terça-feira, 29 de janeiro de 2013

{clube-do-e-livro} Vizinhos no Cativeiro - Giovani Rostirolla anexo

Giovani Rostirolla

VIZINHOS NO CATIVEIRO

PORTO ALEGRE 2009

Carlos é um homem de princípios. Um empreendedor nato, bom pai e cidadão respeitável, mas tudo isso será jogado para o ar e ele descobrirá da pior forma possível
que não é mais condutor do seu próprio caminho.
Neste romance de Giovani Rostirolla, cada capítulo merece ser lido com olhos atentos. Cada parágrafo reserva uma nova possibilidade e cada linha um novo ponto de
vista. Resta a Carlos chegar a seus limites e reinventá-los. Convido o leitor a fazer o mesmo e procurar nas atitudes de Carlos os seus próprios limites.
Vizinhos no Cativeiro é para quem gosta de emoções fortes e não se assusta com as surpresas que o comportamento humano esconde. Nos melhores gestos podem estar as
piores consequências. Nas melhores escolhas, as ações mais cruéis.
Descubra o que a vida escolheu para Carlos e envolva-se neste enredo de acontecimentos inteligentemente encadeados. Nas palavras do próprio autor: a hora da análise,
pureza, amor e autoconhecimento está suspensa. Boa leitura.
BODAN CHILANTI


Naquela quarta-feira tomei café com a minha família como sempre fazia e fui trabalhar na minha empresa de roupas e acessórios de luxo, aberta por mim há mais de
dez anos, já com sete filiais pelo Brasil. Sentia-me um homem de sorte por chegar aos quarenta, onde muitos questionam suas escolhas, tão satisfeito com as minhas.

Antes de sair de casa, beijei a minha esposa, Isabela, minha filha mais nova, Laura, com cinco anos, e meu filho de sete, Lucas.

- Carlos. - Disse Isabela. - Lembra de passar no supermercado e comprar a calabresa, é só o que falta. - Para a janta, iríamos fazer pizza com os nossos filhos.

Nunca fui de me ater aos meus instintos ou intuição. Confio no que intangível e palpável. Acho que por isso, naquele dia, não percebi nada diferente. Talvez um pouco
de ansiedade pelo telefonema que o gerente da minha conta havia me feito à tardinha no dia anterior, mas o trabalho havia me acostumado a buscar soluções para problemas,
e eu me sentia apto a resolver aquele.

O que eu não fazia ideia era que em poucas horas o meu mundo seria virado do avesso e a intensidade desta experiência me levaria a questionar minhas escolhas, prioridades
e crenças.

Depois do café em família, trabalhei normalmente durante a manhã e ao meio-dia voltei para almoçar com a minha mulher e filhos. Quando saí de lá para encontrar
o gerente do banco, deparei-me com o meu vizinho no pátio a minha espera.

Há mais ou menos meio ano ele havia se mudado para a minha rua, a duas casas ao lado. Tudo que eu sabia dele era da festa anual realizada pelo condomínio onde todos
falam de todos. Ele era viúvo e parecia estar na casa dos sessenta anos. Tinha cabelos grisalhos, um físico elegante e uma atitude vivaz. Ele deve ter respondido
muitas perguntas naquela noite, porque é o único encontro que temos com os condôminos e serve justamente para fofocas posteriores.

Um mês depois do encontro, uma amiga de minha esposa, que parece ter recolhido as informações sobre o "recém-chegado" por todo o condomínio, veio a nossa casa e
falou admirada do novo morador. Isabela escutava com alguma atenção enquanto eu me ausentei do ambiente. Mais tarde, Isa me contaria.

O que dizia respeito ao comportamento eu já havia percebido durante a festa. O Senhor Enzo era uma pessoa muito educada e distinta. Na ocasião, no meio de tantos
estranhos, enxeridos ou não, se mostrou muito tranquilo, atencioso e respeitador. Veio até mim em um momento elogiar a minha esposa e dizer que tinha se encantado
pelos meus filhos. O que mais eu poderia querer ouvir? Retribuí a delicadeza não lhe perguntando sobre sua vida e dizendo-lhe por educação que a minha casa estava
aberta para ele. Não fôssemos vizinhos, talvez eu tivesse interesse em conhecê-lo.

Contudo, o que a Senhora Lurdes veio nos dizer, e que sinceramente não me importava, era sobre os seus "atributos sociais". Disse-nos que era viúvo e que havia vendido
sua empresa de revenda de carros por um valor elevado. Que veio do interior para a capital para ficar perto de seu único filho e que, com o dinheiro que havia ganho
pela venda, pensava em montar um novo negócio. Imaginei quantas perguntas indiscretas meus vizinhos devem ter feito para tirar essas informações de um homem como
aquele.

Fechei a porta de casa e o cumprimentei. - Bom dia, Enzo! Tudo bem?
- Perguntei estranhando ao vê-lo no meu jardim.

- Tudo. Vim lhe pedir um favor, Carlos.

- Claro. O que houve?

- Você trabalha perto da prefeitura, não trabalha? Ele precisava de uma carona. Logo hoje! - Trabalho.

- Eu tenho que passar lá, se você puder me dar uma carona... Não gosto de ir de carro para o centro.

Depois de seis meses de vizinhança, aquele era o seu primeiro pedido. Eu não podia negá-lo. Respondi torcendo para que ele mudasse de ideia. Posso sim, mas tenho
que passar no banco antes; pode levar uma meia hora. Tem problema? - Sabia que poderia demorar mais, mas se eu lhe falasse, pareceria má-vontade. Qualquer coisa,
ele pegava um táxi de lá.

Não tem não. - Ele deve ter pensado que a meia hora se tratava de dez minutos. - Aproveito e levo uma conta que tenho.

Durante o caminho jogamos papo fora. Conversamos sobre negócios, falamos generalidades sobre família e, ao final do percurso, eu estava surpreso pela naturalidade
com que levamos a conversa. Fora os vinte anos que nos separavam, parecíamos ter muito em comum.

Estacionei a quinze metros do banco. Eu começava a ficar ansioso para conversar com o gerente e resolver logo o mal-entendido.

Foram raras as ligações que ele havia me feito, e nesta, em particular, ele logo me passou para o gerente-geral daquele banco. Este me perguntou se no último mês
eu havia retirado somas maiores da minha conta. Respondi que não, que os débitos permaneciam os mesmos e que, como de costume, continuava a investir nela. O gerente
me passou confiança e tranquilidade e disse que seria bom eu visitá-lo no banco para entendermos o que havia acontecido. Na hora, acreditei tratar-se de um engano,
mas à noite não consegui deduzir que tipo de engano poderia ser aquele. Será que alguém estava me roubando? Eu estava ansioso para descobrir.

Saímos do carro e cinco metros à frente paramos em um paquímetro, onde minha ansiedade se mostrou evidente quando deixei cair na calçada a moeda que tinha em mãos.
Após colocar o bilhete do paquímetro no carro, entramos no banco.

Vinte metros do banco, estavam estacionados dois carros civis, com dois policiais no veículo mais próximo e três no outro. Havia poucas pessoas na rua. O banco
se situava em um bairro nobre e atendia apenas a clientes selecionados.

A vigília ao banco começara ao meio-dia. Os homens nada falavam entre si, mas às treze horas tal silêncio foi quebrado pelo ocupante do carro mais próximo ao banco.
- E ele. - Ouviram no rádio os integrantes do outro veículo. - Onde? Perguntou um deles. - Na frente do paquímetro. Estão vendo? Ele acabou de deixar cair uma moeda.

Novamente o policial do carro mais afastado e que parecia superior na patente respondeu. - Não temos identificação daqui. A decisão é sua. Você tem certeza? - Afirmativo.
E ele. - O superior no comando decidiu. Vamos entrar.

Um minuto depois dos dois suspeitos entrarem no banco, os carros de polícia com as sirenes ligadas subiram a calçada em frente. Logo, todos os clientes que estavam
dentro do prédio viram o que estava acontecendo e se alarmaram. Quatro dos policiais entraram no hall do banco e, mesmo com vidros à prova de bala e a porta rotatória
que os separavam do restante dos clientes, conseguiram falar aos dois seguranças que sacassem suas armas. Imediatamente um dos policiais gritou pelo local onde os
pertences metálicos são passados e com esmero conseguiu ser ouvido pelas pessoas, que, devido às sirenes e ao burburinho, lhe prestaram toda atenção.

- Apenas os seguranças têm autorização para se movimentar; os demais clientes e funcionários devem permanecer onde estão.

Todos, exceto os seguranças, ficaram imóveis. Um medo contido se instalou entre os presentes. Olhavam uns para os outros procurando quem deles os policiais estavam
procurando. Novamente o policial falou.

- Agora, quem estiver com material portátil, como bolsa ou pasta, não as toquem. Esperem pelo meu sinal para as largarem no chão. Não peguem
nada nos bolsos ou casacos, não mexam dentro de seus pertences. "Todos entenderam? - O policial aguardou que as pessoas mostrassem que haviam entendido. Ao todo
se tratavam de doze pessoas. O policial continuou, desta vez se dirigindo aos seguranças:

- Nós não podemos lhes dar cobertura neste momento; então, lhes peço atenção total. - Os vigias sinalizaram positivo com a cabeça.

O policial voltou a falar com os demais. - Façam o menor movimento possível que tudo vai ficar bem, acreditem. Agora... Larguem os seus pertences. - O nervosismo
aumentou naquele momento, mas para os que tinham pertences e não pretendiam usá-los, foi um alívio livrarse deles. O pedido foi atendido por todos, mas aquilo ainda
não os punha livres de perigo.

O policial pediu a um dos vigias para se aproximar mais da parede de vidro onde são deixados materiais metálicos. Ao chegar no local, o segurança lhe perguntou apreensivo.
- O que está acontecendo, senhor?

- Eu sou o delegado Matias, e há sete meses eu e a minha equipe investigamos uma quadrilha que assalta bancos e, infelizmente, acreditamos que um dos integrantes
esteja aí dentro. É possível que outros dois também possam estar, mas não estamos certos de suas identidades.
- Para o outro segurança, distante uns quatro metros, que até então olhava para os clientes procurando algo que os denunciasse, o policial Matias falou assim que
acabou a conversa em particular com o primeiro vigia. - Peça para colocarem as mãos na cabeça. - O vigia atendeu, e o policial continuou sua conversa em particular.
- Depois de eu lhe falar onde e como está vestido o integrante de que temos conhecimento, peço que seja discreto para identificá-lo. Se denunciar-nos mostrando que
sabemos quem ele é, isso poderá nos criar problemas. Então olhe para todos antes de identificá-lo. Tudo bem?

Pode deixar.

- Ele é o terceiro da esquerda para a direita, bem-apessoado, vestindo uma camisa amarela.

O segurança olhou para todos, depois avisou que o havia visto.

O policial Matias continuou. - Você e o seu colega ficarão à esquerda dele, a três metros de distância. Assim darão cobertura a minha equipe. O segurança balançava
a cabeça em sinal de entendimento. - Nós
entraremos e nos encarregaremos de revistar o restante do grupo. Você consegue fazer isso?

- Consigo.

O policial Matias olhou para os seus colegas e disse: - É agora, pessoal. Podem entrar. - O segurança liberou a porta rotatória, permitindo a entrada dos policiais.
Depois seguiu ao local combinado.

Enzo e eu, logo após termos entrado no banco, ouvimos sirenes do lado de fora. Em seguida, quatro policiais entraram, pediram que ficássemos imóveis, depois que
jogássemos o que tínhamos no chão. O Enzo estava carregando uma pasta e atendeu ao pedido. Olhei para todos pensando se um deles estava armado ou pretendia fazer
algo. Exceto o Enzo, todos me pareceram suspeitos e a qualquer hora eu os imaginava tirando algo do bolso e nos fazendo reféns.

O segurança está conversando com os policiais. Imagino que recebendo instruções sobre o que fazer. Estou com as mãos sobre a cabeça, e o que me resta é apenas torcer
para que tudo dê certo. Vejo os policiais passarem pela porta rotatória e sinto que estamos mais perto de um final feliz. Dois vigias e dois policiais apontam a
arma para um senhor a minha esquerda, os demais policiais vigiam o restante.

- Eu quero que o senhor continue com as mãos na cabeça e se vire de costas para nós. - Disse um dos policiais. - O homem obedeceu dizendo que aquilo era um engano,
que haviam pegado a pessoa errada. O mesmo policial deu ordem para que os seguranças o botassem de peito no chão e com as mãos para trás. Os dois seguranças atenderam
o pedido e estão com os joelhos em cima do homem, imobilizando-o, enquanto os dois policiais dão cobertura por trás. Graças a Deus isto logo acabará!

Um dos policiais fardado falou aos seguranças: - Vocês dois olhem para nós agora, não façam movimentos bruscos. - Os vigias o olharam e o policial continuou: - Eu
e os meus três companheiros estamos com as armas apontadas para vocês. Vocês não precisam morrer. - Os seguranças, como nós, não compreendiam o que estava acontecendo.
Até que o "policial" falou: - Isto é um assalto. Ninguém se move, ou nós seremos obrigados a atirar.

Neste momento todo o grupo baixou os seus gorros sobre o rosto.

Todos nós ficamos perplexos e sem reação. Acho que, como eu, os demais clientes esperaram por uma nova informação que restabelecesse a realidade em que desejávamos
ainda estar. Não foi o que aconteceu.

Os vigias, ainda espantados com o que estavam ouvindo, demoraram até responderem ao que lhes foi pedido. Eles seriam rendidos! Enquanto os "policiais" desarmavam
os vigias, eu ainda tentava entender o que estava acontecendo. Talvez ainda me perguntando qual dos clientes queria assaltar o banco.

O líder, do que, tardiamente, nós entendemos se tratar de uma quadrilha, falou:

- Mantenham a calma. Estamos assaltando o banco, não vocês. Colaborem e sairão daqui andando. Eu peço que todos se dirijam para aquela parede. - Nós seguimos para
o lado onde são passados os materiais metálicos, o mesmo local que havia servido para um dos vigias receber suas instruções. Ficamos longe das mesas ou de qualquer
outro objeto. Só então pude perceber que o som das sirenes não existia mais e que o banco estava com suas portas fechadas.

Os clientes que estavam nas caixas eletrônicas agora estavam sendo trazidos para se juntar a nós.

Dois do grupo ficaram conosco, enquanto o gerente era levado aos fundos do banco pelos demais.

Os dois que ficaram estavam com duas malas, que durante a confusão haviam passado despercebidas. Abriram uma delas e começaram a tirar algemas.

Eles revistaram as pessoas em busca de celulares e depois as algemaram com as mãos para trás. Em seguida prenderam o antebraço direito de um ao antebraço esquerdo
de outro com o que parecia ser um robusto lacre plástico, formando assim uma fila de algemados.

Eu fui o primeiro e o Enzo, que estava do meu lado nesta hora, foi o seguinte. Quando acabaram, disseram que ficássemos ali parados. Vi o gerente voltar dos fundos
com um dos assaltantes e pegar um CD e um molho de chaves de uma escrivaninha. Um daqueles que nos cuidava pegou as duas malas e foi para os fundos após todos nós
estarmos presos uns aos outros.

Menos de cinco minutos se passaram até que todos voltassem, e eu demoraria todo o dia para entender o que havia acontecido.

Os três voltaram dos fundos agora com quatro malas cheias. Eram malas maleáveis, que provavelmente estavam entupidas de dinheiro.

O líder deles trouxe o gerente, já algemado, para o nosso grupo, Prendeu-o a uma senhora que estava no meio da linha de pessoas que as algemas haviam formado
e o algemou a um cano de aquecedor próximo a nós, ao nível do chão, que o fez ajoelhar. Depois se dirigiu a mim e ao Enzo. Eu não podia acreditar...

- Escutem bem o que eu vou falar. Qualquer sinal de não colaboração será corrigido com tiro. Acreditem. - Toda minha atenção ficou voltada para ele. - Nós sairemos
daqui como policiais que atenderam a um chamado de socorro e, para isso, precisamos que existam bandidos. Concordam?
- Continuamos parados olhando para ele. - Bem, vocês dois serão estes bandidos. - Levamos um susto enorme naquele momento, que logo foi substituído por puro medo.
- Não se preocupem. Dez quadras daqui nós os liberaremos. - Não tivemos reação nenhuma, o que o fez continuar. Isto não é um pedido. Vocês podem sair como bandidos
comportados ou resistentes, o que influenciará se serão liberados por nós daqui dez quadras ou não. O que acham? - O assaltante falou com uma serenidade usada ao
ensinarmos filhos a escolherem o caminho certo, mas sem a complacêntia dos pais. Rapidamente respondemos-lhe mostrando as algemas que uniam o Enzo ao restante do
grupo.

Saímos do banco como ladrões. Não havia nenhum veículo nas calçadas e nenhum barulho de sirene. Depois de fecharem a porta do banco, eles nos levaram a um furgão
estacionado a dez metros dali. No pára-brisa traseiro tinha um adesivo escrito: polícia civil.

Na rua, havia apenas uma meia dúzia de curiosos que testemunharam a agitação.

Infelizmente, eles reagiram aplaudindo a nossa "prisão".
E entramos em um furgão, onde cobriram nossos rostos com um capuz. Nem eles nem nós falávamos, mas depois de algum tempo percebi que as dez quadras prometidas há
muito haviam passado. Perguntamos o que estava acontecendo e fomos ameaçados; quando insistimos, eles nos agrediram. Evidentemente, o que quer que disséssemos não
faria com que aqueles homens mudassem os seus planos. Então, sem opções, me mantive em silêncio. O Enzo pareceu pensar o mesmo.

Depois de umas duas horas de viagem o carro parou. O líder apenas nos disse que conversaríamos em seguida. Outros dois nos arrancaram do carro e nos levaram para
dentro de uma casa, onde tiraram o nosso capuz. Pelo barulho de pássaros e pelo cheiro do ar, a casa se localizava no campo.

Lá dentro, percebi que tinham duas salas distintas que davam para a frente da casa. Ao final delas, veria adiante, havia um corredor que separava a casa em dois
lados e que se estendia até os fundos, terminando em parede. Fui levado em direção ao corredor e pude ver que nele existiam duas portas à esquerda. A primeira dava
para um banheiro e a segunda, para uma ampla cozinha. Pude ver que, apesar de a casa ter sofás e cozinha mobiliada, não era uma casa onde alguém morava. Faltavam-lhe
tapetes, quadros, fotos, qualquer coisa que a fizesse um lar.

Do lado direito do corredor havia outras duas portas de madeira, desta vez fechadas. Uma no início dele e outro bem no final. Percebi que o meu destino era a última
porta.

Enzo e eu estávamos nitidamente abalados e a tranquilidade com que eles agiam e nos conduziam me deixava ainda mais preocupado.

Estranhei a porta abrir para o corredor e me assustei ao ver que, atrás dela, havia ainda outra porta, desta vez feita de grades de ferro. Imediatamente entendi
que se tratava de uma cela. Foi aterrorizador! Em seguida nós fomos empurrados para dentro dela.

O Enzo, antes de mim, perguntou ao que nos guiava. - Alguém vai nos explicar o que está acontecendo? E recebeu de resposta: - Sim, o senhor Matias lhes explicará
quando achar necessário, mas lembrem: Isto não é uma prisão. - Fez uma pausa. - Aqui vocês não têm direito algum. Então, por favor, não nos peçam para lembrá-los
disso...

Eu estava perplexo e o Enzo não podia me dar respostas. Fiquei olhando em volta, não acreditando no que estava acontecendo. Havia dois colchonetes com uma coberta
e uma muda de roupas em cada. A cela tinha um tamanho semelhante ao do meu quarto. O reboco estava à vista e existia uma abertura com grades a uns dois metros de
altura do chão, na parede que dava para os fundos. Para todo lugar que eu olhava eu me desesperava ainda mais. Não devia ter passado nem meio minuto desde que eles
haviam nos deixado quando abrimos, quase que juntos, a outra porta que tinha na cela.

Ela ficava na mesma parede da porta gradeada, à direita, e dava para um banheiro sem ventilação.

Desolado, fiquei com os meus pensamentos, que, depois de um tempo, se mostraram insuficientes para me responder uma simples pergunta: Por que eu estava ali? Tendo
visto todo o local, só o que eu sabia é que nós não havíamos sido levados para lá por engano. O que quer que tenha acontecido, trazer precisamente duas pessoas para
este lugar estava dentro dos planos.

- Enzo?

- Oi, Carlos. - Me respondeu claramente abatido, sentado em um dos dois colchonetes delgados que tínhamos.

- Você tem ideia do porquê estamos aqui?

- Não. Você tem? - Falou meu vizinho, mostrando-se surpreso e, ao mesmo tempo, controlado. Na verdade, aguardávamos mais informações para avaliar a situação.

- Também não, mas não estamos aqui por acaso. - Eu disse.

- Percebi. - O Enzo fez uma pausa e logo em seguida me mostrou que estava disposto a encarar com sobriedade a situação. Em uma conversa futura me explicaria o porquê
dessa sua atitude desde o primeiro dia. "Controlamos aquilo que podemos controlar e nos adaptamos àquilo que não".
- Ainda não conseguimos entender por que estamos aqui - continuou -, mas com o que temos, já podemos tentar entender com quem estamos lidando. Concorda?

- Continue, Enzo.

- No caminho até aqui fiquei pensando no roubo para deduzir se eles pretendiam nos matar ou apenas nos soltariam mais longe. Concluí que não seríamos mortos. - O
pensamento racional, naquele homem, e quero acreditar que posso me incluir, predominava sobre o emocional. - Com a organização que o grupo demonstrou, eles não vão
aumentar as suas penas e a repercussão do assalto, se isso não for extremamente necessário. Pense no roubo. Quanto tempo de planejamento!? - Enquanto o Enzo falava,
eu me mostrava de acordo com a conversa e com as suas suposições. O que mais nos restava fazer? - Ao chegarem com as sirenes ligadas, sentíamos que havia algo de
errado, mas que a ajuda já estava lá. Provavelmente nenhum alarme deve ter sido acionado. Qual o propósito? Ao pedirem para os seguranças sacarem as armas, induziram
todos a legitimar as suas intenções de ajudar-nos.

- Cada passo que eles faziam dava suporte ao passo seguinte.

Exatamente! Planejamento... Com excelente execução. - Por segundos Enzo abateu-se, depois desabafou baixo: - Mas que droga! Falou exteriorizando a nossa evidente
frustração.

- Eu não ouvi sirenes durante o assalto. Você reparou? - Perguntei levando a conversa adiante, ignorando o sentimento de impotência, já que ele não nos seria proveitoso.
Como de costume em situações difíceis, eu buscaria forças para não me abater.

- Não reparei.

- Quando eles já estavam dentro do banco as sirenes cessaram. O risco que eles correram de, por acaso, polícias estarem de passagem por ali foi pequeno e ainda deve
ter durado apenas dois ou três minutos.

- Alguém tirou os carros do lado de fora... - Percebeu Enzo.

- Sim. O que nos diz que no mínimo eles estão entre cinco ou seis... Provavelmente matar ou render polícias que prestassem ajuda estava dentro do planejado.

Pela cela, já sabíamos que havia alguma razão para estarmos ali. Nós dois tínhamos alguma serventia para eles.

O que quer que esteja acontecendo, o nosso valor não é de refém de um assalto. Fomos sequestrados! - Assumiu Enzo com tristeza na voz.

- Você acha que é possível que eles tenham assaltado e sequestrado na mesma tacada?

- É muito possível. - Ao ratificar em palavras o meu medo, Enzo pôs fim a nossa conversa. Nenhuma informação cedida por nós poderia aliviar o outro. Sobrou para
cada um ficar com os seus pensamentos. Quando percebi que pensar na minha família me fazia mal, resolvi mudar de foco. O único foco que a minha atenção concordou
em atender era sobre a minha situação, o bando e aquele lugar, que agora eu já podia chamar de cativeiro. Foi o que fiz.

Oito horas após nossa chegada, o Senhor Matias foi nos ver, já havia anoitecido.

Assim que ouvimos que alguém estava abrindo a porta de madeira da nossa cela viramos o rosto para a parede contrária. Uma porta gradeada interna ao quarto ainda
nos separava do homem.

- Boa noite, senhores. Podem se virar. - Após ouvi-lo, expus em forma de pedido uma preocupação particular minha e do Enzo. - Senhor Matias, por segurança não queremos
ver o seu rosto. No banco estávamos apavorados e mal pudemos vê-los. Sabemos da fisionomia de vocês tanto quanto as pessoas que deixaram no banco. - Na verdade,
até pouco antes de eles colocarem os gorros que deixavam à mostra apenas a boca e os olhos, eu estava mais preocupado com os clientes ao meu lado do que com o grupo
de "policiais". Imagino também que o gerente deva ter sofrido alguma ameaça que o convencesse a entregar todas as gravaçoesdos vídeos de segurança. Eles não cometeriam
o erro de deixarem uma gravação que os identificasse.

- Fiquem tranquilos. Se vocês cooperarem voltarão para suas famílias. Agora peço que se virem.

Eu estava com medo, mas respondi com a voz firme. - Só lhe faço este pedido. É apenas um pedido, não uma negociação. Entendemos que é de nosso interesse colaborarmos
com o senhor. - Falei não só usando a razão, mas a verdade. Eu faria o que ele mandasse. Orgulho e princípios, já há oito horas, eu entendia serem privilégios das
pessoas livres.

Então comecem a fazer. Se virem agora.

Nós o atendemos lamentando o fato e foi um grande alívio quando vimos o mesmo gorro do Banco cobrindo o seu rosto.

O Senhor Matias continuou. - Mais calmos? Agora me escutem. Vocês sairão daqui vivos, como eu já disse; basta mostrarem boa-vontade. Na verdade, muita boa-vontade.
Tudo bem?

- Tudo. - Dois homens maduros e que até horas atrás também eram independentes responderam como se estivessem no colegial.

- Bem, vocês ficarão por aqui por pelo menos quatro meses. - Falou com indiferença, apenas relatando o que aconteceria. Eu simplesmente não pude acreditar. O pavor
se instalou em mim, controlando a minha mente por segundos até que voltei a uma lucidez que desejava rejeitar. Não era possível. De um pesadelo eu passava para outro.
Minha ânsia somava-se agora à agonia, e esses sentimentos pareciam querer sair pelo meu peito.

Minha vontade era de começar a chorar, como há muitos anos não fazia, e não parar mais. Aquele homem conseguira me fazer querer voltar a ser criança, espernear e
só parar quando alguém me atender. No entanto, saber que nada abrandaria aquela situação me foi útil e ajudou-me a conseguir aguentar na garganta e no osso o que
ouvira.

Matias continuou sereno ao nos falar, porém acrescentou um suspiro de impaciência por não termos contido por completo nosso sentimento. Vou lhe explicar. Do banco
hoje levamos, além de dinheiro, jóias. Pretendo daqui a dois meses começar a vendê-las e preciso da sua ajuda. - Falou perceptivelmente se dirigindo a mim. No momento
eu olhava para o chão, mas imediatamente o olhei nos olhos.

- Como eu posso ajudá-lo? - Disse surpreso.

- Você não estava no banco por nada. Ligamos para você ontem.

Matias aguardou um momento para que eu entendesse sozinho. Rapidamente percebi o que havia acontecido. Ninguém estava me roubando. Por isso o "gerente da minha conta"
me passou tão rápido para o seu superior... Meu Deus! Eles esperavam por mim hoje. Onde eu entro nessa história?

- Boa notícia, não? Ninguém está lhe roubando. Nem vai. Mas preciso que me ajude a vender estas jóias no mercado. Disse dois meses para começar porque acredito que
menos que isso chamará atenção. Fique a vontade para discordar, mas também fique ciente de que o meu fracasso será pago com as suas vidas. Podem acreditar. Também
acreditem que, no sucesso, ganharão elas.

Graças a Deus eu já havia assimilado minha impotência e em que lugar ela me colocava.

- Parte do meu negócio gira em torno de pedras preciosas. Posso ajudá-lo, sim. Eu comprava e vendia roupas e acessórios de luxo; dentre eles, relógios, pulseiras,
anéis e colares.

- Que prontidão... Bom sinal! Espero que aja à altura. Ao senhor Enzo... Você entrou de carona nessa história por duas simples razões: Primeira: para não chamar
atenção do porquê Carlos ter sido escolhido, se é que isso criaria alguma suspeita.

O senhor Matias voltou a se dirigir a mim. - Seu envolvimento com jóias é secundário, discreto, estou certo, senhor Carlos?

- Posso chamá-lo até de terciário, apesar de conhecê-lo muito bem. Eles haviam me escolhido pelo meu envolvimento com jóias não chamar atenção, visto a extensão
dos meus negócios.

- Que bom para nós! Foi sorte sua, Carlos, ter vindo com alguém no banco; assim desfruta da companhia de um amigo aqui. E quanto a você, Enzo, a segunda razão de
sua presença é de grande interesse ao senhor e também mais importante para nós. Você será, dentre outras, uma das moedas de negociação com o Carlos, já que ele próprio
eu não posso matar. Espero que o ajude a colaborar. - Falou contundentemente.

- Lembre do valor dele, Carlos, aqui você não vai ter mais nada. Na verdade os deixarei ficarem com o relógio, para o bem-estar de vocês, e ganharão algumas revistas
após cada transação. Coisas desse tipo. Por eu querer que você mantenha o discernimento, não lhe tratarei como alguém que eu tivesse sequestrado. O tratarei como
um preso em uma prisão modelo, mas cuide para não perder isso. Mais alguma pergunta?

- Sim. - Enzo respondeu lendo a minha mente. - Nossas famílias vão pensar que aconteceu o quê conosco?

O Senhor Matias falava sempre como se tudo isso se tratasse de apenas um negócio. - Pensarão que vocês estão mortos. A polícia logo encontrará o furgão que usamos
na fuga; dentro encontrarão uma pá suja e as digitais de vocês no veículo. Mas pensem positivo: se vocês saírem daqui vivos darão o maior presente que as suas famílias
abastadas já receberam. Caso não saiam, pelo menos eles nunca saberão pelo que passaram. - O Matias sorriu. - Senhores... Por hoje é isso. Agora descansem, por favor.

- Me desculpa, Senhor Matias, mas gostaria de lhe fazer uma pergunta. - Disse Enzo respeitosamente.

- Fale.

-Ao invés das jóias, por que não pedem resgate as nossas famílias? Eu tenho muito dinheiro, grande parte com liquidez.

Sabíamos fragmentos de informações a respeito deles e foi com estes fragmentos que Enzo se baseou para propor um novo negócio. Se o Matias optasse pelo pagamento
de resgate, mais cedo ou mais tarde a polícia entraria na negociação e muitas vezes é ela que acaba por garantir a vida dos sequestrados. Poderia ser a única chance
de sairmos vivos. Admirei a atitude e a coragem do meu vizinho, mas nós estávamos mal-informados.

O Senhor Matias pareceu não gostar da pergunta. - Senhor Enzo, me decepciona vir de você uma pergunta dessas. Um homem com a sua formação. Que saiu de uma família
do campo e venceu em uma cidade próspera do interior.

Haviam passado apenas oito horas, e ao falar informações pessoais de Enzo, mostrou-nos os recursos de que dispunha.

- O que vocês podem me dar em dinheiro eu conheço, mas não é metade do que posso ganhar com a ajuda do seu amigo e ainda é imensamente mais arriscado. Percebi que
a minha educação foi mal-interpretada pelo senhor e isso criou a necessidade de uma nova apresentação. - Respirou fundo, dando sinal de que algo de ruim viria. -
Pois bem, para serem eficientes, é necessário que trabalhem como uma dupla e que esta dupla seja disciplinada. Saibam desde agora que o erro de um é pago pelos dois.
Falarei apenas uma vez e torço para que me atendam de imediato; depois os deixarei sozinhos para conversarem. Venham até a grade e ponham suas mãos para fora. O
desrespeito de vocês será repreendido com um choque, mas não se preocupem... Não mata. O Senhor Matias passou a outro homem um aparelho semelhante ao utilizado para
autodefesa.

Obedecemos ao pedido sem mesmo nos olhar. O homem se aproximou de mim, e eu estranhei, ao ouvi-lo baixinho, me pedir desculpa. Imediatamente depois, atendeu a ordem.

A força do choque foi tremenda. Caí sentindo todos os meus músculos se contraírem. Minha cabeça bateu com força no chão frio de cimento e
enquanto eu ainda me retorcia e sentia a saliva escorrendo pelo canto da boca, ouvi o berro do Enzo e o seu corpo caindo ao meu lado. Com os meus olhos próximos
ao piso, fui invadido por um sentimento avassalador de solidão.

Mais de vinte dias haviam se passado. Nós estávamos barbudos e eu me sentia física e mentalmente bastante envelhecido.

Por falta do que fazer, acabei por gastar muita energia analisando o lugar. Meço tudo o que se tem para medir utilizando a minha altura de um metro e oitenta e o
meu palmo, que tem vinte e dois centímetros.

Nossa cela é quadrada, com quatro metros de lado. O banheiro tem dois metros de extensão por um e vinte de largura, com um vaso e uma pia direcionados um à frente
do outro e um chuveiro ao fundo. As duas portas ficam na mesma parede e são paralelas ao corredor da casa, que passaria sobre o nosso banheiro se continuasse até
os fundos.

As paredes têm quase três metros de altura e, na parede que dá para os fundos, há a abertura para a entrada de ar com duas barras de ferro verticais, com um palmo
de distância entre elas.

Essa ventilação, há muito, já chamamos de janela e mais tarde se tornará alvo da nossa atenção. Ela tem trinta centímetros de altura, sessenta de comprimento e dois
tijolos deitados de profundidade. As paredes eram como dois muros colados!

A janela se inicia aproximadamente a dois metros do chão e, no nono dia, sabíamos disso pela data que o meu relógio informava; começamos a estipular horários para
que um levantasse o outro para apreciar o mato. Em média, são três vezes por dia, uma por turno, cinco minutos cada. De roupas, temos duas mudas; de objetos, apenas
colchonetes e cobertas.

Comemos duas vezes ao dia. Chamamos de guardião o único homem que ficou conosco. O mesmo a nos aplicar o choque no primeiro dia.

Tomamos conhecimento de sua presença aqui apenas na entrega das refeições; no resto do tempo o único barulho que ouvimos era o feito por nós e pelos pássaros.

A comida é servida quente e farta. Comemos o que ele comeu no dia, esporadicamente a sobra do dia anterior. Geralmente arroz e feijão.

Quando recebemos purê ou um bife, como há três almoços, é motivo de festa para nós.

Evidentemente, durante este tempo, eu e o Enzo criamos um grande vínculo, mas o processo não foi fácil, nem se consolidou de um dia para o outro.

Após a primeira e única conversa que tivemos com o Matias, vieram três dias sombrios para nós. Começamos a digerir o que havia acontecido conosco e não demorou para
que isso nos desestabilizasse.

Nosso primeiro dia aqui foi silencioso, depois emitíamos pequenos resmungos, até que a frustração acumulada nos pediu para ser liberada, no caso, no outro. Discutimos,
nos alteramos e por um breve momento, que mais tarde foi corrigido com desculpas, o Enzo insinuou que eu deveria ter suspeitado do "gerente" do meu banco.

Um homem admirável, que, como eu, perdeu o controle de si depois de perder o da situação.

Foi durante os períodos menos atribulados, quando compartilhamos conceitos de família, nossas expectativas e planos antes do cativeiro, que conseguimos ver além
de nós para enxergarmos o outro - o que nos uniu.

Além da vida em comum que descobrimos ter, estarmos juntos na pior situação em que qualquer um de nós já se encontrou, criou-nos uma forte conexão.

Os três primeiros dias se passaram e, a partir deles, mais três vieram até nos sentirmos mais próximos do que éramos antes deste episódio.

Causou surpresa constatarmos isso. Menos que uma semana! Como poderíamos ter voltado ao normal? Não nos preocupávamos com nossa família? Não tínhamos apego à vida
que nos foi tirada? Certamente eu me preocupo com a minha família, passo horas pensando no que devem estar sentindo e com certeza sofro pelo que me é privado. Só
que depois de alguns dias sombrios vivendo esses sentimentos algo mudou.

Foi em determinado momento do sexto dia que, racionalmente, decidi me apegar àquilo que eu ainda tinha e consegui isso de forma pouco convencional: imaginei-me como
morto.

Permiti supor que algo houvesse dado errado durante o assalto e que, como consequência, eu tivesse morrido.

O que fiz em seguida foi comparar a minha suposta morte com a realidade em que me encontrava. Como diferença fundamental,
identifiquei a minha vida e as esperanças que eu ainda tinha. Foi assim que encontrei o lado positivo de estar aqui: eu ainda estou vivo!

Além de fazer tudo que está ao meu alcance para ajudar a quadrilha, e por consequência me ajudar, não cabe mais a mim outra responsabilidade. Ao aceitar isso, senti
que conseguiria viver melhor com o tempo que me fosse dado. Como se antes de morrer eu tivesse recebido o direito de olhar para a minha vida, avaliar o que fiz e
me despedir dela. E, ainda, se o pro metido acontecesse, eu estaria psicologicamente saudável para retornar a minha família.

Ao decidir descartar os meus martírios e me fixar no que eu ainda tinha, me permiti também sair do luto. Contudo, este pensamento racional precisava estar alinhado
com o emocional para se fazer valer. Daí a segunda mudança ocorreu espontaneamente.

O meu próprio corpo me socorreu e me induziu a sair da fossa.

Vi que a frustração ou a alegria encontram dificuldades de se perpetuar por ser desgastante demais para o corpo suportar estados emocionais extremos por muito tempo.
O corpo não aguenta! Então, alguns dias após eu viver intensamente a depressão do meu sistema hormonal, senti que ele estava se reequilibrando independentemente
da minha situação.

Eu já conhecia essa tendência do corpo de voltar para o estado emocional que estamos acostumados a ter. Falei muitas vezes sobre ela em palestras a empresários,
mas sempre chamei a atenção pelo seu lado negativo.

Quando vamos atrás de melhorias para nossa vida, frequentar uma academia, iniciar um bobby ou se entusiasmar por um negócio, nossas vontades se encarregam de nos
proporcionar hormônios que viabilizem a tarefa.

Essa disposição permanece conosco por algum tempo, às vezes uma semana, às vezes um mês; contudo, mesmo racionalmente estando satisfeitos por estar fazendo o que
nos propomos ou com a sensação boa da endorfina após uma sessão de academia, o corpo tende, e faz isso com força e tempo considerável, a nos trazer de volta ao quadro
hormonal a que ele estava acostumado antes de nossa investida. Como se ele estivesse viciado naquela composição, mesmo que a atual nos faça melhor.

Saber dessa armadilha faz a diferença quando nos propomos a sermos melhores, a nos sentirmos melhores. Porque quando este mecanismo natural for acionado, ter consciência
que não foram os nossos objetivos que
deixaram de valer a pena, nem que foram supervalorizados anteriormente, mas sim que é o corpo viciado na composição hormonal anterior que está agindo, esclarece
o que estamos passando.

A mudança continuará um desafio, mas ele terá um novo rosto: Permanecer tempo suficiente em nosso projeto até que ele se torne um hábito.

Todavia, desta vez o mecanismo estava a meu favor, já que ele havia ajudado a me reerguer.

Foi assim então que, depois de inúmeras palestras, de derrotas e vitórias travadas com ele, talvez eu tenha entendido o seu propósito de existir. Esse regulador
hormonal havia me auxiliado a me reestruturar depois de uma crise.

Então, com a minha razão e emoção restabelecidos, senti confiança que eu faria o que estivesse ao meu alcance para me salvar e, ao mesmo tempo, decidi aceitar, dentro
do possível, o que eu não podia mudar.

Em breve eu seria recompensado por me propor a buscar e a manter o equilíbrio psicológico logo no início.

Pela manhã raramente conversávamos, e no almoço daquele dia também pouco falamos. Mais tarde seguiríamos o silêncio matutino como icgra por enquanto o fazíamos por
instinto de preservação ou bom senso. Começar cedo o diálogo poderia nos deixar saturados dele antes do final do dia. Então, se fôssemos conversar, iniciávamos a
conversa, sabiamente, a tarde ou à noite. Enquanto isso, no turno da manhã, nos concentrávamos em exercícios físicos.

Começávamos o dia com alongamentos. Seguíamos parte da manhã fazendo abdominal, apoio e outros similares. Nós pulávamos corda sem corda, lutávamos com o ar e fazíamos
polichinelos até não conseguir mais. () Enzo, com seus sessenta e dois anos, aguentava muito bem, mas geralmente era o primeiro a cansar e entrar no banho. Neste
tempo eu voltava para os abdominais.

Pela permissão de ficarmos com o relógio, podemos acompanhar o aumento gradual do tempo das atividades físicas, além de permitir saber mos em que dia estávamos na
semana e no mês. A situação era muito difífil, mas, por eles precisarem da minha sanidade, pelo menos eu tinha o relógio, o banho e a companhia do Enzo. Também,
depois do choque, não recebemos nenhum tipo de agressão física ou emocional.

Durante os exercícios, tínhamos a autorização de não deixar cair a moral um do outro; então, quando um se abatia ou percebia o quão ridículo podia ser aquilo, o
outro cobrava a continuação dos exercícios. Alguns destes precisavam de nós dois para serem realizados, além do ambiente ser muito pequeno para abrigar humores opostos.

Nossos últimos objetivos eram a saúde e os músculos. O que buscávamos era a quebra do tédio, da falta de propósito. Em última análise, havíamos criado um hobby,
cuja razão de existir não ultrapassa a função de nos distrair, e, no nosso caso não seria exagero, de nos manter lúcidos.

Depois do almoço cada um deitava na sua cama e a partir dali a autopiedade e o sofrimento ficavam por responsabilidade de cada um.

Normalmente eu dormia cerca de uma hora com ondas de pesadelos em torno da vida do Lucas, da Laura e da Isabela. Quando acordava, geralmente eu e o Enzo nos entretíamos
conversando um com o outro.

Apesar do meu esforço contrário, a todo momento eu pensava nos meus filhos e na minha mulher. Como eles estariam? Como seria a vida deles caso eu morresse? Pensava
nos meus filhos não me tendo ao lado durante as suas futuras perdas e conquistas. Sentia uma vontade insuportável de abraçá-los...

- Carlos? - O Enzo me chamou, após a sesta, me desviando um pouco do meu sofrimento. Ele estava deitado em seu colchonete coçando a barba com os olhos voltados para
o teto.

Fala, Enzo.

- Como é que você conheceu a sua esposa? - Enzo perguntou sem rodeios.

Por que o interesse?

Curiosidade. Você parece louco por ela.

- Quer mesmo saber?

- Claro.

Olhei para ele, talvez procurando por um olhar que me incentivasse, mas percebi que ele não tinha a intenção de parar de olhar para o teto. Foi neste momento que
eu entendi que a intimidade que tínhamos era tamanha que nossas conversas não mais necessitavam de uma razão ou justificativa para ser iniciada, tampouco de atenção
visual. Voltei então o meu olhar para o mesmo teto e lhe contei a minha história.

- Foi há treze anos. Nós dois tínhamos vinte e oito. Há quatro ela tinha se formado em Direito. E eu há cinco em Administração. Nos encontramos em uma festa na casa
de um amigo em comum. Havia umas trinta pessoas. Eu tinha acabado um namoro de um ano fazia seis meses e estava me envolvendo com uma mulher atrás da outra na época.

- Oh, coisa boa! - Comentou com saudosismo e suavidade, e eu concordei sorrindo.

- Eu estava aproveitando ao máximo a minha vida de solteiro, e aquela noite era apenas mais uma que eu faria. Na verdade, só entendi que aquela fase havia terminado
depois de estar há um mês com a Isabela.

- E o que houve na festa?

Ri por me lembrar do que eu tinha feito naquela abençoada noite.

- Eu estava com mais dois amigos conversando e decidimos sentar com o grupo da Isabela. Fiquei interessado nela, mas na hora de sentar acabei do lado de outra.
Meu amigo, que tinha namorada e estava apenas nos acompanhando, foi quem sentou ao lado dela. A conversa de todos logo se tornou de duplas. Só no final consegui
recuperar
um pouco a atenção da Isabela, mas em resumo ela tinha conversado a maior parte do tempo com este meu amigo e parecia ter se interessado por ele. Eu fiquei vidrado
naquela mulher de cabelos castanho-escuros, extremamente lisos, olhos verdes vibrantes e boca bem delineada. A festa continuou e o nosso grupo se separou do dela.
Eu não me contive e logo em seguida conversei com ela e, junto com as suas amigas, ela me disse que estavam indo embora. Então, as parei como pude e lhes disse que
nós havíamos gostado de conhecê-las e que queríamos pegar os seus telefones para combinarmos um encontro. A ideia foi bem recebida, já que os dois grupos haviam
nitidamente gostado de se conhecer. Minha esposa - e eu brinco com ela até hoje, estava interessada no meu amigo e eu sabia disso. Então, fiz uma pequena troca de
números. - Eu e o Enzo tiramos o olhar do teto e sorrimos um para o outro sabendo que entraria uma traquinagem na história.

- Que troca, Carlos? - Enzo falou rindo.

- Lhe dei o meu número no lugar do número do meu amigo. - Sorri com gosto de criança, mas desejo de adulto.

E daí? - Perguntou Enzo.

Era difícil de deduzir? Assumi uma postura mais séria para explicar melhor; não queria passar a ideia errada. Fiz aquilo como uma brincadeira, mas objetivando uma
mulher, não a brincadeira em si. Continuei minha história, mas, claro, não esquecendo também de sua graça.

- E daí que quando liguei para ela uma semana depois, no seu celular apareceu o nome do meu amigo. Ela até me chamou uma vez de Fábio e eu continuei sem corrigi-la.
A convidei então para sairmos apenas nós dois. Falei que os meus amigos não poderiam naquele final de semana, mas que eu fazia questão de vê-la. Ela aceitou. - Nesta
altura o Enzo e eu nos acomodamos sentados no colchonete.

- Seu filho da puta! - Falou Enzo, estimulando a narrativa.

- Dois anos mais tarde eu estava casando com ela, Enzo. - Me defendi.

- Mas você me disse que só decidiu isso mais tarde.

Vacilei um pouco. - E verdade! - Novamente risadas. Daquelas que homens e mulheres só dão quando estão falando do sexo oposto.

- Antes de sair liguei para o meu amigo dizendo o que faria. Um pouco talvez para eu mesmo não me levar tanto a sério e não me machucar caso eu caísse de queixo
no chão. Acabei acompanhando as risadas dele. Então, comprei um buquê discreto de rosas, me vesti adequadamente e fui buscá-la para jantar. Eu ria de mim mesmo dentro
do carro. Quando cheguei, a vi na portaria do seu prédio. Ela parecia uma princesa ali parada. Estacionei na frente e saí do carro, cuidando para que as rosas saíssem
antes de mim. Não queria dar brecha para ela pensar que aquilo não se tratava de um encontro. Quando ela viu que não era o Fábio, mais tarde me revelou, tomou o
susto da sua vida, mas conseguiu se segurar. Dei a volta no carro, a beijei no rosto e lhe disse como estava linda. Ela agradeceu as flores, eu abri a porta do carro
e nós saímos para jantar. A noite foi maravilhosa. Ela me encantou com a sua conversa e charme e vimos que tínhamos tanto ideias em comum, como objetivos. Depois
de uma semana ansioso pensando se daria certo, no final da noite, fui atendido quando ela me permitiu beijar a sua boca. Meu coração disparou! Mais tarde, quando
estávamos nos despedindo em frente ao seu prédio, já fora do carro, ela me demonstrou a honestidade com que em todos estes anos eu pude contar.

- Carlos, quero lhe dizer uma coisa... Eu me confundi na hora de anotar o telefone de vocês, e hoje, quando esperava por este encontro, eu pensava que viria o seu
amigo. - Ela me falou isso segurando nas minhas mãos, demonstrando que o que quer que ela havia pensado não importava mais. Eu lhe dei mais um beijo na boca, olhei
para os olhos dela e lhe respondi: Eu sei disso. - Depois sorri um pouco preocupado. - Te explico no próximo encontro. - A abracei e lhe falei no ouvido. - Vou cuidar
para eu ter sido uma boa troca. - E já que eu estava ali por perto, aproveitei e lhe dei um último beijo. - Enzo, que praticamente me conheceu aqui, em uma condição
de impotência, me olhou admirado.

- Mas que história, Carlos!

- Eu gosto dela. - Muito tempo havia passado desde aquilo e eu chegava a estranhar o fato de um dia ter me apresentado a Isabela. Parecia que
minha vida tivesse sido sempre ligada a ela ou a sua espera. Com a minha esposa desfrutei da maior e mais bela intimidade que tive com alguém. Dentre os amigos que
fiz, ela foi a melhor. Dentre os amores, o maior. Saí do devaneio e voltei à conversa. - Mas por que a curiosidade, afinal?

- Tenho interesse nesses dias. Dias que têm importância suficientes para virarem datas.

- É verdade. Foi um dia que teve influência sobre toda a minha vida. Fiz silêncio, ao mesmo tempo que entendia que nos próximos meses,
independente de qual resultado teríamos, dias de grande influência estavam predestinados a nós.

O dia passou normalmente. Eu sentia uma tristeza administrável. Pela manhã, ao pensar na minha caçula, lágrimas escorreram sobre o meu rosto e, ao tentar secá-lo,
senti a minha barba, que cada vez ficava maior e percebi o quanto eu estava, de todas as maneiras, diferente. Porém, à tarde, eu ganharia uma boa razão para sorrir.

Foi sem querer que, no trigésimo dia de cativeiro, retomei algum poder sobre o meu destino. Foi casual e extraordinário.

Tomar banho quando quiséssemos era um dos poucos luxos que tínhamos e, após o banho, quando fui tentar abrir a porta, a maçaneta emperrou. Enquanto eu tentava girá-la,
também a puxava e a empurrava, na tentativa de abrir a porta.

- Ficou trancado? - Perguntou Enzo. Pergunta brilhante, pensei comigo. - Fiquei.

- Deixa que eu lhe ajudo. - Do outro lado da porta, o Enzo se levantou e se pôs a fazer o mesmo que eu. Girar, puxar e empurrar a maçaneta. Em um dos puxões elas
acabaram se soltando da porta, mas esta permaneceu trancada. Eu fiquei com uma maçaneta na mão e o Enzo com a outra.

- Mas que merda! - Frustrou-se Enzo.

Eu havia ficado com a maçaneta que tinha o cabo que atravessa a porta. A coloquei de volta e o Enzo, do outro lado, engatou a outra. Mais manobras, até que finalmente
a porta se destravou. Quando eu a abri, Enzo me olhou com surpresa, como se há muito não me olhasse, e exclamou.

- Você está salvo! Você está salvo! - Me deu um abraço e nós caímos na risada.

Logo em seguida eu fiquei paralisado pela ideia assombrosa que me ocorreu. Algo que tinha potencial de mudar toda nossa realidade. Olhei sério para o Enzo.

- Me ajude - Falei voltando as minhas mãos à maçaneta. Puxe a outra. - Puxamos as maçanetas cada uma para um lado, até que de num tranco elas se soltaram novamente.

Fiquei olhando para a que estava em minhas mãos, a que tinha um cabo saindo dela e me perguntei se aquela maçaneta robusta era a resposta das minhas preces. Sim,
tinha de ser.

Enzo começou a enfraquecer o sorriso e a entender o que eu estava pensando. - Carlos, acha que podemos usar isso? - Até então não tínhamos nada forte o suficiente
para desgastar alvenaria, no caso tijolo e cimento, que envolviam as grades.

Enzo, ainda espantado com o que eu havia encontrado, pegou da minha mão a nossa futura ferramenta. Seu olhar inquieto me deixou mais convencido.

- Acho que podemos. - Respondi esperançoso. Imediatamente ele se colocou na posição que ficava quando me servia
de apoio para eu deslumbrar o mato. Pus o pé direito em suas mãos, depois subi com os dois pés em seus ombros. Comecei a raspar a maçaneta na base da "janela", no
miolo da parede, para logo constatar que ela mal o arranhava.

- Não está desgastando o cimento!

Continue. Use mais força.

- Não adianta.

- Deixa eu ver. - Mudamos de posição. Ele precisava ver para poder aceitar.

- Mas que merda! - Enzo, com sessenta e dois anos, não costumava censurar as suas frustrações.

Ficamos de pé nos olhando, sem desistir daquela maçaneta. Eu insisti. - Este metal é forte, mais duro que cimento. Nós vamos aproveitá-lo; só precisamos achar um
jeito de usá-lo como uma talhadeira. Por falta de opção, a outra maçaneta faria as vezes do martelo.

- Vai fazer barulho! - Disse Enzo, mas precisávamos tentar.

Na primeira batida que dei, o som foi baixo, mas tampouco avariou o cimento. Para causar qualquer dano precisaríamos aplicar uma batida mais forte. Contudo, o barulho
criado poderia impossibilitar tal batida.

- Deixa-me descer. - Minha cabeça nesta hora transitava entre os objetos que podiam se interpor entre as duas "ferramentas" para abafar o som.

Passei os olhos por tudo, o que se resumia a quase nada. Depois de tentar bater com a sola do sapato, o Enzo teve uma ideia, que concordamos ser a
mais eficiente.

- Vamos botar uma tira de espuma do colchonete sobre a cabeça da
maçaneta e usar a outra como martelo. O que acha?

- Pode funcionar.

Com a cabeça da maçaneta já almofadada e com o seu cabo apontado para o cimento, bati com força sobre a cabeça redonda da "talhadeira".

- Fantástico! - Falei depois da batida, sendo contagiado pela felicidade.

- O que foi? Funcionou? - Peguei a pequena e bela lasca, que tinha
uns poucos milímetros cúbicos, e mostrei para o Enzo.

Olha. - Desci de seus ombros e ficamos rindo olhando para aquela
miúda lasca. Subi novamente em seus ombros e entusiasmados continuamos a tirar lascas.

Ríamos baixo, com a adrenalina correndo no sangue. Naquele único dia, fomos descuidados com a logística que a tarefa exigia, mas a
empolgação era justificável e irrepreensível. Estávamos dando o primeiro passo de
uma longa caminhada, mas o que nos importava era que, até que enfim, estávamos caminhando.

Continuamos a realizar exercícios físicos; eles deixavam o nosso corpo mais preparado para o esforço que a nova atividade exigia. Passavam horas desgastando o cimento
e precisaríamos de muitas mais para abrinn o espaço necessário. A tarefa exigia tempo, dedicação e disciplina e não estávamos à altura do desafio.

A tardinha, chegava o esgotamento físico ou eu mergulhava em um mundo de fantasia criado por mim.

Após tomar banho, estava deitado no meu colchonete mergulhado ei um mundo de fantasias criado por mim. Discursava para o senado romano quando o Enzo, igualmente
relaxado
no seu e com os dedos entrelaçado na nuca para apoiar a cabeça, interrompeu o meu devaneio. Iniciava-se nossa última conversa despreocupada, depois dela a velocidade
dos novos fatos roubariam toda a nossa atenção. Todavia, aquela conversa, como ou trás antes dela, foi importante para estreitar os laços entre nós.

- Está pensando nela? - Perguntou Enzo, provavelmente tentando me tirar da fossa.

- Não. Eu tento, sempre que possível, pensar em outras coisas.

- Verdade? Ficamos bastante tempo em silêncio. No que fica pensan do? - Por uma razão ou outra, ele queria conversar.

- Você vai rir de mim, mas fico fantasiando histórias.

- Como quais? - Perguntou com a sua costumeira suavidade de tom de voz.

- Como a de que sou um imperador romano e estou fazendo monumentos na cidade, guerreando com outras, coisas assim. - Preparei minha risada para rirmos juntos
de mim. Enzo pareceu rir de si e se levantou do colchonete.

Fui sincero, não só porque criamos uma forte amizade, mas também porque, quando estamos diante de uma situação de vida ou morte, nos tornamos pessoas mais francas
e diretas. Não há tempo para desperdiçar, e
a habitual cautela perde o sentido. Por sorte e força do destino, havíamos construído a nossa amizade sobre estes pilares.

- Me ajude aqui. - Disse Enzo, começando a me contagiar com a sua risada. Acho que ríamos da surpresa da minha partilha e, enquanto eu aguardava pelo seu comentário,
enrolamos um dos colchonetes como se fosse um tapete e demos um nó com uma blusa, para mantê-lo dobrado. Criamos assim um gigante canudo de formatura.

- Carlos, eu faço algo parecido com o que você faz, acredita? - O colchonete enrolado se tornava uma razoável poltrona.

- É mesmo? - Falei para o Enzo, enquanto dávamos o nó no segundo colchonete. Depois sentamos um de frente para o outro e o Enzo continuou.

- Eu sempre encarei essas fantasias como um tipo de fuga. É possível que elas tentem compensar a nossa realidade, porém elas diminuíram bastante comigo. Por volta
dos quarenta anos...

- Foi quando abriu a sua empresa de veículos?

- Não. - Hesitou antes de continuar, como tivesse se dado conta que acidentalmente havia entrado em um assunto que ele preferia censurar, mas depois continuou. -
Foi por uma razão diferente. - Só estávamos nós dois ali e não iríamos para nenhum outro lugar. - Foi quando descobri que tinha um aneurisma cerebral. Na época realizar
grandes façanhas perdeu a atratividade. O que me seduzia era a pura e simples vida; o resto se tornou supérfluo.

- Foi muito grave?

- Foi. Eu tinha grandes chances de morrer durante a cirurgia ou perder a visão. Minhas aspirações se focaram no que quase todos tinham: vida pela frente. - Sorriu
de si novamente. - Me lembro de olhar para as mulheres que limpavam o meu quarto no hospital e pensar que elas eram infinitamente mais afortunadas que eu. Elas não
estavam amarradas a um problema daquele porte e para sobreviver não precisavam passar por uma cirurgia de altíssimo risco. Não tinham lutas a travar, nem sacrifícios
a fazer. Foi um período sofrido. - Apesar de ele compreender como a experiência havia sido difícil, ele a contava sem destaque, como um fato já assimilado e que
faz parte da vida.

Parecia-me que ele havia guardado sozinho aquela experiência por todos aqueles anos e hoje estava finalmente disposto a dividi-la. - Deve sido difícil o que viveu.
Você se lembra bem do período?

- Isso já faz vinte anos e tudo continua bem vivo na minha mente sofrimento, geralmente, a gente não esquece. Você vai saber disso quando sair daqui. - Por causa
da nossa singular situação, aquela frase foi recebida como um pensamento positivo.

- Deus o ouça, mas me conte da sua experiência. Você sentia inveja saúde dos outros? E isso? - De fato, gozávamos de muita intimidade e nhamos todo o tempo do mundo.
Até ali, muitas das nossas conversas havíamos usado para nos conhecer e era comum compartilharmos assuntos nunca antes compartilhados.

- Pode-se dizer que sim. Quando eu andava pelas ruas e via as pessoas seguindo com as suas vidas, eu desejava ter a vitalidade delas mais do que jamais desejei algo.
Se vamos colocar nestas palavras... Eu posso dizer que eu também invejava a ignorância daquelas pessoas. A grande maioria não tem a menor ideia de quanto as suas
vidas são frágeis e quão fácil é colocar de pernas para o ar tudo o que elas têm como certo.

- É verdade, Enzo. Eu não sabia antes de vir para cá.

- E você se sentiu frustrado pelo mundo poder continuar sem você? Me perguntou Enzo.

Senti. - Falei sem pudor em uma conversa que tinha como base a franqueza. ~ Inclusive, até a terceira semana, me preocupei até quando a Isabela ficaria de luto.
É difícil aceitar que ela seja feliz com outro homem e desejar que ele seja um bom pai para os meus filhos.

Enzo concordou com os olhos. - Não te repreendas por isso, porque eu já senti o mesmo. As pessoas desconhecem o sentimento que dá quando entendemos que a vida segue
em frente independente de nós. E óbvio que o mundo segue, mas entender é diferente de saber. E entender implica vislumbrar sem enfeites a nossa insignificância.
Saber dela hoje em dia não me afeta, pois todos a carregam, mas me afetou na época, quando fui pego de surpresa e pensava que poderia morrer com mais este sentimento
atravessado na garganta. Desculpa te falar isso, Carlos, mas se você tem este sentimento aqui é bom te tornares consciente dele para poder superá-lo.

- Eu o superei, Enzo. E já dei a minha bênção para todos seguirem bem com as suas vidas.

- Que bom, meu amigo!

- É uma das diferenças da nossa experiência e da sua particular, não é? Não vemos a resposta da sociedade. Não testemunhamos a indiferença dos desconhecidos, nem
recebemos apoio das pessoas mais próximas. - Comentei.

- Não estou bem certo da sua última observação, Carlos. Talvez você fosse se decepcionar com o que visse.

- Como assim? - Não entendi ao que ele se referia.

- Estamos falando de apoio, não é? De uma situação que as pessoas não podem lhe solucionar o problema, apenas apoiá-lo.

- Exatamente.

- Tem seus prós e contras.

- Fale dos contras.

Ele fez uma pequena pausa e falou calmamente. - Não pense que estar isolado é melhor, Carlos, porque não é. Eu tinha a minha família ao meu lado e consegui viver
e lutar com a cabeça erguida. Foi difícil, mas eu saí muito mais forte e consciente da vida do que entrei; então não quero reclamar. Mas o que você colocou sobre
ver a sociedade respondendo à situação é algo que na época me fez algum mal.

- Me explique.

- O que vou lhe dizer diz respeito apenas a uma parte dessa experiência, do seu lado negativo. Pelo menos para mim. - Fui preparado para o que ouviria, depois ele
continuou. - Passei dois meses de incertezas sobre o que aconteceria comigo e não escondia de ninguém sobre a minha situação. Quando as pessoas me perguntavam eu
repetia o que tinha ouvido do médico. A situação é grave, a cirurgia é complicada e implica um risco alto de óbito ou sequela, no caso, a minha visão. As pessoas
se mostravam sensibilizadas, solidárias e compadecidas quando tomavam ciência da minha situação. No entanto, percebi que, com exceção da minha esposa, meus amigos
e o restante dos familiares seguiam facilmente com as suas vidas. Não os julgo por isso, porque também já tinha estado no lugar deles, só que fui pego de surpresa
quando mudei de lado.

A que você se refere?

Foi algo sútil, Carlos, mas eu podia notar que as pessoas evitavam perguntar sobre mim para não terem de me ouvir, evitavam me visitar com medo de terem que
ficar tempo demais. Não guardo mágoas de ninguém, de forma alguma, mas na época o que vi me deixou triste, talvez por eu estar mais fraco, precisando dessa força
que eu ima ginava que receberia.

- Foi assim, é? - Perguntei pensando nas pessoas que eu conhecia e na tranquilidade que as suas vidas deviam estar seguindo.

- Foi. Do começo ao fim, no melhor e no pior dia. Fui em jantares para mostrar que eu estava bem. Talvez para retribuir visitas ou telefonemas inibidos de consolo.
Eu não faria isso de novo. Teria feito tudo pensando em mim e na minha família. Porque depois, quando estivesse só eu, o Roberto e a Ana no hospital, eu não me sentiria
tão tolo por, naquele momento crucial, ter gasto minha energia pensando nos outros e achando que lhes devia explicação. Ao invés disso, fiz coisas como ir em jantares.
Eu via as pessoas sorrindo, combinando outros encontros, falando sobre roupas e planejando viagens de férias, e eu, do outro lado, nem sabendo se estaria ali quando
as férias chegassem.

Ninguém tem culpa do que eu estava passando, nem eu queria que eles se compadecessem além do que fizeram. Eu só queria ter entendido antes essas relações e, dentre
delas, quem realmente importava. E lhe digo, como alguém que viu o seu mundo ruir percebendo que o vizinho ao lado estava preocupado com um televisor maior, só o
que importa é a sua família.

- Concordo contigo, Enzo. - Eu realmente concordava, mas com algumas ressalvas. Porque, mesmo eu tendo perdido o meu pai aos vinte e um anos e minha mãe aos vinte
e seis, recebo até hoje um cuidado quase que maternal da minha irmã e fui amparado por amigos, muitas vezes dentro do que para mim estava acima das suas atribuições.
Todavia, eu entendia a sua decepção. Talvez, até aquele momento, faltava-lhe distinguir as relações de amigos das descrições feitas em lindos romances e poesias
e tão defendidas, com certa hipocrisia, por indivíduos que adoram exigir virtudes e responsabilidades dos outros, não de si.

As pessoas, via de regra, cuidam de si e da sua família e, nos intervalos, se distraem com outras pessoas. Claro que se importam, que tem apreço e
lealdade, mas esperar que um amigo atue com o comprometimento de um íntimo familiar é esperar demais. Posso contar com muitos amigos, mas é um erro exigir mais do
que eles podem me dar. Expectativas desproporcionais tendem a levar-nos à frustração, e em uma cobrança fantasiosa pode-se perder um bom amigo.

Contudo, o Enzo, como quase todos os amigos, precisava ser ouvido, não corrigido. Assim, eu estava disposto a lhe oferecer a melhor ajuda que ele aceitaria receber.

- E os seus irmãos? - Perguntei.

- Como todo mundo, meus irmãos tinham a vida e os problemas deles. Foram me visitar como os meus amigos também foram. Não é porque eu não recebi nenhuma ajuda significante
que vou dizer que isso não acontece; o que posso afirmar é que as pessoas são muito menos comprometidas do que elas se vendem.

Concordava agora com pouca ressalva. Existem pessoas comprometidas e elas são tão raras quanto preciosas.

- Vivendo e aprendendo, Enzo. E depois que você saiu da cirurgia, como ficou?

- O que não temos como mudar, temos que aceitar. E foi o que fiz. Mas aprendi algo muito mais valioso nessa experiência.

Sou todo ouvidos.

- No hospital, senti o medo mais forte da minha vida. Senti medo por entender que, se eu morresse, o meu filho Roberto, com sete anos na época, talvez recebesse
o mesmo descompromisso que eu recebi, ao mesmo tempo senti um forte arrependimento por não ter percebido antes que a minha esposa era minha verdadeira companheira.
Quantas vezes me esforcei para agradar mais aqueles mesmos amigos que a minha própria mulher. Tive mais paciência, fui mais educado, dei mais atenção e ri com mais
força das suas piadas. Continuava a achá-los bons amigos, só entendi que amigo nenhum rivalizava com a amizade e o amor da Ana e que, caso eu sobrevivesse, ela deveria
colher os frutos desse nosso comprometimento. Por isso gosto tanto de ouvir você se referir a sua esposa e filhos. Você vê a sua família da mesma forma que eu; depois
desta experiência, vi a minha.

- Que bom que você teve a oportunidade de vê-los dessa forma, Enzo.

Eu falei isso computando e lamentando o fato que dois anos mais tarde da sua cirurgia ele perdeu a sua esposa. Ao mesmo tempo, eu o admirava e me sentia prestigiado
toda vez que eu recebia a sua confiança.

Nós dois, por caminhos e experiências diversos, nos encontramos no cativeiro com semelhantes visões do mundo.

O relacionamento que usufruíamos seria fundamental para a execução do plano de fuga, dadas as suas dificuldades e exigências.

Para o nosso bem, podíamos contar integralmente um com o outro.

No início do segundo mês, recebemos a visita do senhor Matias, e de tão esperado por nós, somando-se a nossa pobreza em novidades, ficamos felizes em vê-lo. Paralelamente,
o nosso plano de fuga estava em plena execução.

Logo após o almoço, a porta de madeira se abriu e o Matias, encapuzado, apareceu sem ser anunciado. Agiu como se tratasse de uma reunião formal e rotineira e, sem
delongas, mostrou para o que veio.

Lembro de olhá-lo e invejá-lo por ser um homem livre, de respeitá-lo mais que a qualquer professor ou superior que tive. Como nenhuma outra pessoa que me chefiou,
ele tinha absoluto poder sobre mim. Só me restava segui-lo e torcer para que a sua liderança não fosse permanente.

- Boa tarde, senhores. - Disse com respeito, o que fazia soar como deboche.

Boa tarde. - Sem querer, respondemos juntos, parecendo dois garotos de colégio.

- Imagino que eu venho sendo aguardado. Pois bem, chegou o dia de você me mostrar o seu valor.

- Estou pronto para isso. - Respondi. O guardião, também encapuzado, estendeu uma cadeira e uma pequena mesa ao Matias. A presença do guardião de certa forma me
deixava mais calmo. Mesmo que tenha trocado poucas palavras conosco, foi sempre cordial. Fora isso, servia as nossas refeições com generosidade.

O Matias tirou do seu bolso um pano preto e colocou sobre a pequena mesa a sua frente. Quando desenrolou cuidadosamente o pano, pudemos ver as pedras preciosas contidas
nele. Rapidamente comecei a pensar e fiz o cálculo do valor aproximado do material e deduzi que não poderiam ter roubado só aquilo.

Sequestrar dois homens e por consequência manter o vínculo com o assalto por uma quantia proporcionalmente pequena, se comparada ao possível valor de quatro malas
abarrotadas de dinheiro, não fazia sentido.

Acariciando as pedras com uma das mãos, me perguntou quanto delas ele poderia vender na primeira transação. Fiquei em silêncio por um breve momento até ele continuar.
- Não entendeu a pergunta?

Eu esperava há trinta e cinco dias aquela conversa. Era notável a inteligência do Matias, mas negociar estava no meu sangue e eu não sairia sem receber em troca
algumas respostas. Falei com calma e com firmeza. Talvez fosse um risco, mas um risco necessário.

- Entendi, Senhor Matias. Desde que conversamos pela última ve só o que faço é pensar em como vou lhe ajudar. Acredito na promessa do senhor, acredito que o seu
sucesso será o meu. O gorro sobre o seu rosto e a sua discrição me dizem isto, mas para melhor nos ajudar não posso ter receios das minhas respostas, nem censurar
alguma pergunta por medo de uma punição. Por isso, para desde o começo dar o meu máximo tenho que poder ser franco e livre. - Fiz uma pausa que permitia a sua interrupção,
caso eu o estivesse aborrecendo, mas ele apenas continuou a me olhar. - Então, respondendo a sua pergunta de quanto posso indicar para o senhor vender na primeira
transação, respondo que depende de quanto o senhor tem no total.

- Explique.

- Se forem apenas estas, dividindo em três compradores, podemos vendê-las em uma semana. Já se forem muitas mais, o senhor roubou alguém com muitos recursos para
procurá-las e seria prudente vender no começo um pouco menos. O senhor está com o meu celular? Precisarei dele.

- Sim, estou. - Foi insignificante a sua pausa até dar sequência. - Isto que lhe mostro é um décimo do que tenho. - Rapidamente aquele homem filtrou o que eu havia
falado e tomou uma decisão. Que por sinal, apesar de ser do meu interesse saber o total de jóias para supor o tempo que ficarei aqui, foi a melhor decisão para ele.
Seu discernimento afiado novamente me causou espanto.

E uma única joalheria a antiga dona destas pedras?

- Explique.

- Se for, pior para nós. Todas estas pedras sendo de um único dono nos diz que ele se trata de um gigante do mercado. Esse grupo miúdo de empresários têm mais poder
e influência que todas as outras lojas somadas, da mesma forma que um rei tem mais poder do que todos os seus duques juntos. - Me permitir certa liberdade ao me
expressar, nos poupava tempo.

- É um único dono.

Ele e o seu seguro irão procurá-las com toda força que dispõem. Todavia, neste negócio não há como fechar todas as portas. As pedras lapidadas se tratam de rubis,
esmeraldas e diamantes?

Sim. - Falou colaborativamente.

Por enquanto era o que eu precisava saber. Lentamente eu explicaria a ele a estratégia de venda que eu havia desenvolvido no último mês.

- Suas informações me foram muito úteis. Eu lhe agradeço... Mas vamos então ao que interessa. - Respirei fundo e me acomodei melhor na cadeira.

- O senhor precisa, antes de tudo, abrir uma empresa fantasma de Lapidação, Compra e Venda de Pedras Preciosas. Isso acontece todos os dias e não será problema.
Depois, sugiro que o senhor venda apenas um tipo de pedra para cada comprador. Ofertar todos ou mesmo dois tipos de pedras do grupo que a seguradora procura é um
risco desnecessário. - Olhei para o Matias para ver se estava de acordo com o meu ritmo e o percebi atento. - Primeiro, venda as esmeraldas, que são as mais comuns.
Além das pedras, eles provavelmente procuram por vendedores que estejam fazendo as suas transações no mercado clandestino. Não será o nosso caso. Por esta razão
temos que produzir notas fiscais para as suas pedras. Sugiro que com uma fração do dinheiro do roubo, compre esmeraldas brutas antes de vender as suas lapidadas.
- Vi nele um pequeno esboço de surpresa seguido de compreensão.

Nesta transação o senhor fará o seguinte: comprará dez pedras brutas de tamanhos compatíveis com as jóias que tem. - Depois fiz uma observação. - Aconselho que contrate
um funcionário para conduzir as negociações de compra e venda. Nestas negociações, o senhor poderá se comunicar tanto com o funcionário por telefone, quanto comigo,
para me consultar sobre preços de mercado ou contrapropostas. Não diferente de como faria com um funcionário de confiança. Isto seria possível?

- Continue, senhor Carlos, estou gostando do que estou ouvindo.

- O próximo passo será durante a compra dessas pedras brutas. Nela, o senhor pedirá que na nota venha, ao invés de dez pedras, vinte ou mais. Em uma conversa franca
pode pedir isso e se o primeiro vendedor não aceitar, o segundo aceita. Ele irá deduzir que deseja esquentar dinheiro da
sua empresa declarando a receita federal que vendeu, depois de lapidadas, as vinte ou mais pedras referidas na nota. É ilícito, mas muitos comercianles vêem com
naturalidade a prática de esquentar dinheiro oriundo de sonegações de impostos anteriores. Para os vendedores poderá ser um ótimo negócio, já que eles próprios poderão
estar esquentando pedras que venderam sem emitir nota. Até aqui o senhor me acompanhou?

- Mais do que imagina. Por favor, continue.

- Passamos para a segunda fase, que é quando deixamos as pedras brutas de lado e usaremos apenas a nota que elas proporcionaram. Assim, transformaremos o número
de pedras da nota fiscal que conseguimos por suas jóias, legitimados pela sua empresa, que compra pedras brutas e as trabalha.

- Muito bom... - Disse moderadamente.

- Então chegamos à parte de transformarmos o produto em dinheiro. Nela, terás duas opções. Pode vender suas pedras até o número conseguido na nota, ou, desta vez,
fazer o oposto que fez na transação anterior. O senhor não mais irá querer superfaturar sua empresa, mas sim desejará sonegar impostos. Venderá junto com as suas
jóias que têm nota uma porção de jóias sem. O interesse e a quantidade dependerão do comprador. A boa notícia é que não faltam empresários que guardam uma boa parte
dos seus negócios longe dos impostos. Então, correremos em duas vias e, em sentido contrário, os empresários têm flexibilidade suficiente para atender esta nossa
necessidade. Assim, o senhor conseguirá, somando todas as transações, chegar a vender lapidado quatro vezes o que comprou bruto. Este será o seu ciclo até acabar
a venda das esmeraldas. Depois fará o mesmo com os rubis, até chegar aos diamantes, sempre com compradores específicos para cada pedra. Os indico quando quiser.
- Fiz uma pausa aliviado depois de entender que o centro do plano havia sido bem recebido. - Em resumo, é isso. O senhor tem algo a perguntar sobre esta parte?

- Por enquanto não. - Disse satisfeito e passou para as suas dúvidas seguintes. - Como é feita a entrega das jóias e o recebimento do dinheiro?

- O dinheiro é via banco. Você receberá e pagará com a conta da sua empresa fantasma. O seu funcionário pode fazer as entregas em pequenas vezes. Este precisará
ser um avalista, que irá conferir valor as suas jóias de acordo com o grau de pureza e translucidez. Para isso, é
melhor que a sua empresa, apesar de fantasma, tenha uma sede. Pode ser apenas uma boa sala, para receber pelo menos este seu avalista. Precisará que um do seu grupo
seja o empresário e que, como tal, saiba sobre o negócio consideravelmente.

- Serei eu. - Respondeu Matias, sempre objetivo; em seguida continuou. - Outro dia lhe pedirei que me ponha a par do negócio. Peço que se prepare tão bem como percebo
ter se preparado para hoje.

Com absoluta certeza. Não sei se preciso lembrar, mas é de nosso interesse que todos que tenham contato com o "empresário" não possam identificá-lo futuramente.

- Se entendi, terei contato apenas com o avalista e uma secretária.

- Exatamente. E com estes funcionários é preciso que haja uma conversa que explique a filosofia da empresa, estratégias, capacidade de venda e compra, e, quando
acabarem as pedras, é necessário informá-los sobre uma mudança de negócio ou mesmo falência, com devida indenização a eles. Volto a lembrar: é importante que eles
não possam identificá-lo. - Era fundamental para ele e para mim esta parte, já que a ideia de me soltar e eu procurar este funcionário para descrever para a polícia
o rosto de Matias poderia ser um bom motivo para a minha morte.

- De acordo. - Depois falou com um leve sorriso. - O meu disfarce também é partidário a sua soltura, não é? Eu não me esqueceria dela.

Também é. - Ele sabia das razões que me beneficiavam; então eu aproveitei para lembrá-lo sobre as razões que me tornavam leal a ele. Eu não quero deixá-lo em uma
posição que possa pensar que, se eu for libertado, poderei ajudar a encontrá-lo. Não cogito esta possibilidade em primeiro lugar porque isso colocaria a minha família
em risco. Em segundo, caso eu seja liberado, terei a confirmação de que a sua intenção nunca foi me causar mal. Na verdade, é apenas um negociante como eu e se honrar
com a palavra, eu honrarei com minha. Acredite, terá a minha gratidão por isso.

Nos olhamos por um tempo em silêncio, depois ele falou me parecendo sincero.

- Dependerá de você isso e, honestamente, começo a acreditar que vai conseguir. - O Matias se levantou e me estendeu a sua mão direita. Eu me levantei e nos cumprimentamos;
logo continuou: - Peço-lhe agora que ponha
no papel tudo o que me disse lume, lodos os números do seu celular estão impressos nesta folha. Os que iremos usar coloque junto ao seu planeja* mento. - Matias
se virou e o guardião fechou a porta de madeira.

Lutei durante a conversa para tirar de mim o desespero e a raiva que todos os dias eu sentia dele.

Contudo, ajudar os meus malfeitores nunca foi uma questão que conflitou com a minha consciência.

Antes de entregar o plano de vendas ao Matias, Enzo e eu o revisamos. Sabíamos da importância de proteger o grupo em relação a nossa soltura. Se quiséssemos ter
alguma chance de eles cumprirem com o prometido, era fundamental que o plano aconselhado não tivesse furo, ainda que estava claro que procurá-los depois de libertados,
por si só, era uma péssima ideia.

Contudo, uma pergunta não saía da minha cabeça. Por que eles iriam arriscar? Por que no meio de tantas violações eles se importariam com mais uma? Talvez não fossem
assassinos. Talvez nos vissem como colaboradores. Talvez não queiram mais este peso sobre as suas sentenças...

Não fazia sentido, mesmo assim fizemos o que tínhamos que fazer. Trapacear seria zerar as nossas chances, mesmo que ignorássemos de quanta chance estivéssemos falando.
Existiam fracas razões para não nos matarem e ainda não conseguia encontrar qualquer vantagem em nos deixarem vivos. Talvez este fosse o meu desafio, mas, apesar
de esmiuçar qualquer possibilidade, não me vinha nada.

Enquanto isso, realizávamos a nossa escavação, que era no miolo da parede, da base da janela para baixo, conservando, assim, toda porção visível da parede. O plano
era no dia da fuga quebrar a porção da parede oca e arrancar a barra ou criar um buraco suficiente para a nossa passagem.

Enzo estava com os pés sobre os meus ombros marretando o tijolo com a nossa talhadeira improvisada quando eu lhe expus o que estava me consumindo.

- Enzo, você sabe o que vai acontecer conosco se depender do bando, não sabe?

Ele respondeu sem diminuir o ritmo do seu trabalho. - Acho que se fizermos tudo certo temos cinquenta por cento. Se deixarmos furo e ele for identificado por eles,
perdemos qualquer chance.

- Concordo, mas mesmo cinquenta por cento para mim não é suficiente. Temos que fugir daqui. Estávamos começando a entender e a assimilar que era melhor
aceitarmos o risco da fuga do que esperar por razões desconhecidas.

- Vai demorar mais de dois meses.- Lembrou Enzo, e eu lhe respondi com bom humor: - Então, a venda das jóias vai ter que demorar mais do que isso. - Enzo e eu rimos
baixo, desfrutando do pequeno poder que detinhamos.

No momento estávamos desgastando o cimento. Fazíamos isso durante oito horas por dia, que era o máximo que conseguíamos. Duas horas por turno para cada um, todas
as manhãs e tardes. Quando não estávamos desgastando, estávamos servindo de apoio para o outro. Isso nos cobrava muita energia e, além de diminuir nossa eficiência
no turno da tarde, diminuía a carga horária como um todo. Precisávamos ter um cuidado imenso com o barulho; então batíamos com o máximo de força que o som permitisse.
O que se traduzia a leves e constantes batidas.

Havíamos nos tornado artesãos extremamente atenciosos às peculiaridades do trabalho. Nas pequenas lascas e no pó resultantes da tarefa, acrescentávamos água para
serem removidos como pasta e colocados na privada.

Recebemos um incentivo extra há dois dias, quando o Enzo, que estava trabalhando, teve que descer com pressa do meu ombro porque ouvira alguém se aproximando aos
fundos. Ouvíamos tudo ao nosso redor naquele campo silencioso.

De pé no quarto, olhamos quando uma mão vinda do lado de fora se estendeu até segurar uma das barras e tentou sacudi-la; fez isso com a outra e se deu por satisfeito.
Imaginei o quanto o dono daquela mão deveria achar desnecessária aquela fiscalização. Provavelmente estava sobre uma cadeira para alcançar as barras, que, do lado
de fora, se tornavam mais altas e começavam a mais de dois metros de altura. Sua visão não podia detectar a nosso buraco. Aquilo nos deixou mais confiantes sobre
o nosso segredo e evidenciou a confiança que eles tinham no seu cativeiro. Tratamos de encaixar as maçanetas na porta do banheiro e ficamos à espera.

O guardião logo em seguida nos chamou à porta e nos algemou nas grades dela, depois fez uma revista pelo quarto. Vimos quando encontrou em cima da pia do banheiro
a esponja que tínhamos feito a partir do
colchonete. Sentiu um cheiro de sabonete nela e deve ter concluído exatamente o que esperávamos que concluísse. Era importante que ele pensasse que usávamos a esponja
no banho, caso percebesse futuramente uma diminuição nos colchonetes. Cordialmente saiu do quarto, fechou a porta gradeada e nos libertou das algemas. Enzo e eu
desfrutamos de um revigorante olhar de cúmplices. Nenhuma palavra explicaria melhor a alegria vista nos nossos olhos.

Trabalhei o dia inteiro e estou esperando a minha mulher chegar en casa. Ela é advogada tributarista e há dois anos decidiu sair de um dos maiores escritórios de
advocacia da cidade para montar o seu. Ela já saiu de lá com uma boa clientela e está de vento em popa.

Minha esposa é uma batalhadora e quando a vejo trabalhando sinto que ela ilumina o lugar.

Somos duas pessoas ocupadas, mas que sempre conseguimos guardar tempo uma para a outra. Ouvi um carro estacionar e fui confirmar pela janela se era ela. O Luquinhas,
de sete anos, subiu no meu colo e a Laura, de cinco, se enroscou na minha perna. A porta da frente se abriu e minha esposa apareceu.

Uma mulher de cabelos compridos, de pele clara e macia. De pernas longas e torneadas. Um corpo exuberante e uma mente de quarenta e um anos que atestava maturidade
e inteligência. Eu estou há onze anos casado com ela e continuo completamente apaixonado por essa mulher.

- Boa noite, meus amores. - Disse ela com uma das mãos segurando uma pasta sobre o peito e a outra me envolvendo em seu abraço. Beijoume, depois beijou as nossas
jóias mais valiosas.

- Boa noite! - Deixei o Lucas correr junto com a Laura para a mesa de jantar. - Como foi no trabalho hoje?

- Cansativo, mas não trouxe nada para casa. - Me olhou com um olhar de malícia, depois perguntou. - A Dona Fátima deixou o jantar pronto?

- Deixou. É só esquentar. - Servimos juntos a comida e sentamos á mesa. Trocamos figurinhas de trabalho, depois ouvimos o dia das crianças. Na creche da Laura eles
estão ensaiando para um teatro e na escola do lucas, dentre outras, foi lhe dada a primeira lição de casa.

Recolhemos os pratos e depois de um pouquinho de televisão colocamos as crianças para dormir. Eu já havia tomado banho e a Isabela, antes de
entrar no banheiro do nosso quarto, me deu um beijo suave e me pediu que a esperasse para dormir.

Fiquei de frente para a porta do banheiro, ansioso para vê-la. O chuveiro foi desligado e eu conseguia imaginar ela se secando. Mais um tempo, ela abriu a porta
com um hobby de cor branca.

- Eu passei o dia pensando em você, me derretendo por este momento. - Disse ela caminhando lentamente para mim.

Eu sentei na ponta da cama e esperei que ela chegasse aos meus braços. Nós dois sabíamos o que viria. Tínhamos a calma e a tranquilidade de um casal que se interessa,
gosta e frequentemente faz amor. As crianças estavam dormindo e tínhamos todo o tempo do mundo.

Parecia que eu havia esperado uma vida por aquele momento. Na verdade, por muitos anos eu me admirava de tudo aquilo realmente existir. Voltar ao tempo em que nenhuma
mulher estava ao meu alcance, pelo menos não daquela maneira, me fazia valorizar ainda mais o momento.

Lembrava-me de quando era criança. Pensar nas meninas da minha idade, quando não ainda mais velhas, mexia muito comigo.

Foram alguns anos imaginando o que mal sabia como era; só sabia que eu queria e não tinha possibilidade de ter. Só na fase seguinte, dos dez aos treze, que pude
mensurar melhor o que desejava.

Visualizava todos os dias o beijo que, se pudesse, eu daria na garota de que gostava. Mudava a garota, mas eu continuava sem receber o meu beijo. Só isso me contentaria
naquela época. E, de fato, considerável parte do meu dia girava em torno da fantasia daqueles simples beijos. Desejei com todas as minhas forças; mesmo assim o meu
pedido não deve ter sido atendido mais que dez vezes no meio destes anos.

Hoje em dia é engraçado, mas lembro-me de, nestes quatro anos, ter esperado por um beijo em toda festinha que ia. Recordo-me do banho antes delas. Passava xampu
duas vezes no cabelo e lançava o meu melhor perfume sobre o pescoço, com a esperança de que uma garota repousasse a sua cabeça nele. Tantas festas, tantas expectativas
frustradas! Tudo isso me fazia fervilhar quando olhava para aquela mulher madura, mãe dos meus filhos, me desejando, me querendo, permitindo não apenas beijá-la,
mas desfrutá-la por inteiro.

Foram tantos anos pedindo por aquilo que, depois de ser atendido, passei uma vida deslumbrando esta maravilha que é o corpo da mulher.

Desde os meus dezessete anos, quando iniciei a minha vida sexual, vislumbrei o sexo e o amor como uma das maiores bênçãos do ser humano. Mulheres que até então
eu só poderia beijar a boca, fase que também durou tempo demais, dos meus treze até os dezessete, começaram a permitir, ansiar e pedir que eu explorasse os seus
corpos.

Por uns três anos mal acreditei e ainda consigo sentir a sensação de privilégio e a surpresa daqueles tempos. Vi meninas se tornando mulheres e no processo também
me tornei homem. Quanto ao menino e ao adolescente que fui, sempre senti que eu os trairia se não aproveitasse ao máximo a carta branca que, anos depois, algumas
mulheres me deram.

De todas, com a melhor me casei. E somos, da mesma maneira que somos parceiros de vida e de negócios, parceiros de cama.

De pé, na minha frente, estava a mulher da minha vida se ardendo nas minhas mãos. Eu repousei minha cabeça sobre o seu ventre, depois beijei a seda que o cobria.
Minhas mãos desceram até os seus joelhos e, enquanto subiam pela sua coxa, eu sentia a sua pele se arrepiando. - Faz amor comigo. - Ela disse sentindo o calor das
minhas mãos e acariciando o meu cabelo com as suas. - Tira. - Eu sussurrei olhando para ela.

Graciosamente Isabela foi deixando o seu hobby deslizar até os seus pés.

Eu explorava com os meus lábios a sua barriga e suavemente subi com minha mão até a sua virilha. Eu tocava delicadamente a região até colocar os meus dedos nas alças
da sua calcinha para lenta e suavemente baixá-la.

Dentre os momentos que eu vivi nas minhas tantas aventuras, o de maior deslumbre sempre foi o ato de tirar a calcinha. Antes de fazê-lo, algumas vezes, como nesta,
gostava de lembrar quando conheci a minha parceira, quando eu era ainda um estranho querendo cortejá-la, quando só podia imaginar o que agora estava fazendo.

No dia em que a conheci eu não poderia tocar no cabelo de Isabela sem ser repreendido ou condenado. Mal poderia tocar em seu braço ou dar um beijo em seu rosto.
Lembro-me de querer abraçá-la, acariciar o seu cabelo, a sua nuca, mas de maneira nenhuma ter direito para isso.

O beijo no nosso primeiro encontro a sós aconteceu, mas só com o tempo e muitas incertezas, investidas, conversas, passeios e carinho eu havia sido agraciado com
a permissão de realmente tocá-la por inteiro. Aquela mulher decidiu se juntar ao meu desejo e conceder só a mim esta graça.

Eu não apenas a tinha conquistado, mas sabia que, quando cia estava nos meus braços, ela sentia com as razões do coração, que eu era o homem mais importante do seu
mundo. Sempre me esforcei para agir à altura deste título.

Completamente excitado, eu olhei para ela antes de lentamente tirarlhe a calcinha. Aproveitei cada segundo. Diante dos meus olhos, ela me confiava a sua parte mais
íntima e sagrada.

Envolvi com as minhas mãos a suas nádegas e trouxe a sua barriga a minha boca.

Esfreguei o meu rosto nela e depois, sem pressa, fui beijando-a, subindo pelos seus seios, até que, de pé, cheguei em sua boca.

Eu a beijava com toda a vontade que um homem pode ter com a sua mulher e a trouxe, firmemente, para junto de mim, sentindo os seus seios nus pressionados ao meu
peito.

Deixei-a sentar na cama e em seguida repousei a sua cabeça no colchão. Deitados, continuei a beijar a sua boca, orelha e pescoço. Mordi com delicadeza a sua pele,
por toda parte. Fui descendo pelo seu corpo e contornei lentamente os seus mamilos, até sentir que ela ansiava que eu os beijasse.

Com a ponta da língua fui percorrendo o seu ventre e eu podia sentir o seu corpo arrepiado se contorcendo em desejo. Quando me ajoelhei, ela se encontrava deitada,
só com as pernas de fora da cama. Mordi levemente as suas coxas e virilha, raspando de leve com os dentes e beijando com gosto em seguida. Meus dois braços contornaram
as suas coxas para que as minhas mãos repousassem no seu umbigo. Eu me deleitava enquanto ouvia os seus suspiros.

A minha mulher se entregava e confiava totalmente em mim e nada deixava mais explícito a sua confiança e entrega do que ela me permitia fazer. A sentia completamente
excitada e conectada comigo, acompanhando cada movimento meu. Da minha parte, eu não poderia estar mais excitado. Mesmo, naquele momento, eu sendo o condutor, eu
conseguia usufruir de todo o prazer que eu estava proporcionando. Estar conectado à Isabela naquele momento me permite pegar carona no prazer dela. Isto, para mim,
é fazer amor.

Nós estávamos usufruindo todo o alcance que uma conexão pode oferecer. Quando a beijo com suavidade ou com força eu acompanho a sua sensibilidade se alterar e a
mesma parte do meu cérebro se altera.

Aquilo era a comunhão da mais valiosa parceria que encontrei na vida: minha esposa. Pensar nela nos jantares, com tantas pessoas em volta... No trabalho, como profissional.
Com as suas amigas... E só eu podendo vê-la daquela maneira, me fazia sentir um felizardo por isso.

Parecia que eu conseguia sentir a Isabela. Mas assim que eu cheguei ao meu ápice, eu parei de senti-la, parei de sentir o lençol que nos envolvia. O cheiro do meu
quarto.

Logo fui voltando à realidade e me percebi de pé. A água passava pelas minhas costas. Agora eu conseguia ouvi-la caindo no piso do box. O cheiro da cela chegou as
minhas narinas e os meus olhos se encheram de lágrimas. Eu hesitei em abri-los, mas de nada adiantaria.

Abri meus olhos e me vi no banheiro do cativeiro com um forte aperto no coração e com um imenso desejo de gritar para a Isabela, dizendo que eu estava vivo e que
a amava muito.

A hora da janta guardava o início de uma amizade, se assim posso chamar, com o guardião.

Naquele dia, como na maioria dos dias, seguimos a nossa rotina. Acordávamos junto com o sol. Hábito que nós dois já possuíamos.

Após a descoberta da maçaneta como ferramenta, o objetivo dos exercícios físicos passaram a ser a resistência e o fortalecimento dos ombros e costas, e eles eram
executados pouco depois que acordávamos e previamente ao trabalho. Gostávamos de nos referir assim à tarefa que realizávamos. Isso nos embutia responsabilidade e
nos recompensava ao nos fazer entender raspas de cimento e tijolo como produção.

Nosso trabalho requeria muita atenção e esforço físico, tanto do pedreiro, quanto da pessoa que emprestava os ombros como apoio para o outro. Denominamos este último
cargo como o homem do suporte. As funções eram alternadas por nós de dez em dez minutos durante a manhã e de cinco em cinco durante a tarde, quando estávamos mais
cansados. Mesmo o tempo em cada função parecendo curto, ele só foi alcançado depois de muitos dias de trabalho e exercícios físicos.

Estes exercícios, além da função prática, serviam para nos entreter, mas, por fim, acabamos por obter um condicionamento físico superior ao que tínhamos. O aumento
dos meus músculos, da tonicidade e da definição, ainda que discreto, era percebível, e aquilo me proporcionava certo contentamento.

No exercício psicológico, tão importante quanto o físico, meu compromisso era manter o meu pensamento no positivo.

Desde que cheguei no cativeiro, uma das principais batalhas que encontrei foi a de não dividir a minha atenção entre diferentes desfechos que poderiam ocorrer. Pensava
predominantemente no melhor resultado - na minha vitória, não por achar que ela era o mais provável, mas por acreditar que ela era possível.

Sempre acreditei que ao se focar em um resultado, sendo o desejado ou não, aumenta-se a chance de obtê-lo. Contudo, não posso contar com a minha razão constantemente,
e em dez ou vinte vezes me peguei pensando no meu fracasso e em todo o meu esforço sendo jogado fora. Esta pequena mudança de postura mudava consideravelmente a
minha percepção sobre quase tudo. Sentia pena dos meus filhos e desespero pela situação. O esforço que outra hora era fonte energizante, entendia como desperdício.
Minhas ações perdiam o propósito. Visualizo nesta fase a cena do meu fracasso tanto quanto a sinto dentro de mim. Meu corpo forte, vejo mole, inanimado, enfim, morto,
sendo arrastado daqui e posto em um buraco qualquer para depois ser coberto de terra.

Neste estado, o que me impedia de desistir? Eu precisei primeiro entender o que me levava àquele estado. No caso em que me encontrava percebi que a minha frustração
não vinha do que eu deveria fazer, mas da minha exigência de obter sucesso. Queria ter certeza que o meu esforço seria recompensado, mas a verdade é que a maioria
das situações que vaiem a pena tentar não nos dão garantias. E para aceitar isso, dado o que estava enfrentando, precisava primeiro ser muito honesto comigo.

Eu tenho mais chances de morrer aqui do que de viver, sendo que a principal pergunta que me atormentava era: valerá o esforço caso eu fracasse? Algumas vezes o próprio
esforço, se for aproveitado, já é um resultado válido de ser colhido, mas no meu caso o fracasso representava a morte; então pouco me importava o aprendizado. Entretanto,
minha situação não era uma opção, nem eu me permitiria desistir, mas ainda sim me faltava um remédio contra o desânimo. Algo a que me apegar. Porque a pergunta ainda
continuava pairando no ar. Valerá o esforço caso eu fracasse? Na minha singular situação acabei por encontrar uma inspiração universal. Decidi que a atitude de aceitar
o desafio não se condicionaria mais ao que eu poderia obter, mas se fundamentaria em uma opção de vida, de que tipo de pessoa eu gostaria de ser. Independente do
tempo que tinha, escolhi por viver com garra a minha vida. Saber disso não impediu que por vezes eu desanimasse, se é que posso abrandar tanto o que sentia, mas
ajudava a me reequilibrar e me colocar de novo no prumo.

O exercício psicológico exigido continuamente, e que logo no começo eu me dispus a fazer, tornou cada vez mais fácil eu manter-me equilibrado.

A disposição em lutar tom o que tinha ao alcance ficou entranhada em minha mente. Quando precisava quebrar cimento, eu quebrava, quando precisava ser astuto, eu
era.

O guardião, na janta de hoje, se mostraria um desafio psicológico que, tudo o que eu vinha fazendo, fazia-me pensar que eu estava pronto para enfrentar.

De banho tomado e sentados sobre colchonetes enrolados, esperávamos a janta e especulávamos sobre, naqueles dias, nossa celebridade favorita: Matias e o seu comportamento
durante o encontro há três dias.

O plano de venda que eu e o Enzo entregamos necessitava de três meses para ser executado. Deixando a maior venda, cerca de trinta por cento do total, na última transação.
Isso impedia que eles se dessem por satisfeitos antes dela e encurtassem a nossa estada aqui.

Decidimos que a nossa estratégia seria baseada na fuga e não na palavra do bando. Já que, ao juntar a pessoa de Matias à posição que ele se encontrava, a suposição
de ele vir a nos executar, pelo menos para mim, se mostrou a mais condizente. Enzo não tinha tanta certeza; talvez a mesma vontade que me seduzia em querer acreditar
no grupo nele falasse mais alto. No final, depois de muita discussão, pelo menos consegui que concordasse comigo que fugir é melhor que apostar na boa-fé do Matias.

Estávamos no trigésimo oitavo dia e precisávamos chegar ao terceiro mês para realizarmos a fuga.

Pouco depois, a porta de madeira se abriu para o guardião entregar o nosso jantar, que vinha acompanhado por pratos e talheres de plástico. Tudo nos foi entregue
por baixo da porta gradeada. Quando acabamos, batemos na porta para devolvermos a louça plástica.

O guardião já havia conversado a sós conosco e é justo falar que em todas as oportunidades que teve mostrou-se um homem respeitoso e, até certo ponto, solidário
com a nossa condição. Entretanto, acredito que a conversa com Matias havia despertado nele algum interesse a mais sobre nós, ou talvez dado abertura para uma conversa
que ele já desejava, porque após recolher a nossa louça ele sentou-se de frente para a porta, nos olhou curioso por trás do gorro, que permitia que víssemos apenas
a sua boca e olhos, e iniciou uma conversa corriqueira, que não se encerraria tão cedo, nem permaneceria inocente.

- A comida não é a que vocês devem estar acostumados, mas é bem feita, não é?

Concordei com a cabeça e o Enzo respondeu: - Nós já reparamos. Quem quer que a faça, cozinha muito bem. - Em privacidade, nós havíamos combinado de não nos comportarmos
como dois meninos que só desejam ser aceitos, que acabam respondendo juntos pela vontade de agradar. Se nos portássemos assim estaríamos, sem desejar, induzindo
sermos tratados de acordo. Com cautela, nos propomos a diminuir respostas vazias e concordantes, e aumentarmos, dentro do possível, o contato deles com quem realmente
somos. - E o senhor que faz? - Continuou Enzo tranquilamente.

- Sim. Vocês não escutam a panela de pressão daqui? - Perguntou, referindo-se mais a minha pessoa.

- Não. Ouvimos apenas os pássaros daqui. - Menti, já que escutávamos tudo da nossa cela.

O guardião hesitou antes de iniciar o seu próximo comentário.

Deve estar sendo difícil para vocês aqui.

Esperei um segundo, demonstrando que viria um desabafo e não uma queixa.

- Está sim.

Sem comparar, de maneira alguma, mas mesmo para mim não está sendo fácil. Imagino para vocês. - Me pareceu simpático o comentário e também soou como um pesar por
toda situação.

- Pelo menos temos a companhia um do outro. - Respondi hipócrita e maliciosamente, pois talvez ele nos confirmasse se era o único no local.

- É verdade. - Bingo! A importância e o alívio em ouvir aquilo só era entendida aos que sabiam que a fuga era possível. Uma conversa inibida, mas que só era conversa
jogada fora para ele.

Decidi ser mais franco, torcendo que a franqueza pudesse ser contagiosa. - Mas não posso deixar de lado que o senhor tem o conforto de saber que no final disso tudo
sairá daqui.

Foi bem recebido o meu comentário. - Ninguém pode afirmar ainda isso. Vou sair daqui sim, mas pode ser algemado ou morto após um cerco policial. Não é?

Tinha pensado pouco nesta possibilidade. Não queria criar esperanças que não dependessem de mim.

Sendo honesto... Provavelmente isso não ocorra. - Respondi.

O guardião rebateu. - Provavelmente não é suficiente e gera muito medo e ansiedade quando diz respeito a todo o seu mundo, mas vocês sabem melhor disso do que eu.
- Ele me mostrou com a sua clareza de pensamento que, em um roubo complexo e daquele porte, nenhum dos integrantes eram bobos. Usando da verdade e do que ele próprio
desejava ouvir, veio a minha resposta.

- De fato. No final, não estamos em situações tão diferentes.

- Pelo menos enquanto estivermos aqui, não estamos. Contrariado ou não, eu também vivo em um cativeiro. O meu dia se resume em preparar a comida, ver TV no quarto
e ler revista. - Ele saía de carro todos os dias, mas não me cabia lembrá-lo.

Com tom suave fiz um pedido inibido. - Se eu pudesse ver TV ou ler revistas eu estaria no paraíso. Já imaginou, Enzo? - Por não termos nada, nos satisfazíamos com
pouco. Uma revista nestes tempos seria atração por um mês.

Enzo descontraiu. - Eu não ia querer mais sair daqui. - O riso discreto ainda não vinha sem lembrar-nos do drama, mesmo assim era bem-vindo.

- É um pensamento do Senhor Matias que eu sou obrigado a admitir que concordo. Ganharão revistas a cada transação. Garanto-lhes. Mas se vocês já tiverem isso, o
que mais poderíamos oferecer? - Ele deixou que entendêssemos sozinhos até que sorriu como entre amigos e brincou. - Se souberem de algo, me digam que eu peço para
mim. - O Enzo acompanhou os nossos risos contidos, depois de mostrar-se pensativo, à procura de atrativos para o lugar, falou libertando de ressalvas as nossas risadas.

-Talvez uma puta. - Rimos como há muito não fazíamos. Ouvir aquilo do Enzo, um homem na casa dos sessenta, e geralmente discreto, fez todos deixarem a circunstância
de lado e apenas permitirem que uma contagiante alegria preenchesse o ambiente.

Acompanhando o final da brincadeira, o guardião mostrou da onde vinha o seu bom humor. - Você deixou o senhor Matias muito satisfeito, sabia? - Falou com admiração
e certa camaradagem.

- Fico feliz em ouvir isso. - Agradeci. O que mais me restava dizer? O guardião acendeu um charuto, depois continuou. - Não pensei que

o domínio de um negócio legítimo pudesse ser tão útil para contravenção.

Meus parabéns. Daqui alguns dias já estaremos com a firma abei ta e logo colocaremos o seu plano em piítica.

Meu plano? Não sabia se aquilo era um elogio ou uma forma de me contaminar com o crime, já que, querendo ou não, eu os ajudava a obterem ainda mais lucro com o roubo.

Para o meu bem, desde o primeiro dia fiquei em paz com a posição que tomei. Sabia que eles obteriam o que quisessem de mim ou de qualquer outro. Dispunham de imaginação
suficiente para isso.

De posse de um homem você o faz entregar até a sua mãe, se for necessário. Deixe-o sem dormir ou sem beber por quatro dias que, cinco minutos de sono, um copo de
água ou um tiro no rosto valem mais do que qualquer pessoa que este homem já amou em sua vida. Respondendo sobre o comentário do meu plano, brinquei.

- Tudo sairá bem. Sequestraram o homem certo.

Recebi um sorriso e um intencional conforto. - Ficará bem para todo mundo. O senhor Matias é um homem frio, mas existe nele senso de justiça. Se vocês cumprirem
com a sua parte, ele honrará a dele.

- Sinceramente... É o que mais queremos acreditar. Vou me permitir lhe perguntar algo que eu julgo que não prejudicará o anonimato de vocês. Se eu estiver errado,
por favor, me corrija.

- Vamos ver.

- No que o senhor se baseia quando diz isso?

- Primeiro vamos parar com o senhor, me chame de... Jota. Lhe chamarei de Carlos e a ele de Enzo. Tudo bem?

- Claro.

- Respondendo a pergunta... Digo que neste um ano e meio que trabalho para o senhor Matias, sempre o vi cumprir o que prometeu.

- É ótimo ouvir isso. - Falou educadamente Enzo.

- Sei que vocês não têm como ter certeza que eu mesmo não estou mentindo, mas é só o que posso lhes oferecer. Caberá a vocês decidirem se o que conto do Senhor Matias,
e mesmo de mim, faz sentido ou não.

O Enzo deve ter esboçado, enquanto ele falava, uma cara de preocupação. O que fez o guardião vir a observar.

- Calma, Enzo. Nada do que eu falarei poderá vir a nos identificar. Comentaremos conceitos, não endereços.

- Obrigado. Temos esta preocupação de sem querer descobrir algo que possa os preocupar.

- Isso não acontecerá. Não sou o cabeça do bando, mas isso não quer dizer que só me reste o rabo. Bem, a respeito do senhor Matias, o que posso lhes contar é que
ele é um sujeito extremamente meticuloso. Tudo a sua volta é produto do seu planejamento prévio. Se ele não conhece perfeitamente algo, arruma alguém que conheça.
Vocês já sabem disso. O que não sabem é que parte do seu planejamento está em preservar, toda vez que for possível, a vida dos prejudicados. Antes de assaltarmos
o banco, tivemos que encontrar uma costureira para transformar, baseado em fotos, boas fantasias da polícia especial em fardas verossímeis.

Jota, depois de mais uma vez perceber uma careta involuntária, desta vez feita por mim, chamou a minha atenção. - De novo vocês! - Depois me explicou. - A costureira
está nos jornais, todos já sabem, Carlos. E ela, além do fato de dizer ter feito nossas roupas, não conseguiu ajudar em mais nada. Alugamos esta chácara sem que
houvesse um encontro. Tudo foi feito para que as pessoas, após nos serem úteis, possam continuar com suas vidas. Lembro-me quando o Senhor Matias me encontrou e
me fez a pergunta mais importante da minha vida e que define o que vocês podem esperar de nós. - Fez uma pequena pausa, demonstrando que o que viria significava
muito para ele. Deu uma tragada no charuto, depois citou a pergunta do Matias.

Você consegue colocar a sua satisfação acima do bem-estar das outras pessoas? Foi esta a pergunta que me fez. Existe maldade nela? Ele não me falou sobre sentimento
de injustiça, preconceito sofrido ou dificuldades passadas. Não atribuiu maldade às pessoas que tinham dinheiro. Apenas me fez aquela pergunta e disse que dependendo
da minha resposta ele poderia fazer muito ou nada por mim.

Continuamos concordando com a cabeça como que pedindo para que ele continuasse. - Não faríamos por questões sociais. Faríamos única e exclusivamente por nós. Bastava
concordar com aquela frase incondicionalmente que estaríamos prontos. Quando respondi que sim, ele me disse que só o aceitaria depois de me explicar o que o sim
representava. Coloque-se no nosso lugar. Para vocês foi oferecido um caminho honesto que os satisfaçam ou - não quero entrar no mérito - um caminho satisfatório
que vocês próprios tiveram condições de trilhar. Mas imaginem se não houvesse
tal caminho. Você não herdou nem um bem valioso, nem encontrou uma carreira a seguir, nada o prende à sociedade, nada que valha a pena investir sua energia. Saber
o que nunca terá o consome, devagar, mas constantemente. Só que um dia, você descobre, ou alguém lhe mostra, como no meu caso, um caminho alternativo. Um caminho
que você pode trilhar. A única questão que passou a me importar é: quanto ganharei e quais as minhas chances? No caso de quando conheci o senhor Matias, o quanto
era muito e as chances eram grandes. Se isso vai causar danos a outras pessoas como vocês, é uma pena, mas, sinceramente, do jeito que eu vivia, eu estava causando
dano a mim. Questões morais, quando não se tem nada nem ninguém, são apenas convenções sociais para manter uma ordem que não nos favorece.

Aquilo soava como se ele houvesse sido catequizado pelo senhor Matias.

- Então, quando foi dado a mim o poder de decidir pelo sim ou pelo não, decidi pelo sim e aceitei a injustiça, se ela me proporcionar ganhos. Porém, não vejo por
que a morte de alguém me traria algum ganho e não faz parte da nossa índole destruir uma família por capricho. Desculpem-me pela frieza, mas o intuito dela é que
vocês me entendam. Nada é garantido para nenhum de nós por enquanto, mas o que posso afirmar para vocês com convicção é que faz parte dos nossos planos todos saírem
daqui com vida. Vocês só morrerão se o que está dentro do planejado der errado. Deu uma última fumada antes de concluir o seu pensamento e me oferecer contundentemente
o charuto.

- E boa parte do planejado foi feito por você.

pomo três companheiros acabamos o charuto juntos e cordialmente voltamos ao papel que ocupávamos.

Diferente do Enzo, não consegui pegar rápido no sono. Deitado olhando para o teto da cela e com o cheiro do charuto impregnado na minha barba, eu refletia princípios
que regiam a vida daqueles homens e, por consequência, a minha própria.

Para Jota, tirar proveito era uma questão, além de simples, coerente. Não percebi em seu raciocínio contrapontos ou dúvidas. Não existia remorso ou culpa.

Todavia, possuía um raciocínio lógico, mas não assessorado pelo sentimento para daí sim ser transformado em uma conduta. A falta de sensibilidade, ou como ele se
refere, a presença da frieza, atribuía a ele um pensamento simples e matemático. No entanto, percebi que havia nessa estrutura de raciocínio, tanto diferenças, quanto
semelhanças com todos. Então procurei entender o que o diferenciava dos demais.

No mundo real não ser santo não é pecado. Compartilhamos, no meio de virtudes, muitos defeitos. Nunca vou entender o Jota, e por tabela, Matias, se eu me colocar
em um pedestal de virtudes e qualidades.

Jota deixou bem claro que sua fonte de motivação era predominantemente financeira. Uma ambição que é fonte motivadora para muitos. Seu problema foi cobiçar mais
do que ele podia conquistar. Assim, suas aspirações, ao invés de energizarem e incentivarem sua busca pelo sucesso, se tornaram fonte de frustração. Caso dê tudo
certo para ele, logo perceberá que sua ambição se dará por satisfeita por um curto período de tempo e que mais importante que satisfazê-la era ter apreendido a conviver
com ela.

Ambicionando aquilo que estava dentro das suas possibilidades, teria encontrado na ambição uma aliada, não uma inimiga. Distorcendo o que lhe era devido, também
desdenhou das suas possibilidades. Já entrevistei uma porção de candidatos querendo trabalhar na minha
empresa e percebo, como percebi com o Jota, quando o entrevistado teve bons estudos, é articulado e instruído. Por isso, não pude acreditar nele ao ouvi-lo dizer
que não teve oportunidades na vida. Pois teve. Talvez nenhuma tão covarde e preguiçosa como esta e que preenchesse tão bem suas ambições desproporcionais.

O que não encontrei no Jota é senso de utilidade ou de reciprocidade. Não ouvi dele sequer justificativas que indicassem ao menos que ele entendesse este conceito.
Infelizmente, em menor grau, percebi o mesmo em inúmeros candidatos de emprego que se esforçavam em enfatizar o quanto seria bom para eles ganharem o cargo, mas
negligenciavam ao mencionar o quanto seria bom para a minha empresa em tê-los. Assim, Jota focaliza o que quer, mas esquece o que tem a oferecer. Pena, pois me parece
um homem capaz.

Lamento quando alguém chega à fase adulta sem entender que a vida em sociedade é uma troca. É necessário, para usufruí-la, tornar-se útil.

A vida em família induz ao filho pensar que os pais representam a sociedade e que, como tal, esta é benevolente e cuida incondicionalmente de seus integrantes. Parece
que a comida nasce na cozinha e as roupas no armário.

Em bons lares acredito ainda que, até os primeiros anos, a vida dos familiares gira tanto em torno do bebê ou da criança, que esta deduz que o mundo é assim. Se
soubesse colocar em palavras, talvez se denominasse um príncipe. Infelizmente, uma hora ou outra, será lhe tirado a majestade e é claro que, para qualquer um, é
algo difícil de aceitar.

Feliz ou infelizmente, a atenção e a proteção fornecida pela família não será a mesma oferecida fora dela. A conivência da família com os erros, com a insolência
ou com a soberba, será inconscientemente transferida à sociedade e, até certo ponto da vida do indivíduo, a família pode mascarar a resposta dela a tais atitudes.
Porém, a todos chega um momento de destacamento da família, e é ali que algumas pessoas têm o primeiro contato com as regras que regem o mundo.

Filhos que tiveram pais que escolheram esconder a sociedade ao invés de apresentá-la vão encontrar muito mais dificuldades do que os que já a conheciam. Claro que
muito disso está em um nível inconsciente, tanto emocional quanto racionalmente.

Mesmo assim, apesar de os conceitos terem sido formados erroneamente, eles irão gerar durante o desmascaramento algum grau de frustração, mágoa e decepção pelo mundo.

Neste momento, o indivíduo se verá em uma dicotomia, ou se adapta o que requer esforço ou se rebela, fazendo parte do último grupo, os que se marginalizam.

A dificuldade em se adaptar dependerá da capacidade do indivíduo e de quão distante da realidade ele se encontra. Rebelar-se, diferente do ambiente hospitaleiro
de casa, representará colocar-se à margem da sociedade ou, em alguns casos, estender a proteção da família para consigo.

Só que as escolhas na vida não são determinadas às custas de uma característica ou situação, mas um apanhado delas, que juntas formaram uma visão e atitude perante
o mundo.

Foi preciso, no caso do Jota, além de sua índole gananciosa e o que quer mais que tenha lhe ocorrido, ser alheio ao sofrimento do outro. Ele tem um foco tão centrado
em si que vê o que existe ao seu redor apenas como a uma própria extensão sua, que está lá para lhe servir, cujo valor é proporcional ao benefício que pode lhe trazer.
Talvez, neste aspecto, ele continue a ser uma criança.

O sofrimento atroz que os meus filhos e minha mulher estão passando não lhe incute sentimento algum. Quantos sofrem? Deve pensar, e de certa forma a indiferença
é benéfica ao nos proteger de aflições improdutivas, mas sem medida é danosa, pois liberta de qualquer culpa alguém como Jota.

Contudo, Jota parece seguir o que acredita. Ser injusto não lhe negou senso de justiça, mesmo que prepotente e deturpada.

Não é privilégio seu possuir conceitos não validados pela sociedade. Todos temos, mas na maioria das vezes decidimos por seguir o consenso, já que a lei não é uma
sugestão, mas uma exigência. Todavia, a decisão é individual, já que a justiça não é onipresente.

Percebi, então, diferenças gritantes entre mim e Jota, mas também encontrei semelhanças. Uma delas é que o meu senso de justiça, apesar de próximo com o que vigora,
não é idêntico ao próprio. Aceitava as penas atribuídas pela minha sociedade a criminosos, mas comecei a discordar dessas sentenças quando as infrações recaíram
sobre mim. Por estar cumprindo
uma pena aplicada por pessoas que decidiram que tinham o poder sobre .1 minha vida, quero, nem que seja para fantasiar, pensar que posso fazer o mesmo com a vida
delas. Receber como esmola, uma conversa simpática de |oia, ouvir sua filosofia unilateral e ser obrigado a dividir um charuto com meu malfeitor não me tornou benevolente,
mas sim serviu para potencializar ainda mais os meus sentimentos raivosos pelo bando. Sei que a raiva que sinto não me é útil, pelo menos por agora, que só serve
para evidenciar a minha impotência, mas é pedir demais de mim que me livre dela hoje.

Sendo assim, de posse deste sentimento e tendo terminado o meu parcial julgamento, o que me restou de recurso para pegar no sono foi dar corda as minhas fantasias
e foi como carrasco que finalmente peguei no sono.

O relacionamento com o Jota havia mudado depressa e logo ganharíamos um catalisador do nosso destino.

Estávamos no quadragésimo oitavo dia e havia passado dez dias da conversa mais longa que havíamos tido com o Jota. Depois dela, durante as nossas refeições, ele
mantinha a porta de madeira aberta. Conversávamos superficialmente sobre variedades. De futebol à comida preferida.

Naquele dia, antes do almoço, ele bateu em nossa porta e avisou que junto com a comida nos traria novidades.

Quando entregou os nossos pratos, parecia que ele compartilhava da alegria que viria nos oferecer. Demorou pouco para expô-la.

- As esmeraldas foram todas vendidas! - Disse chamando os nossos olhares para ele. - E a primeira leva de rubis também.

- Que ótimo! - Disse com honestidade Enzo, já que de fato torcíamos por aquilo. Eu manifestei o mesmo, também computando que eles haviam vendido mais do que o combinado
e que as ligações que eu recebia do Matias quase que diariamente, haviam servido para este propósito.

Continuamos a olhá-lo e percebíamos que a sua satisfação não vinha só dali.

Também tenho dividendos para vocês. - Em sua mão trazia quatro revistas. As olhamos como se fossem folhadas a ouro. Coloquei meu prato de lado, levantei e fui em
sua direção, seguido do Enzo. Peguei as quatro e passei duas a ele. De pé, comecei a folhar uma delas.

- Incrível! - Eram revistas sobre animais. Apesar do meu interesse ser a respeito da história humana, parecia que o Alasca havia roubado toda a minha curiosidade.
Agradeci ao Jota e, quando a adrenalina baixou, consegui restabelecer a minha atenção à prioridade no momento. Antes, estiquei o pescoço para olhar as revistas que
estavam com o Enzo.

- A suas revistas são sobre o quê?

Animais da Ásia e a outra é da América do Sul. - Respondeu entusiasmado. - Depois de as ler, trocamos?

Claro. - Respondi já retomando o meu pensamento sobre a aceleralo das vendas. - Como foram as vendas?

O Carlos se distrai por pouco tempo, não é Enzo? - Indagou o Jota.

É um homem focado... Sorte a nossa. - Enzo respondeu sorrindo. Mas também estou curioso. Como foram? Algum imprevisto? - Eu ainda estava embriagado pela alegria
que aquelas revistas me traziam, mas elas não eram suficientes para me fazer esquecer do que estava em jogo.

Tudo está indo de vento em popa. O funcionário que contratamos é um homem muito eficiente, e Matias se mostrou um empresário convincente.

Excelente. - Eu disse acreditando ter encontrado a abertura que vinha procurando. - Sendo assim, vou aproveitar para lhe perguntar se poderíamos pedir por melhorias
de trabalho. - Não consegui dar o tom de papo jogado fora.

Jota riu. - O que seria?

O meu sorriso sumiu e em tom de desabafo lhe fiz um pedido. - Sentimos falta de sentarmos em uma cadeira e comermos em uma mesa.

Demorou alguns segundos, mas a sua feição curiosa mudou para discretamente compreensiva. - Eu passo tanto tempo pensando nas minhas
privações que acabo esquecendo da extensão das suas. - Uma cadeira e uma mesa! Pode ser, mas tenho que falar com o senhor Matias antes.

Observei logo ao término da sua frase. - Jota, você acha que ele pode interpretar como desrespeito o meu pedido?

- Fique tranquilo. Eu sei como fazer. Pedirei como se fosse uma vontade minha lhes recompensar com isto. Sinceramente, não tinha me ocorrido i lalta que uma simples
cadeira pode fazer. Vou ligar para ele agora mesmo.

- Agradecemos muito. - Falou Enzo.

- Quando o Jota se afastou, eu e o Enzo ficamos apreensivos com a possibilidade de sermos ou não atendidos e por tudo o que aqueles objetos poderiam nos representar.

Cinco minutos depois o Jota voltou com uma cadeira em cada mão. Foi fácil convencê-lo. A única coisa que me disse foi que não era para eu ser solidário demais com
vocês e que os meus e os seus pedidos, por enquanto, paravam por aqui. - Rindo, continuou. - O Matias é preocupado demais.

- Obrigado, Jota. - Dissemos eu e Enzo.

Vocês estão fazendo por merecer. - Largou uma das cadeiras no chão e pegou a chave em seu bolso. - Mas vou ter que lhes pedir que entrem no banheiro e fechem a porta
para eu poder colocar as cadeiras e a mesa aí dentro. - Amigavelmente justificou em poucas palavras o que nos lembraria. - Gente, vocês não me cativaram tanto assim
para que eu abra a cela desarmado, OK?

Rimos e nos trancamos dentro do banheiro. Quando saímos estávamos com duas cadeiras e uma mesa pequena ao nosso dispor. Estranhei ver a peça preenchida com móveis,
em seguida abençoei a mudança de ares. Encantados pelo que acontecia, pegamos os pratos do chão e os colocamos sobre a mesa.

- Minha nossa! - Disse emocionado Enzo ao sentar. - Eu sabia exatamente o que ele estava sentindo. Eu também estava espantado com o quanto era reconfortante poder
sentar em cadeiras. Minhas pernas há muito não descansavam naquela posição. Senti perfeitamente a ação da gravidade direcionar o meu peso ao centro do banco. Constatei
a firmeza dele e como a sua idealização primordial trazia consigo uma nova experiência. Senti alívio pela minha planta do pé não precisar orientar o meu equilíbrio.
Vivenciei uma pequena porção de paz naquele conforto estático. - Que saudades disso! - Exclamei. - Ao me acostumar mais com as sensações que me envolviam, pus os
meus cotovelos sobre a mesa, enchi meu garfo com comida e o levei à boca. Relembrei como é cômodo o trajeto que o garfo percorre quando o prato se encontra sobre
a mesa. E a cada novo ato redescoberto, uma satisfação desproporcional o acompanhava.

Jota apenas nos observou e nós pouco falamos depois de lhe agradecer. Talvez porque aquele era um momento tão especial que queríamos guardálo com privacidade. Logo
ele se despediu dizendo que estava satisfeito por dentro daquela situação indesejável ter podido nos proporcionar algum, mesmo que momentâneo, bem-estar.

Passamos boa parte da tarde sentados, mas comprometidos com a promessa de no dia seguinte usar as cadeiras de acordo com o real propósito com que as havíamos pedido.

Suportar nas costas o companheiro enquanto ele desgasta o cimento roubava muita energia do trabalho principal. Com uma cadeira aumentaríamos
a nossa eficiência. Alem de permitir que, enquanto um trabalha, o outro descanse.

O "pagamento" que tínhamos recebido havia aumentado consideravelmente as nossas chances de fuga por nos levar mais rápido a ela.

No dia seguinte percebi que minha estimativa sobre o quanto removeríamos a mais de tijolo estava subvalorizada. Rendíamos consideravelmente mais do que eu havia
imaginado. Além de nos tornarmos mais eficientes, a exaustão chegava em doze horas, e não mais em oito. Assim, acabamos por dobrar a nossa produção, o que aproximava
a nossa fuga de dois meses para um mês.

Desistimos da ideia de retirarmos a barra, pois, depois de um tempo escavando, entendemos que ela estava "enterrada" demais na alvenaria. A opção que nos sobrou
foi a de continuar ocando a parede para quebrá-la no dia da fuga.

Preservamos a integridade externa da parede. Ela parecia inalterada, tanto visto de dentro da cela, como se visto de fora da casa. Apenas se eles enxergassem a base
da janela encontrariam o buraco que estávamos fazendo. Para o nosso bem, a janela começava a dois metros de altura do chão.

O buraco já estava profundo demais para usarmos as duas mãos. A boa notícia era que o cimento reforçado cobria apenas superficialmente a base da janela; depois de
três centímetros de profundidade, a maior parte era feita de um tijolo maciço bastante resistente, mas que ainda assim era mais fraco que o cimento. Então, como
não conseguíamos bater, o que fazíamos era raspar a maçaneta já gasta sobre os tijolos e, de acordo com o meu relógio, fazíamos isso, inacreditavelmente, durante
quase doze horas por dia.

Depois da nossa função operária, nós gastávamos quinze minutos especulando sobre quantos dias ainda faltavam. Servia como distração e para a motivação do dia seguinte,
pois isso nos fazia perceber que estávamos avançando em direção à fuga.

Há quase vinte dias estávamos escavando. Em um mês, devido à dobra do rendimento, completaríamos a maior parte, os três quartos finais. Por
dia, retirávamos um volume equivalente a três ovos de galinha. Para uma parede dupla, isso não representava muito.

No começo da noite, depois das especulações, fui ler uma das minhas revistas. O que aguardara todo dia para fazer. Folhei rapidamente todas as páginas, dando uma
breve olhada no que me esperava.

Na noite anterior eu havia pensado no guardião Jota e mal as havia olhado para guardá-las para um momento de maior tranquilidade.

Sabendo as maravilhas que viriam, pude dedicar à cada página toda a atenção que podiam merecer. Só na capa demorei o tempo de uma grande matéria. Para as pessoas
de hoje em dia qualquer coisa que aqui me encheria de entusiasmo não tem quase nenhuma importância.

Continuei a ler tudo, a observar tudo de cada página, da incrível complexidade da impressão ao fascinante mundo da raposa do Ártico. Depois de quarenta páginas de
muita contemplação, terminei a leitura e me peguei imaginando o que um sorvete ou um churrasco fariam comigo.

Na onda gastronômica acabei por me lembrar de inúmeros objetos de que eu sentia falta. Percebi que a privação havia mudado o valor que eu atribuía a quase tudo.
No caso de minha mulher e filhos, não posso afirmar que o amor havia mudado, mas com certeza havia se tornado bem mais consciente. Já nos objetos inanimados, entendi
que os seus valores são muito mais relativos do que eu imaginava.

Com a simplificação dos objetos de que eu dispunha, pude entender que eles em geral servem basicamente para suprir duas necessidades. Objetos que atendem a uma necessidade
legítima, como conforto, higiene, segurança, transporte e alimentação, e os que atendem tanto a necessidades legítimas, quanto a emocionais, como o entretenimento,
o status e o luxo.

A primeira, como o vaso sanitário e o chuveiro que disponho aqui, tem o seu grau de importância fixado pelo seu uso prático, sendo assim justificada predominantemente
pela razão, enquanto que a segunda, que poderia ser chamada de necessidades secundárias, possui importância extremamente variável, cujo valor é sujeito à percepção
individual e específica ao momento. Sei disso porque desejei não apenas o transporte, mas o carro de luxo menos do que desejo agora um simples churrasco.

Uma lasca tirada da grelha direto para o meu prato, suculenta e com uma fina camada de gordura, crocante e salgada. Por Deus! Minha boca se
encheu de saliva e eu me surpreendi com tamanha vontade. Fui deixando ela de lado e me peguei pensando se todo aquele desejo podia ser controlado ou transferido
ao jantar que eu de fato receberia.

Sabendo que eu já cotei o churrasco apenas como uma ótima refeição e não como um pedaço do paraíso, me perguntei se eu poderia, conscientemente, voltar a enxergá-lo
assim. É possível eu reatribuir valor aos objetos de forma a me beneficiar?

Na vida, sempre desejei o que eu podia ter, não o que o outro tinha. Concluí que inconscientemente eu já vinha induzindo meu interesse de acordo com as minhas possibilidades.
Algo que há poucos dias percebi que o Jota e, provavelmente, o Matias desconheciam.

Inconscientemente, eu já sabia o que a revista de animais veio me salientar. O valor dos objetos sao extremamente variáveis e, tendo plena ciência disso, eu poderia
influenciar racionalmente o grau de importância deles.

Nasci classe média baixa e até chegar nas classes financeiras mais altas passou-se tempo suficiente para eu viver bastante entre as classes que as separam. O que
me permite dizer que existem, tanto entre os menos privilegiados, como entre os mais abastados, os insatisfeitos. Pessoas que sempre almejarão bens materiais além
de suas posses.

Convivi em todas as classes que passei com estes indivíduos. Pessoas da classe média baixa comprometendo o orçamento familiar ao comprar um televisor moderno e enorme.
Ricos gastando parte do capital de giro dos seus negócios em uma compra precipitada do terceiro ou quarto imóvel familiar. Isto sempre me chamou a atenção. Por que
razão um sujeito gastaria voluntariamente mal o seu dinheiro? Eu não entendia, porque até então eu encarava as compras como tarefas executadas para saciar majoritariamente
necessidades materiais e não emocionais. Mas o fato é que a razão raramente é a nossa única influência. E a parte emocional, em diferentes pessoas, possui diferentes
proporções.

Mesmo eu, um comprador moderado, quando compro roupas, não tenho como objetivo só me aquecer. Admiti que o ser humano, no mundo moderno, quase tudo que compro, compro
também por motivos emocionais, criticáveis ou não. Do homem atual a um índio com as penas mais nobres sobre a cabeça.

Contudo, nunca deixei que o desejo por um bem me comprometesse financeiramente. Esta característica facilitou eu criar uma empresa forte que, para enfrentar uma
crise ou alavancar um negócio, sempre dispôs de caixa. Posso atribuir parte do meu sucesso a esta característica e a sempre ter deixado que a razão assessorasse
minha emoção. Manipulava até então, sem perceber, o valor dado ao objeto de acordo com as minhas possibilidades e razão em tê-lo, não deixando me seduzir por aquilo
que poderia me prejudicar financeiramente.

Lembro-me quando jovem, recém-formado no colégio, tendo que trabalhar para pagar a minha faculdade de Administração. Eu vivia em um apartamento com sala, quarto
e cozinha conjugados e com dinheiro minguado, comprometido com o aluguel e a compra do mercado. Tinha colegas na mesma situação ou mesmo em uma melhor, em razão
dos pais, mas com uma visão totalmente diferente de mundo.

Enquanto ouvia queixas a respeito do trabalho, dos seus apartamentos e de como a comida estava cara, eu continuava a me achar um afortunado por ter conseguido encaixar
o horário do serviço com o da faculdade.

O próprio trabalho eu via de forma diferente. Sua função era a de exigir da minha pessoa, me ensinar e me fortalecer. O meu apartamento era minúsculo, mas, se comparado
com um quarto de hotel, se tornava amplo.

Com a comida eu também usava o meu raciocínio para induzir o modo de encará-la, ou melhor, o usava de modo a alcançar as emoções que me fizessem a olhá-la com desejo.

A comida de que eu dispunha era pobre, ou pobre era a forma dos meus amigos de vê-la? Tínhamos, a baixíssimo custo, excelentes massas, arroz e frutas. Tínhamos alho
e outros diversos temperos. Tudo ao alcance do curto orçamento.

Na época, entendo hoje, eu já induzia a minha mente de forma consciente e simples. Para mim, era uma forma natural de encarar o que eu tinha.

O que eu fazia era me convidar a olhar minhas posses por diversos prismas e escolher o que melhor me servisse. Algo que fiz aqui e que me serviu para continuar lutando.

Lembro de me fundamentar em história quando buscava diversificar a minha percepção.

Reclamamos do que não temos como se o que nos faz falta fosse elementar para uma boa vida, mas quantas vidas existiram antes do que estamos pedindo existisse? Com
um pote de pimenta eu viajava até mil e quinhentos anos do calendário cristão onde cravo, canela e pimenta eram artigos de luxo e considerados um privilégio quase
que exclusivo da alta sociedade. Depois, ficava fácil agradecer que no meu apartamento era servido todos os dias comida de nobre, mesmo sabendo que no apartamento
ao lado poderia ser visto como comida de pobre.

Antes de adoçar o meu café, que fazia as vezes da sobremesa naquela época, eu olhava para o meu pote de açúcar e, quando sentia que precisava, me lembrava que apenas
depois da Revolução Industrial, no século dezenove, pessoas poderiam desfrutá-lo em tamanha quantidade e qualidade. Sem falar no sal, que por milênios pôde ser chamado
de ouro branco, tamanho era o seu valor e que estava a minha disposição na mesa.

Fazendo aquilo eu induzia racionalmente minhas emoções, transformando uma pequena frustração em potencial em uma razão para agradecer. Valorizava o que eu tinha
e me desvitimizava ao mesmo tempo.

Todavia, nem por isso o meu objetivo era o de me desprender de posses, tanto que as procurei. Também não almejava o poder de louvar a areia, mas simplesmente estar
em uma melhor harmonia com o que tinha, sabendo que o que possuo pode e deve ser valorizado, e isto não está fixado ao objeto inanimado, mas sim é uma tarefa que
cabe ao observador.

É nos passada a ideia de que o meio tem fundamental influência sobre o indivíduo, e de fato é verdade, não posso negar na situação que me encontro, mas posso acrescentar
que o indivíduo tem diversas possibilidades para perceber o meio e, assim, ser influenciado por ele. Um belo passo a ser dado talvez seja ter maior controle sobre
como vemos o que nos cerca.

Enzo me cutucou a perna, depois me chamou, possivelmente pela terceira vez. - Hei! Júlio César. Acorde. - Falou com bom humor.

Eu não havia ouvido a porta se abrir. O Jota trouxe a nossa janta. Antes de pegá-la, agradeci mentalmente o fato de estar sendo bem alimentado e ainda ter três revistas
magníficas pela frente.

Duas semanas e meia haviam se passado e acabamos por gozar de uma espantosa intimidade com o Jota. Tudo estava posto na mesa. Era sabido que a situação era muito
mais forte que os fracos laços que havíamos criado, o que ajudou a desenvolver uma relação honesta entre as partes. Nós mataríamos ele se pudéssemos; ele nos mataria
se precisasse. Mal eu sabia que em aproximadamente quinze dias tudo iria terminar.

Todos os dias conversávamos cerca de uma hora depois do almoço; caso ele não declinasse do papo, nós o fazíamos. Precisávamos antes de tudo trabalhar. Poucas vezes
ele nos procurou fora do horário das refeições e, nestas ocasiões, as mesmas trancas que nos mantinham presos, nos davam tempo para evitar o flagrante.

Foi no começo da tarde, depois de cinquenta e cinco dias de cativeiro, que o Jota veio nos trazer grandes notícias. Enzo estava em cima da cadeira trabalhando na
escavação quando ouvimos os passos do Jota se aproximando pela sala. O som das trancas sendo abertas se seguiu. Suavemente Enzo desceu da cadeira e se juntou a mim.

Ficamos de pé esperando que a porta de madeira se abrisse. Concordamos que se interessar pela "porta que se abre" era a conduta mais coerente, tendo em vista a vida
que levávamos. Chamávamos o que fazíamos de "esperar pelo dono".

A porta se abriu com o Jota de gorro, sorrindo para a gente. Depois perguntou:

- Como estão os executivos hoje?

- A disposição, como sempre. - Brincou Enzo.

- Tenho ótimas notícias.

Enzo respondeu com o seu habitual bom humor, contagiando-nos com a sua energia. - O que foi? A polícia cercou a casa?

- Não tão boa assim. - Sorriu. - Sabe... - Falou para mim elogiando o humor do Enzo. - Você devia ser mais como o seu colega. - Comentou amigavelmente.

- Se eu pudesse, eu seria. - Respondi focado nas novas notícias. - Mas que novidade você nos traz? - Falei já cogitando novas preocupações.

O Jota pegou uma cadeira e sentou-se em frente à porta gradeada.

- O cativeiro de vocês está chegando ao fim.

Tomei um leve susto e, sem saber o que pensar, olhei para o Enzo, que tão pouco entendeu o que ouvira.

- O que aconteceu? - Perguntou Enzo. - Isso. O que houve? - Repeti apressado, mas ainda subestimando a informação.

- Com um largo sorriso no rosto, Jota, sem saber, arrancaria todo o ar de dentro do meu peito.

-Vendemos todos os rubis e um terço dos diamantes. - Comentou pensando que nos contagiaria com a sua alegria, já que imaginava que as nossas expectativas giravam
em torno das promessas feitas por eles. Infelizmente, quando ouvi aquilo, minha reação foi indisfarçável. Os meus músculos involuntariamente se enrijeceram e eu
fiquei paralisado; entretanto, isto não impediu que o meu pensamento voasse por conta própria.

O Matias estava andando com os seus próprios pés e rápido demais. Eu e Enzo precisávamos de no mínimo três semanas de escavação ou não passaríamos pelo buraco.

O desgraçado, dado o seu perfil e talento, poderia vender o restante dos diamantes a qualquer momento, depois nos enterraria.

A medida que eu ia entendendo as implicações daquela notícia, fui perdendo os meus sentidos. Em pouco tempo, mal tinha certeza se ainda estava sentado. Meus olhos
lacrimejavam e os meus músculos não se mexiam. Senti minha cabeça pesando para frente, mas eu não tinha certeza se eu estava me mexendo, nem conseguiria corrigir
o movimento caso eu estivesse caindo. Eu precisava me recuperar.

- Carlos, você está bem? Carlos...

- O que está acontecendo, ele está bem, Enzo? - Perguntou Jota, levantando-se da sua cadeira.

- Carlos... Fala comigo.

Recebi leves tapas no rosto, depois senti o Enzo me segurando com firmeza na tentativa de me manter sentado. O Jota estava de pé atrás das grades perguntando o
que estava acontecendo. Concentrei e me esforcei para retomar o controle sobre o meu corpo e depois de um tempo ele me atendeu.

- Eu estou bem. - Falei baixo, ainda recobrando os sentidos. - Me deixa respirar um pouco. - Sentado, respirei profundamente algumas vezes.

- Está tudo bem, Carlos? - Perguntou Enzo.

- Está. - Mas não estava. Minha frustração alcançou o mais alto grau desde que eu havia chegado aqui. Eu desejava chorar desesperadamente. Sentia meu esforço e a
minha esperança serem desdenhados e depois jogados fora. Também senti vontade de gritar e dizer para todos que o prometido era uma farsa. Que eu sabia e que nada
me convenceria do contrário. Eu queria trazer para o meu desespero o Enzo e falar para o Jota o que eu simplesmente sabia. Esta era a minha vontade. Eu precisava
extravasar tudo aquilo que há muito vinha me remoendo. Mas eu consegui engolir as palavras, sem, no entanto, diminuir a minha ira, meu ódio por eu ter que fingir
que acreditava no maldito Matias. Eu queria berrar para todos que eles me matariam, mas que nem por um segundo me iludiram... Mas quem a minha insignificante raiva
atingiria? Minha frustração serviria apenas para me afastar do Jota e contagiar o Enzo. Gastei minhas últimas energias para suprimir o que quer que aflorasse naquele
momento. Nada de bom viria.

- Desculpa, Jota. Foi involuntária a minha reação. - Falei sem conseguir disfarçar o abatimento.

- Tudo está indo de vento em popa, Carlos. O seu plano está mostrando ser correto e ainda melhor do que o imaginado. O Matias está acelerando as vendas porque está
se sentindo seguro.

- Mas é arriscado apressar tanto assim. - Menti para justificar minha atitude e também por simples reflexo de mentir, já que a esta altura sabia que o Matias não
seria mais segurado por mim.

- Você acha?

- Não importa mais o que eu acho, importa? - Estava muito fraco para fazer rodeios.

- Acho que não. - O Jota respondeu com aparente sinceridade.

Fui direto ao que me interessava, porque eu gostaria que terminasse aquela conversa Você acha que o Matias vai nos libertar? Jota vacilou antes de responder.

- Vou ser muito verdadeiro com o que digo. Acredito que vocês foram excelentes no que foi lhes cobrado. Deixaram eu e o senhor Matias extremamente satisfeitos. Sei
que ele os admira e sei como costuma manter a palavra com quem foi útil e colaborativo. Então, sem dar garantias, já que sempre fomos muito honestos uns com os outros,
acredito que sim.

- Quanto tempo?

- Acho que em uma ou duas semanas vocês se verão livres de nós. Em uma ou duas semanas nós não conseguiríamos acabar o buraco, pensei comigo.

Lágrimas saíram dos meus olhos e eu pedi desculpas por isso. Quando me recuperei, lhe fiz uma pergunta.

- Você sabe quanto tempo depois da venda vocês nos libertarão?

- Parece que três dias depois ligaremos para a polícia e daremos o endereço daqui.

Foi demais ouvir aquilo e eu acabei perdendo totalmente o controle. Eu não era tão centrado como o Enzo. Pulei, me sacudi, falei sozinho e bati nas paredes. Entretanto,
senti que os dois compreendiam perfeitamente os meus atos.

Comecei a andar dentro da cela de um lado para o outro, de vez em quando olhando para o teto, desejando que minha soltura pudesse ser verdade. A vontade de rever
a minha família era forte demais para eu aceitar que não fosse atendida. Não depois de estar tão perto da fuga. Ainda perambulando pela cela, pedi ao Jota que me
desse um tempo para me recuperar, e ele atendeu dizendo que voltaria depois.

Eu continuei caminhando e comecei a sentir todo o meu corpo formigar e alguns espasmos musculares no rosto e nas mãos. Mais uma vez o meu coração estourava de raiva
dentro do meu peito. Eu sabia que se não fugíssemos, tínhamos alta probabilidade de sermos mortos pelo Matias, e nada me convenceria do contrário.

O Enzo me segurou firme pelos braços e a seguir me deitou na cama, onde minutos depois meu corpo exaurido se desligou.

Quando acordei, uma hora mais tarde, a descarga de adrenalina que eu havia tido me fez sentir como que se eu estivesse parcialmente anestesiado e, ao mesmo tempo,
o estresse que há meses vinha se acumulando parecia ter sido dissipado. Foi como se a ida ao fundo do poço tivesse cobrado até o último dos meus hormônios de "alerta
ao perigo" e agora eu não mais os tivesse.

Estranhamente, eu me percebia sereno e a minha morte, que até então eu não conseguia admitir, se tornou aceitável. Na bizarra situação em que me encontrava, aquela
indiferença trouxe-me uma recarga de energia e constatei que eu estava mais disposto a ver o que viria do que propriamente preocupado.

É possível que eu estivesse saturado de desapontamentos a tal ponto que eu houvesse me dado o direito de não mais me importar. E a falta de alternativas servia para
autenticar ainda mais aquele pensamento.

Claro que eu pensava na minha família, mas sentia que, com tudo o que fiz e agora, com tudo aquilo que tenho, naquele momento eu estava livre para não sofrer pelo
que viria. Com isso minha aflição sumiu. Meu medo e minha raiva sumiram e eu, mesmo sabendo que aquela reação era transitória, gozava de certa tranquilidade.

Parecia que eu entendia os homens das primeiras fileiras nos campos de batalha que correm enérgicos em direção à morte. Pelo menos uma parle deles. Talvez não fosse
só o ódio ao inimigo e o dever pátrio que os motivassem, mas a desistência aliada ao desgaste de continuar vivendo, que lomavam corpo junto à falta de opção e perspectiva.
Porque se me largassem lá dentro do jeito que eu estou, minha vontade seria a de correr o mais rápido que eu conseguisse até o outro lado, enfiar uma espada no peito
do inimigo e depois aceitar a minha morte.

Com a supressão das minhas emoções, contava com a minha razão predominantemente e tive condições de reagir à situação melhor do que eu
podia esperar. Em uma hora meu corpo tinha descansado mais do que em uma noite interia. Abri meus olhos, me espreguicei na cama e, plenamente lúcido, comuniquei
ao Enzo que me sentia melhor.

Depois de me ouvir, perguntou: - E agora, meu amigo?

- Agora estamos à mercê do Matias. - Falei uma frase temerosa, sentindo-me um pouco indiferente a ela. Enzo respondeu:

- Ainda não é certo que a última venda seja antes de um mês. Me levantei para depois sentar à frente dele.

- Mas é muito provável. - Respondi. - Ele tem no histórico duas vendas relativamente rápidas de esmeraldas e rubis. Já fez o contato com compradores de diamante
e já efetuou um terço das vendas desta pedra. Pela lógica, a partir de agora, ele tem capacidade de vender tudo a qualquer momento. Só deve estar esperando por outro
comprador ou mesmo já negociando com um.

Enzo assimilou o que eu dizia, depois abriu meus olhos para um ponto que eu não havia ainda notado.

Carlos, a última vez que o Matias lhe pediu conselho foi a respeito da venda dos rubis há quatro dias, não foi?

- Foi. - Até então, o Matias já havia falado comigo ao telefone em muitas outra ocasiões, geralmente à noite.

- Pelo que está dizendo, parece que ele não precisa mais dos seus conselhos. Não concorda?

- De acordo com o que nos foi dito hoje... Concordo.

- Se o que pensamos dele é verdade, por que ele ainda nos mantêm vivos?

Me espantei com aquela simples verdade que há tão pouco tempo se tornara disponível para nós.

- De fato... Não sei. - Fui falando à medida que me vinham as ideias. -Talvez um assessoramento de última hora. Algum imprevisto... Mas a essa altura ele próprio
sabe administrar imprevistos. Também tomou sozinho a iniciativa de contatar os negociantes de diamantes... O safado aprendeu rápido! Não sei, Enzo. Não sei por que
ele nos mantém vivos. Talvez vá nos libertar ou... Esteja vindo nos matar. - Soltei um riso nervoso. - Ou tem outras prioridades no momento.

Enzo se pôs a pensar, depois compartilhou a sua esperança com admirável calma.

- Você já pensou seriamente que ele pode cumprir a sua palavra. Só pense com vontade uma vez nesta ideia, porque nossa chance de fuga diminuiu drasticamente. Sermos
pegos cavando pode destruir a única chance que temos. Eu concordei com você que a fuga era a melhor escolha, mas a situação mudou. A fuga se tornou muito improvável,
e o fato de sermos mantidos vivos, depois de perdermos a utilidade, é compatível com o acordo de sermos libertados, não é verdade? - Sorriu, parecendo de fato confuso.
Depois completou. - Ou virei bobo depois de velho?

Eu pensei a respeito.

- Talvez é o que nos resta. Virar bobos e torcer... A conclusão que colocaste pode estar correta. Só que para mim ela não condiz com o Matias. Seria uma conduta
alienígena no meio das tantas outras que conhecemos. Mas vai saber... Tudo é possível, porque se eu me basear sobre o que penso do Matias... Nós já devíamos estar
mortos. Mas é bom lembrar que tudo que supomos foi e ainda é passível de erro. Talvez tenhamos outra utilidade... De qualquer forma, não acho que devemos deixar
de escavar o buraco. Vai que fiquemos aqui por um mês inteiro. Conseguimos ouvir um ruído a cinquenta metros, Enzo, não vai ser fácil nos pegar! E outra, se nos
pegarem, vão pensar o quê? Se estiverem mesmo bem-intencionados, passarão da bela atitude de nos cuidarem dias a mais do que precisavam para a de nos executar porque
nos flagraram lutando por nossas vidas? Não. - Enzo ouviu passivamente os meus argumentos, depois se uniu a mim.

- Você tem razão... Vamos continuar. Mas admito que estou botando um pouquinho de fé no Matias.

- Se isto lhe ajuda... - Foi o máximo que consegui dizer. Infelizmente, em pouquíssimas coisas na vida eu depositava minha fé. Ficamos em silêncio por pouco tempo,
até ouvirmos alguém se aproximar da porta.

A informação, que viria a ser a mais valiosa já recebida por intermédio do Jota, havia sido atrasada pela minha descompostura anterior.

Jota abriu a porta.

- E aí, meu amigo, está se sentindo melhor? - Falou solidariamente.

- Estou, a notícia me pegou de surpresa. Desculpa minha reação.

- Que isso, Carlos! Não sei se não faria o mesmo... Mas e aí, conseguiu pensar melhor, ver o que lhes contei como uma notícia positiva?

- Consegui. O que quer que aconteça, quanto mais rápido melhor. Jota sorriu sem jeito. Eu havia perdido a paciência em me polir.

- Desculpa, mas vou ter que concordar.

Enzo entrou na conversa. - Pelo que eu percebi, você realmente acredita na palavra do Matias, não?

- Acredito. - Respondeu Jota.

Enzo continuou. - E eu acredito em você. - Eu também começara a acreditar no Jota desde o momento em que o Enzo me alertou que o grupo havia se tornado independente
de nós. A partir de então o Jota não tinha razões para mentir, nem teria interesse e a frieza de desenvolver um relacionamento com quem soubesse se tratar de futuros
cadáveres. Minha preocupação era com o Matias.

E o Matias? Tens conversado com ele a respeito de nós? - Racionalmente o Enzo conduzia a conversa.

Jota se mostrou disposto ao diálogo e pegou uma cadeira para sentar. Antes de responder, optou por uma introdução contundente. - Olha, eu não quero perder o nosso
tempo tentando convencer vocês de nada. Se querem me perguntar algo, espero que pelo menos já tenham entendido que eu não tenho razão nenhuma para mentir... Ou tenho?
- Fitou-nos brevemente nos olhos para salientar o que dizia, mas pareceu fazer isso com o intuito de um amigo.

- Não tens. Eu e o Enzo estávamos falando sobre isso antes de você chegar. O jogo acabou. Estarmos vivos já é para nós o maior indício da boavontade de vocês. Mas
entenda, até que tenhamos posto nosso pé para fora daqui, as implicações da nossa soltura estarão sempre em pauta.

- Eu entendo... - Falou dando fim àquele assunto. - Então, respondendo a sua pergunta, Enzo. Conversei com o Matias esta semana e ele me disse que em duas semanas
estaremos saindo daqui. Perguntei se manteríamos o combinado a respeito de vocês e ele me respondeu que não tinha razões para não manter, mas que gostaria de falar
novamente para lhes explicar o que devem contar à polícia e por que deveriam seguir à risca esta última ordem.

Aquilo fazia mais sentido do que simplesmente nos soltar. Poderíamos ajudar eles passando uma versão à polícia que os favorecesse. Era uma escolha em que se podia
acreditar. - Olhei para o Enzo com um pequeno sorriso no rosto. Nós tínhamos algo para se segurar!

- Vocês estão mais felizes? - Tudo estava à flor da pele aquele dia e o jota deve ter reparado que a informação tinha sido bem recebida.

- Também estou feliz por tudo isto estar acabando. - Falou apostando no sucesso. - Foram um ano e meio de muito planejamento e trabalho.

- Enzo respondeu usando sua sempre confiável estabilidade. - Eu imagino... Sinceramente, espero que tudo acabe bem para vocês.

- E dará, Enzo. - Afirmou Jota- Já deu certo para os outros, por que não daria certo para mim e para o mentor de tudo isso? - Falou despreocupademente, em parte
como desabafo depois do final do jogo, em parte como uma necessidade de reforçar a sua própria confiança. Eu e Enzo nos olhamos e, como eu, ele estranhou o que o
Jota havia dito. Fui eu quem primeiro retrucou: - Não vamos enfiar os pés pelas mãos, veja se não se compromete nos respondendo, mas como assim, para os outros deu
certo?

Você sempre precavido, não é? - Fez uma pausa. - Não é segredo que tenhamos que sumir do mapa, ou é?

- Não sei o que a polícia sabe sobre vocês. - Respondi.

- Pois nem nós. - Rebateu.

- É verdade. Por favor, continue.

- Então... Na dúvida, todos nós temos que fugir do Estado, e os primeiros já foram.

Perdi um tempo ainda estranhando a informação que acabara de ser confirmada. - E eles fugiram antes da venda dos diamantes? - Perguntei tentando imaginar alguma
razão que pudesse explicar aquilo.

- Carlos... - Falou chamando a minha atenção.

- Desculpa, mas é de se estranhar alguém sair no melhor da festa.

Você não tem cura. Dividiremos o total quando nos reencontrarmos. Eu e o Matias ficaremos com um percentual a mais pelo risco maior que assumimos. Matias entendeu
que era mais seguro ficar apenas quem fosse ainda necessário e decidiu que ficaríamos nós dois logo depois de você entregar os planos de venda para ele.

- Eu lhe disse que quanto menos pessoas, melhor. - Falei isso pensando principalmente que ele devia ter escolhido o mais crédulo e fiel dos discípulos.

- Exatamente, quanto menos pessoas envolvidas na cidade, menor o risco.

Sim... - Respondi. Talvez o medo houvesse me tornado finalmente paranóico. Contudo, desejei entender aquela situação no mínimo curiosa. Perguntei com receio do que
poderia receber como resposta. - E o que garante que ninguém passe o outro para trás? - Eu via o Matias como uma ameaça, enquanto o Jota o via como parceiro e mentor.

É como uma empresa, Carlos. Eles sabem quantas pedras tínhamos; com notas e extratos bancários teremos que chegar a um valor coerente. Além de todos concordarem
que é melhor ter uma pequena fortuna tranquilo do que uma fortuna maior, mas com um familiar atrás do outro morrendo.

-Justo...

Enzo entrou na conversa. - Conheces a família do Matias?

- Não, mas porque foi ele que nos procurou. De qualquer forma, todos conhecemos o seu rosto, sabemos onde encontrar suas digitais e pedaços da sua história. A polícia
não precisaria mais do que um de nós para encontrá-lo. Somos todos lobos aqui, Enzo. Vocês não estão sugerindo que...

Tomei a dianteira da conversa. - Sabes que sou desconfiado; é uma preocupação que surgiu. Mas também podemos estar apenas jogando conversa fora.

- Você nunca joga conversa fora, Carlos. Pelo menos, não comigo... Eu já disse para vocês: O Matias pode passar por cima da lei, mas isso não impede que ele crie
relações de confiança. Estamos nessa juntos há um ano e meio, como já disse, e já passaram muitas pessoas que seriam mais fáceis de descartar do que de pagar ou
deixar viver. A costureira de que lhes falei é
um exemplo. Além de deixá-la viva, ele pagou pelo serviço. Se eu uao tivesse visto, não acreditaria. O gerente do banco...

- Gritamos eu e Enzo juntos: Não... - Eu sempre imaginei que eles precisariam da colaboração do gerente para terem certeza que não restasse nenhuma imagem de vídeo
dos seus rostos. E bem sabia, eles eram bons em convencer pessoas.

- Porra, já falei que não vou me comprometer. Mas que merda! - Riu do nosso sincronismo e medo. - Vocês dois têm que sair logo daqui; estão ficando paranóicos. -
Enzo e eu rimos, e me perguntei de novo se não era o caso. Depois, Jota continuou. - Por exemplo, vocês serão burros de arriscarem suas vidas depois de devolvermos
ela para vocês?

- Não. - Respondemos juntos novamente.

- Então, nenhum de nós é. Também temos medo um do outro... E respeito. Outra coisa. Deixem que eu filtre o que devo falar. - Fez um intervalo para assimilarmos o
que dizia. - Então, muita gente passou, e quem colaborou se saiu bem. Eu mesmo, a mando do Matias, gastei do dinheiro do assalto para conseguir o que restava de
documentos para que os outros fugissem.

O Enzo iria se mostrar alinhado com o que eu estava me questionando. - Desculpa lhe perguntar sobre isso, Jota, mas comecei a concordar que pouco tens para se preocupar
conosco. Então, posso?

- Diga. Espero que não seja outra preocupação.

- Também espero... Você já falou com eles depois da fuga?

Jota não vacilou. - Não, isso só aumentaria o risco. - Aquela situação curiosa acabava de ter um potencial mórbido.

Eu esperava que um grupo de bandidos tivesse uma equivalência de forças e utilidades que protegessem seus integrantes.

Talvez eu estivesse fantasiando, talvez minhas vontades estivessem enfraquecendo o meu discernimento, mas independente de qual fosse a razão que estivesse me
puxando para aquela possibilidade, o fato era que eu não conseguiria mais frear o meu impulso de ir a fundo nela, e parecia que o Enzo também não.

- De que forma aumentaria o risco? - Continuou Enzo.

- Vocês estão querendo que eu fique desconfiado, é isso?

- Não. Estamos tentando entender a sua situação. Caso nada mude, o máximo que perdemos é o nosso tempo. Então de que forma aumentaria o risco se você falasse com
os seus companheiros? - Insistiu Enzo, sendo abençoado por mim.

Jota pareceu pensativo e mais disposto para ver onde aquilo ia dar. Caso ocorra algo de errado e tenhamos que sair às pressas, uma ligação pode denunciar o local
para onde vamos.

Depois que se criou um pequeno silêncio, sugeri: - Escolha um telefone público ao acaso e ligue uma única vez.

- Jota pareceu se abater com o que viria a nos dizer. - Também porque não tenho essa permissão. - Senti um frio passar pelo meu estômago. O susto do que podia ter
acontecido primeiramente me assombrou, depois viria a me abrir uma possibilidade.

O Matias, sem dúvida, sabia manipular as pessoas e fazia isso com muita habilidade e astúcia, mas também com medo. Talvez este medo acabasse por traí-lo.

O Jota nunca teve permissão para conversar conosco e presumivelmente nunca deve ter contado ao Matias sobre isso. Termos contato com aquelas informações então era
algo impossível de acontecer para Matias, e aquilo se tornava uma grande vantagem no momento em que eu começava a cogitar a possibilidade que o destino de nós três
pudesse estar no mesmo barco. O Jota finalizou a informação.

- O Matias combinou com o grupo que qualquer ligação que não seja feita em determinada hora e dia da semana não deveria ser atendida.

Todos nós ficamos calados. Entendemos que as condições existentes condiziam com precauções adotadas para um bom andar da carruagem, mas também permitiam a abertura
de uma nova hipótese.

Enzo, com seriedade e poucos rodeios, botou na mesa o que nós havíamos acabado de deslumbrar separadamente.

- Pense comigo, Jota. Vocês têm milhões nas mãos. Em um grupo de ladrões, desculpa a sinceridade, cada um é dono de um pedaço desse dinheiro. Tirando o Matias, o
homem que arquitetou tudo isso, você, pelo que poderíamos chamar de um capricho de planejamento, não pode ter a confirmação do paradeiro de todos os outros "sócios".
Eu lhe pergunto como um pedido de ajuda, porque eu mesmo não sei a resposta: Mas é
possível que um homem que planeja um assalto, que aceita com naturalidade causal a morte de mocenies e que sabemos ter formado um grupo com o único propósito de
justamente ganhar dinheiro, é possível que este homem também aceite matar ladrões, peça desculpa de novo, para multiplicar o seu lucro?

Jota cada vez se mostrava mais tenso. Parecia estar procurando um lugar para as novas peças de um quebra-cabeça. Ainda, sim, não conseguia imaginar o "mentor" de
todos traindo seus seguidores. Já eu, além de desejar, com certeza conseguia imaginar. Jota quebrou o silêncio.

Eu não acredito que estou tendo esta conversa com vocês... É possível, sim mas por que então discutiria com o grupo a respeito da nossa maior porcentagem? Por que
ele gastaria com documentos falsos e passagens? Fora que eu mesmo sou testemunha de que ele cumpriu com a palavra com as pessoas que passaram por nós até aqui.

Eu precisei jogar um copo de água fria na conversa para tentar nos manter mais tempo nela. - Tudo bem, Jota, só estamos estranhando o fato de o grupo se dispersar
antes do prêmio final... Até porque o Matias aos seus olhos não é o mesmo que aos nossos; então você há de convir comigo que é natural que duvidemos dele, e você
não ter contato com as pessoas que poderiam corroborar com a versão do Matias só faz com que aumentemos as nossas dúvidas.

Antes de falar, ele continuou a se mostrar pensativo, como se estivesse vasculhando sua mente atrás de informações que o derrubassem do muro. Para mim, eu e Enzo
o termos colocado lá, já me permitia aceitar melhor o que havíamos suposto. Infelizmente, sua procura esbarrou no que a nossa anteriormente já havia esbarrado.

- Então me digam: Caso ele não planeje manter a palavra com ninguém, por que diabos vocês ainda estão vivos?

Enzo tinha me colocado a mesma questão anteriormente, e eu não conseguia respondê-la. - O que acha, Enzo? - Perguntei.

- É o que não está batendo.

- Talvez seja porque os meus colegas estejam vivos e nós três estejamos no limite.

Eu sabia que tinha algo a mais e via que os olhos de Enzo concordavam comigo. Faltava os de Jota.

- Vamos descansar; daqui a pouco tempo isso tudo vai ser passado. - Disse Jota, levantando-se da cadeira; depois fechou a porta.

Minha mente não me dava trégua e eu sentia que podia quase que tocar na resposta.

Eu sentia a urgência de desmascararmos o Matias, porque àquela altura eu já sabia o que ele tinha em mente para todos nós; só me faltavam algumas explicações.

Eu e o Enzo tentamos juntos procurá-las, mas foi em silêncio que o Enzo encontrou as respostas. No instante em que me expôs o que havia entendido, nós compreendemos
cada vez mais as pretensões do Matias e soubemos que o Jota viria para o nosso lado.

Duas horas depois de o Jota ter fechado a porta, pedimos que a abrisse novamente.

Ele abriu uma brecha na porta e o Enzo conseguiu roubar toda a sua atenção.

- Jota, não o chamamos por nada. Eu e o Carlos pensamos muito a respeito sobre a conversa que tivemos contigo e acreditamos ter achado respostas para as questões
que levantaste. - Enzo fez uma pequena pausa. Tudo que alcançamos na vida foi fruto do nosso julgamento e discernimento, e não o chamaríamos aqui para brincar de
detetive. Então, espero receber toda a sua atenção. Espero que pegue uma cadeira e se sente na nossa frente, porque nós dois acreditamos que a conversa que teremos
contigo é a única possibilidade de salvar a vida de nós três. - Jota, após ouvir, saiu para pegar uma cadeira, depois abriu toda a porta e sentou na nossa frente.

Claro que eu o escuto, Enzo. O que foi?

- Vou falar tudo de uma vez e peço que me deixe acabar. - Como sempre, expôs o que pensava com tranquilidade.

- Perto do que se está almejando, o que significa gastar com documentos falsos? Pagar uma costureira ou um gerente? Nada. Não arranha o montante final, mas é muito
útil para um fim e um fim apenas. Fazer com que o grupo testemunhe o perfil que ele queria vender a vocês. Sua motivação não foi moral, mas psicológica. O mesmo
intuito ele teve quando defendeu uma porcentagem a mais para vocês dois. Pense. Ele sempre deteve todo o
controle Se quisesse mais, não precisaria discutir para isso. Vai ficar claro à medida que você for abrindo os olhos para quem de fato é o Matias. Um homem genial,
mas calculista e que só tem olhos para si e para o fruto deste roubo. Por um acaso do destino criamos uma amizade com o seu mais fiel escudeiro, mas que de burro
não tem nada. Então, aproveito para lembrálo do seu perfil e pedir junto que faça um paralelo com o do Matias. Pelo que sei, até aqui você nos mataria para ficar
com o dinheiro, não é?

- Infelizmente, sim. - Admitiu sem constrangimento.

- Você mataria o restante do grupo se o Matias assim o quisesse? Hesitou antes de responder. Entretanto, a força que desprendeu para
ser honesto conosco e consigo, mostrou-me que cada vez ele nos entendia mais. - Sim.

- Por que você acha que o Matias não?

- Pelas razões que há duas horas lhe falei. - Sua própria resposta ratificava as nossas suposições, e à medida que o Jota chegava ao final da frase, ele também entendia
melhor o que o Enzo havia lhe colocado.

- O Matias só não pediu a sua ajuda para o assassinato deles porque assim você se questionaria sobre o seu. Tudo ainda está no plano das ideias e queremos lhe dar
mais certeza que isso.

Concordo. - Falou um pouco apreensivo.

Terá ela quando pedir para fazer uma única ligação ao grupo. Seja discreto, ache uma boa justificativa e insista até o ponto que não gere suspeitas. Depois volte
e nos conte o resultado, que pensaremos em algo.

Refletiu por alguns segundos, depois falou cabisbaixo. - Vou fazer isso.

- Tem mais uma coisa. Sabe por que achamos que continuamos vivos, além, é claro, do Matias posar de homem de palavra?

- Diga.

- Por causa da nossa última função.

Qual seria?

- Manter você localizável e ocupado até quando ele achar necessário.

Ficamos cinco dias sem a resposta definitiva do Jota. Ele apenas dizia que ainda não tinha esgotado a possibilidade de dissuadir o Matias a deixá-lo falar com o
grupo. Disse que estava demorando justamente por ter nos dado ouvidos. Desse modo não queria chamar atenção do porquê de seu pedido. No quinto dia recebemos o seu
veredito.

O Jota sentou de frente à porta gradeada, parecendo um pouco consternado. Nós o acompanhamos em nossos lugares e em nossas mentes, aguardando as palavras do nosso
destino.

- E aí? - Antecipou-se Enzo.

- Acredito em vocês.

- Verdade?

- Cem por cento. - Parecia abatido ao falar. Seu mestre o traíra.

- O que você fez? - Perguntei.

- Pedi para ligar e ele me disse para guardar o meu entusiasmo para daqui oito dias, quando poderia falar com eles pessoalmente. Isso se repetiu discretamente nos
últimos quatro dias. Insisti novamente hoje, e ele me repreendeu dizendo que eu estava querendo pôr o plano em risco. Que disciplina e o autossacrifício são grandes
virtudes e que eu não deveria me desprender delas. Aquilo, somado ao que nós havíamos conversado, me deixou muito desconfiado. O que me fez decidir foi o que você
falou por último, Enzo! Você me disse que estão ainda vivos porque servem como um exemplo do caráter do Matias e também por me manterem aqui, não é?

- Exatamente, Jota. Servimos para mantê-lo ocupado e localizável e ainda para proteger o próprio Matias de você. - Respondeu.

- Mas não me disseram o porquê era importante me manter vivo e eu não disse porque não estava convencido, mas agora estou.

- Fale, Jota.

Fez um breve silêncio. - Eu sou piloto. É assim que cruzaremos o Estado levando junto o dinheiro vivo que roubamos no assalto.

Como foi bom ouvir aquilo! Nós estávamos certos. - Meu Deus! Em quantos dias ele lhe falou que vocês fugiriam? - Perguntei.

- Em três. Daqui a dois ele me disse que virá falar para vocês o que deverão dizer à polícia. Depois disso, ele me encontrará na cidade. Se for o que estamos esperando,
no final da manhã de sábado, daqui a dois dias, ele virá sozinho aqui para matá-los.

- Está tudo nas nossas mãos, Jota.

- Eu já me dei conta disso, Carlos. Por isso também estou contando com vocês. Quero que pensemos juntos em uma saída. Só peço que me desculpem a franqueza, rapazes,
mas vou fazer de tudo o que estiver ao meu alcance para sair daqui melhor do que entrei. Apostei o meu tempo, o meu suor e a minha pele nesta jogada; não saio dela
de mãos vazias, nem com a polícia em meu encalço. Espero que me entendam.

Enzo entrou na conversa. - Com certeza, Jota. Eu e o Carlos pensamos todo o tempo em um plano que nos desse a liberdade e que garantisse a você uma boa vida.

- Então, estamos juntos. Prefiro falar a verdade e construirmos um plano que atenda a todos, do que aceitar o que irão me sugerir para poder tirar proveito quando
for oportuno. Eu admito que pensei na possibilidade de matar o Matias durante o voo. Não faço porque acredito que posso contar com vocês. Também por medo e porque
não sou ganancioso ao ponto que o Matias filho da puta é. Se eu levar a minha parte estou feliz. Oitenta por cento do dinheiro vivo que levamos no roubo está enterrado
nesta propriedade; a maior parte do restante você nos fez gastar em mais pedras, lembra? Me ajudem a poder viver com isso que é mais do que o suficiente para mim.
Eu sei que vocês são capazes de me ajudar.

É o que eu e o Enzo estamos dispostos a fazer. Você pensou em alguma coisa?

- Bem, há cinco dias, desde que se tornou possível eu ser apenas mais uma ferramenta para o cretino do Matias, venho pensando em uma saída para mim. Acho que encontrei
uma para nós três. Depende de vocês.

Eu e Enzo nos olhamos e foi ele quem falou.

Estamos dispostos, pode contar conosco.

Jota expôs com calma o que havia planejado. - O que eu pensei está sujeito a mudanças; então, se quiserem propor algo diferente, me digam.

Vou lhes explicar algo que para nós três considero fundamental. O Matias precisa ser morto ou nós nunca teremos paz nas nossas vidas. Ele conhece as nossas famílias
e, pelo menos eu, não vou querer dormir pensando quando poderá ser o dia do acerto de contas. Vocês vão?

Enzo respondeu. - Eu e Carlos pensamos sobre isso. E se precisar, aceitamos o fato. - Não sabíamos se estávamos falando a verdade para o Jota, mas não havia pudor
nem remorso em nossa conversa. Há muito tempo os limites haviam sido ultrapassados.

- Então, estamos de acordo... Mas me digam, vocês já pensaram o que dirão à polícia?

- Na verdade, pensamos. - Respondi.

- O que seria?

- Diremos que conseguimos fugir da cela e no confronto acabamos por matar ou prender o carcereiro.

- Como fugiram?

Fiquei relutante em contar sobre o nosso buraco, mas que importância tinha isso agora? - Fugiríamos pela parede dos fundos. Há trinta dias nós a estamos escavando
e a deixando oca.

- O quê? - Se espantou. - Como isso?

- Usamos a maçaneta do banheiro.

- Esta merda é de alvenaria! O que um trinco pode fazer nela? - Falou em tom de deboche.

- Quase nada, mas fazendo quase nada todos os dias conseguimos sessenta por cento do que precisávamos. Se você nos der ferramentas melhores, podemos acabar o serviço
em dez minutos.

- Eu não acredito! Posso ver?

- Vá pelos fundos e depois suba em uma cadeira, se estique e olhe para a base da janela.

Ele foi e voltou incrédulo.

- Como é que pode? Cadê a maçaneta? - Mostramos para ele a maçaneta gasta e explicamos como trabalhávamos.

- Eu não acredito. Vocês dois não valem nada. - Fez um intervalo, admirado olhando a nossa "ferramenta". - Matias, venha ver o que eles fizeram. -Ao ouvi-lo os meus
músculos se congelaram e eu suei frio. O Jota olhou para o lado, depois voltou o olhar para nós.

- Vocês estão pálidos! - Depois de falar isso soltou a maior gargalhada que eu já o vi dar. Eu fiquei esperando ver o Matias chegar à porta, mas ele não chegava.
Olhei para o Enzo ainda assustado e juntos fomos entendendo do que se tratava. Nossas feições se tranquilizavam à medida que nos permitíamos sentir alívio. Do susto,
passamos à risada. Demos tempo para aquela distração, depois voltamos ao que interessava.

- Mas é isso. É assim que poderíamos fugir. - Falei.

- Eu tinha pensado que a cozinha podia pegar fogo e na tentativa de retirá-los da fumaça vocês o renderiam. - Riu da sua imaginação.

- Podia ser também.

- Melhor a de vocês. Vou trazer um martelo e uma talhadeira. Estamos pensando juntos até aqui. Mas o que vocês planejaram para mim?

Enzo explicou o que havíamos arquitetado, já que a maior parte havia sido sugerida por ele. Agradeci o fato de que, sempre que precisei, pude contar com a coerência
e a perspicácia dele. - Você não quer a polícia na sua cola. Nem nós queremos que se preocupe com isso ou, pior, que imagine que possamos ser tentados a ajudá-los.
Foi aí que pensamos que podemos dizer desde o começo que você nunca existiu. Que todo o contato que tivemos com você, na verdade, foi com o Matias. Matamos o integrante
que matou todos os outros. Caso encerrado.

Eu continuei. - Quanto a nós, estamos tranquilos. Vou dizer o que fiz. Não tenho por que esconder. Fui coagido, para dizer o mínimo. Quem não gostar... Digo em bom
português, que se dane. - Todos rimos. Depois continuei: - Além do que, faço questão de ajudar a polícia a rastrear este dinheiro.

- Melhor do que eu tinha pensado! Mas você tocou em um ponto que eu queria tocar, Carlos. Quem me garante que vocês não irão querer me rastrear também? Porque, apesar
de termos criado uma empatia entre nós, isso não desfaz o que lhes venho causando, nem mudou a minha disposição em lucrar com isso. Então, não posso pedir, nem muito
menos contar com apenas a palavra de vocês. Espero que entendam: preciso de uma razão palpável do porquê colaborariam comigo depois de estarem seguros com a polícia?
Não estou certo?

- Você já tem esta razão. Nós estamos nos tornando cúmplices de um homicídio, Jota. Estamos ajudando você a planejar e a executar um crime. Se isso não lhe dá um
bom motivo, não sei mais o que pode dar.

Jota se mostrou pensativo. - Desculpa, mas não concordo com vocês. Vocês podem dizer que quem planejou e executou fui eu e que vocês apenas aceitaram os meus
termos para sobreviver. Eu mesmo não tenho como difcer se isso não é verdade, ou tenho? Acredito que, por medo, vocês também
queiram a morte do miserável, mas por que iam querer que eu viva bem depois do que lhes fiz? Vocês podem estar armando para cima de mim...
Estou louco por cogitar isso? Também é sobre a minha vida que estamos falando. - Falou com a franqueza de costume; em seguida continuou.
Durante esses últimos dias eu me esforcei procurando uma razão para que vocês não desejassem que eu fosse encontrado, que os mantivessem fiéis ao que fosse
combinado, e há dois dias uma ideia simples e inegável me ocorreu. Estávamos nós três sentados um diante do outro com suor nas mãos e o nosso destino em pauta.

- Continue. - Falei apreensivo pelo que viria.

- Só espero que vocês tenham estômago para encarar, porque só assim poderei me proteger de vocês. - Fez uma longa pausa, como se precisasse de tempo para organizar
o seu pensamento. - O que podemos fazer é o seguinte: Já que não vamos queimar a casa, eu poderei passar hoje e amanhã limpando, de cima a baixo, todas as digitais
que eu possa ter deixado. Assim, sumo com a minha presença daqui. Depois de amanhã, no sábado Bem cedo, eu me despediria de vocês. - Interrompeu-se para fazer uma
observação brincalhona. - Me despedirei de longe, não se animem. E pelas sugestões de fuga, lhes entregarei um martelo e uma talhadeira. Agora tem a razão
que encontrei para confiar em vocês. O Matias chegará poucas Horas mais tarde. A partir daí vocês terão o livre-arbítrio. Façam o que quiserem com ele. Eu deixarei
um revólver na sala. Este foi o jeito que enncontrei de realmente mantê-los fiéis a mim. Estou pondo as minhas fichas no desejo de vocês em matá-lo. Assim, caso
decidirem mesmo fazer, se contarem sobre mim, poderão estar arriscando trocar, pela morte do Matias, uma alegação de legítima defesa por um homicídio
qualificado. Porque o sangue passa a apontar de fato para as mãos de vocês. Pensei nisso porque, depois de analisar bem a minha situação, entendi que tenho
que ter mais medo de vocês e da polícia atrás de mim do que do Matias. Pelos jornais saberei o que decidiram e poderei concluir se a polícia está ou não está atrás
de mim.

Nenhuma palavra falei. Eu já tinha entendido que aquela conversa estava encerrada. Porque a mesma capacidade para conceber os argumentos que ele nos trazia também
se estenderia na hora de compreender que as suas razões eram dominantes sobre as minhas.

Não perderia saliva contestando o irrefutável. Ele nos deu tempo para assimilarmos, depois terminou.

- Desculpem, mas não vou permitir que vocês tenham as duas coisas. Ou é a morte do infeliz ou é a possibilidade de ir atrás de mim.

- Nós não queremos a sua prisão, Jota. - Eu mesmo não sabia se estava falando a verdade, mas ajudava a amaciar a relação de nós três.

- Eu até acredito, Carlos. Só que não tenho como ter certeza. - Foi a vez de ele ser gentil.

Eu e Enzo mais uma vez ficamos calados naquela tarde. O Jota acreditava fortemente que a nossa vontade em não mais ter medo do Matias falaria mais alto. Pelo menos
a meu respeito, eu estava me dando o direito de ter o primeiro contato com a nova proposta.

- Bem, vou deixar vocês pensando. Tenho que limpar toda esta casa de cabo a rabo. Lembrem de dizer que sempre viram o Matias de luvas, o que não deixa de ser verdade.
Quanto ao que farão, a decisão é de vocês. Não estou pedindo nada mais do que vocês queriam me pedir.

Assim que o Jota nos deixou, começamos a pensar sobre o que nos era proposto. Estava claro para nós dois que as cartas já estavam na mesa; restava a nós decidir
em qual mão apostar.
aviamos decidido. Antes de deixar o cativeiro, Jota veio se despedir:

- Se um dia conseguirem, tentem me perdoar.

- Apesar dos pesares, não lhe guardamos nenhum mal, Jota. Boa sorte na sua jornada. - Respondi.

Adianta perguntar sobre o que decidiram?

- Você vai acreditar em nós? - Retruquei.

Jota não respondeu imediatamente; devia estar entendendo a desconfiança que eu e o Enzo sempre tivemos perante as suas respostas. - Na verdade não. - Respondeu.
Depois sorriu autenticando a desconfiança mútua. Em seguida, por não termos tempo a perder, focou-se na sequência do que havíamos combinado.

- Depois de saírem, apaguem as digitais da talhadeira e do martelo e os coloquem na área de serviço onde estão guardadas as demais ferramentas. Deixei a arma na
mesa da sala. - Aquele homem mascarado, de que eu só conhecia o lábio e os dentes, retirou suas luvas e depois nos perguntou.

- Quero cumprimentá-los como um homem. Vocês não vão arriscar nada bobo, vão?

- Não se preocupe. - Respondi, estendendo a minha mão. Eu e o Enzo o cumprimentamos.

Mesmo o Jota tendo feito o que fez, eu não guardava ressentimentos por ele. Desde o início ele nos tratou com decência.

Apesar da situação em que ele havia aceitado entrar e que até hoje não negava, ele sempre foi generoso na comida e no tratamento.

Pudemos ainda, por acaso do destino, conhecê-lo melhor como pessoa. No processo fiquei admirado com a sua inteligência e discernimento. Acredito de verdade que,
muito mais que a sua índole, o que o trouxe aqui foram as suas influências.
Fico imaginando se este rapaz, ao invés de ter sido um aprendiz do Matias, tivesse sido meu.

Ao final, o seu exemplo me fez enxergar um descuido da minha parte em relação aos homens que estão ao alcance da minha influência. Fora a impessoalidade de palestras,
nunca me dispus a influenciá-los.

Incoerentemente, quando é para trilhar o caminho do bem, na grande maioria das vezes, são escolhidos como aprendizes apenas os nossos filhos.

Nossa última interação com o Jota, antes de recebermos as ferramentas, foi apenas um olhar. Um olhar feito por quem acreditava que o outro não precisava de palavras
para acompanhar o seu pensamento. A história que havíamos passado juntos e o entendimento que um tinha do outro e da situação deixava explícito o que ainda faltava
dizer.

Na troca de olhares recebemos um pedido de desculpas, o pesar pela situação e o conhecimento de que nada mais podia e precisava ser feito.

- Está aqui. - Disse Jota nos entregando as nossas ferramentas. As pegamos e com o inclinar da cabeça nos despedimos dele.

Logo que ele saiu eu comecei a quebrar a parede.

- Olha o tamanho desta lasca, Enzo. - Joguei para o Enzo um pedregulho de de alguns centímetros cúbicos.

Vinte minutos depois conseguimos concluir a nossa escavação. Não fugiríamos por meio do nosso plano de fuga, mas ele havia salvo as nossas vidas, pois serviu como
uma bengala para nos mantermos equilibrados e lúcidos.

Ficamos olhando a nossa saída e, no dia dos olhares, tivemos um que não há dinheiro no mundo que pague. Nos abraçamos sentindo-nos, depois de muito tempo, novamente
livres... Fortes... Invencíveis!

Eu ajudei o Enzo a subir no buraco criado por nós. Com dificuldade saí fora da cela e imediatamente comecei a passar por uma overdose de simples, mas fenomenais,
recordações.

Pisei e senti, nos meus pés descalços, a grama, e por causa dela o chão se tornava macio! Confortável!

O ar era refrescante, o sol cobria a pele, e o meu campo de visão era amplo. Foi extraordinário! Parecia que eu estava vivendo um milagre. O mundo mostrava o quanto
era grande!

Descobri com entusiasmo as continuações à esquerda e à direita da vista que até então eu tinha. Olhei para cima e vi o céu azul e me encantei
por ele com ainda mais admiração daquela que tinha pelos céus estrelados que eu via de dentro da cela. Desta vez, eu podia deixar a alegria crescer.

Era estranho perceber meu corpo saindo livremente pelo campo e depois pela casa. Um passo depois do outro eu sentia como se estivesse atravessando fronteiras.

A pouco mais de dois meses eu estava lá e depois do primeiro dia nunca mais havia pisado naqueles cômodos. Eu estava a metros daquele local há tanto tempo e mesmo
assim o via com tanta curiosidade.

Eu e o Enzo estávamos eufóricos e saudamospor toda a casa a liberdade. Guardamos a talhadeira e o martelo livre de digitais e só depois de uma hora conseguimos nos
acalmar e montar guarda.

Duas horas e meia mais tarde, oscilando entre raiva e medo, ouvimos um carro estacionar na frente da casa. O Enzo ficou com a arma e eu com um cano de ferro que
encontramos na área de ferramentas.

A porta da frente dava para uma sala que dispunha de dois sofás; ao lado deste cômodo, mas ainda na frente da casa, havia uma sala de jantar com quatro cadeiras,
uma mesa miúda e uma escrivaninha. As duas salas eram divididas por uma parede que ia da frente até a metade desses ambientes. Eu e o Enzo nos encontrávamos na sala
de jantar esperando que o Matias ultrapassasse a divisa de parede para rendê-lo.

Havíamos trancado todas as saídas do fundo e nós, provavelmente a três ou quatro metros do carro, ouvimos perfeitamente quando a porta do veículo se abriu e depois
se fechou.

Uma forte queimação no meu estômago acompanhou os passos daquele homem num chão seco e areiento caminhando em direção à porta. Ele poderia estar armado; então, depois
de ouvirmos entrar e fechar a porta da casa ainda permanecemos parados.

O barulho dos seus passos pela sala ficaram gravados na minha memória e assim que sua silhueta apareceu, Enzo, que estava com o revólver, avançou até ele.

- Não se mexa que eu estou armado... Vire e olhe para mim. - O homem virou vagarosamente para Enzo, que continuou falando nervosamente.

- Levante as mãos e escute com atenção. Eu estou pronto para atirar, então não faça nenhuma besteira. Só queremos fugir daqui e, assim que sairmos, deixaremos uma
faca para que você, depois de algum trabalho, possa se libertar.

Enzo continuou. - Não iremos denunciá-lo, mas levaremos o carro. Você decide: é isso ou morrer aqui. O homem balançou a cabeça em sinal de colaboração. Ele levantou
as mãos e permaneceu imóvel. Foi assustador olhar para o seu rosto, que parecia em completo choque.

Os olhos fundos e negros e a boca com lábios finos não me deixavam dúvidas que aquele sujeito se tratava do Matias. Agora eu podia enxergá-lo
como pessoa e ele me pareceu bem abençoado e comum. Ele não chamava atenção em nenhum traço. Parecia um homem honesto, talvez um executivo, de cabelos e barba bem
feitos. Olhar o seu cuidado consigo e me ver barbudo, com as roupas lavadas à sabão começando a se tornarem trapos, me deixou mais irritado com ele.

Eu larguei o cano e o revistei minuciosamente. Encontrei uma arma presa no cinto, um celular no bolso e a chave do carro no outro.

Pus o celular no chão, fiquei com a arma presa ao meu cinto e levei o cano de ferro para a sala.

- Venha comigo. - Disse Enzo, conduzindo-o para a sala. Eu os acompanhei carregando uma cadeira.

- Sente-se. - Eu disse.

Fiquei admirado com o momento e pensando no quão perto da morte nós havíamos chegado.

- Oi, Matias. - Falei sentado em outra cadeira a três metros dele, enquanto o Enzo permanecia a quatro metros apontando a arma.

Oi, Carlos. - A confirmação da sua voz, mesmo não sendo mais necessária, foi reconfortante, porque até que enfim pudemos pôr um rosto naquela voz. O Matias continuou.
- E agora, o que planejam fazer?

- Adivinhe. - Eu disse.

Não existia escolha sem risco. Nós havíamos levantado as questões que a prisão dele implicaria e cada vez mais nos sentimos seduzidos em viver em um mundo onde estas
questões não existissem.

Eu tinha plena ciência de que eu estava diante da única oportunidade de tirar o Matias por completo da minha vida e que esta oportunidade ocuparia uma breve janela
de tempo. Minhas questões não eram a respeito do que era correto fazer. Não ligava para o correto naquela altura dos acontecimentos.

A minha primeira questão foi se existia uma real necessidade em matálo. E possível que ele consiga um hdbeas corpus? Corro risco com ele na cadeia ou caso saia dela?
Ou ao matá-lo estarei assumindo um risco maior com a polícia podendo concluir que houve planejamento em sua morte? Mas qual seria o interesse na polícia nisso? Qual
seria a atenção dada a esta possibilidade? Acredito que mínima.

Filtrando as consequências das minhas duas alternativas, fui percebendo que seria melhor eu lidar com a morte do Matias do que com a aflição
de mantê-lo vivo. Sinceramente, eu não queria viver com aquelas questões e de coração sentia que tinha o direito de me defender sem censuras daquele homem.

À medida que ficava mais claro para mim que a situação me propiciava cobertura, fui me permitindo aceitar a alternativa criminosa de matá-lo.

Fora a minha esposa, não desejo contar ou explicar para mais ninguém o que irei fazer. Outro não me daria tempo necessário, nem a disposição em me entender.

Quantas pessoas ainda, quando a situação lhes pedem para julgar, costumam se colocar em um pedestal de virtudes tão alto que sobra pouca habilidade para se colocar
no lugar do outro? Posso dizer que dois meses de cativeiro destroem qualquer um, mas que entendimento receberei de volta? Um olhar e um pensamento que presumem compreensão?
Estas mesmas pessoas, quando me escutarem, ouvirão este punhado de palavras ditas em alguns segundos e será preciso muita boa-vontade para realmente entender que
aqueles segundos guardam um pesadelo de dois meses que pareceu não ter fim.

Procurei uma forma de a minha mulher entender não só a minha história, mas o sentimento em si e, hoje em dia, com mundos tão diferentes, eu lhe diria para se imaginar
no pior engarrafamento de carros em que já esteve e acrescentar a ele um compromisso que a cada checada no relógio sente ainda mais que irá perdê-lo. Cinco minutos
parecem vinte, e um sentimento misturado de raiva, angústia e sufocamento vão se acumulando. Faça uma força e imagine o estresse de quatro horas de engarrafamento
no trânsito, agora aumente a intensidade por dez e estenda este sentimento por mais de sessenta dias.

A apreensão não passa, apenas oscila. O que faz hoje em dia eu entender dois meses, não apenas como duas palavras, mas como uma imensa extensão de tempo.

Eu estava com raiva e só vê-lo me fazia lembrar tudo o que ele tinha me feito. Eu pensava na sua prepotência e indiferença ao que para mim representava tudo. Aquele
homem havia me tirado da minha família, me colocado em uma cela e me trancafiado nela. Dois meses sob o seu perturbador domínio!

Ele pouco ligava de privar definitivamente uma esposa e filhos de um marido e pai. Subjulgou-me como não se faz nem com um cachorro. Tirou minha liberdade e hoje
viria tirar a minha vida.

Vendo retrospectivamente, percebo que desejava matá-lo. Esta é a pura e simples verdade e, apesar de posteriormente vir a questionar o que fiz, nunca me arrependi.
Naquele momento, tirar a sua vida parecia certo e aquelas eram as emoções que me acompanhavam. O que fiz naquele dia nunca fez com que eu duvidasse do meu caráter,
nem da minha dignidade. Eu tinha sido posto no meu limite emocional por aquele homem e nesta condição veio a minha resposta.

Vocês estão pensando em me entregar para a polícia? - Disse Matias sentado e vigiado.

Rapidamente eu suprimi a resposta do Enzo e respondi no seu lugar. Estamos.

O Matias, com uma arma apontada para a sua cabeça, conseguia ainda ser prepotente. - Vocês estarão cometendo um erro.

- Por quê? - Perguntei. Nós precisávamos conferir se ele ainda tinha algum trunfo na manga.

- Porque se em uma hora eu não ligar para o meu grupo, metade do grupo virá aqui. A outra metade, não tardará muito, se encarregará de procurar por suas famílias.
Olhe, Carlos...

Eu simplesmente não aguentei ouvir aquilo. Seu blefe desavisado envolvendo a minha família fez eu explodir. Enquanto ele acabava de falar o meu nome eu me levantei
e um segundo depois lhe infligi com o cano de ferro um golpe forte em seu ombro.

Depois falei. - Olha para mim, seu desgraçado. Você não está mais no comando. Não temos mais medo de você. Os olhos do Matias me encararam, mas eles não tinham mais
a soberba que costumavam ter.

Eu fiquei parado, esperando que o Matias se recuperasse.

Assim que se reergueu, procurou a cadeira para sentar e logo, mesmo com a dificuldade causada pela dor, tentou assumir ou negociar o controle.

- Vocês estão cometendo o erro das suas vidas. Me escute, Enzo, você pode trazer a razão ainda para cá. Nada lhes farei se pararem por aqui. Eu entendo a raiva que
sentem de mim, mas ela só os prejudicará mais. Não comprometam as suas famílias - Deixamos o Matias falar. Nós dois precisávamos viver o momento em que tínhamos
controle sobre ele.

- Enzo. - Continuou Matias. - Vocês ainda têm chance. Voltem para as suas famílias. Eu já ganhei o que tinha que ganhar e hoje só vim libertá-los.

- Por que a arma, Matias? Perguntou Enzo.

O Matias seria morto por nós, mas ainda assim o sentimos importante em nossas vidas e filiávamos com ele como se fosse uma forma de assimilarmos melhor a situação.
Precisávamos olhar para ele e o encararmos como homem, não como chefe ou dono. Depois de o poder virar de lado, tínhamos a necessidade de saber se era só isso que
determinava o domínio. Nós precisávamos ver o nosso carrasco sem sua foice ao lado.

O Matias continuava mantendo a compostura e falava como se ainda detivesse controle sobre a situação. Ele também havia se acostumado a nos cotar como cordeiros e
intelectualmente devia se considerar superior a nós, já que fazia apenas cinco minutos que as suas ações perdiam para as nossas.

- Eu estou sempre armado, Enzo... - Fez um silêncio; depois continuou. -Vocês esperam o que com isso? São homens que conseguem planejar o futuro, não são? Se imaginar
no futuro? E como vocês acham que vão viver se me mandarem para a prisão? Caso isso ocorra, o meu grupo perde, além do seu líder, todo o lucro das jóias, já que
precisam de mim para sacar o dinheiro. O que vocês acham que eles vão fazer se qualquer coisa acontecer comigo?

- O seu grupo, Matias? - Perguntou Enzo com uma voz firme e saturada de ser subjulgada.

- Sim. Vocês sabem o poder dele, não sabem? Acreditem, eu posso ser frio, mas tenho palavra. Me soltem e ficamos quites. Não posso julgá-los pelo que estão fazendo.
Eu já disse que faria o mesmo. O que eu não faria é comprometer toda a minha vida por um momento de raiva. - Pela primeira vez eu sentia a sua voz acolhedora, mas
isso não tinha mais o poder de surtir efeito.

- O que vai acontecer conosco caso o matemos? - Perguntou Enzo, para o espanto do Matias.

- Vocês e as suas famílias morrerão.

- Quem fará isso? - Perguntei incisivamente.

- O meu grupo.

Eu continuei. - O mesmo que matará a minha família caso eles não recebam uma ligação sua em uma hora?

- Exatamente. - Peguei do chão o seu celular.

- Me diga o número que você quer que eu ligue, depois lhe entrego o telefone. Você ainda pode nos provar que é apenas frio.

O Matias ficou me olhando, provavelmente procurando uma saída. Falei antes que ele falasse.

- Pense bem no que vai dizer, aqui ninguém é bobo.

Não funciona assim. - Declinou Matias, e aguardou nossas perguntas, o que me desestabilizou.

- Se você falar mais uma vez uma frase incompleta eu vou bater com o cano na sua cabeça, seu miserável filho da puta. - Depois de falar, sem pensar direito, bati
com força com o cano em seu braço.

- Seu desgraçado! - Chingou desta vez Matias. - Eu só posso ligar de um orelhão. Se eu ligar deste número eles não atendem e ainda por cima isso será interpretado
com um sinal de alerta.

- Então vamos alertá-los. Ponha o número no celular. - O abatimento do Matias não se resumia ao físico. Ele sabia que o havíamos colocado na parede, e seria difícil
ele sair de lá.

Torça para existir o número que você vai me dar e que ainda nenhuma pessoa o atenda. - Era o momento de descobrir se a suposição da morte do restante do grupo estava
certa.

Matias demorou para decidir o que fazer. Parecia procurar por uma saída, mas, sem encontrá-la, precisou arriscar alto.

- Olhe para mim, Enzo, ligue para esse número, me libertem e sigam depois com as suas vidas. - Blefou Matias pela última vez.

- Não se preocupe conosco, Matias. - Revidou Enzo.

O Matias ficou em silêncio. Eu pus o celular no ouvido e a voz gravada foi clara e maravilhosa quando disse que aquele número não existia. Eu me abaixei para ficar
na sua altura e falei olhando fixamente para os seus olhos.

- O jogo acabou, Matias. Olhe para mim. Nós vamos te matar, seu miserável. Olha para mim e para o Enzo e para o que você fez conosco.

O Enzo, mesmo que de forma mais discreta, começava a acompanhar o descontrole do momento e falou nitidamente abalado: - Nós vamos te matar, seu infeliz. - Depois
pôs fim ao nosso cativeiro. - Bata na altura do tórax e na cabeça, Carlos. - Precisávamos simular uma pequena luta.

O Matias ficou sem reação, não acreditando no que estava acontecendo e, antes que ele se suicidasse indo para cima de um de nós, eu lhe bati no
mesmo braço de antes, na cabeça e no peito. Ele estava sem forças no chão e eu, com as mãos tremendo, com horror nos meus olhos e com as forças que me sobraram,
o levantei e no breve momento que ele ficou de pé, o Enzo, como tínhamos combinado, atirou de raspão no seu braço, no meio do peito e na cabeça.

O seu corpo mole caiu no chão e no silêncio que se seguiu eu senti uma mistura de culpa, medo e alívio.

Saímos com o carro do Matias e depois de uns quinhentos metros percorridos encontramos uma casa.

Um homem do campo nos atendeu. Sem entender a nossa euforia, o agricultor nos orientou como chegar à cidade mais perto. Não tenho ideia da distância e do tempo,
mas assim que chegamos em uma pequena cidadezinha, procuramos pela polícia.

A certeza que sobreviveríamos ao que tinha nos acontecido tinha acabado de se instalar e a nossa alegria preencheu toda a minúscula delegacia.

Roubamos imediatamente a atenção dos dois policiais que faziam plantão naquele sábado. Logo chegariam mais quatro.

Explicamos o que tinha acontecido conosco dos sessenta e dois dias para cá. Os policiais mal acreditavam e retribuíam com força o abraço que tanto nos alimentava.
Eu, como já era de costume, comecei a chorar e a falar com o teto como se ele fosse a minha esposa e filhos. Só quando entendi claramente que eu estava seguro pedi
por um telefone.

Logo em seguida nos forneceram celulares e eu pude fazer o telefonema mais feliz da minha vida. Chamou três vezes até a minha esposa atender.

- Quem fala? - Isabela falou na outra linha.

Sou eu. Sou eu, meu amor. Eu estou vivo!

- O quê? - Falou incrédula. O marido que ela pensava estar morto estava do outro lado da linha.

- É o seu marido. É o Carlos. Eu estou em uma delegacia a salvo. Eu fui sequestrado e fugi do meu cativeiro há meia hora. Estou a salvo!

- Meu Deus do céu. Carlos? É você! É você, meu amor. Obrigado meu Deus. - Seu choro se misturou com o meu, e os nossos gritos nos faziam acreditar que o inacreditável
estava acontecendo.

Ouvir a sua voz de novo foi algo difícil de explicar. Ela pensava que eu estava morto e, muitas vezes, eu duvidei que a veria novamente. Parecia que
dois mundos incomunicáveis haviam se unido para que nós pudéssemos nos reencontrar. Soube na hora do que falavam as pessoas que julgavam terem tido uma experiência
divina. Nós, em todos os aspectos emocionais, estávamos no céu.

Eu continuava a falar com ela já no carro da polícia, que andava de sirene ligada costurando o trânsito. Só quando entrei no meu condomínio roi que eu lhe pedi que
desligasse o telefone, porque em dois minutos eu estaria em seus braços.

Minha esposa, quando viu o carro chegar, saiu correndo e eu saltei da porta traseira mesmo antes de o carro parar. Foi a maior explosão de adrenalina que eu senti
na minha vida. Eu sonhava com aquele momento todos os dias, e ele foi ainda mais grandioso do que eu imaginava. Minha gratidão era imensa e o meu reconhecimento
pela sorte que eu havia tido era total. Meus filhos já estavam nas minhas pernas e eu os coloquei em meus braços. Nos juntamos em um único abraço e depois caminhamos
em direção a casa. Antes de entrar, eu olhei para o lado e vi o Enzo entrando em sua casa abraçado a um policial.

- Enzo. - Gritei para ele.

- Sim. - Falou e me abriu um sorriso iluminado.

- Nos falamos depois. - Ele balançou a cabeça e rimos um para o outro por sermos testemunhas de que estávamos vivendo o nosso maior sonho.

Não demorou muito, o delegado responsável pelo caso bateu na minha porta e me disse que era com grande satisfação que falava comigo. Depois do festejo pela situação
ele se colocou a minha disposição e me pediu que assim que eu me sentisse em condições para falar sobre o ocorrido eu poderia ligar para ele. Respondi que rapidamente
eu já poderia lhe contar algumas coisas e que em um ou dois dias estaria à disposição para um testemunho mais aprofundado. Assim, lhe fiz um resumo do que havia
se passado desde o assalto ao banco. Respondi algumas perguntas e ele, mesmo devendo ter ficado espantado com os acontecidos, respeitou minha necessidade primordial
de ficar com a minha família.

Inacreditavelmente eu estava sentado na minha sala. O lugar tinha ares de inalcançável para mim, e o meu espanto era contínuo. Minha esposa
estava ajoelhada na minha frente e não parava de me olhar, de tocar na minha barba, de rir e chorar.

Os meus filhos se alternavam entre observar a reação dos seus pais, me abraçar, chorar e rirem junto conosco. Ficamos assim por muito tempo, depois todos me acompanharam
quando fui fazer a barba.

Em seguida fomos para a cozinha para beber e comer algo. Minha esposa foi me respondendo o que tinha acontecido com ela, com os nossos filhos, amigos, empregados
e com a própria empresa. O Lucas e a Laura pensavam que eu estava em uma viagem, mas sentiram todos os dias a depressão da sua mãe. Do resto das pessoas próximas
de mim veio muito apoio. E os negócios, que mal me importavam no momento, não haviam sido prejudicados graças a alguns funcionários de confiança e da força da minha
mulher. Por enquanto a minha curiosidade havia sido saciada; já a da Isabela teria que aguardar um pouco mais. Não conversaríamos sobre o acontecido na frente dos
nossos filhos.

Fomos para sala e eu brinquei com o Lucas e com a Laura. Os apertei, joguei para cima, andei com eles sobre os meus ombros e tive a melhor e mais intensa experiência
que eu já havia tido com eles. Pelas onze horas todos fomos deitar no meu quarto e não demorou muito para os dois, meus incríveis e encantadores filhos, dormirem
nas suas camas. Eu e a Isabela saímos de fininho e fomos para a cozinha, onde teríamos uma longa conversa regada a chá e bolachas com requeijão.

na cozinha, sentamos ao lado da mesa, um de frente para o outro.

Conversávamos baixo, e sem pressa fui contando à Isabela o que havia ocorrido. Tomei o cuidado de lhe contar toda a história cronologicamente, sem me afobar para
chegar ao desfecho. Assim, quando lhe contei em que situação estávamos, ela pôde entender o porquê.

- Meu amor, que horror! - Falou ela, com apreensão, pela terceira vez. Em contrapartida, ela se mostrava totalmente compreensiva com a nossa decisão. - A polícia
não pode desconfiar de algo?

- Tem como desconfiar de algo assim? - Falei baixo segurando suas mãos. Parte de mim acreditava que não, a outra precisava do discernimento da Isabela.

- Acho que não. - Falou insegura.

- Não há pistas e mesmo que tenha passado despercebido alguma, é difícil de imaginar o que de fato ocorreu.

Ela ficou um pouco pensativa e se mostrava afinada comigo quando começou a questionar as minhas suposições. Ela estava filtrando a história com o ponto de vista
do observador, o que até então me faltava.

- Caso o Jota seja pego, ele não pode comprometê-los?

- Pode, mas se tornará cúmplice de um assassinato, o que até então ele não é. E qual seria o seu interesse?

- Eu estou pensando, amor... Quem já tem uma acusação de sequestro teria medo da de cúmplice de assassinato? - Minha esposa, sendo advogada, fazia eu entender que
o que falava não se tratava de uma pergunta. Então a deixei continuar. - Tornar-se testemunha de acusação sobre o que aconteceu pode ajudar a diminuir a pena dele,
não pode? - Como sempre, ela me conduzia com delicadeza ao seu pensamento. Porém, todas aquelas informações lhe eram muito recentes, mas com a inteligência que ela
usufruía, logo ela compreenderia com maior clareza o que eu, o Enzo e o Jota havíamos conjeturado. Era maravilhoso poder contar com Isabela caso fosse necessário.

Por isso nós nunca o acusaremos de sequestro ou de qualquer outro tipo de envolvimento. - Isabela fez um olhar de compreensão. - li no improvável caso de alguém
que não existe ser pego e preferir ser burro, coisa que ele não é, conto com a credibilidade minha e do Enzo, além da ajuda jurídica sua e dos seus colegas.

Ela continuou tirando as suas dúvidas e com cada uma foi ficando mais segura. Foi importante para mim, já que também servia para eu consolidar a história em minha
mente e me tornar mais consciente dela.

Depois de muitas perguntas e respostas, nós dois nos demos por satisfeitos e aceitamos as nossas mentiras como verdades. Nossa história era plausível e de fato,
se surgisse outra versão, ela não contaria com testemunhas melhores do que eu e o Enzo.

Passada a conversa, nós nos levantamos e nos abraçamos por um longo tempo. A minha mulher havia aceitado a decisão que eu tinha tomado a respeito do Matias e me
mostrou que entendeu, não apenas as minhas razões emocionais e familiares, mas a responsabilidade do próprio Matias sobre o seu destino. Receber o seu apoio e compreensão
era fundamental para mim e ajudaria a mim mesmo aceitar melhor o que fiz.

Estar no meio dos seus braços era reconfortante e acolhedor. Depois desse período de privação para ambos, precisávamos do carinho e da força do outro e, naquele
abraço, percebíamos a força que tínhamos como casal.

Nós nos beijávamos com muito carinho e vontade, e eu sentia que o nosso amor estava tomando o espaço das nossas carências.

Eu conseguia acompanhar o sentimento de preenchimento e de satisfação crescendo dentro de nós. Suavemente eu a levantei do chão para que ela pudesse envolver suas
pernas em mim. Apertava-a forte contra o meu peito. Eu precisava senti-la. Com delicadeza a levei ao quarto dos hóspedes, fechando a porta depois de nós.

O homem que eu fui antes de passar por esta experiência jamais acreditaria no que eu havia sido capaz de fazer e de sentir. Talvez até desejar.

Um ano se passou e a vivência que tive e as consequências dela serviram para que eu me conhecesse melhor. Durante dois meses fui triste e esperançoso; submisso e
dominador; paciente e ansioso.

Na verdade, não com tamanho contraste, eu percebi ser muitos tipos de pessoa em diferentes momentos da vida. Depois que o pior passou, mergulhei neste pensamento
e notei as minhas mudanças também em detrimento ao local e às pessoas, o que me surpreendeu muito. Entender este comportamento viria a ser um dos maiores ganhos
desta experiência.

Não posso falar pelos outros, mas quantos têm a mesma personalidade em casa, no trabalho ou com amigos? Quantas mais existem? Qual delas é a verdadeira?

Fui perceber que desde pequeno todos adaptamos constantemente a nossa personalidade, alguns com habilidade, outros não. O processo não é de um dia para o outro e
será um aprendizado à base da tentativa e do erro. E isso não se resumerá ao colégio, nem acabará na infância.

Tais mudanças de comportamento são possíveis porque estamos aprendendo a intercalar as nossas personalidades desde que nascemos. Uma criança de dois anos não se
comporta com a mãe do mesmo modo que com o pai!

Tamanha é a complexidade social e emocional do ser humano que me parece necessário que diversas personalidades coexistam e se alternem, mesmo, é claro, que haja
uma ou mais predominantes. Pensei isso porque durante sessenta e dois dias experimentei emoções e características dramaticamente diferentes daquelas que eu estava
acostumado a ter, e o meu retorno à liberdade fez eu perceber que as mudanças de comportamento não eram restritas ao cativeiro, nem particulares a minha pessoa.
Claro que nas questões do homem não há regra. Tambem noto que há indivíduos que variam a sua personalidade muito menos que outras. Uma pessoa inflexível ou com características
extremamente fortes é mais fácil ser percebida de forma semelhante por diferentes grupos. Com pessoas extremamente tímidas ou extrovertidas, é natural que na maioria
dos grupos a que pertençam demonstrem tal atitude. Mas uma personalidade é composta por muitas características e a maioria delas está suscetível a mudanças, por
vezes até antagônicas. Timidez, resgatando o exemplo, é uma característica que depende, frequentemente, do grupo em que a pessoa está.

Além da flexibilidade das nossas características, entendi ainda que as diferentes personalidades que um indivíduo tem se desenvolvem independentemente para cada
relacionamento, situação e função. O homem que fui com o Matias existiu apenas para o Matias.

Em relação a família e os demais, identifiquei que existe um desenvolvimento paralelo da personalidade para o convívio com as pessoas que julgamos ter uma ligação
incondicional conosco, como pais, filhos e, equivocadamente, marido e esposa e outro com as pessoas com que julgamos ter uma ligação condicional, como amigos e colegas.
Infelizmente, a maioria dos ensinamentos que eu procurei na vida, e também que me foram oferecidos, se dedicavam apenas ao segundo grupo.

Entendi que relações que nos proporcionam grande intimidade e uma sensação de permanência muitas vezes permitem que selecionemos o pior da nossa personalidade. Enquanto
que sabemos que se fizéssemos o mesmo em outras relações, estas seriam desfeitas.

Valeu eu ter entendido que a minha personalidade reage e se adapta ao meio e às pessoas, porque eu estava, como muitos ainda estão, acostumado a deixar esta tarefa
ser controlada pelo meu inconsciente. Porém, ao acreditar que a minha personalidade não é fixa, pude, após o cativeiro, de forma intencional, melhorá-la.

Notei que quando as pessoas se conhecem a maioria delas já faz isso: conseguem selecionar o seu melhor. O problema é que muitas vezes a nossa motivação é a conquista
e não a consolidação. Mostramos o melhor por interesse, não por carinho e consideração ao outro.

Todavia, a vida me ensinouque para manter qualidade em um relacionamento é preciso que a consideração ao outro realmente exista; caso contrário,
a tendência é esquecer de fingirmos tê-la. Foi fácil para mim, porque quando voltei a ser livre eu fiquei maravilhado com os outros, e dei valor a muitas
coisas que antes não prendiam a minha atenção. Ainda vi as dificuldades das pessoas e tentei aceitá-las, entendê-las e respeitá-las. Melhor que ninguém eu sei, não
somos perfeitos! E, para gostarmos de alguém, aprendi que devemos procurar nele características admiráveis, não necessariamente grandiosas. Todos temos muitas delas.

Ganhei mais ao entender que tratar alguém bem, interessar-se e admirá-lo verdadeiramente faz com que o outro, ao reagir a nós, selecione inconscientemente os melhores
traços da sua personalidade. Reciprocidade é um senso de justiça instintivo e predominante. Isto acabará com qualquer decepção? Definitivamente não, mas no processo
será criado um carinho recíproco que ajuda a aceitar melhor os erros e defeitos de ambos. Relevamos com surpreendente facilidade pequenos e médios erros daqueles
que admiramos e com quem desenvolvemos uma prazerosa amizade.

Por aprender que todos têm características maravilhosas para oferecer, não tiro mais conclusões precipitadas antes de conhecer bem um indivíduo. Porque independente
de como ele foi com o outro, comigo ele selecionará uma personalidade especifica a minha pessoa baseada no relacionamento que nasce, e sendo o mais honesto que eu
possa ser, não interessa como uma pessoa é com as outras; interessa-nos verdadeiramente como é conosco. Para nós, esta será a sua verdadeira personalidade e nós
a enxergaremos como se fosse a única.

Vivi um breve e maravilhoso momento de felicidade com a minha família e com a valorização do meu mundo após a morte do Matias. Ele me privou de quase tudo durante
dois meses, mas também acabou por me proporcionar uma nova visão da vida. Eu ganhei com a experiência e não posso nem quero apagá-la. Contudo, poucos meses mais
tarde, descobriria da pior forma possível que a sua morte havia sido um terrível erro e o que me parecia simples e resolvido acabou por se mostrar complexo e perigoso.

Não tínhamos dormido nem cinco horas quando, na manhã do dia seguinte a fuga, a minha irmã bateu na porta. Mal deu tempo de vê-la antes que ela pulasse em meus
braços; em seguida o meu cunhado, um dos meus melhores amigos, me deu um forte abraço.

Eu passei a manhã inteira de domingo recebendo pessoas e, antes das onze horas, todos os funcionários que eu conhecia e que trabalhavam no Estado estavam lá. Meus
primos, tios, amigos, vizinhos, padre e padeiro estavam no meu jardim dos fundos. Eu parecia um político no dia em que descobre que se elegeu.

As pessoas choravam. Gente que eu amava, gente que eu gostava e gente que eu mal conhecia. Quem quisesse chorar, chorava.

Pela perplexidade que a minha pessoa causava, alguns, mais religiosos, falavam em milagre. Mal sabiam eles que não tinha nenhum santo na minha história que pudesse
sugeri-lo.

As dez horas da manhã, salgadinhos, docinhos e refrigerantes começaram a chegar aos montes. Minha mulher, sempre ao meu lado, foi que me obrigou a comer, já que
no estado de graça em que eu estava a comida não me seduzia. No entanto, não passou despercebido o meu reencontro com o queijo e os demais ingredientes.

Ver aquelas pessoas, da mais próxima, como a minha irmã, a mais distante, como o segurança de uma das minhas lojas, parecia para mim também um milagre. Parecia que
aquilo não estava certo, que não devia estar acontecendo.

Eu me lembrava do chão gelado da cela, dos meus muitos pedidos silenciosos e de tantos momentos acompanhados pela descrença. E agora eu olhava ao redor, e a imagem
daquelas pessoas em minha volta se traduzia como a materialização das minhas preces.

De vez em quando eu sentava nas cadeiras do jardim para descansar um pouco com a minha família e as pessoas pareciam proteger a privaci dade do momento. Sentado
ali eu segurava os meus dois filhos no colo enquanto a minha esposa repousava carinhosamente ao meu lado. Eu senti a proteção de todos sobre os sentimentos da minha
família. Era uma daquelas conversas silenciosas que dizem mais do que mil palavras. Eu estava sendo agraciado pela melhor experiência em uma comunidade: a sua fraternidade.

Eu já havia contado o que tinha acontecido mais de dez vezes e tirando a parte final da história, parecia que compartilhar o que eu havia vivido me fazia bem.

Saber que mais pessoas tomavam conhecimento do que eu havia passado diminuía a solidão da experiência.

Contudo, eu sentia necessidade de falar mais. Eu estava trancado com inúmeras reflexões que aquela singular experiência havia me proporcionado e até um dia atrás
não tinha certeza se morreria com elas. De qualquer forma eu precisava agradecer a todos o carinho que eu estava recebendo; então senti que seria justo comigo e
com eles se eu me dispusesse a compartilhar um pouco do que eu havia vivido.

Chamei Isabela, que estava sentada ao meu lado com o Lucas em seu colo. - Eu estou com vontade de dizer algumas palavras. Você acha uma boa ideia?

No mesmo instante ela sorriu. - Tenho certeza que eles irão gostar. Depois me deu uma piscada e aguardou pela minha iniciativa. Eu a peguei pela mão e com todos
os olhos de acolhimento sobre nós, eu e ela, acompanhados dos nossos filhos, nos dirigimos até o final do jardim, onde umas cinquenta pessoas queridas puderam se
dispor a nossa frente.

Eu falei baixo, aos que estavam mais próximos, que eu queria dizer algumas palavras. Em segundos o meu pedido se espalhou e um silêncio absoluto se fez. Eu falei
com calma e com um verdadeiro carinho a todos eles.

- Bem, meus amigos, sem dúvida para mim estes últimos dois dias foram os mais felizes da minha vida e dizer que compartilhá-lo com vocês é maravilhoso para mim não
é suficiente. Eu passei os últimos dois meses
da minha vida desejando ardentemente poder ver e falar com vocês. Porém, no momento, não quero contar sobre o tamanho da cela, do tratamento que recebi ou sobre
a comida que comi. Isso falarei mais tarde e qualquer um poderá tomar conhecimento lendo a matéria que sairá no jornal. O que quero lhes dizer é sobre o que eu senti,
porque isto vocês só podem saber se ouvirem direto de mim... - Bom, eu já tinha imaginado muitas vezes o momento que eu passaria aos outros alguma coisa que aprendi
no cativeiro. Aquela era a minha chance e olhando todos os rostos de curiosidade e acolhimento, eu soube que poderia ter calma na exposição dos meus pensamentos.
Só precisava agora me jogar com tudo no desafio. Foi o que fiz.

- Para mim, meus amigos, este dia não é apenas feliz, mas também é extraordinário e espantoso. E isso se deve porque todos nós estamos compartilhando uma ocasião
que nunca vivemos. Não estamos em um aniversário ou em um casamento, e, graças a Deus, não se trata de um velório. A experiência que encontro mais próxima é a de
um nascimento. Porque para vocês eu voltei à vida e para mim, me sinto renascido. A vantagem que tenho é que eu cheguei a esta nova vida com a lembrança da anterior,
mas lhes afirmo, com uma visão completamente diferente... Depois dessa experiência tenho claro comigo o que realmente é importante para mim. Foi fácil de identificar
porque simplesmente foi o que me fez mais falta... Nunca senti falta dos carros que estão na garagem, nem das peças de arte que eu pensava ser apaixonado. Não tive
saudades de nenhum status que eu podia pensar que possuía... Sempre me considerei um homem de modos simples, mas me dei conta de que passei a vida tentando ser importante.
Passei a vida atrás do reconhecimento dos meus iguais e da sensação de prestígio. Abdiquei de momentos impagáveis com a minha família por isso e, quando eu senti
que poderia perder as pessoas que eu mais amava, foi difícil de perdoar as minhas negligências. Não estou dizendo que o reconhecimento social não vale nada, nem
vou virar louco e começar a dar dinheiro... Já estava se animando, não é Sérgio? - Falei ao meu amigo e meu braço direito na firma, descontraindo um pouco o discurso.

- O que digo é que ficou claro para mim que o peso da mulher que está ao meu lado e dos meus dois filhos é muito maior do que todas as
outras coisas que a vida pode me oferecer. Não tenho o intuito de viver só para eles a partir de agora... Eu não faria isso com a Isabela. - Minhas tentativas de
ser leve eram acolhidas com um gostoso coro de risos.

- Na verdade, quero desfrutar a vida com ainda maior intensidade, maior deslumbramento, porque eu descobri que poder desfrutá-la, dada a Iragilidade do ser humano,
é um grande privilégio. Mas nunca esquecerei que o principal da vida está nas pessoas a minha volta e que, comparado a elas, o resto me serve apenas como uma maravilhosa
e rica distração.

Gostaria, então, de lhes oferecer um pouco do sentimento deste meu revigorado ponto de vista pedindo-lhes que façam um pequeno jogo comigo. Um jogo que para mim
foi real, mas que vocês só conseguirão aproveitá-lo se estiverem dispostos de verdade a encará-lo... E sabido que a melhor forma de valorizarmos alguma coisa é quando
ficamos sem ela. E é isso que vou lhes propor que façam, mas apenas mentalmente. Como temporariamente eu só tenho olhos para a minha família, pedirei que me acompanhem
nesta caminhada. Peço assim que imaginem a perda do que para todos - lembrem disso ou não - é mais importante: a vida das pessoas que amam. O que quero é que imaginem
alguém que amem muito, morto. - Esperei por um pequeno tempo em que a surpresa dava lugar à curiosidade.

- Isso mesmo! Façam uma história envolvendo o fato. Tentem entrar neste jogo. Até porque eu não pretendo dar um de pregador do poder da valorização duas vezes. -
Fui acolhido por mais um punhado de risos amistosos.

- Façam uma história. Porque é possível induzir o nosso cérebro a sentir aquilo que criamos, como fazemos em uma história que nos é contada. O cérebro é fácil de
iludir. Até fantoches, se bem conduzidos, podem nos levar à alegria ou à tristeza, não é verdade? Então, pensem nesta pessoa amada sendo tirada de vocês. Ela voltando
do trabalho e sofrendo um atropelamento. Pensem na dor dela que vocês não podem abrandar. No sofrimento solitário no chão do asfalto. Pensem no telefonema que lhes
informa o ocorrido. Pensem no seu corpo em um caixão! O que vocês gostariam de ter dito a ela? O que vocês gostariam de ter feito a ela? Um abraço forte? Mil deles?
Uma conversa em que vocês realmente estivessem
interessados e escutando? Fechem os olhos e mergulhem nestes pensamentos, e sensações e sugestões lhes serão dadas. Então, quando acharem que já foi suficiente,
abram os olhos e vejam o quão importante esta pessoa é para vocês. O que quer que tenham tido vontade de fazer, façam. Não deixem para amanhã, nem esperem que a
vida lhes dê tempo. Pois ela não dará. Sempre teremos tarefas paralelas acontecendo em nossas vidas. Nos é pedido então habilidade para atendê-las sem perder o foco
sobre a nossa família... Sei que enxergar com clareza a extensão do sentimento que guardamos por eles é um alicerce poderoso para criar uma nova atitude perante
os que amamos. Uma atitude de valorização, interesse e desejo por eles. - Precisei tomar fôlego novamente antes de terminar.

- Acreditem, quando eu achei que perderia a minha família, a minha maior vontade era querer ter lhes dado mais amor, mais carinho. Fiquem com este jogo, inventem
outras perdas e tentem tornar a valorização do que vocês têm um exercício. Se conduzirem esta ferramenta no sentido de verem o que há de maravilhoso todos os dias
a nossa volta, asseguro-lhes, vocês e quem os cercam terão uma vida muito mais rica e mais bela. - Eram simples palavras para os que me escutavam, ainda que tenham
me oferecido toda atenção, mas para mim aquelas palavras continham uma lição que eu nunca esqueceria. Falar sobre aquilo havia nitidamente me emocionado, mas eu
precisava terminar.

- Desculpem-me dar a liberdade de lhes falar tão intimamente e não pensem que tenho a presunção de os conhecer tão bem; o que digo, digo porque no cativeiro eu senti
imensa vontade de ter ouvido antes. Não quero negar a vocês algo que eu desejei tanto conhecer e que, para a minha paz, fez tanta falta... Acredito hoje que saber
valorizar o que se tem é uma das prerrogativas da felicidade. - Fiz um grande esforço para compartilhar a minha experiência, mas foi algo gratificante e libertador.

- Agradeço do fundo do coração vocês terem vindo me ver hoje e sou extremamente grato pelo carinho que deram e dão a mim e a minha família. Muito obrigado.

Ao final do discurso, os meus olhos se encheram de lágrimas e na resposta dos meus amigos não veio nenhuma palavra, mas uma reconfortante salvade palmas.

Eu e a Isabela estávamos cansados e pouco depois das treze horas, após muitos e deliciosos abraços, as nossas visitas foram embora.

Era domingo e devíamos decidir como encararíamos a segunda.

Entendemos que antes de eu voltar para a empresa eu deveria direcionar a minha atenção à polícia e ao caso.
Ainda, no meio das visitas que recebi domingo, fui visitar o Enzo.

Quando ele me abriu a porta, nós dois reagimos ao outro com um largo e franco sorriso. Enzo, com o seu humor, salientou o fato de termos nos livrado da barba.

- Em que posso ajudá-lo? - Falou, me fazendo rir.

E aí, meu amigo? - Disse ao Enzo, dando-lhe um forte abraço em seguida.

- Melhor que nunca. A casa está cheia, não é? Veio fugir deles?

- Um pouco. Vim saber como você está.

- Entre dois minutinhos, tem café pronto. - Sentamos na sala com os cafés em nossas mãos.

- O que achou do café? - Disse ele, entusiasmado pela bebida.

- Um pouco forte para o meu gosto. - Brinquei com os giros que o mundo dá. - Mas e aí, o que você fará, Enzo?

- Em uma hora vou para a minha cidade. Um mês depois do assalto e da nossa suposta morte, meu filho voltou para a nossa cidade.

Com pesar ouvi a notícia, mas não teria coragem de tentar dissuadi-lo a ficar. - Que pena, meu amigo! Perderei o meu melhor vizinho.

- Mas não a nossa amizade, Carlos. Quero que depois que tudo isso acalmar, você vá me visitar. A cidade é bem menor que esta, mas tem o seu encanto. Daqui a quatro
dias eu volto para dar o meu depoimento. Podemos jantar juntos, o que acha?

- Acho maravilhoso. Imagina nós dois diante de um cardápio. - Sorrimos de pura alegria.

- Vai ser engraçado... E o seu depoimento. Está seguro? - Combinamos de nunca falarmos sobre a verdade, apenas sobre a nossa versão.

- Lembro de cada detalhe. E você? - Perguntei.

- Nunca vou esquecer. Quando dará o seu depoimento?

- Segunda-feira.

A conversa continuou por mais alguns minutos e nos despedimos com a promessa de logo nos reencontrarmos.

Na segunda-feira encontrei o Senhor Ernesto, o delegado responsável pelo caso. Ele e mais três policiais foram na minha casa colher o meu depoimento. Eles estavam
admirados com o ocorrido e logo me falaram sobre as novas notícias. Estávamos todos sentados na sala de jantar.

Senhor Carlos, antes que comecemos o testemunho, quero lhe comunicar que os corpos do que, provavelmente, era o restante do grupo, já foram encontrados.

- Onde? - Perguntei surpreso, não pelo fato, mas pela rapidez.

- Em um matagal na chácara vizinha. Encontramos seis corpos de homens na casa dos vinte a trinta anos. A data de óbito é compatível com o dia em que vocês entregaram
o planejamento de vendas ao "Matias", no caso, ao Miguel. Devem ter morrido assim que deixaram de ser úteis. Vocês dois têm muita sorte. Estavam lidando com um homem
extremamente frio e calculista. - Ouvir a confirmação definitiva das nossas suposições, mesmo eu tendo acreditado tanto nelas, me proporcionou alívio.

- Como eles morreram?

- Estrangulados. Como eles não têm outras lesões a não ser no pescoço, é conclusivo que não houve luta. Amostras de tecido estão sendo levadas para o laboratório
para saber se eles estavam sob o efeito de alguma droga quando foram mortos.

Foram dopados...

- Sim. A hipótese é que alguém de confiança lhes forneceu bebidas com sonífero, depois foi só laçar o pescoço e puxar. Esta última atitude já foi confirmada.

Minha nossa!

- De fato. Agradecemos aos céus vocês dois estarem vivos.

O que iniciávamos não era apenas um depoimento, mas uma colaboração que me era pedida e eu a forneceria com tranquilidade. Por essa razão, minha esposa pôde estar
presente.

Eles me pediram que não censurasse o que eu presumia que eles já soubessem; então contei-lhes primeiramente como foi conduzido o assalto ao banco. Depois, falei-lhes
sobre a primeira conversa em que o Matias se
revelou como chefe do bando e nos explicou nossas futuras funções. Eu, como articulador das vendas das pedras, e o Enzo como alguém que eu poderia perder caso eu
não colaborasse. Obviamente, nunca precisei ouvir a ameaça que viria depois desta.

Ao contrário da conversa com os meus amigos, não me detive às privações e experiências que tive; não era para isso que eles estavam ali. Conteilhes como descobrimos
a maçaneta e como a usamos desde então. Expus toda a minha colaboração em relação às vendas das pedras e terminei contando como conseguimos passar pela abertura
que formamos na parede e surpreender a única pessoa do bando com que tínhamos contato fazia quase um mês.

Ao fim da conversa, falei-lhes que estava à inteira disposição e recebi o cumprimento acolhedor daqueles homens. Naturalmente, teríamos outras conversas, mas tanto
eu como Isabela saímos satisfeitos com as minhas respostas diante de tantas perguntas. Também quis saber como eu poderia falar com os donos das jóias que eu, infelizmente,
havia prejudicado.

Uma semana mais tarde, depois de muitos deleites com a minha família, depois do jantar com o Enzo e da constatação de que as nossas versões haviam se encaixado perfeitamente,
tive a oportunidade de conversar com os sócios donos das jóias. Me apresentei aos três senhores e fui calorosamente recebido.

- Nós sabemos quem é o senhor. Viveu uma grande provação durante sessenta e dois dias e saiu vivo para contar. A que devemos a honra? - Disse um senhor grisalho,
com modos e roupas de cavalheiro.

- Os senhores não sabem como são doces estas palavras... Vim aqui para lhes dizer que tenho inúmeras informações que podem ajudá-los e que é isso que eu gostaria
de fazer.

Apesar do meu intuito ser o de ajudar no rastreamento do dinheiro das jóias, naquele dia nada disso faria. Para minha surpresa, eles estavam mais interessados no
que eu vivi do que propriamente no dinheiro. Mesmo assim, antes de nos despedirmos, já havia sido chamado, por pedido meu, o homem do seguro responsável pela procura
delas, e ele me foi apresentado.

O senhor Kaiser e eu passamos dois dias refazendo as instruções que eu havia passado ao Matias. Ele se encarregou de procurar pela abertura de
empresas, compras e vendas de determinadas quantidades e tipos, e depois de duas semanas ele encontrou a empresa de Matias.

Neste momento sua equipe passou de quatro pessoas para dezesseis. para a minha frustração, apenas uma semana mais tarde, veio uma uma lastimável conclusão: eles
esbarraram
em uma última conta e depois dela não foram mais capazes de passar.

Infelizmente, dois dias antes da sua morte, o Matias havia conseguido apagar o seu rastro bancário.
Af frustração por não conseguir ajudar a rastrear o dinheiro das pedras ainda permanece dentro de mim, mas como isso está além das minhas habilidades, eu estou
conseguindo deixar de lado e seguindo em frente.

Estes dois meses após o cativeiro foram usados, mais do que para qualquer outra coisa, para avaliar e redirecionar a minha vida.

Minha esposa e eu sempre gozamos de muita intimidade, carinho e respeito. Antes do cativeiro não estávamos em crise. Vivíamos felizes e satisfeitos um com o outro.
Então, quando percebo as mudanças em minha forma de ver o mundo, não se trata de uma virada de vida, mas sim de um ajuste. Não fui salvo pela experiência que tive,
mas orientado.

É interessante, porque percebi que, mesmo diante de tudo que tinha: abundância financeira, prestígio e uma linda família, continuava em uma busca cega por reconhecimento.
Mas de quem? Por quê? Discretamente, esta busca exercia certo controle sobre mim sem eu perceber. Ditava comportamentos que não fariam sentido, caso eu entendesse
que ir atrás de reconhecimento não fosse mais uma prioridade... Talvez nunca devesse ter sido.

Na vida, eu, como quase todos, fui instigado, motivado e cobrado para vencer financeiramente. Então, é isso que, quando cresci, naturalmente ganhou a minha atenção.
Eu não sabia ainda que, emocionalmente, o valor do dinheiro vem do reconhecimento que gera, e é este reconhecimento que todos nós buscamos. Não o dinheiro, mas pela
mais forte das associações, o dinheiro ganha grandes proporções. Acredito que é a conquista do reconhecimento dos outros que está por trás da busca pelo sucesso
financeiro ou seja ele qual for.

Nascemos em uma sociedade com determinados valores, mas caso ela primasse pela habilidade de equilibrar pratos, acredite-se ou não, este
seria o desejo mais comum. O que dá para se concluir é que o desejo não está no ato em si, mas na repercussão deste entre os nossos iguais, entre o nosso nicho
de interesse, seja religioso, esportivo ou cultural. São as pessoas que nos interessam! Alcançando reconhecimento teremos um tratamento amistoso e agradável dos.
outros. Teremos mais oportunidades "em diversas áreas e quanto maior ele for, mais será feita a nossa vontade em
determinar as pessoas que nos cercam e o modo como nos relacionamos com elas. Isso é verdade e não posso, nem devo, negar.

Reconhecimento gera interesse e admiração e isso atrai as pessoas. Buscá-lo, então, nas ciências, no esporte, nas finanças ou na beleza é compreensível,
aconselhável e racional.

Contudo, muitos são os que durante a busca por reconhecimento esquecem que o que a iniciou foi o desejo por bons relacionamentos, os seres humanos se esquecem de
cuidar dos seus relacionamentos porque estão ocupados atrás de reconhecimento, para no final se tornar mais teressantes para os seus relacionamentos. Que contradição!
Mas isso acontece e o indivíduo não é louco por cometer esse engano! Porque ainda que falhemos com as pessoas, caso alcancemos conquistas sociais, seremos
sempre associados ao sucesso. Isso trará novas pessoas sem necessariamente tern os ensinado a corrigir os nossos erros. E é claro que tudo isso nos confunde.

Porque, quando se decreta que uma pessoa obteve sucesso na vida, honestamente, estamos nos referindo ao quê?

Muitas das pessoas que julgamos terem vencido os obstáculos da vida, na verdade venceram com grande talento e perseverança, um ou dois obstáculos. Vemos homens que
construíram um império, mas que não conseguem controlar o seu peso ou viver bem com a sua esposa e filhos. Cantores que têm o mundo aos seus pés, mas, tirado o microfone,
se resumem a alcoólatras. Esta lista não tem fim e todos eles compartilham entre si o talento e a determinação em vencer. Eles têm a capacidade de ultrapassarem
obstáculos e se esmerar em razão de um objetivo. Contudo, permitem que o reconhecimento das suas conquistas sociais ofusque interesses ainda maiores, como a saúde
e o amor. Confundidos pela sociedade, acabam se tornando vítimas de seu talento. São vencedores? Com certeza
são, mas por vezes deixam de conquistar a maior razão de uma vida: os seus afetos!

Talvez, caso minha rotina não tivesse sido temporariamente interrompida, eu não houvesse direcionado a minha atenção no sentido de desfrutar os meus relacionamentos
e ainda estivesse em uma busca automática por mais reconhecimento.

é claro que não penso que cada ação minha foi dirigida ao reconhecimento social, no meu caso ainda, no setor financeiro. Quando estou com o meu filho, o meu enfoque
é lhe agradar. Quando assisto ao meu time, é torcer. O que chamou a minha atenção foram tantas atitudes, tantas horas extras, riscos e projetos que assumi, companhias
e jantares que aceitei com a intenção velada de mais reconhecimento. Percebi que ele não tem valor se não houver equivalente empenho afetivo com as pessoas. Ele
perde o sentido, mas ninguém me instigou, motivou e cobrou nessa direção. Tive algum êxito nos meus relacionamentos por erros e acertos próprios, e agora decidi
que nesta área afetiva devo fazer o mesmo que fui instigado a fazer na profissional: me desenvolver e mergulhar de cabeça.

Saber sobre o gosto por ser reconhecido me alertou para evitar de ser escravizado por ele e sobre a minha incoerência com as prioridades da vida, mas de forma alguma
me fez deixar de apreciá-lo. Conscientizei-me, sim, da sua onipresença e da quase unanimidade de seu apreço. A sociedade reconhece a ascensão profissional. Eu deveria,
com mais frequência, reconhecer virtudes, princípios, caráter e comportamentos de amigos, filhos, irmã e esposa.

Apesar de ser um marido apaixonado pela minha mulher, omiti por muitas vezes de lhe dizer o porquê disso. Risquei essa omissão do meu mapa!

Eu gosto da suavidade com que ela coloca as suas opiniões, da alegria que passa quando ri para mim, a acho perspicaz, uma mãe que prima pelo amor e pela educação
aos filhos muito mais do que pela proteção - algo que ela me ensinou; a acho trabalhadora - virtude fundamental; ela é inteligente, amorosa... E elegantemente sexy.

São mil elogios que fui percebendo e admirando na medida em que fui dando a devida atenção que a mulher que eu mais amo no mundo
merecia. Em seguida, faltava-lhe dizer. E foi o que fiz. Não uma vez, mas com frequência. Não de forma solta, mas quando fosse pertinente. Não muitos, mas verdadeiros.

Ela merece o reconhecimento pela mulher que ela é e eu o dou com todo meu amor e consciência. Dou a ela o que descobri ser uma necessidade humana, mas lhe faço com
sinceridade, e não apenas pela satisfação que gera.

O elogio é o reconhecimento interpessoal e é algo que todos apreciam e desejam, mas com honestidade, porque quando o recebemos sem ela, nós o abominamos, pior, o
consideramos inútil e desprezível. Não quer dizer que uma pessoa com muitos déficits não esteja à altura de um elogio; na verdade, é a que mais precisa de um e,
para encontrá-lo, só basta o nosso interesse em procurá-lo. Fiz isso com os meus filhos - os elogios mais fáceis de dar; com os meus funcionários e com os meus amigos.
Rapidamente comecei a ver quantas qualidades as pessoas que estavam em minha volta tinham e, por consequência, comecei a gostar mais dos outros. Meu ganho foi que
a minha esposa se tornou e me fez ainda mais feliz, os meus funcionários se mostraram mais dedicados e meus amigos se fizeram mais próximos.

Por vezes, eu cedia a irritação enquanto que as pessoas a minha volta me pediam por compreensão. Fazia críticas enquanto o maior crescimento dos outros se dá no
elogio. Nós instintivamente nos defendemos da crítica, justificando-a, repulsando-a! Por outro lado, desejaremos sempre sustentar e agir à altura de um elogio. Coisas
que deveriam ter me ensinado, fatos a que eu podia ter dado maior atenção e nunca mais esquecido! Sempre me considerei um bom homem, mas até então não tinha dado
importância ao quanto melhor eu podia ser.

No começo da tarde de sábado eu e a Isabela admirávamos os nossos filhos brincando no jardim, enquanto aguardávamos um casal de amigos.

Assim que chegaram, nós quatro nos sentamos na sala. Eles estavam na casa dos setenta e haviam chegado lá com vigor e elegância. Ele era um amigo meu e empresário
que possuía todo o meu respeito e que, em parte, havia inspirado muitos dos meus passos como profissional.

Há dois anos não nos víamos, pois ele havia mudado o centro dos seus negócios para outra cidade, mas quando soube que eu estava vivo, veio me prestar uma agradável
visita. Mal sabia ele que sua visita seria muito mais valiosa do que imaginava, pois iluminaria minha ignorância, algo que tinha o poder de literalmente salvar a
minha vida.

O casal Servieri, tão fã da conversa regada a café quanto nós, nos fez companhia à tarde. Nos dispomos em uma roda de cadeiras na sala, que era separada do jardim
e das crianças por portas de vidro. Com as xícaras na mão e entusiasmo na voz, começamos as trocas de novidades. Evidentemente, eu detinha a maior delas, mas educada
e prudentemente eles prorrogaram o esperado interesse de se aprofundar no assunto. Quando a oportunidade chegou, fui atencioso e lhes contei sobre a experiência.
Eu já estava acostumado a falar a respeito e, até certo ponto, gostava de fazê-lo. Quase como regra, as pessoas respeitavam a minha vontade de entrar ou não em detalhes.
Com o casal Servieri, a minha disposição era do tamanho da deles.

Raramente alguém ouvia a versão completa, pois geralmente eu não tinha tempo nem paciência suficientes. Mesmo que tivesse, tão pouco me arriscaria a me tornar inconveniente.
Naquela ocasião, nenhuma das alternativas era o caso.

Com a segunda xícara de café servida pela minha esposa, eu lhes contei a minha experiência do início ao curto e fantasioso final. Quando me esquecia de algo no meio
da história, Isabela assumia o trecho; era bom sinal, mostrava-me que ela ainda não estava cansada do assunto; na verdade, nem eu. A conversa foi se estendendo e
tomando outras formas. Divagamos sobre a morte, sobre os que deixamos. Como o mundo responde ou não responde. Falamos sobre os jovens do bando. Sua perícia e frieza
e, em uma das nossas colocações, veio algo que me ficaria gravado na cabeça por algumas horas.

O Celso Servieri estava surpreso com o planejamento do grupo, com sua capacidade de organização, determinação e comprometimento. Todas qualidades observadas antes.
Ele fez eu acompanhar a extensão da ação do grupo e me levou para muito além do que eu havia vivenciado. Conjeturamos sobre as ações de bastidores do bando anteriores
ao assalto. Eu já tinha
feito isso com o Enzo no cativeiro e, posteriormente, com o delegado, mas foi a sequência de informações e observações da conversa, talvez somadas ao tempo, que
me jogaram luz para algo que tinha passado despercebido. Mergulhado na capacidade intelectual do Matias, seguiu-se as observações do Celso.

- Você vê, Carlos. O Matias foi um planejador fantástico, tinha um grupo fiel ao seu dispor, executou noventa e nove por cento do planejado com perfeição e uma maçaneta
com dois homens inteligentes e determinados arrancaram dele a vitória. - Ao final da frase nós rimos a favor da justiça.

- Teve o que mereceu! - Comentou autenticando a sua morte e nós quatro, desta vez sem riso, batemos as nossas xícaras. - Felizmente, aquele não foi o seu último
comentário e, em tom mais baixo, foi humano ao observar algo lamentável. - Um homem brilhante que conduziu todos ao fracasso.

Eu ri levemente e repeti comigo: Um homem brilhante que conduziu todos ao fracasso.

O cérebro é algo fantástico e misterioso. E sabido que nele existem diversas "gavetas" distintas umas das outras com intermináveis informações cada. É tamanho o
número de informação que a mente detém, que acontece de muitas das novas ideias e invenções de que se tem conhecimento, não terem precisado de novos dados para serem
concebidas, mas, sim, surgirem da reorganização destes por ocasião de determinado evento. Outras vezes, uma nova informação ou ponto de observação pode gerar uma
reação espontânea no cérebro que busque diferentes informações, guardadas em diferentes "gavetas", fazendo com que todas se liguem para criar uma nova descoberta.
Isso aconteceria comigo após três horas do casal Servieri ter nos deixado.

- Carlos, o que você tem? Desde que os Servieri foram embora você está agitado. Aconteceu alguma coisa?

- Não, Isa. Eu apenas estou pensando sozinho. Você me faria o favor de preparar um dos seus sanduíches? - Ela me olhou desconfiada, mas entendeu o meu pedido.

Claro. - Eu queria um tempo para pensar sozinho. Antes de explicar a ela sobre o que estava me incomodando, eu precisava organizar na cabeça as felpas de pensamento
que estavam me rodeando.

As palavras do Celso Servieri, por alguma razão, não saíam da minha mente: Um homem brilhante que conduziu todos ao fracasso. Homem brilhante... Todos ao fracasso.
Eu sabia que a afirmação não era exatamente verdade. Eu havia ajudado a planejar e a executar o sucesso de um deles, mas e daí?

Em um instante a palavra brilhante se juntou ao sucesso de um deles e um assombroso pensamento me veio à cabeça.

Como havia acontecido antes, meu corpo sem movimento deixava toda a minha atenção e energia para o pensamento. E o meu pensamento foi longe. A medida que a ideia
foi ficando clara, um frio passou pela minha espinha. Eu já estava familiarizado com a sensação. Era um impulso causado por profundo medo. Minha mente nesta hora
ligava espontaneamente diversos e espaçados acontecimentos.

Imediatamente eu voltei ao primeiro dia, quando o Matias tomou a dianteira e ditou as regras. O Jota, apenas outro até então, veio ao final da conversa e, pelas
ordens do Matias, aplicou-nos um choque. Lembro-me de ouvir baixo as suas desculpas. Ele ganhou certa simpatia já no primeiro dia, de um jeito inesperado, mas efetivo.

Não demonstrou interesse em nos conhecer até o momento que expus ao Matias o meu plano, no entanto sempre nos tratou com respeito e nos alimentou com generosidade.
Discretamente, e sem gerar as nossas suspeitas
ele estava nos cativando. - Os meus pensamentos à frente faziam a minha barriga doer enquanto a luz e a alegria que eu havia recebido depois da fuga rapidamente
se apagavam. Olhei para a minha esposa preparando o meu sanduíche, não mais compartilhando da sua paz e segurança.

"Demorou para conversarmos com o Jota, mas a partir do momento que tivemos a primeira conversa só aumentamos os laços entre nós três". Sua admiração pelo meu plano,
a franqueza das suas convicções, o interesse pelas nossas conversas, tudo planejado? Ele interveio a nosso favor para o ganho da mesa e das duas cadeiras! "Pode
ser, mas tenho que falar com o senhor Matias antes".

Eu mal podia acreditar! A sua imagem era uma bela e conveniente farsa? Será?

Comecei a me lembrar do dia em que ele trouxe a informação de que o Matias havia avançado na venda das jóias. Eu Tenho ótimas notícias... O cativeiro de vocês está
chegando ao fim... Vendemos todos os rubis e um terço dos diamantes". Aquilo me desestabilizou, me pôs em alerta e com uma sensação de aflição e urgência. Isso durou
até ele próprio me acalmar. Era ele quem nos passava o perfil do Matias, e ele o defendia com fidelidade e dedicação. " O Matias pode passar por cima da lei, mas
isso não impede que ele crie relações de confiança". No entanto, logo depois, nos desestabilizou novamente deixando escapar a fuga do restante do bando. Sinceramente,
espero que tudo acabe bem para vocês. -Edará, Enzo. Já deu certo para os outros, por que não daria certo para mim epara o mentor de tudo isso". Deixando escapar?

Paralisado no meu sofá, com a visão embasada e com o rosto formigando, tive dificuldade de largar a xícara de café na mesa de centro.

Em seguida, por questionamentos que levantamos, nos contou da proibição da comunicação com o restante do grupo. No desenrolar da conversa, eu e o Enzo concluímos,
baseado em todas informações, que o Matias os havia matado. No entanto, o Jota ainda fez com que nos esmerássemos para tentar convencê-lo. - E possível, sim, mas
por que então discutiria com o grupo a respeito da nossa maior porcentagem? Por que ele gastaria com documentos falsos e passagens?". Ele deixou claro para nós o
que ainda faltava e nos deu tempo para tentar entender. Foi exatamente o que fizemos.

Mesmo assim esperamos cinco dias para receber a sua concordância. Cinco dias! Nesses dias eu e o Enzo articulamos um plano para que os três
saíssem bem e vivos. Evidentemente, esta era a única forma de sermos ouvidos pelo Jota. Nós articulamos Ou ele? O que nós dois planejamos c lugia dos nilhos do
Jota,
ele astutamente nos conduzia de volta. Nós matamos o Matias e Não ele "O Matias chegará poucas horas mais tarde A partir daívocês terão o livre-arbítrio Façam o
que
quiserem com ele. Eu deixarei um revólver na sala" Falou depois de nos lembrar o quanto Matias era perigoso, sabendo que nós dois entendíamos as implicações disso
melhor do que ninguém Matamos o único homem que sabia que o Jota existia

- Meu Deus

Nosso testemunho para a policia contou com absoluta idoneidade e legitimidade e apagou o Jota do bando A polícia, posteriormente, se encarregou de achar com facilidade
os outros seis integrantes

Esperamos cinco dias pelo convencimento do maldito. Aceitamos as suas modificações no plano que, de fato, contavam com coerência, mas que não vieram antes dele nos
ter avisado que a nossa morte aconteceria em breve "- Se for o que estamos esperando, no final da manhã de sábado, daqui a dois dias, ele vira sozinho aqui para
matá-los" Com total controle de nós, ele nos induzia emocional e racionalmente.

Desde o início o Matias conversava conosco, não apenas com a companhia do Jota, mas com a sua supervisão O Jota foi o único a ficar a sós com o Enzo e comigo. O
Matias falava o que o Jota lhe mandava falar O Matias se mostrava ser o que para o Jota era conveniente. O pedido do Jota para termos cadeira e mesa foi para si
próprio. Ele não era um mero carcereiro e piloto

O mentor intelectual que articulou e que efetuou noventa e nove por cento de um complexo plano, que geraria um lucro estrondoso, não se deixou trair pelo seu discípulo
mais fiel, mas guardou o Matias para concluir o último um por cento. O líder não foi morto por mim e pelo Enzo Foi protegido'

Meu Deus ..

O Jota era o mentor do grupo.

Eu mal percebi a minha esposa chegando com o sanduíche na sala.

- Carlos, chega! Me diga o que você tem. - Ela largou com displicência o sanduíche na mesa, puxou uma cadeira até a minha frente, sentou e pegou com carinho e firmeza
as minhas mãos.

- Fale comigo, Carlos. - Eu a olhei, provavelmente com um olhar de terror e aquilo serviu para deter toda a sua atenção.

Isabela, você não vai acreditar no que eu me dei conta. - Eu não poderia lhe explicar da mesma forma que pensei, em uma enxurrada de pensamentos. Pintei todo o quadro
antes de lhe pedir que invertesse muito do que até então sabia.

- Você acha isso possível, Carlos? - Me perguntou após ter ouvido todos os fatos que haviam me lançado a firmar aquele pensamento.

- Eu não posso ter certeza, Isabela, mas assim que me veio esta ideia, a outra se enfraqueceu. Além de eu ter a impressão que hoje eu consigo identificar, em diferentes
situações, intenções futuras por trás de pequenas sutilezas nas ações do Jota, intenções que nos direcionavam ao resultado que tivemos, mas que só me ficaram claras
hoje. É um tipo de percepção que sem o conhecimento que agora eu tenho me passou em branco, mas que somado aos fatos que lhe disse antes, comecei a acreditar com
força nesta possibilidade. Você consegue me entender?

- Consigo, mais do que você imagina. - Falou honestamente, parecendo procurar onde estava em sua memória o que a fazia compreender. Foi a sensação que tive quando
você fez a minha festa surpresa de quarenta anos. Eu caí como uma pata na festa, mas depois que eu entendi do que se tratava, os fatos se encaixaram, ficaram claros
como o dia.
- Que bom que você me entendeu! - Depois de dez minutos de conversa pude lhe dar um abraço que me reconfortou. Ele vinha do sentimento de alívio e de agradecimento
que só a experiência de ter um pensamento complexoperfeitamente compreendido pode gerar.

Aliviado, pude admitir para mim mesmo que eu, desde o momento do enstalo, já estava convencido. - Não houve acaso ou sorte; tudo convergiu desde o início para o
resultado que tivemos.

- Eu acredito. - Repetiu ela caso eu ainda precisasse ouvir a sua autenticação.

E eu precisava... Com a cabeça baixa, olhando para o tapete, desta vez o meu alívio se mostrou em um pequeno suspiro.

Minha esposa agora trataria de mim. - Carlos, eu não quero nunca mais que você pergunte se você é louco. Nunca mais pergunte isso. Louco seria se tivesse acreditado
nas promessas do Matias. - Bem lembrou ela! Depois autenticou a nossa nova descoberta ao se corrigir. - Matias, que agora acreditamos falar pelas instruções do Jota.
Meu Deus! - Ela soltou uma amarga risada; infelizmente não haveria espaço para rir quando chegássemos na parte das implicações desta nova descoberta.

Eu desfrutei do momento da nossa comunhão de julgamento. Contudo, havíamos concluído apenas a metade da conversa. Esperei que a Isabela questionasse sobre as implicações.
Logo em seguida, ela o fez.

- A nossa situação muda por causa disso? - Perguntou ela, parecendo procurar pelas respostas. Eu já a tinha achado, mas havia suprimido temporariamente para que
não me atrapalhasse durante a etapa que havíamos acabado de vencer juntos. Eu estava tão convencido, que não conseguia torcer pela pequena possibilidade de a Isabela
encontrar argumentos que me fizessem a achar infundadas as minhas subsequentes conclusões.

- Acho que muda. - Respondi sem disfarçar o meu abatimento, dando espaço em seguida ao silêncio, o que diria mais que palavras. Demorou instantes até ela deduzir
que o motivo da minha expressão inicial de terror não se encontrava no que nós já havíamos conversado, mas, sim, no que estaria por vir.

- Em que sentido? - Perguntou ela novamente.

- Pense comigo, Isa. O Jota, no mínimo há um ano, talvez dois, talvez mais, vem se dedicando ao que para ele é um grande projeto. E pelo valor que lucrou, é o projeto
da sua vida. Nele, ele matou no mínimo sete pessoas. Sete pessoas que com certeza conviveram consideravelmente com ele. Como bem eu sei, riram e criaram laços de
fraternidade, esperança e sonhos. Este homem matou a todos! Incluindo o Matias, pelas minhas mãos
e as do Enzo. Sabemos do cuidado que levou para planejar diversas e complexas tarefas, talvez muitas com alternativas paralelas e ajustes durante o percurso e ele
conseguiu cumprir friamente tudo o que havia determinado muito antes de tudo começar. Você está reconhecendo o perfil do Matias nas minhas palavras? Lembra do medo
que eu e o Enzo tínhamos de mantê-lo vivo, caso ele encontrasse alguma razão futura na nossa morte? O perfil do Matias pertence com ainda maior grandeza ao Jota.
E ele esta vivo! Então, se acho que a nossa situação muda, lhe afirmo, muda com toda certeza.

Isabela, me pouparia do desfecho, dando sinal de ter entendido onde estávamos metidos. - E nós, o Enzo e talvez o seu filho somos as únicas pessoas que sabem que
ele está vivo.

- Exatamente.

- Me diga, Carlos, o que você acha que pode acontecer? É você que o conhece. É você que pensa nisso há mais de quatro meses... Me diga. - Eu desejava não mais ter
que pensar, mas isso não era ainda uma opção. - Você acha que ele pode tentar nos matar?

- Não sei o que se passa na cabeça desse filho da mãe. Não sei se ele imagina que o que eu descobri hoje poderia acontecer e que por medo que ele me atacasse, eu,
por prevenção, poderia o delatar à polícia.

- Você não pensou isso antes no cativeiro, nem após com o delegado, por que algum dia pensaria?

- Porque de fato aconteceu, neste estalo que tive depois da conversa com o Servieri. - Não sabíamos se lamentávamos o fato ou o agradecíamos. Ficamos por um tempo
em silêncio situando-nos quão fundo na merda nós nos encontrávamos.

- Diga o que você está pensando. - Falou Isabela, quebrando a nossa solidão intelectual.

- Estou achando que podemos estar vivendo uma ilusão. Estamos dentro da nossa casa, há mais de dois meses, totalmente tranquilos; então, a impressão que tenho é
que nada vai mudar, mas já sabemos que é possível que ele planeje matar talvez eu e o Enzo, ou até mesmo você e o filho do Enzo. Podemos ter o luxo de apostar de
que nada vai nos acontecer tendo o Lucas e a Laura? Nós dois já vivemos sob a influência direta do Jota. Sabemos que coisas horríveis podem acontecer e de fato acontecem.
Vamos esperar o Jota decidir o que faz conosco?

- O que você sugere?

- Tomarmos providências.

- Falar com a polícia? - Isabela perguntou apreensiva.

- Talvez depois, mas a primeira coisa a se fazer é falar com o Enzo sobre isso, para decidirmos que posição tomar. Se decidirmos por falar com a polícia, eu e o
Enzo temos que contar as mesmas coisas. Talvez precisemos inventar outras mentiras, talvez não.

Agora o suspiro veio da Isabela, mas não foi de alívio. - Nossa vida vai mudar completamente... Tem chance do Jota continuar sendo o Jota?

- Para mim não, mas vamos ver o que o Enzo acha. Só não te apegues a essa possibilidade. - Falei isso e fiz uma pausa para abraçá-la. Sentir o seu medo e fragilidade
me fez desejar abrandar a nossa situação, mas eu não atenderia a este desejo. Também não me daria ao direito de ser orgulhoso assumindo sozinho o confronto contra
o Jota. Eu precisava das ideias e do discernimento da Isabela e de tudo mais que ela estivesse disposta a ajudar. Ela era forte e entenderia logo que eu precisava
de toda a sua força. Os nossos filhos precisavam da nossa conscientização sobre os fatos, da união, disposição e inteligência do casal e, conhecendo a minha esposa,
eles a teriam. Entretanto, nada seria suficiente se primeiro não fôssemos honestos sobre onde nos encontrávamos e quão fundo estávamos dispostos a ir. Por ora, minha
esposa precisava daquele abraço; eu estava lá para isso.

Eu e Isabela estávamos em silêncio no carro, dirigindo-nos à casa do Enzo, a seis horas de distância. Partimos após ter passado quatro horas da descoberta e, depois
de considerarmos as questões que levantamos, decidimos não perder mais tempo. Entramos no jogo com dois meses de atraso. Deixamos as crianças com os pais dela, com
a desculpa de que passaríamos a noite e o domingo na casa da Serra.

Chegaríamos no meio da madrugada na cidade do Enzo e dormiríamos em um motel; pela manhã lhe faríamos uma desagradável visita.

Como parceiros, eu e ela havíamos decidido que não entraríamos em uma discussão de probabilidades; já havíamos entendido que aquilo era possível, e isso já era o
suficiente. Então, até a situação estar resolvida, agiríamos como se fosse certa a intenção do Jota em nos matar. Assim, assumimos o compromisso de não censurar
nenhuma ação que objetivasse a nossa segurança. Não seríamos omissos, não teríamos relutância em sermos precavidos, não cometeríamos o engano de subestimar o Jota.

Essa decisão havia servido inclusive para eu me armar. Na minha jaqueta repousava uma 9 milímetros com quinze balas. Nunca a havia utilizado e provavelmente ela
era uma falsa sensação de segurança, mas mesmo que não fosse usada, tinha a sua função psicológica.

Como estávamos cegos sobre quais precauções o Jota poderia ter tomado, nossa decisão de sermos atentos e cautelosos, visto com quem estávamos lidando, já havia sido
incorporada. Desse modo, pela possibilidade que ele houvesse grampeado os nossos telefones no intuito de detectar o momento da "descoberta" caso eu ou o Enzo a tivéssemos,
achamos prudente não avisar ao Enzo sobre a nossa visita. Comunicar a ele que cruzaríamos o Estado imediatamente para encontrá-lo pela manhã com certeza chamaria
atenção, além de levantar perguntas pelo telefone de que eu teria que me esquivar.

Acreditávamos que ele não ia querer que a nossa morte levantasse suspeita da existência de algum remanescente vingativo do grupo; então imaginamos
que não seria com armas a sua ação. Eu não duvido que o cretino tivesse a capacidade de ler um livro inteiro de anestesio ou farmacologia pensando em como
me matar. Minha morte, como a minha anterior captura, lhe valia uma fortuna. Então, futuramente, até com a comida nós teríamos cuidado.

O mundo realmente havia mudado para nós, mas isso não duraria muito tempo.

Nenhuma ação poderia anteceder uma consulta ao Enzo, mas basicamente nossas opções se resumiam em duas. Relataríamos para a polícia sobre uma ligação anônima de
ameaça, cujo teor identificava um dos primeiros integrantes com que tivemos contato, ou venderíamos tudo e nos mudaríamos de Estado. Imaginamos que isso serviria
de recado ao Jota. Nas duas opções existiam riscos, e eu ainda não conseguia tender para nenhuma delas. Contava com a interação de mais duas mentes para procurar
por uma solução.

Eu e a Isabela nos sentíamos esgotados e, em dado momento, olhamos um para o outro. Estávamos no meio de uma estrada vazia e nos comunicamos com um leve sorriso
que guardava a sugestão de que tudo daria certo. Eu peguei em sua mão e voltamos a olhar para frente. Havíamos vencido inúmeros desafios em nossa vida. Apostamos
forte quando abrimos a nossa primeira empresa e com afinco a mantemos e prosperamos. Há cinco anos passamos pela iminência do nosso próprio divórcio e foi com determinação,
compromisso e força de vontade que reestruturamos o nosso casamento e nos fortalecemos como casal.

Aquele era o nosso desafio mais perigoso, mas estava muito longe de ser o primeiro.
Acordamos, como o programado, com o serviço de quarto do motel trazendo o nosso café. Era de manhã cedo e havíamos dormido apenas cinco horas. Em vinte minutos
já estávamos no carro e, com a informação precisa de um taxista, encontramos a rua do Enzo.

Estacionamos a quatro metros da sua casa e por coincidência, assim que saímos do carro vimos o Enzo com uma sacola com pães chegando em casa.

- Enzo! - Berrei e sorri, esperando que ele estranhasse a minha imagem. De fato, ele se surpreendeu. - Sou eu, meu amigo. - Eu disse andando em sua direção, e ele
respondeu começando a soltar o sorriso.

- Assustei você? - Falei-lhe dando um abraço e ele me respondeu sem conseguir disfarçar a preocupação. - Assustou sim, o que houve? - Falou dirigindo-se à Isabela
e em seguida lhe dando um beijo no rosto. - Está tudo bem com vocês?

Isabela olhou para mim. Eu não queria chegar me afobando, então posterguei a conversa. - De certa forma sim. Viemos para conversar contigo, desculpa não ter lhe
avisado, a circunstância não deixou.

- Que é isso, Carlos! Você é sempre bem-vindo, mas o que aconteceu? Vocês parecem abatidos.

- Podemos entrar? A conversa vai ser um pouco longa.

- Claro. - Sorriu sem jeito e com ternura convidou-nos para tomar um café.

- Vamos tomar o café da manhã juntos. Um por todos os que não tomamos, Carlos. - Ele tinha saído para comprar uns pães frescos e pediu que fôssemos com ele comprar
alguns mais. - Me acompanhem à padaria para termos pães suficientes. É um bom passeio.

- Obrigado, Enzo. Nós acabamos de comer, mas um cafezinho a gente aceita. - Fazer muito rodeio agindo como se nada tivesse acontecido faria eu me sentir ridículo.
Mudei um pouco o tom de visita e me apoiando na
intimidade de um bom amigo encurtei o tempo de sala. - Enzo, viajamos seis horas para vir aqui falar com você. O assunto é importante.

- O Enzo entendeu imediatamente o meu tom, já o tinha ouvido antes. - Vamos entrar, meus amigos.

Enzo soube que algo realmente sério havia acontecido e, assim que abriu a porta de sua casa, nos mostrou que nós teríamos toda a sua atenção.

- Me contem na cozinha o que aconteceu, venham. - Falou, entendendo que algo definitivamente estava errado. Fiquei triste em ter que levá-lo mais uma vez para um
mundo cercado de medos e incertezas. Após fechar a porta ele tomou a frente para nos levar à cozinha, que ficava aos fundos. É por aqui. - Falou, comprometido com
a prioridade da nossa notícia.

A medida que eu andava pelo ambiente eu o ia admirando. Isabela foi mais educada que eu. - é muito linda a sua sala. - Comentou. - Foi você quem decorou?

Enzo respondeu ansioso. Foi sim. - Nós o havíamos deixado preocupado. - Por favor, venham. Depois lhes mostro toda a casa.

Continuei a segui-lo pelo corredor de passagem que ficava à esquerda da sala. Andávamos em direção à cozinha e eu olhava encantado o lugar. Aquela era a sua casa!
Os ambientes onde se passaram tantas histórias que eu havia ouvido.

Observava tudo com certa admiração, achando o local familiar, ao mesmo tempo que corrigia algumas imagens que eu havia criado. Já no meio da sala, com o Enzo um
passo a minha frente me conduzindo à cozinha, eu, temporariamente entorpecido pela curiosidade, me deparei com um porta-retrato que parecia se tratar do Enzo junto
ao seu filho. Ele se encontrava sobre uma escrivaninha do lado direito da sala. Não contive o impulso de ver o filho do Enzo, de que tantas vezes ouvira falar. Até
então só Isabela tinha tido o prazer de conhecê-lo, já que ele havia voltado para esta cidade um mês depois do nosso sequestro, que na época, mesmo sem ter achado
os corpos, foi encarado por todos como a nossa, mais do que provável, morte.

A curiosidade me fez desviar da cozinha, cruzar com naturalidade a sala e pegar o porta-retrato com as minhas mãos.

- Não conheci o seu filho. - Disse-lhe sorrindo. O Enzo vendo-me do outro lado da sala, parou, mas não respondeu ao meu sorriso.

Eu estava com o porta-retrato em mãos, a Isabela estava no lugar onde eu havia me desviado do caminho para a cozinha e o Enzo estava três metros a sua frente. Juntos,
formávamos um triângulo.

Depois de cinco segundos olhando para o porta-retrato, eu senti um calafrio, e um jorro de adrenalina foi liberado na minha corrente sanguínea. O mais alto nível
de alerta havia sido soado mais uma vez. O medo, junto à adrenalina liberada, fez eu reagir mesmo antes de conseguir entender. Por instinto e reflexo, saquei a minha
arma. Algo estava definitivamente errado.

- Fique parado. - Falei energicamente apontando a arma para o meu amigo Enzo. Não se mexe, se não eu juro que atiro.

- Que é isso, Carlos! O que você está fazendo?

- Não se mexe, se não eu atiro. - Berrei, e por Deus eu falava a verdade. Minha esposa estava atônita, mas me obedeceu assim que me ouviu.

- Isabela, vem para trás de mim agora. - Minha voz não refletia o quanto eu estava confuso; ao contrário, estava recheada de convicção, aspereza e firmeza. Pois
estas eram necessárias. Minhas palavras ressoavam pela casa e eram condizentes a minha intenção de assumir imediatamente o controle do local.

Eu não podia acreditar. Novamente os pesadelos cresciam diante dos meus olhos. O que eu vi havia feito eu reagir por impulso e no meio daquele pico de adrenalina
eu me deparei com uma porta situada na sala que levava à parte íntima da casa.

Eu acabara de me dar conta de que o Jota podia estar dentro da residência e que, se ele tivesse se escondido em algum lugar quando ouviu a nossa chegada, este lugar
seria depois daquela porta. Olhando para ela, eu senti um medo maior ainda dos que eu recentemente havia sentido. Pareceu que o dia se fechara; escureceu-se em volta
daquela tranquila porta. Falei para Isabela uma única frase que provavelmente a deixou tão confusa quanto eu, mas bastou para ela sair do seu posto de observadora
em choque para a de colaboradora leal. Mesmo com o medo que deve ter sentido, agiria prontamente ao que eu lhe dissesse fazer. Então, com o pensamento no que tinha
que ser feito, pedi que ela fosse na cozinha procurar por uma corda e uma faca. Ela me olhou novamente com um rosto dividido pela dúvida e pelo respeito a minha
orientação.

Minha atenção nunca se descuidou daquela maldita porta. Porém, depois da Isabela se dirigir a cozinha, eu, ainda temperado pelo medo, pela pressa e pela raiva, me
dirigi ao Enzo, que seguramente lamentava tudo aquilo, e lhe infligi três coronhadas na cabeça, o que o fez ficar estendido no sofá.

Isabela voltou com imensos sacos pretos de lixo e uma faca grande de cozinha. - O que é isso, Isabela?

- É só o que achei. - Falou assustada, depois me explicou. - Se esticar e torcer o saco, ele vira uma corda.

Nos afastamos um pouco do Enzo.

Realmente, assim que torcemos o saco, ele se tornou uma resistente corda.

- Deita no chão.

Escute, Carlos... - Foi o que ele falou até eu o interromper asperamente.

- Fique quieto, Enzo, pelo amor de Deus, você acha que vai me dissuadir a fazer algo? Por Deus, não fale até eu lhe mandar falar. Agora deita no chão de bruços e
coloque os braços para trás. - Enzo me atendeu e eu só posso imaginar o desespero que ele começava a sentir. Isabela pegou a arma e eu amarrei com força os seus
punhos, depois, com outro saco, amarrei os seus antebraços. Fiz isso enquanto ela oscilava a mira da arma entre a cabeça do Enzo e o vão da porta. Tudo foi amarrado
muito forte e justo. Aquela era uma tarefa que não podia ser malfeita. Quando terminei, Isabela me devolveu a arma e ouviu a minha triste instrução.

Enfie esta faca no pescoço dele se ele tentar se levantar. Você consegue?

- Consigo. - Falou convicta.

- Você consegue? - Perguntei de novo com mais força para o Enzo e, ela própria, se convencer.

- Com absoluta certeza, eu consigo. - Eu lhe dei a chave do carro e novamente sussurrei em seu ouvido.

- Isabela, se você ouvir algum tiro, não perca tempo com o Enzo, apenas saia pela porta da frente e a tranque depois de você, pegue o carro e assim que estiver distante
ligue para a polícia e avise que têm bandidos e feridos nesta casa. Eu já volto.

Vamos embora, meu amor, por favor. Vamos chamar a polícia.

Segurei com Firmeza a sua nuca, trazendo o seu rosto para perto de mim, em uma atitude de amor e
urgência. o medo não me dava tempo, nem deixava espaço para sutileza.
- Você já sabe o que fazer. Eu já volto.

Peguei uma cadeira e quebrei um espelho de uma das paredes da sala. Com um pedaço dele fui até a porta que levava aos quartos e o usei para ver além dela.

Nas primeiras vezes que utilizei o espelho, não consegui focar o meu olhar no pequeno espaço e na mesma velocidade com que o colocava para dentro do corredor, o
tirava de volta. Com isso, fiquei atordoado esperando que o Jota me surpreendesse. O meu dedo no gatilho, por milagre, não se contraiu.

Eu continuei a pôr o espelho para ver o que se escondia do outro lado. Fiz isso até conseguir e verifiquei que o corredor estava vazio, mas continha nele mais quatro
portas.

Já caminhando pelo corredor, eu preferi usar a visão direta para verificar a primeira das portas que se estendiam em fileira para os fundos. Era um escritório e
ele estava vazio. O meu medo era quase incontrolável; mesmo assim, a minha vontade de viver e de proteger Isabela me levava adiante.

A segunda e a terceira porta eram um banheiro e um quarto e eles também estavam vazios. A última porta estava fechada e eu precisei empurrá-la. Ela era a única perpendicular
ao corredor; assim, não tinha onde eu me esconder. Quando a abri, pareceu que eu podia sentir a presença do Jota no outro lado, mas felizmente eu estava enganado.
Usei novamente o espelho para ver o restante do quarto. Novamente nada. Abri os armários do quarto e no último deles pensei no Jota, escondendo-se no armário do
primeiro quarto e agora, com a minha presença aqui, eu havia possibilitado que ele rendesse a minha esposa na sala.

- Isabela, está tudo bem? - Gritei em aflição e desespero.

- Está, Carlos, está tudo bem. - Fui momentaneamente aliviado pelo tom da sua voz.

Voltei em todos os quartos e abri todos os compartimentos sem nada achar. Fui para a cozinha e entrei no jardim dos fundos, não tinha mais lugar para se esconder
naquela casa, e o estresse começou lentamente a baixar.

Fui para a sala e sentei no sofá para recuperar o fôlego e ao mesmo tempo assimilei o fato de que eu estava vivo e que, pela primeira vez desde o início do cativeiro,
eu possuía um poder de verdade.

Isabela, sentada ao meu lado, com a faca tremendo em sua mão, ainda teve forças para confirmar comigo o que tinha ouvido minutos antes.

- Carlos, você tem certeza?

Eu tinha absoluta certeza. Eu havia reconhecido naquele porta-retrato uma imagem que por dois meses foi constante no cativeiro.

- Sim, Isabela. O filho do Enzo tem os olhos, a boca e o sorriso do Jota!

Depois de toda a agitação que acabara de ocorrer, nós três ficamos em silêncio. Ver o Enzo calado era condizente com o que eu tinha entendido.

O esgotamento físico e psicológico, por diferentes razões, havia chegado a todos.

Eu estava sentado ao lado da minha esposa e de frente para ele. Curiosamente, todos nos comportamos de maneira similar. Não mais ofegantes, detínhamos o olhar fixo
para o nada, assimilando mentalmente o ocorrido.

Da minha parte, as minhas mãos suavam e a minha cabeça dava voltas tentando decodificar a situação bizarra que me havia sido apresentada há poucos minutos.

Inicialmente, reagi como alguém que pegasse sua esposa na cama com a sua irmã. Imediatamente sabe-se que algo está terrivelmente errado, fora de contexto, mas a
compreensão é temporariamente suspensa pelo choque. Uma negação causada pelo testemunho do absurdo, do inconcebível.

Todavia, o bloqueio estava passando e à medida que o estresse foi chegando a um nível psicologicamente administrável, eu fui readquirindo a capacidade de assimilar
e compreender aquele novo fato.

O Enzo era comparsa do Jota! Pelo jeito, pai. Eles planejaram juntos o roubo e o sequestro... Minha mente, depois da repulsa inicial, agora acelerava pelo interesse
na apuração dos fatos.

Alugar uma casa e se tornar o meu vizinho foi o jeito escolhido, dentre muitos outros, para se aproximar de mim. Esperou seis meses para dar o bote! Provavelmente
lidava bem com a sensação.

A história passava em fleches contínuos na minha mente. Não era o conteúdo de uma prova que eu precisava lembrar; eram fatos relevantes e cicatrizados na minha vida.

A ligação do falso gerente dizendo para eu ir no banco encontrá-lo... O Enzo sabia disso, por isso pediu carona, por isso me acompanhou ao banco. O choque que levamos
foi aplicado pelo seu filho! O choque que eu levei!

O Jota, como filho de um dos sequestrados, pôde acompanhar toda a investigação da polícia! Estes traziam a novidade para, nas palavras da minha mulher, o sempre
interessado filho do Enzo! Durante um mês ele pode conhecer os passos em primeira mão da polícia. Podia mudar o cativeiro de lugar se precisasse, podia se adaptar
diante das atividades dos investigadores. Constatada a falta de progresso deles, pôde, com justificativa, tirar o seu time de campo e "voltar para a sua cidade".
Na verdade, ficar mais no cativeiro e criar laços comigo.

Na outra ponta estava o Enzo, o meu amigo, o meu cúmplice, tendo conhecimento dos meus pensamentos, das minhas estratégias. Vibrou quando soube por mim que eu entendia
que deveria cooperar desta vez, não precisou interferir. E de alguma forma delatou a minha tentativa de retardar as vendas; na verdade, delatava qualquer mentira
minha. Antes de entregar o plano de vendas a Matias, eu e Enzo o revisamos". Por isso eles foram tão confiantes em avançar nas vendas. Eles me conduziam juntos,
me manipulavam juntos.

Que susto o Enzo deve ter levado quando me viu por aqui! O Carlos descobriu sobre o Jota? Deve ter se perguntado. Quão perto ele está de me descobrir? Ele insistiria
com as desculpas para eu não entrar em sua casa correndo o risco de levantar suspeitas para si ou entrava em casa apostando que teria tempo para retirar o porta-retrato
e, como brinde, me subjugar em seguida.

Minha morte era provável, já que conhecer eventualmente o seu filho era possível. O Enzo contava com a segurança de que caso eu descobrisse sobre o Jota, ligaria
antes para ele. Em qualquer mudança nos planos, antes eu precisaria consultá-lo.

Talvez eu estivesse condenado a morte e mesmo eu sendo tão apegado a detalhes e obstinado a salvar a minha família - o que possibilitou esta nova realidade; se hoje
eu não tivesse sorte, eu e a minha esposa faríamos uma viagem de seis horas para nos encontrarmos com a nossa morte.

- Eu olhei novamente para o Enzo, que parecia não tomar conhecimento dos pequenos sangramentos na sua cabeça, nem de mais nada a sua volta. Parecia imerso no seu
mundo, disposto, provavelmente, a só emergir dele se encontrasse uma saída satisfatória. Do outro lado da sala, eu continuava tentando entender quem ele era.

Dois meses da sua vida não eram nada comparado ao tempo gasto neste golpe, nem a vantagem estratégica que criava. Disciplina e autocontrole, disse o Jota dando a
autoria ao Matias, são grandes virtudes. Bem, eles realmente possuíam o que pregavam.

O Enzo havia me contado da sua casa, do seu filho, da sua falecida esposa. Nunca se contradisse. As suas histórias tinham coerência e coesão. Ele me falou realmente
sobre si. Não deu chances de se enrolar com mentiras. Todo o tempo eu estava na companhia do meu maior inimigo!

O grupo devia ver o Enzo como via a mim. O Matias, provavelmente, nunca soube que um dos que o rendeu era o seu chefe.

Ao olhar para o Enzo, era difícil não reconhecê-lo como amigo e entender que aquela pessoa na minha frente era o arquiteto de tudo o que havia passado.

O Jota havia contado sempre com ele durante as suas induções, sobre tudo, quando me levou a crer que o Matias havia matado os outros do bando. Jota, você já falou
com eles depois da fuga? O Enzo era uma garantia caso alguma leitura das entrelinhas me passasse. Enzo, com serenidade, mas poucos rodeios, botou na mesa o que nós
havíamos acabado de deslumbrar. - Pense comigo, Jota... " Uma condução gentil que fez eu sentir que por algumas vezes eu pilotava o barco. Nunca tive essa chance.
O Jota me fez acompanhar as razões do porquê acreditava ainda no Matias, e o Enzo mais tarde achou as respostas que os dois queriam me mostrar. "Eu sentia a urgência
de desmascararmos o Matias, mas foi em silêncio que o Enzo encontrou as respostas".

O Matias morreria durante a sua rendição por decisão nossa ou por um "acidente" criado pelo Enzo, que detinha a arma. Não precisou parecer acidental.

Posso ainda ter sido poupado provisoriamente para não gerar suspeitas sobre o único sobrevivente e para eles poderem contar com a idoneidade que eu representava.
Corroboramos um o testemunho do outro.
Como olhar para o Enzo me dava uma profunda raiva, um nojo e ódio. Também sentia vergonha de mim. Porque eu realmente gostava dele como amigo e ainda o admirava
em muitos aspectos como indivíduo.

Estava na verdade furioso por perder a sua amizade. Desejava que ele tivesse aberto o jogo comigo depois de tudo ter acabado. Que tivesse feito eu entender que eu
estava seguro e que era melhor para nós dois que eu não o delatasse. Eu lhe daria um abraço, perdoaria a morte dos que anteriormente aceitaram a minha e seguiria
com a minha vida.

Foi um homem que se tivesse me dado a sua amizade, e por ela se arriscado na intenção de poupar a minha vida, eu teria lhe dado a minha palavra e a colocaria acima
da justiça, de uma empresa e do Estado. Se o medo fosse grande demais, então que ele fugisse com todo aquele dinheiro, mas que no seu coração não conseguisse tirar
a vida do amigo que ele tinha feito, não tirasse o pai e o marido da família que ele conheceu tão bem pelas minhas próprias palavras.

Parece-me que nada do que eu fiz ou sou criou nele vontade suficiente para mudar o seu plano para me preservar. Eu me envergonhava por ainda gostar dele, pela falta
que a sua amizade me faria e pelo homem que eu estava me vendo ser.

Ainda sentado naquele sofá, olhando para o nada, o meu pensamento andava depressa, o que permitiu que, junto com ele, os meus sentimentos evoluíssem e se transformassem.
A minha vergonha e decepção ansiavam e, até certo ponto, facilitavam a necessidade de eu refazer a visão do Enzo que até então eu possuía.

Ele não era o que eu achava ser, ele não era quem eu desejava que fosse. Ele era o que era. Um homem que não se importava com ninguém e que talvez ainda planejava
em pouco tempo tirar a minha vida. Simples! Todo o tempo que conviveu comigo no cativeiro ele aceitava que eu poderia, eventualmente
ser morto por eles. Viver bem com isso é que diz realmente quem o Enzo é, e nada apaga este fato.

Por orgulho próprio e por responsabilidade com a minha família, eu não podia deixar que o seu olhar, por hora entristecido e inofensivo, e o convívio que tivemos
escondessem de mim o seu verdadeiro eu.

Que expressão ele teria no rosto se eu tivesse passado reto por aquela fotografia e agora ele, e não eu, estivesse no poder? Esta imagem é que devo imaginar. Mesmo
nunca tendo visto o Enzo como um agressor, preciso entender que isso é exatamente o que ele é. E do pior tipo.

- Você está ferrado, sabe disso? - Falei depois de levantar a minha cabeça para olhá-lo, e retirei os dois dos seus mundos internos.

- Eu sei. - Respondeu abatido.

O seu filho também está.

Ele não respondeu; apenas abaixou novamente a cabeça, mas a minha raiva me fez continuar.

- Eu vou esperá-lo aqui. Sei que ele saiu, mas volta. Tem roupas dele em um dos quartos. A partir de agora vocês estão sob o meu controle. Eu vou amordaçá-lo e vamos
esperar juntos pelo seu filho. Se você não colaborar sabe que eu bato na sua cabeça até você apagar, não sabe? - A hora da análise, pureza, amor e autoconhecimento
estava temporariamente suspensa. É bom tentar entender melhor as pessoas e o mundo em volta, mas paciência e respiração profunda, quando nos encontramos no meio
de um incêndio, podem nos levar à morte. Eu assumiria a responsabilidade da situação e defenderia com todas as minhas forças a minha família.

Ele continuou em silêncio, com um ar distante de quem acaba de ver o seu mundo desmoronar. Ao contrário do que até então pensava, aquela era a primeira vez que eu
o vi realmente enfrentando uma situação difícil.

Eu o tinha como um exemplo de força mental. Um homem que tinha a capacidade de manter o raciocínio equilibrado diante de uma enorme pressão psicológica. Contudo,
relembrar as qualidades que anteriormente eu atribuía ao Enzo me ajudava a reeditá-las.

Ele não apresentou nenhuma resistência quando o amordacei e o levei para o quarto. O seu abatimento era a sua única expressão. Lá, o fiz sentar em uma cadeira robusta
de madeira que eu peguei na sala. Depois, eu e a Isabela amarramos todos os seus membros e o seu tronco à cadeira. Dali ele não sairia.

- Não eram ainda nove horas da manhã e fomos para a sala discutir o que faríamos com os dois, caso o Jota viesse. Ao mesmo tempo, montávamos guarda esperando a chegada
ou não do Jota, ou melhor, Roberto, filho do Enzo.

Isabela levou uma cadeira para perto da janela e eu a acompanhei, sentando a sua frente. Revezaríamos de meia em meia hora a vigília.

Entendemos que em um domingo, se ele morasse com o Enzo - o que achávamos que era provável, ele eventualmente voltaria. Valia a pena esperá-lo.

Isabela havia encontrado luvas de lavar louça na cozinha. Nós dois a colocamos, mas apenas eu vasculhei a casa. Ela ficou vigiando a rua enquanto eu comecei a tarefa.
A hipótese de simularmos um roubo já havia passado pela minha cabeça.

Quando entrei no escritório fui abrindo todas as gavetas. Parecia que nenhum trabalho era feito naquele lugar, porém duas cadeiras estavam dispostas na mesa. Eles
possivelmente trabalharam ali apesar de não ter nenhum vestígio disso. Passei para o quarto do Jota e encontrei caros ternos no seu armário. Quando cheguei no quarto
do Enzo, seu abatimento era indisfarçável e eu fiquei satisfeito por isso.

- Oi, Enzo. - Disse de passagem, antes de começar a abrir todos os seus armários. Novamente roupas e ternos finíssimos que eu nunca havia tido. - Esse terno vale
a tristeza dos meus filhos, Enzo? - Falei tanto chateado, como irritado. Continuei a mexer em tudo e na parte inferior do armário, onde deveria ter sapatos, encontrei
um grande cofre, que, pela ansiedade anterior, havia me passado despercebido. - Olha isso... - Falei surpreso com o tamanho do cofre.

Era um cofre de meio metro de largura por um de altura, mas estava deitado.

Deixei a questão do cofre para depois e fui olhar as gavetas da sala. Para minha surpresa, o destino guardava as suas ironias.

- Olha onde eu fui achar a arma. - Falei para Isabela, que estava com o olho pregado na rua.

Ela sorriu e voltou a olhar para a janela. - A arma podia estar em qualquer lugar dentro da parte íntima da casa, mas estava na gaveta da escrivaninha onde repousava
o retrato dos dois. Um lugar que junto com os
sacos plásticos, a coanlia e a maçaneta dos armários, continham as nossas digitais, e eu passaria a próxima hora as apagando. Dependendo do que aconteceria, ainda
nos faltava queimar os sacos plásticos. Minha próxima providência foi entregar a minha arma a Isabela e ficar com a deles.

- Já acabou, Carlos, temos que conversar. - Disse Isabela com uma voz frágil e sem tirar os olhos da rua.

- Já. Respondi e fui sentar a sua frente.

- O que você está pensando? - Ela perguntou, naturalmente apreensiva. Entramos no assunto e, à medida que conversávamos, estranhei nós
dois discutirmos sobre as nossas alternativas de forma tão livre e sincera. Existia medo, pesar e nervosismo na nossa conversa, mas não havia Deus, justiça ou hipocrisia.
Errado ou não, aquilo estava de acordo com as nossas consciências. As agressões que havíamos sofrido durante dois meses, além da possível intenção na minha futura
morte tinha ultrapassado em muitas vezes o nosso limite de tolerância e de medo aceitável.

Caso o Jota fosse capturado por nós, a opção de matar os dois, apesar de não quista, estava aberta. Pensamos também na opção de chamarmos o delegado do caso até
aqui depois de ter pego também o Jota e lhe contar uma nova versão dos fatos. Levantamos a alternativa de eu dizer que eu fora ameaçado para colaborar com eles e
que decidi dar um basta nisso hoje. Um dos problemas era se a minha versão pareceria verdadeira, já que eles sabiam que eu já fui capaz de mentir uma vez.

Se capturássemos o Jota, o esboço das alternativas já havia nascido; faltava-nos pensar na possibilidade de ele não vir. Antes de entrarmos nessa seara, Isabela
viu um carro embicar na garagem.

- E agora. - Isabela falou tensa. Eu fui para a parede esquerda da sala, ao lado da porta que dava para a garagem.

Ouvimos juntos o portão elétrico funcionando, a porta se abrir, e ele caminhando para contornar o carro. Lembrei de como pegamos o Matias e pensei que, se existisse
karma, o Jota o teria na mesma vida.

Assim que pôs o corpo para dentro da sala eu tentei rendê-lo.

- Parado, Jota. - Ele se virou junto ao primeiro som das minhas palavras e assim que me viu, o seu corpo se enrijeceu e fez isso tão rápido que ele se desequilibrou
durante o meu avanço, ao ponto de cair no chão. Eu o rendi em seguida.

Isabela, com mais cordas e plásticos torcidos, me ajudou a proceder da mesma maneira como tínhamos feito com o Enzo, só que o Jota foi posto no seu próprio quarto.

Agora, com a situação sob controle e podendo confrontar respostas, eu podia dar início a um punhado de perguntas, tendo, pela primeira vez, a chance de entender
em que situação nós realmente estávamos.

Com os dois nos seus respectivos quartos, eu e a Isabela nos encontramos na sala. Nos abraçamos e eu senti tanto apreensão como alegria. Choramos pela nossa sorte
de estarmos vivos e termos ainda um ao outro.

Isabela desfez o abraço; estava ciente de que tínhamos muito ainda a fazer. Sabendo que os dois não tinham nenhuma chance de se desamarrarem, sentamos no sofá para
discutirmos o que faríamos.

A conversa foi se desenrolando e ficou claro para nós que, caso decidíssemos pela prisão dos dois, deveríamos manter as mentiras que eu e o Enzo havíamos contado,
como o Matias sendo o único carcereiro, mas com o acréscimo de que eu sempre tive dúvidas se a morte dele havia ocorrido por razão da luta de nós três ou se tratasse
de uma execução realizada pelo Enzo. Havia me permitido, por afeto, me dar o beneficio da dúvida, mas depois da conversa com os Servieri, um estalo me ocorreu e
me pareceram claras as induções sutis que o Matias e o Enzo haviam usado para me manipular. Sem o alarde da polícia, vim armado para confrontar o Enzo e, com ele,
fingi estar certo da minha suposição. O seu filho Roberto, que eu ainda não conhecia, acabou sendo rendido pela força das circunstâncias.

Desse modo, eu não me desmentiria e continuaria com uma história que já estava sedimentada na minha mente e que pegava emprestada a consistência de muitas verdades.

Eu e a Isabela continuamos a aperfeiçoar a nossa história até o ponto em que ficamos satisfeitos com ela. Estávamos convencidos de que entregá-los à polícia era
uma opção. Uma das ressalvas era o nosso sistema judiciário, que poderia negar a prisão preventiva deles, e daí sabe lá o que poderia acontecer.

A outra opção era a morte dos dois. A aflição com eles estaria terminada, mas corríamos o risco de sermos descobertos.

Apesar da nossa atitude de falar sobre o assunto, eu não me sentia capaz de matar nenhum deles. Eu tinha dificuldade de vê-los como uma ameaça e sentia o Enzo ainda
como amigo, além de eu já ter o peso da morte do Matias nas minhas costas. Entretanto, qualquer das opções que eu e a Isabela venhamos a escolher, as nossas escolhas repercutirão em nossos filhos, e isso
para mim me dá forças para enfrentar o que eu sozinho não conseguiria.

Na possibilidade das suas mortes, seria melhor se a polícia não descobrisse que eles, ao invés de vítimas, eram os criminosos. Caso isso ocorra, há uma pequena chance
de a polícia cogitar que as suas mortes foram uma retaliação minha. E improvável, mas possível. Ainda, todo o cativeiro seria questionado.

É melhor se o motivo da morte deles fosse interpretado com um ladrão que não aceitou a possibilidade de ser reconhecido ou mesmo por uma retaliação de remanescentes
do grupo pela morte do Matias. Na última suposição, eu teria que por um ano ou dois conviver com proteção policial ou providenciar uma particular. Também teríamos
que voltar para cá assim que soubéssemos da notícia; desse modo, se encontrassem um cabelo ou digital nosso, isso não nos incriminaria. Acredito que por motivos
de proteção eu seria avisado imediatamente.

Com as implicações concluídas, Isabela me surpreendeu ao colocar em minhas mãos a decisão. Ela falou com a voz engasgada e com lágrimas de preocupação nos olhos.

- Carlos, você os conhece melhor do que eu. Foi você que foi sequestrado, manipulado e subjugado por eles. Eu o amo e confio plenamente no seu julgamento. Então,
vou ficar aqui na sala, você vai fechar a porta daquele corredor e fazer o que pensa ser o melhor para a nossa família. Eu vou apoiar qualquer decisão que você tome
e eu aceito livremente qualquer das nossas duas opções. Quero que você saiba disso.

Eu acabara de ganhar o livre-arbítrio dela e eu esperaria as respostas que viriam para eu saber o que fazer.

Eu fiquei em silêncio pensando em como conduziria as perguntas, depois dei um beijo nela, peguei uma cadeira e me dirigi ao quarto do Enzo, fechando a porta do corredor
atrás de mim.

Quando entrei no quarto, o Enzo levantou a cabeça com o mesmo ar abatido. Eu estava com a faca da cozinha e cortei o plástico que amordaçava a sua boca.

- Obrigado. - Foi a única coisa que disse Ele não diria mais nada antes de tentar entender o que eu sabia e de tomar conhecimento a quantas andava o meu humor. Sentado
a sua frente, eu dava as cartas do jogo pela primeira vez.

- Enzo, o que quer que fizermos será rapidamente conduzido. Eu farei perguntas diretas e quero respostas verdadeiras e claras. Se você continuar tentando me enganar,
o risco será seu. Torça para eu não sentir a minha inteligência desrespeitada. Eu estou lutando pela minha vida agora, estou furioso com você e posso vir a matá-lo,
mas você não é como o Matias para mim. Eu o conheço e mesmo diante do que fez, não consigo deixar de vêlo como amigo. Tenho grande admiração por você. Conheço a
sua história e a história do Jota com cinco, dez e vinte anos, já que ele é o seu filho. Vamos tentar achar algo que seja bom para todos. Então, quero que, antes
que comecemos esta conversa, você esteja bem consciente de que eu tenho total controle sobre as suas vidas, caso eu esteja enganado, agora é a hora de tentar um
blefe. - Fiz uma pausa para ver se ele se arriscaria. Felizmente não tentou. - Também quero lhe garantir que eu prefiro não matá-los, mas que caso, a partir de agora,
eu não tenha todas as informações, estou realmente disposto a fazê-lo. Imagino que me compreendas. - O Enzo fez sinal de concordância com a cabeça. Era surreal tratá-lo
da forma como eu o estava tratando, mas havia sido ele mesmo quem me levara a isso. - Vou começar com as perguntas, quero que me responda imediatamente, e saiba
que todas elas serão feitas ao seu filho depois. Mentir é aumentar a probabilidade de morrer, Enzo, acredite em mim. E tanto mentir, como não responder, será corrigido
com pauladas. Eu sei que quanto mais eu lhe bater, pior será
a minha situação caso você viva, ficando consequentemente mais improvável que entremos em um acordo ao final desta nossa conversa . Você me entendeu, Enzo?

- Sim, eu lhe responderei tudo e quero que ao final você me escute, tudo bem? - Falou meu amigo de que eu ainda gostava.

- Tudo bem. Precisamos realmente conversar e se encontrarmos uma razão que garanta o bem-estar da minha família, eu os deixarei viver, mas para termos chances de
chegar lá é fundamental que você seja totalmente honesto.

- Obrigado, Carlos. Pode me fazer as perguntas que você quiser, que eu vou lhe responder.

Antes de começar, fui buscar na cozinha algo para bater nele caso precisasse. Eu não podia ter marcas nas mãos. Pesado, eu só achei uma panela de ferro e, junto
com uma faca na cintura e usando luvas de cozinha, passei pela sala em direção ao quarto do Enzo.

- Para que a panela, Carlos? - Perguntou a Isabela sentada ansiosa na sala.

- Não achei um bastão. - Ela compreendeu e voltou ao seu estado solitário de ansiedade.

Eu entrei no quarto e sentei a sua frente. Deixei a panela de ferro e a faca ao lado e lhe fiz a primeira pergunta.

- Enzo, qual é a senha do cofre?

- Três voltas para a direita.... - Eu me ajoelhei, abri o armário e comecei a seguir as suas instruções.

Quando o cofre abriu, me deparei com uma quantidade de dinheiro vivo que eu nunca tinha visto antes. Fui transferindo-o para o chão.

Aquilo me preocupou, porque se eu viesse a simular o roubo por ter decidido matá-los, que é a minha última opção, evidentemente, depois de ter amarrado os donos
da casa, o ladrão conseguiria a senha do cofre; assim, quando a polícia chegasse, ele teria que estar vazio.

Feliz ou infelizmente, nós não poderíamos ficar com o dinheiro. Caso eu e a Isabela nos tornemos suspeitos e a polícia encontre tal dinheiro em nossa posse, as digitais
do Enzo e do Jota nas notas nos deixaria em mauslençóis. Também não poderíamos devolvê-lo, já que isso abriria questões indesejadas. Então, teríamos que levá-lo
para casa e, lamentavelmente, queimá-lo. Por um lado, não ficarmos com ele me faria bem, já que se eu tiver que decidir por essa opção, nunca terei a menor dúvida
de que agi por medo e defesa. Se junto existir raiva, com isso eu consigo conviver. Todavia, era mais fácil não ter que administrar na consciência qualquer ganho
financeiro.

Ao final da tarefa, percebi que não havia nenhum papel de banco no cofre.

- Onde vocês guardam o dinheiro das jóias?

Enzo respondeu colaborativamente. - Em um paraíso fiscal. Temos os números das contas nos nossos celulares. - Falou antecipando a minha próxima pergunta. Eu peguei
o celular do seu bolso e ele me indicou os números das contas que estavam como números de telefone de diversas pessoas.
- Sabe que vou conferir estes números com o seu filho, não sabe?

Sei.

Entende que, quando eu falar com ele, ele não vai saber o caminho que fiz com as minhas perguntas e o quanto fui incisivo, então ele pode me responder de cara algo
que você pensa que não teria por que ele me contar, compreende?

- Compreendo.

Tem mais alguma informação em algum lugar que fale sobre o dinheiro? Lembre-se que esta pergunta é fundamental, e mesmo que o Jota confirme a sua resposta, ela será
feita repetidamente e, infelizmente, será acompanhada pela violência. E melhor que quando ele decida falar sejam exatamente as informações que me disse.

- No meu escritório tem um chip de telefone igual ao meu, contendo as mesmas informações que lhe passei. É o único objeto em qualquer lugar que nos liga ao banco.

- Quantos anos demoraram arquitetando esse roubo?

- Dois.

- Quantos roubos já fizeram.

- Não chamamos de roubo; chamamos de golpe, pois o roubo é apenas uma parte e com este foram cinco. O último de nós dois.

- Quantas pessoas mataram?

Neste golpe?

- Em todos e neste.

Antes deste, foram duas. E neste foram oito pessoas.

- Quem é a oitava?

- O contador que levou o dinheiro ao paraíso fiscal.

Ouvir aquilo me chateou mais do que a morte dos outros sete. - Vocês não têm pena das pessoas?

- Carlos, nós já conversamos sobre isso, mas eu não pude lhe dar o pensamento completo.

Lembra quando eu tive que me operar por ter um aneurisma cerebral? Lembra que a minha esposa morreu dois anos mais tarde?

- Lembro.

- Eu fiquei com um filho de sete anos para criar. Eu tinha uma situação financeira confortável antes do tempo e do dinheiro gasto por causa do meu aneurisma. E tinha
uma família feliz. Mas minha ausência na empresa antes da operação e durante o período de recuperação e a conta do hospital me tiraram quase tudo. Inclusive as pessoas.
Minha mulher sofreu muito com isso. E ela morreu sem eu ter conseguido me reerguer. Ela acompanhou a luta pela minha vida, mas se ressentiu quando percebeu que ninguém
realmente se importava. Ainda assim, as pessoas disfarçavam interesse, mas depois de abrirmos falência as pessoas discretamente começaram a nos evitar. Ela morreu
com esse sentimento preso na garganta, Carlos. Eu não odeio as pessoas por isso, mas deixei de me importar com elas. Só me importo comigo e com o meu filho. Se você
queria a verdade, esta é ela. Percebi com maior clareza o quanto aquele assuntoo machucava.

- Sinto pela sua mulher, Enzo. - Eu não tinha mais interesse em trocar ideias com ele, então não fiz mais nenhum comentário. Apenas pensei o quanto é comum acreditarmos
nas mentiras ou distorções que nos trazem benefícios. A maioria das pessoas, e nisso se incluem também os criminosos, acha compreensíveis e justificáveis as suas
más ações, mas, em suma, o Enzo fez os outros pagarem pela sua tristeza, inclusive seu filho, que perdeu a possibilidade de ser digno e ter uma vida honesta e respeitável.

- No cativeiro, como você falava com o seu filho?

- Na parede dos fundos do banheiro, dentro do box, há um azulejo falso; nos comunicávamos por ele.

Qual deles? - Era irrelevante agora, mas aquele azulejo viria a fazer parte do meu imaginário.

- Sentado no box, ficava na altura da minha cabeça e tinha alvenaria cimentado nele, com uma tranca do outro lado. Caprichamos no trabalho. Na hora em que o Roberto
entregava a comida tínhamos um código caso desejássemos conversar. Quando eu entrava no banheiro, eu batia no azulejo.

- Como vocês pensaram nesse roubo? - Dei prosseguimento ao que me interessava.

- O meu filho, há dois anos e meio, começou a trabalhar em uma das lojas da empresa de jóias que nós roubamos. Antes de ele entrar no emprego, a ideia era aprender
como funcionava o sistema de segurança da sua loja para que isso nos ajudasse a roubar uma filial. Todavia, era do conhecimento de alguns funcionários que eles guardavam
uma grande quantidade de jóias em um banco da capital. Assim, mudamos de objetivos.

- Mudaram de objetivos?

- Sim. Pela oportunidade. Esse golpe seria grande suficiente para nunca mais precisarmos fazer outro.

- Como acharam o Matias? - Eu só sabia da ficha policial dele.

- Quer dizer o Miguel... Ele era o mais frio, astuto e inteligente dentre eles. Pensava ser o segundo no comando. O encontramos como encontramos todos os outros.
Ele era um ex-detento. O Roberto foi voluntário em um trabalho de ajuda a recolocar ex-presidiários de volta à sociedade.

O Enzo, de um jeito ou de outro, sempre conseguia me tirar algumas risadas. Contagiado, ele começou a rir discretamente depois de a informação perder a graça. -
O que houve, Enzo?

- Estou rindo de mim. Estou rindo por me lembrar dessa fase de recrutamento, da seleção de pessoas. Lembrar da deles fez eu me lembrar da sua... Quer saber?

- Claro.

- Começou em um congresso de vendedores de artigos de luxo. Eu procurava pessoas que tinham conhecimento de jóias. Você estava em um debate que durou duas horas
com mais seis homens e chamou a minha atenção a sua clareza e rapidez para expor e entender diversas situações. Foi o que pensei sobre você e me pareceu que os outros
seis também pensavam. Depois de pesquisar a sua vida e da sua empresa, tomei a minha decisão. Uma das suas contas ser no banco exclusivo para clientes diferenciados
que viríamos a assaltar veio a calhar. - Enzo sorriu zombando de si. Fui tão exigente na sua seleção que talvez seja exatamente isso que venha cavar a minha cova.
- Fez-se um silêncio, onde nós dois lamentávamos a situação.

- Isso ainda não foi decidido, Enzo... Vou conferir as respostas com o seu filho e conversamos depois. Só preciso que me responda com sinceridade uma última pergunta...
Como você pretendia me matar?

Enzo pareceu surpreso na hora e respondeu com energia. - Por que você acha isso, Carlos? Eu nunca pensei em matá-lo. Eu nunca lhe faria mal, Carlos.

- Para com isso, Enzo. Você matou sete homens que foram amigos do seu filho. Dois antes deles. Não me mataria?

- Todos eram bandidos, Carlos. Você não é.

- O contador era bandido?

- Não, mas não o conhecia, nem se tornou meu amigo.

- E a questão de um dia eu ver a foto do Jota.

- Como? As pessoas ligam quando visitam as outras. Até agora não entendi por que você apareceu sem avisar.

- Descobri do papel do Jota.

- Não imaginei que isso pudesse ocorrer.

- Mentira, Enzo, você imaginou. Pode não ter imaginado que eu não lhe falaria por telefone quando descobrisse. Não imaginou que os fatos poderiam se desenrolar como
aconteceram. Não minta para mim, Enzo. Com tudo que falei sobre não mentir, talvez ele imaginasse que por essa mentira valesse se arriscar, talvez falasse a verdade.

- Carlos, não sei como você deduziu o real envolvimento do Roberto, mas eu não imaginei que isso fosse possível, lhe juro.

- E um dia eu ver a foto dele.

- Nós somos golpistas, bons é verdade, mas golpistas, não colocamos as nossas fotos na Internet e caso você viesse me visitar, o Roberto inventaria uma viagem. Qual
o medo disso? Quantas visitas aconteceriam? Duas, Três? Nas visitas que eu fizesse a você eu iria sozinho; ao longo do tempo, o nosso contato se enfraqueceria.

- É difícil de acreditar, Enzo.

- Carlos, eu nunca faria nenhum mal a você. - Falou o Enzo que eu conhecia.

Saí satisfeito com todas as respostas; só me restava dúvida em uma. A mais importante e que me gerava mais medo. Fui ao quarto do Jota, sabendo que as perguntas
desta vez teriam que ser feitas com o auxílio da violência. Restou a ele a tarefa de afirmar uma resposta duvidosa com toda a energia do seu ser; o seu problema
era que para ele conseguir sustentar a sua palavra, ou ele terá que estar falando a verdade, ou
icrá que ter uma capacidade extrema em deduzir o que o seu pai disse ou deixou de dizer.

Como o Enzo, o Jota estava extremamente abatido quando entrei para falar com ele. Pus a cadeira a sua frente, repeti o que disse ao seu pai e iniciei as perguntas.
Suas respostas estavam conferindo até eu lhe perguntar se havia mais alguma prova nesta casa ou em algum outro lugar que os ligasse ao crime.

- Não temos mais nada, Carlos. A única informação que temos sobre as contas no banco está nos nossos celulares.

Eu havia começado as minhas perguntas com o Enzo sem saber bem ao certo aonde elas iam me levar, mas qualquer que fosse o caminho, eu precisava ter, tanto quanto
possível, confiança nas informações que eu colhia. Saber sobre qualquer objeto que possa levar a polícia a descobri-los como criminosos era importante. Eu tinha
dentro de mim a raiva que aquela tarefa começava a pedir; então foi fácil soltá-la quando ele me mentiu.

- Vou lhe dar mais uma chance.

- Não temos mais nada, Carlos, lhe prometo.

Você acha que eu estou blefando, Jota. Você se enganou. - O Jota estava sentado e amarrado na minha frente e eu não podia me esquivar daquela tarefa. Enquanto eu
o amordaçava, ele mostrou, pela primeira vez desde o seu rendimento, um verdadeiro sentimento de temor. Ele pediu que eu não fizesse. Pouco antes de eu amordaçá-lo,
ele admitiu:

- Temos uma cópia dos números da conta em um chip no escritório. Ele nem tinha conseguido que eu aceitasse uma sociedade com eles - o
que nunca faria, e já pensava em transferir o dinheiro do banco caso eu ficasse com os seus celulares.

Eu o ouvi e continuei a amordaçá-lo.

Agora não adianta mais, Jota. Desta vez você só vai apanhar, mas garanto que não farei isso de novo. - Eu tinha algumas outras perguntas e não poderia fazê-lo perder
a crença de que era fundamental me dizer a verdade. Pensei no contador e nos seis companheiros dele que ele havia agenciado, convivido e matado. Bati com aquela
panela pesada de ferro na sua cabeça, costas, ombros e braços.

Tirei a mordaça dele. Ele continuou em silêncio e prestou atenção na minha pergunta mais importante.

- Como lhe disse antes, o seu pai me falou muita coisa. Nós dois acertamos que se eu obtiver de vocês toda a verdade é possível, isso realmente não posso lhe garantir,
é possível que entremos em um acordo que garanta a minha vida e me dê um terço do dinheiro. Então, vou lhe fazer uma pergunta que eu já sei a resposta e que só a
aceitei porque eu entendi o respeito que o seu pai teve comigo por me dizer a verdade. Nós vamos criar uma nova relação, Roberto. - Não sei como consegui falar de
forma tão firme e controlada. - Vocês terem programado a minha morte não faz eu decidir me arriscar em matá-los, mas se você me mentir mais uma vez, na hora eu vou
enfiar esta faca na sua perna. Então, é melhor que confirme as informações do seu pai e me conte como vocês iriam me matar.

Eu mesmo não sabia se eu estava blefando.

Eu estava diante dele com a faca em uma das mãos.

Eu tinha ido longe demais e, para sustentar a energia do blefe, tive que desenfrear as minhas emoções. Tudo estava à flor da pele no momento e talvez eu realmente
enfiasse aquela faca na coxa do Jota.

- Fale, Jota. Você vai ter que entender, como o seu pai antes entendeu, que a partir de agora vamos ter que falar a verdade entre nós três.

O Jota mostrou no silêncio que estava avaliando a situação. Essa hesitação não era condizente com quem falava a verdade.

- Você quis assim, Jota. - Eu segurei a sua coxa pelo joelho, encostei a lâmina da faca no ponto em que eu iria penetrá-la e a puxei para trás com o intuito verdadeiro
de enfiá-la na sua coxa. Ele estava mentindo. Eu sabia disso.

- Não, por favor. - Berrou Jota assim que eu levantei a faca para tomar distância. - Eu lhe conto, Carlos.

- Você está me subestimando, Jota. Eu vou lhe dar uma última chance porque o seu pai foi honesto comigo. Não me desrespeite de novo. Vocês dois já fizeram isso demais.

- O que você quer saber?

- Você vai falar ininterruptamente sobre quando, como e quem da minha família vocês iriam matar. Não omita nada.

- Tudo bem. - Falou estremecido, Jota. Depois tomou coragem e falou com uma voz embargada. - Em vinte dias o meu pai ia ligar para você dizendo que tinha que lhe
falar algo importante sobre mim... No caso, do Jota. - Ele se arrastava entre as frases. Não sabia se estava agindo certo, mas também não tinha outra alternativa
para ele escolher. - Esperamos este tempo por causa da sua proximidade com a polícia enquanto os ajudava a procurar pelo dinheiro das jóias e também para parecer
um incidente isolado do cativeiro. No telefonema, ele induziria ou pediria que fosse marcado o encontro na sua casa da Serra e que a sua mulher o acompanhasse. -

No momento em que ele começou a falar, o meu coração se apertou de puro pavor, como se eu estivesse vivendo o que ele dizia. No entanto, tive que manter um rosto
que apenas confirmava o que já havia ouvido. - Chegando lá, nós os mataríamos com tiros na cabeça, deixaríamos os corpos e colocaríamos todos os eletrodomésticos
no seu carro e eu levaria o veículo até outro bairro ou cidade. Meu pai me pegaria algumas quadras à frente. A polícia encontraria o carro com todos os eletrodomésticos
dentro e concluiria o que quisesse. Não induziríamos uma conclusão específica.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Não posso dizer que foi por causa de apenas um sentimento. Eu estava triste com o Enzo, apavorado com o que quase acontecera
com a minha família, grato pela minha sorte e enojado com os dois.

Eu entendi que a busca pela minha morte não teria fim para eles. Caso fossem presos, eu seria a única testemunha de acusação. Eles não usariam o habeas corpus, caso
conseguissem, para fugir. Usariam para me matar ou me chantagear.

Eu fechei a porta do quarto e me agachei no corredor. Foi o momento mais definitivo da minha vida e eu precisava sair dele com a decisão certa.

Pensei em mim e na minha família. Pensei em quem eu era, no meu caráter e nos meus princípios.

As duas decisões precisavam da minha coragem, e eu só precisei pensar no Lucas e na Laura para encontrá-la.
algumas vezes me pego pensando naquele dia. Ele me ensinou um pouco mais sobre quem eu sou. Foi nele que entendi com clareza em quantos indivíduos eu poderia me
tornar, caso as circunstâncias fossem diferentes, caso minhas influências fossem diferentes.

Ter me dedicado ao meu trabalho e a minha família e considerar que obtive sucesso nessa tarefa repercutem no meu ser. Ter a companhia da Isabela, e não de outra
mulher, tem papel sobre o indivíduo específico que me tornei. Perdê-la, falir, vencer, estar satisfeito, tudo, todo o tempo, age sobre quem sou, como me vejo e me
comporto. Há estabilidade em mim, mas apenas enquanto a situação permitir. Entender isso não faz com que eu tenha medo da vida; ao contrário, faz com que eu a respeite
mais e me empenhe para cuidar e apreciar o que tenho.

Hoje, quando as reuniões de amigos me dão um espaço para um pensamento solitário, olho para todos em volta, com os seus copos cheios nas mãos e os seus sorrisos
no rosto, e me pergunto se eles sabem quão afortunados são naquele momento. Os seus sorrisos estão apoiados em fatos extremamente instáveis e tudo pode mudar em
questões de segundos. Caso isso ocorresse, como eles agiriam? Que limites emocionais e comportamentais, hoje em dia impensáveis, eles ultrapassariam?

Nenhum deles faz ideia do que passou e o que fez a pessoa que está brindando e rindo com eles.

Todavia, depois das experiências que surgiram do cativeiro, eu criei a habilidade de deixá-las no passado e continuei o meu desenvolvimento na vida. Sem arrependimentos,
sem lamentações, apenas com a aceitação dos fatos e com o aprendizado que tirei deles. Nos diferentes momentos, dei sempre o meu máximo e fiz o que pensava ser melhor.

De todo o sofrimento que tive, tirei muitos ensinamentos e, na volta à liberdade, sobre muitos aspectos eu continuei a me libertar de
cativeiros. Vi grades onde antes eu não as percebia, e ao removê-las, enxerguei melhor a vida,

Vivo hoje apreciando ainda mais meus amigos, focado na minha esposa e agradecendo cada abraço que recebo dos meus filhos.

Contudo, a mente, apesar de poder . ter vontade própria e, em algumas ocasiões, acaba por me levar às lembranças e às emoções do dia que fui a casa
do Enzo. . um dia que, infelizmente, nunca vou esquecer.

As palavras do Jota me vêm à mente.

"Chegando lá, nós os mataríamos com tiros na cabeça..."

Depois disso, lembro-me de estar agachado no corredor, em seguida, de vê-los olhando para mim.

Quando eu abri a porta do corredor e voltei a sala, a Isabela levantou os seus olhos, esperando passivamente que eu falasse o que havia feito, mas eu apenas
mantive meus olhos nos seus.

- Por que esta mala, Carlos? - Ao ouvi-la, acordei do meu transe e consegui me focar no que ainda tinha que ser feito.

Com o peso da responsabilidade sobre os meus ombros, percebi que também podia ser frio e a voz saiu controlada.

- Te explico depois, Isabela, agora me ajude a colocar os eletrodomésticos dentro do carro do Jota.

FIM DO LIVRO

Muita paz !

 Bezerra

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