falar civilizado antes.
- O senhor chama todas as senhoras e samurais japoneses
de japonas e macacos?
O marujo riu brevemente. - Ora, senhorita, isso foi um
escorregão da língua. Isso é para comuns, a senhora sabe, os alcoviteiros e as prostitutas em Nagasaki. Sem intenção de ofender.
437

Nunca conversei realmente com uma senhorita civilizada, nunca
soube que havia alguma, por Deus.
- Nem eu, senhor. Nunca conversei com um português civilizado antes, além do santo padre. Somos japoneses, não japonas, neh? E macacos são animais, não?
- Claro. - O contramestre mostrou os dentes quebrados.
- Fala como uma dona. Sim. Não tive a intenção de ofender,
dona senhorita.
Blackthorne começou a balbuciar. Ela se aproximou do beliche e sacudiu-o suavemente. - Anjin-san! Anjin-san!
- Sim... sim? - Blackthorne abriu os olhos. - Oh...
alo. .. descul o... eu. .. - Mas o peso da dor que sentia e os .
giros que a sala dava forçaram-no a continuar deitado.
- Por favor, mande chamar um criado, senhor. Ele deve
ser lavado.
- Há escravos... mas não para isso, dona senhorita. Deixe
o Inglês. Que mal faz um pouco de vômito para um herege?
- Não há criados? - perguntou ela, pasmada.
- Temos escravos, bastardos pretos, mas são preguiçosos.
Eu não confiaria neles para lavá-lo - acrescentou com um sorriso enviesado.
Mariko sabia que não tinha alternativa. O Senhor Toranaga
poderia ter necessidade do Anjin-san imediatamente, e era dever
dela. - Então preciso de água - disse. - Para lavá-lo.
- Há um barril ao pé da escada. No convés inferior.
- Por favor, vá buscar um pouco, senhor.
- Mande a ele. - O contramestre sacudiu o dedo na direção de Kana.
- Não. Vá o senhor, por favor. Agora.
O contramestre olhou para Blackthorne. - Você é a zinha
dele?
- O quê?
- A zinha do Inglês?
- O que é "zinha", senhor?
- A mulher dele. A companheira dele, você sabe, senhorita,
a namorada desse piloto. Znha.
- Não. Não, senhor, não sou a zinha dele.
- Dele, então? Deste mac... deste samurai? Ou do rei,
talvez, desse que veio a bordo? Tora-alguma-coisa? Você é uma
das mulheres dele?
- Não.
- Nem de ninguém a bordo?
438
Ela balançou a cabeça. - Por favor, quer ir buscar um
pouco de água?
O contramestre assentiu e saiu.
- Tú o homem mais feio e de cheiro mais repugnante de
que jamais me aproximei - disse o samurai. - O que ele estava
dizendo?
- Ele... o homem perguntou se... se eu sou uma das
consortes do piloto.
O samurai dirigiu-se para a porta.
- Kana-san!
- Exijo o direito, em nome do seu marido, de reparar esse
insulto. Imediatamente! Como se a senhora pudesse coabitar com
algum bárbaro!
- Kana-san! Por favor, feche a porta.
- A senhora é Toda Mariko-san! Como se atreveu ele a
insultá-la? O insulto deve ser reparado!
- Será, Kana-san, e lhe agradeço. Sim. Dou-lhe o direito.
Mas estamos aqui por ordem do Senhor Toranaga. Antes que ele
dé a sua aprovação, não seria correto que o senhor fizesse isso.
Kana fechou a porta relutantemente. - Concordo. Mas formalmente peço-lhe que solicite isso ao Senhor Toranaga antes de
partirmos.
- Sim. Obrigada por seu interesse pela minha honra. - O
que Kana faria se soubesse de tudo o que foi dito, perguntou-se
ela, aterrorizada. O que faria o Senhor Toranaga? Ou Hiro-matsu?
Ou meu marido? Macacos? Oh, minha Nossa Senhora, ajude-me
a me manter calma e a conservar a mente funcionando. Para
abrandar a fúria de Kana, ela rapidamente mudou de assunto.
- O Anjin-san parece tão indefeso. Como um bebê. Parece que
os bárbaros não agüentam o vinho. Exatamente como alguns dos
nossos homens.
- Sim. Mas não é o vinho. Não pode ser. É o que ele
comeu.
Blackthorne moveu-se desajeitado, arrastando-se de volta à
consciência.
- Eles não têm criados no navio, Kana-san, portanto terei
que substituir uma das damas do Anjin-san. - Ela começou a
despir Blackthorne, desajeitadamente por causa do braço ferido.
- Deixe-me ajudá-la. - Kana foi muito hábil. - Eu costumava fazer isso para o meu pai quando o saque o tirava de si.
- É bom que um homem se embebede de vez em quando.
Liberta todos os maus espíritos.
439

- Sim. Mas meu pai costumava passar muito mal no dia
seguinte.
- Meu marido passa muito mal. Durante dias.
Após um instante, Kana disse: - Permita Buda que o seu
Senhor Buntaro escape.
- Sim. - Mariko olhou em torno da cabina. - Não compreendo como podem viver num lugar sórdido assim. E pior do
que o mais pobre do nosso povo. Eu estava quase desmaiando na
outra cabina, por causa do mau cheiro.
- É revoltante. Eu nunca tinha estado a bordo de um navio
bárbaro.
- Eu nunca estive ao mar antes.
A porta se abriu e o contramestre pousou o balde. Picou
chocado com a nudez de Blackthorne. Puxou uma coberta de sob
o beliche e cobriu-o.
- Ele vai se resfriar. Além disso, é uma vergonha fazer isso
com um homem, mesmo com ele.
- O quê?
- Nada. Qual é o seu nome, dona senhorita? - Os olhos
dele cintilavam.
Ela não respondeu. Empurrou a coberta para o lado e lavou
Blackthorne, contente por ter alguma coisa para fazer, odiando a
cabina e a repugnante presença do contramestre, perguntando-se
sobre o que estariam conversando na outra cabina. Nosso amo
está seguro?
Quando acabou, enrolou o quimono e a tanga suja. - Isto
pode ser lavado, senhor?
- Hem?
- Isto deve ser limpo imediatamente. Poderia mandar chamar um escravo, por favor?
- São um bando de pretos preguiçosos, já lhe disse. Levaria
uma semana ou mais. Jogue fora, dona senhorita, isso não vale o
seu fôlego. O nosso Capitão-Piloto Rodrigues disse que eu lhe
desse roupas adequadas. Aqui estão. - Ele abriu um baú. -
Disse para dar-lhe algumas daqui.
- Não sei como vestir um homem com isso.
- Ele precisa de uma camisa, uma calça, codpiece, meias,
botas e uma jaqueta. - O contramestre tirou-as e mostrou-lhe.
Depois, juntos, ela e o samurai começaram a vestir Blackthorne,
ainda no seu estupor semiconsciente.
- Como é que ele usa isto? - Ela segurou o codpiece triangular, parecido com um saco, com os cordões pendurados.
440
- Nossa Senhora, ele usa na frente, assim - disse o contramestre embaraçado, apontando o seu. - Amarra-se no lugar
sobre as calças, como eu disse. Sobre o saco.
Ela olhou para o do contramestre, estudando-o. Ele sentiu-lhe
o olhar e ficou agitado.
Ela pôs o codpiece em Blackthorne, colocou-o cuidadosamente
no lugar, e junto com o samurai passou os cordões por entre as
pernas dele e amarrou-os em torno da cintura. Em voz baixa ela
disse ao samurai:
- Este é o modo de se vestir mais ridículo que já vi.
- Deve ser muito desconfortável - retrucou_ Kana. - Os
padres também usam, Mariko-san? Sob o hábito?
- Não sei.
Ela afastou um fio de cabelo da frente dos olhos. - Senhor,
o Anjin-san está vestido corretamente agora?
- Sim. Exceto pelas botas. Estão ali. Elas podem esperar.
- O contramestre se aproximou e as narinas dela se taparam.
Ele baixou a voz, mantendo-se de costas para o samurai. - Você
quer dar uma rapidinha?
- O quê?
- Eu lhe agrado, senhorita, hem? O que diz? Há um beliche
na cabina ao lado. Mande o seu amigo lá para cima. O Inglês
ficará inconsciente por uma hora ainda. Pago o habitual.
- O quê?
- Você merecerá uma moeda de cobre, até três, se for
boa, e será montada pelo melhor galo daqui até Lisboa, hem?
O que diz?
O samurai viu o horror dela. - O que é, Mariko-san?
Mariko empurrou o contramestre para longe do beliche. Suas
palavras soaram trôpegas. - Ele. .. ele disse.
. .
Kana sacou a espada imediatamente, mas viu-se diante do
cano de duas pistolas engatilhadas. Ainda assim começou a
avançar.
- Pare, Kana-san! - ofegou Mariko. - O Senhor Toranaga proibiu qualquer ataque até que ele ordenasse!
- Vamos, macaco, venha, seu cabeça de bosta fedorento!
Você! Diga a esse macaco que largue a espada ou será um filho
da puta sem cabeça antes de poder peidar!
Mariko erguia-se a um pé do contramestre. Tinha a mão
direita no obi, o cabo do estilete na palma da mão. Mas lembrouse do seu dever e tirou a mão. - Kana-san, embainhe a espada.
441
Por favor. Devemos obedecer ao Senhor Toranaga. Devemos obedecer-lhe.
Com um esforço supremo, Kana fez o que ela disse.
- Estou disposto a mandá-lo para o inferno, japona!
- Por favor, desculpe-o, senhor, e a mim - disse Mariko,
tentando soar polida. - Houve um engano, um eng.. .
- Esse bastardo com cara de macaco puxou uma espada.
Isso não foi engano algum, por Jesus!
- Por favor, desculpe, senhor, sinto muito.
O contramestre lambeu os lábios. - Esquecerei isso se você
for boazinha, florzinha. Vamos para a cabina ao lado e diga a
esse macac... diga a ele que fique aqui e esquecerei tudo isto.
- Qual... qual é o seu nome, senhor?
- Pesaro. Manuel Pesaro. Por quê?
- Nada. Por favor, desculpe o mal-entendido, Sr. Pesaro.
- Vá para a cabina ao lado. Agora.
- O que está acontecendo? O que... - Blackthorne não
sabia se ainda estava acordado ou ainda no pesadelo, mas sentiu
o perigo. - O que está acontecendo, por Deus?
- O japona fedorento sacou a armaa contra
- Foi um... um engano, Anjin-san - disse Mariko. Eu... eu pedi desculpas ao Sr. Pesaro.
- Mariko? É a senhora, Mariko-san?
- Hai, Anjin-san. Honro. Honro.
Ela chegou mais perto. As pistolas do contramestre não vacilavam. Ela teve que esbarrar nele e exigiu-lhe um esforço ainda
maior não puxar a sua faca e estripá-lo. Naquele momento a porta
se abriu. O jovem timoneiro entrou na cabina com um balde de
água. Olhou estupidamente para as pistolas e saiu em disparada.
- Onde está Rodrigues? - disse Blackthorne, tentando pôr
a cabeça a funcionar.
- Lá em cima, onde um bom piloto deve estar - disse o
contramestre, a voz rascante. - Este japona sacou a espada, por
Deus!
- Ajude-me a subir ao convés. - Blackthorne agarrou
os lados do beliche. Mariko segurou-o mas não conseguiu levantá-lo.
O contramestre acenou com a pistola para Kana. - Diga-lhe
que ajude. E diga-lhe que se há um Deus no paraíso, ele estará
pendendo do tais antes da troca de turno.
442
O Primeiro-lmediato Santiago afastou a orelha do nó da
madeira, secreto, na parede da grande cabina, com o "Bem, está
tudo resolvido, então" de Dell'Aqua ressoando-lhe no cérebro.
Silenciosamente deslizou pela cabina escura, saiu para o corredor
e fechou a porta sem ruído. Era um homem alto, magro, de rosto
marcado, e usava o cabelo preso num rabicho. Suas roupas estavam em ordem e, como muitos marujos, não usava calçados. As
pressas, subiu à gaiúta, atravessou o convés principal e rumou
para o tombadilho, onde Rodrigues conversava com Mariko. Desculpou-se, inclinou-se para colocar a boca bem junto da orelha de
Rodrigues e começou a relatar tudo o que ouvira, e fora enviado
para ouvir, de modo que ninguém mais no tombadilho pudesse
ouvir.
Blackthorne estava sentado atrás, no convés, encostado à
amurada, a cabeça apoiada sobre os joelhos dobrados. Mariko
estava sentada de costas eretas, de frente para Rodrigues, à moda
japonesa, e Kana, o samurai, gelidamente ao lado dela. Marinheiros armados aglomeravam-se nos conveses, e havia dois outros ao
leme. O navio ainda apontado a barlavento, o ar e a noite limpos,
os nimbos mais fortes e a chuva não muito longe. A cem jardas
de distância encontrava-se a galera, à mercê dos canhões da fragata, remos travados, com exceção de dois de cada lado que a
mantinham em posição, ao embalo da leve correnteza. Os barcos
de pesca emboscados com arqueiros samurais hostis estavam mais
próximos, mas ainda não haviam ultrapassado os limites de segurança.
Mariko observava Rodrigues e o imediato. Não podia ouvir
o que estava sendo dito e, ainda que pudesse, seu treinamento a
teria feito preferir não ouvir. A privacidade em casas de papel
era impossível sem a polidez e a consideração; sem privacidade
não podia existir vida civilizada, por isso todos os japoneses eram
treinados para ouvir e para não ouvir. Para o bem de todos.
Quando ela subira ao convés com Blackthorne, Rodrigues
ouvira a explanação do contramestre e a explanação vacilante dela
de que a culpa era sua, que ela interpretara mal o que o contramestre dissera, e que isso levara Kana a sacar da espada a fim de
proteger-lhe a honra. O contramestre ouvira, com um sorriso malicioso, as pistolas ainda apontadas para as costas do samurai.
- Só perguntei se ela era a zinha do Inglês, por Deus, já
que estava tão à vontade lavando-o e arrumando as intimidades
dele no cod.
- Baixe as pistolas, contramestre.
443
mim!

- Ele é perigoso, eu lhe digo. Amarre-o!
- Eu o vigiarei. Vá para a proa!
- Esse macaco me teria matado se eu não fosse mais rápido.
Ponha-o no lais. É isso o que faríamos em Nagasaki!
- Não estamos em Nagasaki. Vá para a proa! Já!
E quando o contramestre se afastara, Rodrigues perguntara:
- O que ele disse, senhora? O que realmente disse?
- Dis... nada, senhor. Por favor.
- Peço desculpas pela insolência daquele homem, à senhora
e ao samurai. Por favor, transmita-lhe isso, peça-lhe perdão. E
peço formalmente aos dois que esqueçam os insultos do contramestre. Não ajudará nem ao seu suserano nem ao meu termos
problemas a bordo. Prometo-lhe que cuidarei dele ao meu modo
e no momento oportuno.
Ela falara a Kana, que, ante a persuasão dela, finalmente
concordara.
- Kana-san diz que está bem, mas se voltar a ver o Contramestre Pesaro em terra, cortar-lhe-á a cabeça.
- É justo, por Deus. Sim. Domo arigato, Kana-san - disse
Rodrigues com um sorriso -, e domo arigato goziemashita,
Mariko-san.
- Fala japonês?
- Oh, não, só uma ou duas palavras. Tenho uma esposa em
Nagasaki.
- Oh! Está há muito tempo no Japão?
- Esta é a minha segunda viagem de Lisboa. Passei sete
anos nestas águas, aqui e entre Macau e Goa. - Rodrigues acrescentou: - Não prestem atenção nele, é eta. Mas Buda disse que
até os etas têm direito à vida. Neh? Minha esposa fala um pouco
de português, embora nem de longe tão perfeito quanto o da
senhora. É cristã, naturalmente?
- Sim.
- Minha esposa converteu-se. O pai dela é samurai, embora
não seja importante. O suserano dele é o Senhor Kiyama.
- Ela tem sorte por ter um marido como o senhor - disse
Mariko polidamente, mas perguntou a si mesma, confusa, como
é que alguém podia se casar e viver com um bárbaro. Apesar da
sua educação inerente, perguntou: - A senhora sua esposa come
carne como. .. como aquela da cabina?
- Não - replicou Rodrigues com uma risada, mostrando
dentes brancos, ótimos e fortes. - E na minha casa em Nagasaki
eu também não como. Ao mar sim, e na Europa. É um costume
444
nosso. Mil anos atrás, antes que Buda viesse, era um costume seu
também, neh? Antes que Buda vivesse para indicar o Tao, o Caminho, todas as pessoas comiam carne. Mesmo aqui, senhora.
Mesmo aqui. Agora, claro, estamos mais bem informados, alguns
de nós, neh?
Mariko pensou sobre isso. Depois disse: - Todos os portugueses nos chamam de macacos? E de japonas? Pelas nossas
costas?
Rodrigues puxou o brinco que estava usando. - Vocês não
nos chamam de bárbaros? Mesmo na nossa cara? Somos civilizados, pelo menos pensamos que somos, senhora. Na Índia, a terra
de Buda, chamam os japoneses de "demônios orientais" e, dispondo
de armas, não dariam permissão de desembarque na terra deles
a nenhum japonês. Vocês chamam os hindus de "pretos" e "naohumanos". Como é que os chineses chamam os japoneses? Como
é que vocês chamam os chineses? Como chamam os coreanos?
Comedores de alho, neh?
- Não creio que o Senhor Toranaga ficasse satisfeito ao
saber disso. Ou o Senhor Hiro-matsu, ou mesmo o pai da sua
esposa.
- O abençoado Jesus disse: "Prestai atenção à trave que
existe em vossos olhos antes de notar o argueiro que está nos
meus".
Ela pensou sobre isso novamente enquanto observava o primeiro-lmediato cochichar ao piloto português. É verdade: zombamos dos outros povos. Mas somos cidadãos da Terra dos Deuses
e portanto especialmente escolhidos pelos deuses. Apenas nós, de
todos os povos, somos protegidos por um imperador divino. Não
somos, então, absolutamente únicos e superiores a todos os outros?
E quando se é japonês e cristão? Não sei. Oh, Nossa Senhora,
de-me a sua compreensão. Este piloto Rodrigues é tão estranho
quanto o piloto inglês. Por que são tão especiais? Por causa do
treinamento deles? É inacreditável o que fazem, neh? Como podem navegar ao redor do mundo e caminhar sobre o mar tão
facilmente quanto nós fazemos por terra? A esposa de Rodrigues
saberia a resposta? Gostaria de conhecé-la, e conversar com ela.
O imediato baixou a voz ainda mais.
- Ele disse o quê? - exclamou com uma praga involuntária, e Mariko, malgrado seu, tentou ouvir. Mas não conseguiu
entender o que o imediato repetiu. Depois viu os dois olharem
para Blackthorne e seguiu-lhes o olhar, inquieta com o interesse
deles.
445
446
- O que mais aconteceu, Santiago? - perguntou Rodrigo
cautelosamente, consciente da presença de Mariko.
O imediato contou-lhe num sussurro, por trás de uma
em concha.
- Quanto tempo vão ficar lá embaixo?
- Estão brindando um ao outro. E ao acordo que fizeram.
- Bastardos! - Rodrigues agarrou a camisa do imediato.
- Nem uma palavra sobre isso, por Deus. Pela minha vida!
- Não era preciso dizer isso, piloto.
- Sempre é necessário dizer. - Rodrigues olhou para
Blackthorne, do outro lado. - Acorde-o!
O imediato aproximou-se e sacudiu-o asperamente.
- Que que há, hem?
- Bata-lhe!
Santiago o esbofeteou.
- Jesus Cristo, eu... - Blackthorne estava de pé, o rosto
em chamas, mas oscilou e caiu.
- Deus o amaldiçoe, acorde, Inglês! - Furiosamente Rodrigues estirou um dedo na direção dos dois timoneiros. - Atirem-no ao mar!
- Hem?
- Já, por Deus!
Quando os dois homens o agarraram, Mariko disse: - Piloto
Rodrigues, o senhor não deve mas antes que ela ou Kana
pudessem interferir os dois homens já haviam atirado Blackthorne
por sobre o costado. Ele caiu os vinte pés, de barriga na água,
erguendo uma nuvem de borrifos, e desapareceu. Num instante
voltou à tona, engasgando e falando incompreensivelmente, debatendo-se na água, o frio de gelo clareando-lhe a mente.
Rodrigues estava tentando levantar da cadeira. - Nossa Senhora, dêem-me uma mão!
Um dos timoneiros correu para ajudá-lo quando o primeiroimediato passou-lhe uma mão sob a axila. - Jesus Cristo, tenha
cuidado, olhe o meu pé, seu cabeça de bosta desajeitado!
Ajudaram-no a se aproximar da amurada. Blackthorne ainda
tossia e resmungava, mas agora, enquanto nadava para o navio,
gritava imprecações contra quem o havia atirado na água.
- Dois pontos a estibordo! - ordenou Rodrigues. O navio
pôs-se levemente a sotavento e se afastou de Blackthorne. Rodrigues gritou para baixo: - Fique longe do meu navio! - Depois,
com urgência, ao primeiro-lmediato: - Pegue a chalupa, recolha
o Inglês e coloque-o a bordo da galera. Depressa. Diga-lhe...
- Ele baixou a voz.
Mariko estava grata por Blackthorne não se ter afogado.
- Piloto! O Anjin-san está sob a proteção do Senhor Toranaga.
Exija que ele seja recolhido imediatamente!
- Só um momento, Mariko-san! - Rodrigues continuou
a cochichar com Santiago, que assentiu, depois saiu correndo.
- Desculpe, Mariko-san, gomen kudasai, mas era urgente. O
Inglês tinha que ser despertado. Eu sabia que ele sabia nadar. Ele
tem que estar alerta e logo!
- Por quê?
Sou amigo dele. Ele lhe disse isso?
Sim. Mas a Inglaterra e Portugal estão em guerra. Assim
como a Espanha.
Sim. Mas os pilotos devem estar acima da guerra.
Então para com quem o senhor cumpre o seu dever?
Para com a bandeira.
Isso não quer dizer para com seu rei?
Sim e não, senhora. Devo uma vida ao Inglês. - Rodrigues observava a chalupa. - Cuidado, devagar... agora coloque-o a barlavento - ordenou ao timoneiro.
- Sim, senhor.
Ele esperou, examinando e reexaminando o vento, os bancos
de areia e a praia a distância. - Desculpe, senhora, estava dizendo? - Rodrigues olhou-a momentaneamente, depois se afastou mais uma vez para examinar a posição do seu navio e a
chalupa. Ela também olhou a chalupa. Os homens haviam içado
Blackthorne do mar e remavam rapidamente em direção à galera,
sentados ao invés de em pé, e puxando os remos ao invés de
empurrá-los. Ele já não conseguia ver-lhes o rosto com clareza.
O Anjin-san tornou-se indistinto com o outro homem bem atrás
dele, o homem com quem Rodrigues cochichara.
- O que foi que disse a ele, senhor?
- A quem?
- A ele. Ao senhor que mandou apanhar o Anjin-san.
- Só que desejo boa viagem ao Inglês e adeus. - A resposta
foi insípida e não comprometedora.
Ela traduziu para Kana o que fora dito.
Quando Rodrigues viu a chalupa ao lado da galera, começou
a respirar de novo. - Ave Maria, mãe de Deus.. .
O capitão-mor e os jesuítas subiram ao convés. Toranaga e
os guardas seguiam-nos.
447
- Rodrigues! Desça a chalupa! Os padres vão a terra -
disse Ferreira.
- E depois?
- Depois zarpamos. Para Yedo.
- Por que para lá? Estávamos navegando para Macau respondeu Rodrigues, a imagem da inocência.
- Vamos levar Toranaga para Yedo, primeiro.
- Vamos o quê? Mas e a galera?
- Fica ou abre caminho à força.
Rodrigues pareceu ficar ainda mais surpreso e olhou para a
galera, depois para Mariko. Viu a acusação escrita nos olhos
dela. - Matsu - disse o piloto em voz baixa.
- O quê? - perguntou o Padre Alvito. - Paciência? Por
que paciência, Rodrigues?
- Rezar ave-marias, padre. Eu estava dizendo à senhora
que isso ensina paciência.
Ferreira fitava a galera. - O que a nossa chalupa está
fazendo lá?
- Mandei o herege de volta.
- Você o quê?
- Mandei o Inglês de volta. Qual é o problema, capitãomor? O Inglês me ofendeu, por isso atirei o sodomita ao mar.
Deveria tê-lo deixado se afogar, mas ele sabia nadar, então
mandei o imediato recolhê-lo e colocá-lo de volta no navio dele,
já que ele parece contar com o favor do Senhor Toranaga. O que
há de errado nisso?
- Traga-o de volta a bordo.
- Terei que enviar um destacamento armado para abordagem, capitão-mor. É isso o que deseja? Ele estava blasfemando
e cuspindo o fogo do inferno sobre nós. Não voltará de boa
vontade desta vez.
- Quero-o de volta.
- Qual é o problema? O senhor não disse que a galera deve ficar e lutar, etcétera e tal? E então? O Inglês está afundado
na merda. ótimo. Quem precisa daquele sodomita, afinal? Certa
mente os padres o preferem longe de suas vistas. Hein, padre?
Dell'Aqua não respondeu. Nem Alvito. Aquilo alterava o
plano que Ferreira formulara e que fora aceito por eles e por
Toranaga: que os padres desembarcariam imediatamente para
apaziguar Ishido, Kiyama e Onoshi, alegando que tinham acredi
tado na história de Toranaga sobre os piratas e não sabiam que
448
ele "fugira" do castelo. Enquanto isso a fragata rumaria para a
boca da enseada, deixando a galera para desviar a atenção dos
barcos de pesca. Se houvesse um ataque aberto contra a fragata,
seria rechaçado com canhões, e os dados estariam lançados.
- Mas os botes não devem nos atacar - raciocinara Ferreira. - Têm a galera para pegar. Será sua responsabilidade,
Eminência, convencer Ishido de que não tivemos outra escolha.
Afinal de contas, Toranaga é o presidente dos regentes. Por
último, o herege fica a bordo.
Nenhum dos padres perguntara por quê. Nem Ferreira expusera voluntariamente a razão disso.
o padre-lnspetor deu um tapinha afetuoso no capitão-mor e
voltou as costas para a galera. - Talvez esteja igualmente bem
que o herege fique lá - disse, e pensou: Como são estranhos os
caminhos de Deus!
Não, Ferreira queria gritar. Eu queria vê-lo afogado. Um
homem caído ao mar bem cedo ao amanhecer - nenhum vestígio, nenhuma testemunha, tão fácil. Toranaga nunca seria o mais
esperto; um acidente trágico, seria tudo. E era esse o destino
que Blackthorne merecia. O capitão-mor também conhecia o
horror à morte no mar que tinha todo o piloto.
- Nan ja? - perguntou Toranaga.
o Padre Alvito explicou que o piloto se encontrava na galera
e por quê. Toranaga voltou-se para Mariko, que assentiu e acrescentou o que Rodrigues dissera anteriormente.
Toranaga aproximou-se da amurada e perscrutou a escuridão. Mais barcos de pesca estavam largando a praia ao norte e
os outros logo estariam em posição. Ele sabia que o Anjin-san
era um estorvo político e aquele era um meio simples que os
deuses lhe ofereciam, caso desejasse se livrar dele. Quero isso?
Com certeza os padres cristãos ficarão imensamente mais felizes
se o Anjin-san desaparecer, pensou ele. Assim como Onoshi e
Kiyama, que temiam tanto o homem que um deles, ou os dois,
organizou as tentativas de assassinato. Por que esse medo?
o karma que o Anjin-san esteja na galera agora e não em
segurança aqui. Neh? Portanto o Anjin-san irá ao fundo com o
navio, junto com Yabu, os outros, as armas, e isso também é
karma. As armas, posso perdê-las, Yabu eu posso perder. Mas e
o Anjin-san?
Sim.
Porque ainda tenho mais oito desses bárbaros estranhos de
449
I

reserva. Talvez o conhecimento coletivo deles seja igual ou exceda
ao desse homem isolado. O importante é estar de volta a Yedo
tão rapidamente quanto possível, a fim de me preparar para a
guerra, que não pode ser evitada. Kiyama e Onoshi? Quem sabe
se me apoiarão. Talvez sim, talvez não. Mas um pedaço de terra e
algumas promessas não pesam nada na balança, se o peso cristão
estiver do meu lado dentro de quarenta dias.
- É karma, Tsukku-san. Neh?
- Sim, senhor. - Alvito olhou para o capitão-mor, muito
satisfeito.
-- O Senhor Toranaga sugere que não se faça nada. É a
vontade de Deus.
- É?
O tambor da galera começou a soar abruptamente. Os remos
tocaram a água com grande força.
- Em nome de Cristo, o que ele está fazendo? - urrou
Ferreira. Então, enquanto olhavam a galera se afastando deles,
a bandeira de Toranaga desceu esvoaçando do topo do mastro.
- É como se estivessem dizendo a todos os malditos barcos
de pesca da enseada que o Senhor Toranaga não está mais a
bordo - disse Rodrigues.
- O que ele vai fazer?
- Não sei.
- Não sabe mesmo? - perguntou Ferreira.
- Não. Mas se fosse ele, rumaria para o alto-mar e nos
deixaria no fundo do poço - ou tentaria fazer isso. O Inglês
nos deixou expostos agora. O que se faz?
- Sua ordem é seguir para Yedo. - O capitão-mor queria
acrescentar: se você abalroar a galera, tanto melhor, mas não fez
isso. Porque Mariko o estava ouvindo.
Os padres rumaram para a praia na chalupa.
- Todas as velas, ho! - gritou Rodrigues, a perna doendo
e latejando.
- Sul-sudoeste! Todos os homens a postos!
- Senhora, por favor, diga ao Senhor Toranaga que seria
melhor que ele fosse lá para baixo. Será mais seguro - disse
Ferreira.
- Ele agradece e diz que ficará aqui.
Ferreira deu de ombros, aproximou-se da beirada do tombadilho. - Preparem todos os canhões. Carreguem as armas! Posição
de ação!
450
- Isogi! - gritou Blackthorne, urgindo o mestre dos remos
a acelerar a batida. Olhou para trás, para a fragata que se aproximava a barlavento, cochada a todo pano agora, depois novamente
para a frente, avaliando a próxima manobra. Perguntou a si
mesmo se julgara corretamente, pois havia muito pouco espaço
ali, perto dos penhascos, mal e mal algumas jardas entre a catástrofe e o sucesso. Por causa do vento, a fragata teve que mudar
o rumo para atingir a boca da enseada, enquanto a galera podia
manobrar à vontade. Mas a fragata tinha a vantagem da velocidade. E na última manobra Rodrigues deixara claro que a galera
faria melhor em permanecer fora do caminho quando o Santa
Theresa precisasse de espaço.
Yabu estava novamente palrando ao seu lado, mas ele não
lhe deu atenção. - Não entendo, wakarimasen, Yabu-san! Ouça,
Toranaga-sarna disse, a mim, Anjin-san, ichi-ban ima! Sou o
chefe, o capitão-san agora! Wakarimasu ka, Yabu-san? - Apontou a rota na bússola para o capitão japonês, que gesticulou para
a fragata, a umas escassas cinqüenta jardas atrás agora, alcançando-os rapidamente em outra linha de colisão.
- Mantenham o rumo, por Deus! - disse Blackthorne, a
brisa resfriando suas roupas ensopadas, que o enregelavam mas
ajudavam a clarear-lhe a cabeça. Ele examinou o céu. Não havia
nuvem alguma perto da lua brilhante, e o vento estava excelente.
Nenhum perigo lá, pensou ele. Deus conserve a lua brilhando até
que tenhamos atravessado.
- Ei, capitão! - chamou em inglês, sabendo que não fazia
diferença se falasse em inglês, português, holandês ou latim,
porque estava sozinho. - Mande alguém buscar saque! Saque!
Wakarimasu ka?
- Hai, Anjin-san.
Um marujo foi mandado às pressas. Enquanto o homem
corria, olhava por sobre o ombro, atemorizado com o tamanho
da fragata que se aproximava e com a sua velocidade. Blackthorne manteve o curso, tentando forçar a fragata a virar antes
de obter todo o espaço a barlavento. Mas ela não vacilou e veio
diretamente na sua direção. No último segundo ele girou para
fora do caminho dela e depois, quando o gurupés estava quase
sobre o seu convés de popa, ouviu a ordem de Rodrigues: CAPITULO 28
451

Virar para bombordo! Velas de estai, manter o rumo! -- Depois
um grito para ele, em espanhol:
- Tua boca no traseiro do Demônio, Inglês!
- Tua mãe chegou lá primeiro, Rodrigues!
Então a fragata mudou de posição, apontando agora para
a praia, onde teria que virar de novo para se pôr a barlavento e
novamente manobrar antes de poder virar uma última vez e rumar
para a boca da enseada.
Por um instante os navios estiveram tão próximos que Blackthorne quase podia tocar o outro. Rodrigues, Toranaga, Mariko e
o capitão-mor oscilando no tombadilho. Depois a fragata se afastou, rodeando-os com a sua esteira.
- Isogi, isogi, por Deus!
Os remadores redobraram esforços e por meio de sinais
Blackthorne ordenou mais homens aos remos, até se esgotarem
as reservas. Tinha que atingir a boca da enseada antes da fragata
ou estariam perdidos.
A galera devorava a distância. Mas o mesmo fazia a fragata.
No lado oposto da enseada, ela girou como um dançarino e ele
viu que Rodrigues acrescentara joanetes e mastaréus.
- Ele é um bastardo astuto, como todo português!
O saquê chegou, mas foi tomado das mãos do marujo pela
jovem que ajudara Mariko e que agora, incerta, oferecia-o a ele.
Ela permanecera resolutamente no convés, embora estivesse claro
que se encontrava fora do seu elemento. Suas mãos eram fortes,
o cabelo bem arrumado, e o quimono rico, de bom gosto e asseado. A galera jogou. A garota cambaleou e deixou cair o cálice.
Seu rosto não se alterou, mas ele viu o rubor da vergonha.
- Não tem importância - disse Blackthorne quando ela
tateou à procura do cálice. - Namae ka?
- Usagi Fujiko, Anjin-san.
- Fujiko-san. Pronto, dê-me. Dozo. - Estendeu a mão,
pegou o frasco e bebeu diretamente dele, ávido por sentir o calor
do vinho dentro do corpo. Concentrou-se no novo curso, contornando os bancos de areia de que Santiago, por ordem de Rodrigues, lhe falara. Reexaminou a posição em relação ao promontório, a qual lhe oferecia um percurso limpo e sem obstáculos
até a boca, enquanto acabava o vinho aquecido, perguntando-se
de passagem como a bebida teria sido aquecida, e por que sempre
a serviam quente e em pequenas quantidades.
Estava com a cabeça desanuviada agora, e sentiu-se forte o
452
bastante, se fosse cuidadoso. Mas sabia que não tinha reservas
para entrar em combate, exatamente como o navio.
- Saquê dozo, Fujiko-san. - Estendeu-lhe o frasco e esqueceu-se dela.
Na manobra a barlavento, a fragata comportou-se muito
bem e passou cem jardas à frente deles, rumando para a praia.
Ouviu obscenidades trazidas pelo vento e não se deu ao trabalho
de retrucar, conservando a própria energia.
- Isogi, por Deus! Estamos perdendo!
A excitação da corrida e de estar novamente sozinho no
comando - mais pela sua força de vontade do que por posição
- juntava-se ao raro privilégio de ter Yabu em seu poder e enchia-o de uma alegria profana. - Não fosse porque o navio
iria a pique, e eu com ele, eu o lançaria contra os rochedos só
para vê-lo se afogar, Yabu cara de merda! Pelo velho Pieterzoon!
Mas Yabu não salvou Rodrigues quando você não pôde fazer
isso? Não atacou os bandidos quando você caiu na emboscada?
E foi corajoso esta noite. Sim, é um cara de merda, mas ainda
assim corajoso, e isso é verdade.
O frasco de saquê foi oferecido de novo. - Dono - disse
ele. A fragata estava querenada, cochada e satisfazendo-o enormemente. - Eu poderia fazer melhor com o meu navio -
disse ele em voz alta ao vento. - Mas se eu o tivesse, passaria por
entre os botes, rumo ao alto-mar, e nunca voltaria. De algum
modo retornaria a casa e deixaria o Japão aos japoneses e aos
pestilentos portugueses. - Viu Yabu e o capitão olhando-o fixamente. - Não, não faria isso realmente, ainda não. Há um Navio
Negro para capturar, e saquê. E vingança, hein, Yabu-san?
- Nan desu ka, Anjin-san? Nan ia?
- Ichi-ban! Número um! - respondeu ele, acenando para
a fragata. Esvaziou o frasco de bebida. Fujiko pegou-o.
- Saquê, Anjin-san?
- Domo, iyé!
Os dois navios estavam bem perto dos botes de pesca agora,
a galera rumando direto para a passagem que fora deliberadamente deixada entre eles, a fragata indo de vento em popa e
virando para a boca da enseada. Ali o vento refrescou quando os
promontórios protetores desapareceram, o mar aberto a meia
milha à frente. Lufadas enfunavam as velas da fragata, as cobertas estalavam como tiros de pistola, a espuma na proa e na esteira
do barco.
Os remadores estavam banhados de suor e extenuados. Um
453

homem caiu. E outro. Os cinqüenta e tantos samurais ronins já estavam em posição. À frente, arqueiros nos botes de cada lado do
estreito canal armavam os arcos. Blackthorne viu pequenos braseiros em muitos botes e entendeu que as setas seriam incendiárias.
Preparara-se para a batalha do melhor modo que pudera.
Yabu compreendeu que eles teriam que lutar, e compreendeu imediatamente que as setas seriam incendiárias. Blackthorne erguera
anteparos de madeira, por proteção, em torno do timão. Quebrara
alguns engradados de mosquetes e destacara os homens que sabiam
fazer isso para armá-los com pólvora e balas. Trouxera vários
barriletes de pólvora para o tombadilho e os provera de estopim.
Quando Santiago, o primeiro-lmediato, o ajudara a subir a bordo
da chalupa, dissera-lhe que Rodrigues ia ajudar, com a boa graça
de Deus.
- Por quê? - perguntara ele.
- O meu piloto disse para lhe dizer que ele mandou atirá-lo
ao mar para fazê-lo ficar sóbrio, senhor.
- Por quê?
- Porque, senhor piloto, ele disse para lhe dizer, porque
havia perigo a bordo do Santa Theresa, perigo para o senhor.
- Que perigo?
- O senhor tem que abrir o seu caminho à força, se puder.
Mas ele ajudará.
- Por quê?
- Pelo amor da doce Nossa Senhora, cale essa boca herética
e ouça, tenho pouco tempo.
Então o imediato lhe falara sobre os recifes e as posições, o
caminho do canal e o plano. E dera-lhe duas pistolas. - Meu
piloto perguntou se o senhor é bom atirador.
- Péssimo - mentira ele.
- Vá com Deus, disse-me
último.
- Ele também. E você.
Por mim mando-te para o inferno!
A tua irmã!
Blackthorne havia adaptado estopins aos barriletes para o
caso de o canhoneio começar ou não haver plano algum, ou para
o caso de o plano se comprovar falso, e também contra inimigos
que ultrapassassem os limites. Sendo tão pequeno, com o estopim
aceso e flutuando contra o costado da fragata, o barrilete a afundaria tão certamente quanto uma canhonada de setenta canhões.
454
Não importa o tamanho do barrilete, pensou ele, desde que estripe
a fragata.
- Isogi, pela vida de vocês! - gritou, e pegou o leme,
agradecendo a Deus por Rodrigues e pelo brilho da lua.
Ali, na boca, a enseada estreitava-se para quatrocentas jardas.
A água era profunda quase que de praia a praia, os promontórios rochosos erguendo-se cortantes do mar.
O espaço entre os barcos de pesca era de cem jardas.
O Santa Theresa tinha o freio entre os dentes agora, o vento
de popa vindo de estibordo, uma forte esteira atrás, e estava
ganhando deles de longe. Blackthorne ocupou o centro do canal
e fez sinal a Yabu que estivesse pronto. Todos os samurais ronins
receberam ordem de se abaixar ao lado das amuradas até que
Blackthorne desse o sinal, e cada homem com mosquete ou
espada - tomou posição a bombordo ou estibordo, onde quer
que fosse necessário, Yabu comandando. O capitão japonês
sabia que os remadores deviam acompanhar o tambor e o mestre
tamborileiro sabia que devia obedecer ao Anjin-san. E o Anjin-san
sozinho devia conduzir o navio.
A fragata estava a cinqüenta jardas à popa, no meio do
canal, rumando diretamente para eles, e deixando óbvio que
solicitava passagem pelo centro do canal.
A bordo da fragata, Ferreira sussurrou para Rodrigues: -
Abalroe-o. - Estava de olhos em Mariko, que se encontrava
a dez passos deles, perto dos balaústres, com Toranaga.
- Não ousaríamos, não com Toranaga ai, e a garota.
- Senhora! - chamou Ferreira. - Senhora, é melhor descer, a senhora e seu amo. Seria mais seguro para ele no convés de
armas.
Mariko traduziu para Toranaga, que pensou um instante,
depois desceu para o convés de armas.
- Deus amaldiçoe os meus olhos - disse o atirador-chefe
a ninguém em particular. - Gostaria de disparar uma carga e
afundar alguma coisa. Já faz um maldito ano que não pomos a
pique nem um pirata sifilítico.
- Sim. Os macacos merecem um banho.
No tombadilho Ferreira repetiu: - Abalroe a galera, Rodrigues!
- Por que matar o seu inimigo quando os outros farão
isso pelo senhor?
o piloto
que lhe dissesse por
455

- Minha Nossa Senhora! Você é tão ruim quanto o padre!
Não tem sangue! - exclamou Ferreira em espanhol.
- Sim, não tenho sangue de matança - replicou Rodrigues,
também em espanhol. - Mas o senhor? O senhor tem. Hein?
E sangue espanhol talvez?
- Vai abalroá-lo ou não? - perguntou Ferreira em português, sendo possuído pela iminência da matança.
- Se continuar onde está, sim.
- Então deixe-o ficar onde está.
- O que o senhor tinha em mente para o Inglês? Por que
ficou tão furioso por ele não estar a bordo?
- Não gosto de você nem confio em você agora, Rodrigues.
Por duas vezes você se pôs do lado do herege, ou parece se pôr,
contra mim, ou contra nós. Se houvesse outro piloto aceitável na
Ásia, eu o encalharia, Rodrigues, e partiria com o meu Navio
Negro.
- Então o senhor naufragaria. Há um odor de morte à
sua volta e apenas eu posso protegê-lo.
Ferreira persignou-se supersticiosamente. - Nossa Senhora,
você e sua língua imunda! Que direito tem você de dizer isso?
- Minha mãe era cigana e era a sétima filha de um sétimo
filho, como eu.
- Mentiroso!
Rodrigues sorriu. - Ah, meu senhor capitão-mor, talvez eu
seja. - Colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou:
- Posições de ação! - e depois ao timoneiro: - Manter o
rumo, e se aquela prostituta de galera não se mover, afunde-a!
Blackthorne agarrava o leme firmemente, braços doendo,
pernas doendo. O mestre dos remos martelava o tambor, os remadores faziam um esforço final.
A fragata estava a vinte jardas da popa, agora a quinze, a
dez. Então Blackthorne girou para bombordo. A fragata quase esbarrou, vindo-lhes no rastro, até que os alcançou. Blackthorne
girou o leme para estibordo para se pôr paralelo à fragata, a dez
jardas. Então, juntos, lado a lado, ficaram prontos para correr o
varetão entre os inimigos.
- Puuuuuuxem, puxem, seus bastardos! - berrou Blackthorne, querendo permanecer exatamente emparelhado, porque
só ali eles estavam protegidos pela massa da fragata e pelas
suas velas. Alguns tiros de mosquete, depois uma salva de flechas
456
incendiárias, foram disparados contra eles, sem causar nenhum
dano real, mas várias setas atingiram por engano as velas inferiores da fragata, e o fogo irrompeu.
Todos os samurais em comando nos botes detiveram seus
arqueiros horrorizados. Nenhum deles jamais atacara um navio
bárbaro meridional antes. Não eram só eles que traziam as sedas
que tornavam suportável o úmido calor de cada verão, e o frio
de cada inverno, transformavam toda primavera e todo outono
numa alegria? Os bárbaros meridionais não eram protegidos por
decretos imperiais? Incendiar um dos seus navios não os enfureceria tanto que eles, com razão, jamais voltariam?
Então os comandantes mantiveram seus homens em cheque
enquanto a galera de Toranaga estava sob as asas da fragata, não
ousando arriscar a menor chance de um deles ser a causa de os
Navios Negros cessarem as viagens, sem a aprovação direta do
General Ishido. E só quando os marujos na fragata extinguiram
as chamas eles conseguiram respirar com mais facilidade.
Quando as flechas cessaram, Blackthorne também começou
a descontrair-se. E Rodrigues. O plano estava funcionando. Rodrigues havia suposto que sob a sua proteção a galera teria uma
chance, a única chance. - Mas o meu piloto diz que o senhor
deve se preparar para o inesperado, Inglês - relatara Santiago.
- Empurre esse bastardo para o lado - disse Ferreira.
- Maldição, eu ordeno que você o empurre contra os macacos!
- Cinco pontos para bombordo! - ordenou Rodrigues,
serviçalmente.
- Cinco pontos para bombordo! - ecoou o timoneiro.
Blackthorne ouviu a ordem. Instantaneamente ele desviou
cinco graus a bombordo e rezou. Se Rodrigues mantivesse a rota
muito tempo eles se chocariam contra os barcos de pesca e estariam perdidos. Se ele retardasse a batida e ficasse para trás, sabia
que os barcos inimigos o destruiriam, acreditassem ou não que
Toranaga se encontrava a bordo. Ele tem que ficar emparelhado.
- Cinco pontos a estibordo! - ordenou Rodrigues, bem a
tempo. Ele também não queria mais flechas incendiárias; havia
pólvora demais no convés. -- Vamos, seu alcoviteiro - resmungou para o vento -, ponha os seus cojones nas minhas velas e
tire-nos daqui.
Novamente Blackthorne girou cinco pontos para estibordo,
para manter a posição com a fragata, e os dois navios correram
lado a lado, os remos de estibordo da galera quase tocando a
fragata, os remos de bombordo quase tocando os barcos de pesca.
457

Nesse momento o capitão compreendeu, assim como o mestre dos
remos e os remadores. Puseram nos remos tudo o que restava
de suas forças. Yabu gritou uma ordem: os samurais ronins
depuseram os arcos e correram para ajudar. Yabu arremessou-se
também. Emparelhados. Apenas mais algumas centenas de jardas.
Então cinzentos de alguns dos barcos de pesca, mais intrépidos do que os outros, remaram para interceptá-los e atiraram
ganchos. A proa da galera afundou os botes. Os ganchos foram
lançados ao mar antes de se prenderem ao costado. Os samurais
que os seguravam foram ao fundo. E a voga não vacilou.
- Vá mais para bombordo.
- Não me atrevo, capitão-mor. Toranaga não é nenhum
imbecil e, olhe, há um recife à frente.
Ferreira viu as saliências perto do último barco de pesca.
- Por Nossa Senhora, conduza-o contra o recife!
- Dois pontos para bombordo!
Novamente a fragata moveu-se em curva e o mesmo fez
Blackthorne. Ambos os navios visavam os barcos de pesca aglomerados. Blackthorne também vira os rochedos. Outro bote foi
afundado e uma saraivada de flechas caiu a bordo. Ele manteve
o curso tanto tempo quanto ousou, depois gritou: - Cinco pontos
para estibordo! - para prevenir Rodrigues, e girou o leme.
Rodrigues esquivou-se e se afastou bastante. Mas desta vez
manteve um ligeiro curso de abalroamento, que não fazia parte
do plano.
- Vamos, seu bastardo - disse Rodrigues, estimulado pela
caçada e pelo temor. - Vamos avaliar os seus cojones.
Blackthorne tinha que escolher imediatamente entre as pontas do recife e a fragata. Abençoou os remadores, que ainda permaneciam aos remos, a tripulação e todos a bordo que, pela
disciplina que demonstravam, davam-lhe o privilégio da escolha.
E escolheu.
Girou mais para estibordo, sacou a pistola e fez pontaria.
- Ceda o caminho, por Deus! - gritou, e puxou o gatilho. A
bala zuniu através do tombadilho da fragata exatamente entre o
capitão-mor e Rodrigues.
O capitão-mor abaixou-se e Rodrigues estremeceu. Inglês
filho de uma puta sem leite! Isso foi sorte, boa pontaria ou você
fez pontaria para matar?
Viu a segunda pistola na mão de Blackthorne e Toranaga a
fitá-lo. Ignorou Toranaga.
Bendita mãe de Deus, o que devo fazer? Continuar com o
458
plano ou mudá-lo? Não é melhor matar esse Inglês? Pelo bem
de todos nós? Diga-me, sim ou não!
Responda a si mesmo, Rodrigues, pela sua alma eterna! Você
não é um homem?
Ouça então: outros hereges seguirão este Inglês, como piolhos, seja este morto ou não. Devo-lhe uma vida e juro que não
tenho sangue de assassino - não para matar um piloto.
- Leme a estibordo - ordenou, e cedeu caminho.


- Meu amo perguntou por que o senhor quase se chocou
com a galera.
- Foi apenas um jogo, senhora, um jogo de pilotos. Para
testar os nervos um do outro.
- E o tiro de pistola?
- Igualmente um jogo - para testar os meus nervos. Os
rochedos estavam muito perto e talvez eu estivesse empurrando
demais o Inglês. Somos amigos, não?
- Meu amo diz que é tolice jogar jogos assim.
- Por favor, peça-lhe as minhas desculpas. O importante
é que ele está seguro, agora a galera também está, e por isso eu
estou contente. Honto.
- O senhor combinou essa fuga, essa astúcia, com o Anjin-san?
- Aconteceu que ele é muito esperto e foi perfeito em sincronia. A lua iluminou-lhe o caminho, o mar favoreceu-o, e ninguém cometeu erro algum. Mas por que os inimigos não o afundaram, eu não sei. Foi a vontade de Deus.
- Foi? - disse Ferreira. Olhava fixamente para a galera
à popa da fragata e não se voltou.
Estavam bem além da boca da enseada agora, a galera a
poucas amarras atrás, nenhum dos navios correndo. A maior parte
dos remos da galera fora travada temporariamente, deixando só
o suficiente para avançar com calma, enquanto a maioria dos
remadores se recuperava.
Rodrigues não prestou
Estava, pelo contrário, absorto
estarmos do lado de Toranaga, disse a si mesmo. Durante a
corrida, ele o estudara cuidadosamente, contente pela oportunidade rara. Os olhos do homem estiveram por toda parte, observando atiradores, armas, as velas, com uma curiosidade insaciável, fazendo perguntas aos marujos e ao imediato através de
atenção ao Capitão-Mor Ferreira.
em Toranaga. Fico contente por
459

Mariko: para que é isto? Como se carrega um canhão? Quanta
pólvora? Como se dispara um canhão? Para que servem estas
cordas?
- Meu amo diz que talvez tenha sido apenas karma. O
senhor compreendeu, karma, capitão-piloto?
Sim.
- Ele lhe agradece pelo uso do seu navio. Agora voltará
ao dele.
- O quê? - Ferreira voltou-se imediatamente. - Estaremos em Yedo muito antes da galera. O Senhor Toranaga é bemvindo a bordo.
- Meu amo diz que não há razão para incomodá-lo mais
tempo. Ele voltará para o seu navio.
- Por favor, peça-lhe que fique. Eu apreciaria a companhia dele.
- O Senhor Toranaga lhe agradece mas quer voltar imediatamente ao seu próprio navio.
- Muito bem. Faça o que ele diz, Rodrigues. Envie sinais
à galera e desça a chalupa. - Ferreira estava desapontado. Tinha
vontade de ver Yedo e queria conhecer Toranaga melhor, agora
que tanto do seu futuro estava ligado a ele. Não acreditara no
que Toranaga dissera sobre os meios de evitar a guerra. Estamos
em guerra. Estamos em guerra contra Ishido, do lado deste macaco, gostemos nós disso ou não. E eu não gosto. - Sentirei
muito não ter a companhia do Senhor Toranaga. - Curvou-se
polidamente.
Toranaga retribuiu e falou brevemente.
- Meu amo lhe agradece. - A Rodrigues, ela acrescentou:
- Meu amo diz que o recompensará pela galera quando o senhor
regressar com o Navio Negro.
- Não fiz nada. Foi apenas um dever. Por favor, desculpeme por não me levantar da cadeira - minha perna, neh? - respondeu Rodrigues, curvando-se. - Vá com Deus, senhora.
- Obrigada, capitão-piloto. O senhor também.
Avançando às apalpadelas pela escada de escotilha, atrás de
Toranaga, ela notou que o Contramestre Pesaro estava comandando a chalupa. Sua pele arrepiou-se, e ela quase vomitou.
Controlou-se com muita força de vontade, grata por Toranaga ter
ordenado que todos eles deixassem aquele vaso malcheiroso.
- Um ótimo vento e uma viagem segura - desejou-lhes
Ferreira. Fez um aceno, a saudação foi retribuída, e a chalupa
zarpou.
460
- Fique embaixo quando a chalupa voltar e aquela puta
de galera estiver fora de vista - ordenou ele ao atirador-chefe.
No tombadilho, parou diante de Rodrigues. Apontou para a
galera. - Você viverá para se arrepender de tê-lo deixado vivo.
- Isso está nas mãos de Deus. O Inglês é um piloto "aceitável', se se pode passar por cima da religião dele, meu capitão-mor.
- Considerei isso.
- E?
- Quanto mais rápido estivermos em Macau, melhor. Faça
um tempo recorde, Rodrigues. - Ferreira desceu.
A perna de Rodrigues latejava muito. Tomou um trago do
saco de grogue. Que Ferreira vá para o inferno, disse a ,si mesmo.
Mas, por favor, Deus, não antes de chegarmos a Lisboa.
O vento mudou de direção levemente e uma nuvem avançou
para a auréola da lua. A chuva não estava longe e o amanhecer
riscava o céu. Ele concentrou toda a atenção no seu navio, nas
velas e no rumo. Quando se sentiu completamente satisfeito,
olhou para a chalupa. E finalmente para a galera.
Sorveu mais rum, contente por seu plano ter funcionado tão
bem. Até pelo tiro de pistola que encerrara a questão. E contente
com a sua decisão.
Dependia de mim fazer, e eu fiz.
- Ainda assim, Inglês - disse ele com grande tristeza -,
o capitão-mor tem razão. Com você, a heresia chegou ao éden.
- Anjin-san?
- Hai? - Blackthorne foi arrancado de um sono profundo.
- Aqui está um pouco de comida. E chá.
Por um instante ele não conseguiu se lembrar de quem era
ou de onde estava. Depois reconheceu sua cabina a bordo da
galera. Um raio de sol atravessava a escuridão. Sentia-se muitíssimo descansado. Não havia batida de tambor agora, e mesmo
no mais profundo do seu sono seus sentidos lhe disseram que a
âncora estava sendo baixada e que o navio estava seguro, perto
da praia, em mar calmo.
Viu uma criada carregando uma bandeja, Mariko ao lado
CAPÍTULO 29
461
dela - já sem o braço na tipóia -, e ele deitado no beliche do
piloto, o mesmo que usara durante a viagem de Anjiro para
Osaka, que agora era quase, de certo modo, tão familiar quanto
o seu próprio beliche na cabina do Erasmus. Erasmus! Vai ser
formidável estar de volta a bordo e rever os rapazes.
Ele se espreguiçou voluptuosamente, depois pegou a xícara
de chá que Mariko oferecia.
- Obrigado. Está delicioso. Como vai o seu braço?
- Muito melhor, obrigada. - Mariko flexionou-o para
mostrar-lhe. - Foi apenas um ferimento superficial.
- Está com melhor aparência, Mariko-san.
- Sim, sinto-me melhor agora.
Quando ela voltara a bordo ao amanhecer, com Toranaga,
estava prestes a perder os sentidos. - É melhor ficar em cima
- dissera-lhe ele. - O enjôo passará mais depressa.
- Meu amo pergunta... pergunta para que o tiro de pistola.
- Foi só uma brincadeira de pilotos.
- Meu amo o cumprimenta pela sua habilidade náutica.
- Tivemos sorte. A lua ajudou. E a tripulação foi maravilhosa. Mariko-san, quer perguntar ao capitão-san se ele conhece
estas águas? Desculpe, mas diga a Toranaga-sama que não vou
conseguir ficar acordado muito mais tempo. Ou podemos lançar
âncoras por mais ou menos uma hora, em alto-mar? Preciso
dormir.
Ele se lembrava vagamente de ela falando que Toranaga
dissera que ele podia descer, que o capitão-san era absolutamente
capaz, já que iam permanecer em águas costeiras e não iam para
alto-mar. Blackthorne espreguiçou-se de novo e abriu uma vigia
da cabina. Havia praia rochosa a umas duzentas jardas de distância. - Onde estamos?
- Ao largo da costa da província de Totomi, Anjin-san. O
Senhor Toranaga quis nadar e deixar os remadores descansar
algumas horas. Estaremos em Anjiro amanhã.
- A aldeia de pescadores? Isso é impossível. É quase meiodia e ao amanhecer estávamos em Osaka. É impossível!
- Ah, isso foi ontem, Anjin-san. O senhor dormiu um
dia, uma noite e metade de mais um dia - respondeu ela. -
O Senhor Toranaga disse para deixá-lo dormir. Agora ele acha
que uma nadada seria bom para despertá-lo. Depois de comer.
A comida eram duas tigelas de arroz e peixe assado na
brasa com o molho escuro, agridoce, de vinagre doce, que ela
lhe dissera que era feito de feijões fermentados.
462
- Obrigado. Sim, gostaria de nadar. Quase trinta e seis
horas? Não admira que eu me sinta ótimo. - Pegou a bandeja
da empregada, ávido. Mas não comeu imediatamente. - Por que
ela está com medo? - perguntou.
- Não está com medo, Anjin-san. Só um pouco nervosa.
Por favor, desculpe-a. Nunca tinha visto um estrangeiro de perto
antes.
- Diga-lhe que, quando faz lua cheia, crescem chifres nos
bárbaros e eles põem fogo pela boca, como dragões.
Mariko riu. - Certamente não lhe direi isso. - Apontou
para a mesa. - Há pó dental, uma escova, água e toalhas limpas.
- Depois, em latim: - Agrada-me ver que o senhor está bem.
É exatamente como se comentou na marcha: o senhor tem grande
coragem.
Os olhos deles se encontraram, mas o momento passou logo.
Ela se curvou polidamente. A criada curvou-se. A porta fechou-se
atrás delas. Não pense nela, ordenou-se ele. Pense em Toranaga
ou em Anjiro. Por que paramos em Anjiro amanhã? Para desembarcar Yabu? Que bom que nos livramos dele! Omi estará em
Anjiro. O que vou fazer com Omi?
Por que não pedir a Toranaga a cabeça de Omi? Ele lhe deve
um favor ou dois. Ou por que não pedir para lutar com Omi-san?
Como? Com pistolas ou espadas? Você não teria chance com uma
espada, e seria assassinato se você tivesse uma arma de fogo. O
melhor é não fazer nada e esperar. Logo você terá uma chance
e então se vingará dos dois. Você goza do favor de Toranaga agora.
Seja paciente. Pergunte a si mesmo o que você precisa dele. Logo
estaremos em Yedo, portanto você tem muito tempo.
Blackthorne usou os pauzinhos do modo como vira os homens na prisão fazer, erguendo a tigela de arroz até junto à boca
e empurrando os arroz grudento da borda da tigela para a boca
com os pauzinhos. Os pedaços de peixe eram mais difíceis. Ele
ainda não tinha destreza suficiente, então usou os dedos, contente
por estar comendo a sós, sabendo que comer com os dedos na
frente de Mariko, Toranaga ou qualquer japonês seria muito descortês.
Depois de ter desaparecido cada pedacinho, ele continuava
faminto.
- Preciso conseguir mais comida - disse ele em voz alta.
- Jesus do paraíso, gostaria de comer pão fresco, ovos fritos,
manteiga, queijo...
Subiu ao convés. Quase todos estavam despidos. Alguns
463

I
homens estavam se enxugando, outros tomando sol, e uns poucos
pulavam do costado. Ao mar, perto do navio, samurais e marujos
nadavam, ou chapinhavam como crianças.
- Konnichi wa, Anjin-san.
- Konnichi wa, Toranaga-sarna.
Toranaga, completamente nu, vinha subindo a escada de
embarque que fora descida até a água. - Sonata wa oyogitamo
ka? - disse ele, gesticulando na direção do mar, tirando a água
da cintura e dos ombros com tapinhas.
- Hai, Toranaga-sama, domo - disse Blackthorne, presumindo que o outro lhe perguntava se não queria nadar.
Toranaga apontou de novo para o mar e falou brevemente,
depois chamou Mariko para interpretar. Mariko avançou do convés de popa, protegendo a cabeça com uma sombrinha carmesim,
o quimono branco informal amarrado com negligência.
- Toranaga-sama diz que o senhor parece muito descansado, Anjin-san. A água é revigoração.
- Revigorante - disse ele, corrigindo-a polidamente. -
Sim.
- Ah, obrigada... revigorante. Ele disse: por favor, nade,
então.
Toranaga estava negligentemente encostado à amurada, enxugando as orelhas com uma pequena toalha. Quando sentiu o
ouvido esquerdo entupido, inclinou a cabeça para o lado e saltou
sobre o calcanhar esquerdo até destapá-lo. Blackthorne viu que
Toranaga era muito musculoso e muito rijo, com exceção da
barriga. Embaraçado, muito consciente da presença de Mariko,
despiu a camisa, o codpiece, as calças, até estar igualmente nu.
- O Senhor Toranaga perguntou se todos os ingleses são
tão peludos quanto o senhor, com cabelo tão claro.
- Alguns sim - disse ele.
- Nós... nossos homens não têm cabelo no peito nem
nos braços como o senhor. Não muito. Ele disse que o senhor
tem uma excelente compleição.
- Ele também tem. Agradeça-lhe por favor. - Blackthorne
afastou-se, dirigindo-se para o topo da prancha de embarque,
consciente dela e da jovem, Fujiko, ajoelhada na popa sob um
guarda-sol amarelo, uma criada ao seu lado, também a observá-lo.
Então, incapaz de conservar a dignidade o suficiente para caminhar despido até o mar, ele mergulhou por sobre o costado dentro
da água azul-pálida. Foi um mergulho perfeito e o frio do mar
atingiu-o de modo estimulante. O fundo arenoso estava três
braças abaixo, algas flutuando, multidões de peixes indiferentes
aos nadadores. Perto do fundo, interrompeu a queda, girou e
brincou com os peixes, depois voltou à tona e começou a nadar
para o navio com a braçada aparentemente preguiçosa e fácil,
mas muito rápida, que Alban Caradoc lhe ensinara.
A pequena baía era desolada: muitos rochedos, uma minúscula praia de seixos, e nenhum sinal de vida. Montanhas erguiamse a mil pés contra um céu azul, infinito.
Deitou-se sobre uma rocha, tomando sol. Quatro samurais
haviam nadado com ele e não estavam muito longe. Sorriram e
acenaram. Mais tarde ele nadou de volta, e eles o seguiram.
Toranaga continuava a observá-lo.
Subiu ao convés. Sua roupa tinha sumido. Fujiko, Mariko
o as duas criadas ainda estavam lá. Uma das criadas inclinou-se
o ofereceu-lhe uma toalha ridiculamente pequena, que ele pegou
o com que começou a se enxugar, voltando-se, constrangido, para
a amurada. Ordeno-lhe que se sinta à vontade, disse a si mesmo.
Você fica à vontade, nu, num quarto fechado com Felicity,
não fica? É só em público, com mulheres por perto - com ela
por perto -, que você fica embaraçado. Por quê? Eles não reparam na nudez e isso é totalmente sensato. Você está no Japão.
Deve agir como eles. Você vai ser como eles e agir como um rei.
- O Senhor Toranaga diz que o senhor nada muito bem.
O senhor lhe ensinaria aquela braçada? - estava dizendo Mariko.
- Ficaria contente em fazer isso - disse ele, e forçou-se a
se voltar e se encostar como Toranaga fizera. Mariko lhe sorria
- parecendo tão bonita, pensou ele.
- O modo como o senhor mergulhou no mar. Nunca ...
nunca vimos isso antes. Sempre pulamos. Ele quer aprender a
fazer isso.
- Agora?
- Sim, por favor.
- Posso ensinar-lhe ... pelo menos, posso tentar.
uma criada segurava um quimono de algodão para Blackthorne, que, agradecido, deslizou para dentro dele, amarrando-o
com o cinto. Agora, completamente descontraído, explicou como
mergulhar, como erguer os braços em torno da cabeça e saltar,
mas tomando cuidado para evitar o mergulho de barriga.
- É melhor começar do pé da escada de embarque, com
queda de cabeça, sem pular nem correr. É assim que ensinamos
as crianças.
Toranaga ouviu, fez perguntas e depois, quando se sentiu
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satisfeito, disse através de Mariko: - Ótimo. Creio que compreendi. - Caminhou para o topo da escada. Antes que Blackthorne
pudesse detê-lo, Toranaga se atirou na água, quinze pés abaixo.
A barrigada foi péssima. Ninguém riu. Toranaga voltou ruidosamente para o convés e tentou de novo. Mais uma vez aterrissou
na horizontal. Outros samurais foram igualmente mal sucedidos.
- Não é fácil - disse Blackthorne. - Levei um bom
tempo para aprender. Deixe estar e amanhã tentamos de novo.
- O Senhor Toranaga disse: "Amanhã é amanhã. Hoje
vou aprender a mergulhar".
Blackthorne tirou o quimono e demonstrou de novo. Alguns
samurais o imitaram. Todos falharam. Assim como Toranaga.
Seis vezes. Após outra demonstração, Blackthorne subiu para o
pé da prancha e viu Mariko entre eles, nua, preparando-se para
se lançar no espaço. Seu corpo era perfeito. No antebraço, o
curativo. - Espere, Mariko-san! É melhor tentar daqui. A primeira vez.
- Muito bem, Anjin-san.
Ela desceu até ele, o minúsculo crucifixo realçando-lhe a
nudez. Ele lhe mostrou como se curvar e cair para a frente no
mar, segurando-a pela cintura para que mudasse de posição, de
modo que a cabeça atingisse a água primeiro.
Então Toranaga tentou perto da linha d'água e foi razoavelmente bem sucedido. Mariko tentou de novo e o toque da sua
pele aqueceu Blackthorne, que de repente começou a fazer brincadeira e caiu na água, orientando-os lá debaixo até se esfriar.
Então subiu correndo ao convés, ficou de pé sobre a amurada
e mostrou-lhes um mergulho de morto, que achou que poderia ser
mais fácil, sabendo que ter êxito era vital para Toranaga. - Mas
é preciso se manter rígido, hai? Como uma espada. Aí não há
como errar. - Atirou-se. O mergulho foi perfeito. Ele voltou
à tona e esperou.
Vários samurais avançaram, mas Toranaga fez-lhes sinal que
se afastassem. Levantou os braços rigidamente, a coluna ereta. O
peito e os quadris estavam escarlates devido às barrigadas. Depois
se deixou cair para a frente, do modo como Blackthorne mostrara.
Sua cabeça atingiu a água primeiro e as pernas lhe desabaram em
cima, mas foi um mergulho e o primeiro mergulho bem-sucedido
de qualquer um deles. Um troar de aprovação saudou-o quando
surgiu à superfície. Ele repetiu, melhor desta vez. Outros homens
o seguiram, alguns com êxito, outros não. Depois foi Mariko
quem tentou.
Blackthorne viu os pequenos seios firmes e a minúscula
cintura, o estômago chato e as pernas curvilíneas. Um lampejo de
dor passou-lhe pelo rosto quando ergueu os braços acima da
cabeça. Mas retesou-se como uma seta e se atirou bravamente. Varou a água como uma lança, habilmente. Quase ninguém
além dele notou.
- Foi um excelente mergulho. Realmente excelente - disse
ele, dando-lhe a mão para erguê-la da água até a escada de embarque. - A senhora devia parar agora. Poderia abrir de novo
o corte do braço.
- Sim, obrigada, Anjin-san. -- Ela se erguia ao lado dele,
mal lhe atingindo o ombro, muito contente consigo mesma. -
Foi uma sensação rara, a queda para a frente e o fato de ter
que permanecer rígida, e mais que tudo ter que dominar o medo.
Sim, foi realmente uma sensação muito rara. - Ela caminhou
pelo passadiço e vestiu o quimono que a criada segurava. Depois,
secando o rosto delicadamente, desceu para o convés inferior.
Jesus Cristo, isso é mulher demais, pensou ele.
Ao pôr-do-sol, Toranaga mandou chamar Blackthorne. Estava sentado no convés de popa sobre f utons limpos, perto de um
pequeno braseiro de carvão, em cima do qual fumegavam alguns
pedaços de madeira aromática. Eram usados para perfumar o ar
o manter a distância os insetos e mosquitos do crepúsculo. Seu
quimono estava passado e asseado, e os imensos ombros em
forma de asa do manto engomado davam-lhe uma presença formidável. Yabu, também, estava vestido formalmente, e Mariko.
Fujiko também se encontrava lá. Vinte samurais, sentados, mantinham-se silenciosamente em guarda. Havia archotes colocados
em suportes e a galera oscilava calmamente ancorada na baía.
- Saque, Anjin-san?
- Dotno, Toranaga-sama. - Blackthorne curvou-se e aceitou o pequeno cálice estendido por Fujiko, ergueu-o em brinde
a Toranaga e esvaziou-o. O cálice foi imediatamente enchido de
novo. Blackthorne estava usando um quimono marrom da guarda
o sentia-se mais à vontade e livre do que nas suas próprias roupas.
- O Senhor Toranaga diz que vamos ficar aqui esta noite.
Amanhã chegaremos a Anjiro. Ele gostaria de ouvir mais a respeito do seu país e do mundo exterior.
- Claro. O que ele gostaria de saber? Está uma noite adorável, não? - Blackthorne instalou-se confortavelmente, cons466
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ciente da feminilidade de Mariko. Consciente demais. Estranho,
estou mais consciente dela agora que está vestida do que quando
não estava usando nada.
- Sim, muito. Logo estará úmido, Anjin-san. O verão não
é uma boa época. - Transmitiu a Toranaga o que dissera. -
Meu amo falou que eu lhe dissesse que Yedo é pantanosa. Os
mosquitos são péssimos no verão, mas a primavera e o outono
são lindos ... sim, realmente as estações de nascimento e morte
do ano são lindas.
- A Inglaterra tem clima temperado. O inverno é mau mais
ou menos a cada sete anos. E o verão também. A carestia ocorre
uma vez a cada seis anos, embora às vezes tenhamos dois anos
ruins de enfiada.
- Também temos carestias. Toda carestia e ruim. Como
é no seu país agora?
- Tivemos más colheitas três vezes nos últimos dez anos
e não tivemos sol para amadurecer o trigo. Mas isso foi a mão
do Todo-Poderoso. Agora a Inglaterra está muito forte. Somos
prósperos. Nosso povo trabalha arduamente. Fazemos o nosso
próprio tecido, todas as armas, a maior parte dos tecidos de lã
da Europa. Vem alguma seda da França mas a qualidade não é
boa e se destina apenas aos muito ricos.
Blackthorne resolveu não contar sobre praga, motins ou insurreições causadas pela tomada das terras da comunidade, nem
sobre o êxodo dos camponeses para as cidades. Em vez disso,
contou-lhes sobre os bons reis e rainhas, líderes idôneos e sábios
parlamentares e guerras vitoriosas.
- O Senhor Toranaga quer que tudo fique bem claro. O
senhor afirma que apenas o poder marítimo os protege da Espanha e Portugal?
- Sim. Apenas isso. O controle dos nossos mares é que
nos mantém livres. Vocês são uma nação insular também, exatamente como nós. Sem o controle dos seus mares, também não
ficam indefesos contra um inimigo externo?
- Meu amo concorda com o senhor.
- Ah, também foram invadidos? - Blackthorne viu um
leve franzir de sobrolho quando ela se virou para Toranaga, e
lembrou-se que devia se limitar a responder e não a fazer perguntas.
Quando ela lhe falou de novo, foi mais séria. - O Senhor
Toranaga diz que devo responder à sua pergunta, Anjin-san. Sim,
fomos invadidos duas vezes. Há mais de trezentos anos atrás
- seria 1274, pelas suas contas -, os mongóis de Kublai-Cã,
que acabava de conquistar a China e a Coréia, vieram contra nós
quando nos recusamos a nos submeter à autoridade dele. Alguns
milhares de homens desembarcaram em Kyushu, mas nossos samurais conseguiram contê-los, e pouco depois o inimigo se retirou.
Mas sete anos mais tarde eles voltaram. Dessa vez a invasão
consistiu de quase mil navios chineses e coreanos, com duzentos
mil homens - mongóis, chineses e coreanos -, na maior parte
homens de cavalaria. Em toda a história chinesa, essa foi a maior
força de invasão jamais reunida. Ficamos indefesos ante uma
força tão vasta, Anjin-san. Novamente começaram a desembarcar
na baía de Hakata, em Kyushu, mas antes que pudessem desdobrar todos os seus exércitos, um grande vento, um tai-f un, veio
do sul e destruiu a esquadra e tudo que continha. Os que ficaram
em terra foram rapidamente mortos. Foi um camicase, um vento
divino, Anjin-san - disse ela, com fé absoluta -, um camicase
enviado pelos deuses para proteger esta Terra dos Deuses do
invasor estrangeiro. Os mongóis nunca mais voltaram e, após
oitenta anos mais ou menos, a dinastia deles, a Chin, foi extirpada
da China. - Mariko acrescentou com grande satisfação: - Os
deuses protegeram-nos contra eles. Os deuses sempre nos protegerão contra invasões. Afinal, esta é a terra deles, neh?
Blackthorne pensou na imensa quantidade de navios e homens da invasão; fazia a armada espanhola contra a Inglaterra
parecer insignificante. - Também fomos ajudados por uma tempestade, senhora - disse ele, com igual seriedade. - Muitos
acreditam que também foi enviada por Deus - certamente foi
um milagre -, e quem sabe, talvez tenha sido mesmo. - Ele
olhou para o braseiro quando uma brasa crepitou e as chamas
dançaram. Depois disse: - Os mongóis quase nos engoliram
na Europa, também. - Contou a ela como as hordas de GengisCa, neto de Kublai-Cã, chegaram quase aos portões de Viena
antes que seu ataque desenfreado fosse detido, e depois deram
meia-volta, deixando montanhas de cadáveres no seu rastro. -
As pessoas daqueles tempos acreditaram que Gengis-Cã e seus
soldados tivessem sido enviados por Deus para punir o mundo de
seus pecados.
- O Senhor Toranaga diz que ele foi apenas um bárbaro,
imensamente bom na guerra.
- Sim. Ainda assim na Inglaterra bendizemos a nossa sorte
por estarmos numa ilha. Agradecemos a Deus por isso e pelo
canal. E pela nossa marinha. Com a China tão perto e tão
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ciente da feminilidade de Mariko. Consciente demais. Estranho,
estou mais consciente dela agora que está vestida do que quando
não estava usando nada.
- Sim, muito. Logo estará úmido, Anjin-san. O verão não
é uma boa época. - Transmitiu a Toranaga o que dissera. -
Meu amo falou que eu lhe dissesse que Yedo é pantanosa. Os
mosquitos são péssimos no verão, mas a primavera e o outono
são lindos ... sim, realmente as estações de nascimento e morte
do ano são lindas.
- A Inglaterra tem clima temperado. O inverno é mau mais
ou menos a cada sete anos. E o verão também. A carestia ocorre
uma vez a cada seis anos, embora às vezes tenhamos dois anos
ruins de enfiada.
- Também temos carestias. Toda carestia é ruim. Como
é no seu país agora?
- Tivemos más colheitas três vezes nos últimos dez anos
e não tivemos sol para amadurecer o trigo. Mas isso foi a mão
do Todo-Poderoso. Agora a Inglaterra está muito forte. Somos
prósperos. Nosso povo trabalha arduamente. Fazemos o nosso
próprio tecido, todas as armas, a maior parte dos tecidos de lã
da Europa. Vem alguma seda da França mas a qualidade não é
boa e se destina apenas aos muito ricos.
Blackthorne resolveu não contar sobre praga. motins ou insurreições causadas pela tomada das terras da comunidade, nem
sobre o êxodo dos camponeses para as cidades. Em vez disso,
contou-lhes sobre os bons reis e rainhas, líderes idôneos e sábios
parlamentares e guerras vitoriosas.
- O Senhor Toranaga quer que tudo fique bem claro. O
senhor afirma que apenas o poder marítimo os protege da Espanha e Portugal?
- Sim. Apenas isso. O controle dos nossos mares é que
nos mantém livres. Vocês são uma nação insular também, exatamente como nós. Sem o controle dos seus mares, também não
ficam indefesos contra um inimigo externo?
- Meu amo concorda com o senhor.
- Ah, também foram invadidos? - Blackthorne viu um
leve franzir de sobrolho quando ela se virou para Toranaga, e
lembrou-se que devia se limitar a responder e não a fazer perguntas.
Quando ela lhe falou de novo, foi mais séria. - O Senhor
Toranaga diz que devo responder à sua pergunta, Anjin-san. Sim,
fomos invadidos duas vezes. Há mais de trezentos anos atrás
- seria 1274, pelas suas contas -, os mongóis de Kublai-Cã,
que acabava de conquistar a China e a Coréia, vieram contra nós
quando nos recusamos a nos submeter à autoridade dele. Alguns
milhares de homens desembarcaram em Kyushu, mas nossos samurais conseguiram contê-los, e pouco depois o inimigo se retirou.
Mas sete anos mais tarde eles voltaram. Dessa vez a invasão
consistiu de quase mil navios chineses e coreanos, com duzentos
mil homens - mongóis, chineses e coreanos -, na maior parte
homens de cavalaria. Em toda a história chinesa, essa foi a maior
força de invasão jamais reunida. Ficamos indefesos ante uma
força tão vasta, Anjin-san. Novamente começaram a desembarcar
na baía de Hakata, em Kyushu, mas antes que pudessem desdobrar todos os seus exércitos, um grande vento, um tai-f un, veio
do sul e destruiu a esquadra e tudo que continha. Os que ficaram
em terra foram rapidamente mortos. Foi um camicase, um vento
divino, Anjin-san - disse ela, com fé absoluta -, um camicase
enviado pelos deuses para proteger esta Terra dos Deuses do
invasor estrangeiro. Os mongóis nunca mais voltaram e, após
oitenta anos mais ou menos, a dinastia deles, a Chin, foi extirpada
da China. - Mariko acrescentou com grande satisfação: - Os
deuses protegeram-nos contra eles. Os deuses sempre nos protegerão contra invasões. Afinal, esta é a terra deles, neh?
Blackthorne pensou na imensa quantidade de navios e homens da invasão; fazia a armada espanhola contra a Inglaterra
parecer insignificante. - Também fomos ajudados por uma tempestade, senhora - disse ele, com igual seriedade. - Muitos
acreditam que também foi enviada por Deus - certamente foi
um milagre -, e quem sabe, talvez tenha sido mesmo. - Ele
olhou para o braseiro quando uma brasa crepitou e as chamas
dançaram. Depois disse: - Os mongóis quase nos engoliram
na Europa, também. - Contou a ela como as hordas de GengisCã, neto de Kublai-Cã, chegaram quase aos portões de Viena
antes que seu ataque desenfreado fosse detido, e depois deram
meia-volta, deixando montanhas de cadáveres no seu rastro. -
As pessoas daqueles tempos acreditaram que Gengis-Cã e seus
soldados tivessem sido enviados por Deus para punir o mundo de
seus pecados.
- O Senhor Toranaga diz que ele foi apenas um bárbaro,
imensamente bom na guerra.
- Sim. Ainda assim na Inglaterra bendizemos a nossa sorte
por estarmos numa ilha. Agradecemos a Deus por isso e pelo
canal. E pela nossa marinha. Com a China tão perto e tão
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poderosa - e com vocês e a China em guerra -, surpreende-me
que não tenham uma grande marinha. Não têm medo de outro
ataque? - Mariko não respondeu, mas traduziu para Toranaga o
que fora dito. Quando terminou, Toranaga falou com Yabu, que
assentiu e respondeu, igualmente sério. Os dois homens trocaram
idéias algum tempo. Mariko respondeu a outra pergunta de Toranaga, depois falou mais uma vez a Blackthorne.
- Para controlar os seus mares, Anjin-san, de quantos navios precisam?
- Não sei exatamente, mas agora a rainha deve ter uns
cento e cinqüenta navios de linha. São navios construidos apenas
para combate.
- Meu amo pergunta quantos navios a sua rainha constrói
por ano.
- De vinte a trinta belonaves, as melhores e as mais velozes
do mundo. Mas os navios geralmente são construidos por grupos
particulares de mercadores e depois vendidos à coroa.
- Por lucro?
Blackthorne lembrou-se da opinião samurai sobre o lucro e
o dinheiro. - A rainha generosamente dá mais do que o custo
real a fim de estimular a pesquisa e os novos estilos de construção.
Sem o favor real, isso dificilmente seria possível. Por exemplo,
o Erasmus, o meu navio, é de um novo tipo, um projeto inglês
construido sob licença da Holanda.
- O senhor poderia construir um navio assim aqui?
- Sim. Se eu tivesse carpinteiros, intérpretes, e todo o
material e tempo. Primeiro eu teria que construir um pequeno
vaso. Nunca construí um inteiramente sozinho, portanto teria que
experimentar... Naturalmente - acrescentou, tentanto conter
a própria excitação à medida que a idéia se desenvolvia -, naturalmente, se o Senhor Toranaga desejasse um navio, ou navios,
talvez se pudesse combinar um comércio. Talvez pudéssemos encomendar um número de belonaves, a serem construídas na Inglaterra. Poderíamos trazê-las até aqui para ele - mastreadas
como ele quisesse e armadas como ele quisesse.
Mariko traduziu. O interesse de Toranaga se intensificou.
Assim como o de Yabu. - Ele pergunta se os nossos marinheiros
podem ser treinados para tripular navios assim.
- Certamente, dando-se tempo a eles. Poderíamos nos encarregar de que os mestres de navegação - ou um deles -
ficassem em suas águas por um ano. Então ele poderia criar um
programa de treinamento para vocês. Uma marinha moderna.
Sem igual.
Mariko falou durante algum tempo. Toranaga interrogou-a
de novo, incisivo, e o mesmo fez Yabu.
- Yabu-san pergunta: "Sem igual?"
- Sim. Melhor do que qualquer coisa que os espanhóis pudessem ter. Ou os portugueses.
Fez-se silêncio. Toranaga estava evidentemente dominado
pela idéia, embora tentasse dissimular.
- Meu amo pergunta se o senhor tem certeza de que isso
poderia ser acertado.
- Sim.
- Quanto tempo levaria?
- Dois anos até que eu chegasse em casa. Dois anos para
construir o navio ou os navios. Mais dois para voltar para cá.
Metade do custo teria que ser pago antecipadamente, o restante
contra entrega.
Toranaga pensativamente se inclinou para a frente e pôs
mais lenha aromática no braseiro. Todos o observaram e esperaram. Depois ele falou longamente com Yabu. Mariko não traduziu o que estava sendo dito e Blackthorne sabia que não devia
perguntar, embora tivesse gostado muito de tomar parte na conversa. Estudou a todos eles, até a garota Fujiko, que também
ouvia atentamente, mas não conseguiu captar nada de nenhum
deles. Sabia que a idéia fora brilhante, que poderia gerar um
lucro imenso e garantir a sua passagem de volta em segurança
para a Inglaterra.
- Anjin-san, quantos navios o senhor poderia conduzir?
- Uma pequena frota de cinco navios de cada vez seria
o melhor. Poder-se-la esperar perder no mínimo um navio devido
a tempestades, temporais, ou interferência luso-espanhola - tenho
certeza de que eles tentariam impedi-los a qualquer preço de ter
navios de guerra. Em dez anos o Senhor Toranaga poderia ter
uma marinha de quinze a vinte navios. - Deixou-a traduzir,
depois continuou, lentamente. - A primeira frota poderia trazer
os mestres carpinteiros, construtores navais, atiradores, marujos
e mestres. No prazo de dez a quinze anos a Inglaterra poderia
fornecer ao Senhor Toranaga trinta modernos vasos de guerra,
mais do que o suficiente para dominar as suas águas domésticas.
E, nessa altura, se ele quisesse, possivelmente poderia estar construindo seus próprios navios aqui. Nós... - Ele ia dizer "venderemos", mas mudou a palavra. - Minha rainha ficaria honrada
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em ajudá-lo a formar sua própria marinha, e se ele desejar, nós
treinaremos o pessoal e o forneceremos.
Oh, sim, pensou ele, exultante, quando o embelezamento
final do plano se encaixou no lugar. Nós comandaremos e providenciaremos para que o almirante e a rainha lhe ofereçam uma
aliança de compromisso - boa para você e boa para nós -, que
será parte do negócio, e então, juntos, amigo Toranaga, escorraçamos o cão espanhol e português para fora destes mares e
seremos senhores deles para sempre. Esse poderia ser o maior
acordo isolado de comércio jamais realizado por qualquer nação,
pensou ele alegremente. E com uma frota anglo-japonesa limpando
estes mares, nós, ingleses, dominaremos o comércio de seda entre
o Japão e a China. Então serão milhões todos os anos!
Se eu conseguir isso, mudarei o rumo da história. Terei riquezas e honrarias para além dos meus sonhos. Tornar-me-ei um
ancestral. E tornar-se um ancestral é praticamente a melhor coisa
que um homem pode tentar fazer, ainda que falhe na tentativa.
- Meu amo diz que é uma pena que o senhor não fale a
nossa língua.
- Sim, mas tenho certeza de que a senhora está traduzindo
perfeitamente.
- Ele não disse isso como crítica a mim, Anjin-san, mas
como observação. É verdade. Seria muito melhor para o meu
senhor conversar diretamente, assim como eu converso.
- Há dicionários aqui, Mariko-san? E gramáticas, gramáticas de português-japonês ou latim-japonês? Se o Senhor Toranaga pudesse me ajudar com livros e professores, eu tentaria
aprender a sua língua.
- Não temos livros assim.
- Mas os jesuítas têm. A senhora mesma disse isso.
- Ah! - Ela falou com Toranaga e Blackthorne viu os
olhos dos dois, de Toranaga e de Yabu, iluminar-se, e sorrisos
alargar-lhes o rosto.
- Meu amo diz que o senhor será ajudado, Anjin-san.
Por ordem de Toranaga, Fujiko serviu mais saque a Blackthorne e a Yabu. Toranaga bebia apenas chá, assim como Mariko.
Incapaz de se conter, Blackthorne disse: - O que ele diz da
minha sugestão? Qual é a resposta?
- Anjin-san, seria melhor ter paciência. Ele responderá no
momento devido.
- Por favor, perguntê-lhe agora.
Relutantemente Mariko voltou-se para Toranaga. - Por favor, desculpe-me, senhor, mas o Anjin-san pergunta com grande
deferência o que o senhor pensa do plano dele. Com toda a humildade e polidez ele solicita uma resposta.
- Ele terá a minha resposta oportunamente.
Mariko disse a Blackthorne: - Meu amo diz que vai considerar o seu plano e pensar cuidadosamente no que o senhor
disse. Pedê-lhe que seja paciente.
- Domo, Toranaga-sama.
- Vou me deitar agora. Partiremos ao amanhecer. - Toranaga levantou-se. Todos o seguiram lá para baixo, menos Blackthorne. Blackthorne foi deixado com a noite.


À primeira promessa de amanhecer, Toranaga soltou quatro
dos pombos-correio que tinham sido mandados para o navio com
a bagagem principal, quando o navio fora preparado. Os pássaros
descreveram dois círculos no ar, depois partiram, dois retornando
ao lar em Osaka, dois para Yedo. A mensagem cifrada para
Kiritsubo era uma ordem a ser passada para Hiro-matsu: deviam
todos tentar partir pacificamente de imediato. Se fossem impedidos, deviam se trancar. No momento em que a porta fosse forçada deveriam atear fogo àquela parte do castelo e cometer
seppuku.
A mensagem a seu filho Sudara, em Yedo, dizia que ele
escapara, estava em segurança, e ordenava-lhe que desse seguimento aos preparativos secretos para a guerra.
- Ponha-se ao mar, capitão.
- Sim, senhor.
Pelo meio-dia haviam cruzado a angra entre Totomi e Izu,
e estavam ao largo do cabo Ito, o ponto extremo-meridional da
península de Izu. O vento estava excelente, e a vela mestra, sozinha, ajudava o impulso dos remos.
Então, bem junto à praia, num profundo canal entre a terra
firme e algumas ilhotas rochosas, quando haviam virado para
norte, houve um ronco agourento.
Todos os remos pararam.
- O que, em nome de Cristo... - Os olhos de Blackthorne
estavam arregalados na direção da praia.
Repentinamente uma fenda imensa serpeou penhascos acima
e um milhão de toneladas de rochas despencaram no mar em
avalanche. As águas pareceram ferver por um momento. Uma
pequena onda veio em direção à galera, e passou de lado. A ava472
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lanche cessou. O ronco se repetiu, mais profundo agora, mas
remoto. Rochas rolaram dos penhascos. Todos escutaram atentamente e esperaram, olhando a face do penhasco. Sons de gaivotas, de arrebentação e de vento. Então Toranaga fez sinal ao
mestre do tambor, que reiniciou a batida.
Os remos começaram. A vida no navio voltou à normalidade.
- O que foi isso? - perguntou Blackthorne.
- Apenas um terremoto. - Mariko estava perplexa. - O
senhor não tem terremotos no seu país?
- Não. Nunca. Eu nunca tinha visto um.
- Oh, temo-los com freqüência, Anjin-san. Esse não foi
nada, só um terremoto pequeno. O principal centro de choque
deve ter sido em algum outro lugar, talvez até em alto-mar. Ou
talvez tenha sido apenas um terremoto pequeno, só aqui. O senhor
tem muita sorte de testemunhar apenas um terremoto pequeno.
- Foi como se a terra toda estivesse tremendo. Eu teria
jurado que vi ... Ouvi falar de tremores. Na Terra Santa e na
terra dos otomanos, acontecem às vezes. Jesus! - Ele desabafou,
o coração ainda batendo violentamente. - Eu poderia jurar que
vi aquele penhasco inteiro sacudir.
- Oh, mas sacudiu, Anjin-san. Quando se está em terra, é
a sensação mais terrível do mundo. Não há aviso, Anjin-san. Os
tremores vêm em ondas, às vezes de lado, às vezes de cima para
baixo, às vezes três ou quatro abalos rápidos, às vezes um pequeno, seguido de um maior no dia seguinte. Não há padrão. O pior
que já vivi foi há seis anos, perto de Osaka, no terceiro dia do
mês das Folhas Mortas. Nossa casa desabou em cima de nós,
Anjin-san. Não ficamos feridos, meu filho e eu. Arrastamo-nos
para fora por entre os escombros. Os abalos continuaram por uma
semana ou mais, alguns intensos, outros muito intensos. O grande
castelo novo do táicum em Fujimi foi totalmente destruído. Centenas de milhares de pessoas se perderam naquele terremoto e nos
incêndios que se seguiram. Esse é o maior perigo, Anjin-san, os
incêndios que sempre se seguem. Nossas cidades e aldeias morrem
com muita facilidade. Algumas vezes ocorre um terremoto violento em alto-mar e a lenda diz que é isso que causa o nascimento
das Grandes Ondas. Têm dez ou vinte pés de altura. Não há nunca
como antecipá-las e elas não têm época. Uma Grande Onda simplesmente avança do mar sobre as nossas praias e varre o interior.
Cidades podem desaparecer. Yedo foi parcialmente destruída há
alguns anos por uma onda assim.
- É normal para vocês? Todos os anos?
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- Oh, sim. Todos os anos, nesta Terra dos Deuses, temos
abalos de terra. E incêndio, inundação, Grandes Ondas, e as tempestades monstruosas - os tai-f uns. A natureza é muito severa
conosco. - Lágrimas surgiram nos cantos dos olhos de Mariko.
- Talvez seja por isso que amemos tanto a vida, Anjin-san. O
senhor vê, temos que amá-la. A morte faz parte do nosso ar, do
nosso mar e da nossa terra. O senhor deve saber, Anjin-san, que
nesta Terra dos Deuses a morte é o nosso legado.
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CAPÍTULO 30
- Tem certeza de que está tudo pronto, Mura?
- Sim, Omi-san, sim, acho que sim. Seguimos exatamente
as suas ordens, e as de Igurashi-san.
- É melhor que nada saia errado ou haverá outro chefe de
aldeia ao pôr-do-sol - dissê-lhe Igurashi, primeiro lugar-tenente
de Yabu, com grande acrimônia, seu único olho congestionado
pela falta de sono, Chegara de Yedo na véspera, com o primeiro
contingente de samurais e instruções específicas.
Mura não respondeu, apenas assentiu respeitosamente e manteve os olhos dirigidos para o chão.
Encontravam-se na praia, perto do molhe, diante das fileiras
de aldeães ajoelhados, intimidados e igualmente exaustos - cada
homem, mulher e criança da aldeia, com exceção dos acamados -, à espera da chegada da galera. Todos usavam as melhores
roupas. Os rostos estavam esfregados, a aldeia inteira varrida e
reluzente como se se tratasse da véspera do Ano Novo, quando,
por um antigo costume, todo o império era limpo. Os barcos de
pesca estavam meticulosamente dispostos em linha, cobertos, cordas enroladas. Até a praia ao longo da baía fora revolvida com
ancinho.
- Nada sairá errado, Igurashi-san - disse Omi. Dormira
muito pouco naquela semana, desde que as ordens de Yabu chegaram de Osaka através de um dos pombos-correio de Toranaga.
Imediatamente ele mobilizara a aldeia e cada homem válido num
raio de vinte ris a fim de preparar Anjiro para a chegada dos
samurais e de Yabu. E agora que Igurashi sussurrara o segredo
muito confidencial, apenas aos seus ouvidos, de que o grande
Daimio Toranaga estava acompanhando o seu tio e que tivera
êxito na sua tentativa de fuga da armadilha de Ishido, ele se sentia mais que satisfeito de haver gastado tanto dinheiro. - Não
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há por que se preocupar, Igurashi-san. Este é o meu feudo e a
responsabilidade é minha.
- Concordo. Sim, é. - Igurashi dispensou Mura com um
gesto desdenhoso. E acrescentou em voz baixa: - O senhor é
responsável. Mas, sem a intenção de ofender, digo-lhe que o senhor
nunca viu o nosso amo quando alguma coisa sai errada. Se tivermos esquecido alguma coisa, ou esses comedores de excremento
não tiverem feito tudo o que deviam, nosso amo transformará o
seu feudo inteiro e os que ficam ao norte e ao sul em montes de
esterco antes que o sol se ponha amanhã. - Dirigiu-se a passos
largos para a frente dos seus homens.
Naquela manhã as últimas companhias de samurais haviam
chegado de Mishima, a capital de Yabu que ficava ao norte.
Agora também se encontravam, com todos os outros, alinhados
em formação militar na praia, na praça, e no flanco da colina, as
bandeiras tremulando à leve brisa, lanças eretas cintilando ao sol.
Três mil samurais, a elite do exército de Yabu. Quinhentos cavaleiros.
Omi não estava com medo. Fizera tudo o que fora possível,
e examinara pessoalmente tudo o que pudera ser examinado. Se
alguma coisa saísse errado, seria apenas karma. Mas nada vai sair
errado, pensou ele, animado. Quinhentos kokus tinham sido gastos ou estavam destinados aos preparativos - mais do que toda
a sua renda anual antes de Yabu ter-lhe aumentado o feudo. Ele
ficara atordoado com a soma, mas Midori, sua esposa, dissera que
deviam gastar prodigamente, que o custo era minúsculo comparado à honra que o Senhor Yabu lhe concedia. - E com o Senhor
Toranaga aqui, quem pode dizer que oportunidades você não terá?
- sussurrara ela.
Ela tem toda a razão, pensou Omi orgulhosamente.
Examinou novamente a aldeia e a praça. Tudo parecia perfeito. Midori e sua mãe esperavam sob o toldo que fora preparado para receber Yabu e seu hóspede Toranaga. Omi notou que
a língua da mãe estava em movimento, e desejou que Midori
pudesse ser poupadá do seu ataque constante. Alisou uma dobra
no seu quimono já impecável, ajustou as espadas e olhou na direção do mar.
- Ouça, Mura-san - sussurrou cautelosamente Uo, o pes cador. Era um dos cinco anciãos da aldeia, todos ajoelhados com
Mura. - Sabe, estou tão atemorizado. Se eu urinasse, urinaria pó.
- Então não urine, amigo velho. - Mura conteve o sorriso.
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Uo era um homem de ombros largos, uma rocha de mãos
enormes e nariz quebrado, e exibia uma expressão atormentada.
- Não vou urinar. Mas acho que vou peidar. - Uo era famoso
pelo seu humor e coragem, e pela quantidade dos seus gases. No
ano anterior, quando houvera a competição de flatulência com
a aldeia do norte, ele fora campeão dos campeões e trouxera a
grande honra para Anjiro.
- Iülh, talvez fosse melhor não fazer isso - casquinou
Haru, um pescador baixinho e mirrado. - Um dos cabeças de
merda poderia ficar com ciúmes.
- Vocês receberam ordens de não tratar os samurais assim
enquanto houver ao menos um perto da aldeia - sibilou Mura.
Oh ko, estava ele pensando, espero que não nos tenhamos esquecido de nada. Deu uma olhada no flanco da montanha, na paliçada de bambu que circundava a fortaleza provisória que haviam
construido com muita pressa e suor. Trezentos homens, escavando,
construindo e carregando. A outra casa nova fora mais fácil.
Ficava no outeiro, logo abaixo da casa de Omi, e ele podia vê-la,
menor do que a de Omi, mas com um teto de telhas, um jardim
provisório, e uma pequena casa de banho. Suponho que Omi se
mude para lá e ceda a sua ao Senhor Yabu, pensou Mura.
Olhou para trás, para o promontório onde a galera apareceria a qualquer momento agora. Logo Yabu desceria a terra firme
e então estariam todos nas mãos dos deuses, dos kainis, de Deus
Pai, seu Filho abençoado, e a Virgem abençoada, oh ko!
Virgem abençoada, proteja-nos! Seria demais pedir-lhe que
olhasse por esta aldeia especial de Anjiro? Só nos próximos dias?
Precisamos de favor especial para nos proteger do nosso amo e
senhor, oh, sim! Acenderei cinqüenta velas e meus filhos serão
definitivamente trazidos para a verdadeira fé, prometeu Mura.
Naquele dia Mura se sentia muito contente por ser cristão:
podia interceder junto ao Deus único e isso era uma proteção a
mais para a sua aldeia. Tornara-se cristão na juventude porque
seu suserano se convertera e ordenara imediatamente que todos
os seus seguidores o imitassem. E quando, vinte anos atrás, esse
senhor fora morto lutando por Toranaga contra o táicum, Mura
continuara cristão para honrar-lhe a memória. Um bom soldado
não tem mais que um amo, pensou. Um amo verdadeiro.
Ninjin, um homem de rosto redondo e dentes muito salientes,
estava especialmente agitado com a presença de tantos samurais.
- Mura-san, desculpe, mas o que o senhor fez foi perigoso, ter481

rível, neh? O pequeno terremoto desta manhã foi um sinal dos
deuses, um presságio. O senhor cometeu um terrível engano,
Mura-san.
- O que está feito está feito, Ninjin. Esqueça isso.
- Como? Foi no meu celeiro e...
- Parte da coisa está no seu celeiro. Eu tenho grande quantidade no meu - disse Uo, já sem sorrir.
- Nada está em parte alguma. Nada, velhos amigos - disse
Mura, cautelosamente. - Não existe nada. - Por ordens suas,
trinta kokus de arroz tinham sido roubados nos últimos dias do
depósito dos samurais e se encontravam agora escondidos pela
aldeia, junto com outras provisões e equipamento - e armas.
- Armas não - protestara Uo. - Arroz sim, mas armas não!
- A guerra se aproxima.
- E contra a lei ter armas - lamuriara-se Ninjin.
- Essa é uma lei nova, com quase doze anos de idade -
bufou Mura. - Antes podíamos ter quaisquer armas que quiséssemos e não éramos confinados à aldeia. Podíamos ir aonde quiséssemos, ser o que quiséssemos. Podíamos ser camponeses-soldados,
pescadores, mercadores, até samurais - alguns podiam, vocês
sabem que é verdade.
-- Sim, mas agora é diferente, Mura-san, diferente. O táicurn
ordenou que fosse diferente!
- Logo as coisas serão como eram antes. Estaremos combatendo novamente.
- Então vamos esperar - suplicara Ninjin. - Por favor.
Agora é contra a lei. Se a lei mudar, será karmna. O táicum fez
a lei: nada de armas. Nenhuma. Sob pena de morte instantânea.
- Abram os olhos, todos vocês! O táicum morreu! E eu
lhes digo que logo Omi-san necessitará de homens treinados e a
maioria de nós já guerreou, neh? Pescamos e combatemos, tudo
em sua época. Não é verdade?
- Sim, Mura-san - concordara Uo, por entre o seu medo.
- Antes do táicum não estávamos confinados.
- Eles nos pegarão, terão que nos pegar - choramingara
Ninjin. - Não terão piedade. Vão nos cozinhar como fizeram
com o bárbaro.
- Não fale sobre o bárbaro!
- Ouçam, amigos - dissera Mura. - Nunca teremos uma
chance como esta de novo. Foi enviada por Deus. Ou pelos
deuses. Precisamos pegar cada faca, seta, lança, espada, mosque482
te, escudo, arco que pudermos. Os samurais pensarão que outros
samurais os roubaram - os cabeças de merda não vieram de toda
Izu? E que samurai realmente confia no outro? Precisamos reaver
nosso direito de guerrear, neh? Meu pai foi morto em combate
- assim como o pai dele e o pai do pai dele! Ninjin, em quantas
batalhas você esteve? Dúzias delas, neh? Uo, e você? Vinte?
Trinta?
- Mais. Eu não servi com o táicum, maldita seja sua memória? Ah, antes de se tornar táicum ele era um homem. Essa é
a verdade! Depois alguma coisa o transformou, neh? Ninjin, não
se esqueça de que Mura-san é o chefe da aldeia! E não devemos
nos esquecer de que o pai dele também foi chefe! Se o chefe fala
em armas, então serão armas.
Agora, ajoelhado ao sol, Mura estava convencido de ter agido
corretamente, de que essa nova guerra duraria para sempre, e que
o mundo deles seria novamente como sempre fora. A aldeia continuaria ali, e os barcos e alguns aldeãos. Porque todos os homens
- camponeses, daimios, samurais, até os etas - tinham que
comer e o peixe esperava no mar. Então os soldados-aldeães deixariam a guerra de vez em quando, como sempre, e largariam
com seus botes ...
- Olhem! - disse Uo, e apontou involuntariamente em
meio ao silêncio repentino.
A galera estava contornando o promontório.
Fujiko estava abjetamente ajoelhada diante de Toranaga na
cabina principal que ele usara durante a viagem. Estavam os dois
a sos.
- Imploro-lhe, senhor - suplicava ela. - Tire essa sentença de sobre a minha cabeça.
- Não é uma sentença, é uma ordem.
- Obedecerei, naturalmente, mas não posso fazer.. .
- Não pode? - enfureceu-se Toranaga. - Como se atreve
a discutir? Digo-lhe que vai ser a consorte do piloto e você tem
a impertinência de discutir?
- Peço desculpas, senhor, de todo o coração - disse rapidamente Fujiko, as palavras se derramando. - Não tive a intenção de contradizê-lo. Só quis dizer que não posso fazer isso do
modo como o senhor gostaria. Imploro que compreenda. Perdoeme, senhor, mas não é possível ser feliz - ou fingir ser feliz.
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- Ela inclinou a cabeça até o futon. - Humildemente lhe suplico que me permita cometer seppuku.
- Eu já disse que não aprovo mortes sem sentido. Tenho
uma finalidade para você.
- Por favor, senhor, quero morrer. Humildemente lhe rogo.
Quero me unir ao meu marido e ao meu filho.
A voz de Toranaga açoitou-a, abafando os sons da galera:
- Já lhe recusei essa honra. Você não a merece, ainda. E é só
por causa do seu avô, porque o Senhor Hiro-matsu é o meu mais
velho amigo, que ouvi pacientemente os seus resmungos mal-educados até agora. Basta desse absurdo, mulher. Pare de se comportar como uma camponesa imbecil!
- Humildemente lhe peço permissão para cortar o cabelo
e me tornar monja. Buda.. .
- Não. Dei-lhe uma ordem. Obedeça!
- Obedecer? - disse ela, sem levantar os olhos, o rosto
rígido. Depois, meio para si mesma: - Pensei que tivesse recebido ordem de ir para Yedo.
- Você recebeu ordem de vir para este navio! Você esqueceu a sua posição, a sua herança, esqueceu o seu dever. Você
esqueceu o seu dever! Estou enojado com você. Vá e prepare-se!
- Quero morrer, por favor. deixe-me juntar-me a
senhor.
- Seu marido nasceu samurai por engano. Era de conformação defeituosa, portanto sua prole seria igualmente malformada. Aquele imbecil quase me arruinou! Juntar-se a eles? Que
absurdo! Você está proibida de cometer seppuku! Agora, saia
daqui!
Mas ela não se moveu.
- Talvez fosse melhor que eu a mandasse para os etas.
Para uma das casas deles. Talvez isso a fizesse se lembrar da sua
educação e do seu dever.
Um estremecimento fustigou-a, mas ela sibilou, desafiadora:
- Pelo menos seriam japoneses!
- Sou o seu suserano. Você-fará-o-que-eu-mandar!
Fujiko hesitou. Depois deu de ombros. - Sim, senhor. Peço
desculpas pelos meus modos. - Estendeu as mãos no chão e
curvou profundamente a cabeça, a voz arrependida. Mas no íntimo não estava convencida, e tanto ele quanto ela sabiam o que
ela planejava fazer. - Senhor, sinceramente peço desculpas por
perturbá-lo, por destruir a sua wa, a sua harmonia, e pelos meus
484
maus modos. O senhor tem razão. Eu estava errada. - Levantouse e dirigiu-se calmamente para a porta da cabina.
- Se eu lhe conceder o que deseja - disse Toranaga -,
você em troca fará o que eu quero, com toda a dedicação?
Lentamente ela se voltou. - Por quanto tempo, senhor?
Peço licença para lhe perguntar por quanto tempo devo ser consorte do bárbaro.
- Um ano.
Ela lhe deu as costas e estendeu a mão para a maçaneta da
porta.
- Meio ano - disse Toranaga.
A mão de Fujiko parou. Tremendo, ela apoiou a cabeça contra a porta.
- Sim. Obrigada, senhor. Obrigada.
Toranaga se pôs de pé e foi até a porta. Ela a abriu para ele,
curvou-se enquanto ele a cruzava, e fechou-a atrás dele. Depois
as lágrimas vieram silenciosamente.
Ela era samurai.
Toranaga subiu ao convés sentindo-se muito contente consigo
mesmo. Alcançara o que queria com um mínimo de dificuldade.
Se a garota tivesse sido pressionada demais, teria desobedecido e
tirado a própria vida sem permissão. Mas agora se esforçaria por
agradar e era importante que se tornasse consorte do piloto alegremente, pelo menos na aparência, e seis meses seria tempo mais
que suficiente. Mulheres são muito mais fáceis de lidar do que
homens, pensou ele satisfeito. Muito mais fáceis, em certas coisas.
Então viu os samurais de Yabu concentrados em torno da
baía e sua sensação de bem-estar desvaneceu-se.
- Bem-vindo a Izu. Senhor Toranaga - disse Yabu. - Ordenei que alguns homens viessem lhe servir de escolta.
- ótimo.
A galera ainda estava a duzentas jardas do atracadouro,
aproximando-se habilmente. e eles podiam ver Omi, Igurashi. os
futons e o toldo.
- Foi tudo feito conforme discutimos em Osaka - disse
Yabu. - Mas por que não ficar comigo alguns dias? Eu ficaria
honrado e isso se comprovaria muito útil. O senhor poderia aprovar a escolha dos duzentos e cinqüenta homens para o Regimento
de Mosquetes, e conhecer o comandante.
eles,
485
- Sim, senhor - retrucou Omi, sentindo-se crescer com a
honra que lhe era feita. - Obrigado.
Toranaga estabeleceu um passo célere. Levara-os consigo
para impedi-los de conversar em particular com Yabu por enquanto, sabendo que a sua vida dependia de conservar a iniciativa.
- Você não lutou conosco em Odawara, Igurashi-san? -
perguntou ele, já sabendo que fora lá que o samurai perdera
o olho.
- Sim, senhor. Tive a honra. Eu estava com o Senhor Yabu
o servimos na ala direita do táicum.
- Então ocupou o lugar de honra, onde a luta foi mais
árdua. Tenho muito que lhe agradecer, e ao seu amo.
- Esmagamos o inimigo, senhor. Estávamos apenas cumprindo o nosso dever. - Embora detestasse Toranaga, Igurashi
estava orgulhoso de a ação ser lembrada e de estar recebendo
agradecimento.
Haviam chegado à frente do primeiro regimento. A voz de
Toranaga alteou-se. - Sim, você e os homens de Izu nos ajudaram grandemente. Talvez, não fossem vocês eu não teria obtido
o Kwanto! Hein, Yabu-sama? - acrescentou ele, parando repentinamente, dando publicamente a Yabu o título superior e, em
conseqüência, a honra superior.
Novamente Yabu ficou perturbado com a lisonja. Sabia que
não era mais do que lhe era devido, mas não a esperara de Toranaga, e nunca fora sua intenção permitir uma inspeção formal.
- Talvez, mas duvido. O táicum ordenou que o clã Beppu fosse
arrasado. Portanto foi arrasado.
Isso acontecera dez anos antes, quando apenas o enormemente poderoso e antigo clã Beppu, liderado por Beppu Genzaemon,
se opunha às forças combinadas do General Nakamura, o futuro
táicum, e de Toranaga - o último grande obstáculo ao domínio
completo do império por Nakamura. Durante séculos os Beppu
tinham sido senhores das Oito Províncias, o Kwanto. Cento e
cinqüenta mil homens cercaram o seu castelo-cidade de Odawara,
que guardava a passagem que cortava as montanhas, levando às
planícies de arroz inacreditavelmente ricas. O cerco durou onze
meses. A nova consorte de Nakamura, a patrícia Senhora Ochiba,
radiante e mal e mal com dezoito anos, viera para a casa do seu
senhor do lado de fora das ameias, o filho recém-nascido nos
braços, Nakamura perdido de amores pelo primeiro filho. E com
a Senhora Ochiba viera a irmã mais nova, Genjiko, que Nakamura
propusera dar em casamento a Toranaga.
488
- Senhor - dissera Toranaga -, eu certamente ficaria
honrado em unir as nossas casas, mas ao invés de eu me casar com
a Senhora Genjiko, como sugere, deixe-a casar-se com meu filho
o herdeiro, Sudara.
Toranaga levara muitos dias para persuadir Nakamura, que
acabara concordando. Então, quando a decisão fora anunciada à
Senhora Ochiba, ela respondera imediatamente: - Com toda a
humildade, senhor, oponho-me ao casamento.
Nakamura rira. - Eu também! Sudara tem apenas dez anos
e Genjiko treze. Ainda assim, agora estão prometidos um ao outro
o no décimo quinto aniversário dele os dois se casarão.
- Mas, senhor, o Senhor Toranaga já é seu cunhado, neh?
Com certeza isso é suficiente como ligação. O senhor precisa de
elos mais íntimos com os Fujimoto e os Takashima, e mesmo com
a corte imperial.
- Eles são uns cabeças de bosta lá na corte, e todos fantoches - dissera Nakamura na sua áspera voz de camponês.
- Ouça, O-chan: Toranaga tem setenta mil samurais. Quando
tivermos esmagado os Beppu ele terá o Kwanto e mais homens.
Meu filho precisará de líderes como Yoshi Toranaga, assim como
eu preciso deles. Sim, e um dia meu filho precisará de Yoshi
Sudara. É melhor que Sudara seja tio do meu filho. Sua irmã está
prometida a Sudara, mas ele viverá conosco alguns anos, neh?
- Naturalmente, senhor - concordara Toranaga de imediato, entregando seu filho e herdeiro como refém.
- Ótimo. Mas ouça, primeiro você e Sudara jurarão lealdade eterna ao meu filho.
E assim acontecera. Então, durante o décimo mês de cerco,
o primeiro filho de Nakamura morrera, de febre, mau sangue ou
kami malévolo.
- Que todos os deuses amaldiçoem Odawara e Toranaga
- enfurecera-se Ochiba. - É por culpa de Toranaga que estamos aqui. Ele quer o Kwanto. Foi por culpa dele que o nosso
filho morreu. É ele o seu verdadeiro inimigo. Quer que o senhor
morra, e eu também! Condene-o à morte - ou ponha-o ao trabalho. Deixe-o comandar o ataque, deixe-o pagar com a vida pela
vida do nosso filho! Exijo vingança...
Então Toranaga comandara o ataque. Tomara o Castelo de
Odawara minando os muros e por ataque frontal. Depois o pesaroso Nakamura reduzira a cidade a pó. Com a sua queda e a
caça a todos os Beppu, o império foi dominado e Nakamura se
489
I
h1
tornou primeiro kwampaku, depois táicum. Mas muitos morreram
em Odawara.
Gente demais, pensou Toranaga, ali na praia de Anjiro.
Olhou Yabu. - É uma pena que o táicum tenha morrido, neh?
- Sim.
- Meu cunhado era um grande comandante. E um grande
professor, também. Como ele, nunca me esqueço de um amigo.
Ou de um inimigo.
- Logo o Senhor Yaemon atingirá a maioridade. O espírito
dele é o espírito do táicum. Senhor Toran... - Mas antes que
Yabu pudesse deter a inspeção, Toranaga já a havia reiniciado e
havia pouca coisa que Yabu pudesse fazer além de acompanhá-lo.
Toranaga caminhou ao longo das fileiras, esvaindo-se em
amabilidades, escolhendo um homem aqui, outro ali, reconhecendo alguns, os olhos sempre em movimento enquanto rebuscava na
memória à procura de rostos e nomes. Ele tinha aquela qualidade
muito rara dos generais especiais que inspecionam de um modo
tal, que cada homem sente, pelo menos durante um instante, que
o general olhou apenas para ele, talvez até tenha conversado só
com ele, dentre todos os seus camaradas. Toranaga estava fazendo
aquilo para o que nascera, e que fizera milhares de vezes: controlando homens com a força da vontade.
Quando o último samurai foi revisto, Yabu, Igurashi e Omi
estavam exaustos. Mas Toranaga não, e novamente, antes que
Yabu pudesse detê-lo, dirigiu-se rapidamente para um ponto mais
elevado e parou lá, no alto e sozinho.
- Samurais de Izu, vassalos do meu amigo e aliado, Kasigi
Yabu-sama! - começou ele naquela voz sonora e potente. - Estou honrado por me encontrar aqui. Estou honrado em ver parte
da força de Izu, parte das forças do meu grande aliado. Ouçam,
samurais, nuvens escuras estão se reunindo sobre o império e
ameaçam a paz do táicum. Devemos preservar as dádivas do
táicum contra a traição em altos postos! Que cada samurai esteja
preparado! Que cada arma esteja afiada! Juntos defenderemos a
vontade dele! E levaremos a melhor! Que os deuses do Japão,
grandes e pequenos, prestem atenção! Que eles destruam sem piedade todos aqueles que se opuserem às ordens do táicum! -
Levantou os braços, proferiu o grito de batalha deles, "Kasigi",
e, inacreditavelmente, curvou-se para as legiões e manteve-se
curvado.
Todos o fitavam de olhos arregalados. Então "Toranaga!"
veio ribombando até ele dos regimentos, sempre e sempre. E os
samurais retribuíram a reverência.
Até Yabu se curvou, dominado pela força do momento.
Antes que Yabu pudesse se endireitar, Toranaga já descera
a colina, mais uma vez a passo acelerado. - Vá com ele, Omi-san
- ordenou Yabu. Teria sido inadequado que ele próprio corresse
atrás de Toranaga.
- Sim, senhor.
Quando Omi se afastou, Yabu perguntou a Igurashi: - Quais
são as notícias de Yedo?
- A Senhora Yuriko, sua esposa, mandou lhe dizer primeiro
que está acontecendo uma tremenda mobilização pelo Kwanto inteiro. Nada na superfície, mas por baixo está tudo fervendo. Ela
acredita que Toranaga está se preparando para a guerra - um
ataque repentino, talvez até contra Osaka.
- E Ishido?
- Nada até o momento em que partimos. Isso foi há cinco
dias. Nada, também, sobre a fuga de Toranaga. Só fiquei a par
disso ontem, quando a sua senhora mandou um pombo-correio
de Yedo.
- Ah, Zukimoto já criou aquele serviço de pombos-correio?
- Sim, senhor.
- Ótimo.
- A mensagem dela foi esta: "Toranaga escapou com êxito
de Osaka, com o nosso amo numa galera. Façam os preparativos
para recebê-los em Anjiro". Pensei que seria melhor manter isso
em segredo, exceto de Omi-san, mas estamos todos preparados.
- Como?
- Ordenei um "exercício" de guerra, senhor, por toda Izu.
Dentro de três dias cada estrada e passagem para Izu estará bloqueada, se for isso o que o senhor quiser. Há uma frota pirata
simulada ao norte, que poderia arrasar qualquer navio sem escolta, de dia ou de noite, se for isso o que o senhor quiser. E há
acomodações aqui para o senhor e um hóspede, por mais importante que seja, se for isso o que o senhor quiser.
- Ótimo. Mais alguma coisa? Outras notícias?
Igurashi relutava em transmitir notícias cujas implicações ele
não compreendia. - Estamos preparados para qualquer coisa
aqui. Mas esta manhã chegou uma mensagem de Osaka: "Toranaga renunciou ao conselho de regentes".
- Impossível! Por que ele faria isso?
i
490
491

-- Não sei. Não consigo formar uma opinião. Mas deve ser
verdade. Nunca recebemos informação errada dessa fonte antes.
- A Senhora Sazuko? - perguntou Yabu cautelosamente,
citando o nome da consorte mais jovem de Toranaga, cuja criada
era uma espiã a seu serviço.
Igurashi assentiu. - Sim. Mas não compreendi em absoluto.
Agora os regentes o impedirão, não? Ordenarão a morte dele. Foi
loucura renunciar, neh?
- Ishido deve tê-lo forçado a fazer isso. Mas como? Não
houve nem um sopro de rumor. Toranaga nunca renunciaria espontaneamente! Você tem razão, seria o ato de um louco. Ele
está perdido se tiver renunciado. Deve ser falso.
Transtornado, Yabu desceu a colina e viu Toranaga cruzar a
praça na direção de Mariko e do bárbaro, com Fujiko ao lado.
Depois Mariko andando ao lado de Toranaga, os outros esperando
na praça. Toranaga falava rápida e urgentemente. Então Yabu
viu-o dar a ela um pequeno rolo de pergaminho e perguntou a si
mesmo o que conteria e o que estava sendo dito. Que nova traição
estará Toranaga planejando? perguntou-se, desejando ter a esposa
Yuriko ali para ajudá-lo com seus sábios conselhos.
Ao atingir o embarcadouro, Toranaga parou. Não se dirigiu
para o navio e a proteção dos seus homens. Sabia que seria na
praia que se tomaria a última decisão. Ele não podia escapar. Nada
estava resolvido ainda. Observou Yabu e Igurashi se aproximando.
A aparente impassibilidade de Yabu dissê-lhe muito.
- Então, Yabu-san?
- O senhor ficará alguns dias, Senhor Toranaga?
- Seria melhor que eu partisse imediatamente.
Yabu ordenou que todos se afastassem. Num instante os dois
homens ficaram sozinhos na praia.
- Recebi notícias inquietantes de Osaka. O senhor renunciou ao conselho de regentes?
- Sim. Renunciei.
- Então o senhor matou a si mesmo, destruiu a sua causa,
todos os seus vassalos, todos os seus aliados, todos os seus amigos!
Enterrou Izu e me assassinou!
- Certamente o conselho de regentes pode tirar-lhe o feudo,
e a vida se quiser. Sim.
- Por todos os deuses, viver e morrer e ainda ter nascido... - Yabu lutou para se dominar. - Peçe desculpas pelos
meus maus modos, mas a sua... a sua incrível atitude... sim,
peço desculpas. - Não havia nenhum propósito real a ser atin492
gido com uma demonstração de emoção, que todos sabiam inconveniente e indigna. - Sim, é melhor que fique aqui, então, Senhor
Toranaga.
- Creio que prefiro partir imediatamente.
- Aqui ou Yedo, qual é a diferença? A ordem dos regentes
virá em seguida. Imagino que o senhor quererá cometer seppuku
imediatamente. Com dignidade. Em paz. Eu ficaria honrado em
atuar como seu assistente.
- Obrigado. Mas ainda não chegou nenhuma ordem legal,
portanto a minha cabeça continuará onde está.
- Que importância tem um dia ou dois? É inevitável que
a ordem chegue. Farei todos os preparativos, sim, e eles serão
perfeitos. O senhor pode contar comigo.
- Obrigado. Sim, posso compreender por que você quereria
a minha cabeça.
- A minha própria cabeça também está perdida. Se eu
mandasse a sua para Ishido, ou a tirasse e lhe pedisse perdão,
isso talvez o convencesse, mas duvido, neh?
- Se eu estivesse na sua posição, talvez pedisse a sua cabeça. Infelizmente a minha não o ajudará em absoluto.
- Sou inclinado a concordar. Mas vale a pena tentar. -
Yabu cuspiu no chão. - Mereço morrer por ser tão estúpido e
por me colocar em poder de um cabeça de bosta.
- Ishido nunca hesitará em lhe tomar a cabeça. Mas primeiro tomará Izu. Oh, sim, Izu está perdida com ele no poder.
- Não tente me iludir! Eu sei que isso vai acontecer!
- Não o estou iludindo, meu amigo - disse Toranaga,
saboreando a perda de dignidade de Yabu. - Simplesmente disse
que, com Ishido no poder, você estará perdido e Izu estará perdida,
porque o parente dele, Ikawa Jikkyu, cobiça Izu, neh? Mas,
Yabu-san, Ishido não tem o poder. Ainda. - E, de amigo para
amigo, contou a Yabu por que renunciara.
- O conselho está paralisado! - Yabu não podia acreditar.
- Não existe conselho algum! Não existirá até que haja
cinco membros de novo. - Toranaga sorriu. - Pense nisso,
Yabu-san. Agora estou mais forte do que nunca, neh? Ishido está
neutralizado, assim como Jikkyu. Agora você tem todo o tempo
de que precisa para treinar os seus atiradores. Agora é dono de
Suruga e Totomi. Agora tem a cabeça de Jikkyu. Dentro de poucos meses você lhe verá a cabeça num chuço, a cabeça de todos
os parentes dele, e entrará com toda a pompa em seus novos
493

domínios. - Abruptamente deu meia-volta e gritou: - Igurashisan! - e quinhentos homens ouviram a voz de comando.
Igurashi veio correndo, mas antes que o samurai tivesse dado
três passos, Toranaga berrou: - Traga uma guarda de honra.
Cinqüenta homens! Imediatamente! - Ele não ousou dar a Yabu
um intervalo de um momento sequer para detectar a enorme falha
no seu argumento: que se Ishido estava paralisado agora e não
tinha poder, então a cabeça de Toranaga numa salva de madeira
seria de enorme valor para Ishido, e assim para Yabu. Ou, melhor
ainda, Toranaga amarrado como um marginal comum e entregue
vivo aos portões do Castelo de Osaka daria a Yabu a imortalidade
e as chaves do Kwanto.
Enquanto a guarda de honra se formava à sua frente, Toranaga disse alto: - Em honra desta ocasião, Yabu-sama, talvez o
senhor aceitasse isto como símbolo de amizade. - E puxou a
longa espada, segurou-a deitada sobre as duas mãos, e ofereceu-a.
Yabu pegou a espada como se estivesse sonhando. Era inestimável. Era uma herança Minowara, famosa por todo o reino.
Toranaga possuía aquela espada há quinze anos. Fora-lhe presenteada por Nakarnura diante da majestade reunida de todos os
daimios importantes do império, exceto Beppu Genzaemon, como
pagamento parcial por um acordo secreto.
Isso acontecera pouco depois da batalha de Nagakudé, muito
antes da Senhora Ochiba. Toranaga acabara de derrotar o General
Nakamura, o futuro táicum, quando Nakamura ainda era apenas
um arrivista, sem mandato nem poder ou título formal, e a sua
ânsia pelo poder absoluto ainda encontrava obstáculo. Ao invés
de reunir um exército esmagador e arrasar Toranaga, o que era
a sua política habitual, Nakamura resolveu ser conciliador. Oferecera a Toranaga um tratado de amizade e uma aliança de compromisso, e, para cimentá-los, sua meia irmã como esposa. O fato
de a mulher já ser casada e de meia-ldade não incomodou nem a
Nakamura nem a Toranaga em absoluto. Toranaga concordou
com o pacto. Imediatamente o marido da mulher, um dos vassalos
de Nakamura - agradecendo aos deuses que o convite ao divórcio
não tivesse vindo acompanhado de um convite a cometer seppuku
- mandara-a, agradecido, de volta ao meio irmão. Imediatamente
Toranaga se casou com ela com toda a pompa e cerimônia ao seu
alcance, e no mesmo dia concluiu um pacto secreto de amizade
com o imensamente poderoso clã Beppu, os inimigos declarados
de Nakamura, que, naquela época, ainda se encastelavam desde494
nhosamente no Kwanto, na porta dos fundos, muito desprotegida,
de Toranaga.
Então Toranaga ficara caçando com seus falcões e à espera
do inevitável ataque de Nakamura. Mas nada acontecera. Em
vez de atacar, surpreendentemente, Nakamura mandara sua venerada e amada mãe para o acampamento de Toranaga como refém, ostensivamente para visitar a enteada, a nova esposa de Toranaga, mas sempre um refém, e em troca convidara Toranaga para
a reunião de todos os daimios que ele organizara em Osaka. Toranaga pensara muito e longamente. Depois aceitara o convite,
sugerindo ao seu aliado Beppu Genzaemon que seria imprudência
irem ambos. Depois, secretamente, pusera sessenta mil samurais
em movimento para Osaka, contra a esperada traição de Nakamura, e deixara seu filho mais velho, Noboru, encarregado da sua
nova esposa e da sogra. Noboru imediatamente empilhara gravetos
secos e facilmente inflamáveis nos beirais do telhado da residência
delas e dissera-lhes asperamente que atearia fogo se qualquer coisa
acontecesse ao pai.
Toranaga sorriu, lembrando-se. Na noite que precedera a sua
chegada a Osaka, Nakamura, sem cerimônia como sempre, fizeralhe uma visita secreta, sozinho e desarmado.
- Salve, Tora-san.
- Salve, Senhor Nakamura.
- Ouça: combatemos juntos em muitas batalhas, conhecemos muitos segredos, cagamos muitas vezes no mesmo pote para
querer mijar em nossos próprios pés ou um nos pés do outro.
- Concordo - dissera Toranaga precavidamente.
- Ouça, então. Estou a um passo de dominar o reino. Para
conseguir o poder total, necessito do respeito dos clãs antigos, os
senhores dos feudos hereditários, os herdeiros atuais dos Fujimoto,
Takashima e Minowara. Assim que eu tiver o poder, qualquer
daimio ou três juntos podem mijar sangue que não me faz a
mínima diferença.
- O senhor tem o meu respeito ... sempre teve.
O homenzinho com cara de macaco rira fartamente. - Você
venceu justamente em Nagakudé. É o melhor general que jamais
conheci, o maior daimio do reino. Mas agora vamos parar de
jogar, você e eu. Ouça. Amanhã quero que você se curve para
mim, diante de todos os daimios, como meu vassalo. Quero você,
Yoshi Toranaga-noh-Minowara, como um vassalo aquiescente. Publicamente. Não para me lamber o rabo, mas polido, humilde e
respeitoso. Com você como meu vassalo, o resto vai até peidar
495

de tanta urgência em pôr a cabeça no pó e o rabo ao ar. E os
poucos que não fizerem isso... bem, que se cuidem.
- Isso o fará senhor de todo o Japão. Neh?
- Sim. O primeiro da história. E você me terá dado isso.
Admito que não posso fazê-lo sem você. Mas, ouça, se fizer isso
por mim, terá o primeiro lugar depois de mim. Todas as honras
que desejar. Qualquer coisa. Há bastante para nós dois.
- Há?
- Sim. Primeiro tomo o Japão. Depois a Coréia. Em seguida
a China. Eu disse a Goroda que queria isso e é o que terei.
Então você poderá ficar com o Japão - uma província da minha
China!
- Mas agora, Senhor Nakamura? Agora tenho que me submeter, neh? Estou em seu poder, neh? O senhor está com uma
força esmagadora à minha frente, e os Beppu me ameaçam os
fundos.
- Cuidarei deles muito em breve - dissera o guerreiro
camponês. - Aqueles cadáveres zombadores recusaram meu convite para vir aqui amanhã. Mandaram o meu pergaminho de volta
coberto de merda de passarinho. Você quer a terra deles? O
Kwanto todo?
- Não quero nada deles nem de ninguém.
- Mentiroso - disse Nakamura cordialmente. - Ouça-me,
Tora-san, tenho quase cinqüenta anos. Nenhuma das minhas mulheres jamais concebeu. Tenho sumo em abundância, sempre tive,
e em toda a minha vida devo ter me deitado com uma centena
de mulheres, duas centenas, de todos os tipos, de todas as idades,
de todos os jeitos, mas nenhuma jamais concebeu uma criança,
sequer natimorta. Tenho tudo, mas não tenho filhos e nunca terei.
É o meu karma. Você tem quatro filhos vivos e sabe-se lá quantas
filhas. Tem quarenta e três anos, portanto pode fazer mais uma
dúzia, e isso com tanta facilidade como os cavalos cagam, e esse
é o seu karma. Além disso é Minowara e isso é karma. Que diz
de eu adotar um dos seus filhos e torná-lo meu herdeiro?
- Agora?
- Em breve. Digamos dentro de três anos. Nunca foi importante ter um herdeiro antes, mas agora as coisas são diferentes.
Nosso falecido amo Goroda teve a estupidez de se deixar assassinar. Agora a terra é minha... poderia ser minha. Bem?
- O senhor tornará os acordos formais, publicamente formais, dentro de dois anos?
- Sim. Dentro de dois anos. Pode confiar em mim. Nossos
interesses são os mesmos. Ouça: dentro de dois anos, em público;
e combinamos, você e eu, que filho será. Desse modo partilhamos
tudo, hein? Nossa dinastia conjunta fica assentada para o futuro,
portanto não há problemas nisso e é bom para mim. Os lucros
serão imensos. Primeiro o Kwanto. Hein?
- Talvez Beppu Genzaemon se submeta... seu eu me submeter.
- Não posso permitir que eles façam isso, Tora-san. Você
cobiça a terra deles.
- Não cobiço nada.
A risada de Nakamura fora jovial. - Sim. Mas devia. O
Kwanto é digno de você. É seguro por trás de paredes de montanhas, fácil de defender. Com o delta você controlará os campos
de arroz mais ricos do império. Terá as costas para o mar e uma
renda de dois milhões de kokus. Mas não faça de Kamakura a
sua capital. Nem de Odawara.
- Kamakura sempre foi a capital do Kwanto.
- Por que você não cobiçaria Kamakura, Tora-san? Não
faz seiscentos anos que ela encerra o santuário sagrado do kami
guardião da sua família? Hachiman, o kami da guerra, não é a
divindade Minowara? Seu ancestral foi sábio em escolher o kami
da guerra para venerar.
- Não cobiço nada, não venero nada. Um santuário é apenas um santuário, e nunca constou que o katni da guerra ficasse
em qualquer santuário.
- Fico contente por você não cobiçar nada, Tora-san, pois
assim nada o desapontará. Nisso você é como eu. Mas Kamakura
não é capital para você. Há sete passagens levando até ela, coisa
demais para defender. E não dá para o mar. Não, eu não aconselharia Kamakura. Ouça, seria melhor e mais seguro que você
avançasse para além das montanhas. Você precisa de um porto
marítimo. Há um que vi uma vez, Yedo, atualmente uma aldeia
de pescadores, mas você a transformará numa grande cidade.
Fácil de defender, perfeita para o comércio. Você é a favor do
comércio. Eu também. Ótimo. Portanto você precisa ter um porto
marítimo. Quanto a Odawara, vamos arrasá-la, como lição para
todos os outros.
- Isso será muito difícil.
- Sim. Mas seria uma boa lição para todos os outros daimios, neh?
- Tomar essa cidade de assalto seria dispendioso.
I
496
497

Novamente a risada sarcástica. - Poderia ser, para você,
se não se juntasse a mim. Tenho que atravessar as suas terras
atuais para chegar lá. Você sabia que é a linha de frente dos
Beppu? A garantia dos Beppu? Juntos, você e eles poderiam me
manter a distância um ano ou dois, até três. Mas eu chegaria
lá afinal. Oh, sim. lh, por que desperdiçar mais tempo com eles?
Estão todos mortos, com exceção do seu genro, se você quiser,
ah, eu sei que você tem uma aliança com eles, mas isso não vale
uma tigela de bosta de cavalo. Então, qual é a sua resposta?
Os lucros vão ser imensos. Primeiro o Kwanto - isso é seu -,
depois terei o Japão todo. Depois a Coréia, fácil. Em seguida a
China - difícil, mas não impossível. Sei que um camponês não
pode se tornar xógum, mas o "nosso" filho será xógum, e também poderia se aboletar no Trono do Dragão da China, ou o
filho dele. Agora chega de conversa. Qual é a sua resposta, Yoshi
Toranaga-noh-Minowara, vassalo ou não? Nada mais tem valor
para mim.
- Vamos urinar sobre o acordo - dissera Toranaga, tendo
ganhado tudo o que desejara e por que planejara. E no dia seguinte, ante a desnorteada majestade dos daimios truculentos, ele
humildemente oferecera sua espada e suas terras, sua honra e sua
herança ao camponês arrivista senhor da guerra. Implorara pela
permissão de servir a Nakamura e à sua casa para sempre. E ele,
Yoshi Toranaga-noh-Minowara, abjetamente encostara a cabeça
no pó. O futuro táicum, então, fora magnânimo: tomara-lhe as
terras e imediatamente lhe presenteara o Kwanto como feudo
assim que fosse conquistado, ordenando guerra total contra os
Beppu pelos seus insultos ao imperador. E também dera a Toranaga a espada que adquirira recentemente de uma das tesourarias
imperiais. A espada fora feita pelo mestre espadeiro Miyoshi-Go
séculos atrás, e pertencera um dia ao guerreiro mais famoso da
história, Minowara Yoshitomo, o primeiro xógum Minowara.
Toranaga lembrou-se daquele dia. E de outros quando, poucos
anos depois, a Senhora Ochiba dera à luz um menino; e outro
quando, inacreditavelmente, depois de o primeiro filho do táicum
ter convenientemente morrido, nascera Yaemon, o segundo filho.
O que arruinara o plano todo. Karma.
Ele viu Yabu segurando a espada do seu ancestral com reverência.
- É tão afiada quanto dizem? - perguntou Yabu.
- Sim.
- O senhor me concede uma grande honra. Guardarei o
498
seu presente como um tesouro. - Yabu curvou-se, cônscio de
que, devido ao presente, seria o primeiro na terra, depois de
Toranaga.
Toranaga retribuiu a mesura e depois, desarmado, encaminhou-se para a escada de embarque. Precisou de toda a sua força
de vontade para disfarçar a raiva e não deixar os pés vacilarem,
e rezou para que a avidez de Yabu o mantivesse hipnotizado só
por mais uns momentos.
- Zarpar! - ordenou, subindo ao convés, e voltou-se para
a praia e acenou alegremente.
Alguém rompeu o silêncio e gritou o seu nome, depois outros
se uniram ao grito. Houve um troar geral de aprovação pela
honra feita ao senhor deles. Mãos prestimosas empurraram o
navio para o largo. Os remadores puxaram com rapidez. A galera
avançou.
- Capitão, para Yedo, rapidamente!
- Sim, senhor.
Toranaga olhou para trás, seus olhos explorando a praia,
esperando perigo a qualquer momento. Yabu erguia-se junto ao
molhe, ainda inebriado pela espada, Mariko e Fujiko esperavam
ao lado do toldo com as outras mulheres. O Anjin-san estava na
extremidade da praça, onde lhe disseram que esperasse - rígido,
sobranceiro, e inconfundivelmente furioso. Seus olhos se encontraram. Toranaga sorriu e acenou.
O aceno foi correspondido, mas friamente, e isso divertiu
muitíssimo Toranaga.


Blackthorne subiu desconsoladamente até o molhe.
- Quando é que ele volta, Mariko-san?
- Não sei, Anjin-san.
- Como é que iremos para Yedo?
- Vamos ficar aqui. Eu, pelo menos, fico três dias. Depois
devo seguir para lá.
Por mar?
Por terra.
E eu?
O senhor deve ficar aqui.
Por quê?
- O senhor manifestou interesse por aprender a nossa língua. E há trabalho para o senhor aqui.
- Que trabalho?
499

- Não sei, sinto muito. O Senhor Yabu lhe dirá. Meu amo
deixou-me aqui para traduzir, por três dias.
Blackthorne estava cheio de pressentimentos. Tinha as pistolas na cintura, mas não tinha facas, nem pólvora nem munição.
Ficara tudo na cabina a bordo da galera.
- Por que a senhora não me disse que íamos ficar aqui?
- perguntou. - Só disse que vínhamos a terra.
- Eu não sabia que o senhor também ficaria aqui - retrucou ela. - O Senhor Toranaga me disse há apenas um momento,
na praça.
- Por que não disse a mim, então? A mim mesmo?
- Não sei.
- Eu deveria estar indo para Yedo. É lá que se encontra
a minha tripulação. É lá que está o meu navio. Como é que fica?
- Ele só disse que o senhor devia permanecer aqui.
- Por quanto tempo?
- Ele não me disse, Anjin-san. Talvez o Senhor Yabu saiba.
Por favor, tenha paciência.
Blackthorne podia ver Toranaga em pé no tombadilho, olhando para a praia. - Acho que ele sabia o tempo todo que eu devia
ficar aqui, não sabia?
Ela não respondeu. Como é infantil falar em voz alta o que
se pensa, disse ela a si mesma. E como Toranaga foi extraordinariamente inteligente para escapar desta armadilha.
Fujiko e as duas criadas encontravam-se ao lado dela, esperando pacientemente à sombra, com a mãe e a esposa de Omi, a
qual Mariko conhecera rapidamente. Mariko olhou para além
delas, para a galera. Estava ganhando velocidade agora. Mas
ainda se encontrava facilmente no raio de uma seta. A qualquer
momento agora ela sabia que devia começar. Oh, minha Nossa
Senhora, faça-me forte, orou, toda a sua atenção centrada em
Yabu.
- É verdade? É verdade? - dizia Blackthorne.
- O quê? Oh, desculpe, eu não sei, Anjin-san. Só posso
dizer-lhe que o Senhor Toranaga é muito sábio. O mais sábio
dos homens. Quaisquer que tenham sido os seus motivos, foram
bons. - Ela estudou os olhos azuis e o rosto duro, sabendo que
Blackthorne não compreendera nada do que ocorrera ali. - Por
favor, seja paciente, Anjin-san. Não há nada a temer. O senhor
é o vassalo favorito dele e está sob...
- Não estou com medo, Mariko-san. Só estou cansado de
500
ser atirado de um lado para outro como um fantoche. E não sou
vassalo de ninguém.
- "Contratado" é melhor? Ou como o senhor descreveria
um homem que trabalha para outro ou é contratado por outro
para específico. .. - Nisso ela viu o sangue subir ao rosto de
Yabu.
- As armas... as armas ainda estão na galera! - gritou ele.
Mariko sabia que chegara o momento. Apressou-se na direção
dele quando ele se voltou para gritar ordens para Igurashi.
- Com o seu perdão, Senhor Yabu - disse ela, dominando-o -, não há por que se preocupar em relação às armas. O
Senhor Toranaga disse que lhe pedisse perdão pela pressa, mas
tem coisas urgentes a fazer pelos seus interesses conjuntos em
Yedo. Disse que mandará a galera de volta imediatamente. Com
as armas. E com pólvora extra. E também com os duzentos e
cinqüenta homens que o senhor lhe solicitou. Estarão aqui dentro
de cinco ou seis dias.
- O quê?
Paciente e polidamente Mariko explicou de novo, conforme
Toranaga lhe dissera que fizesse. Depois, quando Yabu compreendeu, ela tirou o rolo de pergaminho da manga. - Meu amo
pedê-lhe que leia isto. Refere-se ao Anjin-san. - Formalmente
ela lhe estendeu o rolo.
Mas Yabu não pegou. Seus olhos se dirigiram para a galera.
Estava bem longe agora, indo muito depressa. Fora do alcance.
Mas o que importa? pensou satisfeito, dominando agora a ansiedade. Logo terei as armas de volta e agora estou fora da armadilha
de Ishido e tenho a mais famosa espada de Toranaga e logo
todos os daimios da terra estarão informados da minha nova posição nos exércitos do leste - o primeiro depois de Toranaga! Yabu
ainda podia ver Toranaga, acenou e foi correspondido. Depois
Toranaga desapareceu do tombadilho.
Yabu pegou o rolo de pergaminho e voltou a atenção para o
presente. E para o Anjin-san.
Blackthorne observava a trinta passos de distância e sentiu os
pêlos se arrepiarem sob o olhar perscrutador de Yabu. Ouviu
Mariko falando na sua voz musical, mas isso não o tranqüilizou.
Sua mão apertou dissimuladamente a coronha da pistola.
- Anjin-san! - chamou Mariko. - Venha até aqui, por
favor!
Quando Blackthorne se aproximou, Yabu levantou os olhos
do pergaminho e fez um gesto de cabeça amistoso. Ao terminar
501

a leitura, Yabu devolveu o papel a Mariko e falou brevemente,
parcialmente com ela, parcialmente com ele.
Respeitosamente Mariko estendeu o papel para Blackthorne.
Ele o pegou e examinou os caracteres incompreensíveis.
- O Senhor Yabu diz que o senhor é bem-vindo nesta
aldeia. Este documento está sob o selo do Senhor Toranaga,
Anjin-san. Deve guardá-lo. Ele lhe concedeu uma honra rara.
Fez do senhor um hatamoto. Essa é a posição de um assistente
especial do estado-maior pessoal dele. O senhor tem a sua proteção absoluta. Mais tarde lhe explicarei os privilégios, mas o Senhor
Toranaga também lhe deu um salário de vinte kokus por mês.
Isso equivale a ...
Yabu interrompeu-a, gesticulando expansivamente para Blackthorne, depois para a aldeia, e falou longamente. Mariko traduziu:
- O Senhor Yabu repete que o senhor é bem-vindo aqui. Espera
que o senhor fique satisfeito. Tudo será feito para tornar a sua
estada confortável. Será providenciada uma casa para o senhor.
E professores. O senhor, por favor, aprenderá japonês o mais
rápido possível, diz ele. Esta noite ele lhe fará algumas perguntas
e lhe falará sobre um trabalho especial.
- Por favor, pergunte a ele que trabalho.
- Permita-me aconselhar-lhe só um pouco mais de paciência, Anjin-san. Este não é o momento, sinceramente.
- Está bem.
- Wakarimasu ka, Anjin-san - disse Yabu. Compreendeu?
- Hai, Yabu-san. Domo.
Yabu deu ordens a Igurashi para dispensar o regimento,
de o's v d d ld ãos, que continuavam prostrados na areia.
Deteve-se diante deles, na excelente tarde quente de primavera, com a espada de Toranaga ainda na mão. Suas palavras
atingiram-nos como um açoite. Yabu apontou a espada para Blackthorne, perorou alguns momentos, determinou abruptamente. Um
tremor percorreu os aldeãos. Mura curvou-se e disse "hai" várias
vezes. Voltou-se, fez uma pergunta aos aldeãos e todos os olhares
se fixaram em Blackthorne.
- Wakarimasu ka? - perguntou Mura, e todos responderam: - Hai -, suas vozes misturando-se ao suspirar das ondas
quebrando na praia.
- O que está acontecendo? - perguntou Blackthorne a
Mariko, mas Mura gritou: - Keirei! - e os aldeãos se curvaram
502
profundamente de novo, uma vez para Yabu, uma vez para
Blackthorne. Yabu se afastou a passos largos, sem olhar para trás.
- O que está acontecendo, Mariko-san?
- Ele... o Senhor Yabu dissê-lhes que o senhor é hóspede
de honra aqui. Que o senhor também é um vas ... assistente
muito honrado do Senhor Toranaga. Que está aqui principalmente
para aprender a nossa língua. Que ele dá à aldeia a honra e a
responsabilidade de ensiná-lo. A aldeia é responsável, Anjin-san.
Cada um aqui deve ajudá-lo. Disse que se o senhor não tiver
aprendido satisfatoriamente dentro de seis meses, a aldeia será
queimada, mas antes disso cada homem, mulher e criança serão
crucificados.
CAPITULO 31
O dia estava morrendo agora, as sombras alongadas, o mar
vermelho, e um vento suave soprando.
Blackthorne vinha subindo o caminho da aldeia, em direção
à casa que Mariko lhe indicara e que dissera seria sua. Ela esperara escoltá-lo até lá, mas ele agradecera, recusara, e caminhara
por entre os aldeãos ajoelhados rumo ao promontório, para ficar
sozinho e pensar.
Achara o esforço de pensar grande demais. Nada parecia se
encaixar. Molhara a cabeça com água salgada para tentar aclarar
as idéias, mas não ajudara. Finalmente desistira e retornara à toa
pela praia, passara ao lado do molhe, cruzara a praça e atravessara
a aldeia, até a casa onde devia viver agora e onde, lembrou-se ele,
não havia uma residência antes. Lá em cima, dominando a ladeira
oposta, havia outra moradia, maior, parte de sapé, parte de telhas,
por trás de uma alta paliçada, com muitos guardas junto ao
portão fortificado.
Samurais pavoneavam-se pela aldeia ou paravam em grupos,
conversando. A maior parte já marchara atrás dos respectivos
oficiais, seguindo em grupos disciplinados pelas veredas e por
sobre a colina, rumo ao acampamento. Os samurais que Blackthorne encontrou, saudou-os distraidamente e foi correspondido.
Não viu aldeãos. Blackthorne parou do lado de fora do portão
encaixado na cerca. Havia mais daqueles caracteres peculiares
503

pintados no batente, e a porta era escavada em desenhos habilidosos, planejados para esconder e ao mesmo tempo revelar o
jardim lá atrás.
Antes que pudesse abrir a porta, ela girou para dentro e um
velho atemorizado curvou-se para ele.
- Konbanwa, Anjin-san. - A voz dele tremulava de modo
deplorável.
- Konbanwa. Ouça, meu velho, er... o namae ka?
- Nainae watashi wa, Anjin-san? Ah, watashi Ueki-ya ...
Ueki-ya. - O velho estava quase cantando de alívio.
Blackthorne disse o nome várias vezes para ajudar a lembrar,
e acrescentou "san". O velho sacudiu a cabeça violentamente:
- Iyé, gomen nasai! Iyé "san", Anjin-sama. Ueki-ya! Ueki-ya!
- Está bem, Ueki-ya. - Mas, pensou Blackthorne, por que
não "san", como todos os demais?
Blackthorne dispensou-o com um gesto. O velho afastou-se
coxeando, rápido. - Terei que ser mais cuidadoso. Tenho que
ajudá-los - disse em voz alta.
Uma criada apreensiva apareceu na varanda, atravessando
uma shoji, e curvou-se profundamente.
- Konbanwa, Anjin-san.
- Konbanwa - respondeu ele, reconhecendo-a vagamente
do navio. Também a afastou com um gesto.
Um roçar de seda. Fujiko surgiu de dentro da casa. Mariko
veio com ela.
- Seu passeio foi agradável, Anjin-san?
- Sim, agradável, Mariko-san. - Mal a notou, assim como
a Fujiko, a casa ou o jardim.
- Gostaria de tomar um pouco de chá? Ou saquê, talvez?
Ou talvez um banho? A água está quente. - Mariko riu nervosa,
perturbada pela expressão dos olhos dele. - A casa de banho
não está completamente acabada, mas esperamos que seja adequada.
- Saque, por favor. Sim, saquê primeiro, Mariko-san.
Mariko falou com Fujiko, que desapareceu mais uma vez
dentro da casa. Uma criada trouxe silenciosamente três almofadas
e se afastou. Mariko sentou-se graciosamente sobre uma delas.
- Sente-se, Anjin-san, deve estar cansado.
- Obrigado.
Sentou-se nos degraus da varanda e não tirou as sandálias.
Fujiko trouxe dois frascos de saquê e uma xícara de chá, con504
forme Mariko lhe dissera, e não os minúsculos cálices de porcelana que deviam ser usados.
- É melhor lhe dar muito saquê rapidamente - dissera
Mariko. - O melhor seria deixá-lo logo bêbado, mas o Senhor
Yabu precisa dele esta noite. Um banho e saquê talvez o reconfortem.
Blackthorne bebeu a xícara de vinho aquecido que lhe foi
oferecida sem saboreá-lo. Depois uma segunda. E uma terceira.
As duas haviam-no observado a subir a colina, através da
fenda de shojis ligeiramente entreabertas.
- O que há com ele? - perguntara Fujiko, alarmada.
- Está angustiado com o que o Senhor Yabu disse, o compromisso da aldeia.
- Por que isso deveria incomodá-lo? Ele não está ameaçado. Não foi a vida dele que foi ameaçada.
- Os bárbaros são diferentes de nós, Fujiko-san. Por exemplo, o Anjin-san acredita que os aldeãos são pessoas como outras
pessoas, como samurais, alguns até melhores do que samurais.
Fujiko rira nervosamente. - Que absurdo, neh? Como é que
camponeses podem ser iguais a samurais?
Mariko não respondera. Simplesmente continuara a observar
o Anjin-san. - Coitado.
- Coitada da aldeia! - O curto lábio superior de Fujiko
se contraiu desdenhosamente. - Um estúpido desperdício de camponeses e pescadores! Kasigi Yabu é um imbecil! Como é que um
bárbaro pode aprender a nossa língua em meio ano? Quanto tempo levou o bárbaro Tsukku-san? Mais de vinte anos, neh? E ele
não é o único bárbaro que jamais foi capaz de falar japonês, mesmo passavelmente?
- Não, não o único, embora seja o melhor que eu já conheci. Sim, é difícil para eles. Mas o Anjin-san é um homem
inteligente e o Senhor Toranaga disse que, em meio ano, isolado
dos bárbaros, comendo a nossa comida, vivendo como nós, tomando chá, tomando banho todos os dias, o Anjin-san logo será como
um de nós.
O rosto de Fujiko enrijecera. - Olhe para ele, Marikosan... tão feio. Tão monstruoso e estranho. Curioso pensar que
apesar do muito que detesto os bárbaros, assim que ele atravessar
o portão estou comprometida e ele se torna meu senhor e amo.
- Ele é corajoso, muito corajoso, Fujiko. Salvou a vida do
Senhor Toranaga e é muito valioso para ele.
- Sim, eu sei, e isso deveria fazer com que eu desgostasse
505

menos dele, mas sinto muito, não faz. Ainda assim, tentarei com
todas as minhas forças transformá-lo num de nós. Rezo para que
Buda me ajude.
Mariko quisera perguntar à sobrinha o motivo da súbita
mudança. Por que estava tão preparada para servir o Anjin-san
e obedecer ao Senhor Toranaga tão absolutamente, quando naquela manhã mesma se recusou a obedecer-lhe, jurou matar-se
sem permissão ou matar o bárbaro no momento em que ele
adormecesse? O que foi que o Senhor Toranaga disse para mudála, Fujiko?
Mas Mariko sabia que não devia perguntar, Toranaga não
lhe confidenciara o motivo. Fujiko não lhe contaria. A garota fora
bem educada pela mãe, irmã de Buntaro, que fora educada pelo
pai, Hiro-matsu.
Pergunto a mim mesma se o Senhor Hiro-matsu escapará
do Castelo de Osaka, pensou Mariko, que gostava muito do
velho general, seu sogro. E Kiri-san e a Senhora Sazuko? Onde
estará Buntaro, meu marido? Onde terá sido capturado? Ou será
que teve tempo para morrer?
Mariko observou Fujiko servir a última dose de saquê. Essa
xícara também foi consumida como as outras, sem expressão.
- Dozo. Saque - disse Blackthorne.
Mais saquê foi trazido. E terminado. - Dozo, saquê.
- Mariko-san - disse Fujiko -, o amo não devia beber
mais, neh? Vai ficar bêbado. Por favor, perguntê-lhe se gostaria
de tomar banho agora. Mandarei buscar Suwo.
Mariko perguntou.
- Desculpe, ele disse que tomará banho mais tarde.
Pacientemente Fujiko mandou servir mais saquê e Mariko
acrescentou, dirigindo-se à criada: - Traga um pouco de peixe
grelhado.
O novo frasco foi esvaziado com a mesma determinação
silenciosa. A comida não o tentou, mas ele pegou um pedaço,
ante a graciosa persuasão de Mariko. Não comeu.
Trouxeram mais vinho, e mais dois frascos foram consumidos.
- Por favor, peça desculpas ao Anjin-san - disse Fujiko.
- Sinto muito, mas não há mais saquê na casa dele. Diga-lhe que
peço desculpas por essa falta. Mandei a criada buscar mais na
aldeia.
- Ótimo. Ele já bebeu mais que o suficiente, embora não
pareça ter sido afetado em absoluto. Por que não nos deixa agora,
506
Fujiko? Seria um bom momento para fazer o oferecimento formal
em seu nome.
Fujiko curvou-se para Blackthorne e saiu, contente com o
costume que decretava que os assuntos importantes deviam sempre ser tratados por uma terceira pessoa, em particular. Assim
a dignidade podia sempre ser preservada, por ambas as partes.
Mariko explicou a Blackthorne sobre o vinho.
- Quanto tempo vai levar para trazerem mais?
- Não muito. Talvez o senhor gostasse de tomar um banho
agora. Providenciarei para que o saquê lhe seja enviado assim
que chegar.
- Toranaga disse alguma coisa sobre o meu plano antes
de partir? Sobre a marinha?
- Não. Sinto muito, ele não disse nada sobre isso. - Mariko estivera atenta aos sinais reveladores de embriaguez, mas para
sua surpresa, nenhum aparecera, nem um leve rubor, ou palavras
se enrolando. Com aquela quantidade de vinho, consumida tão
depressa, qualquer japonês estaria bêbado. - O vinho não é do
seu agrado, Anjin-san?
- Não, de fato. É fraco demais. Não me dá nada.
- Procura esquecimento?
- Não... uma solução.
- Qualquer coisa que possa ser feita para ajudá-lo será
feita.
- Preciso de livros, papel e penas.
- Amanhã começarei a reuni-los para o senhor.
- Não, esta noite, Mariko-san. Preciso começar agora.
- O Senhor Toranaga disse que lhe mandaria um livro ...
como foi que o senhor chamou?... livros de gramática e livros
de palavras dos santos padres.
- Quanto tempo isso vai levar?
- Não sei. Mas estou aqui por três dias. Talvez isso possa
servir-lhe de auxílio. E Fujiko-san também está aqui para ajudar.
- Ela sorriu, feliz por ele. - Estou honrada em lhe dizer que
ela foi dada ao senhor como consorte e...
- O quê?
-- O Senhor Toranaga perguntou a ela se seria sua consorte,
ela disse que ficaria honrada e concordou. Ela...
- Mas eu não concordei.
- Por favor? Desculpe, não compreendo.
- Não a quero. Nem como consorte nem à minha volta.
Acho-a feia.
507
- Mas o seu costume desculpa o assassínio. Pensei que a
senhora fosse cristã.
- Eu sou, Anjin-san.
- E os dez mandamentos?
- Não consigo explicar, realmente. Mas sou cristã, samurai
e japonesa, e não são coisas contrárias umas às outras. Para mim
não são. Por favor, seja paciente comigo e conosco. Por favor.
- A senhora mataria seus filhos se Toranaga ordenasse?
- Sim. Tenho apenas um filho, mas sim, creio que o faria.
Certamente seria meu dever fazer isso. Essa é a lei... se o meu
marido concordasse.
- Espero que Deus possa perdoar-lhe. A todos vocês.
- Deus compreende, Anjin-san. Oh, ele compreenderá. Talvez ele lhe abra a mente, de modo que o senhor possa compreender. Sinto muito, não sei explicar muito bem, neh? Peço desculpas
pela minha falha. - Ela o observou em meio ao silêncio, confusa.
- Também não o compreendo, Anjin-san. O senhor me desconcerta. Seus costumes me desconcertam. Talvez se fôssemos ambos
pacientes, poderíamos ambos aprender. A Senhora Fujiko, por
exemplo. Como consorte, cuidará da sua casa e dos seus criados.
E das suas necessidades - qualquer uma das suas necessidades.
O senhor precisa ter alguém que faça isso. Ela providenciará o
andamento da casa, tudo. O senhor não precisa "travesseirar"
com ela, se isso o preocupa... se não a considerar atraente. Não
precisa nem ser polido com ela, embora ela mereça polidez. Ela
o servirá, como o senhor quiser, do modo que quiser.
- Posso tratá-la do modo que quiser?
- Sim.
- Posso "travesseirar" com ela ou não?
- Naturalmente. Ela encontrará alguém que o agrade, para
satisfazer as suas necessidades físicas, se o senhor quiser, ou não
interferirá.
- Posso tratá-la como a uma criada? Uma escrava?
- Sim. Mas ela merece coisa melhor do que isso.
- Posso mandá-la embora? Ordenar-lhe que se vá?
- Se ela o ofender, sim.
- O que aconteceria a ela?
- Normalmente retornaria à casa dos pais em desgraça, os
quais poderiam ou não aceitá-la de volta. Alguém como a Senhora
Fujiko preferiria matar-se a suportar essa vergonha. Mas ela... o
senhor deve saber que os verdadeiros samurais não têm autorização para se matar semda permissão do seu senhor. Alguns o fazem,
510
claro, mas falham no seu dever e não são dignos de ser considerados samurais. Eu não me mataria, fosse qual fosse a vergonha,
não sem a permissão do Senhor Toranaga, ou do meu marido.
O Senhor Toranaga proibiu-a de pôr fim à vida. Se o senhor a
mandar embora, ela se tornará uma pária.
- Por quê? Por que a família não a aceitaria de volta?
Mariko suspirou. - Desculpe, Anjin-san, mas se o senhor
a mandar embora, sua desgraça será tamanha, que ninguém a
aceitará.
- Por estar contaminada? Por ter estado perto de um bárbaro?
- Oh, não, Anjin-san, só porque ela terá falhado no seu
dever para com o senhor - disse Mariko imediatamente. - Ela
é sua consorte agora... o Senhor Toranaga ordenou e ela concordou. O senhor é o amo da casa agora.
- Sou?
- Oh, sim, acredite-me, Anjin-san, o senhor tem privilégios.
E na condição de hatamoto está abençoado. E bem de vida. O
senhor Toranaga concedeu-lhe um salário de vinte kokus por mês.
Por essa quantia, um samurai normalmente teria que se pôr à
disposição do seu senhor, e fornecer-lhe mais dois samurais, armados, alimentados e montados o ano todo, e naturalmente pagar
pela família deles também. Mas o senhor não tem que fazer isso.
Rogo-lhe, considere Fujiko como uma pessoa, Anjin-san. Implorolhe que tenha caridade cristã. Ela é uma boa mulher. Perdoê-lhe
a feiúra. Ela será uma consorte digna.
- Ela não tem lar?
- Sim. Este é o seu lar. - Mariko se conteve. - Implorolhe que a aceite formalmente. Ela pode ajudá-lo enormemente,
ensinar-lhe; se o senhor precisar aprender. Se preferir, pense nela
como em nada - como nesta coluna de madeira, ou a tela shoji,
ou como numa pedra do seu jardim - o que quiser, mas permita-lhe que fique. Se não a quiser como consorte, seja piedoso.
Aceite-a e depois, como cabeça da casa, de acordo com a nossa
lei, mate-a.
- É a única resposta que a senhora tem, não? Matar!
- Não, Anjin-san. Mas a vida e a morte são a mesma coisa.
Quem sabe, talvez o senhor preste à Senhora Fujiko um serviço
muito maior tirando-lhe a vida. É um direito seu, agora, diante
de todas as leis. Um direito seu. Se preferir torná-la uma pária,
isso também é direito seu.
- Portanto estou novamente em uma armadilha - disse
511

Blackthorne. - De um modo ou de outro ela morre. Se eu não
aprender a sua língua, uma aldeia inteira será massacrada. Para
qualquer coisa que vocês desejem que eu faça, um inocente é
sempre morto. Não há como escapar disso.
- Há uma solução muito fácil, Anjin-san. Morra. O senhor
não tem que suportar o insuportável.
- Suicídio é loucura ... e pecado mortal. Pensei que a senhora fosse cristã.
- Eu disse que sou. Mas para o senhor, Anjin-san, há muitos meios de morrer honrosamente sem se suicidar. Zombou do
meu marido por não querer morrer lutando, neh? Não é um costume nosso, mas aparentemente é um costume seu. Então, por que
não faz isso? O senhor tem uma pistola. Mate o Senhor Yabu.
O senhor o considera um monstro, neh? Tente pelo menos matá-lo
o ainda hoje estará no paraíso ou no inferno.
Ele a olhou, detestando os seus modos serenos, vendo-lhe a
amabilidade através do seu ódio. - É sinal de fraqueza morrer
assim, por nenhuma razão. Estupidez é uma palavra melhor.
- O senhor diz que é cristão. Portanto acredita no Jesus
menino - em Deus - e no paraíso. A morte não deveria assustá-lo. E quanto a "nenhuma razão", depende do senhor julgar o
valor ou o não-valor. O senhor pode ter motivos suficientes para
morrer.
- Estou em seu poder. A senhora sabe disso. E eu também.
Mariko inclinou-se e tocou-o, compadecida. - Anjin-san,
esqueça a aldeia. Um milhão de coisas podem acontecer antes que
os seis meses se passem. Um macaréu, um terremoto, ou o senhor
recuperar o seu navio e partir, ou a morte de Yabu, ou a morte
de todos nós, ou quem sabe? Deixe os problemas de Deus a Deus,
o karma ao karma. Hoje o senhor está aqui e nada que faça mudará isso. Hoje está vivo, aqui, honrado, e abençoado pela boa
fortuna. Olhe esse pôr-do-sol, é lindo, neh? Esse pôr-do-sol existe.
O amanhã não existe. Só existe o agora. Por favor, olhe. É tão
lindo e nunca mais vai acontecer de novo, nunca, não este pôrdo-sol, nunca, em toda a infinidade. Perca-se nele, faça-se um
com a natureza e não se preocupe com karma, o seu, o meu, ou
o da aldeia.
Ele se percebeu seduzido pela serenidade dela, e pelas palavras. Olhou para oeste. Grandes manchas de vermelho-púrpura e
preto se espalhavam pelo céu.
Apreciou o sol até que desaparecesse.
- Gostaria que a senhora pudesse ser consorte - disse ele.
512
- Pertenço ao Senhor Buntaro e até que ele morra não
posso pensar nem dizer o que poderia ser pensado ou dito.
Karma, pensou Blackthorne.
Você aceita o karma? O meu? O dela? O deles?
A noite está linda.
Ela também, e pertence a outro.
Sim, ela é linda. E muito sábia. Deixe os problemas de Deus
a Deus e karma ao karma. Você veio até aqui sem ser convidado.
Está aqui. Está em poder deles.
Mas qual é a resposta?
A resposta virá, disse-se ele. Porque existe um Deus no paraíso, um Deus em algum lugar.
Ouviu o ruído de passos. Alguns archotes aproximavam-se colina acima. Vinte samurais, Omi à frente deles.
- Desculpe, Anjin-san, mas Omi-san ordena que o senhor
lhe entregue as pistolas.
- Diga-lhe que vá para o inferno!
- Não posso, Anjin-san. Não me atrevo.
Blackthorne mantinha uma mão frouxamente sobre a coronha
da pistola, de olhos em Omi. Deliberadamente permanecera nos
degraus da varanda. Havia dez samurais no jardim, atrás de Omi,
o os demais perto do palanquim à espera. Logo que Omi entrara
sem ser convidado, Fujiko saíra do interior da casa e agora se
erguia ali na varanda, pálida, atrás de Blackthorne. - O Senhor
Toranaga nunca se opôs e estive armado durante dias, perto dele
o de Yabu-san.
- Sim, Anjin-san - disse Mariko, nervosamente -, mas
por favor compreenda, o que Omi-san diz é verdade. É costume
nosso não se ir à presença de um daimio com armas. Não há nada
que te ... nada com que se preocupar. Yabu-san é seu amigo.
O senhor é hóspede dele aqui.
- Diga a Omi-san que não lhe darei as minhas armas.
- Depois, permanecendo ela em silêncio, Blackthorne perdeu a
calma e balançou a cabeça. - Iyé, Omi-san! Wakarimasu ka? Iyé!
O rosto de Omi se contraiu. Rispidamente, deu uma ordem.
Dois samurais avançaram. Blackthorne sacou as armas. Os samurais pararam. As duas pistolas apontavam diretamente para o rosto
de Omi.
- Iyé! - disse Blackthorne. Depois, a Mariko: - Diga-lhe
que os mande recuar ou eu aperto os gatilhos.
513
Ela fez isso. Ninguém se moveu. Lentamente Blackthorne se
levantou, as pistolas sempre apontadas para o alvo. Omi estava
absolutamente calmo, sem medo, os olhos seguindo os movimentos felinos de Blackthorne.
- Por favor, Anjin-san. Isso é muito perigoso. O senhor tem
que ver o Senhor Yabu. Não pode ir com as pistolas. É um
hatamoto, está protegido e também é um hóspede do Senhor Yabu.
Diga a Omi-san que se ele ou qualquer um dos seus
homens vier até dez passos de mim, estouro-lhe a cabeça.
- Omi-san disse polidamente: "Pela última vez, ordeno-lhe
que entregue as armas. Agora".
- Iyé.
- Por que não deixá-las aqui, Anjin-san? Não há nada que
temer. Ninguém tocará...
- Acha que eu sou algum imbecil?
- Então entregue-as a Fujiko-san!
- O que ela pode fazer? Ele as tirará dela, qualquer um as
tirará, depois estou indefeso.
A voz de Mariko se aguçou. - Por que não ouve, Anjin-san?
Fujiko-san é sua consorte. Se o senhor lhe ordenar, ela protegerá
as armas com a própria vida. É dever dela. Não vou lhe repetir
isto nunca mais, mas Toda-noh-Usagi Fujiko é samurai.
Mariko traduziu isso. Omi ouviu sem expressão, depois respondeu brevemente, olhando para o cano das armas firmemente
apontadas.
- Ele disse: "Eu, Kasigi Omi, lhe pediria que entregasse as
pistolas e lhe pediria que viesse comigo porque Kasigi Yabu-sama
ordena que o senhor se apresente a ele. Mas Kasigi Yabu-sama
ordena-me que lhe ordene que entregue as armas. Sinto muito,
Anjin-san, pela última vez ordeno-lhe que as entregue".
Blackthorne sentia o peito oprimido. Sabia que seria atacado
e estava furioso com a própria estupidez. Mas chega um momento
em que não se agüenta mais, daí se saca uma pistola ou uma faca,
e então corre sangue devido a um orgulho estúpido. Na maioria
das vezes estúpido. Se tenho que morrer, Omi morrerá primeiro,
por Deus!
Sentia-se muito forte, embora um tanto tolo. Então o que
Mariko dissera começou a ressoar-lhe nos ouvidos: "Fujiko é
samurai, é sua consorte!" E o cérebro começou a funcionar. -
Um instante! Mariko-san, por favor diga a Fujiko-san exatamente
isto: "Vou lhe entregar as minhas pistolas. Você deve guardá-las.
Ninguém além de mim deve tocá-las".
514
Mariko fez o que ele lhe pediu e, pelas costas, ele ouviu
Fujiko dizer: - Hai.
- Wakarimasu ka, Fujiko-san? - perguntou ele.
- Wakarimasu, Anjin-san - respondeu ela, numa voz fina
e nervosa.
- Mariko-san, por favor, diga a Omi-san que irei com ele
agora. Sinto muito que tenha havido um mal-entendido. Sim, sinto
muito que tenha havido um mal-entendido.
Blackthorne recuou e voltou-se. Fujiko aceitou as armas, a
testa úmida de suor. Ele encarou Omi e rezou para estar certo.
- Vamos agora?
Omi falou a Fujiko e estendeu a mão. Ela meneou a cabeça.
Ele deu uma ordem curta. Os dois samurais começaram a avançar. Imediatamente ela empurrou uma pistola para dentro do sash,
segurou a outra com as duas mãos, esticou o braço e mirou Omi.
O gatilho recuou ligeiramente e a alavanca da agulha moveu-se.
- Ugoku na! - disse ela. - Dozo!
Os samurais obedeceram. Pararam.
Omi falou rápida e furiosamente, ela ouviu e quando respondeu sua voz soou suave e polida, mas a pistola continuou mirandolhe o rosto, parcialmente engatilhada agora, e concluiu: - Iyé,
gomen nasai, Omi-san! Não, sinto muito, Omi-san.
Blackthorne esperava.
Um samurai moveu-se uma fração. O gatilho recuou perigosamente, quase até a extremidade do arco. O braço permanecia
firme.
- Ugoku na! - ordenou ela.
Ninguém duvidava de que ela puxaria o gatilho. Nem Blackthorne. Omi disse bruscamente alguma coisa a ela e aos seus
homens. Eles recuaram. Ela baixou a pistola, mas conservou-a
preparada.
-- O que ele disse? - perguntou Blackthorne.
- Apenas que relataria o incidente a Yabu-san.
- Ótimo. Diga-lhe que farei o mesmo. - Blackthorne voltou-se para ela. - Domo, Fujiko-san. - Depois, lembrando-se do
modo como Toranaga e Yabu conversavam com mulheres, grunhiu
imperiosamente para Mariko. - Vamos, Mariko-san... ikamasho!
- Começou a se dirigir para o portão.
- Anjin-san! - chamou Fujiko.
- Hai? - Blackthorne parou. Fujiko curvou-se e falou
rapidamente com Mariko.
515

Os olhos de Mariko arregalaram-se, depois ela assentiu e
respondeu, e falou com Omi, que assentiu também, visivelmente
furioso, mas contendo-se.
- O que está acontecendo?
- Por favor, tenha paciência, Anjin-san.
Fujiko chamou e houve uma resposta do interior da casa.
Uma criada surgiu na varanda. Nas mãos trazia duas espadas.
Espadas de samurai.
Fujiko pegou-as reverentemente, ofereceu-as a Blackthorne
com uma curvatura, falando suavemente.
- Sua consorte assinala - disse Mariko - que um hatamoto, naturalmente, é obrigado a usar as duas espadas dos samurais. Mais que isso, é seu dever fazer isso. Ela acredita que não
seria correto que o senhor comparecesse à presença do Senhor
Yabu sem espadas - que isso seria impolido. Pela nossa lei, é um
dever portar as espadas. Ela pergunta se o senhor levaria em conta
a possibilidade de usar estas, embora sejam indignas, até comprar
as suas.
Blackthorne olhou para ela, depois para Fujiko, e novamente
para Mariko. - Isso significa que sou samurai? Que o Senhor
Toranaga me fez samurai?
- Não sei, Anjin-san. Mas nunca houve um hatamoto que
não fosse samurai. Nunca. - Mariko voltou-se e interrogou Omi.
Impaciente, este meneou a cabeça e respondeu. - Omi-san também não sabe. Mas com certeza é privilégio especial de um
hatamoto usar espadas o tempo todo, mesmo na presença do
Senhor Toranaga. É dever dele porque é um guarda-costas absolutamente digno de confiança. Além disso, um hatamoto também
tem o direito de audiência imediata com um senhor.
Blackthorne pegou a espada curta é enfiou-a no cinto, depois
a outra, a comprida, a espada mortífera, exatamente conforme
Omi a estava usando. Armado, sentiu-se melhor. - Arigato
goziemashita, Fujiko-san - disse calmamente.
Ela baixou os olhos e respondeu com suavidade. Mariko
traduziu.
- Fujiko-san diz, com a sua permissão, já que o senhor
deve aprender a nossa língua correta e rapidamente, ela humildemente chama a sua atenção para o fato de que, para um homem,
"domo" é mais que suficiente. "Arigato", com ou sem "goziemashita", é uma polidez desnecessária, uma expressão que apenas
as mulheres usam.
- Hai. Domo. Wakarimasu, Fujiko-san. - Blackthorne
516
olhou para ela diretamente pela primeira vez. Viu-lhe a transpiração na testa e o brilho nas mãos. Os olhos estreitos, o rosto
quadrado e os dentes pontudos. - Por favor, diga à minha consorte que neste caso não considero "arigato goziemashita" uma
polidez desnecessária.


Yabu relanceou os olhos para as espadas novamente. Blackthorne estava sentado de pernas cruzadas sobre uma almofada à
sua frente, no lugar de honra, com Mariko ao lado dele e Igurashi
ao seu.
Encontravam-se na sala principal da fortaleza.
Omi acabou de falar.
Yabu deu de ombros. - Você lidou pessimamente com a
situação, sobrinho. Claro que é dever da consorte proteger o
Anjin-san e a propriedade dele. Claro que ele tem o direito de
usar espadas agora. Sim, você agiu muito mal. Deixei claro que
o Anjin-san é meu hóspede honrado aqui. Peça-lhe desculpas.
Imediatamente Omi se levantou, ajoelhou-se diante de Blackthorne e curvou-se. - Peço desculpas pelo meu erro, Anjin-san.
- Ouviu Mariko dizer que o bárbaro aceitava as desculpas. Curvou-se de novo, calmamente dirigiu-se para o seu lugar e sentouse. Mas por dentro não estava calmo. Sentia-se agora totalmente
consumido por uma idéia: matar Yabu.
Resolvera fazer o impensável: matar seu suserano e cabeça
do seu clã.
Mas não porque fora obrigado a pedir desculpas publicamente ao bárbaro. Nisso Yabu tivera razão. Omi sabia que fora desnecessariamente inepto, pois embora Yabu tivesse estupidamente
lhe ordenado que tomasse as pistolas naquela noite, sabia que
devia ter dado um jeito de deixá-las na casa, para serem roubadas
ou quebradas mais tarde.
E o Anjin-san agira com toda a correção ao dar as pistolas
à consorte, disse ele a si mesmo, assim como ela fora correta ao
fazer o que fizera. E ela com certeza teria puxado o gatilho. Não
era segredo que Usagi Fujiko buscava a morte, nem por que a
buscava. Omi sabia, também, que se não fosse pela decisão que
tomara aquela manhã, de matar Yabu, teria avançado para a
morte e depois seus homens teriam arrancado as pistolas a ela.
Ele teria morrido nobremente, assim como ela, e homens e mulheres relatariam o trágico episódio durante gerações. Canções,
poemas, e até uma peça no, todas muito inspiradas, trágicas,
517
magníficas, sobre eles três: a fiel consorte e o fiel samurai que
morreram pelo dever, por causa do inacreditável bárbaro que viera
do mar oriental.
Não, a decisão de Omi não tinha nada que ver com aquele
pedido de desculpas em público, embora a injustiça se juntasse ao
ódio que agora o obcecava. A razão principal era que naquele dia
Yabu insultara publicamente a mãe e a esposa de Omi diante de
camponeses, mantendo-as à espera durante horas ao sol, como
camponesas, e depois as dispensara sem agradecer-lhes, como camponesas.
- Não tem importância, meu filho - dissera a mãe. - É
privilégio dele.
-- Ele é o nosso suserano - dissera Midori, a esposa, as
lágrimas de vergonha escorrendo-lhe pelas faces. - Por favor,
desculpe-o.
- E ele não convidou nenhuma de vocês duas para saudá-lo,
e aos oficiais, na fortaleza - continuara Omi. - Depois de toda
a comida que vocês prepararam! Só a comida e o saque custaram
um koku!
- É nosso dever, meu filho. É nosso dever fazer qualquer
coisa que o Senhor Yabu deseje.
- E a ordem relativa ao Pai?
- Ainda não é uma ordem. É um rumor.
- A mensagem que o Pai enviou diz que ele ouviu dizer que
Yabu vai mandá-lo raspar a cabeça e tornar-se sacerdote, ou rasgar o ventre. A esposa de Yabu está se vangloriando disso!
- Isso foi sussurrado a seu pai por um espião. Não se pode
confiar sempre nos espiões. Sinto muito, meu filho, mas seu pai
nem sempre é sábio.
- O que acontece à senhora, Mãe, se isso não for um
rumor?
-- Qualquer coisa que aconteça é karma. Você deve aceitar
o karma.
- Não, estes insultos são insuportáveis.
- Por favor, meu filho, aceite-os.
- Dei a Yabu a chave para o navio, a chave para o Anjinsan e os novos bárbaros, e o modo de escapar à armadilha de
Toranaga. Meu auxílio trouxê-lhe imenso prestígio. Com o presente
simbólico da espada, ele agora é o primeiro depois de Toranaga nos
exércitos do leste. E o que recebemos em troca? Insultos imundos.
- Aceite o seu karma.
- Você deve, marido, imploro-lhe, ouvir a senhora sua mãe.
518
- Não posso viver com essa vergonha. Tomarei vingança e
depois me matarei, e essas humilhações serão apagadas.
- Pela última vez, meu filho, aceite o seu karma, rogo-lhe.
- Meu karma é destruir Yabu.
A velha dama suspirara. - Muito bem. Você é um homem.
Tem o direito de decidir. O que tem que ser, será. Mas a morte
de Yabu em si mesma não é nada. Devemos planejar. O filho dele
também deve ser eliminado, assim como Igurashi. Particularmente
Igurashi. Depois o seu pai comandará o clã, como direito dele.
- Como fazemos isso, Mãe?
- Vamos planejar, você e eu. E seja paciente, neh? Depois
devemos consultar o seu pai. Midori, até você pode dar conselhos,
mas tente não ser inepta, neh?
- E o Senhor Toranaga? Deu a espada a Yabu.
- Acho que o Senhor Toranaga só quer Izu forte e um
Estado vassalo. Não como aliado. Ele não deseja aliados mais do
que o táicurn desejava. Yabu pensa que é aliado. Eu penso que
Toranaga detesta aliados. Nosso ela prosperará se formos vassalos
de Toranaga. Ou vassalos de Ishido! A quem escolheremos, hein?
E como matá-los?
Orni lembrava-se da onda de alegria que o invadira no momento em que se tomara a decisão final.
Sentiu-a de novo agora. Mas seu rosto não demonstrou absolutamente nada enquanto chá e vinho eram servidos por criadas
cuidadosamente selecionadas, trazidas de Mishima para Yabu. Ele
observou Yabu, o Anjin-san, Mariko e Igurashi. Estavam todos à
espera de que Yabu começasse.
A sala era ampla e arejada, grande o suficiente para que
trinta oficiais jantassem, tomassem vinho e conversassem. Havia
muitas outras salas e cozinhas para os guarda-costas e criados, e
um jardim ladeando toda a construção, embora fosse tudo provisório. Fora construído do melhor modo possível, considerando
o tempo de que dispunham, e era tudo facilmente defendível. O
fato de o custo ser coberto pelo feudo aumentado de Omi não o
incomodava em absoluto. Fora dever dele.
Olhou para a shoji aberta. Muitas sentinelas no adro. Um
estábulo. A fortaleza era protegida por um fosso. A paliçada era
construída de bambus gigantes, amarrados compactamente. Grandes pilares centrais suportavam o telhado de telhas. As paredes
eram leves telas shojis corrediças, algumas vazadas como janelas,
a maioria coberta de papel oleado, conforme o hábito. O soalho,
519
de pranchas de madeira, estava fixado em estacaria erguida sobre
terra batida, coberto com tatamis.
Por ordem de Yabu, Omi investigara quatro aldeias à procura de material para construir aquela e a outra casa, e Igurashi
trouxera tatamis de qualidade, f utons e coisas impossíveis de obter
na aldeia.
Omi estava orgulhoso com o seu trabalho e com o acampamento para três mil samurais que fora aprontado no platô sobre
a colina que guardava as estradas que levavam à aldeia e à praia.
Agora a aldeia estava fechada e segura por terra. Por mar haveria sempre alarma em profusão para que um suserano pudesse
escapar.
Mas não tenho suserano. A quem servirei agora? perguntava-se Omi. A Ikawa Jikkyu? Ou a Toranaga diretamente? Toranaga me daria o que quero em troca? Ou a Ishido? Ishido é tão
difícil de atingir, neh? Mas tenho muito para contar a ele agora ...
Naquela tarde Yabu convocara Igurashi, Omi e os quatro
capitães, e pusera em andamento seu plano clandestino de treinamento para os quinhentos samurais atiradores. Igurashi devia ser
o comandante. Omi lideraria uma das centenas. Combinaram como
introduzir os homens de Toranaga nas unidades quando eles chegassem, e como esses forasteiros deveriam ser neutralizados se se
comprovassem traiçoeiros.
Omi sugerira que outro quadro altamente secreto de mais três
unidades, de cem samurais cada uma, fosse treinado no outro lado
da península, como substitutos, como uma reserva, e como uma
precaução contra uma manobra traiçoeira de Toranaga.
- Quem comandará os homens de Toranaga? Quem ele enviará como segundo em comando? - perguntara Igurashi.
- Não faz diferença - respondera Yabu. - Designarei os
cinco oficiais assistentes dele, a quem será dada a responsabilidade
de lhe rasgar a garganta, caso seja necessário. O código para matálo e a todos os forasteiros será "Ameixeira". Amanhã, Igurashisan, você escolherá os homens. Aprovarei pessoalmente cada um
deles e nenhum deve saber, ainda, toda a minha estratégia para
o Regimento de Mosquetes.
Agora, enquanto olhava Yabu, Omi saboreava o recém-descoberto êxtase da vingança. Matar Yabu seria fácil, mas sua morte
devia ser coordenada. Só então seu pai, ou seu irmão mais velho,
seria capaz de assumir o controle do clã, e de Izu.
Yabu chegou ao ponto. - Mariko-san, por favor, diga ao
Anjin-san que quero que ele, amanhã, começe a ensinar os meus
520
homens a atirar como bárbaros, e quero aprender tudo que há
para saber sobre o modo como os bárbaros guerreiam.
- Mas, desculpe, as armas não chegarão antes de seis dias,
Yabu-san - lembrou-lhe Mariko.
- Tenho quantidade suficiente entre meus homens para começar - replicou Yabu. - Quero que comece amanhã.
Mariko falou a Blackthorne.
- O que ele quer saber sobre a guerra? - perguntou este.
- Disse que tudo.
- O quê, em particular?
Mariko perguntou a Yabu.
- Yabu-san perguntou se o senhor já tomou parte em combates terrestres.
- Sim. Na Neerlândia. Um na França.
- Yabu-san disse que isso é excelente. Ele quer conhecer a
estratégia européia. Quer saber como as batalhas são travadas nas
suas terras. Em detalhes.
Blackthorne pensou um instante. Depois disse: - Diga a
Yabu-san que posso treinar qualquer quantidade de homens para
ele e sei exatamente o que ele quer saber. - Ele aprendera muito
com Frei Domingo sobre o modo como os japoneses guerreavam.
O frade era um perito e tinha um interesse vital por eles. - Afinal, señor - dissera o velho -, esse conhecimento é essencial,
não é, saber como os pagãos guerreiam? Todo padre tem que
proteger o seu rebanho. E os nossos gloriosos conquistadores não
são a abençoada ponta de lança da Madre Igreja? E não estive
com eles na frente de combate no Novo Mundo e nas Filipinas,
e não os estudo há mais de vinte anos? Conheço a guerra, señor,
conheço a guerra. Foi o meu dever, a vontade de Deus, conhecer
a guerra. Talvez Deus o tenha enviado a mim para que eu o
ensine, no caso de eu morrer. Ouça, o meu rebanho aqui nesta
cela foram os meus professores sobre a arte bélica japonesa, señor.
Portanto agora sei como os exércitos deles lutam e como vencelos. Como poderiam vencer-nos. Lembre-se, señor, de que lhe
revelo um segredo pela sua alma: nunca junte a ferocidade japonesa às armas modernas e aos métodos modernos. Ou, em terra,
eles nos destruirão.
Blackthorne encomendou-se a Deus. E começou. - Diga ao
Senhor Yabu que posso auxiliá-lo muitíssimo. E ao Senhor Toranaga. Posso tornar os seus exércitos imbatíveis.
- O Senhor Yabu diz que se a sua informação se comprovar útil, Anjin-san, ele aumentará o salário que o Senhor Tora521

naga lhe concedeu de duzentos e quarenta kokus para quinhentos
kokus após um mês.
- Agradeça-lhe. Mas diga que, se faço tudo isso por ele,
solicito um favor em troca: quero que ele revogue a sentença que
pesa sobre a aldeia, e quero meu navio e minha tripulação de volta
em cinco meses.
- Anjin-san - disse Mariko -, não pode negociar com
ele, como um mercador.
- Por favor, peça-lhe. Como um humilde favor. De um
hóspede de honra e agradecido futuro vassalo.
Yabu franziu o cenho e respondeu longamente.
- Yabu-san diz que a aldeia não tem importância. Os aldeãos precisam de um fogo sob o traseiro para que façam qualquer coisa. O senhor não deve se preocupar com eles. Quanto ao
navio, trata-se de um assunto do Senhor Toranaga. Ele tem certeza de que o senhor o recuperará muito em breve. Pediu-me que
fizesse a sua solicitação ao Senhor Toranaga assim que eu chegar
a Yedo. Farei isso, Anjin-san.
- Por favor, peça desculpas ao Senhor Yabu, mas preciso
pedir a ele que revogue a sentença. Esta noite.
- Ele já disse que não, Anjin-san. Não seria bem-educado.
- Sim, compreendo. Mas por favor, peça-lhe de novo. É
muito importante para mim... uma súplica.
- Ele diz que o senhor deve ter paciência. Não se preocupe
com aldeãos.
Blackthorne assentiu. Depois decidiu-se. - Obrigado. Compreendo. Sim. Por favor agradeça ao Senhor Yabu, mas diga-lhe
que não posso viver com essa vergonha.
Mariko empalideceu. - O quê?
- Não posso viver com a vergonha de ter a aldeia na minha
consciência. Estou desonrado. Não posso suportar isso. É contra
a minha crença cristã. Terei que cometer suicídio imediatamente.
- Suicídio?
- Sim. Foi isso o que resolvi fazer.
Yabu interrompeu. - Nan ia, Mariko-san?
Hesitante ela traduziu o que Blackthorne dissera. Yabu interrogou-a e ela respondeu. Depois Yabu disse: - Não fosse pela
sua reação, isto seria uma piada, Mariko-san. Por que está tão
preocupada? Por que acha que ele fala a sério?
- Não sei, senhor. Ele parece... Não sei. . . - A voz dela
foi sumindo aos poucos.
- Omi-san?
522
- O suicídio é contra todas as crenças cristãs, senhor. Eles
nunca se suicidam como nós. Como um samurai faria.
- Mariko-san, você é cristã. Isso é verdade?
- Sim, senhor. Suicídio é pecado mortal, contra a palavra
de Deus.
- Igurashi-san? O que pensa?
- É um blefe. Ele não é cristão. Lembra-se do primeiro
dia? Lembra-se do que ele fez ao padre? E o que permitiu que
Omi-san lhe fizesse para salvar o rapaz?
Yabu sorriu, recordando aquele dia e a noite que o seguira.
- Sim. Concordo. Ele não é cristão, Mariko-san.
- Desculpe, mas não entendo, senhor. O que houve com
o padre?
Yabu contou-lhe o que acontecera no primeiro dia, entre
Blackthorne e o padre.
- Ele profanou uma cruz? - disse ela, visivelmente chocada.
- E atirou os pedaços ao pó - acrescentou Igurashi. - É
um blefe, senhor. Se essa história com a aldeia o desonra, como
é que pode ficar aqui quando Omi o desonrou tanto, urinando-lhe
em cima?
- O quê? Desculpe, senhor - disse Mariko -, mas não
compreendo de novo.
Yabu disse a Omi: - Explique a ela.
Omi obedeceu. Ela ficou enojada com o que ouviu, mas não
demonstrou.
-- Depois, o Anjin-san ficou completamente amedrontado,
Mariko-san - concluiu Omi. - Sem armas ele ficará sempre
amedrontado.
Yabu tomou um gole de saque. - Diga isto a ele, Marikosan: suicídio não é um costume bárbaro. É contra o Deus cristão
dele. Portanto como é que ele pode se suicidar?
Mariko traduziu. Yabu observou atentamente quando Blackthorne respondeu.
- O Anjin-san pede desculpas com grande humildade, mas
diz que, seja costume ou não, Deus ou não, essa vergonha da
aldeia é grande demais para suportar. Diz que... que está no
Japão, é hatamoto e tem o direito de viver de acordo com as
nossas leis. - As mãos dela tremiam. - Foi isso o que ele disse,
Yabu-san. O direito de viver conforme os nossos costumes... a
nossa lei.
- Bárbaros não têm direitos.
523

- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela. - Isso
lhe dá o direito, neh?
Uma brisa tocou as shojis, chocalhando-as.
- Como poderia ele cometer suicídio? Hein? Perguntê-lhe.
Blackthorne sacou a espada afiada, a ponta aguda como agulha, e pousou-a suavemente sobre o tatami, a ponta voltada
para ele.
- É um blefe! - disse Igurashi. - Quem já ouviu falar
de um bárbaro que agisse como pessoa civilizada?
Yabu franziu o cenho, o coração diminuindo a velocidade.
- Ele é um bravo homem, Igurashi-san. Não há dúvida sobre
isso. E estranho. Mas isto? - Yabu queria assistir ao ato, testemunhar a fibra do bárbaro, ver como ele se encaminharia para
a morte, experimentar com ele o êxtase da ida. Com um esforço,
deteve a maré ascendente do seu próprio prazer. - O que aconselha, Omi-san? - perguntou guturalmente.
- O senhor disse à aldeia: "Se o Anjin-san não aprender
satisfatoriamente". Aconselho-o a fazer uma leve concessão. Digalhe que tudo o que tiver aprendido dentro de cinco meses será
"satisfatório", mas em troca ele deve jurar pelo seu Deus não revelar isso à aldeia.
- Mas ele não é cristão. Como esse juramento o comprometerá?
- Acredito que ele seja um tipo de cristão, senhor. É contra
os Hábitos Negros e é isso o que importa. Acredito que um juramento pelo seu próprio Deus será um compromisso. E também
deve jurar, em nome desse Deus, que se empenhará em aprender
e se colocará totalmente ao seu serviço. Como é inteligente, aprenderá muitíssimo em cinco meses. Assim a sua honra ficará poupada e a dele - exista ou não - também. O senhor não perde
nada, ganha tudo. É muito importante que o senhor lhe ganhe a
dedicação por livre vontade dele.
- Acredita que ele se matará?
- Sim.
- Mariko-san?
- Não sei, Yabu-san. Desculpe, não posso aconselhá-lo.
Algumas horas atrás eu teria dito que não, ele não se suicidará.
Agora não sei. Ele... desde que Omi-san foi buscá-lo, ele ficou... diferente.
- Igurashi-san?
- Se o senhor ceder agora e isso for um blefe, ele usará o
mesmo truque o tempo todo. Ele é astucioso como um kami ra524
posa, todos vimos quão astucioso, neh? O senhor terá que dizer
não um dia. Aconselho-o a dizer agora. É um blefe.
Omi inclinou-se para a frente e meneou a cabeça. - Senhor,
por favor, desculpe-me, mas devo repetir que se disser "não"
arrisca-se a uma grande perda. Se for um blefe - e pode muito
bem ser -, então, como homem orgulhoso que é, ele ficará cheio
de ódio com a humilhação posterior e não o ajudará até o limite
de suas forças, coisa de que o senhor necessita. Ele pediu uma
coisa na qualidade de hatamoto, o que tem o direito de fazer, diz
que quer viver de acordo com os nossos hábitos, de livre vontade.
Isso não é um enorme passo à frente, senhor? É maravilhoso para
o senhor, e para ele. Aconselho cautela. Use-o para proveito seu.
- É o que pretendo - disse Yabu, com a voz abafada.
- Sim, ele é valioso - disse Igurashi -, e sim, quero o
conhecimento dele. Mas ele tem que ser controlado. Você disse
isso muitas vezes, Omi-san. Ele é bárbaro. É tudo o que é. Oh,
sei que é hatamoto agora, e que pode usar as duas espadas a
partir de hoje. Mas isso não o torna samurai. Ele não é samurai
e nunca será.
Mariko sabia que, de todos eles, era ela quem devia ser capaz
de ler com mais clareza o Anjin-san. Mas não conseguia. Num
momento o compreendia, no momento seguinte ele se tornava
incompreensível de novo. Num momento gostava dele, no momento seguinte odiava-o. Por quê?
Os olhos de Blackthorne fitavam o vazio. Mas agora havia
gotas de suor na sua testa. Será que isso é medo? pensou Yabu.
Medo de que eu pague para ver o blefe? Estará blefando?
- Mariko-san?
- Sim, senhor?
- Diga-lhe... - Repentinamente a boca de Yabu ficou
seca, o peito doía. - Diga ao Anjin-san que a sentença permanece.
- Senhor, por favor, desculpe-me, mas recomendo-lhe aceitar o conselho de Omi-san.
Yabu não olhou para ela, apenas para Blackthorne. A veia
na sua testa latejava. - O Anjin-san diz que está decidido. Que
seja. Vejamos se ele é bárbaro, ou hatamoto.
A voz de Mariko soou quase imperceptível. - Anjin-san,
Yabu-san diz que a sentença permanece. Sinto muito.
Blackthorne ouviu as palavras, mas elas não o perturbaram.
Sentia-se mais forte e mais em paz do que jamais se sentira, com
uma maior consciência da vida do que jamais tivera.
525

- O Senhor Toranaga o fez hatamoto - disse ela..- Isso
lhe dá o direito, neh?
Uma brisa tocou as shojis, chocalhando-as.
- Como poderia ele cometer suicídio? Hein? Perguntê-lhe.
Blackthorne sacou a espada afiada, a ponta aguda como agulha, e pousou-a suavemente sobre o tatami, a ponta voltada
para ele.
- É um blefe! - disse Igurashi. - Quem já ouviu falar
de um bárbaro que agisse como pessoa civilizada?
Yabu franziu o cenho, o coração diminuindo a velocidade.
- Ele é um bravo homem, Igurashi-san. Não há dúvida sobre
isso. E estranho. Mas isto? - Yabu queria assistir ao ato, testemunhar a fibra do bárbaro, ver como ele se encaminharia para
a morte, experimentar com ele o êxtase da ida. Com um esforço,
deteve a maré ascendente do seu próprio prazer. - O que aconselha, Omi-san? - perguntou guturalmente.
- O senhor disse à aldeia: "Se o Anjin-san não aprender
satisfatoriamente". Aconselho-o a fazer uma leve concessão. Digalhe que tudo o que tiver aprendido dentro de cinco meses será
"satisfatório", mas em troca ele deve jurar pelo seu Deus não revelar isso à aldeia.
- Mas ele não é cristão. Como esse juramento o comprometerá?
- Acredito que ele seja um tipo de cristão, senhor. É contra
os Hábitos Negros e é isso o que importa. Acredito que um juramento pelo seu próprio Deus será um compromisso. E também
deve jurar, em nome desse Deus, que se empenhará em aprender
e se colocará totalmente ao seu serviço. Como é inteligente, aprenderá muitíssimo em cinco meses. Assim a sua honra ficará poupada e a dele - exista ou não - também. O senhor não perde
nada, ganha tudo. É muito importante que o senhor lhe ganhe a
dedicação por livre vontade dele.
- Acredita que ele se matará?
- Sim.
- Mariko-san?
- Não sei, Yabu-san. Desculpe, não posso aconselhá-lo.
Algumas horas atrás eu teria dito que não, ele não se suicidará.
Agora não sei. Ele... desde que Omi-san foi buscá-lo, ele ficou... diferente.
- Igurashi-san?
- Se o senhor ceder agora e isso for um blefe, ele usará o
mesmo truque o tempo todo. Ele é astucioso como um kami ra524
posa, todos vimos quão astucioso, neh? O senhor terá que dizer
não um dia. Aconselho-o a dizer agora. É um blefe.
Omi inclinou-se para a frente e meneou a cabeça. - Senhor,
por favor, desculpe-me, mas devo repetir que se disser "não"
arrisca-se a uma grande perda. Se for um blefe - e pode muito
bem ser -, então, como homem orgulhoso que é, ele ficará cheio
de ódio com a humilhação posterior e não o ajudará até o limite
de suas forças, coisa de que o senhor necessita. Ele pediu uma
coisa na qualidade de hatamoto, o que tem o direito de fazer, diz
que quer viver de acordo com os nossos hábitos, de livre vontade.
Isso não é um enorme passo à frente, senhor? É maravilhoso para
o senhor, e para ele. Aconselho cautela. Use-o para proveito seu.
- É o que pretendo - disse Yabu, com a voz abafada.
- Sim, ele é valioso - disse Igurashi -, e sim, quero o
conhecimento dele. Mas ele tem que ser controlado. Você disse
isso muitas vezes, Omi-san. Ele é bárbaro. É tudo o que é. Oh,
sei que é hatamoto agora, e que pode usar as duas espadas a
partir de hoje. Mas isso não o torna samurai. Ele não é samurai
e nunca será.
Mariko sabia que, de todos eles, era ela quem devia ser capaz
de ler com mais clareza o Anjin-san. Mas não conseguia. Num
momento o compreendia, no momento seguinte ele se tornava
incompreensível de novo. Num momento gostava dele, no momento seguinte odiava-o. Por quê?
Os olhos de Blackthorne fitavam o vazio. Mas agora havia
gotas de suor na sua testa. Será que isso é medo? pensou Yabu.
Medo de que eu pague para ver o blefe? Estará blefando?
- Mariko-san?
- Sim, senhor?
- Diga-lhe... - Repentinamente a boca de Yabu ficou
seca, o peito doía. - Diga ao Anjin-san que a sentença permanece.
- Senhor, por favor, desculpe-me, mas recomendo-lhe aceitar o conselho de Omi-san.
Yabu não olhou para ela, apenas para Blackthorne. A veia
na sua testa latejava. - O Anjin-san diz que está decidido. Que
seja. Vejamos se ele é bárbaro, ou hatamoto.
A voz de Mariko soou quase imperceptível. - Anjin-san,
Yabu-san diz que a sentença permanece. Sinto muito.
Blackthorne ouviu as palavras, mas elas não o perturbaram.
Sentia-se mais forte e mais em paz do que jamais se sentira, com
uma maior consciência da vida do que jamais tivera.
525
Enquanto esperara, não os ouvira nem os olhara. O compr
misso fora feito. O resto ele deixara a Deus. Estivera fechado n
própria cabeça, ouvindo as mesmas palavras vezes sem conta, a
mesmas que lhe haviam dado a pista para a vida ali, as palavra$
que com certeza tinham sido enviadas por Deus, por intermédio
de Mariko: "Há uma solução fácil. Morra. Para sobreviver aqui
o senhor deve viver de acordo com os nossos costumes".
- . . . a sentença permanece.
Então, agora, devo morrer.
Eu devia estar com medo. Mas não estou.
Por quê?
Não sei. Só sei que uma vez tendo realmente decidido que
o único modo de viver aqui como homem é fazendo isso de acordo com os costumes deles, arriscando-me a morrer, morrendo -
talvez morrendo -, repentinamente o medo da morte se foi. "A
vida e a morte são a mesma coisa... Deixe o karma ao karma."
Não estou com medo de morrer.
Além da shoji, uma chuva suave começara a cair. Ele baixou
os olhos para a faca.
Tive uma boa vida, pensou ele.
Seus olhos voltaram-se para Yabu. - Wakarimasu - disse
claramente, e embora soubesse que seus lábios tinham formado a
palavra, foi como se outra pessoa tivesse falado.
Ninguém se moveu.
Ele viu sua mão direita pegar a faca. Depois a mão esquerda
também agarrou o cabo, a lâmina pronta e apontando para o
coração. Agora havia apenas o som da sua vida, crescendo e crescendo, elevando-se cada vez mais forte até que ele não conseguia
mais ouvir. Sua alma ansiava pelo silêncio eterno.
O grito desencadeou-lhe os reflexos. Suas mãos impeliram a
faca inexoravelmente rumo ao alvo.
Omi estivera pronto para detê-lo, mas não estava preparado
para a rapidez e a ferocidade do ímpeto de Blackthorne, e quando
a mão esquerda de Omi agarrou a lâmina, e a direita o cabo, a
dor o aferroou e o sangue esguichou da mão esquerda. Lutou com
todas as forças. Estava perdendo. Igurashi veio ajudar. Juntos
detiveram o golpe. A faca foi tomada. Um delgado gotejar de
sangue escorria da pele sobre o coração de Blackthorne, onde a
ponta da faca entrara.
Mariko e Yabu não tinham se movido.
- Diga-lhe, diga-lhe que qualquer coisa que aprenda será
suficiente - disse Yabu. - Ordenê-lhe, Mariko-san, não, peça526
Blackthorne voltou da morte lentamente. Fitou-os e à faca
de uma imensa distância, sem compreender. Depois a torrente de
vida voltou aos borbotões, mas ele não conseguiu apreender, acreditando-se morto e não vivo.
- Anjin-san? Anjin-san?
Viu os lábios dela movendo-se e ouviu-lhe as palavras, mas
todos os seus sentidos estavam concentrados na chuva e na brisa.
- Sim? - Sua própria voz estava ainda muito distante, mas
ele sentia o cheiro da chuva e ouvia os pingos e sentia o gosto de
sal no ar.
Estou vivo, disse-se ele maravilhado. Estou vivo e isso é chuva
de verdade lá fora, o vento é de verdade e vem do norte. Há um
braseiro real com brasas reais, e se eu pegar o cálice, encontrarei
líquido real nele e o líquido terá sabor. Não estou morto. Estou
vivo!
Os outros permaneciam sentados em silêncio, esperando pacientemente, amáveis com ele para honrar-lhe a bravura. Nenhum
homem no Japão tinha jamais visto o que eles viram. Cada um
se perguntava em silêncio: o que o Anjin-san vai fazer agora?
Será capaz de se erguer por si mesmo e caminhar, ou seu próprio
espírito o deixará? Como agiria eu, se fosse ele? Silenciosamente
uma criada trouxe uma bandagem e enfaixou a mão de Omi onde
a lâmina cortara profundamente, estancando o fluxo de sangue.
Estava tudo muito silencioso. De vez em quando Mariko dizia o
seu nome baixinho enquanto eles sorviam chá ou vinho, mas muito
frugalmente, saboreando a espera, o que tinham presenciado e a
lembrança.
Para Blackthorne aquela não-vida parecia durar para sempre.
Então seus olhos viram. Seus ouvidos ouviram.
- Anjin-san?
- Hai? - respondeu ele, através do maior cansaço que
jamais conhecera.
Mariko repetiu o que Omi dissera, como se viesse de Yabu.
Teve que dizê-lo várias vezes, antes de ter certeza de que ele compreendera claramente.
Blackthorne reuniu o remanescente de suas forças, sentindo
a vitória doce. - Minha palavra é suficiente, assim como a dele
o é. Ainda assim, jurarei por Deus, como ele quer. Sim. Como
lhe, peça ao Anjin-san que jure, conforme disse Omi. Tudo como
Omi-san disse.
527

Yabu-san jurará pelo deus dele, para cumprir a parte dele no
acordo.
- O Senhor Yabu diz que sim, que jura pelo Senhor Buda.
Então Blackthorne jurou, conforme Yabu desejava que ele
jurasse. Aceitou um pouco de chá. Nunca tivera um gosto tão
bom. A xícara pareceu-lhe muito pesada e ele não conseguiu
segurá-la muito tempo.
- A chuva é agradável, não é? - disse ele, observando os
pingos de chuva que surgiam e sumiam, atônito com a inusitada
limpidez da sua visão.
- Sim - disse ela brandamente, sabendo que os sentidos
dele se encontravam num plano nunca alcançado por ninguém que
não tivesse livremente ido ao encontro da morte e, por obra de
um karma desconhecido, miraculosamente regressado à vida. -
Por que não descansar agora, Anjin-san? O Senhor Yabu lhe agradece e diz que conversará mais com o senhor amanhã. Deve descansar agora.
- Sim. Obrigado. Isso seria ótimo.
- Acha que pode se levantar?
- Sim. Acho que sim.
- Yabu-san pergunta se o senhor gostaria de um palanquim.
Blackthorne pensou sobre isso. Finalmente decidiu que um
samurai caminharia - tentaria caminhar.
- Não, obrigado - disse ele, apesar do muito que teria
gostado de se reclinar, de ser carregado, de fechar os olhos e
dormir imediatamente. Ao mesmo tempo sabia que teria medo de
dormir ainda, caso aquele fosse o sonho de pós-morte e a faca
não estivesse lá, sobre o futon, mas ainda enterrada no seu verdadeiro eu, e aquilo fosse o inferno, ou o começo do inferno.
Lentamente pegou a faca e estudou-a, comprazendo-se com
a percepção real. Depois colocou-a na bainha, tudo levando muito
tempo.
- Desculpe por ser tão lento - murmurou ele.
- Não precisa se desculpar, Anjin-san. Esta noite o senhor
renasceu. Esta é outra vida, uma nova vida - disse Mariko orgulhosamente, sentindo muita honra por ele. - O regresso é concedido a poucos. Não se desculpe. Sabernos que requer grande
coragem. Muitos homens não têm força suficiente, depois, sequer
para se levantar. Posso ajudá-lo?
- Não. Não, obrigado.
- Não é desonra ser ajudado. Eu ficaria honrada em ser
autorizada a ajudá-lo.
- Obrigado. Mas eu ... eu quero tentar. Primeiro.
Mas ele não conseguiu se levantar imediatamente. Teve que
usar as mãos para se pôr de joelhos e fazer uma pausa para reunir mais força. Tomou impulso, pôs-se de pé e quase caiu. Cambaleou, mas não caiu.
Yabu curvou-se. E Mariko, Omi e Igurashi.
Blackthorne caminhou como um bêbado os primeiros dez
passos. Agarrou-se a um pilar e apoiou-se um instante. Depois
recomeçou. Vacilava, mas estava andando, sozinho. Como um
homem. Mantinha uma mão sobre a espada comprida à cintura
e a cabeça erguida.


Yabu respirou e bebeu avidamente do saquê. Quando conseguiu falar, disse a Mariko: - Por favor, siga-o. Veja que ele
chegue em casa em segurança.
- Sim, senhor.
Quando ela saiu, Yabu voltou-se para Igurashi: - Seu imbecil, monte de esterco!
Imediatamente Igurashi baixou a cabeça até tocar a esteira,
em penitência.
- Blefe, você disse, neh? Sua estupidez quase me custou
um tesouro inestimável.
- Sim, senhor, tem razão. Rogo-lhe que me permita pôr fim
à vida imediatamente.
- Isso seria bom demais para você! Vá viver nos estábulos
até que eu mande chamá-lo! Durma com os estúpidos cavalos.
Você é um imbecil com cabeça de cavalo!
- Sim, senhor. Peço desculpas, senhor.
- Saia! Omi-san comandará os atiradores agora. Saia!
As velas tremulavam e crepitavam. Uma das criadas derramou uma minúscula gota de saquê sobre a pequena mesa laqueada
diante de Yabu e ele a cobriu de imprecações. Os outros pediram
desculpas imediatamente. Ele se permitiu ser aplacado, e aceitou
mais vinho.
- Blefe? Blefe, ele disse. Imbecil! Por que tenho imbecis à
minha volta?
Omi não disse nada, rebentando de riso por dentro.
- Mas você não é imbecil, Omi-san. Seu conselho é valioso.
A partir de hoje seu feudo fica dobrado. Seis mil kokus. Para o
próximo ano. Tome trinta ris em torno de Anjiro como feudo seu.
Omi curvou-se até o f uton. Yabu merece morrer, pensou com
528
529

desprezo, é tão fácil de manipular. - Não mereço nada, senhor.
Só estava cumprindo o meu dever.
- Sim. Mas um suserano recompensa a lealdade e o dever.
- Yabu estava usando a espada Yoshitomo aquela noite. Davalhe grande prazer tocá-la. - Suzu - chamou ele uma das criadas -, mande Zukimoto aqui!
- Dentro de quanto tempo a guerra começará? - perguntou Omi.
- Começará este ano. Você talvez tenha seis meses, talvez
não. Por quê?
- Talvez a Senhora Mariko devesse ficar mais que três dias.
A fim de proteger o senhor.
- Hein? Por quê?
-- Ela é a boca do Anjin-san. Em meio mês, com ela aqui,
ele pode treinar vinte homens, os quais podem treinar uma centena, que pode treinar o resto. Depois, se ele viver ou morrer não
terá importância.
- Por que ele morreria?
- O senhor vai duvidar do Anjin-san novamente, no próximo
desafio ou no seguinte. O resultado pode ser diferente da próxima
vez, quem é que sabe? O senhor pode desejar que ele morra.
- Ambos sabiam, assim como Mariko e Igurashi, que para Yabu
o fato de jurar por qualquer deus não tinha significado algum e,
naturalmente, que ele não tinha intenção alguma de manter qualquer promessa. - O senhor pode querer pressioná-lo. Uma vez
que disponha da informação, para que servirá a carcaça?
- Para nada.
- O senhor precisa aprender a estratégia de guerra bárbara,
mas deve fazê-lo rapidamente. O Senhor Toranaga pode mandar
buscá-lo, portanto o senhor precisa ter a mulher o mais que puder.
Meio mês seria suficiente para espremer-lhe da cabeça tudo o que
ele sabe, agora que o senhor tem a sua completa dedicação. O
senhor terá que experimentar, que adaptar os métodos dele aos
nossos meios. Sim, levaria no mínimo meio mês. Neh?
- E Toranaga-san?
- Ele concordará, se a coisa lhe for apresentada corretamente, senhor. Tem que concordar. As armas são dele assim como
suas. E a presença dela aqui é útil de outros modos.
- Sim - disse Yabu com satisfação, pois o pensamento de
retê-la como refém também lhe entrara na cabeça no navio, quando planejara oferecer Toranaga como sacrifício a Ishido. - Toda
530
Mariko deve ser protegida, certamente. Seria muito mal que ela
tombasse em mãos malignas.
- Sim. E talvez ela pudesse ser o meio de controlar Hiromatsu, Buntaro, e todo o clã, até Toranaga.
- Redija você a mensagem sobre ela.
De supetão, Omi disse: - Minha mãe recebeu notícias de
Yedo hoje, senhor. Pediu-me que lhe dissesse que a Senhora
Genjiko presenteou Toranaga com o primeiro neto.
Imediatamente Yabu se pôs atento. O neto de Toranaga!
Toranaga poderia ser controlado através da criança? O neto assegura a dinastia de Toranaga, neh? Como posso ficar com o recémnascido como refém? - E Ochiba, a Senhora Ochiba? - perguntou ele.
- Partiu de Yedo com todo o seu séquito. Há três dias.
Nesta altura encontra-se a salvo em território de Ishido.
Yabu pensou em Ochiba e na irmã, Genjiko. Tão diferentes!
Ochiba, vital, bela, astuciosa, incansável, a mulher mais desejável
do império e mãe do herdeiro. Genjiko, a irmã mais nova, calma,
meditativa, lisa e franca, com uma crueldade que se tornara lendária, herdada da mãe, uma das irmãs de Goroda. As duas irmãs
se amavam, mas Ochiba odiava Toranaga e a sua estirpe, assim
como Genjiko detestava o táicum e Yaemon, filho dele. Será que
foi realmente o táicum quem gerou o filho de Ochiba? perguntou-se Yabu novamente, como todos os daimios o faziam secretamente há anos. O que eu não daria para conhecer a resposta
a isso! O que eu não daria para possuir aquela mulher!
- Agora que a Senhora Ochiba não é mais refém em
Yedo... isso poderia ser bom e mau - disse Yabu, apalpando
terreno. - Neh?
- Bem, apenas bom. Agora Ishido e Toranaga têm que começar muito em breve. - Omi deliberadamente omitiu o "sama"
dos dois nomes. - A Senhora Mariko devia ficar, pela sua proteção.
- Providencie. Redija a mensagem a enviar a Toranaga.
Suzu, a criada, bateu discretamente e abriu a porta. Zukimoto
entrou na sala. - Senhor?
- Onde estão todos os presentes que mandei vir de Mishima
para Omi-san?
- Estão todos no depósito, senhor. Aqui está a lista. Os
dois cavalos podem ser escolhidos nos estábulos. Deseja que eu
faça isso agora?
- Não. Omi-san escolherá amanhã. - Yabu deu uma olha531

da na lista cuidadosamente escrita: "Vinte quimonos (segunda
qualidade); duas espadas; uma armadura (consertada, mas em
bom estado); dois cavalos; armas para cem samurais; uma espada,
elmo, peitoral, arco, vinte setas e uma lança para cada homem
(da melhor qualidade). Valor total: quatrocentos e vinte e seis
kokus. Também a pedra chamada A Pedra da Espera - valor:
inestimável".
- Ah, sim - disse ele, num melhor estado de humor, lembrando-se daquela noite. - A pedra que encontrei em Kyushu.
Você ia mudar o nome para O Bárbaro à Espera, não ia?
- Sim, senhor, se lhe agradar - disse Omi. - Mas o
senhor me honraria amanhã, decidindo onde colocá-la no jardim?
Não creio que haja um lugar suficientemente bom.
- Amanhã decidirei. Sim. - Yabu deixou a mente devanear sobre a pedra e sobre aqueles dias distantes com seu venerado
amo, o táicum, e depois sobre a Noite dos Gritos. A melancolia
infiltrou-se nele. A vida é tão curta, triste e cruel, pensou. Olhou
para Suzu. A criada sorriu, hesitante, o seu rosto oval, delgado,
e muito delicada como as outras duas. As três tinham sido trazidas de palanquim da casa dele em Mishima. Naquela noite estavam todas descalças, usando quimonos da melhor seda, a pele
muito branca. É curioso que os meninos possam ser tão graciosos,
pensou ele, em muitos sentidos mais sensuais e femininos do que
as garotas. Depois notou Zukimoto. - O que está esperando?
Hein? Saia!
- Sim, senhor. O senhor me pediu que o lembrasse das
taxas, senhor. - Zukimoto ergueu a sua massa transpirante e saiu
às pressas da sala.
- Omi-san, você dobrará todos os impostos imediatamente
- disse Yabu.
- Sim, senhor.
- Camponeses imundos! Não trabalham o suficiente. São
preguiçosos, todos eles! Mantenho as estradas a salvo de bandidos,
os mares seguros, dou-lhes bom governo, e o que eles fazem?
Passam os dias tomando chá e saquê, e comendo arroz. Já é tempo que os meus camponeses assumam as suas responsabilidades!
- Sim, senhor - disse Omi.
Depois Yabu se voltou para o outro assunto que lhe dominava
a mente. - O Anjin-san surpreendeu-me esta noite. A você não?
- Oh, sim, senhor. Mais do que ao senhor. Mas o senhor
foi sábio em fazê-lo se comprometer.
- Está dizendo que Igurashi tinha razão?
532
- Simplesmente admirei a sua sabedoria, senhor. O senhor
teria que lhe dizer não em algum momento. Acho que foi muito
sábio em dizê-lo agora, esta noite.
- Pensei que ele ia se matar. Sim. Fico contente por você
ter estado preparado. Contei com que você estivesse preparado.
O Anjin-san é um homem extraordinário, para um bárbaro, neh?
Pena que seja bárbaro e tão ingênuo.
- Sim.
Yabu bocejou. Aceitou saquê de Suzu. - Meio mês, você
diz? Mariko-san deve ficar no mínimo esse prazo, Omi-san. Depois decidirei a respeito dela, e a respeito dele. Ele terá que aprender outra lição muito em breve. - Ele riu, mostrando os dentes
estragados. - Se o Anjin-san nos ensinar, devemos ensiná-lo,
neh? Devemos ensinar-lhe como cometer seppuku corretamente.
Seria uma coisa e tanto de se presenciar, neh? Providencie! Sim,
concordo que os dias do bárbaro estão contados.
Doze dias depois, à tarde, chegou o mensageiro de Osaka.
Uma escolta de dez samurais vinha com ele. Os cavalos estavam
cobertos de suor e quase mortos. As bandeiras à ponta das lanças
exibiam o símbolo do todo-poderoso conselho de regentes. O dia
estava quente, nublado e úmido.
O mensageiro era um samurai magro, rijo, de grau superior,
um dos lugar-tenentes de Ishido. Chamava-se Nebara Jozen e era
conhecido pela sua inclemência. Seu quimono cinzento estava
rasgado e salpicado de lama, os olhos vermelhos de fadiga. Recusou comida e bebida e impolidamente solicitou uma audiência
imediata com Yabu.
- Perdoe a minha aparência, Yabu-san, mas o meu assunto
é urgente - disse. - Sim, peço-lhe perdão. Meu amo pergunta:
por que o senhor treina os soldados de Toranaga junto com os
seus, e por que eles se exercitam com tantas armas?
Yabu corou ante a grosseria do outro, mas conservou a
calma, sabendo que Jozen devia ter recebido instruções específicas
e aquela falta de educação prenunciava uma perigosa posição de
CAPÍTULO 32
533

poder. Além disso, sentia-se enormemente inquieto de que tivesse
havido outra brecha na sua segurança.
- É muito bem-vindo, Jozen-san. Pode garantir ao seu amo
que tenho sempre os interesses dele no coração - disse ele com
uma cortesia que não enganou a nenhum dos presentes.
Encontravam-se na varanda da fortaleza. Omi estava sentado
logo atrás de Yabu. Igurashi, que fora perdoado poucos dias antes,
estava mais perto de Jozen e, em torno deles, guardas mais íntimos.
- O que mais seu amo manda dizer?
Meu amo ficará contente de saber que os interesses dele
são os seus - respondeu Jozen. - Agora, quanto às armas e ao
treinamento: meu amo gostaria de saber por que o filho de Toranaga, Naga, é segundo em comando. Segundo em comando de
quê? O que é tão importante para que o filho de Toranaga se
encontre aqui? pergunta o General Ishido polidamente. Isso é do
interesse dele. Sim. Tudo o que os seus aliados fazem lhe interessa.
Por que, por exemplo, o bárbaro parece estar encarregado de
treinamento? Treinamento do quê? Sim, Yabu-sama, isso também
é muito interessante. - Jozen mudou as espadas para uma
posição mais confortável, contente por ter as costas protegidas
pelos seus próprios homens. - Depois: o conselho de regentes
reúne-se novamente no primeiro dia da lua nova. Dentro de vinte
dias. O senhor é formalmente convidado a comparecer a Osaka,
a fim de renovar seu juramento de fidelidade.
O estômago de Yabu contorceu-se. - Tomei conhecimento
de que o Senhor Toranaga renunciou.
- Sim, Yabu-san, realmente renunciou. Mas o Senhor Ito
Teruzumi vai tomar-lhe o lugar. Meu amo será o novo presidente
dos regentes.
Yabu foi dominado pelo pânico. Toranaga dissera que os
quatro regentes nunca conseguiriam se pôr de acordo quanto a
um quinto. Ito Teruzumi era um daimio menor da província de
Negato, na Honshu ocidental, mas sua família era antiga, descendia da linhagem Fujimoto, portanto ele seria aceitável como
regente, embora fosse um homem ineficaz, afeminado e um fantoche. - Eu ficaria honrado em receber o convite deles - disse
Yabu defensivamente, tentando ganhar tempo para pensar.
- Meu amo pensou que o senhor talvez quisesse partir imediatamente. Então estaria em Osaka para a reunião formal. Ordenou-me que lhe dissesse que todos os daimios estão recebendo o
mesmo convite. Agora. Assim todos terão oportunidade de estar
534
lá a tempo, no vigésimo primeiro dia. Sua Alteza Imperial, o
Imperador Go-Nijo, autorizou uma cerimônia da contemplação
da flor, a fim de honrar a ocasião. - Jozen estendeu um pergaminho oficial.
- Isto não tem o selo do conselho de regentes.
- Meu amo emitiu o convite agora, sabendo que, na qualidade de leal vassalo do falecido táicum, na qualidade de fiel
vassalo de Yaemon, seu filho e herdeiro e governante legítimo
do império quando atingir a idade, o senhor compreenderá que
o novo conselho naturalmente aprovará o ato dele. Neh?
- Certamente seria um privilégio testemunhar o encontro
formal. - Yabu lutava para controlar o próprio rosto.
- Ótimo - disse Jozen. Puxou outro pergaminho, abriu-o
o estendeu-o a Yabu. - Isto é uma cópia da carta de nomeação
do Senhor Ito, aceita, assinada e autorizada pelos outros regentes,
os senhores Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama. - Jozen não se
deu ao trabalho de dissimular um olhar de triunfo, sabendo que
aquilo fechava totalmente a armadilha sobre Toranaga e qualquer
um dos seus aliados, e que além disso o pergaminho tornava a ele
o aos seus homens invulneráveis.
Yabu pegou o pergaminho. Seus dedos tremiam. Não havia
dúvida quanto à sua autenticidade. Fora rubricado pela Senhora
Yodoko, a esposa do táicum, que afirmava que o documento era
verdadeiro, assinado em sua presença, uma das seis cópias que
estavam sendo enviadas por todo o império, e que aquela cópia em
particular se destinava aos senhores de Iwari, Mikawa, Totomi,
Suruga, Izu e do Kwanto. Estava datado de onze dias antes.
- Os senhores de Iwari, Mikawa, Suruga e Totomi já aceitaram. Aqui estão os selos deles. O senhor é o penúltimo na minha
lista. O último é o Senhor Toranaga.
- Por favor, agradeça ao seu amo e diga-lhe que espero
com ansiedade pelo momento de saudá-lo e congratular-me com
ele - disse Yabu.
- Ótimo. Solicitaria que o senhor respondesse por escrito.
Seria satisfatório que fosse agora.
- Esta noite, Jozen-san. Depois da refeição noturna.
- Muito bem. E agora podemos ir ver o treinamento.
- Não há treinamento hoje. Todos os meus homens estão
realizando marchas forçadas - disse Yabu. No momento em
que Jozen e seus homens entraram em Izu, Yabu recebera um
aviso urgente e imediatamente ordenara aos seus homens que
cessassem o tiroteio e continuassem apenas o treinamento com
535

armas silenciosas, bem longe de Anjiro. - Amanhã o senhor
poderá vir comigo... ao meio-dia, se desejar.
Jozen olhou para o céu. A tarde estava findando agora. -
Ótimo. Eu poderia dormir um pouco. Mas voltarei ao crepúsculo,
com a sua permissão. Então o senhor, o seu comandante, Omi-san,
e o segundo em comando, Naga-san, me falarão, no interesse
do meu amo, sobre o treinamento, as armas e tudo. E sobre o
bárbaro.
- Ele está... sim. Naturalmente. - Yabu fez um gesto
a Igurashi. - Providencie alojamento para o nosso honrado hóspede e seus homens.
- Obrigado, mas isso não é necessário - disse Jozen imediatamente. - O chão é futon suficiente para um samurai, e a
minha sela basta como travesseiro. Apenas um banho, por favor... esta umidade, neh? Acamparei no cume da montanha...
naturalmente, com a sua permissão.
- Como quiser.
Jozen curvou-se rigidamente e se afastou, rodeado pelos seus
homens. Estavam todos pesadamente armados. Dois arqueiros
tinham sido deixados segurando os cavalos.
Assim que todos se afastaram, o rosto de Yabu contorceu-se
de cólera.
- Quem me traiu? Quem? Onde está o espião?
Igualmente pálido, Igurashi fez sinal aos guardas para que
se afastassem até onde não pudessem ouvir. - Yedo, senhor
disse ele. - Tem que ser. A segurança é perfeita aqui.
- Oh, ko! - disse Yabu, quase rasgando a roupa. - Fui
traído. Estamos isolados. Izu e o Kwanto estão isolados. Ishido
venceu. Ele venceu.
Omi disse calmamente: - Não antes de vinte dias, senhor.
Mande imediatamente uma mensagem ao Senhor Toranaga. Informe-o de que. . .
- Imbecil! - sibilou Yabu. - É claro que Toranaga já
sabe! Onde eu tenho um espião ele tem cinqüenta. Ele me deixou
sozinho na armadilha.
- Não penso assim, senhor - disse Omi, sem medo. -
Iwari, Totomi e Sugura são hostis a ele, neh? E a qualquer um
que seja aliado dele. Eles nunca o preveniriam, portanto ele talvez
ainda não saiba. Informe-o e sugira...
- Você não ouviu? - gritou Yabu. - Os quatro regentes
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concordaram com a designação de Ito, portanto o conselho é legal
novamente e vai se reunir dentro de vinte dias!
- A resposta a isso é simples, senhor. Sugira a Toranaga
que mande assassinar imediatamente Ito Teruzumi ou um dos
outros regentes.
A boca de Yabu se escancarou. - O quê?
- Se o senhor não quiser fazer isso, envie-me, deixe-me
tentar. Ou Igurashi-san. Com o Senhor Ito morto, Ishido está
indefeso de novo.
- Não sei se você ficou louco ou o quê - disse Yabu.
- Você entende o que acabou de dizer?
- Senhor, rogo-lhe, por favor, seja paciente comigo. O
Anjin-san deu-lhe seu inestimável conhecimento, neh? Mais do
que jamais sonhamos possível. Agora Toranaga também sabe disso,
através dos seus relatórios, e provavelmente por intermédio dos
relatórios particulares de Naga-san. Se pudermos conseguir tempo
suficiente, nossos quinhentos atiradores e os outros trezentos lhe
darão um poder de combate absoluto, mas apenas uma vez.
Quando o inimigo, seja quem for, vir o modo como o senhor usa
os homens e a potência de tiro, aprenderá rapidamente. Mas terá
perdido a primeira batalha. Uma batalha - se for a batalha certa
- dará a Toranaga a vitória total.
- Ishido não precisa de batalha alguma. Dentro de vinte
dias terá o mandato do imperador.
- Ishido é um camponês. É filho de um camponês, um
mentiroso, e abandona os companheiros em batalha.
Yabu encarou Omi, o rosto rubro. - Você... você sabe
o que está dizendo?
- Foi o que ele fez na Coréia. Eu estava lá. Eu vi, meu
pai viu. Ishido realmente abandonou Buntaro-san e a nós, e deixou
que nos virássemos sozinhos. Ele é apenas um camponês traiçoeiro,
o cão do táicum, certamente. Não se pode confiar em camponeses. Mas Toranaga é Minowara. O senhor pode confiar nele.
Aconselho-o a considerar apenas os interesses de Toranaga.
Yabu sacudiu a cabeça, incrédulo. - Você é surdo? Não
ouviu Nebara Jozen? Ishido venceu. O conselho estará em vigor
dentro de vinte dias.
- Pode estar em vigor.
- Mesmo se Ito... Como é que você poderia? Não é possível.
- Certamente eu poderia tentar, mas eu nunca conseguiria
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fazê-lo a tempo. Nenhum de nós, não em vinte dias. Mas Toranaga poderia. - Omi sabia que se colocara entre as mandíbulas
do dragão. - Imploro-lhe que considere a idéia.
Yabu enxugou o rosto e as mãos. - Depois desta convocação, se o conselho se reunir e eu não me encontrar presente, eu
e todo o meu clã estaremos mortos, você inclusive. Preciso de
dois meses, no mínimo, para treinar o regimento. Mesmo que o
tivéssemos treinado agora, Toranaga e eu nunca conseguiríamos
vencer contra todos os outros. Não, você está errado, tenho que
apoiar Ishido.
- O senhor não precisa partir para Osaka antes de dez
dias... catorze, se for em marcha forçada - disse Omi. - Fale
a Toranaga sobre Nebara Jozen imediatamente. O senhor salvará
Izu e a casa de Kasigi. Imploro-lhe, Ishido vai traí-lo e devorálo. Ikawa Jikkyu é parente dele, neh?
- Mas e Jozen? - exclamou Igurashi. - Hein? E os atiradores? A estratégia maravilhosa? Ele quer saber sobre tudo esta
noite.
- Contê-lhe. Em detalhes. Ele não é mais que um lacaio
- disse Omi, começando a manobrá-los. Sabia que estava arriscando tudo, mas tinha que tentar proteger Yabu de se alinhar
com Ishido, e assim arruinar a chance que tinham. - Abra os
seus planos a ele.
Igurashi discordou exaltadamente. - Assim que Jozen souber o que estamos fazendo, mandará uma mensagem ao Senhor
Ishido. É importante demais para que ele não faça isso. Ishido
roubará os planos, depois estaremos liquidados.
- Nós seguimos o mensageiro e o matamos à nossa conveniência.
Yabu se inflamou. - Aquele pergaminho foi assinado pela
mais alta autoridade do país! Todos eles viajam sob a proteção dos
regentes! Você deve estar louco para sugerir uma coisa assim!
Isso me tornaria um marginal!
Omi balançou a cabeça, mantendo um ar confiante. - Acredito que Yodoko-sama e os outros foram ludibriados, assim como
Sua Alteza Imperial, pelo traidor Ishido. Devemos proteger os
atiradores, senhor. Devemos deter qualquer mensageiro ...
- Silêncio! Seu conselho é loucura!
Omi curvou-se ante a chicotada verbal. Mas levantou os
olhos e disse calmamente: - Então, por favor, permita-me cometer seppuku, senhor. Mas primeiro, por favor, deixe-me concluir.
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Eu falharia no meu dever se não tentasse protegê-lo. Imploro esse
último favor como vassalo fiel.
- Conclua!
- Não há conselho de regentes agora, portanto não há
proteção legal para esse Jozen e seus homens insultantes e de
modos abomináveis, a menos que o senhor honre um documento
ilegal devido a. . . - Omi ia dizer "fraqueza", mas mudou a
palavra e manteve a voz tranqüilamente autoritária - devido a
ser ludibriado como os outros, senhor. Não há conselho. Eles não
podem lhe "ordenar" a fazer coisa alguma, nem a ninguém. Uma
vez que estejam reunidos, sim, podem, e então o senhor terá
que obedecer. Mas agora, quantos daimios obedecerão antes que
ordens legais possam ser emitidas? Apenas os aliados de Ishido,
neh? Iwari, Mikawa, Totomi e Suruga não são governadas por
parentes dele, todos abertamente aliados a ele? Aquele documento
significa a guerra, sim, mas rogo-lhe que a empreenda nos seus
termos, não nos de Ishido. Trate essa ameaça com o desprezo que
merece! Toranaga nunca foi vencido em combate. Ishido sim.
Toranaga evitou tomar parte no catastrófico ataque do táicum
à Coréia. Ishido não. Toranaga é a favor dos navios e do comércio.
Ishido não é. Toranaga desejará a marinha do bárbaro - o senhor
não advogou essa idéia junto a ele? Ishido não. Ishido fechará o
império. Toranaga o manterá aberto. Ishido dará a Ikawa Jikkyu
o seu feudo hereditário de Izu, se vencer. Toranaga lhe dará toda
a província de Jikkyu. O senhor é o principal aliado de Toranaga.
Ele não lhe deu a sua espada? Não lhe deu o controle dos atiradores? Os atiradores não garantem uma vitória, usados de surpresa? O que o camponês Ishido dá em troca? Manda um samurai ronin sem educação, com ordens deliberadas de envergonhá-lo
em sua própria província! Digo que Toranaga Minowara é a nossa
única chance. O senhor deve ir com ele. - Curvou-se e esperou
em silêncio.
Yabu deu uma olhada em Igurashi. Bem?
- Concordo com Omi-san, senhor. - O rosto de Igurashi
refletia a sua preocupação. - Quanto a matar o mensageiro, isso
seria perigoso, não haveria caminho de volta, senhor. Jozen certamente enviará um ou dois amanhã. Talvez eles pudessem desaparecer, mortos por bandidos. . . - Ele se deteve no meio da
frase. -- Pombos-correio! Havia dois cestos nos cavalos de carga
de Jozen!
- Teremos que envenená-los esta noite - disse Omi.
- Como? Eles serão vigiados.
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- Não sei. Mas têm que ser eliminados antes do amanhecer.
- Igurashi - disse Yabu -, mande homens para vigiar
Jozen imediatamente. Veja se ele envia um dos pombos agora,
hoje.
- Sugiro que o senhor mande todos os seus falcões e falcoeiros para o leste, também imediatamente - acrescentou rapidamente Omi.
- Ele suspeitará de traição se vir seus pássaros abatidos ou
se perceber que mexeram neles - disse Igurashi.
Omi deu de ombros. - Os pássaros têm que ser detidos.
Igurashi olhou para Yabu.
Yabu assentiu, resignado. - Faça isso.
Quando Igurashi voltou, disse: - Omi-san, ocorreu-me uma
coisa. Muito do que disse estava certo, sobre Jikkyu e o Senhor
Ishido. Mas se aconselha fazer os mensageiros "desaparecerem",
por que brincar com Jozen? Por que dizer alguma coisa a ele?
Por que não matá-lo imediatamente?
- Por que não, realmente? A menos que isso pudesse divertir a Yabu-sama. Concordo que seu plano é melhor, Igurashi-san
- disse Omi.
Os dois olharam para Yabu. - Como posso conservar os
atiradores em segredo? - perguntou-lhes este.
- Mate Jozen e os seus homens - retrucou Omi.
- Não há outro meio?
Omi balançou a cabeça. Igurashi balançou a cabeça.
- Talvez eu pudesse negociar com Ishido - disse Yabu,
abalado, tentando pensar num modo de sair da armadilha. -
Você tem razão sobre o tempo. Tenho dez dias, catorze no
máximo. Como lidar com Jozen e ainda deixar tempo para manobrar?
- Seria prudente fingir que o senhor vai a Osaka - disse
Omi. - Mas não há mal em informar Toranaga imediatamente,
neh? Um dos nossos pombos poderia chegar a Yedo antes do
pôr-do-sol. Talvez. Não há mal algum nisso.
- O senhor poderia falar ao Senhor Toranaga sobre a chegada de Jozen - disse Igurashi -, e sobre a reunião do conselho
dentro de vinte dias, sim. Mas quanto ao assassinato do Senhor
Ito, isso é perigoso demais para pôr por escrito, mesmo se ...
Perigoso demais, neh?
- Concordo. Nada sobre Ito. Toranaga deve pensar nisso
por si mesmo. E óbvio, neh?
- Sim, senhor. Impensável, mas óbvio.
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Omi esperou em silêncio, a mente procurando uma solução
freneticamente. Yabu estava de olhos nele, mas Omi não sentiu
medo. Seu conselho fora razoável e oferecido apenas para a
proteçãd do clã, da família e de Yabu, o atual líder do clã. O
fato de Omi haver decidido eliminar Yabu e mudar a liderança
não o impediu de aconselhá-lo sagazmente. E estava preparado
para morrer agora. Se Yabu fosse tão estúpido a ponto de não
aceitar a verdade evidente das suas idéias, então logo não haveria
clã algum para liderar. Karma.
Yabu inclinou-se para a frente, ainda irresoluto. - Existe
algum modo de eliminar Jozen e seus homens sem perigo para
mim, e permanecer descomprometido por dez dias?
- Naga. Tente de algum modo aprontar uma armadilha
com Naga - disse simplesmente.


Ao crepúsculo, Blackthorne e Mariko atingiram o portão
da casa dele, seguidos de batedores. Estavam ambos cansados.
Ela cavalgava como um homem, usando calças folgadas e, sobre
elas, um manto afivelado. Usava também um chapéu de aba larga
e luvas para se proteger do sol. Até as camponesas tentavam
proteger o rosto e as mãos dos raios de sol. Desde tempos imemoriais, quanto mais escura fosse a pele, mais comum era a pessoa;
quanto mais branca, mais apreciada.
Criados pegaram as rédeas e levaram embora os cavalos.
Blackthorne dispensou os batedores num japonês tolerável e saudou Fujiko, que esperava
sempre.
- Posso servir-lhes o chá, Anjin-san? - disse ela cerimoniosamente, como sempre.
- Não - disse ele, como sempre. - Primeiro vou tomar
banho. Depois saqué e um pouco de comida.
E, como sempre, retribuiu-lhe a reverência e seguiu pelo
corredor até os fundos da casa, saiu para o jardim e tomou o
caminho circundante que levava à casa de banho, de taipa. Uma
criada tirou-lhe a roupa, ele entrou e se sentou, nu. Outra criada
o esfregou, ensaboou-o e verteu-lhe água em cima para lavar a
espuma e a sujeira. Depois, completamente limpo, gradualmente
- porque a água estava muito quente - entrou na imensa banheira de ferro e deitou-se.
- Jesus Cristo, isto é formidável - exultou ele, e deixou
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orgulhosamente na varanda, como
que o calor se infiltrasse nos músculos, os olhos fechados, o suor
escorrendo pela testa.
Ouviu a porta se abrir, a voz de Suwo e "Boa noite, amo"
seguido de muitas palavras em japonês que não compreendeu.
Mas naquela noite estava cansado demais para tentar conversar
com Suwo. E o banho, conforme Mariko explicara muitas vezes,
"não é meramente para limpar a pele. O banho é um presente
que Deus ou os deuses nos deram, um prazer conferido por
Deus, para ser apreciado e tratado como tal".
- Sem conversa, Suwo - disse ele. - Esta noite quero
penso.
- Sim, amo. Perdão, mas o senhor devia dizer: "Esta noite
quero pensar".
- Esta noite quero pensar - repetiu Blackthorne, tentando
pôr os sons quase incompreensíveis na cabeça, contente por ser
corrigido, mas exausto disso.
- Onde está o dicionário-gramática? - fora a primeira
coisa que perguntara a Mariko naquela manhã. - Yabu-sama
mandou outra solicitação?
- Sim. Por favor, seja paciente, Anjin-san. Chegará logo.
- Foi prometido com a galera e as tropas. Não chegou. As
tropas e as armas sim, mas os livros não. Tenho sorte de a senhora
estar aqui. Seria impossível sem a senhora.
- Difícil, mas não impossível, Anjin-san.
- Como digo: "Não, vocês estão fazendo errado! Devem
correr todos como um grupo, parar como um grupo, apontar e
atirar como um grupo"?
- Com quem está falando, Anjin-san? - perguntara ela.
E então, novamente, ele sentira a frustração se avolumar.
- É tudo muito difícil, Mariko-san.
- Oh, não. O japonês é muito fácil de falar, comparado
com outras línguas. Não há artigos, não há "o", "a", "um", "uma".
Não há conjugações de verbos nem infinitivos. Todos os verbos
são regulares, terminando em "masu", e pode-se dizer quase tudo
usando apenas o presente, se se quiser. Se é uma pergunta, acrescenta-se "ka" depois do verbo. Se é uma negativa, troca-se "masu"
por "masen". O que poderia ser mais fácil? "Yukimasu" quer dizer
"eu vou", mas quer dizer igualmente "você vai", "ele", "ela",
"nós", "eles", ou "irá", ou até "poderia ter ido". Até o plural e o
singular são iguais. "Tsuma" significa "esposa" ou "esposas". Muito simples.
542
- Bem, como se faz a diferença entre "eu vou", "yukimasu",
e "eles foram", "yukimasu"?
- Pela inflexão, Anjin-san, e o tom. Ouça: "yukimasu" ...
"yukimasu".
- Mas o som é exatamente o mesmo!
- Ah, Anjin-san, isso é porque o senhor está pensando na
sua língua. Para compreender japonês o senhor tem que pensar
em japonês. Não se esqueça de que a nossa língua é a língua do
infinito. É tudo muito simples, Anjin-san. Apenas mude o seu
conceito do mundo. Aprender japonês é apenas aprender uma
nova arte, separada do mundo ... É tudo muito simples.
- É tudo uma bosta, isso sim - resmungou ele em inglês,
e sentiu-se melhor.
O quê? Que foi que disse?
Nada. Mas o que a senhora diz não faz sentido.
Aprenda os caracteres escritos - dissera Mariko.
- Não posso. Vai levar tempo demais. Eles não têm sentido
algum.
- Olhe, na realidade são simples quadros, Anjin-san. Os
chineses são muito inteligentes. Emprestamos a escrita deles há
mil anos atrás. Olhe, pegue este caráter, ou símbolo, que representa um porco.
- Não se parece com um porco.
- Mas já pareceu, Anjin-san. Deixe-me mostrar-lhe. Olhe.
Junte o símbolo de telhado sobre o símbolo do porco e o que é
que tem?
- Um porco e um telhado.
- Mas o que isso significa? O novo caráter?
- N ão sei.
- Casa. Antigamente os chineses achavam que um porco
sob um telhado era o lar. Eles não são budistas, são comedores
de carne, portanto um porco, para eles, para camponeses, representa a riqueza, portanto uma boa casa. Daí o caráter.
- Mas como se diz?
- Depende de ser chinês ou japonês.
- Oh, ko!
- Oh, ko de fato - rira ela. Eis outro caráter. Um
símbolo de telhado com dois porcos embaixo significa contentamento. Um telhado com duas mulheres embaixo é igual a discórdia. Neh?
- Absolutamente!
- Claro, os chineses são muito estúpidos em muitas
coisas
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e as mulheres deles não são educadas como as daqui. Não há
discórdia na sua casa, há?
Blackthorne pensou nisso agora, no décimo segundo dia do
seu renascimento. Não. Não havia discórdia. Mas tampouco era
um lar. Fujiko era apenas como uma governanta digna de confiança e naquela noite, quando ele fosse para a cama, para dormir,
os futons estariam desdobrados e ela estaria ajoelhada ao lado,
pacientemente, inexpressivamente. Estaria vestida com o quimono
de dormir, semelhante ao quimono do dia, mais macio e com
apenas um sash frouxo em vez do obi rígido à cintura.
- Obrigado, senhora - ele diria. - Boa noite.
Ela se curvaria e iria silenciosamente para o quarto do outro
lado do corredor, ao lado do quarto onde Mariko dormia. Depois
ele se poria embaixo do mosquiteiro de seda de excelente qualidade. Ele nunca vira mosquiteiros assim antes. Depois se deitaria
prazerosamente e no meio da noite, ouvindo os poucos insetos
zumbindo lá fora, se ateria ao Navio Negro, à importância do
Navio Negro para o Japão.
Sem os portugueses, nada de comércio com a China. E nada
de sedas para roupas ou mosquiteiros. Mesmo agora, com a umidade do clima apenas começando, ele já podia perceber o valor
da seda.
Se ele se mexesse durante a noite, uma criada abriria a porta
quase imediatamente, para lhe perguntar se desejava alguma coisa.
Uma vez ele não compreendera. Fez sinal à criada que se fosse e
dirigiu-se ao jardim, sentando-se nos degraus e olhando a lua.
Dentro de poucos minutos Fujiko, desalinhada e sonolenta, veio
e se sentou em silêncio atrás dele.
- Posso servir-lhe alguma coisa, senhor?
- Não, obrigado. Por favor, vá para a cama.
Ela dissera alguma coisa que ele não entendera. Novamente
ele lhe fez sinal que fosse embora, então ela falara asperamente
com a criada, que esperava como uma sombra. Logo apareceu
Mariko.
- Está bem, Anjin-san?
- Sim. Não sei por que vocês ficaram perturbadas, Jesus
Cristo... só estou olhando a lua. Não conseguia dormir. Só
queria tomar um pouco de ar.
Fujiko falou com ela hesitante, constrangida, magoada com
a irritação na voz dele. - Ela diz que o senhor a mandou ir
dormir de novo. Ela só queria que o senhor soubesse que não é
544
nosso costume que uma esposa ou consorte durma enquanto o
amo está acordado, era só isso, Anjin-san.
- Diga a ela que terá que mudar o costume. Levanto-me
com freqüência à noite. É um hábito que adquiri ao mar. Tenho
o sono muito leve em terra.
- Sim, Anjin-san.
Mariko explicara e as duas mulheres se afastaram. Mas
Blackthorne sabia que Fujiko não tinha ido dormir e não o faria
até que ele mesmo dormisse. Ela estava sempre em pé e à espera,
fosse qual fosse a hora em que ele voltasse para casa. Algumas
noites caminhava pela praia sozinho. Embora insistisse em ficar
só, sabia que era seguido e observado. Não porque tivessem medo
de que ele tentasse escapar. Apenas porque era o costume deles
que as pessoas importantes fossem sempre escoltadas. Em Anjiro
ele era importante.
Com o tempo, acabara aceitando a presença dela. Fora como
Mariko dissera: "Pense nela como numa rocha, numa shoji ou
numa parede. É dever dela servi-lo".
Com Mariko era diferente.
Sentia-se contente de que ela tivesse ficado. Sem a sua presença, nunca teria começado o treinamento, para não mencionar
a tradução dos meandros da estratégia. Abençoava a ela, a Frei
Domingo, a Alban Caradoc e aos seus outros professores.
Nunca pensei que as batalhas serviriam jamais a algum bom
uso, pensou ele novamente. Uma vez, quando seu navio transportava uma carga de lãs inglesas para Antuérpia, uma frota
espanhola caíra em cima da cidade e todos os homens foram
para as barricadas e os diques. O ataque de surpresa fora rechaçado e a infantaria espanhola batida. Essa foi a primeira vez em
que ele viu Guilherme, duque de Orange, usando regimentos como
peças de xadrez. A\ inçando, retirando em pânico simulado para
se reagruparem, investindo de novo, as armas espocando em salvas
combinadas, rasgando as entranhas, martelando os ouvidos, irrompendo por entre os Invencíveis para deixá-los moribundos ou gritando, o mau cheiro de sangue e pólvora, urina e cavalos e excremento invadindo a gente, e uma alegria selvagem e frenética com
a matança dominando-o, e a força de vinte homens nos seus
braços.
- Jesus Cristo, é formidável ser vitorioso - disse ele em
voz alta, na banheira.
- Amo? - disse Suwo.
545

- Nada - retrucou ele em japonês. - Eu falando..
estava só pensar... estava só pensando alto.
- Compreendo, amo. Sim. Seu perdão.
Blackthorne deixou-se devanear novamente.
Mariko. Sim, ela tem sido inestimável.
Após aquela primeira noite do seu quase-suicídio, nada mais
fora dito. O que havia para dizer?
Fico contente de haver tanta coisa para fazer, pensou ele. Nenhum tempo para pensar, exceto aqui no banho, nestes poucos minutos. Nunca há tempo suficiente para fazer tudo. Ordenaram-me
que me concentrasse em treinamento e ensino, e não em aprender,
mas quero aprender, tento aprender, preciso aprender para cumprir a promessa a Yabu. Não há horas suficientes. Sempre exausto,
esgotado, na hora de dormir, dormindo imediatamente, para estar
em pé ao amanhecer e sair a galope para o planalto. Treinando
a manhã toda, depois uma refeição frugal, nunca satisfatória e
sempre sem carne. Depois, toda tarde, até o pôr-do-sol - às
vezes até mais tarde -, com Yabu e Omi e Igurashi e Naga e
Zukimoto e alguns outros oficiais, falando sobre guerra, respondendo a perguntas sobre guerra. Como travar combate. Como os
bárbaros guerreiam e como os japoneses guerreiam. Em terra e
no mar. Escribas sempre tomando notas. Muitas, muitas notas.
Às vezes apenas com Yabu.
Mas sempre com Mariko, uma parte dele, falando por ele.
E por Yabu. Mariko agora diferente em relação a ele, ele não
mais um estranho.
Outros dias os escribas relendo as notas, sempre verificando,
sendo meticulosos, revisando e verificando de novo até, doze dias
e cem horas mais ou menos de explanações detalhadas e exaustivas depois, terem formado um manual de guerra. Exato. E letal.
Letal a quê? Não a nós, ingleses ou holandeses, que viremos
aqui pacificamente e apenas como comerciantes. Letal aos inimigos de Yabu e aos inimigos de Toranaga, e aos nossos inimigos
portugueses e espanhóis quando tentarem conquistar o Japão.
Como fizeram por toda parte. Em cada território recentemente
descoberto. Primeiro chegam os padres. Depois os conquistadores.
Mas aqui não, pensou ele com grande contentamento. Aqui
nunca - agora. O manual é letal e à prova disso. Com alguns
anos para que o conhecimento se difunda, não vai haver conquista
alguma aqui.
- Anjin-san?
- Hai, Mariko-san?
546
Ela estava se curvando para ele. - Yabu-ko wa kiden no
goshusseki o kon-ya wa hitsuyo to senu to oserareru, Anjin-san.
Lentamente as palavras se formaram ria cabeça dele: "O
Senhor Yabu não solicita a sua presença esta noite".
- Ichi-ban - disse ele, feliz. - Domo.
- Gomen nasai, Anjin-san. Anata wa...
- Sim, Mariko-san - interrompeu-a ele, o calor da água
consumindo-lhe a energia. - Sei que devia ter dito de modo
diferente, mas não quero mais falar japonês agora. Não esta noite.
Agora me sinto como um menino de escola que pode faltar à
aula por causa dos feriados de Natal. A senhora percebe que
estas serão as primeiras horas livres que terei, desde a minha
chegada?
- Sim, sim, percebo. - Ela sorriu obliquamente. - E o
senhor percebe, Senhor Capitão-Piloto B'rack'fon, que estas serão
as primeiras horas livres que terei desde a minha chegada?
Ele riu. Ela estava usando um pesado roupão de banho de
algodão, amarrado frouxamente, e uma toalha em torno da cabeça
para proteger o cabelo. Toda noite, assim que a massagem dele
começava, ela vinha tomar banho, às vezes sozinha, às" vezes com
Fujiko.
- Pronto, sua vez agora - disse ele, começando a se levantar.
- Oh, por favor, não. Não desejo perturbá-lo.
- Então vamos compartilhar o banho. Está magnífico.
- Obrigada. Mal posso esperar para lavar o suor e o pó.
- Ela tirou o roupão e sentou-se no minúsculo assento. Uma
criada começou a ensaboá-la, enquanto Suwo esperava pacientemente, junto da mesa de massagem.
- E exatamente como um feriado de escola - disse ela,
igualmente feliz.
A primeira vez que Blackthorne a vira nua no dia em que
nadaram, sentira-se grandemente afetado. Agora a sua nudez, em
si mesma, não o tocava fisicamente. Vivendo juntos em estilo
japonês, numa casa japonesa, onde as paredes eram de papel e
as salas serviam a múltiplas finalidades, ele a vira despida e
parcialmente vestida muitas vezes. Chegara até a vê-la satisfazendo
necessidades fisiológicas.
- O que é mais normal, Anjin-san? Os corpos são normais,
e as diferenças entre homens e mulheres são normais, neh?
- Sim, mas é, hum, é que fomos educados de modo diferente.
547

- Mas agora o senhor está aqui e os nossos costumes são
os seus costumes, e o que é normal é normal. Neh?
Normal era urinar ou defecar ao ar livre se não houvesse
latrinas ou baldes, simplesmente erguendo o quimono ou abrindo-o, agachando-se ou ficando em, pé, todos os demais polidamente esperando sem olhar, raramente havendo divisórias para a
privacidade. Por que se deveria exigir privacidade? E logo um
dos camponeses vinha coletar as fezes e as misturava com água
para fertilizar as plantações. O excremento humano e a urina eram
a única fonte substancial de fertilizante do império. Havia poucos
cavalos e bovinos, e nenhum outro recurso animal em absoluto.
Portanto cada partícula humana era guardada e vendida aos fazendeiros de todo o país.
E depois de se ter visto os bem-nascidos e os humildes
abrindo ou levantando o quimono, e ficando em pé ou agachandose, não há muito com que se sentir embaraçado.
- Há, Anjin-san?
- Não.
- Ótimo - dissera ela, muito satisfeita. - Logo o senhor
gostará de peixe cru, algas frescas, e então será realmente um
hatamoto.
A criada derramou água em cima dela. Depois, limpa, Mariko
avançou para a banheira e deitou-se em frente a ele, com um
profundo suspiro de êxtase, o pequeno crucifixo oscilando entre
os seios.
- Como é que a senhora faz isso? - disse ele.
- Isso o quê?
- Entrar na água tão depressa. É tão quente.
- Não sei, Anjin-san, mas pedi que pusessem mais lenha
no fogo e aquecessem a água. Para o senhor, Fujiko sempre se
certifica de que a água fique ... podemos chamar de tépida.
- Se isso é tépido, então sou o tio de um holandês!
- O quê?
- Nada.
O calor da água tornou-os sonolentos e eles se refestelaram
um instante, sem dizer palavra.
Mais tarde ela disse: - O que gostaria de fazer esta noite,
Anjin-san?
- Se estivéssemos em Londres, nós. . . - Blackthorne parou. Não vou pensar neles, disse ele a si mesmo. Ou em Londres.
Isso se foi. Isso não existe. Só aqui existe.
- Se? - Ela o estava observando, cônscia da mudança.
548
- Iríamos a um teatro e assistiríamos a uma peça - disse
ele, dominando-se. - Vocês têm peças aqui?
- Oh, sim, Anjin-san. As peças são muito populares entre
nós. O táicum gostava de representar para divertir os convidados.
O Senhor Toranaga também gosta. E naturalmente há muitas
companhias ambulantes para o povo comum. Mas as nossas peças
não são como as suas, creio eu. Aqui os atores e atrizes usam
máscaras. Chamamos as peças de no. São parte música, parte
dança, e na maioria muito tristes, muito trágicas, peças históricas.
Algumas são comédias. Nós veríamos uma comédia ou talvez
uma peça religiosa?
- Não, iríamos ao Teatro Globe e veríamos alguma coisa
de um escritor chamado Shakespeare. Gosto mais dele do que de
Ben Jonson ou Marlowe. Talvez víssemos A megera domada ou
Sonho de uma noite de verão ou Romeu e Julieta. Levei minha
esposa para ver Romeu e Julieta e ela gostou muito. - Explicou
os enredos para ela.
Na maior parte Mariko os considerou incompreensíveis. -
Seria impensável, aqui, que uma garota desobedecesse ao pai
assim. Mas é muito triste, neh? Triste para a jovem e triste para
o rapaz. Ela tinha apenas treze anos? Todas as suas senhoras se
casam tão novas assim?
- Não. O comum é casarem com quinze ou dezesseis anos.
Minha esposa tinha dezessete anos quando nos casamos. Que
idade tinha a senhora?
- Apenas quinze, Anjin-san. - Uma sombra cruzou-lhe o
cenho, mas ele não notou. - E após a peça, o que faríamos?
- Eu a levaria para comer. Iríamos à Stone's Chop House,
em Fetter Lane, ou à Cheshire Cheese, na Fleet Street. São estalagens onde a comida é especial.
- O que comeríamos?
- Prefiro não lembrar - disse ele com um sorriso preguiçoso, voltando a mente ao presente. - Não posso me lembrar.
É aqui que estamos e é aqui que comeremos, e eu gosto de peixe
cru e karma é karma. - Afundou mais na banheira. - Uma
grande palavra, "karma". E uma grande idéia. Seu auxílio tem
sido enorme para mim, Mariko-san.
- Ser de algum valor para o senhor é um prazer meu. -
Mariko descontraiu-se no calor. - Fujiko tem um prato especial
para o senhor esta noite.
- Oh?
549
- Comprou um ... acho que o senhor chama de faisão. É
um pássaro grande. Um dos falcoeiros apanhou-o para ela.
- Um faisão? É mesmo? Honto?
- Honto - retrucou ela. - Fujiko pediu-lhes que o caçassem para o senhor. Pediu-me que lhe dissesse.
- Como está sendo cozido?
- Um dos soldados viu os portugueses preparando faisões
e contou a Fujiko-san. Ela lhe pede que seja paciente, caso não
esteja cozido adequadamente.
- Mas como é que ela ... como é que as cozinheiras estão
fazendo? - Ele se corrigiu, pois apenas os criados cozinhavam e
limpavam.
- Ela me disse que primeiro alguém arranca todas as penas,
depois... depois tira as entranhas. - Mariko controlou o próprio
enjôo. - Depois o pássaro é cortado em pedacinhos e frito em
óleo, ou cozido com sal e temperos. - O nariz dela franziu-se.
- Às vezes eles o cobrem com lama e o colocam no meio de
brasas e o assam. Não temos fornos, Anjin-san. Portanto será
frito. Espero que esteja bom.
- Tenho certeza de que estará perfeito - disse ele, certo
de que estaria intragável.
Ela riu. - O senhor é transparente às vezes, Anjin-san.
- A senhora não compreende como a comida é importante!
- Apesar de si mesmo, ele sorriu. - Tem razão. Eu não devia
ser tão interessado por comida. Mas não consigo controlar a fome.
- Logo conseguirá. Aprenderá até a tomar chá numa xícara
vazia.
- O quê?
- Este não é lugar para explicar isso, Anjin-san, nem o
momento. Pois é preciso que se esteja desperto e muito alerta.
É necessário um pôr-do-sol tranqüilo, ou um amanhecer. Um dia
lhe mostrarei como se faz, por causa do que o senhor fez. Oh, é
tão bom estar aqui, não? Um banho é realmente um dom de Deus.
Ele ouviu os criados lá fora, alimentando o fogo. Agüentou
o calor que se intensificava o mais que pôde, depois saiu da
água, meio auxiliado por Suwo, e deitou-se ofegante, sobre a
espessa toalha. O velho afundou os dedos. Blackthorne poderia ter
gritado de prazer. - Isto é muito bom.
- O senhor mudou muito nos últimos dias, Anjin-san.
- Mudei?
- Oh, sim, desde o seu renascimento... sim, muito.
Ele tentou se recordar da primeira noite, mas lembrava-se de
550
pouca coisa. De algum modo conseguira voltar para casa sobre
as próprias pernas. Fujiko e as criadas o ajudaram a se deitar.
Após um sono sem sonhos, despertou ao amanhecer e foi nadar.
Depois, secando ao sol, agradecera a Deus a força e a pista que
Mariko lhe dera. Mais tarde, caminhando para casa, saudou os
aldeãos, sabendo secretamente que eles estavam libertos da maldição de Yabu, assim como ele estava.
Depois, quando Mariko chegou, ele mandou buscar Mura.
- Mariko-san, por favor, diga isto a Mura: temos um problema, você e eu. Vamos resolvê-lo juntos. Quero freqüentar a
escola da aldeia. Aprender a falar com as crianças.
- Elas não têm escola, Anjin-san.
- Nenhuma?
- Não. Mura diz que há um mosteiro a algumas ris a oeste
e os monges poderiam ensiná-lo a ler e escrever, se o senhor quisesse. Mas isto é uma aldeia, Anjin-san. As crianças aqui precisam
aprender a pescar, a conhecer o mar, a fazer redes, a plantar e
cultivar o arroz e as plantações. Há pouco tempo para qualquer
outra coisa, quanto mais para ler e escrever. Além disso, os pais e
os avós ensinam as suas crianças, como sempre.
- Então como poderei aprender quando a senhora tiver
partido?
- O Senhor Toranaga enviará os livros.
- Precisarei de mais do que de livros.
- Será tudo satisfatório, Anjin-san.
- Sim. Talvez. Mas diga ao chefe da aldeia que sempre
que eu cometer um erro, qualquer um - qualquer um, até uma
criança - deve me corrigir. Imediatamente. Eu lhe ordeno.
Ele lhe agradece, Anjin-san.
Alguém aqui fala português?
Ele diz que não.
Alguém nos arredores?
1yé, Anjin-san.
Mariko-san, preciso ter alguém para quando a senhora
partir.
Direi isso a Yabu-san.
Mura-san, você...
Ele diz que o senhor não deve usar "san" com ele nem
com nenhum aldeão. Eles estão abaixo do senhor. Não é correto
que o senhor diga "san" a eles ou a qualquer um inferior ao senhor.
Fujiko também se havia curvado até o chão naquele primeiro dia.
551

- Fujiko-san lhe dá as boas-vindas a casa, Anjin-san. Ela
diz que o senhor lhe concedeu uma grande honra e roga o seu
perdão pela rudeza no navio. Sente-se honrada em ser sua consorte e cabeça da sua casa. Pergunta se o senhor conservará as
espadas, coisa que lhe agradará imensamente. Pertenceram ao pai
dela, que já morreu. Ela não as deu ao marido porque ele tinha
suas próprias espadas.
- Agradeça-lhe e diga que fico honrado com que ela seja
consorte - dissera ele.
Mariko curvara-se também. Formalmente. - O senhor está
numa nova vida agora, Anjin-san. Olhamo-lo com novos olhos.
É costume nosso ser formais às vezes, com grande seriedade.
O senhor abriu-me os olhos. Muitíssimo. Antes o senhor era
apenas um bárbaro para mim. Por favor, desculpe a minha estupidez. O que fez prova que é samurai. Agora é samurai. Por
favor, perdoe a minha falta de educação de antes.
Ele se sentira muito alto naquele dia. Mas a sua quase-morte
autoinfligida o alterara mais do que ele mesmo percebia, e o
marcara para sempre, mais do que a soma de todas as suas outras
quase-mortes. Na realidade você não estava contando com Omi?
perguntava-se ele. Omi apararia o golpe? Você não lhe deu sinais
de alarma em profusão?
Não sei. Só sei que estou contente porque ele estava preparado, respondeu Blackthorne a si mesmo. Lá se foi mais uma vida!
- Esta é a minha nona vida. A última! - disse alto. Os
dedos de Suwo pararam no mesmo instante.
- O quê? - perguntou Mariko. - O que disse, Anjin-san?
- Nada. Não foi nada - retrucou ele, constrangido.
- Machuquei-o, amo? - disse Suwo.
- Não.
Suwo disse mais alguma coisa que ele não compreendeu.
- Dozo?
- Ele quer lhe massagear as costas agora - disse Mariko,
distante.
Blackthorne pôs-se de bruços, repetiu as palavras em japonês
e esqueceu imediatamente. Podia vê-la através do vapor. Ela respirava profundamente, a cabeça ligeiramente inclinada para trás,
a pele rosada.
Como é que agüenta o calor? perguntou-se ele. Treinamento,
acho eu, desde a infância.
Os dedos de Suwo lhe causavam grande prazer, e ele cochilou momentaneamente.
552
No que é que eu estava pensando?
Estava pensando na sua nona vida, sua última vida, e estava
com medo, lembrando-se da superstição. Mas é tolice, aqui na
Terra dos Deuses, ser supersticioso. As coisas aqui são diferentes
e isso vale para sempre. Hoje é para sempre.
Amanhã muitas coisas podem acontecer.
Hoje vou me adaptar às regras deles.
Vou, sim.


A criada trouxe o prato coberto. Segurava-o alto, acima da
cabeça, conforme o costume, a fim de que sua respiração não
maculasse o alimento. Ansiosamente ela se ajoelhou e colocou-o
com cuidado sobre a mesa-bandeja diante de Blackthorne. Sobre
cada mesinha havia tigelas e pauzinhos, cálices de saquê e guardanapos, e um minúsculo arranjo de flores. Fujiko e Mariko estavam sentadas em frente a ele. Usavam flores e pentes de prata
no cabelo. O quimono de Fujiko era estampado com peixes verdeclaros sobre um fundo branco, o obi dourado. Mariko usava um
preto e vermelho, com uma fina capa prateada e com crisântemos
e um obi vermelho e prata. Estavam ambas perfumadas, como
sempre. O incenso ardia a fim de manter a distância os insetos
noturnos.
Blackthorne se preparara há muito tempo. Sabia que qualquer
desagrado seu destruiria a noite delas. Se havia como apanhar
faisões, então haveria mais caça, pensou ele. Tinha uni cavalo e
armas, e podia caçar por si mesmo, desde que arrumasse tempo
para isso.
Fujiko inclinou-se para a frente e tirou a tampa de sobre o
prato. Os pedacinhos de carne frita estavam dourados e pareciam
perfeitos. Ele começou a salivar com o aroma.
Lentamente pegou um pedaço com os pauzinhos, desejando
que não caísse, e mastigou. Estava duro e seco, mas ele não comia
carne há tanto tempo que achou delicioso. Outro pedaço. Ele
suspirou de prazer.
- Ichi-ban, ichi-han, por Deus!
Fujiko corou e serviu-lhe o saquê para ocultar o rosto. Mariko
abanou-se, seu leque carmesim uma libélula. Blackthorne bebeu o
vinho a grandes goles, outro pedaço, tomou mais vinho e ritualisticamente ofereceu a Fujiko o cálice cheio até a borda. Ela
recusou, conforme o costume, mas naquela noite ele insistiu, e
ela esvaziou o cálice, engasgando ligeiramente. Mariko também
r
553
recusou e também foi instada a beber. Depois ele atacou o faisão
tentando não demonstrar muito o prazer que sentia. As mulheres
mal tocaram nas pequenas porções de verduras e peixe. Isso não
o incomodou, porque era um costume feminino comer antes ou
depois, de modo que todas as atenções delas pudessem se devotar
ao amo.
Ele comeu o faisão todo, três tigelas de arroz e sorveu ruidosamente o saquê, o que era sinal de boas maneiras. Sentiu-se
saciado pela primeira vez em meses. No decorrer da refeição,
esvaziou seis frascos de vinho quente, Mariko e Fujiko dois entre
si. Agora estavam coradas, dando risadinhas e no estágio da tolice.
Mariko casquinou e pôs a mão diante da boca. - Gostaria
de poder tomar saquê como o senhor, Anjin-san. Bebe melhor do
que qualquer homem que eu jamais tenha conhecido. Aposto como
o senhor seria o melhor em Izu! Eu poderia ganhar muito dinheiro com o senhor!
- Pensei que os samurais desaprovassem o jogo.
- Oh, desaprovam, desaprovam totalmente, eles não são
mercadores ou camponeses. Mas nem todos os samurais são tão
fortes quanto os outros e muitos... como se diz... muitos apostam como os bárbaros ... como os portugueses.
- As mulheres jogam?
- Oh, sim. Muito. Mas apenas com outras damas e em
quantias cuidadosas, e sempre de modo a que os maridos não
descubram! - Alegremente traduziu para Fujiko, que estava mais
corada do que ela. - Sua consorte pergunta se os ingleses jogam.
O senhor gosta de apostas?
- É o nosso passatempo nacional. - E contou-lhe sobre as
corridas de cavalos, boliche, touradas, corridas, corridas de cães,
falcoaria, ações de companhias novas, cartas de corso, tiro, dardos, loterias, boxe, cartas, luta romana, dados, xadrez, dominó, e
sobre a época das feiras, quando se colocavam ceitis sobre números e se apostava na roleta.
- Fujiko pergunta como encontram tempo para viver, para
guerrear e para "travesseirar" - disse Mariko.
- Para isso há sempre tempo. - Seus olhos se encontraram
um instante mas ele não conseguiu ler nada nos dela, apenas
felicidade e, talvez, excesso de vinho.
Mariko pediu-lhe que cantasse a canção hornpipe para Fujiko, e ele o fez. Elas o cumprimentaram e disseram que era a
melhor que já tinham ouvido.
- Tomem mais saquê!
554
- Oh, o senhor não deve servir, Anjin-san, isso é dever de
mulher. Eu não lhe disse?
- Sim. Tome mais um pouco, dozo!
- É melhor não. Acho que vou desabar. - Mariko abanou
o leque furiosamente e o ar agitou os fios de cabelo que haviam
escapado do seu penteado impecável.
- A senhora tem belas orelhas - disse ele.
- O senhor também. Nós, Fujiko-san e eu, achamos que o
seu nariz é perfeito também, digno de um daimio.
Ele sorriu e curvou-se elaboradamente para elas. Elas retribuíram a reverência. As dobras do quimono de Mariko afastaram-se ligeiramente do pescoço, revelando a extremidade do seu
quimono interior escarlate e a protuberância dos seios, e isso o
excitou consideravelmente.
- Saque, Anjin-san?
Ele estendeu o cálice, os dedos firmes. Ela verteu, olhando
o cálice, a ponta da língua tocando os lábios enquanto se concentrava.
Relutantemente Fujiko também aceitou um pouco, embora
dissesse que já não podia sentir as pernas. Sua serena melancolia
parecia ter desaparecido naquela noite e ela parecia jovem de
novo. Blackthorne notou que ela não era tão feia quanto ele pensara uma vez.


Jozen tinha a cabeça zunindo. Não por causa de saquê, mas
devido à incrível estratégia de guerra que Yabu, Omi e Igurashi
lhe descreveram tão abertamente. Apenas Naga, o segundo em
comando, filho do arquiinimigo, não dissera nada, e permanecera
a noite toda frio, arrogante, de costas rijas, com o narigão característico de Toranaga num rosto tenso.
- Surpreendente, Yabu-sama - disse Jozen. - Agora posso
compreender a razão do sigilo. Meu amo também compreenderá.
Sábio, muito sábio. E o senhor, Nagan-san, esteve em silêncio a
noite toda. Gostaria de ouvir a sua opinião. O que acha desta
nova mobilidade, desta nova estratégia?
- Meu pai acredita que todas as possibilidades bélicas devem
ser consideradas, Jozen-san - replicou o jovem.
- Mas e o senhor, a sua opinião?
- Fui mandado para cá apenas para obedecer, observar,
ouvir, aprender e testar. Não para dar opiniões.
- Naturalmente. Mas como segundo em comando, devo di555
zer, como um ilustre segundo em comando, considera a experiência um sucesso?
- Yabu-sama ou Omi-san devem responder a isso. Ou
meu pai.
- Mas Yabu-sama disse que todos esta noite conversaríamos livremente. O que há para ocultar? Somos todos amigos,
neh? O filho tão famoso de um pai tão famoso deve ter uma
opinião. Neh?
Os olhos de Naga estreitaram-se ante o sarcasmo, mas ele
não respondeu.
- Todos podem falar livremente, Naga-san - disse Yabu.
- O que pensa?
- Penso que, tendo a surpresa como aliada, esta idéia venceria uma escaramuça ou possivelmente uma batalha. De surpresa,
sim. Mas e depois? - A voz de Naga fluiu gelidamente. - Depois todos os lados usariam o mesmo plano e uma vasta quantidade de homens morreria desnecessariamente, assassinados sem
honra por um atacante que não vai saber nem a quem matou.
Duvido que meu pai realmente autorize o uso disso numa autêntica batalha.
- Ele disse isso? - Yabu fez a pergunta incisivamente, sem
se preocupar com Jozen.
- Não, Yabu-sama. Estou dando a minha opinião. Naturalmente.
- Mas o Regimento de Mosquetes, não o aprova? Ele lhe
causa repugnância? - perguntou Yabu sobriamente.
Naga olhou-o com olhos inexpressivos, de réptil. - Com
grande respeito, já que o senhor pede a minha opinião, sim, considero-o repugnante. Nossos antepassados sempre souberam a
quem mataram ou quem os derrotava. Isso é bushido, o nosso
caminho, o Caminho do Guerreiro, o caminho de um verdadeiro
samurai. O melhor homem é o vencedor, neh? Mas agora, isto?
Como um homem prova ao seu senhor o próprio valor? Como
pode recompensar a coragem? Atirar balas é corajoso, mas também é estúpido. Onde está o valor disso? As armas são contra o
nosso código samurai. Os bárbaros lutam desse modo, os camponeses lutam desse modo. O senhor percebe que mercadores e camponeses imundos, até elas, poderiam lutar desse modo? - Jozen
riu e Naga continuou, mais ameaçador até. - Alguns camponeses fanáticos poderiam matar qualquer quantidade de samurais,
dispondo de armas suficientes! Sim, camponeses poderiam matar
556
qualquer um de nós, até o Senhor Ishido, que quer se sentar no
lugar do meu pai.
Jozen empertigou-se. - O Senhor Ishido não cobiça as terras
de seu pai. Visa apenas a proteger o império para o seu herdeiro
legítimo.
- Meu pai não é ameaça ao Senhor Yaemon, nem ao reino.
- Naturalmente, mas o senhor estava falando de camponeses. O táicum foi camponês um dia. Meu senhor Ishido foi
camponês. Eu fui camponês. E ronin!
Naga não queria discutir. Sabia que não era páreo para
Jozen, cuja destreza com a espada e o machado era renomada.
- Não estava tentando insultar o seu amo, o senhor ou a quem
quer que seja, Jozen-san. Estava meramente dizendo que nós, samurais, devemos todos nos certificar bem de que os camponeses
nunca terão armas, ou nenhum de nós estará seguro.
- Mercadores e camponeses nunca nos preocuparão - disse
Jozen.
- Concordo - acrescentou Yabu -, e, Naga-san, concordo com parte do que você disse. Sim. Mas as armas são modernas. Logo todas as batalhas serão travadas com armas de fogo.
Concordo em que é desagradável. Mas é o rumo da guerra moderna. E depois as coisas serão como sempre foram: os samurais
mais bravos sempre conquistarão.
- Não, desculpe, mas está enganado, Yabu-sama! O que foi
que esse bárbaro nos contou - a essência da estratégia de guerra
deles? Ele voluntariamente admite que todos os exércitos são recrutados e mercenários. Neh? Mercenários! Nenhum senso de
dever para com o senhor. Os soldados apenas lutam por paga e
saque, para violar e fartar-se. Ele não disse que os exércitos deles
são exércitos de camponeses? Foi isso o que as armas levaram ao
mundo dele, e é isso o que trarão ao nosso. Se eu tivesse poder,
tomaria a cabeça desse bárbaro esta noite e tornaria ilegais todas
as armas permanentemente.
- É isso o que pensa o seu pai? - perguntou Jozen rapidamente.
- Meu pai não diz a mim nem a ninguém o que pensa,
conforme o senhor certamente sabe. Não falo por meu pai, ninguém fala por ele - replicou Naga, furioso por ter-se permitido
cair na armadilha e acabar falando. - Fui mandado para cá a
fim de obedecer, ouvir e não falar. Não teria falado se não tivesse
sido solicitado. Se o ofendi, ou ao senhor, Yabu-sama, ou ao senhor, Omi-san, peço desculpas.
557

- Não há necessidade de se desculpar. Eu pedi sua opinião
- disse Yabu. - Por que alguém ficaria ofendido? Isto é uma
discussão, neh? Entre líderes. Você tornariá ilegais as armas?
- Sim. Acho que o senhor seria prudente mantendo um
controle muito rígido de cada arma de fogo no seu domínio.
- Todos os camponeses estão proibidos de usar armas de
qualquer espécie. Meus camponeses e meu povo são muito bem
controlados.
Jozen sorriu malicioso para o jovem delgado, sentindo aversão por ele. - Tem idéias interessantes, Naga-san. Mas está enganado quanto aos camponeses. Para os samurais eles não são
nada além de provedores. Não representam mais ameaça do que
um monte de esterco!
- No momento! - disse Naga, deixando-se comandar pelo
orgulho. - É por isso que eu baniria as armas agora. Tem razão,
Yabu-sama, ao afirmar que uma nova era exige novos métodos.
Mas por causa do que disse esse Anjin-san, esse único bárbaro,
eu iria muito além das nossas leis atuais. Eu divulgaria editos no
sentido de que toda pessoa que não os samurais encontrada com
uma arma de fogo ou apanhada comerciando com armas imediatamente perderia a vida, assim como cada membro da sua família
de todas as gerações. Mais, eu proibiria a fabricação e a importação de armas de fogo. Proibiria os bárbaros de usá-las e de
trazê-las às nossas praias. Sim, se eu tivesse poder - a que não
viso e jamais visarei -, manteria os bárbaros totalmente fora do
nosso país, exceto por alguns padres e um porto para o comércio,
que eu cercaria com uma cerca alta e guerreiros merecedores de
confiança. Por último, eu mandaria matar imediatamente esse
bárbaro de mente repugnante, o Anjin-san, a fim de que o seu
imundo conhecimento não se difundisse. Ele é uma doença.
- Ah, Naga-san - disse Jozen -, deve ser bom ser tão
jovem. O senhor sabe, meu amo concorda com muita coisa do que
disse sobre os bárbaros. Ouvi-o dizer muitas vezes: "Mantenha-os
fora daqui... chute-os para fora... dê-lhes um pontapé no traseiro de volta a Nagasaki e mantenha-os lá!" O senhor mataria
o Anjin-san, hein? Interessante. O meu amo também não gosta
dele. Mas para ele. . . - Ele parou. - Ah, sim, o senhor tem
um bom pensamento sobre as armas de fogo. Posso ver isso claramente. Posso dizer isso ao meu amo? A sua idéia sobre as novas
leis?
- Naturalmente. - Naga estava abrandado, e mais calmo
558
agora que tinha falado o que trazia atravessado desde o primeiro dia.
- Você deu a sua opinião ao Senhor Toranaga? - perguntou Yabu.
- O Senhor Toranaga não me perguntou a minha opinião.
Espero que um dia ele me honre perguntando, como o senhor o
fez - respondeu Naga de imediato, com sinceridade, e ficou surpreso de que ninguém detectasse a mentira.
- Como isto é uma discussão livre, senhor - disse Omi -,
digo que esse bárbaro é um tesouro. Acredito que devemos aprender com ele. Temos que saber sobre armas e navios de combate,
porque eles sabem sobre isso. Temos que saber tudo o que sabem
assim que ficarem sabendo, e mesmo agora, alguns de nós devem
começar a aprender a pensar como eles, de modo que logo possamos ultrapassá-los.
Naga disse, confiantemente: - O que eles poderiam saber,
Omi-san? Sim, armas e navios. Mas o que mais? Como poderiam
nos destruir? Não há um samurai entre eles. Esse Anjin não admite abertamente que até os reis deles são assassinos e fanáticos
religiosos? Somos milhões, eles são um punhado. Poderíamos esmagá-los apenas com as mãos.
- Esse Anjin-san abriu-me os olhos, Naga-san. Descobri
que a nossa terra e a China não são o mundo todo, são apenas
uma parte muito pequena. Primeiro pensei que o bárbaro fosse
só uma curiosidade. Agora, não. Agradeço aos deuses por ele.
Acho que nos salvou e sei que podemos aprender com ele. Já nos
deu poder sobre os bárbaros meridionais ... e sobre a China.
- O quê?
- O táicum falhou porque os efetivos deles são grandes demais para nós, homem a homem, seta a seta, neh? Com armas e
a habilidade bárbara, poderíamos tomar Pequim.
- Com traição bárbara, Omi-san!
- Com conhecimento bárbaro, Naga-san, poderíamos tomar
Pequim. Quem quer que tome Pequim acaba controlando a China.
E quem quer que controle a China pode controlar o mundo.
Devemos aprender a não nos envergonhar de adquirir conhecimento, venha de onde vier.
- Digo que não precisamos de nada lá de fora.
- Sem ofensa, Naga-san, digo que devemos proteger esta
Terra dos Deuses de qualquer jeito. É o nosso dever primordial
proteger a única e divina posição que temos na terra. Apenas esta
é a Terra dos Deuses, neh? Apenas o nosso imperador é divino.
559
Concordo com que esse bárbaro deva ser silenciado. Mas não pela
morte. Por isolamento permanente aqui em Anjiro, até que tenha.
mos aprendido tudo o que sabe.
Jozen coçou-se pensativamente. - Meu amo será informado
das suas idéias. Concordo em que o bárbaro deve ser isolado.
E também que o treinamento deve cessar imediatamente.
Yabu puxou um pergaminho da manga. - Aqui está um
relatório completo sobre a experiência para o Senhor Ishido.
Quando ele desejar que o treinamento cesse, naturalmente o treinamento cessará.
Jozen aceitou o pergaminho. - E o Senhor Toranaga? E
quanto a ele? - Seus olhos pousaram em Naga. Este não disse
nada, apenas fitou o rolo de pergaminho.
- O senhor terá condição de pedir-lhe a opinião diretamente
- disse Yabu. - Ele tem um relatório semelhante. Presumo que
o senhor partirá para Yedo amanhã, não? Ou gostaria de presenciar o treinamento? Não preciso lhe dizer que os homens ainda
não estão perfeitos.
- Gostaria de assistir a um "ataque".
- Omi-san, providencie. Você comanda.
- Sim, senhor.
Jozen voltou-se para o seu segundo em comando e deu-lhe o
pergaminho. - Masumoto, leve isto ao Senhor Ishido. Parta imediatamente.
- Sim, Jozen-san.
- Providenciê-lhe guias até a fronteira - disse Yabu a
Igurashi -, e cavalos descansados.
Igurashi partiu com o samurai no mesmo instante.
Jozen espreguiçou-se e bocejou. - Por favor, desculpe-me
- disse -, mas é toda a cavalgada dos últimos dias. Devo agradecer-lhe por uma noite extraordinária, Yabu-sama. Suas idéias
têm longo alcance. E as suas, Omi-san. E as suas, Naga-san. Elogiá-lo-ei ao Senhor Toranaga e ao meu amo. Agora, se me desculparem, estou muito cansado e Osaka fica a um longo caminho.
- Naturalmente - disse Yabu. - Como estava Osaka?
- Muito bem. Lembra-se daqueles bandidos, os que os atacaram por terra e por mar?
- Naturalmente.
- Tomamos quatrocentas e cinqüenta cabeças naquela noite.
Muitos usavam uniformes de Toranaga.
- Os ronins não têm honra. Nenhum deles.
- Alguns ronins têm - disse Jozen, aguilhoado com o insulto. Ele vivia sempre com a vergonha de um dia ter sido ronin.
- Alguns usavam até seus novos uniformes cinzentos. Nenhum
escapou. Morreram todos.
- E Buntaro-san?
- Não. Ele... - Jozen parou. O "não" escapara, mas
agora que o tinha dito, não se importou. - Não. Não sabemos
com certeza. Ninguém encontrou a cabeça dele. O senhor não
ouviu nada sobre ele?
- Não - disse Naga.
- Talvez tenha sido capturado. Talvez simplesmente o tenham esquartejado e dispersado os pedaços. Meu amo gostaria de
saber, quando o senhor tiver notícias. Agora está tudo muito bem
em Osaka. Os preparativos para o encontro estão em andamento.
Haverá pródigos entretenimentos para celebrar a nova era, e naturalmente, para honrar todos os daimios.
- E o Senhor Toda Hiro-matsu? - perguntou Naga polidamente.
- O velho Punho de Aço está mais forte e grosseiro do
que nunca.
- Ainda está lá?
- Não. Partiu com todos os homens de seu pai alguns dias
antes de mim.
- E a família de meu pai?
- Ouvi dizer que a Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko
pediram para ficar com o meu amo. Um médico aconselhou a
senhora a descansar por um mês - questão de saúde, o senhor
sabe. Ele achou que a jornada não seria boa para a criança. - A
Yabu acrescentou: - Ela levou um tombo na noite em que o
senhor partiu, não foi?
- Sim.
- Não é nada sério, espero - disse Naga, muito preocupado.
- Não, Naga-san, nada sério - disse Jozen, depois novamente para Yabu: - O senhor informou o Senhor Toranaga da
minha chegada?
-- Naturalmente.
- ótimo.
- As notícias que o senhor nos trouxe vão interessá-lo grandemente.
- Sim. Vi um pombo-correio fazer um círculo e voar para
o norte.
- Disponho desse serviço agora. - Yabu não acrescentou
560
561

que um pombo de Jozen também fora observado, nem que fal.
cões o haviam interceptado perto das montanhas, nem que a
mensagem fora decifrada: "Em Anjiro. Tudo verdade conforme
relatado. Yabu, Naga, Omi e bárbaro aqui".
- Partirei amanhã, com a sua permissão, depois do "ataque". O senhor me dará cavalos descansados? Não devo fazer o
Senhor Toranaga esperar. Estou ansioso por vê-lo. Meu amo também. Em Osaka. Espero que me acompanhe, Naga-san.
- Recebi ordens de vir para cá, ficarei aqui. - Naga manteve os olhos baixos, mas estava ardendo de cólera contida.
Jozen partiu e caminhou com os guardas colina acima, em
direção ao seu acampamento. Substituiu as sentinelas, ordenou
aos homens que dormissem, e entrou na sua pequena tenda de
arbustos que haviam construído contra a chuva que se aproximava. À luz de vela, sob o mosquiteiro, reescreveu a mensagem
anterior num delgado pedaço de papel de arroz, e acrescentou:
"Os quinhentos canhões são letais. Planejados ataques de surpresa
em massa - relatório completo já enviado através de Masumoto".
Depois datou e apagou a vela. Na escuridão, deslizou para fora
do mosquiteiro, retirou um dos pombos dos cestos e colocou a
mensagem no minúsculo recipiente no pé da ave. Depois, furtivamente dirigiu-se a um dos homens e estendeu-lhe o pombo.
- Leve-o para fora do mato - sussurrou ele. - Esconda-o
em algum lugar onde possa pernoitar em segurança até o amanhecer. Tão longe quanto possível. Mas seja cuidadoso, há olhos
por toda parte. Se for interceptado, diga que eu o mandei patrulhar, mas esconda o pombo primeiro. - O homem se afastou tão
silenciosamente quanto uma barata.
Satisfeito consigo mesmo, Jozen olhou na direção da aldeia,
lá embaixo. Havia luzes na fortaleza e na vertente -oposta, na
casa que ele sabia ser de Omi. Havia também algumas na casa
logo abaixo, a casa atualmente ocupada pelo bárbaro.
Aquele rapazola, Naga, tem razão, pensou Jozen, afastando
um mosquito com a mão. O bárbaro é uma praga imunda.


- Boa noite, Fujiko-san.
- Boa noite, Anjin-san.
A shoji fechou-se atrás dela. Blackthorne tirou o quimono,
a tanga, e vestiu o quimono de dormir, mais leve. Enfiou-se sob o
mosquiteiro e deitou-se.
Soprou a vela. Uma profunda escuridão o envolveu. A casa
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estava silenciosa agora. As pequenas janelas estavam fechadas e
ele podia ouvir o mar quebrando na praia. Nuvens obscureciam
a lua.
O vinho e o riso o haviam deixado sonolento e eufórico.
Ouvia a arrebentação e se sentia à deriva com ela, a mente enevoada. Ocasionalmente um cão latia na aldeia lá embaixo. Eu
devia arrumar um cachorro, pensou ele, lembrando-se do bull
terrier em casa. Será que ainda está vivo? O nome era Grog, mas
Tudor, seu filho, sempre chamava o animal de "Og-Og".
Ah, Tudor, rapazinho. Faz tanto tempo.
Gostaria de poder vê-los todos - ou até escrever uma carta
o mandar para casa. Vejamos, pensou, como começaria?
"Meus queridos: esta é a primeira carta que pude mandar
para casa desde que desembarcamos no Japão. As coisas vão bem,
agora que sei como viver de acordo com os modos deles. A comida é terrível, mas esta noite comi um faisão e logo terei o meu
navio de volta. Por onde começar a minha história? Hoje sou
como um senhor feudal nesta terra estranha. Tenho uma casa,
um cavalo, oito criados, uma governanta, meu próprio banheiro,
o minha própria intérprete. Estou limpo e barbeado agora, e me
barbeio todos os dias. As lâminas de aço que eles têm aqui certamente são as melhores do mundo. Meu salário é altíssimo - o
suficiente para alimentar duzentos e cinqüenta famílias do Japão,
por um ano. Na Inglaterra isso seria o equivalente a quase mil
guinéus de ouro por ano! Dez vezes o meu salário na companhia
holandesa. ..A shoji começou a se abrir. A mão dele procurou a pistola
sob o travesseiro e ele se preparou, soerguendo-se. Depois captou
o farfalhar de seda quase imperceptível e um bafejo de perfume.
- Anjin-san? - Um fio de sussurro, cheio de promessa.
- Hai? - perguntou ele de modo igualmente suave, perscrutando a escuridão, incapaz de enxergar com clareza.
Os passos se aproximaram. Houve o som dela ajoelhando-se,
o mosquiteiro sendo puxado para o lado, e ela se juntou a ele sob
a rede. Ela lhe tomou a mão e levou-a ao peito, depois aos lábios.
- Mariko-san?
Imediatamente os dedos dela se estenderam na escuridão e
tocaram-lhe os lábios, pedindo silêncio. Ele assentiu, compreendendo o risco terrível que corriam. Ele segurou-lhe o pulso minúsculo e roçou-o com os lábios. Em meio à escuridão de breu,
a outra mão dele procurou e acariciou o rosto dela. Ela beijou-lhe
os dedos um por um. Seu cabelo estava solto e comprido até a
563
cintura agora. As mãos dele percorreram-lhe o corpo. A adorável
sensação da seda, nada embaixo.
O gosto dela era doce. A língua dele tocou-lhe os dentes,
depois contornou-lhe as orelhas, descobrindo-a. Ela afrouxou o
quimono dele e deixou o seu cair para o lado, a respiração mais
langorosa agora. Ela se achegou mais, aninhando-se a ele, e puxou
a coberta por cima da cabeça deles. Depois começou a amá-lo,
com as mãos e os lábios. Com mais ternura e empenho e conhecimento do que ele jamais conhecera.
CAPÍTULO 33
Blackthorne despertou ao amanhecer. Sozinho. Ao primeiro
momento teve a certeza de haver sonhado, mas o perfume dela
ainda pairava, e ele soube que não fora um sonho.
Uma batida discreta.
- Hai?
- Ohayo, Anjin-san, gornen nasai. - Uma criada abriu a
porta para Fujiko, depois trouxe a bandeja com chá, uma tigela
de papa de arroz e bolos doces de arroz.
- Ohayo, Fujiko-san, domo - disse ele, agradecendo-lhe.
Ela sempre vinha pessoalmente com a primeira refeição, abria o
mosquiteiro e esperava enquanto ele comia, e a criada estendia
um quimono limpo, tabis e uma tanga.
Ele sorveu o chá, perguntando-se se Fujiko sabia sobre o
ocorrido à noite. O rosto dela não traía nada.
- Ikaga desu ka? Como está? - perguntou Blackthorne.
- Okagesama de genki desu, Anjin-san, Anata wa? Muito
bem, obrigada. E o senhor?
A criada tirou a roupa limpa dele do armário fechado que
se fundia com perfeição ao resto do aposento de gelosia de papel,
depois deixou-os a sós.
- Anata wa yoku nemutta ka? Dormiu bem?
- Hai, Anjin-san, arigato gozie,'nashita! - Ela sorriu, pôs
a mão na cabeça simulando dor, estar bêbada e dormir como uma
pedra. - Anata wa?
- Watashi wa yoku nemuru. Eu dormi muito bem.
Ela o corrigiu: - Watashi wa yoku nemutta.
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- Domo. Watashi wa yoku nemutta.
- Yoi! Talhenyoi! Bom. Muito bom.
Então, do corredor, ele ouviu Mariko chamar: - Fujiko-san?
- Hai, Mariko-san? - Fujiko foi à shoji e abriu uma fresta.
Ele não pôde ver Mariko. E não entendeu o que elas diziam.
Espero que ninguém saiba, pensou. Rezo para que seja secreto,
apenas entre nós. Talvez fosse melhor se tivesse sido um sonho.
Começou a se vestir. Fujiko voltou e se ajoelhou para lhe
calçar os tabis.
- Mariko-san? Nan ja?
- Nani-mo, Anjin-san - replicou ela. Não era nada de
importante. Foi até o takonoma, a alcova com os pergaminhos
pendurados e o arranjo de flores, onde as espadas eram sempre
deixadas. Entregou-as a ele. Ele as prendeu no cinto. As espadas
já não lhe pareciam ridículas, embora tivesse vontade de conseguir usá-las com menos consciência de si mesmo.
Ela lhe contara que as espadas tinham sido conferidas ao seu
pai, por bravura, após uma batalha particularmente sangrenta no
extremo-norte da Coréia, sete anos atrás, durante a primeira invasão. Os exércitos japoneses haviam irrompido através do reino,
vitoriosos, retalhando a região norte. Depois, quando estavam
perto do rio Yalu, as hordas chinesas abruptamente brotaram do
outro lado da fronteira para enfrentar os exércitos japoneses e,
devido ao peso das suas tropas inacreditáveis, haviam-nos desbaratado. O pai de Fujiko fazia parte da retaguarda que cobria a
retirada para as montanhas ao norte de Seul, onde se voltaram
e travaram batalha visando a um empate. Essa campanha e a
segunda tinham sido a expedição militar mais dispendiosa jamais
empreendida. Quando o táicum morrera, no ano anterior, Toranaga, em nome do conselho de regentes, imediatamente ordenara
aos remanescentes dos exércitos que regressassem, para grande alívio da maioria dos daimios, que detestavam a campanha coreana.
Blackthorne saiu para a varanda. Calçou as sandálias e fez
um aceno de cabeça aos criados, que tinham sido reunidos em
linha para saudá-lo, como de costume.
Fazia um dia encoberto. O céu estava nublado e um vento
quente e úmido vinha do mar. As alpondras que estavam fixadas
no cascalho do caminho estavam molhadas da chuva que caíra
durante a noite. Além do portão estavam os cavalos e seus dez
samurais batedores.
E Mariko.
Já estava montada e usava um manto amarelo-claro sobre
as calças de seda verde-clara, um chapéu de aba larga e um véu,
preso por fitas amarelas, e luvas. Preso à sela, um guarda-chuva.
- Ohayo - disse ele formalmente. - Ohayo, Mariko-san.
- Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?
- Okagesama de genki desu. Anata wa?
Ela sorriu. - Yoi, arigato goziemashita.
Não deu o menor indício de haver qualquer diferença entre
eles. Mas ele esperava por isso, em público, sabendo como a
situação era perigosa. Seu perfume chegou até ele, que teria gostado de beijá-la ali, diante de todos.
- Ikimasho! - disse ele, e saltou para a sela, acenando
para os samurais para que se pusessem em marcha à frente. Conduziu o cavalo vagarosamente e Mariko se pôs ao seu lado. Quando ficaram sozinhos, ele se descontraiu.
- Mariko.
- Hai?
Então ele disse, em latim: - Você é linda e eu a amo.
- Agradeço-lhe, mas todo aquele vinho da noite passada
faz a minha cabeça não se sentir nem um pouco bela hoje, não
de verdade, e "amor" é uma palavra cristã.
- Você é linda e cristã, e o vinho não poderia afetá-la.
- Obrigada pela mentira, Anjin-san, sim, agradeço-lhe.
- Não. Eu é que devo agradecer.
- Oh? Por quê?
- Nunca "por quê?", nada de "por quê?" Agradeço-lhe
sinceramente.
- Se o vinho e a carne o deixam tão cordial, agradável e
galante - disse ela -, preciso dizer à sua consorte que mova
céus e terra para obtê-los para o senhor todas as noites.
- Sim. Eu repetiria tudo, sempre.
- O senhor está feliz hoje - disse ela. - Ótimo, muito
bom. Mas por quê? Por quê, realmente?
Por sua causa. Você sabe por quê?
Não sei nada, Anjin-san.
Nada? - arreliou ele.
Nada.
ficou perplexo. Estavam os dois sozinhos e em segurança.
Por que "nada" tira a alma do seu sorriso? - pergun
Estupidez! Absoluta estupidez! Esqueci que é mais prudente ser cauteloso. Foi só porque estamos sozinhos e eu queria
falar a respeito. E, na verdade, dizer mais.
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- O senhor fala por enigmas. Não o entendo.
Ele ficou confuso de novo. - Não quer falar a respeito?
Em absoluto?
- A respeito de quê, Anjin-san?
- O que aconteceu a noite passada, então?
- Passei pela sua porta esta noite, quando a minha criada,
Koi, estava com o senhor.
- O quê!
- Nós, sua consorte e eu, achamos que ela seria um presente agradável para o senhor. Ela lhe agradou, não?
Blackthorne estava tentando se recompor. A criada de Mariko
era do tamanho dela, mas mais jovem e nunca tão encantadora e
nunca tão linda, mas sim, estava escuro como piche, e sim, ele
tinha a cabeça enevoada por causa do vinho, mas não, não era a
criada.
- Isso não é possível - disse ele em português.
- O que não é possível, senhor? - perguntou ela, na mesma
língua.
Ele voltou ao latim, já que os batedores não se encontravam
muito afastados, o vento soprando na sua direção. - Por favor,
não brinque comigo. Ninguém pode ouvir. Conheço uma presença
e um perfume.
- Pensou que fosse eu? Oh, não era, Anjin-san. Eu ficaria
honrada, mas eu nunca poderia ... apesar do muito que pudesse
desejar - oh, não, Anjin-san. Não era eu, mas Koi, a minha
criada. Eu ficaria honrada, mas pertenço a outro até que ele esteja morto.
- Sim, mas não era a sua criada. - Ele engoliu a raiva.
- Mas deixe estar como a senhora prefere.
- Era a minha criada, Anjin-san - disse ela, apaziguadora.
- Nós a friccionamos com o meu perfume e instruímo-la: nada
de palavras, apenas toque. Não pensamos um momento sequer
que o senhor acharia que era eu! Isso não foi para ludibriá-lo,
mas para o seu conforto, sabendo que as repugnantes coisas relativas a "travesseiro" o embaraçam. - Ela o fitava com olhos
enormes, inocentes. - Ela lhe agradou, Anjin-san? O senhor agradou a ela.
- Uma brincadeira envolvendo coisas de grande importância às vezes não tem graça.
- Coisas de grande importância serão sempre tratadas com
grande importância. Mas uma criada, na noite, com um homem,
não tem importância.
567
- Não a considero sem importância.
- Agradeço-lhe. Digo o mesmo. Mas uma criada, à noite,
com um homem, é assunto privado e sem importância. É uM
presente dela a ele e, algumas vezes, dele a ela. Nada mais.
- Nunca?
- Às vezes. Mas este assunto de "travesseiro" em particular
não tem a vasta seriedade que o senhor lhe atribui.
- Nunca?
- Apenas quando a mulher e o homem se unem contra a
lei. Neste país.
Ele se conteve, finalmente compreendendo a razão por que
ela negava. - Peço desculpas. Sim, a senhora tem razão e eu
estou muito enganado. Nunca deveria ter falado. Desculpe-me.
- Por que se desculpar? Por quê? Diga-me, Anjin-san, essa
garota usava um crucifixo?
- Não.
- Eu sempre uso. Sempre.
- Um crucifixo pode ser tirado - disse ele automaticamente em português. - Isso não prova nada. Podia ser emprestado,
como um perfume.
- Diga-me uma última verdade: o senhor realmente viu a
garota? Realmente a viu?
- Naturalmente. Por favor, vamos esquecer que.. .
- A noite estava muito escura, a lua nublada. Por favor, a
verdade, Anjin-san. Pense! O senhor realmente viu a garota?
Claro que a vi, pensou ele indignado.
Maldição, pense direito. Você não a viu. A sua cabeça estava
enevoada. Podia ter sido a criada, mas você achou que era Mariko
porque desejava Mariko e na sua cabeça viu apenas Mariko, acreditando que Mariko o desejaria igualmente. Você é um imbecil.
Um maldito imbecil.
- Na verdade, não. Na verdade eu devo realmente pedir
desculpas - disse ele. - Como me desculpar?
- Não há necessidade de se desculpar, Anjin-san - retrucou ela, calmamente. - Já lhe disse muitas vezes que um homem
nunca se desculpa, mesmo quando está errado. - Os olhos dela
o arreliavam agora. - Minha criada não necessita de desculpas.
- Obrigado - disse ele, rindo. - A senhora me fez sentir
como um tolo.
- Os anos desaparecem do senhor, quando ri. O tão sério
Anjin-san torna-se um menino de novo.
- Meu pai dizia que eu nasci velho.
- É mesmo?
- Ele achava que sim.
- Como é ele?
- Era um excelente homem. Um armador, um capitão. Os
espanhóis o mataram num lugar chamado Antuérpia, quando passaram essa cidade pela espada. Queimaram-lhe o navio. Eu tinha
seis anos, mas lembro dele como um homem grande, alto, de boa
índole, com cabelo dourado. Meu irmão mais velho, Arthur, tinha
só oito anos... Tivemos maus momentos, Mariko-san.
- Por quê? Por favor, conte-me. Por favor!
- É tudo muito banal. Cada centavo estava empatado no
navio, que se perdeu ... e, bem, não muito tempo depois disso,
minha irmã morreu. Morreu de fome, realmente. Houve carestia
em 71, e praga, novamente.
- Temos praga às vezes. Varíola. Vocês eram muitos na sua
família?
- Três - disse ele, contente por conversar para afastar a outra mágoa. - Willia, minha irmã, tinha nove anos quando morreu.
Arthur foi o próximo. Queria ser artista, escultor, mas teve que
se tornar aprendiz de pedreiro para ajudar a nos sustentar. Foi
morto na armada. Tinha vinte e cinco anos, o coitado, acabara
de se engajar num navio, sem treinamento, que desperdício. Sou
o último dos Blackthorne. A mulher e a filha de Arthur vivem
com a minha mulher e filhos agora. Minha mãe ainda vive, assim
como a minha avó Jacoba - tem setenta e cinco anos e é resistente como um pedaço de carvalho inglês, embora seja irlandesa.
Pelo menos estavam vivas quando eu parti, há mais de dois anos.
A dor estava voltando. Pensarei neles quando partir para
casa, prometeu ele a si mesmo, mas não antes disso.
- Vai cair uma tempestade amanhã - disse, olhando o
mar. - E forte, Mariko-san. Depois, em três dias, teremos tempo bom.
- Esta é a estação dos temporais. O céu fica nublado a
maior parte do tempo e carregado de chuva. Quando as chuvas
cessam, fica muito úmido. Aí começam os tai-f uns.
Gostaria de estar ao mar agora, pensava ele. Será que estive
ao mar alguma vez? O navio era real? O que é a realidade?
Mariko ou a criada?
- O senhor não ri muito, não é, Anjin-san?
- Estive navegando muito tempo. Os marujos são sempre
sérios. Aprendemos a observar o mar. Estamos sempre observando
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e esperando alguma catástrofe. Tire os olhos do mar um segundo
e ele agarra o seu navio e o transforma em palitos de fósforo.
- Tenho medo do mar --- disse ela.
- Eu também. Um velho pescador me disse um dia: " O
homem que não tem medo do mar logo se afogará, porque se
porá ao largo num dia em que não deveria. Mas nós temos medo
do mar, portanto só naufragamos de vez em quando". - Ele
olhou para ela. - Mariko-san ...
- Sim?
- Poucos minutos atrás a senhora me convenceu de que ...
bem, digamos que fui convencido. Agora não estou. Qual é
verdade? A honro. Eu tenho que saber.
- Os ouvidos servem para ouvir. Claro que foi a criada.
- Essa criada. Posso tê-la sempre que quiser?
- Naturalmente. Mas um homem sábio não o faria.
- Porque eu poderia ficar desapontado? Da próxima vez?
- Possivelmente.
- Acho difícil possuir uma criada e perder uma criada,
difícil não dizer nada...
- "Travesseiro" é um prazer. Do corpo. Não há nada a
ser dito.
- Mas como dizer a uma criada que ela é linda? Que eu a
amo? Que ela me encheu de êxtase?
-- Não é apropriado "amar" uma criada desse modo. Não
aqui, Anjin-san. Essa paixão não é nem para uma esposa ou uma
consorte. -- Os olhos dela se franziram repentinamente. - Mas
apenas para alguém como Kiku-san, cortesã, que é muito bela e
merece isso.
- Onde posso encontrar essa garota?
- Na aldeia. Eu ficaria honrada em servir de intermediária.
- Por Cristo, acho que fala a sério.
- Naturalmente. Um homem precisa de paixões de todos
os tipos. Essa dárna é digna de romance... se o senhor puder
pagar por ela.
- O que quer dizer isso?
- Ela seria muito dispendiosa.
- Não se compra amor. Esse tipo não vale nada. "Amor"
não tem preço.
Ela sorriu. -- "Travesseirar" sempre tem preço. Sempre. Não
necessariamente dinheiro, Anjin-san. Mas um homem paga, sempre, para "travesseirar", de um modo ou de outro. Ao verdadeiro
amor nós chamamos dever, é de alma para alma e não necessita
dessa expressão, da expressão física, exceto, talvez, a dádiva da
morte.
- Está enganada. Gostaria de poder mostrar-lhe o mundo
como ele é.
- Conheço o mundo como é, e como será para sempre.
Deseja aquela criada desprezível de novo?
- Sim. A senhora sabe que sim...
Mariko riu alegremente. - Então ela lhe será enviada. Ao
pôr-do-sol. Nós a escoltaremos, Fujiko e eu!
- Maldição! Acho que a senhora faria isso, mesmo! - Ele
riu com ela.
- Ah, Anjin-san, é bom vê-lo rir. Desde que voltou para
Anjiro, o senhor passou por uma grande mudança. Uma mudança
muito grande.
- Não. Não tanto. Mas a noite passada tive um sonho. Esse
sonho foi a perfeição.
- Deus é a perfeição. E às vezes o pôr-do-sol, ou o nascer
da lua, ou o primeiro açafrão do ano.
- Não a compreendo em absoluto.
Ela passou o véu por sobre o chapéu e olhou diretamente
para ele. - Uma vez outro homem me disse: "Não a compreendo
em absoluto", e o meu marido disse: "Perdão, senhor, mas nenhum
homem consegue compreendê-la. O pai não a compreende, nem
os deuses, nem o Deus bárbaro dela, nem a mãe a compreende".
--J Foi Toranaga? O Senhor Toranaga?
- Oh, não, Anjin-san. Foi o táicum. O Senhor Toranaga me
compreende. Ele compreende tudo.
Até a mim?
Muitíssimo ao senhor.
Tem certeza disso, não?
Sim, muita.
Ele vencerá a guerra?
Sim.
Sou o vassalo favorito dele?
Sim.
Ele vai aceitar a minha marinha?
Sim.
Quando vou reaver o meu navio?
Não vai.
Por quê?
A gravidade dela desvaneceu-se. - Porque o senhor terá a
sua "criada" em Anjiro e estará "travesseirando" tanto, que não
a
570
571

terá energia para partir, nem de quatro, quando ela lhe implorar
que suba a bordo do seu navio, e quando o Senhor Toranaga lhe
pedir que suba a bordo e nos deixe a todos!
- Lá vai a senhora de novo! Num momento tão séria, no
outro não!
- Isso foi só para responder-lhe, Anjin-san, e para pôr certas coisas nos devidos lugares. Ah, mas antes que o senhor nos
deixe, devia ver a Senhora Kiku. Ela é digna de uma grande
paixão. É tão linda e talentosa! Para ela o senhor teria que ser
extraordinário!
- Estou tentado a aceitar esse desafio.
- Não desafio ninguém. Mas se o senhor estivesse preparado para ser samurai e não... não fosse estrangeiro... se estivesse preparado para tratar o "travesseiro" pelo que é, então eu
ficaria honrada em agir como sua intermediária.
- O que significa isso?
- Quando o senhor estiver de bom humor, quando estiver
pronto para diversão muito especial, peça à sua consorte que fale
comigo.
- Por que Fujiko-san?
- Porque é dever da sua consorte providenciar para que o
senhor seja satisfeito. É costume nosso tornar a vida simples.
Admiramos a simplicidade, por isso homens e mulheres podem
ver o "travesseiro" pelo que é: uma parte importante da vida,
certamente, mas entre um homem e uma mulher há coisas mais
essenciais. Humildade, por exemplo. Respeito. Dever. Até esse seu
"amor". Fujiko o "ama".
- Não, não ama!
- Ela dará a vida pelo senhor. O que mais há para dar?
Finalmente ele desviou dela os olhos e fitou o mar. As ondas
encapelavam-se na praia à medida que o vento ganhava forças.
Voltou-se para ela. - Então não há nada a dizer? - perguntou.
- Entre nós?
- Nada. Isso é prudente.
- E se eu não concordar?
- O senhor tem que concordar. Está aqui. Este é o seu lar.
Os quinhentos atacantes galoparam através do flanco da colina num grupo desorganizado, desceram para o vale salpicado de
pedras, onde os dois mil "defensores" estavam alinhados numa formação de batalha. Cada cavaleiro trazia um mosquete passado às
costas e um cinto com cartucheiras para balas, pederneiras e um
chifre de pólvora. Como as da maioria dos samurais, suas roupas
eram uma heterogênea reunião de quimonos e trapos, mas as
armas sempre as melhores que podiam pagar. Apenas Toranaga
e Ishido, copiando o primeiro, insistiam em que seus homens se
uniformizassem e fossem meticulosos no trajar. Todos os outros
consideravam essa extravagância material como um tolo esbanjamento de dinheiro, uma inovação desnecessária. Até Blackthorne
concordava com isso. Os exércitos na Europa nunca usavam uniformes - que rei podia se permitir isso, exceto para uma guarda
pessoal?
Blackthorne estava em pé numa elevação com Yabu e seus
ajudantes, Jozen e todos os seus homens, e Mariko. Aquele era
o primeiro ensaio de ataque em larga escala. Ele aguardava inquieto. Yabu estava excepcionalmente tenso, e Omi e Naga estavam suscetíveis quase ao ponto de beligerância. Particularmente
Naga.
- O que está acontecendo com todo mundo? - perguntara
a Mariko.
- Talvez desejem fazer bonito na frente do seu senhor e do
hóspede.
- Ele também é um daimio?
- Não. Mas é importante, é um dos generais do Senhor
Ishido. Seria bom se tudo saísse perfeito hoje.
- Gostaria de que me tivessem prevenido de que haveria
um ensaio.
- De que teria servido isso? Tudo o que podia fazer, o
senhor fez.
Sim, pensou Blackthorne, enquanto olhava os quinhentos.
Mas eles ainda estão longe de estarem prontos. Certamente Yabu
sabe disso, todo mundo sabe. Portanto, se houver um desastre,
bem, será karma, disse ele a si mesmo com mais confiança, e
encontrou consolo nesse pensamento.
Os atacantes ganhavam velocidade e os defensores se mantinham à espera sob as bandeiras de seus capitães, escarnecendo do
"inimigo' como fariam normalmente, enfileirados numa formação
ampla, com uma profundidade de três ou quatro homens. Logo
os atacantes desmontariam fora do alcance de uma seta. Depois
os guerreiros mais valentes de ambos os lados truculentamente
avançariam, arrogantes, para lançar o desafio, proclamando a própria linhagem e superioridade com os insultos óbvios. Teriam início conflitos armados isolados, o número de participantes gradual573
572
1
mente iria aumentando, até que um comandante ordenasse ura
ataque geral e aí era cada um por si. Normalmente o grupo maior
derrotava o menor, depois as reservas eram trazidas e a confusão
se repetia até que o moral de um lado arrefecia, e aos poucos
covardes que se retiravam logo se unia a maioria, sucedendo-se
uma debandada. A traição não era habitual. Algumas vezes regimentos inteiros, seguindo as ordens do amo, trocavam de lado,
para serem bem-vindos como aliados - sempre bem-vindos, mas
nunca merecedores de confiança. Algumas vezes os comandantes
derrotados corriam para se reagruparem a fim de lutar de novo.
Algumas vezes ficavam e lutavam até a morte, algumas vezes
cometiam seppuku com cerimônia. Raramente eram capturados.
Alguns ofereciam seus serviços aos vitoriosos. Algumas vezes isso
era aceito, mas na maioria era recusado. A morte era o quinhão
dos derrotados, rápida para os bravos e vergonhosa para os covardes. E esse era o padrão histórico de todas as escaramuças no
país, mesmo nas grandes batalhas. Os soldados ali eram o mesmo
que em qualquer outro lugar, com a diferença de que eram ferozes e havia muitos, muitos mais preparados para morrer pelos
respectivos amos do que em qualquer outro lugar na terra.
O tropel dos cascos ecoou no vale.
- Onde está o comandante do ataque? Onde está Omi-san?
- perguntou Jozen.
- No meio dos homens, tenha paciência - respondeu Yabu.
- Mas onde está o estandarte dele? E por que não está
usando armadura e plumas de combate? Onde está o estandarte
do comandante? São exatamente como um bando de bandidos
imundos!
- Seja paciente! Todos os oficiais têm ordens de permanecer indistinguíveis. Eu lhe disse. E por favor, não se esqueça de
que estamos simulando uma batalha no auge, que isto é parte de
uma grande batalha, com reservas e ar...
Jozen explodiu: - Onde estão as espadas deles? Nenhum
está usando espadas! Samurais sem espadas? Seriam massacrados!
- Seja paciente!
Agora os atacantes estavam desmontando. Os primeiros guerreiros avançaram das posições de defesa para mostrar o seu valor.
E um número igual de defensores começou a imitá-los. Então, de
repente, a canhestra massa de atacantes precipitou-se em cinco
falanges cerradas e disciplinadas, cada uma com quatro fileiras
de vinte e cinco homens, três falanges à frente e duas na reserva,
quarenta passos atrás. Como um todo, investiram contra o inimi574
go. Atingindo o raio de tiro, detiveram-se com um estremecimento
e as fileiras da frente dispararam, em uníssono, uma salva de
rebentar os ouvidos. Gritos e homens morrendo. Jozen e seus
homens abaixaram-se reflexamente, depois olharam atônitos quando as fileiras da frente se ajoelharam e começaram a recarregar,
enquanto as segundas fileiras faziam fogo por cima delas, com as
terceiras e quartas fileiras seguindo o mesmo esquema. A cada
salva mais defensores caíam, e o vale se encheu de tiros, gritos e
confusão.
- O senhor está matando seus próprios homens! - gritou
Jozen por sobre o tumulto.
- É munição vazia, não é real. Estão todos representando,
mas imagine que se trata de um ataque real, com balas de verdade! Olhe!
Os defensores "recuperaram-se" do choque inicial. Reagruparam-se e fizeram meia-volta para um ataque frontal. Mas a
essa altura as fileiras da frente já haviam recarregado e, a uma
ordem, dispararam outra salva de uma posição ajoelhada, depois
a segunda fila atirou de pé, imediatamente se ajoelhando para recarregar, depois a terceira e a quarta, como antes, e embora muitos mosqueteiros fossem lentos e as fileiras se desordenassem, foi
fácil imaginar a terrível dizimação que homens treinados causariam. O contra-ataque falhou, depois se dissolveu, e os defensores
se retiraram numa confusão simulada, até a elevação, parando logo
abaixo dos observadores. Muitos "mortos" jaziam pelo chão.
Jozen e seus homens estavam abalados. - Essas armas romperiam qualquer linha!
- Espere. A batalha não terminou!
Novamente os defensores se formaram e agora seus comandantes os exortaram à vitória, convocaram as reservas, e ordenaram o ataque geral final. Os samurais correram colina abaixo,
emitindo seus terríveis gritos de batalha, para cair em cima do
inimigo.
- Agora serão esmagados - disse Jozen, envolvido como
todos os outros pelo realismo da batalha simulada.
E estava certo. As falanges não resistiram. Romperam-se e
dispararam na corrida, sob os gritos de batalha dos samurais autênticos, com espadas e lanças, e Jozen e seus homens uniram
seus gritos de escárnio ao alarido quando os regimentos se arremessaram para a matança. Os mosqueteiros corriam como os comedores de alho, cem passos, duzentos passos, trezentos, então,
de repente, a uma ordem, as falanges se reagruparam, desta vez
575

numa formação em V. Novamente as salvas ensurdecedoras começaram. O ataque vacilou. Depois parou. Mas os tiros conti.
nuaram. Depois também pararam. O jogo terminara. Mas todos
na elevação sabiam que em condições reais os dois mil teriam sido
massacrados.
Agora, em silêncio, defensores e atacantes começaram a se
separar. Os "corpos" se levantaram, armas foram coletadas. Houve
risos e gemidos. Muitos homens mancavam e alguns estavam com
ferimentos mais graves.
- Cumprimento-o, Yabu-sama! - disse Jozen com grande
sinceridade. - Agora compreendo tudo o que o senhor queria
dizer!
- O tiroteio estava disperso - disse Yabu, inteiramente
encantado. - Vai levar meses para treiná-los.
Jozen balançou a cabeça. - Eu não gostaria de atacá-los
agora. Não se tivessem munição verdadeira. Nenhum exército
poderia resistir àquele murro, nenhum alinhamento. As fileiras
nunca conseguiriam permanecer fechadas. E então se lançariam
tropas comuns e cavalaria através da brecha e se enrolariam os
lados como se fosse um velho pergaminho. - Ele agradecia a
todos os kamis por ter tido o bom senso de assistir a um ataque.
- Foi terrível de assistir. Por um instante pensei que a batalha
fosse real.
- Eles receberam ordens de fazer parecer real. E agora o
senhor pode revistar os meus mosqueteiros, se desejar.
- Obrigado. Isso seria uma honra.
Os defensores estavam afluindo para os seus acampamentos
que se erguiam no flanco da colina oposta. Os quinhentos mosqueteiros esperavam embaixo, perto do caminho que subia pela
elevação e descia para a aldeia. Estavam se formando nas suas
companhias. Omi e Naga à frente deles, ambos usando espadas
de novo.
- Yabu-sama?
- Sim, Anjin-san?
- Bom, não?
- Sim, bom.
- Obrigado, Yabu-sama. Eu satisfaço.
Mariko corrigiu-o automaticamente: - "Fico satisfeito."
- Ah, desculpe. Fico satisfeito.
Jozen chamou Yabu de lado. - Isso saiu tudo da cabeça do
Anjin-san?
576
- Não - mentiu Yabu. - Mas é o modo como os bárbaros lutam. Ele está só treinando os homens a carregar e atirar.
- Por que não fazer o que Naga-san aconselhou? O senhor
tem o conhecimento do bárbaro agora. Por que correr o risco de
que isso se espalhe? Ele é uma praga. Muito perigoso, Yabu-sama.
Naga-san tinha razão. É verdade: os camponeses poderiam combater deste modo. Facilmente. Livre-se do bárbaro já.
- Se o Senhor Ishido quiser a cabeça dele, só terá que
pedir.
- Eu peço. Agora. - Novamente a truculência. - Falo
com a voz dele.
- Considerarei isso, Jozen-san.
- E também, em nome dele, peço que se retirem todas as
armas daqueles homens imediatamente.
Yabu franziu o cenho, depois voltou a atenção para as companhias. Estavam se aproximando do topo da colina, as fileiras
em ordem, disciplinadas, levemente ridículas como sempre, só
porque aquela formação não era habitual. A cinqüenta passos de
distância, pararam. Omi e Naga avançaram sozinhos e saudaram.
- Estava bem para um primeiro exercício - disse Yabu.
- Obrigado, senhor - respondeu Omi. Coxeava levemente
e tinha o rosto sujo, escoriado, marcado de pólvora.
- Suas tropas teriam que portar espadas numa batalha real,
Yabu-sama, neh? - disse Jozen. - Um samurai tem que portar
espadas. Eventualmente ficariam sem munição, neh?
- As espadas terão o seu papel, no ataque e na retirada.
Oh, eles as usarão como sempre para manter a surpresa, mas, logo
depois da primeira carga, livram-se delas.
- Samurais sempre precisarão de espadas. Numa batalha
real. Ainda assim, estou contente porque não teremos nunca que
usar esta força de ataque, ou. . . - Jozen ia acrescentar "ou esse
imundo e traiçoeiro método de guerra". Mas disse: - ...ou
teremos todos que abandonar nossas espadas.
- Talvez tenhamos, Jozen-san, quando formos à guerra.
- O senhor renunciaria à sua lâmina Murasama? Ou mesmo
ao presente de Toranaga?
- Para vencer uma batalha, sim. De outro modo não.
- Então o senhor talvez tivesse que correr bem depressa
para salvar as frutas quando o seu mosquete emperrasse ou a
pólvora molhasse. - Jozen riu com o próprio gracejo. Yabu não.
- Omi-san! Mostrê-lhe! - ordenou.
Imediatamente Omi deu uma ordem. Seus homens puxaram
577
a pequena baioneta embainhada que pendia quase despercebida
nas costas do cinto de cada um e a enfiaram na cavidade da boca
dos mosquetes.
- Atacar!
Imediatamente os samurais investiram com o seu grito de
batalha:
- Kasigiiiiii!
A floresta de aço nu parou a um passo deles. Jozen e seus
homens riram nervosamente devido à repentina e insuspeita ferocidade. - Bom, muito bom - disse Jozen. Estendeu a mão e
tocou uma baioneta. Era extremamente afiada. - Talvez tenha
razão, Yabu-sarna. Esperemos que isto não tenha que ser testado.
- Omi-san! - chamou Yabu. - Forme-os. Jozen-san vai
revistá-los. Depois voltem para o acampamento. Mariko-san,
Anjin-san, sigam-me! - Desceu a passos largos da elevação, por
entre as fileiras, seguido dos auxiliares, de Blackthorne e Mariko.
- Formar no caminho. Substituir baionetas!
Metade dos homens obedeceram no mesmo instante, deram
meia-volta e desceram a vertente de novo. Naga e seus duzentos
e cinqüenta samurais continuaram onde estavam, as baionetas
ainda ameaçando.
Jozen indignou-se. - O que está havendo?
- Considero seus insultos intoleráveis - disse Naga malignamente.
- Isso é absurdo. Não o insultei, nem a ninguém! As suas
baionetas é que insultam a minha posição! Yabu-sama!
Yabu voltou-se. Estava agora do outro lado do contingente
Toranaga. - Naga-san - chamou friamente -, o que significa
isso?
- Não posso perdoar a esse homem os insultos a meu pai,
ou a mim.
- Ele está protegido. Você não pode tocá-lo! Está sob o
emblema dos regentes!
- Seu perdão, Yabu-sama, mas isto é entre mim e Jozen-san.
- Não. Você está sob as minhas ordens. Ordeno-lhe que
diga aos seus homens que regressem ao acampamento.
Nem um homem se moveu. A chuva começou.
- Seu perdão, Yabu-san, por favor, perdoe-me, mas isto é
entre mim e ele, e aconteça o que acontecer, isento-o de toda
responsabilidade pelo meu ato e o dos meus homens.
Atrás de Naga, um dos homens de Jozen sacou a espada e
avançou para as costas desprotegidas de Naga. Uma saraivada de
578
vinte mosquetes estourou-lhe a cabeça imediatamente. Esses vinte
homens se ajoelharam e começaram a recarregar. A segunda fileira preparou-se.
- Quem ordenou munição real? - perguntou Yabu.
- Eu. Eu, Yoshi-noh-Toranaga!
- Naga-san! Ordeno-lhe que deixe Nebara Jozen e seus
homens irem-se livremente. Ordeno-lhe que se retire para o seu
alojamento até que eu possa consultar o Senhor Toranaga sobre
a sua insubordinação!
- Naturalmente o senhor informará o Senhor Toranaga, e
karma é karma. Mas lamento, Senhor Yabu, que antes este homem
precise morrer. Todos devem morrer. Hoje!
Jozen estremeceu. - Estou protegido pelos regentes! Você
não ganhará nada me matando.
- Recupero minha honra, neh? - disse Naga. - Retribuolhe as zombarias a meu pai e seus insultos a mim. Mas o senhor
teria que morrer de qualquer maneira, neh? Eu não poderia ter
sido mais claro a noite passada. Agora o senhor assistiu a um
ataque. Não posso correr o risco de que Ishido tome conhecimento de todo este... - sua mão apontou para o campo de batalha
- . . . este horror!
- Ele já sabe! - deixou escapar Jozen, abençoando a própria antevisão da noite precedente. - Ele já sabe! Mandei uma
mensagem por pombo secretamente ao amanhecer! Não ganha
nada me matando, Naga-san!
Naga fez sinal a um dos seus homens, um velho samurai, que
avançou e atirou o pombo estrangulado aos pés de Jozen. Depois
a cabeça decepada de um homem também foi atirada ao chão -
a cabeça do samurai, Masumoto, enviado na véspera por Jozen
com o pergaminho. Os olhos ainda estavam abertos, os lábios repuxados numa careta de ódio. A cabeça começou a rolar. Foi aos
trambolhões por entre as fileiras até pousar contra uma rocha.
Um gemido irrompeu dos lábios de Jozen. Naga e todos os
seus homens riram. Até Yabu sorriu. Outro dos samurais de Jozen
saltou para Naga. Vinte mosquetes espocaram e o homem atrás
dele, que não tinha se movido, também caiu em agonia, mortalmente ferido.
O riso cessou.
- Devo ordenar aos meus homens que ataquem, senhor?
- perguntou Omi. Fora tão fácil manobrar Naga.
Yabu enxugou a chuva do rosto. - Não, isso não serviria
para nada. Jozen-san e seus homens já estão mortos, não importa
579

o que eu faça. É o karma dele, assim como Naga tem o seu.
Naga-san! - bradou ele. - Pela última vez, ordeno-lhe que os
deixe partir!
- Por favor, desculpe-me, mas tenho que recusar.
- Muito bem. Quando estiver acabado, apresente-se a mim.
- Sim. Deve haver uma testemunha oficial, Yabu-sarna.
Para o Senhor Toranaga e para o Senhor Ishido.
- Omi-san, você fica. Assinará o certificado de morte e fará
o relatório. Naga-san e eu o rubricaremos.
Naga apontou para Blackthorne. - Deixe-o ficar também.
Igualmente como testemunha. Ele é responsável pela morte deles.
Devia testemunhar.
- Anjin-san, suba até aqui! Junto de Naga-san! Compreendeu?
- Sim, Yabu-san. Compreendi, mas por quê, por favor?
- Para ser uma testemunha.
- Desculpe, não compreendi.
- Mariko-san, explique "testemunha" a ele, que ele deve
testemunhar o que vai acontecer, depois acompanhe-me. - Ocultando a sua imensa satisfação, Yabu voltou-se e se afastou.
Jozen estremeceu. - Yabu-san! Por favor! Yabuuuuuusamaaaa!
Blackthorne assentiu. Quando terminou, voltou para casa.
Havia silêncio na casa e uma mortalha sobre a aldeia. Um banho
não o fez sentir-se limpo. O saque não lhe tirou o gosto da boca.
O incenso não lhe desobstruiu o mau cheiro das narinas.
Mais tarde Yabu mandou buscá-lo. O ataque foi dissecado,
momento a momento. Omi e Naga estavam lá, com Mariko -
Naga como sempre, frio, ouvindo, raramente comentando, ainda
segundo em comando. Nenhum deles parecia tocado pelo que
ocorrera.
Trabalharam até depois do pôr-do-sol. Yabu ordenou que o
ritmo do treinamento fosse acelerado. Um segundo grupo de quinhentos devia ser formado imediatamente. Dentro de uma semana,
outro.
Blackthorne caminhou para casa sozinho, comeu sozinho, acossado pela sua assombrosa descoberta: que eles não tinham
sentido de pecado, eram todos sem consciência - até Mariko.
Naquela noite não conseguiu dormir. Saiu de casa, o vento
lutando contra ele. Rajadas faziam espumar as ondas. Uma lufada
580
mais forte lançou entulho com estrépito contra uma cabana da
aldeia. Cães uivavam para o céu, andando à cata de alimento. Os
telhados de palha de arroz moviam-se como coisas vivas. Venezianas batiam com violência e homens e mulheres, espectros silenciosos, esforçavam-se por fechá-las e fixá-las com traves. A
maré subia lentamente. Todos os botes de pesca tinham sido puxados para a segurança da praia, muito mais longe do que o habitual. Tudo fora fixado com sarrafos. Ele caminhou pela praia,
depois voltou para casa, vergado pela pressão do vento. Não
encontrara ninguém. A chuva começou a cair em rajadas e ele
logo ficou encharcado.
Fujiko o esperava na varanda, o vento açoitando-a, fazendo
pingar a lâmpada de óleo protegida por um anteparo. Estavam
todos acordados. Criados carregavam valores para o depósito de
pedra no fundo do jardim.
A ventania ainda não era ameaçadora.
Uma telha virou, solta, quando o vento penetrou sob uma
aba do telhado, que estremeceu todo. A telha caiu e se espatifou
sonoramente. Criados se alvoroçavam ao redor, alguns preparando
baldes de água, outros tentando consertar o telhado. O velho jardineiro, Ueki-ya, ajudado por crianças, amarrava os arbustos e as
árvores tenros a estacas de bambu.
Outra rajada balançou a casa.
- Vai desabar, Mariko-san.
Ela não disse nada, o vento ferindo-a e a Fujiko, provocando-lhes lágrimas nos cantos dos olhos. Ele olhou para a aldeia.
Os detritos estavam sendo atirados por toda parte. Então o vento
se introduziu por um rasgão na shoji de papel de uma construção
e a parede inteira sumiu, deixando apenas um esqueleto entrelaçado. A parede oposta esfacelou-se e o telhado ruiu.
Blackthorne voltou-se, indefeso, quando uma shoji do seu
quarto veio abaixo. Aquela parede desapareceu, e o mesmo aconteceu com a oposta. Logo todas as paredes estavam em tiras. Ele
podia ver através da casa toda. Mas os suportes do telhado agüentaram e o telhado não se deslocou. Leitos, lanternas e esteiras
estavam sendo arrastados, criados atrás deles.
A tempestade demoliu as paredes de todas as casas da aldeia.
E algumas foram-completamente arrasadas. Ninguém se feriu gravemente. Ao amanhecer o vento acalmou e homens e mulheres
começaram a reconstruir seus lares.
Pelo meio-dia as paredes da casa de Blackthorne tinham sido
refeitas e metade da aldeia estava de volta ao normal. As paredes
581

de treliça leve requeriam pouco trabalho para serem erguidas mais
uma vez, apenas cavilhas de madeira e amarras para conexões que
eram sempre encaixadas e carpintejadas com grande habilidade.
Os telhados de telhas e sapé eram mais difíceis, mas ele viu que
as pessoas se ajudavam mutuamente, sorridentes, rápidas e com
muita prática. Mura corria pela aldeia, aconselhando, orientando
e supervisionando. Subiu a colina para inspecionar os progressos.
- Mura, você fez - Blackthorne procurou as palavras -,
você faz a coisa parecer fácil.
- Ah, obrigado, Anjin-san. Sim, obrigado, mas fomos felizes de não ter havido incêndios.
- Vocês incêndios com freqüências?
- Desculpe: "Vocês têm incêndios com freqüência?"
- Vocês têm incêndios com freqüência? - repetiu Blackthorne.
- Sim. Mas eu havia dado ordens para que a aldeia se
preparasse. "Preparasse", o senhor compreende?
- Sim.
- Quando essas tempestades começam. . . - Mura se retesou e olhou por sobre o ombro de Blackthorne. Sua mesura foi
profunda.
Omi estava se aproximando no seu passo gingado, os olhos
amistosos apenas em Blackthorne, como se Mura não existisse.
- Bom dia, Anjin-san.
- Bom dia, Omi-san. Sua casa está bem?
- Sim. Obrigado. - Omi olhou para Mura e disse bruscamente: - Os homens deviam estar pescando, ou trabalhando os
campos. As mulheres também. Yabu-san quer seus impostos. Estão
tentando me envergonhar na frente dele com a sua preguiça?
- Não, Omi-san. Por favor, desculpe-me. Providenciarei
imediatamente.
- Não devia ser necessário dizer-lhe. Não lhe direi na próxima vez.
- Peço desculpas pela minha estupidez. - Mura afastou-se
às pressas.
- O senhor está bem hoje - disse Omi a Blackthorne.
- Nenhum problema à noite?
- Bem hoje, obrigado. E o senhor?
Omi falou longamente. Blackthorne não assimilou tudo, assim
como não compreendera tudo o que Omi dissera a Mura, só
algumas palavras aqui, outras ali.
- Desculpe. Não compreendo.
582
- Gostou? Gostou de ontem? Do ataque? Da batalha simulada?
- Ah, compreendo. Sim, acho bom.
- E o testemunho?
- Por favor?
- Testemunho! O ronin Nebara Jozen e seus homens? -
Omi imitou a estocada de baioneta com uma risada. - O senhor
testemunhou a morte deles. Morte! Compreende?
- Ah, sim. A verdade, Omi-san, não gostar matanças.
-. Karma, Anjin-san.
- Karma. Hoje treinamento?
- Sim. Mas Yabu-sarna quer conversar apenas. Mais tarde.
Compreendeu, Anjin-san? Apenas conversar, mais tarde - Omi
repetia pacientemente.
- Conversar apenas. Compreender.
- Está começando a falar a nossa língua muito bem. Sim.
Muito bem.
- Obrigado. Difícil. Pequeno tempo.
- Sim. Mas o senhor é um bom homem e tenta arduamente.
Isso é importante. Nós lhe daremos tempo, Anjin-san, não se
preocupe. Eu o ajudarei. - Omi podia ver que a maior parte do
que dizia se perdia, mas não importava, desde que Anjin-san
captasse o essencial. - Quero ser seu amigo - disse, e repetiu
com toda a clareza. - Compreende?
- Amigo? Eu compreendo "amigo".
Omi apontou para si mesmo, depois para Blackthorne. Quero ser seu amigo.
- Ah! Obrigado. Honrado.
Omi sorriu de novo e curvou-se, de igual para igual, e se
afastou.
- Amigo dele? - resmungou Blackthorne. - Será que ele
esqueceu? Eu não.
- Ah, Anjin-san - disse Fujiko, correndo na sua direção.
- Gostaria de comer? Yabu-sarna vai mandar buscá-lo dentro em
breve
1- Sim, obrigado. Muitos quebras? perguntou ele, apontando para a casa.
- Desculpe-me, sinto muito, mas o senhor deve dizer:
"Houve muitos danos?"
- Houve muitos danos?
- Nenhum dano real, Anjin-san.
- Ótimo. Não ferimentos?
583

- Desculpe-me, sinto muito, o senhor deve dizer: "Ninguém
se feriu?- Obrigado. Ninguém se feriu?
- Não, Anjin-san. Ninguém se feriu.
De repente Blackthorne se cansou de ser continuamente corrigido, então encerrou a conversa com uma ordem. - Estou
fome! Comida!
- Sim, imediatamente. Desculpe, mas o senhor deve dizer:
"Estou com fome". Uma pessoa tem fome, mas está com fome,
ou faminta. - Esperou até que ele dissesse corretamente, depois
se afastou.
Ele se sentou na varanda e observou Ueki-ya, o velho jardineiro, limpando o estrago e as folhas dispersas. Podia ver mulheres e crianças consertando a aldeia, e barcos saindo para o mar
encapelado. Gostaria de saber que impostos eles têm que pagar,
disse a si mesmo. Eu odiaria ser um camponês aqui. Não só aqui
- em qualquer lugar.
À primeira luz ele ficara desolado com a aparente devastação
da aldeia.
- Essa tempestade mal tocaria uma casa inglesa - dissera
a Mariko. - Oh, foi uma ventania, está certo, mas não foi séria.
Por que vocês não constroem com pedra ou tijolos?
- Por causa dos terremotos, Anjin-san. Qualquer construção de pedra naturalmente racharia e desabaria, e provavelmente
feriria ou mataria os moradores. Com o nosso estilo de construção, o dano é pequeno. O senhor verá como tudo será rapidamente reconstruído.
- Sim, mas vocês têm riscos de incêndio. E o que acontece
quando chegam os Grandes Ventos? Os tai-funs?
- Aí é muito mau.
Ela explicara sobre os tai-funs e as estações deles - de junho
a setembro, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. E sobre as
outras catástrofes naturais.
Poucos dias antes tinha havido outro tremor. Fora leve. Uma
chaleira caíra do braseiro e o derrubara. Felizmente as brasas
tinham sido apagadas. Uma casa na aldeia pegara fogo, mas o
incêndio não se alastrara. Blackthorne nunca vira um combate ao
fogo tão eficiente. Além disso, ninguém na aldeia prestara muita atenção. Simplesmente riram e continuaram com a vida de
todo dia.
- Por que as pessoas riem?
- Consideramos muito vergonhoso e descortês demonstrar
sentimentos fortes, particularmente o medo, então ocultamo-los
com uma risada ou um sorriso. Claro que ficamos todos com
medo, embora não devamos demonstrá-lo.
Alguns de vocês demonstram, pensou Blackthorne.
Nebara Jozen demonstrara. Morrera pessimamente, soluçando de medo, implorando clemência, uma morte lenta e cruel.
Deram-lhe permissão para correr, depois fora baionetado cuidadosamente por entre risadas, depois forçado a correr de novo, e
novamente paralisado. Em seguida deixaram-no rastejar, depois
estriparam-no lentamente, enquanto urrava, ó sangue gotejando,
e abandonaram-no para morrer.
Em seguida Naga voltara a atenção para os outros samurais.
Imediatamente três dos homens de Jozen se ajoelharam, despiram
o ventre e sacaram as adagas para cometer o seppuku ritual. Três
dos seus companheiros postaram-se atrás deles como assistentes,
as espadas compridas desembainhadas e levantadas, nenhum deles
molestado por Naga ou seus homens. Quando os samurais ajoelhados estenderam a mão para a faca, os assistentes esticaram-lhes
o pescoço e as três espadas faiscaram e os decapitaram com um
único golpe. As cabeças rolaram, chocalhando dentes, depois ficaram imóveis. Moscas enxamearam.
Depois dois samurais se ajoelharam, o último homem em pé,
pronto para agir como auxiliar. O primeiro ajoelhado foi decapitado à maneira dos companheiros quando se lançou para a faca.
O outro disse: - Não, eu, Hirasaki Kenko, sei como morrer ...
como um samurai deve morrer.
Kenko era um jovem suave, perfumado e quase bonito, de
pele pálida, o cabelo bem oleado e muito arrumado. Pegou a faca
reverentemente e envolveu parcialmente a lâmina com o sash para
segurá-la melhor.
- Protesto contra a morte de Nebara Jozen-san e destes
homens - disse com firmeza, curvando-se para Naga. Deu uma
última olhada para o céu e ao auxiliar um último sorriso tranqüilizador. - Sayonara, Tadeo. - Depois enterrou a faca no lado
esquerdo do estômago. Com as duas mãos, rasgou de lado a lado,
tirou a faca e mergulhou-a mais fundo ainda, bem acima da virilha, e arrancou-a em silêncio. Seus intestinos dilacerados derramaram-se sobre o colo e enquanto seu rosto horrivelmente contorcido, torturado, se lançava para a frente, seu auxiliar desceu a
espada num único arco fustigante.
Naga pessoalmente pegou-lhe a cabeça pelo cabelo, limpou
a sujeira e fechou-lhe os olhos. Depois disse a seus homens que
584
585

providenciassem para que a cabeça fosse lavada, embrulhada e
enviada a Ishido com honras totais, com um relato completo da
bravura de Hirasaki Kenko.
O último samurai se ajoelhou. Não sobrara ninguém para
assisti-lo. Também ele era jovem. Seus dedos tremiam e o medo
o consumia. Por duas vezes cumprira o seu dever para com os
companheiros, por duas vezes cortara imaculadamente, honrosamente, poupando-os da aflição da dor e da vergonha do medo.
E esperara que seu amigo mais caro morresse como um samurai
devia morrer, auto-lmolado num silêncio orgulhoso, depois cortara imaculadamente de novo, com perfeita habilidade. Ele nunca
matara antes.
Seus olhos focalizaram a sua própria faca. Despiu o estômago
e rezou para ter a coragem do amante. Lágrimas afloraram, mas
ele pela força de vontade transformou o rosto numa máscara gelada, sorridente. Desatou o sash e envolveu parcialmente a lâmina. Depois, porque o jovem cumprira bem o seu dever, Naga fez
um gesto ao seu lugar-tenente.
Esse samurai avançou e se curvou, apresentando-se formalmente. - Osaragi Nampo, capitão da Nona Legião do Senhor
Toranaga. Eu ficaria honrado em agir como seu auxiliar.
- Ikomo Tadeo, primeiro oficial, vassalo do Senhor Ishido
- retrucou o jovem. - Obrigado. Eu ficaria honrado em aceitálo como meu auxiliar.
Sua morte foi rápida, indolor e honrosa.
As cabeças foram reunidas. Mais tarde Jozen voltou à vida
com um estremecimento. Suas mãos frenéticas tentaram em vão
fechar o ventre.
Abandonaram-no aos cães que tinham subido da aldeia.
CAPÍTULO 34
À hora do Cavalo, onze horas da manhã, dez dias após a morte de Jozen e de todos os seus homens, um comboio de três
galeras contornou o promontório de Anjiro. Estavam apinhadas
de soldados. Toranaga desembarcou. A seu lado vinha Buntaro.
- Primeiro quero assistir a um exercício de ataque, Yabu
586
san, com os quinhentos originais - disse Toranaga. - Imediatamente.
- Poderia ser amanhã? Isso me daria tempo para preparar
disse Yabu afavelmente, mas interiormente furioso com o
imprevisto da chegada de Toranaga e enraivecido com os seus
espiões por não o terem prevenido. Mal tivera tempo de acorrer
à praia com uma guarda de honra. - O senhor deve estar cansado...
- Não estou cansado, obrigado - disse Toranaga, intencionalmente brusco. - Não preciso de "defensores" nem de um
ambiente elaborado, nem de gritos ou mortes simuladas. Esquece-se, velho amigo, de que encenei peças nó suficientes e representei o suficiente para ser capaz de usar a minha imaginação. Não sou um ronin camponês! Por favor, ordene que seja
organizado imediatamente.
Encontravam-se na praia ao lado do desembarcadouro. Toranaga estava rodeado pelos guardas de elite, e havia outros desembarcando da galera atracada. Mais mil samurais, pesadamente
armados, amontoavam-se nas duas galeras que esperavam a pouca
distância da praia. Fazia um dia quente, o céu estava sem nuvens,
com uma leve arrebentação, e um nevoeiro de calor no horizonte.
- Igurashi, providencie! - Yabu dominou a própria raiva.
Desde a primeira mensagem que enviara, referente à chegada de
Jozen onze dias antes, houvera simplesmente um escoar de relatórios inexpressivos de Yedo, mandados pela sua própria rede de
espionagem, e nada além de esporádicas e enfurecedoramente inconclusivas respostas de Toranaga aos seus sinais cada vez mais
urgentes: "Sua mensagem recebida e sendo seriamente estudada".
"Chocado com as notícias sobre o meu filho. Por favor, espere
instruções posteriores". Depois, há quatro dias: "Os responsáveis
pela morte de Jozen serão punidos. Devem permanecer em seus
postos, mas continuar sob prisão até que eu possa me consultar
com o Senhor Ishido". E na véspera, a surpresa de estarrecer:
"Hoje recebi o convite formal do novo conselho de regentes para
ir a Osaka, à cerimônia de contemplação da flor. Quando o
senhor pretende partir? Comunique imediatamente".
- Com certeza isto não significa que Toranaga vai de fato?
- perguntara Yabu, aturdido.
- Ele está forçando o senhor a se comprometer - respondera Igurashi. - Qualquer coisa que o senhor diga vai colocá-lo
numa armadilha.
- Concordo - dissera Omi.
587
I

- Por que não estamos recebendo notícias de Yedo? O que
aconteceu aos nossos espiões?
- É quase como se Toranaga tivesse posto uma capa por
sobre o Kwanto inteiro - dissera Omi. - Talvez ele saiba quem
são os seus espiões!
- Este é o décimo dia, senhor - lembrara Igurashi. -
Tudo está pronto para aw sua partida para Osaka. Deseja partir
ou não?
Agora, ali na praia, Yabu abençoava seu kami guardião que
o persuadira a aceitar o conselho de Omi para ficar até o último
dia possível, três dias a contar daquele.
- Em relação à sua mensagem final, Toranaga-sama, a que
chegou ontem - disse ele -, o senhor certamente não vai a Osaka.
- O senhor vai?
- Reconheço-o como líder. Naturalmente estou à espera
da sua decisão.
- A minha decisão é fácil, Yabu-sama. Mas a sua é difícil.
Se for, os regentes certamente o retalharão por ter destruído
Jozen e seus homens. E Ishido está muito furioso mesmo - e
com razão. Neh?
- Eu não fiz isso, Senhor Toranaga. A destruição de Jozen,
embora merecida, foi contra as minhas ordens.
- Foi muito bom que Naga-san o tenha feito, neh? De outro
modo o senhor certamente teria tido que fazê-lo por si mesmo.
Discutirei sobre Naga-san mais tarde, mas venha, conversaremos
enquanto caminhamos para o local de treinamento. Não há necessidade de desperdiçar tempo. - Toranaga pôs-se em marcha no
seu passo célere, seguido de perto pelos seus guardas. - Sim, o
senhor está realmente num dilema, amigo velho. Se for, perde a
cabeça, perde Izu e, naturalmente, toda a sua família Kasigi vai
para o pátio de execução. Se ficar, o conselho ordenará a mesma
coisa. - Olhou-o de soslaio. - Talvez o senhor devesse fazer
o que sugeriu que eu fizesse na última vez em que estive em
Anjiro. Ficarei feliz em ser o seu auxiliar. Talvez a sua cabeça
abrande o mau humor de Ishido quando eu o encontrar.
- Minha cabeça não tem valor para Ishido.
- Não concordo.
Buntaro interceptou-os. - Desculpe-me, senhor. Onde quer
que os homens sejam aquartelados?
- No planalto. Faça o seu acampamento permanente lá.
Duzentos guardas ficarão comigo na fortaleza. Quando tiver com588
pletado os arranjos, junte-se a mim. Quero que você assista ao
exercício de treinamento. - Buntaro saiu apressado.
- Acampamento permanente? O senhor vai ficar aqui?
perguntou Yabu.
- Não, apenas os meus homens. Se o ataque é tão bom
quanto ouvi dizer formaremos nove batalhões de assalto de quinhentos samurais cada um.
- O quê?
- Sim. Trouxe mais mil samurais selecionados para o senhor
agora. O senhor providenciará os outros mil.
- Mas não há armas suficientes e o treina...
- Sinto muito, o senhor está enganado. Trouxe mil mosquetes comigo, muita pólvora e munição. O resto chegará dentro de
uma semana, com mais mil homens.
Teremos nove batalhões de assalto?
Sim. Formarão um regimento. Buntaro comandará.
Talvez fosse melhor que eu fizesse isso. Ele.. .
- Oh, mas o senhor se esquece de que o conselho se reúne
dentro de poucos dias. Como pode comandar um regimento se
está indo para Osaka? O senhor não se preparou para partir?
Yabu parou. Somos aliados. Combinamos que o senhor
seria o líder e urinamos sobre o trato. Mantive o trato e estou
mantendo. Agora pergunto: qual é o seu plano? Guerreamos
ou não?
- Ninguém declarou guerra contra mim. Ainda.
Yabu ansiou por desembainhar a lâmina Yoshimoto e fazer
esguichar o sangue de Toranaga no pó, de uma vez por todas,
custasse o que custasse. Podia sentir a respiração dos guardas
de Toranaga à sua volta, mas não estava se preocupando agora.
- O conselho também não é o seu dobre de morte? O senhor
mesmo disse isso. Uma vez que se reúnam, o senhor terá que
obedecer. Neh?
- Naturalmente. - Toranaga fez sinal aos guardas que se
afastassem e se apoiou calmamente na espada, as sólidas pernas
separadas e firmes.
- Então qual é a sua decisão? O que propõe?
- Primeiro assistir a um ataque.
- Depois?
- Depois ir caçar.
- Vai a Osaka?
- Naturalmente.
- Quando?
589
I
l

Quando me aprouver.
- Quer dizer, não quando aprouver a Ishido.
- Quero dizer quando me aprouver.
- Ficaremos isolados - disse Yabu. - Não podemos lutar
contra todo o Japão, mesmo com um regimento de assalto, e
possivelmente não poderemos treinar um em dez dias.
- Sim.
- Então qual é o plano?
- O que aconteceu exatamente com Jozen e Naga-san?
Yabu contou-lhe sinceramente, omitindo apenas o fato de
que Naga fora manipulado por Omi.
- E o meu bárbaro? Como está se comportando o Anjin-san?
- Bem. Muito bem. - Yabu contou-lhe sobre a tentativa
de seppuku na primeira noite, e como habilmente dobrara o
Anjin-san para proveito deles ambos.
- Isso foi inteligente - disse Toranaga lentamente.
Nunca imaginei que ele tentaria seppuku. Interessante.
- Foi muito oportuno que eu dissesse a Omi que estivesse
preparado.
- Sim.
Impaciente, Yabu esperava mais, mas Toranaga permaneceu
em silêncio. - A notícia que mandei sobre o Senhor Ito tornando-se regente - disse Yabu afinal. - O senhor já sabia antes
de receber a minha mensagem?
Toranaga não respondeu de imediato. - Tinha ouvido alguns
rumores. O Senhor Ito é uma escolha perfeita para Ishido. O
pobre imbecil sempre gostou de uma boa vara enquanto tem o
nariz metido no ânus de outro homem. Serão bons amigos, os dois.
- O voto dele destruirá o senhor, ainda assim.
- Desde que haja um conselho.
- Ah, então o senhor tem um plano?
- Sempre tenho um plano - ou planos -, o senhor não
sabia? Mas o senhor, qual é o seu aliado? Se desejar partir, parta.
Se quiser ficar, fique. Escolha! - Pôs-se em movimento.
Mariko estendeu a Toranaga um pergaminho de caracteres
escritos muito juntos.
- Isso é tudo? - perguntou ele.
- Sim, senhor - respondeu ela, não gostando do abafamento da cabina nem de estar a bordo da galera de novo, ainda
que atracada ao cais. - Muito do que está no Manual de Guerra
590
será repetido, mas tomei notas todas as noites e escrevi tudo
conforme aconteceu - ou tentei fazer isso. É quase como um
diário do que foi dito e aconteceu desde que o senhor partiu.
- Ótimo. Alguém mais o leu?
- Não que eu saiba. - Ela usou o leque para se refrescar.
- A consorte e os criados do Anjin-san me viram escrevendo,
mas mantive o pergaminho fechado a chave.
- Quais são as suas conclusões?
Mariko hesitou. Deu uma olhada na cabina e na vigia fechada.
- Apenas os meus homens estão a bordo - disse Toranaga
-, e nenhum nos conveses inferiores. Apenas nós.
- Sim, senhor. Só me lembrei que o Anjin-san disse que
não há segredos a bordo de um navio. Desculpe. - Pensou um
instante, depois disse confiante: - O Regimento de Mosquetes
vencerá uma batalha. Os bárbaros poderiam nos destruir se desembarcassem com armas e canhões. O senhor precisa ter uma marinha bárbara. Nessa medida o conhecimento do Anjin-san foi enormemente valioso para o senhor, razão pela qual devia ser mantido
secreto, apenas para os seus ouvidos. Nas mãos erradas esse conhecimento seria mortífero para o senhor.
- Quem compartilha esse conhecimento agora?
- Yabu-san sabe muita coisa, mas Omi-san sabe mais, é ele
o mais intuitivo. Igurashi-san, Naga-san, e as tropas. As tropas,
naturalmente, compreendem a estratégia, não os detalhes mais
sutis, e nada sobre o conhecimento político e genérico do Anjinsan. Eu, mais do que todos. Escrevi tudo o que ele disse, perguntou ou comentou. Da melhor maneira que pude. Claro que ele só
nos falou a respeito de certas coisas, mas o alcance dessas coisas
é vasto, e a memória, quase perfeita. Com paciência ele pode
fornecer-lhe um quadro acurado do mundo, seus costumes e perigos. Se estiver dizendo a verdade.
- Está?
- Acredito que sim.
- Qual é a sua opinião sobre Yabu?
- Yabu-san é um homem violento, totalmente sem escrúpulos. Não honra nada além dos próprios interesses. Dever, lealdade, tradição não significam nada para ele. Sua mente tem
repentes de grande astúcia, até brilho. É igualmente perigoso como
aliado ou inimigo.
- Tudo isso são virtudes louváveis. O que há para ser dito
contra ele?
591

e
- É um mau administrador. Seus camponeses se revoltariam
se dispusessem de armas.
- Por quê?
- Taxas extorsivas, Taxas ilegais. Ele fica com setenta e
cinco partes de cada cem partes de arroz, peixe e toda a produção. Introduziu um imposto por cabeça, imposto pela terra, imposto pelo barco. Cada venda, cada barril de saque, tudo é taxado
em Izu.
- Talvez eu devesse empregá-lo, ou ao seu mestre quarteleiro, para o Kwanto. O que ele faz aqui é problema dele. Seus
camponeses nunca obterão armas, portanto não temos nada com
que nos preocupar. Eu ainda poderia usar isto como base se fosse
necessário.
- Mas, senhor, sessenta partes é o limite legal.
- Era o limite legal. O táicum tornou legal, mas está morto.
O que mais sobre Yabu?
- Come pouco, parece ter boa saúde, mas Suwo, o massagista, acha que ele tem problemas de rins. Tem alguns hábitos
curiosos.
- Quais?
Ela lhe contou sobre a Noite dos Gritos.
- Quem lhe falou sobre isso?
- Suwo. E a esposa e a mãe de Omi-san.
- O pai de Yabu também costumava cozinhar os inimigos.
Perda de tempo. Mas posso compreender essa sua necessidade de
fazer isso ocasionalmente. O sobrinho, Omi?
- Muito sagaz. Muito sábio. Totalmente leal ao tio. Um
vassalo muito capaz, impressivo.
- A família de Omi?
- A mãe dele é... é adequadamente firme com Midori, a
esposa. A esposa é samurai, gentil, forte, e muito boa. São todos
vassalos leais de Yabu-san. Atualmente Omi-san não tem consortes, embora Kiku, a mais famosa cortesã de Izu, seja quase como
uma consorte. Se ele pudesse comprar o contrato dela, acho que
a levaria para a sua casa.
- Ele me ajudaria contra Yabu, se eu quisesse que fizesse
isso?
Ela ponderou ,a respeito. Depois meneou a cabeça. - Não,
senhor. Acho que não. Acho que ele é vassalo de seu tio.
- Naga?
- Um samurai tão bom quanto um homem pode ser. Viu
imediatamente o perigo de Jozen-san e seus homens contra o se592
nhor, e enfrentou a situação até que o senhor pudesse ser consultado. Embora deteste o Batalhão de Mosquetes, treina arduamente as companhias a fim de torná-las perfeitas.
- Acho que ele foi muito estúpido sendo fantoche de Yabu.
Ela arrumou uma dobra do quimono, sem dizer nada.
Toranaga abanou-se. - Agora, o Anjin-san?
Ela estivera esperando por essa pergunta e, agora que fora
feita, todas as observações inteligentes que ia fazer desapareceram-lhe da cabeça.
- Bem?
- Deve julgar pelo pergaminho, senhor. Em certos aspectos
ele é impossível de explicar. Claro, sua educação e herança não
têm nada em comum com as nossas. É muito complexo e está
além da nossa... além da minha compreensão. Costumava ser
muito aberto. Mas, desde que tentou seppuku, mudou. Está mais
fechado. - Ela lhe contou o que Omi dissera e fizera naquela
primeira noite. E a promessa de Yabu.
Ah, foi Omi que o deteve, não Yabu-san?
Sim.
E Yabu seguiu o conselho de Omi?
Exatamente, senhor.
Então Omi é o conselheiro. Interessante. Mas com certeza o Anjin-san não espera que Yabu cumpra a promessa, espera?
- Sim, totalmente.
Toranaga riu. - Que infantilidade!
- A "consciência" cristã é muito profunda nele, sinto muito.
Ele não pode evitar o seu karma, parte do qual é ser ele totalmente governado por esse ódio da morte, ou das mortes, do que
ele chama de "inocentes". Até a morte de Jozen afetou-o profundamente. Durante muitas noites seu sono foi perturbado e durante
dias mal conversou com pessoa alguma.
- Essa "consciência" se aplicaria a todos os bárbaros?
- Não, embora devesse, a todos os bárbaros cristãos.
- Ele perderá essa "consciência"?
- Penso que não. Mas é tão indefeso quanto uma boneca
até que a perca.
- A consorte dele?
Ela lhe contou tudo.
- Ótimo. - Ele ficou satisfeito pela escolha de Fujiko e
pelo fato de o seu plano ter funcionado tão bem. - Muito bom.
Ela agiu muito bem no caso das armas. Que tal os hábitos dele?
- Na maior parte, normais, exceto por um surpreendente
593
constrangimento em relação a assuntos de "travesseiro" e uma
curiosa relutância em discutir as funções mais normais. - Ela
também descreveu a sua inusitada necessidade de solidão, e seu
gosto abominável em se tratando de comida. - Na maioria das
outras coisas ele é cortês, razoável, arguto, um aluno competente,
e muito curioso a respeito de nós e dos nossos costumes. Consta
tudo do meu relatório, mas, numa palavra, expliquei alguma coisa
sobre o nosso modo de vida, um pouco sobre nós e a nossa história, sobre o táicum e os problemas que afligem o nosso reino
agora.
- Ah, sobre o herdeiro?
- Sim, senhor. Fiz mal?
- Não. Eu lhe disse que o educasse. Como está o japonês
dele?
- Muito bom, considerando. Com o tempo ele falará a
nossa língua razoavelmente bem. É muito bom aluno, senhor.
- "Travesseiro"?
- Uma das criadas - disse ela imediatamente.
- Ele a escolheu?
- Sua consorte a mandou a ele.
- E?
- Foi mutuamente satisfatório, informaram-me.
- Ah! Então ela não teve dificuldade.
- Não, senhor.
- Mas ele é proporcional?
- A garota disse: "Oh, sim, muito'. "Pródigo' foi a palavra
que ela usou.
- Excelente. Pelo menos nisso o karma dele é bom. Esse é
o problema com muitos homens. Yabu, por exemplo, e Kiyama.
Lanças pequenas. Uma infelicidade nascer com uma lança pequena. Muita. Sim. - Deu uma olhada no pergaminho, depois fechou
o leque com um estalido. - E você, Mariko-san? Como está?
- Bem, obrigada, senhor. Estou muito contente de vê-lo
com tão boa aparência. Posso oferecer-lhe meus cumprimentos
pelo nascimento de seu neto?
- Sim, obrigado. Sim, estou muito satisfeito. O menino é
bem formado e parece saudável.
- E a Senhora Genjiko?
Toranaga grunhiu. - Forte como sempre. Sim. - Franziu
os lábios, meditando um instante. - Talvez você pudesse recomendar uma mãe adotiva para a criança. - Era costume que os
594
filhos de samurais importantes tivessem mães adotivas, a fim de
que a mãe natural pudesse atender ao marido e ao funcionamento
da casa dele, deixando à mãe adotiva a preocupação com a criação da criança, tornando-a forte e uma honra para os pais. - Receio que não seja fácil encontrar a pessoa certa. A Senhora Genjiko não é a ama mais fácil para quem se trabalhar, neh?
- Estou certa de que o senhor encontrará a pessoa perfeita,
senhor. Mas certamente pensarei no assunto - replicou Mariko,
sabendo que oferecer tal conselho seria tolice, pois nenhuma mulher nascida poderia satisfazer Toranaga e a nora.
- Obrigado. Mas e você, Mariko-san, como está?
- Bem, senhor, obrigada.
- E a sua consciência cristã?
- Não há conflito, senhor. Nenhum. Fiz tudo o que o senhor desejou. Realmente.
- Algum padre esteve aqui?
- Não, senhor.
- Tem necessidade de um?
- Seria bom me confessar, receber o sacramento e ser abençoada. Sim, sinceramente, eu gostaria disso... confessar as coisas
permitidas e ser abençoada.
Toranaga estudou-a atentamente. Os olhos dela eram honestos.
- Agiu bem, Mariko-san. Por favor, continue assim.
- Sim, senhor, obrigada. Uma coisa... o Anjin-san precisa
muito de uma gramática e um dicionário.
- Mandei pedir ao Tsukku-san. - Notou o franzir de cenho
dela. - Acha que ele não os enviará?
- Ele obedeceria, claro. Talvez não com a velocidade que
o senhor gostaria.
- Logo saberei disso - acrescentou Toranaga agourentamente. - Só lhe restam treze dias.
Mariko se espantou. - Senhor? - perguntou, sem compreender.
- Treze? Ah - disse Toranaga com indiferença, dissimulando o seu lapso momentâneo -, quando estávamos a bordo do
navio português, ele pediu permissão para visitar Yedo. Concordei, desde que fosse dentro de quarenta dias. Restam treze. Não
foi de quarenta dias o tempo que aquele bonzo, aquele profeta,
Moisés, passou na montanha, reunindo os mandamentos do "Deus"
que foram gravados em pedra?
- Sim, senhor.
595

- Você acredita que isso aconteceu?
- Sim. Mas não compreendo como nem por quê.
- É uma perda de tempo discutir coisas de Deus. Neh?
- Se se visa a fatos, sim, senhor.
- Enquanto esperava por esse dicionário, você tentou fazer um?
- Sim, Toranaga-sarna. Receio que não seja muito bom.
Infelizmente parece haver muito pouco tempo, e muitos problemas. Aqui ... por toda parte - acrescentou ela, intencionalmente.
Ele assentiu, concordando, sabendo que ela gostaria ardentemente de perguntar muitas coisas: sobre o novo conselho, a designação do Senhor Ito, a sentença de Naga, e se a guerra seria
imediata. - Somos afortunados em ter o seu marido de volta, neh?
O leque dela parou. - Nunca pensei que ele escaparia vivo.
Disse uma prece e queimei incenso em memória dele todos os
dias. - Buntaro lhe contara naquela manhã como outro contingente de samurais de Toranaga cobrira a sua retirada da praia e
como ele atingira os arredores de Osaka sem dificuldade. Depois,
com cinqüenta homens escolhidos e cavalos de reserva, disfarçados
de bandidos, ele rumara às pressas para as colinas e caminhos secundários numa arremetida impetuosa para Yedo. Por duas vezes
seus perseguidores o alcançaram, mas o inimigo não estava em
número suficiente para contê-lo e ele conseguiu escapar. Adiante
sofreu uma emboscada e perdeu todos os homens, menos quatro,
e escapou novamente, aprofundando-se mais na floresta, viajando
à noite, dormindo durante o dia. Frutas e água de nascentes, um
pouco de arroz apanhado em casas de fazendas solitárias, depois
a galope de novo, sempre com caçadores nos calcanhares. Levara
vinte dias para chegar a Yedo. Dois homens sobreviveram com ele.
- Foi quase um milagre - disse ela. - Pensei estar possuída por um kami quando o vi ao seu lado na praia.
- Ele é inteligente. Muito forte e muito inteligente.
- Posso pedir-lhe notícias do Senhor Hiro-matsu, senhor?
E de Osaka? A Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko?
Sem omitir opinião, Toranaga informou que Hiro-matsu chegara a Yedo um dia antes de ele partir para Anjiro, embora as
duas damas tivessem decidido ficar em Osaka, sendo a saúde da
Senhora Sazuko a razão para esse adiamento. Não havia necessidade de elaborar. Tanto ele quanto Mariko sabiam que isso era
meramente uma fórmula para poupar a dignidade e que o Generalo
Ishido nunca permitiria que duas reféns tão valiosas partissem,
agora que Toranaga estava fora do seu alcance.
596
- Shigata ga nai - disse ele. - Karma, neh? Não há nada
que se possa fazer. É karma, não é?
- Sim.
Ele pegou o pergaminho. - Agora devo ler isto. Obrigado,
Mariko-san. Agiu muito bem. Por favor, traga o Anjin-san à fortaleza ao amanhecer.
- Senhor, agora que o meu amo está aqui, terei ...
- Seu marido já concordou que enquanto eu estiver aqui,
você permanece onde está e atua como intérprete. Seu dever primordial é para com o Anjin-san pelos próximos dias.
- Mas, senhor, preciso instalar casa para o meu senhor. Ele
necessitará de criados e de uma casa.
- Isso seria um desperdício de dinheiro, tempo e esforço,
no momento. Ele ficará com os soldados, ou na casa do Anjin-san,
onde lhe apraza. - Notou um lampejo de irritação. - Nan ia?
- Meu lugar deve ser com o meu amo. Para servi-lo.
- O seu lugar é onde eu quero que seja. Neh?
- Sim, por favor, desculpe-me. Naturalmente.
- Naturalmente.
Ela se foi.
Ele leu o pergaminho cuidadosamente. E o Manual de Guerra. Depois releu partes do pergaminho. Guardou-os ambos em
segurança, postou guardas à porta da cabina, e subiu ao convés.
Estava amanhecendo. O dia prometia calor e nebulosidade.
Ele cancelou o encontro com o Anjin-san, conforme pretendia, e
cavalgou para o planalto com cem guardas. Ali reuniu seus falcoeiros e três falcões, e caçou na extensão de vinte ris. Pelo meiodia havia ensacado três faisões, duas grandes galinholas, uma
lebre e um par de codornizes. Mandou um faisão e a lebre para
o Anjin-san, o resto para a fortaleza. Alguns dos seus samurais
não eram budistas e ele lhes tolerava os hábitos alimentares. Quanto a si mesmo, comeu um pouco de arroz frio com uma pasta de
peixe, um pouco de alga marinha em conserva com fatias de gengibre. Depois se enrodilhou no chão e dormiu.


A tarde findava e Blackthorne encontrava-se na cozinha, assobiando alegremente. Em torno dele estavam o cozinheiro-chefe,
o cozinheiro assistente, o preparador de verduras, o preparador
de peixe, e seus assistentes, todos sorridentes, mas interiormente
mortificados pelo fato de o amo estar ali na cozinha deles, com a
ama, e também porque ela lhes dissera que ele ia honrá-los mos597

trando-lhes como preparar e cozer ao seu estilo. E por último por
causa da lebre.
Ele já havia pendurado o faisão às vigas de um telheiro externo com a cuidadosa instrução de que ninguém, ninguém devia
tocá-lo senão ele. - Eles compreendem, Fujiko-san? Não tocar
senão eu? - perguntou ele com uma seriedade zombeteira.
- Oh, sim, Anjin-san. Todos compreenderam. Desculpe-me,
mas o senhor deve dizer: "Ninguém deve tocá-lo senão eu".
- Agora - estava ele dizendo, a ninguém em particular -,
a delicada arte de cozinhar. Lição número um.
- Dozo gomen nasai? - perguntou Fujiko.
- Miru! Observe.
Sentindo-se jovem de novo - pois um dos seus primeiros
biscates fora limpar caça, ele e o irmão, roubada com um risco
enorme nas propriedades nos arredores de Chatham -, escolheu
uma faca comprida e curva. O sushi-chefe empalideceu. Aquela
era a sua faca favorita, com uma ponta especialmente afiada para
garantir que as fatias de peixe cru fossem sempre cortadas com
perfeição. A equipe toda sabia disso, e todos contiveram o fôlego,
sorrindo mais ainda para dissimular o embaraço por ele, enquanto
ele aumentava o tamanho do sorriso, para ocultar a própria vergonha.
Blackthorne abriu a barriga da lebre e destramente tirou a
bolsa do estômago e as entranhas. Uma das criadas mais jovens
teve náuseas e escapou silenciosamente. Fujiko resolveu multá-la
com o salário de um mês, desejando ao mesmo tempo também
poder ser uma camponesa e sumir com honra.
Eles olharam petrificados quando ele cortou as patas, depois
empurrou as pernas dianteiras para dentro, a fim de soltar a pele.
Fez o mesmo com as pernas traseiras e cortou a pele em círculo
para puxá-las pela abertura do ventre; depois, com um puxão
hábil, abriu o couro acima da cabeça como se fosse um casaco
de inverno sendo tirado. Estendeu o animal quase pelado sobre o
cepo, e decapitou-o deixando a cabeça com os olhos fixos, patéticos, ainda ligada ao couro. Virou a pele do lado certo de novo
e colocou-a de lado. Um suspiro percorreu a cozinha. Ele não o
ouviu, concentrado em cortar as pernas nas juntas e retalhar a
carcaça. Outra criada sumiu despercebida.
- Agora quero uma panela - disse Blackthorne, com um
sorriso amável.
Ninguém lhe respondeu. Simplesmente olhavam com os mesmos sorrisos fixos. Ele viu um grande caldeirão de ferro, ima598
culado. Pegou-o com as mãos ensangüentadas e encheu-o de água
num recipiente de madeira, depois pendurou-o sobre o braseiro,
armado no chão de terra, num poço cercado de pedras. Acrescentou os pedaços de carne.
- Agora alguns vegetais e especiarias - disse ele.
- Dozo? - perguntou Fujiko, guturalmente.
Ele não sabia as palavras japonesas, por isso olhou em torno.
Havia algumas cenouras e algumas raizes que pareciam nabos
num cesto de madeira. Limpou-as, cortou-as em fatias e juntou-as
à sopa com sal e um pouco do escuro molho de soja.
- Devíamos ter algumas cebolas, alho e vinho do Porto.
- Dozo? - perguntou Fujiko de novo, infeliz.
- Kotaba shirimasen. Não sei as palavras.
Ela não o corrigiu, simplesmente pegou uma colher e ofereceu-lhe. Ele balançou a cabeça. - Saque - ordenou. O cozinheiro
assistente voltou à vida num sobressalto e deu-lhe o pequeno barril
de madeira.
- Domo. - Blackthorne verteu um cálice no caldeirão, depois mais um, para uma boa medida. Ele teria bebido um pouco
do barril, mas sabia que seria falta de educação bebê-lo frio e sem
cerimônia, e certamente ali na cozinha.
- Jesus Cristo, eu adoraria uma cerveja - disse ele.
- Dozo gozientashita, Anjin-san?
- Kotaba shirimasen, mas este cozido vai ficar excelente.
Ichi-ban, neh? - Apontou para o caldeirão que chiava.
- Hai - disse ela, sem convicção.
- Okuru tsukai arigato Toranaga-sama - disse Blackthorne.
- Mande um mensageiro para agradecer ao Senhor Toranaga.
- Ninguém lhe corrigiu o mau japonês.
- Hai.
Uma vez fora da cozinha, Fujiko correu para a latrina, a
pequena cabana que se erguia em esplendor solitário perto da
porta principal, no jardim. Estava muito enjoada.
- Está se sentindo bem, ama? - perguntou a criada, Nigatsu. Era de meia-ldade, rechonchuda, e cuidara de Fujiko a
vida toda.
- Vá embora! Mas antes traga um pouco de chá. Não.
você teria que entrar na cozinha... oh, oh, oh!
Tenho chá aqui, ama. Pensamos que a senhora precisaria
de um pouco de chá, então fervemos a água em outro braseiro.
Aqui está!
- Oh, você é tão inteligente! - Fujiko beliscou afetuosa599
, "oaN011P nu 4#11"' Mi V) KN,
mente a bochecha redonda de Nigatsu, enquanto outra criada
vinha abaná-la. Enxugou a boca na toalha de papel e sentou-se,
agradecida, sobre almofadas na varanda. - Oh, assim é melhor!
- E era melhor ao ar livre, à sombra, o bom sol da tarde lançando sombras escuras, borboletas alimentando-se, o mar lá embaixo, calmo e iridescente.
- O que está acontecendo, ama? Não ousamos nem espiar.
- Não tem importância. O amo... o amo... nao importa.
Os costumes dele são esquisitos, mas esse é o nosso karma.
Desviou o olhar quando viu o seu cozinheiro-chefe, que vinha
untuosamente pelo jardim, e sentiu o coração afundar mais um
pouco.
Ele se curvou formalmente, um homenzinho teso, magro, de
pés grandes e dentes muito salientes. Antes que pudesse proferir
uma palavra, Fujiko disse com um sorriso insípido: - Encomende facas novas na aldeia. Um novo caldeirão de cozinhar arroz.
Um cepo novo, novos recipientes de água - todos os utensílios
que achar necessários. Esses que o amo usou devem ser conservados para sua finalidade particular. Você reservará uma área
especial, construirá outra cozinha se quiser, onde o amo possa
cozinhar, se desejar - até que você seja eficiente.
- Obrigado, Fujiko-sama - disse o cozinheiro. - Desculpe-me por interrompê-la, mas, sinto muito, por favor, desculpeme, conheço um excelente cozinheiro na aldeia vizinha. Não é
budista e até esteve na Coréia com o Exército, por isso aprendeu
tudo sobre o... como... cozinhar para o amo muito melhor do
que eu.
- Quando eu quiser outro cozinheiro, eu lhe direi. Quando
o considerar inapto ou fingindo-se de doente, eu lhe direi. Até lá
você será o cozinheiro-chefe aqui. Aceitou o posto por seis meses
- disse ela.
- Sim, ama - disse o cozinheiro com dignidade exterior,
mas tremendo por dentro, pois Fujiko-noh-Anjin não era ama para
brincadeira. - Por favor, desculpe-me, mas fui contratado para
cozinhar. Tenho orgulho em cozinhar. Mas nunca aceitei ser... ser
açougueiro. Os etas são açougueiros. Claro que não podemos ter
um eta aqui, mas esse outro cozinheiro não é budista como eu,
como meu pai, o pai dele, e o pai do pai dele, ama, e eles nunca,
nunca... Por favor, esse novo cozinheiro...
- Você cozinhará aqui como sempre fez. Acho a sua comida excelente, digna de um mestre-cuca de Yedo. Até mandei
uma das suas receitas para a Senhora Kiritsubo, em Osaka.
600
- Oh? Obrigado. Faz-me muita honra. Qual, ama?
- A das enguias frescas, minúsculas, e medusa e ostras em
fatias, com apenas o toque exato de soja, que você faz tão bem.
Excelente! A melhor que já comi.
- Oh, obrigado, ama - rebaixou-se ele.
- Claro que as suas sopas deixam muito a desejar.
- Oh, sinto muito!
- Discutirei isso com você mais tarde. Obrigada, cozinheiro
- disse ela, ensaiando uma dispensa.
O homenzinho permaneceu no lugar resolutamente. - Por
favor, desculpe-me, ama, mas oh ko, com completa humildade,
se o amo ... quando o amo ...
- Quando o amo lhe disser que cozinhe ou abata animais
ou seja o que for, você fará isso correndo. Imediatamente. Como
qualquer criado leal faria. Mas como pode levar muito tempo para
você se tornar eficiente, então, talvez, seja melhor que você faça
acertos provisórios com esse outro cozinheiro, para que o visite
nos raros dias em que o amo possa querer comer à sua própria
maneira.
A honra satisfeita, o cozinheiro sorriu e curvou-se. - Obrigado. Por favor, desculpe-me por pedir esclarecimento.
- Naturalmente você pagará ao cozinheiro substituto do seu
próprio salário.
Quando ficaram sozinhas de novo, Nigatsu casquinou por
trás da mão: - Oh, Ama-chan, posso cumprimentá-la pela sua
vitória total e pela sua sabedoria? O cozinheiro-chefe quase soltou
gases quando a senhora disse que ele também teria que pagar!
- Obrigada, Nanny-san. - Fujiko podia sentir o aroma da
lebre começando a cozinhar. E se ele me pedir que coma com
ele? estava pensando ela, e quase perdeu as forças. Mesmo que
não peça, terei que servir. Como posso evitar de ficar nauseada?
Você não vai ficar com náuseas, ordenou-se ela. É o seu karma.
Você deve ter sido absolutamente terrível na sua vida anterior.
Sim. Mas lembre-se de que tudo está excelente agora. Só mais
cinco meses e seis dias. Não pense nisso, pense apenas no seu
amo, que é um homem bravo e forte, embora tenha horríveis
hábitos alimentares...
Cavalos subiram com estrépito até o portão. Buntaro desmontou e afastou o resto dos seus homens com um gesto. Depois,
acompanhado apenas do seu guarda pessoal, avançou a passos
largos pelo jardim, empoeirado e sujo de suor. Carregava o seu
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arco imenso e, às costas, a aljava. Fujiko e a criada curvaram-3e
cordialmente, detestando-o. O tio era famoso pelas fúrias selvagens, incontroláveis, que o faziam investir violentamente sem prevenir ou provocar disputas com praticamente qualquer pessoa. A
maior parte do tempo apenas os seus criados sofriam, ou as suas
mulheres. - Por favor, entre, Tio. Que gentileza de sua parte
visitar-nos tão cedo - disse Fujiko.
- Ah, Fujiko-san. Você... Que fedor é esse?
- Meu amo está cozinhando a caça que o Senhor Toranaga
lhe enviou... está mostrando aos meus miseráveis criados como
cozinhar.
- Se ele quer cozinhar, suponho que possa, embora... -
Buntaro franziu o nariz com desagrado. - Sim, um amo pode
fazer qualquer coisa na sua própria casa, dentro da lei, desde que
não perturbe os vizinhos.
Legalmente um cheiro como aquele poderia ser causa de
reclamação, e seria péssimo incomodar os vizinhos. Os inferiores
nunca faziam nada que pudesse perturbar os superiores. Senão
cabeças rolavam. Era por isso que, em todo o país, os samurais
cautelosa e cortesmente viviam perto de samurais, do mesmo nível
se possível, camponeses ao lado de camponeses, mercadores nas
suas ruas, e etas isolados fora. Omi era o vizinho imediato deles.
Ele é superior, pensou ela. - Espero sinceramente que ninguém
seja perturbado - disse ela a Buntaro, inquieta, perguntando-se
que nova maldade estaria ele tramando. - O senhor queria ver
o meu amo? - Começou a se levantar, mas ele a deteve.
- Não, por favor, não se incomode, esperarei - disse ele
formalmente, e o coração dela quase parou. Buntaro não era conhecido pela boa educação, e polidez vinda dele era coisa muito
perigosa. - Peço desculpas por chegar assim, sem enviar antes
um mensageiro para solicitar uma entrevista - estava ele dizendo -, mas o Senhor Toranaga me disse que eu poderia, talvez,
ser autorizado a usar o banho e me alojar aqui. De vez em quando. Você perguntaria ao Anjin-san, mais tarde, se ele daria permissão?
- Naturalmente - disse ela, dando continuidade ao padrão
usual de etiqueta, embora a idéia de ter Buntaro na sua casa lhe
repugnasse. - Estou certa que ele ficará honrado, Tio. Posso
oferecer-lhe chá ou saquê, enquanto espera?
- Saque, obrigado.
Nigatsu rapidamente colocou uma almofada na varanda e
602
disparou em busca do saquê, por mais vontade de ficar que tivesse.
Buntaro estendeu o arco e a aljava ao guarda, descalçou as
sandálias empoeiradas, e subiu à varanda pisando duro. Tirou a
espada mortífera do sash, sentou-se de pernas cruzadas, e pousou
a espada sobre os joelhos.
- Onde está minha esposa? Com o Anjin-san?
- Não, Buntaro-sama, sinto muito, ela recebeu ordem de ir
à fortaleza, onde ...
- Ordem? De quem? De Kasigi Yabu?
- Oh, não, do Senhor Toranaga, senhor, quando ele voltou
da caçada esta tarde.
- Oh, o Senhor Toranaga? - Buntaro acalmou-se e contemplou carrancudo a fortaleza do outro lado da baía. O estandarte de Toranaga tremulava ao lado do de Yabu.
- Gostaria que eu mandasse alguém buscá-la?
Ele balançou a cabeça. - Há bastante tempo para ela. -
Suspirou, olhou de viés para a sobrinha, filha da sua irmã mais
nova. - Sou feliz por ter uma esposa tão completa, neh?
- Sim, senhor. É sim. Ela foi enormemente valiosa para
interpretar o conhecimento do Anjin-san.
Buntaro olhou fixamente para a fortaleza, depois farejou o
vento quando o cheiro do cozido chegou numa nova lufada. - É
como estar em Nagasaki, ou de volta à Coréia. Preparam carne o
tempo todo, cozida ou assada. Fede... você nunca cheirou nada
parecido. Os coreanos são animais, como canibais. O fedor do
alho entra até na roupa e no cabelo da gente.
- Deve ter sido terrível.
- A guerra foi boa. Poderíamos ter vencido facilmente. E
assolado a China. E civilizado ambos os países. - Buntaro avermelhou-se e sua voz soou estridente. - Mas não vencemos. Fracassamos e tivemos que regressar com a nossa vergonha porque
fomos traídos. Traídos por traidores imundos, altamente colocados.
- Sim, isso é muito triste, mas o senhor tem razão. Toda a
razão, Buntaro-sama - disse ela apaziguadora, dizendo facilmente
a mentira, sabendo que nenhuma nação do mundo poderia conquistar a China, e ninguém poderia civilizar a China, que estava
civilizada desde tempos imemoriais.
A veia da testa de Buntaro latejava e ele falava quase que
para si mesmo. - Eles pagarão. Todos eles. Os traidores. É apenas uma questão de esperar junto a um rio o tempo suficiente
603

para que os corpos dos seus inimigos passem boiando, neh? Esperarei e cuspirei na cabeça deles em breve, muito em breve. Prometi
isso a mim mesmo. - Olhou para ela. - Odeio traidores e adúlteros. E todos os mentirosos!
- Sim, concordo. O senhor tem toda a razão, Buntaro-sama
- disse ela, com um calafrio, sabendo que não havia limite para
a ferocidade dele. Quando Buntaro tinha dezesseis anos, executara
a própria mãe, uma das consortes inferiores de Hiro-matsu, pela
sua suposta infidelidade enquanto o pai, Hiro-matsu, estava na
guerra, lutando pelo ditador, o Senhor Goroda. Depois, anos mais
tarde, matara o filho mais velho, tido com a primeira esposa, por
supostos insultos, e mandara a esposa de volta para a família, onde
ela morrera pela própria mão, incapaz de suportar a vergonha.
Ele fizera coisas terríveis às consortes e a Mariko. E discutira
violentamente com o pai de Fujiko e o acusara de covardia na
Coréia, desacreditando-o junto ao táicum, que imediatamente lhe
ordenara que raspasse a cabeça e se tornasse monge, para morrer
em devassidão, logo depois, consumido pela própria vergonha.
Fujiko precisou de toda a força de vontade para aparentar
tranqüilidade. - Ficamos muito orgulhosos de ouvir que o senhor
havia escapado ao inimigo.
O saquê chegou. Buntaro começou a beber pesadamente.
Depois de passado o tempo correto de espera, Fujiko levantou-se. - Por favor, desculpe-me um instante. - Dirigiu-se a
cozinha para prevenir Blackthorne, pedir-lhe permissão para que
Buntaro se alojasse na casa, e dizer a ele e aos criados o que devia
ser feito.
- Por que aqui? - perguntou Blackthorne irritado. - Por
que ficar aqui? É necessário?
Fujiko desculpou-se e tentou explicar que, naturalmente, Buntaro não podia ser recusado. Blackthorne voltou taciturno ao seu
cozido e ela retornou à varanda, a Buntaro, com o peito doendo.
- Meu amo diz que fica honrado em tê-lo aqui. A casa dele
é a sua casa.
- Como é ser consorte de um bárbaro?
- Eu imaginei que seria horrível. Mas do Anjin-san, que é
hatamoto e portanto samurai? Suponho que seja como com outros
homens. Esta é a primeira vez que sou consorte. Prefiro ser esposa. O Anjin-san é como os outros homens, embora, sim, alguns
dos seus modos sejam muito estranhos.
- Quem teria pensado que uma mulher da nossa casa seria
consorte de um bárbaro, mesmo hatamoto?
604
.44
- Não tive escolha. Simplesmente obedeci ao Senhor Toranaga, e ao avô, o líder do nosso clã. É a posição da mulher,
obedecer.
- Sim. - Buntaro esvaziou o cálice de saquê e ela tornou
a enchê-lo. - Obediência é importante numa mulher. Mariko-san
é obediente, não é?
- Sim, senhor. - Ela olhou-lhe o rosto feio, de gorila.
- Ela só lhe trouxe honra, senhor. Sem a senhora sua esposa, o
Senhor Toranaga nunca poderia ter obtido o conhecimento do
Anjin-san.
Ele sorriu falsamente. - Ouvi dizer que você apontou as
pistolas na cara de Omi-san.
- Eu estava apenas cumprindo o meu dever, senhor.
- Onde aprendeu a usar armas?
- Eu nunca havia empunhado uma arma até então. Não
sabia se as pistolas estavam carregadas. Mas teria puxado os gatilhos.
Buntaro riu. - Omi-san também achou isso.
Ela tornou a encher o cálice. - Nunca compreendi por que
Omi-san não tentou tomá-las de mim. O seu senhor ordenara que
as tirasse, mas ele não o fez.
Eu teria feito.
Sim, Tio, eu sei. Por favor, desculpe-me, mas ainda assim
eu teria puxado os gatilhos.
Sim. Mas teria errado!
Sim, provavelmente. Depois daquilo aprendi a atirar.
Ele a ensinou?
Não. Foi um dos oficiais do Senhor Naga.
Por quê?
Meu pai nunca permitiu que suas filhas aprendessem a
manejar espada e lança. Achava, sabiamente, acredito, que devíamos dedicar o nosso tempo a aprender coisas mais delicadas. Mas
às vezes uma mulher precisa proteger seu amo e sua casa. A pistola é uma boa arma para uma mulher, muito boa. Não requer
força nem muita prática. Então, agora, eu talvez possa ser um
pouco mais de utilidade para o meu amo, pois eu certamente
estourarei a cabeça de qualquer homem para protegê-lo, e pela
honra da nossa casa.
Buntaro esvaziou o cálice. - Fiquei orgulhoso quando ouvi
que você enfrentou Omi-san. Agiu corretamente. O Senhor Hiromatsu ficará igualmente orgulhoso.
- Obrigada, Tio. Mas eu apenas cumpri um dever comum.
605

Y tqN, I ± uç
- Curvou-se formalmente. - Meu amo pergunta se o senhor lhe
concederia a honra de conversar agora, se lhe aprouver.
Ele continuou com o ritual. - Por favor, agradeça-lhe, mas
primeiro posso me banhar? Se aprouver a ele, vê-lo-ei quando a
minha esposa voltar.
CAPÍTULO 35
Blackthorne esperava no jardim. Agora usava o quimono
marrom que Toranaga lhe dera, com espadas ao sash e uma pistola carregada, escondida também sob o sash. Através das apressadas explicações de Fujiko e subseqüentemente pelos criados,
aprendera que tinha que receber Buntaro formalmente, porque o
samurai era um importante general e hatamoto, e era o primeiro
hóspede na sua casa. De modo que tomara um banho e trocara
de roupa rapidamente e se dirigira ao local que fora preparado.
Vira brevemente Buntaro na véspera, quando ele chegou.
Buntaro estivera ocupado com Toranaga e Yabu o resto do dia,
junto com Mariko, e Blackthorne fora deixado sozinho para organizar às pressas a demonstração de ataque com Omi e Naga. O
ataque fora satisfatório.
Mariko voltara para casa muito tarde. Contara-lh' rapidamente sobre a escapada de Buntaro, os dias que passara sendo
caçado pelos homens de Ishido, esquivando-se, e finalmente atravessando as províncias hostis para atingir o Kwanto. - Foi muito
difícil, mas talvez não demais, Anjin-san. Meu marido é muito
forte e muito corajoso.
- O que vai acontecer agora? A senhora vai partir?
- O Senhor Toranaga ordenou que tudo permaneça como
estava. Nada deve ser mudado.
- A senhora mudou, Mariko. Perdeu uma centelha.
- Não. Isso é imaginação sua, Anjin-san. É apenas o meu
alívio por ele estar vivo, quando eu estava certa de que ele
morrera.
- Sim. Mas fez uma diferença, não fez?
- Claro. Agradeço a Deus por meu arpo não ter sido capturado, por ter vivido para obedecer ao Senhor Toranaga. O se606
nhor me desculpará, Anjin-san, estou cansada agora. Sinto muito,
estou muito, muito cansada.
- Há alguma coisa que eu possa fazer?
- O que deveria fazer, Anjin-san? Além de estar feliz por
mim e por ele? Nada mudou, realmente. Nada terminou porque
nada começou. Tudo está como estava. Meu marido está vivo.
Você não gostaria que ele estivesse morto? perguntou-se
Blackthorne ali no jardim. Não.
Então por que a pistola escondida? Você está com sensação
de culpa?
Não. Nada começou.
Não mesmo?
Não.
Você pensou que estava com ela. Não é o mesmo que ter
estado de fato com ela?
Viu Mariko sair da casa e dirigir-se para o jardim. Parecia
uma miniatura de porcelana seguindo meio passo atrás de Buntaro, cuja corpulência parecia ainda maior em comparação. Fujiko
vinha com ela, assim como as criadas.
Ele se curvou. - Yokoso oide kudasareta, Buntaro-san. Bemvindo à minha casa.
Todos se curvaram. Buntaro e Mariko se sentaram sobre as
almofadas à sua frente, Fujiko atrás. Nigatsu e a criada, Koi, começaram a servir chá e saquê. Buntaro tomou saquê. Blackthorne
fez o mesmo.
- Domo, Anjin-san. lkaga desu ka?
- li. Ikaga desu ka?
- li. Kowa jozuni shabereru yoni natta na. Ótimo. O senhor
está começando a falar japonês muito bem.
Logo Blackthorne se perdeu na conversa, pois Buntaro engolia as palavras, falando rápida e descuidadamente.
- Desculpe, Mariko-san, não compreendi isso.
- Meu marido deseja agradecer-lhe por ter tentado salvá-lo.
Com o remo. Lembra-se? Quando estávamos escapando de Osaka.
- Ah, so desu! Domo. Por favor, diga-lhe que ainda acho
que devíamos ter voltado à praia. Havia tempo suficiente. A criada
afogou-se desnecessariamente.
- Ele diz que foi karma.
- Foi uma morte desperdiçada - replicou Blackthorne, e
lamentou a rudeza. Notou que ela não traduziu.
- Meu marido diz que a estratégia de ataque é muito boa,
muito boa mesmo.
607
- Domo. Diga-lhe que estou contente por ele ter escapado
ileso. E que seja ele quem vai comandar o regimento. E, natural"
mente, que ele é bem-vindo se quiser ficar aqui.
- Domo, Anjin-san. Buntaro diz que o plano de assalto é
muito bom. Mas quanto a ele, sempre carregará seu arco e espadas. Pode matar a uma distância muito maior, com grande precisão, e mais rápido do que um mosquete.
- Amanhã atiraremos juntos e veremos, se ele quiser.
- O senhor perderá, Anjin-san, sinto muito. Posso prevenilo para não fazer isso? - disse ela.
Blackthorne viu os olhos de Buntaro esvoaçarem de Mariko
para ele e voltar para ela. - Obrigado, Mariko-san. Diga-lhe que
eu gostaria de vê-lo atirar.
- Ele pergunta se o senhor sabe usar um arco.
- Sim, mas não como um arqueiro adequado. Os arcos estão
completamente fora de uso entre nós. Exceto a besta. Fui treinado
para o mar. Lá usamos apenas canhões, mosquetes, ou alfanjes.
Algumas vezes usamos setas incendiárias, mas apenas contra as
velas do inimigo, e bem de perto.
- Ele pergunta como são usadas, como são feitas, essas
setas incendiárias. São diferentes das nossas, como as que foram
usadas contra a galera, em Osaka?
Blackthorne começou a explicar e houve as fatigantes interrupções habituais e novas perguntas mais minuciosas. A esta altura estava acostumado à mente incrivelmente inquisitiva deles
cor: relação a qualquer aspecto da guerra, mas achava exaustivo
conversar por meio de um intérprete. Ainda que Mariko fosse
excelente, o que ela realmente dizia raramente era exato. Uma
longa réplica era sempre encurtada, alguma coisa do que era dito
era, naturalmente, ligeiramente alterada, e ocorriam mal-entendidos. Então as explicações tinham que ser repetidas desnecessariamente.
Mas sem Mariko ele sabia que jamais poderia ter-se tornado
tão valioso. É apenas o conhecimento que me mantém longe do
abismo, lembrou-se ele. Mas isso não é problema, pois ainda há
muito a contar e uma batalha a vencer. Uma autêntica batalha a
vencer. Você estará seguro até lá. Você tem uma marinha para
planejar. E depois, para casa. Ileso.
Viu as espadas de Buntaro, as espadas do guarda, sentiu as
suas e o calor da pistola, e soube, verdadeiramente, que nunca
estaria seguro naquela terra. Nem ele nem qualquer outra pessoa,
nem mesmo Toranaga.
608
- Anjin-san, Buntaro-sama pergunta se, mandando-lhe alguns homens amanhã, o senhor poderia mostrar-lhes como fazer
essas setas.
- Onde podemos conseguir alcatrão?
- Não sei. - Mariko interrogou-o sobre onde era geralmente encontrado, qual era a aparência, o cheiro, e possíveis
alternativas. Depois falou a Buntaro longamente. Fujiko estivera
silenciosa o tempo todo, os olhos e os ouvidos treinados, não perdendo nada. As criadas, bem comandadas por um leve movimento do seu leque em direção a um cálice vazio, constantemente
enchiam de novo os frascos de saque.
- Meu marido diz que discutirá isso com o Senhor Toranaga. Talvez exista alcatrão em algum lugar no Kwanto. Nunca
ouvimos falar nisso antes. Se não for alcatrão, temos óleo de
baleia, que talvez substitua. Ele pergunta se no seu país usam
rojões de combate, como os chineses.
- Sim. Mas não são considerados de muito valor, exceto em
cercos. Os turcos usaram-nos quando atacaram os cavaleiros de
São João, em Malta. Os rojões são usados, na maior parte, para
causar incêndios e pânico.
- Ele pede, por favor, que o senhor dê detalhes sobre essa
batalha.
- Foi há quarenta anos, na maior... - Blackthorne parou,
a mente disparando. Fora o assédio mais vital da Europa. Sessenta
mil turcos islâmicos, a nata do Império Otomano, atacaram seiscentos cavaleiros, apoiados por uns poucos milhares de auxiliares
malteses, encurralados no seu vasto castelo em St. Elmo, na minúscula ilha de Malta, no Mediterrâneo. Os cavaleiros haviam
resistido com êxito aos seis meses de cerco e, inacreditavelmente,
forçaram o inimigo a se retirar humilhado. Essa vitória salvara
toda a costa mediterrânea, e 'assim a cristandade, de ser devastada
pelas hordas infiéis.
Blackthorne repentinamente percebera que essa batalha lhe
dava uma das chaves para o Castelo de Osaka: como atacá-lo,
como acossá-lo, como atravessar os portões, e como conquistá-lo.
- Estava dizendo, senhor?
- Foi há quarenta anos, no maior mar intercontinental que
temos na Europa, Mariko-san. O Mediterrâneo. Foi apenas um
cerco, como qualquer outro, que não merece que se fale a respeito
- mentiu ele. Esse conhecimento era inestimável, certamente não
para ser cedido levianamente e não agora, em absoluto. Mariko
explicara muitas vezes que o Castelo de Osaka se erguia inexora609

velmente entre Toranaga e a vitória. Blackthorne estava certo de
que a solução para Osaka poderia muito bem ser o seu passaporte
para fora do império, com todas as riquezas de que ele poderia
precisar na vida.
Notou que Mariko parecia perturbada. - Senhora?
- Nada, senhor. - Começou a traduzir o que ele dissera.
Mas ele sabia que ela sabia que ele estava ocultando alguma coisa.
O cheiro do guisado distraiu-o.
- Fujiko-san!
- Hai, Anjin-san?
- Shokuji wa madaka? Kyaku wa... sazo kufuku de oro,
neh? Quando é o jantar? Os convidados podem estar com fome.
- Ah, gomen nasai, hi ga kurete kara ni itashimasu.
Blackthorne viu-a apontar para o sol e entendeu que dissera:
"Depois do pôr-do-sol". Assentiu e grunhiu, o que passava no
Japão por um polido "Obrigado, compreendi".
Mariko voltou-se novamente para Blackthorne. - Meu marido gostaria que o senhor lhe contasse sobre uma batalha em que
tenha estado.
- Estão todas no Manual de Guerra, Mariko-san.
- Ele diz que o leu com grande interesse, mas contém apenas breves detalhes. Nos próximos dias ele deseja aprender tudo
sobre as suas batalhas. Uma agora, se lhe agradar.
- Estão todas no Manual de Guerra. Talvez amanhã,
Mariko-san. - Ele queria tempo para examinar o seu deslumbrante novo pensamento sobre o Castelo de Osaka e aquela
batalha, e estava cansado de conversar, cansado de ser interrogado, mas acima de tudo queria comer.
- Por favor, Anjin-san, o senhor contaria novamente, só
uma vez, ao meu marido?
Ele ouviu a súplica cuidadosa sob o tom dela, e cedeu.
- Claro. De qual a senhora acha que ele gostaria?
- A batalha da Neerlândia. "Neerlândia", é assim que se
pronuncia?
- Sim - disse ele.
Então ele começou a contar a história dessa batalha que era
como quase todas as outras batalhas onde morriam homens, na
maior parte das vezes por causa dos erros e da estupidez dos oficiais no comando.
- Meu marido diz que aqui não é assim, Anjin-san. Aqui
os oficiais no comando têm que ser muito bons, ou morrem rapidamente.
610
- Naturalmente a minha crítica se aplicava apenas aos líderes ingleses.
- Buntaro-sama diz que lhe falará sobre as nossas guerras
e os nossos líderes, particularmente do táicum, nos próximos dias.
uma troca justa pelas suas informações - disse ela, impassível.
- Domo. - Blackthorne curvou-se ligeiramente, sentindo
os olhos de Buntaro cravados nele.
O que é que você realmente quer de mim, seu filho da puta?
O jantar foi uma calamidade. Para todos.
Mesmo antes de deixarem o jardim para irem comer na varanda, o dia já se tornara de mau agouro.
- Desculpe-me, Anjin-san, mas o que é aquilo? - apontou
Mariko. - Ali. Meu marido pergunta o que é aquilo.
- Onde? Oh, lá! É um faisão - disse Blackthorne. - O
Senhor Toranaga enviou-o para mim, junto com uma lebre. É o
que teremos no jantar, em estilo inglês... pelo menos é o que
eu terei, embora haja o suficiente para todos.
- Obrigada, mas... nós, meu marido e eu, não comemos
carne. Mas por que o faisão está pendurado lá? Com este calor,
não deveria ser descido e preparado?
- É assim que se prepara um faisão. A gente o pendura
para amadurecer a carne.
- O quê? Assim? Desculpe-me, Anjin-san - disse ela, desconcertada -, sinto muito, mas vai apodrecer rapidamente. Ainda
está com as penas e não foi ... limpo.
- A carne do faisão é seca, Mariko-san, por isso ele deve
ser pendurado durante alguns dias, talvez umas duas semanas,
dependendo do tempo. Depois é depenado, limpo e cozido.
- O senhor... o senhor o deixa ao ar? Para apodrecer?
Como...
- Nan ja? - perguntou Buntaro impaciente.
Ela falou com ele, desculpando-se, ele ouviu incrédulo, depois
se levantou, aproximou-se, examinou a ave e cutucou-a. Algumas
moscas zumbiram, depois pousaram de novo. Hesitantemente Fujiko falou a Buntaro, que corou.
- Sua consorte disse que o senhor ordenou que ninguém
além do senhor deveria tocá-lo - disse Mariko.
- Sim. Não se pendura caça aqui? Nem todos são budistas.
- Não, Anjin-san. Acho que não.
- Algumas pessoas acreditam que se deve pendurar um
611

faisão pelas penas da cauda até que caia, mas isso é história de
velhas - disse Blackthorne. - O jeito certo é pelo pescoço, assim
os sumos ficam onde devem ficar. Algumas pessoas deixam-no
pendurado até que se separe do pescoço, mas eu pessoalmente não
gosto de carne decomposta assim. Costumávamos... - Parou
pois ela adquirira uma leve tonalidade esverdeada.
- Nan desu ka, Mariko-san? - perguntou Fujiko rapidamente.
Mariko explicou. Todos riram nervosamente e Mariko levantou-se debilmente, dando tapinhas no brilho da testa. - Desculpe, Anjin-san, quer me dar licença um instante...
A comida de vocês também é estranha, queria ele dizer. Que
tal a de ontem, lula crua - mascar a carne branca, viscosa, quase
sem gosto, com nada além de um pouco de molho de soja para
ajudar a descer? Ou os tentáculos picados de polvo, novamente
crus, com arroz frio e alga marinha? E a água-viva fresca com
tof u - feijões fermentados - ensopado, amarelo-amarronzado,
que parecia uma tigela de vômito de cão? Oh, sim, servido lindamente numa frágil e atraente tigela, mas sempre se parecendo
com vômito! Sim, por Deus, é o bastante para deixar um homem
doente!
Acabaram indo todos para a varanda e, depois das mesuras
habituais e intermináveis, da conversa amena, do chá e do saquê,
a comida começou a chegar. Pequenas bandejas de uma transparente sopa de peixe, arroz, peixe cru, como sempre. E depois o
cozido dele.
Ele ergueu a tampa do caldeirão. O vapor subiu e os dourados glóbulos de gordura dançaram na superfície fumegante. A
sopa-molho rica, de dar água na boca, estava densa com os sumos
da carne e tenros nacos. Orgulhosamente ele ofereceu, mas todos
menearam a cabeça e pediram-lhe que comesse.
- Domo - disse ele.
Era sinal de boas maneiras tomar a sopa diretamente das
tigelinhas laqueadas e comer qualquer coisa sólida contida na sopa
com os pauzinhos. Havia uma concha na bandeja. Quase incapaz
de conter a fome, ele encheu a tigela e começou a comer. Então
viu os olhos deles.
Observavam-no com uma fascinação nauseada que, em vão,
tentavam ocultar. Seu apetite começou a se desvanecer. Tentou
ignorá-los, mas não conseguiu, o estômago roncando. Dissimulando a própria irritação, pousou a tigela, recolocou a tampa e disse612
lhes asperamente que não estava ao seu gosto. Ordenou a Nigatsu
que levasse embora.
- Fujiko-san pergunta se deve ser jogado fora - disse
Mariko esperançosa.
- Sim.
Fujiko e Buntaro descontraíram-se.
- Gostaria de um pouco mais de arroz? - perguntou
Fujiko.
- Não, obrigado.
Mariko abanou o leque, sorriu encorajadoramente, e tornou
a encher-lhe o cálice de saquê. Mas Blackthorne não se sentia mais
calmo e resolveu que no futuro cozinharia nas colinas, isolado,
comeria isolado, e caçaria abertamente.
Ao inferno com eles, pensou. Se Toranaga pode caçar, eu
também posso. Quando é que vou vê-lo? Quanto tempo tenho que
esperar?
- Sífilis na espera e sífilis em Toranaga! - disse alto em
inglês, e sentiu-se melhor.
- O quê, Anjin-san? - perguntou Mariko em português.
- Nada - retrucou ele. - Só estava me perguntando quando verei o Senhor Toranaga.
- Ele não me disse. Muito em breve, imagino.
Buntaro sorvia o saquê e a sopa sonoramente, conforme o
costume. Isso começou a aborrecer Blackthorne. Mariko falava
animadamente com o marido, que grunhia, mal lhe prestando
atenção. Ela não estava comendo, e Blackthorne ficou ainda mais
aborrecido de que tanto ela quanto Fujiko estivessem quase bajulando Buntaro, e também que ele próprio tivesse que acolher
aquele hóspede indesejado.
- Diga a Buntaro-sarna que no meu país o anfitrião brinda
ao convidado de honra. - Ergueu o cálice com um sorriso rígido.
- Longa vida e felicidade! - Bebeu.
Buntaro ouviu a explicação de Mariko. Assentiu, ergueu o
cálice, sorriu por entre os dentes, e esvaziou-o.
- Saúde! - brindou Blackthorne de novo.
E de novo.
E de novo.
- Saúde!
Desta vez Buntaro não bebeu. Puxou o cálice cheio e fitou
Blackthorne com seus olhos pequenos. Então chamou alguém lá
fora. A shoji deslizou imediatamente. Seu guarda, sempre presen613

te, curvou-se e estendeu-lhe o imenso arco e a aljava. Buntaro
pegou-o e falou veemente e rapidamente a Blackthorne.
- Meu marido... meu marido diz que o senhor queria
vê-]o atirar, Anjin-san. Ele acha que amanhã está longe demais.
Agora é um bom momento. O portão da sua casa, Anjin-san. Ele
pergunta que batente o senhor escolhe.
- Não compreendo - disse Blackthorne. O portão principal estava a uns quarenta passos de distância, em algum ponto do
outro lado do jardim, mas agora completamente oculto pela shoji
fechada à sua direita.
- O batente da esquerda ou o da direita? Por favor, escolha.
- A polidez dela traía urgência.
Prevenido, ele olhou para Buntaro. O homem parecia à parte,
esquecido deles, um boneco atarracado e feio, sentado e olhando
a distância.
- Esquerda - disse ele, fascinado.
- Hidari! - disse ela.
Imediatamente Buntaro puxou uma seta da aljava e, ainda
sentado, assestou o arco, levantou-o, retesou a corda ao nível dos
olhos e soltou a flecha com uma fluidez selvagem, quase poética.
A seta disparou na direção do rosto de Mariko, tocou-lhe um fio
de cabelo de passagem, e desapareceu através da parede shoji.
Outra seta foi atirada quase antes de a primeira ter sumido, depois outra, cada uma passando a uma polegada de Mariko. Ela
permanecia calma e imóvel, ajoelhada como estivera o tempo todo.
Uma quarta flecha e depois a última. O silêncio encheu-se
com o eco da corda do arco vibrando. Buntaro suspirou e voltou
lentamente. Pôs o arco atravessado sobre os joelhos. Mariko e
Fujiko sorriram, curvaram-se e cumprimentaram Buntaro, que
assentiu e curvou-se ligeiramente. Olharam para Blackthorne. Ele
sabia que o que testemunhara fora quase mágico. Todas as setas
haviam passado pelo mesmo furo na shoji.
Buntaro estendeu o arco de volta ao guarda e pegou o minúsculo cálice. Contemplou-o um momento, depois ergueu-o para
Blackthorne, esvaziou-o e falou rudemente, seu ego bestial de
novo.
- Ele... meu marido pede, polidamente, por favor, vá
e olhe.
Blackthorne pensou um momento, tentando acalmar o coração. - Não há necessidade. Claro que ele atingiu o alvo.
- Ele diz que gostaria de que o senhor tivesse certeza.
- Eu tenho certeza.
614
- Por favor, Anjin-san. O senhor o honraria.
- Não preciso honrá-lo.
- Sim. Mas posso, por favor, juntar ao dele o meu pedido?
Novamente a súplica nos olhos dela.
- Como se diz: "Foi maravilhoso assistir a isso"?
Ela lhe disse. Ele disse as palavras e se curvou. Buntaro
curvou-se perfunctoriamente em retribuição.
- Peça-lhe, por favor, que venha comigo ver as setas.
- Ele diz que gostaria que o senhor fosse sozinho. Ele não
deseja ir, Anjin-san.
- Por quê?
- Se ele foi exato, Anjin-san, o senhor deve ver isso sozinho. Se não foi, deve ver isso sozinho também. Assim nem o
senhor nem ele ficam embaraçados.
- E se ele tiver errado?
- Não errou. Mas pelo nosso costume a precisão, nestas circunstâncias impossíveis, não tem importância comparada à graça
demonstrada pelo arqueiro, a nobreza do movimento, a força de
atirar sentado, ou o desprendimento quanto a ter vencido ou
perdido.
As setas estavam a uma polegada uma da outra, no meio do
batente esquerdo. Blackthorne olhou para trás, para a casa, e viu,
a quarenta e poucos passos, o furinho nítido na parede de papel
que era uma centelha de luz na escuridão.
É quase impossível ter tanta pontaria, pensou. Do lugar onde
Buntaro estava sentado, não podia ver nem o jardim nem o portão, e a noite estava escura aqui fora. Blackthorne voltou-se para
o batente e ergueu um pouco mais a lanterna. Com uma mão
tentou arrancar uma seta. A cabeça de aço estava enterrada fundo
demais. Ele poderia ter quebrado o cabo de madeira, mas não quis
fazer isso.
O guarda observava.
Blackthorne hesitou. O guarda aproximou-se para ajudar, mas
ele meneou a cabeça. - Iyé, domo - e voltou para dentro.
- Mariko-san, por favor, diga à minha consorte que eu gostaria que as setas ficassem no batente para sempre. Todas elas.
Para me lembrar de um arqueiro magistral. Eu nunca tinha visto
pontaria assim. - Curvou-se para Buntaro.
- Obrigada, Anjin-san. - Traduziu e Buntaro curvou-se e
agradeceu o elogio.
- Saque! - ordenou Blackthorne.
Beberam mais. Muito mais. Buntaro bebia a grandes goles
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agora, descuidado, o vinho tomando conta dele. Blackthorne observou-o dissimuladamente, depois deixou a atenção vagar, perguntando-se como o homem conseguira alinhar e atirar as setas com
uma precisão tão incrível. É impossível, pensou, ainda que eu
tenha visto. Gostaria de saber o que Vinck, Baccus e os demais
estão fazendo agora. Toranaga lhe dissera que a tripulação estava
instalada em Yedo, perto do Erasmus. Jesus Cristo, gostaria de
vê-los e voltar a bordo.
Olhou de soslaio para Mariko, que dizia alguma coisa ao
marido. Buntaro ouviu, depois, para surpresa de Blackthorne, o
rosto do samurai contorceu-se de repugnância. Antes que pudesse
desviar os olhos, Buntaro o olhou.
- Nan desu ka? - As palavras de Buntaro soaram quase
como uma acusação.
- Nani-mo, Buntaro-san. Nada. - Blackthorne ofereceu
saquê a todos, esperando disfarçar o seu lapso. Novamente as
mulheres aceitaram, mas tomaram apenas um pequeno gole de
vinho. Buntaro acabou o seu imediatamente, com um humor péssimo. Depois falou com Mariko.
Apesar de si mesmo, Blackthorne falou: - O que há com
ele? O que está dizendo?
- Oh, desculpe, Anjin-san. Meu marido estava perguntando
sobre o senhor, sobre a sua esposa e consortes. E sobre seus filhos.
E sobre o que aconteceu desde que partimos de Osaka. Ele... -
Parou, mudando de idéia, e acrescentou numa voz indiferente:
- Ele está muito interessado no senhor e nas suas idéias.
- Estou interessado nele e nas idéias dele, Mariko-san.
Como se conheceram, a senhora e ele? Quando se casaram? Ele...
- Buntaro irrompeu com um jorro de japonês impaciente.
Imediatamente Mariko traduziu o que fora dito. Buntaro estendeu a mão e encheu duas xícaras de chá com saquê, ofereceu
uma a Blackthorne e acenou às mulheres que levassem os cálices.
- Ele ... meu marido diz que às vezes os cálices de saquê
são pequenos demais. - Mariko encheu os cálices. Sorveu um,
Fujiko o outro. Houve outra arenga, mais belicosa, e o sorriso de
Mariko congelou-sê-lhe no rosto. O de Fujiko também.
- Iyé, dozo gomen nasal, Buntaro-sama - começou Mariko.
- Ima! - ordenou Buntaro.
Nervosamente Fujiko começou a falar, mas Buntaro calou-a
com um olhar.
- Gomen nasal - sussurrou Fujiko, desculpando-se. -
Dozo, gomen nasal.
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- O que ele disse, Mariko-san?
Ela não pareceu ter ouvido Blackthorne. - Dozo gomen
nasal, Buntaro-sarna, watashi.. .
O rosto do marido avermelhou-se. - IMA!
- Desculpe, Anjin-san, mas meu marido me ordena que lhe
conte... que responda às suas perguntas... que lhe conte a meu
respeito. Eu lhe disse que não achava que esses assuntos de família devessem ser discutidos tão tarde da noite, mas ele ordena.
Por favor, seja paciente. - Ela tornou um grande gole de saquê.
Depois outro. Os fios de cabelo que lhe estavam soltos sobre as
orelhas oscilaram à leve corrente produzida pelo leque de Fujiko.
Ela esvaziou o cálice e pousou-o. - Meu nome de solteira é
Akechi. Sou a filha do Senhor General Akechi Jinsai, o assassino.
Meu pai traiçoeiramente assassinou o seu suserano, o Senhor Ditador Goroda.
- Deus do paraíso! Por que fez isso?
- Seja qual for a razão, Anjin-san, é insuficiente. Meu pai
cometeu o pior crime do nosso mundo. Meu sangue está maculado, assim como o sangue do meu filho.
- Então por que... - Ele parou.
- Sim, Anjin-san?
- Eu só ia dizer que compreendo o que isso quer dizer ...
matar um suserano. Estou surpreso de que a tenham deixado viva.
- Meu marido honrou-me ...
Novamente Buntaro a interrompeu com malignidade e ela se
desculpou e explicou o que Blackthorne perguntara. Desdenhosamente, Buntaro fez-lhe um gesto para continuar.
- Meu marido honrou-me mandando-me embora - continuou ela, do mesmo modo meigo. - Implorei que me autorizasse
a cometer seppuku, mas ele me negou esse privilégio. Era... Devo
explicar que seppuku é um privilégio concedido por ele ou pelo
Senhor Toranaga. Eu ainda lhe peço humildemente uma vez por
ano, no aniversário do dia da traição. Mas na sua sabedoria, meu
marido sempre recusou. - O sorriso dela era adorável. - Meu
marido me honra todos os dias, todos os momentos, Anjin-san. Se
eu fosse ele, não seria capaz sequer de conversar com uma pessoa
tão... conspurcada.
- É por isso que ... é por isso que a senhora é a última da
sua linhagem? - perguntou ele, lembrando-se do que ela dissera
sobre uma catástrofe, durante a marcha do Castelo de Osaka.
Mariko traduziu a pergunta para Buntaro, e depois voltou-se
novamente. - Hai, Anjin-san. Mas não foi uma catástrofe, não
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Ì
I

para eles. Foram apanhados nas colinas, meu pai e sua família,
por Nakamura, o general que se tornou táicum. Foi Nakamura
quem comandou os exércitos de vingança e dizimou todas as forças do meu pai, vinte mil homens, um por um. Meu pai e sua
família foram acuados, mas meu pai teve tempo de ajudá-los a
todos, meus quatro irmãos e três irmãs, minha... minha mãe e
as duas consortes. Depois cometeu seppuku. Nisso' ele foi samurai,
e eles eram samurais. Ajoelharam-se bravamente diante dele, um
por um, e ele os matou um por um. Morreram honrosamente.
E ele morreu honrosamente. Os dois irmãos do meu pai, e um
tio, se haviam aliado a ele na traição contra o suserano. Também
foram perseguidos. E morreram com honra igual. Nenhum Akechi
foi deixado com vida para enfrentar o ódio e o escárnio do inimigo, exceto eu... não, desculpe-me, por favor, Anjin-san, estou
errada... meu pai e seus irmãos e tio eram o verdadeiro inimigo.
Do inimigo, apenas eu permaneci viva, uma testemunha viva da
imunda traição. Eu, Akechi Mariko, fui deixada viva porque era
casada e portanto pertencia à família do meu marido. Morávamos
em Kyoto então. Eu estava em Kyoto quando o meu pai morreu.
Sua traição e rebelião duraram apenas treze dias, Anjin-san. Mas
enquanto viver um homem nestas ilhas, o nome Akechi será vergonhoso.
- Há quanto tempo estava casada quando isso aconteceu?
- Há dois meses e três dias, Anjin-san.
- E tinha quinze anos?
- Sim. Meu marido honrou-me não se divorciando de mim
nem me expulsando como deveria ter feito. Fui mandada embora.
Para uma aldeia ao norte. Fazia frio lá, Anjin-san, na província
de Shonai. Muito frio.
- Quanto tempo ficou lá?
- Oito anos. O Senhor Goroda tinha quarenta e cinco anos
quando cometeu seppuku para impedir a própria captura. Isso
foi há quase dezesseis anos, Anjin-san, e a maioria dos seus descend...
Buntaro interrompeu de novo, sua língua um açoite.
- Por favor, desculpe-me, Anjin-san - disse Mariko. -
Meu marido corretamente assinala que teria sido suficiente que
eu dissesse que sou filha de um traidor, que longas explicações
são desnecessárias. Claro que algumas explicações eram necessárias - acrescentou ela cuidadosamente. - Por favor, desculpe os
maus modos do meu marido e rogo-lhe que se lembre do que eu
disse sobre ouvidos para ouvir e sobre a Cerca Óctupla. Perdoe618
I
me, Anjin-san, recebi ordem de ir embora. O senhor não deve
sair antes que ele saia, nem beber mais do que ele. Não interfira.
- Ela se curvou para Fujiko. - Dozo gomen nasai.
- Do itashimashité.
Mariko inclinou a cabeça para Buntaro e partiu. Seu perfume
demorou-se no ar.
- Saque! - disse Buntaro, e sorriu malignamente.
Fujiko encheu a xícara de chá.
- Saúde - disse Blackthorne, confuso.
Por mais de uma hora ele brindou a Buntaro, até sentir a
própria cabeça girando. Então Buntaro tomou a última xícara e
caiu deitado por entre xícaras despedaçadas. A shoji abriu-se instantaneamente. O guarda entrou com Mariko. Levantaram Buntaro, ajudados por criados que pareciam ter surgido do nada, e
carregaram-no para o aposento oposto. O quarto de Mariko. Ajudada por Koi, a criada, ela começou a despi-lo. O guarda cerrou
a shoji e sentou do lado de fora, a mão no punho da espada solta.
Fujiko esperava, olhando Blackthorne. Vieram criadas e arrumaram a desordem. Exausto, Blackthorne correu as mãos pelo
longo cabelo e amarrou de novo a fita que prendia a cauda. Depois levantou-se oscilante e saiu para a varanda, seguido da consorte.
O ar cheirava bem e limpou-o. Mas não o suficiente. Ele se
sentou pesadamente na varanda e sorveu a noite.
Fujiko ajoelhou-se atrás dele e inclinou-se para a frente.
- Gomen nasal, Anjin-san - sussurrou, movendo a cabeça na
direção da casa. - Wakarimasu ka?
- Wakarimasu, shigata ga na!. - Depois, vendo-lhe o medo
aparente, afagou-lhe o cabelo.
- Arigato, arigato, Anjin-sarna.
- Anata wa suimin ima, Fujiko-san - disse ele, encontrando
as palavras com dificuldade. Você dormir agora.
- Dozo gomen nasai, Anjin-san, suimin, neh? - disse ela,
gesticulando na direção do quarto dele, os olhos suplicando.
- Iyé. Watashi oyogu ima. Não, vou nadar.
- Hai, Anjin-sama. - Obedientemente ela se voltou e chamou. Dois criados vieram correndo. Eram ambos jovens da aldeia,
fortes e conhecidos como bons nadadores.
Blackthorne não fez objeção. Naquela noite sabia que as suas
objeções seriam sem sentido.
- Bem, de qualquer jeito - disse alto, enquanto seguia
oscilante colina abaixo, os homens atrás, o cérebro entorpecido

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4
Blackthorne nadou durante uma hora e sentiu-se melhor.
Quando voltou, Fujiko o esperava na varanda com um bule de
chá. Ele aceitou um pouco, depois foi para a cama e pegou no
sono imediatamente.
O som da voz de Buntaro, transbordante de maldade, despertou-o. Sua mão direita automaticamente agarrou a coronha da
pistola que mantinha sempre embaixo do futon, o coração ribombando no peito devido ao inesperado despertar.
A voz de Buntaro cessou. Mariko começou a falar. Blackthorne só conseguia apreender algumas palavras, mas podia sentir
os argumentos razoáveis e a súplica, não abjeta, lamentosa ou
mesmo perto das lágrimas, apenas a firme serenidade habitual
dela. Novamente Buntaro explodiu.
Blackthorne tentou não ouvir.
- Não interfira - dissera-lhe ela, e ela era prudente. Ele
não tinha direitos, mas Buntaro tinha muitos. - Rogo-lhe que
seja cuidadoso, Anjin-san. Lembre-se do que eu lhe disse de ouvidos para ouvir e a Cerca Óctupla.
Obedientemente deitou-se, a pele gelada de suor, e forçou-se
a pensar no que ela dissera.
- Veja, Anjin-san - dissera-lhe naquela noite muito especial, quando terminavam a última de muitas últimas garrafas de
saquê e ele brincara sobre a falta de privacidade por toda parte:
gente sempre por perto, paredes de papel, ouvidos e olhos sempre espreitando -, aqui o senhor tem que aprender a criar a sua
própria privacidade. Somos ensinados desde a infância a desaparecer dentro de nós mesmos, a erguer paredes impenetráveis, por
trás das quais vivemos. Se não pudéssemos fazer isso, com certeza
ficaríamos todos loucos e mataríamos uns aos outros e a nós
mesmos.
- Que paredes?
- Oh, temos um labirinto ilimitado onde nos esconder,
Anjin-san. Rituais e costumes, tabus de toda espécie, oh, sim. Até
a nossa língua tem nuanças que a sua não tem, as quais nos
permitem evitar, polidamente, uma pergunta se não queremos responder.
- Mas como cerrar os ouvidos, Mariko-san? Isso é impossível.
620
- Oh, muito fácil, com treinamento. Claro, o treinamento
começa assim que a criança aprende a falar, portanto isso bem
cedo se torna uma segunda natureza para nós. De que outro modo
poderíamos sobreviver? Primeiro se começa purificando a mente
de gente, colocando-se num plano diferente. A observação do pôrdo-sol é uma grande ajuda, ou a escuta da chuva. Anjin-san, já
notou os diferentes sons da chuva? Se o senhor realmente ouvir,
então o presente desaparece, neh? Ouvir flores caindo e rochas
crescendo são exercícios excepcionalmente bons. Claro que não se
espera que o senhor veja as coisas, elas são apenas sinais, mensagens ao seu hara, o seu centro, para lembrá-lo da transitoriedade da vida, para ajudá-lo a atingir a wa, a harmonia, Anjin-san,
a harmonia perfeita, que é a qualidade mais visada em toda a vida
do Japão, toda a arte, toda. . . - Ela rira. - Pronto, veja o que
o excesso de saquê faz comigo. - A ponta da língua tocara-lhe
os lábios sedutoramente. - Vou lhe cochichar um segredo: não
se deixe enganar pelos nossos sorrisos e gentilezas, nosso cerimonial, nossas mesuras, delicadezas e atenções. Por trás disso tudo,
podemos estar a um milhão de ris de distância, seguros e sozinhos. Pois é isso o que procuramos: esquecimento. Um dos nossos
primeiros poemas jamais escritos - está no Kojiko, nosso primeiro livro de história, que foi escrito há cerca de mil anos -
talvez explique o que estou dizendo:
"Oito cúmulos se erguem
Para os amantes se esconderem
A Cerca óctupla da província de Izumo
Encerra aquelas nuvens óctuplas Oh, que maravilhosa, essa Cerca Óctupla!"

Nós certamente enlouqueceríamos se não tivéssemos uma Cerca
Óctupla, oh, sim!
Lembre-se da Cerca Óctupla, disse ele a si mesmo, enquanto
a fúria sibilante de Buntaro continuava. Não sei nada sobre ela.
Nem sobre ele, na realidade. Pense no Regimento de Mosquetes,
ou na sua casa, em Felicity, ou em como recuperar o navio, em
Baccus, em Toranaga ou em Omi-san. Que tal Omi? Preciso de
vingança? Ele quer ser meu amigo e tem sido bom e gentil desde
o caso das pistolas e...
O som da pancada feriu-o dentro da cabeça. Depois a voz
de Mariko começou de novo, e houve uma segunda pancada e
Blackthorne se pôs de pé num instante e escancarou a shoji. O
621
pela bebida -, consegui pô-lo para dormir. Não pode machucáagora.

guarda erguia-se no corredor, junto à porta de Mariko, encarando-o maldosamente, a espada pronta.
Blackthorne estava se preparando para se atirar contra o
samurai quando a porta na extremidade do corredor se abriu.
Fujiko, o cabelo solto e flutuando sobre o quimono de dormir,
aproximou-se, o som do pano rasgando e outro golpe aparentemente não a afetando em absoluto. Ela se curvou polidamente
para o guarda e se postou entre eles, depois se curvou meigamente
para Blackthorne e pegou-lhe o braço, guiando-o de volta ao quarto. Ele viu a tensa prontidão do samurai. Tinha apenas uma pistola e uma bala no momento, por isso recuou. Fujiko seguiu-o e
fechou a shoji atrás de si. Depois, muito assustada, balançou a
cabeça advertindo-o, pôs um dedo sobre os lábios, e balançou
a cabeça de novo, os olhos suplicando.
- Gomen nasal, wakarimasu ka? - sussurrou ela.
Mas ele estava concentrado na parede do quarto contíguo,
que poderia ser despedaçada com muita facilidade.
Fujiko também olhou para a parede, depois se colocou entre
ele e a parede, e sentou-se, fazendo-lhe sinal que a imitasse.
Mas ele não podia. Continuou de pé, preparando-se para o
ataque que os destruiria a todos, aguilhoado por um soluço que
seguiu outra pancada.
- Iyé! - Fujiko estremeceu aterrorizada.
Ele fez-lhe sinal para sair do caminho.
- Iyé, iyé - implorou ela novamente.
- IMA!
Imediatamente Fujiko se levantou e fez-lhe sinal que esperasse enquanto corria sem ruído algum para as espadas que jaziam
diante do takonoma, a pequena alcova de honra. Pegou a espada
comprida, de mãos trêmulas, tirou-a da bainha, e preparou-se para
segui-lo através da parede. Nesse instante houve um tapa final e
uma exaltada torrente de fúria. A outra shoji abriu-se com estrondo e Buntaro se afastou com passos pesados, seguido pelo guarda.
Houve silêncio na casa por um momento, depois o som do portão
do jardim batendo.
Blackthorne dirigiu-se para a porta. Fujiko arremessou-se à
sua frente, mas ele a empurrou para o lado e a escancarou.
Mariko ainda estava ajoelhada no canto do quarto ao lado,
um vergão lívido no rosto, o cabelo desgrenhado, o quimono em
farrapos, contusões graves nas coxas e na base das costas.
Ele se precipitou para levantá-la, mas ela gritou: - Vá embora, por favor, vá embora, Anjin-san!
622
Ele viu o fio de sangue no canto da boca. - Jesus, como a
senhora está mal.. .
- Eu lhe disse que não interferisse. Por favor, vá embora
- disse ela na mesma voz calma que a violência em seus olhos
desmentia. Depois viu Fujiko, que ficara à soleira da porta. Falou
com ela. Fujiko obedientemente pegou o braço de Blackthorne para
levá-lo embora, mas ele se soltou com um repelão. - Não! Iyé!
- Sua presença aqui me tira a dignidade, não me dá paz
nem conforto e me envergonha - disse Mariko. - Vá embora!
- Quero ajudar. Não compreende?
- O senhor não compreende? Não tem direitos nisto. Foi
uma discussão particular entre marido e mulher.
- Isso não é desculpa para bater ...
- Por que não ouve, Anjin-san? Ele pode me espancar até
a morte se quiser. Tem o direito e eu gostaria de que... até isso!
Então eu não teria que suportar a vergonha. Acha que é fácil
viver com a minha vergonha? Não ouviu o que eu disse? Sou filha
de Akechi Jinsai!
- Não é culpa sua. A senhora não fez nada!
- É minha culpa e sou filha de meu pai. - Mariko teria
parado aí. Mas, vendo a compaixão dele, o interesse, e o amor,
e sabendo como ele prezava a verdade, permitiu que alguns dos
seus véus tombassem. - Esta noite a culpa foi minha, Anjin-san
- disse. - Se eu tivesse chorado como ele quer, implorado perdão como ele quer, bajulado e ficado petrificada e lisonjeado como
ele quer, aberto os olhos em terror fingido como ele quer, fizesse
todas as coisas próprias de mulher que o meu dever exige, ele
seria como uma criança nas minhas mãos. Mas eu não farei.
- Por quê?
- Porque essa é a minha vingança. Para retribuir por me
deixar viva depois da traição. Para retribuir por ter me mandado
embora por oito anos e ter me deixado viva todo esse tempo. E para
retribuir por me ordenar que voltasse à vida e continuasse vivendo. - Ela se sentou penosamente e arrumou o quimono esfarrapado mais junto ao corpo. - Nunca me darei a ele de novo. Uma
vez eu fiz isso, voluntariamente, embora o tenha detestado desde
o primeiro momento em que o vi.
- Então por que se casou? A senhora disse que as mulheres
aqui têm o direito de recusar, que não têm que se casar contra
a vontade.
- Casei-me com ele para agradar ao Senhor Goroda, e para
agradar a meu pai. Eu era muito jovem e não sabia sobre Goroda
623

então, mas se quer a verdade Goroda era o homem mais cruel e
repugnante que jamais nasceu. Ele levou meu pai à traição. É a
verdade! Goroda! - Ela cuspiu o nome. - Não fosse ele, estaríamos todos vivos e honrados. Rezo a Deus para que Goroda
esteja condenado ao inferno por toda a eternidade! - Moveu-se
cuidadosamente, tentando abrandar o sofrimento no flanco. - só
existe ódio entre mim e meu marido, esse é o nosso karma. Seria
tão fácil para ele permitir-me ascender à morte.
- Por que ele não a deixa ir embora? Não se divorcia da
senhora? Ou lhe concede o que a senhora deseja?
- Porque ele é um homem. - Um retesar de dor percorreu-a e ela fez uma careta. Blackthorne estava de joelhos ao seu
lado, amparando-a. Ela o empurrou, lutou por recobrar o domínio
de si. Fujiko, à soleira, observava estoicamente. - Estou bem,
Anjin-san. Por favor, deixe-me sozinha. O senhor deve ser cuidadoso.
- Não tenho medo dele.
Debilmente Mariko afastou o cabelo dos olhos e o encarou
inquisitiva. Por que não deixar o Anjin-san ir ao encontro do seu
karma, perguntou a si mesma. Ele não é do nosso mundo. Buntaro o matará com toda a facilidade. Apenas a proteção pessoal
de Toranaga o protegeu até agora. Yabu, Omi, Naga, Buntaro -
qualquer um deles poderia ser facilmente provocado para matá-lo.
Ele só causou problemas desde que chegou, neh? Assim como
o seu conhecimento. Naga tem razão: o Anjin-san pode destruir
o nosso mundo, a menos que seja contido.
E se Buntaro soubesse a verdade? Ou Toranaga? Sobre o
"travesseiro" ...
- Ficou louca? - dissera Fujiko naquela noite.
- Não.
- Então por que vai tomar o lugar da criada?
- Por causa do saquê e por diversão, Fujiko-san, e por
curiosidade - mentira ela, ocultando a verdadeira razão: ele a
excitava, ela o desejava, nunca tivera um amante. Se não fosse
naquela noite, não seria nunca, e tinha que ser o Anjin-san e
apenas o Anjin-san.
Então fora a ele, sentira-se enlevada e depois, quando a galera chegara, Fujiko dissera em particular: - A senhora teria ido
se soubesse que o seu marido estava vivo?
- Não. Claro que não - mentiu ela.
- Mas agora vai contar a Buntaro-sama, neh? Que "travesseirou" com o Anjin-san?
624
- Por que deveria fazer isso?
- Pensei que talvez fosse o seu plano. Se contar a Buntarosama no momento certo, a fúria dele lhe explodirá em cima e a
senhora estará agradecidamente morta antes que ele saiba o
que fez.
- Não, Fujiko-san, ele nunca me matará. Ele me mandaria
para os etas, se tivesse desculpa suficiente, se conseguisse obter a
aprovação do Senhor Toranaga, mas nunca me matará.
- Adultério com o Anjin-san... isso seria suficiente?
- Oh, sim.
- O que aconteceria ao seu filho?
- Herdaria a minha desgraça, se eu ficasse desgraçada, neh?
- Por favor, se achar que Buntaro-sama desconfia do que
aconteceu, diga-me. Enquanto consorte, é meu dever proteger o
Anjin-san.
Sim, é, Fujiko, pensara Mariko então. E isso lhe daria a
desculpa para se vingar abertamente do acusador de seu pai, coisa
pela qual você anseia. Mas o seu pai era um covarde, sinto muito,
pobre Fujiko. Hiro-matsu estava lá, do contrário seu pai estaria
vivo agora e Buntaro morto, pois Buntaro é muito mais odiado
do que seu pai era desprezado. Mesmo as espadas que você
tanto preza, nunca lhe foram dadas como uma honra de batalha,
foram compradas de um samurai ferido. Sinto muito, mas nunca
serei eu quem vai lhe dizer, mesmo que a verdade seja essa.
- Não tenho medo dele - estava dizendo Blackthorne
de novo.
- Eu sei - disse ela, a dor dominando-a. - Mas, por
favor, imploro-lhe, tenha medo dele por mim.
Blackthorne dirigiu-se para a porta.


Buntaro o esperava a cem passos, no meio do caminho que
levava para a aldeia lá embaixo - atarracado, imenso e mortífero. O guarda erguia-se ao seu lado. O amanhecer estava nublado.
Barcos de pesca já estavam contornando os bancos de areia, o
mar calmo.
Blackthorne viu o arco frouxo nas mãos de Buntaro, e as
espadas, e as espadas do guarda. Buntaro oscilava ligeiramente e
isso lhe deu esperança de que a pontaria do homem falhasse, o
que lhe daria tempo para se aproximar o suficiente. Não havia
cobertura aos lados do caminho. Ele engatilhou as duas pistolas
e avançou na direção dos dois homens.
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i
Ao inferno com cobertura, pensou por entre o nevoeiro da
sua ânsia por sangue, sabendo ao mesmo tempo que o que estava
fazendo era loucura, que não tinha chance contra os dois samurais ou o arco de longo alcance, que não tinha qualquer direito
de interferir. E então, enquanto ainda se encontrava fora do
alcance da pistola, Buntaro curvou-se profundamente, e o mesmo
fez o guarda. Blackthorne parou, pressentindo uma armadilha.
Olhou em torno mas não havia ninguém por perto. Como num
sonho, viu Buntaro desabar pesadamente sobre os joelhos, pôr
o arco de lado, as mãos estendidas no chão, e curvar-se para ele
como um camponês se curvaria diante do seu senhor. O guarda
o imitou.
Blackthorne contemplou-os, pasmado. Quando teve certeza
de que seus olhos não o estavam enganando, avançou lentamente,
a pistola pronta mas não apontada, esperando traição. Atingindo
um fácil raio de tiro, parou. Buntaro não se movera. O costume
ditava que ele devia se ajoelhar e retribuir a saudação, porque
eles eram iguais, ou quase iguais, mas ele não conseguia compreender por que devesse haver aquela inacreditável cerimônia de
deferência numa situação como aquela, em que ia jorrar sangue.
- Levante-se, seu filho da puta! - Blackthorne preparou
os dois gatilhos.
Buntaro não disse nada, não fez nada. Manteve a cabeça
baixa, as mãos estendidas. As costas do seu quimono estavam
ensopadas de suor.
- Nan ia? - Deliberadamente Blackthorne usou o modo
mais insultante de perguntar, "O que e?", esperando induzir Buntaro a se levantar, a começar, sabendo que não podia alvejá-lo
daquele jeito, com a cabeça baixa e quase no pó.
Então, consciente de que era rude permanecer em pé enquanto eles estavam ajoelhados, e que o "nan ia" era um insulto
intolerável e certamente desnecessário, Blackthorne se ajoelhou
e, agarrado às pistolas, pousou as duas mãos no chão e retribuiu
a reverência.
Sentou-se sobre os calcanhares. - Hai? - perguntou, com
uma polidez forçada.
Imediatamente Buntaro começou a resmungar. Abjetamente.
Desculpando-se. De quê e exatamente por quê, Blackthorne não
sabia. Só conseguia apreender uma palavra aqui outra ali, e "saquê" muitas vezes, mas tratava-se de um pedido de desculpas e
uma humilde súplica por perdão. Buntaro continuava interminavelmente. Depois parou e encostou a cabeça no chão novamente.
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Nessa altura a cólera ofuscante de Blackthorne já desaparecera. - Shigata ga nai - disse ele, rouco, o que significava "não
se pode evitar", ou "não há nada a ser feito", ou "o que o senhor
podia fazer?", sem saber ainda se o pedido de desculpas era
meramente ritual, precedendo o ataque. - Shigata ga nai. Hakkiri wakaranu ga shinpai surukotowanai. Não pode ser evitado.
Não compreendo exatamente, mas não se preocupe.
Buntaro levantou os olhos e sentou-se. - Arigato ... arigato, Anjin-sama. Domo gomen nasal.
- Shigata ga nai - repetiu Blackthorne e, agora que ficara
claro que o pedido de desculpas era genuíno, agradeceu a Deus
por lhe dar aquela miraculosa oportunidade de cancelar o duelo.
Ele sabia que não tinha direitos, que agira como um louco, e
que o único meio de resolver a crise com Buntaro era de acordo
com as regras. E isso queria dizer Toranaga.
Mas por que as desculpas? perguntava-se ele freneticamente.
Pense! Você tem que aprender a pensar como eles.
Então a solução precipitou-sê-lhe no cérebro. Deve ser porque sou hatamoto e Buntaro, meu hóspede, perturbou a wa, a
harmonia da minha casa. Tendo uma violenta discussão com a
esposa na minha casa, insultou-me, portanto ele está totalmente
errado e tem que se desculpar, com sinceridade ou não. Desculpas
obrigatórias de um samurai a outro, de um hóspede ao anfit...
Espere! Não se esqueça de que, pelo costume deles, todos,
os homens podem se embebedar, espera-se que se embebedem às
vezes, e quando bêbados não são, legitimamente, responsáveis
pelos próprios atos. Não se esqueça de que não há perda de
dignidade se se fica fedendo de bêbado. Lembre-se de como
Mariko e Toranaga nem se preocuparam no navio, quando você
ficou totalmente entorpecido. Acharam engraçado e não repugnante, como nós acharíamos.
E você tem realmente alguma coisa a censurar? Não foi você
quem começou a rodada de bebida? O desafio não foi seu?
- Sim - disse alto.
- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Buntaro, os olhos
injetados.
- Nani-mo. Watashi no kashitsu desu. Nada. A culpa foi
minha.
Buntaro levantou a cabeça e disse que não, que a culpa era
só dele, e curvou-se e desculpou-se de novo.
- Saquê - disse Blackthorne com determinação, e encolheu os ombros. - Shigata ga nai. Saquê!
627

Buntaro curvou-se e agradeceu-lhe de novo. Blackthorne retribuiu e levantou-se. Buntaro imitou-o, e o guarda. Ambos se
curvaram mais uma vez. E mais uma vez foram correspondidos.
Finalmente Buntaro deu-lhe as costas e se afastou cambaleante. Blackthorne esperou até estar fora do alcance da seta,
perguntando-se se o homem estava tão bêbado quanto aparentava.
Depois voltou para dentro da casa.
Fujiko encontrava-se na varanda, novamente dentro do seu
escudo polido e sorridente. O que é que você está realmente
pensando? perguntou-se Blackthorne ao saudá-la e ser correspondido.
A porta de Mariko estava fechada. Sua criada encontrava-se
em pé do lado de fora.
- Mariko-san?
- Sim, Anjin-san?
Ele esperou mas a porta continuou fechada. - Está bem?
- Sim, obrigada. - Ele a ouviu pigarrear, depois a voz
débil continuou: - Fujiko mandou avisar a Yabu-san e ao Senhor Toranaga que estou indisposta hoje e não poderei interpretar.
- Seria melhor que a senhora visse um médico.
- Oh, obrigada, mas Suwo será excelente. Mandei chamá-lo.
Eu... só torci o lado. Estou bem, realmente. Não há necessidade
de o senhor se preocupar.
- Olhe, conheço alguma coisa sobre cuidados médicos. Não
está tossindo sangue, está?
- Oh, não. Quando escorreguei só bati com o rosto. Verdade. Estou absolutamente bem.
Após uma pausa, ele disse: - Buntaro desculpou-se.
- Sim. Fujiko observou do portão. Agradeço-lhe humildemente por ter aceitado o pedido de desculpas. Obrigada, Anjin-san,
sinto muito que tenha sido perturbado ... é imperdoável que a
sua harmonia ... por favor, aceite minhas desculpas também.
Eu nunca deveria ter perdido o controle sobre a minha boca.
Foi muito descortês. Por favor, perdoe-me também. A culpa da
discussão foi minha. Por favor, aceite minhas desculpas.
- Por ter sido espancada?
- Por ter falhado em obedecer ao meu marido, por ter
falhado em ajudá-lo a dormir satisfeito, por ter falhado a ele e
ao meu anfitrião. E também pelo que eu disse.
- Tem certeza de que não há nada que eu possa fazer?
- Não... não, obrigada, Anjin-san. É só por hoje.
Mas Blackthorne não a viu durante oito dias.
628
CAPÍTULO 36
- Convidei-o para caçar, Naga-san, não para repetir opiniões que já ouvi - disse Toranaga.
- Imploro-lhe, Pai, pela última vez: pare o treinamento,
proscreva as armas, destrua o bárbaro, declare a experiência um
fracasso e ponha um fim a essa obscenidade.
- Não. Pela última vez. - O falcão encapuzado sobre a
mão enluvada de Toranaga agitou-se, inquieto com a ameaça inabitual na voz do amo, e sibilou, irritado. Estavam no bosque,
com batedores e guardas bem longe do raio de audição, o dia
mormacento, úmido e nublado.
- Muito bem. Mas ainda é meu dever lembrá-lo de que
está em perigo aqui, e solicitar-lhe novamente, com a devida
polidez, agora pela última vez, que deixe Anjiro hoje.
- Não. Também pela última vez.
- Então tome a minha cabeça!
- Já tenho a sua cabeça!
- Então torne-a hoje, agora, ou deixe-me pôr fim à vida,
já que o senhor não aceitará bons conselhos.
- Aprenda a ser paciente, jovenzinho enfatuado!
- Como posso ser paciente quando o vejo se destruindo?
É meu dever chamar-lhe a atenção para isso. O senhor fica aqui
caçando e desperdiçando tempo, enquanto os seus inimigos fazem
o mundo inteiro desabar em cima do senhor. Os regentes reúnemse amanhã. Quatro quintos de todos os daimios do Japão já se
encontram em Osaka ou estão a caminho de lá. O senhor foi o
único daimio importante a recusar. Agora será impedido. Depois
nada poderá salvá-lo. Pelo menos devia estar em casa, em Yedo,
rodeado pelas suas legiões. Aqui está desprotegido. Não podemos
protegê-lo. Mal e mal temos mil homens, e Yabu não mobilizou
Izu inteira? Tem mais de oito mil homens no raio de vinte ris,
mais seis fechando as fronteiras. O senhor sabe que os espiões
dizem que ele tem uma esquadra esperando ao norte para pô-lo
a pique se o senhor tentar escapar de galera! É prisioneiro dele
novamente, não vê? Um pombo-correio de Ishido a Yabu pode
destruí-lo, no momento que quiser. Como sabe que ele não está
planejando traição com Ishido?
- Tenho certeza de que ele está considerando isso. Eu estaria se fosse ele. Você não?
- Não, não estaria.
629

- Então você logo estaria morto, o que seria absolutamente
merecido, mas o mesmo aconteceria com toda a sua família, todo
o seu clã e todos os seus vassalos, o que seria absolutamente
imperdoável. Você é um imbecil, estúpido e truculento! Nunca
vai usar a mente, ouvir, aprender, nunca vai frear a língua ou o
temperamento! Deixou-se manipular do modo mais infantil e
acredita que tudo pode ser resolvido com a ponta da sua espada.
A única razão por que não lhe tiro essa cabeça estúpida nem o
deixo pôr fim à sua vida atual sem valor é que você é jovem, e
eu costumava pensar que você tinha algumas possibilidades, seus
erros não são maliciosos, não há astúcia em você e a sua lealdade
é inquestionável. Mas se não aprender rapidamente paciência e
autodisciplina, suprimo-lhe o status de samurai e o rebaixo, junto
com todas as suas gerações, para a classe camponesa! - O punho
direito de Toranaga chocou-se contra a sela e o falcão soltou um
guincho penetrante, nervoso. - Compreendeu?
Naga estava em choque. Em toda a vida, nunca vira o pai
gritar de raiva nem perder a calma, ou sequer ouvira falar que
ele tivesse feito isso. Muitas vezes sentira a ferroada da língua
dele, mas com justificação. Naga sabia que cometia muitos erros,
mas o pai sempre dava um jeito de que o que ele fizera deixasse
de parecer tão estúpido quanto parecera de imediato. Por exemplo, quando Toranaga mostrara como ele caíra na armadilha de
Orni - ou de Yabu - com relação a Jozen, ele tivera que ser
fisicamente impedido de atacar e assassinar os dois. Toranaga
ordenara aos seus guardas particulares que jogassem água fria em
Naga até que este voltasse à razão, e calmamente explicara que
ele, Naga, o ajudara incomensuravelmente eliminando a ameaça
de Jozen. - Mas teria sido melhor se você soubesse que estava
sendo manipulado para agir. Seja paciente, meu filho, tudo vem
com a paciência - aconselhara Toranaga. - Logo você será
capaz de manipulá-los. O que você fez foi muito bom. Mas deve
aprender a raciocinar sobre o que está na mente de um homem
se pretende ser de valia para si mesmo, ou para o seu senhor.
Preciso de líderes. Tenho fanáticos suficientes.
O pai sempre fora razoável e pronto a perdoar, mas hoje ...
Naga pulou do cavalo e ajoelhou-se abjetamente: - Por favor,
perdoe-me, Pai. Nunca pretendi deixá-lo zangado... é só porque
estou desesperado de preocupação pela sua segurança. Por favor,
desculpe-me por perturbar-lhe a harmonia...
- Cale a boca! - vociferou Toranaga, assustando o cavalo.
Furiosamente Toranaga firmou-se com os joelhos e puxou
630
os freios com a mão direita, o cavalo escorregando. Desequilibrado, o falcão começou a se debater - saltando do punho, as asas
adejando descontroladamente, guinchando o seu hic-lc-lc-lc-lc de
rebentar os tímpanos - enfurecido pela agitação inabitual e inconveniente ao seu redor. - Pronto, minha belezinha, pronto ...
- Desesperadamente Toranaga tentava fazê-lo pousar e recuperar
o controle sobre a montaria, quando Naga saltou para a cabeça do
cavalo. Agarrou a rédea e conseguiu impedir o animal de disparar.
O falcão guinchava furiosamente. Afinal, relutante, pousou de
novo sobre a luva de Toranaga, presa firmemente pelos pioses.
Mas as asas pulsavam nervosamente, os sinos nos seus pés soando
estridentemente.
- Hic-lc-lc-lc-lc-liiiiicc! - guinchou a ave uma última vez.
- Pronto, pronto, minha belezinha. Pronto, está tudo bem
- disse Toranaga, apaziguador, o rosto ainda avermelhado de
cólera, depois voltou-se para Naga, tentando não deixar a animosidade transparecer na voz por causa do falcão. - Se você tiver
arruinado o estado dele hoje, eu... eu...
Nesse instante um dos batedores chamou. Imediatamente
Toranaga tirou o capuz do falcão com a mão direita, deu-lhe um
momento para se adaptar aos seus arredores, e soltou-o.
Era um falcão de asas longas, um peregrinus. Seu nome era
Tetsu-ko - Senhora de Aço. A ave disparou para o céu, circulando seiscentos pés acima de Toranaga, esperando que a presa
fosse afugentada, esquecida do nervosismo. Então, viu os cães atiçados contra o bando de faisões, que dispersaram numa confusão
frenética de batidas de asas. Marcou a presa, girou sobre si mesma
e se atirou - fechou as asas e mergulhou implacável -, as
garras prontas para dilacerar.
Desceu zunindo, mas o velho faisão, com duas vezes o tamanho do falcão, derrapou e, em pânico, arremeteu como uma
flecha para a segurança de um conjunto de árvores, a duzentos
passos de distância. Tetsu-ko retomou a posição inicial, abriu as
asas, investindo de cabeça atrás da caça. Ganhou altitude, colocouse mais uma vez verticalmente acima do faisão, novamente investiu, e novamente falhou. Toranaga excitadamente gritava encorajamentos, prevenindo do perigo à frente, esquecido de Naga.
Com um frenético bater de asas, o faisão movia-se velozmente para a proteção das árvores. O peregrinos, novamente
girando bem acima, mergulhou e veio cortando o ar. Mas era
tarde demais. O manhoso faisão desapareceu. Sem se preocupar
com a própria segurança, o falcão colidiu com folhas e galhos,
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ferozmente procurando a vítima, depois retomou posição e disparou para o vazio mais uma vez, guinchando de raiva, impelindo-se
para bem acima do matagal.
Nesse momento um bando de perdizes foi localizado e espantado, pondo-se alvoroçadas à procura de segurança, lançando-se
de um lado para o outro, astuciosamente seguindo os contornos
da terra. Tetsu-ko marcou uma, dobrou as asas, e caiu como uma
pedra. Desta vez não errou. Um golpe malévolo de suas garras
posteriores quebrou o pescoço da perdiz. O pássaro estatelou-se
no chão numa nuvem de penas. Mas ao invés de seguir a presa
até o solo e pousar com ela, o falcão ganhou altura guinchando,
subindo mais e mais.
Ansiosamente Toranaga sacou a isca, um pequeno pássaro
morto amarrado a uma cordinha, e fê-la zunir em torno da cabeça.
Mas Tetsu-ko não ficou tentado a voltar. Agora era uma minúscula mancha no firmamento, e Toranaga teve certeza de que o
perdera, de que a ave resolvera deixá-lo, voltar às matas, matar
conforme o próprio capricho e não conforme o capricho dele,
comer quando quisesse e não quando ele decidisse, e voar para
onde os ventos ou a fantasia a levassem, sem amo e livre para
sempre.
Toranaga observou-o, não triste, mas só um pouco solitário.
Tratava-se de uma criatura selvagem e Toranaga, como todos os
falcoeiros, sabia que era um dono terrestre apenas temporário.
Sozinho subira ao ninho do falcão nas montanhas Hakoné, tirara-o
do ninho filhote, treinara-o, criara-o e dera-lhe a primeira matança. Agora mal conseguia vê-lo circulando lá em cima, cavalgando
as nuvens gloriosamente, e desejou, ansiosamente, também poder
flutuar no empíreo, longe das iniqüidades da terra.
Então o velho faisão casualmente surgiu de sob as árvores
para se alimentar mais uma vez. No mesmo momento Tetsu-ko
mergulhou, atirando-se dos céus, uma minúscula arma mortífera,
as garras prontas para o coup de grâce.
O faisão morreu instantaneamente, o impacto causando uma
explosão de penas, mas o falcão continuou, as asas cortando o ar,
para frear violentamente no último segundo. Então fechou as asas
e pousou sobre a presa.
Segurou-o nas garras e começou a depená-lo com o bico antes
de comer. Mas antes que pudesse comer, Toranaga se aproximou
a cavalo. A ave parou, distraída. Seus inclementes olhos castanhos,
contornados de amarelo, observaram quando ele desmontou, seus
ouvidos escutando o elogio murmurado suavemente pela sua habi632
lidade e bravura, e depois, porque estava com fome e era ele
quem dava comida e também porque foi paciente e não fez
movimento súbito, mas ajoelhou-se suavemente, o falcão permitiulhe chegar mais perto.
Toranaga elogiou-o docemente. Puxou a faca de caça e cortou a cabeça do faisão, para permitir a Tetsu-ko alimentar-se com
o cérebro da presa. Quando a ave começou a se regalar com o
petisco, ele decepou a cabeça e ela veio facilmente para o seu
punho, onde estava acostumada a se alimentar.
O tempo todo Toranaga a elogiou e, quando ela terminou o
bocado, acariciou-a gentilmente e cumprimentou-a prodigamente.
A ave balançou-se e sibilou o seu contentamento, alegre por estar
de volta em segurança ao punho mais uma vez, onde podia
comer, pois, naturalmente, desde que fora tirada do ninho, o
punho era o único lugar onde jamais fora autorizada a comer, e
a comida fora sempre dada por Toranaga pessoalmente. Começou
a se alisar com o bico, pronta para outra morte.
Como Tetsu-ko voara tão bem, Toranaga resolveu não a
deixar empanturrar-se nem voar mais naquele dia. Deu-lhe um
pequeno pássaro que já havia depenado e aberto para ela. Quando
sua refeição ia a meio caminho, ele lhe enfiou o capuz. A ave
continuou a se alimentar satisfeita, através do capuz. Quando
terminou de comer e começou a se alisar de novo, ele pegou o
faisão, enfiou-o na sacola e chamou seu falcoeiro, que esperara
com os batedores. Joviais, comentaram a glória da matança e
contaram o conteúdo da sacola. Havia uma lebre, um par de
codornizes e o faisão. Toranaga dispensou o falcoeiro e os batedores, mandou-os de volta ao acampamento com todos os falcões.
Seus guardas esperavam.
Então voltou a atenção para Naga. - E então?
Naga ajoelhou-se ao lado do cavalo dele, curvou-se. - O
senhor está completamente correto ... no que disse a meu respeito.
Peço desculpas por tê-lo ofendido.
- Mas não por me dar mau conselho?
- Eu... eu lhe imploro que me ponha com alguém que
possa me ensinar, de modo que eu nunca faça isso. Não quero
nunca dar-lhe mau conselho, nunca.
- Ótimo. Você passará uma parte do dia, todos os dias,
com o Anjin-san, aprendendo o que ele sabe. Ele pode ser um
dos seus professores.
- Ele?
- Sim. Isso pode ensinar-lhe um pouco de disciplina. E se
633

conseguir enfiá-la nessa rocha que tem entre as orelhas para ouvir,
certamente aprenderá coisas de valor para si mesmo. Poderia até
aprender alguma coisa de valor para mim.
Naga fitava o chão sombriamente.
- Quero que você saiba tudo o que ele sabe sobre armas,
canhões e a arte da guerra. Você se tornará o meu especialista.
Sim. E quero que seja um bom especialista.
Naga não disse nada.
- E quero que se torne amigo dele.
- Como posso fazer isso, senhor?
- Por que você não pensa num modo? Por que não usa
a sua cabeça?
- Tentarei. Juro que tentarei.
- Quero que faça melhor do que isso. Ordeno-lhe que seja
bem sucedido. Use um pouco de "caridade cristã". Deve ter aprendido o suficiente para fazer isso. Neh?
Naga carregou o sobrolho. - Isso é impossível de aprender,
por mais que eu tenha tentado. É verdade! Tudo o que Tsukkusan falou foi dogma e absurdos que fariam qualquer homem
vomitar. Cristianismo é para camponeses, não para samurais. Não
mate, não tome mais de uma mulher, e cinqüenta outras tolices!
Obedeci ao senhor então e obedecerei agora. Eu sempre obedeço!
Por que não me deixar fazer as coisas que eu posso, senhor?
Torno-me cristão se é isso o que o senhor deseja, mas não posso
acreditar nisso ... é tudo um monte de ... peço desculpas. Vou
me tornar amigo do Anjin-san.
- Ótimo. E lembre-se de que ele vale vinte mil vezes o
próprio peso em seda crua, e tem mais conhecimento do que
você jamais terá em vinte vidas.
Naga se mantinha sob controle e assentiu respeitoso, aquiescendo.
- Ótimo. Você comandará dois batalhões, Omi-san mais
dois, e um ficará de reserva, com Buntaro.
- E os outros quatro, senhor?
- Não temos armas suficientes para eles. Foi um estratagema para confundir o faro de Yabu - disse Toranaga, atirando
um bocado ao filho.
- Senhor?
- Foi só uma desculpa para trazer mais mil homens para
cá. Não vão chegar amanhã? Com dois mil homens, posso defender Anjiro e escapar, se for necessário. Neh?
- Mas Yabu-san ainda pode... - Naga engoliu o comen634
tário, sabendo que mais uma vez ia fazer um julgamento errado.
- Por que é que sou, tão estúpido? - perguntou amargurado.
- Por que não consigo ver as coisas como o senhor? Ou como
Sudara-san? Quero ajudar, ser de valor. Não quero provocá-lo
o tempo todo.
- Então aprenda paciência, meu filho, e refreie o seu temperamento. O seu tempo virá logo.
- Senhor?
Toranaga ficou subitamente cansado de ser paciente. Olhou
para o céu. - Acho que vou dormir um pouco.
Imediatamente Naga tirou a sela e a manta do cavalo, e
estendeu-as no chão como cama de samurai. Toranaga agradeceulhe e observou suas sentinelas. Quando se certificou de que estava
tudo correto e seguro, deitou-se e fechou os olhos.
Mas não queria dormir, apenas pensar. Sabia que era um
sinal extremamente mau ele ter perdido a calma. Você tem sorte
de ter sido apenas diante de Naga, que não entende nada de nada,
disse a si mesmo. Se isso tivesse acontecido perto de Omi, ou
de Yabu, eles teriam percebido imediatamente que você está quase
louco de preocupação. E tal conhecimento poderia facilmente
induzi-los à traição. Você teve sorte desta vez. Tetsu-ko ajudou a
colocar tudo nas devidas proporções. Não fosse ela, você poderia
ter deixado outros presenciarem a sua cólera e isso teria sido
insanidade.
Que belo vôo! Aprenda com ela. Naga tem que ser tratado
como um falcão. Ele não guincha e se debate como o melhor
dos falcões? O único problema de Naga é que está sendo lançado
contra a caça errada. Sua caça é o combate e a morte repentina,
o ele terá isso dentro de muito breve.
A ansiedade de Toranaga começou a voltar. O que estará
acontecendo em Osaka? Calculei pessimamente o comportamento
dos daimios - quem aceitaria e quem rejeitaria a convocação.
Por que não fui informado? Estou sendo traído? Tantos perigos
ao meu redor...
E o Anjin-san? É um falcão também. Mas ainda não está
domado, como alegam Yabu e Mariko. Qual é a presa dele? É
o Navio Negro, o anjin Rodrigues, o feio e arrogante capitãozinho-mor que não vai durar muito tempo, todos os padres de
hábito preto, todos os padres peludos e fedorentos, todos os portugueses, espanhóis e turcos, sejam estes quem forem, e islamitas,
sejam quem forem, não esquecendo Omi, Yabu, Buntaro, Ishido
o eu.
635

Toranaga virou-se para se pôr mais confortável e sorriu
consigo mesmo. Mas o Anjin-san não é um falcão de asas longas,
um gavião de engodo, que você faz voar acima de você para mergulhar_sobre uma presa particular. É mais como um gavião de asas
curtas, um gavião de punho, que você faz voar diretamente do punho para matar qualquer coisa que se mova, digamos um milhafre
que pegará uma perdiz ou uma lebre com três vezes o próprio
peso, ratos, gatos, cães, galinholas, estorninhos, gralhas-calvas,
alcançando-os com pequenas arremetidas de uma velocidade fantástica para matar com uma única compressão das garras; o
gavião que detesta o capuz e não o aceita; apenas se senta sobre
o pulso, arrogante, perigoso, auto-suficiente, impiedoso, de olhos
amarelos, um excelente amigo ou de um traiçoeiro mau humor,
dependendo do momento.
Sim, o Anjin-san é um asas-curtas. Contra quem eu o lanço?
Omi? Ainda não.
Yabu? Ainda não.
Buntaro?
Por que será, na realidade, que o Anjin-san foi atrás de
Buntaro com pistolas? Por causa de Mariko, claro. Mas será que
"travesseiraram"? Tiveram muitas oportunidades. Acho que sim.
"Pródigo", disse ela naquele dia. Nada de errado no "travesseiro"
deles - Buntaro era tido como morto -, desde que seja um
segredo perpétuo. Mas o Anjin-san foi estúpido de se arriscar
tanto pela mulher de outro homem. Não há sempre mil outras,
livres e intocadas, igualmente bonitas, igualmente pequenas ou
grandes, excelentes ou raras, ou bem-nascidas ou seja o que for,
sem o risco de pertencerem a mais alguém? Agiu como um bárbaro estúpido e ciumento. Lembra-se do anjin Rodrigues? Não
duelou e matou outro bárbaro, de acordo com o costume deles,
só para tomar a filha de um mercador de classe baixa, com quem
depois se casou em Nagasaki? O táicum não deixou esse assassinato impune, contra o meu conselho, porque era apenas a morte
de um bárbaro e não de um dos nossos? Estupidez ter duas leis,
uma para nós, outra para eles. Devia haver apenas uma. Tem que
haver apenas uma lei.
Não, não vou lançar o Anjin-san contra Buntaro. Preciso
desse imbecil. Mas tenham aqueles dois "travesseirado" ou não,
espero que o pensamento nunca ocorra a Buntaro. Caso ocorresse
eu teria que eliminá-lo rapidamente, pois força alguma na terra o
impediria de matar o Anjin-san e Mariko-san, e eu preciso deles
mais do que de Buntaro. Devo eliminar Buntaro agora?
636
No momento em que Buntaro ficara sóbrio, Toranaga mandara chamá-lo.
- Como se atreve a colocar o seu interesse diante do meu?
Quanto tempo Mariko-san permanecerá incapaz de interpretar?
- O médico disse alguns dias, senhor. Peço desculpas por
todo o incômodo!
- Deixei bem claro que precisava dos serviços dela por mais
vinte dias. Não se lembra?
- Sim. Sinto muito.
- Se ela lhe desagradou, alguns tapas nas nádegas seriam
mais que suficientes. Toda mulher precisa disso de vez em quando,
mas mais do que isso é grosseria. Egoisticamente você pos em
perigo o treinamento e comportou-se como um camponês bovino.
Sem ela não posso conversar com o Anjin-san.
- Sim. Eu sei, senhor. Desculpe. Foi a primeira vez que
bati nela. É só que... às vezes ela me põe louco, tanto que ...
que parece que não consigo enxergar.
- Por que não se divorcia, então? Ou a manda embora? Ou
a mata, ou lhe ordena que corte a garganta quando eu não tiver
mais uso para ela?
- Não posso. Não posso, senhor - dissera Buntaro. - Ela
é... eu a desejei desde o primeiro instante em que a vi. Quando
nos casamos, a primeira vez, ela foi tudo o que um homem poderia desejar. Pensei ter sido abençoado... o senhor se lembra
de como cada daimio do reino a queria! Depois... depois mandei-a embora para protegê-la, após o vil assassinato, fingindo estar
desgostoso com ela pela sua segurança, e depois, quando o táicum
me disse que a trouxesse de volta, anos mais tarde, ela me excitava ainda mais. A verdade é que eu esperava que ela fosse grata,
e tornei-a como um homem o faz, sem me importar com essas
coisinhas que uma mulher quer, como poemas e flores. Mas ela
havia mudado. Estava tão fiel como sempre, mas apenas gelo,
sempre pedindo a morte, que eu a matasse. Buntaro estava fora
de si. - Não posso matá-la nem permitir-lhe que se mate. Ela
maculou o meu filho e me fez detestar outras mulheres, mas não
consigo me livrar dela. Eu ... eu tentei ser gentil, mas o gelo
está sempre lá e isso me enlouquece. Quando voltei da Coréia e fui
informado de que ela se convertera a essa absurda religião cristã,
achei graça, pois o que importa qualquer religião estúpida? Eu ia
arreliá-la sobre isso, mas antes que soubesse o que estava acontecendo eu já estava com a faca na garganta dela e jurando que a
cortaria se ela não renunciasse à religião. Claro que ela não re637

nunciaria, que samurai o faria sob tal ameaça, neh? Simplesmente
olhou-me com aqueles seus olhos e me disse que prosseguisse.
"Por favor, corte-me, senhor", disse ela. "Pronto, deixe-me inclinar a cabeça para trás para o senhor. Rezo a Deus para sangrar
até a morte." Não a degolei, senhor. Tomei-a. Mas cortei o cabelo
e as orelhas de algumas das damas que a haviam encorajado a
tornar-se cristã e expulsei-as do castelo. E fiz o mesmo com a mãe
adotiva dela, e também cortei o nariz daquela velha bruxa repulsiva! E depois Mariko disse que, como ... como eu havia punido
as suas damas, na próxima vez em que fosse à sua cama sem ser
convidado ela cometeria seppuku, do modo que pudesse, imediatamente... apesar do dever para com o senhor, apesar do dever
para com a família, mesmo apesar do ... dos mandamentos do
Deus cristão dela! - Lágrimas de cólera escorriam-lhe despercebidas pelas faces. - Não posso matá-la, por mais que deseje.
Não posso matar a filha de Akechi Jinsai por mais que ela o
mereça ...
Toranaga deixara Buntaro falar até ficar esgotado, depois dispensara-o, ordenando-lhe que ficasse totalmente longe de Mariko
até que ele considerasse o que devia ser feito. Enviou o seu médico pessoal para examiná-la. O relatório foi favorável: escoriações, mas nenhum dano interno.
Pela sua própria segurança, porque esperava traição e a areia
do tempo estava correndo, Toranaga resolveu aumentar a pressão
sobre todos eles. Ordenou que Mariko fosse para a casa de Omi,
que ficasse dentro dos limites da casa e completamente fora do
caminho do Anjin-san. Depois convocara o Anjin-san e fingira
irritação, quando era claro que os dois mal podiam conversar,
dispensando-o peremptoriamente. O treinamento todo foi intensificado. Pelotões foram enviados em marchas forçadas. Naga recebeu ordem de levar junto o Anjin-san e fazê-lo andar até cair.
Mas Naga não conseguiu derrubá-lo.
Então ele mesmo tentou. Comandou um batalhão durante onze horas pelas colinas. O Anjin-san agüentou, não com a fileira
da frente, mas agüentou. De volta a Anjiro, o Anjin-san dissera
na sua algaravia quase incompreensível, quase incapaz de se man
ter em pé: - Toranaga-sama, eu andar posso. Eu armas treina
mento posso. Sinto muito, não possível dois ao mesmo tempo, neh?
Toranaga sorria agora, deitado sob o céu nublado, esperando
pela chuva, animado pelo jogo de domar Blackthorne. Ele é um
asas-curtas. Mariko é igualmente vigorosa, igualmente inteligente,
mas mais brilhante, e tem uma falta de piedade que ele nunca
638
terá. Ela é como um peregrinus, como Tetsu-ko. O melhor. Por
que será que a fêmea do falcão é sempre maior, mais veloz e mais
forte do que o macho, sempre melhor do que o macho?
São todos gaviões - ela, Buntaro, Yabu, Omi, Ochiba, Naga
e todos os meus filhos, filhas, mulheres e vassalos, e todos os meus
inimigos -, todos gaviões, ou presa para gaviões.
Preciso pôr Naga em posição bem acima da sua presa e deixá-lo se arremessar. Quem deveria ser? Omi ou Yabu?
O que Naga disse sobre Yabu é verdade.
- Então, Yabu-san, o que decidiu? - perguntara ele no
segundo dia.
- Não vou a Osaka até que o senhor vá. Ordenei que Izu
inteira se mobilizasse.
- Ishido o impedirá.
- Ele o impedirá primeiro, senhor, e se o Kwanto cair, Izu
cai. Fiz um acordo solene com o senhor. Estou do seu lado. Os
Kasigi honram os seus acordos.
- Fico igualmente honrado em tê-lo como aliado - mentira
ele, satisfeito de que Yabu tivesse feito, mais uma vez, o que ele
planejara que fizesse.
No dia seguinte Yabu reunira uma tropa e pedira-lhe que a
revistasse e então, diante de todos os seus homens, ajoelhara-se
formalmente e se oferecera como vassalo.
- Reconhece-me como seu senhor feudal? - perguntara
Toranaga.
- Sim. E todos os homens de Izu. E, senhor, por favor,
aceite este presente como um símbolo de dever filial. - Ainda de
joelhos, Yabu lhe estendera a espada Murasama. - Esta é a
espada que assassinou seu avô.
- Não é possível!
Yabu contara-lhe a história da espada, como viera até ele
através dos anos e como, apenas recentemente, ele soubera da sua
verdadeira identidade. Toranaga mandara chamar Suwo. O velho
contara-lhe o que testemunhara quando não era mais que um
menino.
- É verdade, senhor - dissera com orgulho. - Nenhum
homem viu o pai de Obata quebrar a espada ou atirá-la no mar.
E juro, pela minha esperança de renascer samurai, que servi a
seu avô, o Senhor Chikitada. Servi a ele fielmente até o dia em
que morreu. Eu estava lá, juro.
Toranaga aceitara a espada. Ela pareceu estremecer com malignidade na sua mão. Ele sempre zombara da lenda de que certas
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espadas possuíam uma urgência própria de matar, que algumas
espadas precisavam saltar da bainha para beber sangue, mas agora
Toranaga acreditava nisso.
Estremeceu, lembrando-se daquele dia. Por que as lâminas
Murasama nos odeiam? Uma matou meu avô. Outra quase me
cortou o braço quando eu tinha seis anos, um acidente inexplicado, ninguém por perto, mas ainda assim o meu braço direito
foi atingido e quase até a morte. Uma terceira decapitou meu
primeiro filho.
- Senhor - dissera Yabu -, esta lâmina infame não devia
poder viver, neh? Deixe-me atirá-la ao mar, a fim de que pelo
menos esta não possa nunca ameaçar o senhor ou os seus descendentes.
- Sim ... sim - resmungara ele, grato por Yabu ter feito
a sugestão. - Faça isso agora! - E foi só quando a espada
afundou, bem profundamente, testemunhada pelos seus próprios
homens, que seu coração recomeçara a bater normalmente. Agradecera a Yabu, ordenara que os impostos fossem estabilizados em
sessenta partes para os camponeses, quarenta para os seus senhores, e dera-lhe Izu como feudo. Portanto, continuava tudo como
antes, exceto que agora o poder todo em Izu pertencia a Toranaga, se ele desejasse torná-lo de volta.
Toranaga virou-se para abrandar a dor no braço da espada
e se acomodou mais confortavelmente, saboreando o contato com
a terra, ganhando forças dela, como sempre.
Aquela lâmina se foi, para nunca mais voltar. Ótimo, mas
lembre-se do que o velho adivinho chinês predisse, pensou ele:
que você morreria pela espada. Mas espada de quem, e seria pela
minha própria mão ou pela de outro?
Saberei quando souber, disse-se ele, sem medo.
Agora durma. Karma é karma. Seja de Zen. Lembre-se, em
tranqüilidade, de que o Absoluto, o Tao, está dentro de você, que
nenhum padre, culto, dogma, livro, dito, ensino ou professor se
ergue entre você e ele. Saiba que o Bem e o Mal são irrelevantes,
e Eu e Você irrelevantes, Dentro e Fora irrelevantes, assim como
a Vida e a Morte. Entre na Esfera onde não há medo da morte
nem esperança de pós-vida, onde você é livre dos obstáculos da
vida ou de necessidades de salvação. Você é, em si mesmo, o Tao.
Seja você, agora, uma rocha contra a qual as ondas da vida se
lançam em vão ...
O grito débil trouxe Toranaga de volta da sua meditação e
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ele se pôs de pé com um salto. Naga apontava excitadamente para
oeste. Todos os olhos seguiram-lhe a indicação.
O pombo-correio voava em linha reta para Anjiro, vindo do
oeste. Pousou esvoaçando numa árvore distante para descansar
um momento, depois levantou vôo de novo quando a chuva começou a cair.
Longe a oeste, no rastro do pombo, ficava Osaka.
CAPITULO 37
O tratador dos pombos segurou o pássaro gentilmente, mas
com firmeza, enquanto Toranaga despia as roupas encharcadas.
Galopara de volta sob o aguaceiro. Naga e outros samurais ansiosamente se aglomeravam junto à pequena porta, sem se preocupar
com a chuva quente que ainda caía torrencialmente, tamborilando
sobre o telhado de telhas.
Cuidadosamente Toranaga enxugou as mãos. O homem estendeu o pombo. Dois cilindros minúsculos, de prata, estavam
presos a cada uma de suas pernas. O normal teria sido um. Toranaga teve que se esforçar muito para que os dedos não tremessem
nervosamente. Desamarrou os cilindros e levou-os à luz da janela,
abrindo para examinar os lacres diminutos. Reconheceu o código
secreto de Kiri. Naga e os outros observavam tensos. Seu rosto
não revelou nada.
Toranaga não rompeu os lacres imediatamente, embora tivesse
muita vontade. Pacientemente esperou até que lhe trouxessem um
quimono seco. Um criado segurou um grande guarda-chuva de
papel oleado para ele, que se dirigiu para os seus aposentos na
fortaleza. Havia sopa e chá à sua espera. Tomou-os e ouviu a
chuva. Quando se sentiu calmo, postou guardas e se dirigiu para
um aposento interno. Sozinho, quebrou os lacres. O papel dos
quatro rolos era muito fino, os caracteres minúsculos, a mensagem
longa e em código. A decodificação foi laboriosa. Quando ficou
completa, ele leu a mensagem e releu-a duas vezes. Depois deixou
a mente vagar.
A noite chegou. A chuva parou. Oh, Buda, deixe a colheita
ser boa, orou ele. Aquela era a estação em que os campos férteis
estavam sendo irrigados e, por todo o país, as mudas verde641
pálidas de arroz estavam sendo plantadas nos campos livres de
ervas daninhas, quase líquidos, para serem colhidas nos meses
seguintes, dependendo do tempo. E, por todo o país, o pobre e o
rico, eta e imperador, criado e samurai, todos oravam para que
houvesse apenas a quantidade certa de chuva, de sol, de umidade,
corretamente, na estação. E cada homem, mulher e criada contava
os dias que faltavam para a colheita.
Precisaremos de uma grande colheita este ano, pensou Toranaga.
- Naga! Naga-san!
O filho veio correndo. - Sim, Pai?
- À primeira hora após o amanhecer, leve Yabu-san e seus
conselheiros ao planalto. Buntaro também, e nossos três capitães
mais velhos. E Mariko-san. Leve-os todos ao amanhecer. Marikosan pode servir chá. Sim. E quero o Anjin-san de prontidão no
acampamento. Os guardas devem nos cercar a duzentos passos de
distância.
- Sim, Pai. - Naga deu-lhe as costas para obedecer. Incapaz de se conter, falou sem pensar: - É a guerra? É?
Como Toranaga precisava de um arauto de otimismo pela
fortaleza, não repreendeu o filho pela impertinência indisciplinada.
- Sim - disse ele. - Sim... mas nos meus termos.
Naga fechou a shoji e saiu em disparada. Toranaga sabia
que, embora o rosto e os modos de Naga agora estivessem externamente compostos, nada dissimularia a animação no seu caminhar,
nem o fogo por trás dos seus olhos. Então o boato atravessaria
Anjiro, para se espalhar rapidamente por toda Izu e além dela,
se os fogos fossem adequadamente alimentados.
- Estou comprometido agora - disse alto para as flores
que se erguiam serenas no takonoma, as sombras esvoaçando à
agradável luz de vela.
Kiri tinha escrito: "Senhor, rezo a Buda para que esteja bem
e seguro. Este é o nosso último pombo-correio, por isso também
rezo a Buda para que o guie até o senhor - traidores mataram
todos os outros na noite passada, incendiando o viveiro, e este
escapou apenas porque esteve doente e eu vinha cuidando dele
separadamente.
"Ontem de manhã o Senhor Sugiyama repentinamente renunciou, exatamente conforme o planejado. Mas antes que pudesse
completar a sua fuga, foi emboscado nos arredores de Osaka pelos
ronins de Ishido. Infelizmente alguns membros da família de Sugiyama também foram apanhados com ele - ouvi dizer que ele
642
foi traído por um dos seus. Corre o boato de que Ishido ofereceulhe um compromisso: se o Senhor Sugiyama retardasse a renúncia
até depois de o conselho de regentes se reunir (amanhã), de modo
que o senhor pudesse ser legalmente impedido, em troca Ishido
garantia que o conselho daria formalmente a Sugiyama o Kwanto
inteiro e, como mostra de boa fé, Ishido soltaria a ele e à família
imediatamente. Sugiyama recusou traí-lo. Imediatamente Ishido
ordenou aos etas que o convencessem. Torturaram-lhe os filhos,
depois a consorte, na sua frente, mas ele resistiu. Tiveram todos
mortes ruins. A dele, a última, foi péssima.
"Naturalmente não houve testemunhas dessa traição e é tudo
boato, mas eu acredito. Claro que Ishido nega qualquer conhecimento dos assassinatos ou participação nos crimes, jurando que vai
dar caça aos `assassinos'. Primeiro Ishido alegou que Sugiyama
nunca renunciara realmente, portanto, na sua opinião, o conselho
ainda podia se reunir. Mandei cópias da renúncia de Sugiyama
aos outros regentes, Kiyama, Ito e Onoshi, e mandei outra, abertamente, a Ishido, e fiz circular mais quatro cópias entre os daimios. (Que inteligente de sua parte, Tora-chan, saber que cópias
extras seriam necessárias.) Assim, desde ontem, exatamente como
o senhor planejou com Sugiyama, o conselho legalmente não existe
mais - nisso o senhor teve êxito completo.
"Boas notícias: o Senhor Mogami deixou a cidade em segurança, com toda a família e samurais. Agora é abertamente aliado
seu, portanto o seu flanco a extremo-nordeste está seguro. Os senhores Maeda, Kukushima, Asano, Ikeda e Okudiara escaparam
todos de Osaka na noite passada, para a segurança - o senhor
cristão, Oda, também.
"Má notícia é que as famílias de Maeda, Ikeda e Oda, e de
uma dúzia de outros daimios importantes não escaparam e agora
estão como reféns aqui, assim como cinqüenta ou sessenta senhores menores não comprometidos.
"Má notícia é que ontem o seu meio irmão, Zataki, senhor
de Shinano, publicamente se declarou pelo herdeiro, Yaemon,
contra o senhor, acusando-o de conspirar com Sugiyama para
derrubar o conselho de regentes criando o caos, portanto agora
a sua fronteira norte-oriental tem uma brecha e Zataki e seus cinqüenta mil fanáticos se oporão ao senhor.
"Má notícia é que quase todos os daimios aceitaram o 'convite' do imperador.
"Má notícia é que não são poucos os seus amigos e aliados
aqui que estão enraivecidos de que o senhor não lhes tenha dado
643
conhecimento da sua estratégia de modo que eles pudessem preparar uma linha de retirada. Seu velho amigo, o grande Senhor
Shimazu, é um desses. Ouvi esta tarde que ele solicitou abertamente que todos os senhores fossem ordenados pelo imperador a
se ajoelhar diante do menino Yaemon, agora.
"Má notícia é que a Senhora Ochiba vem tecendo brilhantemente a sua trama, prometendo feudos e títulos e dignidade de
corte aos não-comprometidos. Tora-chan, é uma grande lástima
que ela não esteja do seu lado, ela é um inimigo de valor. Apenas
a Senhora Yodoko advoga prece e calma, mas ninguém a ouve,
e a Senhora Ochiba quer precipitar a guerra agora, enquanto sente
que o senhor está fraco e isolado. Sinto muito, meu senhor, mas
está isolado e, penso eu, foi traído.
"Pior de tudo é que agora os regentes cristãos, Kiyama e
Onoshi, estão abertamente juntos e violentamente contra o senhor.
Divulgaram uma declaração conjunta esta manhã lamentando a
`deserção' de Sugiyama, dizendo que o seu ato colocou o reino em
confusão, que `devemos todos ser fortes pela salvação do império.
Os regentes têm a responsabilidade suprema. Devemos estar preparados para esmagar, juntos, qualquer senhor ou grupo de senhores que deseje anular o testamento do táicum, ou a sucessão
legal'. (Isso significa que eles pretendem se reunir como um conselho de quatro regentes?) Um dos nossos espiões cristãos, na
sede dos hábitos negros, sussurrou que o Padre Tsukku-san deixou
Osaka secretamente há cinco dias, mas não sabemos se foi para
Yedo ou para Nagasaki, onde o Navio Negro é esperado. O senhor sabia que ele virá bem antecipado este ano? Que chegará,
talvez, dentro de vinte ou trinta dias?
"Senhor: sempre hesitei em dar opiniões rápidas, baseadas
em rumores, espiões, ou em intuição de mulher (nisso, veja,
Tora-chan, aprendi com o senhor!), mas o tempo é curto e posso
não ser capaz de lhe falar novamente. Primeiro, famílias demais
estão retidas aqui. Ishido nunca as deixará partir (assim corno
nunca deixará a nós). Esses reféns são um imenso perigo para o
senhor. Poucos senhores têm o senso de dever ou a firmeza de
Sugiyama. Muitos, penso eu, se passarão agora para Ishido, embora relutantemente, por causa desses reféns. Depois, acho que
Maeda o trairá, e provavelmente Asano também. Dos duzentos e
sessenta e quatro daimios do nosso país, apenas vinte e quatro o
seguirão com certeza, e outros cinqüenta possivelmente. Isso não
é nem de longe suficiente. Kiyama e Onoshi arrastarão todos os
daimios cristãos, ou a maioria deles, e creio que não se aliarão ao
644
senhor agora. O Senhor Mori, o mais rico e o maior de todos,
está pessoalmente contra o senhor, como sempre, e trará Asano,
Kobayakawa e talvez Oda, para a própria rede. Com seu meio
irmão Senhor Zataki contra o senhor, sua posição é terrivelmente
precária. Aconselho-o a declarar Céu Carmesim imediatamente e
lançar-se contra Kyoto. É a sua única esperança.
"Quanto à Senhora Sazuko e a mim, estamos bem e contentes. A criança desenvolve-se lindamente e se o karma dela for
nascer, assim acontecerá. Estamos seguras na nossa ala do castelo,
a porta pesadamente trancada, os rastrilhos baixados. Nossos samurais estão cheios de devoção ao senhor e à sua causa, e se for
nosso karma partir desta vida, então partiremos com serenidade.
A sua senhora sente muita falta sua, muita. Quanto a mim, Torachan, anseio por vê-lo, rir com o senhor, e ver o seu sorriso. Minha
única queixa quanto à morte é que eu não poderia mais fazer
essas coisas, e cuidar do senhor. Se existe uma outra vida e Deus
ou Buda ou kami, prometo que de algum modo influenciarei todos
a se porem do seu lado ... embora primeiro eu possa rogar-lhes
que me façam esbelta, jovem e fértil para o senhor, deixando-me
o prazer pela comida. Ah, isso seria o paraíso de fato: poder
comer e comer e ainda assim ser perpetuamente jovem e magra!
"Mando-lhe meu riso. Possa Buda abençoá-lo e aos seus."
Toranaga leu a mensagem para eles, exceto o trecho particular sobre Kiri e a Senhora Sazuko. Quando terminou, olharam-no e uns aos outros incredulamente, não só por causa do que
a mensagem dizia, mas também porque ele estava abertamente
confiando neles todos.
Estavam sentados sobre esteiras num semicírculo em torno
dele, no centro do planalto, sem guardas, a salvo de intrometidos.
Buntaro, Yabu, Igurashi, Omi, Naga, os capitães e Mariko. Os
guardas estavam postados a duzentos passos de distância.
- Quero alguns conselhos - disse Toranaga. - Meus conselheiros estão em Yedo. Este assunto é urgente e quero que todos
vocês ajam no lugar deles. O que vai acontecer e o que devo fazer.
Yabu-san?
Yabu estava num turbilhão. Todos os caminhos pareciam
levar à catástrofe. - Primeiro, senhor, o que é exatamente "Céu
Carmesim"?
- É o codinome para o meu plano de batalha final, uma
única investida violenta sobre Kyoto com todas as minhas legiões,
645

contando com mobilidade e surpresa, a fim de tomar posse da
capital, tirando-a das forças malignas que agora a rodeiam, para
arrancar a pessoa do imperador ao poder infame daqueles que o
enganaram, liderados por Ishido. Uma vez que o Filho do Céu
esteja libertado em segurança das garras deles, então solicitar-lhe
que revogue o mandato concedido ao conselho atual, que é claramente traidor, ou dominado por traidores, e conceda a mim o seu
mandato para formar um novo conselho que colocaria os interesses do reino e do herdeiro à frente da ambição pessoal. Eu comandaria oitenta mil dos cem mil homens, deixando minhas terras
desprotegidas, meus flancos desguarnecidos, e uma retirada não
garantida. - Toranaga viu-os a fitá-lo pasmados. Não mencionou
os quadros de samurais de elite que tinham sido furtivamente
introduzidos em muitos dos castelos e províncias importantes ao
longo dos anos, e que deviam explodir simultaneamente em revolta
a fim de criar o caos essencial ao plano.
- Mas o senhor teria que combater a cada passo do caminho - irrompeu Yabu. - Ikawa Jikkyu estrangula a Tokaido
ao longo de cem ris. Depois há mais baluartes de Ishido escarranchados pelo resto da estrada!
- Sim. Mas planejo arremeter para noroeste pela Koshukaido, depois penetrar até Kyoto e permanecer longe das terras
costeiras.
Imediatamente muitos menearam a cabeça e começaram a
falar, mas Yabu sobrepujou-os: - Mas, senhor, a mensagem disse
que o seu parente Zataki já se passou para o inimigo! Agora o
seu caminho ao norte também está bloqueado. A província dele
corta a Koshu-kaido. O senhor terá que lutar por toda Shinano
- a região é montanhosa e muito difícil, e os homens dele são
fanaticamente leais. O senhor será feito em pedaços naquelas montanhas.
- Esse é o único jeito, o único jeito de eu ter uma chance.
Concordo em que há inimigos demais na estrada costeira.
Yabu deu uma olhada em Omi, desejando poder consultar-se
com ele, abominando a mensagem e toda a confusão em Osaka,
detestando ter sido o primeiro a falar, e detestando totalmente o
status de vassalo que aceitara por súplica de Omi.
- É a sua única chance, Yabu-sama - instara Omi. - O
único meio de evitar a armadilha de Toranaga e conseguir espaço
para manobrar...
Igurashi interrompera furiosamente. - É melhor cair em
cima de Toranaga hoje, enquanto ele tem poucos homens aqui!
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É melhor matá-lo e levar-lhe a cabeça a Ishido enquanto há tempo.
- É melhor esperar, é melhor ser paciente.. .
- O que acontece se Toranaga ordenar ao nosso amo que
entregue Izu? - gritara Igurashi. - De suserano a vassalo, Toranaga tem esse direito!
- Ele nunca fará isso. Precisa do nosso amo mais do que
nunca agora. Izu protegê-lhe a porta sudeste. Ele não pode ter
lzu hostil! Tem que ter o nosso amo do Ia ...
- E se ele ordenar ao Senhor Yabu que saia?
- Revoltamo-nos! Matamos Toranaga, se estiver aqui, ou
combatemos com qualquer exército que ele envie contra nós. Mas
ele nunca fará isso, não vê? Sendo ele seu vassalo, Toranaga deve
proteger...
Yabu deixara-os discutir e depois, finalmente, vira a sabedoria de Omi. - Muito bem. Concordo! E ofereço-lhe minha
lâmina Murasama para firmar a cordialidade do acordo, Omisan - regozijara-se ele, tomado sinceramente pela astúcia do plano. - Sim. Cordialidade. A lâmina Yoshimoto a substitui mais
do que bem. E naturalmente, sou mais valioso para Toranaga
agora do que nunca. Omi tem razão, Igurashi! Não tenho escolha.
Estou comprometido com Toranaga daqui em diante. Um vassalo!
- Até que a guerra chegue - dissera Omi deliberadamente.
- Claro. Claro, só até que a guerra chegue! Aí posso mudar
de lado - ou fazer uma dúzia de coisas. Tem razão, Omi-san,
novamente!
Omi é o melhor conselheiro que já tive, disse-se ele. Mas o
mais perigoso. É inteligente o bastante para tomar Izu se eu morrer. Mas o que importa isso? Estamos todos mortos.
- O senhor está completamente bloqueado - disse ele a
Toranaga. - Está isolado.
- Há alguma alternativa? - perguntou Toranaga.
- Desculpe-me, senhor - disse Omi -, mas quanto tempo
levaria para preparar esse ataque?
- Está pronto agora.
- Izu também está pronta, senhor - disse Yabu. - Os
seus cem mil e os meus dezesseis mil, e o Regimento de Mosquetes. Isso basta?
- Não. Céu Carmesim é um plano de desespero ... tudo
arriscado num único ataque.
- O senhor tem que arriscar, assim que a chuva cesse e
possamos guerrear - insistiu Yabu. - Que escolha o senhor tem?
Ishido formará um novo conselho imediatamente, eles ainda têm
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o mandato. Então o senhor será impedido, hoje ou amanhã ou
no dia seguinte. Por que esperar para ser devorado? Ouça, talvez
o regimento pudesse abrir um caminho através das montanhas!
Que seja Céu Carmesim! Todos os homens lançados num grande
ataque. É o Caminho do Guerreiro, digno de samurai, Toranagasama. Os atiradores, os nossos atiradores vão mandar Zataki pelos
ares, para fora do nosso caminho, e, tenha o senhor êxito ou não,
que importa? A tentativa viverá para sempre!
- Sim - disse Naga. - Mas nós venceremos... venceremos! - Alguns capitães assentiram em aquiescência, aliviados de
que a guerra tivesse chegado. Omi não disse nada.
Toranaga estava olhando para Buntaro. - Bem?
- Senhor, rogo-lhe que me dispense de lhe dar uma opinião. Meus homens e eu faremos qualquer coisa que o senhor
decida. Esse é o meu único dever. A minha opinião não tem valor
para o senhor, porque faço o que o senhor decidir sozinho.
- Normalmente eu aceitaria isso, mas hoje não!
- Guerra, então. O que Yabu-san diz está certo. Vamos
para Kyoto. Hoje, amanhã, ou quando a chuva parar. Céu Carmesim! Estou cansado de esperar.
- Omi-san? - perguntou Toranaga.
- Yabu-sama está certo, senhor. Ishido contornará a vontade do táicum para designar um novo conselho muito em breve.
o novo conselho terá o mandato do imperador. Seus inimigos
aplaudirão e muitos dos seus amigos hesitarão e por isso o trairão.
o novo conselho o impedirá imediatamente. Então ...
- Então é Céu Carmesim? - interrompeu Yabu.
- Se o Senhor Toranaga ordenar, será. Mas não acho que
a ordem de impedimento tenha qualquer valor em absoluto. O
senhor pode esquecê-la.
- Por quê? -- perguntou Toranaga, enquanto todas as atenções se voltavam para Omi.
- Concordo com o senhor. Ishido é mau, neh? Todos os
daimios que concordam em servir a ele são igualmente maus.
Homens de verdade conhecem Ishido pelo que ele é, e também
sabem que o imperador foi novamente logrado. - Prudentemente
Omi estava avançando por sobre areias movediças que ele sabia
que podiam engoli-lo. - Acho que ele cometeu um engano duradouro assassinando o Senhor Sugiyama. Por causa desses assassinatos abomináveis, acho que agora todos os daimios suspeitarão de
traição por parte de Ishido, e muito poucos fora da influência
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imediata de Ishido se curvarão às ordens do "conselho" dele.
O senhor está a salvo. Por um tempo.
- Por quanto tempo?
- As chuvas estão conosco por dois meses, mais ou menos.
Quando as chuvas cessarem, Ishido planejará lançar Ikawa Jikkyu
e o Senhor Zataki simultaneamente contra o senhor, para pegá-lo
numa manobra de torques, e o exército principal de Ishido os
apoiará pela estrada Tokaido. Enquanto isso, até que as chuvas
cessem, cada daimio que tenha algum rancor contra outro daimio
só prestará serviços a Ishido aparentemente até que ele faça o
primeiro movimento, então acho que eles o esquecerão e todos
tomarão vingança ou se apoderarão de território, conforme o capricho de cada um. O império será dilacerado, como foi antes do
táicum. Mas o senhor, juntamente com Yabu-sama, com sorte
terá força suficiente para defender as passagens para o Kwanto e para Izu contra a primeira onda e rechaçá-la. Não creio
que Ishido poderia organizar outro ataque, não um grande ataque.
Quando Ishido e os outros tiverem gastado as energias, o senhor
e o Senhor Yabu podem cautelosamente surgir por detrás das nossas montanhas e gradualmente tomar o império nas próprias mãos.
- Quando será isso?
- Quando seu filho nascer, senhor.
- Você está dizendo empreender uma batalha defensiva?
- perguntou Yabu desdenhosamente.
- Penso que, juntos, os senhores estão seguros atrás das
montanhas. O senhor espera, Toranaga-sama. Espera até ter mais
aliados. Defende as passagens. Isso pode ser feito! O General
Ishido é mau, mas não estúpido para empenhar toda a força numa
única batalha. Ficará escondido dentro de Osaka. Portanto, por
enquanto não devemos usar o nosso regimento. Devemos reforçar
a segurança e mantê-lo como uma arma secreta, apontada e sempre preparada, até que o senhor surja por detrás das suas montanhas. Mas agora acho que eu não chegaria sequer a vê-los utilizados. - Omi estava consciente dos olhos que o observavam.
Curvou-se para Toranaga. - Por favor, desculpe-me por ter me
estendido tanto, senhor.
Toranaga estudou-o, depois deu uma olhada no filho. Viu a
excitação contida do jovem e soube que era tempo de lançá-lo
contra a presa. - Naga-san?
- O que Omi-san disse é verdade - disse Naga imediatamente, exultante. - Na maior parte. Mas digo que usemos os
649
i
dois meses para reunir aliados, para isolar Ishido mais ainda, e
quando as chuvas cessarem, atacar sem aviso - Céu Carmesim.
- Discorda da opinião de Omi-san sobre uma guerra prolongada? - perguntou Toranaga.
- Não. Mas isso não é... - Naga parou.
- Continue, Naga-san. Fale abertamente!
Naga calou a boca, o rosto branco.
- Ordeno-lhe que continue!
- Bem, senhor, ocorreu-me que. .. - Parou de novo, depois disse num jato só: - Essa não é a sua grande oportunidade
de se tornar xógum? Se fosse bem sucedido tomando Kyoto e
obtivesse o mandato, por que formar um conselho? Por que não
requerer ao imperador que o fizesse xógum? Seria melhor para o
senhor e melhor para o reino. - Naga tentou não deixar o medo
transparecer na voz, pois estava falando em traição contra Yaemon
o muitos samurais ali --- Yabu, Omi, Igurashi e particularmente
Buntaro - eram legalistas confessos. - Digo que o senhor devia
ser xógum! - Voltou-se defensivamente para os outros: - Se
esta oportunidade for perdida... Omi-san, tem razão quanto a
uma longa guerra, mas digo que o Senhor Toranaga deve tomar
o poder, dar poder! Uma longa guerra arruinará o império, vai
quebrá-lo em mil fragmentos de novo! Quem deseja isso? O Senhor Toranaga deve ser xógum. Para se entregar o império a
Yaemon, ao Senhor Yaemon, o reino precisa ser garantido antes!
Nunca haverá outra oportunidade... - Suas palavras se arrastaram. Endireitou as costas, assustado porque dissera, mas contente por ter dito em público o que pensara sempre.
Toranaga suspirou. - Nunca visei a tornar-me xógum. Quantas vezes tenho que dizer? Apóio o meu sobrinho Yaemon e a
vontade do táicum. - Olhou para todos, um por um. Por último
para Naga. O jovem estremeceu. Mas Toranaga disse gentilmente,
chamando-o de volta à isca: - Apenas o seu zelo e a sua juventude desculpam isso. Infelizmente, muitas pessoas, mais velhas e
mais sábias do que você, pensam que essa é a minha ambição.
Não é. Há apenas um meio de solucionar esse absurdo, que é
colocar o Senhor Yaemon no poder. E isso eu pretendo fazer.
- Sim, Pai. Obrigado. Obrigado - retrucou Naga em desespero.
Toranaga desviou os olhos para Igurashi. - Qual é o seu
conselho?
O samurai de um olho só coçou-se. - Sou apenas um soldado, não um conselheiro, mas não aconselharia Céu Carmesim,
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não se podemos lutar nos nossos termos, como diz Omi-san.
Combati em Shinano anos atrás. É uma região ruim, e naquela
época o Senhor Zataki estava conosco. Eu não gostaria de combater em Shinano de novo, e nunca se Zataki fosse hostil. E se o
Senhor Maeda é suspeito, bem, como o senhor pode planejar
uma batalha se o seu maior aliado pode traí-lo? O Senhor Ishido
colocará duzentos, trezentos mil homens contra o senhor e ainda
manterá cem mil defendendo Osaka. Mesmo com os atiradores,
não temos homens suficientes para atacar. Mas atrás das montanhas, usando as armas, o senhor poderia agüentar para sempre
se acontecesse conforme Omi-san diz. Poderíamos defender os
desfiladeiros. O senhor tem arroz suficiente - o Kwanto não
abastece metade do império? Bem, um terço no mínimo - e
poderíamos enviar-lhe todo o peixe de que necessitasse. O senhor
estaria a salvo. Deixe o Senhor Íshido e o demônio Jikkyu virem
a nós, se é para acontecer como Omi-san disse, que logo o inimigo
estará se devorando entre si. Caso contrário, mantenha Céu
Carmesim preparado. Um homem pode morrer pelo seu senhor
apenas uma vez na vida.
- Alguém tem alguma coisa a acrescentar? - perguntou
Toranaga. Ninguém respondeu. - Mariko-san?
- Não cabe a mim falar aqui, senhor - replicou ela. -
Estou certa de que tudo o que devia ter sido dito foi dito. Mas
posso ser autorizada a perguntar, por todos os conselheiros aqui,
o que o senhor pensa que acontecerá?
Toranaga escolheu as palavras deliberadamente. - Acho que
o que Omi-san prognosticou acontecerá. Com uma exceção: o
conselho não será impotente. O conselho exercerá influência suficiente para reunir uma invencível força aliada. Quando as chuvas
cessarem, essa força será atirada contra o Kwanto, flanqueando
Izu. O Kwanto será engolido, depois Izu. Só depois de eu estar
morto é que os daimios lutarão entre si.
- Mas por quê, senhor? - arriscou Omi.
- Porque tenho inimigos em excesso, sou dono do Kwanto,
combati por mais de quarenta anos e nunca perdi uma batalha.
Todos têm medo de mim. Eu sei que primeiro os abutres se
reunirão para me destruir. Depois se destruirão mutuamente, mas
primeiro se juntarão para me destruir, se puderem. Saibam todos
vocês, claramente, que eu sou a única ameaça a Yaemon, embora
não seja ameaça em absoluto. Essa é a ironia da história. Todos
acreditam que quero ser xógum. Não quero. Esta é outra guerra
completamente desnecessária!
651
I

Naga rompeu o silêncio. - Então o que vai fazer, senhor?
- Hein?
- O que vai fazer?
- Obviamente, Céu Carmesim - disse Toranaga.
- Mas o senhor disse que eles nos devorariam.
- Eles fariam isso... se eu lhes desse tempo. Mas não vou
lhes dar tempo algum. Vamos à guerra imediatamente!
- Mas as chuvas... e'as chuvas?
- Chegaremos a Kyoto molhados. Acalorados, fedendo e
molhados. Surpresa, mobilidade, audácia e tempo vencem guerras,
neh? Yabu-san estava certo. Os atiradores abrirão um caminho
através das montanhas.
Durante uma hora eles discutiram planos e a exeqüibilidade
da guerra em larga escala na estação chuvosa - uma estratégia
inaudita. Depois Toranaga mandou-os embora, exceto Mariko,
dizendo a Naga que mandasse o Anjin-san para lá. Observou-os
se afastando. Tinham ficado aparentemente entusiasmados, depois
de anunciada a decisão, particularmente Naga e Buntaro. Apenas
Omi ficara reservado, pensativo e não convencido. Toranaga descontou Igurashi pois sabia que o soldado faria apenas o que Yabu
ordenasse, e dispensou Yabu como um fantoche, traiçoeiro certamente, mas ainda um fantoche. Omi é o único que vale alguma
coisa, pensou. Pergunto a mim mesmo se ele já não adivinhou o
que vou realmente fazer.
- Mariko-san. Descubra, com tato, quanto custaria o contrato da cortesã.
Ela piscou. - Kiku-san, senhor?
- Sim.
- Agora, senhor? Imediatamente?
- Esta noite seria excelente. - Olhou-a, meigo. - O contrato dela não é necessariamente para mim, talvez para um dos
meus oficiais.
- Imagino que o preço dependeria de quem, senhor.
- Imagino que sim, também. Mas estabeleça um preço. A
garota naturalmente tem o direito de recusar, se quiser, quando o
samurai for identificado, mas diga à sua proprietária que não
espero que a garota tenha a má educação de desconfiar de minha
escolha para ela. Diga também que Kiku é uma dama de primeira
classe de Mishima, e não de Yedo ou Osaka ou Kyoto - acres652
centou Toranaga cordialmente -, portanto espero pagar um preço
de Mishima, e não preços de Yedo, Osaka ou Kyoto.
- Sim, senhor, naturalmente.
Toranaga moveu o ombro para abrandar a dor, mudando as
espadas de posição.
- Posso fazer-lhe uma massagem, senhor? Ou mandar buscar Suwo?
- Não, obrigado. Verei Suwo mais tarde. - Toranaga levantou-se e aliviou-se com grande prazer, depois se sentou de
novo. Estava usando um quimono de seda leve, azul-estampado,
e as sandálias simples, de palha. O leque era azul e decorado com
o seu emblema.
O sol estava baixo, nuvens de chuva formando-se pesadamente.
- É ótimo estar vivo - disse ele, feliz. - Quase posso
ouvir a chuva esperando para nascer.
- Sim - disse ela.
Toranaga pensou um instante, depois disse um poema:
"O céu
Chamuscado pelo sol
Chora
Lágrimas fecundas".

Mariko obedientemente pôs a cabeça a funcionar para jogar
com ele o jogo dos poemas, muito popular entre a maioria dos samurais, torcendo espontaneamente as palavras do poema que ele fizera, fazendo outro a partir do dele. Depois de um momento, disse:
"Mas a floresta
Ferida pelo vento
Chora
Folhas mortas".

- Bem dito! Sim, muito bem dito! - Toranaga olhou para
ela contente, apreciando o que via. Ela estava vestida com um
quimono verde-claro, com estampas de bambu, um obi verdeescuro e uma sombrinha laranja. Havia um reflexo maravilhoso
no cabelo preto-azulado, que estava puxado para cima, sob o
chapéu de aba larga. Ele se lembrou nostalgicamente de como
todos eles - até o próprio ditador Goroda - a haviam desejado
quando ela tinha treze anos e o pai, Akechi Jinsai, a apresentara
pela primeira vez, a filha mais velha, na corte de Goroda. E como
653

Nakamura, o futuro táicum, implorara ao ditador que a desse a
ele, e depois como Goroda rira, e publicamente o chamara de
"general macaquinho pernalonga", e lhe dissera: "Aferre-se à luta
nas batalhas, camponês, não lute para feriar buracos patrícios!"
Akechi Jinsai zombara abertamente de Nakamura, seu rival no
favor de Goroda, a principal razão de Nakamura ter-se deliciado
em destruí-lo. E a razão também de Nakamura ter-se deliciado
de ver Buntaro sofrer durante anos, Buntaro, a quem a garota
fora dada para cimentar uma aliança entre Goroda e Toda Hiromatsu. Será, perguntou-se Toranaga por travessura, olhando-a,
que se Buntaro estivesse morto ela consentiria em ser uma das
minhas consortes? Toranaga sempre preferira mulheres experientes, viúvas ou divorciadas, mas nunca bonitas demais, ou sábias,
jovens ou bem-nascidas demais, de modo a nunca causarem problemas demais e serem sempre gratas.
Casquinou consigo mesmo. Eu nunca a pediria porque ela
é tudo o que eu não quero numa consorte - com exceção da
idade, que é perfeita.
-- Senhor? - perguntou ela.
- Estava pensando no seu poema, Mariko-san - disse ele,
ainda mais brando. E acrescentou:
"Por que tão hibernal?
O verão ainda
Está por vir, e a queda do
Glorioso outono'.
Ela respondeu:

"Se eu pudesse usar palavras
Como folhas caindo,
Que fogueira
Meus poemas fariam!"

Ele riu e se curvou com humildade zombeteira. - Concedolhe a vitória, Mariko-san. Qual será o favor? Um leque? Ou uma
faixa para o cabelo?
- Obrigada, senhor - respondeu ela. - Sim, qualquer
coisa que lhe agrade.
- Dez mil kokus por ano para o seu filho.
- Oh, senhor, não merecemos um favor assim!
- Você conquistou uma vitória. A vitória,e o dever devem
ser recompensados. Que idade tem Saruji agora?
654
- Quinze ... quase quinze.
- Ah, sim... ele foi prometido a uma das netas do Senhor
Kiyama recentemente, não foi?
- Sim, senhor. No décimo primeiro mês do ano passado,
o mês da Geada Branca. Atualmente ele está em Osaka com o
Senhor Kiyama.
- Bom. Dez mil kokus, a começar imediatamente. Mandarei
a autorização com o correio de amanhã. Agora, basta de poemas,
por favor dê-me a sua opinião.
- Minha opinião, senhor, é que estamos todos seguros nas
suas mãos, assim como a terra está segura nas suas mãos.
- Quero que você fale a sério.
- Oh, mas estou falando sério, senhor. Agradeço-lhe pelo
favor ao meu filho. Isso torna tudo perfeito. Acredito que tudo
o que o senhor faça será certo. Por Nossa Senhora... sim, por
Nossa Senhora, juro que acredito nisso.
- ótimo. Mas ainda quero a sua opinião.
Imediatamente ela respondeu, sem qualquer receio, falando
de igual para igual. - Primeiro o senhor devia trazer o Senhor
Zataki secretamente de volta para o seu lado. Suponho, aliás, que
ou o senhor já sabe como fazer isso ou, mais provavelmente, tem
um acordo secreto com o seu meio irmão, e sugeriu a misteriosa
"deserção" dele para embalar Ishido numa posição falsa. Depois:
o senhor nunca atacará primeiro. Nunca fez isso, sempre aconselhou paciência, e só ataca quando tem certeza de vencer, portanto
o fato de estar ordenando Céu Carmesim publicamente é só mais
uma manobra diversionista. Depois, tempo! Minha opinião é que
o senhor deve fazer o que fará, fingir ordenar Céu Carmesim mas
nunca desencadear. Isso lançará Ishido em confusão, porque,
obviamente, os espiões aqui e em Yedo relatarão o seu plano, e
ele terá que dispersar suas forças como um bando de perdizes,
com um tempo péssimo, a fim de se preparar para uma ameaça
que nunca se materializará. Enquanto isso o senhor passará os
próximos dois meses reunindo aliados, para minar as alianças de
Ishido e romper a coalizão dele, coisa que o senhor deve fazer
por quaisquer meios. E, naturalmente, deve atrair Ishido para fora
do Castelo de Osaka. Se não o fizer, senhor, ele vencerá ou, no
mínimo, o senhor perderá o xogunato. O senhor...
- Já deixei minha posição sobre isso bem clara - vociferou Toranaga, já não achando graça. - E você perdeu a
cabeça.
Despreocupada e feliz, Mariko continuou: - Tenho que
655

falar sobre segredos hoje, senhor, por causa dos reféns. O senhor
está com uma faca no coração.
- O que pensa sobre eles?
- Seja paciente comigo, por favor, senhor. Pode ser que
eu nunca mais seja capaz de falar-lhe no que o Anjin-san chamaria
de "em particular num inglês franco", mas o senhor nunca esteve
sozinho como estamos agora. Rogo-lhe que perdoe meus maus
modos. - Mariko reuniu toda a sua astúcia e, surpreendentemente, continuou a falar de igual para igual. - Minha opinião
absoluta é que Naga-san tinha razão. O senhor deve se tornar
xógum, ou falhará no seu dever para com o império e para com
os Minowara.
- Como se atreve a dizer uma coisa dessas?
Mariko permaneceu absolutamente serena, a cólera declarada
dele não a afetando em nada. - Aconselho-o a se casar com a
Senhora Ochiba. Faltam oito anos até que Yaemon tenha idade
suficiente para herdar legalmente. Isso é uma eternidade! Quem
sabe o que poderia acontecer em oito meses, quanto mais em
oito anos?
- Toda a sua família pode ser aniquilada em oito dias!
- Sim, senhor. Mas isso não tem nada a ver com o senhor
e o seu dever, nem com o reino. Naga-san tem razão. O senhor
deve tomar o poder para conceder poder. - Com uma gravidade
zombeteira, acrescentou de modo esbaforido: - E agora a sua
fiel conselheira pode cometer seppuku ou devo esperar para fazêlo mais tarde? - e fingiu desmaiar.
Toranaga olhou apalermado a sua inacreditável insolência,
depois explodiu numa gargalhada e martelou com o punho no
chão. Quando conseguiu falar, disse sufocado: - Nunca a entenderei, Mariko-san.
- Ah, mas o senhor entende - disse ela, enxugando com
tapinhas a transpiração da testa. - O senhor é gentil em deixar
esta vassala devotada fazê-lo rir, em ouvir-lhe as solicitações, em
dizer o que deve ser dito, tinha que ser dito. Perdoe-me a impertinência, por favor.
- Por que deveria, hein? Por quê? - Toranaga sorriu,
cordial de novo.
- Por causa dos reféns, senhor - disse ela simplesmente.
- Ah, eles! - Ele também ficou sério.
- Sim. Preciso ir a Osaka.
- Sim - disse ele. - Eu sei.
continua no Tomo II
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Xógun, volume I - James Clavell.txt

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