domingo, 1 de agosto de 2010

jean santeuil - Marcel Proust.txt

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..

--- COLEÇÃO
GRANDES ROMANCES

jean Santeuil

U
CLUBE Do Livro j
i Es 1a94
Marcel Proust

EDITORA
NOVA
FRONTEIRA

Jean Santeuil
Tradução de
FERNANDO PY


Título original
JEAN SANTEUIL

Éditions Gallimard, 1952

Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP: 22.461 - Te].: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro - RJ
Capa
VICTOR BURTON
Revisão
EDNA DA SILVA CAVALCANTI
SÔNIA SABOYA
EDMILSON CARNEIRó

FICHA CATALOGRÁFICA
CIP-Brasil, Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Proust, Marcel, 1871-1922.
P962j Jean Santeuil / Marcel Proust ; tradução de Fernando
Py. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982.
(Coleção Grandes romances)

1. Romance francês 1. Título 11. Série
CDD - 843
82-0344 CDU - 840-31
Sumário

Introdução 9
1
Os serões de Saint-Germain. - Os serões de Dieppe.
- OSr. Sandré. - Marie Kossichef. - Amanhã.
- Os Charnps-Elysées. - A carta. - Separação.
- A Sra. Lepic. - Jean no colégio. - Oliceu
Henri IV. - OSr. Clodius Xelnor. - Poesia e ver
dade. - As raparigas . 33

II

A casa de Êtreuilles. - Lilases e macieiras. - As
ruas. - Ernestine. - Manhãs no parque. - Efeitos
de luz. - Os almoços. - Músicas de verão. - O
frio. - Ocapitão Fracasse. - A lanterna mágica.
- Ojardim dos esquecimentos. Oespinheiro
cor-de-rosa. - Passeios no Loir. A camélia. -
O reino do Sol. - A missa cantada. - A Sra. Su
reau. - Os sinos. - A fazenda dos Aigneaux 89

A aula de filosofia. - Henri de Réveillon. - A Sra. Desroches. - Seu palácio. - A Srta. des Coufombes. - Henri, Jean e o Sr. Santeuil encontram o Sr. Duroc. - Por
que Henri hesita em apresentar Jean ao Sr. d'Utraine. - História de Calpin. - Re-
trato de um amigo. - Discussão de Jean com os pais a propósito do jantar com Réveillon. - Intervenção de Couzon na Câmara. - A recordação do Sr. Beulier . .......

IV

............... 167

Primeira temporada de Jean em Réveillon: o Sr. de Traves e o materialismo literário. - Os despertares. - Os pavões da duquesa. - As senhoritas de SaintSauves. -
Novo aspecto do Sr. Rustinlor. - As expressões do Sr. Expert-Foutin. - Perrotin. Lições de botânica. - A roseira branca. - Dias de leitura. - Ocastelo da princesa
de Durheim. - Omarquês de Porterolles. - A volta. . . .

v

.1 243

0 escândalo Marie. - Um grande ministro. - Ojovem Êdouard Marie- - Um alerta. - Apogeu e queda de Marie. - Jean intervém junto ao deputado socialista Couzon. - Primeira
fase do caso Dreyfus: os quinze conselheiros. - Jean e Durrieux. - Ogeneral de Boisdeffre. - Rustinlor e a política. - Ocoronel Picquart. - Da ópera Cômica ao Palácio
de Justiça. - A deposição do Sr. Meyer. - Ocaso Dreyfus no Figaro. - Osegredo do caso Dreyfus.

vi

Os Sauvalgue. Jean na Bretanha: o telefonema para sua mãe. Begmeil. - A igreja. Leituras de praia. - Tempestade em Pentriarch. Os adeuses. - Omar na montanha. -
Begmeil na Holanda. - Impressões reencontradas. .

Vil

Segunda temporada em Réveillon: a estação fria. A marquesa de Réveillon. - Os quartéis de inverno de Balzac. Os prazeres do outono. Oconde de Saintré. Opríncipe
de Borodino. Uma cidadezinha provinciana. - Os militares. Oinver-

no. - A viscondessa Gaspard de Réveillon. Lembranças do regimento. - Fontainebleau. - As ostras. - Ocoronel Brenon. - A tempestade, . . . 415

Viii

1

0 sarau da Sra. Marmet. - Reencontro com Marie Kossichef. - Ovisconde de Lomperolles. - o quarto de Jean em casa de seus pais. - A Faculdade de Ciências Políticas.
- Os Guéraud-Houppin. - Osalão da duquesa de Réveillon: Jacques Bonami. - Oduque na sociedade. - Outras visitas. - A Sra. de Thianges e a Sra. Lawrence. * tenente
de Brucourt. - História da inglesa. * "estréia" de Frédégonde. - Daltozzi e as mulheres. - A afronta. - Reparação. - Obarão Seipion. - A sala de plantão da Pitié.
- Um jantar na cidade. . . -

..................

IX

A respeito do amor. Os amigos de Françoise. A bolinha de ágata. Inverno nas Tulherias. - A marquesa de Valtognes. - OSr. de Villeborme. A Sra. de Thormes. - Jean
e a Sra. Desroches visitam a exposição Bergotte. - Ojantar da Sra. Cresmeyer. - Herri Loisel e a Sra. Delven. - A du-

497
quesa d'Alpes. - Os presentes. - Primeiro fra
casso. As confissões. - Saraus perdidos. - A
sonata. Osonho . 581 Introdução

x

,Charlotte Clissette. - Caminhadas adiante dela.
O "Furet". - Novo fracasso. - A religiosa holan
desa. - Um jantar na casa dos Réveillon: a morte
do visconde de Lomperolles. - A Sra. de Closeterre.
O câncer de Perrotin. - Os Monets do marquês
de Réveillon. - Jean passa uma manhã sozinho
com a mãe. - Noite de inverno em Paris. Ore
trato de Le Gandare. - Velhice dos pais. Histó
ria de uma geração 669
Posso chamar "romance" a este livro? É menos, talvez, e bem mais, a própria essência da minha vida extraída sem nada lhe mesclar, nessas horas de dilaceramento
em que ela escorre. Este livro nunca foi escrito; este livro foi colhido.
Eu viera passar, com um de meus amigos, o mês de setembro em Kerengrimen, que, à época (1895), era apenas uma fazenda afastada de toda aldeia, rodeada de
macieiras, às margens da baía de Concarneau. Muitos parisienses e ingleses vinham aí passar a temporada de verão exatamente como num hotel. Mas o proprietário, o
Tio Buzaret, mantivera o nome e as aparências de fazenda, seguindo o conselho dos pintores que, havendo descoberto a direção, aí retornando todos os anos, permanecendo
até bem tarde durante a estação, deixando-lhe quadros quando não lhe podiam pagar, lhe haviam conquistado a amizade bem antes dos outros clientes e estavam dispostos,
ao lhe satisfazerem a "vontade", a construir sua fortuna.
Além disso, até o momento em que o inverno começava
comia-se então numa sala de jantar bem aquecida -, toma
vaiu-se. refeições dignas de serem servidas entre as colunas de
mármore dos grandes hotéis suíços, ao ar livre, sobre mesas
de campanha, diante do mar. Pois tínhamos freqüentemente o
espanto de reencontrar abstrações realizadas, de ver a meretriz
sentimental, que, por desconfiança literária, éramos levados a
julgar pior, exatamente como era, bem como o jardineiro que
ama suas flores e delas fala de maneira figurada, o rústico que
sente o encanto de sua herdade e não a estragaria com embe
lezamentos de mau gosto. Um pintor espanta-se de encontrar,
de súbito, um espírito semelhante ao seu num operário, num
marinheiro, como nós outros vemos uma delicadeza digna de
nossa alma, e que faz falta à maioria das pessoas de nossas
relações, na carta em que a nossa lavadeira nos informou a
morte de seu filho. Uma linguagem atual reconhecida num can
to da Mada e a semelhança de uma crise da história do Egito
com os acontecimentos de hoje acabam por nos mostrar que
uma tal substância constituinte do cerne da humanidade, muitas

13
vezes invisível e como que fragmentária, não morre, entretanto, reaparecendo onde menos se espera.

Uma tarde, conversando com o hospedeiro, percebi que uma das pessoas. que estavam sentadas não longe de nós a uma das grandes mesas, e que, por minha vergonha
o confesso, nunca havia notado especialmente, era C., o escritor coniemporâneo que eu e meus amigos colocávamos então acima de todos. Meu amigo fora pescar e eu
esperava sua volta com impaciência a fim de lhe comunicar a grande novidade. Enfim ele entrou e viu logo, para minha satisfação, que eu acabara de fazer uma grande
descoberta. Não tínhamos muito tempo antes do jantar. .Fizemos vários rascunhos de cartas que queimamos; depois, tendo chegado a hora do jantar, decidimos ficar
com o último, que nos parecia o pior e nos fez lamentar haver queimado os outros. Talvez no dia seguinte fizéssemos melhor, porém não podíamos esperar e suportar
que C. ficasse uma hora mais na ignorância, que no entanto parecia ter agüentado bem até agora, da proximidade de uma dupla de tão fervorosos admiradores. Já que
nossos nomes, que eram então e permanecem totalmente desconhecidos, não dissessem grande coisa, para não darmos a impressão de intrigantes e encarecer a nossa admiração,
referimo-nos a uma duquesa com quem estávamos em excelentes relações e que nos dissera conhecê-lo muito bem. Acreditávamos poder dizer, sem mentira, que fora em
casa dela que o havíamos visto em primeiro lugar. Isso pronto, meu amigo entregou a carta à criada, que prometeu levá-la tão logo ele voltasse.
Meu coração palpitava enquanto ele se desincumbia dessa missão. É claro que ficamos mais perturbados ainda ao chegar à mesa e ao perceber que ele ainda não
se achava aí. Cada vez que a porta se abria, preparávamo-nos, ao mesmo tempo, para um abraço e uma provocação. Apareciam-nos todas as falhas de nossa carta. Enfim
chegou o nosso homem: dava a impressão de estar muito alegre, muito enlameado, e sentou-se com satisfação entre duas damas inglesas, às quais parecia muito chegado.
De repente, a criada lhe entregou uma carta. Desde esse mo-
mento metemos o nariz no prato, tremendo a cada vez que ouvíamos alguém se levantar. Por fim ele saiu com as damas inglesas. Convencemo-nos, então, de que ele recebia
todos os dias cartas semelhantes sem lhes prestar a menor atenção. Sentimo-nos extremamente pequeninos. De tal modó o nosso amorpróprio ignora a certeza assim como
alguma de nossas faculdades. Quem nunca fez de si mesmo um juízo favorável depois de haver obtido um prêmio em concurso, quem não se desprezou um dia por seu fracasso
no bacharelado? E, no entanto, nossa carta continha frases bem-feitas.
C. voltou. Estávamos prestes a nos levantar; não, voltara para apanhar um charuto. Mas por um movimento de retorno que fez a seguir, compreendemos que vinha
em nossa direção. Sem nos consultarmos, erguemo-nos e fomos ao seu encontro. Não dissemos nada do que gostaríamos de lhe dizer, mas lhe dissemos várias coisas que
logo nos pareceram idiotas. Ele não nos falou da duquesa. Ficamos sabendo, mais tarde, que ela o havia confundido com outro e que ele jamais estivera em sua casa.
Por conseguinte, não tínhamos a menor idéia de que algo lhe devesse inspirar desconfiança a nosso respeito. No entanto, não nos testemunhou nada, e certamente não
sentia suspeita alguma, tão desimportantes são, na realidade, as coisas a que damos valor. Interrogamo-lo sobre tudo o que, à época, nos falava mais ao coração,
particularmente sobre a terra em que estávamos. Inspirou-nos o desejo de a achar bela ao confessar que a amava. Dele arrancamos nomes ' de lugares, que seriam objetivos
de passeios, quase peregrinações. Quando dizia achar algo de encantador, algum epíteto mais preciso, ao nos dar a razão de um gosto que a nossos olhos tinha tanto
prestígio, atribuía à sua simpatia por mil coisas que despertava em nós com palavras sinceras algo mais definido. Â maneira dos jovens em presença de um mestre que
admiram, nós o interrogávamos sobre todas as coisas de que não falava em seus livros. Pouco a pouco, dispersando-se os outros hóspedes, nós o vimos mais vezes e,
tendo partido por seu turno as duas damas inglesas que ele acompanhou até Quimper, passamos a comer a seu lado, porém raramente com ele, pois chegava sempre muito
atrasado, quando todos já haviam acabado de jantar.

15
A força de interrogá-lo e indagar dos outros a seu respeito, acabamos por saber quando trabalhava. Seguia por muito tempo pelas falésias, sempre subindo,
sem dúvida exaltando-se cada vez mais com os próprios pensamentos, visto que de baixo víamolo andar cada vez mais depressa, correr, sacudir a cabeça, até chegar
à casinha de um faroleiro num sítio onde nunca passa ninguém. E lá, nesse local realmente sublime, seguia as nuvens com os olhos, estudava o vôo dos pássaros sobre
o mar, ouvindo o vento, olhando o céu, à maneira dos antigos áugures, não como um presságio do futuro, antes porém semelhante àquilo que entendi como uma rememoração
do passado: pois as gotas de chuva que começavam a cair, um raio de sol que reaparecia, eram suficientes para lhe recordar outonos chuvosos, verões ensolarados,
períodos inteiros de sua vida, horas obscuras de sua alma que então se aclaravam, inebriando-o de lembranças e poesia. Assim, quantas vezes, escondidos eu e meu
amigo, o avistamos. Ele parecia olhar qualquer coisa de frente, algo que não compreendia bem. E todo o seu corpo, por uma série de movimentos fortes e delicados,
sobretudo das mãos que se cerravam com força enquanto erguia a cabeça, parecia imitar os esforços de sua mente. Depois, de súbito, mostrava-se alegre, pronto para
escrever. Entrava, então, na casinha do faroleiro, onde um dia de chuva se transformava num dia de refúgio, e à qual retornava todos os dias. Ao partir, dava àquele
homem uma quantia, tão valiosa nessa região que, nos primeiros dias, ele não ousava aceitar, e que confirmava nossa idéia de que C. era de uma generosidade proveniente,
creio, tanto de seu desejo de agradar como de sua ignorância em matéria de dinheiro, e da necessidade de que os que andassem com ele formassem boa opinião a seu
respeito. Muitas vezes permanecia longas horas a escrever. Ofaroleiro e a mulher iam para outro cômodo a fim de não fazer ruído algum. Âs vezes, quando ele partia,
estando o faroleiro no mar, a mulher corria pela estrada para fazer voltar seus gansos, que os latidos do cão tinham feito fugir até o mar, onde com freqüência um
se afogava, visto nadarem muito mal. Certa vez eu e meu amigo, espionando de um rochedo o trabalho de C., vimos que ele, depois de se assegurar de que nem o faroleiro
nem sua mulher o podiam ver, divertia-se em fazer

1

6

fugir os gansos até o mar. Quando a mulher voltou, não encontrou os bichos e se pôs a gritar, C. fingiu que só naquele instante percebera que eles não se encontravam
em frente à casa. Interiormente, porém, deveria estar rindo, o que prova que ele não era tão bom quanto o achavam. Quanto à mulher, ficou bastante aborrecida com
a fuga de seus gansos porque não pôde reuni-los todos. Omar estava muito forte nesse dia: dois se afogaram e um foi colhido pela vaga sobre um rochedo.
Além disso, um casal que estava então em Kerengrimen, e que já vinha ali pela segunda vez, falou-nos muito mal do caráter de C. Haviam-no conhecido no ano
interior, tendo tomado todas as refeições em companhia dele, chegando até a lhe prestar importantes serviços. De volta a Paris, não fora sequer vê-los, não respondera
jamais aos dois convites que, apesar de tudo, lhe haviam enviado. Dissera-nos também que dormia com a criada do albergue. Devo dizer que, no que tange a cartas de
amigo, disse-me um dia que nunca as escrevia. Considerava-as como pára-raios que extraem a eletricidade do espírito, não permitindo jamais que ela se acumule até
produzir essas verdadeiras tempestades interiores onde só pode brotar o verdadeiro clarão do gênio, onde a palavra humana adquire um poder que a faz repercutir ao
longe como o trovão.

Durante o tempo que a princesa de X. passou em seu castelo de Kercaradec, não longe de Kerengrimen, em companhia de uma sociedade brilhante e numerosa, vimos
um novo C. Vestido com toda a elegância, partia para o castelo e muitas vezes só voltava depois de vários dias. Quando voltava, não mostrava nunca o aspecto satisfeito
como quando vinha da casa do faroleiro. Tanto que um dia, ao partir para o castelo, criei coragem e lhe disse: - Senhor, deveríeis antes ir ao farol, pois sabeis
-que voltais de lá bem mais contente e tereis escrito, pelo menos, uma coisa bela. - Franziu as sobrancelhas como quem sente a ferida em que alguém pôs o dedo, não
deixou de ir ao castelo, e durante uns dias se mostrou mais reservado. Depois a princesa deixou Kercaradec. Eis agora como passava ele os dias.

17
De manhã, quando não passara a noite inteira no mar, partia com um grumete, que. só estava ali por sua causa, e iam pescar. Como era bastante vigoroso, C.
gostava da borrasca acima de tudo e, muitas vezes, despindo-se, atirava-se do barco e o seguia a nado durante horas. Â noitinha, mandava freqüentemente a criada
acordar o grumete que já dormia na cama e obrigava-o a se levantar, o que algumas pessoas achavam bastante du~o, para preparar a barca. Otempo lhe agradara, houvesse
lua, ou, pelo contrário, fizesse mau tempo. Então, permanecia muitas vezes no mar a noite inteira. De resto, dormia nele melhor do que em terra, onde tinha (5 sono
tão leve que dera a todos os serviçais da fazenda sapatos de solas grossas para que não o despertassem ao andar. Já falei como passava as tardes a trabalhar na casinha
do faroleiro, sem dúvida um homem de espírito muito calmo, já que os dois que o haviam precedido tinham ficado loucos, pois o mar, durante as tempestades de inverno,
cobria o teto da casa com suas vagas furiosas, num ruído tal que, parecia, a razão dificilmente pode resistir. Descia a noite. Mal distinguia as letras que traçava,
porém, levado pela necessidade de seguir com a pena a rapidez do raciocínio, que era então bem grande, continuava a escrever. Sem fazer barulho, o faroleiro vinha
acender uma lâmpada ruim. E C., não podendo escrever enquanto ele lá se encontrasse, e a fim de fazê-lo compreender com essa parada que ele não devia permanecer
ali muito tempo, largava a pena e deixava cair sobre ele um olhar feliz, que parecia, por outro lado, surpreso de contemi)lar naciuele instante a face rubra e tranatifia
do

Quando um marujo, que vinha ver o faroleiro, entrava saudando com um bom-dia franco que fazia com que C. erguesse a cabeça, e levava a mão ao chapéu, esse
homem levantavase e o conduzia para outro cômodo, onde fumavam sem conversar, apenas trocando de tempos em tempos algumas palavras em voz baixa, e permanecendo assim
durante horas. Omesmo sucedia no albergue, onde muitas vezes, entrando no quarto, o hóspede o fechava sem ruído. Às vezes, enquanto ele se vestia, a criada, que
nesse momento arrumava o quarto, Dercebia. de súbito. ouando lhe falav2_ oue ele respondia dis-

traído, começava a andar de um lado para o outro, tendo ainda à mão a esponja ou as botinas, mas certamente pensando em outra coisa e esquecendo o que queria fazer,
pois passeava com elas sem calçá-las. Parava, então, de falar, continuava a arrumar o que estivesse imediatamente à mão, e desaparecia sem fazer barulho. Âs vezes,
ele nem a ouvia sair, outras vezes, dirigia-lhe, sem falar, como se estivesse com medo de fazer desvanecer-se algo, um sorriso de reconhecimento. Em outras ocasiões,
ao contrário, quando ela entrava, ele acabava de irabalhar, ou de ler, ou de acordar. Falava-lhe mais que o necesSário, interrogando-a com simpatia sobre o sono
noturno, e com respeito sobre o sermão que ela ouvira na igreja, indagando das novidades a propósito do processo do padeiro, da saúde da vaca, da pesca da véspera,
estendendo com prazer sua vida por todas as vidas dispostas ao lado da sua. Nesses dias ela percebia bem que ele queria conversar, permanecia bem perto dele, que
estava freqüentemente sob as cobertas bebendo, durante todo o tempo, seu café com leite, partia um pãozinho enquanto ele lhe falava, até que de repente se lembrava
da comida que ia queimar, da vaca que esquecera de ordenhar. E era, para C., um grande prazer que ela ficasse naqueles dias, pois imagino que nas manhãs em que o
sol, desfazendo a sorrir as névoas matutinas, dirige sua longa e afetuosa saudação à natureza, é para ele uma satisfação acariciar o mar ainda deserto, aquecer a
praia, brincar entre os ramos agitados pela brisa da manhã, e pousar ligeiramente os olhos com simpatia no marinheiro que partira pela aurora em seu barco, até inebriarse
de calor, de bem-estar, de alegria, até lhe pingar da testa uma gota de suor, e antes de chegar a esse ponto, ver corresponder à sua cordialidade a serenidade do
céu que recebe por inteiro a sua luz, e as nuvenzinhas não se oporem a seu humor comunicativo, nem tomarem um aspecto preocupado e encherem o horizonte de ar sombrio,
como se ali as chamassem, aliás, negócios sérios, ou outras que ninguém chamava mas vinham tomar o céu de assalto comopara empregá-lo em outros-assuntos e forçar
o sol a guardar a luz para si mas conservar-se lá no meio do céu, vogando talvez, mas tão suavemente que, como os marsuínos que emergem das espumas no mar calmo,
elas

19
parecem antes flutuar e devem permanecer lá indefinidamente. Assim, a única coisa que o poeta pode pedir aos outros quando quer, e enquanto quer, o ir-se embora
e o ficar calado, e outras vezes conferir um eco à sua alegria e uma reciprocidade à sua simpatia, e que os poetas têm buscado em vão até agora na proteção dos reis,
na adoração do mundo, na companhia de outros poetas, no aconchego familiar, C. descobrira naturalmente nessa pequena fazenda da Bretanha. Não é nos palácios, onde
ela enfeita o ornato, que a pérola se desenvolve, e sim num polipeiro embrionário, centenas de léguas abaixo do nível do mar. Quanto a mim, experimentava o mesmo
prazer quando via, na simplicidade de seu respeito e na segurança de seu instinto, o pescador afastar-se na ponta dos pés ou ficar conversando com C. quando necessário,
e ajudar assim; inconscientemente, a eclosão tão delicada de uma obra que deveria sempre ignorar.
Quando partia, dizia adeus ao faroleiro e à sua mulher que estavam jantando no quarto onde só se viam uma grande bússola presa ao soalho por uma base de
madeira e um pequeno fogão aceso ao pé do qual comiam sobre uma mesinha. Oclarão do fogo e de uma vela não iluminava toda a peça, mas a claridade concentrada na
parede era pacífica e tão marcada da vida cujas cenas tranqüilas aclarava todas as noites à hora de se acabarem os trabalhos, que, tão logo se dispunha a descer
a falésia ao vento e à noite, C. se voltava várias vezes para ver os dois jantando e, quando estava longe demais para vê-los, a luzinha em cuja cor o sossego dessas
ocupações, a simplicidade dessas almas, o conforto desse abrigo, a doçura dessa vida pareciam extintos. Ele voltava e, sentindo-se em atraso e além disso com frio,
andava depressa e chegava para jantar quando eu e meu amigo estávamos muitas vezes sós a esperá-lo, pelo menos depois que as duas damas inglesas foram embora. Mostrava-se
satisfeito com o que fizera, comia rápido, tendo diante de si o vago dos olhares cheios de pensamentos, e permanecia muitas vezes minutos a fio sem dizer uma só
palavra. Por um momento tirava o seu pincenê, limpava o suor da testa, passava a mão nos cabelos ruivos e um tanto grisalhos, penteados à escovinha, e ria sem dizer
por quê. Perto dele, sobre um prato
que os sustinha, estavam papéis que compreendemos ser o que havia feito durante o dia. Ocomeço do inverno, já tendo feito partir todos os outros hóspedes, um após
o outro, deixava-nos a sós com ele, e perguntamos se não queria, depois de nos fazer ler primeiro tudo o que não conhecíamos, fazer todas as noites a leitura do
que houvesse escrito à tarde. Depois de umas palavras confusas sobre o tédio que nos causaria, prometeu que sim, e após ler uma tarde para nós todo o princípio do
romance que estava escrevendo, a cada noite, como fora combinado, quando acabava de jantar, pegava os papéis a seu lado, presos por um prato, e começava a ler, porém,
depois de tantas precauções oratórias e misturando à leitura tantas autocríticas destinadas a esvaziar as do ouvinte, à maneira dos homens de letras, que éramos
constantemente obrigados a interrompê-lo e fazê-lo recomeçar.

Muitas vezes, conforme nos pareceu, algo relativo ao hospedeiro, uma nuança do temperamento da criada e ram registrados no romance de C. Mas não encontramos
nele nenhum traço do sentimento que tantos escritores, quando sua ilustre personalidade condescende em pintar a plebe, não deixam de exprimir, exclamando: - Certo,
o bom marinheiro que neste momento prepara, silenciosamente, a refeição noturna ficaria bem espantado se soubesse que é dele que se está falando, que é sua figura
tão desconhecida, sua vida tão obscura que durante algups instantes aparecem na primeira página deste diário, ocupam a atenção do ministro, do banqueiro riquíssimo,
da mulher da moda. - Nunca disse ao hospedeiro: "Você está aí", mostrando-lhe essas páginas, e quando Felicidade lhe perguntasse: "Já que o senhor escreve sobre
tantas coisas, por que nunca escreveu sobre Felicidade, sobre sua gravata que ela é obrigada a lhe pôr ao pescoço para que o senhor não saia de camisa aberta? Estou
certa de que isso faria rir muito mais as pessoas do que grande parte do que escreveu", ele se contentaria em sorrir e lhe dizer: "Sim, com toda a certeza". É que,
na realidade, ele não poderia dizer a ninguém, fosse a princesa

21
ou fosse Felicidade, fosse a sua insônia ou fosse a praia: Vocês estão no meu livro. - Pois ele sentia muito bem que eles não eram nada diante da iluminação que
tivera com freqüência em face deles. Somente se, por um momento, na pequena mesa da cozinha da hospedaria onde se s'entava algumas vezes, eles o vissem com ar distraído,
e tão bondoso. Para não perturbálo, o hospedeiro, o pescador tinham parado de falar e bebiam em silêncio enquanto a menina continuava a brincar no chão com o cachorro
e Felicidade a trazer as travessas, como no quadro de Rembrandt que representa os discípulos de Emaús. E nesse instante a áLyua tinha sido mudada sem que a tivessem

Para falar a verdade, nesses momentos de iluminação profun
da quando o espírito desce ao âmago de todas as coisas, acla
rando-as como o sol cai sobre o mar, em que o movimento da
menina que, esperando que seu companheiro fique pronto, balan
ça indolentemente a raqueta na extremidade de seu braço nu, em
que os queixumes das inumeráveis folhas dos lilases que se
lamentam debilmente seguras por um tronco langoroso, em que
arquear de sobrancelhas do homem que espera sua garra
fa no café, querendo frisar seu desdém pela sociedade e assi
nalando o cuidado que tem por sua opinião, Como esses come
diantes aos quais se confiam as palavras mais lisonjeiras e que
repetem disparates ridículos - são seguidos com delícia igual
pelo olhar, para que então uma sombra um tanto mais clara,
uma curva que se acentua, não sejam mais signos hieroglíficos,
e sim caracteres expressivos, que representem a verdade mais
agradável e que bastem, por si sós, para lhe dar essa embriaguez
que os outros homens só procuram nas drogas para expiá-la em
sofrimento, embriaguez tanto mais estéril que só serve para ver,
por uma hora, as mesmas coisas de modo agradável, mas que
faz ver algo que subsiste à imagem dissipada. É claro que o
poeta é grato a todas essas coisas que lhe confiarain seu apoio
e seu encanto, como a pobre parturiente agradece ao médico
que lhe foi tão devotado, guarda boa recordação do pescado
cuja frescura lhe soube tão bem ao paladar adulterado, e das
andorinhas ue ela gostava de ver voar em círculos ao redor da
janela enquanto em suas entranhas se realizava um trabalho mis-
terioso. Enviará uma fotografia de seu filho a esse médico que foi o primeiro a tratar dela, como C. enviaria ao hospedeiro um exemplar do romance que escrevera
em Kerengrimen, como co-
,piaria a mão, para a princesa de X., alguns versos que compusera um dia passeando sozinho em seu parque. Talvez até ela, no momento de batizar o filho, fosse inclinada
a dar-lhe o nome que recordasse essas coisas que haviam assistido benevolamente ao seu nascimento; e mais ainda, quando ela o chamasse de Teodoro, acreditando dar-lhe
o nome desse médico, desse estranho tão bondoso, o verdadeiro sentido da palavra diria: Presente dos-Deuses. Mas ela não pode fazer mais, sabe bem que para o que
é verdadeiramente seu ela não pode escolher um ou outro, que quanto a seu sorriso, a cor de seus olhos, a alegria, a coragem, ele só depende dela, que ela foi, num
momento, o reservatório de sua vida, e que agora é a todos os homens que ela, malgrado seu, dá o filho, que o receberão por bem ou por mal, ela não o sabe, à natureza
inteira que ensaiará nele a doçura de seus raios, a perfídia de seus miasmas, à vida enfim, e à morte. Omesmo em relação a seu livro: C. podia dedicá-lo a um amigo,
dava-o a todos.
Âs vezes, no entanto, quando acabava de escrever, C. se divertia em relatar a Felicidade alguma coisa a respeito dela, a descrição de sua touca, a transcrição
de uma de suas conversas. Ela não acreditava, pedia para ver, e como diante de um quadro para o qual tivesse posado, dizia ao se reconhecer: - Mas é exatamente isso.
E minha touca! Que será que vão dizer lendo isto, hão de querer conhecer essa Felicidade de quem o senhor fala tanto, que o senhor aborreceu tantas vezes, por assim
dizer. Gosto muito de você, Felicidade - dizia C. levantando-se e largando o manuscrito. Fizera o que fora possível; chegara a hora de render graças aos deuses e
aos homens. Descia, então, bebia com o hospedeiro, com o pescador, andava aos saltos, divertia-se a atirar nos pardais, rindo com Felicidade enquanto esperava a
hora do almoço. Assim, Felicidade e o hospedeiro gostavam sobretudo de recordar, desse homem tão sonhador, que ele gostava de gracejar como qualquer um, que era
um bom homem, como se diz com prazer de um santo sacerdote, que ele não desgostava a boa comida e conhecia os bons vinhos. Ou bem

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essas inteligências originais, essas índoles nobres reabilitam nossos mais humildes prazeres, a eles entregando-se e dando-lhes, a nosso ver, como que um novo encanto,
um batismo de inocência, ou bem, tanto mais conhecemos unicamente a alma, por mais nobre e elevada que seja, tanto menos conhecemos a matéria, não sabemos a que
espécie pertence, se à nossa, se a uma espécie viva e cuja nobreza e elevação não obstante admiramos, só gritamos* de satisfação diante da perfeita semelhança com
a vida.

Naquela noite, quando voltamos para jantar, encontramos. C. no jardim corrigindo o caderno de francês da filha do hospedeiro. - Esta noite não tenho nada
para ler, disse ele, o tempo estava tão agradável que fiquei o dia inteiro no mar e não escrevi nada. Mas vejam como ensinam mal o francês a esta menina. Eis o que
ela aprende de cor: Um velho pai tem 12 filhos, estes 12 têm mais de 300, estes 300 têm mais de mil, estes são brancos, aqueles são negros. Quatro pratos rasos em
quatro pratos fundos, quatro pratos fundos em quatro pratos rasos. E lhe dão para ler OBurguês Fidalgo: ela não entende, mas mandam-na prosseguir mesmo assim. Ela
me mostrou em que pedaço estava. Era no meio de estrofes turcas, muphti, cadir, berir, e ela lia atentamente, julgando aprender outras tantas palavras francesas.
- Mas a menina, que depositava muito mais confiança na ciência da professora do colégio do que na de C., não parecia gostar muito dessa intervenção em seus trabalhos
e lhe disse em dialeto bretão: - Ponha-se antes a escrever o que tem de escrever -, e, tendo corrido pelo jardim, fazendo voltas para a esquerda e para a direita,
mexendo braços e pernas, movimento acompanhado com animação pelas fitas cor-de-rosa atadas no cabelo, levou consigo a lista de palavras francesas, pondo-se a recitar
baixinho: - abril, a cabrinha, o chão, o enganado, o erro, o mensageiro, os parasitas, o senhor, o toque-toque, o trisavô, o tufo, o vilão, o vis-à-vis, o zelo,
o zuavo - . . - De vez em quando ela parava e nós a observávamos; ela gostaria de nos dar o sorriso pacífico de costume, feliz de não estar mais sendo perturbada,
antes de recomeçar a recitar: - abril, a cabrinha com o ardor e a serenidade da fé.

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Subimos ao nosso quarto por um momento e, quando descemos de novo, C, falava com o hospedeiro e o pescador com bastante vivacidade, em bretão. Explicava
que tivera uma discussão com o novo cabeleireiro, que achava muito caro. Falava com muita volubilidade, evidentemente sentindo, por poder fazer gracejos em bretão,
o prazer de uma criança que principia a nadar bem para poder fazer alguns movimentos graciosos como os verdadeiros nadadores. Parecia insistir, sobretudo, no fato
de que fora muito rude com o cabeleireiro e que não queria absolutamente pagar tão caro, como se tivesse, por acaso, querido dar mais para o pescador e para o hospedeiro,
na extrema bondade e generosidade que tinha para com eles. Com efeito, concluiu a conversa mandando abrir uma garrafa de vinho que foi beber com eles. Neste momento
descemos. Tínhamos trazido perfidamente conosco, meu amigo OCura da Aldeia, de Balzac, e eu A Cartuxa de Parma, de Stendhal, já que, estando a fim de ler esses livros
com a paixão que excita uma bela e nova obra, principalmente quando ainda não terminada, não pensávamos em outra coisa e ardíamos de vontade de saber, acima de tudo,
a opinião de C. Assim, mesmo não tendo tempo de ler antes do jantar, trouxéramos os livros pensando que ele nos perguntaria o que tínhamos conosco. Mas, em primeiro
lugar, queríamos perguntar se havia visto o pôr-do-sol aquela tarde, o qual nos arrebatara a ponto de quase nos esquecermos, meu amigo do Cura da Aldeia, eu da Cartuxa
de Parma, e esperávamos que nos desse sua impressão, talvez, com uma palavra que esclarecesse a nossa e nos desse mais certeza. Porém, disse-nos que o não vira,
que já entrara em casa.
- Tínhamos entrado também - disse eu com timidez mas vimos cores tão belas no céu que não pudemos deixar de ir ver o que elas prometiam sobre o mar. A cor
é uma coisa tão bela! - Contra a minha vontade, sentia que falava como ele, como se quisesse tentar, assumindo um tom meio afetado, estimuIá-lo e perguntar-lhe tudo.
- Os mais belos pores-do-sol que já vi foram em Douarnenez - disse ele. Meu amigo e eu decidimos logo, intimamente, ir a Douarnenez. - Pode-se ir lá facilmente daqui?
- perguntamos. - Já vou lhes dizer - replicou, e foi para o quarto buscar os horários de trem e dos

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barcos. Estávamos confusos, pois ele se tirava de seus cuidados
por nós por uma coisa que outra pessoa podia muito bem
fazer, e decepeionados que não nos dissesse algo que todos pode
riam ter dito. É a decepção de um neuropata que gostaria de
extrair do médico uma palavra profunda sobre o seu mal, e o
médico se contenta em discorrer sobre uma coisa ou outra e
diz: - "Mas cubra-se, por favor, está com frio" - ou "Bom
apetite, boa viagem" -. Ou de um esnobe a quem uma duquesa
manda frutas de seu pomar em vez de um convite para o seu
baile. Ficamos esperando, de conversa com o hospedeiro que
se preparava para as grandes pescas de salmão que começavam
por aqueles dias, e se realizavam todas as noites. Confessamos
que seria um pouco duro para nós e que não nos arriscaríamos.
"- Certo - disse o hospedeiro -, geralmente ninguém vem
cá. Osenhor C. vem todos os anos - ah, ele não falta a uma,
preciso preveni-lo do dia em que começa. Mas ele, desde há
dez anos que vem aqui oito meses em doze, é um verdadeiro
marujo." - C. desceu novamente com o horário dos barcos e
leu-os. Fizemos cara de compreensão para agradá-lo. Falamos
da pesca do salmão. - Oh, sim, é muito bonita - disse. - Mas
isso não quer dizer que faça tudo de novo, porque assimilei os
costumes do lugar. Eu teria sido, como isto aqui foi muito bom
para mim, professor de filosofia numa cidadezinha do interior,
e todas as noites jogaria cartas e beberia cerveja nos bares. Sei
que muitos acham ser este o perigo da província e ao qual o
espírito não resiste. Balzac pintou essa vida como o último limite
da baixeza, do embotamento a que podia chegar uma inteligên
cia que em Paris poderia ser brilhante. É possível, mas não sou
dessa opinião. Para mim, pelo menos, é já tão difícil poder
falar para si - disse, com o suave tom de voz que nos encan
tava tant ' o -, não posso falar pelos outros. Talvez se trate de
espíritos que necessitam de distrações mais intelectuais. Mas, o
quê? Oteafro, a sociedade? Não digo nada, mas sei bem que
isso me faz mal; vejo as coisas menos profundamente, e essa
maneira superficial que aí se sente estende-se sobre o resto do
meu tempo com uma excitação estéril que me dificulta o traba
lho. Não, verdadeiramente não posso falar mal da vida que
levo aqui. - Calou-se mas continuava a abanar a cabeça, mi-

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rando com um ar indeciso, como um instrumento de pedal que depois de tocar uma ária não volta logo ao silêncio, continuando a prolongar, cada vez mais indistintamente,
os últimos sons e, por um momento ainda, está tão impregnado da harmonia que acaba de deixar fugir, e que se crê não ouvir quase, que, se nesse instante quereis
tirar dele imediatamente uma diferente, obteríeis uma dissonância.
Passado um momento, meu amigo lhe mostrou OCura da Aldeia. - Já leu? - perguntou. - Ali, sim, antigamente; é muito bom, não acha? Oromance começava com crimes
espantosos dentro da cidade e à medida que a alma das personagens se elevava, subia as encostas, demorava-se na aldeia e findava em grande altitude numa espécie
de campanha idílica à maneira de Fénelon, onde os crimes da heroína eram perdoados enquanto ela saneava a região por meio de arroteamentos. Mas não me lembro bem.
- Calou-se. - Poderia nos falar ainda dele? indagou meu amigo num tom de voz tímido e aflito. - Não, não posso, não me lembro bem. Não posso lhes falar muito de
Balzac, não o conheço bem. E vocês sabem, é preciso conhecê-lo. Isto parece ingênuo, essas pessoas a quem se pergunta o que é necessário ler de Balzac e que dizem:
"Tudo." Pois bem, é verdade, a beleza não está num livro e sim no conjunto. Cada romance lido separadamente não é tão bom, e no entanto as personagens que reencontranios
em todos são verdadeiramente bem realizadas. É curioso, não? Não sei explicar isso bem. Não, as pessoas que devem falar sobre BaIzac são as que o conhecem bem, não
quero dizer sobretudo os literatos; não, antes uma certa geração, vocês sabem, de velhos prefeitos, de financistas um tanto leitores outrora, quando dispunham de
tempo, e militares inteligentes. Vejam, o general de S. conhece Balzac admiravelmente. Em casa da princesa de T., que o conhece muito bem, ouvi-os falar às vezes
dele, gosto muito de ouvi-los. - Porém, eles não devem ter gosto literário - objetou meu amigo com vivacidade. Meu Deus, não digo que sim; não, certamente - disse
C. mas em relação a Balzac sim, é assim mesmo, trata-se de uma autoridade, vejam bem, só que também um pouco material: ele agrada a muitas pessoas e nunca interessará
do mesmo modo aos artistas. Mas vocês

1 - -
0 ~r~A~

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sabem que eles, apesar de tudo, gostam dele. E no fundo, é bem curioso, pois julgo que nada nos deveria parecer mais corriqueiro. Visto que, na realidade, o tempo
inteiro, não é pela arte que a obra dele nos fascina. É um prazer cuja origem não é de fato muito pura. Ele tenta prender nossa atenção, como a vida, por um monte
de coisas más e se assemelha a elas.

Para essas leituras, ficávamos na sala de jantar, muito bem aquecida - pois o tempo não permitia nenhuma refeição fora - e, muitas vezes, quando a leitura
era prolongada, víamos surgir à porta a figura da criada, ansiosa por terminar o serviço e ir dormir. Mas C. se interrompia, prometendo não demorar, para que ela
não ficasse ali, o que o incomodava. Outras vezes, a narrativa era cortada de reflexões em que o autor exprime sua opinião sobre certas coisas, à maneira de alguns
romancistas ingleses que ele apreciara bastante antigamente. Essas- reflexões, na maioria tediosas para o leitor, porque tiram o interesse e desfazem a ilusão de
vida, eram o que escutávamos com maior prazer, tão ávidos de conhecer seu próprio pensamento que para nós era ainda mais valioso quando envolto no caráter de uma
personagem. Por esta ficávamos sabendo, sem sombra de dúvida, que as coisas que escrevia eram histórias rigorosamente verdadeiras. Ele se desculpava dizendo não
possuir nenhuma capacidade de invenção e só poder escrever sobre o que sentira pessoalmente - desculpa bem engraçada, pois os acontecimentos em seu romance são tão
corriqueiros hoje em dia, mesmo naquilo que possam ter de extraordinário, que não haveria necessidade de grandes dons inventivos para imaginá-los. Porém, em que
medida ele estava no que escrevera, teria conhecido o duque de Réveillon, poderíamos, indo pelo Marne, ver o moinho de que fala, cuja vinha virgem fora adornada
e cuja roda fora reduzida à imobilidade? E principalmente esse Jean, que, com alguns dos defeitos de C., talvez mais qualidades, sobretudo de sensibilidade e até
de coração, mas também de saúde muito mais frágil, ao contrário de C., passara por tantas desgraças e tivera tanto talento desperdiçado? Estas questões que não ousávamos
pôr diante

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dele, porque nos desencorajara da primeira vez com uma resposta bastante seca, era o que nos interessava acima de tudo. Pensávamos em consagrar a vida inteira a
resolvê-las, o que seria uma boa ocupação, já que ela serviria toda para conhecer coisas que amávamos acima de tudo, e compreenderíamos, assim, quais as afinidades
secretas, as metamorfoses necessárias existentes entre a vida de um escritor e sua obra, entre a realidade e a arte, ou antes, como pensávamos então, entre as aparências
de vida e a própria realidade que dela fazia um fundamento sólido e que a arte resgatou.
Mas aquilo que parece mais importante num dado momento da vida, quando, por uma ilusão feliz, não duvidamos que tal importância deva permanecer a mesma até
o fim da vida, passado algum tempo nem mais cogitamos disso. De volta a Paris, chamados por negócios em princípios de novembro, demos adeus a C., a quem estávamos
muito ligados nos últimos tempos, e que, desde o momento em que nos fazia suas leituras todas as tardes, parecia tomar verdadeiro interesse por nós. Deu-nos a impressão
de estar comovido com a nossa partida mas não nos acompanhou até Quimper, comofizera com as duas damas inglesas. Deveria voltar a Paris no começo de dezembro. Prometemos
ir vê-lo quando voltasse e pensamos, meu amigo e eu, que até lá o tempo custaria a passar. Mas em quatro anos não fomos lá uma vez sequer, não mais que a Kerengrimen,
aonde deveríamos voltar no outono seguinte. Cheios de remorso, prometendo a cada noite aparecer e esquecendo a promessa todas as manhãs, acabamos, contudo, por escrever-lhe,
porém, ele não respolideu. Passando uma vez próximo a Kerengrimen, pensamos em ir vê-lo mas estávamos tão envergonhados de nossa mudança a seu respeito que não ousamos
aparecer diante dele, que testemunhara os transportes de uma ligação tão pouco duradoura.

No verão seguinte, S., que eu já não via há vários anos (o mesmo amigo com quem- estivera na Bretanha), veio à minha casa. - C. está moribundo - disse. --
Tem algo a nos dizer, enviou-me em tua busca e pediu que viesses comigo. É em

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Saint-Cloud. Oenfermeiro que cuida dele está lá embaixo. - No caminho ficamos sabendo que C. morria de tuberculose galopante que lhe poupava a lucidez. Não tinha
ilusões nem desgosto quanto a seu estado. Chegamos a uma casinha cujas janelas abertas davam para um jardim.
- Fi-los vir tão longe, e onde, com certeza, não imaginavam, vocês que conhecem minha doença - disse-nos com um sorriso, aludindo a essa febre denominada
febre do feno *, que não o impedira nunca de ir para o campo. - Ocampo! Eu que tanto o amei e achava não poder nunca viver lá, eis que hoje ele já não me faz nenhum
mal. É um pouco tarde, sem dúvida; porém é conveniente que tenhamos podido chegar a uma reconciliação desse modo, antes que eu morra, como fazem aqueles que um mal-entendido
separou mas que, no fundo, são feitos para se compreenderem. Quanto ao mais, algum mal que ele me tenha feito, não fez um bem maior ainda, visto~ que o amava? Enfim
você vê - acrescentou voltando-se para mim -, você que julgava descobrir um remédio para a febre do feno, eu que respondia que tal remédio não existia, você me vê
curado pelo único médico em que não havíamos pensado. Sabe que os gregos diziam: a Morte é o grande médico, porque só ela nos livra de nossos males. Creio que nossos
médicos, pelo que conheço de suas obras, entendem-na assim em sentido patológico. E Felicidade (era a sua criada) é da mesma opinião, pois me dizia esta manhã (vocês
sabem que ela me ama, mas como mulher do povo ama-me a ponto de me incomodar, como se alguma coisa ainda pudesse me tirar o sossego): "Eu ainda tinha esperança por
esses dias, mas quando vi o senhor chegar ao campo e aí não espirrar nem sufocar, disse comigo: 'Desta vez é o fim, não irá longe'". E assim a palavra "morrer" só
é real para mim - disse. - Desde ontem de manhã, os hábitos que nunca ninguém conseguiu me tirar desapareceram, como os pássaros que, por uma espécie de pressentimento,
fogem da casa de um morto. É suponho que seja para não mais voltar. Pela primeira vez, desde os 25 anos, pude dormir sem deixar

* Omesmo que rinite alérgica. (N. do T.)

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a janela aberta, e a natureza fez num instante o que minha mãe por meio de repetidas e diárias súplicas, durante 20 anos, não pôde obter. Oque sempre achei tão belo
na natureza é como pode ela unir e desunir com facilidade. Eu que temia tanto a morte por essa impossibilidade que sempre tive, nos lindos dias da minha vida, de
aceitar os contrários, ela soube torná-la bem amável para mim, enviando-me seus ministros, os desgostos, o sofrimento. Eles me prepararam tão bem que hoje chego
a desejá-la. Por mim mesmo, nunca teria chegado a isto. Nisso é que a admirei mais, quando ela fazia mudanças em mim. Um dia, a gente não sofre mais pelo desgosto
que nos tornava inconsoláveis, toleramos, sem pensar nele, um sofrimento que acreditávamos insuportável. Por uma pessoa que muito amei antigamente, sofri os tormentos
do ciúme. E depois de dois anos sem vê-la, como o ciúme não me largasse dia e noite, fiquei certo de que me acompanharia até a morte. Era como as crianças que crêem
que a noite não acaba mais. Curei-me quase no final do segundo ano e não mais sofri desde então. É nessas curas que admiro a natureza: são tão miraculosas e tão
simples. Para falar a verdade, creio que, como esses médicos que sob diversos nomes de calmantes lhes dão ópio, seus remédios são sempre à base de olvido, ou antes,
de hábitos, que é o nome verdadeiro, vocês sabem, o olvido não passa de uma variedade. Não sei se existe piedade, embora sejam tão doces, na substância dessas belas
leis que nos encaminham a uma outra condição, mas certamente há grandeza.

Dias depois, os jornais anunciaram que havia morrido. E como, entre os papéis encontrados em sua casa, não se falava do romance do qual tínhamos uma cópia,
decidi-me, já que meu amigo cuidava de outros assuntos, a publicá-lo.

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1

Os serões de Saint-Germain. - Os serões de Dieppe. - OSr. Sandré. - Marie Kossichef. - Am~ - Os ChampsElysées. - A carta. - Separação. - A Sra. Lepic. - Jean no
colégio. - Oliceu Henri IV. - OSr. Clodius Xelnor. Poesia e verdade. - As raparigas.
1. Os serões de Saint-Germain

A portinha do jardim fechou-se lentamente sobre o pequeno
Jean, que viera pela terceira vez dizer boa-noite à mãe e fora
muito mal recebido. - Ele está um pouco triste, doutor -
disse a Sra. Santeuil com doçura, voltando-se para o professor
Surlande, para desculpar o filho. - É a primeira vez que
não vou lhe dar boa-noite na cama, e isso o deixa muito aflito.
É tão impressionável. - É o que chamamos um tipo nervoso
- comentou o doutor, sorrindo como se gracejasse. - Além
do mais, sua fácies o indica bem. OSr. Marfeu trata-o certa
mente com água fria. - Água fria? - disse espantada a Sra.
Santeuil. - Não, o Sr. Marfeu nos recomendou que tivéssemos
• cuidado de servir só água quente. - Água quente? - disse
• Sr. Surlande rindo. - Ah, na verdade, água quente, é curio
so. Além do mais o Sr. Marfeu é um sábio notável, e a se
nhora não poderia escolher melhor médico para seu filho. Mas
espero que não seja eu quem a impeça de ir lhe dar boa-noite,
minha senhora - disse cortesmente o doutor. - Oh não -
exclamou a Sra. Santeuil -, não queremos que ele conserve
esses hábitos de menina. Durante muito tempo a má saúde
dele obrigou-nos a cuidados que lhe tornaram mais tarde a
vida impossível. E queríamos, meu marido e eu, educá-lo de
maneira viril. - Oue contam fazer dele? - indagou o doutor.
- Ele só tem sete anos, doutor - respondeu a Sra. Santeuil.
- No entanto, já temos idéias muito definidas sobre o seu
futuro. Não que desejemos contrariar em nada os desejos de
nosso filho, que será sempre livre nesse ponto, desde que suas
preferências se inclinem para uma carreira de verdade, como
a magistratura, a diplomacia ou a advocacia. - Mas supondo
que ele revele grande aptidão para a música e a poesia? -
perguntou o doutor. - Oh, todos os pais, doutor - disse a
Sra. Santeuil com vivacidade -, acham que seus filhos são

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pequenos prodígios. Criam-nos para não fazerem nada e se acha~ rem uns gênios incompreendidos, porque um pequeno trecho que faz as delícias da família, e que o professor
considera extraordinário, não é tocado em público nem pago pelos editores. É uma carreira se se trata de Mozart ou Beethoven. E além disso - acrescentou a Sra. Santeuil
com firmeza - não desejo que ineu filho seja um artista de gênio. Preferiria vê-lo com sua verdadeira inteligência e as boas relações de seu pai entrar para o serviço
diplomático ou atingir uma posição importante na alta administração, bem remunerada e respeitada. No entanto, procuro despertar nele o gosto pela poesia. - A senhora
não sonha com a medicina? perguntou o professor. - Oh! não, doutor. É muito bonito acrescentou com uma timidez entusiasta - quando se chega a fazer um nome como
o seu. Mas. . . - Ah! É preciso trabalhar sem descanso - disse o doutor com um olhar retrospectivo. - Será que ele está deitado? - ajuntou mostrando no andar superior
da casa às escuras uma única janela iluminada. - É lá - disse a Sra. Santeuil. - Proibi que deixem a luz acesa nos outros quartos, por causa dos mosquitos que poderiam
entrar pela janela aberta. - A explicação é muito boa - disse o doutor. - Em pleno dia. E o solo daqui é argiloso, não? - Mal informada, a Sra. Santeuil guardou
um silêncio grandioso. A luz se apagou, a janela se confundiu na obscuridade das outras.
- Está deitado - disse a Sra. Santeuil, satisfeita com esse desvio. - Não está com frio, doutor, não será melhor colocar o sobretudo? Aí vêm meu marido e
meu pai, que foram buscar os seus agasalhos e poderiam trazer o seu. - Não, obrigado, minha senhora, a temperatura é bastante agradável. A senhora tem um belo jardim,
com uma fonte que parece pura. - É bem bom quando faz calor - replicou modestamente a Sra. Santeuil -, e dentro de alguns anos, quando já não formos deste mundo,
será de bom proveito para Jean respirar este ar puro, se daqui até lá não se fortalecer. - OSr. Santeuil, sentado em silêncio, observando sua mulher com doçura,
foi transportado por estas palavras: "quando já não formos deste mundo" - ao tempo em que sua mulher era viçosa -e bela, e

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aos longos anos que se haviam seguido. A cabeça inclinada para trás sobre o espaldar da poltrona, a Sra. Santeuil via o céu inumerável, mergulhava no vago devaneio
a que nos leva uma grande pintura, uma inscrição célebre e indecifrável que não compreendemos, e procurava na Via-Láctea o astro também vago, brilhante e longínquo
de seu querido Jean. Odoutor olhavo os dois com simpatia. Inclinando a cabeça descontente sobre um traje desprezível e cuidado, o Sr. Sandré, pai da Sra. Santeuil,
fumava cachimbo em silêncio.
Foram arrancados desse silêncio pelo ruído penetrante do jato d'água e pelo aroma das roseiras, que lhes pareceu uma novidade porque, em seu devaneio, haviam
deixado de percebê-los. - Sefitimo-nos bem aqui - disse o doutor. - Não é mesmo? - respondeu o Sr. Santeuil. - Também, para possuir este jardim às portas de Paris
morei durante muito tempo num pequeno apartamento, fiquei muito tempo sem carruagem. Nenhum luxo poderia- substituir o prazer de tomar a fresca à noite, debaixo
desses grandes castanheiros, e de ir a Paris de manhã, na minha pequena charrete, pela floresta. - Osenhor gosta da natureza? - indagou o doutor. - Não sei bem respondeu
o Sr. Santeuil. - Não gosto muito de quadros, e minha mulher me faz dormir depressa ao ler os versos de Alfred de Vigny. Mas enfim, gosto muito deste jardim. - A
Sra. Santeufi, posta assim de parte, não replicou palavra, pois deixara há instantes de ouvir a co nversação. Levantando o olhar, percebera a luz novamente acesa
no quarto de seu filho, e ficara vivamente contrariada. Era preciso, não obstante, que um menino de sete anos aprendesse a dormir sozinho. Assim, esperando que Jean
voltasse a adormecer, decidiu deixar passar algum tefiipo antes de subir para junto dele, para ver se a luz se apagava. Em pouco a janela se abriu, uma figurinha
loura se mostrou lá em cima com uma camisola branca e disse suavemente: - Mamãezinha, preciso de ti por um instante. - Jean, fecha depressa a janela, vais te resfriar,
que loucura! - gritou a Sra. Santeuil, que se erguera assustada. - Que fraqueza - exclamou o Sr. Sandré. - Vocês estão habituando mal essa criança. -- Deixe - disse
o Sr. Santeuil rindo -, se a mãe não vai até lá ele não dorme. E nós vamos nos incomodar durante uma

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hora. - Não me importo de ser incomodado - disse o Sr. Sandré, solene. - Passaria bem com os incômodos, desde que esse menino se comporte melhor. Não vale a pena,
para sua comodidade, encorajar sua mulher a pajear um príncipe. - OSr. Santeuil não respondeu. A Sra. Santeuil disse ao pai: - Mas papai, é para o bem dele mesmo,
é preciso evitar esses nervosismos prolongados. É pena que eu tenha de subir, mas é necessário: Estou envergonhada pelo senhor, doutor. Vai julgar mal essa criança.
Não é tão bobinho assim todas as noites, mas é tão nervoso, não é culpa dele.
A hora de deitar era, todos os dias, um momento verdadeiramente trágico para lean, e cujo vago horror parecia mais cruel. Já quando a tarde descia, mesmo
antes de trazerem os lampiões, todos pareciam abandoná-lo, e ele teria querido se aferrar à luz, impedi-la de morrer, arrastá-la consigo na morte. Mas podia se distrair
um pouco dessa angústia indefinida e profunda indo até a cozinha, falando com a mãe. Logo chegava seu grande lampião, espalhando sua luz cordial, inundando a mesa
e o coração de sua bondade poderosa, com uma doçura uniforme. Mas, no momento de se deitar, Jean não dispunha mais do socorro da atividade nem da luz. Era preciso
dizer boa-noite, ou seja, deixar todo mundo durante a noite inteira, renunciar a ir falar com sua mãe se estivesse triste, pôr-se de joelhos se se sentisse muito
só, apagar até a triste vela, nem se mexer mais para poder dormir, ficar como uma vítima abandonada, muda, cega e imóvel, entregue ao horrível sofrimento indefinido
que crescia pouco a pouco como a solidão, como o silêncio e como a noite. Porém até aquela noite, logo que Jean acabava de se despir, chamava sua mãe e ela vinha
beijá-lo na cama. Esse beijo era o doce viático, esperado tão fervorosamente que Jean se esforçava por não pensar em coisa alguma enquanto tirava a roupa para transpor
mais depressa o espaço de tempo que dele o separava, a doce oferenda de bolos que os gregos prendiam ao pescoço da esposa ou do amigo morto ao deitá-lo na tumba,
para que fizesse sem terror a viagem subterrânea, atravçssasse farto os reinos sombrios. Assim, Jean saboreava longamente as faces macias da mãe, e em seguida, sobre
a fronte febril do filho, ela depunha um beijo suave como uma compressa, que através da pele arden-

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te e fina se insinuava em suas franjas louras, vindo acalmar seu
coraçãozinho. Então ele dormiL Esta noite, na cama, a dádiva
era esperada com impaciência febril e seu poder maravilhoso
acalmaria, como um encantamento, como o azeite ao mar, seu
coração agitado. Ogesto de sua mãe, ao abaixar-se para beijá-lo,
extinguia de imediato a inquietação e a insônia. Era isto o que
ia lhe faltar, e lhe faltaria doravante Í todas as noites. Apesar de
sua tristeza, fez esforços sinceros para dormir. Apagara a luz,
como o havia notado há pouco o doutor no jardim. E esforçan
do-se por não pensar em nada, dizia consigo que a mãe era
na verdade bem rude por fazê-lo sofrer dessa maneira. Imagi
nava-a conversando agora com o doutor e com seu pai, e o
espetáculo dessa cena fazia mais intolerável sua imobilidade força
da. Primeiro, a possibilidade de chamar a mãe se apresentou,
de fato, a seu espírito, mas foi rechaçada logo pelo temor de
desgostá-la, e de ficar zangado com ela vários dias. A Sra. San
teuil, para impedir que o filho se entregasse ao nervosismo, pro
curava envergonhá-lo como se se tratasse de um mau proce
dimento. Era o único ponto em que fora severa com ele. E ele,
pequeno demais para saber distinguir o moral e o físico, a liber
dade e a necessidade, sentia-se obscuramente responsável por
sua agitação, por sua tristeza e suas lágrimas, sem ter, no entan
to, forças para dominá-las. Jean ouvia no corredor o passo de
Augustin, o velho criado, que trazia para a sala de jantar a
baixela lavada. Chamou-o. Augustin, habituado com os nervos
do Sr. Jean, e não desejando largar sua baixela, fez que não
ouviu. Porém Jean, irritado e com medo de não se fazer ouvir
mais depois que ele tivesse entrado na sala de jantar, chamou
Augustin com mais força: - Augustin, peço-lhe que vá logo
buscar mamãe. - Não ousou dizer: "Se eu lhe pedir, você vai
buscar mamãe?" - de medo de receber uma recusa, cuja possi
bilidade, pelo visto, era perfeitamente provável. Augustin, por
seu, turno, evitou dizer não mas respondeu com doçura e bono
mia: - Como, ainda está acordado, Sr. Jean? É tarde, é pre
ciso dormir, não convém perturbar a Sra. Santeuil, que está com o
Sr. doutor Surlande. Não seria delicado. Ela não poderia deixá
lo assim no mais e ralharia por termos ido incomodá-la. - Ela
não ralhará com você se sou eu que lhe peço para ir lá - disse

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Jean com vivacidade. - Certamente não irei - disse Augustin. - Você irá, se eu lhe disser - retrucou Jean com violência. - Mas por enquanto não digo nada. Vá embora,
vou tentar dormir de novo. Boa-noite, Augustin. - Boa-noite, Sr. Jean. Essa troca. final de saudações amistosas suavizou um pouco a amargura que a resistência de
Augustin derramara no coração de Jean. Contudo, ele estava inteiramente desperto e não tinha mais nenhuma vontade de dormir. Seus olhos, agora, se mantinham bem
abertos na obscuridade. Levantou-se, foi até à
viu sua mãe bem
janela, perto, e seu pai e o doutor, pois a luz da lua, como lâmpada bem próxima, iluminava-os sem destacá-los, parecendo mostrá-los e escondê-los ao mesmo
tempo. Pelo movimento tranqüilo das figuras, ele adivinhava a indulgência das palavras que não ouvia. De súbito, o desejo culposo que envergonhara sua solidão fremente,
chamar sua mãe pela janela, lhe pareceu algo muito simples, muito natural. Sua mãe lá estava, viria num instante até ele. Estava decidido, agora, bastante calmo
e, por essa mesma calma, seguro de seu ato. Com um leve temor abriu a janela, chamou como vimos, correu precipitadamente para a cama e enfiou sob as cobertas aquecidas;
a alma ansiosa e o corpo transido. Agora, o prazer que teria de beijar a mãe não era nada para ele. Sabia que ela estava zangada. Aquela noite, sem dúvida, a fim
de não agitá-lo ainda,
faria cara feia, mas, deria fazer as coisas
ela não
e amanhã? E por quê? Por que não po
que lhe davam prazer e que, depois disso,
era como se não as houvesse feito, a suave indulgência de antes?
Mas sua mãe chegou e ao calor de seu beijo todas as aflições
dissolveram-se em doçura, em lágrimas. - Mamãezinha, a testa
está quente, estou com os pés frios, não consigo dormir. - A
mãe aconchegou-lhe os pés entre suas mãos e não muito suave
mente, para não lhe fazer cócegas, esfregou-os nas palmas. Eles
se aqueceram. - Tenho de descer de novo, meu pequeno Jean,
para ficar com o doutor Surlande; boa-noite. - Boa-noite, mãezi
nha, obrigado. - Mas no momento em que a mãe ia fechar a
porta, Jean, sentindo que ela saía sem que ele pudesse agora
fazê-la voltar, irrevogavelmente, não se pôde conter, pulou para
fora da cama e se agarrou por trás à mãe, num movimento tão
vivo que ela só faltou cair e, perdido entre a gravidade do ato
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realizado e a inquietude desesperada que teria sucedido à partida de sua mãe, rompeu em soluços. A mãe, zangada, quis ir embora, recriminá-lo. Os soluços aumentaram.
Ele a deixou e rolou sobre a cama, o peito oprimido, dando gritos, empenhando-se agora em consumir sua falta pela viol ência que o remorso exercia contra si próprio.
Depois, deitou-se novamente, e sua
'mãe, entristecida com o sofrimento do filho, impotente em curálo, diante do retrocesso dessa noite, quando esperava ter conseguido que ele dormisse sem ela, e que
levava de volta ao nervosismo dos anos precedentes, e também contrariada por deixar o marido e o doutor sozinhos, instalou-se com resignação à cabeceira do filho.
Augustin, que ouvira os passos da senhora, os gritos de Jean e que, à inconveniência que vira em ir incomodar a senhora enquanto lá estivesse o doutor, media toda
a importância que ela dava à insÔnia de Jean para deixar desse modo aqueles senhores, Augustin, para quem o senhor Jean se tornara de repente de uma criança que
ele amava e com quem brincava, uma personagem importante, cujo temperamento podia fazer fracassar as mais imperiosas necessidades humanas, Augustin, temendo incomodar
a senhora, desejoso de lhe prestar serviço e sobretudo de ver o que fazia o Sr. Jean, Augustin, depois de ter girado a maçaneta alguns instantes, entreabriu a porta
e deu uns passos na ponta dos pés. Sua fisionomia alegrava-se com uma curiosidade tímida, uma familiaridade respeitosa e uma extrema incerteza. - A senhora não precisa
de nada, o Sr. Jean está bem? - Jean, que enxugara os olhos ao primeiro ruído, glorioso de seu poder sobre a mãe, do qual Augustin parecera duvidar, e que a fazia
permanecer ali, longe do doutor e do patrão, sorria para Augustin com a satisfação do triunfo, adoçada pela benevolência afetuosa que dá o sentimento de uma superioridade
gritante e reconhecida. - Veja você, Augustin - disse a Sra. Santeuil com tristeza -, o Sr. Jean nem mesmo sabe o que tem, o que quer. Ele sofre dos nervos.
Logo que Jean dormiu, a Sra. Santeuil desceu suavemente para não acordá-lo, e voltou para junto do marido e do doutor, o qual se preparava para ir embora.
- Estou passada, doutor, por havê-lo feito assistir de longe a essa pequena exibição. Mas como, minha senhora - disse ele, despedindo-se -, eu é

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que estou desolado por tê-la impedido de permanecer o tempo todo junto dele. Felizmente - acrescentou rindo - os desgostos dessa idade não têm importância.
É permitido crer que Jean se enganava menos que o irônico
doutor tomando-os a sério. Era contra o próprio metal de seu
coração que soavam essa horas infantis e o som produzido então
poderia * tornar-se mais grave quando o coração endurecesse, ra
chasse ou viesse a ser mais profundo, mas permaneceria sendo o
seu som. Na seqüência desta narrativa, não falaremos mais da
inquietação de Jean no momento de adormecer. Sua vida nos
arrastará mais além como o arrasta a si próprio, e, lamentavel
mente, não é possível viver duas vezes a sua infância. Oleitor,
no entanto, não teria razão em acreditar que mesmo em relação
a esse ponto de vista tão particular ele mudou por completo. O
hábito, a única das antigas potências do mundo que é mais forte
que o sofrimento, pôde vencer pouco a pouco, em Jean, a angús
tia cruel de que o viram padecer e da qual sofreu a infância
inteira, todas as noites. Mas na juventude, e mesmo na matu
ridade, cada vez que uma circunstância qualquer vinha suspender
os efeitos anestesiantes do hábito, cada vez que à hora de deitar
fosse consideravelmente tarde, cada vez que uma luz ou um
ruído insólito o impedisse de conciliar o sono inconscientemente,
ele sentia acordar no fundo de si, vaga como uma figura conhe
cida e perdida de vista, uma inquietação velha como ele pró
prio. Se era apenas uma luz ou um ruído incomuns, um retarda
mento da hora de deitar o que o impedia de realizar incons
cientemente o ato de dormir, a inquietude era leve e não demo
rava. Mas todas as vezes que Jean tinha de dormir, num palá
cio ou num hotel, num quarto novo, por mais que sentasse à
cabeceira da nova cama enquanto lia ou sonhava com Alexandre
em Perita, cuja intimidade fazia parecer de pouca importância
sua vida e seus aborrecimentos, e com quem se esforçava por
fazê-los voar como grão de trigo na poeira dos séculos, por mais
que procurasse sair da solidão e do escuro transportando-se em
pensamento para a manhã dos dias seguintes, sua pequena alma
inconsolável de criança que não podia dormir voltava todas as
vezes como uma sombra, impelindo para junto dele seus gritos
agudos e suaves. Sem que ele a pudesse sufocar, e chocando-se

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nas quinas, ela rodava sem parar no quarto novo, desconhecida e obscura como um morcego. Além disso, as palavras que a Sra. Santeuil deixara escapar aquela noite
quando, respondendo a Augustin, lhe dissera com tristeza: "Veja você, Augustin, o Sr. Jean nem mesmo sabe o que tem, o que quer, ele sofre dos nervos", tais palavras
que, como vimos há pouco, deram tanta satisfação a Jean, subtraindo à sua vontade, para atribuí-los a um estado nervoso involuntário, a responsabilidade p.elos gritos
e soluços dos quais tinha tanto remorso, essas palavras causaramlhe mais que uma alegria momentânea, elas exerceram' em sua vida uma influência profunda. Este sentimento
inteiramente novo de sua irresponsabilidade que sua mãe vinha reconhecer de público diante de Augustin, como se reconhece um novo governo, dava-lhe direitos, garantia-lhe
a existência, assegurava-lhe o futuro. As lutas tão cruéis e tão fecundas que Jean, desde a infância, travava consigo a todo instante cessaram no dia em que o nervosismo
que ele se empenhava em combater lhe foi pintado ainda como deplorável porém não mais como culpado, e que em lugar do dever de evitar uma falta, cabia-lhe apenas
a vantagem de tratar de uma doença. É claro que sua vontade, já então, era bem frágil. Somente aos poucos, depois de esforços constantes, é que ela teria podido
controlar os nervos que se mostravam sempre ameaçadores diante dela e contra quem se quebrava, porém mais forte e mais bela, como o mar contra os rochedos.
Enfim, temos uma última razão para, como o próprio Jean, levar a sério esses desgostos da infância: é que, malgrado o sorriso do doutor ou de seu pai, ele
nunca os experimentou mais cruéis. Mais tarde, de fato, quando estava triste, os interesses, as ocupações, as idéias, as lembranças lhe organizavam uma escala pela
qual, se ele tivesse o poder de discerni-la, poderia, de reflexão em reflexão ou de criatura em criatura, evadir-se nesse campo de esperanças e séculos onde o espírito
pode correr como um poldro solto. Mas sua infância se agitou miseravelmente no fundo de um poço de tristeza de onde ninguém a podia ainda ajudar a sair, e que a
própria idéia da causa de seus desgostos não esclarecia ainda. De sua tristeza, por outro lado, ele conheceu apenas as causas secundárias, pois a causa primeira
lhe

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pareceu sempre tão inseparável de si mesmo que não pÔde renun- Os serões de Dieppe
ciar nunca a ela senão renunciando a si próprio. Só entrou
dentro de si mesmo depois de mais ou menos longas ausências
do lado de fora, sem Percebê-la primeiro no limiar, com seu
rosto inquieto de outrora. Então, surgia também a alegria, uma
alegria que partilhava seu coração com a tristeza e que tinha
muitos direitos sobre ele, visto que era bem sua, franca e um
pouco inquieta como o sol que ri sobre o mar agitado ou sobre o Chegou setembro. OSr. e a Sra. Santeuil se prepararam para

regaté por um momento Mas ela não nascera àquela época. deixar Saint-Germain. Jean sentia-se muito triste por ir embora.
Naquele tempo a tristeza reinava sozinha sobre a sua infância Desde as 6h, quando começava a escurecer, ele se virava muitas
sombria. vezes para trás a fim de olhar o céu rubro que barreava a entrada
negra da floresta, e ia com prazer para a sala de jantar toda
iluminada pela luz da lâmpada e invadida pelo odor do caldo
que se servia. Era, porém, preciso ir a Dieppe. Omar e a areia
resplandecentes doíam-lhe nos olhos. Não olhava o pôr-do-sol.
Todavia, muito tempo depois do ocaso, quando já era noite
sobre o mar, que estava da cor azul acinzentada de uma cavala,
ião rijo que as barcas pareciam cortá-lo, semelhando antes, aqui
e ali, um grande banco de areia, ele então notava, à beira da
floresta de Arques, essa barra vermelha que protegia a entrada
da floresta de Saint-Germain e, erguendo o pescocinho contra
o vento fresco que lhe salgava os lábios, sentia-se contente por
entrar em casa e aquecer-se ao fogo que já ia iluminando um
pouco o entardecer.
- Creio que Jean gostará da poesia - disse a Sra. Santeuil a
seu marido com aquela expressã ' o tímida que dava ao começo de
todas as suas frases o temor de que sua ternura humilde e apai
xonada pudesse aborrecê-lo, perturbar seus pensamentos, sua di
gestão e seu repouso. - É mesmo - replicou o Sr. Santeuil
com indiferença e, deixando recair os braços sobre a colete bran
co, pês-se a olhar o peitoril da janela com um aspecto majes
toso que adquirira no curso da vida pública e, principalmente, na
vice-diretoria das Letras, na realização de tantas funções hono
ríficas, e que moderava apenas no trato doméstico com uma
naturalidade familiar. Depois fumou um cigarro. Os cigarros de
seu marido tinham extraído aos processos sobre os quais tantas
vezes haviam deixado cair uma cinza indiscreta e fazer evolar um
ligeiro fumo, às audiências que elas tinham durante muito tempo distraído e aromado, e sobretudo à capacidade excepCional e à situação oficial de seu marido que
os erguia à boca repleta de palavras sempre ouvidas, freqüentemente decisivas, uma importância que lhe parecia de seu dever de. mulher inteligente e devotada respeitar
e, se preciso, defender. Se o Sr. Santeuil não fosse o marido excelente, cheio de admiração Pela inteligência superior e o tato de sua mulher, cheio de reconhecimento
por sua deferência e devotamento apaixonados, e desse a impressão de querer desfrutar fora de casa prazeres inconfessáveis, é provável que a Sra. Santeuil se imolasse
a essa nova premissa da felicidade de seu marido e da grandeza do Estado. A bem dizer, o Sr. Santeuil ainda não fora chamado a dirigi-]o de fato, não tendo sido
ministrO, porém antigo senador da Drôme e duas vezes membro da comissão de orçamento, vice-presidente da comissão das -colzas,* secretário da comissão das misérias
suburbanas, antigo presidente de Câmara na Corte de Apelação, o mais íntimo amigo do presidente da República e sobrinho do ministro da Guerra, oficial da Legião
de Honra há já dez anos, exercia sobre o encaminhamento dos negócios uma influência considerável. Se recebia as honrarias de sua posição, tinha também os desgostos
dela provenientes. Ninguém era mais solicitado pelas pessoas que a bici
navam viajar sozillhas de trem, assistir na neve ao enterro de um marechal de França, obter prbmoções, condecorações, uma tabacaria ou bilhetes na tribuna para a
parada de 14 de Julho. Empilhava na escrivaninha as cartas de pedidos, ao lado da pilha de bilhetes de que podia dispor, a fim de fazer a distribuição final no dia
azado. A liberdade de espírito que ele conservava para contentar dessa maneira cada um no meio de tantas ocupações fazia-o impor-se sobre todos, e maravilhava a
Sra. Santeuil. Muito mais inteligente que o marido, dotada de senso artístico, de uma compreensão geral das coisas, de um tato e de uma sensibilidade que quase deixavam
em falta o marido, a Sra. SanteuiI estava convencida de que todos esses dons não valiam grande coisa, visto que um homem da superioridade de seu marido não

o-

* Coha. ESPécie de couve (Brassica COMO forragem de inverno

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para o gado. (N. do T.)

Catn~ris oleifera), Cultivada

os possuía. Ela gracejava sobre a incompetência dele diante de uma obra de arte ou de um passo difícil da vida, sua falta de tato ou mesmo sua dureza para com um
interlocutor, com uma doçura afetuosa, feito a mulher de um artista a gracejar sobre sua distração e seus enganos. E quanto aos trabalhos, aos pareceres que redigia
com tanta clareza, com um conhecimento profundo do direito aliado a tanta elegância, pensava que ela e todas as naturezas como a sua seriam incapazes de tal, que
isso exigia uma inteligência especial, muito rara e infinitamente superior.

O Sr. Santeuil atirou fora o cigarro e sua mulher lhe fez a mesma acolhida alegre e lisonjeira com que o aguardava quando, acabando de trabalhar, ele fechava
o tinteiro e vinha para junto dela. Ela o beijou e olhou-o com um sorriso em que luziam a honestidade e a despreocupação. Ele abriu a janela. - É o navio de New
Haven que parte. - A -Sra. Santeuil. se inclinou para olhá-lo. Diminuía de tamanho porém ouviam-se ainda, sob seu casco negro, as batidas e impulsos do vigoroso
mar, espumoso como cerveja, e que, todo ao sol, assemelhava-se aos campos onde uma plantação verde alternasse com uma azul, enquanto aqui e ali brilhassem restos
de neve, ao passo que em outros pontos ela seria cinzenta graças à sombra das nuvens em gran-
des trechos. - Se eu não tivesse tanto trabalho - disse o Sr. _Santeuil, cujos olhos já não distinguiam o barco a vapor no hori-
zonte - gostaria muito de ter uma casa à beira-mar e aí passar vários meses. - Mas o mar sem navio lhe pareceu triste; fechou a janela e acendeu outro cigarro. -
Gostas demais da natureza! - exclamou a Sra. Santeuil, que durante esse tempo todo degustara longamente a satisfação de que os olhos do marido estavam cheios. -
Creio que, por esse lado, Jean saiu a ti se gosta de versos.

- Eu me acabaria com isso - disse com violência o Sr.
Sandré, que, inclinando a cabeça sobre um traje ordinário e cuida
do, fumara o seu cachimbo em silêncio num canto, e se pusera
a dar grandes passadas de um lado para o outro da peça com
a lentidão precipitada em que a fraqueza de sua idade tinha de
lutar ainda com a violência de seu temperamento. - Seria muito
engraçado - acrescentou com ironia -, se este senhorzinho, em

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lugar de seguir as pegadas do pai, fizesse parte um dia desse
bando de tratantes. - OSr. Santeuil, um Pouco mais distante,
não PÔde deixar de sorrir. - Temos tempo não vos inquieteis
ural que assumia sem
disse sorrindo COM uma tranqÜilidade nat ' custo o nome de filosofia. - o tempo, o tempo, tempo coisa nenhuma! É o que dizem sempre, o tempo, e durante esse
fa moso tempo os anos passam e ninguém corrige nada rapaz, filho de um grande homem inteligente, rico, e ambicionar - 1
e vemos um
que poderia
q a quer coisa, acabar dissipando a fortuna bem adqui
rida, desonrar o nome universalmente considerado de seu pai e
terminar morrendo de fome ou, coisa pior, numa corja de cele
rados homens de letras, onde os privilegiados, que não são meros
vagabundos, são cestos furados como Lamartine ou velhos sovi
nas como Victor Hugo. Valeria o mesmo dar-lhe uma corda para
se enforcar. - Não se inquiete, papai - disse a Sra. Santeuil,
em quem os atritos múltiplos de um metal mais mole haviam
apagado um pouco a dura imagem das idéias do pai sem no
entanto a tornar irreconhecível. - Além do mais, tivesse eu a
intenção (Deus me livre!) de transformá-lo num poeta, creio que
o não conseguiria. Li para ele freqüentemente Meditações poéti
cas, o Horácio de Corneille e as Contemplações, pois acho que
as boas leituras, mesmo mal entendidas no começo, só podem
verter no espírito um alimento sadio e delicado que lhe será
proveitoso mais tarde. Pois bem! Ele nunca me escutou mais de
cinco minutos. - OSr. Sandré respondeu: - Mostrou ele assim
que é mais ajuizado que você, que faria melhor em lhe ensinar
aritmética, história contemporânea, e em lhe fazer a cama sem
travesseiros, já que, para continuar a fazê-lo deitar sobre traves
seiros, mais valeria dar-lhe veneno. - OSr. Sandré sentou-se
de novo e pareceu deixar de notar o presente de seus olhos,
onde todo o passado olhava de frente o futuro inteiro. Voltou a
fumar. - Onovo ministro dos Negócios Estrangeiros tem em
alta conta os literatos - disse o Sr. Santeuil, que era levado a
só dar importância aos fatos particulares e às pessoas do governo.
- Ele diz que o futuro lhes pertence e que ele daria de bom
grado sua filha em casamento a um escritor. - Ele o diz, mas
não creio Sra. Santeuil em voz baixa,
ouvira as últimas palavras
que o faça - respondeu a e satisfeita ao notar que o pai não
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do marido, pois empenhava-se em evitar toda e qualquer divergência entre eles.

- Sim, eu ainda vi M~ Récamier, foi no teatro, ela estava
com Chateaubriand, o imperador estava no salão, em 1806, faz
sessenta anos - disse o Sr. Sandré. E seus olhos fixavam essas
imagens intactas e moventes que a vida depusera neles antigamente.
E agora que essa vida voltara ao nada há tanto tempo, ela mes
ma com sua mobilidade que ninguém saberia imitar, um gesto
de M- Récamier, a entrada do imperador, passavam ainda dian
te dos olhos do velho. E o olhar que os acompanhava era bru
xuleante e fraco como uma luz que, para chegar até nós, deve
atravessar muita noite e obscuridade. Para falar a verdade, o
Sr. Sandré não precisava se esforçar para recordar essas imagens
de uma vida distante, esses momentos que, tão longe do presente,
foram para ele um presente, quando a felicidade de sua filha ao
lado de quem se sentava, a carreira de seu genro que lhe ficava
defronte, a saúde de seu neto, que acabavam de mandar deitar,
o interesse que o ministro Marie, sentado do outro lado de sua
filha, mostrava por todos, esses únicos filhos com quem trocava
reflexões agora, essa trama de sua vida e de sua fortuna, eram
inteiramente ausentes de sua vida. Naquele tempo, todos repou
savam ainda no futuro desconhecido que é para nossa vida pre
sente como se não existisse, e ao qual, quando acontecer, sacri
ficaremos de bom grado - como o Sr. Sandré à sua filha, a
seu genro, a seu neto sua vida de outrora, seus amigos de então
mortos há tanto tempo - toda essa vida passada, da qual so
mos os únicos a nos lembrar, se bem que ela se nos represente
um pouco como um dos sonhos que podemos recordar, mas que
só teve lugar para nos. Não, para voltar a essas imagens de um
passado distante, o Sr. Sandré não precisava fazer nenhum esfor
ço, não tinha de atravessar o longo espaço de meio século e
voltar a passar por todos os momentos que o haviam conduzido
pouco a pouco desses morrÜentos antigos a essa vida de hoje, tão
diversa, onde não subsistia nada da primeira, a não ser talvez
um certo temperamento violento e bom caráter, já experimen-

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tado Porventura, quando era um rapaz cheio de vigor, Por uma amante Ou por sua mãe, e o tabelião com quem trabalhava. Não, o Sr. Sandré não Precisava atravessar
esses momentos inumeráveis. Ogênio da memória que, mais rápido que a eletricidade, dá volta à Terra, e dá volta ao tempo com a mesma rapidez, havia depositado as
imagens em seus olhos sem que se apercebesse sequer de que um segundo transcorrera. A eletricidade não leva menos tempo para conduzir à nossa orelha reclinada sobre
o receptor de um telefone uma voz contudo beni distante, que a memória, este outro elemento poderoso da natureza que, como a luz ou a eletricidade, num movimento
tão vertiginoso que nos parece um imenso repouso, uma espécie de onipresença, está ao mesmo tempo em toda parte ao redor da Terra, nos quatro cantos do mundo onde
palpitam sem cessar suas asas gigantescas, como um desses anjos imaginados na Idade Média. Porém no momento em que essa voz amada se dirige a nós dentro do telefone,
parece-nos sentir que vencemos essa distância sem termos tido tempo de perceber. Assim, quando acordamos depois de algumas horas de sono no trem, estamos em presença
de lugares novos que nos cercani, se não como o cansaço, quase como a vertigem das distâncias que a máquina a vapor percorreu por nós. Poucos instantes se passaram,
mas temos a sensação de que tudo aquilo que, com rapidez milagrosa, aconteceu, mudou à nossa revelia. Assim os olhos do Sr. Sandré contemplavam instantaneamente
essas imagens distantes, mas a sensação dessa atmosfera tão longa de dias atravessados de imediato estava todavia entre essas coisas e ele. E havia em seu olhar,
como nessas vozes ouvidas ao telefone, algo como a fadiga da sombra transposta. Oque víamos em seus olhos era algo muito longínquo comoas estrelas embora não possamos
enXergá-las longe de'nós. E, com efeito, muitas das coisas que continuavam enviando raios vívidos ao seu pensamento, Mrne. Récamier, seu gesto, o imperador, o movimento
de sua entrada, não existiam mais, feito essas estrelas extintas mas cuja luz nos alcança ainda.
Sem refazerem essa viagem incomensurável e rápida que o pensamento do Sr. Sandré tinha de cumprir, seu genro e Marie calculavam apenas, é claro que entre
si, quantos anos haviam
transcorrido, e que o Sr. Sandré já não era jovem. Mas a Sra. Santeuil envolvia o pai com um olhar enternecido de piedade e admiração. Não pensava tanto nos anos
que ele vivera, como nas fadigas que a doença, por exemplo, causara a seu filho. E não eram elas, de fato, que pouco a pouco, apesar de ele ter resistido bem, o
haviam transformado nessa coisa sempre estranha, venerável e alegre, mas tão frágil que o primeiro choque talvez partisse? Seu pai estava velho! Havia uma hora em
sua vida em que ela não pensava nisso com terror, com ternura, com timidez, pelo medo de ser brutal mesmo em pensamento com esse ser tão sagrado e tão frágil, não
ousando se aproximar pela imaginação a não ser tremendo pela hora terrível, a cujas cercanias a levavam suas angústias sem cessar, como perto do túmulo de alguém
que amamos nós nos abstemos de falar alto, de calcar com muita força o chão, como se deixa cai-r, tremendo, a pá de terra que se deve depositar sobre um caixão surdo
que protege um morto insensível, tanto está presente, nesse instante, a nosso redor, algo tão terno que um nada poderá ferir, algo tão nobre que tudo poderá ofendê-lo.
E sua piedade era acrescida pelo fato de supor que a evocação do passado, fazendo-a lembrar sua
idade, devia dar ao pai as mesmas idéias sobre a própria. E essa idéia da morte, que no caso dela não provocaria tristeza ou angústia, ela, que sabia ser o pai ainda
mais corajoso, mais despreocupado com a própria vida, ela a figurava com bastante piedade pela alma de seu pai, como um sofrimento que gostaria de afastar dele.
Pois a vida se encarrega de suavizar nossos próprios males de modo que se tornem suportáveis. Porém a imaginação nos apresenta os males alheios em toda a sua desolação
íntima, sem nos mostrar nada daquilo que os torna tão insignificantes ou até doces. Assim, é sobre esses que a piedade verte todas as suas lágrimas. As nossas, nem
as vê sequer. E esse olhar de ternura com que a Sra. Santeuil, naquele instante, envolvera furtivamente o pai, esse olhar de piedade era também um olhar de admiração.
Ela o compunha de todas as recordações dele, que eram, assim, outros tantos méritos, como se fala admirativamente da idade avançada de um velho.

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A fisionomia do Sr. Sandré fora bem áspera; ao envelhecer, adoçara-se- As pessoas idosas não se estimam umas às outras, amam seus filhos. Adoram-nos e eles
as abandonarão. Elas sofrem com isso, não por eles mas porque não os vêem fazer o que deveriam, e que a vida de seus filhos é a realização cada vez mais firme -
os hábitos sendo as fundações que, longe de se pulverizar, se consolidam com o tempo - de tudo o que censuravam em si próprias na juventude e que tentavam eliminar.
Elas sofrem e perdoam, e até mesmo admiram o que censuram, pois sua severidade amolece, elas se resignam ao inevitável e, à força de terem sido defeitos de seus
filhos, tais defeitos lhes são caros. Assim um pai ou uma mãe que alimentavam uma grande ambição relativamente a seus filhos e não conservam para eles mais que uma
imensa ternura exibem nos olhos, no gesto, na expressão algo inteiramente destacado de si mesmos, como uma superfície líquida, esse algo de puramente bom que baila
nos olhos como se não tivesse raizes no corpo, e algo de infinito que a gente dá e sente que não poderá dar por muito tempo. Mesmo em sua maneira de receber os convidados,
um pai admira a filha e tem olhares para ela que não reserva a nada mais. E os únicos choques inefáveis, que ouvimos no teatro, vêm de uma atriz velha, quando o
corpo já é frágil e a boca, o olhar e a memória traem a pessoa que lhes perdoa, mas também em quem a alma pode brincar livremente nas ruínas do corpo, como o não
fazia quando uma boca jovem e enérgica, quando dois olhos vivos testemunhavam o prazer de existir. A essa época ouviam-se esses acentos em que a entrega de si mesmo
é absoluta, onde a gente se dá pelo tempo que ainda tem de se dar a uma filha que se adora e que não nos há de recompensar, sem que nada no corpo venha protestar
e dizer: Quero viver. Há qualquer coisa na vida (mais que no teatro) de inefável nos olhos de um pai ou de uma mãe, onde a vida inteira se detém para contemplar
a filha com amor e com tristeza, menos pelo triste retomo a si da idéia de que em breve não a verá mais do que por essa tristeza que forçosamente atinge aquele que
ama um ser unicamente por si e que, sentindo então a essência mesma de sua vida, sente necessariamente a tristeza que lhe é inerente. Assim, o jeito com que a observam,
de terna censura, de muda admiração, de melancó-

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lico amor, de ânsia infinita e irrealizada de felicidade que teriam desejado para ela, é sempre um jeito, umolhar perdido no ar,
por assim dizer, às vezes acompanhado de um desses movimentos
cabeça onde há tremor, velhice e esses meneios indicando o
de . . . de modo que o gesto exprinie a que não se pode exprimir,
dúvida, a censura, o desânimo ou a incerteza, ao passo que os olhos estão cheios de amor.

A Sra. Santeuil fracassou por completo em seus esforços no sentido de fazer o filho gostar das Contemplações de Victor Hugo e do Horácio de Corneille- Seu
insucesso não sossegou de forma alguma o pai, que, a bem dizer, não tinha necessidade de moti vos de inquietação para ser inquieto, sendo naturalmente de tem-
peramento agitado. Mas a Sra. Santeuil. não se sentia feliz corri
isso, pois achava que as letras, indignas de preencherem a sua
vida, são capazes de entreter os ócios. Frívola como estudo, po
rém nobre como prazer, a poesia era-lhe a flor delicada dos mo
mentos perdidos. Da mesma forma, alguns proprietários rurais,
quando um pedaço de suas terras não é próprio para se tornar
um campo, uma horta ou um pomar, transformam-no em jardim.
No entanto, ela obrigara Jean a ouvir versos que falavam das
coisas mais simples e mais grandiosas, o verão, o vento, o pôr
do-sol, o som dos sinos, o mar ... Mas falando desses sinos, tais
versos não diziam nada a Jean, pois, embora já tivesse obscura
mente se deleitado ou sofrido em razão deles, jamais tomara
consciência de sua beleza triste ou feliz.
Assim, tinha tanto prazer em ouvir os versos sobre o sol e
sobre o vento comoo teria um regato, que entretanto não fica
insensível ao sol porém brilha à primeira claridade ou se arrepia
ao primeiro sopro, ou como os bosques que o bom tempo re
verdece e torna espessos tão rapidamente que são numerosos e
graves como uma ode ao sol. Jean estava em alegres entendi
mentos com o sol e o vento impregnado do aroma dos bosques,
pois ambos iam depositar lentamente algumas parcelas de sua
vida eterna e saudável em fonte rica no vazio desses dias, e no
fundo do seu coração, uma alegria que, por momentos, no mais
atraente dos belos dias, fazia-o esquecer sua tristeza. Todos os

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dias, eram Os Primeiros toques longínquos do ângelus no campo Marie Kossichef
que o faziam arrepiar a fim de ir jan
lar. Do mesmo modo, a Caminho com a criada,
s poesias que celebravam a doçura deixa
v.am-no insensível, comofria alegoria de um sentimento Conven
Cional. Porém se, sem se dar conta, ele nunca parava para escu
'á-las, Pois jamais lhes notara a doçura, como duvidar de que
já a experimentasse então de maneira confusa? Dez anos mais Há alguns anos, o Sr. e a Sra. Santeuil haviam dado uma
tarde, tendo sua vida mudado bastante, festa em homenagem a uma Alteza estrangeira que, pouco Cre-
rua do bairro Saint-Germain ele se sentira vagamente triste pelo
pesar indefinido dos um dia em que numa
anos passados de sua insubstituível infân- denciada junto ao bairro Saint-Germain e estando diminuída no
cia e de sua vida ao ar livreq sentiu de repente umsom descui- mundo oficial, encantava-o com sua boa vontade, confundia-o
dado e leve nos Ouvidos. Um out
e um a um os toques suaves e ro lhe seguiu, e depois outro, com seu liberalismo e espantava-o com sua simplicidade. Essa festa
Profundos dos sinos de uma não se rea
capela distante lhe chegaram~ trazidos pela brisa. que, na orgulhosa modéstia de sua condição burguesa, repetia
lizara sem alguma resistência por parte da Sra. Santeuil,
Percebeu, através das lágrimas, entre as espigas de trigo, ao rindo: - É muito chique para nós. - E também do Sr. San--
sol Poente, a vereda que conduzia ao jardim paterno e diante de
si sua grande sombra de menino. Suspenso dré, que resmungava com desconfiança: - Se fosse chique, não
ses anos de infância c ao vÔO ligeiro des- vinha à nossa casa, e tu não o terias visto no dia da presidenta,
que vinham também O1110 Prometeu ao das oceânides invisíveis da mulher do prefeito de Seine. Não é porque o Figaro conta que
a mesma voz doce e de longe murmurar palavras deliciosas com ele vai ao Folies-Bergères, depois de ter, em casa de Durand,
r n 1
c escente, à r grave Jean espreitava cada toque com temor comido um jantar que sem dúvida não pagara. . . - Mas o
não fosse edida que os dobres diminuíam, de que o último Sr. Santeuil estava mais ou menos empenhado com uma graçola
seguido por outro~ mas sentia
tão perto dele e tão longínquo que lhe parecia sentir seu cora- cia tornava-o penoso e, por conseqüência, impossível seria tomar
1090 Palpitar um qOvo~
ÇãO distante de outrora bater melodiosamente no peito. deplorável do ministro dos Negócios Estrangeiros. Sua indolên
nente aqueles que mais amamos, que nos co~
Coração e que sor ra po- uma decisão contrária, e respondeu ao Sr. Sandré enumerando-lhe
der lhe dizer essas Palavras que revelam bruscamente todo o
Pa
nhecem mais a fundo, nos Podem dizer, seria preciso que Jean, o parentesco do príncipe com as famílias reais e ducais cuja
nessas voltas antigas com a criada3 lhes confiasse estouvadamente dando-lhe assim o passado, sorria ainda a seu futuro.
01 segredos grandeza havia decorado, na escola, antigamente, e que, recor
já Profundos de sua alma que eles teriam Durante a festa, da qual a Sra. de Thèbes foi uma das prin-
mente guardado.
Mas no , piedosa- cipais atrações, Sua Alteza, que não perdera um só instante o
instante em que se entramaram esses laços bom humor, teve a fantasia de conduzir o pequeno Jean, que,
entre os Sinos e a vida de Jean
tava mais tarde para desperta , que Osorri de Outros tão fortes morto de medo, permanecia sozinho num canto, para junto da
que os sinos lhe tornavam r Por um sinos bas
Momento, à hora em célebre cartomante a fim de que ela lesse a sua mão. Ela leu
Vê-10 mais tarde o espírito de antigamente Para devo]- perigos, dos quais advertiu confidencialmente a Sra. Santeuil,
di
, quando ele precisasse, ou para retemperar a
alma envelhecida, eram ainda zendo que se ela não conjurasse a má sorte seu filho correria
tão leves que ele não Os sentia e o risco de ir de encontro a um escolho e se quebrar. A Sra.
que, tentando lhe fala, alguém deles, era como se não falasse Santeuil, que só acreditava profundamente na razão, não dava
de coisa alguma.

54 ouvidos a cartomantes. Entretanto, assustou-se com essas palavras
56

como se tivesse recebido a carta de um anarquista que ameaçasse matar-lhe o filho. Apesar da vergonha que sentia, enquanto conservou sobre ele uma autoridade absoluta
não o deixou nunca viajar Por mar. o Sr. Sandré, conforme uma rotina de espírito que lhe era familiar e que o levava a seguir todas as prescriÇões do cristianismo
Por motivos Puramente higiên*
IcOs, explicou à filha que a Sra. de Thèbe.s, que passava Por muito inteligente e bondosa, tendo ouvido dizer que Jean era de saúde delicada, o que Poderia
prejudicar o seu futuro, quisera, por meio desse sím_ bolo sombrio, advertir os pais no
dele. sentido de velar
Da mesma forma, Jean Primeiro não foi ao colégio 1 quando estava em Paris, as Pernas nuas para se deixar bronzear, ficava o dia inteiro nos Charnps-Elysées
sem que Oconvite dos meninos, o assanhamento das meninas ou as ameaças da criada fizessem com que rompesse o silêncio desesperado Ou o decidissem a deixar o banco
onde se refugiava, a cabeça escondida contra o encosto. Depois tudo mudou. Conhecera uma menina russa de longos cabelos negros9 olhos claros e zombeteiros, faces
rosadas, e que esplendia de saúde, de vida e de alegria, tudo o que faltava a Jean. Bem depressa, desde manhã cedo, elo só pensava no momento em que a veria sorrir
e brincar. E o tempo todo em que ela estava presente, permanecia a seu lado, brincando nas barras, de esconde-esconde, no escorrega. Quando ela chegava aos Champs-Elysées,
cerca de três horas, com a governanta e a irmã,
ele sentia tal baque no peito que só faltava cair, e ficava por uns instantes branco feito linho, custando a voltar ao normal. Avaliava a satisfação em vê-la pela
enormidade de seu desejo de a ver e de seu desgosto por vê-la partir, pois a sua mesma presença ele a desfrutava mal. Muito perturbado por vê-la, não ;k via tão
bem como de manhã ou à noite antes de dormir. Cada vez que ela lhe falava como aos outros, pulava de Prazer pelas aléia~ na embriaguez de se sentir amado. Notava,
porém, com tristeza, que sua amabilidade para com ele não era em nada semelhante a seu amor a ela, e que ela dizia indiferente: "Se chover amanhã, não virei. Até
'epo's-de-amanhã." Felizmente, ainda não chovera. Mas a chuva veio , um dia. Foi perto de uma hora da tarde, no momento em que iam partir, e Jean estava
peja saúde
convencido de que não a veria. Sem pensar em fechar a janela ou pôr um capote nos ombros, ficou muito tempo chorando, o rosto crispado em direção ao céu úmido de
chuva, cujas gotas caindo no peitoril respingavam nele e pareciam chamar outras, pois elas mesmas não faziam mais que seguir as mais altas que gotejavam da parede
escura do céu. Deixando-se possuir por completo pelo desgosto e pelo frio, e tremendo, Jean se apercebeu, como de uma pessoa que não teria notado entrar e que se
tivesse sentado tristemente a seu lado, da tristeza desse céu encoberto por nuvens negras, cujas estrias claras se haviam lentamente fechado, e onde parecia não
dever nunca mais luzir um raio de sol, como, no coração de Jean, uma esperança, dessa chuva enfim que caía em gotas tão comprimidas como suas lágrimas, como se não
devessem jamais acabar. Viram vocês que não era fácil, para ele, subtrair-se à dor. Não podia, como pôde mais tarde quando estava triste, pegar um livro ou visitar
um amigo e sacrificar o triste dia de hoje à esperança de um alegre amanhã. Mas mesmo então, e até seus últimos dias, não pôde jamais, sem se sentir privado de um
prazer, ver a chuva que, no entanto, não o impedia de ir ver sua amiguinha nos ChampsElysées. Espantava-se então de que uma sensação de tristeza se viesse misturar
ao desgosto do céu, como em menino se espantara de que o céu paresse preocupado e depois desconsolado como ele.

Nesse mesmo ano, quando, como no ano anterior, sua mãe não conseguiu fazê-lo gostar X0 Lago de Lamartine, releu, até saber de cor, o pequeno poema de Verlaine:

Chora no meu coração
Como chove na cidade

que encontrara sobre uma mesa. Mais tarde, colocou abaixo d'O Lago esse poemeto que, aos treze anos, lhe parecera a mais bela poesia do mundo. Porém a inteligência
e a sensibilidade de uma criança se desenvolvem de modo irregular, ao acaso de um raio de sol e mais ainda de uma tempestade. Assim, os pais, mesmo quando são muito
inteligentes como a Sra. Santeuil, julgando-a com sua inteligência concluída e fixa, arriscam-se a ter

57
descontentamentos inevitáveis como o d Verlaine a Lamartine.

e ver seu filho preferir

Quando SOMOS crianças, cada manhã se parece a essas caixas de papelão ainda fechadas que ml manhã do dia de Ano Novo nos esperam na sala onde estão reunidas
sob a lâmpada, que, a despeito do dia feio lá fora, parece iluminar com uma luz especial e *feliz esses desconhecidos misteriosos que enchem o aposento, uns sobre
a mesa onde se acotovelam, os maiores no chão, num canto, onde a princípio ninguém os vê~ deixando entrever apenas, através dos grossos papelões da embalagem que
não os dissimularão por muito tempo, a forma singular e as dimensões imponentes. Por mais criança que tenhamos permanecido hoje em dia, um brinquedo pode nos agradar,
a gente sabe que é um objeto, e nunca, enquanto estiver ainda embrulhado, nosso coração baterá apressadamente perguntando quem será este ser novo que entra em nossa
vida. E, do mesmo modo, qualquer dificuldade que a gente tenha em acreditar que o Domingo da Páscoa o dia de Ano Novo e o de Natal sejam dias como quaisquer, outros,
os dias nos aparecem, por mais que se sucedam uns aos outros, comoas pequenas divisões que marcam os minutos nos relógios, como esses cadernos de notas em que se
inscreverão tais ou quais acontecimentos e quase sempre acontecimento nenhum, mas que, à parte o que registram, não diferem em nada dos outros. Mas para a criança,
por mais que lhe digam que amanhã é um dia, como hoje foi um dia, como ontem era um dia ' ela espera cada amanhã como algo inteiramente novo, absolutamente diverso
de hoje ou de ontem, como um mundo misterioso onde encontrará sem dúvida a felicidade. E não fica desconsolada por não ter encontrado nada hoje. Já não está lá o
amanhã, que, enquanto ela dorme, repousa ainda todo embrulhado como o grande presente misterioso onde um cartão se dissimula por baixo do cordel, sob a lâmpada,
na manhã do dia de Ano Novo, espera-a e que ela vai poder desfazê-lo primeiro ver, tocar, levar, pulando de alegria. Amanhã parecia~lhe um mun-' do que se estendesse
para sempre. Porém amanhã tornou-se hoje. É este novo amanhã que é um novo mundo e ela brinca com os

58

mundos, quebra-os, espera com maior impaciência que haja outros, tem dificuldade de dormir todas as noites sonhando com o amanhã, com o que poderá ser, como, na
véspera do Ano Novo, com aquilo que sua tia lhe terá dado, pois tem uma infinidade de amanhãs diante de si e a cada dia que quebra, enquanto não tem tempo de se
aborrecer, por estar cansada e se preparando para ir dormir, é um dia novo que lhe entregam para recomeçar, para começar acha ela.
Quando estamos apaixonados, encontramos novamente este belo dom da infância de que todo dia venha a ser para nós o objeto de uma expectativa febril, o alvo
plenamente desconhecido de todas as nossas esperanças. Cada encontro esperado, cada carta recebida estão sem cessar diante de nossos olhos, ao passo que achamos
tão longas as horas inúteis que se desenrolam uma após a outra, sem nos livrar de uma só antes desse momento, o único que interessa. E isso acontecerá somente amanhã.
Deus, quanto tempo vai demorar até lá! Como atiraríamos de bom grado no nada todo esse tempo para que o amanhã venha logo! E se isso pudesse acontecer logo? Por
que não? Talvez não esteja longe. Saímos, porém em vão. Não, é preciso passar essas vinte horas sem
ela, sem nada dela. Só amanhã. Hoje é um mundo terminado do qual não se pode tirar mais nada, de bom, nem de interessante, não adianta mais sonhar com ele. Ah, caro
amanhã, como te sinto perto de mim! Como desprezo o hoje, com que desdém melancólico, com que voluptuoso sentimento de minha superionídade, eu, para quem o amanhã,
para quem até minha espera, meu pensamento sobre esse momento são algo que os outros não podem compreender. Adivinho todos esses momentos que o hoje me traz ainda
sem piedade, um após o outro. Que a noite venha sem tardança cercar para sempre com suas muralhas gigantescas, dar uma configuração eterna e fugaz ao dia de hoje,
filtrar lentamente sobre ele o seu negro dilúvio.

- Jean, meu pequeno Jean, em que estás pensando? - perguntou a Sra. Santeuil. OSr. Santeuil ralhou com Jean, que deixara cair o copo no chão. "Que homem
grosseiro", pensa Jean,

59
e tem vontade de chorar e sorrir ao mesmo tempo, de tanto que aquilo lhe parece Pouca coisa. Acha que está sofrendo Por Marie Kossichef e isso lhe parece suave.
PoUco me importa que esta noite seja mais ou menos triste. Amanhã serei feliz. Todas as noites, ao adormecer, pensa: "Até amanhã". Todas as manhãs ao acordar diz
consigo: "Vou vê-la hoje." Uma noite, acordando à uma da madrugada, adormeceu de novo sorrindo, ao pensar: "Já é hoje." Despertou certa manhã, tudo coberto de neve.
Uma força inaudita que transformara a face da terra passara seu poderoso nível que igualara as pistas às calçadas, apagara os caminhps, extinguira os rumores sobre
todas as suas esperanças. E aquilo caía do céu sem parar, sem que ele o pudesse reter, impedir a queda dos flocos, fazê-los voltar ao céu. E a criada, ao entrar,
disse: - Não há jeito d i
Elysées.

Lá pelo eio-dia

... r tão cedo aos Champs-
a neve cessou. Um alvoroço enorme fazia bater ' Ocoração de Jean, pois suas esperanças, misturadas a seus temores, invadiram-lhe de novo o coração e o agitavam
em todos os sentidos. Uma dizia: "Isso vai recomeçar." A outra: "Não, já acabou." A Sra. Santeuil havia dito: "Não haverá ninguém nos Champs-Elysées." A criada:
"Não se sabe." A Sra. Santeuil disse a Jean: - Em todo caso, se é por isso que ficas olhando o céu, podes estar certo de que a menina Kossichef não irá. Ninguém
sai de casa com seus belos vestidos num tempo desses. Isso foi dito sorrindo, como se a esse fato tão Pouco importante Jean atribuísse importância extrema, como
se adivinhassem o que trazia escondido, suas angústias, e delas sorrissem. Teve vontade de bater na mãe e dizer: "Não, eu sei que ela não irá", e procurava alguma
coisa má para responder a fim de vomitar o mal que lhe fizera essa ironia e sobretudo a notícia desastrosa pela qual não desejava demonstrar aflição. Foi com a criada
aos Champs-Elysées. De fato, não havia quase ninguém. o sol se ergueu, o tempo estava ótimo, e sobre a espessura coberta de neve, o sol estendeu uma luz suave. Alguns
amiguinhos, seguidos

da criada, chegaram um após o outro. Começaram a patinar para não sentir frio. As criadas decidiram que iriam logo embora pois a noite desceria rápido. "A noite."
Jean empalideceu a essas palavras. Então o dia ia acabar sem que a visse. Olhando sempre

60

para o lado de onde vinham as Kossichef, pôs-se a brincar com os outros e corria com todas as forças para se aturdir. Mas, uma vez ou outra, enxugava ao mesmo tempo
o suor e as lágrimas, sem saber bem se eram ou não lágrimas causadas pelo frio.
Não se moveu, mas seu rosto mudou. Eis as Kossichef que
chegam, em casacos de pele, e sob a touca de pele de onde
caem os cabelos negros, Marie sorridente, com suas faces. rosa
das e olhos azuis, aperta a mão de todos, Tindo. A governanta
não quer que elas brinquem, mas depois deixa, e todos fazem
bolas de neve e deslizam. Agora Jean brinca com a neve, não se
sente mais oprimido, fere com pés vencedores o jardim devastado,
a própria neve morta, bem como a lã, onde o sol se diverte, ar
rançada ao inverno. E está contente de ter frio, de ter calor, pega
a neve, feliz, e leva-a a Marie. Rouba no jogo para que ela ganhe,
atira neve à nuca de um de quem ela não gosta, para lhe dar pra
zer. Se ela o olha, não sabe mais o que quer. Quer estar sempre
junto dela, no seu grupo, arranja um pretexto para se aproximar.
No entanto, se ficam sós lado a lado por um momento, não sabe
mais o que dizer. Todo o tempo que está ali é preciso ter uma
outra coisa para dizer, um jogo para continuar, penetrado por
seu amor e que lhe parece delicioso. Mas se não há coisa alguma
entre eles que o impeça de desfrutar enfim esse amor, ele adia para
amanhã quando terá mais tempo para lhe falar, pensa no que é
preciso lhe dizer, não está mais com ela. Seu amor é como uma
coisa que não se pode pegar, que só se pode ter dentro de outra
coisa, e que sem isso se derreterá como a neve. Ela não presta
muita atenção a ele, mas como a neve lhe agrada, como faz
bolas, joga-as, ri, se ela lhe atira uma e ri, parece-lhe que o faz
porque o ama. E sabe que os outros sabem que ela o ama. Assim,
cada vez que o veem se aproximar dela, um deles ri, outro o olha,
a irmã diz amavelmente: - Ei, vou botar você junto com Ma
rie -, quando Marie, escolhendo-o para a sua equipe, põe-lhe
a mão no ombro e diante de todos leva-o consigo, e eles vão
juntos apanhar a neve, ou o sol lhes bate nos olhos ao mesmo
tempo, e ela pede para mudar de lado, e, para lhe agradar, ele
sublinha seu pedido com uma força, uma violência que ela não
lhe agradece, aí então ele se anima do sentimento de seu amor,
desse amor em que, como uma espécie de reflexo, não lhe é

61
permitido tocar, mas que a zombaria de uns, a cumplicidade da irmã dela, cada "Toma cuidado", "Cuidado aí", "Atira", que ele tem de lhe gritar, cada corrida, cada
parada, cada bola de neve, cada raio de sol parecem lhe trazer sem interrupção, para seu encantamento.

O Sr. e a Sra. Santeuil inquietavam-se seriamente com a sobreexcitação constante de Jean. Ele jamais estivera na casa da Srta. Kossichef, cujos pais, de
fortuna infinitamente maior que os Santeuil, levavam uma existência onde ele nunca havia penetrado. Como a ausência de Marie depois dos Champs-Elysées lhe parecia
demasiado intolerável, Jean levou a criada até o palácio Kossichef para que Marie fosse o objeto de seus passeios, assim como de seus pensamentos. Parou diante do
palácio, sossegou ao tocar com os olhos, com as mãos, a porta dela, que ela empurrava e deixava bater várias vezes por dia, olhava sua janela e a imaginava por detrás,
e sentindo a distância que dela o separava reduzir-se a alguns passos que lhe bastariam dar para a ver, voltou não mais feliz, porém mais tranqüilo. Assim é que
tudo que pertencesse de algum modo à vida da Srta. Kossichef passou a ter lugar também no seu coração. Não podia pensar sem emo-
ção no pai de Marie, que a via ao almoço e às vezes no jantar, que podia tê-la consigo o tempo todo se quisesse, cuidar dela mesmo durante as férias - essas férias
terríveis que os separariam num dia que estava ao fim se não de sua felicidade pelo menos de sua vida, e nas quais não podia pensar muito tempo, como os homens não
podem pensar na morte.
Diante do grande relvado dos Champs-Elysées, entre os cavalinhos de carrossel e os Embaixadores, um dia em que iam brincar nas barras, a Srta. Nelly Kossichef,
a irmã mais nova de Marie, marcava para cada um o grupo a que ia pertencer. Puxava cada um pela manga, dizendo: - Ei, você vem para o
meu grupo; você, para o grupo de Marie. - Chegando a vez de Jean, que, temendo sempre entristecer a pessoa que lhe era indiferente, deixando clara sua preferência
por outras, vinha em sua direção, ela disse, rindo: - Oh, não, você pertence ao grupo

62

de Marie. - Jean ouviu muito tempo essas deliciosas palavras em suas horas de dúvida. Muitas vezes, à noite, quando ele se convencia de que ela lhe dera, durante
o dia, provas de sua indiferença, lembrava-se destas palavras: "Você pertence ao grupo de Marie", e do sorriso radioso, zombeteiro e doce com que Marie as ouvira.
Se não o amasse um pouquinho, como é que ela e a irmã teriam reconhecido seu amor diante de todos com indulgência brincalhona? Porém ele conheceu uma alegria maior.
Um dia, entrara em casa doente e tinha de guardar o leito por algum tempo. Um de seus companheiros veio vê-lo e lhe contou que a Srta. Kossichef, bastante gripada,
fora proibida pelo médico de sair durante os meses de janeiro e fevereiro por causa do
inverno rigoroso. Portanto, mesmo depois de curado, não poderia vê-la por mais um mês inteiro e, sem contar com essa separação, não pudera sequer lhe dar adeus,
e dizer essas palavras

que há tanto tempo adiava para os dias seguintes. Passou então dois dias bem sombrios de cama, de onde não se levantava, sem que lhe fosse permitido beber, ler,
repetindo sem cessar que a não veria mais, já que não indo à casa um do outro só podiam ver-se nos Champs-Elysées, e que ela lá não iria dentro de dois
meses. A todo instante, no deserto do seu desgosto, imaginava-a
fazendo-o avistar um delicioso oásis, querendo vê-lo, insistindo
para que seu pai o procurasse, mil causas de uma felicidade im
possível que seu espírito tentava logo situar no mundo real, ou
seja, a necessidade de separação e a verdade da indiferença que
ele tomava por miragem. Era de manhã, e o médico acabava de
proibir que se levantasse ainda nesse dia. Isso o contrariou ape
nas, de tal modo na imensidão de seu desgosto tudo que caía
desaparecia depressa e tão profundamente que nada voltava mais
à superfície. Cerca das dez horas alguém entrou no quarto. Ele não
se virou da parede, onde escondia o rosto cheio de lágrimas. -
É uma carta para o senhor Jean - disse Augustin, sorrindo da
importância desse acontecimento, raro na vida desse rapazinho
de treze anos, a quem ninguém nunca escrevia. - Dê-ma - disse
Jean sem se voltar, e pôs a carta na mesinha ao lado da cama.
Quando Augustin saiu, abriu-a distraído, pois achava que nada
mais teria o poder de despertar sua curiosidade. Leu: "Meu ca
ro Jean, como faz muito frio e estou gripada, fico proibida por

63
dois meses de voltar aos Champs-Elysées. Mamãe deixa que te convide para vires lanchar comigo às cinco horas quando quiseres. Não poderemos brincar com coisas tão
divertidas como fora de casa, mas ficaria bem contente de te rever um pouco. Nelly e eu te trataremos com todo o carinho. Marie Kossichef."
O céu, hermeticamente fechado sobre a cabeça de Jean, se reabria. A indiferença, que sua sagacidade reconhecera na Srta. Kossichef, o absurdo de um milagre
reconhecido pela reflexão, milagre que, permitindo~lhe de repente ir à casa dela, mudaria subitamente ao sabor de seus desejos a necessidade da vida, essa necessidade
imensa que não podia empurrar para longe de si, e permanecia como um navio naufragado na praia, necessidade que, cortando-lhe o futuro, faria do amanhã a triste
continuação do hoje - tudo isso estava errado, era mentira, argueiro que bastava ele soprar; e o milagre que só se teria realizado em sorffio, esse é que era a realidade,
a deliciosa, inesperada e triunfante realidade. Jean mandou chamar a mãe. Com pressa para entrar, ela perguntou da porta o que desejava, porém ele não tinha forças
para responder. Esquecendo que estava doente, correu para ela sacudindo a carta sem poder dizer uma palavra. Depois, cansado com essa alegria nova que caíra sobre
ele e não o largava a não ser para voltar a dominá-lo de novo, deixou cair a carta das mãos inertes e lançou-se chorando nos braços da mãe. Estava quase sem sentidos.
Seu pequeno corpo, que há tanto tempo suportava golpes pesados até para um corpo de homem, não pudera sem dor sentir-se livre tão de repente.
xxx
IV. Separação

Chegou a primavera e o Sr. e a Sra. Santeuil, que há vários meses se inquietavam com a sobreexcitação constante de Jean, determinaram enfim a separação que
a sabedoria vivaz da Sra. Santeuil, estimulada ardentemente pelo Sr. Sandré, reclamava há tempos para devolver a saúde e a calma a seu filho, mas que o Sr. Santeuil,
em cujo coração mole o amor ao filho vivia em paz com o amor ao seu sossego, retardara por muito tempo para "evitar lhe causar desgosto". Um dia, a Sra. Santeuil,
que até então, quando o filho lhe desobedecia ou a deixava zangada de um jeito ou outro, jamais dava a seu descontentamento mais que a fisionomia um tanto insensível
da severidade, falou~lhe com doçura da tristeza que lhe causava a violência do amor dele, que não poderia levar a nada, pois era muito jovem para desposar a Srta.
Kossichef, e que isto minava a sua saúde. Ainda há poucos meses, brincava-,se a respeito do amor de Jean. "Vais ver o que pensas disto tudo daqui a dez anos" - diziam,
como se o sentimento em que Jean vivia, -de que seu amor seria de pouca duração, não exasperasse como um vento furioso, até fazer subir suas chamas ao céu, a violência
devastada. Agora, a Sra. Santeuil, seja por política, seja por haver dolorosamente experimentado o vigor do filho, evitou falar do seu-amor levianamente, e, como
um sacrifício de verdade, pediu-lhe que renunciasse a vê-la olhando-o com ar triste, com uma doçura séria. Mas Jean, habitualmente tão terno para com ela, e que
a mãe com um mínimo de te~mura fazia tão facilmente prorromper em lágrimas, olhou-a com olhos secos, ou antes, não era para ela que olhava. Olhava em frente, positivo,
pungente demais para não olhar com seriedade medonha o perigo de vida ou morte que se lhe aproximava. Antes mesmo de lutar por si, não podia escapar a esse diálogo
frente a f~ente com uma realidade mais

65
severa, maior que nós, este mesmo fato invisível e inegável encarado fixamente pelo couraceiro de Géricault,* que, ferido de morte, segura ainda seu cavalo, e, antes
de tentar se levantar ou cair de vez, olha de frente o terrível desconhecido que atormenta seu corpo com todas as torturas da dor suprema.
- Mamãezinha, não é culpa minha, não exija isso de mim, mas eu não posso fazer o que me pede. Não posso explicar. Não. preciso que me expliques, sei o que
te peço. Não és o primeiro rapaz que ama e nós sabemos o que isto significa. Jean disse consigo: "Corno Deus é grande por ter feito os homens de tal forma que podem
todos amar e compreender também aqueles que amam, saber do que se trata. Como Deus é grande, como Deus é grande!", repetia maquinalmente e as lágrimas lhe vieram
aos olhos enquanto sua mãe continuava: Mas é justamente por isso, quando se ama verdadeiramente os pais e não se deseja causar-lhes dor, faz-se qualquer sacrifício
por eles. Amar os pais não é só ter prazer em beijá-los ou chorar quando nos separamos deles. Isso não é amá-los, fazemo-lo involuntariamente porque somos sensíveis
e nervosos. Não tem relação nenhuma com a bondade. - Nenhuma relação? perguntou Jean. - Nenhuma - respondeu a Sra. Santeuil. Nero podia ter sido nervoso. - Essa
idéia impressionou profundamente Jean, que, vendo apenas uma coisa muito vaga quando pensava em si mesmo, não tinha idéia definida sobre seu valor moral, e conforme
este ou aquele defeito seu estivesse assinalado num livro e o encontrasse em um criminoso, ou conforme tal ou qual de suas qualidades aí estivesse exaltada, ele
se achava, sucessivamente, Nero e São Vicente de Paulo.
- Amar os pais é dominar-se, violentar sua vontade para lhes ser agradável. Nós deixaríamos que a visses de vez em quando se, nos momentos em que não estás
com ela, procurasses não pensar nela. Prometes? - disse a mãe. -,Prometer... Não posso prometer o que não consigo - disse Jean. - Consegue-se tudo o que se quer
- retrucou a mãe. - Pode-se deixar de

* Alusão ao quadro Le Cuirassier blessé CO Couraceiro ferido") do pintor francês Théodore Géricault (1791.1824). (N. do T.)

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pensar? - disse Jean sorrindo com ternura. - Consegue-se tudo o que depende de nossa vontade - respondeu a Sra. Santeuil. - Prometo tentar - concedeu Jean. - Então
dá-me um beijo - disse a mãe, deixando que ele visse, pela primeira vez, as suas lágrimas.
A tristeza da Sra. Santeuil comoveu menos Jean, agora que a contemplava, do que após ter sido maldoso o imaginava. Sentiu vergonha dessa secura: só tinha
de bom uma sensibilidade involuntária. Se Nero também a tivera, ele seria decididamente um Nero. - Sabes bem que não temos prazer em te contrariar, mas, sem contar
que se continuas assim acabas por descontentar o Sr. Kossichef e que ages mal, arruínas a tua saúde. E temos o dever, enquanto fores ainda pequeno para nos obedeceres,
de te impedir de fazer coisas que te fazem mal. Não fiques com esse ar zangado. Vê como te falo com amabilidade. - Porém disse Jean com calor, aproveitando as hesitações
que percebia na voz da mãe para tentar convencê-la - se eu não a vir, pensarei nela sem parar e isso me fará muito mais mal. Peço-lhe. Não percebe como isso me faz
mal. Deixe-me vê-la, serei feliz, não ficarei mais nervoso, passarei bem de saúde, já não pensitrei muito nisso. - Era de boa fé que Jean propusera o vê-la com freqüência
como remédio a não pensar muito nisso. Mas ele não a via bastante para não desejar vê-la mais e mais e para não pensar sem fim no momento de vê-la. A sobreexcitação
aumentou. Uma noite, a Sra. Santeuil, pela primeira vez, não o censurou e por dois dias não tocou no assunto. Jean experimentava a indisposição que provocam as bruscas
calmarias, quando a tempestade parece tomar fôlego para se armar.

A Sra. Kossichef deixava sempre à governanta, por não ter tempo de se ocupar dessas coisas, o encargo de levar a filha aos Champs-Elysées. Assim, o Sr. e
a Sra. Santeuil jamais haviam visto o Sr. e a Sra. Kossichef, que provavelmente nunca tinham ouvido falar deles. Mas a imensa fortuna e a vida de prazeres do Sr.
e da Sra. Kossichef, a reputação de insolência do

67
marido e de leviandade da mulher, provocavam no coração honesto dos pais de Jean uma desconfiança tão profunda quanto o desdém que aqueles lhes votariam.
Terça-feira de manhã, Jean estava ocupado, havia alguns minutos, em pensar em sua mãe. Pensara na noite em que ela morreria, e que então não lhe restaria
outra coisa senão morrer, e agora acariciando em pensamento seu rosto tão suave, que às vezes tivera a crueldade de entristecer, não pôde suportar a idéia de ficar
mais tempo sem a ver e desceu pela escada à espera de que ela entrasse para almoçar. Escondeu-se no vestibulo queficava sob a escada e esperou. Sua mãe apareceu
logo no pátio, entrou na portaria. Teve medo de que ralhassem com ele, subiu a escada e gritou do alto: - Bom-dia, mãezinha. - Ia enfim abraçar a mãe. - Meu pequeno
Jean, acabo de ver o Sr. Jacomier, a quem venho pedindo há muito tempo que te dê algumas aulas. Está te esperando na casa dele às duas. - As duas, mas eu não posso,
vou aos Champs-Elysées - respondeu Jean, que compreendera tudo. - Muito bem, não irás aos Champs-Elysées. É tempo de te pores a trabalhar. - Não ir aos Champs-Elysées
- gritou Jean com fúria - não ir aos Champs-Elysées? Sim, irei, não quero saber desse tal Sr. Jacomier, antes o mataria se o encontrasse no meu caminho, mataria
esse macaco horroroso se o visse, está ouvindo? - A Sra. Santeuil fechou de novo a porta da casa sobre si e sobre Jean, que continuava a gritar. OSr. Sandré quis
se aproximar, mas Jean, que,sabia do papel de seu avô na decisão tomada por seus pais, afastou-o violentamente dizendo: - Eu te detesto. - Se continuas vou chamar
teu pai. - Então vai, pouco me importa - berrou Jean transtornado com o barulho violento da própria voz -, vou lhe dizer que criatura ruim é sua mulher, que só quer
fazer mal a seu filho - e pegando a garrafa de água posta na mesa para o almoço, jogou-a no chão, onde se espatifou. - André, André, vem, Jean ficou louco - gritou
a Sra. Santeuil. OSr. Santeuil, que era suave enquanto podia garantir seu repouso, mas que, ao ser provocado, virava uma fera, chegou. - Paizinho - disse Jean pondo-se
de joelhos -, querem me fazer mal,.mamãe me persegue, defenda-me. - Não, tua mãe tem razão - respondeu o Sr. Santeuil, sem saber ainda o que ia dizer. - És insupor-

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tável com essa menina. Para início de conversa, não a verás
mais. - Não a verei mais? - gritou Jean - não a verei mais?
Vocês todos são canalhas, não a verei mais, não a verei mais?
Veremos. - E Jean, no momento em que o pai o empurrava aos
tapas para o quarto escuro, teve uma violenta crise de nervos.

Naquele dia, Jean foi tomar sua primeira lição com o Sr.
Jacomier. De sua casa, na rua da Arcada, até Neuilly, onde mo
rava o Sr. Jacomier, chorou todo o trajeto sem se incomodar
com os transeuntes, cujo olhar, até então, fazia com que cal
casse de medo seus maiores desgostos. Quando viu num relógio
a hora em que a Srta. Kossichef chegava aos Champs-Elysées,
quando pensou que ainda poderia tê-la encontrado, estacou,
olhou demoradamente a governanta, pareceu hesitar por um mo
mento e ficou tão pálido que ela teve de ampará-lo. Deu-lhe
a mão, pondo-se então a caminho, trêmulo. Nessa noite, quando
lhe disseram que a sopa estava na mesa, deixou o quarto sem
demora para ir jantar. Normalmente quando estava zangado com
o pai e a mãe, era-lhe insuportável o momento das refeições em
que se encontrava face a face com eles. Mas pessa noite, embora
as palavras que proferira pela manhã tivessem ultrapassado em
violência tudo o que jamais pudera dizer nas crises mais graves,
não se achava embaraçado em revê-los, absorvido que estava
em outros pensamentos. Entrando na sala de jantar profusa
mente iluminada, disse: - Boa-noite, paizinho, boa-noite, mãe
zinha - sem, entretanto, olhá-los, pois sabia que ninguém res
ponderia. Para seu grande espanto, o avô, que era bem mais
severo com ele do que a mãe e o pai, foi o único que lhe res
pondeu boa-noite. Nos olhos do avô, durante todo o jantar, pen
sou notar outra coisa além da leve umidade com que a velhice
velava seu olhar gasto. OSr. Sandré não comeu, dizendo que
merendara tarde e não tinha fome. Toda vez que Jean erguia
a cabeça dava com o olhar do avô fixo nele e se desviando. De
pois do jantar, o Sr. e a Sra. Santeuil foram para o gabinete do
Sr. Santeuil mas o Sr. Sandré permaneceu ainda alguns instantes
à mesa e, olhando com o olhar amortecido, que mesmo fixo para

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diante parecia sempre olhar mais ao longe, ou talvez dentro de si mesmo, seu pequenino Jean com quem era sempre tão rude, cujas fantasias mais inocentes a todo instante
contrariava, a quem mandava ir deitar quando se esqueciam da hora, que há um mês forçara sua filha e seu genro a separar Jean da Srta. Kossichef, ele que nunca beijara
Jean, nem no dia 1.0 de janeiro, chamou-o docemente, sentou-o sobre os joelhos e o beijou com seus velhos lábios endurecidos que só se moviam para a censura e a
repreensão, e que estavam manchados de todas as'lágrimas silenciosas que haviam colhido desde a manhã. Através da porta, ouvia-se uma ária do D. João que a Sra.
Santeuil tocava para o marido. - Meu avozinho, meu avozinho - disse Jean, pendurando-lhe ao pescoço magro e envelhecido o corpinho sacudido de soluços.
Quando vieram as férias em agosto, Jean, desde 'essa terçafeira 20 de março, não deixara um só dia de ir das duas às quatro à aula com o Sr. Jacomier. Apesar
dessa regularidade, a Sra. Santeuil percebeu pelos deveres -de férias que seu filho sabia pouco sobre Atenas, Esparta e Tebas, em cuja história o Sr. Jacomier se
empenhara em aprofundá4o. Porém, muito contente de ver o filho feliz, não lhe fez perguntas. Ele acabara, por aprender que, mal organizados que somos para desfrutar
a alegria, somos só um pouquinho melhores para suportari a dor, e que, se nossas alegrias são menos profundas do que imaginamos, nossas tristezas também são menos
duradouras. A Sra. Santeuil achava que seria bastante um ano.

Agora, Jean podia ler A TIiIteza de Olímpio e vários outros
poemas. Os poetas que lhe haviam parecido os mais estranhos,
mais distantes, ficavam a seu lado enquanto os lia, como um
homem mais hábil, ajudando-o, por assim dizer, a recitar al. . go
que há muito lhe causava desgosto, encontrando as palavras para
ele, compreendendo seu obscuro e frágil pensamento melhor do
que ele próprio, retransmitindo-o, cheio de luz e força, desenvol
vendo seus pesares em palavras claras de uma tristeza e de uma
doçura até então inexprimíveis.

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No entanto, o Sr. e a Sra. Santeuil, e o próprio Jean, haviam passado junto da Srta. Kossichef sem a reconhecerem. Como poderiam saber que Deus a escolhera
para revelar a Jean a colina sangrenta de onde ele veria subir esse novo astro do mundo e que, derramando sobre ele a todo momento a cordialidade de seu olhar, dava-lhe
forças para suportar essas dores necessárias? Nossa vida está a todo instante diante de nós como um desconhecido na noite, e quem de nós sabe onde chegará amanhã?
Em nosso caminho, não sabemos sequer reconhecer os ungidos do Senhor, como Joana d'Arc, que, não se detendo diante do fidalgo que lhe haviam dito ser Carlos VII,
foi direita àquele que recebera os santos óleos sobre a fronte escolhida.

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rT

V. A senhora Lepic

Todos os domingos, o Sr. e a Sra. Lepic vinham jantar em casa dos Santeuil. Edmée Lebon, seu nome antes de esposar o Sr. Lepic, era uma moça exuberante de
beleza, jovialidade, aspiração à arte e à felicidade. A Sra. Santeuil a conhecera no pensionato e ela se tornara sua melhor amiga. Aos vinte e dois anos se casara
com o Sr. Lepic, homem magro e alto, cujo rosto empedernido guardava os pálidos reflexos das chamas interiores de uma caridade ardente, ineficaz e infatigável. Se,
durante o dia, o Sr. Lepic ouvisse os gritos de uma criança sendo maltratada, era uma noite perdida. Continuando a escutar os gritos de uma criança, que lhe penetravam
o coração como pregos, não tinha sossego. Buscando sem cessar a seu redor misérias para socorrer, sua imaginação era constantemente povoada pelos infelizes cuja
vida lamentável sustentava com a metade de seu rendimento.
Mas esse homem excelente era um marido terrível. Dois dias depois de casado trancara a chave o piano da mulher, o qual jamais foi reaberto. Depois, não lhe
permitiu uma vez sequer ir ao teatro, ao concerto, ao museu, nem que lesse outra coisa senão a Cozinheira Burguesa, única obra que não lhe pareceu abominável entre
as mãos da esposa. A Sra. Lepic teve de renunciar a todas as amizades de mocinha, pois o Sr. Lepic, além de não deixar que a mulher fosse à casa de ninguém, não
permitia, por outro lado, que pessoa alguma a visitasse. Esta regra foi quebrada em favor dos Santeuil ao final do primeiro ano, porém tal exceção não foi seguida
de nenhuma outra. Toda vez que a Sra. Lepic, que aceitava essa vida com sublime resignação, ousava ser jovial, o Sr. Lepic: não podia conter um movimento de raiva
e mandava-a calar a boca violentamente. - Há infelizes que sofrem, injustiças que se cometem - dizia ele empalidecendo - e você, miserável, tem a coragem de rir
- e continha-se

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para não lhe bater. No começo do casamento, esperava estarem
a sós para dar vazão à cólera, mas bem depressa não agüentou
e era diante de todos os amigos que a ameaçava com violência.
Deitado toda a manhã para tentar reparar a fadiga da noite,
obrigava a mulher e os criados ao mais profundo silêncio até o
meio-dia. Depois do almoço, trabalhava num mernorial. sobre a
miséria em Paris, e como o menor ruído o sobressaltasse, lhe
distraísse o pensamento e lhe quebrasse a unidade do trabalho,
sua mulher, para evitar fúrias espantosas, não ousava sequer le
vantar-se da cadeira, pois ele obrigava-a a permanecer na sala
ao lado, separada apenas por um tabique estreito, para se asse
gurar de que ela não recebia ninguém. ' Hipocondríaco e, além
disso, dispéptico, acreditava ser necessário à digestão jantar na
obscuridade e andar duas horas após o jantar. No entanto, uma
vela ficava acesa durante a refeição para que fosse possível dis
tinguir os pratos, os garfos e os copos e, no momento mesmo
de se levantar da mesa, para evitar que a digestão começasse antes,
o Sr. Lepic arrastava a mulher pela chuva, pela neve ou pelo
vento num passeio de duas horas, tachando-a de algoz de sua saúde se ela o fazia esperar um minuto. Ao fim de três anos de casada a Sra. Lepic se tornara feia, triste,
seu espírito se fechara. Como esses velhos jardineiros cujo corpo inclinado constantemente para a terra não pode mais se endireitar, seu espírito, violentamente
amesquinhado pelos afazeres da vida caseira, jamais se reerguera. No quarto ano, foi atingida por uma espécie de doença nervosa que todos os dias lhe provocava crises
de dores atrozes. OSr. Lepic, que amava profundamente a mulher, desgostava-se bastante com isso. Seu nervosismo aumentou, sua dispepsia agravou-se. E com a piedade
pela mulher, sua violência para com ela recrudesceu. As crises da Sra. Lepic se amiudaram. Nos curtos intervalos entre as crises, em que ela só tinha forças para
chorar, ele desabafava o furor recolhido de um dia inteiro.
Há um ano que a Sra. Lepic estava melhor e todos os domingos, quando aparecia, a Sra. Santeuil se regozijava por encontrá-la com melhor aspecto, quando certa
manhã, devido à ruptura de um aneurisma, o Sr. I.,epic foi encontrado morto na cama. Dez dias depois era enterrada a Sra. Lepic: não pudera sobre-

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~T

viver a esse marido execrável e adorado. Sem dúvida, a atmosfera tempestuosa que respirava, depois de- a ter deixado meio morta, fazia-a viver. E como um cormorante,
um alcatraz ou uma gaivota que se captura, por ter longamente vivido, planado com suavidade sobre as vagas furiosas, no atordoamento do trovão e da tempestade, não
pudera trocar, sem morrer, o mau tempo pela bonança.
0 Iánico ser

para o qual, em sua vida sombria, o Sr. Lepic se mostrara sempre afetuoso e sorridente, o único a quem a Sra. Lepic podia prodigalizar sua ternura sem ofender
o marido, tinha sido Jean. Certas vidas às quais parece ser proibido comungar da felicidade humana sob as espécies costumeiras, às vezes, entretanto, participam
dela de uma forma particular e indireta. A felicidade que o Sr. e a Sra. Lepic experimentavam em ver Jean, a quem amavam como teriam amado seu filho se sua triste
união não fosse estéril, essa felicidade era a doce contrapartida de suas almas derrotadas, de suas vidas tragicamente perdidas. Jean também os amava com ternura.
Mas era tão pequeno quando morreram que os esqueceu bem depressa. Sem filhos, sem amigos, os Lepic não deixaram nada que os recordasse e, nesta narrativa, não mais
teremos ocasião de pronunciar seus nomes. Se Jean pensasse neles com mais freqüência, teria sem dúvida, quando adulto, lamentado profundamente não os ter ainda junto
de si, velhinhos e frágeis, porém vivos. Ninguém conhecera tão bem a Sra. Santeuil como a Sra. Lepic, e quando Jean estava numa idade em que não previa que um dia
iria lastimar ao máximo não poder ouvir palavras sinceras e ternas sobre sua mãe, saídas de uma boca que muitas vezes beijara suas faces, a Sra. Lepic teria sido
para a Sra. Santeuil a pessoa ue el i
depois do filho,

q a ma s amava do marido e do pai. Nessa idade, Jean também não pensava que as imagens de pessoas ou coisas, que veria com o mais temo prazer e que lhe abririam
as portas da mais valiosa poesia, seriam aquelas junto das quais começara, sem disso ter consciência, a viver, a compreender, a sentir, como essas crianças do coro
que, sem saber o~ que fazem, celebram o mais incompreensível dos mistérios e consumam o maior dos sacrifícios. Um dia, as mãos nervosas e sofredoras da Sra. Lepic
teriam trazido a Jean um pouco da doçura perdida das mãos de sua mãe, nas

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quais tão freqüentemente se haviam abandonado no decurso de tão tristes confidências.
As pessoas que exercem um papel nas nossas ambições ou tristezas de adulto não são mais as mesmas que se debruçavam sobre o nosso berço e depunham um beijo
já trêmulo em nossa face infantil. E os braços ainda vigorosos ou enfraquecidos que nos erguiam para o alto, os olhos que procuravam em nosso rosto indeciso, em
nossos olhos ainda inocentes, reconhecer os traços amados do passado, adivinhar os traços misteriosos do futuro, não são mais aqueles que se inclinarão sobre nós
nos adeuses supremos, não são mais os que encontrarão, pela última vez, o olhar ardente ou mortiço e sempre incompreendido dos nossos olhos.

Quando a Sra. Lepic morreu, Jean acabava de entrar para o
colégio. Os amigos do Sr. Santeuil haviam previsto, para um
rapazinho que já sabia de cor Alfred de Musset e Victor Hugo,
o prêmio de dissertação todos os anos, esperando o prêmio de
honra em retórica. Assim, o Sr. e a Sra. Santeuil experimentaram
uma penosa decepção vendo Jean punido por sua distração, últi
mo nas composições, terminando o ano sem distinções e sem
prêmios. Em cada um dos deveres de aula, onde se esperava do
aluno uma redação breve, se não elegante pelo menos correta,
ele derramava febrilmente o amor ou a piedade momentânea que
lhe inspirava a personagem sobre cuja vida apenas um aspecto
era proposto. Cobria páginas e páginas, inebriando-se com a
própria rapidez, exalando a tristeza infinita e deliciosa que lhe
causava o suplício de Joana d'Arc ou as palavras do condestável
de Bourbon, e as ornava, para fazer admirar a extensão de suas
leituras, de imagens recolhidas nos poetas que lia. Assim seus
deveres, concebidos em lágrimas, eram ouvidos em meio a risos.
Teriam dificuldades talvez de perceber, nesse passo, que Jean,
ainda há poucos anos perpetuamente fora de si e se derramando
em ternura borbulhante sobre os outros, tornara-se egoísta, bas
tante vaidoso para gostar de ser admirado. Seria a primeira ferru
gem de sua alma nesse meio sórdido, úmido e gélido do colégio?

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Ou sua alma e seu corpo, ainda tenros, e que a vida teria logo destruído, mostravam, na necessidade de lutar contra ela, ter encontrado um pouco de força para resistir,
um pouco de dureza, um pouco dessa crosta que, como todas as coisas rudes, tem freqüentemente escamas e verrugas e que se desenvolvera a seu redor porque ele tinha
necessidade disso, como os pés das aves que têiU de se movimentar na água são palmadas? Seria uma semelhança com o Sr. Santeuil, cujo amor-próprio era inofensivo
e que, indiscemível na vaga fisionomia da primeira infância em que os traços são tão cambiantes que a própria mãe não pode dizer de seu filho "com quem se parecerá",
se teria acentuado à medida que ele crescia?
Parece que nosso verdadeiro íntimo, a princípio escondido no fundo de nós mesmos nos primeiros anos, aflora a seguir cada vez mais e modela enfim uma fisionomia,
de modo que, tendo deixado um querubim celeste nos braços da mãe, encontramo-lo dez anos mais tarde feito um homem de negócios de olhar manhoso, um gordo de bigodes
vitoriosos, um debochado cuja pupila brilha nos olhos fundos, um avaro de lábios cerrados como os de seu pai, um imbecil do qual se tem vergonha, de riso irritante
e contínuo. Porém algumas semelhanças ou certas particularidades físicas ou morais, doenças, defeitos, méritos, vícios aparecem numa certa idade e depois desaparecem.
"Não somos mais os mesmos." Tenho um amigo que no colégio se parecia com o segundo marido de sua mae a ponto de pensarem que era filho dele, um que foi franzino
e bonito até sua primeira comunhão, e que agora é Ovarot, o banqueiro, tão feio e tão disforme que nem pode andar. Horace, que anda no trapézio e participa de corridas,
foi tuberculoso até os 16 anos e condenado por todos os médicos. Estudei com Léandre, que, depois de haver esgotado todos os vícios, tornara-se morfinômano a ponto
de nem mesmo tentarem curá-lo. ]É hoje um homem forte, razoável e são, o mais fiel e o mais terno dos maridos. Enfim, tive no regimento dois amigos, Julius e Phèdre.
Ambos eram excepeionalmente dotados, um para a música, o outro para o crime. Sem a inércia dos diretores e a falta de habilidade da polícia, saber-se-ia que um compusera
uma obra-prima e o outro cometera um assassínio. Julius não escreveu uma nota desde-

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esse tempo. Espantada pelos prazeres, a pequena fada da música se retirou dele. Hoje é um imbecil. E, quanto a Phèdre, é, com toda a grandeza do arrependimento,
mais que um homem honesto. É um santo.
Sem poder prejulgar o que seria Jean mais tarde, dissemos que no colégio se tornara muito vaidoso. Convidado um dia para jantar com o reitor, era-lhe intolerável
a ignorância em que estavam seus colegas sobre tal favor. Havia sobretudo um, que, rico e bem-nascido, jogava com bolinhas de áaata e apesar de sua pouca idade já
usava calça comprida, apostava nas corridas e era monarquista, excitando a inveja e a admiração de Jean, e ao qual, por essa notícia, gostaria de dar uma idéia maior
de si. Depois de hesitar por uma hora entre as várias maneiras de lhe dar a nova, de repente, enquanto era explicado, em Tito Lívio, o retorno de Ambal através dos

Alpes, ele se inclinou para a orelha do colega e, fazendo-se vermelho como um tomate, um bom tomatinho para que, apesar de tudo, não sejais tão severos, lhe sussurrou:
- Sabes, jantei na casa do reitor. - Fernay, depois de um silêncio de uma hora, não esperava por essas palavras bruscas. Sobressaltou-se, esquecendo-se de onde estava,
e disse bem alto: - Oque é que tem? - Oprofessor chamou a ambos, perguntou, sob pena de ficarem detidos após as aulas, que é que diziam; e Jean pensou que ia morrer
de embaraço e orgulho quando, diante de todos, Fernay confessou: - Santeuil me dizia que tinha jantado na casa do reitor.

Alvo dê zombaria por causa dos deveres de francês, Jean era punido pelos- outros, que copiava de um vizinho cinco minutos antes de entrar em aula; depois
de entregar o trabalho, passava o tempo todo a ler versos ou a não fazer coisa alguma. Todo santo dia prometia à mãe estudar a partir do dia seguinte, e no dia seguinte
a preguiça, mais intensa do que a vigília do novo dia, que o deixara exausto, fechava rapidamente seus livros ou lhe tirava a pena dos dedos. - Agora sei qual o
obstáculo disse um dia a Sra. Santeuil ao marido, o qual, com os pés contra as grades da lareira, considerava as chamas com benevo-

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lência. - Não se trata da saúde como havíamos pensado, nem, graças a Deus, de um temperamento apaixonado. Nem também, como diz o professor de francês, a imaginação,
nem a preguiça, que é a opinião do professor de física. Oobstáculo é a ausência de uma força que aos seis anos o teria impedido de chorar de noite na cama em vez
de dormir, que mais tarde teria desviado seus perisamentos da Srta. Kossichef, que este ano enfim o poria no bom caminho quando ele tivesse vontade de escrever extravagâncias,
de não pensar em nada, de ler romances ou verso s, e sobretudo de comer nas confeitarias até dez docinhos, o que lhe tira toda a fome para jantar como esta noite
e lhe estraga o estômago no futuro. Essa força, cuja ausência é empecilho tremendo - disse a Sra. Santeuil -, é a vontade. - Sem vontade, nada de negócios - retrucou
o Sr. Santeuil afastando vivamente do fogo as meias que começavam a arder. - Só faltei me queimar, mas também por que me falas sempre que estou aquecendo os pés?
- A Sra. Santeuil pensou provavelmente como o marido que, prolongando nessa noite a conversa, não resolveriam o difícil problema de dar força de vontade a Jean e,
inclinando a cabeça para a lareira onde ouvia, sem compreender, a torrente de promessas ruidosas e brilhantes que o fogo, como a Sibila, proferia através da fumaça,
os olhos perdidos nas chamas que, por entre as achas, acima do crepitar dos tições de púrpura, sopravam com força, como um vento brincalhão que se levanta sobre
o arvoredo ao pôr-do-sol, no quarto fechado onde a obscuridade vibrava com o calor das labaredas e, estendendo as sombras sobre o muro como vitrais, encobria os
reflexos nos ângulos como rubis, a Sra. Santeuil uniu melodiosamente seu silêncio ao do marido.

Quando Jean, em vez de começar uma tradução do latim, acabava de reler Rute e Booz ou A- Noite de Outubro, não estava contente, pois tinha um vivo sentimento
do dever e, por ter conhecido a satisfação radiosa da tarefa cumprida, achava o próprio prazer que dão os belos versos menos feliz e menos gratificante. Até entre
os maus versos que tinha de ler e os

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belos versos que havia' lido não se sentia no direito de haver escolhido os belos, visto que os que devia ler eram os maus. Assim, quando lhe vieram dizer que o
jantar estava na mesa, sem
que tivesse começado a trabalhar, a dupla amargura do dever omitido e do prazer desfrutado enchia seu coração escrupuloso e fraco. Mas habitualmente não era nem
por ler versos que Jean não fazia os deveres: era por ter andado à toa muito tempo ao sair do colégio, era por ter ido conversar na cozinha, por ter ficado aquecendo
os pés. Então, quando descia a noite, quando através do vidro sincero da janela podia ver flutuar no triste e
inefável censura, ele para longe, como se
doce sorriso do céu cor-de-rosa uma como se arrependia duramente de haver repelido
atira um pedregulho n'água, esse presente misterioso que Deus nos dá: um dia - um dia que ele nos dá para que o utilizemos à vontade, para que nele vertamos os santos
óleos ou o veneno, um dia que não voltará mais, um dia que, depois de nele havermos depositado a própria essência de nossa alma, o pior da nossa fraqueza ou o melhor
da nossa vontade, será destroçado para sempre, em meio aos raios dispersos na noite. "Um dia, depois outro dia" - murmurava consigo, "é a minha vida e não terei
outra. Deus me concedeu esta e não uma outra para que
sua vontade se cumpra." Chegado então ao fim do dia, via-se já no final da vida e, como um pintor descontente que rasga a tela, apagava furiosamente a pequena imagem
que desenhara de si mesmo sem que outra tela lhe fosse dada para recomeçar. "Somente esta e não outra", repetia muitas vezes antes de dormir.

Desde uma noite em que pensara que chegaria o tempo em que não poderia mais agradar sua mãe, Jean se pusera a trabalhar, Cada dia tinha feito um dever a
mais, e nessa manhã acabava alegremente uma tradução latina, percebendo já no fim
do ano a figura feliz de sua mãe na distribuição dos prêmios. Sentia-se melhor, estava tão feliz com tanta ventura que não podia deixar de sorrir ao sol que entrava
pela janela e de fazer
com os lábios o ruído dos beijos que daria dali a pouco na mãe. Acabada a tradução, pôs-se a saltar.
Como desejasse princi-

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piar uma composição imediatamente, foi tomar um pouco de ar diante da porta para se refazer por um instante. Apesar do sol, de uma brisa débil e de um odor novo,
teve a coragem de se subtrair à conversa, aos jogos desses amigos deliciosos, para fazer sua composição, e subiu as escadas correndo, inebriado por sua livre resolução.
Chocou-se contra o pai, que descia, e que, já aborrecido de ouvir todas as noites os queixumes da Sra. Santeuil, o seiurou com raiva.
- Eis o que fazes enquanto a gente pensa que estás tTabalhando, no momento exato em que acabas de fazer belas promessas. - Deixe-me explicar, paizinho, há
um mal-entendido disse Jean para quem o sol subitamente se escondera às primeiras palavras do pai e que estava todo trêmulo. - Não, não há mal-entendido. De onde
vens? Tanto faz, não tenho mais nada a te dizer, já está decidido entre mim e tua mãe que deixes o colégio para entrares no Menri IV. - No Henri IV - gritou Jean
empalidecendo - no Henri IV? - É o que te digo. Não porei lá os pés uma vez sequer. Então é assim? No momento exato em que desejo agradá-los; muito bem, sou um imbecil,
foi a última tradução latina que fiz - gritou Jean. - A última - repetiu o Sr. Santeuil -, veremos; sobe - acrescentou, continuando a descer - acho que estás ficando
louco. Diria o mesmo do senhor, se o ousasse - replicou Jean subindo as escadas, temendo ao mesmo tempo que suas últimas palavras tivessem sido ouvidas ou não pelo
pai.
Ao descer, Jean deixara a porta aberta, para entrar de novo sem tocar a campainha; mas a Sra. Santeuil, ignorando que ele tivesse saído, fechara-a de novo
ao sair. Jean tinha de tocar a campainha para que a abrissem, e sentia-se perturbado demais para enfrentar o olhar penetrante de Augustin. Assim, desceu de novo
a escada e sentou-se no vestíbulo. Esse lugar recordava-lhe alguma coisa... Ali, foi aqui que uma manhã, também transbordando de ternura por sua mãe como hoje, escondera-se
para esperá-la, e dela recebera a notícia de que, em vez de ir aos Champs-Elysées, teria de ir à casa do Sr. Jacomier. A infelicidade de ter pais tão cruéis e que
o desconheciam a esse ponto inspirou-lhe uma piedade tão profunda que a todo instante as lágrimas, enxugadas com cuidado para não serem vistas pelo

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porteiro, se o acaso o fizesse passar no pátio, recomeçavam a cair. Depois, sem cessar de maldizer o pai, passou a desculpar a mãe, que, naquela manhã antiga, não
podia adivinhar a ternura silenciosa por ela que transbordava do coração de Jean, nem que hoje um milagre dessa mesma ternura vencera a preguiça que ela queria castigar
e que não existia mais. "Se é assim na

vida", disse consigo baixando até aos joelhos a cabeça em lágrimas, e admirado ele próprio com o gesto de sua humildade, "se os homens cumprem assim suas resoluções
a respeito dos que se modificaram à sua revelia depois que as tomaram, se
a cada momento a gente se arrisca a cair em falso, a sufocar uma boa intenção, desesperar alguém que se ama, desmoralizar uma pessoa que se torna bondosa, o mundo
é muito complicado para mim, a vida é forte demais para mim." E desde então, apesar do pavor que lhe causava a idéia de ir para o Henri IV, como uma criança que
se abandona uma manhã ao pé de um lampião ainda iluminado numa grande cidade, apesar do desgosto de deixar seu caro colégio, estava decidido a não mais resistir
a nenhuma dessas injustiças da vida, nem mesmo à mais medonha, pois era a mais iminente, seu internamento no Henri IV.

--lq

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VI. OLiceu Henri IV

A todos os poetas Jean preferia Verlaine e Leconte de Lisle como seu mestre Xelnor, e como ele experimentava um tédio sombrio à leitura dos clássicos. Mas
estendendo às coisas do espírito a inquietude incessante de sua consciência escrupulosa, desconfiando tanto do valor de seus julgamentos como de seus atos, esforçava-se
constantemente em reler a Fedra Cinna, as Fábulas de La Fontaine com um espírito novo para tentar amálos tanto quanto os Poemas Antigos ou os Romances sem Palavras
se o merecessem. Depois de eliminar do espírito todos os preconceitos anteriores, pôs-se a enfrentar cara a cara essas esfinges antigas que lhe deviam dizer: eis
o que valho - e que após duas horas desse confronto não lhe haviam dito nada. A imaginação poética que se erguia na alma de Jean, por detrás da razão ainda sombria
e que o ofuscava vivamente como o sol autes de aparecer, inflamava-o do desejo de encontrar em toda a parte, nos seus deveres e nos livros dos outros, o esplendor
de sua púrpura misteriosa. As imagens brilhantes, o estilo inflamado dos últimos românticos excitavam nele um ardor matinal que, arrefecido pela leitura de Britânico
ou de Cinna, era, a seguir, mais apaixonadamente procurado. Jean, porém, tinha ainda uma outra razão para preferir não só Leconte de Lisle mas também L-J. Weiss
a Molière. Os escrúpulos, o desânimo de tantos arrebatamentos seguidos unicamente de tantas fraquezas, os mil devaneios da ternura e da tristeza, as mil descobertas
da fantasia, tinham desenvolvido nele um espírito de observação interior ao qual o estudo da filosofia não dera ainda seu alimento e que, extenuando-se na tentativa
de atingir o fundo inatingível de seu pensamento, se reconhecia, se alimentava, se exaltava nas leituras mesmo superficialmente filosóficas. As observações sutis
de Weiss, onde reconhecia com júbilo as observações que fizera sozinho ao sol, nas aléias do jardim, ou nos dias de chuva em
seu quarto, os vastos poemas de Leconte de Lisle que, depois de terem brincado com o Tempo, falavam com força deslumbrante do sonho da vida e do nada das coisas,
eram mais vivos, mais profundos, mais substanciosos para ele do que as obras clássicas nas quais essa inquietude não existia. Jean, sem ter lido o Micrômegas, avaliara
a dureza da vida e, à imensidade, à eternidade das esferas, o tamanho de seu corpo e da casa paterna. Depois ficara uma hora imóvel, deixando para o futuro toda
ação irrisória. E então, transido de frio, excitado pela fome, fora jantar e logo, assaltado novamente pelo desejo de fazer versos parnasianos, resignou-se a viver
vaidosamente já que era uma vaidade viver. Para não sofrer de novo a vertigem de se lançar nos espaços infinitos, não falaria disso em seus versos, mas no frontispício
de todos os seus livros futuros, mesmo que só tratassem de artes plásticas, estava decidido a escrever: "Quem escreveu este livro, tendo refletido que a França é
mil vezes maior que ele, que a Europa é cem vezes maior que a França, que o sol etc., quem escreveu este livro sabe que tudo é vaidade, inclusive este livro. Dito
isso, como é preciso viver e, se se tem imaginação, escrever, ele vai em frente." Depois, tendo lido estes versos de Leconte de Lisle:

O tempo antigo é feito inesgotavelmente
Do turbilhão sem fim das aparências vãs

decidiu inscrevê-los na folha de rosto de seu livro e ao pé escreveria simplesmente: Quem escreveu este livro sabe que tudo é vaidade, mas etc.
O poeta Rustinlor, diretor de estudos no Liceu Henri IV, e seu professor, Sr. Xelnor, conseguiram ambos persuadir Jean de que seus escrúpulos eram infundados
e de que era mais inteligente ler belos versos, ou até, acrescentava o Sr. Rustinlor com um riso enorme, destacando as palavras, "saborear horizontalmente sobre
um banco o nirvana divino" que explicar Ovídio e úorácio, que eram "pobres coitados". Os princípios do Dever são difíceis, sobretudo quando é preciso aplicálos a
uma circunstância particular. Que mal havia em ler belos versos, e que benefício traria explicar os ruins, eis o que o Sr. Claudius Xelnor
não podia compreender. Seu espírito habituado a decidir por meio de regras simples se os versos eram "execráveis ou surpreendentes" não imaginava para Jean, embora
fosse homem honesto, um bem moral superior ao prazer estético, o qual teria adquirido resistindo ao prazer e fazendo o seu dever. OSr. Claudius Xelnor (de seu nome
civil Claude Le Roux) liquidou pouco a pouco os remorsos de Jean, mas levou tempo. Pode-se censurar a Jean o seu defeito, mas admirar igualmente essa corajosa resistência.
Mais tarde, Jean compreendeu que espécie de prêmio para a inteligência são esses exercícios que, obrigando-o a despojar uma idéia de todas as fórmulas convencionais,
de todas as elegâncias adquiridas, de todo o ambiente vulgar através do qual as percebemos involuntariamente, forçam-nos a apanhar a própria realidade e que têm
por objeto unicamente as obras de todos os tempos, o universo e a vida, o amor de uma rainha ou a história de uma cotovia, a ambição de um aventureiro. Fazendo remontar
tão longe suas origens, tais exercícios fazem-nos conhecer, para melhor respeitá-la um dia, a -antiga nobreza de nossa língua. Jean teria tido, então, menos mérito
em permanecer determinado tempo preso a um dever que conspirava com seu interesse intelectual. Convencido, porém, de que perdia seu tempo com ninharias, quando poderia
adorná-lo de sonhos, teve forças para preferir as primeiras por dever. OSr. Claudius Xelnor há já nove anos que via seus versos celebrados pela Revue Blanche, o
Mercure de France e a Revue Indépendante, e escrevia ao alto de uma balada: "Para Henri de Régnier", que o honrara com sua benevolência. Malgrado tantas glórias
(e, para mim, a última citada não é desprezível e sim uma das mais caras), pode-se pensar que, colocando-se por um momento na verdade das coisas, todos os disfarces
das notícias breves, dos jornais e das desinências latinas não mudam, não contam aos olhos de Deus, que, do Sr. Claudius Xelnor e de Jean, o maior não era esse
Claude
Le Roux.

Sucedeu depois de uma manhã em que, avidamente debruçado sobre As Contemplações, perguntara à poesia o segredo da vida,

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da morte e de sua alma. OSr. Rustinlor veio buscá-lo para um passeio e disse: - Que é que você estava lendo, Santeui19
As Contemplações, senhor. - É do ruim Hugo - disse o Sr. Rustinlor sacudindo a cabeça. - Está bem abaixo de seus versos plásticos e puramente exteriores. Além do
mais, os versos puramente exteriores são, por isso mesmo, infinitamente superiores aos que significam algo. Leconte de Lisle é superior ao pai Hugo, porque não está
sobrecarregado, como ele, de metafisica enfadonha. No entanto é preciso admirar o papai Hugo, e ele foi ainda assim um poeta extraordinário, porque na verdade era
um velho idiota. - Océu e a terra desabaram sobre Jean. Não fora educado na religião e ainda não aprendera filosofia. A literatura era o seu único credo e, com toda
a vivacidade de seu intelecto e a seriedade de sua consciência, nela buscava a certeza. "Victor Hugo era um grande poeta porque era um idiota." Não tentou sequer
ofertar ao Sr. Rustinlor o sorriso que a redação antitética desta conclusão parecia reclamar. Os interesses mais sérios de seu pensamento estavam ameaçados muito
de perto para que ele pudesse ainda pensar em termos de polidez. Mas o Sr. Rustinlor continuava: - Sim, um velho idiota e que fazia versos extremamente belos. Ao
passo que os celerados que você tem a fraqueza de admirar, Weiss, Lemaitre e esse Anatole France, que entretanto não passa de um pobre coitado bastante sutil, todas
essas pessoas inteligentes, ou que fingem sê-lo, são absolutamente incapazes de escrever corretamente um poema regular. Quanto a um soneto, não digo nada: excetuando
Anatole France, que nem sempre tem sido abominável, eles nem sabem ao menos de que se trata. - E o Sr. Rustirilor, erguendo o indicador ao nariz chato, pôs-se a
rir ruidosamente. - Eles o perderam - disse ao ler no rosto de Jean a perplexidade. - Nunca um poeta (ele pronunciava "po-ieta") gostou de outra coisa na literatura
inteira que não os versos plásticos. - Então, estou errado em tentar gostar de Racine? - perguntou Jean, ansiosamente. - Racine é um grande pedaço d'asno - disse
o Sr. Rustinlor, franzindo as sobrancelhas olimpicas - e além disso é sempre errado tentar gostar: ou se gosta ou não se gosta. Suas tragédias são tremendamente
aborrecidas, mas há na Fedra alguns belos versos como este: "A filha de Minos e de Pasifaé" que Gautier declarava ser

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o único belo verso que jamais encontrara em Racine. - O,único? - perguntou Jean, que procurava em vão adivinhar a beleza desse verso. - Oúnico - assegurou o Sr.
Rustinlor com ironia triunfante - e, palavra de honra, não estava enganado. Por outro lado, isso nada tem de espantoso, pois Théo é um dos mais miraculosos sujeitos
que já houve. Usou da máxima severidade para com Racine, cujas rimas, aliás, são lastimáveis. Sua visão da Antiguidade grega e judaica não é de desprezar, mas prefiro
à Ester duas páginas de Paul Saint-Victor sobre a Ester, que são pura obra-prima, e à Fedra um conto de Pierre Louys chamado Ariana, onde cabe toda a Grécia, e que
é muito mais bem escrito.
De noite, Jean entrou em casa assediado por um problema que lhe parecia impossível e tão essencial que julgava uma imoralidade dormir antes de o ter resolvido.
Se a mais alta poesia não era a preenchida pelas grandes realidades em presença das quais vivia, nem as que ficavam a olhá-lo durante seus passeios, e lhe diziam
durante o trabalho: olhe-nos, elucida-nos, penetranos - então a poesia não era nada. Ou antes, como dizia o Sr. Rustinlor, não eram essas realidades justamente nada?
Esquecia ele por um instante seus tormentos, "a filha de Minos e de Pasifaé", e voltava a despertá-los com uma crueldade bem digna dessa origem monstruosa. E, no
entanto, não era sem prazer que repetia a frase espirituosa de Gautier. Não percebia então as belas sonoridades mitológicas do vérso de Racine. Mas, até aqui, habituado
a estimar os versos pela sua riqueza de sentido não menos que pelo brilho de suas imagens, experimentava, ao ouvir celebrar acima de todos este, onde não havia idéia
nem imagem, a surpresa divertida que sentimos toda vez que uma palavra nova nos vem mudar a face do mundo ou os termos do problema do pensamento.

Um dia, tendo Jean dormido, estudado e se divertido bem, sentia-se feliz e de consciência tranqüila, o espírito calmo, o corpo bem disposto; com a cabeça
reclinada sobre o banco, desfrutava placidamente a satisfação de haver resolvido o problema da vida, quando, tocando-lhe o cotovelo e olhando-o de cima

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para baixo, um colega já adulto lhe falou: - Olha, Santeuil, vem comigo um dia às quatro horas conhecer as raparigas. Vai, em nenhum livro encontrarás nada tão distinto.
- Jean se desculpou e prometeu que um outro dia, firmemente decidido a jamais acompanhá-lo. Mas à noite, na cama, luz apagada, "queres vir às quatro horas conhecer
as raparigas, não há nada tão distinto" - tais palavras de fogo acenderam furiosamente em Jean todos os antigos desejos reprimidos que nele dormiam e, diante da
impossibilidade de deixar a cama e sair, irritava-se sob as cobertas por não serem quatro horas e não poder imediatamente aceitar essa proposta perturbadora.
O dia radioso apagou esses maus pensamentos com a Iamparina do dormitório e os bicos de gás das avenidas. Jean tinha vergonha disso e, sentindo a felicidade
tão perfeita de ter boa saúde e de estudar, não podia compreender essa loucura, noturna cuja lembrança se esmaecia até empalidecer no meio dos sonhos. Mas um dia,
no meio da aula, repetiu para si mesmo as palavras do colega adulto, ou antes, ouvia-as tais e quais e ansiou por acompanhá-lo. Nesse dia, porém, o colega estava
doente e não viera às aulas. Alguns dias depois, o colega transpunha a porta do n.O 6 da Rua Boudreau, com passo natural, acompanhado de Jean, que dissimulava sua
emoção, como um recruta que não quer que um veterano perceba que está com medo, quando, defrontando pela primeira vez o fogo, as lembranças da infância lhe vêm flutuar
na memória perturbada e lhe fazem parecer mais horrível a angústia do momento próximo. Subiram uma escada bem iluminada onde havia um guichê. Mas o dia, cujo olhar
amistoso consolava Jean vagamente nas horas mais sombrias, assumia um ar hostil e fechado sobre as paredes de pobreza odiosa ou sobre os tapetes de riqueza insolente.
- É lá - disse o colega com a precisão dos rapazes que param um cavalo diante do matadouro, suficientemente ignorantes do que se passa na alma do cavalo
para experimentarem crueldade ou compaixão. Jean disse consigo: "Num instante a porta se fechará sobre mim, não poderei mais descer." Correu para a campainha dizendo
ao colega adulto: - Será verdadeiramente distinto? - e a sacudiu com tanta força que ouviram uma voz vulgar gritar em meio a risadas: - Ali, eis um apressadinho,

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ora essa! - Olhando com desconfiança logo dissipada à vista do adulto, ela veio mostrar à porta uma figura que lembrou a Jean a de uma camareira que não estivera
mais que dois dias em sua casa e de quem guardara uma recordação estranha e terrível. Mais elegante que sua mãe, recendia a vinho como um bêbado. Quando a Sra. Santeuil
quisera despedi-la, ela a insultara e, segundo a cozinheira, até lhe batera. A Sra. Santeuil ficara, por isso, Vários dias de cama. Depois souberam que, procurada
há muito tempo por um duplo assassínio, fora condenada a dez anos de trabalhos forçados, Tais foram as recordações que despertou em Jean a vista do rosto que se
enxergava à porta. Espantou-se Jean de seu olhar cruel através da pintura dos cílios, um eezema sob o pó-de-arroz e, com a vulgaridade de um vadio, a infâmia de
um trapaceiro em meio ao esplendor fantástico e suave de uma atriz.
Entraram. Se ao menos para acolher, dissimular e adormecer essa nova inquietação, Jean tivesse tido a solidão silenciosa e atraente de seu quarto. Eis, a
contar da antecâmara, 12 mulheres de penhoar que faziam chapéus. - Que é que elas fazem? indagou o adulto para grande espanto de Jean, que acreditava, sem compreender
por que, que tudo isso era sempre assim É para as irmãs de Saint-Jean - responderam elas em coro. Jean pensou que se tratasse de um gracejo ignóbil, mas não era.
A mãe Troncpoing (assim se chamava a mulher que viera abrir) tinha uma irmã religiosa.

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A casa de Étreuilles. - Lilases e macieiraS. As ruas. - Ernestine. - Manhãs no parque. - Efeitos de luz. - Os almoços. - Músicas de verão. - Ofrio. - Ocapitão Fracasse.
- A lanterna mágica. Ojardim dos Esquecimentos. - Oespinheiro cor-de-rosa. - Passeios no Loir. A camélia. - Oreino do Sol. - A missa cantada. - A Sra. Sureau. -
Os sinos. - A fazenda dos Aigneaux.
1. Étreuilles

Às vezes, na Páscoa, quando o Sr. Santeuil não tinha muito que fazer, ia-se para uma estada preliminar em Étreuilles. Entretanto, o Sr. Santeuil dissera:
- Não vai fazer calor, pois a Páscoa será cedo este ano. - E a Sra. Santeuil, de muito bom gosto em matéria de literatura, de bom senso na vida, e de muita graça
quando se tratava de contar a mais simples história, com tato, habilidade e coração para os afazeres domésticos, mas ignorando a meteorologia, a geografia, a estatística
e outras ciências, maravilhou-se de que o marido soubesse que a Páscoa seria cedo nesse ano, e via nessa prova evidente de superioridade uma ocasião de lhe renovar
interiormente seus louvores de admiração e seu voto de dócil sujeição. E, desde o mês de janeiro, o Sr. Santeuil dissera: - A comissão se reúne pela última vez na
quarta. Poderemos partir na quinta-feira santa. - Os projetos longínquos feitos com precisão pelo Sr. Santeuil davam à Sra. Santeuil a impressão de profecias e redobravam
sua admiração pelo marido. A Páscoa chegou cedo, de fato, e podia-se partir na quinta-feira como previra o Sr. Santeuil. Era escusado levar tudo o que houvesse em
matéria de cobertores, não havia suficientes para lutar contra o frio, e chegados a Étreuilles com um tempo gélido, ficavam todos a se aquecer na sala de jantar,
onde o tio de Jean ia a todo instante verificar o barômetro para ver se vinha o bom tempo. À noite, quando Jean entrava no quarto, via um bom fogo aceso e, enquanto
se despia, batiam na porta. Era a cozinheira que vinha trazer uma botija, que lá chamavam "monge", e era trazida só porque a Sra. Santeuil havia recomendado, a fim
de que ficasse bem quente, que a trouxessem apenas quando o Sr. Jean já fosse se despir.
O mês de maio não era somente o mês em que se via chegar à casa do Sr. Santeuil seu filho, a nora e o neto. Havia poucas residências que não arrumassem nessa
época em seu jardinzinho, por menor que fosse, contra 6 muro, diante da porta, lilases ar-

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borescentes que algumas vezes ultrapassavam, numa só haste, como um campanário de cores, o teto baixo da casa, outras vezes entremeavam sobre o telhado seu emaranhado
de flores com animação jovial, e outras ainda, passando além do muro e se inclinando sobre a rua, vinham com seu perfume até a calçada oposta em busca do próprio
transeunte que os não via e o forçavam a erguer a cabeça. De modo que, no mês de maio, cada uma dessas pequenas casas achava-se dotada de um luxo imprevisto, de
toda uma domesticidade silenciosa de jovens lilases que se agarravam à porta e conferiam à casa um ar puro e atmosfera perfumada, domesticidade, por outro lado,
como só poderia obter, num conto oriental, uma fada cheia de poderes poéticos. Mas nada valia, quando se caminhava ao longo do pomar de Cotte, a vista, através das
grades durante cinqüenta metros, de suas macieiras em latada subindo uma ao lado da outra em distâncias iguais, numa ornamentação de encanto incomparável, com suas
grandes flores brancas abertas e de vez em quando pequenos buquês corde-rosa de botões que avermelhavam, ao passo que as folhas, incessantemente, davam na parte
de baixo o acompanhamento de seu desenho inimitável e sobre o qual nenhuma árvore frutífera consegue nos enganar. Se temos a infelicidade de chegar muito tarde ao
campo, quando as macieiras já perderam as flores, somente a vista dessa bela folha, de que já conhecemos toda a poesia ofuscante que ela pode sustentar, nos faz
lamentar que flor nenhuma, por bela que seja, a possa exceder, e apenas a mínima penugem finamente organizada dos pistilos no âmago da flor, como uma espécie de
coro obscuro e misterioso no seio de uma deslumbrante basílica, somente a vista desses pistilos nos causará desgosto semelhante e, ao mesmo tempo, nos dará mais
prazer, acordará em nós mais amor que a visão das mais belas flores do mundo. E esse prazer infinito pelo qual, passeando ao longo de um pomar, reconhecemos de imediato
essas flores brancas da macieira, suas folhas e os buquês rosados dos botões, é um prazer moral. A razão pela qual a vista das pereiras brancas e das roseiras co
r-de-rosa da Pensilvânia não as substitui é uma' razão que vem do fundo do nosso coração. De súbito, percebendo a folha bonita sobre a qual ninguém pode nos enganar,
as flores mais largas, mais unidas em buquês brancos que pro-

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gridem ao longo da latada separadas pelos buquês cor-de-rosa dos botões, sentíamos nessas folhas, nessas belas flores brancas, algo que nos falava, como quando encontramos
num desfile uma pessoa amada que nos sorri, nos dá bom-dia. Parece que debaixo do verniz verde da folha e sobre o cetim branco da flor existe um como ser particular,
um indivíduo que amamos e que ninguém pode substituir. Sentimos que não é preciso parar diante
do cetim branco da flor branca, diante do verniz verde da folha verde; que existe algo por detrás, nosso prazer é profundo, sen-
timos algo que se agita por dentro, algo que desejaríamos apreender e que é bem doce. Parece que essas flores brancas, que se sucedem ao longo da latada, têm uma
expressão moral, são como o retrato de uma época de nossa vida que acabamos de reencontrar e que reconhecemos. Não mais como nas outras árvores floridas; desta
vez cada flor, cada folha corresponde em
nós a um desejo. A cada instante nos dizemos: "É bom isto", com alegria. Oque existe nessas flores brancas que se alternam com seus, buquês rosados é algo como uma
vida bem diferente da-
quilo que chamamos às vezes vida, e que nos entristece tanto à idéia de que a perderemos, embora nos pareça bem tediosa. Ao
contrário, nesse momento em que somos tão felizes não teríamos medo de perdê-la e de nada deixar. Pois o que nos arrebata no prazer que sentimos é alguma coisa que
nos mexe bem no fundo, algo que não existe hoje, visto que o sentimento de um outrora em que víamos

macieiras semelhantes está contido nele.

Nessa cidadezinha de Êtreuilles, as ruelas tinham nomes de santos, Rua Santo Hilário, Rua do Espírito Santo. Era na Rua
do Espírito Santo que eles ficavam, e a Jean parecia engraçado que sua casa fosse um endereço, que sua casa, a casa do doutor em frente e, ao lado, continuando a
fileira, a vidraça do merceei-
ro, que tudo isso fosse a Rua do Espírito Santo, e que sua casa tivesse um número, pois Rua do Espírito Santo n.O 5 tem jeito de ser algo exterior a si, que se designa,
e que nossa própria casa, vista assim de fora, dá-nos a impressão de uma coisa estranha. Opapeleiro ficava na Rua do Pássaro e para ir até a Pra-

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ça tomava-se a Rua Santo Hilário. E era, de fato, uma cidade onde a igreja dominava, uma cidade que as procissões atravessavam, onde os altares de estação * se embandeiravam,
aqui morava o cura, lá o sacristão, acolá as freiras, uma cidade povoada pelo toque dos sinos, que os dias de missa cantada animavam com a fila das pessoas que a
ela iam assistir, e com o cheiro dos doces preparados para o almoço que se seguia. Ela, porém, contava com santos um tanto sombrios, um pouco tristes e, de fato,
era uma cidade fria e não muito clara, as noites longas, os *velhos se queixavam de doenças, muitos dos jovens eram enfermiços, e era grave a fisionomia e lenta
a fala de todos; o padre era muitas vezes chamado para os agonizantes e os sinos soavam com freqüência pelos mortos. E também havia ruas com nomes de coisas usuais
e naturais, Rua do Pássaro, Rua da Bacia -de Barba, pois nessa cidade havia também facas, pombos, vento, mestres ferreiros.

Na casinha de'Étreuilles havia criadas de cozinha e um jardineiro. Mas a direção do serviço é todas as relações diretas com os patrões eram exercidas escrupulosamente
por Ernestine. Ao chegar todos os anos, a Sra. Santeuil lhe dizia: - Para o Sr. Jean, Ernestine, você sabe, uma botija de água, não quente mas fervendo, de modo
que seja impossível tocá-la com os dedos. E a cabeceira da cama bem erguida, sabe, quase incômoda, para que não seja possível a alguém estender-se se quiser, quatro
travesseiros, se tiver quatro, não será nunca suficientemente alto. Sim, senhora - reãpondia Ernestine, sorrindo, pois era tão amável com os parentes da Sra. Sureau.
quanto seca consigo mesma. Uma longa intimidade não os fazia perder, aos poucos, a seus olhos, todo o prestígio. Não lhes votava rancor nem sentia necessidade de
"acostumá-los", por não viver muito tempo com eles. Eles a cumulavam de cumprimentos, vinham de Paris. E
* Estação, numa procissão religiosa, é a parada que se faz para rezar uma oração. Altares de estação os que se levam em procissão e são utilizados nessas
paradas, às vezes para um longo trecho de missa. (N. do T.)
quando a Sra. Santeuil subia para ver se o quarto de Jean estava pronto e ele podia ir se deitar, verificava se a cabeceira da cama estava bem elevada e a botija
suficientemente aquecida. - É incrível como essa moça é inteligente e entende das coisas - dizia a Sra. Santeuil. Jean, no entanto, ainda ignorava que para ter à
mesa um belo ganso assado que, magnificamente preparado e brilhante de suco, excitava desejos inocentes em seu palato, fora preciso espantar um bicho, lutar com
ele, torcer-lhe o pescoço e fazer correr rios de sangue pela pia da cozinha. E quando ouvia gritos e batidas assustadas no pátio, julgava que, sem lhe fazer mal,
castigavam um galo que fora malvado com as galinhas. Do mesmo modo, ignorava que, diligente e risonha na sala de jantar com os patrões, Ernestine na cozinha e na
copa fazia chorar a criadinha, ferindo-a a todo pretexto com sua ironia, seu desprezo, suas injúrias, suas calúnias, pondo-lhe pimenta na bebida ou porcarias no
almoço; se, por acaso, esta fosse buscar leite fresco para Jean, substituía-o por leite estragado, forçando-a por meio de ameaças a' cometer faltas e a ouvir suas
reprimendas diante da patroa, sem que a infeliz, aterrorizada, ousasse revelar coisa alguma.
Em breve, correndo o risco de não mais encontrar emprego,
uma a uma as criadas partiam, sem nada dizer, temendo as re
presálias de Ernestine. A mais corajosa, a mais necessitada, per
severou durante um ano. Outras iam embora antes do fim do
priineiro mês. Desse modo, Ernestine não receava que outro
poder se elevasse, pouco a pouco, ao lado do seu. Embora as
pobres moças não declinassem de modo algum os motivos por
que iam embora, estes não escapavam à Sra. Sureau. Não exis
te , uma coisa sequer que seja inteiramente sabida, mas, do mes
mo modo, não há uma única inteiramente guardada. Contudo,
a Sra, Sureau achava que não era pagar muito caro "as imensas
qualidades" de Ernestine. E a Sra. Santeuil, tranqüila em rela
ção as contas de sua sogra, já que esta junto a si tinha uma pes
soa tão inteligente, de serviço tão perfeito, que cuidava dela tão
bem, e à qual estava há tanto tempo acostumada, exortava-a
também a lhe sacrificar antes todas as cozinheiras do vilarejo e a
não se separar de uma mç)ça "como não seria possível encontrar
uma segunda". Opróprio Jean, que não pudera dormir na noite
em que, em Paris, o Sr. Santeuil, com a indiferença de seu sexo para com as ilusões e a sensibilidade, respondera sem consideração às perguntas do filho sobre as
relações entre Ernestine e as criadas de cozinha, Jean em Étreuilles sentia-se invencivelmente inclinado a dar razão à única pessoa que soube fazer-lhe a cama como
ele gostava, todos os pratos que apreciava, o café bem quente e o creme de chocolate bem fluido. Seja qual for nosso desejo de caridade e justiça, nossa benevolência
irá sempre ao cabeleireir6 que fará o trabalho sem nos tosar, fixará exatamente a mecha que nos distinguirá, no mundo, do cocheiro do fiacre cujo veículo está limpo
e que nos leva a galope aonde quisermos. Com o risco de fazer o patrão embirrar com ele e talvez o despedir, não escolhemos o rapaz de bom coração que recebe nos
fundos da loja os cachações dos mais hábeis e malvados, que nos corta e nos penteia o cabelo de uma forma ridícula e, no seu desejo de se instruir, nos recita frases
pretensiosas, para as quais sentimos tanto menos indulgência, como, ao mesmo tempo, no espelho, sentimo-nos rapidamente cada vez mais feios sob suas mãos ingênuas
e desastradas. É assim que os carneiros, os frangos e os bois, cuja agonia suportamos sem um só pensamento, porque é necessária a nossos banquetes, não são as únicas
vítimas inocentes que deixamos sacrificar todos os dias. Obem-estar, a elegância, a gulodice, o luxo são soberanos amáveis, cujos inúmeros crimes, cometidos a cada
dia durante séculos sem terem sido uma só vez punidos, entretêm a felicidade e asseguram o império.

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II. Dias de férias

De manhã, por volta das sete horas, quando Jean ainda estava deitado, vinham acender o fogo nos dias frios. No calor de seu leito, ele via pouco a pouco
o quarto vazio se aquecer, clarear, tornar-se alegre e, com o rosto virado para o fogo, sorria ao bemestar crescente que o esperava e que não desfrutava ainda. Imóvel,
semicerrando os olhos, contemplava de dentro de seu sosse-
go os inúmeros volteios da chama, governanta ativa e risonha que, enquanto o jovem patrão descansa ainda, principia sua tarefa, prepara e faz reluzir todas as coisas
a seu redor. Muitas vezes nesses dias, quando o tio mandava perguntar se vinha dar um passeio com ele, Jean respondia que só sairia pelas dez horas e o encontraria
sem falta no parque, perto do canal. Até às dez horas gostaria de ficar trabalhando perto do fogo. Em breve, via as chamas se elevarem, cada vez mais altas, quentes
e brilhantes na
lareira como o sol no céu. Saltava da cama, e, antes de se vestir no pequeno
toalete um tanto -frio situado num desvão
atrás do leito, pés descalços sobre o tapete, aquecido pelas chamas, friccionava o corpo alguns instantes ao calor do fogo que assim permanecia nele, mantinha-o
quente por algum tempo no toalete, onde ademais se vestia com rapidez antes que o calor se desfizesse, com pressa de voltar para junto da lareira.
Pela janela aberta sobre o jardinzinho, via, do seu toalete, o
tio e os primos partirem, fazendo soar na passagem a sineta da porta, levando linhas ou pás, e às vezes somente bastões para

um grande passeio. Mas, pensando nas maravilhosas aventuras que ia ler junto ao fogo, que lhe dariam, sem que se movesse, tanta fome como o passeio e, perto das
dez horas, vontade de ir ao parque, não lastimava ter decidido não ir junto e olhava com alegria o fogo já refulgente que iria ronronar silenciosamente a seus pés
enquanto leria numa boa poltrona à janela. Cerca das dez
horas, ia ao parque, por vezes com o livro debaixo do braço, contando acabar um capítulo ao ar livre, num banco perto do

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canal, pois a essa hora já era bem quente, a proximidade da água era deliciosa. Ao chegar ao parque, não demorava a avistar o tio. Ia-lhe ao encontro e o tio lhe
dava um comprido bom-dia. - Ah, tinha que trabalhar de manhã, bancou o preguiçoso. Sim, tio - respondia Jean sorrindo, já que no seio de uma vida feliz os acontecimentos
mais banais refletem uma espécie de felicidade * comosobre o canal, nesses dias tranqüilos, todas as folhas dos grandes choupos, as vergônteas dos vimeiros da pequena
ponte rústica, o bastão de Jean se refletiam na água, por completo, sem desaparecer, acariciados às vezes pela brisa ou pela passagem de um cisne que deixava a imagem
intacta, depois. Otio de Jean perguntou como dormira, e Jean, cujo espírito brilhava ainda com esse frescor que conserva o dia todo quando o sono o lavou como uma
água abundante e pura, respondeu sorridente. - E o creme de chocolate não te deu indisposição? Não. - Sonhaste? Eu sonhei muito. - Não se lembrava de coisa alguma
dos sonhos, tanto quanto do que lhe acontecera aos dois anos. Era, porém, feliz por saber que sonhava, que seu tio sonhava e que, em horas determinadas, todos os
homens, retidos por uma força invencível num leito negro e profundo, sob os cortinados que cheiram a lavanda, participavam de uma vida misteriosa onde os velhos
eram tão desvaliosos como as crianças ou os homens supersticiosos dos primeiros tempos e da qual aquele que então os conduzia cuidava para que eles não pudessem
recordar.
- Esta manhã temos para o almoço ovos à cocotte, filé com molho bearriês e batatas fritas. Gostas de filé bearnés? - Oh, claro, tio. - Muito bem! Tanto melhor.
E, aliás, temos càdozes * se o tio David os trouxe, não sei. Ah! Mas já são onze e quinze, é hora de partir se não quisermos perder a fritura dizia o tio chamando
os priminhos que logo puxaram as linhas pondo-as nos ombros. Quanto às pás, ficavam por lá pois o jardineiro ia voltar e, além do mais, quem lançaria mão delas?
Ao passo que os cisnes poderiam partir as linhas. Essa necessidade de ir embora vinha a calhar para Jeari, que, pensando intensa-

* Designação comum de peixes gên G bio) da família dos ciprinídeos. (N. do T.)

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mente nos ovos à cocotte e no filé bearriês, não se sentia com dis-
posição para esperar, antes de ir prová-los, e começava a acriar
que o topo aveludado dos íris roxos sobre as águas e o odor em
balsamado das rosas da Síria no canto das aléias davam muito
_jouca satisfação à goela excitada pelo trabalho matutino, pelas
horas e pelo desejo. Voltava-se apressadamente, os pequenos cor
rendo a linha sobre o ombro, que por momentos se emaranhava
e era preciso endireitar para alcançarem os grandes. Já fazia
muito calor e, antes de atingir de novo a aldeia, o tio de Jean
enxugava a testa. Às vezes, atravessando o Loir, vendo os cado
zes sonhar e passar lentamente à flor d'água com.uma preguiça
que nada tinha do sofrimento e da doença, como o testemunha
va ao primeiro ruído, com um brusco bater de cauda, um desfale
cimento bem distante, um dos pequenos atirava sua linha sem
fazer barulho, esperando capturar um desses belos viajantes dou
rados no momento em que, deslizando com vaga sensualidade
entre os seixos ofuscantes e as ervas, percebia um pequeno ver
me apetitoso, gulodice permitida nessa gloriosa jornada, nesse re
gato azul onde tudo parece alegria. Mas o tio, zangado por vê-los
ficar para trás, chamava-os logo. Era preciso vir. Chegavam lo
go. A mãe de Jean lia, esperando-os na sala de jantar. Todos
se sentavam à mesa e o tio de Jean dizia, ao se sentar na cadeira
e pegando o guardanapo: Não sei se vocês sentem o mesmo,
mas estou louco de fome palavras que pareciam deliciosas,
pois traduziam um sentimento geral que, num instante, como o
anunciava o ruído precursor dos pratos frios trocados pelos quen
tes, iria ser logo satisfeito. E o almoço principiava. Diante dos
olhos tinha-se a rua, onde o sol não cessava de brilhar. À hora
da sobremesa, no momento em que a fome já se acalmou e quan
do se encaminha, com as uvas e o café, para prazeres mais re
finados, as cartas chegariam, abrindo uma nova ordem de dese
jos e prazeres, cheia de curiosidade, ternura e humanidade.

Às vezes, quando o tio precisava dar um passeio prolongado, Jean lhe pedia que viesse acordá-lo bem cedo. Primeiro era necessário que o Sr. Sureau passasse
pelo parque para dar ordens ao

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jardineiro. Era madrugada ainda e as coisas, não tendo sido tocadas pelo sol, pareciam mortas. Deixavam rapidamente a aldeia silenciosa, deserta, visível sem estar
iluminada, nem no sono da noite nem à luz do dia, como uma aldeia abandonada num planeta de onde a vida houvesse desertado. Chegavam ao parque e faziam ranger a
porta ao entrar. Não tinham necessidade de chave pois o jardineiro já estava trabalhando. Cavava um campo para a semeadura. Mas essa atmosfera sem luz e o silêncio
quase consistente não conduziam os iuídos que pareciam vir quebrar-se de encontro -a ele, asfixiar-se contra sua doçura quase palpável. OSr. Sureau dava algumas
ordens ao jardineiro. Depois, para sair pelo caminho da parte de baixo, atravessavam o canal. Osol passava sobre as águas que não ostentavam a limpidez da água e
sim o brilho do ouro, ou de verdadeiras cores, malvas, rosadas, amarelas como ao sol poente. Contudo, menos para se confundir na obscuridade do crepúsculo, do que
na luz branca do dia. Tal doçura não levava ao recolhimento e ao silêncio, mas à alegria da vida.
As cores de vitrais, que de noite só acontecem sobre as águas quando o ouro deslumbrante já perdeu pouco a pouco todo o seu brilho, eram logo substituídas
por esse ouro mais próximo do dia, que vem do alto. E a luz, em vez de se estender gradualmente num silêncio cada vez mais vasto, incendiava-se, ao contrário, mais
e mais, em meio a gritos crescentes de pássaros despertos, firmando pouco a pouco, ao sol a pino e cheio de vida, essas cores de magia, sonhos da noite e da manhã
que deturpariam para nós, se não se apagassem depressa, a aparência das coisas. Entretanto, são lamentadas. À noite, permanecemos muito tempo a procurá-las sobre
as águas depois que desapareceram. E a luz da lamparina, e o ruído de vozes à mesa parecem bem ásperos depois da doçura desses reflexos e desse silêncio, bem vulgares
e racionais ao homem que acaba de entrever, por um instante, os encantamentos das fadas. Quanto é mais vivo o mal-estar quando se passa desses sonhos, não,para o
repouso onde a saudade deles aos poucos se desfaz, mas à vida, ao esforço pelas coisas contra as quais eles antecipadamente nos indispuseram. À noite, habituamo-nos,
na cama, a pensar um pouco no impossível, no proibido. A noite, em nossa boca aberta que se

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ouve respirar profundamente, vazará aos poucos, em nós, durante muito tempo, seus odres de olvido. De manhã, porém, se nos deixamos levar por ela, mais um meio de
voltar ao travesseiro, partir de novo para o país onde talvez nos reencontraremos, conservaremos talvez os que não devemos perceber na terra, ou pelo menos que esqueceremos.
Às vezes, o sol brilhava o dia inteiro mas sem ser visto, o mesmo acontecendo com o céu azul, escondidos ambos por uma camada baixa e amarela. Ocanal também
se tornava amarelo, luminoso sem nada refletir. Logo em seguida fazia muito calor. Estava abafado. Mas Jean, por mais que se queixasse desse tempo, experimentava
ao longo do caminho, mais brilhante do que ensolarado, nos campos em cuja extremidade o sol traía sua presença por uma vaga radiação e onde, por vezes, para além
de Étreuilles, o céu em vários pontos escurecia com uma chuvinha, perto do canal onde as carpas e as enguias, que não se viam na água brilhante, quente, baça, turva,
saltavam a todo instante, e nos íris, durante alguns momentos iluminados cada vez mais até fulgurar e depois mergulhados de novo na sombra, o sentimento de viver
ao mesmo tempo nesse dia e em dias semelhantes de outrora.

Nesses belos dias, quando Jean acordava - era sempre um pouco tarde porque ele gostava de dormir bem e sua mãe, feriz com isso, o deixava dormir - ele sentia-se
feliz antes mesmo de se sentir desperto, tendo seus olhos visto, em primeiro lugar, os reflexos de ouro do sol sobre a mesa, como se a felicidade tivesse estado
lá ao alcance de sua mão. Havia felicidade também junto à janela, no jardim, e azul por toda a parte, somente azul até no céu profundo e também carregado, até o
fundo do regato quando dali a momentos ele atravessasse ' a ponte com sua linha. Depois de haver sorrido no leito, de se ter voltado para a parede um instante a
fim de dar um último descanso às pupilas que haviam superestimado sua resistência olhando rapidamente os belos raios que não diminuíam de intensidade diante de sua
fraqueza, levantou-se, vestiu-se com pressa, radiante, cantando. Desceu para o

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jardim e correu para dizer bom-dia ao jardineiro que, chapéu de palha sobre os olhos, de tanto que o sol ofuscava, estava no alto de uma escada encostada às ripas
do muro, podando as folhas das chagas.* Folhas e flores lá estavam, ardentes e retas na sombra, mas respiravam ainda a doçura do sol de que haviam sido banhadas
por uns momentos, e ostentavam essa superabundância de vida das mulheres ao saírem da água e que, enxutas e novamente vestidas, têm ainda as faces mais frescas,
os olhos mais vivos, a fisionomia mais feliz. Assim, entrelaçadas entre as folhas, as flores das chagas suspensas também entre o céu e a terra, as brancas hastes
volúveis com um tom mais ardente no âmago, como no céu certos reflexos do sol, inclinavam-se sobre o regato e esgotando então o sol que aí se desfazia em poeira
luminosa, os íris se seguiam uns aos outros ao longo da pequena cercadura, os miosótis trazendo um ao lado do outro sua florzinha de um azul profundo como um pedacinho
azul do firmamento estendido em sua direção, todas essas flores, em fila como os miosótis ou enlaçadas como as ervilhas-de-cheiro, pareciam descer do céu junto com
os raios, do sol deixando-se deslizar ao longo das ripas pelo muro do jardim e se assemelhavam aos inumeráveis anjos de uma espécie de Dia do Juízo, como os que
são representados pelos grandes pintores da Renascença, anjos pintados de um rosa, de um azul, de um alaranjado tão vivos, uns como chagas, ervilhas-de-cheiro, hastes
volúveis parecendo deslizar nos ares em direção à terra entrelaçando-se, outros como as violetas e os amores-perfeitos, à sombra na terra quente, parecendo dormir
ou se espreguiçar no chão, uns entrelaçados como aqui dois amores-perfeitos conservando na sombra as mais maravilhosas cores da luz, outros sós em todas as posições
mas sempre bem-aventurados, dando a quem os olha uma felicidade inaudita, a idéia de que o jardineiro é uma pessoa ditosa, que este jardim é o paraíso, tendo, porém,
menos que esses anjos dos pintores, o ar de comemorar essa alegria do que de remediá-la, de participar dela. Alegria à qual nem escapava a árvore induIgente que
não cessa de derramar sobre as flores extasiadas a

Chagas. Trepadeira ornamental da família das tropeoláceas (Tropaeolum maius), também conhecida como capuchinha. (N. do T.)

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seus pés, cucos, erva e violetas, aqui a sombra, adiante a luz, nem o cisne que passa lentamente no regato levando igualmente a luz e a alegria em seu corpo brilhante,
depois, entrando numa zona de sombra, reaparecendo na luz, não perturbando em nada a alegria a seu redor e deixando transparecer em seu aspecto feliz que a está
experimentando, mas sem que seu modo de andar lento e tranqüilo seja alterado em coisa alguma, como uma mulher da nobreza vê com prazer os serviçais alegres e passa
sorrindo perto deles, sem desprezar-lhes a alegria, sem a perturbar, mas sem participar dela a não ser por uma simpatia calma e o encanto majestoso que sua passagem
espalha em torno. Borboletas que também conservam na sombra as cores celestes vão de flor em flor, signos desse belo dia, como essas mulheres que saem à rua vestidas
de sedas claras e vivas unicamente quando faz bom tempo e o verão já chegou. E essas borboletas, sobretudo os passarinhos que se divertem no ar, ou estão pousados
em grupos nas árvores, fazem também pensar nos anjinhos alados do quadro de que eu falava, ao passo que no céu aberto até o mais profundo de seu azul o sol pontifica
à maneira de Deus Pai nos raios. Eis o reino feliz, ao qual os reflexos do sol, fazendo do céu ao jardim, do jardim à nossa janela, de nossa janela à nossa vida
uma escala afortunada, se ofereciam para nos conduzir. Eis o reino feliz onde coisa alguma guardava segredo, onde o céu estava no fundo dos regatos, o sol ao longo
dos muros, as borboletas tão belas batendo silenciosamente as asas cerúleas e brancas ou negras de olhos de fogo, saídos não se sabe de onde entre as flores. Tudo
isso sentira Jean ao ver o reflexo do sol sobre a mesa.
Era por isso que se sentia tão feliz? Não sabemos por que o brilho vivo do sol matinal nos dá tanta esperança, os primeiros frios do inverno tanta satisfação,
por que motivo a claridade longa e dourada do sol das cinco horas, mesmo estendida durante uma aula tediosa sobre uma carteira negra toda esburacada pelos canivetes
dos alunos, tem tanto encanto para nós. Mas desde que não sejamos torturados por uma angústia excessivamente dolorosa que nos impeça de participar de qualquer impressão
suáve e nos faça passar por um belo dia de verão como uma criança que chora no meio de outras que corretti e brincam, esse encan-

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to conserva sempre o mesmo poder sobre nós. Graças a ele, sem ter necessidade, para isso, de nele reencontrar os jogos, o jardim, a saúde, as esperanças, encontramos
por um momento a doçura mesma de nossa infância. Assim, a cor que podemos dizer ser verdadeiramente bela, isto é, que, sem ser preciso racionalizar, nos enche de
uma espécie de sonho feliz, não é a do ouro, não é a dos belos estofos, não é sequer a das pedras preciosas, da* ametista, do ouro ou da opala. Não, é a de todas
as coisas ensombradas, mesmo no interior de um pobre quarto onde o sol bate, é também a cor castanha, mais inimitável e que sem este sol vocês não veriam, da sombra
que uma coisa que está em frente lhe projeta. Graças a ela, Jean envelhecido, nada mais esperando da vida, vivendo de um duro trabalho numa cidade de onde não saía
nunca, de onde não via nunca o campo, dormindo mal, acordando com mal-estar, sem esperança nos dias seguintes, sem ter necessidade, para isso, de jogos, do jardim,
de saúde, de esperanças da infância, redescobria por um momento toda a doçura. Abria os olhos ao perceber os reflexos do sol sobre o assoalho, acreditava ter ainda
a felicidade ao alcance da mão. Vestia-se depressa e, ao entrar de novo no quarto, a visão do sol espalhado em seu leito, a bela cor pálida do sol sobre os lençóis,
fazia-o sorrir inocentemente. Beijava a mãe sorrindo, beijava-a como quando ela era jovem e bela, beijava-a como se estivessem no amanhecer (quando se acaba de tomar
o desjejum, e tudo está pronto para começar o dia) de uma vida admirável em comum, e quando, juntos, iam começar a jornada desta vida. Erguendo a mão, via sua sombra
castanha passar sobre os lençóis e, no poder que possuía de criar essa bela sombra castanha sobre a cor pálida e dourada do lençol, doada pelo sol, sentia uma como
essência feliz da vida. Era preciso trabalhar. Atravessa-' va o pátio da casa, mas seus olhos risonhos viam flores no passado. Ia para o trabalho, o paletó no braço,
pois fazia muito calor, mas cantava com ar feliz. No trabalho copiava cartas, conservando, porém, o ar feliz como se brincasse. Osol já se havia posto e o céu estava
acinzentado. Entretanto, o calor e o verão desciam, e até mesmo a luz, que fazia parecer transparente a água do Sena. Jean sentia-se feliz a ponto de desfalecer,
como nos momentos em que a vida pára. Um outro empregado, com

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sede, fora beber. Estava tudo silencioso. Ouviam-se bater ao longe os martelos. Jean pensava que regressava do passeio cansativo depois de almoçar em Étreuilles,
que entrava na casa refrescante. Nesse momento o cheiro a bolor de um livro que lhe davam, como os que encontrava na biblioteca do cura, era suficiente para inebriá-lo.
Osol reaparecera tão forte que era necessário erguer os postigos.

Quando Jean voltava do campo, pouco antes da hora do almoço, as cadeiras
já se achavam, muitas vezes, em seu lugar ao redor da mesa. E certamente como a luz branca do meio-dia imóvel sobre as estradas, sobre a mesa o exército
rutilante, imóvel e já completo dos pratos, dos talheres alinhados ao lado dos pratos, dos saleiros colocados por último, das garrafas menos numerosas e mais altas
que comandam uma fileira por inteiro e, sobretudo, para cada prato, guardanapos dispostos como toucas brancas que Ernestine só mobilizava no fim, indicava que estava
perto o meio-dia e que, tendo soado as doze badaladas, os convivas não tardariam a tomar assento, dando assim o sinal de manobra dessa brilhante artilharia de facas
e garfos e do desfile de pratos que Ernestine, como um chefe solícito, apresentava de um em um, desfile mais agradável ainda quando era favorecido por um belo sol
que fazia resplender o vinho nas garrafas e vinha brincar na mesa entre os garfos e as facas. Mas nos dias em que Jean desejava ter muito tempo para ler antes de
almoçar, que prazer, entrando na sala de jantar, ao encontrar as cadeiras ainda enfileiradas lado a lado contra a parede e a mesa redonda de mogno inteiramente vazia
no meio da peça, sem sombra de preparativo. Eram olhadas por Jean com bastante satisfação, essas cadeiras de mogno ainda enfileiradas ao longo das paredes consteladas
de velhos pratos, disposição que guardavam até cerca das onze e meia, quando Ernestine vinha colocá-las ao redor da mesa. Mas, antes disso, passava-se uma boa hora
em que Jean podia ler junto da chaminé, pois a julgar pelo frio que ainda fazia perto das janelas o fogo não devia ser aceso há bastante tempo. Tinha ainda de aquecer
bem toda a peça e começava sua tarefa com alegria,

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deixando cair de quando em vez uma grande brasa que desaparecia nas cinzas e lançando às cadeiras um reflexo aquecedor que sobre elas brilhava sem poder ficar quieto.
E a pêndula que só mareava dez horas parecia, com uma atividade bem matinal, apressar-se em fazer, sem perda de um minuto, todo o caminho que como o sol tinha ainda
de fazer antes do meio-dia.
Existe, no tempo seguinte, um repasto copioso, uma espécie de tempo em áspensão cheio de doçura, de inteligência e de energia, onde permanecer sem fazer
coisa alguma nos concede o sentimento da plenitude da vida, ao passo que o menor esforço nos seria insuportável. Os desgostos que trazíamos ao vir almoçar desapareceram,
e se pensamos neles é com um sorriso, como num passado ruim cuja causa deixou de existir. E com o desgosto, o escrúpulo, o remorso. Se tivéssemos oportunidade, faríamos
daí a pouco o que nos havíamos prometido esta manhã não fazer, e cuja simples idéia, agora, nos traz vivamente ao coração um vasto e agradável fluxo de sangue. Mas
esse primeiro momento que se segue ao fim do repasto é mais inocente. Cada um dos convivas obteve seu quinhão da realeza do festim instituído na Antiguidade e que
o festim na verdade confere durante uma hora a todos os que dele participam. Cada um a exerce à sua maneira, como podem ver entrando num salão onde se tem pressa
de vir tomar café antes que esse estado de coisas principie, porque depois não se pode ter mais certeza de perturbar ninguém.
Olhem-nos espalhados pelos mais diversos recantos da sala, seja onde estiverem sentados antes e que, para não terem de se levantar, não quiseram abandonar,
seja no lugar em que o hábito, os cálculos do requinte ou da prudência - quando num - lugar melhor arríscar-se-iam a ser incomodados no momento em que isto lhes
fosse mais desagradável - lhes fizeram escolher. E cada um entrega, escravo dócil, a um prazer especial o seu íntimo, sem ser obrigado a se incomodar e a perturbar
seu bem-estar, acariciá-lo, torná-lo mais sensível, fazê-lo perceber mais intimamente. Um, estendido na posição dos que chamam para junto de si os animais favoritos,
tendo alojado comodamente num canto da boca seu cachimbo bem-amado, fumarento, em chamas e malcheiroso para os outros, para ele tão suave, faz acariciar por meio
dele, com o hálito devidamente amornado, a goela saturada de

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carnes e bebidas. Ao aspirar, ergue suavemente o peito que desce de novo e faz vibrar, passando lentamente de uma para outra posição, as cordas mais doces do bem-estar.
Uma pequena garrafa de conhaque está perto de si, sobre uma mesinha colocada suficientemente próxima para que possa beber e fazer a garganta experimentar uma sensação
diversa e tão forte sem precisar se incomodar. Um outro, estendido na mesma posição diante do grande vão envidraçado, única coisa que os separa da praia e deixa
entrar a luz, o espetáculo do mar, sem permitir a entrada do vento que seria bem desagradável nesse instante, parece fazer com que suportem os olhos, de preferência,
diante dos quais desfilam as cores, avivadas pelo sol, do mar verde ou azul de velas brancas, dos navios negros, da fumaça volatilizada no ar, todo o prazer passivo
que são suscetíveis de desfrutar. Recebido, porém, nos olhos, o prazer se propaga mais além e vai despertar outros prazeres em cada sentido. Num recolhimento tão
profundo quanto o do fumante, esse outro rei do festim crê sentir o vento que faz estalar a chama, encrespa o mar, infla a vela. Por toda a parte os jogos de luz
se misturam aos do vento. Crê ouvir os guinchos das gaivotas que sobrevoam o quebra-mar e sentir nos lábios o gosto de sal. Depois, sem no entanto se erguer, acha
que ainda está muito fatigado e baixa as pálpebras sobre os olhos como persianas que só deixassem passar a luz sem nos dar a visão das coisas. Oque enxerga é só
a luz que conseguiu passar mas devendo renunciar a trazer consigo o espetáculo das coisas. Essa luz é delicadamente rosada, branca, dourada, sem que ele saiba se
se trata da cor da atmosfera ou da cor das pálpebras, como o ruído que ouvimos quando aproximamos uma concha à orelha. Um outro chegou sua poltrona ao piano onde,
sentado num tamborete, um rapaz mais sóbrio ou para quem o exercício de seu talento é bem mais fácil de modo que não lhe traz fadiga, indispensável quem sabe para
dissipar a canseira que lhe resultaria do fato de não poder se livrar dela, ou excitante o suficiente para vencê-la, toca uma melodia encantadora. Oque puxou a poltrona
para perto do piano puxou-a talvez sem se erguer de todo, arrastando-a consigo. Se o piano está longe, escuta-o de seu posto, Mas este é a melodia que se encarrega
de seu bem-estar e de lhe dar o movimento delicioso que é susce-

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tível de realizar sem sair de seu repouso. Ela o conduz a seu talante, rápida ou lenta e sinuosa, fazendo-o trilhar~cem vezes os mesmos caminhos. Ou levando-o de
repente para ~em longe com um prazer sempre renovado. Às vezes ele a acompanha com sua voz, que lhe dá satisfação ao senti-la passar pela garganta, e que, tirando-o
da reserva de simples ouvinte, marca seu despotismo e aumenta seu bem-estar sem perturbar-lhe o repouso.
Se nesse momento se ouve uma carruagem que pára diante da porta e vêem-se visitantes parados que esperam, para descer, a resposta aliás nada equívoca do
porteiro, vêem-se fugir, com uma rapidez de que ninguém os julgaria capazes, esses dorminhocos despertados, como um bando de lebres ocupadas em comer dispara, ao
ser perturbado, para retomar mais adiante o repasto interrompido, não sem levar um a sua garrafa de conhaque, outro o seu cachimbo, outro o seu jornal, preferindo
uma perturbação violenta para evitar outras e se é este o preço a pagar em definitivo para não se ocupar mais de coisa alguma, o repouso, o verdadeiro repouso, aquele
em que não se está obrigado a oferecer a própria cadeira, a se levantar para acompanhar à porta, a permanecer relativamente ereto na cadeira, a falar, a responder,
a se privar de fazer caretas, bocejar, espreguiçar-se, esfregar os olhos, prolongamentos necessários do bem-estar de que são os sinais quase físicos e incoercíveis
que consomem o prazer causado por uma sensação qualquer, que se destacam no seio do repouso, como esses últimos círculos incapazes de a quebrar e que vêm se desvanecer
à superfície das águas calmas onde caiu uma pedrinha.
Eis como a visão retrospectiva da sala de jantar de Illiers, quando em dias de intenso calor Jean e seus primos, não podendo dar seu passeio e tendo de substituí-lo
pela sesta, ficavam alguns instantes à mesa após a refeição, antes de subir para os respectivos quartos, despertando em mim outras recordações, outros pósalmoços,
me arrastou para tão longe da casinha da província de onde, sabem vocês, não se avista o mar e sim uma rua da aldeia onde aliás não passa muita gente ao meio-dia.
Já que falamos de reis do festim, é necessário dizer que o tio-avô de Jean, seus tios e primos, se é verdade que tinham então, como os outros, sua hora de beatitude
e- absolutismo, diferiam dos convivas a que

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me referi há pouco sem nomeá-los, pois provavelmente não os conheceste como eu, leitor (mas, felizmente para o romancista, há menos gostos e caracteres do que homens,
ou antes, o mais singular participa bastante dos gostos e do caráter de um grande número de homens, de modo que te falando de meus amigos tenho boas possibilidades
de te espantar pelo conhecimento aprofundado dos teus, que entretanto jamais vi, se, como o espectador ingênuo, não percebes que o prestidigitador não precisa ter
visto por milagre a tua carta para te dizer qual é, pois no jogo em que julgaste escolher todas as cartas são semelhantes), diferenciavam-se deles tanto quanto,
na verdade, os reis modernos diferem dos antigos, que eram, nos diz a história, cultivadores tanto quanto reis, crença que vem fortificar-se à vista dos retratos
que deles permanecem e onde os atributos mais simples tomados à vida do campo parecem revelar uma soberania mais natural e ainda inocente. Do mesmo modo, parecem
não ter largado o cavalo nem deixado a carroça que os conduzia aos campos ao estarem no trono e entre os coxins. Assim, nesse instante de que falávamos há pouco,
em que o bem-estar que se segue à digestão iniciante basta plenamente para preencher a vida, o Sr. Albert, seu sobrinho e seu sobrinho-neto permaneciam aprumados
na cadeira, tendo simplesmente deixado de comer e não fazendo outros movimentos. OSr. Albert não esmorecia na cadeira, mas cessava então de falar muito, testemunhando
assim o abrandamento que se operava em suas faculdades. Cada um 'permanecia imóvel, sem pensar em nada, quase não mais falando.
É entre esses atributos antigos e inocentes da soberania rural que se poderia fazer penetrar de novo o aparelho extremamente complicado, porque era muito
primitivo, que a criada levava então ao Sr. Albert e no qual ele fazia o café em virtude de uma prerrogativa que não teria cedido a nenhuma outra pessoa. Se por
acaso, tendo partido para uma fazenda, não vinha almoçar, ---Quemvai fazer o café?" tornava-se, por assim dizer, uma questão constitucional. A não ser que lá se
achasse uma personalidade marcante como o Sr. Santeuil, era preferível recorrer à criada, tida, em geral, como uma espécie de secretário de Estado, de modo que isso
evitava a nomeação arbitrária de um suplente. Tal aparelho era de vidro e assim viam-se formar as bolhas, o vapor

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misturado à essência do café espalhar um fumo enegrecido na face interna, e a água, ao se elevar, atravessar um filtro e cair de novo noutro tubo onde era recolhida.
OSr. Albert ouvia a água ferver e essa música, menos sábia que a cavalgada que estimula as digestões mais distintas, mas exprimindo perfeitamente o bem-estar que
ele experimentava e anunciando com muita clareza o momento próximo em que o café fumegante ia acrescentar a esse bem-estar uma sensação deliciosa de calor, de gosto
açucarado e vivo e de delicado perfume, enchia-lhe as medidas. Quanto a Jean, o exercício moderado que lhe permitia entreter em si esse mínimo necessário de atividade
para perceber mais nitidamente o repouso da digestão consistia em geral em guardar na boca e nos momentos extremos em fazer passar da bochecha direita para a bochecha
esquerda um caroço de pêssego ou de cereja, o que a mãe lhe proibia com medo de que o engolisse, embora o médico tivesse dito que não havia perigo algum e o Sr.
Santeuil desse de ombros diante de semelhante superstição. Por isso, Jean evitava apoiá-la com muita força com a língua contra a bochecha, que fizera inchar de medo
que a mãe o percebesse. Precaução perfeitamente inútil, pois somente quando havia cuspido o caroço há muito tempo, ou não sonhava mais em retèlo, é que a Sra. Santeuil,
tomada de uma suspeita tão violenta quão injustificada, lançava-se a ele dizendo: - Que é que ainda tens na boca? - E enquanto ele estava com o caroço ela nem desconfiava.
Mas depois de o haver cuspido, não mais temendo que a Sra. Santeuil sancionasse sua cólera por meio de uma privação que não o atingia então, tinha de confessar que
permanecera o tempo todo com o caroço na boca, fosse para confundi-la, fosse por necessidade de ser sincero, fosse pelo desejo de não deixar ignorados os perigos
que tão bravamente correra de uma pessoa que compreendia tão bem sua extensão.
As únicas frases que foram ditas durante esses curtos instantes eram: - Ah, de fato faz muito calor. Unia tempestade seria bom. - Nada, que para vir do prado
até aqui foi preciso trocar de camisa, estava todo ensopado. - Se abrirmos, não ficará mais fresco? - Ob, não! faz muito mais calor lá fora do que dentro. - Mas
só no pátio, que no entanto é protegido pela nogueira, faz quarenta graus à sombra. - Veio que vai subir para

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dormir. - Olha só quem fala! E você deveria me imitar. - Ora, eu preferiria fazer dez léguas a me estender o dia inteiro. Parece que isso me dá febre. - É curioso,
não me sinto nada bem quando não tiro um cochilo durante o dia, é tão bom. - Estas últimas palavras eram pronunciadas pelo Sr. Santeuil em resposta ao Sr. Albert,
inimigo declarado das sestas. É verdade que, quando todo mundo estava deitado, ele se retirava para um pequeno gabinete mobiliado "à oriental" com mil coisas trazidas
da Argélia, com muitas esteiras no chão, cascas de coco esculpidas, fotografias representando mesquitas e palmeiras, pequeno anexo de construção à parte, não comportando
nenhum pavimento, dando diretamente para o jardim por meio de janelas em quadradinhos coloridos e que faziam em Jean o efeito singular de pertencerem a seu tio em
virtude de um direito especial, sinal de sua situação ou de sua fortuna diferente da dos demais, de uma casa coberta de lembranças como uma tumba fresca, como um
oásis, decorada à maneira de uma casa de banhos, sombria como uma igreja. Retirava-se para aí onde ninguém devia vir perturbá-lo, pois era sabido que se entregava
a trabalhos importantes ou talvez que se refugiasse ali em misteriosas recordações. E Jean, quando ele de lá saía, via-o com freqüência esfregar os olhos, tendo
respondido, aliás, com voz assustada e nem sempre à primeira chamada, aos apelos que vinham de fora, procurando-o para o passeio, e todas essas coisas lhe faziam
pensar que, talvez para puni-lo por haver falado mal dele, o sono o assaltara no momento em que se dispunha a trabalhar ou enfileirar as fotografias ao longo da
espreguiçadeira perto do narguilé.

Jean subiu para o quarto. Os postigos estavam fechados. Contudo, abaixou mais as cortinas e se atirou na cama, adormeceu depressa, acordando de quando em
vez, as pernas pesadas como se tivesse andado, mas de um peso que lhe daria vontade de sacudi-lo de todo indo passear, esperando os membros esparsos como se estivessem
soltos a seu redor, e escondendo no travesseiro, sentindo sua fronha fresca, o rosto que ria de felicidade de ser assim despertado entre duas sonecas. De tempos
em tempos, uma mosca cujo vôo começava a vibrar aumentava o tom de maneira

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contínua. Bruscamente não era mais audível, havia pousado. Como ia quase sempre assim, música na cabeça, à força de ouvir o som Jean estimava a que distância ela
passava, esperando que estivesse perto demais para poder se desviar. Mas às vezes era surpreendido. Uma mosca pousara em seu rosto, pequeno animal irrefletido mas
inocente, pardal dos insetos, de patas ativas, asas castanhas e não muito ligeiras. Com um brusco movimento da mão, Jean a espantava e ria por estar de novo tranqüilo
depois do movimento que tivera de fazer e que esticara agradavelmente as pernas e o corpo, no qual tanta voluptuosidade enlanguescida dormia que ele despertava ao
menor movimento. Dos cantos mais celestes se faz a música divina dos dias quentes, lá fora, debaixo do céu azul e ofuscante, à sombra das árvores, onde os pássaros
cantam em coro para toda a nave. Entretanto, as mais humildes moscas fazem sozinhas, talvez com algumas marteladas ouvidas da rua graças ao silêncio e tomando a
esse grande silêncio dos dias quentes uma harmonia: especial - talvez não harmonia no sentido estritamente musical do termo, mas harmonia com todo o resto e que
altera o som - as humildes mosc`as fazem sozinhas, dizia eu, a música de câmara desses dias extremamente quentes, tendo sua poesia especial, refrescada, obscurecida
pelas persianas abaixadas e silenciosa por detrás das janelas fechadas, na atmosfera em que só vivem poltronas de madeira e veludo, um estrado de tela numa cama
de madeira, onde as únicas flores são as inumeravelmente monótonas de papel, a escrivaninha de mogno, onde a água fresca não surge naturalmente entre as manchas,
mas enche um jarro numa tina barulhenta, e onde faz bem, enquanto o pedreiro bate na rua, dormir um pouco, a cabeça no travesseiro. Esses dias tórridos têm uma poesia
que não é desprovida de doçura, nem menos rica que a dos bosques a essa hora, porém mais humana e de um descanso talvez mais profundo e merecendo, por isso, ter
igualmente sua própria música.
Assim, mais tarde, fiquei conhecendo mais de um dia triste em que, obrigado a permanecer em Paris na época em que os bosques são tão belos, não sabendo quase
que estava no verão e achando que sua poesia estava definitivamente perdida para ele, atirado às vezes sobre seu leito por um instante para esquecer o

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calor que sentira como um cansaço a mais, Jean ouvia de repente uma vibração sonora por perto. Aumentava. E revendo de súbito os belos dias de Ilhers, as macieiras
em flor no prado, o pedreiro batendo na rua, a pesca no tanque, Jean agradecia a esses músicos inocentes que vinham para junto dele anunciar ruidosamente que devia
se alegrar, que ele não estava nem fora da natureza nem fora do verão, visto que estava junto deles e em seu canto monótono lhe falavam de novo da glória eterna
do verão. Como em outro dia numa rua desta mesma Paris onde nem uma clematite conseguia fazer passar pela fenda das pedras, sobre o fio colorido e crescente de seu
talo, o pavilhão sedoso de sua flor para fazê-lo amar essas ruas e lembrar-lhe que o verão as havia ganho, foi uma humilde lagarta trajada de veludo castanho ornado
de seda que ele avistou como um presságio na parte inferior de um muro escaldante e batido pelo sol, muro cuja longa ascensão ela tentava. E com os olhos fixos nesse
sinal que não é permitido aos homens imitar, o coração cheio de alegria por esse augúrio certo da presença do deus Verão, contemplou longamente com piedade, sem
erguer sobre ela a mão sacrílega, a favorita do deus, mais ainda a criança nascida de si talvez naquela mesma manhã, que logo principiava os trabalhos que deveriam
marcar com um leve fio de prata sua curta passagem pela terra, silenciosa, voltando para seu objetivo fosse quando chegasse, recebendo os golpes sem se demorar em
devolvê-los, seguindo sempre seu caminho como aquele que deve um dia recompensar tanta glória e a quem está prometido o espaço ínfinito do céu.
Pretendemos com freqüência que as melodias ouvidas outrora e alhures tenham o poder de despertar em nós a recordação e como que o encanto dos lugares, da
época em que foram ouvidos, pois a lembrança conserva o passado sem o mutilar e aquilo que era uno na realidade permanece unido em nossa memória. Mas como essas
melodias naturais que não contêm, como as músicas de arte, um sentimento independente do tempo em que foram ouvidas, não tendo outra coisa que expressar, guardam
mais vivamente para nós o encanto mesmo da hora, da estação, da terra onde as ouvimos. E esse encanto não existe somente aqui, como se dá em relação com a música
humana, em nossa

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memória, ela está verdadeiramente nessas melodias naturais. Tal melodia de Schumann pode nos fazer lembrar a voz amada que a cantava. Sabemos bem que ela não guardou
coisa alguma, que ela pertenceu a muitas outras vozes, que como a natureza ela deixa cada um esconder em si a própria felicidade e as lembranças sem se preocupar
com isso, sem as sentir, sem preferir nenhuma porque é de todos, exprimindo um ideal mais elevado, superior aos indivíduos. Sabemos que ela empresta simplesmente
sua beleza às ilusões de nossas lembranças e que, mensageira indiferente, irá desse modo em direção a cada um, levando-lhe a recordação que lhe é cara e que ela
não conservou, como os bosques são suficientemente profundos para guardar tantos segredos que ouviram em confissão, para enfurnar tanta felicidade que esconderam
pelos amores que viram. Mas essas humildes melodias naturais têm um nexo profundo, uma harmonia, com a estação em que foram ouvidas. Pode-se dizer que nasceram de
sua essência e participam simplesmente de seu encanto. Nascidas dela, gritos de adeus das andorinhas nos primeiros dias frios, ou zumbido de moscas no calor, é com
muita naturalidade que esses músicos nos falam dela, pois que é ela mesma que nos fala em suas canções. Não temos necessidade de nossa amiga para cantar a melodia
de Schumann. E para outros que não vocês, outras bem diversas a cantarão. Mas se o verão não viesse com seu calor que ninguém poderá jamais imitar, acham que isso
significaria o fim da música das moscas? Por isso, quando a ouvirem, terão o direito de a reconhecer, e a saudação alegre que sua amiga memória lhes enviar não se
engana jamais.

Às vezes, nos belos dias de verão, partiam depois do almoço e, como só esperavam voltar para o jantar, levavam junto a merenda. Se o sol estivesse muito
forte, a Sra. Santeuil emprestava sua sombrinha a Jean. Enquanto fazia muito calor, ia-se o menos possível pelo campo, tomando de preferência pelas pequenas veredas
bordadas de sebes que as costeavam, suplantadas pela altura do talude. As sebes agora todas verdes não mais brilhavam com as cores suaves das flores dos pilriteiros.
Os lilases

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ofereciam apenas uma cúpula ressecada, lívida. As próprias árvores frutíferas haviam perdido seu adorável manto de inocência. Mas em lugar das flores claras e perfumadas,
cerejas em quantidade compunham-lhe uin adereço menos leve e mais sombrio, porém singularmente vivo e agradável.
Aqui e ali, por detrás do talude, nos campos, de repente, uma papoula nascida no calor do verão, hósp~de de suas ervas espessas e da sombra luminosa, içava
ao alto da cordoalha estendida de seu talo verde e esguio a flor brilhante e simples como uma única e vasta* pétala rubra. Assim ela se erguia, sozinha sobre a encosta
do talude no meio das ervas, e por momentos o vento a curvava, fazia palpitar na sombra a sua fiâmula rubra, leve o bastante para que brincasse com ela, solidamente
presa para que a pudesse arrancar. Assim, nessa terra sombria das ervas, trazida por ninguém, quase nunca vista de ninguém, deixando escoar as horas, brilhava sempre,
maravilhosamente, em púrpura magnífica, na ingenua monotonia de sua beleza, dando ao raro passante que percebe de repente seu pavilhão rubro e delgado o prazer de
uma descoberta, esse sentimento misterioso que o plantio num jardim e a disposição num buquê retiram às flores, mas que elas fazem nascer tão violentamente em nós
numa campina, à beira de um charco, num bosque, pela súbita floração de uma corola isolada, ou o inexplicável agrupamento de flores semelhantes, ainda que uma criatura
maravilhosa e delicada pareça ter buscado a solidão ou se extraviado no meio de uma campina, contra um rochedo onde deseja permanecer, sem se confundir nem murchar,
a cúpula de um veludo tão rico e colorido, ou que um grupo de pervincas, vindo em grande número beber e apreciar o frescor à beira d'água, e ainda aí, não perturbada
com a nossa chegada, como um bando de jovens gazelas, como uma aparição celeste que nossa vista surpreendeu e nem por isso se perturbou.

Ficando os dias cada vez mais quentes, Jean pescava no parque antes do almoço, de preferência a ir caminhar, reservando-se para uma pequena volta após o
almoço e o grande passeio das

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quatro horas até o jantar. Mas às vezes, em plena primavera, fazia um dia frio. Jean deixava suas linhas, pois, como dizia o tio, não fazia tempo para ficar nesse
lugar, e eles iam juntos a uma herdade vizinha de uma légua ou à aldeia a fim de dar recados para o Sr. Sureau. Jean estava encantado, alegrava-se e se reanimava
ao andar depressa com o tio, fazendo ranger as solas dos sapatos, correspondendo de passagem às saudações respeitosas das pessoas relativamente ao seu porte e, enquanto
o tio discutia com o caseiro ou o segeiro, indo e vindo ou correndo, batendo com os pés, as mãos nos bolsos, dizendo alegremente aos camponeses ou à caseira que
escutava de longe a conversa do Sr. Sureau com seu marido: - Não faz calor. - Omesmo anseio de tagarelice que nos impele na cidade a falar com os amigos sobre acontecimentos
da vida política ou da vida privada se satisfaz na roça em falar com quem encontramos, com o mesmo ar de importância, do tempo que está fazendo. É uma alegria para
o burguês que volta tranqüilamente para jantar em casa com os filhos, depois de um dia trabalhoso, distrair seu espírito honestamente fatigado e reavivar a língua
há tanto imóvel, esperando que ela se delicie mais diretamente ao contato de um frango laqueado de molho, dizendo: - Não tem importância, vivemos num regime engraçado!
- Não era prazer menos vivo para Jean, sentindo- contra a pele o duplo calor do sangue excitado por um belo passeio e do casaco forrado, dizer: - Não faz calor,
minha senhora, que tempo gozado!
Quando, por volta do meio-dia, entrava em casa com o tio, que alegria, ao abrir a porta da sala de jantar, enxergar um belo fogo que aqueceria as costas
enquanto se almoçasse, e perto do qual a Sra. Santeuil, fresca devido à recente toalete e bela em seu manto vespertino, já lia o jornal, e ouvir a avó Sureau dizer:
- Pensei que agüentaríamos um pouco de fogo. - OSr. Santeuil se resignaria a isso. Pois, como dizia a Sra. Sureau, nunca se viu pessoa tão reaquecida como ele. Jean,
porém, se precipitava para perto do fogo. - Olha - dizia a Sra. Sureau se teu filho lá pensa que o fogo é demais. - Todos os que chegavam à sala de jantar, um após
o outro, iam dizendo à Sra. Sureau: - Que tem vovó! Que tem o titia - a ós o ue cada um ia aleiyre ente na direcão da lareira. - Henri deixe- e
aquecer - dizia Jean -, daqui a pouco te dou o meu lugar. - A cada um a Sra. Sureau respondia: - Não me falem disso, nunca vi uma primavera assim. A gente não entende
mais nada. - Ela era daqueles que, sentindo um prazer físico em dizer que tudo o que se passa a seu redor é extraordinário, acabam por se convencer disso, sejam
os acontecimentos da política, os dramas da sociedade, as mudanças de temperatura e as variações climáticas, acontecimentos e dramas da vida no campo. Citadina,
sentiria um prazer muito vivo para se recusar a falar do desgosto que lhe causavam as inconseqüências de uma das amigas ou os erros do ministério. Além do mais,
depois que se elegera em Étreuilles um prefeito radical que não saudava o cura, adotara em face de todos os acontecimentos um tom pesaroso que dava a impressão-
de serem infortúnios, e em presença de todos os infortúnios uma ausência de espanto que. mostrava que ela bem que os havia previsto. - Nos dias de hoje não se pode
ficar espantado com nada - dizia. E acusava as escolas laicas indistintamente de responsáveis pela deterioração do comércio e pela umidade da estação.
Às vezes o frio se mantinha assim por alguns dias. De noite, após o jantar, ficavam conversando à luz do candeeiro, pois fazia muito frio para saírem. Jogavam
cartas e Jean sentia com prazer a fadiga que principiava a lhe pesar nas pálpebras e o fogo que lhe aquecia os pes. - Escutem o vento lá fora - dizia o Sr. Sureau.
apurando os ouvidos. - Nem se diria que estamos em maio. Vamos de volta ao inverno, quem sabe. - Omedo desse perigo, tal imprevisto de viagem misturado ao conforto
da casa, fazia rir a Jean, e ele continuava a jogar cartas. - Sei de alguém que achará sua cama com satisfação - dizia a mãe, olhando-o. E Jean sorria com ternura.
A mãe estava no outro lado- da mesa que dava para uma poltrona, o rosto bem iluminado pela luz da candeia. - Não é mesmo, meu querido, vamos bem cedo subir para
deitar, nós dois. Falei com Ernestine para te preparar uma botija. - E Jean, enquanto jogava cartas, estirava as pernas como se elas se revolvessem de prazer ao
contato da suavidade
Como saíam a passeio imediatamente após o almoço, muitas vezes ainda não eram três horas quando Jean estava de volta. Entrava tão cansado que, para não ter
de se mexer, levava para junto de sua poltrona tudo o que poderia precisar, uma espátula, o segundo volume do romance que estava lendo e punha tudo isso à mão. Se
fazia frio, e a criada subia para acender o fogo, esperava que o fogo estivesse aceso, que ela erguesse a janela e fosse embora em definitivo antes de se instalar
na sua poltrona e aí desfrutar, num gozo profundo, seguindo imóvel as aventuras apressadas dos heróis romanescos, a fadiga do corpo e a agilidade do espírito. Interrompia
a leitura por momentos a fim de esticar as pernas, soltava um suspiro de bem-estar, lançava um instante os olhos a seu redor, do pedaço de obus protegido por vidro
sobre a lareira, à fotografia que representava, na parede,, o incêndio de Châteaudun, como para retomar pé na solidão bemaventurada onde ninguém vinha perturbar
sua identificação com as aventuras do capitão Fracasse e dos comediantes. Depois reiniciava, a leitura. Às vezes, tendo necessidade de repousar um pouco mais, chegava
até a janela onde se estendia um lado do castanheiro cor-de-rosa do senhor cura, imenso ramo e que fazia supor uma árvore ainda mais prodigiosa do que realmente
era. Ficava florido durante todo o mês de maio. E não longe uns dos outros, seus cachos de flores erguiam-se inumeráveis e por cima da folhagem enorme e tranqüila,
como uma floresta cor-de-rosa sobre a vertente desigual de montanha verde. E como, todas as manhãs, encontram-se no chão plumas de pavão sem que lhe falte uma só,
tombavam da árvore deslumbrante e formidanda, sem que ela própria percebesse e sem que aquele que a olhasse, orgulhoso de seus cinqüenta torreões rosados, pudesse
se aperceber do fato, tantas flores que a varanda do cura parecia ter sido juncada de pétalas de rosa. Mas Jean voltava logo a cair na leitura e no aniquilamento
do corpo. Como uma gota de vinho é o bas-

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tante para fazer delirar um rapazola em jejum, o fiozinho de melodia que, sob a janela em que a poltrona estava apoiada, o rouxinol habitual do castanheiro rosado
fazia jorrar quase contra o vidro, ou, quando, o cotovelo apoiado no braço da poltrona, ele punha a mão diante da boca, o cheiro suave da pele bastava para inebriá-lo
do sentimento de seu repouso e de sua felicidade. Depois, pouco a pouco preso à ação do livro onde seguia apaixonadamente cada personagem, perdia por instantes toda
a sensação do restante das coisas.
Quando os primos, que haviam ficado muito tempo embaixo a conversar, ao entrarem de volta do passeio, antes de subir para trocar o calçado e escrever cartas,
passavam ruidosamente pelo corredor, Jean parava, temendo ser incomodado. Se, porém, um deles abria a porta, ele fixava os olhos no livro, sem ler coisa alguma na
realidade. E, assustado com a ocupação profunda que vinha perturbar, o intruso retirava-se na ponta dos pés. Quando os amigos da vizinhança chegavam em visita, a
mãe o protegia dizendo que ele não estava presente ou que se sentia mal e tivera ordens de repousar. As vezes o perigo parecia maior. Era obrigado a deixar o quarto
percebendo que iam subir, e se dirigia para o gabinete do tio, em cima, onde a parede era coberta de mapas representando o teatro da guerra de 1870 e de uma carta
detalhada do departamento, resolvido a seguir a qualquer canto os heróis a cujas aventuras estava preso. Ogabinete estava um andar acima. De lá ouvia as pessoas
subirem a escada até o primeiro andar, chamarem, baterem sucessivamente a todas as portas, abrirem, dizerem bem alto: - Não está. A criada, de baixo, dizia: - Mas
eu o vi entrar. - Divertido com a segurança do esconderijo, Jean, entretanto, lhe teria de bom grado torcido o pescoço. E, ouvindo o tio dizer a Pierre, seu priminho:
- Procura bem, dize-lhe que é preciso que desça -, ficou temeroso de não mais poder resistir. Quando a visita estava descendo, Pierre abria a porta dos gabinetes
que davam, pelq janela sempre escancarada, para uma outra parte enorme e aromatizada do castanheiro rosado, cujo odor se mesclava ao cheiro mais fraco da enfiada
de grãos de íris pendurados na parede e que Jean descobrira ultimamente provirem dos belos íris roxos do canal dos cisnes, não longe do ponto onde pescava

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as carpas, no parque. Abrindo a porta dos gabinetes sem resistência, Pierre não sabia mais onde encontrar Jean. Às vezes subia ao gabinete. Jean, então, impressionado
com o espanto que Pierre teria ao descobri-lo, e não podendn suportar a emoção de sentir abrir-se a porta, ia por si mesmo e sem ruído pelo patamar, fazia sinal
a Pierre pondo um dedo nos lábios unidos como para dizer "psiu" e lhe dava a entender que o seguisse. Entravam ambos no gabinete. Jean voltava a fechar a porta sem
ruído e depois de- se ter certificado de que pessoa alguma os seguira, explicava a Pierre que não queria descer e era preciso dizer que havia saído.
Mesmo quando essas aventuras terríveis não vinham de encontro ao prazer que sentia em seguir as do capitão Fracasse, mesmo nos dias em que não sobrevinha
uma tempestade, o que fazia a criada subir precipitadamente, entrar no quarto de Jean, estender toalhas no chão, para que a chuva, se por acaso escorresse contra
a madeira da janela, não atravessasse o assoalho, Jean, ao soarem as quatro e meia, o espírito fatigado de ler e o corpo desperto, fechava o livro e descia para
merendar. Entretanto, ébrio com a felicidade que tinha de imobilizar em repouso absoluto seu espírito lasso e de fartar o corpo de movimento, disposto para ir à
sala de jantar, descia a escada num movimento doido, e dava, correndo com todas as forças, duas ou três voltas em torno do jardim, sacudindo a cabeça, fendendo o
ar com os braços estendidos, imaginando-se um cavalo numa campina, gaivota à flor das ondas, louco de alegria. Mais tarde e quando era ainda bem jovem, antes dos
vinte anos, a asma e reumatismos o impediram de correr para sempre, de jamais saltar, de jamais seguir seu ímpeto com todas as forças. Às vezes, rememorando deliciado
essa embriaguez rápida que o conduzia então como

e se encantava melancolicamente com a doçura delas. Depois desse primeiro impulso esgotado, Jean entrava na sala de jantar, cuja doce perspectiva não deixara de
se apresentar duas ou três vezes diante de seus olhos, mesmo enquanto lia as aventuras do capitão Fracasse. Na sala de jantar, de paredes cobertas de pratos bem
modernos, com divisas feito as dos que se serviam à mesa, e com as quais todos se divertiam em fazer com parações, seu tio, seus primos, a mãe já estavam freqüentes
vezes instalados. E, com a habilidade de um sábio e o desinteresse de um pai de família, o tio vigiava a cafeteira de vidro onde a água já borbulhava. Depois de
haver comido um biscoito rosado, Jean esmagava morangos num pedaço de queijo coberto de creme até que a cor lhe fizesse todas as promessas de que traduziria num
instante o gosto sonhado e obtido. À espera, punha morangos e, vez por outra, um pouco de creme, em proporções definidas, com olhares mistos de atenção e prazer,
toda a experiência de um colorista e a adivinhação de um guloso. Do castanheiro rosado do cura que não era visível haviam caído tantas flores que o piso da soleira,
pela janela, parecia juncado de rosas. Ouviam-se os pássaros no jardim do cura. E ia-se partir para um belo passeio.

A Sra. Santeuil não permitira que Jean saísse naquela manhã. Embora houvesse recomendado que não lesse muito, ao se ver completamente só Jean foi arrebatado
pela idéia de que poderia ler pelo menos cem páginas do livro que adorava, OCapitão Fra casse. Pensamos freqüentemente que teríamos muito prazer em conversar sobre
literatura e todas as coisas com um rapaz muito inteligente. Na verdade, o que lhe diríamos ou leríamos lhe pareceria bastante medíocre e, em troca, seu gosto não
nos interessaria. Pensamos sempre que as coisas de que gostamos trazem à superfície a beleza que nos extasia. Na verdade, é no âmago de nossa inteligência que se
manifesta essa beleza, e se sua percepção acaba por se transformar para nós numa tendência que sofremos por não poder satisfazer com mais freqüência, ela é, muitas
vezes, a princ io, um jugo muito duro de suportar. Talvez Jean tives-
se tido, nas primeiras páginas do Capitão Fracasse, alguma di
ficuldade para se habituar às descrições que não se ligavam a
nada que julgasse belo (o luar, o canto dos pássaros, os deuses
gregos), onde as tábuas eram empoeiradas, as paredes sujas, e
a uma espécie de ironia, de conversação com o leitor que lhe
desagradava bastante. E, de fato, parece que ao fim de algumas
páginas teria largado o livro, -pondo-o novamente na biblioteca,
onde dormiria por muito tempo como a pessoa com quem nosso
primeiro encbntro foi pouco animador e que não nos deixa qual
quer lembrança até que a reenco ' ntramos, e logo se nos transfor
ma em outra pessoa, de modo que a que conhecêramos primeiro,
tão pretensiosa e seca, parece-nos um ser-diverso que temos difi
culdade de identificar com a nossa amiga. Quais as circunstâncias
fortuitas que o puseram de novo em presença do Capitão Fracas
se, não se sabe. Era, porém, agora o amigo no qual se pensa
constantemente, cuja companhia torna deliciosas as horas em que
se pode gozar dela, sejam horas de chuva, neve ou sol.
Quando somos crianças, não apenas amamos um amigo assim, admiramo-lo. Cremos que ele é capaz, com exclusão de todos os outros, de toda inteligência e de
todo poder. Assim Jean a respeito de seu livro. Oque o encantava na leitura deste era a possibilidade permanente das mais belas frases que seja dado ao homem ouvir,
pensava. Talvez hoje essas frases soassem muito mediocremente a seus ouvidos. No entanto, não era impossível que certas expressões como "assim como é evidente que",
certas maneiras arcaicas de dizer, como "o bom Homero", o emprego de determinadas palavras raras como "adonizado, olimpiariamente", certas frases retumbantes e,
ao mesmo tempo, cheias de imagens lhe causassem uma espécie de embriaguez, que ele as lesse e relesse com arrebatamento e lágrimas nos olhos, que logo no começo
de uma frase do mesmo tipo um outro "assim como é evidente que", um outro "como diz Homero", ele fosse agarrado pela angústia, esperando a frase divina que viria,
como uma criança corre adiante da onda, sem que essas frases correspondam a alguma sensação de beleza real no coração do homem, no coração dos adolescentes, se querem,
mas de adolescentes que estão então mais perto de Gautier do que de nós e que percebem melhor do que nós uma beleza que não sabemos mais ver. E toda
vez que, por fora da trama da narrativa, havia uma dessas reflexões, dessas frases que não se ligavam com a contingência do relato, ele se sentia mais particularmente
feliz. Pois um escritor que adoramos torna-se para nós uma espécie de oráculo que gostaríamos de consultar a respeito de tudo e toda vez que ele toma a palavra para
dar assim uma opinião, exprimir uma idéia geral, falar, ele, desse Homero, desses deuses que conhecemos, sentimo-nos extasiados, escutamos boquiabertos a máxima
que lhe agrada deixar cair, contristados de que seja tão curta. E uma vez terminado o livro, quando não podemos nos interessar de novo pela vida do capitão Fracasse,
agora que conhecemos o fim e que o que nos parecia incerto, ansioso, real, agora, que a continuação e imutável, nos pareceria insípido como uma invenção sem vida,
poderemos sempre reler as frases acerca de Homero, sobre o "senhor Shakespeare, poeta bastante conhecido na Inglaterra e protegido da rainha Elisabete" - traço de
cor local que pode parecer um pouco desenxabido mas que pode entusiasmar um rapazola para quem as mais profundas conversações de Goethe sobre o Hamlet pareceriam
banais e desprovidas desse encanto que ele redescobria repetindo a frase pela centésima vez, assim como não nos cansamos da harmonia de uma ária amada.
De resto, todas as personagens lhe pareciam pessoas sem qualquer ligação com nenhuma outra, e ficou muito desiludido quando lhe disseram que aquele era um
livro como o Romance Cômico, como o Wilhelm Meister, como Consuelo, todos eles obras que lhe haviam parecido sem dúvida maçantes. A única coisa que quis ler era
de Théophile Gautier. Ficou muito desapontado ao pensar que o Wilhelm Meister valia tanto quanto o Capitão Fracasse, que lhe parecera único e de modo algum um romance
sobre comediantes. De resto, talvez, não compreendera bem que se tratava de um romance sobre comediantes, pois enquanto o engenho do autor nos encanta a ponto de
agarrarmos alegremente nos interstícios da narrativa toda frase sobre assuntos que conhecemos, que ele embeleza de só tocá-los e que dão também mais interesse ao
que nos diz, suas personagens nos surgem tão vivas que não nos agrada imaginar quê se trata de uma invenção artificial, fabricada na maioria das vezes antes de outras.
E depois podemos já ser capazes de grandes paixões pelas pessoas

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vivas e pelas personagens dos livros sem ainda saber nada da vida, sem dela compreender a maior parte dos nexos. Podemos saber coisa alguma do que sejam comediantes
e estar muito mais adiantados para desfrutar o encanto do estilo. Que digo eu, podemos estar pouco adiantados para desfrutar o encanto do estilo e ser tão pouco
capazes de atenção material que, lendo com paixão o livro, os pormenores de uma situação podem nos passar des-percebidos. Muitas coisas que não compreendemos fazem
dos acontecimentos dos livros, como dos acontecimentos da vida nessa idade, tipos de sonhos onde certas partes permanecem obscuras. Mas não somos menos capazes,
em todas as partes que compreendemos, de emoções mais vivas do que as que teremos mais tarde. E com algo de um pouco inexplicado, que acrescenta quem sabe um certo
mistério a seu encanto, as personagens dos romance5 que lemos ainda muito jovens conservam para nossa imaginação um atrativo que uma nova leitura do livro, agora
que compreenderíamos mais e sentiríamos menos, talvez não nos possa oferecer.

Às vezes à nOitinha, antes do jantar, brincava-se com a lanterna mágica no quarto de Jean. Empurrava-se de encontro à porta a escrivaninha repleta de livros,
e pela porta de comunicação saíam duas cadeiras do quarto da Sra. Santeuil, fechavam-se bem as cortinas e, retirando-se à velha lâmpada de trabalho o seu abajur
de papelão verde, aplicava-se ao vidro um refletor: e logo a luz, tranqüilamente instalada sobre a mesa, aclarava misteriosamente, no quarto de súbito obscurecido,
um pedaço da parede. E eis de repente, nessa parede singela e coberta de papel com desenhos cinzentos, por cima do velho canapé negro, como se um vitral mágico,
não em vidro azul, vermelho, roxo, mas como um fantasma de vitral com aparência de vidro, em claridade vermelha, azul e roxa, avançasse tremendo, vindo e recuando
à maneira de espectros e reflexos. Era a esses belos coloridos, como Jean os havia admirado muitas vezes sobre os pilares das igrejas, quando os vitrais neles faziam
descer um dia multicor e precioso, que as personagens de Barba Azul, de Geneviève, de Brabant, do traidor Golo, da irmã Arme, a campina verde que se estendia

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diante de sua torre deviam a poesia fantástica que conservaram em sua imaginação? Ou porque era vestida por Barba Azul é que essa barba azulada, esse manto de sangue
recobriam o prestígio que emprestavam a uma tal lenda?
Mas, o que talvez tivesse para Jean um encanto ainda mais misterioso era esse momento singular em que, estando sempre em seu quarto entre o lavabo, a escrivaninha
e a cama, na parede coberta de desenhos cinzentos, passavam de repente essas aparições maravilhosas. Era o momento em que, as cortinas cuidadosamente cerradas, a
boa lamparina tendo de súbito a luz presa, diminuída e enviada obliquamente sobre a parede para um destino desconhecido, seu quarto não era mais seu quarto, como
sua lamparina não era mais sua lamparina. Sobre essa parede, onde, até então, no maior desregramento de cor passageira, quando um pedaço de' madeira se punha a flamejar
à noite, um clarão palpitava por um instante e onde agora passavam os reflexos magníficos das igrejas e as personagens das lendas, Jean podia reconhecer, um pouco
abaixo da faixa misteriosa em que se manifestavam as aparições (além da qual deixavam de ser visíveis), o salpico deixado no papel na toalete da manhã. No refletor
atrás do qual deslizavam pequenas pranchas de vidro de cores tão místicas, o que enviava luz à parede, e cujo vidro lhes teria queimado os dedos ao adaptarem o refletor,
era a lamparina habitual que, dentro em breve, escrivaninha posta em seu lugar, cadeiras levadas de volta, refletor retirado e abajur reposto, ia, como após o alegre
despertar de um sonho evidentemente mais fantástico, iluminar seu livro com uma luz franca, suave e redonda, deixando a parede numa penumbra em que a faixa misteriosa,
o alçapão invisível por onde os fantasmas tinham aparecido se confundia com o resto da parede, penumbra natural que se casava bem com a luz cheia sobre a mesa, claridade
habitual à qual se sentia que os fantasmas, aparições e deslizamentos de vitrais impalpáveis eram absolutamente refratários e na qual certamente não se mostravam.
Tal é o único painel com que se adorna, e bem fugazmente, o quarto de Jean. Painel aparição, painel só de reflexos, painel fantasma. Painel que não durava muito
tempo e que o assombrava muito mais dd que uma pintura definitivamente imóvel e que veria todos os dias. Sem gosto para

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o paladar, mas de cores tão vivas e variadas como os biscoitos rosados que eram servidos em ]Étreuilles depois do jantar, a história de Barba Azul projetada pela
lanterna mágica, Jean, em suas recordações, nela adorava a vida, essa vida que um colecionador diante de um 4uadro, um pai diante de seu filho, fulano diante de
um tecido, diante de um cão, olha, tenta beijar até o delírio ao senti-la diante de si. Aqui era mais, era a sua vida, era o gosto que as coisas tiveram para nós
e que só para nós foram guardadas.
Pode ser*bom para o espírito, vendo o ar que sopra, o mar, uma pedra, contemplar os contemporâneos da criação, os sobreviventes do dilúvio. Contudo, ainda
é mais perturbador, talvez, ver não mais o que subsistiu, e sim o que foi feito, o que a vida, que embora parecendo passar sempre faz ficar alguma coisa, deixou,
mudou, essas coisas tão tocantes que se fizeram ao mesmo tempo que nossa juventude se esvaía, esses tons verdes que pouco a pouco recobrem os troncos das árvores
do parque, esses tons verdes que os canos condutores de água ao fundo do tanque adquiriram, que a própria água, como um espelho antigo e que tomou a cor do que reflete,
adquiriu também, e, se vocês não vão nunca ao campo, o halo, sombrio que, devido à iluminação diária, enegreceu o vidro da lamparina. Essa coisa preciosa além de
tudo, essa coisa irreparável, essa coisa de beleza superior a qualquer outra, que por mais inteligente que seja não a pode conter ou tomar, isso que os senhores
sentiram, as próprias horas que viveram, o que parece não ser mais que alma, algo de imaterial, de pura recordação, não lhes parece que a teriam lá, fruto vagaroso
e fascinante dessas mesmas horas que eram suaves, algo de real e vívido, nesses tons verdes que, da estátua de bronze de Pá no parque, por uma lenta infiltração
escorreram para seu pedestal de mármore? Nós as contemplamos com amor, essas verdadeiras relíquias de nossa vida, e como um livro inapreciável que dedos amados teriam
aberto, esses doces tecidos verdes em que se envolveram esses canos no fundo do tanque, que mal existiam quando éramos jovens, que são tão espessos atualmente, que
urdiram essas mesmas horas silenciosas em que almoçávamos, líamos, em que perdemos nosso pai, em que passeamos à tardinha pelos caminhos, em que dormimos em lençóis
servidos,

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que foram feitos pelo tempo, nosso tempo, o tempo em que o Sr. Grandi ainda era notário em Êtreuilles, o tempo em que reconhecemos no nome do notário que se casou
com a filha do Sr. Grandi e que depois a fez tão infeliz, na frieza que havia então em Étreuilles entre o prefeito radical, que entretanto era igualmente um velho
amigo de meu tio, e nosso velho amigo, o cura, no nome do pasteleiro que vejo no fim da grande rua sobre a tabuleta, e na voz de minha mãe quando me dizia: - É preciso
ir depressa à casa de Mongeland buscar uma torta. - Um nome que contém a voz de minha mãe, do próprio tempo
que se esvaía à época, o meu colégio, o encanto, não da juventude, mas da minha juventude. Esse nome eu o venero, contém para mim algo' mais divino, inexeqüível
para qualquer artista ou filósofo, que a relíquia que conteria o sangue de Cristo. Nosso tempo, aquele de que sinto ainda o calor de seus sóis a pino na vereda de
pilriteiros, a ofuscante luz no caminho que trilhávamos lentamente pois era muito quente ao sol, e o aroma dos pilritos, e sempre o aroma da torta que levava num
saquinho para comer quando chegássemos a Montjouvain.
Dizem que o que existiu em nossa vida é irreparável, que
coisa alguma saberia fazer que não houvesse acontecido. É por isso que o passado pesa muitas vezes sobre nossa vida presente com um peso tão inevitável. Mas é também
por isso que ele é tão real em nossa recordação, tão impossível de ser outra coisa, tão insubstituível. E o que os filósofos dizem igualmente, que
cada uma das pequenas alegrias, cada um dos acontecimentos mais simples desse passado, os outros não o sentiram como nós, que não pudemos entrar em sua maneira de
sentir nem eles na nossa, essa idéia que confere à vezes uma sensação tão triste de isolamento aos que pensam nela, não acaba por dar ao nosso passado esse caráter
único que transforma nossas recordações numa obra de arte que nenhum artista, por maior que seja, saberia imitar e que pode apenas se gabar de nos concitar a contemplá-la
em nós?
Ainda assim, muitos outros momentos eram agradáveis em ]Étreuilles. Por exemplo, aqueles em que Jean, antes de jantar, ia

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aquecer os pés no quarto da cozinheira, espécie de segunda cozinha contígua a esta, e onde, cansado de ler, ouvia as histórias da cozinheira, que ia e vinha escovando
botinas. Era um desses momentos pacíficos em que as coisas estão como que cercadas da beleza que há no ser, em que o encanto está na sombra que enche o canto do
quarto onde está a cama dos nenéns, na luz suave que aclara o pé da cama, no tique-taque da pêndula, na figura, bem iluminada pela lamparina, da cozinheira que tagarela,
no fupdo misterioso da cozinha, luzindo com os reflexos rubros do braseiro invisível onde se consomem as operações deliciosas que se revelam exclusivamente no alto
de uma caçarola que verga ao peso do carvão consumido ou o ruído de uma fritura fervendo que escorre vivamente na frigideira. Nesses momentos o ruído da voz da cozinheira,
dizendo: "Como estão molhados os seus sapatos", impressiona agradavelmente porque o ruído da voz é uma coisa que é, como pela janela o velho farmacêutico, absorto
numa de suas misturas e vivamente iluminado pela lamparina, encanta também porque é; o taramelar incessante do fogo é mais agradável que o da cozinheira, visto que
não é necessário responder a ele - porém há tão pouca precisão de s nhar com o que diz a cozinheira e no seu olhar risonho brilha algo que não é menos vivo e afetuoso
que a chama do fogo. É até bastante agradável poder lhe falar quando a gente se sente excessivamente cheio de silêncio e deseja quebrá-lo um pouco com palavras.
As coisas são belas por serem o que são, e a existência é uma beleza calma espalhada ao redor delas.
Depois do jantar, ia-se muitas vezes à cerimônia do mês de Maria; sobre o altar se amontoavam pequenos jacintos cor de inalva, tortos, grandes ancólias fixas
ao longo de seus caules como os apliques de um tecido precioso e fino, de todas as cores que não se vêem entre os homens, entre os animais, nas cidades, todas tendo
o ar de haverem nascido de uma dessas nuvenzinhas de nuança celeste que flutuam um instante após o pôr-do-sol, ou essas tulipas de todas as cores deslumbrantes que
dispensam num apartamento os postigos que separam a luz do sol. Estavam em seus vasos, embrulhadas em belo papel branco de escola. E nada era mais lindo, ao sair
da larga voluta de papel branco e brilhante que a protegia até o colo como um xale deslumbrante,

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que uma grande roseira-de-bengala, não trazendo rosas a meio caule como as flâmulas içadas ao longo de um mastro, mas uma única rosa aberta e purpúrea, jorro de
sangue resplandecente e sombrio, de onde não cessavam de se evolar, leves e violáceos, invisíveis e untuosos, todos os perfumes da Ásia.

Descia a noite. Como são tristes esses momentos em que os quartos abandonados pelo dia permanecem vazios, antes que sejam abertos os grandes reservatórios
de luz quente denominados lamparinas! Na claridade sombria que se obscurece de instante a instante, eles podem ver ainda a casa da frente que perdeu suas cores vivas
da tarde. E assemelham-se um ao outro em sua tristeza inquietante, como a um viajante ansioso, à noite, a rua nova da cidade onde acaba de chegar. Muitas vezes,
nesse mo-mento, abrindo às apalpadelas, no fim de um corredor escuro, a porta da cozinha, Jean se alegrava ao perceber, como uma visão na noite, erguida no fundo
da cozinha obscura e como que misteriosamente suspensa no ar pela obscuridade, o chão de ladrilhos iluminado e limpo do corpo do fogão, rubra iluminação imprevista,
como na esquina de uma rua já escura uma sacada em fogo por um invisível sol poente. Uma nuvem de fumaça cor-de-rosa elevada, sem dúvida, por sobre uma chaleira
por um fumo invisível, flutuava junto, e como essas pequenas ondas do mar que, passando pelos raios do poente, diamantizam-se, um jorro que escapava ritmicamente
para fora da caçarola borbulhante parecia em chamas. A chaleira trazia no longo bojo brilhante o quadro ardente das regiões de fogo que via, mas que permaneciam
invisíveis para Jean. Oolhar fixo na noite que invadira por completo a cozinha com suas rubras constelações, Ernestine permanecia de pé frente ao fogão, governando
o fogo sabiamente com a ponta de seu gancho de ferro, aproximando e afastando a caçarola, esfalfando-se por um instante com a colher de madeira, tornando a pôr a
tampa no fogão, deixando tudo de lado, mudando as cores da iluminação que ficava agora sobre uma caçarolinha onde, com ruído regular e suave, se procedia ao cozimento
de um frango entregue à manteiga fervente e à gordura derretida a lhe imprimirem seu suco que se ouvia

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chiar, extinguindo, ao puxar do forno, essa claridade rubra da parede com a qual, ao entrar, Jean se impressionara tão vivamente, erguida assim sem suporte real
e fantástico no meio do vazio obscuro, como os maquinistas atentos em regular, variar, terminar em tempo oportuno os jogos coloridos de luz sobre os cenários de
um espetáculo de magia.

IV. Ojardim dos esquecimentos

O pai do Sr. Santeuil possuía, do outro lado da cidade, um imenso jardim que, estendendo-se primeiro em terrapleno diante do curso do Loir, elevava-se pouco
a pouco, aqui por lentas subidas, ali por escadarias de pedra que conduziam a uma gruta artificial até o nível dos plainos elevados em que principia a Beauce e para
os quais se abria através de uma porta com clarabóia. Esse topo do jardim era bastante largo, ocupado por um magnífico viveiro de aspargos, um pequeno lago onde
uma salamandra dormia dependurada na pedra, imóvel e coberta de musgo como a efígie de um deus marinho, mas desperta às vezes por uma pedra que lhe atirava Jean
e imediatamente sumida nas profundezas da água, dando então a idéia de uma existência sobrenatural, metade ornamento e metade deusa, e por um picadeiro onde um dos
cavalos do pai do Sr. Santeuil, girando, fazia subir a água do canal até embaixo, onde Jean, escolhendo a sombra de uma árvore para não ser visto pelo peixe, pescava
nutridas carpas rapidamente jogadas na grama, nos botões de ouro, nos pontos a que os cisnes, impedidos pela rede de arame que descia da pequena ponte rústica, não
podiam acorrer.

Em vez de tomar pela estrada pedregosa que subia ao sol ao longo do valado do jardim e onde poderia encontrar rapazes brincalhões descendo para a cidade,
Jean, quando desejava subir para o campo, preferia passar pelo jardim de seu avô, saudado de longe pelo jardineiro que ceifava ou regava a relva. De passagem, puxava,
para a aspirar, a corola deslumbrante de um lilás, com as folhas sobre as quais se ergue como de uma vestimenta silenciosa, macia e cheia de frescor. Assim ele viu
a corola delicada de um jovem lilás, pintada com esse frescor mexprimível e do qual o perfume dá bruscamente a idéia com um encanto inaudito sem que seja possível
aprofundá-lo. Não o vendo ne-
nhum jardineiro, apoiou o pé na terra ajardinada e passando o braço ao redor do arbusto puxou para si a copa perfumada. Entretanto, por mais que a aspirasse com
todas as forças, não obteve, é certo, o segredo que nela parecia buscar e, menos ainda, o prazer sentido há pouco, quando, surpreendido pelo odor e pela vista inesperada
do lilás, aproximara-se com ardor do arbusto. Assim, deixando de manter a deliciosa copa contra a cabeça, e apoiando o pé na aléia, largou-a à própria conta. Mas
não pÔde deixar de observar os movimentos graciosos com que a copa leve e adorada se reclina para trás e, sempre deslumbrante e pura, está agora imóvel e graciosamente
inclinada sobre as folhas que a cercam como um ornato repetido ao infinito, como companheiras menos belas, sem cor própria e sem perfume, mas que mantêm um agradável
frescor à sua volta.
Retornou à aléia. E se o chão duro de uma estrada é muitas vezes sentido alegremente pelo viajante cujos pés têm assim a sua parte de sensações de sã fadiga,
de vida rude e natural que o campo os faz desfrutar vivamente, também Jean descobre com exaltação, ao sentir sob o calçado o suave deslizar dos inumeráveis seixos
da aléia, tão unidos, tão juntinhos que mal se movem a seus passos, esse prazer mais requintado e menos saudável que experimenta desde que está no jardim vazio de
gente e onde, apesar das flores agrupadas em abundância e variedade simétricas, apesar dos arbustos dispostos conforme um desenho delimitado e perceptível, tudo
parece ter sido preparado para os homens. As aléias em que árvore alguma cresce e onde todos os pedregulhos são iguais parecem ter sido preparadas por homens, por
homens engenhosos e menos simples que a natureza. Mas para que preparam esses Oortais artificiosos semelhantes retiros? Há séculos porventura que estão mortos, e
as árvores e as águas, ainda da mesma forma em que as haviam disposto, esperam sempre o hóspede em vista do qual os lilases se sucediam aos lilases e os miosótis
compunham uma frágil linha azul paralela aos mais altos goivos vermelhos, um em cada dois como num emblema rigorosamente expressivo? Mas as aléias conduzem apenas
a estátuas que se calam e cujas flores, que uma mão desaparecida misturou a seu cabelos ou ao sorriso que respondia a um gesto hoje invisível, parecem os vestígios
de dias já antigos,
onde foram interrompidos para sempre os trabalhos divinos que deviam fazer desse lugar uma moradia da qual unicamente o plano, atualmente incoinpreensível, subsistiu.
Tal era sem dúvida a raça desses mortais ou dessas deusas.
Nas aléias só se encontram estátuas aqui e ali e os cursos d'água apenas transportam cisnes. Seguindo por uma aléia que parece levar em direção ao dono do
lugar ou pelo menos a um de seus dignitários preliminares, no momento em que os lilases se encurvam, em que se alarga a curvatura dos pés de roseiras, em que, mais
distinto, o zumbido de uma abelha mostra que o silêncio foi mais respeitosamente recolhido, em que se sente que já se chegou, chega-se de fato a uma alameda arborizada,
risonha e silenciosa como uma estátua meditativa e ao pé da qual, sobre um banquinho, a gente pode sentar-se. Não se ousa, porém, perturbar sua expectativa e sua
reflexão, e a gente se cala como ela, só falando baixinho, como suas folhas murmuram ao zéfiro.
Mais distante, estão imensos castanheiros cujos ramos pendem até embaixo como árvores menores, jovem raça de gigantes sustentando, com folhas enormes, altas
flores como torres maciças e delicadas. Está perto de nós, erguendo, um sobre o outro, os pavimentos de suas flores superpostas, imóveis como a cabeça nobre de um
pássaro, e deixa expor ao sol sua vasta plumagem lisa e curva de grandes folhas verdes. Às vezes à margem de um canteiro, Jean percebia um jardineiro sachando a
terra. Percebia-se, porém, que não era para essa raça de homens que haviam sido feitos esses jardins inumeráveis e magníficos, e ele lá estava como os operários
num palácio ou numa catedral. E o próprio Jean, que entre os castanheiros, no chão, tinha jacintos que regava, sentia-os seus e não seus, como o lugarzinho que se
tem sob os imensos pilares sacros na capela maravilhosa.

No parque, perto do muro de vedação, num ponto aonde Jean quase nunca ia, num sítio a descoberto e sem árvores, havia um círculo de pedra com um timão no
meio, onde, atrelados de vez em quando, os cavalos rodavam lentamente para fazer subir a água. No resto do tempo, a sombra do timão girava sozinha,

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mais lentamente ainda, sobre o círculo de pedra que árvore alguma vinha proteger do sol, embora o tio houvesse dito a Jean, um dia que por lá passaram, que esse
timão era uma espécie de quadrante solar. Deste círculo descia para reunir-se ao parque um viveiro desses imensos discos amarelos denominados girassóis e por baixo
da cerca inferior vislumbravam-se prados vizinhos que Jean, antes de ter ido até ali, nunca vira, e que se estendiam ao sol, servindo de pasto a umas poucas vacas.
Jean estava na idade em que a terra não se tornou algo perfeitamente real e conhecido, quando a gente não se espanta de que um lugar novo, um lugar bem real plantado
de árvores e onde se pode caminhar, dê acesso ao mundo irreal. Um dia em que levara sua mãe ao banho frio, esperara-a por um instante num quarto, e depois fora admitido
a vê-la banhar-se. E então, sobre as pranchas trêmulas ao balanço das águas, e vendo diante de si esse enorme antro líquido, que via de tempos em tempos engrossar
sob os corpos que reapareciam mais adiante, limitado por outros cubículos mas dando a impressão de não ter fundo, tivera a sensação, sem dúvida - como os antigos
acreditavam que um certo lugar não longe de Pozzuoli era a entrada para os infernos -, de que ali estava a entrada dos mares glaciais, que os pólos estavam bloqueados
nesse pequeno espaço e que sua potência irritada se sublevava entre esses pilotis que permitiam que aí chegasse mas sob os quais sentia-se que ela se estendia mais
além, num mundo provavelmente paralelo ao outro e por debaixo, e onde não se via a luz do céu. E vendo sua mãe se atirar nele rindo, mandando-lhe beijos e voltar
linda debaixo da touquinha de borracha gotejante, não se espantaria se lhe dissessem que era filho de uma deusa e que assim pudera ver a entrada desse mundo fantástico
desconhecido de todos e, no entanto, tão próximo da ponte da Concorde, perto da qual toda a gente passava sem saber, assim como andamos todos os dias sobre imensos
esgotos navegáveis cuja entrada não é visível: mas o chefe de polícia e outros erguem no meio da praça uma pedra que se assemelha a qualquer outra e por aí descem.
E tu mesmo, ~leitor, mais velho que Jean, do limite de um jardim situado numa elevação, não tiveste às vezes a sensação de que não se tratava unicamente
de outros campos, de outras

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árvores que se estendiam diante de ti mas de uma terra detcrminada debaixo de seu firmamento especial? As poucas árvores que chegavam até o vaiado em que estavas
debruçado eram como as árvores reais do primeiro plano de um panorama, serviam de transição entre o que conhecias, o jardim que tinhas vindo visitar, e essa coisa
irreal, misteriosa, uma terra que se estendia diante de ti sob as aparências de campinas, desdobrando-se ricamente em pequenos vales, deixando cair sobre si a luz
que nela batia nesse momento preciso, e que de seu céu até ela lhe enviara ,nuvens luminosas e espessas. Aqui são ainda as coisas reais que conhecemos, o pequeno
viveiro de rosas que, visto de baixo, parece ocupar toda a vista, destacar-se sobre o céu contra seu pequeno fio de ferro e o pequeno muro que o protege dos desabamentos.
Mas sobe até a última roseira e de repente ela dá para essa imensidade de campos onde a sombra alterna com o sol, colinas verdes após colinas azuis. Tu te imaginavas
num jardim, pois não tinhas visto, nessas belas aléias, que estavas sobre uma colina nesse ponto cultivado, arrumado, murado, mas que ao longe é uma coisa diversa,
que a misteriosa região num instante encerrada, cativa, dissimulada, fosse ao longe, misteriosa, sendo de fato uma região. Aqui, são ainda as coisas reais, este
parque de Versalhes que conheces bem, seus lagos, obras de arte assim como as estátuas. Lá, como no jardim, estás como fora do mundo, estás num lugar conhecido.
Mas do terraço, para além do lago, das estátuas e das alamedas, e de escadaria em escadaria depois das últimas estátuas e dos últimos lagos, o que são este longo
canal e estes choupos naturais, esta espécie de pequena Holanda que começa, esta região misteriosa que se estende lá embaixo e que não é mais a região real daqui?
Pois bem, Jean experimentava vivamente essa sensação quando por acaso o deixavam passar (mas ele não conhecia os caminhos pelos quais se chegava lá) para essa plataforma
ensolarada em que, dizia-se, os cavalos rodavam com freqüência, onde o sol marcava ele próprio as horas, diante da qual se estendiam os sóis e sobretudo que dava
para os campos ensolarados que ele não conhecia (escondidos que estavam, do caminho, pelo parque) e que lhe pareciam uma região nova, e não as terras de filiers.
Assim, achava que esse círculo era uma espécie de entrada para um

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reino do sol, onde tudo era consagrado ao sol, onde só brotavam girassóis, aonde o sol vinha de preferência com seus corcéis misteriosos. Osol, sem dúvida, ele sabia
que estava no alto dos céus. Mas não poderia também descer à Terra? Seria isso mais espantoso do que esses pilotis dos banhos abrindo sobre o mar glacial, do que
a piscina profunda cheia de água vigorosa nos chuveiros de seu pai, piscina misteriosa no meio de um apartamento aquecido, numa rua bem afastada do Seria? Ele próprio,
que fazia com que lhe dessem todos os livros em que se tratava da lua (e*os lia sem compreender), quando no salão de inverno sua mãe o fazia vir como um sábio que
não entendesse a sua ciência, como unia espécie de mágico, trazer todos os seus livros ilustrados sobre a lua para mostrar quantos possuía, não levava também, para
completar a coleção, uma gramática francesa ilustrada onde na palavra lua havia de fato um imagem representando a lua com um olho no meio e um vago nariz? Esse olho
e esse nariz o incomodavam mais ou menos como, nas descrições poéticas, um rasgo de espírito (o que o fazia preferir a Picciola de Saintine à Colomba de Mérimée,
onde a todo instante uma facécia vinha impedir a vaga poesia das imagens do enlevo)' e teria preferido uma lua completamente redonda num céu sem nuvens. Entretanto,
não era só para se fazer admirar pelas visitas que ele levava o livro a fim de que vissem cinco gravuras da lua ao invés de quatro. Não, não estava certo de que
a lua fosse bem assim e esse livro em que, no entanto, não se cuidava da lua parecia-lhe fazer parte de sua misteriosa biblioteca sideral, na qual, como um astrólogo,
acreditava enxergar o próprio astro e em meio à qual passava horas obscuras de que não pôde se dar bem conta, deixando-a unicamente para mostrar às belas senhoras
do salão imagens diversas da lua, o manual de feitiçaria disparatado e mágico de sua ciência obscura e sedentária de velho astrólogo e garotinho.

Mal se empurrava o portão do parque e viam-se, entre os ramos das sarças, pilhas de grossas "bolas de neve" [rosas-degueldres], como o jardineiro dizia a
Jean que se chamavam, mas

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que colhidas não se derretiam na mão, e permaneciam bem brancas e grossas nos jarros da sala de jantar. Jean pensava distraidamente quê haviam chegado enfim esses
dias em que nada mais mudaria, a partir dos quais sua mãe permaneceria eternamente jovem e ele eternamente livre e alegre, sob o mesmo sol ardente irmitavelmente
estabelecido sobre a terra. Depois das primeiras moitas de rosas-de-gueldres, o lilás mesclava, de tempos em tempos, à sua folhagem sombria, as flores de fina musselina
de estrelas brilhantes que Jean só de tocar fazia cair, emitindo e espalhando um aroma agradável como o da pastelaria, Por toda a parte, nascidas da terra, saídas
da crosta, postas sobre a água, criaturas frágeis viviam em seu perfume, deixando flutuar seu fascinante colorido. Essa suave cor malva que, depois da chuva, em
um arco que parece próximo mas que ninguém poderia alcançar, se nos mostra no céu, entre os galhos, metamorfoseada em delicadas e finas flores, pode-se contemplar,
aproximar, aspirar seu odor tão sutil quanto ela nos galhos do lilás, levá-la consigo. Os orientais não puderam dar a um vaso uma cor mais preciosa. E afinal foi
o Oriente que deu vida a esses belos lilases de sangue persa, de cor malva ou de uma brancura de anis, esbeltas Xerazades imóveis entre os ramos, em sua nudez de
precioso estofo, todas ainda límpidas dos perfumes de que parecem sair e que exalam violentamente.

Pelos calores das tardes de verão, desde as duas horas, podia-se ver Jean, seguido de seus primos e às vezes da Sra. Santeuil e da Sra. Serciers, cujos filhos
levavam os banquinhos de praia, encaminhar-se na direção dos Esquecimentos, pela grande Rua de Étreuilles e pela Rua da Maladrerie. Passava-se diante da grade do
notário. De cada lado da grade percebia-se, conduzindo à casa, uma aléia de olmos fortemente reverdecidos para todo o verão durante a primavera, dourados por cima
uma hora a fio pelo sol, estremecendo-se alguns instantes à brisa que, passando pelas folhas pequenas e quentes de sol, era como o frémito de seu bem-estar e a doçura
de um sorriso radioso. Do portão saía um velho muro que cerrava a propriedade e ao qual estavam

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rito preguiçoso, ele não discernia nada na natureza durante a primavera, tendo apenas uma sensação confusa que o fazia tirar o paletó, desejar passear, tornar nata
nas herdades, sentar-se à sombra, mergulhar as mãos na água do canal, Jean elegera, dentre as flores que tivera diante de si sem as ver e sem amá-las, o espinheiro-rosado
como aquela por que sentia um amor especial, do qual tinha uma idéia definida, e de que pedia ao jardineiro um ramo-para levar para o quarto, e que tão logo percebia
no fundo de um jardim ou ao longo de uma sebe, parava para olhar e desejar. Seria por ser essa árvore mais linda que as outras, que as flores, compostas e coloridas,
têm o aspecto de flores de dias de festa, e que de fato, muitas vezes na igreja, durante o mês de Maria, havia visto ramos inteiros cortados nos vasos do altar?
Seria porque, tendo visto antes o pilriteiro, a imagem de um espinheiro-rosado, cujas flores não são simples e sim compostas, marcou-o com o prestígio tanto da analogia
quanto da diferença que têm tanto poder sobre nosso espírito? E, no entanto, vira talvez as rosas silvestres antes de conhecer as rosas comuns e jamais gostara de
nenhuma delas. Seria porque o espinheiro-rosado e o pilriteiro se associavam à recordação do queijo de nata branca; que um dia em que esmagara morangos se tornara
cor-de-rosa, de um tom muito parecido com o do espinheiro-rosado, e ficou sendo para ele a coisa mais deliciosa de se comer e que todos os dias pedia à cozinheira?
Essa semelhança talvez o ajudasse a reparar no espinheiro-rosado e a amá-lo, e a conservar-lhe o gosto numa imperecível recordação de gulodice, de dias quentes e
boa saúde. Seria a recordação de um dia em que estava doente e sua mãe entrou dizendo: "Foi o jardineiro quem cortou estes ramos de espinheiro-rosado" e os colocou
em sua cama, e sozinho diante desse ramo que sorria com todas as flores e espalhava pelo quarto o aroma das estradas em que gostava de correr, foi eleita como por
si mesma e amada nesse dia em que estava, para ele, cheia da glória e da beleza de tudo o mais, que ela parecia lhe trazer no odor de seus ramos e no rubor das flores
rosadas? Contudo, ela não ficou sendo, para ele, nem mesmo a flor preferida, não teria pensado em dizê-lo, e menos uma flor do que a própria doçura da primavera,
das primaveras passadas, das estradas de Étreuilles, dos dias ofuscantes

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em que a gente sua sem cansar, e ele voltava para ler o Capitão Fracasse às três horas, no quarto, os postigos fechados: a flor do mês de Maria.

Bem mais tarde, foi conhecendo aos poucos algumas flores. E foi sempre um artista que, pelo prestígio de uma palavra autorizada e reveladora, o iniciou na
beleza delas, bem como na beleza de um escritor ou de um pintor. Pois seu espírito, que depois descobria tudo sozinho, sentia necessidade de ver com os próprios
olhos. Tendo visto com freqüência uma flor na botoeira do Sr. de Montesquiou, e tendo-a notado, esse consumado conhecedor das belezas artísticas da natureza inflamara-o,
com uma só palavra, de um amor pela rosa-de-musgo, o cálice da genciana cujo tom azul é tão profundo, a admirável cor das cinerárias. Há, porém, qualquer coisa de
mais profundo em nós do que uma emoção artística, é um pouco de nós mesmos que, em uma hora, de passado, conservado intato e fresco nalgum canto esquecido, nos é
súbita e silenciosamente ofertado. Essa flor, porventura vulgar para um artista, bela à idade em que só se apreciam os versos de Déroulède * e a prosa de Picciola,
flor de cidadão ou de criança, flor de um altar de aldeia, ele a amou por si próprio. Ou, se fosse ainda menos capaz, nessa idade, do que mais tarde de abrir por
si mesmo os olhos a propósito de alguma coisa, se alguém pudesse fazer com que a amasse, esse foi talvez o velho fazendeiro, o pai de seu pai que quando muito lia
jornal, que não pôde realizar seu sonho: ir a Paris para ver a exposição. Ou talvez o jardineiro, que era instruído e apaixonado pela ciência, e que, findos os trabalhos,
lia os romances de Montepin ou os trabalhos históricos de Imbert de Saint-Amand. Talvez sua mãe, no dia em que lhe levara o ramo oferecido pelo jardineiro, e que
apreciava flores em seu salão, ou em seu quarto, onde nunca havia nenhuma, mas que não gostava de nenhuma e era insensível ao encanto dos animais e das plantas,
e que naquele dia, com palavras impensadas, desviara em proveito do

* Paul Déroulède (1846-1914), poeta e político francês, autor de poernas de cunho patriótico e revanchista. (N. do T.)

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- Vem ver minha camélia que está toda florida. - Mudaram de caminho pois pelo caminho em que ia sempre, Jean não passava pela camélia, porque assim demorava para
chegar à grota onde estavam guardados seus instrumentos de jardinagem, a pá, o ancinho. Mas, como estivera doente, haviam-lhe dito que se contentasse em ler e pescar.
De modo que, não tendo de ir à grota, puderam ir ver diretamente a camélia. E na volta do caminho a avistaram. Por toda a parte, sobre a enorme umbela, estalavam
longas flores vermelhas, rosadas, como se alguém as tivesse grudado lá aos milhares. E a árvore, em pleno sol a essa hora avançada da manhã,, sorria, um tanto mudada
com todas as flores admiráveis que irrompiam dela, como uma parturiente nos parece uma outra pessoa sendo ainda a mesma. As folhas eram belas como sempre mas a cada
instante abria-se entre elas uma grande flor vermelha ou rosada. Jean nunca tinha visto ou observado a árvore antes da floração, e jamais vira um arbusto desse tipo,
um arbusto grande de inumeráveis flores vermelhas e rosadas, e permanecia ali diante dele como diante de uma dama estrangeira, bela, maravilhosamente vestida, a
quem o tio o teria apresentado e que lhe sorriria. Tanto mais que para Jean as coisas não eram ainda uma das muitas coisas do mesmo gênero, mas sim pessoas cujo
equivalente não existia. Não dizia consigo que havia cisnes no canal e sim os cisnes, e no terreno uma camélia, mas a camélia, que eram coisas provavelmente também
únicas em seu gênero e, em todo caso, amadas e conhecidas, considerando que elas eram essas mesmas, tanto o que lhe quisera dar uma bicada quanto a que estava florida
à esquerda do caminho da grota, personagens distintas que eram, ao que tudo indicava, únicas no mundo, como o seu tio, sua mãe, o jardineiro e a casa de Êtreuilles.
Ora, essa personagem era nova e ele a olhava como teria olhado a bela dama que vira pela primeira vez, tendo a árvore também algo de grandioso com vivas cores novas,
risonha e seu tanto indiferente como o fora a dama que o olhara com um sorriso mas sem se dirigir a ele com vivacidade como sua criada ou os primos, permanecendo
sobranceira e aprumada, benevolente como a árvore.

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É assim que as coisas que devemos amar ao máximo logo a seguir, conhecemo-las primeiro como personagens desconhecidas que acima de tudo nos assombram. Ademais,
bem depressa Jean passou a amar bastante as flores da árvore e, quando voltava para o almoço, o tio dizia à mãe: - Fomos ver a camélia: está soberba. Não é? Soberba!
- Dizia o tempo todo a Ménard, o jardineiro: - Ménard, ela está soberba. - E é, na verdade, muito bonita - dizia a mãe de Jean. - Oh, é soberba, é uma bela árvore
- reiterava o tio mas não é preciso vê-la mais agora, está perdendo as flores acrescentou com modéstia e sobretudo com o amor-próprio do dono e também com a exigencia
dos que se reconhecem num objeto em vez de amá-lo com todas as forças, e que têm necessidade de que as sinfonias de Beethoven sejam executadas por grandes virtuosos,
que acham que não vale a pena ver Sarah Bernhardt em tal papel. Jean, porém, gostava muito da árvore para achá-la mais bonita nesse dia ou em outro, já que ainda
seria a mesma, já que conservava ainda suas flores. De resto, sozinha em seu terreno consagrado, a camélia não era então o único deus presente no parque. Ao longo
deste, as delicadas capelas denteadas que são as sebes desapareciam, como convém ao mês de Maria, sob as grinaldas cor-de-rosa dos espinheiros rosados, sob os ramos
do pilriteiro, misturados com uma oferenda entretecida com gosto nas flores da roseira-brava. Mesmo nos pontos dessas pequenas capelas, entretanto ao ar livre, em
que eram amassados quase ao exagero os ramos floridos do pilriteiro em todo o seu comprimento, num verdadeiro matagal de flores brancas, o aroma do pfiriteiro era
tão forte que entontecia, e embora a cúpula de árvores desse sombra, propiciando um silêncio recolhido no qual era possível ouvir o grande sino negro repicar sua
oração no tabernáculo das roseiras-bravas, de onde só se percebia seu dorso negro, os raios de sol entravam, como numa capela cujá janela não possui vitrais. Ao
fim do jantar, o tio mandava trazer as "faifaises",* dizia, para imitar Jean, que o sobrinho colhera junto com ele no parque para o almoço. - São excelentes

~. De fraise, morango em francês. (N. do T.)

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- dizia a Sra. Santeuil com a amabilidade do convidado e a energia de um conhecedor. - Sim, são muito boas. São verdadeiros morangos silvestres - concordava o tio,
com o ar imparcial da pessoa que faz justiça aos filhos quando logram um sucesso ou à cozinheira se faz um prato com perfeição e que, tendo o aspecto de não emitir
tal julgamento que, forçado pela evidência, duplica-lhe o valor por esse motivo.

Naquele ano, ficaram muito tempo nos Esquecimentos. Cerca das quatro horas da tarde, ao sol poente, o que restava das folhagens outonais apresentava belos
tons vermelhos, verdes, amarelos e dourados, obtendo efeitos mágicos, pintava uma espécie de aurora no céu azul e rosa, sob as folhas luminosas e fantásticas. Caminhava-se
sentindo a cada passo mudarem os efeitos de cor, ora se exaltando, ora se abrandando. Parecia um jogo de cores. De repente, uma clareira abria, no extremo do passeio,
para um céu de brasa, reflexo de um espetáculo de incêndio que não se podia ver. Os passos se apressavam em sua direção, mas o braseiro se extinguia e quando se
chegava à avenida era quase noite. Ficavam lá, decepeionados. As avenidas se abriam na noite. Um último reflexo do poente, mais além um primeiro reflexo da lua no
meio da sombra em que lagos, escadarias e folhagens iam se confundindo, formavam um espetáculo misterioso. Gostariam de entrar nesses bosques, mas a folhagem, tendo
sido devastada, dava-lhes a idéia de estar atravessada, rompida, destroçada, vazia. E as ninfas que os habitavam e os faziam parecer tão fortes, como os animais
ou os pássaros capturados na floresta que fazem, na jaula, o gesto impotente de fugir, caçados e aprisionados nas selvas devastadas, eram agora estátuas ainda graciosas
mas sem força à entrada das avenidas onde haviam sido postos, num movimento de fuga que não lhes adiantava de nada, fazendo ainda o gesto animal de arremessar alguma
coisa. Haviam-lhes deixado o seu arco, como aos javalis na jaula de uma casa de caça graúda se deixam as presas. Já não podiam, porém, servir-se dele.
Agora, noite fechada, a casinha do guarda do parque, pequena construção Luís XV, estava iluminada, e se não se visse

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ao redor da mesa sórdida da cozinha os dois guardas jogando cartas enquanto a mulher acabava de preparar o jantar no fogão, daqui com suas amplas janelas de palácio
que essa claridade banhava de ouro pálido, e aqui (reflexo, sem dúvida, do fogão) esse luar cor-de-rosa que chegava até os ramos próximos da mata, poder-se-ia crer
num palácio iluminado para uma festa, em todo caso muito bonito e agradável de contemplar à noite, onde é o único refúgio da luz, o único esconderijo da vida, a
única luminosa aparição que une o viandante fugaz, obeecado pela noite, à vida calma que se move nas vagas de luz humana, que o faz imaginar novamente, de maneira
diversa de um sonho na memória, um -interior iluminado e quente no meio da noite.
V. Os domingos de Étreuilles

O domingo parecia a Jean o dia do sol, talvez porque nesse dia não o acordavam e ele abria os olhos aos raios do sol das dez horas, já de há muito espalhado
pela vila, como um amigo que os deixou dormir mas que quando vocês despertam já adquiriu as belas cores de alguém que, perto de vocês, trabalha há várias horas sem
ruído, aos raios de sol e também ao dobre cadenciado dos sinos. Esses belos raios sorridentes pousados em sua cadeira pareciam-lhe, tanto quanto os sinos da missa
cantada, saber que era domingo. Mesmo que chovesse mais tarde nesse domingo, ele não sentiria menos o sol nas ruas sombrias, sob o céu cinzento, algo como o sol
que lá estava incógnito, no canto dos sinos, no levantar da cama tarde, na multidão que passeava lentamente nas ruas. Era como um sol interior que, mesmo sob a chuva,
sob a tempestade, alegrava-o como o sol e, como um dia de festa, fazia a chuva menos triste e o céu baixo menos pesado. E nem por isso deixavam todos de dar seu
passeio, e as mulheres de pôr o chapéu. Ainda assim, iam à missa na igreja onde o dia cai dos vitrais cor-de-rosa, verde, amarelo, de modo que não se sabe se lá
fora faz sol ou chove.
Em todo caso, não chove na igreja onde Jean entrou bem atrasado, porque matou tempo na cama tomando seu chocolate, e depois porque os senhores não têm necessidade
de assistir à missa inteira. É claro que não imitaria o pai, que às vezes, ao voltarem da igreja, encontravam em casa lendo pois acordara tarde e o tempo não estava
bom, ou então deu um passeio no campo e, percebendo que todos voltavam da igreja, tomou o caminho da herdade para não encontrar ninguém. Como deixava a casa ao mesmo
tempo em que Jean saía para a missa, recomendoulhe que dissesse à mãe que não se atrasasse muito conversando, e que voltasse logo para o almoço, pois Ernestine,
que fora à

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missa das sete e que, zelando pela saúde da alma de seus patrões, cuida ainda mais que seu pernil de carneiro seja comido à hora aptopriada, preveniu que era necessário
que todos estivessem à inesa ao meio-dia se quisessem ter um bom petisco. E, ao abrigo da chuva na igreja bem fechada, Jean foi sentar-se perto da mãe sem lhe dar
bom-dia, pois isso não seria conveniente numa igreja.
Antes de ir à igreja, Jean descera ao subsolo, fora à cozinha onde Ernestíne, como Vulcano em sua forja, atiçava o fogo, mexendo os carvões rubros com um
gancho de ferro, num chamejar, num calor, num crepitar, num estrondar de inferno. Mas enfileiradas sobre o fogão como no ateliê de um ceramista, já exalando um vapor
branco, pequenas panelas, caçarolas redondas, uma enorme tina, todas deixando sorrir uma pasta colorida, aqui castanha, ali rosa, lá violeta, de um cheiro particular,
pareciam testemunhar já a delicadeza das obras-primas devidas a essa arte violenta. Nesse dia, o número das caçarolas era maior, já que no domingo deveria haver
maior número de pratos. Sobre a mesa, os petit-pois, já preparados, amontoavam-se como bolinhas verdes. Embora atrasado para a missa, Jean lá fora para saber o que
ia haver para o almoço, saber também das novidades, novidades que, nada tendo de platônico e satisfazendo apenas sua curiosidade, renasciam logo das cinzas, mais
sensuais e impacientes, pois um cardápio, se dá informações como um jornal, também excita como um programa. Depois, Jean partiu feliz, pensando que, enquanto estivesse
na missa, trabalhariam com ardor para ele o fogo (em Étreuilles ainda não havia eletricidade, essa outra força), gigante do qual o homem fez um cozinheiro, e Ernestine,
cujas mãos grosseiras como as de certos escultores e pianistas compunham para ele, com toques tão delicados, uma obra de primoroso acabamento. Assim, na igreja,
imóvel no banco, e não tendo que pensar em coisa alguma, era livre para pensar no pernil de carneiro que vira confiar às chamas domésticas e industriosas.
Tampouco dera bom-dia à Sra. Savinien, esposa do notário, tão branca e alta em seu vestido negro, com seus anéis de cabelo negro. Mas, vendo-o aproximar-se,
ela foi a seu encontro fazendo ranger a cadeira nos ladrilhos, sinal de que o via, única saudação que se permite na igreja. E esse bom-dia nada tinha de frio pois
Jean sabia que dali a pouco, missa terminada, quando chegassem

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das onde o imprevisto põe um traço picante, mas cuja monotonia é doce, e que, para ela, haviam sido aquilo que para qualquer de nós é algo tão especial, a vida.
Estava sempre ligada a isso. E por trás da sua janela, ela já não podia mergulhar nessa vida senão pelos olhos, que haviam continuado bons apesar de seus oitenta
anos; via tudo o que se passava diante da casinha e tudo o que acontecia mais além. Dizia aos seus botões. "Eis o Sr. Servan que vai para o seu campo", como se alguém
dissesse: "É tarde, já são dez horas". Às vezes dizia para si mesma: "Mas não é possível, não podem ser já dez horas." Que se passava então? "Sim, são dez horas,
os dias começam tão tarde agora, que se maginaria que acabamos de levantar." Ou não eram dez horas. Talvez o Sr. Servan esperasse os filhos e tivesse ido primeiro
à cidade. Perguntava a Ernestine. Não, é que hoje era o dia de colher suas batatas. "Ali, é o dia de colher suas batatas, compreendo", dizia a Sra. Sureau satisfeita.
- Eis o Sr. Saurin que vai às vésperas - dizia Ernestina vendo o merceeiro sair de casa de chapéu e luvas, com a mulher e as duas filhinhas. - Com certeza
é o Victor que vai tomar conta da loja, pois hoje, domingo, é bem possível que venham fregueses. - Ali, isso não me espanta nada - dizia a Sra. Sureau -, há pouco
vi a Sra. Savinien passar com o seu livrinho. Pensei que devia ser para ir às vésperas. Nossa, são quase três horas. Olhe o céu como fica feio, não me espantaria
nada se se molhassem à saída. Sei bem que a Sra. Alexandre (a Sra. Santeuil) está com sua capa comprida. Talvez ela ainda não tenha saído, podiam lhe dar o guarda-chuva
grande do Alfred (o tio). - Ainda não saiu, mas a senhora então não viu claramente que ela lhe deu bomdia pela janela - dizia Ernestine com uma rudeza que incomodava
Jean quando a ouvia falar assim a sua tia-avó, mas que não causava o menor aborrecimento à Sra. Sureau. A tarde avançando, a Sra. Sureau mandava que erguessem a
cortina da pequena janela para enxergar melhor e pusessem novas brasas no aquecedor. Se Jean, ao entrar, se aproximasse dela, a Sra. Sureau recebia seu beijo sem
retribuí-lo, como uma relíquia vivamente colorida. Pois sua fisionomia se tornara, no outono da vida, vermelha como a folha virgem da videira, mostrando mil nervuras,
mas ela pouco se importava. Jean saía depressa. - Não sei o que há com o

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tempo, estou me sentindo gelada. Ernestine, me alcança o casaco - dizia a Sra. Sureau, voltando a sentir na tranqüila sala de jantar a agitação do vento que passava
lá fora. Olhe, eis o Sr. Savin que abre o guarda-chuva. Bem que eu sabia, no momento em que me subiu o sangue à cabeça, que a chuva não iria demorar. Já a sentia
há dois dias. - E de fato, imóvel à janela, rubra se fosse chover, o casaco sobre os ombros caso o vento refrescasse, a Sra. Sureau se assemelhava ao captichinho
que, na esquina da rua, marcava o tempo em casa do oculista que dava lições de aritmética a Jean e cuja filha era, segundo se dizia, muito bem casada em Tours.
- Meu Deus, eis ainda o cabriolé do doutor que veio buscá-lo.

Que vida, obrigado a partir com um tempo desses! Não seria de espantar se houvesse alguém doente na casa dos Dufoc, pois ain-

da há pouco vi o pequeno Dufoc entrar na farmácia. - Não replicava Ernestine -, a criada me disse que ele está longe daqui, na casa de algum dos Berceaux. - Mas
a Sra. Sureau, que há vinte e cinco anos não ia para os lados dos Berceaux ' não

se interessava pelo que por lá acontecia, exceto quando, para um casamento, vinham buscar criadas em Étreuilles ou, para um doente, chamar o médico ou o cura. -
Ali, olhe o meu velho tio Gigout que entra no cabriolé - dizia de si para si a Sra. Sureau, vendo o doutor subir para o carro. - Jearmot o empurra, pronto. Há apenas
dois anos ele saltava ainda sozinho. Nossa, está velho! Não

se é sempre jovem. Já anda nos oitenta e seis. Não é mais o mesmo de antigamente.

Às vezes, uma pessoa que vinha pela rua parava diante dos três degraus de pedra que levavam à pequena porta. ~ Olhe, aí está uma visita para a senhora -
dizia Ernestine. Já não se via a pessoa e logo depois escutava-se o som irritante da campainha que, uma vez puxada, soava ainda duas ou três vezes. Tais visitas
eram raras. No entanto, havia pessoas que vinham de vez em quando como a Sra. Savinien, que era sempre muito gentil com a Sra.

Sureau. Perguntavam-lhe pelas novidades. - Ali, é tempo de ir embora. - Vejam vocês, os velhos, isso não vale mais nada dizia a Sra. Sureau -, minhas pobres costas
me doem a noite inteira, eu já quase não como. - Queixava-se da vida porém a amava, e a todas as coisas que faziam parte dela. Assim, nos dias
espetáculo tão delicioso, e vira ainda a pobre senhora com seu belo vestido negro correndo o mais que podia e quase caindo. Foi ao voltar da missa, claro. - E Jean
esperava impacientemente o momento em que a cozinheira, tendo avistado a da Sra. Lévis, poderia contar tudo o que ela perdera, o manto novo. E que delícia, quando
a chuva houvesse cessado, e o sol reaparecesse e entrasse de par em par pela janela. Em breve poderiam sair. Tudo são dramas naturais que do fundo de um vestíbulo
Otico onde o dia não tem sequer sua cor e onde se está habil mente preservado do ruído da chuva, e onde, dando para um jardim de inverno, vêem-se, mesmo no inverno,
as catléias, perdem toda espécie de interesse e, quando muito, dão ao mundano indiferente, se ele vê a luz enfraquecer, assim mesmo se o tempo está muito ruim, a
idéia de iluminar à eletricidade, com ar entediado, ou de dizer depois de alguma hesitação ao cocheiro:
Não sairei hoje.
Entretanto, em Étreuilles, como a chuva houvesse parado, fosse domingo, via-se 'aos poucos fechar as lojas, pessoas endomingadas saírem em direção à praça
e na casa dos Sandré, onde se almoçava mais tarde, via-se passar as senhoras com belas fitas e o Sr. cura com dois meninotes que intrigavam sobremaneira o Sr. Sandor
até que descobriu que eram com certeza os filhos da irmã do padre, donde concluiu que eram bem felizes, e que sem dúvida a Sra. Torrèche chegara, o que entretanto
causava assombro, pois o Sr. Dieutourne o encontrara de manhã e ele não lhe dissera nada. Concluiu: - É preciso que eu fique a par de tudo isso. - Mas como almoçavam
tarde, embora os que saíssem a passeio começassem a aparecer na rua, levavam apenas a grande torta de maçã, amarela como a porta da loja de novidades da praça, mas
coberta de um suco avermelhado como os espinheiros rosados que cresciam ao redor da portada da igreja situada em frente à loja de novidades da praça. Torta essencialmente
domingueira, contemplada com admiração e comida com delícia durante esses meios-dias de domingo, com a ruazinha defronte e ao mesmo nível, e o céu violáceo dos dias
de chuva ou o reflexo dourado dos dias de sol. Havia maior número de pessoas nesse dia ao redor da mesa, pois tendo a loja de novidades fechado no domingo como as
outras na praça ensolarada ou ensopada, de-

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e

fronte à igreja resplandecente de sol ou arroxeada pela tempestade, o primo e a prima de Jean vinham almoçar, muito afetados os dois em seus belos trajes como os
outros moradores de Illiers no domingo, tendo em sua fala doce e pele rosada como que as cores complementares do cheiro da loja, das prateleiras de tecidos onde
o Sr. Clinteau chamava o Sr. Fernand fazendo estalar a unha no dedo - que quer dizer isso? - loja em que, além do mais, o merceeiro não temia entrar e onde o Sr.
Clinteau lhe estendia a mão ainda que estivesse de fraque. e ele, Clinteau com a camisa azul, mas como um ator à paisana estende a mão no teatro àquele que se veste
como um camponês. Pois não era o merceeiro sobrinho do prefeito, que se casara com a própria prima do Sr. Clinteau, essa velha senhorita tão devota que ia um pouco
mais adiante na rua com todos os seus cães e a criada, e a quem a Sra. Sureau. estendia a mão e com quem a Sra. Santeuil contava, durante o inverno, para vir visitar
sua sogra e distraí-la, pois elas se entendiam muito bem e freqüentemente iam juntas à míssa? Então o Sr. Clinteau dizia ao merceeiro: - Bom-dia, Sr. Saural, como
vão as coisas, sua senhora está bem? - A essas palavras, sua fisionomia adquiria um certo ar vicioso cheio de malícia, que reaparecia de vez em quando como uma espécie
de trejeito em meio a suas palavras, e que fazia acompanhar na loja, como à mesa em casa de seu tio, de um pequeno estalido de unha. Falava devagar escolhendo as
palavras com ar majestoso, e tendo-lhe o merceeiro pedido um metro de pano, baixando o olhar do alto
empoleirado até o fundo da loja, dizia com lentidão: - Olhe aí, Sr. Fernand, trate de encontrar um pano, sim, não é mesmo, para o Sr. Saural, alguma coisa
boa, não é, e depressa, vamos, que é isso. - Incapaz, porém, de chegar às recriminações por uma falta que não conseguia precisar, continuava a olhá-lo com ar majestoso
e retomava lentamente, e como que voltando à calma, a busca dos tecidos, peça por peça. Assim o tenente Marengo depois de ter censurado um soldado e dito: - "Diabo"
(com o a bem fechado), retomando a própria majestade como se fosse o imperador em via de comandar o exército, olhava o homem com severidade por um momento com seu
olho azul, com uma fixidez no fundo da qual se escondia a inércia do embaraço, e depois se punha, com len-

do escabelo onde estava elegantemente

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tidão, e como para parecer ainda ocupado com as censuras que não haviam explodido, a dar ordens aos outros homens.
Mas, de súbito, na praça ensQlarada, os sinos, repicando, lançavam um primeiro chamado, depois um segundo, e depois, pouco a pouco, respondiam rapidamente
o primeiro ao segundo, o segundo ao terceiro, ou, se eram ouvidos de outra forma, o terceiro ao quarto, o quarto ao quinto, dando o último a impressão de responder
ao penúltimo, ou de apelar para o seguinte, conforme o ritmo segundo o qual eram percebidos, parecendo abater com imensos e magníficos golpes regulares, desferidos
com todas as forças, os frementes muros de silêncio. Pareciam, com toda a força aumentada durante a velocidade do ímpeto, ferir o som tremente sem parti-lo e, como
que movido ao mesmo tempo pelo sineiro, o sol parecia, por um momento, ficar escondido e depois reluzia mais vivo na vitrina do pasteleiro. Mas ao mesmo tempo que
os sons dos sinos ressoavam nos ouvidos dos moradores de Illiers - inspirando-lhes um sentimento de familiaridade, pois todos conheciam o sineiro, e também de respeito,
já que muito antes desse sineiro, que só era sineiro há dois anos, os sinos haviam, desde que se nascia, ressoado a cada vez que se morria (até no dia em que se
perdia a mãe), a cada vez que alguém se casava (até no dia em que era para o próprio casamento que eles chamavam os outros à igreja), e cada vez que era preciso
ir à igreja para assistir a essas coisas muito misteriosas que terminavam. de modo bastante familiar, quando o menino do coro (o aprendiz de sapateiro), balançando
ainda o ostensório, fazia sinal à Sra. Clinteau avisando que lhe entregaria os sapatos sem falta à tarde, e sobretudo quando o pão, que o padre acabava de benzer
enquanto todos baixavam os olhos e o sol só entrava pelos vitrais azuis e cor de sangue, uma hora depois, na pequena sala de jantar com cortinas de musselina branca,
onde os pratos pintados com temas bem pouco religiosos ornam a parede, os livros de missa guardados nos quartos com o lindo chapéu brilhante e os regalos de zibelina,
era comido como um simples baba
ao mesmo tempo que esses sinos se feriam cada vez mais rápido

* Baba. Espécie de pudim com uvas de Corinto. (N. do T.)

160

um ao outro, fazendo estremecer, na praça, as paredes dilatadas e as ondulações propagadas de seu som, esta se enchia de senhoras bem vestidas, senhores de livro
na mão, o pasteleiro se punha à porta da loja e voltava para colocar o boné para não pegar muito sol, e o próprio Sr. Clinteau, largando o merceeiro que esperava
o pano, vinha observar pela vidraça de seu estabelecimento, de onde saía o toldo que cobria a entrada da casa com uma sombra escura e agradável, e saudando sua mulher
que lhe sorria ao passar diante da loja, dirigindo-se à missa com a filhinha, tendo toda essa passagem dos moradores de Illiers chegando à igreja, e essa sofreguidão
dos comerciantes no limiar da porta ou à vitrina da loja, o aspecto de, com a aproximação dos ponteiros do grande relógio do X das dez horas e os toques dos sinos,
ser posta em movimento por um único impulso igual.

Aos poucos, como diminuísse o toque dos sinos, rareavam os fiéis, já quase todos chegados. Mas como um último dobre soa quando se crê que o silêncio se estabeleceu
para sempre, via-se ainda a Sra. Sainters que caminhava muito depressa. - Ela está atrasada, e se apressa - dizia o Sr. Clinteau. Muito tempo depois, sem ruído,
chegava o Sr. Grosieur. - Ora! Deve ter levado uma hora para se aprontar para a missa - dizia-lhe o Sr. Clinteau, chegando até a porta e fazendo estalar a unha.
Mas o Sr. Grosieur ria, pois gozava da reputação de homem malicioso que adora chegar quando o sermão está no fim. Nesse instante, os pássaros, que tinflarn voado
do campanário com a chegada dos fiéis e o toque dos sinos, estavam todos, e desde as dez horas e dois minutos, de volta para tomar lugar, e voavam. de um lado para
o outro ou rodeavam o campanário. Um meigo pombo, de cor cobreacinzentada, pousado no capacete da estátua de Joana D'Arc, estava tão imóvel que parecia antes um
ornamento do melhor gosto acrescentado pelo escultor. Dez e meia. Já se podia fechar o estabelecimento. E assim é que, naquele dia, o Sr. Clinteau vinha com a mulher
e a filhinha almoçar na pequena sala de jantar da Sra. Sureau e, fazendo estalar a unha, explicava a Jean o tema dos pratos pintados. Mas não estava a seu lado e
era obrigado

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a lhe passar o prato, já muitas vezes espiritual por causa da legenda, texto de seus comentários jocosos, por intermédio do Sr. Sandré ou do priminho. Pois não estava
mais ao lado de Jean como antigamente. Jean conseguira essa mudança depois de negociações secretas com a mãe, pois seu tio, querendo ser engraçado, lho fazia cócegas
todo o tempo, suplício tão atroz que ele preferia a morte a uma vida em que podemos ser colocados sem defesa, mesmo só uma vez por semana, ao lado de uma pessoa
que nos faz cócegas, visto que abrigava sobre esse ato, e que sua mãe temia por Jean em razão do seu nervosismo, idéias obscuras que o transformavam em algo talvez
obsceno e certamente cruel. Dois domingos seguidos, a Sra. Santeuil esqueceu-se de trocar Jean de lugar. Como a vida ficou sombria e ansiosa então para o pobre Jean.
Não sabia fosse possível uma troca de lugar e o futuro lhe aparecia obscurecido até o fim por seus terrores. Muitas vezes o que pesa sobre nós com o peso esmagador
das ansiedades imaginárias, e às vezes também com a carga penosa de sofrimentos reais, pode ser desviado com uma palavra que nada custa a quem a pode proferir. Mas
precisamente porque não lhe custa nada, porque é coisa insignificante em sua vida, ele a transfere para o dia seguinte, esquece, ou julga pouco urgente pronunciá-la.
Não sabe que de hoje para amanhã haverá uma insônia pior que os sofrimentos tidos como importantes, e até se o soubesse lhe apareceria como coisa trivial, já que
sabe que uma palavra sua, palavra que dirá quando tiver oportunidade, fará cessar essa insônia como por encanto.

A doce influência do domingo não reinava unicamente em Étreuilles. E como na primavera, na frincha do muro do curp, as clematites, sem todavia estarem em
combinação com os botões-deouro e as papoulas dos campos, com os pilriteiros e as cerejeiras dos valados, se encarregam, nesses dias de festa, da decoração dos muros,
e a horas tantas, tendo trabalhado sem ruído, levantam e deixam brilhar, sorrindo ao sol, seu pavilhão violáceo; da mesma maneira, se Jean e seu pai, depois de passearem
à tarde no domingo, entrassem no sítio dos Aigneaux, a meia légua de Êtreuil-

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les, encontrariam a Sra. Laudet, figura angulosa, de belo talhe, com um avental branco, e uma fisionômia regular e distinta, que apesar disso inspirava respeito,
oferecendo ao olhar encantado de várias pessoas sentadas sob as macieiras, ao redor das grandes mesas de madeira, abaixo do rosto cuja dignidade era realçada por
umpenteado complicado e límpido, um soberbo peitilho de seda verde bordado de negro, mangas verdes e uma saia marrom. Apesar disso, como tinha muito que fazer nesse
dia por causa da afluência das pessoas, não tirava os tamancos. Mas este último traço da crisálida rompida desagradava menos que um Heitor ou uma Andrômaca no teatro,
passeando nos bastidores com o penteado à Bressant que ainda usam, reservando a peruca para o'último instante, ou uma dona-de-casa que não se contenta em receber
os convidados mas representa um papel na comédia que lhes oferece, com a obrigação de se pôr em traje de passeio antes do momento de se mostrar no palco, já que
seu papel não comporta vestido decotado. Assim, ia a Sra. Laudet de mesa em mesa, levando uma xícara de leite ou uma garrafa de sidra, nesse vestido verde que era
apenas uma das flores dessa primavera social, dessa floração da humanidade feliz de mil cores que se denomina "endoíningamento". Palavra que a mulher da alta sociedade,
que nesse dia acha obrigatório pôr seu vestido mais simples, pronunciará certamente com algum desprezo e uma irritação que trai apenas o mal-estar que experimenta,
sem se dignar a confessá-lo, por não poder se associar à alegria universal do domingo, e no entanto sofrer sua influência, que a faz sentir, pela necessidade e ausência
de prazer, algo quase insultuoso no prazer alheio. Assim ia a Sra. Laudet levando não só ao peito as insígnias mas também nos olhos a consciência da felicidade.
Como todas as mesas estavam lotadas, pois novos convivas chegaVam sem cessar, muita gente esperava bastante tempo o pedido que havia feito, apesar da diligência
da menina que, de cabelos louros frisados, vestido branco e cinta cor-de-rosa, trazia pratos tão grandes quanto ela com uma rapidez, uma elegância de dançarina,
escutando tudo o que lhe pediam com uma imobilidade esguia que revelava sua graça, respondendo-lhes com voz baixa numa demonstração de timidez que garantia sua boa
educação. Muitas vezes, os que haviam pedido esperavam bastante, mas per-

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mitiam-se apenas relembrá-lo com muita polidez, pois a Sra. Laudet era respeitada como uma pessoa muito, mas muito acima de sua condição, a qual era, ademais, superior
à vida simples que levava - possuía quase todos os sítios dos arredores de Étreuilles. Todos se submetiam de tal modo à ascendência de seu caráter e ao encanto de
sua beleza que em em sua casa, que vinham comer

muito era para vê-la, para estar nesse sítio, como se vai comer em certos salões, embora se dissesse que era um Pouco por causa da §idra, a melhor daqueles -lugares,
e pelo queijo, que era excelente. Mas as pessoas da alta sociedade não confessam, por acaso, que, se vão comer mais facilmente em casa de tal senhora do que de outra,
não será porque ela tem bolinhos de chocolate e prepara o chá como ninguém?
Por volta das cinco horas, em dias.de. bom tempo, esses domingos da Sra. Laudet atingiam o auge. E, ao prazer que ela sentia ao ver suas mesas ao ar livre
regurgitarem de gente, misturava-se a satisfação da comerciante cujos negócios vão indo bem - e mesmo esse aspecto a faria muito diferente, aos nossos olhos, de
uma mulher da alta sociedade? ~ algo como o suave orgulho de se sentir rodeada de tanta simpatia, de possuir tanta força. Cada um lhe endereçava um ligeiro cumprimento
a propósito da sidra, da sua fisionomia, do mundo que possuía, uma leve patada no sítio rival dos Noyers, onde não havia ninguém. Enquanto isso, outras pessoas chegavam
e ela estava emocionada como se tratasse de uma manifestação importante que coroasse sua carreira. E, para falar a verdade, na candura com que recebia os cumprimentos
e aceitava essa homenagem, ela se enganava muito menos do que uma dona-de-casa que, por ter vindo muita gente ao seu sarau, a qual ao sair há de se queixar do tédio
que suportou, da idade avançada da dona-de-casa e de suas ridicularias, sente-se emocionada como um professor a cujas aulas comparece um grande número de alunos.
Pois em Étreuilles e nas aldeias vizinhas, cada um dos clientes dos Aigneaux falava da Sra. Laudet com a mesma simpatia que os arrastava em bando para o sítio, aos
domingos, com o mesmo respeito que os fazia esperar tanto tempo, sem queixa, pela xícara de leite, pela garrafa de sidra.pedida. E como nas reuniões da tal senhora
todos sabem que só se servem chá e bolinhos e que não é de bom-tom pedir chocolate, era preciso ver

como se recebia o novato que pedia cerveja. - Não temos cerveja aqui - respondia com orgulho a Sra. Laudet, e lançava um olhar de tamanho desprezo ao mal-educado
que o resto da sociedade o considerava, por um momento, com olhares curiosos e chacotas pouco agradáveis.
Fiel aos costumes antigos, a Sra. Laudet não deixou sua herdade acompanhar a moda que assolou então várias herdades do Centro que, para rivalizar com os
comerciantes de vinho, passaram a vender absinto e ginja. Porfiava em manter a tradição de sua herdade, como esses salões de conversação onde a dona-decasa, resistindo
aos costumes, recusa-se a dar aos seus convidados música e comédia, como no salão vizinho. - Olugar deles é outro - dizia a Sra. Laudet, que nada fazia para aliciar
o cliente, antes tornando-lhe mais difícil a entrada na herdade e afastando todos aqueles cujas exigências relativamente ao absinto - talvez tão detestado por ela
só porque não lhe era fácil consegui-lo lhe inspiravam uma desconfiança que exprimia longamente a seus velhos clientes, seus habitués, os que nunca na vida lhe teriam
pedido absinto. - Essas pessoas - dizia - não quero. Ora essa, escolho minhas relações, aqui não é a casa da sogra. Não é só querer e ir chegando. Só recebo as pe,,soas
que me agradam.
Aspirava, como qualquer uma, ao salão fechado.

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A aula de filosofia. - Henri de Réveillon
- A Sra. Desroches- - Seu palácio. - A
Srta. des Coulombes. - Henri, Jean e o Sr.
Santeuil encontram o Sr. Duroc. - Por
que Henri hesita em apresentar Jean ao Sr.
d'Utraine. - História de Calpín. - Retrato
de um amigo. - Discussão de Jean com
os pais a propósito do jantar com Réveillon.

- Intervenção de Couzon na Câmara. - A recordação do Sr. Beulier.
I. A aula de filosofia

Oito e meia. Os alunos estavam na sala de aula, todos agitados porque o novo professor de filosofia, o Sr. Beulier, que ainda não conheciam, não havia chegado.
Alguns dos mais velhos, ansiosos por tratar diretamente com as autoridades e de voltar à aula andando a seu lado, atravessar o pátio sob os olhares curiosos dos
alunos que se apertavam de encontro às janelas das outras salas, preparavam-se para ir buscar o diretor e o prefeito do colégio.
- Calem-se, idiotas - gritou a voz grossa, sempre ouvida, de Buffeteur, cujo excesso de tolice a fizera considerável não só para os alunos e para os serventes
que rivalizavam entre si em admiração e simpatia por ele, mas até para o prefeito que lhe dava bom-dia com o sorriso protetor e receoso de um ministro que dá de
cara com o líder da oposição. Opróprio diretor, quando vinha à aula ouvir o resultado dos exames, no momento em que o professor dizia, como em todas as proclamações
passadas, como em todas as proclamações futuras: "Oúltimo, Buffeteur" e em que Buffeteur se erguendo no banco gritava com ingênua arrogância: "Presente, Sr. Diretor",
o próprio diretor dava um sorriso irônico mas cordial e inconscientemente respeitoso para com esse menino corpulento, que, durante o ano, estava sempre em último
lugar, sem melhorar, sem dúvida, sem hesitação, com a invariabilidade obtusa de uma lei da natureza. Jean foi tirado violentamente de seu devaneio pela voz grossa
de-Buffeteur. Sabia que o professor, o Sr. Beulier, em cuja divisão não queriam colocá-lo a princípio - "receamos - dizia a Sra. Santeuil - que ele lhe faça perder
o que ainda tem de cabeça" -, era um grande filósofo, o espírito mais profundo já visto por seus colegas mais inteligentes, e tentava ele, Jean, em vão, numa tentativa
apaixonada, com grande esperança de que faria bem a seu pensamento distraído o analisar-se

169
seni cessar, imaginar como seria o grande homem que tanto demorava. - Sim, seus cretinos - continuou Buffeteur por entre os gritos dos alunos sentados no encosto
dos bancos -, vocês são bem cretinos em quererem prevenir o diretor! Idiotas! Vamos fechar a porta como se o professor estivesse aqui, e durante algum tempo poderemos
fazer o que quisermos. Será que não entendem isso?
Nesse momento apareceu correndo, na porta da sala, um senhor. ruivo muito esbaforido, o pescoço envolto num lenço de seda, de óculos e com uma pasta. Os
alunos que ainda passeavam, intrepidamente, por entre as filas de carteiras como marinheiros
e sobre duas pranchas em meio a múltiplos ruídos tão atordoantes como o barulho do vento, das enxárcias e do mar, assentaram-se nos bancos em um segundo.
Cumpriram essa manobra com uma precipitação tão vertiginosa que o professor, ao entrar, viu-os todos diante de si, sentados às carteiras como remadores, o rosto
ainda vermelho e os cabelos fustigados pela tempestade, mas dispostos em ordem e prontos para obedecer. Jean, sem poder imaginar bem o que seria essa aula de filosofia,
auxiliava-se, no entanto, coifi frases de Renan, de Barrès, para figurar-lhe a doçura desencantada. OSr. Beulier começou a falar. Tinha sotaque bordelês muito carregado,
o que espantou Jean. Dizia "fi-lo-so-fia", "pa-te-ti-ce", acentuando igualmente as quatro sílabas. Seu rosto enérgico e corado não exprimia cepticismo, nem diletantismo
ou doçura acariciadora. Falou com tamanho nexo que Jean, desacostumado a tal, chegou a sentir cansaço, e ao fim de cinco minutos deixou de seguir-lhe as palavras.
Em nenhum momento, doces expressões como "vaidade da vida" e "nirvana" vieram, como brisa conhecida e suave, fixar sua atenção distraída. E, em toda a lição, não
encontrou nenhuma dessas imagens esplêndidas e perfumadas onde teria podido descansar durante essa áspera caminhada intelectual, como junto a um repositório de flores.
Muito mais, ele, que sabia não existir nem o bem nem o verdadeiro, ficou estupefato ouvindo esse homem, cuja genialidade fora tão gabada, falar do bem, da verdade,
da certeza, assim como se espantou de ouvi-lo discorrer, com visível satisfação, sobre certas invenções mecânicas, certas culturas de flores, que ele julgava poder
interessar unicamente às

num barco, subindo às traves da sala, ou equilibrando-

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pessoas a quem o reino do espírito estava fechado. Quanto ao reino do espírito, imaginava-o superposto à Terra mas sem que nada terreno nele penetrasse, a não ser
os perfumes, a piedade, a corrupção, a melancolia e os gatos. Pensava sobretudo que as ciências não oferecessem qualquer interesse a não ser para essa raça disciplinada,
mas bárbara, ignorante das musas e dos deuses e que impelia. o professor de matemática a novas descobertas, todas as segundas-feiras, em meio a cheiros envenenados,
explosões assassinas de experiências que falhavam sempre, ao ranger rude e rascante do giz que passava e repassava como uma serra em suas demonstrações hostis sobre
o quadro-negro. Assim, começou a duvidar do valor de seu novo mestre quando o ouviu falar da lei das interferências, que é tão bela, e depois, a propósito do trabalho
das abelhas, dizer com voz suave e triste: - Há momentos em que digo para mim mesmo que os sábios são mais felizes do que nós por saberem todas essas coisas. Tenho
pensado muitas vezes que seria mais agradável ser um sábio muito inteligente, ou até somente um curioso, e conhecer a fundo todas essas coisas. Existem momentos
em que a sabedoria dos livros nos parece bem fria diante dessa vida ardente das abelhas.
Depois Jean parou de escutar, pondo-se a falar baixinho com os colegas mais próximos. OSr. Beulier lhe fez sinal de que se calasse. Ao cabo de alguns instantes,
pôs-se Jean a conversar de novo. - Vai ficar uma hora retido depois das aulas - disse o Sr. Beulier apontando para ele, mas com tamanha tranqüilidade que Jean, habituado
à violência dos outros professores, percebeu que não se tratava de uma punição verdadeira e sim de mera advertência. Além disso, quando o Sr. Beulier desse por finda
a aula, e olhasse o nome do tagarela que havia punido, veria que se tratava de Santeuil, o que lhe fora tão calorosamente recomendado e cujos deveres de férias lhe
haviam sido enviados, deveres que causavam muito orgulho a Jean. Fremia de impaciência pensando no alto conceito que dariam de si ao Sr. Beulier. Ouvia-o já dizendo
aos alunos: "Senhores, têm entre vocés um que não é aluno, que já é poeta, que será um dia um grande poeta." Vendo já os olhares espantados dos alunos, saboreando
as palavras, variando a todo instante essa cena deliciosa, esquecia-se de que o Sr. Beulier não poderia, em oito dias, ter tido tempo de ler esses

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deveres e de tomar conhecimento deles e, ignorando ainda a marca genial que o distinguia dos outros alunos, confundia-o com eles. Mas para sua grande surpresa o
Sr. Beulier, um quarto de hora antes do fim da aula, tirou de sua pasta uma pilha de exercícios onde Jean reconheceu seus deveres das férias. - Quis lê-los antes
de começar o curso a fim de perder menos tempo - disse o Sr. Beulier. Ocoração de Jean batia a ponto de estourar. Além disso, nenhum.desses deveres merece um exame
mais demorado. - Jean acrescentou mentalmente: Mas fiz questão de pô-los à parte, pois não são propriamente deveres. . ..Não ouso afirmar que sejam obras-primas
mas têm algum valor. - São muito fracos - continuou o Sr. Beulier; sua voz se tornou muito suave, e ele acrescentou sorrindo: - Mas não fiquem desanimados, vocês
estavam cansados, tinham mais que fazer do que redigir exercícios. Não os julgarei por isso. Vejamos, eis aqui, rapidamente, algumas observações que podem ser úteis.
- Chegou à letra S. Alguns alunos antes, e depois'- - OSr. Santeuil. Não é dos piores. Oli, não é muito bom, tampouco. Tem (é como os outros, disse Santeuil de si
para si, na incoerência, na loucura) banalidades vulgares, todas as maneiras ruins de escrever que vocês aprenderam nos jornais e nas revistas. Mas não é culpa
de
vocês. Não é nada com vocês. Não se pode exigir mais do que isso na idade em que estão, exigir que tenham um gosto seguro. E certamente vocês têm um pouco de gosto.
-Oh, um pouquinho só, um quase nada, abismado em coisas bem ruins, mas enfim, é sempre assim. Mas vocês têm muito que fazer para escrever (uma obraprima, pensou
Santeuil) uma dissertação de filosofia. Será preciso banir, cuidadosamente, todas essas metáforas, todas essas imagens que, mais bem escolhidas que as de vocês,
podem agradar ao poeta, mas que mesmo assim a filosofia não tolera. Mas até para o professor de letras é bom não engrossar a voz para dizer banalidades. "Os rubros
incêndios do poente", como ousam escrever isso? É estilo de um jornaleco de ... digamos, do interior; não, nem isso, das colÔnias. Talvez, quem sabe, o redator do
jornal de Moçambique embeleze um artigo com essas miçangas e as senhoras de lá reconheçam nele o seu Chateaubriand. Não, é claro que vocês puseram isto sem pensar,
insisto neste ponto; e afinal, para que falar o tempo todo de perfumes deliciosos, odo-

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res balsâmicos? Que é que isso diz à imaginação? É a mercadoria enjoativa das insignificantes perfumadoras das letras. Deixemnas. Vocês naturalmente experimentaram,
como todo mundo, a nobre volúpia que dão certos perfumes. Tentem transmitir-nos essa experiência, será mil vezes mais interessante. Olhem como suas frases são vagas.
Vocês dizem: "Respirava-se aqui o aroma inebriante, cheio de sugestões obscuras, do lilás e do girassol." Em primeiro lugar, deixem de lado suas sugestões, e se
é para dizer que são obscuras sem ser capazes de esclarecê-las, então é melhor nem falar nelas. E não misturem o cheiro do lilás com o do girassol, Vocês sabem muito
bem que só se sente verdadeiramente o cheiro fresco dos lilases quando estão bem molhados de chuva, ao passo que os girassóis só exalam todo o seu perfume, que é
tão suave, à luz do sol. Mas não serei eu quem lhes dará todos esses conselhos, já que estou aqui apenas para ensinar filosofia. - Mas Jean nunca fora passear nos
jardins lendo poesia, sem olhar as flores ou respirar-lhes o perfume. Essas distinções não lhe falavam ao pensamento, que, além disso, seguia sem satisfação o arrazoado
simples do professor, onde não achava nenhuma dessas surpresas de linguagem, dessas tiradas de imaginação que a todo instante vinham estancar, forçar, deslumbrar
sua atenção na leitura dos menores contos do Gil Blas ou do Echo de Paris. Sem rancor para com aquele que, tão repentina e violentamente, ferira seu amor-préprio,
mirava-o todavia com uma desconfiança receosa e 'melancólica.
Finda a aula, orgulhoso das altas recomendações que o nome de Santeuil ia fazer voltar à lembrança do Sr. Beulier, Jean lhe disse, sorrindo: - Senhor, eu
sou Santeuil, aquele que o senhor castigou. - OSr. Beulier não mostrou nenhum espanto. - Venho lhe perguntar se o senhor não poderia cancilar minha punição. - Cancelar
sua punição? - perguntou o Sr. Beulier com extrema doçura. - Oh, sim, deve aborrecer-se em vir aqui. Não gosto muito dos retidos. Virá amanhã durante uma hora fazer
coisas que não lhe serão de muita valia, ao passo que gostaria mais de ir passear com um amigo em Versalhes. Tem toda a razão, não aprecio muito esse sistema de
repressão. - "Enfim, disse Santeuil consigo, não veio logo, mas pelo menos a punição está cancelada." - Sim, sim, não é uma coisa muito boa - continuou o

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àr. Beulier, observando Santeuil com um ar afetuoso, que Jean ainda não lhe notara -, sim, mas como quer que cancele a punição? Não posso - retomou com vivacidade.
- Não é verdade? Entrando aqui como professor, me empenho em que todos estudem e o faço o melhor que posso, e sou responsável pelas horas em que, conversando com
o vizinho, ou se distraindo de qualquer modo, você não estuda. Bom, não posso mudar o regime disciplinar. Ele se mantém com o auxílio das retenções. Você falou.
Chamei-lhe a atenção, você tomou a falar, está retido. É claro que não posso fazer nada. Mas talvez você tenha um motivo, um dever importante para cumprir na quinta-feira?
Então, o caso é outrQ. - Não, senhor - disse Santeuil ruborizando-se. - Muito bem, você então virá na quinta-feira retido, não é? Oh, mas o tempo passa, está na
hora de almoçarmos ambos. - E despedindo-se rapidamente de Santeuil, o Sr. Beulier desapareceu correndo.

11. Henri de Réveillon

- Mamãe, Réveillon gostaria de vir almoçar conesco um dia;
quando poderei convidá-lo? - Bem, no sábado, se quis ' eres; jus
tamente nesse dia a tia Louise deve me visitar depois do almoço,
seria interessante para teu amigo conhecê-la. - Oh, sim, é uma
ótima idéia. - Réveillon aceitou e no mesmo dia, ao voltar para
casa, Jean encontrou seus cartões: "Henri ficou bastante aborreci
do por não encontrar a senhora. sua mãe. Peça-lhe que lhe perdoe
se ainda não pôde ir vê-la, mas você sabe que ele é muito ocupa
do." Jean tirou um pouco de dinheiro de suas economias e foi
-encomendar cartões de visita. Logo que ficaram prontos, dobrou
dois e enviou-os à casa da Sra. de Réveillon. Qual não foi o seu
espanto no dia seguinte ao encontrar um cartão enviado em seu
nome: ODuQUE DE RÉVEILLON. A princípio pensou que havia
chegado alguma correspondência para Henri e que o duque viria
buscá-la. Depois imaginou que o duque teria escrito uma palavra
para ele. Ademais, o porteiro lhe dissera que o cartão fora deixa
do por um criado de libré. E então, não vendo motivo para tal
medida, viu nela um favor inaudito generosamente concedido por
um homem daquela importância a um rapazinho de dezessete anos
que julgava fosse necessário no mínimo exercer uma profissão ou
ser pai de família para que um homem "de certa idade" lhe enviasse
um cartão de visitas. Não conhecendo da ternura, da estima e
da doçura dos outros, de que seu frágil coração tanto necessitava,
senão o de~gosto de sempre ter sido privido delas, experimentou
um prazer delicioso que, de imediato, xaltado pela gratidão,
transformou-se em poucos minutos numa especie de amor ao ve
lho duque, um apaixonado desejo de lhe testemunhar seu devo
tamento, de se jogar a seus pés, de se fazer matar por ele. Su
ponham um desses pequenos recrutas a quem Napoleão puxava
as orelhas e que ardiam por cobrir de beijos e de lágrimas a mão
que os afagara. Indo ao palácio de Réveillon para deixar um bi-
ffiete ao duque, caminhando depressa, a fisionomia feliz, com cara de louco, ainda se perguntava se não seria um engano do lacaio. Felizmente, encontrou a tia Louise,
que lhe explicou ser hábito comum que um marido pagasse a visita feita a ele e à esposa mandando cartões de visita. Havia pessoas da alta sociedade que não mandavam
cartões aos rapazes, mas a maior parte o fazia. Jean tinha apenas de deixar cartões de visita na casa dos Tonnereau, por exemplo, que ele não conhecia. E, muito
provavelmánte, encontraria no dia seguinte um cartão do marquês de Tormereau. Jean agradeceu à tia e voltou para casa, decepeionado, tendo quase vontade de chorar;
apesar de tudo estava contente por mostrar a seus pais que o duque de Réveillon deixara-lhe um cartão. Quis, no entanto, que o Sr. Santeuil mandasse um cartão a
Henri de Réveillon e ficou zangado porque a mãe se opôs. Mas o pai dele me mandou um. - Não posso te dizer como se procede na classe do pai dele, mas na nossa isso
seria de um ridículo extremo. Não consigo imaginar teu pai, um homem ocupado, enviando um cartão de visitas a
um rapazinho de dezessete anos. - Por que dezessete
anos? Henri é seis meses mais velho que eu. Por fim, a Sra. Santeuil cedeu às instâncias do marido, e Jean beijou o pai com reconhecimento. Todavia, estava já inquieto
para saber se o enviaria à mesma hora em que o duque enviara o seu, se po dia enviá-lo pela manhã ou à tarde. Mas contente com essa primeira vitória, julgou prudente
não abusar e agir com moderação. Usou de clemência para com o inimigo, e na testa da mãe, que só batera em retirada quando o Sr. Santeuil se pôs ao lado do filho,
depôs um beijo magnânimo.

Antes de ir mais adiante, é preciso falar agora dessa tia Louise que "no sábado, cerca das duas horas", deveria conhecer Henri de Réveillon, e que ensinara
a Jean os usos, aduladores e decepeionantes, como quase todos os costumes mundanos, referentes aos cartões de visita. Não por acaso, mas por motivos profundos que
provocam tanto os fenômenos ditos mundanos como os denominados sérios, as situações sociais e os acontecimentos históricos, o sa-

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lão da Sra. Antoine Desroches, nascida Grimaldi, prima da Sra. Santeuil, que Jean chamava tia Louise, tornara-se, no momento em que Jean conhecera Henri de Réveillon,
e permanecera até o ano anterior, um dos mais procurados dentre os brilhantes salões de Paris. Ocapítulo que vamos escrever não faria pior figura num estudo psicológico
sobre as diversas variedades de ambiciosos, num estudo histórico sobre a sociedade de fins do século XIX do que na história mais modesta de Jean Santeuil.

Pobre, inteligente, ambicioso e hábil, Antoine Desroches tornara-se, no regimento, amigo íntimo do jovem Frédéric de Breslau, príncipe de Bremen, filho de
uma das mais importantes personalidades do mundo imperial e da própria família do imperador. A essa época, Antoine já obtivera a medalha de honra da Escola de Belas-Artes
e ia ser enviado a Roma. Encantava o jovem príncipe pela solidez dos conhecimentos artísticos. Num dia de folga em que foi vê-lo pela primeira vez no palácio de
Breslau, espantou o pai e a mãe de Frédéric ao debater peça por peça o valor-de sua célebre coleção de quadros e objetos de arte; aqui, levantando, à primeira vista,
uma objeção de pintor feita por Baudry depois de um longo exame e respondendo com um argumento que não ocorrera a um especialista no dia em que, a pedido do velho
príncipe de Bremen, quisera reabilitar aos olhos de Baudry a sua coleção criticada; ali, demonstrando por razões históricas um erro de atribuição, uma contradição
do catálogo. Ovelho príncipe, sabendo por Frédéric o quanto era pobre o seu amigo, quisera ajudá-lo. Antoine recusara tudo, sem dúvida por uma probidade natural,
e também por essa obscura lógica do ambicioso que sacrifica instintivamente os prazeres do presente para obter a reputação duradoura de um desinteresse absoluto,
tão útil às satisfações futuras como lhes são funestas as satisfações passageiras do bem-estar e da vaidade.

O pai de Antoine fora empregado a vida inteira. Em toda a infância, Antoine não recebera, das raras pessoas da alta sociedade que tinham negócios com seu
pai, senão palavras protetoras. Era dessas pessoas a quem se dá uma entrada para o teatro em

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troca de um serviço, porque é impossível convidá-los para casa. Queria ele que todas as pessoas à sua volta praticassem baixezas um dia a fim de poderem ser convidadas
para a sua casa. Alguns seres humanos desejam, porque só o conhecendo na imaginação dão-lhe maior beleza, aquilo que sempre lhes faltou. A cortesã deseja o respeito
ou o amor. Ocriado deseja a independência. Alguns homens, a distinção. Daí o vermos, todos os dias, um mordomo querido, estimado pelos patrões a quem serviu a vida
inteira e a quem poderia servir até a morte, com a certeza de lhes herdar um dia, deixá-los depois de rico para perder em alguns meses como mercador de vinho as
economias que juntou quando era um criado. Daí que a maior alegria de um ator, que aliás as teve muito intensas, é ser elevado a subehefe de escritório, que uma
cocote deixa o banqueiro que, tratando-a como filha, lhe dá duzentos mil francos por ano, pelo almofadinha de mãos abanando que lhe fala como a uma mulher da alta
sociedade e que, tornando-a apaixonada, lhe faz crer que é uma delas. Daí, também, que tantas moças ou rapazes nascidos de pais cuja profissão ou raça foi repelida
deixam seus amigos, estragam sua felicidade, empenham sua fortuna, dão sua vida para terem um nobre como testemunha num duelo ou como convidado à sua mesa. É de
notar que os escritores, muitas vezes filhos de pais pobres, e vendo o mundo através de sua imaginação que embeleza tudo, com freqüência fazem no mundo um sacrifício
que para eles é maior do que para os outros, visto que acrescenta a todos os bens imolados que acabamos de referir, o amor à solidão, as alegrias da vida interior,
a profundeza do pensamento, a dignidade da vida, a solidez da glória.
Mas é bem raro que os escritores sejam tão ingenuamente esnobes, tão deliberadamente ambiciosos como os julga a sociedade ou os pinta o romance, como se
mostra, por exemplo, numa obra imortal, o poeta Lucien de Rubempré.* Não, o Rubempré moderno, e é preciso que se diga, o Rubempré de todos os tempos não diz: "Quero
atingir, quero ser na sociedade tão solicitado, tão temido, tão rico como Maxime de Trailles e Ernest de Rastignac.**

Protagonista de As Ilusões Perdidas, de BaIzac. (N. do T.)
Personagens de BaIzac, como todas as citadas adiante. (N. do T.)

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Ele diz: "Desejo ter sentido tudo, desejo acalmar as idéias perturbadas pelo cansaço da especulação pura na fonte mesma da vida. Para descrever a vida um dia, devo
vivê-la" (raciocínio que não o impele, entretanto, a conhecer a miséria ou a mediocridade, que, tanto como a opulência, é uma das formas da vida). Diz: "Esta sociedade
será para mim um tema de pinturas que farei sem par, se as faço sem modelo. Quantas dessas vidas especiais, cuja flora psicológica especial, nessa região especial
da vida e do inundo a que se chama a sociedade, são de interesse para um psicólogo, e a flor mais venenosa, mas também mais difundida nessa terra podre, o esnobismo."
E ou porque sua perspicácia se compraz em punir cruelmente nos outros a vergonha de já sentir em si essas feridas, ou antes, em falar de seu mal mesmo para difainá-lo,
ou ainda para alimentá-lo e lisonjeá-lo, o romancista doublé de esnobe tornar-se-á romancista dos esnobes. Em breve, pela ascendência que os seres pervertidos têm
sobre os frágeis, e os prazeres imediatos e fáceis sobre os seres sem força de vontade, o mundo terá afeiçoado o poeta à sua imagem, tanto mais rapidamente o habituar,
pelos engodos da vaidade e da preguiça satisfeitas, a viver na sociedade, a qual eliminará a resistência que ele teria podido achar nas energias da vida solitária.
Esses seres, aliás, que Rubempré considera friamente como inimigos que tem de vencer ou fortalezas que tem de conquistar, o escritor irá a seu encontro sem premeditação,
não pelo caminho do cálculo e sim pelo ímpeto do desejo, arrebatado sem se dar conta, e sob o colohdo enganador de tantas razões que acabamos de referir, na direção
dos seres que seu próprio esnobismo não crê mais poderosos mas os torna mais encantadores que outros, o desejo sendo, tanto no esnobismo como no amor, a causa e
não o efeito da admiração. Não há de se apaixonar pelas duquesas porque as terá julgado friamente mais desejáveis do que outras, mas julgá-las-á mais desejáveis
porque se enamorou instintivamente delas. Mais tarde, poderá dizer a si próprio: "Escolhi esta vida para fazer fortuna, ou quis, fazendo-me tratar de igual para
igual por um príncipe, restituir ao homem de letras rebaixado a posição a que tem direito." Não preciso acreditar em tanto cinismo ou em tamanho desinteresse, mas
reconhecer, uma vez mais, o engenho de todos

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aqueles que uma paixão levou a sé persuadirem de que, seja no caminho de carreiras vis ou nobres, foram eles que se dirigiram e que, em vez de serem escravos, são
mestres.

Mas Rubempré nos desviou do assunto. Voltando a Antoine Desroches, encontramos Rastignac. ORastignac moderno e, para deixar claro nosso pensamento, o Rastignac
de todos os tempos, não diz à Sra. de Beauséant: "Preciso de sua proteção; introduza-me na casa do general de Canigliano", mas tem o ar de precisar tão pouco da
proteção que ela lhe oferece, e que seria para ele uma tremenda chateação ir à casa do general de Canigliano, que ela é obrigada a insistir para decidi-lo, a lá
comparecer e não o consegue senão à segunda ou terceira investida. Longe de renunciar a seus estudos e trabalhos para ir visitar todas as tardes a Sra. de Nucingen
ou a Sra. Beauséant, faz poucas visitas, ocupado em misteres muito mais interessantes, segundo afirma, do que os prazeres da sociedade e acerca dos quais desperta,
nas pessoas da alta sociedade, uma curiosidade ingênua envolta em respeito misterioso. Jamais fala de seus convites e sempre de seus exames, nunca das relações com
os nobres mas sempre dos velhos amigos das Belas-Artes. Diz: "Eis pessoas que não são duques mas lhes asseguro que gostaria mais de passar cinco minutos com elas
do que cinco horas com o Sr. de Trailles" (pois até para diminuí-los não pode evitar pronunciar os nomes dos nobres). Não diz à Sra

excelente pessoa

e de fino espírito.,, Em frente aos nobres que não conhece mantém-se frio, com os que conhece é franco até a brusquidão. Não lhes esconde suas verdades.
Mas diz-lhes, brutalmente, verdades agradáveis: "Que preguiçoso, que malandro", e quando muito, ao ser absolutamente necessário, uma verdade desagradável, rapidamente
compensada pelo favor de uma palavra terna, saída do coração "a contragosto". Nunca se permitiria dizer-lhes, mesmo com cautela, verdades ofensivas. Iria procurar
a Sra. de Nucingen se seu pai agonizante o pedisse, pois Antoine no fundo não é mau, mas jamais, acompanhando-a ao baile, lhe diria: "Sinto alguma coisa por dentro
vendo-a rir enquanto esse pobre pai morre." Antes, desculpará a Sra. de Nucingen a seus próprios olhos, e lhe dirá: "Sei muito bem que lhe aborrece o ter vindo a
este baile, mas é preciso tomar conta de você." Em caso de necessidade, sua voz, normalmente áspera, se abrandaria: "Esse pobre pai, diria, você deve procurar fazer
o que ele a mandaria fazer se você lhe pedisse um conselho. Acha que ele gostaria de a ver chorando a ponto de lhe fazer mal, num quarto viciado pela respiração
de um doente, e faltar a um dos grandes êxitos de sua vida? Além do mais, você não é bastante forte para velar dessa maneira junto a um enfermo. Não precisa abusar
do fato de que ele não tem mais força de impedi-la, para fazer o que lhe daria um enorme desgosto." Não diria a Nathan: "Como pode ser tão vulgar com um jornalista
que não tem o seu valor?" e sim: "É divertido ver que as voltas da vida fazem-no aproximar-se de homens tão inferiores. Mas tem razão, é necessário." Nunca Antoine,
passeando à vista de príncipes e duque, fingirá não reconhecer antigos amigos jornalistas. Deixará ostensivamente uma princesa para ir apertar-lhes a mão, sabendo
que isso o fará crescer tanto aos olhos da princesa como aos dos jornalistas. Assim, impertinente e assíduo junto aos poderosos, afetuoso e pouco freqüente com os
humildes, Antoine só teria amigos se não houvesse aquela espécie de gente que ele pode suportar, que ele deprecia sempre porque isso lhe dá a dupla vantagem de enfraquecer
os rivais, retardar os concorrentes, de conservar só para si a presa que buscavam não menos do que ele, uma espécie que farejava bem de longe, e cujas manobras denuficiava
cruelmente, para a qual não
Antoine Desroches não permitira que o príncipe de Bremen o ajudasse financeiramente: o príncipe o protegeu com seu crédito. Em vez de lhe dar algumas centenas
de francos, o príncipe lhe obteve um lugar de vice-diretor nas Belas-Artes, de crítico de arte

no Figaro, de inspetor dos museus, num total de sessenta mil francos de renda por ano. Antoine Desroches era como essas mulheres ditas honestas que não aceitam dinheiro
de seus amantes e lhes custam vinte vezes mais caro que uma dançarina. Além disso, Antoine, recusando as dádivas do príncipe, obrigara-o a tratá-lo não como protegido
e sim como amigo. Esteve em todas as suas caçadas, em todos os seus jantares. Apresentado a várias personalidades do Império, prestou-lhes bons serviços com os seus
conhecimentos artísticos de primeira ordem. E fazendo-os ganhar, desse modo, muito dinheiro, sem jamais consentir em recebê-lo, forçava-lhes a admiração e a intimidade.
Aos trinta e três anos casou com Céphise Grimaldi, filha de um grande pintor, que não lhe deu um dote avultado, mas deveria ser um excelente apoio para o genro por
ocasião de sua candidatura à Academia de Belas-Artes, da qual era o secretário perpétuo. Acima de tudo, porém, é preciso dizê-lo, Céphise Grimaldi era uma das mais
lindas louras de Paris. Muito inteligente, possuía dois enormes olhos verdes e líquidos. Antoine Desroches estava muito apaixonado por ela. Para grande espanto da
sociedade, ao se casar com essa mulher cuja beleza e encantador espírito gabava há tanto tempo, não a apresentou. Apesar disso, a princesa de Breslau e alguns amigos
mais íntimos dos Desroches pediram para conhecer sua mulher, convidaram-na; ele respondeu com evasivas, e enfim acabou por confessar com toda a franqueza que a mulher
vivia numa roda íntima de pintores e escultores eminentes em comparação com quem ela considerava toda sociedade fria, temendo inclusive jamais poder convencê-la
a freqüentar a alta sociedade. Entretanto, não cessava de descrever os deliciosos traços da mulher e os juízos emitidos sobre ela por homens de espírito superior,
dando assim a todos uma vontade louca de conhecê-la. Um dia o duque de Traves, homem que estava na moda em Paris, viera pedir um conselho a Desroches. - Ah, minha
mulher é quem está em melhores

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condições para lhe dizer isso - disse ele. - Peça à senhora que venha - acrescentou ao lacaio - mas sem lhe dizer que há muita gente comigo. Ela não poderia deixar
de estar aqui ajuntou Desroches voltando-se para o duque. Dias depois, o duque só falava a todos do incomparável encanto e do fino espírito da Sra. Desroches. Uma
noite em que jantava na casa da princesa de Breslau, ela lhe disse, um tanto ofendida por não ser 4'considerada digna": - Parece conhecer bem a Sra. Desroches, o
senhor. - Um mês mais tarde os Breslau encontraram os Desroches na estação de águas.
A Sra. Desroches confessava à princesa que nutrira antigamente um pouco de prevenção mas que fora conquistada diante do encanto da inteligência e da bondade
da princesa. - Prometa-me que quando voltar para Paris, irá jantar às vezes conosco - dizia a princesa de Breslau. à Sra. Desroches, sentindo que ela não podia mais
passar sem a sua companhia. - ElEi irá, juro - disse Desroches baixinho à princesa. - Mas nesse caso, convide-a com o que tiver de melhor, pessoas realmente cativantes:
ela é tão mimada! - acrescentou, olhando com amor a mulher que não os
ouvia.
Um mês depois, a Sra. Desroches estava lançada. Ogolpe fora dado: em proveito da Sra. Desroches, dirão os que viram nos dez anos seguintes o seu nome nos
jomais em todos os jantares importantes dados no bairro Saint-Germain, que a notaram na primeira fila de tantos camarotes imperiais e reais. Em seu detrimento,
pensarão os que tendo apreciado os admiráveis desenhos a pastel que fazia aos vinte anos, quando vivia sem ambição, na sociedade dos amigos de seu pai, viram seus
êxitos mundanos marcar não propriamente a decadência mas o fim brusco de sua produção artística e a elegância de seu espírito mudada, quase em um dia, como que sob
o condão de uma fada má, em belos vestidos, em amigos aristocratas, em móveis valiosos. Quem sabe ela mesma não lastimasse várias vezes não poder voltar a ser a
Céphise de outrora por uma nova metamorfose e não procurasse amiúde palavras mágicas para chamar a fada que, com sua varinha de condão, pudesse transformar seu salão
de hoje no ateliê de antigamente? Quem sabe até se a fada não lhe respondesse muitas vezes: "Eu te atenderei quando, tendo jogado fora todo esse lastro de lindos

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vestidos, amigos ricos~ grandes carruagens, fores bastante leve para subir e me acompanhar?" Mas, na ocasião a que esta narrativa nos conduz, cansada de não ser
ouvida e morrendo por não receber há tanto tempo, da parte de -Céphise, os devaneios de que vivem as fadas e, em geral, os espíritos, a pequena fada não se dignava
a cansar sua voz expirante para lhe dar ainda conselhos inúteis. Talvez até já estivesse morta. Mas, tal como uma casa habitada por uma mulher de bom gosto, uma
pessoa em quem viveu * uma fada conserva sempre um encanto que não se encontra nas outras. Céphise manteve sempre seus olhos inatingíveis como um fogo-fátuo, que
era impossível deixar de ver como presságios, sua boca misteriosa como um sinal mágico, em toda a sua pessoa um perfume de verbena que traz felicidade, palavras
rápidas que mudavam tudo ao redor daquele a quem ela as dizia, como um encantamento, um poder maravilhoso de consolar os outros, como se ela se tornasse por sua
vez uma fada pela morte da sua, mas que não podia nada por si mesma.
O golpe fora dado, dizíamos, em seu proveito ou em seu prejuízo. como quiserem. Mas se ela foi seu cúmplice, o foi sem o saber, pois era com sinceridade
que desejava preservar sua pequena sociedade de escultores e pintores contra as investidas do mundo. E nos cálculos de Desroches, para falar a verdade, havia muito
amor mesclado a muita ambição. Amava tanto sua mulher que queria poder lhe dar o que considerava a mais bela coisa do mundo: uma grande situação mundana - como aquele
jogral cuja devoção ingênua foi imortalizada por Anatole France e que, não sabendo de nada que pudesse honrar tanto a Virgem Maria, dava cambalhotas diante de seu
altar.
Mas se a Sra. Desroches- fora aceita pela sociedade, isso só ocorrera no mundo do Império, ou antes, numa certa roda da sociedade do Império. Se soubesse
conservar essa posição de destaque, deveria, ao fim de a'gum tempo, estender-se, nas várias regiões do mundo bonapanista, a toda a nobreza do Império, a uma parte
das altas finaiças. Mas isso teria sido pouco para Desroches. Sonhava já para a mulher com o domínio sobre a nata da sociedade parisiense sobre o bairro Saint-Germain,
o mais legitimista e fechado, sobre o corpo diplomático, e as famílias reais que ela desde então conquistou.

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111. Opalácio da Sra. Desroches

A descrição do palácio Desroches seria desinteressante para
o leitor. Numa época em que os móveis entravam aos poucos
numa mansão conforme aquele que a habitasse os julgasse úteis,
belos, ou soubesse que seus pais, seus colegas, gente de sua classe
ou de sua fortuna tivessem o costume de achá-los lindos e
de procurá-los, o matiz de uma cortina, a forma de uma ca
deira, os ornatos de uma pêndula não eram coisas indiferentes,
já que pareciam, por assim dizer, escolhidas por uma pessoa, e
uma simples cadeira poderia se tornar augusta, visto que, tendo
co ' riduzido com seu gesto imenso o braço frágil de um homem,
era, de qualquer modo, toda uma época que a levara até lá.
Reunidos em torno de cada família, os móveis davam a impressão
de cercá-la com os instrumentos de seus prazeres, com as ima
gens de seus gostos, com os símbolos de seu tempo. A casa
não passava de um outro costume, menos estrito e mais dura
douro, que de alguma forma moldava à sua semelhança a alma
do indivíduo pelas almas mais amplas das quais ela participa.
E, assim, uma mobília surgia como uma espécie de história em
que, lado a lado, o indivíduo, a profissão e a classe tivessem
marcado sua presença, fixado sua vida, expressado seu sonho,
depositado sua memória. E era como sobre mapas, sobre os
garranchos poeirentos da história, que um Balzac podia se de
bruçar sobre um aposento como para decifrá-lo e, partindo da
forma das coisas, ressuscitar diversas gerações de homens.
O mesmo não acontece hoje em dia, ao menos nesta parte da sociedade que se denomina "a sociedade". Como toda mulher, não de um tipo de espírito mas de um
tipo de sociedade, não necessariamente bem-dotada e sim bem-educada, vai ao concerto Larnoureux várias vezes ao ano, e a Bayreuth várias vezes na vida sem para tal
precisar ser musicista, como não tem necessidade de ser religiosa para ir à missa todos os domingos,

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assim com uma certa fortuna, ou melhor, em determinado grupo, o qual compreende uma infinidade de grupos diferentes, cada um tem seu aposento artístico, seja renascentista,
Luís XIV, Luís XV, Luís XVI, império ou inglês. Vejam a mulher de um grande médico, de um grande advogado, de um banqueiro ilustre, de um importante fidalgo. Certamente
não será seu palácio ou seu aposento que poderá lhes dizer, dele saberão apenas se sua dona é inteligente ou parva, idealista ou positiva, preguiçosa ou ativa, alegre
ou melancólica. Ele lhes mostrará unicamente lindos objetos de arte estilo Luís XIV, Luís XV, Luís XVI ou império, ou móveis e tapeçarias Mapple; uma mulher que
nunca estudou história "trabalha" seu palácio por dois anos em córnpanhia de artistas no Cabinet des Estampes, ou então, se os não conhece, na companhia de conhecidos
que se deixam enganar pelos marchands ou a enganam com eles. Uma que jamais tenha lido coisa alguma deixa ficar na mesa de seu quarto um único livro, La So~ royale
de Turgot, porque esse quarto é Luís XVI. Uma menina engraçada dá vazão a seu espírito agitado e a seus risos entre os dois braços de uma poltrona Luís XIV de espaldar
alto. A Sra. S. não gosta de pintura, mas, por ser rica, procura desenhos de Watteau e a primeira fase de Gustave Moreau. A Sra. X., filha de um banqueiro protestante
ou judeu, mulher de um banqueiro protestante ou judeu, se tem algo a ver com pintura, interessar-nos-ia em sua casa reunindo a seu redor. as figuras ásperas ou francas
de banqueiros mortos que foram os pais e os antepassados de seus pais e dos pais de seu marido. Não, ela mora no palácio de Lã Rochefoucauld e o seu quarto de dormir
traz um retrato de M-e- de Lã Fayette. Quando é que se perceberá que os mobiliários artísticos só podem ter interesse em casa de artistas, porque o apartamento de
um artista, se ele é sincero e eloqüente, tem tantos motivos para rids interessar como o aposento do burguês, do nobre, do magistrado, do banqueiro, embora se possa
pensar que o quarto do poeta, como uma espécie de observatório onde nada deve restringir a vista do céu, parar os ventos, as tempestades, as chuvas, devesse ser
de alguma forma despido, para que o poeta pudesse recolher atentamente o mais pálido reflexo do sol?

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A casa de um Edmond de Goncourt, de um Anatole France, de um Robert de Montesquiou interessam ao romancista e tornam-se para ele motivo de descrição, quer
dizer, para a ressurreição dessas jornadas. Depois de longas peregrinações indecisas em busca de um desenho de Watteau, uma estatueta de Clodion, uma gravura de
Hokusai, encontraram enfim a verdadeira pedra do altar de Deus, entronizando-a, no lugar que parecia aguardá-la entre outros ídolos que um idêntico fervor, mais
que uma mesma sala, aí reuniu. Quanto ao palácio da Sra. 1?esroches, era como o palácio Simon Accham, como o palácio Duferny, como o palácio da marquesa de Ouessant,
ou o do doutor Guénot, um museu para uso daqueles que não conheciam os museus ou que os conheciam tão bem que só as coleções particulares lhes mostravam algo de
novo. Entretanto, o palácio Desroches era menos bonito porque a Sra. Desroches era menos rica. Mas se a gente pensa que o palácio Réveillon, um dos raros da alta
nobreza que não se transformaram no palácio banal acima descrito, palácio da "alta sociedade" sem distinção, era despido, frio, quase hostil como uma fortaleza,
compreender-se-á que Henri sentisse, entrando no palácio da Sra. Desroches, o mesmo deslumbramento que uma menina, educada num convento severo ou no seio de uma
família de burgueses rígidos, experimenta ao se achar de súbito entre parisienses de vida desregrada, de conversação brilhante e elegância requintada. Os ditos mais
superficiais sobre a vida, a história, parecem pontos de vista profundos a seu espírito inebriado. Assim Henri de Réveillon se surpreendia ao ouvir os vários esclarecimentos
bastante incompletos e bem vagos que cada tapeçaria, cada quadro, cada canto da casa pareciam lhe dar com lições superficiais sobre artes que ele nem imaginava.
Ouvia-os com prazer, mas não os teria podido acompanhá-los sem cansaço. Ao mesmo tempo, sentia-se perturbado por um perfume violento, que desde o limiar havia indicado
que entrava num lugar especial, casa de cortesãs de renome, capela consagrada à volúpia.

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IV. A senhorita des Coulombes

Na mesma noite, no salão do palácio de Réveillon, chamado
salão dos adeuses porque fora aí que São Luís, antes de deixar
Paris, dissera adeus a Geoffroy, duque da Aquitânia e de
Réveillon, Henri, que combinara ter um quarto de hora de re
pouso depois do jantar, antes de subir para copiar sw. tradução
latina, escutava com alegria sua mãe fazer elogios a Jean Santeuil,
que o duque, com voz mais grave, apoiava no mesmo tom
como um canto alternado. Na verdade, era para ouvi-lo que
Henri passava esse quarto de hora no salão em vez de ir para
o quarto acender um cigarro, estando frio demais para fumar
no jardim. Mas, como ele chegou para tal discurso acadêmico,
vítima especial das circunstâncias, ou como um burguês num dia
de tumulto em que se extraviou, tal elogio estivera a ponto
de não ser pronunciado. Oduque de Réveillon, percorrendo
Le Temps enquanto a duquesa lhe punha açúcar no café, soube
da maioria que os novos ministros republicanos tinham obtido
na Câmara. Osangue lhe subiu à cabeça e ele se pôs a gritar:
- Que bando de canalhas! Ah! Eu fuzilaria todos eles com
satisfação. Seria bem fácil. E vejam d'Arenberg e Greffuhle que
votam com eles. Ironicamente, Le Temps faz o elogio desses
senhores. É de fugir da França. Canalhas! Dizer que esse burguês
estava a meu lado na Opera Cômica no dia do incêndio e que
Deus não quis que ele fosse assado como um cabrito. - Mas
o duque se contentou em lançar ao fogo o jornal que apoiava
sua política conjurando contra os ministros as maldições do Alto.
Celerados! - gritou, afundando-se na poltrona.

A divindade pareceu ter ouvido suas preces. A chama, nutrida por um instante pelo malfadado jornal, que lhe fora lançado como oferenda agradável e vítima
expiatória, brilhou com mais intenso resplendor e estorceu um momento como serpentes

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os sinais ruidosos da cólera celeste, e depois, esgotada, diminuiu, rejeitando o jornal humilhado que não era mais que um mínúsculo detrito de pó, deslizou sem ruído
na lareira e, como uma lagarta transformada em borboleta, alçou vôo sob a forma de uma chama brilhante. Henri olhara o relógio de bolso'e, verificando que só tinha
mais dez minutos para ficar no salão, amaldiçoou intimamente a república e seu novo ministério por terem desviado seus pais do assunto: dizer-lhe, enfim, o que pensavam
do amigo que lhes apresentara naquela manhã, semelhante ao dramaturgo que, estreando uma peça no dia 2 de dezembro, guardava rancor ao Império por haver, na noite
da estréia, impedido o público, mais atento aos acontecimentos políticos que à peça, de testemunhar ao autor o que pensava dela.*

Mas a duquesa de Réveillon, desejosa de desviar o espírito do marido de um assunto que o incomodava, e de não privar Renri do prazer de ouvi-lo louvar o
amigo, obedeceu ainda a outro sentimento quando disse, voltando-se para o duque, cuja resposta adivinhava: - Anselme, não me disseste ainda o que pensas do novo
amigo de Henri. - Esse sentimento se dirigia à única pessoa que estivera com eles no salão aquela noite, a Srta. des Coulombes, e não era precisamente um sentimento
de caridade. Velha amiga pobre da duquesa, que desempenhava às vezes junto a ela as funções de dama de companhia, distinguia Henri, fielmente, com o desdém que as
damas incompreendidas e poéticas alimentam pelos rapazes organizados, exatos, tranqüilos e positivos. Como Jeart correspondia ao ideal que a Srta. des Coulombes
formava de um rapaz e aguçara vivamente a sua curiosidade e admiração por tudo que Henri contava a respeito dele, de seus deveres & francês, suas leituras, antes
de o conhecer, e que então às p lavras da duquesa -

* Oautor refere-se, evidentemente, ao golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, dado por Luís Napoleão, com dissolução da Assembléia Legislativa, esmagamento
(Ias tentativas de resistência e prisão e exílio de republicanos e socialistas. Exatamente um ano após (2 de dezembro de 1852), proclamava-se o Segundo Império,
tendo Luís Napoleão tomado o nome de Napoleão III. (N. do T.)

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.,gostaria que Henri tivesse um amigo assim" - respondera com ar de piedade: - Oh, ele não se entenderia de jeito nenhum com Henri. Vejo bem do que se trata através
do Sr. Sully Prudhomme, que encontro às vezes no campo na casa de uma amiga -, a duquesa ardia de desejo de mostrar à Srta. des Coulombes que Henri despertara em
Jean Santeuil a mais viva simpatia. Assim, o elogio de Jean lhe pareceu duplamente agradável. A Srta. des Coulombes pareceu sentir menor prazer com ele, e logo começou
a desconfiar do verdadeiro mérito de um rapaz, já que se tornara amigo de Henri.
0 duque, jamais tendo desconfiado do desdém da Srta. des Coulombes por seu filho, não percebeu a malignidade da mulher e deu o golpe de misericórdia na cônega
dizendo ingenuamente: - Oque mais me agrada nele é a simpatia extraordinária que parece sentir por Henri. Dá a impressão, filho, de admirar tudo o que dizes - acrescentou
passando -a mão nos cabelos do filho e achando, no íntimo, que Jean não estava totalmente errado em admirá-lo. A Srta. des Coulombes principiava a crer que Jean
não era o poeta que ela proclamara de imediato aos primeiros relatos que Henri fazia de seu traje desalinhado e de seus deveres de francês. Não tomava nota dos elogios
que ouvia e agora esperava, o que nela era novo, tê-lo visto para se pronunciar. Fizessem-no encontrar-se com ela e, ao primeiro olhar, saberia o que pensar dele.
Mas era duro ter de renunciar ao sonho desse jovem poeta que ela mesma consagrara. Além do mais, assim que a visse, ficaria gostando dela. E agora, à noite, no palácio
de Réveillon, ela teria com quem falar. Ele perceberia num instante como era prosaico o espírito de Henri.
Enquanto isso, a duquesa, trabalhando na sua tapeçaria, elogiava Jean. Elogiava-o porque ele lhe agradara, e, à medida que o elogiava, mais lhe agradava.
Conforme o hábito constante das mulheres da casa de Dreux que julgavam sempre que sua nobreza, seu vinho, seu espírito, seus serões, suas gravidezes eram superiores
aos de todas as outras e como que de outra espécie, Anais de Réveillon julgara até esse momento quê o alazão de Henri era o mais belo dos alazãos, que seus chapéus
não se pareciam com nenhum outro. Seus próprios fracassos tinham algo de particular, e na regularidade com que ele era o último em

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redação de francês ela julgava poder entrever um certo sinal de originalidade, uma como que razão para se regozijar. Ao menos isso era melhor do que vê-lo em primeiro
lugar, posto reservado, como se sabe, aos alunos judeus pelos professores do governo. Agora que Henri tinha um amigo, um amigo exatamente como o podia desejar sua
ambição de ver o filho um tanto estimulado para as belas-letras, um amigo que o filho adorava, cujo ar simples, pensativo e doce a seduzira imediatamente, esse amigo
se tornava superior aos amigos dos outros. E aos poucos ela descobria em Jean todas as qualidades durante muito tempo mantidas em reserva, como numa gaveta, todas
prontas para o amigo de Henri, se lhe surgisse um.

Entretanto, o fogo, que já não precisava mais purificar a terra livre de um monstro semelhante a Le Temps, depois de haver mostrado por algum tempo um ardor
mais vivo e como que uma alegria desprendida das nobres funções que cumprira, retomara um comportamento mais moderado, acompanhando as palavras da duquesa com um
cântico suave e discreto. A chama alerta tecia rapidamente uma cinza mais leve que a tapeçaria da duquesa. Depois a -chama diminuiu como um repuxo que, embora enfraquecido
e cadente, se ergue ainda. Depois, de súbito, extinguiu-se por completo e só se viu a brasa sofrendo essas misteriosas transformações num silêncio semelhante ao
de uma vegetação rasteira de outono, onde de quando em vez cai uma folha ou uma castanha. Henri olhou o relógio e se levantou: - É hora de subir para estudar. -
Nesse momento, a duquesa percebeu o fogo quase extinto que parecia precisar de lenha e deixav? por instantes ouvir um gritinho como um gato à espera do seu leite.
- Querido, diga, ao subir, que tragam um pouco de lenha - observou ela. - Mas não queres ficar um pouco mais ainda conosco? - Não, mamãe, são horas de subir. - Horas,
horas! - disse a Srta. des Coulombes com ironia -, será que vai lhe acontecer alguma coisa se subir um quarto de hora mais tarde? É bom em qualquer idade, e sobretudo
na sua, deixar-se guiar pela fantasia. Ontem eu deveria jantar na mansão da marquesa de Ribes com o Sr. Sully Prudhomme, para ser exata. Éramos convidados para jantar
às sete e meia. Esqueci-me lendo até as oito e meia. Pensa que fiquei perturbada, muito feliz

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ainda por não me haver esquecido por completo como me sucedeu há oito dias na casa dos Puybaron. Só me lembrei dois dias depois. Veja que sua prima é sempre a mesma
- rematou ela com um jeito afetado, dirigindo-se ao duque. Mas, intimidada por haver ousado dizer "sua prima", enrubesceu até as orelhas e teria pedido desculpas
por muito tempo se Henri, com pressa de subir, não a tivesse interrompido para dizer boa-noite. - Então, me apresente seu amigo Santeuil - disse ela. - Sánteuil,
Nasta - gritou o duque -, será que nunca se lembrará de um nome? - Oh, perdão, sou tão , distraída - exclamou Anastasie. Riu e com os olhos tímidos buscou a seu
redor um pouco de coragem. Mas a duquesa estava ocupada com sua tapeçaria, o duque mexia no fogo, Henri acabava de sã,,- e a Srta. des Coulombes sentiu que enrubescia
fortemente. Baixou os olhos e, para disfarçar o embaraço, passou a mão curta no rosto que desapareceu por um momento mas logo reapareceu, como um sol rubro de inverno
que uma nuvem densa escondeu por um instante.
Assim se passava amiúde o serão, com uma suavidade monótona, no velho palácio de Réveillon. Os sentimentos humanos, os laços de família e da sociedade, os
temas de conversa não se tornam singulares de acordo com a classe. E embora a duquesa fosse prima do imperador da Áustria, a vida íntima parecia, em sua casa, com
a que poderia ser em casa de um desses burgueses que a imaginavam tão diversa.

Dias depois, Henri, que sempre ouvira em casa elogios à cônega, cujo desprezo a duquesa, por sua vez, detestava mais do que respeitava a inteligência dela,
disse a Jean: - Vou te dizer quem me disse que me detestarias. - Quem? - Oh, não a conheces. Não adiantará dizer seu nome. A Srta. des Coulombes. - A Srta. des Coulombes.
. . - respondeu Jean. - Oh! Minha tia Desroches a conhece: parece que se trata de uma pessoa ridícula.
A essas palavras, I-Tenri sentiu oscilar o edifício de todas as suas crenças, opiniões e admirações. Mas ao mesmo tempo sentiu-se como que aliviado de um
peso imenso. E sua admi-

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ração por Jean cresceu de imediato com toda a força que atribuíra há tanto tempo ao ídolo que acabava de derrubar. Para dizer a verdade, a Sra. Desroches, mulher
de espírito pronta a perceber os ridículos, e detestando acima de todos o ridículo do pedantismo e da presunção, era muito inclinada a considerar idiotas as pessoas
que, conforme sua expressão, "diziam idiotices". Chegara à casa da Sra. de Rivoli num dia em que a Srta. des Coulombes, no meio de um círculo de velhas senhoras
atentas, dizia: - Pergunto-me se Cícero era sincero - ao Sr. Renan e, desde esse dia, o seu conceito se firmara. Uma outra vez, ela a ouvira falar de Warvol, o romance
de Duns Scot,* e depois enrubescera e dissera: - Perdão, confundi-me. - Quando um dos nobres que formava seu juízo de acordo com o seu lhe perguntara com timidez:
- A senhora admira a Srta. des Coulombes? - ela respondera: - É uma beldade. - A ironia assumia a grandeza da justiça celeste que repõe cada um em seu lugar. No
entanto, talvez houvesse no pedantismo, na falta de jeito e nos esgares irritantes da Srta. des Coulómbes aspirações mais elevadas, um amor mais sincero às idéias
do que a conversação sempre graciosa e gentil, a fisionomia risonha, os vestidos de última moda e o fino tato da Sra. Desroches. Deus o dirá um dia no juízo final.
Mas por enquanto, nesta terra em que não somos julgados por nossas intenções, no dia em que Jean se encontrou com a Srta. des Coulombes em casa dos Réveillon, julgou
de outra maneira, ou seja, como sua tia. Desse modo essa entrevista não deu à Srta. des Coulombes tudo o que ela esperava, e reforçou-lhe a opinião de que Jean não
era o poeta que ela imaginara.
Era duro confessar a si mesma, conforme lhe disse mais tarde, que estava enganada a seu respeito. Mas, a seu ver, dispunha de duas provas inequívocas, a
frieza de Jean para com ela e o prazer que parecia sentir na companhia de Henri. Uma das causas desse prazer era, é forçoso confessá-lo, as qualidades positivas
de Henri, sinais de uma natureza inferior aos olhos das pessoas romanescas como a Srta. des Coulombes, mas que

* John Duns Scot, ou Johannes Duns Scotus (1265' ' )-13489), filósofo
e escritor inglês, cognorninado doctor subtifis. (N. do T.)

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vemos os poetas muitas vezes desfrutarem vivamente e procurarem nos outros casos não sejam sempre providos dela. Toda mão agitada que, trêmula, deverá escrever versos,
os transportes de uma apaixonada, uma resposta orgulhosa às acusações, busca sempre uma pena que não tenha nenhuma indecisão, que não caia do seu tampo no momento
em que a palavra imaginada a espera para escrevê-la imediatamente, que não trema de modo enervante, que receba a tinta sem demora e por igual de uma só penada, que
não tenha, como o pensamento que a guia, seus caprichos - humildes caprichos da pena, que ora range no papel sem enegrecê-lo, ora verte sua tinta em excesso sob
a forma de pequenos borrões que é necessário apagar logo. Assim o poeta não pode conformar-se com uma amiga como a Srta. des Coulombes. Pode fazer a família esperar
durante horas para jantar se é possuído pela inspiração justamente nessa ocasião; mas, se tem pressa de jantar para trabalhar ou descansar em seguida, é impiedoso
para com a humilde inspiração de, uma Srta. des Coulombes, talvez tão respeitável quanto a sua, que, sob a forma do desejo de ir ver um quadro ou de olhar o pôr-do-sol
ou de cantar J'ai pardonné quando devesse se vestir, tem por efeito fazê-la chegar às oito horas em vez das sete horas, e de causar ao poeta uma hora de impaciência,
de ansiedade, de maldições, uma hora perdida para seu trabalho e para seu repouso, funesta para seu caráter e seu pensamento. Opoeta adolescente maldiz as qualidades
positivas, quando as conhece unicamente através de um pai que em horas ignoradas vem arrancá-lo duramente às ocupações sublimes no momento exato em que elas o elevam
tão acima desta terra, para enviá-lo às ocupações vulgares da vida cotidiana, como vestir-se, ir para a mesa, fazer seus deveres, deitar, sair de casa. Porém mais
tarde, quando a preguiça, a desordem, a inexatidão, a distração, a febre deram pouco a pouco à sua vida a feição caótica de um inferno sublime, quanto aprecia ele
esses temperamentos positivos e prudentes, cuja vida tem a harmonia pacífica de uma coisa em seu lugar, de um movimento perfeito, a doçura monótona das horas que
soam regularmente.
Todos os gestos falsos da Srta. des Coulombes, seus rubores inúteis, suas intermináveis e improfícuas desculpas pelo que

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acaba de dize-r, o tremor de sua mão que, deixa cair logo o que ela tenta segurar, seus atrasos irritantes, suas confusões involuntárias, seus atos contraditórios
e ensinamentos inexatos fazem, talvez, para o ouvido de Deus, que os percebe em seu lugar, no formidável uníssono, parte integrante e melodiosa da har-
monia das esferas. Mas para o ouvido de Jean, que só ouvia as coisas uma a uma, a Srta. des Coulombes parecia ofender gravemente essa mesma harmonia. Se, ao contrário,
pedia uma explicação a Henri, ou se este combinava um encontro com ele, estava. certo de sua pontualidade e exatidão. Henri não
fazia coisa que não devesse fazer - é verdade que possuía sobre o que não podia fazer umas idéias bem amplas - e também não perdia seu tempo em ter remorsos. Mas
igualmente, não fazendo o que achava lhe fosse permitido, não tinha,
como Jean, escrúpulos. Falava menos que a Srta. des Coulombes, mas também o que dizia parecia necessário, e não sonhava nem em prepará-lo nem em se desculpar. Não
fazia a muita gente
protestos de amizade, mas, se gostasse de alguém, provava-o constantemente por ações que não deixavam dúvida alguma sobre seus sentimentos, nem a quem os inspirava,
nem aos outros. Sua amizade pela mãe não se assemelhava em nada
à exaltação impotente da de Jean. Tinha talvez menos medo de lhe causar desgosto, mas certamente lhe dava menos mágoa.
Estava bastante preso à vida para se preocupar com a morte. Gostava que seus livros estivessem arrumados, que o fogo ardesse bem, que seu trabalho ficasse pronto
a tempo para que pudesse
ter tempo de se divertir, que seu jogo de marceneiro estivesse limpo e as ferramentas cuidadosamente amoladas. Assim os
hábitos, cegos suaves que procuram fazer com que os nossos atos sigam sempre o mesmo caminho, poupavam-lhe aborreci-
mentos e o levavam alegremente todos os dias, desde o nascer do sol, à mesma prateleira onde o dicionário de Quicherat caía ao chão do mesmo modo sob sua mão, que
o pegava sempre por cima e gostava de sentir contra a palma a lisa suavidade
de seu couro, afastavam para longe de si o desejo de não trabalhar, a incerteza entre uma determinada ação e outra, o pesar da véspera e a ansiedade do dia seguinte.

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Era agradável ver Henri viver, como uma lamparina que, sem soltar fumaça nem tisnar, ilumina bem, como o fogo que não arde mas que espalha calor igual e
brilhante com afetuosa despreocupação. Ele espalhava alegria e cordialidade a seu redor. Na vida comum, nunca hesitava, como uma ferramenta fiel, que a vida gosta
de reencontrar, que serve admiravelmente e, se somos atacados, bate firme e forte. Tinha o encanto de um acorde justo, que satisfaz plenamente o ouvido, de uma igreja
italiana que não é mesquinha nem excessiva, onde a beleza resulta da perfeita adequação de todas as partes a seu fim. Possuía essa exatidão das datas que soam as
horas, os trabalhos, as tristezas, as alegrias e junto às quais nossos atos desregulados dão a desagradável impressão de forças perdidas, esforços desproporcionados,
resultados irrisórios, loucuras e desarmonia. Possuía essa poesia do dia bem empregado mais do que escoado, que não é nem a poesia triste de ontem nem a poesia obscura
de amanhã, mas que nos campos ou ao pé da lareira, na imaginação de Jean ou no quarto de Henri, tinha muito de ternura.

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V. Osenhor Duroc

0 Sr. Santeuil disse adeus à mulher pois ia ao ministério. - Vais a pé, papaízinho? - disse Jean. - Sim - respondeu o Sr. Santeuil, e acrescentou, voltando-se
para Henri, pois gostava de dar as razões de seus atos: - Acho que a caminhada é um exercício saudável e predispõe para o trabalho se não é excessiva. - Sim - prosseguiu
Jean com suave aprovação _, meu pai trabalha melhor depois de haver dado uma carninhada. Flaubert era da mesma opinião. - Fosse por amor-próprio diante dos outros,
fosse por respeito ao pai, Jean lançava, rápido, um véu sobre as fraquezas de sua conversação como uma mulher encantadora que repara constantemente na falta de jeito
do marido, ou como um pintor que encobre de névoas as partes mal desenhadas de seu quadro. E logo, temendo que o pai sentisse ciúme de sua nova amizade por Henri:
- Quer que o acompanhemos? - perguntou.
Como os três passassem pela Rua Royale, o Sr. Santeuil mostrou a Jean um homem moço que, bem vestido sem elegância e belo mas sem atrativo, acendia um cigarro
numa tabacaria. - É Duroc. - No mesmo instante Jean o olhou com curiosidade, e o Sr. Santeuil explicou a Henri quem era Duroc. Ganhara o prêmio de honra no Concurso
e fora o primeiro no ano seguinte na Escola Normal e na Escola Politécnica. Mas abandonara as duas para estudar medicina. Entrou no segundo ano como interno, e levara
à cena, no mesmo ano, no Théatre Français, um texto sobre Regnard * que obtivera um prêmio da Academia Francesa. Então se apresentou ao concurso para a carreira
diplomática. Passou em primeiro lugar e

* Jean-François Regnard (1655-1709), comediógrafo francês, o mais importante da era pós-Molière. (N. do T.)

197
era agora chefe de gabinete do ministro, o que não o impedia de ganhar muito dinheiro no Palácio e chegar sempre à frente nas corridas de bicicleta.
Disposições tão universais, tanta força para trabalhar e uma organização tão enciclopédica maravilharam Henri e Jean. Tinham muita vontade de conhecê-lo.
- Vocês vão ver - disse o Sr. Santeuil -, esse homem que trabalha tanto nunca parece estar esgotado. Entende, Jean - disse ao filho que se distraía com freqüência
-,'ele está sempre calmo. Acha tempo para ler tudo, para jantar todos os dias na cidade, e quanto à pontualidade em responder às cartas das pessoas e em comparecer
aos encontros marcados, não sei o que diria tua mãe, que se espanta de eu achar tempo para responder durante a semana a todo mundo, ao passo que tu, que não tens
nada a fazer, não podes sequer responder a uma carta. Tive de lhe escrever esta manhã para trataP de um negócio. Encontrará a carta sem dúvida cedo, ao entrar no
ministério, e tenho certeza de que amanhã já terei a sua resposta. E cartas que "resolvem"- e apesar disso escritas em bom estilo,
0 Sr. Duroc acabava de comprar selos no balcão da tabacaria e saía com um ar entre grave e alegre, quando o Sr. Santeuil, postando-se diante dele, estendeu-lhe
a mão dizendo com a fisionomia feliz de uma pessoa que surpreende outra: - Ora viva, Duroc! - Jean sentiu uma ligeira comoção ao perceber que ia falar a um homem
cuja vida, toda ordenada e espiritualmente harmonizada, cumpria o ideal que ele julgava inacessível, e tão distante do qual suas débeis boas intenções, seus dotes
tão parciais rastejavam numa obscuridade imensa. OSr. Duroc tirou
• chapéu com vivacidade e Jean ficou orgulhoso de pensar que
• pai merecia tanta consideração da parte de semelhante homem. - Permita-me apresentar meu filho e o Sr. de Réveillon. - OSr. Duroc saudou os dois jovens com a feliz
amabilidade que implica o sentimento da própria superioridade e do reconhecimento respeitoso daqueles frente aos quais condescende com brandura. Por isso, sua saudação
diferia por completo da dos jovens médicos, dos deputados republicanos e dos magistrados nomeados por decreto, brutal por aproximar as distâncias, ou constrangida
por evidenciar que tem consciência delas, que testemunhavam a cor-

198

dialidade, como os colegas, com um soco, ou o respeito, como os criados, pela confusão. Mas parecia-se ainda menos com a saudação das pessoas de alta sociedade que
encanta como a figurante de um balé ou a confissão de uma simpatia. Já governamental pela benevolência, era ainda republicano pela rigidez, e fazia gracejos sem
graça, como a festa que a mulher garrida de um ministro da justiça moderado prepara com artifícios que não chegam a dar um prazer de obra de arte nos salões no entanto
espaçosos e belos do ministério.
- Que pretende ser, meu caro? - perguntou o Sr. Duroc a Jean. Este enrubesceu intensamente como um candidato interrogado sobre um ponto que não sabe e que
entretanto gostaria de dar ao examinador uma idéia sobre o universo de opiniões e inquietudes que sua pergunta despertou nele, o que não seria possível com um simples
"Não sei". Mas o Sr. Santeuil. respondeu por ele. - Desejo encaminhá-lo para a Diplomacia, mas este rapaz quer fazer poesia, sei lá! Hanotaux acha bons os seus versos
- acrescentou com ardor. OSr. Duroc se inclinou à autoridade do chefe e concordou gentilmente: - Do ponto de vista pessoal, lamentaria que o Sr. Jean não seguisse
a carreira diplomática onde eu teria o prazer de encontrá-lo amiudadas vezes, mas na verdade confesso que não vejo onde a carreira possa prejudicar suas tendências
poéticas. As qualidades literárias são um valioso auxílio, não só para as provas do concurso mas depois. Nossos melhores diplomatas são, em parte, os que melhor
redigem seus relatórios. E quando se é secretário, há nos relatórios dirigidos diretamente ao ministério matéria para desenvolver a elegância do estilo. É até uma
satisfação para aquele que o lê, e de quem depende em geral sua promoção, se você põe, em assuntos por si mesmos bastante áridos, ornamentos e imaginação. - OSr.
Duroc exalou com esta última palavra a fumaça do cigarro que conseguia habilmente manter por muito tempo entre a garganta e o nariz. - É o que lhe digo - exclamou
o Sr. Santeuil, maravilhado de ver a questão apresentada com tanto bom senso e encanto. Lamentava apenas que, por ser Jean gen-
9 Mas

Jean, que nunca imaginara a poesia como um tempero ao qual se recorre à vontade para dar um sabor picante a assuntos sérios,

til não fosse nem um pouco parecido com o Sr. Duroc.

199
mas confiante apesar de tudo na onisciência do Sr. Duroc, disselhe sinceramente, como se falasse diante de Deus, certo de que cada uma de suas palavras e cada um
de seus silêncios seriam compreendidos de imediato por um espírito que devia ler tão facilmente no seu: - Senhor, estou bastante propenso a amar a sociedade. Conto
renunciar logo a ela. A carreira que o senhor me aponta se transformaria numa obrigação para mim e me dispensaria de todo escrúpulo a esse respeito. Não posso trabalhar
muito. -Se o pouco que trabalhar for dedicado a coisas tão exteriores - perdão, mas no seu caso não é a mesma coisa - será muito árido para mim. Oque preciso é concentrar-me,
aprofundar-me, buscar a verdade, exprimir toda a minha alma, o que for verdadeiro, e não todas essas coisas, muito fúteis èm suma.
- É um nobre propósito - disse sorrindo o Sr. Duroc. Mas parece-me que você encara a poesia por um lado um tanto vago, um tanto confuso. Aclare-se, creia,
aclare-se. Você receia a sociedade. Mas seus sucessos são precisamente a recompensa de todos os grandes esforços do pensamento e da ação. Procure ver o outro lado
da questão. Será que os maiores cientistas, os mais profundos homens públicos trabalham apenas para receber um dia o sorriso e a admiração das mulheres? E se seu
pensamento escrupuloso, pelo visto, talvez escrupuloso demais, tem necessidade de um objetivo mais desinteressado, não acha que os estudos para a diplomacia poderão
lhe fornecer objetivos tão elevados, tão numerosos e variados como o poderiam almejar a sua curiosidade ou a ambição de seu pai? Você se sente poeta. Creiame que
se, jovem adido a Roma, a cidade eterna, na terra de nossos vizinhos do outro lado da Mancha, em meio às maravilhas de Piccadilly em Constantinopla talvez, junto
a esse Bósforo que viu nascer tantas maravilhas e onde tive a honra de jantar pela primeira vez, na casa do Sr. Cambon, com o senhor seu pai, tantas belezas e tão
diversas, se você as sabe apreciar, não serão a moldura, necessariamente discreta mas tanto mais valorizada, de suas inclinações poéticas? Você gosta de filosofia,
me disse o senhor seu pai. Não será um assunto filosófico a questão das peregrinações a Meca, que coloca face a face o interesse das consciências e os riscos dos
indivíduos, o corpo e a alma, a fé e a ciência?

200

O Sr. Santeuil escutava o Sr. Duroc, admirado. Eram exatamente esses os temas de que se ocupara. Lastimava não ter ouvido mais cedo esse pequeno speech *
que lhe teria fornecido uma tirada filosófica para o começo e o fim. Mas Jean sofria ao pensar na energia que lhe seria preciso para destruir tantas razões especiosas,
para mostrar que, se ele entrasse para a diplomacia, isso significaria o encurtamento de sua vida e a morte de sua alma, que já deixara tanto à míngua por preguiça,
e que seu tipo de tendência para a poesia não se exerceria suficientemente na elegância de um relatório ou suas disposições filosóficas no estudo da questão monetária
ou da peregrinação a Meca. - Mas
disse ainda - gosto tanto de viver com mamãe, e a vida é tão curta. Se entro para a carreira diplomática, terei primeiro de passar dois anos no exterior! - Certamente
- prosseguiu o Sr. Duroc, soltando uma nova baforada. - Mas o amor materno assume um aspecto mais viril e grandioso quando a mãe reencontra já homem o filho que
deixou criança, menos homem talvez pelos fios que lhe descobre no queixo que pelo fato de que ele lhe fez sentir a energia de suas resoluções pelos sacrifícios necessários.
- OSr. Santeuil admirava-se de como eram bem expressas aqui as censuras que fizera com freqüência à mulher acerca da puerilidade de seus carinhos em Jean. - Você
diz - continuou o Sr. Duroc - que quer exprimir a sua alma. Será que isso quer dizer muita coisa? - OSr. Santeuil riu gostosamente com a tirada, e Jean enrubesceu
percebendo o quanto era ridículo naquele momento. - Verá isso mais tarde, falaremos daqui a dez anos continuou o Sr. Duroc. - Estudei pouco fisiologia - disse com
modéstia -, mas pergunte ao Sr. Marfeu, amigo de seu pai, o que é a alma. Receio que ele não lhe ria na cara - acrescentou com uma brusquidão que contrastava desagradavelmente
com a polidez de sua saudação. - Além disso, não entendo que uma coisa possa impedir a outra. A inteligência se mostra em tudo.
E um homem me parece de fato tanto mais dotado se for qua
lificado para mais de um emprego. Veja o que diz Carlyle. Boc
cacio era um excelente diplomata e Shakespeare teria sido tão

* Em inglês no original. (N. do T.)

201
bom monarca quanto poeta. - Jean, que se encontrava há algum tempo no maior abatimento intelectual, sentiu de repente, ao nome de Carlyle, as idéias refluírem ao
seu pensamento como se lhe houvessem administrado uma generosa dose de café, e voltou a sentir uma simpatia enorme pelo Sr. Duroc, como em relação a um estranho
a quem se ouve dizer que conhece uma pessoa que se estima e venera.
- É verdade - disse Jean lentamente, os olhos parados num pensamento que parecia estar diante dele. - No entanto, veja, Baudelaire nunca pôde passar nos
exames. - Por isso sua poesia é bem fraquinha e, para falar a verdade, muito elogiada por nossos jovens fim-de-século. - A expressão "fim-de-século" fez rir o Sr.
Santeuil e ranger os dentes a Jean como se algumas palavras tivessem, segundo as pessoas, independentemente da frase, algo de idiota ou de espiritual. Haviam chegado
à ponte da Concorde. Um ajuntamento os deteve. Observaram por um instante um soldado que discutia com um cocheiro, e viram o soldado, com um movimento brusco, lançar
o cocheiro pesadamente contra o bico de gás.
- Viva o reco! - gritou o Sr. Duroc. A essas palavras, Jean sentiu um enjôo inexprimíveI, seguido de um bem-estar delicioso. OSr. Duroc, por mais que fosse
tudo o que era, soubesse tudo o que sabia, dissera essas palavras e Jean não as teria dito, nem mesmo um ser realmente inteligente. No entanto, tal sensação permanecia
vaga quando Henri, inclinando-se, murmurou-lhe ao ouvido, apontando o Sr. Duroc: - Boca-suja! - Isso foi como um clarão que luzisse dentre as nuvens há tanto amontoadas.
Jean disparou a rir e apertou a mão de Henri com ternura; acabava de se libertar do autodesprezo e, ao mesmo tempo, da admiração pelo Sr. Duroc.

- Encontrar-nos-emos domingo, amanhã? - perguntou Jean a Henri. - Amanhã, infelizmente, vou com papai e mamãe ver o Sr. d'Utraine. - Jean ouvira falar de
sua casa, de seu espírito, de sua pintura, de seus hábitos. - Ah, como gostaria de conhecê-lo - disse ingenuamente. A qualquer um que lhe dissesse isso,

202

Henri teria logo respondido: - Venha comigo, se isso não o aborrece - como um homem que oferece sua carteira ao primeiro que chega e se desculpa de lhe dar semelhante
ninharia, com medo de feri-lo ao parecer que o obriga. Mas Henri, desde o momento em que suas palavras deviam necessitar da adesão da mãe, voltava a ser um Réveillon,
isto é, alguém para quem Jean, ou seja, um pequeno-burguês, era o arrivista, o estranho, o hostis * dos romanos. Se bem que o código hereditário de civilidade dos
Réveillon fosse praticamente mudo a respeito do hostis e quase não contivesse disposições regulando a conduta que se devia ter diante deles, porque não eram previstas
as relações dos Réveillon com os burgueses, todavia uma espécie de jurisprudência provocada primeiro por alguns casos excepeionais, o médico da família, o professor
das crianças etc. dera a tais relações um caráter de prudência extraordinária, e só na última instância é que se devia decidir, desde que se tratasse, para um Réveillon,
de "compreender", nessas relações excepeionais com um hostis, outros pares, assim como hoje de compreender um deputado em demandas judiciais. Tenha sarna em casa,
se lhe agrada, mas não a transmita aos filhos dos outros, assim se resume a máxima dessa política.
Quando eram obrigados a fazê-lo, faziam-no com magnificência mas de um modo que não comprometesse a nada. Assim, um dia, a duquesa de Réveillon encontrara,
em casa de sua sobrinha, a marquesa de Réveillon-Bouchage, o Sr. Calpin, pintor que fizera o retrato da marquesa. A Sra. de Réveillon-Bouchage apresentou o Sr. Calpin
à sua tia, com muitos elogios. (E tal gentileza era-lhe agradável pois fazia-o como manifestação de gratidão, e o alfinete de gravata em ametista, que pensava oferecer
ao pintor em agradecimento mudou-se de imediato, em seu pensamento, num simples alfinete de pedra do Reno, já que a apresentação à duquesa preenchia e ultrapassava
a diferença. Entreviu até mesmo a possibilidade de fazê-lo jantar uma vez com o duque e, feito isso, não lhe dar absolutamente mais nada.) A duquesa que estava perto
de uma meàinha de chá escolhendo

* Hostis, em latim, inimigo público. (N. do T.)

203
um bolinho oscilou inteiramente sobre si mesma, corri um movimento em duas partes. Na primeira, com efeito, avançou para uma saudação que pareceu prodigiosa ao pintor,
habituado aos pequenos cumprimentos secos dos burgueses, mas no momento em que seu corpo chegou quase diante do Sr. Calpin, parecendo só faltar agarrá-lo, recuou
vivamente com um movimento rápido e como que mecânico, e suas costas executaram por detrás de seu centro de gravidade, à maneira de um pêndulo, um movimento de rçcuo
pelo menos tão extenso como o que a saudara antes. Movimento que significava claramente: "Osenhor vê o belo buquê, meu caro, mas ele não é para você."
A partir desse momento, durante os três primeiros meses, toda vez que a duquesa encontrava o Sr. Calpin na casa da sobrinha, dava-lhe o mesmo cumprimento
com expressão de espanto nos olhos, não que o não reconhecesse, mas para lhe fazer compreender que não o conhecia. Depois de três meses, tendo o Sr. Calpin feito,
no curso de uma visita, um croqui de Henri, ele o cumprimentou com ar de reconhecê-lo, como a gente se lembra do rosto do colocador de tapetes ou do rapaz que já
veio várias vezes ajudar a arrumar o banheiro. E em certos dias, depois de uma aparente hesitação, ela lhe estendia a mão, como se estendesse dois sous, dizendo
consigo: " Bem me parece que este não recebeu gorjeta da última vez." Mas o pobre Sr. Calpin fora completamente ludibriado pela gentileza do duque, que desde a primeira
apresentação dava a impressão de reconhecê-lo e depois lhe apertara a mão como a um velho camarada, mas exclamando com força de estremecer os vidros e como para
que o céu ouvisse e atestasse o quanto era gentil: - Bom-dia, senhor.
Uma noite, enfim, Calpin jantara em casa da marquesa de Réveillon-Bouchage (e desde então pôde perder toda a esperança relativamente ao alfinete de gravata
e lhe enviaram até cartas de venda) ao lado do duque de Réveillon. Do outro lado do duque estava a Sra. Desroches. Talvez para mostrar à Sra. Desroches e mesmo ao
Sr. Calpin o que significava a "gentileza dos duques", o duque de Réveillon, no momento em que acabava de perguntar à Sra. Desroches que tal achara o Don Juan na
ópera, indagou a meia-voz, ainda assim bastante alto, à Sra. Desiroches: - Quem é esse senhor? - A Sra. Desroches disse baixinho o

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nome do Sr. Calpin, e em voz alta que achava o Don Juan melhor na ópera Cômica. - Estava lá, meu caro? - perguntou o duque, voltando-se para Calpin como para um
velho amigo. E foi tudo. Calpin, vendo afluírem à sua casa as cartas de venda da marquesa (Bethléem-Club), achou que poderia pedir-lhe que mandasse a duquesa de
Réveilion a seu ateliê. A marquesa comentou: - Oh, isso será muito agradável para ela, tenho certeza - e deu um sorriso fugaz como se se demorasse nesta perspectiva
agradável. Mas a duquesa nunca veio. Calpin imaginou que a marquesa talvez tivesse esquecido. Passados alguns meses, pediu-lhe novamente. A marquesa sorriu como
da primeira vez, até mesmo de maneira mais prolongada. Mas não falou mais nisso. Enfim, no final do ano, levou ao ateliê de Calpin o professor de seus meninos que,
tendo conseguido fazer passar seu filho nos exames de formatura, foi amavelmente recompensado sendo conduzido ao ateliê de um pintor de mérito por uma marquesa distinta.

Henri percebia bem que seus pais não tratavam de modo algum Jean como um hostis, pelo contrário. Além do mais, o Sr. d'Utraine fora-o antigamente. Mas, como
amante da Sra. d'Aubergin-Crillot, vice-presidente do Jockey, conquistara o mais completo direito de cidadania com todas as vantagens pertinentes. Do mesmo modo,
Henri achou que não podia responder sem ter consultado seu superior hierárquico, o pai. De outra parte, não lhe custara muito dizer a Jean: - Virás comigo. - Sem
dúvida, gostava dele carinhosamente, repartiria tudo com ele, ser-lhe-ia sempre agradável e lhe faria ver que só desejava agradá-lo. Mas essa ternura e esse calor
de simpatia que ela acendera nele e que atingira o auge naquele momento, como nesses dias de inverno em que faz um pouco de sol pela manhã, não podiam mudar sua
natureza positiva e tranqüila. Certo de que a mãe gostaria que ele levasse Jean, não estava impaciente, como ficaria Jean, por lhe testemunhar que, de todo o coração,
queria levá-lo consigo. Sabia que todas as coisas vêm a seu tempo, e só encontrou uma resposta oportuna àquele instante, dizendo: - Oh, é um homem encantador.

Quando foi embora, o Sr. Duroc disse: - De qual d'Utraine vocês falavam? De Frédéric? - acrescentou sorrindo, como se esse designativo fosse, de algum modo,
um dito espirituoso. -

205
Sim - disse o Sr. Santeuil compreendendo o gracejo. - Não quis dizer diante desse rapaz que Parece conhecê-lo bem, mas trata-se de um excêntrico, um doido. - Jean
sentiu aumentar sua simpatia pelo Sr. d'Utraine. Agora que o ideal do homem superior não se apresentava mais para ele sob os traços de um laureado em todos os concursos,
julgou discernir sob a fisionomia de um homem cujos redingotes eram tão originais, tão delicadamente coloridos, tão harmoniosamente fundidos como os pensamehtos,
que era tão belo, tão corajoso, tão espirituoso, tão modesto, tão chique, que era artista e inteligente, que era também amigo da duquesa de Réveillon e da princesa
de Galles, tanto quanto de Anatole France, Tolstoi e Ibsen, praticava o bem para com seus camponeses e no entanto era de uma inteligência inacreditável, pois, no
mesmo dia, fora eleito vice-presidente do Jockey e recebera a medalha de honra no Salão, cuja sede era uma obra-prima do mesmo gênero que seus quadros, que tivera
pela Srta. de Guise uma paixão nobre, ardente, rara, melancólica, em uma palavra, semelhante a si próprio.

Na mesma noite, um criado levou um recado de Henri parT Jean: "Papai ficará bem contente se vieres conosco ver o Sr. d'Utraine."

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VI. Retrato de um amigo

Jean tem um amigo cujos traços eu gostaria de fixar. É Bertrand de Réveillon. Mesmo se eu não o tivesse amado muito, teria desejos de fazê-lo. Sem dúvida,
temos coisas mais significativas a fazer do que fixar aspectos pessoais, por mais gerais ou particulares que sejam. E é unicamente a natureza que nos dita, às vezes,
as revelações que sentimos ser essencial que as escrevamos sem nos preocuparmos se o fato de escrevê-las valorizará nosso engenho e nossa fama, e, ao contrário,
com uma viva repulsa a conceder qualquer coisa a um ou a outra. Mas entre esses momentos realmente poéticos e a mera observação dos costumes existem ocasiões em
que nossos semelhantes surgem numa parte de nós que, sem ser a parte verdadeiramente profunda, é no entanto mais penetrante do que a simples finura de observação.
Uma observação mais profunda nos põe, de uma só vez, dentro deles, em presença de algo mais profundo que aquilo que se torna sua razão de ser, sua realidade
e onde ficam suspensos a certa altura como uma leve bolha, graciosa e impalpável.

Bertrand de Réveillon era um desses rapazes aristocratas de viva inteligência mas sem nada de extraordinário, porém apaixonado pela inteligência, pelo saber,
pelo talento, pela justiça, pelo progresso, pela igualdade, que não dava valor à nobreza e inclinava-se até, em igualdade das demais condições, a achar um nobre
idiota por ser nobre, e um plebeu inteligente por ser plebeu, caso se destine a uma carreira intelectual. No caso dos nobres, a um grau de inteligência a mais esse
desinteresse absoluto em geral cessa. Tendo mais finura, a estupidez de muitos burgueses choca-os, e assim também a de muitos literatos, homens públicos

207
esnobismo a ocultar debaixo da inflexibilidade, vivo desprezo pelo vizinho menos destacado na sociedade do que eles, ou admiração inconfessa pelo que está mais acima
na escala social. Todos esses constrangimentos tão desagradáveis estão completamente ausentes num nobre, não digo de um fidalgote, mas de um nobre de grande nome
e sem orgulho. Entre os mais inteligentes, os melhores, os mais simples dos burgueses, ou seja, todos nós, qual a menor expressão estudada, o gesto displicente em
que um observador perspicaz não reconheceria, de imediato, o desejo de mostrar que um príncipe é apenas outra coisa para si, que não diz com um sorriso superior:
a "condessa", acentuando "condessa" como se, de fato, não se devesse pronunciar assim, esse estreito modo de ser, enfim, que é reduzido a quase nada num homem verdadeiramente
superior, e que é amiúde o legado de honrados orgulhos burgueses de um pai ou de uma mãe que sabiam "colocar-se em seu lugar" e a vaidade dos títulos e posições.
Mas vocês vêem Bertrand de Réveillon, que nem uma só vez na vida soube o que era esnobismo, desdém, necessidade de ocultar o esnobismo, desejo de afirmar
o desdém. Sua alma, desse modo, não adquirira nenhuma ruga. Assim, ele era amável de acordo com o coração, e conforme o encanto da pessoa com qqem falava. Porque,
para ele, essa pessoa não era mais importante que ele, e portanto não temia ser amável, nem menos, e nenhum desdém temperava, dessa forma, o encanto que nela podia
encontrar. E como as afeições não passam de movimentos de nossa alma, eram puras como ela, e é por isso que um amigo podia contar com seu devotamento, um indiferente
com sua benevolência, um confidente com sua discrição, um amigo na miséria com o seu auxílio.
E ele se distinguia por detalhes que talvez se relacionassem ainda mais com sua estirpe. Pois a essa liberdade de movimentos na vida que sua origem superior
lhe dera em relação aos cálculos da ambição, às atitudes desdenhosas do arrivismo, ao azedume da humildade, acrescentava todos esses atrativos a que não dava maior
importância mas que levava consigo e que eram a prenda fascinante da roda atroz e vulgar que freqüentava. Podia desdenhar sua origem nobre, mas não estava nele o
despojar-se da elegância aristocrática que ela lhe conferia. Apertava

210

a mão de um advogado, mas não podia impedir que fosse uma mão finamente tratada, comprida, e que para se estender fazia um movimento livre e gracioso, e que se abandonava
de bom grado por muito tempo na dos outros, isso, penso eu, por uma reminiscência inconsciente desse hábito, que herdada do pai ou de seus pares, de julgar lisonjear
o interlocutor por meio de uma familiaridade aparente, suprimindo as distâncias. Este jeito da cabeça, os traços infinitamente elegantes da fisionomia, principalmente
o garbo, o talhe, o modo de andar, tudo isso provinha de sua estirpe. Mas ainda mais perto, a infância, que fora uma infância de aristocrata, toda passada em exercícios
que amoldassem o corpo e na polidez que cadencia essa flexibilidade, determinou-lhe o encanto, ao qual ela se inclina perfeitamente, que faz com que, para um rapaz
de certa classe, entrar, sair, sentar-se, dar bom-dia, agradecer, saudar, montar' a cavalo, dar o braço a uma mulher, fazer sinal de que não se incomode a alguém
que se levanta e fazê-lo sentar de novo, executar em qualquer circunstância da vida (que não seja intelectual ou moral) o movimento preciso, num baile, num café,
nas corridas, em qualquer atitude da comédia humana, esse rapaz de certa classe o faz imediatamente, justo, delicado, sobranceiro, com inteira liberdade, ao passo
que a seu lado um filósofo, um médico, um poeta agirão de modo canhestro, absurdo, constrangido, enfático ou, quando muito - ou nada -, correto.

Assim, no dia em que Bertrand de Réveillon, para vir mais depressa em minha direção, atravessou um café repleto de fregueses caminhando sobre as mesas e
as cadeiras, naquele dia seu gesto mesmo punha-o, no meu espírito, diante de alguma coisa mais profunda que o puro espírito de observação, oferecia a meu espírito
uma realidade mais profunda que um ser de aparência e dava-me assim uma espécie de alegria, fazia de si, correndo desse jeito sobre as mesas, em virtude de poderes
que ele próprio ignorava, um tanto de irreal, de gracioso e encantador.

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Digo muitas vezes que esse desembaraço e essa amabilidade conferem à amizade umencanto que nada mais pode dar. E com efeito, nos seres de qualquer modo soberanos,
nada conta, nada os pára nem os domina a não ser eles próprios ou seu amigo. E o amigo não sente entre eles uma multidão de conveniências temidas, mais temidas que
seu desgosto. As mesas do restaurante nos separam? Galgo-as e corro por cima delas. E faço-o graciosamente, sem que ninguém ria e sim me admire, e esse modo gracioso
e essa sujeição às conveniências é por ti que os faço, por ti a quem se deve invejar e admirar ainda mais, sentado em tua cadeira de braços para onde corro desse
jeito a fim de me reunir a ti. Essas conveniências, afasto-as, reduzo-as a cinzas, faço delas um troféu que com minha graça, 'que ignoro, deponho a teus pés. Se
estás cansado, sou forte, se és desajeitado, sou destro, tudo isso é para ti. Tenho muitos amigos aqui esta noite, mas eles sabem que és meu amigo predileto, a eles
são da minha classe onde se sabe que, quando se quer marcar uma predileção, uma deferência, não existe o "isto não se faz", não se está sempre assaltado por um receio,
irritado com o medo do ridículo, formalista e correto, pela impotência de criar em todos os momentos a forma correta. Assim, digo a meus amigos: "deixem-nos, quero
estar a sós com ele" ou então "vão buscar outra coisa", pois meus amigos são pessoas dê sociedade e não se sentem humilhados.
Confesso que sinto um pouco de tristeza quando penso em Bertrand de Réveillon por me lembrar especialmente daquela tarde, depois de despedír todos os seus
amigos, correndo por sobre as mesas para se juntar a mim. Ele, que só prezava a inteligência, a justiça, o talento, será lembrado por uma dessas coisas que rejeitou
para longe de si, com as quais não se importava, cessando aos poucos de freqüentar todos aqueles que as possuíam, em benefício dos que as não possuíam. E, sem dúvida,
ele tem razão. Pois uma pessoa não deve ser julgada pelo que é, que não é ela própria, pelo que vem do berço, da educação, e ignora o seu outro lado, nascido posteriormente
nela e que é o único que interessa.
Mas as impressões um pouco profundas, que marcaram primeiro o seu eu fenomenal e para ali trouxeram mais de uma

212

verdade excepeional, o artista tem o dever de exprimi-las deixando-as em sua profundidade. Todo desejo de agradar ou de desagradar, ainda mais toda preocupação de
respeitar, todo temor de magoar, embora ponham em jogo seja o que houver de mais respeitável e nobre de sua personalidade particular e, no objeto a retratar, fazem
ver igualmente uma personalidade fora do comum, diminuiriam imediatamente a profundeza do estado de espírito encarregado de realizar a impressão. Assim, tem o dever
de afastá-los. Além disso, Bertrand de Réveillon era, como todos os seus pares, muito inclinado a crer que uma impressão particular, e, aos olhos do raciocínio,
de pouco mérito, assim como um gaiato correndo sobre cadeiras, não vale nada e que a grandeza de uma impressão é proporcional à generalidade das idéias para as quais
apela diretamente. Esses espíritos de segunda ordem fazem teorias a propósito de tudo e não guardam de um livro senão o que há de novo na maneira de compreender
a luta das classes ou a relação do amor com a atividade. Mas, quando eu perguntava a Henri de Régnier o que preferia em seu livro favorito, Le Rouge et le Noir,
respondia-me: - Exatamente aquele dia de revista, em que Julien Sorel monta a cavalo no meio de todos os militares - e de uma novela de que Anatole France gostava
muito, falava: - Sim, é lindo aquele terraço à beiramar. - Talvez importe imaginar que Bertrand de Réveillon, como toda pessoa, não se interessasse pela Natureza,
e só se interessasse por ela naquilo que traduzisse inconscientemente de essencial e mais durável que ele, de verdadeiro, e é por isso que a Natureza dotara de beleza
uma impressão onde precisamente essa verdade estava escondida, a fim de que o poeta se emocionasse com ela, não a deixasse escapar, a aprofundasse, desentranhando
dela, para os outros, a verdade guardada.
Além disso, quando tu corrias em minha direção com tanta agilidade e graça, não se tratava unicamente do ser que eras naquele rápido minuto que o teu amigo
admirava. Não, ele sentia que toda a livre, alerta e vigorosa vida de tua infância estava bem presente naquele momento a teu serviço, e que a punhas ao seu, como
um hospedeiro generoso que dá tudo o que possui. Que alegria então pela afeição de sentir tudo o que nos separa do amigo, todo esse tempo longínquo em que não o
conhecêra-

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mos, toda essa vida brilhante tão distante de nossa vida obscura, toda essa força tão afastada de nossa fraqueza e dever nos separar para sempre, sentir amigo, anos
passados, educação diferente, sível recuperar, vindo, vindo até mim, trazê-los completos na flexibilidade de

que parecia de repente que o dito tudo isso que é imposou melhor, até nós,
meu jarrete para que correndo em sua direção eu os leve e que não haja mais nada entre nós.
E a sua altivez de espírito estava presente também nessa graça. Pois não existe graça a não ser que a tenhamos para coisa alguma, se é inconsciente, se nos
acompanha quando nosso pensamento está ocupado com outra coisa. E o seu coração também, que tomava afetuosa essa agilidade humana, unia o seu passado de vigor e
sua presença de espírito na natural solicitude de um desejo de me rever que encontrava à sua disposição os recursos de uma graça ignorada.
Assim, essa noitada foi infinitamente repousante, como esses raros momentos em que o encanto de uma pessoa, dissipando todo ciúme, todo temor e toda tristeza,
condensa toda a sua vida no presente que nos faz de sua afeição, e onde nossas inquietações ficam, desse modo, abolidas. Oinimigo tem sua beleza, e assim nossos
motivos para odiá-lo são obscuros. Oamigo tem sua beleza, e assim nossos motivos para amá-lo são, ai de nós, também ausentes. Pois a beleza dessa significação é
uma verdade da qual o indivíduo é portador e símbolo, e não autor. Daí que a percepção de semelhante relação, só se referindo em nós ao espírito universal, só pode
nos causar alegria. Perdão, Bertrand, por ter, naquela noite, amado em você uma beleza de que seu amor-próprio não podia se orgulhar, e que não podia caber em nossa
afeição.

214

VII. Discussão de Jean com seus pa

- Queres vir jantar comigo esta noite? Estou sozinho - per-
guntara Réveillon a Jean, à saída do colégio. Mas Jean não, aceitara. Devia jantar nessa noite com Gantaud, Flubiste e três moças. E não esperava voltar para dormir.
Sabia que isso desagradaria à mãe, mas a tentação era grande. Além disso, a mãe não ficaria sabendo. Há dois anos, sob pretexto de que já não era conveniente pôr
sua mãe ao corrente da vida de um rapaz, havia tantas coisas que fazia sem lhe dizer nada, tantas coisas que lhe dizia sem fazê-las. Esse pensamento lhe fez mal.
Com um grande
esforço sobre si mesmo, contrapôs à imagem do jantar e da noite que se seguiria um jantar calmo em casa de Henri, seu regresso a casa por volta das onze horas e
uma hora junto a seus pais ao canto da lareira, enquanto a mãe tocaria piano ou leria para eles. Ou então, ela também descansaria e lhe falaria de pessoas que
vira durante o dia. E mandou um recado a Henri para preveni-lo de que iria jantar em sua casa. Geralmente, ao tomar uma decisão, a decisão contrária lhe parecia,
a partir desse momento, infinitamente preferível. Mas tal não sucedeu quando mandou o recado a Henri. Ojantar com Henri, o fim do serão com os pais, lhe
haviam aparecido, quando ainda contava jantar com Gantaud e Flubiste, como uma noitada medíocre. Agora, e como se, triun-
fando sobre seu desejo, ele se elevasse de alguma forma em si mesmo, encantando-se com uma perspectiva revelada por esse pequeno esforço, sentia uma ventura mais
pronunciada brotar
dentro de si mesmo e inundar-lhe o rosto. Sentia-se de rosto sorridente, olhar puro, sabor delicioso na boca. Alegre também ao
pensar que teria, graças a essa nova combinação, uma hora a mais para trabalhar no desenho a carvão (só podia chegar à casa de Henri às oito horas) que queria acabar
antes do aniversário da mãe, decidido a se pôr ao trabalho, a nunca mais ver Gantaud e

215
Flubiste e a voltar todas as noites às onze horas, subiu rapidamente as escadas, girou a chave na fechadura, sentindo nela e até em seus dedos a amizade, a ternura
feliz que nesse momento se espalhavam por todo o seu corpo, e entrou.
Infelizmente as horas não trazem a todos os mesmos pensamentos. E o reconhecimento por uma boa ação está a caminho de amadurecer no momento em que cometemos
uma falta, ao passo que a c~lera excitada por uma falta se produz no momento em que, sentindo-nos melhor, já a esquecemos por completo e gostaríamos muito que os
outros a tenham esquecido e com essa lógica absoluta da alma pura, para a qual todos os prazeres palpitantes no vasto mundo não passam de gritos intoleráveis se
ela está triste, e que, se está contente, vê acender-se por toda a parte os fogos da alegria lá onde só existem as tochas da vingança ou da morte. A Sra. Santeuil
estava sentada escrevendo e não viu Jean. Talvez se houvesse encontrado o seu olhar e nele se demorasse por um instante, tivesse reconhecido suas intenções como
essas águas cuja direção se percebe abandonando-se qualquer coisa à sua corrente. Talvez, num beijo, ele lhe tivesse transmitido um pouco de sua esperança risonha,
de seu otimismo resoluto. Principalmente, se houvessem conversado por um momento, juntos, ela teria sabido do nobre combate de sentimentos de que a alma de Jean
fora palco e onde ele havia favorecido abertamente os bons e decidira sobre sua superioridade. Pois esse gênero de vitória vinha-lhe muito raramente para que não
sentisse necessidade de contá-lo à mãe durante a refeição, a fim de tentar o reconforto da ternura dela e voltar a obter-lhe a estima. Mas a Sra. Santeuil escrevia
e, sem ver Jean, ouviu apenas um passo apressado. Ela acabava de receber a visita do professor de Jean, o qual lhe dissera que ele simplesmente não estudava. Republicano,
acreditava piamente que os nobres tinham todos os vícios e não sabendo que Réveillon, pelo contrário, impedia que Jean andasse na má companhia de Gantaud e Flubiste,
acusava-o de incitá-lo à devassidão sem todavia acompanhá-lo (pois Réveillon era estudioso), o que lhe parecia, com justa razão, uma perversidade toda particular.
- Ele se diverte em impedi-lo de estudar, é um jogo para ele, e vence facilmente a resistência de seu filho, que é fraco. - Ao passo que ele, que tem maior força
de vontade, se reprime a tempo e se entrega a esse pequeno

216

exercício sem perigo - concluiu a Sra. Santeuil com indignação. Respeitava os professores e cria na infalibilidade de seus juízos. ,4klém disso, fora avisada pelo
criado de que Jean prevenira que só voltaria de manhã. Era a primeira vez. Pelo menos a primeira vez que a preveniam. A princípio, ficara bastante magoada, depois
dissera consigo: "É melhor assim, me fez abrir os olhos. É preciso agir com energia, começar a lutar." Encontrara o marido e lhe pedira que agisse, o que o Sr. Santeuil
só fazia em caso extremo, pois não se julgava competente no assunto, e fazia-o então com violência desmedida, persuadido, desde as primeiras palavras, pelas objurgatórias
que lançava, de que seu interlocutor sentia que ele não sabia se conter, zombava dele, tinha necessidade de reduzi-lo a pó.
Quando Jean entrou, quis largar seus afazeres antes de beijar a mãe e lhe disse, da antecâmara: - Mãezinha, vou jantar esta noite sozinho com Réveillon -,
querendo com isso explicar que não ia gozar a excitação malsã de um lauto jantar e sim a felicidade inocente, os prazeres virtuosos de uma conversa elevada com um
bom amigo. Mas a Sra. Santeuil, dando a sozinho o sentido de sem seus pais, com mulheres, para nos prepararmos para uma noite de orgia, sentiu a cólera, que reservava
para expandir à hora apropriada sobre Jean, transformar-se de súbito em censuras, defluir vivamente de si mesma como a água destinada a uma tisana e que, fervendo
logo, escapa por sobre o fogo e salta à cara de quem a preparava. E, sem se levantar, ela gritou duramente: - Ah, isso não, jantarás aqui, acho que andas muito em
companhia de Réveillon, tudo isso vai mudar; de mais a mais teu pai há de te f alar!
Um maestro que fizera suceder, com um único movimento de batuta, um alegro furioso em tom menor a um andante jocoso em tom maior, não mudaria tão repentinamente
o ânimo da platéia como somente o som da voz da Sra. Santeuil fora bastante para transtornar num minuto o rosto e o espírito de Jean. Onde se estendia um bosque
primaveril sob o sol matinal, agora, numa obscuridade de eclipse, o mar enfurecido durante a tempestade não deixava mais imaginar que a vida, a felicidade, a esperança,
a luz pudessem um dia brilhar de novo sobre essa sinistra devastação. Jean ficara lívido, os olhos imediatamente pisados, não se susten-

217
to o Sr. Santeuil,

tava mais nas pernas que, há pouco, tão rápidas para subir as escadas que pareciam conduzi-lo ao paraíso, tremiam agora por baixo dele como as pernas de um cordeiro
doente. Na verdade, ainda não podia pensar no sentido das palavras que sua mãe acabava de dizer, mas continuava a ouvi-las, cada uma delas imensa e retumbante nos
séculos, como um aluno diante do examinador que acaba de ditar o tema da composição que ele não sabe e que decidirá a sua vida. Não sentia ainda sofrimento, mas
antes a, agitação que o precede, como um homem que, acabando de contrair uma doença'grave, tem apenas um calafrio e colisegue despirse sozinho antes de se meter
na cama onde ficará por muito tempo. Perto dele, a presença de Augustin, que, fingindo' escovar o sobretudo do Sr. Santeuil, assistia com interesse à cena que lhe
mostrava, de maneira muito agradável, que a situação de "filhinho de papai" não estava isenta das vicissitudes que assinalam a posição de criado antigo, mostrando
a Jean que seu infortúnio era público e tornando-o, de algum modo, irreparável. Nesse momen-
ouvindo os gritos da mulher, e julgando que ela estivesse no auge da luta, saiu de seu escritório, ação de tal modo inusitada que Augustin, deixando o sobretudo
de lado, olhou com uma fisionomia de terror e inquietude que, implicando uma grande piedade por Jean, acabou por exasperá-lo. Sabes, é muito simples - disse o Sr.
Santeuil com voz rouca se não queres estudar, só te resta deixares a casa, ponho-te no olho da rua. A Sra. Santeuil desaparecera, deixando Jean com o pai e cheia
de piedade pelo marido, a quem ela fingia achar muito sensível sem dúvida para desculpar-lhe a rudeza - e de quem temia a fadiga nervosa que podia levá-lo a uma
explosão de raiva.
Ao cabo de cinco minutos, as palavras judiciosas que Jean dissera ao pai se haviam logo transformado no sentido de sua fúria, como um rio agitado transporta
para a foz os ramos que os piedosos ribeirinhos lhe atiram, suplicantes, a fim de apaziguar a sua divindade. Nesse momento, o pai estava dizendo: - E quanto a esse
Réveillon, que é um canalha descarado, podes lhe escrever que não irás esta noite. - Jean não tem nada a escrever - disse a Sra. Santeuil, que já voltara. - Acabo
de mandar um recado para Réveillon informando-lhe que Jean não irá esta noite nem durante muito tempo. - Até então, a Sra. Santeuil havia consi-

218

derado sempre a polidez em relação aos amigos de Jean como devida a seu filho. E mesmo quando estava zangada com Jean e um colega entrasse, ela voltava a lhe falar
como uma tácita trégua de Deus. Jean sentiu-se tomado de uma vergonha desconhecida à idéia de que teria de enrubescer diante de Henri, que a mãe o insultara diante
de Henri e insultara Henri, e que o desgosto que iria envenená-lo essa noite, e na qual Henri teria sido sua única consolação, duraria muito tempo e o afastaria
por muito tempo dele. Procurou impetuosamente recuperar o bilhete. Sua mãe disse: - É inútil, já mandei. - Então, olhou ferozmente os pais, pôs as mãos rios bolsos,
parou um instante e disse: - Vocês são dois imbecis - saiu devagar, bateu com toda a força a porta, cujo vidro encaixado na madeira (e que não sabia o que, sob essas
espécies, fora quebrado em efígie) se partiu e, como um romano, a lei já violada, sobre o monte Capitólio, retirou-se para o quarto.

Lá chegou febril, a mão trêmula. Girou com dificuldade a maçaneta, e, pegando a porta com violência, empurrou-a com raiva ao invés de fechá-la suavemente.
Mas, fixa em gonzos mais velhos e imutáveis que o caráter do jovem senhor cujo repouso protegia, bem como as distrações e os devaneios, não passava do limiar onde
se fechava. Ele andou depressa e tropeçou na mesa, dando-lhe um pontapé. Quis sentar-se numa cadeira de braços, mas agastado, sentindo o encosto imóvel contra suas
costas agitadas, sacudiu-a blasfemando, como se tratam com injustiça e mau humor os criados que um acaso tornou testemunhas de nossa vergonha ou de nossa malvadez.
Depois, acalmando-se, ouviu a cólera que dava golpes furiosos e impotentes contra seu coração, como ondas. De cada vez era uma nova idéia de vingança que ela trazia
contra seus pais, uma injúria mais pesada que bramia claramente. E de cada vez ele experimentava um alívio por uns momentos, como à beira-mar nossa expectativa prolongada
pela aspiração, a formação, o impulso e a inflexão da vaga se dissipa agradavelmente quando a onda se quebra, para voltar a formar-se, é verdade, no mesmo instante
com ela. Sentia aversão aos pais por não terem adivinhado a excelência de seus propósitos no momento em que o haviam punido pelos atos que justamente não se renovaria
mais. Pois essas intenções haviam sido abolidas vivamente

219
dentro dele, não podendo sequer lembrar-se de um hora em que pensara com ternura em seus pais, o que lhe teria sido intolerável. Oódio tem necessidade de produzir
ódio. E ele os imaginava rindo às escondidas do próprio desempenho, tendo concertado friamente esse plano. Via-os dizendo: -lsso não é nada, acho que agora ele não
recomeça". E suas suposições transformavam-se numa forma generalizada de sentir que lhe desculpava a violência, nutria-lhe o ódio, e excitava a sua vingança. E respondia
sem cessar: - Eles vão ver, eles vão ver!
Vivamente isolado dos pais por essa injustiça, não era a Garitaud, a Flubiste ou ao prazer que ele se reportava. Sua tristeza o afastava dos que não teriam
podido compreendê-lo nem teriam desejado consolá-lo. E toda a sua ternura errante, expulsa do lar paterno sem querer mais voltar, dirigia-se inteiramente para Henri.
Pôs-se a lamentar-se e a chorar. E todos os seus desgostos, todas as suas lágrimas iam-lhe ao encontro como num plano inclinado todos os regatos seguem a mesma direção
e acabam por se reunir. Queria ir morar com ele. A duquesa ficaria certamente feliz em lhe ceder umquarto. Ao menos ali seus desejos seriam ouvidos, compreendidas
as suas intenções, protegida a sua felicidade. Muitas vezes, quando somos, para uma pessoa que amamos, o motivo involuntário de sermos repreendidos, molestados pelos
nossos, parece, aos escrúpulos de nossa ternura, ou talvez somente à sua inquietude, que ela deva nos querer mal, irritar-se contra nós, amar-nos menos. Osenhor
que, talvez à mesma hora, descobria nas preocupações ou nos desgostos que, por sua causa, outros haviam causado à sua amante, ou simplesmente a seu amigo, teria
encontrado algum consolo ao ver, no desgosto de Jean cuja causa era Henri, sua ternura por Henri se misturar, redobrar, buscar proteção junto dele, e assim, talvez,
ofertar-lhe a sua, como se fosse principalmente para com Henri que sua mãe tivesse sido injusta. Era sobretudo pelo Henri perseguido que ele chorava. - Não foste
tu que me causaste esta dor, nem jamais quererias causá-la - dizia, em soluços, atraindo para si, em seu coração, a imagem do Henri ausente, cujos olhos francos
e bondosos davam a essas palavras a resposta desejada, como um cão interpelado dessa maneira por um dono desiludido com suas ou~ tras afeições parece, sem que nada
altere seu silêncio costumeiro,

confirmar plenamente suas afirmações carinhosas. E de Henri, seu pensamento voltava-se de súbito para seus pais, tornava-se mais furioso. Nada o detinha mais, agora
que sua cólera possuía uma razão desinteressada e ardia por vingar menos a mágoa que lhe haviam causado do que o agravo contra o amigo.
Por um momento, por escrúpulo diante do tempo perdido, por temor do nervosismo, da enxàqueca e da insônia que poderiam seguir-se, quis pegar um livro ou
estudar.

Contudo, livro aberto à sua frente, seu pensamento ouvia sempre os bramidos de sua cólera, como um homem que deseja ler enquanto se toca música perto dele,
ou quando dois homens discutem e ele não pode deixar de perceber, não as palavras do livro mas o som do canto ou os brados da dicussão. Jean então se levantava,
empertigavase na cadeira e com os cotovelos na mesa tapava os ouvidos como se o ruído de sua cólera viesse de fora. Mas por mais que tentasse obter sentido, pondo
as letras uma atrás da outra, a onda de cólera vinha se quebrar por cima, e de tudo só restava um castelo de areia na preamar. Tinha de recomeçar todas as vezes
e quando se esforçava por reler uma frase pela décima vez, não a compreendia melhor do que um homem que, lendo na cama, à luz da lamparina, sente o sono dorniná-lo.
e apagar, misturar com seu olho cego e crescente uma palavra desprovida de sentido com o sentido de uma palavra já devorada. Jean então fechou o livro e ficou à
espera, sentindo aumentar seu nervosismo, chegar a enxaqueca. E via os instantes fugirem, um após o outro, de asas baixas, levando para o nada a mensagem que todos
haviam mandado para Jean e que ele não tivera a energia necessária de arrebatar depressa e tentar compreender. Então a cólera contra si mesmo foi engrossar a cólera
contra os pais. E como eles fossem a causa de sua angústia, dessa inação cruel, desses soluços, da enxaqueca, da insônia, gostaria de lhes causar mágoa, ou pelo
menos que, quando sua mãe entrasse, ele pudesse, mais do que injuriá-la, dizer-lhe que renunciava aos estudos, que dormiria fora todas as noites, que achava o pai
um imbecil, inventar, se fosse preciso, que havia zombado do Sr. Gambaud, dispensado sua proteção, que se preparava para voltar ao liceu, tendo necessidade de feri-la,
pagar na mesma moeda, com palavras que eram como golpes, um pouco do mal que ela lhe causara. Mas essas palavras que não

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podia proferir permaneciam nele e, como um veneno que não se consegue expelir e atinge todos os membros, seus pés e suas mãos tremiam convulsivamente no vazio, buscando
uma presa. Levantou-se, correu à lareira, e ouviu um barulho horrível: o copo de Veneza, que a mãe lhe comprara por cem francos e que ele acabava de quebrar. Mas
a idéia de que a mãe ficaria zangada com isso e que veria ser necessário um pouco mais de atenção antes de atormentar Jean, que era preciso contar com ele, não o
acalmou, pois se acusava de haver destruído um copo que achava tão bonito e que logo no dia seguinte tencionava fazer que Henri o admirasse. E vendo em cacos aquilo
que nenhum pesar poderia restituir, recompor e refundir, acusou os pais desse novo inf ortúnio.

Como recomeçasse a chorar, sentiu frio, e entrou no toalete em busca de qualquer coisa para pôr nos ombros. Estando sua mão descontrolada e meio doida, não
cumpriu como de costume a pequena revolução matemática que consistia, tendo em vista a escuridão do armário, em deslizar sobre os vários veludos, sedas e cetins
dos antigos casacos de sua mãe, a qual, não os usando já há anos, guardara-os ali, para sentir, no vazio que marcava. uma depressão, a ombreira de madeira bem recuada
que separava esses casacos dos de Jean, e, na segunda fazenda rugosa, desprendê-la do cabide que os mantinha de pé. Não, a mão arrancou o primeiro casaco que pegou.
Era um casaco de veludo negro, bordado de alamares, forrado de cetim cor de cereja e de arminho, que, machucado pela violência do puxão, entrou no quarto pelo punho
de Jean como uma moça agarrada pelos cabelos por um guerreiro. Assim brandia-o Jean, que ainda não o vira, reconhecendo, porém, o odor indefinível do veludo, que
sentia quando, há dez anos, ia beijar a mãe, então jovem, brilhante, feliz, pronta para sair, e, passando os braços ao redor de sua cintura, sentia
• veludo amarrotado em suas mãos e os alamares lhe acariciando
• rosto enquanto sua boca respirava na testa da mãe toda a felicidade de que ela resplandecia e que parecia lhe prometer. Perturbado, olhou o casaco que, em suas
cores ainda frescas, seu aveludado ainda macio, assemelhava-se a esses anos que não serviam para nada mais, sem relação com a vida, mas não murchos, intactos em
sua lembrança. Aproximou-o do nariz, sentiu o veludo

222

amarrotar-se ainda em sua mão e acreditou que beijava a mãe, na noite em que, acompanhada do marido ou do Sr. Sandré, que era válido ainda, não tendo então conhecido
o desgosto e a doença, ela saía para ver Ma Camarade, peça que se representava naquele inverno, radiante de prazer pelo que ia desfrutar, triste apenas por deixar
Jean, mas guardando no coração as vastas esperanças que nutria então pelo seu futuro, e depondo-lhe nas faces, antes de subir para a carruagem, de seus lábios ainda
belos e frescos, um beijo límpido como sua confiança e sua felicidade.
Sentiu a vontade irresistivel de ainda beijar sua mãe dessa maneira. E figurando-a tão doce, tão sorridente e bela, já não lhe tinha ódio. Porém esta não
era mais ela. A morte de seu pai, a preguiça de Jean, a doença, o fugir da mocidade haviam-na mudado. E como nunca voltara a usar o casaco, jovem demais para sua
idade, alegre demais para seu eterno luto, estreito demais para o seu corpo cheio, antiquado demais para as novas modas, nunca mais ele a veria dessa forma. E dentro
de alguns anos, não a veria mais como era hoje. Caiu de joelhos à beira da cama e as lágrimas correndo tentavam levar para longe dele seu desgosto intolerável. Gostaria
de beijar nas faces da mãe os restos de sua juventude e de sua felicidade, reter com beijos, durante horas, os instantes que passavam, a vida que se escoava, a beleza
que ia murchando, as esperanças que fugiam, a existência, enfim, da pessoa em relação à qual imaginava tudo, e que um dia seria aniquilada para todo o sempre sem
que jamais a pudesse reencontrar, sem que dela nada subsistisse, como se nunca houvesse existido.
Mas o egoísmo, ou talvez a própria necessidade da vida, impede-nos de fixar por muito tempo esses pensamentos sobre a morte dos que nos são caros, pensamentos
perigosos e funestos, já que, pelo horror dessa morte, antecipam-se a ela e espalham sua tristeza pelo tempo em que nos é dado desfrutar sua vida e, em seu insustentável
paroxismo, para não sofrer a dor de ter de renunciar a ela um dia, conduzir-nos-iam pelo suicídio a renunciar a ela imediatamente. Assim, como um homem cansado deixa
de pensar e depois dorme, a parte do coração de Jean que revolvia essa idéia deixou de lhe ser sensível e caiu numa espécie de torpor. Jean sentiu-se retornar à
realidade, à vida presente e à brusca

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lembrança das injustiças da mãe no momento exato em que fizera um tão louvável esforço sobre si mesmo, da dureza estúpida do pai, e a aliança irônica de seus poderes
para miná-lo despertou sua cólera e ele se lembrou do que ia fazer, sair de casa, escrever ao reitor avisando-o de que não estudaria mais no liceu, anunciar suas
resoluções ao pai e à mãe, da mesma forma como fora injuriado por eles: diante de Augustin.
Mas por mais que os pensamentos despertados nele há pouco houvessem adormecido, não lhe era possível fingir que não existisseni. Pensava que, se sua mãe
se mostrava tão nervosa, era porque sofrera muitos desgostos, alguns dos quais provocados por Jean. Então sua cólera, refluída, crescia de novo. E ela? Não lhe causara
desgostos também? Com que tom lhe falara há pouco (pois sua cólera lhe mostrava, como o ciúme a um ciumento, as imagens que lhe faziam mais mal). Felizmente, ela
ia ter a sua resposta, e seu pai também. Como ficariam aborrecidos! Aborrecidos ou até mesmo tristes. Pois, no fundo, haveria alguma coisa na terra que amassem mais
do que Jean? Nem mesmo a si próprios. A Sra. Santeuil daria de bom grado a vida pelo filho, e se não se deixara morrer após a morte de seu pai fora principalmente
por sentir que sem ela o filho seria muito infeliz. Henri de Réveillon teria feito tanto? Talvez agora, Talvez nem sempre. E mesmo agora tinha os seus. Os seus,
para a Sra. Santeuil, resumiam-se em Jean. E também para o Sr. Santeufi. Sabia muito bem que estava
dinheiro a Jean, muito dinheiro, pois Jean era perdulário e muitas vezes o Sr. Santeuil se preocupava com o que poderia acontecer quando ele não mais existisse.
Sim, quando ele não existisse mais, quando nada mais lhe desse mágoa ou prazer, ser carinhoso com ele, nem provocar seu carinho (pois o Sr. Santeuil era materialista),
naquele momento, ainda assim ele se preocupava em saber se Jean seria feliz. "Sim, mas enfim, a despeito de todas estas reflexões, meus pais não morreram ainda,
eles encaram a vida de maneira bem mais realista e acham que me aborreceram. Será uma lição bem dura se lhes digo isso. Direi sim. Se não lhes disser nada, acharão
que tiveram razão, que triunfaram, que sou mesmo um idiota, que tive medo, que todos acabam facilmente por levar vantagem sobre mim. . .---

ficando velho, mas trabalhava sempre para deixar

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-Sim. Mas tudo isso não é um jogo. Cada hora é séria e cada ação faz bem e mal. posso muito bem magoar mamãe, ninguém me impede, só que isso lhe vai causar
dor e depois chegará uma ocasião em que não poderei mais agradá-la. Pois existe uma só vida para amar os pais, dar-lhes alegrias, poupar-lhes desgostos. Depois,
o tempo passa. E como só há uma vida, não havendo
outras semelhantes onde seja possível recomeçar as coisas malfeitas aqui, do mesmo modo cada dia é um só, não possui seu duplo. Oque definimos aqui como felicidade
ou dor,

para os outros, é algo que não pode mais voltar, que fica fixado assim para toda a eternidade. Sim, mas papai disse: ponho-te no olho da rua." E via a figura
do pai, execrávei em sua violência, e o inqualificável procedimento da mãe frente a frente com Réveillon. Via tudo isso. Dizia a si mesmo que seus pais julgavam
havê-lo intimidado, e que no entanto agora sua resolução estava tomada. As lágrimas corriam ainda, mas por detrás da chuva da tempestade um sol brilhava, novo, tornando
claras e belas todas as coisas. De quando em vez, ouvia sua respiração como um homem que toma fôlego mas que tem uma grande confiança em sua força ou como, depois
de passada a tempestade, ouve-se por momentos caírem gotas das árvores que o sol já principia a secar. Apoiava as costas na velha cadeira de braços que o comprimia
com essa doçura que descobrimos nos que são testemunhas de nossos atos extraordinários, que poderiam ser fiadores de nossa estatura moral. E, mais além, a mesa,
as cadeiras enfileiradas, a porta cercavam-no com simpatia, como vassalos cheio de admiração, servidores mais ou menos diretos, todos sentindo-se orgulhosos de tal
dono.

Para que essa ternura não o abandonasse, e sem se envergonhar de implorar a ajuda de uma coisa que já fizera tanto por ele, colocou o casaquinho de veludo
nos ombros. E quando ouviu o pai e a mãe irem jantar, esperou que Augustin também se sentasse à mesa. Entrou então, tremendo ligeiramente mas muito senhor de si.
Aproximou-se da mãe e, bem baixinho, mas de modo a ser ouvido por Augustin, lhe disse: - Minha querida mãezinha (estas palavras eram o que mais lhe custava), peço-te
perdão. - E quis beijá-la. A mãe se virou mas ele disse: - Suplico-te, estou tão arrependido, permite que te beije. - Beijou-a. Tinha tanta vontade de chorar que
desatou a rir. Em seguida, dirigiu-se ao pai, que,

225
ao vê-lo, voltara a assumir uma expressão feroz e fechada. Teve de se violentar ainda mais para dizer as mesmas palavras. Mas disselhe também: - Querido paizinho,
peço-te perdão. - Viu que Augustin o olhava, mas não aproximou menos os lábios da fronte contraída do pai. Este, mais fraco que a mulher, mais violento e mais mole,
não resistiu e, vencendo uma ligeira repulsa, Jean pousou-lhe na testa ainda quente de cólera e de maldade para com ele um beijo arrependido. A seguir, sentou-se
à mesa. Então seu pai atentou no casaco que Jean trazia nos ombros e que, arregaçado até os braços para que pudesse comer, deixava à mostra o forro de cetim cor
de cereja, e lhe disse: - É ridículo, está quente aqui, e isso é da tua mãe. Tira-o imediatamente. - Jean sentiu a amargura de não ter sido compreendido, e tirou
o casaco. Mas então a mãe, fixando-o com um olhar puro que parecia restabelecer facilmente todos os pensamentos que tivera há duas horas, olhou-o sorrindo. Ele compreendeu
esse sorriso, que ela compreendera e que nada fora perdido para ela. Correndo para ela, lançou-se-lhe às faces chorando, beijando-a durante muito tempo. Mas ela,
feliz por ser amada, e não querendo, por outro lado,'que ele se enervasse e a amasse com um excesso que um dia lhe poderia fazer mal, disse-lhe com doçura, erguendo-se
e parando de sorrir como para não excitar mais a sua ternura: - Não, vamos, não sejas bobo, volta para o teu lugar e vamos jantar. Ele não podia deixá-la e lhe confessou
em voz baixa que quebrara o copo de Veneza. Pensou que ela ia ralhar, recordar-lhe o pior. Mas, continuando tão doce como antes, ela o beijou, dizendo-lhe ao ouvido:
- Será
trutível.1

como no templo o símbolo da união indes-

1. Depois dessa cena, Jean determinou no seu testamento que os móveis do seu quarto e o casaquinho ficariam com o pai e a mãe, se vivessem ainda e, na falta
deles, com Réveillon; os móveis sim, mas o casaquinho, isso lhe parecia mais que profanação. Mas ser vendido era bem pior. Então não sabe mais o que resolver. Nesse
momento, sua mãe entrou, convidando-o para sair. Parou de sonhar com a morte para gozar a vida. (Nota do Autor).

226

Acabava de encerrar-se o debate sobre o massacre da Arniênia, ficando decidido que a França não tomaria nenhuma atitude. De repente, na extrema esquerda,
um homem de seus trinta anos, um tanto corpulento, de crespos cabelos negros, e que, a um observador, pareceria presa de uma inquietação indefinível e como que hesitando
em obedecer a uma voz interior, vacila por um momento em sua bancada e depois, erguendo o braço num gesto inexpressivo, como que arrancado pelo costume que torna
necessária essa formalidade a quem pede a palavra, se dirige com passo vacilante e como que assustado com a grande responsabilidade assumida, para a tribuna. É Couzon,
que vocês poderiam ter visto há dez anos como interno do Hospital Necker, hoje líder do partido socialista na Câmara, eleito ao mesmo tempo nos quatro grandes departamentos
carboníferos da França, e que optou pelo mais desgraçado, o mais sombrio, aquele em que a vida negra e triste da superfície se assemelhava mais à vida do subsolo
da mina, o departamento do Norte. Oúnico grande orador atualmente, igual aos maiores de outrora, segundo os jornais socialistas, anarquistas, anti-semitas, apenas
um retórico que emprega mal uma verdadeira facilidade, aliás bem vazia, a crer nos
jomrnis monarquistas, oportunistas e até radicais do governo.
Jean, a quem Couzon, que não pensava todavia em falar, enviara um ingresso para a Câmara, viu do alto de sua tribuna o amigo Couzon, tão alegre e habitualmente
tão violento em seus apartes, no início dessa mesma sessão, permanecer em silêncio durante quinze minutos, não mais responder aos colegas que lhe falam, nem mesmo
parecer ouvi-los, os olhos fixos como se estivesse diante de uma assombração invisível para os outros mas que dá a impressão de concentrar, numa deliberação misteriosa,
todas as suas faculdades. E Jean, que todo o tempo em que durara a

227
discussão, tratando apenas dos interesses do governo e de seus adversários, sentia vagamente que haveria outras coisas para serem abordadas, mas não imaginava fosse
possível falar sobre elas na Câmara, diante de homens "sérios", vendo de repente crescerem os olhos de seu amigo, sua mão ir à testa como para reter o pensamento
difíçil de fixar, depois hesitar, dizer algumas palavras para o lado de onde se voltam as cabeças em sua direção sem que pareça vê-las, Jean compreendeu que Couzon
fora iúipelido a Talar por aquele sentimento de justiça que o tomava às vezes por completo como uma espécie de inspiração. Então esse "algo" que Jean sentia difusamente
ter necessidade de dizer mas que julgava indigno de ser ouvido por pessoas sérias assumia de imediato, para ele, uma grandeza enorme. E são justamente as pessoas
sérias que se tornam pequeninas. Está profundamente emocionado. E quando Couzon se decide a fazer com seu braço grosso e curto o pequeno gesto convencional acima
da cabeça, é como que um sinal que ressoa longamente no coração de Jean. E vendo as pernas curtas de Couzon se adiantarem sem graça para a tribuna, pareceu-lhe que
nunca o corpo humano expressara tanta grandeza e dignidade. Há, em Beethoven, compassos fora de propósito e sem qualquer motivo nobre que não é possível ouvir sem
estremecer.
Mas eis que a maioria da Câmara, para quem tudo o que pu
desse ser interessante e sério já fora dito, sentindo o que Couzon
vai falar, o que irá fazer todos perderem seu tempo, põe-se a
gritar: - Hu! Hu! Chega! -, arrastando as cadeiras com violên
cia. Jean treme à idéia de que Couzon se deixe intimidar. Gosta
ria de gritar "canalhas", matar todos esses miseráveis. Um depu
tado encolhe os ombros, outros bocejam ruidosamente. Um berra:
Não fique muito tempo na tribuna, - Ao que retruca outro:
Ninguém nos avisou que teríamos sermão. - E outro: - Eu é que teria ido passear. - Oli, se às vezes Jean, não diante dos pais, claro, cuja hostilidade o
lança no entusiasmo total pelos atos de Couzon, mas a sós, quando reflete, espanta-se de que Couzon tolere em seus jornais , formule em seus apartes ataques tão
violentos,
talvez caluniosos, quase cruéis contra certos membros da Maioria, acharia agora que era muito pouco contra esses odiosos imbecis irônicos, satisfeitos, que usam
sua superioridade numérica

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e a força de sua estupidez para tentar sufocar a voz da Justiça palpitante e prestes a cantar. Nesse momento, devolvendo de todo o coração, pela cólera, os golpes
que o mais fraco recebe, como no dia em que umladrão acabava de ser denunciado, depois perseguido, e depois de uma resistência desesperada, ser preso pelos policiais,
ele teria querido ser bastante forte para massacrar os policiais, sem pensar que estes, que lhe eram odiosos porque mais fortes e porque deveriam rir de seus golpes,
tinham também seus momentos de fraqueza diante da morte de suas filhas ou à facada que umladrão lhes assestasse no coração, Jean não diz consigo que esses homens
que emitem opiniões em tom cortante, que troçam da verdade e amordaçam a Justiça, não se sentem tão fortes como ele poderia crer, também mostram muitas vezes por
dia uma expressão afetuosa, inquieta, vencida. Mais tarde, voltando a pensar nesse momento, em que gostaria de ter apedrejado os 200 deputados que zombavam de Couzon
e o interrompiam antes que tivesse falado, batendo nas cadeiras para abafar o ruído de sua voz, ele entendeu melhor por que Couzon, vendo suas idéias, seus projetos
de lei, seus discursos sempre sufocados pela maioria triunfante, saía todos os dias com ódio no coração, ódio que lhe recordava, em cores inflamadas, os traços repugnantes
de estreiteza e orgulho dessa mesma maioria.
Está à tribuna e espera, equilibrado nas pernas como a barca
pronta para partir que ainda não foi solta mas que a onda impele
conforme seu movimento sem que ela se liberte ainda. Uma ou
duas vezes disse: - Senhores! - A voz é forte, quase enorme,
uma emoção inaudita a estremece e perturba. É o remo que roça
os lados da barca e que treme na linha d'água. Ouando todas as
vozes precedentes eram qu - e nem granizo, quase indistintas, sobre
tudo no começo, é curiosa a força inaudita dessa voz que se ouvi
ria, ao que parece, numa sala vinte vezes maior. Detalhe insignifi
cante, se quiserem, mas que relacionado a um grande homem
sobre quem vocês se indagam com curiosidade, não seria ouvido
sem interesse. Detalhe bem material sem dúvida, porém talvez não
desprovido inteiramente de importância por causa disso, É raro
que a respeito de um homem muito notável, mesmo um grande
pintor, um grande músico, não se diga que num aspecto com
pletamente material de sua arte não faça coisas de todo impossí-

229
veis aos outros. Podem-se ouvir os gracejos da rainha que dizia a Talma: - Que memória! - No entanto, é difícil não se ficar vivamente interessado ao saber que Sarah
Bernhardt pode aprender um papel em dois dias, coisa que outro não consegue. Uma tal definição não esgota, é certo, a essência de seu gênio, mas ela o vivifica como
tudo que lhe diz respeito. Nesse momento, o pre~ sidente diz, sorrindo: - Lembro ao orador que só tem um direito, o de responder estritamente sobre a questão em
discussão ao orador que o precedeu. - Esta fina alusão ao descaro de imaginação de Couzon, que jamais sabia "se limitar à questão", provocou o riso da Maioria, mas
não como se rissem por si mesmos, e sim como se sua alegria fosse algo espirituoso que merecesse ser ouvido. Cada um dizia com força: - Ah, é engraçado! Olha como
é engraçado.
- Sei que tenho somente esse direito - disse então Couzon, respondendo ao presidente com sua voz enorme e fremente -, mas tenho-o como todos os meus colegas
e juro-vos que, depois de esperar uma hora que cessassem vossos clamores, não estou disposto a deixar que me tirem uma parcela e estou decidido a usar meu tempo
até o fim. - Com a rapidez com que o disparo do gatilho é seguido de uma detonação,,-os aplausos frenéticos da extrema-esquerda responderam a essa declaração orgulhosa.
Oregulamento proibia que Jean aplaudisse mas seu peito batia de entusiasmo às palavras de Couzon. Mas a Maioria só respondeu com gritos: - Fechem, fechem o recinto!
- Ofechamento do recinto foi posto a votos. Passou-se, logo após, à votação do projeto de lei do governo. Desarmado, como um homem atado que faz o gesto de ferir
com suas mãos impotentes: - Vós acabais de assassinar duzentos mil cristãos! - gritou Couzon com voz trêmula. Seu corpo também tremia, pois ele mesmo sofria primeiro
os golpes com que sua palavra solta comovia os corações e as rolava com violência dentro de si como as ondas rolam os seixos que a seguir abandonam à beira-mar.
E dominando os clamores da sala amotinada, de pé, aos uivos, e os frémitos do próprio coração, rolado nas ondas de sua própria palavra, arquejante, desvairado: -
Vós acabais de assassinar duzentos mil cristãos, di-lo-ernos ao povo, e o povo a quem ensinastes a manejar o fuzil os vingará.

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- Otumulto foi indescritível. - Nunca ninguém pronunciou palavras semelhantes numa Câmara francesa - uivou o ministro da Agricultura. - É uma infâmia - dizia, ggitando-se,
o presidente do Conselho. Pois os homens cuja política "exclui o sentimento", que "não amam as abstrações", têm sempre presente a abstração e abundante o sentimento
de dignidade.
Mas podiam dizer tudo o que queriam. Couzon, em meio às batidas de seu coração transtornado, tendo conseguido cair em si e manter intactas as idéias, estava
calmo como um cão que, após atravessar as ondas para trazer um objeto que o fascina, chega próximo à margem e não se preocupa mais com as vagas que alcançam a orla
para lançar borrifos de espuma gelada em sua carne fumegante. E também Jean se mostrava feliz, limpava a testa sorridente. Pois todo o tempo, ao lado de Couzon,
tinha vibrado golpes com ele, e agora que essa assembléia, que excitara seu ódio, havia recebido sua bofetada, a tensão em que sua alma vivia há um quarto de hora
se aliviara de súbito e ele sorria, contente. Ao redor de Couzon, mãos entusiasmadas, num impulso sincero, apertavam as suas. Mais de uma assinara muitos artigos
que Jean não estivera longe, naquela ocasião, de considerar infames, mas nesse momento, como o próprio Couzon, era obrigado a ter como amigas, tal como, depois de
atacados numa estrada, vamos beber fraternalmente com as pessoas corajosas que nos defenderam, sem procurarmos saber se tais corajosos que nos defenderam não agiram
assim movidos tão-somente pelo ódio àqueles que nos atacaram e não teriam, em outras circunstâncias, caído da mesma forma sobre nós. Além disso, somos mais gratos
à amizade dos que têm fama de violentos e cruéis, assim como a doçura tem mais valor entre os fortes. Talvez também por ser uma amizade que tem suas vantagens, que
é bom cultivar, e que afinal é mais agradável do que uma amizade que só manifesta sentimentos desinteressados e palavras inócuas. Não é talvez generoso preterir
esta última. Mas quantas razões tem a responder a essa objeção de sua consciência todo homem, e principalmente todo político. A vida, e sobretudo a vida política,
não é mesmo uma luta? E, embora os maus se armem de todos os modos, é do dever dos justos se armarem também, quando nada para não deixar perecer a justiça. Poder-se-ia
talvez dizer que, malgrado o uso dessa ima-

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gem, a justiça não é uma pessoa, e que sua forma toda particular de perecer está precisamente em ser armada, sem se preocupar com a maneira. Mas responder-nos-ão
que, se os grandes revolucionários tivessem reparado tanto nisso, a justiça nunca teria alcançado vitória.

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IX. Osenhor Beufier

Alguns dias depois, tendo a irmã da duquesa de Réveillon, que estava doente, necessidade de respirar melhores ares, partiram as duas damas para os Açores,
onde o duque e seu filho se lhes juntariam logo. Sua ausência durou um longo ano, durante o qual Jean não teve em sua turma um só amigo, embora tivesse feito alguns
inimigos. Era um grupinho dos três ou quatro meninos mais inteligentes da classe, um dos quais tinha grande vocação para a marinha; levava para a aula livros de
viagem e de ciência, e fazia com cordões e fósforos barquinhos maravilhosos. Quase não davam bom-dia a Jean, riam dele quando falava, e no pátio ou na escada, onde
se encontravam antes de subir para a sala de aula, o empurravam ou faziam-no girar sobre si mesmo para que caísse. Jean, em quem a inteligência dos colegas suscitara
uma viva simpatia, ficou profundamente decepeionado com eles, mas sem o menor rancor. E se uma vez, por acaso, lhe falavam com gentileza, voltava a gostar deles
e a se mostrar gentil. Não compreendia que essa necessidade de simpatia, essa sensibilidade doentia e muito aguda que o fazia transbordar de amor à menor gentileza
chocavam os colegas como hipocrisia, irritavam-nos como presunção; para eles, a indiferença de uma natureza mais fria se multiplicava devido à pouca idade. Ignorando
as causas da antipatia deles, Jean, que por simpatia imaginava os outros iguais a si e, por modéstia, melhores, tentava, além disso, por escrúpulo, descobrir no
seu procedimento para com eles alguma falta grave, alguma maldade involuntária da sua parte que os pudesse ter aborrecido. Falou-lhes, escreveu-lhes, e isso só fez
aumentar-lhes as zombarias. Escrevera uma carta tão bonita, tão sincera, tão eloqüente que as lágrimas lhe vinham aos olhos ao escrevê-la. Quando viu que ela não
servira para nada, começou a duvidar do poder de nossa simpatia

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sobre os corações que a não têm por nós, do poder do nosso pensamento e do nosso talento sobre 'os pensamentos e os talentos que não se assemelham aos nossos. Repetia
consigo aquela carta, achava-a tão convincente, tão bela.
Depois da aula, voltava muitas vezes com o jovem Thenaud, sobrinho do general Thenaud, a quem os pais, permanecendo todo o inverno no castelo para as caçadas,
deixavam sozinho em Paris, reservando todo o dinheiro ao luxo e não lhe enviando quase nada, nem cartas. Thenaud conservava, numa vida triste, muita doçura e alegria.
Com Jean, a quem o professor encarregava de lhe explicar umas lições, era sempre muito doce, admirando sua superioridade, gracejando com suas manias, seu nervosismo,
seu exagero, a desordem de seu modo de vestir, sua palavra exaltada, mas tão gentilmente que Jean, que não tinha nenhum amor-próprio, encarava isso como pequenos
sinais agradáveis de amizade.

Dois anos depois, Jean fora caminhar nos Champs-Elysées e voltava para almoçar em casa, quando encontrou um dos "três alunos inteligentes", o que o havia
perseguido no colégio e se preparava para a carreira naval. Mas como se as relações de aluno para aluno tivessem sido algo de profissional, de obrigatório e momentâneo,
assim como as relações entre professor e aluno, de cabo para soldado raso, e como se vê um professor apertar, em sociedade, a mão de um aluno que em aula mantém
a distância, ou um cabo que maltratava no regimento um rapaz de família, saudá-lo respeitosamente alguns anos depois na rua, quando o cabo se tornou carroceiro e
o soldado engenheiro, o aluno inteligente não só não empurrou Jean como o saudou com solicitude e timidez. As amizades e os ódios, como os desejos e as idéias da
juventude, afastam-se de nós com tal rapidez que, passado pouco tempo, já não os compreendemos. Oaluno inteligente só nutria por Jean sentimentos amáveis. Conversaram
por uns momentos e Jean se espantou de que o tivesse julgado tão inteligente outrora. Pediu-lhe notícias dos dois outros que notara sempre na companhia dele. - Mas
encontrei Fentel outro dia, como o encontro agora. - Jean não pôde se lembrar de

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haver conhecido esse Fentel que o aluno inteligente no entanto assegurava ter estado na mesma turma deles. - Entrou para a Marinha? indagou Jean. - Marinha? - retrucou
o outro, espantado. Oh, nunca pensei nisso! Sim, quando era pequeno. Mas depois nunca mais. Estou cursando Direito. - Eu também - disse Jean. - Também, mas que curso
está seguindo? Não sigo curso nenhum. Ouanto a mim, vou a todos. E isso me toma o tempo inteiro. Jean, por um momento, tentou imaginar que havia alunos com o tempo
todo tomado pelos cursos de Direito. Não o conseguindo e não tendo nada mais a dizer, estendeu-lhe a mão com um sorriso afetuoso, ao qual o aluno inteligente respondeu
com um cumprimento constrangido.

O Sr, Beulier só pensava para dizer a verdade e só falava para exprimir o pensamento. Da mesma forma, Jean buscava provocar e recolhia, com respeitosa avidez,
as opiniões do Sr. Beulier sobre todas as coisas. Um espírito profundo transmite tão bem o sentimento de que nele se encontram as leis às quais obedece a realidade,
que as respostas modestas e hesitantes do Sr. Beulier eram mais exatas que as pausas, mais plenas de futuro, de realidade, de sentido, de vida do que os oráculos
e as profecias. Comentava-as sem parar e lembrava-se facilmente delas. Um dia, uma triste véspera de Natal, o Sr. Beulier, ao principiar a aula, disse aos alunos
com voz doce: - Amanhã é dia de Natal, vamos festejá-lo à nossa maneira. Vou ler alguns contos. - Os três magos, trazendo ouro, incenso e mirra, não espalhariam
a seu redor mais doçura do que essas palavras espalharam no coração de Jean. Até então, não achava razoável que se parasse de estudar mais num dia do que em qualquer
outro. Celebrar o Natal lhe parecia uma infantilidade. Todos os dias eram iguais. E assim não lhe agradavam. Por meio dessas palavras tão simples, que assumiam uma
irresistivel autoridade por provirem da severidade de um espírito que só obedecia à razão, o Sr. Beulier unia, por um fio invisível, esse dia banal de amanhã ao
dia misterioso em que Jesus nascera na manjedoura. Opoder da razão permitia-lhe fantasias livremente enquanto estudava. Era um pouco de poesia

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derramada nos dias de Jean, a doçura, permitida à imaginação, de sonhar, de não ser muito lógica. Na manhã seguinte, Jean comprou o Echo de Paris, onde se estampava
um conto de Anatole France, e um ramo de visgo que pôs num vaso à sua mesa. - É o meu Natalzinho - disse à mãe com a moderação de um filósofo e a doçura de um poeta.

Alguns dias antes do Ano Novo, Jean, indo tomar lições em casa do Sr. Beulier, disse-lhe, enrubescendo, que lhe trazia um presentinho de Ano Novo. Era um
pequeno busto de Héréules da Renascença italiana. OSr. Beulier ficou encantado com a lembrança. Falou sobre Hércules ao seu alutio; mostrando-lhe o esforço que representa,
o sentido de seu trabalho. Depois chamou Mariette, sua única criada, boa camponesa, de rosto corado e cheio sob os cabelos grisalhos, e que era sua cozinheira e
governanta, mas também lhe levava os livros e as revistas quando ele não queria deixar o trabalho, e em seu cérebro acanhado, na cabeça amolgada como uma marmita,
ao lado de termos inglórios como fogão, limpeza' ou sopa, dominava os nomes mais nobres, e não menos usuais para ela, de Platão, Hegel e Dionísio de Halicarnasso.
Familiarizada, graças ao hábito cotidiano, com os diversos volumes, punha-os em seu lugar na biblioteca sem qualquer hesitação, levava-os ao patrão com cuidado,
na mão prudente e sem deferência. Punha-os então sobre a mesa, o que os distinguia claramente para ela, como o tinteiro, o café preto, o palito, dos sapatos e dos
chinelos que, também escolhidos a esmo, "o par que usei ontem", sobre um espectro menos vasto, deviam, pelo contrário, ser postos junto à lareira, diante da mesa,
no chão.
0 Sr. Beulier chamou, Mariette apareceu: - Dê-me um livro amarelo - disse - na parte de baixo da biblioteca, à esquerda. Tem escrito na lombada Bíblia da
Humanidade. - Por tê-la introduzido muitas vezes no gabinete de trabalho, Mariette conhecia muito bem a Bíblia da Humanidade, no sentido em que os criados dizem
que conhecem bem "o Sr. duque de S." por tê-lo anunciado com freqüência. Desse modo, tantas palavras co-

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mo "um livro amarelo que tem escrito na lombada, etc." eram inúteis. Mas o Sr. Betilier conservara esse luxo antigo de explicações, que vinha da época em que Mariette
ainda não se acostumara aos "livros do patrão, mais difíceis de conhecer do que a sua roupa branca". Não soubera adequá-lo aos progressos da criada no conhecimento
dos grandes filósofos, e dizia ainda "um livro que tem escrito na lombada", em vez de "que se chama", locução mais abstrata mas cujo sentido ela facilmente apreendera.
Somente em relação aos livros absolutamente corriqueiros é que se entendia com ela num nível mais simples. Assim é que dizia sempre: - Mariette, o Novum Organum;
Mariette, a Crítica da Razão Pura - e se, enquanto se achava de joelhos diante das achas assoprando o fogo, ela ouvisse um aluno matinal, pedindo explicações ao
Sr. Betilier enquanto ele acabava de tomar café, pronunciar o nome augusto, porém familiar para ela, de Spinoza, sem se levantar mas deixando o fole de lado, perguntava
ao patrão: - Osenhor quer a Ética?
Mariette. apareceu ao cabo de um instante trazendo a Bíblia da Humanidade, onde o Sr. Beulier leu para Jean as páginas admiráveis em que Michelet celebra
o Trabalho em Hércules. Quando chegou ao fim e pronunciou as últimas palavras: "Valeu mais, talvez, que um outro melhor. Eu morrerei rico, se não em obras ao menos
em grandes propósitos. Deponho-os aos pés de Hércules", uma torrente de lágrimas subiu aos olhos de Jean.
- Ali, sim, é bela toda essa opulência - disse-lhe o Sr. Beulier com afeto. - E no entanto, a simplicidade também tem o seu encanto. - Chamou Mariette de
novo, mandou trazer os Memoráveis de Xenofonte e leu a história daquela família que se aborrecia, achava a vida ruim, vivia dividida, e que Sócrates tornou não apenas
útil mas sábia, feliz e bondosa, fazendo-a dedicar-se ao trabalho. Depois das páginas de Michelet, a simplicidade nua, a secura dessa narrativa deixaram Jean um
pouco decepeionado. - Não - disse o Sr. Beulier -, não é inferior, é outra coisa, ora, existem muitas coisas diferentes, não é? A Antigüidade não é o século XIX.
Mas 6 também admirável. Nunca mais escreverá desta maneira. É bem simples e no entanto diz tudo. É de uma época em que as idéias não eram desenvolvidas, eram apresentadas
sem aprofundamento, sem que fizessem

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aparecer tudo aquilo que continham. Ofloreado, o frescor não eram suprimidos. - No ponto em que o mestre semeara uma só palavra, Jean, cultivando-a com amor, descobria,
depois de algum tempo, uma idéia florescente. Mais tarde, quando a releu, encontrou nessa narrativa de Xenofonte um encanto maior do que o teria imaginado. Voltou
a ela, com freqüência, a seguir, e quando em companhia de amigos inteligentes no quarto, amigos que não tinham muita pressa, imitando involuntariamente por uns momentos
a voz cantante do Sr. Beulier, gostava muito de recitá-la.
Não podendo, numa narrativa que não é mais que uma obra de sentimento, dar uma idéia do espírito do Sr. Beulier, demoreime assim em recordar algumas das
lembranças de Jean relativas ao homem que mais admirou em toda a sua vida. Como ele sabia que o espírito não é classificado, já não digo pelos cargos oficiais mas
mesmo pela reputação filosófica ou literária que, como toda obra coletiva, é feita de imitação, de sugestões mais ou menos materiais, de ardor artificial tanto quanto
de julgamento, e que é tão contestável no mundo da Verdade quanto o sucesso de uma estréia ou o prêmio de um quadro no mundo da Beleza, ou o resultado de uma eleição,
ou o veredicto de um tribunal no mundo da Justiça, convenceu-se sempre de que o Sr. Beulier era um homem mais importante que o Sr. Renan ou o Sr. Taine, por maiores
que tivessem sido estes. Se nos efeitos a gente sabe reconhecer as causas, encontraríamos no talento dos rapazes mais notáveis dessa época o pensamento genial do
Sr. Beulier. Mas nenhum concordaria nisso, pois, não tendo qualquer amor-próprio, o Sr. Beulier, não ouso dizer que não adivinhava do que se tratava, pois adivinhava
tudo, mas não pensava que fosse algo respeitável e que era necessário dirigir. Um dia, elogiou sinceramente um jovem poeta a propósito de alguns versos que fizera.
Depois, disse-lhe que apesar de tudo podia queimá-los. - São seus primeiros versos - disse -; ora, veja o que são os primeiros versos de um Leconte de Lisle, por
exemplo. Nem sequer os conhecemos. Mas os seguintes são ainda muito ruins. Muito bem, admitindo que você venha a obter um sucesso extraordinário, se representarmos
o talento de Leconte de Lisle, de que aliás não gosto muito, por um milhão, o seu estaria perto de quatro ou cinco. - E depois, perguntando: -

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Não é mesmo? - e vendo o ar decepeionado do poeta acrescentou amavelmente: - Não, é claro que exagero. Sim, podemos dar-lhe oito ou nove, e creia que é muito.

O leitor admitirá, sem dúvida, que tudo isso contribui somente para diminuir o andamento do romance. Odefeito está na adolescência que, em dado momento,
antes de se entregar para sempre às paixões do coração, da ambição e dos sentidos, prestase às vezes por um instante às paixões do intelecto. Darei pouca importância
a esse gênero de censura, pois a vida de Jean, agora, não se limitará à casa dos pais, à casa do Sr. Beulier e ao colégio. Algumas vezes, a seguir, ele voltará a
ver o Sr. Beulier, mais e mais raramente, mas serão visitas curtas que o empolgarão por uma hora e que nós nem sequer relembraremos. No momento em que o Destino
o segura rudemente pela mão, fazendo-o mudar de caminho, enquanto se escoam minuto a minuto, sem pressa mas também sem atraso, as últimas horas de uma existência
que ele julga eterna, desejo acrescentar a essas lembranças uma última, que é de pouca monta, tão fluidamente espiritual que não poderia talvez trazê-la a vocês
e retê-la, mas que desejo tentar recuperar antes que esses dias de sossego e de espiritualidade regressem para sempre ao nada.

Foi alguns dias antes do Ano Novo que Jean levou o pequeno busto ao Sr. Beulier. Na véspera do Ano Novo, o Sr. Beulier foi à casa de Jean para lhe dar uma
aula e lhe disse: - Também lhe trouxe um presente. - Era um livro de Joubert.* Durante duas horas o Sr. Beulier leu-o com Jean; quando terminaram e ele marcou um
encontro à tarde para estudar o que não tinham tido tempo de fazer, no momento em que Jean, olhando o livro, dizia: - Nenhum presente me deu maior prazer -, o Sr.
Beulier pegou-o de volta, colocou-o na pasta e não o trouxe nunca mais. Tendo dado todo o sentido, a essência, o auxílio moral a Jean, dera tudo. Nisso é que consistira
o presente puro e ines-

* Joseph Joubert (1754-1824), moralista francês. (N. do T.)

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timável. Ofertara-lhe, porém, um dom ainda mais precioso, ao acrescentar desse modo ao magro tesouro de idéias e sentimentos de Jean a novidade rara e encantadora,
de caráter exclusivamente espiritual, dos brindes que se diziam sem modéstia nem precauções oratórias dos brindes, e que nada haviam custado, que não consistiam
em coisa alguma que fosse material ou vulgar. Ogesto tão simples do Sr. Beulier em pegar o livro de volta guardou para sempre, em Jean, a doçura de certas palavras
do Evangelho que não falavam apenas do desprezo das riquezas e da irrealidade da matéria mas que lhes conservavam o sinal, porque deixavam que se evolasse, como
um perfume, uma essência naturalmente superior a essas coisas, e mais delicada. Essa essência da alma, toda a pessoa do Sr. Beulier dela se revestia, como certas
personagens de Ticiano estão como que envoltas por uma beleza que é a beleza da pintura, e também da vida, e que nos dá tanta alegria quando as contemplamos.
Assim esse homem, tão mal trajado, que não sabia cumprimentar nem entrar num salão, dava a todas as suas maneiras algo de surpreendente e suave que os modos
de um príncipe não teriam logrado alcançar. Não era belo nem feio, mas Jeart olhava suas faces rubras, seu nariz grande, as mãos de veias grossas com um respeito
tão carinhoso que, se a frieza do Sr. Beulier não o mantivesse a distância, tê-las-ia beijado com infinitos cuidados, como as faces, o nariz e as mãos de sua mãe.
E a alma conserva de tal modo o corpo em que habita, tão viva, e que nunca o amor-próprio, a pretensão, o vício, nada além do pensamento e do coração tocaram, como
um grão de sal num pedaço de carne torna-a por muito tempo pura e sã, que a seguir, quando todos os anos Jean ia ver o Sr. Beulier, achava-o sem dúvida um pouco
envelhecido, mas havia sempre, na alegria súbita que ele sentia por rever Jean, tanta graça e tanto calor, tanto ardor absolutamente desinteressado em prestar serviço,
sern visar a qualquer benefício ou honraria, desinteresse que vem contaminar a alma de milhões desde os vinte e dois anos - que era na presença de um jovem infantil
que Jean se encontrava. Seu corpo bem podia se estragar como um velho roupão, mas não fazia parte dele. E se sua alma não podia sacudir para longe dela o corpo,

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pelo menos, como um manancial subterrâneo mas próximo, traía sua presença em todo o ativo frescor da pessoa até o lago resplandecente e fluido, sempre crescente,
dos olhos risonhos em que vinha transbordar.
xxx
241
IV

Primeira temporada de Jean em Réveillon: o Sr. de Traves e o materialismo literário. - Os despertares. - Os pavões da duquesa. - As senhoritas de Saint-Sauves. -
Novo aspecto do Sr. Rustiníor. - As expressões do Sr. Expert-Foutin. - Perrotin. - Lições de botânica. - A roseira branca. - Dias de leitura. - Ocastelo da princesa
de Durheim. - Omarquês de Porterolles. - A volta.


Era a época em que, por entre as folhas verdes, os lilases, envolvidos pelo mais suave perfume da Pérsia, inclinavam graciosamente suas claras corolas cor
de malva, e surgiam suas outras flores, brancas, cujas pétalas límpidas pareciam ainda brilhantes dos perfumes em que haviam estado mergulhadas. Sentia-se que essas
criaturas delicadas eram estrangeiras, vindas dessa terra aonde tantas vezes fomos através de uma leitura ou de um projeto, e onde tudo se exibe em outra cor, até
a luz do sol, diversa da de nossas aldeias francesas. Mas essas estrangeiras se inclinavam desde a infância sobre Jean, quando, cansado de brincar, subia para descansar
no bosquete do párque à hora calmosa em que se anda devagar, roçando de passagem os ramos, cujas flores brancas e sedosas, de estames brilhantes, não param de cair
como uma musselina esfarinhada, à hora em que, no escritório do adjunto, Jean acompanhara tantas vezes o pai em suas visitas tediosas e onde as moscas, falando em
voz baixa, mas com disposição de se distrair, vinham ininterruptamente importunar os raios de sol adormecidos sem conseguir mudá-los de lugar e consolavam-se explorando
os mapas do departamento pendurados à parede, para renunciar de súbito a esse trabalho minucioso voando não se sabe por quê, com manifestações ruidosas, ou, pelo
contrário, prolongando indefinidamente sua permanência nesse pedacinho de madeira, sobre as linhas verdes às quais parecem se casar tão bem que a gente pensa que
nunca mais se mexerão dali.
Nessa hora, quando Jean subia para ler no pequeno bosque, prendia a respiração se subiam por outro caminho para que não o incomodassem. Eram, às vezes, passantes
que não o conheciam, lançavam-lhe um olhar e continuavam seu caminho, fazendo em voz alta uma observação, o nome de uma planta, uma nova con

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sideração devida ao tio de Jean, ou: - Eis um bosquezinho onde deve ser bom vir almoçar. - Os lilases haviam feito companhia a Jean durante essas longas horas e
sem dúvida ele já achava bem doces seus embriagantes aromas do Oriente. Diz-se que ao envelhecer nossas sensações enfraquecem. Talvez, mas são acompanhadas pelo
eco das sensações mais antigas como as grandes cantoras já um tanto velhas a quem um coro invisível reforça a voz enfraquecida. Assim é que esse delicioso odor dos
lilases, essa pétal-a deslumbrante, de um branco de anis, ou essa clara pétala cor de malva dos lilases, emocionavam-no muito mais profundamente do que uma simples
sensação, por mais deliciosa que fosse. Opassado abria seu coração ao presente e a hora que se escoava se tornava como que a alma em que Jean avançava com delícia.
Assim, essas belas flores dos lilases, essas estrangeiras, por estarem inclinadas sobre a infância de Jean, faziam, a seu ver, parte do que melhor representava sua
terra, e seu odor acordava-lhe a própria sensação, tão quente e tranqüila, dos verões de sua infância. Belos lilases do branco fosco do anis que pareciam límpidos
ainda do perfume de onde davam a impressão de sair no mesmo momento, brilhante e fina Oriental, e vocês também, doces véus cor de malva de lilases rosados flutuando,
imóveis, ao sol.

Foi num desses dias que Jean conheceu o romancista genial, Traves, com quem passou alguns dias em Réveillon. Nem a presença do romancista Traves, nem o que
Jean conheceu por meio de sua conversa, nem o que soube de sua vida prolongaram em coisa alguma o estranho fascinio, o mundo único para onde ele nos transportava
desde as primeiras páginas de um de seus livros e onde sem dúvida vivia quando ele próprio o trabalhava, fabricando-o à medida que escrevia e tendo já vagamente
desenrolado diante dele, em sonhos singulares, a matéria preciosa, ainda informe como uma via-láctea, da qual devia ser pouco a pouco tecida. Não, seus olhos eram
bonitos, grandes e claros, mas só deixavam transparecer o que deixa ver uma janela que abre para um quarto vazio. As circunstâncias de sua vida e seus hábitos nada
podiam explicar da misteriosa semelhança que havia entre

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todos os seus livros, que deviam tomar emprestado a uma família comum seu tipo tão especial. Mas a família tinha sem dúvida sua sede no céu, pois a vida de Traves
não podia, de forma alguma, ser tida como repleta de ações dessa família, como se, podendo dar seu nome e explicar suas particularidades, ainda que de modo visível,
para quem o conhecesse a fundo, reconhecêssemos em alguns dos materiais de que se servira alguma agradável ou terrível circunstância de sua vida. Pois nossa vida,
seja qual for, é sempre o alfabeto em que aprendemos a ler e no qual as frases podem ser quaisquer umas, pois são sempre compostas das mesmas letras.
O próprio Traves certamente não saberia dizer a partir de que momento adquirira o hábito de reconhecer em si pensamentos de certo tipo, de certo entusiasmo
que precedia sua chegada e que eles exaltavam como sendo algo real e ao qual ele devesse se apegar, e fixar sem mudar nada. Mas de fato, nada em sua vida, em sua
fisionomia e até em sua conversação podia fazer-nos penetrar mais no conhecimento dessas criaturas misteriosas, das quais, provavelmente, não nos é dado poder chegar
mais perto, a não ser através do cristal precioso de seus livros. De resto, se quisermos tentar penetrar mais além, para dentro dessas nudezes misteriosas, à cabeleira
trançada de Iótus, em que se apóiam os olhos sonhadores em todos os quadros de Gustave Moreau, ou se quisermos conhecer melhor essas falésias onde uma estatueta
se ergue numa anfractuosidade, não o conseguiríamos, e por mais que conhecêssemos em detalhe a vida de Gustave Moreau, conversássemos com ele sobre arte, vida e
morte, jantássemos todas as noites com ele, não penetraríamos nem um pouquinho no mistério da origem e do significado desses temas, os quais ele proprio, na verdade,
não conhecia melhor, e que lhe são trazidos com todo o cuidado, como estranhas filhas do mar, nas ondas de inspiração que o assaltam. Oque ele poderia dizer-nos
limitar-se-ia aos traços gerais de sua criação, à parte terrena de seu engenho (uma paisagem contemplada, uma terracota admirada), mas não à misteriosa semelhança
que os une e cuja essência, embora incorporada a seu espírito, visto que somente ele a apura e somente ela junta-se a ele e o liberta, lhe é, não obstante, desconhecida.

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A fisionomia de Traves era a fisionomia de um homem e sua conversação, exprimindo idéias através de um encadeamento lógico das palavras, das idéias, era
também a de um homem e havia nisso algo de razoável e comum a todos. Entretanto, essa conversação era bem notável (mas, por mais belo que seja o ostensório, só no
momento em que se fecham os olhos é que se sente a passagem de Deus), embora ela nada tivesse do brilhantismo da de Perrotin. Mas Jean havia reparado que entre aqueles
cujo ofício é escrever a palavra é muito mais simples. Eles não empregam nenhum desses jogos, dessas fantasias que nascem de sua pena. Junto de Perrotin, e quando
conversavam um com o outro, Traves apresentava algo mais simples, muito menos brilhante, repetindo as mesmas palavras, sem nenhuma vivàcidade, e também com maior
ingenuidade, caindo quase nos clichês dos jogos de espírito (como quando o outro lhe disse: o Sr. Gallé, que veio de Nancy expressamente para vê-lo). Contudo, essa
conversação, por mais notável que fosse, desagradava a Jean, cansava-o e lhe parecia, se é preciso dizer, inferior.
Nesse momento, tendo as doutrinas espiritualistas, identifica
das , as com a grande inteligência do Sr. Beulier, reputado no espí
rito de Jean os sofismas do materialismo e do ceticismo, não
podia interessá-lo um arrazoado cético e materialista, nem ele
podia perder tempo com o que lhe parecia definitivamente der
rotado e de reconhecida falsidade. Ora, o Sr. de Traves era um
adepto da filosofia materialista e cética e manifestava, relativa
mente aos espiritualistas, um desprezo que Jean considerava de ín
fima qualidade. Aquilo que admiramos com maior veemência se
nos torna padrão para o resto. Era no idealismo que Jean calcara
seu pensamento mais elevado. Era por ele que julgava os outros,
e não podia admitir que um materialista fosse um homem intelí
gente. Todo tipo de livro materialista parecia-lhe uma pilha de
papéis inutilmente enegrecidos, um amontoado cansativo de erros.
O Sr. de Traves citava-os, lia-os sem cessar, só gostava deles.

Seja qual for a idéia em que pusemos o melhor do nosso pensamento, é quase impossível que não lhe confiramos uma espé-

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cie de excelência e que não julguemos desfavoravelmente aqueles que aderem a uma idéia contrária. E até para o cético, o ceticismo, ou antes, um certo ceticismo,
se torna uma espécie de fé, sendo que todos os tipos de dogmáticos são considerados como pagãos que ainda laboram no erro. Jean sentia pena, secretamente, de todos
os que acreditavam na Ciência, que não criam no absoluto do Eu, na existência de Deus. E era o caso do Sr. de Traves. Além disso, qualquer que fosse o assunto abordado,
o Sr. de Traves aferrava-se sempre a essas coisas que eram tão indiferentes a Jean que ele deixava logo de escutar. Jamais uma idéia geral do tipo das que o Sr.
Beulier desenvolvia, jamais as visões proféticas sobre a alma, sobre a inteligência. Mas um fato, o sentido que tivera uma palavra antigamente, o uso de onde essa
palavra derivava, as razões pelas quais não se podia acreditar que fosse em tal sentido que a entendera tal escritor, a época a que era possível atribuir tal objeto
pelo estilo que nele se notava, a aproximação com outros objetos semelhantes, sobretudo nisso ele era inesgotável. Organizar bibliotecas, procurar bibelôs, tais
eram seus mais vivos prazeres, aos quais Jean permanecia totalmente alheio e que lhe causavam um aborrecimento mortal. Quanto à literatura, ele só gostava da do
século XVIII, que Jean considerava uma nulidade, pois não era, de modo algum, de seu gosto, assim como a literatura do século XIX era o relatório das verdades misteriosas
que constituía para ele a única verdade. Para tentar ir bem ao fundo da conversação do Sr. de Traves, não em sua matéria mas em seu modelo, encontrarse-ia sempre,
em última análise, a afirmação implícita de que a beleza é algo real. "Sim, é belo porque Rome, não é mesmo, é de fato uma palavra muito bonita!" - "Um lance, vejam,
não é belo?"

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II. Dias em Réveillon

Quando Jean tocou a campainha para que lhe trouxessem o desjejum, já era tarde. Comeu-o na cama, lendo cartas. - OSr. Henri já sd levantou? - perguntou ao
criado. - Sim, senhor. OSr. Henri foi dar um passeio a cavalo mas já voltou e perguntou várias vezes se o senhor estava acordado. Disse-lhe que o senhor tocara a
campainha. - E, de fato, ao cabo de um instante bateram à porta. Era Henri. Vinha ver se Jean não sentira frio, se não seriam precisos mais cobertores. Trazia-lhe
jornais e pediu licença para que servissem seu próprio desjejum no quarto dele. Poderiam, desse modo, conversar tomando chocolate, Jean na agradável preguiça do
leito, Henri ainda mais agradavelmente na mesinha, brilhando devido à recente toalete e ao passeio matinal. Depois deixou Jean ler e se vestir. Às vezes uma idéia
que surgia a um deles se impacientava por não ser completada com a aprovação do outro, ou um gracejo com sua gargalhada, ou uma notícia lida numa carta que o surpreendera.
E depois de haver olhado o corredor para ver se não vinha ninguém, o que aliás era pouco provável - Henri e Jean eram as duas únicas pessoas que haviam sido alojadas
naquela parte do prédio - Jean de chambre de pelúcia, tendo na mão o copo para escovar os dentes, se aventurava até o quarto de Henri: - Vim escovar os dentes no
teu quarto, pois adivinha quem é que está casando? - Ou, já que Henri era bom músico: - Olha, trouxe uma camisa para vestir no teu quarto, porque tens um bom fogo
e poderei aquecê-la, e sobretudo porque queria te perguntar que diabo de ária é esta? - Henri sentava-se ao piano, cantava-a, e Jean o ouvia, extasiado, a camisa
perto da lareira, aquecendo as pernas, enquanto o criado batia inutilmente à sua porta para dizer que a refeição estava pronta. Jean se apressava, tirava da gaveta
uma nova gravata que se

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harmonizava com seu rosto de modo a produzir um efeito bem diverso das precedentes, de sorte que, a cada vez, se acreditava tratar-se de uma gravata vermelha sobre
um casaco azul, uma gravata branca sobre uma roupa escura, uma gravata cor de palha sobre uma jaqueta da mesma cor, que lhe assentava melhor, dando como que diferentes
retratos dele mesmo, de cor e harmonia diversas. Às vezes uma flor colhida num buquê no quarto de Henri opulentava essa gama que parecia completa com uma harmonia
mais poderosa.
Henri, para que seu amigo não tivesse o aborrecimento de chegar só, o havia esperado, e atrasados correram depressa pelas compridas galerias de mármore,
por entre todos os bustos dos Réveillon, enfileirados cada um sobre um pedestal ao longo das paredes onde estavam pendurados os retratos. Jean pensou que havia chegado:
uma nova galeria começava. Depois tomaram por outra escada diferente da que em geral usavam. Sem Henri ele se teria perdido. Entraram na sala de jantar. Sobre a
mesa, nos quatro cantos, tufos azuis de cabelos-de-vênus,* e no centro zínias cor-de-rosa, amarelas e malvas, bocas-de-lobo, cravos-daíndia, trazidos pela Srta.
de Réveillon do seu passeio pelo parque, conservavam na vivacidade de suas cores, devida ao seu frescor, brilhosa por causa de um pouco de orvalho que ainda não
secara, alegrada pelo sol que vinha do fundo do parque persegui-los até essa sala fechada, essa doçura rara de tom que, sobre o topo da jardineira de porcelana da
Saxônia de onde transbordavam, fazia o encanto de uma flor pintada, craveiro bem ereto ou violeta florescente no alto do talo verde e inclinado, e sobre as guarnições
brancas da parede, as personagens dos camafeus imóveis, azuis como jacintos ou rosadas como rosas. Mas os ovos quentes já fumegavam por entre as flores frescas.
Sentaram-se, e cada um colocou sobre os joelhos um guardanapo cândido como a alegria que brilhava em todos os olhos e que acabava de avivar a descoberta, através
da ondulação dourada dos ovos mexidos, de minúsculas flotilhas imperceptíveis de toucinho, meio engolidas, e que cada um se encarregava, com gosto, de

* Também conhecida como capilária ou adianto (Adiantum capilIus-veneris L.). (N. do T.)

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salvar do naufrágio. Na verdade, não se tratava de uma descoberta para a duquesa de Réveillon, que nessa manhã dera a idéia ao cozinheiro. Mas por não ter o prazer
da descoberta, talvez porque o tivesse do sucesso, não parecia mais zangada. Oautor de uma peça que obtém sucesso não tem, como o espectador que ignora ainda o desfecho,
os prazeres da curiosidade. Mas os aplausos lhe dão outros que não são de desprezar. E o duque e Henri juntavam os seus aos de Jean. Não era, como para ele, a primeira
vez que comiam ovos mexidos com toucinho. Mas o prazer do hábito é muitas vezes ainda mais doce que o da novidade. E uma lagosta à americana, trazida antes para
a Srta. de Réveillon, que não comia ovos, misturava ao aroma agradável^das zínias e das bocas-de-lobo um odor que não tinha, como ele, um fim em si mesmo, mas que
ia completar ii um instante um ato de posse mais material. Mas já se falava do incidente noturno, pequeno episódio que assumia no castelo a importância de verdadeiro
acontecimento.

- Muito bem, meu pobre amigo - dizia a duquesa a Jean, que entrava -, deve ter passado uma noite muito boa. Que tempestade! Será que foi para isso que você
veio para o campo? - Mas não, minha senhora, quase não ouvi a chuva - dizia Jean, que se lembrava de modo vago de ter sido despertado por um momento, de ter compreendido
que fazia mau tempo lá fora, e se abrigado mais no calor da cama, e de ter voltado a dormir imediatamente, virado para a parede, as cobertas até a nuca, e que muitas
vezes não ouvira nada, mas a quem o criado que lhe trazia o chocolate, numa de suas conversas em que sabia misturar a tagarelice ao respeito para despertar o interesse
dos patrões sem lhes falhar, havia advertido muito no sentido de que não deixasse escapar, diante da duquesa, um erro por demais grosseiro que denunciasse a sua
falsidade. No entanto, às vezes, à palavra "tempestade" ele respondia distraído: - Sim, ouvi a trovoada, mas dormi de novo. - Era o granizo - exclamava a duquesa,
feliz com o enobrecimento de sua saraiva. - Não me espanta que você o tenha tomado por trovoada. Por um momento eu mesma, que me levantei, cheguei a pensar que trovejava.
- E à visita que vinha à tarde, ou mesmo sem esperá-la, ao criado que entrava com o prato seguinte, a duquesa não deixava
de dizer: - Foi tão forte que o Sr. Santeuil pensou que fosse trovoada. - Ali! Isso não me espanta - respondia o criado de seu posto, em pé perto da porta, com o
ar tímido de alguém que se encontra por um momento fora de suas ocupações habituais. - Ocarteiro me disse que nos dois anos que está aqui nunca viu saraiva tão forte,
mesmo no inverno. - Ouviu, Astolphe dizia a duquesa ao duque, que se dispunha a ler sua correspondência -, ele diz que o carteiro há dois anos não vê tormenta igual.
- E o criado permanecia imóvel, como que honrado com semelhante familiaridade e constrangido por ter de dizer alguma coisa.

Aliás, só se falava nisso desde a manhã, bem antes que Jean estivesse acordado. E antes do almoço, no salão, enquanto a duquesa fazia seu trabalho, ela dizia
a cada pessoa que entrasse: - Muito bem, meu pobre amigo, que noite! Que tempo! Entrando já no quarto, o desejo de falar com sua camareira a fizera sair de sua reserva
habitual. Era como se um laço a mais viesse estabelecer-se entre elas. E o acontecimento redobrava a tagarelice entre as mulheres e a atividade do duque e de Henri.
Tomaram-na como pretexto para mandar selar os cavalos, a fim de ver se as colheitas não estavam perdidas, verificar as janelas, encomendar uma nova partida de lenha
para a lareira, fazer vir os grossos sobretudos na previsão de mau tempo, com todas as precauções como se fossem iniciar uma viagem, e novos hábitos como se estivessem
em outro lugar. Procuravam saber a verdade a respeito do acontecido. Cerca das duas horas o duque tinha sido acordado pelos primeiros trovões, a chuva começara a
cair em seguida. - Era mais cedo - disse a duquesa. - Você não despertou logo. - Você não olhou bem a hora, minha querida - replicou o duque, que em termos de sono
leve não queria perder para ninguém.

Deixando o duque e a duquesa a fazer visitas nas redondezas ou simplesmente a dar passeios de carruagem, Jean e Henri preferiam os grandes` passeios -pelo
campo. As vezes um temporal os surpreendia. Corriam para debaixo de uma macieira copada e
ficavam olhando a chuva cair, certos de que não duraria muito. Diante deles, os campos juncados de trevos sombrios de tão verdes, as macieiras inumeráveis que denunciavam,
na púrpura de suas maçãs, a maturidade de sua força, o comprimento das sebes, umas por cima das outras, os leves pilriteiros tendo apenas trocado seus adornos brancos
de primavera pelos adornos mais contidos e as pequenas bagas rubras de verão, a papoula tremulando ao vento no alto do caule verde como uma flâmula vermelha no cimo'de
um mastro em meio à velha aveia já branca, o pequeno campanário do resedá ao longo dos caminhos, as inúmeras arquitraves da rainha-dos-prados,* a enorme pirâmide
dos fenos prontos para voltar, todas as fantasias da cor, todas as idéias da natureza, todas as criaturas da primavera, todas as obras do verão, tudo o que é inseparável
do ar doce e ensolarado sob o céu azul lá estava para testemunhar que o sol e o céu azul não tinham ido imbora, que reapareceriam logo e que entre eles e o resto
do verão a chuva se interpusera só por um momento como um véu sombrio de grossos fios no qual haviam sido capturadas as macieiras verdejantes, as maçãs vermelhas
onde sobrevivia, nas cores amadurecidas pelo sol há pouco, a promessa da volta do verão, após o qual, se ele acabasse, elas não ficariam assim solidamente ligadas
às árvores, mas há muito levadas para as fazendas ou apodrecidas nos caminhos. E, de fato, logo puderam continuar o caminho e viam, como um altar ao verão, elevar-se
no céu ainda negro uma imensa pirâmide de palha amarela sobre a qual descia imediatamente, como bênção do céu, a curvatura deliciosa e cheia de vigor de um arco-íris.
Iam bastante longe para ver começar uma nova terra, de çaracterísticas mais tristonhas, de uma-diversa individualidade que se devia gravar fundamente na memória
dos que a tivessem visto uma vez. Os caminhos passavam agora à sombra de uma ramada. Oaroma misterioso das folhas e da terra coberto substituíra o odor franco da
erva em que se destilava apenas o incenso mais doce, porém rarefeito pela brisa, dos botões-de-ouro e dos acianos. Aqui, a estação não estava no mesmo ponto que
em Réveillon e

* Planta rosácea (Filipendula ulmaria L.). também chamada erva-ulmeira. (N. do T.)

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sim menos adiantada. E era dos lados de Réveillon que todos os anos lhe vinha a primavera, que avançava em pequenas jornadas abrindo as rosas silvestres sobre as
veredas, nas sebes, enquanto em Réveillon já estavam quase murchas. Nesse momento, quando voltavam para Réveillon, cujo feno não fora ainda cortado, encontraram,
desde Montoirs, meninos conduzindo carroças com palha, como numa outra terra de costumes diferentes e mais avançados. Mais ao longe, as terras tornavam-se ainda
mais selvagens e acanhadas.
As vezes, quando despertava mais cedo ou não recebia a visita de Henri, Jean descia uma hora antes do desjejum. Encontrava a duquesa no salão lendo a Revue
des Deux Mondes; ela lhe dava bom-dia mas sem se mexer, sem lhe pedir que ficasse junto dela ou sem ir ao seu encontro, pronta para retomar a leitura como se ele
não estivesse ali. Depois de alguns dias num castelo, o quarto que é dado a um hóspede, onde os próprios donos da casa não entram sem pedir licença, onde ele acende
o fogo se quiser, e as janelas são fechadas à hora que bem entender, tornase um quarto tão seu que ele deixa, por assim dizer, de estar em casa alheia. Está em sua
casa no quarto, e o salão é um território neutro onde a dona da casa recebe menos os seus convidados do que encontra pessoas que vivem na mesma morada, com hábitos
diversos dos seus. E com freqüência ela lhe dava nesse bom-dia matinal uma má notícia em tom indiferente como: "Creio que o senhor não encontrará Henri, acho que
saiu com o pai; foram para Étreuilles." Mas aos poucos foram tendo maior satisfação em se encontrar.

Um dia - estava ela com um lenço atado à cabeça e um pão na mão - saía quando Jean a encontrou. - Vou dar de comer a meus pavões. Não vem comigo? - perguntou
num tom distraído que, sem ser uma ordem para ficar, não era com certeza um pedido para que a seguisse, antes porém a constatação de um estado de coisas. Que interesse
poderia ter para ele ir dar de comer

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às galinhas? Mas Jean, vendo que Henri estava ausente, foi com ela. Dirigiram-se para o grande pátio por detrás do castelo. Como o lugar fosse inteiramente descoberto,
todo o pavimento aquecia ao sol sua ancianidade sorridente e dourada. Talvez essas pedras tivessem outrora tarefas mais rudes, mas há já duas gerações de proprietários
seu único trabalho era receber, pela manhã, o pequeno carro do guarda e mais nada pelo resto do dia. A casinha do guarda era toda branca de cal, só possuía duas
simples janelas, mã as vides rubras e as rosas amarelas contornavam a varanda, suspendiam aí seus pingentes de leveza e delicadeza requintadas. Nesse momento, um
pavão parado sobre o teto, e ali fazendo cintilar todas as cores que o mar alto devia ter em centenas de léguas batido por um sol tão belo, era o seu mais rico e
maravilhoso ornamento.

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III. As visitas

Os dias de chuva, forçando as pessoas a permanecer no castelo, a ler junto à lareira e, quando se cansavam dessa atividade, a descer às cinco horas para
o salão, onde só se chegava em geral no momento de jantar, a conversar com a duquesa, a ver trazerem as lamparin as, a correspondência, a olhar os
jornais , a ouyir
dizer:
"Bote mais uma bucha na lareira: ainda falta meia hora para o jantar", tinham lá seus encantos. Muitas vezes chegavam visitas, as senhoritas Saint-Sauves, por exemplo,
que não tinham medo de nada. Os visitantes eram quase sempre aqueles dos quais se dizia, pela manhã, que sem dúvida os visitariam, e bastante tediosos.
Apesar disso, a frase com que a duquesa os recebia era geralmente: - Ali! Eis uma boa surpresa! - As coisas colaboravam com a conversação, a chuva fornecia o tema:
- É preciso muita
coragem para vir com esse tempo. Não estão molhadas, meninas? - Oh, não! Temos uma berlinda.* - E depois eu acho que as
moças devem ser educadas para saírem com qualquer tempo dizia a Sra. de Saint-Sauves, que tinha princípios para tudo. De onde os sussurros das moças que pareciam
protestar baixinho. Eis uma sabidinha que não tem cara de ser de sua opinião dizia a Sra. de Réveillon com finura e amabilidade.
A jovem interpelada se animava às vezes a tomar a palavra a fim de repetir o que acabava de dizer baixinho e que todos fin-
giam querer saber. Em geral era algo assim: - A chuva não é tão agradável. - Todos os que tomavam o bonde andando e estavam no ar, sem perceber, retomavam o pé na
conversa. Nesse momento, em geral, Jean, cansado de ler, chegava ao salão e ficava surpreso de encontrar tanta gente. - Henri - disse a duquesa quando ele fez sua
primeira visita -, apresenta o Sr.

* Espécie de carruagem. (N. do T.)

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Santeuil às tuas primas. - Elas ficaram espantadas ao saberem que Jean não tocava instrumento algum. Como Henri nunca ia às suas caçadas, aos seus rallye-papiers,
a seus cotillons, a desculpa da duquesa era que ele estava "na sua música". Essas senhoritas, ouvindo dizer que Henri tinha um amigo íntimo que não era da sociedade,
supuseram que se tratasse de um músico. - É preciso que venhas nos ver com teu amigo, Henri - diziam as moças. -. Ele nos prometeu vir. Vamos ver se desta vez vens.
Dizer que há mais de dois anos não visitas as tuas primas em Saint-Sauves. - Iremos todos juntos algum dia - prometia a duquesa. - Oh, como ficaria feliz, não ousarei
anunciá-lo antecipadamente à mamãe de medo de lhe fazer mal - dizia com exagero a mais velha, que professava uma espécie de veneração pela tia.
A Sra. de Fontanges, que vinha toda semana, extasiava-se todas as vezes com o panorama como se o visse pela primeira vez. E quando a duquesa ia fazer chá,
dizendo: - Ouem quiser tomar o meu chá venha comigo - como se seu chá fosse uma produção patenteada, um prazer delicioso e proibido, um critério que devesse separar
os bons dos maus, a Sra. de Fontanges a seguia saltitante, puxava o relógio depois de ter erguido o véu e dizia com ar pueril: - Não faz bem merendar às seis horas
- mas fingia não poder resistir à tentação. - Ficarei desobrigada de jantar. Ora, não se vem todos os dias a Réveillon! - E ela vinha, às vezes, muitos dias durante
a semana! Cada um vinha, sucessivamente, pedir à duquesa uma taça de "seu" chá, sorrindo para mostrar que sabia o que estava pedindo. Aliás, ela fazia tanto quanto
quisessem, mostrando-se pródiga dessa coisa tão preciosa. OSr. de Vidaine ficava emocionado por terem pensado no seu grogue, a baronesa de Sainte-Eúphémie que se
lembrassem de que tomava chá sem leite, com um único torrão de açúcar e somente duas gotas de limão. Comparavam-se os diversos passatempos em castelos diferentes.
Em Fontanges, esses senhores pescavam muito. - Ora, aqui de maneira alguma - respondia a duquesa. - Henri nunca se interessou por isso. Ademais, nem sei se há peixes
no ribeirão - acrescentava indiferente. -- Peixes, que é que está dizendo, minha querida? - replicava o duque, incapaz de suportar que Fontanges tivesse vantagem
sobre Ré-

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veillon. Dizer que o seu filho não pesca, ainda vá lá. Mas não existe lugar mais piscoso que Réveillon. Então não sabe de onde vêm os lúcios que come?
A Sra. Exel, nova vizinha do campo, imensa-mente rica, que comprara os terrenos de caça dos Montmorency e que os Réveifion recebiam sem entusiasmo, dizia
que estava se preparando para ir à comédia em casa da duquesa de Bourgogne, dando pormenores sobre todos os amigos que lá deveriam ir. - Não, não creio que iremos
- dizia a duquesa. - Sophie teve a bondade de me escrever, mas confesso que aqui não gostamos muito de sair. Acho que o campo deve ser um lugar de repouso. Para
uma jovem senhora que ainda não freqüentou muito a sociedade, a coisa é outra. - À tardinha, no jantar, relatavam a Jean a biografia das pessoas que tinham vindo.
Geralmente o tio-avô que morrera o teria divertido muito, a sobrinha que viria talvez dentro de 15 dias sem dúvida lhe agradaria bastante.

Como Jean tivesse ido passear nos bosques de Réveillon, encontrou um ciclista que, tendo-o percebido, parou e veio até ele cordialmente, Era o Sr. Rustinlor.
Agarrou-lhe a mão com calor, e deu-lhe esse primeiro bom-dia quase instintivo com sua voz gutural, os olhos fixos e brilhantes, seu jeito acanhado, bem diverso do
tom que assumiu logo depois, um pouco cantado, com um sorriso irônico e uma atitude de "poeta lírico". Sentia-se que esse primeiro impulso, que se mostrava e desaparecia
logo, devia ser seu jeito familiar, o que herdara diretamente do pai ou da mãe, o que traria do mesmo modo se, nascido sem pendores literários, tivesse tido por
tio um honesto merceeiro. Jean perguntou-lhe se "preparava alguma coisa". Respondeu que não fazia mais versos, que se ocupava de coisas infinitamente mais reais
e apaixonantes e, com um tom sentencioso, rindo e franzindo as sobrancelhas risonhas com ar complacente e ridiculamente feroz, acrescentou erguendo o dedo: - A saber,
a política, a devassidão e a bicicleta. - Segundo ele, era isso, e não a literatura, o que existe de real, pois ela tenta apenas imitar o que essas coisas proporcionam,
as verdadeiras emoções da vida. - É claro que continuo gostando

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de papai Hugo - disse a Jean -, mas há mais poesia em atravessar velozmente o bosque de Vincennes com bom tempo, por pouco que a gente esteja em forma, ou na cama
de certa senhorita que mora por detrás da Trinité, do que em todas as Contemplações e As Folhas de Outono. E quanto aos historiadores, aos autores dramáticos, ao
dito Tácito ou a um certo Shakespeare, ou ao Sr. Balzac, eles nunca pintaram nada tão forte como o que neste momento acontece. Vá ao Palácio da Justiça, meu caro,
à Câmara, -observe Esterhazy, estude toda essa história, Lanevois, Picquart. Se carece de humanidade, digo-lhe que a encontrará ali, e da verdadeira, e paixão, e
paixões, e tudo o que quiser.
Escutando-o, Jean percebia confusamente que o que há de real na literatura é o resultado de um trabalho inteiramente espiritual, por mais material que possa
ser a circunstância (um passeio, uma noite de amor, dramas sociais), uma espécie de descoberta que o espírito faz na ordem espiritual ou sentimental, de modo que
o valor da literatura não está absolutamente na matéria que se desenrola diante do escritor e sim na natureza do trabalho que seu espírito opera sobre ela. De maneira
que é por uma espécie de grosseiro mal-entendido, de ignorância acerca do que constitui a realidade da obra literária, que as pessoas que principiaram por fazer
versos acreditam encontrar a mesma coisa lendo tópicos, viajando, fazendo amor, tornando-se jogadores, misturando-se ao mundo dos especuladores ou da política, vida
infinitamente mais literária no fundo, dizem, na realidade ao alcance de todos, e que faz com que tantos jovens autores de maus versos ou até inteiramente incapazes
de fazê-los e que passavam o tempo, como Rustirilor, a declamar os versos de outros, discutindo estética nos cafés, se encontrem, pelo contrário, perfeitamente aparelhados
para dormir com as mulheres, para jogar o écarté, ir aplaudir seus oradores preferidos, exclamar: "Que infâmia" ou "Que Balzac!" ao ler o jornal, ganhar dinheiro,
gastá-lo, numa palavra, conhecer a verdadeira poesia da vida. E têm a sensação feliz de que trocaram a sombra pela presa. E de fato, no momento em que não sentiam
na poesia uma outra presa, e mais real, deviam se lançar à posse efetiva das coisas, ou antes, à única posse tornada impossível (as coisas só são possuíveis pelo
espírito), a posse material.

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Mas Jean entreviu apenas vagamente essas coisas e aliás achou mais polido não insistir. Instintivamente, sentia apenas que o Sr. Rustitilor não parecia mais inteligente
(entenda-se, era um homem muito inteligente, mas Jean queria com isso dizer que não se tornara uma inteligência mais profunda do que fora), e parecia-lhe espantoso
que a poesia verdadeira estivesse para tais pessoas, que não tiveram necessidade de "merecê-la", que ela estivesse, para o primeiro que passasse sobre as folhas
de um bosque matinal, na boca de uma mulher.

- A propósito, você não sabe que eu me casei. - Havia desposado a filha de um advogado antiboulangista e que tivera muitos desgostos com o boulangismo.*
Assim, embora sempre tivesse sido "contra a ordem estabelecida, a favor das aventuras" e sobretudo pusesse a literatura fora e acima de toda idéia de partido e até
da
honradez do homem que escreve - ainda que La Légende tivesse sido escrita por Ravachol,** não a admiraria menos, supondo mesmo - acrescentava ironicamente - que
eu tivesse uma certa simpatia (franzimento de sobrancelhas ridículo e feroz, voz aguda) pelo ato de Ravachol. - Quando Jean pronunciou com admiração o nome de Barrès,
ele disse: - Um grande pedaço d'asno,
e suas obras também. Você sabe, sei o que é o boulangismo. Meu sogro que, embora pouco entendido em letras, é um homem, no caso, profundamente sutil em matéria de
negócios, e um tempera-
mento encantador (era o tipo do que ele chamava antes de seu casamento e sem dúvida ainda hoje, o que há de pior, imbecis
chapados, perigosos e sem caráter), pode lhe dizer o que esse Barrés escreveu a seu respeito e, sabe, misturando assuntos pessoais
que nada tinham a ver com a coisa. Enfim, fique sabendo que sou imparcial, e sobretudo quando se trata de literatura, mas de
maneira alguma um temperamento amável. - Jean, percebendo que se tratava de assuntos que diziam respeito à pessoa do sogro

* Boulangista e boulangismo. Relativo ao general Georges Boulanger (1837-1891), político e militar francês que liderou uma falange republicana radical. Acusado
de conspiração contra o Estado, foi condenado à prisão perpétua, mas suicidou-se na Bélgica, onde se homiziara. (N. do T.)
** Pseudônimo de François Claudius Koenigstein (1859-1892), anarquista francês. (N. do T.)

261
dele, achou que seria bastante impolido insistir. Sorriu ao ouvir Rustinlor falar da imparcialidade que julgava manter naquele momento. Divertiu-se mais ainda quando,
tendo levado Rustinlor para jantar em Réveillon, esse feroz inimigo dos aristocratas, que desejaria vê-los todos no cadafalso, inflamou-se com a amabilidade dos
Réveillon, declarando que eles eram "pessoas requintadas, possuidoras aliás de uma ancianidade medieva de poesia intensa, enfim, pessoas muito deliciosas e de bem".
Não tàdo nenhum desses escrúpulos intelectuais que são o apanágio das verdadeiras inteligências, não buscava jamais discutir suas impressões, levar em conta
os arrebatamentos da simpatia ou do encanto ocasional da amabilidade. As qualidades de seu sogro ou mesmo dos Réveillon sabiam-lhe deliciosamente. Colocava-as bem
acima das qualidades de um poeta, rompendo assim com o que sempre dissera. Mas é que no fundo não conhecia nada dessa vida que recomendava e, não tendo tido nenhum
escrúpulo intelectual antes de acolher essas idéias ("a inteligência e a honestidade são estúpidas"), elas não eram muito arraigadas nele e deveriam desaparecer
à primeira vista de uma inteligência e de uma honestidade. De resto, tinha já exceções: seu pai, que era um homem "absolutamente miraculoso", e um velho tabelião,
"extremamente bom para ele", e que ele admirava por seu profundo conhecimento do direito, arrumando isto para aquele, dizendo que possuía conhecimentos precisos
a respeito de "velhos textos jurídicos do século XVII, no fundo bem mais repletos de poesia que as elucubrações racionais e sem ranço de época dos senhores Boileau,
Racine e Molière".

No dia seguinte, veio jantar em Réveillon um jovem adido de embaixada que estava de férias na vizinhança. Como Jean fosse muito amigo dele, pediu licença
ao duque para convidá-lo um dia. Era um rapaz muito inteligente, que era tido como gênio no ministério, e conhecia filosofia, arqueologia, música, grafologia. Utifizava,
na conversação, um jogo de espírito muito comum à época no Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou pelo menos entre os amigos que haviam entrado com ele para o
ministério. Era uma

262

espécie de gosto particular pela anedota psicológica, que permite dizer no fim: "É verdadeiramente belo", "acho que da parte de um sujeito desses, é espantoso",
"Isso retrata o camarada de maneira incomum", "É um traço de La Bruyère, não é mesmo?". Mas essas anedotas que os outros contavam rindo, ou de modo peremptório,
Expert-Foutin marcava-as com seu caráter particular, feito de sensibilidade extrema em relação a esses pequenos brincos intelectuais, de ingenuidade e de certa admiração
pelas qualidades dos amigos que lhe haviam contado essas histórias incríveis e, em suma, a ingênua amabilidade de sua natureza, acompanhando-as com um pequeno riso
irreprimível que o fazia interromper-se a todo instante e acabava por lhe trazer lágrimas aos olhos. Mas entre"gava-se da mesma forma a conversas muito eruditas
e cheias de idéias gerais, idéias próprias sobre a música de Beethoven, "que lhe parecia a de um homem de seu tempo, o correspondente, se quiserem, dos tratados
de direito público da época", ou sobre a arquitetura das catedrais flamengas "que estão, todas, é bom lembrar, na terra de um povo preguiçoso e de origem valã etc."
Outro traço dominante de sua*conversa, que derivava do torneio de frase naturalmente de ordem moral que a caracterizava, era a espécie de horror que lhe
inspiravam os homens de letras, os críticos, os artistas puros. E falava tanto do perigo que há em se servir da inteligência ou do senso artístico sem diretriz moral,
dizendo que de sua parte preferia infinitamente um rapaz qualquer tçque não tivesse lido Flaubert etc." - que sua teoria se assemelhava à expressão de um rancor
pessoal, e Jean pensava que ele tivesse outrora sido, junto a uma moça, o rival derrotado de um romancista em quem detestara os defeitos reais dos homens de letras.
Talvez fosse apenas uma de suas inumeráveis teorias, aquela que, a bem dizer, exprimia melhor seu ponto de vista na vida e, sem que ele o soubesse, o ideal da família
correta e bem pensante da qual havia saído. Considerava Jean uma inteligência de primeira ordem e, longe de crê-lo inapropriado para diversos estudos, achava que
era a preguiça que o impedira de se tornar um administrador ou um sociólogo eminente. Como Jean sempre se mostrara muito gentil para com ele, não via nele nenhum
dos defeitos da inteligência literária e dizia: - Seu caso é outro. - Era bondoso, apesar de um tanto seco, e sobretudo pelo prazer de argu-

263
IV. Passeios

Às vezes chovia a noite inteira e toda a manhã. Depois do almoço a chuva parava, mas o sol nem sempre aparecia. Jean e Henri saíam ao longo da estrada. Ouvia-se
apenas a elegante vinha virgem que fazia a toalete e secava suas

folhas vermelhas,
deixando deslizar de vez em quando uma gota que caía na pedra com um tinido agradável, bem diverso do das primeiras gotas de um aguaceiro, e que é, ao contrário,
o tímido prelúdio do bom tempo que retoma e do começo da vida lá fora. Logo vinham se juntar a ela os gritinhos dos pássaros que, como no despontar do dia, antes
de se arriscarem a voar e a cantar, pareciam reconhecer o tempo, experimentando com prudência a sonoridade da atmosfera. E ao ultrapassarem a barreira, no grande
silêncio da estrada vazia, tendo sido impossível trabalhar fora, os dois ouviam, vindo das quintas silenciosas e como que adormecidas, o mais corajoso estímulo,
a fanfarra dos galos, arautos da manhã, tranqüilos em seu pátio, de onde se dirigiam à vizinhança de léguas ao redor em suas proclamações estrepitosas que, como
as trombetas do regimento, tocam o despertar, a saída para a praça, a incansável exortação para todas as fadigas de que não participam.
Henri, como dissemos, estudava botânica; o estudo dessa ciência, a coleção de um herbário correspondiam também, de resto, a seu amor à ordem, à sua necessidade
de movimento e a seu gosto pelo encanto. Por isso, amava essa terra em que tantas fumas estão escondidas sob o rochedo, vales a descoberto jazendo entre as montanhas
mas solitários (onde ninguém talvez jamais desceu, pois é preciso descer não longe das rampas inextricáveis e depois deixar-se deslizar ao longo de rochedos enormes
para alcançar um fundo que só leva a uma encosta da montanha a pique, que obriga a retomar o mesmo caminho), sempre molhados pelas torrentes,

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raramente secos pelo sol, onde todas as plantas desconhecidas em outra parte cresceram com incrível vivacidade e adquiriram essas cores às quais a unidade dá tanto
brilho. Chegados até lá, freqüentemente não ouvindo mais nenhum barulho, enquanto Henri ia procurar as plantas que lhe faltavam, Jean se aprofundava numa dessas
vastas anfractuosidades, retiros mais profundos ainda que o silêncio guardado no próprio seio da solidão, onde uma dobra arborizada do rochedo chega a lhe esconder
da vista o resto do vale, onde ouve a respiração de uma borboleta pousada numa flor. Dali, Jean não podia ver mais Henri. Admirava, no fundo do gracioso vale, na
ponta de um caule delgado, uma dedaleira de cor violeta, habitante silenciosa e brilhante desse lugar, com algumas bocas-de-lobo que formavam grupos de quatro ou
cinco. E Jean pensava no que representava um local da terra, um local da terra onde a gente passa, mas que permanece ali ao pé de seu rochedo ou às margens de sua
torrente, que não viu coisa alguma do resto do mundo. Lá, onde se estava nesse momento, onde se vivia, parecia antes que se devesse estar morto ali, sob essa dedaleira
que nunca viu coisa alguma do resto do mundo; muito menos essas pequenas bocas-de-lobo. A terra em que nasceu está muito longe daqui, ele está separado dela. Um
lugar da terra é aquilo. Por mais habitado que seja, é também longe que se estende a vista das macieiras, que leva o sopro da brisa marinha. Depois são outros lugares,
também separados de tudo, de tudo o que suas árvores não verão jamais além de seu horizonte, onde a noite nunca desce sobre as mesmas coisas, mas sobre outras que
um pensamento da natureza parece ter fixado lá, na ignorancia de todas as outras, tendo como que uma espécie de imagem, formando como que a fisionomia de uma pessoa,
uma imagem própria, à qual alguns se acostumarão até a sentir amizade, como o inspira uma figura humana, mais talvez, e que outros verão, por uma vez, como uma figura
estranha que não pode segui-los quando partem, que não se volta para trás, que lá permanece a esperar a noite, sua noite pessoal, como jamais teve outra, a sombra
gelada de uma montanha ou a brisa marinha, que eles talvez não possam esquecer, que a semelhança de outro lugar os fará recordar subitamente, fazendo-os sentir o
desejo e provavelmente a impossibilidade de aí voltar para o resto da vida. Sim, bem longe,

269
um outro local da terra será parecido, prova de que o anterior possuía a sua imagem, muitas vezes sem que se saiba o motivo, como uma pessoa relembra outra. Mas
não será a mesma, a semelhança só acusará a personalidade. Se outro se parece comigo, é que eu era alguém. E seus olhos pousando na dedaleira que também ia deixar,
que não veria jamais coisa alguma a não ser as três pequenas bocas-de-lobo e essa pequena dobra do rochedo, que jamais vira uma flor que tivesse sentido a brisa
marinha, um inseto que-tivesse estado na Itália. Ah, e bem mais perto era também longe, para ela não havia longe nem perto, estava separada do resto da terra, da
qual só conheceria as três bocas-de-lobo. Jean teve vontade de levá-la consigo, mesmo que tivesse de arrancá-la, que importa, e gostaria também de levar esse vale,
tirá-lo desse isolamento que lhe dava, pela primeira vez, o sentimento dessa coisa inconfundível, que estava fora de todas as outras, e não poderia jamais se aproximar
dela, e com quem só o silêncio compartilharia a solidão. Depois, desistiu. Receia-se tocar naquilo que é tão semelhante a si mesma. Pegar a dedaleira sem as bocas-delobo
... Seria preciso levar tudo ao mesmo tempo, a forma da anfractuosidade, a peculiaridade da solidão, a fisionomia do silêncio. Teve de se reunir a Henri, mas lhe
disse: - Vai até lá comigo, vou te mostrar uma bela dedaleira, mas não poderás arrancá-la - e sem entrar no retiro, mostrou-a da beirada. pegá-la, tenho uma igual,
é a digitalea corrupibea, existe em toda a parte, na França, na Europa, na América. Eis o que vi nos livros - acrescentou rindo.
Tais palavras ressoaram com uma espécie de solenidade na alma de Jean e ele a encarou sem tristeza, tão isolada como flor perecível mas tão grande como tipo,
tão vasta na vida e como pensamento duradouro na natureza. "E eu também", disse consigo "muitas vezes me senti isolado do resto do mundo como a pobre dedaleira.
Mas em outras ocasiões senti que ele estava repleto de idéias semelhantes às minhas, desde o passado mais longínquo, e que nasceria também no futuro, para que eu
às vezes até sonhasse em conservá-la nara a oferecer à nossa amizade num livro

Oh, não vale a pena
turbá-lo. Pouco a pouco as idéias de Jean se ocultaram com menos força. Sem dúvida, esclarecera o que o preocupava e, cansado de estar tão fortemente concentrado
em si mesmo, seu pensamento se dirigiu alegremente para o amigo. Viu-o à sua frente e compreendeu a delicadeza de sua distância e de seu silêncio. Seguroulhe afetuosamente
o braço, dizendo: - Meu querido Henri, sou muito feliz em ter-te aqui na terra. - É tarde: agora que não estás mais meditando, andemos mais depressa - disse Henri,
dando porém um tapinha amigo no rosto de Jean para que compreendesse bem que, se estava satisfeito com essa resposta tão em desacordo com a efusão do amigo, não
era de modo algum para censurar implicitamente a animação de Jean e sim pelo prosaísmo de sua natureza que, achando-o terno, era incapaz de lhe corresponder com
impulsos semelhantes, por uma amizade igual que oferecia à sua, menos como presentes de igual valor do que como remédios soberanos e inencontráveis, em troca de
seu talento a sua simpatia inteligente, do seu nervosismo a sua calma, e para a sua pessoa, a pessoa dele, com o que dela dependesse, toda a sua vida.

Jean gostava de passear no jardim dos Réveillon, sem chapéu, seguindo a passos lentos pelo cascalho a aléia orlada de platibandas. Era primeiro uma roseira
branca onde cada ramo trazia um enorme buquê de macias rosas brancas apertadas umas contra as outras, como antigamente transbordavam dos vasos do salão, na casa
do tio de Jean, que eram cheios no domingo pela manhã com as flores do jardim e de onde se evolava esse mesmo aroma
escuras que passavam sobre a grama, brilhantes de tão negras e como que o avesso da luz do sol que estava em toda a parte, de sorte que tudo o que se mexesse na
terra pudesse apenas deslocar essa luz e torná-la imediatamente perceptível, pois qual um deus escondido, à semelhança dela, o sol também estava em toda a parte.
Sim, naquele dia o sol estava sobre a terra e o homem podia, como Josué, comandá-lo. Quando no castelo em frente fechavam uma janela, na casinha do guarda, o sol,
enxotado, pulava e 'voltava a seu lugar. Quando a carruagem do Sr. duque passava pela ponte do Loing, via-se, como um pedaço de mercúrio que foge e se perde, correr
na água o reflexo da vidraça em fogo de seu cupê e mais abaixo, sobre o Loing, contra a pedra esverdeada pelos anos e que a hora dourava, a barquinha que desfrutava,
como todos, a preguiça deliciosa desse dia, presa à água em que se embalava como numa rede sobre a qual se deixava erguer voluptuosamente, fazia escorregar veloz
sua popa em direção à prancha quadrada, a ágil trama impalpável de prata que os reflexos do sol dourado na crista das pequenas ondas faziam passar sobre ela.

Nesses belos dias dos quais se diz, quando se aproximam: "Fa
ria bom tempo, se não ventasse tanto", o duque sofria de verdade
porque o vento lhe causava nevralgias. Mas a duquesa, sempre
dizendo a Jean quando o encontrava ao voltar de dar de comer
aos pavões, e sempre segurando as fitas do chapéu que esvoaça
vam: - Gosta deste tempo? Quanto a mim, nem sei onde estou,
só fui até os pavões e já estou toda despenteada, - apresenta
va, como Jean e Henri, a fisionomia feliz que nesse mesmo mo
mento mostravam os bosques, as videiras, castigados pelo vento
porém faiscantes de sol. E. aprumado no telhado da casa do
---ancic, a7l~l CnMO

vento coim, se ele se tivesse

-mas que transformado numa coisa inerte, que só possui os movimentos que o vento lhe comunica, e nem tem forças para lhe resistir.

274

- Que estão fazendo? - Henri tinha de estudar para se formar em ciências e Jean precisava ler. - Muito bem, eis o que lhes aconselho - dizia a duquesa -:
vão ao bosquezinho de pinheiros, acho que você ainda não conhece aquele lado de lá - acrescentou, dirigindo-se a Jean -, mas Henri conhece bem o caminho. Lá não
venta e se não quiserem voltar para o lanche, há uma granja bem pertinho, nas vinhas. - Sempre falando, desabotoou o casaco, pois só de ficar assim dois minutos
falando ao sol, sentia-se logo muito calor. A duquesa tinha razão. Tão logo chegaram ao bosquezinho, Henri e Jean não sentiram mais o vento. Foram para bem longe
um do outro para não se perturbarem.
E, de fato, depois de alguns minutos Henri já não sabia mais onde estava. As vezes Jean ainda não havia começado a ler, e buscava seu lugar. Ficavam ouvindo e só
escutavam um,leve sopro, um murmúrio contínuo semelhante ao barulho do mar. E cada vez que Jean erguia os olhos, via diante de si o céu imenso como um mar sem limites,
calmo, azul e suave ao longe, apesar do murmúrio que ouvia a seu lado, agora fraco, pois, como acontece muitas
vezes nessas tardes, o vento diminui cedo. Leves nuvens brancas vogavam insensivelmente no céu como veleiros que voltam. Às,
vezes, algumas nuvens passavam tão próximas que eram vistas nitidamente a andar bem depressa, seguidas de perto por outras. Mas no meio da imensidade calma algumas
pareciam imóveis como barcos pescando. Jean voltava a ler; depois, quando se cansava, deixava o livro de lado e o sol vinha iluminar e despertar nele todos os pensamentos
que a leitura fizera flutuar em seu espírito
um a um, e o vento, pela leve agitação que imprimia às coisas, fazia-as andar ainda mais depressa sem que ele tivesse de fazer qualquer esforço. Sentia-as ir embora.
Gostaria de falar com Henri e estava decepeionado por encontrá-lo absorto na leitura, tanto quanto temos pena de compreender que a hora da alegria, o tempo de repousar,
não soam para os outros ao mesmo tempo
para nós

que
zé%~Álo que ac-+,~à _Iandecer para nó~

de LIIti
'-"-ia, mui
:,~-UVOCa
ânerso ilesse ilis.
tante num pensainento lúgubre, uma irritaÇão de desdém, e quando encontramos um amigo no momento em que sentimos no coração

275
ter de voltar, perguntava a si mesmo se não esquecera nada, o olhar de Jean brilhava com uma alegria que as pequenas luzernas do seu toalete, por detrás das cortinas
de musselina, e onde, pela manhã, ele ia olhar o tempo ao acordar e mais abaixo os campos e os bosques, foram as únicas a ver, à luz frouxa da vela crepitante. Alegria
contida e difusa nesse momento, nesse pequeno toalete, que ia pular através dos corredores, bater com pés impacientes pelas escadas, fazer sentir na corrida para
baixo, de quatro em quairo degraus, o pisar de seu contentamento e, na escadinha que levava à sala de jantar, erguer-se degrau a degrau como sobre um estribo que
lhe dava um novo impulso, uma alegria, que, enquanto isso, se disseminava como poeira de germes no toalete, inundando, ensopando, acariciando e fustigando com olhares
felizes a primeira gaveta da cÔnioda, difícil de abrir com sua chave que não entrava mais, a fileira macia e branca de seus lenços que a luz banhava como leite.
Ali, mesas esbarradas de passagem, retoques dados com satisfação à cortina que se fecha, e porta que se cerra com todas as forças, e como que empurrada por um vento
de esperança, ali! toda essa alegria que seu filho deixava no quarto ao fechar a porta e voltava a encontrar à noite, respirava tranqüila de felicidade quando ele
vinha se deitar, ali, se a Sra. Santeuil pudesse vir saciar-se dela em lugar dessas paredes cegas, escondidas na sombra e mudas, como seu coração materno se encheria
de luz: coração materno que, em seu caminho sublime, na celeste impotência dos planetas para tirar de si mesmos a sua luz, a aguarda eternamente, quando a felicidade
de seu filho, como a estrela esperada de seu destino não vem luzir e entreçar- a
do castelo, levava consigo os Monet e os Pissarro dos quais lhe seria mais custoso separar-se, os que de mais a mais, correspondiam. melhor à natureza da região
em que se encontrava. Havia sempre artistas hospedados, e em vez de se dedicarem a pequenos jogos, escreviam, bem próximos uns aos outros, dando cada um sua variação
a um determinado tema, pintando os belos efeitos da natureza. Iam muito à missa em Réveillon, pois nada é mais delicioso que uma igreja do campo, mas a princesa
pedira ao cura, logo que chegara, que ensinasse às crianças os coros de
Bach ao invés da música abominável que até então se cantava, e com a qual o duque e a duquesa se contentariam por toda a vida, conhecendo muito pouco do assunto
para se incomodarem. Como em Réveillon, davam-se muitos passeios, mas não da mes-
ma maneira, para ir pescar, para fazer visitas, para excursionar à aldeia, a fim de abrir o apetite para o jantar; e sim para admirar uma paisagem com luz particular,
escutar a distância os sinos da igreja, captar uma sensação ou fazer um croqui. Quando fazia mau tempo em Réveillon, encolhiam-se ao pé da lareira ou,
se temessem ter dor de cabeça, davam um passeio até a aldeia, ou visitavam o castelo próximo. Em Durheim, o mau tempo ti-
nha fama de possuir um encanto especial e todos iam molhar os pés sem outro objetivo que o de se deliciarem com isso. Em
Durheim ninguém nunca sacrificou, como em Réveillon, uma noite após o jantar com uma partida de piquet em vez de observar um efeito do luar.
E a vida em RéveilIon era também bastante diversa da de
Soulanges, em casa do marquês de Porterolles, homem de sociedade, pouco artista, e que a princesa de Durheim considerava imbecil, mas que "gostava de se rodear de
pessoas inteligentes" e que declarava morrer de tédio se não tivesse a seu redor mulheres espirituosas e algum conversador que lhe pudesse fazer frente. Tinha também
em sua casa homens de letras, aqueles que os amigos da princesa achavam umas nulidades, que possuíam um
nome e buscavam boa companhia. - Não, como deve ser aborrecido em Réveillon! - exclamava o marquês de Porterolles, pensando como faltavam lá a boa música, as discussões
à mesa entre pessoas conhecidas, as palavras graciosas de uma bela dama espirituosa. E pessoas infinitamen-
sentiriam tani-

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bém bastante desprezo pela vida que se levava em Réveillon, onde não se tratava da terra, onde ninguém se incomodava com a colheita e a semeadura, onde uma visita
a um castelo vizinho era o dever mais penoso e uma partida de xadrez a ocupaçao mais grave, onde Jean não fazia nada mais cansativo do que passear no campo antes
do jantar ou, pela manhã, ir com a duquesa dar de comer às suas galinhas.
No entanto, por mais ociosa que fosse, essa vida era sem dúvida bem boa, já que Jean se mostrava tão feliz. Certamente mais feliz que em Paris, entre pessoas
distintas e as mulheres de espírito indispensáveis ao marquês de Porterolles, mas cuja ausência suportava com bastante facilidade. Ouantas vezes, depois de os haver
escutado, lembrando-se de suas palavras para poder contá-las novamente, entrara em casa triste, aborrecido, com uma sensação de vazio! Para vencer o sentimento de
que perdera completamente a noite, era obrigado a dizer de si para si: "Enfim esta noite ouvi o célebre Sr. S., conheci a bela Sra. T. Ainda assim, é interessante
tê-los conhecido. É uma recordação para o futuro." E guardava cuidadosamente, como uma razão de ser de sua noitada e uma consolação de seu mal-estar, esse "fato
de os ter conhecido" que, no futuro, era preciso acreditá-lo, assumiria um interesse que com certeza, no momento, era-lhe impossível encontrar. A vida estava como
que seca dentro dele. Quando a sós por um instante, recordava para si mesmo as palavras de S. ou da Sra. X., não tendo nada para dizer. Como tudo isso era diferente
das tardes de Réveillon, onde os pensamentos fluíam com tal força em sua mente que Henri, vendo seus olhares dependurados como sobre um abismo, se afastava e caminhava
adiante dele para não perturbá-los. Um dia fora com a princesa de Durheim contemplar um pôr-de-sol e ela tivera palavras bem bonitas. Dissera: - É um perfeito Monet,
oh! este céu de. . . - Mas, ao voltar, Jean teve 'de confessar a si próprio que não encontrara de modo algum o prazer que procurara e o céu lhe parecera um tanto
frio, brilhante e aborrecido como um manto, não tendo maior profundeza que um manto. Parecia-lhe que agora podia haver um céu cor-de-rosa, depois um céu azul e um
céu verde, e que, isso não lhe daria mais alegria do que ver a princesa de Durheim trocar de manto na frieza da vida mun-

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dana. A vida e a sociedade lhe pareciam algo brilhante e frio conio uma palavra da princesa de Durheim, com o mesmo ar entediado que se tinha junto dela, algo aborrecido
e vazio como suas aquarelas. Obom duque de Réveillon não olhava o céu. Quando fazia um luar bonito, dizia: - Puxa, está frio, vamos andar depressa. - Quando havia
um desses nevoeiros de que a princesa gostava tanto, dizia a Jean: - Se sair um pouco para esticar as pernas, não se esqueça de se agasalhar, o nevoeiro é muito
intenso. - E se o tempo lhe dava um prazer qualquer, relacionava-o inocentemente a uma coisa bem diversa, dizendo: - Faz bem caminhar, o tempo ainda está bom. Oh,
mas como está claro ainda, nem parece que já são cinco horas. - Quando ventava, dizia. - Quando não se tem nada para fazer, é bom ficar em casa num tempo desses.
- Mas, quando tinha de sair de qualquer jeito, falava: - Não detesto caminhar com um tempo desses e mesmo que a chuva começasse a cair, erguendo o colarinho, não
mostrava uma fisionomia muito infeliz por recebê-la. E, de fato, tinha o aspecto mais feliz que 'a princesa de Durheim, apesar da exaltação artificial e das palavras
bonitas desta.
É que a natureza seria uma coisa bem miserável se não passasse de uma sucessão de quadros que a gente daria provas de bom gosto indo admirar. Ela não pode
estar separada de nossa vida, nem no presente, onde, se a olhamos de fora, nada recebemos dela, nem no futuro onde, se a amamos uma vez, basta o mais cinzento dia
de outono em que o sol não se mostra no momento de se pôr, uma vereda que seca depois da chuva, os primeiros ventos frios para nos embriagar com o encanto de nosso
passado e a própria substância de nossa vida.

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VI. A volta

Durante os últimos dias em Réveillon, Jean aprendeu, com enorme prazer, a remar no Marne, tomando-se de simpatia pelo filho do professor de Réveillon. Dois
prazeres que sempre lastimou haver descoberto tão tarde, quase no momento de partir, pois achava que, se os houvesse conhecido mais cedo, teriam dado um encanto
infinito à sua temporada em Réveillon. Talvez se enganasse e, pelo contrário, só os valorizasse de modo tão intenso porque sabia que logo se veria privado deles.
Um dia sua mãe lhe escreveu dizendo que o avô tinha estado muito doente, que agora se restabelecera por completo, e que por esse motivo só escrevia cartas tão curtas
há um mês, sem mais lhe pedir que voltasse, e era também por isso que o seu pai não fizera a projetada viagem à Bélgica. Dissera-lhe nas cartas que era o mau tempo
que retinha seu pai em Paris, desculpa que temia que Jean achasse bastante inverossímil, pois o Sr. Santeuil não tinha medo de tempo algum. Assim, quantas precauções
não tomara nas cartas para que ele nada percebesse, mandando que trouxessem de casa seu bloco pessoal de cartas para que Jean não reparasse que ela escrevia da casa
do pai. Precauções absolutamente inúteis. Jean não desconfiava de nada. Às perguntas da duquesa, que lhe pedira notícias da família, respondera: - Marriãe me escreveu
uma carta muito curta esta manhã, ela tem muito que fazer, papai ficou em Paris por causa do mau tempo. - Egoísmo ou defeito de observação, reparava muito pouco
no que acontecia a seu redor e jamais indagava o motivo da ausência de uma pessoa, da chegada de outra. Contentava-se logo com a explicação que lhe davam. Ficou
feliz ao saber que o avô estava bem e que a mãe já não se inquietava mais. Partiu com redobrado prazer para remar com o filho do professor e, pensando que se sua
mãe tivesse outro temperamento, em lugar desta vida tão agradável,

282

ele teria de voltar precipitadamente, renunciar a Réveillon, viver triste junto a um enfermo, ficou muito satisfeito com o fato de a mãe ter procedido desse modo.
Escrevia todos os dias à mãe, falando do que havia feito, das pessoas que tinham vindo jantar, das roupas que precisava. Dava notícias da gota do duque,
que no primeiro dia lhe fora bem desagradável porque a duquesa não descera. A mesa tinha aspecto de separação. Jean temia a todo instante que Henri fosse obrigado
a permanecer junto do pai. Mas, desde o dia seguinte, estando a gota melhor, mas necessitando o duque de repouso, tornou-se corriqueiro o fato de o casal não descer
para a refeição, e ninguém se incomodava mais com isso, vivendo o menos possível na expectativa de algo novo. Jean se acostumou tão agradavelmente a essas refeições
a sós com Henri, as quais a princípio lhe haviam parecido tristes, que no dia em que lhe avisaram que o duque e a duquesa voltariam a almoçar à mesa não pôde deixar
de sentir uma decepção profunda, como no dia em que lhe foi preciso partir de uma terra onde se divertia, renunciar a um tipo de vida ao qual se habituara e a que
não mais retornaria.
Enfim, foi necessário partir e uma noite, Jean, depois de ter sido levado à estação pelo duque e Henri, tomou o trem para Paris. Desde o dia seguinte à sua
volta, esperava comprar um barco, remar todos os dias e, no primeiro domingo, ir até Soissons para ver o filho do professor que seguia para o serviço militar, gabando-se
de transplantar integralmente de Réveillon a Paris seus gostos habituais e o desejo de entregar-se a eles. Não avisara de sua chegada, e assim ninguém o esperava
na estação. Era noite, mas não a noite silenciosa sob as estrelas dos campos de Réveillon, a luz pálida das janelas do castelo na noite. As casas escondiam-lhe o
céu, as lâmpadas elétricas lhe escondiam a noite, o vaivém dos veículos, dos transeuntes, ocultava-lhe o silêncio. Para passar, era preciso empurrar pessoas, prestar
atenção às viaturas, não era mais possível andar por andar como na estrada, e sim para chegar. Pensava em todos os lugares aonde, andando depressa, tomando um carro,
teria podido chegar. E uma multidão de desejos que há muito tempo não sentia despertaram, cruzavam-se nele tão rapidamente, com fogos tão estranhos como todos os
carros que se misturavam e imprimiam em seus nervos uma

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trepidação tão forte. Em dez minutos, poderia estar em casa da Sra. Desroches, mas era também dia da ópera; depois do jantar, teria tempo de passar um terno, seria
preciso apenas convocar depressa o barbeiro para escanhoá-lo. Passou diante dos cartazes; cada um, de uma cor estranha com os nomes de peças que ainda não havia
visto e dos atores que apreciava, já parecia lhe proporcionar o antegozo da representação, o cheiro da sala, o subir do pano. Como seria divertido rever tal ou qual
amigo. Passava* justamente diante da casa de Sourcier. Mas sim, os pos~ tigos estavam abertos. Havia luz. Ele voltava do campo, que felicidade. Parou um instante
e procurou certificar-se com o porteiro. - Sim, senhor, já voltaram há três semanas.. - E ele está em casa agora? - perguntou Jean com o ardor de toda aquela vida
antiga que recomeçava. - Sim, está, não é mesmo? OSr. Paul já voltou? - indagou o porteiro virando-se para a esposa. - Sim, e me disse que ficaria em casa a noite
toda, que eu podia mandar subir.---"Pois bem, voltarei logo após o jantar", disse Jean consigo.
À medida que se aproximava das avenidas arborizadas, as ruas ficavam mais e mais iluminadas. Parecia que a luz roubara do que iluminava algo excitante, artificial,
agradável e malsão. Depois o carro tomou a Rua dos Saints-Pères e Jean imaginou a surpresa dos pais, a emoção da mãe, via-os, gostaria de já poder abraçá-los, respondia-lhes,
eles lhe davam jantar, estava com eles, impacientava-se por estar ainda longe deles. Ao chegar à Rua Bonaparte, o cocheiro continuou ao invés de entrar nela, o que
aumentava o trajeto. Jean pendurou-se para fora da portinhola e quis dizer: - Mas o caminho não é este - mas sentiu que o mais curto agora era deixá-lo ir pela Rua
da Universidade. Mas o seu desapontamento, sem se esgotar com as recriminações que fazia ao cocheiro, dentro do carro, onde no entanto sabia que ele não podia ouvi-lo,
levava-o a repetir sem cessar, em voz alta: - Cocheiro idiota, cocheiro idiota -, e ao pagar-lhe, repetiu ainda, agora que não lhe servia mais, a mesma observação.
Chamou o porteiro, fê-lo pegar sua bagagem pedindo notícias de todos. Depois, ao chegar à porta, tocou a campainha e parou todo emocionado ao som da sineta que ia
fazer sua mãe exclamar: - Quem poderá ser a essa hora? - e seu pai: - Diga que
não estou - e fazer o criado recuar, surpreso. Estava oprimido, seja pela expectativa que se prolongava, seja por haver subido de um salto, sem se dar conta, os
três degraus da escada.
- Osenhor e a senhora ainda estão à mesa? Todos vão bem? - Não, o senhor e ' a senhora já acabaram de jantar. Estão indo tomar café no salão. - Como ainda
não tinham reposto os tapetes, ouvia com emoção cada um dos seus passos até a porta
do salão, que abriu. Seus pais iam ter à grande surpresa que há uma hora se alegrava de lhes fazer; chegava o momento que esperara com tanta impaciência. Caiu nos
braços da mãe, do pai. A mãe achou-o de bom aspecto, levou-o para perto da lâmpada, não o achou de tão bom aspecto como antes, repreendeu afetuosamente o marido
por não dar mais a impressão de estar emo-
cionado. Pediu-lhe notícias da gota do duque, perguntou-lhe se seu amigo, o filho do professor, pudera acompanhá-lo à estação, se, apesar do mau tempo, pudera ainda
remar pela manhã. Não, não choveu em Réveillon, mas eu tinha de preparar os meus trabalhos. - Jean estava espantadíssimo de ver suas duas vidas confrontadas, seus
pais falando de pessoas que não conheciam, e que ele amara tanto durante esses dois meses, e em cuja companhia já não se encontrava mais. Dizia: - Contarei tudo
daqui a pouco. Preparem-me o jantar, depressa. - Como, não jantaste? Pobrezinho. - Jean foi logo dizer que iria jantar, que
dormiria aqui, que voltara mesmo, feliz por dizer essas coisas tão simples, que sentia pelos criados, todo um acontecimento,
uma surpresa, uma alegria. Voltou para junto dos pais. A Sra. Santeuil lia um artigo para o marido. OSr. Santeuil lhe perguntou, brincando, se permitia que ela acabasse.
Oinstante que Jean esperara com tanta impaciência acontecera. As emoções felizes, que nos regozijamos de provocar ou de sentir de novo, não deitarn raízes, nao se
tornam a substância da vida que contínua o
que fora na véspera. Assim, não é sem alguma decepção que penetramos nela, pois por um momento ela fora o que havíamos imaginado.
- Vem um pouco mais para perto da luz - disse a Sra. Santeuil ao filho. - Meu Deus, como está gasto o teu casaco!
Como, então levaste esta coisa para Réveillon? Deves ir amanhã sem falta ao alfaiate. - A essas palavras, Jean sentiu de um
golpe as portas da casa paterna se fecharem sobre ele, as léguas incomensuráveis que o separavam de Réveillon e que não poderia mais transpor. Ah, se por um milagre,
agora que beijara os pais, pudesse achar-se de novo no grande salão com o parque e todo o campo diante dele. Bateu com o pé nesse chão de onde gostaria de escapar:
haviam reposto os tapetes no salão, não chegou a ouvir sequer o ruído desse protesto que se extinguiu sobre o tapete que lhe pareceu como as bolas de chumbo que
separam, em Veneza, os prisioneiros do resto do mundo. Sentou-se à mesa, o jantar era bem fraco diante dos jantares de Réveillon. Entretanto, a mãe o repreendeu
por comer tanta sobremesa, dizendo que lhe daria dor de barriga. Depois sugeriu que ele fosse deitar-se. OSr. Santeuil já os havia precedido, tendo aparecido com
sua touca de dormir, castiçal na mão, dizendo: - Deixo-os conversando o tempo que quiserem, mas vou me deitar. - Todos os seus antigos hábitos melindrados se revoltavam
contra esses novos hábitos e a própria ternura com que a mãe lhe dizia: - Não quero falar de tudo isso na noite da tua chegada, mas amanhã de manhã é necessário
que falemos seriamente etc., esta noite não digo nada porque é uma exceção - o irritava profundamente, apresentando-lhe como uma hora suprema de felicidade e de
trégua esse serão tão cruel em que havia algo bem mais duro a retomar do que trabalhos ou deveres, e hábitos, e onde todas as misérias da realidade, suportadas tão
alegremente quando se trata de nossa vida, surgem-nos com a crueza da novidade e o exagero da imaginação. E, ao deitar-se, não teve mais a seu redor os imensos corredores,
as galerias infindáveis de Réveillon, e sim o quarto do pai, separado do seu por uma parede tão fina que ele o ouvia virar-se na cama,,e, sem saber que utilidade
isso poderia ter, e sem pensar numa tentativa de sair dessa prisão, encarava-o como o sono de seu carcereiro. Enfim, acabou por dormir, sem esperança, achando que
o sol não nasceria no dia seguinte.

286

v

O escândalo Marie. - Um grande ministro. - Ojovem Êdouard Marie. - Um alerta. - Apogeu e queda de Marie. - Jean intervém junto ao deputado socialista Couzon. - Primeira
fase do caso Dreyfus: os quinze conselheiros. - Jean e Durrieux. - o general de Boisdeffre. - Rustinlor e a política. - Ocoronel Picquart. Da óperaCÔmica ao Palácio
de Justiça. A deposição do Sr. Meyer. - Ocaso Drçyfus no Fígaro. - Osegredo do caso DreyJus.
1. Oescândalo Marie:
O jovem ]Édouard Marie e sua mãe

Nos dias distantes de que te falo, leitor, em que o Sr. Santeuil era um homem de barba negra e a Sra. Santeuil uma jovem senhora sorridente e loura com o
extravagante casaco de veludo que poderias ter visto, enquanto Jean viveu no álbum de fotografias, que nesse tempo não tinham se tornado ainda uma espécie de sonho
brilhante, indistinto, irrevogável e melancólico, tendo tão pouca relação com a vida do Sr. e da Sra. Santeuil trinta anos depois, e de Jean, quanto essas pálidas
fotografias, e que Jean achava só terem tomado parte na vida de seu pai e de sua mãe à época em que estavam noivos - mas que foram dias medíocres e sérios como os
de hoje, em que temos uma tarefa a cumprir ou um desejo a satisfazer, que nos parecem importantes e reais, em que não temos mais para com aqueles com quem vivemos
a solicitude respeitosa que devemos aos que não estarão sem~pre conosco e que não poderemos mais adorar um dia - nesses dias distantes, mesmo na ocasião em que eram
dias como outros quaisquer, freqüentemente Charles Marie, Marie, o mais velho companheiro de Santeuil, Marie, então deputado, ex-ministro e o mais influente político
do mundo parlamentar, vinha jantar sem aviso em casa dos Santeuil. Embora a Sra. Santeuil se desculpasse à mesa pelo jantar ruim que fizera àquela noite, que justamente
nesse dia estava mais modesto, conforme dizia, pois não tinha nem certeza de que o marido voltasse para jantar, logo que o Sr. Marie apareceu enviara correndo a
camareira, para grande desgosto desta, à pastelaria, à salsicharia, à sorveteria. E uma língua de boi ou um presentinho, um empadão, uma mousse de morango, dando
ao jantar dos Santeuil proporções nunca vistas, estavam destinados a estreitar entre Marie e os Santeuil os laços de uma amizade já antiga, a deleitar Marie, que
era guloso, a resolvê-lo a voltar e a dar ao Sr. Santeuil a satisfação de ver que seus amigos, mesmo chegando de imprevisto, eram sempre bem

289
tratados em sua casa, e de um modo que honrava sua mulher e a ele.

Marie tinha sempre curiosas novidades políticas que interessavam vivamente Santeuil e, é forçoso dizer, também Augustin, que nesses dias fazia com que a
cozinheira levasse os pratos até a porta da sala de jantar a fim de nada perder do que Marie dizia. E como Marie, para quem Augustin era um velho amigo (Marie era
um homem bom e generoso, dava-lhe gorjetas e arrumara para *seu irmão um bom emprego na administração da cidade), não se incomodasse em falar diante dele, Augustin
sentia orgulho em ouvi-lo, enquanto se servia da molheira, confiar-lhe quase segredos de Estado. - Vi há pouco o ministro da Agricultura, mas abstive-me de lhe falar.
- Podem imaginar como ficava orgulhoso Augustin pensando que estava mais a par dos assuntos do governo que o ministro da Agricultura.
Não era talvez do ponto de vista especial da satisfação de Augustin que a Sra. Santeuil, apesar do acréscimo de despesas que ele lhe trazia, se regozijava
nas noites em que se via chegar o Sr. Marie. Nem mesmo de curiosidade quanto aos acontecimentos políticos, pois a Sra. Santeuil, como os planetas que só recebem
luz de uma estrela, era incapaz de desfrutar um prazer por si mesma, e o prazer só lhe chegava se antes tivesse feito resplandecer uma das pessoas que amava. Só
se sentia feliz com aquilo que desse prazer e felicidade a seu pai, a seu marido ou a seu filho. Ora, ela sabia do interesse que o marido tinha na conversa de Marie,
e se alegrava com o fato de poder tornar-lhe agradável a mesa de família que, tão honestamente, ele jamais abandonara. Aliás, assim como teria achado estranho sentir
afei-
ção por uma amiga que vivesse fora do círculo familiar, era de maneira natural que gostava de Marie, o qual gostava de seu marido e lhe prestara serviços muitas
vezes, poderia um dia proteger seu filho e tinha prazer em passar uma noite com eles. Marie era muito lhano, simples e natural. Era serviçal, generoso. E inuitas
vezes concedera auxílios, através da Assistência Pública, aos infelizes pelos quais a Sra. Santeuil se interessava e com quem não ousava aborrecer o marido. Quando
isso fosse impossível, recorria facilmente à própria bolsa, já que tinha bom coração e

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não era agarrado ao dinheiro. Arrumava emprego para todos os seus protegidos, tabacarias para as viúvas de antigos colegas de Santeuil. E, de resto, um laço mais
forte unia Marie à Sra. Santeuil.
Essa mulher, que não acharia correto dar uma parte séria de seu coração a outra pessoa que não o pai, o marido e o filho, sentindo que aí estava sua obrigação,
aqueles que Deus pusera sob sua guarda para que ela os conservasse bons, felizes e poderosos ; , tivera uma única amiga, talvez porque a afeição de Santeuil pelo
marido dessa mulher lhe tornasse, de certa forma, permitido o seu afeto: a Sra. Marie, criatura requintada, mulher deslumbrante e espiritual, esposa e mãe sublime,
que morrera tuberculosa aos trinta anos. Era judia, e foram necessárias a superioridade de seu encanto e a experiência de suas virtudes para que a Sra. Santeuil,
saída de um ambiente em que pesava sobre os judeus uma profunda desconfiança, pudesse ligar-se a uma judia como a uma irmã. Mas a toda criatura de boa fé, uma inteligência
e bondade divinas, um encanto excepeional surgem de imediato com seu valor merecido. E em face deles, não temos mais outros sentimentos que o da adoração. E a camponesa
mais carola sentiria que a alma de uma tal judia exalava um odor mais agradável a Nosso Senhor do que todas as almas de cristãos, de padres e de santos. Ao morrer,
recomendara aos Santeuil o marido e o filho. E dissera à Sra. Santeuil: - Mesmo que aconteça, e espero que nunca aconteça nada que possa afastar Charles de seu marido
e de você, lembre-se de mim e não o abandone, e faça com que seu marido permaneça sempre amigo dele. Acredite no que lhe digo. Charles é a bondade em pessoa. Se
chegar a fazer algum mal, só poderá ser por arrebatamento do seu bom coração por aqueles que nem sempre o merecem. Cuidem sempre também do meu pobre Édouard. Fico
assustada em,pensar que só tem quinze anos e que sabe tão pouco da vida.
Era com efeito uma idéia singular a que o jovem Édouard tinha da vida. Diante de qualquer impossibilidade, essa impossibilidade que qualquer outro teria,
não a tinha ele graças às amizades do pai. Quando uma turma estava completa e ninguém mais podia fazer parte dela, seu pai conseguia matriculá-lo nas barbas dos

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outros alunos. No teatro, se não havia mais lugares e Êdouard
desejava ir de qualquer maneira, seu pai, mesmo quando a peso
de ouro uma outra pessoa não conseguisse obter até um mau lu
gar, fazia-o entrar para o camarote do ministro. Se tinha dor de
cabeça, davam-lhe antipirina, e até as pequenas doenças de que
ele próprio era culpado por não ter posto o cachenê ao sair, ou
por se agitar demais de manhãzinha, pareciam-lhe castigos do
brados e um pouco longos que seu pai poderia ter evitado. Como
já se assustasse, sendo de natureza frágil e nervosa, à idéia de
que dentro de seis anos teria de prestar serviço militar, o pai lhe
dissera com um sorriso bondoso: - Falei com o ministro da Guer
ra, vamos dar um jeito nisso. - Desse modo, não achava possível
que o universo lhe criasse um dissabor que o pai não pudesse
logo afastar de si ou dos seus com uma espécie de piparote. E
quando sua mãe ficou muito doente, não admitiu sequer por um
instante que ela pudesse morrer. Morrer, isso era para ele como
fazer o serviço militar, uma lei fatal para os outros mas incapaz
de atingir a mulher de um homem que "sabia dar um jeito", co
nhecia os médicos de nomeada, capaz de interessar, num instante,
pela saúde da mulher os ministros, a Câmara, o presidente da
República, o rei da Itália. E à noite, chorava perto da mãe morta,
chamava-a, queria falar-lhe ainda. Enquanto embaixo os minis
tros, um ajudante-de-ordens do presidente da República, o embai
xador da Itália vinham apresentar condolências, ele parou de cho
rar subitamente, sentindo-se diante de uma força desconhecida,
estranha, mais poderosa que tudo o que era possível lhe opor
em recomendações, influências, poder e ao impacto de cujas on
das gigantescas tudo isso não pesava nada, estava partido, sem
precisar de um esforço mai ' or da sua parte. E pela primeira vez
sentiu que existia alguém mais forte que seu pai, que não estava
como ele a serviço de seus caprichos, e chorou.

Quanto a Charles Marie, a Sra. Santeuil e o próprio Santeuil não lhe conheciam outro defeito que um certo prazer de informar, através dos
jornais , o nome
das pessoas ilustres que eram seus amigos e jantavam em sua casa. No entanto, Santeuil sabia bem que algumas pessoas haviam atacado a honra de Marie, mas

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como se faz com todos os políticos, e perdoara a Charles Marie a fraqueza que o fazia desejar que duas ou três pessoas, que, fingindo estarem convencidas de sua
desonestidade. lha tinham duramente censurado, soubessem, através dos
jornais , do brilhante apogeu daquele que outrora julgavam humilhar. Devemos pensar que a Sra.
Marie conservou, durante sua breve existência, uma opinião tão boa sobre o marido quanto a que vimos compartilhada, à época em que começa esta narrativa, pelos Santeuil
e por quase todas as altas personalidades políticas da maioria da França republicana? Quem saberá jamais em que medida incerta e flutuante a cegueira extrema se
mescla, em ternura profunda, à extrema clarividência? Podemos ao mesmo tempo duvidar das mesmas coisas em que acreditamos e até na hora da morte. Pois tudo aquilo
que para nós é objeto de um sentimento profundo parece-se nisto à vida, que é, para nós, um objeto de fé e de amor. Acreditamos na duração de nossos amores e duvidamos
dela. Acreditamos na vida imortal e duvidamos dela. Acreditamos nos juramentos da mulher que nos ama e duvidamos deles. É difícil supor que a mãe ou a irmã que nos
ama não perceba de modo algum, ria essência de nossa natureza, todas as conseqüências, mesmo ruins, que pode trazer; difícil também é crer que, em seu amor por essa
essência, não perdoe nela essas conseqüências detestáveis. Talvez o valor moral de seu marido fosse, desse modo, para a Sra. Marie objeto, a um tempo, de fé e de
dúvida. Talvez ao dizer à Sra. Santeuil, na hora da morte, que se alguma vez o marido procedesse mal isso não seria mais que um arrebatamento de seu bom coração,
podemos crer, ao mesmo tempo, não só que se tratasse de uma palavra no ar, e supérflua, à qual não se deve dar importância, e que em seu espírito não se referia
a uma possível eventualidade, mas também que fosse a expressão bem suavizada do que ela sabia de seu marido e daquilo que previa, uma espécie de mentira dolorosa
de pregar para que em sua lembrança não julgassem tão mal nem abandonassem o marido que ela sempre amara, mesmo indigno, quando chegasse a época em que as más inclinações
assumissem, pouco a pouco, proporções desastrosas, e ele viesse a ser abandonado.
E quem sabe se a opinião que a mulher nutria a seu respeito não fosse para Marie, quando estava junto dela, objeto de fé e

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de dúvida? Pois, não sabendo se a índole da mulher era mais caridosa ou mais justiceira, não sabia se ela, caso estivesse a par de certas coisas, lhas teria revelado
ou escondido. Mas era uma pergunta que quase nunca aflorava ao espírito de Marie, pois se era bom, inteligente e trabalhador, se era serviçal e generoso, não era,
por outro lado, sonhador nem melancólico. Amava os prazeres do trabalho, do poder, do luxo, e também alguns prazeres mais. simples como os que achava na afeição
dos Santeuil, na simplicidade de sua vida, no fervor de sua estima e de sua acolhida. Só muito mais tarde é que se soube que também apreciara as especulações, quase
diárias, em negócios escusos, e ganhar dinheiro a qualquer preço. Até então, ninguém se espantara de que freqüentasse dois ou três banqueiros que não eram dos mais
honrados, pois um ex-ministro das Finanças que pode voltar a sê-lo de um momento para o outro tem necessidade de estar em contato com esse tipo de gente. Muitos
que agora desapareceram - um se matou, outro vive na América, outro conseguiu evitar qualquer conflito com a justiça mas já não encontra, à sua passagem, muitas
cabeças que se descubram nem muitas mãos que se estendam - inspiraram a Marie uma amizade que, por mais estranho que isso possa parecer, teve para ele seus momentos
de doçura e cordialidade. Freqüentar essa gente não lhe era apenas útil para realizar certas operações financeiras em que não podia aparecer pessoalmente. Eram os
únicos com quem pÔde falar de todo esse aspecto de sua vida que era obrigado a esconder do público, dos colegas, dos amigos, da própria mulher. Toda forma de atividade
que desvia para si uma parte de nossas forças desenvolve a seu redor uma série de curiosidades, de simpatias, de necessidades de expandir-se e de conversar que têm
ainda mais prazer em serem satisfeitas na medida em que são habitualmente reprimidas. Um homem que gosta de caçar compraz-se forçosamente com os caçadores, um adido
a uma biblioteca com os bibliotecários, um homem que possui um automóvel com outros habitués desse esporte, principalmente se dentro de casa uma mulher caprichosa
e despótica o proíbe de falar em caça, velhos livros ou automobilismo. Parece que, segundo eles, nós nos sentiríamos alegremente unidos a uma parte de nossa vida
da qual estamos separados. Estou certo de que, se existem quadrilhas de ladrões,

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deve, haver entre seus membros conversações agradáveis e cordiais sobre os golpes que pretendem dar, ou sobre os golpes já realizados que devem estimular entre eles
uma simpatia bem mais pura do que a fonte de que se originam, uma afeição capaz de conhecer as lágrimas, a boa vontade, o desinteresse. Tais sentimentos existem,
asseguro-lhes, entre Marie e seus cúmplices, que achavam não fazer nada de mal, agir com um sentido político, aliás provisoriamente e só até obterem a fortuna necessária
à realização de seus desígnios, escondendo sua dissimulação à própria consciência, único sinal que lhes poderia revelar a ilegalidade de seus atos, dando-lhe o nome
de prudência, medo da maldade alheia, e que nos outros aspectos da vida podiam ser, -vimo-lo com o exemplo de Marie, bons maridos, pais solícitos, amigos devotados
e cheios de generosidade. Estou certo de que se esta narrativa já não estivesse tão sobrecarregada de episódios acessórios que me permitisse demorar ainda neste,
teria excitado em vocês uma certa inveja cheia de bem-estar e de conforto, representandolhes, numa tarde quente de verão, debaixo de um caramanchão de lilates, Marie
e o velho Duclin, de cigarro na boca, sob os lindos ébanos imóveis, conversando sobre negócios enquanto uma vespa zumbe ao redor deles e o sol, cúmplice pela alegria
inocente que lhes dá de sua inconsciência, ri na sombra do fundo do lago negro. E quem sabe conseguiria emocioná-los mostrando a confiança que Marie depositava na
delicadeza absoluta de Duclin, confiança que não foi traída no dia em que Duclin, tendo sido preso e podendo abrandar sua pena denunciando Marie, nada fez. Naquele
dia, ainda uma vez Marie escapou sem que ninguém dele suspeitasse. Entretanto, a sensação de segurança já não lhe foi tão agradável como até então.

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II. Oescândalo Marie: um alerta

Talvez lhes cause surpresa saber que Marie levou, durante tan
tos . anos, uma vida em que todos os dias podia dizer consigo:
quem sabe é hoje o dia da catástrofe final? Mas a vontade de
viver e de seguir suas paixões não tem outra aritmética senão o
cálculo das probabilidades e o postulado de que, entre duas pro-
babilidades, a mais agradável é a mais provável. Olibertino que depois de um jantar excitante apanha uma mulher na rua sabe muito bem a que riscos patológicos se
expõe; o viajante que toma um navio para a América sabe que vários naufragaram, que talvez quando voltar não encontre mais a velha mãe ou o filho de constituição
franzina; o preguiçoso que não escreve o livro que deve perpetuar-lhe o nome, ou que não redige o testamento que deve assegurar aos filhos o gozo de sua fortuna
contra primos detestados, sabe que esse dia que não aproveita não será porventura seguido de nenhum outro para ele, já que um homem pode, às vezes, morrer subitamente
com um ataque de apoplexia, ou ser atropelado por um cavalo em disparada; o guloso sabe que a gota o espreita e que o álcool lhe faz mal. Mas um temor possível é
frágil contra um prazer certo. Já a força emanada dos braços da mulher, de um mar desconhecido, do canapê ou do cigarro que nos retêm, do passeio que nos atrai,
começa a
perturbar-nos a cabeça tornando-a muito favorável à viva representação do prazer que, tão próximo a' nós, faz bater nosso coração, mas de modo algum sacrificar tantas
oportunidades de gozos efêmeros ao risco de uma infelicidade irreparável. Assim, vemos todos os dias os voluptuosos buscarem o prazer por toda a parte, os viajantes
viajarem, os preguiçosos vadiarem e os vivos gozarem o dia-a-dia da vida sem pensar na morte. Oguloso não pensa que nesta noite é justamente esse copinho que lhe
causará gota.

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Marie não era mais doido do que eles. E na manhã em que, ao despertar, achou a carta que o convidara a se apresentar no mesmo dia ao juiz de instrução, v`u-se
encurralado num acontecimento em que meditava com freqüência mas sem pensar que chegaria um dia, e nunca dessa maneira. A morte tem bastante nobreza e podemos muito
bem falar dela. Mas um belo dia despertamos com uma opressão num dos flancos que mal nos deixa respirar, gotas de suor na testa, a mão trêmula, os olhos vagos. E
essa dor no flanco que nos acabrunha cada vez mais não tem relação alguma com a idéia da morte que podíamos admitir e afastar a nosso bel-prazer, no momento em que
a vida se mostrava sorridente e a teria ofuscado. Essa convocação à presença do juiz de instrução era redigida nos termos habituais e vocês a leriam tão friamente
como, num livro de medicina, os sintomas da paralisia geral. Mas, no caso de Maric, ele experimentava a cada palavra uma dessas sensações inexprimíveis que fazem
de uma grande moléstia, para aquele que a sofre, uma espécie de pesadelo silencioso onde a pêndula com seu balancim, o vaso azul sobre o armário, são monstros mais
terríveis, mais cheios de angústia e de desconhecido do que tudo o que esse mesmo homem saudável podia imaginar de mais inaudito nas torturas dos danados. Um certo
peso na cabeça e a visão desse vaso azul sobre o armário, eis sob que forma o espantoso lhe chegou de repente, e a felicidade de viver que até então brincava com
a idéia da morte, como o sol com as sombras num dia risonho, fugiu para sempre.
Assim, voces não se espantariam de que, estando o Palácio da Justiça localizado no cais da Mégisserie, o Sr. Croissin tivesse convocado Marie para o seu
gabinete no cais da Mégisserie. No entanto, esse pormenor simples, que não tinha a menor relação com a vida anterior de Marie, mas era uma das particularidades essenciais
ao novo acontecimento, era como uma dor nova, ainda mais aguda, por onde esse novo mal o agarrava. E ele relia "em seu gabinete, cais da Mégisserie" como os signos
prenunciadores de sua tortura, com olhar silencioso e amedrontado como o paciente na sala de espera do cirurgião ouve a voz ao lado falando bem alto a uma pessoa
que, essa, não necessita ser operada. Mas imediatamente Marie pensou: "Esse juizinho de instrução é bem ,)usado por me convocar, a mim que poderia tão facilmente
man-

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dar exonerá-lo. Vou simplesmente passar-lhe um sabão através do ministro da Justiça."
Ir à casa do ministro da Justiça, que era não só seu amigo mas até mesmo um pouco seu protegido, não tinha nada de mais. Isso só o fazia recordar os jantares
em que estava à cabeceira da mesa, um gabinete que se abria de pronto para ele, quando as personalidades mais conspícuas esperavam para serem recebidas. Isso o fazia
mergulhar de novo em toda a sua vida de honra e honrarias, que em suma durava ainda, e por uma palavra do ministro da Justiça ia certamente recuperar e conservar
até a morte. Ah, por exemplo, desta vez estavam acabados os negócios! Escapara por muito pouco. Era bem diferente desse inquietante cais da Mégisserie.
Respirou. Omais urgente, se acaso tivesse de dar algumas explicações ao ministro da Justiça, explicações amistosas e que acabariam com um convite para jantar,
era mandar vir Voisin, Béziers, seus comparsas nessa negociata do açúcar de Gisors. Assim, mandou um recado ao ministro da Justiça dizendo que passaria às duas horas
para lhe dar uma palavra, na Câmara, no começo da sessão, e que fizesse o obséquio de dizer, nesse meiotempo, ao juiz Croissin que o Sr. Marie não podia comparecer
hoje à sua convocação. Depois saiu para ir combinar com Voisin e Béziers os termos de seu plano de defesa. Oar estava agradável. Mandou atrelar a carruagem descoberta
e desfrutava o bom tempo fumando tranqüilamente um cigarro. Ao entrar no quarto de Voisin, deu um suspiro de alívio. Chegara junto de um amigo com quem nada tinha
a dissimular, de quem nada tinha a temer. Toda uma parte de sua vida pÔs-se a respirar mais livremente nele, a aprumar a cabeça. E junto desse homem a quem podia
dizer tranqüilamente: "Consegui desta vez duzentos mil francos", sem se sentir humilhado, diminuído, experimentou um vivo sentimento de prazer, um prazer feito de
franqueza e de orgulho. Para ele, voltar aos seus negócios, discuti-los, era o prazer antigo e inocente. E negando tudo aquilo de que não havia provas, dando ao
restante um sentido diverso, assentaram juntos os termos da defesa como se se tratasse de uma declaração ministerial.
Voltou para casa, almoçou ligeiramente e seguiu para a Câmara. Reinava aí uma agitação nunca vista. Oministro acabava de

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pedir, contra Marie, um mandado de busca. Apenas um de seus amigos chegou-se a ele e, bruscamente, com essa violência desagradável da verdadeira afeição que se sente
mal com a infelicidade dos outros, e que parece devolver os golpes que lhes são vibrados, disse-lhe: - Mas sobe, ora, vai te explicar na tribuna. - Ele subiu, e
do círculo tumultuário à sua frente os clamores se levantavam. Teve medo como quem põe o pé numa embarcação num mar encapelado. Mas há momentos em que, muito a contragosto,
renunciamos à vida para não darmos a impressão de ter medo, e com a mão fria, a cabeça erguida mas trêmula, ele subiu. Falou. Mas sua palavra necessitava pelo menos,
como um acompanhamento necessário, de uma harmonia complementar, das ondas retumbantes da aclamação da Câmara. Diante desse silêncio ou desses murmúrios surdos,
seu tom de voz era outro. Em 'vez de se sentir em terra firme com as vagas favoráveis que vinham ressoar a seus pés, estava em pleno mar onde não quebrava onda alguma,
mas em que se formavam colunas monstruosas, já não majestosas de ver mas horríveis de sentir. Tinha-se o costume de buscar o valor de suas palavras na violência
do fluxo dos aplausos que desencadeavam. E enquanto falava, sentiam-no formar-se, erguer-se, engrossar, prestes a cair de novo e retumbar enfim à medida que o período
acabava. Privadas da aprovação que as tornava persuasivas, assim como do acompanhamento que as fazia harmoniosas, suas palavras soavam falsas e pifias como o arrazoado
sem base de um culpado ou o canto agudo de uma louca. E suas palavras já não vinham arrebentar-se ao ruído dos aplausos, ele já não tinha a força de refluxo que
provocava novas ondas de eloqüência. Seus gestos já não eram medidos, e sim bruscos, assim como os movimentos de um homem sobre um cavalo com o freio nos dentes,
e, de tal modo o ator humano permanece minúsculo confrontado com o papel inaudito que o destino lhe confia e que somente a nossa imaginação sabe enxergar em sua
grandeza, assim Marie, pequenino nessa grande assembléia que não dominava mais, quase que se perguntava se era mesmo de sua vida que se tratava, se não era um atorzinho
representando o terror de Saint-Just numa sessão revolucionária insuficientemente reconstituída, num teatro onde os murmúrios fracos dos figurantes não davam uma
idéia exata do furor da Convenção.

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Mas já então a questão tomara, na consciência de Marie, uma forma nova que deveria substituir o intolerável sentimento da realidade. Ele era vítima dos ministros,
que o haviam abandonado ignominiosamente, preferindo sacrificar os amigos mais antigos, os que mais serviços haviam prestado à República, à sua pasta ameaçada por
uma extrema-esquerda caluniadora, vingativa, imperiosa e feroz. Em seu lugar, é preciso dizê-lo, Marie não teria agido desse modo. Era desses que na vida sabem que
a virtude é difícil e são indulgentes para com as faltas do proximo, que não poderiam se decidir a fazer o mal e que lançam o manto de sua amizade gloriosa sobre
as faltas dos amigos, deixando aos mais duros, e muitas vezes aos mais corruptos, a triste e feia nódoa de lhes "recusar a mão". Ouem quer que sejas, leitor, em
qualquer aldeia ou capital onde a vida te pôs, nas circunstâncias históricas de uma vida política ou diplomática, ou em circunstâncias semelhantes mas que jamais
aparecerão ao dia claro de uma vida exclusivamente privada, estou certo de que estás classificado, seja apenas aos olhos de Deus, entre os partidários da honestidade
e do puritanismo, ou da caridade e da tolerância. Foi talvez um de teus amigos quem traiu a fé conjugal, um de teus companheiros ou a pessoa em questão, e discutida,
que dá festas, quem te deu ocasião de afirmares assim a tua natureza. Mesmo se tua conduta severa foi inspirada num sincero horror ao vício, ela deve ter parecido
cruel a um dos teus que, nessas mesmas circunstâncias, agiu diferentemente de ti e que, nesta época de relaxamento moral e de superexcitação da sensibilidade nervosa,
de, clara que a crueldade é o único vício que ele está certo de ter o direito de condenar. Ao passo que sua conduta em si mesma, se não tem outra origem que a terna
piedade de seu coração e uma indulgência relativamente a outrem compatível com uma grande severidade por si mesmo, que até o inclinou, talvez, à indulgência a seu
respeito, vendo a dificuldade de, se conformar com ela, te parece o sinal de uma natureza corrompida ou talvez orientada para os proveitos materiais, o prazer de
continuar amigo dessa mulher que cometeu erros quem sabe, mas espirituosa e encantadora e cujos jantares são tão agradáveis. Pois os brinquedos e os dramas da história,
tão ardentes ao longe, são compostos dos mesmos elementos de ffossas vidas obscuras, da própria substân-

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cia do universo. A história é como a análise astronômica, essa ciência que demonstra a composição das mais longínquas estrelas porque elas contêm os mesmos elementos
e os mesmos gases, como o caminho que percorremos todos os dias, como o corpo em que vivem e os ossos que repousarão um dia perto dos de nossa mãe.

Duas ou três vezes Marie teve, desse modo, o prazer, após ter
acreditado que ia ser preso, de nem sequer ser suspeito e de sentir que o futuro se estendia, intacto ainda, diante de si; que tudo o que fizera de ruim até então
era como se o não houvesse feito, que lhe bastava mudar agora e sua vida inteira se escoaria feliz e gloriosa. Pois o que ainda não fizemos, o que ainda não está
decidido, parece-nos que podemos dispor como quisermos, o melhor possível, segundo o nosso interesse ou a nossa consciência. E em sua poltrona, junto à lareira,
abrindo as cartas que todos os dias lhe enviavam personalidades importantes da região, Marie tinha o sentimento. de que só faria o que quisesse, de que era senhor
absoluto de seus atos. Somente à primeira necessidade de dinheiro, ao primeiro desejo de ganhá-lo sentia-se decidido, oh!
não por uma vida vergonhosa que o levaria à desonra, mas por todo pequeno ato que não podia ter conseqüências, e que não podia ser ruim já que as pessoas mais honestas
de Paris jantavam
esta noite com ele. É verdade que não gostaria de lhes contar. Mas qual dentre eles não tinha segredos que não gostaria de contar aos outros? É certo que desde a
infância, e principalmente após a morte da mulher, Marie era muito religioso. Contudo, em vez de perturbar sua consciência, a religião antes a tranqüilizava. Não
nos repete ela a todo instante, nos lugares-comuns dos sermões, nas fórmulas das orações, no sentido dos dogrnas e dos sacramentos, que o melhor dentre nós vive
em pecado? Todas as
inquietações da consciência assumiram um aspecto menos obscuro, menos penoso, adquiriram algo de tocante que não era desagradável, quando Marie as descobriu de novo,
a cada passo, na religião. Sentiu-se mais à vontade quando percebeu que todas as pessoas que freqüentava não tinham como lhe atirar a pedra, e sim deviam bater no
peito como ele por idênticos malfeitos. O

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fato de que ia à igreja dizer a Deus e diante dos homens: "Eu sou um pobre pecador" parecia-lhe uma espécie de confissão que o dispensava de declarações mais particulares
e penosas, dando-lhe a ilusão de não viver em mentira diante dos outros.
Face a face consigo mesmo, frente a sua consciência, não dizia
mais: "Roubei vinte e cinco mil francos", palavras que lhe eram
muito desagradáveis de ouvir e o diminuíam aos seus próprios olhos,
e si : in: "Meu Deus, não passo de um pobre pecador", palavras
que lhe causavam de preferência uma doce emoção. E porque du
rante algum tempo colocasse sob termos vagos como pecado e falta
suas faltas e pecados mais particulares, receber dinheiro indevido,
concussão etc., um acabando por significar o mesmo que o outro,
as palavras "receber dinheiro indevido, concussão" sairam pouco a
pouco de seu espírito, onde foram substituídas pelos termos peca
do e falta. E como as faltas que acima de tudo nos separam do
restante dos homens não eliminam em absoluto de nosso coração
o desejo profundo de estarmos unidos a eles, de não valer menos
que eles, de sermos um deles, essas palavras pecado e falta tinham
para ele a vantagem enorme de o aproximar ainda mais de todos
os homens, já que lhe faziam sentir que participava da miséria
comum deles e de seu pecado original.
Entretanto, a importância política de Marie cresceu de ano para ano. Poucos havia mais inteligentes na Câmara, ninguém era mais animado de um desejo tão
generoso do bem público. E o bem que praticou não se restringe apenas a tantas leis excelentes que livraram os pobres de tantos impostos sem risco para o orçamento,
em tratados internacionais que hoje ainda representam a maior parte da segurança da França. Não está consignado em nenhuma história escrita, mas na história das
famílias de seu departamento, que, graças a ele, viram seus reveses se tornarem suportáveis e foram mais felizes do que o haviam sido até então - em tantas famílias
socorridas por sua bolsa quando o marido estava doente ou o filho sem trabalho, nas colocações obtidas para a filha e pelo acesso fácil de sua moradia e do serviço
de sua casa, das aléias de seus bosques e da terceira classe de seu carro, nos sobejos e nas sobremesas acrescentados cotidianamente ao jantar das famílias pobres,
a lenha estocada no inverno e muitas vezes acompanhada de uma peça de roupa branca, a estrada percorrida fa-

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cilmente ao galope do cavalo do Sr. Deputado quando havia neve no chão, e sobretudo no sentimento de dignidade acrescentado às existências humildes quando são tratadas
pelos ricos com aquilo que os ricos reservam com freqüência aos ricos, a consideração, a saudação cordial, a conversa sincera.
Agora que vocês sabem tudo isso, quando souberem pelos jornais que os eleitores da Sonime, que têm atualmente por deputado o íntegro Jules Craveil, que
defende
no Parlamento os interesses do povo contra essa classe rica cujos privilégios eram defendidos por Marie, que jamais se envolveu numa operação financeira, de quem
não se pode dizer que tenha sido alguma vez amigo de qualquer pessoa de posses, quando ouvirem os jornais dizerem que os eleitores da Somine não deixaram de lastimar
Marie, embora tenha sido ele condenado pelo tribunal de polícia correcional e que, mesmo à época de seu apogeu, votou contra os socialistas e o imposto de renda,
não atribuirão tais lamentações apenas à corrupção do departamento.
À medida que Jean crescia, Marie foi percebendo que ele possuía mais coração do que inteligência. Marie não apreciava muito a poesia; excetuava, porém, a
poesia patriótica de um Déroulède, 4~que pelo menos quer dizer alguma coisa e tem alguma utilidade". Embora quase não tivesse tempo de ler nada a não ser os inúmeros
documentos que eram como que a matéria-prima de que extraía suas exposições bem concatenadas e as belas leis à imagem de seu espírito, lia, pelo contrário, muito
sobre história. Ela o tranqüilizava a respeito do alcance de sua obra política consagrando os esforços dos grandes homens que haviam trabalhado como ele. E pelo
sorriso indulgente com que ela assinala, como defeitos amáveis de uma criança mimada, as dilapidações de um Mazarino, de um Gortchacoff ou- de um Richelieu, mostrava
suas próprias faltas como uma espécie de necessidade, não mais a necessidade inerente à natureza dos homens superiores, necessidade que interessa pelo espírito,
encanto risonho de uma elite e à qual, pelo contrário, é conveniente nos conformarmos. Se a religião era como o ascetismo de sua alma que a mergulhava na doença,
a história representava a sua higiene que, restituindo-lhe a saúde, mostravalhe a vida mais tentadora e feita para ser desfrutada.

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Um dia, aproximando-se a época em que Maric seria, sem que
ninguém o pudesse prever, preso pela descoberta súbita de do
cumentos comprometedores há muito tempo encobertos, o jovem
Êdouard Marie, então com vinte e cinco anos, saindo uma noite do
teatro, num dia de muito vento, sentiu ainda mais frio ao entrar em
casa. Pouco sabemos sobre o que existe no vento, e o que existe
na febre, e em geral o que é a natureza e o que é a vida. No
entanto, pensou-se que esse vento, e depois essa febre, foram par
ticularinente perniciosos, pois o resfriarnento causou uma pneumo
nia, e esta, em poucos dias, o levou à morte. Assim deixou
Êdouard Marie este mundo, sem chegar a se desiludir quanto à
pureza da alma e à eternidade do poder de seu pai. Dessa manei
ra o destino arrebata a tempo aqueles que não deviam ver certas
coisas. Por isso, assemelha-se a um homem que, tendo necessidade
de dizer as mais graves injúrias a outro, não as diz diante do filho
por uma questão de pudor. Assim age a natureza, pois ela sabe
que os túmulos não vêem nem ouvem. E os olhos que nos olha
vam com ternura, respeito e confiança, agora que estão cerrados
para sempre não se dilatarão ' de horror nem se encherão de lágri
mas diante do que enfim está a descoberto no dia claro. E o mun
do obscuro dos mortos e o mundo dos vivos iluminado por um
sol inclemente ignoram-se por completo.

Os rapazes estudiosos têm sempre a esperança de serem argüidos, no exame, sobre tudo o que sabem na ponta da língua e que, desse modo, em respostas breves
mas perfeitamente adequadas, todos os seus conhecimentos apareçam aos olhos do examinador, achando que assim nenhuma hora de seu longo estudo terá sido em vão. Dessa
maneira o candidato, mesmo quando passa com brilhantismo, experimenta sempre uma espécie de decepção ao findar o exame. Não pôde dizer nenhuma das coisas que sabia.
E se teve notas boas foi em virtude de pontos com os quais não se preocupara, que lera superficialmente, ou nem isso. De modo que lhe seria suficiente estudar durante
uma hora em vez de um ano para passar no exame. Não somos mais 16gicos em pensar que quando um gatuno é preso, quando um homem de bem é

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recompensado, o juiz tem à mão e enumera, uma a uma, todas as boas e más ações do homem que está à sua frente, sem esquecer uma só, que a consciência desse homem
pôde representar para ele durante noites de insônia ou horas de satisfação. É o menos importante de seus roubos, o mais isolado de todos, o que tinha menos ligação
com sua vida de ladrão, do qual nunca pensara que lhe haviam de pedir contas, do qual talvez nem mesmo é culpado, que o faz ser preso. E todos os outros roubos,
doravante inúteis para seu castigo, permanecerão ignorados. Mas, como o aluno que não sabia o que lhe seria perguntado foi obrigado a estudar um ano inteiro para
que, ao preparar-se, aquilo que será a matéria ainda desconhecida do exame seja lida em cinco minutos, de modo que suas respostas dêem ao todo - como um copo d'água
enchido num rio mostra muito bem se está límpido ou turvo, ainda que em outras partes seja mais turvo ou mais límpido - uma idéia razoável da seriedade de seu preparo,
o roubo, de resto, no qual se envolveu um homem de consciência obliterada, transmite desprezo suficiente por essa consciência sem que seja necessário o conhecimento
de tais crimes.
Assim, da noite para o dia, graças a um mandado de prisão, a França inteira soube que Marie era um ladrão, embora se ignorassem todas as suas operações dolosas,
salvo uma bem pouco importante e da qual não se ' tinha muita certeza de que fosse culpado. Mas o arresto de papéis em sua casa demonstrou então suas relações com
certos procuradores de reputação duvidosa, onde o juiz, a Câmara e o público viram não o que eram de fato, o indício de outros atos cometidos por Marie, e sim a
prova de sua culpa naquele ato específico, com o qual não tinham qualquer relação. Mas quando um homem tem uma chaga aberta, o pano inocente de sua camisa se transforma
em veneno mortal que a gangrena. E quando um homem é acometido de uma doença funesta, aqueles com quem vive tornam-se inimigos perigosos cuja companhia o mata. E
quando um homem fica gravemente doente, seus mais inocentes produtos, o hálito que exala ao respirar, a urina que verte se transformam em testemunhos deprimentes
que revelam ao médico a terrível verdade. E o criado que esclarece de súbito para o médico uma doença antiga, dizendo que o patrão há muitos anos se levantava todas
as noites para abrir a janela

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e respirar melhor, é o mesmo criado que responde às perguntas do juiz, tremendo mais por causa da autoridade deste e do perigo que receia mas não percebe para o
patrão, do que da gravidade das respostas, de que não se dá conta, quando confessa que o Sr. Marie se encontrava todos os dias com Graveil.

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. Oescândalo Marie:
Jean intervém junto a Couzon

Sendo o partido capitalista e oportunista aquele contra cujas

inanobras o partido pobre, chamado socialista, tinha de lutar com
a maior violência, a ruína de Marie foi para este último uma
vantagem inestimável da qual era conveniente tirar todo o partido
possível e não se deixar defraudar por um adversário pouco
escrupuloso. Daí os artigos que todas as manhãs punham a alma
de Marie em desespero, e durante as sessões, no decurso de uma
scussão, as injúrias que

lhe feriam o coraçã
o comoum ataque de apoplexia, mas que, de acordo com os que as proferiam ou as deixavam passar, eram gritos de justiça destinados a punir o vício e anunciar,
como os gritos das andorinhas ao comer os insetos daninhos, o nascer do dia, a aurora de uma era mais justa

e mais pura. A raiva da extrema-esquerda contra Marie redobrou no dia em que uma sentença de impronúncia veio lhes roubar essa condenação que assinalava o triunfo
de seu partido e marcava com ferro em brasa, aos olhos do povo, a classe de vendidos com a qual era preciso romper. Essa sentença é prolatada talvez
por ter sido do juiz e o único, dentre todos, que parecera não abandonar Marie. Daí uma campanha de extraordinária violência desfechada contra Santeuil pelos jornais
de,extrema-esquerda e particularmente pela Ere Nouvelle, o periódico que apoiava mais claramente a política de Couzon. Todas as manhãs ele era acusado de ter participado
dos ganhos de Mgrie, pedia-se sua destituição ao ministro, a abertura de um inquérito contra a sua pessoa. Atacavam-se todos os aspectos de sua vida. Inventavam-se
calúnias horríveis sobre seus costumes. Assim, Couzon não se espantou quando umdia, em casa, vieram lhe dizer que Jean Santeuil lá se achava e pedia para lhe falar,
E como recebesse francamente àquela hora, e outras pessoas
obtida Dor Santeuil,
que, de fato, era amigo íntimo
que esperavam com Santeuil iam
ser recebidas, vendo que não podia evitar essa visita, sentiu-se extremamente embaraçado e aborrecido.

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Muitos anos, de fato, haviam passado desde a época em que Couzon teria enrubescido por apertar a mão de um homem desonesto ou por ter de lutar contra um
honesto. A paixão pela honestidade, as dificuldades em fazê-la triunfar haviam-no forçado a identificar sua conduta com a de um partido mais forte e ao qual, em
troca do auxílio que este lhe fornecia, era obrigado a abandonar honrarias pessoais. Deixara, há anos, de pensar que podia se arriscar a passar por um traidor aos
olhos dos seus, voltar' contra si todos aqueles que combatiam por ele, arruinar a obra de sua vida e comprometer o triunfo de suas idéias para tentar reabilitar,
tarefa de todo inútil visto que sozinho fracassaria inevitavelmente, um moderado injustamente suspeito. Há anos, e os anos não agem da mesma forma em cada um de
nós, suas aspirações se haviam materializado numa obra menos pura sem dúvida, porém mais sólida, da qual se achava um tanto prisioneiro. Perdera, há anos, aquela
generosidade da juventude que, sem qualquer tipo de interesse, se sacrifica para tentar ser útil a alguém que só poderá prejudicá-la. Ele só lutava por si, "si"
englobando, a bem dizer, para si mesmo suas idéias de justiça e igualdade social; a vida lhe proporcionava lutas suficientes para travar em razão de si mesmo, para
que ele se limitasse àquelas. Se pensarmos ainda que passado tanto tempo ele se habituara a considerar Santeuil, apesar de todo o afeto que sentia por Jean, como
um homem mau não só porque se recusara a levá-lo a sério mas porque apoiava tudo o que lhe parecia vil e abominável, uma dessas pessoas cuja morte só traria benefício
à sociedade e que o fato de sabê-las de conduta infame contribuiria para iluminar nossa filosofia, as calúnias que se levantavam contra ele lhe pareciam probabilidades,
ou melhor, verdades sobre as quais ainda não fora possível obter provas completas mas que não tardariam em ser encontradas. Assim, decidido, por todas as razões
que acabamos de explicitar, a não tentar coisa alguma em favor de Santeuil junto aos jornais encarniçados contra ele, não experimentava sequer o sentimento de uma
covardia necessária, diante da qual, de resto, não recuaria. Acreditava não poder, por interesse pessoal e por amizade, impedir a ação da justiça no interesse geral,
pelos caminhos e meios que agradavam a Deus. Entretanto, o anúncio da visita de Jean foi um

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golpe doloroso, embora esperado. Mandou dizer que, se ele fizesse questão, estava disposto a recebê-lo, mas que preferia que Jean esperasse para marcar um encontro
nas próximas vinte e quatro horas. Jean mandou dizer que preferia vir logo; Couzon, então, ordenou que o fizessem subir.
Enquanto aguardava a entrada de Jean, sentiu-se presa de
extraordinária agitação. A lembrança dos tempos antigos em que Jean fora sempre tão afetuoso com ele, e sobretudo, pois esse sentimento menos comovente porém mais
amargo apaga logo a relativa doçura do anterior, o sentimento dos anos passados em que, fora para Jean o próprio padrão da justiça, comovia-o profundamente. Não
pôde evitar o choro ao pensar em tudo aquilo que seu dever de líder do partido o forçava a sacrificar. Ouviu, porém, os passos de Jean e logo o segundo sentimento,
o de que Jean não o veria mais com respeito e confiança mas como alguém que abusara dele feito um falso deus injusto, visto que compactuava há oito dias com esses
atos abomináveis, causoulhe uma sensação de vergonha inexprimível que lhe estancou as lágrimas. E foi vermelho, perturbado, quase trêmulo, que Jean o viu diante
de si ao abrir a porta. Mas ao contrário do que pen-
sara, Jean não demonstrava qualquer atitude de violência, desprezo ou revolta, pois sua natural candura, aliada a uma admiração demasiado antiga para se desfazer
assim de um momento para o outro, fazia-o compreender não só os motivos de Couzon para agir dessa forma, mas também as razões que devia dar a si mesmo e, acima de
tudo, tinha piedade do enorme sacrifício que ia lhe pedir. E, na verdade, se achasse fosse possível desprezar os ataques, talvez não tivesse feito essa tentativa,
tendo também ele sua dose de covardia, se sua mãe não lha houvesse pedido, quase o tratando de mau filho. Sentia-se envergonhado de vir lhe pedir que fizesse, por
si e pelos seus, uma coisa que, percebia-o perfeitamente, ia deixá-lo em posição de desconfiança dentro do próprio partido. Assim, foi com uma voz suave, em
que a amizade antiga parecia ignorar o estado de beligerância declarado entre eles há alguns dias pelos artigos, que principiou:
- Perdoe-me por ter vindo incomodá-lo e pedir-lhe que empregue, para mim, as forças que deve reservar para os outros. Mas quem poderia eu encontrar que. . . - E
sentindo-se com efeito

309
tão isolado e próximo desse homem tão maravilhoso e tão bom e que tudo podia por ele, quase foi obrigado a se retirar para não se jogar em seus braços.

- Peço-lhe perdão por ter vindo incomodá-lo com nossos assuntos pessoais quando está tão ocupado - recomeçou Jean -, mas acho que não seria direito, para
não aborrecê-lo, não tentar evitar* grandes desgostos às pessoas que mais amo. - Couzon apertou-lhe a mão afetuosamente, convidando-o a sentar-se. Quem de nós, numa
hora grave em que da vontade da pessoa em cuja presença nos achamos dependerá quase toda a nossa felicidade ou o nosso infortúnio, não ouviu ressoar solenemente
essas palavras convencionais pelas quais se convida o recém-chegado a se sentar e que nem mesmo se ouvem na vida comum, seja porque os pormenores mais insignificantes
das conversas inesquecíveis recebem delas essa força angustiosa que as fará persistir por muito tempo em nossa memória, seja porque numa hora em que toda convenção
parece abolida, onde é a alma que vem empolgar outra alma ou se chocar contra ela, as palavras convencionais nos impressionam sobremodo e quase tentamos agarrá-las,
não pelo efeito maquinal de um hábito inveterado, mas pela expressão sincera de um sentimento atual? Nesses momentos, como indício, tudo não é bom? Pela porta aberta
da sala onde esperamos * cirurgião, vemos o criado pondo a toalha na mesa, toalha onde * sol deixa pontos luminosos. Dentro de uma hora, dizemos com nossos botões,
o cirurgião irá recomeçar sua amada vida de felizes e alegres refeições. A consulta que me dará, a pequena operação que me terá feito não serão mais que um de seus
atos puramente especulativos, um dos sonhos sem fantasia que exercitam sua inteligência, aguçam sua fome e dos quais não se lembra à noite, no grande sarau aonde
levará a filha. Por que não será o mesmo em relação a mim? Um acontecimento tão insignificante para ele, afogado entre milhares de acontecimentos semelhantes, não
pode ser muito mais sério para mim e atingir seriamente o âmago da vida real, na trama dos prazeres variados desde o calor dos ovos dorés servidos entre as garrafas
de cerveja fresca, até a brilhante chegada a um baile, saudada por sorrisos e mur-

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múrios condescendentes. Com a mesma paixão nos aferramos às fórmulas convencionais a fim de descobrir, sob a letra morta há tempo demais para nos dizer algo, qualquer
presságio favorável àquilo que desejamos. Nossa querida nos escreve para nos dizer que já não nos ama, mas escreve "meu querido", fala de sua "ternura" e damos facilmente
a essas palavras, como a alcoviteiras complacentes, o sentido que desejamos que elas tenham.
Jean sentou-se ao lado de Couzon e com um sentimento de ternura talvez mais vivo do que de hábito. Opoder que certas pessoas têm em certas horas sobre nosso
destino fá-las adquirir, a nossos olhos, uma grandeza e um encanto dos quais, muito naturalmente e sem dissimulação, insinuamos que estamos plenos. E nossos nervos
sobreexcitados, capazes de notar as nuanças freqüentemente despercebidas, vibram deliciosamente à mais simples polidez, a uma atenção delicada, a maneiras tocadas
de doçura. - Leu os artigos que a Ere Nouvelle dedica a meu pai em seus números de anteontem e ontem, não, não, de transanteontem e ontem? Não houve artigo anteontem
- disse Jean. Esse detalhe pouco importava. Mas quando temos de dizer coisas que nos emocionam muito, prenderno-nos ao primeiro detalhe material cujo enunciado interrompe
por um momento o doloroso esforço que fazemos sobre nós mesmos para exprimir aquilo que tanto nos custa dizer. - Sim - respondeu Couzon -, quando me disseram que
você tinha vindo, vi logo que era por isso. - É por causa disso - retrucou Jean e deteve-se por um instante, pensando que Couzon ia falar por si mesmo, o que lhe
pouparia o incômodo de ter de perguntar. - Mas não creio - observou Couzon depois de um momento de silêncio - que seu pai se irrite demais com ataques que, por sua
própria violência, perdem todo seu alcance. - Jean enrubesceu a essas palavras, sentindo-se chocado com essa hipocrisia, totalmente inesperada da parte de Couzon.
- Engana-se completamente se pensa desse modo - disse Jean com vivacidade. - Meu pai sente-se muito infeliz e minha mãe está de dar pena. - Couzon sacudiu a cabeça
tristemente, como para exprimir o pesar que sentia diante de toda essa -situação, e disse: Oh, a política faz muito mal. Com as melhores intenções. Não creio que
diga isso para o jornalista que escreveu o artigo - respondeu Jean com

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raiva. - A única falta cometida por meu pai foi a de ter sido fiel a um amigo e de ter-se compadecido de um infeliz. Talvez não seja bastante para que se inventem
semelhantes calúnias a seu respeito. - Falaremos disso daqui a pouco - disse Couzon, que sabia que repartindo bem as questões freqüentemente escamoteia-se uma parte.
- Por mim, acho que o mais urgente que tem a fazer é acalmar seu pai. É imperioso até, não só no interesse da saúde dele e da sua própria como no de sua honra, que
deve pairar acima de semelhantes imputações, que reduza todo esse incidente a suas verdadeiras proporções, ou seja, as de uma polêmica de jornal, penosa como bem
vejo, mas afinal sem maiores conseqüências.
Jean mirou-o por um momento, com desprezo, e depois, com voz mais calma: - Couzon - disse -, está zombando de mim, pois sabe muito bem que se vim até sua
casa não foi para voltar com conselhos dessa laia que poderia conseguir sozinho. Conheço-o há demasiado tempo para que você possa me fazer crer que não vale mais
do que isso e que é daqueles que chamam prestar serviço à recusa em prestar serviço disfarçado em conselhos insignificantes, que fazem com que aquele que veio procurá-lo
regresse tão agradecido que não ousa confessar que está decepeionado. Você não é desse tipo. Mas provavelmente julga culpado meu pai? - Juro que não - disse Couzon.
- Não pode julgar bem meu pai - respondeu Jean. - Ele pode ter seus defeitos, que lhe são antipáticos, mas isso não o impede de ser um homem de grande coração. E
tudo o que fez pelo Sr. Marie, sabendo bem a espécie de campanha que podiam desencadear contra ele, só isso demonstra já o quanto ele é bom. Imagine que, se você
se comporta como o defensor de meu pai contra a Ere Nouvelle, faria algo menos belo que o que meu pai fez ao defender Marie. Está obrigado a fazê-lo porque sabe
que meu pai é inocente, ao passo que meu pai devia pensar que Marie era culpado. - Deixe-me pensar um minuto - disse Couzon, cujo olhar, há alguns minutos, evidenciava
uma violenta concentração interior.
Jean se calou. Couzon refletia. Sabia bem que tinha uma oportunidade de encerrar a campanha, mas também tinha noção bem segura do descrédito que isso lhe
acarretaria. E nessas cir-

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cunstâncias não se sentia guiado por essa espécie de emoção generosa, de inspiração quase poética, à qual costumava obedecer. - Não, de fato não sei o que posso
fazer - disse prontamente a Jean; e, com o aspecto de continuar a pensar: - Quer que o mande com um recado à casa do diretor da Ere Nouvelle? - À casa do diretor
da Ere Nouvelle, com um recado, está doido? - gritou Jean. - Com uma pistola, não é? - Não, é verdade, você tem razão, é impossível. Realmente não sei. Como?! -
berrou Jean com violência. - Se você ameaçar a Ere Nouvelle, caso continue seus ataques, de representar contra ela, por meu pai, no processo que ele vai sem dúvida
instaurar, e, antes disso, de desautorizá-la numa carta em que diria que nada tem em comum com ela, que encara seus redatores como patifes e caluniadores, acredita
que cessem os ataques? - Em primeiro lugar, não sei absolutamente se o resultado seria esse, e, depois, não posso fazer isso. Infelizmente não sou senhor da minha
vida. Ela pertence às idéias que jurei defender e não posso, no próprio instante em que seu pai acaba de cometer um ato que censuro, sacrificando uma parte da integridade
dos poderes públicos a uma amizade particular, imitá-lo e ultrapassá-lo em muito, sacrificando a uma amizade particular o bem de todos, que, para se realizar, tem
necessidade da ajuda de todas essas pessoas com quem você quer me fazer romper para sempre.
Não sei o que eles podem fazer pela felicidade de todos. Vejo apenas que destruíram a felicidade de uma pessoa e até de três pessoas. Tenho alguma dúvida sobre se
Deus permite que as pessoas que fizeram isso por sua própria vontade possam fazer a felicidade de todos. Conheço suas idéias, são idéias de Justiça. Você foi o primeiro
que fez com que eu ás sentisse. Mas enfim, você tem em sua vida a ocasião de mostrar que essa Justiça não é uma concepção vaga, uma palavra vã, em que possa ser-
vir, de fato, à Causa da Justiça. E você recusa.
- Jean, você não me compreende. Recuso por( me
sinto no direito de preferir a felicidade de seu pai e
conheço você, sei que ela é, para mim, algo mais
que me fala ao coração, à felicidade de milhõe,
têm tanto direito a ela como vocês, que confia
315
pelos quais não posso fazer triunfar as reivindicações necessárias sem a ajuda daqueles com quem você quer que eu rompa.
- Você sacrifica o bem de todos não a uma amizade particular e sim a um interesse particular, à sua situação política. Sim, o bem de todos. Porque, sendo
injustos para com meu pai, os jornalistas da Ere Nouvelle não são apenas injustos, tornam injustos todos os que os lêem. Tornam-nos maus. Dão-lhes vontade de ler,
no dia seguinte, que um de seus vizinhos que julgavam bom é mau, que ele se achava bem tranqüilo e que vai ser destituído. Se for preciso, farão o público esperar
que seja preso e tratarão, tornando por seu turno o governo injusto, de fazer com que seja preso. Percebo perfeitamente que reinarão um dia. E esse reino será o
reino da Injustiça. Enquanto esperam que o governo se torne injusto, que as leis se tornem injustas e que a injustiça exista de fato, eles preparam esse dia fazendo
reinar pela calúnia o gosto do escândalo e da crueldade em todos os corações. Atacando unicamente meu pai, não so fizeram três infelizes de minha mãe, de meu pai
e de mim, mas transformaram todos os que os lêem num grande número de malvados. E isso talvez seja pior.
IV. Oescândalo Marie
(Final)

Havia em Paris muitas pessoas a quem a prosperidade de Marie era intolerável: Gustave Pointelin, cujo gabiripte ele derrubara com um discurso célebre e o
voto que se seguira; Gaillon, que ele combatera, como ministro do Interior; Rustinlor, que estivera sob suas ordens nas Belas~Artes e de cujos versos gracejara como
se fossem brincadeiras sem iMPOTtância; Victurnien, cuja mulher a Sra. Marie jamais quisera receber; uns porque não tinha podido obrigá-los, outros porque os obrigara,
outros ainda porque tinham sido postos de parte por alguns amigos de Marie e supunham-se desservidos por ele, todos os que o julgavam feliz por ser ministro, por
ser mais do que eles, e aos quais a idéia dessa felicidade era odiosa. Podia-se crer que durante os últimos dez anos, tão gloriosos para Marie, umdesespero sem fim
fosse o quinhão de seus inimigos. Nada disso. Assini comoo amor, o ódio também se nutre de mentiras. Não há dúvida de que os jornais anunciavam que Marie fizera
uma viagem triunfal ao norte. Mas Gustave Pointelin sabia muito bem que "o caso estivera longe de ser comocontavam, pois até em sua própria aldeia havia crianças
que lhe tinham atirado pedras". - Pedras, Gustave? - exclamou a sogra de Pointelin, com sua voz de camponesa que rolava os rr, e com ingênuo espanto. - Acho que
preferiria ter menos condecorações e não ser insultada pelas crianças da minha aldeia. Olhe só, os coitadinhos - Sim, sim - dizia Pointelin como quem está bem informado
-, sei que as coisas não andaram bem. - E saboreando essa primeira gota de felicidade: - Oh, se bem o conheço deve ter ficado bastante aborrecido, nem tudo lhe foram
rosas. Ora, pedras não são nada agradáveis. Aí está uma acolhida murmurava a velha senhora satisfeita.
- Se não passasse disso - acrescentava Pointelin. - Como, Gustave, ainda há mais? - Oh, mas eu afirmo que tudo isso vai

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acabar mal. Ele sofreu afrontas, o que sei é que não queria estar no seu lugar nem por todas as pastas do mundo. Aliás fui seguramente informado de que o subprefeito
não queria comparecer ao jantar que lhe deram na Prefeitura e onde, afinal, não havia ninguém. A mulher do prefeito disse que estava doente e foi preciso uma ordem
do ministério do Interior para forçá-la a descer. Além disso, notou-se que ela não estendeu a mão a Marie e isso causou mal-estar, não digo mais nada. Parece que
ele estava triste como um morto. Ora bolas, não é agradável sentir que as pessoas que estão em nossa casa vieram à força. Sei muito bem que, em seu lugar, a ser
recebido dessa forma, eu teria preferido deixar de lado essa viagem. Isso vai deixá-lo mal na região! - É esse ódio que faz da vida de nossos inimigos, para nós,
um romance inteiramente falso. Oódio supõe nos inimigos, em vez de uma medíocre felicidade humana, pontilhada de sofrimentos comuns que viriam despertar em nós simpatias
suaves, uma alegria insolente que à nossa raiva parece irritante. Oódio transfigura tanto quanto o desejo e, como ele, nos torna sequiosos de sangue humano. Mas,
por outro lado, como só pode se saciar na destruição dessa alegria, o ódio a supõe, a crê, a vê perpetuamente destruída. Tanto quanto o amor, o ódio não se preocupa
com a razão, e fixa o olhar numa esperança imorredoura. E assim como Jean dormia todas as noites pensando que no dia seguinte Marie Kossichef viria lhe dizer "eu
te amo", assim todas as noites dos inimigos de Marie previam que a sua desgraça não tardaria.
Como o povo judeu, esperaram çoado. E Pointelin morreu sem ver

muito tempo pelo dia abensua aurora mais confiante em que ela reluziria. Estava morto, deixando a seus amigos da história de seu tempo um relato bem diferente daquele
que era geralmente aceito. Aqueles que detinham o poder, ele os julgava já arruinados, e os que não desempenhavam nenhum papel nele, sentia-os marcados para um destino
próximo. Outros mais felizes assistiram àquela sessão da Câmara, ou a ela assistiram com a ilusão de uma fotografia animada ao lerem os jornais , onde nessa imensidade
de realizações sucessivas em que toda possibilidade acaba por ter sua vez, também pela caducidade de todos os homens e de todas as organizações humanas, Marie e
seu partido

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desabaram tão terrivelmente que nem o mais romanesco dos ódios o teria imaginado a contento. Pois o espírito, s-endo feito dos mesmos elementos que a natureza, não
pode imaginar nada que não venha a ser confirmado pela seqüência dos acontecimentos, e onde ele reconhece nesse mestre tirânico que agora o subjuga, o filho risonho
de sua fantasia. Haverá um homem de sociedade que nos serões de inverno nos possa dizer: "Eu também assisti, representei meu papel num verdadeiro romance?" Ou que
guarda no segredo de sua lembrança um romance que não lhe agrada contar, que jamais será escrito. Pois o outro ator está dormindo para sempre sob uma pedra distante,
ou vive em outra terra entre milhares de homens ignorantes de seu segredo, entre os quais não há a menor possibilidade de que o encontre, mos. Mas pode-se dizer
que esse romance nunca será escrito? Está por toda a eternidade no cérebro do homem, e sem dúvida já esteve nas páginas em que é decalcado por essa espécie de tinta
simpática, o pensamento. Não é isso o que você quer dizer, caro leitor, quando me assegura que, se quisesse falar, só saberia, dizendo coisas verdadeiras, escrever
o mais dramático, o mais inacreditável, o mais romanesco dos romances? Mas os romances perdem seu encanto quando penetram na realidade. E quando a curiosidade e
o ódio forem saciados, o público experimenta, em face do romance realizado que era o destino de Marie, essa decepção que pode chegar à indiferença e mesmo ao tédio
que sentimos ao ver por fim uma paisagem que nos encantava quando a imaginávamos, ao reconhecer no rosto de um homem ilustre e medíocre os traços que não nos cansávamos
de contemplar nas vitrinas dos fotógrafos.
Marie não foi condenado, mas teve de renunciar ao cargo de deputado. Durante seis anos, havia desfrutado mais do que ninguém a leitura dos jornais que,
pondo-lhe
sob os olhos todos os dias seu nome impresso, na carícia das palavras: "o eloqüente homem de Estado, o admirável financista, a grande personalidade política", pareciam
trazer-lhe, como uma brisa deliciosa, a admiração ou a inveja distantes de milhares de leitores fascinados. Agora que na manchete traziam: "Os desfalques do Sr.
Marie. Um ladrão que foi por água abaixo", depois de ter tentado não os abrir, experimentava todos os dias um sofrimento

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tão requintado que parecia, nesses pequenos caracteres, lhe trazer o desprezo de milhares de olhos, a embriaguez de milhões de ódios, o insulto de milhões de inimigos,
e que, assim como o ciúme colhe no amor os seus instrumentos de gozo para convertê-los em instrumentos de tortura, se assemelhava à sua felicidade, tão profunda,
tão pública e sem contraste. E como que derrubado inocentemente no leito, enquanto se deixava entrar pelas cortinas, primeira visita e primeira aclamação, a luz
do dia, gloriosa, no quarto, imaginando a, inveja de seus rivais e a cólera de seus inimigos, sentira-se invencível diante deles, do mesmo modo, diante do insulto
ignóbil e desprezível dos inimigos sentiase desarmado. Uma vez, como um prisioneiro em quem todos cospem rindo ao passar e que num momento de revolta procura desferir
um soco, mas se embaraça nos nós que o prendem, e seu algoz o lança à terra com uma rude coronhada fazendo redobrarem os risos e os insultos, assim Marie levou um
dos jornais à barra do tribunal. Mas o jornal teve ganho de causa, Marie foi condenado a pagar as custas, e desde então o jornal não deixou um só dia de publicar-
um artigo contra ele, chegando mesmo a inventar sobre sua mulher e seu filho calúnias ignominiosas.
Nessas circunstâncias, não sei qual seria a atitude do Sr. Santeuil se sua mulher não estivesse ali para orientá-lo. Desde há muitos anos, ela havia insinuado
nele, aos poucos, uma generosa doçura que os homens freqüentemente não possuem e que parecia antigamente, antes de seu casamento, fazer parte da natureza do Sr.
Santeuil. Mas desde o primeiro dia, contando-lhe a promessa que fizera à Sra. Marie, com a humilde autoridade e a ternura inflexível que faziam a sua força, ela
lhe. impôs a única conduta que deveria manter e no próprio dia da petição para autorização de busca foram ver Marie. Este, porém, não os recebeu. Sempre vergastara
os políticos que se metiam em negociatas, na Câmara, dirigindo-se aos colegas, e silenciosamente todo o dia e toda a noite, dirigindo-se a si mesmo, repetia: "Que
calúnia infame! Não conseguirão que ninguém acredite nela". Temia no entanto, que as pessoas acreditassem e não se sentia à vontade diante delas. Só teria se sentido
bem diante de

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Cerpin e Vieuxdons, Para quem o que fizera nada tinha de mau. Estava cansado, todavia, e não se sentia com forças para suportar as interrogações de Santeuil e, acima
de tudo, para continuar a dizer como dissera a vida inteira, "eu sou honesto", agora que, para isso, achava necessário modificar a maciça convicção das pessoas revoltadas
contra ele. Bendizia a Deus por lhe haver poupado a vergonha de que sua mulher fosse testemunha dessas horas.

Semelhante à porta encantada que velasse, como um guardião dotado de raciocínio, uma morada mágica, a pálpebra, quando uma luz muito forte vem bater nos
olhos, fecha-se por si mesma sobre o palácio frágil ao qual dá acesso, protegendo-o assim de um ataque que ele não poderia evitar. Nossa sensibilidade não é provida
de órgãos menos delicados e resistentes, os quais sob o nome de desmaios, embrutecimento, sono ou febre lançam contra ela, no momento em que a dor muito violenta
a fere, seu envoltório fino e impenetrável. No auge da confusão, e quando a situação se tornava verdadeiramente perigosa, um deus segurava Ajax pelos cabelos e o
ocultava aos golpes dos inimigos numa nuvem. Foi essa nuvem divina que flutuou durante alguns dias pelo espírito de Marie, até que os sinais da dor tivessem começado
a perder a violência e ele pudesse novamente afrontálos. Ocalor do dia lhe era insuportável. E esperava o entardecer com a impaciência do doente que aguarda o médico
com quem pode contar mas que parece demorar muito a vir, pois antes de chegar até nós deve ir visitar muitos doentes e infelizes. Mas enfim chegava, pondo na testa
de Marie suas frias compressas, dando-lhe ar mais fresco para respirar e um pouco de esperança para o dia seguinte. Uma tarde em que abrira, desse modo, a janela
para deixar entrar a aragem da noitinha, estendido no sofá de onde quase não saía, a natureza mergulhou-o no sono, como os vitrinistas que, para fazer aparecer determinadas
imagens, são obrigados a pôr tudo às escuras por um momento. Enquanto dormia, uma aragem suave ergueu-se no quarto e veio pousar-lhe docemente na fronte. - Marthe,
Marthe - disse

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Marie no sono -, oh, estás vindo para perto de mim! Então não sabes? - Mas sua mulher se contentou em beijá-lo e olhá-lo com ternura. Então, sentindo-se ainda mais
obrigado a mentir para ela do que para os outros, disse-lhe: - Não é abominável o que fizeram? Não é verdade que também detestas esses malvados?
Como a mulher nada lhe perguntasse e tivesse se chegado a ele com tanta doçura, Marie pensou que ela não sabia de nada e estremecia de ter de lhe contar
tudo, preferindo afastá-la, mas ela lhe tomou as mãos com ar suplicante, pedindo para ficar junto dele, de tal modo que ele compreendeu que ela sabia de todo o seu
sofrimento. E com olhos que muito haviam chorado, ela sorria para encorajá-lo. Por certo, não temia que suspeitasse dele, mas desejava dizer-lhe, como aos outros:
- Tens razão em ter pena de mim, pois me cobriram de calúnias. - Mas, embora alimentasse há muito o hábito da mentira, esta lhe parecia mais penosa naquele momento.
Porém ela, tomando-lhe as mãos entre as suas, disse-lhe rindo: - Não te inquietes com isso. Nunca fizeste nada de mal, já que sempre foste bom para os outros, piedoso
e magnânimo. Todos os homens honestos te acolherão, pois só os malvados estão contra ti. Mas dentro de alguns dias tudo mudará. Não concorda comigo, Santeuil? Não
é verdade que o que ele fez não merecia tanto sofrimento e que nós lhe perdoamos? - E Marie viu Santeuil, a quem ainda não havia percebido, e que estava com a mulher.
- Vamos, te prepara, ele veio te buscar para que saias. Vá, procure distraí-lo, confio-o a você - disse ela dando a mão a Santetifi. - Vamos, que cara triste é essa?
- acrescentou beijando o marido na testa. - Um dia ficarás bem espantado por teres tido tanto desgosto por tão pouco. - Marie saiu com Santeuil, não gostaria de
deixá-lo nunca mais. Operdão de um homem honesto, não obtido através da mentira e sim porque ele conhecia a verdade, fazia com que experimentasse pela primeira vez
uma doçura extraordinária. E ele permanecia aniquilado em face desse milagre como um homem que segue a recordação de um infortúnio irreparável e que vê, de repente,
que sonhou e que tem bem junto a si, agora que está desperto, tudo aquilo que julgava estivesse perdido para sempre.

Quando Marie acordou, esse sentimento de felicidade não o havia deixado. Mas ele se sentiu separado de Santeuil. Gostaria de reencontrá-lo logo. Pela primeira
vez, saiu de casa e mandou que o levassem à casa de Santeuil, o Santeuil que sabia de tudo mas que, por intercessão da morte e graças a seu coração generoso, lhe
havia perdoado. Todos os dias foi almoçar ou jantar lá. Oprazer de comer pratos inesperados ou anunciados apenas um momento antes de sua aparição fumegante, trocando
olhares brilhantes de bem-estar e de simpatia com os amigos, voltou a
existir para ele. Pouco a pouco os dias ruins se afastaram dele, não mais oprimiam sua vida, persistindo unicamente em sua
recordação como esses mortos dos quais contemplamos apenas a estátua impotente. Mas não era só nesse sentido que ele espe-
rava ver, verificar as previsões que a mulher lhe, fizera afirmando que um dia tudo mudaria. Tal dia bem poderia demorar muito, o dia em que retomaria o poder, em
que seus inimigos seriam confundidos. Sem dúvida, nada parecia preparar esse dia. Nenhuma calmaria se fizera em torno de seu nome. Quase ninguém
lhe dava bom-dia na Câmara. Mesmo pela questão mais insignificante, ele não poderia tomar a palavra sem levantar clamores. Mas sabia que a vida tem suas voltas,
a máxima favorita dos desgraçados. E sua experiência da vida política em vinte anos pare-
cia fortalecê-la ainda. Esse dia, ele não podia quase se ocupar em prepará-lo, mas sabia que viria. Por isso, esperava-o com impaciência. E não pensava na alegria
de seus inimigos, não procurava fazer-lhes mal pois sabia que não valia a pena, que bem cedo eles seriam humilhados e que eles sabiam que era feliz.
Como fosse orgulhoso e não malvado, essa era toda a vingança que desejava, mas desejava-a por completo. Entretanto, o tempo se escoava e, como um homem sentado
num barco imóvel, os olhos fixos nas pequenas ondas que passam, aos poucos vítima de
uma espécie de vertigem crê que as ondas conspiram para empurTar o barco e que ele avança, assim o tempo, ao passar, parecialhe preparar o dia esperado. Durante
algum tempo, as maiorias
do ministério Gaillardi foram esmagadoras. Mas, como Marie achasse que, em política externa, em finanças, em agricultura, ele
conduzia a França a um abismo, denunciava essa política desastrosa em artigos não-assinados e sabia que em breve a França
obeecada, aplaudindo todos os dias aqueles que a levam para o precipício, enfim desiludida, se reanimaria. Todas as vezes que o ministério tinha uma maioria precária
ele sentia que começavam a se cansar, que uma nova era estava se aproximando. Ou se seu crédito dava a impressão de renovar-se, acreditava que do excesso de mal
nasceria o bem talvez mais duradouro, e que era preferível que se esvaziasse a taça da amargura para que dela não restasse nada, nada. Nunca haveriam de faltar as
circunstâncias numa situação que parecia confirmar as opiniões mais pessimistas.
Certa feita, pensou que eclodiria a guerra. Prolongou-se uma greve. Em dois departamentos foram eleitos deputados socialistas. Houve um atentado contra a
Câmara. Marie via nisso outros tantos sintomas de ruína próxima. No entanto o mundo continuava a viver, a ser feliz, a perseguir e a satisfazer suas ambições a seu
redor. Enfim o ministério caiu e como se levava muito tempo para substituí-lo por outro, Marie, como essas moças a quem a leitura de romances deturpou o senso da
realidade, via nisso um estado revolucionário, uma coisa jamais presenciada. A troca de um embaixador na Alemanha parecia-lhe sinal expressivo do desprezo da Europa
e uma questão de forma na Câmara, a substituição de um juiz, por exemplo, um prólogo mais grave do que os atos mais sanguinários da Convenção. Sem contar que sua
agitação e sua esperança não só eram confirmadas por todos esses fatos, como também por todos os que os jornais da oposição inventavam, e que de sua parte julgava
verídicos. Oministério seguinte foi composto em parte de amigos seus, e daqueles que haviam sido os mais generosos para com ele por ocasião de sua desgraça. Mas
o interesse deles era ter contra si o mínimo de fatos suspeitos. E nenhum teria maior repercussão negativa do que qualquer ato em favor de Marie. Puderam se desculpar
aos próprios olhos dizendo consigo que só se prejudicariam sem lhe poder ser útil em nada. Daí em diante, Marie tratou-os de canalhas, detestou-os mais que aos precedentes,
lamentava a queda destes últimos, espreitava todos os dias os sintomas do desapreço dos concidadãos. Não os saudava na Câmara e escutava tudo o que se fazia num
silêncio feroz, tomando notas, preparando projetos para o dia em que fosse de novo ministro.

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Era, agora, um homem totalmente encanecido, alquebrado, demonstrando uma velhice prematura, uma tristeza de estar afastado do poder que seu desânimo não
mais confessava ao seu orgulho. Não duvidava do dia da glória e da reabilitação, mas começava a perguntar-se se viria, ao contrário do que ocorrera com Ferry, por
uma presidência do Senado ou por uma presidência da República que lhe daria de preferência a glória pacífica e não as condições de realizar todas as suas idéias.
Afinal, talvez fosse melhor. Essa apoteose ociosa convinha melhor à sua idade do que uma existência militante e seus sucessores aplicariam sua política, rendendo-lhe
homenagem. Seria vingado. E se o fosse somente depois de morto? A História se encarrega assim muitas vezes das reparações que a vida não pôde fazer e que lhe confia
ao se extinguir como um dos encargos de sua herança. Mas do jeito que iam as coisas não precisaria esperar até lá. Os homens que o haviam substituído eram postos
de lado uns depois dos outros. E era a seus antigos companheiros que se voltava a recorrer. Todas as manhãs, todas as tardes, durante seu passeio, repetia para si
mesmo mil vezes seguidas os nomes dos colegas que escolheria quando lhe confiassem a tarefa de formar o ministério e os termos de sua proclamação que via diante
dos olhos nos jornais , sublinhada dos aplausos da Câmara. A cólera do público se cansou. Acolheram suas Lembranças na Revue des Deux Mondes. Nos momentos de crise,
os jornais da oposição foram uma ou duas vezes entrevistá-lo. Foi lembrado para presidir um banquete de professores de seu departamento. Ao sair, apanhou um resfriado
e morreu dois dias depois de pneumonia. Conforme sua vontade, não teve discursos nem coroas, e foi enterrado ao lado da esposa e do filho sob as violetas de Beauceronges.

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V. Primeiros tempos do caso Dreyfus

O capitão Dreyfus foi preso sob a acusação de ter entregue documentos em que estava envolvida a Segurança do Estado, condenado em julgamento secreto com
base em peças que não lhe foram mostradas, e deportado para Caiena. Entretanto, as provas de sua culpa, divulgadas aos poucos, pareciam insuficientes; abriu-se um
inquérito por ordem do Supremo Tribufial para saber se se impunha a revisão de seu processo. A audiência começava todos os dias ao meio-dia. Na sala exígua, em bancos
postos uns sobre os outros ao longo das paredes do fundo e dos dois lados, sentavam-se os quinze conselheiros, com a cabeça coberta por altos gorros, vestidos de
toga, imóveis, como esses retratos de antigos magistrados onde os vemos no traje tradicional, com à fisionomia que tiveram em seu tempo, não se mexendo, ouvindo
depoimentos (tinham de julgar com base nos fatos). Seu toucado bizarro protegia uma cabeça especial onde a mais viva força da inteligência toma uma forma tão particular
que, à expressão de um julgamento literário ou artístico, à tentativa de todo tipo de originalidade numa conversa ou numa carta, o artista mais inclinado a desfrutar
uma inteligência diferente da sua não a teria sem dúvida reconhecido. Quando fazia bom tempo e o céu estava azul sobre o Palácio, seus muros dourados e depois cor-de-rosa,
em que pareciam, desse modo, espargidas e iluminadas no céu e sobre a cidade as cores das catedrais, eles iam a pé ao Palácio. Às vezes o sol, dando em cheio num
deles, obrigava-o durante a audiência a manter uma folha erguida para proteger os olhos. De outras vezes, chovia tanto que em pouco tempo era preciso pedir luz.
Nesses dias vinham ônibus, onde encontravam um colega com quem conversavam. E todos reunidos, os mais velhos parecendo dormir e mostrando de súbito por uma palavra
dita a meia-voz que estavam despertos - pois diante dos velhos que escutam é como se estivéssemos muitas vezes diante dessas focas

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de cabeça branca, olhinhos cansados, enjauladas, cujos hábitos não conhecemos e que procuramos saber se dormem ao vê-las imóveis - tentavam extrair a verdade de
todos os fatos que recolhiam.

Todas as tardinhas, agora, quando Henri queria ver Jean, tinha
de ir ao café, onde o encontrava com Durrieux, pois toda noite
Jean queria ver Durrieux. De fato, há um mês que sua vida mu
dara, e ele saía de manhã cedo para ir assistir no Tribunal do
Júri ao processo Zola, levando apenas alguns sanduíches e um
pouco de café num cantil, lá permanecendo em jejum, excitado,
apaixonado, até às cinco horas; à noitinha, quando voltava no meio
de pessoas que não estavam no mesmo estado físico, tão suave,
daqueles cuja vida é modificada bruscamente por uma excitação
especial, sentia muita tristeza e solidão por perceber que essa
vida excitante acabara de repente. E encontrar Durrieux após o
jantar, Durrieux que viera de manhã buscá-lo para irem juntos,
que lá ficara, como ele, horas inteiras de pé a ouvir as mesmas
coisas, a aplaudir nos mesmos momentos, a correr para ver pas
sar a mesma personalidade, tendo sido como ele testemunha de
tal inflexão de voz do advogado, de tal movimento do público,
de tal atitude de certo espectador influente, era como provar a
si mesmo que essa vida agitada era não só alguma coisa incons
ciente como um sonho, a qual fora vivida por outros, era tam
bém mergulhar nela, recordá-la, raciocinar sobre ela, perpetuá-la,
aprofundá-la. Se, quando chega, a morte é algo tão absoluto e se
por esse motivo tudo o que interessa a uma parte morta de nossa
vida, todos os companheiros de colégio, todas as terras antigas
nos são tão indiferentes, tão importunos, enquanto essa morte
não se consuma nós a tememos, não queremos morrer de modo
algum, aferramo-nos a tudo que parece ainda conservar a vida.
Daí as cartas, as lembranças avaramente guardadas, a velha afei
ção dos companheiros de armas, as vivas demonstrações de afeto
entre companheiros de viagem, as camaradagens do colégio, as
amizades entre colegas. Nas mágoas e prazeres vividos em con-

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junto, encontramos o começo de sadios afetos, de conversas alegres. Vida alguma que seja o seu tanto excitante está isenta desses episódios calmos que a seguem e
nos quais se sente, na viva satisfação e na alegria tranqüila das fisionomias que trocam ditos banais esvaziando um copo de cerveja, que algo mais profundo do que
eles está ali, e os aproxima e lhes sorri.
São talvez dois companheiros que acabam de passar no mesmo concurso, que durante muitos meses estudaram juntos, debruçados sobre livros inegavelmente aborrecidos.
No entanto sua vida não era de todo sem atrativos, na primavera, quando paravam um momento de estudar para ouvir o rouxinol que cantava na árvore fronteira à janela,
para olhar o lilás imóvel que sobrepunha molemente no ar luminoso as macias e delgadas pirâmides de suas flores cor de malva como um altar perfumado. Meu Deus, como
é delicada a sua cor! Como devem cheirar bem! Jean, pois é nele que penso quando preparava suas provas finais com Henri, gostaria muito de descer para cheirá-las.
Mas não, é preciso estudar. Abrir a janela? Mas o calor entraria e, além disso, o ruído dos pássaros e da rua os atrapalharia. Depois, quando o frio voltasse, quando
tudo escurecesse e tivessem acabado de jantar bem, o longo estudo diante do fogo que brilhava ativamente, retiro pacífico do estudo protegido por essa fileira de
chamas, que Jean em breve substituiria por outro ainda mais exíguo e profundo, sua cama. Mas era necessário, antes, ir lá fora, e fazia um frio dos diabos, ouvia-se
o vento na chaminé. Mas Henri o acompanharia. Não era Henri para ele o único amigo, se na figura de nosso amigo é preciso que esteja nossa própria vida e não aquela
que não conhecemos, nossa própria vida, ardente, desconhecida e alegre que nos. sorri? Depois, já iniciadas as provas, Henri viera buscar Jeart todas as manhãs às
seis horas, quando o dia mal clareava. Cada um tinha seus papéis, sua tinta, seus sanduíches, e logo que entravam na sala, chamados pelo nome, no momento em que
esvaziavam de um gole a pequena garrafa de café preto, colocavam-na depressa numa sacola. Pois era o momento solene em que acabavam de dar ao professor um envelope,
um envelope que ele ia abrir, um simples papel branco lacrado no qual estava escrita a tarefa ainda desconhecida de todos, um simples papel que o professor, de pé,
segurava e ia

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abrir com os dedos, mas que trazia toda a força do futuro que nesse instante lhes subia ao peito, que levava, na. verdade, toda a força do destino naquilo que ele
tem de inevitável e imenso, no momento em que, já realizado, ele é ainda desconhecido, em que vai espezinhar ou evitar ou glorificar nosso passado, papelzinho que
em certos dias é um veredicto, noutros uma graça concedida. A solenidade, o frémito desse momento, para Jean,

habitavam ainda à noite em Henri, que os havia sentido como ele. A vida, juntando-os ali, os aproximara, e eles se sentiam mais próximos entre si que dos outros.
É desse modo que eles se mostram, sorrindo para a vida ao olhar o que está à frente deles, conversando a rir dos soldados num bivaque, das testemunhas, dos adversários
depois de um duelo, e toda noite eles, Durrieux e Jean, nessa taverna, depois de um dia inteiro desse processo Zola.

É por isso que nessas épocas agitadas pela paixão não faltam
nunca as cenas calmas e cordiais, as longas conversas risonhas,
a felicidade de um homem que se encontra junto a outro, sorrin
do à mesma vida que cada um vê sorrir-lhe no outro. Assim é
que Jean, depois de se lavar, mudar de roupa e jantar em
casa, vinha de noite encontrar de novo Durrieux nessa taverna e
que, após terem se misturado ardentemente toda a tarde, nesse
palácio reriascentista denominado Palácio da Justiça, de imensas
escadarias de mármore, de compridas galerias que dão para o
rio, às agitações desses casos públicos, como dois florentinos do
século XV, ou como dois atenienses, como todos aqueles cuja

ardente ocupação foi a de se preocupar com os casos que apai
xonaram a cidade, vinham ambos discutir, debater longamente,
chegar a um acordo sobre o que fariam no dia seguinte, como
devia ser também a alegria tranqüila, o descanso da noite desses
dois cidadãos venezianos, desses dois atenienses que imaginamos
não terem paixão mais viva do que se intrometer ardentemente

nas discussões, nem mais doce orgulho, nem descanso mais agra
dável que sonhar que nelas se enfronhariam e comentariam com
a vizinhança antes de jantar à sombra dos arvoredos. Assim, Jeart

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no bolso do paletó, que dava a impressão de ser muito antigo e que estava aberto à altura do pescoço, o botão de cima desabotoado. Tinha o aspecto muito tranqüilo,
muito vagaroso, embora evidentemente bastante preocupado, e sentia-se que o tique, os olhos que piscavam, as mãos que cofiavam o bigode, bem como a bordadura rubra
das faces, o aspecto lastimável do sobretudo, a rigidez da perna freqüentemente quebrada, sem dúvida, nas quedas do cavalo - eram particularidades habituais dessa
coisa augusta que se denominava "o general de Boisdeffre", de quem ganhavam sua grandeza pois que esta contava sempre com elas, era com esses olhos piscos que ele
enxergava, era fumando charutos, bebendo conhaque depois das muito longas jornadas de trabalho que dourara e avermelhara as faces. À sua passagem, todos se descobriam
e ele saudava com muita polidez, como um homem de uma classe absolutamente dominante, um aristocrata clerical que podia causar inveja e que cuidava desarmar os espíritos
sendo extremamente polido. Mas apesar disso, tendo passado o primeiro presidente do tribunal e tendo de saudá-lo como todos, sentia-se que houvera algo forçado em
sua saudação, no pequeno tique dos olhos que o acompanhara, que a despeito de tudo achava singular uma época em que o general de Boisdeffre devia, como todo mundo,
saudar o presidente do Conselho municipal, um homem de nada, que era preciso fazê-lo. Mas ele o fez, sabia fazer o que era necessário e melhor que outro, com mais
polidez. Por isso respondeu aos cumprimentos mas sem dar a impressão de vê-los, seguindo seu pensamento, piscando os olhos por um momento, puxando pela perna rígida,
parando, cofiando o bigode, passando a mão pelo rosto avermelhado como por um velho cavalo de batalha que ele próprio tivesse cansado. E conquanto subisse a escada
desse jeito, seguido de seu ordenança, todos se indagavam ansiosamente o que diria ele e essas faces rubras, os olhos piscos e até o sobretudo aberto e o enorme
chapéu alto inclinado sobre a cabeça, todas essas coisas vulgares eram contempladas com emoção irresistivel por todos os que não teriam ousado aproximar-se sem respeito,
sentindo-as carregadas de toda a força incrível, imensa, européia, de toda a terra, que se voltava uma última vez aos olhos atentos, se franzia num tique sobre os
olhos no momento decisivo da reflexão, desse pen-

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samento ainda desconhecido e já realizado, que ia com freqüência explodir, mudar com a vida de um homem e de uma família a sorte da Europa.
No momento em que o general, entrando na galeria de Harlay, dirigia-se para o pequeno corredor que levava ao Tribunal do Júri, medindo os passos com o olhar,
ocorrendo-lhe uma última vez que pessoa alguma podia mais impedi-lo de dizer (o ministro ainda não fora prevenido de que o chefe do Estado-Maior fora convocado ao
Palácio da Justiça), essa idéia que ainda se achava encerrada naquele corpo comprido, nessa coisa enfim não muito forte, que um homem poderia matar mas de que ninguém
ousaria se aproximar, que não estava armado, nem sequer de uma bengala, nada além do papelzinho e do lápis na mão e o paletó aberto no alto e cujo último botão não
estava abotoado - nesse momento foi detido por várias pessoas que saíam do corredorzinho por onde ele ia se meter. Só depois de um instante é que - tanto que só
ousavam lhe confessar o que parecia de uma inconveniência incrível depois de terem incomodado o chefe do Estado-MaioT das Forças Armadas - ele soube disso. Opresidente,
receando sem dúvida as complicações diplomáticas que poderiam surgir caso o chefe do Estado-Maior falasse antes que o governo tivesse tido tempo de ser prevenido,
e, segundo todas as probabilidades, de impedi-lo de falar, quase no momento em que o general chegava ao Palácio da Justiça, acabava de suspender a audiência, adiando-a
para dois dias depois. Até lá o governo teria tempo de tomar providências. A fisionomia do chefe do Estado-Maior não revelava a menor surpresa. Passou, como um momento
antes, a mão pelo rosto rubro, parecendo acariciá-lo ou reprimir uma idéia. Seus olhos piscaram, e ele retomou com o mesmo passo rígido, o mesmo ar preocupado, a
galeria de Harlay e desceu de novo as escadas. Decepeionada e livre de sua opressão, pois essa palavra todo-poderosa o chefe do Estado-Maior não a diria hoje, talvez
nunca, a multidão comprimida na escadaria rompeu numa enorme aclamação. Ogeneral fez algumas saudações com o chapéu, mas sempre conservando o seu ar preocupado e
seguindo seus pensamentos com os olhos cinzentos. Generais, comandantes do Estado-Maior, prevenidos de sua chegada, lançaram-se em seu encalço, atirando na veloz
pas-

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sagem o dólmã sobre os ombros, e o acompanharam até o fiacre, cujo cocheiro, chamado de longe na Rua Saint-Dorninique, somente agora acabava de compreender a quem
havia conduzido e por que razão a manhã histórica. Generais e mesmo comandantes, depois de o haverem cumprimentado, tinham-se aproximado dele e desciam a escadaria
a seu lado com.toda a familiaridade. Pois nos Estados-Maiores, a vida sendo menos militar, a disciplina é menos rigorosa. E todos trabalham lado a lado.

VI. Ocoronel Picquart
É uma espécie de lei de Talião do mundo moral que aqueles que, por mais brilhante que seja sua inteligência, por mais aguda que tenham a sensibilidade, por
preguiça ou outio motivo qualquer, não dão às suas atividades um objetivo interior e desinteressado, julguem levar em grande conta a forma pura em suas várias considerações
sobre a vida. E de fato, pensando bem, essa lei é inevitável. Suponham um homem inteligente como Rustinlor mas que, por uma razão ou outra, não pode decidir-se a
refletir sinceramente, a escrever uma página profunda, a entrar em si mesmo de maneira desinteressada. Não terá de forma alguma a mesma preguiça se lhe pedirem o
nome para figurar numa mensagem da assembléia ou o seu voto para determinado candidato. Este será o seu ato importante, o ato em que terá a sensação de ter feito
alguma coisa, algo de notável, decisivo, significativo. Para falar a verdade, tais coisas não são nada, nelas não pomos nada de nós mesmos: como poderiam então guardar
algo de nós? Há muito de bondade em mudar as suas disposições um tanto azedas numa noite diante da mãe e em ouvir suas palavras e responder com doçura, com um ar
de felicidade que, para ela, ilumine essa noite, pouca coisa talvez, mas tão importante como qualquer outra noite de que se compoe, afinal, a sua vida e por lhe
dar, se estamos azedos ou simplesmente temos aspecto infeliz, essa tonalidade triste que conferirá à sua passagem pela terra unicamente a oportunidade de resignação,
e se a moléstia vem (e daí talvez), um pouco de ânimo para reagir. Entretanto, colocar o nome num manifesto, mesmo que exprimisse os mais belos sentimentos de justiça
e de piedade, e fosse necessário para tanto desembolsar cem francos (cem francos que afinal não nos pesam muito, que damos não como ânimo benevolente ou pensamento
profundo do íntimo pessoal de nossa alma), é um ato que não contém nada de esforço ou de bonda-
de, de vida pessoal. E se isso fosse assim no mundo inteiro, acontecia que, de repente, a humanidade se abismaria na barbárie, que os atos de sacrifício e de desinteresse,
de aprofundamento voluntário da consciência pessoal que encontramos subindo por si mesmos por entre os corações arruinados como a hera nas pedras oscilantes, em
qualquer região que percorramos, e graças aos quais a pobre humanidade permanece ainda de pé, deixando de existir, fariam com que a velha mãe doente fosse abandonada,
os mortos largados ao deus-dará, os irmãos desunidos, o inocente condenado em vez do culpado, o poder inevitavelmente feroz e
velhaco porque assim o seria o povo no qual se apóia. E seria isso algo de real, e que continuaria a sustentar a espécie humana vergando ao peso da doença e da injustiça,
o mesmo que milhares de prospectos, listas e obras, obras vazias de sentimento como uma cidade abandonada, pedras levando nomes de beneficência, mas que nenhuma
mão humana, nenhum esforço viril sustentaria mais, e que certamente, pedras e papéis, não transportariam a espécie humana desfalecida cairiam com ela no abismo?
Na vida mundana em que não se visa a nenhum objetivo interior e desinteressado, pode-se dizer que tudo é formalismo. De resto, é um lugar-comum entre as
pessoas da sociedade a idéia de que o mundo julga tudo pelas aparências, lugar-comum a que
alguns, para maior graça, respondem com esse gracioso paradoxo: "Mas claro, só é preciso julgar pelas aparências", ou, numa sociedade de espírito menos audacioso:
"Na sociedade estamos obrigados a julgar pelas aparências, mas somos severos com uma e não com outra cujo procedimento foi mais censurável." Afinal, a vida mundana
está ocupada por três coisas que constituem, de fato, o formalismo quase inteiro: o esnobismo, isto é, a admiração por aquilo que nos outros é independente de sua
personalidade; a maledicência, ou seja, a extrema atenção que se dá a maior parte do tempo (sob o pretexto de crítica) às aparências, às conveniências; e a etiqueta,
elevação do formalismo a coisa real e até mais real que o resto. Fora disso que se denomina a sociedade propriamente dita e, no entanto onde os homens vivem reunidos
sem dar objetivo interior e desinteressado às suas atividades, pode-se dizer ainda que o ato em que não se põe nada

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de si, que não exige nenhum esforço pessoal, é o mais importante, etiquetas de colégio, afirmações brutais de uniões ou de favores literários nos cenáculos, rótulos
partidários, gritos de "Viva Fulano, Abaixo Fulano", votos etc., nas assembléias políticas pouco sérias. Na Câmara conio na Academia, nota-se muito a presença de
um Sr. Fulano que fez questão de vir votar. Ora, é certo que nada do que constitui no fundo o Sr. Fulano está nesse voto, impressões particulares que a vista do
sol, desse sol que está associado às suas esperanças de menino e às suas alegrias de adulto, desperta nele em particular, daquilo que estará acabado para sempre
no dia em que a morte extinguir o olhar incessante que trazia na consciência. Os votos, os atos de presença, as visitas indispensáveis, as negociações, os gritos,
são outros tantos refúgios para evitar entrar em si mesmo. Vê-se um tal homem inteligente se acantonar na crítica, e na crítica evitar emitir uma opinião, mantê-la
sempre subentendida, passar o tempo com afetação, a dar o título original da obra, o número de edições, o acolhimento que o livro teve na ocasião etc., como essas
pessoas que, julgando-nos magoados, perguntam com afetação, a fim de evitar pôr numa frase o que sentem: - Como é fisicamente a senhora sua mãe? Osenhor conseguiu
dormir? Oque tem comido? Pôde voltar a vê-lo? - Homens inteligentes que se sentem muito felizes quando, diretores de revistas, têm uma desculpa bem apropriada para
não escrever e servem às letras de outra forma. Muito bem, se tais existências que se assemelham a um juizo em que seriam pontualmente assinaladas as indicações:
"Diante da Sra. Fulana e da Sra. Sicrana, tendo assinado", mas cujo ato não teria sido escrito, são de fato refúgios para não entrar dentro de si e evitar a verdadeira
tarefa de sua vida, pode-se dizer outro tanto de quase todas as manifestações com que se comprazem os homens de letras e os políticos, e da importância que atribuem
às coisas exteriores. Assim é que nas assembléias em que homens inteligentes e arrebatados não conferem às suas atividades um objetivo interior e desinteressado,
vemo-los com uma espécie de encarniçamento malsão, como se tivessem necessidade absoluta de gastar sua inteligência e sua sensibilidade para que estas os deixem
tranqüilos, assumir um ar grave, sentir uma comoção nervosa em contar, por exemplo,

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que o ministro da Instrução Pública serviu de testemunha num duelo a um certo socialista e como para se persuadir de que esse fato é bem digno de empregar toda essa
inteligência e sensibilidade, dizer: - É um fato dos mais graves, é um caso sem precedentes. A meu ver, há nisso alguma coisa de importância considerável.
Através de uma outra aplicação da mesma lei, os políticos,
mesmo os sérios, quando derrotados vêem acontecimentos essen
ciais ém tal medida tomada pelo presidente do Conselho. Quantas
político!
Com que ansiedade, com que sentimento de trazer consigo uma
novidade misteriosa e estranha, confidenciava a Jean: - Uma
coisa muito grave e que poderia então mudar tudo. Há pouco
ouviram Méline dizer num grupo que aceitaria a prioridade da
ordem do dia de Millerand. Alguém bem-informado pretende que
o general de Boísdeffre viria pessoalmente à barra do tribunal e
se declararia pronto para se solidarizar com os outros generais.
Então não sei aonde vamos parar! ]É a revolução! - Pois os que
dão tamanha importância aos fatos acham que não devem ter
mais em conta as leis. Omundo surge-lhes de maneira romanes
ca. Julgam-se sempre às vésperas de uma mudança de regime. -
Estamos bem por baixo! Pobre França! Aonde vamos? É um fato
sem precedentes! Daqui a pouco teremos novidades. É o fim
da República. - Esse ardor, essa sensibilidade que conservam
inativos se desdobra de cada vez que não têm esforços a fazer,
isto é, de uma forma passiva, a cada novidade. E saem de cada
sessão da Câmara afogueados, achando que isso vai mal, por
necessidade de dizê-lo e de senti-lo, para dar vazão à "sua inquie
tude" e exagerando as coisas para falar delas. Quando o general
Goix falou no Tribunal do Júri "da armadilha que lhe armara
Labori", Rustinlor e todos os seus amigos foram sacudidos em
sua sensibilidade sem préstimo e percorrida por uma descarga
elétrica. Como andassem pelos grupos depois disso, na galeria
de Harlay, gritando: - É uma infâmia, é uma infâmia, não se
diz isso a um advogado! Oprocurador-geral não disse nada. É
muito grave, é muito grave, é muito grave, é muito grave. . . -
e Jean perguntasse com rdoçura e sorrindo: - Mas por que é
tão grave? - Rustinlor, picado com esse sorriso, respondeu
emoções tinha o Sr. Rustinlor em seu papel de jornalist~

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altaneiro: - Tão grave? Você é engraçado, meu caro, os direitos da defesa, simplesmente isso, ao bel-prazer dos nossos generais agora! Quer dizer queásso pode ser
o fim de toda a advocacia amanhã. E então, se você tiver um processo. . . Quanto a mim, isso não me incomodará, não tenho fortuna. Mas se você tiver uma contestação
de herança - . . - Mas enfim, isso lhe escapou, não era o que queria dizer. - Escapou! Escapou! entre um general do exército francês, o subehefe do Estado-Maior
das Forças Armadas e a advocacia não existem palavras que escapem. - E já uma massa humana crescia de minuto a minuto ao redor dos dois interlocutores, e Rustinlor
erguia a voz, talvez menos pelo efeito do calor que o possuía do que para ser ouvido por todos os grupos, gesticulando, respondendo à pergunta de um desconhecido,
todos confraternizando na mesma febre e os bem-informados ganhavam autoridade sobre os curiosos e se sentiam felizes por lhes excitar a emoção e satisfazer a avidez.
Quanto a uma demissão, sobretudo se fosse a de um ministro ou de um general, ou de um membro do Conselho da Ordem, pode-se imaginar até que ponto ela fazia correr
e esvoaçar todos esses corvos que atroando os ares com seus gritos tinham a sensação de ser os arautos do futuro. Quanto à demissão de Casimir-Périer era quase demais
para fazer tanto efeito: não dava mais azo à imaginação.
Sei também de literatos cuja emoção inteira se esgota quando repetem consigo: "É o fim da língua francesa", ao observar que a Academia acolheu tal palavra,
ao dizer que Hérédia * aderiu ao verso livre. Naquele dia na galeria de Harlay, cada um que saía pelo pequeno corredor das testemunhas dizia: - Ocoronel Picquart
continua se defendendo. - Que é que ele diz, não se ouve direito? - Essa resposta talvez tivesse sua explicação na voz suave e sem ressonância do coronel, tanto
como no ar pacífico e muito feliz daquele que saía e que, não sabendo a opinião desses investigadores, preferia não se expor à sua brusquidão, dessas pessoas que
dizem: - Isso depende das opiniões. Um diz desse jeito, outro fala daquele modo, é tudo tão embrulhado que

* José Maria de Hérédia, poeta francês (1842-1905), natural de Santiago de Cuba. (N. do T.)

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não se percebe nada -, dessas pessoas que falam assim porque dessa vez são da opinião da minoria e principalmente da minoria menos violenta que a maioria, como suspeitos
(naquele dia os partidários de Dreyfus e de Picquart), pessoas que a partir de um certo raciocínio que externam (não sei se ele é inocente ou culpado, não digo em
absoluto que não seja culpado, tenho confiança na boa fé do Conselho de Guerra), confessam pertencer à minoria e se defendem por meios inteiramente intelectuais,
dizendo: - Tenho a minha opinião, o senhor tem a sua, todas as opiniões são permitidas - exórdio que não anuncia o desejo de comprar briga e que a cada dito mais
vivo se contentam em dizer: - É possível. - Porém Jean estava na sala e escutava o coronel Picquart.
Era um amigo de seu professor Beulier e, tal como ele, um filósofo, um homem que passara a vida inteira, embora usasse um uniforme azul-celeste, e ao passo
que, de fato, inclinava a rédea de seu cavalo na volta de uma estrada, ou ia ao quartel para uma inspeção, a buscar extrair a verdade, com o auxílio do raciocínio,
de todas as coisas que se apresentavam um tanto vivamente tal exame de sua consciência. Era também um cavaleiro que voltava da África e que ignorava, a não ser pela
má vontade que transparecia nos jornais , todo esse mundo de jornalistas, de adversários, de juízes que enchiam a sala e que, mantido na sala das testemunhas há
vários
dias, como um cavalo na cavalariça, não vira ainda esse grande circo do Tribunal do Júri, no qual, à chamada de seu nome, abria-se uma porta franqueandolhe a passagem.
E como se descesse de um cavalo e conservasse a pé o passo rápido e ágil de um sipaio, a cabeça inclinada e olhando à direita e à esquerda com algum espanto, indo
bem reto para diante, com qualquer coisa do desembaraço de corpo de alguém que largou a rédea do cavalo e abandona suas armas, e com um pouco de deslumbramento e
surpresa, avançou até o presidente diante de quem parou com uma saudação, não militar mas com um misto de timidez e -de franqueza como alguém cujos gestos nada têm
de formal e de aparatoso, mas que, pelo contrário, extravasam, como seu passo, a postura oblíqua da cabeça e, após um momento, o som agudo da voz, de uma personalidade
tipicamente elegante, fina e calorosa.

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Marcando-se muitas vezes os diversos movimentos do espírito pela repetição uniforme e, na aparência, absolutamente material de um ato, seu longo depoimento
foi assinalado o tempo todo por um balanceio do corpo para a direita e para a esquerda. Todas as coisas que não constituem o que se chama uma atitude correta mas
são próprias daqueles cuja preocupação não está nas
exterioridades e sim no íntimo, e cujo corpo e atitude, em vez de serem regulados pela vontade e pelo pensamento que são levados para outra parte, bem fundo no íntimo,
a um passado que se trata de explicar ou a uma idéia que se deseja aprofundar, são livremente agitados pelos movimentos involuntários e inconscien-
tes que seguem instintivamente os movimentos do raciocínio e da vontade, exprimindo-os, desse modo, com fidelidade maior do que se fossem dirigidos por eles.
Dizia-se há meses que todos os oficiais seriam chamados a depor, à exceção do coronel Picquart, detido no Mont-Valérien. E na véspera do processo uma pessoa
muito bem informada respondera a uma pergunta de Jean: - Virão todos os oficiais?
- Não, creio que nenhum, excetuando-se o coronel Picquart, que com toda a certeza virá. - Idéia que, alterando num momento as noções já assentes em seu espírito
há um mês, lhe dera um sentimento agradável de novidade, conferindo a esse misterioso coronel Picquart, até então fechado em sua cela de preso e a quem permitiam
que saísse para vir se explicar diante da Justiça
à requisição todo-poderosa do presidente, o encanto de um pássaro solto por um instante de sua gaiola, e de toda coisa até aqui desconhecida e em silêncio, e cuja
possibilidade de realização quase imediata em palavras e em fatos sabidos se encontra numa pessoa jovem e ligeira, trazendo levemente em seu passo costumeiro de
coronel habituado às etapas um segredo que ele sabe que possui, e que todos, mesmo os inimigos, observam com curiosidade.

Jean, então, sabia que o coronel Picquart talvez viesse. Mas no primeiro dia - quando as testemunhas, não tendo sido citadas ainda, podiam permanecer na
sala do júri - não ficou me-

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nos emocionado quando um senhor junto dele lhe disse: - Olhe, quem está neste momento lá embaixo é o coronel Picquart. Ouvia-se um animado ruído de conversas, os
sanduíches eram desembrulhados diante das pessoas, cada uma oferecia um pedaço a seu vizinho, e o sol entrava na sala de uma forma crua, dando idéia do lindo dia
que fazia lá fora e cintilando por acaso, nesse momento, no chapéu do coronel Picquart. E Jean tinha uma sensação esquisita ao ver lá embaixo, livre, misturado à
multidão, esse homem que ele sabia estar prisioneiro, e cujo aspecto jovem, o nariz um tanto adunco, a cabeça bem de lado e outras particularidades lá se achavam,
numa realidade física que ele não podia modificar e da qual cada traço, o louro ruivo da pele, a inclinação da cabeça, quase o constrangiam pela violência que impunham
à sua imaginação, habituada a retocá-lo à vontade e -obrigada a se submeter agora diante de um lado que ele não podia modificar.
Seu chapéu reluzente estava um pouco inclinado na cabeça. A impressão que dava era a de olhares vagos, aliás com muita tranqüilidade, bem longe de si, de
uma cabeça de modo algum apertada entre os ombros mas, pelo contrário, como que imóvel e impelida para a direita e para a esquerda e da mesma forma o passo, não
perpendicular mas o seu tanto oblíquo, indo da direita para a esquerda, dando idéia de uma espécie de ligeireza que não se desenvolvia nessa ocasião. Jean o havia
figurado alternativamente como muito velho, calmo, espigado, o aspecto do Dever amadurecido, e jovem, bonito, ardente, com o aspecto do Dever jovem. E estava muito
decepeionado e, no entanto, fascinado com esse homem lá embaixo, à frente dele, de vez em quando escondido entre outras pessoas, circulando devagar, com o aspecto
nem jovem nem velho, louro mas sem bigodes, meio como um engenheiro israelita. Nesse homem que assim circulava pelos grupos residia a estranheza da ausência de sinais
de sua prisão (nada indicava que esse senhor de luvas e chapéu alto, que não ostentava o aspecto infeliz ou ocioso, nem o ar resignado dos cativos, acabara de deixar
o Mont-Valérien para vir até aqui), da ausência de sinais de toda a vida interior que Jean lhe atribuía (nada indicava nele a indignação de um crime judiciário perpetuado
pelo Estado-Maior nem a firme decisão de cumprir o dever até o fim,

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nem sequer a indecisão, a reflexão, a luta de consciência, nesse homem elegantemente coberto com um chapéu alto luzidio e que não olhava para parte alguma, deixando
flutuar um olhar pacífico e como que desprovido de idéias, como a fumaça ligeira que se eleva das aldeias no azul, nos dias ensolarados como aquele, de tal maneira
que ninguém podia adivinhar se ele viera para falar ou para calar-se, se responderia ou não às perguntas, se concordaria com a opinião do Estado-Maior ou, como diziam,
se manteria partidário de Dreyfus), da ausência dos sinais de sua situação (o fato que estivesse aí, que o tivessem deixado vir, podia indicar ou que o ministro
o acolhia como oficial a quem concedia a liberdade apesar da punição que sofria no momento, ou então que, atingido pela citação como todos os oficiais, rompera sozinho
com o ministro e o Estado-Maior e quisera falar, na véspera talvez da reforma de jure). De modo que, visto a circular assim entre os grupos que por momentos o ocultavam
inteiramente, podia ser tido por um oficial confiante em seu futuro e em si mesmo, que, em trajes civis, era mais bem imaginado com todos os seus galões e comandando
os homens, ou um prisioneiro a quem se permite a saída para expô-lo a uma espécie de tortura, e a quem a perspectiva de penas maiores à sua frente torna, como um
carrasco, dolorosas as palavras que pronunciaria. Prisioneiro de quem se desejaria saber, apesar do chapéu alto, de todo o traje elegante que lhe haviam dado para
vir e da própria permissão para vir, da aparente liberdade que lhe haviam concedido para chegar até aqui, se não era muito infeliz no Mont-Valérien, prisioneiro
que, embora viesse até aqui em trajes civis, imaginavam antes vestido como oficial, em uniforme de campanha, como devia estar em sua cela no Mont-Valérien, e por
quem se sentiam felizes ante essa liberdade provisória. Prisioneiro por quem sofriam como por algo falso e imoral, a quem faziam sair assim e por motivos tão emocionantes
onde teria, de qualquer maneira, que decidir o seu futuro conforme o que dissesse, como se sentissem que essa espécie de tortura, esse modo de dizer: - Olhe, está
livre, veja bem o que significa isso; muito bem! decida por si mesmo, poderá fazer com que o tirem daqui para ficar cinco anos numa fortaleza -, fosse uma pena adicional
proibida pelo direito moderno, demasiado cruel, demasiado atroz. De modo que,

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livre e de pé, debaixo de seu chapéu alto inclinado como o de um simples espectador que à noite voltasse para casa e retornasse ou não no dia seguinte, dava a impressão
penosa de um doente quem fizessem deixar o leito no dia da operação e sair para se operado, e cujo aspecto ao sair bem vestido, ai dele, para tanto tempo ficar num
leito futuro não assava de melh falsas, falsas como este sol tão deslumbrante que nesse dia de ansiedade, de ar impuro de multidões vinha cintilar crua ent

quele momento o fogo da lenha que o zelador acabava de acender com as velhas tábuas da locatária do andar de baixo enchia com o crepitar de sua atividade e com uma
luz tão deslumbrante os quadrinhos da parede eram como se estivessem iluminados por uma lâmpada, embora fosse apenas o entardecer das três
horas que iluminasse o quarto até então Dia cinzento pois chovia, como se podia ver pela janelinha que os pequenos postigos de quadrados brancos e vermelhos só encobriam
pela metade. Pois só nas montanhas solitárias é que ressoou o grito de amor, de força e de alegria do homem solitário e feliz. Não é somente à brisa, cuja palpitação
ouvia aproximar-se no silêncio, que ele se sentiu unido como se sua alma estivesse nela e como se tivesse necessidade de reter seu sopro no momento em que as ervinhas
ondulassem. É todas as vezes em que sua alma transbordada animava divinamente todas as coisas e, sentindo a seu lado, como
deuses mais humildes e fraternos, o deus do fogo sacudir alegre mente sua cabeleira de luz e calor e fazer reinar o contentamentc no quarto, o deus imóvel da porta
testemunhar pelo quadradinhC encravado num entalhe da madeira a preocupação dessa provínci,
mos, e que então manifestam sozinhos, com um leve assopro, a continuação da vida física, como o hálito regular de uma criança que dorme. Olhar, sorriso, hálito que
como hálito da criança testemunham, por sua tranqüilidade, a inocência da vida oculta desses momentos. Por mais diferentes que sejamos dos outros e até nas coisas
que julgamos serem as mais importantes de todas, os outros, desde que nos achem inteligentes e bons, não nos distinguem desfavoravelmente, ou . apenas com um sorriso
aliás simpático (que loucura!), confiam em que, numa circunstância capital, essas características de nosso espírito sejam como se não existissem e julgam nossas
ações em qualquer fase de nossa vida como se fossem realizadas por um ser abstrato qualquer, na verdade por eles. Assim, o pai de um rapaz que tem grande inclinação
para a poesia não se aborrecerá aliás' com isso enquanto receber cumprimentos, mas no dia em que essa mesma inclinação tornar o filho incapaz de fazer o trabalho
que lhe derem, e ele ficar sem fazer nada, chegando a recusar um emprego, o pai se irritará e mostrará pelas recriminações que, no fundo, bem que notou as singularidades
lisonjeiras do filho, sem por isso jamais julgá-lo em coisa alguma como "um outro".
E essas particularidades de nossa natureza se assinalam até nas simples respostas que damos a um questionário. De pé, a cabeça bem destacada dos ombros,
o ar intimidado e livre em seu uniforme azul diante dos juízes, o coronel Picquart, a cada pergunta que lhe faziam, punha-se involuntariamente, como outrora, como
sempre, a tentar esclarecer pelo pensamento, a se colocar, conforme as regras daquilo que não se pode propriamente chamar de método, pois se trata de um método que
nosso espírito elaborou inconscientemente para pensar, como as asas do pássaro para voar, e que sabe apenas ser o melhor, ao menos para ele, diante do que nas horas
em que se sente melhor, em que está de alguma forma inspirado, obedece a uma espécie de sinceridade interior, de instinto imperioso, aplicando-o de modo a pôr-se
dentro de cada ser que considerava, a não ser mais ele próprio, a fazer-se alma dessa criatura, a ir instintivamente, forçosamente, em direção às ações que essa
criatura fizera. Método que se expande pelo restante da vida e nas horas em que, diante de um juiz de instrução, diante de um homem que nos ameaça, parece-nos de

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súbito que estamos completamente sós, que o universo nos abandonou e que não passamos de uma pessoa reduzida a uma espécie de inquietação. Até nesses momentos de
abandono, reencontramos junto a nós, como servidores fiéis que não nos quiseram deixar, ou como os deuses que permanecem a nosso lado, mas infelizmente nem sempre
para nossa segurança, nossas ações morais, intelectuais, que, embora as possuamos, se desprendem irresistivelmente como uma descarga elétrica, tocadas por qualquer
palavra que nos dirijam. Ocovarde se recompõe após tirar o seu proveito, mas, enquanto o insultavam, ao impacto do medo, como ele próprio sentia, no calor das faces,
o palpitar do seu coração, o falso vigor das palavras que dizia, até a descarga suprema, o instante em que girou nos calcanhares sob um pretexto absurdo, toda a
sua alma medrosa se libertava. E acima de tudo, num interrogatório em que estamos mais tranqüilos, reencontramos nossos hábitos intelectuais que não nos abandonaram.
Por mais que saibamos que tudo o que dissermos sobre isso será considerado nulo, pois seria percebido apenas por outros filósofos que, reconhecendo sob sua linguagem
a sua alma, se regozijariam, não podemos deixar de pensar desse modo. Como esses heróis da campanha da Rússia que faziam a barba na manhã do dia em que iam morrer,
embora a limpeza e a elegância não tenham sentido algum para a morte, o espírito, diante de pessoas de alma obscura, não pode deixar de seguir seu prazer de colocar
a palavra exata, de distinguir na pergunta feita duas idéias que a lógica o aconselha a dissociar, a por-se no espírito de seu adversário e a acompanhar o curso
das emoções pelo qual teve de passar, e a chegar muito
ele fez a seu respeito e achá-lo muito natural: como quando o coronel Picquart, a quem o presidente lembrou que o arquivista Gribelin o acusara de verdadeiros
crimes, e depois perguntara:
- Que pensa do arquivista Gribelin? -, o coronel Picquart, com risco de parecer estar fortalecendo o depoimento contra ele, respondeu simplesmente: - Tenho-o
por um homem honesto, e particularmente incapaz de uma mentira.
É que no momento de formar uma idéia, de enunciar uma resposta, tais homens não têm diante de si os outros e sim o seu próprio pensamento. É a ele que respondem.
Por mais que sintam
naturalmente ao julgamento severo qu

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que tal resposta provoca a zombaria dos que os ouvem, sabem que é justa e só podem justificá-la por um argumento que não será mais bem compreendido. Não que digam
coisas obscuras, mas no momento mesmo em que se põem ao alcance de seus inquisidores, as coisas simples que dizem a eles estão ainda ordenadas pelo raciocínio filosófico.
Um poeta acusado de espionagem porque olhara durante duas horas uma caserna mudar de cor ao sol poente provoca um dar de ombros dos juizes quando explica os motivos
de seu ato. Não vejo o que isso possa ter de interessante - diz o juiz uma caserna ao sol poente. Se ainda fosse uma catedral, compreenderia. Não é só você que é
poeta, eu fui poeta no meu tempo. - Opoeta só pode responder com um sorriso ambíguo marcado de satisfação amarga e reflexo de uma contradição sentida, pois percebe,
a um tempo, o juiz do lado de fora, como um homem real que pode lhe causar prejuízos, e por dentro, no campo de sua observação, como uma personagem bastante grotesca,
como que por cima dele e mais forte do que ele, muito de temer e importante de abrandar; e no entanto, como que muito abaixo dele, e cujos traços, nesse mesmo momento,
ele capta com vistas a um retrato literário. E sente que o mau efeito que sua resposta produziu é bem aborrecido para o juiz, mas cuja resposta, ao mesmo tempo que
fere sua sensibilidade pelas seqüências zangadas que se seguirão, e pela impossibilidade expressa de se fazer compreender, lhe dá, numa ordem puramente intelectual,
o vivo sentimento da inferioridade intelectual do juiz e dos outros juizes que riem às gargalhadas, julgando espirituosa essa resposta e que seu colega e não o acusado
é que é um grande poeta.
Essa inteligência é mais bela ainda quando afasta de tal modo o homem de toda paixão má - fazendo-o compreender o caráter dos outros homens, de maneira que
ele não possa atacá-los, e fazendo-o compreender quão pouco valem a riqueza e a glória, e que a vida, só tendo valor quando pode ser consagrada a buscar a verdade
e a fazer o bem aos
sacrifiquemos esses dois objetivos lavras com o sorriso da inteligência

homens, não merece que lhe que cada uma de nossas paa rir-se da vida coloca-a em jogo a todo instante contra uma verdade. Era esse sentimento que se podia experimentar
ouvindo o coronel Picquart e que tanto

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sente, nesse momento

nos comove no Fédon quando, seguindo o raciocínio de Sócrates, temos de súbito o sentimento extraordinário de ouvir um raciocínio cuja pureza não é alterada por
nenhum tipo de desejo pessoal, como se a verdade estivesse acima de tudo; pois, de fato, percebemos que a conclusão que Sócrates vai tirar desse raciocínio é que
ele tem de morrer. Há nele, portanto, nesse instante, algo de superior à vida já que é por isso que dá sua vida. Isso está pre-
, em suas palavras e nós também somos, nesse instante, presa de uma extraordinária inquietação. E contudo, tanto nossa minúscula condição está misturada
ao que temos de grandioso, nesse momento em que ele é mais do que o Sócrates que amanhã estará morto, é Sócrates que ele é ainda e nesses momentos supremos faz sempre
os mesmos raciocínios filosóficos dos quais sentimos que ele não pode se desligar, como se reconhece facilmente até em circunstâncias trágicas, por certos gestos,
por certos cacoetes profissionais, que o ferreiro não pode deixar de ser ferreiro. Sem dúvida, é muita vaidade nossa, e até mesmo absurdo, dizer que gostaríamos
de poder deixar de ser nós mesmos. Não importa, há momentos em que nos sentimos um pouco tristes vendo que o que existe de mais imaterial em nós deixa seu traço
como o que é material, e essas marcas permanecem, o velho filósofo tem seus cacoetes profissionais como o velho ferreiro. Balzac pode nos parecer um tanto artificial
quando faz com que um tabelião (Grande-Bretèche) repita sempre as palavras dos atestados etc. E no entanto é uma verdade, cuja alegoria poderia ser o qkie Jean sentisse
- um dia em que, tendo perguntado a seu ex-professor, o Sr. Beulier, se ele gostava de damas e de xadrez, ouviu-o dar uma resposta como se se tratasse de uma questão
de metafísica e parecendo seguir um raciocínio do mesmo gênero: - Bem, não é muito fácil responder. Mas posso dizer, pelo menos, o que me parece, pois não tenho
muita prática desses jogos. Quanto às damas, eis o que vejo, e, como o direi, é um jogo em que ... etc. Em conseqüência, é um jogo de pouco interesse. Ainda uma
vez, não acredito, isto é, não estou bem certo de que lhe dê a mesma resposta quanto ao xadrez. Neste parece que o espírito está mais diretamente interessado. É
um belo jogo etc.
Que se pode fazer? É somente com nossa cabeça que podemos pensar, e cansamo-la com os anos, damos-lhe, aos poucos, a for-

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ma do que nela pusemos. Por certo, não é necessário dizer que não fazemos mais que girar o tempo todo no mesmo círculo: no mesmo círculo podemos fazer rodopiar uma
infinidade de coisas diferentes. E ademais, numa assembléia, para um filósofo como Jean, perdido em meio a duas centenas de pessoas que o não estavam, era com um
sorriso de simpatia que reconhecia a marca filosófica nas palavras do coronel Picquart, quando o ouvia dizer: -, Posso parar de falar nisso, agora? Falarei disso
daqui a pouco. - Reconhecia os pequenos hábitos em que não consiste, é claro, o pensamento filosófico mas que freqüentemente o acompanham, como dois grandes eruditos
têm prazer em se corresponder em latim, ou dois músicos em transporem juntos aquilo que tocam, vários acompanhamentos de culturas muito elevadas e que os revelam
alegremente um ao outro, assim como certas boas maneiras em caso de algum desconhecido revelam uma certa educação. Ele ouvia também com um sorriso simpático certos
pequenos detalhes do modo de falar do coronel Picquart (por exemplo, uma certa maneira de dizer 'ségrêdos" em vez de segredos), sorriso simpático que se renovava,
por exemplo, quando o imitasse, como o fazia em relação ao professor Beulier: imitação cheia de admiração, sorriso mesclado de simpatia calorosa que não tem nenhuma
ligação com a ironia ou a acentuação de um ridículo.

De resto, se se procura aquilo que a grandeza verdadeira imprime em nós, é muito vago afirmar que seja o respeito, será antes até uma espécie de -familiaridade.
Sentimos neles a nossa alma, o que há de melhor e mais simpático em nós, e zombamos deles como de nós mesmos. Até se forem mais velhos que nós, mesmo tendo quarenta
anos como o coronel Picquart, mesmo tendo sessenta como o Sr. Beulier, não são mais velhos que nós, chegam quase a ser mais jovens, sua rica vida interior e as mil
pequeninas particularidades físicas que ela anima os tornam para nós agradáveis como crianças. Pensávamos num coronel, em alguém no qual se pensa com fria gravidade:
e encontramos um irmão do qual de longe gracejamos, brincando com ele, por assim dizer, com mil gracinhas a propósito de seus defeitos, dos movimentos de seu nariz
quando fala, seu jeito de correr, mas gracinhas tão simpáticas que se alguém lhe quisesse fazer mal nós daríamos nossa vida por ele.

VIL Da ópera Cômica ao
Palácio da justiça

À tarde, Jean tinha de ir ao Palácio da Justiça, sempre em função do caso Zola. Mas o duque de Réveillon, a quem a gota impedira de deixar o quarto, pedira-lhe
que transmitisse dois ou três recados. Primeiro, tinha de passar no teatro da ópera Cômica para dar ao novo diretor a boa nova de que o duque se encarregava de tornar
brilhante uma das récitas de assinatura com a presença de toda a alta sociedade parisiense. Jean teve de entrar pela Avenida Victória, onde encontrou um porteiro,
uma escadaria e um prédio imenso de sete andares, com inúmeros quartos, que era essa parte do teatro a que o público não tem acesso, que ele imagina como estreitos
bastidores por onde saem os atores depois de terem desempenhado seu papel e que, como toda coisa onde se prepara uma obra aparentemente única, compreende um número
enorme de indústrias, as quais fazem com que o autor, vislumbrando vinte mulheres costurando sedas dispendiosas para suas personagens mais insignificantes, criadas
por um instante de fantasia, se pergunta: "Meu Deus, tantas sedas lindas para Floriette, tanta arte, tantas despesas, será que vale a pena? Como essa mulher acaba
de me dizer para 'Floriette'. Essa mulherzinha que, em mim mesmo, quando penso, nunca se chama Floriette, e nem sei mesmo por que a deixei com esse nome." Assim
o autor, percorrendo essas lingeries vastas que ocupam um andar inteiro do teatro e nas quais tantas mulheres trabalham para Floriette, sente muito pouca coisa,
em comparação com isso, que lembre sua pobre fantasia, seu sonho de uma hora. Outro dia, sentindo o quanto há de precioso e de desconhecido em seu sonho, ouvindo
gabar em sua obra os vestidos e os intérpretes, perceberá o quanto isso pouco representa, o quanto é a própria obra que interessa e como ela subsistiria sem tudo
aquilo. Nesse meio tempo, entra para dizer uma palavra ao diretor nos bastidores, onde ouve, mais vezes do que seria o normal, a obra do colega a quem suce-

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derá nos cartazes e estribilhos, enquanto o olham os maquinistas interessados em saber quem é o novo autor, e as atrizes o saúdam com algum respeito na esperança
de que ele faça algo por elas, e que compartilham a admiração que uma parcela do mundo musical tem por sua música, de sorte que nesse espaço exíguo em que ele ouve
a peça sem a ver está num cenário de floresta, com um chapéu alto à cabeça e um livro preferido no bolso do sobretudo.
Zerliria, que se prepara para entrar em cena e, sob suas mantilhas negras, mostra uma fisionomia arrebicada, aproxima-se graciosamente dele e lhe fala não
a linguagem que deve ostentar Zerlina e sim a da dama que é na vida real, com Q risco de se esquecer e que sejam obrigados a lhe gritar que deve entrar em cena,
cruzando com Dona Ana, que, rápida como o pensamento, sai depois de ter ultrapassado o tabique que escondia nos bastidores a sua fúria tão interessante para o público,
seja porque se sentisse tomada pela sinceridade de sua representação, seja por já ter sido vista dos bastidores agora que ultrapassou o tabique, mas ainda visível
da platéia e assim devendo manter por um momento o papel de Dona Ana, corre na direção dos maquinis.tas, do jovem autor e da mulher que traz o seu casaquinho para
que não sinta frio, gritando ainda: - ó dor, ó dor - embora nada possa justificar aqui semelhantes gritos, como uma louca que leva ao público preocupações que ele
não motiva. Mas de imediato a corrida se detém, e com ela o canto, e ela procura apenas a camareira com os olhos, levanta o véu que a encobre, dizendo que não deu
bem o si e sem dúvida ainda perturbada se desculpa por não ter visto o jovem autor e conversa com ele, pois apesar da idade ele é importante para ela, tanto mais
que não lhe enviou as partituras que ela pedira e assim se pôs em evidência. Ojovem autor lhe apresenta o amigo que o acompanhou e que, tendo vindo pela primeira
vez aos bastidores e bem-dotado de imaginação, acha tão absurdo pretender atrair por um instante a atenção da célebre diva exatamente no meio desse papel em que
toda Paris a aclama, quanto mandar chamar o presidente da República no momento da chegada do ezar. Não obstante, ela lhe fala com muita amabilidade e diz de sua
admiração pela peça que encena, do interesse que tem por seu papel, desejosa de passar por entendida e de assumir com humildade seu papel de devotada intér-

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prete, ciosa apenas de compreender as intenções do autor e bastante animosa para representar mesmo se estiver doente. De fato, está tossindo nesse instante, mostrando
que não se sente bem. E que felicidade para o amigo do jovem autor, que alegria ter assistido pessoalmente a um acontecimento histórico, se for o mesmo resfriado
de que falarão os jornais no dia seguinte, se se trata de fato de um resfriado um tanto excepeional, o mesmo prazer que teria tido se, tendo de jantar com ela,
e
ela tendo se desculpado sob o pretexto de que estava doente, vissem escrito sobre os cartazes "repouso" por causa dessa indisposição, o que mostra que confiam nela
e que o que ele tinha tido oportunidade de saber diretamente dela era suficientemente importante para ser posto ao corrente do público que ela tanto respeita, mas
nem por isso põe em pé de igualdade com ele.
Nesse momento, saem correndo Don Ottavio e Don Juan, que limpam o suor mal se vêem fora do alcance do público; ela éstende-lhes a mão com um terno sorriso
rebelde de boa companheira, respondendo com um beijo ao gracejo de um deles. Apertam a mão do jovem autor que lhes dá os parabéns pela maneira como cantaram e se
afastam cantarolando um trecho do que irão -dizer dali a pouco. No entanto, um jovem conde se faz apresentar ao nosso autor. É um belo rapaz, de casaco, com luvas
brancas e, como homem de sua estirpe, dirige aos cantores e maquinistas (muitas vezes em pura perda) frases amáveis, graciosas saudações, acenos de mão ao longe,
aprendidas no velho palácio ducal e que deviam ser úteis num ambiente bem diverso do seu. Mas, como amante da cantora que vai criar o papel do jovem autor, este
se torna para ele uma personagem importante e ele virá mais de uma vez perguntar-lhe se não será possível mudar alguma coisa para ela na ária do primeiro ato. Além
disso, essa mulher o deixa assombrado com sua inteligência, ele confessa não poder mais suportar a sociedade em meio a pessoas que nada fazem, que só falam de lacinhos,
que não lêem coisa alguma. Os atores, os autores e os jornalistas, ao contrário, eis aí um universo, diz ele, que pensa e que trabalha, que não fica só preocupado
com a toalete. Pois se a sua é muito bem tratada, isso não lhe causa nenhum orgulho, o que dá um grande encanto às relações que mantém com as pessoas malvestidas
e inteligentes, já que elas

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não se sentem desprezadas, e foi isso que o fez sentir-se tão decepeionado ao conhecer Loti. Este declarou que nada era mais importante do que andar bem vestido,
que só gostava de cavalos, que detestava ler. Ojovem conde não pode entender que fosse
achou
essa a linguagem de um homem inteligente. Confessa que o
muito presumido. Quase receou que risse dele. Jean, a quem haviam dito que o diretor estava no palco (para a matinê de quinta-feira) e que não é outro senão o amigo
do jovem autor (que,é Daltozzi), apertou de passagem a mão do conde que vira em outros tempos na casa dos Réveillon e a quem alguns anos mais tarde, tendo-se casado
por imposição da família com uma sobrinha dos Lã Rochefoucauld e estando envolvido até não mais poder com a diva, voltará a ver nos jantares inteiramente outro,
tendo renunciado (como um advogado que, por um momento, quisera ser escritor, e que já não pode sequer restabelecer de que modo pudera se encontrar, durante alguns
anos, num estado de espírito favorável à redação) às cantoras e às pessoas de espírito, e parecendo estar razoavelmente curado disso.
Entretanto Daltozzi explica a Jean que o diretor está em seu escritório. Jean chega a uma antecâmara que dá para a praça da Notre-Dame, que se vê toda amarelada
pelo sol radioso, ao passo que entre as duas torres o céu, de um azul profundo, sorri com doçura indefinível. De resto, o soalho da antecâmara recebe também sua
boa parte de sol, que se estende até a escrivaninha em que um contínuo espera que o diretor faça entrar o próximo.
Mas esse claro sol espalhado pela praça e indo até a sala não dá a impressão, no meio de todas essas pessoas que acham ter recobrado um pouco de infância
com a sua alegria, de esperar uma audiência da qual dependerá sua sorte, pessoas que sem dúvida empenharam seus últimos tostões nas botas envernizadas que usam.
Jean recorda que esteve nos serões em casa do duque de Réveillon calçando botas sem verniz, e pensa na tirania que o desconhecido e o que para nós é o poderoso exercem
a ponto de modificar todas as nossas ações. Nesse momento em que devia entrar o jovem cantor, o diretor, a quem tinham entregue a carta de Jean da parte do duque,
veio pessoalmente - deixando os outros - procurar Jean e mandar dizer que não receberia mais ninguém hoje. Ai, nova noite de insÔnia, novo gasto de dez tos-
tões amanhã no cabeleireiro. A angústia é prolongada e o rapaz deixa o teatro e atravessa a praça regurgitárite de sol e de alegria onde ele projeta uma viva sombra
negra na qual só vê uma inquietação profunda, tanto é com nossas preocupações que se faz nossa tristeza como de nossa doença que se faz o nosso mal-estar, assim
como um febril bater de dentes ao sol e um pranto infeliz em meio à alegria geral, porque é em nós que estão a felicidade e o infortúnio.
E no entanto o sol entrava por toda a parte nesse momento. E no interior da Notre-Dame, na imensidade sombria, depois de haver passado por tantos vitrais
de esmalte azul e rubros sanguíneos que o deveriam interceptar para sempre, um pouco de sol, conseguindo penetrar, vinha pousar alegremente na pedra cinzenta de
um pilar, enquanto entre os pilares, nas aléias desertas a essa hora, no meio do vasto caminho de lajes, uma mulher permanecia ajoelhada aqui e ali e poderia ser
vista imóvel por muito tempo no mesmo lugar.

Era o mês em que, por um milagre bem mais belo do que as pedras que suam e as estátuas que se cobriam de sangue na Antiguidade, os arbustos de um bosque
negro e gasto se revestiam de uma espuma perfumada de flores lilases que, quando Jean lia durante as horas calmosas num bosquezinho do parque de Étreuilles, quando
tudo parecia sorrir, não cessava de esparzir a seu redor um aroma que o levava a suspender a leitura um instante para aspirar, e tão inebriante que depois disso
ele sacudia a cabeça respirando ruidosamente, como fazemos após saborear nos lábios de uma amante uma embriaguez inexprimível, ao passo que uma única nuvenzinha,
parada no meio do céu naquele instante e tendo deixado bem para trás uma flotilha de outras que pareciam velas brancas de barcos de pesca, mudava rapidamente de
lugar malgrádo a aparente imobilidade de tudo. No pequeno salão de onde a velha Sra. X já não saía, dos dois lados do bufê, em seus jarros de porcelana, as hastes
de cinerária se haviam revestido de estrelas de um sombrio veludo vermelho que murchava no outono, reaparecendo aveludado e novo na primavera. Mas
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em Paris, todos aqueles a quem um desgosto profundo não é suficiente para lhes cerrar a alma à alegria do sol sentiam-lhe a benéfica influência. "Eis um tempo bom
para a colheita", dissera o criado de quarto de Jean com uma satisfação na qual a colheita que ele nunca via desempenhava um papel bem menor do que imaginava. "Aí
está um tempo ótimo para passear", dissera a Jean o seu cabeleireiro. E estava certo de que o ar de felicidade espalhado em toda a sua pessoa, bem como os olhares
contentes que de vez em quando lançava à avenida ensolarada através da vidraça não eram atribuíveis ao prazer que se encontra nos passeios, pois ficava o dia inteiro
fazendo barba e cortando cabelo. Tendo deixado o diretor da ópera Cômica, Jean correu para o Palácio da Justiça. Chegou a tempo de ouvir os depoimentos dos Srs.
Paul Meyer, Giry e Molinier.
Seja o Sr. Pinard declarando aos juízes que o Dr. Laporte, a quem cobrem de infâmia, fez uma bela operação, seja o Sr. Meyer declarando à justiça militar
e civil (a qual considera Dreyfus o último dos traidores) que ele não pôde subscrever o documento pelo qual foi condenado, ou mesmo o Sr. Chambereaud, declarando
que, a seu ver, deve ser atacada a prisão em que parece assentar a vida política da França, é sempre com emoção risonha e viril que se ouve sair palavras singulares
e audaciosas da boca de homens de ciência que por mera questão de honra profissional vêm dizer a verdade, uma verdade com a qual só se importam porque é a verdade
que aprenderam a amar em sua profissão, sem hesitar em desagradar aqueles para quem ela se apresenta de maneira inteiramente diversa como se fizesse parte de um
conjunto de considerações que pouco lhes interessa. Omédico que trata de um jovem não o deixará sair se ainda estiver doente, seja qual for o interesse que possa
ter a justiça em prendê-lo ou a autoridade militar em fazê-lo cumprir o serviço de recrutamento. Mas uma vez que, por amor à verdade profissional que para ele é
o que importa, se opôs à saída do rapaz, tomou partido, com energia cordial, pelas reivindicações dele e era todo hostilidade para com a justiça civil e a autoridade
militar, que, no próprio interesse, não atentavam para esta verdade: "Ele tinha o pulmão direito obstruído e quarenta graus de febre apesar da quinina que eu lhe
dava." Assim, o Sr. Paul Meyer, que sem dúvida cuidara

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muito pouco de Zola até então, e não se incomodara um minuto sequer com sua pessoa, e que talvez fosse amigo íntimo do ministro da Guerra, defenderá o romancista
com viva simpatia, já que o considera estar trilhando o caminho da verdade, e a todas as pressões, a todos os argumentos da autoridade militar, oporá ' algumas afirmativas
a respeito de certos traços e curvas e concluirá: - Juro que isto não pode ser letra de Dreyfus. - Tais palavras são emocionantes de ouvir pois sente-se que são
simplesmente a conclusão de um raciocínio que segue regras científicas e isento de toda opinião sobre esse caso, de modo que nele se percebe um tipo de sinceridade,
a única sinceridade verdadeira, pois de um certo ponto de vista a sinceridade nunca passa de ingenuidade. Ao passo que aqui, sente-se com satisfação, na defasagem
violenta que existe entre a opinião do Sr. Paul Meyer, aguardada pelo governo e pela maioria de seus confrades, e esta opinião, entre a opinião do Sr. Pinard, esperada
pelo governo e pela maioria de seus confrades, e esta opinião, que a verdade é algo que existe de fato em si, fora de qualquer opinião, que a verdade à qual se atém
o sábio é determinada por uma série de condições que não se encontram de forma alguma nas convenções humanas, mesmo as mais elevadas, e sim na natureza das coisas.
Por isso um homem cuja profissão é pesquisar a verdade nos escritos ou nos intestinos é de algum modo impiedoso. Os generais e os juízes podem vir com seus belos
mantos. Ele lhes fala do que sabe e os senhores podem estar certos de que não largará a presa, pois assim como o médico que se fez protetor e amigo de seu doente
porque lhe parece que quem tem pneumonia não deve sair, ele é agora o defensor de Zola, de todas as pessoas com as quais não se preocupava mas que defenderá de agora
em diante com ardor, não porque as ame mas porque a escrita que lhe apresentam não é a de Dreyfus.
Amamos essas pessoas que são, em geral, muito alegres porque sua opinião assenta em raciocínios bem fundamentados, ao passo que as opiniões dos outros, sendo
baseadas em paixões, podem ser vencidas enquanto as suas o não podem, mais alegres ainda por virem falar de coisas que conhecem muito bem e bem melhor que qualquer
outro e que, se alguém ousasse vir fazer-lhes reparos, teriam o prazer de discutir o assunto, o que é muito agra-

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dável para alguém que é o mais forte e raciocina melhor. Essas pessoas se zangam com os ministros de quem ontem eram amigas de modo que sua opinião não pode de forma
alguma ser prevista com base ria amizade, no meio ambiente, nas suas opiniões. Pois o Sr. Paul Meyer podia ser amigo do general Billot e não recuar um milímetro
e vir minar todo o seu alicerce. Poderia detestar a literatura do Sr. Zola e falar dela com desdém e ser até religioso e ter horror a ela. Agora lhe dará a mão cordialmente
e irá buscar pasteizinhos para ele durante as audiências, e rirá e conversará com ele e combinará planos de ataque. E quanto mais sua opinião divergir daquilo que
se presumia, mais se sente com prazer que a Ciência é algo bem diverso de todas as coisas humanas e políticas. E se é o nome de um ilustre advogado monarquista e
cristão o que se lê na lista de protesto do L'Aurore, experimentase uma emoção maior ainda, sentindo-se bem nessa defasagem o que é a verdade. E é também uma satisfação
muito grande verificar uma certa ousadia e liberdade em tais espíritos que legitimam com uma palavra as opiniões que gostaríamos de ter tido e que havíamos recalcado,
pois em nosso esforço de sinceridade permanente (falo das naturezas semelhantes à de Jean) não ousamos sentir orgulho de nossas opiniões e aderimos à opinião que
os é menos favorável. E, judeus, compreendemos o anti-semitismo e, partidários de Dreyfus, compreendemos que o júri tenha condenado Zola e que os poderes públicos
tenham manchado o bom nome dos Scheurer-Kestner. Assim, dá-se uma violenta e agradável sacudidela em nosso espírito onde se acha- de ora em diante jovialmente instalada
em posição de destaque tal idéia expulsa e humilhada por não ter respeito suficiente por nosso próprio sentimento, quando leaios uma carta do Sr. Boutroux dizendo
que o anti-semitismo é abominável, que os judeus valem tanto quanto os cristãos, quando ouvimos o Sr. Bertrand dizer que, se os jurados tivessem o espírito um pouco
aberto, teriam absolvido Zola, e o Sr. Manau render homenagem aos Scheurer-Kestner e Trarieux.

VIII. Ocaso no 4Tígard

Enquanto o Supremo Tribunal acabava de examinar o recurso para a revisão de Dreyfus, o inquérito feito pela Câmara Criminal e sobre o qual ele teria de se
pronunciar aparecia todos os dias no Figaro. Na verdade, a única coisa posta em questão nesse inquérito eram perguntas desse tipo: Dreyfus permanecerá na ilha do
Diabo, será novamente condenado ao fuzilamento? Ogeneral de Boisdeffre será obrigado a estourar os miolos, o coronel Du Paty de Clam será obrigado a fugir para o
exterior sem ver mais uma só das pessoas cujo trato e consideração lhe haviam tornado a existência até então invejável? Ocoronel Picquart, preso há um ano, ia ou
não passar pelo conselho de guerra que o condenaria a vinte anos de trabalhos forçados, isto é, até os sessenta e cinco anos, e ele não poderia mais gozar a existência
e a liberdade?
Mas num sentimento bem diverso é que esse inquérito era lido por todas as pessoas que desejavam a soltura de Dreyfus se fosse inocente, a soltura de Picquart,
e que não queriam mal a Du. Paty de Clam. nem ao general de Boisdeffre. Tal sentimento, provavelmente livre da angústia das conseqüências que iriam resultar desse
inquérito e ao qual se inclinavam as perguntas do presidente, as respostas das testemunhas, o próprio fato de existir o inquérito, tal sentimento era o de uma satisfação
profunda manifesta à noite no sorriso com que se adormecia murmurando: amanhã de manhã, que é que nos vai trazer na cama, sobre a bandeja, o Figaro, tão fresco quanto
o pãozinho posto ao lado, de uma essência também refinada? Pois os generais mais conhecidos eram os que nos desvendavam sua opinião apaixonada sobre o caso, e também
'em virtude disso, tão reconfortante, tão saudável como o café com leite a ferver que fumega na taça e que havemos de beber em pequenos goles durante a leitura do
Figaro, pois não se pode beber nem ler sem parar. E nada vale um bom gole de café com leite bem adoçado e bem quente para saborear à espera

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de saber o que vai revelar o Sr. Bertulus, e do qual lemos apenas a manchete. De fato, essa curiosidade não era tão viva ao despertar como no momento em que adormecíamos
na risonha perspectiva de um amanhã interessante. ~im como aquele que baixou as cortinas antes de se deitar sob um céu fervilhante de estrelas desperta pela manhã
com o ruído de uma chuva pesada, muitas vezes as nossas disposições de espírito mudaram com o tempo. Lembramo-nos bem de que tivemos tais ou quais idéias ao deitar
mas é só um catálogo de nossas idéias da véspera que poderíamos estabelecer. Elas que nos pareciam tão lindas, que convidavam a pegar da pena, que teriam tido a
força necessária para nos fazer voltar atrás em nossos prazeres a fim de que permanecêssemos em sua companhia, não as encontramos mais. Nenhuma beleza em nossa alma
ficou para agradá-las. E não temos fome para atacar a meia-lua e o café com leite, nem curiosidade diante do Figaro. Mas o café com leite reanima nossa curiosidade
crescente, e já nos aborreceríamos se nos tirassem o Figaro. E, de fato, lemos durante várias horas. "É espantoso o que há para ler nos jornais atualmente. É um
verdadeiro sacrifício." Mas é um sacrifício que não trocaríamos de boa vontade. Satisfação da qual temos tanta consciência que a frase: "tudo o que pedimos é que
isto acabe, já começa a ser demais" foi substituída por esta: "Quando isto acabar, que faremos?", que já não é tão original.
Cada um se divertia, tanto mais que esse divertimento era excessivo e que em si mesmo ninguém tinha a sensação de buscar um prazer, o que torna mais exigente,
e sim de responder a um problema e de entregar-se a um estudo se bem que, para dizer a verdade, passavam por alto "tudo o que fosse um pouco técnico". Quanto ao
resto, mesmo para quem não estivesse do lado do exército, o que pensam e o que fazem os militares nos interessa especialmente. Conhecemos muito bem o que significam
as palavras de um orador talentoso, de um literato inteligente. Um militar inteligente nos parece talvez um novo tipo de inteligência que não conhecemos e cuja revelação
nos dará a sensação de coisa nova, de que não deve ser também verbal. Em seguida, gostaríamos de saber como se comportam esses homens face a face, tão claramente
hierarquizados e que no entanto devem, em alguns momentos, conversar de outra maneira que não dando ordens uns aos outros

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sem atentar para o posto militar, sem fazer continência. Esses atos, enfim, que uma vez ou outra os vemos cumprir, gostaríamos de saber de quais juízos as mesmas
coisas que também fomos chamados a conhecer e julgar, eles foram precedidos, como conversavam juntos, se às vezes não houve desacordo entre o chefe e seus subordinados,
e como este se exprimia. Pois vemos passarem esses homens que, mesmo quando ostentam o disfarce de civis, aparentam mais do que são na verdade, e como os deuses
que assumiam forma humana são "militares à paisana", o homem apressado, de olhar vivo, que, domingo de manhã, para além de suas roupas civis, vai pensando em suas
ocupações militares e responde bruscamente a todos os soldados que o reconhecem sem conhecê-lo e o saúdam, que vai depressa e que não tem o aspecto de usar uma casaca,
uma gravata encimada por um chapéu, mas sob cujo casaco se sente o corpo ágil do militar. Vemo-los passar. Mas nada sabemos do que pensam, do que dizem, sua inteligência
se exprime em obras mudas que não conhecemos. Quanto à vida que levam entre si, permanece fechada. Não nos interessamos em saber o que dizem entre si dois ministros
ou dois duques. Mas saber como o general de Boisdeffre conversava com Du Paty de Clarn é a realização parcial daquilo que permanecia inteiramente virgem no domínio
da imaginação.

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IX. A verdade sobre o caso Dreyfus

Depois do jantar, como o acaso do ajuntamento das cadeiras tivesse reunido todo mundo ao redor do general T., e tendo o conde de T. dito: - E dizer que na
França puderam sustentar, durante quatro anos, que Dreyfus era culpado e Esterhazy inocente! - Esterhazy, ah! Mas é verdade, general, o senhor trabalhava nos Negócios
Estrangeiros por ocasião do encerramento do caso Dreyfus. - Assim posso dizer que não acredito que Dreyfus fosse culpado, mas estou certo de que Esterhazy não o
era - todos se voltaram vivamente para ouvir a pessoa que acabava de lançar uma afirmativa tão extraordinária. - Como! - interrompeu o conde de T., que alimentava
uma certeza, a da razão, e de fato é necessário dizer que, junto das crenças absurdas na traição de Dreyfus, a culpabilidade de Esterbazy era uma certeza, isto é,
uma obra nítida, elaborada por homens frios e de verdadeira inteligência, apoiada em fatos precisos. Mas a realidade da história e o que torna o seu encanto ambíguo
e especial, que a faz sempre divergir da atualidade pelo fato de que nunca é conhecida só pela aparência, mas que a faz divergir também da verdade, obra do raciocínio,
pelo fato de que não pode ser deduzida e flutua entre a verdade e a aparência, e que faz com que ela não resida nem na rua nem no cérebro do homem de gênio, mas
na cabeça inclinada de olhar gasto de um diplomata experiente, pode demolir uma tal certeza. Oconde de T. não pensava assim, pois o interrompeu dizendo: - E o borderÔ?
- Oborderô não foi feito por Esterhazy, sua escrita foi imitada.
O conde sorriu dando de ombros. Era com efeito o argumento das pessoas apaixonadas e estúpidas no momento do processo. Mas se Dreyfus tivesse imitado a escrita
de Esterhazy, teria lançado a culpa sobre ele ao ser acusado. Não se imita a escrita de alguém a não ser para poder valer-se dela como uma descul-

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pa. - Sim, se o falsário for apanhado - disse o general -, e se não for? - Mas Dreyfus foi preso. - Contudo eu lhe disse que julgava Dreyfus inocente - afirmou o
general (pois as pessoas que têm o hábito de ver as suas palavras valorizadas gostam de dizer "eu lhe disse, eu acho, minha opinião é que"). - Quer dizer que nem
Dreyfus nem Esterhazy? - perguntou o conde, que jamais levara em conta essa hipótese e diante da qual, de fato, nada mais valia o seu raciocínio. - Sim - disse o
general. - Quem, então? - indagou o conde. - Permita-me não responder - concluiu o general. - Era alguém bem conhecido - continuou - e dentro de alguns anos, se
nos virmos ainda, lhe direi o nome dele. Mas não procure adiviiihar, pois ele nunca foi mencionado a propósito desse caso, e eu sou o único, juntamente com o duque
de X., presidente do Conselho do gabinete em que eu tinha a pasta da Guerra, a sabê-lo. Mas soubemos disso tarde demais para poder fazer qualquer coisa.
A ocasião despertava interesse. De fato, sentia-se evolar no quarto algo de imaterial que poderia ser chamado a verdade de um fato histórico e que na realidade
só se desprende ao redor de uma mesa onde conversam pessoas que aí se ajuntaram. A fisionomia dos interlocutores assume logo um ar grave e definitivo como se eles
se transformassem em testemunhas diante da história. - E Picquart? - gritou o conde. - Eis alguém a cujo respeito deve haver engano. É impossível que tenha forjado
a escrita e desejado incriminar Esterhazy por meios fraudulentos, pois nesse caso seria um celerado e sempre acreditei fosse um herói. Em face a tantas pessoas movidas
por interesse pessoal, sua conduta foi sempre e unicamente ditada por sua consciência. - Através do documento jamais se saberá a verdade - disse o general. - A minha
impressão é que a escrita foi de Picquart. Mas ainda assim o senhor tem razão em admirá-lo. - E pronunciou com gravidade as seguintes palavras, pois era homem de
coração e inteligência admiráveis e é a ele que devemos estes dois excelentes romances: Cceur et Volonté e Vers 1'11e des Mouettes. - Se ele foi combatido pelos
militares, pelo povo e pelos jornais até fazerem dele uma espécie de mártir, não foi por seus defeitos e sim porque perseguia independentemente de todo interesse
um objetivo contrário aos interesses de uns, aos pro-

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jetos de outros. Agiu realmente só por amor à verdade, e além do mais estou certo de que tanto achava Esterhazy culpado como Dreyfus inocente. Mas tendo de lutar
contra a calúnia, a mentira e o interesse, julgava poder tornar sensível sua crença por meio de uma peça idêntica a tantas outras que deveriam existir. Ainda assim,
não a fez de, modo algum humilhante para Esterhazy, e sim apenas aquilo de que necessitava, ou seja, provar as relações de Esterhazy e de Schwartzkoppen, das quais
tinha absoluta certeza. Acho até que mais tarde forjou outras para incriminar DU Paty, a quem detestava e de quem queria se vingar: pois também era possuído de paixões
humanas e ficava muitas vezes com o rosto vermelho e soltando palavras amargas quando lhe falavam de determinadas pessoas. E sem dúvida foi levado a cometer perjúrio
quando lhe perguntavam se a letra era sua quando dizia que não. Mas reconhecê-lo aos olhos de uma turba simplista e uivante equivaleria a dizer: "Sou o falsário
que pensam, quis incriminar Esterhazy mesmo não acreditando em sua culpa, sou um patife, estou subornado." Ora, ao confessar isso ele teria mentido muito mais do
que se dissesse que a letra não era sua. Pois somente agira, com prejuízo de todos os seus interesses pessoais, para o bem e emocionado com a inocência de Dreyfus,
e quando percebeu o quanto era superior a tudo que o rodeava foi que julgou poder agir como fez. Era extremamente inteligente e tinha orgulho disso. Esse amor-próprio
de parvenu era o único traço egoísta a permanecer nele e naturalmente por meio desse egoísmo é que foi levado a proceder mal e a querer, em vez de ser tachado de
sonhador e de quimérico, poder provar o que dissera e mostrar a prova da qual ele próprio não precisava. Mas homem algum é destituído de defeitos e esse foi um de
seus maiores. E por uma conduta que'visava unicamente a um objetivo desinteressado foi com toda a razão que despertou a consciência de uma boa parte do povo francês.
O Sr. Xiron olhou para a mulher com o rabo do olho, pois sentia-se feliz com o fato de sua casa ser palco de revelações tão interessantes, e parecia dizer-lhe:
"Que salão arranjamos apesar de tudo e como servimos pratos excelentes aos nossos convidados." Ao entrar o criado com os copos, a Sra. Xiron, com ar zangado, lhe
fez sinal que se retirasse para mostrar o quanto

362

era boa dona-de-casa, como se faz quando alguém está cantando. Depois fez questão de levar a laranjada para junto do general em agradecimento e a fim de que ele
não tivesse de se levantar, para que pudesse continuar a deslumbrar os convivas. Mas ele se levantou e disse: - Não, não, vamos todos tomar a laranjada na sala de
jantar - condescendendo em cuidar das coisas da casa como faz todo grande homem que sabe agradar, ao acolher as crianças sobre os joelhos.

363
vi

Os Sauvalgue. - Jean na Bretanha: o telefonema para sua mãe. - Begmeil. - A igreja. - Leituras de praia. - Tempestade em Penmarch. - Os adeuses. - Omar na montanha.
- Begmeil na Holanda. Impressões reencontradas.
1. Os Sauvalgue

A Sra. Santeuil, tendo encontrado naquele dia os Sauvalgue, o casal por quem sempre sentira viva simpatia, convidou-os para jantar na semana seguinte. Mas
eles não podiam porque estavam de partida para Begmeil, pequena praia da Bretanha da qual a Sra. Santeuil já ouvira falar. Os Sauvalgue afirmavam que era uma região
encantadora, tinham mais ou menos a fama de a terem descoberto e aconseihavam a todos que para lá fossem. Haviam adquirido uma propriedade no lugar, da qual falavam
com entusiasmo à Sra. Santeuil, dizendo que não havia no mundo lugar igual. E, de fato, sentia-se perfeitamente que a felicidade de suas vidas - a felicidade de
nossa vida que às vezes com efeito se assenta e se prolonga docemente num vale macio até o mar que à noitinha se assemelha a uma névoa multicor de arcoíris -, sentia-se
que a felicidade de suas vidas lá se achava. OSr. Sauvalgue não aceitara um cargo diplomático que não lhe permitisse suas longas temporadas em Begmeil. E em Paris,
apesar dos altos vencimentos do Sr. Sauvalgue, eles continuavam a ser servidos por uma criada e a morar no quinto andar, não hesitando, em compensação, em percorrer
200 léguas para ir passar dois dias em Begmeil, pois Sauvalgue tinha dois dias de folga, e em Bec-dog um barco, um carro e um cavalo de sela sobre o qual percorria
essas terras, onde o dia inteiro os juncos e as urzes já lançavam no chão um pouco da cor dos reflexos do pÔr-do-sol.
- Venham, faremos grandes passeios a pé, vocês irão pescar
e de noite quero ver vocês não dormirem! - Lá onde passamos
uma vida saudável e feliz, gostamos de crer que residem de fato
o segredo da força e o privilégio da beleza. - Verão como * é
bom o ar de lá. Posso garantir que vão respirar de verdade!
- Infelizmente a respiração não depende só do ar. Jean gostaria
de conhecer essa terr& de que falava o Sr. Sauvalgue, acreditava

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de boa vontade que não ficaria mais doente e que, fora do mundo, essa seria uma terra de beleza. Encontrara às vezes essas pessoas para quem a felicidade se resumia
numa determinada região aonde todos os anos iam restaurar as forças, a alegria, a inspiração em locais que, além disso, não deixavam à sua espera por muito tempo.
Tais homens lhe agradavam com freqüência graças a uma espécie de inocência que provinha de seu desapego às ambições costumeiras. Sentia-se que lhes era indiferente
ter um cárro e um camarote na ópera. É claro que não eram mais indiferentes que outros à consideração dos homens e, como quase todos, gostavam de se sentir os primeiros
em certas matérias, como o advogado que tantos homens importantes vêm consultar, como o operário em sua oficina, como o ator na cena que faz sozinho quando tantas
personalidades ilustres estão na platéia após terem lido seu nome nos cartazes, como o diplomata que trata de igual para igual os príncipes no exterior, como o funcionário
que tem seus empregado~ que o saúdam, a quem o ministro escreve, duas vezes por semana, cartas que não são.de sua pena, é verdade, mas que um munícipe lhe envia,
como o literato que não é valorizado mas cuja obra permanece e conserva algo de sua própria personalidade.

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II. Jean em Begmeil:
o telefonema para sua mãe

Chegara a hora da partida. Jean, deixando Réveillon na antecâmara, voltava o tempo todo para perguntar, em tom irritado, se sua mala estava arrumada. - Bastava
que prevenisses mais cedo de tua partida, é ridículo isso - respondia a Sra. Santeuil em voz bem alta. A porta estava aberta. Jean percebeu que Réveillon ouvira
e, vendo que a mala já estava arrumada, pousou rápido os lábios indiferentes no rosto da mãe, lábios desagradavelmente inflamados pela pressa e pelo mau humor. Horas
depois, no hotel das Roches-Noires em Begmeil, foi para o quarto aonde iam levar suas coisas. Depois de ter subido as escadas, chegando a um patamar desconhecido,
sentiu-se bruscamente longe da mãe. Uma palpitação fraca mas contínua despertou-lhe no vazio do peito, como, bem longe, o incessante marulho do mar. Seriam pensamentos,
desejos, medos, inquietações, ímpetos que haviam crescido até então sob as asas da mãe, e que ele empurrara para longe'dela, e que de repente, vendo-se abandonados,
pulavam dentro dele como para se lançarem fora, assustados, desesperados, loucos de medo de não terem mais força para fazêlo, multidão tumultuosa e frágil, infantil
e cheia de ternura como uma ninhada de pequenos alcatrazes que atiramos ao mar quando perdemos de vista a costa, e que soltam gritos, têm seu ímpeto quebrado pela
impotência de suas asas, chamam pela mãe que não pode ouvi-los e sentem o coração saltar até ela sem que, indo tão rápido como ele, possam atingi-la?
No fim de um corredor alumiado por muitas janelas e onde reinava uma alegria desconhecida que lhe fazia mal, Jean foi abordado pelo moço do hotel. Era o
seu quarto. Ouvindo dizer 44seu quarto" ele se sobressaltou, quis recuar como o condenado no momento em que -vão fazê-lo entrar em sua cela. Abriu a porta. Em Paris,
qui,-ido ia para o quarto, não fazia esforço algum para entrar. Ohábito o esperava à porta e a abria alegremente para ele. A amizade lhe abria os dois braços da
poltrona

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cujo carvalho, pêlo e seda tinham perdido há muito o aspecto original à força de estarem saturados de sua fadiga, reavivados por sua cordialidade, docemente esmagados
por seu desgosto que neles se abandonava, ou acariciados quando neles se refestelava seu bem-estar. Como velhos criados que aos poucos se fazem merecedores de conhecer
nossos segredos, e, sempre dando a impressão de conservarem na atitude imóvel sua condição de subalternos, tornam-se amigos vibrantes, sensíveis e ardentes, a poltrona,
a cama, as cortinas do quarto de Jean tinham-se tornado criaturas bastante parecidas com ele; o silêncio suspenso no teto e refletido no espelho escutava ainda as
últimas palavras da Sra. Santeuil ou espreitava o ruído cada vez mais próximo de seus passos quando ela ia entrar para ver Jean, fazer-lhe "uma visitinha", e olhando
os velhos móveis sobre os quais, embora lhe pertencessem, ela gostava de dar a entender que não tinha direito algum, em respeito à independência do filho, dizia
que estavam bem conservados ou que estes aqui, ficando velhos, precisavam de cuidado, fazendo que esses velhos servidores, cordialmente felizes em se sentirem do
Sr. Jean e em estarem, assim, subordinados ainda à Senhora, experimentassem uma emoção maior do que a dos soldados durante a revista do general, do que a dos doentes
durante a visita do médico e do que a jovem esposa ao ouvir as recomendações de seu pai, que para ela é apenas o sogro do marido. Assim, quando Jean entrava nessa
alma esparsa a seu redor que era o seu quarto, não fazia mais, por assim dizer, do que entrar em si mesmo, ou antes, era o quarto que entrava nele com toda a vivacidade
da simpatia e a doçura do hábito. Sozinho, sentia-se de coração mais rico, mais desafogado, mais vasto. Quando abriu a porta daquilo que tinham chamado, como uma
profanação do passado e como que para já fazer pesar-lhe o futuro, "seu quarto", quando percebeu numa ordem desconhecida (mas que parecia ser conhecida) duas cadeiras
que nada lhe diziam mas davam a impressão de responder uma à outra, um espelho em cuja dureza ria ironicamente o mármore de um lavabo onde ainda não haviam posto
as toalhas - ah, as toalhas colocadas por Eugénie em seu quarto, no quarto dele, as quais voltavam da lavanderia todas as semanas um pouco mais frágeis, porém talvez
ainda mais suaves, e que secavam seu corpo gelado

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com toda a pressa, que o corpo ardia por se aquecer, quando a mãe na poltrona lhe sorria em silêncio - ele acabava de fazêIa calar-se ao dizer, sentindo a água escorrer
pelas orelhas, "um momento, não ouço mais nada, podes me falar logo logo" sentiu-se, malgrado seu, diminuído, duro, sem jeito de penetrar nessas coisas estranhas
que a simpatia não lhe franqueava, partir o feixe dessas forças que pareciam se lhe ter oposto, abrir caminho nesse mundo compacto, rijo e frio.
Ah! não era a entrada em seu quarto onde a simpatia, como um rio, o transportava por si mesmo. No gelo, ao contrário, muito esforço era preciso, ferindo-se
todo, para tentar abrir uma fenda, entrar. E o leve palpitar do coração que se lançava em busca de sua mãe ia crescendo, batia bem à superfície da pele. Era como
que uma crueldade não abrir para esses abandonados, não deixá-los correr em direção à mãe. E era ele quem intensificava a tortura. Sufocava nessa prisão. Chegou
à janela: o céu ainda estava claro, mas a tarde começava a declinar e não se enxergava muito longe na rua. Diante da mercearia, uma mulher ,acabava de se levantar
ao sentir que a noite vinha, e recolhia a cadeira onde estivera sentada diante da porta. Entrou na loja e desapareceu por detrás dos frascos largos cheios de confeitos
ingle~ ses que torciam seu esmalte cor-de-rosa contra a parede de vidro, entre vassourinhas, num provável cheiro de petróleo, figos secos e sabões, e cuja forma
se adivinhava, através dos papéis de seda engordurados. Era ainda mais estranha a cidade que ele não conhecia, a noite que ia envolvê-lo em seu abajur negro tão
longe da mãe. Ocoração lhe bateu com tanta força que deu as costas à janela e caminhou rapidamente para a porta. Mas então seus olhos depararam com a cama, que ainda
não vira, uma cama enorme que sufocava sob um dossel rebaixado de todos os lados (não era possível afastá-los, estavam presos à parede e ao teto), e que conservava
em seu edredão cor-de-rosa um cheiro de mofo. Ele via-se lá dentro, sem poder dormir, pensando na mãe, mantido longe dela por cobertores mudos e muito bordados,
sentindo a palpitação infinita de seu peito crescer no silêncio da noite, a ausência irrevogável, a imobilidade do repouso, a angústia da solidão e da insônia. Oquarto
era a prisão mas a cama era o túmulo.

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Lançou-se para fora do quarto, empurrou os moços do hotel que, como carrascos, preparavam silenciosamente o seu cativeiro desfazendo sua mala, levando ao
lavabo as toalhas, pondo-o em presença do fato consumado de seu desespero. Há cinco minutos vinha repetindo pgra si mesmo: "Volto de novo, dentro de três horas estarei
feliz outra vez, ali mamãe. . . Não, mamãe ficará triste, talvez furiosa, é impossível, amanhã estarei mais calmo. - Amanhã? Quer dizer, esta noite aqui? Não! Vou
embora." E seu coração batia cada vez mais forte, ora de esperança, ora de sofrimento. Sentia-se cruel por prolongar assim essa incerteza do coração entre a vida
e a morte, e não tinha coragem de decidir. E a palpitação tornava-se cada vez mais poderosa, cada vez mais profunda no vazio do peito. Teve medo dela. Pôs a mão
no coração, parou por um momento. Qualquer movimento a intensificava. Depois, satisfeito com o desafogo, o coração acompanhando-o na alegria e a palpitação passando
a ser ímpeto de contentamento, perguntou: - Quando é o primeiro trem para Paris? - Só amanhã às duas horas.

Agora ele queria telegrafar, fazer qualquer coisa que o pusesse em comunicação com a mãe. - Mas, senhor, temos telefone. - Tocaram. Responderam logo. Pediu
uma ligação para um decorador que morava em sua casa. - Osenhor teria a bondade de dizer à Sra. Santeuil que venha ao telefone para falar com seu filho? - Sim. -
Mas eis que já passou um bom quarto de hora e ninguém mais tocou. Que será que está acontecendo? - Senhor - disse o gerente do hotel _, é que só existe um cabo daqui
a Paris. Por descuido fizeram outra ligação. Pode demorar muito tempo. - Então ele imaginou a mãe tocando o telefone, chamando-o, sem compreender por que Jean não
lhe respondia (pois ela deve ter descido imediatamente, já deve estar há algum tempo ao telefone). Se ele pudesse lhe explicar, dizer: "Mamãe, tem paciência." E
quando a ligação fosse feita, a mãe teria partido, cansada de esperar, fatigada, principalmente desapontada (deve ter corrido tão depressa, tão contente, para o
telefone, seria quase a mesma felicidade que se

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lhe dissessem: "Eis o Sr. Jean de volta", sem que ela se sentisse aborrecida por ele ter deixado Begmeil). Ele se transtorna, impacienta-se na espera, estimula cruelmente
sua decepção e saboreia a amargura de ficar de novo sozinho, sem ela, a duzentas léguas dela quando poderiam estar lá um com o outro. Além do mais, está acabado,
não poderá incomodar duas vezes o decorador.
Mas emocionante, clara, eis a campainha que toca, parece correr aqui e ali. Rápido ele põe o fone à orelha. A voz forte e áspera de um rapaz: - É o Sr. Santeuil?
- É claro que falam por sua mãe, enquanto o fazem segurar o fone, que ela está se apressando, muito perturbada. Uma outra voz forte e áspera de outro rapaz. Depois,
de repente - é como se todos tivessem saído do quarto e ele caísse nos braços da mãe - veio a seu encontro, tão doce, tão frágil, tão delicada, tão clara, tão derretida,
um pedacinho de gelo quebrado, a voz de sua mãe. - És tu, meu querido? - É como se ela lhe falasse pela primeira vez, como se a encontrasse após a morte no paraíso.
Pois pela primeira vez ele ouve a voz da mãe. Escuta sempre o que ela lhe diz, mas jamais notara a voz dela, não mais do que a própria, por exemplo. Então, recebendo-a
assim de súbito, no momento em que a deseja acima de tudo e aguarda já sem esperar, em que está prestes a ouvir de novo a voz de um rapaz, está estupefato com o
abismo existente entre essas vozes ásperas e esse pequenino pedaço de gelo partido onde parecem correr por baixo das lágrimas todos os desgostos sofridos há alguns
anos, e que não cessam de circular por essa voz, soluços ou gemidos que ela nunca deixou escapar para não magoar os seus e que lá estão guardados tão pertinho, como
as lembranças dos mortos no aspecto de sempre de seu quarto, a um dedo dela, nas gavetas. Mas o que o espanta e deixa embasbacado em relação a essas vozes masculinas
é descobrir nessa voz que parece estar a cem léguas delas, descobrir nela algo que ele jamais viu no mundo e encontra ali pela primeira vez: a doçura - a doçura,
a pequena essência divina com a qual muitas vezes sonhou, imaginando-a absolutamente como era, suave, magnífica, e que tem no ouvido, bem pertinho, como os pedacinhos
oferecidos de um coração partido.
Então, como se sente tudo o que Jean representa para a mãe! Desde que se fez homem, que é quase como seu pai, que faz

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JOS quais ela não participa, a Sra. Santeuil quase que 111. Begmeil
i p diante do filho. Nada representa perto dele. Nesse
i/ o Je Voz partida sente-se toda a sua vida dada a ele
,~k Junto como em todos, a única ternura que está inteira
III que uma só parcela seja retida para si mesma, a voz
tini pedacinho de gelo onde não há voz, nem força,
força do orgulho, do egoísmo, dos desejos, do inte- 0 semáforo de Begmeil está situado na extremidade dessa pe-
~1~ Se além da doçura, a doçura sobrenatural que permane-
co;~ p ele sem que ele soubesse, que não tinha aspecto de nínsula e vê à esquerda a baía de Concarneau, que a banha a
e ~ ~ . oeste, à sua frente, e à direita o oceano, que a banha a leste, "o
5jinária e que assim, surpreendida de chofre entre grande mar", como lá dizem por oposição à baía, mas cuja força
léguas delas, a doçura
vozes, é ouvida como a cei foi quebrada pelas ilhas Glénan, que se vêem do semáforo, e
1,~ p e se derrete tão docemente ao ouvido, ao coração. cuja água vem morrer às suas margens quase tão suavemente
depressa ao momento presente: que lhe dirá? Eles como a água tranqüila da baía. Essa península é muito fértil, toda
P ele não ouve mais a voz dela, como se vivendo com recoberta de numerosos e grandes pomares, propriedade de pe
conhecesse pessoalmente. Ela está lá. Falando-lhe
querias e raras herdades e que espalham suas macieiras de frutos
diz consigo: "Mamãe, mamãe, estás aí, chega mais rubros até a beira da água tranqüila da baía. Uma espécie de
~)~O qliero te beijar, oh! não poderei te beijar durante herdade transformada em hotel onde se janta ao ar livre, sob as
o mamãe, mamãezinha, mamãe!" Percebe que a mãe
iIII~P 1 ~ macieiras que permitem ver o mar entre dois ramos, quase não
não compreende mais direito o que ela lhe diz...
é freqüentada, salvo por alguns pintores que passeiam no mar o
te ~Stá acabado. dia inteiro ou pintam a léguas de distância. Os parisienses não podem adquirir terras no lugar, mesmo a bom dinheiro, porque os fazendeiros bretões
são ricos e, vivendo de nada, querem sempre comprar, nunca vender, seja por um obscuro apego a um preconceito que sua antiguidade pôde erguer em tradição, seja por
imaginarem que um dia essas terras terão valor fabuloso. Milionários já ofereceram por esses campos o quíntuplo de seu valor. No momento em que se ia fechar o negócio,
o fazendeiro retirava sua palavra e pedia o dobro. Um camponês que, no único cômodo da sua propriedade, dorme com a criada numa dessas velhas camas bretãs de madeira
que se fecham como armários, possui três quartos da região. Nesses caminhos onde se vê numa extremidade a largura da baía e na outra margem Concarneau, nunca se
encontra ninguém. Ouve-se apenas o doce refluxo da baía ou do mar, tão calmo quanto ela, e esse ruído ou o latido de um cão de vigia que o abafa servem de pedestal
ao grande silêncio e fazem-no parecer ainda maior. A todo instante a baía aparece entre as ramificações da estrada e as ~rvores da outra

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margem, fresca e, nos dias sem sol, cinzenta como um linguado, entre as folhas. À tardinha, a umidade quente da região aumenta e o cheiro de sargaços se abisma no
odor mais vivo das maçãs verdes das árvores e das maçãs vermelhas caídas ao chão.

Jean trilhou por muito tempo uma grande estrada aberta. entre altos taludes ao pé dos quais tinham crescido árvores enormes, cuja folhagem avermelhava com
os fogos pacíficos do outono que todas as tardes o sol poente voltava a inflamar. Ovento a fizera cair e os despojos recamavam o caminho, e Jean tinha prazer em
vê-los, eram despojos gloriosos. Em certos pontos deixava de haver árvores e um galho das amoreiras do talude, ultrapassando a linha da sombra, parecia flamejar
suavemente à luz como um sarmento num fogo de inverno. Ovento soprava mas sem força para ajuntar as nuvens e afugentar o sol. Era, menos que uma ameaça, um aviso
rápido e leve para desfrutar esse último resto de doçura, esses dias ainda soberbos e encantadores, como de uma vida esgotada na juventude. Através de uma fenda
do talude percebia-se um pomar cujas macieiras espaçadas, despidas de suas folhas e conservando apenas uma espécie de cobertura purpurina de maçãs vermelhas, desenhavam
sombras delgadas na campina pálida de sol. Mais ao longe espessava-se um bosque e, contido na linha de seus topos que o podador cavara em forma de taça, um barco
imperceptível parecia parado no mar de um azul sólido, vivo e claro. Osol declinava. Jean andou mais depressa; chegou por fim à igreja que, como um fidalgo, vivia
em suas terras; rodeavam-na belos relvados onde um javali-fêmea e seus filhotes corriam em roda sob grarides e vetustos carvalhos de troncos enormes,, plantados
de cada lado em duas filas como aléias de parque. Jean entrou na igreja, vasta e sombria, onde no verão se devia sentir a frescura e a paz dos bosques. Sob essa
ramagem de pedra, à direita, uma pia de água benta era fresca feito uma fonte e cômoda como um cocho. Menininhas reunidas num canto, como se brincassem, olharam
para Jean com ar espantado. No coro, uma camponesa, como se esti-
vesse em sua loja, dobrava uma mortalha. Por toda a parte reinava uma elegância rústica. Depois, Jean saiu e achou-se em meio às tumbas atrás da igreja. Os campos
onde as vacas pastavam lado a lado, na luz da tarde, os bosques, as casas, os caminhos desciam ao longe de modo bastante abrupto para que ele pudesse ver todo o
horizonte. Ao longe, os campos eram cor-de-rosa e os bosques azuis. Além, por sobre a linha das colinas, violáceas como elas porém mais claras, grandes nuvens quase
rosadas se estenderam atravessadas de nuvens cinzentas e logo após o pôrdo-sol a imensidade que Jean tinha diante de si perdeu suas belas cores, permanecendo azulada
no extremo dos bosques e sobre as colinas. Entre os túmulos o vento fazia estremecer as ervas. Fora assim no ano anterior, do alto do terraço de SaintGermain, no
fim da tarde de outubro, quando o sol estava. encoberto. Jean sentia o coração maior, como esse horizonte que resplandecia quando a luz o tocava no topo de uma árvore,
e agora que o sol não mais brilhava, estendia indefinidamente sua tristeza suave e sombria.

Uma estreita península banhada a oeste pelo mar alto e a leste por uma baía que deixa entrever, em meio às macieiras, as casas e o porto da margem oposta
é um refúgio tranqüilo e seguro diante do qua 1 desfilam sem fundear os navios e barcas cheios de vida que só se aproximam o bastante para sentir o espetáculo, mas
que passam suficientemente perto para fazer sentir ao solitário a trêmula doçura profunda de estar separado deles. À noitinha, para subir até o promontório, ele
segue ao longo da baía uma vereda traçada entre as samambaias, as giestas, as urzes e o tojo, que segue a baía a prumo como um talude florido que costeasse um caminho
escavado. Tão estreito entre essas duas margens, o mar se estende a seus pés como uma estrada encantadora que leva ao porto vizinho as barcas que entram em fila,
como vacas, parando aqui e ali para pastarem um pouco mais. Como uma novidade gloriosa que as bandeiras nas janelas, a animação nas ruas, os gritos frenéticos dos
transeuntes ou a solenidade do silêncio nos gritam através de mil

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vozes diversas e semelhantes, o entardecer, antes que ele chegue ao mar alto onde o sol se põe, o azul trêmulo e rosado da areia molhada, as vivas cores do céu,
o opulento e cambiante nácar da baía, um brilho dourado ou uma paisagem luminosa na janela de uma choupana, as casas da outra margem rubras como ao despertar do
dia, parecem preparar o reino do sol, trazer os ecos enfraquecidos e sufocados do sol invisível e próximo e preparar o reinado de sua glória. Então o passo se apressa
e o olhar se deslumbrá, feliz de reconhecer em todos os viventes, espelhos sensíveis e diversos do sol, sua púrpura misteriosa. Uma hora mais tarde, s oprando na
floresta pantanosa e noturna, que o dia ainda sombreia com uma linha rubra sobre o limiar arruivado das samambaias queimadas e dos cardos mortos, e que perfuma violentamente
a umidade das folhas, o vento marinho desperta com sua frialdade e excita com seu sal o desejo de entrar em casa onde o fogo brilha, onde a lamparina aquece, onde
no prato servido os peixes são salgados como o mar que, sombrio agora, reluz ainda, cinza-azulado como o sargo, a cavala ou a arraia.
Alguns restos de nuvens rosadas e castanhas que ainda permanecem no céu têm-a cor inocente e saudável do presunto defumado. Atrasadas e-friorentas, barcas
marrons entram a caminho das luzes do porto, distendendo suas velas ruivas. Depois será o sono nos leitos cerrados, a noite profunda e cheia de sonhos obscuros que
se interrompem quando o barulho dos vidros que se encurvam sob a tempestade faz acordar, os beijos impotentes e doces, os braços que se cerram ao pescoço e as pernas
que apertam as pernas, as carícias que varam o silêncio como o vento se gruda às janelas, estreita o telhado e faz gemer o alçapão da lareira, a cabeça que se ergue
um momento sem soltar os braços do outro para ouvir o barulho, como um 'inimigo que gira ao redor da casa e tenta arrombar a porta, e depois mergulha de novo e se
abandona sob os lençóis para o carinho e o calor do lado de dentro, com todo o frio e toda a hostilidade que ficam de fora.

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1

A igrejinha de Begmeil era do mais puro estilo normando, mas, na verdade, não havia entre ela e os normandos uma relação que pudesse ser claramente definida.
Continha uma série de admiráveis pinturas de Moreau, uma Descida da Cruz que ele não assinara e que quase todos desconheciam e estava lá, pois todas as obras-primas
do mestre não se conservam no mesmo local. E a igreja de Begmeil era o cemitério ignorado daquela, que lá dormia seu sono secular tão pacificamente como os mortos
cujo nome se lia na lousa, diante da igreja, recebendo o sol à mesma hora que eles, sentindo-o vacilar e ocultar-se nos mesmos momentos ao passar de uma nuvem, sentindo
o mesmo vento, pois os vitrais eram freqüentemente abertos e olhados de vez em quando pelas mesmas pessoas que tinham ' por ela o mesmo respeito tributado aos mortos,
respeito sem amizade, sem conhecimento de sua essência íntima- e de sua personalidade. Mas um dia, alguém fascinado pela obra de Moreau os descobriria e iria debruçar-se
sobre essas tumbas suntuosas e mudas para indagar-lhes o segredo da vida do mestre defunto. Pois as obras humanas, à força de estarem fixas num local da natureza,
acabam por fazer parte dela, de modo que o lugar nos atrai por uma espécie de personalidade semi-humana e elas por um tipo de encanto local, e amam-se muito mais
as pinturas por terem fixado para sempre suas asas azuis e cor de púrpura na igrejinha revestida de pedras cinzentas de Begmeil, e a baía calma de Concarneau por
verem aí se refletir as belas muralhas do século XIV. Parece que a beleza da arte está enraizada, tornando-se pouco a pouco, à feição do lugar a que adere, uma coisa
única e que já não depende do homem, uma coisa que nada nos oferta se lá não voltamos.

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IV. Leituras de praia

Depois do almoço, que era bastante lauto, Jean e Henri iam ler deitados nas pequenas dunas de areia que principiam a oeste da praia. Deitavam-se e às vezes
permaneciam muito tempo sem olhar para o livro. Para ler e não se perturbar, punham-se a alguma distância um do outro e, graças às ondulações das dunas, por vezes
sequer se apercebiam da presença do outro, e cada qual podia julgar-se isolado de todo ser humano, não enxergando acima da areia mais que o céu e as águas, além
das gaivotas que não paravam de voar. Quando um terminava de ler antes do outro, afastava-se e punha-se a passear sem fazer barulho a fim de itão incomodá-lo. Jean
levava a mesma obra todos os dias * L ogo passou ao segundo volume, depois ao terceiro. Escrevera a Paris para ter outras obras do mesmo autor, informações acerca
de' sua vida, e Henri encomendara em segredo um retrato do autor que deveria chegar logo.
Ainda são muitos os livros que despertaram em nossa vida o interesse de páginas ainda desconhecidas, o encanto das páginas já lidas, e que fizeram convergir
em torno de um artista todas as forças do nosso amor e de nossa atividade, de maneira que pela sucessão desses artistas a nossa vida apresenta os aspectos diversos
da vida de um jovem vibrante e apaixonado que primeiro se deu todo ao cavalo, depois o trocou pelos patins, teve por um instante o gosto de dançar e de brilhar na
sociedade, deixou por completo de freqüentá-la, entregou-se à canoagem e ao iatismo, imagens ambas, aliás, representantes na juventude da atividade exclusiva e mutável
das crianças. Adiante na vida os gostos se fixam mais. Sua mãe se espanta com a inclinação pela literatura, fazendo-o lembrar que os quinze anos foi apaixonado pela
matemática, comprava instrumentos de óptica, queria entrar para a Escola Politécnica. Nossa história como homens é menos variada e deixa prever tão pouco a respeito
dos períodos em

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completo desacordo com os gostos que conhecemos de nós mesmos, que esse período inicial de nossa vida parece-nos quase lendário. Não mais compreendemos nossa paixão
por uma ciência que já abandonamos, por um colega que nunca mais encontramos. Mas no centro mesmo de uma vida intelectual, nossas vivas impressões agrupam em
torno
de um homem, de uma região, todas as nossas curiosidades, todos os nossos desejos. Nossa mãe sorri ao nos ver ir para a praia levando serrípre um volume de Stevenson.
Acha-nos criança ainda, e, escrevendo para Paris a fim de receber uma biografia de Stevenson, outros livros de Stevenson, seu retrato, ela reencontra, como nós,
a vivacidade dos gostos de nossa infância, a possibilidade de voltar a nos dar presentes. Além disso, quando éramos pequenos, já havia um determinado livro que púnhamos
debaixo do braço ao ir ao parque e que líamos com amor, de tal modo que nenhum outro o teria substituído. E até naquele instante não nos prendíamos de maneira tão
exclusiva ao que dizia o livro sem nos preocuparmos com as páginas que íamos virando. Hoje, num manuscrito, no folhetim de um jornal, ficaríamos deslumbrados ao
encontrar novas, páginas de George Eliot ou de Emerson. Entretanto, quando éramos mais jovens, o livro não se separava, para nós, daquilo que nos dizia. Além do
mais, tínhamos visto poucos livros, e muitas vezes aquele que líamos era o primeiro desse formato que tínhamos nas mãos, o primeiro que apresetitava essa doce e
confortável capa marrom, essas folhas retangulares e delgadas de grandes margens, de um odor que não nos cansávamos de aspirar. A graça de sua consistência fazia
um corpo só com a história de que gostávamos e o prazer que nos proporcionava, quando numa tarde calorenta, na alameda do parque, escondendo-nos dos olhares alheios
para não sermos interrompidos, ou numa manhã chuvosa, esperando o almoço perto da lareira na sala de jantar, perturbados pela cozinheira que, sob pretexto de nos
instalar melhor, acabava nos incomodando, ficávamos sentados tendo-o nas mãos e mirando suas páginas, sem fazer diferença entre ele e a suavidade de suas folhas
delgadas, seu cheiro delicado e as belas cartonagens que o fechavam com cantoneiras douradas. Folhas delgadas de margens largas onde de quando em vez se inscrevia
uma data como num caderno do qual

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possuía o formato, dando a sensação de nos instruir durante essas horas deliciosas e que essa coisa apaixonante à qual nos prendíamos era a verdade. Na minha memória,
seu cheiro é tão suave quanto o cheiro do armário onde trancavam a roupa branca e as porcelanas cor-de-rosa.
Mas antes de se porem a ler durante as longas horas de digestão (exceto quando um romance chegava ao fim, quando então iniciamos logo a leitura para ir até
o fim naquele mesmo dia e, urfia vez fechado o livro, não ousamos confessar a nossa inteira satisfação, ou por vergonha, ou pelo desejo de ser lastimado, de não
parecer demasiado felizes, ou porque a felicidade, desde que examinada, posta em questão, desaparece), ficavam indefinidamente procurando dormir ou conversando em
raros intervalos, fumando, virando-se de um lado para o outro, olhando o mar, o céu, protegendo a cabeça do sol com uma manta. Invejamos a jibóia para quem digerir
é ocupação de uma semana e que pode então dormir vários dias seguidos. Invejamos o lagarto que fica dias inteiros sobre uma pedra quente, deixando-se penetrar pelo
sol. Invejamos a baleia que faz lindas viagens pelo Pacífico, as focas que brincam no mar ao sol, as gaivotas que brincam durante as tempestades e se deixam levar
pelo vento. Pois o sono, o alimento, o mar e o vento nós os amamos com a imaginação por tudo o que representam de força e de doçura para nós. E só na vida dos animais
é que podemos observá-los inteiramente puros, preenchendo completamente a vida. Mas aproveitamo-la mais do que eles, nessas horas em que, fazendo digestão ao sol,
olhamos o céu e o mar, em que adormecemos ao ar livre sob os gritos das gaivotas e nos ajeitamos na areia para dormir mais, em que o nosso espírito está vago, o
corpo se sente feliz, e ambos parecem libertos de toda preocupação, pois aproveitamo-la ao mesmo tempo através da imaginação e tanto mais se somos desses para quem
é raro o sono, uma digestão que absorva por completo é também coisa rara, e a vista do mar e do céu e o grito das gaivotas. Só para o pensador e para o doente é
que a vida animal apresenta esses deslumbramentos todos.

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Logo surgiram os primeiros clarões da lua. Ao entrarem, era noite fechada mas no jardim, bem perto deles, entre as árvores, avistavam a lua enorme pouco
acima do horizonte. e já espalhando uma luz vaga nos cimos do outro lado do vale. Mas depois do jantar, quando saíam, o luar era intenso. Podiam ir deitar na areia
do lado obscurecido, sem serem vistos por pessoa alguma, e olhavam o mar pálido com um sulco de prata. Horas cuja doçura e maravilhas tocam os mais simples que se
impressionam diante desse grande dia esparso: a noite, essas sombras enormes e negras, horas que Jean buscava aprofundar sem o conseguir, para delas conservar alguma
coisa e que seu corpo também tentava aprofundar. Atiramo-nos às coisas com avidez, como se elas pudessem nos dar, o mar, sua força inesgotável, o vento, seu sopro,
o ar, sua pureza. Ilusão que acorrenta tantos doentes nos lugares selvagens onde a natureza é estuante de força, tantos pensadores esgotados onde só existem forças
sem pensamento, o mar cego, o vento surdo, os animais que não pensam em nada. Em meio a tais seres inalteravelmente calmos, ou dessas forças eternamente vivas, atinge-os
a morte ou a loucura que os espreitava. É inútil nos debruçarmos sobre o reservatório de todas as forças: lá não entra mais ar do que o que deixa passar o nosso
hálito, e só chega ao nosso sangue tão impuro quanto o fizeram nossos pulmões.

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V. Tempestade em Perimarch

Uma noite - há dois dias já que soprava um vento terrível, chovia, o mar estava bem grosso, como jamais o víramos nessa baía tão tranqüila - uma noite, cerca
das três da madrugada, Jean, que até então dormira embalado pelo ruído do vento, ouvindo sempre, meio desperto, os postigos baterem contra as j~nelas, as chaminés
estremecerem, as árvores gemerem e sem dúvida terem galhos quebrados, Jean foi acordado por Ethel. Pierre já estava lá embaixo, tinha vindo ver se o Sr. Jean queria
ir com ele,. Fizera-lhe a promessa de avisá-lo se um dia se armasse uma grande tempestade em Penmarch; pois bem, chegara o dia. Justamente precisava ir lá para ver
se havia necessidade de homens para o barco de salvamento.
Jean sentia-se bem na cama, tinha vontade de deixá-lo ir embora. Fê-lo subir.

- Será uma grande tempestade? - Ali, certamente, há já três dias que se prepara; aqui já faz um vento dos diabos. Em Penmarch o senhor vai ver o que será.
- Jean hesitava ainda, dizendo consigo: valerá a pena? É burrice deixar de ir, mas será tão bom dormir um pouco mais. Chegou até a janela. Oreflexo da lâmpada que
haviam posto embaixo iluminava o caminho diante do albergue; Jean viu todas as árvores derrubadas e grandes ramos por terra, os quais, tomados pelo vento, voavam
como palha. Sentiu então algo como se o vento o empolgasse também, a necessidade de fazer coisas extraordinárias naquele tempo fantástico. Vestiu-se. Ethel fê-lo
levar uma enorme quantidade de cobertas. - Não sou friorento - disse Jean. - Osenhor vai ver - retrucou Ethel. E depois, vai ficar molhado até os ossos. - Pela chuva?
Pelo mar. Ovento leva pedaços de vagas até meia légua. . . Jean queria pegar um guarda-chuva. Ethel achou graça da idéia: será que ele pensava que poderia

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mantê-lo aberto? Enfim Pierre voltou com a corda para atar Jean caso a tempestade piorasse. A necessidade dessas precauções incomuns e a inutilidade das precauções
habituais deixaram Jean doido de alegria, fo rtalecendo sua impressão de que ia ver algo extraordinário, fazer qualquer coisa fora do comum. Tinham de esperar a
alvorada pois era impossível acender as lanternas. Mas como desejavam estar antes do almoço em Perimarch e eram necessárias oito horas de carro (cinco horas com
o carro de Ethel, que corria como o vento, mas com esse tempo horroroso podiam ser atrasados por um acidente), decidiram partir imediatamente. Pierre e o cavalo
conheciam bem o caminho. - E depois - disse Pierre'-, com um tempo destes não correremos o risco de encontrar outro carro na estrada. - Como, ninguém sai para ver
isto? - perguntou Jean. - É claro que não, todos se fecham em casa - disse Ethel -, sobretudo porque é muito perigoso. - Tais esclarecimentos estimularam a coragem
do nosso herói, que quis estar bem a par do perigo que corria. Não compreendia como fosse possível ser levado pelas águas do mar já que não iriam pelas margens.
- Espero que o senhor não seja - disse-lhe Ethel -, é até certo que não, mas enfim, já aconteceu. Osenhor fala em beira-mar como se fosse como aqui. Saiba que com
um simples pé-de-vento uma onda vem buscá-lo a duzentos metros, onde o senhor se julgar abrigado e, sem que o perceba, pode engoli-lo de uma só, vez.
Ethel dava essas informações ao nosso herói sem desconfiar o quanto aumentava a sua alegria. Jean, agora, não voltaria a se deitar nem que lhe prometessem
um império. Estava todo orgulhoso e riu ao se imaginar no gelo, debaixo de todas as cobertas que Ethel lhe dera. Todos se haviam levantado no albergue, acordados
pela chegada do carro. A criada veio perguntar se o patrão queria leite quente. - Sim, mas não precisa subir, Felicité, vou tomá-lo lá embaixo na cozinha, com Pierre
e Ethel. - Nesse caso, ande depressa porque eles já estão lá. - Quer dizer que já acabaram? - Não, não começaram ainda, mas digo que se apresse se quiser comer com
eles. - Jean terminou de pegar suas coisas. - Sabe que vou a Penmarch, Felicité? - indagou. Acabaram de me dizer - respondeu ela. Jean ouvira seus brados de espanto
qvando Eihel lhe dissera: - Dê-me adeus, bem sabe

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que pode ficar por lá. - Ora - exclamou Felicité -, isso acontece, o senhor não seria o primeiro. Além disso, perguntolhe qual a necessidade de partir com um tempo
desses, quando todos se fecham em casa e a chave ainda por cima, pois o vento não faz cerimônia, para abrir as portas. Precisava mesmo escolher um dia como hoje,
que faz dez anos não se vê igual!
"Já faz dez anos, e dizer que eu poderia ter ficado deitado!", murmurou consigo Jean, cuja alegria atingia o auge. - Mas foi Pierre quem veio me buscar.
Além disso, ele não vai me deixar - disse em voz alta, sabendo que Felicité censurava o espírito aventureiro de Pierre, e dizia com freqüência: - Se eu fosse seu
pai ou sua mãe, certamente não o confiaria a um sujeito como esse. Um é tão louco como o outro. Ah, falemos disso, é uma bela garantia que o senhor tem disse Felicité
-; um sujeito de quem os mais velhos homens do mar, que não o consideram nada arrojado, dizem que lhe sucederá alguma infelicidade. Bem que ele precisava vir buscar
o senhor. Como se não fosse melhor que o senhor ficasse na cama, que ninguém o apressasse, eu lhe teria feito um bom almoço que o senhor poderia comer na cama se
quisesse. Pois não preciso fazê-lo hoje, já que o senhor está tão corajoso. Também o senhor é tão comodista, e mais que qualquer outro. Por isso, gostaria de vê-lo
em Penmarch, por causa da comida. Que bons garfos esses aí, que nem sabem preparar um peixe! - Jean ficaria muito tempo escutando a eloqüência de Felicité que mesmo
não sendo persuasiva, nem por isso lhe agradava menos ouvir, mas tinha reunido suas coisas e desceu para alcançar Pierre e o marinheiro que iria com eles. Julgou
que os acharia ainda à mesa e encontrouos na escada. - Já acabou? - perguntou Jean. - Nem começamos, esperávamos pelo senhor - respondeu o marinheiro. Essa atenção
no limiar de circunstâncias tão perigosas, e tal delicadeza do. parte de um homem tão heróico, pareceram ao nosso herói de tão favorável augúrio que só faltou abraçar
os companheiros. Beberam café com leite fervendo na cozinha, onde Jean, ao ver a luz do fogão, perguntou a si próprio se não valeria mais ficar para o almoço com
o hospedeiro e passear alegremente ao longo da baía do que ir afrontar os novos perigos, e renunciar por hoje, e talvez para sempre, à lagosta à americana que só
tinha

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vontade de comer agora que sentia essa perspectiva bem remota.
Mas o amor-propno e a vergonha de os ter feito esperar para nada forçaram-no a manter aos olhos dos novos companheiros a atitude de arrojo que assumira desde o começo
e que agradara tanto a si mesmo.
- Talvez não fosse preciso tanto para nos atrasar - disse Ethel -, não falta muito para as cinco. - Jean, vendo que os companheiros tinham acabado, quis
beber de um trago o que lhe restava de café com leite. - Também não precisa andar tão depressa - disse Pierre, fazendo-o sossegar. - Temos bastante tempo. Vamos,
vejo que já acabou, não tem mais nada para tomar, posso mandar sair o cavalo. - Sim - disse Jean a quem essa palavra pareceu solene. Instalaram-se no carro. Jean
temia não se acostumar ao vento. - Não está tão forte assim - disse irrefletidamente aos companheiros, não por amor-próprio mas para responder à gentileza deles
pelo bom humor e pela coragem. Aqui não é nada, claro; é controlado - respondeu Pierre mas o senhor vai ver quando chegarmos à estrada, e depois em Perimarch., só
lhe digo isso. - Vamos, boa viagem - disse-lhes o dono do albergue olhando-os de partida enquanto a luz da cozinha os iluminava. "Vai descansar", disse Jean consigo,
"e talvez seja ele quem tem razão."
Em seguida, puseram o cavalo a galope. A todo instante o carro saltava sobre troncos de árvore, Jean achava que tudo ia se acabar, que iam se matar de repente.
Omarinheiro, vendo que ele poderia cair por não saber se segurar bem, pediu para ficar detrás dele e cruzou-lhe com força o braço por baixo, e vendo que o chapéu
de Jean não se sustinha, enterrou-lhe seu barrete na cabeça. Imediatamente, como os guerreiros que, comendo as entranhas de um bravo, usando seu capacete, sentiam
em si a sua bravura, Jean não teve mais medo, atado à força do companheiro, confiando-se a ele e à sorte.
Como o vento soprasse com mais força, deixaram o carro em Pont-Labbé e tomaram a pequena estrada -de. ferro que vai dali até Penmarch. A hora da partida,
Jean ouviu o fiscal dizer a um rapaz que subia com uma bicicleta que tinha de ficar na plataforma com ela, pois o regulamento proibia a entrada de bicicletas

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nos vagões. Orapaz pegou rapidamente a bicicleta e saltou para a plataforma.
Jean não precisava ter visto esse rapaz antes para ficar certo de que se tratava de uma pessoa extremamente distinta de berço e de caráter. Embora não devesse
ter mais de 24 ou 25 anos, o olhar grave de seus olhos esverdeados dava a seu perfil uma singular nobreza. Jean quis que os dois pescadores subissem como ele para
a primeira classe. Por acaso, no trem completamente vazio, ha via no vagão de primeira classe duas senhoras, sem dúvida surpreendidas pela tempestade no curso de
uma viagem na Bretanha, e fugindo debaixo do vento para o abrigo de alguma cidadezinha. Ao primeiro' olhar lançado à moça de real beleza sentada à sua frente, mas
dizendo seu nome e suas qualidades no brilho dos olhos que ora se erguiam, ora pousavam em Jean e nos pescadores com uma indiferença afetada, um desdém destinado
a mascarar as suposições inteiramente diversas que tal atenção podia fazer surgir e a fim de fazer aparecer outras bem diferentes, na boca que tanto se franzia,
melancólica, como compunha sua toalete com a pontinha rosada da língua, nas frases pronunciadas em tom bastante alto, nos apartes, nos silêncios, nas sacolas abertas
sem necessidade, nos olhares que alcançam a gente e parecem não ter tido essa intenção, continuam a passear por todo o vagão e acabam por buscar a dignidade da qual
tudo isso deve lhes dar a impressão com um ar altivo e aborrecido, Jean reconheceu uma cocote, uma atriz. Mas daquelas que não têm nome em lugar algum, atriz a quem
prometeram trabalho na Opera Cômica, senhorita que vive na província com um homem rico e que, em viagem, não podendo lhes dizer que conhece o Sr. Carvalho ou que
tem um carro em Rouen, testemunha, pela fisionomia atenta e altiva, a raiva por não poder dizê-lo, o cuidado que tem em mostrar, na falta das cartas de recomendação,como
pouco lhe importa a sua opinião e se mantém acima dela, cuidado que a todo momento mais confirma a idéia de que ela se preocupa, e muito, com sua opinião, sofrendo
por não poder
e-selarecê
-la de todo.
No entanto, a pessoa de nível inferior que a acompanhava reforçava ainda mais a má impressão que Jean tivera de sua vizinha. Era uma figura de clown coberta
de ruge debaixo de um

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chapéu em que todas as plumas, todas as flores, todos os laços não lançavam sobre a fisionomia sombra suficiente que impedisse de se ver a nítida falsidade dos olhos,
a baixeza quase criminosi
do tipo, a lepra escarlate e sórdida das faces; sentia-se que, partilhando atualmente a boa fortuna de sua patroa, dama de companhia viajando em primeira classe,
rindo à menor palavra da dama jovial, e diante mesmo de Jean, tomando ares de intimidade com ela a fim de se exibir, ela não passara até então da criada principal
de uma alcoviteira, uma seqüestradora de crianças ou cúmplice de um assassino, a menos que a extrema vulga-
ridade de sua origem unida à má qualidade de sua elegância conferissem à relativa inocência da dama de companhia, forçosamente pouco honesta, de uma cocote rica
esse aspecto repelente. Talvez fosse apenas uma companheira da atriz, muito velha para representar ainda, e que ela levasse consigo por bondade, e em quem
o hábito de representar tantos papéis na vida e em cada um dar a seus traços ridículos um sentido novo de feiúra ou de estupidez acabara por lhe tirar quase todos,
até deixar unicamente esse pouco de brutalidade e de incerteza, de duvidoso, que as-
sumem os traços reduzidos a si mesmos, sem mais qualquer expressão. É o que sucede freqüentemente com a fisionomia dos atores. Ou antes, um resto dos sentimentos
expressos ainda flutua nela, vislumbre nos olhos, esgar na boca, que, não tendo relação alguma com a atual circunstância e as idéias de hoje, emprestam à fisionomia
um tom de falsidade, um exagero bem desagradável. Exagero e falsidade que parecem tornar-se ainda mais verossímeis graças à enorme mobilidade do olho, à excessiva
flexibilidade do corpo que, enquanto lhes falamos das coisas mais simples, continuam, como um pianista que sente os dedos se agitarem ainda que esteja dormindo,
a exibir essa flexibilidade,
essa atividade que, em cena, tinha por objetivo ressaltar ao público tantas intenções diferentes.
Assim, Jean se distraía observando as duas vizinhas que não se acanhavam de abrir e fechar as sacolas, de perguntar uma à
outra a que horas chegariam a tal lugar, se o carro as esperaria, e como todos aqueles que viajam, de recordar um adeus que não tinham pensado em dar, o objeto pronto
sobre a mesa e que, no

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entanto, haviam, precisamente, esquecido. Esquecimento compensado por tudo que temiam ter deixado na sacola e que, pelo contrário, era primeira coisa que viam, esquecimento,
aliás, que haviam profetizado ao dizer: - Vai ver que esquecemos justamente aquilo de que mais precisamos -, esquecimento, por outro lado, perfeitamente reparável
já que pode-riam escrever para o gerente'do hotel em Quimper, que, de resto, talvez o tivesse percebido por si mesmo e tomado providências... E elas se queixavam
da sujeira do vagão, do mau cheiro, repondo as luvas, procurando ver de que delicadezas podiam ainda dar prova. De vez em quando, Jean voltava os olhos para a pequena
plataforma onde o jovem ciclista, fitando o horizonte com seu olhar grave, e recortando sob o céu cinzento, ao longo do suporte de ferro, o seu perfil delicado,,
gelava ao vento. "Que injustiça", dizia Jean consigo, "que este jovem, que certamente pertence a uma família distinta e acima de tudo mostra ter um caráter tão elevado,
fique lá gelando ao vento, ao passo que, enroscadas em seus agasalhos de peles, essas duas imundas criaturas ainda se lamentam. E dizer que ele me confunde com elas
e crê, sem dúvida, que, à semelhança delas, só sinto desprezo por ele!" E uma ou duas vezes chegou até a plataforma para mostrar ao ciclista, partilhando de sua
sorte, que não lhe tinha desprezo. Depois voltou para junto dos dois pescadores. Nesse momento, ouviu uma das duas senhoras pronunciar o nome da mulher do ministro
da Dinamarca como se fosse uma de suas amigas. Jean não imaginou um minuto sequer que tal fato fosse verdade. Mas, ainda assim, estava tão espantado que soubessem
até o nome dela, soubessem que ela desfrutava uma posição de destaque na sociedade e fossem bastante chiques como cocotes e suficientemente relacionadas para utilizar
esse meio bastante refinado de deslumbrar, que perguntou a si mesmo se não estaria enganado. "Talvez ela tenha representado na embaixada da Dinamarca", disse de
si para si. Mas não, ela não podia ser suficientemente conhecida para tal. Toda pessoa conhecida, mesmo sem o ser muito, mostra em suas maneiras como que um reflexo
das pessoas que a conhecem, do olhar que puderam lançar sobre ela ao saberem seu nome, que esclarece de imediato aquele que a observa agora quanto ao grau de sua
notoriedade. Ora, à ausência total desse reflexo sentia-se

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que a dama jovial e sua acompanhante não tinham sido nunca alguém para pessoa alguma.
Em Penmarch, Jean e os pescadores desceram e qual não foi o espanto de Jean ao ver o ciclista partir com as duas. Oalto conceito que fizera dele até então
ficou logo extremamente abalado. "É com certeza amante da moça", disse consigo. "Meu Deus, até onde levam os sentidos as relações de um rapaz bemeducado? Sem dúvida,
como amante dessa mulher ele é obrigado a representar seu papel nas cenas de desdém, de presunção, de vulgaridade, de charlatanismo com que ela tenta deslumbrar
os hotéis e os vagões. Se ela se mostra estupidamente impertinente com um homem que lhe passa uma descompostura, ele se vê obrigado a lhe pedir contas. Ele deve
discordar do diretor que a não contrata, ser solidário com suas ineptas cenas de ciúme contra as companheiras, ser amigo dos mais vis atores que estão em boas relações
com ela, recebê-los para jantar. Deve dar presentes à camareira dela, rir de suas graçolas; ela sem dúvida o ama e, quer por reconhecimento, quer pelo, hábito que
termina por fazer cair a máscara dos riossos mais repulsivos semelhantes para nos deixar ver unicamente o que têm de humano, ele talvez seja muito dedicado a ela."
Mas Jean, seguindo a duras penas contra o vento, pela estrada em que os flocos de espurria lhe fustigavam o rosto, os dois companheiros, tinha já esquecido
essas três figuras que assumiam em sua memória a imobilidade em que permanecem e onde as revemos se por acaso um acontecimento nos faz recordá-las, onde muitas vezes
nunca mais revemos semelhantes figuras grotescas ou belas que vimos em lugar público, num vagão de estrada de ferro, num ônibus cheio de gente, verdadeiras troupes
onde nos divertimos, como Jean ainda há pouco, ao reconhecer Isabelle, o pedante, a Zerbinette, atores inteiramente caracterizados, tendo já na cara os traços do
ofício, na ponta da língua o seu papel, mas de quem não conhecemos nem a verdadeira natureza nem sequer a comédia que acabam de representar, a comédia que vão encenar,
e cujas vestimentas, logo depois esses agasalhos de peles, o chapéu de plumas, flores e lacinhos-da camareira da dama jovial, e a máscara, nenhuma interpretação
se relacionando com a alma deles, que é desconhecida, nem chegando a modificá-los

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ou a atravessá-los como a luz, absorvem toda a nossa atenção, assumem algo de graúdo, minucioso, imutável e opaco. Assim, num canto da memória de Jean, onde ele
talvez nunca fosse buscá-las, se assentaram a grotesca dama de companhia de olhos brilhantes e vesgos debaixo das plumas, a coquete desagradável de olhar atento
fingindo distração, e mais distante o jovem ciclista de perfil refinado, olhos pensativos, tão tranqüilo ao vento, em pé na plataforma.

Chegando a Penmarch, Pierre e o marinheiro ficaram sabendo que sua viagem era inútil, que não se lançava ao mar o barco de salvamento porque era impraticável
e que, além disso, todas as embarcações tinham voltado há dois dias -quando começara a tempestade. Duas tinham desaparecido e é claro que nenhum outro barco passaria
por aqueles lados num tempo desses. Contudo, Pierre e o marinheiro ficaram, dizendo que tinham trazido um jovem senhor que desejava ver a tempestade. Nesse momento,
na sala de jantar onde conversavam, o sol dourava a cada segundo, tornava-se mais vivo, brilhante, ardente, ofuscante como uma lamparina cujo azeite aumentara. Os
pratos dispostos sobre a mesa brilharam.
Um deslumbrante efeito de sol por Harrisson - tela que ele dera ao hospedeiro ao deixar Penmarch e onde,
têm
pelo poder que a ternura e o talento, o pintor mostrava essa região àquele que não a conhecia ainda com tudo o que só o tempo revela uma afeição de todos
os instantes, uma simpatia que deve seguir-nos depois de o ter deixado e como no dia da recordação foi tocado pelo sol que, vindo brincár com sua imagem, elevou
a uma intensidade descorihecida a luz visível nessa tela. Antes que a porta fosse aberta já se sentia um cheiro bom que se espalhou, pois a criada trazia o almoço,
Sem o barulho do vento que fazia estalar as vidraças, estremecer as chaminés, bater as portas, e o ruído ainda mais agudo e contínuo do vento que assobia e que,
além disso, agora que não tinham mais que lutar contra ele, era um acompanhamento monótono que acabavam por não ouvir mais, teriam acreditado não estar numa vila
mal-

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dita que um dia ou outro seria levada pelo mar, que enquanto esperava lhe arrebatava a cada inverno vários de seus filhos, e sim numa espécie de remanso feliz onde
o encanto da arte sorria complacentemente à boa comida e onde o sol vinha se pôr ao abrigo do vento ... Depois, na sala, o sol empalideceu, sumiu. Agora o céu estava
todo negro. Jean olhou as janelas e reparou
- Sim, o de chegar esta noite a Pont-l'Abbé * (a Begmeil nem é bom sonhar), pois terá vento pela frente e faria bem em chegar antes que ele fique forte demais.
Jean, Pierre e o marinheiro almoçaram rapidamente. E foi com um sol lindo que atados uns aos outros para oferecer resistência ao vento subiram a rua, depois
o caminho que conduz até
os rochedos, de onde se pode ver o mar. A violência do vento tornava-se cada vez mais incrível. Não se distinguia na passagem o que vinha voando, tão rápido passava.
Sem ver o mar e a uma légua dele, recebia-se um grande volume de água na cara. Começava a chover e nem se sentia a chuva, que ao invés de
cair era levada pelo vento. Chegavam ao cimo quando, de repente, penetraram no reino do vento cuja entrada era defendida por essas colinas, e tiveram de entrar lá
de joelhos contra a vontade, pois a força do vento, que ainda não tinham experimentado, e que
não esperavam, erguia-os do chão atirando-os longe, prostrados, agarrados de pés e mãos ao solo para se segurarem, não ousando levantar a cabeça para não ficarem
sufocados. Passaram-se alguns minutos. Então, estando os dois outros deitados, o marinheiro
e nessa posição todos recuaram alguns passos, apoiados nas mãos. Assim, estando um pouco mais protegidos do vento, olharam. Lá onde Jean pensara que o furor
da violência e a vertigem da velocidade atingiam o máximo, viu, como no princípio do mundo após um combate de deuses, todas as cadeias dos Alpes que se instalavam,
cada uma procurando seu posto, um outro pico vindo se erguer por um momento, colossais mas calmos, e entre elas, vales tão
que estavam molhadas. - Já é a chuva - disse. senhor faria bem em ir até o mar se quiser ter temp
se pÔs de joelhos, depois obrigou-os a ta bé se qioelhçi

* Páginas atrás está "Pont-Labbé" como vem na edição original. Respeitan105 a dupla grafia. (N. do T.)

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largos e profundos que do cimo majestoso e branco não teria sido possível distinguir um homem. Osol batendo nesse instante fazia ofuscar os cimos cobertos de gelo
e as formidáveis cascatas que deles desciam como um trovão que caísse mas no centro mesmo dessa calma profunda que reina nos píncaros à beira dos abismos. Eram como
rapazes tranqüilos, a escavação dos abismos, a ascensão de uma montanha em geral até o cume, de onde faziam ouvir seu ribombar tremendo.

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VI. Os adeuses

Jean foi dizer adeus ao mar, depois ao dono do albergue, à criada, encarregou-a de dizer adeus ao grumete que o conduzira tantas vezes e que àquela hora
estava pescando. Disse a todos que voltaria no ano seguinte, falou mesmo em ficar por mais tempo. Das coisas que amara tanto e a cuja adoração havia consagrado todas
as suas horas durante dois meses, não podia imaginar que se tratasse agora da ternura, perdida para sempre, que acabara. E às pessoas que lhe testemunhavam amizade
não saberia como dizer adeus para sempre. Réveillon o impediu de dar todo o dinheiro que trazia, mas não pôde evitar que ele deixasse mais de
Icem francos para essas pessoas. Repetiu que não ficaria talvez mais de seis meses sem voltar, para se desculpar do pouco que deixava e que isso parecesse apenas
o começo de um presente que ele aumentaria a cada ano.
Fez juramentos no sentido de voltar, e muitos outros. Sua afeição voltou-se, pouco a pouco, para os outros companheiros, para os outros lugares, pela mesma
razão por que tinha estado
ligada, por um momento, à pequena baía de Concarneau, a esses pescadores que todas as manhãs lhe levavam peixes, ao pequeno grumete que o conduzia pelo mar ao pôr-do-sol,
que conhecia seu medo às medusas - e alterava o rumo por conta
própria se o barco encontrava alguma, seu gosto pelo mar revolto - e preparava ele mesmo a barca se o vento assobiava, pelos sinos - e quando nos dias calmos ouviam-nos
a repicar
em Concarneau, movia os remos com mais ímpeto para não ficarem muito longe e, chegando bem perto, deixava os remos, não dava mais uma palavra, não se movia mais
olhando a água, talvez também escutando não só até que os últimos fossem tocados,
mas fazendo-o ouvir indefinidamente o silêncio que se seguia, olhar o céu perder seu colorido aos poucos e, às vezes, já noite cerrada, a lua se erguer, até que
Jean lhe dissesse que era tempo

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de voltarem, e às vezes lhe estendendo espontaneamente um tinteiro guardado no barco para o caso de ele querer escrever alguma coisa, perguntando-lhe no dia seguinte
se dormira bem, tendo entrado em casa tão tarde, e sabendo tudo o que ele fizera até à noite, já que tinham estado juntos, tendo recebido, se não a mesma impressão
das coisas, ao menos a impressão das mesmas coisas, todas as particularidades de seus gostos, de sua saúde, de seu caráter, seus divertimentos, seus apetites, suas
boas e más pescarias, suas fantasias, seus silêncios. Podiam dizer um do outro: - Ah, hoje o dia está mais bonito que ontem. Osenhor não tem tantas cartas como ontem.
Muitas vezes à hora em que todos iam jantar, Jean mandava-o, aprontar o barco, o que ele fazia com presteza. Quase todos os barcos de pesca haviam regressado
ao cair do dia. Osol já estava quase se pondo. Partiam. Omar ao longe era cor-de-rosa, depois, mais próximo, amarelo, lá adiante vermelho, tendo o verniz e o tom
aveludado do azeite. As ondas, baixas, lançavam uma escuma violácea na areia. Obarco, ao deslizar, alterava as ricas tonalidades de suas águas, fazendo-as perder
por um instante apenas o seu veludo que, uma braça além, retomara a suavidade do resto do mar. Como nesses passeios feitos . numa região onde outrora fomos felizes,
respirava-se algo doce e excitante como a recordação. A lua se erguia branca e quando Écava dourada, o céu e o mar, no ocidente, eram ainda rosados. Depois a noite
descia por completo, as estrelas brilhavam e, sob a lua, abria-se um sulco de prata no mar, o qual se alargava à medida que se aproximava da margem. Eles lançavam
as redes continuando a avançar. Fazia frio. Ogrumete cobria Jean com um manto, às vezes comiam um pouco. Ficavam em silêncio absoluto. Aqui e ali um barco estava
imóvel em pleno mar, ancorado a fim de passar a noite. Cruzavam por uma barca atrasada, que o grumete conhecia às vezes mas em geral não conhecia, e diziam a Jean,
visto que era ele quem lançava a rede: - Boanoite, boa pescaria - como a um verdadeiro pescador que afinal ele seria. E feliz por ter recebido como pescador essa
saudação dita com simplicidade, porque ninguém estava lá para ouvilo e aquele a quem falava provavelmente nunca mais o veria, não lhe perguntam nada, não sabem nada
dele a não ser que

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pesca como eles, ouvindo "boa-noite, boa pescaria", respondeu: - Boa-noite, boa pescaria - procurando dar às mesmas palavras acento igual ao que ouvira, e guardando
a imensa ternura que tais palavras tinham despertado nos momentos levados desse modo pelo silêncio, em que a alma está tão, tranqüila e repleta que a menor sensação
inesperada é suficiente para lhe revelar tantas coisas, porém, inalgrado seu, mais ternas do que elas, também menos simples e tendo em seu coração uma terça parte
que o ouvia lhes dizer boa-noite. Às vezes, de um barco a outro passavam algumas palavras a mais, trazidas por cima desse silêncio enorme que elas faziam palpitar,
como uma gaivota que logo desaparecesse. Às vezes Jean se tornava pescador tão verdadeiro que respondia: - Até mais ver, boa-noite -, sem pensar nisso e olhando
as redes. Ao cabo de um instante, caindo em si, ria, pensando talvez que se a mãe o visse nesse momento riria de seu aspecto sério e que ele não poderia deixar de
rir quando ela lhe dissesse: - Que posudo!
Ali, quando descia do barco ao voltar, como sentia frio nos pés! Caminhava depressa e ria no vento e na noite ao perceber ao longe, através das macieiras,
o fogo e a lamparina do jantar que o esperava. Apressava-se. Odono do albergue o esperava à porta: - Nós todos já pensamos: ora muito bem, então ele não vai voltar.
- Jean sentava-se à mesa, alegre, esfregando as mãos, ofuscado pela lâmpada, com pressa de jantar. - Ali, mas agora o senhor terá de esperar alguns minutos, não
tem nada pronto. Bolas, faz duas horas que estamos esperando - dizia a criada. Mas ele se sentia tão feliz que tudo o que pudesse acontecer, atraso, incidente, transformava-se
imediatamente em felicidade. Muito bem, enquanto espero alcance-me os sapatos e as cartas. - Depois, chegava a sopa. Sem parar de jantar, contava o que tinha feito.
A criada já sabia que pescar, muito por ter visto os cestos e, enquanto ele comia, a fim de ft Lê-la ficar imóvel diante de si e ter um amigo para expandir sua satisfação,
contava de novo sua pescaria, e lhe recomendava que preparasse bem sua cama.

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Chegou o outono. Os raros parisienses que vêm para o litoral já tinham partido. Jean estava agora sozinho no hotel como se fosse o gerente, mais que o gerente.
Então o gerente não era tão cheio de gentilezas com ele, mais inferior a ele do que os criados lhe eram inferiores? Mas Jean gostava de reduzir essas distâncias.
Ia no carro com ele, quando o gerente precisava percorrer léguas até, um povoado, nas terras, e a seu lado, na boléia, respondia ao cumprimento dos camponeses. E
depois, tendo esses belos' dias, como tudo, acabado, ele partiu. Disse adeus mas acrescentou que retornaria todos os anos, certamente no ano seguinte, e talvez dentro
em breve. Pois às pessoas que, bem melhor que seus pais, tinham conhecido os dois últimos meses de sua vida, que o tinham secado no dia em que entrara ensopado,
e o tinham esperado todas as noites para o jantar enquanto passeava no mar, que,'deixando-o de parte enquanto estudava, tinham-no encontrado horas após estudando,
que tinham sorrido de seus defeitos, respeitado seus devaneios, apreciado seu coração, que o tinham conhecido o bastante rtra se lembrarem dele e poderem falar nele
um dia, se alguma vez, nessas plagas distantes, alguém lhes falasse no nome dele, todas as particularidades de sua saúde e de seu caráter, ele não teria sabido como
dizer adeus para sempre.
Felizmente para nossa vida tão mutável e para que esteja sempre rodeada de cordialidade, nossa simpatia não permanece figada às coisas que deixamos mas fica
em nós e continua a se espalhar a nosso redor a fim de embelezá-las, nos lugares e nos amigos com quem temos de viver. E no ano seguinte aconteceu que era a outros
seres e a outros lugares que Jean dedicara seu afeto, pela mesma razão que um ano antes o dedicara ao mar da Bretanha, ao grumete e ao dono do albergue, porque estavam
estreitamente misturados à sua vida. As férias mudaram. A afeição aos lugares e aos seres se enraíza com o desejo, ao deixá-los, de a eles voltar e tão logo desenraizada
morre, se liga a novos amigos para deles se separar em seguida com um pesar que não dura. E Jean, pouco a pouco, encontrou nisso a mesma melancolia dos amores, onde
o número dos que precederam aquele que se julga o mais durável é um triste lembrete de sua fragilidade.

19399

VII. Omar na montanha

No ano seguinte, Jean teve de acompanhar a mãe a uma estação de águas localizada num vale cercado de altas montanhas. Detestava essa região, achava-a medonha
e, embora se sentisse oprimido por ela, quase se congratulava, considerando bem cansativa essa necessidade que nos leva a amar coisas que estamos destinados a esquecer
tão depressa. Os anos de nossa vida que vivemos com a maior paixão, uma vez acabados, são para nós como um romance que lemos até o fim: uma vez lido, não temos mais
prazer em relê-lo. E as pessoas nas quais tivemos a ilusão de pôr o máximo de nós mesmos, é claro que só pusemos nelas o vento do nosso amor e a fumaça de nossos
sentidos, porquanto, depois, que tudo isso desaparece, é muito pequeno o nosso desejo de revê-las.
No dia de sua chegada a esse vale, Jean soubera que a Srta. Kossichef morava a uma légua dali. Já estava lá há um mês e nem um dia sequer sentira vontade
de ir vê-la. Sentou-se num rochedo. Diante dele baixavam à sombra - o sol já se tinha posto - as plantações compostas de vinhas. Olhava-as quando as folhas mais
altas lhe pareceram um pouco mais claras do que antes e estavam, de fato, na estação propícia. Pouco a pouco pareceram ficar mais claras ainda, quase como se fossem
ficar douradas. Compreendeu que, filtrado pelas nuvens, era um resto de sol que reaparecia; as vinhas ainda estavam na sombra, mas era uma sombra que um pouco de
sol pálido suavizava, aclarando-as. Jean logo se reviu no caminho da floresta onde tantas vezes um sol pálido que tentava atravessar a névoa amarelecia as folhas
sem se mostrar, como se as folhas fossem mais claras que na reafidade, ou mais tarde, nesse outono em que ia de carro ao lado do dono do albergue para Begmeil. Osol
ao meio-dia inflamava as folhas douradas pelo outono, e já não se sabia mais se essas belas cores eram das folhas ou da luz, e se não se tratava de folhas ainda
verdes avermelhadas pelo sol poente. E com

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efeito, no céu~*branco a gente adivinhava o sol num ponto mais brilhante onde o olho podia ainda fixar.o vapor d'água porém não sem cansar-se. Por trás, sem distinguir
suaforma, mas recebendo sua luz, ele sentia o sol e aproveitava o fato de estar por trás desse véu leve para mirá-lo por muito tempo, um olho fechado como nas tardes
brancas que inteiramente se aclaram e iluminam só um pouquinho antes do pôr-do-sol, e que havia conhecida na Bretanha, no caminho que levava à floresta, ou deitado
no fundo do barco, o rosto voltado para o céu.
Essa semelhança só durou um instante. Océu voltou a ficar totalmente azul e o sol, declinando, iluminava a encosta da montanha. Mas Jean lembrava-se da Bretanha
e, vendo os raios do poente que douravam os campos ofuscados, dizia consigo: "É o instante em que, quando não estava no mar, eu ia ver o regresso dos barcos. Mas
hoje, esta tarde, daqui a pouco, eles vão voltar. Oh, e não poder estar lá e vê-los, um após o outro, ostentando acima do casco, a grande vela erguida como a grande
asa da borboleta sobre seu pequeno corpo quando as duas asas coladas parecem apenas uma, e tão brilhantes à luz do poente. Oh, é neste momento", pensava ele. "Seria
preciso que antes de cinco minutos eu pudesse me achar lá." E enquanto imaginava as velas passando uma a uma, via as águas deslumbrantes estenderem-se aos poucos
e, ao mesmo tempo, cobrirem-se com essas cores tão arrebatadoras e raras, apanhar, guardar, avivar, suavizar ainda os reflexos mais maravilhosos do céu sobre o declive
encantado de sua superfície. E olhava desesperadamente as verduras estendidas a seus pés e as terras lavradas que, há pouco iluminadas pelo poente, tornavam-se sombrias
sem saber receber reflexo algum, apanhar nenhuma nuança, conservar preciosamente, tão logo o sol se pusesse, a recordação dele bem como a do céu, transformar-se
POT uma hora, apenas com os seus reflexos, restos de uma luz já desaparecida, numa espécie de terra encantada e cuja riqueza de sonho se prolonga, permanece, perturbada
um instante pelo único barco que a atravessa, levando ainda suas cores enfraquecidas porém persistentes, ainda estranhas e suaves sob o céu já quase descolorido,
no silêncio e no frescor, e a brisa da noite que já vem.

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E a noite vinha. Era preciso voltar a essa região que achava feia, em que devia passar longos meses e que ainda há pouco o oprimia com todo o peso das altas
montanhas que o aprisionavam. E no. entanto, agora, é com alegria que volta depressa descendo as encostas, fazendo ricochetar o- solo aos pés, de tanto que o pisava
de contentamento. E tendo a noite confundido tudo na escuridão, e lhe dado o desejo, não mais de vagas fantasias como antes, porém de gozos mais materiais de um
bom jantar sob à lamparina.cuja luz confortável necessita~ para brilhar com toda a sua vivacidade e doçura, do escuro negror da natureza, lembravase com satisfação
das voltas a Réveillon, à noite, quando se avistava no fim do caminho negro a luz da sala de jantar e ele subia depressa para se vestir e descia rápido para jantar,
onde todos já estavam reunidos à espera da refeição, e onde a viva luz da lamparina iluminava em cada um a alegria silenciosa do bem-estar, da fadiga de um dia cumprido,
do apetite que vai ser saciado, da curiosidade pelo passeio de um deles, pelas novidades que outro deve ter para contar, o duque já à mesa e folheando o jornal e
o anúncio dos prazeres do di-a seguinte. E, cada vez mais alegre, Jean descia a encosta e, à medida que atingia o fundo do vale, longe de se sentir oprimido, parecia-lhe
ao contrário que, ultrapassando essas, montanhas, seu pensamento não se detinha diante de nada. Como Júpiter, seu crânio parecia conter o mundo. Encontrava alguns
passadores que, atrasados, entravam e, a falar verdade, pelo seu ar feliz, pelo passo rápido, a mão febril que transmitia seu fogo a uma folha arrancada na passagem
e rolada em todos os sentidos, a rapidez do pensamento, era difícil ler com exatidão o que se passava em sua alma. Mas talvez se nesse momento, no pequeno albergue
onde lhe observássemos as maneiras alegres e tão diferentes de seu ar melancólico habitual, sew passo lento e desanimado, sua mão corretamente imóvel ao longo do
corpo, o tivéssemos aproximado de uma mesa iluminada por uma vela, com uma cadeira, e lhe déssemos um maço de papel em branco, tinta e pena de escrever para carregar
a tinta à sua vontade, com toda a rapidez que teriam talvez admirado desde a porta se o houvessem visto dali, deixando-o, todavia, na crença de que estivesse só,
e sem fazerem ruído algum, teriam podido sem dúvida, ao cabo de uma

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hora, contemplando os caracteres traçados com a velocidade do pensamento sobre essas folhas por uma mão febril, olhar como num espelho todas as idéias que se sucediam,
se agitavam, se multiplicavam tumultuosamente em sua cabeça ainda há pouco e lhe davam'urn aspecto tão aturdido quando o condutor de uma carroça carregada de feno,
ao passar, avisava-o rudemente pela terceira vez, sem que ele o ouvisse até então, para que tomasse cuidado, e um momento após voltavam-lhe o ar feliz e o passo
desengonçado que faziam com que a folha sofresse torturas tão monótonas em sua mão.

Outras vezes, era um tempo novo sucedendo a este que já durava alguns dias, o frio já de inverno chegando um belo dia em setembro com ainda um pouco de sol
do verão e um vento terrível com ' a sombra trêmula das folhas sobre as mesas ao sol que lhe recordavam a Bretanha. Ovento, soprando-lhe no rosto, não entrava só
em seus pulmões. A alma de Jean respirava ao mesmo tempo a lembrança. De outras vezes um silêncio absoluto na solidão de uma montanha, de uma planície que liberta
de tudo o~ pensamento, torna-o leve e livre como as ervinhas secas que a tais altitudes tremem sozinhas ao vento que passa. Então, basta descer um raio de sol para
inflamá-lo, uma fonte encontrada para o arrebatar. E ele se punha a andar depressa como o vimos, perdia-se, voltava ainda feliz sustentando, mais levemente que Atlas,
o mundo inteiro em seus ombros. Uma reprimenda irritada da mãe a propósito de seu atraso, ou uma ordem um tanto imperiosa do pai, fazia-o recair clara e duramente
em terra. Ou recaía aos poucos no bem-estar do jantar que lhe entorpecia o espírito, na vaidade de um encontro marcado com amigos ou de um serão num cassino à noite.
No entanto, durante a primeira parte do jantar, seus olhos pareciam fixar outra coisa que não o pai, a mãe e o criado, e ele aparentava estar mais feliz que de costume.
Falava à mãe com profunda simpatia e as coisas que dizia emocionavam-na até fazê-la ficar com a voz trêmula e os olhos úmidos. Contamos uma história e não temos
de falar aqui em leis do espírito e lastimar tantas forças perdidas que se er-

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guiam também durante uma hora sem nada deixar de si, como uma tempestade que levantou tão alto as vagas, uma vez sobrevinda acalmaria. Isso poderia interessar unicamente
aos poetas e ficaria melhor num livro que tratasse de sua arte.
Essas horas no entanto foram boas para Jean. Não talvez como poderiam ter sido, para lhe devolver, através de lembrança de que ele havia sido capaz, alguma
confiança em si mesmo nos meses de indolência e mediocridade. Por isso, estava muito deprimido por sua mediocridade atual. E aquilo que pudera brotar dele um dia,
acreditava-o findo para sempre, não sendo capaz de perceber dentro de si mais energia do que continha no momento. No entanto, tais dias não foram perdidos. Descendo
de novo, com tão grande apetite pelos pores-do-sol na Bretanha, ao vale situado tão longe do mar, e do qual os campônios jamais tinham avistado em toda a sua vida
uma vela e um mastro, compreendeu que, se o nosso amor às coisas se assemelha ao nosso amor às pessoas ou às futilidades na medida em que elas mudam de objeto, e
na medida em que tudo o que amamos devemos abandonar com um sentimento de pesar que não pode durar a fim de amarmos outras coisas e outros seres, erraríamos, no
entanto, em acreditar que existe nesses amores o mesmo nada que nos outros, e que eles, comoos outros, não guardaram nada de nós. Compreendeu que, embora não quisessé
mais voltar a amar a Srta. Kossichef, nem se dar o trabalho de ir à casa da duquesa de Réveillon, recomeçaria sempre deliciado a ir passear no barco de Pierre no
mar, a escrever ao sol, apesar do vento, olhando o mar, no pequeno terraço onde o sol iluminava as folhas já rtibras e as folhas ainda verdes da vinha. Talvez não
voltasse a vê-las. Não importa, o gosto que ainda sentia por essas coisas parecia-lhe um indício bastante significativo de que não as amara em vão, que conservara
algo delas. Um raio de sol como sentia de repente lá embaixo, um vento a soprar num dia de sol, não lhe enchia apenas os olhos, não penetrava só em seus pulmões:
sabiam o caminho de seu coração e lhe traziam recordações. É que essas horas em que ele parava de escrever para contemplar a sombra das folhas na mesa ensolarada
e, diante do mar descorado, deitado no fundo do barco, em que olhava o sol se pôr sob as nuvens, tinham dado o coração a algo mais

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profundo que a vaidade, mais duradouro que o amor. Não era somente o céu que muitas vezes e bem longe dali ele revia tão imensamente azul, tão profundamente suave,
como um testemunho fiel de seus alegres passeios no mar e que parecia sorrir-lhe ainda. Não eram somente os tímidos raios de sol fazendo sua primeira reaparição
quando se dissipam as nuvens, que ele via tentarem iluminar as folhas que ainda não iluminam, a pura carícia silenciosa do vento frio e bem conhecido, que não haviam
mudado. Dentro de si mesmo, percebia que alguma coisa, que apenas sentira durante essas horas, também permanecera a mesma. E naqueles momentos não tinha mais dúvida,
nenhuma inquietude, nenhuma tristeza. E sua tranqüilidade profunda parecia, como o céu azul acima de sua cabeça e a vegetação sussurrante a seus pés, conservar uma
serenidade, uma alegria silenciosa.

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VIII. Begmell na Holanda

Num dia chuvoso, estando Jean em Haia, que, não sabendo geografia, imaginava se localizasse no interior, recebeu o conselho de tomar um trem que em meia
hora 'o levaria a Scheveningen; e, de fato, chegou às margens do mar do Norte. Bem perto dali ficava Ostende, que ele supunha estivesse muito longe em outra direção.
Sentiu uma sensação muito singular ao perceber assim um passado tão diverso se unir ao presente, pensando que, ao seguir as costas acinzentadas desse imenso mar
cor de cinza sobre o qual caía a noite, chegaria a Ostende, a essa Ostende aonde, em pequeno, fora dar um dia depois de uma noite de trem e que para ele era uma
praia isolada do resto do mundo, não sabendo por onde viera, e, subitamente próxima a lugares que ele julgava em outro ponto da Terra, tornava-se algo diferente,
embora decerto a tivesse reconhecido.
É esquisito ver os lugares que só conhecemos pela imaginação. É talvez mais estranho ainda rever os sítios que vimos, mas, como se tivessem mudado de lugar,
onde não os esperávamos encontrar, desdobrando a imagem bem conhecida de sua costa recortada sob um céu cinzento que julgávamos cobrir muitas outras coisas mas certamente
não essas. Sim, esse céu brumoso das cinco horas, que, dando alguns passos a mais, vamos encontrar, que cobrirá ele com sua asa cinzenta e molhada? Algo que é quase
como um sonho, de tanto que isso nos parúia existir em si, longe de tudo com o seu céu particular e não certamente incorporado a esse solo coberto de ervas mirradas,
que se liga por veredas arborizadas, não muito longas, a essas Flandres que ficavam, para nós, mais longe ainda, uma região onde parecia não ter havido mais que
cidades e campos, e o mar talvez como circunferência, mas tão distante. Tal era o espanto de Jean ao achar aqui o mar do Norte. Em sua viagem ele levou sua imaginação
mais além, até as praias do Báltico que jamais vira.

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Chegou a uma dessas praias ao cair da noite e embora garoasse um pouco, foi pela praia deserta (era já dezembro) até a beira-mar que, no infinito da praia,
subia pela areia em pequeninas ondas peroladas. Era uma praia aonde jamais fora, um mar que não conhecia, onde tudo lhe dava a impressão de estranheza, e no entanto
ele conhecia aquelas ondinhas. Talvez quando muito tivessem mudado um pouquinho de cor, uma cor cinzenta e fria que,lhes dava como que um tom do Norte. Contudo eram
exatamente as mesmas que vira milhares de vezes, na Mancha, em tantas praias que conhecia. Sua forma, seu movimento, o encadeamento de umas às outras compunham essa
fisionomia que faz com que as coisas nos afirmem que são as mesmas que conhecemos. Assim, tinha ele, nesse cair da noite, essa triste impressão, mais triste talvez
que a de não reconhecer coisas que conhecemos. Era um pouco a impressão de reconhecer coisas que não conhecíamos, mas sobretudo a de não ser reconhecido por coisas
que conhecemos, de sentir que se tornaram estranhas. Numa Praia conhecida, onde a colina de dunas em que se ergue o semáforo tem o costume de receber de manhã nossa
saudação matinal quando chegamos à janela, e nosso olhar amigo quando interrompemos a leitura para lançar por um momento os olhos ao redor, e até de ser pisada alegre
ou tristemente por nossos passos quando passeamos à tardinha, sobretudo alegremente ou antes felizes, pois de lá vemos sempre as belas cores do mar, sempre harmoniosas,
e passarem os barcos e voltar para jantar, numa praia assim, quando vemos as ondas bem conhecidas avançarem, recuarem, com os movimentos, o ruído, a forma que bem
conhecemos, parece que eles nos conhecem também. São quase como amigos de casa, naquilo que amamos e que nos conhece. Mas nessa praia do Báltico que ele não conhecia,
as ondas conhecidas tinham, diante de todas essas coisas estranhas e que ele jamais vira, o aspecto de o não reconhecerem, e a região estranha sobre a qual se ensombrava
esse céu desconhecido conferia à voz bem conhecida dessas pequenas ondas cujo aspecto infantil, o movimento leve, os gestos harmoniosos e ritmados haviam permanecido
os mesmos de quando os vira na Mancha, e até davani à areia o ar de lhe dizer: nós não o conhecemos. Pequeninas ondas-bem semelhantes batiam nesse momento em to-

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das as ilhas desconhecidas, em todo- os recifes onde se morre, afagando depois da tempestade, de volta à calmaria, a carcaça encalhada do navio, do porão do qual
os cadáveres dos marinheiros afogados ainda não foram retirados, e que serve às pequenas ondas, pois tudo lhes cai à feição, de ressalto para pular e brincar quando
o tempo está calmo. E por outro lado, sim, bem parecidas às que ele conhecia e que por isso tinham a impressão de conhecê-lo, brincavam também nas margens aonde
homem
algum jamais fora, que desde o começo do mundo não conheceram presença humana e têm o mesmo ar de ser aquelas que
ele conhecia, de lhe falar, de gracejar familiarmente diante dele, e depois da morte de Jean, quando nada mais o conhecer, brincarão da mesma forma, conservando
essa fisionomia que emprestamos aos lugares que amamos, que vislumbramos neles de cada vez que os revemos. Pois a imagem desses lugares muda
com menos rapidez que a dos homens, e a das ondas não mudará nunca, das ondas que parecem nos dizer: "Foi ontem", e nos convidam a começar a vida verdadeira como
naquele tempo. Mas já se passou muito tempo. Para os que possuem a eternidade, não é nada, mas para nós é muito tar,le, já somos velhos. Espe-
remos que outros homens as aproveit.-m, talvez não ondas que para cada um são conhecidas, mas luyares que não se parecem entre si, e dos quais muitos que amam)s
são desconhecidos, con-
servam essa fisionomia de que retiramos a unidade que lhes conferia um aspecto de pessoa, e só mostram feições esparsas e estranhas aos olhos

que os contemplari.

Lembrando-se assim do mar do NoTte, do Báltico, de Dieppe enquanto atiçava o fogo da cozinha para se aquecer com o vinho
quente antes de se deitar, Jean lembrava-se, levado pelo vento, cujo primeiro ruído há pouco lhe fizera bater o coração, enchera-o de alegria, inflara-lhe as asas
como se ele pertencesse à
raça das gaivotas e se sentisse chamado na direção das tempestades e quando o vento refrescasse fosse convidado pelas ondas e pelas margens. Assim, sempre atiçando
o fogo, lembrara-se. E o vento o conduzira bem, com sua velocidade inaudita, com sua

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força incansável, com sua elasticidade que permitira à criança bem-amada que ele assentara em suas asas imensas, impermeabilizadas e frias como barbatanas, e embalara
com seu barulho, a permanecer no ar, e não ser levada pelas vagas, a passar por entre elas, a se enganchar por trás delas, a permanecer acima delas, ficar ao nível
da areia dispersa sob o céu negro e baixo, que ele conduzira assim por toda a parte onde houvesse uma idéia, algo a encontrar, um sentimento que valesse a pena desenterrar
da areia, ientar apanhar, guardar, exprimir, e durante esse tempo, sem cessar de fazer barulho enquanto Jean atiçava o fogo na cozinha, e pelo seu ruído mostrar
sua rapidez ao mesmo tempo nas chaminés, nas janelas, nas ruas, nas ondas adivinhadas, para entreter, aumentar o entusiasmo necessário para a continuação da viagem,
a procura da idéia preciosa escondida na areia arrebatada pela tempestade que, por momentos, lhe fazia bater o coração por causa do brusco abalo da chaminé e de
seu planger inimitável. Tanto a natureza sabe onde se acha aquilo que temos de expressar e nos conduz infalivelmente a esse porito, verdade expressa ao se dizer
que o poeta trabalha melhor no campo do que na cidade ou que se inspira mais na solidão do que em sociedade. E de fato, de que modo eu saberia que, enquanto toda
a minha vida passada a acalentar tantos prazeres e, amizades, que me parece oferecer perpetuamente tantas idéias justas, observações gerais, fatos permanentes, não
me incitaria (e incitar-me é excessivo, pois não sinto nenhum incitamento) senão a escrever páginas banais, como saberia que na areia de certa praia da Bélgica,
vista uma só vez sem grande prazer, durante uma hora, jaz uma verdade preciosa, se um vento favorável lá não me conduzisse, pelos únicos caminhos que levam até lá,
os da imaginação, dando-me entusiasmo ao vê-la, sinal de seu prêmio e força despendida para me fazer parar ali, excitar-me ali, pÔr-me a trabalhar dessa vez? A natureza
sabe onde estão essas verdades. E só ela sabe. Só ela, fazendo-nos sentir o que uma vez já sentimos, nos leva diretanente a qualquer ponto desse mundo fabuloso de
nossas recordações que se transformou no mundo da verdade. E se um dia sentirmos, ao pegar um guardanapo, o fino odor do linho limpo, lembrar-nos-emos da chegada
ao campo, quando após o jantar nossa mãe nos fazia adormecer,

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depois de nos vestir uma fina camisola branca, em lenÇóiS brancos, a cabeça num travesseiro branco, a janela abrindo para um jardinzinho que não podemos ver em razão
da hora em que se chega (serviram-nos o jantar depois do jantar "de tOCIo mundo"), mas que amanhã pela manhã nos mostrará sua corbelha de amores-perfeitos, e, ao
longo do muro aquecido pelo sol que nos convida a sair e a ir pelos campos, perto da bomba hidráulica, suas ervilhas-de-cheiro.

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IX. Impressões reencontradas

Em Begmeil, Jean percorria a região ora de carro com a duquesa, o duque e Henri, ora em boghei * com Henri, ora sozinho na pequena boléia com o cocheiro.
E a todo instante na extremidade dos campos, via-se o mar em tão grande repouso que não se dava sequer o trabalho de apagar o rastro dos barcos, de modo que, imóveis
aqui e ali, pareciam ter deixado pender atrás de si um longo fio, talvez ao cabo de uma espécie de cadeia, talvez encalhados numa espécie de trilho do mar que ali
parecia mais baixo, como se estivesse coberto de areia. E nada mais se confundia, aqui flutuando uma cor, lá uma outra; a água parecia estagnada já que se via boiando
aqui e além uma mancha de óleo. Oolhar que retêm esses espetáculos busca-lhes a beleza, a razão superior de seu encanto. Entretanto, por mais que o espírito procure,
por mais que o olho se arregale, parece que não são eles que podem receber a fruição estética. Será a memória? Não. No ano seguinte, Jean tentava lembrar-se de seus
passeios e descrevê-los, não sentia nenhum prazer nisso. Não, será preciso que um dia, talvez muito tempo depois, um dia em que, procurando o encanto de um jardim,
ele olhe com avidez as rosas, as zínias, os buxos, os gerânios, um dia em que queira ver tais flores e não o consiga, seu dia achando-se desperdiçado, a Sra. d'Aleriouvres
mande atrelar um carro para levá-lo a uma paragem vizinha a Genebra.
Ficará desolado, o dia está perdido. Entretanto o boghei parte, ao trote do cavalo. É o entardecer, a hora em que saíam para dar passeios. Ocavalo trota,
o ar está penetrante, as aldeias percorridas olham, por seus habitantes, do limiar das portas e a igrejinha mira sem ver, com sua parede ensolarada. Mas tudo

* Espécie de carruagem descoberta. (N. do T.)

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isso, sem nada lhe recordar, só dá prazer, quando no fim dos campos o lago de Genebra aparece por inteiro, nesse repouso das quatro da tarde, em que os sulcos se
estendem e se enlaçam como longos fios brancos no mar, traçado da vida guardado pelo mar, belo como os círculos ao redor dos olhos e a confusão dos anéis de cabelos.
Curioso também, essa paisagem toda de água que o sol, já baixo, torna tão sensível aos menores desenhos feitos pelos barcos que nela parecem estacionados, como que
seguidos de algo mais imaterial que sua rota, seu itinerário conservado pelas águas, como se a vida humana tivesse ensinado geografia à natureza que a inscreve agora,
são bastante apropriadas essas lembranças humanas em notação de nuanças e luzes, Ao vislumbrar assim o mar (é quase mar àquela hora) no fim do caminho que percorre
ao trote 'rápido do cavalo, Jean se lembrou logo. E eis que o vê tal e qual, sente o encanto desse mar de antigamente, reencontrando-o à sua frente. E de súbito
toda aquela vida, que julgava inútil e inutilizada, lhe surge bela e encantadora e seu coração se dilata à lembrança dessas voltas de Begmeil, quando o sol declinava
com o mar diante de si.
Que existe então entre o lago e ele que não estava entre o mar e ele, que não existiria entre o lago e ele se ele não tivesse estado desse modo, outrora,
no mar? Será que a beleza, que é a felicidade para o poeta, está nessa substância invisível que se pode chamar de imaginação, que não pode aplicar-se à realidade
presente, que já não pode aplicar-se à realidade passada que nos traz a memória, e que flutua apenas ao redor da realidade passada que se encontra presa numa realidade
presente? De maneira que entre ela e o olho que a vê, que a vê hoje e outrora, flutua essa imaginação divina que é talvez nossa alegria e que encontramos nos livros
e tão dificilmente a nosso redor. Este lago que está diante de mim não é mais um espetáculo cuja beleza procuro descobrir, é a imagem de uma vida vivida há muito
e cuja beleza e encanto repercutem vivamente demais em meu coração para que eu tenha necessidade de procurar saber em que consiste. É, à parte o espetáculo indiferente
da vida presente, descobrir de súbito, na recordação ressuscitada do passado, o sentimento que o animava, um encanto da imaginação que nos prende em definitivo à
vida, e a ela nos incorpora, como se nosso

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passado que o gozo deixou escapar, que foi incompreendido pelo pensamento, apresentado de maneira tão vaga pela memória, fosse recuperado para sempre através da
contemplação. Lá estão as lindas horas da vida do poeta, aquelas em que o acaso põe em seu caminho uma sensação que engloba um passado e que promete à sua imaginação
travar conhecimento com o passado que ela não havia conhecido, que não lhe caíra diante dos olhos e que a inteligência, o esforço, o desejo, nada lhe podia revelar.
Era-lhe necessária a lembrança, não exatamente a lembrança mas a transmutação da lembrança numa realidade diretamente sentida. Esse odor que sinto de repente ao
encontrar nesta casa onde certamente não vinha procurar a beleza, reconheço-o! É o odor de certa casa em que morávamos à beira-mar, uma irritante vivenda toda de
madeira onde, logo que voltava a entrar, sentia esse odor especial, e onde fora tão triste, onde tudo me mostrava tão pouca beleza. Mas ela envolvia a minha vida
com seu aroma pouco agradável. Logo que, tendo empurrado 'a pequena porta e atravessado o jardinzinho ordinário de beira-mar, entrava em casa, era acolhido por esse
'cheiro, seguido por ele, que eu subia os degraus de madeira que estalavam aos pés, trocava de roupa no quarto, lia à luz da lamparina que nossa cozinheira, desorientada,
trabalhando por todos, não sabia acender bem, e depois jantava sentado defronte a minha mãe. Toda essa vida, todas as suas expectativas, tédios, fome, sono, insônia,
seus projetos, suas tentativas de gozo estético e seu fracasso, seus ensaios de gozo sensual e seu brusco fim, seus esboços de captação de uma pesgoa que agrada
e seu naufrágio irrisório, esse odor envolveu tudo isso. Ao senti-lo, também senti reerguer-se toda uma vida que minha imaginação não conhecera, que ela -ecolhe
nesse instante e que desfruta, não sei se no odor que sinto ou no próprio odor que minha memória lhe apresenta, prefiro crê-lo na essência comum a ambos, na identificação
de ambos, como se isso fosse necessário para que uma sensação perdesse esse algo pessoal que ostenta no presente e que é percebido, e que a memória não lhe pode
retirar. Pois são os esboços ordenados do presente que ela conserva mas que permaneceram o presente.
O presente pode estar morto, e nem por isso é menos acidental. Enquanto nesse instante em que uma sensação se apresen-

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tava no presente como sendo a do passado, da aproximação brota como que uma sensação situada fora do alcance dos sentidos e no campo da imaginação, que agora tendo
diante de si um objeto eterno pode conhecê-la, de sorte que de súbito eis uma realidade desprendida de minha vida, vista outrora como quadros, guardada na memória
e, em vez da tristeza de alguém que só tem coleções, em vez de viver sem viver, ter vivido, ou antes, ter vivido algo que vive ainda e que poderá ser vivido amanhã.
Sinto, então, sob as espécies de uvas das quais, no jardim, destacava um a um, saboreando, os bagos louros ao começar a estudar, sob as espécies dessas compotas
sombrias e temperadas, avermelhadas, violáceas ou castanhas que me serviam no quarto em tal hotel cujos móveis cheiravam a poeira e onde eu me aprontava tristemente
para tomar o trem, em tal odor do quarto de toalete onde os sabonetes foram molhados, e a água-de-colônia e a água dentifrícia destapadas e onde o sol e o ar do
jardim penetram e volatilizam, sinto a trama da minha vida de antigamente, perfume de vagões, pressa da hora, barulho de sinos desiguais e retumbantes palpitar em
mim, mais alto que a memória e o presente, não lisos como uma imagem mas cheios como uma realidade e vagos como um sentimento. Sentimento da vida que pode me ser
arrebatada, mas que não lamento porque sinto-a com algo idêntico a ela, que não busca o gozo prolongado, mas nela encontra um sentimento bem fora de toda duração.
Sentimento que talvez não se conserve, mas que se ri de sê-lo, como se a conservação, por mais longa que seja, estivesse nessa esfera do tempo, tão abaixo da zona
indeterminada onde flutua.
E perg untamo-nos se não é melhor que a imaginação, que nem
o presente nem o passado pôde pôr em comunicação com a vida,
não possa conhecê-la e salvar assim do esquecimento, da incom
preensão do espírito e da triste memória, a essência variada e in
dividual da vida num barco, nuir vagão, num quarto de hotel,
no aroma de uma rosa, comendo compota, num quarto de toa
lete, numa estrada, onde se vê o mar, percorrida elegantemente
de carro, quando brotasse do choque de um presente e de um
passado idênticos e se desprendesse do tempo. Pois o prazer que
nos dá é um sinal de sua superioridade, no qual me fiei o bas
tante para nada escrever do que via, do que pensava, do que

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raciocinava, do que me lembrava, para só escrever quando um passado ressuscitava de repente num cheiro, numa visão que ele fazia brilhar e por baixo do qual palpitava
a imaginação e quando essa alegria me desse inspiração. Esse prazer que me parecia prova suficiente da superioridade desse estado, esse prazer é talvez o sinal da
superioridade de um estado em que temos como objeto uma essência eterna e como se a imaginação só pudesse conhecer um objeto tão sublime. E esse prazer profundo,
justificando qub atribuamos o primeiro lugar à imaginação, já que agora compreendemos que ela é o órgão que serve o eterno, realça-nos talvez também a nós mesmos,
ao nos mostrar a nós mesmos tão felizes, desde que estamos libertos do presente, como se nossa verdadeira natureza estivesse fora do tempo, feita para desfrutar
o eterno e insatisfeita com o presente, entristecida com o passado. Por essa razão vivamos, conheçamos todas as horas, sejamos tristes nos quartos, não nos entristeçamos
muito por ter vivido em carros elegantes e nos salões. Não sabemos qual o dia em que buscaremos a beleza numa montanha ou num céu, encontrá-la-emos no barulho de
uma roda de borracha ou no cheiro de um tecido, nessas coisas que flutuaram em nossa vida, onde o acaso as faz flutuar ainda, mas desta vez mais bem aparelhada para
desfrutá-las, desfazendo sua imagem. passada de sua realidade presente, arrancando-nos à escravidão do presente~ inundando-nos do sentimento de uma vida permanente.

414

Vil

Segunda temporada em Réveillon: a estação
fria. - A marquesa de Réveillon. - Os quartéis de inverno de Balzac. - Os pra-
zeres do outono. - Oconde de Saintré. Opríncipe de Borodino. - Uma cidadezinha provinciana. - Os militares. - Oinverno. - A viscondessa Gaspard de Réveil-
lon. - Lembranças do regimento. - Fontainebleau. - As ostras. - Ocoronel Brenon. - A tempestade.
I. A estaçãó fria

Quase nunca havia gente da sociedade hospedada em Réveillon, pois a duquesa tinha horror a ter convidados no campo, e para que alguém lhe parecesse digno
de vir a Réveillon, era preciso que ela visse nele qualidades tão particulares que ela quase não convidava ninguém. Oduque se sujeitava a esse gênero de vida, já
que se tratava do gosto da esposa. Mas convém dizer, agora que o conhecemos bem, que não era esse o gênero de vida que teria escolhido e lamentava muitas vezes em
silêncio que a mulher não houvesse consentido em fazer de Réveillon algo semelhante a Versalhes, visto que, não existindo mais reis e sendo ele o primeiro fidalgo
da França, era em sua casa que teria de se instalar a corte. E seus lamentos eram ainda mais pungentes desde o casamento de seu primo, o marquês de Réveillon-Saint-Patrice,
simples rebento mais novo de sua casã que, tendo esposado uma norte-americana deslumbrante, riquíssima, que adorava a sociedade, recomprara, não longe de Réveillon,
sendo sua mãe uma Soubise, o antigo castelo dos Soubise, onde dava contínuas festas maravilhosas que ocupavam sempre várias colunas nos jornais . Mesmo quando não
havia festa em Soubise, o infeliz duque de Réveillon não podia abrir Le Gaulois ou Le Figaro sem ler que o novo cavalo de seu primo acabava de ganhar nas corridas,
a descrição, do tamanho de um artigo, da toalete usada pela marquesa de Réveillon em tal comédia de paço, em tal reunião hípica. Deus sabe que nunca descreveram,
e não sem motivo, os vestidos da duquesa de Réveillon!
Aos poucos, os verdadeiros Réveillon tornaram-se, para os fornecedores, aqueles a quem vendiam tantos carros, tantos chapéus, tantas jóias, e para o público
aqueles cujo nome liam sem cessar nos jornais . Entre os burgueses, quando se dizia: o duque de Réveillon, replicavam: - Osenhor quer dizer o marques. - Ah,

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pensava que eram duques. - Não sei o que eles são, mas enfim os verdadeiros Réveillon, os que recebem, sabe, que são amigos da rainha, enfim, esses de quem se fala,
que se fazem chamar marqueses' de Réveillon. - Mas tratava-se ainda de erudição. Para a maioria, o duque de Réveillon era o marquês de Réveillon. Pouco a pouco a
marquesa de Réveillon passou a afetar uma presunção que o duque ficaria aborrecido em notar em sua mulher mas que o irritara em virtude do ruído que provocava em
torno do nome de seu primo. Mais tarde as confusões se tornaram contínuas, mortificadoras, lamentáveis. Ele que desposara uma princesa de Champagne, prima do imperador
da Áustria, que jamais quisera montar a cavalo nem ir aos pequenos teatros-, tinha constantemente o prazer de ler nos jornais uma nota deste teor: "Entre os entusiagtas
do grupo, notado em Longehamp, o duque de Réveillon, que, como se sabe, casou com uma encantadora norte-americana. Ladeado dessas senhoritas, Miss Footit, a catita
Clara Timour, Tekita inconsolável com o abandono de G., rodeado de damas da sociedade, a Sra. Guypper, a esposa do riquíssimo banqueiro Israêl, a duquesa de Réveillon,
se me fazem o favor, que nem por ter nascido na terra dos dólares é menos uma de nossas maiores damas e uma parisiense autêntica, a Sra. Bering-Granval, a valorosa
criadora dos Vers de Honte etc." Ou ainda: "Uma indiscrição a propósito de uma de nossas maiores damas à qual o nosso amigo Intérim fazia alusão outro dia. Podemos
nomeá-la hoje. É a duquesa de Réve;llon, com licença, que trabalha todos os dias com a Srta. Yvette Guilbert na Pocharde.* e a canção: Ah! laissez-moi me tordre
que pedem de novo todas as noites no Alcazar à deliciosa divette e que, cremos nós, neste verão, em Réveillon, nesse castelo gótico onde viveu Luís XIV e está enterrado
São Francisco de Sales, não será uma das menos sugestivas e picantes attractions,** como dizem nossos vizinhos do outro lado da Mancha, da estação à qual a duquesa,
uma mulher de progresso,

* La Pocharde, peça do romancista e dramaturgo francês Jules Mary (1851-1922). Yvette Guilbert (1867-1944), célebre cantora francesa. (N. do T.)
** Em inglês, entre aspas, no original. (N. do T.)

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bem de seu tempo e de sua terra, conta imprimir um cunho todo novo. Le Gaulois, que busca informar sempre os seus leitores a respeito de tudo que concerne às lendas,
enviou um de seus redatores à casa da duquesa a fim de entrevistá-la sobre essa surpresa di primo cartello.* Infelizmente, não pôde fazê-lo, pois a duquesa, cuja
simpatia pelas personalidades da imprensa é conhecida, não estava no palácio de belo aspecto, de silhueta provocante, enriquecida de apreciadas pinturas de Vandore,
que é a moradia hereditária dos Réveillon. Mas, em compensação, pôde
encontrar a Srta. Yvette Guilbert, que se dispôs a lhe dar as seguintes informações: "Oque pensa da Sra. de Réveillon, amigo?
disse-nos a sempre graciosa divette. Em primeiro lugar, que ela é, antes de tudo, com perdão da palavra, minha cupincha, e não uma duquesa qualquer." E o artigo
terminava: "Sabe-se que o duque é o atual chefe da casa de Réveillon. Tinha casado em primeiras núpeias com a falecida duquesa, née princesa de Cham-
pagne.," Enfim, tendo o marquês de Réveillon aderido à República, de vez em quando o duque, fiel a seu rei ao ponto de recusar ao primo, o imperador da Áustria,
a permanência como
embaixador junto a ele sob o marechal,** lia no jornal: "As convicções republicanas do duque de Réveillon, cuja sinceridade não é posta em dúvida por ninguém. .
. "

Mas se a duquesa não gostava de receber em Réveillon, gostava menos ainda de ficar sozinha. Assim, alguns amigos vinham constantemente se instalar no castelo
por alguns dias. Como exigisse grandes qualidades daqueles que julgava dignos de vir a Réveil-
lon, ela o requeria a muito poucos mas gostaria de tê-los sempre à mão. Ora, cada um tinha obstáculos próprios da idade, um estava apaixonado em Paris, outro doente
na Suíça, um deveria

"Em primeira mão". Em italiano no original. (N. do T.)
Marechal: trata-se, provavelmente, de Mac-Mahon (1808-1893), nobre e político francês, presidente (1873-1879) de tendência legitimista. (N. do T.)

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acompanhar a mãe à estação de águas, outro receber seus netos no campo. Escrevia-se para requisitar os amigos: "Seu quarto azul o espera, Boniface possui agora um
fogão para lhe preparar a lebre à alemã como você gosta, a Sra. de Septcoeurs anuncia sua chegada justamente para o fim da semana e Henri planeja com seu amigo,
o Sr. Santeuil, rapaz admirável cujo espírito o encontrará, uma pequena comédia que, por minha fé, é bem galante. Enfim, o bom tempo parece ter-se instalado de vez
- Deus me ouça * e bem sabe que o ar em Réveillon sempre lhe fez bem." Nenhum respondia ao apelo. - Tem novidades, minha querida? - indagava o duque no almoço. -
Vi que recebeu uma volumosa correspondência hoje de manhã. - Bem, sim, pri-
pode vir. Opobre menino ficou aborrecido, mas tem suas tias de Beauvisage. - Ah, se ele tem tias, não pode - interrompeu o duque, o qual desejaria muito
que viessem somente no caso de, convidados, se negarem a vir a Réveillon. - Oh, é o que eu acho - retorquia a duquesa -, ele deve estar desolado; primeiro, não conheço
nada tão aborrecido como as Beauvisage, embora sejam minhas primas já que a mãe delas era Montmoreney, e depois, ele gosta tanto de Réveillon. - Oh, sim - respondeu
o duque ingenuamente -, é um menino tão gentil. - Amar Revéillon, não era isso ter a seus olhos todas as qualidades de coração e de espírito?
Assim, se gostava de ver a sociedade em Réveillon, gostava antes de tudo de não comprometer a reputação de Réveillon, e pepsava que isso aconteceria se deixassem
vir os convidados na estação fria. Por conseguintè, foi muito a contragosto que deixou Jean vir em outubro. Temia, por esse tempo, o frio muito intenso que ocorre
nessa região da Champagne desde setembro, quando chove vários dias sem parar, cuidando para que seus convidados se distraíssem com os passeios, se alegrassem com
o sol, a salvo de reumatismos, da bronquite e do tédio, por solicitude menos em atenção à saúde e ao prazer deles do que talvez pela lembrança que levariam de seu
castelo. No entanto, Jean nunca tinha sido tão feliz ali. Não mais temia, como no verão, ver chegar o carteiro com um telegrama e ouvir a duquesa dizer: - É Agenor
que chega à noitinha. É preciso atre-

meiro uma carta de Sergueux que acha que não

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lar a caleça por cinco horas, iremos todos buscá-lo. - De resto, todos os dias julgavam-se obrigados a passear de carro para distrair o convidado. Viam muitas coisas
sem desfrutá-las, só voltavam para o jantar sem ter tido tempo de ler nem de descansar. À noite, famílias da vizinhança vinham jantar. Âs vezes, Henri tinha de levá-las
de volta e Jean ficava sem ninguém para conversar com ele quando se preparava para deitar. Era preciso, pela vigésima vez, ir ver as'ruínas da ermida que o primeiro
duque de Réveillon erguera por volta de 887. Na estação chuvosa não era a mesma coisa. Já não esperavam convidados. Era possível criar hábitos, fazer projetos, não
os fazer, sem medo de que alguém viesse perturbar.

Em outubro, enquanto fazia bom tempo, dava-se um passeio antes do jantar, como no verão, por volta das sete horas. Atravessava-se a aldeia ao sol poente.
Depois, quando chegavam aos 'campos, a lua já se erguera. Logo descia a noite. Inumeráveis estrelas brilhavam no céu. Iam por um desses caminhos bem estreitos, abertos
em meio à vegetação. Caminhavam. um a um, no máximo dois a dois, envoltos em casacões para não sentirem frio, Jean enrolado numa grande coberta branca listrada de
vermelho que a duquesa lhe emprestara uma vez e que, sendo-lhe tão cômoda, ele não desejava trocar por outra. Mais além dos campos, não havia absolutamente ninguém.
Havia alguma coisa de excitante em partir assim, sem ter jantado, quando a noite já descia, e em prolongar o passeio, antes de voltar para jantar, à plena luz da
lua, sob as estrelas, no campo adormecido, no silêncio absoluto que quase metia medo de tanto que o sentiam próximo, quando, nas aldeias já distantes, todos dormiam.
Âs vezes, prolongavam ainda mais o passeio, pois a duquesa não gostava de se deitar antes das oitó e meia, passavam pela região mais selvagem, toda coberta de florestas,
montanhas pequenas e rápidos declives, que principia a meia légua de Réveillon, na direção do oeste. Era preciso subir à sombra dos bosqúes e o silêncio era tal
que dava a impressão de que estavam violando algo.

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Os galhos afastados por Henri para dar passagem à mãe recaíam com ruído solene, numa das últimas vibrações com que o silêncio da floresta inteira não brincava com
a emoção de Jean. Nesses momentos, ficando muitas vezes sozinho para trás em companhia da duquesa, falavam juntos de coisas íntimas, sérias e graves que, abordadas
pela primeira vez entre pessoas que até então nunca se viam a não ser no meio de outras, marcam uma data. Pela primeira vez a duquesa falava a Jean da ternura que
lhe tributavam. Eram coisas qVe ele sequer imaginava que ela pudegse dizer. Havia toda uma parte da natureza que ele ainda não conhecia e cuja lembrança ficou ligada,
para ele, eternamente, como o teria sido a lembrança de uma caverna profunda e doce, à lembrança dos bosques e da escuridão. A lua, já tendo chegado ao meio do céu,
acrescentava sua estranha iluminação ao ambiente fantástico dessa região desconhecida. As sombras se destacavam em meio a uma poça de claridade até se assemelharem
a coisas, e Jean, julgando pousar o pé num galho, sentiu-o cair mais embaixo, tropeçando na luz fantástica que criava obstáculos imaginários. As vozes do duque e
de Henri, vindas de baixo, os chamavam e era-lhes preciso encerrar a conversa, mas terminavam-na sendo mais amigos, Jean pelo menos, pois a duquesa dizia muitas
vezes, com naturalidade, coisas que para ele eram ernocioriantesi, tendo o costume, como muitas pessoas de antigamente, de não falar nunca do sentimento e sim pô-lo
demais nas coisas, de modo que as coisas que ela dizia uma vez, e que estavam implicitamente contidas no que fizera até então, eram ouvidas com espanto e avidez.
E Jean, respondendo a Henri e ao duque, que gritavam que as 'perdizes já não prestariam, sentia a voz tremer de emoção por ter estado a falar bem no meio de todas
essas árvores adormecidas, de fazer sociedade com essas solidões, pela ressonância que a voz ia adquirir nesse caminho coberto, por não ver bem aqueles com quem
falava e que já se encontravam no caminho inferior, e talvez também pela exaltação em que se achava por ter dito à sua acompanhante, e ter ouvido dela, confidências
afetuosas. E quando voltava para junto dos outros a fim de falar do jantar e da caça, era como alguém que, mandado no meio de um jogo para a escuridão a fim de esperar
que escolhessem uma palavra para

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adivinhar, volta de repente para a luz, ofuscado, e não sabe mais de que se trata.
Ainda assim era bem bom quando, principiando todos a ter frio e fome, atravessavam de volta a aldeia e percebiam por detrás das árvores do parque as lamparinas
no salão e na sala de jantar, e antecipando pela imaginação aquilo que já se encontrava à espera deles, mas que só descobririam dentro de dois minutos, sentiam-se
perto do fogo, depois à mesa, sob a lâmpada, e a sopa quente que lhes punham no prato e que iam tomar. Abriam a cancela e, quando a duquesa não tinha vindo, dizia:
- Muito bem, então isso são horas de chegar? - ah, é que fizemos um bom passeio. - Fiz com que andassem por Montjouvain ao voltar pela descida de Gelos. - Ah, se
tivessem ido até Gelos eu compreenderia que estivessem atrasados dizia a duquesa deixando a Revue des Deux Mondes para ir jantar. - Não vão trocar de roupa, andem,
é muito tarde, vocês estão muito bem assim. - E a luz da lâmpada quase ofuscante mergulhava numa onda de bem-estar, de calor, claridade, gulodice, de preguiça friorenta,
de materialidade, os vagos devaneios que ainda flutuavam sobre Jean com o cheiro do bosque, a umidade da noite e a frialdade do luar.

À noite jogavam pequenos jogos, cartas, em que a felicidade de estar sentado ao fogo enquanto o vento sopra lá fora serve de base aos prazeres bem sortidos
da curiosidade, da vaidade ou do interesse. Às onze horas, cada um pegava o seu castiçal, mas a partida não era triste para Jean, pois Henri subia com ele para o
quarto e lá ficava conversando até que ele fosse dormir. E aqui temos de fazer uma confissão que muitas pessoas não julgarão favorável ao nosso herói e que teria
sido um dos mais prodigiosos espantos da duquesa, ou antes, ela se teria recusado a acreditar. Mas, na idade de Jean, a gulodice, a necessidade de exercício físico
e de bem-estar se reforçam com outro prazer que é quase da mesma natureza, quase tão inocente e que nas noites de vento o protegia do frio de maneira quase tão agradável
como os duplos postigos, o fogo da grande lareira gótica e seus

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cobertores. Perto da meia-noite, a boa moça de vinte e dois anos,
afável e alegre, forte e viçosa, em quem a duquesa não via de
feitos porque não conhecia bem o seu defeito, deslizava, prote
gida pela grande distância a que esse quarto estava dos outros,
e pelo ruído ensurdecedor do vento nas chaminés, para dentro do
quarto de Jean. Ele a esperava na cama, sonhando com esse novo
calor. Ela atirava as roupas na poltrona, fechava a porta a chave
depois de escutar por um momento ao longo do corredor, onde
só o vent ' o entrava, e ia para a sua cama. Eles juntavam pernas
e braços, apertavam os corpos um contra o outro, uniam o frio, o
hálito, o desejo, o calor, a doçura, a aspereza, a vida. Uma
noite, passando por um corredor, o desejo de um descobrira o
desejo do outro, porque o desejo cria imaginação e talvez, sobre
tudo, porque aquilo que é feito para se unir se une sem hesitar.
Infelizmente as leis já não são as mesmas quando se entra no
mundo das almas. Eles só ouviam o vento, riam porque fazia
mau tempo lá fora e na cama era muito melhor. E o murmúrio
do vento, a hora insólita, o medo, o bem-estar, a atitude dife
rente durante o dia que os impedia de mostrar seu desejo em
carícias no momento em que elas não são imperiosas, esse instan
te de gozo no dia seguinte, quase tão misterioso quanto os dois
sonhos entre os quais ela se insinuara na cama (e os sonhos eram
tão voluptuosos quanto ela), tudo lhes conservava, durante toda
a sua permanência e depois nos longos desgostos, essa perturba
ção do primeiro momento em que, num corredor, quando ainda
não se conheciam, o desejo de um descobrira o do outro e,
como o enxofre unindo-se ao fósforo, ambos se inflamaram.

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II. Os quartéis de inverno de BaIzac

Lendo confortavelment e na pequena biblioteca de Réveillon, Jean revia com prazer todos esses nomes de Jardies, da Grenadière e de Frapesles, onde Balzac
ia passar as férias. Imaginamo-lo muito bem chegando a esses lugares com muito que fazer. Tem seu quarto que dá para os vinhedos cobertos de sol e lá trabalha, só
descendo para jantar, ébrio, alucinado por tudo que escreveu, o, olhar ainda fixo, os movimentos um pouco exaltados, derramando em todos uma parcela de sua exaltação
e de sua terna alegria, pois só nos recobramos da inspiração, como do clorofórmio, progressivamente. Depois disso, por exemplo, ele conversa, graceja, escreve cartas.
Ohábito do trabalho pode fazer' com que a conversa e a correspondência sejam como que mecanismos inferiores entremeados no vasto movimento dos organismos maiores
e mais elevados, e que a precisão, a elegância e o espíritó conduzem pela mão, sem mesmo se darem conta disso, a conversação e a correspondência. Mas também pode
acontecer que o trabalho intelectual se inicie unicamente na solidão para esse fim específico, e que a linguagem interior seguida pela pena não principie para a
conversação, sendo o inverso do que ocorre com os grandes conversadores que não têm talento ao escrever. E isso deve ocorrer principalmente com os grandes escritores
que, de olhos sempre voltados para a realidade, escrevem baseados nela e não mostram uma forma que aperfeiçoam, como Balzac, ou cuja realidade literária - uma forma
que os fascina -, como em Flaubert, é tão interior que não,se pode aplicar na conversação ou na correspondência, de modo que a correspondência deles dá esssa matériaprima
da qual extraem a beleza, e de fato, por momentos, tem-se uma frase que se acha salientada nessa matéria, como um cantor ao conversar conosco, explicando algo, dá
por um instante o tom. É o que acontece com Flaubert.

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Assim vemos Balzac na Grenadière ou em Frapesles. Oinverno em volta de um castelo é um inverno inexistente em Paris, e por se estar mergulhado dessa maneira
na verdade da natureza guardase essa viva intuição da realidade que faz com que o poder dos homens não se exerça sobre nós, e que tenhamos a todo instante a necessidade
de subir para o nosso quarto e escrever, movimentos confusos que se originam em nosso cérebro. Atiramo-nos por completo ao trabalho, com um corpo casto mas acariciado
de desejos, cuja satisfação se adia para mais tarde, e que faz encarar a realidade com mais alegria e confiança. Ovelho Victor Hugo seguia ainda as criadas na rua.
E muitas vezes, estou certo, a convivência de um determinado castelo durante o inverno provém do fato de que aí residem moças bonitas que se deixam afagar e nas
quais o escritor pensa talvez por um momento antes de escrever, como pensa no jantar que será copioso e'divertido depois das horas de sobriedade e silêncio em que
mergulha, quando atiça o fogo e chega à janela para olhar o tempo, e vai se certificar de que a porta está bem trancada antes de se pôr a trabalhar.
Guloso, sensual, sobretudo se sabe encará-los como desejos, um grande escritor pode muito bem o ser. Balzac era também esnobe mas o trabalho fazia-o passar
tantas horas mais com personagens imaginários, ou seja, consigo mesmo, do que com as pessoas reais, que isso não tinha para ele grande importância. Quando acabava
de trabalhar, as pessoas da sociedade retomavam, para ele, sua importância, e ele escrevia ao conde Apponyi a fim de lhe pedir, com modéstia bem rara nele, que aceitasse
suas obras: mas nà mesma carta vê-se que lhe diz que há muito não tem tido tempo de ir visitar a sua esposa, e isso é importante. Pois os livros, uma vez escritos,
podem ficar na mesa das condessas, estão prontos, ninguém mais os pode alterar. Mas um autor, até a hora da morte, é uma coisa que se pode modificar e é preciso
que o pensamento que está nele absorva pouco a pouco todo o seu ser, de sorte que tudo o que disser será a linguagem mesma do pensamento, mas não que os outros possam
puxar para si até o pensamento dele, de tal modo que assim ele pensaria simplesmente as palavras dos outros e seria aniquilado. Ao passo que a esperança de passar
os lábios seja num pouco de vinho branco, seja numa face rosada e

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fresca, e de pôr ao colo uma menina distraia apenas essa alegria e essa vida, e é tão útil ao trabalho do espírito como freqüentemente a ausência de sono ou de alimento,
ou a febre, impedem
que se produzam o estado material do espírito ou os fenômenos da inspiração.

Às vezes, um resto de pudor o obriga a escrever a velhos amigos que o convidam, que ficam melindrados com seu silêncio,
como um homem importante precisa de um momento de inspiração para ir visitar uma viúva, comparecer a um enterro, ir jantar com a mulher de seu editor. Mas tudo isso,
sua consciência sente que ele seria dispensado de fazê-lo, que não é essa a sua tarefa. Daí também o aparente egoísmo do homem de letras, indiferente às obras dos
outros. É que só sobre a nossa temos algum poder.
É por um dever moral que nos ocupamos da nossa e não da dos outros. Estaríamos muito inclinados a nos ocupar da dos outros. Mas só devemos nos ocupar daquilo que
diz respeito à nossa preocupação, isto é, do que depende de nós. Daí as cartas
de agradecimento a jovens autores aos quais nos limitamos a falar em nós e para quem cunhamos uma bela frase, um pensamento que pode nascer do fato de nos terem
enviado uma carta, assim como um pintor, para agradecer a um crítico ou a uma dona-decasa que o convidou com freqüência, lhe manda um esboço. E no
entanto, apesar disso, a vida mais sincera tem sua falsidade: a pessoa a quem devemos dar a impressão de admirar e na qual a nossa inteligência descobre facilmente
qualidades que não percebemos mas que justificamos de um modo tão persuasivo que mesmo sem ter lido seus livros sabemos comover profundamente.
O que faz com que tal carta ou tal palavra de cumprimento de um Anatole France ou de um Daudet, cumprimento que traz o sinal de sua suprema inteligência, surta o
efeito da fotografia de um soberano com sua assinatura e suas armas na loja de um usurário. Oque faz com que nos desculpemos ao ler cartas até de Flaubert que (as
endereçadas a George Sand ou a respeito de
Renan), evidentemente, não são mais sinceras. Oque nos faz tremer ao pensar no juízo que farão de nossas idéias literárias

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aqueles que venham mais tarde a encontrar certos artigos ou, se nossa correspondência for publicada, lerem certas cartas.

Vejo Balzac amar entre todos os seus livros justamente aqueles que menos nos agradam
(O Lírio do Vale, OMédico Rural). t que, de fato, somos quase forçados
a estimar mais o que nos falta do que aquilo que possuímos, e quando fazemos um esforço que talvez tivés~emos receio de jamais poder fazer, sentimos mais orgulho
de nós mesmos do que quando aplicamos simplesmente esse talento que nos é tão natural que o conferimos aos outros sem quase o perceber. Nosso encanto, como aquilo
que faz a particularidade de nosso rosto aos olhos dos outros e que nossos esforços de embelezamento mudam tão pouco nos escapa ou pelo menos não lhe damos valor
algum, já que o obtivemos sem esforço. Restaria saber em que medida o esforço é necessário, nos eleva acima dessa pequena originalidade primeira, ou a adultera.
Joubert * dizia a Chateaubriand que não se esforçasse por escrever um livro, simplesmente deixasse brilhar com a freqüência que pudesse o seu talismã e todos ficariam
mais contentes. Ouvi Barrès dizer que o valor de um livro consistia nas belas páginas que continha e que não havia necessidade de muitas. E, no entanto, somos tentados
pelo esforço dos grandes escritores, que talvez não representasse para eles esforço algum. Sem dificuldade, vemos Racine reduzir-se às elegias sobre Port-Royal,
BaIzac aos detestáveis romances que nem sequer foram reimpressos!
No fundo, no sistema de nosso pensamento assim como na higiene do corpo, na busca do bem e da felicidade, na confiança em nossos amigos ou em uma amante,
ou na confiança num objetivo, flutuamos entre a fé e a dúvida, ou antes, sentimo-las quase que simultaneamente. E não sabemos nunca se estamos quase a ponto de perder
a vida. Particularmente em nosso trabalho, todos nós nos assemelhamos um pouco ao Sr. Cabusson de Middlemarch,**

Joseph Joubert (1754-1824), moralista francês. (N. do T.)
Personagem do romance MiddIemarch (1872), de George Eliot. (N. do T.)

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que trabalhou a vida inteira por uma,obra insignificante e absurda. Literariamente, no entanto, permanecem traços bem belos e que satisfazem plenamente. É verdade
que os'vi consolar alguém que reputo impotente e que, debaixo do orgulho, guardava talvez no íntimo tanta desconfiança melancólica e sentimento magoado, revoltado
contra sua impotência, quanto o Sr. Cabusson se consolava com tais traços. Mas eles deviam consolar também Chateaubriand (que tinha também seu tédio, o que permite
talvez, ao amigo de que eu falava, achar que seu próprio tédio era tão pouco razoável quanto o de Chateaubriand). No fundo, um grande homem, uma bela obra nos devolvem
a confiança na vida e no pensamento, uma medíocre nos deixa sem esperança. Quem sabe se nossa fé ou nossa dúvida exprimem apenas o valor ou o grau de existência
do nosso pensamento? E nosso desânimo ou nossa satisfação depois de ter escrito, o valor-do que fizemos. Oque seria grave para o capítulo que acabava de terminar
quando escrevi isto.

Mas mesmo a isso podemos nos ater? Não há homens de gênio descontentes com uma obra-prima, e idiotas empolgados com uma mediocridade? Talvez, na verdade,
isso jamais se tenha visto e uma boa obra causa sempre alegria a quem a fez, seja qual for, aliás, a atmosfera geral de melancolia, de dúvida, de hipocondria em
que ela brilhe como um raio de sol numa nuvem, nuvém que nos pode iludir quanto à vivacidade do raio. Nunca mais senti, ao escrever, as profundas alegrias de antigamente.
Será que tenho menos talento, será que sou mais presunçoso (mas não creio que a gente se torne presunçosa com uma satisfação desse tipo)? Numa palavra, o prazer
acompanha necessariamente a beleza, como Descartes achava que a certeza acompanha a verdade, e pode assim ser seu padrão? Talvez.

"Se eu pudesse ter isto", diz Balzac numa de suas novelas, "não escreveria romances, eu os faria." E no entanto, cada vez que um artista em vez de pôr sua
felicidade na arte a põe em sua vida, experimenta uma decepção e quase um remorso que o adverte com certeza de que se enganou. De modo que escrever um ro-

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mance ou vivê-lo não é de modo algum a mesma coisa, apesar do que se diz. E entretanto nossa vida não se separa absolutamente de nossas obras. Todas as cenas que
lhes conto foram pormim vividas. Como podem valer menos como cenas da vida do que como cenas de meu livro? É que no momento em que as vivia era a minha vontade que
as conhecia numa intenção de prazer ou medo, de vaidade ou malvadez. E sua essência íntima me escapava. Mesruo que eu fixasse os olhos com força, ela me teria escapado.

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III. Os prazeres do outono

Assim Jean passou em Réveillon uma parte da estação fria, tempo que também tem o seu encanto, e durante o qual somos extremamente felizes. Aos prazeres tidos
como os mais vivos não se mesclará sempre o tédio de não serem aquilo que havíamos esperado, e principalmente que isso, que em suma nada tinha de extraordinário,
nos sendo atribuído por todos como prazer, valha que depois tenhamos longos meses de aborrecimento? Há coisa mais triste que' o baile a que se permite que o colegial
compareça a fim de não privá-lo de um prazer fora do comum, e após o qual lhe dizem: "Agora que você já se divertiu bem, é tempo de se aborrecer com coisas sérias"?
Ao passo que o prazer secreto, desfrutado, por assim dizer, às escondidas, que se mistura, sem que o percebamos, ao estudo árduo de um texto latino, enquanto todos,
não ousando abrir a porta de nosso quarto e não podendo penetrar em nosso coração, nos lastimam, nos admiram, dizendo: "Mas é preciso que se distraia um pouco, depois",
esse prazer não é sem mistura? E quando, depois de estudar assim por muitas horas longas, nossa mãe nos beija e diz: "Que dia, meu pobrezinho, vamos tratar de te
arranjar uma distração", embora deixemos que nos lamentem, pois é indispensável à pureza de nosso prazer que não o tomem por tal, a expressão feliz de nosso olhar,
a alegre expansão de nossa ternura, nossa precisão de atividade física, o prazer que deixamos transparecer ao nome do visitante que é anunciado, da peça teatral
a que se vai assistir, ou, sem nenhuma causa aparente, que se expande em sorrisos espontâneos dirigidos e reclamados a nossa mãe, em gestos que só pretendem exprimir
fadiga, mas nos quais a própria fadiga trai o bem-estar, é uma prova cabal de que tivemos um belo dia.
Assim a estação fria cujo próprio nome,* que se esquiva de nos prometer prazer, não deixando que os outros suponham que pu-

* La mauvaise saíson, em francês. (N. do T.)

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déssemos ter tido esse prazer, guarda nesse prazer que nos dá uma inocência que não tem necessidade de ser compensada pela dor, uma pureza sem jaça que o homem não
mais encontra entre os prazeres da terra desde o pecado original e que só se manteve às ocultas naqueles que o trazem consigo, que o próprio homem traz consigo para
enfrentar os aborrecimentos. E se procurarmos na memória em que ocasião conhecemos as puras alegrias do paraíso terrestre, imagino que chegaremos com prazer à lembrança
das cama~ de caserna em que fazíamos a sesta ao meio-dia quando éramos soldados, ou das estradas em que passávamos marchando, de uma casa de campo em que tivemos
de passar um outono frio e chuvoso, de um quarto de hospedaria onde o mau tempo nos obrigou a parar e onde estudamos o dia inteiro à espera de que a chuva cessasse
e de que um carro encontrado na estrada, parando ao nosso sinal, nos levasse não longe de casa, em meio ao vento e aos relâmpagos.
E em Réveillon, a estação fria começara cedo esse ano. Desde
setembro havia dias inteiros em que o sol não surgia. A floresta,
as plantações e a aldeia sob o céu doce e cinzento, como a plu
magem sob o ventre dos pássaros, pareciam encerrar toda a re
gião, como ao abrigo de todos os ruídos do mundo, no silêncio
das coisas que estão separadas de outras, que formam um todo, o
silêncio de um jardim vazio. Assim as horas chegavam uma a
uma, como num quarto, por maior que seja, onde se escuta o
menor ruído. E as horas de uma aldeia próxima chegavam como
soam as horas no quarto ao lado. Ogrito de um pássaro, que
nesse tempo tão triste é o único a se arriscar ao gorjeio, a agita
ção das folhas do castanheiro quando por acaso passava uma
lufada de ar, o barulho de um martelo na aldeia do outro lado
da colina, os latidos indistintos mas reconhecíveis de um cão que
caçava com seu dono nos bosques, talvez a duas léguas, tudo
lhes chegava, nada se perdia. Como num lago onde o menor sopro
desperta na calma dessa água limitada vibrações de todas as partes
até que tenham tomado toda a superfície, os fracos latidos do
cão que caçava na outra extremidade do horizonte despertavam
os latidos ainda mais fracos do cachorro d * o sítio dos Aigneaux,
e o murmúrio das folhas do castanheiro se prolongava no mur
múrio mais leve de outros castanheiros até aqueles mais distan-

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tes que se dicutavam com os olhos, como fazem os surdos, ao movimento imperceptível de suas folhas., Nenhum passante vinha tomar um copo de cerveja ou um copo de
leite nas hospedarias, nas pequenas herdades cujas mesinhas rodeadas de cadeiras, deixadas sob as macieiras como em dias de bom tempo na primavera e no verão, permaneciam
vazias dias inteiros e tinham agora aos pés as maçãs e as castanhas caídas das árvores, ora apenas a casca, ora um ramo com suas folhas. Assim, muitas vezes o dono
da hospedaria, em vez de esperar inutilmente o cliente que não vinha, fechava os postigos de madeira das portas e, fuzil a tiracolo, seguido de seus dois cães, descia
a escadinha de pedra entre cujas fendas os cardos, os dentes-de-leão e as campainhas já não estavam floridos, mas cuja vinha verde, que também subia da pedra, jorrava,
tornava a cair como uma fonte e se deixava deslizar ao longo dos degraus, estava agora inteiramente rubra, e partia para a caça. Pela vizinhança, ouvia-se o latido
de seus cães, de sorte que por um momento, sem que no entanto fosse visível, podia-se dizer: "Não deve estar longe." Se em determinado instante, por volta das cinco
horas, um raio de sol viesse pousar por um momento sobre as telhas da herdade, naquele instante rosadas, como se estivessem felizes por receber o reflexo do fogo
que já poderia ter sido aceso nesse tempo frio, tal raio fugiria bem depressa sem encontrar nenhum de seus semelhantes.

No entanto, na metade do dia, ao nítido repicar dos sinos da igreja, cuja voz enfraquecida pela distância, mas distinta, anunciava exatamente a hora e depois
se calava, de modo que no silêncio seguinte o trabalhador que se interrompera para contar os toques dissesse: "Não, não são três horas, são quatro", respondia não
só o latido de um cão longe mas o sopro sinuoso do vento, que, com atividade incessante, contornava os bosques, retomando sem parar a ocupação ininterrupta, fazendo
enfim cair as castanhas já abaladas, sacudindo e arrancando apenas algumas folhas, as que se conservavam sólidas, preparando o lugar para o inverno. A todo instante
ressoavam tiros de fuzil e os trabalhadores paravam para ouvi-los com essa alegria que sentimos por

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simpatia ao pensar nos prazeres dos outros quando não surge a vontade de fruí-los mais diretamente. Às vezes a luz mergulhava nas nuvens mas ' na extremidade oposta
do horizonte viam-na já emersa brincando no alto de uma colina ensolarada sob um céu puro. As grinaldas dos pâmpanos deixavam ver os cachos suspensos à raiz da folha,
onde cada pérola já se irisava. Âs vezes, uma lebre parada ao sol entre os vinhedos parecia olhar, como se fosse iricapaz de fugir, os meninos que a poucos passos
trabalhavam na vinha e que ela ainda não vira. Entretanto, um deles mostrava-a de longe a outro e fazia, rindo, o gesto de mirá-la para mostrar que, se tivesse um
fuzil, como o proprietário, ela não lhe escaparia. Contentava-se com lhe atirar uma pedra, meio mais ao alcance de sua maneira de se dar o prazer de intervir na
vida da lebre. Mas esta, não o tendo talvez ouvido ou não vendo o que ele arremessara, permanecia imóvel e continuava a se aquecer ao sol. Depois, de repente, dava
dois saltos e sumia da vista de todos. E os meninos, rindo ainda, retomavam seu rude trabalho, animados com a vista da lebre, o sonho da caçada, por se terem entregado
a uma brincadeira tão engraçada por sua inverossimilhança, como era o fato de dizerem: "Se eu tivesse um fuzil", de terem causado medo à lebre e de a terem visto
correr tão bem.

E o crepúsculo descia sem que tivessem visto o sol se por, como depois viria a noite sem lua e sem estrelas. Mas mesmo naquela hora, quando Jean ainda estava
na estrada, a quinta de Réveillon era bela. A hora o apressava para entrar. Deixava com pesar, atrás dele, as macieiras que, plantadas de través à beira da estrada,
erguiam em linha reta o enorme leque de suas folhas e maçãs, passavam lá a noite em colóquio com esse céu que se ensombrecia, vestindo também elas seu hábito noturno,
esse brilho de bronze que assume então sob um céu cinzento sua folhagem sombria, onde o verdor quase azul parecia atingir igualmente sua maturidade extrema. Deixando
as árvores estéreis se dirigirem ao céu com gestos imensos, ou se inspirarem com o murmúrio vão das palavras do vento e repeti-las à saciedade, pareciam aferrar-se
fortemente ao solo apenas com os pés tortos, solo sobre o qual devia cair um dia a multidão de suas maçãs e, sem fazer barulho, deixavam o vento, ao qual não ofereciam
uma folhagem vasta em que ele se pudesse engolfar e estalar suas folhas que só lhe rês-

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pondiam com um ruído seco. Mesmo a igrejinha, obrigada a passar desse modo as noites e os dias em seu lugar, sem poder procurar um abrigo, buscava se harmonizar
da melhor maneira com essa vida comum de todas as coisas. E seu campanário, preparando-se para a noite, parecia ter essa boa vontade de que fazem
praça os novatos para se fazerem aceitar pelos companheiros, mas não conseguia, com seu frágil aspecto corajoso, arrancar umsor-
riso de animação às velhas árvores que continuavam a se queixar eternamente de suas dores às macieiras, que observavam a ordem sem pestanejar. Por um momento, quanoo
o vento era mais forte, ela tentava, fazendo girar o cata-vento, dizer sua palavra como os outros. Mas reconheciam-na de imediato, apesar de tudo, pelo seu aspecto,
por não ser um ruído da natureza. Sem dúvida, ela não vivia na intimidade do ano como eles, que estavam nus no inverno, floridos na primavera, e agora ainda carregados
de frutos. Mas à sua maneira, e tanto quanto podia, pela agradável cor
amarelada do pórtico e o entalhe da porta, ela testemunhava a beleza das leis segundo as quais o sol e a chuva mudam a cor
da pedra, segundo as quais a pedra usada se racha. E já desse modo abandonada por uma igreja mais nova, tão longe da aldeia,
por entre as heras e as vinhas virgens habitantes do cemitério vizinho, depois de serem olhadas durante alguns meses com desconfiança, como um cão e um gato forçados
a viver juntos, tomaram-se pouco a pouco de amizade e já a vinha virgem e a
hera se atiravam sobre o dorso da igreja, misturando-se os três, tão bem que em alguns pontos já não era possível reconhecê-los e separá-los. Obrigadas a saltar
por sobre os caminhos, a se enrolar nos arcos das abóbadas, deixar livres os vitrais onde não se podiam agarrar, a hera e a vinha virgem, executando suas variações
sobre o tema primitivo imposto pela arte, seus festões, seus entrelaços, aumentados de ano em ano espontaneamente e sem que mão humana tocasse em nada, mas obrigadas
a repetir em seus desenhos a palavra de ordem dada pelo artista, tinham a um
tempo como que um abandono natural e intenções decorativas. E era como se a natureza tivesse tomado o lugar do homem para ornamentar a igreja e, utilizando sua própria
arquitetura, seu colorido variável, fazia sair da parede, espalhava ao longo das paredes, sempre parecendo compreender a necessidade de respeitar

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os intervalos e de acompanhar as curvas, ondas delicadamente ornadas porém de ano em ano mais invasoras, verdes no verão, verde-avermelhadas no outono, inteiramente
vermelhas no começo do inverno, de inesgotável vinha virgem. Certos pontos da parede da igreja estavam intactos e também eram belos, pois o vento, o sol e a chuva
os haviam já como que semeado de uma poeira de germes acastanhados e verdes. E, além disso, era exatamente o lugar que a vegetação não encobrira ainda. Por isso,
não fazia mal, porque era velha, vir admirar essa igreja que antigamente fora feia, enquanto a nova era obra de um arquiteto de bom gosto. Pois uma igreja bonita
só testemunha a beleza de imaginação de um arquiteto, ao passo que uma velha igreja abandonada testemunha leis segundo as quais a chuva e o sol amarelecem as pedras,
e onde o vento semeia poeira, leis que são mais belas que as mais belas coisas do mundo.
Quando Jean voltava pela aldeia, o céu estava negro, e por vezes, no meio de uma rua, ele via à sua frente, rente ao chão, iluminados por uma lâmpada em
seus menores detalhes, os pequenos botões de seus vasos, sua balança, o balcão, e sob o vidro de sua janela, como um aquário, uma pequena mercearia, ou uma sala
baixa onde iam jantar. Preso no encantamento desse círculo de fogo, cujo raio mágico vinha atingi-lo até na calçada, ficava a contemplar esse pequeno mundo fechado
agora a todos os outros e onde uma vida própria, desconhecida de todos os outros, manifestava-se justamente à hora em que a escuridão se faz também nas lojas, sob
os alpendres, nas herdades. Ninguém. No entanto, eJe gostaria de ver os habitantes desse pequeno reino estranho que acabava de lhe aparecér assim por um momento,
antes de voltar à fria e obscura realidade. A claridade era ainda bem intensa. Quem seria o homenzinho, anão ou griorno, sêm dúvida curioso de ver, que esperava
este frango que se vislumbrava sobre o fogão? Será que não chegaria a representar seu papel na aparição, deixando ver sem qualquer dúvida todos os seus movimentos,
e sem ver Jean, invisível na noite, como é costume nesses fragmentos de uma existência que um mágico nos faz aparecer no teatro, e onde aqueles cuja vida contemplamos
não têm dúvida alguma de que são observados? E Jean, vendo na noite esse pequeno mundo de luz, nela não reconhecendo, entretanto, a luz

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do dia, mais bela, talvez mais fria ainda, reconhecia bem nesse clarão mais humano, cheio de bem-estar, limitado, sem poesia, cheio de piedade, feito para proteger,
a luz criada pelo homem, a arte que extraiu de si e que a ele se assemelha, que ilumina um mundo que não é o da natureza de uma luz que não é ela, o fogo.

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IV. Dois oficiais

Entretanto, o terceiro regimento de infantaria de Fontainebleau, onde Henri deveria se alistar no ano seguinte, estava nessa ocasião acantonado em Provins,
a duas horas de Réveillon. Acabavam de vestir os uniformes de inverno, os longos capotes e os pesados shakos.* Ao findar o dia, não se desejava mais sair da caserna,
porém fazia-se ponche - os soldados na cantina, os sargentos no alojamento -, que era bebido alegremente. Os jovens soldados que entravam, sobretudo os jovens ricos,
ficavam impressionados com o valor e o cheiro do tabaco, mas logo se acostumavam e se sentiam mais soldados por estarem ali, e, quando a porta se abria, erguiam
a cabeça com ar cansado e indiferente como se estivessem lá o tempo todo e desejassem mesmo deixar entrar os outros. Às vezes até, um dizia: - Fechem rápido a porta,
faz frio. - Mas um velho soldado baixava-lhe a crista, querendo conservar para si o privilégio de apostrofar os que chegavam, invocando, se preciso, a autoridade
dos veteranos que lhe davam razão. Todos riam da pretensão do jovem recruta, os outros jovens soldados, seus amigos e ele próprio, que não ousava ficar aborrecido.
Às vezes os sargentos tinham ponche a pouca distância, pois a dona da cantina, como todos aqueles que, médicos, advogados, hospedeiros, patroas, exercem uma profissão
retribuída pelo cliente, era obrigada a contar o dinheiro que lhe davam e não os galões de quem lho dava. Os grupos se saudavam e, uma vez cumprido isto, pareciam
não se conhecer mais. Outras vezes, ansioso por assegurar a simpatia dos camaradas, um jovem soldado pagava ponche no quarto. Ocaporal passava o copo de mão em mão,
e ninguém, ao recebê-lo, podia evitar uma risada

* Shako. Antigo barrete militar de copa alta e forrado de peles. (N. do T.)

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de satisfação. Às vezes, entrava um sargento e assumia logo um ar severo, e todo riam dele.

Vários porém, apesar do frio, já estavam na cidade onde tinham amantes, com as quais iam ao café-concerto, lamentavam-se por serem obrigados a viver no meio
de brutos que só sabiam ficar na caserna, beber ponche e deitar antes das oito. Em certos dias, uma companhia ia fazer exercícios nos bosques perto de Réveillon.
Do castelo se ouvia a sua música mas nem sempre era possível determinar onde se achavam, freqüentemente bem mais longe do que se pensava. Duas vezes, enquanto o
duque, a duquesa, Jean e Henri estavam no terraço, o regimento inteiro passou diante do portão de ferro e, de vez em quando, montado no seu cavalo que dava ao lado
dos passinhos rápidos dos soldados grandes passos lentos e graciosos, um oficial que conhecia o duque o saudava. Era o conde de Saintré, primo em segundo grau do
duque, cujo pai fora, sob Napoleão III, relator no Conselho de Estado. Vaidoso, desejoso de manter sua linhagem com brilhantismo no meio dos amigos de Paris, percebera
que consumia seus rendimentos e pedira para retornar ao serviço (tendo pedido demissão anteriormente quase ao sair de Saint-Cyr), dizendo consigo que não teria necessidade
de fazer despesas aparatosas no meio de gente sem importância e que não era da sociedade. E arrumara-se no sentido de viver no quartel e passar alguns anos sem ir
a Paris. Mas então essas pessoas sem importância tinhamna adquirido a seus olhos, essas pessoas que não viviam na sociedade tornaram-se a sociedade para ele. Os
outros oficiais, mesmo os que eram ricos, não tinham mais que um cavalo, mas ele quisera ter dois. Vangloriava-se de que seus jantares eram os mais bem servidos
da cidade, e ele, que antes só considerava elegante o grupo chamado "das cinco duquesas", deleitava-se com a elegância de uma festa que dava, se a ela comparecessem
todos os nobres da província, e se conseguisse mandar os convites suficientemente tarde para não contar com a esposa do comandante franco-maçom. Este liderava um
grupo inteiramente diverso, que se compunha de oficiais pobres, republicanos, e que julgavam que o grupo de Saintré queria confiar o regimento aos padres e aos nobres.
É verdade que cada um deles, para dar o exemplo, ia aos domingos, em uniforme de gala, à missa, um livro debaixo do
braço. No entanto, nas duas ou três vezes em que Saintré, para retribuir os jantares a que fora convidado em Réveillon, convidou Jean e Henri para jantares com oficiais,
havia alguns tenentes plebeus que, por instinto, se sentiam no regimento, como no colégio, inclinados pelos nobres e que estes tinham de imediato reconhecido com
uma certa reserva, esperando apenas a ocasião de se mostrarem gentis sem muita solicitude, de penteado e roupas bem tratadas, opiniões monarquistas e religiosas.
Um outro, muito inteligente'e aliás de família religiosa, sem estar mal com o grupo do comandante franco-maçorn, aceitava com prazer os jantares de Saintré~ que
era um oficial notável e inteligente. Além disso, Saintré achava boá política mostrar que seu partido acolhia perfeitamente os republicanos e os plebeus, desde que
não fossem sujos, estúpidos ou sacrílegos.

A Sra. Santeuil, a quem Jean escrevera contando o quanto se divertia na companhia de todos esses oficiais tão amáveis, disseralhe que deveria entre eles
estar o príncipe de Borodino, sobrinho do duque de Marengo, o protetor de Desroches, e bisneto do ilustre soldado de Napoleão cujo pai fora marechal de França e
ministro da Guerra no Primeiro Império. Assim, uma tarde em que Henri e ele tinham ido jantar em casa de Saintré com numerosos oficiais que agora eram muito amigos
de Jean e às vezes lhe emprestavam cavalos para que fizesse passeios com eles, perguntou se o jovem príncipe de Borodino não estava no regimento, pois nunca o viam.
Mas já que o nome dele parecia não agradar a Saintré, não insistiu. A verdade é que esse jovem oficial sentia que sua nobreza, que ainda não completara um século,
bisneto de um homem a quem os Saintré não quereriam como guarda-caça por causa de sua baixa extração judia e de suas opiniões revolucionárias, valia pouco para o
conde de Saintré. Mas em compensação, a seus olhos, quem lhe chegava aos pés, príncipe que trazia um nome glorioso, filho de um ministro da Guerra, amigo do imperador?
Ofilho do mais obscuro dos rdlatores de seu Conselho de Estado. Assim, um desprezo recíproco mantinha-os afastados um do outro. Esse jantar em casa de Saintré era
bastante divertido

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e Jean se sentia tanto mais feliz por sentar-se ao lado de um jovem oficial chamado François Lesaule, já conhecido por uma atuação admirável na Âfrica, que só, vira
Jeãn duas ou três vezes e já se tornara seu amigo com essa rapidez que duas inteligências da mesma natureza, dois temperamentos afins levam para tomar posse um do
outro. Jean experimentava viva simpatia por ele e ficara muito feliz quando Saintré lhe dissera o quanto, por seu turno, Lesaule simpatizara com ele. Nessa noite,
Lesaule parecera de súbito feliz em vê-lo, como se na reunião só a sua presença lhe interessasse, e sentados lado a lado à mesa, graças a uma idéia amável de Saintré
que sensibilizou Jean por vir da parte desse homem mundano, conversaram juntos, sua simpatia parecendo estender uma cortina entre a conversa deles e a conversação
geral. Muito curioso acerca de todas as coisas relativas ao exército que tinham interesse para ele como tudo aquilo que se mistura um tanto à nossa vida, Jean, ansioso
por compreender melhor em que consistia ainteligência militar, questionava sem parar esses oficiais, perguntando-lhes quem seria em sua opinião o mais notável comandante
desse regimento, do exército. Quando lhe diziam um nome que saía da obscuridade, um oficial menos conhecido, confirmando um renome em detrimento de outros, ou descobrindo
um mérito maior num oficial geralmente depreciado, Jean sentia-se invadido de um verdadeiro entusiasmo, como quando antigamente - o teatro era na época a sua paixão
-, experimentava um abalo ao ouvir um companheiro amador de teatro lhe dizer qual era, em sua opinião, o principal comediante, como mais tarde, ao ler um livro,
queria ter sobre o mesmo o julgamento de um homem inteligente que o tivesse lido, procurando naquilo de que gostava algo mais seguro para amar, ainda desconhecido
para sentir. E perguntava sem cessar' ao oficial que respondera: "Mas em quê? Mas como? Mas por quê?" E escutava deslumbrado todos os detalhes.

Foi preciso deixar esses hospedeiros amáveis e alegres. Esperava-os um carro enviado de Réveillon. Saintré, receando que sentissem frio, emprestou-lhes uma
grande manta, que cheirava um pouco a cavalo, e os envolveu nela ao pô-los no carro, voltando

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depressa para o calor. Os cavalos partiram, Lesaule, da escada, dera um adeus mais afetuoso a Jean, que parecia, como um sinal combinado, ter apenas para os dois
o sentido das conversas mais intelectuais, mais finas, que haviam tido juntos. E Jean, um pouco embriagado pelo jantar (achou que devia beber conhaque depois de
jantar, além de fumar, soltando depois de muito tempo a fumaça no ar para se convencer que era bem como seus novos amigos, que era um deles), por essa alegria, palpitava
de felicidade ao lado de Henri sob a grande manta que parecia incluí-los ainda na -intimidade desses oficiais, o odor das marchas a cavalo, e a lembrança daquilo
que em sua imaginação lhe parecia uma espécie de acampamento de tropas. Jean já se indagava de que modo' poderia, em Paris, obter licença da mãe para possuir um
cavalo e ir acompanhar as manobras de inverno que Lesaule faria. Não podia conceber o futuro e a felicidade a não ser sempre tão mimado por esses oficiais, cada
vez mais versado em coisas do exército, seguindo todas as suas etapas, estando presente a todos os seus jantares. Contando cem vezes ao duque e à duquesa essa noitada
deliciosa, pronunciou o nome de Borodino. Oduque o interrompeu, dizendo à duquesa: - Eis o que eu não podia lembrar desde ontem. - Oquê? - perguntou a duquesa. -
Oque você me perguntou no almoço se eu tinha lembrado: é que Borodino veio apresentar seu cartão. - Ali, é preciso não se esquecer de convidá-lo - disse a duquesa
-, você sabe que Eugène é sempre gentil conosco. Iam pensar que não queremos ser amáveis com esse ramo da família. - Eugèr.e era o duque de Austerlitz. Tio materno
de Borodino, fora repelido uma primeira vez quando quisera casar-se na família dos Réveillon. Mas, tendo se ligado a uma americana bilionária que morrera pouco depois,
pudera, graças a essa imensa fortuna e a um título de duque cuja grandeza histórica só então os Réveillon haviam percebido, casarse com a própria sobrinha da duquesa.
Jean ficou encantado por jantar com alguém que também conhecia Saintré e Lesaule, embora estivesse indisposto com ambos. Aliás, os modos de Borodino formavam
um contraste completo com os de Saintré. Enquanto um fidalgo legitimista nos atormenta com os testemunhos excessivos de sua amabilidade enganosa, de sua familiaridade
desdenhosa, brinca para nos divertir, para nos

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honrar, inebriar com seu suave aperto de mão, como a um amigo, seus tapinhas nas costas, suas confianças cujo exagero nos faz enrubescer, um Borodino, imóvel, digno,
observando-nos majestosamente com a cabeça que se habituou, há duas gerações, a governar, a penetrar, a recompensar, e enquanto não pensa em nada parece nos escrutar
ainda com o olho que permanece vazio do olhar do imperador que sonhava, estende-nos enfim a mão com uma gentileza bastante reservada e digna para, sem esconder que
nos está honrando, não dar a entender que está brincando conosco, e deixar bem clara a distância ao invés de ocultá-la, mas para que possamos franqueá-la em vez
de nos sentirmos mais longe ainda.
E porque seu antepassado, como o primeiro imperador, penetrava os homens, porque seu pai no conselho do segundo seguia os seus sonhos, os que hoje ostentam
os grandes nomes do Império, que lhes sobreviveram, denotam ainda algo penetrante nesse olho que já não desce ao interior de ninguém e uma certa vaguidão no olhar
que já não sonha com nada. É um traço fisionômico já não motivado mais por coisa alguma mas que o gênio da raça conservou, como um escultor que deixará de uma idéia
de um dia uma imagem eterna. E de fato, sem razão, como as estátuas cuja expressão corresponde a uma realidade anterior que elas continuam a refletir sem compreender
e sem poder modificar, esses homens continuain; sem homens a quem governar e sem talento para fazê-lo, a fixar no que está defronte a eles, seja uma mesa de jantar
ou um amigo que fala, um olho profundo e autoritário ou um olhar melancólico e sonhador. Assim era o príncipe de Borodino, em sua expressão, em sua polidez grave
e solene. Filho de um homem que exercera um alto cargo como quase todos os grandes nobres do Império, de autoridade ainda firme havia apenas doze anos sobre qualquer
coisa de real, já que seu pai era ministro da Guerra e ele tinha um grande futuro na diplomacia, sua autoridade não tivera tempo, como a dos nobres do Antigo Regime,
de enferrujar pelo desuso e de se transformar em proteção. Não se tornara ainda um mero jogo que se aprende como a caça, um exercício para o qual se é treinado como
o cavalo. Era uma coisa séria, manifestando o exercício de um direito de preeminência, o cumprimento de um dever de clarividência e bondade. Um plebeu nunca é, para
homens que têm funções sérias a

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executar e nas quais necessitam de homens, e onde os homens são apreciados por seu valor, aquilo que é para um nobre que há meio século só enxerga neles as pessoas
que não vê. Pode conservar a aparência de um homem superior como era Rouher, como era Ollivier.* Além disso, o pai dele não era um simples tarinibeiro? Enfim, tendo
outro aspecto, outra polidez, esses nobres do segundo grau, mais próximos dos méritos reais, da vida efetivamente superior onde a nobreza fixa a sua origem, têm
também melhores modos. Foram educados numa corte, junto a embaixadores estrangeiros, diante dos quais nos mantemos em posição de respeito, ao passo que os nobres
legitimistas assumiam, por desleixo, numa vida puramente de prazeres, maneiras a que somente seu prestígio pode, entre eles, atribuir ainda o nome de boas maneiras,
eles mesmos formados para empregos que o futuro, tão diferente do que pensavam, lhes retirou mas para os quais tinham recebido uma educação, ao menos aparentemente
tão completa que, como essas estátuas inteiramente armadas de esporas que parecem esperar apenas o momento de montar a cavalo, parecem estar no departamento do ministério,
no regimento de cavalaria, na companhia de seguros onde a necessidade os colocou e onde ficam, inúteis e encantadores como uma porcelana de arte no ariRário envidraçado
de uma herdade próspera sobre as ruínas de um castelo, prontos para uma grande embaixada, uma situação magnífica de representação onde fariaffi maravilhas. Quanto
tato perdido com um chefe de escritório, quanto atrativo que sua mulher só verá, assim como as relíquias do avô penduradas no salão, quando receber aqueles com quem
agora é seu destino viver!
Assim, já que Borodino não se dava com os oficiais nobres do regimento que achavam pouco justificada sua solenidade e um tanto ridículo seu desdém pela nobreza
sem talento ou informação política, era em suas relações com o comandante Soreau, homem pouco apropriado para apreciá-lo, que ostentava as qualidades

* Eugène Rouher (1814-1884) e Êmile Offivier (1825-1913), advogados e políticos franceses ligados ao Segundo Império; o primeiro, conservador e autoritário;
o segundo, republicano, adversário do primeiro, aderiu ao imperador e sofreu violenta oposição da bancada republicana. (N. do T.)

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aprimoradas para a carreira diplomática; em resposta aos convites
da Sra. Soreau era que empregava seu papel de carta timbrado
com a coroa-de,1princípe e sua escrita formada para, as llembaixadas;
e era para a sobrinha do tenente-coronel, pequeno-burguesa que
amava o temperamento de Borodino, embora declarasse "não gos
tar dos que usam a partícula de" e que dizia "este não é um deles",
como falam de um amigo judeu alguns anti-semitas, que Boro
dino fazia sair pelo criado de quarto a prataria doada a sua mãe
pela imperatriz e, presente mais íntimo e misterioso, o olhar do
vencedor de Borodino e as maneiras copiadas do segundo impe
rador e retocadas por ele mesmo, quando brincava com a criança
e se ocupava de sua educação.
Riu ao ouvir Jean falar dos amigos de Saintré como de oficiais notáveis. Jean sentia esse mau humor que provém talvez em parte do fato de que a opinião de
um recém-chegado em quem nada nos impede supor um juízo mais profundo que o nosso faz com que nos perguntemos se não estamos enganados, se o que admirávamos até
então é verdadeiramente admirável. Se a juventude é a idade em que tendemos a um máximo de admiração, é também aquela em que menos nos perguntamos o que havia de
discernimento, o que valia nossa admiração, e onde mais nos inflamamos com o valor dos outros do que nos fixamos no nosso. Por isso Jean, cada vez que ouvia com
ar assim tão seguro destruírem uma de suas admirações, dividia-se entre a fidelidade ao objeto de seu entusiasmo e uma desconfiança de si mesmo, a admiração toda
voltada para seu interlocutor que, de um ponto de vista muitas vezes bem inferior ao seu mas que ele não conhecia, impunha-o, e o teria levado a crer com seu entusiasmo
infundado. E assim a juventude é esse tempo feliz em que se deveria antes dizer que não se tem dúvida de coisa alguma do que dizer que não se duvida de si mesmo.
Pois o espírito, tendo grande força de imaginação e muita fraqueza no julgamento, imagina os outros grandes como ele e se julga acanhado. Assim, alimenta uma confiança
sem limites no Universo, mas obriga-se a todo instante a desconfiar de si próprio, E depois receava que o duque e a duquesa de Réveillon, que o tinham ouvido gabar
seus novos amigos, não o julgassem capaz de nenhum juízo.

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Portanto, sentia-se muito pouco à vontade. Mas quando Borodino saiu, a duquesa e o duque que o haviam tratado com tanta amabilidade tinham dado mostras de
tanta felicidade ao vê-lo, e na arca santa * da sala de jantar tinham dado a impressão de compactuar com ele como com o único digno de ser eleito para julgar o gênero
humano, disseram, sem maior malquerença do que lhe haviam testemunhado em benevolência particular - mas o fato de conversar com algum dos outros não implicará, por
acaso, uma eleição e uma aliança? - que "era um homem encantador mas, como lhes tinham dito, muito pouco inteligente". Jean. ficou surpreso por sua vez, mas feliz
de resto, por poder recuar em sua própria estima e voltar a admirar com toda a confiança os amigos de Saintré e mais especialmente Lesaule.
Assim o acreditava, pelo menos. Mas na realidade, desde o sorriso de Borodino, se sua afeição por eles permanecera profunda, não tinha mais em sua superioridade
essa confiança absoluta que, tendo experimentado uma vez, ele alimentara até então em sua admiração solitária. Em seu respeito pelo mérito deles não tinha mais essa
paz profunda que aquele que uma vez duvidou de alguma coisa não encontra mais ao pensar nela. Até mesmo sentia menos entusiasmo ao vê-los e estava com eles como
alguém que foi obrigado a correr inutilmente. Quanto a ele, a duquesa o deixaria muito espantado se lhe dissesse que era mais inteligente que Borodino. Parecia-lhe
impossível que um rapaz fosse mais inteligente que um homem maduro e quando ele se ria das idéias estúpidas a respeito de poesia ou de qualquer outra coisa de um
homem maduro, não se achava superior a ele, mas julgava superiores as idéias adversas, independentes dele, que eram as de seus amigos e professores. Mas sobretudo
seu espanto seria resultado de que o rapaz está todo no que ele ama, no universo que ele tenta abarcar, na vida. Sabe que tal livro é belo, que tal homem é ridículo,
que a vida é agradável, que tal desconhecido é arrebatador, ou antes, apenas adivinha, ama o livro, ri-se do homem,

* Arca santa. Em sentido lato, o mesmo que arca da aliançw, em sentido restrito, pequeno oratório, ou tabernáculo, que em todas as casas se c?stuma conservar
com efígies de santos, relíquias sagradas etc. Em sentido figurado, diz-se das coisas pelas quais; se tem grande veneração. (N. do T.)

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regozija-se com a vida, caminha com semelhantes idéias na cabeça em direção ao desconhecido. Mas ele mesmo, para amar, temer ou rir dessas coisas, será inteligente,
ou o quê? Não sabe de nada, nunca se perguntou, tudo estando nas coisas e nunca nele mesmo. Ficaria espantado de ouvir dizer que é inteligente num sentido diverso
do que se diz no colégio, como uma realidade do mesmo valor que os homens que ele vê diante de si na vida, porque, sendo ele a única coisa que seu amor ainda não
enlaçou, que seu desejo ainda não buscou, que sua inteligência ainda não tentou penetrar, ficaria muito espantado de saber que é alguma coisa, que faz parte com
todo o direito, a ponto de os outros o admirarem ou julgarem da mesma forma que ele admira os outros, desse universo que gostaria de conhecer e onde não faz a menor
idéia de que esteja. Estranha desilusão, sério progresso entretanto, quando esse imenso esforço para conhecer o universo lograr apenas a única coisa que não procurava
- conhecer-se a si mesmo. E a duquesa de Réveillon teria feito mais do que assombrá-lo, tê-lo-ia desgostado se tivesse dito que era mais inteligente que Lesaule.
Pois, graças a esse grande desprendimento de si mesmo na juventude, não existe egoísmo nela, há um enorme desinteresse. Ou antes, o eu, então, não é o que ela ama,
aqueles a quem ela admira? Ela só se conhece neles e ama a si mesma acima de tudo, infinitamente, segundo crê, acima do que ela é. Diminuindo o que ela admira ao
nível do pouco que ela julga ser, os senhores lhe causariam a mais profunda mágoa que ela pudesse sentir nessa idade em que toda decepção conserva ainda algo de
generoso, porque não era em si que se localizava a esperança.

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V. Uma cidadezinha provinciana

Durante uma quinzena em que Henri teve de vir todos os dias, da manhã à hora do jantar, seguir os exercícios em Provins, Jean ocupou um quarto no hotel d'Angleterre.
Onome não queria dizer nada. Era uma bela vivenda francesa do século XVIII, o antigo palácio dos Chevreuse, na Praça d'Armes, defronte ao castelo. Em todos esses
lugares magníficos e silenciosos como pátios centrais dessas antigas residências reais, todas as casas com suas largas janelas, baixas e claras, têm um aspecto amplo
e encantador de laranjais. À hora em que nas duas extremidades do parque um tanque já está cheio da água violácea do luar, e outro tanque ainda cheio da água dourada
do sol poente, fica-se maravilhado ao ver iluminados os belos vidros do palácio, ao ver nos belos aposentos os carteiros ou os furriéis da intendência a trabalhar,
na pálida luz de ouro do gás ou da eletricidade. ' Certamente, quando Jean, antes de entrar, tendo necessidade de comprar papel ou cigarro, ia p~ra a cidade, pelas
ruas estreitas e íngremes que margeiam de cada lado casinhas inumetáveis, gostava mais de ver os potes largos cheios de bombons nas confeitarias, as tendas insondáveis
dos sapateiros, o banco .do marceneiro, a reunião de uma família miserável à luz vermelha ou amarelada da vela ou da lamparina.
Mas nesse ponto espaçoso, onde era dia ainda, essas enormes vidraças eram mais bonitas, iluminadas pela luz dourada e generosa do gás ou da eletricidade.
Desde as quatro horas, se Jean, cansado, voltasse para dentro, poderia distinguir, na fachada do hotel d'Angleterre ainda sombria, seu quarto opondo sozinho
à noite que descia a luz brilhante de um
grande lampião já aceso como o devia ser seu fogo, ambos esperando-o e espalhando no quarto torrentes de calor e claridade. Ele voltava por essa bela Praça d'Armes
onde os gritos dos garotos brincando se aproximavam, se afastavam, faziam incessante-

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mente o mesmo círculo como os morcegos que voavam acima deles. A escada, cujos degraus baixos e atapetados deixavam-se pisar docemente, um após o outro, como se
de relva se cobrisse, como uma escada particular que fora, entre as pinturas e as tapeçarias. Às vezes ele parava numa galeria ornada de quadros, atulhada de velhas
poltronas, que não conduzia a nada. A cada passo, sentia-se caminhar sobre coisas que se calavam mas que ainda estavam plenas de uma vida antiga que as tinha utilizado,
cansado, que elas tinham esperado todos os dias, que tinham acolhido quando voltava, tendo-se feito silêncio, calor, bem-estar, isolamento, encanto, uma vez que
essa vida voltara do passeio, a fim de protegê-la de qualquer inimigo. E como essas ninfas do estatuário parecem esperar ainda, embora transformadas em mármore tenham
deixado de sentir, esses tapetes, essa escadaria, tão doces, tão discretos, conduzindo o dono cansado diretamente aonde tinha de ir, pareciam esperá-lo ainda. Como
nesses passeios de outono, em que se avança com estremecimento como na beleza, calca-se a vida de passagem. Abria-se uma porta para um quarto que os esperava, quebrava-se
de passagem o silêncio, a atmosfera quase resistente da vida.
Jean, certa vez, ficou deitado no hotel d'Afigleterre. Pela primeira vez na vida não se sentiu angustiado nem triste num ~uarto novo. Como entrasse e, com
a morte na alma, fosse largar suas coisas, uma pequena poltrona acolheu-as em seus braços de madeira branca e as conservou gentilmente junto a si. Uma mesa esperava,
o tinteiro preparado para o caso de ele querer escrever. A porta de duas folhas fora fechada de novo e a tapeçaria, tendo comandado o silêncio, tinha como que afastado
os outros para tão longe, que ele sentia vontade de saltar de alegria e de beijar, através da tapeçaria mole, a pequena porta fechada com a qual podia contar para
que não mais se abrisse. Entretanto, por detrás da mesa%, uma pequena lareira de madeira esculpida lhe dava fogo e uma poltrona fora colocada junto, tornando-a tão
baixa, tão larga e tão redonda que ele não precisaria fazer um só movimento para se aquecer bem. Comovido com a espécie de atenção que a posição dos braços testemunhava,
a estatueta dessa coisinha linda, falou-lhe no entanto sorrindo: "Muito

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bem, é bom aqui, não preciso me aquecer agora." Mas a poltrona parecia lhe dizer: "Não te preocupes, me encontrarás Sem---~ pre aí, se quiseres. Faze o que te agradar,
estás em tua casa." As paredes que pareciam conter suavemente o quarto, isolá-lo do resto do mundo que se via dali tão próximo, ocupando-se das pessoas, velando
pelas pessoas, dobrando-se vivamente nos cantos para dar lugar à mesa, às poltronas, ou sumindo diante da pequena biblioteca, afastavam-se ao mesmo tempo dos dois
lados no fundo do quarto para deixar espaço para a cama, que assim se encontrava acolhida numa espécie de alcova mas de forma alguma perdida, não só porque as paredes,
ao se afastarem, se distanciavam pouco, mas também por darem a impressão de dizer: "Estou sempre aU, deixando-a, ainda assim, bem no quarto, e até a cingiam estreitamente
por trás como para melhor mantê-la no quarto. E como que para consolá-la na dor que sentia pelo nosso amigo, colunas, sem qualquer ornato, sustentavam o teto acima
da cama, elevavam-se sem cair de volta, deixando-o ver tudo o que poderia precisar, sem fazer força. Não longe da lareira, uma pequena porta estava quase ao alcance
de sua mão quando se despia. Dava para três pequenas peças que tinham tudo o que era preciso para lhe prestar todos os serviços que poderia desejar. Mas eram bem
pequeninas, de modo que era bom ficar sempre no quarto onde era possível isolar-se fechando a porta, mas enfim estava-se sempre nelas, que não levavam a parte alguma,
e aonde porta alguma, escada alguma poderia conduzir.quem quer que fosse, era lá o limite extremo desse pequeno mundo fechado e vivalma poderia se aproximar dali
por esse lado. Quando Jean fechara a pequena porta que lhe mostrava a passagem de seu quarto para essas três pequenas peças, e ela se fechava discretamente e ficava
à espera de que ele quisesse sair, ia até a terceira peça minúscula que, dando também para as duas primeiras, era bem comprida. Mas se ele preferisse que ela fosse
mais estreita e sentir-se mais isolado de tudo o que o esperava no quarto, podia, fechando a segunda portinha, ficar unicamente com o espaço de duas saletas, ou,
fechando a terceira, apenas com o espaço exíguo de uma só. Todas essas portas, como compartimentos, se escancaravam, e ele mudava, assim, com um só movimento, as
proporções de sua pequenina peça que

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duplicava, triplicava ou era reduzida à metade, a um terço, permanecendo bem confortável e alegre, e ao mesmo tempo a extensão de seu olhar e a sensação de isolamento,
ampliadas no vazio ou bem fechadas na concentração. Assim fechada, essa saleta se assemelhava a uma pequena cela onde ele viria se entregar a algum exercício solitário.
E, assim, havia uma sensação exaltada, quase desordenada, de seu poder e de seu isolamento. Ora tudo estava repleto do sentimento de que, por causa disso, ninguém
poderia entrar ali, ora estava vazio com a idéia de que, apesar de tudo, ninguém poderia entrar ali. Ali ele poderia, perfeitamente a salvo, esconder segredos ou
cometer crimes. As paredes não muito intervaladas, os tetos não muito altos mantinham-se sempre junto dele, agradáveis de ver, suaves de tocar, protegendo-o, fazendo
silêncio e isolamento a seu redor, em silêncio. E o hotel era vizinho de uma velha mansão do século XIV, a janela dando para um desses pequenos pátios fechados em
todos os lados por casas, onde o olhar era também estreitamente restringido por belas varandas e janelas largas. Nenhuma saída para nada. Era como essas pequenas
salas que davam para o quarto, antes um compartimento que o fechava do que uma coisa nova para a qual desse. No entanto, animava-o toda uma vida' especial porém
cerrada a tudo mais, visto que as quatro mansões que davam para esse pátio eram habitadas em todos os tempos pelos cocheiros da cidade, resto da velha população
desaparecida e que não se misturava aos demais. Lavavam seu carro sem fazer barulho e, além disso, três grandes postigos de madeira, dóceis ao menor movimento de
Jean, faziam cessar o barulho enquanto ele dormia. Mas se ele se pusesse à janela, um desses cocheiros que o vira fazia sinal aos outros para que não fizessem barulho.
Deixavam de falar, depunham o balde no chão sem ruído e ouvia-se apenas a água a escorrer das rodas, e se ele chamava ou dava a impressão de querer alguma coisa,
eles chamavam com força, da porta da estrebaria, na cozinha do hotel de Chevreuse, que dava para o mesmo pátio e se abria diante dele, um criado que subia imediatamente
para o quarto de Jean.

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Naquele dia, Jean levou Henri até o escritório do primeirosargento da companhia comandada por Saint-Gerin. Era lá, de fato, que com maior freqüência Saint-Gerin
se encontrava com ele. E muitas vezes Jean vinha procurar Henri. Nesse instante, só estava lá o cabo furriel, um magricela alto e doentio, em cujo ar bondoso Jean
reparara várias vezes. Era filho de um agricultor das vizinhanças. - Bom-dia, Sr. Santeuil - disse com ar risonho -, é o Sr. de Réveillon que o traz, é o senhor
que traz o Sr. de Réveillon, ou é o acaso que os traz? - Nesse momento entrou Saint-Gerin e pediu a Jean e a Henri que o seguissem, mas Jean prometeu a si próprio
voltar a ver esse cabo furriel por ter ficado estupefato de ouvir pronunciar com naturalidade aquela frase encantadora. Se descobríssemos no quarto de nossa hospedeira,
numa província distante, as poesias de Alfred de Vigny, os Ensaios de Emerson e OVermelho e o Negro, não nos sentiríamos, acaso como na presença de um amigo inteiramente
dedicado a nós, um amigo com quem teríamos vontade de conversar?

Alguns dias depois, numa refeição que comeram juntos, SaintGerin falou de um enterro. Jean perguntou: - Enterro de quem? - Do meu cabo furriel - disse Saint-Gerin.
Opobre menino se matou anteontem. Ele era meio louco. Era muito inteligente - retrucou Jean, que se lembrou da frase que ele dissera. - É que não o viu muitas vezes
- disse Saint-Gerin. - Era bem vulgar. - Jean citou a frase, acharam-na antes pretensiosa. E, no entanto, não era nada disso. - Terá desejado brilhar para o senhor
- disse Saint-Gerin. Jean não insistiu. Sabia com certeza que inteligência tal frase denunciava, inteligência que absolutamente não servia para compreender bem a
mobilização, para fazer depressa os resumos, para rapidamente compreender as ordens. Pelo contrário. Também não tinha muita certeza de que essa inteligência não
se acompanhava muitas vezes de um grão de loucura. Seria ela então sem valor algum? e talvez ela só lhe agradasse porque, louco predestinado - quem sabe? -, parecialhe
de vez em quando possuí-la também

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Muitas vezes, enquanto Henri, tomava lições com Saint-Gerin, Jean ia ao Cours, onde, por causa da, exposição que houvera naquele ano em Provins, artistas
de diversas cidades, pagos para a temporada, tocavam todos os dias à9 cinco horas. Moravam em hotéis baratos, aos dois ou três, às vezes mais, e não conheciam quase
ninguém em Provins, embora após o concerto freqüentemente dois velhos amadores, um marido e sua mulher, cujas cabeças eram vistas sempre na primeira fila agitando-se
compassadamente como dois instrumentos musicais, viessem muitas vezes felicitá-los e apertar a mão do regente da orquestra. Findo o concerto, partiam todos juntos,
depois em cada rua um grupo de dois ou três os deixava; bem no extremo da cidade não eram mais que dois, moradores de um albergue ordinário.
Desses músicos havia um que Jean conhecia de vista. Um dia em que passava na rua, Saint-Gerin o apontara. Chamava-se Paul Serran e era célebre em Provins
por um namoro que tivera com uma Iady de passagem. Ela se envolvera a ponto de ir morar com ele e, ao partir, lhe deixara dois grandes anéis de diamantes com a promessa
de se casarem logo. Murmurava-se em Provins que não seria nada disso, apesar dos ares de importância de Paul Serran, que, sempre desempenado, ostentando seu ar altaneiro
e frio, seus bigodes retorcidos, suas faces vermelhas, seu olhar impenetrável, suas grandes capas sem mangas, seu p?sso de escudeiro, tudo o que era "ele" e o fazia
amar tanto, mostrava de boa vontade os dois anéis e algumas cartas mais recentés, indicadores de que sua felicidade estava só adiada. Tudo isso era olhado com admiração
pelos dois pequenos violinistas colocados por detrás dele, aos quais gostava de fazer, de vez em quando, um gracejo sem entusiasmo sobre o maestro ou o velho violoncelista,
gracejo que os enchia de gozo e reconhecimento. Sentiase que, para eles, ele era "um homem" e que o resto da orquestra não contava. Afinal, as várias mulheres que
o amavam ou, tendo ouvido falar tanto dele, vinham para vê-lo, admiravam-se de que ele estivesse lá, em seu posto, seguindo os movimentos marcados pelo maestro,
tocando a mesma coisa que os outros músicos, e sendo um deles. Assim, se numa família se sabe que um dos filhos é um homem célebre por seu talento ou mundanidade,
fica-se surpreso de vê-lo quando os pais recebem, fazendo

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as honras entre os irmãos. Assim, certo ator célebre, que vemos representar um pequeno papel numa comédia. Tanto nos é difícil figurar o que habitualmente nossa
imaginação isola, como somente uma parte de um todo diverso.
Um dos violinistas, garoto de dezessete anos, tinha cabelos compridos caindo na testa, a cabeça que se convencionou chamar a dos músicos. Conservava um permanente
aspecto grave, não se mexia do lugar nos intervalos ou então se afastava sozinho. Nunca falava com os outros nem voltava com eles.

Ao voltar às cinco horas, Jean às vezes saía de novo para a cidade, que erguida na noite como uma igreja, fazia brilhar na escuridão suas centenas de velas
e lamparinas. Roçava por mulheres que voltavam do trabalho, por gente que ia ao cabaré, desconhecidos que o olhavam de passagem para esquecê-lo para sempre e que
se apressavam na direção daquela casa onde, através dos vidros, a lamparina fumarenta iluminava uma vida que ele jamais penetraria. Assim, com o vento da noite que
se engolfava no canto das ruas, ou com o cheiro das cozinhas, ou com a chuva que lhe molhava o rosto, no som de uma hora que palpitava por um momento no silêncio
da igreja de Saint-Matthieu - e na sombra tão negra que ela projetava, percebia-se apenas com o toque que havia alguém perto da gente -, ele sentia a vida, a vida
desconhecida entretanto sentida por homens como ele, visíveis comosombras nesse primeiro andar iluminado e trancado, e destinados como ele a não mais senti-la um
dia, a serem precipitados de súbito nas profundezas negras e incomensuráveis do nada, mas que permaneciam algum tempo na forma dessas portas baixas, na sujeira dessas
paredes enegrecidas. Essa vida, que o hábito não nos deixa mais sentir na cidade em que vivemos, e onde as ruas não passam de caminhos que têm um nome, e as casas
não são mais que possibilidades de encontrar esta ou aquela pessoa, incitava estranhamente a sua imaginação a unir-se a ela, e sua sensualidade a desfrutá-la.
Quantas vezes, percebendo uma mulher que, caminhando na rua, surpreendera seu olhar, ou de volta ao hotel, tendo comido

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na sala de jantar com uma mulher à hora em que o bem-estar
do calor, do conforto novo, o fascínio de novas, fisionomias, a
excitação do jantar agindo sem que o percebamos, a luz dos lus
tres tão encantadora, antes de voltar à noite para Réveillon, tão
grande a polidez dos gerentes, seu respeito mais curioso por,um
estranho distinto, exaltavam seus sentidos e afogueavam sua ima
ginação. Num instante ele imaginara que lhe seria agradável, e
num momento ambos o confessariam, que ela lhe desse de presente,
e só para ele, sua beleza e sua vida. Eram agradáveis essas refei
ções onde a sala de jantar nova, os convivas novos impedem a
gente de pensar que está jantando, embora de repente todas as
nossas inquietações, todas as nossas tristezas, toda a nossa angús
tia de ainda há pouco, antes de chegar, desapareçam. Só há uma
coisa boa, o que fazemos nesse instante, mais pessoas com quem
nos ocupar do que essas entre as quais estamos nesse momento.
Essas que deixamos em casa e que estávamos tão tristes por
deixar estão bastante apagadas em nossa lembrança. E estamos
tão felizes que não nos sentimos mais tristes. Infelizmente o ge
rente do hotel olha a hora, diz que é preciso pegar o carro. Mas
estamos tão contentes que não nos sentimos mais tristes, e guar
damos entre nossas duas viagens na noite a lembrança iluminada
um e quente dessa sala de jantar em festa, onde todos os projetos
que formamos ao sabor dos desejos que cada novo objeto fasci
nante visto nessa nova cidade excitava em nós deixaram algo
terno como um sonho.

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VI. Os militares

Jean e Henri ligaram-se desse modo a Saint-Gerin, a alguns tenentes seus amigos e a alguns jovens de boa família, que, fazendo seu serviço militar na cidade,
lhes tinham sido recomendados. Um deles, chamado Luce, que era amigo da Sra. Parmet, convidou Jean para ir jantar com ele uma noite. Jean escolheu um dia em que
Henri jantava com Saint-Gerin e chegou por volta das seis horas. Cada um dos quartos da casa estava ocupado por um amigo de Luce, pois, fazendo juntos o serviço,
tinham querido morar na cidade uns com os outros. Embaixo, dispunham de uma sala de jantar comum onde comiam todas as noites. Havia na casa um tenente que tinha
o seu quarto, mas o proprietário se encarregara de arranjar os quartos e, além disso, como era de boa família, punha toda a sua cortesia em não incomodar os jovens,
saudando-os mesmo quando os encontrava na escada com uma amabilidade que, levando-se em conta a proibição do coronel (irmão de um dono de armarinho). de que tivessem
quartos na cidade, era como uma zombaria dirigida a este, e um cepticismo dirigido à disciplina, um pé de igualdade em relação a eles que chegava a arrebatá-los.
Como Luce devesse- regressar à caserna antes das nove horas e Jean, além do mais, tivesse de voltar cedo a Réveillon, prometera não vir tarde. As seis horas
subiu para o quarto de Luce onde já flamejava há muito, a julgar pelas numerosas buchas rubras e partidas, mas onde estava em plena força de tão bem alimentado que
se achava (e ainda havia buchas ao longo da lareira), um desses fogos que esperam em seu quarto na cidade os militares que vão voltar com frio. E a lamparina, enviada
certamente de Paris por uma família elegante e carinhosa, era dessas que iluminam um quarto durante muitas horas antes de haver necessidade de reanimá-las. Luce
veio receber Jean, desculpando-se por estar com

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uma espécie de chambre que deixava à mostra as calças verme
lhas que ainda não tirara, e logo se levantaram quatro ou cinco
jovens, um deles ainda todo vestido de uniforme, outro de camisa,
os braços nus, um terceiro do toucador diante do qual se achava
por ter pedido licença a Luce para fazer a barba, pois, sendo
os quartos contíguos, cada umvinha ler sua correspondência,
[S tomar chá no quarto do outro. Duas ou três vezes alguns entra
ram, parando no limiar ao ver Jean. Era para pedir a Luce,
um que emprestasse uma folha de papel para carta, outro que
lhe desse biscoitos ingleses para o chá, outro para indagar até
onde tinha de estudar na teoria.
IS - Vou lhe apresentar meus amigos - disse Luce -, se w
"ri permite: o Sr. Singlin, o Sr. de La Tour-Hivette, o Sr. Seurau,
o,marquês de Poitiers, o Sr. Khan. - Cada um cumprimentou
por sua vez com amabilidade. Um deles desculpou-se pela ma
neira como estava vestido e fez um gracejo sobre a bela profis
são de militar, à qual sua fisionomia e seu ar de inteligência ti
raram tudo o que ela pudesse ter de desagradável. OSr. de La
Tour-Hivette pegou de novo a navalha para ir acabar em seu
quarto a tarefa iniciada. Luce não sabia mais onde se metera o
Sr. Seurau. Mas o Sr. Khan e o Sr. de Poitiers disser?im que
tinha ido pedir chá fresco para Jean, o que muito comoveu a
Jean, que quis lavar as mãos; Luce queria pedir água quente.
Mas o Sr. de Poitiers, para cujo quarto justamente vinham su
bindo com a água quente, fez questão de levá-lo consigo e,
passando pelo patamar que estava às escuras, como se se descul
passe pela simplicidade da casa, Jean vislumbrou, pelas portas
entreabertas dos quartos daqueles que no momento estavam no
quarto de Luce, outros quartos iluminados. Um deles, ouvindo
passar Poitiers, abriu a porta e a fechou após ter saudado, tendo
visto Jean. Depois Jean e Poitiers voltaram para o quarto de
Luce onde entrou um rapaz chamado Planteau que tinha ficado
estudando até as seis e meia. Ao perceber Jean, parou na so
leira da porta, e saudou militarmente, sem tirar o seu shako,
olhando os outros com ar interrogador. Luce apresentou-o a Jean
e logo em seguida todos começaram a gracejar com ele sobre o
de que tinha tido a fazer mais que os outros. E ele continuava a
om se lamentar, a praguejar, o que divertia a todos, principalmente

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oitiers. Era fácil ver que zombavam sempre dele dessa maneira e que ele praguejava sempre e levava aliás o serviço muito a sério. Anunciavam-lhe todas as chateações
do dia seguinte, e às vezes inventavam para ouvir um grunhido mais violento. Como fosse um bom rapaz, por uns momentos sacudia a cabeça, sorrindo, como se percebesse
a malícia dos companheiros. Mas logo retomava seu tom furibundo, pois era de seu temperamento, e além disso sentia obscuramente que nisso residia seu encanto aos
olhos dos camaradas. Praguejava como uma criança que bufa quando faz papel de trem, seus amiguinhos sendo os viajantes.
Estando a atmosfera muito enevoada, pois todos fumavam, Luce perguntou a Jean se isso não lhe era desagradável, e lhe ofereceu um cigarro. Tendo Jean recusado,
Poitiers lhe ofereceu um dos seus, que era russo, e do qual Jean, de fato, gostou muito. Desceram logo para jantar: um se desculpou com a hora para descer todo de
uniforme, estava bem próximo de voltar ao quartel. Luce, que ainda não acabara a toalete, se desculpou por descer de chambre. Planteau, que não tinha tido tempo
de estudar teoria, mandou dizer ao proprietário que só poderia descer à hora do frango, o que fez todos rirem. E como gostassse muito de champanha, quando o ouviram
esconderam no chão as garrafas para que ele pensasse que estavam vazias. Um deles chegou rindo e logo que fecharam a porta contou, às risadas, entusiasmado, que
acabara de encontrar o Sr. Saulces na escada e que o outro lhe pedira fogo. Diante dessa notícia tão importante fez-se o mais completo silêncio. Seurau, fora ele
quem tivera essa oportunidade, contou de novo que se pusera em posição regulamentar'e dissera: - Eis, meu tenente. - E que, ao deixá-lo, vira peifeitamente o tenente
observar, pela porta aberta, os soldados que bebiam champanha, e sorrir.
- Isso deve tê-lo deixado estupefato, meu velho - não pôde deixar de gritar Poitiers, com uma satisfação que era partilhada por toda a assembléia fremente
de inquietação e felicidade. Então achas que ele não nos enganará? - perguntou Khan para forçar Seurau a pintar de novo essa cena memorável. - Estás brincando! -
respondeu Seurau - ele, enganar alguém! Mas estou te dizendo que ele olhava com ar de inveja o champanha de vocês. Compreendes que isso o faria divertir-se e jantar
conos-

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co em vez de ir aborrecer-se por quarenta sous a hora com Cotonet e os outros. - Poderias tê-lo convidado de nossa parte, teria sido bem recebido - disse Luce rindo,
brincadeira amável como a de um bom burguês que dissesse a alguém que tivesse visto passar o imperador dá Rússia: "Poderícis levá-lo para jantar, e lhe dizer que
eu teria ficado encantado." Em compensação, Planteau tinha encontrado. Cotonet, que respondera à sua saudação como costumava fazer, esfregando logo a nuca para que
não persassem que era por polidez que levara a mão ao quepe (sentia-se que sua maneira de cumprimentar, de falar a cada um os interessava, encantava-os como a um
amante do teatro a particularidade vocal de Baron,* ou o fato de que Sarafi. Bernhardt come trechos inteiros sem que se perceba). E ele olhara com atenção. Devias
ter-lhe dito: vou para casa, na Rua des Bons-Enfants, isso lhe interessa? - Receio que ele desconfie de alguma coisa. - Mas a hospedeira, que os servia pessoalmente,
disse-lhes'- quá conhecia bem o Sr. Cotonet e que ele era muito bom, muito engraçado, bem mais amável com ela do que o seu famoso Sr. de Saint-Gerin. - Não conosco
- disse Luce.
Nesse momento entrou o Sr. de Saint-Serves, que voltava de licença. Todos lhe pediram notícias dos seus, o que fez Luce lembrar-se de pedir notícias a Planteau
de sua irmã doente. Mas Saint-Serves tinha notícias bem diferentes. À véspera, de noite, na Paix, vira Saint-Gerin com o duque de Frettes, jantando com algumas senhoras.
Todos eram só ouvidos. Para ele, Saint-Serves, embora estivesse em trajes civis, tinha certeza que Saint-Gerin o reconhecera, pois olhara-o várias vezes. - Que é
que se pode fazer - comentou Luce -, ele é suficientemente fino para fazer comentários. - Tinha um sobretudo azul forrado de peles, só te digo isso - acrescentou
Saint-Serves. Khan, que dava grande importância ao vestuário e, embora tivesse vindo jantar sem trocar de roupa, deixava ver uma roupa branca das mais finas, gravata
e meias que combinavam, contou que nas duas vezes em que vira Saint-Gerin em Paris, este vestia um terno dos mais bem talha-

* Baron, nome artístico de Michel Boyron (1633-1729), ator francês, considerado um dos melhores do grupo de Molière, cujas; peças interpretou. (N. do T.)

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boa cama aquecida pelo nosso calor, do fogo ardente, da bolsa de água quente, dos edredões e cobertores de lã que passaram seu calor para a cama onde vamos nos afundar,
esconder, agasalhar, nos cobrir até o rosto, como contra inimigos que batessem do lado de fora, e que muito nos alegraríamos em pensar que não nos apanharão, não
sabem onde nos metemos de tanto e tão bem que nos cobrimos, rindo do barulhão que faz o vento lá fora, subindo por todas as chaminés a todos os andares do castelo;
experimentando todas as fechaduras, e quando sentimos o seu frio que não chega até nós, tapando bem todas as nossas cobertas, deslizando ainda mais para dentro,
apanhando a bolsa de água quente com os pés, trazendo-a mais para cima para que, quando a fizermos voltar de novo aos pés, a cama lá esteja bem quentinha, cobrindo-nos
até o rosto, enrodilhando-nos, encolhendo-nos, enrolando-os, dizendo cá entre nós: a vida é boa, alegrias demais para achar melancolia na própria verificação da
felicidade e da mediocridade de sua essência.
E como Jean comia bem no jantar! A Sra. de Révefllon dizia:
Jantaremos pontualmente esta noite, porque mandei que lhe
fizessem um suflê e é preciso comê-lo à hora certa. - Um suflê,
oli, que felicidade - dizia Henri. - Pobrezinhos, é preciso que
pelo menos eu os faça comer bem, vocês não têm muitas distra
çõés com um tempo destes. Então, pontualmente às sete e meia!
Oli, vocês têm tempo ainda, são só quatro horas, a noite cai tão
depressa agora. - Teriam bastante tempo para ler até lá, primeiro
subir para tirar os sapatos, aquecer-se e dizer ao criado que vinha
pegar os sapatos: "Faz frio." - Pois é tão agradável dizer: "Faz
frio", quando temos um bom fogo e começamos a nos aquecer.

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VIII. A viscondessa Gaspard de Réveillon

Receberam a visita de núpeias do jovem casal Gaspard de
Réveifion. A moça, nascida Crispinelli, era uma poetisa de dezeno
ve anos de quem a Revue des Deux Mondes acabava de publicar
versos admiráveis. Seu corpo, suas feições e seus olhos estavam
sempre animados de um tão vivo encanto que nem por um
momento sequer alguém pensava em indagar se tal ou qual coisa
nela assentava bem, tal era o fascínio da sua personalidade, pelo
qi~c possuía de original e que se reencontrava em seus traços.
Assim, Jean ficou tão espantado quando ouviu dizer que o nariz
dela era um tanto grande, como se, quando lia apaixonadamente
determinado livro, ouvisse uma das pessoas ditas de bom gosto
dizer que tal caráter era bom mas a composição não valia nada,
ou coisa parecida. Pois voltava a sentir com violência a essência
das coisas mas não podia observá-las. Oque constituía a própria
natureza desse grande poeta - (a Sra. Gaspgrd de Réveillon) -
não aparecia nunca no que ela dizia. E, ao contrário, por seus
g 1 racejos incessantes, pelas zombarias sobre tal ou qual pessoa
que falava da primavera, do amor etc., teria antes dado a impres
são de desprezar tais coisas. Quando lhe falavam dela mesma,
parecia uma pessoa que gostasse apenas da boa cozinha, da
preguiça e da cama. Não que suas poesias não fossem sinceras:
pelo contrário, exprimiam algo que nela era tão profundo que
ela mesma nem sequer se dera conta do fato ao falar, nem
sabia definí-lo como uma coisa diferente de si mesma, o que
teria visto talvez como uma espécie de sacrilégio, como o julga
ria a Sra. Santeuil se lhe fosse preciso, numa conversa, falar de
sua ternura pelo Sr. Sandré. Escutando a conversa da Sra. San
teuil, ouviam-se unicamente gracejos sem fim, a respeito de tudo
e até, porém sempre afetuosas, sobre seu pai, pois a única
forma pela qual podia comprovar que o amava era trair involun
tariamente, sua admiração por ele, não podendo deixar de contar,

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sob o pretexto de troça, de exposição de suas manias, mil detalhes dele. Assim, a Sra. de Réveillon só nos teria falado do inverno para,dizer que não gostava do
frio, ou que ele lhe causava dores, que era o que ele continha de mais íntimo e mais doce para ela e era, por assim dizer, experimentado instintivamente, não podendo
ser o tema de uma conversação. Mas tal essência íntima das coisas, de que a viscondessa não falava, era na verdade a única a ter importância para ela, e a lançava
num estado realmente delicioso e exaltado: como se podia perceber ao verificar que seus versos sempre se referiam a ela, já que nossos poemas são precisamente a
comemoração de nossos minutos inspirados, os quais já são freqüentemente uma espécie de comemoração de tudo o que o nosso ser deixou de si mesmo nos minutos passados,
essência íntima de nós mesmos que espalhamos sem conhecê-la, mas que um perfume sentido então, uma mesma luz caindo no quarto, nos subjuga até nos deixar inebriados
e indiferentes à vida real na qual nunca a sentimos. A menos que essa vida seja, ao mesmo tempo, uma vida passada, de modo que, libertos por um momento da tirania
do presente, sintamos algo que ultrapassa a hora atual.
Da mesma forma, os versos dessa moça eram sempre tristes, e sentia-se, pela continuidade da tristeza em seus versos, que sua alma era de fato verdadeiramente
triste e que sua tristeza, como aquela essência íntima das coisas, essa recordação de si mesma que ela desfrutava nos perfumes que retomam na vida, o odor das tangerinas
que flui num quarto quente, bem como a recordação dessas alegrias opulentas de Natal onde muitas vezes, ao redor de uma mesa contente e florida, trouxemos uma alma
inteiramente voltada para outra que lá não se encontrava, que não viria nunca, e cuja ausência dava à neve que lá fora nos separava dela, às entregas de cartas que
não nos traziam cartas dela, algo não mais de vazio e sim repleto de uma espécie de encanto, era-lhe um ponto de partida de sonhos exaltados, ou seja, uma das únicas
coisas reais para ela, pois era essa exaltação o único sinal em que podíamos reconhecer a verdade das idéias que nos vêm. E no entanto sua conversa tinha uma permanente
jovialidade, fazia rir sempre graças às comparações cômicas, a um modo espirituoso de contar as mínimas coisas, não que tivesse neces-
sidade de contar casos engraçados, e que um dito espirituoso que proferisse não tivesse mais graça, e sim que em qualquer circunstância da vida ela descobria algo
de engraçado em toda conversa que ouvisse, em toda ação, pois uma pessoa fina, cuja faculdade de simpatia a põe em contato com todos em vez de deixá-la o tempo inteiro
metida consigo, vê o cômico em toda a parte, já que, pelo contrário, cada um só pensa em si mesmo ao dizer obrigatoriamente alguma coisa que, do ponto de vista de
outra pessoa, é cômica. Mas não sendo a observação egoísta do ponto de vista pessoal, sua alegria, de alguma forma medular, só apresenta indulgência e simpatia.
Aliás, sem tanto buscar as causas dessa possibilidade de encontrar a alegria a cada instante perto de si, a evidência dessa possibilidade que nos mostra
toda pessoa de espírito, pela graça que acha em tudo, indica-nos que se cremos haver poucas coisas engraçadas é que não sabemos enxergar-lhes o lado cômico. E o
espírito nos mostra que a alegria é um elemento fundamental de todas as coisas e que é possível liberá-la de todo fato que encontramos sem procurar, assim como a
análise química nos mostra que o carbono não se trata de um corpo que seja preciso buscar na lua e sim que se acha em todos os corpos que temos à nossa disposição,
e 'no que somos, e basta liberá-lo. Ora, o dom maravilhoso de sentir a nossa propria essencia nas coisas, ou a essência das coisas, e que chamados dom de poesia,
essência cuja revelação é tão maravilhosa que nos mergulha no entusiasmo e nos faz escrever, de modo que a inspiração se torna para o poeta o sinal da excelência
das coisas que vê, esse estado maravilhoso não sendo constante, estando ligado a sensibilidades interiores que podem estar unidas a uma força orgânica que talvez
se excite com a mudança das estações, trazendo recordações e modificando as coisas a que estamos por demais habituados para poder senti-las, faz com que o poeta
possa, em suma, dizer para Si Com tristeza que, ao sair da adolescência (quando talvez já fosse inspirado sem o saber, não tendo regressado às coisas verdadeiras
de si mesmo), quando principiava a ver que tudo aquilo em que acreditara não, existia, se lhe tivessem dito então: "A inspiração existe, os poetas não são homens
como os outros", teria ficado* radiante, o mundo se tornaria novamente feérico e

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belo como se lhe tivessem dito que as fadas existem ou que o hipnotismo era verdadeiro, ao passo que agora, pelo contrário, ele sente entranhadamente que a inspiração
é algo verdadeiro. Ele a aguarda, ela não vem, ele procura pôr-se num.estado de espírito em que as coisas se entreabrem, no sono onde a cabeça inteira repete aquilo
que ele sentiu e onde acha, de alguma forma, porém em vão, as forças que já não tem mais, sente coisas se entreabrirem, guarda de tal campo uma sensação profunda
e excitante, e acorda sem poder recuperá-la com a fúria de um impotente que tivesse feito um aborto (Goethe moribundo achava epítetos em seu delírio, e como eram
insípidas as últimas obras de sua velhice!). Mas então, que encanto tem para ele a inspiração, assim como quem morre de amor sabe muito bem que o amor é real e não
fica mais feliz por causa disso, já que isso está junto a ele como a própria vida, e o doente que está deitado todos os dias já não vê nisso o encanto singular que
os outros percebem. Mas a inspiração volta, e é claro que ele não mais gostará de imaginar que o mundo é mais feérico, já que os poetas são pessoas inspiradas, mas
a inspiração lhe dará alegrias verdadeiras.
Ora, esse dom maravilhoso existe nos seres superiores que traem, o tempo todo, essa superioridade sem dúvida pela dificuldade de dormir, a preguiça, o deáperdício
de seus dons, a imprecisão, as paixões, as nevralgias, o egoísmo, o carinho apaixonado, o nervosismo em excesso, mas também por um brilhante excesso de faculdades
intelectuais, que, na conversação, são a causa desse espírito contínuo por onde se trai o dom de simpatia, de modo que todos os poetas se encontram em sua intimidade
de amáveis conversadores ' sempre alegres, o que não quer dizer insinceridade nenhuma da parte deles e sim a prova da lei da coexistência entre essas brilhantes
faculdades intelectuais e esse dom maravilhoso, que, nesse momento, dorme e só se exercita na solidão. Daí também se deduz que os poetas fariam melhor em escrever
histórias cômicas acerca do mundo ou peças de eloqüência (pois, se defendem uma causa na conversação, as palavras lhes vêm com uma facilidade, um fogo espantoso).
São, porém, advertidos secretamente no sentido de terem de escrever algo inteiramente diverso, ou seja, as únicas coisas que lhes

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excitam o entusiasmo poético. E quando escrevem coisas diferentes, sentem que absolutamente não se trata deles, pois que o fazem por necessidade de dinheiro ou para
agradar ao público, e não desfrutam nesse momento o prazer misterioso.
E a Sra. de Réveillon devia ter também, forçosamente, sobre as
coisas que não se relacionavam com a poesia das idéias que, nasci
das desse brilhante temperamento intelectual, deviam ser tão diver
sas das de sua roda que ela, forçosamente, deveria chocar, e muito,
a ponto de passar por muito mal-educada, um tanto desregulada das
idéias e com uma influência deplorável sobre o marido. Pois não
acabava ele de assinar o protesto a favor de Dreyfus, e o sirp
ples fato de dar seu nome excitava a indignação sem o desprezo,
e sobretudo era tão contrário ao que esse nome implicava que já
não tinha mais nenhuma importância, mas era, de qualquer modo,
desagradável para a família e provava um triste esquecimento dos
deveres ligados a seu nome. E poderia ser de outra maneira
com uma mulher que calcava aos pés as coisas mais.sagradas,
que falava levianamente da religião, da nobreza, que chegava
para jantar uma hora mais tarde, que escrevia, que trazia extraordi
nários lenços de pescoço como as pessoas que não per ' tenciam
ao bairro Saint-Germain, que recebia grande número de autores
de maus livros, que no caso Dreyfus tomara partido abertamente
contra o exército e se solidarizava com os piores anarquistas
(incrível!) (não pensariam, de fato, que um Réveillon estaria do
lado dos anarquistas? Eis o que prova que se deve prestar muita
atenção ao casar os jovens; pois o pobre rapaz era apaixonado
pela mulher, era bem desculpável que só enxergasse através dela,
e é com boas razões que na sociedade se desconfia de pessoas
que escrevem, de mulheres que fazem versos etc., pois tudo isso
tem a ver com as verdadeiras abominações que são uma vergonha,
relacionada entre essas coisas que o exemplo da condessa Gaspard
de Réveillon provava à saciedade). Enfim, ela era mais chocante
em razão de certa arrogância intolerável que decorria do fato de
que, freqüentemente silenciosa, não tendo nada a dizer por timi
dez, o que já parecia muito má educação, quando ao contrário
começava a contar casos, seu próprio espírito fazendo-a derramar
sem fim expressões calorosas, tiradas reconfortantes, gracejos
embriagadores, ela se entusiasmava com as próprias palavras,

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falava às vezes cinco minutos sem parar, o que a tornava engraçada mas cansativa, ocupada consigo mesma e cortando a palavra às pessoas mais velhas. Acrescente-se
a isso que ela às vezes ria às gargalhadas com um artista que voltava a encontrar num salão, de modo que todas as senhoras idosas que não tinham dito nada ainda
menos conseguiam refletir.
Mas se se imagina que o automatismo denominado boas maneiras destrói toda a espontaneidade, todo o verdadeiro exercício do espírito, toda a possibilidade
de poesia, conceber-se-á igualmente que a poesia, o verdadeiro exercício do espírito, destruirá todo o automatismo e todas as boas maneiras. Se um ente dotado chega
a este mundo, sem dúvida se tornará um autômato e nada mais fará. Declará-lo-ão ajuizado, organizado, vencedor - e com efeito, ele, que aos vinte anos não podia
passar num exame, ou até escrever um artigo de jornal, será capaz de, aos trinta, entrar para a carreira diplomática e escrever para as revistas. Mas suponham esse
ser nascido na mais alta classe da sociedade, de maneira que o desejo de ascensão social não exista nele e que então o tédio da inteligência não seja compensado
pelos prazeres da vaidade. As pessoas da sociedade não terão a seus olhos prestígio capaz de excitar seus instintos de imitação. Sendo assim, a moça permanecerá
o que é e como em seu organismo o dom maravilhoso se manifesta por palpitações de coração, urticária (sim, por que não? o verão se assinala tanto pelas moscas e
mosquitos como pelas rosas e noites estreladas) do mesmo modo no organismo social, ao qual não se adapta mais, será assinalado pelas más horas em que ela se senta
à mesa, por seu ar sonhadór enquanto as pessoas experientes estão falando, por sua incapacidade de reprimir o riso desvairado, pela escolha estranha e involuntária
dos adjetivos que lhe vêm à boca, cada um mais lindo que o outro, enquanto fala, como essas figuras de cotilhão que uma pessoa situada nos bastidores passa ao condutor,
escolha que parece o cúmulo da pretensão e pouco caso pela conversa, como todo poeta que escreve um artigo de jornal fá-lo com rebuscamento, por sua arrogância em
falar tanto e fazer observações tão engraçadas sobre as próprias pessoas com quem falava e com certa impertinência involuntária. Arrogância que também *decorre,
aliás, do fato de que se muitos a criticam,
alguns a admiram, estragam-na com mimos, encorajam suas histórias, aplaudem-nas, a tal ponto que ela conquistou aos poucos os parentes mais próximos que se transformaram
num público enfeitiçado,. mimado, tendo reconhecido sua superioridade não graças às suas provas mas porque em outras circunstâncias da vida ela se revelava em tudo,
por um modo melhor de examinar as cartas sobre as quais consulta-se em família, por noções mais justas e profundas, o que faz com que achem que ela é boa conselheira
para os outros (e depois, os críticos que ainda surgiam, ela os destruía de modo tão engenhoso, sabendo todas as respos tas), pelas murmurações que acende em certas
mães de filhas inteligentes que julgam seus versos no máximo galantes e que, se ela não se chamasse Réveillon e não fosse excêntrica, ninguém lhe prestaria atenção,
recebendo pessoas que não só não são nobres como nem mesmo o pintor Z. ou o poeta X. que se enobreceram por um direito de cidadania conferido e mesmo sem que os
admirassem, de modo que ela não se coloca em seu lugar, só se dá com pessoas aborrecidas, perde seu salão, estraga seu bom nome e nem sequer é inteligente, Pois
gosta mais de conversar com sua camareira do que com um homem da qualidade do pintor Z., e quase nunca lê. Chamam a isso uma mulher inteligente? No entanto, Jean
achara-a deliciosa e invejava esse marido que ela parecia amar tanto e que corria às editoras a fim de corrigir as provas. Mas ela nunca dizia que o amava, olhava-o
às vezes rindo e troçava dele por ir às editoras. Pois seu amor, assim como sua poesia, da qual ele era com freqüência o assunto, estava ausente de sua conversa.
Mas seus olhos graves, seu corpo gracioso e frágil pareciam incluir a alma profunda para a qual foram criados e além disso tinham talvez, desde então, aprofundado
ainda mais seus olhos e enlanguescido o seu corpo.
marinha que engoliríamos na concha nacarada e que viveu verdadeiramente no mar, assim como gostaríamos de ver outro dia as faias de Hoblener ou a cor que ele, Hoblener,
pôs nelas, alternadainente exaltada e esmaecida até essa tinta indefinível que ainda permanece. É uma ostra que gostaríamos de levar aos lábios e engolir enquanto
o vinho de Sauternes; é posto à nossa frente num cálice que se tinge de sua cor amarelada, e se enche com seu gosto vivo e doce, cor inimitável, gosto que pode chegar
a uma profundidade que não será igualada e faz com que esse vinho tenha seus apreciadores, como as telas têm os seus, e que proporciona alegrias mais fugazes, mas
não menos misteriosas e profundas, nem menos nobres visto que, como ao dono de um cão, como a um amante, dão ao apreciador o sentimento de obter algo que é o produto
único de circunstâncias que jamais se renovarão.
O agradável museu que num jantar, quando esse gosto de água do mar, com o qual, em nossa cidade interiorana, sonhávamos até senti-lo, nos é apresentado,
e quase podemos tocá-lo, úmido à flor da taça de prata e pedra, quando a cor do vinho brilha como a de um quadro sob a proteção transparente do vidro, quando os
pratos trazidos sem interrupção em salvas de prata sobre a mesa deslumbrante nos dão numa hora a sensação plena e direta dessas várias obras-primas, das quais o
desejo de uma é suficiente para encher de encanto uma hora ociosa e de apetite. Aqui como nos museus, como nas bibliotecas, não é apenas o nosso imenso desejo de
uma coisa sonhada que nô-la apresenta, e nos dá, traduzidos, os pareceres de Ruskin acerca de Rembrandt que tanto desejávamos conhecer e que nos teriam levado a
aprender inglês, as nuvens de Turner pelas quais gostaríamos de atravessar o canal da Mancha, essa Fontainebleau que existe num local em que, por onde se vá, está-se
em Fontainebleau.
Mas um livro bem diverso do nosso sonho atual desperta outros que nele encontram sua satisfação. Procuramos uma obra de George Eliot. Encontramos uma de
Stevenson. Na décima página é de Stevenson que já passamos a necessitar, e a décima primeira e as seguintes nos satisfazem pois nossos sonhos não têm a forma das
paisagens e sim aquela conferida por um deus. Assim

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não temos apenas as ostras que desejávamos, essas ostras saídas do mar. Mas é todo um museu que se desdobra à nossa frente e onde cada obra-prima estimula os desejos
que nela têm a sua satisfação, como o negro cabrito montês, de carnes castanhas, quentes, postas em conserva, sobre as quais a geléia de groselha vai lançar uma
camada fresca e florida, enquanto ao sabor de uma conversa franca sentiremos que os companheiros de terno de linho branco, as companheiras de vestido decotado dessa
reunião artística tornam-se-nos mais queridos do que toda a nossa vida passada, deixada à porta dessa sala clara e aquecida, e que cada movimento do nosso braço
ao fazer uma observação, sua própria passividade ao ouvir as de nossos vizinhos, nos dará uma sensação deliciosa como se o elemento em que nos movemos de corpo e
alma fosse um novo elemento de prazer, elemento excitante e corruptor, onde sentiremos todas as ousadias, nenhum escrúpulo e o inteiro esquecimento de nossos deveres
anteriores.

Uma outra vez, o coronel Bresson perguntara a Henri se ulti
mamente os jesuítas não tinham procurado aliciá-lo e Henri res
pondeu com calor que não, que não havia uma só palavra verda
deira nas alegações do jornal LAurore e já se sentia aborrecido
de ter de dizer não o tempo todo, de ter de mostrar sua total
inocência. Ele gostaria de ter alguma coisa para lhe responder a
fim d e provar sua sinceridade ao coronel, que parecia não acredi
tar nele. E então, por uma questão de sinceridade, embora nin
guém lhe pedisse, contou que há dois anos o padre Z. o encarregara
de procurar saber quais, dentre os colegas, permaneciam fiéis às
idéias sadias e de encorajá-los, não mais. - Se tivesse havido
alguma coisa desde então, por que não lhe diria?
Mas o coronel vira nisso, ao contrário, a prova até então inutilrunte buscada daquilo em que acreditava e que era falso, e disse a Henri: - Pode se retirar
-, e às primeiras tentativas feitas Pelo general-de-brigada a quem Henri fora procurar e que apesar de também franco-maçoin gostava muito do duque de Réveillon c
de Henri, o coronel respondeu: - Impossível, seja no que for,

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deixar sair Réveillon de sob as minhas vistas, ele mesmo acabou de confessar tudo. - o general-de-brigada Tortille tratou de arranjar as coisas e Henri ia vê-lo
de quando em vez para saberem que ponto elas andavam. Quando soube que o coronel tinha falado da confissão, protestou indignado e contou de novo o que dissera. Ogeneral,
embora tivesse as mesmas idéias políticas e fosse amigo do coronel Bresson, disse a Henri: - Não quer dizer nada, isso se acomoda mas não deve contar a ele. - Mas
ele me disse que lhe contasse tudo. - Não quer dizer nada - repetiu o general -, o senhor é excessivamente escrupuloso, não é preciso dizer nada - disse, sacudindo
a cabeça de rosto vermelho e jovial e belos olhos azuis, tão grandes que pareciam estar, e de fato
estavam, entre os mais admiraveís instru entos de precisão que já se descobriram (e não somente de precisão, como o demonstrava essa luz mutável? adaptando-se
continuamente, e infinita, e que se impregna de qualidades morais a que se dá o nome de olhar humano), uma dessas admiráveis lentículas que ao contemplador que as
olha mostram apenas seu brilho e dimensões, mas àquele que se coloca por detrás, unicamente a este (e só existe um homem atrás dos olhos, é um microscópio do qual
os outros não podem se servir), servem para olhar muito dentro das coisas e sobre as quais, às vezes depois de ter meditado, passa-se o dorso da mão, como se limpa
a lentícula depois de se usar. E seus belos olhos azuis e tão grandes, tão luminosos, tão sossegadamente, fixos nessa idéia de que não era preciso dizer,nada, mostravam
que não tinha dúvida alguma, que era boá'a idéia - "Não era preciso dizer nada" - que eles viam naquele momento.
E no entanto ninguém era tão bom, tão correto, tão escravo da disciplina quanto o general Tortille. Assim, Henri sentiu um grande bem-estar ao ouvi-lo dizer
essa frase, como se o general Tortille se tornasse, de juiz, um pouco seu cúmplice, e por isso,
'bia tão correto e tão militar, sua culpa era maior.
como o sã
Sentia-se feliz de ouvir o general Tortille dizer que esse coronel, que fora tão duro com ele, era em suma uma pessoa de quem convinha desconfiar, a quem não se
devia dizer tudo com tanta confiança; o general Tortille, respeitando sempre ao máximo o coronel, dava a impressão de dizer que este era, por prevenção

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e espírito preconcebido, capaz de fazer um mau juízo. Gostamos de um homem honrado e inteligente que numa visão de justiça e conhecimento dos homens nos diz: "Não
tenha honra em excesso.,' Um magistrado que nos diz: "Não cabe a mim dizer-lhe isso, mas, se eu fosse o senhor, não o proclamaria aos quatro ventos, o senhor sabe,
as leis, os juízes. . ., meu colega é um homem excelente, mas seria capaz de, etc." Um general que vem todos os dias a cavalo surpreender as companhias no exercício,
punir os capitães, deixar os homens sem licença, que vem inesperadamente ao quartel à hora regulamentar e que lhe diz: "Osenhor está cansado, vá a Paris sem dizer
nada, não peça licença, trate de não ser apanhado." Gostamos do homem da lei que num dado momento sabe rir-se da lei, e do homem da disciplina que sabe nos dizer
num instante qualquer: "Trate de passar ao largo da disciplina."
Então não nos sentimos mais culpados visto que um homem honrado parece assumir metade da nossa culpa. Temos sempre respeito pelo juiz militar mas vemos o
general ainda assim dizer: "Omelhor seria não passar muito diante dele." E sentimos que o direito, a inocência, a verdade, para esse homem que conhece a vida e os
homens, e os homens que são até juízes honestos, não significam tudo e são mesmo pouca coim. Mas sabe que existem os preconceitos, as prevenções e que mais vale
tentar sair da linha. Gostamos com certeza dos livros ou das circunstâncias da vida em que vemos a inocência ir em busca do juiz e nele descobrir a justiça, a bondade,
convencê-lo num instante e nos dar a idéia de que os homens são bons, de que a verdade tem força invencível e de que tudo na sociedade se passa como numa família
carinhosa em que a mãe, mesmo severa, crê em seu filho e o beija se ele merece. Mas o homem honrado que nos diz: "Não conte tanto com a boa fé, o senhor tem o defeito
de ser muito sincero, eu sou general: pois bem, o senhor não deveria dizer nada ao coronel; eu sou alto magistrado: pois bem, se eu fosse o senhor, tentaria fazer
uma viagem e não comparecer diante do juiz de Paz; sou um homem honesto: pois bem, ao homem honesto que o acusa não tentarei justificar-me e sim deixar esfriar sua
cólera, deixar tudo isso cair no esquecimento, e os anos diluírem bem depressa a importância que a sociedade e o senhor lhe atribuem",

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vivaz, única cor da estação das borboletas nessa grande crisálida fusca do inverno. A erva permanecia ali como o mar após as tempestades, sem barcos, sem velas,
mas estendendo no mesmo lugar a mesma toalha verde onde o sol já não vem brincar.
Quando Jean saía pela manhã ela ainda estava escondida, de tanto que o frio da noite era ainda vivo debaixo da coberta branca da geada. As platibandas estavam
inteiramente vazias como uma p~aia antes da época de veraneio; entretanto, algumas tulipas bem à vontade, pois flor alguma lhes fazia concorrência, mostravam-se
alguns dias sob a linda tenda alaranjada que estalava ao vento. Ah, o parque, o bosque, toda a região não dava idéia alguma do que era no verão, quando a cada manhã
era possível assinalar, em meio às violetas e primaveras há um mês em flor, a presença dos íris e das rosas-de-bengala, a volta das andorinhas e pomboscorreios,
a passagem de uma borboleta, a chegada de duas corujas, princesas desdenhosas da região que quase não se mostravam mas cuja vinda honrosa era sabida quando, à noite,
à hora em que os burgueses dormem, ouvíamo-los indo passear na floresta, ali se perderem e se responderem cantando a enormes distâncias. No entanto, quando Jean
saía em direção à vila (pois, sozinho com Henri e o único guarda-caça para dar conta do recado, era obrigado a ir procurar as cartas se não quisesse esperá-los até
a noite, e levá-las ele próprio se quisesse que tomassem o trem), encontrava, ao menos diante das corbelhas nuas sob os ramos mortos,, casas, fechadas por muito
tempo, dos hóspedes distintos da região, a erva, tanto no inverno como no verão, estendendo-se por várias léguas, verde como o mar, porém mais sombria e sem os brancos
véus das primaveras.
Dizia-se a Jean: "Como deve ser aborrecido estar no campo com este frio" - mas como ao contrário era agradável reparar em todas as árvores que, é claro,
não tinham nenhuma folhagem, mas das quais não se apreciavam menos os belos tons verdes e dourados que tantas primaveras passadas haviam imprimido em sua casca e
que, recordações únicas das cores primaveris na crisálida hiernal, à espera de que se apaguem e se deixem quase esquecer sob a verdura mais intensa das folhas e
a coloração mais suave das corolas, brilhavam corajosamente, por pouco que um tantinho

486

de sol aparecesse gloriosamente no campo onde ainda se achavam sozinhas.. Flora bem apropriada às rudes intempéries do inverno, luminosa e brilhante flora de casca,
essa lenta coloração dos troncos que só aparece depois de anos mas que dura todo o ano e muitos anos, e que com a erva, o musgo, os pardais que ficam, são os únicos
habitantes não-humanos do campo que aí moram o ano inteiro. Além disso, era tão incômodo que foi preciso ir até a aldeia para buscar o que não se pensara em encomendar
com dois dias de antecedência, para buscar suas cartas ou trazê-las. Mas eram incômodos que, pela manhã, se Jean precisasse de papel almaço, faziam-no sair no frio
e muitas vezes, no momento em que passava pelo regato, alegre e animado como a água fria, como as nuvens negras comprimidas, como as ervinhas espertas que tremulavam
ao vento, e o chão duro que soava a seus passos de um saltitar contente apesar desse incômodo de que se lamentava, e que o fazia perceber um pouco de sol que, pousando
na sebe nua, deslizava sobre a terra pálida, o fundo do céu no regato mal descorado, já coberto de sol, e sobre a aldeia cuja igreja de ardósia resplandecia apesar
de uma borrasca à vista, e fundia seu bom humor numa espécie de alegria. A aldeia ainda ficava muito longe. Acima de Jean, o céu estava azul. Entretanto, mais ao
longe, do lado da aldeia, estava negro, e contudo naquela ocasião um raio de sol que batia com timidez nos campos fazia brilhar todo um lado das casas da aldeia.
Mas com excesso de vivacidade: a chuva não estava longe. E com efeito, começava a cair, mas muito fraquinha, ele podia fechar de novo seu guardachuva. E era com
viva satisfação que Jean torcia a maçaneta da porta envidraçada do papeleiro-merceeiro-farmacêutico, que soava ao se abrir, e pedia papel almaço. - É de uma mão
de papel que o senhor precisa? - perguntou o dono amável e coxo, e, saltando sobre a muleta, trazia uma bela mão tão vasta, tão unida, tão suave, tão brilhante que
Jean pensava muitas vezes que era uma dessas coisas lindas'que lhe dariam muita tristeza se não as Pudesse comprar por serem muito caras. - Pode me dar até duas
Mãos - acrescentou sorridente. Era um desses comerciantes que sempre cobram mais barato do que se espera, que não põem na nossa conta a pequena despesa que fazemos
a mais para obter tal ou qual suplemento, de modo que, mostrando um caráter

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surgia, fazia seus estragos, pois ouviam-se os ruídos abafados de
coisas que tombavam, enquanto o fogo recomeçava parecendo vir
de outro ponto, aproximando-se, como se se presenciasse um
combate pouco distante travado não se sabe bem onde e que não
fosse possível ver. Mas Jean se intárompia, não querendo perder
nada desse rumor delicioso do vento, assim como respiramos de
liciados o aroma da flor de laranjeira, como olhamos indefinida
mente as belas cores do mar do alto da falésia, numa tarde ' radio
sa,, quando nossos olhos se encantam* com o sol dissolvido no
mar em ricos matizes azulados, roubando, por acréscimo, o que
nele faísca em brilhantes lantejoulas luminosas, indo até saquear,
sobre o véu deslumbrante e a proa brilhante, o sol. que embebe
um e molha a outra, parecendo ficar tão feliz como o mar, dei
xar-se penetrar, como este, pela felicidade desse dia lindo.
Assim Jean ouvia o vento, entusiasmando-se com sua força, e encantado por sua doçura, tão poética de fato, pois é inteiramente isenta de elementos estranhos,
parece sem causa, não pode fazer pensar em nada humano, em nenhuma ação. Por isso ele a quem a mais débil conversa, o menor ruído de carros passando, a menor melodia,
o passo mais leve, o mais ligeiro roçar de uma cortina impediam de dormir ou despertavam, como dormira bem a noite anterior quando a tempestade desabara, embalado
por esse ba~ rulho desacompanhado da idéia de causa alguma, que não vinha do chão nem do teto, e estava em toda a parte ao mesmo tempo, que castigava a região, que
envolvia o castelo inteiro. Por mais que imaginasse a tristeza do duque na manhã seguinte, os desastres de que teriam notícia, os bosques devastados, a fúria do
meeiro de quem aliás não gostava, ele ria de prazer e seu coração se revolvia, ébrio, quando, em vez de ouvir o vento diminuir, ouvia-o ganhar novas forças, inflar-se,
as árvores caírem com barulho cada vez mais forte, como no mar, por ocasião de uma tormenta, gostaríamos que cada vaga fosse mais alta, mais alta, para exceder o
ímpeto de que somos possuídos a cada vaga que passa e que antecede a que vem em seguida. E quem sabe se a isso não se mescla, em nós, um pouco do instinto de revolta
que faz com que, quando um criminoso, perseguido por vinte policiais, vai ser preso, saltamos em sua defesa, juntamo-nos às suas forças, gostaríamos que escapasse
ao círculo feroz e já inevitável? Pois a

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satisfação das pessoas que dizem em tom de superioridade: "Ele será preso" nos irrita, excelentes pessoas além do mais, e com as quais, se ele não fosse preso e
os fizesse sofrer deixando-os abatidos e menos seguros de si, seríamos solidários. Esse instinto de revolta que faz com que, quando um javali ou um leão que causaram
enormes danos vão ser capturados, estejamos do fundo do coração nos saltos e rugidos das nobres feras e gritemos interiormente: ah, se pudessem fugir. Ora, quando
esse transtorno é uma tempestade, a prudência do arquiteto e a energia do meeiro são nulas. Não se pode expulsar o vento, fazer um círculo a seu redor, dominá-lo.
Não é possível dar tiros nas ondas, matar o mar. De repente, seu ímpeto diminui, vem a calma ... Mas, na expectativa, algo em nós se incha com as vagas, sobe tão
alto quanto elas. E quando, desse modo, sopra umvento inaudito, se às vezes parece diminuir gostaríamos de poder,animá-lo, como, enquanto não o conheciam, os que
a distância sabiam que Picquart era defensor da Justiça gostariam de poder di7C~-lhe: não desanime, não esmoreça, não diga no processo Esterhazy que não tem opinião,
não deixe que o isolem. Mas acontece que nesses casos aqueles que assim procedem fazem-no por uma razão íntima e própria e sobre eles ameaça alguma surtirá efeito
como também não as exortações. E nós não tínhamos nada a temer. Tudo o que eles tinham de fazer o fizeram.

sim o vento s 1
As o pareceu acalmar-se por um momento para
volta~ com mais força; e quando Jean o ouviu acalmar-se, prote
gido sob as cobertas, como se murmurasse uma palavra de sim
patia ao criminoso perseguido pelos policiais, deixava-se ir a seu
encontro dizendo baixinho: coragem. Além do mais, gostava desse
bom vento que o não impedia de dormir como os homens, não o
acordava, tê-lo-ia deixado dormir até o meio-dia sequisesse, como
um bom habitante da floresta, em cuja casa o rapaz se hospeda,
deixa-o dormir, batendo os bosques durante esse tempo, esperan
do que o chamem. E, depois, o vento lhe falava do mar que na
quele instante devia estar bem bonito. Oh, se ele tivesse podido
partir para Penmarch ou Saint-Malo! Olhava com raiva essa terra
que não tinha grama sequer que se curvasse assobiando ao vento,
e Pensava nessas montanhas de água que se erguiam e desabavam
a seus golpes, nesse mar da Bretanha que devia ter o aspecto de

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uma súbita paisagem de montanhas com vales tão profundos que parecia dar para ver o fundo do mar, e ser possível, se não houvesse o perigo de ser esmagado pela queda
de uma montanha no mesmo minuto e arrastado na subida vertiginosa de outra, andar ali a pé enxuto. Cada lamento novo do vento era como o sentimento da permanência
desse espetáculo, que ainda não estava abolido. E ele não pensava em vagas tempestades mas naquela que devia ocorrer na praia de Penmarch e na ponta da Raz, tão
longe uma da outra mas que entretanto são partes da França que se seguem, pois de Penmarch ele percebera, à direita, um pequeno ponto que é essa baía dos Defuntos
que vira à esquerda da ponta do Raz, envolta nas brumas da lenda, e que no entanto nas brumas do inverno e do mar, às vezes até iluminada por um sol indeciso, pode-se
enxergar de uma praia, esta mesma não menos desolada que a própria idéia que dela se tem. Praias que ficamos espantados de ver, de tanto que eram algo imaginário
para nós, ,que posteriormente voltam a ser imaginárias, existindo apenas na lembrança, mas de um imaginário mais perturbador, o que se liga a uma coisa onde deixamos
um pouco de nós mesmos e que se situa não mais na abstração e sim em nós, num ponto que sente satisfação e estremece quando é tocado, praias assentes no fumo poeírento
das tempestades ou simplesmente dos recifes espurnejantes e das brumas que obstruem o már, assentes às margens do infinito como lendas, em breve lendas perturbadoras
e bem-amadas de nossas recordações. Sim, com esse vento que nos fala, muito gostaríamos de ir a essas praias, não a esta ou àquela que se lhe pareça, mas àquela
cuja fisionomia é delineada pelo soerguimento de granito à esquerda, depois pela pequena linha de rochedos, e o longo desfiladeiro por onde passam os -barcos. Pois
não se trata de qualidades ou de semelhanças, os lugares são pessoas e sabemos que as mais belas coisas da Terra não poderão nos dar aquilo que o vento nos faz desejar
exatamente naquele instante, ir a Penmarch. Os lugares são pessoas, mas pessoas que não mudam e que reencontramos muitas vezes depois de longo tempo, espantando-nos
de não sermos os mesmos, ou, principalmente, espantando-nos de sermos os mesmos e não termos feito coisa alguma desde que os deixamos, nada tendo feito para nos
aproximarmos da felicidade para a qual nos convidavam suas

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ondas tão azuis, tão infantis então quanto hoje. Os lugares são pessoas a quem a humanidade que está em nós atribuiu uma figionomia não humana, pois é uma fisionomia
de lugares, mas um fisionomia de pessoa, de pessoa que se configura com uma catedral sobre uma falésia, um avanço de estuário no longínquo, campos suplantados quando
a gente sai pela campina além da aldeia. Fisionomias que fazem com que nada as substitua para nós, que pensemos muitas vezes no prazer de revê-las, fisionomia que
está em nós tanto quanto neles, que somente eles podiam nos dar, mas que talvez somente nós possamos lhes conferir, de modo que a conservem após a nossa morte.
Pois os lugares mudam menos depressa que os homens parla quem o renque de salgueiros, o caminho que sobe ou o redemoinho da água debaixo da ponte entre os
nenúfares são como as fotografias que ficam numa casa, que não reconhecem os que as não conheceram e que lhes mostram uma fisionomia de onde não só a doçura mas
o sentido, a vida e a unidade desapareceram com aqueles que os amavam, como um desses segredos'que não se podem herdar, que não se encontram nos papéis dos mortos
e que sem dúvida por isso mesmo nos são mais caros que tudo no mundo, quando se trata de lugares, porque nada fora 'de nós pode nos devolver uma impressão que tenhamos
tido, tesouro que só se pode guardar num único escrimo, a memória, e só pode ser apresentado aos outros por uma espécie de ilusão, a poesia.
A poesia, a inspiração, esse vento parecia despertá-las em Jean pois, à medida que ele sentia mais prazer em ouvi-lo, pensava cada vez mais em descobrir
novas idéias que provocavam o surgimento de outras, não essas idéias loucas que se relacionam conosco, e que as crianças de imaginação (e várias permanecem crianças
sob esse aspecto) experimentam indefinidamente ao se despirem, ao passearem, que se referem a nós e imaginam o que desejaremos: "Ao entrar, vou achar uma carta daquela
que amo e no entanto não,conheço, e que vai confessar-me o seu amor. Fis o que vou responder. E iremos a um salão onde o senhor de que não gosto estará presente,
e eis o discurso impertinente para ele que se pronunciará, e eis o que lhe direi." Mas tais pensamenOs são idéias ocas que chamam outras igualmente ocas. Imitam
R realidade substituindo-se a ela mas sem ultrapassá-la (a pessoa,

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dentro de um ano talvez a conheçamos, ela nos amará talvez, estaremos talvez a ponto de abater nosso inimigo) de modo que dá essa impressão, como as diversas peripécias
da vida. E, aliás, não nos sentimos contentes depois, tudo isso é inútil, é como os romances naturalistas e impressionistas. E então será preciso, de novo a cada
vez, que haja coisas novas. É uma concorrência inútil à inesgotável e insatisfatória realidade. Tal é essa linguagem interior, talvez menos cansativa, entretanto,
do que a da vaidade que repete sem cessar, para si mesma, um nome (A Sra. Fulana, nascida ... ), que imagina seu próprio nome nesse jornal testemunha de um imperador,
e que cansa tanto.

Mas essas idéias que acudiam a Jean ao ouvir o vento eram idéias outrag que não pareciam ocas e sim plenas, ao mesmo tempo no passado, seu passado em Peninarch,
e no presente, e mais profundas, ligando-os, mais reais, mostrando assim o preço do minuto passado e do minuto presente, algo que existia de verdade e não acabaria
no mesmo minuto. De maneira que ele não dizia consigo: "Mais um sonho insensato, já não irei a Penmarch este ano como não fui no ano passado", e sim que ir até lá
lhe parecia quase desnecessário, pois o desejo excitado pelo vento e a lembrança de Perimarch se resolviam não no prazer egoísta que teria em Penmarch, mas na realidade
da poesia feita do sentimento de sua própria existência, sentida nesses minutos reencontrados de Penmarch, e que assim, não se dizendo do prazer passado, pois isso
durou um instante, não significava nada, nem do prazer presente,. isso não significa nada, isso vai ser passado, não desprezaria o fato de lá não mais voltar, não
mais que nenhuma outra das alegrias da vida. E, de fato, ele não devorava mais a vida com uma espécie de angústia por vê-la sumir-se sob o gozo, mas saboreava-a
com fé, sabendo que um dia ou outro reencontraria a realidade desses minutos, com a condição de não procurá-la, na brusca evocação de uma rajada de vento, de um
cheiro de queimado, de um céu feio, ensolarado mas já anunciando chuva acima dos tetos. Realidade queè a que . não sentimos enquanto vivemos os instantes, pois os
relacionamos a um objetivo egoísta, mas que,

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nesses bruscos retornos da memória desinteressada, nos faz flutuar entre o presente e o passado em sua essência comum, que no presente nos recordou o passado, essência
que nos perturba na medida em que é nós mesmos,. esse nós mesmos que não sentimos no momento, mas que reencontramos como um mel delicioso que sobrou das coisas quando
elas estão longe de nós, que nos delicia na medida em que ela é as coisas e as diferencia tão bem a distância, e nos faz de um Pentriarch uma coisa tão pessoal e
que quando quisàrtios revê-la coisa alguma poderá substituir, realidade que disseminamos enquanto escrevemos páginas que são a síntese de diversos momentos da vida.

495
VM

O sarau da Sra. Marmet. - Reencontro com Marie Kossichef. - Ovisconde de Lomperolles. Oquarto de Jean, em casa de seus pais. A Faculdade de Ciências Políticas. -
Os Guéraud-Houppin. - Osalão da duquesa de Réveillon: Jacques Bonami. - Oduque na sociedade. - Outras visitas. - A Sra. de Thianges e a Sra. Lawrence. - Otenente
de Brucourt. História da Inglesa. - A "estréia" de Frédégonde. - Daltozzi e as mulheres. - A afronta. - Reparação. - Obarão Scipion.
A sala de plantão da Pitié. - Um jantar na cidade.
A senhora Marmet

o senhor sabe que, apesar de ser o décimo quarto, tem
direito ao sorvete - disse com voz cristalina a um jovem sen
tado na cabeceira da mesa, e que acabava de recusar o "Vivandi",
a bela Sra. Marmet, em cujo espírito esse traço atraente era des
tinado menos a deslumbrar os convivas do que a lhes mostrar
que um acidente de última hora fora necessário para obrigá-la a
adfnitír à sua mesa elegante um rapaz sem nome e sem posiçgo
social. Orapaz sorriu sem responder e sem dúvida era mais
sensível do que vaidoso, pois desde que cessou de sorrir seu rosto
assumiu uma expressão que não era de contrariedade mas de tris
teza. Encolheu ligeiramente os ombros como uma mulher que tem
frio. Depois, seus belos olhos pensativos pousaram nos da Sra.
Marmet, que o não olhavam nesse momento, a fim de descer ao
fundo de sua alma. E quando, virando a cabeça, seu claro olhar
reapareceu à superfície líquida das pupilas, brilhavam fraca e
imperceptivelmente, como um magro despojo trazido dessa expe
dição subterrânea, frágeis parcelas de desprezo. Levantavam-se da
mesa. Ao lado do rapaz estava ' o velho conde de Nefforden, que,
sendo um pouco surdo, não tinha talvez tomado conhecimento das
circunstâncias atenuantes de sua presença e poderia ter dito nos
salões: "Sim, jantei ontem em casa da Sra. Marmet, havia pessoas
que eu não conhecia." Assim, a Sra. Marmet pegou Jean de pas
agem: - Osenhor seu pai não ficou zangado por agarrarem-no
assim no momento de se pôr à mesa? - Tradução: "Ouçam. bem,
VOCês todos, era para que não fossem treze à mesa, foi bem na
última hora, não tive tempo de pedir que alguém viesse. Não me
queiram mal."
- Vamos, Julien - disse voltando-se para o filho apreuntaste o teu amigo a estes senhores? - Tradução: "Pois não creiam que este seja das minhas relações,
é um colega de classe do MCU filho. Isso não se escolhe. E, vejam, sou tão polida com

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ele como com os outros, quero que seja apresentado a todos. Vejam que conheço todos os truques do bairro Saint-Germain de vocês, e não faço parte dele." Enfim, acrescentou:
- Oseu pai é tão bom por recomendar Julien de cada vez que ele se apresenta para um exame no ministério dos Negócios Estrangeiros. - Tradução: "Não é uma tolice
convidá-lo, já que ele é útil a Julien e o será ainda. É ainda muito típico do bairro, Saint-Germain." - Não é verdade que seu pai tem um cargo qualquer no, ministério,
que eu não sei bem qual seja? - Tradução: "Pessoas que se respeitam não sabem nada do que concerne ao governo." E a Sra. Marmet, abanando o leque, compondo com um
gesto elegante o busto amplo no corpete de cetim cor-de-rosa, ia dirigir-se para os outros convivas pensando que já fizera muito pelo décimo quarto, quando, tomada
por uma dessas inspirações do momento, que na arte do esnobismo, bem como na arte de escrever, permitem ganhar anos de trabalho, gritou, cravando os olhos vivos
num senhor de uns quarenta anos: - Ah, mas, marquês, o senhor que tem um filho que se prepara para a carreira diplomática, vou apresentar-lhe o Sr. Jean Santeuil,
cujo pai ficará muito feliz em lhe dar recomendações para o seu Aymar. - Mas, senhora, é um bom amigo esse a quem pretende apresentar; conheço muito bem
• pai deste senhor e acredito conhecê-lo também - respondeu
• marquês de Ribeaumont, estendendo a mão a Jean. - É um homem notável, e muitas vezes tive a honra de sentar a seu lado nas comissões. Ora, mas eu o julgava tão
ríspido e doente, disseme seu pai no momento em que o senhor acabava o curso de filosofia há uns dois anos. Felizmente vejo que não é nada comentou, dirigindo-se
a Jean, o Sr. de Ribeaumont, enquanto a Sra. Marmet, alegre com esse conhecimento, com a conversa que se seguiria entre Jean e o marques, com o tom animado que o
sarau ia tomando, foi inflamar com sua beleza e seu espírito outros grupos que lhe pareciam ainda entorpecidos. Jean sorriu com gratidão ao Sr. de Ribeaumont, que
o levou para fumar um cigarro na saleta. - Que faz o senhor agora? - perguntou-lhe acendendo um cigarro. - Osenhor seu pai achava que levava muito a sério a filosofia
e que isso lhe dava nos nervos. - Ainda pouco habituado a uma polidez ignorada no meio

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burguês em que vivia, e onde todas as vezes que o apresentavam a alguém, recebia, segundo a idade, uma batidinha protetora na face (sessenta anos), um ameaçador
aceno de cabeça (quarenta), unja reverência intimidada (vinte), profunda e ternamente emocionado com a simpatia que o Sr. de Ribeaumont lhe testemunhava, e querendo
corresponder sinceramente com uma minúcia de pormenores que julgava dever interessá-lo, Jean contou-lhe que sua saúde, sempre delicada, se achava particularmente
abalada em conseqüência do cansaço das aulas de filosofia, e ele agora estudava direito, coisa que o aborrecia. E também que, sem força de vontade e muito preguiçoso
para estudar se um vivo interesse a isso o não incitasse, não fazia mais que freqüentar a sociedade e tornar-se idiota, mas também que estava melhor de saúde, fazia
exercício, ficava forte.
- É engraçado - disse o Sr. de Ribeaumont, que deixara de
ouvi-lo - que alguém possa gostar de filoso ' fia. Se a vida ainda
fosse mais longa ... A vida, porém, é curta demais para a prática
da filosofia. - Mas, senhor - retrucou Jean com vivacidade -,
pelo contrário. Oque diz é correto para todas as coisas, com ex
ceção da filosofia. A vida é muito curta para fazer história, para
freqüentar a sociedade. - OSr. de Ribeaumont fixou nele o olhar
azul e suave que seguira tantas vezes, com uma paciência distraí
da e cismarenta, os projetos e os conselhos do Sr. conde de Paris,
quando iam juntos compor a guarda de honra. - Osenhor é
jovem, Santeuil, e felicito-o por isso - disse, atirando fora o
cigarro -, direi tudo isso a seu pai quando o vir. Vamos, venha
fazer a corte às mulheres, é próprio da sua idade. Compete a vo
cês jovens nos substituírem a nós outros, velhos - continuou,
colocando o monóculo, gesto que na dignidade de suas maneiras
correspondia ao piscar de olho, antiga tradição de outra classe. -
Ah, mas ouvi falar do senhor por alguém que o ama muito e que
o senhor vai rever - disse pelo filho da Sra. duquesa de Ré
veillon. - Oque, ele vem! exclamou Jean, pálido de alegria.
-~_ Sim, encontrei-os primeiro em Viena, Réveillon me convidou
Para jantar com o filho, que é encantador, e que nos deixou, sain
do exclusivamente para lhe escrever. - Escreverno-nos todas as
-Umanas - disse Jean com doçura. OSr. de Ribeaumont e Jean
conversaram muito tempo sobre os Réveillon. Jean estava exta-

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siado pelas notícias, ávido por ter Outras. Fazia com que lhe contasse tudo de novo. - Se gosta da sociedade ficará satisfeito em saber que a duquesa de Réveillon
vai receber bastante neste inverno. - Mas essa notícia era sofrivelmente indiferente a Jean e lhe chegou até a dar receio, pois teve medo de não mais poder passar
suas noites sozinho com Henri, como fazia tão agradavelmente no colégio. - Ela dava festas tão bonitas - disse o Sr. de Ribeaumont erguendo a cabeça. - Do tipo desta?
- perguntou Jean. - Oh não - disse o marquês num tom afetado. Não são absolutamente as mesmas pessoas. - A Sra. de Marmet vai à casa dela? - Creio que não se conhecem
- respondeu o Sr. de Ribeaumont. Mas Jean compreendeu a hipocrisia dessa incerteza. OSr. de Ribeaumont queria dizer: elas talvez troquem cartas uma vez por ano,
e ainda assim isso me espantaria. Mas se me pergunta se elas se freqüentam, posso, sem sabê-lo, responder não com tanta segurança como se o senhor me dissesse: acha
que se eu saísse a passeio na floresta de Saint-Germain, encontraria laranjas penduradas nas árvores? Então Jean sentiu, à idéia de que freqüentaria um palácio do
qual a Sra. Marmet e todas as Sras. Marmet que o convidavam como décimo quarto só conheceriam o porteiro, um pouco daquela vaidade que tinha no colégio por jantar
em casa do reitor, e percebendo que sorria às palavras do Sr. de Ribeaumont, sentiu vergonha da boca que se abria desse jeito numa alegria vulgar, de áua palavra
satisfeita e de sua pessoa, brusca e desagradavelmente iluminada quando nela se iluminava de súbito um reflexo vivo do ingênuo amor-próprio do pai.
Que é que dizem dos Réveillon? - indagou a Sra. Marmet, que passava nesse instante perto deles. - Como quereis que o Sr. Santeuil saiba do que se trata,
Ribeaumont? - Não, é de seu filho, de quem sou amigo - disse Jean à Sra: Marmet. - Ah, é verdade, estiveram juntos na mesma turma, no colégio. Nunca viu a duquesa?
- perguntou, ou melhor, afirmou a Sra. Marmet. - Sim, senhora. - Muito bem, se voltar a vê-la, diga-lhe que tenho um culto, uma admiração por ela. Se eu fosse homem,
essa mulher me viraria a cabeça. E no entanto é uma santa. Um pouco além, a princesa de T. conversava com dois homens sentados em tamboretes dos dois lados de sua
poltrona. A baronesa Sheffler, esposa do grande financista, disse à Sra. Marmet:

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- Como é bonita a princesa! Acho-a muito simpática porque diZem que é muito inteligente, mas não a conheço apesar de termos as mesmas amigas. - Tradução: "Vamos,
apresente-me a ela." - oh, ela é deliciosa - respondeu a Sra. Marmet. Tradução: "Ah, achas que vou te apresentar para que a tomes para ti. Convidei-a para te mostrar
que ela vinha à minha casa e não para que vá à tua." E acrescentou: - Mas você não toma chá, não quer nada, minha querida? - Tradução: "Tu vês, não só a tenho para
mim, mas já nem me espanto com isso, cuido de ti e de todos. Pois sou uma senhora dama!" Depois se encaminhou para a baronesa Kuerf, esposa de outro grande financista,
e indicando a princesa de T. disse: - Como é encantadora! - Concordo plenamente - respondeu a Sra. Kuerf - foi na minha casa que a conheceu. - Tradução: "Em teu
salão sou membro fundador, creio que ias te esquecendo."

Jean ouviu anunciarem a Sra. e a Srta. Kossichef e reconheceu
Marie Kossichef numa bela mocinha que entrava. Mas, como ti
vesse de olhar, no escritório do Sr. Marmet, sua coleção de bor
boletas, deixou logo o salão. - Santeúil, Santeuil. - Era a
Sra. Marmet que vinha buscar reforços de rapazes para o flerte.
- Vamos, vem para junto das meninas. Vou apresentá-lo à Srta.
Kossichef. - Não me interessa - retrucou Jean, que sabia que
a casa dos Kossichef era bastante aborrecida. - Sim, sim - in
sistia a Sra. Marmet, que via a Sra. Kossichef ficar sozinha.
Jean consentiu facilmente e sentou-se por um momento ao lado
de Marie. - Creio que fomos apresentados antes, nos Champs
E~ - disse ela. - Sim - respondeu Jean -, sua irmã vai
bem? - chamava-se Sonia, não? - Sim - disse Marie sorrindo.
- Eram dez e meia e Jean queria ainda ir ao baile. Queria le
Tantar-se. Nesse momento chegou a Sra. Kossichef, a quem a fi
O apresentou. - Como, já se conheciam? Mas espero que ve
Ma visitar-nos. Recebemos todos os domingos - disse a Sra.
~chef, para quem a presença de Jean numa recepção da Sra.
Adumet era um passaporte suficiente e uma recomendação lison
1 Jffira. Jean agradeceu e saiu. Mas todos os domingos tinha sempre

503

AffiãÈ"_
algo mais agradável para fazer do que ir à casa dos Kossichef. E depois não ousou mais aparecer, por ter ficado tanto tempo sem visitá-los. Às vezes, passando diante
do palácio, lembrava-se dos dias de chuva em que ia até lá com a criada, em romaria. Mas lembrava-se deles sem a melancolia que julgava então dever experimentar
um dia no sentimento de não mais arná-la. Pois essa melancolia, aquilo que projetava desse modo antecipadamente sobre sua indiferença futura, era o seu amor. E esse
amor não existia mais. Era possível tocá-lo nos pontos outrora sensíveis sem que Jean sentisse coisa alguma, como uma pele morta que ainda temos mas que não voltará
a sentir carícias nem picadas, que já não faz parte de nós, que está morta. Às vezes também, passando diante do palácio Kossichef, dizia consigo: "De que serve desesperar
tanto por não obtermos o que desejamos, se no curso de suas perpétuas revoluções as coisas acabam por vir a nós? As situações mudam e aquilo que desejávamos acabamos
sempre obtendo. Sim, mas elas mudam menos rapidamente que o nosso coração e aquilo que desejávamos, se acabamos por obtê-lo, será sempre quando não o desejarmos
mais." Pensava também que se hoje estivesse apaixonado pela Srta. Kossichef, a permissão para vê-la em casa todos os domingos, mesmo todos os dias, já não lhe bastaria,
como antigamente não lhe bastava vê-la todos os dias nos Champs-Elysées. A presença daquela a quem se ama não pode acalmar o desejo, sendo ainda uma distância apreciável,
e aquela a quem se ama, concedendo ao pobre enamorado um dia a mais por semana, ou uma hora a mais por dia, não extingue melhor sua tristeza. do que uma criança
que, gota a gota, desejasse esvaziar Q mar.

Jean percebeu um velho senhor que, atirado numa poltrona, aljoiava contra o espaldar uma peruca cinzenta e cacheada, imóvel, mas mexendo os punhos e os artelhos.
Tendo-o conhecido em casa dos Réveillon, foi saudá-lo. Era um primo da duquesa, o visconde de Lomperolles. Sua mulher, a quem prodigalizava as deferências tocantes
de uma velha amizade, tendo casado aos vinte anos, estava sentada a seu lado. Estendeu graciosamente a mão
a Jean. OSr. de Lomperolles deu-lhe bom-dia com polidez, porém friamente, e não o apresentou à mulher. Jean não se surpreendeu, pois ouvira-o dizer em casa dos Réveillon
que não gostava dos rapazes, achava-os não só sem espírito e sem gosto, desprovidos de mérito e sem consideração para com o mérito alheio. Julgava-os não só sem
educação, sem cortesia, sem boa vontade, sem tato. Tinha-os por uma raça enganadora até a perfídia, insensível até a crueldade, malvada e imbecil até a loucura.
Âs vezes mostrava um pouco mais de indulgência para com os rapazes de antigamente, do tempo em que era jovem. Mas a juventude, dizia, piorara à medida que ele envelhecia,
e o que menos perdoava nos rapazes de hoje era o serem, como dizia a todo instante com desprezo, "verdadeiras mulheres". A respeito de Santeuil, dissera à duquesa:
- É talvez menos idiota que os outros, mas que fazer com um homem como esse, que não pode dormir, que chora por nada? Não é um homem, é "uma verdadeira mulher".
Jean admirava-se de que a peruca do Sr. de Lomperolles fosse mais curta do que no dia em que o vira. OSr. de Lomperolles o adivinhou: - Osenhor não me acha bonito
- disse-lhe num tom a um tempo afetado e rabugento. - Cortei os cabelos ontem. - Mais tarde, contaram a Jean que ele possuía quarenta perucas, umas ligeiramente
maiores que as outras. Ouando chegava à mais comprida, punha sem transição a mais curta para que acreditassem que cortara o cabelo. E a partir desse dia, para dar
a impressão de que os cabelos cresciam, punha cada dia, durante quarenta dias, uma peruca cada vez mais comprida. No momento em que Jean ia embora, a Sra. de Lomperolles
o olhou com tímida desconfiança. Nunca falava dos rapazes, mas não parecia
amá-los mais que o marido.

Jean voltou tarde. No dia seguinte, de manhã, a Sra. Santeuil, lisonjeada pelo elogio da casa tão brilhante onde seu filho havia jantado entre um acadêmico
e um embaixador, mas não querendo externá-lo e nem, acima de tudo, deixar que ele percebesse, disse a Jean: - Fico contente quando te vejo proceder assim num ambiente
de inteligência.
II. Odespertar em Paris

O quarto de Jean era ao lado do de seu pai. OSr. Santeuil se levantava por volta das sete. Freqüentemente a essa hora Jean, de ~olta do baile de manhã, dormia
há cerca de uma hora. Seu pai, ao se levantar, o acordava. Depois ele ouvia, como uma mosca irritante, o rumor do roupão da mãe, que se dirigia ao quarto do marido.
Punham-se a conversar e Jean, renunciando a dormir, nervoso, se levantava e saía. Âs vezes ficava lendo. E logo, como na subida de uma montanha, seu mal-estar diminuía.
Sentia-se respirar com mais fôlego, uma humanidade como que sepulta emergia em sua cabeça, ficava mexendo dentro dele; seus olhos brilhavam de alegria. Então a porta
se abria bruscamente e o pai perguntava com essa brutalidade camponesa que uma longa vida de honrarias não conseguira apagar: - Que é que estás fazendo? - e chamando
Augustin, mandava que lhe fizesse a barba no quarto. De outras vezes, era a mãe que, tendo aberto a porta, punha-se na ponta dos pés como no quarto de alguém que
dorme, fazendo estalar o soalho e, espicaçada pelo mau humor, fazia sinal ao marido, mostrando-lhe Jean a ler, febril, como uma criança que se diverte com um nada,
com a satisfação sempre um tanto desdenhosa que se tem pelas brincadeiras dessa idade.
A idéia de que o julgassem feliz, de que mostrassem quase sorrindo a emoção que sentia ao ler, excitava em Jean uma revolta como se o tivessem de repente
instigado contra os pais. Fingia achar tedioso o que acabava de ler, e como que para se vingar do pai e da mãe por toda a felicidade que gozava antes da -entrada
deles e à qual tivera de renunciar com receio de deixá-la transparecer, contradizia-os com violência, acusava-se falsamente de todas as ações que podiam desagradá-los
e, tendo jurado naquela mesma manhã não voltar daí em diante depois da meianoite, dizia-se decidido a passar dançando todas as noites vindou-

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ras. Nesses diasP, não podia decidir-se -a ir sentar à mesa com os pais, frente a frente com seus adversários. Chegava atrasado, sentava-se de cara fechada e, na
cadeira, mastigando em silêncio o seu ódio com a carne e o pão que a cólera torriwa amargos, não podia iludir seu imenso desejo de bater rio'pai, como este o fazia
com freqüência em sua escrivaninha, tocando uma marcha rápida contra a mesa, rachando-se contra a parede, as palavras pelo menos voavam como flechas. Mas se uma,
atingindo a mãe ou o pai, parecia magoá-los, e eles a sofressem em silêncio, com uma ligeira palidez na mãe e no pai com um ar abatido que às vezes ocupava todo
o rosto, então, como à vista do sangue na ferida, seu coração desfalecia às súbitas ondas da ternura comprimida que voltava a invadi-lo. Com a parede interna, frágil
e transparente de seus olhos, contendo as lágrimas a custo, e a boca não podendo mais guardar os beijos que a enchiam, ele se levantava da cadeira e os depunha nas
faces do pai, nas faces da mãe, como as próprias marcas de sua ternura.

507
III. A Escola de Ciências Políticas

"Se ele tem tendências literárias, que faça o seu curso de direito", dissera ao Sr. Santeuil, que lhe pedira orientações acerca do filho, um eminente professor
de direito. Mas o que haviam jPIgado tendências literárias era coisa bem dWersa, sem dúvida, pois o direito aborrecia Jean e ele foi reprovado no primeiro exame.
Devido à intercessão da mãe, depois de se zangar, o pai lhe perguntou com doçura: - Enfim, gostas de quê? - Movido por essa bondade, Jean saltou ao pescoço do pai
e, chorando, pediu para ir pensar no quarto. Não ousava mais dizer que gostava de letras pois lhe haviam citado grande número de magistrados e médicos que eram "espíritos
literários". E no entanto, quando tentara a medicina, e depois o direito, aborrecera-se mortalmente e suas "qualidades" não pareceram ajudá-lo de maneira nenhuma.
Disse: - A filosofia. - OSr. Santeuil, desta vez, convidou o reitor para jantar. Este declarou que a medicina e o direito eram bastante áridos para um espírito literário,
citou o exemplo de um escritor que fora reprovado num exame de direito. Oque lhe parecia melhor era a diplomacia. Sabendo que Jean gostava de filosofia, recomendou-o
a um professor da Escola de Ciências Políticas cujas aulas deveria freqüentar.
No dia seguinte, Jean se apresentou na casa dele. - Estou certo de que nossas aulas lhe interessarão - disse-lhe o professor - caso o senhor tenha espírito
filosófico. Entre outros, temos aqui um espírito eminentemente filosófico, o Sr. Ralph Savaie, da Academia de Ciências Morais. Não digo que ele não se perca muitas
vezes na fantasia. Mas fantasia, filosofia, não é tudo a mesma coisa? Hoje a filosofia se resolve inteiramente na fisiologia e na geografia. - E olhou Jean com o
canto do olho para ver o efeito dessa afirmativa destinada a lhe mostrar que não eram velhos idiotas na Escola de Ciências Políticas, e sim que sabiam a que se ater
em matéria de filosofia. - Leia, se quiser,

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antes de assistir às nossas aulas, a fim de se familiarizar com suas idéias, alguns dos livros de Savaie. Apesar de sua brilhante fachada metafisica, são mais sólidos
do que aparentam. -7- Apresentou a Jean dois ou três volumes. Os títulos eram a um tempo tão vagamente gerais e tão restritamente precisos que, sentia-se, o objeto
do estudo era igualmente impalpável e mesquinho: OSentimento do Infinito à beira do Lago Tchade, OImpulso para o Melhor na Península Balcânica.
- Um espírito talvez tão vasto é o Sr. de Ia Selle-Moutier. Disseram-me que o senhor era um tanto imaginativo, e até místico. Meu Deus, a imaginação prevalece.
Quando o senhor tiver a minha idade, vai se lembrar: verá que a par da poesia existe a prosa, e apesar de tudo, veja bem, sou um velho romântico impenitente. Pergunte
a minha mulher - pois espero que nos dará o prazer de vir jantar conosco: ela lhe dirá que quando viajamos posso ser visto ainda com um Dumas Pai na mão, e além
disso, veja só, gosto da juventude com seus excessos, suas loucuras, pouca. importa; nas quintas-feiras à tardinha, o senhor vai ver, só há jovens. Mas enfim, se
tem queda para o misticismo - na vida é um pouco necessário, mas não muito, como tudo aliás (Jean julgou-se no dever de sorrir) -, o senhor se interessará com certeza
por sua aula sobre as reivindicações religiosas dos jovens tchecos. Não preciso lhe falar das aulas de meu mestre Boisset, cuja glória ultrapassou os limites desta
escola. Todo rapaz que tem gosto pela literatura deve saber de cor sua História da Unidade Alemã. Além do mais, a linguagem é admirável, reli-o muitas vezes para
meu prazer. É belo como um livro de Montesquieu. Nunca leu Do Outro Lado dos Alpes? Mas que é que lê, então, em matéria de literatura? Isso também é, e da melhor.
Quanto a mim, julgo-o tão bom quanto o About.* - Jean balbuciou que lia Anatole France. - É um espírito amável, uma pena alerta e elegante - disse Boisard -, mas
não um 'engenho à altura de Boisset, de sua envergadura; apenas encantador, eis tudo. E depois, não é viril, permita-me a comparação, tem mais

* Edmond About (1828-1885), escritor francês de romances fantásticos, (N. do T.)

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v-

nervos do que músculos. - Jean guardou silêncio. - Agora, ao lado deste há outras aulas, menos brilhantes sem dúvida, e mais terra-a-terra. Mas também mais práticas.
Ora, o senhor só veio aqui para sonhar.
Jean estremeceu. No momento em que ia se despedir do Sr. Boisard, entrou o Sr. Ralph Savaie. Estava vermelho e disse: Desculpe, Boisard, se o incomodo mas
acabo de comprar uma gravura que representa o Verde Galante, não sei mais onde tenho a Gabeça, desculpe mas, você sabe, para mim é uma grande emoção estética. -
E se agitava. Boisard olhava Jean, rindo e como se lhe dissesse: "Vê o que acabei de lhe dizer? É um poeta esse aí." E voltava a olhar Ralph Savaie com a admiração
surpresa que lhe inspirava uma natureza tão diversa da sua, e a piedade zombeteira que se mescla sempre à simpatia, e até à admiração de um homem frio por um entusiasta.
OSr. Ralph Savaie se desculpou por não ter visto Jean. Sempre afogueado, sempre exaltado, sempre entusiasmado, era sabido que ele não reconhecia ninguém, nunca chegava
na hora, estava sempre com a gravata em desordem. Boisard ajeitou-a sorrindo, sacudindo a cabeça e dizendo: - Não conhecerei nunca outro como você. - Obrigado, meu
amigo, obrigado, meu amigo - Savaie repetia com exagero, como no teatro. Depois começou a falar com ardor, sem parar, e como que sem ver os sorrisos que seu entusiasmo
provocava nos admiradores que o convidavam freqüentemente para jantar, para mostrá-lo àqueles que ainda o não conheciam: - Vamos puxar por uma de suas opiniões e
quando ele começar, vocês vão ver, é extraordinário. - E, com efeito, ele seguia em Üente. Olhavam-no como a um homem de talento que deslumbra,- como a um histérico
que desperta interesse, voltavam para casa enfeitiçados, sem saber se vinham da Sorbonne ou.da Salpêtrière. Nesse instante, começava a discorrer bruscamente sobre
uma ópera que vira na véspera à noite: - É verdade, é verdade, só digo isto: existe uma orquestração comandada com mão de obreiro com uma certa flauta, só digo isso.
- "Uína orquestração comandada por mão de obreiro", dizia Boisard consigo, 46só ele é que pode encontrar palavras assim."
Saiu como entrara, sem dizer adeus, continuando a falar, e Boisard disse a Jean: - Muito bem, que me diz disso? - Jean,

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com intenção de ser cortês e com um sorriso inteligente, respondeu: - Olí, é espantoso. - E isso que ouviu não é nada disse Boisard; - ele tem sempre novidades a
contar. E note que sob a fantasia fascinante, e até paradoxal, da forma, a idéia é sempre adequada. Essa orquestração, comandada por mão de obreiro, a imagem é um
pouco ousada, suponho, isso não se há de escrever, nem o senhor nem eu nos arriscaríamos sequer a dizê-lo nem, sejamos francos, teríamos achado essa expressão, mas
veja bem como isso caracteriza às maravilhas a arte de alguns de nossos compositores modernos cujas obras-primas, com efeito, se assemelham às obras-primas que o
modelo antigo estava encarregado de fornecer. - Jean mostrou, com um gesto de conhecedor, que não era insensível àquele ponto. - Sim, pode-se ter tanta imaginação
quanto se queira - disse Boisard -, mas a exatidão do julgamento, veja bem, está toda aí - acrescentou mirando Jean com desconfiança e como se farejasse então, através
do aroma da cortesia, que Jean não era dos seus. Depois disse: - Senhor, gostaria de lhe dizer que estou em casa às quintasfeiras à tarde. Espero que seja um de
nossos fiéis: previno-õ de que só há jovens. E, ora bolas, deixo-os livres para fazerem todas as besteiras que quiserem. Eles sabem qual é o seu trabalho, não se
fazem de rogados. Toda quinta-feira é uma nova frivolidade que faz rir a todos; chamo a isso minha pequena turma. Osenhor verá, embora eu seja velho, que eles não
se acanham na minha presença. Consideram-me um deles. E não têm o menor respeito pela minha cabeça branca. Ah, diabos, há arrebatamentos, trocam-se murros por um
quadro, por uma ópera adorada e que outro detesta.

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IV. Os Guéraud-Houppin

À época do nascimento de Jean, o Sr. Santeuil tinha uma irmã mais nova casada com um financista de nome Guéraud. Esse Guéraud, pouco depois da morte da mulher,
ganhou fortuna imensa na exploração das estradas de ferro turcas, o que lhe permitiu casar-se novamente com a Srta. Houppin, filha de Hector Houppin, um dos irmãos
Houppin da alta finança parisiense, quase entre os maiores banqueiros, moça que em virtude de claudicar pronunciadamente ainda não obtivera marido. Desde então,
mal via os Santeuil duas vezes ao ano, embora continuasse a tratar o Sr. Santeuil por tu, assim como usamos sempre um relógio, presente de uma pessoa com quem não
mantemos mais relações, e cujo nome nossos filhos ouvem talvez pela primeira vez quando perguntam quem no-lo deu. Os Santeuil logo souberam pelos jornais que a
Srta.
Guéraud-Houppin freqüentava
as rodas mais elegantes. A bem dizer, quando a Sra. Marmet dava
uma reunião dançante, apesar de não ter filhas para fazer dançar, a Srta. GuéraudHouppin
não era dessas que o colunista notasse "por sua elegância e animação", embora na realidade ela tivesse nessa noite, como em todas as outras, cativado os olhares
e a simpatia não só dos rapazes mas das moças e até das mães que lhe'perdoavam o eclipse das próprias filhas e não a acusavam de ter más intenções nem diziam: "Não
é difícil ter sucesso com tais maneiras." Mas a Sra. Marmet preferia, na lista que enviava aos jornais , restringir-se às Srtas. de Fontanges, de Fontanet, de Lã
Cour des Hardes, de Pistours, de Vollancelles, de Revailles. Mas aos poucos, como o nome do Sr. Hanotaux conserva sua dignidade, sobressaindo até bem favoravelmente
numa lista de diplomatas fidalgos, em casa de todas as damas de Thianges, de Toumefort, de Beyrinte, que não tinham, como a Sra. Marmet, por que temer em sua lista
o sabor picante de um nome burguês, e que assim faziam uma gentileza a essa jovem tão simpática, o nome
di Srta. Guéraud-Houppin foi enviado aos jornais junto com os que acabamos de mencionar. E quando um jornalista precigava. noticiar um baile na alta sociedade sobre
o qual não tinha qualquer informação, depois de ter louvado a beleza da mansão, o luxo das flores, o estro da orquestra de Waldteuffel, a animação dos jantares em
cada mesinha, a hora avançada em que se despediam, não sem antes prometer à sempre graciosa dona da coa dar prontamente seguimento a essa festa inesquecível (pois
não existe arte, por humilde que seja, que não possua seus "lugares-comuns" e suas "generalidades"), o jornalista acrescentava que reconhecera as Srtas. de Vollancelles,
de Revailles, de pistours, Guéraud-Huppin, de Fontanet, de Lã Cour des Hardes, deixando para confessar no dia seguinte que uma dessas pessoas fora nomeada por engano,
pois se achava de luto, longe de Paris, ou às portas da morte.
Mas apesar das abas de seu chapéu em tule cor-de-rosa, de sua graça ao dançar a pavana, dos cumprimentos dirigidos às damas idosas cheios de uma timidez
bem artificial para se comportar e permanecer encantadora, a Srta. Guéraud-Houppin não gostava da sociedade. E o mundo dos estudos, dos artistas, dos museus e dos
cursos apresentava, para sua imaginação que nunca o experimentara, o mesmo atrativo que pode ter para o estudante que jamais se afastou de seus livros o mundo cintilante
de velas, flores, jóias, dançarinos de fraque e condessas de ombros nus. Com uma amiga de infância, a Srta. Guersnet, que era feia, pobre e áspera, ela ia todas
as manhãs ao Louvre e estudava metodicamente cada escola de pintura. Lera num jornal que Jun Santeuil estava entre os convivas num jantar em casa de ~onse Daudet,
e lamentava que os pais não houvessem mantido relações com o jovem primo que conhecia artistas e homens de letras. Por seu turno, a Sra. Santeuil, quando Jean começou
& k~ntar a sociedade, passou a desejar em silêncio que cheUM o dia em que o Sr. e a Sra. Guéraud-Houppin encontrassem h= e vissem o filho do cunhado desdenhado numa
posição social brilhante que a deles. Certa noite em que o Sr., a Sra. e a Guéraud-Houppin jantavam em casa da baronesa de Vieuxbátour, o barão perguntou se sabiam
quem era um jovem Santeuil
e teve a imprudência de não acrescentar que o vira em casa dos Réveillon. A este nome de Santeuil, o Sr. e a Sra. GuéraudHouppin se mantiveram em silêncio. A Srta.
Guéraud-Houppin quis gritar: "Mas é o meu primo germano. Justamente ontem, estive com papai de visita à minha tia Santeuil." Mas teve medo de desagradar ao pai.
- E você, Guéraud, sabe quem é? perguntou o barão. - Canteuil? - indagou o Sr. GuéraudHouppin, que parecia não poder guardar ao primeiro golpe um nome tão novo para
ele. - Não, Santeuil - disse o barão -, com um s, como Saint-Croix. - Ali, Santeuil - retrucou o~ Sr. Guéraud-Houppin. - Parece-me que já ouvi esse nome. Devo conhecê'lo.
Mas não sei bem de quem se trata. - Por que nos pergunta isso, Antisthène? - indagou a baronesa. - Porque a duquesa de Réveillon me pediu licença para trazê-lo esta
noite. - OSr. e a Sra. Guéraud-Houppin tiveram um desejo violento de voltar imediatamente para casa. E a Srta. Guéraud-Houppin olhava os pais com indignação e esse
sentimento misterioso que sentimos toda vez que uma particularidade desconhecida da vida ou da alma que julgávamos conhecer nos é revelada de súbito.
Mas o Sr. e a Sra. Guéraud-Houppin não tiveram tempo de resolver pela fuga a difícil situação em que se haviam metido. De fato, estando a porta aberta, a
duquesa de Réveillon entrou com Jean, e este, percebendo o tio, ia logo saudá-lo. Sentindo-se visto, o Sr. Guéraud-Houppin voltou-se com vivacidade para o barão
de Berlinges e lhe disse: - Ah, gostaria muito de conhecer sua opinião sobre a última peça. - De onde? - perguntou surpreso o barão, já que nunca ia ao teatro. -
Ali, a última peça sim, quero dizer, insisto muito nisso, já lhe direi por que - retrucou o Sr. Guéraud-Houppin, que não sabia mais o que dizia. Pois era-lhe impossível
fazer duas coisas.ao mesmo tempo. E enquanto sua mente não cessava de se repetir: "Que atitude tomar? Como fazer? Devo fingir que não o conheço?", sua língua era
incapaz de dar seguimento ao discurso que só indiretamente exprimia os pensamentos que o agitavam nesse instante. Mas nossos interlocutores prestam ao que dizemos
uma atenção tão distraída ou indiferente, que nos acham distraídos quando estamos prestando toda a atenção, e as expressões fisionÔmicas,

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as gafes, os equívoco~ que julgamos mais evidentes passam quase sempre despercebidos. E o barão lhe disse com ternura: - Seja como for, estou bastante satisfeito
de que queira. . . Mas a palavra ainda não fora pronunciada quando o Sr. Guéraudjjouppin, sem respeito à cortesia, dirigiu ao barão, virando o rosto contra o dele,
e sem tomar fôlego, um discurso interminável e inteiramente fora de juízo, num tom veemente. É que, inclinado à sua frente, Jean vinha dar-lhe bom-dia. E desse modo,
fingindo estar absorvido pelos mais graves interesses, o Sr. GuéraudIjouppin pôde estender a mão a Jean sem parecer vê-lo e sem ser obrigado a lhe dirigir a palavra.
Jean dissera: - Bom-dia, meu tio. - Mas como esse apelativo parecia absurdo ao espírito do barão, este o rejeitou logo, seja por julgar ter ouvido mal, seja por
situá-lo como esses fatos em excessivo desacordo com a realidade para poderem ser admitidos e que são rejeitados de inWiato como alucinação ou estranheza que é melhor
não levar em conta. No que diz respeito ao nosso conhecimento, tais coisas são e não são ditas. São como certas frases que uma personagem pronuncia numa peça. A
outra as ouve, visto que faz um gesto. Mas a primeira se recupera ou, escondida por detrás de um móvel, faz crer que não se acha lá. E a outra personagem recomeça
a falar sem que a fala insólita que ouviu pareça absolutamente ficar em seu espírito como um motivo de inquietação, curiosidade ou dúvida.
Talvez espantasse ainda mais ver o barão, a quem o Sr. Guéraud-Houppin, querendo dar a impressão de só ter dado bomdia ao sobrinho sob o domínio de uma preocupação
que lhe explicasse de que maneira, conhecendo-o bem, pudera dar-lhe um bom-dia com tamanha frieza, e aos outros como lhe pudera dar bom-dia não o conhecendo, manteve
com vivacidade um discurso incoerente e muito longo, acenar simplesmente com a cabeça sem pedir qualquer explicação e sem parecer nada surpreso. - "Osenhor pretende
pintar-nos a vida, me dirão, e é cada vez mais a uma peça que nos faz assistir. Como, o barão não se surpreende com essas palavras incoerentes? Mas então é uma Personagem
grotesca e destituída de verossimilhança." Caro leitor, nunca lhe aconteceu então não compreender o que lhe diz um senhor que está a seu lado na mesa? Então dirá
consigo: Isto

515
PPI--

deve esconder algum acontecimento que se passa a meu lado neste instante. Pelo contrário, estou certo de que, se o senhor é gentil, deve ter assinalado o final da
frase com uma concordância simpática e interessada. Obarão de Berfinges - que lamento não poder fazer com que,o conheçam mais, pois não aparecerá novamente no curso
desta história pela boa razão de que, apesar de nessa noite sua fisionomia rosada, suas boas pernas curtas e seu ventre rotundo não traírem uma tão trágica iminência,
morreu ppuco tempo depois desse jantar, de sorte que os-diversos convivas puderam dizer quando se falava de sua morte: "Dizer que há menos de oito dias eu jantava
ainda com ele. Estava alegre como sempre. Jogou sua partida como de costume. . ." "Não sou de sua opinião", interrompeu uma velha senhora; "há já algum tempo notava-lhe
o aspecto bem cansado. Era raro que não dormisse após o jantar." -, o barão de Berlinges, digo, considerava a conversação como certos jogadores inexperientes ou
incapazes de reflexão consideram as damas, como um jogo em que o lance do adversário é ocasião de colocar seu peão, mas sem dedicar ao próprio lance do adversário
os cálculos que desvelem seu pensamento íntimo, seu desígnio. Assim, desde que a frase de um velho tagarela ou de um jovem confuso se tornava um pouco mais comprida
e não lhe parecia fornecer a matéria de uma resposta fácil, ele cessava de se interessar por ela e mirava a fumaça do cigarro ou a ponta dos sapatos. Acrescente-se
a isso o fato de que, não sendo igualmente instruído sobre todos os assuntos, por exemplo, sobre a música, sobre o espírito etc., faziam com freqüência diante dele
alusão a certa particularidade da vida de Mozart, ou um gracejo cujo alcance' ele não compreendia. Mas achando inútil dá-lo a perceber, ele nunca pedia explicações.
De modo que, se algum fumante, ao ouvi-lo afirmar que só fumava cigarros feitos a mão, lhe perguntasse: É como uma recordação de Tristão e Isolda? - não sendo bastante
arguto para decidir arbitrariamente entre uma resposta afirmativa e uma negativa, contentava-se em sorrir, mostrando dessa maneira que nada perdera do gracejo. É
necessário dizer que, com humildade risonha, acreditava facilmente que tudo aquilo que não compreendia fosse um gracejo, de modo que, se alguém lhe explicasse um
caso grave de maneira que lhe fosse
ininteligível, achava logo tratar-se de uma pilhéria e, demasiado ~ para dar a entender que a não apreciava, respondia com IM sorriso que exasperava o interlocutor,
nisso imitando esses es~eiros que, ao ouvirem uma peça de Molière ou de Musset, ~ o tempo todo com um sorriso na boca, de medo 'que um de~ inumeráveis chistes que
fervilham sem dúvida no diálogo pudesse dar a impressão de lhes haver escapado. Mas semelhantes equívocos não ocorriam ainda com muita freqüência ao barão de Berlinges,
pois, à maneira dos surdos para quem as palavras pronunciadas se perdem mas que seguem a conversação com os olhos fixos na boca do interlocutor, o barão de Berlinges,
logo que começavam a falar de um modo geral, isto é, desde que ele deixava de escutar, não mais perdia de vista a pessoa que falava, de modo a ver a expressão grave
ou risonha dos olhos que o advertia se as palavras cujo sentido lhe escapava deviam ser tomadas a sério ou como uma graçola. Daí talvez proviesse o seu ódio aos
sonsos, pessoas a quem considerava, de alguma forma, como traidoras do jogo da conversação, fazendo sempre algo que estava fora das regras.
Depois dessas explicações talvez o leitor não se espante mais de ver o barão de Berlinges ouvir sem franzir o cenho a narrativa incoerente do Sr. Guéraud-Houppin,
soprando para o teto a fumaça de seu cigarro. Desta vez, diante do aspecto perturbado do Sr. Guéraud, não se tratava certamente de um gracejo, e, quando a frase
terminou, ele o olhou com ar tranqüilo, sem responder, com esse aspecto que tinha quando lhe expunham um caso de honra e do qual não fora ainda posto ao corrente.
Depois, vendo que o Sr. Guéraud-Houppin não voltava em seguida a falar, dirigiu-se ao cinzeiro onde deixou cair a cinza do cigarro para lhe dar mais tempo, Vagamente
supunha que Guéraud-Houppin devia ter dinheiro, ou talvez estivesse de olho numa atriz do teatro, e sobre cujo sucesso parecia querer interrogá-lo. Mas esperava
tranqüilamente que essa hipótese viesse a se esclarecer, e preferia Dão pensar nela. Vendo que Guéraud-Houppin decididamente não lhe dizia mais coisa alguma, propôs-se
a ir conversar um pouco com a duquesa de Réveillon. Mas, acima de tudo, temia que Guéraud-Houppin acreditasse que, nessa circunstância provavelmente difícil, ele
se esquivasse sem lhe dar sua opinião. Assim: - Ve-
IPP--
jamos, vou cumprimentar a duquesa de Réveillon -, disse-lhe como que prevenindo-o. E acrescentou, para provar suas boas intenções: - Venha almoçar comigo um dia
destes no Grêmio. Depois afastou-se e fez de longe à duquesa acenos que se destinavam a pintar com ênfase brincalhona sua admiração por seu vestido novo.

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V. Osalão da senhora de Réveillon

Quando Jean vinha jantar no recesso da casa dos Réveillon, era bem raro que não encontrasse a marquesa de Tournefort, o conde de Thianges e Bonami, o velho
amigo do duque, o vice-presidente do grêmio, Jacques Bonami, aquele a quem chamavam Talondebois.* Perdera o pé esquerdo na caça. E o duqw de Réveillon afirmava tê-lo
conhecido antes que ele usasse o elegante pé de madeira que explicava seu apelido, e, podemos acrescentar, sua fama. Dera-lhe, em primeiro lugar, uma identidade
mundana, elemento inicial indispensável para a formação de uma "personalidade". A um Bonarni provido dos dois pés, longos anos teriam sido gastos, durante os quais
a pessoa prestes a inscrever seu nome na lista das pessoas da sociedade teria sido inutilmente informada: "Jantei com um Sr. Bonami; quem é? - Ah, sim, não será
Georges Bonami? - Ah, não sei se se chama Georges; um louro. - Talvez, não sei se é este." E o nome pronto para ser acolhido pela memória aberta seria, como os destroços
escórregadios que nenhum gancho pode sustentar, enviado pelo refluxo da dúvida para o mar do desconhecido, sujeito a redemoinhos sem conta. Bonami não teve de passar
por esse estágio. Se chegavam a hesitar um momento: "Jacques Bonami. - Não sei se se chama Jacques. - Enfim, Talondebois, um sujeito que tem um pé de madeira? -
Sim, ah, é isso. - Sim, é.Jacques Bonami, um grande amigo dos Réveillon etc."
Mas isso não é tudo. Sendo Bonami um belo homem, tendo, acima de tudo, aquilo que se denomina distinção e na qual um "Passo arrastado (causado aqui pelo
pé de madeira) pode entrar COMO um elemento importante -, seu leve claudicar, seu galante pé de madeira não afastaram a simpatia das mulheres, e, não a
Lit
,çralmente "calcanhar de madeira". (N. do T.)

519

tendo afastado, retiveram-na à semelhança de um leve estrabismo, de um monóculo bem posto, que apresentam algo de particular que a beleza de um olho claro e de um
olhar franco não contêm. Ter uma fisionomia diferente, não ser como todo mundo, confere um prestígio incontestável, e o amor vive de prestígios. Ter um pé de madeira
sob uma calça irreprochável, numa botina envernizada, e não trair sua presença a não ser por um andar cuja irregularidade mais parece elegância e a preguiça de um
refinamento, é ser mais do que distinto, é ter um vício quase, um vício que dá a impressão de prometer à mulher feliz, que iria até o âmago desse homem, carícias
cuja lentidão brutal e recursos artificiais pessoa alguma nunca imaginaria. Por isso, era preciso ver na sociedade, quando, falando de Bonami, uma mulher dizia:
Não posso entender como uma mulher ame um homem que tem um pé de pau -, o desprezo que tal modo de ver inspirava às jovens elegantes que achavam que ninguém possuía
"tanta distinção como ele", e que não o julgariam tão atraente se tivesse os dois pés, assim como todo amador apaixonado pelo talento de Sarah Bernhardt sentiria
diminuir sua paixão no dia em que, mesmo que continuasse grande artista, Sarah Bernhardt já não falasse mais com os dentes cerrados, sempre rindo, bem depressa,
sem que se entenda bem o que diz. As mulheres de opinião contrária continuavam a achar algo de antinatural em amar um homem com pé de madeira. Assim, ouve-se um
cavaleiro troçar de um amigo que vendeu a carruagem e o cavalo para comprar um automóvel, que não é tão rápido, é menos cÔmodo e mais feio.
Bonami fora casado por alguns anos e, depois do primeiro ano de casada, a Sra. Bonami, uma sobrinha do duque de Réveillon que por ele se apaixonara, pareceu
não mais suportar, como todas as moças que o viam chegar bamboleando às corridas de cavalos, o charme estudado de seus passos. Pois as coisas perdem, pouco a pouco,
para nós, o singular atrativo que possuíam, e afinal de contas não há homem que continue sendo chique diante de sua mulher que vê seus abscessos, seu medo de chegar
atrasado e a tintura com que pela manhã rejuvenesce os cabelos embranquecidos. Com a morte da mulher, Bonami passou a fazer todas as refeições no grêmio ou na casa
de alguns amigos íntimos como os Réveillon. Desde a primeira noite foi apresentado a Jean. Em

520

qualquer outra circunstância, teria censurado vivamente o duque de Réveillon por admitir em sua intimidade um plebeu como ele próprio, Bonami. Gostamos muito que
um ministro nos condecore, niesmo se não temos título algum para tal; mas, depois disso, se ele condecora outras pessoas que não têm título algum, desejaríamos interrompê-lo
e impedi-lo de diminuir loucamente, por me ato, o valor daquilo que nos concedeu. Bonami era assim ninito cioso dessa máxima que lhe fazia ver, constantemente, que
há pessoas que os homens de uma certa classe podem conhecer, nias outras que é preciso saber evitar freqüentar, e que esse é um dos deveres de sua classe. Dizia
com freqüência ao duque de Breuvas, muito inclinado a convidar geógrafos, pois gostava de viagens: - Por que se interessa em ver o Sr. Fulano? Não há motivo para
isso. Não é ninguém para o senhor. Quem iria recebê-lo em sua comitiva? - Mas Bonami não viu nenhum inconveniente em que o duque de Réveillon, cuja simplicidade
admirava, tanto mais que nunca fora divulgada - pelo menos na escolha de suas amizades -, e sua esposa escolhessem um companheiro estudioso e obscuro para o filho.
Aceitou essa derrogação inteligente e excepeional com um sorriso, mostrando-se contente com ela, quase consigo mesmo, como se no fato de que o duque não impusesse
ao filho um amigo titulado houvesse de sua parte para com ele, Bonami, velho amigo da família e da estirpe do duque, uma espécie de condescendência. Além do mais,
Bonami nem sempre era benevolente ao falar dos Réveillon e assegurava sua independência e dignidade aos olhos do mundõ, pois poderiam julgá-las comprometidas por
sua bem conhecida servidão a essa família, não lhes poupando críticas. Já vejo o leitor generoso e indiscreto - achando o duque de Réveillon bem mais úmpático do
que Bonami e se espantando de que o possa ter tido como amigo - que se indigna agora com a falsidade de Bonami e tem vontade de ir contar tudo ao duque e abrir os
olhos dessa ~a tão crédula a respeito daquele que assim abusa de sua generosidade. Talvez o leitor mal-educado que se dedicasse a essa Operação por amor à justiça,
obtendo tão pouco sucesso quanto ura filantropo que quer proteger uma mulher contra o marido que a iUrra ou uma região contra um deputado que a explora, ficasse
bem espantado ao ver que o duque sabia, se não exatamente tudo

521
quando lhe contasse, pelo menos coisas semelhantes, e que se lhe viesse acontecer um acesso de mau humor seria antes contra o delator indiscreto em vez de Bonami?
Reporterno-nos, pois, à obstinação dos Réveillon em estimar Bonami apesar de tudo, e suponhamos que ele deva ter qualidades que, por estarem bem na ordem do dia,
puxando aristocraticamente da perna, revestindo-se com o aspecto irritante do esnobismo, da malquerença e da baixeza, são entretanto raras qualidades humanas que,
sob tantas aparências desagradáveis, os senhores não puderam perceber, mas cuja essência preciosa o duque conhecia bem por tê-la encontrado, em tal ou qual circunstância
que desconhecemos, em toda a sua pureza.

O duque de Réveillon falava pouco em sociedade. E mesmo falando repetia de preferência uma dessas banalidades, um desses lugares-comuns, como um uso a que
nos conformamos, e que não podia passar como a expressão individual de seu pensamento particular. Talvez, por se encontrar na sociedade, cada vez mais, com pessoas
com quem achava não poder relacionar-se intimamente, buscasse mostrar que só cumpria uma simples formalidade e não queria fazer crer que deixava essas pessoas desconhecidas
penetrarem, não em sua casa, é claro - quem captaria seu pensamento? -, mas em sua opinião, em um de seus gostos, em nada que lhe dissesse respeito. Se tinham a
imprudência de lhe perguntar: gosta desta música? não só ficava desconfiado como assumia o ar frio que temos para com uma pessoa que toma liberdades, que deseja
a todo custo penetrar em nossa intimidade. Se indagassem: - Como vai? - e isto fosse uma simples fórmula, ele respondia: - Osenhor é muito amável, sou-lhe grato.
- Mas se se mostrasse cansado, e o senhor lhe perguntasse com interesse: - Como vai, Sr. duque? - e ele não quisesse todavia ser desatencioso, respondia com vivacidade
a fim de encerrar o assunto e fazê-lo renunciar de vez a esse projeto fatal de personalidade: Bela reunião; estou encantado em vê-lo.
Nesse sentido tudo o inquietava, e como sua bonomia se apavorava à idéia de ter de proceder com crueldade, chegava às vezes

bescer como uma mulher honesta a uma palavra mais forte
uni homem que a o -dia.
briga assim a não mais lhé dar bom ess
e primeiro motivo, ele evitava então pronunciar uma pa
que, espirituosa, imaginativa, sensível ou simplesmente pes
pudesse dar a impressão de revelar algo seu, as transações
do vida mundana nos tendo posto no seu caminho, como um
or a quem pagamos na mesma moeda mas com o qual
trocamos presentes. A outra razão, sem dúvida, era que, à
Íra dos chefes de Estado em suas alocuções, ele imaginava
1 pe sua menor palavra era esperada, ouvida e comentada. Mas
amente porque nenhuma de suas palavras era pronunciada
ão deliberadamente, ganhavam logo toda a força de um ver
dadeiro ato, e criavam situações novas. Se o imperador da Rús
gia, dirigindo-se à França, serve-se do adjetivo "aliado" ao invés
~dio adjetivo "amigo", no dia seguinte a França, pelos milhões de
w= indistintas das conversas e pelas vozes nítidas a vários mi
lhares de léguas dos grandes jornais diz: - Na próxima guerra
a Rússia mandará cinco milhões de homens em socorro da França.
---Basta uma palavra dita a outro homem pelo duque de Réveillon,
e na mesma noite aquele diante de quem o duque se dignara
deixá-la cair se alegrava pensando que seria convidado ao baile
de Réveillon com a mulher e a filha. Por isso cada peça orató
tia da eloqüência mais terra-a-terra - de onde seria erro con
'êkúr que fosse do tipo mais familiar - que se denomina co'n
wrsação mundana, era notável se partisse do duque de Réveillon,
se não pelo conteúdo das idéias ou até pelas próprias frases ou
Pela forma que não lhe pertencia, ao menos pela forma como,
,"d um músico hábil que emprega aqui uma nota e adiante uma
ÁUtra, ele sabia matizá-la de nuanças infinitas. E a compilação
*las.que um dia será devida talvez menos à memória irritada
~eles para quem foram pronunciadas do que à malignidade
dos que a elas assistiram faria talvez mudar de opinião as pessoas
"inteligentes" que o julgavam um imbecil. Ninguém o su
,,S,ava na última versão com que se enfeitava um tema consa
JJXCIO, destruindo todas as esperanças que o começo do trecho
feito nascer. Com ele estavam como na música, em que se tem
'esperar o acorde para saber em que tom se está. Muitas vezes,
*a banqueiro que ele encontrava constantemente em Paris e com
w,-

o qual não tinha relações, e que na estação de águas jogara com ele todas as noites, rejubilara-se ao ouvi-lo dizer, no dia da partida: "Fiquei encantado em encontrá-lo,
graças ao senhor tive uma temporada agradabilíssima. Espero ter o prazer. . ." - "de vê-lo em Paris em minha casa", terminava mentalmente o feliz banqueiro que se
achava certo de sua façanha. Mas esse texto número um era substituído por esse texto número quatro que ele escutava aterrado como se fosse uma condenação inapelável
"de voltar a encontrá-lo aqui no ano que vem". Oque significava que, quanto a Paris, nada feito. Dissemos fórmula número quatro porque havia uma fórmula número dois
que comportava igualmente, com o mesmo início: "em Paris", o que valia mais que "na estação de águas" porém menos do que "em minha casa", e uma fórmula número três
"Espero voltar a vê-lo", sem deixar nada especificado nem nada irrevogável. como "nos reencontrarmos aqui" e abrindo caminho aos estados opostos de alma, uma doce
esperança entre os otimistas e, entre os pessimistas, uma inquietação que o acontecimento, é bom que se diga, vinha frOqüentemente justificar. Quanto aos ingênuos,
os que o eram em demasia, não tinham a audácia de responder: "Com toda a certeza irei vê-lo", pois a fisionomia do duque de Réveillon era eloqüente, sendo possível
de qualquer modo ler nela o que teria respondido em diversos casos. No caso presente, ouvia-se de antemão o glacial: "É muito amável", seguido da brusca supressão
do aperto de mão que dissuadiria para sempre o infeliz de dar seguimento a um projeto tão insensato.
As últimas palavras eram, assim, aguardadas com a mais legítima impaciência como as que poderiam alterar todo o sentido das que já tinham sido pronunciadas.
Assim, nessas mesmas cidades balneárias onde havia palavras de adeus que faziam nascer tantas esperanças e causavam muitas vezes tantas decepções, exist ia o discurso
de boas-vindas quando o encontravam pela primeira vez e - é claro - quando ele os encontrava depois de muito tempo em Paris sem manter relações. Era freqüentemente
amável por vários minutos seguidos. Então pensava-se: "Com certeza, já que ele se aborrece, vai me dizer para ir vê-lo. Para o palácio, isso me convém." -Enfim,
chegava o final do discurso. "Muito bem, até logo, espero que não terminemos aqui (sorriso de agra-

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decimento bem próximo. "Mas a que horas o senhor está em em casa?") e que eu ainda tenha o prazer (ainda! que significa isto?) de encontrá-lo." Quer dizer: "Não
se atreva a vir à minha casa." Visto que era muito amável nesse caso, cada vez que o encontravam diziam: "Aos olhos dos criados do palácio, está tudo bem. Acham
que não vou vê-lo porque isso me enfada (que ilusão!)". Mas o olhar do polido e impassível Francis causava alguma inquietação. Odiabo do homem, seja porque o patrão
lhe diz que isso não é nada, isto aqui vale alguma coisa (não tão cruamente,. mas com um determinado tom, talvez com o mesmo procedimento assinalado acima), seja
porque adivinhe tudo isso a partir de tantos indícios, deve saber que me encontra aqui mas não me recebe. E um criado, mesmo 'sendo de um duque, é exatamente igual
aos outros. Despreza os patrões deles, mas não a eles. E então, desde o primeiro dia, eles devem lhe ter dito: "Olha, ele conhece o seu patrão" e então: "Oh, ele
conhece... Ele não vem A nossa casa, mesmó aqui." Enfim, essa suspensão pode transformar-se num convite para vir vê-lo. As pessoas contam com a partida dos amigos,
os dias de chuva. Gostariam de forçá-lo a capitular pelo isolamento, pela fome. Iam ao ponto de insinuar que não estariam em Paris no inverno seguinte. E no inverno
~te ele muitas vezes se mostrava mais amável quando tornasse a encontrá-los, conversava muito com eles nos saraus. No fim de uma conversa em que tinham conseguido
interessá-lo, e à qual parecera entregar-se, diziam, pensando na visita ao palácio Revéillon: "Será desta vez?" E com um tom afetuoso que não lhe era habitual, o
duque lhes dizia "Adeus, tive muito prazer em conversar com os senhores, ficarei encantado em tornar a vê-los ...

Quando Jean vinha ver Henri antes do jantar, velhos landaus bnwnados com oito molas, cupês bem novos com armas miMÚSculas como num papel de carta da moda,
e uma carruagem 4& Companhia, estacionando uns diante dos outros, alongavam30 à frente das mansões vizinhas como se elas esperassem visitutcs. Sobre uma parte da
boléia dos landaus erguia-se o cochei-

525
1PP--

ro. A outra, momentaneamente privada do criad ' o de libré, permanecia vazia como. um pedestal à espera de estátua. Ointerior dos cupês, provido de um pêndulo, lápis,
balões de borracha, era estreito e complicado como um aparelho, estofado, artificial e suave como uma caixa de boneca. Da janela do quarto de Henri, Jean via por
um momento um criado de libré aparecer à porta,. uma carruagem deixar a fila, aproximar-se um pouco, e, passando por entre as cabeças dos cavalos, uma dama subir
à viatura arregaçando o vestido, examinar seu caderno de visitas, dar ordens ao lacaio que, tornando a alcançar o carro já em movimento, sentava-se na boléia ao
lado do cocheiro. Depois uma nova carruagem chegava, a fila estava muito comprida e o criado de libré corria até o porteiro, voltava correndo sempre, abria a portinhola
e às vezes a dama, erguendo a cabeça, vislumbrava Jean, tornava-o por Henri e lhe acenava com a mão. Muitas vezes uma dama que entrava, na calçada, antes de chegar
à porta, no caminho das carruagens, encontrava uma outra que saía e as duas, como após uma alusão espirituosa, trocavam de longe, rindoi, um sinal de entendimento.
Às vezes duas damas desciam de uma carruagem e voltavam a subir logo, fazendo suas visitas juntas, e antes que a carruagem saísse, com o lacaio à espera ao lado
da portinhola, consultavam-se durante longo tempo antes de se decidirem. Muitas vezes, também, um senhor de luvas brancas acompanhava uma dama até a'carruagem e
subia com ela. Algumas carruagens, tão logo a dona descia, iam-se embora a largo trote para que o cavalo não ficasse com frio e passavam de vez em quando diante
da porta a fim de que a dona não ficasse esperando.
Como a duquesa convidasse Jean para jantar várias vezes por semana, ele às vezes entrava para lhe fazer uma visita. Entravam damas, despiam-se das peles,
falavam do frio, achegavam-se ao fogo, diminuíam-no ao máximo, admiravam a mesa posta, diziamse tentadas, deixavam que lhes trouxesse uma taça de chá um senhor que
se assentava num tamborete ao lado delas, ou, dizendo preferirem elas próprias escolher um bolinho, descalçavam as luvas, desculpavam-se por fazer uma verdadeira
refeição, agradeciam ao criado que anunciava a chegada da sua carruagem, e, voltando a encontrar na saleta uma amiga que entrava, ficavam por vezes dez minutos com
ela, como para um conciliábulo, saudadas por

526

um senhor que, entrando no salão, anunciava que as havia encontrado. E logo a dama anunciada entrava. - Sei que encontrou Marthe, que acaba de sair - dizia a duquesa
sorrindo como se descobrisse um complÔ. A outra se espantava: - Como pôde saber? - Odelator ria e ela compreendia logo e todos se divertiam muito por tê-la intrigado.
Mas em geral, se ela ficava para trás era para falar de uma amiga doente da qual não tinha notícias. No mesmo instante, como num balé, todas as mulheres, mesmo aquelas
que não sabiam do que se tratava, faziam cara triste; e se uma delas se aborrecia, levantava-se com ar envergonhado como se isso fosse um pecado, "arrastando" uma
amiga que trouxera consigo, já que a outra não tinha carruagem.

Jean ficava num canto com Henri, de medo que a duquesa o apresentasse, que tivesse de conversar, de servir o chá. Mas quando vinha jantar era preciso que
fosse apresentado aos amigos da duquesa. Vários deles o convidaram, e em suas residências ele conheceu outras pessoas. Então, sentiu-se obrigado a algumas visitas.
Muitas vezes, para grande espanto de Jean, uma dama a quem o apresentavam dizia ter ouvido falar dele. - Osenhor jantou a semana passada em casa dos Réveillon, não
é? Estava ao lado de minha amiga S., a quem agradou muito. Osenhor seu pai é diretor no ministério do Interior. - Jean não podia imaginar como tinham c hegado a
falar dele, uma conversa da qual ele fosse o assunto e que pessoas que não conheciam estivessem. a 'par do que dissera em casa da duquesa, ainda que às vezes, as.coisas
permaneçam ignoradas dos que parecem dever conhecê-las primeiro e que ele poderia ficar doente durante um mês sem que sualia Desroches o tivesse sabido. Assim passamos
a noite no mesmo teatro de um amigo, num camarote vizinho, sem o saber, e o passeio dado à meia-noite no Bois de Boulogne onde não viamos vivalma, visto por acaso
por um inglês de passagem, contado por ele em sua volta para Londres diante de um alemão que não vemos há dez anos, vai permitir que este nos deixe intrigados em
sua primeira visita à França.

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Embora mostrasse queda apenas para a pintura, achavam-no um artista, não por causa de suas tendências e sim porque se dava com Victor Hugo, Leconte de Lisle
e Saint-Saêns, por causa do ar tímido, por ter olhos grandes e porque, não tendo nascido na sociedade, era nela recebido de uma forma que testemunhava, entre os
maiores, a intenção de que assim fosse, Assim, quando respondia não ter ainda produzido coisa, alguma àqueles que lhe perguntavam em que trabalhava "no momento",
seja por julgarem-no modesto, seja por acreditarem-no por demais absorto em preparar-se para um exame, admiravam sua simplicidade, maldiziam os estudos. Se no primeiro
dia o davam como artista, no segundo concediam-lhe talento. "Parece que é muito talentoso. A duquesa de Réveillon o protege tanto! Esse aí vai vencer na vida, é
claro!" Acreditavam interessá-lo mais convidando-o na companhia de homens do bairro Saint-Germain que cultivassem a literatura, ou das mulheres que aí conhecessem
um homem de letras. E a Sra. de Lavardin ficou espantada ao saber que ele não conhecia Léon de Tinseau. Ela refletiu um momento e lhe disse: Vou tratar de apresentá-lo;
tomara que lhe dê conselhos. IÈ uma pessoa tão simples. - E o interrogou sobre Anatole France, sobre Marcel Prévost. Para ela, como para toda a sua classe, um homem
de letras era alguém que não dizia coisa alguma em sociedade, mas era atraente "na intimidade, ao pé da lareira". "Assim, minha cara, Céline Hacqueville teve a presença
de Dumas num grande jantar com os príncipes. Ele não abriu a boca durante o jantar. Mas à meia-noite, quando todos foram embora e só restavam os íntimos, pôs-se
a falar sem parar. Asseguro que eu não me aborrecia. Isso não quer dizer nada, Céline estava bem aborrecida porque afinal o jantar era em homenagem a ele. Mas também,
ela não quis me escutar. Eu a havia prevenido. Mas ela não sabe o que é receber esse tipo de gente. Não é preciso que sejam mais de quatro."
Achavam Jean atraente e ele ficava feliz com isso, sem se envaidecer, pois via muitos imbecis admirados e todas as palavras sensatas que proferia caírem
no vazio. Muitas vezes, porém, a uma frase qualquer, soltavam um grito de surpresa. Ele sentia-se verdadeiramente envergonhado, o que atribuíam à sua modéstia. Um
dia, num jantar em casa da Sra. de Thianges, pessoa excelente

528

e Wtada, a Srta. Nora de Ziewitch, que, para aquela senhora wa a mulher mais inteligente do mundo, quase um gênio, falou &~ sobre a marquesa de Lavardin. Como Jean
não soubesse se ge tratava daquela que conhecia, indagou: É aquela de cabelo cor de palha? * - Ah, que engraçado gritou a Srta. de ZiMtch -, mulherona * * é maravilhoso.
Todos riram por
*to tempo, sem ouvir os protestos de Jean. Quando se levantaàw da mesa, a Sra. de Thianges, que não-escutara, mas que, certa da aprovação da difícil Srta.
de Ziewitch, sentia que ela o julgava ma dos homens mais espirituosos de Paris, convidou Jean para jantar nas duas terças-feiras seguintes e aproveitou a ocasião
para saber a palavra que ele dissera. - Ah, é formidável o que o senho~ disse. Como foi mesmo? Ela tem os cabelos. . . - Meu Deus, minha 9~ - disse Jean confuso
-, juro que não pensei em ser ~ado, disse apenas que os cabelos dela eram cor de palha. ~el. Estou desolado. - Fillasse - disse a Sra. de Thianges torcendo-se de
riso. Ah, é forte, mas bem engraçado! - É a senhora quem lhe atribui espírito agora - disse Jeán, aludindo à duplicação do 1. - Não, não, não seja modesto - exclamou
a Sra. de Thianges, que não atendia a nada -, é maravilhoso, Nora o disse - aduziu ela ingenuamente e deixando claro o seu critério para avaliar o espírito alheio.
Depois de tudo, disse Jean consigo, já que Nora o disse e que isso lhes basta, não vale a pena eu me aborrecer. Entretanto que é irriUnte que eles me achem tão inteligente
quanto o Sr. de Bellièvre quando de fato o sou mil vezes mais. É verdade que, se me vissem como sou, ine achariam talvez idiota. "Filasse" foi contado de novo durante
oito horas com a palavra maravilhosa do Sr. de Bellièvre, que ~pondera ao anúncio de uma reunião em que o Sr. Faure ofe~ra a presidência do Conselho ao Sr. Bourgeois:
- No en-

Em francês, filasse. (N. do T.)
Em francês, fillase. No texto original ocorre um jogo de palavras filasse e fillasse - provocado por um mau entendimento e responpelo riso dos personagens - impossível
de ser recuperado em portu(N. do T.)

529

tanto, não é bastante forte -, como duas peças encantadoras que vão a cartaz ao mesmo tempo.

Em casa da princesa de Lunéville, que "não sabia manter-se em seu lugar", Jean encontrou a Sra. Marmet, que o chamou de Jean. A duquesa de La Tour Acquevive,
cujo salão era um dos niais fechados de Paris, lá se achava, e a Sra. Marmet a examinava com uma atenção que traía sua inveja, mas também com tima espécie de altivez
destinada a mostrar à duquesa que ela não era dessas mulheres que se apresentam bruscamente às duquesas, uma esnobe, e sim que era reservada e digna. É claro que
se os olhares tinham a propriedade de absorver um pouco da substância sobre a qual se fixam com intensidade, há já dez anos que a Sra. Marmet encontrava a duquesa
sem ter achado um meio de lhe ser apresentada, poder-se-ia crer que fora sua contemplação ardorosa e impotente que reduzira a duquesa a esse esqueleto encarquilhado
e poeirento que debaixo de um velho manto de lã negra ela ofertava à meditação dos esnobes, opondo sua grandeza imaterial à humildade de sua carne e a aparencia
enfezada desse despojo pouco apetecível à impossibilidade de obtê-lo. Mas não ousando dirigir-lhe a palavra, a Sra. Marmet aproveitava-se dos incidentes e já que
falavam com a duquesa a propósito de seus filhos e ela dizia modestamente que eles ainda não tinham tirado boas notas no colégio, a Sra. Marmet, sem olhar a duquesa,
disse claramente à sua vizinha: - No entanto ouvi dizer, pelo professor do meu filho, e por todos, que os filhos da duquesa eram pequenos gênios. - A duquesa sorriu
de um jeito que poderia fazer recear que estivesse a ponto de vomitar. A Sra. Marmet se ergueu, fez uma profunda reverência e tornou a sentar-se. E foi tudo. De
outra vez, como Jean estivesse ao mesmo tempo que a Sra. Marmet na casa da Sra. de Lavardin, a Sra. de Thianges entrou dizendo: - Venho da casa de Louise de Zietwitch.
- Havia muita gente da sociedade? - perguntou a Sra. de Lavardin. - Não. Ninguém da alta roda, Marie Sosthènes estava chegando quando saí. - A Sra. Marmet se ergueu
como eletrizada pelo anúncio de uma vitória, pois sabia

530

que essa a quem os amigos chamavam Marie Sosthènes era a duquesa de Doudeauville e que a Srta. de ZietwItch tinha sempre o costume de apresentar todo o mundo. Disse
adeus com vivacidade. Infelizmente, sua carruagem que ignorava que a duquesa de Doudeauville iria à casa da Srta. de Zietwitch e que a Sra. de Thianges viria dizê-lo
diante da Sra. Marmet, fazendo assim o papel do vento que leva o pólen do plátano macho ao ovário dos plátanos fêmeas, não chegara ainda. Teve de esperar no fim
da escadaria, imaginando o tempo todo que aguardava tudo o que lhe faltava. Por fim, no momento em que a carruagem apareceu, cruzou no pátio com outra; era a da
duquesa de Doudeauville, que, deixando a Srta. de Zietwitch, se fizera conduzir à casa da Sra. de Lavardin. Nesse dia a Sra. Marmet despediu o cocheiro e se deitou
com um acesso de febre que durou vários dias.

Nascida Thierry-Montespan, prima dos Croquemottes, dos Puysalé, dos La Tour-Espivette, a Sra. de Thianges, também amiga da duquesa de Réveillon e dos Escouflac-Le
Gorne (brigados com os Réveillon), dos Porbois e dos Sévinelles (brigados com os Porbois), a Sra. de Thianges era igualmente bem nascida, bem aparentada, de tão
boa posição social como qualquer um. Mas se nossos defeitos nos parecem menos graves que os dos outros, nossos privilégios nos parecem, por sua vez, menos prestigiosos.
Assim, informava-se ela de que uma pessoa, a quem conhecia e amava há muito, agradava à marquesa de Réveillon, jantava com freqüência em casa dos Mirepoiv, era íntima
da Sra. de Cèbres; a simpatia dessas pessoas, nenhuma das quais era mais inteligente ou chique do que ela, conferia a tal pessoa uma superioridade, acrescentava-lhe
uma sedução com a qual ela mesma, por sua simpatia pessoal, teria sido incapaz de revesti-la aos próprios olhos. Assim, os méritos que descobria numa pessoa eram
proporcionais às relações dessa pessoa. Se essas relações aumentavam, a pessoa obtinha aos poucos novos méritos. E se, depois de não ter achado encanto algum num
rapaz que julgava solitário, a Sra. de Thian9C8 soubesse de repente que ele freqüentava a casa desta ou daquela de suas amigas, mudava de opinião a seu respeito,
confes-

531

sando que ele "ganhava em ser conhecido". Mas como as relações, em virtude de leis matemáticas, lhe pareciam decorrer de uma posição inicial, se essa posição não
as implicava, ela se recusava, em princípio, a acreditar nelas, e alguém lhes afirmava a existência, julgava que houvesse um erro, uma informação fantasiosa. No
dia em que a Sra. Marmet (a Sra. de Thianges ia uma vez por ano à casa da Sra. Marmet por causa das obras de que era a "devotada presidenta" e para as quais a Sra.
Marmet contribuía bastante) lhe apresentara Jean Santeuil, tímido e malvestido, filho de um funcionário republicano, a Sra. de Thianges achou-o imbecil. Quando ele
saiu e a Sra. Marmet, para se desculpar, disse: - É um amigo da duquesa de Réveillon -, a Sra. de Thianges exclamou: - De Marie! Mas, minha querida, você não sabe
o que está dizendo, é impossível - com entonação que um nobre de 1789 teria empregado ao responder à profecia de que -os nobres e os burgueses seriam iguais perante
a lei.* Mais tarde, porém, quando esse fato estranho entrou para o rol das verdades científicas com as quais ela vivia e que a auxiliavam a distinguir a verdade
ainda ignorada, quando lhe falavam de Jean dizia ingenuamente: - Oli, é encantador, pois é muito amigo dos RéveilIon e dos Tournefort. Confesso que ele me agrada
muito, é o que há de mais ligado aos La Rochefoucauld. - Ela pronunciava esta expressão: "Muito amigo dos Réveillon ou dos Tournefort" com os lábios risonhos, os
olhos brilhantes e franzidos, como se essas alianças com os Réveillon e os Tournefort devessem estar plenas de conseqüências contra as quais era preciso estar prevenido,
ou de bem-aventuranças desconhecidas que era preciso estar bem pronto para recolher. Se um rapaz ou uma moça fossem protegidos por apenas uma pessoa da sociedade,
esse sufrágio, não sendo suficiente para arrebatar o seu voto, impedia-a contudo de pronunciar uma condenação absoluta. Ela permanecia em suspenso, não ousava pronunciar-se
e dizia: - Berthe (Srta. de Tournefort) leva-o a sério, quanto a mim conheço-o bem pou-

* Segundo um relato apócrifo, mas atribuído a La Harpe (1739-1803), o escritor e místico Jacques Cazotte (1720-1789) teria profetizado com minúcia a quoda
e execução dos principais nobres da época (1788). (N. do T.)

co _, e reservava seu julgamento para o dia em que o recémchegado encontrasse outros apoios ou fosse abandonado até por Berthe. Ao contrário de tantas pessoas que
consideram deliciosas
em sua casa as pessoas que as entediam na casa dos outros,
a Sra. de Thiangès só manifestava sua admiração pelas que não compareciam a sua casa. À mesa alheia, as pessoas que reuniria
facilmente para jantar em sua casa assumiam a seus olhos um esplendor incomparável. Ela dizia: - Parece que houve, na casa
dos 1>uyfrettes, um jantar maravilhoso, com os Treflebarbe, os Escouflac, os Pabaule -, quer dizer, pessoas a quem, recipro-
camente, a Sra. de Thianges surgia como uma potência tanto mais impressionante quanto misteriosa.

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VI. A senhora Lawrence

Um dia, no momento em que Jean chegava ao palácio dos Réveillon, encontrou Henri à porta, que lhe disse: - Ah, que desg~aça! Preciso fazer visitas. - Henri
subiu de novo para pedir à mãe que o dispensasse, pois fora ela quem lhe pedira que as fizesse, mas ela retrucou: - Se Jean fosse bastante gentil para te acompanhar,
isso resolveria as coisas. - Jean teria preferido passear livremente com Henri. Mas a duquesa declarou que não era possível demorar mais para ver a Sra. Lawrence,
sua tia de La Rochefoucauld e sua tia de Réveillon, as quais estavam furiosas por não a terem visto desde primeiro de janeiro. Jean percebeu que não era só a Sra.
Santeuil que dava importância às visitas de família e que não era mais agradável ir visitar sua tia de La Rochefoucauld do que a tia Friedel. Partiram ambos, devendo
ir primeiro à casa da Sra. Lawrence, da qual Jean ouvira falar freqüentes vezes. Sabia que ela era demasiado esnobe, rompera aos poucos com toda a colônia norte-americana,
via agora toda a alta sociedade. A duquesa de Réveillon dera-lhe em outros tempos alguns de seus cumprimentos frios que eram para a Sra. Lawrence como o pavilhão
que ela se acostumara a ver içar à sua chegada num ambiente novo. Mas sem se irritar com aqueles que julgavam dever hasteá-lo diante dela, respeitando-o antes como
um sinal do prêmio de uma aliança difícil de obter, ela continuava a avançar com lentidão majestosa, trazendo seus presentes como um rei do Oriente. E agora a duquesa
de Réveillon obrigava Henri a ir agradecer-lhe o magnífico fuzil de caça que ela lhe enviara no dia do Ano Novo.
Jean ouvira também falar muitas vezes de sua ligação com o Sr. de Ribeaumont, ligação tão pouco dissimulada que toda Paris conhecia e que a própria burguesia
comentava. Embora já fosse muito comentada há seis anos, o Sr. Santeuil só soubera dela na véspera, no ministério, e se rejubilara, assim como sentimos pra-
zer em receber a luz de uma estrela após um transourso de talvez núffiares de anos. Mas os burgueses reconhecem as ligações das njulheres da alta sociedade apenas
quando acabam, da mesma forina que somente no dia em que se anuncia a morte de Verlaine é que um duque fica sabendo que se trata de um poeta e de talento. Não era,
talvez, a primeira ocasião em que Jean ia à casa de uma mulher sabendo disso, ou, pelo menos, sabendo-o antes de nunca ter lá posto os pés. Assim, estava perturbado
como se fosse ver uma pessoa atacada de uma doença especial e tivesse todo o cuidado de não lhe fazer nenhuma alusão; e desde as primeiras palavras que trocaram
ele punha tento no que dizia, como alguém que acompanha um cego e cuida em não maltratá-lo. Por uma hora, expulsara de seu cérebro ' três termos: esnobe, má conduta,
Sr. de Ribeaumont. Mas, tendo dito à Sra. Lawrencç quando Henri o apresentara: - Ouvi a Sra. Marmet falar muito da senhora -, a Sra. Lawrence respondeu: - Vai me
ouvir falar menos dela. Oh, não é porque disseram que ela foi um tanto leviana, confesso que não gosto muito disso, mas não sei absolutamente se é verdade. Contudo,
não gosto de maneira nenhuma das mulheres que, de tão esnobes, só querem uma coisa, subir. Oh, estou certa de que a duquesa é da minha opinião disse sorrindo para
o lado de Henri. - Entretanto, compreendo que o senhor a freqüente - completou graciosamente dirigindose a Jean, pois atribuía à timidez ou à vergonha de ir à casa
de uma mulher que ela desdenhava o duplo rubor que lhe cobrira o rosto e até o olhar no momento em que dissera "ela foi leviana" e "ela é esnobe". Não duvidava que
era por causa dela que Jean ficara vexado e que essas palavras o haviam ferido como uma falta de jeito que atingisse w Sra. Lawrence antes mesmo de perceber que
ela é que as havia pronunciado e não parecia dar-se conta de sua imprudência. - Sim, compreendo que o senhor â freqüente - repetiu num tom condescendente como um
abade diz a uma dama israelita: todas as religiões são boas. - Isso deve ser muito divertido para um rapaz. Sei que tenho amigos que gostam disso. Um dos homens
que mais me agradam, e cujo espírito mais me apraz, que é, penso eu, o mais ligado a meu marido e a mim, o Sr. de Ribeaumont (o duplo halo violáceo que palpitava
em torno dos olhos de Jean impediu a Sra. Lawrence de
ver a nova onda purpuriana que por eles passou e veio estremecer e espumar à superfície do rosto ardente do rapaz) vai com muito gosto à casa da Sra. Marmet e defende-a
sempre que falam mal dela. Conheço-a muito pouco e confesso que não faço questão de conhecê-la melhor. Além do mais, isso não é difícil, não nos damos exatamente
com as mesmas pessoas.
Jean não se espantou com a hipocrisia da Sra. Lawrence ao ouvi-la falar de conduta leviana, de esnobismo e do Sr. de Ribeauniont. Nesse colóquio da conversa
mundana onde tudo, desde a seda pálida das poltronas até o perfume das flores e o olhar franco das mulheres, tudo parecia enternecer seu coração entreaberto como
as rosas debruçadas no ar quente fora de sua bainha de cristal e como os lábios da Sra. Lawrence que a confiança descerrava a todo instante com um sorriso, ele dava
sua alma àquela que lhe falava com doçura, e, com sua alma, a sua confiança absoluta. Assim, hoje era a Sra. Lawrence que recolhera nos estames soltos do olhar o
pólen ardente e leve da sensibilidade dele. A toda pessoa que lhe dissesse agora que a Sra. Lawrence era leviana, esnobe, que era a amante do Sr. de Ribeaumont,
teria retrucado: - Tive a prova do contrário, ela me disse que não. Ou antes, fez mais do que me dizer não, falou de um modo que indica a inconsistência dessas calúnias
e fê-lo como um contraprova, ao mostrar que o que lhe agrada na duquesa é o espírito, é o coração, que o que serve de pretexto às más línguas em relação ao Sr. de
Ribeaumont é a amizade profunda e confessa que lhe devota. Esnobe ou leviana? Para ter certeza de que ela não pratica tais vícios, basta ver como os censura nos
outros. - Jean poderia voltar num dia bem diverso, falar de outra pessoa que não a Sra. Marmet; a Sra. Lawrence não lhe falaria menos dos esnobes como gente que
desprezava, da antipatia que lhe inspirava o procedimento leviano, do caráter tão íntegro do Sr. de Ribeaumont. No começo, é possível que houvesse um pouco de cálculo
em sua predileção por tais assuntos, aliás desastrados apesar do sucesso obtido junto a Jean. Mas-agorã que tais temas principiavam a gemer docemente nos velhos
gonzos do hábito, preenchiam para ela uma função mais desinteressada. A vida se apodera de tudo aquilo que o nosso miserável interesse particular nos obriga a lançar
nela, e fá-lo servir

às funções mais genéricas da vida do indivíduo. Tais temas entretinham a Sra. Lawrence em idéias que lhe eram malsãs e caras, e que representavam o perigoso prazer
de sua vida. E elas lhos apresentavam nessa dose moderada em que parecem aceitáveis e que não conseguimos rejeitar. Não há mal nenhum em admirar o espírito de uma
duquesa, em nutrir, por um homem que o mereça, uma amizade sólida. Se em lugar de meio copo de chartreuse dava-se a uma criança, pela primeira vez, uma garrafa de
conhaque para beber, é provável que ela nunca mais o bebesse em toda a sua vida. Nos primeiros tempos, a Sra. Lawrence deve ter sentido bem a mentira que cometia
ao falar desse modo da duquesa de Réveillon e do Sr. de Ribeaumont. Mas essa mentira parecia-lhe doce, porquanto os que amam gostam de falar do objeto amado.
Aos poucos, na impossibilidade de passar a seus próprios olhos
por uma mentirosa, acabou por acreditar que dizia a verdade. Não
se julgou esnobe por galantear as duquesas, nem leviana por deitar
com o Sr. de Ribeaumont. Os atos materiais de sua vida conti
nuavam a trazer a marca desses dois vícios. Mas ela os cumpria
sem pensar mais neles. E, quando pensava, eles assumiam as
cores que, em sua palestra, eram tão ris ' onhas e agradáveis. Ela
não se julgava em erro quanto ao Sr. Lawrence, visto que fala
va bem dele, e o modo fiel e emocionado com que falava do
minava sua alma no momento em que pensava em sua maneira
de agir para com ele. Então ela se sentia gratificada por essa
emoção, essa fidelidade, essa forma de agir. E tais termos, que
ela repetia com tanta freqüência, eram como a pequena dose de
morfina que, tendo pouco a pouco anestesiado sua consciência,
fazia-a viver em paz consigo mesma e conferia-lhe um novo ar
dor para cometer novas faltas, em cujas cores um tanto cruas,
outrora desagradáveis, ela passava a esponja por hábito, sem que
nem sequer isso fosse daí em diante necessário.

- Então conheces Guy de Brucourt, meu velho tenente? perguntou Jean a Daltozzi. - Oh, por favor, dize-me, julgas que é inteligente? - É que, de fato, os
homens que conhecemos, seja
em nossa infância, seja em circunstâncias inteiramente diferentes daquelas em que adquirimos o hábito de fazer comparações entre a inteligência dos vários indivíduos,
tais homens nos surgem com a lembrança do encanto que tinham para nós e a impossibilidade de saber se nos teriam parecido inteligentes, quer dizer, mais inteligentes
que Destreu e menos que Luperceaux, ou entre Luperceaux e Lã Sisterade.
O tenente de Brucourt, que era tido, no regimento, como oficial
de'inteligência incomum, tinha, para Jean, todo o prestígio que lhe valiam os galões, a
posição social extraordinária, a beleza quando comandava e a requintada amabilidade. E naturalmente se o Sr. de Brucourt não parecera perceber alguma observação
que Jean havia feito, quando queria mesmo recebê-lo em sua grande residência da Praça d'Armes (naqueles dias seu ordenança o preparava por muito tempo, dizendo:
"Fique limpo ao menos, pois que vai à casa do marquês"), Jean teria dito consigo: "é que não vale a pena absolutamente falar nisso" - e se o Sr. de Brucourt dizia
a Jean algo que não lhe parecesse muito correto, Jean pensava que ele não o compreendia bem e que tal coisa deveria ser bem justa para ele, porquanto a polidez,
a educação e o bom-tom não impediam jamais o Sr. de Brucourt de dizer qualquer coisa desagradável que poria Jean em guarda contra o seu alto valor. Todas as suas
maneiras, o tato de sua amabilidade, as distâncias que ele ajudava graciosamente Jean a transpor, reforçavam neste a idéia de que tratava com um ser superior cuja
inteligência tivera de resolver e afastar há muito tempo tudo o que interessava a Jean naquela época. ("Também fiz versos na sua idade", "Não
trapartida, ocupava-se de coisas para

leio mais romances".) Em con
as quais Jean ainda não se
habilitara, e quando, deixando cair o monóculo ao jantar, expli
cava-lhe o interesse que teria em entrar na Manchúria pelo norte,
Jean não deixava de escutá-lo atentamente. - De resto, pretendo
escrever para tanto à rainha da Sérvia, que é meio minha prima.
Parente muito próxima até, embora isso enfureça minha mãe,
que não admite que sejamos parentes dos nobres do Império (seu
pai sendo o duque da Moldávia sob Napoleão 1). - Jean sen
tia-se tão esmagado, tão humilde diante desse homem tão nobre,
tão feio diante desse homem tão belo, tão mal trajado diante

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desse homem tão chique, tão gaguejante diante desse homem tão discreto, que sentiu uma espécie de vergonha.
Um dia em que ia visitá-lo para tratar-de uma coisa importante, no instante em que chegava diante da casa dele o Sr. de ]3rucourt saía de carruagem para
um passeio. Jean, estacando, saudou-o, pensando que ele ia levá-lo consigo, ou pelo menos parar e pedir desculpas. Otenente respondeu militarmente à saudação sem
que um só músculo do rosto se crispasse, como se se tratasse de um militar que não conhecesse e a quem saudasse como ele o saudava, em virtude do regulamento. É
míope, disse Jean consigo mesmo, não me reconheceu. Oual não foi seu espanto ao ouvi-lo dizer, dias depois: - Como fiquei desolado outro dia, por encontrá-lo no
momento em que saía. - Jean se lembrou dessa saudação que dera a impressão de não ver a vontade que ele tinha de pará-lo. E sentiu uma certa duplicidade na polidez
do Sr. de Brucourt. Um dia em que o Sr. de Brucourt o convidara para jantar, seus companheiros, para apresentá-lo a rigor, haviam-lhe esticado e colado às faces
o bigode nascente. Jean não se dava conta de que estava bem ridículo e ficou um pouco embaraçado com a troça do Sr. de Brucourt, que o mostrou a seus amigos, mas
foi envolvido em tanta amabilidade que, apesar das suspeitas que o riso do Sr. de Brucourt despertara, persuadiu-se de que se partisse naquele momento ele não zombaria
de si com os amigos.
Acabado o tempo de serviço militar, Jean não voltou a ver o Sr. de Brucourt, e alguns anos depois, quando o encontrou em Paris, foi como os professores de
antigamente que a gente encontra, pensou que a norma era fingir não reconhecê-lo, e não o cumprimentou. No entanto, uma ou duas vezes o Sr. de Brucourt, que tinha
algo a pedir a Jean, lhe escreveu: meu caro Jean. Mas por uma espécie de entendimento tácito, não se davam bom-dia na rua, como se não se conhecessem de vista. Apesar
disso, Jean, na sociedade, disse seu nome ao Sr. de Brucourt, que murmurou: - Encantado - com um ar distraído, e passou. Teve vontade de lhe dizer: mas então o senhor
não me reconhece, sou o caro Jean, jantei em sua casa. Lembrando-se, porém, do cumprimento da carruagem quando era soldado, pensou que o Sr. de Brucourt o sabia
e que diria simplesmente: - Creio que sim. - De modo que experimentava a sensação esquisita de o conhecer bem e mal.

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VII. História da inglesa

Agora Jean sentia crescer contra si, na casa da Sra. Marmet, a antipatia inexplicável que lhe devotava o grupo dos "três alimós inteligentes" que o julgavam
insincero, e posudo. Lembrava-se dessa experiência antiga mas não tirara nenhum proveito delg. Falou com a Sra. Marmet, escreveu-lhe. Mas as maneiras com que ela
o tratava se eriçavam a cada dia de durezas e ironias, como uma charneca, na primavera, se cobre de gie~tas. E Jean, sem conhecer as causas dessa surda germinação,
não podia estancar nem diminuir sua irrupção repentina e violenta.
Sendo totalmente desconhecidos da Sra. Marmet as sensações, os gostos e as reflexões de onde se originavam as opiniões de Jean, tais opiniões ela as acolhia
ironicamente. Havia, por exemplo, na sociedade da Sra. Marmet, uma dama inglesa de quem troçavam um pouco, chamada Miss Smitson; mas Jean sentia tanta satisfação
em ir ao Jardin des Plantes ver as focas dos mares da Islândia ou a girafa da Numídia, como em desfrutar o sabor especial desse poema tão singular que a natureza
escreve em carne, em cabelos, em entonação, em aroma de chá ou em espírito de associação e que se chama uma inglesa, na qual o que se denomina tez, cor dos olhos,
maneira de pronunciar, vestido, espírito poético, senso prático, está muito bem combinado, composto com muita felicidade, e nos traz uma sensação bem própria das
margens do Tâmisa, dos parques do País de Gales, de Burne-Jones e das sociedades de temperança. Mesmo seu nome, antiga criação galesa, agradava-lhe infinitamente,
sobretudo se ela quisesse pronunciá-lo. Jean lhe pedia vinte vezes que dissesse as palavras belle, Trouville, Brétagne, e adorava ouvir essa preciosa música local,
uma dessas alegrias refinadas que têm a vivacidade deslumbrante das alegrias mais simples. Mas ir vê-la em seu pequeno apartamento, jogar ecartê com ela utilizando
cartas inglesas, que se diferenciam tanto das francesas não só pelo verso mas

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também pelos atributos do rei, da dama, do valete e pela figura do ás, beber com ela esse chá que era a flama sutil que queimava sua vida, pôr esse reflexo rubro
em sua pele, olhar na parede fotografias dos parques campestres de Londres, interrompidos em toda a parte por pequenas sebes brancas, era para Jean um prazer muito
mais vivo do que a bem medíocre satisfação que teria ao ir, nos palacetes luxuosos, aos chás-das-ciríco das damas espirituosas.
A Sra. Marmet, que nunca recebera nenhuma dessas impressões, para quem Miss Smitson não passava de uma mulher igual às outras, mas menos chique, e com fama
de maçante, e que não possuía coisas bonitas em seu apartamento, desatou a rir quando ouviu Jean dizer que gostava muito de ver Miss Smitson e de ir à casa dela.
Jean não pôde se explicar, enrubesceu levemente e disse: - É tão agradável pensar que se trata de uma inglesa. - Como tudo o que ele diz é pretensioso e imbecil
- comentou a Sra. Marmet baixinho à sua vizinha. E Jean, que admirava na Sra.'Marmet a facilidade de se expressar, o calor da eloqüência, uma certa concisão no resumo,
uma simetria no espírito que ele não possuía, sentiu confusamente que dissera uma asneira, cometera um erro, incidira num falso julgamento, que a Sra. Marmet devia
sentir o que ele sentia e que era muito evidente para a pessoa mais limitada que uma francesa não é uma inglesa, mas foi só a partir daí que ela começava a julgar
que ele ainda não atingirá o limiar da inteligência, e ele teve vergonha de si mesmo.

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VIII. A estréia de "Frédégonde"

A Sra. Marmet havia convidado Jean para ir à opera numa segun ' da-feira ainda distante. Mas a estréia de Frédégonde foi transferida para essa segunda-feira,
a representação prometeu ser brilhantíssima e a Sra. Marmet se irritou por não haver antes dado seu lugar a algum senhor da Union ou da Agricole que atrairia a atenção
das damas do bairro para seu camarote. A presença de Jean reavivava essa decepção e ela foi menos amável com ele quando veio vê-la. Entretanto, mais asperamente
voltado para o sucesso da mulher do que ela própria e perseguindo-o com tanta brutalidade quanto ela o preparava com brandura como se nesse organismo que era seu
par social ele fosse o exército e ela a diplomacia, o Sr. Marmet nem sequer levantou os olhos do jornal quando Jean entrou. Disse logo baixinho à mulher: A única
forma de se livrar dele é brigar. Isso não tem nenhum inconveniente, agora que Julien passou nos exames. - É sempre inútil procurar uma briga e não ser gentil -
respondeu a Sra. Marmet, que, quando se achava em busca de um recurso, repetia as máximas de sua diplomacia. OSr. Marmet, que entendia a política de um modo mais
realista, deu de ombros: - Diga-me - perguntou dirigindo-se a Jean num tom brusco e franzindo as sobrancelhas -, será que na segunda-feira o senhor pretende chegar
como das outras vezes às oito horas e sair à meia-noite? Osenhor é bem indiscreto para fazer isso. - Mas eu posso simplesmente deixar de vir. Tenho outro convite
- Todo mundo diz isto, nesses casos - resmungou o Sr. Marmet. - E como se trata de amigos a quem não vejo há muito, teria lhe pedido que me desobrigasse, não fosse
o receio de magoá-los. - De nos magoar - disse o Sr. Marmet às gargalhadas. - Osenhor é de fato engraçado, magoar-nos! Que presunção! Fique sabendo que nos dá sempre
alegria ao retomar sua liberdade.

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Jean saiu. A Sra. Marmet se apressou a convidar o Sr. de Minuls. Contava já com o Sr. de Lutz e o príncipe de T. Na segunda-feira, a duquesa de Réveillon
viu, após o almoço em casa do duque de Chartres, o Sr. de Lutz, o Sr. de Minuls e o príncipe de T. Disseram que iam, todos três, à noite à estréia de Frédégonde
no camarote da Sra. Marmet. Ela se aproximou do duque de Chartres e lhe sussurrou algumas palavras ao ouvido: - Darme-ia muita satisfação - disse. - Oduque de Chartres
chegou-se aos três homens e lhes disse: - Senhores, convido-os a vir todos três comigo à Comédie-Française. - Mas, senhor, e a Sra. Marmet? - Oconvite de Sua Alteza
desobriga-os de todo compromisso anterior. São razões que a Sra. Marmet compreende. Asseguro-lhes que ela os deixará a todos em atenção ao senhor. Então, senhores,
está combinado. - Às cinco horas, a Sra. Marmet recebeu um telegrama de Lutz, às seis horas um telegrama do príncipe de T., às sete horas um telegrama de Minuls.
Enviou convites para a casa de Ribeaumont, para a casa de Tourkett, para a casa do barão Shleier. Ninguém estava mais sem compromisso àquela hora. No entanto, não
podia ficar sozinha com o marido. Mandou perguntar a Jean Santeuil se não podia ir, para "esclarecer um malentendido que não a impedia de gostar muito dele, mais
até do que ele pensava". Jean tinha o coração tão mole que se sentiu tocado, teria vindo se estivesse livre. Mas não o estava mais e escreveu-lhe. - Que presunçoso
- gritou em fúria o Sr. Marmet ao ler seu bilhete, pois a aceitação de Jean era a sua última esperança. Tenho certeza de que está livre! Em todo caso, querida, compreendes
que ele não conhece ninguém entre os assinantes da ópera, e principalmente quem o leve num dia como esse. Vou convidar Shelchtenbourg. - Proíbo-te - disse a Sra.
Marmet -, é melhor não convidar ninguém. Se Shelchtenbourg não passasse de corretor judeu que não conhecesse ninguém, as pessoas poderiam ainda pensar que se tratasse
de alguém que valesse a pena. Mas ele defraudou,os Réveillon e os La Rochefoucauld, que o reconhecerão, e não me interessa ser desqualificada aos olhos das duas
maiores famílias da França, obrigada! - Prefiro tudo a ficar sozinho contigo, é absolutamente ridículo. Daremos motivo a que zombem de nós. Além do mais, já que
o duque de Chartres está na Coinédie-Française, os La Rochefoucauld estão sem dú-

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vida com ele e os Réveillon esta noite recebem para jantar o rei de Portugal, tu o viste no Le Gaulois. - É verdade. Convidemos Shelchtenbourg. - Shelchtenbourg
aceitou, pois estava sempre desimpedido. Já se encontrava,no camarote quando o Sr. e a Sra. Marmet chegaram. A sala estava brilhantíssima. Ogrande camarote de boca
dos Réveillon se achava vazio. - Estás- vendo o que te disse - comentou o Sr. Marmet à mulher, mostrando-lhe o camarote vazio. Mas nesse momento perceberam pessoas
no fundo do camarote, depois apareceram, escolheram lugares e se sentaram: o duque e a duquesa de Réveillon, Henri de Réveillon, a duquesa de La Rochefoucauld, S.
M. o rei de Portugal, o príncipe d'Aquitaine, a duquesa de Bretagne e um rapaz cujo rosto o Sr. e a Sra. Marmet não viram a princípio, pois o rei de Portugal, ajustando-lhe
a gravata, impedia que o distinguissem. Depois, o rei se assentou e o casal Marmet reconheceu Jean Santeuil. Seu olhar se encontrou com o do Sr. Marmet, que lhe
fez um grande 1 cumprimento. Serem vistos por aquele camarote com Shelchtenbourg e ninguém mais era perderem dez anos de notoriedade mundana.
- Entremos - disse a Sra. Marmet fora de si. - Não, as duas duquesas já nos viram, isso não adiantaria nada - disse ele: - o mal está feito. - No primeiro
intervalo Jean quis sair. - Estou certa de que é para ver a Sra. Marmet - comentou a duquesa, detendo-o. - Sim, senhora duquesa - disse Jean, envergonhado de seu
impulso generoso. - Meu pequeno Jean, proíbo-lho, ouviu? - prosseguiu a duquesa. - Amo-o como a um filho, posso muito bem lhe falar como sua mãe, e quando lhe contar
ela me dará razão. Depois que soube o que ela lhe fez, proibirei todos os nossos amigos de tornarem à casa dela. Não falo de minhas amigas, porquanto Deus sabe que
não há sequer uma, exceto a louca da Eléonore, que tenha caído nessa ratoeira. Não vá ao camarote dessa gente. Se quer sair, tem já muitos amigos nossos que o adoram,
que o hão de tratar como se fosse irmão de Henri, um irmão mais inteligente e que nos agrada muito, se quiser conversar conosco. Não tenho razão, majestade?
perguntou voltan4op~-se para o rei, a quem havia contado no jantar a história dos Marmet convidando e desconvidando Jean Santeuil. - Gostaria de -ir ver
o salão do anfiteatro ~ disse

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o rei. - Vou acompanhar Vossa Majestade - disse o duque de Bretagne a quem essa honra cabia como ao mais antigo duque de França. - Não, Bretagne - disse o rei -,
deixe-me antes levar o meu pequeno Jean, que vai acabar de me contar o processo de Ruskin e de Whistler, que me interessa muito, e depois desafiaremos a Sra. Marmet.
Já que tenho um novo amigo, é preciso que os parisienses o saibam vendo-o comigo. Não se importa, não é, meu caro? - indagou, voltando-se para Bretagne. - Como,
alteza? - disse o duque de Bretagne, que, tendo mui~ ta simpatia por Jean e muita antipatia pelos Marmet, estava encantado. Então, baixinho, para que Jean Santeuil
não a ouvisse, e tomando a mão do rei efusivamente: - Agradeço a Vossa Majestade - disse a duquesa, pois sentia muito bem que o rei agia dessa maneira mais para
lhe ser agradável do que para agradar a Jean.
Enquanto Jean passeava com o rei de Portugal, várias pessoas vieram cumprimentar a duquesa: o conde de Perimarch, 'o Jules Lemaitre * do bairro, segundo
algumas damas velhas, entrou primeiro misteriosamente deslizando na ponta dos pés, sorridente, monóculo cravado no olho. - Está se divertindo, Penmarch? perguntou
a duquesa. - Oh, meu Deus, tia, a senhora sabe, será que alguém consegue se divertir alguma vez? Que sabemos, não é? Afinal uma hora de prazer, meu Deus, que mais
se pode pedir, e quantas coisas nos são dadas, não é, depois de tudo? - Olhou sorrindo a Sra. de La Rochefoucauld e pegou a bala que a duquesa lhe oferecia. Mas
ela pousou a caixa e estendeu a mão para o Sr. de Lomperolles, que acabava de fazer com que lhe abrissem o camarote. - Bom-dia, primo, sente-se. - Acabo de encontrar
Sua Majestade, imagine com quem, com o pequeno Santeuil. Na verdade, hoje em dia os rapazes são tão mimados que não os deixamos revelar suas qualidades. Ali, minha
prima, se conhecesses a vida como eu, que significa essa flor na botoeira desse Santeuil. Eu, na minha idade, não teria coragem de

* Jules; Lemaitre, escritor e político francês (1853-1914). Crítico imPreSsionista (Impressions de tWatre, 1885-1920), escreveu várias obras contra o parlamentarismo
e a democracia, aderindo às doutrinas de direita da Action Française. (N. do T.)

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usar uma flor na botoeira, e ele um homem moço! Mas não é um homem, é uma verdadeira mulher, uma verdadeira mulher resmungou pegando um marron glacé. - Ouvi dizer
coisa deliciosas a seu respeito por alguém que o adora - disse o Sr. de Penmarch -: foi a pequenina Sra. Ador que, aliás, é um amor. - Ele tinha por profissão obter
os favores das belas americanas que aportavam a Paris, prometendo-lhes fazê-las jantar em sua garçonnière com as damas do bairro que ainda não conhecessem. A Sra.
de Réveillon permaneceu calada. - Sim, ela o adora prosseguiu o Sr. de Pentriarch. - Mas como pode me adorar disse a duquesa -, visto que não me conhece9 - Oli,
isso não quer dizer nada, tem-se necessidade de conhecer para amar? E o que é que a gente sabe de fato, afinal de contas, não é mesmo? Mas justamente ela queria
conhecê-la. - A duquesa pôs-se a comer marrons glacés com ar distraído. - Quer vir jantar com ela em minha casa? Diga o dia. - Oh, Penmarch! Sabe que gosto muito
de jantar em sua casa, é sempre tão agradável, mas, perdão, cá entre nós, é sempre tão aborrecido jantar com pessoas que a gente não conhece. - "Santo Deus", pensou
Perimarch, "todas as que prometi a ela acabam falhando. Ela ainda vai pensar que não tenho influência alguma. Só resta Jacqueline de La Rochefoucauld? Tomara que
não tenha ouvido isso." - Mas sabe - disse em voz alta - que a Sra. Ador vai à casa da Sra. de Thurringe. - A Sra. de Thuringe sabe o que faz - respondeu a Sra.
de Réveillon. - Mas deixe cada uma de nós com seu jeito. - não vale a pena, então, eu lhe falar da Sra. Marmet. - Oli, essa~ não - retrucou a duquesa. - Prefiro
ir jantar em casa da Sra. Ador a ser obrigada a dar a mão à Sra. Marmet depois do que ela fez a um de meus amigos. E Deus sabe que eu jamais jantaria na casa da
Sra. Ador. - Diga ao menos- à Sra. de La Rochefoucauld que a Sra. Ador é encantadora, que se pode muito bem recebê-la em casa. - Mas por que deseja que eu diga semelhante
coisa a Jacqueline? Ela não precisa de mim para preparar seu salão, que é um dos mais agradáveis de Paris. E já que não conheço a Sra. Ador, como quer que eu lhe
diga que é encantadora? - Ao menos não repita que lhe pedi que a visse e que a senhora não quis vê-la. - Eu nunca repito nada - disse a duquesa com doçura. Perimarch.
o sabia e estava a salvo por

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esse lado. Pelo menos suas diligências não teriam outro mau resultado além do insucesso. - A senhora lhe enviará uma carta de venda para seus filhos. Ela é muito
generosa. - Não, por que deseja que eu considiêre bastante bem as pessoas para lhes tomar o dinheiro se não as acho de categoria suficiente para receb64a em minha
casa? - Isso que diz não é absolutamente o pensamento do bairro, duquesa.

À saída, a Sra. Marmet cumprimentou a duquesa, que se inclinou com um leve exagero de cortesia, como diante de alguém que não se conhece. A Sra. Marmet sentiu
que nada mais havia a fazer da parte dela por esse lado, e infelizmente para ela esse lado dominava todo o bairro Saint-Germain. Shelchtenbourg, vendo-os aborrecidos,
deixou-os. - Que grosseirão! Não nos serve mesmo; de que vale então trazer pessoas ricas? - disse o Sr. Marmet. Foram chamar um fiacre e cruzaram com a duquesa,
que subia para o seu landau e mandava Jean subir junto. - Ocumprimento dela sem dúvida também tem a ver com o fato de que Santeuil lhe contou tudo - constatou o
Sr. Marmet. aterrado.

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IX. Daltom e

as mulheres

Quando voltou da ópera, Henri subiu para o quarto. Mas não começou a se despir, pois a duquesa, não querendo obrigar sua camareira adoentada a passar a noite
em claro, lhe dissera: Vou entrar no teu quarto daqui a pouco para que me desprendas o colar. - Como ele nunca fechasse os postigos a fim de ser despertado pelo
dia, via pela janela a chuva estendida como inumeráveis cordas que o vento inchava, atirava de vez em quando do céu negro ao calçamento reluzente de luz e água.
Um fiacre parou diante dos jardins. Entretanto, não havia porta alguma naquela direção. Um senhor, cuja gravata branca aclarava de longe a extremidade superior do
sobretudo, desceu, pagou o fiacre e principiou a andar pela rua. Não levava guarda-chuva e de quando em vez, parando, tirando a mão enluvada de branco do bolso para
pô-la diante da boca, sacudia as costas. Henri compreendeu que tossia. Ele continuava a caminhar debaixo da chuva. Estava agora bem perto do palácio de Réveillon.
De súbito, Henri o reconheceu, era Daltozzi. Por que não se fizera conduzir até sua casa? Mas tendo chegado diante da porta, Daltozzi não parou, continuando a andar.
Como passasse sob a luz do bico de gás, Henri viu que usava pequenos escarpins que, abertos para deixarem o pé descoberto, estariam logo cheios d'água. Foi até o
fim da rua e voltou, parou um momento diante de sua porta como se hesitasse, depois retomou a marcha. Chegando ao fim da rua, abriu-se a porta de uma das últimas
casas, e uma mulher saiu: Henri adivinhou que era Rose, a camareira de sua mãe, cujo cunhado morava naquela casa e onde ela passava

a noite. ssus-
tada com a chuva, caminhava depressa debaixo do guarda-chuva erguido, não precisando, aliás, dar mais que uns poucos passos para chegar ao palácio. Mas nesse momento
Daltozzi, voltando-se para trás, avistou-a. Pôs-se a correr. Henri entreabriu a janela. Ouviu Daltozzi, que cantava como

54à

via à sua frente. Ela teve medo, pondo-se também a correr. Mas ele tornou a agarrá-la, correndo com toda a rapidez, parecendo louco. Quando a viu parar diante do
palácio e tocar a campainha, afastou-se vivamente e se pôs de novo a caminhar.

para fazer voltar a mulher que
Daltozzi parou abruptamente. Uma mulher de vestido de baile, os cabelos envoltos numa renda presa ao pescoço, pagava ao cocheiro. Mas ele já se precipitara
e estava junto dela. É claro que a mulher gritou. Henri não a ouviu, pois fechara de novo a janela, mas o cocheiro que ia indo embora estacou, voltou para trás e
enquanto a mulher assustada tocava repetidas vezes a campainha do portão, o cocheiro fazia gestos ameaçadores para Daitozzi, que se afastou. Quando a mulher entrou,
o cocheiro partiu mas virou-se para trás ainda uma vez dando de ombros para tomar a rua deserta, à falta de passantes, como testemunha da ignomínia dessa personagem.
A chuva caía tão forte que Daltozzi voltou para diante de sua porta. Protegido pela saliência do muro, olhava para todos os lados a fim de ver se passava
alguém. Veio um senhor e Daltozzi fez menção de tocar a campainha. Mas o senhor. entrou na mesma casa. E sem dúvida acreditando não ter sido reconhecido, e para
não ser obrigado a entrar, Daltozzi deixou a porta e se afastou. Nesse momento a duquesa entrou para dizer a Henri que, tendo Rose voltado, ela não precisava mais
dele. - Que fazes à janela, não vais te deitar? - Sim, mamãe; vou me deitar - respondeu Henri e, quando sua mãe saiu, começou a tirar a roupa. Mas antes de se deitar
foi ainda uma vez olhar pela janela. Daltozzi continuava lá. Por fim, pareceu resignar-se, olhou ainda uma vez para todos os lados e, voltando para sua porta, tocou.
Uma, duas vezes, mas nesse instante uma operária de cabeça descoberta, envolta num corpete de lã, surgiu debaixo de um guarda-chuva na extremidade da Praça da Concorde,
que atravessou rapidamente. A porta abriu-se. Daltozzi lançou um último olhar, percebeu a operária. Então, sem hesitar, partiu puxando a porta, que se fechou de
novo, e correu para ela. Henri, cansado, deitou-se e, imaginando que Daltozzi devia estar com muito frio em suas chi-

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nelinhas cheias d'água, esticou as pernas até os pés da cama de encontro à bolsa de água quente.
Era assim quase todas as noites. Medo da solidão, cedendo à curiosidade, bem cheio de corpo ou vazio de alma, Daltozzi, quando chegava a hora de se recolher,
não queria entrar só e se não houvesse encontrado mulher antes de chegar à sua porta, ficava às vezes uma hora à espera. Em outras ocasiões ia pelas ruas, andando
à procura de uma mulher, diziam, seguindo seu sonho, era o que pensava, mas tendo necessidade de um corpo onde seus membros pudessem crispar-se, agitados por esse
sonho, de uma outra vida em que pudesse crer que um sonho irmão do seu viesse de muito longe, do fundo do infinito onde ele o buscava, reencontrá-lo. No deserto
das ruas vazias ou no deserto das ruas cheias de gente, uma mulher elegante, mulher da sociedade ou da meia-sociedade desocupada, por vezes também uma operária,
sentira que ele a seguia e virara a meio a cabeça. Nada sabendo dele, compreendera-lhe o desejo assim como ele fora ao encontro do seu sem nada saber dela, e no
desconhecido profundo que era para um a vida do outro, por esse tácito consentimento, trocavam eletricamente num segundo, sob as espécies da confissão do mais baixo
desejo, o segredo doce e inexprimível de seu ser, o sonho vago e baldio de suas vidas. Fugindo quando ele se aproximava dela, não tendo ainda mostrado o rosto, ela
parecia-se corri o Destino. Parecia fazer um sinal para que ele a seguisse.
ao encalço de um prazer quase certo do que de uma felicidade imaginária. Renunciara a essa felicidade não depois de se estreitarem na cama ou dentro de um
fiacre, mas desde que se haviam falado, a voz sugerindo logo a idéia de uma pessoa semelhante a nós e que nos pode dar prazeres e mágoas, mas prazeres e mágoas humanos.
Com freqüência andava pelas ruas sem projetos, não tendo intenção de procurar nada para a noite, mas, como todos os homens, em busca da felicidade e do desconhecido.
Como todos os homens, acreditava de boa vontade no que deseja. E, muitas vezes, quando uma mulher assustada por ser seguida andava mais depressa, ele tomava sua
fuga por um encorajamento. Assim, conhecera de tudo, as Injúrias das transeuntes, as bengaladas dos maridos, o terror mais mortal para a consciência de uma inocente
espavorida. Tinha medo dessas afron-

E ele se lançava menos

550

tas mas não das afrontas futuras, porquanto os males que a razão prejulga illevitáveis, a esperança faz recuar para tão longe a sua vinda que a essas distâncias
tão imensas eles _já não parecem apavorantes c sim irreais. De outras vezes, os olhos toldados à força de tanto olhar, não sabia compreender os estímulos de uma
mulher que desejava ser conquistada e quando ela se virava, pensando que era por medo de que ele se aproximasse, sentia vergonha de repente e se afastava. Ou então
eram prostitutas que, lançando ousadamente um olhar de fogo sobre seus desejos, inflamavaril-nos como a um galho de árvore morta. E até se a sordidez ou a pintura
traísse a miséria da velhice, os beijos delas nem por isso deixavam de ser às vezes mais doces, como a sidra de que gostamos mais que nunca nos dias de muita sede,
num copo ordinário e lascado de uma estalagem. Se, trazido de carruagem por um amigo, ou tendo feito o trajeto sozinho a pé, mas sem ter tido mulher para seguir,
ele se encontrasse diante de sua porta, não tinha coragem de entrar: saía de novo, fosse qual fosse o tempo, não se detendo diante da fragilidade da saúde ou do
medo de apanhar uma pneumonia. Ao contrário, era excitado pela cerração que envolve as mulheres como um mistério e que elas desfazem ao passar como um véu, pelo
frio e pela chuva que lhe davam, um com um ardor mais brutal, a outra com uma doçura mais enervante, o desejo de se aquecer contra os braços, de se proteger. E a
lassidão de seu espírito e a fraqueza do corpo já envelhecido se ligavam às existências virgens e jovens com a ilusão de um doente que busca a saúde nos bosques,
como se à força de se nutrir com os olhos e de tocar em carnes brilhantes e belas devesse assimilá-las, como se em sua boca aberta para um beijo ele pudesse captar-lhes
o frescor, subtrair-lhes o alento e fixá-lo em seu sangue.

(Antes, houve a vista, por Jean, em casa de Daltozzi, da fotografia de sua mãe. Um dia em que Henri lhe mostrou Daltozzi assim na sarjeta, Jean pensou nos
olhares que sua mãe lançava sobre ele, de cima. Ela desconheceu tudo aquilo! E ele jurou a si mesnio que nunca exporia sua mãe a semelhante contemplação.) (Nota
do Autor.)

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X. A afronta

No dia seguinte, Jean foi à casa da Sra
. Marmet. No momen

to em 'que retirava o sobretudo de peliça diante de um criado pronto para recebê-lo, encontrou a duquesa de Soria e sorriu, compreendendo que a Sra. Marmet conseguira
por fim sua presença num jantar e que ela saía logo após. Mas a importância que a duquesa de Soria tinha para a Sra. Marmet, Jean, mais requestado do que todos numa
sociedade em que a duquesa era considerada quando muito uma estrangeira elegante, tinha-a aos olhos da duquesa. Ele o sabia. Assim, como a duquesa passasse sem vê-lo,
pôs-se diante dela, deixando de tirar o sobretudo e, inclinando-se ligeiramente, disse-lhe sorrindo: - Bom-dia, duquesa. - Bom-dia, meu caro amigo - exclamou a duquesa
com vivacidade. - Que houve com o senhor que não o vemos mais? Quer vir jantar amanhã, depois de amanhã? - Jean escutava-a sorrindo. Em pé ao redor dele, os criados
da Sra. Marmet, o lacaio da duquesa, os lacaios da marquesa de Montfort, da viscondessa de Brieux, da princesa Bonclialon, que sabiam pelo lacaio da duquesa que
ela mantinha relações mais influentes que suas patroas, olhavam-no com respeito. - Irei um dia destes - disse Jean amavelmente. Ela lhe estendeu a mão, agradecendo.
Jean se inclinou, entregou o sobretudo sorrindo, sorriu ainda ao estender a mão ao marquês de Puybes, que passava, pois com todos aqueles cuja admiração ou respeito
nos dão boa idéia de nós mesmos nos mostramos amáveis, como uma
mulher não pode deixar de sorrir diante de um espelho que lhe
apresenta uma deslumbrante imagem dela mesma. - Olí, como
é gentil - exclamou a Sra. Marmet, e todes viraram a cabeça.
Ele saudava de passagem as mulheres que estendiam o sorriso e
a mão. Apertava a mão aos velhos, aos oficiais, aos literatos.
E sentia-se como tivesse a idade, a bravura e o talento deles.
A todo instante a Sra. Marmet vinha até ele para apresentá-lo

a uma dama que desejava conhecê-lo, e quando ela lhe falava dos Réveillon, ele se portava como se mal os conhecesse. Algumas viam nisso modéstia, outras, presunção.
Algumas, julgando que se haviam enganado, e se dirigido a outra pessoa, não sabiam mais o que dizer. Alguns rapazes se faziam apresentar a ele pensando que não era
possível deixar de conhe-cê-lo, outros a fim de que, um pouco mais tarde, ele lhes incluísse os nomes nas listas de bailes, os apresentasse às atrizes da moda ou
às damas do bairro Saint-Germain que arranjam pares para dançar. Aceitou um sorvete, pegou um baralho e logo depois estava jogando na antecâmara com o Sr. Saylor,
a quem acabava de ser apresentado. Como as outras mesas haviam sido abandonadas, porquanto R:eichenberg recitava, a sala estava vazia. Dava para a escadaria nobre
e, de tempos em tempos, uma dama subindo com o marido enviava-lhe um bom-dia ou respondia ao seu cumprimento. Uma chegou até a entrar para lhe dar bomdia: - Que
faz aí? - e olhando o seu jogo lhe deu uns palpites, e depois saiu. De vez em quando, estando abertas as portas do salão, os cavalheiros, ao passarem, paravam no
limiar e depois seguiam, pois a Sra. Marmet não gostava que jogassem cartas enquanto houvesse declamação e música. Uma ocasião ela entrou para levar Jean de volta
e, voltando-se para Saylor, disse: - Osenhor me arrebatou o mais distinto dos meus jovens, todas as senhoras estão sós e o reclamam. Osenhor imobiliza meu parceiro
predileto. É bom para o senhor, velho jogador, vamos! Venha, isso não se faz em minha casa. Já viram uma coisa dessas?

Jean riu, porquanto o ar de impertinência era uma das formas consagradas de sua cortesia, de sua graça e de sua autoridade. Mas Saylor, que perdia, se obstinou;
temendo então que Jean não voltasse se o não deixassem livre, pois sabia que em casa dos Réveillon deixavam-no fazer o que quisesse, e acreditando, além disso, a
mudar constantemente de tom e de opinião, dar uma impressão mais inextinguível de seu entusiasmo e desprendimento, a Sra Marmet acrescentou com bonomia: - Mas não,
fique, se isso lhe agrada; é próprio da sua idade. E depois, na minha casa sabe muito bem que faz o que quiser, menino miínado. Mas não demore muito. - E desapareceu
correndo em

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passinhos curtos, majestosamente seguida pela longa cauda do vestido. E Jean, sempre jogando, ouvia-a de vez em quando a dar bom-dia aos que chegavam, manifestar
diante dos outros, e como que involuntariamente, sua admiração pela beleza da duquesa de Soria. - Se estava bem bonita essa noite? É um autêntico Ticiano; que carnação!"
(as duquesas lhe pareciam sempre mais lindas em sua casa) - acreditando vê-la, como se ela abrisse apenas a porta e um pouco da cauda do vestido estives~e ainda
na casa. Depois ela bancava a doidivanas, fingia por gracejo não se lembrar mais do nome do cavalheiro que acabava de entrar, d izia-se cansada, com vontade de largar
tudo e ir conversar calmamente com algumas amigas (as que por acaso estavam junto dela no momento). Depois às primeiras palavras do acompanhante anunciando que Van
Zanol ia can tar, ela pedia silêncio e se alguém falava, olhava-o severamente, depois apagava seu gesto brusco por meio de um sorriso comouma dançarina que representa
o papel de um tenente. E sempre jogando, Jean escutava, sorrindo, a ária alegre de D. Juan, acompanhado, quando o movimento se apressava, de um murmúrio unânime
e ligeiro das ouvintes encantadas, como se uma brisa soprasse de súbito e virasse as páginas, fazendo palpitar os leques. De repente o Sr. Saylor levantou-se e disse
com fisionomia imprecisa e como que ilegível, e uma familiaridade ofen-
siva: - Chega, senhor. - Senhor - disse Jean estupefato, pondo-se também de pé. Nesse momento Jean ouviu mais distintamente a frase dele: - Bom, bom, senhor - disse
Saylor, desmascarando-se subitamente -: não jogará mais comigo. Osenhor é um trapaceiro. - Miserável - gritou Jean, num pulo, lançando-se contra ele. Contudo, maior
e mais forte, o Sr. Saylor segurou-lhe as mãos e apertando-as com violência: Calma, senhor, calma, tudo isto de nada lhe serviria. Serei generoso se me enviar testemunhas
para um duelo, embora em geral a gente não se bata com pessoas da sua laia. - E entrou no salão.
Jean foi em seu encalço, mas pensou que as cinqüenta pessoas lá sentadas ficariam sabendo logo o que acabava de acontecer e, por estupidez, ciúme, má vontade,
tendência a acreditar no extraordinário sem dar pleno crédito às imputações de Saylor,

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seriam sempre reservadas quanto à honorabilidade de Jean. Espe
rando o final do trecho para ir falar - imediatamente ao marques
de Trailles e ao visconde de Boisieux, sentou-se ao lado da vis
condessa de Boisieux e sorria com exagero a tudo o que ela
dizia, para dar a impressão de estar ouvindo. A sua frente, Saylor parecia rir com dois ou três amigos. E esse riso parecialhe detestável como um crime intolerável
e horroroso como

uma doença. Omarquês de Trailles e o visconde de Boisieux eram de opinião de que ele não devia aceitar o desafio. Enfim, cederam. Oduelo foi marcado para dois dias
depois. SayIor ficou levemente ferido. Sem dizer que se bateria em duelo para não'assustá-la, Jean contara o caso à mãe. Ela odiou Saylor como teria detestado a
doença se seu filho estivesse doente, ou um
cocheiro que o tivesse atirado ao chão, como tudo aquilo que fizesse mal a Jean. Durante vários dias, cada vez que ele lhe falava sobre o assunto, ela lhe segurava
a cabeça com as mãos, falando-lhe com voz suave como se ele estivesse doente. E como
ela lhe dizia então: - Não é nada, ficarás bom amanhã - se ele lhe dizia: - Percebi, pelo cumprimento do Sr. X. e da Sra. Z., que eles sabem; não fui convidado à
casa dos X., a quem Saylor deve ter contado as coisas à sua maneira - ela dava
de ombros e fingia rir como de uma coisa sem importância, uma verdadeira loucura. Depois, censurava-o com doçura por fazer mal a si mesmo porque um miserável assim
o desejara. Acarinhava-o, dizendo: - Além disso, é um homem pouco estimado (o que era verdade), ninguém lhe dará crédito mesmo que ele conte. - Ele sabia que já
acreditavam nele, mas evitava dizêlo à mãe; e se a inutilidade de sua ternura o irritava, sua doçura era encantadora.

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XI. Reparação

No dia seguinte, Jean, tendo ido a um sarau na casa da Sra. de Thianges, ouviu, no momento em que anunciavam seu nome, uma reflexão tão desagradável que
logo se retirou. Quando desceu a escada, todos os criados o olhavam com desprezo e alguns riam de modo grosseiro à sua passagem. Jean possuía, de fato, uma característica
que, junto aos criados, fê-lo às vezes achar simpatia e lhe apagava em geral toda consideração: era amável com eles. Nossa amabilidade para com os outros retira-nos
geralmente todo direito a ser respeitado. Urna pessoa nobre, rica, bela, inteligente, encontra num hotel o vizinho de um burguês pobre, feio e estúpido? Enquanto
ele não a conhecer, terá toda consideração para com ela. Talvez fale a seu respeito com o hoteleiro e com os garçons, em tom de desprezo, a fim de dar a entender
que ela não é "mais do que ele", mas no fundo estará persuadido do contrário. Seus menores gestos e atos lhe interessarão. Mas basta ela ser amável com ele, verdadeiramente
amável, durante um dia ou dois. Não é preciso mais nada: todo o seu respeito cairá por terra. A partir do momento em que ela é amável com ele, é que não é mais do
que ele, pelo contrário, pois ele só é amável com aqueles que estão acima dele na escala social. Se ela fosse realmente rica, lhe dirigiria a palavra com insolência,
se fosse autenticamente nobre nem sequer lhe falaria. As palavras com que Lohengrin confessa a Elsa seu nome não eram mais perigosas para ele, não marearam riais
írrevogavelmente a perda de todas as suas vantagens do que o "estou encantado em vê-lo, portanto dê-me o prazer de jantar comigo". Se ele aceita a iniciativa dessa
pessoa, será literalmente, julgando que é a ela que está dando prazer. Se ela tivesse dito "a honra", ele julgaria honrá-la. Se não se espalhasse que ela tem um
andar inteiro no hotel onde ele só possui um quarto, e se o criado que ela trouxe consigo a chama de "Senhor Conde", ele a trataria com altivez.

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Mas se a amabilidade é tão funesta àqueles que a praticam, no caso dos criados se apresenta como um fato tão excepeional que os criados de uma casa burguesa
onde vamos jantar às vezes e com os quais nos mostramos amáveis, embora lhes demos presentes (sem isso, já que nossa amabilidade daria a impressão de um cálculo,
e ocupando o lugar dos presentes, seríamos desprezados, mas compreendidos), consideram-nos um palerma, um poltrão ou pobre de espírito, com quem todos se mostram
alegres se estão alegres, grosseiros se zangados, e com quem não se incomodam se estão com pressa. Talvez entremos no coração deles antes dos que não são amáveis.
Mas como entramos infinitamente depois deles em sua consideração, somos servidos depois dos outros, quer dizer, depois de todos, com os criados. Ao sermos amáveis
com eles, não lhes teremos dado a entender que entre nós e eles não há distância nenhuma? Isso é verdadeiro, pois, para os criados da burguesia e para os criados
de uma determinada classe rica. E, com efeito, como seríamos amáveis com eles? Os burgueses pagam mal a seus criados e queixam-se deles. Por isso os criados não
se dão ao respeito e mostram a todo instante que não se dão ao respeito, na insolência do tom para com o filho da casa, em suas respostas à patroa, no modo de acolher
o visitante que detestam como amigo dos patrões e que muitas vezes é tímido, mas que uma vez ou outra poderia queixar-se.
Ao sair da casa da Sra. de Thianges, Jean dera seu endereço ao cocheiro; mas quando acabou de chorar sentiu necessidade de agir no sentido de organizar sua
vingança, de parar de sofrer a afronta sem deixar de pensar nela, o que lhe era impossível. Disse ao cocheiro: - Vá à rua de Varenne, ao palacete dos Réveillon.
Chegou-se primeiro a Henri e disse-lhe: - Gostaria de falar com teu pai. - Henri perguntou: - Meu querido, ainda estás remoendo esse negócio estúpido? És
bobo e-
com isso, meu caro. Mas entre, papai ficará te ver. - Depois de o ter introduzido, H( mas Jean lhe disse: - Não, meu caro, pode, terei o máximo prazer. - Jean saiu
do pala(
00
tendo prometido ao duque, depois de longa 4úe

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quela noite ao sarau de Lustaud, sarau ao qual aceitara comparecer um mês antes, mas aonde já não pretendia ir agora, assim como a parte alguma. Oduque o exigira,
não querendo que ele desse a impressão de ceder diante da calúnia. Jean voltou. Disse à mãe que estava desgostoso. Acabou por lhe contar a frieza da Sra. de Thianges
e das outras damas. Mas passou em silêncio o fato de ter sofrido também a afronta dos criados. Seja por piedade, porque a mãe, amando-o, devia sofrer ainda mais
com isso, seja porque a mãe, conhecendo-o melhor, achava-se sempre diante dele, e sem dúvida devia encontrar-se nesse estado de luta que às vezes caracteriza a vida
doméstica, o fato é que ele não desejara ter de corar muito diante dela e evitar de algum modo ofender o seu orgulho. Talvez chegasse a pensar que ela não teria
oportunidade de triunfar quando em suas batalhas futuras, sonhasse com o passado, e que ele, desse modo, lhe daria armas. Sentimento horrível, que a Sra. Santeuil
jamais experimentou. Mas ela Inerecia, sem dúvida, que o filho lho atribuísse, mesmo de maneira confusa. De fato, para isso era preciso que no fundo do seu passado
e do seu esquecimento, talvez quem sabe nos recentes aluviões da sua memória, sangrasse ainda alguMa ferida que ela lhe causara para fazê-lo enrubescer. Algum ,só
quando uma pessoa é frágil como tu e incapaz de se vingar pode permitir semelhante insolência com um companheiro", pois
às vezes a cólera serpeia no meio do mais imenso amor, onde parece perdida. As vezes a recordação de uma pancada detém os lábios que iam às faces onde acharam tantos
be ijos infinitos. E na eternidade todas as palavras que não tivermos dito àqueles que mais amamos, sufocadas na garganta por um mau pensamento, essas palavras que
3não podíamos dizer, as únicas formas de nossa ternura que, sem elas, não teria existido, serão a contrapartida cruel dos erros que a ternura deles se permitiu para
conosco.

Jean chegou de noite à casa dos Lustaud como a um patibu-
lo, onde já adivinhava, para se torturar, as mãos que se retraíam à sua aproximação, os olhos que se embaciavam ou se animavam com afetação para outra coisa, as
costas que se viravam, os co-

chichos mais assustadores que o silvo de uma serpente próxima, o riso das pessoas que o observavam, mais diabólico que o riso
dos demônios que se ouve às vezes em sonho, e com o qual se sufoca ainda, sem ousar abrir os olhos, perto de meia hora depois de se estar acordado, enfim, a imagem
pavorosa dessa espécie de excomunhão moral cem vezes mais terrível do que a outra, e onde o esnobismo, a estupidez e a malevolência ostentam inge-
nuamente, para fazer sofrer o paciente, um gênio aonde não chega nem o talento da crueldade nem o instinto da loucura, em que ao menos não somos mais nós mesmos.
Compondo o rosto da Sra. Marmet, da Sra. de Thianges, da Sra. de Perdan com seus rostos da véspera, disparatava quando era necessano imagi-
nar o rosto do Sr. ou da Sra. de Lustaud. Esquecera que tinha de atravessar um primeiro inferno, o vestibulo onde os criados
esperavam seus' patrões. Se tivesse pensado nisso, sem dúvida teria voltado. Mas, isso só lhe veio à mente quando percebeu, através do vidro que afastava ao abrir
a porta, o criado da Sra.
de Thianges. Empalideceu, mas era tarde demais. E como alguém que se atira no fogo, penetrou na antecâmara sem pensar, os. olhos quase sem ver. Parecia-lhe, no entanto,
que todos os criados
que ali esperavam (já era tarde e o sarau alcançava o auge) não riam, quando, tendo dado dois passos, viu o lacaio da Sra. de Thianges respeitosamente imóvel diante
de si: - Osenhor queira perdoar-me a liberdade - disse o criado -, mas o senhor duque
de Réveillon, que pediu à condessa para se servir de mim enquanto espera que seu lacaio chegue, disse-me que viesse receber suas ordens. Osenhor duque me disse:
"Pergunte ao Sr.
Santeuil se quer nos dar a honra de voltar estar noite com a Sra. duquesa e comigo em nossa carruagem, e nesse caso mande a sua~ de volta." - E cheio de respeito
pela primeira pessoa a quem em sua vida o duque Thianges era como o rei de

de Réveillon (para o criado dos França) jamais pedira semelhante coisa (os criados, conhecendo-se entre si, conhecem exatamente não só a posição respectiva de seus
patrões mas sua atitude em face das outras pessoas, sua maneira de agir, seu esnobismo), o criado esperava a resposta inclinado, no meio de todos os criados respeitosos.
Acrescentou: - De resto, aqui está uma carta que
o senhor duque me incumbiu de entregar-lhe- - A carta estava aberta e era evidente que todos os criados já a tinham lido.
4&Meu bom Jean, perdoe-me por lhe dar este recado de modo
. to tempo embaixo, Irias Minha gota tão incorreto. Esperei-o MuI
me dói tanto que tenho medo de ficar mais tempo de pé. E, além disso, eu o amo demais para não proceder com o senhor como cárn minha que,rida esposa ou meu filho.
Há de me achar Muito complicado9 mas é para que dispensern seu carro sem ne cessidade de incomodar alguém lá em cima."
- Levem de volta meu carro - disse Jean. - Quanto ao senhor duque, vou responder-lhe de viva voz - e subiu. Agora não receava mais nada; no entanto, chegando
lá em cima, tremeu um pouco quando viu uma nova fila de lacaios que, não estando, desde o começo da festa, em contato com os de baixo, ignoravam certamente isso,
sem deixar de saber dos acontecimentos da véspera, quando reconheceu um outro criado da Sra. Marmet, o que rira na véspera com mais força em companhia dos criados
da Sra. de Thianges. No mesmo momento, Jean percebeu às suas costas a Sra. de Cygnerolles e a Sra. de Thianges, que subiam. Mas no instante em que ia dizer seu nome
para ser anunciado e a Sra. de Cygnerolles, desviando o olhar para não ~ê-lo, esperava a vez para dizer o seu, o criado da Sra. Marmet, longe de escarnecê-lo como
na véspera, dirigiu-se a Jean e lhe disse, sem cuidar da Sra. de Cygnerolles e da Sra. de Thianges, que estavam a pouca distância: - A senhora duquesa de Réveillon
ficará muito reconhecida ao Sr. Santeuil se ele tiver a bondade de não tardar muito a ir a seu encontro no salão verde,
e roga-lhe que, daqui até lá, não se comprometa a almoçar ama
nhã com as pessoas que poderá encontrar, porquanto a senhora
duquesa deseja pedir ao senhor que o reserve para ela. Como
está o senhor? - perguntou a Sra.- de Cygnerolles. Estava
de perfil e por isso não o reconheci. - Devo-lhe mil desculpas
- disse então a Sra. de Thianges. - Eu estava furiosa com Boi
sieux, queria pô-lo porta a fora; justamente Delphine (Sra. de
Cygnerolles) pretende que a língua se me atrapalhou e eu disse
Santeuil em vez de Boisieux. Osenhor foi embora tão depressa
que não pude lhe explicar isso ao dizer adeus como pretendia!
- Mas, senhora, suas desculpas são perfeitamente inúteis - disse

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Jean rindo, pois não levamos muito tempo para sentir de povo
felicidade e esperança. - Por que diabo quer que tome para
mim, que não tive nada com a senhora, o que era para Boisieux,
a quem 1 aliás é preciso perdoar, pois é um encanto?
Saudou os donos da casa cercado por essas duas mulheres que o protegiam involuntariamente, e a Sra. de Lustaud, que lhe segredou ao ouvido: - Trate de encontrar
o duque; por sua causa, está quase nos pondo a casa abaixo. . .. e isso nos fascina. - Tendo saudado a Sra. de Lustaud, Jean entrou rio primeiro salão. A primeira
pessoa que encontrou foi o Sr. Marmet, que conversava com o Sr. de Beust. Jean o cumprimentou. Mas o Sr. Marmet mal moveu a cabeça, os olhos severos, sem lhe estender
a mão. Jean ouviu que resmungava alguma coisa, enraivecido. Pensou escutar: - Que topete - e o Sr. Marmet murmurou algo ao ouvido do Sr. de Beust, e depois ao do
Sr. de Tours-enLangues e esses dois senhores olharam Jean com curiosidade. Muitos anos depois, ele reviu o olhar do Sr. de Tours-en-Langues e o interesse divertido
de seus olhinhos, castanhos ao ver o senhor que trapaceara. Deu dois passos adiante. As pessoas a quem conhecia, quando se aproximava, davam uma meia-volta para
o interlocutor ou saíam para outro salão. OSr. de Thianges virouse, rindo, para uma dama que o pegou pelo braço e, voltando-se para Jean, olhou-o por um momento
com seu lornhão. Todavia, a Sra. de Cygnerolles estava ainda bem perto dele. Jean, sentindo-se enfraquecer, ofereceu-lhe o braço. Mas a infâmia não sabe aproveitar-se
das lições da generosidade. Ela murmurou consigo: "Esses criados terão exagerado o recado dos Réveillon. Além do mais, não está escrito no seu rosto que os Révefllon
o apóiam e toda esta gente julgaria bem decaído o meu salão para que eu passeasse com esse indivíduo grotesco que ainda não pôde encontrar uma. mão para apertar.
Quando os Réveillon virem isso, tudo mudará depressa. Aliás, parece que a duquesa passeia com Sua Alteza e o duque com a princesa. Têm mais com que se ocupar esta
noite do que cuidar desse pequeno Santeuil." Assim, respondeu a Jean com um gesto que significava: "Não preciso de braço." OSr. Marmet ofereceu-lhe o seu: ela aceitou.
Mas nesse momento, de braço dado com o duque de Lithuanie e cortando a maré dos homens e mulheres trocistas, que se afasta-

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ram respeitosamente, a duquesa de Réveillon, que desde que vira anunciar o nome de Jean seguia-o de longe, avançou. A Sra. de Cygnerolles fez uma reverência profunda
e o Sr.. Marmet, esperando talvez uma apresentação (que não lhe daria sua mulher ao entrar?), curvou-se até o chão. Mas a duquesa, como se não o visse, falou a Jean:
- Sofrendo como está este tempo todo, precisa de um braço mais forte que o da Sra. de CygneroBes para ampará-lo - e, deixando o braço do príncipe, a quem havia pievenido,
estendeu seu braço a Jean. - Mas creio que Vossa Alteza não conhece o Sr. Santeuil - disse. - É o meu segundo filho, alteza. Gostará dele, pois todos os que me amam
sabem que é necessário amá-lo. É muito superior para não ter inimigos - acrescentou rindo - e está muito acima deles para ter vontade de castigá-los. Sendo assim,
é a mim' que compete fazê-lo. Senterno-nos. - À sua passagem, o Sr. de Thianges, sentado ao lado da Sra. de Beust, se levantou. A duquesa pegou sua cadeira o fez
que Jean se sentasse nela. Fulminado por esse espetáculo, o Sr. Marmet não dera um passo. - Vai beber, senhor9 - disse a duquesa ao duque de Lithuanie, ao ver que
ele tinha um copo de laranjada. - Não, acho que não - disse o duque
está muito gelada para mim. - Vamos, Jean, beber lhe fará bem. - E virando-se graciosamente para os homens que lá se achavam: - Alguém - disse - te-ria a
arfiabilidade. de ir buscai um copo de laranjada para o Sr. Sanieuil? - OSr. de Beust, o Sr. de Thianges e todos os outros que lá estavam, deixando uma dama, saltando
de uma cadeira, rompendo a multidão, lançaram-se, mas o Sr. Marmet já se adiantara a eles. Pois não tinham visto o duque de Lithuanie estender seu copo a Jean: -
Beba, por favor - disse, e como Jean recusasse, confuso: - Talvez o senhor me evite uma crise de asma. É muito ruim para mim uma bebida tão gelada quando estou com
calor. Entretanto, à frente dos homens confusos a quem havia prevenido, caminhava o Sr. Marmet, copo de laranjada na mão, andando o mais depressa que podia sem derramá-lo.
Mas Jean lhe fez sinal de que já tinha um e o Sr. Marmet não teve outro remédio senão afastar-se.

562

XII. Outro duelo

Tendo sido insultado publicamente no teatro por um senhor, Jean resolveu enviar-lhe duas testemunhas. A quem pediria esse favor? Ora, Jean era recebido muito
afetuosamente há vários anos na casa de um homem, o barão Scipion - "escreve-se como na história romana", era a resposta da família, sem que se fizesse entender,
a todos os que perguntavam a ortografia do nome -, e pessoa alguma ousaria pronunciá-lo sem um matiz de reconhecimento, pois era o homem mais prestativo e delicado
de Paris. Que serviços prestara exatamente? Em que circunstância testemunhara especialmente sua delicadeza? Havia muito que era o homem mais prestativo e delicado
de Paris para que aqueles que lhe rendiam um verdadeiro culto (e era todo mundo), aqueles que repetiam seu nome com fervor, perdessem tempo com, essas vãs indagações
de exegese religiosa. Por acaso São Luís, quando dava sua vida, seu exército, seu reino à conquista do Santo Sepulcro, se punha a indagar cuidadosamente quais os
testemunhos em que assentava a crença na divindade de Jesus Cristo? Era essa mesma fé que é "uma boa reputação", coisa platÔnica segundo uns, bem real, ao contrário,
conforme outros, como todas as crenças, e capaz de engendrar em favor daquele que a compartilha tantos atos úteis para si, visto que uma má fama comporta conseqüências
ruins e positivas, que obrigara Gravier-Bertrand, o mais rico tabelião de Paris, a lhe dar sua filha, e a Société des Secours aux Blessés a nomeá-lo seu presidente
de honra. Não havia que falar propriamente em posição social, mas ele possuía o que se chama uma grande posição e as maiores posições não acontecem a todo instante.
Quando um provinciano ou um estrangeiro perguntava quem era, diziam sempre: - É muito difícil explicar, é isso. Mas enfim, é alguém de muito, muito boa posição social,
é tudo o que há de melhor. Sabe, é um homem tão prestativo, de uma delicadeza! - Embora fosse legitimista, o

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Conselho o escolhia toda vez que se tratasse de nomear uma cos diante de quem todos os na imprensa, as pessoas i h uma reserva extre-

missão de honra, pois ele era desse partidos se inclinam". Na sociedade

desonestas, as mesmas com quem eie mam. ri a ma, não o desejavam, achando que "esse aí tinha o direito de bancar o difícil".
Não dizia com freqüência: - Pode contar comigo - mas quando o afirmava, qualquer um sabia que podia contar com ele. Bem, dissera-o várias vezes a Jean. Assim,
a idéia de um pedido a fazer evocou de imediato no espírito de Jean o nome do barão Scipion. Ficou ainda mais contente com sua lembrança ao considerar que, graças
a circunstâncias bastante críticas em que o Sr. Santeuil fizera com que dessem à mãe de Scipion uma tabacaria, Scipion não podia, como se diz, recusar-lhe coisa
alguma. E, principalmente, o barão Scipion nutria há alguns anos grande afeto por Jean. Enfim, a situação era tanto melhor porquanto Jean já pedira, uma ou duas
vezes, serviços quase insignificantes ao barão e este (era de fato dia de azar com um homem tão serviçal), lamentavelmente, nunca pudera prestar. Tais circunstâncias
não tinham, é claro, desanimado Jean mais do que a Virgem Maria, ao não conceder uma graça ao católico, não o desencoraja de rezar, mas, por outro lado, tirava-lhe
qualquer preocupação de ir se encontrar com o barão Scipion, porquanto sentia que este
ficaria encantado com

devia fazer questão de lhe prestar um serviço e a oportunidade que lhe oferecia de demonstrar por fim a sinceridade de seus protestos de afeição- Quando chegou ao
apartamento da Rua de Rivoli, disseram-lhe que o barão saíra. Deixou um bilhete pedindo-lhe um encontro; estava tão perto do Louvre que não pôde resistir ao desejo
de ir ver o duque de Richemond,* de Van Dyck, e entrou em casa.julgando-se um pequeno duque de Richemond porque, pensativo e bonito como ele, ia bater-se em duelo.
Seu porteiro entregou-lhe o cartão do barão Scipion, que já viera duas vezes à sua procura, tendo visto seu bilhete poucos instantes depois que Jean fora

* Respeitamos a grafia da edição francesa. (N. do T.)

embora. Jean ficou embaraçado com essa deferência e com o fato de um homem de tal importância se incomodar desse modo por sua causa, deixando de lado seus negócios.
Correu de carruagem à casa do barão, com a pressa antes devida ao reconhecimento do que à solicitação. No salão, várias pessoas esperavam. Mas, ao nome de Jean,
o criado do homem mais cortês de Paris e cuja vista dava primeiro uma sensação de confiança e depois de gratidão, assim como o criado de um dentista espalha ansiedade
e terror, lhe perguntou: - Osenhor não é o senhor Santeuil? - Sim - respondeu Jean. A essa palavra, o criado, com uma reserva que despertou tantos transportes na
alma de Jean quanto a amabilidade do criado do dentista dizendo: "É o senhor que tem consulta marcada para as três horas?" causa uma impressão penosa, o criado disse:
- Então o barão receberá o senhor antes de todos. Tenha a bondade de vir por aqui. - Após um silêncio durante o qual o criado o conduzia a um pequeno salão aonde
voltou dentro de um instante para pôr uma acha na lareira, acrescentou: - Vou pôr seus talheres à mesa, o senhor barão me disse que esperava que o senhor quisesse
almoçar com ele e a senhora baronesa. - Jean, sentindo aliás o doce aconchego do fogo envolvê-lo, tinha necessidade de se conter para não dançar, de tanto que a
perspectiva desse diielo, que caminhava tão depressa, lhe era deliciosa, e sobretudo de tanto que sentia um devotamento ardente, de coração, por Scipion. Gostaria
de lhe dar sua fortuna, sua vida, contentando-se, no momento, em assinalar as forças que transbordavam dele passando a mão numa terrível Górgona de Gérome que lá
se retorcia em mármore. Mas sua vista já não inspirava mais terror nesse santuário da espera confiante, da gratidão respeitosa, do devotamento enternecido, do que
a alegria que causa, na sala de um dentista, a vista de um jornal divertido que parece contar antes os sofrimentos das vítimas, que teve já a pretensão de distrair,
do que suas histórias engraçadas. E ao ouvir ' barulho na outra peça, rumor tão sinistro num salão de dentista onde evoca menos o espetáculo do presente horrível
do que o de um futuro mais aterrador, Jean dizia consigo: "Mais alguém que ele põe feliz, que homem!"

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Essas reflexões duraram um minuto, pois o barão (quando
tantas pessoas que nada têm a fazer nos fazem esperar uma hora,
disse Jean de si para si) chegou num instante. Na excitação de
urna gratidão que cada palavra de seu benfeitor só fazia exaltar,
Jean não ousou sequer lhe pedir um favor e, em vez de perguntar
se poderia ser sua testemunha, pensando que ele se proporia por
conta própria, pediu-lhe apenas que o recomendasse a pessoas que
poderiam se prestar a tal, e não lhe quis pedir nem mesmo
quando o barão se pôs a alinhar os motivos por que não poderia
ser sua testemunha, e por que não podia pedir nem a uns nem
a outros que o fossem, assim como não lhe podia dar recomenda
ção para ninguém. Por fim, aconselhou-o a dirigir-se ao duque
de Réveillon. - Posso ao menos lhe dizer que o senhor me acon
selhou? - indagou Jean, não ousando, por sua própria vontade,
fazer uma tentativa tão atrevida. - Oli, não, peço-lhe que não
pronuncie o meu nome. Posso contar com isso, não é mesmo? -
Quando chegou a hora de almoçar, Jean, sentindo. que não avan
çara no caso mais do que de manhã, teve vontade de se desculpar
e partir bem depressa para ainda ter tempo de achar testemunhas
antes do fim do dia. Mas, já que Scipion não podia prestar-lhe
essa fineza, não teve coragem de deixá-lo como um egoísta, e
ficou para o almoço, durante o qual a baronesa se mostrou
encantadora e pareceu, porquanto o marido era tão discreto quão
prestativo, não estar ao corrente de nada. Depois do almoço não
se atrevia a sair e foi o barão que lhe disse: Vamos, vou
deixá-lo, preciso sair. Deixo-o com minha esposa. Não, preciso
sair também - disse Jean. E o barão fê-lo subir a seu cupê,
dizendo: - Vou levá-lo. - E ao cocheiro: - Pare diante do
palácio Réveillon. - Jean não sabia como agradecer. No mo
mento em que chegavam, viram a duquesa saindo. Obarão
escondeu-se com vivacidade no fundo do cupê. - Compreende,
não quero que me vejam. É melhor para o senhor que eu fique
fora disso. - Obrigado, obrigado - disse Jean -, não me esque
cerei, tenha êxito ou não, de que foi o senhor quem me deu
essa idéia e da afeição que me demonstrou ter em ocasiões
difíceis. - Não somos dois velhos amigos? - disse o barão,
como que para pô-lo à vontade. Jean

56,6

cumprimentou-o baixinho

para mostrar que não se iludia quanto a essa pretensa igualdade e que percebia toda a gentileza de sua condescendência.
Ao subir ao palácio do duque de Réveillon, Jean sentiu invadir-lhe o coração todo o afeto que lhe tributava. Mas ao chegar junto dele não aludiu absolutamente
a essa afeição nas poucas palavras que lhe dirigiu. Pois, tendo de lhe pedir um favor tão importante (não dissimulava que o duque de Réveillon só fora testemunha
uma única vez do rei de Hessen) pela primeira vez, não teria tido coragem de expressar seu afeto ao duque no temor de que este o pudesse julgar ditado pelo interesse.
0 duque aceitou imediatamente. Ao fim de alguns instantes, Jean quis deixálo para ir em busca de uma segunda testemunha. - Espere disse o duque -, acho que o general
de Beauvoil está com minha esposa, quer que lhe peça? - Voltou com o general de Beauvoil, que aceitara. Partiram em seguida para a casa de X., deixando todos os
seus negócios. Jean percebia que, apesar de sua simplicidade, o duque não escondia a importância do serviço que lhe prestava. Por isso Jean espantava-se de não experimentar
no coração um reconhecimento maior do que aquele, infinito e verdadeiro, que esta ou aquela gentileza do duque despertara nele. Por tais gentilezas, o duque teria
se espantado ao saber que Jean lhe era grato. Por esta, sentir-se-ia mal se ele não experimentasse uma gratidão bem grande. Por que então, perguntava-se Jean, não
sinto uma gratidão proporcional à importância do favor?
Oduelo foi marcado para dois dias depois. Jean julgou gentil de sua parte, quando Scipion não podia ser-lhe útil, ir contar-lhe as novidades como ele lhe
pedira, e não deixou de lhe expressar seu afeto, já que nenhuma idéia de interesse devia comprometê-lo aos olhos de Scipion. Este não pôde ocultar por completo a
estupefação que lhe causaram os nomes das duas testemunhas de Jean. Calculara mal a força do rapaz e nunca teria pensado que o duque de Réveillon faria isso por
ele. Como tal duelo se tornasse um acontecimento parisiense, interessou-se também pela novidade do dia seguinte, pelo nome das testemunhas do adversário. Mas nesse
instante, tendo chegado o eletricista para arrumar as lâmpadas com vistas a um sarau que ia dar, ele deixou totalmente de se ocupar de Jean. Este saiu logo, o barão
apertou-lhe a mão com uma cordialidade distraída, sempre exami-

567
nando as velas que traziam e, tendo sua esposa pedido a Jean que lhe trouxesse novidades logo, não pôde conter um ligeiro movimento de irritaÇãO Pelo fato de que
ela não deu mais atenção a esse arranjo que lhes custara bem caro e devia ao menos ser o mais lindo possível. Jean notou que eles ainda não haviam indagado, embora
tivessem tanta amizade por ele, se ele sabia atirar com a pistola.
De súbito, Jean, que até então pensara nesse duelo com tanto prazer, principalmente desde que passou a ter o duque e o general como suas testemunhas, pois
no caso de não ser morto teria o prazer de ler a notícia no jornal do dia seguinte, de experimentar o efeito que tal leitura produziria sobre seus inimigos, sentiu
um medo bem desagradável. Julgou lembrar-se de que iam a cav`alo para o campo de honra, e há algum tempo experimentava uma espécie de aversão, de verdadeiro medo
nervoso por esse exercício, desde um dia em que, sem se machucar, aliás, deslizara do cavalo e sentira uma vertigem bem penosa. Sabia montar muito bem e suas testemunhas
eram cavaleiros excelentes demais para que ele pudesse temer um novo tombo, irias conservara pelo cavaIb uma repulsa instintiva tão incômoda que logo lamentou que
não se houvesse feito um acordo, perguntando a si mesmo se não seria possível fazer algo nesse sentido. Na conversa que se seguiu, o duque achou graça de sua idéia
de ter acreditado que iam a cavalo até o local do duelo e disse que iriam de carruagem. Nunca Jean amou tanto o duque comono momento em que este o tirou dessa
cruel inquietação. "E dizer que eu teria, por causa disso, insistido em que se fizesse um acordo", dizia de si para si. Seu coração agora estava tranqüilo.

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XIII. A sala de plantão da Pitiê

- Jean, vens comigo'amanhã? - perguntou Henri. - Não, amanhã não posso, vou almoçar na sala de plantão da Pitié.*
Tendo Jean saído por um momento, a Sra. Santeuil disse a Réveillon: - Sr. Henri, procure impedir Jean de ir amanhã à sala de plantão. Trata-se de um sujeito
chamado Savorte, mas aliás o senhor sabe, o irmão desse Savone que foi colega de voces morreu. - Sim - disse Réveillon -, estive no seu enterro. Seu irmão dava pena.
Foram obrigados a levá-lo dali. - Sim, amava muito o irmão - disse a Sra. Santeuil. - Mas não é amigo de Jean. Está brigado com o pai, que é um homem excelente;
no colégio, no regimento, em todo lugar ele cria casos com os chefes. Veio um dia jantar aqui. Discutiu com meu marido sobre a questão do imposto de renda. Asseguro-lhe
que sua agressividade nos assombrou. Como é o que há de mais inteligente, é um menino muito perigoso para Jean, que se tornou de amizade por ele em memória do irmão.

Mas Henri não logrou êxito em sua missão junto a Jean. Este
havia conversado só umas duas ou três vezes com Savone, mas
sentia nele, com todo o respeito de que era capaz sua juventude
entusiasta, uma vontade ardente, uma inteligência luminosa do
bem que o colocava muito acima de Jean e das outras pessoas
que Jean conhecia (à exceção do Sr. Beulier). Às vezes, sentindo
o quanto sua vida mundana desagradava a Savone, não gostava
muito de pensar nele. Mas, se o encontrava, se Savone lhe dizia

* Trata-se do Hôpital de La Pitié, perto do Jardin des Plantes, fun
dado por Maria de Médicis em 1612, como albergue para desamparados.
Transformado em hospital em 1809, foi reconstruido em 1912. (N. do T.)

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unia dessas palavras fortes em que o sentimento da idéia e o acento nervos o haviam impedido de continuar na medicina, as havia
da voz penetravam fundamente no coração de Jean, sua admiração freqüentado durante um ano e dissera a Jean que ali se respirava
por ele era o sentimento que mais o realçava a seus próprios uma atmosfera fétida de mediocridade auto-suficiente, de troça
olhos. E muitas vezes, quando experimentava por si mesmo essa macabra e de materialismo imbecil.
severidade passageira, espécie de sentimento do pequeno valor deixa-nos
ento, que parece de súbito extinguir Mas nossa presença no meio de novos indivíduos
de nossa alma, nesse mom os que nos restam de hipnotizados, por assim dizer, com a fixidez de sua realidade indi
todo interesse, toda razão de ser aos an vidual, faz-nos olvidar as questões abstratas que nos podíamos
vida, como a chuva, começando a sair, nos tira toda a vontade colocar a respeito do que representavam até então para a nossa
de continuar um passeio, chamava a si a lembrança de certos imaginação, e estabelece entre eles e nós relações originais e vivas
dias em que Savone lhe testemunhara unia estima especial, para que absolutamente não se preocupam, em seu arrebatamento
retomar a confiança em si mesmo e, ao mesmo tempo, no valor espontâneo, com as idéias preconcebidas que pudéssemos abrigar.
da existência. Apesar disso, há três anos que Savone estava inter- A todo instante, dos seis ou oito jovens que lá se encontravam,
nado e Jean ainda não fora à pitié. No entanto, Savone teria gos- um ou dois diziam um gracejo a um outro, ou um insulto a
tado de vê-lo com freqüência. Mas Jean sempre receava que ele respeito de uma falta provavelmente conhecida de todos, que riam,
o censurasse se viesse a saber um pouco mais de sua vida. E já unindo-se para reprová-lo, ou defendendo-o com injúrias também
que sua família aprovava a vida que levava, e preferia ver Jean tão boas, e gracejos igualmente pesados. Mas aquele que, quando
antes freqüentando a sociedade do que Savone, era bom, de falava alto para os outros e da cabeceira da mesa era tão violen
sua parte, que agisse assim. Mas não dava razão à família a to, dizia ternamente "'meu filho" a seu vizinho que se ferira e esta
respeito de Savone a não ser nesse caso em que, sendo-lhe desa- va com o braço na tipóia, e se levantava toda vez para lhe trazer
gradável o provável julgamento de Savone, achava necessário re- o que fosse preciso a fim de que não se machucasse. E as vozes
tirar-lhe, a seus olhos, toda autoridade. Em qualquer outro caso, exclamando as injúrias se interrompiam e se faziam suaves para
sabia que a família não o compreendia, e ficou irritado de ver perguntar a Jean com toda a educação se não queria outro prato,
sua mãe voltar de novo a essa afronta que fazia a Savone: a se a corrente de ar que vinha da porta não o incomodava. Entre
de não se dar bem com seus chefes, com seu pai, de ter discutido eles, com a garrafa de vinho que passavam de mão em mão, cir
com o Sr. Santeuil, pois sabia que todas essas ações censuradas culava essa alegria infantil, essa inconsciência feliz dos que nunca
tinham tido comocausa o vivo e profundo sentimento de justiça têm tempo de pensar em sua satisfação, não lhe dão a menor
de Savone. É claro que ele, Jean, sentia que dentro de si próprio importância o dia inteiro de modo que ela acompanhe, sem que
um tipo de sensibilidade, de fraqueza, tê-lo-ia refreado no mo- se apercebam disso, todos os atos de suas vidas. Vivendo sempre
mento de resistir a seus chefes, de romper com o pai. Mcs, assim juntos nessa grande residência onde repartiam entre si a autori
mesmo, sentia-se incapaz de praticar qualquer dos grandes atos dade sobre as irmãs e os fiscais, tendo os mesmos estudos, os
que via Savone fazer, ser tão rigoroso consigo mesmo, dar todo mesmos chefes, os mesmos deveres., os mesmos companheiros, os
o seu dinheiro aos pobres, dedicar toda a sua inteligência, seus mesmos motivos de preocupação, de reflexão, de satisfação, de
dias e muitas vezes suas noites a meditar sobre as questões sociais. gracejos, sua amizade os reunia por mil laços diversos e entrecru
OSr. Santeuil, excetuando Savone, achava que as salas de plantão zados como essas heras que dão a impressão de estarem tão bem
compostas pela nata da juventude elaboravam continuamente, em nos muros. E entre os mais inteligentes e os melhores, a sátira dos
conversações incomparáveis, a ciência do futuro. Assin se Jean defeitos dos mais tolos e também o conhecimento da fraqueza e
não se achasse em contato com Savone, não se aborreceria em da proteção deles'se eram muito atacados, formavam uma aliança
' +------Ao a esse meio tão inteligente. Mas Daltozzi, cujOs mais estreita, pacífica e risonha. Muitas vezes se alguém do grupo
de Savone começava a zombar de Etrat, que tentava jamais assinar subscrições, que tinha suas botas engraxadas pela governanta e trazia frutas numa sacola às escondidas
para comê-las sem ser obrigado a oferecê-las aos outros, Savone ou dois outros diziam: - Deixem Etrat em paz, é um bom menino -, ou se conservavam num silêncio que
Etrat não esperara, conhecendo, por feridas sempre reabertas, o poder írivencível de suas palavras retumbantes, contentando-se em sorrir. Oque principiara o ataque,
olhando-os, calava-se e também sorria. E pareciam todos, como jovens deuses confiantes em suas forças, olhar a seus pés, voluntariamente depostas, suas armas de
ouro.
Por ter dito uma asneira, recebida com uma algazarra ensurdecedora, Etrat foi condenado a pagar uma rodada de champanha e, como resistisse, um amigo de Savone,
o vizinho de Jean, um rapagão louro de aspecto suave, Servais, provou-lhe tranqüilamente, e com um luxo de argumentos irônicos, que devia pagar, quando um menino
entrou. Vinham buscar o interno de plantão. - De que se trata? - indagou Servais. - É um homem que está sufocando - respondeu o garoto -, está ficando roxo. Bem,
não incomodem o interno; eu vou até lá. - Omenino saiu e Servais continuou a provar tranqüilamente a Etrat que ele devia pagar o champanha. As últimas resistências
de Etra caíram diante da indignação geral. E tendo dito à criada, que entrava nesse instante: - Traga champanha, o Sr. Etrat está pa gando; da melhor, da mais cara
-, Servais desceu para junto do doente não sem ter dito da porta a Etrat: - E toma cuidado para não surripiar meu copo. - Quando voltou, estavam gracejando com Etrat
pelo fato de que o seu champanha era uma tisana e Savone perguntou à criada: - Félicie, confesse que o Sr. Etrat a proibiu de trazer o legítimo champanha. - OSr.
Etrat não me disse nada, Sr. Savone - respondeu Félicie com um sorriso doce onde estava impresso o respeito que nutria por Savone, e o respeito que ela sabia lhe
tributavam todos. Nesse meio-tempo, Servais retomara seu lugar ao lado de Jean. Ma provou a bebida, exclamou: - Champanha, isto9 isto é água! e a atirou borrifando
Etrat e gritando: - Félicie, o Sr. Etrat pede outra garrafa de champanha, e do legítimo desta vez, ou
.4 + -- - vai? -

perguntou Jean a Servais. - Está morto - respondeu Servais. - Sim? - Você ouviu, Félicie, champanha para o Sr. Etrat, e depressa. Eu ainda não bebi...
- Muito bem - perguntou Savone a Servais enquanto fumavam -, deixaste o Sr. Santeuil intrigado com o que querias? Oli, não, é verdade, já ia esquecendo -
exclamou Servais. - Sim, oli, ' não é muito importante. Eu queria lhe dizer que sabia muito bem de sua viagem a Penmarch num dia de tempestade. - Como? - disse Jean.
- Mas quem lhe contou? - Ninguém me contou, eu o vi. - Mas como? E eu não o vi? - Se não me viu, eu o vi, mas até você me viu. Entretanto, como não me conhecia,
não se lembra mais. Eu não o conhecia tampouco, mas sua fisionomia me impressionou. - Oli, então estava em Penmarch? Não, no trenzinho? no trenzinho. . . você era
o ciclista! - gritou Jean, que nunca mais voltara a pensar nele desde aquela ocasião, e o revia imediatametrie de pé ao sol poente, e de fato Servais nada tinha
que o impedisse de, mais jovem, se houvesse mudado muito em alguns anos, poder ter sido o ciclista. - Eu era o ciclista e teria gostado muito de conversar com você.
Estava ente diado e com muito frio. - E as duas damas? - exclamou Jean num assomo de curiosidade. Mas enrubesceu logo ao se lembra
de que uma devia ser a amante do ciclista. - Oli, perdão. Mas não, nada de desculpas, era a marquesa de Lieureux, filha da Sra. de Miraibout Tournefort, e a outra,
a velha, era a mulher do ministro da Sércia. Aliás, nunca mais as vi. - Como, mas você as conhecia bastante, você seguiu viagem com elas. - De jeito nenhum, elas
me pediram que lhes mostrasse o caminho ao descerem. Eu tinha sido aoresentado à esnosa do ministro de
W1 a Ç
de que para desaparecer também COMO o o que Servais ia fazer dentro de poucos visto iamais a não ser entre dois trens

é demais - exclamou Jean. - Mas como, a velha também? Eu teria acreditado ... enfim, não ouso dizer, enfim, completamente diferente de uma mulher de alta posição
social: e me disseram que essa mulher do ministro da Romênia era muito simpática. É verdade que uma diferença de região pode ser tão pronun~ ciada quanto uma diferença
de classe. Não, mas na verdade é demais! E como devo lhe ter parecido antipático - disse Jean, para ficar bem certo de que Servais o notara e achara simpático.
Você, você estava com dois pescadores - respondeu ele. - Sim, você adivinhou melhor do que eu. - E revia as duas damas, ora como uma cocote e sua camareira, ora
como a marquesa de Tournefort e a condessa Pickitz, ora dos dois jeitos ao mesmo tempo. E ficava maravilhado com essa descoberta.

Mas já na carruagem, lembrando-se daque 1 Ia pequena estrada de
ferro de Pont-Labbé, desaparecida para sempre de sua memória
e na qual, sem a surpresa daquela frase, sem dúvida, nunca mais
teria pensado, e na qual ninguém depois teria jamais pensado,
visto que ninguém, por outro lado, a tinha visto, mas que agora
fugia no sol poente diante de seus olhos, o que mais o iffipres
sionava não era o que seriam as duas damas, mas que aquele
ciclista que julgava nunca mais voltar a ver, que fazia parte da
paisagem como o gradil da estação de trem, como as árvores,
como tudo o que estava então diante de seus olhos sem que ele
pudesse ver nisso uma vontade que conhecesse, fosse hoje seu
amigo. E que, nas duas vezes, como no caso de uma aparição
fantasmagórica, em que tremeluzira essa imagem a seus olhos, a
natureza não terá agido como nessas mágicas em que primeiro
uma personagem aparece assim em reflexo, mas logro depois um
d d iro ator toma o seu lugar e diz algumas palavras, é verda
reflexo e não era isso
dias? Jean não o teria

No momento em que Jean ia descendo a escada, acompanhado de Savone e de Servais, vieram chamar este último para atender a outro doente. Era precisamente
na sala vizinha. Jean entrou com Servais, enquanto Savone foi buscar suas coisas. Jean ficou espantado e deslumbrado por ouvir Servais falar ao doente com doçura,
num tom quase terno: - Muito bem, coitadinho, não está melhor? Seu abscesso está doendo? Vejamos, meu velho, deixe-me tocá-lo, não vou lhe fazer mal. - Jean sentiu-se
grato como por uma bondade que Servais tivesse tido para com ele. Viu então as mãos fortes de Servais, que ainda há pouco tinham tão duramente esmurrado a mesa na
algazarra contra Etrat, aproximarem-se cautelosas do curativo, segurá-lo com doçura e tirá-lo tão lentamente que o doente pareceu não sentir quase nada. Movido de
admiração por uma bondade que não era inerte e cega como as nossas vagas e inúteis bondades mas que se traduzia de imediato com precisão, com audácia, com doçura,
em sofrimento poupado, em curas preparadas, em crises interrompidas, Jean olhava essas mãos, essas mãos sábias e sutis como uma inteligência, essas mãos adestradas
é boas, e as teria beijado como a objetos sacros. E a aversão que há pouco lhe inspirara a calma de Servais não se apressando em correr para junto de um agonizante
e bebendo champanha com tanta alegria, gracejando tão calmamente no momento em que acabava de vê-lo morrer, desaparecera por completo. Servais achou que convinha
abrir o abscesso. Em preciso fazer muitas incisões. No momento em que terminava a primeira, o doente fez um movimento e Servais se espetou. Jean, que conhecia o
perigo dessas picadas, correu a avisar Sãvone, que sugeriu a Servais fizesse um curativo imediatamente e deixasse para mais tarde o final das incisões. Servais deu
de ombros e continuou. Savone zangou-se. Mas fosse por cepticismo diante de uma ciência que via todos os dias ser frustrada pela vida e pela morte, fosse por efeito
dessa mesma calma em presença do perigo cuja freqüente repetição o tornava indiferente
Poucos dias mais tarde (a picada não dera em nada), Servais curado deixou a Pitié, tendo completado seu tempo de interno. Como não tivesse pensado antes
em prestar concurso, ia instalarse em Amiens, onde tentaria conquistar nome e clientes. Estava triste por deixar os amigos com quem vivera tão unido durante vários
anos e parecia não ver claro à sua frente quando pensava nos anos que viriam. Mas aquele que o olhasse, tendo já um ou dois fios grisalhos nos cabelos louros, com
a ligeira aparência de um homem calmo e que ama seu bem-estar, seus olhos inteligentes mas não além de um saber científico relativo e do bemestar prático, vendo-o
nesse dia parado perto de um homem que lhe pedia uma informação, poderia muito bem figurá-lo exatamente como seria daí em diante, envelhecendo aos pouquinhos, engordando,
avermelhando-se, enrugando-se e depois se curvando como se desenvolve uma planta, nas ruas de Amiens, onde desfrutaria uma boa situação, parado assim de passagem
por um homem, o boné na mão, que pedia ao Sr. doutor Servais (um figurão na província) que fosse ver seu filhinho atacado de crupe, prometendo-lhe passar em sua
casa depois do jantar. Seus amigos, ao se despedirem, prometeram ir vê-lo um dia em Amiens e ele 1)rometeu, por sua vez, escrever-lhes e na verdade sua vida era
feita da deles, que ele não sabia o que seria dele sem eles. Mas aos poucos, em Aimens, os novos conhecimentos tomaram o lugar deixado vago pela ausência dos antigos
e se implantaram profundamente em seu coração ainda vívido. Ele os esqueceu pouco a Pouco. No entanto, às vezes, e até depois dos cinqüenta anos, trotando em sua
carruagem para voltar para casa, na Rua Basse, onde ia ao lado de um doente, pensava de súbito em Etrat e nos outros, pensava nos que mais amara sem tristeza, sem
desejo de revê-los, e se eles tivessem anunciado sua visita teria ficado muito aborrecido, com pressa de vê-los partir novamente, a fim
de voltar à tranqüilidade no meio daqueles entre os quais girava comodamente sua vida, como outrora girara com eles. Mas pensava nisso, e em sua juventude, com doçura.

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XIV. Uni jantar na cidade

A duquesa de T. convidara G. com o grande médico M. Encontraram-se para jantar. G. ouvira dizer que M. era o médico mais inteligente que havia. Ássim, confiava
o seu tanto nele, explicando-lhe seus males, que ele talvez pudesse curar: M., que lera os livros de G., estava interessado em conhecê-lo. E, interessando-se pouco
pelas doenças de G., estava curioso em ouvi-lo falar de seus livros. Pois um médico é um homem que gosta muito de ouvir uma cantora que canta bem e conhecer um artista
de valor, e por mais que a cantora lhe diga estar gripada, ele retrucará: - Que importa, já que canta tão bem -, e por mais que o artista afirme sofrer de insônia,
lhe assegurará: - Que importa, já que escreve livros tão belos. - Pois ele sabe que um homem que escreve belos livros é alguém que não dorme, que se julga doente,
que tem crises de asma que não é possível tratar, que consulta os médicos e que isso faz parte do talento. Todavia, gosta muito de ter como cliente um homem assim,
pois se acha que nada pode fazer em relação a sua asma, a suas insônias, a sua hipocondria, coisas que nunca foi possível curar e que são o próprio efeito de seu
gênio, a admiração que lhe tributa e que é composta do sentimento da notoriedade desse homem e da medida em que sua inteligência, tendo assimilado a inteligência
geral de sua época, assimilou a possibilidade de saborear romances naturalistas ou poemas "de grande envergadura". Por isso gosta de fazer esperar seus clientes,
se preciso, para recebê-lo, não para se ocupar de suas insônias, que para ele são coisa vulgar e que fazem parte de um homem de gênio como a inconveniência dos mosquitos
de uma bela viagem à Itália, mas para fazê-lo falar sobre mil assuntos, o que faz com que, quando G. morrer, ele possa, ao conversar com um confrade mais idoso,
lhe contar muitas lembranças de G., de modo que o confrade, ao voltar para casa, há de dizer à mulher que T. conheceu muito G., e que lhe contou coisas muito interessantes,
que será preciso

577
convidá-lo aos nossos jantares, diversas impressões favoráveis suscetíveis de se transformarem,

mais dia menos dia, num voto
para a Academia de Medicina. E durante a sua vida, T. recebe G., G. que não vai a parte alguma e janta em sua casa com a promessa de que tal coisa não lhe fará mal,
e de fato assim pensa, pois como é um médico muito inteligente sabe que os escritores que têm insônia receiam os jantares na cidade e não pensam que todos os jantares
citadinos do mundo possam coisa alguma contra essa grande lei da natureza." Assim, G. não pode deixar de ter uma grande decepção com T., que não lhe dá nenhum remédio
para a asma, e cujo olhar, em compensação, brilha admirativamente quando o ouve falar de seus livros, vendo que foi íntimo de Flaubert, de sorte que G., frágil,
sofredor, inquieto, contando com o apoio da sólida base de T., vê ao contrário, com pasmo, que T. é quem busca apoio nele. Confrades eminentes chegam para se encontrar
com G. Convidam amavelmente a família inteira de tal mestre eminente, cuja filha se interessa pela literatura e ficará feliz em conhecer G. Mas seu pai, inflexível,
nem por isso deixará de votar contra T. nas eleições futuras. E de fato, sem dúvida, os médicos puderam verificar que os literatos dormem mal, sofrem de doenças
rebeldes, são difíceis de tratar e desejam ser drogados, são presa fácil para os hipnotizadores e os charlatães. Os homens de negócios podem constatar que os poetas
são desordenados e também presa fácil para os charlatães. Os homens de ciência podem notar que os poetas dizem facilmente coisas que espantam em pessoas inteligentes
coisas que poderiam fazer com que fossem tidos por imbecis, como por exemplo, falar às vezes de pressentimentos, de superstiçõe variadas sem muita dúvida. E poder-se-ia
achar também que são indulgentes com os vícios, e até com certos crimes, que encorajam a preguiça dos jovens, que estimam demais um passeio no campo, uma paixão,
e que são muito severos com os professores, com as aulas, os estudos, que gracejam, rindo muito, com pensamentos e frases que parecem bem razoáveis, em tal ou qual
livro ou jornal, e que desfalecem diante de um nome, de um fato que parece tão puramente formal que não possa conter nada capaz de reter um ser pensante, e que assim
chegam a confessar terem sido conduzidos a tal oreferência a tal decisão, por tal motivo pura

mente exterior, para uma região em virtude de seu nome, de um modo que deve cobrir de vergonha todo ser racional, que eles se divertem com os operários e os camponeses,
e acham idiotas pessoas de grande reputação que são generosas e egoístas. E muitas vezes acham também que são bem superiores a seus livros, pois têm uma visão superior
sobre todos os assuntos que podem interessar a um homem inteligente, ao passo que só pegam da pena quando são solicitados por um demônio interior que parece deleitar-se
apenas em certos locais onde viveram, nos leitos bem espaçosos onde dormiam escondidos sob as cobertas, numa aldeia onde as horas soavam na praça à noite e onde,
antes de adormecer, podiam, descerrando a cortina, ver o céu azul cheio de estrelas e as casas num misto de sombra e luar.
Voltando à noite para casa, Jean encontrou o bilhete que a mãe lhe deixava todos os dias ao se deitar, e no qual pedia que lhe dissesse exatamente a hora
ao invés de se referir a vagos $&não é muito tarde", se deitaria enfim mais cedo essa noite, sua grande preocupação. A cada noite o pedido assumia uma forma diversa.
Nessa noite desenhara um quadrante e dissera que marcasse sobre ele a hora em que chegara. Cada vez que nos dedicamos a um certo número de idéias que não escolhemos,
que nos são fornecidas pelas circunstâncias e são muito limitadas, chegamos a achar entre elas, sem cessar, relações novas e atraentes. Assim os amantes espirituosos
que chamam determinadas coisas por certos nomes figurados, chegam a se escrever sobre tais coisas, todos os dias, com cores novas e requintadas. Assim, quanto a
esse bilhetinho de dormir, a Sra. Santeuil encontrava a cada noite uma invenção nova e atraente. Sem dúvida é por isso que as mais brilhantes páginas de um autor
são com freqüência um trecho imposto, como, por exemplo, um prefácio encomendado, um determinado artigo. A matéria sobre a qual se debruça o espírito não é o próprio
espírito, sempre fugidio e por investigar. É um termo fixo que não muda, sobre o qual o espírito vai, volta, ricocheteia cada vez com mais força e brilhantismo.
E quem tenha o costume de se maravilhar com minha surpreendente invenção numa carta, num dever, numa conversação, não encontrará nada disso numa obra em que a matéria
é invisível
IX

A respeito do amor. - Os amigos de Frãn
çoise. - A bolinha de ágata. - Inverno
nas Tulherias. - A marquesa de Val
tognes. - OSr. de Villebonne. - A Sra.
de Thonnes. - Jean e a Sra. Desroches
visitam a exposição Bergotte. - Ojantar
da Sra. Cresmeyer. - Henri Loisel e a
Sra. Delve~. - A duquesa d'Alpes. - Os
presentes. - Primeiro fracasso. - As con
fissões. - Saraus perdidos. - A sonata.
I. A respeito do amor

Stendhal, que é tão materialista, para quem as coisas exteriores
às nossas disposições, mesmo às nossas disposições físicas, pare
cem possuir importância real para nós - "somos menos felizes
do que. . ., embora tenhamos ponche à romana" (seria necessá ' -
rio, para um idealista, colocar na lacuna: o apetite) "essa pessoa,
por sua conversação, não levava etc." - sempre colocou acima
de tudo o amor, que para ele parece formar um corpo só com
a vida interior. Oque nos faz amar a solidão, ter mil pensamen
tos, o que faz com que a natureza se nos torne incompreensível
e eloqüente é, para ele, o amor. Parece só haver conhecido a
poesia sob a forma de amor. Não chegamos até aí. De fato, o
amor se assemelha à poesia por libertar-nos dos outros, por de
volver-nos a solidão, pelo encanto na natureza. Mas é uma fase
estranha da vida essa sujeição da poesia que exclui toda preocu
pação individual num determinado indivíduo, essa unidade da
natureza reconduzida a uma individualidade dupla. Um indivíduo,
por mais notável que seja - e no amor em geral ele não tem
nada de notável -, não tem qualquer direito de limitar assim a
nossa vida interior. Não existe nenhuma relação real e profunda
entre esse perfil, momentaneamente atraente para nós, e nossa
vida interior. Os pensamentos entre ' os quais se interpõe, e que
se agrupam em torno dele, não lhe pertencem sob título algum.
Lá dentro não podemos ver nada de real. E entretanto trata-se
de toda a nossa vida interior, que se acha assim sistematizada, de
modo que o universo acaba sendo uma espécie de atrelagem para
conduzir a dois. E é incontestável que um artista, um filósofo,
um poeta podem, de súbito, sem que isso represente uma dimi
nuição de seu gemo que o. reduzisse à sua débil personalidade, a
individualidades, ver seu pensamento desdobrado e sistematizado
Era justamente em Stendhal, que citávamos há pouco, que Jean pensava sempre, sonhando com o perfil puro e despenteado que conferia . há coisa de um mês um
novo encanto a sua vida. Não podia dizer que estivesse apaixonadíssimo pela Sra. S., mas talvez justamente por causa disso desfrutava o prazer que sentia ao perceber-se
apaixonado, que em vez de ir todas as noites às reuniões sociais ia ver a 'Sra. S. na casa dela, que lá ficava até tarde e ao voltar de noite tinha diante dos olhos
o perfil puro e sorridente, sempre à mesma distância, do mesmo modo que tinha à mesma distância de seu carro descoberto, nas noites belas e radiosas, a face pura
da lua. E era feliz de sentir-se invadido, na casa dela, na volta, e em sua casa ficando a pensar nela, por esse prazer que nos separa dos outros e nos faz conhecer
novos, cuja vivacidade vira em Julien Sorel, em Fabrice Del Dongo, no livro De Vamour, sem o ter experimentado posteriormente. Bem cedo se deu conta de que não poderia
ir para a cama com essa jovem viúva independente (ela o recebia todas as noites das dez às duas da manhã; aliás, ele só a desejava muito pouco) mas honesta, que
não a poderia sequer beijar. Essa quasecerteza provinda de declarações categóricas teria sido suficiente para matar o amor

já que este parece residir numa espécie de expectativa quanto à maneira ainda desconhecida pela qual se realizará nossa tomada de posse da pessoa amada e
que se tem razão quando se diz que ele vive de esperança. Mas certas palavras, certas cartas, uma espécie de segurança de ser para ela o que ela era para ele, esse
modo de recebê-la todas as noites, e de absolutamente não escondê-la frente a várias pessoas, e de escondê-la frente a outras, eram suficientes para entreter nele,
por algum tempo ainda, esse amor privado de certa forma do objeto do amor que nele reinava, como muitas paixões que só senti-
essa ausência de esperança determinada na pessoa que dirige seus pensamentos para a satisfação que existe em amar, ele fruía mais com seu amor do que com sua amante.
Assim, essa sensação amorosa era-lhe talvez mais voluptuosa e fazia-o pensar nela como numa espécie de prazer3 mais vivo do que aqueles que até então ornamentavam
sua vida e, desse modo, lhe lembravam Stendhal, fazendo-o considerar o amor como um modo infinitamente mais agradável de desfrutar a vida e de achar atrativo na
solidão.
Além disso, a partir de certa idade, quando nossas idéias filosóficas já assentaram, fruímos melhor as coisas porquanto já não lhes buscamos o fundamento
metafísico. Sabemos que as sensações que se nos apresentam de um modo vivo e particular, despertando em nós uma ressonância poética, são reais nesse, caso, e não
procuramos discuti-las, o que nos confere uma espécie de sossego para que as gozemos. Certamente apreciamos melhor o teatro quando gostamos e a peça é ruim, do que
quando, insensíveis, estamos num belo camarote diante de atores preferidos. Mas, quando se ama o teatro e se busca nele o absoluto, quando se devora cada entonação
para tentar apreender qual a importância que ela pode ter para o nosso espírito, e qual o seu valor, já não se tem mais nenhum prazer. Oamor nos concede esse tormento
na mais tenra juventude, sem contar com os outros tormentos. Será que o amor é como essas doenças que nos atacam de tempos em tempos durante a vida inteira, mas
que vão sempre se enfraquecendo, e das quais nenhum acesso igualará em violência o primeiro? Acaso sabemos que jamais voltaremos a encontrar a violência do primeiro
amor? Talvez, também, nossos amores seguintes sejam menos sinceros porque conhecemos melhor a vida e buscamos mais egoistamente a felicidade. Se um homem inteligente,
ciumento e com medo de sofrer diz de si para si como Jean: "Se ela é apenas muito gentil assim, e eu puder vê-la o tempo todo durante quinze dias, em quinze dias
deixarei de ainá-la. E tomara que não me cause mágoa, pois do contrário eu me tornaria um chato", dirá à amante: - Quando uma mulher me magoa, deixo de amá-la. Amo-a
apenas por causa da gentileza com que me trata. - Se tem medo de a amar por muito tempo lhe dirá que receia ainá-la só nor nuinze dias se é verdade aue ele
volúvel. E se ela lhe diz "não posso vê-lo esta noite", ele responderá empalidecendo: "Ora, por quem é, nada mais natural." Pois o que deseja dela é o amor, e sabe
que o que guiará o amor não é a confissão do seu. De modo que muitas paixões, ao irromperem na maturidade calejada, que já suportou várias em toda a vida, parecem-se
tanto com a paixão primitiva como as rosas silvestres com as rosas cultivadas, ou melhor, como com as plantas autóctones as mesmas plantas removidas e debilitadas.
Sem dúvida, há uma primeira declaração. Mas logo receamos renová-la, fechamo-la em falsa indiferença, falsas ameaças, falsa infidelidade. E como tudo em nós foi
adulterado pela vida, sensibilidade, sinceridade, até memória, e mesmo o sentimento bem nítido de nossa personalidade e da realidade de nossos sentimentos, às vezes
nem mais sabemos se estamos ou não apaixonados. Somente os nossos atos, que perTnaneceram relacionados com o verdadeiro instinto que o cérebro já não distingue,
testemunham a sobrevivência. Indagamo-nos se a morte de nosso avô nos contrista, mas, ao nos aproximarmos de seu quarto, rebentamos em soluços. Não sabemos se ainda
temos coração, mas damos nosso dinheiro a um desgraçado. Temos como que junto a nós, sem ter mais a faculdade de ler em sua alma, uma criançd que chora e que pratica
o bem. Não sabemos se ainda amamos a Sra. S., e todas as noites vamos vê-la, e a visita que vamos fazer-lhe perguntando-nos se isso lhe dá prazer, ela a desmarca
sem se dar conta de que recebemos um golpe em pleno coração.
Tanto parece que isso suceda nas partes defesas à nossa consciência que a nossa vida instintiva continua a se desenrolar o tempo todo, assim como o pulso
bate e o sangue circula.
E para voltarmos a essas mentiras do amor, cumpre-nos tam bém dizer que a vida, habituando-nos a não esperar demais dos outros e tendo-nos apresentado já
a imagem daquilo que no agrada, incita-nos a esperar unicamente o que o acaso nos dê e a pedi-lo nós mesmos. Oamor nos aparece mais como uma sensação subjetiva:
por isso é um prazer cujas condições conhe cemos, mais do que a busca de um objeto ao qual teríamos de nos subordinar inteiramente. Desse modo, insinuamos facilmente
à mulher que amamos as coisas que desejamos, seja sob o pre texto de fazer durar nosso amor seja assegurando-lhe que isso
a exalta, de maneira que nosso prazer-se torne maior e que ela pareça mais encantadora a nossos olhos. - Não se preocupe com nada - dizia Jean à Sra. S. (para não
dar a impressão de insistir muito) -, mas se pudéssemos nos ver todas as noites, isso prolongaria meu sentimento. Diga-me palavras doces, solte os cabelos, ponha-se
de perfil, mostre-se jovial. - E de fato, certas noites em que, de perfil, os cabelos soltos, muito jovial, ela lhe dissera coisas mais doces, ele sentia que a amava
mais, e demonstrava-o a fim de fazê-la recomeçar. Não procurava indagar de si mesmo o que ela fora antes dele, o que seria depois, assemelhando-se o tempo, para
ele, ao espaço e tudo que não estivesse de imediato sob seu raio visual ficava escondido por trás do vago horizonte que o olho não busca penetrar atrás nem na frente,
e após o qual parece não haver mais nada. E tudo isso, * amabilidade para com ele, a jovialidade que parece apagar tudo * que não se refere a nós, toda preocupação,
os cabelos soltos sobre as linhas do rosto, porque ela era assim, isto é, essa cabeça misteriosa interposta entre ele e a felicidade cujos raios só dela podiam provir
- uma mulher, quando pensamos nisso, não sendo ela mesma por inteiro e sim esse aspecto dela que associamos a tantos devaneios -, -tudo isso era para que ela lhe
pertencesse mais: o que ele procurava de todas as maneiras, dando-lhe satisfação, prestando-lhe serviços, empenhando-se em lhe parecer dotado de todos os prestígios,
cuidando para que ela dissesse abertamente que viesse todas as noites, não deixando de estar a seu lado, o que bem provava então, se ela o dizia, que não era só
para agradá-lo, mas na realidade como um fato que ela reconhecia suscetível de ser aceito por todos, que ela lhe dava essa situação privilegiada. E se ele levasse
um amigo à casa dela, sentia-se contente quando ela lhe pedia, diante do ami go, que ficasse depois que o outro saísse, que o chamasse pelo nome de batismo, que
ela lhe fizesse elogios ou críticas que de monstrassem que tinham vida em comum, que ela dissesse: Se o senhor o conhecesse tão bem quanto eu -, que falasse de coisas
que tivessem lido juntos, para mostrar que tinham idéia comuns, que havia nela algo de registrado por ele, que ela dis sesse: - Aqui está o livro que esqueceu, trate
de responder à
se preocupava com que ele fosse delicado, que as obrigações de ambos eram as mesmas, e que seus projetos do dia seguinte seriam resolvidos em conjunto, que ela dissesse:
- Vai lá? Se for, também irei; não sendo assim, se prefere vir aqui, venha, tudo o que quero é vê-lo.
Uma noite, ao sair de um sarau aonde tinham ido, ele foi a outro para o qual ela não fora convidada e talvez para fazer um?, dessas coisas que ele dissera
lhe dar tanto prazer, ela havia dito: - São onze horas, vá. Volto para casa, mas ficarei esperando; não deixe de vir à meia-noite e meia. - Ele sabia que isso lhe
era indiferente, mas estava feliz com uma tão grande gentileza que fechava antecipadamente a porta a todo ciúme, a toda dúvida acerca dos seus saraus. No outro sarau,
divertiu-se, e perto da meia-noite e meia estava bastante aborrecido por ter de sair para encontrar-se com ela. Chovia, só encontrou uma carruagem descoberta e-
durante todo o trajeto não se sentia lá muito satisfeito. Pois a partir do momento em que, por pedido seu, sabia que ela tinha somente a ele para ver, teria preferido
ir dormir em casa com essa certeza a lhe dizer boa-noite ainda outra vez. No entanto, dizia consigo: "Não fico neste sarau pois existe uma mulher a quem amo e a
quem vou ver. Ela me espera, este amigo que acabo de cumprimentar vê que não volto para casa. É que agora há outra coisa em minha vida além dos prazeres mundanos,
algo mais doce, visto que os sacrifico a ele. É bem agradável não sermos a pedra angular de nossa existência, quando ela se une assim a uma pessoa, porque não nos
sentimos mais um único ser, e sim dois, de modo que temos, como que dentro em nós, uma espécie de desconhecido que é ao mesmo tempo nós mesmos e alguém que não conhecemos
antecipadamente como sendo nossa própria pessoa." E embora não sentisse muita satisfação em voltar assim tão tarde para vê-la, agradeceu-lhe efusivamente para que
ela compreendesse que esse tipo de proposta, ao eliminar antes de tudo qualquer hipótese de sarau passado com outros que não ele, impedindo a iTrupção do ciúme,
devia perpetuar, conforme ele dizia, devia pelo contrário, ele o sabia, causar a morte doce de seu amor. E, na verdade, ele não via mais coisa alguma que pudesse
interromper e anuviar o seu

No dia seguinte ela lhe disse que se sentia cansada de ter velado até tão tarde a noite anterior (ele ficara muito tempo depois do sarau) e quando deu meia-noite
lhe pediu que a deixasse deitar-se e fosse embora. Ele lhe disse adeus, não sem ter antes olhado o outro quarto, e saiu. Já em casa teve vontade de sair de novo,
tomou um fiacre e, saltando não longe da casa dela, entrou na rua. E de súbito percebeu por entre os postigos fechados das duas janelinhas a luz dourada que inundava
seu quarto.

Quando chegava por volta das dez horas, era desse modo que sabia que ela estava em casa, e essa luz era como uma doce garantia de sua presença. Agora, mais
de duas horas depois que a deixara, era a prova execrável de que ela recebia alguém pelo qual o fizera partir. Bem que gostaria de saber de quem se tratava. Sem
fazer ruído, abaixou-se, colou os olhos no anteparo para ver através da fresta, mas cs postigos oblíquos não o deixavam ver nada. Contudo, era evidente que a janela
estava aberta. Eles sentiam calor. Ouvia o rumor de uma conversa. A primeira dúvida que tivera quando ela lhe pedira, perto da meia-noite, que a deixasse dormir,
a sensação de achar que alguma coisa sua fora talvez alienada, destacada de seu coração, dada a outros, voltara carregada de uma certeza quase pungente quando vira
luz em seu quarto. Sem dúvida, ele sofria, detestava essa luz que via e, na qual se movia o par inimigo, execrava esse rumor de vozes que fora a revelação da presença
do outro, que significava a cumplicidade, a entrada após a sua partida, a falsidade de sua amante e sua tranqüila felicidade agora. Mas pelo menos ele acabava de
obter um espécie de vantagem sobre eles, tinha-os à mão, e se batesse para que mandassem abrir a janela, ainda assim seria ele o vencedor nesse momento, visto que
ela seria surpreendida, ficaria confusa, envergonhada, seria obrigada a se refugiar em sabe já que mentiras, já que nesse instante não era ele o enganado, o logrado,
e sim eles. E depois ele tinha como que o conhecimento de um fato nesse mistério que o perturbava tão dolorosamente Dizia consigo: ao menos percebi isso, sei disso.
Embora sua vida com ela fosse algo que não conhecia, que escapava à sua apreensão, eis que um acaso, como uma grande laçada, subtraía-lhe uma boa parte. Estava
um pouco envergonhado de bater, de mostrar que havia voltado mas, por outro lado, não podia
çesistir ao desejo de que eles soubessem que estava lá, que soubera de tudo. E, além do mais, todas essas coisas que de longe, quando ele pensava que isso se passava
à sua revelia, sem que dessem por ele, quase contra ele, perturbavam-no, parecia-lhe que, vendo-as, quando elas aconteciam, qualquer vergonha que tivesse, qualquer
aborrecimento que sentisse ao voltar, pelo menos depois lhes teria eliminado o mistério. Ia bater no postigo. E o coração batia-lhé com força no peito, como quando
se vai operar uma grande mudança em nós. E, com efeito, sentia que à sua vista, no constrangimento de seu retorno inesperado, sua angústia se mudaria em confusão,
em cólera e em desgosto de si mesmo e de uma vida que perdera subitamente o seu encanto.

Sentia certo prazer em perceber esses fatos que ia tocar e que se manifestavam por detrás dos postigos iluminados, nesse rumor de vozes que se ouviam através
da janela aberta, sem dúvida enquanto eles se despiam, luz e vozes que eram para ele o mesmo aguilhão doloroso de quando o haviam magoado, pois na verdade queriam
dizer: "Ela esperava alguém, há alguém agora que ela crê que tu partiste." Mas o amor, que confere tanta paixão à pessoa a quem amamos, e que quando vemos que ela
não nos pertence inteiramente, que é talvez inteirinha de outros, confere, através do ciúme, que é como o seu avesso, uma curiosidade tão apaixonada de saber tudo
aquilo que a pessoa amada faz, transformava para ele esse pedaço de vida secreta, essa página oculta de realidade que se lhe anunciava por meio dessa luz, em objeto
de imenso interesse e que, apesar do que implicava de doloroso, dava à sua inteligência uma espécie de satisfação. Aliás, estava ciente de que isso só serviria para
fazê-lo detestado por ela, para dar-lhe uma espécie de vantagem por causa de seu retomo vergonhoso, mas pouco importa: freqüentemente, pomos a satisfação imediata
de uma necessidade, quando ela só depende de nós para ser satisfeita e que para tal não há uma série de atos a cumprir, cuja obrigação nos permite, em conseqüência,
entregarmonos à inércia, pomos freqüentemente a satisfação imediata de uma necessidade bem acima de prazeres mais profundos e duradouros, se estes estão mais longe.
Quase todos nós destruímos em embrião os bens de opulentas messes que nos teriam cabido. Seu coração al itava ele bateu. Ouviu chegarem à janela, começarem a abrir

e então, contente pelo fato de que ela soubesse que não fora enganado, que ela fora surpreendida, para não dar a impressão de que dava o braço a torcer, disse, ames
mesmo que a janela se abrisse: - Não se incomode, não abra, queria só ver, já que passei de novo por aqui e, tendo visto luz, vim para ver se estava adoentada. -
O postigo se abriu por completo, um velho senhor apareceu, e um outro que estava a seu lado. Por um instante ficou desconcertado. Osenhor disse: - Mas eu nem sei
com quem estou falando. - Ele compreendeu - e além do mais o quarto desconhecido, pelos postigos agora abertos, se oferecia a seus olhos - que se enganara de janela,
que a janela iluminada não era a de sua amante, que era a terceira mais além, completamente às escuras. De fato, quando ele ia à casa dela desse modo, a única coisa
que o guiava era essa luz que ela acendia para que soubesse que já voltara para casa. E tendo visto uma janelinha acesa, já contando, em virtude de seu ciúme, encontrar
a janela iluminada, não duvidara um só instante de que fosse a dela.
Afastou-se pedindo desculpas e voltou para casa bastante envergonhado. Não contou essa aventura a ela. Conservou a lembrança desse novo estado de dúvida
e angústia que havia conhecido, embora a contingência dos fatos não o justificasse, mas que, logicamente, do ponto de vista da possibilidade das circunstâncias,
teria podido, podia mesmo ser justificado. Depois sua doçura afundou essa impressão sob impressões contrárias tão freqüentemente repetidas. E entretanto quando ela
lhe dizia: - Não o verei esta noite - ele sentia um pequeno golpe, afirmava estar bem, mas ao cabo de uma hora ela própria se impressionava com sua tristeza, seu
langor, sem adivinhar-lhe a causa.
E havia um homem atraente que ela conhecera, e elogiava, e a quem visitara. Jean nunca ia vê-la à urde. ma tarde lá foi
tocou a campainha, ouviu rumores, e dep is, por mais que tocas
se, ninguém abriu. Disse consigo que talvez houvesse alguém,
a quis perturbá-los, bater na vidraça, mas ninguém abriu. Duas ho
3, ras depois, voltou. Ela disse que estava em casa quando ele
o tocara, mas dormia; correra atrás dele e ele já fora embora.
o Ouvira baterem na vidraça. Se ouvira, poderia ter aberto. Mas
ele não lhe apontava as contradições que percebia. Estava curio
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so de ouvi-la falar, talvez mentir, sentindo que eram todas essas duas palavras que não tinha podido ler se Mostraram e então a
coisas que amava, que desejara e não podia saber, que estavam frase toda se esclareceu: "Fiz bem em abrir, era meu pai."
ali diante dele, que se desdobravam desajeitadamente sob a pres- Em abrir! Então ele estava lá quando Jean viera e ela o fizera
são de sua triste curiosidade. E o que lhe pareceu mais revelador voltar; daí o rumor que ouvira. Então pôde ler a carta inteira,
foi o ar tão entediado que ela ostentava por não ter podido rece- compreendeu por que ela se desculpava por agir sem modos
bê-lo, uma vez que viera de dia. Mostrava-se profundamente com ele e lhe dizia que esquecera os cigarros em sua casa, o que
aflita, tinha a voz triste, o que não bastava para explicar a pena ela dissera a ele próprio, Jean. Mas a ele acrescentara: - Se
de lhe haver faltado, já que o via naquele instante. Sentia-se, por pudesse deixar também um pouco de você mesmo eu o teria
detrás de sua tristeza, como que o tédio de uma ação má, a cuidadosamente guardado; - na carta, nada. De resto, nada de
pena que tinha de mentir para coisas complicadas, um tanto carinhoso, nada que pudesse fazer crer que existisse algo entre.
como se ela julgasse dever pedir perdão pelo que fizera, sempre eles, nenhuma alusão. E no entanto, por que não abrir, por que
dizendo que fizera coisa bem diversa. Ele queria voltar dentro dizer: "Fiz bem, era meu pai"? Se não acontecera nada até então,
de uma hora. Ela o dissuadiu disso. E nem por isso ele ficou como se explicaria que ela não abrisse? Ele permanecia ali, des
de sobreaviso. Pois, na ignorância dos acontecimentos que nos vairado, triste, mas tendo a verdade nas mãos, segurando-a por
são ocultados, é bem difícil que tudo que seja falso desperte acaso através do papel transparente de um enveiope que, na fé
nossas suspeitas e que a verdade seja o que imaginamos, pois ela que ela depositava em sua delicadeza, deveria protegê-lo (pois era
não é determinada só pelas -possibilidades que imaginamos e sim uma amabilidade dela, essa distinção, essa confiança) mas que
por uma realidade anter or que nã- conhecemos. o deixava entrever um pouco da vida secreta, da vida de sua
Amante infensa ao seu conhecimento.
Na verdade, os fatos de uma vida não têm interesse algum
pois são eventuais tanto para o homem de ciências como para o
artista, desprovidos do sentimento que produz a poesia. Mas o
ciúme e o amor, colocando nossa especulação, nossa vida inte
rior sob a dependência de uma pessoa, conferem não só aos nos
sos devaneios, como os chamamos, mas também ao objeto de
nosso pensamento, um caráter individual. De n. odo que, enquan
to se referem à pessoa que preside por essa época à vida de
nosso espírito, os acontecimentos adquirem momentaneamente
uma espécie de interesse em serem descobertos e conhecidos, que
faz com que a confidência, a espionagem e a curiosidade se tor
nem como que meios de conhecer o que então forma o objeto
de nosso conhecimento e que, sendo individual, só pode ser alcan
çado pelo particular. Então, o desconhecido para nós, aquilo
diante de que gira e ladra o nosso pensamento, é uma contingên
cia, a realização particular de acontecimentos de uma vida indi
vidual, o que sem dúvida não ocorre em nenhum outro momento
de nossa vida interior. Que fez ela hoje, quando nos disse que
fazia tal coisa, quais as suas verdadeiras relações com X., tal

Jean voltou à noite. Mas ela disse que se achava mais adoentada e lhe deu umas cartas para pôr no correio. Ele se retirou, tomou um fiacre e voltou para
casa. No momento de entrar, lembrou-se das cartas que recebera para postar. Foi até uma caixa de correio, pôs as cartas olhando os endereços. Todas para mulheres.
A última estava endereçada ao homem atraente que ela parecia ver com bastante freqüência na ocasião. Tinha-a nas mãos. Disse consigo: "Se soubesse o que está aqui
dentro, saberia como ela lhe fala, o que lhe diz." Entrou, mas trazia consigo esta última carta e a aproximou de uma vela. Primeiro, não podia ler nada. Depois pôde
ler o fim, já que o envelope era bem fino e reparou, prazeroso, que as fórmulas eram bastante frias. Todavia, preferia ter lido a carta toda, qualquer coisa insignificante
poderia interessar-lhe. Era preciso conservar a carta que dançava no envelope, fazê-la deslizar de cada vez que lia uma palavra a fim de que a parte dobrada do envelope
não lhe ocultasse a seguinte. Mas não podia ler, tratava-se de algo que nada tinha de amoroso, e onde se cuidava de um pequeno acontecimento qualquer, relativo ao
pai da mulher. Havia um "fiz bem", mas ele não compreendia o que é que ela fizera bem em fazer. E, de repente,

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como as pôde ver o olho de Deus, eis o que responderia às perguntas que estamos sempre a nos fazer; eis o que realmente interessa ao nosso pensamento que só é iluminado
por esse indivíduo. Oque é, o que foi hoje, não segundo seus relatos mas em si mesmo, tal como era para o outro, para Deus, eis o que desejaria nosso pensamento,
e eis o desconhecido, eis o que ele não pode alcançar. Eis um pouco do que essa carta, como uma espécie de corte feito no desconhecido, lhe trazia, lhe punha sob
os ólhos, um pouco dessa vida verdadeira, o segredo de um acontecimento que provavelmente ele nunca teria conhecido, que ela nunca lhe teria contado, que fazia parte
desse desconhecido que elenão via muito jeito de atingir e que o acaso, um meio seguro, aclarava bruscamente, fazia-lhe aparecer, fazia sair da obscuridade de seu
quarto de postigos cerrados.

Até então, se ele achava fosse possível que alguém tivesse vindo, não podia dizer que suspeitava e tinha condições de atribuir o fato de não ter sido recebido
apenas ao desejo de não fazê-lo encontrar-se com uma pessoa que talvez não gostasse dele. Só reparou na contradição de ter corrido atrás dele e de ter ouvido bater
na vidraça e o aspecto tristonho (que provavelmente vinha do fato de que, naquele instante, ela esperava X. e que, temendo o tempo todo vê-lo chegar, sentia-se como
numa espécie de suplício nervoso que se manifestava por essa tristeza). Na verdade, havia outras contradições na narrativa dela, e ela sem dúvida o percebia, e a
tristeza provinha da dificuldade de inventar. Mas como Jean o teria percebido? Poderíamos conhecer o verdadeiro caráter das pessoas, seus sentimentos, e não poder
reconstituir as circunstâncias, tanto a realidade dos acontecimentos nos escapa, comoaquilo que existiu é diverso das mais engenhosas hipóteses, dos mais fundados
pressentimentos, de cálculos baseados no mais perfeito conhecimento do assunto. Um homem é apenas sensual e só quer saber das mulheres para deitar com elas, mas
quem nos diz que esta não é algo bem diferente para ele, um simples conhecimento? E essa outra, cuja casa ele freqüenta durante horas todas as noites, ninguém diria
que não há nada, aliás as maneiras deles indicam que há, e muito. Pois bem, não, não há nada e, além disso, ele nutre por ela o que jamais se pensaria dele, uma
paixão platônica. É verdade

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que o raciocínio contrário: é possível que não haja nada etc.,
não é menos injusto, já que raciocínio algum se aplica às contin
gências da realidade. Quando ele soube que a pessoa que esti
vera lá e que fugira era X., ficou extremamente enciumado ape
sar do fato de ela o ter também enganado ao dizer: "É meu
pai" e a esperança de lhe fazer saber um dia atenu ' ou sua cólera.

E assim como todas as pessoas que convidavam Jean com a
Sra. S. os censuravam, davam-lhe o prazer, que ele não ousava
esperar, de fazer com que passassem juntos o verão, lhe pareciam
bondosas, enterneciam-no, inspiravam-lhe os maiores elogios, as
pessoas que convidavam a Sra. S. com X. (podiam ser as mes
mas ao cabo de poucas semanas) estimulavam-lhe a tristeza, o
despeito, e a satisfação delas com a Sra'. S., seus rogos para forçar
X. a vir lhe causavam essa espécie de amargura na qual tudo o
que se faz a nosso redor nos surge de maneira desagradável, em
que sublinhamos impiedosamente todo ridículo, toda fealdade. As
pessoas apaixonadas conferem com facilidade todas as virtudes
àquelas que lhes são amáveis, e todos os defeitos às que lhes
desagradam. Num poeta que se serve de sua inteligência na vida,
isso leva a panegíricos ou a diatribes motivadas, baseadas aparen~
temente ' em razões profundas cuja fraqueza real transparece se,
sobrevindo uma rusga ou uma reconciliação, a situação mudar.
Mas no amor, como são mais fortes esses sentimentos. A todo
minuto, uma dona-de-cas.a preenche nossos mais caros votos ou
nos causa o mais intolerável suplício, como, por exemplo, ao
insistir para que a Sra. S. e X. voltem juntos e dizendo-nos:
- Boa-noite, o senhor voltará sozinho. - Então, como os mes
mos sorrisos que nos dão tanto prazer, essas conversas naturais,
esses convites diários, nos quais descobríamos uma doçura encan
tadora, achando que era o único ambiente agradável de freqüen
tar, enternecendo-nos com a bondade. o espírito e a amabilidade
de'uma dona-de-casa, tendo lágrimas nos olhos, como esses mes
mos sorrisos, esses mesmos convites, quando nossa amiga deixa
de endereçá-los a nós, para entregá-los ao nosso rival, ferem nosso
coráção e nos dão a impressão de serem antipáticos, odiosos, e
como sentimos a falsidade disso tudo (La Bruyère: Nada se
Parece mais com a verdadeira amizade que essas ligações que, no
interesse de nosso amor, nos pomos a cultivar). Então as grandes

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palavras se comprimem na nossa boca, achamos que uma pessoa agiu conosco com ou sem nobreza. Na realidade, a nobreza estava ausente não só de sua conduta como dos
nossos sentimentos. Um procedimento nobre não nos causaria esse entusiasmo, mas a perspectiva de rever a Sra. S. no castelo em que estaremos, ou de vê-la arrebatada
de nós num castelo em que não estaremos e onde X. estará, causa-nos sentimentos bem mais vivos, que se manifestam com eloqüência e provocam, em nossa boca, todas
essas palavras de magnanimidade, de nobreza, que impressionam os interlocutores. Esperando a cada vez que a Sra. S. não nos queira ver nesse dia, mostre-se muito
embaraçada e aflita, ficamos infelizes, nossa cabeça busca adivinhar o que ela pode fazer. E aquilo que nos assegurasse a morte de todas as pessoas que lhe agradam,
ou até a sua morte para que ela não nos fizesse mais sofrer, nos daria prazer. Um dia, Jean ' encontrou uma parenta da Sra. S. que lhe falou da verdadeira e profunda
afeição que ela lhe dedicava, o quanto ela o amava. Nunca Jean gostou tanto desta parenta. Mas sentia-se feliz por outro motivo além dessas boa~ novas. Por um momento,
seu ciúme cedeu porque lhe diziam que na sua ausência ela se importava tanto com ele, ainda que, na realidade, ele imaginasse não ser nada para ela. Mas, além disso,
como quando fechamos um romance e nos vemos de volta à vida, seu amor se encontrava transformado numa espécie de amizade comovida com esse tipo de reciprocidade,
e, já não pedia mais nada, encontrando satisfação em vez desse amor que todos teriam censurado, isto é, essa amizade conhecida, aprovada, fortalecida com o assentimento
de todas essas pessoas.

Isso não passa de uma interrupção do amor. É às vezes a própria pessoa que, não tendo amor por nós e sim uma grande amizade, nos comove dessa maneira, fazendo
suceder, por um momento, ao amor infeliz a amizade perfeita. Seu término é às vezes causado por circunstâncias terríveis, discussões domésticas, ruína, cólera do
pai ou do marido da mulher que lhe lembram coisas extremamente desagradáveis e lhe dão a idéia de que tudo isso era um devaneio sem fundamento e de que a realidade
é inteiramente outra, que é necessário voltar a ela, como se lendo Os Três Mosqueteiros almejássemos entrar no Élysée e fôssemos ao corpo da guarda. Mas na realidade
essa vida de discussões do-

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mésticas, de dívidas, de cólera não é mais real que a outra e os livros como De l'amour etc. mostram-nos bem a realidade desse sentimento. Mas o temor constante,
confessando o seu amor, de deixar aquela que se ama, estando convicto de não ter suficiente prestígio a seus olhos, confessando seu ciúme em fazê-la coquete, transformam
nossas cartas, nossas palavras numa mentira perpétua que afasta muito as aparências daquilo que experimentamos.
A memória às vezes se coloca de tal maneira contra nós no amor que, ainda que possamos nos figurar todas as pessoas insignificantes, não podemos nos representar
a que amamos, o que vale também de resto para os mortos que mais estremecemos. Então, se a ausência se prolonga e o amor parece totalmente acabado, lamentamos não
mais manter relações com essa singular força da natureza que podia fazer-nos sofrer mas pelo menos dava uma abertura à nossa vida em meio a uma corrente tão real,
tão curiosa, tão impossível de ser dada. E se então um nome lido por acaso nos dá um sentimento de ciúme, ficamos contentes em pensar que amamos ainda, como um último
mosquito ou os grandes calores nos fazem cair n'água e nos dão o prazer de nos sentirmos ainda no verão. Mas é triste pensar que nossa memória, nosso coração, nossa
imaginação funcionam tão mal que já não nos representam fielmente a pessoa que amamos, que, nesses bilhetes em que mascaramos prazerosamente nossos sentimentos a
fim de prolongar os seus, não os representamos para ela. Impossível ver sua imagem, impossível não mais sentir a doçura do amor. Sentimo-lo apenas nos atos, ele
se trai, por assim dizer, diante de nós como nos traímos diante dela. Onome do Sr. Z. próximo do local onde está a Sra. S. nos causa um choque. Se a Sra. S. estivesse
em Paris e nos mandasse dizer que fÔssemos vê-la, e se trinta pessoas adoráveis nô-lo pedissem, talvez não fôssemos ver a Sra. S. Em suas cartas, as mesmas exPressões
que em outra pessoa nos 1 deixam frios implicam uma aProximação entre tal insignificante figura e a nossa, deslumbramnos com um doce olhar que nos dirige, quase
um aperto no coração. E assim desejamos estar bem dispostos para ler suas cartas, CSPCramos poder apreciá-las bem, pois sabemos que essa leitura Por algum tempo
parece modificar estranhamonte as condições

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interiores de nossa vida, mas com tamanho atrativo, e isso decorrendo tanto das fontes da natureza em que não podemos tocar porquanto nos lembramos delas com uma
sensação que temos quando junto a nós sentimos algo onde palpita a natureza, por exemplo, em qualquer idade, quando, à noite, vemos um muro bem de perto, banhado
pelo luar e o desenho das sombras das folhas colore tudo junto a nós com força extraordinária, ou quando, enquanto falamos ou passeamos no silêncio em que apenas
falam a luz e as sombras, enxergamos a lua num ponto bem diferente do céu e prateando as águas do mar lá onde há pouco elas eram completamente escuras, do modo que,
saindo do porto à hora em que todos em geral vão se deitar, os barcos que dentro em breve terão ultrapassado o quebTa-mar vão ser iluminados em cheio pelo luar.
E assim como na fantasia amorosa feliz ou melancólica recebemos de uma pessoa toda a nossa poesia, também, no nervosismo doloroso do ciúme, a verdade consiste
para nós em acontecimentos, em ações, em sentimentos pessoais.

Odesejo de Jean, como o de todos os apaixonados, prendia-se
a algo impossível. 1
Percebemos bem, quando não somos amados, que nossos pensamentos em relação a uma pessoa e nossos incontáveis desejos nada têm que ver com a realidade. Mas
em vez de poder conferir uma espécie de realidade objetiva às nossas esperanças achando-as favorecidas pela pessoa, experimentamos uma grande felicidade em encontrá-las
nos poetas e nos músicos. E como os sentimentos que aí voltamos a encontrar expressos com tanta força e que conferem algo mais real ao nosso amor, afirmando-o como
coisa diversa de um sonho pessoal, não podemos separálos daquela que os causa para nós, chegamos a levar em consideração todas as suas juras de amor, todas as frases
apaixonadas que há na poesia e na música, como as recordações de um amor recíproco que teria existido realmente entre nós e nossa amada, que deveria ter existido,
de modo que nos regozijamos com essas fisionomias e repetimos esses versos enxugando os olhos,

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como se relêssemos as cartas de amor de uma mulher que depois nos tivesse traído. E nesse 'momento toda a poesia amorosa, toda a música amorosa nos parecem superiores
às outras. Ou pelo menos assim o afirmamos, embora talvez isso não exprima em absoluto o nosso pensamento. Mas a expressão desse julgamento é uma forma de deixar
transparecer a felicidade que essas palavras nos causam. Como diz alguém que acaba de levar um encontrão desastrado: "Que idiota, será que pode ser tão imbecil a
ponto de não olhar por onde anda?", assim também com maior freqüência falamos das- coisas por onde se esvaem o nosso nervosismo, nosso prazer, nossa mágoa, de preferência
a dizer que não são a imagem de uma idéia sincera. Quando estamos apaixonados, temos o máximo prazer em ver todas as pessoas que podem nos reaproximar de nossa amada,
falar-nos dela, saboreamos infinitamente o encontro de nossa amada e tudo o que ela diz. Assim ele se manifesta se, por exemplo, seu meio é o ambiente de médicos,
dizendo: "Confesso que é mais ínteressante passar a vida no meio dessas pessoas que etc.", e se ela é ignorante: "A instrução é uma coisa bem agradável, não acha?
Creio que há mais mérito etc." Da mesma forma os poetas do amor, os músicos do amor, que são ainda p,,-ssoas que podem nos falar dela, fazem-nos dizer: - Eis para
mim os mais belos versos da língua francesa -, o que significa serem estes os que nos dão mais prazer em repetir porque nutrem nossa esperança e consolidam nosso
amor por meio de razões extraídas não da pessoa e sim do próprio amor e da própria esperança, já que foram escritos há dois séculos.
Além disso, enquanto estamos apaixonados, tendo objetivos egoístas a atingir e para os quais empregamos nossa logomaquia, quantas cartas escrevemos em que
dizemos: "Só existe uma coisa realmente infame, que desonra a criatura que Deus fez à sua imagem, a mentira", o que significa que o que mais desejamos é que ela
não nos minta, e não que pensamos isso. Jean não lhe confessa que leu sua carta através do envelope, e como se abstém de dizer que sabe que um rapaz veio vê-la,
diz que o soube por meio de determinada pessoa que a viu: mentira. Oque não o impede de ter lágrimas nos olhos ao lhe dizer que a única coisa atroz é a mentira,
assim como não o impede de pregar na mes-

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ma noite mil mentiras às pessoas que não devem saber em absoluto que ele viu sua amada. Essa exaltação que nos faz proferir belas palavras com um objetivo e para
um fim interessado é o contrário da literatura que se esforça por exprimir com sinceridade o que sentimos. Daí decorre, sem dúvida, o antagonismo existente entre
a arte e a vida: e as pessoas que escrevem muitas cartas têm muitos objetivos sentimentais na vida (o contrário: Flaubert), têm menos talento, sobretudo aqueles
que falam demais. É verdade que em Musset, no Fantasio (nunca pude lê-lo sem ter vontade de amar alguém), e nele mesmo quando diz todas essas coisas onde é sagrado
o que dá alegria ao seu amor etc., existe esse defeito. Mas essas mentiras, ao passo que mostram com fidelidade o sentimento de alguém que, estando apaixonado, fala
tão mentirosamente, têm por isso mesmo a sua verdade e o seu encanto.
Nesse mesmo período do amor, os tratados sobre o amor interessam-nos infinitamente, assim como os romances, porquanto parece que o autor vai nos dar o modo
de fazer com que sejamos amados, como quando estamos doentes pensamos que um médico vai curar-nos e os romances nos parecem um exemplo de como obter sucesso no amor,
assim como um capítulo de história nos parece uma lição de política. Pois no momento em que vemos que determinado homem suspeito arrastou consigo as acusações etc.,
acreditamos poder desenvolver esta máxima: "Arrastemos nossas acusações etc.". Mas não são apenas os poetas e os músicos que vêm, ao nos dar a impressão de uma vida
misturada à nossa, assim como colocamos sob o nome dessa vida a vida de nossa amada, redobrar nosso amor; é muitas vezes a própria pessoa que, por um ato praticado,
por um objeto que nos dá ou que aceita, por uma palavra que pronuncia, por uma mesma aventura que nos reúne ou o fato de ouvirmos juntos um trecho de música, ou
de rermos um segredo comum ou de sermos tomados por amantes por um passante, nos deslumbra. Matna realidade o nosso pra2er corresponde à nossas ilusões e não às
suas intenções. Pois, quando não somos amados, todos os presentes que recebemos e que obrigamos a aceitar, todas as palavras, todas as situações da vida não contêm
sequer um pouquinho de amor. Teócrito diz que não existem pozinhos para fazer

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amar, mas nenhuma outra coisa tem esse poder. Apesar disso, deixanIo-nos levar por essas ilusões mas elas podem nos ser bruscamente subtraídas. Por exemplo, um velho
enamorado da Sra. S. passeava com ela, e Jean, mesmo sabendo que ela não o amava, estimulava esse passeio. A dama pronuncia sem querer o nome de batismo do velho
cavalheiro. E este, com lágrimas nos olhos, diz a Jean: - Como é belo o que ela acaba de dizer, como isso me fez bem. - E lembraram-se de uma melodia de que ambos
haviam gostado certa noite e voltaram a pedir aos ciganos que a tocassem. Havia justamente um pouco de amor nos versos. Ovelho cavalheiro estava como que enlevado
e Jean sentia o que havia de puramente subjetivo e ao mesmo tempo de hediondo em seu prazer (hediondo, talvez, porque de chofre ele lhe mostrava a vaidade do amor)
e que essas coisas, o nome de batismo na boca da mulher, a música etc., não tinham sequer vestígio de reafidade amorosa e, somente na imaginação do velho, pareciam
laços entre ele e a mulher, como guardar uma fotografia etc., ao passo que só o amor pode conter o amor.

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II. Os amigos de Françoise

Duas ou três vezes por semana, cerca das nove e meia, ele se afastava dela com um movimento brusco. A campainha acabava de tocar. Eram Saint-Géron, Griffon
ou Vésale, geralmente este último, que, morando sozinho, estava livre mais cedo que os outros. Enquanto o visitante deixava suas coisas na antecâmara, Jean se lançava
sobre Françoise e com sua boca ávida, aplicada, fazia como que provisões dela mesma, para encontrar, enquanto a presença deles o obrigasse a permanecer longe dela,
um pouco do gosto da pele dela nos lábios, onde sua língua, silenciosamente, pudesse ir buscá-lo. Ouviam-se os passos de Vésale, que vinha na direção do pequeno
salão. Françoise empurrava Jean com vivacidade, mas este se esquecera de lhe beijar o pescoço, via-o tão perto de si, não podia lembrar-se com exatidão de seu aroma,
e corria ainda uma vez em sua direção, beijava-a depressa no pescoço e ia colocar-se longe dela, já que a porta ia se abrir, e cuidava de lhe dizer, para que ela
não lhe debitasse esse favor: - Foi muito rápido, não tive tempo de sentir.
Às vezes, Vésale chegava com Saint-Géron. ODr. Potain o recomendara como o melhor de seus internos à marquesa de Saint-Géron, cuja anemia necessitava ser
tratada com muito cuidado para que o professor pudesse atendê-la nos momentos nec . essários, e muitas vezes Vésale escolhia a hora após o jantar para fazer sua
visita à Sra. de Saint-Géron. Guy de Saint-Géron se preparava enquanto Vésale estava à cabeceira de sua mãe, e ambos chegavam juntos à casa de Françoise. Vésale
levava seu violino, Saint-Géron o violoncelo. Logo chegava, sempre um tanto atrasado porque, cansado com as preocupações de sua grande indústria de carvão, fazia
uma curta sesta depois do jantar, Griffon com sua flauta. Embora de profissões e origens tão diversas, reinava entre eles a mesma harmonia que a música estabelece
entre esses três instrumentos. E se Vésale era um alsa-

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ciano robusto, de faces rubras e cabelos louros, médico jovial e tranqüilo, se Saint-Géron, cuja mãe era uma Lucinge, possuía essa beleza fria, melancólica e morena
que dá a essa família características quase orientais, se Griffon estimulara na febre dos negócios a vivacidade nervosa e a atividade prática de sua natureza meridional,
a música, tanto quanto a profissão ou a raça, dera, por sua vez, a suas fisionomias essa expressão especial que eleva com tanta nobreza o rosto daqueles que se entregam
habitualmente a prazeres desinteressados. Era acima de tudo nos olhos, bem como em certa suavidade da voz, que a música estabelecera, por assim dizer, sua influência
e manifestara seu poder. Entre os olhos azuis e tranqüilos de Vésale, os olhos negros e desdenhosos de Saint-Géron, os olhos cinzentos e cintilantes de Griffon,
e seus olhares, entre suas vozes e seus sotaques, flutuava permanentemente como que um vestígio dessa alma que a música liberta em nós. Restava-lhes nos olhos uma
parcela diminuta desse tipo de emoção tranqüila em que vivem os que, sentados numa cadeira sob uma boa lâmpada, saboreiam, embriagando-se de música, uma tristeza
cheia de alegria, uma agitação que produzem voluntariamente, que mantêm com movimentos febris de seu arco, ou dos lábios, e que de alguma forma é calma, porquanto
eles não buscam nela coisa alguma para si próprios e não lhe estão submeti-dos. Isso era sensível sobretudo nos olhos de Vésale, em quem a corpulência, os traços
belos mas grosseiros, o gracejo um tanto pesado, anunciavam antes uma vida material. Mas mesmo quando bebia cerveja ou jogava dominó, podia-se ver em seus olhos,
pois nada do que se passa em nós deles desaparece por completo, essa bela expressão em que o olhar parece, no objeto de sua admiração, procurar com fé e inquietação
alguma coisa mais, que ele ao mesmo tempo crê e não crê que pode encontrar.
As vezes, vinham ainda outros amigos. Com freqüência não se tocava música porque um dos músicos faltava ou então vinha sem o instrumento, ou preferiam conversar.
Nas primeiras vezes, Françoise ainda dizia: - Acho que conhecem meu amigo, o Sr. Santeuil. - Depois, Jean se uniu logo a esses rapazes.
Trançoise ocupava uma posição muito elevada na vida de cada um deles, tinha tanta importância como a própria música. Sen-

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do pelo menos uma instrumentista tão boa como eles, parecialhes superá-los em inteligência, talvez porque, maravilhosamente inteligente de fato, possuía para eles,
além disso, o prestígio de seu sexo, a autoridade do seu encanto e do seu caráter. Dizia-lhes de bom grado que jamais encontrara na vida alguém tão inteligente como
Jean. Por isso eles lhe dedicavam uma simpatia cheia de admiração e ao mesmo tempo o tipo de consideração que se tem por alguém que, desfrutando certa celebridade
mundana, preferia passar as noites a escutá-los, e a aplaudi-los com uma gentileza que os comovia ainda mais porquanto sabiam que a ela não escasseavam objetos em
que se exercesse. Jean conhecia os sentimentos que nutriam em relação a ele Vê-, sale, Saint-Géron, Griffon e os outros como ao real preferido de Françoise. Assim,
a presença deles lhe teria sido agradável se já não lhe parecesse reconfortadora e bela por todas as razões a que nos referimos, e se o espírito e o talento deles
não lhe tivessem chamado muito a atenção. Desde que lhes dava bom-dia, experimentava essa satisfação pura que dá a um homem amável o exercício de sua amabilidade
quando não está animado de nenhuma intenção de intriga, polidez, interesse, esse descanso que obtemos com as pessoas junto de quem não há por que pensarmos em nós
mesmos, nos fazermos valer ou tolerar, e onde, deixando expandir-se livremente nosso silêncio ou jovialidade, nossas observações ou perguntas, sentimos tanto mais,
desenvolvida no bem-estar de uma atmosfera cordial, a doçura de nossa própria personalidade que se desenvolve naturalmente. É assim que, estendido numa poltrona
ou em pé diante da lareira, apertando às vezes furtivamente os dedos de Françoise quando os outros não os viam, Jean ouvia a música, escrevia cartas, trocava opiniões
com Françoise, Saint-Géron, Griffon e Vésale acerca do caráter de' pessoas que conheciam, e que julgavam mais ou menos da mesma maneira, em geral com uma indulgência
cheia de finura. Consolavam-se dos mais imbecis rindo todos juntos deles, com a alegria dos que se sentem apreciados e compreendidos à primeira palavra e que às
vezes, entre uma mãe espirituosa e seu filho, entre dois irmãos, cria uma satisfação indefinível. - Eu via todos os dias a Sra. S. - disse Jean uma vez a Vésale
- para falarmos juntos da estupidez de nos-

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sos contemporâneos. Mas esta assumiu proporções tamanhas que fomos dominados, e sou obrigado a vir aqui até cinco vezes por dia. - Quando acabava de dizer algo engraçado
ou fazia uma observação profunda a respeito de música, Jean via Françoise mostrar aos amigos, como para fazê-los compartilhar com ela, uma expressão admirativa que
era então patente em seus olhos e no seu rosto. Tinha também um modo todo seu de dar a impressão de não ter ouvido, embora risse caso se tratasse de um dito engraçado,
para fazê-lo repetir e para que os outros apreciassem melhor, o que fazia brilhar na ventura de Jean como uma chama mais viva.

Desde a segunda noite, Jean pessou a voltar com Vésale, permanecendo um pouco no mesmo bairro. E conversavam com a timidez e a sinceridade dos que ainda
se desconhecem em parte, mas que se adivinham e gostariam de se conhecer. Cada um é delicadamente atencioso para com o outro, atenções ignoradas entre homens que
se conhecem há muito e entre os quais reina sempre uma certa rudeza. E as palavras cheias de espírito e significado comovem até mesmo aquele que as pronuncia e sente
que se revela, até fazer tremer sua voz como um vaso que um líquido fervendo em excesso trinca ligeiramente.
Pronunciaram o nome de Saint-Géron. - Oh! - disse Vésale - este é um amigo, é um coração como poucos, a quem confiaria qualquer segredo, que de mim só falará
bem. - Muitos anos depois, voltando da casa de uma dançarina, por quem se apaixonara, na companhia de um amigo, fiscal do teatro do Châtelet, onde ela trabalhava,
como o sujeito lhe falasse da admiração que a Srta. Zita lhe tributava e eles começassem a conversar com uma gravidade mais cordial, 'ean lhe perguntou por um ator
que fora por um instante à casa ]e Zita na mesma noite e que ela lhe apresentara. - Oh! - respondeu ele - é um camarada excelente como nunca vi. Mas também ele sabe
que pode contar comigo para tudo, assim como eu conto com ele. - Tais palavras recordaram a Jean, incontinenti, como uma harmonia idêntica desperta uma melodia esquecida,
aquela volta

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para casa, já tão distante, com Vésale, a quem ele agora não via mais. Não há quase ninguém, disse consigo, que não possua outro ser em cuja amizade possa depositar
o coração como um abrigo feito para ele. Todo mundo julga ter encontrado um ser único mas o grão de pólen que chega até o ovário não sabe que todos os grãos de pólen
têm o seu ovário. E a beleza dessas amizades não está, como eles próprios a julgam, num favor misterioso do destino, e sim numa lei salutar da natureza. Depois Jean
se lembrou de que Saint-Géron gracejava com alguns aspectos ridículos da mãe de Vésale. Mesmo certa vez, diante de uma mulher a quem ambos amavam, zombaram um do
outro com algum azedume. Mas, pensando no conjunto de sua vida assim como pudera aparecer-lhe no curto momento em que seu destino, como uma estrela errante que se
cruzasse com a sua e nela projetasse sua luz por um instante, Jean concluiu que Vésale não se enganava em crer que Saint-Géron fosse o amigo excelente que dizia.
Oualquer outro, como todo corpo terrestre, teria mostrado um dia o seu defeito. Pen-indo nos amigos, não achou um só que estivesse isento de falhas. Opróprio Réveillon
lhe causara aborrecimentos. Havia dias em que dava a impressão de não ser nada para Daltozzi. E mesmo sua mãe o chamara um dia de esnobe.

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III. A bolinha de ágata

Jean desejava enviar a Françoise um pequeno binóculo. E para lhe dar mais, procurando em que poderia mandá-lo, avistou um saquinho de belo tecido claro,
que pendia num canto de sua lareira desde que era criança. Desatou facilmente os cordões que o amarravam. Mas, quando o pegou, sentiu alguma coisa que rolava no
fundo. Era uma bolinha de ágata. Lembrou-se jogo de que era a que Marie Kossichef lhe tinha dado um dia nos Champs-Elysées. Como nunca lhe davam dinheiro, ele não
podia comprar bolinhas e, se lhe davam alguma, eram dessas de pedra, de uma só cor, opacas, bolinhas de um sou. Postas de parte numa gamela, na qual somente os grandes,
os ricos, ousavam manejá,-las, compará-las, escolher uma, as bolinhas de ágata, custando uma moedinha branca de dez sous cada, grossas, transparentes, com um brilho
suave como um olhar, inspiravam a Jean a admiração, o desejo, o frémito de uma beleza maravilhosa e proibida. Nunca sonharia em possuir uma. Os únicos meninos que
as possuíam eram rapazes com quem não lhe era permitido brincar, que usavam calças compridas e fumavam cigarros. Nessa idade em que a gente ainda não sofreu nenhuma
tentação, os vícios maiores são aqueles que nos são mais proibidos e que menos concebemos. Fumar cigarros pareceu por uiu;to tempo a Jean uma corrupção tão repugnante
que no seu primeiro ano de colégio, nas narrativas que escrevia à mãe, ~rando não alarmá-la e sim dar-lhe uma idéia da importância nova de sua vida, da prodigiosa
distância que o separava de sua vida na casa paterna, dizia-lhe: "Nosso professor é encantador -Mas leva uma vida horrível, é digno de lástima, creio que não o mandarão
embora porque é muito querido, mas sua saúde não resistirá por muito tempo. Enfim, ele faz coisas, não posso te dizer, sabes ... Não há momento em que não esteja
fumando um cigarro." E, com receio de ter ido longe demais, acrescentava: "Não vi, mas isso se diz em voz alta na aula."

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Mas se não aspirava a possuir uma bolinha de ágata, não podia deixar de olhá-las. Mais tarde, na vitrina dos ourives, dos museus, no pescoço e no cabelo
das mulheres, viu muitos diamantes, rubis e pérolas. Mas sentiam-se obrigados a fazê-lo reparar neles. Seu brilho cansava os olhos sem sequer atrair sua atenção.
Nunca nenhum Régent, nenhum diamante da Coroa conseguiu fazer com que sentisse, mesmo de leve, essa misteriosa avidez, essa admiração espantada que lhe inspiravam
no balcão da loja, perto dos cavalos de pau, por trás das granadinas e dos prazeres, as bolinhas de ágata azuis ou douradas, as bolinhas de ágata sorridentes. Um
dia Marie Kossichef lhe deu uma. A todo instante ele ia beijá-la. Perguntava-lhe se Marie o amava. Molhava-a com suas lágrimas e lhe dizia: vês, ficas comigo. De
noite, levava-a para a cama e, antes de dormir, punha-a sob o travesseiro, fechava-a no côncavo da mão, ou fazia-a rolar aos pés da cama, entre os pés que brincavam
com ela. E, quando era necessário ir jantar, sobretudo se Marie * ou algum outro estranho que não conhecesse Marie e troçaria de seu amor estivesse presente, ele
levava a bolinha consigo, conservava-a entre os joelhos, no bolso ou na manga e, aparentando pôr um pedaço de pão na boca, beijava-a furtivamente. Se Marie tivesse
apanhado um pedaço de madeira e lho desse, teria agido da mesma forma. Mas a bolinha de ágata lhe era mais doce.. Primeiro porque era tão preciosa, ele se, convencia
de que para lhe ter dado era preciso que Marie o amasse, e, adorando-a, era sua bondade para com ele, por assim dizer, que ele abençoava, sua confiança nela, cuja
prova palpável tentava aproximar de seu coração. E depois, tão inacessível a ele até esse momento, tão misteriosa, a tal ponto mais bonita do que aquilo que conhecia,
diferente de todas as outras com seu clarão dourado que parecia velar no fundo dela, essa bolinha era como uma espécie de criatura a um tempo viva e sobrenatural,
ligada para sempre à pessoa de Marie, ou, antes, à pessoa dele mesmo mas pela vontade de Marie, dada a ele como uma escrava ou um animal favorito, como uma escrava
a quem ele desse o tempo todo recados para ela e a quem pedisse sem

* Oministro Charles Marie. (N. do Editor francês.)

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parar notícias de Marie, e o que ela pensava do amor de Marie, e que, sem sair do bolso de Jean, podia escrever mensagens e reunir os amantes separados, pois, escrava
favorita de Marie e de Jean, também era para ele como uma fada silenciosa mas dotada de divinação e de poder, ao menos, como uma estrela no céu, uma pequena estrela
prisioneira da bolinha, pequeno clarão que se segurava na mão, mas que não era possível tocar, tão longínqua como aquelas que, lá no céu, parecem compreender as
palavras que lhes confiamos para nossa bem-amada, que parecem nos aconselhar, sorrindo, a resignação e que, de fato, recebem talvez de nossa amada, no mesmo minuto,
idênticos juramentos que elas não podem nos dizer mas cuja doçura serena vale para nós como uma garantia misteriosa.
Assim, Jean reencontrou a bolinha de ágata, guardou-a na gaveta da escrivaninha, e foi pedir à camareira da mãe que fechasse cuidadosamente com um ponto
de linha a abertura do saquinho acima do binóculo a fim de evitar que ele caísse. Depois, foi levar o pacote ao porteiro de Françoise, mas voltando para casa não
tornou a abrir a gaveta em que pusera a bolinha. Pois não sentira prazer em vê-la e, como rolasse com um ruído insuportável de cada vez que tiravam a escrivaninha
do lugar, mandou atirá-la fora. Antigamente, em noites de dúvida, dizia consigo: "Se um dia não vir mais Marie, se vier a esquecê-la, se ela não for mais nada para
mim, nem tudo estará aniquilado. Eu te posSUirei sempre, minha bolinha querida, tu que és tão bela, guardarte-ei por toda a minha vida, e durante dois anos não terei
amado eM vão." Não foi no dia em que mandou jogar fora a bolinha que esses belos sonhos foram destruídos, pois há anos, se a boliilha estivesse no saquinho, ela
já não tinha mais encanto algum para ele e era como se tivesse sido jogada fora, pois ele jamais 4 veria, não sabia sequer que existia e a teria atirado fora depois
X* muito tempo, sem lamentá-lo. Quando o próprio corpo daquela amávamos perde, tão logo o nosso sentimento não mais o ~sagra, o encanto prestigioso que possuía para
nós, como o "ariarn por mais tempo uma bolinha de ágata, uma carta ou *Ma fita? Vivemos voltados para o futuro e, quando parecemos À~trar ainda a mesma doçura nas
coisas que encantaram nosso ~do, é que esse passado dura sempre e é semelhante a ele

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que imaginamos o futuro. Tal passado nunca é bem velho. É o livro dado no último verão por uma amiga que julgamos amar ainda na próxima primavera. E ainda, o quanto
está bem morto para nós em relação à rosa que ela deixou que lhe roubássemos ontem, a qual está um tanto pálida comparada com as palavras que ela nos dirá amanhã.

Saindo de casa para ir tomar ar, já que a chuva cessara e o sol secava rapidamente as avenidas, Jean se entristecia ao pensar que, da mesma forma que as
coisas que nos emocionaram já não nos comovem, as lembranças estão mortas porque o passado não tem mais sentido para nós. Entretanto, ao longo dos cais aonde chegara,
com infinita alegria, mas também com uma suavidade que o impedia de cantar e correr e fazia-o quase reter a respiração e os passos, via à sua frente um grupo de
árvores belas, paradas à sombra, suas frondes jovens e próximas cingidas de esparsas e lindas coroas de folhas, coroas bem recentes das quais estavam ainda desprovidas
há quinze dias, e que pareciam ter nascido de repente, tão opulentas que, roçando umas nas outras, pareciam estender por cima das árvores como que um único e mesmo
dossel, mais leve do que elas, e que, enquanto as árvores permaneciam imóveis, ondulavam rindo no vento ao sol. Na terra, sobre o chão reluzente de sol, as sombras
das folhas flutuavam sombrias dando essa sensação de frescor e de vida profunda e rica que conferem à flor da água as plantas que aí se espalham. Foi até o parapeito
do cais. Via-se, através da água azulada e línipida, a areia que descia, mergulhava durante algum tempo. E depois, afastando-se assim da margem, a água mais azul
tornava_se impenetrável e via-se apenas a superfície escura, faiscante, onde o fluxo lançava ao sol, muito juntas, pequenas ondas que brincavam, se misturavam, inclinadas,
soçobrando às vezes ao vento. Bem no meio da água, como um buraco de lindo vermelho claro, estava a sombra da proa rubra de um barco amarrado. E essa gua coberta
de sol, e no entanto fresca, vinha banhar a areia tórrida, e Jean parecia
sentir, ao mesmo tempo, o encanto aqui às margens do Seria nesse
instante, e, nesse mesmo momento, à beira-mar sobre a areia ofuscante e cálida junto às pequenas ondas redondas de cristal, como antigamente nas tardes azuis, quando
ele ia mergulhar as mãos para pôr um pouco de água fresca na testa, e quando, no ruído da água transparente que se quebrava sobre as conchas, tinha a impressão de
lhe beber a frescura e estancar sua sede. E esses milhares de ondinhas que se empurravam sobre o regato, que brincavam e se misturavam, faziam-no experimentar o
mesmo deslumbramento de uma vida inocente e agradável, alerta, alegre, infatigável, mas também doce, leve, pequena como uma covinha no rosto ou uma boca, e infinita,
que nunca se cansava, recobrava sempre suas forças, que o fazia sentir novamente o frémito eterno das folhinhas, que se enchiam e esvaziavam, contornadas pela brisa,
mas o tempo todo envernizadas, brilhantes, douradas pelo sol, debaixo do céu sempre tão azul, sem que o canto dos pássaros cessasse à sua sombra.

Ele voltou para baixo das árvores. Por um momento, o sol parecia estender como que urria. sombra à sua frente e o céu permanecia tão azul, a terra tão ensolarada,
mas era como se, numa sala sempre iluminada, alguém houvesse apagado um bico de luz junto dele, era uma nuvem que passara e o sol, perto dele, brilhava de novo,
sua intensidade crescia de segundo em segundo e recomeçava a queimar-lhe o rosto, a lutar alegremente contra o reflexo também penetrante de seu olho. E Jean julgava
sentir novamente essa alegria esplêndida e profunda dos lugares que se tornaram belos como numa fantasia de pintor, recolhida numa felicidade irradiante e silenciosa,
agitada por estremecimentos a um tempo debaixo dessas árvores com todo o frescor, e já em toda a parte na direção do Cours-la-Reine ensombrado, e, nesse Mesmo momento,
nos bosques de Saint-Germain, como outrora, ~do ia colher violetas e, quando fazia muito calor, sentava-se à sombra, e ele ouvia com o maior arrebatamento o silêncio
e os cantos dos pássaros que pareciam passar acima dele sem perturbá-lo, como crianças que fazem carinhos num patriarca, esse #flêncio e esses cantos igualmente
inauditos. Sentia-se feliz e já Não se inqUietava de que o passado estivesse morto para ele e que os objetos que sobrevivessem a esse passado já não tivessem

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mais encanto e, de fato, nem sequer vida. E, no fundo, era sua alegria desarrazoada que tinha razão. Das coisas que nos encantaram outrora e que nos é dado rever,
não é verdade que há algumas cuja presença nos devolve com idêntica voluptuosidade, talvez mais sonhadora ainda, o encanto misterioso de antigamente? Que significam,
então, essas pequenas sombras negras flutuando no chão, sobre o caminho irradiante de sol, como plantas sobre um arroio, essas primeiras folhinhas dos lilases inclinando
sua corola delicada e suave por entre as grades dos jardinzinhos dos arrabaldes, essas imensas árvores frutíferas, como um encantamento branco ou róseo, de súbito
florido por trás de um muro como a aparição de uma beleza fresca e embriagadora, envolta em sua graça fascinante e agradável, que significa então tudo isso senão
os testemunhos de nossas primaveras iniciais, relíquias de lembranças de nossas primeiras emoções em face da natureza, mas que nada perderam de sua força sobre nós,
que abrem nosso coração de repente às mesmas venturas deliciosas, que nos fazem fugir aos anos para nos devolver à natureza, às misteriosas transformações do ano
que banham as coisas e os acontecimentos a nosso redor de uma espécie de vida maior que eles, que reconhecemos pelo fato de já nos termos aproximado deles antigamente,
que não está em nossa juventude mais que em nossa velhice e que por um momento parece nos mostrar o mundo que nos cerca não como o mundo medíocre, logo findo para
nós, todo humano e conhecido, mas como um mundo eterno, eternamente jovem, misterioso, cheio de incríveis promessas? Assim, no interior de um pequeno jardim, vê-se
muitas vezes aproximarem-se e se estenderem céus violáceos ou negros de tempestades, logo dissipados como regiões desconhecidas e viajando de novo para explorações
imensas, recuarem, sumirem céus açafroados de radioso verão, esticarem-se e arquearem no zênite azul grossas nuvens brancas que flutuam sobre o trabalho dos ceifeiros,
ou nuvens cinzentas que acompanham os viajantes, seguindo-lhes à frente sobre as estradas, céus cor de violeta, céus amarelos, céus azuis, hospedeiros gigantes,
deuses transitórios do pequeno jardim sobre o qual estendem por um instante sua luz brilhante e trêmula ou sua sombra glacial, azuis, violetas ou amarelos da cor
dos pensamen-

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tos que lhes parecem pedir emprestado seu tom, sua vaga figura, pensamentos que se aclaram ao calor dos sóis que passam, ou estremecem a seu vento de tempestade,
precursor das chuvas que os hão de molhar.

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IV. As Tulherias

Pela janela, enquanto almoçava, Jean via a casa em frente animada de sol e como que pronta para uma festa, e ao lado dessa casa adivinhava, com facilidade,
todas as outras idênticas, restando apenas um pouco de neve dourada de luz nas portas como os últimos andaimes, os vestígios do trabalho da cidade que ainda não
foi possível retirar e que, misturados às bandeiras e aos lampiões, exaltam como que uma nota alegre a mais, parecem estar em festa apesar de tudo, como essas velhas
que os moços forçam a se divertir. De súbito, uma claridade lhe abre os olhos, penetra no quarto e, subindo ao céu, desaparece: no quinto andar da
o raio que suspenso ao sol, apoiado molemente no parapeito da janela, ia até a sala de jantar, espantado, desaparecera. Mas bem depressa Jean o encontrou
dd novo, sentado tranqüilamente perto do fogo, como se, gelado pelo ar ainda frio, quisesse se aquecer. Como nos dias de festa, quando não nos podemos conter, logo
que acabou de almoçar e embora não fosse ainda hora de ir à casa de Françoise, Jean saiu, e como, para andar ao sol, tivesse posto uma fina e brilhante cota de malhas
de ouro, a cabeça erguida, o aspecto intrépido, e jovial, caminhava marcando o passo e cantando como os que seguem os regimentos e a quem o rumor de ouro das fanfarras,
como longos raios de sol que estalassem a todo instante à sua frente, excita com seu relincho ansioso e puro. Ia em direção à festa passando pelas ruas mais embelezadas
de luz, buscando, como um mendigo que espera apanhar alguma coisa ou como um tagarela inflamado, a passagem do sol. E a vista das casas resplandecentes como debaixo
de uma armadura de ouro, carros felizes, homens de aspecto tranqüilo que iam e vinham como numa manhã de grande regozijo, respondia agora, como uma réplica harmoniosa,
magnífica, como um imenso reforço à alegria que antes despertara inconscientemente nele. E havia tão

casa em frente tinham fechado uma janela e

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pouco vazio, tudo estava tão unido nessa matéria viva e trêmula em uníssono que uma sombra se punha a correr sobre o muro antes que Jean pudesse perceber um cavaleiro
que passava, uma sombra e uma claridade, como dois pequenos instrumentos, nas duas extremidades de uma orquestra, se respondem durante alguns instantes, um bastando
para despertar, estimular e interromper o outro, ou como dois pássaros que parecem discursar de duas árvores afastadas que os ocultam.
Chegado à Praça da Concorde, percebeu a Madeleine e, diante de seus pilares, um vapor violeta, como se o incenso já queimasse na entrada dos templos. Deu
uma volta até a Ponte da Concorde. () próprio Sena desabrochara para uma vida maravilhosa e os barcos que o cortavam punham a descoberto veias de púrpura e, num
deslumbramento, faziam voar, sem recolhê-la, uma poeira preciosa que caía novamente como em abismos de ouro. Numa das margens, ainda havia neve, mas, como se vê
as próprias mulheres subirem corajosamente numa baleia encalhada, desde que os homens a tenham morto, crianças pisavam rindo, como se fosse o pêlo inofensivo e raro
de um monstro estrangulado, esse despojo suave e magnífico do inverno que já não mais fazia medo hoje. Jean desceu de novo para ir pelas Tulherias. No chão ainda
inteiramente coberto pelos últimos restos da neve derrotada, os deuses de mármore, mostrando apenas uma leve contrariedade no rosto sossegado, erguiam-se vencedores,
com um gesto majestoso de vitória. Num pequeno parque, onde a neve, ainda espessa e cobrindo todo o chão, testemunhava uma luta mais recente e mais dura, um deus
parecia desafiar ainda. E o apaziguamento divino também não detivera nobremente seus membros animados. Mais além, já se organizavam brincadeiras no chão ainda úmido
do recente massacre e, com o sol nos olhos, dois Hermes de gesso se desafiavam para a luta. Ao redor da fonte as deusas, ainda ontem recobertas de gelo até os olhos,
sorriam vitoriosas e na mão uma segurava uma gema, como para mostrar os despojos de um vencido, e conservando junto delas o jato de água, incessante quebrador do
gelo que as havia ajudado a vencer, e que elas deixavam que lhes acariciasse os rostos como um animal de estiMação. Jean gostaria de voltar a encontrar Tecmar, Riquet,
todos aqueles cujo triunfo aparente sobre ele o tinha desestimulado.

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Com que palavras soberbas e risonhas teria feito esplender sua alegria diante deles, a confiança na própria felicidade e na própria beleza. Sentia dentro de si uma
ventura a desafiar toda pretensão de outrem quanto a ter mais sucesso do que ele, ser mais inteligente, mais feliz.
Pô-se a correr nas Tulherias como se, correndo em seu jardim, fosse passear sem chapéu. Depois parou. E o sol, chegando-lhe aos pés, parecia lambê-lo como
um animal contente com a alegria do dono, que no mesmo instante ele vê aos saltos lá longe à sua frénte. Como um homem levemente embriagado-que, lembrandose dos
detalhes mais insignificantes da noitada, observando os mais vulgares objetos perto de si, alegra-se com eles como com uma ventura inefável ou acaricia-os como amigos
incomparáveis, ele pensava nas diversas vantagens de sua vida, imediatamente repletas do gozo positivo que o inundava, no amor de uma mulher como Françoise, nos
saraus dos Réveillon, dos Lã Rochefoucauld, dos Tournefort, onde ele ainda podia aparecer, risonho e belo (como ele se percebia agora), como em vantagens inestimáveis.
E, estado de espírito a que era conduzido cada vez que pensava nas pessoas que invejava, na impossibilidade em que se achava seu coração de se sentir vencido e uma
espécie de necessidade íntima que o impelia, ao menos em imaginação, a lhes fazer frente, ele se representava tudo o que os outros possuíam e que ele não tinha,
o talento do pintor, uma posição brilhante e um poder efetivo no Estado, uma reputação íntegra, como se fossem bens sem importância, de tal modo desimportantes que
julgava não dever prescindir deles sem sofrimento e sim abandoná-los voluntariamente àqueles que, não se ocupando desses gozos sublimes (o amor de Françoise, a esperança
de parecer distinto em casa dos Réveillon, que Grisard não freqüentava), podiam ter tempo e gosto de desfrutar esses prazeres mesquinhos. Sem dúvida, dizia consigo
várias vezes que tais momentos de satisfação, em que tudo parecia belo, Grisard também os tinha, e que, além desses momentos de alegria, a benéfica ilusão que Deus
concedeu a cada um de nós fazia-o olhar as lindas conexões como algo insignificante que não desejaria. E até de súbito, lembrando-se que não tivera direito algum
a essa ascensão social com a qual se protegia em pensamento diante do desdém de Grisard como de uma supe-

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rioridade que parecia incontestável à força de ser material, perguntava-se por que, se o quisesse, não chegaria Grisard à mesma realidade. Nós, porém, gostamos facilmente
de crer que as coisas que desejamos nos virão em decorrência de uma lei misteriosa que nos favorece, e que pela mesma lei as que tememos não nos atingirão. E assim,
parecia-lhe (sem que ele visse qualquer motivo, mas pela impressão que serve mais que os motivos para prever as coisas da vida e que é freqüentemente frustrada,
sobretudo quando é o nosso desejo que tomamos para ela) que Guisard nunca teria destaque social. E quanto a si, ao poder político, à reputação intacta que não possuía,
o desejo, se bem que o não confessasse a si próprio, que existia continuamente dentro dele, fazia-o apalpar o sonho como se fosse quase real e nele punha a realização,
sem que tentasse absolutamente prepará-la ou torná-la provável num futuro glorioso, indeterminado e próximo.
Mas todos esses pensamentos apareceram apenas de maneira vaga a Jean naquele dia, suscitados unicamente no fundo de sua consciência porque era por meio de
tais pensamentos que ele respondia sempre intimamente à notícia de um novo sucesso de Grisard ou de Dubonnet, como se em nosso interior existisse uma espécie de
necessidade de revidar com uma ofensiva da esperança a um golpe desfechado no amor-próprio. Hoje, sinceramente, tudo aquilo que não possuía lhe parecia nulo, e ele
se inebriava. com tudo o que tinha como um ébrio que se embriaga com tudo o que tem a seu redor. Muitas vezes, depois de um repasto copioso, ligeiramente bêbado,
ele tomava um carro para ir a um sarau. E como um homem em meio a espasmos de amor aperta nas mílos crispadas os cabelos da amante, as rendas de seu vestido, a fímbria
do tecido em que involuntariamente se engancharam, assim nessa noite ele não podia evitar que seu corpo segurasse a portinhola, e quando começara um movimento não
o podia interromper, como se tivesse interrompido e violado alguma música interna e fremente nele, e experimentava uma doçura inacreditável em deixar ir seu ombro
até que se chocasse com a parede do fiacre, em deixar escapar bem alto e em ouvir replicar com força as palavras de reconhecimento que lhe vinham aos lábios pelo
rápido cavalo que o conduzia ao sarau e cuja cabeça selvagem e fina enxergava, sacudida à sua frente através do vidro. Assim

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zer: É verdade, gostei dela em dada ocasião, para que vissem que é bem certo que já não gosto mais. Mas as pessoas são tão idiotas. E, além disso, ficamos muito
satisfeitos em lhes ocultar nossas preferências. - Certo - disse Jean com vivacidade. - E, no fundo, por quê? - Porque logo que saffiam a quem amamos, tudo fazem
para separar-nos. Nunca é preciso que alguém saiba. - Uma força inconsciente impulsionava suas palavras e a fazia revelar o que desejaria permanecesse escondido.
Ela continuou duçante uns momentos a dizer que, se chegasse a amar alguém, ocultaria esse fato de todos, como se dizer que ela o ocultaria equivalesse de algum modo
a falar disso e por tal motivo isso lhe era agradável. Jean escutava-a com prazer mas o amor já não era bastante para ele; referindo-se àquela a quem amava, disse:
- Mas quando ambas as partes são absolutamente livres, que é que podem fazer contra? - Mas não se aplicando mais ao caso da Sra. Jean procedera mos do objeto, nados
julgam
que conhecem o de reencontrar o

Desroches, tais palavras deixaram de interessá-la. como aqueles que, depois de estarem bem próxiafastam-se de súbito. Pois os que estão apaixoter um prazer desinteressado
em
ver as pessoas amor, em falar de amor. Mas é na esperança seu amor nelas. Desde que o que se diz a respeito do amor não lhes convenha, perdem todo o prazer.
E um apaixonado ficará menos feliz em conversar sobre o amor com Stendhal do que sua amante com seu aguadeiro. No entanto, a Sra. Desroches respondeu: - Mas riunca
estamos completamente livres. - Jean pensou no doutor que podia voltar e em todas as tias de Françoise, e disse: - Como é verdadeiro isso.
No dia seguinte, Jean se encontrou ainda com a Sra. Desroches. Ela estava a pé. Tinha predileção pelas jóias que se põem no corpete, pelas roupas simples
cujo forro é precioso, gostava, sem que soubessem o nome dela, de viajar nos vagões de segunda classe da companhia de que o marido era diretor. Achando talvez o
mesmo encanto em dar valor inestimável a um amor vulgar, renunciava aos poucos à sua posição social em favor de um tenor holandês da ópera-Cômica que morava num
apartamento pobre da esquina da Rua de Rennes com a Rua de Lãmoignon, onde todos os dias mandava entregar um novo quadro, uma jóia nova. Por causa da mãe, ocupada
de dia numa

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tabacaria, ele a proibira de o visitar à noite e de o levar ao teatro. Ela ficava ao pé da lareira pensando nele, olhando pilhas de cartazes que ele lhe dera, os
recortes de jornais que falavam nele, suas fotografias. E, quando um amigo vinha visitá-la, ela falava sem cessar do amor, da Opera Cômica, da Holanda e do canto,
docemente, a intervalos regulares, como se exala, por baforadas, a fumaça do cigarro, que sem isso, nos sufocaria. Nesse segundo dia em que Jean se encontrou com
a Sra. Desroches, ela ia à casa da marquesa de Valtognes, e lhe disse: - Ora, vem comigo. Ela me disse que gostaria de te ver. - Eram três horas da tarde e no meio
desses dias de janeiro fazia um dia de primavera hesitante e dourada. Nas casas apagava-se o fogo das lareiras, abriam-se as janelas ao ar puro. Parecia que o bem-estar,
o lazer, a mornidão preguiçosa tinham abandonado as residências para sentar-se ao ar livre diante das casas e nos jardins públicos. Na casa todos se apressavam para
sair, como na véspera, na rua, davam-se pressa em entrar. Era a hora em que os colegiais, obrigados a entrar em suas salas de aula, pediam permissão para deixar
a janela aberta. Assim, ouviam-se de longe, da sala de aula, os passos dos alunos que andavam pelo pátio e, buscando retardar um pouco mais o passeio, paravam um
momento para olhar os colegas. De sua cadeira, o professor saudava um colega que voltava para a sala. E um espelho escondido numa pasta captava um raio de sol, fazia-o
correr tremulamente pelas paredes da sala, saltar para a cadeira e ir até o nariz do professor. Ninguém tinha vontade de estudar e os próprios serventes mostravam
a fisionomia feliz como em véspera de férias.
Atravessaram as Tulherias. Homens e mulheres caminhaVam, lentos como se tivessem de fazer esforços para purificar o ar ambiente, felizes como se os tivessem
roçado ao passar. E muitos mostravam o aspecto risonho e preguiçoso dos que estão no banho. Na varanda das casas da Rua de Rivoli, elevavam-se bemaventuranças até
o teto, como anunciações, e pareciam sorrir nos céus. Numa janela, um raio caído das alturas riscara o vidro com sua unha de púrpura, como um clarão imóvel devido
ao talento de um vidraceiro. Olago das Tulherias estava apenas meio degelado. Mas entre os blocos de gelo a água era azul como na primavera. Tomaram pela Rua Boissy-d'Anglas,
que estava

621

a~-"
ensombrada, mas, chegando ao bairro Saint-Honoré, quase tropeçaram no sol que batia no chão com tanta intensidade que seu reflexo cegava e Jean teve de pôr a mão
em pala sobre os olhos para enxergar. Todas as vendedoras de flores haviam retomado seu posto diante de suas lojas ao ar livre, desertas na véspera, cobertas de
primavera, lilases, jacintos, goivos, prímulas. E a vinte passos delas, como se penetrássemos em seu território, sentíamos tantos perfumes que as mulheres atravessavam,
sentido-se tontas. Eles chegaram à Rua de La Rochefoucauld onde morava a marquesa. A rua sobe, depois desce tão abruptamente que as carruagens pouco se aventuram
por lá. Ouve-se morrer os raros rumores que se elevam. Parece que a gente acaba de sair de Paris. Para atingir o rés-do-chão da casa da Sra. de Valtognes, é preciso
atravessar um jardinzinho. As aléias são muito estreitas e ali cresceram tufos de amores-perfeitos e dentes-de-leão. Obuxo se inclina por um momento e entra na
aléia, e quase caímos por cima dele. Omuro muito baixo dá para terrenos baldios de modo que se vê um grande pedaço de céu ao nível do muro que o impedia, sozinho,
de inundar o jardim. As árvores, mais ou menos à metade do tronco em relação às maiores, banhavam-se na luz do sol poente, e, por uma química misteriosa, pareciam
volatilizar os ramos castanhos, as folhas verdes, numa difusa folhagem de ouro, e a realidade rústica do jardim se tornava, a essa altura, um quadro celeste.
Jean, precedendo a tia, tocou uma síneta que, como as campainhas da roça, continuou por muito tempo a desfiar suas gotas ásperas de um som claro. Entraram
no salão onde a marquesa estava sentada diante de alguns amigos perto da lareira. Mas o olho ia írivoluntariamente para as janelas que o sol, nesse momento, pintava
com extraordinária vivacidade. E o céu azul, que parecia dar contra as janelas, e um clarão dourado saliente no tapete davam impressão de fazer transbordar, na vida
tranqüila das pessoas presentes, como que a inefável serenidade ou a lemI--- - radiosa de uma nessoa bem vróxima, invisível e maior,

gosto dos bibelos, e má saúde. Estava aí, segundo seus amigos, o motivo de uma ligação que durava há vinte anos sem que houvesse um dia sequer que não fossem vistos
quatro ou cinco vezes, almoçando juntos na casa da marquesa, ou na de uma de suas amigas quando por acaso ela aceitava almoçar, e depois indo visitar os antiquários.
Às cinco horas (a marquesa recebia todos os dias às cinco horas), o Sr. de Villeborme ainda não se achava lá. Entretanto, não tardava a chegar. E muitas vezes, devendo
ambos jantar na cidade às oito, ele ainda estava na casa da marquesa às sete e meia, -e a saudava meia hora depois entrando no salão no momento em que iam para a
mesa (pois ela não era pontual), com o respeito de um estranho e o prazer de alguém que não a visse há muito tempo. Ouando lhe pediam um conselho ela dizia: "Não
é mesmo, Sr. de Villebonne?", dando-lhe sempre razão. Tinham feito mutuamente a renúncia de seus bens mas não o sacrifício de seu caráter. A casa de campo da marquesa
não se abria quando o Sr. de Villebonne desejava estar sozinho, o camarote do Sr. de Villeborme na ópera, no Théâtre-Français, na Comédie-Française, no Conservatório,
estava à disposição dela. Mas ele se prendia ao fato de que ela não freqüentava certas mulheres recém-introduzidas na sociedade, e depois de vinte anos não permitia
que ele viesse jantar sozinho em sua companhia a não ser a rigor.
Mas tão logo a Sra. de Valtognes, em casa, se ergueu. cebesse às seis horas

Sra. Desroches e Jean se sentaram na casa da a tia deste, lembrando-se de que deveria estar - Mas eu pensava que agora você só renos dias e aue estivesse de volta
- disse a

marquesa. - É verdade - concordou a Sra. Desroches -, mas -me pediram uma entrevista esta noite: a Sra. de Thonnes acrescentou sorrindo. - Como, senhora, recebe
a Sra. de Thonnes agora, desde quando? - perguntou o Sr. de Villeborme. Sim eu achava que a senhora não quis que eu a apresentasse um
- disse Jean. - É ver-
babilidade, há muita gente da sociedade lá em casa. No que muito se engana. É uma mulher que quer aparecer. Meu Deus, tenho inveja de que seja tão jovem ainda, e
de desejar tão ardentemente tão pouca coisa. - Tão pouca coisa pareceu desagradar ao Sr. de Villeborme, que nada disse, e a Sra. de Valtognes se calou para não contrariá-lo.
Ele não gostava que ela falasse rindo de sua sociedade, como a Sra. Desroches e certas moças, tanto quanto não lhe agradaria que lesse determinados livros, assistisse
a certas peças, freqüentasse certos salões, dissesse determinadas palavras. E ela gostava não só de observar suas proibições, mas também falava delas com gosto,
dizendo a rir, e como que zangada de tal escravidão: - Oh, Agénor não me deixaria ir - a severidade dele parecendo-lhe uma doce garantia do seu amor.
Como Jean descesse com sua tia, encontraram na escada o Sr. de Valtognes, que, alguns anos mais novo que o Sr. de Villeborme, era também mais bonito e, conforme
pareceu a Jean, mais inteligente. Mas a Sra. de Valtognes impunha facilmente à sociedade, da qual se achava meio retirada, como para dominá-la do alto, suas opiniões
como verdades e suas preferências como ditames da moda. OSr. de Valtognes estava eclipsado pelo Sr. de Villeborme, diante de quem, aliás, se apagava por vontade
própria. Estava sempre saindo para fazer compras, fosse conforme dizia, para buscar remédio para a enxaqueca de Agénor, um tecido para seu quarto, fosse procurando
editor para suas plaquetas. Uns acusavam-no de complacência, outros de cegueira. A Sra. Desroches dizia que ele quis abandonar a mulher quando descobriu seu romance,
mas amava-a tanto que desistiu. Duas ou três vezes a duquesa de Réveillon o ouvira falar a esse mesmo Villeborme, a quem admirava, queria bem, favorecia com tanta
complacência, num tom tão repentinamente imperioso e brusco, que ela temia sempre que ele um dia fizesse uma asneira, como esses leões submissos que acariciam o
domador e acabam por devorá-lo. Assim, também não faltava quem dissesse que, se o Sr. de Valtognes tratava o Sr. de Villebonne com tanta longanimidade, é que este
o tinha nas mãos em virtude de segredos comprometedores, documentos humilhantes. E quando o Sr. de Valtognes dizia uma dessas palavras que, assemelhando-se às pala-

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vras dos maridos de teatro, dão a ilusão, àqueles que as escutam, de serem de autores dramáticos que observam a realidade, quando, estando sua mulher e Villebonne
na Noruega, puxava o relógio no meio de um lanche e dizia: - A esta hora Villeborme está tomando chá no quarto de minha mulher no New-Hotel -, ninguém sabia se se
tratava talvez da terrível ironia de alguém que há de se vingar ou de um impotente que se rói por dentro, quem sabe a ingenuidade de um pateta ou o gracejo cínico
de um canalha que se diverte.
Não dando o Sr. de Valtognes a impressão de

reconhecer Jean, a Sra. Desroches o apresentou. Jean cumprimentou-o envergonhado, como se o Sr. de Valtognes dissesse consigo: "Mais um que zomba de mim."
Mas nada disso transpareceu. OSr. de Valtognes cumprimentou Jean, dirigíndo-lhe algumas palavras com essa graça perfeita que já o conquistara uma vez. A Sra. Desroches,
sentindo-se atrasada, disse-lhe adeus. Ele se desculpou pelo embrulho que levava debaixo do braço, dizendo: - É um pequeno Clodion, * uma surpresa para Villeborme,
ele já me fez muito e eu bem lhe devo isto. - E tendo cumprimentado a Sra. Desroches, estendeu a mão a Jean com um sorriso amistoso e desapareceu com o embrulho.
Jean quis deixar a tia mas ela pediu que a acompanhasse ainda. Ele sentiu que não a interrogando acerca de seus segredos, como se os respeitasse, e não lhe
falando de outra coisa, como se os conhecesse, sua companhia lhe era doce como o silêncio aos corações tristes. Ela desejava guardá-lo consigo, talvez apenas Como
um jovem animal que parece amar-nos melhor que os homens e dá mostras de compreender-nos numa linguagem muda, talvez como um rapaz que já conhecia o amor e o inspirasse
mais certamente do que ela ainda por muitos e longos anos, como alguém que lhe fosse tão devotado como gostaria ela que o outro lhe fosse, a quem talvez pudesse
falar dele, talvez até dar recados para ele nas horas mais urgentes ou mais tristes. Ela disse: - Mas, meu pequeno Jean, acompanhe-me - e eles voltaram

* Nome artístico de Claude Michel, escultor francês (1738-1814), autor de peças em terracota, à maneira antiga. (N. do T.)

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juntos para a casa dela. Ela o fez subir para o seu quarto enquanto tirava o chapéu. Tocaram à porta. Anunciaram a Sra. de Thonnes. Ela mandou dizer que viria logo.
E imediatamente, tendo tirado as luvas com um gesto e sorrido para o sobrinho, entrou com ele no salão e o apresentou à Sra. de Thonnes. Esta tinha uma cara redondinha
com olhos negros e risonhos, e não faltavam nem o boá de chinchila, nem o caderno de visitas, nem * relógio-pulseira no cabo da sombrinha, nem palavras sobre * -gripe,
sobre o número de saraus, sobre a morte que acabava de levar tantas mulheres jovens da alta sociedade "que ela vira tantas vezes na casa de uma prima". A Sra. Desroches
ouvia-a sem se irritar, com polidez, sentindo talvez melancolicamente a ilusão que vivera outrora acender-se em outra mulher, deslumbrá-la, incendiá-la, até que
a Sra. de Thonnes, tendo percorrido sua idade e parecendo alcançar sua ambição, viu-a brilhar em pessoas mais jovens. A Sra. de Thonnes falou de leitura, mas não
'lera ainda a última Revue de Pa'ris. A Sra. Desroches acabara de lê-la naquela manhã. - Mas senhora, como, com todos os seus compromissos sociais, consegue achar
tempo para ler? É incrível - disse a moça com ingênua admiração. - Olí, eu saio tão pouco - disse a Sra. Desroches. - Olí, minha senhora! - gritou a Sra. de Thonnes
em tom de protesto e como se a Sra. Desroches se caluniasse.

A porta se abriu: anunciaram a duquesa de Réveillon. A Sra. de Thonnes levantou-se, sentindo perfeitamente que se mesmo uma amiga permanecesse em sua casa
quando lhe aparecesse a Sra. Marmet ou qualquer outra que fosse para ela o que a duquesa de RéveilIon representava para a Sra. Desroches, ela a levaria a mal. Mas
a Sra. Desroches, compreendendo o heroísmo de seu sacrifício, disse com bondade: - Mas a senhora ainda não vai embora, não é mesmo, Sra. de Thonnes? - Vou ficar
ainda uns minutos - disse a Sra. de Thonnes num tom quase mal-educado, seja por ter sido apanhada desprevenida, seja por querer dar a impressão de que ficava por
simples amabilidade. Mas, sendo demasiado forte a emoção, logo enrubesceu. "Estará feliz por ficar assim", pensou a Sra. Desroches. E apresentou-a à duquesa, contente
por poder praticar uma boa ação. Jean não

enrubescera menos que a Sra. de Thonnes, pois não ia há muito à casa da duquesa. Mas, para não embaraçá-lo, ela soube se lastimar de o não ter visto com um tom que
parecia antes gracejo que censura, apesar da mágoa que havia sentido. Não podia esquecer os que tinham sido um dia bondosos para com o filho. Num certo instante
a duquesa, fazendo um gracejo inocente acerca da Sra. de Thianges, disse: - Posso lhe dizer, já que estainos na intimidade. - A Sra. de Thonnes atribuiu a essas
palavras um alcance tão considerável que lhe pareceu natural que a Sra. Desroches a tivesse feito estar com a duquesa, persuadida de que devia ter para esta um interesse
particular. Ocumprimento que lhe dirigiu a duquesa ao se levantar fê-la cair na realidade. No entanto, gostaria que soubessem que a duquesa dissera, falando dela,
"na intimidade", e ao sair ela se atormentava por não saberem disso, como alguém a quem se confia um segredo importante e que desejaria que os transeuntes vissem
ao menos que possui um segredo. E para se consolar de que os amigos com quem cruzava não o soubessem, fazia-lhes um cumprimento mais frio ou mais condescendente
e que, segundo ela, parecia incluílo. Mas, acima de tudo, o sentimento que levava de sua visita era um espécie de exaltação dirigida à Sra. Desroches, cuja graça,
espírito e beleza lhe surgiam bem maiores sobre o pedestal de sua posição. E, tendo ido à casa dela por interesse, voltou por prazer, para satisfazer certa paixão
e certo culto. Como dizia a todo mundo, "ela compreendia o seu sucesso".
VI. A exposição Bergotte

Nem Jean nem a Sra. Desroches tinha coisa alguma que fazer antes de jantar. Então ficaram ainda um pouco juntos e, já que nenhum impedimento vinha cortar
e, por assim dizer, colher o prazer que achavam na companhia um do outro, tal prazer se estragou por si mesmo aos poucos e acabou por sumir. Mas, voltando da casa
da tia, tendo passado diante de um cartaz que anunciava Le Cid, Jean pensou em Corneille, depois em Racine, depois em Molière e depois nas Femmes savantes. AÍ a
sua imaginação, como um pião a girar durante muito tempo em torno de si mesmo e que parece esquecer o objeto em que vai bater a qualquer momento, demorou-se na personagem
de Philaminte, pareceu lembrar-se de Bélise, voltou a Philaminte, quando de repente, retomando seu curso, chegou a Henriette e foi devolvida imediatamente, como
a um ponto simétrico, à sua tia Henriette. Então reviu seus olhos doces, e bem mais doces do que quando estava junto a ele, seus modos gentis, suas palavras de amizade,
sua graciosa e rara familiaridade, sua lisonjeira franqueza para com ele, e, em vez de comprazer-se com isso, como com uma emanação quase involuntária de sua graça
que o envolvera nesse dia, porque era ele quem estava com ela, ou por eQoísmo. porque ele era mais capaz de penetrá-lo, experimentou de súbito um infinito reconhecimento
pela tia. Odemônio da generosidade, a necessidade de expandir de imediato todo o seu coração, toda a sua riqueza como carvão sobre toda pequena chama de simpatia
que brilhara a seus olhos, o empolgaram. "Vou lhe mandar flores." Precisava de pelo menos um quarto de hora para chegar à sua florista, e gostaria de já ter recebido
o agradecimento da tia. Pegou um carro para chegar mais depressa. Só tinha cinqüenta francos no bolso, era o que lhe restava até o fim do mês, pois gastara tudo
com Françoise. Tanto pior, reserválos-ia para essas flores e andaria a né até o final do mês. Fazen
do as refeições na casa dos pais, podia, a rigor, não gastar nada. Na florista, como escolhesse flores lindas, descobriu por trás do balcão um arbusto ridente, que,
como uma cativa ingênua e bela, erguia aos céus os braços repletos de flores. Cada flor era grande e magnífica como uma rosa e seu colorido açafroado arrebatava,
como num quadro, a inspiração ousada, a infalível audácia de um maravilhoso colorista. Mas os ramos erguiam-nas com uma extensão tão real que, como o gesto num pastel,
o movimento ingênuo e gracioso de uma criança ou de um animal, ela fazia brotar gritos de espanto no espectador inebriado por se encontrar de repente em presença
de uma intenção humana. Um leve rasgão da membrana verde traía a fadiga de um ramo, e na base de um cálice havia, na dilatação de uma pétala, uma gota de orvalho.
E do arbusto não cessava de se evolar um aroma feito brisa cariciosa. E juntamente com o arbusto podia-se possuir o aroma, como os que compram um animal de carga
ou uma amante têm o espetáculo de seu instinto e de sua alma. E Jean, já prelibando a surpresa encantada da tia diante do belo arbusto florido, não mais~ se sentia
com a coragem de renunciar aos eflúvios de gratidão que ela lhe enviaria. Contudo, mais ao longe lobrigou um lilás pendendo sobre as nervuras de sua madeira as flores
leves como uma farinha violácea e que pululavam doces e numerosas como os finos anéis de cabelos de uma cabeça antiga. Disse que voltaria para pagar, mandou levar
o arbusto e o lilás à casa da Sra. Desroches e foi a um joalheiro vender o diamante do seu alfinete de gravata, e com o dinheiro que sobrava comprou uma pedra onde,
turva e azul, trêmula e brilhante, parecia brilhar uma hora da tarde guardada. E a enviou também à sua tia. E no dia seguinte foi vê-la de novo.
Vp_

de aparência bem corpulenta, rosto corado, olhar tímido e agudo, que caminhava ao lado de uma senhora feia e velha cujo mantô ajeitava, chamando às vezes o ffieilino
que a servia, e cujo chapéu ornado de ouro falso traía, como a mediocridade de sua fortuna, o excesso de sua pretensão. Osenhor saudou a Sra. Desroches com solicitude
e acanhamento. E nesse instante, com ar autoritário, a dama, como para melhor afirmar o domínio que exercia sobre ele, disse-lhe em voz muito alta que pegasse o
seu regalo. - -É ele, é Bergotte - disse a Sra. Desroches. Como, conhece-o? - perguntou Jean virando-se para vê-lo. Conheci-o muito - confirmou a Sra. Desroches
-, ele até fez um belo retrato meu. Gostaria de lhe ter oferecido um jantar quando do seu jubileu mas sua amante, a Sra. Delven, aquela que está andando ao lado
dele, só o deixa ir à casa das pessoas que ela conhece. - Ele vai às vezes à casa dos Réveillon. Não muito, recusou também um jantar em casa deles em homenagem a
seu jubileu. Mas, de fato, ela o impede menos de ir à casa das pessoas que não conhece de todo. Ao passo que o proíbe terminantemente de visitar nossa família, porque
a conhecemos e a deixamos de ver. E sente-se feliz de ter ao menos alguém que não recebemos e, digo mais, de maior encanto do que qualquer um que nos visita. Tua
mãe conheceu-a bem. Oquê! Mamãe? - Talvez não seja bom eu te dizer. Mas, enfim, tu conheceste bem o Sr. e a Sra. Lepic, que jantavam todas as semanas em tua casa.
- Acho que sim. - Pois bem, creio que posso te dizer, era preceptora de tua tia Clarisse, filha natural (diziam) do pai de tua tia, que Lepic desposou. Ela sempre
teve maneiras tão corretas que tua mãe, que hesitara a princípio em recebê-la, se tornou sua melhor amiga, enquanto nenhuma de nós jamais pôs os olhos em sua irmã,
que é essa Sra. Delven, que vivia com um merceeiro, fez-se raptar, foi sustentada por Dector, pai da Sra. Marmet, por um tio de tua mãe, o tio Frédéric, que terminou
casando com ela. - Como, o tio Frédéric? - exclamou Jean estupefato. - Sim - disse a Sra. Desroches rindo -, por isso é que tua mãe não queria saber mais dele. Por
fim, há dez anos, quando ela se transformou, de tão bonita que era, nessa velha horrenda que vês, Bergotte, que até então só amara criadinhas nue transformava em
Vênus Don

do nisso tanto talento como nos blocos de mármores que animava, conheceu-a e se tornou seu amante. Está visto que era rica, pois esposara, depois da morte do teu
tio Frédéric, um negociante próspero que ia muito à casa da tua tia Crinois, de modo que esta, para nos dar uma lição, recebe-a atualmente.
Passeavam ainda, conversando acerca de Bergotte e do inacreditável amor que nutria pela Sra. Delven. - Foi ela quem posou para a sua Electra, repara bem,
vais notar um pouquinho embora ela esteja feia. Mas ele a vê como se fosse linda. - E, de passagem, Jean buscava nas faces salientes e bexigosas da Sra. Delven,
no olhar agudo com que mirata todos, alimentando Bergotte a seu lado com os gomos de uma tangerina que descascava, como se alimentasse sua vingança contra a sociedade
que a desprezara e que preferia a ela esse grande homem que dava a impressão de inquirir, como um espectro cativo, seja nas profundezas da alma da Sra. Delven, seja
na essência física conservada materialmente por sua raça, a aparência de um tristeza áspera que lhe parecera tão singular em Electra e cuja verdade ele parecia controlar
agora, pela semelhança e que de uma abstração se transformava numa criatura. Jean deixara sua tia para se aproximar de Bergotte e da Sra. Delven. A todo instante
ela o chamava pelo nome com voz forte e os passantes paravam para olhá-los. Uma mãe a mostrou ao filho, que a deixou vivamente, foi na direção de Bergotte, passou
adiante dele para ve-lo bem de volta. Mas aí não ousou erguer os olhos para o pintor. Jean seguia-os passo a passo, parando diante dos mesmos quadros que a Sra.
Delven. Diante de uma marinha, ela disse: - Alí, sim, este é aquele que você fez no meu salão em Dieppe. - Diante de uma Salomé: - Lembra-se, fui eu quem lhe deu
a idéia de pôr o pequeno escravo negro e foi nesse dia que você disse que eu tinha gosto. - De longe, ela mostrou-lhe um faisão sobre uma mesa e disse: - Ah, é aquele
que meu marido matou no dia em que fazia tanto frio. - Parou como um proprietário diante de um pastel, dizendo: - Foi o que você me deu para a minha festa. - Mais
além, era uma aléia, e a Sra. Delven, recordando-se exclamou: - Mas era naquele ano em que fomos a Fontainebleau. - E com voz emocionada: -
Foi há uito teo - E -- rosto se tornou suave ela o
P,

olhou. Mas diante de um vaso cre flores que levava uma data mais recente, disse-lhe em tom irônico: - Este aí é o que eu queria que desse ao meu marido. Lembra-se
do dia em que o fez, não é, senhor? - e seu olhar pareceu desvelar o disfarce desse cerimonioso "senhor". Ele a mirou, sorrindo, mas não ousava responder, constrangido
pela presença da criança que lhe dava a mão. Disse: - Este pobre Tiennet se aborrece. - Não, nã.o, Tiennet está muito orgulhoso, pois enfim está aqui, nesta exposição,
está aqui o seu retrato. - Mas~nesse instante estalou junto dele a voz de um homem encolerizado: É assim que voces me esperam ao pé da escadaria grande gritava com
desagradável sotaque alsaciano, e tão forte que todos se viraram. Era o Sr. Delven. Sua mulher fê-lo baixar de tom. Bergotte, que durante todo o passeio pensava
claramente em outra coisa, foi arrancado de chofre a seu devaneio e sua fisionomia conservava o aturdimento do sonho na benevolência do sorriso. Cumprimento-o -
acrescentou o Sr. Delven mostrando os pastéis -, foi para isso que me fez esperar? São umas boas drogas. - Cala-te - disse a Sra. Delven -, não sabes o que dizes,
são obras-primas. - É o que tem de pior. Só que você o elogia a propósito de tudo, e o que digo é a verdade. - Mas sem parecer atingido por essas injúrias, com uma
solicitude que Jean ficou sem saber se era devida à distração, ao reconhecimento ou à ironia, Bergotte ofereceu sua cigarreira ao Sr. Delven. Este recusou com algumas
palavras de extrema gentileza. Sua cólera havia passado. Continuaram seu passeio, o pequeno Tiennet sempre dependurado no braço direito de Bergotte, que levava no
outro o mantô da Sra. Delven. A cada novo quadro, a Sra. Delven lembrava a Bergotte que ele o fizera em-sua casa de campo, reclamando com ela por seu salão acanhado,
esfregando com o lenço o quadro um tanto embaciado, dizia, ou afirmando que era preciso encompridar um braço, complicar um fundo de paisagem, parecia fazer brilhar
aos olhos dos passantes a corrente à qual ele se achava atado. E por um momento, com uma brusca reprimenda, o Sr. Delven parecia fazer com que ele a sentisse com
maior rudeza. Mas a fisionomia de Bergotte conservava a mesma expressão distraída e tais barulhos pareciam não lhe atingir o cérebro a não ser de modo indistinto,

1

estranho e confuso como os rumores da rua chegam ao pensaniento de um homem que trabalha. À vezes, ele também olhava para'a Sra. Delven e seu olhar voluptuoso e
dócil, suprimindo sem dúvida a maquilagem, as marcas das bexigas, a pretensão do sério, a vulgaridade do sorriso, acariciava a cabeça ideal e voluntária de sua Electra,
surgida na doçura de suas lembranças ou acima da glória de sua esperança.

633
fp"-

VIL Ojantar da senhora Cresmeyer

E nessa noite, em que Bergotte se recusara a ir jantar em casa da duquesa de Réveillon, da Sra. Desroches e na de muitas outras pessoas, teve no entanto
de envergar uma casaca e assistir a um grande jantar. Era dado pela Sra. Cresmeyer, tia de Jean. A Sra. Delven não podia esquecer-se de que, com raiva da Sra. Desroches
e dos outros membros da família - e esse motivo lhe era ainda mais doce do que se tivesse sido de ternura por ela -, a Sra. Cresmeyer se aproximara dela há doze
anos e não mais cessara de visitá-la e de recebê-la quando os outros já não a cumprimentavam. Bergotte, que só era admirado por uma elite a essa época, foi se tornando
célebre aos poucos. Prometendo à Sra. Cresmeyer que ele iria ao seu jantar, a Sra. Delven recompensava-lhe a lealdade e a constância. A Sra. Cresmeyer sofrera a
princípio, pensando em todas as pessoas -distintas que teriam consentido em ir à casa dela para conhecer enfim essa felicidade: a de ver Bergotte, fortuna que a
impossibilidade tornava mais apetecível. Todavia, ela não podia convidar pessoas que não conhecia. Pensara em convidar Jean e lhe dizer: "Traz o teu amigo Henri
de Réveillon, se lhe interessa ver Bergotte." Mas a Sra. Delven tinha declarado que, se visse um Santeuil, iria embora e com ela Bergotte. Seus convivas foram portanto
a mulher de um médico de ouvidos, que tinha umas amigas elegantes com quem jamais convidava a Sra. Cresmeyer. Esta pensava, convidando-a para o seu jantar mais chique,
forçar a Sra. Destroyes a um ato recíproco. A esposa do médico aceitou com satisfação e o doutor prometeu interessar Bergotte falando-lhe de seu confrade Benjamin
Constant, que fora consultá-lo certa vez, com uma moléstia de ouvido. Os Bliaux também eram bem lembrados. Sendo o Sr. Bliaux sócio de um corretor de câmbio, a Sra.
Cresmeyer sentiase feliz em imaginar que por um jantar em sua casa se deslocaria o elegante cupê dos Bliaux, que o lacaio esperaria de noite na antecâmara, que se
de noite o vice-presidente do Crédit

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Sra. Cresmeyer,

Foncier viesse ver seu amigo Bliaux não o encontraria e ela, Cécile Cresmeyer, seria a causa desse desencontro, que ele Iembraria à mulher pela manhã: "Jantamos
esta noite na casa da
amanhã no Ministério das Finanças", como se fossem dois deveres idênticos. Mas isso não era tudo. A Sra. Delven, vendo os Bliaux, compreenderia que não tinha
aviltado Bergotte fazendo-o vir à casa dela. A Sra. Cresmeyer pensava que não havia ninguém no mundo que não se sentisse lisonjeado por jantar com o sócio de um
corretor de câmbio. Enfim, os Bliaux tinham um camarote na ópera. Talvez um dia convidassem a Sra. Cresmeyer. Suas esperanças não iam até esse ponto, mas ela via
abrir-se à sua frente um futuro brilhante a partir do dia em que, graças a Bergotte, os Bliaux ficariam sabendo que ela recebia para jantar os Deshais, e os Deshais
que encontrariam na sua casa os Bliaux. Os Bliaux a apresentariam a seus amigos como uma amiga dos Deshais e os Deshais aos seus como uma amiga dos Bliaux, pois
a convidariam em agradecimento a esse belo jantar com a nata de sua sociedade. No entanto, um dia em que ela poderia agradecer a tantos amigos obscuros que lhe haviam
prestado serviços, não era com esses que sonhava e sim com aqueles a quem não devia coisa alguma e cujo benefício que poderiam fazer já não fora saboreado mas era
para ser esperado e provocado. Mas ela não se dava conta dessa situação, e não pensava que os Bliaux. descartariam seu nome como ela descartava esta noite o de Flore
Simiane, dizendo consigo: "Mas não, ninguém a conhece, ela é maçante." Enfim, convidou o Sr. de Blancheforte, funcionário dos Negócios Estrangeiros. Infelizmente
(Deus é mesmo injusto), ela nem podia sonhar em convidar o mais brilhante de todos os seus convivas, o velho general d'Apvent, um verdadeiro nobre, que vivia com
a própria tia da Sra. Cresmeyer, a Sra. Tournet. Mas a Sra. Tournet estava muito doente em Orléans e o general, a não ser para questões relativas ao serviço, não
a largava.

Enquanto Jean ia à exposição de Bergotte com a tia, a Sra. Cresmeyer sofria muito. E se os Bliaux estivessem doentes! Que beleza, sua camareira afirmou que
vira passar de carro a Sra. Bliaux resplandecente! E se Bergotte se esquecesse (os artistas são tão distraídos)! Até o último instante receou que a Sra.

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Deshais não viesse, pois seu filhinho estava com coqueluche. A Sra. Cresmeyer teria desejado curá-lo, rogava a Deus, indignavase contra o pai que não era capaz de
achar um remédio: - Um médico, em nossa época, se isso não for vergonhoso. - Ela não queria sair, podia sofrer um acidente de carro, ficar presa num engarrafamento,
não voltar a tempo etc., e ser levada por engano à delegacia como tendo furtado num grande magazine. Mas sem sair do quarto pode-se machucar os pés: ficou deitada
na cama. Leváram-lhe uma carta dizendo que a Sra. Tournet acabara de sofrer uma crise terrível e que receara morrer. Temia-se que e14, não mais se recuperasse. A
idéia de um luto que teria contra-ordenado o jantar causou suores frios na Sra. Cresmeyer. Agradeceu a Deus por ter afastado de si semelhante infortúnio. Mas, na
verdade, talvez acontecesse nesse instante? Seriam capazes de lhe mandar um telegrama, de intimá-la imediatamente. Nesse momento abriu-se a porta. - Um telegrama,
madame, - disse a camareira. - De onde? - De Orléans. - Pronto. A Sra. Cresmeyer olhou-o por muito tempo sem abri-lo. Por um instante toda a sua felicidade pareceu
desmoronar, depois uma idéia genial lhe ocorreu. Ela passaria por só tê-lo recebido depois. Em caso de necessidade, para que o general acreditasse nela, faria uma
reclamação ao Ministério dos Correios. Que boa notícia no Figaro; iria chamar ainda mais a atenção sobre seu jantar: "Tão logo os brilhantes convidados que acabamos
de mencionar deixaram os salões da Sra. Cresmeyer, uma espantosa notícia veio fulminá-la, a morte de uma parenta." Infelizmente, não havia meio de dizer que a defunta
era a melhor amiga do general d'Apvent. Para se sentir menos envergonhada aos próprios olhos, decidiu só abrir o telegrama quando os convidados tivessem ido embora,
contentando-se com esse sofisma: "Talvez seja para anunciar uma melhora." Mas ainda que o telegrama não a impedisse de dar seu jantar, ela ainda se mostrava ressentida
pela emoção que lhe causara e não cessava de repetir: - Não é preciso sair de casa para ser infeliz, uma desgraça vem tão depressa. - Então ela começou a temer que,
se não fosse a Orléans, a viessem buscar. E mandou dizer ao porteiro que, se chegasse alguém para chamá-la da parte do general, dissesse que saíra e que não voltaria.

Enfim, a hora do jantar pela qual esperara o dia inteiro chegou e não a encontrou pronta pois seu cabeleireiro se atrasara. Ouvia os toques da campainha
se repetirem e ainda não estava pronta. Mas sua cólera em breve desapareceu no salão diante do prazer que teve em apresentar os Bliaux aos Deshais. Chegou Bergotte.
E a Sra. Delven, que sem'dúvida viera com ele, logo depois tocou a campainha. OSr. Delven chegara primeiro. Mas a Sra. Delven quisera vir mais tarde a fim de fazer
esplender melhor a grandeza de sua dupla presença por meio da leve inquietação de todos até o momento em que ela se manifestasse. Chamou a atenção da Sra. Cresmeyer
para o fato de que Bergotte quase não Pudera vir por causa de um acidente de carruagem pela manhã. Mas não fora nada, embora ele ficasse pálido. A Sra. Cresmeyer
entreviu, como um sonho, a possibilidade de que, ao fim do jantar, ele fosse acometido de uma apoplexia e morresse em sua casa, que ficaria célebre. Mas é um grande
estorvo alguém morrer em nossa casa. Durante o jantar a Sra. Delven. observou a Bergotte que ele fora convidado na mesma noite para jantar na casa da Sra. Desroches,
na do presidente da República e na da duquesa de Réveillon, a quem ela chamava princesa de Réveillon, seja por ignorância, seja acreditando engrandecê-la ainda mais
ao lhe dar um título que imaginava fosse mais elevado. A Sra. Cresmeyer, envaidecida mas irritada, disse: - É tanto mais amável por me haver dado a preferência.
- De súbito, a Sra. Delven, que o chamava de senhor, lembrou a Bergotte que ele não devia comer peixe. A Sra. Cresrneyer pediu a Bliaux notícias de seu amigo, o
presidente do Crédit Foncier, a fim de que os Deshais não pudessem ignorar na companhia de quem se achavam. E ela pediu a Deshais notícias da filha da condessa de
Pesch, que ficara surda aos dez anos, que desgraça horrível! A Sra. Deshais achava a condessa encantadora, tão simples. Hoje mesmo havia levado a menina para passear
no bosque. A Sra. Cresmeyer era grata à Sra. de Pesch por ser tão gentil com a Sra. Deshais, o que a fazia parecer, diante dos outros convivas, se não amiga da Sra.
de Pesch, pelo menos amiga de seus amigos.
Tendo todos saído antes da meia-noite, ela quis levar imediataraente a notícia ao Figaro, e sentindo que isso não ficava bem

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(Bergotte pedira que não se comentasse que ele jantava), temendo ser surpreendida (estava disposta a dizer que a nota provinha de um dos convidados: sob essa boa
república nem sequer podemos estar seguros das pessoas que recebemos), preparava-se como uma ladra, imaginando os funcionários que teria de enfrentar e atrás de
quem talvez a espreitasse Bergotte, quando de repente se lembrou do telegrama que esquecera no meio de tantos acontecimentos felizes. Continha estas palavras: "Francine
melhor, obrigado a passar ministério logo, pode me receber para jantar? General d'Apvent." Ela poderia tê-lo recebido. Vendo a solicitação do telegrama, ela ainda
achou que poderia contar com a sua presença. Voltou a sentir-se desgostosa ao ver seu salão onde os convidados já não estavam, as lâmpadas ainda acesas, os pratos
de petits fours quase vazios, um mordomo de empréstimo, agaloado e respeitoso ... só para ela, todos os sobejos de uma festa acabada. Oporteiro confirmou-lhe que
o general passara mas, de acordo com suas ordens, dissera-lhe que ela saíra e que não voltaria para jantar. Por um momento, teve a idéia de colocar o nome dele assim
mesmo na nota para o Figaro. Mas como explicar-lhe? E aos outros convidados que o não haviam visto? Enfim, contaria a cada um deles que tinham estado quase a jantar
com o general d'Apvent.
Com esses sonhos chegou ao Figaro e, tão logo chegou, teve medo. Oempregado a quem falaria talvez lhe dissesse: "A senhora tem autorização do Sr. Bergotte?"
e diria este nome em voz tão alta que Bergotte o ouviria de uma sala ao lado. Pois ela julgava que os artistas estavam sempre enfurnados nas salas de redação. Subiu
e de súbito desfaleceu ao ver Delven. Ele também estava tão perturbado quanto ela, mas ela tomou sua perturbação como ameaça. Da sua parte, Delven viera, com os
mesmos receios, dar a nota para que vissem que a esposa era convidada na companhia de pessoas distintas. Suprimira apenas o nome de Bergotte, não por temor ao ridículo
(ele não desconfiava de nada) mas para não incomodá-lo, já que recusara outros jantares para o mesmo dia. Ocaso fora discutido entre os três, tendo Bergotte, aos
poucos, condescendido com todos os hábitos das pessoas com quem vivia, tal procedimento não lhe parecendo mais chocante. Saudaram-se sem parar, o que significava
uma

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confissão. Nunca mais pensaram um no outro senão com vergonha. Ambos não dormiram à noite. Esperavam o delicioso momento em que o sol viria acordar os entregadores
do Figaro, ondè poderiam se deliciar com as linhas imaginadas, ouvir as sílabas de seus nomes entre as sílabas gloriosas, onde o jornal inocentemente dobrado de
lado, esperando que, a Sra. Desroches pedisse o seu chocolate, guardava a notícia que para ela iluminaria com uma glória vingativa a Sra. Cresmeyer e a Sra. Delven.
Osol se ergueu, dócil à expectativa da Sra. Cresmeyer. E a criada teve ordens de comprar dez exemplares do Figaro, pois ela desejava comparar, dar-se conta
de que todos eram idênticos. Onoticiário mundano continha uma série de notas que até aos olhos da Sra. Cresmeyer não revestiam de grandeza alguma as pessoas cujos
saraus aí se achavam descritos. Mas, quando chegou à mais insignificante de todas, aquela que, é claro, ninguém lia, os tipos pareceram-lhe mais doces. Grande jantar
em homenagem a mestre Bergotte em casa da Sra. Oresmage- Ela se empertiga, quer voar ao Figaro, impedir a venda dos exemplares. Desgraça, todos já tinham sido distribuídos,
propagando o erro fatal. Mas é uma infâmia! Como prevenir a todos? Também, por que faz ela sempre os C como 0, os Y como G? Amanhã hão de ietificar. Mas daqui até
lá vão atribuir a uma outra a glória desse jantar que só pertence a ela. A nota estava tão boa. "A alta finança estava representada pelo casal Bliaux. Podiam ser
vistos sábios como o Dr. Deshais, personalidades notáveis da alta sociedade aristocrática e mundana, como o conde de Blancheforte, o Sr. e a Sra. Bliaux, o Sr. Delven
etc. A graciosa dona da casa, que - caluda! - nos prepara, dizem, outras maravilhas, trajava um vestido de cetim negro com duplos folhos; ondulados brancos, uma
obra-prima assinada por Morin-Boissier, fez as honras da festa com sua graça costumeira." No dia seguinte bem que poderiam retificar que o jantar de que falamos
ontem foi dado pela 'Sra. Cresmeyer e não pela Sra. Oresmage (conforme anunciamos por engano), mas não poderiam reproduzir todos esses detalhes, e os leitores, não
tendo prestado muita atenção (não sabiam que se tratava da Sra. Cresmeyer), já os teriam esquecido.
Mas a Sra. Cresmeyer não deveria ficar completamente frustrada nesse prazer. OSr. Delven, buscando entender as razões

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pelas quais a Sra. Cresmeyer viera a desoras ao Figaro, supÔs que seria para pedir ao jornal que não falasse de seu jantar. E enviara logo a mesma nota ao Gaulois,
riscando tudo desta vez e pondo o nome de Bergotte (como só combinara com Bergotte a respeito do Figaro, ninguém pensaria que se tratava dele) para que diante de
um nome que interessasse ao público, no interesse do jornal, o colunista social não hesitasse. Assim, no momento em que ela se lamentava pela ignorância em que ficaria
a Paris elegante a respeito de seu jantar, e renunciava a ir fazer visitas em que projetara observar ao vivo o efeito - ciúme ou admiração - produzido pela nota,
sua vizinha de cima mandava-lhe pela criada o Gaulois, onde havia uma nota que podia interessar à senhora. Foi talvez a única pessoa que prestou atenção a essa nota.
Os outros leitores do jornal leram esse insignificante avesso de uma paixão devastadora com a mesma indiferença que os numerosos falecimentos, divórcios, suicídios
que enxameavam os jornais com a cinza inerte e pública de tantas chamas escondidas, pois o que, para nós, faz a felicidade ou a infelicidade de nossa vida representa
para outrem um fato quase imperceptível.
Quase no fim do ano, a Sra. Cresmeyer não resistiu à enfermidade hepática de que já sofria à época desse jantar. Nesse instante, para ela como para os outros,
as relações que tivesse ou não tivesse com os Bliaux perdiam toda importância. Seu enterro, a que compareceu muita gente com indiferença, não foi um acontecimento
mais marcante que seu jantar. A família retomou nessa hora séria o lugar de uma intimidade artificial,(~P todas as pessoas modestas afastadas do jantar foram à capela
mortuária, onde Bliaux nem mesmo se fez registrar, "já que conhecia ela", dizia ele à esposa. Pois decerto não gostaria que soubessem que a conhecera. Em troca,
a Sra. Desroches, que não viera ao jantar, bem como os Santeuil, compareceram ao enterro por conveniência e em lembrança bem doce para essa pessoa intratável. Como
a Sra. Cresmeyer não se achava presente para enviar a nota, os jornais não tocaram no assunto.

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VIII. Henri Loisel

É claro que tais fatos, ao serem conhecidos, deram uma idéia do lado mau da vida de Bergotte, a contraparte inexplicável não só de seu gênio mas também de
sua bondade, de sua lealdade, de seu desprendimento. Há outros fatos, entretanto, que, por mínimos que sejam aparentemente, fariam sofrer ainda mais um admirador
de Bergotte, bem como, quem sabe, os que os tivessem feito experimentar, se não um pouco de vergonha, ao, menos o sentimento fastidioso da mediocridade da vida que
temos todas as vezes que o nível de nossa vida moral está bem baixo.
Quanto a mim, não me esquecerei nunca das palavras que Bergotte disse a Loisel na noite em que este foi tocar na casa da Sra. Delven. Esta tinha-o constantemente
em sua casa porque pessoas mais elegantes que os seus convivas habituais estavam vindo para ouvir Loisel e viriam sempre que ele tocasse. A Sra. Delven era pobre.
E cada cachê de Loisel era de mil francos. Assim, ficou combinado que era por causa-de mestre Bergotte que ele vinha, assim como era por ele que atores do néàtreFrançais
viriam representar outra noite uma peça nova, que Fauré uma outra vez ainda se fez ouvir. Quando o artista terminou, a fisionomia de Bergotte exprimia um entusiasmo
artificial. E durante alguns minutos falou ao artista, não se contentando em elogiá-lo mas acrescentando coisas particulares, coisas engraçadas feitas para ele,
que eram o seu modo de pagar o trabalho. Durante esse tempo, o Sr. e a Sra. Delven assumiam o aspecto que toma uma família ao final de uma festa, uma fisionomia
convencional, quando o pai desliza na mão do artista que acaba de tocar o Cachê combinado.
Bergotte era tão maravilhosamente sagaz que lhe bastava escutar por um segundo o pianista ou o cantor, observar um gesto da comediante para achar de imediato,
como um deputado esperto que não tem necessidade de estudar por muito tempo um projeto

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de lei para saber como vai combatê-lo, as palavras que lisonjeariam o artista ao poWo preciso e particular, se não de seu talento ao menos de sua pretensão. E dava
tão bem as razões de sua predileção que parecia falar a contragosto, ser levado pela evidência. - Ah, existe todo um crepúsculo em sua música! Omomento em que decididamente
a luz baixa, ah! estamos inquietos, ficamos como os animais ou como as criancinhas que têm medo da noite. Eis o que o senhor nos faz com sua música, somos cri '
ancinhas ... Cante-nos de novo a passagem, sabe, aquela em que destaca ligeiramente cada nota, abaixatido-se um pouco como se estivesse colhendo flores. Oh, e depois
o momento da quadriga, o senhor parece não poder mais sustentar o tom, as notas dão a impressão de o arrastarem. E, no entanto, é o senhor que comanda tudo isso,
são essas mãos delicadas que sacodem a trovoada ou bordam o arco-íris. Ah, é muito bonito! - Bergotte assinalava essas passagens ao acaso, como se comportassem um
epíteto curioso ou uma comparação jovial. Quando tivesse desse modo assinalado uma ou duas, deixava de ouvir o resto e recaía em seu devaneio até o instante em que
o trecho findava e, então, com exaltação súbita, dirigia-se assim a Loisel em meio ao silêncio dos demais ouvintes que, reduzidos ao papel do coro antigo, já terminado
o discurso de Bergotte, comentavam com ar de assentimento: - É admirável.

Ingenuamente, crendo que Bergotte ficaria feliz em ouvir de novo esses trechos, já que os admirava tanto, Loisel recomeçava: - Para o Sr. Bergotte. - Oh,
sim, por favor - dizia Bergotte com ar entusiasta e descuidado, já pensando em coisa bem diversa - oli, esta quadriga. - Loisel ria. Não achava em Bergotte nada
tão engraçado como essa palavra, e mais tarde, em sociedade, gostava de citá-la. Dizia: - Isto é que, na minha audição, Bergotte chamava de "o momento da quadriga"
- e ria muito. - Muito bem, vou recomeçar a quadriga - disse a Bergotte. Bergotte, como um claqueur encarregado de dizer, ao lembrarem Sarah Bernhardt: "Não, todos
todos", dizia: - Não, tudo tudo. - De verdade? - perguntava Loisel com o sorriso de piedade que temos diante do espetáculo de um entusiasmo desordenado, piedade
bem indulgente quando nós é que provocamos tal entusiasmo. E sem se fazer de rogado recomeçava tudo.

Dessa vez Bergotte, como um crítico dramático que não vai ao teatro para assistir às peças que não precisa analisar, não ouvia mais nada, já que descobrira as palavras
que seriam ditas. Opúblico, ao contrário, que na primeira audição, antes do discurso de Bergotte, não sabia bem o que pensar (já repararam que, quando algumas pessoas
ouvem um virtuose, se ninguém ainda aplaudiu ou manifestou sua opinião, e se o artista não vem precedido de uma reputação que faça chegar ao auditório o eco dos
aplausos ou das vaias das platéias anteriores, todos permanecem indecisos, sem saber se tal enfraquecimento da voz é uma nuança ou uma desafinação, se é sublime
ou ridículo), sentia agora a verdade das palavras de Bergotte como se as tivesse encontrado ele próprio. E percebia tão bem que estava escuro na música tocada por
Loisel que por fim um jovem poeta, jogando já com as palavras de Bergotte, gritou a exclamação de Geethe moribundo: - Luz! Luz! - expressão que, para Loisel, deu
o tom da noitada. Ouvi-o diversas vezes contar o episódio como prova do efeito físico extraordinário que a música pode produzir. E se apiedava com secreta simpatia
desse pobre moço que, ao escutá-lo, sentia-se na escuridão, como se essa situação tivesse tido algo de real e opressor. Sim, nessa segunda audição todo mundo sentia
o peito inflar-se de entusiasmo. E, no momento de um pianíssimo, a Sra. Cresineyer, que desde o começo do trecho balançava muito depressa a cabeça com o corpo, e
quase sem deslocá-la, como um pêndulo muito rápido mas afastando-se tão pouco de seu centro de gravidade que parecia antes oscilar por si mesmo, no instante de um
pianíssimo em que os sons cada vez mais suaves e rápidos são ouvidos entretanto com perfeita igualdade, resultado a que chega todo bom aluno do Conserva*tório, sem
que para tanto seja necessário possuir nenhum dos dons de Loisel, a Sra. Cresineyer, que desde alguns instantes já não sabia como dar alas à sua admiração e que
dizia: "É maravilhoso, é maravilhoso", não pôde resistir, coincidindo um novo abaixamento do pianíssimo com a sustentação do movimento rápido e da igualdade do som:
riu afetadamente. E essa manifestação de seu entusiasmo determinou logo a natureza, a seu ver. Ela disse: - Isto é agradável. - A Sra. Delven, não tendo por sua
vez achado nada para dizer, ficou chocada com seme-

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lhantes reflexões da Sra. Cresmeyer e em lugar de mostrar uma fisionomia admirativa conservou um rosto impenetrável, lição que devia esclarecer a Sra. Cresmeyer
quanto às pessoas que amam realmente a música.

À noite, o lacaio disse à camareira (e certamente sua opinião não era determinada pelos elogios de Bergotte, mas muitas vezes as pessoas do povo gostam de
ouvir qualquer música, assim como se divertem nos museus vendo, em molduras douradas, "a pintura"): - Toca admiravelmente bem este senhor. Gostaria muito que voltasse
com freqüência. Eu estava atrás da porta. - Oh, eu, quando alguém toca desse jeito - disse a camareira -, fico, de certo modo, sem saber onde estou, durante horas.
Mesmo assim, é bem bom que ele já não seja muito ouvido aqui. - Por quê? - indagou o lacaio. - Oh, porque me faria mal - respondeu a camareira com vivacidade, e
como se tivesse medo -, o médico bem que falou, pergunte à patroa, sou muito impressionável.
Quando Loisel tocou pela segunda vez, Bergotte não disse mais nada. Mas fez como se estivesse muito emocionado, e como alguém lhe falasse ele se desculpou
por estar distraído, dizendo: - Não é culpa minha; quando esse rapaz me excita os nervos desse modo, fico divagando durante uns cinco minutos. - Mestre, não tocarei
mais se isso o faz ficar assim - disse Loisel a Bergotte, com um sorriso bondoso. Houve então outro sorriso que ninguém viu nos lábios da Sra. Delven e ela fitou
Bergotte. Mas ele não respondeu ao seu sorriso, fosse por prudência, fosse porque, à força de representar seu papel, não tivesse mais a sensação de representá-lo,
e a ingenuidade com que Loisel entrava no seu jogo só lhe provocava uma ligeira irritação para com alguém que sabia tão pouco entender a amabilidade.
Eu, que o ouvira falar da mesma forma a tantos outros, em quem deixara de ver talento desde que a Sra. Delven já não tinha necessidade deles para seus saraus,
olhava essas sentenças douradas, que essa imaginação divina produzia e prostituía em pagamento de um serviço mundano, com a vergonha daquele que vê o próprio padre
comerciar com os traficantes os vasos do
templo. E enquanto Bergotte agradecia a Loisel, no momento em que eu ouvia sua voz se umedecer com uma falsa emoção

e um falso reconhecimento, enquanto a Sra. Delven, que conhecia tão bem esse tom de voz e essas palavras, que lhes sabia o objetivo, achava-lhes o interesse e impunha-as
como uma necessidade, escutava com ar compenetrado, eu não ousava olhá-los, sentia-me constrangido. No dia seguinte, Loisel recebeu de Bergotte a reprodução de seu
grande quadro Eurydice. Por baixo o mestre escrevera do próprio punho: "A Orfeu esta Eurydice, seu admirador e amigo Bergotte." Foi a Sra. Delven quem o mandou enviar.
Ela mesma o embrulhara cuidadosamente. E, dando-o ao criado, disse a Bergotte: - Acho que agora nem temos necessidade de convidá-lo para jantar.

Enquanto Loisel tocava uma última valsa, Jean sentiu dentro de si mesmo, a uma determinada frase, alguma coisa agitar-se. Sem dúvida tratava-se de uma melodia
esquecida onde se encontrava essa mesma frase, talvez simplesmente o mesmo acorde que, espantoso de se ouvir, debatia-se no fundo do esquecimento, buscava retornar
à vida, sair e ser reconhecido. Jean não o reconhecera ainda e já se sentia triste. Loisel continuava a tocar mas Jean tentava ouvir de novo essa frase que, de súbito,
havia ferido alguma coisa dentro dele, repeti-la, para que, ferindo várias vezes, ela terminasse por despertar completamente sua consciência adormecida. Não podia
tornar a agarrar a frase. Mas, nesse tempo, aquilo que se agitara dentro dele subiu até à consciéncia plena. Não era uma frase que conhecia, e sim uma sonoridade.
E essa sonoridade, ah! ei-la, ouve-a, reconhece-a, era a do velho piano agudo da casa do Sr. Sandré. Por acaso, embaraçando-se um pouco, os dedos de Loisel tiraram
desse bom piano um som tão agudo quanto o do piano do Sr. Sandré. Sem isso, sem dúvida, nunca que Jean teria pensado de novo nele, pois jamais pensara nele desde
aquela ocasião. E, no entanto, ele se sentava para tocar com freqüência. Todas as noites, depois de jantar em casa do avô, sentava-se para tocar enquanto, posta
na mesa, onde iam pôr os castiçais, a xícara de café esfriava. E a fotografia disso tudo ocupara o seu lugar nos arquivos de sua memoria ' arquivos tão vastos que
em sua maior parte nunca
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iria olhar, a menos que um acaso os fizesse reabrir, como acontecera com o embaraço do pianista naquela noite.

Sem que desconfiasse, porquanto as grandes mudanças da nossa vida se consumam sem que delas estejamos prevenidos, e sejamos só inconscientemente seus colaboradores,
essa noite passada em casa da Sra. Delven, onde Henri Loisel desfrutara o prazer desinteressado da vida de luxo, admirada unicamente como um espetáculo e sem segunda
intenção egoísta, foi a última. Mais tarde no teatro ou no concerto, ele se ocupou mais em ser visto por pessoas que estavam na sala, e visto no momento em que conversava
com determinada pessoa, arrancava a uma outra um sorriso mediante o cumprimento com o chapéu, altivo e discreto, para poder olhar com toda a liberdade o palco, e
as elegâncias das quais só participava pela simpatia não mais lhe bastaram. Pouco depois, com efeito, a duquesa d'Alpes; ficava sabendo pelo jornal que a sua Rêverie
mystique foi admiravelmente executada num concurso do Conservatório por um jovem pianista dotado do maior futuro, aluno dos Srs. Massenet e Marmontel, o Sr. Loisel.
A duquesa d'Alpes unia, como muitos artistas, o desejo de sucesso mais material ao amor desinteressado das realidades quiméricas. Este último sentimento foi satisfeito
de maneira quase romanesca à idéia de que, tão longe dela, um jovem artistaTeconhecera nessas páginas mudas para tantos outros o sentimento misterioso que ela lhe
confiara, e do qual Santo Agostinho, mais que qualquer outro, o ajudara a tomar consciência.

Ãquele que, entre as inumeráveis obras que cumprem permanentemente sua revolução solitária, atravessando uma distância infinita, vai até nossa obra, mundo
completo onde o nosso pensamáto está guardado mas perdido entre todos os outros mundos semelhantes, como um grão de areia entre outros grãos de areia, e entretanto
tão longe de todos os outros como uma estrela das outras estrelas, e aí cumprimenta nossa alma com um sorriso fraterno e confiante, sentimo-nos unidos por um fio
tão misterioso, tão sagrado, tão doce como esse raio da estrela vespertina que viaja durante centenas de séculos, através de milhões de

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léguas, para vir tocar com um claridade carinhosa o nosso olhar -amigo, como se, inclinada do alto do infinito, uma alma irmã velasse imperecivelmente a nossa. Mas
se a doce infinidade de unia simpatia longínqua penetrasse o coração da duquesa d'Alpes, o sucesso, quer dizer, a admiração das pessoas que não podiam compreendê-la
mas eram compelidas a admirá-la pela publicidade, pela imitação, por todo tipo de esnobismo, lhe era bem doce também. Ora, o que é que podia impor mais ainda aos
olhos da sociedade a idéia, então muito pouco aceita, de que ela era uma compositora apreciável, senão ver um verdadeiro artista num ambiente de autoridade artística
sem igual, diante de mestres ilustres, escolher, sem conhecê-la, uma de suas composições como peça de concurso? E ela já entrevia a possibilidade, nas diversas recepções
do bairro Saint-Germain, de substituir a conversa insípida das reuniões mundanas, o desenxabido trecho de harpa ou o inepto monólogo dos saraus onde se faz qualquer
coisa, pela Rêverie mystique ou o Roi Cophetua, ou as Assomptions, admiravelmente tocadas pelo Sr. Loisel. Imposta por um artista, sua música, a despeito do esnobismo
artístico, faria fortuna na sociedade. E por um refluxo que jorrou naturalmente de sua rica imaginação e inundou-lhe o coração de alegria, sentindo nela, ~orno se
soubéssemos a força de seu punho e nos divertíssemos em fazê-lo tocar diante de nós como para melhor senti-lo, a força que lhe dava o outro esnobismo, o esnobismo
mundano, ela entreviu uma longa série de triunfos nos saraus de pessoas que ficariam encantadas em oferecer as mesmas coisas que as pessoas do bairro. Ela se viu
obrigada a ir - pois o faríamos muitas vezes para seduzi-la - a muitos salões chinfrins mas onde há mais artistas, onde somos mais apreciados que em outro. Essa
perspectiva não deixou de assustá-la. Mas ela só iria aonde quisesse. E, depois, ela se considerava como tendo uma missão, como tendo de imolar sua nobreza às necessidades
do destino de suas produções artísticas. Assim como a batalha de Austerlitz, segundo os fatalistas, já estava traçada no espírito de Deus quando este concebeu o
mundo, é provável que o sarau da Sra. Marmet fosse entrevisto desde esse dia pelo olhar de vista longa da Sra. d'Alpes. Ela ficou tão feliz em ver o Sr. Loisel disposto
a se tornar o caixeiro-viaj ante de sua música através da sociedade, a

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estabelecer o máximo de relações e a ganhar o maior número possível de cachês por tocá-la com exclusividade, lisonjeado de se transformar numa espécie de membro
de sua casa, assim como tinha ela um médico que renunciara aos concursos para se ocupar exclusivamente de sua saúde, que não se importou muito com a decepção que
teve ao verificar que o Sr. Loisel conhecia Santo Agostinho ainda menos profundamente do que ela esperara, e ao adivinhar que um cálculo de ambição talvez não fosse
estranho a uma preferência que contudo se explicava tão naturalmente de outra forma.
Pessoa muito inteligente e enérgica, a duquesa d'Alpes involuntariamente moldava à sua semelhança as pessoas que a admiravam. É certo que foi depois que
começara a freqüentá-la muito que a Sra. de Cinq-Cygne adquirira essa voz desfalecente que a Sra. d'Alpes revelava de quando em vez, como se entrasse em êxtase.
E se a Sra. de Larmardin, gorda fiamenga amante das coisas reais, não tivesse conhecido a Sra. d'Alpes, talvez Burne Jones ocupasse menos metros quadrados em suas
paredes. Mas uma espécie de inércia intelectual absoluta, uma ausência total de atitudes mundanas que a habilitassem a receber tais e quais as primeiras que se lhe
apresentassem, enfim, muita admiração, muito esnobismo, pretensão pessoal aliada à ausência de originalidade, tiveram como conseqüência inteiramente estranha o fato
de que Loisel não só encheu até o quarto da velha Sra. Loisel de reproduções de Burne Jones, não só ganhou papel de carta com uma divisa de Santo Agostinho, mas
também cumprimentou, caminhou, falou de quando em vez com desfalecimentos langorosos exatamente como a Sra. d'Alpes, precisamente como nesse joguinho social que
se chama imitações. Mas, assumindo as maneiras da duquesa d'Alpes, a jovem Loisel não podia tornar-se ela própria.* Assim, de família quase real, porquanto era sobrinha
do conde de Poitou, a duquesa d'Alpes fazia uma cortesia a todos mostrando-se excessivamente gentil. Adotara também para todos uma mímica bem ensaiada mas cheia
de encanto. Alguém vinha

* No original francês, a frase vem toda no feminino, como se Loisel se houvesse de súbito transformado em mulher. (N. do T.)

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cumprimentá-la, ela franzia os lábios como se quisesse beijá-lo ou não deixar que visse que ela sofria, fixava-o com um olhar carinhoso e distante, dizendo com voz
cantante: - Bom-dia, conde, como estou feliz em vê-]o. - E com a mão hesitando ummomento como no instante de um dom tão ponderável. que bem vale que se* reflita
melhor nele, ela a abandonava ao interlocutor que a tomava respeitosamente, ora como se ela deixasse cair uma esmola, ora com ímpeto, como nos atiramos bravamente
ao fogo. Mas imaginem a mesma mímica animando Loisel, vejam-no fazendo requebros, decidindo-se a abandonar sua mão grossa e delicada tão-somente ao toque, ao aperto
da de uma duquesa, e terão um espetáculo bem estranho. Da mesma forma, muitas vezes, na entrada de um salão que, tão brilhante como a própria noite quando ela entrava
atrasada para jantar, se lhe representava um lugar ordinário de promiscuidades penosas, a duquesa d'Alpes parava por um momento no limiar como um pássaro assustadiço
e parecia contemplar por um instante todo o horror do perigo antes de se atirar nele às cegas. E muitas vezes então, ela cumprimentava cada um com a cabeça, conservando
as mãos sobre o peito, comô se temesse profartar-lhes o dom. Mas Loisel, fazendo uma entrada semelhante em casa da duquesa d'Alpes, executava movimentos que não
davam impressão de serem dirigidos por nenhum pensamento inteligível e bem idênticos aos de um louco. Assim, diz Malebranche, a criatura parece inexplicável àquele
que não sabe que ela tem sua causa eficiente no espírito do criador. Ocriador, aqui, era a Sra. d'Alpes. Loisel adquirira dela muitos outros hábitos, como o de
dizer, de tempos em tempos, erguendo os olhos ao céu: - A graça de Deus é incompreensível. - Mas, como esta frase, imposta à sua imitação pelo prestígio que para
ele tinham todas as maneiras da duquesa d'Alpes, não fazia sentido algum para o seu espírito pouco filosófico, ele a repetia a propósito de tudo com ar modesto,
por exemplo, poira agradecer a uma pessoa que o felicitava quando acabava de tocar piano. E também mordiscava seu lenço como a Sra. d'Alpes.
Já repararam que nunca vemos uma coisa uma só vez, mas que, depois de a termos visto, nós a revemos logo como se ela ,só tivesse começado a existir no momento
em que a conhecemos?

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Assim, aprendam numa leitura o nome de um autor que ignora
vam; ficarão bem espantados de ouvir falar nele na mesma noite,
Fiquem sabendo, por acaso, que a Sra. de Thianges, nasceu em
Thiolley, e na manhã seguinte verão que um certo Sr. de TIiiolley
estava presente numa baile da embaixada, ou freqüentava as
aulas de Dieppe, a menos que na mesma noite não tenham visto
o nome de um Thiolley numa memória do século XVII: seja por
que um nome que passava despercebido já nos chama a atenção
e vem, por assim dizer, amistosamente ao n ' osso encontro quando
o deparamos a seguir, como o jovem que nos foi apresentado e
cuja existência ignorávamos, e que na mesma noite, no teatro,
é a primeira pessoa que nos cumprimenta, seja porque a nova
direção de nossas leituras ou de nossas relações, que nos fizeram
encontrar esse fato novo ou essa nova pessoa, nos traz, pela boa
razão de que continua, de novo ao seu encontro. Ai de nós!
Há no entanto novos encontros, desses que parecem misterio
samente unidos por longínquas afinidades, e que, não reaparecen
do mais, deixam por muito tempo no coração as vibrações enfra
quecidas e trêmulas de sua lembrança, sem que o mesmo encon
tro se reproduza jamais, convocado por todas as forças do cora
ção, afastado sem dúvida por todas as leis da natureza.

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IX. Os presentes

Nas longas horas que passava agora em casa, Jean queria ler a todo instante, e beber chá aquecendo os pés. Com o auxilio de Augustin, procurava no fundo
dos armários as estatuetas, os serviços de chá, os vasos de flores, os desenhos de mestres, as caixas de marfim, os estojos de marroquim que, não podendo exercer
suas delicadas e constantes funções em seu quarto, que ele deixava pela manhã para só voltar à noite, e que sua vida, toda entregue às exterioridades, havia abandonado,
tinhamse refugiado, um a um, no silêncio e no esquecimento dos quartos de depósito. E chamado à sua lembrança pelo desejo de tomar uma xícara de chá ou ler um outro
livro aquecendo os pés, de ter junto a si o aroma de uma flor ou o sorriso de uma deusa, o amor que lhes tinha tornou-se de repente tão vivo que depois de os haver
abandonado durante anos, sentia-se exatamente no momento de precisar deles, como se só sua contemplação ou sua utilização devesse apaziguar o seu desejo ou acalmar
a sua expectativa. - Oh, o desenho que a patroa me deu para decalcar! Oh, deve estar no armário da cânfora, vou procurar amanhã. - Oh, Augustin, mas é que eu queria
logo! - Jean, deixa então Augustin acabar com a prataria. Não vais me convencer de que precisas disso imediatamente dizia a Sra. Santeuil se passava por ali, para
terror de Jean. Outro dia vou mandar que procurem VÊducation sentimentale para ti. Por hoje, bem que podes ler outra coisa em todos os teus livros. - E Jean, incapaz
de explicar o que esse desejo platônico tinha de mais imperioso do que uma simples necessidade, pretextava qualquer pesquisa para fazer, ou, se se tratava de um
objeto, a necessidade de mostrá-lo a alguém. - Nunca te vi tão ativo a não ser quando desejas alguma coisa - dizia a mãe rindo. E permitia a Augustin procurar.

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Agora como na primavera, quando a vida recomeça em toda a parte, vê-se aqui e ali tufos de junquilhos e de violetas aparecerem no chão degelado, e até o
velho muro ressumando vida, sol e umidade como que se cobrir de fios de seda de veludo, e até a ninféia içar suas grandes corolas à flor d'água sobre as raízes flutuantes,
assim num canto despido e morto o pequeno aparelho de chá estava de volta, exalando de noite seus aromas nebulosos, o canapé Luís XV se arredondava perto da lareira
diante do fogo reavivado, uma Musa de Tânagra retomara seu assento imortal fio nicho da parede, vazio há muito, como uma divindade que, guardada nos subterrâneos
durante a guerra, é recolocada, ao se fazer a paz, no altar restaurado, a mesa se cobrira de livros, e vasos que logo estariam floridos erguiam seu gargalo dos dois
lados da lareira, as fotografias da Sra. Santeuil, de Henri de Réveillon, uma Salomé de Gustave Moreau sorriam nas paredes ao olhar que, brilhando agora, desejara-os
ali. E em pé, diante da porta, estendendo ao recém-chegado um raminho hospitaleiro, um Pan de Clodion em seu pedestal de mármore, zelava por esse quarto desde que
era habitado. A presença de Jean parecia apenas a manifestação de toda uma vida latente que em silêncio trabalhava sempre a seu redor, e se, quando ele estivesse
fora e alguém entrasse, a todo instante na contração de uma brasa morrente ou'uma erupção de faíscas em meio a silenciosas convulsões do fogo, a queda de uma pétala
de íris, ou o brusco soar de uma hora que, em breves indicações, faz pensar em durações tão longas, o carvão que transbordava da mecha do candeeiro, pareciam o termo
ruidoso e momentâneo de uma surda germinação, assim como no silêncio do meio-dia o ruído seco do fruto maduro que faz estalar sua vagem ou os movimentos de impaciência
arrancados a uma longa espera, como se, menos pacientes que o papel branco, a tinta no tinteiro, o vinho suave, os livros que ficariam imóveis durante semanas até
que aprouvesse ao dono utilizar suas energias latentes, a hora contida há muito tempo não pudera deixar de soar, a pétala de rosa não tivera mais forças para ficar
imóvel por muito tempo sobre o pedúnculo, ou o fogo saltara sobre o mármore a seu pesar.

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Jean continuava a passar horas com Augustin, procurando objetos antigos que, escolhidos com amor por seus pais, tinham sido recebidos sem prazer e achavam-se
enfurnados por ele em cofres, como os tesouros que os marinheiros, os soldados, todos os que vivem de explorações permanentes, não podem guardar consigo. Entretanto,
mal Augustin, depois de infrutíferas buscas nos armários, descobria o pequeno castiçal de prata para acender a vela, ou o samovar de cristal ou de ouro, e perguntava
onde deveria pô-lo, Jean retrucava: - Augustin, tenha a bondade de embrulhá-lo cuidadosamente, vou levá-lo. - E, aos poucos, todos esses objetos, seguindo o rumo
de seus pensamentos ou de sua vida, iam para a Rua de Rennes. Jean mandava-os a Françoise, como essas nascentes novas de onde se tira a água que as plantas bebem
para obter cores novas, penetrar em sua economia, fazê-las criar novas folhas e flores que tivemos a felicidade de estimular, e o espanto de ainda as não ter visto.
Mostrando o seu prazer no momento em que ela o recebia, ele tinha a sensação de penetrar-lhe a alma naquele instante, dispor dela, produzir seus sentimentos. E se
ela lhe escrevia uma carta empregando alguns termos novos de gratidão e amizade, ele a examinava deliciado, como a um fenômeno natural, como um pouco de alma que
ele mantinha ainda viva na mão, e sentia-se pago com sobras por suas mágoas, como um amador de jardins, que gastou milhões, julga reencontrá-los colhendo uma folha
nova de tulipa, mas sublimados, quintessenciados, preciosos agora. Parecia-lhe que a estatueta de Eros vencedor que mandara
Rua de Rennes era como um aliado divino que possuía naquele lugar, que a argolinha conservava um pouco dele mesmo em seu sono, e que seu amor ficaria para
sempre fixado, imperecível como o pequeno dístico gravado no frontão de sua banheira: Semper amores.
Mas se, cada vez que lhe enviava um presente, se sentia feliz como se tivesse recolhido um pouco de amor em troca, quando o recebia dela experimentava uma
grande tristeza como se ela tivesse tentado se desobrigar da dívida de ternura que ele queria que a cada dia se tornasse maior em relação a si mesmo, comose tratasse
de um beijo, de um encontro, de uma confissão que ela já não lhe podia fazer. Parecia-lhe que gastando tanto di-

pôr no salãozinho da

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nheiro para lhe dar uma malinha de viagem, um Delacroix, ela devia amá-lo menos e ele nada mais podia exigir dela. Além disso, que necessidade tinha ela de lhe mandar
estas coisas bonitas? A coisa mais humilde vinda da parte dela parecia-lhe tão preciosa, mais preciosa talvez, como se uma simples flor, um lenço, uma caixa de luvas
que ela havia utilizado, não tendo outra beleza nem outro sentido, pudessem saturar-se mais completamente de sua beleza e de seu significado. Um belo quadro podia
vir dela, existia de outra maneira, não era uma coisa dela como o seu lenço. Pouco a pouco, à medida que ela se ia tornando para ele menos misteriosa e que sua perturbação
inicial se condensava em ternura humana, em felicidade terrena, fortificavase-lhe no coração esse doce prazer que decorre do sentimento da posse e da continuidade
do hábito. Oquadro que, como um belo desconhecido, nos fez sonhar uma noite com uma vida diferente e com uma alma escondida, não gostamos por acaso dele ainda,
embora de outra forma, quando, comprado ao preço de mil penas, permanece dia e noite em nosso quarto não nos inquietando mais com seu olhar que parece antes reconhecer-nos,
deslumbrando-nos com suas belezas peculiares e bem sabidas?

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X. A confissão

Eles esperavam, estavam sozinhos e juntos um do outro. Ele tomou-lhe a cabeça entre as mãos e a olhou pela terceira vez como havia feito no dia da sonata
e no dia do teatro. Depois recuou alguns passos como alguém que fosse empurrado, e estacando lhe disse: - Françoise, nunca amaste ninguém a não ser a mim? - Bem
sabes, meu querido. Não me digas "bem sabes", e sim: nunca amei ninguem a não ser a ti. - Ela repetiu como a uma lição: - Nunca amei ninguém a não ser a ti, estás
contente9 - Juras? - Como um bêbado conduzido por outro, que de tempos em tempos acha de novo suas forças e faz com um soco um esforço supremo para escapar, olhando-o
fixamente com raiva, ela se livrou de suas perguntas. Está acabado9 Que tens hoje9 Vais continuar a me fazer sofrer assim? - Ele esperou um momento para que sua
cólera se abrandasse, sem mudar de idéia, e disse: - Estás muito enganada em pensar que te quereria mal por isso. Só te quereria mal por uma nica coisa, se me traísses.
Isso vai acabar, só estou te perguntando uma coisa, olha, responde claramente. É tudo. Minha querida, minha Françoise - acariciou-lhe a cabeça -, dize-me, olha,
só digo uma palavra para não te atormentar, para que tudo termine mais depressa, alguma vez tu, enfim, tu sabes ... antes de mim? Cala-te, és muito mau, vou querer-te
mal o resto da vida. Jean abaixou bem a voz e num tom suave, súplice, para que ela não se encolerizasse: - Respondame. - Então ele viu seus olhos que o não miravam,
e viu-os preocupados, cheios de escrúpulos, de coisas escondidas como no dia em que a vira pela primeira vez. E já sabia que ela ia dizer sim. E disse: - Não sei,
talvez, ligeiramente, faz tanto tempo, não me recordo bem. - Seus rostos se alteraram rapidamente como se um mesmo mal os atingisse e seus olhos exprimiam essa angústia
vaga dos agonizantes, dos que são atacados

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T

de doença, daqueles nos quais se vai processar uma grande mudança, enquanto a placidez da morte ou a resignação à doença faz esforços mas ainda não pôde penetrar
neles. Infelizmente essa angústia deveria durar tanto quanto o seu mal.
Ele tomou-lhe a mão, colocou-a sobre o peito e disse, quase chorando: - Meu coração está sofrendo tanto, dize-me depressa, depressa, não posso esperar mais,
minha querida, ouve meu coração. Era um rapaz? - Não sei mais, não, mas tu és doido', ah! me afliges de propósito. - Não, minha querida, um segundo e seremos felizes,
agora acreditarei em ti por toda a minha vida. Quem então, um velho? - Oh, cala-te. - Um velho então, mas eu compreendo bem essas coisas, amo-te do mesmo modo. -
Um velho, não. - Mas quem então? Ela falou em tom de súplica: - Jean, Jean, fica bonzinho, me deixa. - E ele reviu seu olhar escrupuloso e perturbado, cheio de coisas
escondidas. Com voz sibilante e baixa, indagou: Mulheres? - Ela escondera o rosto nos ombros de Jean, não respondeu. Ele continuou logo: - Perdão, está acabado.
Uma só ou várias? - Uma, acho, sim, uma, Jean, me deixa. - Conheço-a? - Assustada, ela pulou: - Não, te juro, nenhuma. Exagerei. Era tão jovem. Juro que não me lembro
mais. Não acreditou nela, mas esperou por um momento. Depois: É pena que eu não conheça nenhuma, porque isso me tiraria todas as preocupações. Uma pessoa em particular,
à qual seja possível reportar-se, seria tranqüilizador. Oterrível é não saber. Mas tu já foste muito gentil. Agradeço-te, agradeço-te. Ali, se pudesses te lembrar
de uma, uma só! Estou te cansando. Apenas uma, pois certamente houve várias. Mas não me digas não. Pelo contrário. Gosto mais disto, aquilo não era amor. Há quanto
tempo que foi a última? - Oh, não sei, uns quinze anos! Ali, mas afinal tanto faz. Oh, não deve fazer quinze anos desde a última. Não te lembras, mas não te canses
em lembrar. Compreendes, não é possível que tenha sido há quinze anos. Então este ano não houve nada? - Juro-te, Jean. - Minha querida, creio em ti, mas eu seria
muito compreensivo. E deve ter havido depois que nos conhecemos, não é possível que não. - Juro que não me lembro. - Ele recuou como alguém

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que é atingido. - Oh, se puderes te lembrar um dia, vê bem, um dia em particular em que me dirias: Foi naquele dia. - Jean, Jean, tu me martirizas. - Perdão, perdão,
uma só palavra, oh! é uma curiosidade bem insignificante, é antes para que eu fique inteiramente tranqüilo, para que não te aborreça mais com perguntas, nunca mais,
compreendes? Para que sejamos felizes para sempre. Era na tua casa, no teu quarto, também? - Não, já não sei mais, talvez uma vez só, mas não sei. - Oh, então podes
me dizer com quem, sê boazinha, peço-te, gostaria tanto de saber, com quem? - Não sei. - Oli, Françoise, não podes deixar de te lembrar, oh, asseguro-te que não
vou ficar com raiva dessa pessoa. Primeiro, por que é que eu iria ficar com raiva dela, tu mesma me dizes que foi há muito tempo, sei bem que já não há mais nada.
Portanto, compreendes, é para que não tenhas nada oculto de mim, para que sintamos bem que nos amamos por completo, que estamos bem um com o outro: - Oh, posso te
dizer, porque não houve mais nada entre nós desde então. Sim, não gostaria que a caluniasses. Já que não procuro negar, tive mais mérito do que outra em curar-me
disso, era da minha natureza, mas ela foi um acaso, uma loucura, nós nem mesmo nos falamos mais, muito bem, vês, te digo, mas não penses mais do que te digo, vou
te dizer mais até do que houve: era Charlotte.
Ele sorriu, mas ela o vira empalidecer, e disse: - Olha, foi Charlotte mesmo? Oh, é curioso, nunca teria imaginado. Não fizeram mais? - Pois se eu te digo,
Jean. - Quantas vezes fizeram, mais ou menos? - Oh, Jean, estás me fazendo sofrer: eu te disse, uma vez, talvez duas vezes, nem sei mais. - Nunca mais, desde então?
- Nunca mais. - Juras? - Juro. - Obrigado, Françoise. Não tens mais nada a me dizer? - Nada mais. Oh, Jean, não sabes o que isso foi para mim. Desde aí nunca mais
tive um minuto de felicidade. Osentimento do meu erro, da mentira em que vivo, conseguindo abusar daqueles que me amam, não me deixa um só instante. Está entre
mim e tudo aquilo que vejo. Mesmo muito tempo depois, quando pude ser feliz, contigo, eu era ao mesmo tempo infeliz. Mas nunca me senti tão infeliz como agora.
Ele lhe dizia: - Pobrezinha, queridinha, não te aflija~. Contudo, mal a escutava, ansioso por outras Coisas. Ela disse: - Fui infeliz desde o dia em que
soube que tinha esse vício. No pensionato, quando as amigas mais velhas tentavam me perverter, falando-me dos jovens que viam, -do que elas faziam com eles, incrivelmente
perturbada como me sentia, eu achava que era exatamente como elas me descreviam, o mesmo que perturbava as mulheres à vista dos homens. E quando então, fartando-me
com as pupilas ardentes ou risonhas de minhas companheiras, apertava-me contra elas e as beijava com toda a força, acreditava apenas que me unia a cúmplices na alegria
de futuras volúpias comuns. Não saberás jamais o que tenho sofrido. Tenho amigas que me espancaram, outras que não me deram bom-dia. De nada valeu. Meu confessor
não encontrou palavras para me dizer, meu médico me disse que eu era louca. Mas aquilo, que era mais forte que eu, consegui vencer. Unicamente, há dez anos, se tanto,
sinto de vez em quando uma tentação momentânea, uma lembrança que consigo expulsar. - É de CharIotte que te lembras nesses momentos? - Ela respondeu com violência:
- Não, Jean: é assim que me recompensas por te haver contado?!

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- Adeus - disse ele, e acrescentou tremendo: - Vou te ver esta noite, não é mesmo? - Não, esta noite vou ao teatro com meu cunhado. - Ah, não tinhas me dito
isso. E, depois do teatro, não poderei te beijar? - Será muito tarde. - Bem, bem, oh, aliás não levará mais de um minuto, antes de voltar ,para casa, para que eu
durma melhor. - Meu queridinho, não posso dizer o quanto sofro por te ver perturbado por causa disso. - E amanhã? - Vou sair todos estes dias, vou ao teatro, é

para não deixar meu cunhado de sobreaviso, tenho cá minhas razões. - Entretanto, tu me censuravas por não ter projetos, e tinhas feito os teus diante da minha omissão.
Eu estava pronto para obedecer. Nunca deveríamos sair à noite. - Mas é justamente porque tenho planos que é preciso, no próprio interesse deles, que você não compreenda
nada ...
Mas ele, que a via todos os dias, nas fraquezas e vacilações
de sua conduta, impedi-lo de desfrutar o seu tempo, a sua vida, que na firmeza de suas frases, com a certeza de seus princípios, ela ainda há pouco lhe havia prometido
integralmente, se irritou

por vê-la tão segura de si, pretendendo dar a este mundo, por dever e a seu pesar, aquilo que deixava lhe tirarem por prazer, contra todos os seus sistemas. Tornou-se
sombrio, e em seu coração sentiu uma onda de ódio crescer contra ela e seu cunhado, afastando toda ternura. Não respondeu nada e disse: - Bem,
até amanhã. Mas, dize-me, podes me informar se Charlotte irá ao teatro contigo uma noite destas? - Não, não posso. - Deverias poder. - Mas como queres que eu saiba?
- Muito bem, tu que pretendes ser tão independente, se não fosses tão submis-
sa poderias dizer ao teu cunhado que a não convidasse essas noites já que me enerva você estar com Charlotte sem mim. - E que motivo daria? - Mas não tens de dar
motivo. Como, achas que dominas os teus e não ousas sequer dizer que não convidem

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uma pessoa, sobretudo quando não é amiga do teu cunhado e sim tua? - Oh, como sou infeliz, como é ruim - gritou Françoise. - Ah, se tivesses confiança em mim, se
acreditasses em mim quando te digo que nunca mais deixarei Charlotte falar mal de mim, será que isso te afligiria? Porque te amo é que não quero deixar que te acostumes
a isso. A vida se tornaria impossível para nós. Fica, pois, tranqüilo, e então nosso amor renascerá. Não são verdadeiras agitações essas com as quais tu te comprazes,
e, tenho razão em não levá-las em conta.
Então, recordando-se de sua insônia, seu desespero, suas lágrimas, a intolerável angústia à qual era preciso renunciar a todo custo, tendo de apelar de novo
para a morfina, tendo de ir embora, indignou-se com sua injustiça para com ela, que o compreendia tão pouco, tão levianamente o condenava à tortura, e lhe disse
em tom seco: - Françoise, não te peço nada além daquilo que não posso deixar de te pedir, nada além do que é necessário à minha vida. Se não queres acabar com esta
minha angústia, tenho de me afastar de ti, o que só me será muito fácil em relação a outras pessoas. Arruma-te como quiseres. Perdoa-me. Nunca ninguém há de te amar
como eu.

Chegados à casa dela, tinham começado a subir a escada. Ela chamou o porteiro e o mandou à casa do cunhado: - Diga que não irei ao teatro esta noite; e diga
que lhe escreverei em breve, explicando. - E foi o porteiro fechar a porta e ela cair chorando nos braços de Jean. Este ficou comovido mas só pôde mesclar um sorriso
às lágrimas dela. Pois uma grande mágoa lhe fora arrancada, e ele não podia se entristecer com ela. Ela se zangou por vê-lo tão alegre. - No fundo, você preferiria
não me ver nunca mais - disse. Falava agora "você" com a mesma naturalidade com que dizia "tu" ainda há pouco. * Quando o sol apareceu, o regato negro fica brilhante
e azul. Sim, se eu pudesse te fechar num claustro. E nem assim acrescentou. Quando as dores antigas retornam, não basta que não me causes outras. É preciso que possas
aliviá-las tomando-me em teus bra-

* Mudança sutil de tratamento de mais para menos familiar, praticamente inexistente em português. (N. do T.)

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ços, beijando-me, deixando-me beijar-te, respondendo não quando eu te perguntar: "Esta noite fizeste algo errado?". Ela havia enxugado as lágrimas e lhe dizia com
mil carinhos: - Meu querido, meu chuchuzinho. - E a confiança que o desgosto de Françoise lhe dera começava a se desfazer novamente. Sentia a falsidade dessa exuberância,
essa vaga insinceridade, o mesmo ardor com que ela dizia: - Não sairei este inverno. - Ela pôs-se a cantar uma melodia de Chabrier. - Foste tu que me fizeste sentir
o que é amar, és tudo para mim. - E, cantando, ela não o olhava. Ele virou-lhe a cabeça violentamente com as mãos. Ao
seu* olhar cheio de perguntas, ela respondeu com um olhar onde a paixão só atingia a música, não a ele. Disse consigo: "Não sou eu a causa dessa paixão. Quem a causou?
Ou não é ninguém ou será alguém." E com ciúmes do caderno que lhe dava a idéia de que sentia que não era ele quem lhe causava paixão, arremessou-o violentamente
para longe do piano.

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XII. A sonata

- Entremos - dissera Jean -, gostaria tanto de te beijar.
Agora estavam os dois no quarto mas Françoise se sentara
longe' dele. E semelhante aos que velam um ente querido que
uma moléstia prolongada enfraquece aos poucos antes de levá-lo,
Jean contemplava com atenção ansiosa e desanimada o seu amor
agonizante, os progressos do mal de que esperara ver curado o
seu amor, e que a cada dia minava um pouco de suas for
ças sem lhe tirar os sofrimentos. Às vezes, é claro, o amor deles
parecia reanimar-se um pouco, os olhos de Françoise então lhe
sorriam e ele, embora soubesse que não podia mais vislumbrar
neles um clarão de esperança, ainda assim o procurava como
um reflexo doloroso do passado. Gozava esses retornos fugazes
com a ventura triste e piedosa dos que ainda ouvem falar, dos
que vêem ensaiar ainda alguns passos um ser que logo não exis
tirá. Mas esses instantes de uma felicidade antecipadamente per
dida tornavam-se cada vez mais curtos, cada vez mais raros. As
discussões dolorosas se repetiam, tornavam-se mais compridas, e
uma vez acalmadas faziam sofrer ainda como as chagas dos gan
grenados que não mais se fecham. E semelhantes a essas molés
tias das quais um jovem se despede mais forte, mas às quais su
cumbe o temperamento esgotado daquele que já viveu uma lon
ga vida, essas discussões, que revivificani e exaltam um amor
nascente, conduziam cada vez mais rapidamente a seu fim esse
amor que durara tanto.

Ele permanecia sentado longe dela, não ousando aproximar-se nem sabendo se despertava o amor ou o ódio que pareciam dormir. De repente ela se levantou. Jean
pensou que viria até ele. Mas ela parou diante do piano, sentou-se e tocou. Às primeiras

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notas uma extraordinária angústia o dominou, e ele fez uma careta para não chorar. Mas lágrimas brilhantes apareceram-lhe nos olhos, as quais, vendo a aspereza glacial
do ambiente, voltaram para dentro e não se deixaram derramar. Ele reconhecera o trecho da sonata de Saint Saêns que quase todas as noites, no tempo em que eram felizes,
ele lhe pedia e ela lhe tocava sem parar, dez vezes, vinte vezes seguidas, exigindo que ele permanecesse encostado a ela para poder abraçá-lo sem se interromper,
desatando a rir quando fazia menção de parar e ele lhe dizia: ,&mais, mais" - esse riso que recaía ternamente de seus olhos e lábios sobre ele, doce como uma chuva
quente de beijos. Longe dela, sozinho, não tendo recebido um só beijo esta noite e sem ousar pedi-lo, escutava esse trecho cujo sorriso divino já lhe parecia desenganado
desde o tempo em que eram felizes. Mas, àquela época, o amor tratara rapidamente de sufocar a tristeza, esse pressentimento de que era frágil, na doçura de sentir
que o guardavam intacto. A ternura deles fazia com que se inquietassem juntos com a vida mas não um com o outro, e o desgosto de ouvir que tudo passa tornava mais
profunda a felicidade de sentir seu amor durar. Percebiam que esse trecho passava, mas sentiam-no passar como uma carícia. Então, como ele sabia tocar junto com
ela, a tristeza era suave a seu amor. Era tão pesado agora que Jean se apoiava na poltrona para não cair e mantinha os nervos das faces como braços fortes para não
deixar cair as lágrimas suspensas, na vertigem infinita dos soluços. Entretanto, ao trecho desolado que dizia que tudo passa, a tristeza parecia aliviar-se. Seu
correr puro e rápido não diminuíra um só instante. E se antigamente parecia que era no vinco de um lamento que ela fazia passar diante deles a doçura de seu amor,
agora o último desencanto, o desespero irremediável, o aniquilamento final a que ela o prendia, parecia-lhe que o fazia com a graça de um sorriso. Assim tudo mudara,
tudo aquilo que perfazia a sua vida estava morto e ele mesmo, sem dúvida, morreria logo ou viveria uma vida pior que a morte mas o pequenino trecho delicioso continuaria
a espalhar com um fluxo bem rápido o som puro, para inebriar o amor dos que começam a amar, para envenenar o desgosto dos que já não amam ...

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Mudara tudo ao redor dela, mas ela não mudara. Ela durara mais do que o seu amor, duraria mais tempo do que eles. Muito tempo depois deles, amantes esperançosos
iriam como outros ao seio das florestas buscar nas nascentes uma ventura que julgariam cúmplice da deles, invocar o gênio misterioso de suas águas. Havia então algo
mais durável que o seu amor. Quem sabe, então, esse amor não fosse bem real? Que coisa seria então esta que, ora triste na felicidade, ficava feliz na tristeza,
e podia. sobreviver a esses golpes aos quais ele julgava não ter forças para sobreviver? Que seria? Otrecho
acabara. Ele lhe pediu: Começa outra vez. - Mas ela, exasperada, retrucou: - Não, é bastante. - Ele insistiu. E ela, com vivacidade: - Mas por que, por quê?
- Enfim, de mau humor, voltou a tocar. Mas o mau humor tomara conta dela. Ele sentia o pequeno trecho fluir, aproximar-se do momento em que terminaria, sem ter visto
aparecer a pequena alma plácida, desencantada, misteriosa e sorridente, que sobrevivia a nossos males e parecia superior a eles, à qual desejaria perguntar pelo
segredo da duração e pela doçura de seu repouso.

portes amorosos do silêncio

Jean enganou-se nessa noite ao julgar que o pequeno trecho escutara tantas vezes no ano anterior, sem nada reter, os trans-
deles. Enganou-se ao julgar que ele nada conservaria deles dois. Dez anos mais tarde, num dia de verão, como passasse numa ruazinha do bairro Saint-Germain,
ouviu primeiro o som de um piano e seu destino o fez parar. Ouviu o trecho de Saint-Saêns a princípio sem reconhecê-lo bem, mas sentia em si um grande frescor, como
se de repente tivesse ficado mais jovem. E era o ar quente e fresco do verão onde ele fora tão feliz, cheio de sombra, de raios e de sonhos que ele respirava, pois
nunca mais tendo sentido a doçura dessas tardinhas de outrora, ela conservara nele a idade que tinha à época e foi daquele tempo, intacto e fresco, que ele lhe chegou
de súbito. Opequeno trecho se apressava e agora como antigamente era-lhe doce. Se no tempo em que era feliz ele antecipara por sua tristeza o tempo de sua separação,
no tempo da separação antecipara o tempo do esquecimento por seu sorriso.

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Ele esquecera Françoise. Foi sem desgosto que ouviu o trecho e se ele evocou o nome de Françoise, não foi nela principalmente que ele o fez pensar, pois
ela não podia lhe dizer mais nada. Em sua memória, Françoise permanecia bela mas era como um perfil desenhado. E ele nem tentava pensar nela. Mas pensava sem parar
e com muito desejo, com muita felicidade, com muito amor, no verão daquele ano, na profunda suavidade das horas à beira do lago do Bois de Boulogne, no terraço de
SaintGermain, em Versailles, em todos os lugares onde tocara esse trecho, onde se lembrara desse trecho, onde desejara ir, enquanto ela o tocava para ele muitas
vezes em sua casa, antes que saís-:, sem para passear quando ainda fazia calor. Pois a natureza, mais rica que Françoise, conservava ainda tesouros profundamente
guardados de mistério e vida. E ele queria partir para o lago do Bois, para Saint-Germain, para Versailles, onde outrora ia buscar na imagem equívoca dos horizontes
a realidade do amor cujo desejo inquieto e cuja parecença dolorosa trouxera dentro de si durante tanto tempo. Queria encontrar novamente essas horas onde, mesmo
antes de a conhecer, caminhando sozinho no terráço de Saint-Germain, no momento em que a noite acrescentava seu mistério e sua sombra à sombra e ao mistério da floresta
e sentira a necessidade de amar alguma coisa e uma curiosidade infinita, voluptuosa e triste como essas árvores, essas águas, essas aldeias, esse céu que se estendiam
à sua frente. Então, com uma angústia indefinida, andava sozinho pelas estradas. Pensou em tudo isso, mas agora já era tarde demais para ele, era a vez de outros
sentirem todas essas coisas. Oamor o envelhecera antes do tempo (aliás a idade já vinha chegando), envelhecera-o ao menos para o amor. E para satisfazer uma curiosidade
despertada pelo pequeno trecho que conservara tanto poder sobre seu coração e guardara tantos segredos de sua vida, desfrutou o encanto tranqüilo das coisas inocentes
e silenciosas que convêm à velhice, mas já não lhe descobriu esse vago desejo de amar que, misturado ao primor da natureza, contribui para o sentimento de sua grandeza,
pelo poder que tem de nos inspirar o desejo do amor, e para o sentimento de sua tristeza pela impotência em satisfazê-lo.

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XIII. Osonho

Jean se distanciava rapidamente, para sempre, de seu amor a Françoise, sem ter forças para resistir à corrente que, sentia, o arrasiava; pois a natureza,
no tempo em que quer nos fazer deixar os lugares onde vivêramos até então, nos conduz sem resistência, como prisioneiros acorrentados no barco do vencedor, ou antes
como viajantes que transportamos à noite, quando estão mortos de sono e não têm forças para abrir os olhos a fim de olhar uma última vez, enquanto ainda é tempo,
aqueles a quem deixam para nunca mais rever. Pois as épocas do nosso coração são como ilhas que afundariam no oceano no momento em que o viajante as deixa e cujo
vestígio não poderá mais encontrar, se alguma lembrança agradável o fizer voltar. Assim, Jean se distanciava de seu amor, e já não sentia mais aquele ciúme que sempre
o acompanhara como, uma vegetação torturada e malsã. Ociúme~ não mais passava por ele e só isso já o advertia que estava longe de Françoise. Mas antes que fosse
aniquilado para sempre, Jean devia senti-lo ainda uma vez. E Françoise, de quem se separava também sem lhe ter dado adeus, devia vir se despedir dele. E ele devia
se encontrar, uma última vez, em presença desse amor que já estava tão longe e que ele deixava para trás sem nunca ter tido força de renunciar a ele.

Muitas vezes seus sonhos pareciam flutuar acima da sua própria vida, realizar os destinos que só mais tarde lhe viriam, ou que nunca viriam. Como uma noite
obscura mas momentaneamente iluminada, os sonhos estavam cheios de signos e presságios. Oencadeamento das circunstâncias, a seqüência dos tempos, não pesando sobre
eles como sobre a vida da véspera, fa-

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i

Ziam. com que, sem dúvida, fossem convenientes a esta última entrevista, a este último encontro com um passado já bem distante para ser recuperado na vida. Foi então
sob o pórtico ensombrado de um sonho que Françoise voltou uma última vez a ele e que ele sentiu uma última vez, no momento em que já a havia perdido para sempre,
a inexprimível. e cruel doçura de um sentimento que o conduzira durante tantos anos, o carinho da mão ou a fincada do aguilhão. Estavam passeando, a Sra. Saveur,
a Sra. Lavaur, o Sr. de Guiches, o Sr. du Los, Françoise e Jean. Era uma tarde, mas a todo instante parecia que a luz que era
a claridade desse dia e a luz também que era o olhar da Sra. Lavaur, o sorriso do Sr. de Guiches, a existência do Sr. du Los, a realidade de Françoise, hesitava
e ia se extinguir e que todos, a paisagem e o próprio dia não mais seriam, voltariam ao nada de onde, na verdade, jamais tinham saído. Mas após alguma indecisão,
a luz aumentou, se fixou, e os Lavaur, o Sr. de Guiches, o Sr. du Los e Françoise eram bem reais, como na vida.
De súbito Françoise dizia que ia embora, despedia-se de todos e de Jean como dos outros, sem chamá-lo à parte, sem dizerlhe onde se voltariam a ver. Jean não lhe
ousava perguntar nada mas sofria horrivelmente, gostaria de partir com ela e apesar disso era obrigado a ficar de cara alegre, a continuar a falar com
os outros. Sentia uma tão grande ternura por Françoise, pensava em seus belos olhos, suas lindas faces, e depois, vendo-a partir assim, sentia-se tomado de ódio
por ela, por seus
belos olhos, por suas lindas faces. E ela se afastava. E ele tinha de continuar a caminhar em sentido oposto com os outros, afastando-se mais dela a cada instante,
e em dois minutos não
poderia alcançá-la mais. Havia horas que ela partira. De repente, o Sr. du Los observou-lhe que o Sr. de Guiches se fora pouco depois dela. E dizia que é claro que
eles tinham se juntado mas que ela, por delicadeza, nada dissera aos outros. E Jean sentiu uma angústia que o penetrava bem no meio do
corpo entre os seios. E dizia o tempo todo: - Sim, é claro, acho que ela fez bem, eu, a aconselhava - para não mostrar aborrecimento. Depois subitamente essa sombra
do passado ia se encontrar com o passado longínquo que sem dúvida esperava esta última imagem para a engolir junto, e Jean recaiu num

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sono escuro, sem sonhos. Mas sentia sempre essa angústia entre os pulmões. E de repente alguém falou: - Não queria fazer um gracejo desagradável, mas, se quiserem
saber desse caso de Françoise, podem pedir detalhes ao Sr. Cornet. - Jean sentiu um baque violento no coração. No entanto, no outro dia, quando soubera disso pelo
Sr. Cornet, não tinha sofrido. E agora sofria, como teria sofrido antigamente, se o tivesse sabido na ocasião. Pois era sua alma de- outrora que, certamente ansiosa
por não ter tido o adeus dela, voltara a enternecê-lo, a atraí-lo, a atormentá-lo ainda graças à noite, estando-lhe interdito o dia claro da véspera.

Mas já haviam entrado no quarto de Jean. A luz entrava em ondas e já a alma morta retomara seu vôo silencioso para não mais voltar: e quando Jean abriu as
pálpebras, ela já se achava tão longe dele que se passara muito tempo e houve diversas mudanças nele desde que começara a amar menos Françoise. Evadindo-se, deixara
esquecido em seu ouvido o nome de Cornet. Ele o ouviu sem outra tristeza que o último eco da agitação agora agonizante que o possuíra a noite inteira, e com os olhos
voltados para o futuro, virando de novo as costas ao passado do qual se afastava, ele se pôs a fazer de si mesmo, alegremente, o cúmplice ativo da obra de vida,
de morte e de olvido que a natureza cumpria pelos outros e por si, nele como em todos os outros.

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Charlotte Clissette. Caminhavas adiante
dela. - O"f,uret" - Novo fracasso. -
A religiosa holandesa. - Um jantar na
casa dos Réveillon: a morte do visconde de
Lomperolles. - A Sra. de Closeterre. -
O câncer de Perrotin. Os Monets do
marquês de Réveillon. Jean passa uma
manhã sozinho com a mãe. - Noite de
inverno em Paris. - Oretrato de Le Gan
dare. - Velhice dos pais. - História de
uma geração.

.. Passa-anel. (N. do T.)
I. Charlotte Clissette

Seus amores se multiplicaram. Em nenhum tinha mais a confiança do primeiro, mas sofria-lhe a influência como a primavera parece rejuvenescer mesmo aqueles
que ela aproxima do tilmulo. As confidências diminuíram, o mistério e o peso do juramento o aproximavam da vida. A sensualidade o aproximava dos outros. A imitação,
o gosto estético e artístico também. E, no entanto, cada vez que se apaixonava, como se saísse em viagem, o mundo diminuía, e ele não o deixava sem lamentar-se,
os olhos fixos no desconhecido.

Uma tarde, por volta das cinco horas, a Sra. Canut escreveu a Jean para perguntar se contra todos os riscos ele podia vir jantar naquela mesma noite. Estariam
presentes T., B. e Charlotte Clissette. Imediatamente, Jean sentou-se à escrivaninha e respondeu dizendo que sim. Um momento depois, deu-se conta de que Françoise
não estava citada entre os convivas. "Já que vou vê-la em breve ... Talvez a tenham convidado." Ficou meio triste. Teria preferido ver a Sra. Clissette sem ela.
Uma o impediria de desfrutar a companhia da outra. Às seis horas lembrou-se de que devia jantar em casa dos Montfaucon e escreveu para se desculpar. Sua mãe entrou
nesse instante: - Lembras-te que tens de ir jantar esta noite em casa dos Montfaucon? - Escrevo exatamente para dizer que não vou. - Não podes fazer, isso. - Por
que não? Mas é absolutamente necessário. Seria extremamente indelicado para com a Sra. Canut. - Indelicado? Estás doido? Indeficado por não aceitares um jantar duas
horas antes? Indelícado é não comparecer a uma residência onde estás sendo esperado há um mês. Não é simplesmente falta de polidez, é impossibilidade. Quero que
vás. - Ora bem, pois eu não quero. Prefiro não ir a parte alguma. Mas sim, irei à casa da Sra. Canut. - Pois bem, faze o que quiseres, se fazes tanta questão disso
retrucou a Sra.Santeuil em tom decepeionado. - Mas não sei o

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que tens para responder ao que te dizia com tanta violência. Afirmo que pareces um louco. Espero que te divirtas em casa da Sra. Canut. Se é para ir fazer uma conquista,
acho que a tua bela adversária vai precisar tomar muitQ çuidado, porque meu filho está maravilhoso. - Verdade, achas mesmo que estou bem? - perguntou Jean tão deslumbrado
que a mãe ficou surpresa. E vou ficar melhor ainda daqui a pouco, quando frisar de leve os cabelos. - Estava tão feliz que se pendurou ao pescoço da mãe e a beijou
ternamente.
Lembrou-se de súbito do desejo da Sra. Clissette de ir à estréia dos Pêcheurs. - Mamãe, será que por acaso não tens um camarote para a estréia dos Pêcheurs?
- Oh, sim, tenho justamente para esse dia dois camarotes, imagina. Opríncipe me mandou o seu, e a Sra. Coquard o dela. Vou te dar o da Sra.
Coquard. Oh, não, preferia o do príncipe. - Jean, que é que tens? - perguntou a Sra. Santeuil, olhando o filho com gravidade. - Há alguns anos, vivias como um verdadeiro
filósofo. Posso dizer que, desde que fazes a barba, a não ser quando te pedia para cortares o cabelo, nunca ias ao cabeleireiro. E quando dizia que estavas bonito,
davas de ombros. Quanto ao orgulho de tua posição na sociedade, graças a Deus, não o conheceste nunca. Hoje dás a impressão de teres conhecido todos esses defeitos.
Tanto pior, mesmo assim estou contente. Pelo menos, hoje não tens cara de infeliz.
Por volta das seis e meia Françoise veio ver Jean por um instante. - Se estivesses todos os dias como hoje - disse ela -, eu ficaria muito feliz. - Não me
fizeste perguntinhas malvadas, não tens aspecto infeliz. Mas isso é muito bom para poder durar. Vais me ver esta noite, depois do jantar? - Todos os dias, não ousando
confessar seu ciúme, ele dizia: - É possível que não vá. - Mas antes das onze horas, ele chegava sempre para ver se ninguém que o inquietasse tinha vindo, ficando
com ela até que se deitasse, que tivesse trancado a porta, e se Turteuf ou qualquer outro estivesse lá e permanecesse até mais tarde, ele ficava tiritando, só indo
embora depois do outro ou então com ele, preferindo correr o risco de não poder dormir mais, se fosse muito tarde, a deixá-la em sua companhia. Essa noite, ao contrário,
ele refletiu que ficaria até tarde, acompanharia talvez a Sra.

Clissette, e respondeu a Françoise não o "Não irei", e sim: Espero ir. Se for muito tarde, não te preocupes. - Ela saiu, ele foi ao cabeleireiro, olhou-se com prazer
ao espelho, botou no bolso, para dá-lo a Charlotte, o camarote do príncipe, certificando-se de que estava nele impresso, bem ao alto, "camarote do príncipe de Valentinois",
e foi tomar um fiacre. Caminhava tão depressa e tão avoado que não viu um fiacre vindo, e levou um encontrão. Escapando-se, foi se olhar numa vidraça imaculada e
bela.'Voltando a pensar no carro, disse consigo: "Como é frágil a beleza! E eu poderia ter ficado de perna quebrada e sem sair esta noite." Verificou se o camarote
do príncipe estava no bolso. "Vou poder dá-lo a Charlotte. Ela vai ficar encantada. É um pouco esnobe e gostará mais de mim por se ver ligada a Valentinois. Dar-lhe-ei
muitos outros. A beleza das relações e o dinheiro são ainda assim agradáveis por darem mais prazer a uma mulher bonita quando ela é sensual, esnobe e venal. Não
digo isso com referência a Charlotte."
Ofiacre ia com extrema rapidez e Jean sentia prazer em se deixar arrastar, sacudir, balançar vivamente à direita e à esquerda em determinados trechos, como
nos deixamos conduzir por uma música que cantamos interiormente. De repente, lembrou-se de que era segunda-feira, dia em que Herisseux muitas vezes vinha ver Françoise.
Mas essa lembrança não lhe causou a mesma impressão de antigamente. Não hesitou sequer em preferir passar a noite toda na casa da Sra. Canut. Mas Clisson também
não iria, talvez, à casa de Françoise? Tanto pior. Todas as fúrias de seu ciúme se haviam apaziguado. Assim às vezes a lua nascente no céu espalha no mar encapelado
como que uma esteira de óleo de prata. Um Deus parece fascinar com sua presença invisível a imensidade do céu. Uma volúpia misteriosa, uma calma encantada reina
sobre o mar, que descerra, a alguns metros os baixios envoltos em luar e água como prata engastada em opala ou jade, como um osso na nevada, como na nova felicidade
de viver de Jean o seu orgulho de ser jovem, bonito, poderoso e rico.
Tinham chegado à Rua Vaneau. Jean subiu devagar. Com certeza, falaria francamente a Françoise de sua simpatia por Charlotte e não iria como esta, supondo
mesmo que ela o consen-

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tisse, passar além da simples amizade. Então ele imaginou o seu rosto tão alvo, sua linda pele suave, a pequena língua cor-de-rosa que passava por um instante no
lábio superior. E pensou logo que seria bem agradável beijá-la. "Ah, se confessasse tudo de uma vez a Françoise." Entrou, lançou um olhar rápido ao espelho, e parou
um momento para tomar fôlego sentindo que o coração tremia. Ocriado abriu a porta. - Como é gentil disse a Sra. Canut, indo ao seu encontro. - Infelizmente há algumas
ausências. Charlotte não vem, está um pouco adoentada. Como parece triste - disseram a Jean durante todo o jantar. No final, Jean percebeu que uma das convidadas
era tia de Charlotte. Feliz como um francês que encontrasse numa região selvagem um outro francês, aproximou-se dela, espantado por sentir esses laços de parentesco
tão rapidamente atados à sua revelia entre ela e seus pais. Depois do jantar, essa senhora disse que ia visitar Charlotte. Jean quis ir junto, pensou que o não deixariam,
quis ir imediatamente à antecâmara, calculou que a dona da casa acompanharia até lá a tia de Charlotte, e pegando depressa o sobretudo desceu as escadas, chamou
um fiacre e esperou.
Em breve desceu a tia de Charlotte. - Como, já desceu?
exclamou ela. - Senhora, vou fazer algo inconveniente:
pedir-lhe que vá saber como está passando a Sra. Clissette em
casa; permita-me solicitar-lhe que use meu fiacre. - Ao chega
rem diante da casa de Charlotte, sua tia pediu notícias dela ao
porteiro. - Não é nada, uma leve constipação. Até mais ver,
senhor. - Acredita - perguntou Jean - que eu poderia subir?
- Impossível, senhor - disse a tia com severidade. Jean sentiu
que alguma coisa se quebrava e que, infelizmente, Charl'otte, que
se dava com tantas criaturas, não tinha nenhum laço com ele.
Iria esforçar-se por criar alguns. Mas, infelizmente, nessa noite
não a veria, ao passo que essa odiosa tia e outros certamente ...
- Permita-me que a espere, ao menos? - perguntou Jean para
ter mais segurança. Diga-lhe inclusive que estou aqui embaixo.
- É inútil, senhor respondeu a tia com extrema reserva na
voz. - Ficarei até muito tarde. Adeus, senhor. - Jean cum
primentou sem insistir. A tia entrou e
pesadamente.

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a porta se fechou

Chegara a saber a que horas ela saía de casa, ia à casa do irmão, ia à igreja. Saía à uma. Assim, logo que terminava de almoçar, e tendo já olhado várias
vezes o relógio de bolso, ele corria ao espelho, pegava o chapéu e descia a escada com pressa. Já não era dispéptico, já não era preguiçoso. Ela ia às cinco à casa
do irmão que, sendo chefe de clínica no hospital Necker, morava nas vizinhanças, na Rua de Sèvres. Jean não passeava mais nos bosques, não ia mais aos chás. Interessava-se
pela medicina, pelos hospitais. E, quando encontrava em sociedade um professor da Faculdade de Medicina, invejava-o por ter prestado exames em Sentleur, levava sempre
a conversa para a pessoa dele, perguntava com ar indiferente se tinha irmãos e irmãs. Duas vezes, tendo encontrado médicos que o conheciam, convidara-os várias vezes
seguidas para estreitar relações. Mas, quando pedia que o apresentassem, fazia-o aereamente, sem insistir, para não se trair, ou antes, nem mesmo pedia formalmente,
lançava uma frase casual. E os outros prestam tão escassa atenção ao que dizemos, que nem sequer notavam, e para serem gentis, ao invés de o convidarem com ele,
convidavam-no com médicos mais célebres, coisa que ele desprezava.
As oito da manhã, todos os dias, ela entrava na igreja de Sainte-Clotilde. Jean tornava-se matinal e devoto e todas as vezes que saía à sua frente sentia
o coração palpitar, aguardava notícias como se partisse para uma expedição ou chegasse a um, novo capítulo na leitura de um romance. Se no momento em que ia sair
para vê-la passar, ou fosse ao seu encontro, sua mãe precisasse lhe dizer uma palavra, se um amigo viesse visitá-lo, ele nem sequer parava em seu trajeto, como um
soldado que ouviu o toque de reunir. Sonhador até o momento em que corria adiante dela com uma precisão ansiosa, mostrando-se então apressado, febril, inabordável,
sua vida parecia devorada pelo tédio e regulada pela disciplina. De manhã, ao despertar, se acaso ouvisse a chuva temia logo que ela não saísse de casa. Ou andasse
de carro. Mas quem sabe saindo da igreja ela caminhasse muitas vezes a seu lado, mas sob a chuva, o que não tinham feito ainda. E se ela lhe dissesse para entrar
em casa a fim de se abrigar e tomar chá no pequeno salão envidraçado de onde, veriam a chuva

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caindo na praça, ou se ele visse, pelo contrário, o sol entrar em seu quarto, todos os obstáculos lhe pareciam superados. Esperava que ela se decidisse a vir passear
com ele no Bois de Boulogne. Depois, de súbito, tinha medo de que ela fosse passar o dia no campo. Assim, se a chuva era uma vaga ameaça de que não a veria, era
também como que uma vaga promessa de mostrá-la quase nova, vestida de outro modo, não mais ao sol e sim no calçamento molhado e que parecia escorrer com a água,
caminhando mais depressa debaixo de um guarda-chuva, ou desaparecendo dentro de um carro no rumor das gotas de água e sob uma nova luz, tão triste que mesmo em pleno
dia seria quase como de noite. Era quase como se ele a tivesse levado. Assim, descobria nas mudanças de tempo a violência da fatalidade e o encanto que teria encontrado
em levá-la a regiões novas. Receava-os enquanto acontecimentos e saboreava-os como viagens.
De resto, percorria as ruas habituais como se fossem ruas de uma cidade onde acabasse de chegar pela primeira vez de diligência. As casas, o céu e o dia
já não nos parecem os mesmos porque não mais são animados por nossos costumes antigos e sim por um sentimento desconhecido. A passeio, numa festa, sozinho no quarto,
isolado ou com amigos, vendo se sucederem as horas do dia, aproximar-se o cair da tarde, findar a noite, descobria no tempo uma espécie de encanto como numa coisa
que pertencesse tanto a ele como a ela, e que, levando junto algo de suas vidas tão separadas, o misturasse talvez em sua imensidade indiferente ou por uma misteriosa
cumplicidade. Dizia consigo: agora ela dorme, agora está sozinha, a alma entreaberta, agora está na sociedade, agora ri, agora se despe, faz suas orações, adormece.
Cada hora tornando-se-lhe perturbadora e sagrada, como se recebesse a essência de sua pessoa e os segredos de sua intimidade, ele a respirava estremecendo, assim
como um lenço, que ainda tivesse na mão, e onde deixasse um pouco de seu cheiro. Não,desejando outra coisa senão ela, nem o sucesso nem o poder, não se divertia
mais na sociedade e preferia fechar-se em si mesmo como numa casa em que tudo lhe falasse dela. Assim, vivia em seu amor como no campo, que nos faz descobrir num
raio de sol, em algumas gotas de chuva,

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a importância de uma realidade e a vaga doçura de um sentimento, a escutar o bater das horas menos como os sinais mortos de nossas ocupações do que como a própria
vida do tempo que passa junto a nós, e de onde nos parecem estranhos os objetivos da ambição e as grandezas do mundo; estamos confinados em nós Mesmos.

I,-

S

677

ÿ
rar o tempo perdido. Ah, sofreu muito estes anos todos. - Ofilho escutava, mas seu rosto radioso não se ensombreceu um só instante à recordação de suas penas. Sua
felicidade parecia tê-las apagado como um sonho e em seu lugar ela se estendia tanto sobre o passado como sobre o futuro. Jean apertou-lhe a mão. - Osenhor é bem
feliz - disge -, bem feliz, virei sim, farei todo o possível. - As lágrimas lhe vinham aos olhos, despediu-se deles e subiu.
0 golpe terrível que as palavras do porteiro "Não há ninguém esta noite" tinham trazido ao amor de Jean, a ventura que agora sentia em estar prestes a vê-lo
renascido dessa ameaça como um campo depois do temporal, tão novo, tão delicioso como no dia em que lhe haviam dito, enumerando os convidados: "Charlotte estará
presente% mostraram-lhe com força esmagadora e suave esse amor que cessara um instante de se manifestar, sem deixar de estar presente. Então ele se lembrou das horas
de sequidão, dos pensamentos vazios no dia da morte do avô. E de si para si: "NãO tinha deixado de ser bom, assim como há pouco não deixara de estar apaixonado.
É um deus que se esconde e se ri e que não víamos mais. Ele joga e seus jogos são cruéis, pois ele nunca depõe as, armas."

Entrou. Ela não se encontrava no pequeno salão, mas, sem vê-la, ouviu sua voz na galeria. Estava se preparando para jogar cartas. Permaneceu no pequeno salão,
certo de vê-la e ao mesmo tempo assustado. Depois ela veio e lhe deu bom-dia distraída. E logo estavam jogando furet. Colocado entre as duas mulheres mais bonitas
da região, olhava sem cessar aquele que estava ao lado dela e pensando que não era ele, que poderia ter sido ele, que não seria ele, não podia ficar em seu lugar.
Deixou que lhe tirassem o anel e, uma vez no meio, percebendo-o às vezes quando passava, ficava quieto e o seguia com os olhos. Todos diziam: - Se Jean não o pegar
é que não o quer, pois com certeza ele o viu. - Mas ninguém adivinhava o que ele queria. E Jean dizia consigo, ao vê-la tão linda, tão indiferente e jovial, e que,
sem prevê-lo, talvez para seu próprio aborrecimento, ia ser sua vizinha: "Ela nem desconfia, e quando me tiver visto jogar, não e 1

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compreenderá. E se desconfiasse, ficaria zangada." Esperou que o anel chegasse ao vizinho de Charlotte. Então se lançou, abriu-
lhe as mãos, pegou-o e o outro, surpreendido, teve de levantO-sp
para ficar por sua vez furet, e Jean tomou seu lugar aolad0.d.e
Charlotte. Quanto a invejara há pouco, vendo as mãos dos'vlzl
nhos de Charlotte encontrarem a sua ao deslizar pelo cordel.
Agora, tímido demais para aproximar sua-mão, emocionado de
mais para gozar sua presença, sentia apenas o coração batendo
rápida e dolorosamente.
Em dado momento, Charlotte, para que o furet acreditasse

que ela estava corri o anel, inclinou-se para Jean com ar de cons
piração*. Ele não se iludiu com o gesto, mas voltou a sonhar

com a agradável doçura que seria se um dia ela viesse a aiOá-10,
estar também, além da ilusão rápida do furet, de combinação com
ele. No momento em que, embalado pela esperança impossível
dessa reviravolta, seu rosto abatido e pálido de desgosto brilhava,
como um fim de tarde de outono, com um clarão incerto, sentiu
a mão de Charlotte que acariciava docemente a sua, dedos que
comprimiam os seus. Ergueu a cabeça e encontrou seu olhar bri
lhante. Lançai, inverno, um claro pedaço de gelo num regato, e
logo o gelo que não suspeitáveis surge imóvel do seio movente,
da água rápida, fixa-a e não há mais água. Num segund0~ 0
9 um campo de gelo. 51a me
amava! - Pegue-o, então - disse Charlotte baixinho o COM raiva, pondo-lhe com força o anel na mão -, já faz unigi, hora
que eu lho passo. - Com o impacto, Jean afrouxou o cordel- Ofuret percebeu o anel, lançou-se contra ele, torriou-o e, rio Momento em que se sentia desfalecer, Jean
teve de se levantar, pôr-se de pé no meio do círculo ruidoso de risadas dos jogadores, para prestar atenção, tentar agarrar o anel, retrucar, rír tarribém. Mas Charlotte
não parava de apostrofá-lo, a última
vez que jogo com alguém tão não se quer prestar atenção. Se não virei.

re ato transforma-se praticamente em

distraído. Não se joga quando
o convidar de novo, juliotte, eu

Jean pretextou um encontro e saiu. Charlotte disse-lh,0 adeus com doçura, pensou que ela se arrependia de sua violênci;~3 espe

rou na rua que ela saísse. Talvez ela fosse lhe pedir perdáO, darlhe as razões de sua indiferença. - Como, ainda está aí? -

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exclamou Cachtan ao sair. - É aqui o seu encontro? - Jean se esforçou por sorrir e não pôde evitar que Cachtan o acompanhasse. Quando entrou em casa, murmurou consigo:
"Ela talvez passe neste instante pela Rua Madame. Não a verei mais. Seja como for, isso é impossível, é a única coisa que não pode acontecer. Mesmo que me ame, não
virá bater aqui. Talvez me escreva amanhã, pedindo para falar comigo. Mesmo que seja para dizer que me detesta, poderei ao menos dizer que a amo, forçá-la a me ouvir,
mostrar que é loucura renunciar a mim. - Despiu-se aos poucos. Todos os seus movimentos tinham a lentidão resignada de um homem que sente que não acabou de esperar
nem de sofrer. Seus olhos agitados encontraram de repente a calma do leito em cuja cabeceira esguia e reta o lençol, como uma asa branca, estava dobrado a meio.
- Caro amigo que não mudas - gritou -, sempre suave, fresco, profundo e seguro, tu vais então receber, ainda uma vez, meu corpo ardente e castigado, infatigável
em se fatigar, em provocar em si um sofrimento permanente.
Noite após noite, ele chegou até aquela em que chorara durante tanto tempo, o rosto no travesseiro, depois de tantas provas que Marie Kossichef dera de sua
indiferença, sem que pudesse se resignar a crer nelas. "Quantas vezes, desde então, tive desgostos assim absurdos, e esperanças mais absurdas ainda. A felicidade
nunca virá para mim. É sempre a mesma coisa." Pusera o pijama, branco, de mangas curtas e limpo como nos dias de sua inocência. - Oli, querida caminha! é ainda o
menino triste de antigamente que recebes. Não mais que tu mudei, e beberás sempre as mesmas lágrimas até a minha morte ou até que tu te estragues; mas não, não poderei
eu, ao menos a ti, guardarte até minha morte? Fica comigo, minha única amiga. E, como o lençol estava muito esticado, pôde dobrá-lo em doce coxim por baixo dos ombros.
Sua boca desapareceu também e, como quando ele era pequeno, teve necessidade de a fazer subir em busca de ar. - Tu morrerás sufocado um dia - dizia-lhe a criada.
Ele sorriu, pegou uma das mãos com a outra e a beijou. Enxugou as lágrimas. "Depois de tudo - disse para si mesmo já que não mais a amei, senti que a Srta. Kossichef
amava-me muito mais do que eu julgava, e então teria podido muito bem

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casar com ela. E assim tantas outras coisas. Então, se tudo o que desejamos deve um dia estar à nossa disposição, por que nos afligirmos em vez de ter paciência?
Elas não podem deixar de vir até nós um dia. - Sim, mas quando não as desejarmos mais,. E isso que então chamamos nosso poder sobre essas coisas não passa talvez
de falta de toda exigência sobre elas. Temos de amar para saber que não somos amados. Quando não amamos mais, somos sempre amados em excesso." - Faltava um botão
na camisa do pijama. Sentia frio no pescoço. Foi buscar um xalezinho de tricô com a mãe, com o qual ela lhe envolvia os pés, na infância, quando tinha frio. Oxale
guardava muito dessa ternura reanimadora e desse passado -friorento entre as malhas. Assim, foi como se uma enorme doçura, como se fossem os próprios braços de sua
mãe, que ele o passou ao redor do pescoço. Imaginou ter a cabeça apoiada, como quando estava doente ou triste, no seio da mãe e, tendo dobrado de novo sobre o corpo
a beirada branca do. lençol, adormeceu.

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111. Novo fracasso

Até então jamais ousara tratá-la de Charlotte. Um dia, para poder lhe dizer "minha pequena", disse "minha pequena vizinha" com tanta ternura que não pôde
deixar de tocar-lhe o ombro. Não tinha coragem de pedir que se tratassem de outra maneira. Voltavam do Louvre e ele disse: - Como é que você chama Réveillon? Chamo
de Réveillon. - E ele? - Chamame de Charlotte. Ali, ele a chama de Charlotte. E quem mais a chama de Charlotte? - Não muita gente; na verdade ninguém. - Ah, sim,
em casa. Mas não, é verdade, seu pai a chama de ,, minha querida". Eu, como é que digo? Senhora, acho, é um pouco irritante. - Sim, é verdade, é bem desagradável
que lhe diga "o senhor", simplesmente. Bom-dia, como vai o senhor? é antipático. Seria melhor que eu o chamasse de Jean e você me chamasse de Charlotte. - Logo depois
ele lhe disse um tanto sem jeito, não tendo coragem de pronunciar seu nome com naturalidade, sem acentuá-lo: - Não está cansada, ChaTIotte? - E pouco depois, como
a censurasse por não fazer o mesmo com ele, ela ficou um instante sem dizer nada como uma criança que, antes de dizer uma frase em alemão, situa antecipadamente
cada vocábulo antes de pronunciá-lo: - Acredita, Jean, que já são cinco horas? - Parecia a Jean que ao formar seu nome sua boca o tocava; depois lembrou-se logo
de tantas cenas semelhantes e que não era a primeira vez que atribuía um encanto misterioso a tais infantilidades. E duvidou de si mesmo, como um velho ator que
representou diversos papéis parecidos e se sente envelhecido.

"Não, não poderei vê-lo por estes dias." Estendido* perto do fogo, Jean sentia-se transido de frio ao repetir essa frase, desse

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frio quase agradável que nos dá na barriga quando choramos muito ou perdemos muito sangue. Via no espelho que estava mais bonito que de costume, justamente no dia
em que ela não iria vê-lo. E murmurava consigo: "Há seis meses que venho me iludindo contando com o dia de amanhã, que infelizmente se assemelha sempre, não ao meu
desejo, e sim à véspera e sem dúvida a ela. Ela não me ama." Tinha tanto frio que se voltou sobre seu lado direito, de barriga para o fogo. Há seis meses ... , Então
de repente, dizendo há seis meses, viu-a como pela primeira vez, seis meses antes, quando nenhum dos dois teria ousado gracejar nem o outro se zangar. Depois recordou
logo o que tinha sido para essa mesma Charlotte nesses dias e todos os seus carinhos,
suas garridices, ironias, censuras, acessos de cólera, suas carícias com o olhar, com a voz, com a solicitude cotidiana o envergonharam como uma indiscrição, um
modo desagradável, uma violência, que essa Charlotte deveria suportar com horror vindas dele,
esse estranho que em certa época ela mal conhecia. E sentiu que nunca mais ensara naquela Charlotte, tão afetuosamente reser-
vada, perto dele que se mostrava tão timidamente respeitoso com ela, mas sempre nas coisas de que tinham falado na véspera,
nas coisas que se diriam no dia seguinte, em certo sorriso amigo, em certo silêncio indiferente, em certa carta para lhe escrever, em certa resposta que esperava
dela. Quis revolver esse meio ano
de lembranças, de pedidos, recusas, arrufos, de intriga para contentá-lo que estava entre ele e ela, quis tentar obter a sensação dela fora de tudo isso, o que ela
era para ele antes de tudo isso, e não pôde con~egui-lo. Seu amor se furtava à caçada febril. Buscava-lhe a essência misteriosa e só encontrava uma multidão de pequenas
'ações humanas em que tentara lhe dar prazer,
agradá-la, sobretudo vê-la, pequenos sentimentos que notara nela e que ela despertara nele, sentimentos todos muito gerais, atos
comuns a todos e que absolutamente não eram, como o amor que lhe dedicava, algo único e impossível de analisar, como se seu amor tivesse sido um deus decaído, obrigado
a falar a língua
dos homens, e a tomar, como os deuses antigos, uma fisionomia humana. E, no entanto, em alguns momentos, como os peregrinos de Emaús, ele experimentara junto ao
seu amor como que uma presença mais que humana.

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-q

E depois, se, desembaraçando de sua memória tantas e inumeráveis recordações da figura de Charlotte, alegre, triste, cordata, apressada e indiferente, afetuosamente
zangada, e também tantas esperanças, não mais achava o seu amor, que todavia buscava; entretanto, era precisamente o seu amor que conferia em sua memória essa nuança
única a todas as suas recordações entre as outras, a tantas circunstâncias semelhantes às outras. Ele não podia apreender seu amor como uma alma sem corpo, mas seu
amor pão seria algo bem real, visto que fora, nesse meio ano em que cada dia procurara vê-la e só procurara isso, a crueldade da ausência, o encanto das entrevistas,
a pressa febril da corrida à sua frente, a angústia das esperas, a emoção dos encontros, a beleza sempre sonhada de uma silhueta raramente contemplada, a personalidade
misteriosa das palavras mais corriqueiras, o charme de sua imaginação, a ferida sempre reaberta de seu coração, o aguilhão do pensamento, excitação, para não dizer
a alimentação de sua vida? Mas tudo aquilo era sempre o seu desejo, e não a pessoa dela.
Se ao menos tivesse podido beijá-la, tê-la por muito tetnpo sobre os joelhos, teria acreditado que se aproximava dela. Mas separada dele por sua casa, sua
família, seus amigos, seus divertimentos, sua indiferença, sua individualidade, ele nunca sentia que a tocava, e roçava-a 'somente em sonhos. E sem dúvida era por
essa razão que suas menores palavras lhe faziam tanto mal. - Não, reservo minhas noites para minha irmã, amanhã não estou livre, logo seguirei de viagem. - Tais
palavras lembravam-lhe a todo instante que ela não existia para ele e sim para si mesma, isto é, para si e para todos os seres que envolviam sua vida com uma vida
análoga à sua e, para ele, impenetrável.

As circunstâncias e os lugares se prestam muitas vezes à perfeita realização de nossos desejos, mas ela não mais se produz neles. Chega um dia em que a mulher
a quem amamos vem passar dois dias sob o nosso teto, em completa solidão. Janta sozinha conosco. Depois vamos passear, voltamos, conduzimo-la a sós para o seu quarto.
Nenhuma testemunha, nenhum estorvo.

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Sentamo-nos ao pé de sua cama, falamos de coisas insignificantes. Ofruto do nosso amor está atingido em parte já que obtivemos sua amizade, já que ela veio. Vemos
como as pessoas são mais platônicas do que pensamos, como o nobre não franqueia a entrada dás salões fechados aos que lhe pagam e sim aos que lhe agradam, e, aos
que lhe pagam, se é grato lhes paga também mas com o que não desejam, em presentes, o que qualquer outro poderia fazer. Assim, da parte dela, essa casa onde só estamos
nós dois, este quarto iluminado pela lua onde ninguém nos pode ver, não encobrindo mais que uma conversação casta. Agora ela está deitada. Dizemos: - Temos de nos
despedir - para que ela tome enfim a iniciativa de algum carinho, se é que pensara nisso. Depois dessa advertência, procuramos ganhar ainda uns minutos que transcorrem
como os demais. - Boa-noite, boa-noite - e fechamos a porta desse quarto que se abria e que não tínhamos desfrutado.

Nessa terceira vez, Jean estava sentado diante da cama: Deixo-a descansar, é meia-noite. Ou deseja ainda mais cinco minutos? - Fique até meia-noite e cinco.
- Olençol subia até seu rosto de um rosado vivo, que lhe realçava melhor os cabelos soltos. Ele nunca a desejara e, no entanto, gostaria de carinho. Disse: Estou
com dor no pulso. - Ela tomou-lhe a mão e disse: Olha, vou fazer uma massagem - e passava suavemente a mão rechonchuda, elegante e quente em seu pulso e de súbito
ele percebeu nos seus olhos que ela sentia que lhe dava prazer e fazia aquilo intencionalmente, desvelando sob sua aparência indiferente e amada o consentimento
para que ele lhe desse prazer de outro modo. Odesejo o possuiu, fê-lo estremecer. Ela sentia claramente o que se passava com ele e continuava, sem deixar ver que
o fazia por essa mesma razão, com uma fingida hipocrisia que o deixava louco. E repentinamente um renovar de vida operou-se dentro dele. Porquanto debaixo da pessoa
que se tornara indiferente à força de ser amada sem desejo, e sem retorno de um amor sem desejo, sentia de repente passarem as possibilidades bem diversas das que
guardava até então e observava esse

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rosto fino e rosado na vida, tão cheia, tão carnal, tão escarlate sobre os lençóis brancos, sob os cabelos soltos, onde o olhar parecia espiar com alegria o seu
prazer. Ela continuava e lhe dizia: - Se isso lhe agrada, então por que retira a mão? Deixeme continuar. - E então o desejo, que em geral ele sentia simplesmente
como uma necessidade, sem nada de mais, nascia, no fundo de tudo aquilo que justamente representava para ele essa mulher até aqui, alguma coisa em cujo âmago não
havia desejó algum, nenhuma cumplicidade ou consentimento possíveis, nenhum sonho dessa natureza, do amor platônico terminado e do encanto escondido. E, de súbito,
era no fundo de tudo isso que havia nascido o desejo, desejo que o fazia estalar, estremecer, enchia-o de emoção, tornava-se um sentimento desconhecido, como se
em vez de se tratar de desejo fosse o desejo no centro de um sistema de sentimentos antigos, o afeto presente, um encanto persistente ao qual ele se prendesse, que
o empolgasse consigo; do mesmo modo que sentira nela de repente algo que não conhecia, uma mulher que nunca desejara e que talvez fosse entregarse, algo como uma
vontade, um capricho ou pelo menos um consentimento ao seu objetivo que não era o amor que lhe pedira outrora, mas que, agora que ele lhe confessara o novo prazer
que ela o fazia experimentar, continuava, que portanto era menos do que ele acreditava, ou mais, capaz de procurar lhe dar prazer dessa forma, de condescender e
consentir nisso.
A idéia que formara a respeito dela mudara por completo. Assim, experimentava intensamente a sensação de novidade porque pelo acaso dessa carícia, revelando-lhe
de súbito para essa mulher um ele próprio que ele não conhecia, e revelando nela, ao mesmo tempo, uma ela própria em cuja presença ele jamais estivera, era como
se sua vida tivesse mudado de repente e como se o mundo fosse mais rico do que pensava, e todos os sentimentos que conhecia de cor e os desejos e os prazeres puramente
camais aos quais era insensível não significavam tudo, e de fato a vida comportasse coisas que ele ignorava, e, prendendo-se até então às suas aparêilcias uniformes,
fossem sentimentais, fossem brutais, de súbito a vida se entreabrisse e lhe mostrasse no seu fundo alguma coisa que ele não conhecesse e que o transportasse a uma
dessas horas em que, na infância, achamos que a

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vida abrange o desconhecido e o novo, o delicioso e o embriagador, ou, nos nossos sonhos, em que pensamos que o que sentimos até ali não era a vida, era como uma
precaução inútil e que
há alguma coisa fora da vida, e que em vez de continuar ela vai começar, como se fosse um lugar em que ainda não estivéssemos e para o qual nos encaminhamos. Assim,
sentia que pela porta empurrada por acaso repudiava o que ainda não era a vida, seus sentimentos sentimentais por ela que se demoravam em cartas, recriminações,
adoração, serviços prestados, frieza afetada, e penetravam de súbito no quarto magnífico que talvez pudesse a vida toda ficar trancado para ele e junto ao qual teria
passado sem nunca chegar a conhecê-lo. Mas agora sentia dentro de si que entrava em palácios ignorados, calcando e estremecendo toda a sua maneira de proceder com
ela até ali, de julgá-la, de arná-la, sentindo que se tratava de um ornato que caía. E o aspecto encantador e frio de Charlotte caía também e ele descobria nela,
como num sonho em que -vemos, naqueles que conhecíamos, pessoas novas, uma pessoa que consentia em lhe dar prazer, que não rejeitava esse projeto, aceitava-o expressamente
no fundo e com esse objetivo passava-lhe a mão no pulso, e continuava, olhando-o
com carinho e dando a impressão de fazê-lo apenas por causa de sua dor, com uma hipocrisia que, dando-lhe a idéia de que era
capaz de engodo, de carinho por astúcia, fazia-a nova e excitante a seus olhos.
E graças a essa nova situação que o acaso de uma carícia
acabara de criar logo, um outro ele havia surgido e uma outra ela se havia mostrado, pois sem dúvida ela vira esse prazer que
nunca soubera que lhe dava e que, vendo-o pela primeira vez desse modo, ela assumira de repente essa natureza que possuía mas ignorava, já que a guardava, é claro,
de reserva para o desejo e não podia mostrá-lo na simples amizade. Assim, diante dessa
novidade, desse desconhecido, -sentia-se Jean impelido a ações que não premeditava, dizer-lhe contrariamente a todas as suas previsões: - Deixe-me beijá-la -, agarrá-la,
e era talvez esse sentimento, sentir a novidade, o desconhecido, que dele irrompia, que lhe parecia em

extremo uma vida nova e verdadeira que se abria, uma vida em que se vai tão bem na direção do ignorado que se diz coisas espantosas de ouvir, que a inteligência
não pre-

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para e que se fazem gestos e coisas desconhecidas, inventando gradualmente, levado não mais pelo desejo de aparecer, de agradar, de explicar sua conduta, mas em
que as próprias palavras se oferecem como, aliás, a boca ou as mãos, para se contentar apenas, pois que elas decidem de minuto em minuto o estado em que se está
e ele se sentia, desse modo, caminhando em direção ao desconhecido, na vida luxuriante que se lhe abria e cujo esplendor, luxo e vida eram magnificamente simbolizados
pela cabeça carmesim que sobressaía melhor sob os cabelos soltos e repousava nos lençóis brancos.
Por que motivo ela se debateu, rejeitando-o antes que a pudesse beijar, ameaçou tocar a campainha, ir embora? Por que teve ele de sentar-se novamente, magoado,
como que desfalecido, aflito, dizendo: - Que pena, ficou zangada, vai levar uma má impressão de mim? Quem sabe se na confusão de seus maus instintos e bons costumes,
de sua cortesania e virtude, julgasse ela que "a posse' não era um mal, pois muitas vezes gracejava a respeito e dizia que se entregaria para dar prazer, ao passo
que suas maneiras habitualmente a desmentiam, visto que para dar prazer ela não podia ir além de entregar sua mão à mão, outrora sem desejo, de Jean, que queria
conservá-la, proibia o beijo mais casto, como se a noção de posse não fosse para ela o mesmo que a própria posse, aprovando a totalidade de uma, repelindo da outra
até aquilo que mesmo de longe ou inocentemente lhe pudesse ser próxima, podendo começar por uma determinada carícia no momento em que podia consistir em qualquer
coisa que não fosse obrigatoriamente uma carícia (a massagem) para dar prazer, mas recusando-se logo àquilo que para ela constituía até os mais simples e inocentes
atos do próprio prazer, seja porque estivesse familiarizada com a idéia sem que isso tivesse atenuado seu medo pela coisa em si; seja porque tivesse um gosto especial
pela coisa que lhe permitia tudo o que, sendo dela, era para ela coisa diversa com um nome diferente, mas recuava desde que a noção da coisa aparecia: o que se explica
sem dúvida pelo fato de que sua noção indulgente da coisa coincidia com seu gosto por ela, mas que, proibindo-a para si própria, seja em virtude do prazer que aí
obtinha, seja porque sabia que se tratava em pnnciplo de um bem, mas de um mal para ela, ela se interrompia desde o momento em que, aparecendo a noção do ato, julgasse
que ia

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1

entregar-se a ele; seja por uma dessas mínimas circunstâncias que decidem, nos compromissos de nossas vidas particulares, como nas batalhas entre os povos, o bom
é 1 o do negócio.
xit
Jean retirou-se muito triste e para não mais voltar, mas ainda carregado desse desconhecido que se levantara dentro dele e trouxera à sua imaginação, a seu
senso das realidades novas adormecidas há muito tempo, um novo alento. A Charlotte que há dois anos se mostrava a seus olhos se apagara. Agora ela estava para ele
num quarto fechado, entre lençóis brancos, um rosto carmesim que sobressaía melhor dentre I- ma(ynífico e luxuriante do nrazer aue

os cabelos soltos, símbopara ser sincero, não lhe fora possível desfrutar materialmente, senão da revelação da existência dessas coisas de que a vida, de agora em
diante, se enriquecera para ele, a sensualidade divinizada - nascida no âmago dos sentimentos já conhecidos - de poder esmagá-las, renovar nossa noção de uma pessoa,
nossas esperanças na vida e nossa noção de felicidade, e os quartos em que se passa nossa vida, amados pela imaginação, por tudo o que pode surgir neles de chofre
por uma espécie de criação de um passado que o não comportava, passado dos nossos sentimentos por uma pessoa, passado de sua maneira de ser e da idéia que formamos
a respeito dela, e tudo o que é possível encontrar nela de súbito e que dela pode se desprender, sair do fundo de uma cama, do fundo de dois olhos, do fundo de uma
alma, de modo a fazer desse quarto, mais inutilmente fechado, o ponto de descobertas instantâneas a respeito de si mesmo, a respeito dela, cujas, relações para conosco
julgamos estarem fixadas e congeladas para sempre e que consente em nos acariciar, e desse teatro palpitante onde acabamos de entrar como numa câmara nova da vida,
destruindo suas aparências, arrancando-lhe a máscara, sendo para nós aquilo que pensávamos que era para aqueles de quem tínhamos ciúme, ou antes, tratando-nos como
a um outro, não mais nos dizendo: "Tu és aquele que eu traio", e sim "Tu não és mais tu, és o meu cúmplice, quero te dar muito prazer, vamos nos divertir", o teatro
fechado, o teatro necessário em que vivemos enfim uma vida imprevista e proferimos as palavras sinceras diante de seu rosto escarlate, imagem de esplendor e de volúpía
mais opulenta do que revestimentos escarlates ausentes desse quarto vazio.

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IV. A religiosa holandesa

Em 1866, Henri passou por Antuérpia. Encontrou as mesmas ruas.por onde passara em outros tempos, * as mesmas lojas de vitrinas onde, por detrás dos vidros,
nas mesmas caixas registradoras, como em seu rochedo uma medusa através da transparência da água, os mesmos homens e os mesmos vícios permaneciam pregados, deixando-os
algumas horas por dia para flutuarem prazenteiros até a avenida ou até o porto, usando no mesmo caráter, por homens idênticos, vícios que só morreriam com eles,
e não lhes trazendo no entanto, a cada dia, senão um prazer sempre igual, a vida, que a natureza metera neles com esse caráter e esses vícios, antes que, abandonando
uns e outros, os fizessem cair dessecados no fundo do cemitério mais povoado que a cidade. E nessas mesmas ruas que a vida construíra, que a vida habitava, que a
vida enchia com seu rumor, cujas, paredes sujava e cujas janelas iluminava já a essa hora, tomava misterioso o que estava por trás, como um segredo e como um tilinulo,
aferventava o ar, manchava o odor, sentia-se ele febril por misturar-se mais a essa vida, esquadrinhá-la, possuí-la, sê-la por um instante.
De súbito, pensando no claustro, tendo seu sangue farejado o antigo perfume de sua amante, saltou e enrubesceu. Toda essa inquietação acumulada se condensara
no lampejo desse delírio.
Perguntou pela irmã Aline. Levá-lo-iam ao seu quarto ou ao seu túmulo? Pois o destino dela era repousar junto à cidade, como vivera. Ela estava lá. Mandaram
que esperasse no locutório.

* Incompatibilidade cronológica, já apontada no exaustivo ensaio de George D. Painter, Marcel Proust (ed. francesa, vol. 1, pp. 261-62): tendo Henri e Jean
nascido por volta de 1859-60, seriam ainda muito pequenos em 1866 quando se passa a ação deste capítulo. (N. do T.)

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Ela entrou. Envelhecera mas ainda era a mesma. Quando um cachorro vê sua dona, não é mais possível segurá-lo. Henri não pôde conter-se e se lançou a ela para sentir
ainda o gosto dessas faces, que há muito já tinham deixado de ser cor-de-rosa e apresentavam algo de murcho, meio enrugado no canto dos olhos, que indicava já haver
passado a sua juventude. Mas ela, lhe fez sinal de que os observavam. Então conversaram. Ela já não mais esperava que sua paixão lhe desse grandes alegrias, mas
não mudara. Entretanto, o hábito de não saciar o seu desejo, em lugar de exasperá-lo, lhe tirara a importância que ele tinha em sua vida. Ela lhe confessou que fazia
cinco anos que não dormia com um homem. - Como, mas então os soldados que acamparam aqui em novembro? - É verdade - respondeu -, mas eu tinha tanto medo de que eles
contassem1 Agora, aspiro sobretudo ao meu sossego. Esforço-me por estar em boas relações com as outras irmãs. Todas as minhas amizades estão nesta vida. Não desejo
mudá-la. - No entanto, ela pensava sempre no mesmo assunto. E quando Henri, não podendo conter-se, pegou-lhe na mão, ela mudou de cor. - Toma cuidado, logo nos veremos
disse ela, indo escutar à porta. A irmã que velava continuava ali. Chegou a hora da despedida. Henri disse que só partiria no dia seguinte, que estaria à noite no
hotel; ela podia pedir permissão à superiora. - Olí, tenho muito que fazer aqui, ainda nem comecei meu rosário de Páscoa.' Talvez no ano que vem, se voltares, tenhamos
mais chances. Isso me faria tão feliz - respondeu sorrindo, um sorriso onde havia toda a doçura de uma mulher outrora amorosa. - Penso muito nisso - concluiu.

Quando Jean foi à Holanda, tendo-lhe dado Henri o endereço do convento, para lá se encaminhou. "E se me enganar?", dissera consigo. Se se enganasse de nome,
se se tratasse de outra pessoa? Mas, quando a viu entrar, julgando ela que era um amigo de seus pais, talvez o pai de uma das religiosas que vinha até ela, trazendo
diante dos olhos essa tranqüilidade aparente que fazia com que as religiosas a tomassem por uma delas, pela mais virtuosa dentre elas, como um policial que surpreendeu
um ladrão,

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Closeterres como numa outra sociedade distingue, para a filha de um professor, o jovem que tira o primeiro lugar na formatura.
0 amor deles tinha alguma coisa de singular, pois dava a impressão de ser mais velho do que eles. Pareciam não conhecê-lo por completo, impressão que de
resto já dão os que se amam muito jovens e que, assim, aparentam possuir um destino acima de sua idade. Oseu amor possuía também alguma coisa de triste, poi$ colhia,
no passado que ele recordava, a sua melancolia e a advertência de que deveria passar igualmente. No sorriso triste de sua mãe, que Marianne via numa fotografia adorada
que conservava no quarto, é claro que não saberia nunca o que havia para outro que -não ela, que se assemelhava ao seu Henri. Ela parecia conhecer, por antecipação,
as alegrias e as dores de sua filha sem ousar confessar-lhe seu segredo, lamentando não poder consolar-se ao contemplá-los. Pois tinha ido dormir nessa cidadezinha
que domina a grande cidade mas que, ainda assim, é menor que ela, a cidade desses mortos que, apesar de tudo, possuem menos espaço, que no entanto só têm um dia
em nosso ano, e onde faz tanto frio que lá nunca ficamos muito tempo. De nós, só deixamos o que pôde adquirir vida nos outros. A Sra. de Closeterres, adorada por
sua filha, depois aos poucos esquecida, só deixara de si esse sorriso que a Sra. de Réveillon reencontrava no rosto de Marianne e que a fazia dizer: - Como você
é parecida com sua mãe -, e esse amor ao rapaz louro, quase ruivo, de traços delicados, e uma

i
1

imaginar. embora não fôssemos do mesmo tipo, como você deve
Mas trata-se de velhas relações de família que vão se afrouxando. Sua filha só me manda cartões de visita, parece que não gosta da sociedade, você percebe bem que
não serei eu a ir procurá-la. Convidei-a para o casamento de Henri, ela não veio, seus filhos e os filhos de Henri não se conhecerão. As amizades se perdem com as
gerações e até apenas numa vida. AsseguTo-lhe: quando estou arrumando cartas, se encontro algumas de amigos que hoje me tratam de tu, e antes me chamavam "Senhorita%
também encontro cartas apaixonadas de amigas que não reconheceria e até cartas muito freqüentes de amigas com quem me dou muito bem mas que, tais cartas me lembram,
me viam várias vezes por dia e que hoje vejo duas vezes por ano. - Apesar disso, a

duquesa mandou um presente a Marianne pelo seu casamento. E eles foram passar a lua-de-mel naquela Bretanha que a Sra. de Closeterres tanto amara.
Infelizmente, somos obrigados a deixar inacabadas nossas

obras, mas nossas idéias são retomadas pelos que nos seguem, e quando nossos olhos se fecharem para sempre, os velhos Teconhecem nosso olhar no olhar de nossos filhos,
que não nos

conheceram e que conservam nossa lembrança em seus traços, ou talvez em seus corações.

in abatido - disse a duquesa a seu
- Achei Perrotin be A
mente um pouco mais pálido e com o nariz um pouco mais vermelho (pois nosso rosto quase não muda: um tico de pó-de-arroz e quase não se nota, visto que nosso rosto
é o nosso eu, e em suma somos sempre reconhecidos), dizia-se que ele estava com câncer. E isso quase assombrava Jean, conferindo a Perrotin uma espécie de profundidade
de que não o julgaria possuidor, como se ele lhe tivesse desvendado uma vida interior. Parecia que à noite não podia fechar os olhos e sua alegria -diurna não era
mais absoluta, alimentava inquietações. Não era possível imaginar que esse homem, para quem um enterro era uma coisa tão exterior, e estava, segundo ele, entre aN
ocupações enfadonhas que lhe enchiam agradavelmente a 'existência: "Amanhã de manhã, tenho de ir ao enterro de Fulano" - seria ele próprio enterrado um dia.

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1

VI. Os Monets do marquês de Réveillon

0 palácio em que morava o marquês de Réveillon era uma grande construção moderna, contígua a jardins, e onde vários salões sucessivos tinham sido executados
para realizar algumas de suas idéias de arte, e para responder às ocupações a que se entregava. Um era uma peça toda de madeira, como uma vasta caixa de charutos,
e em cujas paredes de sicômoro estavam desenhados hieróglifos egípeios, e onde ele ia compor música. Dava para um salão Luís XVI, que, ao lado dessa sala vazia de
madeira, sem móveis, onde tudo tinha seu motivo para estar em determinado ponto, numa fantasia toda intelectual, parecia pelo contrário mais acolhedor, com seus
tapetes espessos, mais atulhada e confortável com suas numerosas poltronas de tecido claro, com suas tapeçarias, seus espelhos na parede. Aqui, ao contrário, a mobília
correspondia às necessidades da vida e à tradição do passado. Era a imagem de um tempo em que havia agrado em ver diante de si a pintura de prazeres galantes, pela
representação das quais tomamos gosto, ofertando-nos ~pela imaginação o ideal variado das épocas passadas.
Sem dúvida, era outro capricho da*imaginação, igualmente bem moderna nesse ponto, do marquês, preso ao passado, que o fizera acumular nessa sala confortos
apreciados sinceramente há duzentos anos e desprezados há trinta. Pois os objetos que foram amados por si mesmos antigamente são amados mais tarde como símbolos
do passado e desviados de seu sentido primitivo, como na linguagem poética as palavras tomadas como imagens não são mais ouvidas em seu sentido primordial. Assim,
sobre a mesa de dourados pés de cabra, um tinteiro não servia para escrever - não se escrevia nessa sala - e sim para evocar o tempo em que essa vida luxuosa foi
uma vida em família e onde esses anos já passados à história e à arte foram sinceramente vividos, foram os dias irreparáveis e rápidos, alguns bem longos, da-

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queles que se distraíam com o motivo dessa tapeçaria que só serve para nos evocar o encanto dessa vida, e para quem esses retratos e esse busto, que se tornaram
os retratos antigos de homens dos velhos tempos, serviam para lhes apresentar os traços amados de um pai ou de uma esposa adorada. E como eram retratos de avós,
o marquês os conservava, como às vezes
• filho ou o esposo de então, por orgulho. Mas o que era então
• orgulho direto pelas ações notáveis, ou por uma posição de destaque na corte, não passava do encanto que o marquês, como artista romântico que era, descobria nessas
evocações, de um passado que acrescentava um tanto de poesia a seu nome.
Nessa peça, à noite, o marquês reunia freqüentemente alguns amigos que escutavam, sentados em silêncio nas poltronas de tecido pálido, sob os retratos, as
tapeçarias e os espelhos, quatro músicos a tocarem os quartetos de Beethoven, de Franck e de D'Indy preferidos do marquês, e que se retiravam cerca da meia-noite,
deixando a assembléia conversar por um momento e se despedir. Pois, por mais que nos reunamos num salão de outrora, sentados em poltronas que mostram no estofo os
ingênuos divertimentos dos olhos então abertos dos antigos, essas coisas não nos absorvem de todo e somos nós que as fazemos úteis à nossa vida. Forçamo-las, nos
sessenta anos que temos
de passar entre elas, a ouvir o que é a nossa vida verdadeira. Oteatro, construído para ser palco de espetáculos, enche-se todos os domingos com tantas pessoas,
para lhes oferecer, sem cenários, sem atores, sem movimentos, uma música inarticulada. E os estofos, que mostravam aos homens de antigamente aquilo que eles achavam
com toda a sinceridade, sem artifício -de imaginação, agradável e divertido, encontram o olhar de um homem sentado na poltrona estilo Luís XVI e que ouve o que aprecia
desta vez com sinceridade e sem artifício de imaginação: um quarteto de César Franck.
Assim o marquês passava as horas em meio às recordações de horas mais antigas, e desfrutava seus prazeres por entre as imagens de prazeres que há muito já
não eram desfrutados. E quando seus hóspedes, sentados nas poltronas, ouviam silenciosamente os quatro músicos, parecia, por instantes, que era a vida do passado,
a vida tal como fora, que lhe era dado viver;

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e, em outros momentos, esses jogos atuais da vida já pareciam jogos fúnebres a que se entregavam aqueles cujos olhos cedo brilhariam somente num retrato que seria
um retrato de antepassado, ou na memória do rapaz que ainda os conheceu, e que, vendo-os, cria ver já uma de suas lembranças, de tal modo as cenas da vida nos parecem
sempre, no instante em que se desfazem em outras, como se já fossem cenas de nossa memória. É assim que se passa a vida, que as noites se sucedem às noites, e era
assim mesmo a vida do marquês, a única vida que teria de viver e que assim se escoava.

Tendo chegado à entrada do palacete do marquês de Réveillon,
Jean, que o acompanhara, ia despedir-se. Sentia-se nervoso, pensando que voltaria para casa, que era preciso não fazer barulho por temor de despertar os que estão
dormindo, quando o
marquês lhe disse: - Não quer entrar? Se não estiver com sono, vou lhe mostrar meus Monets, já que sempre quis vê-los. Terá todos os livros que quiser, vários salões
à sua disposição, uma boa ceia e uma boa cama quando quiser ir deitar, onde poderá dormir até às duas horas sem que ninguém o acorde. - E, mal entraram, puseram-se
a conversar. A voz do marquês era forte e eles falavam bem alto. E já essa sensação de falar alto em hora tão avançada da noite triunfava dessa repugnância que os
que
são nervosos experimentam ao voltar para casa à noite. Oespectro do sono que não nos perturba com sua ausência a não ser quando sua busca é imposta não era atraído
por essa ne-
cessidade de ir suavemente para não despertar os que dormem, prelúdio que nos conduzirá bem depressa à imobilidade *soluta em nosso leito, ao silencioso colóquio
com o nervosismo. Sempre conversando, entraram no primeiro salão, onde o marquês ligou todos os interruptores elétricos para mostrar seus Monets.,
Os diversos lugares da terra também são seres cuja personalidade é tão forte que alguns morrem 'ao se separarem, tão especial, em todo caso, que muitos procuram
todos os anos a aprovação da sociedade e conservam, na ausência, a lembrança de seu encanto. E cada um possui, sucessivamente, suas diversas

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expressões, de modo que quem gosta de um lugar gosta dos tempos diferent". e de todas as horas, pois sente que a vida de um lugar, por pouco animada que pareça,
é muito mais variada do que julgamos.
Quando, mal nascido o sol, dorme o regato ainda envolto nos sonhos da cerração, não o vemos mais que ele a si mesmo. Aqui já é regato mas além a vista se
interrompe, só se vê o nada, uma bruma que impede que se veja mais longe. Nesse ponto da telg, pintar não o que se vê, já que não se vê nada, nem o que não se vê,
já que não se deve pintar o que não se vê, mas pintar de modo que não se veja, que a fragilidade do olho que não pode devassar o nevoeiro seja transposta para a
tela como sobre o regato, é muito lindo. E quando se trata de uma catedral, também é lindo, pois a portada que não se vê é uma coisa muito bonita, mas é algo que
vive na natureza. E certas horas da vida são belas por não serem vistas, por serem visitadas pela cerração de maneira que ninguém se possa aproximar. Não sabíamos
tudo o que existe de real e de variado na vida do lugar que amamos, mesmo na hora em que ele não é absolutamente único nem totalmente negativo, visto que o encanto
disso pode ser restituído. Sabíamos perfeitamente que esse lugar é belo no outono, numa espécie de transfiguração, mas não o amaríamos ainda mais se o não tivéssemos
tido num determinado momento do ano como um espetáculo, se tivéssemos amado todas as horas de sua vida porque elas manifestam sua vida, sua vida onde o verão torna
tão quentes as ardósias do telhado da igreja e borda o caminho bem conhecido de tantas papoulas em flor e de feixes de feno atados, se num dia de degelo, em vez
de irmos embora como se houvesse um inimigo estranho no lugar, o qual passasse sobre ele sem tocá-lo, tivéssemos visto o sol, o azul do céu, o gelo partido, a lama,
a água ondulante fazer do regato um espelho faiscante que o olho não pode fixar e onde ele não pode reconhecer-se, não percebendo a forma de coisa alguma, ao passo
que as árvores despidas e brilhantes de geada aí se acham, rodeando uma clareira ou ladeando cursos d'água, não se sabe.

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VIL Manhã de Jean com sua mãe

Tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros ido fazer uma visita ao seu colega belga, levara consigo o conselheiro de Estado, diretor dos Negócios Estrangeiros,
Sr. Santeuil. Â noite, Jean foi jantar fora com a mãe, trouxe-a de volta cerca das dez horas, e depois esteve uma hora em casa dos Réveillon. Retornou com tristeza
perto da meia-noite. - Qual é a sua idade, jean? - perguntara-lhe a duquesa em meio à festa. - Vinte e dois anos. - Ele não cessara mais de pensar com irritação,
com desespero, no tempo inteiramente perdido durante os quatro anos que se seguiram à sua saída do colégio, dos quais era, diminuída, a sombria e estéril imagem
cada um de seus dias vazios e sem fruto. Esses anos que, do colégio, lhe pareciam tão belos, na embriaguez da felicidade e do labor desejados, sobretudo da liberdade,
eis o que deles fizera, e não sentia coisa alguma em si para melhor preenchê-los. A vida só é bela de longe. No fundo ela não nos reserva mais do que o tédio de
um dia de aula. Passando por ele de maneira medíocre, vivemos a vida por antecipação: como por um estreito retalho de tecido é possível imaginar o tecido irteiro,
já que não passa da repetição dos mesmos fios e pêlos entrecruzados da mesma forma.

Jean entrou em silêncio para não acordar a mãe, leu por um instante sem se desfazer de sua tristeza e foi se deitar. Pousando o castiçal na mesa de leitura
que ficava próxima ao leito, encontrou um papelzinho que lhe dizia com a escrita suave e refletida de sua mãe: "Meu querido, entra para me dar boa-noite; não tem
medo de me acordar, sabes como torno a adormecer com facilidade. Dize o que queres comer amanhã no almoço." Jean largou o bilhete e sorriu, alegre. A Sra. Santeuil
nunca havia permitido que Jean entrasse em seu quarto à noite, com medo de despertar o marido. Nunca, atenta unicamente às pre-

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ferências do marido, consultara o filho sobre o cardápio das refeições. Mas, como o marido estivesse ausente, e não dando importância ao sono e à gula, dedicava-se
toda ao filho. Jean entreabriu a porta do quarto de dormir da mãe e percebeu-lhe
• belo perfil grave, os cabelos desfeitos, os olhos fechados,
• nariz a respirar, a boca sossegada, fechada como uma boba de criança, dormindo sobre o travesseiro. Descalçando as botinas para não acordá-la, andou suavemente
até a cama, depositou um beijo no lençol fino que a cobria até o queixo, inflado por seus braços, e depois, vendo que ela não despertava, beijou-lhe os cabelos.
Então viu-a esboçar um movimento, murmurando algumas palavras indistintas, e recuou assustado. E logo ouviu-a retomar a respíração dormente e calma, em intervalos
iguais. Estava com sede. Tranqüilizado, quase desiludido, foi até a copa em busca de cerveja, e encontrou esta ordem ao criado de quarto: "Julien, não sairei amanhã
de manhã, nem nas próximas manhãs, enquanto o patrão não tiver voltado. Acorde-me logo que o Sr. Jean se levantar. Não acenda o fogo na minha saleta, estarei no
quarto do Sr. Jean até a hora do almoço. OSr. Jean dirá a que horas deseja almoçar." Jean não estava mais triste nem tinha medo de dormir. Sentia a mãe junto a si
enquanto dormisse. Chegando à janela aberta da copa, viu que o tempo clareara e ficara mais agradável. Havia muitas estrelas no céu e, espalhada no peitoril da janela
que ela empalidecia, a luz doce da lua escondida pelas casas. Os dois bilhetinhos escritos pelo punho da mãe, seu sono tranqüilo contemplado e que lhe era permitido
interromper, essas fiéis veladoras, as estrelas, que continuariam a brilhar até a manhã e essa presença da lua invisível que também haveria de velar enquanto dormisse,
encantavam a noite, adoçavam, para Jean, o isolamento, o sono que temia. Deitou-se com uma alegria silenciosa e profunda, e adormeceu como, quando criancinha, adormecia
na véspera do Ano Novo, na esperança extasiada de seu despertar e da manhã que viria.
E ela, a inanhã, foi doce de fato! A mãe, que todos os dias saía com o pai, desde que ele tocou a campainha ao despertar apareceu toda preparada, os cabelos
penteados, o rosto fresco, num vestido matinal. - Não sabia se querias sair ou ficar em

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casa. Por isso é que me aprontei para o que quisesses. - Mas Jean gostava de ficar deitado até tarde. A mãe ficou sentada junto dele, levàntando-se apenas para apressar
a cozinheira que não trazia o café com a necessária presteza, o criado de quarto que não acendia logo o fogo. Jean contou-lhe a noitada da véspera. Gracejaram juntos
sobre os tipos, rindo das mesmas coisas, Jean sentindo que sua maneira de ver, e de julgar, herdara-a da mãe, sobrevivia a ela, com maior prazer ainda que o tivera
ao sentir a aprovação dela. A todo instante fazia-a levantar-se da cadeira e ir até a cama para beijá-la. Ela zombava um pouco dessa sensibilidade exagerada, mas
com tanta amabilidade que essa doce alegna exaltava ainda sua ternuta ao invés de feri-la. Depois ela se sentava de novo e eles continuavam sua troca de opiniões
semelhantes a respeito das pessoas, suas aventuras amorosas, seus ridículos, sua inteligência, sua bondade. Viam as razões de tudo com uma finura idêntica e diversa,
divertindo-se um com os achados que havia feito mais especàalmente no outro, misturando infantilidade e profundeza, os prazeres da sagacidade, da inalevolência e
da afeição, a admiração e a !ernura, o diálogo, c riso e os beijos. E, por instantes, Jean ficava tão contente que rolava na cama, encolhendo a cabeça entre os ombros.
Depo:s perguntou à mãe se ela se incomodaria de que lhe lesse algu:na coisa. Ela respondeu que pelo contrário: isso me interessa muito. Leu-lhe em voz alta algumas
páginas de Michelet, prolongando na leitura a sua satisfação, suas objeções, sua personalidade, expandindo-se com felicidade e desfrutando igualmente o prazer de
ler bem.
Foi ela quem leu enquanto ele se vestia. Depois foram caminhar durante uma hora, ao sol da manhã, ao longo dos poucos carros, nos Champs-Elysées. Não andavam
depressa, mas o ar era tão suave que Jean imediatamente sentiu muito calor. Océu, como o chão, estava pálido de sol. Voltaram pelas ruas limpas e vazias, e acharam
pronto o- almoço que Jean encomendara e que comeram com delícia, Jean sentado como dono da casa em frente à mãe; entre eles um buquê de campainhas brancas que tinham
trazido e posto num jarro com água, que o sol, entrando pela janela, vinha oscular num riso. Océu estava tão pálido quanto há pouco a alameda dos Champs-Elysées
banhada

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pelo sol. Em tudo havia um encanto de convalescença, e foi também com o regozijo bem novo de um convalescente que encomendou a seu gosto a primeira refeição que
Jean almoçava nesse dia. Falava com a mãe a respeito do pai, do avô, sentindo um prazer profundo em admirá-los com ela, em senti-los tão diferentes dele, e também
tão parecidos, em descer até o fundo de suas personalidades, sem constrangimento, através de seus defeitos ou ridículos amados e temos, e em redescobrir-lhes as
qualidades conhecidas e preciosas. Sentia-se bom e inteligente, sentia na inteligência e na bondade da mãe a confirmação e sobretudo a filiação, a paternidade de
sua bondade e de sua inteligência. E, comparando esse dia feliz com a sua infância prisioneira e que da família só conhecia a escravidão, sentiu a um tempo a doçura
de estar liberto dela e de se submeter novamente a ela, mas com liberdade, como à ternura de um irmão, e aos méritos e aos defeitos de um autor preferido e semelhante
a nós.
Sua mãe foi se preparar para ir fazer compras, enquanto ele ia sair com amigos. Bateu-lhe à porta para lhe dar adeus. - Tens exatamente a maneira 'de bater
de teu pai - disse ela. - É incrível. Se não estivesse fora, teria pensado que era ele. - Jean estava feliz por se sentir desse modo ligado ao pai, orgulhoso de
ver que era mais do que um pobre menino solitário e que algo mais antigo que ele existia dentro de si, que ele próprio existia fora de si. Era dia de eleições. -
Em quem votas? - perguntou-lhe a mãe. - Em Denys Cochin. E papai? - Teu pai não pode votar, não estando aqui. Teria votado em Passy.* - Muito bem, votarei em Passy,
pois sou seu filho antes de ser eu mesmo. - Nunca votou com tanta satisfação. Atribuindo, dessa maneira, mais importância ao pai do- que a si mesmo, aumentava a
seu ver a própria importância. Não votava mais como um indivíduo isolado e si-n como o mandatário de uma família que tinha a honra de vepresentá-la. Voltou alegre
da

* Denys Cochin e Passy. Políticos franceses, o primeiro, deputado por Paris (1893-1919), subsecretário para os Negócios de Estado (1916-17), membro da Academia
Francesa (1911). Quanto a Passy, trata-se talvez de Frédéric Passy (1822-1912), autor de tratados sobre Economia Política e Prêmio Nobel da Paz (1901). (N. do T.)

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prefeitu ' ra, desfrutando a mesma alegria altiva e comovida por
esse ato de humildade como no dia em que pela primeira vez
fora a uma recepção diplomática com o pai, e onde este o
apresentara com orgulho aos colegas e onde sentira uma emoção
tranqüila, a emoção contida que dá a todo conservador o sen
timento da solidariedade e da tradição, em atribuir não a seus
méritos pessoais a acolhida solícita que lhe faziam as pessoas a
quem era apresentado, mas sim àquele que era filho de seu pai,
que o julgava digno de apresentá-lo como filho.
VIII. Noite de inverno em Paris

A impressão alegre das ceias e serões reanimou-se naquela noite em Paris. Porquanto, tendo-se erguido uma cerração impenetrável, todos os candeeiros tiveram
de ficar bem iluminados; a poucos passos um bico de gás era tão imperceptível que parecia estar a ponto de se apagar e logo após cairia a noite, a noite que dàsa
vez reinava tão profundamente no coração da cidade como nos campos ou em plena floresta. Assim, aqueles que não conheciam bem o caminho acabavam se perdendo. Uns,
julgando chegar à Ponte da Concorde, contornavam pela décima vez a Praça dos Invalides, e, nos Champs-Elysées, um flacre, pensando descer para a avenida, entrara
num maciço de árvores de onde não podia mais sair. Para penetrar na escuridão a mais de um passo, era necessário contar com a grande claridade dos cafés da Rua Royale.
Diante deles, a cerração, irisada com as cores suaves da claridade que a penetrava, parecia desse modo acolher-nos na soleira com um sorriso, como os criados de
uma casa que no vestibulo já refletem, na sua acolhida, a alegria que o patrão terá em nos receber. Cada um entrava com alegria tanto maior quanto tivera dificuldade
de chegar, e talvez com medo de estar perdido. Assim, as lamúrias a respeito do tempo que cada recém-chegado fazia ao dono da casa, que, não ousando molhar-se nem
abandonar seus clientes, mas interessado na chegada mais ou menos cÔmica de cada lado, permanecia no limiar, essas lamúrias que cada recém-chegado fazia eram pronunciadas
e ouvidas com um ar excepeionalmente festivo. Que tempo incrível!, diziam ao entrar. Faz um frio, lá fora!, acrescentavam desembaraçando-se do sobretudo na doce
umidade da sala. Não se via nada a dois passos!, continuavam, os olhos piscando à viva luz do café. E nenhum ruído, era um silêncio!, concluíam, os ouvidos prazerosamente
despertos do entorpecimento trazido pelo silêncio com a conversa jovial que se travava em todas

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as mesas e onde os rapazes, no momento da chegada, tinham seu lugar, pois os acontecimentos exttadrdinânios aproximam as distâncias e teria sido pouco natural que
dois seres humanos, quer se tratasse de um freguês elegante e um garçom habitualmente mudo, não trocassem algumas palavras sobre esse espantoso cataclisma físico,
que o cliente autorizasse logo as perguntas, às quais aliás ardia por responder, dizendo: - Ali, venho da Praça da Concorde, digo-lhe que não era fácil encontrar
o caminho. - Por certo que não - dizia o garçom -, temos um cliente que vinha da Praça da République, e seu cocheiro se perdeu três vezes. - Se fosse só se perder
- dizia o senhor -, mas é que a gente não se encontra mais. - Sim, isso é que é o diabo - dizia o garçom. Depois, como após os mais singulares acontecimentos a vida
retoma o seu curso, o freguês pedia uma refeição e o garçom ia buscá-la. E enquanto ele esperava devorando com os olhos os que iam chegando, com os quais estava
morto por falar como se tivessem sido com-. panheiros de viagem, passava o dono da casa. - Osenhor pediu alguma coisa? - Sim, um grogue. - Ali, sim, é bom qualquer
coisa quente com esse tempo. - Ofreguês recaía em seu silêncio, mas o olho a um tempo vivo e indeciso, que fixava a seu redor, brilhava no meio do silêncio que as
conveniências o obrigavam a manter como as cintilações dos fuzis bem carregados e prontos para disparar. Só um cavalheiro, agastado com a familiaridade dos garçons,
pediu sua refeição em tom seco e respondeu grosseiramente quando lhe perguntaram se queria tirar o casaco de peliça. Foi-se ao cabo de alguns momentos sem ter sofrido
absolutamente a influência da cordialidade generalizada, tendo feito questão de mostrar que não era como todos. Logo, tendo todos se aquecido, ninguém mais conservava
o casaco de peles às costas nem o chapéu na cabeça. Puseram-se a beber e a brincar, conversando sempre com bastante alegria, como se vê nos acantonamentos de tropas
e, em geral, em toda a parte onde à inquietude e ao desconforto sucedem o bem-estar e a despreocupação.

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O Sr. Santeuil, que era muito estimado nesse café, embora não conhecesse nenhum dos nobres que o freqüentavam, porque desempenhava um alto.cargo na administração
e outrora havia ajudado o proprietário com o seu próprio dinheiro, conversou por um momento com o garçom, fez uma refeição e saiu. Estava triste porque pensava em
Jean. Entrando em casa, sentou-se por um instante no vestbulo para tirar a capa de borracha. Despertado pelo ruído, o grande cão que dormia sobre a coberta voltou
a cabeça e o olhou por um instante fixamente, com seus olhos que têm no olhar toda a majestade do sono sobre o qual as pálpebras acabam de se erguer, todo o esquecimento
que o despertar acaba de descerrar, que aparece e se torna grave. Sem dúvida nos aconteceu já atravessar de noite o quarto de um neném que dorme e que foi despertado
pela luz. Ele não se mexeu e julgamos que não acordou. Mas percebemos que ele nos vê com seus grandes olhos abertos. Talvez até, se nos aproximarmos, espantado,
feliz, sentindo nossa calma, ele sorria e, se o beijarmos, ele nos beije. Mas não sabe que horas são, e por que estamos ali; ouvimos um leve rumor: ele dormiu de
novo e nunca mais se lembrará de que entramos; sorriu-nos como sorri uma pessoa adormecida, olhou-nos quase sem nos ver, em todo o caso sem pensar, e voltou a dormir.
E, sem despertá-lo, beijamos o seu rostinho que, de olhos fechados, a boca deixando passar a respiração, está ocupado com essa grande coisa misteriosa que é dormir.
Porquanto as crianças pequenas, bem como o cão que há pouco olhou o Sr. Santeuil antes de adormecer novamente, fazem com seu corpinho coisas graves como dormir e
morrer. E a criancinha que foi despertada, por se ver assim na cama e por ver aquela luz, ri, pois não tem noção da grande coisa que fazia dormindo. Esse sorriso
é o verdadeiro sorriso da inocência. Depois voltou a adormecer. -
O Sr. Santeuil entrou em seu quarto. A tristeza, o frio, o c ansaço tinham-no esgotado. Despiu-se tiritando, meteu-se na cama, sentiu com os pés a botija
com água fervendo, ajeitou-a nós pés e deixou cair as cobertas sobre o peito. Tinha muita vontade de chorar, mas não se pode dizer que tivesse no momento alguma
dolorosa mágoa. Sentia que na cama nenhum aborrecimento, nenhum esforço penoso de fazer viria atormentá-lo até

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a manhã seguinte. Atirara na cama seus membros como ferramentas incômodas e no entanto estimadas que não mais tivesse de carregar, e respirava com força sentindo-se
aliviado de suas pernas, há pouco ainda tão lassas, tão frias, e que jaziam diante dele ao calor, sentindo a botija fervendo no seu flanco que, como um balão esvaziado,
inchava e se distendia a seu lado. Por instantes, com um ligeiro movimento, ele as agarrava de novo a fim de apoiar melhor o flanco de encontro ao colchão, de maneira
a não ter mais coisa alguma a sustentar, e que a ilharga inteira, tendo cavado ali um abrigo perfeito, pudesse amoldar-se a ele com exatidão, e deixar levar pelo
bom colchão todas as suas partes flutuantes, ou para aproximar dos pés a botija fervendo. Tinha vontade de chorar e isso ainda lhe dava frio, mas um frio que não
era nada insuportável nesse bom calor; e afinal se sentiria talvez melhor com frio, sobre uma esteira dura, porquanto esse aniquilamento que acompanha a ausência
de toda esperança talvez seja mais completo longe de todo bem-estar físico. E a amargura que existe em sentir-se alguém enregelado enquanto chora, em retesar-se,
em perceber sua fraqueza, encarregando-se de todo esse prazer que está ligado à vida humana, que não nos abandona enquanto vivemos, que se refugia no frémito, na
dor, no desespero, é um prazer que somos bem doidos em ir buscar tão distante, já que está sempre conosco, entre nós e o nosso leito, entre nós e a terra dura, entre
nós e as nossas lágrimas, e que circunstância alguma nos pode conceder em maior número. Depois, para impor o selo sobre o esquecimento que principiava a tomar conta
dele, o Sr. Santeuil apagou com um sopro a pequena pirâmide amarela que formava a chama de sua vela. Ela se esvaneceu e a noite se fez. Então o Sr. Santeuil, sentindo
nesse instante em sua vida tão pouca coisa que não teria- temido a morte, adormeceu, ou seja, foi se entregar a esses pensamentos tão pungentes mas cuja recordação
nos é defesa, a toda essa parte de nossa vida na qual nunca voltaremos a pensar, que não comanda nossos atos, que é esquecida, mas onde entretanto não deixamos de
viajar em imaginação e que nos modifica como a outra, como tudo onde se misturam o prazer ou a dor, e pensamentos. E assim como em viagem acordamos em região bem
diversa daquela em que

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adormecemos, assim também o nosso pensamento está em local bem diferente, quando despertamos, do que aquele em que adormecemos e muitas vezes o que adormeceu à luz
do dia, em que todas as coisas pareciam lindas, acorda num dia triste em que tudo é difícil, onde o espírito mal parece existir. Ele se lembra de coisas que disse
a si mesmo que tinha de fazer, antes de dormir, e que na hora pareciam tão fáceis. Viajou tanto desde então, durante essa noite, que tudo mudou muito nele e essas
mesmas coisas lhe parecem impossíveis. Está cansado, está zangado, e é preciso uma boa nova, ou a quentura do café que lhe trazem para lhe despertar o gosto da vida,
bem distante da qual, sem dúvida, espíritos desaparecidos o arrastaram nessa noite.

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IX. Retrato de um escritor

Naquele ano Le Gandare expôs no Champ-de-Mars um retrato de Jean Santeuil. Os antigos companheiros do Henri-lV com certeza não teriam reconhecido o colegial
indisciplinado - sempre mal vestido, despenteado, cheio de manchas, o aspecto febril ou abatido, o gesto mais expressivo do que nobre, olhar exaltado se estivesse
sozinho, tímido e envergonhado diante de todos, sempre pálido, os olhos cansados, pisados pela agitação, pela insônia ou pela febre, nariz proeminente nas faces
cavadas de grandes olhos pensadores, que, só eles, vertiam alguma beleza com sua luz e seu tormento sobre esse rosto irregular e doentio - no brilhante rapaz que
parecia ainda estar posando diante de toda Paris, sem timidez e sem bravata, olhando-a com seus olhos compridos e claros como uma amêndoa fresca, olhos capazes de
conter pensamentos, nesse momento ausentes, como um poço profundo mas vazio, as faces cheias e de um rosado meio branco que por um nada enrubescia até as orelhas,
acariciadas pelos últimos cachos de uma cabeleira, negra e suave, brilhante e retorcida, em anéis, descendo em ondas como ao sair da água. Uma rosa cortada na botoeira
de seu casaco de cheviote verde, uma gravata de leve tecido indiano que imitava os ocelos do pavão, vinham testemunhar, na realidade de sua fisionomia luminosa e
suave como uma manhã de primavera, de sua beleza não pensadora e sim, talvez, docemente pensativa, a doçura feliz de sua vida.
E, no entanto, o Sr. e a Sra. Santeuil, que antes haviam encorajado Jean a freqüentar a sociedade, que logo se sentiram lisonjeados com o prestígio que o
filho soubera conquistar, estavam aborrecidos por verem que Jean não estudava-mais, nem lia, nem pensava e até mesmo, pelo menos há alguns meses, não sentia remorso
nem vergonha. - É um rapaz que poderia ter feito o que quisesse, e que nunca fará nada - dizia o Sr. Sandré à sua filha.
0 Sr. Santeuil, cuja negligência vigorosa se esgotava com a idade, já que a saúde não era tão boa, e em conseqüência de uma aposentadoria que não demorava,
com suas ocupações menos numerosas, ficava também meditando à noite, enquanto o filho estava no baile, e perguntava-se às vezes se, depois de sua morte, sua fortuna,
a reputação honrada de seu nome burguês, longe de serem ampliadas por seu filho, não entrariam em decadência. - Eu tinha muitas razões para me preocupar - repetia
o Sr. Sandré; - aliás, vocês não me davam ouvidos. - Infelizmente, agora sei qual é o obstáculo - dizia o Sr. Santeuil, a quem, a essa nova guinada, o destino do
filho aparecia de maneira bem diferente. - É a leviandade, a frivolidade, o gosto pela vida social. Saberemos protegê-lo disso? E Deus me dará tempo suficiente junto
a ele para impedi-lo de se entregar de todo, a cabeça perdida? Ai de mim, eu preferiria amor, preferiria sua má saúde, preferiria a poesia. - Não - disse o Sr.,Sandré
-, eu não preferiria a poesia. Um janota é talvez mais nulo ainda do que um boêmio. Mas é menos desabonador para a família. Tenho vergonha de ver seu nome sair nesses
jomais infames, nas colunas sociais, mas ainda prefiro isso a lê-lo ao pé de um artigo.

O duque de Réveillon pedira a Jean que fosse visitar, em seu
nome, o Sr. Silvain Bastelle, o célebre escritor, membro da
Academia Francesa. Morava numa bela vivenda na Rua de Berri,
e enquanto iam avisar Bastelle, Jean esperou num grande salão.
Uma ocasião, o criado veio trazer lenha para a lareira, e havia
ainda convites sobre a mesa do duque d'Aumale, do duque
de Broglie, de uma Rothschild. Ouvia-se no pátio o barulho
de um cupê que estava sendo lavado. Pois ao homem a quem
se considera feliz, tudo o que pôde invejar dos outros chega-lhe
pouco a pouco às mãos. E agora Bastelle pertencia à Academia,
era rico e gozava de uma boa posição na sociedade. E possuía
o belo salão onde Jean esperava; para sair, dispunha do cupê
que estava no pátio, e ele jantava nas casas indicadas nesses
cartões de visita. Mas à medida que se destacava de algum

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modo sob a forma dessas belas tapeçarias, dessa ampla sala, desse bairro opulento, a felicidade não estava mais nele. Herdara dos pais uma considerável fortuna que
haviam acumulado para ele, mas estavam mortos, eles cuja companhia constante fora desde a sua infância misturada a seus sonhos de felicidade. Tinha a mesa posta
em casa de pessoas que, rapazinho, imaginara tão difíceis, mas essa miragem se desvanecera e ele ia jantar lá sem nenhum prazer. De cupê ou em vitória, podia ir
dar passeios no Bois, mas perdera a boa saúde e o frescor das impressões que outrora, diante de um simples ramo de amendoeira visto num ilorista, faziam-o sonhar
tanto. E as mais floridas aléias deixavam-no frio.
Cada vez mais o dever se apresentava a seus olhos como a obrigação de se consagrar às idéias que em certos dias lhe ocupavam o pensamento. Ou antes, não
poderia dizer que se tratasse propriamente de idéias mas de um certo encanto que achava em si mesmo, de certa espécie que ele tentava antes conservar do que aprofundar.
Conservar até o momento em que, sentado num quarto onde ninguém o pudesse incomodar, era preciso então desvendar essa idéia que lhe surgira velada por uma imagem
vaga, seja uma tarde quente num parque, com íris saindo de um lago na sombra, seja uma chuva fria caindo sobre a cidade, seja o frescor de um jardim de praça pública,
frondoso e' sombrio, numa cidade beijada pelo verão. Enroladas, por assim dizer, nessa imagem, é que ele trazia as idéias, como um jovem pescador traz ao sol, sem
que ele sofra por isso, debaixo de uma camada fresca de erva, a erva arrancada do fundo do poço onde foi capturado o peixe que acaba de pescar. Assim, sem conhecer
ainda as suas idéias, conservava-as ocultas sob a imagem que tinha diante dos olhos, essa tarde quente e o sol ilum;nando as folhas dos lilases, V!ndo além disso
apenas o sentimento de um grande poder de r mais adiante, de expressar mil idéias. A isso chamava estar bem disposto, e nesses dias preferia ficar sozinho, ter tempo
à sua frente, papel e tinta. As diferentes idéias que então amava transcrever pareciam-lhe mais importantes que ele próprio, a ponto de sonhar com elas sem parar,
e de não se achar disposto a coisa alguma se deixassem de lhe freqüentar o cérebro por alguns dias; e quando as tivesse

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escrito quase todas, não veria mais nenhum inconveniente sério em morrer e resignar-se-ia facilmente a isso. Mas a palavra escrever é insuficiente para sugerir o
encanto da matéria preciosa em que as fazia correr.

O mal modificara-se para ele há poucos, anos. Antigamente, aquilo de que fugia, o que censuraria em si caso cedesse, era o esnobismo, o prazer de se ver
festejado em casa dos grandes e a preocupação com sua aparencia. Pois essa preocupação dava a seu pensamento uma consistência algo endurecida, de onde as idéias,
as imagens, essa espécie de alegria que o levava a um local onde pudesse trabalhar, não podiam mais sair. Mas aos poucos as deslumbrantes convivências e também o
zelo por sua pessoa se lhe tornaram de tal modo habituais que deixaram de ser objeto de preocupação e excitação para ele. E exatamente comoum simples casaco ao qual
não se dá mais atenção, um belo porte dobrou-se ao meio na atitude putico orgulhosa e usual do devaneio, e seguiu os gestos de abandono que lhe eram então familiares.
É claro que o mesmo se dava com Byron e os escritores que estavam mais na moda, se, tendo saído para fazer uma visita, a vista de um lilás ou de qualquer idéia os
incitasse à poesia. Pois enquanto se caminha ereto, a bengala erguida e o olhar impassível, a inspiração não pode circular, ela que tem necessidade de pousar num
olhar fixo, de buscar seus recursos num pouso incerto, de andar em passos sinuosos ou bater asas alegremente com um sorriso radioso. Omal ficou em tudo que endurecia
o espírito, nele fazendo flutuar nomes ilustres, palestras espirituosas, fatos materiais, fórmulas apreendidas ou desejos, movimentos, corridas, conversações. Ao
passo que a preguiça, quando se deixa embalar ao encanto da hora, e que merece o nome de fecunda que Baudelaire lhe deu, voltava a entrar no lado bom, no que era
preciso ir buscar. Assim, a sensualidade, por exemplo, era, se não o bem, pelo menos inofensiva e muitas vezes bastante fecunda, enquanto a frivolidade e sobretudo
a eloqüência que, fazendo-nos procurar brilhar diante de um auditório, ultrapassa nossa atividade e deixa escapar este-

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rilmente de nosso silêncio todas as potencialidades que aí teríamos encontrado se puséssemos mãos à obra, eram o verdadeiro mal. Além disso, o esnobismo tivera para
ele o mesmo inconveniente outrora, o de pô-lo em estado de espírito próprio para conversar (mesmo quando a sós) em vez de simplesmente ouvir.
Uma vez diante do papel, escrevia sobre o que ainda não conhecia, o que o atraía sob a imagem em que se escondera (e que, fosse como fosse, não era um símbolo)
e não o que, pelo raciocínio, lhe parecesse inteligente e belo. Pensamentos como esse, ele os deixava passar todos os dias, sentindo que não era aquilo que tinha
de escrever, porquanto não eram acompanhados da alegria peculiar que para ele indicava o valor das idéias, como Descartes dizia que a evidência é o critério da verdade.
Se a sua consciência o advertia de que o mal era tudo o que ressecava a inspiração (fosse apenas a eloqüência), e que o bem era tudo o que o não enfraquecesse (mesmo
que fosse a pior sensualidade), como se, predisposto pela natureza à conservação de algum deus que o habitasse nos pântanos de seu espírito e às suas margens, ele
tivesse recebido, como uma instrução anterior a seu nascimento, o instinto de conservação desse deus, do mesmo modo como, facilitada para preencher essa instrução,
recebera ao mesmo tempo uma sensibilidade viva em excesso e um egoísmo que o impedia de se dar de maneira que matasse toda inspiração, uma saúde frágil que o tornava
mais sensível às influências e um vivo desejo de ter boa saúde, a simplicidade e o coração que se traduzem pela gentileza para com os mais humildes e o vivo sentimento
de gratidão, e a desordem que dá idéia de ingratidão e orgulho. Os que o haviam conhecido poderiam de qualquer modo dizer, ao lê-lo: "É bem ele", embora, para falar
a verdade, ele não pudesse, ao escrever, falar de si mesmo, pois desde que o que escrevia tratasse de si acabava sua alegria, era advertido de que não escrevia mais
que o que devia escrever.
Muitas vezes à hora em que Jean saía para longos passeios pela manhã, ele, envolto num comprido robe, ia se deitar até o meio-dia. Pois os atrativos da vida
são diferentes para os homens. Uns mergulham a alma no sono, no silêncio e na escuridão; mas

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outros gostam de sentir-se envolvidos, como por faixas brilhantes, pela claridade dourada do dia em que trabalham os operários e cantam os pássaros, colocando apenas
entre eles e seu cérebro a espessura de suas cortinas. Estes não conhecem a viva alegria da manhã, mas os outros não sabem da doce sensação de pensar na noite, escrever
na escuridão e de acordar quando o sol já está no meio do céu. Para alguns o prazer é rever à noite sempre as mesmas coisas e dormir no mesmo leito quente e doce.
Mas os outros desejam que, para eles, o silêncio do sono nasça do estridor infernal do vagão sacudido nos engates e que o repouso venha da rapidez desenfreada que
não é sequer sentida.

Não se poderia dizer que a vida do velho mestre fosse propriamente moral, mas ele não parecia preocupar-se e agir com uma espécie de impudor, e, por outro
lado, não ligava a mínima para os outros e não se devotava de maneira nenhuma. E, no entanto, é claro que não fora sempre assim. Havia um tempo em que, cabecinha
loura acariciada por pais a quem fazia às vezes chorar, seus vícios tinham sido para ele algo a que não cedia sem grandes lutas e que lhe davam prolongados remorsos.
E nos momentos em que, fazendo coisas maquinais, pensava no que teria de fazer e sentindo vivo pesar, não era como agora às páginas que teria de escrever, à inspiração
que precisaria encontrar novamente, que seus pensamentos se reportavam com desânimo, mas a outros atos dos quais, então, ainda esperava, apaixonadamente, poder abster-se.
Quanto a seu talento, possuía-o sem sequer imaginá-lo ainda, e só bem raramente, solicitado por um colega para a tal revistinha de meninos, é que começava a escrever
e de súbito, sentindo as idéias lhe chegarem em multidão, as palavras se afeiçoarem, se embelezarem, refletirem-se umas nas outras docilmente às suas mãos, experimentava
um prazer que é de fato a única recompensa do homem de letras sem ter idéia de que aquilo devesse ser mais tarde uma carreira, e ainda menos que esse dom estava
nele como uma espécie de missão. E, mais anteriormente ainda, não se tratava sequer de seu talento, que então nunca havia sentido ou mesmo exercera,

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i

tratava-se dos vícios que, na inconsciência da infância, não eram objeto de remorso nem de resolução como o foram na juventude, mas afluíam como uma coisa que ele
julgava perfeitamente natural. Por essa época, quando bebia vinho, deliciado, achava que isso era ter sede, estar sedento, ser guloso. E nos poetas antigos que explicava,
prendia-se a estas palavras: "Saúde, ó vinho, presente de uma divindade, vinho, 6 alegria e graça do homem" com uma espécie de paixão. E entre todas as coisas que
os poetas cantavam e das quais ainda só conhecia aquilo, achava que era de fato uma das mais nobres e deliciosas. E, à mesa, dizia: "Oh sim, tenho fome; ah sim,
estou contente por almoçar", sem se dar conta de que, dizendo isso, tratava-se do vinho que ele fazia passar deliciadamente pela garganta, porque não definira ainda
o objeto de seu prazer.
Mas a infância, quando se pratica o mal sem o conhecer, e a juventude, conflito de desejos e deveres, tempo em que os hábitos principiantes ainda não são
conhecidos, a não ser como tendências, e estreitamente vinculados aos remorsos e às resoluções, tinham passado. Pouco a pouco o dom de poesia que nele havia tornara-se-lhe
o centro de sua vida moral, e suas lutas de consciência tinham tomado outra forma. Obem era aquilo que favorecia a sua inspiração, o mal, o que a paralisava. Ohábito
de beber, conquanto não o pusesse doente e ele soubesse regulá-lo, e uma certa ociosidade sensual não impediam de forma alguma seus devaneios, a fecundidade de seu
espírito. Oraciocínio, a caridade, a solicitude exclusiva da política e a vaidade teriam sobre ele, ao contrário, uma influência nefasta. Assim, a arte o modelara
aos poucos, fizera-o imoral à sua semelhança, preocupado exclusivamente com o pensamento e a beleza.

Pois as únicas coisas belas que um poeta pode encontrar estão dentro dele. Dêem-lhe um momento de inspiração, isto é, façam que entre em comunhão consigo
mesmo, e lhe darão a felicidade. Mas dêem-lhe riquezas, honrarias, prazeres, não lhe darão nada porquanto farão com que saia ainda mais de si mesmo. Mas essa tomada
de posse de si mesmo não é direta, É preciso que

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ele receba a si mesmo das mãos misteriosas que o detêm. Assim, mostrem-lhe uma pessoa bonita, uma pessoa inteligente - isto não quer dizer nada. Pode, porém, existir
uma pessoa que, posta diante de seus olhos numa época recuada de sua vida, tenha conservado, só para ele, a impressão indelével. Talvez ao vê-la.ele a descubra por
completo, e essa presença lhe dará algo, pois lhe dará um pouco de si mesmo. Várias vezes por semana, quando Jean estava no regimento, e ia jantar em casa de seu
capitão, e muitas vezes jantava-se ali com uma senhorita de cerca de trinta anos, bela e sorridente, e que devia a um talento magnífico para o canto e às suas relações
aristocráticas a boa posição que desfrutava, apesar da pobreza, em Orléans. Sua cabeça parecia a de um busto, tanto pela regularidade das feições, pela perpétua
malícia que cinzelava cada traço, salientava as faces, desenhava a boca, como pela generalidade bastante comum de sua fisionomia. Habituada aos cumprimentos, e tendo
por temperamento o costume -de acolhê-los com cepticismo ("É verdade? Pensa isso?" - gracejo de uma pessoa que é espirituosa, e modéstia da que é bem-educada, selo
mundano numa palavra que a província imobilizara), ela redobrava em interrogações desse tipo, ditas em tom faceto que no fundo não passava de fatuidade. Só era engraçado
parecer por em dúvida a sinceridade do cumprimento porque sua legitimidade era evidente. Assim é que nossa expressão habitual e nossa expressão em circunstâncias
habituais revelam a essência do nosso caráter. Oaspecto de um homem na rua é a imagem de sua atitude em face da vida. Ela se mascara sob um ar aturdido, uma atitude
imperturbavelmente majestosa, um ar entediado que o sorriso iluminava por um momento mas que volta logo diante dos que passam.

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X. Velhice dos pais

Agora, a cada ano o Sr. Santeuil deixava mais uma das numerosas funções que tinham ocupado tanto a sua vida. Por um lado, aproximava-se a época da aposentadoria,
por outro o seu suplente, que deveria ser seu sucessor, fazia grande parte do trabalho. Só ao ministério é que ele continuava a ir regularmente todos os dias. Essa
relativa ociosidade, o debilitamento de sua saúde, a necessidade de repouso, sua fortuna, enfim, que dobrara com a morte de sua irmã e do Sr. Lepic, foram os motivos
que fizeram com que o Sr. e a Sra. Santeuil arrendassem uma pequena propriedade situada perto do castelo de Madrid e que dá para o lago do Bois de Boulogne. Todas
as noites, Jean ia até lá para jantar com eles mas, primeiro por causa de Françoise e depois por Charlotte, voltava para dormir em Paris. OSr. e a Sra. Santeuil
tinham mudado muito desde o dia em que os vimos pela primeira vez no jardinzinho de Auteuil, sobre cujas ruínas se erguem atualmente três ou quatro casas de seis
andares, várias das quais já estão alugadas. Pouco a pouco, o Sr. Santeuil perdera a dureza irônica que se desfazia todos os dias com a juventude, as honrarias,
os preconceitos orgulhosos, o positivismo irracional e soberbo que tinham sido as rudes e orgulhosas ilusões de sua vida. Como o fato era tudo para ele, depois de
se haver espantado por muito tempo, acabara por admitir este fato: grandes sábios que tinham idéias religiosas, ministros que achavam esse título ridículo, funcionários

se haver espantado por muito tempo, acabara por admitir este fato: grandes sábios que tinham idéias religiosas, ministros que achavam esse título ridículo, funcionários
de alta categoria e que teriam podido receber outros e que preferiam receber literatos e os tratavam com a máxima consideração. Pouco a pouco, apesar de todos os
seus títulos, passou a preferir pessoas em cuja vida a admiração a um poeta, a conversa de um romancista, a ternura por um filho representavam mais do que a busca
de honrarias e o próprio trabalho da profissão, aqueles a quem chamava de maníacos, e diante de quem se contentava em rir e dar de ombros pois não sabia como falar
com

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eles. Riso que irritava freqüentemente, porque parecia oriundo de força brutal, e que mais tarde sensibilizou Jean muitas vezes à medida que o pai envelhecia, quando
reconheceu que se tratava antes de fraqueza. Freqüentes vezes, irritado ao ver o pai rir de uma coisa que ele, Jean, fazia e que o pai julgava insensata, queria
passar adiante e percebia, pela palidez, o desgosto do pai. Sentiase desarmado, censurava o ter-se enganado com aquele riso, a única arma que o pai opunha às loucuras,
às novidades, a uma forma de compreender a vida que ele não compreendia. Uma arma pobre, que Jean com um movimento de cólera quebrava facilmente. E então, vendo
o pai desarmado, fraco, arrependia-se amargamente de lhe ter quebrado a única e pequena arma, esse riso onde, no fundo, havia bondade, espanto sem orgulho, piedade
pelo que lhe parecia uma loucura, sem que estivesse certo de que não era uma superioridade.

Não mais esperando novos títulos, postos mais elevados, tendo se conformado com o progresso daqueles que foram nomeados em seu lugar, durante as longas horas
em que (coisa bem nova para ele) não tinha nada que fazer, passeando com a mulher à beira do lago desde as cinco horas quando o dia ainda está claro, e freqüentemente
após o jantar, sob as estrelas, invadido por uma felicidade tranqüila à vista desses lugares sublimes, conheceu o que jamais conhecera a não ser às vezes, durante
uma hora, de viagem, nas noites de Estambul ou de Nápoles, aquilo de que tinham sido privadas sua juventude trabalhosa e sua prática e ativa maturidade - os sonhos.
E a velhice foi para ele o que a juventude é para os outros, a idade das ilusões. Sentia-se cheio de doçura para com os outros, doçura que lhe vinha com o enfraquecimento
do corpo, o idealismo melancólico que acompanha, nos espíritos demasiado positivos, a desilusão das realidades; sua afeição pela mulher assumiu um caráter mais pensativo,
voltandose para as recordações e a afeição pelo filho, sonhando quase sempre com um futuro que não mais esperava alcançar, assumiu algo de grandioso em seu desinteresse,
de uma previsão nada me-

lancólica a não ser por causa das grandes possibilidades de desgraça que via na natureza desse filho, em sua saúde, em seu natural triste, em sua prodigalidade,
em sua preguiça, em sua impossibilidade de alcançar uma posição de destaque, no desperdício de sua inteligência, e que estava sereno, embora a idéia de sua própria
morte ali estivesse contida. Então cercou a mulher de delicadezas que não lhe eram habituais. Falava-lhe de seu pai de tal modo que a comovia. Na verdade, da parte
dele, a quem ela tanto amava, e que tão raramente expressava tais idéias, um nada bastava para emocioná-la. Mas alguns sentimentos ganhavam para ele mais valor,
ao passo que certas coisas o perdiam.
Pensou em coisas de que era incrível não risse como se fossem loucuras. Não ousava ficar perto do filho quando devaneava, e agora que, indo do bosque a Paris,
a carruagem passava com freqüência por Auteuil alguns minutos antes de chegar diante da casa de seis andares sob a qual, com seu jardim de outrora, os anos felizes
do Sr. Santeuil e a recordação das duas pessoas que lhe eram tão caras estavam enterrados para sempre, alguns minutos antes, com precisão, utilizando esse conhecimento
de ruas e quarteirões que sempre fascinara a Sra. Santeuil. e lhe parecera ligaàa à queda do marido pela geografia e ao fato de que sabia observar os barômetros,
alguns minutos antes, quando via aproximarem-se as casas vizinhas, algumas das quais tinham conservado seu aspecto, sua velha porta florida de antigamente, seu portão
que abria para o jardim que se afundava em terrenos relvados por entre as aléias arborizadas com uma casinha de jardineiro que dava para ver, velhas casas conhecidas
do Sr. Santeuil, elas próprias tendo ficado ali como para lhes tornar mais sensível a desordem irreconhecível de sua casa e seu jardim, como esses amigos de seus
pais que ainda viviam, no entanto mais idosos do que eles, quando o Sr. Santeuil via se aproximarem essas velhas indicações conhecidas que lhe permitiriam reencontrar
o local daquilo que para a esposa era o mais triste dos túmulos, dizia: "Fecha os olhos." Ela os fechava. Enquanto isso, o Sr. Santeuil olhava, com tranqüila curiosidade,
as casas novas. Espantava-se com as modificações sobrevindas, observava se havia luz elétrica, talvez sonhasse. Dizia: "Mantenha os olhos fechados." Às vezes
ela punha a mão sobre os olhos. Ele

conservara de seu papel de pai de família, de homem acatado, de homem prático, conselhos desse tipo. De outras vezes lhe teria dito: "Não precisas tapar
os olhos com as mãos. Basta fechá-los", e teria dado de ombros, rindo dessa inexperiência,de mulher que.não sabe fechar os olhos.
Irrefletidamente, um dia em que Jean voltava com eles, pelo costume de ter ouvido o pai dizer coisas semelhantes, por lhe parecer prático talvez e sabendo
que a mãe não se zangaria e antes o tefia admirado por ser parecido com o pai, disse: Mas, mamãe, não precisas pôr as mãos nos olhos para não ver, basta fechá-los
bem fechados -, mas o pai o puxou pelo braço para que se calasse e lhe disse baixinho, aproveitando o barulho da carruagem contra o calçamento visto que o cavalo
galopava: - Deixa-a, não percebes que não quer que vejamos que está chorando? - Por fim, dizia-lhe: - Podes abrir os olhos - mas continuando a pensar no jardim de
Auteuil, ele lhe falava de certos dias de outrora, do pai dela. Ela lhe manifestava um reconhecimento infinito por lhe poupar o esforço que teria de fazer para falar
de outra coisa, e aplaudia-o pela precisão de sua memória no que concerma a seu pais como se fosse uma bondade que teria tido para com ela, como se fosse piedade
que tivesse tido para com ambos. Admirava a memória dele como se fosse ternura, o sinal de uma alma melhor, tornava-o como motivo para se humilhar como fazia sempre.
Como invejava a sua memória, ela que tantas vezes passava as noites procurando se lembrar da fisionomia do pai ou da mãe, que na imobilidade da lembrança que guardava
deles lhe escapava, em virtude da própria intensidade de sua ternura! OSr. Santeuil lhe dizia: - Lembras-te de quando teu pai ia encher o copo d'água na fonte e
ali molhava os olhos? - Ela o ouvia com avidez, teria dado tanto para ter um desses copos de que seu pai se servia todos os dias e que guardava na pequena rocha
por cima da fonte, a fim de se assegurar de que ninguém se serviria dele. Quanto a Jean, um de seus sonhos era reencontrar em Auteuil a villa de Montmoreney, onde
ia beber às vezes um copo de água ferruginosa. Pensava nisso com tanta intensidade que voltou a apreciar a água e a bebia à noite muitas vezes em sua garrafa antes
de dormir, prometendo a si mesmo ir

no dia seguinte a essa fonte da villa Montmorency, com a qual enchia, depois de ter deixado correr a água para lavá-lo, a metade do copo que pendia de uma correntinha.

À noite, o Sr. e a Sra. Santeuil levavam Jean de volta à estação de trem e, ao voltarem pelo bosque, passeavam ao longo do lago obscuro, onde às -vezes brilhava
de súbito a brancura de um cisne que dormia ou deslizava sem o menor ruído, dando assim essa sensação tão poética de um movimento vasto e quase irreal, como o que
de uma montanha dá um trem do qual se vê, sem que se ouça nada, a fuga e a fumaça. Essa vizinhança do lago, tão azul durante o dia, e acima do qual tantas estrelas
brilhavam à noite, não contribuía em nada para dar à alma do Sr. Santeuil essa pureza e essa elevação tão lindas. Insensível a quase todos os encantos que hoje vemos,
na natureza, era preciso, para que se emocionasse, estar em presença desses locais tão belos que antigamente o faziam preferir a temporada nos lagos e nas montanhas.
Do mesmo modo dizia: "Um bom tempo", no mesmo sentido do jardineiro que teme a chuva e para quem tudo o que a anuncia é ruim, que não conhece a beleza de um mau
tempo. Não teria achado beleza alguma na chuva, num céu tempestuoso, num dia cinzento, num céu encoberto. Mas uma noite estrelada, um dia de sol, o frescor que se
eleva à noitinha depois de um dia quente perto da água e que parece descrever ao ouvido, sobre o fundo de silêncio, o rumor do remo que ergue a água com regularidade,
tinham para ele uma linguagem sublime que o elevava singularmente.
Às vezes, quando Jean não viera ou partira cedo, o Sr. e a Sra. Santeuil se encaminhavam para o porto onde se aluga uma barca. Levavam tempo para chegar
lá, pois andavam os dois bem devagar agora, a Sra. Santeuil de pernas fracas e o Sr. Santeuil com pouco fôlego. Os movimentos de cada um, pelo menos os que eram
voluntários, pois sem querer a Sra. Santeuil coxeava um pouco e o Sr. Santeuil andava de ombros meio caídos, eram uma série de precauções tomadas a todo instante
e renovadas contra a
fraqueza do outro. Se o caminho se tornava dificultoso, o Sr. Santeuil segurava com mais firmeza o braço da mulher; se o vento soprava, a Sra. Santeuil se punha
adiante do marido para que ele não perdesse a respiração. Porquanto a piedade pelos desgostos da mulher, a solicitude por suas enfermidades, a mesma ternura de ambos
por Jean, e

a desilusão dos prazeres em que ela não tomava parte, tinham levado o Sr. Santeuil. a uma ternura tão atenciosa para com sua mulher como -a que, naturalmente,
ela sempre tivera por ele. E agora era bom vê-los assim aproximados, misturados, confundidos, retorcidos juntos e amparando-se um no outro como duas árvores enlaçadas.
Chamavam o barqueiro, pediam para dar uma volta pelo lago. Uma barca assim alugada custa três francos e é preciso dizer apenas que o Sr. Santeuil jamais a tomara,
ele que achava criminoso pegar um carro quando não se tem muita pressa para não tomar o ônibus. Esses hábitos econômicos que até então jamais tinham desrespeitado,
e que eram necessários para começar a busca, pela Sra. Santeuil, de novos prazeres a fim de suavizar no marido a melancolia da velhice, tinham conservado para eles,
como nos contentamentos inúteis onde só se tem um prazer de bem-estar ou uma satisfação artística, um atrativo para o qual os mais jovens já estão embotados. Quando
punham o pé trêmulo no fundo movente da barca, tinham a sensação de algo perigoso, proibido, extraordinário. Uma barca que se aluga para passeio não é como a balsa
que nos conduz de uma margem à outra do lago, para ir à ilha. A ausência de qualquer objetivo imposto, o poder de fixá-lo e de mudá-lo à vontade, o sentimento da
inutilidade da viagem e de se deixar deslizar unicamente como se deixa correr a voz quando se canta, por puro encantamento, o prazer de roçar as margens, passar
pelas ervas, despertar os cisnes, ouvir bem pertinho a água murmurar tão baixo que, tomados do mesmo respeito, da mesma expectativa, ninguém ousa falar alto - ouvir
o silêncio e ser recompensado ao respirar a frescura ambiente, tais eram os deleites que davam à Sra. Santeuil não a fisionomia despreocupada e feliz daqueles que
são vistos muitas vezes passeando de barco à tardinha, e que cantam ou ficam calados, mas a viva exaltação dessas sensações deliciosas que se traem

por uma expressão arrebatada mas atenciosa e terna, pelo medo de não deixar passar nada. A Sra. Santeuil teria

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preferido as águas mais escuras do lago e as que, comprimidas entre duas margens arborizadas, mergulham entre as árvores como aléias sobre as quais transbordam as
flores e os galhos, e onde a navegação sempre silenciosa e suave é interrompida a cada passo como o caminhar num matagal. Mas o Sr. Santeuil preferia as vizinhanças
da ilha, o reflexo das luzes na água, preferia encontrar o batel carregado de passageiros que aí acabam de jantar ou vão beber, ouvir o piano do salão e às vezes
uma voz cantando uma melodia. conhecida. Então mandava parar o barco e escutava.
Conservara o hábito, que lhe vinha da precisão de seu espírito, da vulgaridade de sua observação e da autoridade de seu caráter, de nomear à mulher as coisas
que apareciam. E, na barca, dizia ainda: - Essas luzes que vês lá adiante são do pavilhão chinês.
Todos estes carros esperam pessoas que vieram jantar na ilha.
Há dois batéis em vez de um, porque é domingo. - Ali, é o novo café que instalaram perto de Armerionville. - Mas, se a maneira de conversar era a mesma,
um novo sentido se insinuara. E essas palavras eram menos, como outrora, a mostra de sua ciência ou a satisfação de sua descoberta do que a notação por meio de signos
de que ele se servira sempre, mas que então empregava por eles mesmos, sensações suaves e quase poéticas que não sabia exprimir de outro modo senão chamando a atenção
para elas. Esses reflexos na água, essas vozes por cima da água, esses movimentos no escuro, prendia-se a eles como pontos de referência para os fatos que eram a
sua razão de ser mas que não explicavam o prazer que achava neles e em busca do qual vinha muitas vezes agora à noite.
Da barca, a Sra. Santeuil lançava um pedaço de pão, partia outro, pegava-o, atirava-o. No momento em que o pão caía mais ou menos no instante em que, a intervalos
igualmente regulares, o remo tocava a água - os patos se precipitavam com grande barulho de água espalhada, cada um tentando chegar mais rápido, levantando vôo sobre
a água e depois caindo, dispersos a nado em perseguição ao pão desaparecido. Depois, ao remo erguido e já caindo de novo, à mão pronta para jogar, eles se precipitavam
de novo. E dir-se-ia, ao ouvir seu vôo que cortava a água em tempos iguais;- segundo a cadência dos remos, que

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era as aves invisivelmente atreladas

aos remos que davam toda a sua força para fazer avançar o barco, puxar a barca. Em momentos assim, vendo de cada lado da barca se arremessarem, se espalharem
e se propagarem não cascatas de gotinhas e sim de asas, de bicos e de gritos, poder-se-ia acreditar que a água, tendo se animado, os remos faziam erguer, de passagem,
numa brisa estridente, uma espuma viva.

Como a pequena lagoa de patos do Jardim d'Acchinatation estremecesse na glória inquieta da noite, a música se pôs a tocar a Estudiantine. Então o Sr. Cravant,
sua mulher e sua sogra, transportados por encontrarem de novo, objeto de atenção fervorosa de parte da multidão, uma melodia que conheciam de longa data e, por assim
dizer, intimamente, que à noite bem quisera muitas vezes se fazer ouvir em seu piano quando estavam a sós, que o Sr. Cravant tratava então sem cerimônia, a ponto
de escutáIa de robe, começaram a ouvir dando sinais de uma satisfação orgulhosa e protetora. E a todo instante, depois de ter concentrado sua atenção inquieta como
se os músicos se fossem enganar, opinavam com a cabeça, parecendo dizer: é bem assim, está bem ele, sempre o mesmo - mesclando a um sorriso aprobatório, que certificava
a exatidão da execução, um olhar comovido que subentendia os méritos de "sua" melodia. Faziam questão de que soubessem que a conheciam, de que mesmo que a melodia
não estivesse na moda a teriam reconhecido, que fazia muito tempo que a conheciam, que a tratavam com a maior intimidade. Davam a impressão de estar cantando sem,
no entanto, deixar escapar sons distintos de modo a inculcar naqueles que lhes ficavam próximos a idéia de que a conheciam. e de não diminuir tal idéia dando detalhes
inexatos dela. Assim, esperavam que a nota aguardada viesse, para inclinarem a cabeça, como essas pessoas que gabam suas,relações com o homem da moda não arriscam
nada, mas quando se diz: - Seus cabelos são bem claros,, poderíamos dizer que são louros - respondem: - Oh! meu Deus, sim, quase louros. Ali, ora bolas, é um bom
amigo nosso. - Assim, a todo

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fim de compasso ou de fraseado, inclinavam a cabeça afirmativamente. Entretanto, a pequena lagoa de patos estava agora em sombras. Sentia-se que os barcos não mais
sairiam hoje, e, lado a lado, como pássaros que

não voltam à terra para dormir, e sim, pousados n'água, aconchegam a cabeça entre as asas, eles se confundiam na escuridão da noite que pouco a pouco os
cobria.

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XI. História de uma geração

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A Sra. Santeuil permanecera sempre, como vemos, a esposa terna, submissa, devotada aos outros e cheia de abnegação que conhecérnos há vinte anos. E, no entanto,
erraríamos se pensássemos que ela também não mudara. Aos poucos esse filho, cuja inteligência, costumes e vida quisera formar, insinuara nela a própria inteligência,
seus costumes e até a sua vida, e alterara os da mãe. Para isso fora necessário que os grandes desgostos de sua vida quebrassem a mola retesada outrora nela e que
em horas de abatimento ela se deixasse levar pela consolação inocente de ouvir o filho, achá-lo espirituoso' mesmo quando dizia coisas que antigamente não teria
admitido que dissesse, ver que ele agradava, fazia sucesso, mesmo esse tipo de sucesso que ela não teria desejado. Em relação aos que o admiravam, àqueles que eram
bondosos para com ele, a Sra. Santeuil experimentava indulgência e simpatia. Entretanto, um era um jornalista que estava metido em negócios meio escusos, outra uma
mulher que tinha,vários amantes. A sábia diplomacia que Jean empregava para dissipar suas repugnâncias a respeito deles era incomparavelmente fortificada por isso:
ela é boa para com o meu filho, ela fala bem dele, defendê-lo-á se o atacarem, e, inconseqüente como é, como poderia não ser atacado, e, fraco como é, tem necessidade
de pessoas que o defendam. Ele é bom para o meu filho, aprecia a sua inteligência, pode lhe prestar grande ajuda. Há vinte anos, a Sra. Marmet veio para pedir informações
sobre uma camareira, procurou não recebê-la, teria preferido fazer uma inimiga para sempre a dar-lhe a mão. Sentiu por ela um desprazer físico. Há dois meses a Sra.
Santeuil aparecera curiosamente em casa de sua costureira e seu olhar acompanhara com suas bênçãos a amiga de Jean. Se Jean a tivesse levado à casa da mãe, não havia
dúvida de que, no aperto de mão, no sorriso e nas palavras, ela a inundasse com essa simpatia que trazia calorosamente no coração há

alguns anos. Se ela não tentou unir-se à Sra. Marmet era para não desviar em seu proveito nada do capital de benevolência de que a Sra. Marmet poderia dispor em
favor dos Santeuil e assim deixá-lo intacto para Jean. Quando muito, teria pedido a Jean que mandassem convidar o pai para os saraus da Sra. Marmet na esperança
de distraí-lo. Certamente não deixara de crer que a Sra. Marmet tivera amantes; mas supunha agora que a malvadez de seu marido e os transportes de seu coração deveriam
ter sido a causa de tudo. Não podemos nos aproximar dos seres mais corrompidos sem reconhecer que são humanos. E a simpatia pela humanidade deles estimula nossa
tolerância por sua perversidade. Ora, a Sra. Santeuil vivia há alguns anos através das conversas de seu filho e o resto do tempo pela imaginação que a seguia docemente
pelo mundo, na sociedade de homens e mulheres pervertidos que o Sr. Sandré teria expulsado de sua casa a bastonadas, sociedade a distância é certo, mas muito mais
perigosa porque a habilidade de Jean e a ternura da Sra. Santeuil por ele dissimulavam-lhe a feiúra e exaltavam-lhé o encanto, como se fossem personagens de romance.
A virtude da Sra. Santeuil certamente não mudara, e sim o seu sentimento a respeito da virtude alheia.
Ao mesmo tempo que esse elemento essencialmente mundano, o enfraquecimento da repulsa pelo vício, a indulgência, outros elementos mundanos se insinuavam
na Sra. Santeuil. Pois os seres humanos não se transformam pela anexação de partes isoladas e colocadas arbitrariamente, como nos jogos ingleses em que podemos colocar
um braço gordo num homem magro, deixando-lhe outro braço magro. Assim é que a Sra. Santeuil, que antigamente se indignara por ouvir um gracejo malévolo sobre um
amigo, ou uma suspeita mal-intencionada relativamente a um desconhecido, ria agora daqueles que Jean soltava constantemente, chegando até, coisa inaudita nela, a
fazer observações descorteses, logo corrigidas, é preciso dizer, por sua bondade. Ela não se espantava mais, já que o vício não lhe parecia tão medonho como o crime,
que o pudessem admitir em tal ou qual pessoa. Nos primeiros tempos do casamento soube que uma mulher, que de fato não conhecia mas que era ligada às suas primas
e pertencia à sua sociedade, tinha um amante. Essa notícia a perturbou mais do

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que se tivesse sabido que seu velho criado assassinara uma mulher. Só pensava nessa mulher com horror. Omarido separou-se dela. Todos em seu grupo se revezavam para
convidar o marido para jantar. E nesse dia não convidavam ninguém mais. Então a Sra. Santeuil pensou nessa mulher com inusitada piedade, como uma pessoa que experimentasse
a maior das desgraças. Mas julgaria trair todos os seus deveres se respondesse ao seu cumprimento na rua. Quando pronunciavam o nome do marido, um sentimento de
piedade, uma simpatia profunda se desenhava nos rostos da família. OSr. Sandré murmurava: "Infeliz." Em todas as casas aonde ele não ia com muita assiduidade antes,
convidavam-no com freqüência para jantar, mas sem outra pessoa, como a alguém de luto e cuja filha se abismasse numa desgraça horrível. Além disso, a Sra. Santeuil
não podia conceber uma idéia tão extraordinária. E acabara por imaginar que essa mulher era louca. Seriam um dia informados de que ela estava internada. De que modo,
nesse momento, a Sra. Santeuil poderia suportar ouvir dizer de uma mulher que se conduzia mal, poderia rir ou gracejar a respeito? Quem sonharia em animar uma conversação
insinuando que um de nossos amigos vive de roubos e assassinatos? Mas quando a idéia do vício nada mais tem de horrível, quando se faz sociedade com ele, falar do
vício já não é tão terrível, e ser amigo de pessoas, visto que é possível ter amigos assim, já não é tão sagrado. A aversão torna-se o compromisso natural entre
a indignação e a amizade.
Com as velhas idéias sobre a virtude das mulheres, sobre a benevolência, ruíram os preconceitos antigos contra artistas e jornalistas. É possível que a Sra.
Santeuil guardasse no coração o antigo ideal de fazer do filho um grande homem de ação. Mas aos poucos a vida a acostumara, mesmo nos pontos em que era mais exigente
em relação ao filho, a se contentar c3m menos. Dava-se conta, agora, de que ele só fazia visitas, freqüentava a sociedade, que o máximo que ainda fazia era compilar,
imaginar, escrever. E se isso fosse tudo o que ela podia obter dele agora, pelo menos deveria tentar obtê-lo. E além disso a sociedade aprecia os artistas e ela
se tornara aos poucos uma mulher de espírito mundano. E, depois, é preciso que se diga, eram todos os defeitos do filho que chegara a amar aos poucos, mesmo se no
principio

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se sentisse chocada. Oamor é o nosso grande iniciador, nosso grande corruptor. Ele nos assimila e nos aliena. Ela se tornara igual ao filho. E se vocês imaginam
que a Sra. Santeuil era uma mulher diferente de qualquer outra, que em nenhuma ~outra, mesmo que procurasse desde a criação do mundo até o seu fim em todos os Continentes,
o filho teria podido encontrar uma mulher que a lembrasse, ela possuía de algum modo as idéias, os preconceitos, as virtudes, a compostura, os costumes e os hábitos
de todas as burguesas de sua geração e de todas as classes sociais fechadas que não conhecem o luxo e o relaxamento dos costumes.
Se imaginam que seu filho se assemelhava a todos os rapazes de sua geração, e que todos exerceram mais ou menos sobre os pais uma ação semelhante, imaginarão
que este capítulo, talvez aborrecido como capítulo de romance, seria instrutivo como capítulo de história. Opensamento é uma espécie de telescópio que nos permite
ver espetáculos distantes e enormes. Sabem que os atos de um dia começam ou denotam hábitos, os quais preparam ou registram mudanças no indivíduo. Mas as mudanças
no próprio indivíduo, essa revolução que p ensani ser a maior, não passam de uma pequena porção das transformações da espécie que ali podem ver. Onde quer que tenhamos
posto a vida, onde quer que tenhamos conhecido nobres como o duque de Beauvisage, que tiveram filhas como a duquesa de Réveifion e netos como Henri, ou burgueses
como o Sr. Sandré, que tiveram filhas como a Sra. Santeuil e netos como Jean, aí chegamos a ver a história fazer-se à nossa frente, isto é, a espécie humana se modificar
em duas gerações, tal como não podemos ficar à beiramar alguns minutos a olhar a onda se erguer, lançar-se para diante, recuar e recomeçar, sem ver, marcada pelas
próprias ondas que pareciam não ser mais do que ondas, relacionadas apenas com a que precedia e a que se seguia, a indicação aparentemente mais vaga, mas no fundo
mais certa, mais ampla, da maré. E até lá onde o mar parecia mais forte, lá onde um rochedo parecia quebrar cada onda, o avanço da maré foi o mesmo. Assim, não sei
que juízo vocês farão dos homens, se foi a fraqueza da Sra. Santeuil e da duquesa de Réveillon por seus filhos ? ue deixou desaparecer essa geração, ou se a lei
dessas gerações e a de se deixarem dominar suavemente pela que vem antes delas,

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como a vaga se inclina acariciadora sob a que se debruça alegremente sobre ela e a reduz, aqui a fraqueza da Sra. Santeuil, apesar de suas promessas, ali a fraqueza
da duquesa de Réveillon, apesar de seus preconceitos. Talvez as gerações lhes pareçam mais importantes que as classes. E como num museu os retratos de um homem do
século XVII, seja um autor cômico ou um rei, espantam-nos por sua semelhança, encontrarão menos diferença entre o Sr. Sandré e o duque de Beauvisage do que entre
o Sr. Sandré e seu neto. Talvez, pelo contrário, da Roma antiga à Paris do século XIX, vocês achem que o patrício não mudou nada. Talvez também as classes e as gerações
não lhes sejam de muita importância. E o que fará a verdade do caráter de Jean ou do duque de Beativisage lhes parecerá consistir, para os senhores, numa espécie
de lógica sentimental, que é como a essencia comum da humanidade através dos séculos. Diz-se "nobre de 1830", diz-se "jornalista de 1880", mas, como o químico que
sabe que o enxofre e o fósforo se combinarão eternamente nas mesmas proporções, voces so verão, no fundo de tudo isso, os sentimentos.

Eis as reflexões que me demorei a fazer ao olhar a Sra. Santeuil, que volta a pé com o marido, falando de Jean, em direção ao chalé do Bois, ao passo que
o mesmo Jean, numa rápida carruagem aberta, retoma a Paris para dormir com a amante. Olho a Sra. Santeuil. Num mundo onde tudo é diferente, do mais simples ao mais
elaborado, mas onde tudo se repete e se complica, o enfraquecimento do seu andar, o peso e a debilidade de seu corpo estão em harmonia com essa diminuição de sua
energia moral. Mas as mudanças de que falamos realizarse-ão nos filhos de seu filho, se os houver, talvez no fato de que seu filho não tenha filhos, e não nela.
As mudanças do indivíduo se consumam na espécie, mas o indivíduo permanece ligado à sua natureza primitiva, na medida em que ela está inscrita, por assim dizer,
nos traços de sua fisionomia boa ou má, de seu corpo obstinado ou indolente, e esse corpo nos hábitos de sua família como a ostra em sua concha, e a concha no ro-

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chedo. Pôde-se ver que a esp-'cie ostra se torna por transformismo a espécie borboleta, mas um indivíduo ostra está sempre morto sobre o rochedo onde o ligava a
concha da qual não podia sair sem morrer. A concha da Sra. Santeuil era o seu corpo, os choques da vida puderam avariá-lo, fazê-lo perder o luxo brilhante que encantava
outrora; a forma permaneceu a mesma.
Ao primeiro instante, é talvez a fraqueza ou a deformidade que nos choca na Sra. Santeuil. Aproximem-se mais, é ela, é seu pai, é sua mãe, é seu filho. É
ela, sobretudo. E se somos tentados a crer que, nessa lenta infusão de idéias novas que notaríamos em breve, seu espírito se enriqueceu, olhemos no entanto esse
passo abandonado ao de seu marido com a confiança do amor, embora procurando conluzi-lo com o zelo da caridade. Ele disse uma palavra: - Gostaria de andar ainda.
- Ela não sabe se está cansada. Diz: - Pois bem vamos caminhando busca encontrar um caminho mais longo, um lugar onde passear. Ela não tem mais outro desejo. Mas
olhem: eles param logo. OSr. Santeuil calculara mal as suas forças, encontraram um banco e se sentaram. A Sra. Saitteuil diz: - Mas também, sabes, é porque caminhamos
muito -- pois não quer deixar que ele adivinhe seu pensamento: que (le não é mais capaz dos esforços de antigamente, que está envel iecendo. Então ao passo que ele
resfolega, ela vê à sua frente, olhando-o (enquanto ele não a vê), esse corpo que a cada dia se curva, torna-se mais impotente, os cabelos que ficaram mais brancos,
ela o envolve com um olhar infinito de ternura e desespero, e sacode a cabeça crispando a boca para não deixar passar nenhuma lágrima. Já é demais para ela esse
lamento impotente e apaixonado pelo que se vai. Teme que o marido se aborreça, comece a falar da satisfação de Jean durante o jantar, "como é gentil", pensando que
o orgulho pelo filho o distraia. Nesse momento, ela nem sequer pensa mais no pai e na mãe mortos, como durante as longas tardes em que o marido não estava ali e
era mais jovem. Ela tem um dever mais urgente. A tristeza só faria bem a ela. Aí então ela pode se tornar útil.
Essa mulher permaneceu a mesma e suas idéias novas não puderam modificá-la por dentro, não foram essas novas idéias que o fizeram. As idéias que nutriram
sua mudança foram aque-

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Ias com as quais a velhice sombria do Sr. Sandré irritava a adolescência de Jean, muito semelhantes às suas, e sem se prestarem muito às diversas formas que a sabedoria
pode revestir. Vocês devem estar lembrados. Na sociedade que elas encerram como as estátuas de deuses cercavam o lar romano, a mulher adúltera não entra jamais,
seria expulsa a pedradas. Ali não se admitirá o poeta, é preciso dizer que ali não se admitirá o ator. Ofilho, se se faz ator, seria lançado pela janela. Dali não
se sai, ali não se entra de carruagem, assim como não se muda várias vezes de vestido e se gasta pouco dinheiro. Um gasto, uma generosidade, uma fantasia, são ali
crimes, provocam a cólera. Um casamento de amor, isto é, feito por amor, seria considerado como prova de vício. Mas o amor segue o casamento e dura a vida inteira.
E nenhuma mulher deixa de amar seu marido tal como não deixa de amar sua mãe. Não achar seu marido inteligente, mesmo quando não é, pareceria alguma coisa tão bárbara
como não querer beijar a mãe porque ela é feia. Essa casa em que Jean Santeuil nasceu, onde cresceu, onde fez tantas coisas, aonde trouxe tanta gente, ou, pelo menos,
faz tolerar tantas coisas e amar tantas pessoas que não é mais a mesma, olhem-na uma última vez. Pois, por mais que a humanidade recomece, é a casa antiga. E, nesse
momento, vejo algumas que se fecham porque todos os moradores estão mortos, outras que se arruínam porque os que as habitavam estão na infância, outras,que são demolidas
- não vejo que as reconstruam. E me pergunto para qual mulher, cuja casa será inteiramente de móveis ingleses, que só permitiria a entrada daqueles que, como ela,
têm casas e gostos estéticos, ou que oferece almoços para condessas e pintores, seu pai e sua mãe, seu marido e seu f;lho serão tudo. Não posso deixar esse par unido
sem outra escolha que as conveniências burguesas da posição social e as conveniências superiores da honra, mas unido até a morte. Ouçc a Sra. Santeuil e seu marido
que discutem um acontecimento ]e que foram informados pelo jornal de manhã. E compreendo lue essa mulher que se matou ontem depois do amante é a mesma que conhecia
a prima da Sra. Santeuil e que lhe inspirava tanta indignação. Se ela mudou de opinião acerca das mulheres que se comportam mal, não mudou a respeito desta, porquanto
fazia parte de sua vida de anti-

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gamente. Julga-a segundo as suas idéias antigas. Um francês estabelecido entre os muçulmanos habitua-se aos costumes dos muçulmanos, mas, se volta a encontrar um
francês, descobre num átimo a moral francesa para julgá-lo. Considero, por essa opinião, que ela estava louca. E me pergunto se esse preconceito não era tão inteligente
como a tolerância a que a habituaram. É verdade que, quando seu marido morrer, ela sem dúvida não se matará, mas morrerá de desgosto. Mas não, ela não se deixará
morrer se ainda tiver o filho. Aliás, entre essa morte voluntária e a de pequena burguesa de outrora que deixou o marido pelo amante, não existe relação alguma.
Perguntem antes a Jean, que bem sabe que a mãe nunca deixou de agir em função do dever. Nem perguntem nada. Se eu soube descrevê-la, já o devem ter percebido.

E, quando caía a noite, o Sr. e a Sra. Santeuil já tinham entrado em casa, de onde não viam mais o resto da vida. Se Jean, à hora de comer, depois de ter
atravessado a sala de jantar na luz espalhada que a lâmpada renovava a todo instante, entrasse no quarto da Sra. Santeuil para lhe dizer alguma coisa, como Tétis
visitada por seu filho Aristeu no fundo das águas onde, sobre um rochedo, ela entretece suas grinaldas, a Sra. Santeuil aparecia sentada sob a luz que enchia a peça,
ocupada em escrever ou bordar, e deixava as ondas da luz suave e abundante brincarem nos seus cabelos, fazerem resplandecer seti belo rosto. Diante dela, como as
fontes que bem no seio da água lançam um jato mais intenso, a lâmpada jorrava continuamente uma luz mais rápida cujas ondas abrandadas iam mais longe encher a peça.
Ele se aproximava, e, na luz que não os desunia, beijava a mãe. Sabia que o pai, no quarto ao lado, lia perto do fogo ou sentado à escrivaninha, também sob a luz,
e às vezes se erguia, pois o escutava ir à escrivaninha e classificar papéis, mas não ousava entrar lá e mal sabia como era esse quarto por tê-lo vislumbrado no
momento em que, ao passar, sua mãe abria a porta.
Um quarto, aliás, ele levou muito tempo para saber que se tratava de um. Chamava-se "a sala das tapeçarias", como a outra era "a sala de jantar", e a outra
"a biblioteca". E de fato

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cada uma lhe parecia uma coisa à parte,. ele não tinha idéia de que pudessem existir salas idênticas em outras casas. Uma ou duas vezes na infância, fora brincar
em casa de amigos onde tudo lhe pareceu maior, mais suntuoso e mais triste, e aí vira erguerem-se à sua frente outros móveis, como monstros estranhos de pé sob a
luz da lâmpada, abrirem-se outros quartos como antros misteriosos. Em sua própria casa, quantos havia em que quase nunca entrava, ou que ficavam às escuras à tardinha,
como se tivessem sido abandonados. As tapeçarias da sala das tapeçarias, os grandes jarros e a pêndula do quarto da mãe pareciam-lhe fazer parte de sua pessoa; e,
quando mudaram alguma coisa nos quartos, e ele viu no salão as armações vermelhas nas paredes nuas, e na sala de jantar as dez cadeiras góticas de couro substituíram
as quatro cadeiras de veludo, ficou espantado como se essas divindades gigantescas enfeitadas de bordados, diante das quais se erguiam jarros que ali estavam imóveis
há tanto tempo, que eram mais velhos que ele, diante das quais, todas as noites, a lâmpada que traziam projetava o mesmo clarão, ou, todas as noites, a lâmpada que
retiravam depois do jantar deixava sozinhas as mesmas sombras e, um instante após, à noite, não pudessem resistir, como enormes mas imóveis estátuas de esfinge,
ao que removia de cima delas a frágil mão humana.
0 jantar ainda não fora servido. OSr. Santeuil lia o jornal no salão. À sua frente, a Sra. Santeuil parecia dormir. - Dizem que o coronel Picquart ficará
talvez cinco anos preso na fortaleza - comentou o Sr. Santeuil. - Oquê? - gritou a Sra. Santeuil levantando-se com vivacidade. - Acalma-te - disse o Sr. Santeuil
ironicamente à mulher, cujo rosto, tornando-se de súbito como o de um doente que sofre, permanecia contraído, e que passava as mãos nos olhos como para não mais
ver o que a horrorizava tanto, como para apoiá-las contra a face, fazer entrar dentro dela, através da pele, a revolta que a encrespara. Se vissem apenas sua boca
apertada, as sobrancelhas franzidas, poderiam pensar estivesse exposta ao tormento de um mal. Mas a tristeza desanimada que lhe vinha dos olhos não deixava qualquer
dúvida sobre a natureza desse mal. Era essa tristeza que seus próprios males não podem excitar nessas almas apaixonadas que então, pelo contrário, se prendem a uma
doce resignação.

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Era essa tristeza que só os males alheios nos inspiram e que, ternura impotente e ferida, jorra, lança-se na direção dos que não pode alcançar, sobre quem gostaria
de se espargir em bemestar, alívio e consolação. A dor da Sra. Santeuil. era tão viva que ela não teve forças para responder com um sorriso ao gracejo do marido:
- Vamos, acalma-te. - Sem isso, foi assim que respondeu, pois, não se dando importância alguma, e admirando muito o marido, mantinha bem viva sua moderação para
não se insurgir contra nada pelo exemplo que teria de seguir, e nem levava a dor profunda que experimentava nesse instante ao ponto de um exagero censurável. No
entanto, ela não podia deixar de desabafar e de gritar seu desprezo pelos que torturavam o homem cuja coragem e generosidade ela admirava com tanto entusiasmo, sem
conhecê-lo. OSr. Santeuil deu de ombros. E, pela ternura que lhe votava, pela admiração por sua calma filosófica, e pela humildade para consigo mesma, sorriu dessa
vez: - É idiotice o que estou dizendo. Não, mas é que percebo bem que agora nada os deterá mais, eles se julgam os mais fortes - acrescentou com tristeza.
Os mais minuciosos arquivos dessa época não mencionam nenhum ato da Sra. Santeuil, onde parece, ter-se realizado essa ternura incessante que a menor ameaça
de infelicidade, a menor esperança de consolo, de suave emoção para com os seres pelos quais sentisse uma simpatia fraterna encontrasse ao mesmo tempo tão vibrante.
Seu nome não está inscrito entre os presidentes e vice-presidentes, nem entre as damas patrocinadoras de obra alguma. Ela jamais assinou apelo a nenhuma mulher francesa,
não esteve em nenhum hospital para tratar dos doentes. E até, restringindo-se como o fez à vida obscura da família, não deixou, na escolha do marido por exemplo,
ou não se casando por não encontrar um marido "corn suas idéias", qualquer testemunho das generosas aspirações de seu temperamento, como certas mulheres que por
uma escolha estrepitosa, procurando fora de seu meio um marido artista ou humanitário e cujo casamento tem por pedra angular não o total de dois dotes equivalentes
ou a associação de duas posições sociais que se atraem, e sim um mesmo amor pela música de Wagner ou o mesmo zelo ardente de emancipar a mulher ou de se ocupar com
criancinhas

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cegas. Tais moças mostravam desde a juventude muitos indícios de um casamento semelhante, indícios que assumiam a forma de toaletes extravagantes ou descuidadas,
de saídas a sós ou com amigas unidas no mesmo amor da música e no mesmo desprezo da vida burguesa, saídas não para fazer visitas onde esperam os salgadinhos banais
e a conversa iletrada, e sim para ir ao Louvre, à Sorborme ou talvez ao anfiteatro de dissecação. Tais moças dão, na escolha de seus esposos ou na virgindade desdenhosa
de todos o~ partidos, um sinal de seu espírito elevado. Amigas pouco inteligentes comentam gracejando os seus noivados que se realizaram em Bayreuth e seu apartamento
de casadas onde se diz que existe um órgão mas não uma cozinha, os dias que, os esposos passam juntos nas minas a socorrer os mineiros, enquanto outras tomam vivamente
a sua defesa e deixam transparecer a admiração que lhes inspiram, e não dissimulam que, se suas mães e as conveniências não as forçassem, seria esse o gênero de
vida que teriam preferido. Mas a Srta. Sandré, quando casou com o Sr. Santeuil num momento em que seus olhos riam mais freqüentemente com uma espera confiante ou
uma alegria maliciosa, e que não descaíam na sensação dolorosa do mal que outros sofriam, não o escolhera absolutamente como o fizera a Srta. Saintré ao Sr. Maindant,
porque ouvira falar dele como vivendo, apesar de sua grande fortuna, entre os operários cuja vida tornava mais bela tocando-lhes César Franck, dando-lhes reproduções
de Botticelli. E, mais tarde, a Sra. Santettil não tentara de modo algum conformar o Sr. Santeuil ao seu ideal, e sim buscara ser-lhe o mais útil e o mais agradável
possível, dando jantares quando ele gostasse, a fim de que o creme de morango fosse feito da maneira como preferia seu amigo Dester para que ele tivesse o prazer
de vir jantar com freqüência, e mais tarde, quando o Sr. Santeuil estivesse cansado à noite, ficando junto dele, tendo-lhe coisas que lhe agradassem, escrevendo
suas cartas.

Todos os homens morrem, e assim que o maior é pequeno, diz a voz do povo, já que é desse modo que ele alcança o infinito e o nada. Pela idéia da morte, ou
pela chegada da morte, abre-se,

na alma mais obscura ou mais estreita, um dia misterioso para o infinito.
Jean ergueu a cabeça e viu que a mãe olhava o Sr. Santeuil sem dizer palavra. Por alguns instantes, sem dúvida, como muitas vezes depois do jantar, o velho
adormecera. Suas sobrancelhas estavam franzidas, a boca fazia beicinho, mas agora que ele não estava mais olhando não se lhe descobria o sentido, que se adivinhava
escondido sob as pálpebras bem fechadas dos olhos, e o rosto inteiro ficava impressionante e obscuro, como uma intenção firme mas impenetrável. Ouviam-se regularmente
o fluxo e o refluxo de sua respiração. Ruído que não era organizado por nenhuma idéia nem produzido con.fQrme algum desejo, que não era uma palavra nem um canto
e sim um ruído surdo que ressoava sem se ouvir, próximo e misterioso como o rumor das ondas do mar sobre a areia ou do vento nas folhas. Jeart e sua mãe continuavam
a olhar o Sr. Santeuil sem falar, sem ousar entreolhar-se, cada um temendo, sem dúvida, achar nos olhos do outro a idéia de que um dia o Sr. Santettil nunca mais
despertaria. Não mais adormeceria. Pois sentiam que esse sono era ainda a vida, talvez mais que a vigília. Nesse momento em que essa vida que deveria um dia abandonar
o Sr. Santeuil o possuía ainda e, sem que ele tivesse consciência disso, dava impressão de ser ainda maior que quando estava desperto, visto que sua vida fechada
parecia mais do que a emanação de seu pensamento e de sua vontade. Sim: uma coisa grande e poderosa, e o Sr. Santeuil semelhava apenas um joguete frágil, inconsciente
e gasto, mas sobre o qual ela velava enquanto ele dormia. Enquanto o não deixasse, ele podia ter confiança, abandonar-se. E, com efeito, seus braços pendiam mais
inertes ao longo do corpo, as bochechas brancas caíam agora sem expressão ao longo da boca frouÁa. A cabeça do Sr. Santeuil e abaixava cada vez mais, enquanto o
peito se erguia regularrr --nte, agitado como uma coisa inerte pelas ondas da vida que o conduziam e vinham se quebrar tão perto de Jean e de sua mãe com rumor igual.
Eles não podiam desviar os olhos desse espetáculo cego da vida onde sua força explodia ainda mais. E o ruído regular continuava sempre. Trabalho de vida e de morte,
a obra do tempo não se detinha.

11 - ~ -A*'

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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA LINO
LIVRO SIC COMPOSIÇOES GRÁFICAS LTDA.
E IMPRESSA NA PORTINHO CAVALCANTI
EDITORA LTDA., PARA A EDITORA NOVA
FRONTEIRA S.A., EM AGOSTO DE MIL NO
VECENTOS E OITENTA E DOIS.

Nffo encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso Postal à
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Que DEUS dê vida longa aos meus inimigos e invejosos para que aplaudam em pé a minha vitória
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