segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

{clube-do-e-livro} Livros de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.: Filho Adotivo e Flores de Maria


FILHO ADOTIVO

Autor: Espírito Antônio Carlos
Médium: Vera Lúcia Marinzeck
Páginas: 144


Dedicamos
Aos pais, que conseguiram amar filhos alheios
como próprios, nosso respeito e admiração.

O Autor






Aos meus filhos:
Gustavo, Angélica e Vanessa com todo meu amor
de mãe. E, em especial, ao José Carlos Braghini, meu
mestre espiritual encarnado.

A Médium






Agradecemos a
— João Duarte de Castro
— Antonina Barbosa Negro
— Leila de Fátima Ap. de Souza Sotta











SINOPSE



Conheça o drama de dois irmãos que, sem saberem,
namoram e desejam se casar; e a aflição da mãe, já
desencarnada, por alertá-los contra o perigo. Espíritos
amigos entram em ação e tecem uma verdadeira lição de
carinho e fraternidade.




























ÍNDICE



PREFÁCIO

I - A INVÁLIDA
II - CISMAS PROFUNDAS
III - A HISTÓRIA DE ANTÔNIA
IV - OFÉLIA, FELIZ
V - SONHOS
VI - O SEGREDO
VII - A VERDADE
VIII - CAIO
IX - O ENCONTRO DE JOVENS
X - CAIO NO ESPIRITISMO
XI - O PERDÃO
XII - O PASSADO
XIII - LIBERTAÇÃO DE OFÉLIA
XIV - GRATIDÃO


PREFÁCIO



Por João Duarte de Castro


Esta série de magníficos romances de Antônio
Carlos com psicografia de Vera Lúcia Marinzeck de
Carvalho iniciou-se com RECONCILIAÇAO.
Ao encerrar o Prefácio deste primeiro livro da dupla
impecável, disse eu o seguinte: "Sem querer fazer
predição, acredito que este Romance estará ocupando
muito brevemente um lugar de destaque na Literatura
Espírita". E não deu outra coisa: a primeira edição do
RECONCILIAÇAO esgotou-se rapidamente e outras se
seguiram com a mesma excelente aceitação por parte dos
leitores.Nem poderia ser diferente, uma vez que
RECONCILIAÇAO (e eu disse isso também no referido
Prefácio) é um Romance que impressiona e agrada, a
história é envolvente e sugestiva, o tema é empolgante, o
estilo é atraente, a leitura é dinâmica.
Antônio Carlos é, indiscutivelmente, um escritor
exuberante, um romancista privilegiado, e Vera Lúcia são,
sem sombra de dúvida, um instrumento mediúnico fiel e
competente. Daí que os resultados só poderiam ter a alta
qualidade literária que têm; com todos os ingredientes
necessários e indispensáveis para agradar os
apreciadores de obras do mais elevado padrão.
Após RECONCILIAÇAO, surgiram COPOS QUE
ANDAM e CATIVOS E LIBERTOS que só fizeram confirmar
e reafirmar as virtudes do primeiro trabalho da "dupla
dinâmica".
E agora, ainda através do ditado de Antônio Carlos
e pela escrita de nossa querida Vera Lúcia, surge mais um
"filho literário", mas legítimo, apesar do título: FILHO
ADOTIVO!
O que eu tinha a dizer a respeito deste Romance já
o disse na Contracapa e, depois, já está ficando monótono
elogiar as virtudes dos responsáveis por esta tarefa
soberba. E repetitivo, também não fora eu o grande
admirador que sou, declarado e confesso, desse Autor de
escritos de tão superior qualidade!
E lembrar que minha colaboração nesta seqüência
de trabalhos começou por via indireta, através do pedido
da querida Antonina Barbosa Negro quando — valendo-se
de nossa grande amizade — encaminhou-me os primeiros
originais para que os apreciasse. E imaginar que, visto
tratar-se de obra mediúnica, fiquei com um pé atrás antes
de iniciar a leitura, dada à proliferação de textos medíocres
dessa natureza no mercado livreiro espírita. Mas foi por
apreciar tanto sua qualidade literária, estilo, trama,
linguagem, tudo enfim, que me tornei "padrinho" da equipe.
Não que seja lá um "padrinho" de grande importância, mas,
afinal, coloquei-me à disposição para monitorar o trabalho.
Resultado: os "afilhados" usando e abusando de tal
concessão... Assoberbaram-me de serviço! Serviço esse
que, aliás, me é muito gratificante.























I - A INVÁLIDA



Defrontei-me com um cuidadoso jardim, que
circundava a frente de uma bela e confortável residência,
situada num bairro nobre de uma grande cidade brasileira.
Flores singelas perfumavam a varanda em forma de
U, abrigando cadeiras confortáveis, demonstrando ser uma
parte da casa admirada por seus moradores.
— Que bom que tenha vindo, Antônio Carlos! Alegro-
me e agradeço sua presença. Estava à sua espera, disse
Antônia, vindo ao meu encontro.
Antônia me é muito querida. Participamos juntos, por
muito tempo, de um trabalho devotado nas enfermarias de
um Hospital no Plano Espiritual, onde de interna passou a
auxiliar com dedicação, compreendendo os enfermos,
lembrando os próprios infortúnios de outrora.
Encontrava-se no momento em missão de caráter
particular junto a seus entes queridos. Defrontando-se com
um delicado problema, minha amiga pedira meus
conselhos e auxílio.
— Sou muito grata aos nossos mentores que
permitiram sua presença aqui. Venha, Antônio Carlos,
entremos, falou Antônia indicando-me o caminho.
Passamos à sala de estar, ambiente espaçoso,
decorado com gosto. Ao lado de uma grande janela, dando
vista para o jardim, estava sentada em uma cadeira de
rodas uma senhora de agradável semblante. Muito magra,
de cabelos encaracolados que caíam aos ombros, olhos
verdes tristonhos e expressivos. Olhava distraída para o
jardim, rugas profundas marcavam a testa, demonstrando
preocupações.
Aproximamo-nos.
— É Ofélia, pessoa boníssima, a quem devo tanto...,
esclareceu-me Antônia.
Ofélia saiu do seu torpor suspirando, olhou pela sala
certificando estar realmente sozinha, retirou do bolso uma
carta e segurou-a contra o peito. Lágrimas doloridas
desceram pelas faces pálidas.
— Deve estar com quarenta anos, comentei,
observando-a.
— Quarenta e um, esclareceu Antônia. Há onze anos
está sem andar nesta cadeira de rodas, após um violento
acidente.
Ofélia não nos viu, não era médium, porém, estava
com sua intuição aflorada pelos anos de meditação, pela
oração sincera e diária e por sua resignação. Bastou
Antônia mencionar o acidente para recordá-lo.
Acompanhamos suas lembranças:
"Em uma tarde, saíra a passear com os filhinhos. Os
pequenos inquietos tomavam-lhe toda a atenção de mãe
extremosa e cuidadosa. Ia orgulhosa de sua família, para
ela não havia rebentos mais lindos. Todos arrumados
como se fossem a uma festa, chamavam a atenção dos
passantes, principalmente à menina que parecia uma
boneca com seu vestido de rendas e seu jeitinho
dengoso."
Quando, de repente, a caçula escapa-lhe das mãos,
indo em direção à rua movimentada.
— Carla! - gritou apavorada, volte!
A menina pareceu nem ouvir, começou a atravessar
a rua, Ofélia viu apavorada um carro vindo ao encontro da
menina em alta velocidade. Correu atrás da filha, naquele
instante só pensou em salvá-la, instintivamente, saltou e
empurrou a filha para a calçada. O motorista tudo fez para
evitar o acidente, não conseguiu parar a tempo nem ela de
evitar o choque com o veículo.
Ofélia sentiu o baque, ouviu o barulho, com esforço
procurou a filha, vendo-a de pé a seu lado, perdeu então
os sentidos.
Acordou dias após, em um hospital, as lembranças
do acidente vieram aos poucos, só se preocupou com as
crianças, quis vê-las, quando as viu bem, chorou
emocionada, ao ficar a sós orou agradecida e repetia,
sempre:
"Obrigado meu Deus, por ter salvado minha filha!"
Quarenta dias ficou em tratamento intensivo,
dormindo muito, tinha o corpo quase todo gessado. Ao
melhorar, foi para um quarto onde sentiu-se mais forte e
tranqüila. Foi então que notou que não sentia as pernas.
— Deve ser pelo gesso, pensava.
Não querendo preocupar-se, só pensava em ficar
boa e regressar ao lar; não deu atenção ao fato, até que o
gesso foi retirado. Aí, tentou movê-las, não conseguiu,
olhou aflita para o médico e recebeu a explicação.
— Dona Ofélia, a senhora por algum tempo não
poderá caminhar foram muitas as fraturas...
— Fale a verdade! Devo saber, estou inválida?
Andarei novamente?
— Que podemos nós, simples médicos, afirmar, o
futuro é de Deus. O progresso da Medicina é grande,
todos os dias surgem novidades e...
Parou o bondoso clínico, procurando uma melhor
explicação.
— Entendo doutor, não andarei mais.
— Por enquanto, não, Dona Ofélia. Acharemos um
modo de ajudá-la, voltará a andar.
Chorou muito, nunca dera valor às suas pernas que
a locomoviam, nunca tinha pensado na sua importância.
— Não correrei mais com meus filhos! Não andarei
mais! - repetia lastimando-se.
Depois da crise de choro, tornou-se apática e
tristonha, evitando a todos, respondendo com
monossílabos às indagações que lhe faziam. Ao receber
alta, não quis voltar ao lar, preferindo ficar no hospital.
Paulo, seu esposo, não se conformou, e insistiu:
— Ofélia, querida, não recuse a voltar ao nosso lar,
necessitamos tanto de você!...
— Ninguém necessita de uma inválida!
— Não fale assim, nós necessitamos de você. Ofélia,
estamos unidos pelo amor, na alegria como também nas
dificuldades. A luta é nossa e venceremos. Voltará a
andar, tenho esperança e confio. Visitaremos os melhores
médicos, será questão de tempo, ficará curada. Deve ter
paciência, reaja, não fique assim, sofremos com você, nos
sentimos rejeitados, as crianças acham que não gosta
mais delas, acham que não são mais importantes a você.
Foi heroína, Ofélia, salvando nossa filha, agora se
acovarda?! Teve coragem de enfrentar a morte e não tem
para enfrentar a vida? Que seria de nós, Ofélia, se você
tivesse morrido? Somos gratos a Deus, por Ele ter nos
deixado você. As crianças e eu sentimos tanto sua falta,
elas perguntam a cada instante, quando volta.
— Mas, Paulo, não será a mesma coisa, não poderei
correr, brincar, passear com elas.
— Graças a Deus, Ofélia, podemos ter babás,
empregadas, substituindo-a nos trabalhos físicos, porém,
querida, ninguém substitui seus carinhos e amor. Quem
conversará com eles? Quem dará ordens na casa? Quem
manterá a paz entre eles? Ou supervisionara para que
sejam bem cuidados? Não sei fazer isso, não tenho tempo,
sempre fez e deve continuar a fazê-lo. Nossos filhos
esperam-na ansiosos, já discutem planejando quem
ajudará você primeiro. Sabem que você voltará numa
cadeira de rodas, mas que voltará. É de sua presença que
necessitamos, não nos importa como. Queremos você
conosco!
Paulo chorou comovido.
Entendeu, então, que não sofria sozinha.
O esposo tinha razão, os filhos deviam estar tristes,
sentindo sua falta, nunca tinha se separado deles antes.
Se Deus a poupou, deixando-a porém inválida, deveria ter
Seus motivos. Não devia ser egoísta, por que fazer os
entes que amava sofrer? Não andava, mas amava-os
como antes, ou mais ainda, cabia a ela regressar ao lar e
tranqüilizá-los. O importante era a felicidade deles, a ela
bastava tê-los, e ser amada, o carinho deles dar-lhe-ia
forças e esperança para continuar vivendo e voltar a
andar.
— Paulo, prepara-me, volto com você, querido.
— Obrigado, Ofélia!
A enfermeira trouxe a cadeira, bonita, nova,
comprada pelo esposo, para seu melhor conforto. Olhou-a
e sentiu que ia ser dali para frente, a cadeira, companheira
por anos. Afastou a idéia e procurou alegrar-se.
As crianças ficaram tão contentes em vê-la em casa,
cercaram-na de mimos e carinhos que se arrependeu de
não ter voltado antes para casa e de ter se amargurado
tanto. Sentiu-se bem no seu lar.
Logo, tomou a direção da casa, sua sogra voltou
para sua casa. A mãe de Paulo ficara com as crianças
durante o tempo em que estivera no hospital.Agradeceu de
coração a D. Ivone, reorganizou os horários, afazeres
domésticos, planejou ficar e cuidar dos filhos do melhor
modo possível.
Aprendeu a lidar com a cadeira de rodas, logo
estava se locomovendo com facilidade pela casa toda,
esforçou-se e aos poucos foi conseguindo cuidar de si
mesma.
Começaram as visitas aos facultativos de renome.As
explicações ouvidas eram sempre as mesmas. Estava viva
por milagre, tinha fraturado a coluna dorsal e não poderia
andar mais.
Foi diminuindo a esperança de andar novamente
e,aumentando a coragem, recusou-se a ir a novos
médicos.
— Paulo, pediu, por favor, vamos parar com estas
visitas a consultórios médicos à procura de milagres, isto
só está nos fazendo sofrer. Estou bem, conformei-me,
aceite-me assim, por favor.
— Ofélia, amo-a, só sua presença é felicidade.
Faremos sua vontade, mas ficarei atento, se surgir algum
tratamento...
— Aí, voltaremos a procurar.
Resignou-se, aceitou sua provação como uma
vontade do Alto como algo que tinha que ser. Passou a
querer bem sua cadeira, como uma companheira que a
ajudava a se locomover, que lhe fazia às vezes de perna.
Esforçou-se no começo para não se queixar, lutou contra a
autopiedade, passou a se dedicar com todo carinho aos
problemas dos seus, facilitando e alegrando a vida deles.
Faleceram os sogros e a família ficou sendo os cinco. As
crianças se acostumaram a vê-la na cadeira de rodas,
achavam normal e os anos foram se passando sem
novidades.
Ofélia despertou de suas lembrança com um suspiro,
limpando as lágrimas.Olhou para o jardim, seu recanto
preferido. Não estava com vontade de ir à varanda onde
passava sempre horas, lendo, bordando, até mesmo
admirando suas flores.
Aproximei-me de Ofélia, vi suas pernas fracas
definhando.
— Deve sentir muitas dores, comentei.
— Sente sim, esclareceu Antônia, mas não se
queixa, não reclama, evita até de comentá-las. É o anjo
deste lar.
Ofélia olhou para a carta que tinha nas mãos, abriu-a
relendo. Era uma carta de suas irmãs Rosa e Zélia,
contando de maneira simples suas dificuldades em Recife,
após a morte de Odair, esposo de Zélia, ocorrida há mais
de seis meses. Estavam sem meios de sobrevivência, não
conseguindo emprego nem conseguiam se sustentar com
a minguada aposentadoria que Zélia recebia. Parecia,
comentavam, que tudo estava dando errado, nem seus
artesanatos estavam vendendo. Não tinham meios de
continuar pagando o aluguel do apartamento que já estava
atrasado.
Ofélia parou de ler, a imagem das irmãs veio-lhe à
mente. Zélia, a mais velha, parecia-se fisicamente com ela,
Rosa, a caçula, era delicada, meiga e mais clara. Faziam
belíssimas peças de artesanato, eram verdadeiras artistas.
Sabia que Zélia não estava bem de saúde, piorando com a
morte do esposo que muito amara.
—Tenho saudades de vocês, minhas irmãs, há tanto
tempo que não as vejo, balbuciou a inválida.
Voltou à leitura.
Sem outros parentes, sem recursos, apelavam a ela
para ajudá-las. Queriam retornar à cidade natal de onde
tinham saudade. Depois, frisavam, a família delas eram
Ofélia e os filhos.
— É verdade, exclamou baixinho, interrompendo
novamente a leitura.Eram três irmãs, Zélia há anos mudara
para Recife, quando se casou com Odair,não tiveram
filhos; Rosa estava solteira e com Zélia morava há tempos.
Voltou a ler.
Estavam saudosas dos sobrinhos que tão pouco
conheciam, mas há quem muito amavam. Pediam para
aceitá-las por uns tempos até que arrumassem onde ficar
e trabalho para se sustentarem. "Com você, diziam,
procuraremos ajudá-la a cuidar da casa ou lhe fazendo
companhia." Finalizavam mandando beijos e abraços e
que aguardavam ansiosas pela resposta.
Ofélia suspirou, segurou firme a carta, pensou:
— Com nossos pais mortos há tantos anos, somos
só nós três. Tanto tempo sem nos vermos! Posso ajudá-
las, financeiramente estamos bem, Paulo progride nos
negócios e espaço nesta casa não falta. O que elas me
pedem é tão simples e tão complicado, ao mesmo
tempo.Não posso deixar de ajudá-las, não lhes faltará
dinheiro, mas, morar aqui, em minha casa, como é
possível? O passado está, realmente, morto para nós?
Meu Jesus orienta-me. Que faço? Ajuda-me a fazer o
certo.
Orou suplicante, sua voz fez eco em nossos
corações.
— Mãe! Mamãe, onde está a senhora? - gritou da
varanda um jovem agradável e alegre, rompendo o silêncio
que reinava até então.
Ofélia guardou rápido a carta no bolso, ajeitou-se e
tentou sorrir, pensou: "É melhor que não a vejam ainda,
devo primeiro pensar e encontrar um meio de ajudá-las
sem criar-me problemas."
Respondeu com voz carinhosa.
— Estou aqui, Caio.
O jovem, alto, esbelto, na euforia dos seus vinte
anos, entrou na sala correndo, indo ao encontro da mãe...
— Mãezinha, estou com uma fome... Papai, já veio? -
beijou-a na testa presenteando-a com um belo sorriso.
— Ainda não, não deve tardar.
— Parece abatida. Que tem? Sente algo? Foi ao
médico? Precisa de alguma coisa?
— Quantas perguntas, respondeu sorrindo. Não
tenho nada, não se preocupe, sinto-me bem. Só não tive
hoje vontade de ir à varanda.
— Ainda bem!
Sentou-se no sofá e pôs-se a examinar um caderno.
Voltava da Faculdade, onde cursava o terceiro ano de
Administração de Empresas.
Antônia emocionou-se, aproximou-se de Ofélia com
muito carinho, disse de mansinho numa comunhão
espiritual amorosa que Ofélia encarnada não escutou com
os ouvidos físicos, mas sim com a Alma.
"Amiga, ser mãe é mais que dar a vida física. A
verdadeira mãe é aquela que acompanha todos os passos
de seu filho. Ama seus filhos sem diferença. Agradeço-lhe.
Deus lhe pague! Amo Caio, mas, ele é seu!"
Ofélia olhou para Caio com muito amor, sentiu as
vibrações carinhosas da amiga espiritual, mas, sentiu
ciúme do filho, ciúme de mãe, e pensou: "Caio é tão lindo!
Não parece com Paulo, às feições são diferentes. Do
Paulo tem a voz, tão parecidas... É tão bom este meu filho,
companheiro alegre, irmão dedicado,é querido por
todos.Os empregados o respeitam e estimam, tanto os de
casa como os do escritório. Sempre atencioso e educado
com todos. Preocupa-se tanto comigo, me dá tanta
atenção e carinho, muito mais que os outros dois. Quero-
os como mãe, iguais, mas a Caio amo diferente, talvez por
ser ele adotivo. Será que se soubesse, amar-me-ia assim?
Por Deus! Não quero nem pensar em perdê-lo! É meu, é
nosso! Criamo-lo, cuidamos sempre dele com tanto amor.
Ele não deve saber nunca! Lutarei por ele, é meu!
Afastarei quem tentar roubá-lo de mim. Pessoa alguma e
por nenhum motivo tem o direito de querê-lo agora. Que
pensamentos tolos estou tendo, não devo pensar nisto.
Caio é meu! Só meu!"
Caio levantou-se, retribuiu o olhar carinhoso da
mãezinha e rumou para outra parte da casa levando seus
objetos escolares.
Logo entrou na sala, toda alvoroçada, uma
encantadora mocinha de quinze anos, sorridente e feliz.
Magra, miúda, rosto redondo, com pequenas sardas
enfeitando o nariz arrebitado, cabelos curtos, muito bonita.
Vestia uniforme, com estampa de um colégio afamado,
chegava da escola.
— Mamãe, está bem?
Sem esperar resposta, jogou seus cadernos no sofá
e rodou pela sala, ensaiando uns passos de dança em
voga, voltou para a mãe e pediu:
— Mãe, sábado Cidinha dará uma festa, posso ir?
Posso comprar aquele vestido azul de que lhe falei ontem?
É tão lindo! Por favor...
— Se Caio ou Sérgio levá-la, pode ir.
— Farei meus manos levarem-me, ou mesmo papai.
Não quero perder a festa, a turma toda vai estar lá, quero ir
bem bonita...
Ofélia sorriu, Carla saiu da sala cantando, feliz.
Carla também é bonita, pensou, parece tanto com
Paulo. É tão bom vê-la alegre, a dançar, a pular pela casa.
Agradeço a Deus por ser eu a estar nesta cadeira. Como
seria triste, mais sofrido para mim, se não tivesse
conseguido salvá-la das rodas daquele automóvel. Não
posso reclamar, já vivi muito, Carla era uma criança, agora
é jovem, sadia. Seria bem pior para mim, vê-la nesta
cadeira.
Conversas animadas ouvimos na sala, Ofélia virou a
cadeira para a porta a esperar que entrassem. Eram Paulo
e Sérgio que a cumprimentaram e continuaram
conversando sobre o curso de Química Industrial que
Sérgio cursava. Paulo era forte, aspecto agradável, claro,
quase louro, tinha sardas espalhadas pelo rosto, estava
sempre de bom humor, orgulhava-se dos filhos e gostava
de conversar com eles, sobre seus estudos e planejava
deixá-los em seu lugar.
— Ofélia, disse Paulo, busquei Serginho hoje na
escola, bom colégio, muito bonito, gosto de vê-los
estudando. Caio deverá assumir nos escritórios e Sérgio
nas fábricas. Que dupla! Que filhos!
Sérgio sorriu, contente, adorava o pai, era muito
bonito, estava sempre rindo feliz, entusiasmava-se por
tudo,dificilmente parava quieto, era mais baixo que o
irmão, também como Carla, tinha sardas pelo rosto, mas,
era fisicamente parecido com a mãe.
— Que fome! - exclamou.
Correu a empurrar a cadeira da mãe e passaram à
sala de refeições.Ficando Antônia e eu, minha amiga
esclareceu-me:
— São estes os membros da família, com seus
problemas corriqueiros, vivem em paz e harmonia. Mesmo
Ofélia, se sofre fisicamente, espiritualmente está bem,
embora esteja indecisa no momento. Deve estar querendo
saber, Antônio Carlos, o porquê de ter pedido seu auxílio?
O problema existe, só que eles não o sabem, minha amiga
suspirou triste e continuou:
— Sou, fui uma mãe má, abandonei meu filho recém-
nascido, sem sequer vê-lo e Ofélia o criou. Sim, Caio é
meu filho, que imprudentemente tive. Graças a Deus, não
fiz falta a ele, é tão amado, tão querido, já é homem, tem
responsabilidades e até pensa em se casar. Namora firme,
Cidinha, esta mencionada por Carla, que dará a festa. As
famílias são amigas. Paulo é muito amigo de Marcelo, pai
de Cidinha. O namoro agrada a todos e torcem para que
os jovens se casem. Porém, Antônio Carlos, não tive só
este filho, não foi só a Caio que abandonei. Tive também
uma menina, que também não conheci, desencarnei ao tê-
la. Há tempos descobri o paradeiro de meus filhos, visito-
os raramente, foi muita alegria vê-los bem e amados. E
agora, ao visitá-los, descobri que se namoram. Minha filha
é Cidinha, a namorada de Caio. Como deixar que se
unam? Como separá-los? Só eu sei deste fato, deste
segredo. Martirizo-me. Não sei como ajudá-los. Não quero
que sofram. Ajuda-me! Ajuda-nos, Antônio Carlos!


















































II - CISMAS PROFUNDAS



— Ânimo, Antônia, confiemos nas Leis Divinas,
estudaremos a situação e acharemos um modo de evitar
que se casem, disse, confortando-a.
Após a refeição, voltaram à sala e conversaram
animadamente por minutos, decidiram que Carla iria à
festa com os irmãos. Paulo levantou-se.
— Volto ao escritório, vem comigo, Caio?
Despediram-se e Caio beijou carinhosamente a mãe.
Sérgio foi para o quarto estudar e Cana saiu eufórica para
comprar o vestido para a festa.
Novamente Ofélia ficou só, em vez de fazer algo
para se distrair como sempre — ora bordava, lia, ouvia
rádio ou via televisão — pôs-se a pensar.
"Era de família de poucos recursos financeiros.
Adolescente, a mãe morrera, depois de prolongada
doença. O pai, homem bom, mas triste, não se preocupava
muito com as filhas, embora as amasse muito.Estudara até
o antigo curso ginasial em escolas públicas,como as
irmãs.Adolescentes começaram a trabalhar para se manter
e ajudar nas despesas da casa. Seu pai ganhava pouco e
não se interessava em melhorar, tornou-se mais apático
ainda após morte da esposa. Zélia começou a namorar
Odair, vizinho e de família amiga. Rosa conhecera Paulo
no seu trabalho, falava dele o tempo todo, lembrava
direitinho do entusiasmo dela falando dele."
— É lindo, gentil e inteligente! O que me preocupa é
que ele é de família rica, talvez os seus queiram moça
melhor para ele. Meu coração bate mais forte só de
lembrar o dia em que ele entrou na loja para comprar
camisas. Nem acreditei quando ouvi o convite que me fez
para sair com ele.
Após meses de namoro, todos estávamos curiosos
por conhecê-lo e Rosa o trouxe em casa. Logo que o vi,
percebi que Paulo era diferente, atraente e não Consegui
tirar os olhos dele. Ele percebeu e também olhou-me.
Nunca me interessara por ninguém, tivera alguns
namoricos sem importância. Paulo interessava-me e não
estranhei, pareceu-me normal, que na tarde do outro dia
ele estava a esperar-me na esquina da loja em que
trabalhava. Era balconista em uma pequena loja, Rosa e
Zélia também, Só que em lojas diferentes e a que eu
trabalhava ficava distante da delas.
Cumprimentou-me sorrindo, dissera que estava
passando por ali e resolvera esperar-me para conversar
um pouco.
A intuição que tive era de que o conhecia há tempos,
palestramos animados sem sequer tocar no nome de
minha irmã. Paramos numa praça e não sentimos o tempo
passar.
— Agora tenho que ir, disse-me, assustado com a
hora.
Não combinamos outro encontro, mas com
freqüência Paulo passou a esperar-me. Não contara a
ninguém, porém comecei a me sentir culpada,
principalmente quando Rosa começou a se queixar da
indiferença do namorado.
Um dia, Paulo convidou-me para irmos ao cinema,
onde confessou seu amor. Alegrei-me, senti que também o
amava.
— Há Rosa, disse.
— Não há! Falarei com ela, sem dizer de nós,
entenderá.
No outro dia, Rosa chegou em casa chorando,
dizendo que Paulo desmanchara o namoro, porque amava
outra.
Zélia consolou-a, porém não consegui dizer nada.
Rosa era meiga, simples e calma, nunca brigava. Ás
vezes, Zélia e eu discutíamos e era Rosa quem nos
acalmava. Entristeci ao vê-la sofrer, mas amava Paulo,
amenizei meu remorso, pensando:
"Rosa é jovem, este amor passa logo, ela esquecerá,
não adiantaria nada renunciar, ele me ama."
Resolvi esquecer minha irmã e dedicar-me mais ao
Paulo. Ver Rosa triste incomodava-me, então, evitei
Conversar com ela, nem querendo saber como estava.
Conhecia-a e sabia que ela era fiel e que o amor que
sentia por Paulo não era fogo de palha e que estava
realmente sofrendo.
Encontrava-me com Paulo todos os dias,
descobrimos que tínhamos o mesmo gosto, as mesmas
opiniões,nunca discutíamos e eu o amava bastante.
Um dia, ao chegar em casa, Zélia esperava-me em
frente de casa.
— Ofélia, até quando pretende esconder seu namoro
com Paulo?
— Você sabe?!
— Rosa contou-me, viu-os por acaso ontem. Por que
fez isto, Ofélia? Rosa não merece, por que roubou-lhe o
namorado?
— Não roubei ninguém, ele não a quis mais, nós nos
amamos, aconteceu!
— Interessou-se logo por ele, não foi? Quando ele
veio aqui, não lhe tirou os olhos. Deve ter dado em cima
dele. Que coisa feia! Não se importa nem um pouco com o
sofrimento de sua irmã. Você é má!
— Zélia, não se intrometa em minha vida, Paulo e
Rosa tiveram um simples namoro e nós nos amamos
realmente.
Entrei com raiva em casa, pensei que Rosa me
pediria explicações, porém, ela nada disse. Passei a
ignorá-las ficando em casa o mínimo possível conversando
o indispensável e, como todos já sabiam, não escondi
mais o namoro e Paulo ia buscar-me e levar-me em casa.
Zélia, numa cerimônia simples, casou-se, ficando
Rosa e eu,e era eu quem pouco conversava, tratando
Rosa rispidamente.
Paulo e eu nos amávamos muito. Nosso problema
eram pais dele que sonhavam com um casamento
diferente para o filho. Paulo era filho único, mimado, mas
inteligente e trabalhador, tomava conta de uma pequena
fábrica de confecções infantis de seu pai, enquanto este
cuidava de uma propriedade rural. Não gostaram da
escolha do filho, deixaram isso claro, sem contudo
maltratar-me, relacionando-se comigo com frieza e reserva.
Resolvemos nos casar e vi o tanto que Paulo era
teimoso, tão obstinado que fez os pais aceitar-me. Paulo
deu-me dinheiro para que comprasse o enxoval e seus
pais compraram uma casa perto da deles e a mobiliaram. A
casa era um encanto, pequena, com dois quartos e um
minúsculo jardim. Pela primeira vez, ia morar numa casa
de minha propriedade. Meu pai não concordava com o
casamento, mas não pôs objeção. Convidei Zélia e o
esposo meu ex-patrão e a esposa para serem meus
padrinhos.
Não gostava nem de ver Rosa e não a convidei para
a cerimônia.
Meu casamento foi lindo, foi o dia mais feliz da
minha vida. Ficara muito bonita no vestido que D. Ivone,
minha sogra, me dera. Tudo correu bem e a ausência de
Rosa não foi notada.
Nunca viajara e entusiasmei-me com os cinco dias
que passamos em Petrópolis. Tudo era maravilhoso. Com
capricho, arrumei nossa casa. Meus sogros tratavam-me
bem,sabia porém que não me amavam. Eram loucos por
crianças e não escondiam que queriam netos, que este era
seu sonho e desejo. E logo as indagações começaram.
— Então, Ofélia, vai ser mãe? Vamos ser avós?
Quando nos dará netos?
No começo sorria ao responder: "Não sei, logo,
quando Deus quiser." Depois começaram a incomodar-me
e preocupei- me. Não engravidava e comecei a sentir
medo das cobranças que eles me faziam. Paulo enervava-
se com os pais e acabava por ofender-me ou então
queixava-se.
— Que coisa! Parece que meus pais só pensam em
netos. Por que não engravida, Ofélia? Já é tempo de ter
filhos. Sabe, eu também sonho em tê-los.
— Eu também quero, não sei porque não os tenho.
Oito meses de casados e as brigas começaram.
Meus sogros, principalmente D. Ivone, davam palpites em
tudo em casa, ditando leis que deveria seguir e Paulo
achava certo. Ele começou a agredir-me, acusando-me por
não ter filhos. Vi com tristeza meu esposo afastar-se de
casa, ficando muito na casa de seus pais.
Meu pai adoeceu e teve que sair do emprego. Rosa
desdobrava-se para continuar trabalhando e cuidar dele.
Zélia ajudava-os muito, eu pouco ia vê-lo. Minhas visitas
eram rápidas, sabia das dificuldades dos meus, do pouco
dinheiro que tinham, levava alguns mantimentos de casa
para eles e algumas roupas. Porém, estava mais
preocupada com o meu problema, D. Ivone controlava-me
em tudo e não tinha coragem de pedir dinheiro ao meu
marido que cada vez me tratava mais rispidamente.
— Ofélia, marquei uma consulta para você amanhã,
disse certo dia D. Ivone, que resolvera levar-me ao médico
sem consultar-me.
"A senhora nada tem, foi à resposta deste e de mais
três outros consultados." Deveríamos esperar.
Papai piorou, além de seu coração fraco, contraíra
tuberculose, não quis ser internado. Rosa largou o
emprego e ficou cuidando dele com todo carinho. Odair
fora transferido para Recife e Zélia a contragosto, mudou-
se.
Mesmo sabendo da necessidade de ajudar Rosa a
cuidar de meu pai, visitava-os pouco, não demorando. O
olhar de D. Ivone acompanhava-me incomodando-me. Meu
pai morreu, Paulo acompanhou-me ao velório, chorei
sentida, queria bem a meu pai, embora não o amasse.
Estava mais triste pela minha situação e senti-me sozinha,
sem família. Após o enterro, Paulo deu-me uma quantia
razoável de dinheiro para ajudar nas despesas e o dei a
Rosa.
Ofélia, disse ela, não aceitaria se não tivesse que
pagar tantas contas atrasadas. Zélia ajudou-me com
pouco, coitada, nem pode vir ao enterro. Obrigada e
agradeça a seu esposo por mim.
Passados uns quinze dias, Rosa veio pela primeira
vez em minha casa, na hora que sabia que estaria
sozinha.
— Que linda casa a sua, Ofélia. Alegro-me por vê-la
tão bem. Não devo demorar-me, vou embora para Recife,
vou morar com Zélia. Desfazer-me-ei da casa, quer algo
como lembrança? Não?
Então não se importa de que venda tudo, não é?
Vou na semana que vem. Despedir-se-á de mim?
— Sim, claro, respondi secamente.
Rosa logo se foi, senti alívio, não queria que
descobrisse que não era feliz. Não fui me despedir dela.
Soube de sua partida ao receber uma cartinha dela,
despedindo-se.
Envolvida com meus problemas, com o afastamento
e mudança de Paulo, com o desprezo de meus sogros,
com o pesadelo de não engravidar, não liguei para minhas
irmãs. Zélia desde que partira, escrevera-me uma só carta,
que respondi friamente e Rosa não me escrevera mais.
Sem saber o porquê, as agressões diminuíram,
Paulo parecia mais calmo, sentia que ele me amava, só
que estava obsedado em dar netos aos pais. As
cobranças de meus sogros escassearam e sentia-me
culpada e infeliz. Passaram-se os meses. Quantas vezes
chorava e indagava o porquê de não ficar grávida, passei
a esperar a gravidez com agonia, pressentindo que, se
não tivesse filhos, seria o fim do meu casamento.
Estava no mês de junho, naquela noite Paulo estava
inquieto, acabando por deitar-se cedo. Foi lá pelas vinte e
três horas que ouvimos um choro. Sentei-me na cama para
escutar melhor, e Paulo deu um pulo.
— É choro de criança, está ouvindo, Ofélia?
Levantou-se rápido, colocou o roupão, foi direto para a
porta da frente, corri atrás. Quando abriu a porta, vimos
que o choro vinha de uma trouxa de roupas na soleira da
porta, peguei-a com o coração aos saltos e vi com
assombro que era uma criancinha enrolada num cobertor
novo e grosso.
— Ofélia, uma criança! Entremos logo, está frio,
coitadinho do menino!
Entramos e Paulo fechou a porta. A criança chorava,
acalentei-a no colo, parou de chorar e desembrulhei-a.
— É um menino recém-nascido Paulo. Que faço?
— É nosso, Ofélia. Alguém nos deixou. Coitadinho, é
tão pequeno! Acho que devemos colocar roupas nele e
alimentá-lo. Também não sei o que fazer. Que tal
chamarmos a mamãe?
Concordei com a cabeça, pela primeira vez não
achara ruim chamar sua mãe. Num instante, Paulo vestiu-
se e saiu. Olhei a criança demoradamente, era linda,
rosada, dormia tranqüila, agora nos meus braços, como se
sentisse segura no meu lar. Aconcheguei-a e embalei-a.
— Coitadinho! - murmurei. Abandonado ao nascer,
deixaram-no aqui, deram-no para nós. Paulo tem razão, é
nosso! É meu!
Logo, meus sogros chegaram, passamos a noite em
volta do nenê. Estávamos todos contentes, animados, os
pais de Paulo foram gentis comigo e desde então não mais
me ofenderam.
— É lindo! Como se chamará? - indagou meu sogro.
— Papai, respondeu Paulo, sempre pensei que se
tivesse um filho, daria o seu nome. Se o senhor não se
importar, gostaria de colocar nele o nome de Caio Neto.
— Claro! Claro! Isto me deixa feliz.
— Amanhã sairei e comprarei um enxoval completo,
o que há de mais lindo para ele. Coitadinho, ainda bem
que tinha em casa estas roupinhas que doaria às damas
de caridade. Cainho é presente de Deus! Meu neto!
Todos concordaram com minha sogra, só mais tarde
os fatos chamaram-me a atenção. De D. Ivone vir com
Paulo com uma sacola de roupas, mamadeiras, tudo o que
uma criança recém-nascida precisa, foi como se ela
estivesse esperando-o.
Com medo de que alguém viesse reclamá-lo, não
contei o fato a ninguém, nem para minhas irmãs e D. Ivone
disse a todos, que meu filho nascera antes do tempo. Não
sei o que pensou a vizinhança, quase não saía de casa e
não fizera amizade com ninguém.
Minha sogra comprou roupas para ele, tudo limpo e
chique, e Caio encantava a todos nós. Passava os dias a
cuidar dele, minha sogra arrumou uma empregada para
ajudar-me e uma nova vida para mim começou. Paulo
voltou a ser gentil, a ficar em casa, meus sogros não
implicavam mais comigo e o garoto era nosso reizinho.
— Você, Caio, é a razão de minha felicidade, tudo
está certo agora e graças a você, menino lindo!
Caio sorria feliz, como se me entendesse. Ele
sempre foi dócil, meigo e crescia lindo e saudável. Não
gostava nem de lembrar que não era meu.
Filho é de quem cria! - pensava sempre. Peguei-o, é
meu, só meu!
Quando fez um ano que Caio estava conosco,
percebi que estava grávida, com a confirmação do médico,
contei a todos, muito contente. Meus sogros ficaram
felicíssimos, dávamo-nos muito bem, esquecemos todas
as desavenças do passado, queria bem a eles e agora
sentia que me amavam.
— Meu sonho era ter muitos netos. Que bom, minha
filha, abraçou-me o Sr.Caio.
Paulo não participou de nossa alegria, ficou quieto
num canto, ao ficarmos a sós com ele, indaguei:
— Não gostou da notícia, querido?
— Gostei, Ofélia, mas penso em Caio, é nosso
também, você amará igualmente aos dois?
— Caio é nosso filho. Nosso primeiro. Amo-o tanto,
nunca vou deixar de querê-lo. Serão iguais para mim.
— Verdade? - exclamou contente, amará igual
sempre? Prometa-me! Que bom esta casa se encherá de
crianças e Caio terá um irmãozinho ou irmãzinha. Amo-a
tanto, Ofélia!
Nasceu Sérgio, tudo era paz em casa, não se fez
diferença, as crianças eram amadas e bem cuidadas. Até
esquecemos que Caio era adotivo, nunca mais falamos
sobre este assunto.
Das minhas irmãs, sabia pouco, trocávamos cartões
de aniversários, natais, com alguma notícia.
Uma vez, Paulo tendo de ir a Recife a negócios,
convidou-me para ir junto, meus sogros se ofereceram
contentes para ficar com as crianças.
Minhas irmãs acolheram-me com carinho e atenção.
Moravam em um modesto apartamento. Zélia não podia ter
filhos, falara nisso com tristeza, entendera lembrando de
quanto sofrera por este motivo também. Rosa continuava
solteira e não demonstrava vontade de se casar.
Conversamos animadas, comentando episódios de nossa
infância e juventude. Lembramos então, das nossas
despedidas e de quanto tempo fazia que não nos
víssemos. Estremeci quando Zélia corrigiu-me.
— Não, Ofélia, engana-se, Rosa veio para Recife em
julho e não em abril.
Sorri, nada respondi, achei estranho, lembrava bem
as datas. Logo Paulo viera apanhar-me, hospedamo-nos
num hotel, ficamos por mais dois dias em Recife, não voltei
mais a casa delas, regressamos sem nos despedir.
Começaram, então, a encaixar-se como um jogo de
montar as partes da história. Meus sogros aceitaram logo
e com amor a criança que deixaram em nossa porta, Paulo
naquela noite parecia esperá-lo. Disse "menino" ao vê-lo,
como sabia? Rosa viajara no começo de abril e só chegou
a Recife em julho, onde estivera minha irmã nesses
meses? Por que se ocultou?
Tudo estava claro, Caio era filho de Paulo e Rosa.
Sabiam Paulo e seus pais que a criança seria deixada
naquela noite e sabiam que era um menino. Chorei muito,
entristeci, pensei bastante e resolvi fingir que não sabia
que não descobrira. Se Paulo a traíra, voltara para ela,
ficara com ela, amava-a muito, sentia isso. E Rosa, se
tivera o filho e o abandonara, não era mais dela. Estando
tudo certo, deveria esquecer e tudo continuar como
estava. Procurei não pensar mais no assunto e Continuei a
ignorar as irmãs mal respondendo suas cartas e cartões.
Paulo era muito trabalhador, seus negócios
progrediam, vivíamos em paz e felizes e para completar
nossa alegria, veio Carla.
Quando meu sogro morreu, Paulo herdou toda a
fortuna da família vendeu a fazenda, ampliou suas
fábricas, triplicou seus bens. Compramos aquela casa em
que morávamos, longe de onde residíamos, e nossas
amizades passaram a ser outras pessoas. "Nunca mais se
comentou a adoção de Caio, este não sabia e ninguém
mais além de minha sogra, Paulo e eu."
Ofélia parou de pensar, falou baixinho:
— Não mostrarei esta carta a ninguém, responderei
dizendo que é impossível no momento recebê-las. Mas,
ajudarei mandando dinheiro, isto é tão fácil para mim.
Dinheiro não nos falta, e Paulo não me nega nada.
Ofélia ficou olhando para a carta, continuou a
pensar.
"Tenho ciúme de Rosa, sim, tenho! Está bonita,
perfeita, poderá chamar a atenção de meu marido. Paulo
tudo tem feito para ser bom esposo, e é. Vivemos como
irmãos há tempos. Sinto que tem outras mulheres, mas é
reservado, nunca soube nem deu escândalo. Aceito e
compreendo, não tenho ciúme, amo-o de forma diferente
agora, sem posses. Mas, Rosa amou muito Paulo,
conhecera-o primeiro e fui eu quem os separou. Minha
doença ensinou-me muito, entendi que errei tomando-o
dela, mas, também perdoei a traição de minha irmã.
Quando fiquei paralítica, passei a escrever mais para elas,
nunca, porém convidava-as para vir visitar-nos. Alguns
anos antes, Caio foi para os Estados Unidos com Paulo,
mandei Sérgio e Carla passarem uns dias com elas, para
conhecê-las. Adoraram as tias. Deixei porque Caio não
poderia ir. Não o queria perto de Rosa. Embora sentisse
ciúme de Paulo, não era com ele que me preocupava e sim
com Caio. Será que vivendo sob mesmo teto, o amor
materno de Rosa não viria à tona? Será que não iria
querer Caio para ela? Não e não! Caio era meu e não
queria Rosa perto dele!"
Pegou o bordado, suspirou triste, estava amargurada
com a solução que tomara em relação às irmãs.
— Amanhã responderei! - exclamou alto.
Antônia estava emocionada, voltou-se para mim e
disse:
— Como vê, Antônio Carlos, Ofélia é boa, no íntimo
sente que está sendo injusta, sofre. Suas conclusões não
são verdadeiras, Rosa não é mãe de Caio, esta nunca
traiu a irmã, ela é tão boa quanto Ofélia. Sou eu, amigo,
sou eu a mãe de Caio!



































III - A HISTÓRIA DE ANTÔNIA



À tardinha, a família reuniu-se novamente,
conversavam animados e como Ofélia resolvera nada
comentou da carta que recebera. Foram jantar, Antônia e
eu fomos para o jardim, sentamos na varanda.
— Vou contar Antônio Carlos, o que aconteceu
realmente. Narrarei minha história.
"Nasci e passei a infância e parte da juventude numa
fazenda, perto desta cidade". Minha família era pequena,
pai, mãe e dois irmãos. Quando contava dez anos, meus
dois irmãos, o mais velho com dezesseis e o outro com
quatorze anos, desencarnaram afogados no lago da
fazenda. Sofri muito e meus pais se desesperaram; papai
adoeceu logo após. Passou a trabalhar pouco e minha
mãe desdobrava-se para o sustento do nosso lar. Passei a
ser a única alegria deles, amavam-me muito, mas só ser
amada não bastava, detestava a pobreza em que vivíamos
e sonhava com o luxo e com a cidade grande.
Com dezesseis anos, resolvi trabalhar na cidade
para ajudar meus pais, não queria continuar trabalhando
na lavoura, serviço que fazia desde os doze anos.
A esposa do dono da fazenda em que morávamos
senhora muito bondosa, arranjou-me um emprego de
doméstica, onde moraria no emprego. Foi então que vim a
trabalhar na casa dos pais de Paulo. O serviço era simples
e aprendi rápido, sempre com vontade de agradar aos
patrões, para não voltar para a fazenda procurava fazer
tudo bem feito. Ganhava bem, a metade do meu ordenado
levava para meus pais e ia vê-los aos domingos de quinze
em quinze dias.
Nesta época, Paulo era solteiro, ficava pouco em
casa e quase não o via. Sabia pelas conversas que
escutava que ele namorava uma moça pobre e que seus
pais não queriam e sempre ouvia discussões na casa.
Cheguei até a ficar com pena de meus patrões,
principalmente de D. Ivone, que me tratava bem, dando-me
muitos presentes.
Fui perdendo a timidez de moça de fazenda, logo os
encantos da cidade grande fascinaram-me. Passei a sair e
a namorar. Infelizmente, não procedia bem, tendo o
cuidado de esconder de todos, trocava todo mês de
namorado, pensando assim, estar aproveitando a vida.
Paulo casou-se e pouco tempo depois, pelas
conversas que ouvia, soube que brigava muito com a
esposa, passou então a ficar muito na casa dos pais,
ficando mesmo mais tempo do que quando era solteiro.
Não era bonita, mas interessante, magra, alta, rosto
miúdo, chamava a atenção pelo meu jeito exótico e
diferente e pela cor do meu cabelo, castanho-cinzento, da
mesma cor dos de Caio.
Paulo notou-me, passou a olhar-me interessado e eu
a corresponder. Tivemos um romance, tornei-me sua
amante. Dava-me muitos presentes e dinheiro, sentia-me
feliz. Menti aos meus pais que por ser boa empregada
estava ganhando mais e passei a lhes dar mais dinheiro.
Minha mãe pôde descansar mais, trabalhando menos.
Orgulhavam-se de mim, abençoavam-me por ser boa filha,
alegrava-os tanto que sufoquei o remorso por enganá-los e
também pelo que sentia por estar procedendo errado.
— É por eles! - dizia sempre.
Ninguém desconfiou, passaram-se meses, até que
percebi que estava grávida. Enchi-me de coragem e contei
ao Paulo. Ele desesperou-se, fez-me prometer que não ia
contar a ninguém e que ia ajudar-me a achar uma solução
para o problema. Esperei com medo, passaram-se dois
dias, ele veio ter comigo com uma proposta. Lembro-me
tão bem...
— Antônia, sabe que sou casado, não escondi e
você aceitou-me assim. Você terá o filho e será mãe-
solteira, porque não posso casar-me com você. Preocupo-
me com a situação. O que pensarão seus pais disto? Não
poderá trabalhar grávida e, depois, quem dará trabalho a
você? Como fará para sustentar-se?
Comecei a chorar, entendi que ele falava a verdade,
deixou-me chorar por uns minutos e continuou:
— Antônia, não se desespere, vou ajudá-la, tenho
uma proposta para lhe fazer, escute com atenção. O filho é
meu, não é? Deixa-o comigo. Faremos assim: você irá
para a fazenda de meu pai, onde ficará escondida, lá será
bem tratada e não trabalhará. Dirá a seus pais que viajará
com os patrões, receberá seu ordenado e continuará a
mandar dinheiro a eles, ninguém desconfiará.
Terá a criança e me dará, logo após deverá partir, de
preferência para longe.
— Ficará com a criança?
— Sim, ficarei para ajudar você. Não pode ficar com
ela, será sua desgraça e infelicidade. Você a terá e
esquecerá, ninguém ficará sabendo e quem souber não
falará, continuará a ser uma moça e não mãe solteira.
Pense Antônia, se seus pais souberem morrerão de
desgosto e você será culpada. Mais ainda, para ajudá-la,
para que recomece a vida em outro lugar, darei a você
uma pequena fortuna.
Falou a importância, realmente era para mim uma
fortuna, nunca pensara em ter tanto dinheiro. Era
ambiciosa e a ganância em possuir o dinheiro era muito
mais importante para mim que o filho que esperava e que
não amava nem queria.
Raciocinei rápido, parei de chorar. Paulo estava
sendo bom comigo, ele tinha razão, se descobrissem meu
estado, seria mandada embora e ninguém me desse
emprego, meus pais iriam sofrer muito e passariam fome
sem meu ordenado. A proposta era interessante, achei
certo ele ficar com a criança, afinal, era filho dele. Não
hesitei:
— Aceito Paulo.
No outro dia, falei para os outros empregados meus
amigos e as vizinhas que logo iria voltar para a casa de
meus pais. Logo que visitei meus pais disse a eles que
meus patrões iam viajar e que me convidaram para ir com
eles e que iria. Eles concordaram pensando que seria bom
para mim. Dias depois, despedi-me de todos e fui para a
fazenda do Sr. Caio. Na fazenda fui bem tratada, nada
fazia, podia usar tudo da casa e tudo o que desejava o Sr.
Caio providenciava. Continuei a receber meu ordenado, fui
visitar meus pais como sempre, até quase o sétimo mês.
Quando não deu mais para esconder a gravidez, despedi-
me deles escutando as muitas recomendações. Continuei
a mandar dinheiro, Paulo encaminhava-o aos meus pais
por intermédio dos donos da fazenda onde eles moravam,
e estes entregavam a eles.
Na fazenda, para evitar fofocas, o Sr. Caio disse a
todos que era sua prima, que viera à fazenda para ter o
filho, pois era solteira.
Nesta época, fiquei sabendo, como todos da
fazenda, que a esposa de Paulo também esperava um
filho.
Para mim, tudo estava bem, entusiasmei-me com a
vida que estava tendo, nunca descansara e desejei ter
sempre uma vida daquele modo. Não me preocupei nem
um pouco com o filho que esperava, nem indaguei a Paulo
o que ele ia fazer com ele. Seu destino era-me indiferente,
preocupava-me com o meu, e parecia, pensava, que minha
sorte mudara e seria rica logo que a criança nascesse.
Na fazenda, trabalhava um moço que logo me
chamou a atenção, seu nome era Jerônimo. Era alto,
bonito e olhava-me com insistência, conversava com ele
sempre que possível e logo começamos a namorar. Acabei
contando toda minha história para ele.
— Antônia, você fez muito bem, disse-me, afinal a
criança é também filha dele e ele que fique com ela. Você
é jovem, terá outros filhos e ficará rica tudo será mais fácil
para você, não precisará trabalhar mais.
Gentil, atencioso, acabei por me apaixonar e ele
dizia amar-me também. Fizemos planos. Logo após o
nascimento da criança, iríamos embora e casaríamos.
Passei a sonhar com o que ele me dizia e há contar os
dias para irmos embora. Escutava feliz, ele dizer:
— Antônia, seremos felizes, esquecerá tudo isso,
seremos marido e mulher, ninguém irá nos separar.
Uma parteira da região atendeu-me, a criança
nasceu sem problemas, não a vi, nem fiquei sabendo se
era menino ou menina.
Três dias após o parto, falei ao Sr. Caio que
desejava ir embora, ele então me deu o dinheiro
combinado. Não vira mais Paulo nem mais me interessei
por ele, contente com o dinheiro, despedi-me de todos
dizendo que ia voltar para casa.
O Sr. Caio preocupou-se comigo, despediu-se de
mim me abraçando e falou-me, carinhosamente:
— Felicidade, menina, lembre-se de que nunca teve
esta criança, vá para longe, não volte e saiba aproveitar o
dinheiro que estou lhe dando.
Para que ninguém desconfiasse que fosse embora
com Jerônimo, tínhamos combinado de ele partir dias
antes e esperar-me na cidade. Parti contente da fazenda,
encontrei Jerônimo no local combinado e partimos juntos.
Estava feliz, não pensei mais na criança que tive e achava
certo o que fizera.
Fomos para uma cidade do interior. Viajamos de
ônibus fazendo muitos planos.
— Antônia, você não se arrependerá, seremos
felizes, essa cidade despertou-me a curiosidade de tanto
ouvir um amigo falar dela, disse que é bonita, graciosa,
gostei do nome, lá viveremos.
A viagem foi demorada, chegamos, ficamos em um
hotel por uma semana, encantava-me com tudo. Alugamos
uma casa pequena, bonitinha, mobiliamos e vivemos
felizes por uns meses. Não deixei de mandar dinheiro para
meus pais, todo mês, junto com uma carta remetia a
quantia costumeira. Dizia sempre nas missivas que estava
feliz e que logo voltaria. Meus pais não sabiam ler nem
escrever, uma vizinha lia as cartas para eles e escrevia
para mim, falando deles, estavam adoentados e saudosos,
mas alegravam-se por eu estar bem e feliz, abençoavam-
me.
Jerônimo continuava gentil comigo, e amei-o
realmente, porém, ele não trabalhava e parecia não querer
trabalhar mais. Fiquei grávida novamente.
— Este vai ser diferente, disse.
Comecei a lembrar a Jerônimo que prometera casar
comigo. Ao tocar no assunto, ele desconversava, se
esquivava desculpando. Passou então a ir com freqüência
num bar perto de casa. O dinheiro que o Sr. Caio me dera
minguava rápido e comecei a preocupar-me.
— Jerônimo, pedi, vamos nos casar e ir para a casa
de meus pais, lá arrumará emprego e nosso filho nascerá
junto de seus avós.
— Está certo, vamos, porém, vamos esperar um
pouco mais. Estava no sexto mês de gravidez, um dia ao
acordar não encontrei Jerônimo, achei um bilhete que ele
deixou. Era frio, lacônico, despedia-se. Abandonava-me e
levava todo meu dinheiro.
Desesperei, levei dias para acreditar, amava-o muito.
Como poderia ele fazer isto comigo, pensava, vivíamos
bem, não brigávamos! Esperançosa em saber dele fui ao
bar em que ele costumava ir e lá tive a notícia de que
Jerônimo fora embora com uma mulher e que pareciam
muito apaixonados. Chorei muito, outras preocupações
vieram, contas, muitas contas para pagar. Há três meses
ele não pagava o aluguel nem as prestações dos móveis.
Vieram buscar alguns móveis e fui despejada da casa, o
que restou vendi e comprei alimentos.
Não escrevi mais aos meus pais e, os quais, na
última carta que recebi, indagavam aflita a falta de
notícias. Não tive coragem de contar a verdade nem de
escrever sem mandar dinheiro, sabendo que era tão
importante para a sobrevivência deles.
Ao ser despejada, fiquei sem nada, sem lugar para
morar. Desesperada, passei a andar pelas ruas pedindo
emprego, envergonha recebia alguns alimentos de
pessoas bondosas, ninguém que empregar uma
desconhecida, grávida e de aparência estranha, pois não
me cuidei mais e chorava muito. Ao cair da noite,
atormentava-me, dormia ao relento, nos jardins, nas
escadas das casas. Um mês e meio passei assim, um dia
parei na frente de um hospital, estava no oitavo mês de
gravidez, estava cansada, abatida, fiquei olhando o
movimento, abobalhada. Uma irmã de caridade, servidora
do hospital, vendo-me teve dó, convidou-me para entrar e
indagou, com piedade:
Filha, que faz pelas ruas? Quando terá o nenê?
Com dificuldade, sentindo muita vergonha, abaixei a
cabeça e disse:
— Sou sozinha no mundo, meu marido foi embora
com outra mulher. Não tendo dinheiro para pagar o
aluguel, fui despejada, não tenho onde morar. Não consigo
emprego. Quem emprega uma mulher grávida? Irmã, não
sei o que fazer, estou tão confusa, sinto tanta fraqueza...
— Acalme-se, filha, vou arrumar um lugar para você
ficar, até a criança nascer, vem comigo.
Senti-me aliviada, um lugar para ficar era tudo o que
mais queria. Peguei na mão daquela bondosa irmã e a
beijei. Ela me fez tomar banho, deu-me roupas limpas e
colocou-me num leito de enfermaria. Logo, alimentada e
descansada, comecei a pensar nos acontecimentos de
minha vida e senti raiva de tudo e de todos, até de meus
pais por serem tão pobres e doentes. Senti rancor até das
pessoas que ali tinham me abrigado.
"Elas não passaram pelo que passei, é fácil ser
gentil quando se é feliz, têm tudo, lar e pessoas que as
protegem, resmungava baixinho para não ser ouvida,
quando observava as enfermeiras e as freiras."
Passei também a sentir ódio de Paulo que me
seduzira e raiva do filho que trazia no ventre. Achando que
era culpa da gravidez não conseguir arrumar emprego
como também de Jerônimo ter ido embora.
Passei a odiar com furor Jerônimo e a mulher com
quem partira.
Fazia dez dias que estava no hospital, quando
comecei a passar mal e logo em seguida a ter hemorragia.
O médico foi chamado e após ligeiro exame mandou que
me levassem para a sala de cirurgia.
Na maca, nada mais vi ou ouvi. Acordei devagar, a
sensação que tive foi que acordava de um sono profundo,
tudo me era confuso. Pessoas bondosas falavam comigo,
não conseguia entendê-las, diziam que devia amar e não
odiar devia orar. O fato, amigo Antônio Carlos, é que
desencarnei e me julguei na carne. E o que os socorristas
diziam-me não interessava, não queria amar, queria
continuar odiando. Não estava mais grávida, compreendi
que a criança devia ter nascido e não me interessei em
saber dela. Não quis ficar no ficar no hospital, as pessoas
me chateavam, escondi-me e como fugitiva, deixei a
Maternidade.
Vaguei pelas ruas, até que me lembrei de Jerônimo,
fui atrás dele. Sem entender o que ocorria levada pelo
pensamento de ódio, achei-o. Estava com uma moça
bonita, trabalhando num bar, acerquei-me dele, fazendo
com que tivesse ódio de minha rival e, em pouco tempo,
passaram a brigar e logo se separaram. Jerônimo não
ficava só, brigava com uma, arrumava outra em seguida.
Fui me cansando, sentia às vezes dores de parto,
sangramento e constantemente frio, um frio horrível que
nada me esquentava. Concluí que não valia à pena odiar
Jerônimo e não quis ficar mais perto dele, para mim, traía-
me sempre.
Anos tinham se passado desde meu desencarne,
comecei a pensar em Deus, nas histórias que minha mãe
me contava sobre Jesus. Entendi que, se os odiava e os
culpava de minha desgraça, eu era e fora a maior culpada.
Agira sempre como irresponsável e senti remorso.
Trabalhadores do Bem me socorreram quando, com
sinceridade, pedi perdão a Deus, reconhecendo meus
erros e não mais culpando os outros nem os odiando. Fui
levada às enfermarias da Colônia, aonde vim, a saber,
que, devido à minha fraqueza não resisti e desencarnei ao
ter a criança.
Fui recuperando-me aos poucos, sentindo-me
melhor, recebi a visita de meus pais, senti enorme alegria
ao vê-los, mas ao mesmo tempo, fiquei envergonhada. Os
dois, com imenso carinho, abraçaram-me e emocionados
choramos juntos.
— Perdão, papai, perdão mamãe, se soubessem o
que fiz...
— Antônia, filha querida, sabemos de tudo que fez,
falou mamãe, segurando minhas mãos, perdoamos você,
filha. Quando vagava, oramos tanto por você. Nunca
perdemos a esperança de conduzi-la a Deus, esperamos
ansiosos que entendesse e voltasse ao Pai. Para nós,
você foi boa filha.
— Papai, mamãe, que aconteceu com vocês? Como
viveram sem o dinheiro que mandava?
— Sofremos muito. Sem o dinheiro que você
mandava, passamos fome. Seu pai preocupado pela falta
de notícias piorou e não conseguiu mais levantar do leito.
Pior, porém, filha, foi ficar sem notícias suas, esperando
carta, até mesmo você aparecer em casa. Preocupamo-
nos muito, choramos tanto. Acreditávamos em você e não
conseguíamos entender o que a teria levado a não dar
notícias. Pedro, meu sobrinho, com pena de nós, foi à
casa de seus patrões, Sr. Caio e D. Ivone, que foram
gentis. Disseram não saber de você, que se despediu
dizendo que voltaria para casa. Pedro fez mais, indagou de
outros empregados, vizinhos e descobriu que você não
viajara com seus patrões, partira dizendo que voltava para
casa. Pelas cartas que recebíamos tinha um endereço,
mas a cidade era longe demais para ir atrás de você,
deixando seu pai tão doente. Mesmo para Pedro, não era
fácil, pobres não tínhamos dinheiro e ele precisava
trabalhar. Pedro teve uma idéia, escreveu para a polícia da
cidade explicando o problema, dando todos os seus dados
e pedindo se possível, localizá-la ou que nos desse
notícias. A resposta veio, dizendo que realmente naquele
endereço morava esta pessoa, mas, que se mudara e
ninguém soubera para onde.
Apiedado, o dono da fazenda levou-nos para um
asilo. Despedi-me dos vizinhos recomendando para que
nos avisassem se tivessem notícias suas. Tínhamos
esperanças de revê-la, a saudade era grande e a angústia
de não ter notícias fazia-nos chorar amargamente.
Seu pai viveu só três meses no asilo e desencarnou.
Lá, fomos bem tratados, tínhamos médicos e remédios.
Vivi sozinha com minhas recordações e, como pude, ajudei
a cuidar de pessoas doentes. Quando completava três
anos que lá estava, fui libertada da carne, encontrei seu
pai e entendi logo que partira da Terra. Levada a uma
Colônia recuperei-me logo dos muitos sofrimentos, soube
então que meus dois filhos estavam encarnados e bem,
preocupava-me com você. Seu pai contou-me que
também, estava desencarnada e que sofria. Tudo fizemos
por ajudá-la.
Chorei em seus braços, arrependi-me sinceramente,
entendi que era amada por eles e que também os amava.
— Filha, falou carinhosamente meu pai, esqueça e
recomece aproveite para crescer em espírito pelo trabalho
e renovação.
Recuperada, pedi para ajudar nas enfermarias que
me acolheram e, como sabe, lá estou servindo até hoje.
Só sentir remorso não basta, resolvi construir e o
trabalho é bênção divina, meus pais orgulhavam-se de
mim, agora estão em estudo em esferas próprias. Tudo
caminhando bem comecei a pensar nos meus filhos. Não
sabia sequer seus sexos e se estavam encarnados.
"Que aconteceu a eles?" indagava-me sempre.
Pedi aos meus orientadores permissão para vir a
Terra vê-los.
Foi-me dado um mês de licença e parti esperançosa.
Procurei a antiga residência de meus ex-patrões,
não os encontrei nem a Paulo. Anos haviam se passado e
muitas coisa mudaram. Pedindo informações, achei-os.
Reconheci Paulo de imediato, um pouco mais velho e
sério. Revi Ofélia, tão diferente e sofrida e vi seus filhos.
Reconheci Caio, ou melhor, pelo amor mãe, compreendi
que era ele meu filho e amei-o muito.
Chorei de alegria ao vê-lo forte,amado,bom e feliz.
Auscultando os pensamentos de Paulo, soube que Ofélia
não estivera grávida junto comigo e que meu filho fora
deixado na porta de sua casa por seu próprio pai, Sr. Caio,
e que o criaram como filho legítimo. Entendi que Caio era
um presente que Deus me dera e que recusara.
— E o meu outro filho? - quis saber.
Ansiei por obter do outro filho que tivera ao
desencarnar. Minhas lembranças iam até ser conduzida à
sala cirúrgica e da hemorragia. Fui ao hospital onde
desencarnei, com a ajuda dos trabalhadores espirituais
que ali prestavam auxilio, vim, a saber, que não foi
possível conter a hemorragia no meu debilitado corpo sem
vontade de viver, mas que tive uma menina e que a
criança fora adotada. Minha busca foi paciente, pois o
casal que adotara não estava mais na cidade, não
desanimei, colhendo informações, encontrei-a. Foi grande
minha alegria e tive uma agradável surpresa. Minha filha e
meu filho residiam na mesma cidade e eram vizinhos e
amigos e que se davam muito bem.
Fiquei tranqüila e feliz, minha filha também era
amada, feliz, um encanto. Chama-se Maria Aparecida,
tratada por todos de Cidinha, é filha única, registrada como
legitima e ninguém, tal como Caio, sabe que são adotivos,
só os pais, é claro.
Cidinha é parecida comigo, o mesmo tom de cabelo,
rosto miúdo, magra, parece, ao vê-la, que vejo a mim na
distante adolescência.
Agradecida a Deus por vê-los bem e felizes, voltei ao
trabalho com verdadeira vontade de ser útil.
De tempo a tempo, tenho permissão de visitá-los e,
tal foi minha surpresa nesta visita que vi Caio e Cidinha
namorando, pensando em unir-se pelo matrimônio e com a
aprovação de todos os familiares.






IV - OFÉLIA, FELIZ



A casa, escura e silenciosa, demonstrava que todos
os seus moradores dormiam. Entramos. Fomos ao quarto
de Ofélia que ainda se achava acordada, orava com fé,
seus dedos deslizavam no seu já gasto rosário, esperando
adormecer para o devido descanso físico.
— Ofélia, dorme pouco, explicou-me Antônia.
Acerquei-me dela, dei-lhe um passe calmante que foi
bem recebido, logo adormeceu. Seu Espírito desligou
parcialmente do corpo, levantou-se devagar e seguiu para
a sala de estar, acompanhamo-la.
— Ofélia! - disse delicadamente Antônia.
Ela virou-se, olhou-nos analisando-nos:
— Quem está aí? Como entraram em minha casa?
— Somos amigos, continuou calmamente Antônia,
viemos conversar com você.
Ofélia sentou-se no sofá, sentamos também, olhou-
nos desconfiada, Antônia continuou a falar!
— Ofélia, minha querida, é minha benfeitora, sempre
tão bondosa. Recebeu a carta de suas irmãs, não seja
injusta com Rosa ela nunca a traiu, não é ela o que pensa
e...
— Quem me fala assim? Quem é você?
— Ofélia, continuou minha amiga, procure saber
onde Rosa esteve nos meses de abril a julho. Procure!
Rosa é inocente!
— Por que me diz isto? Como sabe? Não a conheço.
— Sabemos que Caio é adotivo, mas não é filho de
sua irmã Rosa. Sou eu a mãe dele, Caio é meu filho.
Ao ouvir Antônia pronunciar o nome de Caio, Ofélia
agitou-se, tinha medo da verdade, não queria encontrar
com a mãe de Caio, não queria perdê-lo como filho nem
repartir seu amor. Quando Antônia disse: "meu filho" ela
levantou-se rápido. Seu corpo era inválido, mas não seu
perispírito liberto do corpo pelo sono. Nem sempre este
fato ocorre. Há defeitos corporais acompanhados pelo
perispírito também defeituoso, por falta de compreensão e
resignação. Muitos deficientes, libertos pelo Sono,
continuam deficientes e muitos continuam até mesmo após
libertos pela morte física.
Ofélia olhou bem para Antônia e disse com firmeza!
— Mãe dele? Nunca! Mãe sou eu que o criou que
cuido dele! Que veio fazer aqui após tanto tempo? Mãe
dele? Não creio. Veio tomá-lo de mim? Não quero que
fique aqui, vá, por favor, embora. Caio é meu!
— Concordo, respondeu Antônia, Caio é seu. Quem
mais teria direito a ele que você? Ele é seu! Não quero
tomá-lo. Sou grata a você por amá-lo e por ter cuidado
dele. Digo-lhe que sou a mãe dele, gerei-o, e não Rosa.
Quero impedir que você, minha benfeitora, cometa uma
injustiça com sua irmã. Sou a mãe carnal dele.
Ofélia fez um gesto de quem não queria escutar
mais, sentiu medo e voltou rápido ao corpo e Antônia
repetiu-lhe mais uma vez:
— Rosa é inocente!
Ficamos na sala e veio ter conosco, logo em
seguida, Caio desligado do corpo pelo sono, andava
distraído. Viu-nos, parou e olhou-nos desconfiado e
indagou:
— Quem são vocês? Que fazem aqui em minha
casa?
— Amigos, respondi, viemos para conversar, quer,
por favor, dar-nos atenção por alguns instantes?
— Hum... Não os conheço.
Antônia aproximou-se dele, emocionada:
— Caio meu filho! Como você é bonito! Lindo! Você
é feliz?
— Sim, sou muito feliz, sorriu só que não estou
entendendo. Que papo estranho!
— Amo você! Sou sua mãe e de Cidinha também.
São irmãos e não devem se casar. Sou sua mãe...
Antônia abriu os braços e tentou abraçar o filho, este
se afastou, riu alto, balançou a cabeça e saiu da sala.
— Cada uma! - exclamou.
Antônia olhou-me, triste.
— Desculpa-me, Antônio Carlos, acho que me
precipitei. Pensei que ele se atiraria nos meus braços ao
saber que era sua mãe. Tive esperança de que me
aceitaria. Não acreditou, não sabe e até achou graça.
Antônia Caio não sabe que é adotivo, acredita
realmente que é filho de Ofélia, Sente-se filho dela. Temos
conosco, Antônia, a idéia de que se sabe tudo, quando
desligado do corpo físico, e que se tem muitos
conhecimentos quando o corpo dorme e semi-liberto
conhece as circunstâncias em que está envolvido e
porquê de estar sofrendo. Assim é, para os espíritos mais
esclarecidos e compreensivos, estes têm conhecimentos
que o cérebro físico desconhece. Recordam o passado.
Os maduros por si mesmo o fazem, com o conhecimento
mais amplo, tudo lhes é visto, sentido com clareza.
Para a maioria não é assim, o esquecimento do
passado também para seu perispírito que quase sempre
tem os mesmos conhecimentos do corpo. Pela bondade de
Deus, ao encarnar, esquecemos o passado para um
recomeço, mesmo desligado pelo sono ou pelo
desencarne, o perispírito continua sem lembrar e, para
fazê-lo, necessita de uma ajuda especializada.
— É verdade, Antônio Carlos, já faz tempo que
desencarnei e não lembrei meu passado. Sei que vivi
muitas existências, mas não as recordo. Também, ao ter o
corpo morto, nem soube, agi como se estivesse
encarnada.
— Isto é comum. Tanto que ateus, são ateus libertos
pelo sono e desencarnados, até que lhes provêm o
contrário. Que lhes mostrem que continuam vivos após a
morte do corpo. Para muitos que não estão preparados,
recordar a vivência de outras existências seria adoecer
espiritual e fisicamente. Tantas doenças mentais, que
levam tantas pessoas a sanatórios, são recordações
forçadas por obsessores vingativos ou recordações
prematuras que desequilibram o cérebro físico, passando
o enfermo a viver presente e o passado. Para muitos,
recordar o passado reencarnatório, seria absorver
alimentos sólidos em tenra idade... E mesmo de muitos
acontecimentos que envolvem a atual encarnação, pode-
se não ter conhecimento, como no caso de Caio. Sem
ninguém contar ele não pode adivinhar e ignora. Isto pode
ocorrer até após o desencarne, se não procurar saber.
— Caio não sabe!
— Não, ele não sabe. Caio é feliz, amado, nunca foi
discriminado. Talvez, se fosse, se sofresse, iria querer
saber a causa. Como não há o porquê de Caio duvidar,
adoção nunca lhe passou pela mente, ele ama aos seus e
é amado. Ao ouvi-la, achou graça como se ouvisse uma
piada. Precipitou-se, amiga, ao dizer que era sua mãe.
— E agora?
— Não se aflija, aguardaremos amanhã. Talvez Caio
não recorde de nada, se o fizer, pensará que teve um
sonho engraçado.
Pela manhã, ao fazerem o desjejum, Caio disse
rindo:
— Que sonho engraçado tive esta noite! Sonhei com
um estranho casal, vestidos como antigamente. A mulher
quis abraçar-me e disse para que não me casasse com
Cidinha porque ela era minha irmã.
Acabou a narrativa com uma gargalhada e foi imitado
por todos. Ofélia forçou o riso, sentiu algo estranho, vagas
recordações de nossa conversa, tentou lembrar de seu
sonho que parecia igual ao de Caio.
Logo, todos saíram apressados, ela ficou sozinha,
empurrou a cadeira para a sala de estar.
— Que sonho estranho esse de Caio. Parece que
sonhei com o mesmo casal! Esforçou-se por recordar.
Disseram alguma coisa. Que será? Ah, sim! Era sobre
Rosa.
Pôs-se a orar, a resignação e a grande fé de Ofélia
enchiam a sala de bons fluidos. Antônia aproximou-se dela
e Ofélia pôs-se em guarda, desconcentrando-se.
— Deixe-a, Antônia, seu Espírito sente as
inquietações de mãe, eu falo com ela.
Aproximei, trocamos fluidos de simpatia, disse-lhe
docemente.
— Irmã querida, não seja injusta com suas irmãs de
carne. Reconcilie com elas, agora que tem oportunidade.
Por que você não indaga para esclarecer suas dúvidas?
Por que não procura saber onde Rosa esteve nestes
meses que nem aqui esteve nem com Zélia?
— Tenho medo, responde-me em pensamento,
medo...
Não, filha, não receie, continuei, lembra-se de Rosa?
Sempre meiga e bondosa. Quando Paulo a escolheu, não
a ofendeu, não lhe disse nada de desagradável.
— É verdade, não comentou nada comigo.
— Rosa é boa irmã, foi ótima filha, cuidou do pai com
tanto carinho e sacrifício. Pense Ofélia, seria Rosa capaz
de uma infame traição? Se tivesse errado por amor, teria
coragem de abandonar o filho? Crê realmente que teria?
Rosa não abandonaria um filho, ela é forte, maternal e
corajosa. Por que ela o faria? Ela não fez. Rosa não
abandonou ninguém. Esclareça este assunto. Pergunte!
Vamos, coragem! Não continue nesta incerteza.
Pergunte...
Minha voz era recebida por Ofélia como uma
intuição.
— Telefone, continuei telefone, fale com uma delas,
procure saber de tudo, antes de tomar uma resolução.
— Vou telefonar! Disse Ofélia alto.
Rumou rápido com a cadeira de rodas para seu
quarto, tirou de uma gaveta um caderninho de anotações.
— Aqui está o número do telefone da vizinha delas.
Será que devo? Jesus ajuda-me, que devo fazer?
— Telefone, Ofélia! - insisti. - Telefone!
Ofélia, trêmula pegou o telefone, discou, esperou
ansiosa. Logo uma voz desconhecida se fez ouvir.
Ofélia cumprimentou a senhora que atendeu,
explicou quem era e pediu para que lhe chamasse Zélia.
Enquanto esperava, Ofélia lembrou que há muito
tempo as irmãs mandaram o telefone da vizinha por carta,
para que ela telefonasse em caso de necessidade.
— Ofélia! E você? Falou do outro lado uma voz
ofegante, demonstrando que viera correndo.
— Zélia? Como está?
— Bem, estamos bem. E você? E todos aí?
— Estamos bem, Zélia, não se afobe, telefonei só
porque estou com saudade e com vontade de saber de
vocês.
— Oh! Ainda bem! Nunca telefonou, assustei.
Recebeu nossa carta?
— Não, não recebi...
Calaram por uns instantes, Ofélia perdia a coragem
de indagar, voltei a incentivá-la.
— Vamos, filha, pergunte, acabe com este martírio.
Pergunte!
— Zélia, estava pensando. Logo após papai ter
falecido, Rosa foi morar com você. Saiu ela daqui no mês
de abril e só foi ter ai no mês de julho, onde ela passou
estes meses?
— Ofélia, parece saudosa mesmo. Por que lembrar
disto agora? Faz tanto tempo! Mas, não é segredo, meu
bem. Você realmente não sabe?
— Não, envergonhada pelo tom de censura da irmã,
disse baixinho. Não sei.
— Papai contraiu tuberculose nos últimos meses de
vida. Rosa cuidou dele, ficando também doente. Fraca,
cansada com tantos trabalhos e preocupações, adoeceu
necessitando de hospitalização. No hospital daí tiveram
pena dela e arrumaram para que se tratasse em Campos
do Jordão. Rosa ficou lá estes meses, na enfermaria, e
quando recebeu alta veio para cá e por meses ainda
continuou com o tratamento.
— Ela não me disse nada! - não conteve o susto.
— Acho que não queria atrapalhá-la ou preocupá-la,
sabe como é nossa Rosa.
Ofélia tremia, lágrimas começaram a correr pelas
faces pálidas.
— Onde está Rosa agora?
— Trabalhando de faxineira.
— Mando um abraço apertado a ela e Outro a você.
Liguei só para saber de vocês. Respondo logo a carta.
Tchau.
— Tchau, abraços a todos.
Ofélia desligou o telefone e chorou sentida.
— Esperemos Antônia, disse. Deixemos nossa Ofélia
desabafar.
— Ela sofre.
— Também se sente aliviada e poderá reparar a
indiferença com que tratava as irmãs.
Ofélia chorou por uns quinze minutos, sentindo-se
melhor, orou novamente, sua oração comoveu-nos.
"Obrigado, Jesus, obrigado meu Mestre e Amigo, por
ter me inspirado. Senti tanta vontade de falar com elas,
uma necessidade de perguntar... Sei que foi o Senhor
quem me ajudou. As forças divinas guiaram-me. Perdoa-
me, meu Deus, perdoa-me Pai. Como fui injusta, como fui!"
Ofélia estava aliviada, sorriu, falou baixinho:
"Ai, que bom! Como estou contente! Rosa não é mãe
de Caio. Que idiota tenho sido! Rosa nunca abandonaria
um filho se o tivesse tido. É minha irmã, pessoa de fibra.
Nem se fosse para passar fome, não abandonaria um filho.
Ela é inocente! Paulo também! Tudo foi coincidência. Caio
foi realmente abandonado na nossa porta. A única culpada
fui eu. Pensei mal do meu esposo e de minha irmã! De
minha irmã bondosa a quem deveria abençoar sempre.
Doente meses por ter cuidado do nosso pai! Que vergonha
sinto agora. Não vou contar a ninguém, não contei antes,
não falarei agora. Sofri anos por uma mentira, mentira que
erradamente deduzi, sem tentar saber a verdade. Como
errei! Se tivesse ao duvidar, indagado, não teria sido tão
injusta. Deduzi errado, sofri e fiz sofrer."
Pegou a carta e a beijou.
"Ficaremos unidas, farei de meu lar o lar para elas. E
você, Rosa, querida, não fará mais faxinas."
Seu semblante mudou, as faces coraram mais,
alegre foi para sua varanda e pôs-se a fazer planos.
"Mandarei a elas dinheiro, quero que venham de
avião. Acomodá-las-ei no apartamento de hóspedes, tem
ele duas camas e banheiro, quero fazer tudo para agradá-
las e pedirei que morem aqui para sempre."
Esperou ansiosa que todos chegassem, na hora do
almoço, com todos sentados à mesa, Ofélia disse
contente:
Recebi uma carta de minhas irmãs contando que,
após a morte de Odair, estão passando por sérias
dificuldades e pedem-me para ajudá-las, desejam voltar
para cá. Acho que elas poderiam morar conosco. Quero a
opinião de vocês. Que acha Paulo?
Este é o motivo de tanto contentamento? Notícias
das irmãs. Ofélia o que decidir está bom para mim. Conte
comigo para o que quiser.
— Vivemos tão separadas, tão longe. O serviço de
Odair fazia com que ficassem lá, mas, agora; depois não
estão bem. Obrigado, Paulo. Sempre tão bom comigo!
Você é um bom marido.
Pegou a mão dele, olhando-o com carinho, falou com
emoção, lembrando que tinha sido injusta com ele por
tantos anos. Os adolescentes, não acostumados com
cenas de carinho entre os pais, começaram a rir. Ofélia
retirou a mão envergonhada.
— E vocês, o que me dizem?
— Alegro-me, disse Carla, gosto muito delas.
Quando fui lá, trataram-me tão bem! Depois elas farão
companhia à senhora, que não ficará mais tão sozinha.
— Concordo, pronunciou Caio, sou o único que não
as conheço. Temos uma família bem pequena, nem avós,
nem primos, só duas tias.
— Acho uma boa! - exclama rindo Sérgio, gosto
delas, sabendo que vão estar aqui, quando nos
ausentarmos, é uma tranqüilidade. É bem melhor para a
senhora, mamãe, ficar com suas irmãs do que só com
empregados.
— Está decidido, pedirei para que venham,
entusiasmou Ofélia, hoje mesmo, tomarei as providências.
— Posso ajudá-la, mamãe? - indagou Caio.
— Sim, quero que passe uma ordem de pagamento a
elas para que liquidem seus débitos e comprem
passagens de avião.
— Faço isto agora, antes de ir para o escritório.
Ofélia sorria feliz, estava tão contente, que todos se
sentiram bem e felizes.
Todos saíram e Caio levou uma boa quantia para
depositar em nome das tias. Ofélia foi ao escritório e pôs-
se a escrever para as irmãs:
"Minhas queridas Zélia e Rosa":
Devo-lhes desculpas, por ser tão relapsa e não ter
entendido que poderiam estar passando por
necessidades. Acho-me realmente em condições de ajudá-
las. Estarão fazendo-me um favor, tê-las por companhia.
Confesso que sempre acalentei a esperança de tê-las
conosco, porém, por burrice, sim, burrice, pensei que
quisessem permanecer ai.
Estou tão agradecida e feliz por quererem voltar para
cá e por terem pensado em mim. Minha casa, nossa casa,
é de vocês, não queremos que seja por pouco tempo,
quero-as aqui em definitivo. Estamos há tanto separadas...
As crianças muito se alegraram com a notícia de
suas vindas. Conhecerão Caio e verão que filho
maravilhoso ele é.
Mando-lhes o dinheiro...
Venham o mais rápido possível, estou ansiosa por
tê-las conosco e por abraçá-las. Suas acomodações já
estão preparadas e todos a esperá-las.
"Beijos, de sua irmã Ofélia."
"Talvez estranhem, pensou, nunca escrevi a elas
assim. Que importa! Pela primeira vez escrevo de coração
e espero que sintam a minha sinceridade."
Tocou um sininho, logo uma empregada, moça
simpática, veio até ela.
— Magda, por favor, largue o que está fazendo e vá
colocar esta carta no Correio para mim. Cuidado, é
importante! É para minhas irmãs, depois chame Marta,
quero fazer umas modificações e arrumações no quarto de
hóspedes para recebê-las.
A moça sorriu, admirando a alegria da patroa, correu
a obedecer à ordem.
— Graças! - exclamou Antônia, — Ofélia está feliz.
— Ela se sente reconciliada com as irmãs, de quem
ela mesma se distanciou. Agindo com justiça, sente-se
tranqüila. Tê-las aqui, será muito bom para ela. Ofélia tem
o hábito de orar e o faz com fé e o Senhor realiza qualquer
desejo sincero de um devoto. Ele presta atenção às
preces, atende a cada um que Dele se aproxime com
confiança. Nós, Antônia, deveríamos sempre ter fé na
amorosa bondade de Deus. Resolvemos, amiga, uma
questão, mas o problema continua inteiro. Ofélia não
poderá nos ajudar mais. Estudaremos os passos a seguir.
Aguardemos a noite e conhecerei Cidinha e família.


















V – SONHOS



À noite, acompanhamos Caio que saíra para visitar
Cidinha, morava perto, numa casa grande e bonita.
Cidinha era encantadora, graciosa, notamos ao vê-la
que era muito feliz.
Sorriu alegre ao ver o namorado. Observando os
dois juntos, notavam-se algumas semelhanças,
principalmente a cor dos cabelos e a boca.
Conversaram animados, Caio, recordando o sonho,
disse a Cidinha.
— Cidinha, esta noite tive um sonho engraçado.
Sonhei com um casal estranho e eles me disseram para
não me casar com você, pois éramos irmãos.
Riram.
— Sabe, Caio, já ouvi de muitas pessoas que somos
parecidos fisicamente, como irmãos.
— Eu também já ouvi isto.
— Eis aí o motivo do sonho. Tudo bobagem.
Deixamos o casal e entramos na casa. Helena mãe
adotiva de Cidinha fazia crochê distraidamente. Marcelo o
pai, lia o jornal. Examinamo-los, procurando ver qual dos
dois poderia nos ajudar.
— Helena, disse Antônia, não gosta nem que se
toque no assunto da adoção, nem pensa no fato. Para ela,
foi como se tivesse gerado Cidinha. Pessoa boa vive para
o lar, para os dois, esposo e filha.
— Se é assim, Helena não nos ajudará, irá nos
repelir se tocarmos no assunto da adoção, nunca pensa
que Cidinha teve outros pais.
— Marcelo, - continuou Antônia a apresentar os
membros da família, — é bom, caridoso, faz inúmeros
benefícios, ajudando creches, orfanatos. É estimado e
querido como patrão, inteligente e amoroso, ama a esposa
e a filha com muito carinho.
— Ele é sensível, acho que podemos contar com
Sua ajuda.
Faremos Paulo e Marcelo descobrirem a verdade.
— Como?
— Com paciência tentaremos intuí-los.
Voltamos à casa de Ofélia e ficamos no jardim.
— Dará certo? Corresponderão aos nossos apelos?
- indagou Antônia.
— Vamos tentar. Toda pessoa é livre para aceitar
sugestões, ou não. Intuições recebem a cada instante,
boas ou más, sejam de amigos ou inimigos,
desencarnados ou encarnados. Pensamentos têm forma,
criam imagens e flutuam no espaço, podemos emitir, ou
receber se estivermos na mesma receptividade. O
pensamento é uma grande força, como a eletricidade. A
mente humana é uma centelha da consciência onipotente
de Deus. Vamos cara Antônia, usar desta força para intuí-
los.
— Pensamentos, são trocas de fluidos e energia,
Antônio Carlos? Podemos então captar pensamentos
alheios?
— Sim, principalmente, os afins. Mas, podemos
aceitá-los ou repeli-los. Devemos ter cautela e paciência,
adoção não é assunto agradável a nenhum deles.
Procuraremos intuí-los como também conversar com eles,
quando libertos do corpo pelo sono.
— E se procederem como Caio?
— Insistiremos. Para os sonhos, Antônia, há muitas
explicações. Podem ser recordações do cérebro físico dos
acontecimentos diários, histórias vistas e ouvidas. Podem
ser recordações parciais de outras existências. Podem ser
projeções de outras mentes.
— Como assim?
— Alguém pode pensar e projetar fatos e situações e
o sonhante captar. Os bons usam projeções para instruir,
ajudar, esclarecer e equilibrar pessoas. Os maus, para
maltratar com pesadelos, para planejar crimes e maldades.
Os vingadores, para que suas vitimas lembrem seus
crimes e sofram com suas recordações.
— Devem os encarnados ser cautelosos ao
desvendar sonhos, não é mesmo?
— Sim, a Doutrina Espírita recomenda que orem
sempre antes de dormir pedindo a proteção dos bons
espíritos para que possam ter contato com pessoas ou
espíritos bons. Para se saber com certeza se teve contato
com bons, observa-se a sensação deixada, se é boa ou
ruim. Doamos o que temos fluidos não enganam maus não
têm bons fluidos.
— Existe muita brincadeira nestes contatos?
— Espíritos brincalhões gostam de usar dos sonhos
para pregar peças e dar idéias erradas, atiçar ciúme,
passar medo, só para se divertir. Sonhos lembrados que
dizem algo, devem ser cautelosamente estudados e
analisados e não se deve crer em todos. Quanto aos
repetidos, podem ser avisos, alertas, mas também podem
ser de vingança de obsessores. Sempre é bom procurar
entender os sonhos e, se forem bons, se trazem bons
conselhos, deve-se aceitá-los. Às vezes, são bons, mas
não agradam por ser contrários ao gosto do momento. Se,
analisados, não forem bons deve-se orar mais, vibrar
melhor, querer bons por companhia e ser digno deles.
— Nós vamos conversar com eles quando
desligados pelo sono e eles recordarão como sonhos, não
é?
— O perispírito deixando o corpo adormecido virá
conversar conosco. Este parcial desligamento é normal e
muitos saem a passeio, para ir a encontros, a lugares bons
e ruins, para palestrar com outras pessoas, boas ou más,
conforme afins ou, se necessário, para alguma finalidade.
São muitos os trabalhos que encarnados fazem libertos do
corpo pelo sono, muitos aprendem e prestam ajudas e
socorros. Também quantos crimes são planejados,
quantas vinganças alimentadas por imprudentes. E
encontros podem ser de encarnados e desencarnados,
como também entre encarnados, onde se trocam idéias de
amizade ou de desavenças.
— Pena que a maioria não se recorda ou pouco
fazem.
— O cérebro físico desconhecendo os fatos que se
passam, traduz o que lhe é mais parecido, fazendo às
vezes algumas confusões. Veja como Caio recordou.
Julgou-nos um casal estranho, por não nos conhecer, por
estarmos vestidos fora da moda do momento, eu,
simplesmente de branco, você com este vestido voga de
vinte anos atrás. Muitos dos sonhos, o cérebro físico não
registra, porém uma sensação fica. Sábio o conselho ao
dizerem a uma pessoa preocupada ou na peleja de
solucionar um problema, para que vá dormir. Uma noite
bem dormida sempre ajuda, pela manhã a solução
aparece. É que se pode ser ajudado na solução por
amigos desencarnados, ou ele mesmo, desligado do corpo
volta a estudá-lo e acaba por achar a resposta para suas
preocupações. Quantos pela manhã não ficam
maravilhados com a resposta achada.
— Mas, os maus podem também interferir?
— Certamente. Já vi muitas vezes obsessores
alimentar pessoas idéias de suicídio, de crime e
desavenças, como também dar idéia errada para solução
de problemas. Mas, todos nós temos o livre-arbítrio e
inteligência para aceitar, ou não, o que nos é transmitido.
— Lembro que quando era pequena, numa ocasião,
sonhava muito com minha avó, ora ela estava me batendo,
mordendo, por vez ria ou chorava. Os vizinhos diziam que
ficara impressionada com sua morte e minha mãe levou-
me para benzer e estes sonhos, para mim pesadelos,
acabaram.
— É muito comum encarnados ao ter o corpo físico
morto, não esclarecidos, continuarem agindo, sentindo
como encarnados. Normalmente continuam em seus lares
com aqueles que amam, os mais sensíveis sentem mais
esta presença e estes desencarnados acabam
prejudicando sem querer, sem entender, seus entes
queridos. Pode ter sido sua avó que ao desencarnar ficou
em seu lar e passou a vampirizá-la. E você, desligada do
corpo pelo sono, conversava com ela, certamente
perturbada, coisa comum nestes casos, que ria, chorava
podendo até mesmo ter ralhado com você. Sem entender o
fato, recordava estes encontros como pesadelos. Ao
benzer ou tomar passes, estes desencarnados muitas
vezes são encaminhados ou socorridos findando o
problema. Pode ter sido também que, você Antônia, tenha
ficado impressionada e o cérebro físico recordava sempre.
Ao benzer-se, uma força física maior que a sua deu-lhe a
ordem para esquecer estes sonhos e você obedeceu.
— Benzimentos, passes, que tesouros de dádivas
que tantos riem e ridicularizam!
— É verdade. Felizes dos que desta força se utilizam
e dão valor, e bem-aventurados os que com humildade
distribuem. Acho que todos estão adormecidos. Vamos,
Antônia, falar com Paulo.
Ajudamos Paulo a desprender-se da matéria. Um
tanto indeciso, assustado, olhou-nos.
— Amigo Paulo, necessitamos falar-lhe, disse.
— Não os conheço! Quem são?
— Já disse amigos.
Antônia aproximou-se mais, ficando bem na sua
frente, cuidadosamente minha amiga plasmou-se mais
parecida com Cidinha.
— É você, Cidinha? - indagou Paulo. Como está
bonita! Que veio fazer aqui à noite?
— Não sou Cidinha. Não se lembra? No passado... A
mãe de Caio, sou Antônia.
— Ora... Não pode ser Antônia, ela deve ter morrido.
— Morre a carne, vive-se em espírito, somos eternos
e não acabamos.
— Não quero falar disso, que os mortos descansem
em paz.
— Sou Antônia!
— Hum... Que quer? Veio pedir dinheiro?
Chantagem? Nem pense em fazer escândalo.
— Calma Paulo. Não quero dinheiro, nem vim fazer
escândalo.
— Quer o menino? Nem morta, ouviu? Você não é
Antônia. Não pode ser. Como sabe deste fato? Não lhe
dou meu filho. Chamo a polícia. Você quer mais dinheiro?
Coloco-a na cadeia.
Paulo ficou nervoso, ameaçou, falava sem parar não
deixando Antônia falar mais nada, quis agredi-la. Tive que
intervir e colocá-lo no corpo bruscamente. Paulo acordou
assustado, molhado de suor, deu graças por ter acordado.
— Meu Deus, que pesadelo! Alguém queria meu filho
e queria dinheiro! Que horror!
Dei-lhe um passe para que acalmasse e acabou
adormecendo novamente.
— Não desanime Antônia. Paulo sempre temeu sua
volta e que o chantageasse. Tem medo que pudesse
querer o filho e do escândalo se o segredo viesse a ser
descoberto. Deixemos que descanse. Vamos ao Marcelo.
Encontramos Marcelo na sala de estar de sua casa,
a conversar com uma senhora desencarnada. A senhora
cumprimentou-nos, gentilmente, apresentamo-nos e
explicamos o porquê de nossa intromissão.
— Senhora, por um motivo justo, aqui estamos para
conversar com Marcelo.
— Sou a sogra dele, Etelvina, posso ajudá-los?
— Sim. Sou a mãe de Cidinha, disse Antônia,
gostaria de que nos ajudasse.
— Você é a mulher que desencarnou ao tê-la? Veio
vê-la?
— Ao saber que ela é tão amada e feliz, venho vê-la
só em visitas rápidas, mas o motivo que nos traz aqui é
outro, mais sério, escuta-nos.
Antônia contou-lhe tudo, D. Etelvina escutou com
atenção. Marcelo continuou sentado, lia um livro
descuidado de nossa presença.
— Meu Deus! - exclama D. Etelvina, — com tantos
jovens, Cidinha foi se interessar logo pelo irmão!
— Eles não sabem disso, mas precisamos separá-
los e logo.
— Entendo, orarei para que consigam. Falarei com
Marcelo, ele é boa pessoa, amo-o como filho,
conversamos sempre que os visito. Gosta muito de ler e o
tenho encontrado fora do corpo físico, lendo ou estudando.
"Marcelo! - voltou D. Etelvina a ele, que largou o livro
e olhou-a com carinho. Estes são pessoas amigas que
querem falar-lhe. É um assunto sério, deve prestar atenção
e fazer o que recomendam, pela felicidade de Cidinha."
"Algo de ruim se passa com ela?", indagou
preocupado.
"Não, Cidinha não corre nenhum perigo. Mas, um
problema tem que ser solucionado, estes amigos aqui
estão para ajudar, são Antônio Carlos e Antônia."
Marcelo cumprimentou-nos. D. Etelvina retirou-se e
eu disse-lhe calmamente, transmitindo confiança:
— Marcelo, quero ser seu amigo, vim de longe para
conversar com você.
— É médico?
— Sim, sou, porém não é este o motivo, estamos a
par de seus segredo, sobre a adoção de sua filha.
Marcelo observou-me, notamos que gostou de mim,
mas não lhe agradou o tema da conversa, adoção não lhe
era assunto interessante.
— É por ser médico que sabe?
Não respondi a indagação, tentei ser agradável.
— Marcelo, Paulo é seu amigo, não é? Seus filhos
namoram. Não seria conveniente contar-lhe tudo sobre
Cidinha?
— Contar? Por quê? Prometemos guardar segredo e
segredo que se conta não o é mais. Que ia interessar isto
a Paulo?
— Em amigos se confia. Se não contar, estará
traindo sua Confiança. Paulo é honesto e guardará este
segredo como seu.
— Que tem Paulo a ver com o caso? Quem casará
com ela é Caio. Conheço o garoto, não irá se importar com
este fato.
— Concordo. Nem ele nem Paulo se importarão; são
pessoas de bem, longe de ser preconceituosas. Caio é
jovem, não se interessará pelo assunto. E a Paulo que
deve contar. Ele é seu amigo e pai de Caio, será sogro de
sua filha, segundo pai, por que não conta a ele?
— Vou pensar.
Calamos por instantes, Marcelo retomou a palavra:
— Não quero ser indelicado, D. Etelvina pediu-me
para escutá-los, mas que têm vocês com isto?
Antônia ia falar, adiantei, minha amiga entendeu-me.
Não queria espantar Marcelo, deveríamos ter cautela. Se
soubesse a verdade naquele momento, talvez achasse
graça.
— Nada tem em especial. Trabalhamos ajudando as
pessoas. Esconder um fato desses, pode ter no futuro
graves conseqüências. Se descobrirem mais tarde?
Acusarão você de ter ocultado algo tão importante. Quem
lhe garante que este fato não venha a ser descoberto?
Ocultando, não está traindo a confiança de seu amigo?
— Só quatro pessoas sabiam meus sogros, que já
faleceram Helena e eu, nem a meus pais contamos.
Ninguém mais sabe.
— Sabemos disso.
São desencarnados, respondeu-nos, demonstrando
ser esclarecido.
— O pessoal do hospital também sabe, ponderei.
— Será? Já se passou tanto tempo.
— Pense Marcelo. É melhor contar.
Despedimo-nos, Marcelo voltou ao corpo pensativo e
preocupado.
No outro dia, ao despertar, não lembrou da nossa
conversa. Uma sensação de que deveria contar algo a
alguém, inquietou-o, sentiu-se preocupado.
Por várias noites conversamos com eles. Marcelo
aceitava-nos bem, relutava em revelar o segredo tão bem
guardado. Achava que nada se modificaria e temia que
viessem todos, a saber, especialmente a filha que nunca
desconfiara. Após nossa terceira conversa, Marcelo
acordado, recordou que conversara com alguém sobre a
adoção da filha, os fatos da adoção vieram como
recordação e pôs-se a cismar se deveria contar a Paulo.
Não sabia explicar o porquê, mas estava com vontade de
contar ao amigo.
Acompanhamo-lo e intuímo-lo sempre com o pedido:
"Conta a verdade ao Paulo!".
Na quarta vez, Marcelo conversara conosco
educadamente, mas demonstrou estar cansado de minha
insistência. Não revelara-nos o fato de Cidinha e Caio
serem irmãos. Argumentávamos sempre que não devia
esconder a verdade ao amigo.
Paulo não queria mais nos ver, repelia-nos.
Adormecido, com seu perispírito no corpo, projetamos para
ele cenas de seu passado, recordando seu romance com
Antônia.
Via tudo, chorava arrependido por ter traído a
esposa e por ter seduzido uma jovem caipira.
Como Marcelo, após três vezes, lembrou ao acordar,
vagamente do sonho e de Antônia.
No quarto dia, fizemos a comparação ao acordar,
vagamente do sonho e de Antônia.
No quinto dia, fizemos a comparação de Antônia com
Cidinha, firmando bem a semelhança.
Paulo acordou preocupadíssimo. Lembrou
nitidamente de como era Antônia, orou por ela, temia muito
os mortos. A última notícia que tivera dela é que tinha
falecido dois ou três anos após Caio ter nascido.
Indagou a si mesmo o dia todo:
— Com que Antônia é parecida?
Não deixamos esquecer, repetindo-lhe sempre:
"Paulo! A Semelhança? Quem se parece com Antônia?"
Ficou pensativo o dia todo. Por várias vezes,
passava pela sua mente todas as mulheres que conhecia.
— Será Caio? Não, ele tinha pouca semelhança com
ela. É uma mulher? Quem? Pensou nos funcionários do
escritório, das fábricas e nada. Não, não é não acho. Mas
sei que conheço alguém parecido. Meu Deus! Será que
Antônia não morreu? Será que a vi por ai? Não...
Bobagens, se Antônia fosse viva teria minha idade. Penso
numa jovem...
Chegara o sábado, o dia da festa de Cidinha e Carla
estava toda animada. Mas os irmãos não queriam lavá-la.
Ofélia interferiu e pediu ao esposo:
— Paulo leva Carla á festa, por favor. Os meninos
querem voltar mais tarde. Você encontrará amigos lá,
Marcelo e Helena ficarão felizes por tê-lo como companhia.
Carla quer tanto ir...
— Está bem, Ofélia, leva-a.
Carla pulou no pescoço do pai, beijou-o agradecida.
Acompanhamo-los, a festa estava animada, cheia de
jovens amigos. Paulo sentou-se em companhia de outros
pais que como ele acompanhavam seus filhos e
conversaram animados. Cidinha e Caio dançavam felizes.
Chamei a atenção de Paulo para o casal e ele passou a
observá-los.
— Vê como Cidinha é bonita! - exclamei várias vezes
a ele. Tentei passar a imagem de Antônia e consegui.
Paulo descobriu que se parecia com a mãe de Caio.
Paulo ficou branco, procurou se controlar, pedindo
licença aos amigos, foi para o jardim.
— Meu Deus! Achei a pessoa que se parece com
Antônia. É incrível! Sempre achei Cidinha com a feição
parecida com alguém que conhecia. Mas com Antônia?
Por que com ela? A semelhança é impressionante! E como
se parecem! Por que esta semelhança? Não tem nada a
ver uma com a outra, coincidência?!
Paulo ficou nervoso com a descoberta, controlou-se,
procurou acalmar-se, voltou à sala, tentando esquecer o
assunto.
Marcelo estava orgulhoso, gostava de reunir seus
amigos e os da filha em sua casa. Achava que o melhor
lugar para a filha se divertir era na sua casa e Helena
adorava preparar festa servir de anfitriã. Festas eram
comuns em seu lar. Observava a cada instante a filha com
Caio e sorria satisfeito, pensava distraído.
"Caio é o genro que pedi a Deus. Ele tomará conta
com honestidade e bondade de tudo o que é nosso. Confio
no garoto. Paulo planeja deixar Caio em seu lugar, mas ele
tem Sérgio. Caio ocupará o meu lugar. Logo que se
casem, convidarei Caio com muitas vantagens para
trabalhar comigo e ficar no meu lugar. Cidinha não saberá
cuidar das indústrias, ela não gosta de negócios nem
quero. Caio é meu herdeiro perfeito."
A festa acabou Paulo, aliviado, levou Carla para
casa.
Deitou-se logo, porém, não conseguia dormir, sua
descoberta tirara seu sono. Não conseguia entender o
porquê da semelhança, sentia uma sensação estranha que
o incomodava.
— Deixemo-lo, Antônia. É bom que Paulo pense e
preocupe-se com sua descoberta. Para nós é útil que
tenha esta semelhança bem viva em sua mente. Vamos ao
Marcelo pedir que conte seu segredo ao Paulo, aí tudo se
desvendará.
— Se não conseguirmos fazer com que Marcelo
conte?
— Estamos tentando, Marcelo deverá fazer a
escolha.
— É triste pensar que namoram e que são irmãos.
— Devemos separá-los e logo, se não acabam
casando, por isso devemos forçar um pouco Marcelo.
— E se os fizéssemos brigar?
— Como? Com intrigas? Seria impossível fazer que
deixem de se amar. Depois uma simples briga, não os
separaria. Se Marcelo negar-se realmente a contar,
voltaremos ao Paulo e pediremos que investigue a
semelhança que o intriga.
Voltamos ao lar de Helena, a família colocava
objetos nos lugares, ajeitando a confusão deixada pela
festa, Marcelo conversava com Cidinha.
— Filha, você ama mesmo Caio? Pensam em se
casar?
— Sim, papai, amo-o. Caio é tão bom, parece em
temperamento com o senhor. Pensamos em casar logo.
Não está de acordo? Acha-me muito jovem? - indagou a
mocinha rindo.
— Sabe que gosto muito de Caio. Fico contente e
sinto que serão felizes. Você é jovem, mas se tem que
casar que seja com Caio, ele também é o meu escolhido
para genro.
Não demoraram muito, foram dormir, Marcelo logo
adormeceu, desprendeu-se do corpo e ao nos ver, dirigiu-
se a nós descontente.
— Vocês de novo?
— Marcelo, observa bem Antônia, não é ela parecida
com alguém? - indaguei.
— Com Cidinha. Notei isso desde a primeira vez. É a
mãe dela, não é?
— Sou, respondeu minha amiga.
— Que tem isso? - indaga Marcelo, morreu ao dar à
luz, não foi? Só pode estar feliz em ver a filha bem e não
tem motivos para se intrometer em minha casa.
Desculpem-me, mas perco a paciência.
— Antônia é agradecida, - disse-lhe, totalmente
reconhecida a você e a Helena. Se não fosse justo o
motivo, não o incomodaríamos. Antônia é mãe de outra
pessoa também, teve outro filho. E este outro filho é Caio.
— Foi por D. Etelvina que os escuto, mas, brincam
comigo...
— Não brincamos. Tem conhecimentos para
distinguir desencarnados que brincam e os sérios. Antônia
está muito preocupada. Teve dois filhos, dados a pessoas
diferentes e que se encontram e namoram. Como vocês
guardam em segredo a adoção de Cidinha, Paulo e Ofélia
guardam a de Caio. Por isso, Marcelo, estamos insistindo
com você para que conte a verdade ao Paulo, e este
confirmará...
Marcelo cambaleou, analisou-nos, permanecemos
sérios.
— É muito triste! Não posso acreditar! Minha menina
vai sofrer, todos comentarão Helena sofrerá, eu sofrerei...
— Não dramatize Marcelo, - disse-lhe, primeiramente
tenta acordado desvendar este mistério, depois, pense
num modo de suavizar, nem todos precisam saber a
verdade.
— Não me lembro acordado do que me narram. Que
devo fazer?
— Concentre-se de que necessita com urgência
contar a Paulo que Cidinha é adotiva.
Marcelo repetiu várias vezes à frase que disse e
voltou ao corpo, acordando. Sentou-se no leito, assustado,
olhou as horas, levantou-se e foi tomar água, sentou-se na
sala às escuras e pôs-se a pensar no que recordara do
sonho. Balbuciou baixinho:
— Contar ao Paulo? Um segredo tão nosso... Nem
pensava neste assunto, porque essa vontade agora?
Sinto-me preocupado nem sei por que, estou com vontade
de falar com Paulo. Ai! Deus! Sinto que algo de grave irá
acontecer se não falar da adoção com Paulo.
Aproximei-me dele, tentei transmitir meus
pensamentos a ele e mentalmente conversamos.
"Marcelo, atende-me, conte ao Paulo e terá sossego.
Ele é seu amigo, pessoa em quem se pode confiar,
guardará segredo."
"Se Helena descobre que falei a alguém sobre a
adoção, ela me mata...".
"Não fale nada a ela, este assunto deverá ficar só
entre vocês dois."
"Por que me sinto tão inquieto? Sou o pai de
Cidinha, criei-a, criamo-la e amamo-la tanto. Que
importância terá este fato a alguém? Meu sonho é ver
Cidinha e Caio casados. E se Paulo fizer objeções?
Hum!... Bobagens, conheço meu amigo. Acho que vou
contar."
"Conte Marcelo, conte."
Marcelo voltou ao quarto e logo adormeceu.
Antônia e eu nos retiramos. Mas no domingo por
muitas vezes lembramos Marcelo de que deveria contar
seu segredo a Paulo. Ora concordava, ora achava que não
devia. Passou o dia preocupado, calado e pensativo, logo
a esposa percebeu e indagou:
— Que tem Marcelo? Que sente?
— Nada, nada, estou bem, - respondeu, olhando
para a filha indagou:
— Cidinha, se tivesse um grande segredo, contaria
ao seu melhor amigo?
Cidinha pensou por instantes, esforcei-me por intuí-
la. Ela era mimada, porém inteligente, sensível e bondosa,
respondeu mais ou menos como queríamos:
— Acho que sim. Amigos são para repartir segredos.
Ainda mais se este segredo me desse preocupações.
Duas cabeças pensam melhor que uma.
A filha afastou-se e Marcelo continuou a pensar:
"Acho que vou mesmo contar ao Paulo. Tudo isto
começa enervar-me. Para que não digam mais tarde que
enganei um amigo, conto agora, ele guardará segredo."
Mesmo ele tendo tomado a decisão, lembramo-lo
mais vezes ainda. Ao deitar-se, estava exausto,
adormeceu logo. Veio triste se encontrar conosco.
— Marcelo, - disse, abraçando-o, — coragem, conte
tudo ao Paulo logo, não adie, vá ao encontro de Paulo
amanhã cedo, Caio não está no escritório, encontrará seu
amigo sozinho.
— Obrigado, amigo, irei amanhã cedo.
Quanto a Paulo, passou o domingo a Cismar,
disfarçou sua preocupação para que ninguém percebesse.
Ficou a pensar, fingindo ler, na semelhança entre Antônia,
à mãe de Caio, e Cidinha, sua futura nora. Ofélia e os
adolescentes estavam eufóricos, no dia seguinte à tarde
Zélia e Rosa chegariam e só falavam nas tias e nos
preparativos da casa. Para o pai de Caio, o dia foi longo e
ao deitar-se demorou a dormir.










VI - O SEGREDO



Marcelo acordou na segunda-feira cedo e saiu
rápido que não desse tempo de a esposa perceber seu
nervosismo. Nunca escondera nada da companheira. Não
queria mentir a ela nem falar de suas preocupações. Foi
para seu escritório. Para que não desistisse de ir ao
encontro e falar com Paulo, ficamos ao seu lado,
recordando-lhe do que deveria fazer. Estava agitado, não
conseguiu trabalhar, pensava só na adoção. Eram nove
horas rumou para o escritório do amigo.
"Se tenho que fazer, é melhor que faça logo, falou
alto, estou agoniado não consigo esquecer este assunto."
Paulo recebeu-o contente, após um abraço, Marcelo
pediu:
— Paulo, venho conversar com você, o assunto é
sério. Gostaria de que não fôssemos interrompidos.
— Alguma preocupação, Marcelo?
— Julgará por si mesmo.
Paulo deu ordem para a secretária para não ser
interrompido. Sentiu-se inquieto, recordando suas próprias
preocupações. Antônia e eu ficamos de lado, observando-
os, escutando a conversa e prontos para interferir se
necessário para melhor esclarecimento, porém não foi
necessário.
— Estamos a sós, Marcelo, dispõe de mim, disse
Paulo diante do silêncio do amigo.
— É meu amigo, não é, Paulo?
— Sou, sabe que sou, e tenho o enorme prazer de
sê-lo. Gosto muito de você, mas está preocupando-me,
seja o que for, conte-me logo.
— Dá-me sua palavra de que não falará sobre o que
direi ninguém. Guardará segredo do que ouvir? Não que
duvide você, é importante para eu ter sua palavra.
— Tem minha palavra, guardarei segredo.
Marcelo suspirou, sentou-se na cadeira ao lado de
Paulo.
— É melhor para que entenda começar do início.
Quando casei, foi naquele tempo em que estivemos
distanciados, foi na mesma época em que você também se
casou. Estava apaixonado e feliz, após uns meses vi
ameaçada minha felicidade, não conseguíamos ter filhos,
Helena não ficava grávida.
Marcelo fez uma pausa; Paulo que achara exagero a
preocupação de Marcelo, pois achara que este viera falar
de negócios, endireitou-se na cadeira, sentiu um estranho
pressentimento, prestou mais atenção ao amigo, que
continuou.
— Médicos foram consultados e nada, três anos se
passaram e Helena parecia obcecada, só pensava em ter
filhos. Aí, ficou grávida para nossa alegria. Mas, antes de
completar o quinto mês de gestação, a gravidez foi
interrompida e perdemos o nenê. Foi um período difícil
para nós, começamos a brigar, a nos ofender. Porém
Helena logo após engravidou novamente. Estava nervosa
e temia perder a criança, eu fazia tudo o que podia para
acalmá-la, mas também sentia medo. Sentia que se não
desse certo, íamos acabar nos separando. Meus sogros
naquela época moravam no interior de São Paulo. Meu
sogro tinha um emprego que o fazia mudar muito de
cidade. Helena no quarto mês de gravidez quis ficar com a
mãe. O médico dela achou boa a idéia, porque lá era uma
cidade calma, de clima bom. Concordei também, porque
minha sogra, pessoa boníssima, tinha o dom de acalmar a
filha. Assim, Helena foi para a casa dos pais, voltaria
assim que a criança nascesse.
Helena gostou da cidade, tudo corria bem, ia vê-la
de quinze em quinze dias.
Estando Helena no sexto mês de gravidez, e bem,
nossas esperanças aumentaram. Estando na época de vê-
la, fui feliz, porém, ao ver meus sogros esperando-me,
senti um pressentimento triste. Contaram-me então que há
três dias nosso bebê tinha nascido morto. Que Helena
estava fisicamente bem, mas, moralmente abalada e
tristíssima. Fora ela quem não deixou que me avisassem.
Helena sofreu muito, não conversou comigo, não
conversava com ninguém, chorei de pena ao vê-la tão
abatida e desarrumada. Agradei-a, parecia nem notar-me.
Ficava parada, com o olhar longe, pensativa, recusava-se
a se alimentar. Só dormia com um calmante receitado pelo
médico. No dia seguinte cedo, minha sogra veio acordar-
me, cuidadosamente para não acordar a filha, conduziu-me
à sala e disse baixinho:
"Marcelo, tem no hospital uma orfãzinha. Nasceu
esta noite, é branca, perfeita, miudinha, a mãe indigente,
morreu ao tê-la. Vão doá-la."
"Dona Etelvina! Acho que é uma solução. Vamos
buscá-la."
Assim, em dez minutos, estávamos meus sogros e
eu no hospital. Quis primeiramente conversar com o
médico que atendera Helena. Por sorte, encontramo-lo e
ele nos atendeu logo. Explicou-nos o facultativo que
Helena não poderia ser mãe, não engravidaria mais.
— Ah! Paulo! Como me lembro de tudo, o tempo
passou, lembranças ficaram.
Marcelo deu um suspiro triste e continuou: — A
madre encarregada da direção do hospital escutou nosso
pedido e nos disse:
"A mãe do nenê não estava doente, só fraca, sofreu
muito e a criança não tinha pai ou, segundo ela, tinha, mas
abandonou-a. Contou-me que não tinha ninguém, que era
sozinha. Morreu e a menina é um amor." ·.
"Dá-nos a criança, por favor, pedi. Helena
enlouquece, não poderá mais ter filhos. A menina será
nossa, cuidaremos dela com todo amor."
"Acredito que sim, falou-nos a madre. Conheci sua
esposa, entendo seu sofrimento, sei de sua vontade de ser
mãe. Gostei de vocês, sei que são pessoas boas. Sempre
procuro resolver os problemas facilitando-os. Aqui temos
uma orfãzinha necessitada de carinho e pais, e vocês
querendo um filho. Certo seria ir ao juizado, fazer a
adoção, mas, tudo isso demora e nesta espera a menina
ficaria órfã. Vou dar a criança a vocês, porque sinto que é
como filha que a recebem. Preencham esta ficha com o
nome Sra. D. Etelvina e esposo, que residem nesta cidade
e podem levá-la."
— Duas horas depois, voltei com a menina nos
braços, entrei no quarto. Helena estava parada, olhando
para o nada. Mostrei a menina a ela.
"A mãe dela morreu Helena, como nosso nenê, ela
estava sozinha, não tem ninguém. A madre nos deu, é
nossa agora. Quer vê-la?"
Helena sentou-se na cama, olhou a criança, pegou-
a, desenrolou-a.
— É linda, - exclamou. Ela é nossa? Verdade? Meu
Deus, que bom! Agora sou mãe, não é Marcelo?
— A menina pôs-se a chorar. Como um milagre,
Helena levantou-se e foi cuidar dela, embalou-a e ela
parou de chorar. Deu-lhe banho, colocou as roupinhas que
tinha preparado para enxoval do nosso bebê, alimentou-a.
Helena, em poucos instantes, tornou-se alegre, alimentou-
se, voltou à vida.
Chorei de emoção, amava Helena e passei a amar a
menina como minha.
Helena, agora calma e arrumada, disse-me.
"Marcelo, fiz uma promessa a Nossa Senhora da
Aparecida, pedindo a ela um filho. É Deus que dá filhos às
pessoas, não é? Foi pela vontade de Deus que esta
menina veio até nós. Quero dar-lhe o nome, cumprindo
meu voto, de Maria Aparecida, você concorda?"
"Claro, Helena, será nossa Cidinha."
"Marcelo, sei que ela não é de nossa carne. Mas,
será como se fosse, não é? Se não contarmos a ninguém,
ninguém saberá. Todos, amigos e familiares, sabem que
estou grávida. Podemos dizer que Cidinha nasceu de sete
meses."
— Foi o que fizemos, alegremente, disse a todos,
que Cidinha nascera de sete meses. Um mês após, meus
Sogros trouxeram Helena e a menina. Ninguém duvidou,
Cidinha era miúda, mas forte, com imenso cuidado e
carinho de Helena, logo era um bebê robusto. Passamos a
viver em paz e harmonia, meus sogros mudaram de cidade
e nunca mais voltamos lá. Depois eles faleceram e
somente Helena e eu sabemos deste fato. E, se ela souber
que lhe contei, brigará comigo. Mas como Caio vai casar-
se com Cidinha, senti uma necessidade, uma aflição, para
contar-lhe tudo. Sei que não muda nada e...
Marcelo conservava a cabeça baixa enquanto
narrava, brincava com a chave de seu carro, levantou a
cabeça e olhou para Paulo, este escutava o amigo aflito,
suava, estava branco, olhava-o com espanto:
— Paulo! - exclamou Marcelo sentido. Que tem?
Abalou-se com meu segredo? Vai me dizer que isto
importa a você? Não irá querer mais o casamento dos
meninos? Eu...
Paulo começou a chorar, Marcelo assustou-se,
levantou-se, chegou mais perto do amigo, colocou a mão
em seu ombro.
— Puxa Paulo, como você é emotivo!
Rápido, Marcelo pegou um copo de água e trouxe
para Paulo, que tomou, esforçou para acalmar-se, após
uns minutos, disse:
— Marcelo, não sabe o que significou para mim,
ouvi-lo. Há tantos anos somos amigos, desde garotos,
houve uma época em que estivemos distanciados e nesse
tempo, tantas coisas aconteceram. Contou-me um
segredo, agradeço tudo me leva a crer que foi inspirado a
contar-me. Escuta-me agora, também tenho segredo, não
menor que o seu.
Paulo fez uma pausa, com voz lenta, começou a
falar:
— Como você sabe, sou filho único, meus pais
queriam ver-me casado jovem ainda, só que com a moça
que escolhessem. Apaixonei-me por Ofélia, moça de
família pobre, sem estudos, uma balconista, meus pais
foram contra. Sempre quis muito bem a eles, mas não abri
mão do que queria. Dei-lhes um tremendo desgosto
quando casei. Como você, tive problemas para ter filhos.
Ofélia não engravidava meus pais querendo netos,
cobrava-nos e começamos Ofélia e eu, a desentendermo-
nos. Não fui forte e honesto como você. Apesar de amar
minha esposa, cedi ao encanto de uma jovem empregada
de meus pais e ela engravidou. Levei um choque ao saber,
temi as conseqüências, mas como sempre fazia todas as
minhas dificuldades meu pai resolvia, daquela vez, embora
temeroso, recorri a ele. Meu pai ouviu-me, não ralhou
comigo, achou uma solução para meu alívio. Neto para ele
era meu filho, tanto fazia se viesse de minha esposa ou
amante. Ele pensou e arrumou tudo. Levou a moça para a
fazenda, onde foi tratada muito bem e lá teve a criança.
Como foi combinado, meu pai deu-lhe uma boa quantia em
dinheiro e ela partiu deixando o filho. No dia do
nascimento do menino, meu pai, à noite, trouxe-o para a
cidade, deixando-o na porta de minha casa. Eu sabia e
esperei-o ansioso. Tudo deu certo, Ofélia amou-o assim
que o viu, e nunca soube da verdade. Esta criança,
Marcelo, é Caio meu filho mais velho. Logo depois,
nasceram Sérgio e Carla.
— Que interessante! - riu Marcelo, cada um dos
garotos com um segredo. Contei-lhe o meu, hesitei, pensei
tanto, sofri na incerteza se deveria fazê-lo ou não. Você
contou-me o seu, guardaremos segredo e, não muda nada.
— Marcelo, sabe como se chamava a mãe de
Cidinha?
— Não.
— Acho amigo, penso que muitas coisas vão mudar.
Meu Deus! Tomara que esteja errado.
— Mudar? Como? Por quê?
— Escuta-me. A mãe de Caio partiu com um ex-
empregado da fazenda. Mais tarde, ficamos sabendo que
falecera numa cidade do interior de São Paulo. E, se não
estou enganado, é esta que citou, onde Cidinha nasceu.
Marcelo há tempo que acho Cidinha parecida com alguém.
E, por um sonho, descobri quem era. Sim, sonhei com a
mãe de Caio, e é com ela que Cidinha se parece. Esta
semelhança deixou-me preocupado e nervoso, sem
explicação. Calculando datas, Antônia, a mãe de Caio,
deve ter morrido na época em que Cidinha nasceu. Lembro
agora, que um primo de Antônia, descobriu que ela morreu
e não contou para os pais dela. Ficamos com dó, mas,
para meus pais e eu, foi um alívio, pois temíamos ser
chantageados.
— Que tenta dizer-me, Paulo! Semelhantes? Tem
certeza? São realmente parecidas?
— Sim, são. Sinto muito, Marcelo. Acontecimentos
do passado, que julgava para sempre enterrados, vêm à
tona. Nunca percebeu que Cidinha e Caio têm traços
parecidos? A cor dos cabelos, a boca, o jeito...
— Meu Deus! Seria cruel demais. Será que essa
Antônia é a mãe de Caio e de Cidinha? É isto que está lhe
ocorrendo?
— É, Marcelo. A semelhança intrigava-me, mas,
nunca pensei que Cidinha fosse adotiva, agora desconfio
que sejam irmãos.
— E se forem? Terão que se separar. Que faremos?
— O melhor é descobrir a verdade. Talvez não sejam
aí esqueceremos o assunto, como se esquece um
pesadelo. Se forem realmente irmãos...
Silenciaram. Cada qual voltou o pensamento para
seu filho, no sofrimento que teria.
— Estas desconfianças devem ficar entre nós,
Paulo. Até descobrirmos a verdade.
— Concordo. E se for verdadeiro, nós dois
resolveremos o que fazer, por hora, basta só nós dois
sabermos.
— O melhor é ir investigar na cidade onde Cidinha
nasceu e tentar obter dados de sua mãe. Vou até lá e
tentarei descobrir tudo.
— Se o nome da mulher que morreu for Antônia S.C.,
são irmãos.
— Que tristeza! Acho que vou logo.
— Estamos agoniados, Marcelo, melhor mesmo é
descobrir logo.
Abraçaram-se.
— Telefono a você, Paulo. Vou ainda esta semana.
Se Deus quiser, descobrirei tudo.
Marcelo foi para seu escritório aflito, a suspeita
agoniava-o mais ainda. Resolveu ir na quarta-feira bem
cedo, passou a trabalhar com furor, acertando o que tinha
de mais urgência. Durante o almoço, disse à esposa:
— Helena, vou a São Paulo na quarta, arrume minha
mala, devo ficar de dois a três dias, vou...
— Está bem, querido, vai a negócios.
Paulo ficou preocupadíssimo, não foi almoçar em
casa, desculpou-se e não encontrou com o filho. Caio não
viera trabalhar para esperar as tias.
— Que boa ocasião para elas virem, - exclamou,
com movimentação em casa não notarão minha
preocupação.
À tarde pediu para a secretária comprar flores e
levou-as para as cunhadas.
A casa de Ofélia estava animada, todos falavam
alegres.
Paulo chegou, abraçou as cunhadas e deu-lhes as
flores, dizendo que eram bem-vindas. Ofélia sorriu
contente com a gentileza do marido.
Zélia tinha o aspecto cansado e doentio. Paulo
observou Rosa, os anos, pensou ele, não a mudaram
muito, estava linda, meiga e tímida. Rosa, ao sentir-se
observada pelo antigo namorado corou por segundos e
seu coração bateu forte.
Acompanhamos o pensamento de Rosa: "Paulo
continua o mesmo, está muito bem. Como sofri por ele,
vendo-o vem à dúvida: será que realmente o esqueci? Não
posso amá-lo, Deus me ajudará, é marido de minha irmã,
recebeu-nos tão bem. Se não fosse por Zélia, não voltaria,
mas, como tratá-la? Ela está doente...".
— Paulo, - chamou Ofélia, despertando Rosa de
seus pensamentos, ajuda-me a convencer minhas irmãs,
quero que faça exames médicos, vão ao dentista e...
— E que comprem roupas novas e bonitas
intrometeu-se Carla alegre, eu as levarei ás lojas.
— Elas não querem, - finalizou Ofélia.
— Não queremos dar trabalho e... - disse Zélia.
— Aqui, senhoras, - disse Paulo, — Ofélia manda e é
obedecida. Ela tem razão, parece-me cansada Zélia, e se
negarem este favor a Carla, de lhes mostrar as lojas, a
menina tem um ataque. Todos riram. Por favor, cunhadas,
fiquem à vontade, nossa casa é também de vocês.
Esperamos que fiquem em definitivo conosco. Alegro-me
que estejam aqui e de ver Ofélia tão feliz.
Não prestaram mais atenção nele, sentiu-se aliviado
por isto. Procurou ser gentil e fingiu estar alegre. As irmãs
conversavam sem parar e os adolescentes queriam
participar saber do passado das tias.
Paulo sentia-se culpado. Se voltasse ao passado
não iria repetir o erro. Caio teria vindo como filho deles, era
só ter paciência. E não estaria agora com este problema
que o afligia. Agradar à esposa era uma necessidade,
amenizava um pouco o remorso que sentia.
Os dias na casa de Paulo foram de alegria e
animação; para ele, foram de agonia, esperando o
regresso de Marcelo.
















VII - A VERDADE



Tendo tudo preparado, Marcelo viajou na quarta-feira
de manhã; procurando acalmar-se, dirigiu com cautela.
Acalentava a esperança de confirmar o contrário das
suspeitas e que Caio e Cidinha nem sequer fossem
parentes.
Chegou às dez horas e procurou um hotel discreto e
simples; a cidade modificara, crescera e modernizara,
lembrando pouco da cidade de tempos atrás. No hotel,
aguardou no quarto a hora do almoço, as onze e trinta
minutos desceu ao refeitório, alimentou-se pouco e, logo
após, foi ao hospital.
Este também modificara fora aumentado e
embelezado. Na recepção, teve conhecimento de que as
Irmãs de Caridade trabalhavam ali como outrora. Pediu
para ser atendido pela Irmã Superiora.
Foi conduzido a uma pequena sala e convidado a
sentar-se e esperar, que a Irmã logo viria. Marcelo sentiu-
se mais nervoso ainda, seu coração batia forte.
Acompanhamos Antônia e eu, Marcelo passo a
passo. Ele estava com vontade de ir embora e não tentar
descobrir nada e deixar tudo como estava. Achava que
todas as suspeitas eram sem fundamento, parecendo-lhe
impossível uma coincidência tão grande, a de os garotos
serem irmãos.
Uma Irmã desencarnada veio cumprimentar-nos.
Após as apresentações Antônia explicou o porquê de
nossa visita, resumindo sua história.
"Nunca vi nada igual, disse-nos gentilmente. Temos
arquivos de longa data com óbitos, porém, não é sempre
que nossa laboriosa Irmã Superiora deixa estranhos vê-
los. Prometo ajudá-los."
Sorriu encantadoramente, tudo nela demonstrava
bondade e dedicação. Encarnada por cinqüenta e um
anos, serviu ao próximo como enfermeira. Ao ter o corpo
físico morto, após um período de descanso e aprendizado,
voltou ao hospital e serve em nome de Jesus a todos os
necessitados do corpo e espírito, sempre com amor e
carinho.
A Irmã Superiora entrou, cumprimentou gentilmente
Marcelo, que explicou desajeitado:
— Irmã, adotei uma criança neste hospital há
precisamente dezenove anos. Como surgiu um problema,
necessito saber o nome da mãe dela que faleceu no parto.
É possível?
— Não sei, tanto tempo.
— Por favor, Irmã, é importante.
Marcelo agitou-se, mudando de posição na cadeira,
pensou aflito: "Que faria se não fosse possível? Como ficar
na dúvida?!".
— Nossos arquivos estão no depósito e não sei se
poderemos achar o que quer. Estamos com falta de
pessoal e não posso dispor de ninguém para esta procura
que necessita de tempo.
— Eu tenho tempo e posso procurar. Por favor, não
quero incomodar, é só mostrar-me o lugar e dar sua
permissão.
— Não costumamos deixar estranhos entrar lá.
Senhor... Marcelo queira mostrar seus documentos.
— Oh, sim! Aqui estão.
A Irmã examinou-os e nossa amiga desencarnada
intuiu-a a nosso favor, entregou os documentos a Marcelo
e disse para nossa tranqüilidade:
— Tudo certo. Deve ser importante esta pesquisa
para o senhor, vou permitir. Pedirei a uma secretária para
mostrar-lhe o caminho.
Marcelo acompanhou uma mocinha, atravessaram o
hospital, chegando aos fundos, entraram num corredor
grande com algumas salas fechadas. Na última, a moça
abriu, acendeu a luz e explicou:
— É aqui, senhor. Por favor, não bagunce mais do
que já esta. Os papéis são empacotados pelo ano. Procure
a data marcada na etiqueta, abra-a e achará o que
necessita; após guarde-a com achou, certo? O senhor está
com sorte, a Irmã Superiora não deixa estranhos entrar
aqui. A maioria destes papéis vai logo para o fogo, porque
iremos precisar desta sala e não teremos onde guardá-los.
Agora vou deixá-lo, o senhor, por favor, não vá a outras
salas. Quando acabar, vá à recepção.
Saiu, Marcelo ficou só, a sala fechada tinha o ar
abafado cheirava pó.
"É melhor procurar logo, resmungou."
Tirando pacotes uns de cima dos outros, encontrou o
ano que procurava. Abriu o pacote, os papéis estavam
mais ou menos em ordem de datas. Separando-os
cuidadosamente, encontrou a ficha que era tão importante
para nós.
Marcelo leu emocionado:
"Antônia S.C. morreu de parto".
Atendida pelo médico...
"A menina órfã, branca, sadia, foi entregue pela Irmã
Maria J.O. para o casal residente nesta cidade: o Sr. e
Sra.."
Marcelo leu várias vezes, O nome de Antônia, a mãe
de Caio, ali estava. Nada deixava dúvidas. Data certa,
nomes dos sogros, a Irmã Maria. Sentou-se e chorou.
Acalmei-o e confortei-o.
"Marcelo seja forte! Acharão um modo de separá-los
sem causar muitos problemas. São jovens, esquecerão
fácil."
"Será um escândalo! - responde-me em pensamento.
Como agüentar os falatórios?"
"Marcelo pense em como resolver este problema
sem que este assunto venha a público."
Marcelo leu mais uma vez a ficha e cuidadosamente
pôs tudo no lugar. Apagou a luz, fechou a sala e foi para a
recepção, entregou a chave para a moça que o conduziu e
esta lhe perguntou alegre:
— Achou o que queria senhor?
— Sim, gostaria de agradecer à Irmã.
Foi conduzido novamente à sala em que estivera
antes. A mocinha disse para que aguardasse que a Irmã
estava ocupada, mas que viria em seguida.
Marcelo, enquanto aguardava, preencheu um
cheque com uma quantia razoável. A Irmã demorou; ao
chegar, pediu desculpas.
— Temos muito trabalho, o hospital está lotado.
— Irmã, agradeço de coração por ter permitido que
pesquisasse em seus arquivos. Se me permite, quero
deixar meu donativo aos seus pobres, que devem ser
muitos.
Agradeço-lhe, de fato são muitos os necessitados.
Nosso hospital, como tantos outros, atravessa uma crise
financeira e necessitamos de tudo. Sinto-o triste, Sr.
Marcelo, o que encontrou é desagradável?
— Infelizmente, sim. Ore por mim, Irmã, o que tenha
a fazer não será fácil.
Despediu-se da Irmã, saiu do hospital, sentou-se
num banco do Jardim na frente do prédio. Eram dezessete
horas, Marcelo estava desanimado e triste, resolveu
pernoitar na cidade e ir embora só no dia seguinte.
Vendo minha amiga Antônia preocupada, animei-a.
— Antônia, o mais difícil conseguimos, descobriram;
o resto será mais simples.
— Porém, não fácil. Como sentirão meus filhos?
Sofrerão? A errarmos, não pensamos que os erros nos
acompanham e um dia enfrentaremos seus frutos.
— Marcelo e Paulo são pessoas responsáveis e com
nossa ajuda, acharão um modo mais fácil de enfrentar a
situação.
Marcelo foi para o hotel, trancou-se em seu quarto e
ficou a pensar, tentando achar uma maneira de resolver a
situação, evitando maiores sofrimentos.
No dia seguinte, partiu cedo, fez uma viagem calma,
chegando, foi para casa, deixando para o outro dia sua
conversa com Paulo. Tentou aparentar calma não
deixando perceber no seu lar, sua preocupação. No outro
dia, em vez de ir para seu escritório, rumou para o do
amigo, chegando junto com ele. Paulo, logo que o viu, teve
a certeza de que Marcelo não trazia boa notícia.
Após se cumprimentarem, foram para a sala de
Paulo que recomendou para que não os perturbassem.
— Tudo confirmado! Tudo! São irmãos! - falou
Marcelo em desabafo e contou tudo em detalhes ao amigo.
— Que coisa, meu Deus! Como é possível dois
irmãos virem a namorar?
— Os garotos não sabem, nem desconfiam que são
adotivos! Paulo, quanto mais penso, mais acho que foi
Deus que me fez vir aqui e contar tudo a você, fiz sem
querer, porque julgava nunca fazê-lo a ninguém. Tenho até
arrepios, se não contasse... Bem, agora temos a
confirmação, só nós dois sabemos.
— Temos que pensar em separá-los e já.
— Poderíamos nós dois fingir que brigamos e exigir
que os dois se separem, faríamos com que nos
obedecessem.
— Acha mesmo que dá certo? Há tempos que
torcemos pelo namoro, todos sabem que fazemos gosto e
alegramos com a possível união e, de repente, ficamos
contra! Depois, conheço os jovens, não iriam nos
obedecer, só faríamos piorar a situação, namorariam
escondidos. E as nossas esposas? Certamente se aliariam
a eles contra nós. Depois, Marcelo, amigos há tanto
tempo, como explicar uma briga entre nós? Por que não
privarmos da nossa amizade agora mais fortalecida?
— Tem razão, Paulo, a idéia é ruim. Não devemos
fugir da verdade. Não se resolve um problema criando
outros. Só a verdade dará compreensão a uma separação.
— Contar tudo? Seria um escândalo!
— Se seria por meses a sociedade comentaria o fato
com maldade. Helena e Ofélia seriam as que mais
sofreriam, são tão sensíveis... E minha Cidinha, tão frágil e
mimada, tão orgulhosa dos pais, que fará? Tenho medo.
Paulo pensei muito, acho que nestas últimas horas é só o
que tenho feito. Não podemos expor nossos segredos
familiares ao público. Mesmo contando só para a família
são muitas as pessoas sabendo e pode acabar se
espalhando. Vivemos tão bem, você com seus pequenos
problemas, tem a família que o respeita e admira. Helena e
eu nos amamos e tudo o que temos é Cidinha. Como
reagirá esta inocentinha diante dos comentários? É
adotiva! Namorou o próprio irmão! Não, Paulo, não
podemos arriscar.
— Não exagera Marcelo? O assunto pode ficar só na
família.
— Como ter certeza? Acredito que, se Cidinha
souber disto, irá chorar muito e, conhecendo-a, irá contar
às amigas. Helena não me perdoaria por ter contado nosso
segredo. E tem Ofélia, como reagirá quando souber que foi
enganada e que Caio não foi abandonado, mas é fruto de
uma traição? Continuaria amando-o como filho? Ela já
sofreu tanto. Devemos pensar também em Sérgio e Carla,
dois adolescentes, sofreram muito vendo a mãe sofrer. E
como reagiriam eles com você, continuaria sendo o pai de
que tanto se orgulham?
— Por favor, Marcelo, pare! Que sugere?
— Contar somente ao Caio.
— Quê?!
— Paulo, Caio é responsável, bom e equilibrado.
Amo-o muito, quero-o como meu filho, sabe disto. Se
contarmos a ele, se você contar a ele, tenho a certeza de
que guardará segredo, terminará o namoro com Cidinha e
pronto.
— Será o sacrificado.
— Dos males, o menor. Em vez de todos sofrerem,
só ele passaria por momentos difíceis, depois ele é seu
filho, não é como Cidinha que nada tem de nós. Caio é
maduro, entenderá.
— Sofrerá Marcelo, meu menino sofrerá.
— Você poderá agradá-lo, poderá dar-lhe viagens,
carros, algo que ele deseja. Caio é um bom moço,
compreenderá. Que prefere Paulo, ele ou todos?
— Você tem razão. Separá-los, não conseguiremos.
Mentir não é solução, que mentira aceitariam? Não se
esconde a verdade por muito tempo. Contar a um deles é o
mais acertado. Revelar a Cidinha é como contar a todos.
Depois, Marcelo, não posso nem pensar em dar mais
sofrimentos a Ofélia, inocente naquela cadeira de rodas.
Resta-nos Caio...
— Fale com ele hoje mesmo. Não adie, perderá a
coragem. Força, amigo, faça o que tem que ser feito.
— Farei Marcelo, solução tomada tem que ser
executada. Falarei com ele hoje à tarde.
Despediram-se, Marcelo saiu e Paulo ficou triste,
nunca sentira tanto remorso. Pensar que por seu erro,
Caio, o seu menino sofreria. Como ele reagiria? Se ficasse
revoltado? Se não gostar mais dele?
"Meu Deus, ajuda-me! - exclamou alto."
E com sinceridade pôs-se a orar.
Paulo não foi almoçar, esperou o filho com
ansiedade. Caio chegou logo após as treze horas, recebeu
o recado de que o pai queria vê-lo, rumou para a sala dele.
— Oi, papai, tudo bem?
— Entra filho, fecha a porta, tranque-a, por favor.
— Algum problema?
— Escuta-me...
Paulo resolvera não fazer rodeios para contar, não
queria perder a coragem, antes deu ordens para não
serem incomodados. Olhou para Caio que estava
tranqüilo, pronto para ouvi-lo como sempre. Sentou-se em
sua frente.
— Marcelo esteve aqui na segunda-feira e contou-
me um segredo e autorizou-me a contar a você. Quero
filho, que guarde o que vai ouvir.
Caio concordou com a cabeça, jamais vira o pai tão
sério, este fato fez com que prestasse muita atenção nele,
sentiu que o assunto era realmente sério. Paulo contou a
parte mais fácil, tudo o que Marcelo lhe contara.
— Coitadinha da Cidinha! - comentou Caio -, ela não
pode saber disto, sofreria muito. Mas, isto não faz
diferença, não sei por que o Sr. Marcelo contou-lhe isto.
— Se fosse com você Caio, sofreria?
— Eu?! - Caio observou o pai estava nervoso, suava
e empalidecera. Estranhou a pergunta, conhecendo o pai,
entendera que a indagação não fora em vão. E perguntou
em voz baixa: — por quê?
— Perdoa-me, filho, sou um miserável, um bandido.
Somente eu que deveria sofrer só eu! O segredo não
termina aí. Tenho o meu.
Caio não ousou falar, arregalou os olhos e os fixou
no pai Paulo ia parar a narrativa, demos forças a ele, e
continuou. Contou desde a época em que namorava
Ofélia, da oposição dos pais, do envolvimento com
Antônia, do nascimento dele, da descoberta de Marcelo.
Falou sem parar, sem interromper e finalizou:
— Você compreende filho? São irmãos! Você e
Cidinha são irmãos. Caio! Filho! Por favor, fale comigo!
Caio nada disse, ficou parado olhando o pai, pela
sua mente martelava as palavras do pai: "São irmãos!"
sentiu vontade de chorar, mas as lágrimas não caíram.
Paulo, preocupado, sacudiu-o pelo braço.
— Caio filho, por favor! Xinga-me, eu mereço, mas,
não fique assim. Meu Deus! Caio!
— Por que conosco? - indagou e as lágrimas então
rolaram pelas faces, encostou a cabeça nos ombros do
pai, que amorosamente abraçou-o.
Paulo pensou: "Marcelo tem razão, Caio é especial.".
— Amo você, filho, perdoa-me. Quem poderá dizer-
nos o porquê disto tudo? Não sei responder-lhe. Este
sofrimento passará, Caio você esquecerá. Olhe, - disse
demonstrando alegria —, você fará uma viagem, Europa,
África, Oriente, quer? Distrairá e tudo isto logo será só a
sombra de um pedaço difícil. Nada deve fazer diferença.
Você é nosso, é meu, somos, Ofélia e eu, seus pais.
— Tudo bem, papai, estou bem, disse enxugando o
rosto e levantando-se, dispensa-me do trabalho?
— Tudo o que você quiser. Caio você não falará
nada a ninguém, não é? Escolhemos você para contar,
porque lhe temos confiança. Se todos viessem, a saber,
seria um escândalo, todos sofreriam e, como você disse
Cidinha nunca deverá saber. Sofre, enquanto só eu
deveria sofrer.
— O Sr. não é tão culpado assim. Não se amargure.
Estou bem. Não posso dizer-lhe que estou feliz, mas
passará. Não, papai, não direi nada a ninguém. Tem minha
palavra.
— Obrigado.
Caio abriu a porta.
— Aonde vai filho?
— Pensar por aí, andar um pouco. Não se preocupe.
— Caio amo você.
— Sei.
Caio saiu e Paulo ficou olhando pelo vitrô. Viu o filho
chegar no pátio andando lento, cabeça baixa, pegar seu
carro e sair.
— Meu Deus, ajude meu menino. Será que fiz bem
em deixá-lo sair sozinho? Caio está sofrendo. Preferiria
que tivesse xingado, gritado, eu merecia. Sofre e quer ficar
sozinho.
Deixamos Paulo e acompanhamos Caio. Antônia
estava quieta, fortalecia em oração. As palavras de Paulo
faziam eco em seus pensamentos: "Nossos erros nos
acompanham, um dia sofremos por eles." Caio não era
seu, não tinha direito sobre ele, amava-o, embora
tardiamente e vê-lo sofrer era seu castigo.
Caio dirigiu com cuidado, afastou-se do escritório, ao
passar por uma praia parou o carro e desceu, sentou-se
num banco do calçadão. Embora fosse sexta-feira à tarde,
tinha pouco movimento. O tempo estava nublado e
ventava. Caio olhou o mar, as ondas agitavam-se, dando
um espetáculo de força e beleza.
Começou a pensar em tudo o que o pai lhe dissera.
— Caio sofre, Antônio Carlos, disse-me Antônia.
— A flor cai para o fruto aparecer e ser útil, minha
amiga. O sofrimento amadurece-nos, faz tantas vezes cair
à flor da ilusão, para dar lugar ao fruto de que realmente
necessitamos. Caio é valente, sofre, mas não está
revoltado, não teve nenhum pensamento de revolta.
— Sofre, mas, está tranqüilo...
— Perdoar, não querer mal a ninguém dá
tranqüilidade, Antônia. O perdão é harmonia, paz e
tranqüilidade.
— Ele nem perguntou por mim, não pensa em mim.
— Antônia, não exija o que não deu. Confortemo-lo
somente.































VIII - CAIO



Procurei acalmá-lo. Caio ficou a pensar na história
de Cidinha, no seu nascimento, na incrível coincidência de
se encontrarem e namorar. Lembrou de seu sonho em que
achara tanta graça.
"Talvez fosse um aviso!" Suspirou.
"Caio, em momentos difíceis, ore...", disse-lhe
envolvendo-o em bons fluidos.
Caio pôs-se a orar e a pensar, mas seus
sentimentos bons e a aceitação dos acontecimentos eram,
no momento, a mais linda oração que poderia fazer. Suas
energias foram trocadas, sentiu-se bem.
Deixei-o com Antônia e fui à procura de um
encarnado, ou encarnados, que pudessem ajudá-lo.
Encontrei logo.
Caio, envolvido em seus pensamentos, estava
distraído e assustou-se ao escutar ser chamado.
— Caio ei, Caio! Não está dormindo, está?
Caio levantou a cabeça e viu Luísa, uma colega de
Faculdade, acompanhada de duas jovens e dois rapazes,
colegas também de classe.
— Caio tudo bem? - indagou um dos rapazes.
— Sim, claro. E vocês, como estão?
— Esta é Andréa, minha irmã, e esta é Adriana,
nossa amiga.
— Prazer, - respondeu Caio, sem entusiasmo.
O grupo alegre sentou-se ao seu lado.
— Caio, - disse Luísa—, será que poderia nos
ajudar? Temos um Compromisso, Jorge ia levar-nos, mas
o carro dele enguiçou, viemos apanhar o ônibus, porém o
perdemos e o próximo nos fará chegar atrasados.
— Quebra nosso galho, Caio, leva-nos em seu carro,
- pediu Jorge.
— Levo-os, não estou fazendo nada.
— Ei, cara, não trabalha? - indaga Márcio.
— Estou de folga.
— Sentado aqui?!
Caio, não respondeu à indagação de Márcio, mas
fez outra:
— Levo-os para onde?
— Vamos assistir a uma reunião legal. Um senhor
espírita vai ao nosso Centro, o Centro Espírita que
freqüentamos dar uma palestra. Ele faz curas
sensacionais. Não quero perder. Agradecemos, Caio.
Vamos? - disse eufórico Márcio.
Entraram todos no carro, deram o endereço. Antônia
e eu os acompanhamos, ficamos alegres, uma reunião
espírita ia fazer muito bem a Caio e foi fácil intuí-los a
convidá-lo para ir também.
— Caio, conhece o Espiritismo? Não? Legal, cara
mudou a minha vida, estava acabando no vício, hoje sou
outro. Márcio conta a história a todos:
— Somos da Mocidade Espírita, somos Espiritistas.
Caio, não quer assistir à palestra conosco? Orar faz bem,
sinto-o triste - disse-lhe Luísa.
Caio não respondeu de imediato, a turma ria e
conversava muito, estavam apertados no carro e isto
parecia aumentar o entusiasmo. Caio sentiu-se bem entre
eles, lembrou que orar sempre lhe fazia bem; talvez fosse
o que necessitava no momento. Conhecia Luísa e os
rapazes há algum tempo, embora não fossem amigos,
gostava deles. E Luísa era muito agradável e querida pela
turma toda da classe, tinha sempre uma palavra amiga
para todos. Estava sempre rodeada de pessoas e era
muito respeitada.
— Vamos, Caio, - disse Jorge —, talvez não tenha
sido por acaso que perdemos o ônibus e o encontramos.
Venha conosco.
— Vou, - afirmou lacônico Caio.
Não demoraram para chegar ao local. Caio
estacionou o carro e desceram.
Já estava no horário marcado para iniciar, entraram
logo. O prédio era simples, pintado de azul-celeste, não
era grande, bem diferente dos lugares de oração que
conhecia. Luísa chegou perto dele e disse:
— Caio, senta aqui, não precisa fazer nada, ore e
peça em pensamento o que necessita a Jesus. Vamos
tomar nossos lugares.
Caio sentou-se no banco de trás e observou: os
bancos eram de madeira tosca, na frente uma mesa
grande coberta com uma toalha branca, as paredes nuas.
Havia no local umas cinqüentas pessoas espalhadas pelos
bancos, na maioria pobres, aguardando pacientes o início.
Reinava silêncio no local, as pessoas pareciam estar
rezando. Caio aguardou curioso.
Antônia e eu fomos acolhidos gentilmente pelos
trabalhadores desencarnados da casa. Por ser um
trabalho de curas, encontrava-se ali uma grande equipe de
médicos e enfermeiros para o socorro à matéria doente.
Expliquei a um dos orientadores que estávamos
acompanhando Caio porque acabara de saber que era
filho adotivo e estava triste e confuso.
— Já escolheram a página evangélica de hoje? -
indaguei.
— Certamente, porém, não é primordial, podemos
trocar se for de melhor proveito.
— Poderiam, por favor, fazer com que o palestrador
lesse o capitulo XIV do Evangelho: "Honra a teu pai e a tua
mãe"? O parágrafo: "Quem é minha mãe e quem são meus
irmãos?" E que abrangesse a explicação do parentesco
corporal e espiritual. É possível?
— Atenderemos com gosto.
Com simplicidade, foi feita a oração de abertura e a
oração do Pai-Nosso. Caio se emocionou, orava sempre,
mas nunca vira alguém ou um grupo orar com tanta firmeza
e convicção a oração que Jesus nos ensinou.
O dirigente que nos atendeu cercou o palestrador
encarnado. Num intercâmbio perfeito, iniciaram. Ismael, o
encarnado, levantou-se para a leitura que já estava
marcada e fora preparada. O desencarnado pediu-lhe:
"Leia aqui, é necessário."
Ismael, com simplicidade de quem confia, leu o que
fora indicado. Caio prestou muita atenção, percebeu que o
livro lido era uma forma do Evangelho. Sentiu-se fascinado
pelo orador, ele lia com amor, sua voz harmoniosa
ressoava no silêncio da sala. Recordou ter lido ou ouvido o
texto, nunca conseguiu entender esta passagem do
Evangelho em que Jesus fora procurado por sua mãe e
seus irmãos numa ocasião em que se achava cercado de
gente, e de sua estranha resposta: "Quem é minha mãe?
Quem são meus irmãos? Todo aquele que fizer a vontade
de Deus é este meu irmão, minha mãe.".
À medida que era lida, a explicação vinha ao
raciocínio de Caio, que esquecera de todos os seus
problemas. Encantou-se com aquele senhor simples de
olhar meigo e bondoso.
Ismael fechou e Evangelho e, com a mesma
simplicidade, falou sobre o texto lido.
— Laços de sangue duram até que um dos corpos
morra, são frágeis como a matéria que nos reveste. Laços
espirituais é que são verdadeiros, amamos pelo Espírito e
sentimentos não acabam, perpetuam na vida espiritual. Às
vezes não encontramos receptividade entre os parentes
físicos, mas, sim, entre os que aspirem conosco os
mesmos objetivos, pensamentos e nossa Alma se abre e
passamos a ser irmãos muito queridos. Jesus,
incompreendido por seus parentes carnais, achara sua
família espiritual entre aqueles que o acompanhavam.
Amava aos seus, amava sua mãe e irmãos, que não se
uniram a ele na trajetória física. Foi, será sempre sua
família espiritual a que permanece com ele através dos
séculos, aqueles que se unem para servir e amar o Pai.
Jesus deu mais importância ao amor espiritual.
Crucificado, prestes a expirar, disse: "Mulher, eis aí seu
filho João! João, eis aí sua mãe!" Ele deixou aquele que
muito amava a cuidar de sua mãe e João, que não era
parente carnal, mas espiritual.
Quantos de nós achamos carinho, amor entre
pessoas que não são da família carnal, mas que são
parentes espirituais. É uma adoção! Sim, adotamos
pessoas por parentes pelo amor e simpatia. Quantas
maravilhas há nesta adoção, neste amor. Se adotamos,
escolhemos por afinidades. Para mim, a mais linda
adoção, é receber filhos alheios como nosso, receber um
filho pelo amor.
Caio suava, lágrimas vieram espontâneas sem que
conseguisse segurá-las, enxugou-as, olhou para os lados,
ninguém o observava, todos estavam atentos no orador,
que continuou:
— Adotar é tomar para si, como seu. Que grande
Amor leva isto! E, tantas vezes, nestas adoções, são
reencontros de parentes espirituais. Filhos adotados são
escolhidos a se unirem pelo carinho, tornam-se
verdadeiros pelo Espírito. Que deve ser mais importante
para nós, unir pela carne ou pelo Espírito? Ao crer na Vida
Eterna, claro que espiritualmente! Laços de sangue são
passageiros e muitas pessoas egoístas, pais
principalmente, não admitem que seus filhos possam ter
sido filhos de outras pessoas em outras existências. Eles
mesmos já não tiveram outros pais? Outros filhos? Amam
como se não fossem se encontrar mais, como se vivessem
uma só existência. Muitos afetos tivemos, temos, e os que
egoisticamente ficam só nos laços de sangue que se
desfazem. Amantes espirituais reencontram-se,
fortalecendo-se. E que nos importa se estes encontros são
como filhos, pais, esposos ou amigos.
Pais não são apenas os que dão à vida física, mas
os que criam, educam, amam e acompanham seus filhos
na alegria e sofrimento, seja na vida encarnada ou até
mesmo no período de desencarne.
Muitos pais carnais não puderam criar seus filhos.
Motivos? Que nos importa? Se foi porque desencarnaram,
ou mesmo não o quiseram, não cabe a nós julgá-los.
Outros, porém, querendo-os, escolheram-nos como seus
filhos. E, ao serem adotados, não mudaram o rumo de
suas vidas? Estariam como? Em orfanatos?
Abandonados?
Devemos gratidão aos nossos pais. Um dos
mandamentos nos manda "Honrar pai e mãe". E felizes os
que assim procedem. E gratidão maior devemos ter por
aqueles que os criaram como seus pais verdadeiros e
amá-los. Devemos amar sempre, o Cosmo está baseado
no Amor. O Pai Misericordioso é Amor. E Jesus tantos
exemplos nos deu sobre este sentimento lindo.
Se estamos pelas reencarnações encontrando
sempre com afetos espirituais, ao adotar, ao ser adotado,
não estaremos reencontrando afetos queridos?
Vocês, meus irmãos, amam seus pais? Vocês
escolheriam outras pessoas para ter a missão de guiá-los
quando infantes para a vida? Não! Ame-os, respeite-os,
são escolhidos, além de laços de sangue, são unidos
pelos laços verdadeiros, os espirituais!
Devemos aumentar fortalecer nossa família
espiritual, porque é bom estarmos entre os que amamos e
sermos amados. A carne passa, o Espírito é eterno e
crescer espiritualmente é o que deve nos importar.
Amemos para que possamos ser dentro do Espiritismo,
uma só família: a família de Jesus!
Dando algumas explicações sobre o trabalho da
tarde, finalizou a primeira parte com uma expressão
significativa. "Que Jesus seja louvado!"
Ismael com outras pessoas entraram numa sala ao
lado esquerdo. A assistência formou uma fila, Luísa veio
até Caio e explicou baixinho:
— Caio, estas pessoas vão tomar passes. Sabe o
que é passe? É Uma transfusão de energias físicas e
espirituais. É orar e pedir ao Pai-Maior pelo outro.
Seguindo exemplos de Jesus que curava Impondo as
mãos e orando, assim procedemos. Somos todos
necessitados, mas os que sabem, podem, ajudam para
que possamos ser todos beneficiados, Não quer
conhecer? Não quer receber?
— Quero!
— Que bom! Sentirá muito bem e verá como é
simples. Caio, temos carona para voltar, não precisa nos
esperar, se quiser pode ir embora após ter recebido o
passe.
— Demora para acabar?
— Não é demorado. Após os passes o Sr. Ismael, o
orador, atenderá os doentes.
Caio levantou-se e ficou na fila, logo chegou sua
vez. Entrou na sala curioso e decepcionou-se por não ver
nada de exótico, havia nela só algumas cadeiras. Sentou-
se e observou tudo, o Sr. Ismael e outros médiuns
estavam de pé diante das pessoas sentadas, impunham
as mãos sobre suas cabeças por minutos e pronto
levantavam-se e saíam.
Caio sentiu-se bem e tranqüilo, teve vontade de ficar
mais ali, pensar naquele recanto de paz. Chegou perto de
Luísa que organizava a fila e pediu:
— Lu, posso ficar também? Sento e espero por
vocês.
— Pode, Caio - respondeu sorrindo.
Caio sentou-se no mesmo lugar em que estivera
minutos atrás, seu enorme problema de horas antes
parecia solucionado. Cheguei perto dele, ajudei-o a
pensar, recebeu o filho de Antônia meus pensamentos,
aceitando-os.
"Caio, nada deve mudar, disse-lhe, tudo estava bem
antes de você saber, e deve continuar. Tem uma família,
ama-os e é muito amado."
"De fato - pensou Caio em resposta ao meu apelo -,
papai ama-me, é meu pai de carne e Espírito; mamãe
Ofélia, é minha mãe, fui seu escolhido, ama-me muito,
nunca fez diferença entre nós, ama-nos igualmente.
Mesmo se não me amasse como a Sérgio e Carla, saberia
compreendê-la. Amo-os, damo-nos bem, somos parentes
espirituais. Sinto-me filho dela e sei que ela sente como
minha mãe, nos adotamos isto é o que importa. Devo sim,
maior carinho e atenção a esta mulher extraordinária que é
Ofélia. Nunca pensei em ter outros pais, não escolheria
outros. Sr. Ismael e este Evangelho têm razão. Sentimento
é do Espírito e este é Eterno. Sr. Marcelo e papai
confiaram em mim, não direi nada a ninguém, tudo farei
para que ninguém mais sofra por este motivo. Pensando
bem, nem eu devo sofrer, tive muita sorte ter pai, mãe e
irmãos, de amar minha família e ser amado. E ter Ofélia
por mãe, amo-a tanto, não quero outra mãe."
Acabou sorrindo, olhou rápido à sua volta, ninguém
lhe prestava atenção. Sentindo-se bem com a solução
tomada, passou a observar distraído as pessoas, tudo
para Caio deveria ficar como antes.
Quando terminou, foi feita uma oração de
agradecimento e Caio comovido, orou em pensamento:
"Deus, agradeço por vindo aqui, pensei em estar
prestando favor a amigos e recebi um bem maior.
Obrigado!".
Saíram todos, Caio procurou os amigos e reuniram-
se na porta.
— Caio, - disse Luísa —, este é André, irmão de
Adriana, está de carro e nos levará de volta. Estamos
querendo ir a um barzinho para bater papo. Vem conosco?
— Oi, - disse André —, a turma é grande, podemos
repartir em dois carros. Topa?
— Sim, - respondeu Caio, gostando dos novos
amigos. — Sugiro irmos ao bar..., que tal?
O grupo silenciou Luísa espontânea, esclarece:
— Caio, somos pobres cara, este bar é para ricos!
— E se eu pagar tudo?
— Quê? A despesa de todos, ficará caro, falou
Andréa.
— Convido-os, Lu, posso pagar, estou com dinheiro,
será um prazer levá-los, vamos?
A turma discutiu alguns minutos e aceitou. Logo
estavam acomodados no bar, eram alegres, alegria que
contagiou Caio, pediram simples refrigerantes, Caio
percebeu que eles não queriam abusar de seu convite. O
filho de Paulo era ali conhecido até pelos garçons. Ele e
sua turma de amigos, e mesmo Cidinha, freqüentavam
amiúde aquele bar.
Caio sentou-se perto de Luísa e aproveitou para
indagar sobre os acontecimentos da tarde, sobre o
Espiritismo.
— Luísa, Espiritismo é Cristão? Pergunto isso
porque crêem na reencarnação e, pelo que sei religiões
orientais também crêem.
— É cristão, sim, deve ter percebido que foi lido o
Evangelho, oramos o Pai-Nosso. Temos Jesus como
nosso maior Mestre.
— O Evangelho é diferente?
— Não, o Evangelho que escutou chama-se
"Evangelho Segundo o Espiritismo", são explicações
dadas do ensinamento de Jesus por espíritos estudiosos e
superiores.
— Incomodo-a com estas perguntas?
— Pergunte o que quiser, se souber, respondo.
— Luísa, encantou-me a explicação que foi dada
sobre a família espiritual, antes nunca entendera esta
passagem do Evangelho.
— Caio, o Espiritismo é ciência, filosofia e religião.
Allan Kardec, seu codificador, disse e muito bem: "Fé
inabalável é aquela que pode encarar a Razão face a face
em todas as épocas da Humanidade". Amo minha religião
porque a entendo, porque ela me oferece explicações de
tudo o que anseio saber, fazendo-me compreender a vida.
— Explicações de tudo mesmo?
— Tudo. E tem mais: raciocino e aceito-as como
verdadeiras. É terrível ter de acreditar sem entender!
— Oi, Caio!
— Olá, Caio!
Duas garotas passaram rente à mesa,
cumprimentando-o alto. Caio respondeu, eram amigas de
Cidinha. Aí se lembrou dela, esquecera o encontro
marcado, apanhá-la-ia às vinte horas e já passava das
vinte e duas horas!
"Melhor, pensou Caio, aí está uma boa oportunidade
para uma briga, não toleraria namorá-la nem mais um dia."
Ajeitou-se mais perto de Luísa, tinha a certeza de
que não demoraria nada Cidinha saber. Participou da
conversa da turma sobre assuntos corriqueiros entre
jovens. O grupo não podia demorar mais, tinha horário
para chegar em casa. Resolveram ir embora. Após Caio ter
pagado a conta, saíram e despediram-se. Voltariam todos
com André. Já iam saindo quando Caio perguntou:
— Luísa, vocês vão sempre ao Centro Espírita?
— Todos os domingos reunimos os jovens às dez
horas da manhã. Convido-o.
— Posso ir mesmo?
— Esperamos você antes das dez horas na porta.
Dará-nos grande prazer se vier. Tchau Caio, obrigado!
Caio entrou no carro, deu umas voltas ali por perto,
depois foi para casa. Estava se sentindo como se fosse
outra pessoa, responsável, adulto.
"Antônio Carlos, que pessoa boa é Caio. Que filho
maravilhoso abandonei", - disse Antônia.
"Caio é realmente bom. Vamos continuar ajudando-o.
Dará tudo certo."
"Já não sofre tanto. Como foi bom ele ter ido ao
Centro Espírita!"
Caio chegou em casa.















IX - O ENCONTRO DE JOVENS



Ao entrar na sala, Caio estranhou encontrar a mãe à
sua espera.
— Caio, onde esteve? Estou preocupada com você,
filho: Cidinha telefonou várias vezes atrás de você, disse-
me que tinham um encontro e que não foi.
— Encontrei uns colegas da escola e fomos a um
barzinho conversar. Se soubesse que ficaria preocupada,
teria telefonado avisando.
— Ainda bem! Agora fico tranqüila, preocupo-me
muito com vocês, resolvi esperá-lo, não conseguiria dormir
sem saber onde esteve e vê-lo em casa. Caio Cidinha
também está preocupada, telefone para ela para
tranqüilizá-la.
Caio pensou por uns instantes, achou melhor dar
notícias, conhecendo Cidinha, esta deveria estar
pensando logo em acidente ou assalto. Pegou o telefone e
discou. Cidinha atendeu, aflita. Caio secamente disse que
chegara e estava bem.
— Se tiver explicações, darei amanhã. Finalizou sem
sequer se despedir e desligou.
Ofélia, que observava o filho, indagou preocupada:
— Que há, Caio? Tratou Cidinha com dureza!
Caio sentou-se numa almofada ao lado da cadeira
da mãe, deitou a cabeça no colo de Ofélia, esta passou as
mãos sobre seus cabelos.
— Que acontece, Caio? Conta-me, filho.
— Mamãe, necessito da senhora, de seu conselho,
tenho pensado, descobri que não amo Cidinha, estou
mesmo farto dela, quero terminar o namoro.
— Você tem certeza? Pensou bem? - com a
afirmativa de cabeça do filho, Ofélia continuou: "Meu filho,
para que uma união dê certo, é necessário ter amor, este
casamento seria do gosto de todos, mas, deve
primeiramente ser do gosto de vocês". Gosto de Cidinha,
pensei ser a moça certa para você, se acha que não,
concordo com você, deve terminar o namoro. Falarei com
seu pai, farei com que entenda. Marcelo e Paulo já davam
como certo este casamento.
— Obrigado mamãe sabia que podia contar com a
senhora. Adoro a senhora, sabia?
— Sei filho, sinto seu afeto, amo-o muito também...
— Acho-a tão linda, é a maior, a melhor mãe do
mundo!
Beijou as mãos da mãe e pensou:
"Se Ofélia não é minha mãe de carne, é pelo amor,
não conseguiria amar ninguém mais que a ela."
Paulo estava também preocupado com o filho, não
querendo demonstrar sua aflição à esposa ficou acordado
no quarto, aguardando o retorno de Caio. Ao escutar
barulho, cuidadosamente ficou escutando a conversa da
esposa com o filho na sala ao lado.
"Caio que filho maravilhoso é você!"
Emocionado, esbarrou na mesa e fez barulho, então
entrou na sala.
— Caio, já voltou? Está bem, filho? Onde esteve?
Deixou-nos preocupados.
— Estou bem, papai, estive com colegas da escola,
ficamos conversando e esqueci de avisar, mamãe já me
desculpou.
— É melhor dormirmos agora. Vem deitar Ofélia, já é
tarde.
Caio beijou a mãe no rosto, sorriu para o pai e foi
para seu quarto.
— Paulo, - disse Ofélia-, Caio é tão bom, não é
mesmo? É o mais amoroso de nossos filhos.
— É verdade, Ofélia, Caio é bom moço.
— Paulo, se Caio lhe desse um desgosto?
— Desgosto?! - indagou preocupado.
— Talvez não fosse um desgosto.
— Fala logo, Ofélia. Que tem o menino?
— É que Caio quer terminar o namoro com Cidinha.
— Só isso? Que susto!
— Pensei que ia achar ruim.
— Você falou em desgosto, nem sei o que pensei.
Ele disse o por quê?
— Disse-me que não a ama, enjoou do namoro.
— É um bom motivo. Caio sabe o que faz.
— Pensei que ia ficar nervoso. Queria tanto que se
casassem...
— Ofélia, amo meus filhos. Prometi a mim mesmo,
desde o tempo em que meus pais interferiram no nosso
casamento, que não ia forçar na decisão dos meus filhos
nas suas escolhas. Por meus pais, não teria me casado
com você, e nosso casamento deu certo. Amamos Ofélia,
eu não poderia ter escolhido ninguém melhor para esposa,
é maravilhosa, somos felizes. Cidinha é a nora ideal, gosto
dela, mas de que adianta? É Caio quem tem que amá-la, é
ele que vai casar com ela. Se você está intercedendo por
ele, diga-lhe que está tudo bem, entendo.
— Se Marcelo e Helena acharem ruim?
— Ora, Ofélia, por que iriam achar ruim? Melhor
agora que depois de casados...
— Isto é! Não entendo Caio, parecia apaixonado, de
repente, enjoa.
— Eu já tinha notado que Caio forçava o namoro.
— Notou? Eu não, acho que ando distraída. Você
não vai mesmo brigar com nosso filho?
— Não Ofélia, Caio é um homem e sabe o que quer.
— Que bom você ter entendido!
— Você não entendeu?
Ofélia sorriu, estranhou um pouco a atitude do
esposo, mas, deu graças a Deus por ele ter compreendido;
despreocupada, dormiu logo.
Caio, cansado com os muitos acontecimentos,
saturado de bons fluidos, adormeceu assim que se deitou.
No outro dia, sábado, Caio passou o dia aflito
ansiava por chegar a noite e terminar o namoro, que agora
lhe parecia sacrilégio. Cidinha ansiava pelas explicações
do namorado, pois logo cedo as amigas contaram-lhe que
o viram no bar em companhia de desconhecidos.
No horário costumeiro, Caio foi até a casa de
Cidinha e esta esperava-o emburrada.
— Muito bem, Caio, ontem não veio encontrar-se
comigo, mas foi ao bar com uma turma desconhecida e
estava todo atencioso com uma das meninas. Que
explicação você me dá?
— Nenhuma, esqueci do nosso encontro.
— Que?! Esqueceu?! Quem é a garota?
— Colega de Faculdade.
— Só colega?
— Linda moça, educada e simples.
— Caio, fale a verdade, quem é ela?
— Luísa.
— Quero saber quem é ela para você? Namorada?
— Gosto dela.
— Oh!
Cidinha era orgulhosa, acostumada a ter suas
vontades realizadas, mesmo por parte de Caio que sempre
a mimava, levou um choque, esperava mil desculpas do
moço e ele tratava-a friamente, espantou-se mais ainda,
quando ouviu:
— Cidinha, é melhor terminar nosso namoro.
— Que?! Terminar tudo! Se me pedir desculpas...
— Não quero pedir. Acho que não dá mais, nosso
namoro está chato e...
— Que desaforo! Chato é você! Eu é que quero
terminar tudo. Merece esta outra, fica com ela.
Cidinha levantou-se num salto, saiu da varanda,
entrou em casa, deixando Caio sozinho que também se
levantou e foi embora. O filho de Antônia estava triste, mas
aliviado, pensou: "Agora é só fugir de Cidinha, fingir que
namoro outra, com o Sr. Marcelo e papai ajudando-me
ficará mais fácil. Devo, de agora em diante, pensar em
Cidinha como minha irmã, devo gostar dela como gosto de
Carla."
Resolveu ir a um cinema, escolheu uma comédia
para distrair-se. Não queria chegar cedo em casa, não
tinha vontade conversar com ninguém. E chegar cedo em
casa, em noite de sábado, todos iriam querer saber o por
quê.
Cidinha, deixando Caio na varanda, entrou na sala,
correu para a mãe e começou a chorar. Helena abraçou a
filha, Marcelo largou o jornal que estava lendo e sentou-se
perto delas.
— Filhinha, que houve? - indagou Helena
preocupada.
— Caio e eu terminamos o namoro.
— Grande rapaz! - exclamou Marcelo.
— Quê?! Está do lado dele? - indagou indignada
Helena.
— Eu?! Não! Disse grande tolo, o rapaz.
— Ah! Conta-nos tudo filha que houve?
— Caio saiu ontem com uma turma e ficou todo
meloso uma das moças.
— Não é mentira? - indagou Helena
— Caio confirmou e disse mais, que gosta dela.
— Infeliz! Tolo! - exclamou Helena.
— Cidinha, filhinha, - disse Marcelo -, isto não é
tragédia, não deve sofrer por isto. Foi melhor ele ter
namorado outra agora, que depois de casado...
— Marcelo! - Disse a esposa aborrecida -, Caio
disse que prefere outra a nossa filha e você parece não se
importar!
— Por isto mesmo, se prefere a outra, não é tão
maravilhoso como pensávamos, e não quero minha
filhinha chorando por quem não a quer.
— Isto é! - responde Helena.
— Cidinha, - continuou Marcelo -, não fique triste,
vou comprar para você aquela pulseira de rubis e
brilhantes, mais bonita e mais cara que a da Susane. Vou
também dar sua mesada em triplo, que tal?
— Verdade? Oh! Papai amo o senhor! Vou comprar
roupas novas!
— Isto filhinha, - disse a mãe -, Caio se arrependerá
logo ao vê-la tão bonita.
— Helena, - falou Marcelo -, vamos esquecer Caio,
temos nosso orgulho, não devemos mais falar deste moço.
Cidinha ficará linda e suas amigas verão que ela nada
sentiu em terminar este namoro idiota.
— Idiota? Não pensava assim, não gostava de Caio?
- indagou Helena.
— Disse bem, gostava. Desde que preferiu outra que
fique com ela. Cidinha merece outro melhor.
Cidinha começou a chorar novamente.
— Mesmo idiota papai quero ele.
— Que nada! Não tem orgulho? Amor-próprio? Não
deve querer quem não a quer.
— Que raiva! - desabafa Helena -, Caio merece uma
lição, falarei a Ofélia e ao Paulo do filho horrível que eles
têm.
— Não vamos falar nada, Helena, vamos deixar a
família à parte. Se quiser fale com Paulo, com Ofélia, não,
já sofre tanto. Não devemos romper com eles, amigos de
tanto tempo, por causa de brigas de jovens. Se você for
falar com eles, dará a impressão de que estamos forçando
Caio a namorar Cidinha.
— Isto é que não! - falou Cidinha -, se Caio tiver que
voltar, terá que ser de joelhos...
— Helena, é melhor deixar que se entendam,
devemos entreter nossa filha, - falou Marcelo.
Cidinha parou de chorar, estava no colo da mãe que
a mimava como criança, seus olhos brilharam ao pensar
no presente.
— Papai, a pulseira será como eu quero? Poderei
escolhê-la?
— Claro filha, segunda-feira irá com sua mãe nas
joalherias e escolherá o que quiser, darei a você, não
importa o preço.
Cidinha começou a falar da pulseira, Antônia e eu
saímos.
— Foi fácil, - disse a Antônia -, Marcelo conhece a
filha e sabe como entretê-la. Com os dois a confortá-la,
esquecerá logo.
— Cidinha acha que Caio voltará.
— Perderá logo a esperança e esquecerá, Cidinha
confundiu os sentimentos, gosta de Caio, não o ama.
Após o filme, Caio foi para casa e deitou-se logo. A
imagem de Cidinha veio-lhe à mente; "Será que ela estaria
sofrendo?" pensou triste. Se está sofrendo, sofre menos
do que soubesse a verdade. "Tinha que pensar nela só
como irmã."
Parecia um tanto difícil a ele que, dias antes,
pensava amá-la.
"Ah! Meu Deus! - sussurrou baixinho -, como é difícil
dizer: "Pare de pensar nela, deixa de amá-la". Como
mandar em sentimentos? Será que a amei mesmo? Não
devo amá-la, permita que não, Jesus, gosto dela,
somente.".
Caio chorou, sofria, orou, confundiu as orações, dei-
lhe passe, foi se acalmando e dormiu.
No outro dia, levantou-se cedo, só a mãe e as tias
estavam acordadas, dizendo ter encontro com amigos,
Caio saiu de casa para ir ao Centro Espírita.
A turma o esperava em frente do prédio, alegraram-
se em vê-lo, cumprimentaram-no os conhecidos e
apresentaram-no aos outros. Caio sentiu-se bem, à
vontade, simpatizou com todos.
Entraram muitos jovens estavam presentes,
separavam-se por faixa etária formando diversos grupos,
cada grupo foi para uma das salas. Caio ficou no salão
entre Andréa e Luísa. Um casal de meia-idade estava na
frente, Andréa explicou a Caio:
— Hoje, a reunião será diferente, convidamos um
casal para uma palestra.
Não demorou, deram o início.
Andréa fez a oração inicial com emoção, pedindo ao
Pai-Celeste forças a todos os jovens para resistirem aos
vícios que no momento arruinavam tanto o físico como o
Espírito de tantas pessoas. Pediu a Jesus a coragem para
não se envergonharem a ser chamados de "caretas",
"ridículos", por estar no caminho certo. Oraram o Pai-
Nosso.
O senhor explicou sorrindo que não eram tão velhos
e que preferiam ser chamados de Irineu e Magali. Em
seguida, pegou um livro e começou a ler. Caio leu o titulo:
"O Livro dos Espíritos".
O texto falava sobre a pluralidade das existências,
das muitas vezes que nós, em diversas épocas e de
muitas formas, encarnamos na terra. As diferenças não
são injustas, muitas vezes são colheitas do passado, ou
são formas de aprendizado ou de estágio, pobres ou ricos,
inteligentes ou débeis, perfeitos ou inválidos, são
oportunidades que temos de resgatar erros ou repará-los.
Deus não seria justo se presenteasse uns com
beleza, inteligência e a outros castigasse com feiúra e
pobreza. Deus não castiga nem recompensa; somos nós
que, ao praticarmos erros, plantamos a má semente que
um dia iremos colher. Ao praticar o mal contraímos uma
dívida para conosco e para com aqueles que
prejudicamos. Chega o dia em que teremos de resgatá-las.
A maldade feita por nós desarmoniza-nos e harmonizamo-
nos pelo sofrimento ou fazendo o Bem.
Perguntas foram feitas e dadas opiniões, Caio
escutava atento, quis indagar, mas achou que, por não
conhecer nada, poderia fazer perguntas primárias, até
ridículas. Estava entendendo que Luísa tinha razão, as
explicações ouvidas vinham diretas ao seu raciocínio,
satisfazendo-o.
— Irineu, - indagou um dos jovens -, e o débil
mental? Como explica-nos o Espiritismo um Espírito
encarnar em um corpo tão debilitado?
— Tudo o que temos perfeito devemos conservar,
cuidar para que continue. Você, meu jovem, é perfeito
moço, bonito e inteligente, seu corpo é perfeito. Se passar
a tomar drogas, bebidas alcoólicas em demasia, danificará
seu corpo e por vontade própria. Seu cérebro perfeito
desarmoniza, desencarna e seu perispírito estará doente e
poderá transmitir na encarnação futura o estado
perispiritual. Ou se você agora suicidar-se, dando um tiro
na cabeça, danificando o que tem de perfeito,
desarmoniza-o e voltará para harmonizá-lo no corpo físico
que poderá vir a ser deficiente. São muitas as causas que
fazem com que um Espírito reencarne num excepcional,
vemos também pelos estudos espíritas que pessoas
inteligentes, usando sua inteligência para o mal,
desarmonizando, podem encarnar em corpos debilitados
para se ajustar perante as Leis Cósmicas.
— Luísa, - cochichou Caio -, parece que nada que
este senhor fala me é desconhecido, incrível! Tenho a
certeza de que nada parecido escutei sobre o assunto!
— Irineu, - falou alto Luísa -, Caio, meu amigo, acaba
de dizer-me que parece que sabia disso tudo, porém,
garante nunca ter ouvido falar sobre este assunto.
Caio encabulou-se, olhou feio para Luísa que nem
se importou. Irineu deu sua explicação:
— Tantas vezes este fato nos acontece. É prova
para os crentes da existência de outra vida encarnada ou
de um aprendizado num período desencarnado. Tantas
coisas que fazemos, vemos ou escutamos a primeira vez,
nos parecem conhecidas, sentimos que recordamos, sem
conseguir saber onde aprendemos, vimos, etc. Caio, você
tanto pode ter aprendido sobre este assunto em outra
existência como ter estudado no período em que esteve
desencarnado no espaço espiritual.
Caio gostou da explicação, sentiu no íntimo que era
isso mesmo, aproveitou e disse:
— Gosto deste local, gostei do que ouvi, sinto que
me encontrarei no Espiritismo. Realmente, parece que já
sabia do que foi dito aqui, porém não recordo de mais
nada. Quero pedir para fazer parte do grupo.
— Claro, - disse Irineu -, seja bem-vindo, já é um dos
nossos jovens. Se quiser, leve para ler os livros básicos de
Kardec e aqui estaremos para explicar o que não
entender. O objetivo deste encontro é reunir jovens e
estudar as verdades eternas, estudar o Espiritismo, para
aqueles que querem este estudo, são setas no caminho
que nos levará ao progresso espiritual.
Após, o grupo comentou sobre o trabalho que fazia
junto a creches, asilos e orfanatos. Naquela tarde iriam a
um orfanato. A oração final foi feita por Márcio que pediu
bênçãos ao novo companheiro. Caio emocionado
agradeceu em pensamento por ali estar e a oportunidade
de fazer parte de um grupo tão legal.
Todos saíram, combinaram encontrar-se às três
horas ali, na frente do Centro Espírita, para se organizarem
nos carros de que dispunham para ir ao orfanato.
Caio foi para casa tranqüilo, com os livros que Irineu
emprestara-lhe, pensando em começar a lê-los naquele
mesmo dia.












X - CAIO NO ESPIRITISMO



Os familiares de Caio estavam na sala conversando,
Sérgio, ao ver o irmão, foi dizendo:
— Caio, por que terminou o namoro com Cidinha?
Fez um papelão! Em vez de dar explicações a ela, disse-
lhe que gosta de outra. Meu irmão, acho que enlouqueceu,
se papai não o matar, mata o Sr. Marcelo. Cidinha contou-
me tudo, está humilhada e com razão. Deve-nos
explicações, pode começar. Onde já se viu largar uma
moça como Cidinha assim?
— Sérgio, prefiro não falar deste assunto -
respondeu Caio.
— Ah! É? Sabe que errou, é melhor consertar tudo
pedindo perdão a Cidinha.
— Caio - indagou curiosa Carla -, é verdade mesmo?
Brigou com Cidinha? Não está apaixonado por ela?
— Pensei que estava Carla, confundi, descobri que
não a quero mais. Cidinha é maravilhosa, mas no coração
não se manda. Já conversei sobre isso com papai e
mamãe.
— Verdade? - indagou Sérgio, olhando para o pai.
— Deixem Caio em paz - defendeu-o Paulo -, é
verdade, falou conosco e entendemos, gostamos de
Cidinha, porém achamos que o principal é Caio amá-la, se
descobriu que não a ama, agiu certo.
— Quê?! Enlouqueceram todos? - disse Sérgio -,
pensei que iam brigar com ele, castigá-lo.
— Sérgio meu filho, não quero obrigar meus filhos a
nada, ainda mais a casar, também gosto de Paula e não é
por isso que obrigarei você a casar com ela.
Riram todos.
— Graças a Deus, feia e metida como é; porém,
Cidinha é diferente.
— Mudemos de assunto - disse Paulo, Caio é adulto
e sabe o que quer, não devemos mais tocar neste assunto,
acabou e pronto!
— O Sr. Marcelo e D. Helena estarão pensando
assim? - indagou Sérgio.
— São boas pessoas e não irão acabar com nossa
amizade por brigas de vocês. Marcelo telefonou hoje de
manhã e não tocou no assunto.
Uma amiga de Carla chegou e todos foram para a
varanda, menos Ofélia que fez um sinal para que Caio
ficasse.
— Caio, estou preocupado com você, está
namorando outra? Ama outra? Fez um papel feio com
Cidinha...
— Mamãe - disse o moço beijando-lhe o rosto -, não
se preocupe, não namoro ninguém nem amo. Na sexta-
feira, saí com amigos e, por acaso, sentei perto de Luísa,
colega de classe, conversamos somente, viram-nos e
contaram a Cidinha que tirou suas conclusões, não me
deu nem tempo para desmentir. Foi melhor, com raiva de
mim, Cidinha me esquecerá mais fácil.
— Parece-me aborrecido, tem mesmo certeza de que
não ama Cidinha?
— Tenho mamãe, pensei bem, só me aborreci com
os comentários, mas estou aliviado por estar tudo
terminado.
Todos voltaram à sala e conversaram animados,
esperando o almoço.
Zélia e Rosa esforçavam-se para se acostumar com
o movimento da casa. Felizes com a boa acolhida
procuravam ser agradáveis sem, contudo, conversar muito.
Aquela semana foi diferente e movimentada, foram ao
médico, dentista e acompanharam Carla pelas lojas,
compraram roupas que hesitaram em aceitar, porém Paulo
insistira, dera dinheiro à filha que adorava gastá-lo e, num
piscar de olhos, viram-se elegantes e com o guarda-roupa
sortido e caro.
Sentiam que os sobrinhos gostavam delas e
gostaram tanto deles que se sentiam as tias mais "corujas"
do mundo.
Auscultei-as. Zélia sentia-se mais tranqüila, apesar
de o diagnóstico do médico consultado afirmar o mesmo
que o outro que a tratava: seu coração não estava bem,
falhando muito. Receitara novos remédios, recomendara
tranqüilidade, repouso e boa alimentação. Na casa da irmã
estava tendo tudo isso, importava-se pouco com a saúde,
ansiava deixar o mundo encarnado e encontrar o esposo
ao qual estava ligada por afeto sincero e de quem tinha
muitas saudades. Estava arrependida por não ter escrito
antes à irmã, sentia que Ofélia mudara e sofrera muito.
Não conseguia entendê-la, tantos anos de indiferença e
agora tratando-as como duas rainhas. O importante era
Rosa, amava-a como filha, cuidara dela quando doente,
depois foi sua vez de ajudá-la na doença do esposo e, nos
últimos tempos, cuidando dela. Sabia que não viveria
muito, sua preocupação era deixar Rosa sozinha. Sem sua
aposentadoria, como iria Rosa viver numa cidade grande e
sozinha? Pediria ajuda a Ofélia pela irmã, sabia que os
sobrinhos e a irmã ao conviver com Rosa a amariam e
poderia partir tranqüila, deixando-a amparada. Agora, ali,
não se arrependera, vendo Rosa feliz com os sobrinhos e
não precisando trabalhar mais, sentia-se feliz, também.
Rosa, por sua vez, amava os sobrinhos e sentia-se
feliz na casa da irmã, temeu em voltar e ficar na casa da
irmã que, por tanto tempo, tratou-as com muita indiferença.
Nunca entendera Ofélia nem o porquê de seu afastamento.
Concordou em vir por Zélia, que estava doente,
necessitando de cuidados médicos, remédios caros e boa
alimentação. Por mais que trabalhasse o dinheiro era
insuficiente, passara a fazer faxinas em casas particulares
e à noite fazia seus trabalhos manuais o que, embora
trabalhoso, não rendia muito. Mas, vendo Ofélia fazer tudo
para agradá-las e Zélia tranqüila e medicada, estava
agradecida à irmã e ao cunhado.
Paulo, este a perturbava, sempre o amara com
intensidade, nunca mais pensara em se casar, fugira de
todos os homens que se aproximaram dela. Bonita,
honesta, simpática e trabalhadeira, foram muitos os que
tentaram conquistá-la com idéias de casamento. Revendo-
o, percebeu com tristeza que este amor era forte, mas
honesto, como ela. Não ambicionava nada, de coração
queria ver ele e sua irmã felizes; tinha pena de Ofélia,
inválida naquela cadeira de rodas. Envergonhava-se deste
amor e prometeu a si mesma continuar escondendo-o.
Pensava em ficar ali até Zélia morrer, sabia que mesmo
com os cuidados necessários a irmã não ficaria muito
entre eles, depois escolheria um convento ou um orfanato
para morar, realizando um velho sonho de cuidar de
crianças abandonadas. Estava desfrutando do descanso
com alegria. Sempre trabalhou, mas nos últimos meses
redobrara o trabalho e sentia-se cansada. Achou Carla
maravilhosa e a sobrinha acolheu-a muito bem e tornaram-
se amigas.
Após o almoço, Sérgio e Carla levaram as tias para
um passeio, Ofélia foi descansar e Paulo foi ler seu jornal.
Caio, enquanto esperava a hora de ir para o orfanato, foi
para seu quarto, pegou o "Evangelho Segundo o
Espiritismo" e começou a lê-lo. Lendo os significados das
palavras usadas por Jesus no seu tempo, sem uso no
nosso, compreendeu que iria entender melhor os ensinos
do Mestre.
Foi ao encontro meia hora antes e alegrou-se ao ver
Luísa e Andréa lá, ficaram conversando até chegar todos.
— Caio, gosta do Curso de Administração? - indagou
Andréa.
— Gosto de estudar, faço este curso de tanto meu
pai insistir, ele sonha em me ver em seu lugar. Amo
mesmo a Medicina.
— Tem cara de médico, não sei por que, mas você
parece com médico. Riram, Luisa continuou: Se ama a
Medicina, deveria pensar melhor e cursá-la, tem tempo,
dinheiro e é inteligente. Deve fazer o que gosta e não o
que seu pai quer.
— Amo meus velhos, ouço desde pequeno que irei
substituí-lo, até agora achei que era mesmo, mas, agora,
começo a pensar o contrário e querer estudar Medicina.
— Disse "achava", não acha mais, deve pensar
seriamente no assunto e ver o que quer - disse Luísa -,
bons médicos fazem falta principalmente os que amam a
Medicina.
— Você tem razão Luísa, estou confuso, vou pensar.
Acho que a Medicina ficou dormente em mim e agora
acordou, dá para entender?
— Sim, foi assunto deixado de lado por você e agora
veio forte. É para pensar bem, tenho a certeza de que seu
pai entenderá, falou Andréa.
— Não sei, e se ele sofrer com isso?
— Que nada, é você que se frustrará em deixar de
fazer o que gosta - falou Luísa, otimista, como sempre
querendo ajudar.
A turma foi chegando alegre, trazendo doces, balas,
brinquedos, etc., para distrair as crianças. Caio não sabia,
ficou desapontado por não ter trazido nada.
— Caio, oportunidades não faltarão, temos sempre
estes programas - esclareceu Luisa.
Com entusiasmo acomodaram-se nos carros e
partiram alegres.
Ao chegar ao Orfanato, às crianças que já os
conheciam vieram correndo recebê-los.
Caio emocionou-se ao vê-los, não pôde deixar de
pensar que poderia ter sido uma daquelas crianças, se
Ofélia não o tivesse aceitado. A turma organizou
brincadeiras. Tocaram violão, cantaram, tomaram lanche
no pátio, distribuíram os doces e brinquedos.
Caio no começo ficou olhando, sentia-se engasgado
pela emoção, acabou pondo-se à vontade e foi brincar
com os garotos, jogou bola, serviu de cavalo para os
menores. Acabou cansando, mas, sentiu um bem-estar
enorme ouvindo as gargalhadas das crianças.
Já escurecia passando do horário do banho das
crianças. Luisa reuniu-os, sabiam que era para orar,
silenciosos fizeram um círculo de mãos dadas, oraram o
Pai-Nosso e Luísa agradeceu em poucas palavras a tarde
maravilhosa que tiveram. Luisinho foi convidado a orar. O
menino de dez para onze anos, negro de olhos grandes,
entrou na roda, olhou para o céu, disse alto e com
sinceridade.
— Papai do Céu, obrigado por ser nosso Pai,
sabendo do seu amor, já não nos sentimos abandonados.
Ajuda-nos a crescer e sermos bons para termos sempre
amigos. Porque a vida se enfeita com a flor da amizade.
Proteja também estes amigos, lembrando-os de voltar,
porque é tão bom tê-los aqui. Amém.
Os jovens despediram-se das crianças e partiram,
estavam todos felizes, mas fizeram o trajeto silenciosos,
estavam cansados. Caio deixou os jovens que estavam
com ele em frente ao Centro Espírita e foi para casa. Após
tomar um banho, ficou no seu quarto lendo e não saiu
como estava acostumado.
"Como este livro me esclarece! – exclamou -, será
meu livro de cabeceira!"
Na segunda-feira pela manhã ao tomarem o
desjejum, Caio pediu ao pai para que o dispensasse do
trabalho naquela semana. Paulo concordou e nem
perguntou o porquê. O medo de perder o amor do filho
fizera-o pensar mais neles e percebeu que os amava muito
e desejava vê-los bem e felizes. Admirava o filho mais
velho pela coragem, por sua atitude e por vê-lo tão
amoroso com Ofélia.
Caio foi para a Faculdade, ao retornar para casa,
almoçou, foi para o quarto e voltou à leitura. Queria ler os
livros que Irineu lhe emprestara e pensar no que ia fazer e
estudar. Por três dias, leu as obras de Kardec, achando
explicações para tantas indagações que antes nunca
entendera.
Quinta-feira marcara um encontro com Luísa e
Andréa na casa delas para discutir e comentar o
Espiritismo. Caio lá estava no horário marcado. A mãe das
moças recebeu-o bem e acomodaram-se na sala. Logo
após, chegou Flávio, amigo delas que também se
interessava pela Doutrina.
Luísa fez uma prece, abriu o Evangelho e leu um
texto: "A Ventura da Prece".
Caio já tinha lido, mas escutar parecia-lhe diferente.
Preces, orvalho divino; preces suavizam o calor das
paixões, levam-nos ao caminho que conduz a Deus;
preces que harmonizam; preces que consolam.
— Que beleza - exclamou Flávio -, então no
Espiritismo dá-se valor à oração?!
— Sim e como! - disse Andréa. Oração é o alimento
da Alma, ao orar o Pai Nosso, pedimos: "O pão nosso de
cada dia nos dai hoje." Alimentar o corpo é importante, é
dar valor ao período encarnado, neste envoltório do
Espírito, não só devemos alimentá-lo, como higienizá-lo,
cuidar dele evitando tudo o que lhe é nocivo, não viciá-lo.
Mas, caros amigos, devemos também alimentar o Espírito.
Somos eternos e sobrevivemos após a morte do corpo.
Alimentamos o Espírito com orações, bons pensamentos,
praticando o Bem, amando a todos como irmãos,
perdoando todas as ofensas e não fazendo mal a ninguém.
E nós espíritas devemos alimentá-lo também com estudos,
conhecimentos, porque ao desencarnarmos partiremos do
plano físico para o espiritual somente com a bagagem de
conhecimentos e com nossas obras.
— Devemos pedir em oração o que almejamos? -
indagou Flávio interessado.
— Sim, por que não? - esclareceu Luísa -, nossos
pedidos devem ser justos e simples, devemos pedir só o
Bem, tanto para nós, como para outras pessoas. Devemos
também pensar que antes da nossa vontade, dos nossos
desejos, está a Vontade e Sabedoria do Pai que nos ama.
— Foi isto que Jesus fez no Horto na quinta-feira
Santa - lembrou Caio.
— Sim - continuou Luísa -, porque nem sempre o
que pedimos é realmente bom para nós, para nosso Eu, ao
nosso Espírito. Ás vezes desejamos algo que seria como
dar uma faca afiada a uma criança, satisfazendo-a, mas
estaria correndo o risco de cortar-se e sofrer mais. Porém,
só o fato de orar com sinceridade e fé, acalma-nos e uma
doce paz nos envolve, isto é o mais importante.
— Que força poderosa! - Exclamou Flávio.
— Sim - confirmou Luísa -, que força maravilhosa
temos ao nosso dispor e acessível a todos!
— Luísa - disse Caio -, narra-nos os Evangelhos que
Jesus ora muito.
— É verdade, o Mestre deu-nos exemplos; muitas
vezes afastava-se de todos para meditar e orar. E, a
pedido dos discípulos, ensinou-nos a oração belíssima do
Pai-Nosso, a nossa oração dominical.
Contaram alguns fatos sobre o assunto, do poder da
oração, que nem viram o tempo passar, já escurecia
quando Caio e Flávio foram embora.
— Vou ser espírita, disse Caio - pensando alto -, vou
ser um espírita estudioso. Por enquanto não direi nada em
casa, é melhor dizer aos poucos.
Antônia e eu fomos visitar Marcelo e família. Cidinha
sentia-se magoada, mas, com o agrado e carinho dos pais,
recuperava-se, passara a semana entre compras e as
amigas. Marcelo tudo fazia para que não se falasse em
Caio e evitando que Helena e a filha tivessem esperanças
de uma reconciliação. Admirava mais ainda Caio e
pensava que perdera o genro ideal, orava por ele para que
não sofresse e que fosse feliz. Diariamente conversava
com Paulo trocando notícias e, como o amigo, respeitava
Caio por sua atitude.
— Antônia - disse-lhe -, tudo está bem agora. Caio
acha-se bem e na Doutrina Espírita compreenderá e
superará melhor os problemas. Com tudo resolvido, parto.
— Agradeço-lhe pela ajuda Antônio Carlos. Mas,
antes de ir, venha dar uma olhada em Ofélia.
Ofélia encontrava-se sozinha na sala, estava
tranqüila e calma, orava, aproveitando o silêncio que
reinava àquela hora na casa. Observei-a, o corpo físico de
Ofélia enfraquecia dando sinais de um desligamento lento.
Seu coração poderia parar a qualquer momento.
— Deverá desencarnar logo. Deseja Antônia que a
ajude?
— Ofélia deve ser libertada da prisão da carne,
regressa feliz, é boa, justa, sofreu anos com resignação.
Vendo as irmãs aqui com seus filhos, sente-se tranqüila.
Não dispõe Antônio Carlos, de mais alguns dias?
Pensei por instantes.
— Antônia devo voltar aos meus afazeres, mas
disporei de algumas horas por dia para estar aqui, ajudar
Ofélia e na decisão de Caio.
— Decisão de Caio?!
— Tudo indica Antônia, que seu filho cursará
Medicina. Veremos o que decidirá.






















XI - O PERDÃO



Já ia sair, quando Rosa entrou na sala, esperei,
acompanhamos o diálogo das irmãs.
— Oi, Ofélia, posso lhe fazer companhia?
— Rosa, senta aqui perto de mim. Estava mesmo
querendo falar com você a sós, desde que chegaram,
aguardava esta oportunidade. Rosa, você continua sendo
meiga e boa, não mudou nada. Sinto remorsos pela forma
com que a tratei. No passado, na mocidade, fiz muitas
coisas sem pensar. Quero pedir-lhe perdão. Não, por
favor, não fale nada, escuta-me. Você namorava com
Paulo, sabia que gostava dele, não tinha que me
intrometer entre vocês. Mas fiz, sem me importar com
você, deve ter sofrido, fiz você sofrer, perdoa-me.
— Ofélia, isso foi há tanto tempo! Não penso assim,
nada me fez de mal. Somente eu gostei dele na época,
não ele de mim. Acho, tenho a certeza de que foram feitos
um para o outro. A duas metades da laranja...
Riram.
— Não guardou mágoas mesmo?
— Não, Ofélia não guardei nem as tive.
— Obrigado - suspirou Ofélia contente -, que bem me
faz ouvir isso!
Passaram a conversar sobre outros assuntos.
— Acho Antônio Carlos - disse Antônia -, que só
faltava esse gesto para Ofélia desligar de qualquer vínculo
de que poderia ter culpa. Pediu perdão à irmã, humilhou-
se, reconheceu seu erro e de coração reconciliaram-se.
— Ofélia prepara-se para o desencarne, todos os
encarnados deveriam fazer isso e todos os dias, para não
temer a morte do corpo. Quem sabe o dia em que
desencarnará? Ofélia com consciência tranqüila está livre,
não possui vícios nem desejos. Porque, minha amiga,
devemos destruir nossos vícios, libertarmos de todos os
desejos encarnados para que eles não permaneçam com o
corpo perispiritual após ter se separado do corpo físico.
Pediu perdão, o perdão faz um bem enorme a quem pede
com arrependimento sincero, pedir, independente ou não
de sermos perdoados pelo ofendido, recebemos a paz e a
tranqüilidade. Agora Ofélia está em paz.
— Rosa já perdoou a irmã há tempo. Como ela é
boa, não guardou rancor, embora tenha sofrido muito.
— Se todos, Antônia, agissem assim, o mundo seria
bem melhor. Jesus recomendou-nos tantas vezes que
perdoássemos, mesmo sem que nos pedissem perdão.
Ainda mais quando pedido. Não perdoar é ligar ao ofensor
com rancor, ódio e talvez no futuro obsedar. Quem não
perdoa, sofre, e sentir-se não perdoado, amaldiçoado,
sofre-se mais. Não guardar rancor é estar propício a ligar
ao Alto, com as forças do Bem. Como é bom saber-se
perdoado e perdoar a todos com sinceridade, esquecendo-
se das ofensas recebidas.
Após o jantar, reunidos na sala, Zélia com
simplicidade pegou o Evangelho, olhou para Ofélia e disse
alto:
— Ofélia, acostumamos Rosa, meu querido esposo e
eu, uma vez por semana ler o Evangelho e orarmos juntos.
Família que ora unida, permanece unida. Se permitir, se
quiserem, gostaria de ler um pedacinho.
— Que feliz idéia, tia, maravilhosa! - exclamou Caio
entusiasmado.
— Certamente, Zélia, gostaria de ouvi-la - disse
Ofélia.
Silenciaram, Paulo meio a contragosto, largou o
jornal que lia. Zélia abriu o Evangelho, onde já estava
marcado, era o Evangelho de Mateus, a parte de que mais
gostava O Sermão da Montanha. Sérgio e Carla que
inicialmente, não gostaram da idéia, aos poucos foram se
envolvendo com a leitura. Zélia lia com amor, sua voz
harmoniosa se fez ouvir por uns quinze minutos. Não fez
comentários. Fechou o livro e convidou a todos a orar um
Pai-Nosso.
Aproveitamos para doar energias benéficas e todos
se sentiram bem e gostaram.
— Tia, podemos reunir sempre para uma leitura! É
tão bonito! - disse Carla com sinceridade.
— É mesmo, também gostei - falou Paulo.
— Se quiserem, marcaremos um dia da semana,
logo após o jantar.
Todos concordaram, Zélia era católica, tinha o
conceito de que não são os cultos externos que levam a
Deus, mas, os ensinos sábios de Jesus e na vivência dos
Evangelhos estavam às setas do Verdadeiro Caminho da
Vida Eterna.
Logo após, Caio foi para seu quarto, não pegou
nada para ler como estava fazendo antes, pôs-se a
pensar: "Quero cursar Medicina, sinto que devo, é do que
gosto. Se já estive encarnado muitas vezes, acho que
tenho um compromisso com esta profissão. Hoje a
Medicina está tão profissionalizada, a maioria esquece a
parte humana dos que sofrem, só pensam na parte
material, tornando-a uma das profissões mais rendosas
neste país de tantas doenças. Comigo não será assim,
quero exercê-la usando meus conhecimentos igualmente
para todos. Tenho que falar com papai, mas como fazê-lo?
Mamãe, ela me ajudará. Será que meu velho ficará
aborrecido? Será que lhe darei desgosto? Bem, tenho que
tentar e fazer com que me entendam.".
Pensou bastante e decidiu: faria Medicina!
No outro dia, foi ao Centro Espírita tomar passe,
conforme informara-lhe Luísa. Estava lotado de pessoas
de várias classes sociais. Um senhor fez a oração, pediu a
todos para pensar em Jesus, não na imagem do
crucificado, mas do homem-Mestre, do Jesus amigo que
ensinava, curava e abençoava. Após, fez uma pequena
palestra explicando o que Jesus disse ao falar a
Nicodemus sobre a necessidade de nascer de novo para
ganhar o Reino de Deus. Da necessidade que todos nós
temos de reencarnar para aprender e crescer
espiritualmente.
Caio prestou muita atenção, sentiu que não voltara a
encarnar à toa e que seu nascimento, o abandono de sua
mãe, tinham um significado que esquecera com a
encarnação.
— É necessário - continuou o orador -, encarnarmos
tantas vezes que for necessário para progredirmos, mas é
necessário também aproveitarmos à oportunidade e
mudarmos a forma de viver seguindo os exemplos
evangélicos, praticando o Bem, amando a todos como a
nós mesmos. Não deixando para o futuro, para outras
encarnações esta mudança, é chegada a hora de
fazermos,construir,plantar o Bem para uma boa colheita no
futuro.Mais importante para nós que conhecemos a Lei da
Reencarnação, é construir um futuro melhor, é
aproveitarmos os conhecimentos espíritas para libertarmos
no presente, fazer, progredir nesta encarnação agora.
"Como a Lei das Reencarnações é divina, pensou
Caio, que justiça! Entendê-la é reconhecer a Bondade e o
Amor do Criador. Devo ter vindo a Terra encarnado para
uma finalidade, acho que é na Medicina que encontrarei
oportunidades de construir talvez, o que destruí no
passado, de acertar onde errei."
Foi formada uma fila e Caio feliz caminhou para ela.
Um grupo, formado por dez pessoas, estava dando
passes. A sala para tal evento estava impregnada de bons
fluidos, a equipe espiritual que ali auxiliava era grande e
tudo fazia para ajudar com carinho os encarnados.
Caio sentou-se na frente de uma senhora de feições
bondosas para receber seu passe. Antônia aproximou-se,
falou à passista, que era médium, que recebeu a
mensagem e transmitiu a Caio:
— Sua mãe manda-lhe abraços. Ela ama-o muito,
reconhece seu erro, pelo qual muito sofreu e roga-lhe que
a perdoe.
Caio olhou assustado para a passista. Mãe para ele
era Ofélia, recordou então da outra, da que lhe dera a
oportunidade da encarnação, ela tinha desencarnado e
deveria estar ali no momento. Ficou emocionado, não a
amava, nem mesmo pensava nela. Ela sofrera e rogava-
lhe perdão, não tinha nada para lhe perdoar, não se sentia
prejudicado. A médium e Antônia aguardavam resposta e
Caio foi espontâneo em responder:
— É Deus quem nos perdoa. Não tenho nada para
perdoar, mas se ela pede-me perdão, perdôo sim, e que
tenha paz.
Rápido veio-lhe na mente o que o preocupava no
momento e indagou:
— Ela poderia responder-me, o que devo fazer?
Continuar meus estudos ou fazer outros?
Antônia, emocionada, olhou-me pedindo ajuda,
respondi em seu lugar, no intercâmbio maravilhoso, a
médium transmitiu meu pensamento:
— Ser útil é a maravilhosa oportunidade de reparar
nossos erros e acertarmos o caminho que nos leva à
verdade e felicidade. São muitas as formas de servir, em
todas as profissões temos a possibilidade de ser útil.
Porém, é com a Medicina que se identifica e será feliz em
exercê-la.
Caio levantou-se, sentiu-se engasgado pela emoção,
a médium falara de sua mãe carnal desencarnada e da
Medicina não mencionada. Sentiu-se feliz em receber
estas provas, bebeu a água fluida e saiu. Voltou em paz
para casa.
Antônia voltou-se para mim com lágrimas nos olhos:
— Agora entendo o que Ofélia sentiu ao ser
perdoada pela irmã. Que Deus proteja meu Caio, o filho
que abandonei.
Caio chegou em casa cedo e só encontrou a mãe,
todos tinham saído e as tias foram com Carla ao cinema.
Caio aproveitou e sentou-se ao lado da mãe numa
almofada, colocando a cabeça em seu colo. Como de
costume, Ofélia, carinhosa, passou as mãos pelos cabelos
do filho.
— Mamãe, sofro em vê-la nesta cadeira.
— Não deve preocupar-se comigo, meu filho,
acostumei e não sofro.
— Penso no por quê, a senhora tão boa inválida
assim.
— Já pensei muito nisso, não por achar-me boa, mas
se poderia ter algum motivo. Não tive resposta às minhas
indagações, sinto que é justo merecido. Não sei se você
me entende, Caio, creio em Deus, Pai Justo e na Sua
Sabedoria; muitos acontecimentos não entendemos, mas
sinto-os verdadeiros. Senti a necessidade de aceitar e fiz.
É como se tivesse escolhido passar por isso, é como
sofrer por livre escolha, não sei explicar-lhe, sinto-me em
paz aceitando.
Caio não respondeu, pensou que no exemplo de sua
mãe estava a confirmação da reencarnação. Sua mãe
devia estar quitando por vontade própria seus erros, as
dívidas não cobradas por ninguém a não ser por ela
mesma, erros de outras existências.
— Caio meu filho, quero pedir-lhe uma coisa.
— Tudo o que quiser mamãe.
— Peço a você, porque é mais velho, bom e
compreensivo. Estive afastada de suas tias, erro meu, me
arrependo, minhas irmãs não têm condições financeiras
para viver. Gostaria de dar lhes tudo até o fim de suas
vidas. Não sei quando tempo vou ficar aqui, acho mesmo,
querido, que não me demorarei entre vocês.
— Mamãe!
— Não me interrompa, filho, quem sabe do futuro?
Não se preocupe, talvez enterre a todos. Para ficar
tranqüila quero que me prometa se quiser é claro, cuidar
de suas tias, se partir primeiro.
Ofélia falou com ternura, Caio olhou-a com muito
amor, a mãe confiava a ele as irmãs, sentiu seu carinho,
sentiu-se ligado pelos laços do afeto. Não era necessário
ser parente da carne para estar ligado pelo amor maternal.
Levantou-se, abraçou-a e beijou-a.
— Prometo, prometo e prometo. Se for para deixá-la
tranqüila, confie em mim, cuidarei delas, tenho a certeza
de que não necessitarei de cumprir a promessa, mas, se
tiver, farei com todo carinho.
— Obrigado, fico mais tranqüila com sua promessa.
— Mamãe ainda vou curá-la, como gostaria de vê-la
andando!
— Com idéias de Medicina outra vez na cabeça? Faz
tanto tempo que não falava neste assunto, pensei que
tinha desistido.
— Estou pensando seriamente em cursá-la, foi
sempre meu sonho, foi o que sempre quis. Deixei de lado
esta vontade pensando em ficar no lugar de papai, mas
não é isto o que quero. Vou deixar meu Curso de
Administração e estudar para o vestibular de Medicina, só
que temo papai.
— Paulo terá um grande desgosto. Caio médico
parece-me uma profissão tão sacrificada, cuidar de
doentes, ver sofrimentos, fazer plantões, conviverá com
dor, morte, trabalhar com seu pai será mais fácil!
— Quando gostamos, quando fazemos com amor,
tudo é fácil, gosto das indústrias, sei o que elas
representam para papai, mas há Sérgio que gosta e
idealiza cuidar de tudo. Não quero dar desgosto a vocês,
são tudo para mim e sou-lhes grato. Às vezes penso no
que seria de mim se não fossem vocês.
— Que bobagem, filho! - exclamou Ofélia olhando o
filho, temeu por instantes que ele soubesse da verdade,
não queria que soubesse, não queria que sofresse. Ele
falava tão estranho, vendo-o tranqüilo, acalmou-se. Caio
percebendo o receio da mãe, sorriu e acariciou-a. Ofélia
continuou:
— Seu pai e eu fazemos o que nos é devido,
amamos vocês três, quanto a mim, filho, quero-o feliz, não
me importa se é como mestre, médico ou administrador.
Seu pai está estranho, você terminou seu namoro com
Cidinha e ele nem se importou. Paulo o quer trabalhando
com ele, mas o quer feliz na profissão que escolher, falarei
com ele, farei ele entender.
— Obrigado, mamãe, ter a senhora ao meu lado, é
tudo o que quero!
Naquela noite mesmo, Ofélia falou com Paulo, que a
escutou, triste:
— Ofélia, sonhava com Caio no meu lugar, o menino
é bom, honesto e inteligente, todos gostam dele.
— Paulo acabamos por forçar Caio a estudar o que
não queria, ele sempre quis ser médico.
— Logo médico, trabalha tanto, faz plantões de
noite, de dia, não tem sossego e ainda ganhará bem
menos.
— Ele gosta e será bom profissional.
— Como negar algo a ele? Sei que deve ter pensado
muito para decidir. Não vou impedir. Não devo interferir no
que ele quer.
— Não fique triste, Paulo.
— Ofélia, não posso me alegrar, é um grande sonho
meu que vai embora. É melhor conversar com ele, diga-lhe
para ir à tarde ao escritório.
No outro dia, Caio foi ver o pai sentia-se encabulado,
sabia que o estava magoando. Paulo olhou-o, Caio falou
baixo:
— Pai, desculpa-me, pensei muito mesmo, gosto
daqui, mas desejo, quero, sinto que devo ser médico, por
favor, entenda-me!
— Médico não é carreira fácil, lidará com dores,
doenças, só com tristeza, aqui é bem melhor. Caio não
respondeu, olhou-o somente. Paulo continuou. Está bem,
não vou mentir dizendo que estou alegre, faça como
quiser.
— Verdade? Posso também viajar?
— Prometi - disse Paulo sorrindo, vendo a alegria do
filho.
— Vou trancar a matrícula e vou aos Estados
Unidos, volto para estudar para o vestibular, pagará meus
estudos?
— Oh, filho! Por que não pagaria? Não me fale
assim, o que é meu é seu, é nosso filho, se não fosse...
— Desculpa-me, pai, minha decisão nada tem a ver
com tudo aquilo, já esqueci, não devemos lembrar mais,
nada mudou, eu os amo muito.
Abraçou o pai, Paulo beijou-o na testa:
— Vá, vá, Dr. Caio, cuida de sua vida e faça o que
gosta. O mundo ganhará um médico estudioso e
responsável, cumpridor de seus deveres. Acabo de
entender que não é filho que realiza os sonhos dos pais.
Caio saiu feliz, foi trancar sua matrícula e tratar do
passaporte, viajaria logo.
































XII - O PASSADO



Voltei para a Colônia, retornei ao meu trabalho, a
curiosidade de contador de histórias veio forte e procurei
saber do passado das figuras principais da trama que se
desenrolava. Procurando o Departamento encarregado,
vim, a saber, o que ocorrera na última existência deles.
Dias depois, fui ver Antônia.
— Aqui está tudo bem, Caio prepara-se para viajar,
Cidinha está mais conformada e Ofélia sente muitas dores
e cansaço, não está longe sua libertação, devendo ser
antes de Caio partir.
— Antônia, procurei saber do passado de vocês,
compreendi o porquê do sofrimento de Ofélia, numa
cadeira de rodas, inválida há tanto tempo.
— Posso saber?
— Se quiser escutar... Com a afirmativa de cabeça
de minha amiga, narrei: Não darei os nomes que tiveram e
sim os atuais, para facilitar. Paulo fora inteligente e
trabalhador, de família de posse média, casou-se jovem
com Rosa, e, após o casamento, foi administrar um grande
armazém do sogro. Esperto para negociar, o comércio
prosperou em suas mãos. Viviam Paulo e Rosa tranqüilos
e tiveram dois filhos: Sérgio e Carla.
Foi então que Paulo conheceu Ofélia, moça pobre
que trabalhava de doméstica. Há muitas encarnações
foram Paulo, Rosa e Ofélia um triângulo amoroso, as duas
disputaram o amor dele.
Ofélia tudo fez para conquistá-lo e não foi difícil
conseguir, tornaram-se amantes. A cidade em que
moravam era pequena e logo Rosa e seu pai ficaram
sabendo. Rosa suportou a humilhação de ser traída, tudo
fez para separar o esposo da amante, pedia sempre de
forma delicada e Paulo prometia deixar à amante e não o
fez. Resignada, Rosa passou a cuidar somente dos filhos
que adorava.
Do romance de Paulo e Ofélia, nasceu Caio
registrado só no nome de Ofélia. Paulo então alugou uma
casa razoável para Ofélia e o menino, e passou a
sustentá-los. Anos viveram assim, o sogro de Paulo
adoeceu gravemente, temendo deixar a fortuna nas mãos
do genro e que este desse parte do seu dinheiro à amante
e ao filho bastardo, chamou o genro e disse-lhe:
"Paulo, sua aventura faz infeliz minha amada filha,
gosto de você, fez prosperar minha fortuna nestes anos, é
trabalhador e honesto. Não ficarei vivo muito tempo e vou
deixar tudo o que tenho para meus dois netos, Sérgio e
Carla. Temo que deixando para Rosa, você, casado com
ela em comunhão de bens, venha a dar o que é meu para
sua amante que odeio e seu bastardo filho. Fiz meu
testamento e tenho que nomear um tutor, poderá ser você,
mas com a condição que você também passe o que é seu
para Sérgio e Carla, se não o fizer nomearei tutor dos
meus netos, José, meu empregado, e desde já passará ele
a cuidar de tudo, inclusive da direção do armazém."
"O senhor não pode fazer isso?!", espantou Paulo.
"Posso e farei", continuou o sogro. "Se fizer já o que
quero, continuará a cuidar de tudo como sempre. Por que
hesita, Paulo? Sérgio e Carla devem herdar tudo. Rosa já
concordou. Dou-lhe três dias para responder-me." ·.
Paulo revoltou-se, ficou nervoso, amava o que fazia
e se orgulhava em ser o chefe. Entretanto, conhecia o
sogro, sabia que não voltaria atrás; ou fazia o que ele
queria, ou José assumiria tudo. O sogro de Paulo nesta
existência foi Sr. Caio seu pai, que odiava a amante do
genro, não gostava da esposa do filho, demorou para ter-
lhe amizade.
Paulo fez o que o sogro queria, escondeu este fato
da amante, entretanto tornou-se inquieto e nervoso. Rosa,
sabendo causa, ignorou-o. Sr. Caio fez tudo bem feito,
elaborado por um bom advogado, foi tudo registrado em
Cartório. Assim, Paulo tornou-se pobre, era só tutor dos
filhos. Logo após, o pai de Rosa faleceu e a notícia do
testamento espalhou-se pela cidade.
Ofélia não gostou, pensava e queria que Caio
herdasse, também, era filho de Paulo e tinha direitos.
Sonhava com o filho rico para que ele pudesse estudar.
Caio desde pequeno queria ser médico, brincava e só
falava nisso. E, para Ofélia, ele tinha jeito de médico e
sonhava em formá-lo.
Caio era bom menino, não entendia o que ocorria
com os pais, nas visitas paternas, a mãe fazia-o tomar-lhe
a bênção e sair em seguida. Temia o pai e sentia vergonha
em sua frente. Tentou saber do porquê de ele não morar
com eles, indagou da mãe, esta ficara nervosa e lhe
batera, preferiu então não indagar mais. Estava proibido
de ir para os lados da casa do pai e de conversar com os
outros irmãos. Isso o entristecia, sempre quis ter irmãos e
não podia nem conversar com eles nem cumprimentar o
pai fora de sua casa. Conhecia seus irmãos, via-os de
longe com a mãe deles, achava-os bonitos, foi só na
adolescência que entendeu tudo.
Inconformada com o procedimento de Paulo, Ofélia
exigiu do amante que doasse alguma propriedade a Caio,
com a negativa deste, começaram as brigas entre os dois.
Paulo começou a se cansar de Ofélia, de seus
queixumes, começou a se esquivar, rareando as visitas e
dedicando-se mais aos filhos e a doce esposa.
Ofélia não se conformou. Paulo ainda os sustentava,
mas ela sentia que o perdera. Havia ela feito muitos
abortos, tivera Caio na esperança de prender o amante e
agora queria, através do filho, garantir seu futuro.
Na tentativa de tê-lo como antes, mandou-lhe um
bilhete marcando um encontro. Paulo compareceu, mas
estava frio e indiferente Ofélia tornou-se agressiva e
brigaram violentamente. Paulo aos gritos disse que estava
tudo terminado e se ela o importunasse novamente não
daria mais dinheiro nem para o filho nem para ela.
"É seu filho e tem que sustentá-lo", disse indignada
Ofélia.
"Ora, nem sei se o garoto é meu, faço muito em
sustentá-lo, não vou deixar nada a ele, nunca vou querer
bastardos. Filhos são só os da minha esposa que é
honesta. Bastardo não merece nada nem a amante."
Paulo saiu e Ofélia, em lágrimas, jurou vingar-se.
Esperou uns dias para ver se o amante mudava de idéia,
mandou-lhe vários bilhetes, que foram devolvidos. Paulo
também lhe negou dinheiro. Ofélia, com ódio planejou sua
vingança. Ela sabia de todos os costumes da casa do
amante e um destes pareceu-lhe importante: eles iam à
missa todos os domingos pela manhã.
Paulo morava com a esposa e os filhos na casa que
pertencera ao sogro, uma propriedade grande e bonita,
uma pequena chácara, não muito afastada da cidade, que
na verdade, era separada desta por um morro. Assim, para
irem à cidade tinham de subir o morro por uma estrada
bem cuidada e bonita, talhada na encosta, de um lado
barranco, do outro uma encosta pedregosa e buracos
perigosos.
Ofélia conhecia bem o local, muitas vezes fora
espionar a casa, Rosa e os filhos, corroída de ciúme e
inveja deles.
No domingo cedo foi para lá e escondeu-se perto da
cocheira. Viu o preto velho que cuidava dos cavalos
providenciar a charrete que os levaria à igreja.
Ao vê-lo afastar-se, talvez para avisar que a charrete
estava pronta, Ofélia correu até a cachoeira, pegando uma
faca que trazia escondida na cintura e rapidamente
examinou a correia que ligava a charrete aos cavalos. Viu
que estava seca e gasta, sorriu achando-se com sorte.
Cortou parte da correia, deixando-a presa só por um
pedaço, fugiu apressada, voltando à sua casa
cautelosamente, evitando ser vista.
Naquele domingo, Sérgio acordara febril e Rosa
achou melhor que o filho ficasse acamado e não quis ir à
igreja, preferindo fazer-lhe companhia. Foram à missa,
Paulo e Carla a caçula, que estava com oito anos, era uma
criança linda e inteligente.
Paulo gostava de andar com os cavalos a galope,
todos sabiam disso. Rosa sempre temia suas disparadas e
ele, quando estava com ela, ia mais devagar. Naquela
manhã, só com a filha, chicoteou os cavalos, dois
garbosos corcéis, que dispararam e puseram-se a subir o
morro. A filha ria, entusiasmada fechando os olhos,
sentindo o vento forte que desarrumava seus cabelos
longos.
A correia acabou se rompendo, desligando a
charrete dos cavalos que continuaram disparados e
assustados. A charrete voltou alguns metros, Paulo
pensou em pular, porém seu primeiro instinto foi salvar a
filha, mas, não teve tempo, rolaram pela ribanceira.
Paulo acordou horas depois já no seu leito, foi
socorrido por trabalhadores que também iam à cidade.
Reconheceu o médico ao seu lado. Sentiu fortes dores
pelo corpo todo, recordou o acidente e sentiu-se aliviado
por estar vivo.
— Carla, Carla, onde está você filhinha?!
Lembrou-se aflito da filha, o médico bondosamente
contou-lhe que a menina batera a cabeça numa pedra e
falecera.
Paulo chorou muito, sentiu-se culpado, Rosa
também sofreu muito, mas consolou o esposo. Passados
uns dias, Paulo percebeu que não movia as pernas e a
triste notícia o deixou desalentado, fraturara a coluna e
não mais andaria. Pensaram que o acidente poderia ter
sido proposital, mas não tiveram como provar já que a
correia estava velha. Todos sabiam que Paulo corria e
ninguém vira estranhos por ali, foi dado como acidente.
Tanto Paulo como Rosa não descartaram que poderia ter
sido tramado por Ofélia.
O casal passou a viver isolado e triste, Paulo tratava
dos negócios em casa e Rosa passou a ir ao armazém e
logo Sérgio passou a ajudá-los e a cuidar de tudo. Com a
morte da irmã, passou a ser o único herdeiro. Sérgio viveu
muito tempo encarnado, foi honesto, simples, bom
administrador e empregador. Agora voltou com missão
maior, administrar uma fortuna imensa para o bem comum
de muitas pessoas, que, através de sua fortuna, terão
salários dignos de seus sustentos.
Paulo viveu oito anos no leito e desencarnou,
amargurado. Rosa cuidou dele bondosamente, mas
também se tornou triste e quieta, só se alegrando com o
filho.
Com a desconfiança de que poderia ter sido Ofélia a
causadora do acidente, Paulo não quis mais saber da ex-
amante e nunca mais os ajudou, não viu mais o filho e não
se preocupou com ele.
Para sobreviver, Ofélia voltou ao trabalho de
doméstica, tornou-se revoltada, descontava suas mágoas
no filho. Caio era boa criança, obediente, trabalhador e
ajudava a mãe em tudo que podia.
Ofélia dizia sempre ao filho:
"Como me arrependo de não ter abortado você
também. Se não fosse você, não teria que trabalhar tanto
assim."
Era o que realmente sentia em relação ao filho, não
ligou para o infortúnio do ex-amante, mas a morte da
menina a abalara, começou a sentir remorsos e a sonhar
sempre com ela. Tinha horror a estes sonhos, se acordava
durante a noite, fazia o filho ficar acordado ao seu lado. Já
com dez anos, Caio foi trabalhar numa farmácia começou a
ajudar nas despesas de casa, logo após a mãe parou de
trabalhar e Caio passou a sustentá-la. Viveram
miseravelmente e quando Caio completou dezoito anos
Ofélia desencarnou.
Paulo e Ofélia encontraram-se no Plano Espiritual,
sofreram com rancores. Rosa, mais resignada, e Carla os
ajudaram a reconciliar, arrependeram-se, reconheceram
seus erros, pediram para reencarnar. Ofélia e Rosa seriam
irmãs carnais para aprender a se amar, prometeram que
iriam se respeitar e viver em paz. Ofélia, porém, culpava-se
muito por ter provocado o desencarne de Carla e a
invalidez de Paulo. Planejou ficar inválida para um resgate,
para ser livre do remorso que tanto a fazia sofrer, escolheu
passar pela mesma dor. E foi para proteger Carla, evitando
que fosse atropelada, que veio nesta vida a tornar-se
inválida.
Como vê Antônia, reencontraram-se e Caio veio até
eles como bastardo Sérgio e Carla tiveram como mãe a ex-
amante do pai que odiaram e, graças a Deus, aprenderam
a amar.
— É por isso - disse Antônia -, que Carla e Sérgio
gostam tanto de Rosa e, a cada dia que passa, ligam-se
mais a ela.
— Sim, reencontraram a antiga mãe. Ofélia a traiu no
passado, nesta duvidou da irmã e sofreu a dúvida por
anos, pensou que a irmã a traíra.
— Rosa é honesta e boa, nunca pensou em trair
ninguém.
— Ofélia foi traída, Paulo teve outras amantes.
— Sim, fui uma delas. Diga-me, Antônio Carlos, o
que aconteceu a Caio?
— Caio gostava de seu trabalho, tornou-se boticário
na farmácia em que trabalhava. Após a morte de sua mãe,
sua vida melhorou e passou a cuidar melhor de si mesmo
e dedicou-se ao trabalho. Caio há muito vem ligado à
Medicina, porém, nunca exerceu como deveria um bom
cristão, com humildade e bondade. Orgulhoso por ser
médico, julgava-se melhor que os outros. Nessa existência
anterior, como lição a seu Espírito, teve vontade de
estudar e não pôde, aprendeu a dar valor aos estudos.
Mas quem sabe recorda. Caio entendia de doenças e
remédios e tornou-se um boticário, um farmacêutico
respeitável, muito procurado que atendia a todos com
carinho.
— Quase que Caio nesta existência não cursa
Medicina, fazia outro curso - comentou Antônia.
— Antônia, quem quer ser útil e crescer em qualquer
profissão encontra oportunidades. Caio, embora tenha
estudado Medicina no espaço antes de reencarnar, não
assumiu compromisso para exercê-la novamente
encarnado. Muitos fatores, acontecimentos, influem no
estágio do corpo, podendo mudar muito os planos.
Aprendemos muito em cada função, cada profissão
exercida. Espírito livre tem gostos e preferências. Caio que
nunca deixou de amar a Medicina, com a mudança que
houve em sua vida, com a descoberta de sua adoção,
ficou desejoso em exercê-la com maturidade e bondade.
— E você, meu amigo, planeja ser médico
novamente, quando encarnar? - perguntou Antônia
sorrindo com sua indiscrição.
— Tenho ainda muito tempo de trabalho
desencarnado, quando encarnar não sei o que poderá
falar mais alto, meu amor pela Música, pela Literatura ou
pela Medicina. Espero somente servir a Deus em qualquer
função, minha indiscreta amiga.
— E Cidinha, Antônio Carlos? Minha filha ficou órfã,
também foi adotada.
— Cidinha é ligada aos pais adotivos que por abusar
da paternidade não puderam gerar seus próprios filhos.
Veio e é ente querido por vias ilegítimas, mas legítima pelo
amor.
— Não estou ligada ao grupo? Caio e Cidinha são
estranhos para mim?
— Estranho ninguém é um do outro, somos irmãos e
a Humanidade toda é nossa família. Por afinidades e
carinho formamos grupos e os mais esclarecidos ajudam
os retardatários.
— Devo ser uma das retardatárias, destas pessoas
que só pensam naqueles que a amam para receber
benefícios - disse Antônia, melancólica.
— Antônia, você tem sido egoísta, não ligando
verdadeiramente para ninguém. Agora compreende, ficou
preocupada com os filhos e ama-os com carinho, começa
a metamorfose de lagarta a borboleta.
— Obrigada. Grata estou meu amigo, disposta a
fazer tudo para melhorar. Que fui no passado?
— Você vestiu na vida anterior corpo do sexo
masculino. Seus pais foram os mesmos que teve nesta,
foram ricos, fizeram-lhe todos os gostos e caprichos.
Orgulhoso e libertino abusou de muitas mulheres e as
abandonou. Seus pais, cientes do erro que cometeram na
sua educação, retornaram pobres e receberam-na por
filha, deram-lhe amor e tentaram dar-lhe boa formação. Por
eles, foi de grande proveito à lição da pobreza, sofreram,
resgataram só que não conseguiram fazer tudo o que
pretendiam com você, conduzi-la ao bom caminho. Você
acabou ligando-se a Paulo, depois a Jerônimo que a
abandonaram como você fez a outras no passado. Nem
afetos maternais despertaram em você amor na época,
acabou a dor, sábia orientadora, ensinando-a a lição,
despertando-a para os valores reais da vida.
— Hoje, amo tanto meus pais, meus filhos e os
amigos que servem de pais aos rebentos que abandonei.
— Quando aprendemos a amar, tornamo-nos
melhores, mais compreensivos e menos egoístas e, se
purificarmos e ampliarmos este Amor, nossa família será
toda a Humanidade.






















XIII - LIBERTAÇÃO DE OFÉLIA



Caio mudara, estava tranqüilo pelo problema
resolvido, voltara a ser o rapaz alegre de semanas antes.
Não pensava mais em Cidinha, evitava vê-la ou falar dela.
Aproveitou os dias que esperava para partir, para estudar
o Espiritismo. Uma questão veio a preocupá-lo, como
médico teria muitas responsabilidades, e se falhasse?
Poderia cometer erros.
Foi ao Centro Espírita no dia programado para
passes, no final, pediu ajuda a Irineu que prontamente
atendeu-o.
— Será, Irineu, que agirei certo? Agora, conhecendo
a Doutrina Espírita, consciente do que seja errar, temo.
— Caio meu rapaz, não seja como o início da
Parábola dos Talentos, o que recebeu um e o enterrou.
Quando se erra com vontade de acertar, o erro não existe
e sim um aprendizado. Erramos quando temos plena
consciência e o queremos. Se deixar de fazer por medo,
pensando se irá errar, ou não, enterrará a oportunidade.
Você Caio, estudando e seguindo o Espiritismo, terá as
setas do caminho iluminadas. Caminhe, faça o que tem
que fazer com amor, não errará, sim multiplicará seus
talentos.
— Irineu, vou deixar um futuro garantido
financeiramente para ser médico e não viso na Medicina
lucro material, você acha certo?
— Nós encarnamos sem dinheiro e dele partiremos
igualmente sem levar um centavo. É justo receber
remuneração pelo trabalho honesto, mas ganhos materiais
não nos devem preocupar em excesso. Nós só
alcançaremos o equilíbrio não alegrando com o lucro nem
entristecendo com o prejuízo. Se você visa ser útil, a
Medicina é a melhor escolha. Só ganhará o bem que fará,
transformará em virtudes que promoverá a mais aguda
inteligência e será um facultativo que amenizará dores.
Caio, a sede de atividades, como ganho de capital, mata
em nós o senso de referência espiritual. Nossa
preocupação com o material não deve ser maior do que
com a espiritual. Acho certa sua escolha.
— Irineu, há muitas tentações, como ficar só no
Bem?
— Tudo o que existe no mundo, tem caráter misto,
semelhante a uma combinação de terra e açúcar. Seja
como uma sábia e laboriosa formiguinha, que pega
somente o açúcar, deixa de lado a terra. Achamos sempre
a verdade, o Bem quando procuramos com sinceridade.
Saberá seguir o Bem.
Caio, satisfeito, despediu-se de Irineu, o amigo
respondera-lhe a contento.
No domingo seguinte, os jovens foram novamente ao
orfanato. Caio e Luísa foram brincar com as crianças
menores e ficaram conversando:
— Luísa, é lindo o que fazem jovens pensando em
ajudar.
— Caio, devemos ajudar quando temos disposição e
saúde, quando não tivermos, aí, necessitamos de ajuda. Li
num livro:
"Devemos chamar Deus para estar conosco no
Verão de nossas vidas, no Inverno pode ser que o
chamemos e Ele não possa vir."
— Beleza! Que contraste, uns ajudando e outros tão
necessitados. Aqui temos órfãos e há, pelo mundo, os que
estão em situações bem piores, abandonados e na
miséria. Qual é sua opinião sobre este assunto, sábia
Luísa?
— Quem me dera ser sábia, mas, se querer é poder,
almejo aprender, aproveitar as oportunidades que estou
tendo e tornar-me mais inteligente. Caio miséria,
abandono, doenças são chicotes do nosso Carma, que,
muitas vezes, força-nos a buscar o verdadeiro significado
da vida. Nada é injusto, estas crianças estão tendo o
aprendizado que necessitam.
— Será que conseguirei fazer todo o Bem que
almejo?
— Vai fazendo, fazendo, um dia verá feito.
Um menino de sete anos aproximou-se deles e, sem
motivo, deu um tapa em um dos pequenos.
— Não faça isto! - Caio segurou-lhe a mão.
— Por que lhe bateu? - indagou Luísa.
— Por que gosto de ser mau, de ser importante.
— Que pensa em ser quando crescer? - indagou
novamente Luísa, tentando entender o garoto.
— Chefe de bandidos.
A resposta veio tão espontânea que deixou os
jovens de boca aberta e o menino, ágil, correu misturando-
se com os outros de seu tamanho.
— Que me diz agora? - Indagou Caio.
— Se não soubéssemos da Lei da Reencarnação,
buscaríamos mil maneiras de entendê-lo, mas, eis aí meu
caro Caio um Espírito rebelde, não doutrinado, encarnado,
nada aprende das lições que a vida lhe dá. Vou tentar
conversar mais com ele nas próximas visitas e orientá-lo.
— Noto Lu, que muitas das crianças são pacíficas,
sentem a falta dos pais de carinho, outras são revoltadas e
agressivas. A adoção não seria melhor a elas?
— Claro todos nós concordamos que o melhor a
todas estas crianças seria a adoção. Porém, o processo
de adoção, tem sido muito burocrático e muitas destas
crianças não são órfãs, como pensa. Têm elas pai ou mãe,
às vezes os dois, que na maioria estão separados e
largam os filhos nos orfanatos e não aceitam doá-los.
Depois a procura por adoção é para recém-nascidos, para
os maiores é mais difícil. Olhe aquele ali, é Alexandre, tem
oito anos, esteve três meses num lar para experiência, não
de certo, trouxeram-no de volta.
— Por quê?!
— Alexandre disse que gostou só que eles, os pais
adotivos, implicavam muito com ele. O casal disse que
Alexandre não tinha bons modos e que era lerdo para
aprender. Creio que não tiveram paciência com ele, ele
não conhece outro modo de viver sem ser o do orfanato.
Tem muitos casos assim.
— Lu, talvez não sejam eles parentes espirituais,
não é mesmo?
— É se fossem se amariam e se aceitariam. Mas,
Caio, temos que ampliar nossos laços afetivos e amar a
todos. Não se pode exigir perfeição de ninguém ainda
mais de crianças. Com um pouco mais de paciência,
haveria mais tolerância e menos abandonados.
— Tia Luísa, tive medo esta noite outra vez -
queixou-se uma menina.
— Neusa, ore sempre que tiver medo, fala para você
mesmo que não quer ter medo, enfrente o que teme e o
medo não a perturbará mais, querida.
A menina sorriu e correu para brincar, Luísa disse a
Caio:
— Caio só boas e positivas sugestões deveriam ser
dadas às crianças que deveriam ter só bons exemplos,
seriam educadas mais facilmente. Neusa é muito sensível
e impressionada, esta sempre com medo. Nosso grupo
tem feito orações por ela.
As brincadeiras deram fim na conversa dos jovens
amigos. Caio cansou-se, mas sentiu-se bem ajudando e
alegrando as crianças. Estava consciente de que a melhor
coisa que lhe aconteceu foi ter encontrado o Espiritismo.
Ao chegar à tarde na casa de Paulo, Antônia
conversava com uma simpática senhora que se apressou
em me apresentar.
— Esta é Ana, mãe carnal de Ofélia.
— Viemos, pela Bondade do Pai e merecimento de
Ofélia, desligá-la do corpo.
Foi então que vi com Ana dois socorristas que,
bondosamente ajudam com seu trabalho tantos a
desencarnar suavemente.
Conversamos por minutos trocando impressões e
fomos ver Ofélia. Nossa amiga estava sozinha na sala,
estava pensativa, saudosa, recordava partes de sua vida.
Sentia dores no peito desde cedo, ultimamente sentia
muitas dores e não estava se sentindo bem. Ia
regularmente ao seu médico, tomava os remédios certos,
sentia, entretanto que piorava. Não dissera a ninguém das
dores no peito e pensava: "Se me queixasse todas as
vezes que tenho dor, ou não me sinto bem, só faria isto e
quem me agüentaria"? É horrível escutar queixas e não é
bom viver se queixando. Depois, as dores são minhas, sou
eu quem deve aprender a conviver com elas. Resolveu
deitar-se.
— Talvez melhore - disse alto.
No leito orou com fé seu rosário. Mesmo orando, as
lembranças teimavam em lhe vir à mente, por muitas
vezes, suspirou alto. Quando acabou de orar seu terço,
completou sua oração de forma espontânea, bonita e
sincera. "Deus, tanto tempo estou neste sofrimento, será
que não pode libertar-me? Será que já não quitei minhas
dívidas? Lembro do servo da Parábola que devia dinheiro
ao seu senhor, foi levado à prisão até pagá-la. Estar
sofrendo assim, não é estar na prisão? Perdoei, pedi
perdão, fui perdoada. Será, meu Pai, que não dá para
libertar-me? Estou em paz, com a consciência tranqüila,
sei que após morrer viverei de outra forma, somos eternos.
Não temo morrer, mas peço-lhe não me desampare nesta
hora, permita que seus Anjos venham me ajudar. Vou em
paz, deixo todos que amo bem e, com minhas irmãs aqui,
meus filhos ficarão amparados. Se não for pedir muito,
meu Deus, olha eles por mim, queria que não sofressem
por mim, que não sentissem minha falta. Eu...".
O coração de Ofélia, fraco, falhando, parou. Os dois
socorristas começaram seu trabalho. Ela não sentiu mais
dores, por instantes foi como se adormecesse quase
desligada, voltou a si ou acordou e viu Ana à sua frente.
Ofélia já desvestida do corpo, exclamou:
"Mãe! Mãezinha querida!"
"Vem, filhinha! Vem, Ofélia!"
Sorridente Ofélia foi ao encontro da mãe e
adormeceu nos braços carinhosos de Ana.
Não demorou, Ofélia estava completamente liberta e
partiram, os dois socorristas e Ana levando-a para uma
Colônia.
Ficamos Antônia, eu e o corpo perecível de Ofélia
que ficara com expressão delicada e tranqüila. Minha
amiga falou:
— Antônio Carlos, Ofélia teve um desencarne suave
e bonito.
— Antônia, todos nós deveríamos fazer por merecer
um desencarne assim. Todos sabem que irão
desencarnar, entretanto não pensam nesta mudança para
si, não vivem de modo a merecer um desligamento sem
maiores dores. Para quem tem a consciência em paz, vive
no Bem, nada tem a temer na morte do corpo, que é um
processo normal, uma libertação. E Ofélia, estando
sozinha, facilitou o trabalho dos socorristas. Porque muitas
das vezes os encarnados, diante da partida do ente
querido, desequilibram-se na emoção, dificultando o
desligamento.
Ouvimos barulho, eram eles que chegavam, tinham
ido a uma sorveteria aproveitando a noite quente e bonita.
Como sempre, Paulo chegava e ia ter com a esposa,
não a encontrando na sala foi procurá-la no quarto. Ao vê-
la deitada, primeiramente pensou que dormia, depois
estranhou por ela ter se deitado tão cedo. Chegou mais
perto, perguntou baixinho, curvando-se para dar o
costumeiro beijo na testa.
— Ofélia, está dormindo? Está bem?
Estranhou mais ainda a esposa não responder,
observou-a melhor, tomou-lhe o pulso não conseguiu
achar, sacudiu-a.
— Ofélia, Ofélia!
Correu para a sala.
— Caio, depressa, chama o Dr. Silva, Ofélia não está
bem.
Voltou para o quarto, foram todos atrás dele, menos
Caio que correu ao telefone.
Zélia, ao olhar para a irmã percebeu que era inútil
qualquer socorro, afastou Paulo e os sobrinhos de perto
da irmã e pôs-se a massagear seus pulsos e braços.
Ninguém ousou falar. Carla e Sérgio, assustados,
refugiaram-se nos braços de Rosa.
Caio foi aguardar o médico no portão. O Dr. Silva
morava perto e veio em instantes, o filho mais velho de
Paulo acompanhou o facultativo ao aposento da mãe.
Dr. Silva não estranhou o chamado, sabia que Ofélia
estava para ter seu corpo físico morto a qualquer hora.
Percebeu assim que a viu que desencarnara, mas, para
certificar-se, auscultou-a demoradamente. Com voz
pausada falou:
— D. Ofélia está morta, descansou.
Carla gritou, chorando alto, seu choro foi
acompanhado por todos.
Paulo sentiu-se mal, Zélia e Dr. Silva correram para
ampará-lo e acalmá-lo. Sérgio e Carla abraçados a Rosa
recebiam dela conforto e carinho. Caio ficou em pé ao lado
de Ofélia, ficou olhando o corpo imóvel daquela que fora
sua mãe de amor, falou, em lágrimas:
— Aqui está só um cadáver, ninguém morre, somos
eternos. Mamãe Ofélia deve estar no reino de Deus, entre
os bem-aventurados, entre os que aprenderam a amar.
Obrigado, mamãe!
Zélia então percebeu o sofrimento de Caio, correu e
abraçou-o, então ele chorou nos braços da tia.
Foi com tristeza, mas sem desespero, que velaram e
enterraram o corpo de Ofélia. Os dias para eles passaram
lentos, no sétimo dia, como costume dos católicos, foram à
missa e, após, reuniram-se na sala. Caio falou
emocionado:
— Acho que devemos voltar normalmente aos
nossos afazeres. Mamãe entristecia quando via um de nós
triste e se ela pode nos ver, não ficará alegre conosco. Ela
somente partiu primeiro, não acredito em separação,
mamãe ausentou-se, encontrá-la-emos um dia. Devemos
retornar aos nossos afazeres e tentar nos alegrar, não são
todos que têm ou tiveram o privilégio de ter tido uma mãe
como ela. Será nosso exemplo por toda nossa vida. Acho
também que devemos dar tudo o que era de mamãe, suas
cadeiras, cama, roupas, guardados, nada servem, doados
serão úteis a outros que necessitam. Não é necessário
guardar nada para lembrarmos dela, mamãe sempre estará
viva em nós, em nossos corações.
— Posso fazer isso amanhã mesmo, disse Carla, tia
Rosa me ajudará. Mamãe agora não será mais inválida,
não necessitará mais da cadeira de rodas. Entristecia em
vê-la sentada nela, passou anos e por minha causa, sei
que ela não gostava de que se falasse neste assunto, mas
foi para salvar-me que sofreu o acidente. E, se as cadeiras
foram úteis a ela nestes anos, será agora a outros. Quero
lembrar de mamãe sadia, não doente.
— Isto mesmo, filha - falou Paulo -, lembraremos de
Ofélia como o Anjo Bom, e anjos não morrem.
— Com Ofélia morta - disse Zélia -, acho que Rosa e
eu deveremos pensar em mudarmos, arranjar emprego...
— Quê! Tia Zélia?! - exclamou indignada Carla -,
abandonar-nos agora que necessitamos das senhoras?!
— Não permitirei - disse Caio, lembrando da
promessa que fizera à mãe. Não pensem em ir embora
daqui. Cuidem de nós e permita-nos que cuidemos das
senhoras.
— Por favor - disse Paulo -, fiquem conosco, era isso
o que Ofélia queria e é o que queremos. Ajude-nos a
passar estes momentos difíceis, fiquem e cuidem da casa,
de nós, de Carla, tão mocinha ainda.
— Nunca vou me esquecer de mamãe - disse Sérgio
indo sentar perto de Rosa que o aconchegou nos seus
braços.
Zélia sentiu-se aliviada, pensando mais na irmã que
em si, olhou para Rosa que concordou em ficar com a
cabeça, falou:
— Ficaremos, mas com a condição de, se formos
importunas, que nos avisem.
— Papai - disse Caio -, se não importar, vou viajar.
— Vá, filho, descanse e distraia. Você tem razão,
devemos continuar a viver e tudo deve retornar ao normal.
Sérgio quero você na fábrica amanhã, precisa conferir as
mercadorias que chegaram. Carla, aos estudos, não quero
notas baixas.
Voltei a Antônia:
— Despeço-me, minha amiga, devo partir.
— Obrigado, Antônio Carlos, sem sua ajuda não teria
conseguido separar meus filhos. Ajudou-me com
sabedoria, deu-me preciosas lições de como auxiliar.
— Só ao Pai devemos nossos agradecimentos.
Encho-me de alegria por deixar todos bem. Nem sempre
tenho este prazer.
— Vou ficar mais um tempo aqui. Com a permissão
de meus superiores, venho trabalhar no Centro que Caio
freqüenta, tenho também permissão de vê-los com
freqüência. Não se esqueça de nós, Antônio Carlos, venha
nos visitar quando puder. Até logo, meu amigo.
— Até logo, Antônia.
























XIV - GRATIDÃO



Dois anos se passaram...
Levado novamente por um trabalho entre
encarnados, estava na cidade onde Caio residia com a
família. Sabia por amigos comuns que Antônia estava com
seus familiares, cumprindo o que prometera, fui visitá-los.
A antiga casa de Ofélia não modificara, cheguei ao
jardim, não vi ninguém, tudo estava silencioso, ansioso por
rever minha amiga, chamei-a mentalmente. Como não
obtive resposta, ia voltando quando ouvi:
— Antônio Carlos!
Antônia veio ao meu encontro sorrindo e, ao seu
lado, estava Ofélia, sadia e bonita, vinham da rua.
— Antônio Carlos, que prazerosa visita! - disse
Antônia e virando-se para Ofélia, continuou: Este é o
amigo de que lhe falo, com sua ajuda, evitamos que Caio e
Cidinha se casassem.
— Prazer em conhecê-lo. Como vai? - estendeu
Ofélia a mão a mim.
Convidaram-me a entrar, a sala não modificara, só
não estava mais ali à cadeira-de-rodas.
— Sem ela, a sala fica mais bonita - disse Ofélia
sorrindo.
Barulho, os encarnados chegavam. Reconheci-os,
era Carla, mais adulta, e muito bonita, e Rosa que me
pareceu mais jovem, feliz e trazia um nenê nos braços,
passaram pela sala e foram colocar a criancinha no quarto.
— Tudo indica que modificações aconteceram por
aqui, disse.
— Antônio Carlos, você deve estar querendo saber o
que aconteceu aqui, nestes meses, não é? - disse Antônia
que não esperou pela minha resposta e continuou:
— Após você ter partido, Caio viajou, três meses
depois voltou, estudou muito. Passou no vestibular, cursa
Medicina com muito gosto, está contente, continua sendo
uma pessoa encantadora, é nosso orgulho. Nem recorda
mais a triste história do seu nascimento, gosta de Cidinha
como irmã, não namora ninguém nem pensa em se casar
ou namorar; no momento, sua preocupação são seus
estudos.
— Sérgio demonstra ser bom administrador e
trabalhador, é o braço direito do pai, é justo, leal, é
estimado pelos empregados. Consolou Cidinha quando ela
e Caio romperam, tomaram-se amigos e acabaram
apaixonados, formam um casal de perfeito entrosamento,
casarão no ano vindouro para a alegria das famílias.
— O nenê? - indaguei curioso.
— Paulo, ao ficar viúvo, passou a ser muito
cobiçado, principalmente por sua secretária, uma moça
que, segundo Carla, era chata e ambiciosa. Os jovens
ficaram preocupados, temendo que o pai viesse a casar
com uma pessoa inadequada. Carla, inteligente e feminina,
descobriu que Rosa amava seu pai, reuniu os irmãos e
combinaram unir os dois. Entusiasmados com a idéia,
fizeram tudo para que ficassem a sós, que saíssem juntos,
pediram à tia para que casasse com o pai, e ao pai para
casar-se com Rosa. Deu certo, acabaram acertando e
casaram para alegria dos jovens que amavam Rosa como
mãe. O nenê é filho de Paulo e Rosa.
— Chama-se Ana Ofélia - completou Ofélia
sorridente -, aqui estamos em visita, trabalho com Antônia,
no Centro Espírita que conheceu, onde Caio vai. Antônia e
eu somos grandes amigas e sempre que temos permissão
aqui estamos. Hoje, Rosa e Carla levaram Ana Ofélia ao
médico, está um pouco resfriada e acompanhamo-las.
Estou muito bem, sou feliz, venci o egoísmo, meus vícios,
nos anos em que passei inválida. Não quero mais me
interpor entre Rosa e Paulo, eles se amam e quero vê-los
bem e felizes. Sou grata a Rosa, é mãe para meus filhos,
ela os ama e eles a ela, estão bem e unidos.
Conversas alegres anunciaram a chegada de Caio,
Paulo e Sérgio. Reuniram-se na sala e o assunto era Ana
Ofélia. Foi quando ela chorou e os jovens saíram correndo
para o quarto e foi Sérgio quem voltou com ela nos braços.
A pequenina era linda, contava três meses, rosada,
com expressão delicada, sorria para todos, encantando-
os.
— Par!
— Ímpar!
Eram Caio e Carla a tirar a sorte para ser o próximo
a pegá-la.
Rosa e Paulo, de mãos dadas, olhavam-nos
sorrindo, estavam felizes.
— E Zélia? - quis saber.
— Zélia voltou a nós, há seis meses, veio tranqüila
deixando Rosa bem. Acha-se recuperando ao lado do
esposo - esclareceu- me Ofélia e completou: Antônio
Carlos, hoje é o dia em que fazem o Evangelho no Lar,
convido-o, fique conosco e nos dará imensa alegria, será
logo após o jantar.
— Ficarei – disse -, não podendo recusar tão
delicado convite.
— Caio - continuou Ofélia orgulhosa -, continua firme
nos estudos espíritas e aos poucos foi levando a todos.
Carla, Sérgio e Cidinha freqüentam o grupo de jovens,
Paulo e Rosa juntamente com Marcelo e Helena vão a
palestras e nos dias de passes. A Doutrina Espírita
encanta e esclarece a todos.
Após o jantar, retomaram a sala, Carla estava toda
feliz com a irmãzinha no colo, sentaram-se em círculo.
Caio pegou o Evangelho Segundo o Espiritismo. Antônia,
Ofélia e eu ficamos em pé ao lado deles. Caio abriu o
Evangelho no lugar marcado, estava lendo o esclarecedor
livro, desde o começo. A página aberta foi à parte final do
capítulo XIII. Leu sobre os órfãos e as perguntas e
respostas sobre ingratidão. Acabando o capítulo, fechou o
Evangelho e comentou com voz agradável.
— Jesus disse que não veio negar o que Moisés
havia dito, mas, para completar, o que Moisés ensinara:
"olho por olho, dente por dente". O Mestre Jesus ensinou:
"sirva, ame, se alguém lhe bater na face esquerda, dê
também à direita, se alguém exigir que caminhe com ele
mil passos, ande mil e mais dois mil". Não estamos aqui na
Terra encarnados só para pedir, rogar favores estamos
para fazer, crescer, servir e ser gratos. O homem esquece
mais facilmente o Bem que recebe e lembra-se mais do
que o aflige. Devemo-nos acostumar a fazer o contrário.
Recordar o Bem que recebemos os favores obtidos e
esquecer o Bem que fazemos os favores que prestamos.
Para a maioria, Deus é necessariamente bom, amoroso,
fraterno, Pai, mas, uma entidade que está à disposição
para quando precisar, aí implorar graças a Ele e receber.
Não necessitando, Ele afasta-se e fica à espera de quando
precisarem. Uma entidade a serviço e se este serviço não
vem, revoltam-se. Exigem, querem receber, sem,
entretanto lembrar que já recebem muito. E, por este muito
que recebemos, de vemos ser gratos, profundamente
gratos.
Lembro-me agora de uma das inúmeras curas que
Jesus fez a dos dez leprosos. Jesus encontrou-os pelo
caminho, atendendo seus rogos, mandou-os que se
apresentassem às autoridades, pelo caminho foram
limpos, sararam. Assim, tantos continuam, encontram
Jesus em templos, nas orações, em Centros Espíritas,
rogam socorro, são aliviados e poucos são gratos. Pelo
Evangelho sabemos que só um teve gratidão para com
seu benfeitor, um só ex-leproso voltou para agradecer, e
de Jesus escutou: "Tua fé te salvou". Este foi realmente
curado, seu Espírito tornou-se são. A gratidão é um dos
primeiros passos que damos ao aprender a Amar, gratidão,
sentimento tão belo, pouco sentido e praticado. Devemos
ser reconhecidos e ter pelos nossos benfeitores um
carinho especial.
Devemos ser reconhecidos, mas não exigir gratidão
de ninguém, nem a forma educada do "Muito obrigado",
não devemos cobrar dos nossos beneficiados.
A Deus tudo devemos: antes de pedir, devemos
agradecer sermos filhos agradecidos, por termos a Ele
como Pai Amoroso.
Aproveitemos que estamos aqui reunidos para
agradecermos ao Pai pela oportunidade de estarmos
encarnados, de termos uma família, amigos, de
estudarmos, de amar e ser amados.
Também, devemos ser gratos a todos, a tudo o que
nos cerca, aos nossos pais por ter-nos aceitado como
filhos, por nos ter dado tanto carinho e amor. Aos nossos
irmãos, por amá-los e tê-los como amigos. Agradecemos à
nossa querida Ana Ofélia, Espírito que quis vir a nós,
enchendo nosso lar de alegrias. A tia Rosa que nos adotou
pelo coração e tanto carinho nos tem dado.
Vamos agradecer também aos desencarnados, os
bons Espíritos que nos têm ajudado, aconselhado e
orientado. Nem sempre ficamos sabendo o muito que nos
fazem, mas os sentimos sempre dando-nos coragem e
força.
Nossa gratidão maior deve ser por termos conhecido
o Espiritismo, pela compreensão que dele recebemos, pelo
entendimento da vida pela qual passamos de necessitados
a aprendizes de servos de Jesus.
Agradecemos por estar aqui reunidos, unidos pelo
carinho, por orar.
Não esquecemos de nossa mamãe Ofélia, da
gratidão que sentimos por ela, esta pessoa maravilhosa
que esteve em nosso convívio, ensinando-nos com seu
imenso carinho e amor. Onde esteja, mamãe receba nosso
abraço amoroso!
A todos os que trabalham, constroem, ajudam,
ensinam em Seu Nome Senhor, nosso obrigado!
Vamos, agora, pensar na Natureza, no fogo, na
água, terra, matas, no ar, no vento. Vamos nos limpar, com
o pensamento vamos jogar fora os fluidos, as energias
negativas.
Agora pensamos novamente na Natureza, na Luz,
em Jesus. Neste Espírito maravilhoso, no nosso Irmão
Maior a nos abençoar.
Caio fez uma pausa, os encarnados ali presentes
estavam unidos, comungando as mesmas idéias.
Todos os fluidos negativos foram expulsos e
energias salutares foram administradas, enchendo a casa,
seus corpos e Espíritos de fluidos maravilhosos que a
oração, os estudos do Evangelho nos trazem, beneficiando
tanto.
Oraram juntos em voz alta o Pai-Nosso. O culto do
Evangelho no lar terminara. Conversaram alegres.
Lágrimas escorriam nos rostos das minhas
emocionadas amigas. Não ousei falar, despedi-me com um
simples aceno de mão e parti com a imagem na mente de
um lar cristão, feliz e de Antônia e Ofélia a me acenarem,
sorrindo.
Envolvido pela beleza do firmamento, cheguei à
Colônia:
— "Graças, graças lhe rendo ó Criador do Universo,
por nos criar pequenos e por nos ter dado a Terra como lar
e escola abençoada.".


FIM



Flores de Maria
Copyright by @ Petit Editora e Distribuidora Ltda. 2003 3-01-04-10.000-38.000

Direção editorial: Flávio Machado
Capa (criação): Flávio Machado
Ilustração da capa: John Everett Millais
Assistente editorial: Fernanda Rizzo Sanchez
Chefe de arte: Mareio da Silva Barreto Diagramação: Ricardo Brito
Revisão: Maria Aiko Nishijima
Fotolito da capa: Digigraphic
Impressão: Edelbra Indústria Gráfica e Editora Ltda.
Ficha catalográfica elaborada por Lucilene Bernardes Longo - CRB-8/2082

Rosângela (Espírito).
Flores de Maria I romance do Espírito Rosângela; psicografado pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. - São Paulo: Petit, 2003.
ISBN 85-7253-100-9
Romance do Espírito Rosângela
Psicografado pela médium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
1. Espiritismo 2. Psicografia 3. Romance espírita I. Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de lI. Título.
CDD: 133.9

editora
Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorização da Editora. Ao reproduzir este
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Traduções para outro idioma, somente com autorização por escrito da Editora.
Impresso no Brasil, no verão de 2004.
www.petit.com.br petit@petit.com.br

1

Meu cãozinho, um labrador amarelo, olhava-me com expressão triste, como se quisesse, se possível, sofrer em meu lugar.
- Bob! - balbuciei.
Ele levantou-se e aproximou-se mais de minha cama.
Com esforço, passei meus dedos em sua cabeça, fazendo-lhe um carinho.
- Queria contar-lhe meu sonho - falei com dificuldade.
Bob me olhava atentamente. Talvez sentíssemos o mesmo desejo: sair correndo dali e irmos juntos a uma pracinha que ficava a dois quarteirões de casa. Éramos companheiros
inseparáveis. E como eu não conseguia mais me levantar do leito, ele ficava em meu quarto, olhando-me, quietinho. Às vezes, latia baixinho, convidando-me a sair.
Eu compreendia isso pelo seu olhar.
Eu estava doente havia algum tempo. Para mim, pareciam séculos. A doença faz muitos estragos na vida da gente, não só no corpo, mas em tudo e em todos à nossa volta.
Sentia falta de muitas coisas de que antes desfrutava e das minhas amigas... Eram tantas... Agora, raramente vinham me visitar e, quando o faziam, ficavam com uma
expressão de "coitada da Rô".
Minha família era unida e tornou-se mais ainda com as dificuldades pelas quais estávamos passando. Por causa de minha doença, os problemas aumentaram; meus pais
se endividaram, meus irmãos trabalhavam mais e todos estavam tristes e cansados.
Lembrei-me do sonho que tive. Não contei ao Bob, embora sempre que falava com ele, este prestava atenção, porém sabia que meu cãozinho não me entendia.
Sonhei com minha tia Ana Elisa. Ela era tia de minha mãe, irmã de minha avó. Desencarnou jovem. Não sabia
direito o porquê ou de quê, pois sempre tem um motivo.
Acho que foi de tuberculose. Era muito bonita, como dizia vovó, que raras vezes comentava sobre o assunto. Nunca havia me interessado por essa tia, até que sonhei
com ela, e foi um sonho agradável. Lembrei-me direitinho dela.
Eu sentia dores. Quando ficaram mais fracas, adormeci. Vi uma moça se aproximando sorrindo; ela passou carinhosamente as mãos em meus cabelos e falou:
"Rosângela, minha sobrinha, sou sua tia Ana Elisa e vim para levá-Ia para passear."
- Não posso sair do leito, estou muito doente - respondi.
"Logo você estará bem e virá morar comigo. Venha!"


Ela pegou na minha mão e levantou-me. Olhei para minha cama e lá estava meu corpo dormindo. Não dei Importância e saí com ela. Pena que, após acordar, não
conseguia recordar de tudo, apenas sentia-me descansada e mm a sensação de ter saído para passear.
Contei meu sonho a todos os meus familiares. Mamãe comentou:
- Estranho você sonhar com alguém que não conheceu; nem eu a conheci. Mas se gostou do sonho, tudo bem!
Quando falei que titia Ana Elisa me disse que logo iria morar com ela, mamãe mudou de opinião. .
Esse sonho foi um bálsamo para mim. É tão ruim ficar doente, sentia muitas dores, fraqueza, estava sempre enjoada e a medicação era dolorosa.
No começo, quando me senti doente, acreditei que ia melhorar. Papai me afirmou isso e eu acreditei nele, pois nunca mentira. Depois compreendi que meu
pai acreditava na minha recuperação, queria tanto que isso acontecesse, que tinha por certo minha cura. Mas, com o passar do tempo, as esperanças foram diminuindo.
Mamãe entrou no meu quarto sorrindo. Tentei sorrir, mas acho que ultimamente meus sorrisos eram apenas caretas. Falei:
- Mãe, sonhei de novo com a tia Ana Elisa!
- O que ela queria desta vez? O que lhe disse? perguntou mamãe.
- Nada! Só me abraçou e me beijou.
- Não entendo porque você sonha com ela.
- A senhora não gosta que eu sonhe com a titia? pergunteI.
- Nem gosto nem desgosto. Só acho que mortos devem ficar no lugar deles. Depois, parece que ela quer levá-Ia - falou mamãe suspirando.
- Mamãe - expressei-me com dificuldade -, ninguém tem culpa se estou doente. Sei que todos, até a tia Ana Elisa, tentam me ajudar e sou grata por isso. Eu
não tenho medo dela! A senhora acha que se eu morrer, devo ficar no meu lugar?
- Quando você morrer sim, mas não será logo, morrerá velhinha.
- Muitos morrem jovens! - exclamei.
- Não você! - afirmou minha mãe com convicção. - Mamãe, não pense na morte dessa forma! Se morrer fosse tão ruim, Deus que é bom, não o iria permitir - conclui.
- Vamos falar de outra coisa? Não gosto de conversar sobre esse assunto.
Cansei e fiquei quieta. Não compreendia bem o porquê de meus pais não gostarem de falar na morte, já que todos nós morremos.
Lembrei-me do rosto de minha tia Ana Elisa: era lindo, e seu sorriso suave.
Pedi à vovó para ver de novo seu retrato, e ela o trouxe no dia seguinte.
- É com ela mesmo que sonho, vovó! - afirmei.
Passei a orar por ela, imaginava que, às vezes, titia estava perto de mim. Comentei com mamãe, que me disse:
- Você está sugestionada! Deve ter escutado tanto sua avó falar dessa irmã, que sonhou com ela. Sonhos são ficções, coisas da nossa imaginação!


Não me recordava bem dos meus sonhos, mas tinha certeza de que sonhara muitas vezes com titia e que ela me levava a lugares bonitos. Lembrei-me de um sonho
no qual vi muitas crianças alegres e cantando.
Numa manhã, acordei com muitas dores, enjôos, e passei horas tentando não reclamar para não deixar mamãe mais triste. Quando consegui dormir, sonhei com titia novamente.
Assim que a vi, perguntei a ela:
- Tia, vou melhorar?
"Não", respondeu ela com delicadeza. "Vai piorar e só depois melhorará."
- Vou morrer?
Titia sorriu e confirmou com a cabeça.
Acordei com a certeza de que haveria uma mudança em minha vida. Queria que meus pais compreendessem e não sofressem tanto.
A situação financeira em casa era muito ruim. Estavam lendo muitos gastos comigo. Meus avós, os quatro, ajudavam como podiam, acho que até no que não podiam. Meus
rios também auxiliavam.
Mamãe insistia para que me alimentasse. Fazia o que eu gostava, dentro da minha dieta alimentar. Acho que eles, os cinco em casa, meus pais e meus três irmãos, não
se alimentavam para que não me faltasse nada. Entristecia-me, queria que fosse só eu a sofrer. Compreendia que eles se sacrificavam,. mas faziam com carinho e não
sentiam isso como um sacrifício.
Solange chegou do trabalho e veio me ver.
- Como está se sentindo hoje minha irmãzinha linda? - Bem - respondi desanimada.
- Parece preocupada. O que aconteceu?
Solange tinha dezoito anos, era muito bonita, estudava à noite e trabalhava durante o dia, estava sempre atarefada. Era a única em casa que não tinha medo de falar
na morte. Isso porque, segundo mamãe, ela conversava muito com uma amiga espírita. Gostava muito da companhia de minha irmã, mas não queria retê-Ia, pois tinha de
ir à escola. Não respondi, só a olhei. Solange insistiu:
- Querida, você está com receio de alguma coisa? Está com medo da doença?
- Não sei... - respondi.
- Rosângela, a gente tem medo do desconhecido.
Lembra quando foi pela primeira vez à escola? Você não sabia como era, o que acontecia lá, então não queria ir, teve receio. Mas bastou ir e em poucos dias se adaptou,
gostou, fez amigos e compreendeu que a escola era um lugar agradável e de muita importância, pois lá ia aprender muitas coisas.
- Será que a morte é assim? - perguntei.
- Não estou me referindo à morte - disse Solange.
- Mas deve ser assim - falei. - Temos medo porque não sabemos o que nos irá acontecer quando os órgãos do corpo cessarem suas funções. Deve ser como ir à
escola. Você tem razão, não precisamos ter medo. Se Deus é Pai amoroso me levará para uma bonita escola, você não acha, Solange?
- Acredito que sim! - afirmou minha irmã com convicção. - Tenho certeza! Você é tão boazinha e está sofrendo tanto, que só poderá ir, após esta vida, para
um lugar muito bonito. Não tema o desconhecido. Lembre-se de que basta conhecer!
- Solange, quando eu me for, console nossos pais! Promete? - pedi.
- Prometo, irmãzinha!
- Agora vá, quero dormir - falei carinhosamente.
Não estava com sono, porém não queria deter Solange para que ela não se atrasasse. Ela saiu do quarto. Fiquei pensando e conclui que minha irmã tinha razão: tememos
o desconhecido. Consolei-me, compreendendo que tudo fica mais fácil quando o conhecemos.
Tia Ana Elisa tinha razão, piorei muito, e, como não gostava de hospitais, pedi aos meus pais:
- Papai, mamãe, por favor, deixem-me aqui, não quero ir para o hospital e ficar longe de vocês.
Os dois se olharam, saíram do quarto para conversar e voltaram com a notícia:
- Rosângela, você não irá para o hospital - falou papai determinado. - O pior da sua doença já passou e você convalescerá aqui conosco.
- Obrigada, prometo não lhes dar muito trabalho. Aproveito que os dois estão comigo para dizer que os amo. Onde eu estiver os amarei. Sou muito grata a vocês.
São os melhores pais do mundo! Não, do Universo!
Meus pais me abraçaram e me beijaram. Falei tudo isso devagar, às vezes, dando um intervalo. Estava muito fraca. Como a fraqueza dói! Sentia muitas dores, o câncer
consumia meu corpinho, já tão fraco. Queria falar mais coisas sobre os meus sentimentos, mas estava muito cansada.
Imaginava sempre como seria bom, ficar alguns minutos sem aquela dor e sensação ruim. Desejava ficar como era antes de adoecer.


Eu achava que era impossível piorar, mas piorei. Quando, numa manhã, mamãe me trocou e vi que fizera, sem perceber, minhas necessidades fisiológicas na cama,
sujando os lençóis, chorei baixinho.
- Não chore, Rosângela, eu a limpo num instante! - mamãe falou com carinho, consolando-me.
Minha mãezinha me limpou devagar e enxugou minhas lágrimas com beijos.
Ao ficar sozinha, orei e pedi a Deus pela primeira vez:
"Deus, meu Pai do Céu! Não sei por que sofro e sou motivo de tantos sofrimentos a todos aqui em casa. Só posso ter feito algo de errado que o Senhor não
gostou. Desculpe-me! Perdoe-me! Será que não dá para o Senhor levar-me? Sei que não devo querer a morte nem pedir para morrer. O Senhor sabe que nunca iria querer
isso se estivesse sadia. Se me levar, ficarei agradecida."
Aí veio em minha mente a passagem do Evangelho em que Jesus orou no Horto das Oliveiras e pediu: Pai afasta de mim este sofrimento, porém faça Sua vontade e não
a minha. Completei minha prece: "Deus, faça Sua vontade, mas, se for possível, atenda meu pedido! Ou seja, que a Sua vontade seja igualzinha à minha. Lembro ao Senhor
que estou sofrendo muito, assim como todos aqui em casa. Acho que não vou melhorar, então me leve para me curar no Céu. Por favor!"
Senti paz e dormi. Não vou mais falar do meu sofrimento. Foram dias difíceis, até que adormeci com um sono tranqüilo.


2


Em meu sono não tive dores, e, às vezes, parecia escutar:
- Rosângela era tão bonita! Antes de adoecer era gordinha e corada!
- Ia completar quatorze anos, mas parecia ter dez. Que pena! Não viveu a vida!
- Os pais de Rosângela estão tão endividados com os gastos que tiveram com a filha, que terão de vender a casa, o único bem que eles têm e que, para o
adquirirem, trabalharam tanto!
- Sofreu tanto a pobrezinha, que só pode estar no paraíso!
- Eu a amo filhinha! Sempre a amarei! Não quero ser egoísta querendo você conosco doente como estava. Mas está sendo dolorido vê-Ia afastar-se de nós -
dizia meu pai.
- Vá com Deus, meu anjinho! Com você irá um pedaço do meu coração! - mamãe falava, parecendo cochichar ao meu ouvido.
- Ro! - ordenou Solange, minha irmã. - Não tema o desconhecido! Aceite com gratidão o que receberá e lembre-se de que queremos que esteja bem, assim como
você quer que fiquemos.
"Ora, deixem-me dormir, porque há tempos que não tenho um sono tão gostoso!", exclamei recusando-me a ouvir mais comentários.
Determinei a mim mesma que não ouviria mais nada. Virei-me na cama sozinha, passei a mão pelo meu corpo e percebi que não estava de fralda, mas sim sequinha e cheirosa.
"Que sono mais agradável! Ninguém me acordou para me dar uma injeção! Vou aproveitar para dormir mais! Estou com muita sede e fome. Fome? Há tanto tempo não sinto
vontade de comer!", falei baixinho.
Levantei o lençol, sentei-me na cama com facilidade, virei a cabeça, ri e continuei a falar:
"Estou sonhando! Fantástico! Tem um copo de suco e uma tigela de sopa na mesinha de cabeceira. Vou comer! Nem que seja no sonho, vou alimentar-me com prazer."
Tomei o suco, que estava delicioso, e a sopa de legumes, saborosíssima. Limpei a boca com o guardanapo e espreguiIcei-me.
"Vou dormir!", pensei.
"Engraçado, nunca antes sonhei que dormia. Está tão gostoso aqui! Queria tanto ficar por instantes sem aquela sensação da doença. Agora que estou bem, mesmo
que em sonho, irei aproveitar." Virei-me várias vezes na cama, deliciando-me por fazer isso, acomodei-me e dormi.
Acordei achando que dormira por horas. Abri os olhos devagarzinho temendo sentir dores e aqueles horríveis maI-estares. Continuei sentindo-me bem. Sorri,
ou melhor, ri mesmo. Tive vontade de gargalhar, coisa que há tempos não fazia, pois se fizesse sentiria muitas dores. Ri alto por minutos, sem me importar com as
outras duas meninas que estavam nos leitos ao lado do meu. Quando parei,
uma delas, que sorria ao me ver rir, exclamou:
- Que alegria! Você está feliz! Por que ri?
- É bom rir e não sentir dores! Vou aproveitar este sonho. Vou levantar e pular! - respondi.
Levantei-me com facilidade, subi na cama, pulei cantando uma marchinha, uma música de sucesso da época. Minha voz era forte como antes de adoecer. Alegre
em me ouvir, cantei mais alto. A menina que me dirigiu a palavra cantou comigo, e a outra ficou só me olhando, e acabou sorrindo. Uma moça muito bonita entrou no
quarto,
olhou-nos, aprovando. Quando cansei, sentei-me na cama com as pernas cruzadas. Estava com um pijama azul-clarinho, limpinho e cheiroso.
- Bom dia, queridas meninas! - cumprimentou a moça.
- Bom dia! - respondemos as três.
- Por que você está tão alegre? Por que pula, ri e canta? - indagou a menina que ficou só olhando.
- Ora, é maravilhoso para quem não faz isso há tempos - respondi. - Pedi a Deus para que pudesse me sentir sadia por alguns minutos. Estou doente, nem vinha
dormindo ultimamente, mas agora sinto-me bem. Então, estou aproveitando este sonho agradável!
- E se você não estiver sonhando? - perguntou a me nina que me observava.
- Não estou sonhando? - indaguei espantada, olhando para a menina que cantou comIgo.
Ela negou com a cabeça. Fiquei quieta por alguns instantes e comecei a observar o lugar onde estava. Era um quarto grande, arejado e com uma janela enorme.
As camas eram cor-de-rosa, com desenhos de coração na cabeceira. Havia mais três leitos vazios. Tudo arrumado, limpo e cheiroso.
Sempre gostei de tudo limpinho e com cheiro agradável. Ultimamente, por mais que mamãe e minhas avós me limpassem, não ficava limpa por muito tempo e o odor
do meu quarto não era agradável. Acho que foi por isso que este local agradou-me tanto. As três me olhavam. Repeti a pergunta:
- Não estou sonhando?
- Não, não está - respondeu a moça.
- Curei-me, então? De repente? Por que estou tão bem assim? Milagre? Só se for por Deus! - disse rindo.
- Você não pensa em morrer? - perguntou a menina
que me observava.
Não respondi à indagação e falei apresentando-me:
- Meu nome é Rosângela, e vocês quem são?
- Sou Lourdes, muito prazer! Espero que continue aqui conosco - respondeu a menina que cantou comigo.
- Sou Valda! Alegro-me por vê-Ia bem! Se precisar de mim, por favor, chame-me - apresentou-se a moça.
Olhei para a outra menina. E ela falou:
- Sou Fátima! Prazer!
Ri de novo e desculpei-me:
- por favor, desculpem-me! Está sendo tão prazeroso não sentir dores que não consigo parar.
As três riram comigo. Parei e indaguei:
- Se não estou sonhando e se me curei, o que me aconteceu?
Você não respondeu o que Fátima lhe perguntou.
- Você não pensa na sua morte? - indagou Lourdes.
- Penso sim, até pedi a Deus perdão por querê-Ia - respondi.
- Então, Deus a perdoou e atendeu. Você morreu! - exclamou
Fátima.
- Querida, não fale assim! - pediu Valda com olhar reprovador.
Parei de rir, olhei como de costume para minhas mãos e comecei a estalar um dedo de cada vez. Tinha o costume de fazer isso todas as vezes em que me encontrava em
situações difíceis. Observei meus dedos, estavam gordinhos, as unhas rosadas.
Fátima começou a chorar se lamentando:
- Mas é verdade. Você, Lourdes e eu estamos mortas! Ai de mim!
- É ruim morrer? - perguntei.
- Querida, é só o nosso corpo físico que finda seu tempo. Nosso espírito continua a viver! Você está viva num lugar lindo, entre amigos e, melhor, sadia!
Beijou-me nas bochechas. Senti meu rosto e passei as mãos nele, estava gordinha. Senti vontade de rir de novo.
- Ora, estou bem e quero rir! Estou no Céu? Vou ver Deus?
- Deus, Rosângela, está em todos os lugares - explicou Valda.
- Até dentro de nós - interrompeu Lourdes. - Só que não O vimos e não temos entrevista com Ele. Aqui é um ajudando o oUtro, como deveria ser lá na Terra.
- Já que morri, o que vou fazer agora? - quis saber.
- Pode rir, Rosângela - respondeu Valda. - A alegria alimenta nossos bons sentimentos e irradia contentamento à nossa volta. Fátima que estava triste até
sorriu ao vê-Ia contente. Aqui não há ociosidade, terá muitas coisas interessantes para fazer e outros tantos motivos para sorrir.
- Você disse que estava doente. Sofreu muito? - perguntou Lourdes.
- Não tenho vontade de recordar ou de falar disso. Estou tão aliviada por me sentir bem! - respondi.
Achando que deveria dar uma resposta melhor para minha nova amiga, disse:
- Fiquei anos doente e sofri muito.
- Eu não! - falou Lourdes. - Desencarnei por um acidente. Um segundo de vacilação e pronto, vim para o lado de cá.
- Como sabe que aqui é o lado de cá e não o de lá? indagou Fátima.
- Vim para o plano espiritual - respondeu Lourdes.
- Como foi? - curiosa quis saber.
Lourdes pensou um pouquinho e falou:
- Fui passear de moto com um primo, escondido dos meus pais, que sempre acharam esse veículo perigoso. Imprudentemente, pedi-lhe para correr e ele me atendeu. Um
buraco na pista me fez cair. Eu desencarnei na hora. Ele ainda está no hospital lá na Terra, muito ferido e sentindo muita culpa.
-Você acha que ele é culpado? - perguntou Fátima.
-1IIII'que se fosse comigo, eu o culparia. Ele era mais velho,
poderia ter sido mais prudente.
- Não quero culpá-Io, ele foi imprudente, mas não quis que acontecesse o acidente. Coitado! É tão ruim sentir culpa, remorso... Tenho orado por ele.
- Você está agindo corretamente, Lourdes. Ore por ele que receberá e sentirá em seu íntimo o seu carinho - falou Valda fazendo uma pausa e convidando-nos:
- Vou levá-Ias para passear no jardim! Vamos, levantem-se!
Pulei da cama contente por poder passear. Sempre me ajeitava para sair. Indecisa perguntei:
- Vou de pijama?
- Pode ir se quiser, só vamos passear um pouquinho. O jardim é logo ali e lá só encontraremos outros convalescentes como vocês - respondeu Valda.
- Gostaria de colocar outra roupa - pedi.
Valda apontou para um cabide que estava ao lado da cama que eu ocupava, mostrando-me roupas penduradas. Alegre, peguei uma calça comprida igual a uma que
tinha, só que esta aparentava ser nova, e uma blusa bege parecida com u ma que minha avó me dera de presente de aniversário.
- Tive uma roupa assim! - exclamei.
- Temos aqui algumas roupas parecidas com as que tivemos quando encarnadas. Valda nos falou que fazem isso para nos sentirmos bem - explicou Lourdes.
Fui atrás do biombo e troquei de roupa. Senti-me muito bem; havia tempos que não vestia roupas comuns, só usava pijama. ''A felicidade está nas pequenas
coisas, e só quando somos privados delas é que damos valor", pensei.
Calcei os chinelos que estavam no chão, perto do leito. Quis ajeitar os cabelos. Por instantes receei não tê-Ios. Devagar levantei as mãos e passei-as na
cabeça. Ao senti-Ios, exclamei contente:
- Viva! Tenho cabelos! Meus lindos cabelos!
- Você está bem, muito bonita! Venha aqui e se olhe no espelho - convidou Valda.
Fiquei novamente indecisa e receosa, fui andando devagarzinho. Entrei num banheiro. Era todo branco, muito limpo, tinha peças que os encarnados conhecem,
e, acima de uma pia grande, havia um espelho. Quando me olhei nele, vi um rosto sadio. Lágrimas de gratidão escorreram pelo meu rosto. Ri de novo, enxugando as lágrimas
com as mãos.
- Deus, meu Pai, muito obrigada por ter-me atendido! Eu melhorei! - exclamei alto.
Valda pegou na minha mão e na de Fátima, saímos do quarto com Lourdes. Atravessamos um corredor e defrontamo-nos com um pequeno jardim.
- Que beleza! - disse maravilhada.

3

O jardim era muito gracioso! Tinha algumas árvores, vá\rios canteiros com flores e alguns bancos. Estavam lá, meninos e meninas andando ou sentados, todos
conversando.
- Estão todos mortos? - perguntei baixinho para Valda.
- São desencarnados. Esse é o termo que usamos, porque vivos, Rosângela, estamos sempre.
- Hei, você não é a Rosângela?
Senti me cutucarem no ombro. Virei-me e vi Leonardo, o Leo, um conhecido que desencarnara havia alguns meses, atropelado por um carro, quando passeava de bicicleta.
Ao vê-Io sorrindo para mim, não tive mais dúvidas. Eu não estava sonhando e morrera mesmo, ou melhor, de desencarnada, como explicara Valda.
- Leo! Você por aqui! - exclamei.
- Pois é! Como você sabe, desencarnei por acidente.
- E você, quando voltou?
- Voltou?! - indaguei sem entender o que ele queria saber.
- Veio para cá, para a nossa pátria.
- Acho que foi ontem - respondi confusa.
- Não precisa se encabular, logo você estará a par de tudo. Sinta-se à vontade, Rosângela. Aqui é muito bom, basta acostumar-se - aconselhou Leonardo.
- Vou tentar seguir seu conselho. Leo, estou um pouco confusa com tantas novidades. Estive doente, dormi e acordei aqui, sadia!
- Sei que você estava com câncer. Ficamos, meus amigos e eu, com pena de você. E eu, que estava sadio, desencarnei primeiro. Foi um prazer revê-Ia. Desejo-lhe
boa recuperação - falou Leo.
- Você gosta mesmo daqui? - quis saber.
- Sim, gosto muito! Agora, Rosângela, tenho de ir; voltaremos a nos ver. Tchau.
Leonardo foi embora e curiosa fui observar o jardim, olhando com atenção cada detalhe. As flores eram lindas, perfumadas... eu conhecia a maioria delas.
Muitos passarinhos voavam baixinho, pulando nos galhos das árvores.
Bati as mãos de contentamento. Sentei-me num banco ao lado de Valda e Fátima. Lourdes foi brincar com as outras meninas. Senti sono. Valda me levou de volta
ao quarto, ajudou a acomodar-me no leito. Adormeci. Quando acordei, vi só Fátima no quarto.
- Oi! - cumprimentei-a.
- Oi! - respondeu. - Como você está se sentindo?
- Muito bem, obrigada. Onde está Valda e Lourdes?
- Valda é uma das encarregadas de cuidar de nós. Acho que ela é uma enfermeira ou algo parecido. Trabalha aqui. Não é estranho trabalhar depois que se morre?
Aqui se trabalha muito! Lourdes foi ouvir o coral cantar, voltará logo.
- Lourdes foi ouvir música? Quero ir também! - exclamei.
- Calma! Você terá oportunidade de ver e ouvir o coral, eles ensaiam quase todos os dias e estão sempre se apresentando. Como você estava dormindo, Valda
não quis acordá-Ia.
- Por que você não foi? - quis saber.
- Estou triste, com saudade da minha casa e dos meus pais. - Fátima respondeu, enxugando algumas lágrimas.
- Deve ser ruim não saber deles, o que acontece lá, com os encarnados - comentei séria.
- Eu pensava que era assim, porém nós sabemos deles. Trouxeram mamãe para me ver enquanto ela dormia. Abraçamo-nos apertado. Foi tão gostoso! Pena que minha
mãe não recordou muito bem do que aconteceu quando acordou. Ela chora tanto por mim! Eu a amo tanto, queria ficar para sempre ao seu lado.
- Do que você morreu? - quis saber curiosa.
- Desencarnei de meningite - respondeu Fátima me corrigindo e, suspirando, continuou a falar: - Adoeci, parecia gripe, mas como a febre não cedia, mamãe
levou-me ao médico, que pediu para me internar no hospital. Tomei muitos remédios, injeções e fui piorando.
Não me recordo direito, acho que tive muita febre. Dois dias depois, desencarnei.
- Você não parece gostar daqui - conclui e indaguei em seguida: - Não se sente bem?
- Não sinto nada de ruim e até gosto daqui, só que preferia estar em minha casa. Se pudesse escolher, estaria encarnada - respondeu Fátima.
Ficamos quietas por instantes. Senti pena dela e pensei:
"Devo ou não ter dó de nós? Afinal estamos desencarnadas".
Valda entrou no quarto sorrindo carinhosamente; beijou-nos, indagando atenciosa:
- Você está bem?
- Sinto-me muito bem, obrigada - respondi. - Valda, tenho uma tia, irmã de minha avó, que está desencarnada. Será que posso vê-Ia? Sonhei com ela algumas
vezes quando estava doente. Queria, se possível, saber dela.
Ana Elisa ficará contente por lembrar-se dela. Logo poderá vê-Ia.
- Você a conhece? - perguntei.
- Sim, sua tia já veio vê-Ia e tem perguntado muito por você. Ana Elisa trabalha na colônia - respondeu Valda.
- Trabalhar? Alimentar-se? Aqui eu falo e dou risadas! Estou achando isso tudo muito engraçado, ou melhor, estranho.
- Por favor, Rosângela, fique sempre alegre - pediu Valda.
- Será que estou me comportando bem? Afinal pulei em cima da cama, cantei alto. É que pensei estar sonhando. Como os desencarnados devem agir? - perguntei
preocupada.
- Aqui temos ordem, disciplina e muita alegria. Você aprenderá aos poucos a viver entre nós. Tem uma voz bonita. Gostaria de fazer parte do coral? - indagou
Valda carinhosamente.
- Sim, quero - respondi contente.
Amanhã vou levá-Ia para ver um ensaio e, logo que possível, fará parte dele - falou Valda, incentivando-me.
Quando Valda saiu, Fátima foi ler, e eu fiquei quieta. Senti uma das minhas avós chorando e reclamando:
- Rosângela era tão jovem! Por que não fui eu a morrer em vez dela?
Ia concordar com ela, quando escutei minha irmã Solange respondendo à vovó:
- Vovozinha, Deus quer os jovens também. Cada um tem seu tempo de ficar aqui. Não chore assim! A senhora acha que Deus é mau? Não! Nem eu! Acredito que Deus
é bondade infinita. Se Deus é misericordioso, não agiu errado nem com maldade com a nossa Rosângela. Ela não está infeliz nem sofrendo! E onde estiver não irá querer
nos ver nos lastimando.
Lourdes chegou eufórica.
- Rosângela, você precisa ver e ouvir o coral. É o máximo! O que você tem? Parece preocupada!
- Por que será que às vezes escuto vozes dos meus familiares? Parece que conversam lá e os ouço aqui.
Olhei para Lourdes, esperando uma resposta. Ela pensou por instantes e falou:
- Não sei o que ocorre, Rosângela. Eu também os escuto e, se os sinto chorar, fico triste.
Valda entrou no quarto e escutando a resposta de Lourdes, sorriu para nós, explicando:
- O amor é um sentimento que une. Sentimos sempre o que se passa com nossos afetos. Aqui somos mais sensíveis, e se eles falam de nós ou sofrem com nossa
ausência, acabamos sentindo e ouvindo-os em nosso íntimo. Aconselho-as a não dar atenção. Quando isso ocorrer, tentem se distrair ou orem, desejando que sejam consolados.
- Espero que eles atendam minha irmã Solange, ela é muito coerente. Queria que não chorassem por mim, que ficassem alegres e me transmitissem segurança -
falei.
- Você quer que eles não chorem por você? Que não sintam seu desencarne? - perguntou Fátima indignada.
- Amo-os muito para querer que sofram. Quero sim, que eles sejam felizes! Todos morrem! Ou seja: desencarnam. Estamos condicionados a sofrer quando alguém
que amamos muda-se para cá. Isso não é bom! Morri, porém não acabei! Seria bom se todos compreendessem que a vida continua! - falei respondendo para Fátima.
Estranhei minha resposta, parecia que explicava a mim. Bateram na porra do nosso quarto, Valda abriu e convidou:
- Entre, Ana Elisa! Rosângela já perguntou por você e deseja vê-Ia!
Uma moça muito bonita entrou no quarto. Valda despediu-se com um aceno de mão e saiu. Reconheci minha tia: era encantadora, mais linda do que no retrato que
vovó mostrara-me e do que eu recordava dos meus sonhos. Tinha o cabelo longo, castanho-escuro assim como
os olhos, seus lábios eram delicados e tinha um sorriso cativante. Titia deixou que eu a observasse, depois abriu os braços e corri até ela. Abraçamo-nos demoradamente.
- Como você está se sentindo, Rosângela? - perguntou tia Ana Elisa.
- Eu? Bem! É mais bonita pessoalmente do que em meus sonhos - falei encabulada.
- Fico contente por você ter gostado de sonhar comigo. - falou sorrindo.
- A senhora me ajudou, preparando-me para os acontecimentos, não foi?
- Sim.
- Agradeço-lhe! - exclamei, beijando-a.
- De nada! Rosângela, você quer passear comigo? - Quero! Aonde vamos?
- Vou levá-Ia a um local lindo. Venha trocar de roupa.
Ela abriu o armário, pegou uma roupa e me deu. Fui ao banheiro, troquei-me e me admirei no espelho.
- Fabuloso! Como estou bem!
- Você é linda, minha sobrinha! - exclamou titia. - Fiquei tão magrinha e feia com a doença! - falei suspirando.
- Esqueça aqueles dias difíceis - aconselhou. - O que Importa agora é que está bem. Não quer passear conosco Lourdes? E você, Fátima, vamos sair um pouquinho?
Fátima negou com a cabeça e Lourdes agradeceu educadamente:
- Prefiro não ir, obrigada pelo convite. Acho que vocês duas têm muito o que conversar e não quero atrapalhar. Façam um bom passeio!
Gostei de vestir um conjunto de saia e blusa verde-clarinho. Penteei o cabelo, usava-o e ainda o uso, curto e repartido de lado. Olhei-me novamente no espelho
e alegreI-me com meu aspecto.
Saímos, titia e eu, de mãos dadas. Atravessamos corredores, e minha cicerone foi explicando:
- Minha sobrinha, você irá gostar daqui! Achará muitas coisas parecidas com as quais estava acostumada na Terra, quando encarnada, outras nem tanto.
- Aqui é uma grande comunidade? Todos têm o mesmo objetivo, o bem comum? - perguntei lembrando dos meus estudos na escola.
Titia sorriu e respondeu:
- Só que aqui nos agrupamos de acordo com os sentimentos que temos. Aqui é um local que abriga crianças e jovens, e do outro lado estão os que desencarnam
já adultos. Podemos dizer que aqui, nesta colônia, estão espíritos afins, para se melhorar e progredir.
- E os que não estão aqui? Os maus? O que acontece com eles?
- Agrupam-se em outras partes.
Passamos por outro corredor. Curiosa, fui olhando tudo. Minha tia esclareceu:
- Nesta parte estão os dormitórios, os quartos dos recém-desencarnados; deste lado é a ala infantil e deste, a dos adolescentes.
Passamos por um corredor mais largo e logo defrontamos com a porta principal do prédio. Esse corredor era muito bonito, enfeitado com plantas e quadros. Ao ultrapassarmos
a porta, parei para admirar a beleza da praça. De forma oitavada, os prédios cercavam-na. As construções não eram iguais, embora suas frentes fossem do mesmo tamanho.
Algumas tinham um andar; outras, dois e uma delas, cinco andares. As construções eram modernas, arrojadas, com muito vidro, ou pelo menos algo parecido com o vidro
que usamos na Terra. Dei alguns passos, olhei para o chão: estava numa calçada larga, de pedrinhas coloridas claras, que rodeava os prédios.
Titia me puxou pela mão.
- Que beleza! - exclamei admirada.
A Praça da Fonte era maravilhosa, possuía muitos canteiros com flores variadas, que perfumavam o ambiente, algumas árvores pequenas, muitos bancos e diversas
fontes.
Conforme andava, via chafarizes em formato de flores,
ouvia por toda a. praça uma música suave, em tom baixo.
No centro, havia um chafariz maior, formado por lmuitas esculturas, e um arco-íris. Eram rosas, orquídeas, lírios, violetas, amores-perfeitos e outras. Acho
que todas as flores estavam ali representadas. Passei a mão em uma escultura. Era lisinha, a água que escorria era fria, e tudo, muito limpo. O colorido era suave,
tudo se harmonizava.
Fiquei extasiada, não conseguia nem falar. Fui andando porque ti tia me puxava. A praça era grande, demos uma volta por ela.
- Sentemos aqui um pouco, Rosângela.
- Que lugar mais lindo! A senhora tem certeza de que aqui não é o Céu?
- Aqui, Rosângela, é o Educandário Flores de Maria. Comparamos crianças e jovens com flores que devem ser tratadas com delicadeza, atenção e muito amor.
E, Maria, referimo-nos à mãe de Jesus, que nos adotou e é nossa protetora espiritual. Este lar de crianças e jovens faz parte de uma colônia espiritual, isto é,
uma cidade de desencarnados. Aqui temos escolas, locais de diversão, trabalho e hospital.
- Parece que a vida continua mesmo!
- Sim, Rosângela, continua sem grandes diferenças. Isso é ótimo, e mais uma das demonstrações da bondade de Deus.
Muitas pessoas passeavam pela praça, a maioria crianças e jovens que como eu esrava maravilhada com tanta beleza. Por mim, ficaria horas ali. Titia me chamou
para irmos embora; levantei-me e a segui, demonstrando que gostaria de ficar mais. Tia Ana Elisa me consolou:
- Você poderá vir aqui outras vezes. Agora devemos voltar para seu quarto, você tem de descansar.
- Vou gostar muito do Educandário Flores de Maria! Já gosto!
Beijei titia e recebi outros beijos.
Tive a certeza de que ia gostar muito do Educandário
Flores de Maria.
À noite estávamos conversando no quarto, Lourdes, Fátima e eu. Lourdes aproximou-se da janela e comentou:
- Como são lindas as estrelas!
- É noite de lua cheia! Venha ver Rosângela - convidou Fátima.
Fui à janela e vi a Lua no céu, cheia e linda. Lembranças vieram...
Já estava doente quando mamãe me fez caminhar um pouquinho pelo quarto.
"Venha, Rosângela, aqui na janela, está uma noite linda de lua cheia."
"De fato, está maravilhosa, a Lua parece um prato!"
"Todas as vezes que vejo a Lua assim, cheia, recordo me de você pequena!" - falou mamãe.
"Por quê? Eu era gordinha? Tinha o rosto cheio?" - indaguei.
" - Claro que não!" - respondeu minha mãe. "Você não tinha e não tem o rosto redondo. É porque, quando era criança, acho que tinha dois anos, você chorou
querendo o queijo do céu. Seu pai comprou um queijo redondo. Você até comeu um pedaço, depois foi correndo para o quintal, olhou para o firmamento e choramingou
dizendo:
'Este não é daquele!'. Rimos, e seu irmão disse: 'Aquilo não é queijo, é lua cheia'."
Abracei mamãe e ela completou:
"Rosângela, onde quer que estiver, ao olhar a lua cheia, lembre-se de que eu vou vê-Ia também e estarei pensando em você, mandando-lhe um beijo."
Duas lágrimas escorreram dos meus olhos e senti uma brisa suave como se recebesse um beijo de mamãe. Tive a certeza de que minha mãezinha olhava o céu e me dava
um beijinho.
Enxuguei rapidamente o rosto e exclamei, sorrindo para minhas companheiras de quarto:
- Desencarnei numa noite de lua cheia!
Elas sorriram correspondendo e fomos dormir.


4

No outro dia acordei me sentindo estranha. Pensando muito em missas. Parecia que todos os meus familiares estavam orando por mim na igreja. Fiquei quieta
na cama. Depois senti-os no cemitério.
- Flores para você, querida! - Que Jesus a faça feliz! - Estou com saudade!
Senti mamãe e papai chorando. Lágrimas escorreram pela minha face. Queria papai comigo. Lembrei-me de quando ele chegava em casa após o trabalho, falando
alto:
"Rosângela, venha ver o que eu trouxe para você!"
Corria para abraçá-Io; meu pai sempre nos trazia algo, balas, pipocas, sorvetes etc.
Quis ter mamãe a me fazer um carinho, quis seu colo, ir para casa, ficar com todos os que amava.


Estava envolvida em meus pensamentos quando fui surpreendida por uma voz amiga:
- Rosângela, feliz aniversário!
Titia entrou no quarto com um ramalhete de flores coloridas. Fez de conta que não me viu chorando, abraçou-me, beijou-me e cantou "parabéns pra você!"
- Vamos, coloque as flores neste vaso! - sugeriu titia.
- Hoje é meu aniversário? - perguntei estranhando.
- Sim, é.
- É mesmo! Ia fazer quatorze anos! Será que foi por que senti meus familiares falando de mim?
- Minha sobrinha - explicou tia Ana Elisa - não nos desligamos facilmente dos afetos, por isso sentimos aqui o que se passa com eles. Hoje, sua família foi
à missa e depois ao cemitério, oraram e infelizmente lamentaram sua falta, sentem saudade.
- Titia, se hoje é meu aniversário, faz então três meses que estou aqui e parece dias.
- É que você dormiu bastante - esclareceu. - Quando as funções vitais do seu corpo físico findaram, você o deixou como uma roupa velha, gasta pela doença,
e esses restos mortais foram enterrados. Você, Rosângela, é um espírito que antes vestia um corpo carnal e agora está revestida de um outro mais sutil, que é o perispírito1,
para manifestar-se aqui conosco.
- Titia, já percebi que aqui tem dia e noite e horários a serem seguidos. O tempo passa como na Terra?

1. Perispírito: substância vaporosa semi-material, que serve de envoltório ao espírito e liga a alma ao corpo. Nos encarnados é o intermediário entre o espírito
e a matéria. Nos espíritos libertos do corpo físico, constitui o seu corpo fluídico (Nota do Editor).


- Meu bem - respondeu titia me elucidando com carinho -, estamos perto da crosta terrestre e ainda muito ligados ao tempo dela. A colônia segue o mesmo movimento
da Terra, ou seja, giramos com ela. Assim, temos o dia e a noite. Seguimos o mesmo horário. Você já pensou não tê-Ia? Como saber a hora em que o coral vai ensaiar,
quando assistir às palestras? A que horas ir aos encontros?
Nosso dia aqui é de vinte e quatro horas, seguimos os meses
e anos, como os encarnados. Hoje é dia vinte e seis aqui e lá.
- Aqui faz frio ou calor? Para mim a temperatura é agradável!
- Nas colônias, nos educandários, nos locais em que os espíritos que querem ser bons vivem, a temperatura é sempre amena, independente se na Terra é inverno
ou verão.
- Titia, a senhora sabe do Bob, o meu cachorro? Gosto dele, sinto falta de sua companhia. Ele era para mim um cãozinho especial.
- Sempre que gostamos de alguém, animal ou planta, esse afeto para nós é algo especial, porque é alvo do nosso carinho. Bob sentiu sua falta, ficou triste,
seus irmãos e pais lhe deram mais atenção. Foi bom porque distraiu sua mãe, que faz caminhada todos os dias com ele. Seu cãozinho está bem.
- Bob me esqueceu?
- Os animais também nos querem bem; uma vez amigo, sempre amigo - respondeu titia.
- Para mim, o que importa é que Bob esteja bem. Tia Ana Elisa aprovou com um sorriso e voltei a indagar:
- Meus sonhos com a senhora eram encontros?
- Sim. Você se afastava do seu corpo adormecido com o perispírito e conversava comigo. Quando isso acontece com os encarnados, o perispírito fica unido
ao corpo físico a um cordão, e quando esse cordão é rompido, há o desligamento, a morte do corpo carnal. Quando isso aconteceu com você, uma equipe de socorristas
e eu a trouxemos para cá, onde ficou dormindo para se recuperar e também para que não sentisse seus familiares e amigos chorando por você. Quando estava para acordar,
nós a transferimos de quarto.
- O que a senhora faz aqui, titia? É verdade que há trabalho na espiritualidade?
- Muitos entendem de modo errôneo o conceito de trabalho, vendo e sentindo-o como uma obrigação. Aqui o trabalho é prazeroso, uma bênção. É como fazer algo
para si mesmo. Seria tão ruim tudo isso sem trabalho! Você foi socorrida, trazida para cá, cuidada com carinho, está agora num quarto limpo, tem roupas e alimentos.
De onde saiu tudo isso?
- Do trabalho dedicado de alguém.
- Sábia conclusão. Servir faz parte de minha vida e chegará o dia em que todos nós serviremos com amor.
- Mas o que a senhora faz exatamente?
- Quando encarnada, fui enfermeira. Trabalhei num hospital; porém, não estudei para exercer essa função. Aqui estudei bastante e ainda tenho a bênção de
continuar tendo instruções. Sou enfermeira, trabalho num grande hospital, cuido de adultos desencarnados imprudentes que viveram encarnados de tal forma que se desequilibraram
e, agora, precisam se harmonizar com as Leis Divinas.
- A senhora trabalha muitas horas por dia?
- Aprendi a viver sem os reflexos do corpo físico 2, não durmo e tenho à disposição as vinte e quatro horas do dia, as quais dedico ao trabalho e ao estudo.
Uso-as pouco para o lazer; às vezes leio livros, vou ao teatro e a alguns passeios. Agora disponho de algumas horas para passar com você, que logo estará participando
das atividades deste local de bênçãos. Irá para outro alojamento, ou seja, para outro
quarto, e freqüentará a escola.
- Posso mesmo fazer parte do coral? Gosto tanto de cantar!
- Claro que pode. Hoje à tarde vou levá-Ia para assistir a um ensaio. Quer dar um passeio?
- Vamos de novo até a Praça da Fonte! - pedi entusiasmada.
Novamente, encantei-me com o passeio. Desta vez prestei mais atenção nas pessoas que estavam lá. A maioria admirava encantada a beleza da praça; outras,
talvez por ter estado mais vezes ali, andavam tranqüilamente, desfrutando da calma presente naquele local. Vi um rapaz que caminhava apoiado num senhor. Escutei-os
quando passaram por mIm:
- Vovô, este lugar é lindo mesmo! Então vou morar aqui?
- Vai sim, Eduardo! Logo estará aqui comigo. Tenha paciência, em breve se sentirá sadio!


2. Sobre esta questão, leia: Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, capítulo 3, "Retorno da vida corporal à vida espiritual". São Paulo: Petit Editora. E André Luiz,
Evolução em dois mundos, capítulo 16, "Mecanismos da mente". Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira (N.E.).


Vi também uma menina que se apoiava numa moça.
Tanto o rapaz quanto a menina me pareceram diferentes. Olhei para titia, ela sorriu e, não esperando que eu indagasse, explicou:
- Esses dois ainda revestem um corpo carnal. Eles ainda estão sendo preparados para a mudança que irão fazer. O rapaz foi trazido pelo avô, e a menina por
uma socorrista, ou seja, uma trabalhadora daqui.
- Eles estão dormindo?
- O corpo físico deles está adormecido. Embora agora estejamos em horário diurno, eles descansam. Ambos têm doenças graves e sabemos que está por findar
o período que eles têm para ficar encarnados, embora nenhum de nós saiba determinar o dia e a hora em que isso irá acontecer.
- A senhora fez isso comigo, não me lembrava de tudo quando acordava, mas esses passeios e encontros eram como um bálsamo. Essa preparação acontece com todas
as crianças ou jovens que estão para desencarnar?
- Não com todas. A maioria das que vem aqui tem doenças incuráveis, e esses encontros acontecem também para que recebam ânimo, consolo e, como você disse,
bálsamo. Repare, Rosângela, que eles têm um cordão prateado que os liga ao corpo físico. Isso os diferencia de nós.
Observei-os bem e vi o cordão. Orei por eles, desejando uma mudança de plano tranqüila.
À tarde, titia nos levou - Fátima, Lourdes e eu - para assistir a um ensaio do coral. Chegamos minutos antes do início a um local enorme e sentamos bem na frente.
Maestro Carlos nos recebeu sorrindo, cumprimentou-nos e esclareceu:
- Nosso coral é famoso em toda a nossa cidade. Quase todas as crianças e jovens do nosso cantinho fazem parte dele e convido-as a unirem-se a nós. Todos os
participantes recebem aulas de canto antes de se tornarem um dos nossos membros. Ensaiamos duas vezes por semana. Agora estamos mais empenhados, porque domingo nos
apresentaremos na praça de eventos da colônia em comemoração ao aniversário de sua fundação. Na semana que vem, iremos a outro local.
Maestro Carlos pediu licença e foi cumprimentar outras pessoas, e Lourdes, curiosa, indagou tia Ana Elisa:
- O coral sai muito do Flores de Maria? Existem muitas colônias? Que eventos são esses?
Prestamos atenção na explicação de titia:
- Vocês já pensaram em quantas pessoas desencarnam por dia? Muitas, milhares. A Terra é imensa! Muitos reencarnam também. É um vaivém constante. Como existem
na Terra muitos lugares para viver, aqui no plano espiritual também é assim. E por toda a espiritualidade há locais destinados aos jovens e às crianças. Normalmente,
nos educandários, há corais, porque quase todos os seres gostam de música. Cantar é uma grande terapia e um modo de agradecer ao Pai tantas dádivas. O coral infanto-juvenil
apresenta-se em quase todos os acontecimentos importantes de nossa colônia, que é a nossa casa, o nosso lar. Aqui temos o hábito, como na Terra, de visitar uns aos
outros. Nós, desta localidade, vamos até outras e vice-versa. Os eventos são comemorações de datas especiais, e temos muitas. Os corais da espiritualidade visitam
também a Terra, vão a locais onde há encarnados que fazem o bem. O Maestro Carlos, quando encarnado, participava de um coral e, aqui, estudou música e tornou-se
maestro. Ensina canto para nossas crianças e jovens, com muita dedicação.
Com todos a postos, Maestro Carlos começou o ensaio. Foi então que prestei atenção em tudo. Estávamos no Pátio das Convenções, local, no educandário, ao
ar livre, onde se realizavam as palestras e o teatro e o coral se apresentavam. Havia muitas pessoas assistindo: alguns adultos e jovens que, como nós, olhavam tudo
com curiosidade. AIgumas crianças alegres observavam atentas e, às vezes, cantavam baixinho e dançavam.
Voltei a prestar atenção no coral. Seus componentes tocavam de pé: os jovens nas fileiras de trás; à frente, as crianças e, nas primeiras filas, os pequeninos
de dois a três anos. Todos obedeciam atentamente e felizes às ordens do maestro.
Gostei demais de ouví-Ios. Cantei baixinho alguns trechos de certas músicas que conhecia e cheguei a balançar o corpo acompanhando o ritmo delas. Quando terminou
o ensaio, o grupo se dispersou. Saíram em ordem, porém, falando com alegria. Parecia que a música continuava.
- Gostaram, meninas? - perguntou tia Ana Elisa. - Gostei muito. Vou ficar muito feliz quando puder fazer parte desse coral. Achei-o sensacional! - respondi.
- Vamos matriculá-Ia nas aulas de canto. Sentirei muita alegria em vê-Ia participando do coral - falou minha tia sorrindo.
Titia nos convidou para voltar ao nosso alojamento. Regressamos pela praça, e ela nos explicou:
- O ensaio foi no setor oito, e vocês estão alojadas no prédio número quatro.

O canto deixou-nos alegres, e Fátima, embora quieta, ficou mais calma. Lourdes e eu caminhávamos cantando e, às vezes, titia nos ajudava em certos trechos.
Senti-me muito bem! De volta ao nosso quarto, Lourdes e eu estávamos tão eufóricas que Valda nos incumbiu de aguar as plantas do corredor - o que fizemos
com alegria.
- Oi, plantinha linda! Que tal um pouquinho de água fresca? - falava enquanto as aguava.
Lourdes riu achando graça.
- Vovó falava com as plantas do seu jardim. Ela me dizia que todo ser vivo gosta de atenção e carinho - expliquei.
Fizemos a tarefa e, cansadas, fomos dormir. Estava muito feliz.

5


No dia seguinte, acordei triste. Lourdes e Fátima já estavam acordadas. Sentia-me bem e ser novamente sadia na uma bênção que eu não cansava de agradecer.
Poder pular, andar, ter disposição, não sentir dores era uma dádiva que tinha para mim um valor incalculável. Achei o educandário lindo, as pessoas ali, desencarnadas
como eu, agradáveis e prestativas. Tudo perfeito, maravilhoso, mas eu estava tristonha. Queria o afago dos meus pais, beijos das minhas avós e dos meus avôs, o carinho
das tias e das amigas. Ansiava por escutar os risos de meus irmãos. Amava-os e sentia falta deles. A saudade doía no meu peito.
Como sempre acordava falando e rindo, e continuei quieta, Lourdes indagou preocupada:
- O que está acontecendo hoje com você, Rosângela?
Olhei-as. As duas estavam na mesma situação que eu, adaptando-se e esforçando-se para aprender a viver longe de seus afetos. Fátima, porém, estava com mais
dificuldades, dando a impressão de não querer se adaptar. Pensei: "Se me queixar, certamente levarei Fátima a chorar e não tenho esse direito".
Lembrei-me do que ti tia Ana Elisa me falara: "Rosângela, minha sobrinha, você sentirá falta dos que ama, poderá ficar triste, mas se alimentar a tristeza, ela só
crescerá. Combatemos esse sentimento com outro: alegria. Alegre tornamo-nos otimistas e aí resolvemos nossas dificuldades facilmente."
Esforcei-me e sorri. As duas, que me olhavam, sorriram também.
- Estava tentando adivinhar o que tem dentro dessas gavetas do armário, da mesinha de cabeceira e da pia do lavatório. Estou curiosa, mas não sei se posso
mexer - respondi.
- Já vi Valda guardar roupas de cama e as que usamos no armário. Acho que não tem nada de mais você abrir e ver - opinou Lourdes.
- Não se faz isso na casa dos outros, acho que é melhor pedir permissão. Devemos ser educadas - alertou Fátima.
- Acho que vou começar a melhorar educando-me para não ser tão curiosa. Quando Valda vier, pedirei a ela para abrir as gavetas - falei.
- Arrumei minha cama, tive vontade de chorar, gritar: "Mamãe, papaizinho, venham me buscar!"
Valda entrou no quarto, Lourdes respondeu o cumprimento e foi falando:
- Valda, Rosângela quer ver o que há guardado nas gavetas, está curiosa. Mas não mexemos, queremos que você nos dê permissão.
- Claro, meninas, podem ver o que quiserem - expressou-se Valda.
Lourdes correu e abriu a gaveta do armário, Fátima foi para perto dela. Eu ia também, mas Valda abraçou-me e falou carinhosamente:
- Querida, a saudade pode incomodar; se permitirmos que ela nos domine, poderá nos privar de desfrutar outros momentos, o de amizade, por exemplo. Estou
contente por você não ter incomodado suas companheiras, chorando e se lamentando. Entendeu que Fátima está muito frágil. Já sente .amizade por elas. Teme se distrair
quando sentir tristeza. Nesse período de adaptação podem ocorrer momentos alegres, que se intercalam com outros tristes. O importante é dar valor a tudo o que se
recebe, querer ser alegre e se esforçar para estar sempre bem. Vá ver o que tem nas gavetas!
- Roupas! Nunca pensei que no plano espiritual houvesse roupas! - exclamou Lourdes rindo.
- Pior se ficássemos nuas aqui - comentei.
Rimos e Valda nos explicou:
- Queridas, vocês são recém-chegadas do plano físico. Gostavam de lá e isso é ótimo. Temos mesmo de amar o lugar em que vivemos. Lá, encarnadas, estavam
condicionadas a muitas coisas: tomar banho, escovar os dentes, vestir-se, alimentar-se etc. Esses hábitos vão mudando com o tempo. Eu não tenho mais o reflexo do
corpo carnal, não durmo nem me alimento, não troco de roupa, embora use uma.
Rimos.
- Vocês aos poucos vão aprender a viver assim, mas enquanto isso não acontece, podem trocar de roupa, alimentar-se e tomar banho. E, falando em alimento,
trouxe o desjejum de vocês. Para você, Fátima, a bolacha que me pediu.
- Pelo jeito aqui tudo é mais fácil - observei.
- Nem tanto, estou longe das pessoas que amo! - exclamou Fátima fazendo beicinho para chorar.
- Meninas, vim aqui lhes dar uma notícia agradável. Uma surpresa!
Nós três a olhamos curiosas e Fátima se recompôs para prestar atenção. Compreendi que Valda queria nos alegrar. Continuou a falar:
- Vocês vão ser transferidas! Amanhã logo cedo, as levarei para o outro lado da nossa casa. Vocês vão amar! Irão para a escola, participarão de atividades
esportivas, aulas de música e canto e...
- Oba! - interrompeu Lourdes. Vou gostar de sair daqui e ir para o outro lado.
- Eu não quero ir! - exclamou Fátima com lágrimas nos olhos. - Não quero sair daqui. Tenho medo de ir para o outro lado. E se não me acostumar? Lá não terei
você, Valda, para me ajudar.
Valda a abraçou. Fez cócegas na barriga dela, provocando seu riso.
- Fátima, você não precisará ficar lá se não quiser. Mas venha amanhã conosco para conhecer os alojamentos. Poderá fazer muitas amizades e não sentirá
minha falta - aconselhou.
Valda despediu-se de nós e foi embora. Tomamos nosso desjejum, que estava delicioso.
Lourdes e eu fomos ver o que tinha nas outras gavetas. Achamos livros, folheamo-Ios.
- Valda já me deu alguns para ler - disse Fátima. Que são muito interessantes. Este aqui descreve as colônias. Como já tivemos permissão, podemos lê-Ios.
Estávamos ansiosas com a transferência. Não conseguia me concentrar para ler, não parava quieta e, quando Valda nos convidou para ir ao jardim, Lourdes
e eu a acompanhamos ligeiras.
- Vocês duas podem ajudar o senhor Antônio a cuidar das plantas - disse Valda.
O senhor Antônio deu-nos a incumbência de aguar um canteiro. Como era bom cuidar das plantas, a ansiedade passou, ficamos mais tranqüilas.
- Senhor Antônio, podemos agora ajudá-Io em outro canteiro? - perguntou Lourdes.
- Aquele já foi aguado e este outro está reservado para outras crianças - respondeu ele com calma.
Fomos, então nos enturmar com outros jovens e encontramos Lenice, que fazia todos rirem. Contava uma aventura sua, em que se perdeu dos pais num passeio
à praia. a grupo se dispersou e ficamos nós três, Lourdes, Lenice e eu, conversando. Lenice nos indagou:
- Será que aqui poderei vestir uma roupa de festa? Queria meu vestido azul. Mamãe o comprou para irmos a uma festividade, mas nem cheguei a vesti-Io. Será
que aqui há festas como na Terra?
Não soubemos responder. Indagamos ao senhor Antônio, que pacientemente esclareceu:
- Aqui temos tudo o que necessitamos; entretanto, somos educados para não exagerarmos. Temos festas lindas, em que o principal objetivo é nos confraternizarmos.
Nunca vi ninguém vestido a rigor ou com muito luxo. A beleza está na simplicidade.
Gostei da resposta, e Lenice exclamou rindo:
- Adeus meu vestido azul! Espero que mamãe não o guarde, que o dê para outra menina, que se sentirá contente em usá-Io!
- Como desencarnou, Lenice? - Lourdes quis saber.
- Sentindo-me muito feliz! - exclamou ela. - Sim, estava numa festa, engasguei-me e não vi mais nada, desencarnei e acordei aqui. Não quero ser triste, não
estou viva para sofrer, quero ser sempre alegre. Tenho um sonho, ser atriz, trabalhar no teatro e alegrar as pessoas. Valda me disse que aqui temos teatro e quem
quer e gosta, pode aprender a representar. Ela vai me levar para outro setor.
Vou para a escola e para o teatro. Estou muito contente!
Quando Valda veio nos buscar, indaguei-a curiosa:
- VaIda, Lenice nos disse que deseja ser atriz, que fará teatro aqui. É verdade?
- Sim. Temos muitos grupos teatrais e grandes talentos. Ela logo irá ser transferida, freqüentará a escola e, atendendo ao seu desejo, fará parte de uma
equipe de atores.
- Vocês tentam fazer os gostos de todos, não é? - indaguei.
- Sim. Tentamos fazer de tudo para que todos estejam bem e felizes - respondeu Valda.
No outro dia, Lourdes e eu arrumamos nossos pertences. Eu havia recebido três trocas de roupas, dois tênis e um pijama. Também me deram pente e escova de
dente.
Fátima decidiu que só iria conosco para visitar, depois voltaria.


Quando Valda chegou para nos levar, estávamos ansiosas, meu coração batia forte.
- Sinto meu coração bater! - exclamei.
- E por que estranha? Não sente fome e sede? Já nos explicaram que este corpo, o perispírito, é parecido com o que usávamos quando encarnadas - falou Lourdes.
Fizemos uma prece de agradecimento por termos sido tão bem-recebidas. Eu roguei coragem e proteção para a nova etapa.
- Vamos pela parte interna dos prédios. Indo pelo corredor principal, chegaremos lá num instante. Ele passa por todos os setores - explicou Valda.
Nós três estávamos muito curiosas, olhávamos tudo com atenção.
- O Educandário Flores de Maria é grande - continuou esclarecendo Valda. - A Praça da Fonte é o centro de todos os setores. São oito prédios que dão frente
para da e que se comunicam internamente entre si por um corredor.
- Da praça, vi os prédios, em formato octogonal, ou seja, oitavados e todos com a mesma medida de frente deduziu Lourdes.
- É isto mesmo! - concordou Valda. - Entre os setores um e oito, está o portão principal que dá acesso à colônia. Atrás dos prédios, estão a área de lazer,
quadras de esportes, parques com brinquedos, os bosques e os jardins.
Chegamos ao corredor principal ou círculo, como é chamado. Paramos impressionadas. Ele era largo, com muitas gravuras e plantas nas paredes. Ouvia-se uma música
suave.


- Parece uma escada rolante horizontal! - exclamou Fátima.
- É uma passarela rolante! - corrigiu Lourdes.
De onde estávamos, defrontamos com um espaço fixo. Dali podíamos ir, pela passarela, de um lado a outro.
- Aqui deve ser como numa estação de trem, indo para a direita chegamos às escolas; para a esquerda, aos primeiros setores - concluiu Lourdes.
- É isso aí, garotas! - esclareceu Valda. - Se alguém vem de outro setor para este, pára aqui e é só caminhar pelo corredor que viemos, que entra na ala
de recuperação. O corredor tem quatro passarelas; uma que vai para a direita e outra que volta para os que querem caminhar. No meio encontram-se as duas móveis.
Valda nos puxou e fomos para a passarela móvel. Ficamos paradas e ela se moveu compassadamente. Muitas pessoas caminhavam nas fixas.
- Muito bom!
- Ótimo!
- Sensacional! - exclamávamos, deliciando-nos.
Em muitos trechos havia plataformas fixas. Saímos da passarela móvel e atravessamos; dando alguns passos, paramos na outra ponte móvel e continuamos pelo
corredor. As plataformas fixas davam para corredores que tinham acesso ao interior dos prédios.
- Vejam que pinturas bonitas! - exclamou Fátima.
- São painéis pintados pelos nossos jovens e crianças - esclareceu Valda.
As pessoas nos cumprimentavam sorrindo. Estávamos tão eufóricas, Lourdes e eu, que dávamos até gritinhos de satisfação, encantadas com tudo.
- Queria que mamãe estivesse aqui comigo! - queixou-se Fátima.
- Nada é perfeito! Esqueça um pouco deles, Fátima, e aproveite o que nos está sendo oferecido! - pediu Lourdes. - Chegamos meninas!
- Oh! - exclamei.
- Já? Que pena! - expressou-se Lourdes.
- Vocês irão usar este corredor muitas vezes por dia. Aqui é o setor sete, dos alojamentos - explicou Valda.
Ouvimos conversas alegres e risos. Passamos por um corredor pequeno e paramos em frente aos elevadores, que eram quatro, e subimos por um deles. Deparamos
com outro corredor e Valda abriu uma porta. Defrontamos com um quarto enorme, com camas, armários, escrivaninhas, mesas de cabeceira, poltronas, todas em número
de dez. Havia até alguns biombos, caso alguém quisesse separar o ambiente.
- Aqui é o seu cantinho, Lourdes, ao lado de Rosângela - falou Valda apontando.
Nunca havia visto um quarto assim, era como se fossem dez quartos num único espaço. No local para onde Valda apontou o meu, tinha um armário com a cama
no meio, do lado direito ficava a escrivaninha dando fundo para o outro cantinho que pertencia à garota vizinha e do lado esquerdo, a poltrona e a mesinha.
Suspirei encantada, sentia-me entusiasmada. Gostei do meu alojamento!

6


Uma moça tão bonita quanto Valda nos recebeu, sorrindo.
- Sejam bem-vindas, garotas! Sou Isabel, a orientadora de vocês. Qualquer dúvida podem me consultar.
Abraçou-nos. Gostei dela. Isabel nos esclareceu:
- Aqui ficarão pelo tempo que estiverem no educandário; por isso, meninas, sintam-se à vontade. Suas escrivaninhas estão vazias, mas logo receberão seus
objetos de estudo, que guardarão. Nesta parte do armário poderão colocar os pertences que trouxeram.
Isabel e Valda ficaram conversando, Fátima nos observava calada. Lourdes e eu arrumamos nossos pertences na parte indicada, cada uma no seu armário.
Não fazia quinze minutos que estávamos lá, quando chegaram outras garotas que dividiriam conosco aquele alojamento.
- Viva! Novas companheiras! Sou Hortência! Tenho muito prazer em recebê-Ias! - exclamou uma menina, sorrindo alegremente.
Todas se apresentaram oferecendo seus préstimos. - Estamos chegando de uma aula e já vamos sair novamente, iremos ao ensaio do coral. O Maestro Carlos
e a Maestrina Georgina querem que a apresentação seja um sucesso.
- Vocês vêm conosco? - perguntou Carina.
Ficamos indecisas. Isabel, nossa orientadora, respondeu por nós:
- Elas irão!
Sorrimos contentes.
- Temos de nos apressar, colocar nossos objetos no lugar e trocar de roupa. Mas ainda há um tempinho para conversar e nos conhecermos - disse Leninha.
Ficamos, Lourdes, Fátima, Valda e eu no meu quarto.
Tentamos convencer Fátima a ficar conosco. Ela, porém, não quis e pediu à Valda para levá-Ia de volta.
- Fátima - eu disse abraçando-a -, que seja somente uma breve despedida. Venha logo ficar conosco.
- Você não tem medo de permanecer aqui? Mudar de novo? Neste alojamento não teremos Valda para cuidar de nós - falou Fátima torcendo as mãos com nervosismo.
Pensei naquele instante em que nos abraçávamos, no que Fátima dissera. "Sim, tive medo e ainda poderia voltar a sentir. Mudar, defrontar com o desconhecido,
dava-me um 'frio na barriga, como costumava dizer quando encarnada. Mas podemos desvendar o desconhecido como me aconselhou Solange, minha irmã. Deixar de fazer
algo por receio não é inteligente. Eu já estava morta, ou seja,
desencarnada, não tinha volta. Chorar por isso seria uma perda de tempo. Queria aprender a viver no plano espiritual. Resolvi tentar animar Fátima.
- Fatinha, minha amiga, aqui não teremos Valda, porém poderemos vê-Ia sempre. E depois teremos outras orientadoras, mestres e muitos amigos. Você terá Lourdes
e eu, que já conhece. Se ficar, sua cama será junto da minha.
Se sentirmos medo, poderemos conversar. Espantaremos o receio com algumas risadas.
- Você não está sentindo mesmo falta de sua casa? Parece que não se importa por tê-Ia deixado - replicou Fátima.
- Sinto falta de todos lá de casa. Amo-os, fui e sou muito amada. Mas morri, não foi culpa minha, fiquei doente, sofri e eles sofreram muito também. Mamãe,
papai, todos querem que eu esteja bem. Acreditam que estou no Céu e, de certa forma, não pensam errado. Se viver no Céu é estar sem dores, sadia, junto a pessoas
boas e amigas, estou no paraíso. Eles me imaginam feliz e não posso decepcioná-Ios. Quero aprender, conhecer e não posso recusar o que me está sendo oferecido. Quero
estar bem por eles que me amam e por mim. Desejo ser feliz!
Falei e alegrei-a pelo que disse. Era o que eu queria, porém, não tinha ainda pensado nisso. Percebi que Valda me olhava atentamente. Fora ela quem me
ajudara nessa conclusão.
Mas não adiantou, Fátima quis ir embora. Valda despediu-se de nós com carinho. As duas saíram. Lourdes e eu nos olhamos, indagando com o olhar: E agora?
Hortência aproximou-se de nós esclarecendo:
- Já estou aqui há três anos. Sou a pessoa que está há mais tempo no alojamento. Podem me perguntar o que quiserem, responderei o que souber - sorriu alegre
e continuou a falar: - nos armários encontrarão outras roupas, foram colocadas aí para vocês.
Hortência abriu a outra parte do meu armário e mostrou-me as roupas. Carina puxou Lourdes pela mão e levou-a até seu roupeiro. Olhei aprovando minhas roupas novas.
Na frente de todas as blusas, do lado esquerdo, havia 11m pequeno e delicado bordado de flores com a inscrição: Flores de Maria.
- Gostei das roupas! Você gostou Rosângela? - perguntou Lourdes.
- Muito! - respondi.
- Hortência, há muitos alojamentos no setor sete? São todos iguais? - Lourdes quis saber.
- São muitos! - esclareceu Hortência. - Não são iguais. Os dos jovens têm outra decoração. Os das crianças têm muitos brinquedos e mais orientadoras. Neste
andar e no de baixo estão os alojamentos das meninas; nos dois andares acima, os dos garotos. No primeiro pavimento e no térreo, estão acomodados os pequerruchos.
Assistimos às aulas juntos e participamos de muitas atividades. Eu, após o ensaio, vou para a aula de natação.
- Natação?! - indaguei estranhando. - Aqui há água? Piscinas?
- Você não tomou água? - indagou Hortência. Afirmei com a cabeça e ela continuou a explicar: - Temos água, você tomou e tomará até aprender a viver com
esse corpo, que se chama perispírito. Enquanto sentir o reflexo do corpo físico irá beber e se alimentar. Eu quase não me alimento e bebo pouca água. Você não viu
as fontes? Ali é uma nascente e aquela água abastece nosso lar. Atrás do setor oito, temos as piscinas para os internos aprenderem ou praticarem natação. Eu desencarnei
por afogamento e fiquei com medo terrível de água. Isso me prejudicava, sonhava com meu desencarne e acordava aflita. Conversei com os psicólogos do educandário
e eles me aconselharam a aprender a nadar. Enfrentando o medo, venci-o, e não tive mais esses sonhos. Já aprendi a nadar, agora treino salto.
Ri. Hortência me olhou também rindo.
- Desculpe-me, achei engraçado. Morta aprendendo a nadar! - comentei.
- Rosângela, é melhor você falar o termo certo. Você se sente morta? Não? Ótimo! É porque não está! Seu corpo físico doente morreu; você, espírito, continua
vivendo! E viver é aprender! Aqui você já aprendeu muitas coisas, não é? E o que tem de mais aprender a nadar? - explicou Hortência.
- É que pensei que fantasmas atravessassem a água, não nadassem! - argumentei.
- Fantasma? Essa é boa! Acha mesmo que somos fantasmas? - indagou Lourdes depois de dar risada.
- Acho que não! Devo ser mesmo uma desencarnada, que sobreviveu à morte do corpo de carne e osso - respondi rindo.
Olhamos para Hortência, que ria também; não esperando por nossas perguntas, explicou:
- Não somos fantasmas nem uma visão de terror; somos simples aprendizes deste plano. Estou estudando e tenho muito o que aprender. Vou explicar o que sei,
e se quiserem mais esclarecimentos é só perguntar aos orientadores. A água no plano físico, assim como as casas, as árvores, o corpo que usamos, é material. Aqui
é diferente, mais rarefeita, sutil. Observe o corpo de vocês, podem se apalpar e a mim também. Temos tudo que necessitamos neste local maravilhoso. Encarnados dificilmente
nos vêem ou a este lugar, por não serem da mesma matéria. Se vocês forem à Terra, poderão vê-Ios, e eles Infelizmente, não conseguirão vê-Ias. São poucas as pessoas
encarnadas que nos vêem ou nos sentem. Vocês só passarão pelas paredes e andarão em cima das águas quando aprenderem. Aqui, se caírem na água irão apenas se afundar,
se não souberem boiar.
Mas por que se aprende a nadar se quando estiver encarnada a pessoa irá esquecer? - indaguei curiosa e ainda achando engraçado.
Hortência sorriu, ficava muito bonita quando sorria, e falou esclarecendo-nos:
- Pode rir, Rosângela, eu também estranhei muitas coisas por aqui. Primeiramente devemos querer e gostar de aprender. Temos de ter objetivos e planos para
viver bem e no bem e nos esforçar para atingí-Ios. E normalmente para conseguir o que planejamos, temos de estudar, trabalhar e não desperdiçar as oportunidades.
Conhecer é um tesouro que nos pertence. Às vezes, nos períodos em que passamos encarnados, os conhecimentos podem ficar escondidinhos, mas eles são nossos. Existem
pessoas que aprendem rapidamente, quando encarnadas, ourtas demoram mais para assimilar determinados assuntos. Isso é porque algumas já os sabiam e recordam-se;
já outras estão aprendendo mesmo. Aprendi a nadar, porque dessa forma pude superar o medo da água e não o levarei para minha reencarnação futura. E se, encarnada,
for aprender a nadar, certamente o farei com facilidade.
Hortência aquietou-se e eu pensei: "Queria tanto aprender a nadar quando estava encarnada, mas não tive oportunidade. Nadar é um esporte, um lazer sadio".
- Será que posso ir com você na natação? Gostaria de vê-Ia tendo aula - pedi.
- Acho que pode ir, mas temos de pedir permissão para Isabel - respondeu Hortência.
- Carina, você faz natação também? - perguntou Lourdes.
- Não - respondeu Carina. - Aprendi a nadar quando encarnada e não me interesso muito por esse esporte. Gosto mesmo de dançar. Faço aula de dança três
vezes por semana.
- Dança?! - Lourdes e eu exclamamos juntas.
- Dançar é um esporte porque mexemos com o corpo, é uma terapia que faz bem à mente. Faço aula de balé clássico e também de dança moderna. Dou aulas para
as meninas pequenas. Gosto muito, estou feliz por fazer o que amo!
- Quero vê-Ia dançar! - pediu Lourdes.
- Artes e esportes são valorizados aqui - expressou-se Carina.
Nisso, Isabel entrou no alojamento e Hortência lhe pediu:
- Isabel, Rosângela quer me ver nadar. Posso levá-Ia?
- Vocês irão agora para o ensaio do coral. Depois, vou matriculá-Ias nas aulas de canto; porém, ela pode ir com você. Se gostar, Rosângela, e quiser aprender
a nadar, terá que organizar seus horários, pois se organizando, terá tempo para muitas atividades.
Conversávamos animadas. Trocamos de roupa. Achei-me linda com o uniforme do coral. Sorri contente ao me ver no espelho.
- Temos dois uniformes para nos apresentarmos no coral. Este serve para simples apresentações e para o ensaio. E este para comemorações importantes - explicou
ela.
Olhei para a outra roupa que estava no armário. Era uma beca comprida, azul-clarinho, com o bordado do emblema do educandário maior.
Fomos para o setor oito, encantei-me novamente com o corredor. Chegamos ao teatro e Isabel pediu ao grupo de novatos que ficassem junto a ela. A garotada
conversava entusiasmada. Fiquei sem saber se olhava para o local ou para a meninada. Antes de ir para o seu lugar no coral, Hortência falou-me baixinho:
- A alegria é contagiante! O canto é uma forma de expressar esse contentamento!
Observei as crianças. Todas vestiam o uniforme do coral e entraram de mãozinhas dadas. Felizes, riam e conversavam. Achei-as lindas!
Um menino que estava conosco, entre os novatos, observava-me, atento. Olhei para ele, que bateu a mão na testa, como a indicar que se recordara de algo.
Aproximou-se de mim e perguntou:
- Você não é a menina que fazia tratamento com o doutor Marcelo?
Afirmei com a cabeça. Lembrei-me dele. Por muitas vezes nos encontramos no consultório.
- Morri! - exclamou ele sorrindo. - E, como você, vim me curar aqui. Você está bonita, saudável! Quase não a reconheci. Estou gostando daqui e você?
- Acho que estávamos diferentes quando doentes. Você também está com boa aparência. Estou gostando daqui. Você se chama Samuel, não é?
- Samuca, de Samuel - respondeu ele. - Prazer em vê-Ia aqui. Vou querer conversar com você para trocarmos opiniões.
- Claro, acho que vamos nos encontrar por aí. Você fará parte do coral?
- Sim, gosto de cantar - respondeu ele.
O Maestro Carlos bateu palmas e todos silenciaram. Começou o ensaio. A garotada cantava mesmo, sempre obedecendo ao maestro que, para mim, parecia fazer
mímicas. Quando acabou o ensaio, Isabel disse-me:
- Vá com Hortência para vê-Ia nadar. Amanhã você irá para a aula de canto.

7


Conversas e risos. Os primeiros a saírem foram os pequeninos. Hortência aproximou-se de mim, pegou minha mão e foi me arrastando.
- E aí, Rosângela, gostou do coral?
- Muito. Quero aprender tudo, as letras das músicas e entender os gestos do maestro. Os pequeninos entendem?
- Claro que entendem. Eles gostam de cantar. É lindo quando eles se apresentam sozinhos. Emociono-me todas as vezes que os vejo. Nós os chamamos de pequenos
cantores. É o coral da garotada de até seis anos. Mas eles gostam de cantar conosco, os maiores. As piscinas estão aqui neste setor, no oitavo.
Caminhamos ao ar livre, passamos pelas quadras. Quis parar para ver os pátios, mas Hortência puxou-me:
- Você terá tempo para ver tudo; agora vamos, a aula tem hora marcada. Não posso me atrasar.
O dia estava maravilhoso, acho que nunca antes tinha visto uma tarde tão linda. Ou será que não havia prestado atenção no tempo? Creio que basta olhar com
amor para ver beleza na natureza. Senti vontade de pular, e pulei, cantando uma das músicas que escutara. Hortência me olhou, compreendendo-me e, juntando-se
a mim, pulou e cantou também.
Logo chegamos às piscinas. Eram em número de quatro, de diversos tamanhos e água Iímpida. Muitas crianças e jovens se preparavam para a aula. Parei e, admirada,
fiquei observando as piscinas. Hortência puxou-me novamente.
- Venha, Rosângela, vou apresentá-Ia à minha professora.
Aproximamo-nos de uma moça muito simpática, que sorriu ao nos ver. Hortência apresentou-me:
- Narcisa, aqui está Rosângela, que é recém-chegada da crosta. Ficou curiosa quando lhe falei que estava tendo aulas de natação e veio me ver nadar.
- Seja bem-vinda! - falou Narcisa beijando-me. - Fique à vontade e, se quiser, sente-se ali.
Sentei-me no lugar em que ela indicou, uma fileira de cadeiras ao lado da piscina número três. Hortência correu para o vestiário e logo voltou com um maiô
azul.
Vendo que eu a observava, deu um salto espetacular e nadou em várias modalidades. Fiquei encantada, aplaudia suas proezas na água. Desejei nadar com ela.
Quando terminou a aula, Narcisa aproximou-se de mim, e pedi a ela:
- Queria saber nadar. Será que posso aprender?
- Claro que sim! Quando fizer seu horário de estudo, poderá se organizar. Sabendo de seu tempo livre, volte aqui e matricule-se. Aprenderá rápido!
Saímos pelos fundos, e Hortência explicou-me:
Atrás dos prédios, ao ar livre, há lugares de lazer e estes estão mais concentrados no setor oito. É aqui o lugar mais gostoso do educandário.
Os campos de futebol, as quadras de vôlei e de basquete estavam todas ocupadas. Hortência nem esperou que eu indagasse e esclareceu-me:
- Rosângela, a desencarnação não nos transforma de imediato. Continuamos por algum tempo a gostar do que cohecíamos e a querer prosseguir com as atividades
esportivas. O lazer faz parte da nossa recuperação e adaptação. Aprendemos muito com os esportes, as artes e as músicas. Você freqüentará a escola, aprenderá conhecimentos
gerais e terá aulas de evangelização. Aqui não é um lugar triste, que só tem obrigações; temos diversão e amor; é um lar.
Nada porém, de exageros. Eu era muito desorganizada com horários. Aqui aprendi a dividí-Ios e a ocupar todas as horas do meu dia. E me sinto ótima!
Passamos por um imenso parque, vi muitas crianças brincando alegremente.
- Podemos vir no parque. Temos, porém, dia e hora para a visitá-Io. É muito gostoso! - exclamou Hortência.
Chegamos ao setor sete.
- Rosângela, vim com você pelo caminho mais longo para que conheça o nosso lar, ou seja, o Educandário Flores de Maria. Ali temos o bosque, o mais bonito
da nossa colônia. Podemos pegar livros na biblioteca e lê-Ios sentadas em confortáveis bancos espalhados por aqui. Há também um auditório, que é ao ar livre; e onde,
muitas vezes, o coral ensaia e temos também apresentações de recitais e concertos musicais.

Lindas árvores faziam sombra nos bancos, e flores enfeitavam o local, dando um colorido maravilhoso.
Entramos em nosso alojamento. Eu estava cansada, mas eufórica com tantas novidades. Lourdes, assim que: me viu, disse sorrindo:
- Rosângela, matriculei-me na aula de canto, e Isabel fez sua matrícula. Teremos aulas duas vezes por semana, até aprendermos o suficiente para participar
do coral.
Isabel estava no nosso alojamento e fez um sinal com a mão nos chamando, para nos transmitir algumas recomendações:
- Meninas, quero que se sintam à vontade aqui conosco, como se fosse o lar de vocês. Amanhã cedo, irão para a escola. E, como será o primeiro dia, irei
acompanhá-Ias.
- É que eu... - falei e não completei, não tive coragem.
- O que foi Rosângela? Por favor, fale - pediu Isabel, abraçando-me.
Aconcheguei-me nos braços dela e acabei confessando:
- É que estou atrasada nos estudos. Por causa de minha doença não fui mais à escola e não tive ânimo para estudar sozinha. Ia completar quatorze anos e só
estudei até a quarta série.
Lourdes, que ouvia, comentou:
- Eu tenho onze anos, pensei que você também tivesse.
- Aqui, Rosângela, estão as meninas de faixa etária de onze a doze anos. São como se sentem. Entendeu? E há uma garota de doze anos no quarto das que têm
dezesseis - explicou Isabel.
- Entendi! Acho, sinto que sou criança! - exclamei.
- Você não teve tempo, quando encarnada, de passar pela adolescência. E não ficará atrasada nos estudos. Já sabemos que teve de parar de estudar e, por
favor, não se envergonhe. Não devemos nos envergonhar de não ter feito algo que não estava ao nosso alcance. Até o final do ano, você freqüentará a quarta série.
Tenho certeza de que acompanhará a turma, porque temos aulas de reforço. Agora, sadia, terá bastante ânimo para estudar.
_ Que bom! - exclamei aliviada.
- Nos setores, do dois ao sete e no térreo, há refeitórios. Se sentirem fome, podem ir lá e fazer uma refeição explicou Isabel.
- Todos que vivem aqui vão ao refeitório? As meninas deste quarto se alimentam? - indagou Lourdes.
- Nem todas - respondeu Isabel. - Com o tempo, aprende-se a viver com este corpo perispiritual, libertando-se dos reflexos do corpo físico. Não precisam
ter pressa para adquirir esses conhecimentos e, enquanto não aprendem, podem alimentar-se à vontade.
Passei a mão no estômago e pensei em comida, sentindo fome. Deu-me vontade de tomar um grande prato de sopa e comer pipocas. Só em pensar nelas, quentinhas
e saborosas, minha boca encheu-se de água. Gostava muito de pipocas, porém por causa de minha doença não podia comê-Ias.
Isabel adivinhou, ou melhor, leu meus pensamentos, como soube depois, e falou:
- Vou pedir para Margarida, a senhora que trabalha no refeitório, fazer uma deliciosa travessa de pipocas.
- Pipocas! Eu também quero! - exclamou Leninha, uma companheira de quarto. - Há tempos que não me alimento, mas me deu vontade de comer pipocas. Esperem
por mim, vou acabar de fazer esta lição. Não posso deixar para fazê-Ia à noite, porque vou encontrar meu avô.
- Encontrar seu avô? Como? Por quê? - indagou Lourdes.
- Meu avô Lauro desencarnou há dez anos, mora na colônia e nos encontramos sempre para conversar. Gosto muito dele - respondeu Leninha entusiasmada.
- Eu tenho uma tia aqui, é tia de minha mãe. Ela se chama Ana Elisa, trabalha na colônia. Está desencarnada há muito tempo e ajudou-me muito - expliquei.
- Quase todos nós temos alguém querido desencarnado. E essas visitas e encontros são constantes. Quando desencarnei, um senhor auxiliou-me muito. Não o conhecia,
só depois de algum tempo soube que ele fora meu pai na encarnação anterior - disse Isabel.
- Eu não tenho ninguém da família por aqui. Meus avós estão encarnados, pais, meu irmão, tios, não recebo visitas de nenhum familiar - lamentou Marina.
- Aqui somos todos uma grande família. Agora, meninas, tenho de ir e não se esqueçam de mim, me chamem sempre que precisarem - falou Isabel, retirando-se.
Sentamos, Lourdes, Marina e eu nas poltronas, esperando Leninha terminar a lição. Olhei para Marina e senti pena. Eu tinha minha tia, era alguém da família;
só de pensar nela, sentia-me protegida. Percebi minha amiga triste, quis distrai-Ia e indaguei:
- Marina, como você desencarnou?
Ela suspirou, demorou alguns segundos para responder, como se tivesse pensado no que falar, depois respondeu devagar:


- Éramos pobres, vivíamos em dificuldades financeiras. Meu sonho era ter uma bicicleta. Para ter uma, estudei muito e tirei ótimas notas. Meus pais fizeram
um sacrifício e me deram uma no Natal. Foi uma felicidade. Eu andava de bicicleta por todo o bairro, tinha muito cuidado. Depois de seis meses, sofri um acidente.
Estava voltando para casa depois de ter passeado com algumas amigas, quando um menino atravessou meu caminho. Ele estava brincando, saiu correndo e não me viu,
nem eu a ele. Só notei sua presença quando estava à minha frente. Brequei e tentei desviar; caí e bati a cabeça na guia da calçada. Desencarnei na hora. Ainda ouvi
gritos, depois o silêncio, e acordei aqui, no educandário. Todos sentiram minha desencarnação. Mas minha mãe, que é uma pessoa excelente, confortou a todos e ajudou-me
muito. O menino ficou desesperado e foi ela quem o consolou, dizendo que ele não tivera culpa. E, realmente não houve culpados. Aconteceu! Só de pensar na minha
mãe, sinto-me motivada, com vontade de viver e ser feliz.
Sorri para ela e falei:
- Quem tem uma mãe como a sua não tem por que sentir falta de parentes aqui. Vamos esquecer a nossa desencarnação.
- Vamos falar de vida! Todos me agradam tanto, estou muito feliz aqui - exclamou Lourdes.
Marina despediu-se de nós indo para o seu cantinho. Olhei para Lourdes e perguntei:
- Lourdes, você quer ser minha amiga? Mas amiga mesmo? Aquela em quem se pode confiar?
- Quero! Então, amigas para sempre!
Abraçamo-nos. Leninha terminou a lição e lá fomos nós para o refeitório.


8


Descemos pela escada cantarolando baixinho. Leninha nos levou até o refeitório. O local era muito agradável e arejado. Era uma sala com doze mesinhas, tudo
muito limpo, na cor bege; nos azulejos existiam faixas florais. Leninha cumprimentou Margarida, apresentou-nos e pediu:
- Duas sopas grandes para elas e depois, pipocas!
- Aqui tem pipocas? Vou querer! - exclamou um garoto, que estava com outros dois meninos, sentados ao nosso lado, comendo sanduíche e tomando refrigerante.
- Adolfo, hoje você já se alimentou, teve o seu sanduíche e refrigerante. Deixemos a pipoca para outro dia, está bem? - falou Margarida, afastando-se e
entrando em outra sala.
Leninha explicou-nos:
- Aqui somos educados para ter uma boa alimentação. Enquanto estamos no período da adaptação é permitido que tenhamos algumas regalias, mas nada de excessos.
Pode-se tomar sorvetes, comer doces, tudo o que gostávamos quando encarnados, até que...
- Já sabemos - interrompeu Lourdes -, que aprendamos a viver sem nos alimentar. Vou gostar de ficar sem comer, vou mesmo!
Margarida trouxe duas tigelas com sopa. Leninha ficou quieta, esperando. Tomei-a e achei deliciosa. Como era bom poder me alimentar, sentir o gosto dos alimentos,
sem ter dores para engolir e não ter enjôos. Parei um pouquinho para exclamar:
- Obrigada, meu Deus, por este alimento!
Comi tudo. Margarida retirou os pratos e nos trouxe uma tigela grande com pipocas. Que gostoso!
Lourdes deu uma gostosa gargalhada. Olhamos para ela, que explicou:
- Lá na Terra, todos imaginam que virei um anjo com asas, e que estou sentada em uma nuvem! E aqui estou com meus amigos, num refeitório, comendo pipocas
e me preparando para estudar!
- Isso não é maravilhoso? - disse Leninha. - Não queria ficar na ociosidade! Deus é bondoso demais! Sou grata por estudar. Sou estudiosíssima! Desencarnei
com nove anos, agora tenho doze e estou cursando o ensino médio. Logo irei para uma colônia de estudo.
- Leninha você é um gênio! - exclamou Lourdes. - Não. Sou apenas estudiosa! Quero aprender muito e pôr em prática o que aprendo - respondeu ela.
Após terminar de comer as pipocas, subimos para nosso quarto. Sentia-me com sono e cansada com tantas atividades. Assim que nos viu, Hortência deu-me um
papel e falou:
- Rosângela, sua tia Ana Elisa lhe deixou este bilhete.
Abri o envelope. Em uma folha de papel estava escrito com letra delicada:

"Querida sobrinha.
Soube que passou o dia bem e que fez amizades. Não quis atrapalhá-Ia enquanto saboreava as pipocas. Amanhã virei vê-ia. Lembre-se de que estou com você
em pensamento.
Tenha um bom início de aula.
Beijos,
Ana Elisa. "

Guardei o bilhete na minha escrivaninha, olhei para as meninas e perguntei curiosa:
- O que iremos fazer agora? Estou com sono! Será que posso dormir? O que vocês fazem à noite? Como fica o alojamento?
As meninas riram baixinho. Hortência apontou para uma pequena luz em cima da porta da entrada e me respondeu:
- Rosângela, quando esta luz estiver verde não podemos mais fazer barulho, nem falar ou rir alto. Já estamos em horário de silêncio e só podemos conversar
baixinho. Muitas de nós dormem e as que não adormecem, aproveitam para estudar, ler e descansar um pouquinho. Claro que você pode dormir! Eu às vezes durmo, e quando
o faço é por cerca de três horas. Você e Lourdes devem trocar de roupas, deitar-se e dormir para descansar, porque amanhã acordarão cedo para irem à escola.
Vi as meninas se acomodarem, algumas nas escrivaninhas para fazer lição, outras nas poltronas para ler ou estudar, mas todas acenderam as luzes dos abajures.
A maioria estava quieta; outras falavam entre si, baixinho.
- Esta lâmpada funciona assim - continuou Hortência explicando - quando ela está vermelha podemos cantar, conversar, dentro de certa ordem para não virar
criança. Alegria sim, excesso e arruaça não.
Márcia estava perto de nós, suspirou, olhou para Hortência e falou:
- Amiga, estou aqui há oito meses. Gosto muito deste lugar, só
que, às vezes, sinto remorso por estar tão bem, sabendo que meus pais, minha família, sofrem por mim.
- O que você deseja a eles Márcia? - perguntou Hortência.
- Que sejam felizes, que estejam consolados, com saúde, que se amem, apenas coisas boas... - respondeu Márcia.
- E eles, o que será que querem para você? - perguntou nossa amIga.
- Eles querem que eu esteja no Céu, sadia, sem problemas e feliz - respondeu Márcia sem vacilar.
- E você, como uma boa menina, deve obedecê-Ios aconselhou Hortência. - Eu também passei por isso, como muitas outras companheiras. Muitas vezes, tive vontade
de estar ao lado deles, sofrendo e chorando junto. Compreendi pelos ensinamentos que recebi aqui, que, dessa forma, só iria piorar a situação e que o tempo se encarregaria
de suavizar nossas dores. Se vivêssemos só uma vez encarnados e se a morte do corpo físico nos separasse para sempre dos nossos afetos, teríamos então motivos para
nos lamentar. Todos nós temos de estagiar lá e aqui. Nossos pais já estiveram desencarnados e vão estar novamente lá na Terra não há só dores, há muitas alegrias.
Nos dois planos temos Oportunidades de progredir espiritualmente, encontrando dificuldades e problemas a serem resolvidos. Aqui também precisamos estudar, trabalhar
e continuamos aprendendo. A vida para quem merece estar numa colônia é maravilhosa, mas ainda não isenta de obstáculos a serem solucionados. Você, Márcia, está agora
vivendo esse dilema que a impede de sentir-se melhor. Não sinta remorso por se sentir feliz e, sim, tente ficar cada vez mais contente!
- Hortência, você é de fato muito sábia! - exclamou Lourdes com admiração.
- Aprendi, amiga - continuou Hortência a falar. - Escutei tudo isso nas aulas de evangelização, das orientadoras e de Isabel. Ouvi, raciocinei e conclui
que o certo é você estar bem, porque quando nos sentimos felizes e alegres, irradiamos bons fluídos para os outros e, de certa forma, contribuímos para a melhoria
do local em que vivemos, encarnados ou desencarnados. Não pense nos seus entes queridos sofrendo, mas sim, neles alegres. Motive-os, com pensamentos otimistas, a
estarem bem para que eles possam, também, ao desencarnarem, merecer socorro e viver conosco. Mas, só desejar é pouco. Aprender e colocar em prática esses conhecimentos
é que nos tornam aptas a ajudá-Ios.
Concordarmos com ela. Hortência nos deu uma aula preciosa.
- Obrigada, Hortência, estou me sentindo melhor! Você tem razão, separação nenhuma é definitiva. O importante é que eu os amo e sou amada. Vou me
esforçar para estar sempre feliz, como eles desejam que eu esteja! - expressou-se Marina, emocionada.
- Vocês, meninas, vão aprender como eu aprendi e muito. Agora vou ler um livro, e vocês devem se preparar para descansar, pois amanhã participarão de muitas
atividades. Boa noite!
Fui higienizar-me, escovei meus dentes. Depois, olhei-os no espelho e vi que estavam sadios. Quando doente, pelos remédios fortes, meus dentinhos ficaram
feios, cariados e como dizia vovó: remendados. Voltei ao quarto correndo. Isabel estava lá, veio ver se tudo estava bem. Como soube depois, as orientadoras dos alojamentos,
quando há novatas, estão sempre por perto. Ainda bem que me lembrei da luz verde e falei baixinho:
- Isabel, meus dentes estão sadios! Veja! - abri bem a boca.
Isabel deu urna olhada, sorriu e explicou:
- Seu corpo perispiritual é sadio, pois você não ficou com os reflexos da doença, que estava apenas no físico. Você tem dentes bonitos!
Fiquei com vontade de pular e cantar, mas não o fiz, sabia que devia respeitar o horário.
Deitei-me, acomodei-me no leito limpinho e cheiroso. Como é bom ter sono, poder dormir tranqüila, usar o leito para descansar após um dia de atividades.
É triste quando usamos a cama por não ter disposição, quando adoentados. Senti muito prazer em estar deitada e com sono.
Lembrei-me de todos os que amava e desejei a eles que também pudessem adormecer em paz e que se sentissem bem. Orei. Fiz uma prece de agradecimento, não
pedi nada para mim, estava contente, só roguei pelos meus familiares.
Dormi rápido, acordei escutando uma música suave e Isabel me chamando baixinho:
- Acorde, Rosângela! Você terá sua primeira aula daqui a pouco.
Espreguicei-me e ia levantar-me, quando Isabel recomendou-me:
- Deve orar primeiro, menina. Faça uma oração baixinho.
Sentei-me e orei uma Ave-Maria depois fiz uma prece do que sentia:
"Deus, nosso Pai, estou contente por estar aqui entre amigos. Por favor, ajude-me a ser digna destas amizades e merecedora de continuar aqui! Agradeço pelos
meus dentes sadios e pelo meu corpo!"
Isabel me olhou sorrindo, certamente aprovando minha prece. Ela ajudou, Lourdes e eu, a trocarmos de roupa. Desceu conosco ao refeitório, onde tomamos suco,
comemos bolacha e pão. Tudo muito gostoso.
- Vamos, garotas, para o setor da escola! - Isabel convidou-nos.
Fomos pelo corredor central. Lá estavam muitos jovens conversando, alguns usando as esteiras rolantes, outros caminhando.
Isabel delicadamente nos puxou para as esteiras, porque tanto Lourdes quanto eu, estávamos paradas olhando todo o movimento.
Eu estava um pouco apreensiva, sentindo o receio do recomeço, de uma atividade nova. Senti meu coração pulsar forte. Ia indagar, mas me lembrei de que o corpo que
agora me revestia, era como o físico, por isso, tentei tranqüilizar-me e confiar. Fiquei a admirar aquele corredor que achava o máximo.

9


Passamos pelo setor seis, a escola infantil e chegamos ao quinto. Paramos na plataforma fixa e caminhamos por outro corredor, entrando no prédio. A escola
para jovens!
Lourdes e eu observamos atentas, curiosas e admiradas.
Isabel esclareceu-nos:
- À nossa esquerda, está o auditório, onde poderão vir para assistir a palestras, peças teatrais, escutar músicas etc. Temos também neste setor outro auditório,
ao ar livre, nos fundos do prédio para essas atividades. Ali estão as salas dos orientadores e professores e, à nossa direita, as salas de aula. Venham, vamos por
aqui.
Passamos por outro corredor, à direita, e vimos várias portas.
- Como tudo isto é fantástico! - exclamei.
- Ainda bem que não estamos no Céu sem fazer nada! Seria muito enfadonho! - expressou-se Lourdes.
Concordei com ela. Isabel parou, nós duas paramos junto dela. Nossa orientadora explicou com naturalidade:
- Aqui estudará você, Lourdes querida. Vou entrar primeiro, apresentá-Ia à turma e ao mestre. Rosângela, espere-me aqui, depois vou levá-Ia até sua sala.
Esperei ansiosa, encostando-me à parede. Por mim passaram muitos jovens, que me cumprimentaram sorrindo e entraram nas classes.
"Acho que estou demonstrando ser novata! Ainda bem que todos já foram principiantes um dia", pensei me consolando.
Nem prestei atenção na conversação que vinha da sala de Lourdes. Quando Isabel saiu e fechou a porta, senti me aliviada. Ela pegou minha mão e, delicadamente,
Transmitiu-me calma:
- Vamos, Rosângela, para sua sala!
Rumamos para o outro lado. Compreendi que iria para a quarta série.
"Vou estudar muito e recuperar meu atraso nos estudos!" , pensei.
Espantei-me com o que Isabel falou:
- Rosângela, você não está atrasada nos estudos! Está
lia série cerra! Pronto, chegamos, é aqui!
Deu umas leves batidinhas na porta, abriu-a, conduziu-me pela mão e entramos. Senti calor no rosto, sinal que ficara corada. Ninguém demonstrou ter notado.
Isabel me apresentou:
- Esta é Rosângela, a nova amiga de vocês!
Todos me olharam sorrindo. Só vi rostos e escutei algumas expressões de boas-vindas. Isabel continuou a apresentação:
- Este é o professor Heitor. E aqui estão seus colegas, logo saberá o nome de todos. Tchau, Rosângela, tchau, garotos!
Isabel saiu. Por instantes fiquei sem saber o que fazer. Tive vontade de voltar com ela. Mas logo duas garotas levantaram-se, sorrindo, levando a turma ao riso,
ao dizerem juntas:
- Rosângela, sente-se perto de mim! Professor Heitor disse amavelmente:
- É um prazer enorme tê-Ia conosco, Rosângela!
Acomode-se onde quiser. Estamos na aula de conhecimentos gerais. Não se acanhe em perguntar e pode contar conosco no que precisar.
Prestei atenção. Não conhecia a matéria, mas com a explicação, entendi e fiz o exercício. Dora, a garota ao meu lado, deu-me algumas dicas. Gostei da aula.
No intervalo, todos saímos da sala, fomos para o pátio. Atrás do prédio da escola, havia um parque, quadras de esporte, um jardim e muitas árvores; a meninada espalhou-se.
Dora e Beatriz me deram as mãos.
- Temos um intervalo de trinta minutos - falou Beatriz. - Depois teremos aula com a professora Alice e, após, a mais importante do dia, de moral evangélica
com a professora Ester. Nessa aula, nós conversamos, trocamos informações e aprendemos muito.
- Há muitas crianças, jovens, aqui? Todos que morrem vêm para cá? - perguntei.
- A professora Ester nos ensinou que existem muitas colônias infanto-juvenis pelo mundo, pelo Brasil. No plano espiritual de quase todas as cidades dos encarnados,
existem moradas de desencarnados, e em muitas há partes reservadas para crianças e jovens; são conhecidas normalmente por educandário, lar das crianças e muitos
outros nomes. Não sei quantos somos aqui. Você pode perguntar à professora Ester. O Flores de Maria é grande e lindo. Amo este lugar respondeu Dora.
- Rosângela! Que bom revê-Ia! - Lourdes me abraçou como se não me visse há tempos.
- Oi, Lourdes! Gostou da aula? Você está bem? pergunteI.
- Tudo bem - respondeu ela. - Gostei dos meus novos amigos e do ensino. Vou amar esta escola! E você, está estranhando?
- Estou me adaptando e, como você, gostando respondi.
Lourdes contou-me rapidamente tudo o que aconteceu. Logo o intervalo acabou. Dora convidou-me para voltarmos à sala de aula. Gostei da professora Alice.
Compreendi que ali não só apresentavam as matérias, mas também as ensinavam, e todos os alunos aprendiam.
Mas gostei mesmo foi da aula de moral evangélica e da professora Ester, que era negra, alta e linda. Todos da classe a admiravam, pois tinha um modo meigo
de ensinar. Nesta aula, os alunos podiam falar de si, de suas experiências e de seus sentimentos. Escutei tudo com
atenção.
- Professora Ester, a senhora há tempos nos prometeu contar sua história. Por que não o faz hoje? - pediu Dora.
Nossa professora sorriu. Tinha o sorriso mais lindo que eu já vira. A classe toda ficou em suspense esperando, e, com uma voz agradável que transmitia tranqüilidade,
ela respondeu devagar:
- Está bem, vou falar de mim. Desencarnei com três anos, sofri um acidente, um tombo de uma escada, em que quebrei a coluna cervical.
- O pescoço? - perguntou Romério.
- Sim, desencarnei assim que caí. Era uma boa menina e vim para cá, onde estudei como vocês. Cresci, tornei-me adulta, aprendi muito e no momento ensino
vocês. Faço planos para voltar ao plano físico, ser uma professora e instruir e educar crianças e jovens.
- Por que você não quis retornar à sua forma perispiritual anterior? - indagou Joaquim.
- Se fizesse, iria recordar minha encarnação anterior e não era conveniente para mim no momento - respondeu a professora Ester.
Como não entendi, levantei a mão e perguntei admirada:
- Isto é possível? O que quis dizer? Não entendi.
- Rosângela, meu bem - esclareceu a professora, você irá aos poucos compreender a vida como única. A reencarnação é um fato. Lá no plano físico vivemos encarnados.
Com a morte do corpo carnal, viemos para a espiritualidade. Depois de um tempo aqui, reencarnamos, nosso espírito volta a animar outro corpo carnal.
Fiquei com vergonha de perguntar mais, porque vi que todos estavam interessadíssimos na história da professora. Iria, com certeza, aos poucos compreender
mais.
Prestei atenção, Ester reiniciou sua história:
- Agora sei da minha encarnação anterior a esta, em que recebi o nome de Ester, e compreendo o porquê do meu desencarne precoce. Quero lembrá-Ias que o acontecido
comigo não é regra geral e que são muitos os motivos para termos uma encarnação mais breve. Chamava-me Glória, era uma moça bonita e envolvi-me com uma pessoa que
me abandonou. Estava grávida, fiquei desesperada, perturbada e me suicidei. Impedi que um espírito reencarnasse, porque meu filho morreu comigo. Sofri muito, arrependi-me
pelo ato impensado; fui socorrida anos depois e orientada. Tive outra oportunidade e a bênção do esquecimento. Reencarnei.
- Como Deus é boníssimo! - exclamou Luiza. - Em vez de deixar o suicida no inferno para sempre, dá a ele novas oportunidades. A senhora errou, sofreu, converteu-se
e hoje estamos tendo o privilégio de tê-Ia conosco!
- Gosto muito da senhora! Ajudou-me tanto! Ouvir sua história dá-nos esperança! Uma ex-suicida nos dando aulas de grande importância! - exclamou Beatriz.
- Meus alunos, sou grata pela demonstração de afeto. Eu também os amo! Deve-se amar mais quem muito errou, como eu, e que foi perdoada - falou Ester emocionada.
- Acho que se todos desta classe recordassem suas existências passadas, teríamos aqui assassinos, ladrões etc. O Pai não nos condena, somos todos perdoados!
- exclamou Romério.
- Perdoados conforme perdoamos - completou a professora, o que não nos isenta das reparações.
- Bendita sejam as oportunidades! - falou Rodrigo.
- Obrigada, meu Deus pelas reencarnações! - concluiu Dora.
Fiquei quieta, escutando, e mesmo não compreendendo tudo o que era dito senti a imensa misericórdia do Nosso Pai Criador. Ele é justo e nos dá um grande
exemplo de amor.
As seis horas de aula passaram rapidamente. Ao sair da classe, encontrei Lourdes me esperando. Fomos andando pelo corredor, olhando tudo, na direção do refeitório.
- Vamos por aqui - opinou Lourdes.
Vimos um garoto, que aparentava ter treze anos, pintando a parede do lado esquerdo do corredor. Paramos encantadas com sua pintura. Ele escreveu acima das
gravuras:
"Desenhos feitos por Nestorzinho, que imaginou quantas vezes Jesus sorriu quando esteve encarnado na Terra."
Ele dividiu a parede em espaços iguais. Havia pintado alguns, outros estavam no esboço e muitos, em branco.
- Veja, Rosângela - falou Lourdes mostrando a primeira pintura. - Aqui é Jesus nenezinho sorrindo para sua mãe Maria, que está brincando com ele.
- Você desenha e pinta muito bem. Parabéns! - eu disse ao Nestorzinho, que parou de pintar e veio até nós.
- Como você teve essa idéia? Gosta de pintar? perguntou Lourdes.
- Primeiramente, agradeço-Ihes por me elogiarem. Gosto de pintar. Desencarnei aos dez anos. Encarnado gostava muito de desenhar; aqui dedico minhas horas
de lazer à pintura. Fui, numa outra encarnação, um pintor, dediquei minha vida à pintura e a muitos vícios.
Nestorzinho riu, fez uma pausa e continuou:
- Um dia, na aula de Evangelização, escutando a passagem em que Jesus ensinava as crianças, fiquei pensando na expressão Dele. Será que sorria, ou ficava
o tempo todo sério? Optei pelo sorriso. Jesus sorria, conclui. E será que foi só essa vez que Ele sorriu? Tive a certeza que não. Assim, resolvi pintá-Io nesta parede
comprida e pedi permissão para vovó Lala; com a autorização obtida, comecei a trabalhar.
Lourdes sorria ao ver as pinturas.
- É isso que eu quero! - continuou Nestor a explicar.
- Que as pessoas sorriam ao vê-Ias. Aqui imaginei Jesus recebendo carícias de sua mãe e sorrindo. Nesta, José, seu pai, dá-lhe um brinquedo que ele fez
na sua carpintaria. Jesus o recebe sorrindo. Na terceira, estão os três sentados à mesa para fazer a refeição; Jesus agradece o alimento e sorri. Olhem para a quarta:
o Menino Jesus brinca com outras crianças e está sorrindo. Na quinta, um pássaro vem comer na sua mão. Na sexta ele está moço e anda sobre as águas, sorri com a
brisa sua erguendo seus cabelos. Estou desenhando Jesus adulto ensinando crianças.
Nestor olhou-me e sorriu. Acho que ele sorria o tempo todo. Depois de me observar bem, pediu:
- Posso pintar seu rosto entre as crianças que escutavam Jesus? Você está com a expressão de "quero aprender".
- Ficarei contente de servir de modelo. Preciso posar? - pergunteI.
- Não, já gravei suas feições e expressão na minha memória - respondeu Nestorzinho.
- Eu nunca tinha pensado no sorriso de Jesus - falou Lourdes. - Vi, quando encarnada, na igreja que freqüentava, a imagem de Cristo-rei, Jesus com a coroa
de espinhos todo machucado. Chorei, fiquei triste. Agora vendo suas pinturas, sinto vontade de sorrir, fiquei alegre, sinto-me bem. Que mais você irá pintar?
- Jesus com seus discípulos, um quadra Dele recebendo demonstrações de carinho de seus seguidores, orando no Jardim das Oliveiras. Vocês têm alguma idéia?
- Acho que Jesus sorriu quando Pedra afundou nas águas - opinou Lourdes.
- Quando nosso Mestre viu que todos se alimentaram quando ele multiplicou os pães e peixes depois do Sermão do Monte - sugeri.
- Boas sugestões! - agradeceu Nestorzinho.
Deixamo-Io em seu trabalho e fomos embora, encantadas com as pinturas criativas do jovem Nestor.


10


Chegamos ao refeitório.
- Estou com fome! Fiquei ansiosa com tantas novidades e quando me sinto assim, fico faminta! - exclamou Lourdes.
- Eu também estou com fome! - expressei-me. Alimentamo-nos com um delicioso caldo, comemos pães, frutas e tomamos suco.
- Tudo está tão gostoso! - exclamei. - Não sei se vou deixar de me alimentar. Quando doente no corpo físico, alimentava-me pouco, não sentia o gosto dos
alimentos e...
- Esqueça esses momentos tristes. Aqui tudo é tão agradável! - aconselhou Lourdes.
Concordei com a cabeça, pois estava com a boca cheia de pão. Quando terminamos, retomamos ao nosso quarto. Depois de um descanso, fomos, Lourdes e eu, para
a aula de canto, que seria na própria escola, no setor cinco, da ala três.
Lá havia várias salas. Curiosas, entramos em muitas. Vimos muitas crianças e jovens tendo aulas e tocando instrumentos musicais. Vi, surpresa, Samuel aprendendo
a tocar guitarra. Ele me acenou alegremente.
A Maestrina Georgina nos esperava, cumprimentou-nos dando boas-vindas e explicou:
- A música nos enaltece! É uma grande terapia! Temos bons mestres de música e são vários os instrumentos que se pode aprender.
Reunidos numa sala, havia doze pessoas, jovens e crianças. A Maestrina Georgina iniciou sua aula. Achei fácil, comecei a entender os gestos do dirigente
de um coral. Quando terminou a aula, Lourdes e eu voltamos ao nosso quarto, que a turma chamava de vários modos: alojamento, cantinho, sala ou salinha, e até de
casa. Sentei-me na frente da escrivaninha e fui rever a matéria da aula. Hortência aproximou-se, prestativa.
- Quer ajuda, Rosângela?
- Quero! - respondi contente. - Vou dizer a você como se faz esse exercício, e, por favor, verifique se acerto. Quero acabar logo, pois Isabel matriculou-me
na natação e terei a primeira aula às dezenove horas.
Hortência ajudou-me e foi comigo até as piscinas.
- Rosângela, agora voltarei, pois tenho tarefas a fazer. Boa aula! - despediu-se Hortência.
Fui recebida por um professor que se apresentou sorrindo:
- Sou Rafael, estou no Fores de Maria há três anos. Quando encarnado, sabia nadar bem, sofri um acidente e desencarnei numa piscina. Aconselhado pelos orientadores,
continuei aqui a nadar e passei a ser instrutor de natação. Estou contente por fazer algo pelo lugar que me abrigou com tanto amor.
- Como desencarnou numa piscina, se sabia nadar? perguntei curiosa.
- Fiz um passeio com amigos, fomos pela primeira vez a um clube muito bonito. Encontrei uma amiga e ficamos conversando. Qual do fui para as piscinas, vi
dois amigos numa delas com água até o pescoço, não tive dúvida, dei um mergulho de cabeça. Escutei-os gritar para que não pulasse, achei que aa brincadeira. Saltei
e não vi mais nada. Acordei no hospital e, tetraplégico, havia fraturado a coluna. Não percebi que os dois amigos estavam agachados e que a piscina era rasa. Fiquei
dias hospitalizado, tive uma parada cardíaca e desencarnei.
Depois de ouvir sua história, entramos numa das piscinas. A água estava muito limpa, e sua temperatura, agradável. Rafael, pacientemente, foi me explicando
tudo e a aula passou rápido.
- Rosângela, sua próxima aula será com outros companheiros. Você tem jeito, logo estará nadando igual a um peixinho - Rafael incentivou-me.
Lourdes me esperava no refeitório para jantar. Depois de nos alimentarmos, voltamos ao nosso cantinho e encontrei tia Ana Elisa me esperando. Sentamo-nos
nas poltronas e contei animada ela tudo o que me acontecera. Titia sorria, incentivando-me a falar.
- Rosângela, estou muito contente com você. É isso aí, menina, ânimo e otimismo! Agora devo ir; meu turno de trabalho começa em trinta minutos.
Despedimo-nos com beijos e abraços.
Estava cansada, quis deitar-me. Antes de dormir, fiz uma prece de agradecimento.
"Ah!", pensei. "Se soubesse que viver desencarnada era assim, não teria tido medo da morte. Se mamãe, papai soubessem que eu estou tão bem, iriam se consolar
rapidinho."
No outro dia, todas acordaram alegres, e só um comentário se ouvia no quarto.
- Hoje é o dia da apresentação na colônia!
- Temos de nos esforçar, porque receberemos assistentes ilustres e quase todos os moradores estarão lá para nos ouvir.
- Estamos eufóricas com essa apresentação tão importante. A governadora irá dar uma palestra aos adultos _ explicou Hortência para Lourdes e para mim.
- Será que poderemos ir, Rosângela? - perguntou Lourdes.
- Eu quero ir! Gosto de festas! - respondi.
Quando Isabel entrou em nosso quarto, Lourdes e eu corremos para indagá-Ia e ela nos tranqüilizou:
- Vocês irão sim! Vou acompanhar os novatos. Preparem-se, garotas, pois assim que as meninas do coral saírem, virei buscá-Ias.
- Isabel, que roupa devemos vestir? - perguntou Lourdes.
- Qualquer uma, menos a do uniforme do coral,
porque nessa comemoração irão como convidadas. Nas próximas, irão como cantoras.
As meninas do coral trocaram de roupa e vestiram a veste de gala; conversavam, estavam alegres.
Lourdes e eu também nos arrumamos, entramos no clima da festa. Obedecendo a um sinal, as meninas foram para o setor oito, onde todos se reuniriam para, depois
seguir para o pátio das convenções da colônia.
Estávamos ansiosas esperando por Isabel. Quando ela veio nos buscar, descemos as escadas eufóricas. Ela reuniu um grupo de oito novatos, entre eles o Samuel.
Saímos do prédio pela frente e atravessamos a Praça da Fonte.
- Vamos, garotos - chamou Isabel-, iremos andando até o local da apresentação.
Estávamos todos curiosos e observando tudo. Passamos pelo portão, entre os setores um e oito, e caminhamos por uma avenida arborizada; logo chegamos ao
pátio, que era enorme e ao ar livre. A manhã estava lindíssima. Sentamo-nos nas cadeiras da frente. Vimos Valda com alguns garotos e Fátima. Fomos cumprimentá-Ias
e as abraçamos.
Minutos depois, a meninada do coral foi chegando e subindo ao palco.
- Aqui se respeita o horário, não há atrasos - Isabel explicou-nos.
A garotada estava linda com o uniforme de gala; encantei-me novamente com os pequeninos. Todos estavam alegres. A comemoração iniciou-se com uma linda prece
e, em seguida, anunciaram o coral. Os cantores-mirins, cantaram muito bem. Emocionei-me.
Quando terminaram, foram muito aplaudidos. Uma senhora morena, de cabelos grisalhos, muito simpática, subiu ao palco.
- É a nossa governadora! - esclareceu-nos Isabel com admiração.
- Agradeço aos meus jovens cantores. Foi mais uma belíssima apresentação - disse com voz agradável.
Eles foram descendo do palco e Isabel falou:
- Vamos sair também, meninas! Voltaremos para o educandário com a garotada do coral. Só os adultos convidados permanecerão aqui para ouvir a palestra.
Saímos em silêncio. Na avenida, a caminho do Flores de Maria, começamos a conversar, a cantar e a rir.
- Que melodia linda! - ouvi Isabel exclamar.
Não tivemos aula, fomos todos para os parques, para as quadras e o dia foi só de brincadeiras. Gostei demais da comemoração.
Tive de dividir bem o meu horário; estava recebendo aulas de reforço com a professora Alice e como queria acompanhar a turma, estudava bastante. As aulas
de canto eram prazerosas. Logo Lourdes e eu passamos a fazer parte do coral. Havia no educandário três corais e em muitas apresentações reuníamo-nos, tendo antes
ensaios gerais. O primeiro coral era das crianças menores, chamadas de pequeninos, e o terceiro, dos jovens. Fiquei no intermediário. Aprendi a cantar e, assim como
todos, gostei muito.
Aprendi também a nadar facilmente. Queria aprender outros esportes, mas como não dispunha de horário, teria de praticá-Ios em períodos preestabelecidos.
Todos da minha classe tinham aula de informática. Já dispúnhamos de aparelhos que só anos mais tarde foram conhecidos na Terra. A turma auxiliou-me e aprendi
rápido. Tínhamos, nessas aulas, tarefas a fazer. Após, pode ríamos brincar com jogos interessantes.
Nas aulas de moral evangélica a professora Ester falava do Evangelho de um modo especial, com amor. Nunca havia imaginado a importância de Jesus ter estado
conosco, encarnado na Terra.
Nessa época ainda me alimentava e gostava de fazê-Io.
Lourdes, que comia bem menos, comentou:
- Acho, Rosângela, que por causa de sua doença você foi privada de comer o que gostava e escutou tanto que deveria alimentar-se que isso ficou na sua mente.
Por isso, agora está encontrando dificuldade.
Achei que Lourdes tinha razão. No dia seguinte, na aula de Evangelização, pedi para falar. A professora Ester permitiu e eu me queixei:
- Estou comendo muito! Tenho vergonha de repetir, mas sinto fome. Acho que é porque...
Contei minha vida quando encarnada, da minha doença. Falei de mamãe insistindo para que me alimentasse, dos meus enjôos e vômitos. Terminei falando que achava os
alimentos da cantina, do refeitório, deliciosos e que comia com prazer. Quando terminei, a professora Ester explicou:
- Rosângela, você está em fase de adaptação está aprendendo a viver com o perispírito. Quando completar um ano aqui, terá aulas de como se nutrir. Não deve
se preocupar por gostar de se alimentar, só deve prestar atenção para não ser gulosa. Não é bom ter gula. Você, minha querida, e sua amiga Lourdes estão certas.
Queria, quando encarnada, atender sua mãe, que preocupada pedia que se alimentasse; não conseguia atendê-Ia porque sua doença a impedia. Isto ficou na sua mente.
Cada um de nós traz da Terra algo mais difícil de ser superado. E, superar é fácil, basta querer. Minha aluna, se aqui há ainda alimentação é porque não é errado.
Nada nos é tirado de uma vez. Alimente-se quando estiver com vontade. O mais importante é se sentir bem.
Opiniões foram dadas. Todos ali se alimentaram e no início comeram bastante e alguns ainda o faziam.
- Rosângela - falou Oscar -, estou aqui há quatro anos. Quando encarnado, gostava de comer. Nos primeiros meses aqui me alimentava bem. Um dia, acordei com
muita vontade de comer um bolo que mamãe fazia. Não conseguia esquecer o bolo. Pedi no refeitório e a senhora que me atendeu não sabia como fazê-Io. Ela pediu para
que eu pensasse nele e o plasmou. Comi muito bolo!
- Isso acontece. Quem tem conhecimentos pode plasmar o que deseja. No seu caso, Oscar, uma trabalhadora plasmou o que você imaginou para agradá-Io - esclareceu
Ester.
- Deixei de me alimentar sem o perceber - continuou Oscar. - Uma vez, só lembrei à noite que não havia comido nada durante o dia e que não estava com fome.
Será assim com você, Rosângela.
Compreendendo, passei a me alimentar com naturalidade, sem me preocupar com o fato.

11


Num sábado à tarde, não havia programado nada, pensei que o dia seria livre, mas Hortência nos disse:
- Como toda tarde de sábado vamos ao berçário, acho que Isabel vai convidá-Ias a ir conosco.
- Berçário?! - Lourdes e eu indagamos ao mesmo tempo admiradas.
- No setor quatro de recuperação, há uma ala para os nenês. O tratamento lá é de amor. Os recém-chegados da crosta, que desencarnaram na fase infantil, os
nenês, são levados para aquele setor. Lá são abrigados por um período. Nós, os jovens, temos a tarefa de cuidar deles, ou melhor, brincar com a turminha dos pequerruchos.
Somos divididos em grupos e hoje é nossa vez.
- É, criancinhas também morrem, ou seja, desencarnam! - afirmou Lourdes. - Minha prima perdeu o fiIhinho de um ano. Perdeu? Estranho falar agora perdeu.
Este certamente não é o termo certo!
Isabel entrou no quarto, estava sempre por ali, porque
Lourdes e eu éramos novatas, e foi ela quem respondeu:
- Não Lourdes, perdeu não é o termo certo.
- Perde-se somente o que pode ser achado, e não se acham filhos. Ou perde-se o que se tem. Puxa, que confusão! - falou Lourdes.
Rimos. Lourdes riu também. Quando encarnada, eu escutara muitas vezes o termo perdeu, ao se falar de um ente querido que desencarnara. Prestamos atenção
às explicações de Isabel.
- De fato, só se perde o que se tem. E o que temos nós, de fato? Conhecimento, atos ou ações. O corpo carnal? Claro que não, ele nos é emprestado, tanto
que o devolvemos à natureza quando o temos morto. Perdem-se afetos? Sentimentos? Claro que não! Vocês não continuam a amar?
- Continuamos - respondemos juntas.
- Vocês perderam os sentimentos? - indagou nossa orientadora novamente.
- Não! - exclamamos novamente ao mesmo tempo. - E o que é mais importante: os sentimentos ou o corpo físico?
- Os sentimentos, que sobrevivem ao corpo carnal respondi.
- Respondeu certo - continuou Isabel esclarecendo. Então, todos nós aqui concordamos: se o amor continua, se a vida não acaba, não se perde nada. Continuamos
a ser filha, mãe, avó, a ser nós mesmos vivendo de modo diferente. Compreenderam? Bem, então vamos ao trabalho.
- Trabalho?! - perguntamos, Lourdes e eu, admiradas novamente.
- Trabalho, sim. Tudo o que se faz, que gera produção, ação, é considerado trabalho! Vocês vão usar o tempo de vocês para fazer algo de útil- esclareceu-nos.
- Mesmo que a ação seja feita com prazer é considerado trabalho. Gosto tanto de ir cuidar dos nenês, amo fazer isso! - disse Carolina.
- Que bom que você gosta, Carolina - comentou Isabel. - Todo trabalho deve ser feito com amor, porque quando amamos o que fazemos é de fato prazeroso.
- Então, quando brinco com os nenês estou trabalhando? Trabalho e nem sabia! - falou Melina.
Rimos.
Isabel pediu para Hortência que nos apresentasse à encarregada da ala para a qual nos dirigíamos. E lá fomos nós.
Fomos andando pelo corredor conversando. Eu preferi observar. Havia muitos corredores que passavam pelo círculo. Admirava muito aquele imenso corredor que circundava
os prédios.
Logo chegamos, e Hortência explicou-nos:
- Aqui é o setor quatro. Vamos direto para a sala onde estamos sendo esperadas.
Entramos por um dos corredores que davam acesso ao prédio da recuperação. Escutei vários risos e conversas infantis. Vimos passar por nós um grupo de meninos
maiores com uma turminha de garotos pequenos. Hortência explicou a Lourdes e a mim:
- São jovens de nosso setor que vêm ensinar diversos esportes e brincar com os meninos.
Entramos numa sala, e uma senhora veio nos receber.
- Boa tarde, meninas! Que bom! Vejo duas novatas!
Hortência apresentou-nos, e a senhora disse sorrindo: - Sou Catarina, vovó Cata, para a meninada e para vocês.
Esta senhora tinha a expressão de uma avó. Sorriso doce, dentes muito brancos, negra e de cabelos grisalhos. Todas nós corremos para abraçá-Ia. Era muito gostoso
o seu abraço. Senti como se uma das minhas avós me abraçasse. Cada uma das meninas foi a um dos berços e pegou um nenê acordado.
- Vocês, minhas jovenzinhas - disse vovó Cata, referindo-se a Lourdes e a mim - podem escolher um bebê e ficar com ele no colo. Nenês gostam de carinho.
Corri até um berço. Na ficha estava escrito: Jefferson - um ano e seis meses. Ele me deu os braços, querendo colo. Peguei-o, abraçando-o. Era lindo, negro, com covinhas
no rosto.
- Jefferson, meu querido! Sou Rosângela!
Que prazer! Brinquei com ele, imitando as garotas mais experientes. Beijei-o. Ele gostou. Depois de um tempo, ele se cansou, quis dormir. Ninei-o junto
a mim, cantei baixinho as cantigas de ninar que sabia e as que estava aprendendo nas aulas de canto. Jefferson logo adormeceu.
Coloquei-o no berço e vi que um outro nenê acordara; este era mais novinho. Li a ficha: Cleide, seis meses. Peguei-a, brinquei com ela, que sorria. Passou
a mãozinha em meu rosto, como a me acariciar. Vovó Cata, por duas vezes, veio até mim orientar-me como deveria segurar o nenê. Também a fiz dormir.
- Pronto, garotas, as quatro horas passaram. Acabou o turno de vocês! - falou vovó Cata.
- Quatro horas! - exclamei espantada. - Como o tempo passou rápido. Quantas vezes por semana podemos vir aqui?
- Uma vez. Mas, Rosângela, poderá voltar outras vezes. Seu horário livre deverá coincidir com a necessidade deles - informou Hortência.
- Aqui estão seus bônus-hora!
Vovó Cata falou e foi dando um cupom pequeno a cada uma das meninas. Vendo que Lourdes e eu não estávamos entendendo, explicou:
- Este cupom é o reconhecimento que vocês trabalharam, foram úteis ao local onde recebem tanto. Chama-se bônus-hora 3.
- E nós podemos gastá-Ios em eventos, para nosso lazer ou guardá-Ios - falou Melina entusiasmada. -Tenho muitos guardados. Hoje à noite teremos um jogo importante,
os garotos vão jogar vôlei. Utilizamos o bônus-hora trocando-os por ingressos para assistir a alguns jogos, usar aparelhos computadorizados no horário que não nos
é destinado aos estudos e ir ao teatro, na colônia.
- É como dinheiro? Pode-se comprar alimentos? perguntei.
- Alimentos não, querida - respondeu vovó Cata - quando quiser se alimentar, é só ir aos refeitórios. A meninada usa o bônus-hora para o lazer. Dinheiro?
Dinheiro é bom, neutro, a pessoa que o usa é que determina sua finalidade. Muitos aqui aprendem a trabalhar para ter

3. XAVIER, Francisco Cândido. Espírito André Luiz. Nosso Lar, capítulo 13. Rio de Janeiro: FEB. Bônus-hora: moeda simbólica (N.E.).


algo em troca. Com o tempo aprenderão a servir pelo simples prazer de serem úteis.
- A senhora trabalha vinte e quatro horas por dia, recebe bônus-hora? - quis saber Carina.
- Todas as horas trabalhadas são computadas - respondeu vovó Catarina. - Não os recebo, mas os tenho. Não preciso tê-Ios em mãos. Quando quero ir ao teatro,
pego-os. É assim que funciona para nós que estamos há mais tempo aqui. Vocês, jovens, recebem-nos para aprenderem a lidar com a troca e para não ficarem ociosos,
pois a preguiça é um vício que faz parar quem se deixa dominar por ela. Assim, os aprendizes do trabalho têm recompensas e podem desfrutar de algum lazer extra.
- Bem bolado! Gostei! Os garotos que vimos com os meninos pequenos e que foram para os pátios também estão trabalhando? - perguntou Lourdes.
- Sim, eles ensinam jogos aos meninos pequenos, cuidam deles, brincam e ganham bônus-hora - respondeu a orientadora.
- E os pequeninos que não podem trabalhar, não vão ao teatro? - indaguei.
- Aqui todos podem servir - esclareceu vovó Cata. - Uma garota de quatro anos pode varrer um pedaço de pátio, pode fazer pequenos favores aos orientadores,
como pegar um objeto, levar um recado e, assim, ganhar seu bônus-hora. Não são privados de irem se não os tiverem; porém, são todos educados e incentivados a servir,
e eles gostam.
- É o meu primeiro! - exclamei beijando o bônus hora recebido.
Senti uma alegria indefinida. Lembrei-me do papai e no que dizia sempre: O trabalho enobrece o ser humano!
Despedimo-nos da vovó Catarina com beijos. No corredor, encontramos um grupo de garotos e fomos juntos para o setor sete. Eles conversavam contentes comentando
as horas trabalhadas. Eu fiquei quieta segurando meu bônus-hora junto ao peito e pensando: "Este não vou gastar! É o primeiro que ganhei! Vou guardá-Io para
nunca esquecer da alegria e da gratidão de poder servir"
As garotas foram para o jogo, e eu fiquei estudando, queria ser boa aluna. Quando elas chegaram, conversaram animadas sobre os lances da partida de vôlei.
Lourdes me disse:
- Rosãngela, aqui todos se comportam no jogo, não escutei xingamentos e ninguém discutiu. O juiz é imparcial e todos o obedecem.
Preparávamo-nos para dormir, quando vimos Hortência se arrumando para sair. Sentindo-se observada, não esperou as indagações e nos esclareceu:
- Vou retomar ao berçário. Alguns nenês querem colo à noite. Henrique estava muito chorão, porque sua mãe está inconsolável. Como durmo pouco, vou lá trabalhar
algumas horas.
- O que você faz com tantos bônus-hora? - perguntou Lourdes.
- Estou juntando para trocar por uma casinha na colônia, para, no futuro, quando meus pais vierem para cá, recebê-los - respondeu Hortência.
- Isto é possível? - indaguei.
- Sim, é - respondeu Hortência esclarecendo. - Com o tempo, vou ficar adulta e deixar de ser aprendiz para ser vou ficar adulta e deixar de ser aprendiz para
ser uma trabalhadora moradora deste local maravilhoso. Poderei residir na colônia e se for permitido lá ter uma casa e esperar meus pais. Não é maravilhoso?
- Ter uma casa como na Terra e morar com os pais? - indaguei achando fabuloso.
- Sim, mas isso só quando for o tempo certo, ou seja, quando desencarnarem - -espondeu Hortência.
- De fato é maravilhoso! - exclamei.
- Deitei -me e, após orar, fiquei planejando e organizando meu horário. Voltaria mais vezes ao berçário, não pelo bônus-hora, mas pelo prazer de estar com os
nenês. Planejei também ir com as meninas ao teatro, assistir a alguns jogos e às competições de natação. Imaginando as coisas que gostaria de fazer ali, adormeci
feliz.


12


Eu estava indo muito bem na escola. Com esforço e dedicação, consegui acompanhar a turma e, quando recebi um elogio do professor Heitor, fiquei felicíssima.
- Rosângela, você tem dom para escrever, sua redação está muito boa; continue assim e será uma escritora!
Tia Ana Elisa continuava me visitando, incentivava-me e vibrava com tudo o que eu fazia de bom. Gostava bastante dela e lhe era muitíssimo agradecida.
Fazer parte do coral era bem prazeroso; gostava muito de cantar. Também aprendi a nadar e decidi parar assim que dominei todos os estilos.
- Só dormindo menos terei mais tempo! - comentei com Lourdes.
Dessa forma, diminuí um pouquinho minhas horas de sono, conseguindo o tempo necessário para poder trabalhar como voluntária no berçário. Gostava de ir lá
e também da vovó Catarina, de quem recebia beijos e abraços.
que me faziam lembrar das minhas avós.
Gostava demais do Jefferson e da Andréa. Eles, quando me viam, batiam palminhas, alegres. Brincava com eles no chão. Às vezes, sentava na poltrona, pegava
os dois, um em cada braço. Eu me distraía e ainda ganhava bônus-hora.
Limpávamos nosso quarto, cada uma o seu cantinho e, juntas, ele todo. Miriam não gostava muito de fazê-Io, e às vezes uma de nós a ajudava.
Um dia, durante a limpeza, Lenice e Miriam começaram a conversar.
- Miriam, você não pode ser desleixada assim! Você é menina, tem de ser mais caprichosa - falou Lenice.
- Não sou desleixada! - defendeu-se Miriam.
- Carina disse que está cansada de ajudá-Ia. Falou que sua escrivaninha é muito bagunçada.
- Carina não deveria dizer isso; o armário dela é que é desarrumado. Pensei que ela era minha amiga.
- Sou sua amiga! - falou Carina intrometendo-se na conversa. - Não falei nada contra você, só comentei que havia coisas espalhadas em sua escrivaninha. Meu
armário está arrumado, pois o organizei ontem. Depois, ele fica fechado, não é como sua escrivaninha que está à mostra.
Lourdes e eu paramos e ficamos olhando, temi que se iniciasse uma discussão, mas Isabel entrou no quarto.
- Meninas, cuidado com o mau uso das palavras!
Vamos parar de falar e trabalhar. Quero que cada uma faça
seu serviço e aqui ninguém precisa ser ajudada. Miriam, organize o seu cantinho. Se tudo estiver em ordem fica mais fácil.
"Ainda bem que Isabel veio e pôs fim nessa conversa, pois já se iniciava uma discussão", pensei.
Isabel sorriu para mim. Tempos depois, eu soube que os orientadores lêem pensamentos. Nossa orientadora falou em tom delicado, porém firme.
- Podemos pelo uso da palavra instruir, consolar, apaziguar; entretanto, se não nos vigiarmos, podemos também ferir e começar uma briga, que pode gerar
rancores. Vocês, minhas queridas, tem de respeitar o local em que se encontram e aprender a não dizer nada que magoe lima à outra. Lembrem-se de que aqui é lindo
e um local de paz, que tem disciplina e ordem. Vamos aprender a viver sem fofocas que tanto mal fazem.
Todas se calaram. Retornei ao meu trabalho, pensando que Isabel tinha toda a razão. Muitas vezes iniciamos uma briga por causa de fofocas. Deveríamos dar
mais valor à palavra e usá-Ia só para o bem.
Numa tarde, durante nosso horário de trabalho no berçário, um menininho de dois anos, deu um tapinha no rosto de Lorena e ela revidou, dando-lhe outro
em sua mão. O garotinho chorou alto e sentido. Vovó Catarina pegou o menino e conversou com ele, explicando-lhe que não deveria ter batido em Lorena. Logo ele parou
de chorar e vovó o entregou para outra garota. Lorena ficou encostada na parede. Vovó Catarina lhe falou delicadamente, porém séria:
- Lorena, quando isso acontecer é só explicar que não pode, que bater é errado, ou me chamar para que eu o ensine. Não é revidando que se educa.
Lorena não respondeu, ficou quieta, só nos olhando e recebeu a metade do bônus-hora. Quando acabou nosso horário e voltamos ao alojamento, Lorena chorou
alto, reclamou:
- Que saudade da minha casa! Da minha mãe! Do meu lar eu não era obrigada a fazer nada! Mamãe fazia todas as minhas vontades! Não precisava trabalhar para
ter lazer!
Isabel entrou no quarto. Eu já havia notado que ela aparecia sempre que necessitávamos. Tempos depois, compreendi que Isabel estava trabalhando ligada a
nós. Ela sentia quando estávamos em dificuldades e vinha rapidamente nos auxiliar e orientar. Isabel escUtou quieta o desabafo de Lorena; depois, aproximou-se, abraçou-a
e falou com carinho.
- Lorena, meu bem, às vezes choramos de saudade, mas não devemos lamentar as dificuldades. Aqui é um lar onde todos se esforçam para viver do melhor modo
possível dentro de certas regras, visando o bem-estar. Ninguém se torna perfeito só porque desencarnou, mas nos melhoramos quando nos esforçamos para tal. Você não
é obrigada a fazer nada. Se não quer contribuir com as tarefas do lugar que a abriga, a escolha é sua. Mas não pode com essa atitude querer que nos tornemos injustos
dando-lhe créditos iguais aos que colaboram. Estudar, trabalhar tudo isso faz parte do nosso aprendizado de conviver uns com os outros. Agora acalme-se e vá descansar.
Lorena deitou-se. Isabel passou a mão sobre sua cabeça e ela adormeceu. Depois virou-se para nós que a observávamos e nos informou:
- Pronto, meninas, Lorena acalmou-se e o sono lhe será benéfico.
Continuamos olhando-a, e ela, percebendo que necessitávamos de maiores esclarecimentos, falou baixinho:
- Todos nós temos deficiências, necessitamos tolerar para sermos tolerados, agradar para recebermos agrados. Cada uma de nós veio do plano físico com uma
história de vida, com sua experiência, e, para vivermos aqui, de modo diferente, entre outras pessoas, necessitamos nos esforçar para nos adaptar.
Ficamos quietas e ela despediu-se de nós. Todos nós sentíamos falta dos nossos lares terrenos e das pessoas que amávamos. Mesmo sentindo muita saudade,
eu tentava me animar, não pensando tanto e ocupando meu tempo. Fiquei deitada lembrando dos acontecimentos do dia-a-dia da minha casa na Terra. Recordei com detalhes
desde cedinho, quando mamãe se levantava, até se deitar. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Então, senti mamãe orando por mim. Rogava ela à Maria, mãe de Jesus,
para me proteger. Senti o seu amor, um sentimento puro, de carinho, sem egoísmo. Minha mãezinha queria que eu estivesse bem c eu, como filha grata que era, tinha
de me esforçar para isso. Orei e adormeci.
Lorena acordou bem. Resolveu que não ia mais ao berçário, que não tinha jeito para cuidar de criancinhas. Arrumou outra tarefa. Era muito estudiosa, foi
dar aulas de reforço para meninos maiores e gostou muito.
Aprendi a jogar vôlei e basquete, mas não quis treinar nem me dedicar a esporte nenhum. Tentei aprender a tocar instrumentos musicais: flauta, violão,
mas desisti, não tinha dom para a música.
Gostava mesmo de ir aos pátios com os garotos menores, pular corda, brincar nos brinquedos, divertia-me muito. Fiz muitas amizades e estava sempre conversando.
- Rosângela - disse Cecília -, este é Régis. Ele joga futebol muito bem. É um esportista. Passa suas horas de lazer nas quadras.
Observei o garoto, tinha talvez onze anos, era magro e risonho. Cecília continuou a falar:
- Ele, encarnado, foi deficiente físico. Não andava, ficava só na cadeira de rodas. Agora, sadio, realiza seu sonho. pratica todos os esportes.
"Régis trouxe esses desejos com ele ao desencarnar", pensei. "Quando encarnado deve ter tido muita vontade de brincar, jogar bola e, quando no plano
espiritual pôde fazê-Io, só queria jogar. Era como eu com o alimento."
- Aqui, não vi ninguém com defeitos físicos nem de óculos - comentei.
- Não se diz defeitos, e sim deficiência, doença - corrigiu-me Cecília. - Aqui, todos nós somos sadios. Se alguma criança tem o reflexo da deficiência
do corpo físico, fica em outra parte para superá-Ia.
- Ainda bem! - exclamei.
Era muito agradável ver todos sadios e alegres.
Eu estava sempre cantando e fazendo exercícios com a voz. Quando participei de uma apresentação do coral, ao subir no palco, fiquei emocionada, minhas pernas
tremiam.
Foi gratificante receber os aplausos. Fomos nos apresentar no teatro da colônia para um grupo de adultos novatos.
O teatro era outro local a que eu gostava de ir. A primeira peça a que fui assistir com as garotas do nosso cantinho era infantil. Encantei-me e passei
a ir muitas outras vezes. Todas as peças passam mensagens de otimismo, incentivando-nos a praticar o bem e a ter esperanças.

O ano letivo terminou. Fui aprovada com boas notas e passamos por um intervalo em que pudemos desfrutar de mais lazer. Aproveitei a oportunidade para ficar
mais tempo no berçário.
Todos os domingos pela manhã nos reuníamos nos pátios e orávamos juntos. As preces feitas normalmente eram proferidas por um dos internos e por um orientador.
Tínhamos todos os dias, pela manhã e à tarde, nos pátios, a leitura de um texto do Evangelho e, após, uma prece. Participava quem queria. Eu gostava muito
de orar com o grupo, sentia-me bem e ia sempre que podia; raramente faltava e se isso acontecia era no período da tarde em que não tinha aulas ou outras tarefas.
Comecei a freqüentar as bibliotecas. Havia três no educandário, uma em cada escola e outra grande e linda, no setor oito. Encantei-me com os livros, levava-os
para o alojamento e lia-os antes de dormir.
Já me sentia adaptada ao novo modo de viver, mas ainda tinha muita saudade. Consolava-me com as palavras de Hortência, que nos dizia sempre:
"Só quem ama sente saudade".
Sempre sentia meus pais, principalmente mamãe me incentivando a estar bem e feliz. Era só pensar na minha irmã Solange, que me entusiasmava, ao escutá-Ia:
"Rosângela, aceite com alegria tudo o que você está recebendo, seja grata e merecedora de tanto carinho. Vamos amá-la sempre".
Com esses incentivos daqueles a quem amava, aumentava minha vontade de estar cada vez melhor.
O Natal foi uma alegria; enfeitaram com estrelas douradas, brancas e azuis algumas partes do corredor interno.
Na Praça da Fonte, montaram uma bela árvore de Natal. O coral intensificou seus ensaios e apresentou-se quase todos os dias. Também recebemos visitas de
outros corais. Cantar cantigas natalinas era muito agradável. Tivemos várias palestras sobre a importância dessa festa cristã, dos ensinos de Jesus e sobre os fatos
ocorriam naquela época. Gostei muito; e para que não houvesse tristeza, a movimentação era intensa. A garotada conversava animada, tínhamos muito o que fazer: ensaios,
apresentações de peças teatrais, bandas de instrumentos musicais e canto solo.
Lorena estava muito quieta, triste e chorona; preocupamo-nos com ela, procuramos agradá-Ia, porém ela não reagiu. Isabel a transferiu. Em seu lugar veio
Clara, uma japonesinha agradável, muito bonita e alegre. Perguntei à nossa orientadora para onde Lorena tinha ido, e ela me esclareceu:
- Para outro alojamento, onde terá um acompanhamento especializado. Não se preocupe, lá Lorena estará melhor.
Compreendi que Lorena sentia muita falta dos seus entes queridos e do lar terreno e que, infelizmente, a família se desesperou, deixando-a triste. Com o tempo, a
dor deles suavizaria e ela melhoraria, mas enquanto isso não acontecia, minha amiga receberia um tratamento especial para se equilibrar.
Eu era grata aos meus familiares por me ajudarem e desejava que eles estivessem bem e festejassem o Natal.
No dia 25, logo cedo, todos nós fomos ao pátio maior, no setor oito, e fizemos uma oração em conjunto; após, assistimos a shows de música e canto. Foi assim
o dia todo. A noite, estava tão cansada que só fiz uma pequena prece adormeci.
As atividades continuaram até o Ano Novo. Dois dias depois voltamos à rotina.


13


O ano letivo começou, e passei a estudar do outro lado, na ala dos jovens, tendo aulas de outras línguas e de Esperanto. Gostei de aprender Esperanto,
pois todos nós desejávamos que os povos se unissem e falassem um só idioma. O Esperanto daqui está um pouco modificado e mais fácil de assimilar. É um jeito bonito
e suave de se expressar.
Tive outros professores e continuamos as aulas de Evangelização.
Fiz inúmeras amizades, estava sempre conversando e cantando.
Alegrei-me muito quando me matriculei nos cursos de nutrição e volitação 4.
Nas aulas de nutrição, estudávamos a alimentação do corpo físico e o reflexo dele ao desencarnarmos.

4. Volitar: locomover-se no espaço pelo ato da vontade (N.E.).


Para nos livrarmos desse reflexo, precisávamos aprender a viver com o corpo perispiritual, por isso, fazíamos exercícios. Nossa instrutora não indagava
nada, só respondia às questões que os alunos faziam. Contávamos nossas experiências. Compreendendo o que aprendia, diminui as refeições e passei a tomar suco ou
a comer algo raramente; não sentia mais falta. Comecei também a dormir menos e me senti bem melhor. Mesmo depois de ter terminado o curso, reuníamo-nos uma vez por
semana para falarmos dos nossos sucessos e fazíamos exercícios juntos. Foi só com o tempo que deixei completamente de me alimentar e de dormir.
Volitação é uma aula deliciosa, a garotada ama. Embora nas aulas, como em todas, houvesse ordem, divertíamo-nos e ríamos muito. Nas primeiras tentativas,
em que dificilmente se acerta, eram tombos e risadas. Mas, quando conseguíamos ficar por alguns minutos no ar, era prazeroso.
Até os pequeninos aprendiam. Essas aulas aconteciam nos pátios; as primeiras na área da escola, as outras no setor oito.
Eu esperava com certa ansiedade, pois sempre quisera voar. Encarnada tinha muita vontade de viajar de avião e nunca o fizera. Em nossa turma estava Alexandra,
uma garotinha de três anos. Ela era loura, de olhos azuis, esperta e inteligente. Ao vê-Ia, lembrei-me das figuras de anjos que vira pintadas nas igrejas.
Depois de muitas aulas, aprendi a volitar. Alexandra aprendeu mais depressa que eu. Indaguei o porque, nosso instrutor explicou:
- Ela confia mais, não tem o condicionamento que os encarnados têm, de que é impossível vencer a lei da gravidade e se locomover pelo ar.
- Como os pássaros! - exclamei.
- Não, querida, os pássaros movem as asas e nós
não as temos. Usamos a mente, a força de vontade - respondeu ele.
A colônia onde se encontra o Educandário Flores de Maria é muito grande; dela eu conhecia só o Pátio das Convenções, os teatros e o caminho que vai até eles. Foi
fantástico conhecê-Ia. Existem muitos prédios, jardins e avenidas arborizadas. Fizemos um passeio de aeróbus, uma excursão, com a instrutora, que nos esclareceu:
- Aqui é o prédio da administração! Observamos tudo e fizemos muitas perguntas.
Foi depois de muitas excursões que pude dizer que conhecia a colônia. Tudo é muito organizado e administrado, visando o bem comum. É realmente muito prazeroso
morar em uma colônia espiritual.
Foi numa aula de Evangelização que escutei que poderíamos ver, visitar e receber visitas de encarnados.
- Os sentimentos nos unem - explicou o professor. A morte do corpo físico não nos separa, tanto que os encarnados podem vir aqui, assim como podemos ir
vê-Ios.
Naquele momento não prestei muita atenção, pois não me interessara pelo assunto. Foi só quando Dora, uma companheira do alojamento, falou toda contente que ia receber
a visita da mãe encarnada, que fiquei curiosa para saber mais sobre o assunto. Ela se preparou e se arrumou toda, não queria chorar, queria se mostrar bem para que
a mãe tivesse certeza de que ela era feliz.
Fiquei pensando como a mãe dela viria. De avião? Custaria caro? Se fosse, meus pais não viriam, pois não tinham dinheiro. Encarnada, nunca ouvira falar dessa viagem.
Seria uma novidade? Algo inventado recentemente? Não conseguia dormir, tentei ler, mas não consegui me concentrar. Levantei-me e fui procurar Isabel para que ela
me esclarecesse. Não a encontrei, ela fora acompanhar Dora ao encontro.
No lugar dela, estava Eliziel, um instrutor que eu já conhecia. Ao me ver, indagou gentilmente:
- Por que está tão inquieta? O que quer saber?
Não me fiz de rogada, falei do encontro de Dora e pergunteI:
- Como isso é possível?
- Rosângela, você sempre teve esse corpo que agora está usando para viver aqui no plano espiritual, só que ele estava revestido do corpo carnal. Encarnados
podem sair com o perispírito e ir a muitos lugares. Afastam-se do corpo físico, que normalmente fica repousando, dormindo e, quando isso acontece, ficam ligados
por um cordão. A morte do físico só se dá com o rompimento desse cordão. Quando eles vêm aqui, para uma visita, são conduzidos por orientadores.
- E eles se recordam desse encontro? - perguntei.
- Alguns, às vezes, como se fosse sonho, outros não.
Mas esses encontros os fazem sentir-se mais conformados e com a certeza de que seus afetos estão bem - respondeu Eliziel.
- Eu, quando encarnada e doente, sonhava com minha tia, ela me trouxe aqui. Eliziel, o que faço para receber uma visita?
- Quando a administração da casa achar que você pode receber, eles promoverão os encontros. Mas você pode pedir se quiser. É só ir ao setor um, na sala
de pedidos e fazer o seu - orientou ele.
Voltei para meu cantinho e pensei na tia Ana Elisa; pedi a ela que viesse me ver.
No outro dia, logo após a aula, titia veio me ver. Saímos para passear, sentamos num banco no pátio do setor sete.
- O que aconteceu, Rosângela? Por que quis que viesse vê-Ia?
- A senhora ouviu o meu chamado? Que bom! Já estou sabendo fazer isso! Titia, ontem à noite, Dora teve um encontro com a mãe dela que está encarnada. Quis
esperá-Ia acordada, mas não consegui. Hoje Dora estava tão alegre! Eliziel explicou-me a possibilidade desses encontros. Lembrei-me de que sonhei com a senhora e
que esses sonhos foram encontros.
- Sim, minha sobrinha, eu ia visitá-Ia para conversar e prepará-Ia para a mudança de plano. Por duas vezes a trouxe aquI...
- Na Praça da Fonte! - interrompi. - Agora me lembro de tudo. Se ia me ver, continua indo lá na Terra, para visitá-Ios?
- Sim, continuo - respondeu minha tia.
- Como eles estão, titia? Achava que os encarnados não poderiam saber de nós nem nós deles. Amo-os muito, quero que todos estejam bem.
- Seu desejo é uma oração; você querendo isso, envia-Ihes vibrações de carinho e ânimo. Vou lhe dar notícias: seu avô paterno, está doente, com uma doença
incurável, que logo o trará de volta ao plano espiritual. Seus outros avós estão bem. Seu pai está trabalhando muito. Mudaram para uma casa mais simples. Sua mãe
tem costurado para fregueses. Quase todas as dívidas foram pagas. Seus irmãos estão com saúde, trabalham e estudam. Todos sentem sua falta.
- Às vezes os escuto, não sei explicar, ouço-os como se eles falassem algo para mim, baixinho, é como se pensassem lá e eu ouvisse aqui - falei.
- Pois é isso que acontece, Rosângela - esclareceu tia Ana Elisa. - Quando eles pensam, em oração, você sente esse carinho, é a força do amor. É uma
transmissão de pensamentos. Sim, você os ouve.
- Isso acontece com todos os que desencarnam? quis saber curiosa.
- Não. Aqui no plano espiritual não existe uma regra geral. Muitos desencarnados não têm condições de receber esses pensamentos; outros não têm nem quem pense
neles e há ainda os que não se interessam pelos encarnados. E você também não recebe todos os pensamentos deles. Quando está se divertindo não os sente, quando está
concentrada, estudando e...
- É mesmo titia. Acho que é por isso que temos tantas atividades! Gosto muito dos incentivos de Solange, do que ela pensa.
- Solange tornou-se espírita, estudiosa da doutrina, sabe que pode ajudá-Ia com seu carinho e a motiva. Ela é uma pessoa especial.
- Tia Ana Elisa, poderei vê-Ios? Ir com a senhora visitá-Ios? - perguntei ansiosa.
- Você poderá ir vê-Ios quando estiver preparada. Está ainda em fase de adaptação; quando estiver apta, poderá visitá-Ios. Mas aqui podemos receber visitas
como sua amiga recebeu. Quando o corpo físico adormece, amigos ou trabalhadores espirituais os ajudam a vir aqui. Eles vêm em perispírito ligados por um cordão prateado
ao corpo carnal 5.
- Titia, por favor, traga-os para que eu os veja! - pedi.
- Vamos pedir esse encontro; vou acompanhá-Ia ao setor um - disse titia.
Seguimos pelo círculo para chegarmos mais rápido.
Dirigimo-nos para a ala de pedidos. Logo uma moça nos atendeu e anotou o meu pedido. Saímos pela frente.
- Titia, vamos sentar aqui um pouquinho. Gosto muito da Praça da Fonte.
Sentamos. Olhei para minha tia e fiquei curiosa para saber o que aconteceu com ela, por que desencarnara tão Jovem.
- Tia Ana Elisa, conte-me sua vida. Queria saber o que ocorreu com a senhora.
Titia sorriu e começou a narrar:
- Nasci num lar cristão e fui amada pelos meus familiares. Adolescente, quis ser enfermeira e fui trabalhar em um hospital. Foi lá que conheci Mário, um
moço bonito, de família rica, que estava tuberculoso. Ficamos amigos, e ele me contou sua vida. Disse-me que amou muito uma moça que não o quis ao saber que ele
estava enfermo. Amei-o, e ele, sabendo do meu amor, pediu-me em namoro. Escondemos nossa relação de meus pais porque eles não o aceitariam, por ele ser doente. A
família dele também não concordaria porque eu era pobre.


5. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, capítulo 7, questão 344 (N.E.).


Pensei, iludi-me achando que aquele moço me amava; entreguei-me de corpo e sentimento àquele amor. Mário meIhorou, julgou-se curado. Não acreditou no médico,
que lhe informara ser necessário continuar o tratamento, pois ele só havia tido uma melhora. Terminou o namoro comigo, voltou para sua ex-namorada, que o aceitou,
julgando-o curado. Ele mentira para ela, dizendo que não estivera tuberculoso, que o médico se enganara.
Adoeci, contraí tuberculose, triste não reagi à doença, que naquele tempo era praticamente incurável, pois pouquíssimos voltavam a ser sadios. Meus pais
cuidaram de mim em casa. Mário sofreu uma recaída, e a namorada o abandonou. Ele me procurou, pediu perdão, reconciliamo-nos, porém não o vi mais. Desencarnei, fui
socorrida e vim para esta colônia maravilhosa. Assim que pude, aproveitei a oportunidade e fui estudar; 'agora sou enfermeira. Mário desencarnou também, sofreu vagando
e compreendeu que errara comigo. Pediu-me perdão novamente e eu o perdoei, porém ele não perdoara a ex-namorada. Sofreu muito e quando perdoou e rogou socorro, recebeu-o.
Conversamos bastante e tornamo-nos amigos. Ele ficou alguns anos aqui na colônia, depois pediu para reencarnar e voltou ao plano físico. E eu, estou muito feliz
aqui!
Titia terminou sua narrativa com um suspiro e eu a abracei.
- Admiro a senhora titia! E meus bisavós, seus pais, onde estão?
- Desencarnaram, pude recebê-Ios, e nosso reencontro foi uma festa. No momento estão reencarnados.
Estão bem, visito-os sempre. Eles se esqueceram temporariamente de mim, mas o nosso amor continua e isso é bom, vamos ampliando nossos afetos.
O encontro por mim solicitado, aconteceu. Dias depois, fui avisada, três horas antes, de que receberia visitas. Isso para que não ficasse ansiosa por muito
tempo, Nessas horas de espera, fiquei aflita, sentia minhas mãos frias e úmidas e o coração batendo rápido no peito. Tia Ana Elisa veio ao meu encontro.
- Vou acompanhá-Ia, Rosângela. Tente ficar calma. Hoje você receberá a visita de seu pai e de Solange. Achamos melhor sua mãe vir depois.
Compreendi. Mamãe era a que mais sentia minha falta e, às vezes, por mais que se esforçasse para não se revoltar, pensava: "Por que Rosângela sofreu tanto?
Era uma menina boa e inocente! Por que teve de morrer tão novinha...
Solange sempre lhes explicava que a vida continuava; que reencarnamos muitas vezes e que por imprudência cometemos ações erradas e que um dia receberíamos
as reações dos nossos atos; que eu era nova no corpo, mas não em espírito; que desencarnar não era castigo, fazia parte da vida... Minha mãe a escutava, tentava
compreender, mas sofria muito com minha ausência.
Fomos, titia e eu, ao local do encontro. Há no educandário, no setor um, uma área para receber os encarnados. É um jardim florido, lugar muito bonito, com
diversos bancos, que se chama Nosso Encontro, mas a garotada o apelidou de Mata-Saudade. Lá, vi muitos internos, a maioria ansiosos como eu, esperando as visitas,
outros já conversando alegres com os encarnados. Observei os visitantes e vi o cordão que os unia ao corpo físico. Titia e eu nos sentamos num banco. Ia perguntar
se demoraria, quando vi papai e Solange. Quis correr para abraçá-Ios, mas não consegui, senti as pernas bambas. Ficamos parados por instantes nos olhando até que
papai abriu os braços e eu corri, aconchegando-me nele. Como foi gostoso receber
seus beijos! Solange abraçou titia, depois ficou nos olhando, notei seu olhar vivaz, observando tudo com curiosidade.. Abraçou-me alegre.
- Rosângela, que bom revê-Ia bem, sadia! Que lugar lindo!
- Você precisa ver os outros locais, são cada um mais lindo que o outro. Mas, como estão vocês? -perguntei.
- Nós sentimos saudade - papai começou a falar, dando uma pausa, sorriu e continuou: - é porque a amamos. Estamos conformados e nos esforçando para ficarmos
bem. Encontrá-Ia feliz é o que nos importa!
Percebi, perto de nós, um senhor que nos observava sorrindo. Ele havia trazido papai e Solange e certamente recomendara que aproveitassem o encontro, não
dizendo nada de triste. De fato, era um momento importante, especial, que deveria ser de carinho. Conversamos por minutos. Papai exclamou:
- Que pena que não irei recordar esses instantes tão valiosos quando acordar!
- Mas sentirá no íntimo a certeza de que Rosângela está bem e feliz! - informou tia Ana Elisa.
Despedimo-nos com abraços e beijos. O senhor os acompanhou, pois ele os levaria de volta ao lar, e titia e eu voltamos ao alojamento. Estava feliz, mas me
deu um.1 grande vontade de ficar com eles. Compreendi o porque' de não estar apta a visitar meu lar terrestre.
A maioria das meninas me aguardava acordada. Emocionada, contei a elas sobre o prazeroso encontro.
Tia Ana Elisa, dias depois me contou que papal acordou animado e Solange recordou parte do nosso encontro, contou a todos que sonhou comigo, que eu estava
entre árvores, sadia, corada e feliz.
Depois de vários meses, recebi a segunda visita, desta vez de uma das minhas avós e de mamãe. Abraçar minha mãe foi uma emoção indescritível, foi um amplexo
de amor. Como amo mamãe! Ficamos abraçadas por minutos, e quando a olhei, lágrimas escorriam pelo seu rosto. Enxuguei-o com a mão e a beijei.
- Mamãezinha! Como eu a amo! Obrigada por tudo! Mamãe me olhou e fez várias perguntas:
- Rosângela, filhinha, você está bem? Eles cuidam
bem de você? Tem se alimentado? O que faz? Às vezes, penso que você canta.
- Mamãe, observe-me bem. Estou ótima! Aqui não fiquei mais doente. Estou estudando e...
- Estudando? Mas quando se morre já não se sabe tudo? - perguntou minha mãe interrompendo-me.
- Mãezinha, temos de merecer tudo o que recebemos. Conhecimentos são adquiridos, e não doados. Aqui continuei na escola, na série em que havia parado. Gosto
de estudar! E se a senhora me sente cantando, é porque faço parte de um coral e estou sempre a cantar.
Rimos, conversamos e ficamos abraçadinhas. Vovó reuniu-se a nós e ficamos de mãos dadas. Minha avó orou em agradecimento. Terminado o horário de visita,
mamãe e vovó se foram. Titia abraçou-me e chorei.
- Como eu a amo! - exclamei.
- É muito bom amar, Rosângela. O amor nos sustenta em qualquer lugar em que estejamos. Você se sente separada de seus afetos? De sua mãe?
Pensei por um momento e respondi o que sentia:
- Não, titia, separada não, estou ausente por um período, acho que para quem ama não há distância! Parei de chorar e comecei a cantar.
- Mamãe me sente cantando! - exclamei feliz. Titia depois me deu notícias de mamãe, que acordara chorando de alegria, sentindo-me em seus braços. Ela teve
a certeza de que estaríamos para sempre unidas.


14


Encontrei-me com Valda no corredor, abraçamo-nos contentes.
- E Fátima, como está? - perguntei.
- Ainda conosco - respondeu Valda. - Vim trazer mais duas garotas para o setor sete e ela novamente não quis vir. Estamos empenhados na sua adaptação.
- E se ela não se adaptar, o que lhe acontecerá? - quis saber.
- Todos se adaptam aqui, alguns mais depressa, outros mais devagar. Fátima encontrou mais dificuldades, pois seus familiares não colaboram, estão revoltados,
desesperados e isso a entristece. Mas, como tudo passa, a dor deles vai diminuir e Fátima melhorará.
Despedimo-nos com beijos. Eu era grata à Valda por ter cuidado de mim com tanto carinho.
Conversei com Lorena no pátio da escola e ela falou:
- Rosângela, sinto-me bem no alojamento em que estou agora; a orientadora tem seu cantinho no nosso quarto e cuida só de nós. Recebendo atenção especial,
fiquei mais segura. Meu pai, que está encarnado, ficou doente, nada grave, mas mamãe, preocupada com ele, esqueceu um pouco de mim, e isso fez com que eu me sentisse
menos sufocada; melhorei.
Alegrei-me por ela.
Para minha surpresa, ao assistir a uma peça teatral no setor oito, vi Lenice atuando. Fomos, Lourdes e eu, cumprimentá-Ia no final.
- Obrigada - falou Lenice -, meu papel é secundário, pois sou novata. Vamos apresentar esta peça em outros educandários e no teatro da colônia para os adultos.
Lenice representava muito bem, fez muitas peças, dedicava-se ao teatro e estava sempre alegre e feliz.

* * *

Um colega de classe, Eduardo, emprestou-me seu caderno de exercícios. À tarde, Lourdes foi comigo, ao alojamento dele, para devolvê-Io.
- Rosângela, o cantinho deles é mais bagunçado que o nosso, o das meninas - comentou Lourdes baixinho.
O alojamento dos meninos é diferente; embora tenha os mesmos móveis, são menos delicados, alguns com cores fortes, quadros de esportes e livros espalhados. Eduardo
nos convidou para entrar.
- Arrumamos nosso canto sempre, mas sabem como são os garotos, acabam desarrumando.
Agradeci pelo empréstimo do caderno e fomos, curiosas, dar uma olhada no alojamento dos meninos. Eles são muito alegres e barulhentos, estão sempre dando
risada, gostam muito de esportes e seus orientadores na maioria são do sexo masculino.
Nos quartos dos meninos de oito a dez anos, havia brinquedos espalhados. E, em um deles, um garoto limpava uma bicicleta.
Lucas, o orientador, vendo-nos admiradas, aproximou-se e esclareceu:
- Plasmamos brinquedos, objetos de que eles gostavam para entretê-Ios.
- Bicicleta?! - perguntei.
- Por que não? - disse o orientador. - Temos um pátio para ciclistas. Este é Bruno; dias antes de ele desencarnar, tinha ganhado uma bicicleta igualzinha
a esta. Ele a queria tanto e agora a tem. Bruno vai dar um volta com ela, vocês não querem ir com ele?
Fomos. No fundo do setor quatro, havia um pátio enorme onde se podia pedalar a bicicleta. Havia até pistas de corrida.
- Como gostaria de saber andar de bicicleta! - exclamei.
- Aprenda! Você pode pegar uma emprestada ali e andar - informou Bruno.
- Eu ensino você! - ofereceu-se Lourdes.
Achei que era fácil, que era só imitar quem andava. Trombei com Bruno, fazendo-o cair.
- Ai! - exclamei assustada. - Desculpe-me! Machuquei você?
Bruno levantou-se, sorriu e respondeu:
- Você não sabe que aqui não nos machucamos? Não precisa se afobar, está desculpada.
Um orientador se aproximou e Lourdes indagou curIosa:
- É verdade que aqui não nos machucamos?
- Só sentiremos algo neste corpo, no perispírito, se pensarmos que iremos sentir, isto é, os reflexos do corpo físico. Aqui não nos machucamos.
- Os desencarnados se machucam em outros lugares? - perguntei.
- Os que não aceitam a mudança de plano, o estado de desencarnado, esses sentem fortemente os reflexos do corpo carnal, e, se acharem que vão se machucar
ao cair, sentirão os ferimentos - esclareceu o orientador.
- Então eu posso andar sem medo, pois se cair não irei me machucar? Ajude-me Lourdes, vou tentar de novo - falei decidida.
Bruno e Lourdes me ajudaram, e também deram boas risadas. Mas, consegui! Passei a andar sempre de bicicleta, achava muito bom pedalar, sentir a brisa em meu rosto
e passear por entre as árvores.

* * *

Desde a primeira vez em que visitei as bibliotecas do educandário, tornei-me freqüentadora assídua delas. Doralice, uma das bibliotecárias, sempre amável e prestativa
ajudava-me no começo a selecionar livros para ler. Eu me encantava com as estantes cheias de boas obras, livros ilustrados e de leitura fácil. As crianças a partir
de
três anos, já excursionam pelas bibliotecas em horário marcado para elas. Havia lindíssimos livros infantis e obra, interessantes para os jovens - livros que os
encarnados têm na Terra e outros que são privilégio dos que vivem aqui no plano espiritual. No início, lia os infantis, ria, entristecia-me e divertia-me. Sentia-me
criança e adolescente ao mesmo tempo. Depois me interessei por obras para adolescentes. A biblioteca do setor oito é grande, espaçosa, tem poltronas confortáveis,
mesas com cadeiras e é muito colorida. A novidade é que possui livros que falam, isto é, ao abri-Ios, uma voz narra a história. A criançada gosta muito deles.
Todos têm acesso às bibliotecas e eu ia sempre nos meus horários livres. Ficava lá nas poltronas confortáveis ou nas mesinhas quando fazia pesquisas. Levava
livros para o quarto e as meninas às vezes brincavam comigo, chamando-me carinhosamente de Papa-Livros.
Ao lado da biblioteca do setor oito, há três salas de vídeo ou cinema que são também muito freqüentadas.
Ali passam filmes instrutivos a que nós, alunos, assistimos para depois fazermos uma apreciação. Há também os de entretenimento com dias e horários apropriados.
Os jovens que já realizam tarefas, usam o bônus-hora para assistir a eles. Crianças e jovens necessitam aprender a trabalhar e, para serem incentivados, ganham o
bônus-hora, com o qual podem ter o que quiserem. Éramos orientados para servir com amor, porque é muito melhor servir do que ser servido. Quem é servido é sempre
um necessitado.
Vovó Cata abraçou-me quando fui cuidar dos bebês.
Ela me disse:
- Rosângela, você agora irá cuidar dos bebês maiores.
Vendo minha expressão de decepção, porque eu amava muito os pequenos, ela completou:
- Você poderá vir aqui quando quiser, será sempre bem-vinda. Cuidar dos maiorzinhos é tarefa de maior responsabilidade, pois estes carecem de receber boa
educação.
Ela levou-me ao setor seis, na ala onde estavam crianças de dois a três anos. Apresentou-me Raquel, que era a encarregada de orientá-Ios.
- Bem-vinda, Rosângela. Espero que goste de nós como gosta da vovó Cata e de seus bebês. Venha, querida, vou lhe mostrar nosso espaço. Aqui é a sala onde
as crianças recebem aprendizado.
A sala era grande, com mesinhas e cadeiras coloridas; na frente, ficavam uma lousa e a escrivaninha da orientadora. Havia estantes baixas com livros e cadernos.
Passamos para outra sala, a de brincadeiras, onde doze pequerruchos estavam brincando com vários brinquedos.
- Mamãe, olhe o que eu fiz! - exclamou uma garotinha.
- Que lindo! Parabéns Larissa, você conseguiu montar direitinho.
Raquel virou-se para mim e explicou:
- Aqui eles me chamam como querem: uns de tia, outros de Raquel e até de mãe. Venha conhecer as outras salas. Aqui é o dormitório. Todos os doze desta ala
dormem aqui, quando sentem sono. Mas no setor sete eles têm seu alojamento.
As caminhas eram lindas; tudo muito alegre, colorido e enfeitado com bichinhos. Na outra sala, era o refeitório onde se alimentavam quando sentiam vontade.
Havia também um parque com alguns brinquedos e um pequeno jardim onde aprendiam a cuidar das plantinhas e a respeitar a natureza. As crianças saíam muito, iam às
bibliotecas, ao cinema e aos outros parques; faziam parte do coral-mirim e aprendiam diversas modalidades de esportes.
- Eles não sentem falta do lar terreno, dos pais? - indaguei curiosa.
- Crianças se adaptam facilmente. Aqui eles estão provisoriamente assim como é na Terra o período infantil. Logo que chegam, sentem falta dos entes queridos,
alguns mais, outros menos. Se recebem auxílio dos afetos encarnados, logo estão bem, mas se os pais, avós, choram muito, lamentando-se com a perda deles, nossas
criancinhas aqui se ressentem. Mas tudo é feito para que elas tenham uma estadia de amor entre nós. Agora vá, brinque com eles para conhecê-Ios.
Taís e Júlio me puxaram pela mão e entrei na brincadeira, rolando pelo chão. Meu período passou rápido, gostei da minha nova tarefa. Conheci todos e, melhor, fiquei
conhecida deles.
Foi um estágio agradável, ensinava-os a colorir, lia histórias e brincava com eles.
Meus estudos também progrediam, amava aprender; gostava não só de conhecimentos gerais como também do estudo do Evangelho e da Moral Cristã.
Foi na aula de Evangelização que Ricardo fez uma pergunta ao nosso professor:
- Professor Luís, o que acontece quando várias crianças desencarnam ao mesmo tempo, num acidente, por exemplo?
Atentos, prestamos atenção ao esclarecimento do nosso professor:
- Há, na Terra, trabalhadores do bem, treinados para I:sta tarefa, que é ajudar em desencarnes coletivos. Quando isso ocorre com crianças, os cuidados dos
socorristas espirituais são dobrados. Todas as que desencarnam são socorridas de imediato e levadas ao posto de socorro espiritual mais próximo. Nesse posto, recebem
os primeiros socorros espirituais. Depois são trazidas para a colônia e encaminhadas aos educandários.
- E se for num acidente de avião, com crianças de diversas localidades ou países? - indagou Luíza.
- Primeiramente, são levadas à colônia mais próxima; depois, conduzidas às de origem ou onde tenham parentes e amigos desencarnados - respondeu o professor
Luís.
- Isto acontece também com adultos? - perguntei.
- Adultos têm de ter merecimento - respondeu o professor. - Normalmente, sem ser regra geral, os socorristas lhes prestam os primeiros socorros, levando-os
para postos de socorro espiritual. É respeitado o livre-arbítrio deles; os pedidos de ajuda são analisados e, se possível, são encaminhados a uma colônia ou então
permanecem no posto.
Gostamos da explicação, nessas aulas se aprende muito.
Organizei bem meu horário, tinha muitas atividades e o tempo passava rápido; estava totalmente adaptada, ali era meu lar. Não posso esquecer que para me sentir assim,
recebi ajuda dos meus familiares. Mamãe sempre preferiu sofrer em meu lugar, queria tanto que eu estivesse bem e feliz que me sentia como minha mãezinha querida.
Nós recebemos muito auxílio de Solange, que se tornou-se espírita. Essa doutrina consoladora, ajudou-os a compreender que a vida continua, que não acabamos, que
afetos não se perdem e que os sentimentos permanecem Sofreram com o meu desencarne, tentaram superar a dor e o conseguiram.
Recebi muitas visitas de avós, tios, irmãos e de meus pais. Às vezes, sentia vontade de estar com eles, mas logo passava, pois não queria ficar triste entre
tantos amigos.
Titia me avisou para que no domingo à tarde não mal' casse nada, pois ela me pegaria para um passeio. Quando veio me buscar, indaguei:
- Aonde vamos?
- À sua casa, no plano físico!
Quase engasguei.
Tia Ana Elisa puxou-me pela mão. Saímos do educandário e volitamos pelas avenidas da colônia até o portão.
- Este é um dos portões que usamos para sair da nossa cidade espiritual. Venha, entremos nesse veículo, o aerobus.
O veículo era grande, muitas pessoas acomodaram-se dentro dele, era um misto de avião sem asas e um ônibus enorme. Olhava tudo, curiosa, e titia explicou:
- Usamos este meio de transporte quando não queremos ou não é possível volitar. O aerobus irá para a cidade dos encarnados; lá desceremos num centro espírita.
Vamos à sua casa e voltaremos no horário marcado. Muitos aqui visitarão seus lares terrenos.
Sentamo-nos em poltronas confortáveis, segurei firme a mão de titia. Não se escurava nenhum barulho, ele desIizava suavemente. Minutos depois, descemos no centro
espírita.
- Agora vamos volitando até sua casa.
Novamente segurei a mão de titia. Volitamos acima dos prédios, vi as ruas, os carros e as pessoas lá embaixo. Chegamos em casa. Estavam todos reunidos, agora
eles oravam num local mais simples, porém repleto de amor e fluidos de carinho. Nem me importei por eles não me verem, abracei-os, beijei-os e afaguei Bob. Fiquei
tão alegre! Foi maravilhoso!
De volta, no aerobus, exclamava sem parar: - Que passeio! Fabuloso! Encantador!
E foram muitas as vezes que os visitei.

* * *

Quando os três corais se uniam, era uma festa, e a garotada cantava alegremente. Crianças e jovens gostam muito de música.
Alguns participantes dos três corais se uniam, sendo chamados de Alegres Cantores. Eles costumavam sair bastante e excursionar. Interessada em acompanhá-Ios,
pedi à lara fazer parte da equipe e obtive permissão. Gostei de conhecer outros lugares. Quando realmente se está adaptado ao plano espiritual é que é permitido
sair nessas excursões, acompanhado dos maestros e também dos socorristas.
A primeira vez em que os acompanhei foi numa inauguração de um centro espírita; estava tão curiosa que nem cantei direito, pois observava tudo. Fiquei analisando
a\ construções materiais e as espirituais. Acho que se os encarnados pudessem fazer construções com fumaça suave, ainda assim não daria para comparar. Para nós,
que vivemos nas colônias, tudo é real, temos camas onde deitamos, paredes as quais apalpamos e tetos que nos abrigam. As casas do plano físico agora me parecem grosseiras
e fortes; m encarnados parecem estar dentro de uma armadura, não de ferro, mas de carne.
A inauguração foi muito bonita. Percebi que enquanto cantávamos, algumas pessoas do plano físico nos sentiram. Dois ou três tiveram maior percepção e, pela
vidência nos viram e outros ouviram alguns trechos. Mas os desencarnados presentes viram, ouviram e nos aplaudiram. Não ficamos no mesmo espaço que os encarnados,
mas acima, num palco improvisado. O teto material desapareceu para nós. Havia muitos convidados do nosso plano. trabalhadores de outros centros espíritas, dos postos
de socorro da região, bem como também muitos necessitados. Compreendi que a música, as crianças e os jovens cantando canções de incentivo e esperança davam um acalento
àqueles desencarnados que ali estavam em busca de auxílio. Muitos choravam ao nos ver. Escutei alguns comentários:
- Lembro-me da minha filhinha! - Que coro mais lindo!
- Que canto celeste!
- São anjos!
Essa apresentação foi um sucesso.


Excursionávamos muito, íamos a igrejas e a templos onde pessoas se reuniam para orar com fé. As minhas excursões preferidas eram aos hospitais da Terra,
principalmente às enfermarias infantis. Quando as visitas eram noturnas, tendo os jovens e as crianças os corpos físicos adormecidos, viam-nos e escutavam-nos. Esses
encontros eram sempre proveitosos, pois nosso canto cheio de bons fluidos transmitia energias benéficas aos doentes.
Íamos também cantar nos hospitais da colônia, e o resultado era sempre muito bom. Abrigados se alegravam, e a alegria era uma excelente terapia.
O coral também visitava os centros de umbanda. Durante nossa apresentação se fazia o socorro de muitos desencarnados necessitados que ficavam emocionados
ao nos ver e ouvir. Nesses locais de auxílio, eles dão bastante atenção às crianças desencarnadas, e a meninada gosta. Na umbanda, os corais espirituais são recebidos
com festa e muito carinho.
Nós, Alegres Cantores, dividíamo-nos em muitos corais, para que nossas atividades diárias não fossem atrapalhadas.
Eu sentia um enorme prazer em fazer parte do coral. Aprendi a cantar direitinho, gostava e estava sempre cantarolando, tanto que um dia, ao visitar meus pais, escutei
mamãe cantarolando uma antiga cantiga que cantávamos no coral. Ela comentou com meu irmão:
- Acho que a Rosângela continua amando a música; não sei por que, mas às vezes, parece que a escuto cantando. É tão agradável essa sensação!
Uma excursão ficou na minha memória. Uma vez íamos nos apresentar num posto de socorro localizado no umbral. Éramos vinte e cinco jovens, fomos de aerobus e ficamos
no pátio central do posto, cantamos por duas horas. Muitos dos abrigados vieram nos ver. Foi muito emocionante. A maioria chorava ao nos escutar. Quem não conseguiu
ir à praça, ouviu-nos nas enfermarias. A nossa vibração, pela música, fez um bem enorme àqueles sofridos desencarnados. No final, cantamos uma canção conhecida e
eles cantarolaram juntos.
Ao cantar, sentia que queria ajudar, as energias saíam de mim, juntando-se às dos meus companheiros, espalhando-se entre eles. Ao terminar, fomos muito aplaudidos.
Vários assistidos confundiram-nos com anjos e, por duas vezes, o orientador do posto explicou:
- Ao vivermos na Terra, dizemos que estamos encarnados; quando o corpo físico morre, continuamos vivos; desencarnamos em diversas idades. Muitas crianças
e jovens vivem no plano espiritual, em colônias e em educandários, locais que lhes são apropriados, e onde continuam aprendendo. Eles prazerosamente aprendem a cantar
e ensaiam para nos brindar com essas agradáveis apresentações.
Mesmo com essas explicações, muitos se aproximavam de nós e faziam pedidos:
- Anjinho, peça a Deus quando O vir, para me auxiliar!
- Leve-me de volta ao meu lar, anjo rosa!
O orientador nos agradeceu:
- Meus jovens, vocês nos ajudaram bastante, a alegria espalhou-se peio nosso posto. Voltem mais vezes, serão sempre bem-vindos!
Nós, do coral, estamos sempre fazendo essas excursões, pelas quais recebemos bônus-hora. Muitas vezes apiedei-me desses necessitados de auxílio, mas esforcei-me
para não me entristecer, pois a orientação que recebíamos era que cantássemos com alegria. Assim, soltávamos a voz...


15


Encontrei Bruno, Rodrigo e Marcelo andando de bicicleta. Lá fomos nós correr pelas pistas.
- Vamos descansar um pouco aqui? - convidou Bruno.
Sentamos à sombra de uma árvore e começamos a conversar.
- Eu - falou Bruno -, gosto daqui, não senti muita diferença, só estranhei um pouquinho no começo. Estou bem, tenho tudo o que quero e gosto muito de estudar.
A vida continua mesmo! Até faço planos: quando crescer quero ser condutor de aerobus.
- Será que a vida de menina é diferente da nossa, de menino? - perguntou Rodrigo.
- Pelo que observei não é - respondeu Marcelo. Fazemos as mesmas coisas, todos são considerados iguais, com os mesmos direitos e deveres.
- Você não acha que se exige mais ordem das meninas? - indagou Rodrigo novamente.
- Não acho - respondeu Bruno. - Talvez os garotos façam mais bagunça, mas temos que nos educar. Talvez nós, os homens, pratiquemos mais esportes.
- Nada disso - opinei. - Já verifiquei o número dos meninos que praticam esportes e é igual ao das meninas. Aqui todos gostam de atividades.
- Ao contrário de você, Bruno, eu senti bastante diferença ao viver desencarnado - disse Rodrigo. - Minha família encarnada é rica; vivi no plano físico
tendo tudo o que desejava, era mimado e só estudava. Aqui estranhei ao precisar limpar o quarto e dividir meu espaço. Mas acabei por compreender que não poderia
ter regalias e que é bom fazer essas tarefas. Lá na Terra, ficava sempre com medo de seqüestro, roubo e temendo as pessoas. O que mais gostei na espiritualidade
é viver sem medo, aqui ninguém faz mal aos outros.
- Nas colônias e nos educandários é assim; porém no umbral os desencarnados podem ainda continuar fazendo mal - disse Lucas.
- Ainda bem que não fui para lá! - exclamou Rodrigo. - Eu estou muito feliz aqui! - disse Marcelo. -Minha família é muito pobre. Morávamos num barraco,
onde necessitávamos de tudo, até fome passei. Desencarnei porque tive tétano e demoraram a me atender num hospital público. Aqui tenho tudo e estou muito feliz.
Minha família continua pobre, tenho dó deles, mas sei que eles necessitam fazer suas lições de aprendizado e que estas têm de ser terminadas.
Despedimo-nos depois de outra volta pela pista. Sentir-se feminino ou masculino no plano espiritual é ter os reflexos do corpo físico. Vivendo com o perispírito,
temos ainda essas designações, porém sabemos que o espírito que o está revestindo não tem sexo. Aqui, com o passar do tempo, sentimo-nos como seres iguais, sem diferenças,
todos necessitados de evolução.
O educandário era meu lar e eu cuidava dele. Se nosso lar está em ordem, tem harmonia, desfrutamos melhor do que ele oferece. Se todos estão bem e felizes,
também estou. Compreendi que é assim em todos os lugares; se queremos o melhor, devemos fazer o que nos compete. Reclamar sem nada fazer de bom é um péssimo hábito,
e é dando que se recebe. Foi isso que eu disse um dia ao Samuel, quando nos encontramos no pátio. Ele desabafou:
- Rosângela, não gosto de dividir meu quarto com outros garotos. Meu colega do lado esquerdo é desorganizado, está sempre deixando objetos no meu espaço.
O do lado direito tosse muito. Não adianta lhe dizer que não precisa mais tossir, que não está mais doente. Acho que tosse para chamar atenção. Queria me alimentar
mais, lembro-me dos bolos que mamãe fazia e tenho vontade de comer um inteirinho. Na escola preciso estudar muito, porque os mestres assim o exigem. Queria que tudo
fosse possível para os mortos, ou seja, para os desencarnados, por exemplo: se desejássemos saber, saberíamos, se quiséssemos ser médicos, seríamos, não deveríamos
precisar estudar. Gostaria de ser um excelente jogador de basquete, mas para isso, tenho de treinar. Queria que bastasse querer para conseguir. Que vida chata! Tanto
lá, encarnado, como aqui, é preciso estudar e trabalhar para ser alguma coisa!
- Samuel - falei -, não é bom só ver dificuldades em nossa vida. Com boa vontade, resolveremos nossos problemas e será fácil resolver os seus. Tenha todos
aqui como amigos, dê sua amizade e receberá. Esforce-se para ver as qualidades das pessoas. Ajude seu colega a arrumar os objetos dele e ao companheiro que tosse,
dê-lhe carinho, converse com ele, auxilie-o, com certeza ele melhorará. Será, Samuca, que eles também não têm algumas queixas de você?
- Talvez, Rosângela, acho que estou impaciente com eles e acabo implicando - respondeu meu amigo com sinceridade.
- Samuel, seria muito monótono saber tudo como você está desejando. O trabalho movimenta o universo. Jesus disse que o Pai, Deus, trabalha incessantemente;
a vida é agir. Aprendemos estudando, vemos o resultado de nossos atos trabalhando. Isso é maravilhoso! Se todos tivessem esse privilégio de querer e ter sem se esforçar,
estudar ou trabalhar, perderíamos a razão de existir; a vida acabaria, porque vida é atividade. Samuca, não fique só desejando, querendo o que não tem ou não pode
ter no momento e esquecendo de tantas coisas boas que possui no presente.
- Não quero ser ingrato! Mas queria estar lá em casa, encarnado! Conheci um garoto que se suicidou! Não consigo entendê-Io! Viver encarnado, mesmo com problemas,
é tão bom! Só deveria morrer quem quisesse - queixou-se Samuel.
- Você está agindo e pensando de modo errôneo - falei, tentando orientá-Io. - Problemas e dificuldades fazem parte da nossa existência, e quando encarnados
temos mais; porém, se aqui não os resolvermos, continuaremos a tê-Ios. Devemos amar a vida, o lugar onde estamos vivendo. Você está aqui porque sua morte não foi
desejada, ocorreu no momento certo. Seu estágio encarnado foi breve e houve motivos justos para isso.
- Vou ser sincero com você, Rosângela - continuou Samuel a se lastimar. - Acho o educandário e a colônia lindos, um exemplo de vida que os encarnados deveriam
seguir. Tudo é perfeito, porém gosto mais da vida no plano físico. Mesmo com as dificuldades que temos lá,
doenças, dores, frio, calor etc, preferia estar encarnado.
- A gente está sempre preferindo alguma coisa. Na Terra você preferia estar em outra escola, ter outra bicicleta, outro objeto, casa, fazer uma viagem diferente
etc. Não devemos deixar essas preferências nos privar de do valor do que temos. Se você amar o que tem, sobrará pouco tempo para. se lamentar.
- Por que desencarnei se não queria? - perguntou Samuel.
- Muitos encarnados perguntam por que estão lá na Terra, na vestimenta do corpo físico. Aqui nos perguntamos por que desencarnamos. Meu amigo, entendo que
a vida é única; às vezes, vive-se lá, outras aqui. A reencarnação existe como prova da justiça e da misericórdia do Pai. Cuidado com o. vício da reclamação, pois
a pessoa insatisfeita o é em qualquer lugar em que se encontra. E aprender é tão bom! Se não tivéssemos o que fazer, se obtivéssemos o que desejamos, nada teria
valor e ficaríamos desocupados. A ociosidade seria um vazio, um nada, um castigo.
Nilton aproximou-se de nós e, alegre, deu um tapinha nas costas de Samuel, ,convidando-o:
- Samuca, vamos jogar.- basquete! Se quiser eu ensino para você aqueles lances que achou legal.
Samuel virou-se para mim, deu uma piscadinha, riu e respondeu:
- Quero! Você, Nilton, está sendo muito paciente comigo, eu lhe agradeço. Vamos jogar, vou me esforçar para aprender. Valeu, Rosângela, obrigado!
Os dois foram para as quadras de jogo. Pensei no que I dei e percebi que serviu para mim também. Lembrei-me de Hortência que um dia nos disse: "Quando conversamos
com alguém, tentando ajudar, acabamos resolvendo alguns dos nossos problemas. Às vezes falamos ao outro o que desejamos escutar."
Muitos de nós, às vezes, sentíamos falta das coisas de que usufruíamos quando encarnados, mas se ficássemos só analisando no que perdemos e nos lamentando,
sofreríamos desnecessariamente, porque no plano espiritual temos e recebemos muitas coisas boas.
Recordei-me do garoto citado por Samuel, que se suicidou. Conhecia-o da escola, na Terra. Eu estava doente quando uma colega, ao visitar-me, contou o triste
acontecimento. Quando Solange chegou, comentei com ela:
- Não é um absurdo, Solange? Eu doente, lutando pela vida e ele sadio se mata. Nunca teria coragem de me matar. Iria para o inferno!
- Você, irmãzinha, acredita que Deus sendo tão bondoso condenaria um de seus filhos ao inferno eterno?
- Se fosse Deus não condenaria. Acho que esse garoto não queria morrer, acho que foi uma imprudência, ele não pensou nas conseqüências. Sinto que Deus não
o condenará a sofrimentos eternos.
- Também acho. Sofrimentos eternos não existem, porém, recebemos as reações de nossos atos. O suicídio é um homicídio, um erro grave; quem o comete sentirá
suas conseqüências. Alegro-me por você pensar assim. Devemos sempre querer viver.
No educandário, conversávamos muito sobre desencarnação. Do que desencarnáramos? Como? Principalmente no início, era o assunto preferido de todos nós. E
não escutara ninguém falar que se suicidara. Sabia que muitos jovens cometiam essa imprudência. Por que então não ouvira?
Pensando nisso, na aula de Evangelização, pedi:
- Professor Luís, gostaria de saber mais sobre o suicídio. Quando encarnada, falaram-me que quem se suicida, vai para o fogo eterno, não é perdoado. Mas também
me ensinaram muitas outras coisas, que agora sei que não são bem como me disseram.
- Rosângela - orientou gentilmente Luís - a vida é uma bênção, estar encarnado é ter um período de aprendizado. Devemos dar valor a essa dádiva e sermos
gratos. Ao se fazer uma ação errada, normalmente não se pensa nas conseqüências. Não se tem regra geral, não podemos dizer: fez isso e receberá aquilo. Muitas desculpas
são dadas por aqueles que cometem o suicídio, mas nenhuma justifica esse ato. Como vocês já viram, não existem gozos nem sofrimentos eternos. O plano espiritual
é imenso, há muitos lugares bons e outros nem tanto. Ninguém, porém, fica sem o auxílio amoroso do Pai Celeste, que deixa que Seus filhos se ajudem.
- Não sei de ninguém aqui que se suicidou - comentei. - Mas tenho conhecimento de que muitos jovens cometeram essa imprudência de dar fim à vida do corpo
físico. Onde estão eles? Estão aqui conosco?
- Quando eu estava encarnado - respondeu o professor -, não escutei ninguém perguntar do que encarnou, ou por quê. Mas aqui os recém-desencarnados conversam
muito sobre o porquê do desencarne. É sempre constrangedor ao suicida falar aos outros o que fez, principalmente para aqueles que lutaram contra doenças e passaram
por muitas dificuldades, sem perder a fé e a esperança. Por isso, esses jovens são abrigados em outros locais.
- Eles sofrem? - quis saber Maria das Graças, uma colega de classe.
- Não posso generalizar, cada um tem sua história elucidou o professor. - Normalmente, quem se suicida acaba se arrependendo, e o remorso dói muito. Vocês
sentem falta dos afetos encarnados, de muitas coisas que lá deixaram, porém sabem que a mudança aconteceu por motivos justos, independente de suas vontades. Agora,
imaginar que isso se deu por livre escolha, muda a situação. Vocês sabem que seus familiares sofreram ou sofrem com a separação, mas se soubessem que são culpados
por causar esse sofrimento, sentiriam remorso.
- Professor Luís, ouvi dizer que embora o sofrimento não seja eterno nem no fogo, o suicida sofre muito além da dor do remorso. É verdade? - perguntou Miguel.
- Você ainda acha que eles sentem dor maior do que a do remorso? - Carolina interrompeu, dando sua opinião. - Arrependimento dói muito. Um dia bati no meu
gato, joguei-o longe, quebrando sua patinha. Papal o levou ao veterinário, que o medicou. Sofri e chorei muito, senti remorso, arrependi-me por ter feito aquilo.
Só que não bastou meu arrependimento, o gato sentiu dores, ficou meses mancando. O remorso não conserta nossos atos, mas meu Fofinho me desculpou, porque assim que
voltou da clínica veterinária, veio direto para meu colo. Mamãe brincou comigo dizendo que eu senti e chorei mais do que o gatinho. Prefiro ter uma doença a sentir
a dor do remorso.
Concordamos com Carolina. Quando ela terminou de falar, olhamos para o professor Luís, que nos indagou:
- Se vocês têm a oportunidade de estar aqui, nesta sala de aula, aprendendo, e um de vocês não quiser ficar e sair, o que acontecerá?
Marcelo respondeu:
- Ele mesmo se privará de aprender, de conviver conosco, seus amigos... pára enquanto nós caminhamos.
- Respondeu certo - continuou o professor a nos esclarecer. - Podemos comparar um suicida a um aluno que deserta e rejeita a oportunidade de aprendizado.
Muito mais grave que deixar uma sala de aula é abandonar a vida física. Se com a desencarnação temos por afinidade, um lugar para morar, ao qual fizemos por merecer,
uma pessoa que não fez jus, pode ir para locais não tão bonitos e agradáveis. Isso não é considerado castigo, serve para ensinar as pessoas a dar valor aos estágios
da vida. Existem, no mundo espiritual, muitas moradas onde uma pessoa que rejeitou o corpo físico fica, como, por exemplo, o Vale dos Suicidas, locais no umbral
onde permanecem até que mudem seus sentimentos e queiram se modificar para melhor. Quando socorridos, vão para abrigos, colônias
próprias, onde são orientados, evangelizados. Mas, como disse Carolina, o remorso não anula o fato, mas por meio dele a pessoa pode se modificar para não errar novamente.
Jovens que cometem esses atos vão para esses abrigos e ficam em alas separadas dos adultos. E respondendo a você, Miguel, até serem socorridos, os suicidas sentem
os reflexos dolorosos do corpo físico, uns mais e outros menos, depende de muitos fatores, das causas que o levaram a cometer a imprudência.
- Eles reencarnam com deficiência por não ter dado valor a um corpo sadio? - perguntou Luíza curiosa.
- Não posso responder generalizando; cada caso é um caso. É sempre estudado com carinho cada reencarnação, e a deles também - respondeu Luís.
- Estou pensando - falei -, desencarnei doente e jovem. Será que na outra vida era sadia e me matei?
- Isso pode ter acontecido, mas creio que não é o seu caso - disse o professor.
- Vou concordar com o senhor, sinto no íntimo que não me suicidei anteriormente - expressei-me.
- Conclusão - opinou Carolina -, o jovem suicida errou, sofrerá as conseqüências do seu ato, mas a bondade de Deus não o desampara. Ele terá outras oportunidades,
só que, poderá ser exigido dele mais no seu aprendizado, que muitos confundem com sofrimento. Mas saber que isso não é para sempre é compreender a imensa misericórdia
de Deus.
Lembrei-me da professora Ester, que soube bem aproveitar o auxílio que lhe foi dado. Amigos, familiares de suicidas devem perdoá-Ios e ter esperanças, porque
eles terão socorro, orientação e novas oportunidades.
- Já pedi para reencarnar - falou Carolina. - Aconselharam-me a me preparar melhor, aproveitar minha estadia aqui nesta colônia, no Educandário Flores
de Maria. Sinto-me como uma flor que recebe todo o cuidado para se tornar um fruto que será útil, alimentando almas. Quando roguei pela reencarnação, sentia falta
da vida física, mesmo com as muitas dificuldades que temos lá, preferia viver encarnada. Visitei, na colônia, o Departamento da Reencarnação, vi que há muitos
pedidos para voltar à matéria, percebi a dificuldade de muitos para realizar esse projeto. O tempo passou, adaptei-me e agora não quero reencarnar. Quero ficar aqui
para sempre.
Rimos. Luís nos elucidou:
- Amar a vida como ela é, dar valor a todas as suas fases, é demonstrar que estamos colocando em prática o que aprendemos. Não devemos querer viver só o
estágio de encarnado nem desejar ficar somente no plano espiritual. Os moradores das colônias podem desfrutar da orientação dos servidores do Departamento da Reencarnação
e planejar cuidadosamente suas encarnações. Carolina tem razão, não voltamos à Terra com um simples querer. Há mais pedidos que encarnações disponíveis. Por isso
se deve dar valor a essa oportunidade, que é resultado do trabalho de muitos. Todos nós aqui devemos voltar ao plano físico e não devemos menosprezar a preparação.
Lamentar o passado e só fazer planos para o futuro não resolve nossos problemas, temos de viver bem no bem, no momento atual.
- Suicida é aquele que deserta do presente! - opinou Romério.
- Concluo que estamos sempre dando trabalho para alguém - disse Carolina. - Aqui, recém-chegados, damos um trabalhão e, para voltar à Terra, outro maior.
Já é tempo de servir e colaborar. A necessidade que temos um do outro é a fraternidade. Quero aprender e colocar em prática o que aprendo e ser fraterna!
Concordarmos com ela. A aula terminou e fomos para o pátio.

16


Gostava e gosto muito de crianças. Minhas tarefas junto delas eram prazerosas, brincávamos, cantávamos e ríamos de tudo. Nos educandários, todos são amados
verdadeiramente, recebem um amor sem egoísmo, que educa, orienta e dá segurança. Dificilmente uma criança emburrava para ganhar algo ou respondia maliciosamente.
Lá se aprendia a não agredir os companheiros.
Nessa tarefa, aprendi a conviver, a escutar e a dar o melhor de mim. Às vezes, quando alguns dos pequeninos choravam querendo alguém do plano físico, esforçava-me
para não chorar junto e desdobrava-me em carinho. Ali, naquela parte da escola, não havia nenhuma pessoa doente ou que sentisse alguma dor.
- Rosângela - explicou Estefânia, uma senhora que orientava aquela ala infantil -, quando uma criança ou jovem sente o reflexo do corpo material, fica
no hospital, e os que estão com dificuldade de adaptação permanecem no setor de recuperação.
Eu estudava com vontade, gostava de aprender e um dia, depois de uma aula de Evangelização, fiquei pensando como Deus é bondoso não nos levando a viver
num local ociosamente. Sentiria muito não continuar aprendendo. Estava muito feliz. Nada me faltava, e todos ali se sentiam como eu, com raras exceções. Nessas exceções
estavam os insatisfeitos, espíritos que, com carinho e firmeza, estavam aprendendo a se contentar com o que tinham no momento.
Fiz muitos amigos, Carina e Melina eram companheiras fiéis. Lourdes e eu nos tornamos realmente grandes amigas, éramos como irmãs. Mesmo estudando em salas
separadas e tendo atividades diferentes, estávamos sempre juntas, contávamos tudo o que nos acontecia uma para a outra. Lourdes aprendeu a dançar e o fazia maravilhosamente
bem. Sua tarefa era ensinar dança aos pequerruchos e queria ser no futuro uma professora. Tinha mesmo jeito, ensinou-me muito. Ela e eu encontramos Fátima e Lorena
no corredor; após os cumprimentos, Fátima nos alegrou com a notícia:
- Vim para a escola e estou gostando muito. Estou num alojamento que tem uma orientadora só para nós e ela tem seu cantinho ao meu lado. Fiz amizade com
Lorena, estamos estudando na mesma sala, ela me compreende. Vou aprender a dançar!
Lourdes e eu suspiramos aliviadas. Fátima demorou para se adaptar. Compreendi o tanto que nos ajudam o entendimento de nossos familiares e a nossa vontade
de querer estar bem.
As crianças que estavam na frente, juntamente com alguns jovens, vieram nos cumprimentar, foi um encontro fraterno. Fomos embora. Georgina nos reuniu no
pátio c explicou:
- As crianças e os jovens que nos assistiram à nossa frente desencarnaram com aquela idade. Estão abrigados em outro local de socorro e encontram-se bem
sob a orientação c ajuda dos trabalhadores desencarnados daquele local de auxílio que fomos visitar. São felizes e amam o que fazem. Os outros que vimos, bastou
observar para compreender que não estão orientados, não desencarnaram na fase infantil, mas sim adultos. Modificaram seus perispíritos para ter aparência de crianças
por muitos motivos. Alguns o fazem por carência, achando que na condição de crianças receberão mais atenção ou até piedade; outros, mais brincalhões, gostam de se
divertir e enganar. Muitos ali vieram espontaneamente, outros foram trazidos. Todos recebem auxílio e orientação. É, porém, respeitado o livre-arbítrio deles; somente
serão abrigados os que o desejarem.
Entendemos. Sempre que víamos desencarnados assim, mandávamos a eles vibrações especiais de carinho.
Eu gostava e gosto muito dos jardins floridos da colônia. As crianças aprendem a respeitar a natureza e a cuidar das plantinhas. Se alguém por algum descuido
ou acidente danificar uma planta, cuidará dela. É assim também com os animais, há muitos pelo educandário; eles vivem soltos, brincam com as crianças e são bem tratados.
Vivem em harmonia, não temos medo deles nem eles de nós. Não existem agressões. Passarinhos vêm se alimentar em nossas mãos e coelhinhos saltam em nosso colo querendo
afago.
Gostava muito de receber visitas dos meus familiares e de visitá-Ios. O tempo passa, amenizando as dores, não sentia mais ninguém chorando por mim. Meus
encontros com tia Ana Elisa rareavam, tínhamos muitos afazeres, mas quando nos encontrávamos, eu falava demais, contava-lhe tudo o que fazia. Pacientemente titia
me escutava e elogiava, incentivando-me.
Passei a excursionar bastante com o coral. Uma vez vi num local de socorro onde fomos nos apresentar, alguns desencarnados com o perispírito com aspecto infantil
brincando no chão e querendo atenção. Ao vê-Ios, perguntei curiosa e aflita para Georgina:
- Por que esses espíritos estão assim? Por que não estão conosco no educandário?
- Rosângela, somos espíritos milenares, já encarnamos inúmeras vezes e também desencarnamos de muitas formas e em diversas idades físicas. O perispírito do
qual estamos revestidos é modificável para cada encarnação e aqui também podemos modificar nossa aparência, basta saber. Sem ser regra geral, todos os que desencarnam
quando crianças são socorridos; já os jovens dependem de merecimento. Vamos iniciar nossa apresentação. Recomendo que preste atenção nesses seres, sem descuidar
do canto; depois explicarei a você esse fato.
Foi mais uma apresentação muito bonita. Vi, na frente, um outro grupo de crianças desencarnadas nos assistindo sentadas; estavam bem, limpas e alegres. Aquele
grupo que me Impressionou permaneceu quieto nos ouvindo; alguns deles se emocionaram e foram socorridos logo depois que terminamos de cantar.
Há peixinhos em aquários, nas fontes, esquilos nas árvores e muitos outros animaizinhos graciosos. Esse carinho é urna terapIa para muitos Internos.
A responsável pelo Flores de Maria é vovó LaIa, urna senhora de cabelos curtos e grisalhos, magra, de olhos bondosos e sorriso amável, cuja idade não sei
determinar. Soubemos que trabalha sem folga e está sempre andando pelos setores. Todos a amam.
Um dia, durante a aula, um de meus colegas quis saber mais sobre vovó Lala. Nossa professora nos disse o que sabia:
- Vovó LaIa chama-se Lázara; quando encarnada, foi uma professora interessada na educação e instrução de crianças e jovens, que dedicou sua vida a essa
tarefa. Quando desencarnou, veio por merecimento para a colônia e logo estava estudando e trabalhando. Está no Flores de Maria há muito tempo. Aqui foi enfermeira,
professora, orientadora de setores e há vinte anos é responsável pelo nosso educandário.
Passei a admirá-Ia mais por sua dedicação, que era um exemplo para todos nós.
Continuamos sempre indo à colônia, em excursões, eram passeios agradáveis. É uma cidade lindíssima, há vida, trabalho e oportunidades de estudo e de aprender
a conviver com fraternidade e amor. Há muitos prédios onde estão diversos setores de atendimento. Infelizmente, a parte que cuida dos necessitados é enorme. São
locais
chamados de hospitais. Vim a saber depois que, quando nos desarmonizamos, temos necessidade de nos harmonizar com as Leis Divinas e que quando estamos desarmonizados,sentimo-nos
doentes mental e espiritualmente. sentem as mesmas doenças que possuíam quando encarnados. Então são internados nos hospitais para melhorarem e, após, serem integrados
à vida útil da colônia.
Há diversas escolas e locais de trabalho. Compreendi que é trabalhando que aprendemos.
Há muitos lugares lindos nesta moradia espiritual. Seus bosques e jardins são recantos de descanso e recolhimento, onde muitos passeiam nos seus horários
de lazer.
Nós, os jovens e as crianças, quando visitamos a parte destinada aos adultos, somos bem-recebidos e tratados com carinho.
Para conhecer bem a cidade espiritual, fizemos vários passeios de aerobus. A área reservada à moradia é enorme, as casas são simples, com muitas plantas
e flores. Não existem exageros de espaço, têm-se o que é necessário. A colônia é cercada por muros altos e vários portões; o principal é enorme e muito bonito.
Saímos do educandário quase sempre pelo portão que fica no setor um.
Muitas crianças reencarnavam, outras cresciam quase como se estivessem no corpo físico; jovens tornavam-se adultos e iam residir em outra parte da colônia.
Pensei no que queria e resolvi ficar como estava. Mas essa decisão não cabia só a mim resolver. Marquei uma audiência com vovó LaIa. Como sempre fazia, ela recebeu-me
com um abraço e uns beijos estalados. Escutou-me atenciosa.
- Vovó Lala, não quero crescer, mas sim continuar com a aparência que tinha quando meu corpo físico desencarnou, nossa aparência em segundos. Para os que
se tornaram adultos, era. proveitoso esse aprendizado, porque quando iam visitar Os parentes, voltavam a ser como quando desencarnaram. Divertíamo-nos, ficávamos
idosos, criancinhas, ríamos às gargalhadas, mas aprendemos.
Em minha classe, eu era a menor, de aparência novinha e a mais estudiosa. Como escrevia bem, comecei a querer fazer algo com esse dom e planejei estudar
literatura.


17


- Rosângela, você quer trabalhar no setor de recuperação? - indagou vovó LaIa, convidando-me.
- Será que tenho condições? - perguntei.
Vovó LaIa sorriu; compreendi que ela não me convidaria se eu não pudesse realizar a tarefa. Respondi alegre:
- Quero!
Senti-me rejubilada com o convite e fui contar a novidade às minhas amigas. Lourdes vibrou contente. Quando desencarnei, fui socorrida assim que meu corpo
físico teve por encerrada suas funções vitais. Uma equipe de socorristas me desligou e eu, Rosângela, em espírito, continuo viva e vim para o educandário, para o
setor quatro. Dormi e acordei depois de muitos dias. Voltar a este setor como trabalhadora deixou-me emocionada.
No dia seguinte eu já estava lá. O centro de recuperação era dividido em alas: a de número um para os nenezinhos, a dois para as crianças pequenas, a três para as
maiores e a quatro para os jovens.
É um setor bonito, a decoração é alegre. Escutam-se por todo o prédio músicas suaves ou o coral cantando. Os quartos são confortáveis. É onde, no princípio,
a maioria dos abrigados fica por mais tempo, porque nesse período de adaptação o sono é uma grande terapia.
Por falar em sono, eu quase não dormia mais nem me alimentava. Às vezes tomava um caldo ou suco com amigos pelo simples prazer de fazê-Ia ou para acompanhar
alguém que necessitava se alimentar, como os recém-chegados.
Comecei pela ala dos nenês, que tanto amava. Fui recebida por Laura, a responsável por essa parte.
- Rosângela, seja bem-vinda, é um prazer tê-Ia conosco.
Gostei tanto de servir nesta ala, que me organizei e passei a trabalhar várias horas a mais por dia. Pegava os bebês, beijava-os, mimava-os e deles recebia
sorrisos. Eles gostavam de mim. Estávamos sempre recebendo bebezinhos, era um vaivém constante. Para muitos, a permanência ali era rápida. Laura me explicou:
- Rosângela, são muitos os nenês que desencarnam, que tiveram uma passagem rápida pelo plano físico. E cada caso é estudado com carinho e atenção. Para
muitos, essa estadia curta já estava programada. Assim, todos são trazidos para locais de socorro. Alguns que recebemos aquI permanecem conosco até que tenham condições
de irem ~ escola. Outros ficam somente por horas ou dias e são levados para a colônia, no Departamento da Reencarnação, onde voltam à forma perispiritual que tinham
antes ele reencarnarem, e há os que retornam à Terra num outro corpo físico, reencarnando.
- Só os nenês voltam a ter a aparência perispiritual anterior? - perguntei.
- Essa transformação pode ser feita por qualquer pessoa, desde que seja aprovada pelos trabalhadores do Departamento Reencarnatório. Ocorre mais facilmente
com os que desencarnam até os sete anos e mais freqüentemente com os menorzinhos.
- Estes que voltam a ter a aparência da encarnação anterior, recordam o passado e continuam amando seus pais da última vivência da Terra? - quis saber.
- Sim, continuam lembrando deles e amando-os - respondeu Laura.
- Ontem nos despedimos de um grupinho que ia reencarnar. Por que alguns voltam logo para o plano físico?
- Muitos desencarnam nenês. Mesmo breves, os estágios no corpo físico têm muita importância ao espírito, e o desencarne ocorre por muitos motivos. Sempre
é analisada a necessidade de cada um e estudado o que é melhor no momento. E para muitos o melhor é voltar ao corpo físico. Eles são encaminhados ao Departamento
da Reencarnação, voltam a ser um feto e são levados às futuras mamães, reencarnam.
- E por que alguns ficam no educandário, crescem e tornam-se até adultos? - indaguei.
- Estes, minha querida, não têm por que voltar à aparência anterior, e um dos motivos para que isso não aconteça é evitar que recordem o passado, suas
antigas vivências, pois se eles tiverem motivos para sentir remorso, irão ter e isso os impedirá de passar o período tranqüilo de que necessitam. Esse estágio aqui
é de reeducação, um recomeço para o fortalecimento e o aprendizado.
- Laura, estou lembrando agora de uma de minhas tias que teve sua gravidez interrompida. O feto morreu antes de completar seis meses de gestação. Titia
chorou muito. O que ocorreu com esse espírito? O que acontece quando a gravidez é interrompida por um aborto?
- Depende muito. Normalmente, o espírito é trazido ao Departamento Reencarnatório da colônia localizado no espaço espiritual da cidade onde tentou reencarnar.
Abortos acontecem por diversos fatores e por muitos motivos. Quando o espírito é trazido para o plano espiritual, seu caso é estudado, alguns têm de passar por essa
tentativa, porém há casos em que acontece algum imprevisto na gestação, que danifica o feto. Alguns, ao voltar para a espiritualidade, tentam reencarnar logo em
seguida, outros voltam à sua forma anterior e muitos ficam em locais especiais, como fetos, até que lhes preparem outra encarnação.
- Laura, você disse que normalmente são trazidos para uma colônia. Há os que não são socorridos? - perguntei curiosa.
- Quando o aborto é provocado - continuou a orientadora a me explicar pacientemente - pode acontecer de o espírito que iria reencarnar não querer nossa ajuda.
Esses que agem assim podem voltar a ter sua aparência perispirirual da vivência anterior e obsediar aqueles que não o quiseram por filho. Mas também existem os que
perdoam e vão para outros lugares ou até tentam outra vez.
Meses depois, Laura me deu nova tarefa: servir na ala dois, das crianças pequenas. Pensei em pedir para continuar com os nenês, que amava tanto, porém ela,
percebendo minha indecisão, argumentou:
- Rosângela, mudando de tarefa estará aprendendo muito. Você, minha querida, está sendo muito útil aqui, mas só saberá a importância do trabalho realizado
no nosso setor de recuperação, se conhecer todas as alas.
Concordei e Laura me levou para conhecer Rita, a responsável pelo cantinho que abrigava as criancinhas.
Fui trabalhar na ala dois, recebi a incumbência de cuidar de um dos quartos com quatro leitos. As camas tinham grades baixas para que as crianças não caíssem.
Dormiam muito. Acordados, brincavam no quarto onde havia muitos brinquedos, também iam ao pátio, que era pequeno, bonito e com flores.
Agradava-os, cantava e brincava com eles. Tentei conquistá-Ios e consegui, tornamo-nos amigos.
Logo no segundo dia, Jéssica chorou muito, queria os pais. Não quis ficar no meu colo, coloquei-a na cama, tentei entretê-Ia, mas não consegui, ela ficou
mais nervosa e agitada. Chamei por Rita, que veio logo. Jéssica revirava-se no leito, dizia chorando:
- Já vou, mamãe! Não os abandonei! Quero voltar para casa!
Pensei que Rita fosse pegá-Ia, mas calmamente ela estendeu as mãos sobre Jéssica e convidou-me, com o olhar, a fazer o mesmo. A menininha foi se acalmando.
Então Rita passou as mãos pelos seus cabelos anelados e falou meigamente:
- Jéssica, minha garotinha, você não quer dormir um pouquinho? Quando acordar a levaremos para ver os peixinhos, dos quais gosta tanto. Vou lhe dar um aquário
com seis peixes vermelhos. Quer?
- Quero! - respondeu a menina com sono.
A orientadora ajeitou-a com carinho, cantou baixinho e a garotinha dormiu.
Eu tinha aprendido a usar as mãos como transmissores de energia, gesto usado por muitos encarnados e chamado de passe, benção etc.
O processo era o seguinte: primeiro nos concentrávamos, orávamos e renovávamos nossas energias; quando nos sentíamos saturadas de boas vibrações as distribuíamos.
Ao ver Jéssica chorar, esqueci-me desse recurso.
A garotinha, mesmo adormecida, ainda suspirava sentida. Rita não esperou que indagasse e esclareceu-me:
- O desencarne de Jéssica deixou os familiares inconsoláveis, assim como acontece com a maioria dos pais que têm um afeto querido ausente pela morte do
corpo físico. A mãe encarnada estava chorando desesperada chamando por ela. Os sentimentos são uma ligação forte, e a garotinha sentiu aqui. Claro que ela não entende
o que ocorre. Jéssica teve de permanecer no hospital por um bom tempo, agora está aqui conosco e espero que esse período delicado passe logo. Você, Rosângela, por
favor, coloque em prática o que aprendeu nas aulas de transmissão de energia. Pode me chamar quando necessário, mas tente da próxima vez, resolver sozinha seus pequenos
problemas. Lembro-a de que nossos pequeninos estão aqui se adaptando, em recuperação e quando estiverem bem, passarão para os alojamentos e para a escola.
- Zanda - era assim que Fernando me chamava - também quero minha mãe!
Fui até ele, peguei-o no colo, dançamos com ele, cantamos e brincamos. Temi que ele insistisse em chamar a mãe ou chorasse, porém Fernando distraiu-se e
brincou até cansar; depois dormiu.
Ao voltar para o meu alojamento, fui pensando que quando nossos afetos encarnados compreendem e aceitam o nosso desencarne, tudo nos é facilitado. Agradeci
mentalmente a compreensão de meus pais, avós e irmãos. Eles sofreram, choraram, mas o pranto deles não me incomodou.
Era sentido, sofrido, cheio de saudade, mas não desesperado ou revoltado, eles nem me chamavam. Senti, quando Jéssica chorava, sua mãe dizendo que ela os
abandonara. Isso não era verdade, primeiro, porque Jéssica desencarnou quando findou seu período programado de ficar na Terra. Segundo, porque a separação para sempre,
não existe. O amor une, e não somos separados de nossos afetos, podemos estar ausentes em corpo físico, mas não em pensamento, espiritualmente.
Sentia um carinho especial por Fernando, um bonito garoto, de traços orientais e lindos olhinhos puxados. Um dia ele me disse:
- Zanda, mamãe chora por mim, está triste comigo, só que não fiz nada de ruim. Sou bonzinho não sou?
- É sim, querido! Você é um amor! Mamãe chora de saudade. Logo ela deixará de chorar.
Fernando se distraía facilmente; gostava de dançar e de cantar. Achando-se bem, ele foi transferido para o setor sete e passou a freqüentar a escola no setor
seis. Ia sempre vê-Io.
Ficamos amigos. Ele cresceu mais rápido do que se estivesse encarnado. Isso pode ocorrer na espiritualidade e quando acontece é com os espíritos mais amadurecidos,
que têm mais instrução e conhecimento.
Jéssica ia reencarnar. Sua mãe ia engravidar e ela será novamente a filhinha deles. Rita me explicou:
- Rosângela, às vezes esse fato pode ocorrer, mas não é comum. Jéssica necessita voltar ao plano físico e seus pais resolveram ter outro filho. A equipe
do Departamento de Reencarnação achou melhor a todos que ela retornassem junto a eles.
- E se ela necessitasse reencarnar e seus pais não pudessem ou não quisessem ter mais filhos, o que aconteceria? - perguntei interessada em aprender.
- Escolheríamos outros pais para ela. Temos, Rosângela, que ampliar nossos afetos e nada como o amor paternal para isso. Pode ocorrer de pais que tiveram
um filho desencarnado, receberem por filho outro espírito. Cada caso é estudado visando o melhor para cada um.
- Se meus pais quisessem ter outro filho, não seria eu. Não quero ainda retornar ao plano físico! - exclamei sorrindo.
- Por isso que esse fato não é comum. São levados em consideração muitos fatores e entre eles, a vontade do desencarnado. Jéssica, embora pequena, não tem,
aparentemente, condições de opinar, porém sabemos o que quer por termos conseguido sentir seu espírito e também pela entrevista que fez antes da reencarnação anterior.
Seu desejo era estar num corpo carnal para reparar erros do passado junto a familiares.
Jéssica adormeceu e Rita a levou para a colônia, no departamento da Reencarnação.

A meninada não ficava muito tempo no alojamento, no setor quatro. Eram poucos os que voltavam a ter a aparência da encarnação anterior e quando isso ocorria,
eram adormecidos e levados ao Departamento Reencarnatório. AIguns reencarnavam, mas a maioria ia para a escola.
Quando estava resolvendo todos os problemas sozinha, Rita me transferiu:
- Rosângela, agora você irá para a ala das crianças maiores.
Fui contente, sabia que essa tarefa era de muita responsabilidade, porque as crianças maiores questionavam e sentiam mais a mudança de plano. Mas se me
mandaram era porque me julgavam capaz, não ia decepcioná-Ios.
Fui recebida com carinho por Isabel, a responsável pela ala.
As crianças que desencarnaram aos oito, doze ou até treze anos, ficavam na ala três. Alguns tinham passado pelo hospital, outros tinham vindo diretamente para o
setor de recuperação, logo após terem desencarnado. Quando chegavam, ficavam acordados por períodos curtos e aos poucos iam diminuindo as horas em que permaneciam
dormindo.
Isabel me mostrou toda a ala.
- Você, Rosângela, ajudará no quarto sete. Este aqui. Era um quarto com seis leitos, todos ocupados. Havia brinquedos, jogos, aparelho de TV, assim o chamávamos
por ser parecido com a televisão dos encarnados. No educandário, assistíamos a programas instrutivos e desenhos que transmitiam otimismo e alegria. Depois de me
explicar o que deveria fazer, indaguei:
- Por que, Isabel, os trabalhadores do educandário são na maioria do sexo feminino?
- Creio que o espírito revestindo um corpo feminino por mais tempo, desperta o instinto maternal e se adapta muito bem a essas tarefas. Embora tenhamos
a aparência perispiritual feminina, normalmente a que usamos na última encarnação, podemos revestir um corpo masculino, De fato, somos a maioria, mas temos aqui
conosco muitos trabalhadores do sexo oposto.
- Vi num filme que os trabalhadores do umbral silo em maior número do sexo masculino. Acho que eles têm mais senso de aventura - opinei rindo.
- Ainda bem que há muitas formas de servir, é bom que os gostos sejam divergentes, assim temos trabalhadores em todas as atividades do plano espiritual -
elucidou Isabel.
- Eu não gostaria de trabalhar no umbral- conclui após pensar um pouquinho, recordando o filme a que assistira. Tive de me dedicar mais à minha nova tarefa.
Conversava, tentando elucidar as crianças que questionavam muito. Para ter mais tempo, deixei o coral, embora continuasse cantando bastante. Abdiquei até das visitas
aos meus familiares, que tinha por merecimento obtido. Eles nunca me esqueceram, meus pais se distraíam com os vários netos e estavam passando por um período mais
tranqüilo.
Só não deixei de ir à biblioteca, de ler os livros e de estudar.
Amei as seis crianças, tornamo-nos amigas, escutava-as atenciosa.
- Sei que morri - falou Maurício. - Escuto dentro de mim meus pais e a vovó falando isso. Só que estou tão perdido!
- Maurício, você não está perdido, veio morar neste local, após o seu desencarne. Aqui é lindo! Você continuará estudando, terá amigos, esforce-se para
se acostumar - aconselhei.
- Não gosto de estudar - falou ele.
- O estudo aqui é muito interessante e você irá gostar.
Depois, poderemos praticar esportes, temos lazer - argumentei, incentivando-o.
- Nunca pensei que morrer fosse assim! Acho que preferiria ganhar asas, virar anjo e sair voando.
- Não terá asas, mas aprenderá a volitar, que é voar pela força de vontade.
Ele se interessou, esforçou-se para melhorar e ir para a escola aprender a volitar.
Quando ele foi para o alojamento, no setor sete, primeiro aprendeu a volitar, freqüentou as quadras de esportes, e só depois de um tempo é que passou a ir à escola.
Sempre, dentro das normas do educandário, atende-se o desejo do interno, visando à sua adaptação mais rápida.
Clara era mandona. Ordenou a uma companheira de quarto:
- Pegue isso para mim!
- Só se você falar as palavrinhas mágicas - respondeu Marília.
- Que palavrinhas mágicas? - indagou Clara.
- Por favor, obrigada, com licença etc. - respondeu Marília.
- Não seja criança, essas palavras são normas de educação e só alguém com pouca inteligência as achariam mágicas.
Marília não gostou, ia responder, então interferi:
- Clara, meu bem, às vezes podemos sentir magia, boa vibração nas palavras. Você, ao falar para Marília "pegue isso para mim" o fez sem muita delicadeza.
Se tivesse pedido "por favor", ela teria pegado. Era sua mágica realizada.
- Vocês estão me prendendo aqui! - falou Clara se exaltando. - Que cativeiro estranho. Não repita o que já escutei, morri! Vocês querem o resgate! Já falei
que meus pais têm pouco dinheiro. Não adianta me fazerem lavagem cerebral. Não vou permitir! Estou viva!
Clara foi sentar num canto, ficou quieta, não respondendo aos apelos para se enturmar. Revi sua ficha. Todos os internos do Flores de Maria tinham uma.
Os que estavam na escola, ficavam na sala da orientadora e só eram consultadas por professores. No setor de recuperação tínhamos, em cada ala, uma salinha com os
fichários. Neles estavam informações básicas: endereços, nomes dos familiares, o motivo do desencarne, enfim, tudo o que poderia ser útil aos orientadores.
Clara teve por pais, duas pessoas atéias. Para eles, Deus não existia e quando a pessoa morria, acabava. Ensinaram assim para a menina, que agora estava
confusa. Passei a lhe dar mais atenção.
- Clara, venha jogar conosco! - convidei-a.
- Rosângela, por que você é sempre tão gentil? Não a trato bem e você nem se aborrece.
- Não tenho por que me aborrecer com você, sei que está confusa, mas isso passa - respondi.
- Às vezes sinto meus pais, isto é, penso que eles acham que me perderam. Parece que eles acreditam que acabei. Por que vocês me prenderam? Por que fazem
isso comigo? Querem que eu acredite que morri. Quando se morre acabamos.. .
- Clara, às vezes pensamos de modo equivocado sobre um assunto e podemos mudar de opinião ao ter mais esclarecimentos. Sempre estamos vivos, só que podemos
viver em outros lugares. Você não está presa, está aqui se recuperando.
Clara passou a fazer um tratamento com nossos orientadores, onde recordou alguns episódios de sua encarnação anterior. Foi levada para ver os pais, e seu
túmulo. Parecia que nada adiantava.
- Rosângela, todos aqui são gentis comigo. Mas não estão agindo corretamente. Não consigo entender. Vocês são de alguma organização terrorista? Reeduca-nos
para que nos tornemos fanáticos com alguma finalidade? Usam o poder da mente, que faz com que vejamos coisas estranhas?
Não respondi, já havíamos explicado a ela por diversas vezes, que desencarnara e estava no plano espiritual.
Resolvi distraí-Ia, levando-a à Praça da Fonte.
Os outros iam para a escola e Clara ficava. Estava mais comportada, já usava as palavrinhas mágicas, às quais Marília se referira.
Numa de suas idas à Terra, em que a levaram para ver os pais, Clara voltou diferente, chegou, abraçou-me e desabafou:
- Hoje vi meu pai, ele estava em meu quarto e escutei-o, falava baixinho. Papai reclamou da dor que sentia pela minha falta, recordou do acidente que tivemos
em que só eu morri. Meu paizinho questionou se não estaria equivocado julgando a não existência de Deus. Lembrou-se do dia em que me deu uma boneca e colocamos o
nome
de uma deusa grega. Ele repetiu a frase que me disse na ocasião, sofria tanto que por momentos senti sua dor. Estou pensando que não é hipnose, acho que é real,
morri mesmo.
Chorou muito e aí começou sua adaptação.
Meus estudos ali no educandário terminaram. Vovó LaIa me chamou para uma conversa.
- Rosângela, sei que está em dúvida sobre o que irá fazer, já que terminou os estudos que o nosso lar oferece. Posso ajudá-Ia?
- Sim, e agradeço o carinho. O que a senhora acha que devo fazer?
- Para conhecer todo o nosso trabalho aqui no Flores de Maria falta você estagiar na ala de recuperação dos jovens e no nosso hospital. Por que não fica
conosco e termina essa tarefa que só lhe trará mais conhecimentos?
- Vovó LaIa, quero fazer um curso na colônia. Será que não posso estudar lá e trabalhar aqui? - perguntei.
- Pode. Ficarei contente se você continuar entre nós. Quer ficar no alojamento dos instrutores?
- Se puder quero continuar onde estou.
- Fique onde quiser - autorizou vovó Lala. - Sei que você está sempre ajudando as novas colegas.
- Elas me vêem como amiga, assim tudo fica mais fácil.
- Alegro-me bastante por vê-Ia sendo útil! - exclamou vovó Lala me abraçando.
- É tão prazeroso ser útil onde recebemos tanto! falei emocionada.
E novas tarefas vieram.


18


Organizei-me do melhor modo possível. Continuei em meu cantinho, no setor sete. Não ficava muito lá, mas era prazeroso ter um local para guardar meus pertences,
ler um livro ou fazer anotações e conversar com as garotas. principalmente com as recém-chegadas.
Fernando foi crescendo, já era jovem, estudava com vontade e era muito inteligente; conversávamos sempre que podíamos, íamos ao teatro, passávamos nossas
horas livres passeando, cantando, éramos afins e muito amigos.
Fazia um curso na colônia estudando o Evangelho e um outro sobre a história da Terra. Essas aulas eram em vídeo e os acontecimentos importantes que se passaram
em nosso planeta estavam gravados. Gostei demais do estudo.
Recebia algumas visitas de membros da minha família, conversava com eles, animando-os para que enfrentassem as muitas dificuldades que se tem quando encarnado.
Também ia vê-Ios, ajudava-os no pouco que podia ou que me era permitido. Orava por eles, enviando-Ihes energias amorosas e, com isso, sentiam-se amados e entusiasmados.
E quando nos sentimos assim, tudo se torna mais fácil. Meus pais estavam velhos, sentiam o peso dos anos no físico. Lembravam-se de mim, continuava a ser a filhinha
deles e isso me era gratificante. É tão bom nos sentirmos amados!
Continuei a servir no setor de recuperação, fui para a ala dos jovens. O orientador chamava-se Henrique, era um senhor de aspecto jovem e muito sorridente,
que me recebeu dando-me boas-vindas. Depois de ter me levado para conhecer toda a ala, conduziu-me para o local onde eu serviria. Era um quarto com seis leitos,
ocupados por garotas. Algumas vieram do hospital onde permaneceram por um período, outras eram recém-desencarnadas.
A maioria dos jovens não entendia o que estava acontecendo com eles. Inteligentes, sentiam que algo diferente lhes ocorrera, pois estavam em local desconhecido
e longe de familiares.
Na ala de recuperação e nos setores dos hospitais, os internos recebem muitas visitas de familiares desencarnados. Alguns acompanham a adaptação deles. Freqüentemente
é necessário que desconhecidos expliquem a eles que mudaram de plano, pois, eles sentem medo de ver os familiares que morreram.
A ajuda de afetos conhecidos é muito boa e dá muito resultado. São bisavós, avós, tios, amigos que, interessados, tentam auxiliá-Ios, e conseguem.
No setor de recuperação, eles dormem bastante, alimentam-se e indagam muito.
- Por que morri? - perguntou Isabela.
- Só o corpo carnal é que finda, ele pára suas funções e isso ocorre por muitos motivos. Continuamos vivos. Outra forma de viver nos é oferecida.
- Foi naquele dia do acidente, não é? Lembro-me que Leo corria muito. Você sabe, Rosângela, o que aconteceu? Conte-me - pediu a garota.
Era a terceira vez que eu contava o que havia lido em sua ficha.
- Isabela, de fato houve o acidente. O carro se desgovernou e bateu numa árvore. Seus amigos se feriram e só você desencarnou.
- Não é injusto? Por que eu?
- Tudo tem razão de ser, Isabela. Sempre há motivos para ficarmos encarnados por muito tempo ou para desencarnarmos jovens. Um dia você saberá. Nada é injusto,
principalmente porque não acabamos com a morte do corpo físico, aqui se vive muito bem. Faça um esforço, logo estará apta a ir para a escola e a outros setores deste
lugar de bençãos.
Isabela falava muito, ora estava indagando, ora reclamando. Como exigia atenção! Embora educada, quando acordada, falava sem parar.
- Rosângela, por favor, venha cá! Acordei! E novamente não estou em casa! Começo a acreditar que me falam a verdade. Conte-me de novo como foi meu enterro.
É verdade que Kaká chorou muito?
- É verdade - respondi.
Ela logo se recuperou. Uma tia-avó, ou seja, tia do seu pai, estava sempre com ela. Transferiram-na para o alojamento e passou a freqüentar a escola. Extrovertida,
Isabela continuou falando muito.
Marcinha, outra garota, estava sempre chorando. - Que dó de mim! Sinto pena por ter desencarnado, como vocês dizem.
- Pois não deveria se sentir assim! - falava tentando animá-Ia. - Você precisa se distrair. Vamos ao jardim.
Forçava-a para ir comigo ao jardim e à Praça das Fontes. Mostrava-lhe o céu, as flores e insistia:
- Observe, Marcinha, esta planta!
Olhava sem entusiasmo. E repetia:
- Era jovem! Bonita! Estudiosa! Que pena ter morrido! - Você é jovem, linda e poderá continuar seus estudos - falei incentivando-a.
- Você não entende, Rosângela, eu não queria morrer! - Claro que compreendo. Eu também não!
- Não? Você desencarnou jovem também? - perguntou Marcinha. :
- Você, eu e muitos outros. Não sinta a desencarnação como castigo. A mudança de plano é para todos. E já esteve aqui no plano espiritual, porque já encarnou
e desencarnou muitas vezes. Por favor, Marcinha, não queira ser infeliz quando tem tudo para ter felicidade.
- Você não se revoltou quando veio para cá? - indagou ela.
- Não - respondi -, fui agradecida por ter tido amigos que cuidaram de mim e por ter vindo para este local maravilhoso. Se ficar só chorando e ocupando
seu tempo com lamentações, terá poucas horas para desfrutar das maravilhas daqui.
- Isso é burrice, não é? Mas não consigo me alegrar. Aí de mim! Morri tão cedo!
Marcinha recebia pensamentos de revolta e desespero dos familiares, principalmente da mãe. Eles não entendiam o porquê de ela ter desencarnado jovem. Sentiam
muita pena por não ter vivido mais tempo no corpo físico, aproveitado a vida, não ter tido tempo de realizar seus sonhos. A equipe de socorristas, que trabalhava
junto aos encarnados, foi até eles várias vezes, motivando-os a pensar diferente. Livros espíritas foram dados para a mãe. Consolaram um pouco. Marcinha demorou
para sair do setor de recuperação, recebeu terapias especiais, ficou ali pela necessidade que tinha de dormir muitas horas por dia. O tempo é precioso remédio para
os males da alma. A dor foi suavizando; os pais, atendendo a um convite de amigos, passaram a fazer um trabalho voluntário em benefício da comunidade. Isso os ajudou
a compreender que muitas pessoas tinham problemas e alguns até mais doloridos que os deles. Passaram a acreditar que a filha vivia em outro lugar e que ela podia
ser feliz. Pensando diferente, ajudaram Marcinha, que foi vencendo o sentimento de autopiedade que sentia em relação à sua desencarnação. Sentindo-se melhor, passou
a dormir menos e logo depois foi para a escola.
Muitos sentem autopiedade corno se a desencarnação fosse um tremendo castigo e não algo natural a todos nós. Vencer esse sentimento quase sempre requer
ajuda especializada. Fornos criados para sermos felizes e não é bom curtir tristeza.
Eu não trabalhava com enfermagem. Era urna das orientadoras do setor: ajudava, acompanhava, conversava, dava passes e orava com os jovens.
Achei que Maria José só ficaria por alguns dias na recuperação. Encarnada, esteve doente por muito tempo, sofreu resignada, aceitou a mudança de plano com
maturidade e alegrou-se por estar sadia. Delicada e educada era urna garota que a todos encantava. Mas tivemos um problema.
- Papai, vou fazer o que me pede! - falou alto Maria José, ficando quieta em seu leito. Em seguida começou a chorar.
- Que foi, meu bem? - indaguei, abraçando-a.
- Meu pai me pede para que eu o ajude a vender a casa. Corno não fazer o que ele me pede? Só que não sei corno ajudá-Io. Você sabe me dizer corno?
- Ore por ele. Daqui só podemos ajudá-Io orando. - respondi.
Maria José começou a orar.
- Vamos ao jardim? - convidou-a urna amiguinha de quarto.
- Não posso, tenho que orar. Dona Chiquinha me pediu para curá-Ia da dor de cabeça.
- Venha brincar! - pediu outra.
- Tenho de rezar para o meu avô receber a aposentadoria.
Tentei orientá-Ia:
- Maria José, orar é muito bom. Mas não precisa ficar o tempo todo fazendo prece. Basta dizer com fé: "Deus ajude meu avô!". Agora você precisa se ajudar.
É isso mesmo, necessita passear, brincar e estudar para aprender multas coIsas.
- Mas eles me pedem, não sei negar - argumentou.
- Não estará negando, mas adiando. Primeiro você aprende, depois faz.
Maria José não se convenceu. Vovó LaIa e os outros orientadores resolveram dar-lhe um passe, envolvendo-a numa energia que a impediria de receber qualquer
pensamento ou pedido de encarnados.
- Engraçado, Rosângela - disse Maria José no outro dia -ninguém me pediu nada hoje.
- Talvez porque todos estão bem e querem que você esteja também. Vamos passear?
- Vamos.
Dois dias depois, Maria José foi tranqüila para a escola. Encarnados não devem pedir nada ao desencarnado querido, pois se ele não puder atender, se sentirá
triste. O melhor é cada um fazer o que lhe cabe e, se pedir, peça a Deus, Jesus, Maria, a equipe de trabalhadores tentará atender. Deixe seu desencarnado amado recuperar-se,
adaptar-se e aprender, enfim, continuar a viver e de preferência, feliz.
Fui à ala dos garotos. Lá também os jovens encaram a desencarnação de muitos modos. Alguns se revoltam, outros se prostram, há os que se acham enlouquecidos,
ou que estão sonhando. Alguns compreendem rapidamente e aceitam o fato muito bem. Estes ficam pouco tempo no setor quatro e logo estão adaptados.
- Eu estava doente, revoltava-me com minha doença - falou Laurinho. - Não gostava de falar dela e a escondia dos meus amigos. Fazia coisas que não podia,
sem que meus pais soubessem. Fui numa noite a uma festa, fiz tudo o que tinha vontade e não tomei os remédios. Resultado: entrei em coma e meus amigos acharam que
eu estava embriagado, que podiam cuidar de mim. Depois de horas sem que eu melhorasse, dois deles resolveram me levar a um pronto-socorro. Indagados se eu tinha
alguma doença, responderam com convicção: "Não, Laurinho é sadio, bebeu muito!"
Ele fez uma pausa e depois continuou a falar:
- Medicaram-me com um remédio que eu não podia usar e desencarnei. Sinto-me responsável pelo meu desencarne! Fiquei meses no setor do hospital me sentindo
doente. Estou muito triste, acho que nunca mais vou ser alegre. Não queria que meus pais sofressem.
Laura permaneceu na ala de recuperação muito tempo, tinha consciência de que fora imprudente. As doenças do corpo físico são muitas vezes um modo de nos
equilibrar com as Leis Divinas. Tudo deve ser feito para que nos tornemos sadios.
Daniel acordou esperto. Observou tudo e exclamou:
- Desencarnei! Nada mais de injeções! Não vou sentir dor! Vou estudar e jogar futebol. Que ótimo!
Os companheiros de quarto, olharam-no admirados.
- Como sabe que desencarnou? - indagou um dos garotos.
- Ora, doente como estava, só a desencarnação me tornaria sadio. Estou bem e sem dores. Vocês também desencarnaram?
- Sim. Mas como sabe tudo isso se está acordando agora? - perguntou pasmo um dos meninos.
- Aprendi quando encarnado. Sou espírita. Vovó me falou direitinho o que iria acontecer. Ela disse: "Daniel, meu neto, você irá dormir tranqüilo, acordará
num quarto com outros jovens, sadio e, como é inteligente, aceitará o fato e fará contente tudo o que seus novos amigos lhe aconselharem" .
- Que bom vê-lo bem, Daniel. Seja bem-vindo no Educandário Flores de Maria - falei cumprimentando-o.
- Já vou estudar? - indagou Daniel sorrindo.
- Sim, irá estudar, mas primeiro conhecerá este lugar que agora será seu lar - respondi.
- Daniel, você queria morrer? - perguntou Laurinho.
- Quero viver! Na Terra, ou aqui, desencarnado, não Importa.
- De que morreu? - um outro quis saber.
- Desencarnei depois de passar vários meses doente. Tinha uma doença crônica nos rins. Doía bem aqui.
Daniel levantou a camiseta e mostrou o local onde sentia dores.
- Aí, começou a doer! O que faço? - indagou-me.
- Não lembre das dores por enquanto. Sua desencarnação é recente. Faz somente trinta e seis horas que seu corpo físico findou suas funções - falei passando
as mãos em suas costas.
- Obrigado! Já não dói mais. Então é só não me lembrar. Por favor, queria experimentar um suco, um alimento daqui.
Providenciamos e ele alimentou-se achando tudo delicioso. Já no outro dia, Daniel foi para a escola. Era como um raio de luz a animar os amigos. Veio para a espiritualidade
com conhecimento e com a compreensão espírita, que tornou tudo mais fácil e simples para ele. E seus familiares, embora sofrendo pelo seu desencarne, esforçaram-se
para se consolar e visando sua felicidade desejaram que Daniel fosse para um local maravilhoso e estivesse bem. E assim foi.
Paulinho voltou eufórico, seu tio-avô o levara para que ditasse a um médium uma mensagem aos pais.
- Eles acreditaram! - disse ele me abraçando. - Rosângela, você não sabe a alegria que eles sentiram. Escrevi tudo o que queria, eles prometeram não chorar
mais e se consolarem, acredito que tudo agora será mais fácil. Tiveram a certeza de que não morri ou acabei e que vivo bem no plano espiritual.
Paulinho havia escrito pelo menos uns cinco rascunhos do que queria dizer aos pais. Márcio o indagou:
- Qual das cartas foi ditada?
- Acabei emocionado e notifiquei-as. Acho que foi um pouco de cada uma delas.
Três dias depois ele foi transferido para a escola. Os jovens indagavam bastante sobre as religiões. Eles tinham modos diferentes de encarar a morte do corpo
físico. Alguns achavam que dormiriam até serem recebidos por Deus para um julgamento. Outros se julgavam no purgatório, ou achavam que iriam para o Céu. Eu lhes
dava atenção e explicava com carinho:
- Deus é bondade! A morte do corpo físico não modifica muito o nosso modo de viver, isso para que não sintamos tanto a mudança, já que ficamos longe de
nossos afetos. É tudo uma continuação. Aqui trabalhamos, estudamos, temos lazer e muitos amigos. Não ficamos só dormindo, e é bom que não seja assim, porque ativos,
podemos ser úteis. Somos filhos de Deus e o Pai Amoroso permite que ajudemos um ao outro, tendo assim a oportunidade de seguir o ensinamento de Jesus, que diz: Faça
ao próximo o que gostaria que lhe fizessem.
Ainda bem que as crianças e os jovens são alegres, estão em fase de aprendizagem e aceitam com facilidade a mudança de plano. Querem saber, e quando os
conhecimentos lhes chegam de forma raciocinada, compreendem, e tudo fica mais fácil para eles. Alguns sentem ter se equivocado, mas dão graças a Deus por Ele não
os separar daqueles a quem amam.


19


Fiquei um ano na ala dos jovens, no Setor de Recuperação, depois fui para o hospital infantil no setor dois. Lá as crianças não são separadas por sexo;
há duas alas, uma para as crianças pequenas e outra para as maiores. A parte destinada aos pequeninos é a menor. São poucas as crianças que vão para o hospital,
e quando isso acontece, não permanecem ali por muito tempo. Bebês, raramente vem para este setor. Eu sabia o porquê de ter hospitais na espiritualidade, mas mesmo
assim, indaguei ao Leandro, o orientador do setor:
- Por que, Leandro, muitos sentem os reflexos do corpo físico a ponto de receberem tratamento?
Leandro tinha estudado Medicina no plano espiritual. Nos setores de atendimento trabalhavam muitos médicos e enfermeiros. Nesse setor só serviam pessoas que, como
eu, haviam trabalhado anos ali, que tinham atuado no Setor de Recuperação, ou que tinham muita experiência. O orientador demorou um instante para me responder. Olhou-me,
sorriu e me esclareceu:
- Quando nos tornamos sadios espiritualmente, temos também o corpo físico são. Por herança de um passado de erros, adoecemos, e as doenças se refletem nos
corpos perispiritual e material. Quando nos equilibramos com as leis de Deus, podemos deixar de adoecer. Desequilibrar-se é passar pela porta larga, a do caminho
dos vícios, prazeres e sentimentos vis. Quando não nos harmonizamos com o amor, a dor vem para nos conduzir ao equilíbrio. Por isso, Rosângela, existem tantas doenças
e permanecemos ainda doentes. No plano espiritual, existem muitos hospitais, isso porque somos ainda imprudentes, não vivemos em conformidade com os ensinamentos
de Jesus. Adoecemos quando encarnados, e quase sempre ao desencarnar ainda sentimos a doença. Necessitamos de socorro, orientação e evangelização. E é isso o que
nossos hospitais aqui e nos educandários oferecem aos abrigados. Crianças e jovens, embora sejam de adaptação mais fácil, podem sentir ainda os reflexos das doenças
que tiveram quando encarnados. Muitos se sentem doentes, porque seus familiares pensam neles adoentados. Outros acreditam que só um tratamento os deixarão curados,
mas a maioria fica pouco tempo conosco.
Fui servir na ala das crianças maiores. As enfermarias são grandes, bonitas, alegres, com muitos leitos para que os assistidos não se sintam sozinhos.
Usa-se muito a terapia do sono, principalmente para os recém-desencarnados. Uns adormecem tranqüilos, outros choram dormindo e alguns se debatem falando
agitados:
"Já vou, mamãe! Você não me perdeu! Não estou perdido! Não chore por mim, por favor! Não tive culpa!"
Eu os acalmava, transmitindo energia. Às vezes os abraçamos e os acariciamos, falando baixinho frases carinhosas ou cantando. A voz em tom suave e o canto
fazem bem a quem escuta. Eles se acalmam e dormem tranqüilos.
Elizabeth quando acordava sempre indagava algo: - Não vou tomar injeções?
- Não, Elizabeth, você não vai tomar injeções - eu respondia beijando-a.
No plano espiritual não há tratamento doloroso.
- Rosângela, estou doente porque sou má, é bem merecido!
Pela sua ficha, soube que Elizabeth ficara muito tempo doente, sendo submetida a tratamentos dolorosos. Na sua encarnação anterior fizera alguns inimigos
que a acompanharam nesta, regozijando-se com seu sofrimento. No período anterior em que passou desencarnada, sentiu muito remorso destrutivo, que a impediu de reparar
seus erros pelo amor e trabalho edificante. Sentindo-se culpada, ao reencarnar, transmitiu ao corpo físico a culpa que sentia e assim adoeceu. Os desencarnados inimigos
não se aproximaram dela, porque ela orava e seus pais eram pessoas boas que faziam muita caridade, mas mesmo distantes eles tentavam lhe transmitir pensamentos maldosos,
fazendo-a recordar de sua culpa. Assim, ela achava que seu sofrimento era merecido e, mesmo desencarnada, ainda pensava que deveria continuar doente.
Esse era o caso de Elizabeth. Ficamos doentes por muitas causas, contudo não existe regra geral.
- Elizabeth, querida, você irá se curar e... - tentei animá-Ia.
- Não vou, minha doença é incurável! - disse me interrompendo.
- De fato, para a doença que teve ainda não há cura para o corpo que revestimos quando encarnados. Por isso, ele morreu, foi enterrado e você, meu bem, continua
viva, veio para cá, para este lugar bonito. Você precisa se esforçar para se sentir sadia. Temos aqui muitas coisas interessantes para lhe oferecer; poderá estudar,
brincar e ter
muitos amIgos.
- Eu não mereço!
- Claro que merece! Vamos ao jardim? - convidei-a. - Estou com dores!
- Está mesmo?
- Acho que não! Creio que preciso tomar soro e...
- Não precisa!
- Então vou dormir - falou a garota puxando o lençol. Elizabeth ficou algum tempo no hospital; psicólogos cuidaram dela, até que conseguiu libertar-se da
culpa que nem sabia por que sentia, pois não recordara o passado. Se o tivesse feito, seria ainda pior. Quando se sentiu melhor, foi para o Setor de Recuperação.
A maioria dos desencarnados sente-se como os pais se lembram deles. Carlinhos sentia-se frágil, respirando com dificuldade, tal qual a mãe pensava nele.
Eu estava ao seu lado quando sua genitora passou a pensar diferente. Nós dois recebemos o pensamento dela:
"Dona Leonor tem razão! Meu filhinho sofreu aqui na Terra por sua doença. Morreu e não sofre mais! Ele está bem, sadio e feliz!"
Assim Carlinhos passou a se sentir como a mãe o imaginou. Deu um pulo da cama e gritou:
- Estou sadio! Feliz! Quero brincar de correr!
A mãezinha dele ganhou um livro espírita de presente de uma amiga; leu, achou-o muito bonito, consolador e não pensou mais no filho doente, passou a imaginá-Io
feliz. Carlinhos foi transferido para o Setor de Recuperação, onde ficou apenas alguns dias, depois foi para o alojamento. Sadio, esperto e alegre, ele brincava
muito e corria de um lado para o outro. Doente, ele não podia brincar, teve muita vontade de fazê-Io; agora sadio fazia tudo o que queria: nadava, jogava futebol
etc. Só foi para a escola quando quis acompanhar seus amiguinhos.
Leandro me levou para uma sala, na ala dos pequeninos.
- Aqui, Rosângela, ficam conosco algumas crianças menores e bebês que têm um motivo especial.
Havia cinco berços grandes, a sala em tom azul-claro era toda enfeitada. Apenas dois berços estavam ocupados. O orientador me conduziu até os berços e explicou:
- Este é Marcelinho, viveu encarnado um ano e três meses em um corpinho doente. Ele foi suicida na encarnação anterior, não conseguiu se perdoar e sofreu
muito. Foi levado por amigos a reencarnar, recebendo assim a bênção do esquecimento. Mas quando nos desequilibramos, há necessidade de nos equilibrarmos. Marcelinho
sofreu com sua doença e, infelizmente, ainda se sente doente.
Observei-o, ele dormia respirando com dificuldade. Colocamos as mãos sobre ele e oramos. O pequerrucho se acalmou.
- Logo Marcelinho retornará à Terra; reencarnará - informou Leandro.
- Será doente? - indaguei.
- Não quando pequeno. Mas, como se sente culpado, com certeza isso o fará adoecer quando adulto. Mas ele poderá suavizar essa doença caso se dedique a praticar
o bem. O amor cobre multidões de pecados, ou seja, minimiza o carma 6 negativo.
- O que tem esta garotinha linda? - perguntei indo até o outro berço ocupado.
- Desencarnou por um acidente de carro. A mãe a pegou toda machucada e só lembra dela assim. Está aqui para receber cuidados especiais, estamos isolando-a
para que não receba os pensamentos de sua genitora. Quando sua mãezinha não pensar mais nela ferida, ela poderá ir para o setor infantil. São muitas as crianças
e os jovens que desencarnam por acidentes e têm o corpo físico muito machucado. A maioria deles são levados para o Setor de Recuperação, porque lá não se sentem
feridos. Só se sentem assim quando recebem os pensamentos dos entes queridos que os imaginam machucados. Normalmente são poucos os desencarnados acidentados que
permanecem nos hospitais. No setor três fica o hospital dos adolescentes, para onde fui após terminar meu aprendizado no hospital infantil. É um setor muito bonito
e agradável. Os jovens indagam muito, querendo saber o que aconteceu com eles.

6. Carma: Expressão popularizada entre os hindus, que em sânscrito quer dizer "ação", a rigor, designa "causa e efeito". Leia mais: Ação e Reação. Francisco Cândido
Xavier. Ditado pelo Espírito André Luiz, capítulo 7, 16ª edição. Rio de Janeiro: FEB, 1993 (N.E.).


- Se Deus é bom, por que me fez adoecer? - indagou Alfredo.
- Muitas vezes é na doença que nos harmonizamos espiritualmente - eu disse. - Você veio para cá, após seu corpo de carne ter cessado suas funções. E não
é a primeira vez que isso acontece, estamos sempre estagiando lá na Terra, encarnados, e aqui no plano espiritual, desencarnados.
- Então esta tal de reencarnação existe mesmo? perguntou Alfredo.
- Sim - respondi -, é a lei justa que comprova a imensa sabedoria e bondade de Deus.
- Isso faz sentido! - exclamou Marina. - Desencarnei ainda jovem, estive doente, e isso aconteceu certamente pelo que fiz de errado nas minhas outras encarnações.
Não é assim?
- Seria imprudência minha afirmar isso. Cada um de nós tem uma história de erros e acertos. São tantos os motivos para que isso ocorra...
- Rosângela, o que farei agora? O que farão comigo? Tenho medo! É melhor ficar doente. Eu não fui tão boazinha quando encarnada. Respondia grosseiramente
para minha mãe, fazia algumas coisas escondido, mentia e... queixou-se Gorete.
- Pode parar de se culpar! Você nunca se desculpou com sua mãe ou a beijou? - indaguei-a.
- Ah, sim! Como é gostoso beijar e ser beijada pela nossa mãezinha!
- É nisto que deve pensar - aconselhei. - Você não ficou doente por isso, os motivos que enumera são acontecimentos corriqueiros, deveriam ser evitados,
mas não são faltas graves. O universo é regido pelas Leis Divinas. Nosso planeta Terra também segue as leis que determinam que vivamos períodos encarnados e outros
desencarnados.
- Estou com o mesmo medo de Gorete. Acho que não sei viver aqui. Até agora estou sendo bem cuidado, porque ainda estou doente. Mas, se melhorar, o que irei
fazer? O que irá acontecer comigo? - perguntou Marcinho preocupado.
- Pois tratem de se curar e verão como é maravilhoso viver aqui. Terão oportunidade de estudar, passear, praticar esportes, ir a teatros e participar do
coral que os encantou durante a visita de ontem. Não tenham medo! Vamos à Praça da Fonte!
Melhor do que responder era mostrar como se vive no educandário. Muitos jovens ficavam no hospital por medo. Às vezes achavam que pecaram por não terem ido
a cultos ou por terem cometido pequenos deslizes, como a Gorete. Eles temiam os castigos. Alguns necessitavam até de tratamento especializado para entender que não
sofreriam punições. Ao ver como era o dia-a-dia nesse local de bênçãos, não tinham mais receio nem dores resultantes do reflexo do físico.
- Vi o acidente, foi minha culpa, fui imprudente. É justo que sinta dores, estou fazendo meus pais sofrerem - lamentou-se Joel.
- Você premeditou? Quis que ocorresse o acidente? - pergunteI.
- Não! Errei pegando escondido o carro do papai, mas não quis bater.
- Você errou, já foi desculpado; seus pais o amam e querem que você, Joel, esteja bem. Obedeça-os! O acidente já aconteceu, não há como reverter a situação.
Agora é ter bom ânimo e aceitar a mudança de plano.
- Sentir culpa é terrível! Não vou me curar! Quero sentir dores nas pernas!
- Aos jovens que se sentem assim, culpados, nós dispensamos bastante carinho e muitos também recebem o auxílio de psicólogos, até que entendam que não devem
se auto-punir.
- Rosângela, você desencarnou jovem? Ficou doente? Aceitou esse fato? - Virgínia me perguntou.
- Meu corpo físico ficou doente, desencarnei jovem, encarei bem esse fato e sou feliz. E se você se esforçar e aceitar essa mudança de plano, será como eu
e muitos jovens que aqui estão bem.
Crianças e jovens normalmente não são muito apegados às coisas, ainda não enraizaram o "ter". A adolescência é um período no corpo físico em que quase sempre os
jovens gostam de aventuras e de novidades; quando voltam à espiritualidade, adaptam-se mais facilmente e não ficam muito tempo nos hospitais. Não se sentem mais
doentes nem machucados. A não ser os que se revoltam e teimam em não aceitar o fato, dificultando sua melhora. A estes, damos maior atenção e tratamento especiais.
No setor três há uma ala para os jovens que tiveram deficiência física e que ainda se sentem com elas.
- Será mesmo que posso andar? - perguntou Guilherme duvidando.
- Claro que pode! Venha, seguro você. Ande! - incentivei-o.
- Não posso! Não consigo! Vou cair!
- Não vai! Observe de novo suas pernas. Não estão sadias?
- Estão! Vou tentar!
Foram muitas tentativas, e quando ele conseguiu, chorou de alegria e agradeceu a Deus.
- Nasci cega, comecei a enxergar. É maravilhoso ver as pessoas, as flores, o céu! Estou contente por isso, mas também triste por não morar mais na Terra.
Nada é perfeito!
- Neuzinha, meu bem, tudo é perfeito! Quando se acostumar aqui, verá que não existe lugar melhor para se viver.
Algumas crianças e jovens que, quando encarnados foram deficientes físicos, ao desencarnarem, já acordam sadios no Setor de Recuperação, outros passam pelo
hospital, mas, normalmente, logo sentem-se sadios.
No setor dois, onde fica o hospital infantil, na parte de trás, temos alas que abrigam os jovens que quando encarnados foram deficientes mentais. Nossa
colônia é grande como o educandário; porém, em outras moradas espirituais, não existe essa separação. No Flores de Maria, esses espíritos recebem tratamentos especiais
para que não sintam mais o reflexo do corpo físico.
Muitos que foram deficientes mentais não trazem, ao desencarnar, o reflexo do físico, sentem-se normais, e vão direto para o Setor de Recuperação. Os que
ainda se sentem doentes, são trazidos para essas alas especiais e só vão para as outras partes do educandário ou para a escola,
quando conseguem se libertar do reflexo da deficiência.
- Há os que não conseguem se acostumar aqui? - indaguei ao Leandro.
- Quando por algum motivo, normalmente imposto por eles mesmos, não se livram dos reflexos da deficiência, são levados para o Departamento Reencarnatório,
onde todos os casos são estudados com amor, e quase sempre acabam por reencarnar.
- O deficiente também? - perguntei.
- Como eu disse, todos são analisados com atenção, visando sempre o que é melhor para o espírito. Há os que voltam novamente com deficiência, mas normalmente
mais brandas.
- Sei, é como parcelar uma dívida grande em prestações - falei.
Leandro sorriu e me esclareceu:
- Às vezes, Rosângela, para recuperar um espírito que sente tanto o reflexo da doença, necessitamos fazê-Io voltar à aparência anterior, quando foi sadio,
porém ele lembrará de seus atos errados e, se estiver despreparado, poderá sentir um remorso destrutivo. Você acertou falando em prestações. Podemos ter errado tanto
que não nos é possível pagar a dívida em uma só encarnação. O melhor seria reparar, fazendo o bem. Aqui o tratamento ministrado é todo especial, com muito carinho,
atenção e alegria. Tudo é feito para que esses espíritos se recuperem. Houve motivos que os levaram à desencarnação, e eles também têm de se recuperar dos reflexos
das doenças ou dos ferimentos causados por acidentes; porém, estes são mais fáceis de serem superados. Anos vivendo num corpo com o cérebro doente; requer maior
esforço.
Tínhamos ali, abrigados, desencarnados que deixaram o corpo físico em diversas idades. Muitos até idosos.
Mas, respeitávamos o sentimento deles, sentiam-se crianças, e eram tratados como tal, se jovens, como adolescentes.
Foi muito bom para mim esse período. Cuidar deles, saber suas histórias me fez compreender ainda mais o tanto que devemos ser agradecidos por reencarnar e ter sempre
a oportunidade de recomeçar.
Os abrigados daquele cantinho de amor, quando são recém-chegados, dormem muito, depois necessitam ficar despertos para receber melhor o tratamento e as orientações.
Eles se apegam muito aos que cuidam deles. Recebem visitas de encarnados e também são levados para ver os familiares.
Ao não sentir mais o reflexo da deficiência mental, alguns vão para a escola, no educandário; outros vão para a colônia, porque não se sentem mais crianças ou jovens
porque desencarnaram num corpo adulto.
Nesta ala há piscinas, quadras de jogos e salas de aula. Os autistas e alguns deficientes que são metódicos, ali são reeducados, mas no começo tudo é feito
para agradá-Ios.
Fiz amizade com Maria Isabel, que foi aUtista. Conversava com ela, indagava-a sobre tudo até que um dia respondeu-me, falando por minutos, foi uma alegria.
Enquanto esses espíritos permanecem no hospital, não recordam seu passado, mas há alguns que não o esqueceram, totalmente ou o recordam espontaneamente.
A melhor terapia é ouvi-Ios e fazê-Ios compreender que o importante para nós é o momento presente.
Tínhamos uma bandinha em que todos tocavam vários instrumentos musicais e participavam de um coral. A lei era alegria e festa todos os dias. Comemorávamos os aniversários
na mesma data do nosso nascimento no plano físico, lições aprendidas, despedidas dos amigos que iam para outros setores etc.
E cada recuperação era uma vitória dos dedicados trabalhadores daquela ala. Amei-os!


20


O período programado para servir ao educandário terminou como também o curso que eu fazia na colônia. Estudo de que gostei e durante o qual aprendi bastante
e fiz muitos amigos. Leandro veio conversar comigo e me convidou:
- Rosângela, você quer trabalhar na segunda parte do Flores de Maria?
Só quando vim servir nos hospitais é que tive conhecimento desta segunda parte. Não que fosse escondida, mas não soube porque não tinha me interessado. Essa
área do educandário tem comunicação com o setor um, situa-se nos fundos do pavilhão dois e em partes do um e do três. Sabia que seus servidores eram treinados e
tinham seu cantinho lá. Aqueles que adquiriam experiência eram escolhidos por vovó LaIa, por isso me emocionei. Leandro esperou que eu me recompusesse da surpresa,
depois falou:
- O convite é para que você complete seus conhecimentos sobre o educandário. Trabalhará por dois anos, vai morar lá e não poderá ter outra atividade nem
estudar.
Aceitei contente. Dei a notícia para todos os meus amigos e ansiei por contar ao Fernando, que se regozijou comigo:
- Fico feliz por você, Rosângela. Será uma experiência maravilhosa.
Nessa época, minhas avós e meus avôs já haviam desencarnado. Todos moravam na colônia e nos víamos sempre. Meus avozinhos queridos queriam que eu fosse morar com
eles; desculpei-me e não fui. Gostava muito do meu alojamento no setor sete, ali me sentia útil junto às novatas, animando-as e transmitindo segurança a elas. Agora
ia deixá-Ios, mas não o fiz com tristeza. Enquanto arrumava meus pertences, lembrei-me dos anos em que passara ali. Tantas alegrias! Mas não pude recordar muito,
pois as meninas queriam saber para onde eu estava indo e o que ia fazer. As despedidas aqui, normalmente são alegres, com votos de êxito e muito carinho.
Vovó LaIa me levou para a segunda parte do Flores de Maria e apresentou um casal:
- Rosângela, este é Moacir e esta é Moranguinho, ou seja, Marilda.
Marilda me abraçou, dando-me boas-vindas, e explicou-me alegre:
- Aqui só me chamam de Moranguinho, um apelido que recebi por apreciar muito essa fruta.
- É porque ela é doce e linda como um morango! expressou-se Moacir sorrindo. - Seja bem-vinda entre nós, Rosângela!
Moranguinho me levou ao alojamento. Meu quarto era pequeno, com uma poltrona, escrivaninha e um mini-armário. Nessa época eu não dormia nem me alimentava
mais. Aquele local só nosso, servia para que tivéssemos um cantinho particular para passar algumas horas livres, onde pudéssemos escrever, ler, meditar e receber
visitas.
Essa segunda parte é grande e comprida. Tem só um portão, que se comunica com o primeiro setor. Perto da entrada estão os gabinetes, ou salas particulares
dos servidores, depois o hospital, a ala de recuperação, e, em seguida, os alojamentos dos internos, a escola, a biblioteca, as salas de vídeo, os pátios, as quadras
de esporte e tudo o que crianças e jovens gostam.
Quando encarnada, ouvi falar de casos de desencarnes violentos de crianças e jovens. No bairro em que morava, comentou-se muito sobre o caso de um avô que
estuprou e matou a neta de seis anos. Na época, esse faro me chocou e orei bastante por ela.
Se os encarnados sensíveis se chocam com a violência, os desencarnados têm piedade, só que esta se transforma em bênçãos de auxílio, revertendo-se aos necessitados.
Na segunda parte eram abrigados os que se sentiam traumatizados pela desencarnação violenta. Repito, sentiam, porque muitos dos que desencarnam vítimas da
maldade de alguém e não ficam traumatizados vão para os hospitais nos setores dois e três.
Crianças pequenas não falam muito de qual doença ou porque desencarnaram, mas as maiores e os jovens comentam demais. Em alguns educandários espalhados pelo
mundo não há separação, só nos maiores ela existe, para que os desencarnados recebam tratamentos especiais. Os que se sentem traumatizados quase sempre se envergonham
e não se sentem bem perto de quem não desencarnou de forma violenta. Por exemplo: alguns têm pai ou mãe que os mataram, enquanto outros sentem seus genitores se
desesperarem por sua falta. Essa separação é temporária. Embora não seja igual para todos, pois cada um reage de um modo, os internos passam ali o período de que
necessitam. Conversam muito e compreendem que não foi só com eles que ocorreu um fato violento.
Moacir e Moranguinho me apresentaram aos outros servidores. Gostei muito de todos, eram alegres e carinhosos.
Fui com Moranguinho para o hospital. A permanência dos internos ali era sempre por pouco tempo. Infelizmente, se os familiares pensavam neles com ferimentos,
eles se sentiam como se estivessem com dores, necessitando de nossa ajuda.
Eles têm necessidade de falar sobre o que lhes aconteceu e o fazem, e assim deve ser. Não é bom que esqueçam no momento, pois como passaram por uma dificuldade,
precisam entendê-Ia, superá-Ia, aceitar o fato e perdoar. Podem até recordar o passado, os acontecimentos de outras encarnações para entender o porquê do sofrimento.
O caso mais preocupante para nós, servidores, era o de Geraldo, um garoto de quinze anos, que fora torturado até que seu corpo físico findou suas funções.
Ele não conversava muito e insistíamos para que ele falasse:
- E aí, Geraldo, acordou melhor? - perguntei.
- Não tenho dores, mas sonhei com os cigarros me queimando.
- Geraldo, vamos conversar um pouquinho. Conte-me o que lhe aconteceu - pedi.
- De novo? Está bem! Eu sou culpado! Assassinei dois jovens da quadrilha rival, matei-os com tiros. Não sou mau. Arrependi-me, não queria matá-Ios, mas
era ou eu ou eles. Sabia que estava jurado de morte, mas não adiantou esconder-me. Eles me acharam e me torturaram até que morri. Sei que estou aqui porque me arrependi
e os perdoei. Mas sou culpado e devo sofrer!
- Não resolverá seu problema sofrendo. Não deixe o remorso impedi-Io de participar da vida ativa aqui. Se você se esforçar, poderá estudar, ir para a escola
como deseja, ser útil em muitas tarefas, praticar esportes e se reeducar.
Ele até que tentava, mas logo estava se queixando de dores e se lamentando. Geraldo ficou meses no hospital. Um dia perguntei para Moacir:
- Se Geraldo com quinze anos não tivesse se arrependido ou perdoado, o que aconteceria com ele?
- Certamente se enturmaria com grupos de espíritos no umbral. Ele desencarnou jovem, mas é um espírito milenar.
- Pensei que jovens não iam para o umbral - falei.
- São poucos os que vão - esclareceu Moacir. Lembro a você que todos nós temos o livre-arbítrio respeitado e normalmente os jovens já sabem o que querem.
Alguns ao desencarnarem até recusam nosso auxílio. Encontram afins e gostam de estar entre os imprudentes moradores da zona umbralina. Mas se ocorrer de os espíritos
vingadores os pegarem aprisionando-os, e eles solicitarem ajuda, serão auxiliados e trazidos para cá ou para outros
locais de socorro.
Maria Clara era uma garotinha muito bonita e desencarnara pela violência do pai, que voltou para casa drogado e foi agredir a mãe; ela se colocou entre
eles para defendê-Ia. Seu pai a surrou, bateu sua cabeça na parede, causando traumatismo craniano. Maria Clara foi hospitalizada, mas seu corpo físico não resistiu
e morreu. O pai não foi preso por ser homem de posses, pagou para evitar maiores investigações; disseram que ela caíra da escada. Maria Clara estava se esforçando
para perdoar o genitor, sentia por ele não ter se importado com seu desencarne e não ter se arrependido. A mágoa a fazia recordar de tudo, inclusive das dores.
- Perdoe, Maria Clara! É preferível receber uma maldade do que fazer - pedi.
- Essa frase está na oração de São Francisco de Assis. Eu achava essa prece linda! Estou vendo agora que fazer o que ela nos recomenda é difícil. Não queria
ter praticado maldade, mas também não a queria ter recebido!
- Esforce-se para melhorar, Maria Clara.
- Ele vai pagar por tudo o que me fez, não vai?
- Somos donos dos nossos atos, o que ele lhe fez foi uma má ação e a vida lhe dará a reação - respondi.
Ela também demorou um pouco para melhorar, foram muitas conversas, até que perdoou o pai e não se revoltou mais.
Marli tinha medo de tudo e tremia quando Moranguinho se aproximava dela. Aceitou-me, talvez pela minha aparência de garota, mais menina que adolescente.
Teve um período sofrido quando encarnada. Um pai que não se importou com ela e uma madrasta que a castigava.
- Rosângela, dona Célia acha que tenho asas, eu desejo uma. Você não me dá? Por favor! - pediu.
- Marlizinha, asas só vão atrapalhá-Ia. Como ficar de roupas com elas? Irão incomodá-Ia para dormir.
- Não faz mal, eu as quero!
Em resposta apenas sorri; não costumamos prometer algo impossível, e ela, que desencarnou aos nove anos, compreenderia aos poucos. Acordava apavorada e indagava
aflita:
- Fiz xixi na cama?
- Não meu bem, você não fez, apalpe os lençóis. Você está sequinha. Não vai mais fazer xixi na cama.
- Você promete?
- Prometo - respondi.
E cumpria, antes de Marli acordar, se tivesse plasmado a cama molhada, eu a secava. Às vezes ela se lembrava de algum fato, e em seu corpo apareciam hematomas,
sinais de espancamento. Eu precisava conversar baixinho com ela, dando-lhe passes, fazendo os vergões sumirem.
- Estou com frio! Muito frio! Veja, Rosângela, estou tremendo!
- Abraçava-a acalentando.
- Marli, o frio já passou. Aqui está quentinho.
Não poderíamos simplesmente fazê-Ia esquecer os maus-tratos, Marli precisava superá-Ios. Passei a cuidar dela, pois continuava com medo dos adultos e querendo
ter asas.
- Dona Célia era nossa vizinha, uma senhora muito bondosa que me dava comida, ajudou-me bastante.
Quando fiquei na chuva, molhada e com frio, foi ela quem me secou e vendo que eu estava com febre levou-me para o hospital. Ela ora por mim, acha que estou
no Céu e que tenho asas. Não estou no Céu?
- Aqui é um lugar lindo, maravilhoso e...
- Então estou no Céu e quero minhas asas - falou Marli me interrompendo.
- Vamos lá no pátio, Marli - convidei-a.
Levei-a para ver a meninada aprendendo a volitar.
- Aqui voamos assim, chamamos de volitação - expliquei. - Lá na Terra, ninguém faz isso, mas como nós, desencarnados, podemos nos locomover volitando, os
encarnados começaram a achar que pessoas boas, quando morriam, principalmente crianças, ganhavam asas. Mas não necessitamos delas para voar. Você logo irá aprender.
Vou segurá-Ia e volitar com você.
Abracei-a e volitei com ela pelo pátio devagar e baixinho. Marli gostou e compreendeu que não precisava de asas e parou de pedi-Ias.
Comecei a levá-Ia ao refeitório para se alimentar.
- Você tem certeza de que posso comer tudo isso? Ela sempre fazia perguntas assim quando recebia algo de nós.
Um dia, esbarrou na bandeja e derrubou-a. Correu para um canto chorando e pedindo:
- Não me bata! Não fiz de propósito!
Não consegui chegar perto dela. Não adiantou falar que não íamos surrá-Ia. Peguei tudo, limpei, esbarrei de propósito numa cadeira e a derrubei, mostrando
a ela que acidentes acontecem. Trouxe outra bandeja. Marli continuava a chorar desesperada e com medo. Eu sabia que não podia acalmá-Ia com passe. Ela necessitava
entender que nem todas as pessoas são violentas e que o carinho existe. Deixamo-Ia sozinha. Fiquei a observá-Ia. Ela se sentiu molhada como se tivesse urinado. Eu
lhe trouxe roupas secas e um pano para secar o chão e saí novamente. Ela trocou de roupa, limpou o piso e foi se alimentar.
Após algum tempo, Marli não sentia mais frio nem os vergões e, por isso, foi transferida para a ala de recuperação e passou a ter aula sozinha, pois nunca
tinha ido à escola. Quando ganhou cadernos e livros, dormiu com eles.
- São meus, ganhei-os, não quero que ninguém os pegue.
Marli nunca tivera nada; tudo o que ganhava a madrasta tomava e dava para seus filhos. Aos poucos, foi compreendendo que, o que era dela ninguém pegaria.
Participar do coral foi a melhor terapia para ela. Ficou quase dois anos na segunda parte e finalmente chegou o momento de ser transferida para a escola no educandário.
- Marli, por que desencarnou? Quem são seus pais? Como viveu encarnada? - sabatinei-a novamente.
- Desencarnei aos nove anos por doença. Meus pais são separados. Minha mãe viajou, deixando-me com papai, que se casou com outra mulher que tinha dois filhos.
Minha madrasta não gostava de mim. Eu fazia quase todo o trabalho de casa, não fui à escola e meu pai não se importava comigo. Eu estava sempre fazendo xixi na cama
e isso era motivo para muitas surras. Num dia muito frio e chuvoso, minha madrasta me pegou de manhã molhada e me pôs para fora de casa. Fiquei com vergonha, escondi-me
entre as folhagens. Senti muito frio; horas depois, quando vi dona Célia chegando à casa dela, corri para lá. Ela, vendo que eu estava febril, levou-me para o hospital;
tive pneumonia e desencarnei. Não tenho mágoa de ninguém. Perdoei a todos! Quero estudar para ser professora! Como último teste, fiz com que ela derrubasse a bandeja
com bolo, sem que ela percebesse minha interferência. Ela, tranqüilamente, limpou tudo.
Na despedida de Marli, fizemos uma festinha. O coral se apresentou. Ela, toda contente, cantou com entusiasmo. Viu-me lá do palco e mandou-me um beijo.
Disfarçadamente enxuguei algumas lágrimas.
Por mim não deixaria meu trabalho no hospital. Moacir, porém, deu-me a incumbência de lecionar para as crianças.
As aulas eram de instrução sobre assuntos gerais e sobre o Evangelho. Era como uma terapia em grupo. Eu ensinava Matemática, quando um deles lembrou-se
de algo. Era permitido a todos falar o que quisessem; tínhamos só algumas normas: era proibido fazer fofocas ou discutir sobre assuntos banais.
- Vovó me dizia que a Matemática na vida é maravilhosa. Ela nos ensinava que devemos diminuir as aflições dos outros, somar os afetos, multiplicar as boas
ações e dividir o que temos - falou João Pedro.
- Sua avó é sábia! - exclamei.
- Sábia e boa - repetiu João Pedro. - Foi ela quem me criou, não conheci meu pai, e minha mãe nunca ligou para mim! Só às vezes vinha nos visitar e ainda
tirava dinheiro de minha avó. Mamãe me enganou. Veio em casa quando minha avó não estava e me convidou para um passeio. Disse-lhe que não poderia ir, porque vovó
estava trabalhando. Ela me falou que deixaria um bilhete, avisando-a, e que voltaríamos logo. Levou-me de carro, e como eu gostava de passear, fui contente. Fomos
a um casarão onde me tiraram sangue. Para que não chorasse, minha mãe me disse que estavam fazendo aquilo para saber se eu podia ir ao parque. Depois dormi e acordei
aqui. Mamãe me vendeu, não deixou bilhete para vovó, que até hoje me procura, ora pensando que fugi, ora que me raptaram. Minha vovozinha sofre muito. Minha genitora
recebeu dinheiro de traficantes de órgãos.
Escutamos João Pedro e o consolamos. Ele ouviu os amigos, suspirou e comentou:
- Recordei-me de atos errados que cometi em outras encarnações. Fui um traficante de escravos e fiz muito mal a eles. Acho que ainda tenho muito o que sofrer!
Perdoei mamãe, mas sinto por vovó sofrer tanto! Moranguinho me falou que ela logo virá para o plano espiritual. Por isso me esforço, pois quando ela chegar, quero
estar bem, abraçá-Ia e lhe dar milhões de beijos.
- João Pedro, lembro a você que já estudamos que podemos reparar nossos erros com acertos, fazendo o bem - esclareci.
Muitos internos da segunda parte do educandário, recebiam ajuda para recordar fatos do seu passado a fim de compreender e aceitar sem revolta os desencarnes traumatizantes.
João Pedro narrou o que de fato acontecera com ele e, pior, a mãe não se arrependeu e desfrutou do dinheiro com prazeres. Com aceitação, o trauma foi sendo superado,
assim como o caso de Mônica, uma garota que foi estuprada e assassinada e que logo iria para outra parte do educandário.
Mônica comentava com maturidade seu desencarne.
Quando indagada, respondia calmamente:
- Desencarnei assassinada! Já perdoei os criminosos!
Ela se lembrava do fato sem chorar riem se emocionar. Estava apta a conviver com as outras crianças. Dei aulas também para os jovens; estes, talvez por entenderem
mais os acontecimentos, precisavam se esforçar para não se revoltarem e poderem perdoar.
- Morrer é muito estranho! Não deveriam nos ensinar errado! Estou revoltado! Deus não é bom! Ele permitiu que eu tivesse um desencarne horrível - reclamou
Mateus.
- Não fale assim! Se você está aqui, deve agradecer. Poderia estar sofrendo muito - repreendeu Maria Inês.
- É que você não sabe a morte que tive. Morri queimado! E foi por um incêndio criminoso. Para matar meu pai, bandidos queimaram nosso barraco.
Mateus só deixou de ficar revoltado quando recordou seu passado, os fatos que ocorreram na sua encarnação anterior. Compreendeu que teve a reação de uma
má ação. As lembranças o deixaram triste. Tivemos de fazer de tudo para lhe dar alegria e foi pela música e pelo canto que voltou a sorrir e a ter esperança.
- É chato o que ocorreu comigo - queixou-se Zezinho.
Todos pensam que eu me matei. Meus pais sofrem e não me perdoam, julgam que estou no inferno. O que ocorreu é que descobri algo sério sobre uma pessoa que se achava
importante e, com medo que eu falasse, ele me matou de tal modo que todos pensam que me suicidei.
- Antes ser assassinado, que assassino ou suicida! opinou Maria Inês.
- Sei disso! Estou aqui num lugar de paz e Deus sabe o que aconteceu! - exclamou Zezinho.
Era uma vitória quando eles recebiam permissão para irem a outra parte. Sinal de que estavam e sentiam-se bem.
Mas muitos deles não queriam ir.
- Prefiro ficar aqui! Não quero escutar os outros dizendo: "Mamãe chora muito por mim! Sinto saudade de casa! Meu lar era lindo! Tinha família!" - expressou-se
Didinho.
Didinho não fora registrado e desde nenê foi chamado assim. Abandonado ainda pequeno, viveu nas ruas e foi assassinado de forma cruel. No local onde dormia
naquela noite, estavam outros meninos que traficavam drogas e foram assassinados. Ele sofreu a mesma violência só porque presenciou os crimes. Didinho desenhava
muito, estava sempre a colorir a família que idealizava: pai, mãe, irmãos, avós e dizia sempre:
- Quero ter uma família! Serei um ótimo filho, obediente e prestativo. Quero dar valor a um lar como a maior bênção de Deus. Vou amá-Ias muito!
Não quis sair da segunda parte do educandário; ali estudou e ajudou bastante os novatos. Recebeu a bênção da reencarnação e desta vez teria uma família estruturada,
que o receberia com amor.
Tínhamos um coral do qual todos participavam; excursionávamos, íamos a postos de socorro localizados no umbral, a outras colônias e a vários lugares da Terra.
Os internos recebiam visitas e também eram levados a visitar seus ex-Iares terrestres para ver amigos e parentes.
Dediquei-me tanto a esse trabalho, que raramente descansava ou saía dali. E, dois anos se passaram rapidamente...


21


- Não quer mesmo ficar conosco, Rosângela? - Moacir insistiu comigo.
- Foi muito bom para mim, estar aqui com vocês. Mas quero estudar, conhecer outras formas de viver desencarnada.
Fizeram uma festa na minha despedida. As festas ali eram alegres, com muito canto, música e dança. Recebi muitos presentes: desenhos, flores, abraços e beijos.
Deixei Flores de Maria com lágrimas de emoção e gratidão.
Vovó LaIa me surpreendeu quando eu ia saindo: - Rosângela, querida, venha aqui um momento.
Ao entrar em sua sala, vi muitos amigos. Lourdes me abraçou dando-me um ramalhete de flores. Fernando deu-me um abraço e vovó LaIa me fez chorar de felicidade ao
dizer:
- Rosângela, minha menina, receba de nós, de seus amigos, o título de Moradora da Colônia.
Palmas. Sorri entre lágrimas e recebi os abraços.
Fernando e Lourdes me acompanharam à colônia.
Fomos andando pela avenida arborizada. Ali passara tantas vezes. Lembrei-me da primeira vez em que Lourdes e eu fomos ouvir o coral.
- Fico tão feliz por você, Rô. O título foi merecido! exclamou Lourdes.
- Você também já o recebeu, Lourdes - falei.
- E eu ainda irei ter o meu! - disse Fernando. - Estou
me esforçando para isso. Quando chegamos aqui somos socorridos, abrigados e até hospedados. Quando nos tornamos aptos, somos servidores, trabalhadores. Moradores
são os que amam, que aprenderam a ser úteis pelo simples fato de compreender que a Terra é a nossa casa; o cosmo, nosso lar e que fazemos parte do Todo por compreensão.
O período em que passei no Flores de Maria foi muito importante para mim, para minha educação e sou profundamente grata pelo muito que recebi. Fui residir
com meus avós e meu pai na colônia. Nossa casa, lar, era lindo, com jardinzinho florido e quartos individuais.
Meus avós desencarnaram enquanto eu estava no educandário. Pude, a exemplo da tia Ana Elisa, acompanhá-Ios, auxiliando na adaptação deles, utilizando minhas horas
de folga e algumas licenças. Foi muito bom poder fazer isso.
Papai ficou doente, desencarnou tranqüilo, e nosso reencontro foi emocionante.
Todos eles já trabalhavam e eram úteis ao local que os recebera com tanto carinho.
Tia Ana Elisa havia reencarnado anos antes. Fizemos uma festa na sua despedida motivando-a em sua nova tarefa no corpo físico. Fez planos para ser professora,
casar e ter filhos. Reencarnou alegre como sempre foi.
Fiz cursos para conhecer o plano espiritual. Embora estivesse desencarnada havia anos, saíra pouco do educandário. Foi emocionante conhecer toda a espiritualidade.
Conclui que há trabalho para todos os gostos e que temos muito o que fazer, basta querer servir.
Embora entendendo que o umbral é a moradia provisória dos imprudentes, não gostei de lá, entristeci-me ao ver tantos sofrerem com o desencarne.
Acabei o curso, que foi muito proveitoso para mim.
Realizando meu sonho, fui completar meus conhecimentos numa colônia de estudo, e depois na A Casa do Escritor?
Fui estudar para aprender a escrever, pois não deixei neste tempo todo de grafar tudo o que se passava comigo e de fazer histórias. Amo a literatura!
Despedir-me de Lourdes quando ela resolveu reencarnar foi comovente. Iria, minha amiga, voltar à Terra com muitos planos, com vontade de realizar seu desejo:
ser médica pediatra.
- Será que não irá dançar mais? - perguntei.
- Acho que vou, mas será a Medicina que abraçarei e por ela quero ser útil - respondeu Lourdes.
Não duvidei. Esse espírito amigo é determinado, bondoso, e o plano físico realmente necessita de pessoas assim.

7. No livro A Casa do Escritor, São Paulo: Petit Editora, Patrícia descreve muito bem as colônias de estudo (Nota da Autora Espiritual).


Fernando e eu continuamos a nos ver. Ele trabalha no Departamento da Reencarnação, realizando seu sonho, e servindo com dedicação. Conversamos sempre que
podemos. Sempre fala com entusiasmo sobre os programas reencarnatórios que faz. Também já recebeu o título de Morador. É uma excelente pessoa, um amigo querido.
Pedi-lhe para me falar um pouquinho do Flores de Maria. Não se fez de rogado.
- Flores de Maria foi o meu lar, amei-o como tal. Com a oportunidade oferecida, passei a gostar de trabalhar, ser útil. Pequenino, aprendi a ser organizado,
ter disciplina e realizar tarefas. Cuidei de outros para compreender o que era a convivência. Maiorzinho, ajudei os menores, brincando com eles e ensinando-os. Meninos
têm muito o que fazer no educandário. Esse convívio de auxílio mútuo, desenvolve em nós, seres humanos, o sentimento de solidariedade, que a cultura social julga
ser mais da mulher, porém é de todos nós. Lá, dei aulas de reforço, vôlei e servi por dois anos na ala de recuperação, trabalhando com crianças que demoraram mais
para se adaptar. Hoje, Rô, posso dizer que sou outra pessoa. Mas só poderei afirmar se realmente assimilei tudo o que aprendi, passando pela prova da reencarnação;
é lá no plano físico que terei a confirmação.
Quando mamãe desencarnou, foi levada para a ala de recuperação do hospital da colônia. Esperei ansiosa para poder visitá-Ia. É recomendável que o recém-desencarnado
não tenha muitos conhecimentos dessa mudança de plano, que acorde entre pessoas que não conhece e receba informações de sua nova situação, para depois rever seus
entes queridos.Fui vê-Ia à noite. Mamãe estava deitada, entrei devagar no quarto. Ficamos nos olhando até que corri para seus braços. Que emoção indescritível!
- Meu amor! Filhinha!
- Mamãe! Mamãezinha!
Não conseguimos falar mais nada. Depois de muitos abraços, minha mãe pediu:
- Rosângela, a enfermeira Débora me disse que hoje é noite de lua cheia. Leve-me até a janela para vê-Ia.
A cama tinha rodinhas, empurrei-a para perto da janela e a abri. Emocionadas, nós duas olhamos para o céu.
- Sempre, minha filha, nesses anos todos, ao ver a lua cheia lhe mandava beijos, agora quero a retribuição.
Beijei-a. Foram tantos beijos que a fizeram rir.
- Eu a amo mamãe!
Fui acariciando-a, e ela adormeceu feliz em meus braços. Olhei para a lua cheia, fiquei tão contente, que lhe mandei um beijo.
Ao narrar essas recordações, fiz muitas vezes uma pausa para enxugar algumas lágrimas de emoção e gratidão. Este livro foi escrito com dois objetivos: o primeiro,
de informar; o segundo, de consolar.
Pais, vocês que amam seus filhos e tiveram um deles ausente de seus lares pela desencarnação, lembro-os que não os perderam. Uma vez querido, sempre amado. E esse
sentimento lindo e puro do amor, só aumenta, independente da distância. A vida sempre nos oferece o reencontro. Sei o tanto que se sofre com a desencarnação. Deus
não separa aqueles que se querem bem. Nada se acaba, sempre estamos vivos e esse amor paternal é como a luz que ilumina sempre. Compreender esse fato simples e natural
e aceitá-Io, ajuda os que vão primeiro para a espiritualidade. Ficamos alegres quando nos sentimos consolados. A vida continua no plano espiritual sem saltos nem
muitas diferenças, isso pela bondade do Nosso Criador. E devemos entender que passamos períodos encarnados e outros desencarnados; todos eles são bons e proveitosos.
Não se desesperem pais, não chorem pelos seus filhinhos, e se chorarem que seja aquele pranto em que as lágrimas lavem a alma, purificando os sentimentos. E, acreditem,
as crianças e os jovens aqui são flores tratadas com o carinho e o amor que merecem.
Não deixem a palavra "se" atormentá-Ios. Repito aqui uma frase, famosa pelo seu imenso conteúdo: "Nada é por acaso".
E a você, especialmente a vocês, mãezinhas, paizinhos, que tiveram um filhinho, uma garotinha, filhos do coração, desencarnados, continuem ajudando-os, enviando
seu amor e incentivo para que eles possam se adaptar e ser felizes como vocês desejam. Meu abraço!

Ao terminar a leitura deste livro, provavelmente você tenha ficado com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é um bom sinal. Sinal de que está em busca de explicações
para a vida. Todas as respostas que você precisa estão nas Obras Básicas de Allan Kardec.

Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras pessoas venham a conhecê-Io também? Poderia comentá-Io com aquelas do seu relacionamento, dar de presente
a alguém que talvez esteja precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tem condições de comprá-lo. O importante é a divulgação da boa leitura, principalmente
a literatura espírita. Entre nessa corrente!




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Muita paz !

 Bezerra

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