Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
A Noite Inteira
Mary Higgins Clark
A Noite Inteira
PUBLICAÇÕES EUROPA-América
Título original All Throught the Night
Tradução de Isabel Veríssimo
Tradução portuguesa, (c) de P E A 2000
Capa estúdios PEA
Edição original em língua inglesa (c) 1998 by Mary Higgins Clark
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
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Editor Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
europa-américa
mail.telepac.pt
Edição n° 106706/7429 Junho de 2000
Execução técnica Gráfica Europam, Lda, Mira-Sintra Mem Martins
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
AGRADECIMENTOS
Quando Michael Korda, o meu editor, me telefonou a sugerir que escrevesse uma história de Natal, a minha resposta foi:
Michael, vou desligar o telefone.
Alvirah e Willy retorquiu ele rapidamente, e eu calei-me.
Alvirah e Willy são os meus personagens recorrentes. Há um ano que não escrevia nada com eles, e já sentia saudades.
A Noite Inteira é o resultado daquele telefonema. Espero que gostem. Como sempre, o meu afecto e agradecimento a Michael Korda por me incentivar a escrevê-lo. Bênçãos
a Michael e ao editor-chefe Chuck Adams por serem os meus mentores, entusiastas e treinadores, literalmente, a noite inteira.
Obrigada ao director-adjunto de revisão, Gypsy da Silva, e a Carol Bowie; ao agente Sam Pinkus, que fez o trabalho de pesquisa do mundo dos tribunais de sucessão
e dos serviços de família; ao meu publicista Lisl Cade e à minha filha Carol Higgins Clark pelos seus comentários e sugestões sempre presentes; e, por último, mas
seguramente não menos importante, ao meu marido, John Conheeney.
Para John, com amor, e
para o bispo Paul G. Bootksky, com profunda amizade.
PRÓLOGO
Faltavam vinte e dois dias para o Natal, mas este ano Lenny estava a fazer as suas compras de Natal mais cedo. Com a certeza absoluta de que ninguém sabia que se
encontrava ali, e tão imóvel e silencioso que quase não conseguia ouvir-se a respirar, observou do confessionário as rondas de monsenhor Ferris a fechar a igreja
para a noite. Com um sorriso desdenhoso, Lenny esperou impacientemente até as portas laterais serem verificadas e as luzes do santuário apagadas. Encolheu-se quando
viu o monsenhor voltar-se para descer a nave lateral, o que significava que passaria junto do confessionário. Praguejou em silêncio quando uma tábua do chão chiou
dentro do confessionário. Através de uma fenda na cortina, viu o sacerdote parar e inclinar a cabeça como se estivesse a escutar para ver se ouvia outro som.
Mas depois, como se estivesse satisfeito, monsenhor Ferris retomou o seu caminho para as traseiras da igreja. Passados alguns instantes, a luz no vestíbulo foi apagada
e uma porta foi aberta e fechada. Lenny permitiu-se soltar um suspiro audível estava sozinho na igreja de São Clemente, na Rua
103 Oeste, em Manhattan.
Sondra parou no limiar de uma moradia em frente da igreja. O edifício estava em obras e o andaime temporário ao nível da rua ocultava-a da vista dos transeuntes.
Queria certificar-se de que o monsenhor saía da igreja e estava na reitoria antes
de deixar a bebé. Nos últimos dias, tinha ido a missas na igrej a de São Clemente e familiarizara-se com a rotina dele. Também sabia que, durante o Advento, naquele
momento ele estaria a orientar o terço das sete horas.
Fraca devido à tensão e à fadiga do nascimento apenas algumas horas antes, com os seios inchados com o fluido que precedia o leite, inclinou-se contra a soleira
da porta para se apoiar. Um gemido fraco vindo de dentro do seu casaco parcialmente abotoado levou-a a mexer os braços num movimento de embalar que é instintivo
das mães.
Numa folha de papel branca, que deixaria com a bebé, tinha escrito tudo o que podia revelar em segurança:
Por favor, dê a minha filha para ser criada por uma família boa e carinhosa. O pai é de ascendência italiana; os meus avós nasceram na Irlanda. Nenhuma das famílias
tem qualquer doença hereditária de que eu tenha conhecimento, por isso ela deve ser saudável. Amo-a, mas não posso cuidar dela. Se um dia ela perguntar por mim,
mostrem-lhe este bilhete, por favor. Digam-lhe que as horas mais felizes da minha vida serão sempre aquelas em que a segurei nos meus braços depois de ela nascer.
Pois nesses momentos fomos apenas as duas, sozinhas no mundo.
Sondra sentiu a garganta apertar-se quando avistou a figura alta e ligeiramente curvada do monsenhor a emergir da igrej a e a dirigir-se directamente para a reitoria
adjacente. Tinha chegado o momento.
Comprara roupas de bebé e acessórios, incluindo um par de camisolas, uma camisa de dormir comprida, botinhas e um casaco com capuz, biberões, leite em pó e fraldas
descartáveis. Tinha enrolado a bebé ao estilo dos índios norte-americanos, em dois cobertores e numa pesada manta de lã, mas, como a noite estava tão fria, no último
instante tinha trazido também um saco de compras de papel castanho. Tinha lido algures que o papel era um bom isolante contra o frio. Não que a bebé fosse
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ficar muito tempo exposta ao ar gelado, é claro só até Sondra conseguir chegar a um telefone e telefonar para a reitoria.
Desabotoou lentamente o casaco, movendo a bebé apenas o necessário, lembrando-se de ter um cuidado especial com a cabeça da menina. O brilho ténue da luz da rua
possibilitou-lhe ver claramente o rosto da criança recém-nascida.
Amo-te sussurrou Sondra com intensidade. E amar-te-ei sempre.
A bebé fitou-a, com os olhos completamente abertos pela primeira vez. Olhos castanhos fixaram olhos azuis, cabelos castanho-escuros tocaram a penugem de cabelos
louros que se encaracolavam na pequena testa; lábios minúsculos franziram-se e mexeram-se, à procura do seio da mãe.
Sondra encostou a cabeça da bebé ao seu pescoço; deixou os lábios pousarem na face macia; a mão acariciou as costas e as pernas da recém-nascida. Depois, num gesto
decidido, enfiou a figura minúscula no saco de compras, esticou a mão para o carrinho em segunda-mão que estava fechado a seu lado e prendeu a pega debaixo de um
braço.
Esperou que diversas pessoas passassem pelo seu esconderijo e depois dirigiu-se apressadamente para o passeio e olhou para os dois lados da rua. Um quarteirão adiante,
o tráfego estava parado num sinal vermelho, mas não viu transeuntes virem em qualquer das direcções.
Uma parede sólida de carros estacionados de ambos os lados da rua serviu de protecção a Sondra contra quaisquer olhares curiosos enquanto ela atravessava rapidamente
a rua para a reitoria. Subiu os três degraus a correr para o patamar estreito e abriu o carrinho. Depois de accionar o travão, deitou a bebé confortavelmente sob
a capota do carrinho e colocou a trouxa de roupas e biberões aos pés dela. Ajoelhou-se um instante e olhou uma última vez para a filha.
Adeus sussurrou. Depois, levantou-se e desceu os degraus a correr e dirigiu-se para a Avenida Columbus.
Faria um telefonema para a reitoria de uma cabina telefónica a dois quarteirões dali.
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Lenny orgulhava-se de entrar e sair de uma igreja em menos de três minutos.
"É preciso ter cuidado com os alarmes silenciosos", pensou ele enquanto abria a mochila e tirava uma lanterna. Manteve o feixe estreito apontado para o chão e começou
a fazer rapidamente as suas rondas habituais. Em primeiro lugar, foi à caixa das esmolas para os pobres. Nos últimos tempos, os donativos tinham sido fracos, algures
entre trinta e quarenta dólares.
As caixas de oferendas, por debaixo das velas votivas, revelaram-se as mais satisfatórias das últimas dez igrejas que ele tinha assaltado. Havia sete, colocadas
a intervalos regulares diante das estátuas dos santos. Rapidamente, rebentou as fechaduras e tirou o dinheiro.
No último mês tinha vindo à missa aqui algumas vezes para estudar o local; observara que o sacerdote consagrava o pão e o vinho em cálices simples, por isso não
se deu ao trabalho de arrombar o tabernáculo, pois não haveria lá nada de especial. De qualquer maneira, ficava contente por evitar fazer isso. Reconhecia que o
par de anos que passara na catequese havia exercido algum efeito sobre ele, deixando-o pouco à vontade para fazer certas coisas. Sem dúvida que interferia quando
se tratava de roubar igrejas.
Por outro lado, não tinha escrúpulos em sair com o tesouro que o trouxera ali em primeiro lugar, o cálice de prata com o diamante em forma de estrela na base. Pertencera
a Joseph Santori, o sacerdote que fundara a paróquia de São Clemente há cem anos, e era o único tesouro que esta igreja histórica continha.
Um retrato de Santori estava pendurado por cima de um armário de mogno num recesso do lado direito do santuário. O armário era trabalhado, e a sua grelha fora concebida
para proteger e ao mesmo tempo exibir o cálice. Depois de uma das missas a que tinha assistido, Lenny aproximara-se para ler a placa por debaixo do armário.
Aquando da sua ordenação em Roma, o padre, mais tarde bispo, Santori recebeu esta oferenda da condessa Maria Tomicelli.
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Estava na família dela desde a época do começo do Cristianismo. Aos 45 anos, Joseph Santori foi consagrado bispo e designado para a Sé de Rochester. Depois de se
reformar, aos
75 anos de idade, voltou para São Clemente, onde passou os últimos anos de vida a trabalhar entre os pobres e os idosos. A reputação de santidade do bispo Joseph
Santori era tão conhecida que, depois do seu falecimento, foi assinada uma petição para pedir à Santa Sé que o considerasse para a beatificação, uma causa que ainda
se mantém activa actualmente.
"O diamante renderá sem dúvida alguns dólares", pensou Lenny enquanto empunhava o machado. Com dois golpes fortes, esmagou as dobradiças do armário. Abriu as portas
com um puxão e pegou no cálice. Com receio de ter desencadeado um alarme silencioso, correu rapidamente para a porta lateral da igreja, destrancou-a e empurrou-a
para a abrir, ansioso para sair dali.
Ao virar para oeste, em direcção à Avenida Columbus, o ar frio secou rapidamente o suor que lhe tinha coberto o rosto e as costas. Uma vez na avenida, sabia que
poderia desaparecer no meio das multidões de pessoas que andavam às compras. Mas, ao passar pela reitoria, o uivo de uma sirene da Polícia a aproximar-se abalou-lhe
a calma.
Viu dois casais a descer o quarteirão, na mesma direcção que ele, mas não se atreveu a começar a correr para os apanhar. Aquela atitude iria seguramente denunciá-lo.
Depois, avistou o carrinho de bebé nos degraus da reitoria. Num instante estava a empurrá-lo pelo passeio. Aparentemente, não tinha nada a não ser um par de sacos
de compras. Enfiou a mochila no fundo do carrinho e caminhou apressadamente para apanhar os casais que seguiam à sua frente. Depois de estar perto, caminhou tranquilamente
atrás deles.
O carro da Polícia passou ruidosamente pelo grupo e travou a fundo à frente da igreja. Na Avenida Columbus, Lenny acelerou o passo, pois já não estava preocupado
por poder ser detectado. Numa noite tão gelada, todos os transeuntes andavam apressados, ansiosos para chegarem aos seus destinos.
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Limitar-se-ia a comportar-se como eles. Não havia motivo para alguém prestar atenção ao homem de altura mediana e rosto aguçado, com trinta e poucos anos, que usava
um boné e um blusão preto, simples, e empurrava um carrinho de bebé barato e muito usado.
A cabina telefónica de onde Sondra tinha planeado telefonar estava a ser usada. Terrivelmente ansiosa devido à impaciência e já angustiada por causa da bebé que
tinha abandonado, tentou decidir se interrompia a pessoa que estava a falar ao telefone, um homem com o uniforme de um guarda de segurança. Podia explicar que era
uma emergência.
"Não posso fazer isso", pensou, desesperada. "Amanhã, se houver uma história nos jornais acerca da bebé, ele poderia lembrar-se de mim e contar à Polícia."
Consternada, enfiou as mãos nos bolsos, à procura das moedas de que precisava e do papel onde tinha escrito o número da reitoria, desnecessário porque o sabia de
cor.
Era dia 3 de Dezembro, e as luzes e as decorações de Natal já brilhavam nas montras das loj as e dos restaurantes ao longo da Avenida Columbus. Um casal de mãos
dadas passou por Sondra, com os rostos radiantes enquanto sorriam um para o outro. A rapariga parecia ter cerca de 18 anos, a sua própria idade, pensou Sondra, embora
ela se sentisse infinitamente mais velha e infinitamente afastada do ar de alegria sem preocupações que este casal exibia.
Estava a ficar mais frio. A bebé estaria bem agasalhada?, preocupou-se. Fechou os olhos por alguns instantes. "Ó Deus, por favor faz com que este homem largue o
telefone", rezou. "Preciso de fazer este telefonema agora."
Um instante depois, ouviu o clique do auscultador a ser pousado. Sondra esperou até a pessoa se afastar alguns passos antes de agarrar no telefone, colocar as moedas
e marcar o número.
Reitoria de São Clemente. A voz era a de um homem idoso. Tinha de ser o sacerdote de idade que ela vira na missa.
Por favor, posso falar com monsenhor Ferris? É urgente.
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Eu sou o padre Dailey. Talvez possa ajudá-la. O monsenhor está na rua com a Polícia. Temos uma emergência.
Calmamente, Sondra desligou. Já tinham encontrado a bebé. Agora ela estava em segurança, e monsenhor Ferris cuidaria de tudo para que fosse colocada num bom lar.
Uma hora depois, Sondra estava no autocarro para Birmingham, Alabama, onde era estudante no departamento de Música da universidade, uma estudante de violino cujo
talento surpreendente já a tinha destinado a um futuro brilhante nos palcos de concertos.
Só quando chegou ao apartamento da tia idosa é que Lenny ouviu o choro fraco da recém-nascida.
Espantado, espreitou para o carrinho. Viu o saco de compras começar a mexer-se e abriu-o rapidamente; olhou para o pequeno ocupante, chocado. Incrédulo, soltou o
bilhete do cobertor, leu-o e esboçou uma exclamação.
Do quarto ao fundo do corredor estreito, a tia chamou:
És tu, Lenny? Não havia o menor sinal de boas-vindas na pergunta, proferida com um forte sotaque que traía as suas raízes italianas.
Sim, tia Lilly. Não podia simplesmente esconder a bebé. Tinha de encontrar uma saída. Que poderia dizer-lhe?
Lilly Maldonado percorreu o corredor até à sala de estar. Aos 74 anos, parecia e movimentava-se como alguém dez anos mais nova. Os cabelos, presos num carrapito
apertado, ainda estavam generosamente salpicados de fios pretos; os olhos castanhos eram grandes e expressivos, e o corpo baixo e amplo movia-se com passos rápidos
e seguros.
Juntamente com a mãe de Lenny, a sua irmã mais nova, tinha emigrado da Itália para os Estados Unidos pouco depois da segunda guerra mundial. Costureira habilidosa,
casara com um alfaiate da sua aldeia natal na Toscânia e trabalhara ao lado dele na minúscula loja que possuíam no Upper West Side até à morte deste, cinco anos
antes. Agora, trabalhava no apartamento ou ia a casa dos clientes dedicados, a quem cobrava uma ninharia para fazer fatos e alterações.
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Mas, como os clientes costumavam dizer uns para os outros em tom jocoso, em troca dos preços baixos de Lilly eram obrigados a dispensar uma atenção considerável
às suas histórias infindáveis sobre o problemático sobrinho Lenny.
De joelhos, com um monte de alfinetes a seu lado, os olhos alerta a medir cuidadosamente enquanto marcava a giz larguras e bainhas, Lilly suspirava e depois lançava-se
na sua litania de queixas.
O meu sobrinho. Está sempre a dar comigo em doida. Problemático desde o dia em que nasceu. Quando estava na escola: nem queira saber. Preso. Esteve numa prisão para
miúdos duas vezes. E isso endireitou-o? Não. Nunca consegue conservar um emprego. Por que não? A minha irmã, mãe dele, Deus tenha a sua alma em descanso, foi sempre
demasiado branda com ele. É claro que eu o amo... afinal de contas, é da minha carne e do meu sangue... mas ele dá comigo em doida. O que eu tenho de aguentar, com
ele a entrar a qualquer hora? De que é que ele vive, pergunto-lhe a si?
Mas agora, depois de rezar fervorosamente ao seu amado São Francisco de Assis, Lilly Maldonado tinha tomado uma decisão. Havia tentado tudo, e nada fizera diferença.
Claramente, nada mudaria Lenny, por isso ia lavar as mãos e desinteressar-se dele de uma vez por todas.
A luz na entrada era fraca e ela estava tão decidida a fazer o seu discurso que não reparou imediatamente no carrinho de bebé atrás dele.
De braços cruzados, com a voz firme, Lilly disse:
Lenny, pediste-me para ficar algumas noites. Bem, isso foi há três semanas, e não te quero mais aqui. Arruma as tuas coisas e vai-te embora.
O tom alto e estridente de Lilly acordou o já inquieto recém-nascido, e o gemido fraco transformou-se em choro.
O que...? exclamou Lilly. Depois viu o carrinho de bebé. Num movimento rápido, empurrou o sobrinho para o lado e baixou os olhos para ele. Chocada, atirou: Que é
que fizeste agora? Onde é que arranjaste aquela bebé?
Lenny pensou depressa. Não queria deixar este apartamento. Era um lugar perfeito para morar, e viver com a tia
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dava-lhe uma aura de respeitabilidade. Tinha lido o bilhete da mãe do bebé, por isso ocorreu-lhe rapidamente um plano.
É minha, tia Lilly. A mãe é uma rapariga por quem eu estava doido. Mas ela vai mudar-se para a Califórnia e quer dar a bebé para adopção. Eu não quero. Quero ficar
com a menina.
O gemido era agora um grito exigente. Punhos minúsculos socavam o ar.
Lilly abriu a trouxa que estava aos pés da criança.
A bebé está com fome anunciou ela. Pelo menos a tua namorada mandou algum leite em pó. Abriu um dos biberões e estendeu-o para Lenny. Toma, aquece isto.
A expressão dela mudou quando desenrolou os cobertores da minúscula recém-nascida, pegou na menina e a embalou nos braços quentes e reconfortantes.
Linda, bella. Como pôde a tua mãe não te querer? Olhou para Lenny. Que nome é que lhe deram?
Lenny pensou no diamante em forma de estrela do cálice.
O nome dela é Star, tia Lilly.
Star murmurou Lilly Maldonado enquanto acalmava o bebé soluçante. Na Itália ter-lhe-íamos chamado Stellina. Significa "pequena estrela".
Com os olhos semicerrados, Lenny observou o laço que se estabelecia entre a recém-nascida e a mulher de idade. Ninguém andaria à procura da bebé, pensou. Não era
como se a tivesse raptado, e, de qualquer maneira, se alguma vez se falasse alguma coisa acerca da miúda, ele teria o bilhete para provar que ela tinha sido abandonada.
Sabia que a palavra para avó em italiano era nonna. Ao voltar-se e dirigir-se rapidamente para a cozinha para aquecer o biberão, Lenny disse para si mesmo com satisfação:
"Star, minha menina pequenina, arranjei-te um lar... e tu arranjaste uma nonna."
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SETE ANOS DEPOIS
De sobrolho franzido, Willy Meehan sentou-se ao piano que a mulher, Alvirah, lhe tinha oferecido pelo sexagésimo segundo aniversário. Com profunda concentração,
tentou ler as notas no Livro de John Thompson para Principiantes Maduros.
"Talvez fosse mais fácil se cantasse também", pensou.
Dorme, minha criança, e que a paz esteja contigo começou.
"Willy tem uma voz tão boa", pensou Alvirah ao entrar no aposento. "A Noite Inteira é um dos cânticos de Natal que prefiro", reflectiu enquanto olhava afectuosamente
para aquele que era seu marido há mais de quarenta anos. De perfil, a sua semelhança com o falecido Tip O'Neill, o lendário presidente da Câmara dos Representantes,
era ainda mais surpreendente do que quando olhado de frente, concluiu. Com os abundantes cabelos brancos, as feições marcadas, os olhos azuis, inteligentes, e o
sorriso caloroso, Willy era muitas vezes alvo de olhares espantados de reconhecimento, embora já se tivessem passado vários anos desde a morte de O'Neill.
Agora, para os olhos apaixonados dela, ele parecia simplesmente esplêndido no fato azul-escuro que tinha vestido por respeito para com Bessie Durkin Maher, para
cujo velório estavam prestes a sair. Alvirah tinha trocado com relutância o fato azul-marinho número doze que planeara vestir por um vestido preto que tinha um tamanho
maior. Ela e Willy tinham acabado de regressar na noite anterior do cruzeiro às Caraíbas
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após o Dia de Acção de Graças, e a comida sumptuosa desferira um golpe mortal na sua dieta.
Deus mandar-te-á anjos da guarda cantou Willy enquanto tocava.
"O bom Senhor Deus mandou-nos realmente os seus anjos", pensou Alvirah enquanto por não querer perturbar Willy caminhava em bicos de pés até à janela para desfrutar
da vista arrebatadora para o Central Park.
Há pouco mais de dois anos, Alvirah, então mulher a dias, e Willy, canalizador, viviam em Jackson Heights, em Queens, no apartamento que haviam arrendado muitos
anos antes, quando eram recém-casados. Ela estava cansada até aos ossos depois de um dia particularmente difícil em casa da Sr.a O'Keefe, que achava sempre que o
seu dinheiro não era bem gasto se Alvirah não desviasse cada peça de mobília da casa quando aspirava. Mesmo assim, como faziam todas as sextas-feiras e sábados à
noite, tinham-se sentado a ver televisão quando os números da lotaria foram anunciados à medida que as bolas saltavam para o seu lugar. Quase tinham tido um ataque
cardíaco em conjunto quando, um após outro, os números deles, aqueles com que jogavam sempre, apareceram.
"E depois apercebemo-nos de que tínhamos ganho quarenta milhões de dólares", pensou Alvirah, ainda incrédula perante aquela boa sorte.
"No entanto, não tivemos apenas sorte, fomos abençoados", corrigiu-se a si mesma, enquanto absorvia a vista. Eram sete e um quarto, e o Central Park estava suavemente
belo com neve acabada de cair que deixara uma camada de um branco-alvo nas árvores e nos campos. Ao longe, luzes de Natal festivas iluminavam a zona que rodeava
a Tavern on the Green. Os faróis de carros e táxis formavam um rio móvel de claridade enquanto serpenteavam pelas ruas sinuosas. "Noutro sítio qualquer, pareceriam
apenas tráfego", reflectiu ela. As carruagens puxadas por cavalos, que não via agora, mas sem dúvida estavam presentes no parque, faziam-na sempre lembrar-se das
histórias que a mãe lhe contava acerca de crescer perto do Central Park na primeira parte do século. Igualmente, os patinadores que dançavam no Ringue Wollman recordavam-lhe
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os fins de tarde há muitos anos, quando ela patinara ao som de música de órgão em São Raimundo, no Bronx.
Depois de ganharem a lotaria, com a renda anual de dois milhões de dólares, menos os impostos, ela e Willy tinham-se mudado para este luxuoso apartamento. Viver
em Central Park fora sempre uma das suas fantasias, e, para além do mais, o apartamento era um bom investimento. Porém, continuavam a conservar o velho apartamento
arrendado em Jackson Heights, para a eventualidade de o Estado de Nova Iorque ir à falência e deixar de lhes pagar.
Mas, na verdade, Alvirah tinha feito bom uso da sua recente riqueza, doando bastante para caridade enquanto conseguia divertir-se imensamente. Para além disso, tivera
algumas experiências memoráveis. Tinha ido para as Termas de Cypress Point, em Peeble Beach, e quase fora assassinada lá por causa do seu faro para notícias. A experiência
revelou-se positiva quando se tornou colunista colaboradora do New York Globe, e, como uma coisa leva sempre a outra, com a ajuda do dispositivo gravador do seu
alfinete de lapela em forma de sol, tinha resolvido diversos crimes, ganhando gradualmente a reputação de uma verdadeira detective, embora não deixasse de ser uma
amadora, é claro.
A habilidade de Willy como canalizador era agora utilizada exclusivamente pela irmã mais velha, a irmã Cordelia, que cuidava dos pobres e dos idosos no Upper West
Side de Manhattan. Mantinha Willy ocupado a reparar lava-loiças e casas de banho e a colocar aquecimentos nos apartamentos que tinha a seu cargo.
Antes de partirem no cruzeiro, Willy tinha feito horas extraordinárias a reparar o primeiro andar da loja de mobílias abandonada onde Cordelia tinha uma loja de
roupas em segunda-mão. Chamada Apoio da Casa, era também um centro não oficial de tempos livres para crianças pequenas, do primeiro ao quinto ano, cujos pais estavam
a trabalhar.
Sim, Alvirah tinha concluído que ter dinheiro era uma coisa boa, desde que uma pessoa nunca se esquecesse de como viver sem ele, uma coisa que ela e Willy pretendiam
nunca fazer. "É bom podermos ajudar outras pessoas", pensou ela, "mas,
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se perdêssemos até ao último tostão do dinheiro, continuaríamos felizes desde que estivéssemos juntos."
A noite inteira concluiu Willy com um crescendo decisivo. Estás pronta para ir, querida? perguntou ele enquanto empurrava o banco do piano para trás.
Tudo pronto disse Alvirah enquanto se voltava para o olhar. Estavas óptimo. Tocas com imenso sentimento. Muitas pessoas limitam-se a tocar estas canções tão doces
a correr.
Willy sorriu com benevolência. Embora lamentasse profundamente o momento em que mencionara casualmente a Alvirah que gostava de ter tido lições de piano quando era
criança, percebeu que começava a sentir uma satisfação imensa sempre que conseguia tocar uma música sem se enganar uma única vez.
O motivo por que toquei tão lentamente é porque não conseguia ler as notas mais depressa brincou ele. De qualquer maneira, é melhor irmos andando.
A casa mortuária situava-se na Rua Noventa e Seis, logo à saída da Riverside Drive. Enquanto o táxi fazia o seu laborioso caminho para a parte alta da cidade, Alvirah
pensava nas amigas Bessie e Kate Durkin. Conhecia Bessie e Kate há muitos anos. Kate trabalhara como vendedora no Macy's e Bessie fora governanta interna de um juiz
aposentado e da sua mulher doente.
Quando a mulher do juiz faleceu, Bessie tinha pedido a demissão, alegando que não poderia de forma alguma continuar sob o mesmo tecto que o juiz sem a presença de
outra mulher.
Uma semana depois, o juiz Aloysius Maher tinha pedido a mão dela em casamento, por isso, após sessenta anos de virgindade, Bessie aceitara a oferta sem hesitar.
Depois de casada, tinha-se instalado e fizera da moradia grande e bonita do juiz, no Upper West Side, a sua casa.
Ao cabo de mais de quarenta anos de casamento, e de um casamento abençoadamente feliz, Willy e Alvirah tinham chegado ao ponto em que tipicamente pensavam no mesmo
assunto antes mesmo de o discutirem.
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Bessie sabia exactamente o que estava a fazer quando abandonou o emprego comentou Willy, as palavras a encaixarem-se perfeitamente no pensamento que Alvirah não
expressara por palavras. Ela sabia que, se não apanhasse o juiz antes de outra mulher pôr as garras nele, não teria qualquer hipótese. Tratou sempre aquela casa
como se fosse sua, e ter de sair dela tê-la-ia destroçado.
Verdade, ela gostava mesmo da casa concordou Alvirah. E, para ser justa, ela manteve a sua parte do acordo. Era uma governanta maravilhosa e sabia cozinhar como
um anjo. O juiz mal podia esperar para se sentar à mesa. Tens de admitir que ela o tratava com desvelo.
Willy nunca tinha sido fã de Bessie Durkin.
Ela sabia o que estava a fazer. O juiz só durou oito anos. Depois, Bessie ficou com a moradia e uma pensão, convidou Kate para ir viver com ela, e desde então Kate
cuidou dela com desvelo.
Kate é uma santa concordou Alvirah, mas é claro que, agora que Bessie faleceu, a moradia será dela, e terá um rendimento. Deve ficar bem amparada.
Animada pelo seu próprio comentário optimista, espreitou pela janela.
Oh, Willy, não achas que as decorações de Natal em todas as montras estão um encanto? perguntou. É uma pena que Bessie tenha morrido tão próximo dos feriados; ela
gostava tanto desta época.
Estamos apenas a quatro de Dezembro referiu Willy. Ela passou o dia de Acção de Graças.
É verdade concedeu Alvirah. Ainda bem que estivemos com ela. Lembras-te de como ela gostou do peru? Comeu tudo até ao fim.
E tudo o mais que estava à vista declarou Willy secamente. Aqui estamos nós.
No momento em que o táxi encostou ao passeio, um empregado da Casa Funerária Reading abriu-lhes a porta e, num tom discreto, disse-lhes que Bessie Durkin Maher estava
a repousar na sala leste. O cheiro pesado e doce das flores pairava na
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atmosfera silenciosa enquanto eles percorriam calmamente o corredor.
Estes lugares provocam-me arrepios comentou Willy. Cheiram sempre a cravos podres.
Na sala leste, juntaram-se a um grupo de cerca de trinta enlutados, incluindo Vic e Linda Baker, o casal que arrendara o último andar da moradia de Bessie. Estavam
junto ao topo do caixão, ao lado da irmã de Bessie, Kate, e, como se fossem da família, aceitavam as condolências com ela.
Que diabo é tudo aquilo? sussurrou Willy para Alvirah enquanto esperavam que chegasse a sua vez de falar com Kate.
Treze anos mais nova do que a sua formidável irmã, Kate era uma mulher magra de 75 anos, com uma cabeleira de cabelos grisalhos, curtos, e calorosos olhos azuis
que estavam agora marejados de lágrimas.
"Foi oprimida pela irmã a vida inteira", pensou Alvirah enquanto envolvia Kate nos braços.
Foi o melhor para ela, Kate disse com firmeza. Se a Bessie tivesse sobrevivido à trombose, teria ficado completamente inválida, e isso não era para ela.
Não concordou Kate, afastando uma lágrima. Ela não teria querido isso. Acho que pensei sempre em Bessie como minha irmã e minha mãe. Ela podia ser casmurra, mas
tinha bom coração.
Vamos sentir imensa falta dela disse Alvirah enquanto Willy soltava um suspiro profundo atrás de si.
Enquanto Willy dava um abraço fraternal a Kate, Alvirah voltou-se para Vic Baker. O seu fato de luto era tão formal que Alvirah lembrou-se imediatamente de um dos
personagens da família Addams. Baker, um homem entroncado com trinta e tal anos, com um rosto agarotado, cabelos castanho-escuros e astutos olhos azuis que pareciam
de porcelana, usava um fato preto e gravata preta. A seu lado, a mulher, Linda, também vestida de preto, segurava um lenço-de-mão junto ao rosto.
"Sem dúvida, está a tentar espremer uma lágrima", pensou Alvirah secamente. Tinha visto Vic e Linda pela primeira vez no dia de Acção de Graças. Consciente da saúde
frágil da irmã, Kate convidara Alvirah e Willy, a irmã Cordelia, a irmã Maeve
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Marie e monsenhor Thomas Ferris, o pastor da igreja de São Clemente, que residia na reitoria a algumas portas de distância da moradia de Bessie, na Rua 103 Oeste,
para partilharem o jantar do feriado com elas.
Vic e Linda tinham chegado quando eles tomavam o café, e Alvirah ficara com a sensação de que Kate tinha feito questão de não os convidar para ficarem para a sobremesa.
"Então qual será o objectivo deles ao comportarem-se como se fossem os maiores sofredores?", perguntou Alvirah a si mesma enquanto rejeitava a aparente tristeza
de Linda, considerando-a falsa.
"Muitas pessoas podem pensar que ela é bonita", admitiu Alvirah enquanto observava as feições harmoniosas de Linda, "mas eu detestaria deparar-me com o lado feio
dela. Tem uma frieza no olhar em que não confio, e aquele penteado armado, com todas as madeixas de um louro-acobreado, é um horror."
.. como se fosse a minha própria mãe estava Linda a dizer, com a voz trémula.
É claro que Willy tinha ouvido o comentário e não pôde deixar de acrescentar o seu:
Vocês arrendaram aquele apartamento há menos de um ano, não é verdade? perguntou ele.
Sem esperar uma resposta, pegou no braço de Alvirah e puxou-a para o genuflexório.
Na morte como na vida, Bessie Durkin parecia estar a controlar a situação. Com o seu melhor vestido estampado e um colar de pérolas falsas que o juiz lhe oferecera
no dia do casamento, o cabelo arranjado e penteado, Bessie tinha a expressão satisfeita de alguém que tivera o hábito bem sucedido de uma vida inteira a levar as
pessoas a fazer as coisas como ela queria.
Mais tarde, quando Alvirah e Willy saíram, despediram-se de Kate, prometendo assistir à missa de corpo presente na igreja de São Clemente e ir no carro com ela para
o cemitério.
A irmã Cordelia também vem disse-lhes Kate. Willy, tenho estado preocupada com ela esta semana em que vocês estiveram fora. Ela tem estado sob tanta tensão. Os inspectores
da cidade estão a fazê-la passar um mau bocado por causa do Apoio da Casa.
Já estávamos à espera disso disse ele. Hoje telefonei,
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mas ela tinha saído e não me telefonou. Estava à espera de a ver aqui esta noite.
Kate olhou de relance para a sala e viu Linda Baker aproximar-se deles. Baixou a voz:
Pedi à irmã para ir lá a casa depois do funeral sussurrou ela. Também quero que venham, e o monsenhor estará lá.
Despediram-se, e, como Willy disse que precisava de apanhar ar para tirar o cheiro enjoativo das flores, concordaram em andar um pouco antes de mandar parar um táxi.
Reparaste como Linda Baker veio a correr quando nos viu a falar com Kate? perguntou Alvirah a Willy enquanto caminhavam de braço dado para a Avenida Columbus.
Claro que reparei. Tenho de dizer que havia alguma coisa naquela mulher que me incomodou. E agora também estou preocupado com Cordelia. Ela já não é nada nova, e
acho que já teve mais do que a sua conta ao tentar tomar conta daqueles miúdos depois da escola.
Willy, eles só são mantidos quentes e em segurança até as mães poderem ir buscá-los depois de virem do trabalho. Como é que alguém pode estar contra isso?
A cidade pode. Quer se goste quer não, existem normas e regulamentos para se tomar conta de crianças. Pára, já estou farto deste ar frio. Aqui vem um táxi.
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Quer se goste quer não, existem normas e regulamentos disse a irmã Cordelia no dia seguinte com um suspiro, enquanto repetia inconscientemente, sem tirar nem pôr,
as palavras de Willy. Deram-me um prazo... dia um de Janeiro... e o inspector Pablo Torres disse-me que eu já estava a infringir todas as regras do livro para me
dar tanto tempo.
Era uma hora, e depois da Missa de Corpo Presente Bessie Durkin tinha sido descida para o seu eterno descanso, ao lado de três gerações de Durkins, no Cemitério
Calvary.
Willy e Alvirah, a irmã Cordelia e a sua assistente, a irmã Maeve Marie, que era uma antiga polícia do Departamento da Polícia de Nova Iorque com 29 anos, e monsenhor
Thomas Ferris estavam à mesa na casa de Bessie, a saborear o presunto da Virgínia, salada de batata caseira e biscoitos secos preparados por Kate.
Alguém quer mais alguma coisa? perguntou Kate docilmente, antes de ocupar o seu lugar à mesa.
Senta-te, Kate ordenou Alvirah. Voltou-se para Cordelia. Quais são exactamente os problemas tão terríveis, Cordelia? perguntou.
Por alguns instantes, a expressão perturbada no rosto da freira de 70 anos desapareceu. Os olhos de Cordelia suavizaram-se quando olhou para a cunhada e sorriu.
É uma coisa que nem sequer tu podes resolver, Alvirah. Temos trinta e seis miúdos, com idades compreendidas entre os seis e os onze anos, que vêm para junto de nós
depois da escola. Perguntei ao Pablo se ele preferia tê-los nas ruas. Perguntei-lhe o que estamos a fazer de errado. Damos-lhes um lanche. Conseguimos reunir alguns
miúdos do liceu que são
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de confiança e que os ajudam a fazer os trabalhos de casa e brincam com eles. Temos sempre adultos voluntários na loja de roupas em segunda-mão, por isso há sempre
vigilância suficiente. As mães ou os pais das crianças vão buscá-las às seis e meia. Não cobramos nada, é claro. As enfermeiras das escolas observaram todos os miúdos
que nós recebemos. Nunca se queixaram de nada.
Cordelia suspirou e abanou a cabeça.
Sabemos que a propriedade está a ser vendida explicou a irmã Maeve, mas só daqui a um ano, no mínimo, é que teremos de sair. Arranjámos e pintámos há pouco o primeiro
andar inteiro, onde os miúdos ficam quando lá estão, por isso não há um único bocado a descascar em lado nenhum. Mas, aparentemente, continua a ser um problema,
porque dizem que a tinta de chumbo era usada há muitos anos. A Madre Superiora perguntou ao Pablo se ele tinha dado uma vista de olhos a alguns dos lugares onde
estes miúdos vivem e comparado as condições dali com as da Apoio da Casa. Ele disse que não faz as normas. Disse que tem de haver duas saídas, e não podem incluir
a saída de emergência.
A escada tem largura suficiente para cinco miúdos descerem juntos, mas eles não consideram isso. Podíamos continuar sem parar, Maeve interrompeu a irmã Cordelia.
O que interessa é que em menos de quatro semanas teremos de fechar as portas ao programa Apoio da Casa, e, se algum daqueles miúdos aparecer, não temos outra alternativa
a não ser mandá-lo para casa, para um apartamento vazio sem a menor segurança ou supervisão.
Quando Kate pegou no bule do chá, monsenhor Ferris esticou a mão para a chávena vazia.
Obrigado, sim, Kate. E creio que chegou o momento de partilharmos a nossa boa notícia com os outros.
Kate pareceu envergonhada.
E se contasse o senhor, por favor, monsenhor?
De boa vontade. A Bessie, Deus tenha a sua alma em descanso, apercebeu-se de que o fim estava a chegar, e no dia a seguir ao dia de Acção de Graças pediu-me que
viesse cá a casa.
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"Que a notícia seja o que eu penso", rezou Alvirah em silêncio.
A compostura calma que era uma expressão habitual no rosto bondoso de monsenhor Ferris estava iluminada pelas novidades obviamente felizes que estava prestes a partilhar.
Acariciou os cabelos prateados, que ainda estavam um pouco desgrenhados por causa do vento no serviço fúnebre, e depois sorriu.
A Bessie disse-me que, é claro, em testamento tinha deixado esta casa para a irmã, bem como uma pensão que garantiria o conforto da Kate, mas a Kate tinha-lhe indicado
que gostaria de dar a casa à irmã Cordelia para o programa Apoio da Casa.
Valham-nos todos os santos! disse Cordelia fervorosamente. Oh, Kate.
Kate quereria ficar a viver no apartamento do terceiro andar que os Bakers ocupam agora. Com franqueza, Bessie não ficou muito entusiasmada com a ideia, mas sentiu
que a decisão tinha de ser tomada por Kate, e pediu-me que me certificasse de que nada correria mal com todos os preparativos.
Vocês sabem que Bessie me tratou sempre como se eu não conseguisse encontrar o caminho até à loja disse Kate afectuosamente.
Eu disse a Bessie que, com a reitoria apenas a três portas de distância, não haveria problema em dar uma olhada a tudo, embora também lhe tenha dito que Kate é muito
capaz de tratar dos seus assuntos explicou o monsenhor.
Vou adorar ter a Apoio da Casa aqui disse Kate. Quis oferecer-me como voluntária para ajudar desde que a abriste, Cordelia, mas a Bessie precisava de mim.
Monsenhor Ferris levantou-se, a sorrir enquanto observava a notícia a registar-se no rosto da irmã Cordelia.
Eu acreditei sempre que a previdência devia ser considerada uma virtude cardeal anunciou ele. Por acaso, tenho uma garrafa de champanhe a refrescar no balde de gelo.
Acho que é apropriado fazermos um brinde às irmãs Durkin, Bessie e Kate.
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"É uma notícia tão maravilhosa. Então por que é que eu estou tão preocupada?", perguntou Alvirah a si mesma. "Por que é que tenho a certeza de que alguma coisa vai
correr mal?" Mentalmente, examinou as possibilidades de uma forma muito semelhante à que utilizaria a língua para procurar a fonte de uma dor de dentes. Só levou
um instante a encontrar a fonte da sua preocupação: os Bakers.
Tens a certeza de que consegues pôr os Bakers fora, Kate? perguntou ela. Hoje em dia é tão fácil as pessoas livrarem-se de inquilinos.
Tenho a certeza absoluta disse Kate com firmeza. O arrendamento é por um ano, e acaba em Janeiro. Existe uma cláusula específica que diz que a renovação depende
unicamente do proprietário. Lembras-te de como tivemos aquele rapaz que era maníaco por exercício físico? Pelo menos uma vez por semana deixava cair um peso, e sempre
a meio da noite. Bessie tinha a certeza de que a casa iria ceder. Sabes como ela adorava este lugar. Depois de, por fim, se ver livre dele, ela acrescentou essa
cláusula ao arrendamento para os novos arrendatários.
Parece que pensaste em tudo observou Willy.
Lamento muito ter de lhes dizer que têm de se mudar, mas, para falar com franqueza... vou ficar aliviada quando eles saírem disse Kate. Vic Baker está sempre no
meio do caminho, à procura de coisas para arranjar pela casa toda. Até parece que é dono de tudo.
Quando saíram, uma hora depois, Willy e Alvirah acompanharam monsenhor Ferris até à porta da reitoria. O céu já nublado estava agora completamente carregado de nuvens.
O vento tinha-se tornado cortante e o frio agreste e húmido penetrava até aos ossos.
Prevê-se um Inverno longo disse Alvirah. Imaginam ter de dizer àquelas crianças daqui a algumas semanas que não podem ir para a Apoio da Casa, onde estão em segurança
e quentes e confortáveis?
Era uma pergunta retórica, é claro, e mesmo enquanto a fazia Alvirah só estava a ouvir parcialmente. A sua atenção
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estava mais virada para a rua, onde uma mulher jovem em fato-de-treino estava de pé, a olhar para a reitoria.
Monsenhor Tom disse ela. Repare naquela mulher. Não acha que há alguma coisa estranha na forma como está simplesmente ali parada?
Ele acenou afirmativamente.
Vi-a lá ontem, e esta manhã estava na primeira missa. Apanhei-a antes de ela sair e perguntei-lhe se podia ajudá-la de alguma forma. Ela limitou-se a abanar a cabeça
e quase saiu a correr. Se tem um problema que quer discutir comigo, acho que terei de a deixar aproximar-se.
Willy pousou uma mão controladora no braço de Alvirah.
Não te esqueças de que nos esperam na Apoio da Casa para ajudar Cordelia com o ensaio para o espectáculo de Natal recordou-lhe ele.
Queres dizer com isso que não me devo meter na vida dos outros. Bem, suponho que tens razão disse Alvirah alegremente.
Olhou uma vez mais para o outro lado da rua. A jovem afastava-se rapidamente, em direcção a oeste. Alvirah franziu os olhos para ver bem o seu perfil clássico, ao
mesmo tempo que admirava o porte familiar.
Parece-me conhecida disse ela terminantemente. Vou ter de me concentrar.
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"Estão a falar de mim", pensou Sondra enquanto se afastava rapidamente. A moradia defronte da qual tinha parado já não estava em obras, como antes. Hoje não havia
andaime para a esconder enquanto ela decidia o que fazer.
Mas que podia ela fazer? Certamente, não poderia ter de volta aquele momento de há sete anos quando atravessara a rua, abrira o carrinho de bebé e deixara a sua
bebé na soleira da reitoria. Se pudesse. "Se pudesse", pensou. Depois: "Bom Deus, para onde posso voltar-me? Que lhe aconteceu? Quem ficou com a minha pequenina?"
Lutou para afastar as lágrimas.
Um táxi com a luz acesa parou no meio do tráfego. Levantou a mão para fazer sinal ao motorista.
Para o Wyndham, na Cinquenta e Oito Oeste, entre a Quinta e a Sexta disse ao entrar para o banco de trás.
É a sua primeira visita a Nova Iorque? perguntou o motorista.
Não.
"Mas não venho cá há sete anos", pensou. A primeira visita acontecera quando tinha 12 anos e o avô a tinha trazido de Chicago para um concerto de Midori no Carnegie
Hall. Depois disso, trouxera-a duas vezes. "Um dia tocarás naquele palco", prometera-lhe solenemente. "Tu tens o dom. Podes ser tão famosa como ela."
Violinista cujas mãos tinham sido limitadas pela artrite, interrompendo-lhe precocemente a carreira, o avô ganhava a vida como professor e crítico de música. "E
apoiou-me", pensou Sondra com tristeza... "quando tinha 60 anos, recebeu-me."
Ela tinha apenas 10 anos quando os pais tinham falecido num acidente. "O avô dedicou-se a mim, ensinou-me tudo o que
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sabia sobre música", lembrou a si mesma. "E usou todo o dinheiro que lhe sobrava para me levar a ouvir os grandes violinistas."
O seu talento proporcionara-lhe uma bolsa de estudo para a Universidade de Birmingham, e fora ali, na Primavera do seu ano de caloira, que conhecera Anthony del
Torre, um pianista que estava de visita à universidade para dar um concerto. O que se seguira nunca deveria ter acontecido.
"Como poderia eu ter dito ao avô que me tinha envolvido com um homem que sabia que era casado?", perguntou a si mesma agora. "Não podia ter ficado com a bebé. Não
havia dinheiro para pagar a uma pessoa que ajudasse. Tinha anos de estudo à minha frente. E, se lhe tivesse contado o que acontecera, ter-lhe-ia destroçado o ccoração."
À medida que o táxi abria caminho pelo tráfego lento, Sondra recordou aqueles tempos difíceis. Pensou em como tinha poupado dinheiro para vir a Nova Iorque, recordou-se
de ter ido para um hotel barato no dia 30 de Novembro, de comprar roupas de bebé e fraldas, os biberões e o leite em pó e o carrinho de bebé. Tinha localizado o
hospital mais próximo do hotel e planeara ir para as urgências quando entrasse em trabalho de parto. É claro que teria de dar um nome e uma morada falsos. Mas a
bebé viera tão depressa no dia 3 de Dezembro; não houvera tempo para ir para o hospital.
No início da gravidez tinha decidido que Nova Iorque era onde deixaria a bebé. Adorava a cidade. Desde a primeira visita ali com o avô, sabia que um dia viveria
em Manhattan. Tinha-se sentido imediatamente em casa ali. Naquela primeira visita, o avô levara-a a São Clemente, a igreja que frequentara quando era garoto. "Sempre
que queria um favor especial, ajoelhava-me no genuflexório perto do retrato do bispo Santori e do seu cálice", disse-lhe ele. "Deles, recebi sempre consolo. Fui
lá quando me apercebi de que não havia esperança para os dedos hirtos, Sondra. Foi a altura em que estive mais perto do desespero."
Nos diversos dias antes de a bebé nascer, Sondra entrara e saíra sorrateiramente de São Clemente; tinha-se ajoelhado sempre naquele genuflexório. Observara o sacerdote;
vira a
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bondade no rosto de monsenhor Ferris e sabia que podia confiar nele para encontrar um bom lar para a bebé.
"Onde está a minha bebé agora?", pensou Sondra, desesperada. Estava em agonia desde o dia anterior. Logo que chegara ao hotel, tinha telefonado para a reitoria e
dissera que era repórter e que estava a investigar a história da bebé que fora deixada junto à porta da reitoria no dia 3 de Dezembro, sete anos antes.
A surpresa na voz da secretária avisara-a do que estava para vir.
Uma bebé deixada na igrej a de São Clemente?! Lamento, mas está equivocada. Estou aqui há vinte anos e nunca aconteceu nada desse género.
O táxi virou para Central Park Sul. "Eu, acordada, costumava sonhar que talvez as pessoas que tinham adoptado a bebé andassem a passeá-la aqui no carrinho, pelo
parque", pensou Sondra, "onde a bebé podia ver os cavalos e as carruagens."
Ao fim da tarde do dia anterior tinha ido à biblioteca pública e pedira o microfilme dos jornais de Nova Iorque do dia 4 de Dezembro de há sete anos. Naquele dia,
a única referência feita a São Clemente era um artigo acerca de um roubo ocorrido naquela igreja, relatando que o cálice do bispo Santori, o pastor que fundara aquela
igreja e a quem muitos dos devotos rezavam, fora roubado.
"Provavelmente, era por isso que a Polícia lá estava quando eu telefonei naquela noite; era por isso que o monsenhor estava na rua", pensou Sondra, cada vez mais
angustiada. "E eu acreditei que era porque tinham encontrado a bebé."
Então, quem tinha levado a bebé? Deixara-a num saco de compras de papel para que ficasse mais quente. Talvez alguns miúdos tivessem passado e empurrado o carrinho
de bebé e o tivessem abandonado, sem sequer perceberem que estava lá uma criança. E se a bebé tivesse morrido de frio?
"Eu teria ido para a prisão", pensou Sondra. "Que é que isso teria feito ao avô? Ele está sempre a dizer-me que todos os sacrifícios que fez ao longo de todos estes
anos valeram a pena devido ao que eu me tornei. Ele tem tanto orgulho por eu ir dar um concerto em Carnegie Hall no dia 23 de Dezembro. Foi
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sempre o sonho dele... primeiro para si próprio, depois para mim."
A festa de caridade recheada de celebridades apresentá-la-ia aos críticos de Nova Iorque. Yo-Yo Ma, Plácido Domingo, Kathleen Battle, Emanuel Ax e a brilhante jovem
violinista Sondra Lewis eram as atracções principais. Ela ainda tinha dificuldade em acreditar.
Chegámos, menina disse o motorista num tom de voz irritado. Atordoada, Sondra percebeu que a irritação do homem se devia ao facto de já lhe ter dito aquilo uma vez.
Oh, desculpe. O taxímetro marcava 3 dólares e 40 cêntimos. Ela procurou na carteira uma nota de cinco dólares. Deixe ficar assim disse ela. Abriu a porta e preparou-se
para sair.
Não acredito que queira realmente dar-me uma gorjeta de quarenta e cinco dólares, menina.
Sondra olhou para a nota de cinquenta dólares que o motorista do táxi lhe estendia.
Oh, obrigada gaguejou ela.
É um grande erro, senhora. A sua sorte é que eu não me aproveito de mulheres bonitas.
Enquanto trocava a nota de cinquenta por uma nota de cinco dólares, pensou: "É uma pena não ter estado por perto quando troquei a minha bebé pela opinião favorável
do meu avô e pela minha própria hipótese de sucesso."
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Quando chegaram ao edifício na Avenida de Amesterdão anteriormente o Empório de Mobílias Goldsmith e Filho, que agora albergava a loja de roupas em segunda-mão da
irmã Cordelia, Alvirah e Willy foram directamente para o primeiro andar.
Eram quatro horas da tarde e as crianças que vinham regularmente para a Apoio da Casa para aproveitar as facilidades após a escola estavam sentadas no chão com as
pernas cruzadas, à volta da irmã Maeve Marie. A grande área tinha sido transformada numa espécie de auditório claro e alegre. O linóleo desbotado fora polido ao
ponto de até as pranchas de madeira por debaixo dos espaços gastos brilharem.
As paredes estavam pintadas de amarelo-forte e decoradas com desenhos e recortes feitos pelas crianças. Radiadores antiquados assobiavam e faziam ruídos surdos,
mas, graças a Willy e à sua habilidade quase mágica para reparar o irreparável, não havia dúvidas quanto ao calor que geravam.
Hoje é um dia muito especial estava a dizer a irmã Maeve Marie. Vamos começar a ensaiar para o nosso espectáculo de Natal.
Willy e Alvirah deslizaram para bancos perto da escada e observaram afectuosamente. Voluntária regular na Apoio da Casa, Alvirah era a responsável pela festa que
se seguiria ao espectáculo, e Willy faria de Pai Natal.
Os olhos expectantes e vivos das crianças estavam presos na irmã Maeve Marie enquanto esta explicava:
Hoje vamos começar a aprender canções de Natal e de
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Chanukah que cantaremos no espectáculo. Depois vamos estudar as nossas deixas.
Não é maravilhoso Cordelia e Maeve terem o cuidado de que todos tenham um papel com falas? sussurrou Alvirah.
Toda a gente? Bem, esperemos que seja um papel com falas curtas replicou Willy.
Alvirah sorriu.
Não estás a falar a sério.
Queres apostar?
Chiu. Deu-lhe uma pancadinha na mão enquanto a irmã Maeve Marie lia os nomes das crianças que seriam escolhidas para dizer a história do Chanukah. Rachel, Barry,
Sheila...
Cordelia apareceu vinda do andar inferior e, com o olhar treinado, observou as crianças. Ao ver que estava a instalar-se confusão, dirigiu-se a Jerry, o irrequieto
menino de 7 anos que estava a beliscar o rapazinho com 6 anos que se encontrava sentado ao seu lado.
Bateu-lhe levemente.
Continua com isso e arranjo outro São José avisou ela, e depois voltou-se e foi para junto de Alvirah e Willy. Quando voltei havia outra mensagem de Pablo Torres
disse. Tinha ido interceder a nosso favor, e acredito sinceramente que deu o seu melhor, mas diz que não conseguiu prorrogar o prazo para manter este lugar aberto.
Creio que ficou tão feliz como eu ao ouvir falar na casa de Bessie. Ele conhece o quarteirão e disse que não vai haver problema nenhum para transferirmos o nosso
centro para lá. Até poderemos receber mais miúdos.
Uma das voluntárias das vendas de roupa da loja subiu as escadas a correr.
Irmã, Kate Durkin está ao telefone e pede para falar com a senhora. Depressa; ela está a chorar convulsivamente.
1 Festa judaica das luzes, que comemora a purificação do Templo em
165 a. C. (N. da T.)
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Não restavam quaisquer vestígios do almoço festivo que tinham digerido apenas algumas horas antes. Mas uma vez mais Willy, Alvirah, monsenhor Ferris e a irmã Cordelia
sentaram-se à mesma mesa onde tinham comido mais cedo naquele mesmo dia. Kate estava com eles, a chorar baixinho.
Falei com os Bakers há uma hora contou ela. Disse-lhes que ia entregar a casa à Apoio da Casa e que não podia renovar-lhes o arrendamento.
E dizes que eles apareceram com um novo testamento?
perguntou Willy, incrédulo.
Sim. Disseram que Bessie tinha mudado de ideias, que não estava nem um pouco contente com a perspectiva de ter a casa destruída por um bando de miúdos. Também me
disseram que ela tinha dito que as reparações que Vic fez e a pintura que ele fez mostravam que eles manteriam a casa num estado impecável, exactamente como ela
queria. Sabem o quanto ela gostava desta casa.
"Ela casou com o juiz para ficar com ela", pensou Alvirah secamente.
Quando é que ela o assinou?
Há apenas alguns dias, a 30 de Novembro.
Ela mostrou-me o testamento anterior quando eu vim visitá-la no dia 27 de Novembro disse monsenhor Ferris.
Na altura, pareceu-me bastante feliz com ele. Foi quando me pediu que me certificasse de que Kate ficava no apartamento depois de transferir a casa para o programa
da Apoio da Casa.
Bessie deixou-me um rendimento, e, de acordo com o novo testamento, tenho autorização para viver no apartamento da moradia dos Bakers, sem pagar renda. Como se eu
ficasse aqui
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com aquelas pessoas! As lágrimas corriam agora livremente pelo rosto de Kate. Não posso acreditar que Bessie me fez uma coisa destas. Deixar esta casa a estranhos
como aquelas pessoas. Ela sabia que eu não gostava dos Bakers. E arranjar um apartamento noutro lado qualquer é impossível. Vocês sabem como são os preços em Manhattan.
"Kate está assustada e está zangada e está magoada", pensou Alvirah. "Mas pior ainda..." Olhou para o outro lado da mesa e pensou que, pela primeira vez desde que
a conhecia, Cordelia parecia ter a idade que realmente tinha.
Captou o olhar da cunhada e disse:
Cordelia, nós vamos pensar em alguma coisa para manter a Apoio da Casa em funcionamento, prometo-te.
Cordelia abanou a cabeça.
Não em menos de quatro semanas disse ela. Não, a menos que a era dos milagres não tenha acabado.
Monsenhor Ferris tinha estado a analisar atentamente a cópia do testamento que Vic Baker apresentara a Kate.
Pela minha experiência, parece absolutamente legítimo comentou. Foi escrito no papel de carta de Bessie, nós sabemos que ela escrevia bem à máquina, e aquela é seguramente
a assinatura dela. Dê uma vista de olhos, Alvirah.
Alvirah passou os olhos pela página e meia e depois releu-a cuidadosamente.
Não há dúvida de que parece da Bessie admitiu. Escuta, Willy. "Uma casa é como um filho, e quando uma pessoa se aproxima do fim torna-se importante entregar essa
casa à protecção daqueles que cuidem dela da forma mais adequada. Não posso sentir-me bem sabendo que a presença diária de muitas crianças pequenas mudará completamente
a aparência e o carácter da casa prístina pela qual me sacrifiquei tanto."
Ela está a referir-se ao facto de se ter casado com o juiz Maher? perguntou Willy. Ele até não era má pessoa.
Alvirah encolheu os ombros e continuou a ler.
Portanto, deixo a minha casa a Victor e a Linda Baker, que cuidarão dela de uma forma adequada à sua qualidade distinta.
Qualidade distinta, não há dúvida! escarneceu ela ao pousar o testamento em cima da mesa. Que poderia ser mais
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distinto do que dar uma ajuda às crianças? Voltou-se para o monsenhor. Quem testemunhou este papel miserável?
Dois dos amigos dos Bakers respondeu monsenhor Ferris. Vamos arranjar um advogado, é claro, apenas para saber se podemos fazer alguma coisa, mas não há dúvida de
que me parece legítimo.
Willy tinha estado a observar Alvirah durante os últimos minutos.
As células do teu cérebro estão a trabalhar, querida. Vê-se disse ele.
Claro que estão reconheceu Alvirah enquanto levava a mão ao alfinete de lapela com a forma de um sol e ligava o microfone.
Este testamento pode parecer de Bessie de muitas maneiras, mas, Kate, alguma vez a ouviste usar a palavra "prístina"?
Não, não tenho ideia disse Kate lentamente.
Que género de coisas é que ela dizia quando falava sobre a casa? perguntou Alvirah, continuando o seu exame ao novo testamento.
Oh, tu conheces a Bessie. Gabava-se de que se podia comer uma refeição de sete pratos no chão... esse género de coisas.
Exactamente disse Alvirah. Sei que parece mau, mas todos os ossos do meu corpo me dizem que este testamento é falso. E, Kate, Cordelia... prometo-vos que, se houver
uma forma de o provar, eu vou descobri-la. Estou a tratar do assunto!
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A irmã Maeve Marie tinha ficado na Apoio da Casa e continuara o ensaio para o espectáculo de Natal, embora no íntimo evocasse o pior cenário possível para explicar
por que é que a irmã Cordelia, Willy e Alvirah tinham saído a toda a pressa para ver Kate Durkin.
"Alguma coisa correu mal, e Kate está perturbadíssima", fora tudo o que Cordelia tivera tempo de dizer antes de sair.
Seria possível que Kate tivesse sido assaltada ou atacada?, perguntou Maeve Marie para si mesma. Sabia que por vezes os criminosos procuravam os obituários nos jornais
e assaltavam a casa do falecido quando pensavam que os familiares enlutados se encontravam no funeral. A própria Maeve Marie já tinha sido polícia na cidade de Nova
Iorque e tinha quatro irmãos polícias, por isso pensou instantaneamente em potencial actividade criminosa.
Todas as crianças da Apoio da Casa tinham recebido os seus papéis para o espectáculo, e tinham-lhes dito para ensaiarem as suas falas em casa. A história do Chanukah
seria recitada no princípio do espectáculo, imediatamente seguida pela canção Chanukah.
A seguir viria a cena na qual era lido o decreto de César Augusto, a proclamar um recenseamento e a ordenar a todas as pessoas que se dirigissem para a aldeia dos
seus antepassados para serem registadas.
A peça tinha sido escrita por Cordelia e Alvirah, e Maeve Marie elogiara-as ao incluir tantos papéis com falas naquela primeira cena. Os miúdos tinham adorado aquilo.
Para além disso, as deixas eram ao mesmo tempo simples e conhecidas.
"Mas a aldeia do meu pai fica tão longe."
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"É uma viagem tão longa, e não há ninguém para cuidar das crianças.
"Temos de encontrar alguém, porque nada é mais importante do que as nossas crianças estarem em segurança."
Cordelia tinha confessado que estava a tomar algumas liberdades em relação a determinadas partes do diálogo, mas convidara os inspectores de alojamento para o espectáculo
e queria ter a certeza de que lhes fazia chegar a mensagem: Nada é mais importante do que as nossas crianças estarem em segurança.
As únicas crianças a quem não tinham sido atribuídas falas ao acaso eram os três reis magos, os pastores, a Virgem Maria e São José. Os que tinham sido escolhidos
para esses papéis eram os melhores cantores do grupo e conduziriam o cântico na cena do estábulo.
Jerry Nunez, o mais reguila entre as crianças mais pequenas, seria São José, e Stellina Centino, uma menina estranhamente calma, de 7 anos, era Maria.
Stellina e Jerry viviam no mesmo prédio, e a mãe de Jerry ia buscar as duas crianças ao fim do dia.
A mãe de Stellina partiu para a Califórnia quando ela era bebé explicara a Sr.a Nunez às freiras. E o pai dela está muitas vezes fora. Ela foi criada pela tia-avó,
Lilly, mas ultimamente Lilly tem estado muitas vezes doente, pobre mulher. E preocupa-se tanto. Não fazem ideia do quanto ela se preocupa com Stellina. Diz: "Gracie,
tenho oitenta e dois anos; tenho de conseguir viver mais dez anos para poder criá-la. É essa a minha oração.
"Stellina é uma criança tão bonita", pensou Maeve enquanto esboçava o quadro final do espectáculo. Os cabelos louro-escuros encaracolados que estavam presos na nuca
por um gorro caíam-lhe pelas costas. A sua compleição de porcelana era realçada pelos olhos castanho-escuros, emoldurados por pestanas pretas.
Jerry, que não era capaz de estar quieto, começou a fazer caretas para um dos pastores. Antes de Maeve Marie ter hipótese de o repreender, Stellina disse:
Jerry, quando és São José, tens de ser muito bom.
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Está bem concordou Jerry imediatamente, e assumiu uma postura gelada, de um decoro quase exagerado.
O coro de anjos vai começar a cantar, os pastores vêem os anjos e escutam, e tu, Tommy, apontas para eles e... depois o que é que dizes? perguntou a irmã Maeve Marie.
Eu digo "Diabos, os anjos infernais cantam" sugeriu o pequeno Tommy, de apenas 6 anos.
A irmã Maeve Marie esforçou-se para não sorrir. "Não nos levem para a Estação da Pensilvânia", pensou ela... "Era o que os meus irmãos costumavam dizer-me para dizer."
Em casa, Tommy tinha um irmão mais velho que tinha a mania que era esperto; o mais certo era ele ter estado a ensaiar o irmão mais novo.
Tommy, tens de aprender como deve ser, e se não prestares atenção não podes ser o chefe dos pastores disse ela com firmeza.
O ensaio terminou às seis horas. Enquanto cumprimentava as crianças pelos seus desempenhos, Maeve Marie concluiu que, para uma primeira tentativa, não tinha corrido
nada mal. E o melhor é que os miúdos estavam a gostar.
Ela também tinha gostado, embora o prazer que sentia ao ver as crianças aprenderem os seus papéis estivesse misturado com a preocupação e a sensação crescente de
mal-estar: Onde estava Cordelia, e que é que correra mal?
Enquanto ajudava a procurar blusões e luvas e cachecóis, Maeve reparou que, como era costume, Stellina tinha pendurado cuidadosamente o seu blusão azul de Inverno
de confecção impecável, que, segundo a menina explicara com orgulho, a nonna fizera para ela.
Às seis e meia, todas as crianças com excepção de Jerry e Stellina tinham ido para casa, depois de a maior parte ter esperado por um adulto ou um irmão mais velho
que os acompanhasse. Às sete e um quarto, a irmã Maeve Marie trouxe os dois para baixo, para a loja de roupas em segunda-mão, que agora estava fechada. Cinco minutos
depois, Gracie Nunez entrou esbaforida.
O meu patrão disse ela, a rolar os olhos. Tínhamos de terminar algumas saias. Duas das raparigas não apareceram.
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Se tivesse dito que tinha dois miúdos para cuidar, teria ficado sem emprego. Deus a abençoe, irmã. Não faz ideia do que significa para mim saber que os miúdos estão
em segurança convosco. Jerry, diz boa noite e obrigado à irmã. Stellina não precisava de que a avisassem.
Boa noite, irmã disse ela em voz baixa. E muito obrigada. Depois, com um sorriso, acrescentou: A avó está muito contente por eu ser a Virgem Maria. Ouve-me a recitar
as minhas falas todas as noites, e quando está a ouvir chama-me Madonna.
Maeve olhou para a porta atrás deles e começou a apagar as luzes rapidamente. Pensou que Cordelia estava ainda com Kate Durkin ou parara para visitar alguma das
companheiras mais velhas. Suspirou, preocupada com o género de notícia que lhe daria quando chegasse a casa.
Quando vestia o casaco, ouviu bater à janela da frente. Voltou-se para ver o rosto de um homem que aparentava ter quarenta e tal anos, com as feições iluminadas
pela luz da rua. Maeve olhou para ele com uma sensação intuitiva de desassossego característica de uma ex-polícia.
Irmã, a minha menina ainda está cá? Estou a referir-me a Stellina Centino disse ele.
O pai de Stellina! Maeve dirigiu-se rapidamente para a porta e abriu-a. Com distanciamento profissional, estudou o homem de rosto magro e desconfiou de imediato
da sua vaga beleza e da expressão tímida.
Lamento, Sr. Centino disse com frieza, não estávamos à sua espera. Stellina foi para casa com a Sr.a Nunez, como sempre.
Oh, sim, está bem disse Lenny Centino. Esqueci-me. O meu trabalho obriga-me a estar muito tempo fora da cidade. Muito bem, irmã. Voltaremos a ver-nos na próxima
semana. Estou a pensar vir buscá-la algumas noites. Levá-la a jantar e talvez até ao cinema. Quero dar um prazer a Star. Estou orgulhoso dela. Está a transformar-se
numa miúda muito bonita.
Deve orgulhar-se. Ela é uma criança linda em todos os aspectos disse Maeve Marie bruscamente. Deixou-se ficar
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parada à porta a vê-lo afastar-se. Sentiu alguma coisa perturbadora e inquietante naquele homem.
Ainda terrivelmente preocupada com a irmã Cordelia, verificou uma última vez as instalações, ligou o sistema de segurança e foi a pé para casa no meio da poeira
de neve que prometia transformar-se noutra forte tempestade.
Encontrou a irmã Cordelia com a irmã Bernadette e a irmã Catherine, duas freiras idosas, aposentadas, que partilhavam o seu apartamento-convento.
Maeve, confesso que estou cansada até à alma disse Cordelia, e depois começou a contar-lhe a história do testamento novo deixado por Bessie Durkin Maher.
Imediatamente desconfiada, Maeve fez perguntas acerca do novo documento:
Para além da utilização da palavra "prístina", há mais alguma coisa que sugira que o testamento é falso?
Cordelia sorriu com ar triste.
Apenas o instinto de Alvirah disse.
A irmã Bernadette, que faria 90 anos no próximo aniversário, tinha estado a abanar a cabeça numa poltrona.
O instinto de Alvirah e uma coisa que o Senhor nos disse, Cordelia disse ela. Todas vocês sabem a que me refiro.
Sorrindo ao ver as expressões intrigadas de todas, ela murmurou:
"Ajudai as crianças e vireis para junto de mim." Não creio que Bessie se tivesse esquecido disso, por muito orgulho que tivesse na casa.
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Stellina guardava a chave do apartamento num bolso do casaco que tinha fecho. A nonna tinha-lha dado, mas fizera-a prometer que nunca contaria a ninguém que a tinha
ali. Agora utilizava-a sempre quando chegava a casa para que a nonna não tivesse de se levantar se estivesse a descansar.
Dantes, quando chegava a casa depois da escola, encontrava a nonna a coser no pequeno quarto onde o pai dormia sempre que estava em casa. Então bebiam leite e comiam
bolachas, e, se a nonna tinha roupas para entregar ou alguém a quem tinha de fazer uma bainha ou um vestido novo, Stellina acompanhava a tia-avó e ajudava-a a carregar
os sacos e caixas para as casas das senhoras.
Mas ultimamente a nonna ia muito à clínica, e era por isso que a Sr.a Nunez sugerira que Stellina devia ir para a Apoio da Casa todos os dias depois da escola.
Algumas noites, se a nonna se sentia bem, Stellina chegava a casa e encontrava-a na cozinha, o jantar a cozinhar no fogão e o apartamento inundado pelo cheiro bom
e quente de molho para massa. Mas esta noite encontrou a nonna deitada na cama, com os olhos fechados. No entanto, Stellina viu que ela não estava a dormir, porque
os seus lábios moviam-se. "Provavelmente está a rezar", pensou Stellina. A nonna rezava muito.
Stellina inclinou-se para lhe dar um beijo.
Já cheguei, nonna.
A nonna abriu os olhos e suspirou.
Estava tão preocupada. O teu papá veio cá a casa. Disse que ia à Apoio da Casa. Disse que queria ir sair contigo. Eu não quero que saias com ele. Se ele aparecer
lá alguma vez, a perguntar por ti, diz que a nonna quer que venhas para casa com a Sr.a Nunez.
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O papá está em casa? perguntou Stellina, esforçando-se por esconder a perturbação que sentira ao ouvir a novidade. Não diria nem sequer à nonna que lamentava que
ele tivesse reaparecido, mas lamentava. Sempre que o pai estava em casa, ele e a nonna discutiam muito. E Stellina também não gostava de sair com ele, porque por
vezes visitavam pessoas e ele também discutia com elas. Às vezes as pessoas davam-lhe dinheiro e ele discutia por causa disso, dizendo normalmente que alguma coisa
que ele lhes tinha dado valia muito mais do que o dinheiro que recebera.
A nonna apoiou-se no cotovelo, sentou-se e depois saiu da cama muito lentamente.
Deves estar com fome, cara. Vem. Vou fazer-te o jantar. Stellina estendeu o braço para ajudar a nonna a equilibrar-se enquanto esta se levantava.
És uma menina tão boa murmurou a nonna enquanto se encaminhava para a cozinha.
Stellina estava com fome, e a massa da nonna era sempre muito boa, mas esta noite foi difícil comer devido à preocupação que sentia pela tia-avó. A nonna parecia
tão perturbada, e tinha a respiração acelerada, como se tivesse estado a correr.
O clique da fechadura da porta da frente disse-lhes que o papá tinha chegado a casa. A nonna começou imediatamente a franzir o sobrolho, e a boca de Stellina ficou
seca. Sabia que em breve haveria uma discussão.
Lenny veio para a cozinha, correu para Stellina e pegou nela ao colo. Rodopiou com ela e beijou-a.
Star, filha disse ele. Senti a tua falta. Stellina tentou soltar-se. Ele estava a magoá-la.
Põe-na no chão, seu animal! gritou a nonna. Sai daqui! Mantém-te longe daqui! Não és bem-vindo! Vai-te embora! Deixa-nos em paz!
Lenny não demonstrou a sua raiva habitual. Limitou-se a sorrir.
Tia Lilly, talvez eu vá embora para sempre, mas se isso acontecer levo a Star comigo. Nem a senhora nem ninguém poderá impedir-me. Não se esqueça, eu sou o pai dela.
Depois, girou sobre os calcanhares e saiu, batendo com a
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porta atrás de si. Stellina percebeu que a nonna estava a tremer e que tinha gotas de suor na testa.
Nonna, nonna, está tudo bem disse ela. Ele não me vai levar daqui.
A nonna começou a chorar.
Stellina disse ela, se alguma vez eu adoecer e não puder ficar aqui contigo, não deves nunca ir com o teu pai. Peço à Sr.a Nunez para tomar conta de ti. Mas promete-me
que nunca irás com ele. Ele não é um homem bom. Mete-se em sarilhos.
Enquanto tentava consolá-la, Stellina ouviu a tia-avó sussurrar:
Ele é o pai. Ele é o tutor. Bom Deus, bom Deus, que é que posso fazer?
Stellina perguntou a si mesma por que é que a sua nonna estava a chorar.
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Como era habitual quando estava a tentar resolver um possível crime, Alvirah não dormiu o sono dos justos. Desde o momento em que ela e Willy apagaram a luz, a seguir
ao noticiário das onze horas, a que tinham assistido na cama, Alvirah estava inquieta. Passou as seis horas seguintes a dormitar, com o sono leve repleto de sonhos
vagos e inquietantes; depois acordou sobressaltada.
Por fim, às cinco e meia, decidiu ter pena de Willy, que tinha murmurado frequentemente durante o sono: "Estás bem, querida?", levantou-se, vestiu o seu robe favorito
de chenille, prendeu o alfinete de lapela com o microfone minúsculo escondido, pegou na caneta e no bloco de apontamentos no qual mantinha o registo das investigações
em curso, fez uma chávena de chá, instalou-se na pequena mesa de jantar com vista para o Central Park, ligou o microfone do alfinete e começou a pensar em voz alta.
Não me espanta muito que Bessie, que foi sempre uma verdadeira agarrada e uma chata em relação à casa, a tivesse deixado a pessoas que pensava que cuidariam dela
de uma certa forma. Quero dizer, não é como se estivesse a correr com a irmã. Afinal de contas, ela garantiu que Kate ficaria com o apartamento do andar de cima,
que, no fundo, é onde ela tinha pensado viver quando doasse a posse da moradia à Apoio da Casa.
O queixo de Alvirah espetou-se inconscientemente enquanto ela continuava.
Se bem me lembro, Bessie nunca gostou muito de crianças. Na verdade, recordo-me de que, quando alguém lhe perguntava se ela lamentava não ter tido uma família, ela
respondia:
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"Pessoas com filhos e pessoas sem filhos sentem pena umas das outras."
Alvirah fez uma curta pausa, a pensar no quanto ela e Willy teriam adorado ter uma família. Agora, os netos teriam provavelmente a idade dos miúdos que vira ontem
na Apoio da Casa. Abanou a cabeça. Bom, não importava. "Não estava escrito", pensou rispidamente.
Então vamos presumir continuou ela que Bessie ficou realmente preocupada com a perspectiva de ter miúdos a correr pela sua preciosa casa e a deixar dedadas nas paredes
e arranhões nas madeiras, e, é claro, tomou consciência de que a mobília que polira desde que fora trabalhar para o juiz e a mulher há cinquenta anos seria substituída
por parafernália de crianças.
Alvirah lembrou-se de verificar o microfone e carregou nos botões PARAR, REBOBINAR E TOCAR e escutou a gravação durante alguns momentos.
"Funciona", disse para si mesma, satisfeita, "e parece que a minha cabeça está a funcionar a todo o vapor. E está mesmo!", decidiu.
Aclarou a garganta e recomeçou a récita indignada.
Nesse caso, a única pista verdadeira que temos até ao momento para mostrar que este novo testamento pode ser falso é que jamais alguém ouviu Bessie usar a palavra
"prístina".
Pegou na caneta e procurou a primeira secção não usada do bloco de notas de folhas soltas, aquela que se seguia ao "Caso da morte de Trinky Callahan". No cimo da
página, escreveu: "O caso do testamento de Bessie", e depois introduziu o primeiro item da sua investigação: "Utilização da palavra 'prístina'".
Alvirah começou então a escrever depressa. Testemunhas do testamento: Quem eram elas? Quais os seus antecedentes? Tempo: O testamento foi assinado no dia 30 de Novembro.
Kate conhecia as testemunhas? Que teria pensado que se passava se estivesse em casa e as pessoas tivessem pedido para ver Bessie?
"Agora estou a usar a velha massa cinzenta", pensou Alvirah. Recentemente, tinha andado a reler os livros de Hercule Poirot,
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escritos por Agatha Christie. Enquanto trabalhava nos crimes que ajudara a resolver, tinha-se esforçado por seguir o seu método de raciocínio dedutivo.
Ao fazer o último registo no seu plano de acção, Alvirah olhou para o relógio: sete e meia e decidiu que eram horas de fechar o bloco de apontamentos e desligar
o microfone. Willy acordaria dali a pouco, e queria ter o pequeno-almoço pronto para ele.
"Depois, ainda hoje vou ter de me sentar sozinha com Kate para analisar estas questões com ela", pensou.
Inesperadamente, ocorreu-lhe outra ideia e ligou de novo o microfone. Desde que escrevera aquele primeiro artigo para o New York Globe acerca da sua visita às Termas
de Cypress Point, depois de ter ganho a lotaria, ela e o editor do jornal, Charley Evans, tinham-se tornado bons amigos. Ele podia mandar investigar a vida de Vic
e Linda Baker imediatamente.
As pequenas células cinzentas estão mesmo a acordar anunciou ela. Chegou o momento de pôr os investigadores do Globe a desenterrar os podres dos Bakers. Aposto que
esta não é a primeira vez que aquele par de vigaristas dá um golpe.
A missa das sete horas da manhã na igreja de São Clemente era frequentada habitualmente por cerca de trinta pessoas, essencialmente paroquianos idosos e reformados.
Mas agora era a época do Advento, e o número de pessoas que estavam a assistir era pelo menos o dobro desse número. Na sua breve homilia, monsenhor Ferris falou
acerca do Advento como a época da espera.
Estamos na época em que antecipamos o nascimento do Salvador disse ele. Antecipamos o momento, em Belém, em que Maria olhou pela primeira vez para o seu filho recém-nascido.
Um pequeno soluço vindo da congregação, perto do retrato do bispo Santori, prendeu a sua atenção. A jovem bonita em quem já havia reparado antes, do outro lado da
rua defronte da reitoria, estava ali sentada. Tinha o rosto enterrado nas mãos, e os ombros estremeciam. "Tenho de a fazer falar comigo", pensou ele, mas depois
viu-a enfiar a mão na bolsa, pôr uns óculos escuros, esgueirar-se pela nave lateral e sair.
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Às nove e meia, Kate Durkin começou a observar todas as coisas que tinham ficado no quarto da falecida irmã. Decidiu que seria uma pena de bradar aos céus deixar
as roupas de Bessie penduradas no roupeiro quando tantas pessoas precisavam de alguma coisa para vestir.
A cama de quatro colunas que Bessie partilhara durante oito anos com o juiz Aloysius Maher, e de onde tinha partido para o Criador, parecia de certa forma estar
a censurá-la em silêncio enquanto ela tirava vestidos e casacos do roupeiro. Reparou que algumas das peças tinham pelo menos vinte anos. "Bessie estava sempre a
dizer-me que não valia a pena dá-los, porque talvez eu pudesse usá-los um dia", pensou Kate. "O que, aparentemente, ela não notou é que eu teria de alargar dez centímetros
para qualquer um deles me servir. Surpreende-me que não os tenha deixado também a Linda Baker", pensou amargamente.
A recordação das revelações inesperadas do dia anterior e o testamento-surpresa fizeram os olhos de Kate encherem-se de lágrimas. Enquanto afastava impacientemente
uma lágrima, passou os olhos pela secretária de Bessie e a máquina de escrever captou-lhe a atenção. Pareceu-lhe que havia alguma coisa de que devia lembrar-se,
mas o que seria?
Porém, não teve tempo para reflectir sobre o que poderia ter accionado o seu subconsciente; ouviu um som atrás de si, voltou-se e viu Vic e Kate parados à porta.
Oh, Kate disse Linda docemente. Ainda bem que está a tirar as coisas de Bessie do quarto para podermos ocupá-lo.
A campainha do andar de baixo tocou.
Eu vou abrir anunciou Vic Baker.
"Ainda não vão tomar conta de tudo", disse Kate para si mesma enquanto o seguia rapidamente para o andar de baixo.
Um momento depois, Kate viu a figura bem-vinda de Alvirah nos degraus da entrada e ouviu-a perguntar:
Kate Durkin, a senhora da casa, está nestas instalações prístinas?
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Lenny tinha voltado para o apartamento à meia-noite e fora em bicos de pés para o seu quarto de onde tinham sido tiradas quase todas as roupas que Lilly estava a
arranjar e deitara-se.
Quando acordou, às nove horas da manhã seguinte, ficou surpreendido ao ouvir o som de vozes no outro quarto, e depois lembrou-se de que era sábado e Star não tinha
escola.
Também significava que a tia Lilly provavelmente ainda estava na cama, se não tivesse ido à missa. Nunca mais tinha sido a mesma desde a queda grave no Verão passado.
Ela tinha tentado fazê-lo acreditar que estava bem, mas ele ouvira-a dizer a uma vizinha que o médico pensava que o desmaio tinha sido provocado por uma pequena
trombose. O que quer que o tivesse provocado, não restavam dúvidas de que vira uma grande diferença em Lilly desde a última vez que ali estivera, em Setembro.
Dissera-lhe que tinha estado na Florida, a trabalhar para uma empresa de entregas. Ela respondera que estava feliz por saber que ele tinha um emprego certo e que
não precisava de se preocupar com Stellina. "Claro, eu não preciso de me preocupar com Star", pensou. "A tia Lilly ficaria felicíssima se eu não voltasse a aparecer
aqui."
"Bom, parte do que lhe disse é verdade", pensou ele enquanto pegava num cigarro. "Eu fiz entregas. Entregas de pequenos pacotes que fazem as pessoas felizes. Mas
estava a ficar muito arriscado manter-me naquela zona, por isso pensei em voltar para Nova Iorque, arranjar uns biscates e conhecer melhor a Star. Não passo de um
pai solteiro, simpático e preocupado, a viver num edifício respeitável com uma tia
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velha", pensou. "E isso é bom, porque, desta forma, quando Lilly fechar os olhos de uma vez por todas, Star e eu poderemos por fim conhecer-nos verdadeiramente bem.
Quem sabe? Talvez até consiga pô-la a trabalhar para mim."
Reflectiu sobre a situação enquanto fumava o cigarro até à beata, esmagou-o numa bandeja com artigos de costura e depois resolveu acender outro para acalmar os nervos
antes de ter de enfrentar a tia Lilly.
Mesmo quando Star era bebé e ele a levava a passear no carrinho, Lilly ficava sempre desconfiada. Lenny sorriu ao recordar todas as coisas boas que tinha conseguido
entregar enquanto as pessoas sorriam e tagarelavam para o seu bonito bebé. Mas, quando chegava a casa, Lilly massacrava-o sistematicamente com perguntas. "Para onde
foste passear? Para onde é que a levaste? Os cobertores dela cheiram a fumo. Se a levaste a um bar, mato-te." Andava sempre a chateá-lo.
No entanto, sabia que tinha de ser cuidadoso e não deixar a tia Lilly preocupada com a menina. Só lhe faltava que a tia Lilly metesse alguma ideia maluca na cabeça,
como tentar encontrar a mãe de Star, a sua suposta namorada que tinha ido para a Califórnia.
Por intermédio de alguns dos seus conhecimentos, conseguira arranjar uma certidão de nascimento falsa para Star. A carta presa ao cobertor dizia que ela era de ascendência
irlandesa e italiana, o que funcionara às mil maravilhas. "Eu sou italiano e a mãe dela era irlandesa", decidira Lenny, e dissera ao seu contacto para registar o
nome da mãe como sendo Rose O'Grady. Pensara numa canção acerca de Rosie O'Grady, de que gostava quando era mais novo. Lembrou-se de que um miúdo irlandês da sua
turma costumava cantá-la.
"Lilly teria um trabalho dos diabos para conseguir encontrar uma Rose O'Grady na Califórnia", pensou Lenny... "é um nome vulgar e um Estado muito grande..." Mas
qualquer género de investigação era um sarilho potencial, e ele não ia permitir que isso acontecesse. Teria de começar a comportar-se mais como um pai preocupado
se queria acalmar Lilly.
Depois de bocejar, de se espreguiçar, de coçar a omoplata e de empurrar para trás os cabelos lisos, escuros, Lenny
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levantou-se da cama. Vestiu umas calças de ganga, enfiou os pés nuns ténis, lembrou-se de vestir uma T-shirt e depois percorreu o corredor até ao quarto da tia.
A porta estava aberta e viu que, tal como esperava, Lilly estava recostada na cama. O quarto estava limpo mas atravancado, com a caminha estreita de Star entalada
entre a cama e a parede.
Parou à porta. Star estava de costas voltadas para ele e Lilly escutava-a a recitar as falas do seu papel no espectáculo de Natal. Lilly não tinha reparado nele,
por isso deixou-se ficar quieto enquanto Star, sentada de pernas cruzadas em cima da cama, com as costas direitas como uma vareta, os cabelos louro-escuros encaracolados
a sair da fita, disse:
Oh, José, não importa que não nos tenham aceite na estalagem. O estábulo proporcionar-nos-á abrigo, e a criança não quer esperar mais para vir para junto de nós.
Bella, bella, Madonna disse Lilly. A Virgem Abençoada vai ficar muito contente por seres tu a representar a sua figura. Suspirou e apertou as mãos de Stellina. E
hoje vou começar a coser uma túnica branca e um véu azul para ti, para usares no espectáculo, Stellina cara...
"Lilly tem aspecto de quem devia estar num hospital", pensou Lenny, alarmado. Ela tinha a pele cinzenta, e reparou que tinha gotas de transpiração na testa. Preparava-se
para lhe perguntar como se sentia, mas parou e franziu o sobrolho ao olhar para o cimo da cómoda. Estava coberta de relíquias religiosas e de estátuas da Sagrada
Família e de São Francisco de Assis. Estava habituado àquelas imagens ela fora sempre super-religiosa, mas ainda lamentava que anos antes Lilly tivesse encontrado
o cálice de prata de onde ele arrancara o diamante.
Na época, os jornais tinham feito um alarde enorme por causa do roubo, pois o cálice que tinha sido furtado pertencera a um bispo famoso. Ele percebera que não teria
sido inteligente tentar contrabandeá-lo naquela altura; era um risco demasiado grande para ganhar os poucos dólares que a venda poderia render-lhe. Ao invés disso,
escondera-o no fundo do
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roupeiro, com a ideia de se livrar dele em alguma ocasião, como por exemplo quando estivesse noutra cidade.
Fora então que Lilly tivera um dos seus ataques de limpezas e o encontrara, dissera que parecia um cálice, por isso ele inventara rapidamente uma história estúpida
acerca de como pertencera à mãe de Star, Rose. Dissera a Lilly que o tio dela, um padre, lho tinha deixado quando falecera. Depois disso, é claro que Lilly o polira
tanto que a prata reluzia como nova e o colocara junto das suas estátuas.
"Oh, bem, fê-la ficar feliz", pensou Lenny, e o facto de não ter podido contrabandeá-lo naquela época provavelmente tinha-o livrado de se meter em sarilhos. No entanto,
era mais do que certo que ninguém andava à procura dele agora, e perguntou a si mesmo quanto lhe renderia. Pelo menos Liliy não tinha encontrado o bilhete que fora
pregado ao cobertor de Star. Tinha-o guardado bem guardado para o caso de alguém questionar de onde ela tinha vindo e ele ter de provar que não a tinha raptado.
Enfiara o bilhete numa fenda entre a prateleira de cima e a parede do roupeiro. Lilly nunca conseguiria lá chegar, mesmo quando usava um espanador de pó para limpar
a prateleira.
Com um encolher de ombros, Lenny voltou-se e foi à cozinha ver o que havia no frigorífico e na despensa para o pequeno-almoço. "Que miséria", pensou. Obviamente,
Lilly não tinha feito compras nos últimos tempos. Fez uma lista de coisas que eram precisas, pegou no blusão e voltou para o quarto dela.
Desta vez entrou no quarto com um grande "Bom dia, como estão as minhas raparigas?". Solicitamente, perguntou a Lilly como se sentia, recomendou a Star que fizesse
os trabalhos de casa e anunciou que ia às compras.
Depois de ele ter recitado a lista de coisas que pretendia comprar, Lilly olhou para ele, desconfiada, mas depois cedeu e acrescentou alguns artigos.
Lá fora o ar estava gélido, e ele lamentou não ter posto o boné. Decidiu que primeiro iria ao café e tomaria um pequeno-almoço decente. Enquanto lá estivesse, faria
um telefonema para avisar as fontes locais de que estava novamente disponível
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para lhes fazer recados, e estava confiante de que eles gostariam de saber a novidade.
"E, depois de a tia Lilly estar fora de cena, poderei integrar Star no meu negócio", pensou Lenny. "Ela vai ser uma grande sócia para mim... quem diria?"
"Sim, a trabalhar lado a lado, Star e o seu paizinho vão ter um negócio de entregas muito próspero", prometeu a si mesmo.
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Sondra sentiu os olhos do monsenhor a seguirem-na quando fugiu da igreja. Esforçando-se por disfarçar os soluços, correu até ao hotel. Depois de estar no quarto,
tomou um duche, pediu café e em seguida pôs panos molhados nos olhos inchados. "Tenho de parar de chorar", disse para si mesma ferozmente. "Tenho de parar de chorar!"
O concerto era tão importante, e ela tinha de estar preparada.
Às nove horas tinha marcação no estúdio arrendado em Carnegie Hall, onde iria ensaiar durante cinco horas. Tinha de se controlar. Sabia que estava em baixo de forma
desde o dia anterior, distraída, sem conseguir chegar perto do seu nível normal.
"Mas como posso pensar noutra coisa a não ser na bebé?", era uma pergunta que Sondra não conseguia deixar de fazer a si mesma. "Que aconteceu à minha menina?" Ao
longo dos últimos sete anos, tinha-a imaginado a viver com um casal maravilhoso que talvez não tivesse um filho natural e que a amava e idolatrava. Mas agora não
fazia ideia de onde poderia encontrá-la nem sequer se ela tinha sido encontrada.
Olhou-se ao espelho. "Que horror!", pensou. Tinha o rosto manchado e os olhos inchados. Chegou à conclusão de que não podia fazer mais nada em relação aos olhos,
mas os dedos longos e delicados moveram-se rapidamente enquanto espalhava base pelo rosto para esconder os vestígios das lágrimas.
"Esta tarde vou passar novamente pela reitoria", decidiu. Pelo menos aquele pensamento agiu como um calmante. Fora o último lugar onde vira a sua bebé, e sentia-se
perto dela quando lá estava. E, quando rezava para o retrato do bispo Santori, parecia descer sobre ela um pouco daquela mesma paz
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que o avô lhe dissera sentir quando rezava ali muitos anos antes. A sua oração não era para ter a bebé de volta. "Não tenho o direito de pedir isso", pensou. "Dá-me
apenas uma forma de saber que ela está em segurança e que é amada. É tudo o que peço.
Tinha trazido um jornal da paróquia de São Clemente, e tirara-o do bolso do blusão do fato-de-treino. Sim, viu que havia uma missa às cinco horas. Iria a essa missa,
mas chegaria um pouco atrasada. Dessa forma, o monsenhor não teria a oportunidade de tentar falar com ela. Depois, sairia discretamente antes de o serviço terminar.
Enquanto torcia os cabelos louro-escuros, apanhando-os na nuca, perguntou a si mesma se a bebé teria crescido a parecer-se ao menos um pouco com ela.
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À frente de um bule de chá e de uma generosa fatia do bolo seco de Kate, que-se-desfazia-na-boca, Alvirah começou a elaborar um plano de acção com o objectivo de
salvar a casa das garras dos Bakers.
Não é horrível pensar que temos de manter a voz baixa na nossa própria casa? perguntou Kate. Aqueles dois andam sempre metidos em todo o lado. Pouco antes de chegares,
o meu coração quase parou quando me voltei e vi os dois a observarem-me. Foi por isso que agora fechei a porta. Depois olhou de relance para a cópia do testamento
da irmã e suspirou. No entanto, acho que não posso fazer nada em relação a isso. Eles parecem ter tudo a favor deles.
Isso é o que vamos ver disse Alvirah com firmeza enquanto ligava o microfone do seu alfinete de lapela em forma de sol. Tenho um monte de perguntas para te fazer,
por isso é melhor começarmos. Ora bem, o monsenhor veio visitar-te na sexta-feira, dia 27. Disse que não tinha dúvida nenhuma de que Bessie te deixaria a casa, embora
soubesse que ela estava infeliz com a perspectiva de ter miúdos a dar cabo dela.
Kate acenou afirmativamente. Os seus suaves olhos azuis
aumentados por óculos grandes, redondos estavam pensativos.
Tu conheces Bessie disse ela. Era tão determinada, e queixou-se imenso de como nada seria o mesmo aqui com um bando de miúdos a correr por todo o lado. Mas recordo-me
de que depois riu levemente e disse: "Bom, pelo menos eu não estarei cá para limpar depois de eles se irem embora... esse vai ser o teu trabalho, Kate."
Isso foi na sexta-feira, dia 27, certo? perguntou Alvirah.
Como é que Bessie esteve durante o fim-de-semana?
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Cansada. O coração estava a fraquejar, e ela sabia. Obrigou-me a tirar do roupeiro o vestido azul e a mandá-lo passar a ferro. Depois disse-me que quando chegasse
a sua hora eu tinha de lhe pôr as pérolas. Disse que não eram valiosas, mas era a única jóia que o juiz jamais lhe oferecera, para além da aliança de casamento,
é claro, e que não valia a pena deixar nenhuma delas a ninguém. Depois disse: "Sabes, Kate, Aloysius era realmente um homem bom. Se me tivesse casado com ele quando
era jovem, provavelmente teria tido uma família minha e não teria tido oportunidade de me tornar tão esquisita em relação a riscos e dedadas.
Isso foi no sábado? perguntou Alvirah.
Na verdade, no domingo.
Depois, na segunda-feira, supostamente assinou o testamento novo diante de testemunhas. Ouviste-a escrever à máquina antes disso? Que é que pensaste quando as testemunhas
entraram para a assinatura?
Eu nunca os vi replicou Kate, a abanar a cabeça. Sabes como me ofereço sempre para ajudar algumas horas no hospital nas tardes de domingo e de segunda-feira. Bessie
nem sequer quis ouvir dizer que eu não ia. Parecia bastante bem quando saí... estava sentada no andar de baixo, na saleta, na sua cadeira preferida, a ver televisão.
Lembro-me de que disse que ficaria muito satisfeita por se ver livre de mim durante algumas horas. Que estava a sentir-se bem e farta de me ver preocupada.
E onde é que ela estava quando chegaste a casa?
Ora, ainda estava na saleta, a ver uma das suas telenovelas.
Está bem. Agora, o que quero fazer a seguir é falar com aquelas duas testemunhas. Alvirah estudou a última página do testamento. Fazes alguma ideia de quem são?
Nunca ouvi falar neles replicou Kate.
Bem, pretendo ir visitá-los. A morada deles está aqui, por baixo das assinaturas. James e Eileen Gordon, na Setenta e Nove Oeste. Alvirah levantou os olhos quando
Vic Baker abriu a porta da sala de jantar sem bater.
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Estão a tomar um chazinho? perguntou ele com uma jovialidade forçada.
Estávamos disse Alvirah.
Só queria dizer-vos que vamos sair para comer qualquer coisa, mas quando voltarmos teremos muito prazer em ajudá-la a trazer as roupas da querida Bessie para baixo.
Nós vamos cuidar bem das coisas de Bessie disse-lhe Alvirah. Não precisa de se preocupar com nada.
A expressão alegre desapareceu do rosto de Vic Baker.
Por acaso, ouvi o que acabou de dizer acerca de falar com as testemunhas. Sr.a Meehan disse ele bruscamente. Terei o maior prazer em dar-lhe o número do telefone
deles. Vai ver que são pessoas extremamente responsáveis. Procurou no bolso. Por acaso, tenho o cartão deles.
Baker entregou o cartão a Alvirah, depois virou-se e saiu, atirando com a porta atrás de si com toda a força. As duas mulheres voltaram-se e observaram a porta a
abrir-se lentamente.
Não fica fechada esclareceu Kate. Ele é um daqueles fulanos habilidosos que gosta de se gabar, e obviamente impressionou Bessie. A verdade é que sabe usar um pincel,
mas não mais do que isso. Apontou para a porta. Reparaste que ele não rodou o puxador quando entrou? Empurrou a porta para a abrir. Ela estava muito justa, por isso
ele tirou-lhe um bocado. Agora nem sequer fecha. Aconteceu a mesma coisa na saleta... essa porta passou a ser basculante. Fungou.
Alvirah só estava a escutá-la parcialmente. Estava a observar o cartão que Vic Baker lhe dera.
É um cartão profissional disse ela. Os Gordons têm uma agência imobiliária. Que me dizes disto?
Ele pode não saber reparar portas, mas não há dúvida de que sabe fazer um testamento disse Alvirah a Willy no fim daquela tarde, quando ele chegou a casa e a encontrou
sentada de forma abatida na sala de estar do apartamento. Jim e Eileen Gordon parecem-me pessoas de bem.
Como é que eles foram testemunhas do testamento?
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Segundo eles, quase por acaso. Parece que Vic Baker tem andado a ver moradias e condomínios desde que se mudou para cá, há praticamente um ano. Dizem que saíram
com ele algumas vezes, para ver casas. Ele tinha um encontro com eles às três horas, no dia 30, para ver uma casa qualquer na Rua Oitenta e Um e, enquanto lá estavam,
aparentemente, Linda telefonou-lhe para o telefone celular. Disse-lhe que Bessie não estava a sentir-se bem e que precisava de testemunhas para assinar o novo testamento.
Vic pediu aos Gordons se não se importavam. Então os Gordons acompanharam-no e... agora vem a parte mais perturbadora... eles dizem que Vie e Bessie quase desmaiaram
quando Bessie lhes leu o testamento antes de o assinar.
Se os Gordons andavam a mostrar casas a Baker, devem ter verificado a situação financeira dele disse Willy. Perguntaste sobre isso?
Eles informaram-se. Por muito incrível que pareça, os Bakers estão bem de vida. Tentou esboçar um sorriso. Cordelia manteve-te ocupado hoje?
Quase não tive tempo de respirar. Rebentou um cano na loja de roupas em segunda-mão e só o consegui arranjar depois de desligar a torneira de segurança geral. Foi
bom ser sábado e não haver miúdos lá em cima.
Bom, dentro de pouco tempo isso não será um problema
disse Alvirah com um suspiro. E, a menos que as minhas células cinzentas desencantem alguma coisa que me escapa, essas crianças deixarão de ter um lugar para estar.
Levantou a mão e rodou o microfone do alfinete de lapela. Com destreza, rebobinou a última parte da cassete e depois carregou no botão PLAY.
A voz agradável de Eileen Gordon era clara e fácil de compreender.
A última coisa que a Sr.a Maher disse foi que agora morreria em paz, sabendo que a sua casa se manteria prístina.
Aposto que aquela miserável palavra "prístina" é a chave
disse Alvirah enquanto a expressão de abatimento lhe abandonava o rosto. Qual é a expressão que o monsenhor usa sempre que suspeita de alguma coisa?
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"Algo está podre no reino da Dinamarca" replicou Willy. É isso que queres dizer?
Isso mesmo. No entanto, neste caso, creio que há alguma coisa podre no Upper West Side disse Alvirah. E vou continuar a fazer visitas aos Gordons e a conversar com
eles até descobrir o que é. Acho que eles são boas pessoas, mas mesmo assim é coincidência a mais eles serem testemunhas. Talvez sejam muito bons actores, e eu estou
a cair na treta deles.
Por falar em treta disse Willy, vamos jantar cedo. Estou esfomeado.
Iam a sair a porta às seis e meia quando monsenhor Ferris telefonou.
Kate veio à missa disse ele. Contou-me que Alvirah foi falar com as testemunhas. Como correu a conversa?
Alvirah fez-lhe um breve resumo e assegurou-lhe que não ia desistir. Depois, antes de se despedir, acrescentou:
Aquela jovem que vimos ontem esteve novamente aí?
Hoje veio cá duas vezes. Esta manhã veio à missa e depois saiu durante o sermão. Parecia estar muito perturbada com alguma coisa. Depois, avistei-a na missa das
cinco horas, mas também não tive ocasião de falar com ela. Alvirah disse-me que achava que ela lhe parecia conhecida. Tem alguma ideia de quem é ou de onde a poderá
ter visto antes? Eu gostava muito de tentar ajudá-la.
Tenho andado a dar voltas à cabeça, mas até agora não consegui lembrar-me replicou Alvirah, infeliz. Mas dê-me tempo. O que se passa é que tenho a certeza de já
ter visto a fotografia dela em algum lado, mas não consigo lembrar-me onde.
Duas horas mais tarde, quando ela e Willy passavam por Carnegie Hall a caminho de casa depois do jantar, ela parou no meio de uma frase e apontou.
Willy, olha. É aquela rapariga.
Um cartaz numa vitrina a anunciar o concerto de Natal incluía fotografias dos artistas que iriam tocar, e entre eles
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contavam-se Plácido Domingo, Kathleen Battle, Yo-Yo Ma, Emanuel Ax e Sondra Lewis.
Alvirah e Willy aproximaram-se para ler a legenda por debaixo da fotografia de Sondra Lewis. Até mesmo nesta fotografia ela tinha os olhos tristes e não sorria.
Por que estaria uma rapariga prestes a tocar pela primeira vez no Carnegie Hall tão infeliz? perguntou Willy, extremamente intrigado.
Obviamente, tem alguma coisa a ver com São Clemente disse-lhe Alvirah. E também pretendo descobrir tudo o que se passa com ela.
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Quando era muito pequenina, Stellina tinha perguntado à nonna por que é que não tinha uma mãe como as outras crianças. A nonna respondera que a mãe de Stellina a
tinha deixado com o pai porque quando ela nascera a mãe tinha ficado muito doente e tivera de partir para a Califórnia para tentar ficar melhor. A nonna dissera
que a mãe ficara muito triste por ter de a deixar, que prometera voltar para vê-la se ficasse melhor. Mas a nonna também disse a Stellina que isso poderia nunca
acontecer e que, pessoalmente, acreditava que Deus tinha chamado a mãe de Stellina para o Céu.
Depois, quando Stellina ia entrar para o jardim infantil, a nonna tinha-lhe mostrado o cálice de prata que encontrara no roupeiro do pai e explicara que o tio da
mãe, um sacerdote, o tinha dado à mãe de Stellina e que ela o deixara para Stellina. A nonna explicara que o cálice tinha sido usado para celebrar a missa e que
estava abençoado de uma forma muito especial.
O cálice tornou-se um talismã para Stellina, e por vezes, quando estava prestes a adormecer e estava a pensar na mãe, a desejar muito poder vê-la, pedia à nonna
se podia pegar nele.
Na altura, a nonna brincava com ela por causa disso.
Os bebés deixam as fraldas de estimação, Stellina. Agora que já és uma menina crescida e que vais para a escola, decides que precisas de uma tinha ela dito. Mas
sorria sempre e nunca impedia que Stellina pegasse no cálice. Umas vezes em inglês, outras em italiano, e frequentemente numa mistura das duas línguas, reconfortava
esta menina maravilhosa, a única dádiva com que o sobrinho inútil a presenteara. "Ah, bambina", sussurrava a nonna, "vou cuidar sempre de ti."
Stellina não contava à avó que quando entrelaçava os dedos
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em volta do cálice era como se conseguisse sentir as mãos da mãe ainda a segurá-lo.
No domingo à tarde, enquanto observava a nonna a coser o véu azul que iria usar no espectáculo, Stellina teve uma ideia. Perguntaria à nonna se podia levar o cálice
para a festa e fingir que, no papel de Virgem Maria, estava a dá-lo ao bebé Jesus.
A nonna protestou.
Oh, não, Stellina. Pode perder-se, e para além do mais a Virgem Maria não tinha prata para dar ao bebé Jesus. Não estaria certo.
Stellina não insistiu, mas sabia que tinha de encontrar uma forma de convencer a nonna a deixá-la levar o cálice para o estábulo. Sabia exactamente a oração que
diria quando o levasse para lá: "Se a minha mãe ainda está doente, por favor fá-la ficar boa, e por favor, por favor, pede-lhe para me visitar só uma vez."
Na Vigésima Quarta Esquadra de Polícia de Manhattan, o detective Joe Tracy ficou muito interessado ao saber que Lenny Centino tinha voltado a aparecer. Recordava-se
de Lenny de uma investigação em que estivera envolvido alguns anos antes. Não tinha conseguido ligá-lo directamente ao crime, que envolvera venda de droga a menores,
mas tinha a certeza de que Lenny era um dos culpados.
O parceiro de Tracy sublinhara que o cadastro de Lenny tinha apenas coisas sem importância apenas alguns assaltos por arrombamento, coisas de arraia-miúda, mas Tracy
estava convencido de que isso era apenas porque Lenny não tinha sido apanhado.
É claro que ele cumpriu algum tempo de prisão declarou Tracy, detenção juvenil há vinte e cinco anos, cadastro eliminado, mas na minha opinião isso só serviu para
ele aprender truques novos para o seu ofício. Foi detido algumas vezes, mas nunca acusado formalmente. Nunca conseguimos relacioná-lo com alguma coisa concreta,
mas eu tive sempre a certeza de que ele andava a distribuir drogas a miúdos de liceu. Lembro-me de o ver a empurrar a filha no carrinho de
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bebé por toda a zona ocidental. Mais tarde, ouvi dizer que a miúda era apenas um disfarce... que ele escondia o material no carrinho de bebé, mesmo ao pé da criança.
Tracy atirou a pasta fina de Lenny Centino para cima da secretária.
Muito bem, agora que ele está de volta vou mantê-lo debaixo de olho. Se o vir com aquela menina, talvez o prenda. Ele vai acabar por cometer um erro, e quando isso
acontecer pretendo estar presente.
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Na segunda-feira de manhã, quando Alvirah e Willy estavam a tomar o pequeno-almoço, ela atendeu o telefone e ficou encantada ao ouvir a voz agradável do seu editor,
Charley Evans, anunciar que, embora nunca tivessem sido condenados, Vic e Linda Baker eram sem dúvida falsificadores de categoria.
Espere um segundo interrompeu ela. Quero gravar tudo para não me esquecer de uma única palavra. Correu para o quarto, pegou no alfinete de lapela em forma de sol,
ligou o microfone e voltou apressadamente. Muito bem, Charley, pode falar disse enquanto encostava o microfone ao telefone.
Os Bakers têm o hábito de cair sobre pessoas idosas com bens disse Chaley. O caso mais recente deu-se em Charleston, o ano passado, onde ficaram amigos de um homem
de idade que valia alguns milhões de dólares. Aparentemente, na altura, o velhote estava zangado com a filha, furioso por causa do fulano com quem ela tinha casado,
mas nunca deu a entender que pretendia deserdá-la. De acordo com testemunhas, esses dois vigaristas não pararam de lhe encher os ouvidos com histórias acerca da
filha e como ela mal podia esperar para pôr as mãos no dinheiro dele. Adivinhe o que aconteceu?
Apareceram com um novo testamento sugeriu Alvirah.
Acertou. O velhote deixou à filha alguns dólares e as jóias da mãe. Tudo o resto foi para os Bakers. Eles foram suficientemente espertos para não ficar com todo,
percebe? Isso teria sido mais fácil de contestar.
E quanto às testemunhas do testamento? perguntou Alvirah.
Cidadãos irrepreensíveis, todos eles.
É o que eu esperava disse ela com um suspiro.
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Encontrei mais dois ou três casos semelhantes nos últimos dez anos, mas já percebeu a ideia. Todos os testamentos foram contestados, mas de todas as vezes os Bakers
ganharam facilmente.
Pois desta vez não vão conseguir declarou Alvirah.
Espero que não, para bem da sua amiga, mas vou dar-lhe um conselho gratuito: diga-lhe para ir ao Tribunal de Homologações, na Rua Chambers, 31, e preencher um documento
de intenção de contestar devido a influência indevida. De outro modo, o testamento pode ser homologado num espaço de tempo que poderá ir de alguns dias a alguns
meses, dependendo do juiz. Se ela entregar o documento, pelo menos estará a atrasar a transferência dos bens. Quem é o executor?
Vic Baker.
Eles pensaram em tudo comentou Chaley. Muito bem, Alvirah, se precisar de ajuda pode contar comigo, e não se esqueça... quero uma coluna sobre isto.
Pode ter a certeza de que vai ter uma, e já tenho o título
- disse Alvirah. - Escreva: "DESMASCARAR OS CANALHAS".
Charley riu-se.
Ao ataque, Alvirah. Aposto tudo em si.
Enquanto tomavam a terceira chávena de chá, Alvirah contou a conversa a Willy.
Ora, querida admoestou-a Willy, o teu queixo está espetado dez centímetros. Sei que vais fazer tudo o que estiver ao teu alcance, mas tens de me prometer que não
vais correr perigo. Estou a ficar demasiado velho para me preocupar com coisas como seres empurrada de varandas ou afogada em banheiras.
Os Bakers não são do tipo de pessoas que fazem coisas desse género disse Alvirah, sem dar muita importância às palavras dele. Não são violentos, apenas subservientes.
Que é que Cordelia arranjou para ti hoje?
Apoio da Casa disse Willy, a abanar a cabeça. Sabes, querida, tenho de concordar com os inspectores. Aquele lugar
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está a cair aos pedaços. Em relação às reparações, pouco se pode fazer, é como se se usasse pastilha elástica e cola Elmer's. Depois disso, é preciso chamar a maquinaria
pesada. Mas, de qualquer maneira, também vou estudar uma hora de piano. A Cordelia ouviu-me martelar A Noite Inteira quando fui lá reparar aquela fuga ontem, e agora
decidiu incluir aquele cântico no encerramento do espectáculo e quer que eu toque. Tem uma ideia maluca de que, ao integrar-me no espectáculo, os miúdos verão que
se pode aprender alguma coisa nova em qualquer idade.
Isso é maravilhoso! disse Alvirah, com o rosto brilhante.
Bem, eu acho que é uma ideia horrível disse Willy, mas os miúdos não são críticos, e os pais só vão estar interessados nos próprios filhos, por isso talvez ninguém
repare em mim... Afinal de contas, que é que tu andas a tramar?
Vou visitar Kate. Sabes como é. Quando alguém morre, toda a gente aparece durante alguns dias, e depois do funeral a pessoa que ficou acorda e apercebe-se de que
nunca mais vai ver aquele rosto nem ouvir aquela voz. É então que os amigos são verdadeiramente necessários, e ainda mais no caso de Kate, pois tem de suportar aqueles
vigaristas ao mesmo tempo que sente a falta de Bessie. E depois de a ver vou fazer uma visita ao monsenhor Tom para lhe dizer que sei quem é a jovem que tem andado
em São Clemente.
Com a sua eficiência habitual, Alvirah arrumou a cozinha, fez a cama, tomou um duche e depois vestiu-se, escolhendo um dos fatos saia-casaco simples mas elegantes
que a sua amiga, a baronesa Min von Schreiber, a ajudara a escolher na última viagem que Min fizera ao Leste. Como Min afirmava constantemente, se deixada sozinha
Alvirah gravitava para estilos e cores extremamente inadequados, uma opinião que Alvirah aceitava humildemente.
Quando se preparava para sair, parou o bastante para escutar Willy ao piano, a treinar A Noite Inteira. Orgulhosa, reparou que ele estava a tocar cada vez melhor.
Os seus lábios formaram as palavras em silêncio enquanto ele cantava os versos. O verso "Eu mantenho a minha vigília de amor" pareceu-lhe
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quase uma oração. "Bem, vou manter uma vigília por ti, Kate", pensou.
Ao chegar a casa, ficou chocada ao encontrar uma Kate calma mas resoluta, que anunciou que, após pensar muito, tinha decidido encontrar outro lugar para viver, nem
que fosse apenas um quarto mobilado. Disse que se Bessie queria que os Bakers ficassem com a casa, então que assim fosse. As intenções de Bessie tinham sido claras,
e deixara a Kate apenas o usofruto do apartamento e uma renda.
Mas eu não posso viver na mesma casa que estas pessoas, Alvirah disse Kate. Sempre que penso em Bessie, doente como estava, sentada à secretária e a escrever aquele
testamento e depois a certificar-se de que arranjava testemunhas para virem cá a casa quando tinha a certeza de que eu estaria fora... bem, sinto uma dor tão grande
que é como se estivesse a ser espetada com uma faca.
Acabas de me lembrar de uma coisa em que eu não tinha pensado, Kate. O testamento foi assinado na segunda-feira passada, dia 30 de Novembro, certo? Mas estava datado
de 28 de Novembro.
Exactamente. Foi um dia depois de Bessie ter dito ao monsenhor que não gostava da ideia de transformar a casa num centro para crianças. O que quer dizer que, mesmo
quando estava a brincar comigo sobre o assunto durante o fim-de-semana, a dizer que o problema de lidar com todas aquelas crianças ia ser meu, estava sentada àquela
máquina de escrever enquanto eu saía.
Estiveste muitas vezes fora no fim-de-semana passado? perguntou Alvirah.
Só saí para ir à missa da manhã no sábado e no domingo. Mas Bessie escrevia muito depressa à máquina. Sabes bem como ela tinha orgulho nisso. Podia ter dactilografado
aquele testamento em vinte minutos.
Oh, Kate! exclamou Alvirah. Sentia o coração apertado enquanto contemplava a velha amiga.
Kate parecia ter perdido todo o espírito lutador. Tinha os ombros afundados num sinal de derrota, e a faísca que dava uma força resistente ao seu pequeno corpo parecia
ter-se
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extinguido. Alvirah sabia que não valeria a pena argumentar com ela ela tinha tomado uma decisão. O melhor que podia fazer era ganhar tempo.
Faz-me só um favor, Kate pediu ela. Tenho andado a fazer uns telefonemas para obter informações sobre os Bakers. Já descobri que são vigaristas conhecidos. Só nunca
foram presos... ainda! Dá-me até ao Natal para provar que Bessie não escreveu aquele testamento, e, embora pareça que o assinou, aposto que se o fez nunca soube
o que estava a assinar.
Os olhos de Kate abriram-se muito.
Oh, Alvirah, não há forma de provar isso.
Há, sim disse Alvirah com uma confiança que não sentia. E já sei por onde começar. Depois de falar com monsenhor Tom, vou à agência imobiliária de James e de Eileen
Gordon dizer-lhes que ando à procura de um condomínio. Aqueles dois vão ver-me imensas vezes nas próximas semanas. Talvez façam parte do esquema dos Bakers, ou talvez
lhes tenha sido atirada areia para os olhos, mas, seja como for, vou descobrir qual das hipóteses está correcta.
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Lenny Centino tinha conseguido manter-se fora da prisão por não ser demasiado ganancioso. As entregas de drogas que fazia eram insignificantes e sem grande frequência,
por isso, com excepção de ter atraído a indesejável atenção do detective Joe Tracy, nunca estava muito alto na lista de qualquer agente da Polícia. Para além do
mais, nunca tinha vendido drogas, limitava-se a entregá-las, o que, se fosse apanhado, implicaria uma sentença mais leve. As drogas tinham sido pagas antes, por
isso também nunca tinha coisa alguma a ver com o dinheiro. Entre traficantes e consumidores, tinha ganho a reputação de ser de confiança e de nunca roubar a mercadoria,
por isso era muito requisitado.
No entanto, como gostava de limitar o envolvimento com o sempre perigoso tráfico de droga, Lenny trabalhava esporadicamente para uma loja de vinhos conhecida. Ao
fazer entregas para eles, podia observar os apartamentos das pessoas. Era um ladrão dotado atacava sempre quando tinha a certeza de que as pessoas estavam fora e
nunca se preocupava com mais nada a não ser jóias e dinheiro.
A sua carreira serôdia e muito satisfatória de roubar caixas de esmolas e caixas de oferendas de velas votivas terminara com o roubo em São Clemente. O alarme silencioso
e o rapto involuntário de Star tinham-no feito perceber que estava a chegar demasiado perto do abismo. Agora até as igrejas pequenas estavam a ficar suficientemente
refinadas para colocar alarmes silenciosos.
Fora por isso que, com confiança na sua habilidade para sobreviver, tinha feito saber aos seus contactos que estava de volta à cidade e uma vez mais disponível.
Enquanto tomava
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umas cervejas na segunda-feira à tarde, tinha-se gabado do que estivera a fazer desde Setembro, a ajudar a pôr em marcha uma vigarice de uma empresa de computadores
falsa. O que Lenny não sabia é que um polícia a trabalhar sob disfarce se tinha infiltrado no grupo onde ele estava a gabar-se e, quando o polícia preenchera o relatório
na esquadra, o detective Tracy tinha-o lido e agora mandara vigiar Lenny, o que incluía uma escuta telefónica. O que a Polícia não sabia é que Lenny temia uma situação
desse género e tinha uma fuga planeada. Tinha algum dinheiro do último trabalho, juntamente com uma identidade falsa e um esconderijo preparado no México. Mas, desde
que voltara para Nova Iorque, Lenny tinha acrescentado outro elemento ao cenário da fuga. Era óbvio que a tia Lilly estava a morrer. Ele gostava verdadeiramente
de Star, e ela fora sempre uma mais-valia para a sua operação. Ela era igualmente o seu amuleto de boa sorte, portanto tinha decidido que se tivesse de sair do país
levá-la-ia consigo.
E como dizia muitas vezes para si mesmo: "Eu sou o papá dela, e não estaria certo abandoná-la."
Não falada, mas talvez ainda mais pertinente, era a certeza de Lenny de que não era provável que um homem a viajar com uma menina parecesse um bandido a fugir de
alguém.
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Sondra tinha prometido que não voltaria a aproximar-se de São Clemente. "Se o avô não viesse assistir ao concerto, eu iria à Polícia agora mesmo", pensou. "Não posso
continuar a viver assim. Se alguém encontrou a bebé naqueles poucos minutos e leu o bilhete e decidiu ficar com a menina e ela está a ser criada em Nova Iorque,
então pode existir uma certidão de nascimento falsa. Teria sido bastante fácil para qualquer pessoa dizer que a bebé tinha nascido em casa. Naquele hotel, ninguém
soube que eu dei à luz... nunca tive uma única dor."
Toda a dor viera depois, reflectiu enquanto permanecia acordada no domingo à noite. Quando a alvorada começou a romper, adormeceu finalmente. Depois de dormir apenas
algumas horas, acordou com uma dor de cabeça terrível.
Com indiferença, levantou-se e vestiu o fato de treino. "Talvez uma corrida acabe com a dor de cabeça", decidiu. "Hoje tenho de conseguir concentrar-me no ensaio.
Fiz tantas coisas mal... não quero acrescentar à lista da ruína o concerto para o avô.
Tinha prometido a si mesma que hoje ficaria em Central Park, mas quando se aproximou da extremidade norte do parque os seus pés viraram para oeste. Minutos depois,
estava defronte da igreja de São Clemente, do outro lado da rua, a recordar uma vez mais o momento em que segurara a sua bebé pela última vez.
Tinha aquecido um pouco e a rua estava mais movimentada, por isso percebeu que não deveria ficar parada para não correr o risco de chamar a atenção sobre si. A neve
que fora de um branco-árctico na quinta-feira estava agora quase completamente derretida, e os sedimentos que restavam estavam cobertos de fuligem.
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"Naquela noite estava muito frio", recordou, "e a neve nas bermas da estrada estava coberta por uma camada de gelo. Aquele carrinho de bebé em segunda-mão tinha
uma mancha de lado. Eu esfreguei o interior, mas estava tão terrivelmente imundo que detestei deitar lá a bebé até mesmo por um minuto. Alguém no hotel tinha deitado
fora o saco de compras que usei para uma protecção extra. Lembro-me de que tinha o logotipo da Sloan's. Comprei os biberões e o leite em pó na farmácia Duane Reade."
Sondra sentiu um toque no ombro. Sobressaltada, voltou-se para ver o rosto preocupado de uma mulher um pouco gorducha e ruiva com cerca de 60 anos.
Você precisa de ajuda, Sondra disse Alvirah suavemente. E sou eu que vou ajudá-la.
Apanharam um táxi para Central Park Sul. Uma vez no apartamento, Alvirah fez um bule de chá e colocou pão na torradeira.
Aposto que ainda não comeu nada hoje disse ela.
Uma vez mais à beira das lágrimas, Sondra acenou afirmativamente em sinal de concordância. Sentia uma espécie de irrealidade, misturada com uma grande sensação de
alívio. Agora, que estava neste apartamento estranho com esta mulher desconhecida, sentia-se bem.
Sabia que ia contar a Alvirah Meehan sobre o bebé, e sentia apenas pela presença de Alvirah que esta arranjaria uma forma de a ajudar.
Vinte minutos depois, Alvirah disse-lhe com firmeza: Agora escute, Sondra, a primeira coisa que tem de fazer é parar de se martirizar. Isso aconteceu há sete anos;
você era uma garota. Não tinha mãe. Sentiu-se responsável pelo seu avô. Teve a sua bebé sozinha, mas planeou tudo e planeou bem. Tinha roupas e biberões e leite
em pó preparados, e poupou todos os tostões para que a bebé pudesse nascer em Nova Iorque porque sabia que um dia queria viver aqui. Vestiu a recém-nascida
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e pô-la, confortável e quente e em segurança, num carrinho de bebé à porta da reitoria da igreja. Tinha escolhido a igreja que salvara o seu avô quando ele soube
que a artrite lhe estava a roubar o dom que tinha como violinista. Telefonou para a reitoria menos de cinco minutos depois, e pensou que a bebé tinha sido encontrada
por alguém de lá.
Sim disse Sondra, mas suponha que alguns miúdos empurraram o carrinho de bebé por brincadeira. Suponha que a bebé morreu gelada, e quando alguém a encontrou não
quis ser responsabilizado... suponha...
Suponha que umas pessoas boas a encontraram e ela é agora a luz das vidas delas disse Alvirah com uma convicção que não sentia. "Pessoas boas teriam chamado a Polícia
e depois tentado adoptá-la", pensou. "Não teriam mantido o assunto em segredo durante todos estes anos."
Não posso pedir mais do que isso disse Sondra. Não mereço mais do que isso, porque não sei...
Você merece muito mais do que pensa. Dê algum valor a si mesma disse-lhe Alvirah com dureza. Agora tem de continuar a ensaiar violino e espantar os melómanos de
Nova Iorque. Deixe o trabalho de detective comigo. Depois, espontaneamente, acrescentou: Sondra, tem consciência de como é bonita quando sorri? Tem de sorrir mais
vezes, está a ouvir?
Enquanto bebiam outra chávena de chá, a pouco e pouco, fez Sondra falar.
Consegue imaginar o que foi para o meu pobre avô, que vivia sozinho, crítico de música e professor de violino, ver-se de repente com uma criança de dez anos para
criar? perguntou Sondra com um sorriso a bailar-lhe nos lábios. Ele tinha um apartamento muito bonito de quatro assoalhadas num bom edifício no lago Michigan, em
Chicago, mas mesmo assim era minúsculo, e ele não podia comprar um maior.
Que é que ele fez quando você se mudou? perguntou Alvirah.
Mudou a vida toda por minha causa. Transformou o estúdio num quarto e deu-me o quarto grande. Sempre que ia para fora, contratava alguém para vir tomar conta de
mim e para cozinhar. Devo acrescentar que o avô adorava sair com
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os amigos para jantar, e, é claro, ia a muitos concertos. Havia muitas coisas que ele gostava de fazer e das quais desistiu por minha causa.
Está novamente a ter-se em pouca conta disse Alvirah, interrompendo. Aposto que, antes de ir viver com ele, ele se sentia sozinho. Aposto que gostou muito de a ter
com ele.
O sorriso de Sondra alargou-se.
Talvez, mas o reverso de me ter como companhia foi uma perda enorme de liberdade, uma perda de todos os pequenos luxos que tinha tido. O sorriso extinguiu-se. Acho
que de certa forma o compensei. Sow uma boa executante, uma boa violinista.
Bingo! disse Alvirah. Finalmente está a dizer uma coisa boa acerca de si mesma.
Sondra riu-se.
Sabe, Alvirah, a senhora é muito eloquente.
É o que o meu editor diz concordou Alvirah. Muito bem, estou a perceber o que aconteceu. A Sondra sentiu a responsabilidade de ser bem sucedida, ganhou a bolsa de
estudos, conheceu uma pessoa atraente e dotada, tinha acabado de fazer dezoito anos e apaixonou-se por ele. Provavelmente, ele disse-lhe que estava louco por si,
e, encaremos as coisas como elas são, você estava vulnerável. Não tinha mãe nem pai, nem irmãos e irmãs. Ao invés disso, tinha um avô que naquela época estava a
começar a ficar doente. Acertei?
Sim.
O resto já sabemos. Vamos saltar para o presente. Ninguém tão bonito e talentoso como você vive num vazio. Tem namorado?
Não.
Uma resposta rápida de mais, Sondra, o que significa que tem um. Quem é ele?
Seguiu-se um silêncio prolongado.
Gary Willis. Faz parte do Conselho da Orquestra Sinfónica de Chicago disse Sondra com relutância. Tem trinta e quatro anos, oito anos mais velho que eu, muito bem
sucedido, muito bonito, muito simpático e quer casar comigo.
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Até aqui, tudo bem declarou Alvirah. E a Sondra não gosta dele?
Podia gostar. Mas não estou preparada para o casamento. Neste momento, sou um poço de emoções... estou consciente disso. Tenho receio de, se me casar, nunca conseguir
olhar o meu filho no rosto sem saber que deixei a irmã dele dentro de um saco de compras ao frio. Gary tem sido muito paciente e compreensivo comigo. Vai conhecê-lo.
Ele vai trazer o meu avô para o concerto.
Apenas pelo que me disse, já gosto dele disse Alvirah.
E não se esqueça de que hoje em dia noventa por cento das mulheres têm de conciliar maridos ou famílias com as carreiras. Eu sei que foi isso que fiz.
Sondra observou o apartamento mobilado com gosto e contemplou a vista espectacular de Central Park.
Que é que Alvirah faz?
Actualmente, a minha carreira é vencedora de lotaria, solucionadora de problemas e colunista convidada do New York Globe. Até há três anos era uma mulher-a-dias
espectacular.
A risada de Sondra indicou que ela não sabia bem se devia acreditar ou tomar o que ela dissera como uma piada, mas Alvirah não entrou em mais pormenores. "Mais tarde
teremos tempo de sobra para a história da minha vida", pensou.
Levantaram-se ao mesmo tempo.
Tenho de ir ensaiar disse Sondra. Hoje chega um ensaiador que tem uma tal reputação que músicos como eu sentem arrepios na espinha.
Bom, vá e dê tudo o que tem para dar disse Alvirah.
Eu vou pensar numa forma de tentar encontrar o rasto dessa bebé sem ninguém saber quem está a fazê-lo. Telefono-lhe todos os dias, prometo.
Alvirah, o avô e Gary chegam na semana antes do concerto. Eu sei que o avô vai querer ir a São Clemente. Vai ficar tristíssimo quando souber que o cálice do bispo
Santori desapareceu. Mas, no caso de encontrarmos monsenhor Ferris quando lá estivermos, não se importa de falar com ele primeiro para lhe contar a conversa que
tivemos e para lhe pedir que não conte ao avô que eu tenho andado muito na igreja?
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Eu trato de tudo disse Alvirah imediatamente.
Ao atravessarem a sala de estar, Sondra parou junto ao piano, onde o Livro de John Thompson para Iniciados Maduros se encontrava na prateleira, aberto em A Noite
Inteira.
Parou e tocou a melodia com uma mão.
Tinha-me esquecido completamente desta canção; é encantadora, não é? Sem esperar por uma resposta, tocou-a de novo e cantou em voz baixa: Dorme, meu menino, que
a paz esteja contigo, A noite inteira; Anjos da Guarda o Senhor mandará, A noite inteira.
Calou-se.
Não deixa de ser apropriada, não é, Alvirah? A voz falhou-lhe. Espero que a minha bebé tenha encontrado um anjo da guarda naquela noite. De repente, pareceu que
ia chorar.
Eu telefono-lhe prometeu Alvirah enquanto Sondra saía à pressa.
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Já não precisas mais de mim, Cordelia? perguntou Willy, cansado. As duas sanitas estão a funcionar, mas sugiro que digas aos miúdos para não atirarem montes de papel
higiénico lá para dentro. Pensem naqueles canos como se estivessem num lar de terceira-idade. Que é precisamente onde eu sinto que devia estar neste momento acrescentou
com um suspiro.
Disparate replicou a irmã Cordelia rispidamente. Ainda és um homem novo, William. Espera até teres a minha idade. Os irmãos tinham uma diferença de dez anos.
No dia em que tiveres cem anos, Cordelia, continuarás a ter mais energia que um foguetão disse Willy.
Por falar em energia, eu devo assistir a um ensaio do espectáculo. Vem comigo, vamos para cima. Daqui a pouco os miúdos vão para casa disse a irmã Cordelia agarrando
Willy por um braço e empurrando-o para as escadas.
Eram seis e um quarto, e o ensaio do espectáculo estava no auge. Tinham chegado à última cena, no estábulo. Uma Stellina de rosto solene estava ajoelhada diante
de um Jerry Nunez de olhos felizes, debruçada sobre o cobertor dobrado que substituía o berço do Cristo bebé.
Os reis magos, liderados por José Diaz, aproximavam-se pela esquerda, e os pastores vinham da direita.
Mais devagar, todos vocês ordenou a irmã Cordelia. Levantou, e depois baixou, as mãos. Um passo de cada vez, e não empurrem. Jerry, mantém os olhos baixos. Deves
estar a olhar para o bebé, não para os pastores.
Willy, toca a canção de encerramento disse ela.
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Deixei a pauta em casa, Cordelia. Não pensei ficar aqui tanto tempo.
Bem, então canta-a. Deus abençoou-te com uma bela voz. Começa a cantar muito baixinho, como fazes quando estás ao piano, e depois aumenta o volume. As crianças vão
juntar-se a ti, começando com Stellina e Jerry, depois os reis magos e os pastores e por fim o coro.
Willy sabia perfeitamente que não adiantava discutir com a irmã.
Dorme, meu filho começou.
José, se pregares uma rasteira a Denny penduro-te no estendal a secar disse a irmã Cordelia, interrompendo. Podes seguir, recomeça, Willy.
Quando chegou a "Anjos da Guarda Deus te mandará", Stelinna e Jerry entraram. As suas vozes jovens, doces e verdadeiras combinaram com o tenor de Willy quando cantaram
juntos os dois versos seguintes.
"Que voz maravilhosa que aquela miúda tem", pensou Willy enquanto escutava Stellina. "Aposto que tem um timbre perfeito." Observou os olhos castanhos, solenes, da
menina. "Uma criança com sete anos não devia ter um ar tão triste", pensou enquanto os reis magos e os pastores, e depois todos os alunos, se juntavam à música:
"De mansinho avançam as horas da noite, Colina e vale mergulhados no sono, E eu mantendo a minha vigília amorosa, A noite inteira."
No fim, Willy, a irmã Cordelia, a irmã Maeve Marie e as várias voluntárias aplaudiram vigorosamente.
Sejam tão bons daqui a duas semanas no espectáculo, e ficaremos felizes disse Cordelia às crianças. Agora vistam os casacos e ponham os chapéus e não os baralhem
todos. Os vossos pais vêm buscar-vos, e não devemos fazê-los esperar. Estiveram a trabalhar o dia inteiro e estão cansados. Voltou-se para Willy. E devo acrescentar
que eu também estou
disse.
Sinto-me bem ao saber que também tu tens alguns limites
disse Willy. Muito bem, já que passei aqui tanto tempo, posso muito bem ficar mais um pouco e ajudar-vos a limpar.
Vinte minutos depois, ele e as duas freiras estavam à porta,
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à espera de que a Sr.a Nunez viesse buscar Stellina e Jerry. Quando ela chegou, sem fôlego e contrita, eles não a deixaram desculpar-se.
A irmã Cordelia puxou-a para um lado.
Como está a tia-avó de Stellina? perguntou.
Nada bem sussurrou a Sr.a Nunez, a abanar a cabeça.
Aposto que antes de a semana acabar vai ter de ir para o hospital. Benzeu-se rapidamente. Bem, pelo menos o pai voltou. Já é alguma coisa, suponho. Fungou, como
se quisesse deixar clara a pouca fé que depositava no pai de Stellina.
Depois de a Sr.a Nunez e as crianças saírem, a irmã Cordelia disse:
Aquela pobre criança. A mãe abandonou-a quando ela era recém-nascida. Vai perder a tia-avó que a criou e parece que o pai não aparece muito. Pelo que sei, não vale
um tostão furado.
Vale menos do que isso declarou a irmã Maeve Marie.
Na sexta-feira à tarde veio buscar Stellina depois de ela já ter saído. Pareceu-me um pouco duvidoso, por isso fiz algumas investigações acerca dele junto dos rapazes
da esquadra.
Continua com uma mão no trabalho antigo, detective?
perguntou Willy.
Não faz mal nenhum. Segundo os rumores, parece que o Sr. Centino pode estar a meter-se em grandes sarilhos.
O que significa que aquela criança encantadora pode acabar num lar acolhimento, ou numa série de lares de acolhimento disse a irmã Cordelia tristemente. E dentro
de algumas semanas já nem sequer poderemos continuar a tomar conta dela. Suspirou. Muito bem, já chega. Vai para casa, Willy. Foste óptimo e podes vir buscar o cheque
no final da semana.
Muito engraçadinha. Ele sorriu, aceitando a piada do costume. Depois de saírem do edifício, ficaram juntos no passeio durante alguns instantes. Vocês as duas bebam
um copo de vinho e descansem disse Willy. Eu levava-vos a jantar fora, mas não falo com Alvirah desde que ela telefonou ao meio-dia a dizer que ia à caça de condomínios,
por isso não faço ideia de quando vamos comer.
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Cordelia ficou espantada.
Estás a brincar. Pensei que vocês adoravam a casa onde vivem. Ora, Alvirah disse sempre que teria de ser arrastada para fora daquele apartamento. Não me digas que
ela está a pensar realmente em comprar outro.
É claro que não garantiu-lhe Willy. Está apenas a investigar aquele casal da agência imobiliária que foi testemunha de Bessie a assinar o testamento. Ela espera
que, se sair bastante com um ou com o outro, poderá descobrir que houve alguma coisa suspeita naquele testemunho. E agora vou andando, mas vocês fizeram um trabalho
estupendo. Aquele espectáculo vai ficar uma maravilha. Deviam convidar o presidente da Câmara... ele que veja o que vocês estão a fazer.
O cumprimento não contribuiu em nada para alegrar os rostos preocupados das duas freiras, e quando chegou a casa Willy encontrou uma Alvirah igualmente preocupada
à sua espera.
Dei cabo dos pés a ver condomínios com Eileen Gordon disse ela.
Descobriste alguma coisa?
Sim, ela é uma pessoa encantadora, e apostaria a minha vida em como não tiraria uma gota de água que não lhe pertencesse, mesmo que estivesse a morrer de sede.
Então isso quer dizer que provavelmente os Bakers enganaram-na a ela e ao marido disse Willy, num tom prático.
Sim, mas eu esperava tanto que eles também fossem vigaristas. É mais fácil apanhar vigaristas do que convencer pessoas inocentes de que foram enganadas disse Alvirah
com um suspiro.
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A associação de monsenhor Ferris com a igreja de São Clemente começara quarenta anos antes, quando era um sacerdote recém-ordenado. Sete anos depois tinha sido transferido
para uma paróquia no Bronx; depois disso, fora designado para a equipa do cardeal no escritório da catedral. Há dez anos, voltara para São Clemente na qualidade
de pastor, e era ali que esperava passar o resto da sua vida activa. No íntimo, reconhecia que São Clemente era o lar do seu coração; tinha muito orgulho na igreja
na sua história e na posição importante que ocupava na comunidade. O único incidente que manchara o seu domínio, e que ainda o preocupava passados sete anos, era
o roubo do cálice do bispo Santori.
"Culpo-me a mim próprio porque aconteceu no meu turno", dizia a padres amigos que sabiam até que ponto ele sentia a perda. "Tinha havido avisos sobre uma série de
assaltos a igrejas, mas nós não tínhamos prestado atenção suficiente. Claro que tínhamos alarmes nas janelas e nas portas, mas não chegou. Devíamos ter instalado
um detector de movimento. Falámos sobre o assunto, mas nunca tomámos uma decisão.
E, embora o armário que continha o cálice do bispo tivesse sido equipado com um alarme silencioso, naquela situação o dispositivo tinha-se tornado inútil. Quando
a Polícia chegara, o ladrão e o cálice já tinham desaparecido.
A perda afectava sempre monsenhor Tom com uma intensidade especial na época do Natal, porque fora durante o Advento que o cálice tinha desaparecido. E, embora ele
e os paroquianos rezassem constantemente pela sua volta, as orações eram especialmente fervorosas nesta altura do ano.
Alguns santos já nasceram santos e não são feitos santos
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Tom Ferris acreditava nisso. Acreditara sempre que nascem com uma bondade interior que torna a sua presença sentida, seja em que circunstância for. Tinha conhecido
o bispo Santori perto do fim da vida deste, depois de ele se ter retirado dos deveres oficiais. O bispo vivera em São Clemente até à sua morte.
Ferris reflectiu que o homem tinha uma aura de santidade; a mesma aura que rodeara o cardeal Cooke.
Na segunda-feira à noite, quando começou a trancar a igreja, o monsenhor passou pelo confessionário. "O ladrão que roubou o cálice tinha de estar ali escondido",
pensou. "Se o que ele queria era o diamante do cálice, só posso rezar para que o cálice não tenha sido deitado para um contentor de lixo."
O monsenhor não acreditava verdadeiramente que o cálice tivesse sido destruído. De facto, recentemente tinha sido invadido pelo pensamento fantasioso de que o roubo
fora efectuado porque o cálice era necessário noutro sítio, que, exilado de São Clemente, que era a sua casa, estava a desempenhar uma missão mais grandiosa.
Ao sair da igreja e trancar a porta atrás de si, deu por si a olhar automaticamente para o outro lado da rua, para ver se a jovem mulher misteriosa estava lá de
novo hoje. Quando viu que não estava, sentiu pena por alguns instantes; estava com esperança de que ela voltasse. Tinha tido muitas vezes a experiência de pessoas
a rondar as proximidades, relutantes para se confessarem a ele e que por fim arranjavam coragem e se aproximavam. "Monsenhor, preciso de ajuda", era como começavam
normalmente.
A governanta tinha-lhe deixado o jantar no forno. O seu coadjutor tinha ido passar a noite fora, por isso Tom Ferris teve o prazer de ler sem interrupção enquanto
comeu a refeição simples e bebericou um copo de vinho. Depois de terminar, limpou cuidadosamente os pratos e colocou-os na máquina de lavar loiça, recordando com
algum divertimento os velhos tempos em que o pastor normalmente conhecido entre os seus seis ou sete coadjutores como "o patrão" reinava como monarca absoluto e
a reitoria tinha uma governanta que sabia
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cozinhar comidas de sonho e fazia alegremente, e servia, deliciosas refeições três vezes por dia.
Foi quando estava a tomar o café que a parte tranquila do seu serão terminou com um telefonema de Alvirah.
Monsenhor Tom disse ela, tenho uma amiga com um problema, e, embora ache que talvez tenha encontrado uma solução, preciso de falar com o senhor sobre o assunto.
É que estou a escrever uma coluna acerca de uma rapariga que, há sete anos, deu à luz e deixou a sua bebé recém-nascida no patamar de uma reitoria. Fez uma pausa.
E estou a contar-lhe isto porque foi na sua reitoria.
Isso nunca aconteceu, Alvirah!
Aconteceu sim, mas o senhor nunca soube de nada. Eu estou convencida de que aconteceu de verdade. De qualquer maneira, o que interessa é que o meu editor vai colocar
a história na primeira página, e como temos de proteger a identidade da mãe queremos que os telefonemas sejam direccionados para si, porque, afinal de contas, foi
na sua reitoria. Vou oferecer uma grande recompensa por informações sobre o bebé. O senhor só precisa de atender os telefonemas que forem feitos.
Mais devagar, Alvirah.
Não posso. Este é o momento perfeito para este tipo de história ser conhecido. Para começo de conversa, as pessoas prestam mais atenção a este género de histórias
de interesse humano na altura do Natal, e para além disso a criança fez sete anos a semana passada. Estou a escrever o artigo neste preciso momento e preciso de
saber se posso usar o seu nome como intermediário.
Primeiro, gostaria de ler o que escreveu disse ele cautelosamente.
Claro que sim. Apreciamos muito a sua colaboração, e lamento ter de me impor desta forma, mas com o artigo e a recompensa vamos seguramente receber muita atenção.
Esperamos do fundo do coração localizar a menina, e pensamos que, se não dissermos quem é a mãe, nenhum moralista tentará fazer dela um exemplo e mandá-la prender
por abandono ou
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abuso de menores. A questão é a seguinte: é melhor o senhor não saber quem ela é?
Deixe-me reflectir sobre isso disse ele.
Para mim não constitui um problema replicou Alvirah. Se for interrogada, posso alegar sigilo jornalístico.
"Existe uma maneira de eu não poder ser obrigado a revelar a identidade dela", pensou Ferris, "mas o segredo da confissão não pode ser utilizado por conveniência.
Espere um pouco, Alvirah. Disse que isso aconteceu há praticamente sete anos. Está a falar da noite em que o cálice foi roubado? Foi nessa altura que o bebé foi
deixado?
Sim, aparentemente foi. Quando a mãe telefonou para a reitoria, atendeu um padre idoso. Ela pediu para falar consigo, e ele disse-lhe que a Polícia estava lá por
causa de uma grande confusão e que o senhor estava lá fora com os polícias. Ela pensou que o senhor já tinha encontrado a bebé.
Ele tomou uma decisão.
Escreva a sua história, Alvirah. Eu ajudo-a. Monsenhor Ferris desligou o telefone com uma sensação de
assombro. Seria possível que a pessoa que roubara a bebé tivesse visto o ladrão a sair da igreja e fosse capaz de fornecer por fim uma pista sobre a sua identidade?
Ao ajudar esta mãe infeliz, o monsenhor podia conseguir também encontrar uma resposta para a dúvida que tanto o perturbava e que era a de saber o que tinha acontecido
ao cálice.
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Sempre que entrava no quarto de Bessie, não restavam quaisquer dúvidas na mente de Kate Durkin de que algo estava levemente fora do sítio, mas continuava a não perceber
o que era. Exasperada com a sensação incómoda, rezou por fim a Santo António para que a ajudasse a descobrir algo de cujo paradeiro ela não conseguia recordar-se.
Durante a oração admitiu ao santo que normalmente lhe pedia ajuda para algo tangível, como os óculos ou a sua única jóia "boa", o anel com um diamante minúsculo
num engaste Tifany que fora o anel de noivado da mãe.
Dessa vez, Santo António levara duas semanas para a ajudar a lembrar-se de que o tinha escondido num frasco de aspirinas vazio quando ela e Bessie tinham ido fazer
um passeio a Williamsburg numa excursão para cidadãos seniores.
"Sabes, Santo António", explicou ela enquanto guardava roupa interior primorosamente dobrada numa caixa vazia em cima da cama, "eu acredito que Alvirah pode ter
razão e que é possível que os Bakers possam ter enganado Bessie e ter-me roubado esta casa. Claro que não sei ao certo se ela tem razão, mas estou preocupada porque
de cada vez que entro neste quarto e olho para a escrivaninha com a velha máquina de escrever de Bessie soa uma campainha de aviso na minha cabeça.
Kate viu uma malha num par de collants dobrados.
Pobre Bessie disse em voz alta. Quase não conseguia ver, mas não me deixou levá-la ao oculista para comprar uns óculos novos. Disse que era um desperdício de dinheiro
comprá-los quando provavelmente não chegaria ao Natal.
"Bem, tinha razão", pensou Kate com um suspiro enquanto
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abria a gaveta seguinte e tirava as camisas de noite de flanela que tinham sido o uniforme de dormir de Bessie.
Céus murmurou ela, a pobre Bessie deve ter guardado esta sem reparar que a tinha usado. Abanou a cabeça enquanto passava a mão pela linha de pó-de-arroz na gola
rendada de uma camisa de dormir cor-de-rosa com flores. Vou lavá-la antes de a guardar murmurou. Bessie teria gostado.
Abanou a cabeça. "Não, na verdade não estou surpreendida por ela a ter experimentado e depois despido", disse para si mesma. "Ela nunca gostou da renda. Dizia que
lhe arranhava o pescoço. O que me surpreende é que a tenha vestido."
Ainda tinha a camisa de dormir na mão quando um som a fez voltar-se. Uma vez mais, Vic Baker estava à porta, a observá-la.
Estou a preparar as coisas da minha irmã para serem mandadas para instituições de caridade disse asperamente. A menos que você e a sua mulher também exijam as camisas
de dormir dela.
Sem responder, Vic foi-se embora. "Aquele homem assusta-me", pensou Kate. "Tem alguma coisa sinistra. Vou gostar de sair daqui."
Nessa noite foi à máquina de lavar roupa e ficou surpreendida ao constatar que a camisa de dormir cor-de-rosa às flores não estava na pequena pilha de roupa para
lavar que ela tinha reunido e deixado ali.
"Devo estar a ficar maluca", pensou Kate. "Juraria que a trouxe para baixo. Oh, afinal devo tê-la guardado. Agora tenho de procurar em todas aquelas malditas caixas
até a encontrar."
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Na sexta-feira, dia 11 de Dezembro, a história de Alvirah acerca da bebé deixada à porta da reitoria de São Clemente sete anos antes apareceu na primeira página
do New York Globe. Praticamente no minuto em que os jornais chegaram às bancas, começaram a chover telefonemas no número especial da reitoria que monsenhor Ferris
tinha mandado instalar apressadamente.
A sua secretária de há muitos anos atendia os telefonemas, anunciando que estava a gravar todas as conversas, e passava ao monsenhor aquelas que pareciam mais prováveis
de merecer um maior aprofundamento. Porém, quando telefonou a Alvirah na segunda-feira de manhã, o monsenhor parecia cabisbaixo.
Das mais de duzentas chamadas que recebemos até agora, não há uma única que mereça qualquer crédito disse ele. Infelizmente, muitas são de pessoas indignadas a dizer
que não sentem a menor pena de uma pessoa que deixou um recém-nascido ao frio, mesmo que fosse apenas por alguns minutos.
A Polícia apareceu? perguntou Alvirah.
Veio a Organização de Apoio à Criança, e acredite que o funcionário que falou comigo não estava nada contente. A única coisa que podemos estabelecer é que não existe
qualquer registo de um recém-nascido desconhecido ter sido encontrado morto ou abandonado em Nova Iorque naquela altura.
Acho que já é alguma coisa disse Alvirah com um suspiro. Estou tão desapontada por isto não ter levado a algum lado. E pensei que era uma ideia tão boa.
Também eu concordou monsenhor Ferris. Como é
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que está a mãe? A propósito, já calculo que deve ser aquela jovem que andou por aqui tantas vezes a semana passada.
Mas ainda pode responder com honestidade que não sabe quem ela é, não pode? perguntou Alvirah com alguma preocupação. Como sempre, estava a gravar a conversa, não
fosse o monsenhor dizer alguma coisa que lhe escapasse à primeira.
Não precisa de desligar o seu microfone, Alvirah. Não sei quem ela é, e não quero saber. A propósito, que história é esta que ouvi acerca de andar à procura de um
apartamento?
Tenho os pés numa desgraça de tanto andar admitiu Alvirah. Os dois Gordons são boas pessoas, mas, monsenhor Tom, devo dizer-lhe que, embora possam ser bons vendedores
de propriedades, não são as pessoas mais inteligentes que Deus já pôs ao cimo da terra. Aposto que podem levá-lo a um cubículo acanhado e depois dizerem-lhe que
é uma casa encantadora, e a parte mais louca é que eles acreditam. E depois ficam excitadíssimos quando o senhor lhes diz que ao invés do milhão e duzentos mil que
o dono pede, pode comprá-la por apenas novecentos mil dólares.
Os vendedores de imobiliário têm de mostrar entusiasmo em relação aos sítios que mostram, Alvirah disse monsenhor Ferris calmamente. Em alguns círculos, é conhecido
como optimismo.
No caso deles, tente visão limitada retorquiu Alvirah. De qualquer maneira, vou sair com Eileen para ver um sítio que ela diz ter uma vista espectacular do Central
Park. Mal posso esperar. Depois disso, vou visitar Kate para tentar animá-la.
Quem me dera que conseguisse. Ela passa o tempo todo a ler a cópia do testamento de Bessie e a descobrir uma maneira nova de ferir os seus sentimentos. A última
é que a assinatura de Bessie foi escrita com tanta força que a caneta quase furou o papel. "É como se ela estivesse ansiosa para dar a casa a estranhos", disse-me
ela.
Depois de desligar, Alvirah ficou sentada durante vinte minutos, perdida em pensamentos. Por fim, vestiu o casaco, pôs o chapéu e foi para a varanda.
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O vento fustigou-lhe o rosto e ela tremeu, embora estivesse bem agasalhada. "Sou um fracasso", disse para si mesma. "Pensei que estava a fazer um favor a Sondra...
agora ela está cheia de esperança, e para nada. Vai ficar ainda mais destroçada. O avô e o namorado chegam amanhã, e ela tem de manter as aparências à frente deles
e também de ensaiar para o concerto do dia 23."
"E também dei a Kate alguma esperança de encontrar uma maneira de desmascarar este novo testamento, mas, depois de ver praticamente todos os apartamentos que estão
vazios no West Side, a única coisa certa que descobri é que Jim e Eileen são pessoas decentes que devem ter sorte em relação às vendas, porque não há dúvida de que
não escutam quando uma pessoa lhes diz o que quer ver.
Até agora, nada admitiu tristemente Kate quando foi visitá-la. Mas, como eu sempre digo, as coisas só acabam no fim.
Oh, Alvirah disse Kate. Eu acho que acabou. O que me perturba é que me sinto como se estivesse a viver numa montanha russa emocional. Não consigo parar de pensar
em Bessie naquela última segunda-feira quando a deixei aqui sentada, a ver os programas dela... sabes bem o quanto ela gostava de One Life to Live e do Serviço de
Urgência... e de os comentar, a falar a mil à hora, a contar-me tudo sobre cada personagem, e como estavam sempre a fazer coisas terríveis uns aos outros. E durante
todo esse tempo estava a planear fazer-me uma coisa terrível.
Nessa noite, Alvirah teve um dos ataques de insónia de que sofria quando estava a deslindar crimes. Por fim, à uma da manhã desistiu, foi para a cozinha, fez chá
e rebobinou a cassete até ao princípio.
"Hercule Poirot", pensou. "Pensa como ele!" Às sete, quando Willy saiu do quarto a esfregar os olhos, encontrou uma detective triunfante.
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Willy, talvez tenha encontrado o fio da meada anunciou ela com um sorriso excitado. Começa com a assinatura de Bessie no testamento. Não se pode ver grande coisa
numa cópia. Esta manhã vou até ao tribunal de homologações para ver bem o original. Nunca se sabe o que poderei encontrar.
Se houver alguma coisa para encontrar, tu encontras, querida disse Willy com voz sonolenta. Aposto todo o meu dinheiro em ti.
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Tinham-lhe proposto uma coisa grande um trabalho maior do que qualquer dos que já fizera, maior até do que o golpe da empresa de computadores fantasma. Não era o
seu estilo usual, mas Lenny decidiu correr o risco um grande pagamento, e ficaria bem durante alguns anos. Para além do mais, tinha decidido que chegara a altura
de partir para o México, especialmente agora que a mãe de Star estava na cidade e andava à procura dela.
A história no New York Globe tinha-o assustado verdadeiramente. Descrevia tudo sobre a forma como Star fora deixada nos degraus da reitoria; estavam ali todos os
pormenores. E se um dos vizinhos coscuvilheiros do prédio começasse a fazer contas pelos dedos e se lembrasse de que tinha sido há precisamente sete anos que ele
chegara com a filha recém-nascida; aquilo perturbava Lenny profundamente. E quem sabia? Alguém podia até recordar-se do carrinho de bebé surrado com a mancha de
lado.
Até se tinha falado imenso no caso em alguns dos debates radiofónicos. Dom Imus em especial tinha falado no assunto até à exaustão. Convidara o comissário da Polícia
para o seu programa, e o comissário dissera que se a pessoa ou pessoas que tinham levado o bebé fossem encontradas poderiam ser acusadas de rapto e ver-se confrontadas
com a possibilidade de uma grande pena de prisão.
"Quando uma pessoa encontra um objecto valioso que não lhe pertence, embora não saiba quem é o dono, deve entregá-lo", dissera o comissário. "É a lei. E que coisa
pode ser mais valiosa do que uma criança recém-nascida?"
Ele e Imus tinham falado sobre o bilhete, que fora citado
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palavra por palavra no artigo. "O facto de a mãe querer um bom lar para a filha não significa apenas qualquer lar", dissera o comissário. "Aquela criança ficou a
cargo da cidade quando a mãe a abandonou, e falando em nome da cidade digo que a queremos de volta. Espero que, se alguém tiver sequer uma suspeita de quem essa
criança pode ser, esse alguém telefone imediatamente. Garanto que ninguém saberá quem fez o telefonema, e a recompensa será entregue sem publicidade."
Lenny apercebeu-se de mais uma coisa naquela terça-feira de manhã enquanto deitava açúcar e leite quente numa chávena de café forte que ia levar à tia Lilly. A saúde
da tia tinha piorado nos últimos dias quase não tinha saído da cama e ele sabia que, se ela fosse para o hospital e falasse sobre Star a alguém, as assistentes sociais
viriam ao apartamento ver como ela estava.
Quando chegou ao quarto de Lilly, ela tinha os olhos fechados, mas abriu-os quando escutou os passos dele.
Não me sinto bem, Lenny disse ela, mas sei que se for ao médico eles me mandam para o hospital. Quero poder ver Stellina a representar o papel de Virgem Maria na
festa, por isso quero esperar um pouco antes de ir. Mas quando for para o hospital quero que a deixes ficar com Gracie Nunez até eu voltar. Prometes?
Lenny sabia que o espectáculo seria na segunda-feira seguinte à tarde, no dia 21; era igualmente o dia do seu grande trabalho. Também sabia que não havia a mínima
hipótese de Lilly conseguir ir ao espectáculo, mas se ela pudesse aguentar tanto tempo antes de ir para o hospital seria uma maravilha para ele. Depois de o trabalho
estar feito, ele obrigaria Lilly a ir para o hospital, e depois de ela estar definitivamente fora do caminho ele e Star partiriam, provavelmente à meia-noite. "Ela
é a minha estrela da sorte", pensou Lenny, "e tenho de a manter comigo."
Pousou cuidadosamente a chávena de café na mesa-de-cabeceira ao lado da cama.
Eu vou cuidar bem da senhora, tia Lilly prometeu ele. Stellina vai ficar destroçada se a senhora não puder pelo menos vê-la com aquela roupa tão bonita que fez para
ela. E
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concordo que quando a tia for para o hospital seria boa ideia ela ficar com a Sr.a Nunez até a senhora voltar. Eu preciso de trabalhar, e não quero que ela fique
aqui sozinha.
Lilly ficou pateticamente agradecida.
Grazie, Lenny, grazie murmurou, e fez-lhe uma festa na mão.
A túnica branca e o véu azul estavam num cabide no varão ao lado da cómoda. Enquanto a observava, uma rabanada de vento da janela ligeiramente aberta fez o véu voar,
e ele viu-o desviar-se para a direita e tocar no cálice que estava na secretária.
"Outro aviso", pensou Lenny. O facto de a Polícia ter estado em São Clemente sete anos antes por causa do roubo na igreja tinha sido proeminentemente mencionado
no artigo do Globe. A história do cálice, e até mesmo uma fotografia do mesmo, constituíra um artigo de fundo noutra página do jornal.
Lenny teria gostado de agarrar no cálice e livrar-se dele, mas sabia que não podia correr esse risco. Se ele desaparecesse, Lilly ia fazer uma fita dos diabos, e
Star contaria a todos os seus amigos.
Não, o cálice também tinha de esperar. Mas só por agora. Quando ele e Star fugissem, por fim, havia uma coisa que ele sabia ao certo: aquele cálice ia acabar no
fundo do Rio Grande.
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Sondra já não suportava ler um jornal ou ligar a televisão ou ouvir rádio. A história de Alvirah acerca da bebé tinha desencadeado um furor tão grande nos órgãos
de comunicação social que a fazia encolher-se de vergonha.
Na segunda-feira à noite tinha procurado na bolsa e encontrara o frasco ainda fechado de comprimidos para dormir que o médico lhe tinha receitado para quando ela
tivesse um dos seus ocasionais acessos de insónia. Ela nunca tinha tomado nenhum, preferindo aguentar a ceder à tentação de usar algo que considerava uma muleta.
Mas na segunda-feira soube que não tinha escolha. Simplesmente, precisava de dormir um pouco.
Quando acordou às oito da manhã de terça-feira, porém, tinha as faces molhadas de lágrimas, e lembrou-se de que nos seus sonhos vagos e perturbados tinha estado
a chorar. Zonza e desorientada, conseguiu por fim sentar-se e, por tentativas, tirar os pés da cama.
Durante vários segundos, o quarto de hotel pareceu girar à sua volta, e as cortinas floridas misturaram-se com o tecido às riscas do sofá num caleidoscópio de cor.
"Teria sido preferível ter ficado acordada a noite inteira... ou então ter engolido todos os comprimidos do frasco", pensou fugazmente. Mas depois abanou a cabeça.
"Não sou assim tão cobarde", disse para si mesma.
Um duche quente, prolongado, com a água a salpicar-lhe o rosto e a encharcar-lhe os cabelos, ajudou a restaurar algum sentido de perspectiva. Vestiu um roupão turco,
enrolou os cabelos numa toalha e obrigou-se a pedir ovos mexidos e torradas com o sumo e café do costume.
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"O avô e Gary chegam esta noite", lembrou a si mesma. "Se me virem assim, não vão parar de perguntar qual é o problema até eu me ir abaixo e lhes contar a história
toda. Hoje tenho de ensaiar bem. E tenho de ensaiar especialmente bem amanhã, quando o avô estiver a escutar. Tenho de tocar de forma a que ele sinta que todos os
anos que passou a ensinar-me e a sacrificar-se por mim valeram a pena.
Sondra levantou-se e dirigiu-se para a janela. "Hoje é terça-feira, dia 15 de Dezembro", pensou, enquanto olhava para a rua, já confusa com o tráfego citadino e
com os transeuntes que seguiam apressadamente para o trabalho.
O concerto é na próxima quarta-feira disse em voz alta. "No dia seguinte é Véspera de Natal... é quando devemos voltar para Chicago", pensou. "Só que eu não vou.
Ao invés disso, vou tocar à campainha da reitoria de São Clemente, uma coisa que devia ter feito há sete anos em vez de correr dois quarteirões até um telefone.
Vou contar a monsenhor Ferris que sou a mãe da bebé e depois peço-lhe que chame a Polícia. Não consigo viver com esta culpa nem mais um dia."
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Às dez horas da manhã de terça-feira, Henry Brown, um escriturário do Tribunal de Homologações na Rua Chambers, na Baixa de Manhattan, ergueu os olhos e disse "Bom
dia" a uma senhora com cerca de 60 anos e um olhar determinado, com cabelos ruivos e um queixo um pouco proeminente. Henry era um bom juiz da natureza humana e reparou
nas linhas de sorriso à volta da boca da mulher e nos pés de galinha à volta dos olhos. Sabia que eram sinais de uma disposição agradável e que a irritação que via
no rosto dela provavelmente era apenas momentânea.
Pensou que a tinha percebido: devia ser uma parente descontente que quereria examinar o testamento de um familiar que a tinha deserdado.
Rapidamente ficou a saber que estava certo em relação ao desejo de ver um testamento, mas a mulher não era da família.
Chamo-me Alvirah Meehan explicou Alvirah. Segundo sei, os testamentos em homologação são documentos públicos e eu tenho o direito de examinar um em especial, se
assim o decidir.
Tem toda a razão disse Henry num tom agradável. Mas é claro que terá de o fazer na presença de um membro do pessoal.
Não me importa que todo o Governo da cidade esteja pendurado no meu ombro disse Alvirah bruscamente, mas depois acalmou-se. Afinal de contas, não era culpa deste
prestável escriturário que quanto mais perto estava de ver o testamento verdadeiro de Bessie mais excitada se sentisse.
Quinze minutos mais tarde, Henry Brown colocou-se ao lado dela, enquanto ela estudava o documento.
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Novamente aquela palavra balbuciou ela.
Como?
É que a palavra "prístina" não pára de me incomodar. Sabe, eu juraria que a senhora que escreveu este testamento nunca usou aquela palavra em todos os seus oitenta
e oito anos.
Oh, ficaria surpreendida se soubesse o quão literárias algumas pessoas ficam quando escrevem os seus testamentos
disse Henry de maneira prestável. Claro que aparecem com algumas preciosidades, erros como "inegligente" ou "reiterar novamente". Fez uma pausa, e depois acrescentou:
Porém, devo dizer que prístina é nova. Nunca tinha visto essa palavra ser usada antes.
Alvirah tinha desligado quando ouvira a opinião desanimadora de que podia ser considerado habitual inserir algumas palavras desconhecidas e talvez pomposas num testamento.
Ora, que é isto? perguntou ela. Quero dizer, olhe para esta última página. O testamento já está assinado.
É conhecida como a cláusula de atestação explicou Henry. Nos termos da lei do Estado de Nova Iorque, as testemunhas têm de completar esta página. Atesta que testemunharam
a assinatura do testamento, e a testadora, neste caso, a Sr.a Bessie Durkin Maher, também tem de a assinar. Na essência, é uma reconfirmação do testemunho do testamento.
Sem isso, as testemunhas teriam de ir a tribunal na altura da homologação, e, claro, nos casos em que os testamentos estão retidos durante anos, as testemunhas podem
ter-se mudado ou morrido.
Repare bem nisto ordenou Alvirah, erguendo duas folhas de papel. A assinatura de Bessie no testamento e depois aqui... como é que lhe chamou?... cláusula de atestação.
Está a ver ali? A tinta é diferente. Mas tinham de ser assinadas ao mesmo tempo, certo?
Henry Brown estudou as duas assinaturas.
Definitivamente, são dois tons diferentes de tinta azul
disse ele. Mas talvez a sua amiga Bessie tivesse decidido que a sua assinatura no testamento, embora totalmente legível, fora escrita com tinta bastante clara, por
isso simplesmente
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trocou de caneta. Não há nada de ilegal nisso. As testemunhas assinaram com a mesma caneta observou ele.
Uma das assinaturas de Bessie é firme, a outra incerta. Também é possível que tenha assinado estes documentos em duas ocasiões diferentes disse Alvirah.
Oh, isso seria ilegal.
Eu não poderia estar mais de acordo!
Bem, se acabou, Sr.a Meehan... Henry não terminou a frase.
Alvirah sorriu-lhe.
Não, lamento mas ainda não acabei. Não faz ideia de como lhe estou grata por me conceder todo este tempo, mas sei que não quer que haja um erro judiciário.
Henry sorriu educadamente. "Toda a gente que é excluída de um testamento grita que há um erro judiciário", pensou ele filosoficamente.
Repare, Henry continuou Alvirah. Posso chamar-lhe Henry, não é verdade? E o Henry devia tratar-me por Alvirah. Sem esperar para ver se Henry aceitava esta elevação
do conhecimento de ambos, Alvirah disse: Bessie jura que esta foi a sua última vontade. Eu juro que isto é falso. Para além do mais, onde é que Bessie aprendeu que
tinha de dactilografar esta cláusula de atestação? Explique-me isso.
Bem, ela pode ter pedido a alguém que lha dactilografasse, ou alguém pode ter-lhe dado uma cópia da minuta disse Henry pacientemente. Agora, Sr.a Meehan, quero dizer,
Alvirah... começou ele.
Está bem disse Alvirah, interrompendo-o. Sei que não é prova, mas estas assinaturas parecem diferentes, e eu aposto que Bessie não assinou estes documentos ao mesmo
tempo. Pegou bruscamente nas suas coisas. Muito bem, Henry, obrigada disse ela, saindo apressadamente, como uma mulher que tinha uma missão.
Alvirah foi directamente para a Agência Imobiliária de James e Eileen Gordon. Tinha marcação para ver mais um
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apartamento, este em Central Park Oeste e descrito por Eileen Gordon como sendo "uma pechincha por dois milhões".
Enquanto fingia estar interessada no lugar e ouvir Eileen soltar uma vez mais exclamações sobre a bonita vista embora a vista fosse de certa forma limitada, uma
vez que o apartamento se situava no primeiro andar e dava directamente para as árvores, Alvirah conseguiu levar a conversa para a assinatura do testamento de Bessie.
Oh, sim, a doce senhora assinou os dois documentos disse Eileen, e os seus olhos redondos abriram-se muito quando sorriu a recordar. Tenho a certeza disso. Mas era
óbvio que estava a ficar muito cansada. Creio que foi por isso que a segunda assinatura ficou bastante torta na linha. Se mudou de caneta, não dei por isso. A verdade
é que talvez eu estivesse a observar o aposento. A casa está em condições quase perfeitas. Quero dizer, algumas coisas, como a porta da sala de estar, precisam de
ser arranjadas, mas isso não é nada. Da forma como os preços estão agora, podia vender aquela casa por três milhões com a maior das facilidades.
"Por uma vez, acho que tens razão", pensou Alvirah enquanto, completamente desencorajada, desligava o microfone do alfinete de lapela com a forma de um sol.
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Aquele Lenny Centino é mais esperto do que parece disse Roberto Pagano, o detective a trabalhar sob disfarce, ao chefe, Joe Tracy, na quarta-feira à noite quando
se encontraram num lugar previamente combinado. Desde aquela primeira vez que o conheci, ainda não abriu a boca uma única vez para falar sobre as entregas que fez
para a empresa de computadores falsa... ou outra coisa qualquer que pudéssemos usar para o apanhar. Se não tivessem sido algumas cervejas a soltar-lhe a língua,
não acredito que tivesse dito alguma coisa naquela primeira vez.
E seria facílimo para um advogado esperto livrá-lo de quaisquer acusações disse Joe, preocupado. É por isso que não paro de fazer figas para que ele não desista
do trabalho de segunda-feira à noite.
Não me parece que o faça disse Pagano, seguro. Se o meu palpite estiver certo, Lenny está a preparar-se para dar o salto. Creio que ele sabe que actualmente as coisas
estão a ficar perigosas para os traficantes no Upper West Side. Ele quer dar o golpe na segunda-feira à noite, e depois aposto contigo em como vai desaparecer durante
muito tempo.
Durante muito tempo, talvez, mas não para onde ele pensa que vai, espero replicou Tracy. Claro que se Lenny avançar com o trabalho vamos apanhá-lo com as mãos na
massa. Mas supõe que ele se enerva e desaparece debaixo dos nossos olhos? Isso fez Tracy lembrar-se de mais alguma coisa. Nestas últimas tardes, ele tem ido buscar
a filha ao centro Apoio da Casa. Por que será que de repente se está a tornar tão bom pai?
Talvez queira apenas certificar-se de que ela não se
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esquece dele depois de ele fugir declarou Pagano com um encolher de ombros. Não consigo imaginá-lo a deixar-se sobrecarregar com uma miúda de sete anos. Acho que
tens razão concordou Tracy.
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O ensaio geral do espectáculo estava marcado para sexta-feira à tarde, e Lenny tinha feito questão de assistir, explicando às irmãs Cordelia e Maeve Marie que, uma
vez que estaria a trabalhar às quatro da tarde de segunda-feira, altura em que a representação teria lugar, não queria perder a única oportunidade de ver a filha
a representar o papel de Virgem Maria.
Com todo o seu cinismo num sorriso insinuante, Lenny explicou que a nonna de Stellina estava muito, muito doente, mas que ele estaria sempre presente para cuidar
da sua menina.
Somos tu e eu contra o mundo, não é, Star? perguntou ele, afagando os cabelos que caíam pelos ombros da menina.
Até terei de aprender a pentear essa tua bonita cabeleira.
Sorriu de novo para as freiras. A nonna já não consegue prender bem a fita.
As mulheres acenaram afirmativamente, mas as suas expressões eram gélidas. Depois, a irmã Cordelia voltou-lhe as costas e bateu palmas.
Muito bem, crianças, ocupem os vossos lugares para o ensaio geral. Oh, aí estás tu, Willy. Estava com receio de que te tivesses esquecido de nós.
Willy e Alvirah vinham a subir as escadas, e no rosto de Willy estampava-se um sorriso de resignação.
Cordelia, falta uma semana para o Natal. Acredites ou não, tive de fazer algumas compras.
E eu saí pela última vez com os Gordons disse Alvirah.
Hoje, eles praticamente correram comigo. Disseram que sentiram que eu ainda não estava preparada para comprar,
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e deram-me os nomes de alguns colegas a quem poderia telefonar se quisesse continuar a procurar um apartamento para o resto da vida.
Então temos de aceitar que o bom Deus não quer que continuemos este trabalho depois do dia 1 de Janeiro declarou Cordelia. E não deves culpar-te, Alvirah. Não deixaste
pedra sobre pedra para tentar provar que o testamento de Bessie era falso. Afastou-se bruscamente. Agora vamos começar o ensaio. Voltou-se de novo para Alvirah,
baixou a voz e acenou a cabeça quase imperceptivelmente em direcção a Lenny. Aquele fulano é o pai de Stellina. Senta-te ao lado dele. Ele está a tentar causar boa
impressão, por isso sei que falará contigo. Vê o que achas dele. Eu penso que ele está a tramar alguma.
A irmã Cordelia estava certa. Lenny falou realmente ao longo de todo o ensaio, e só interrompeu a história de como desistira de um bom emprego no Midwest porque
sentia imensas saudades de Star mas não podia afastá-la da tia de que tanto gostava para soltar exclamações ruidosas e estranhamente impróprias sobre como as crianças
eram amorosas. Durante as suas divagações, falou a Alvirah na bonita irlandesa com quem tinha casado e que fora a mãe de Star.
Chamava-se Rose O'Grady. Gostávamos imenso de dançar juntos. Eu pedia ao conjunto para tocar Sweet Rosie O'Grady quando saíamos, e cantava-lhe ao ouvido.
Que é que lhe aconteceu? perguntou Alvirah.
É uma coisa que não conto a muita gente. Teve uma depressão pós-parto tão grave que tivemos de a hospitalizar. Depois... Aqui a voz de Lenny quebrou e extinguiu-se.
Não a vigiaram com cuidado. As últimas palavras foram proferidas num sussurro dramático.
"Suicídio", pensou Alvirah.
Oh, lamento muito disse ela com sinceridade.
A nonna contou a Star que a mamã dela estava doente e que teve de ir para muito longe, e que provavelmente nunca mais voltaríamos a vê-la. Acho que se calhar devíamos
ter-lhe contado logo que a mãe tinha morrido, mas a nonna está
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sempre a dizer que ainda é cedo explicou Lenny, contente por ter pintado a cena tão bem.
Houve um pequeno contratempo no ensaio quando Rajid, o terceiro rei mago, deixou cair o frasco que supostamente continha a mirra.
Não faz mal, Rajid disse a irmã Cordelia quando viu que os olhos do menino se enchiam de lágrimas, e a irmã Maeve Marie entrou para apanhar os cacos. Foi apenas
um pequeno acidente. Não foi um grande problema. Continuem, todos vocês.
Willy foi para o piano. Chegara o momento da cena final da peça.
Dorme, meu menino, que a paz esteja contigo. Tocou e cantou suavemente.
Ajoelhados junto ao berço, que estava agora no seu lugar, Stellina e Jerry ergueram os olhos.
Anjos de guarda Deus te mandará cantaram, com as suas vozes jovens e doces e verdadeiras.
É uma canção bonita disse Lenny. Faz-me lembrar...
- Chiu!
"Santo Deus, será que ele não consegue estar calado sequer para ouvir a própria filha?", pensou Alvirah agora tão irritada que se tivesse fita adesiva à mão lhe
teria colado a boca. Reparou que os olhos de Stellina tinham chispado para ele quando ele falara, mas depois se tinham afastado, como se ela tivesse ficado embaraçada.
"Ela é suficientemente esperta para perceber que o pai é um idiota", pensou Alvirah. "Pobre criança. Na verdade, hoje ela parece um pouco desarranjada. Tem os cabelos
emaranhados; normalmente, estão tão bem amarrados."
"Desarranjada, mas mesmo assim bonita", pensou: os cabelos louros, encaracolados, quase pela cintura, uma compleição clara e olhos castanhos, grandes. "A sua expressão
é quase adulta de tanta tristeza", pensou Alvirah. "Por que é que alguns miúdos têm uma vida tão difícil?"
Lenny aplaudiu ruidosamente quando o ensaio terminou.
Bestial! gritou. Realmente muito bom! Star, o teu pai está orgulhoso de ti!
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Stellina corou e afastou-se, desviando os olhos.
O teu pai está orgulhoso de ti imitou Jerry enquanto se levantava. És uma Virgem Maria pequenina tão boa, ha, ha, ha.
Ainda não é tarde de mais para arranjar outro São José avisou-o a irmã Cordelia, batendo-lhe com um dedo na cabeça. Não se esqueçam de levar os fatos para a escola
na segunda-feira, crianças. Depois vestem-se aqui.
Eu vou buscar Star à escola e levo-a para casa para se vestir disse Lenny a Alvirah. A nonna dela não pode vir ao espectáculo, mas quer vê-la vestida. Depois tenho
de ir trabalhar.
Alvirah acenou afirmativamente, absorta, com a atenção centrada em Cordelia enquanto esta juntava os presentes que os reis magos deviam apresentar. "Os chocolates
embrulhados em papel dourado parecem mesmo oferendas de ouro verdadeiro", pensou. A taça pintada que Cordelia trouxera do convento para o incenso revelara-se uma
bonita oferta. "Vou arranjar outro frasco para substituir o que Rajid deixou cair", pensou. Depois reparou que Stellina dera a mão a Cordelia e levara a freira para
um canto.
Aos segredinhos? observou Lenny, e na sua voz notou-se um tom de alarme.
Oh, duvido disse Alvirah rapidamente. Eu sei que Stellina tem pedido à irmã Cordelia e à irmã Maeve Marie para rezarem pela sua nonna.
Oh, sim disse Lenny alguns momentos depois. Deve ser isso que ela está a fazer.
Satisfeito com a impressão que pensava ter causado no ensaio, Lenny saiu com Stellina, explicando a quem o quisesse ouvir que ia levá-la a jantar fora.
Agora, que a nonna não pode preocupar-se com as refeições, acho que terei de comprar um livro de receitas foi o comentário que fez ao sair.
A caminho do McDonald's, perguntou a Star se tinha pedido à irmã para rezar pela nonna quando a puxara para um canto.
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Peço isso à irmã todos os dias disse Stellina calmamente. Instintivamente, soube que o pai poderia não gostar do que ela tinha pedido realmente à irmã... que, se
a nonna a deixasse trazer o cálice de prata que tinha pertencido ao tio da mãe, Rajid podia levá-lo para o estábulo, em substituição do frasco que tinha partido?
Para seu deleite, a irmã tinha dito que podia ser. Star tinha a certeza de que, se implorasse à nonna, esta dar-lhe-ia autorização para o trazer. "E quando Rajid
o pousar junto ao berço, eu vou rezar para que, se a minha mãe ainda não foi para o Céu, me venha ver apenas uma vez."
Era um desejo e uma esperança que agora se tinham tornado quase uma necessidade constante, urgente. Mas uma fé que estava a tornar-se cada vez mais forte parecia
prometer a Star que, se o cálice fosse dado de presente ao Menino Jesus, as suas orações seriam atendidas.
A mãe viria realmente para ela, por fim.
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Peter Lewis, o avô de Sondra, chegou na quarta-feira à tarde. Para ela, foi simultaneamente um alívio e uma decepção que Gary não o tivesse acompanhado.
Ele vem para o concerto disse o avô, mas está muito ocupado e não conseguiu tirar uns dias. Para além do mais, acho que é suficientemente astuto para saber que,
nos dias que antecedem um grande concerto, é melhor deixar a artista sozinha com a sua música e com o mínimo de distracções possível.
Sondra sabia o que o avô estava a insinuar. Gary Willis amava a música com uma paixão profunda e compreendia as tensões inerentes à vida de um artista.
Ainda bem que ele esperou disse ela, mas estou encantada por o senhor estar aqui. O avô está com um aspecto espectacular.
Era um prazer inesperado para ela o facto de o avô estar com um aspecto tão bom. Embora os sinais de artrite fossem sempre visíveis nos pulsos e nos dedos inchados,
o bypass triplo tinha trazido de volta a cor ao rosto dele e vigor à sua aparência coisas que ela temera que ele tivesse perdido com a idade e a doença.
Quando lhe disse o quão saudável ele parecia para a idade que tinha, ele respondeu:
Obrigado, Sondra, mas hoje em dia setenta e cinco anos é considerado apenas o começo do envelhecimento. Um fornecimento de sangue sem obstruções ao coração faz maravilhas,
embora eu espere que seja uma coisa que nunca precises de constatar por ti própria.
"Pelo menos", pensou Sondra, num esforço para retirar
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algum consolo da situação, "o avô parece suficientemente forte para aguentar quando eu lhe contar sobre a bebé e o que vou fazer depois do concerto." Mas esse simples
pensamento fê-la empalidecer.
E tu estás magra e pareces perturbada disse-lhe ele secamente. Tens algum problema, ou são apenas os nervos habituais da actuação? Se for esse o caso, estou desapontado.
Pensei que te tinha curado disso.
Ela tinha fugido à pergunta.
Avô, trata-se do Carnegie Hall tinha-lhe dito. É diferente.
Depois ele tinha passado a quinta e a sexta-feira a rever velhos amigos, enquanto ela ensaiava com o professor de Nova Iorque.
Na sexta-feira à noite, ao jantar, ele falou na visita que fizera a São Clemente e de ter sabido que o cálice do bispo Santori havia sido roubado.
Aparentemente, nessa mesma noite, um bebé foi abandonado lá disse ele enquanto lia a ementa, absorvido, como sempre, na tarefa que tinha em mãos. Parece que foi
tema de um artigo recente num jornal. Fez uma pausa. Linguado de Dover grelhado e uma salada anunciou, e depois olhou directamente para ela, intrigado. Quando eu
te trago ao Lê Cirque 2000, pelo menos tem a delicadeza de parecer interessada na ementa.
No dia seguinte, quando ele foi ouvi-la ensaiar, ela leu desapontamento nos seus olhos. Estava a ensaiar uma sonata de Beethoven, e, embora soubesse que estava a
tocar de uma forma tecnicamente perfeita, também estava consciente de que não havia paixão nem fogo na sua música. E soube que o avô também tinha percebido isso.
Depois de ela terminar, ele encolheu os ombros.
A tua técnica é maravilhosa; não pode apontar-se-lhe qualquer defeito. Mas tu negaste sempre alguma coisa de ti à tua música. Porquê, não sei. Agora estás a negar
tudo. Olhou para ela severamente. Mantém-te assim, Sondra, e aparecerás e desaparecerás imediatamente do maior palco de concertos, assim! Estalou os dedos. Qual
é o problema?
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Foges de um homem que te ama e que eu acredito que tu também amas. Ressentes-te comigo. Não sei porquê, mas estou consciente disso há anos. Nada te comove?
Com um encolher de ombros de pesar e resignação, ele voltou-se e começou a dirigir-se para a saída do estúdio.
Eu sou a mãe da bebé que foi abandonada em São Clemente gritou-lhe ela, e as palavras ficaram a pairar no ar.
Ele parou e voltou-se, com uma expressão incrédula, mas com um olhar de profunda preocupação nos olhos.
Com pouca expressividade no rosto e na voz, Sondra contou-lhe tudo, e as palavras saíram em torrente.
Depois de terminar, seguiu-se um silêncio prolongado. Por fim, ele acenou afirmativamente.
Então é isso. E vejo que, de certa forma, me culpas por a teres abandonado. Talvez tenhas razão e talvez não. Não importa. Moveremos céus e terra para a encontrar.
Vamos contar a Gary; ele tem recursos enormes à sua disposição. E, se ele não compreender, então não te merece. Agora pegou no violino de Sondra e pousou-lho nas
mãos. Agora toca com todo o teu coração para a criança que procuras.
Sondra aconchegou o violino debaixo do queixo e pegou no arco. Na sua mente, conseguia ver a filha. Mas teria os cabelos loiros como os seus, ou seriam como os do
pai... sedosos, escuros? Os olhos... ainda seriam azuis ou castanhos como os seus, ou cor de avelã-escuros como os do pai? Era um homem que ela conhecera por tão
pouco tempo, e por quem afinal de contas nem sentira nada, mas fora o pai da sua filha. "Ela será como eu", decidiu Sondra. "Será igual a mimm quando tinha a idade
dela."
"Agora tem sete anos; deve ter música na alma", reflectiu enquanto pousava o arco nas cordas. "Ainda foge de mim, mas vejo-a à distância. Oiço-lhe os passos. Sinto
a sua presença. Ela sente que a quero." Esquecendo o avô, Sondra começou a tocar.
"Nunca lhe dei um nome", pensou. "Como é que a teria chamado? Que nome lhe dou no meu coração?" Procurou a resposta enquanto tocava, mas não conseguiu encontrá-la.
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Quando as últimas notas vogaram para o silêncio, após uma pausa prolongada, o avô acenou afirmativamente.
Agora estás a tornar-te uma verdadeira executante. Ainda te retrais, mas isto foi uma melhoria infinita. Vão pedir-te que faças um encore. Que é que escolheste?
Sondra não sabia qual seria a sua resposta até se ouvir dizer:
Uma simples canção de Natal disse-lhe. A Noite Inteira.
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Na segunda-feira de manhã, Alvirah e Willy foram à missa a São Clemente. Kate Durkin também estava a assistir e insistiu para que fossem tomar café a sua casa.
Quando chegaram, os Bakers iam a sair.
Linda e eu vamos comprar os jornais da manhã disse Vic jovialmente. Tentamos sempre resolver o quebra-cabeças do Times de domingo.
Conheci um fulano que se vangloriava de o fazer todas as semanas, mas, quando alguém foi verificar, descobriu-se que ele estava a fazer batota e usava calão para
preencher os espaços em branco disse Willy. Amigo seu, talvez?
O sorriso de Baker gelou. Linda encolheu os ombros e puxou-lhe pela manga.
Vamos, querido implorou.
Vejo que ele tirou a gravata preta observou Willy enquanto os contemplava a descer a rua de braço dado.
É um espanto ela não partir o pescoço por causa daqueles saltos altos observou Alvirah. Há pedaços de gelo por todo o passeio.
Ela não vai cair, podes acreditar em mim disse Kate. É profissional naquelas coisas... usa-os sempre. Kate rodou a chave na fechadura e abriu a porta. Entrem. Aquele
vento trespassa-nos.
Vamos tomar café na saleta disse ela enquanto despiam os casacos. Acendi a lareira esta manhã, e está acolhedora. Aos domingos, depois da missa, Bessie adorava sentar-se
na saleta a tomar café e a comer o meu bolo acabado de fazer.
Kate não deixou Alvirah ajudá-la a preparar as coisas.
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O que são algumas chávenas e pratos? Tu tens andado de um lado para o outro por minha causa a semana inteira. Vai sentar-te.
Eu gostei sempre desta sala comentou Willy ao sentar-se na funda cadeira de couro que fora o objecto adorado do juiz Aloysius Maher, cujo retrato em toga ainda olhava
benignamente para eles do alto da parede, sobre a lareira.
É uma sala maravilhosa concordou Alvirah. Já não se fazem estes tectos altos e estas pedras esculpidas. Repara nos pormenores das janelas. É trabalho artesanal.
Não consigo suportar a ideia de que Kate não vai poder desfrutar de tudo isto para o resto da vida. Olhou em volta e depois suspirou. Bom, acho que Bessie não se
vai importar se eu me sentar na sua cadeira preferida. Parece que ainda a estou a ver aqui sentada, com os pés na almofada, a ver os seus programas de televisão...
E ai de quem a interrompesse durante One Life to Live e Serviço de Urgência. E depois que faz quando está prestes a exalar o último suspiro? Esgueira-se lá para
cima quando Kate não está a ver, e apenas para a expulsar desta casa. Ora, isso quer dizer que ela perdeu pelo menos um dos seus programas no último dia que passou
na terra.
Talvez no céu haja uma revista com os resumos das telenovelas e ela se tenha posto a par do que aconteceu sugeriu Willy.
Kate entrou com uma bandeja, que pousou sobre a mesa de apoio.
Oh, Willy disse ela, não te importas de fechar a porta? O "querido" e a "fofa" devem estar a chegar com os jornais, e não quero que venham incomodar-nos.
Com todo o prazer, Kate disse Willy com um gemido quando se levantou.
Como os Bakers foram mencionados, inevitavelmente o assunto do testamento foi abordado. Num gesto reflexo, Alvirah ligou o microfone no seu alfinete com a forma
de um sol.
Bessie escrevia sempre com a caneta do juiz, e nunca usou tinta azul nela disse Kate quando Alvirah falou sobre as diferentes tonalidades de tinta azul no testamento
e na cláusula de atestação. Mas, afinal de contas, ela fez imensas coisas doidas durante aqueles últimos dias.
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E quanto à máquina de escrever? perguntou Alvirah.
Pareceu-me que ela tinha dito alguma coisa acerca dela no dia de Acção de Graças.
Não tenho a certeza murmurou Kate.
Muito bem. Até que ponto é que ela via mal? inquiriu Alvirah.
Tinha lentes bifocais; tu sabes isso. Mas a graduação das lentes de ver ao pé precisava de ser aumentada. Se não segurasse uma coisa junto ao rosto, tinha dificuldade
em perceber o que era. Pode ter assinado aqueles documentos a pensar que estava a assinar uma encomenda de tinta ou verniz ou ferramentas disse Kate. Eu estava aqui
uma vez quando Vic Baker lhe trouxe um recibo de uma entrega para ela assinar. Deu-lhe a caneta dele.
Nada disso te ajudará em tribunal observou Willy. Eu andaria quilómetros para comer uma fatia desse teu bolo, Kate.
Kate sorriu.
Não precisas de fazer isso... temos imenso aqui mesmo. Bessie também adorava. Disse-me que, mesmo depois de partir, eu devia cortar uma fatia para ela e pô-la nesta
sala aos domingos de manhã. Disse que me assombraria se eu me esquecesse.
"E lá vêm os Bakers", pensou Alvirah. No átrio ouviu-se o clique da porta da rua.
Os herdeiros estão de volta murmurou, e depois observou, consternada, a porta da saleta a abrir-se e Vic e Linda a sorrirem para eles.
O lanche das onze disse Vic no tom jovial de sempre.
É o que lhe chamam em Inglaterra quando fazem uma pausa para comer alguma coisa durante a manhã. É sempre por volta das onze horas. Deu um passo para o interior
da saleta. Meu Deus, esse bolo parece fantástico, Kate.
Está fantástico disse Alvirah secamente. O senhor não arranjou aquela porta para Bessie, Sr. Baker?
Por acaso, arranjei.
É por isso que abre com tanta facilidade?
Precisa de ser um pouco mais ajustada. Claramente
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pouco à vontade com a conversa, ele voltou-se para sair. Bem, vou tentar a minha sorte com o quebra-cabeças.
Esperaram até o som dos passos pesados de Vic e do toquetoque bamboleado dos saltos de Linda deixarem de se ouvir.
É impossível insultar aquele tipo, não é? observou Willy.
É mais do que isso disse Kate. Ele está curioso para saber o que estamos a dizer. Graças a Deus que já estou quase a acabar de tirar as coisas de Bessie do quarto.
Ele nunca sai de lá quando eu lá estou. Franziu o sobrolho. Sabes, Alvirah, por falar na máquina de escrever, a barra de espaços também precisa de ser reparada.
A menos que se dactilografe muito devagar, ela está sempre a saltar. Acabo de me lembrar. Tenho estado a olhar para a máquina de escrever no quarto de Bessie, a
tentar lembrar-me do que ela disse no dia de Acção de Graças.
Alvirah engoliu o último golo de café e declinou com muita pena a oferta de uma segunda fatia de bolo.
Deixa-me dar uma vista de olhos àquela máquina de escrever disse ela.
Havia algumas folhas de papel liso na secretária de Bessie. Alvirah inseriu uma no rolo da máquina de escrever e começou a dactilografar. O rolo saltava vários espaços
sempre que ela tocava na barra de espaços, forçando-a a usar constantemente a tecla de recuo.
Há quanto tempo é que está assim?
Pelo menos desde o dia de Acção de Graças.
O que significa que ou Bessie dactilografou isto antes do dia de Acção de Graças... o que teria significado que estava a mentir com quantos dentes tinha ao monsenhor
quando ele a visitou no dia a seguir ao dia de Acção de Graças... ou então dactilografou-o durante o fim-de-semana, literalmente uma palavra de cada vez. Quem está
a enganar quem?
Mas isso não constitui prova, querida recordou-lhe Willy. Olhou para a pilha de caixas encostadas à parede do quarto de Bessie. Kate, queres ajuda para as caixas?
Ainda não. Há mais uma coisa para guardar, mas não consigo encontrá-la. Pus uma das camisas de dormir de flanela,
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cor-de-rosa às flores, de Bessie para lavar, e agora desapareceu. Tinha uma linha de pó compacto, e eu não queria dá-la suja. Baixou a voz e olhou furtivamente sobre
o ombro. Sabem, se Linda Baker não se vestisse como uma corista, eu juraria que Vic a tinha tirado para ela. Que me dizem disto?
Naquela tarde, enquanto Willy assistia ao jogo dos Giants com os Steelers na televisão, Alvirah sentou-se à mesa da sala de jantar e ouviu uma vez mais todas as
conversas gravadas que tinha reunido sobre o testamento e a casa de Bessie. À medida que ouvia, ia tomando notas e o sobrolho franzia-se quando ouvia certos comentários.
O jogo estava empatado e já ia no quarto quarto de hora quando ela gritou:
Acho que descobri! Willy, Willy, escuta-me. Terias chamado a Bessie "Querida, doce velha rapariga"?
Willy não tirou os olhos do ecrã.
Não. Nunca. Nem no melhor dia da vida dela.
É claro que não. Porque ela não era uma querida, doce velha rapariga. Era uma velha rapariga dura, teimosa e mal humorada. Mas é isso mesmo. Depois de todas aquelas
voltas com os Gordons, por fim percebo o que aconteceu sentada aqui
em casa.
Embora os Giants tivessem marcado um ponto e estivessem na linha dos três metros dos Steelers, Willy prestou toda a atenção a Alvirah.
Que é que percebeste, querida?
Os Gordons nunca puseram os olhos em Bessie disse Alvirah, triunfante. Testemunharam outra pessoa qualquer a assinar aquele testamento. Vic e Linda introduziram
lá em casa uma dupla enquanto Bessie estava a ver os seus programas.
Duas horas depois, Alvirah e Willy chegaram à casa de Kate com Jim e Eileen Gordon a reboque. Já tinham alertado monsenhor Ferris e as irmãs Cordelia e Maeve Marie
para que
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estivessem lá, e encontraram-nos sentados na saleta com uma Kate igualmente espantada.
Que se passa, Alvirah? perguntou Cordelia.
Vão ver. Os herdeiros vão juntar-se a nós, não é verdade? perguntou Alvirah.
Os Bakers? replicou Kate. Sim, eu disse-lhes que tu vinhas e que disseste ter uma surpresa para eles.
Maravilhoso. Já conheces estas pessoas simpáticas, não conheces, Kate? Jim e Eileen Gordon testemunharam... ou pensaram que tinham testemunhado... Bessie a assinar
o testamento.
Pensaram que tinham testemunhado? disse o monsenhor.
Exactamente. Agora, Eileen, conte-nos o que aconteceu quando vieram cá naquele dia pediu Alvirah.
Eileen Gordon, com uma expressão ansiosa no rosto agradável, disse:
Bem, se se lembram, nós tínhamos saído com o Sr. Baker, para lhe mostrar um duplex simplesmente maravilhoso na Oitenta e Um Oeste, mesmo em frente ao museu. É um
dos melhores edifícios na...
Eileen disse Alvirah, a lutar para controlar a irritação, fale-nos sobre o testemunho do testamento.
Oh, sim, bem, a Sr.a Baker tinha telefonado, e, quando chegámos aqui com o Sr. Baker, a Sr.a Baker pediu-nos para entrarmos sem fazer barulho. Disse que na saleta
estava uma senhora de idade que não gostava de ser incomodada quando estava a ver os seus programas. A porta estava fechada, por isso subimos em bicos de pés as
escadas para o quarto, onde a Sr.a Maher nos esperava.
Senhora de idade na saleta! explodiu Kate. Era Bessie!
Então quem estava no quarto? perguntou monsenhor Ferris.
Ouviram os Bakers a descer as escadas.
E se perguntássemos a Vic? sugeriu Alvirah quando o casal entrou na saleta. Vic, quem era a senhora a quem vocês vestiram a camisa de dormir cor-de-rosa às flores
de
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Bessie? Uma actriz? Outra vigarista que também fez parte do golpe? Baker abriu a boca para falar, mas Alvirah não lhe deu hipótese. Tenho fotografias de Bessie que
foram tiradas aqui há apenas algumas semanas, no dia de Acção de Graças... grandes planos bonitos, nítidos. Entregou as fotografias aos Gordons. Digam-lhes o que
me disseram a mim.
Não temos dúvidas de que não é a senhora que estava na cama e que assinou aquele testamento disse Jim Gordon, a olhar para as fotografias.
Sim, há parecenças, mas esta não é a senhora concordou Eileen Gordon enquanto abanava vigorosamente a cabeça.
Conte-nos o resto, Eileen sugeriu Alvirah.
Quando viemos para baixo, a porta da saleta tinha-se aberto de par em par e vimos uma senhora de idade sentada naquela cadeira. Eileen apontou para a cadeira de
Bessie. Ela não virou a cabeça, mas vi-a de perfil... ela era sem qualquer dúvida a senhora nas fotografias de Alvirah do dia de Acção de Graças.
Que mais precisa de ouvir, Vic, meu velho rapaz? perguntou Willy. Amanhã de manhã, Kate vai entrar com um pedido de contestação do testamento, os Gordons vão contar
a sua história e dou-vos alguns dias antes de serem acusados, seus vigaristas.
Creio que chegou o momento de partirmos disse Vic Baker num tom agradável mas baixo. Devido a este mal-entendido vamos partir imediatamente, Kate. Vem, Linda. Vamos
fazer as malas sem demora.
Vão e não voltem. Espero que vão para a prisão disse Alvirah enquanto eles saíam.
Disse-me para trazer champanhe disse monsenhor para Alvirah alguns minutos depois, quando estavam na sala de jantar e ele tirava a rolha da garrafa. Agora percebo
porquê.
A irmã Cordelia e Kate estavam ambas apenas a começar a compreender o que tudo aquilo significava.
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Agora nunca terei de deixar a minha casa balbuciou Kate.
E eu não terei de abandonar as minhas crianças exultou a irmã Cordelia. Deus seja louvado.
E Alvirah disse Maeve Marie, e ergueu a taça. Durante alguns instantes, uma sombra desceu sobre o rosto de monsenhor Ferris.
Agora era bom que conseguíssemos que ficasse tudo bem com aquela bebé perdida e recuperássemos o cálice roubado do bispo, Alvirah.
Como Alvirah diz sempre: "As coisas só acabam no fim" disse Willy, orgulhoso. E, como eu sempre digo, aposto todo o meu dinheiro nela.
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Tal como prometera, na segunda-feira à tarde Lenny foi buscar Stellina à escola.
Star disse ele apressadamente, a nonna acabou de ter um pequeno ataque e o médico foi lá a casa. Mandaram chamar uma ambulância. É possível que ela tenha de ficar
no hospital durante algum tempo, mas vai ficar bem. Prometo-te.
Tem a certeza? perguntou Stellina, a olhar atentamente para os olhos dele.
Podes crer.
Stellina correu à frente, e quando virou a esquina viu uma maca a ser empurrada do apartamento deles, pelo passeio, na direcção de uma ambulância que estava à espera.
Com o coração aos pulos, correu para ela.
Nonna, nonna gritou enquanto alcançava a adorada tia-avó.
Lilly Maldonado tentou sorrir.
Stellina, o meu coração não está muito bem, mas eles vão pô-lo melhor e depois volto. Agora tens de ir lavar as mãos e o rosto e pentear os cabelos e vestir a roupa
de Virgem Maria. Não podes atrasar-te para a representação. E esta noite, depois do espectáculo, o teu papá vai levar algumas das tuas roupas para casa da Sr.a Nunez;
vais dormir em casa dela até eu voltar.
Stellina sussurrou:
Nonna, Rajid, um dos reis magos, partiu o frasco que devia conter a mirra. Por favor, por favor, posso levar o cálice da minha mãe para ele transportar na peça?
Era um cálice sagrado. A senhora disse-me que pertenceu ao tio dela, um padre. Por favor, eu vou cuidar muito bem dele. Prometo.
Temos de ir, pequenina disse o maqueiro, a apertar
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o braço de Stellina, a tentar afastá-la da maca. Podes visitar a tua nonna no Hospital de São Lucas. É na Rua 113, não longe daqui.
Os olhos de Stellina encheram-se de lágrimas.
Tenho uma oração que sei que vai tornar-se realidade se eu levar o meu cálice, nonna. Por favor, diga que posso.
Qual é a tua oração, bambina? A voz de Lilly estava pesada porque os sedativos que a equipa de emergência lhe administrara começavam a fazer efeito.
Que a minha mãe volte disse a menina, e as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces.
Ah, Stellina, bambina, se ao menos ela voltasse antes de eu morrer. Sim, sim, leva o cálice, mas não deixes o teu pai ver. Ele pode não deixar.
Oh, nonna, obrigada. Amanhã vou vê-la, prometo. Momentos depois, a ambulância afastou-se com a sirene
ligada.
Temos de nos despachar, Star avisou Lenny.
A Apoio da Casa estava festivamente decorada com uma árvore de Natal e fitas verdes entrançadas. Durante o fim-de-semana, alguns voluntários tinham construído uma
plataforma num canto da grande sala do primeiro andar para dar o efeito de um palco. Outro voluntário tinha pendurado antigos reposteiros de veludo de ambos os lados
da plataforma. Cadeiras desmontáveis tinham sido trazidas para o público, e os pais e irmãos e amigos das crianças que entravam na peça começavam agora a entrar
alegremente na sala.
Alvirah tinha chegado cedo para ajudar Cordelia e Maeve a vestir as crianças para a peça. Através de ameaças veladas, a irmã Cordelia conseguiu manter uma ordem
razoável entre os excitados actores. Às quatro e dez, quando já estavam a ficar todos nervosos por causa dela, Stellina chegou.
Alvirah deu-lhe imediatamente a mão.
Atua nonna viu-te com esse fato? perguntou enquanto endireitava o véu azul sobre a farta cabeleira de cabelos louro-escuros de Stellina.
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Não. Levaram-na para o hospital numa ambulância disse Stellina em voz baixa. O papá prometeu levar-me a visitá-la. Ela vai ficar melhor, Sr.a Meehan?
Oh, espero que sim, querida. Mas nós vamos ajudar a tomar conta de ti enquanto ela estiver ausente. Sabes como tivemos receio de ter de fechar a Apoio da Casa? Bom,
agora, graças a um milagre, podemos mantê-la aberta... e isso quer dizer que te veremos todos os dias depois da escola.
Stellina sorriu tristemente.
Oh, fico muito contente. Sou feliz aqui.
Agora corre para ali e ocupa o teu lugar com São José. Queres que segure nesse saco? Alvirah esticou a mão para pegar no saco de plástico que Stellina apertava com
força.
Não, obrigada. Tenho de dar o meu cálice a Rajid para ele levar. A irmã Cordelia disse que eu podia trazê-lo. Obrigada, Sr.a Meehan.
Enquanto ela corria para o local onde as outras crianças estavam reunidas, Alvirah ficou a observá-la. "Que é que se passa com aquela criança? Faz-me lembrar alguém...
mas quem?", perguntou a si mesma enquanto ia para o seu lugar.
As luzes diminuíram. O espectáculo de Natal ia começar.
"Simplesmente maravilhoso!", foi o comentário geral quando as últimas notas de A Noite Inteira se desvaneceram e os aplausos começaram. Máquinas fotográficas dispararam
por toda a sala enquanto os pais agiam para preservar o momento. De repente, Alvirah puxou a manga da irmã Maeve Marie.
Maeve, quero que tires uma fotografia em grande-plano de Stellina disse ela. Ou melhor, diversos grandes-planos dela.
Claro, Alvirah concordou Maeve. Foi uma Virgem Maria perfeita. Quando cantou, vieram-me as lágrimas aos olhos. Pôs tanto sentimento nas palavras.
Pois pôs. Tem música na alma.
Um pensamento desvairado, louco, que começava a tornar-se uma certeza, tinha entrado na cabeça de Alvirah, mas ela não queria admiti-lo nem para si própria. "Podemos
começar por
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verificar a certidão de nascimento", pensou, "mas, oh, meu Deus, será possível?"
Tirei algumas fotografias muito boas dela disse Maeve alguns minutos depois, a segurar cuidadosamente as fotografias instantâneas que tinha tirado. Vão ficar mais
nítidas quando acabarem de revelar. E tenho uma muito engraçada dela com Rajid. Ele está a devolver-lhe a taça de prata.
"A taça de prata? Não! O cálice!", pensou Alvirah. "Podes estar enganada", avisou-se a si mesma. "Podes estar a entusiasmar-te. Mas pelo menos uma coisa pode ser
provada imediatamente."
Se tens mais rolo, por favor tira alguns grandes-planos daquela taça, Maeve pediu Alvirah. Pede a Stellina que a segure para ti.
Vem, Alvirah chamou Willy. Tens de me entregar os presentes para oferecer às crianças.
Maeve, tira esses grandes-planos e fica com eles até mos dares ordenou Alvirah. Nunca largues as fotografias.
Apressou-se a ir para junto de Willy. Os presentes estavam sobre uma mesa atrás de si.
Muito bem, Pai Natal, este é para José anunciou ela calorosamente, e o rapaz estendeu as mãos, ansioso.
Willy colocou um braço à volta dele.
Espera um pouco, José. A irmã Maeve vem já tirar-nos uma fotografia.
Alvirah estava desesperada para sair dali, para poder esclarecer as suas suspeitas, mas era mais fácil acabar de ajudar Willy com os presentes do que arranjar outra
pessoa para o fazer.
Entretanto, Cordelia e os seus voluntários estavam atarefados a distribuir doces e refrigerantes, embora algumas pessoas tivessem começado a sair. Com grande consternação,
Alvirah viu que a Sr.a Nunez estava prestes a sair com José e Stellina a reboque.
Quando a chamou, Grace aproximou-se.
Para onde vai levar Stellina? perguntou Alvirah.
Por agora, vou deixá-la em casa explicou Grace. O pai dela vai levá-la para minha casa esta noite.Diz que primeiro
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quer jantar com ela, depois de sair do trabalho. Tenho de ir a casa da minha irmã, onde vou demorar algum tempo, mas ele disse-me que vai chegar cedo a casa. Ela
sabe fechar a porta à chave, não sabes, Stellina?
Sei, sim. Oh, espero que ele saiba como está a nonna disse Stellina ansiosamente.
Dez minutos depois, todos os presentes tinham sido entregues e todas as fotografias estavam tiradas. Alvirah correu para a irmã Maeve Marie e pegou nas fotografias
instantâneas. Depois agarrou no casaco.
Que se passa? perguntou Willy com a voz abafada pela ondulada barba de Pai Natal.
Tenho de mostrar umas fotografias a monsenhor Tom disse ela por cima do ombro. Vai lá ter comigo.
Disseram a Alvirah que o monsenhor tinha saído mas era esperado em breve. A rezar para que o tempo passasse depressa, ela esperou na sala-de-estar da reitoria, a
andar de um lado para o outro. Willy e o monsenhor chegaram ao mesmo tempo, meia hora depois. O monsenhor vinha a sorrir.
Que surpresa tão agradável disse alegremente. Alvirah não desperdiçou palavras. Estendeu-lhe as fotografias.
Veja estas fotografias, monsenhor Tom.
Ele observou a fotografia de Stellina a pegar no cálice que Rajid lhe estendia durante a peça, depois olhou para o grande-plano que Maeve Marie fizera apenas do
cálice.
Alvirah disse ele em voz baixa, sabe o que é isto?
Creio que sim. É o cálice do bispo Santori. E sabe quem penso que essa menina é?
Ele esperou.
Acho que é a bebé que foi deixada à porta da sua reitoria na noite em que o cálice foi roubado.
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Grace Nunez acompanhou Stellina até à porta do apartamento que esta partilhava com a nonna e o pai. Observou como uma mãe enquanto a menina entrava, depois escutou
enquanto ela trancava a fechadura dupla.
Até logo, querida disse do corredor, e depois foi-se embora, confiante de que Stellina nunca abriria a porta a ninguém a não ser ao pai.
O interior do apartamento estava silencioso e escuro; Stellina notou imediatamente a diferença. Sem a nonna, parecia estranho e solitário. Andou por todo o apartamento
a acender as luzes, na esperança de alegrar o espaço. Ao entrar no quarto da nonna começou a tirar o fato de Virgem Maria, mas depois parou. A nonna tinha desejado
vê-la com aquela roupa, e ela esperava que o pai a levasse ao hospital.
Tirou o cálice de prata do saco e sentou-se na ponta da cama. Segurar o cálice fê-la sentir-se menos sozinha. Anonna nunca tinha estado fora quando ela chegava a
casa, nem uma única vez.
Às sete horas, Stellina ouviu passos a correr pelas escadas acima e pelo corredor. "Não pode ser o papá", pensou. "Ele
nunca corre."
Mas depois ele estava aos murros à porta.
Abre a porta, Star! Abre a porta! gritou ele freneticamente.
Logo que ouviu o clique das trancas, Lenny rodou o manipulo e atirou-se para dentro do apartamento. Tinha sido um esquema! Tinha sido tudo uma armadilha! "Ele devia
ter sabido",
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disse para si mesmo, furioso. O horrível tipo novo do grupo era um polícia disfarçado. Lenny tinha conseguido escapar por uma unha-negra quando percebera o que estava
a passar-se, mas não tinha qualquer dúvida de que naquele preciso instante estavam a passar o Forte Lee a pente fino à sua procura, e daí a alguns minutos viriam
procurá-lo em casa. No entanto, tinha de correr o risco de passar por lá os documentos de identificação falsos e todo o dinheiro que tinha estavam na mala que ele
tinha feito e deixado ali naquela tarde.
Correu para o quarto e tirou a mala de debaixo da cama. Stellina seguiu-o e ficou parada à porta, a observar. Lenny voltou-se para olhar para ela e viu que ela tinha
o cálice na mão. "Bem, aquilo era bom", pensou. Queria-o fora daquela casa, e quanto mais depressa melhor.
Vem, Star, vamos ordenou ele. Vamos pôr-nos a andar daqui para fora. Não tentes trazer nada a não ser o teu cálice. Sabia que provavelmente era doido por levar a
miúda agora que a Polícia andava atrás dele, mas ela era o seu amuleto de boa sorte... a sua estrela da sorte.
Leva-me a ver a nonna, papá?
Mais tarde, talvez amanhã. Já te disse para vires. Temos de ir. pegou-lhe na mão e dirigiu-se para o corredor, a puxá-la atrás de si.
Stellina apertou o cálice de prata enquanto tropeçava ao tentar acompanhar o andar do pai. Sem fecharem a porta atrás deles, correram pelas escadas abaixo um lance,
dois lances, três lances, e ela lutava para não cair.
No último patamar antes do átrio, Lenny parou abruptamente e ficou a escutar. "Até agora, nada", pensou, sentindo um momento de alívio. Só precisava de mais um minuto
e estariam no carro que ele conseguira roubar, e depois estava livre.
Ia a meio do átrio quando a porta exterior se abriu abruptamente. Lenny segurou Star à sua frente e fingiu que pegava numa arma.
Disparam sobre mim e ela é quem leva o tiro gritou ele, sem convicção.
Joe Tracy estava à frente do esquadrão. Não estava disposto
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a arriscar a vida de uma criança, por muito fraca que soasse a ameaça.
Todos para trás! ordenou cautelosamente. Deixem-no ir.
O carro que Lenny tinha roubado estava a apenas alguns passos da frente do edifício. Os polícias observaram, impotentes, enquanto ele arrastava Star para o veículo,
abria a porta do condutor e atirava a mala lá para dentro.
Entra e rasteja para o outro lado disse-lhe ele num tom de urgência. Sabia que nunca lhe faria mal, mas com sorte os polícias não faziam a menor ideia.
Star obedeceu, mas quando Lenny entrou e fechou a sua porta soltou-lhe a mão para girar a chave na ignição. Num momento de inspiração, ela abriu a porta do passageiro
e saltou para fora do carro. Agarrada ao cálice, com o véu a voar atrás de si, correu pela rua enquanto os polícias cercavam o carro.
Dez minutos depois, Alvirah, Willy e monsenhor Ferris chegaram e encontraram Lenny algemado e sentado num carro-patrulha. Subiram as escadas para o apartamento e
souberam que Stellina e o cálice tinham desaparecido.
Na sala-de-estar do apartamento onde Stellina tinha vivido nos últimos sete anos, contaram a Joe Tracy sobre o cálice e sobre a suspeita de que Stellina era a bebé
desaparecida de São Clemente.
Um dos polícias saiu do quarto de Lenny.
Dá uma olhada nisto, Joe. Encontrei-o escondido entre a prateleira e a parede, dentro do armário.
Joe leu o bilhete amarrotado e depois estendeu-o a Alvirah.
Ela é a recém-nascida desaparecida, Sr.a aMeehan disse ele. Isto é a confirmação. É o bilhete que a mãe pregou ao cobertor.
Tenho de fazer um telefonema disse Alvirah com um suspiro de alívio. Mas só quero fazê-lo quando Stellina for encontrada...
Estamos a passar a cidade a pente fino à procura dela disse Tracy quando o seu telefone celular tocou. Escutou por
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alguns momentos e depois esboçou um sorriso radiante. Pode fazer o seu telefonema disse para Alvirah. Apequena Virgem Maria foi apanhada enquanto tentava ir a pé
até ao Hospital de São Lucas para ver a sua nonna. Falou para o telefone. Levem-na lá ordenou. Vamos ter com vocês ao hospital. Voltou-se para Alvirah, que tinha
pegado no telefone que se encontrava num aparador. Presumo que está a tentar entrar em contacto com a mãe da criança.
Estou, sim.
"Deus queira que Sondra esteja no hotel", rezou Alvirah.
A Sr.a Lewis deixou recado de que está a jantar no restaurante com o avô disse o recepcionista. Quer que entre em contacto com ela?
Quando Sondra atendeu, Alvirah disse:
Apanhe um táxi o mais depressa possível e vá para o Hospital de São Lucas.
O detective Tracy tirou-lhe o telefone da mão.
Esqueça o táxi. Vou mandar um carro-patrulha buscá-la, minha senhora. Há uma menina que tenho a certeza de que quer ver.
Quarenta minutos depois, Alvirah, Willy, monsenhor Ferris e Joe Tracy encontraram-se com Sondra e com o avô do lado de fora do quarto de Lilly na unidade de cardíacos
do hospital.
Ela está ali dentro com a mulher que a criou sussurrou Alvirah. Ainda não lhe dissemos nada. Você é que vai ter de lhe contar.
Pálida e a tremer, Sondra abriu a porta.
Stellina estava aos pés da cama, de lado para eles. A luz suave parecia aureolar os cabelos dourados, brilhantes, que se soltavam por debaixo do véu azul.
Nonna, estou tão contente por se sentir melhor estava ela a dizer. Um polícia simpático trouxe-me aqui. Eu queria que a senhora me visse com o meu vestido tão bonito.
E como vê cuidei muito bem do cálice da minha mãe. Ergueu o cálice de prata. Usámo-lo na peça, e eu fiz a minha oração... para que a minha mãe volte. Acha que Deus
vai mandá-la para mim?
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Com um soluço, Sondra atravessou o quarto até junto da filha, ajoelhou-se ao lado dela e abraçou-a.
No corredor, Alvirah fechou a porta.
Existem alguns momentos que não devem ser partilhados disse com firmeza. Por vezes é suficiente saber que, se acreditarmos com força suficiente e durante tempo suficiente,
os nossos desejos podem tornar-se realidade.
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EPÍLOGO
Duas noites mais tarde, no dia 23 de Dezembro, uma audiência que esgotava a capacidade de Carnegie Hall reuniu-se para o concerto de gala onde tocariam músicos de
excepção no panorama musical mundial e que seria a estreia em Nova Iorque da brilhante jovem violinista Sondra Lewis.
Num camarote central de primeira, Alvirah e Willy estavam sentados com Stellina; o avô de Sondra; o namorado desta, Gary Willis; monsenhor Ferris; a irmã Cordelia;
a irmã Maeve Marie e Kate Durkin.
Stellina, alvo de incontáveis olhares curiosos, estava sentada na primeira fila, com os olhos castanhos a cintilar de prazer, ditosamente inconsciente da comoção
que estava a causar.
Durante dois dias, os jornais da cidade tinham contado a história da mãe e filha reunidas e da descoberta do cálice bem-amado. Era uma história de interesse humano
maravilhosa e especialmente apropriada para a época do Natal.
Os artigos tinham incluído fotografias de Sondra e Stellina, e como Alvirah dizia:
Até um cego pode ver que Stellina é um clone da mãe. Não posso acreditar que não reparei mais cedo.
Quando questionado sobre a hipótese de processar Sondra por abandono, o procurador do Ministério Público tinha dito:
Seria preciso ser mais maquiavélico do que os meus inimigos pensam que eu sou para acusar aquela jovem. Ela cometeu um erro por não tocar à campainha da reitoria
ao invés de correr para um telefone? Sim, cometeu. Será que ela, na altura uma miúda de dezoito anos, fez todos os possíveis para encontrar um bom lar para o seu
bebé? Eu estou plenamente convencido de que sim.
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Ao que o presidente da Câmara respondera:
Se ele a tivesse acusado, eu ter-lhe-ia transformado a vida num inferno.
Uma onda de aplausos começou quando o maestro entrou no palco. A intensidade das luzes da sala diminuiu, e teve início um serão de música excelente.
Alvirah, esplêndida num vestido de noite de veludo verde, pegou na mão de Willy.
Uma hora depois, Sondra apareceu no palco e recebeu aplausos estrondosos. Monsenhor Ferris inclinou-se para a frente e sussurrou:
Como Willy diria, conseguiu uma vez mais, Alvirah... e nunca esquecerei que foi graças a si que recuperei o cálice do bispo. É uma pena o diamante ter-se perdido,
mas o importante é o cálice.
Acho que quem merece os louros é Willy sussurrou por sua vez Alvirah. Se a pauta de A Noite Inteira não estivesse aberta no piano, Sondra não teria tocado e cantado
a melodia. Foi isso que me fez começar a pensar; depois, quando Stellina a cantou na peça, tive a certeza.
Sondra ergueu o arco e recostaram-se para escutar.
Olha para aquela criança murmurou Alvirah para Willy, a apontar para Stellina.
Claramente, a menina estava deslumbrada com o desempenho da mãe. O rosto de Stellina resplandecia de assombro.
Quando chegou o momento do encore e Sondra começou a tocar A Noite Inteira, olhou para o camarote onde a filha estava sentada. Audível apenas para as pessoas que
estavam sentadas à sua volta, Stellina começou a cantar. Ninguém podia duvidar de que mãe e filha estavam a tocar e a cantar uma para a outra. Para elas, não existia
mais ninguém no mundo.
As últimas notas desvaneceram-se e ouviu-se um sussurro. Depois, Willy inclinou-se e murmurou:
Alvirah, querida, foi uma pena eu não ter trazido a minha pauta. Não lhes tinha feito mal nenhum um pequeno acompanhamento ao piano. Que te parece?Até à Vista
Mary Higgins Clark
MEGHAN ColLiNs encontrava-se um pouco afastada do grupo constituído por outros jornalistas que se encontravam no serviço de urgência do Hospital Roosevelt,
em Manhattan. Uns minutos antes, um senador reformado fora assaltado no Central Park West e trazido à pressa para ali. A imprensa andava de um lado para o outro
à espera de notícias sobre o seu estado.
Meghan pousou o seu pesado saco no chão. O microfone sem fios, o telefone celular e os blocos de apontamentos estavam a fazer que a tira se enterrasse na
sua omoplata. Encostou-se à parede e fechou os olhos para descansar um momento. Todos os repórteres estavam cansados. Tinham estado no tribunal desde o início da
tarde à espera do veredicto de um julgamento por fraude. Às 9 horas, mesmo quando iam a sair, receberam ordens para cobrir o assalto. Eram quase 11 da noite. O dia
fresco de Outono transformara-se numa noite muito nublada que era uma promessa nada bem-vinda de um inverno precoce.
No hospital, a noite estava com muito movimento. Um jovem casal com uma criança pequena com uma hemorragia foi mandado entrar directamente para a sala de
observações sem parar no balcão de registo de entradas. Alguns feridos, outros abalados, os passageiros envolvidos num acidente de viação consolavam-se uns aos outros
enquanto aguardavam tratamento médico.
Lá fora, a sirene persistente das ambulâncias que chegavam e partiam ia- se juntar à familiar cacofonia do trânsito nova-iorquino.
Uma mão tocou no braço de Meghan.
- Como é que isso vai, doutora?
Era Jack Murphy, do Canal 5. A mulher dele andara na Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque com Meghan. ao contrário de Meghan Liz estava a
exercer. Meghan Collins, formada em Direito, trabalhara para uma firma de advogados na 5 Avenue durante seis meses, depois saíra e arranjara emprego na rd WPCD como
repórter. Já lá trabalhava há três anos, e no último ano tinha sido regularmente requisitada pela PCD Canal 3, o canal de televisão a ela associado.
- Vai bem, acho eu - respondeu Meghan. O beeper dela tocou.
- Vem jantar connosco um dia destes - disse-lhe Jack, e foi com o seu operador de câmara enquanto ela tirava o telefone celular do saco.
Era um colega do departamento de informações da rádio WPC.
- Meg, o radar acaba de detectar uma ambulância a caminho do Roosevelt. Vítima apunhalada encontrada no cruzamento da Rua Cinquenta e Seis com a Dez. Fica
atenta.
O silvo sinistro de uma ambulância a aproximar-se coincidiu com o ressoar ritmado de passos apressados. A equipa de traumatologia dirigia-se para a entrada
das urgências. Meg desligou, deixou cair o telefone para dentro do saco e seguiu a maca vazia até lá fora ao passeio.
A ambulância parou com um chiar de pneus. Mãos experientes apressaram-se a ajudar a transferir a vítima para a maca e puseran-lhe uma máscara de oxigénio
na cara. O lençol que lhe cobria o corpo magro estava manchado de sangue. O cabelo castanho emaranhado acentuava a palidez azulada do seu pescoço.
Meg correu para a porta do condutor.
- Há testemunhas? - indagou ela.
- Ninguém se apresentou como tal. - O rosto do condutor estava enrugado, fatigado e a voz sem qualquer emoção. - Há um beco entre dois daqueles velhos prédios
perto da Rua Dez. Parece que alguém a agarrou por trás, a atirou para lá e a apunhalou.
- Como é que ela está?
- O pior possível.
- Identificação?
- Nada. Foi roubada. Provavelmente agredida por um drogado qualquer que precisava de uma dose.
A maca estava a entrar. Meghan regressou a correr à sala de urgências atrás dela. Um dos repórtreres vociferou:
- O médico do senador vai falar.
A imprensa atravessou a correr a sala e aglomerou-se em torno do balcão. Meghan não chegou a perceber qual o instinto que a manteve perto da maca. Ficou
a observar enquanto o médico que se preparava para colocar o soro tirou a máscara de oxigénio e levantou as pálpebras da vítima.
- Está morta - disse ele.
Meghan olhou para baixo, para os olhos azuis, que já nada viam, daquela jovem morta. Ficou quase sem respirar quando atentou bem na testa larga,
nas sobrancelhas arqueadas, nas maçãs do rosto proeninentes, no nariz direito e nos lábios cheios.
Era como se estivesse a olhar para o espelho.
Estava a olhar para o seu próprio rosto.
MEGHAN apanhou um táxi até ao seu apartamento, na Batter Park City, mesmo na extremidade de Manhattan. Era uma corrida cara, mas já era tarde e ela estava
muito cansada. Quando chegou a casa, o choque entorpecedor da imagem da mulher morta aumentava em vez de se desvanecer. A vítima fora apunhalada no peito. Estava
de calças de ganga, casaco de ganga amarrotado, sapatos de corrida e meias. Os bolsos estavam vazios, e não lhe fora encontrada qualquer carteira.
Meghan acendeu a luz da entrada e olhou em frente. Das janelas via a Ellis Island e a Estátua da Liberdade. Podia observar os barcos de cruzeiro a serem
pilotados até aos seus ancoradouros no rio Hudson. Adorava a Baixa Nova-Iorquina: as ruas estreitas, a grandiosidade do World Trade Center, a azáfama do bairro financeiro.
O apartamento era um estúdio razoávèl com um recanto que era o quarto e uma kitchenette. Meghan atirou o casaco para cima de uma cadeira, foi para a casa
de banho, despiu-se e vestiu o pijama e o roupão. O apartamento estava aquecido, mas ela sentia-se gelada como se ?estivesse doente. Apercebeu-se de que estava a
evitar olhar para o espelho. Voltou-se finalmente e estudou o seu rosto enquanto pegava no creme de limpeza.
Estava branca como a cal e com olhos esbugalhados. Incrédula e paralisada de assombro, tentou encontrar diferenças entre si e a morta. O rosto da vítima
era um pouco mais cheio, o queixo mais pequeno, mas o tom da pele, a cor do cabelo e os olhos abertos e cegos eram muito parecidos com os seus.
Sabia onde se encontrava a vítima agora: na morgue, onde a fotografavam e lhe tiravam as impressões digitais. Seriam feitos os grá ficos dos dentes e depois
a autópsia.
Meghan percebeu que estava a tremer. Entrou rapidamente na kitchenette, abriu o frigorífico e tirou um pacote de leite. Leite com chocolate quente... talvez
ajudasse.
Instalou-se no sofá e abraçou os joelhos, com a chávena fumegante à sua frente. O telefone tocou. Provavelmente, era a mãe, por isso esperou que a sua voz
não lhe tremesse ao atender.
- Meg, espero que não estivesses a dormir.
- Não. Acabei de chegar. Como é que vão as coisas por aí, mãe?
- Bem, acho eu. Telefonaram-me da companhia de seguros hoje. Vêm cá amanhã outra vez. Espero que não façam mais perguntas sobre aquele empréstimo
que o pai fez sobre as apólices. Parece que não conseguem compreender que eu não faço a menor ideia do que ele fez ao dinheiro.
Um dia dos finais de Janeiro, o pai de Meghan vinha a caminho ? de casa, no Connecticut, vindo do Aeroporto de Newark, na Nova Jérsia. Nevara e granizara
todo o dia. Às 7.20, Edwin Collins fez uma? chamada do telefone do carro para um sócio, Victor Orsini, para marcar uma reunião para a manhã seguinte. Disse a Orsini
que se encontrava no acesso à Ponte Tappan Zee.
Talvez apenas uns segundos depois, um camião-cisterna despistou-se na ponte e foi embater no reboque de outro camião, provocando uma bola de fogo que tragou
sete ou oito automóveis. O reboque do camião desintegrou-se de encontro à balaustrada da ponte, abrindo ? nela um enorme buraco antes de mergulhar nas águas geladas
do rio Hudson. Seguiu-se o camião-cisterna, arrastando consigo os outros veículos.
Uma testemunha ocular muito ferida declarou que um Cadillac azul-escuro fez um pião à sua frente e desapareceu pelo buraco na balaustrada de aço. O carro
de Edwin Collins era um Cadillac azul-escuro.
Foi o pior desastre da história da ponte. Tinham morrido oito pessoas. O pai de Meghan, que tinha sessenta anos, não regressou a casa nessa noite. Presumiu-se
que morrera na explosão. A Autoridade Rodoviária do Estado de Nova Iorque continuava à procura de destroços e corpos, mas agora, quase nove meses depois, ainda não
tinha conseguido encontrar vestígios nem do corpo nem do carro.
Fora celebrada uma missa por sua alma, mas como não existia certidão de óbito, os bens comuns de Edwin e Catherine foram congelados e as avultadas apólices
de seguro de vida dele não foram pagas. ?
Bem basta a mãe estar com o coração destroçado, quanto mais ter de aturar estes tipos que não a largam, pensou Meg.
- Eu vou aí amanhã à tarde, mãe. Se eles continuarem a adiar, ? talvez tenhamos de intentar uma acção contra eles.
Reflectiu e concluiu que a última coisa que a mãe precisava de ouvir era que uma mulher muito parecida com Meghan morrera apunhalada. Em vez disso, falou
do julgamento que cobrira naquele dia.
MEGHAN ficou muito tempo na cama num dormitar agitado e finalmente caiu num sono profundo.
Um apito agudo arrancou-a desse sono. O fax começou a gemer. Olhou para o relógio: eram 4.15. Que seria aquilo?
Acendeu a luz, apoiou-se num cotovelo e viu um papel deslizar lentamente para fora da máquina. Saltou da cama, atravessou a sala a correr e pegou
na mensagem.
O texto dizia: ??Engano. Annie foi um engano.
TOM WEICKER, o director de informação da PCD Canal 3, de
cinquenta e dois anos de idade, andava a requisitar Meghan Collins à rádio associada da estação cada vez com mais frequência. Estava a escolher outro
repórter para a equipa dos noticiários em directo e tinha andado a rodar os candidatos, mas acabou por decidir: Meghan Collins.
Concluiu que ela tinha boa dicção, conseguia falar de improviso sem hesitar e conferia sempre uma sensação de mediatismo e empol gamento à notícia mais insignificante.
A sua formação em Direito revelava-se uma grande qualidade nos julgamentos. Era bonita e possuía um entusiasmo natural.
Na sexta-feira de manhã, Weicker mandou chamar Meghan. Quando ela bateu à porta aberta do seu gabinete, ele fez-lhe sinal para entrar. Meghan trazia um casaco cintado
em tons de azul-pálido e ferrugem; uma saia na mesma pura lã roçava-lhe o cano das botas. Tem classe??, pensou Weicker. ??Perfeita para o trabalho.
Meghan estudou a expressão de Weicker. Tinha um rosto magro de feições pronunciadas e usava óculos sem aros que, juntamente com o cabelo, que começava a
rarear, lhe davam aspecto de mais velho e mais de caixa de um banco do que de uma autoridade dos meios de comunicação social. Gostava de Tom, mas sabia que a sua
alcunha, Weicker Letal, era merecida. Quando começara a requisitá-la à estação de rádio, ele dissera inequivocamente que era muito triste e muito difícil de aceitar
o facto de o pai dela ter perdido a vida na tragédia na ponte, mas precisava que ela lhe garantisse que isso não interferiria no seu trabalho.
Isso não acontecera, e agora Meghan ouvia-o a oferecer-lhe o emprego que ela tanto desejava. A reacção imediata e instintiva dela foi: ?Estou ansiosa
por contar ao pai!??
TRINTA andares abaixo, na garagem do edifício da PCD, Bernie Heffernan, o empregado do parque de estacionamento, estava no carro de Tom Weicker a vasculhar
o porta-luvas. Por uma qualquer ironia genética, os traços de Bernie tinham sido configurados de modo a conferirem-lhe a fisionomia de um ser alegre. Era bochechudo,
tinha olhos grandes e ingénuos, cabelo espesso e desgrenhado, corpo atlético, apesar de um pouco pesado.
Aos trinta e cinco anos ainda vivia com a mãe na casa degradada de Jackson Heights, em Queens, onde nascera. As únicas vezes que se ausentara tinham sido
aqueles períodos sombrios e terríveis em que estivera encarcerado. No dia a seguir ao seu décimo segundo aniversário fora enviado para um centro de detenção juvenil,
a primeira de uma dúzia de vezes. Aos vinte e poucos anos, passara três anos num hospital psiquiátrico. Há quatro anos atrás, fora condenado a dez meses na Riker's
Island. Isto depois de a Polícia o apanhar escondido no carro de uma estudante universitária. Tinham-no avisado de que se mantivesse afastado dela. Engraçado, pensou
Bernie, agora nem se lembrava de como ela era. Nem ela, nem nenhuma delas. E tinham sido todas tão importantes para ele naquela altura.
Bernie nunca mais queria voltar para a cadeia. Jurara à sua mãe que não tornaria a esconder-se atrás de arbustos e a espreitar às janelas, nem a seguir
uma mulher para tentar beijá-la.
O pai desaparecera quando ele era bebé. A amargurada mãe já não se aventurava a sair, e em casa Bernie tinha de suportar as recordações incessantes de todas
as injustiças que a vida lhe infligira durante os seus setenta e três anos de vida e do quanto ele lhe devia.
Bom, por mais que lhe devesse, Bernie conseguia gastar a maior parte do seu dinheiro em equipamento electrónico. Tinha um rádio? que captava chamadas da
Polícia, outro rádio suficientemente potente para apanhar programas de todas as partes do Mundo e um dispositivo para alterar a voz.
À noite, via obedientemente televisão com a mãe. Contudo, depois ? de ela ir para a cama, às 10 horas, Bernie desligava a televisão, corria lá para baixo,
para a cave, ligava o rádio e começava a telefonar para apresentadores de talkshows. Telefonava a um apresentador de direita e defendia acerrimamente os valores
liberais, telefonava a um apresentador liberal e tecia elogios à extrema direita. Nos telefonemas inpessoais gostava de confrontos e troca de insultos.
Tinha também na cave, sem que a mãe soubesse, um televisor com ? ecrã gigante e um vídeo, e muitas vezes via filmes pornográficos. ?
O detector de chamadas da Polícia inspirava outras ideias. Começou a folhear listas telefónicas e a fazer um círculo em torno dos números em nome de mulheres.
Ligava um número a meio da noite e dizia que estava prestes a entrar lá em casa, sussurrava que talvez só lá fosse fazer uma visita ou que talvez a matasse. Depois,
Bernie ficava sentado às risadinhas ao ouvir a Polícia enviar um carro-patrulha para aquela morada. Era quase tão bom como espreitar às janelas ou seguir mulheres.
O carro que pertencia a Tom Weicker era uma mina de ouro de informações para Bernie. Weicker tinha um livro de moradas electrónico no porta- luvas onde
assentava os nomes, moradas e números de telefone dos empregados mais importantes da estação. Os manda-chuvas, pensou Bernie, enquanto copiava os números para a
sua agenda electrónica.
O que estava a tornar-se difícil agora era que, pela primeira vez desde que fora libertado da Riker's Island, estava com aquela sensação assustadora de
não conseguir tirar alguém do pensamento. Este alguém era uma repórter. Era tão bonita que, quando ele lhe abria a porta do carro, tinha de fazer um esforço para
não lhe tocar.
Chamava-se Meghan Collins.
MeGanN conseguiu, sem saber muito bem como, aceitar calmamente a oferta de Weicker. Circulava entre o pessoal a graça de que, se alguém agradecesse calorosamente
uma promoção, Tom Weicker ficava a pensar se teria de facto feito a escolha acertada. Queria pessoas ambiciosas e empenhadas que achassem que todo o reconhecimento
dos seus méritos era mais do que merecido.
Tentando parecer natural, mostrou-lhe a mensagem que lhe tinha sido enviada por fax. Ao lê-la, ele levantou as sobrancelhas.
- O que é que isto significa? - perguntou ele. - Qual foi o erro? Quem é Annie?
- Não sei, Tom. Eu estava no Hospital Roosevelt ontem à noite quando entrou a rapariga que levou uma punhalada. Ela já foi identificada?
- Ainda não. Porquê?
- Creio que devo dizer-lhe uma coisa - disse Meghan com relutância. - Ela era parecida comigo. Para dizer a verdade, quase podia ser minha sósia.
Tom semicerrou os olhos e indagou:
- Estás a sugerir que este fax está relacionado com a morte daquela mulher?
- É provável que seja uma coincidência, mas achei que devia mostrar- lho.
- Fizeste bem. Deixa-me ficar com ele. Vou descobrir o responsável pela investigação do caso e mostro-lho.
Para Meghan foi um grande alívio passar pelo departamento de informações para saber o trabalho que lhe estava destinado.
Foi uM dia relativamente insípido. Uma conferência de imprensa no gabinete do presidente da Câmara, um incêndio suspeito num prédio em Washington Heights.
Ao fim da tarde, Meghan falou para o gabinete do médico legista. O Departamento de Desaparecidos difundira um retrato feito por um artista e a descrição física da
rapariga, ? As impressões digitais iam a caminho de Washington para serem comparadas com as constantes dos arquivos de identificação e registos ? criminais. Se o
corpo não fosse reclamado dentro de trinta dias, seria enterrado em terreno público destinado a pobres, desconhecidos e criminosos numa sepultura numerada.
Às 6 da tarde, Meghan estava a sair do emprego. Como acontecia desde que o pai desaparecera, ia passar o fim-de-semana ao Connecticut com a mãe.
Domingo à tarde, tinha de fazer a cobertura de uma cerimónia na Clínica Manning, um estabelecimento de inseminação artificial situado em Newtown, a quarenta minutos
da casa delas. Tratava-se da reunião anual das crianças nascidas devido a fertilizações in vitro levadas a cabo naquela clínica.
O editor responsável pela distribuição de serviços apanhou-a no corredor.
- Steve será o operador de câmara no domingo. Disse-lhe para ir lá ter contigo às três horas.
- Está bem.
Naquela manhã, Meghan viera de carro. O elevador parou com um solavanco no piso da garagem. Ela sorriu quando Bernie a viu e começou logo a saltitar para
o nível inferior do estacionamento, trouxe para cima o Mustang branco dela e lhe abriu a porta.
- Teve algumas notícias do seu pai? - perguntou ele solicita mente.
- Não, mas obrigada por perguntar.
Ele inclinou-se, ficando com o rosto perto do dela.
- Eu e a minha mãe temos rezado.
Mas que tipo tão simpático, pensou Meghan enquanto subia a rampa de saída.
O CABELO de Catherine Collins dava sempre a impressão de
que ela acabara de passar a mão por ele. Pintava-o de louro -acinzentado, o que acentuava a beleza do seu rosto em forma de coração. Por vezes Meghan recordava
que era uma boa coisa a mãe ter herdado o maxilar determinado do avô, senão, agora, aos cinquenta e três anos, pareceria uma bonequinha artificial, aspecto salientado
pela estatura minúscula que mal chegava ao metro e meio.
Patrick Kelly, o avô de Meghan, tinha vindo da Irlanda para os Estados Unidos com dezanove anos. Depois de ter trabalhado a lavar pratos na cozinha de um
hotel da Quinta Avenida durante o dia e na equipa de limpeza de uma agência funerária à noite, concluiu que, embora houvesse muitas coisas sem as quais as pessoas
podiam viver, ninguém podia desistir de comer nem de morrer. Uma vez que era mais
? agradável ver as pessoas comer do que deitadas num caixão, Patrick Kelly decidiu empregar todas as suas energias no negócio da alimentação.
Vinte e cinco anos depois, construiu a estalagem dos seus sonhos em Newtown, no Connecticut, e chamou-lhe Drumdoe, o nome da sua terra natal. A elegante
mansão em estilo jorgiano, de graciosas janelas e porta de carvalho maciço trabalhado, tinha dez quartos e um excelente restaurante que atraía pessoas num raio de
vários quilómetros. Patrick completou o sonho renovando a encantadora casa de quinta da propriedade contígua e indo para lá morar. Depois, escolheu uma noiva, foi
pai de Catherine e geriu a estalagem até morrer, aos oitenta e oito anos.
A filha e a neta haviam sido praticamente criadas naquela estalagem. Catherine geria-a agora com a mesma dedicação à excelência que Patrick, e o trabalho
ajudara-a a enfrentar a morte do marido. No entanto, durante os nove meses que tinham passado desde a tragédia na ponte, fora-lhe impossível não acreditar que um
dia a porta se abriria e Ed gritaria alegremente:
- Onde estão as minhas meninas?
Agora, para além do desgosto e do sofrimento, as finanças também se tinham tornado um problema urgente. Dois anos antes, Catherine fechara a estalagem durante
seis meses, hipotecara-a e levara a cabo um enorme projecto de renovação e redecoração. A altura não podia ter sido pior: a reabertura coincidira com uma recessão
na economia. Os rendimentos actuais não eram suficientes para pagar as prestações da nova hipoteca e era preciso pagar os impostos trimestrais. Na sua conta pessoal
já só tinha alguns milhares de dólares.
Nas semanas que se seguiram ao acidente, Catherine tinha-se preparado para o telefonema que a informaria que o corpo do marido fora retirado do rio. Agora
rezava para que esse telefonema chegasse e acabasse com as incertezas. Vivia com a forte sensação de que algo ficara incompleto. Catherine considerava que as pessoas
que ignoravam os ritos do funeral não compreendiam que eles eram necessários à paz de espírito.
Sexta-feira à tarde, estava em casa a arranjar-se para ir para a es talagem ajudar à hora do jantar. Os homens da companhia de seguros deviam chegar a qualquer
momento. Se eles me dessem nem que fosse apenas uma fracção até os mergulhadores da Autoridade Rodoviária encontrarem os destroços do carro, pensou Catherine enquanto
punha um alfinete na lapela do casaco axadrezado. ??Eu preciso do dinheiro.??
Mas quando os dois executivos sombrios chegaram, não foi para dar início ao processo de pagamento.
- Mrs. Collins, não podemos autorizar o pagamento das apóli ces do seu marido sem uma certidão de óbito, que não vai ser passada - disse o mais velho.
Catherine olhou para ele.
- Quer dizer que não vai ser passada até terem uma prova irrefutável da morte dele? Mas suponha que o corpo foi arrastado pela corrente para o meio
do oceano Atlântico? ? Ambos pareciam pouco à vontade, mas o mais novo respondeu:
- Mrs. Collins, a Autoridade Rodoviária do Estado de Nova Iork, na qualidade de proprietária e exploradora da Ponte Tappan Zeq? levou a cabo operações exaustivas
para retirar do rio as vítimas e os destroços. É verdade que as explosões provocam a destruição dos veículos; contudo,as peças mais pesadas como os eixos de transmissão
e os motores não se desintegram. Já foram removidas peças de todos os outros veículos, mas não foi encontrado no leito do rio nenhum pneu, nenhuma porta e nem sequer
uma peça de motor de um Cadillac.
- Então, quer dizer... - Catherine estava a ter dificuldade em pronunciar as palavras. ?
-Quer dizer que o relatório sobre o acidente que irá em breve ? ser emitido pela Autoridade Rodoviária declara categoricamente que? Edwin Collins não pode
ter falecido na tragédia da ponte. Achamos que escapou ao acidente e aproveitou a propícia ocorrência para desaparecer. Estamos convencidos de que ele achou que
a subsistência da senhora e a da sua filha estavam salvaguardadas através do seguro e decidiu partir para uma vida nova que já planeara iniciar.
MAc, como era conhecido o Dr. Jeremy Maclintyre, vivia com o seu filho de sete anos, Kyle, ao virar da esquina da casa da familia Collins. Quando andava
na Universidade de Yale, Mac trabalhara durante as férias de Verão como empregado de mesa na Estalagem Drumdoe. Nesses verões, afeiçoara-se àquela zona e decidira
que um dia iria para lá viver.
Enquanto crescia, Mac apercebera-se de que era o tipo de rapaz em que as raparigas não reparavam. Altura mediana, peso médio, atracção mediana. Mas depois
de olharem segunda vez, as mulheres sentiam-se desafiadas pela expressão zombeteira dos olhos cor de avelã, enternecidas com a infantilidade do cabelo cor de areia
emaranhado pelo vento e tranquilizadas com a autoridade com que ele as conduzia à pista de dança.
Mac sempre soubera que um dia seria médico. Quando começou a estudar na Faculdade de Medicina da Universidade de Nova Iorque, já acreditava que o futuro da medicina
estava na genética. Agora, com trinta e seis anos, trabalhava no LifeCode, um laboratório de investigação genética em Westport, que ficava uns cinquenta minutos
a sul de Newtown.
Era o emprego que ele queria e ajustava-se à sua vida de pai divorciado com a guarda do filho. Aos vinte e oito anos, Mac casara-se. O casamento durara
um ano e meio e dele nascera Kyle. Então, certo dia, Mac chegou a casa vindo do laboratório e deparou com uma babysitter e um bilhete que dizia:
Mac
Sou uma péssima mulher e uma péssima mãe. Ambos sabemos que não vai resultar. Tenho que tentar fazer uma carreira. Toma bem conta do Kyle.
Adeus, Ginger
Ginger saíra-se muito bem desde então. Cantava em cabarés de Las Vegas e em navios de cruzeiro. Tinha gravado alguns discos, e um deles conseguira entrar
nos tops. Vira Kyle apenas três vezes desde que se fora embora. Mac sabia que o filho sentia a falta de uma mãe, por isso tinha o cuidado e um orgulho especial em
ser um bom pai, e atencioso.
Às sextas-feiras, Mac e Kyle jantavam muitas vezes na Estalagem Drumdoe. Comiam no pequeno e informal grill, onde o menu especial das sextas- feiras incluía
pizas individuais e peixe frito com batatas fritas.
Catherine estava sempre na estalagem à hora do jantar. Quando Meghan passava os fins-de-semana em casa, ia ter com a mãe à estalagem. Mas naquela sexta-feira
não havia sinais nem de uma nem de outra.
Mac teve de admitir que se sentia desapontado, mas Kyle, que estava sempre desejoso principalmente de ver Meg, não ligou importância à sua ausência.
- Então, ela não está cá. Tudo bem. Óptimo.
Tudo bem era a expressão que Kyle empregava agora para tudo. Usava-a quando estava entusiasmado, aborrecido ou tentava mostrar-se indiferente. Naquela noite,
Mac não estava muito certo da emoção que exprimia.
Kyle acabou de comer a piza em silêncio. Ele estava zangado com Meghan. Ela agira sempre como se estivesse realmente interessada nas coisas que ele fazia,
mas na quarta-feira à tarde, quando ia a passear com Jake, o cão, Meghan passara por ele de carro e ignorara-o. Ainda por cima ela ia muito devagar, e ele gritara-lhe
para parar. Kyle sabia que Meghan o vira, porque ela olhara para ele. depois acelerara e fora-se embora.
Tudo bem, pensou ele. ??Tudo bem.
Quando Meghan chegou a casa, encontrou a mãe sentada às escuras na sala de estar, com as mãos cruzadas no colo.
- Mãe, sente-se bem? - perguntou ela, preocupada. Acendeu a luz e olhou para o rosto manchado de lágrimas de Catherine. Ajoelhou-se e agarrou nas mãos da
mãe.
- Encontraram-no? Foi isso?
- Não, Meggie, não foi isso. - Catherine Collins contou numa voz trémula a visita dos homens do seguro.
Não, o meu pai não?, pensou Meghan. ??Não pode ser, ele não faria uma coisa destas à minha mãe.
- É a coisa mais estapafúrdia que eu já ouvi - comentou ela firmemente.
- Foi o que eu Ihes disse. Mas Meg, porque teria o teu pai pedido um empréstimo sobre o seguro? Não consigo parar de pensar nisso: E sem uma certidão de
óbito, não posso fazer nada. Não consigo continuar a suportar as despesas. Phillip tem mandado todos os meses o ordenado do teu pai, mas não é justo para ele. Provavelmente,
tenho de vender a Drumdoe.
A estalagem. Era sexta-feira à noite. A mãe devia lá estar agora, no seu elemento, a dar as boas-vindas aos hóspedes, a controlar os empregados de mesa
e os ajudantes, a localização das mesas e a provar os pratos na cozinha.
- O pai não lhe fez isso - disse Meg peremptoriamente. - Eu sei que não fez.
Catherine desatou a soluçar violentamente.
- Talvez o teu pai tenha aproveitado o acidente para se ver livre de mim. Mas porquê, Meg? Eu amava-o tanto!
Meghan abraçou a mãe. ?
- Ouça, a mãe tinha razão há bocado - disse ela, determinada. - O pai nunca lhe faria uma coisa destas, e nós vamos arranjar maneira de o provar.
O escritório da Agência de Colocação de Pessoal Executivo Collins e Carter situava-se em Danbury, no Connecticut. Edwin Collins criara a empresa quando
tinha vinte e oito anos, depois de ter trabalhado cinco anos para uma das quinhentas empresas com sede em Nova Iorque. Ele passava grande parte do tempo a viajar
por todo o país a visitar clientes.
Cerca de doze anos antes do seu desaparecimento, Collins metera Phillip Carter no negócio.
Carter, que tirara o curso de Direito em Wharton, fora cliente de Edwin, tendo sido por ele várias vezes colocado em empresas. Com o passar dos anos, tinha
nascido entre eles uma amizade orientada para os negócios. No início dos anos 80, após um difícil divórcio já na meia-idade, Phillip Carter tornou-se sócio e colega
de Collins. Eram o oposto sob muitos aspectos. Collins era alto, de uma beleza clássica; vestia-se impecavelmente e era discretamente arguto, enquanto Carter era
extrovertido e bem disposto, possuía traços atraentemente irregulares e uma grande cabeça com cabelo grisalho. As suas roupas eram caras, mas pareciam nunca condizer
umas com as outras, e o nó da gravata nunca estava apertado. Tinha um ar de masculinidade despreocupada e olho para as mulheres.
A sociedade resultara. Phillip Carter viveu durante muito tempo em Manhattan, deslocando-se para Danbury todos os dias quando não estava a viajar em serviço
da empresa. Finalmente, acabou por comprar uma casa pequena em Brookfield, a dez minutos do escritório. Aos cinquenta e três anos, Phillip Carter era agora uma figura
familiar na zona de Danbury.
Ficava regularmente a trabalhar várias horas à secretária, depois de todos os outros se terem ido embora. Desde a noite da tragédia na ponte, Phillip raramente
saía do escritório antes das 8 da noite.
Quando Meghan lhe telefonou às cinco para as 8 naquela noite, ele ia a pegar no casaco.
- Já receava que isso acontecesse - afirmou ele, depois de ela lhe contar o que se passara com os homens do seguro. - Podes cá vir amanhã ao meio-dia?
Depois de desligar o telefone, ele ficou muito tempo sentado à secretária. Depois pegou no telefone e ligou para o contabilista.
- Acho melhor passarmos revista aos livros agora - disse ele calmamente.
QUANDO Meghan chegou ao escritório da Agência de Colocação de Pessoal Executivo Collins e Carter no sábado, deparou com três homens a trabalhar com calculadoras.
Não precisou da confirmação de Phillip para verificar que eram auditores. Phillip sugeriu que fossem para o gabinete privado do pai dela.
Phillip fechou a porta e sentaram-se nas cadeiras à frente da secretária. Meghan tinha a certeza de que ele seria honesto com ela e perguntou-lhe:
- Phillip, acha que é remotamente possível que o meu pai ainda esteja vivo e tenha resolvido desaparecer?
- Meg, já vivi o tempo suficiente para saber que tudo é possível. Como toda a gente, eu estava à espera que o carro de Ed ou alguns destroços fossem recuperados.
O facto de não se encontrarem quaisquer vestígios do carro não ajuda. Portanto, respondendo à tua pergunta: sim, é possível; e não, eu não acho que o teu pai fosse
capaz de uma coisa dessas.
Era o que ela esperava ouvir, mas isso não tornava as coisas mais fáceis.
- E é claro que também não ajuda o pai ter levantado dinheiro sobre as apólices umas semanas antes de desaparecer.
- Não, não ajuda. Quero que saibas que estou a fazer a auditoria para bem da tua mãe. Quando isto vier a público, quero ter um documento oficial que certifique
que as nossas contas estão em ordem.
Meghan olhou para a secretária e para a cadeira giratória de executivo por detrás dela. Ainda via o pai ali sentado, recostado na cadeira com os olhos a
brilhar, as mãos juntas com os dedos a apontar para cima. Via-se a si própria em criança a entrar a correr naquele gabinete. O pai tinha sempre guloseimas para ela
- chocolates, caramelos.
A menina do papá. Sempre. Era o mais divertido dos pais. A mãe é que obrigara Meghan a estudar piano e a fazer a cama, a mãe é que protestara quando ela
saíra da firma de advogados e lhe implorara:
- Meg, não desperdices o curso.
O pai compreendera.
- Deixa-a em paz, querida. Meg tem a cabeça bem assente nos ombros - dissera ele firmemente.
Uma vez, quando era pequena, Meghan perguntara ao pai porque é que ele viajava tanto.
- Ah! Meg - suspirara ele -, eu gostava tanto que não fosse necessário. Talvez eu tenha nascido para ser um trovador errante.
Este gabinete tem a aura dele??, pensou Meghan. A elegante secretária de cerejeira que descobrira numa loja do Exército de Salvação e que ele próprio lixara
e polira. A mesa por detrás desta com fotografias dela e da mãe. Os suportes em forma de cabeça de leão que seguravam livros encadernados a couro.
Chorava-o há nove meses, convencida de que ele morrera. Contudo se os homens do seguro tivessem razão, ele tornara-se um estranho. Meghan fitou os olhos
de Phillip Carter.
- Eles não têm razão - disse ela em voz alta. - Estou convencida de que o meu pai está morto. Estou convencida de que ainda vão ser encontrados destroços
do carro. - Olhou à sua volta. - Mas não é justo para si nós não desocuparmos este gabinete. Venho cá no próximo sábado buscar as coisas dele.
- Nós tratamos disso, Meg.
- Não, por favor. Eu prefiro separar as coisas aqui. A minha mãe já sofreu muito e é melhor não me ver a fazê-lo em casa.
Phillip fez um aceno de cabeça de compreensão.
- Meg, eu também estou preocupado com Catherine.
- É por isso que não me atrevo a contar-lhe o que se passou na outra noite.
Meghan viu a expressão preocupada de Phillip quando lhe contou da rapariga apunhalada parecida com ela e do fax que recebera durante a noite.
- Mas que bizarro, Meg. Espero que o teu patrão resolva a coisa com a Polícia. Não podemos deixar que te aconteça nada.
QUANDO Victor Orsini rodou a chave na porta do escritório da Collins e Carter, ficou surpreendido ao ver que esta não se encontrava trancada. Normalmente,
ao sábado à tarde não estava lá ninguém. Regressava de uma série de reuniões no Colorado e queria ver o correio e os recados.
Permanentemente bronzeado, com trinta e um anos e um corpo magro e disciplinado, tinha ar de desportista. O cabelo preto-azeviche e feições bem vincadas
eram indício da sua origem italiana.
Orsini trabalhava para a Collins e Carter há quase sete anos. Não tencionara lá ficar tanto tempo; de facto, sempre planeara usar aquele emprego como trampolim
para uma empresa maior.
Levantou as sobrancelhas quando empurrou a porta e viu os auditores. O principal destes disse a Orsini que Phillip Carter e Meghan Collins estavam no gabinete
de Edwin Collins. Victor atravessou a passos largos a recepção e bateu à porta.
Carter abriu.
- Ah, Victor, que bom teres aparecido. Não estávamos à tua espera hoje.
Meghan cumprimentou-o. Orsini apercebeu-se de que ela estava a tentar conter as lágrimas. Tentou arranjar qualquer coisa tranquilizadora para dizer, mas
não conseguiu. Os responsáveis pela investigação tinham-no interrogado sobre o telefonema que Ed Collins lhe fizera imediatamente antes do acidente.
- Sim - dissera ele na altura -, Edwin disse-me que estava a entrar na ponte... Sim, queria falar comigo na manhã seguinte. Isso não tinha nada de estranho.
Ed estava sempre a utilizar o telefone do carro.
Victor repentinamente começou a pensar quanto tempo levariam a levantar a questão de que era apenas a sua palavra que colocava Collins no acesso à Tappan
Zee naquela noite. Não lhe foi difícil reflectir a preocupação no rosto de Meghan quando apertou a mão que esta lhe estendia.
MEG ENCONTROU-SE às 3 da tarde de domingo com Steve Boyl
o operador de câmara da PCD, no parque de estacionamento da Clínica Manning.
A clínica situava-se numa encosta a três quilómetros da Estrada número 7, na zona rural de Kent, a uns quarenta minutos de carro ao norte de sua casa. Tinha
sido construída em 1890 para residência de um homem de negócios astuto e da sua mulher. O solar inglês enquadrava-se bem na beleza da paisagem campestre.
- Estás preparado para a hora das crianças? - perguntou Meg? ao operador de câmara enquanto subiam penosamente o carreiro.
- Há jogo dos Giants e nós aqui presos com os infantis - lamentou-se Steve.
Dentro da mansão, o átrio espaçoso funcionava como área de recepção. Nas paredes apaineladas de carvalho encontravam-se penduradas as fotografias das crianças
que deviam a sua existência à genialidade da ciência moderna. A seguir, o grande salão tinha a atmosfera de uma sala familiar confortável, com grupos de mobiliário
que convidavam a conversas íntimas ou podiam ser dispostos num ângulo conveniente para reuniões informais.
Em cima das mesas encontravam- se panfletos com testemunho de pais agradecidos.
Queríamos tanto ter um filho. As nossas vidas estavam incom pletas. Depois marcámos uma consulta na Clínica Manning...
Ia a casa de uma amiga que estivesse grávida e tentava não chorar. Alguém sugeriu que experimentasse a fertilização in vitro, e Jamii nasceu quinze meses
depois...
Todos os anos, no terceiro domingo de Outubro, as crianças que tinham nascido através daquele processo na Clínica Manning eram convidadas a lá ir com os
pais para uma reunião. Meghan soube que naquele ano tinham sido enviados trezentos convites e que mais de duzentos pequenos diplomados tinham aceitado. Era uma festa
grande, barulhenta e bem disposta.
Numa das salas mais pequenas Meghan entrevistou o Dr. Georg? Manning, o director da clínica, de setenta anos de idade e cabelo grisalho e pediu- lhe para
explicar a fertilização in vitro.
- Nos termmos mais simples que há, a FIV é um método atravées do qual a mulher que tem dificuldade em engravidar consegue por vezes ter um bebé. Depois de
o seu ciclo menstrual ter sido analisado, ela inicia um tratamento. São-lhe administrados medicamentos para a fertilidade para que os ovários sejam estimulados a
libertar um número abundante de folículos, que são depois retirados.
Pede-se ao seu companheiro para fornecer certa quantidade de sémen para inseminar no laboratório os óvulos contidos nos folículos - prosseguiu ele.
- No dia seguinte, um embriologista vai verificar se algum dos óvulos foi fertilizado. Caso isso se verifique, um médico transfere um ou mais dos óvulos fertilizados,
então já chamados embriões, para o útero da mulher. Se nos for pedido, os restantes embriões serão criopreservados para posteriores implantações.
Passados quinze dias, tira-se sangue para o primeiro teste de gravidez. - O médico apontou para o grande salão. - E como pode verificar pela multidão aqui
reunida, muitos desses testes são positivos.
- É verdade - concordou Meghan.
SEGUIDA de perto por Steve, Meghan entrevistou várias mães, pedindo-lhes que partilhassem as respectivas experiências com a fertilização in vitro. Uma delas,
posando com os seus três belos rebentos, explicou:
- Fertilizaram catorze óvulos e três foram implantados. Um deles resultou numa gravidez, e aqui está ele. - Sorriu, olhando para baixo, para o filho mais
velho. - Chris já tem sete anos. Os outros embriões foram criopreservados, ou congelados. Voltei há cinco anos, e o resultado foi Todd. Depois, tentei novamente
no ano passado, e Jill tem três meses. Ainda tenho dois embriões criopreservados no laboratório... para o caso de eu arranjar tempo para outro filho - disse ela
com uma gargalhada, enquanto o filho de quatro anos fugia a correr.
- Já chega, Meghan? - perguntou Steve.
- Deixa-me falar com mais um elemento do pessoal. Tenho estado a observar aquela mulher e parece saber o nome de toda a gente.
Meg aproximou-se da mulher e olhou para a chapa com o seu nome.
- Posso trocar uma palavrinha consigo, Dra. Helene Petrovic?
- Claro.
A voz de Petrovic era bem modulada, com vestígios de um sotaque estrangeiro. Tinha estatura mediana, olhos cor de avelã e feições delicadas. Parecia mais
cordial que simpática. Contudo, Meg reparou que estava rodeada de crianças.
- Há quanto tempo trabalha nesta clínica, Sra. Doutora?
- Vai fazer sete anos em Março. Sou a embriologista responsável pelo laboratório.
- Não se importa de comentar o que sente em relação a estas crianças?
- Sinto que cada uma delas é um milagre. ?
Depois de terem agradecido a Petrovic e se terem afastado, Meg disse a Steve:
- Já filmámos o suficiente cá dentro,mas queria que filmássemos quando estiverem a tirar a fotografia de grupo.Vão reunir-se todos daqui a uns minutos.
A fotografia anual era tirada no relvado em frente à mansão. Houve a habitual confusão quando foi preciso alinhar as crianças, desde a mais tenra idade até aos nove
anos,ficando as mães na última fila com os bebés de colo,ladeadas pelo pessoal.
odia de verão tardio estava luminoso,e enquanto Steve focava
a câmara no grupo,passou rapidamente pelo espírito de Meghan que todas as crianças pareciam bem vestidas e felizes.E porque não? - pensou ela.Tinham sido todas desesperadamente
desejadas.
Um garoto de três anos correu da primeira fila para a mãe grávida, que estava perto de Meghan.Tinha os olhos azuis,o cabelo de um louro-dourado,um sorriso doce e
tímido e abraçou-se aos joelhos da mãe.
- Filma-me isto - disse Meghan a Steve.- Ele é um amor.
Steve filmou o rapazinho enquanto a mãe o persuadia a voltar para junto das outras crianças.Depois de o ter voltado a colocar na fila, a mãe regressou para o sítio
onde estava.Então,Meghan aproximou-se dela.
- Importava-se de responder a umas perguntas? - perguntou ela,
de microfone em punho.
- Seria um prazer.
- Pode dizer-nos o seu nome e a idade do seu filho?
- Chamo-me Dina Anderson,e Jonathan tem três anos.
- O bebé de que está à espera também foi resultado de fertilização in vitro ?
- Sim,e por acaso até é o gémeo verdadeiro de Jonathan.
- Gémeo verdadeiro! - exclamou Meghan,estupefacta.
- Sei que isto parece impossível - disse Dina Anderson alegremente.- Mas um embrião pode dividir-se no laboratório do mesmo modo que no útero.Quando nos disseram
que um dos óvulos fertilizados se tinha dividido,eu e Don,o meu marido,decidimos que eu daria à luz cada um dos gémeos separadamente.Achámos que individualmente
poderiam ambos ter mais hipóteses de sobrevivência dentro do meu útero.E,além disso,é mais prático.Tenho muitas responsabilidades no meu emprego e não gostaria nada
de ter de deixar dois bebés com a empregada.
O fotógrafo pago pela clínica tinha estado a tirar fotografias.Passados uns segundos,gritou:
- Pronto,rapaziada.
As crianças dispersaram,e Jonathan correu para a mãe. Dina Anderson pegou no filho ao colo.
- Não consigo imaginar a vida sem ele - disse ela. - E daqui a mais ou menos dez dias teremos Ryan.
Aquilo daria um segmento cheio de interesse humano, pensou Meghan.
- Mrs. Anderson - disse ela num tom persuasivo -, se estivesse de acordo, gostaria de falar com o meu chefe sobre a possibilidade de fazer uma reportagem
sobre os seus gémeos.
No REgREsso a Newtown, Meghan conduziu como se tivesse piloto automático. Estava entusiasmada com a possibilidade de fazer a reportagem que ia apresentar
a Weicker e podia pedir ajuda a Mac. Como especialista em genética, ele podia dar-lhe conselhos de perito e material de leitura sobre todos os aspectos da inseminação
artificial. Quando os carros à sua frente começaram a abrandar, pegou no telefone do carro e ligou-lhe.
- Olá, Meg. A que se deve este telefonema?
Como sempre, a voz de Mac fê-la sofrer uma dor antiga. Chamara-lhe o seu melhor amigo aos dez anos, tivera uma paixoneta por ele aos doze e apaixonara-se
mesmo aos dezasseis. Três anos depois, ele casara-se com Ginger. Meghan fora ao casamento e considerava esse dia um dos mais difíceis da sua vida. Mac estava louco
por Ginger, e Meg suspeitava que, mesmo passados sete anos, se Ginger entrasse pela porta dentro, ele ainda a quereria. Meg nunca se permitiria admitir que não conseguia
deixar de amar Mac.
- Preciso de ajuda profissional, Mac. - Explicou-lhe a ideia da história. - E preciso das informações rapidamente.
- Posso dar-tas imediatamente. Kyle e eu vamos agora para a estalagem e levo-as comigo. Queres jantar connosco?
- Seria óptimo. Até já. - Meghan desligou.
PHILLIP CARTER estava na Drumdoe sentado numa mesa para três, junto à janela. Fez sinal a Meghan.
- Catherine está na cozinha a descompor o chefe - disse-lhe ele. - Aqueles ali - acenou com a cabeça para uma das mesas vizinhas - queriam a carne mal passada.
E estava média.
Meg deixou-se cair numa cadeira e sorriu.
- A coisa melhor que lhe podia acontecer era o chefe despedir-se, pois assim ela teria de voltar para a cozinha e deixava de pensar em certas coisas. - Tocou
na mão de Carter. - Obrigada por ter vindo.
- Espero que ainda não tenhas jantado. Catherine prometeu vir jantar comigo.
- Que bom, mas que tal se tomar o café convosco? Mac e Kyle devem estar mesmo a chegar, e eu disse que jantava com eles.
Durante o jantar, Kyle ignorou Meghan intencionalmente. Que é que ele terá?, pensava ela. Levantou uma sobrancelha numa pressão inquiridora dirigida a Mac,
que encolheu os ombros e sussurrou :
- Não me perguntes que eu não sei. - Depois, preveniu-a em relação à reportagem que ela tencionava fazer e rematou: - Os processos são muitos e é um método
dispendioso.
Quando iam a sair, ela disse:
- Vou-me sentar um pouco ali na mesa com a minha mãe e Philipe. - Pôs o braço nos ombros de Kyle e disse: - Até à vista, amigo.
Ele afastou-se.
- Então? - disse Meghan. - O que é que se passa? -
Para sua surpresa, Meghan viu os olhos dele encherem-se de lágrimas.
- Pensei que eras minha amiga. - Deu rapidamente meia volta e correu para a porta.
- Eu descubro o que se passa - prometeu Mac enquanto se apressava a ir atrás do filho.
? BERNIE HEFFERNAN passou a noite de domingo com a nãe a ver televisão na sala de estar da casa deles em Jackson. Gostava muito mais de ver televisão do centro de
comunicações que criara na cave grosseira, mas ficava sempre no andar de cima até a mãe se ir deitar, às 10. Desde a queda que sofrera há dez anos, ela mão mais
se aproximara das escadas periclitantes para a cave.
Mostraram o apontamento de Meghan sobre a Clínica Mamning no noticiário das 6 da tarde. Bernie olhou fixamente para ela e começaram a formar-se gotas de
transpiração na sua testa. Se estivesse lá em baixo, poderia estar a gravar Meghan no vídeo.
- Bernard! - A voz brusca da mãe interrompeu-lhe o devaneio.
- Desculpa, mamã - retorquiu ele com um sorriso estudado. Os olhos dela estavam enormes por detrás das lentes bifocais . - Perguntei-te se já tinham descoberto
o pai daquela mulher. Falara do pai de Meghan à mãe úma vez e arrependia-se sem dúvida de o ter feito.
- Eu disse-lhe que nós rezávamos por ela, mamã.
Não gostou da maneira como a mãe olhou para ele.
- Não estás a pensar naquela mulher, pois não, Bernard?
- Não, mamã. É claro que não, mamã.
Depois de a mãe ter ido para a cama, Bernie foi lá para baixo, para a cave. Sentia-se cansado e desanimado. Só havia uma maneira de se sentir melhor.
comeÇou imediatamente com os telefonemas para a estação de rádio religiosa em Atlanta. Usando o dispositivo de distorção de voz, insultou o pregador aos gritos.
Depois, ligou para um talk-show no Massachusetts e disse ao apresentador que ouvira falar numa conspiração para o assassinar.
Às 11 horas, começou a telefonar para mulheres. Avisou-as uma a uma que estava prestes a entrar-lhes em casa. Pelas vozes, imaginava como eram fisicamente.
Jovens e belas; velhas; feias; magras e gordas. Criava mentalmente a forma do rosto e ia acrescentando ? pormenores das feições a cada palavra que elas pronunciavam.
Excepto naquela noite. Naquela noite pareciam-se todas com Meghan Collins.
QUANdo Meghan desceu na segunda-feira, às 6.30 da manhã,
veio encontrar a mãe já na cozinha, impregnada do aroma do café. pelo tamanho des olheiras de Catherine Collins, era óbvio que dormira muito pouco ou mesmo nada.
Como eu", pensou Meghan ao pegar na cafeteira.
- Mãe, já pensei muito - disse ela, escolhendo cuidadosamente as palavras - e não consigo encontrar uma única razão para o pai querer desaparecer. Suponhamos
que havia outra mulher. O pai podia pedir o divórcio. A mãe ficava desfeita e eu zangada, mas somos ambas adultas, e o pai sabia-o. Pode ter pedido dinheiro sobre
a apólice porq queria fazer um investimento que sabia que a mãe não aprovaria, é possível.
- Tudo é possível - disse Catherine Collins baixinho. - Incluindo o facto de eu não saber o que hei-de fazer.
- Mas eu sei. Vamos ?apôr uma acção e exigir o pagamento das apólices, com indemnização por morte acidental. Não vamos permitir que essa gente nos diga que
o pai lhe pregou esta partida.
Às 7 HoRaS, Mac e Kyle sentaram-se um à frente do outro na mesa da cozinha. Kyle fora para a cama recusando-se a discutir a frieza com que tratara Meg,
mas a sua disposição mudara.
- Estive a pensar. O pai lembra-se de Meg ter falado ontem à noite no caso que esteve a seguir no tribunal todo o dia na quarta-feira? perguntou o garoto.
- Lembro - respondeu o pai com um sorriso.
- Então, ela não pode ter passado de carro em frente à nossa casa ? nessa tarde.
Mac olhou para os olhos sérios do filho.
- Não,não a podes ter visto na quarta-feira à tarde.Tenho a certeza.
- Acho que devia ser uma pessoa muito parecida com ela. - O sorriso aliviado de Kyle revelava dois dentes a menos. Olhou de relance para Jake, que estava
deitado debaixo da mesa. - Quando Meg vir Jake, quando cá voltar no próximo fim-de-semana, ele já será perito em pedir.
Ao ouvir o seu nome, Jake deu um salto e levantou as patas da frente.
- Eu diria que já é um perito em pedir - disse Mac ironicamente.
MEGHaN foi directamente para a entrada da garagem do edifício da PCD na Rua Cinquenta e Seis Oeste. Bernie abriu-lhe a porta no momento em que ela pôs o
carro em ponto morto.
- Olá, Miss Collins - cumprimentou ele com um sorriso radioso. - Eu e a minha mãe vimo-la naquela clínica. Vimos as notícias ontem à noite, quero eu dizer.
Deve ter sido divertido estar com aqueles miúdos todos.
Estendeu-lhe a mão para a ajudar a sair do carro.
- Eram amorosos Bernie - concordou Meghan.
I dirigiu-se ao elevador, com a pasta de couro debaixo do braço. Bernie viu-a afastar-se, depois enfiou-se dentro do carro dela e levou-o para o nível inferior
da garagem. Propositadamente, deixou- o num canto escuro junto à parede do fundo. Sentia-se feliz sentado
no Mustang de Meghan. Cheirava vagamente ao perfume que ela usava sempre.
A secretária de Meghan ficava na grande sala no décimo terceiro andar do edifício. Leu rapidamente as instruções para o seu serviço. Às 11 horas,tinha de
estar a presenciar as alegações de acusação de um corretor importante.
O telefone tocou. Era Tom Weicker.
- Meg, podes vir até aqui?
Estavam dois homens no gabinete dele. Meghan reconheceu um deles, Jamal Nader, um inspector negro simpático que já encontrara várias vezes no tribunal. Cumprimentaram-se
calorosamente. Weicker apresentou- lhe o outro homem, o tenente Story.
- O tenente Story é o responsável pela investigação do homicídio sobre o qual fizeste a reportagem há umas noites atrás, Meg. Dei-lhe o fax que tu recebeste.
Nader abanou a cabeça e comentou:
- Megh,aquela rapariga que morreu parece-se mesmo muito consigo.
- Já foi identificada? - perguntou Meghan.
- Não. - Nader parecia hesitante. - Mas parece que ela a conhecia a si.
- Ela conhecia-me?! - Meghan olhou fixamente para ele: Como é que chegou a essa conclusão?
- Quando a levaram para a morgue na quinta-feira à noite passaram revista à roupa dela e não descobriram nada. Um dos nossos rapazes voltou a examinar a
roupa. O forro do bolso do casaco tinha uma grande dobra. Descobriu uma folha de papel arrancada de um bloco-notas da Estalagem Drumdoe com o seu nome e número de
telefone directo da WPCD.
- O meu nome!
O tenente Story enfiou a mão no bolso. A folha de papel estava dentro de um plástico e ele levantou-a.
- O seu primeiro nome e número de telefone.
Meghan agarrou-se ao tampo da secretária ao olhar para as letras maiúsculas, para os números oblíquos. Sentiu os lábios secos.
- Miss Collins, reconhece esta letra? - perguntou-lhe Store.
Ela acenou afirmativamente e sussurrou:
- Foi o meu pai quem escreveu isso.
NA SEGUNDA-FEIRA de manhã, Phillip Carter chegou ao escritório às 8 horas. Como de costume, foi o primeiro. O pessoal era constituído por Jackie, a secretária
de cinquenta anos com filhos adolescentes; uMa guarda-livros em part-time com ar de avó, e Victor Orsini.
Carter tinha um computador ao lado da secretária, e nele havia ficheiros com informações pessoais. Os amigos gozavam com a paixão por leilões de terrenos,
mas teriam ficado surpreendidos com a quantidade de propriedades rurais que calmamente acumulara ao longo dos anos. Infelizmente para ele, perdera grande parte das
propriedades que adquirira a baixo preço no processo de divórcio. terrenos que comprara a preços elevados já tinham sido adquiridos, após o divórcio.
Ao enfiar a chave no computador pensou preocupado, no gabinete de Ed Collins. Tinha-lhe parecido mais decente deixá-lo como estava até ao anúncio oficial
da sua morte mas agora era bom Megb ter dito que queria levar os bens pessoais do pai. De qualquer das naneiras, Collins nunca mais voltaria a utilizá-lo.
Carter franziu o sobrolho. Victor Orsini. Não conseguia gostar daquele homem. Orsini sempre tivera mais contacto com Ed. Mas trabalhava muito bem, e a experiência
que possuía no campo da tecn logia da medicina era absolutamente necessária nos tempos que iam correndo. Ed é que se ocupava da maior parte dessa área de negócios.
Carter sabia que não podia deixar de dar a Orsini o gabinete. O actual gabinete de Victor estava atulhado e só tinha uma janela pequena. Sim, por enquanto
precisava de Victor, gostasse ou não.
O tENENTE Story autorizou que se fizesse uma fotocópia do papel dentro do plástico para Meghan.
- Há quanto tempo é que lhe deram este número na estação de rádio? - perguntou-lhe ele.
- Em meados de Janeiro.
- Quando é que viu o seu pai pela última vez?
- No dia 14 de Janeiro. Ia para a Califórnia em negócios.
- Que tipo de negócios?
Meghan sentia a língua pastosa, os dedos gelados. Falou a Story da Agência de Colocação de Executivos Collins e Carter. Era óbvio que o inspector Jamal
Nader já lhe dissera que o pai desaparecera.
- O seu pai levou este número com ele quando se foi embora?
- Deve ter levado. Não voltei a falar com ele nem a vê-lo depois do dia 14. Ele deveria regressar a casa no dia 28.
- E faleceu no acidente da Ponte Tappan Zee nessa noite.
- Telefonou para o colaborador Victor Orsini quando ia a entrar para a ponte. O acidente deu-se menos de um minuto depois da conversa deles.
Story pigarreou.
- Miss Collins, ajovem assassinada na quinta-feira era muito parecida consigo, e a letra do papel que ela tinha com o seu nome e número de telefone era a do seu
pai. Tem alguma explicação para isso?
Meghan endireitou-se.
- Não faço a menor ideia de como ela o obteve. Ela era realmente muito parecida comigo. A não ser que o meu pai a tenha conhecido, comentado a semelhança e dito:
??Se alguma vez for a Nova Iorque, gostava que conhecesse a minha filha.?? As pessoas parecem-se umas com as outras, e era o tipo de comentário que ele faria. -
Voltou-se para Tom Weicker. - Tenho de ir fazer a cobertura das alegações de acusação de Baxter. É melhor ir andando.
- Sentes-te bem? - perguntou-lhe Tom, sem quaisquer vestígios de compaixão nos seus modos.
- Estou óptima - disse Meghan calmamente.
? HELENE PETROVIC gostava muito de ser a embriologista responsável pelo laboratório da Clínica Manning. Tendo ficado viúva aos vinte e sete
anos, emigrara da Roménia para os Estados Unidos, trabalhara como esteticista e começara a frequentar um curso à noite.
Agora, aos quarenta e oito anos, era uma mulher esbelta e bonita cujos olhos nunca sorriam. Durante a semana, Helene vivia em New Milford, no Connecticut, a uns
oito quilómetros da clínica, num apartamento alugado. Os fins-de-semana passava-os em Lawrenceville em Nova Jérsia, numa agradável casa estilo colonial que lhe pertencia.
O escritório ao lado do seu quarto de dormir estava repleto de fotografias das crianças que ajudara a trazer ao mundo.
Helene considerava-se a pediatra responsável pelo berçário da ma ternidade de um belíssimo hospital. A diferença era que os embriões eram mais vulneráveis
do que o mais débil recém-nascido. Ela assunia a sua responsabilidade com uma seriedade inabalável.
Helene olhava para os minúsculos tubos de ensaio no laboratório e, como conhecia os pais e por vezes os irmãos, imaginava as crianças que poderiam um dia
nascer. Gostava de todos, mas havia uma criança que tinha um lugar especial no seu coração... o lindo lourinho cujo sorriso doce lhe fazia lembrar o marido que perdera
quando era jovem.
Às 4 horas, Meghan encontrava-se novamente no gabinete de Tom Weicker.
- Deixa-me ver se percebi bem, Meghan. Estás a dizer que essa mulher está prestes a dar à luz um gémeo do filho de três anos? ?
- É isso mesmo. Este tipo de nascimento desfasado já se fez em Inglaterra, mas cá é novidade. Além disso, a mãe, neste caso, é muito interessante. Dina Anderson
é vice- presidente de um banco, muito atraente, bem falante e obviamente uma excelente mãe. E o filho de três anos é um boneco.
Pense nisso - prosseguiu ela. - Só passaram quinze anos desde o milagre do primeiro bebé-proveta e agora existem milhares deles. Todos os dias se fazem progressos
nos métodos de inseminação artificial. Acho que uma série de reportagens sobre os novos métodos, acompanhadas de notícias sobre os gémeos Anderson, poderia ser uma
maravilha.
Estava a expor animadamente as suas ideias, mas Tom Weicker não era fácil de convencer.
- Até que ponto Mrs. Anderson tem a certeza de que vai ter o gémio verdadeiro?
- Ela tem a certeza absoluta. Os embriões criopreservados encontram-se em tubos individuais marcados com o nome da mãe, nún ? ro da Segurança Social e data
de nascimento. Depois de o embrião de Jonathan ter sido transferido, os Andersons ficaram com dois embriões... o do gémeo verdadeiro e o outro, e puseram uma etiqueta
especial no tubo com o verdadeiro.
Tom levantou-se da secretária e espreguiçou-se. Foi até à janela e depois voltou-se.
- Gostei do teu trabalho na reunião na Clínica Manning ontem. A reacção foi favorável. Força.
Ele estava a dar-lhe a sua aprovação para o trabalho! Meghan fez um aceno de cabeça, lembrando-se de que não devia mostrar entusiasmo.
Tom voltou para a secretária.
- Meghan, falei novamente com o tenente Story. Aquela rapariga foi apunhalada aqui nas redondezas. Ambos concordámos que até encontrarem o assassino é melhor
manteres-te afastada do noticiário, para o caso de haver algum tarado que ande atrás de ti.
- Mas, Tom.. - protestou ela.
Ele interrompeu-a.
- Concentra-te nessas reportagens. A partir de agora, estás fora do noticiário. Vai-me mantendo informado. - Sentou-se, fazendo-lhe sinal para se retirar.
NA SEGUNDA-FEIRA à tarde, a Clínica Manning já acalmara depois da excitação da reunião. Tinham desaparecido todos os vestígios da festa e a área de recepção
recuperara a sua usual e tranquila elegância.
A recepcionista, Marge Walters, passava distraidamente os dedos pelo cabelo louro curto. Numa reunião de pessoal à hora do almoço, o Dr. Manning tinha comunicado
que a PCD Canal 3 ia fazer uma reportagem televisiva especial sobre a clínica e relacioná-la com o nascimento iminente do gémeo de Jonathan Anderson. Pedira que
cooperassem todos com Meghan Collins. Marge esperava aparecer na televisão naquela reportagem especial. Os seus filhos iam ficar tão excitados.
À direita da sua secretária ficavam os gabinetes dos quadros superiores. A porta que dava acesso a esses gabinetes abriu-se e saiu uma secretária. Parou junto à
mesa de Marge para sussurrar:
- Passa-se qualquer coisa. A Dra. Petrovic acaba de sair do gabinete de Manning e está muito perturbada, e quando eu lá entrei, ele parecia que ia ter um
ataque de coração.
- O que é que achas que é? - perguntou Marge.
- Não sei mas ela está a esvaziar a secretária. Será que se demitiu... ou foi despedida?
- Não a imagino a querer sair daqui - disse Marge, atónita.Ela vive para aquele laboratório.
NA SEGUNDA-FEIRA ao fim da tarde, quando Meghan fora buscar o carro, Bernie tinha dito:
- Até amanhã, Meghan.
Ela dissera-lhe que não viria ao escritório durante uns tempos, porque tinha de fazer uma reportagem no Connecticut. Dizê-lo a Bernie tinha sido fácil,
mas a caminho de casa debateu-se com o problema de como iria explicar à mãe que a tinham tirado da equipa do noticiário ainda mal começara.
Saiu da Interestatal 84 para a Estrada n.o 7. Algumas árvores ainda tinham folhas, embora as cores vivas de meados de Outubro tivessem empalidecido. O Outono
sempre fora a sua estação preferida, reflectiu ela. Mas não naquele ano.
Parte do seu cérebro - a da profissional de direito, a parte que separava a emoção da evidência - insistia em que era preciso começar a pensar em todas
as hipóteses de razões para que o papel com o seu nome e número de telefone estivesse no bolso da jovem assassina. Um bom advogado de defesa deve sempre tentar ver
também o caso através dos olhos do advogado de acusação, recordou ela impetuosamente.
A mãe examinara todos os papéis que estavam no cofre de parede em casa mas Meghan sabia que ela não examinara o conteúdo da secretária do escritório do
pai. Era altura de o fazer.
Esperava ter resolvido tudo no departamento de informação. A entrevista com o Dr. Manning estava marcada para o dia seguinte, às 11 horas.
Quando chegou a casa, esta estava vazia. O que só podia significar que a mãe estava na estalagem. Meg levou para dentro o fax que lhe tinham emprestado
lá no emprego. Ia ligá-lo no escritório do pai.
Meghan suspirou enquanto dava uma volta pela casa. Sempre gostara daquela casa. Gostava de sentir aquele chão ligeiramente desnivelado de tábuas largas,
das lareiras, das janelas de sacada e dos armários de canto embutidos na parede da sala de jantar. A seus olhos era o cenário perfeito para a mobília antiga de madeira,
os estofos muito fofos e confortáveis, as tapeçarias coloridas feitas à mão.
O pai ausentava-se tanto, pensou ela enquanto abria a porta do escritório dele. Acendeu o candeeiro da secretária e sentou-se na cadeira giratória. A cadeira
preferida do pai - de couro castanho com um sofá a condizer - tinha um candeeiro de pé de um lado e uma mesa de madeira trabalhada do outro.
Em cima da mesa estavam várias fotografias da familia: o retrato do casamento do pai e da mãe, Meghan em bebé, os três à medida que ela ia crescendo. O
registo de uma familia feliz, pensou Meghan.
Pegou na fotografia da mãe do pai, Aurelia. Tinha sido tirada nos anos 30, quando ela tinha vinte e quatro anos e mostrava claramente que Aurelia fora uma
mulher bonita. Cabelo espesso e ondulado, olhos grandes e expressivos, rosto oval e pescoço esbelto, peles de zibelina sobre o fato. Falecera quando Edwin era bebé.
Meghan não se lembrava de alguma vez ter visto um retrato do pai dele, Richard Collins.
- Nós nunca nos demos bem - dissera-lhe o pai.
O telefone tocou. Era Virginia Murphy, o braço direito da mãe na estalagem.
- Catherine queria saber se estava em casa e se queria cá virjantar. Mr. Carter vem às sete. Quer que a sua mãe lhe faça companhia.
Hum", pensou Meghan. Suspeitava que Phillip Carter estava a ficar apaixonado por Catherine Collins.
- Diga, por favor, à minha mãe que eu tenho uma entrevista em Kent amanhã e preciso de fazer umas pesquisas. Eu arranjo aqui qualquer coisa para comer.
Depois de desligar, pegou resolutamente na pasta e tirou de lá todas as histórias com interesse humano sobre fertilização in vitro publicadas em jornais
e revistas que um colega da investigação lá da televisão reunira para ela. Franziu o sobrolho quando descobriu vários casos em que as clínicas eram processadas devido
ao facto de os testes revelarem que o marido não era o pai biológico da criança.
- É um erro bastante grave - disse ela em voz alta, e decidiu que era um aspecto que devia ser focado numa das reportagens.
Às 8 horas, fez uma sanduíche e chá, e levou-os para o escritório. Comeu enquanto tentava absorver o material técnico que Mac lhe dera. Era um curso rápido
sobre métodos de inseminação artificial, concluiu ela.
A mãe chegou um pouco depois das 10, e Meg chamou-a.
- Mãe, estou aqui.
Catherine entrou apressada na sala.
- Meggie, estás bem?
- Claro que estou. Porquê?
- Agora mesmo, quando vinha a subir aqui a rampa da casa, tive a assustadora sensação... de que se passava qualquer coisa contigo.
Meghan fez um esforço para dar uma risadinha.
- E passava-se mesmo. Tenho estado a tentar absorver os mistérios do DNA, e pode acreditar que é difícil. Já percebi porque é que a Irmã Elizabeth dizia
que eu não tinha cabeça para as ciências.
Ficou aliviada ao ver a tensão desaparecer do rosto da mãe.
HElENE PEtrRovic engoliu em seco ao fazer a última das suas malas à meia-noite. Estava ansiosa por acabar com tudo. A tensão tornara-se insuportável. Era
altura de pôr fim àquilo.
Chegou-lhe aos ouvidos o ligeiro clique de uma fechadura que se abria no hall de entrada. Levou a mão à boca para abafar um grito. Ele não deveria vir naquela
noite. Voltou-se para o encarar.
- Helene, não tencionavas ir despedir-te de mim?
- Eu... eu ia escrever-te.
- Agora já não vai ser preciso.
Enfiou a mão direita no bolso. Ela viu o brilho do metal e não teve tempo para tentar fugir. Uma dor lancinante atravessou-lhe a cabeça. O futuro
que planeara tão cuidadosamente desapareceu com ela ma escuridão.
O TELEFONE arrancou Meghan ao sono às 4 da manhã. Tacteou
em busca do auscultador. Uma voz rouca quase imperceptível sussurrou.
- Meg.
- Quem fala?
Ouviu um clique e percebeu que a mãe estava na outra extensão.
- É o pai, Meg. Estou em apuros. Fiz uma coisa terrível.
Um gemido abafado fez Meg largar o auscultador e ir a correr para o quarto da mãe. Catherine Collins estava caída na almofada, com o rosto lívido e os olhos
fechados.
Meg agarrou-lhe nos braços.
- Mãe, é um louco, um tarado qualquer - disse ela, nervosíssima. - Mãe !
A sua mãe estava inconsciente.
ÀS 7.3? DA MANHÃ de terça-feira Mac viu o filho saltar
alegremente para dentro da carrinha da escola. Depois, entrou no carro para ir até Westport. Ao fazer a curva, ficou espantado de ver o Mustang branco de
Meg a virar para casa dela.
Parou ao lado dela, e baixaram ambos o vidro ao mesmo tempo. O seu jovial O que é que andas a fazer??? morreu-lhe nos lábios quando olhou bem para Meghan.
Tinha o rosto tenso e pálido, o cabelo desalinhado e via-se-lhe o casaco do pijama às riscas entre as lapelas da gabardina.
- Meg, o que é que aconteceu? - perguntou ele.
- A minha mãe está no hospital - disse ela num tom monocórdico.
No caminho da entrada, ele apressou-se a abrir a porta do carro de Meghan. Ela parecia estar estonteada. ??O que terá Catherine? pensou ele, preocupado.
Lá dentro, ele pôs-lhe as mãos nos ombros.
- Conta-me o que se passou.
- Primeiro, pensaram que tinha tido um enfarte. Felizmente, estavam enganados, mas há a possibilidade de estar para fazer um. Vai ficar no hospital pelo
menos uma semana. - Engoliu em seco e afastou-se dele. - Eu estou bem, Mac. Os testes não revelaram lesões cardíacas por enquanto. Do que ela precisa é de descanso
e sedativos.
- Concordo. Anda, faz-te bem um café.
Ela seguiu-o até à cozinha. Quando o café ficou pronto, ele serviu-o aos dois e sentaram-se à mesa.
- Suponho que com Catherine no hospital vais ficar por cá uns tempos.
- Já ia de qualquer maneira.
Contou-lhe calmamente tudo o que se tinha passado - a vítima que se parecia com ela, o bilhete que tinham encontrado no bolso da vítima, o fax a meio da
noite.
- E portanto a televisão quer que eu me mantenha afastada da linha da frente, e o meu patrão deu-me a reportagem sobre a Clínica Manning para fazer. E depois
hoje de madrugada o telefone tocou e...
Mac esperava que o choque que sentia não fosse visível no seu rosto. Muito bem, Kyle estava com eles no domingo à hora do jantar e Meg podia não ter querido
contar nada em frente dele. Em todo o caso, ela nem sequer aludira ao facto de três dias antes ter visto uma mulher assassinada, que talvez tivesse morrido em vez
dela.
Desde que ela tinha dez anos e ele andava no segundo ano da faculdade e trabalhava no Verão na estalagem, Mac fora o seu confidente para tudo, desde a falta
que o pai lhe fazia quando se ausentava ao quanto detestava tocar piano.
O ano e meio em que estivera casado fora a única altura em que Mac não vira regularmente os Collins. Vivia ali desde o divórcio, há já quase sete anos,
e estava convencido de que ele e Meg tinham voltado à relação de irmão mais velho e irmã mais nova. ??Estavas enganado??, pensou ele.
Meghan estava calada, absorvida nos seus pensamentos, e era óbvio que não queria nem estava à espera da ajuda nem dos conselhos dele. Lembrou- se do comentário
de Kyle: ??Pensei que eras minha amiga. A mulher que Kyle vira na quarta-feira - a que ele pensara que era Meghan. Seria possível que ela fosse a mulher que morrera
um dia depois?
Mac decidiu imediatamente não mencionar o facto a Meghan naquela altura. Mas tinha de lhe perguntar outra coisa.
- Meg, há alguma hipótese, mesmo que remota, de ter sido o teu pai a telefonar hoje de manhã?
- Não. Não. Eu teria reconhecido a voz dele, e a minha mãe também. A que nós ouvimos era surrealista... não tão má como a voz de um computador, mas esquisita.
- O teu pai alguma vez falou em alguém chamado Annie? Meghan olhou fixamente para Mac.
Annie! Ainda ouvia o pai a chamá-la para a arreliar: ??Meg... Meggie... Meghan Anne... Annie...?? Lembrou-se, horrorizada, que ele a tratava muitas vezes
por Annie como diminutivo carinhoso.
NA TERÇA-FEIRA de manhã, das janelas da frente de sua
casa, em Scottsdale, no Arizona, Frances Grolier via os primeiros raios de luz a começarem a definir as montanhas, luz essa que sabia se tornaria forte e
brilhante. Nas traseiras, a casa confinava com a vasta reserva de índios Pima e oferecia uma visão fabulosa do deserto primitivo, rigoroso e aberto.
Aos cinquenta e seis anos, Frances tinha um rosto magro, fino cabelo castanho a tornar-se grisalho e olhos grandes e intensos. Era alta e esguia, e como
se sentia melhor era de calças e camisola larga. Evitava a publicidade, mas era conhecida como escultora no meio artístico, principalmente pelo seu enorme talento
para moldar rostos.
Há muito tempo, tomara uma decisão e não se arrependera. O seu estilo de vida convinha-lhe. Mas agora...
Não devia ter esperado que Annie compreendesse. Não lhe devia ter contado nada. Annie escutara a penosa explicação de olhos chocados. Depois, atravessara
a sala e derrubara propositadamente a pecinha com o busto de bronze.
Quando Frances gritara, horrorizada, Annie saíra a correr, entrara no carro e arrancara. Nessa noite, Frances tentara telefonar para o apartamento da filha
em San Diego, mas atendia-lhe sempre o gravador de chamadas. Telefonara todos os dias da semana anterior, o telefone tinha sido sempre atendido pela máquina. Era
mesmo de Annie desaparecer indefinidamente.
Com dedos que pareciam não conseguir obedecer às indicações do seu cérebro, Frances recomeçou o restauro cuidadoso do busto que esculpira do pai de Annie.
DEsdE o momento em que entrou no gabinete dele, às 2 da tarde de terça-feira, Meghan apercebeu-se da mudança de atitude do Dr. George Manning. No domingo,
quando ela fizera a reportagem sobre a reunião, ele mostrara-se expansivo, orgulhoso de mostrar as crianças e a clínica. Naquele dia, o médico aparentava os setenta
anos que tinha. A pele saudável e rosada fora substituída por uma palidez acinzentada.
Naquela manhã, antes de sair para a entrevista, Meghan telefonara para o hospital a saber notícias da mãe. Tinham-lhe dito que Mrs. Collins estava a dormir
e que a tensão arterial melhorara satisfatoriamente e subira agora para um valor normal.
Meg estivera deitada algumas horas, sem dormir, mas pelo menos a dormitar. Depois, tomara um duche e vestira um fato verde-escuro, de casaco cintado e saia
pelo tornozelo. Queria causar boa impressão.
- Nem pode calcular como estou ansiosa por fazer esta série de reportagens - disse Meghan ao sentar-se à frente do Dr. Manning.
Ele interrompeu-a:
- Eu... Miss Collins, receio que não possamos colaborar em nenhuma reportagem televisiva. Eu tive uma reunião com todo o meu pessoal e achámos que muitos
dos nossos clientes se sentiriam pouco à vontade se vissem câmaras de televisão por aqui.
A voz saía-lhe firme, mas os seus olhos traíam o nervosismo. Porque seria?, pensou ela. Ele levantou-se. Meghan não podia fazer outra coisa senão levantar-se
também.
- O que é que aconteceu, Sr. Doutor? - perguntou ela calmamente. - Tem de haver outro motivo para esta mudança repentina de atitude, para além de uma preocupação
tardia com os seus clientes.
Ele não lhe respondeu. Meghan saiu do gabinete e percorreu o corredor até à área de recepção. Sorriu à recepcionista e olhou para a placa com o nome em cima
da mesa.
- Mrs. Walters, gostaria que me dissesse se o pessoal se mostrou muito preocupado com a reportagem. Isto é, opuseram-se todos ou só alguns?
Marge Walters hesitou, mas acabou por sussurrar:
- Miss Collins, ontem tivemos uma reunião e todos aplaudiram a notícia de que ia fazer uma reportagem especial. Estivemos a brincar sobre quem iria aparecer
no ecrã. Não percebo o que terá feito o Dr. Manning mudar de opinião.
Mac considerava o seu emprego no Laboratório de Pesquisa da LifeCode compensador, satisfatório e totalmente absorvente. Depois de deixar Meghan, foi para
o laboratório e mergulhou no trabalho. No entanto à medida que o dia ia avançando, admitiu que estava a ter dificuldades em concentrar-se. O seu cérebro parecia
paralisado por uma sensação irritante de apreensão.
Era a sua preocupação com Meghan que lhe causava aquele nervosismo cego. Quem a estaria a ameaçar? Mesmo que o incrível fosse verdade e Ed Collins ainda
estivesse vivo, o perigo não poderia certamente vir dele.
Não, a preocupação de Mac relacionava-se com a vítima que se parecia com Meghan. Depois de ter almoçado à secretária e acabado o café, Mac percebeu que não
descansaria até ir à morgue em Nova Iorque para examinar o corpo daquela mulher.
MeGHAN chegou a casa às 7.30, depois de visitar a mãe e de ver como estavam as coisas na estalagem. Virginia Murphy insistira para que ela levasse para casa
um jantar do restaurante - empada de galinha, salada e salgadinhos quentes.
Na cozinha, Meghan beberricou um copo de vinho e mordiscou um salgadinho enquanto a empada aquecia no microondas. Quando ficou pronta, levou-a num tabuleiro
para o escritório e instalou-se na cadeira giratória do pai. No dia seguinte, começaria a vasculhar a história da Clínica Manning. ??Gostava de saber se o Dr. Manning
tinha algo a esconder, disse ela com os seus botões. Entretanto, era absolutamente essencial examinar todos os documentos pessoais do pai.
As gavetas da secretária estavam muito arrumadas. Edwin Co lins era arrumado por natureza. O papel de carta, envelopes e sel? estavam colocados com precisão
na gaveta lateral com ranhuras próprias. A agenda estava preenchida para Janeiro e princípio de Fevereiro. Depois disso, só estavam marcados os dias importantes:
o aniversário da mãe, o dela, um cruzeiro que os pais tinham planeado para Junho para celebrar o trigésimo aniversário de casamento.
??A que propósito é que uma pessoa que planeia desaparecer marcava na agenda as datas importantes com meses de antecedência?, pensou. A gaveta funda de baixo,
à direita, estava fechada à chave. Meghan foi à cozinha, procurou a caixa de ferramentas e pegou numa lima de aço. Tal como esperara, a fechadura era velha e foi
fácil arrombá-la.
Na gaveta estavam maços de envelopes presos com elástico; Meghan pegou no de cima e examinou-o: a letra era a mesma em todos os envelopes, excepto no primeiro,
que continha um recorte do jornal Bulletin de Filadélfia. Por baixo da fotografia de uma bonita mulher lia-se o seguinte:
Aurelia Crowley Collins, setenta e cinco anos, residente em Filadélfia, faleceu no dia 9 de Dezembro, no Hospital de St. Paul, de doença cardíaca.
Aurelia Crowley Collins! Meghan susteve a respiração ao estudar a fotografia. Os olhos afastados, o cabelo ondulado que emoldurava o rosto oval: era a mesma
mulher, agora envelhecida, cuja fotografia se encontrava em destaque na mesa, a alguns centímetros da A avó dela.
O recorte datava de há dois anos. A avó vivera até há dois anos atrás! Meghan leu um bilhete, depois outro e outro. Incrédula, examinou os outros maços de
envelopes. O primeiro bilhete datava de há quase trinta anos.
Querido Edwin: Eu tinha esperança de receber notícias tuas talvez este Natal. Faço votos para que tu e a tua família se encontrem bem. Como eu gostava de
ver a minha neta! Talvez um dia permitas que isso aconteça. Beijos da tua mãe
? Pai, porque é que disse a toda a gente que a sua mãe tinha morrido? O que é que ela lhe fez assim de tão imperdoável?, pensou Meg.
Pegou no envelope que contivera o recorte da necrologia. Não tinha nome, mas a morada do remetente era de uma rua em Chestnut Hill. . Meghan sabia que Chestnut
Hill era uma das áreas residenciais mais exclusivas de Filadélfia.
Quem seria o remetente? Mais importante ainda, que tipo de homem teria sido realmente o pai?
NA ENCANTADORA casa tipo colonial da tia em Lawrenceville, Stephanie, a sobrinha de Helene Petrovic, estava zangada e preocupada. O bebé estava para nascer
dentro de poucas semanas, e ela tinha dores nas costas e sentia-se sempre cansada. Tinha- se dado ao trabalho de preparar o almoço para fazer uma surpresa
a Helene, que dissera que tencionava chegar a casa por volta do meio-dia e 30. Stephanie ligara para a tia, para o apartamento do Connecticut, mas ninguém atendera.
Já eram 6 horas e Helene ainda não chegara. Teria acontecido alguma coisa? Talvez tivesse aparecido qualquer coisa de última hora.
Stephanie ficara chocada quando, na véspera, Helene lhe comunicara pelo telefone que se despedira.
- Preciso de descansar e estou preocupada com o facto de estares sempre sozinha - dissera-lhe Helene.
A verdade era que Stephanie adorava estar sozinha. Tinha vinte anos, mas parecia mais velha. Em pequena, o seu sonho era ser como a irmã mais nova do pai,
Helene, que partira para os Estados Unidos havia vinte anos, após a morte do marido.
Agora, aquela mesma Helene era a sua âncora, o seu futuro num mundo que já não existia como ela o conhecera. A revolução breve e sangrenta na Roménia custara-lhe
a vida dos pais e destruíra-lhes a casa. Stephanie fora viver com uns vizinhos, em cuja casa minúscula não havia espaço para outro ocupante.
Durante aqueles anos, Helene mandara ocasionalmente algum dinheiro e presentes de Natal. Stephanie escreveu-lhe, desesperada, implorando ajuda. Poucas semanas
depois, estava num avião a caminho dos Estados Unidos.
Helene era muito amável. Só que Stephanie desejava ardentemente viver em Manhattan, arranjar um emprego num salão de beleza, frequentar a escola de estética
à noite. O seu inglês já era excelente embora tivesse chegado apenas há um ano e sabendo somente algumas palavras.
Já estava quase. Ela e Helene tinham andado a ver estúdios em 1 Iorque haviam encontrado um em Greenwich Village que estava disponível em Janeiro.
Stephanie afastou o cabelo castanho-claro da testa larga. Estava com fome e ia mesmo comer.
Às 8 horas, quando sorria frente a uma reposição de um filme antigo, a campainha da porta da entrada tocou e ela levantou-se do sofá. O seu sorriso
de boas-vindas desapareceu ao ver um polícia alto. Ouviu, incrédula, que Helene Petrovic tinha sido morta no Connecticut.
Antes que o desgosto e o choque se apoderassem dela, Stephanie ha interrogou-se ansiosamente: ??O que vai ser de mim? Ainda na manhã anterior, Helene
falara da sua intenção de alterar o testamento em que deixava tudo que tinha à Clínica Manning. Agora, era tarde demais.
Às 8 horas de terça-feira, o trânsito na garagem tinha diminuído bastante. Bernie, que fazia muitas vezes horas extraordinárias, trabalhara doze horas naquele
dia, e era altura de ir para casa.
Naquela noite, quando foi ao escritório dizer que se ia embora, estava preocupado. Não se apercebera de que o chefão estava nas instalações quando, à hora
do almoço, se sentara no carro de Tom Weicker a vasculhar novamente o porta-luvas em busca de coisas hipoteticamente interessantes. A certa altura, levantara os
olhos e vira o patrão lá fora a olhar para ele através da janela. O patrão limitara-se a afastar-se sem dizer nada.
Bernie picou o ponto. O chefe do turno da noite encontrava-se sentado no gabinete e chamou-o com uma expressão nada amigável.
- Bernie, vai esvaziar o teu cacifo. - Tinha um envelope na mão. - Isto cobre o salário, as férias e dias de baixa e duas semanas de indemnização.
- Mas. . .
O protesto morreu-lhe nos lábios quando o gerente levantou a cabeça.
- Ouve, Bernie, não tinhas nada que mexer no porta-luvas de Mr. Weicker. Acabou-se.
No entanto, na manhã seguinte Bernie saiu de casa à hora do costume. Não queria que a mãe soubesse que tinha sido despedido. Dirigiu-se a uma lavagem automática
a poucos quarteirões de casa. Pediu a modalidade de lavagem mais completa para o seu carro: Aspiração, lavagem, cera. Quando o carro saiu, continuava com mau aspecto,
mas respeitável; a cor base verde-escura estava reconhecível.
Bernie sabia o que ia fazer. Talvez houvesse um motivo superior para ter perdido o emprego na garagem. Há semanas que via Meghan apenas nos poucos
minutos em que ela lá ia deixar ou buscar o Mustang. não era suficiente. Desejava estar ao pé dela, filmá-la para a poder ver à noite no vídeo.
Ia comprar uma câmara de vídeo na Rua Quarenta e Sete. Mas tinha de ganhar dinheiro. Ninguém conduzia melhor que ele, por isso podia ganhá-lo utilizando
o carro como táxi clandestino. O que lhe daria muita liberdade também. Liberdade para ir ao Connecticut, onde Meghan vivia quando não estava em Nova Iorque.
O CoRPo de Helene Petrovic esteve todo o dia de terça-feira no quarto onde ela morrera na noite anterior. Só quando a dona do apartamento por lá passou nessa
noite é que encontrou a mulher morta aos pés da cama.
A morte de uma embriologista pacata em New Milford, no Connecticut, foi brevemente mencionada nos noticiários televisivos de Nova Iorque. Não havia sinais
de arrombamento nem de ataque sexual.
Uma vizinha do outro lado da rua disse que Helene Petrovic recebia visitas de um homem - um homem alto que chegava sempre a altas horas da noite. Ela achava
que era um namorado. Quantas vezes o vira? Talvez uma meia dúzia. O carro? Um carro grande e escuro de modelo recente.
DEpois de ter descoberto a notícia da mortte da avó, Meghan tinha ido para a cama e dormira a noite toda até o despertador a acordar às 6.30. Telefonou para o hospital
e disseram-lhe que a mãe tinha passado bem a noite e que os sinais vitais estavam normais.
Meghan leu o Times ao pequeno-almoço e ficou chocada ao saber da morte da Dra. Helene Petrovic. Falei com ela na Clínica Manning, pensou Meghan. Era a responsável
pelo laboratório com os embriões criopreservados. Quem teria assassinado aquela mulher pacata e inteligente? Segundo o jornal, a Dra. Petrovic demitira-se. Teria
a sua decisão alguma coisa a ver com a recusa do Dr. Manning em cooperar na reportagem especial para a televisão?
Era demasiado cedo para telefonar para Tom Weicker, mas talvez não fosse tarde demais para apanhar Mac antes de ele sair para o emprego. Meghan sabia que
havia mais uma coisa que teria de enfrentar.
O olá de Mac foi apressado.
- Mac, sei que não é boa altura para telefonar, mas preciso de falar contigo. Podias passar por cá antes de te ires embora? - pediu Meghan.
- Claro. Logo que este cavalheiro entre na carrinha da escola.
MEgHanN sabia que não tinha mais de vinte minutos para tomar duche e vestir-se antes de Mac aparecer. Estava a pentear-se quando a campainha tocou.
- Vem tomar um café - disse-lhe ela, fazendo sinal para que entrasse. - A pergunta que te vou fazer não é fácil.
?? Terão decorrido apenas vinte e quatro horas desde que nos sentámos em frente um do outro àquela mesa???, pensou ela. Parecia ter sido há muito mais tempo.
Mas ontem ela estava quase em estado de choque, hoje estava preparada para enfrentar e aceitar a verdade nua e crua que viesse à tona.
- Mac, tu és um especialista em ADN. A mulher que foi apunhalada na quinta-feira à noite... a que se parecia tanto comigo... Se compararmos o ADN dela com
o meu, poderemos estabelecer algum parentesco?
Mac estudou a chávena que tinha na mão.
- Meg, as coisas passam-se assim: com o teste do ADN podemos ficar a saber com toda a certeza se duas pessoas tiveram a mesma mãe. E podemos estabelecer
com noventa e nove por cento de certeza se tiveram ou não o mesmo pai.
- Não pareces surpreendido por eu te estar a fazer esta pergunta, Mac.
Ele fitou-a.
- Eu já decidira ir à morgue examinar o corpo daquela mulher hoje à tarde, Meg. Há um laboratório de ADN no consultório do médico legista. Eu tencionava
pedir que lhe tirassem sangue antes de a enterrarem.
Meg mordeu o lábio e disse:
- Então, estás a pensar o mesmo que eu. Tenho de falar com Phillip agora de manhã. Vou ter contigo ao consultório do médico legista. A que horas é que te
dá jeito?
Combinaram encontrar-se por volta das 2 da tarde. Enquanto se afastava, Mac reflectiu que nenhuma altura seria boa para olhar para o rosto de uma mulher
morta que se parecesse com Meghan Collins.
PHILLIP CARTER ouviu na telefonia a notícia pormenorizada da morte da Dra. Helene Petrovic quando ia a caminho do escritório. Tomou nota para dizer a Victor
Orsini para preencher a vaga que a sua morte deixara na Clínica Manning. Afinal, ela fora contratada pela Manning através da Collins e Carter.
Chegou ao escritório às 9 menos um quarto e reparou no carro de Meghan estacionado perto da entrada. Era óbvio que ela estava à sua espera porque saiu do carro
quando ele estacionou.
-Meg, mas que agradável surpresa! - Pôs-lhe um braço à volta dos ombros. - Catherine está bem, não está?
Meg fez um breve sorriso.
- Está óptima.
- Graças a Deus - disse ele com toda a sinceridade. Enquanto atravessavam a recepção em passo apressado, Meghan teve novamente uma sensação de profunda tristeza.
Desta vez foram para o gabinete de Phillip, que parecia ter percebido que ela não queria entrar novamente no do pai. Ele ajudou-a a despir o casaco e depois instalou-se
atrás da secretária.
- Pareces muito preocupada, Meg.
- E estou.
Falou-lhe das cartas e da notícia da necrologia que encontrara na gaveta fechada à chave e viu a expressão de Phillip passar de preocupada a incrédula.
- Meg, não sei o que te diga. Conheço o teu pai há muitos anos. Desde que me lembro, sempre achei que a mãe dele morrera quando ele era miúdo, o pai voltara
a casar e ele tivera uma infância horrível a viver com o pai e a madrasta.
- Então, também não sabia?
- Não.
- Porque terá ele tido que mentir? - perguntou Meg, elevando o tom de voz. - Isto é, porque não terá dito a verdade à minha mãe?
- Pensa um pouco, Meg. Ele conheceu a tua mãe, contou-lhe o passado familiar tal como contara a toda a gente. Quando começaram a interessar- se um pelo outro,
teria sido muito difícil ele admitir que mentira. Quando se começa a viver uma mentira, a cada dia que passa torna-se mais difícil contar a verdade.
Meghan ouviu vozes lá fora. Levantou-se.
- Isto pode ficar entre nós?
- Claro. - Ele também se levantou. - O que é que vais fazer?
- Logo que tenha a certeza de que a minha mãe está bem vou à morada de Chestnut Hill. Talvez descubra alguma resposta lá.
- Como é que vai a reportagem sobre a Clínica Manning?
- Estão a boicotar-me. Tenho de arranjar outra clínica. Foi você ou o meu pai que colocaram alguém na Manning, não foi?
- Foi o teu pai que tratou disso. Na realidade, foi aquela pobre mulher morta a tiro ontem.
- A Dra. Petrovic? Eu conheci-a na semana passada.
O intercomunicador tocou. Phillip Carter pegou no telefone.
- Quem?... Está bem, eu atendo.
Meghan viu o rosto de Carter ficar sombrio.
- Isso é impossível. - A voz dele estava rouca de tão ultrajado que se sentia. - Não faço comentários até falar pessoalmente com o Dr. lovino, do Hospital
de Nova Iorque.
Phillip pousou o auscultador e esclareceu:
- Meg, era um jornalista do Post de Nova Iorque a fazer perguntas sobre Helene Petrovic. Nunca ouviram falar dela no Hospital de Nova Iorque. A cédula dela
era falsa.
Não ERA possível esconder a atmosfera tensa na Clínica
Manning. Vários clientes novos viram com ar apreensivo uma carrinha com o logótipo da CBS estacionar no parque de estacion amento e um repórter e um operador
de câmara subirem apressados a rampa de acesso à clínica.
Marge Walters mostrou-se uma excelente recepcionista e foi firme com o repórter.
- O Dr. Manning recusa ser entrevistado até ter investigado as alegações - declarou ela, mas não conseguiu evitar que o operador de câmara começasse a filmar
a sala e os seus ocupantes.
Vários clientes levantaram- se. Uma cliente que lá ia pela segunda vez aproximou-se do repórter.
- O que é que se passa? - perguntou ela.
- O que se passa é que aparentemente a pessoa responsável pelo laboratório da Clínica Manning durante os últimos seis anos não é médica. Na verdade, as únicas
qualificações que possuía eram de estEticista.
- Meu Deus! A minha irmã fez uma fertilização in vitro aqui há dois anos. Há alguma hipótese de não ter recebido o seu próprio embrião?
??Que Deus nos acuda!??, pensou Marge. Viu a mulher sair a correr da sala, depois olhou lá para fora. Estavam a chegar mais carrinhas de outros canais televisivos.
MEGHAN não tinha a certeza se deveria ali estar, principalmente porque o nome do pai seria com toda a certeza mencionado no caso das investigações às credenciais
de Helene Petrovic. Mas quando saíra do gabinete de Phillip Carter, tinham-lhe telefonado da informação a dizer que Steve, o seu operador de câmara, iria ter com
ela à Clínica Manning.
- Weicker aprovou - asseguraram-lhe.
Não tentou juntar-se aos outros jornalistas que lançavam perguntas aos clientes que iam sair. Em vez disso, descobriu Steve e fez- lhe sinal para entrar
com ela. Abriu silenciosamente a porta. Marge Walters estava à secretária a falar ansiosamente ao telefone.
- É melhor dizer-lhes que têm de fazer uma declaração qualquer - insistia ela. - Senão, a única coisa que o público vai ver são mulheres em debandada.
Quando a porta se fechou atrás de Steve, Marge olhou para cima.
- Tenho de desligar - disse ela apressadamente, e pousou o aus cultador.
Meghan só falou quando se encontrava instalada na cadeira em frente à secretária de Marge. A situação requeria tacto e cuidado. Tinha aprendido a não disparar perguntas
a um entrevistado na defensiva.
- Está a ser uma manhã complicada para si, Mrs. Walters - disse ela em voz baixa.
A recepcionista passou uma mão pela testa e confirmou:
- Pode crer.
O tom de voz era cauteloso, mas Meghan pressentiu nela um conflito. Estava morta por falar com alguém sobre tudo o que estava a passar-se. Marge Walters
era uma tagarela nata.
- Conheci a Dra. Petrovic na reunião - disse Meghan. - Parecia uma pessoa encantadora.
- E era - concordou Marge - É difícil acreditar que não possuía qualificações adequadas. Não percebo porque é que o Hospital de Nova Iorque diz que ela não fez nenhum
estágio lá. Aposto que se trata de um engano, mas quando o descobrirem, já será tarde demais. A má publicidade vai dar cabo disto.
Marge olhou para a câmara que Steve trazia.
Meghan acrescentou rapidamente:
- Se me puder dizer alguma coisa que contrabalance estas notícias negativas gostaria de o incluir na reportagem.
Marge Walters tomou uma decisão. Confiava em Meghan Collins.
- Então deixe-me dizer-lhe que Helene Petrovic era uma pessoa maravilhosa e trabalhadora. Ninguém ficava mais feliz quando um embrião chegava a termo no
útero da mãe.
- Está a dizer-me exactamente o que eu senti quando a entrevistei - comentou Meghan. - Parecia preocupar-se muito com o trabalho.
- Pode desligar a câmara agora?
- Claro. - Meghan fez sinal a Steve e depois perguntou: - Mrs. Walters, há alguma hipótese de eu falar com o Dr. Manning?
A mulher abanou a cabeça.
- Que isto não saia daqui, mas estão lá dentro com ele um delegado do procurador e uns investigadores da Polícia.
Não era de surpreender. Estavam com certeza a investigar a repentina demissão de Helene da clínica.
- Sabe se Helene tinha alguns amigos mais próximos aqui na clínica, ou uma relação íntima na sua vida privada?
- Não, nem por isso. O amigo mais íntimo era o Dr. William, o assistente do Dr. Manning, e não sei se não haveria alguma coisa entre ele e Helene. Vi-os
a jantarem juntos uma noite em que fui com o meu marido jantar fora. Mas isto passou-se só uma vez há seis anos, logo depois de ela começar a trabalhar aqui.
- O Dr. Williams ainda cá trabalha?
- Não, ofereceram-lhe outro emprego, montar e gerir uma nova clínica, e ele aceitou. É o Centro Franklin, em Filadélfia. Tem uma excelente reputação. Cá
entre nós, o Dr. Williams era um excelente administrador. Organizou todo o corpo clínico desta casa, e creio que fez um óptimo trabalho.
- Então, foi ele que contratou a Dra. Helene Petrovic?
- Tecnicamente, sim, mas contratam sempre o pessoal mais qualificado através de uma dessas empresas de pessoal. Ele trabalhou cerca de seis meses depois
de Helene ter vindo e teria reparado se parecesse incompetente.
Meghan ouviu a porta da frente abrir-se. Marge olhou para cima.
- Mais câmaras! Miss Collins, é melhor eu não dizer mais nada.
A caminho de casa, Meghan pensou que não daria a oportunidade ao Dr. Williams de a despachar ao telefone. Iria ao Centro Frank em Filadélfia, e, com alguma sorte,
conseguiria falar com ele.
O que teria ele a dizer sobre Helene Petrovic?
ViCtoR ORSINi e Phillip Carter nunca almoçavam juntos. Orsini fora escolhido para o lugar por Ed Collins há quase sete anos. A sua relação com Carter fora
desde o início cordial, mas nunca calorosa.
Naquele dia, contudo, depois de terem ambos pedido linguado no forno e salada da casa, Orsini sentia-se solidário com a evidente comoção de Carter. Tinham
estado repórteres no escritório e haviam recebido telefonemas de variadíssimos meios de comunicação social a indagar como era possível a Collins e Carter não ter
detectado mentiras no currículo de Helene Petrovic.
- Disse-lhes a verdade nua e crua - declarou Phillip Carter enquanto tamborilava nervosamente na toalha da mesa. - Ed investigava sempre meticulosamente
os candidatos em perspectiva e foi quem tratou daquele caso.
- Jackie lembra-se de alguma coisa? - perguntou Orsini.
- Ela entrara há pouco tempo como secretária. As iniciais dela constam da carta, mas não se lembra. E porque haveria ela de se lembrar? Vinha uma recomendação
extraordinária anexa ao curriculum vitae.
- De todos os campos em que a firma poderia ver-se envolvida num caso de referências falsas, a investigação médica é o pior - disse Orsini.
- Pois é - concordou Phillip. - Se Helene Petrovic tiver cometido algum erro e a Clínica Manning for processada, é muito provável que a clínica nos processe
a nós.
- E ganhe.
Carter acenou com ar carrancudo e perguntou:
- Victor, quando Ed te telefonou do carro naquela noite, disse que queria falar contigo na manhã seguinte. E não disse mais nada?
- Não, não disse mais nada. Porquê?
- Estou sempre à procura de alguma coisa que comece a fazer algum sentido. - Carter suspirou. - Victor, há já algum tempo que queria falar contigo. Meghan
vai tirar os objectos pessoais de Ed do gabinete dele no sábado. Quero que fiques com aquele gabinete a partir da semana que vem.
Phillip Carter não deu a entender que, depois de a situação legal de Ed Collins ter sido esclarecida, ofereceria sociedade a Orsini. Orsini sabia que essa
oferta nunca seria feita. Quanto a ele, era apenas uma questão de semanas até que o lugar que ele quase obtivera na costa Oeste, no ano anterior, ficasse novamente
disponível. Desta vez, ofereciam-lhe melhor salário, uma vice-presidência e opção de compra de acções. Gostava de poder sair logo naquele dia, pegar nas suas coisas
e partir, mas, dadas as circunstâncias, isso seria impossível. Queria descobrir uma coisa no escritório, e agora que podia mudar-se para o gabinete de Ed, a busca
eventualmente seria mais fácil.
BERNIE parou para jantar na Estrada n.o 7, mesmo à entrada de Danbury. Sentou-se ao balcão e mandou vir o melhor dos hamburgers, batatas fritas e café. Cada
vez mais satisfeito à medida que ia mastigando e engolindo, reviu com agrado as horas atarefadas que passara desde que saíra de casa naquela manhã.
Depois de mandar limpar o carro, comprara um chapéu de motorista e um casaco escuro numa loja de artigos em segunda mão na Baixa de Manhattan. Tinha achado
que aquela indumentária lhe daria vantagem sobre todos os outros táxis clandestinos de Nova Iorque. Depois, fora para o Aeroporto de La Guardia e posiciunara-se
junto à área de bagagem, com os outros motoristas, à espera de arranjar clientes.
Teve logo sorte. Um tipo com cerca de trinta anos desceu no elevador e examinou os cartões com nomes que os motoristas empunhavam. Não estava ninguém à espera
dele. Bernie aproximou-se do homem, ofereceu-se para o levar para a cidade e disse que lhe levava vinte dólares para o levar à Rua Quarenta e Oito Oeste. Chegou
lá em trinta e cinco minutos e recebeu uma gorjeta de dez dólares.
Bernie sorriu com os seus botões. Se continuasse a ganhar assim, podia aguentar-se muito tempo até a mãe saber que já não trabalhava naquele sítio.
E ali estava ele, livre como um passarinho, sem ter de dar explicações a ninguém e prestes a descobrir onde Meghan Collins vivia. Comprara um mapa das ruas
de Newtown e estudou-o. A casa dos Collins ficava na Bayberry Road.
Às 2 horas em ponto, passava lentamente pela casa de madeira branca com venezianas pretas. Semicerrou os olhos enquanto absorvia todos os pormenores. O grande
alpendre. Era Bonita. Bastante elegante.
Bernie estudou o terreno. Havia um grande jardim no lado esquerdo da rampa de acesso de macadame, e uma sebe de sempre-vivas separava a casa dos Collins
da casa ao lado.
Já elucidado, Bernie carregou no acelerador. Para o caso de estar a ser observado, não seria burro ao ponto de fazer uma inversão de marcha ali. Fez a curva,
depois travou a fundo, pois ia quase atropelando um estúpido de um cão.
Um miúdo atravessou a correr o relvado, e Bernie ouviu-o gritar pelo cão.
- Jake ! Jake ! - O cão correu para o miúdo, e Bernie pôde arrancar novamente. ainda ouviu o miúdo gritar-lhe:
- Obrigado, senhor, Muito obrigado.
CATHERINE COLLINS tocou no botão perto da mão, e a cama de hospital elevou-se ruidosamente até ela a fazer parar numa posição semi-reclinada. Há uma hora
que estava a tentar dormir, mas era inútil. ? ?É altura de encarares a vida, minha filha, disse ela firmemente a si própria.
Catherine atirou os cobertores para trás, saiu da cama e agarrou no roupão. Atravessou o quarto até à minúscula casa de banho e salpicou a cara de água,
depois olhou para o espelho e fez uma careta. ??É melhor pores as pinturas de guerra, minha querida, disse com os seus botões.
Passados dez minutos, estava novamente na cama, sentindo-se um pouco melhor. O cabelo louro estava penteado, o blush e o bâton disfarçavam a palidez sombria
e um casaquinho de cama de seda fazia-a sentir-se apresentável. Sabia que Meghan ia passar a tarde em Nova Iorque, mas havia sempre a hipótese de alguém aparecer
para a visitar.
E assim aconteceu. Phillip Carter bateu à porta entreaberta.
- Posso entrar, Catherine?
- Claro.
Ele inclinou-se e deu-lhe um beijo.
- Estás com muito melhor aspecto.
- Sinto-me muito melhor. Para dizer a verdade, estou a tentar sair daqui, mas eles querem que eu fique mais uns dias.
- Boa ideia.
Ele puxou a única cadeira confortável para junto da cama e sentou-se. Phillip trazia um casaco castanho desportivo, calças castanho- escuras e gravata castanha
e bege, reparou Catherine. A sua forte presença masculina fê-la sentir saudades do marido.
Edwin era extraordinariamente atraente. Conhecera-o há trinta e um anos numa festa, depois de um jogo de futebol americano entre Harvard e Yale. Ela namorava
um dos jogadores de Yale e reparou em Ed na pista de dança - o cabelo escuro, os olhos azuis profundos, alto e esbelto.
Na dança seguinte, Edwin tirara-a ao seu par, e no dia seguinte estava a tocar à campainha da casa de quinta com uma dúzia de rosas na mão. ??Venho fazer-te
a corte, Catherine, anunciara ele. Agora, pestanejando, Catherine tentava reter as lágrimas repentinas.
- Catherine? - Phillip agarrou-lhe numa das mãos.
- Estou óptima - disse ela, retirando a mão.
- Acho que não te vais sentir assim daqui a pouco.
- O que foi, Phillip?
- Catherine, deves ter ouvido falar na mulher que foi assassinada em New Milford.
- A médica. Sim. Que horror!
- Então, não ouviste dizer que não era médica, que a cédula dela era falsa e que foi colocada na Clínica Manning pela nossa empresa?
Catherine endireitou-se de um pulo.
- O quê?!
Uma enfermeira entrou, apressada.
- Mrs. Collins, estão dois inspectores da Polícia de New Milford no átrio e precisam de falar consigo. O médico disse-me para a prevenir de que vão subir
dentro de instantes.
Catherine esperou até ouvir os passos da enfermeira afastarem-se pelo corredor antes de perguntar:
- Phillip, sabes porque é que eles cá vêm?
- Sei. Estiveram lá no escritório há uma hora. A mulher que foi assassinada a noite passada era cliente de Ed. Ele devia saber que as credenciais dela eram
falsas. Tu sabes que a Polícia não acredita que Ed se afogou no acidente da ponte. Uma vizinha de Helene Petrovic que vive em frente disse que ela recebia regularmente,
a altas horas da noite, a visita de um homem alto que tinha um carro grande escuro.
- A expressão dele era sombria. - Viu-o lá ir há duas semanas.
Catherine tentou engolir, mas não conseguiu.
Bateram à porta. Os inspectores entraram a seguir à enfermeira. Um deles era uma jovem da idade de Meghan, o outro era um homem, que Catherine calculou ter
trinta e muitos anos. Foi este quem falou primeiro, pedindo desculpa pela intromissão.
- Apresento-lhe Arlene Weiss, inspectora de investigação esp?? cial. Eu chamo-me Bob Marron. - Passou directamente ao assunto.
- Mrs. Collins, a senhora foi trazida para cá em estado de choque? porque a sua filha recebeu um telefonema durante a noite de alguém que disse ser o seu marido.
- Não era o meu marido. Eu teria reconhecido a voz dele onde quer que fosse. ?
- Mrs. Collins, lamento ter de lhe perguntar isto, mas ainda acredita que o seu marido morreu em Janeiro?
- Acredito plenamente que ele morreu - disse ela com firmeza.
- Flores lindaS para si, Mrs. Collins - chilreou uma voz enquanto a porta se abria.
Era uma das voluntárias com batas cor-de-rosa que traziam as flores para os quartos.
- Ponha-aS ali.
Catherine pegou no cartão que vinha no vaso. Olhou para ele e ficou paralisada, com uma expressão aterrada.
Leu o cartão em voz alta.
- ??Minha querida. Acredita em mim. Prometo-te que vai resolver-se tudo. Do teu marido que te ama, Edwin.
NA QUARTA-FEIRA à tarde, investigadores da Polícia de
Connecticut foram até Lawrenceville, na Nova Jérsia, para interrogar Stephanie Petrovic sobre a tia assassinada. ?
Tentando ignorar os movimentos agitados dentro de si, Steph? nie cruzou as mãos para evitar que tremessem. Tendo crescido na Roménia sob o regime de Ceausescu,
havia sido treinada a recear a Polícia.
O advogado da tia, Charles Potters, também lá se encontrava. Es tava a ser amável, mas ela pressentiu que a amabilidade era do tipo impessoal. Cumpriria
o seu dever e já a informara de que o seu dever consistia em fazer cumprir os termos do testamento de Helene, que deixava todos os bens à Clínica Manning.
- Ela tencionava modificá-lo - dissera-lhe Stephanie. - Planeava tomar conta de mim, ajudar-me enquanto tirava o curso de esteticista. Disse que eu era como uma
filha para ela.
- Compreendo, mas dado que ela não alterou o testamento, a única coisa que posso dizer é que, depois de esta casa ser vendida, vai ter de se desenvencilhar
sozinha.
Sozinha! Stephanie sabia que, a menos que conseguisse arranjar licença de residência e um emprego, não havia possibilidades de poder ficar naquele país.
Um dos agentes perguntou-lhe se a tia não tinha nenhum amigo especial.
- Não, pelo menos que eu saiba - respondeu ela. - Muitas vezes, ao sábado e ao domingo, ela saía durante três ou quatro horas. Nunca me dizia para onde ia.
- Stephanie descreveu como ficara surpreendida ao saber que Helene se despedira abruptamente do emprego.Ela planeava deixar de trabalhar logo que vendesse a casa.
Stephanie sabia que estava a atrapalhar-se com as palavras inglesas. Estava cheia de medo.
- O Dr. Manning disse-nos que não fazia a menor ideia de que Helene estava a pensar sair da clínica - disse em romeno o inspector chamado Hugo.
Stephanie lançou-lhe um olhar de gratidão e mudou para a sua língua- mãe.
- Ela disse-me que o Dr. Manning ficaria muito preocupado e que receava dar-lhe a notícia.
Hugo voltou-se para o advogado:
- Qual era a situação financeira dela?
Charles Potters respondeu:
- Posso assegurar-lhe que era bastante boa. A doutora... ou antes, a Sra. D. Helene Petrovic, era muito poupada e fazia bons investimentos. Esta casa já
estava paga, e tinha oitocentos mil dólares em acções, obrigações e dinheiro.
Tanto dinheiro!, pensou Stephanie, e agora ia ficar sem um tostão. Esfregou a testa. Doíam-lhe as costas, tinha os pés inchados. Estava muito cansada. O
que é que ia fazer?
O agente perguntou-lhe:
- Para quando está previsto o nascimento do seu bebé, Stephanie?
As lágrimas correram-lhe pela face quando respondeu:
- Para daqui a duas semanas.
MAC cHsGou ao consultório do médico legista mesmo antes das 2. Meg chegou logo a seguir. O choque que sentiu ao rever a morta que se parecia com ela já se
atenuara quando acabaram de lhe colher uma amostra de sangue.
Não sabia bem qual a reacção que esperara de Mac quando visse o corpo. Apenas lhe detectou um comprimir de lábios. O único comentário que ele fez foi que
achava a semelhança tão surpreendente que pensava que a comparação do ADN era absolutamente necessária.
Nem ela nem Mac tinham almoçado. Saíram do consultório do? médico legista em carros separados e foram para um dos lugares preferidos de Meg, o Neary,s na
Rua Cinquenta e Sete. Enquanto comiam uma sanduíche de dois andares e bebiam café, Meg contou a Mac que a cédula de Helene Petrovic era falsa e que o pai dela eventualmente
estava envolvido nisso.
Jimmy Neary, o proprietário, aproximou-se para saber notícias da mãe de Meghan. Quando soube que Catherine estava no hospital, foi buscar o telefone portátil
para Meghan lhe telefonar.
Foi Phillip quem atendeu.
- Olá, Phillip - disse Meghan. - Telefonei para saber como está a minha mãe. Pode passar-lhe o telefone, por favor?
- Meg, ela sofreu um grande choque com uma dúzia de rosas que lhe mandaram. Vais compreender quando eu te ler o cartão.
Mac estivera a olhar para o outro lado da sala, para os quadros com paisagens campestres irlandesas. Ao ouvir Meghan suster a respiração, voltou-se para
ela.
- Meg, o que foi? - Tirou-lhe o telefone dos dedos, que tremiam:
- Estou?
- Mac, ainda bem que estás aí.
Era a voz de Phillip Carter, confiante e com tudo sob controle, que lhe contou sucintamente o que se passara naquela última hora.
- Ela ficou bastante perturbada a princípio, mas agora está mais calma - concluiu ele. - Diz que quer falar com Meg.
- Meg, é a tua mãe - disse Mac.
Ela pegou no telefone.
- Mãe, a mãe sente-se bem?... Eu também acho que se trata
de uma brincadeira cruel... Tem razão. O pai nunca faria uma coisa dessas... Eu sei como é duro... Tenho uma reunião com Mr. Weicker na estação daqui a uma hora,
depois passo por aí... Eu também a adoro, mãe.
Quando Meghan pousou o auscultador, começou a chorar, dizendo:
- Foi um milagre a minha mãe não ter um ataque de coração.
Mordeu o lábio.
??Oh, Meg, pensou Mac. Apetecia-lhe abraçá-la, apertá-la contra si, beijar-lhe os olhos e os lábios até fazer desaparecer o sofrimento neles estampado. Em
vez disso, tentou tranquilizá-la.
- Catherine não vai ter nenhum ataque de coração - disse ele firmemente. - Estou a falar a sério, Meg. Agora, será que percebi bem o que Phillip me disse, que a
Polícia está a tentar relacionar o teu pai com a morte da tal Helene Petrovic?
- Aparentemente. Não param de falar na vizinha que disse que um homem alto com um carro grande escuro de modelo recente visitava a romena regularmente. O
meu pai era alto e tinha um carro grande escuro.
- Tal como muitos outros homens altos, Meg. Isso é ridículo.
- Eu sei e a minha mãe também sabe.
Mac ia voltar para o emprego. Antes de entrarem nos respectivos carros, ele pôs-lhe as mãos nos ombros.
- Meg, ouve, deixa-me ajudar-te.
- Oh, Mac - suspirou ela. - Acho que já tiveste a tua dose de problemas da família Collins por uns tempos. Quanto tempo é que vai demorar a fazer a comparação
do ADN?
- Entre quatro e seis semanas. Eu telefono-te logo à noite, Meg.
MEia HoRA depois, Meghan estava no escritório de Tom Weicker.
- Aquela entrevista com a recepcionista da Clínica Manning foi muito boa - disse-lhe ele. - É um exclusivo. Mas, atendendo ao envolvimento do teu pai no
caso Petruvic, não quero que voltes a aproximar-te daquele sítio.
Era o que ela esperara ouvir. Olhou para ele a direito.
- O Centro Franklin, em Filadélfia, goza de óptima reputação. Gostaria de substituir a Clínica Manning por essa instituição na reportagem.
Omitiu a Tom que o Dr. Williams, que dirigia o Centro Franklin, trabalhara com Helene Petrovic na Manning.
Esperou e ficou aliviada ao ouvi-lo dizer:
- Quero que termines a reportagem o mais depressa possível. Toda a gente fala da fertilização in vitru por causa de Helene Petrovic. Quando é que podes ir
a Filadélfia?
- Amanhã.
BERNiE voltou para Manhattan vindo do Connecticut. Ver a casa de Meghan despertara-lhe recordações das outras alturas em que seguira raparigas até casa e
se escondera depois no carro ou na garagem delas, ou até nos arbustos à volta da casa, só para as espreitar.
Sabia que tinha de estar perto de Meghan, mas precisava de ter cuidado. Newtown era uma comunidade chique, e os agentes da Polícia em sítios como esses andavam
a deambular pelas ruas à procura de carros estranhos.
Só havia uma coisa a fazer. Quando chegou ao centro de Manhatan foi até uma loja de electrónica na Rua Quarenta e Sete. Comprou? o último grito em câmaras de vídeo
e um rádio interceptor de mensagens da Polícia para o carro.
Depois foi a uma loja de material artístico e comprou papel cor-de-rosa. Rosa era a cor dos passes da imprensa que a Polícia tinha para os meios de comunicação.
Tinha um em casa que um jornalista deixara cair. Podia copiá-lo no computador e forjar um passe imprensa que parecesse oficial.
Havia montes de estações de televisão locais por cabo a que ninguém ligava. Diria que pertencia a uma delas. Seria Bernie Heffernan, repórter. Tal como Meghan.
Ao JANTar, a mãe fungou várias vezes.
- Está a ficar constipada, mamã? - perguntou ele, solícito.
- Eu nunca fico constipada. Tenho alergias - ripostou ela. Acho que há pó algures nesta casa. Bernard, tu tens mantido aquela cave limpa, não tens? Não quero
que venha pó lá de baixo.
- A cave está limpa, mamã.
Assistiram ao noticiário das 6 juntos e viram Meghan Collins a entrevistar a recepcionista da Clínica Manning.
Bernie inclinou-se para a frente, absorvendo o perfil de Meg enquanto fazia as perguntas a Marge Walters. As mãos e a testa dele começaram a ficar húmidas.
Depois, arrancaram-lhe o telecomando da mão e sentiu uma bofetada dolorosa na face.
- Lá estás tu outra vez, Bernard - gritou a mãe. - Eu sei que estás a observar aquela rapariga. Eu sei! Será que tu nunca aprendes?
Quando Meghan chegou ao hospital, encontrou a mãe toda vestida.
- Tenho de sair daqui - disse Catherine Collins. - Não posso ficar aqui deitada nesta cama a pensar. Pelo menos na estalagem estou ocupada.
- O que disse o médico?
- Primeiro opôs-se, é claro, mas agora concorda ou pelo menos está disposto a assinar a alta. - A voz falhou-lhe. - Meggie, não tentes fazer-me mudar de
opinião. Fico melhor em casa.
Meghan abraçou a mãe com força.
O TELEFONE estava a tocar quando chegaram a casa. Meghan correu para o atender. Era Dina Anderson.
- Meghan, se ainda continua interessada em estar por perto quando o bebé nascer, é melhor começar a planear as coisas. O médico vai internar-me no Centro Clínico
de Danbury na segunda-feira para connduzir o plano.
- Lá estarei - replicou Meghan.
JoHN DwYER era o delegado do procurador-geral do Tribunal de Danbury. A sua jurisdição incluía a cidade de New Milford. Com quarenta anos, Dwyer já se encontrava
naquela profissão há quinze.
A suposta morte de Edwin Collins na tragédia da Ponte Tappan Zee gerara uma cobertura simpática nos meios de comunicação locais. A família era muito conhecida
na zona, e a Estalagem de Drumdoe era uma instituição. Agora, o envolvimento de Collins na verificação da cédula falsa de Helene Petrovic transformara um crime suburbano
chocante num escândalo a nível de estado.
No final da tarde de quarta-feira, Dwyer teve uma reunião no gabinete com os inspectores Arlene Weiss e Bob Marron. Tinham obtido o ficheiro de Helene Petrovic
do Departamento de Estado em Washington.
Arlene Weiss reviu os detalhes.
- Petrovic veio para os Estados Unidos há vinte anos. O seu protector dirigia um salão de beleza na Broadway. No pedido de visto, consta que tem o diploma
do liceu e frequentou uma escola de estética em Bucareste.
- Não teve qualquer preparação clínica? - perguntou Dwyer.
- Pelo menos aqui não vem mencionado - confirmou Arlene Weiss.
Bob Marron olhou para os apontamentos.
- Foi trabalhar para o salão do amigo, onde ficou onze anos, e durante os últimos dois tirou um curso de secretariado à noite. Depois, ofereceram-lhe um
emprego de secretária no Centro de Inseminação Artificial Dowling em Trenton, na Nova Jérsia. Três anos depois, Collins colocou-a na Clínica Manning como embriologista.
- E Edwin Collins? - perguntou Dwyer.
- Possui um diploma de Gestão de Harvard. Nunca se meteu em sarilhos, é sócio fundador da empresa, obteve licença de porte de arma há cerca de dez anos,
depois de ter sido assaltado num sinal vermelho em Bridgepon.
Dwyer recostou-se na cadeira giratória.
- Vejamos o que temos. Edwin Collins desapareceu e presumiu-se que morrera afogado, mas agora a mulher recebe flores dele, que vocês me dizem que foram pagas
com o cartão de crédito dele.
- Sim. A encomenda à florista foi feita pelo telefone - disse Arlene Weiss. - O carttão de crédito não chegou a ser cancelado.? por outro lado, já não era utilizado
desde Janeiro.
- Collins ainda continua a ser considerado como desaparecido e presumivelmente morto? - perguntou Dwyer.
Marron e Weiss acenaram com a cabeça afirmativamente. Dwyer levantou-se.
- Talvez devêssemos alterar isso. Eu vejo as coisas da seguinte forma: primeiro é quase certo que Collins não morreu no acidente da ponte; segundo, resgatou
todo o montante da apólice de seguro antes de desaparecer; terceiro, não foram encontrados vestígios do carro, mas um homem alto com um carro grande escuro visitava
regularmente a Petrovic; quarto, a chamada telefónica, o cartão de crédito e as flores. Eu diria que é suficiente. Difundam um mandado de procura nos termos: ??
Procurado para prestar declarações relacionadas com o processo de homicídio de Helene Petrovic.
Às 5 horas, Victor Orsini recebeu um telefonema. Larry Downes, presidente da Downes e Rosen, telefonou-lhe a dizer que adiasse o pedido de demissão na Collins
e Carter.
- Durante quanto tempo, Larry? - perguntou Victor calmamente.
- Não sei - disse Downes evasivamente. - Este burburinho por causa da Petrovic vai acabar por morrer, mas há muita coisa negra relacionada com o teu nome
para vires para cá agora. Se se descobre que a Petrovic trocava embriões na clínica, vai ser o fim do Mundo!
- Eu mal começara a trabalhar para a firma quando a candidatura da Petrovic foi apresentada à Clínica Manning - protestou Victor.
- Desculpa lá, mas o facto é que já aí estavas há seis semanas quando a Petrovic começou a trabalhar na Manning. Isso significa queestavas aí quando a investigação
das habilitações dela deveria ter sido levada a cabo.
Victor engoliu em seco e tentou outro argumento.
- Larry, eu ajudei-vos muito este ano.
- Ai sim, Victor?
- Vocês colocaram candidatos em três firmas que se encontravam entre os nossos melhores clientes. Quem é que vos disse que as vagas existiãm?
- Desculpa, Victor.
Desligou. Orsini sabia que o emprego na Downes e Rosen provavelmente já não lhe seria oferecido.
Enquanto a mãe se vestia, Meghan enfiou-se no escritório com as cartas e o recortte da necrologia da gaveta da secretária do pai e escondeu-os na pasta.
Meghan teria certamente um dia de contar à mãe, mas por enquanto ainda não.Talvez depois de ir a Filadélfia arranjasse alguma explicação.
Iam jantar à estalagem. Depois de hesitar um pouco, Meghan decidiu telefonar a Mac.Ele tinha dito que lhe telefonava,e ela não queria que pensasse que acontecera
alguma coisa.
Foi Kyle quem atendeu.
- Meg! - Era o Kyle que ela conhecia,encantado por ouvir a
voz dela.
- Olá amigo.Como vai isso?
- Lindamente.Mas hoje o dia foi horrível.O Jake ia morrendo.
Estava a atirar-lhe a bola,mas atirei com força demais e foi parar à rua,e ele foi a correr atrás e um tipo quase o atropelou.Bem,devias ter visto o tipo a parar
o carro! Parar mesmo!
- Fico contente por Jake estar bem,Kyle.Para a próxima,joga
com ele à bola no pátio das traseiras,onde tens mais espaço.
- Foi o que o pai me disse.Ele está a tirar-me o telefone.
Até logo.
- Olá,Meg.Como é que vão as coisas?
Ela disse-lhe que a mãe estava em casa.
estou em Filadélfia amanhã por causa da reportagem de fundo que vou fazer.
- Também vais verificar a morada de Chestnut Hill?
- Vou.A minha mãe ainda não está ao corrente disso nem das
cartas.
- Não sou eu que lhe vou falar nisso.- A voz de Mac tornou-se hesitante.- Meg,eu sei que não queres que eu interfira,mas
gostava que me deixasses ajudar-te.Sinto que por vezes me evitas.
- Não sejas tolo.Sempre fomos bons amigos.
- O que é que aconteceu? Não tenho a certeza se continuamos a sê-lo.
O que aconteceu, pensou Meghan,??é que não posso pensar naquela carta que te escrevi há nove anos a implorar-te que não casasses com Ginger sem me sentir humilhadíssima.O
que aconteceu é que nunca serei mais que a tua amiguinha,e eu já consegui afastar-me de ti.Não posso arriscar-me a sofrer novamente.
- Não aconteceu nada,Mac - disse ela.- Ainda continuas a
ser meu amigo.
O DR. HENRY WILLIAMS, director do Centro de Inseminação Artificial Franklin, em Filadélfia, contava sessenta e cinco anos de idade e era um homem alto que se parecia
vagamente com um tio preferido de toda a gente. Tinha cabelo espesso e grisalho e um rosto calmo e bondoso que tranquilizava mesmo a paciente tão nervosa.
Meghan telefonara depois da reunião com Tom Weicker, e ele concordara imediatamente em falar com ela. Agora, encontrava-se no alegre escritório dele,
com as paredes cobertas de fotografias emolduradas de bebés e crianças pequenas.
- Estas crianças nasceram todas através de fertilização in vitro? - perguntou Meghan.
- Nasceram através de inseminação artificial - corrigiu o Dr. Williams. - Existem outros métodos por nós aplicados, várias formas da fertilização in vitro.
Vou dar-lhe literatura explicativa.
- E incluem a utilização de embriões doados?
- Sim, para aqueles que não podem conceber. Na verdade, é uma forma de adopção.
- Estaria disposto a ser entrevistado em frente a uma câmara, a deixar-nos dar uma volta pelas instalações e a falar com algumas de suas clientes?
- Claro. Para ser franco, orgulhamo-nos da nossa actividad e a publicidade favorável é bem-vinda. Só tenho uma condição a impôr: eu contacto várias das nossas
clientes e pergunto-lhes se estão dispostas a falar consigo. Não quero que seja você a contactá-las. Algumas pessoas não querem que as famílias saibam que utilizaram
este método de concepção.
- Sr. Doutor, eu sei que é muito apertado, mas gostava de cá vir hoje à tarde com o operador de câmara. Pode ser às quatro horas?
- Sim, pode.
Meghan hesitou.
- Não sei se os jornais locais publicaram a história, mas Helen Petrovic, que trabalhava na Clínica Manning, foi assassinada e descobriu-se que a
cédula dela era falsa. O Sr. Doutor trabalhou com ela, não trabalhou?
- Trabalhei. - Williams abanou a cabeça. - Eu era assistente do Dr. Manning e sabia tudo o que se passava naquela clínica. Helene conseguiu realmente
enganar-me. Ela tratava do laboratório certamente como deve ser.
Meghan decidiu arriscar-se a sondar.
- Sr. Doutor, peço desculpa, mas preciso de saber mais sobre A recepcionista da Clínica Manning. Ela viu-o a jantar fora com Helen Petrovic. Chegou
a conhecê-la bem?
Henry Williams pareceu achar graça.
- Refere-se a Marge Walters. Ela também lhe disse que, por uma questão de cortesia, eu levava sempre os novos elementos do pessoal da Clínica Manning
a jantar fora? Umas boas-vindas informais.
- Não, não disse. Conhecia Helene antes de ela ir para lá?
- Não. ?
- Teve algum contacto com ela depois de sair da Manning.
- Nenhum.
O intercomunicador tocou. Williams pegou no telefone e escutou.
- Espere um segundo, por favor - disse ele, voltando-se depois para Meghan.
Ela percebeu.
- Sr. Doutor, não lhe tomo mais tempo.
Quando a porta se fechou atrás dela, o Dr. Henry Williams levou novamente o auscultador ao ouvido.
- Pode passar a chamada, por favor. - Murmurou um cumprimento, escutou e depois retorquiu num tom agitado: - Sim, estou sozinho. Ela acabou de sair. Volta às quatro
com o operador de câmara... Estás a dizer-me para ter cuidado. Tomas-me por parvo ou quê?
O PRiMEiRo serviço de Bernie na quinta-feira de manhã foi do aeroporto Kennedy para Westport, no Connecticut. Dali seguiu para a Clínica Manning, onde Meghan fizera
a entrevista na véspera. Talvez lá esteja hoje também??, disse ele com os seus botões. Havia várias carrinhas de meios de comunicação no parque de estacionamento
da clínica. Estacionou longe delas e examinou o passe de imprensa que forjara. Teria sido preciso ser um perito para reparar que não era verdadeiro. Dizia que era
Bernard Heffernan do Canal 1, Elmira, Nova Iorque, uma estação local. Bernie saiu do carro e retirou a nova câmara de vídeo do porta-bagagem.
Estavam cerca de uma dúzia de repórteres e operadores de câmara no átrio a entrevistar um porta-voz da clínica. Bernie olhou em volta: Meghan não estava lá. Deveria
perguntar às pessoas se a tinham visto? Não, seria um erro. ??Tens de te confundir com a multidão,? admoestava-se a si próprio. Apontou a câmara para o tipo
que respondia às perguntas e ligou-a.
Quando a entrevista terminou, Bernie saiu com o grupo, tendo o cuidado de não se aproximar demasiadamente de nenhum dos outros. Uma mulher parou o carro junto às
escadas e saiu. Estava grávida e obviamente preocupada. Um repórter perguntou-lhe:
- Minha senhora, é cliente da clínica?
Stephanie Petrovic gritou:
- Não, não. A minha tia deixou tudo à clínica. Estou a pensar que talvez alguém de cá a tenha matado por recear que, depois de se ter despedido, ela alterasse o
testamento. Se eu conseguisse provar isso, o dinheiro dela ficava para mim, não era?
MEGHaN ficou longos minutos sentada no carro em frente à bonita casa de pedra em Chestnut Hill. As linhas graciosas da moradia de três pisos eram
acentuadas pelas janelas de vidrinhos, que brilhavam sob o sol do princípio da tarde.
O nome que constava na caixa do correio era C. J. Graham. Teria ela alguma vez ouvido aquele nome ao pai? Meghan achava que não.
Saiu do carro e dirigiu-se lentamente à casa. Hesitou um momento e depois tocou à campainha e ouviu o seu suave repique. Passados segundos, uma empregada
veio abrir a porta.
- Sim? - perguntou ela delicadamente, mas desconfiada. Meghan apercebeu-se de que não sabia com quem ia falar.
- Gostaria de falar com alguém que viva nesta casa e que possa ter conhecido Aurelia Collins.
- Quem é, Jessie? - perguntou uma voz de homem. Meghan viu por detrás da empregada um homem de cabelo branco.
- Manda a jovem entrar, Jessie - ordenou ele.
Meghan entrou. Enquanto a porta se fechava, o homem se ? rou os olhos, fez-lhe sinal para que se aproximasse e sorriu.
- És a Annie, não és? Minha querida, que prazer ver-te de novo.
O médico aconselhara Catherine Collins a ficar em casa a descansar pelo menos dois dias.
Posso ter um ataque de coração se ficar a pensar nas preocupações, pensou ela enquanto se vestia.
Foi para a estalagem.
? ? Estivera ausente apenas alguns dias, mas já via a diferença. o arranjo de flores no balcão da recepção estava quase murcho.
- Quando é que chegou? - perguntou Catherine a Virginia.
- Esta manhã.
- Telefona para a florista e pede-lhe que o substitua. - As rosas que recebera no hospital estavam bem viçosas, lembrou- se ela.
As mesas na casa de jantar estavam postas para o almoço. Catherine passou revista a todas, com um ajudante de criado de mesa.
- Falta um guardanapo aqui e aquele saleiro parece encardido.
- Sim, minha senhora.
Entrou na cozinha. O antigo chefe de cozinha reformara-se em Julho, depois de lá ter trabalhado vinte anos. O seu substituto, C. D' Arcette, tinha
já muita experiência, apesar de só ter vinte e seis anos. Passados quatro meses, Catherine estava a chegar à conclusão de que ele seria um bom ajudante, mas que
ainda não se conseguia safar sozinho.
Ele estava a preparar os pratos especiais para o almoço quando Catherine entrou na cozinha. Ela franziu o sobrolho ao reparar nos salpi cos de gordura no
fogão. O caixote do lixo não fora despejado. Éla provou o molho holandês.
- Porque é que está salgado? - perguntou ela.
- Eu não lhe chamaria salgado, Mrs. Collins - disse o homem num tom a raiar a falta de delicadeza.
- Mas eu chamaria, e calculo que quem quer que o pedisse lhe chamaria o mesmo.
- Mrs. Collins, a senhora contratou-me para ser chefe de cozinha. Caso eu não possa sê-lo e preparar a comida à minha maneira, a situação não vai
resultar.
- Facilitou-me muito as coisas. Está despedido - declarou ela.
Murphy entrou a correr para experimentar um avental quando Virginia disse:
- Catherine, onde é que Clive vai? Acaba de passar por mim que nem um raio.
- Vai voltar para a escola de hotelaria, espero eu. - Catherine voltou-se para ela. - Virginia, a minha salvação vai ser agarrar-me a este fogão
enquanto conseguir manter isto. Agora, quais foram os pratos especiais que o nosso cozinheiro destinou para hoje?
MEGHanN sentiu-se parada no tempo, ali de pé no hall de entrada, com aquele homem cortês que obviamente estava convencido de que já se conheciam.
- Eu não me chamo Annie. Chamo-me Meghan Collins - conseguiu ela articular.
c. Graham ulhou mais de perto para ela.
- És filha de Edwin, não és?
- Sou.
- Vem comigo, por favor. - Pegou-lhe no braço e conduziu-a
para o escritório. - Passo a maior parte do tempo aqui - disse-lhe ele enquanto a acompanhava ao sofá e se instalava numa confortável cadeira de braços e costas
altas. - minha mulher faleceu. Esta casa parece-me enorme desde que ela foi embora. percebeu que Graham detectara o seu choque e angústia e estava a tentar aliviá-la.
Mas ela já não conseguia formular as perguntas de uma maneira diplomática. Abriu a carteira e tirou a notícia da necrologia.
- Foi o senhor que enviou isto ao meu pai? - perguntou Meghan.
- Fui eu mesmo. Ele não acusou a recepção, mas eu também nunca esperei que o fizesse. Fiquei tão abalado quando soube do acidente pelos jornais. . .
- Como é que conhecia o meu pai?
- Eu sou Cyrus Graham, irmão por afinidade do teu pai. Irmão por afinidade! Nunca soube que este homem existia??, pensou Meghan, atónita.
- O senhor chamou-me Annie ainda há pouco - disse ela.Porquê?
Ele respondeu-lhe com outra pergunta.
- Meghan, não te lembras de me ter conhecido com o teu pai e ?? a tua mãe no Arizona?
- Nunca lá estive.
- Então, estou completamente baralhado - disse-lhe Graham.?
- Exactamente quando e onde no Arizona é que acha que nos co? nhecemos? - perguntou ela, muito ansiosa.
- Deixa-me ver. Foi em Abril, há uns dez anos atrás. Estava hospedado no Hotel Safari, em Scottsdale, e ia a sair da sala de jantar quando vi Edwin, que
estava sentado com uma mulher de quarenta e poucos anos e uma rapariga muito parecida contigo. - Graham fitou-a. - Para dizer a verdade, tanto tu como ela se parecem
com a mãe de Edwin, Aurelia Collins. Foi um encontro breve, mas como era a primeira vez que via Edwin passados muitos anos, nunca maisesqueci.
- Qual fora a última vez que o vira antes disso?
- Não o via desde que ele acabara o liceu. Mas embora tivessem passado trinta anos, reconheci-o logo. Dirigi-me à mesa e fui recebido muito friamente. Ele
apresentou-me à mulher e à filha dizendo que me conhecera em Filadélfia quando era miúdo. Percebi a insinuação e fui-me logo embora. Sabia que ele e a família viviam
no Connecticut, e parti do princípio de que estavam de férias no Arizona.
- Ele apresentou a mulher com quem estava como esposa?
- Acho que sim. Mas não tenho a certeza absoluta. Pode ter dito qualquer coisa como ??Frances e Annie, este é Cyrus Graham.
- Quantos anos tinha Annie nessa altura?
- Por volta de dezasseis, penso eu.
Então, agora teria por volta de vinte e seis, pensou Meghan, e estremeceu. ??E está na morgue em vez de mim. Percebeu que Graham a examinava.
- Acho que nos sabia bem uma chávena de chá - disse ele.Vou pedir a Jessie que nos arranje qualquer coisa.
Quando ele saiu da sala, Meghan pousou as mãos com os dedos entrelaçados no colo. Sentia as pernas fracas e trémulas. Annie, pensou ela. Lembrava-se perfeitamente
de ter falado de nomes com o pai.
- Como é que escolheu o nome Meghan para mim? - perguntara-lhe ela.
- Os meus nomes preferidos são Meghan e Annie, e foi por isso que ficaste Meghan Anne.
? ?Afinal, conseguiu usar os seus dois nomes preferidos.
Quando Graham voltou seguido da empregada com um tabuleiro, Meghan aceitou uma chávena de chá e uma sanduíche.
- Não pode imaginar como estou chocada - disse ela.
- Agora, fale-me do meu pai, que passou repentinamente a ser um perfeito estranho para mim.
Não era uma história bonita. Richard Collins, o avô dela, tinha-se casado com Aurelia Crowley, de dezassete anos quando esta ficara grávida.
- Ele achava que era a atitude correcta - disse Graham.
- Era muito mais velho que ela e divorciou-se quase logo a seguir, mas sus tentou-a a ela e ao bebé com razoável generosidade. Um ano depois, tinha eu catorze
anos, Richard casou com a minha mãe. O meu pai falecera. Esta era a casa da família Graham, e Richard Collins veio para cá viver.
- E o meu pai foi criado pela mãe, Aurelia?
- Até aos três anos, altura em que ela se apaixonou loucamente por um homem que não queria ter o peso de uma criança. Certa manhã, Aurelia chegou cá e depositou
Edwin com as malas e brinquedos. A minha mãe ficou furiosa, Richard ainda mais e o pequeno Edwin com pletamente arrasado. Ele adorava a mãe.
- Ficou numa família onde não era desejado? - perguntou Meghan.
- Sim. Creio que ele era um garoto difícil. Lembro-me perfeitamente dele de pé, com o nariz colado à janela, convencidíssimo de que a mãe voltaria.
- E voltou?
- Sim, um ano depois. O grande romance azedara, e ela voltou para buscar Edwin, que ficou felicíssimo.
- E depois?
- Quando tinha oito anos, Aurelia conheceu outra pessoa, e a cena repetiu-se. Dessa vez, Edwin tornou-se completamente impossível. Ele parecia estar convencido
de que, se se portasse muito mal, encontrariam maneira de o mandar para a mãe, mas em vez disso foi mandado para um colégio interno e depois para um campo de férias
no Verão. Eu andava na Faculdade de Direito e só o via de vez em quando. Fui visitá-lo uma vez ao colégio e fiquei admirado quando vi que era muito popular entre
os colegas. Já nessa altura, ele dizia às pessoas que a mãe tinha morrido.
- Ele voltou a vê-la?
- Ela regressou a Filadélfia quando ele tinha dezasseis anos. Parecia ter finalmente amadurecido e arranjara emprego numa firma de advogados. Tentou ver Edwin,
mas era tarde demais. Ele não queria nada com ela. A mágoa era demasiado grande. Ao longo dos anos, eh ia-me perguntando se eu tinha notícias de Edwin. Certa ocasião,
um amigo enviou-me um recorte de jornal anunciando o casamento dele com a tua mãe que trazia o nome e morada da firma dele. Dei o recorte a Aurelia, e ela escrevia-lhe
todos os anos, mas nunca recebeu resposta.
- Ele foi um pai maravilhoso para mim e um marido maravilhoso para a minha mãe - disse Meghan. Tentou conter as lágrimas que se formavam nos olhos. - Não
posso acreditar que tinha outra pessoa que talvez também intitulasse mulher, talvez mesmo outra filha. Mas começo a pensar que deve ser verdade. Assim não sei como
é que se poderia explicar Annie e Frances? Como é que alguém pode esperar que a minha mãe e eu perdoemos um logro tão grande?
Era uma pergunta que fazia a si própria, não a Cyrus Graham. ele respondeu-lhe.
- Meghan, vira-te para trás. - Apontou para a fila de janelas. - Aquela janela do meio era onde um rapazinho ficava de vigia todas as tardes à espera da
mãe. Esse tipo de abandono afecta a alma e a mente.
O oPERAdor de câmara da filial da PCD em Filadélfia encontrou-se com Meghan à frente do Centro Franklin às 4 menos um quarto. apresentou-se dizendo chamar-se
Len.
Meghan estava satisfeita por se concentrar na entrevista. ho que se passara com o irmão por afinidade do pai fora tão doloroso que tinha de pôr esses pensamentos
de lado até, aos poucos e poucos conseguir aceitar os factos.
Len começou a filmar. Dentro do centro, foram recebidos pela recepcionista. Estavam três mulheres na sala de espera. Pareciam muito bem arranjadas e estavam
muito bem maquilhadas. Meghan tinha certeza de que eram as clientes que o Dr. Williams contactara para serem entrevistadas.
Tinha razão. A recepcionista apresentou-a às mulheres. Uma estava grávida e explicou em frente da câmara que era o terceiro filho que tinha através de fertilização
in vitro. As outras duas tinham um filho cada uma e planeavam tentar outra gravidez com os embriões criopreservados.
- Tenho oito embriões congelados - disse uma alegremente, sorrindo para as lentes. - Vão transferir três, na esperança de que um deles vingue. Se assim não
for, espero alguns meses e volto a tentar.
A seguir, foram para o consultório do Dr. Williams. Meg sentou-se à frente dele. Era um excelente entrevistado. Admiravelmente sucinto explicou rapidamente
as razões por que as mulheres podiam ter problemas em engravidar e o método da fertilização in vitro.
Antes de saírem do consultório do Dr. Williams, Len apontou a câmara para a parede com as fotografias das crianças nascidas no centro através daquele método.
Depois, filmaram o laboratório, prestando especial atenção aos recipientes de preservação a longo prazo, onde os embriões criopreservados eram mantidos em azoto
líquido.
Eram quase 5.30 quando Meghan disse:
- Pronto, já está.
ERAM 9.30 quando Meghan chegou a casa na quinta-feira à noite, aliviada por ver Mac à sua espera com a mãe. Ao
ver a expressão inquiridora dos olhos dele, ela acenou com a cabeça, o que não passou despercebido a Catherine.
Meg sentiu o cheiro a sopa de cebola que pairava no ar.
- Sobrou sopa? - Fez um sinal com a mão em direcção à cozinha.
- Não jantaste? - perguntou Catherine. - Mac, serve-lhe um copo de vinho enquanto eu aqueço qualquer coisa.
Quando Catherine se foi embora, Mac aproximou-se de Meg.
- E então? - perguntou ele em voz baixa.
Ela afastou-se para que ele não visse as lágrimas de exaustão que ameaçavam transbordar.
- Foi horrível. Mas estou bem, apenas cansada e esfomeada.
Apertou os nós dos dedos contra os lábios. Não podia ir-se abaixo. Ouviu os passos da mãe, esperou que ela entrasse de novo na sala e disse:
- Tenho notícias bastante desagradáveis, mãe.
- Bom, é melhor deixá-las sozinhas - disse Mac.
Foi Catherine quem o impediu de o fazer, dizendo: ?
- Mac, gostava que ficasses.
Sentaram-se à mesa da cozinha. Beberricando um copo de vinho e sem tocar na sopa fumegante e apetitosa à sua frente, Meghan falou do pai, contando intencionalmente
a sua infância primeiro.
Meghan olhou para o rosto da mãe e viu a reacção que esperara: pena do rapazinho que não fora desejado, pelo homem que não podia arriscar-se a sofrer pela
terceira vez. Mas depois foi necessário contar-lhe o encontro em Scottsdale entre Cyrus Graham e Edwin Collins.
- Apresentou uma pessoa como sendo a mulher? - O tom de voz da mãe nada exprimia.
- Mãe, eu não sei. Cyrus Graham partiu do princípio de que o pai estava com a mulher e a filha. O pai disse-lhe qualquer coisa do género: ??Frances e Annie,
este é Cyrus Graham.??
Catherine Collins mordeu o lábio.
- Disseste que esse Cyrus pensou que eras Annie. Eram assim parecidas?
- Éramos. - Meg lançou um olhar implorante a Mac. Depois olhou firmemente para a mãe enquanto lhe contava aquilo que esp rara poder ocultar.
Quando acabou, a mãe olhava fixamente para um ponto por detrás dela, como se tentasse compreender o que ouvira. Por fim, disse numa voz quase monocórdica:
- Uma rapariga parecida contigo foi apunhalada, Meg? Tinha u pedaço de papel da Estalagem Drumdoe com o teu nome e número de telefone do emprego escritos
na letra do teu pai? Umas horas depois de ela morrer tu recebeste um fax que dizia ??Engano. Annie foi u engano??? - Os olhos de Catherine ficaram tristes e assustados.
Conversaram durante mais um bocado, e às 10.30 Mac levantou-se para se ir embora. Sentia uma enorme ternura por Catherine e Meghan, que tinham sem dúvida
sido vítimas da infância infeliz de Edwin Collins.
MEGHAN e Catherine viram a entrevista apaixonada de Steph
Petrovic na Clínica Manning no noticiário das 11. O apresentador disse que Stephanie vivia com a tia na casa delas, na Nova Jérsia.
- Será dita uma missa pela sua alma amanhã ao meio-dia na igreja romena de St. Dominic, em Trenton - concluiu ele.
- Eu vou a essa missa - disse Meghan à mãe. - Quero falar com aquela rapariga.
ÀS 8 DA MANHÃ de sexta-feira, o procurador-geral-adjunto,
Dwyer, recebeu um telefonema em sua casa. Fora multado um Cadillac azul-escuro mal estacionado em Battery Park City, Manhattan, em frente ao prédio onde vivia Meghan
Collins. O carro estava registado em nome de Edwin Collins.
Uma hora depois, Meghan e Catherine foram chamadas ao gabinete de Dwyer, que as esperava com os investigadores Bob Marron e Arlene Weiss. Meghan sentou-se
numa cadeira ao lado da mãe e pousou uma das suas mãos protectoramente sobre as da mãe.
Tornou-se rapidamente óbvio o que eles pretendiam. Os três - o procurador-geral-adjunto e os agentes - estavam convencidos de que Edwin Collins estava vivo
e prestes a contactar a mulher e a filha.
- O telefonema, as flores e agora o carro dele - salientou Dwyer.
- Mrs. Collins, sabia que o seu marido tinha licença de porte de arma?
- Sim, sabia. Obteve-a há cerca de dez anos.
- Onde é que ele guardava a arma?
- Trancada no escritório ou em casa.
Meghan interrompeu.
- A que se devem as perguntas sobre a arma do meu pai? Encontraram- na no carro?
- Sim - disse John Dwyer em voz baixa.
- Não é de estranhar - disse Catherine rapidamente. - Ele queria-a para o carro.
Dwyer voltou-se para Meghan.
- Esteve todo o dia em Filadélfia, Miss Collins. É possível que o seu pai esteja a par dos seus movimentos e soubesse que saiu do Connecticut. Pode ter
julgado que a encontraria no seu apartamento. O que eu Ihes queria pedir veementemente é que, se Mr. Collins contactar qualquer uma das senhoras, insistam para que
venha cá falar connosco.
- O meu marido não nos vai contactar - disse Catherine firmemente.
Meghan viu um misto de exasperação e dó no rosto de Dwyer.
O CONSENSO geral dos meios de comunicação social sobre a apai xonada entrevista de Stephanie Petrovic foi o de que era uma herdeira potencial desapontada.
A acusação de uma tramóia da Clínica Manning para matar a tia foi considerada sem sentido e posta de lado. As credenciais do Dr. Manning eram impecáveis.
O advogado de Helene, Charles Potters ficou aterrado quando leu o relato do episódio. Na sexta-feira de manhã, antes da missa por alma de Helene, foi até
casa dela dizer a Stephanie o que pensava.
Quando viu o desespero no rosto da jovem, acalmou.
- Sei que tem passado muito - disse-lhe ele. - Depois da missa vai poder descansar.
Quando o advogado se foi embora, Stephanie deitou-se no sofá. o seu corpo volumoso não permitia que ficasse bem instalada. Sentia-se muito só.
Adormeceu e acordou com o telefone a tocar. Atendeu e ouviu uma voz agradável de mulher.
- Miss Petrovic?
- Sim.
- Sou Meghan Collins da PCD Canal 3. Eu não estava presente ontem, mas ouvi as súas declarações sobre a clínica no noticiário das onze.
- Não quero falar sobre isso. O advogado da minha tia ficou zangado comigo.
- Gostava que falasse comigo, talvez eu possa ajudá-la. Vou a caminho da missa. Posso convidá-la para vir almoçar comigo depois?
Parece tão simpática e eu preciso de uma amiga??, pensou Stephanie. Hesitou apenas um segundo, depois disse:
- Eu vou almoçar consigo.
MEGHAN deixou a mãe na estalagem, depois foi para Trenton o mais depressa que se atrevia. Pelo caminho, telefonou para Tom Weicker para lhe dizer que o carro
do pai tinha sido localizado.
- Mais alguém sabe do carro? - perguntou ele rapidamente.
- Ainda não. Estão a tentar manter segredo. Mas ambos sabemos que a coisa vai transpirar. - Tentou deixar transparecer indiferença. - Pelo menos o Canal
3 tem a notícia em primeira mão.
- Está a tornar-se uma grande história, Meg. Vamos divulgar já a notícia. Quando é que nasce o bebé de Dina Anderson?
- Ela é internada na segunda-feira. Tem fotografias de Jonathan em bebé que podemos utilizar. Quando o bebé nascer, comparamos as fotografias de ambos os
recém-nascidos.
PHILLIP Carter passou grande parte da tarde de sexta-feira a ser interrogado sobre Edwin Collins. Carter foi respondendo cada vez com menos paciência a perguntas
que se tornavam cada vez mais incisivas.
- Não, nunca tivemos outro caso de habilitações fraudulentas.
Arlene Weiss inquiriu sobre a situação financeira da Collins e Carter.
- Os nossos livros estão em ordem - respondeu Carter. - Foram meticulosamente inspeccionados. Nos últimos anos, como muitas outras firmas, sofremos com
a crise financeira. Contudo, não vejo nenhum motivo para Edwin ter pedido vários milhares de dólares emprestados sobre o seu seguro de vida.
- A sua firma certamente recebeu uma comissão da Clínica Manning por ter colocado Petrovic? - perguntou Bob Marron.
- Claro.
- Collins meteu essa comissão ao bolso?
- Não. Os auditores de contas descobriram-na.
- E ninguém estranhou o nome de Helene Petrovic no pagamento de seis mil dólares quando este foi feito?
- O nome dela não vinha mencionado. A cópia do documento da Clínica Manning que consta do nosso arquivo foi emendada. Diz: ??Segunda prestação pela colocação
do Dr. Williams.? Mas não havia lugar a nenhuma segunda prestação.
- Então é óbvio que Collins não a colocou para poder obter fraudulentamente seis mil dólares à custa da firma.
- Eu diria que isso é óbvio - confirmou Carter.
Quando os investigadores se foram embora, Phillip Carter tentou, sem grande sucesso, concentrar-se no trabalho que tinha em cima da secretária. Depressa se apercebeu
de que as únicas chamadas recebidas naquele dia tinham sido dos media. A Collins e Carter não recebera uma única chamada de clientes.
MEGHAN entrou sorrateiramente na Igreja St. Dominic ao meio-dia e meia, a meio da missa por alma de Helene Petrovic. A igreja estava quase vazia. Foi uma
cerimónia simples, sem flores nem música.
Estavam presentes um grupo de vizinhos de Lawrenceville e umas quantas senhoras da Associação Romena. Stephanie estava sentada ao pé do advogado,
e quando iam a sair da igreja, Meghan apresen tou-se. A jovem pareceu contente por a ver.
- Deixe-me só despedir-me destas pessoas - disse Stephanie. - Já vou ter consigo.
Meghan ficou a olhar enquanto as pessoas lhe davam baixinho e delicadamente os pêsames. Aproximou-se de duas mulheres que acabavam de sair da igreja.
- Conheciam bem Helene Petrovic? - perguntou ela.
- Tão bem como qualquer outra pessoa - respondeu uma delas amavelmente. - Algumas de nós costumamos ir juntas a concertos. Helene às vezes ia connosco.
- Ela tinha alguma amiga íntima?
A outra mulher abanou a cabeça.
- Helene era muito metida consigo.
- E amigos?
Ambas abanaram a cabeça.
- Se tinha algum amigo especial, nunca nos falou nisso.
Meghan reparou que Stephanie estava a despedir-se das últimas pessoas que tinham saído da igreja. Quando se aproximou dela, o advogado foi-se embora, aconselhando-a
mais uma vez a não falar com repórteres.
Meghan agarrou no braço da jovem enquanto desciam as escadas.
- São muito íngremes.
- E eu estou tão desajeitada agora que passo a vida a atrapalhar-me a mim mesma.
- Estamos no seu território - disse Meghan quando entraram no carro. - Onde é que quer ir almoçar?
- Importa-se que voltemos para casa? As pessoas deixaram lá tanta comida, e eu estou tão cansada!
- Claro que não me importo.
Quando chegaram a casa, Meghan insistiu para que Stephanie descansasse enquanto ela preparava o almoço. Ao arranjar um prato de frango frio e salada, olhou
à sua volta. A cozinha estava decorada estilo campestre francês. Os electrodomésticos eram modelos de topo de gama. A mesa redonda e as cadeiras de carvalho eram
peças de antiquário. Era óbvio que tinha sido necessário muito cuidado e dinheiro para aquela decoração.
Almoçaram na casa de jantar, onde as cadeiras de braços estofadas à volta da mesa também tinham sido caras. A mesa brilhava com a platina da boa mobília
antiga. De onde viria o dinheiro?
Meghan não teve de fazer perguntas. Stephanie, ansiosíssima por falar dos seus problemas, disse:
- Vão vender esta casa. Todo o dinheiro da venda e os oitocentos mil dólares vão para a clínica. É tão injusto! A minha tia prometeu alterar o testamento.
Sou a sua única familiar.
- E o pai do bebé? Ele pode ser obrigado a ajudá-la. Stephanie hesitou, mas depois declarou:
- Não quero ter nada a ver com ele. Vou dar o bebé para adopção, é a única maneira.
- Pode não ser a única maneira. Tem o direito de ser ajudada. Como é que ele se chama? Onde é que o conheceu?
- Eu... eú conheci-o numa festa de romenos em Nova Iorque. Chama-se Jan.
- Disse-lhe que estava grávida? - perguntou Meghan.
- Ele telefonou a dizer que se ia mudar para a Califórnia, e eu contei- lhe. - Olhou para baixo. - Ele respondeu-me que o problema era meu.
- O que é que ele faz?
- É... é mecânico. Por favor, Miss Collins, eu não quero ter nada a ver com ele. Tenho medo dele. Ficou tão furioso!
- Furioso porque lhe disse que ele era o pai do seu bebé?
- Não me faça mais perguntas sobre ele! - Stephanie empurrou a cadeira. - Disse que me ia ajudar. Então, arranje quem queira o bebé e me dê dinheiro.
- Desculpe, Stephanie. A última coisa que eu aqui vim fazer foi aburrecê-la. Vamos beber um chá - disse Meghan num tom contrito.
Na sala de estar, pôs outra almofada atrás das costas de Stephanie e puxou um banco para ela pousar os pés.
Stephanie esboçou um sorriso de desculpas.
- É muito simpática. Eu fui muito desagradável consigo. Mas é que aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo..
- Stephanie, com certeza que a sua tia tinha um amigo que pode ajudá-la a arranjar um cartão de residência. Não há ninguém que lhe devesse um favor a ela?
Stephanie pareceu mais aliviada.
- Ah, sim, realmente pode ser que haja alguém. Obrigada, Meghan. - Subitamente, ficou nervosa e não falou mais no assunto.
ERAM 2 DA TARDE. Bernie levara um freguês do Aeroporto Kennedy a Bronxville. Quando saiu da via rápida, deu por si a virar para norte. Tinha de regressar
a Newtown.
Não estava carro nenhum no carreiro de acesso à casa de Meghan. Percorreu a rua até ao beco sem saída, depois deu meia volta. Voltou a passar em frente
à casa e depois em frente à Estalagem Drumdoe.
Espera lá?? pensou ele. ??Esta é a estalagem da mãe dela. Lera aquilo no jornal na véspera. Fez rapidamente inversão de marcha e virou para o parque de
estacionamento. ??Tem de haver um bar. Talvez possa beber uma cerveja e até pedir uma sanduíche.
O hall de entrada era de tamanho médio, com paredes apaineladas a madeira e um tapete aos quadrados azuis e encarnados. À direita, viu pessoas na casa de
jantar. O bar era à esquerda. Viu que não estava lá ninguém para além do barmun. Entrou, sentou-se num banco ao balcão e pediu uma cerveja e um hamburger.
Entraram dois homens e sentaram-se. o barman atendeu-os. Bernie olhou em volta enquanto comia o hamburger e bebia a cerveja. As janelas das traseiras davam
para o parque de estacionamento. Ao fundo deste havia uma zona arborizada que se estendia até às traseiras da casa dos Collins.
Bernie teve uma ideia interessante: se viesse à noite, podia deixar o carro no parque de estacionamento e enfiar-se na mata. Talvez de lá pudesse tirar
fotografias a Meghan em casa. Tinha lentes de zoom.
Perguntou ao barman se tinham guarda no parque de estacionamento.
- Só às sextas e sábados à noite - disse-lhe ele.
Bernie fez um aceno de cabeça e decidiu que voltava no domingo à noite.
MEGHanN despediu-se de Stephanie Petrovic às 2 horas. À porta disse:
- Eu mantenho-me em contacto consigo. É muito duro ter o primeiro filho sem ninguém chegado por perto.
- Estou a ficar com medo - admitiu Stephanie.
A imagem do seu rosto jovem perturbado ficou gravada na mente de Meghan. Porque se mostraria Stephanie tão determinada em não tentar que o pai sustentasse
a criança?
Havia um sítio onde Meghan queria passar antes de ir para casa: Lawrenceville não ficava longe de Trenton, onde Helene Petrovic trabalhara como secretária
no Centro de Inseminação Artificial Dowling. Talvez alguém se lembrasse dela, embora tivesse de lá saído há seis anos para ir para a Clínica Manning.
O Centro Dowling era num pequeno edifício ligado ao Hospital Valley Memorial. Na recepção havia apenas uma secretária e uma cadeira. Aquele lugar não tinha
obviamente nada a ver com a clientela da Clínica Manning.
A directora era uma mulher bonita, de cabelo grisalho, com cerca de cinquenta anos. Quando levaram Meghan ao seu gabinete, ela apresentou-se dizendo que
era a Dra. Keating. Tinha o processo de Helene Petrovic na gaveta.
- O procurador-geral do Connecticut mandou pedir uma cópia deste dossier há dois dias - comentou ela.
O dossier continha informações que já tinham sido divulgadas pelos jornais. Na sua candidatura ao Centro Dowling, Helene Petrovic dissera a verdade. Candidatara-se
ao lugar de secretária, mencionando a experiência profissional no campo da cosmética e citando o certificado recentemente adquirido na Escola de Secretariado Woods,
em Nova Iorque.
- As referências foram confirmadas - disse a Dra. Keating a Meghan. - Helene tinha uma presença agradável e era educada. Contratei-a e não tive razões de
queixa dela durante os três anos que cá trabalhou.
- Quando se foi embora, disse- lhe que ia para a Clínica Manning? - perguntou Meghan.
- Não, disse-me que planeava aceitar novamente um emprego de esteticista em Nova Iorque. Disse-me que uma amiga dela ia abrir um salão.
- Dra. Keating, Helene Petrovic conseguiu enganar o corpo clínico na Clínica Manning. Onde é que acha que adquiriu os conhecimentos necessários para tratar
dos embriões criopreservados?
A médica franziu o sobrolho.
- Helene estava fascinada com a medicina e com o método de inseminação artificial. Ela costumava ler livros de medicina quando não tinha trabalho e visitava
muitas vezes o laboratório.
- Então acha que adquiriu os conhecimentos sobre medicina através de observação e leitura? ?
- É difícil acreditar nisso, mas é a única explicação que encontro.
- Doutora, todos me dizem que Helene Petrovic era muito simpática, muito respeitada, mas solitária. Isso também se passava aqui?
- Tanto quanto sei, acho que sim.
- Tinha amigos?
- Eu sempre suspeitei de que ela andava com alguém do hospital. Muitas vezes quando se ausentava da secretária uma das raparigas atendia o telefone. Começaram a
brincar com ela por causa do seu Dr. Kildare. Ao que parece, o recado era para ligar para alguém do hospital, mas agora não saberia dizer qual o nome. Isto passou-se
há algum tempo.
- É claro. - Meghan levantou-se. - Sra. Doutora, foi muito amável. Muito obrigada pela sua ajuda.
Quando ia a entrar no carro, Meghan estudou a impressionante estrutura de vários ?andares do Hospital Valley Memorial. Seria possível que atrás daquelas
paredes houvesse um médico que ajudara Helene Petrovic a planear a perigosa fraude?
MEGHAN estava a sair da Estrada n.o 7 quando ouviu o sinal horário das 5 horas no rádio. Aumentou o volume e ouviu o noticiário da WPCD.
O procurador-geral-adjunto, John Dwyer, confirmou que o carro que Edwin Collins conduzia na noite da tragédia da Ponte Tappan Zee em Janeiro foi
localizado em frente ao apartamento da filha, em Manhattan. Os testes efectuados pelo departamento de balística revelaram que a sua arma, encontrada no carro, foi
a arma que vitimou Helene Petrovic. Acaba de ser emitido um mandado de captura em nome de Edwin Collins por suspeita de homicídio.
NA SEXTA-FEIRA à nOite, quando Dina Anderson eStava a
deitar o filho de três anos, abraçou-o e disse-lhe:
- Jonathan, acho que o teu irmão gémeo não vai esperar até segunda- feira para nascer.
- Como é que isso vai, minha querida? - perguntou-lhe o marido. - Ela estremeceu.
- Estou a ter contracções de cinco em cinco minutos.
- É melhor avisar o médico.
Meia hora depois, Dina Anderson estava a ser examinada no Centro Médico de Danbury.
- Quer acreditar que as contracções pararam?
- perguntou ela, aborrecida.
- Vai cá ficar - disse-lhe o obstetra. - Se não acontecer nada durante a noite pomo-la a soro para provocar o parto de manhã. Não Pode ir para casa.
Dina puxou o rosto do marido para baixo para lhe dar um beijo.
- Não fiques com esse ar tão preocupado, pai. Ah, e telefona a Meghan Collins a avisar que Ryan já cá deve estar fora amanhã. Não te esqueças de trazer as fotografias
de Jonathan em recém-nascido. Ela vai mostrá-las a par com o bebé para toda a gente ver que são exactamente iguais.
NA MANHã seguinte, Meghan e Steve, o operador de câmara, estavam no átrio do hospital à espera que lhes viessem dizer que Ryen tinha nascido.
Meghan observou a actividade no átrio. Uma enfermeira empurrava uma cadeira de rodas com uma mãe com o filho ao colo até à porta da rua. O marido vinha atrás, atrapalhado
com as malas e os ramos de flores de um dos quais saía um balão que dizia: ??É uma rapariga.
- É o Dr. Manning que ali vem. Não Sei se já nasceu o filho dos Andersons?
NA SALA de partos, um choro vigoroso fez despontar um sorriso nos rostos dos médicos, das enfermeiras e dos Andersons. Dina, pálida e exausta, olhou para
o marido e, vendo o choque estampado no seu rosto, soergueu- se e gritou:
- Ele está bem? Deixem-me vê-lo.
- Está óptimo, Dina - disse o médico, levantando o bebé ruivo que chorava.
- Esse não é o gémeo de Jonathan! - gritou Dina. - De quem
será o bebé que andou aqui dentro de mim?
- CHovE sempre ao sábado - resmungou Kyle enquanto mudava ? de canal para canal. Estava sentado de pernas cruzadas no tapete, com Jake a seu lado.
Mac estava absorvido a ler um matutino.
- Nem sempre - disse ele, distraído. Olhou para o relógio e disse: - É quase meio-dia. - Põe no Canal 3. Quero ver as notícias.
- Está bem. - Kyle carregou no telecomando. - Olha, é a Meg.
Ela estava no átrio de um hospital, de frente para a câmara.
- Há novos elementos assustadores no caso da Clínica Manning, Depois do homícidio de Helene Petrovic e da descoberta da falsidade das habilitações que dizia
possuir, tem sido uma preocupação o facto de Mrs. Petrovic ter eventualmente cometido graves erros ao manusear os embriões criopreservados. Há uma hora atrás, aqui
no Centro Médico de Danbury, nasceu um bebé, que se esperava fosse gémeo do irmão de três anos. Tenho aqui comigo o Dr. Allan Neitzer, o obstetra que acaba de assistir
ao parto de Dina Anderson.
- Sr. Doutor, fale-nos do bebé.
- O bebé é um rapaz saudável com três quilos e seiscentos.
- Mas não é o gémeo do filho de três anos dos Andersons?
- Não, não é.
- É filho biológico de Dina Anderson?
- Só os testes ao ADN é que poderão determinar.
- Como é que os Andersons estão a reagir?
- Estão muito perturbados. Muito preocupados.
- O Dr. Manning esteve cá. Ele esteve com os pais?
- Não posso fazer comentários sobre isso.
- Obrigada, Sr. Doutor, vamos continuar a acompanhar este caso por esclarecer. A emissão passa novamente para ti, para o estúdio, Mike.
- Desliga isso, Kyle - disse Mac.
Kyle carregou no botão do telecomando e perguntou:
- O que é que aquilo quer dizer?
Quer dizer grandes sarilhos, pensou Mac. ??Quantos erros mais terá Helene Petrovic cometido na clínica?
Mac olhou para Kyle. Qual será a sensação de se olhar para um filho e pensar-se que pode não ser nosso?
MEGHAN e o operador de câmara estavam sentados no átrio do Centro Médico de Danbury. Steve parecia perceber que ela não tinha vontade de falar. Nem Donald
Anderson nem o Dr. Maning tinham descido ainda.
- Meg, achas que Manning vai prestar declarações? - perguntou Steve.
- Se eu fosse a ele, estaria a falar com os meus advogados.
O beeper de Meghan tocou, ela agarrou no telefone celular, falou para a redacção e disseram-lhe que Tom Weicker queria falar com ela. Weicker foi direito
ao assunto.
- Meg, mandei um repórter substituir-te. Dennis Cimini não deve tardar a aparecer por aí.
Ela não ficou surpreendida. A reportagem especial sobre os gémeos a nascer com três anos de intervalo tinha-se transformado numa história importante. Estava
agora relacionada com o escândalo da Clínica Manning e o homicídio de Helene Petrovic.
- Está bem, Tom.
Ela pressentiu que não era tudo.
- Meg, as autoridades do Connecticut souberam da jovem morta que se parecia contigo. Temos de revelar a história. As outras estações já a têm.
- Eu compreendo.
- A partir de agora, estás de licença. Paga, é claro. Lamento muito.
- Eu sei, Tom. Obrigada.
Desligou. Dennis Cimini vinha a entrar pela porta giratória.
IA HAVER um leilão de terrenos junto à fronteira de Rhode Island.
Phillip Carter planeara lá dar um salto.
Estava a precisar de se afastar do escritório algum tempo. Os meios de comunicação social tinham estado omnipresentes, os investigadores não paravam de
entrar e sair, o apresentador de um tulk-show chegara a convidá-lo a participar num programa sobre pessoas desaparecidas.
No sábado, pouco antes do meio-dia, Carter estava à porta de sua casa quando o telefone tocou. Pegou no auscultador. Era Victor Orsini.
- Phillip, eu estava com a televisão ligada. A coisa estoirou. Acaba de nascer o primeiro erro conhecido de Helene Petrovic na Clínica Manning. Até que
ponto é que o seguro da firma poderá cobrir isto?
Carter sentiu o sangue gelar-lhe nas veias enquanto Orsini explicava.
- Não há seguro no Mundo que cubra isso - disse Carter em voz baixa ao desligar.
??Convencemo-nos de que temos tudo sob controle, mas nunca temos, pensou ele. O pânico não era uma emoção que lhe fosse familiar, mas as coisas estavam a
ficar feias.
Já não se punha a hipótese do passeio até ao campo. Podia telefonar a Meg e Catherine mais tarde. Talvez pudesse ir jantar com elas. ?
NO SÁBADO à noite, Dina Anderson dormitava sob o efeito de se dativos, com Jonathan a seu lado, no Centro Médico de Danbury. O marido e a mãe dela estavam
sentados em silêncio ao lado da cama. O Dr. Neitzer, o obstetra, apareceu à porta e fez sinal a Don, que foi lá fora.
- Alguma novidade?
O médico acenou que sim.
- E boa espero. Ao analisarmos o seu tipo de sangue, o da sua mulher e o do bebé, descobrimos que este último podia muito bem ser o vosso filho biológico.
Você é A positivo, a sua mulher, O negativo, e o bebé, O positivo.
- Não sei o que pensar - disse Don. - A mãe de Dina jura que o bebé se parece com o irmão dela quando nasceu. Há ruivos daquele lado da família.
- A análise do ADN vai determinar com toda a certeza se o bebé é ou não biologicamente vosso, mas leva no mínimo quatro semanas.
- Don, onde estás? - chamou uma voz fraca.
Don Andereon e o Dr. Neitzer entraram novamente no quarto. Dina e Jonathan estavam acordados. Ela disse:
- Jonathan quer ver o irmão.
- Minha querida, eu não sei...
- Mas sei eu. Carreguei aquele bebé durante nove meses. Durante os primeiros três perdi sangue e fiquei apavorada com a ideia de o perder. A primeira vez
que senti vida fiquei tão contente que até chorei. Aquele miúdo dava-me tantos pontapés que não durmo como deve ser há vários meses. Quer seja ou não meu filho biológico,
calhou-me e eu quero-o.
- Querida, as análises de sangue revelaram que pode mesmo ser nosso filho.
- Óptimo. Agora, por favor, manda alguém trazer-me o bebé.
Às 14.30 o Dr. MANNING entrou no auditório do hospital acompanhado do advogado e de um funcionário do hospital. Este último anunciou com firmeza:
- O Dr. Manning vai ler uma declaração escrita e não responde a perguntas.
O rosto bondoso do Dr. Manning estava tenso quando pôs os óculos e começou a ler em voz rouca.
- Só me resta pedir desculpa pelos momentos de angústia por que a família Anderson está a passar. Acredito veementemente que Mrs. Anderson deu hoje à luz
um filho biológico, pois tinha dois embriões criopreservados no laboratório da nossa clínica. Um era o gémeo verdadeiro do seu filho Jonathan; o outro, apenas irmão.
Na segunda-feira passada, Helene Petrovic confessou-me que se verificara um acidente no laboratório na altura em que ela manuseava os recipientes que continham
aqueles dois embriões. Ela escorregou e caiu, a sua mão bateu num deles e entornou-o antes de os embriões serem transferidos para os tubos de ensaio. Ela estava
convencida de que o outro recipiente continha o gémeo e colocou-o no tubo especialmente identificado. O outro embrião perdeu-se. Se Helene Petrovic tiver contado
a verdade, Dina Anderson deu hoje à luz um filho que é seu.
Foi bombardeado com perguntas, mas ignurou-as a todas e saiu da sála em passo vacilante.
VICtor ORsini telefonou a Phillip Carter depois do noticiário de sábado à noite.
- Se não tiveres planos para hoje à noite, não queres vir jantar comigu? Há um velho ditado que diz: ??A tristeza gosta de companhia.?
- Mas já tenho planus, vou encontrar-me com Catherine e Meg Collins.
- Dá-lhes cumprimentos meus. Até segunda-feira.
Orsini desligou. Com o telefonema que fizera a Phillip conseguira ? obter a informação que desejava: Carter estaria ocupado naquela noite. Victor podia agora examinar
os dossiers pessoais no gabinete de Edwin Collins.
MeGHanN, Mac e Phillip encontraram-se para jantar na Estalagem Drumdoe às 7.30. Catherine estava na cozinha, de onde não saía desde as 4.
- A tua mãe tem coragem - disse Mac.
- Podes crer - concordou Meg. - Viste o noticiário do final da tarde? Eu vi a PCD, e a notícia principal foi a minha parecença com aquela mulher que está
na morgue e o mandado de captura do meu pai.
- Eu sei - disse Mac em voz baixa.
Phillip levantou a mão num gesto de impotência.
- Meg, farei tudo o que estiver ao meu alcance para te ajudar a ti e à tua mãe. Ela não está a planear ocupar-se indefinidamente da cozinha pois não? -
protestou ele.
- Não. O chefe que se reformou no Verão passado telefonou e ofereceu-se para ajudar durante uns tempos. Eu disse-lhe que seria maravilhoso, mas avisei-o
para não assumir as rédeas. Quanto mais ocupada a minha mãe estiver, melhor é para ela.
Meghan sentiu que Mac olhava para ela e baixou os olhos para não ver a compaixão estampada nos olhos dele. Sabia que naquela noite toda a gente olharia
para ela para ver como é que se aguentava e decidira deliberadamente vestir-se de encarnado. Também se maquilhara cuidadosamente com blush, bâton e sombra. ??Acho
que não pareço uma repórter desempregada, decidiu ela.
Mac pedira vinho. Quando este foi servido, ele levantou o copo e olhou para ela.
- Tenho uma mensagem de Kyle. Disse-me para te avisar de que vai a tua casa pregar-te um susto amanhã.
Meg sorriu.
- É claro. É o dia das bruxas. De que é que Kyle se vai mascarar?
- Muito original. Vai de fantasma... um fantasma assustador, ou pelo menos é o que ele diz. Vou levá-lo com uns amigos para a ronda de porta em porta amanhã
à tarde, mas ele quer guardar-te para a noite; Portanto, se ouvires bater à janela depois de escurecer, já sabes.
- Tenho de chegar a casa a tempo. Olhem, lá vem a minha mãe.
Catherine manteve um sorriso nos lábios enquanto atravessava a casa de jantar. As pessoas nas mesas faziam-na parar constantemente, levantando-se e cumprimentando-a.
Quando chegou junto deles, disse:
- Estou tão contente por termos vindo! É muito melhor que ficar sentada em casa a pensar.
- Estás maravilhosa - disse Phillip Carter. - És realmente uma heroína.
A admiração nos seus olhos não escapou a Meg, que pensou: ? ?Cuidado Phillip. Não pressione a minha mãe.
Olhou para os anéis da mãe sob o pequeno candeeiro de mesa. Ao fim da tarde, a mãe dissera-lhe que tencionava empenhar ou vender as jóias na segunda-feira.
Era preciso pagar os juros sobre a hipoteca da estalagem na próxima semana.
Durante o jantar, Meg ficou grata por Mac e Phillip terem levado a conversa para assuntos seguros - desde a proposta de pavimentar as ruas locais à equipa
de futebol americano de Kyle apurada para o campeonato.
Enquanto bebiam um cappuccino, Meg disse:
- Phillip, ainda não fui lá esvaziar o gabinete do meu pai. Importa-se que lá vá amanhã?
- Vai quando quiseres.
- Telefona-me quando acabares, Meg - disse Mac. - Eu vou lá e carrego as coisas para o carro.
- Amanhã vais com Kyle à ronda pelas portas - lembrou-lhe ela, sorrindo. - Eu cá me arranjo.
EM SCOTTSDALE, no Arizona, Frances Grolier suspirou ao pousar o estilete com cabo de madeira de pereira. Tinha recebido uma encomenda para fazer um bronze
de quarenta centímetros de um rapaz e de uma rapariga navajos. O prazo estava quase a expirar, e ela não estava nada satisfeita com o modelo de barro em que trabalhara.
Não conseguia concentrar-se.
Annie. Há já quase duas semanas que não tinha notícias da filha. Todas as mensagens que deixara no gravador tinham sido ignoradas. Telefonara às melhores
amigas de Annie: ninguém a tinha visto.
Podia estar em qualquer sítio, pensou Frances. Podia ter aceitado uma proposta para fazer um artigo lá para casa do diabo. Como escritora de viagens free-lance,
Annie ia e vinha sem prazos preestabelecidos.
Era inútil tentar trabalhar mais hoje à noite. Aproximou-se da lareira e deitou-lhe umas achas do cesto. A noite do deserto estava muito fria. A casa estava
tão silenciosa. Poderia nunca mais voltar a sentir o
palpitar do coração de expectativa por saber que ele viria em breve. Ao lembrar-se, Frances foi à cozinha, pôs gelo num copo e serviu-se de uma dose generosa de
whisky.
Ao instalar-se no sofá com a bebida, pegou na notícia da Associated Press que arrancara da página 10 do matutino, um resumo do acidente da Ponte Tappan
Zee. Lia-se a dada altura:
O número de vítimas que faleceram desceu de oito para sete. As buscas exaustivas não revelaram vestígios do corpo de Edwin R. Collins nem destroços do seu carro.
Agora, Frances era perseguida pela pergunta: ??Será possível que Edwin ainda esteja vivo??? Ele estava tão preocupado com os negócios na manhã em que se
fora embora... Ele sentia um medo crescente de que a sua vida dupla fosse exposta e que ambas as filhas o desprezassem.
Dera a Frances uma acção ao portador de duzentos mil dólares em Dezembro.
??Para o caso de me acontecer alguma coisa, dissera ele. Estaria ele a planear abandonar ambas as vidas quando o dissera? E onde estaria Annie? Frances estava
de cabeça perdida. Edwin tinha um atendedor de chamadas no seu gabinete privado: Ao longo dos anos, o combinado era que, se Frances precisasse de o contactar telefonaria
entre a meia-noite e as 5 da manhã, pela hora da costa leste. Ele via sempre se tinha chamadas às 6 e depois apagava-as.
Era claro que o número estava desligado. Ou não estaria? Passavam poucos minutos das 10 no Arizona, passava da meia-noite na costa? leste.
Frances ligou. O telefone tocou duas vezes, depois ouviu-se a mensagem de Ed no gravador:
- Ligou o 203-555-2867.
Sobressaltou-se ao ouvir a voz dele. Deixou rapidamente a mensagem que tinham combinado.
- Mr. Collins, por favor, telefone para a Loja de Couros Palomino. Se ainda continua interessado na pasta, nós já a temos em armazém.
VICTOR ORSINI estava no escritório de Edwin Collins a examinar os dossiers quando o telefone directo tocou. Ele deu um salto. Quem é que telefonaria para
um escritório àquela hora?
O gravador de chamadas fez clique. Orsini ouviu a voz monocórdica a deixar a breve mensagem. Quando desligaram, Orsini ficou um bocado a olhar fixamente
para a máquina. Isto é código, pensou ele. Saiu passados poucos minutos. Não encontrara o que tinha vindo procurar.
No domingo de manhã Catherine Collins foi à missa em St. Paul, mas foi-lhe difícil concentrar-se na homilia.
Rezara muitas vezes na missa para que o corpo de Edwin fosse encontrado e para ter forças para continuar a viver sem ele.
O que pediria a Deus agora? Apenas que protegesse Meg. Olhou para Meg, sentada a seu lado, aparentemente atenta à homilia, mas Catherine suspeitava que
os pensamentos dela também estavam longe dali.
Quando saíram da igreja, pararam para beber um café e comer pãezinhos de leite na pastelaria.
- Vou contigo esvaziar o gabinete do pai - disse Catherine alegremente. - Será mais rápido se formos as duas.
Haviam ido em carros separados, mas a voz da mãe tinha aquele tom peremptório que Meghan sabia não admitir discussão.
O carro de Meghan estava cheio de caixotes para empacotar coisas. Ela e a mãe levaram-nos para o edifício. Quando abriram a porta do andar da Collins e
Carter, ficaram surpreendidas por ver que estava aquecido e as luzes acesas.
- Aposto que Phillip veio mais cedo para preparar as coisasdisse Catherine, enquanto Meghan abria a porta do gabinete do pai.
Ficaram ambas a olhar durante muito tempo para a sala - a secretária e, atrás desta, a mesa comprida com as fotografias delas; o móvel de parede com prateleiras
e armários de arquivo com o mesmo revestimento de cerejeira da secretária.
Começaram por pegar nas fotografias e enfiá-las num dos caixotes. Meghan sabia que ambas tinham a sensação de que quanto mais depressa o gabinete ficasse
com um ar impessoal, mais fácil seria. Depois, sugeriu:
- Mãe, porque não começa pelos livros. Eu trato da secretária e dos dossiers.
Quando Meghan se sentou à secretária, viu que a luz do gravador de chamadas, que se encontrava numa mesa baixa, estava a piscar.
- Olha só.
A mãe aproximou-se da secretária.
- Ainda deixam mensagens no gravador do pai? - perguntou ela, incrédula, e depois debruçou-se para olhar para o mostrador. - Só há uma. Vamos ouvi-la.
Ouviram, completamente incrédulas, a mensagem e depois a voz da máquina dizer:
?21 de Outubro, vinte e quatro horas e nove minutos.??
- Esta mensagem chegou apenas há umas horas! - exclamou Catherine. - Quem é que deixa uma mensagem de negócios a meio da noite? E quando é que o pai terá
encomendado uma pasta?
- Pode ser um engano - disse Meghan. - Quem quer que foi não deixou nem número de telefone nem nome. - Tirou a cassete do gravador e pô-la na sua carteira.
- Isto não faz sentido. Bom, vamos continuar a arrumar as coisas e depois voltamos a ouvi-la em casa.
Transferiu rapidamente o conteúdo da secretária para caixotes e depois agarrou nos dossiers. O primeiro parecia conter cópias dos relatórios de despesas
do pai.
- Vou levar estes dossiers pessoais para casa - disse ela.
- Pode haver alguma referência à Loja de Couros Palomino. Estavam a acabar o último caixote quando ouviram a porta da rua abrir-se.
- Sou eu - gritou Phillip da entrada. - Sabia que iam precisar de ajuda. Catherine, pousa esse caixote com livros, por favor.
- O meu pai chamava à minha mãe Tarzan - disse Meg.
Foi uma sorte tanto ela como a mãe terem levado carro. Os porta -bagagens e assentos traseiros ficaram cheios depois de terem levado todos os caixotes para baixo.
Recusaram a oferta de Phillip para as ir ajudar a descarregar.
A caminho de casa, Meghan sabia que todas as horas que não passasse à procura de informações sobre Helene Petrovic seriam gastas a ler todas as linhas de
todas as páginas dos arquivos do pai. ??Se havia outra pessoa na vida do pai??, pensou ela, ??pode ser que haja alguma coisa nos seus dossiers que me leve até ela.??
Aos olhos de Kyle, a ronda pelas casas tinha sido absolutamente maravilhosa. No domingo à noite, espalhou no chão a colecção de guloseimas sortidas, bolachas,
maçãs e moedas que recolhera enquanto Mac preparava o jantar.
- Não comas nenhuma dessas porcarias agora - preveniu-o Mac enquanto tirava os hamburgers do grelhador e os punha no pão torrado. - Agora come, se queres
voltar a vestir a máscara para assustares Meg.
Kyle aproximou-se e deu umas trincadelas.
- O pai gosta da Meg?
- Sim, gosto muito. Porquê?
- Eu gostava que ela viesse cá mais vezes. É divertida. Eu também gostava que ela viesse cá mais vezes??, pensou Mac.
Eram 7.30 quando Kyle achou que estava suficientemente escuro lá fora para fantasmas.
- Aposto que estão mesmo fantasmas lá fora - disse ele.
Dobraram a esquina e chegaram a casa dos Collins.
- Agora, pai, espere aqui ao pé da sebe. Eu vou pelas traseiras, bato à janela e uivo. Está bem?
- Está bem. Não assustes muito a Meg.
Balouçando a lanterna em forma de caveira, Kyle correu até às traseiras da casa. As persianas da sala de jantar estavam levantadas, e ele viu Meg sentada
à mesa com uma data de papéis à frente. Ia até à orla da mata e vinha de lá a correr aos gritos, ??uuuuh, uuuuh !?? Depois, batia à janela. Ela ia assustar-se.
Pôs-se entre duas árvores, esticou os braços e começou a abaná -los. Quando levou a mão direita atrás, tocou em pele... pele macia .. depois numa orelha.
Ouviu a respiração de uma pessoa. Ao virar a cabeça, deparou com um homem de cócoras atrás dele e a luz reflectida numa lente de máquina de filmar. Sentiu uma mão
agarrar-lhe no pescoço.
Kyle contorceu-se, conseguiu libertar-se e desatou a gritar. Depois, foi violentamente empurrado para a frente. Ao cair, largou a lanterna e desatou a esgatanhar
o solo. Agarrou em qualquer coisa. Levantou-se ainda aos gritos e correu para a casa.
??Mas que grito tão realista, pensou Mac quando ouviu pela primeira vez o grito de Kyle. Depois, quando o grito de terror continuou, ele largou a correr
em direcção à mata. Acontecera qualquer coisa a Kyle. Mac atravessou rapidamente o relvado e correu até às traseiras da casa.
Meg ouviu o grito na sala de jantar e correu para a porta das traseiras. Abriu-a com um puxão e agarrou em Kyle, que entrou cambaleante e lhe caiu nos braços,
soluçando de terror.
Foi assim que Mac os encontrou, abraçados, Meg a embalar o filho para trás e para a frente, tentando acalmá-lo.
- Pronto, já passou. Já passou, Kyle - repetia ela. O garoto levou alguns minutos a conseguir contar-lhes o que acontecera.
- Estava lá um homem e tinha uma máquina de filmar. Caí quando ele me empurrou, mas apanhei uma coisa. Depois, deixei-a cair quando vi Meg. Vá lá ver o
que era, pai.
Mac foi lá fora e começou a examinar o chão à luz da lanterna. Não teve de ir longe. Apenas a alguns centímetros do alpendre das traseiras, encontrou uma
caixa de plástico cinzenta que parecia de uma cassete de vídeo.
Pegou nela e foi até à mata, apontando a lanterna à sua frente. O chão era demasiado duro para se verem pegadas, mas encontrou a lanterna de Kyle precisamente
na direcção das janelas da casa de jantar. Dali via perfeitamente Meg e Kyle.
Alguém estivera ali com uma máquina de filmar a observar Meg e talvez a filmá-la. Porquê? Mac atravessou novamente o relvado em direcção à casa.
??AQuELe estúpido miúdo!, pensou Bernie enquanto atravessava a mata a correr até ao carro. Estacionara-o ao fundo do parque de estacionamento da Estalagem
Drumdoe. Atirou a máquina para o porta-bagagem e partiu em direcção à Estrada n.o 7.
O miúdo teria tido tempo de olhar bem para ele? Achava que não. Estava escuro, e o miúdo, muito assustado. Bernie sentia- se furioso. Divertira-se imenso
a observar Meghan através da máquina de filmar e conseguia vê-la tão bem. Tinha a certeza de que as cassetes deviam estar óptimas.
Por outro lado, nunca vira ninguém tão assustado como o miúdo ficara. Bernie sentia-se a palpitar, vivo, e como se tivesse ganho novas energias. Ter aquele
poder todo! Observar Meghan - as mãos dela, o cabelo..
Quando Stephanie Petrovic acordou no domingo de
manhã, abriu os olhos preguiçosamente e sorriu. As coisas estavam finalmente a compor-se. Fora avisada para nunca mencionar o nome dele, para esquecer que
o conhecera, mas isso havia sido antes de Helene ter sido assassinada e de ter perdido a oportunidade de alterar o testamento.
Ele fora tão amável ao telefone! Prometera tomar conta dela. Trataria de tudo para que o bebé fosse adoptado por pessoas que lhe pagariam cem mil dólares.
Também trataria de lhe arranjar um cartão de residência.
- Será falso, mas ninguém dará pela diferença - dissera ele.No entanto, sugiro que vás para um sítio onde ninguém te conheça.
Ele ia mandar um carro buscá-la naquele dia às 7 da tarde. Stephanie tomou um duche e vestiu-se com roupas de grávida. Depois, começou a fazer as malas.
Helene tinha malas de tapeçaria no armário. ??Porque é que não ficam para mim? pensou Stephanie. Quem é que merece mais que eu?
Quando voltasse às suas medidas normais, conseguiria usar as coisas de Helene, que vestia roupa clássica, mas cara. Stephanie examinou o armário e gavetas,
rejeitando apenas aquilo de que não gostava mesmo nada.
Helene tinha um pequeno cofre no chão do armário. Stephanie sabia onde ela guardava a combinação do segredo, por isso abriu-o. Não continha muitas jóias, mas havia
algumas peças boas que enfiou num nécessaire. Depois, passou revista à casa e escolheu umas estatuetas Dresden e objectos de prata para levar.
Mr. Potters, o advogado, telefonou às 5 horas.
- Talvez queira vir jantar comigo e a minha mulher, Stephanie?
- Ah, muito obrigada, mas vem cá uma pessoa da Sociedade Romena - disse ela.
- Óptimo. Só não queríamos que estivesse sozinha.
Não preciso da vossa ajuda, pensou Stephanie ao desligar. Agora, era altura de escrever a carta. Compôs três versões até se dar por satisfeita.
Caro Mr. Potters,
É com bastante alegria que lhe digo que foi Jan, o pai do meu filho, que me veiu visitar. Vamos casar e ele vai tomar conta de nós. Vou-me embora
com ele, que agora trabalha em Dallas. Amo muito o Jan e sei que o senhor vai ficar contente por mim.
Stephanie Petrovic
O carro veio buscá-la às 7 em ponto. O motorista levou-lhe as malas. Stephanie deixou o bilhete e a chave de casa na mesa da casa de jantar, fechou a porta
e partiu apressada no meio da escuridão.
NA SEGUNDA-FEIRA de manhã, Meghan telefonou a Stephanie, mas ninguém atendeu. Instalou-se na mesa da casa de jantar, onde começara a ler os dossiers de negócios
do pai.
Reparou imediatamente numa coisa. Tinha uma conta respeitante a cinco dias no Hotel Four Seasons, em Beverly Hills, de 23 a 28 de Janeiro, dia em que partira
para Newark e desaparecera. Depois dos dois primeiros dias, não havia extras na conta. ??Mesmo que fizesse a maior parte das refeições fora pensou Meghan, ??sempre
se pede o pequeno-almoço ou faz-se um telefonema... qualquer coisa. Anotou as datas em que não havia despesas extras, pensando que talvez aquilo se repetisse noutras
ocasiões.
Ao meio-dia, voltou a telefonar a Stephanie e ninguém atendeu. Às 2 horas, começou a ficar alarmada e telefonou para o advogado, Charles Potters. Ele assegurou-lhe
que Stephanie estava bem, pois falara com ela na noite anterior.
- Ainda bem! - exclamou Meghan. - Ela está muito assustada. Vou continuar a tentar, mas se falar com ela, não se importa de lhe pedir para me telefonar?
A mãe de Meghan fora à estalagem controlar o serviço de pequeno-almoço e almoço e regressou no preciso momento em que Meg terminava a conversa.
- Deixa-me ajudar-te - disse ela, sentando-se ao lado da filha.
- Até pode substituir-me - disse-lhe Meghan. - Tenho de ir ao meu apartamento buscar roupa e ver o co?reio.
Na noite anterior quando a mãe voltara da estalagem, Meghan contara-lhe o episódio do homem com a máquina de filmar que assustara Kyle.
- Tenho a certeza de que um daqueles programas duvidosos está a recolher material para uma história sobre nós e o pai - disse Meg. - Mandar alguém espiar-nos
é o método de trabalho deles.
Ela não permitira que Mac telefonasse à Polícia. Mostrou à mãe o que estava a fazer com os dossiers.
- Mãe, separe os recibos de hotéis em que não tenham sido cobradas despesas extras durante três ou quatro dias seguidos. Gostava de saber se só acontecia
quando o pai ia à Califórnia. - Ela não dissé que Los Angeles ficava a meia hora de Scottsdale.
- E quanto à Loja de Couros Palomino, não sei porquê, mas acho que já ouvi esse nome - disse Catherine.
Naquela mesma manhã, o Dr. George Manning foi interrogado no gabinete do procurador-geral-adjunto, John Dwyer. Os dois investigadores ficaram calados enquanto
o seu chefe conduzia o interrogatório.
- Sr. Doutor, pode explicar-nos porque não nos disse imediatamente que Helene Petrovic receava ter trocado os embriões Anderson? - perguntou Dwyer rispidamente.
- Porque ela não tinha a certeza. - Os ombros de George Manning descaíram, e a sua pele, normalmente de um rosa saudável, estava cor de cinza.
- Não foi um golpe duro para si quando Helene Petrovic não só se demitiu, como admitiu que poderia ter cometido um erro muito grave ?
- Foi um golpe devastador.
- Contudo, mesmo depois de ela ser encontrada morta, o senhor continuou a esconder o verdadeiro motivo que ela lhe invocara para se demitir. - Dwyer debruçou-se
sobre a secretária. - O que é que Ms. Petrovic lhe disse mais?
Manning juntou as mãos.
- Disse que tencionava vender a casa, que talvez fosse viver para França. Eu tive a certeza de que ela ia fugir.
- Fugir de quê, Sr. Doutor?
George Manning tinha consciência de que estava tudo acabado. Não podia continuar a proteger a clínica.
- Tive a sensação de que ela receava que, se o bebé Anderson não fosse o gémeo de Jonathan, isso daria azo a uma investigação que revelaria muitos erros
no laboratório.
- Sr. Doutor, também achava que ela iria alterar o testamento?
- Disse-me que lamentava, mas que isso seria necessário. Tencionava ficar muito tempo sem trabalhar, e agora tinha uma família em que pensar.
- Dr. Manning, quando é que falou pela última vez com Edwin Collins?
- Ele telefonou-me na véspera de desaparecer. - O Dr. Manning não estava a gostar da desconfiança que via nos olhos de Dwyer. - ? Foi o primeiro contacto
que tive com ele desde que colocara Helene Petrovic na minha clínica. ?
MEGHAN chegou ao seu prédio às 4 horas. A caixa de correio estava a abarrotar. Tirou todos os envelopes e publicidade, depois apanhou o elevador para o décimo
quarto andar.
Das janelas, via-se a Estátua da Liberdade. Naquele dia, a senhora parecia remota e formidável no meio das sombras formadas pelo sol de fim de tarde.
Scottsdale, Arizona. Meg olhou para as águas do porto de Nova Iorque e percebeu o que andava a incomodá-la: o Arizona ficava no ? Sudoeste, e Palomino soava-lhe
a Sudoeste.
Aproximou-se do telefone, ligou para as informações e pediu o indicativo da área de Scottsdale. Depois, ligou para as informações do Arizona.
Quando a telefonista atendeu, ela perguntou-lhe:
- Há algum número em nome de Edwin Collins ou E. R. Collins? Não havia.
Meg fez outra pergunta.
- E da Loja de Couros Palomino?
Seguiu-se uma pausa, depois a telefonista disse:
- Por favor, espere um momento que já lhe dou o número.
NA SEGUNDA-FEIRA ao fim da tarde, quando Mac chegou
a casa vindo do emprego, Kyle já voltara ao seu estado normal de alegria e informou o pai de que contara a todos os miúdos da escola o incidente com o tipo
na mata.
- Eles disseram que, se fossem eles, teriam ficado aterrados explicou ele, satisfeito. - Quando Kyle deu meia volta, Mac agarrou-lhe no braço.
- Kyle, espera aí. Deixa-me ver uma coisa.
Kyle trazia uma camisa de flanela aberta no pescoço. Mac puxou-a para trás, expondo nódoas negras, amareladas e roxas, na base do pescoço do filho.
- Isto foi ontem à noite?
- Eu disse ao pai que o tipo me tinha agarrado.
- Tu disseste que ele te tinha empurrado.
- Primeiro agarrou-me, mas eu consegui escapar-lhe. Mac praguejou baixinho. Ele pensava que o intruso da máquina só empurrara Kyle, mas afinal agarrara-o
pelo pescoço. As nódoas negras tinham sido feitas por dedos fortes.
Mac manteve o braço em torno dos ombros do filho enquanto ligava para a Polícia. Na noite anterior, acedera relutantemente ao pedido de Meghan para
não lhes telefonar.
- Mac, as coisas já estão bastante más mesmo sem darmos mais material à imprensa - dissera ela. - Acredita em mim, ainda alguém vai dizer que o meu
pai anda a rondar a casa.
Já permiti que Meg me mantivesse afastado disto por demasiado tempo, pensou Mac tristemente. ??Mas acabou. Aquele homem não era um simples operador de câmara.
Durante todo o caminho do apartamento até casa Meghan viera a consciencializar-se da verdade amarga. Sabia que já possuía praticamente a confirmação absoluta de
que o pai tinha uma segunda família no Arizona.
Telefonara para a Loja de Couros Palomino e falara com a dona. ? meg ficara atónita quando ela lhe mencionara a mensagem no gravador.
- O telefonema não foi feito daqui - dissera ela de imediato. Confirmou que tinha uma cliente casada com Mr. E. R. Collins, que tinha uma filha na casa dos
vinte anos, e depois recusara-se a dar mais informações pelo telefone.
Eram 7.30 quando Meg chegou a Newtown. Virou para casa e ficou surpreendida ao ver o Chrysler vermelho de Mac e um Cadillac desconhecido estacionados em
frente de casa. O que seria agora? Parou alarmada, desligou o carro e subiu a correr os degraus do átrio. A investigadora Arlene Weiss estava na sala com Catherine,
Mac e Kyle. O tom de voz de Mac não foi apologético quando contou a Meg o motivo que o levara a telefonar para a esquadra da zona e depois
para o gabinete do procurador-geral-adjunto. ??Kyle podia ter sido estrangulado por um lunático qualquer, e eu não deixei Mac avisar a Polícia, pensou Meg. Não
o culpava por estar zangado.
Kyle estava sentado no sofá. Deslizou dele e atravessou a sala para ir ter com ela.
- Meg, não fiques assim tão triste. Eu estou bem. A sério.
Ela abraçou-o.
- Aposto que sim, companheiro.
Arlene Weiss não se demorou.
- Miss Collins, quer acredite ou não, nós queremos ajudá-ladisse ela. - Podíamos ter mandado para cá um carro da Polícia ontem à noite se nos tivesse telefonado.
Por favor, se se lembrar de alguma coisa que ache que nos possa interessar, sabe como contactar-nos.
Quando Arlene Weiss se foi embora, Mac disse a Kyle:
- Vai para a salinha. Podes ver televisão durante quinze minutos. Depois, temos de ir.
Mac esperou até ouvir o clique da porta da salinha.
- O que é que descobriste enquanto estiveste no teu apartamento, Meghan?
Meg olhou para a mãe.
- A morada da Loja de Couros Palomino e que têm uma cliente chamada Mrs. E. R. Collins. - Ignorando o soluço pasmado da mãe, contou-lhes o telefonema para
Scottsdale e concluiu: - Vou lá amanhã de avião. Tenho de conhecer essa mulher.
Ficou grata por não tentarem dissuadi-la. Em vez disso, Mac disse:
- Meg, não contes a ninguém... a ninguém mesmo... onde vais. Quanto tempo contas lá ficar?
- Uma noite, no máximo.
Quando foi buscar Kyle, Mac disse:
- Catherine, se eu e Kyle formos amanhã à estalagem, não quer jantar connosco?
Catherine conseguiu fazer um sorriso.
- Será um prazer. O que é que queres que eu ponha na ementa, Kyle?
- Frango McNuggets? - perguntou ele esperançadamente.
- Queres dar-me cabo do negócio? Anda lá dentro. Eu trouxe umas bolachas para casa.
Levou-o para a cozinha.
- Catherine tem muito tacto - disse Mac. - Acho que percebeu que eu queria estar um minuto a sós contigo. Meg, eu não gosto que lá vás sozinha, mas compreendo.
Como é que posso ajudar-te?
- Telefona para Stephanie Petrovic de manhã, e se ela não estiver, telefona para o advogado. Tentei contactá-la três ou quatro vezes, mas esteve fora o dia
todo. O nascimento do bebé está previsto para daqui a dez dias e ela sente-se pessimamente. Não percebo como é que esteve tanto tempo fora de casa. Eu dou-te os
números.
Quando Mac e Kyle se forãm embora uns minutos depois, o beijo de Mac não foi o habitual beijo distraído na cara. Em vez disso, pegou no rosto de Meg e disse:
- Tem cuidado. - Em seguida, pousou os lábios nos dela.
NA TERÇA-FEIRA de madrugada, o despertador de Meghan tocou às 4. Tinha bilhete para um avião que partia do Aeroporto Kennedy às 7.25. Não foi difícil levantar-se;
tinha dormido mal. Tomou um duche, enfiou um fato calça-e-casaco de lã castanho e emalou rapidamente as coisas de que precisava para passar uma noite fora.
Cheirou-lhe a café quando desceu as escadas. A mãe estava na cozinha.
- Não devia ter-se levantado, mãe - protestou Meg.
- Já estava acordada. - Catherine Collins brincava com o cinto do roupão turco. - Não me ofereci para ir contigo Meg, mas agora não sei se fiz bem. É só
que, se houver outra Mrs. Edwin Collins em Scottsdale, não sei o que lhe diga.
- É melhor eu ir sozinha - disse Meg. Bebeu um pouco de café e abraçou a mãe. - Tenho de ir andando. Chego a Phoenix às onze. Telefono-lhe lá para o fim
da tarde.
O voo correu normalmente. O lugar dela era à janela e ficou muito tempo a olhar para baixo, para as almofadas de nuvens brancas. Lembrou-se do seu quinto
aniversário, quando o pai e a mãe a haviam levado à Disnéylândia. Tinha sido o seu primeiro voo.
Nesse dia, fizera uma pergunta ao pai.
- Pai, se saíssemos do avião, podíamos andar nas nuvens? Ele respondeu-lhe que tinha muita pena, mas que infelizmente as nuvens não aguentavam com ela.
Mas eu aguentarei sempre contigo, Meghan, prometera ele. E cumprira a promessa.
Meghan foi invadida por uma onda de ternura, que logo se desvaneceu ao recordar as alturas em que ele alegava ter negócios inadiáveis e se ausentava de casa
- por vezes até nos feriados, como no dia de Acção de Graças e no Natal. Iria ele celebrar esses feriados em Scottsdale com a outra família?
Foi um alívio quando o piloto anunciou que iam iniciar a descida para o Aeroporto Internacional de Sky Harbour. Meghan aguardou, irrequieta, que a porta
se abrisse.
Havia uma agência de aluguer de automóveis no terminal. Meghan parou para procurar a morada da Loja de Couros Palomino e, depois de ter assinado o contrato
do carro, pediu indicações ao empregado.
Enquanto guiava, Meghan ia absorvendo a beleza das montanhas ao longe e do céu límpido, de um azul intenso. Viam-se aqui e ali palmeiras, laranjeiras e cactos
saguaro.
Passou pelo Hotel Safari construído em tijolo, onde Cyrus Graham dissera ter visto o pai dela há dez anos atrás.
A Loja de Couros Palomino ficava a cerca de quilómetro e meio ? na rua principal de Scottsdale. As boutiques que ladeavam as ruas eram pequenas e pareciam
todas caras. Meghan voltou à esquerda para o parque de estacionamento e saiu do carro. Os joelhos tremiam-lhe.
Sentiu o odor pungente do couro quando entrou na loja. As carteiras, que iam desde as mais pequenas bolsas a sacos, encontravam-se agrupadas com gosto em
prateleiras e mesas. As malas de viagem e pastas encontravam-se à vista na zona maior, uns degraus mais abaixo. Só estava uma pessoa na loja: uma jovem por detrás
da caixa registadora, que lhe sorriu e perguntou:
- Posso ajudá-la?
- Espero bem que sim. Só cá vou ficar umas horas e queria visitar uns familiares. Não tenho a morada deles, mas sei que fazem compras aqui.
A empregada hesitou.
- Sou nova aqui na loja, e a dona só volta daqui a uma hora. Qual é o nome? Posso ver se têm conta.
- E. R. Collins.
A empregada ligou o computador.
- Aqui está a morada e o número de telefone. Peço desculpa, mas vou ter de telefonar a Mrs. Collins a pedir autorização para lha dar. Pode dizer-me o seu
nome?
Passado um momento, a empregada dizia a Meghan:
- Mrs. Collins diz que pode ir já. Ela vive a dez minutos daqui.
Quando Meghan parou em frente ao número 1006 da Doubletree Ranch Road deparou com uma casa térrea, creme, de telhado vermelho, na orla do deserto. A fachada
da casa encontrava-se emoldurada por hibiscos vermelho-vivo e cactos.
Meghan aproximou-se e tocou à campainha. A porta abriu-se.
A mulher alta e magra ficou boquiaberta.
- Meu Deus! - sussurrou ela. - Sabia que era parecida com ? Annie, mas não fazia ideia de que...
Meghan pensou, horrorizada: ??Esta é a mãe de Annie e não sabe que ela morreu. É pior para ela eu ter vindo.
- Entre Meghan. - A mulher afastou-se para o lado, agarrada
à maçaneta da porta como se precisasse de apoio.
- Chamo-me Frances Grolier.
Meghan não sabia que tipo de pessoa imaginara encontrar,mas
não era aquela mulher com aspecto lavado, mãos possantes e rosto magro, cheio de rugas, cabelo grisalho.
- A empregada da Palomino não a tratou por Mrs.Collins quando
telefonou? - perguntou Meghan.
- Os comerciantes conhecem-me por Mrs.Collins. - Tinha uma aliança no dedo. - O seu pai deu-me isto por causa das aparências.
Meg olhou para o outro lado,sentindo-se repentinamente completamente perdida.Durante aquele momento de angústia,foi reparando nos detalhes da sala.
A casa estava dividida em zona de sala e estúdio.A parte da frente era a sala de estar.Um sofá em frente à lareira,uma cadeira de couro castanha e sofá a condizer
ao lado parecido com os que se encontravam no gabinete do pai. Ele gostava mesmo de se sentir em casa onde quer que estivesse, pensou Meghan,amargurada.
As molduras com fotografias proeminentemente expostas na cornija da lareira atraíram-na como um íman.Eram fotografias da família, do pai com aquela mulher e com
a jovem que fora sua meia-irmã.
Houve uma fotografia que lhe chamou especialmente a atenção.
Era uma cena de Natal.O pai com uma garota de cinco ou seis anos ao colo,rodeado de presentes.Frances Grolier,jovem,de joelhos a seu lado com os braços à volta do
pescoço dele.Todos de roupão. Uma família feliz.
Voltou-se e viu,encostado à parede do fundo,o busto no pedestal.Aproximou-se sentindo os pés pesados como chumbo.
Aquele busto de bronze do pai fora moldado por um talento raro.
O amor e a compreensão tinham apanhado a sugestão de melancolia por detrás do brilho dos olhos,a boca delicada.Meghan percebeu que se partira e tinha sido habilmente
reparado no ponto exacto.
- Meghan - Frances Grolier atravessou a sala. - Tenho respostas para tudo. Mas queria saber o que aconteceu com Annie e se tem sido contactada pelo seu pai.
MAC cumpriu a promessa que fizera a Meghan e tentou
sem sucesso telefonar a Stephanie Petrovic na terça-feira
de manhã.Foi tentando de hora a hora mas ninguém atendia.Ao meio-dia e um quarto,telefonou a Charles Potters.Mac identificou-se,disse porque estava a telefonar e
Potters disse-lhe que também estava preocupado.
- Tentei falar com Stephanie ontem à noite - explicou Potters. - Vou lá a casa agora. Tenho uma chave.
O advogado prometeu telefonar-lhe depois.
Hora e meia depois, Potters contou a Mac em voz trémula de indignação que Stephanie lhe deixara um bilhete.
- Mas que rapariga tão velhaca! - gritava ele. - Levou tudo o que podia transportar! Umas Dresden lindas, pratas, quase todas as roupas de Helene, jóias.
Vou avisar a Polícia. É um caso de puro roubo.
- Disse que se ia embora com o pai do bebé? - perguntou Mac.
- Pelo que Meghan me contou custa-me muito a acreditar. Stephanie ficou assustada quando ela lhe sugeriu procurá-lo para obter uma pensão para o filho.
- O que pode ter sido uma encenação - disse Potters. - Stephanie é uma jovem muito fria. Posso garantir-lhe que o principal motivo do seu desgosto pela morte
da tia é o facto de Helene não ter alterado o testamento.
Depois de ter desligado, Mac recostou-se na cadeira. Durante quanto tempo poderia um amador qualquer, por mais dotado que fosse, enganar especialistas de
endocrinologia reprodutiva e fertilização in vitro? meditou ele. No entanto, Helene Petrovic conseguira-o durante anos a fio.
Segundo Meghan, enquanto Petrovic trabalhava no Centro Dowling, passava muito tempo no laboratório. Talvez também andasse a namorar um médico do Valley Memorial,
o hospital a que o centro ? se encontrava ligado.
Mac tomou uma decisão. Havia coisas que era melhor fazer pessoalmente. No dia seguinte, tirava um dia de férias e ia ao Valley Memorial, em Trenton. Queria
saber se o Dr. George Manning teria estado ligado ao Valley Memorial nos vários anos em que Helene trabalhara no prédio ao lado.
MEG olHoU para Frances Grolier.
- Porque está a perguntar-me se fui contactada pelo meu pai?
- A última vez que ele cá veio, eu percebi que o mundo estava a desabar-lhe sobre a cabeça. Estava tão assustado, tão deprimido... Disse que gostava de poder
desaparecer. Meghan, diga-me, esteve com Annie?
Meg sentiu uma enorme compaixão quando viu o horror aparecer nos olhos da mãe de Annie.
Frances agarrou-lhe no braço.
- Meghan, Annie está doente? -
Meghan não foi capaz de falar.
Respondeu à nota de esperança na pergunta ansiosa com um abanar de cabeça quase imperceptível. - Annie... Annie morreu?
- Lamento muito.
- Não. Não pode ser. - Frances examinou o rosto de Meghan. - Quando abri a porta, pensei que você era Annie.
Os joelhos dela vacilaram.
Meghan ajudou-a a sentar-se no sofá. Viu, sem poder fazer nada, o rosto pálido de Frances Grolier ficar de um cinzento doentio e a expressão tornar-se vazia.
??Vai entrar em estado de choque, pensou Meghan.
Depois, numa voz desprovida de emoção, Frances perguntou:
- O que é que aconteceu à minha filha?
- Foi apunhalada na rua. Eu, por acaso, estava nas Urgências quando ela lá chegou. Annie pode ter sido vítima de assalto. Não encontraram nenhuma identificação,
à excepção de um papel com o meu nome e telefone - esclareceu Meghan baixinho.
- Como é que me descobriu, Meghan?
- Através da mensagem que deixou no outro dia para ligar para a Loja de Couros Palomino.
A sombra de um sorriso invadiu o rosto de Frances.
- Deixei essa mensagem na esperança de contactar o seu pai. O pai de Annie. Ele punha-as sempre à frente, sabe: Sempre com medo que você e a sua mãe descobrissem
que nós existíamos. - Meghan viu que o choque estava a ser substituído pela raiva e pela dor.
- Tenho muita pena.
Era a única coisa que lhe ocorria dizer. De onde se encontrava sentada via a fotografia de Natal. ??Tenho tanta pena de nós todas, disse para consigo.
- Meghan tenho de conversar consigo mas agora não. Preciso de estar sozinha. Onde é que está instalada?
- Vou tentar arranjar um quarto no Hotel Safari.
- Eu depois telefono-lhe. Por favor, agora vá-se embora. Ao fechar a porta Meghan ouviu um soluçar contínuo, um som baixo e ritmado que lhe partia o coração.
Foi para o hotel. As formalidades foram rápidas, e passados dez minutos ela fechava a porta do quarto e atirava-se para cima da cama com um misto de emoções,
desde uma enorme compaixão a um desgosto partilhado e a um medo petrificante.
Era óbvio que Frances Grolier achava possível que o seu amante, Edwin Collins, estivesse vivo.
NA TERÇA-FEIRA de manhã, Victor Orsini mudou-se para o gabinete particular de Edwin Collins. Sabia que Meghan e a mãe tinham levado os bens pessoais. Esperara
que não tivessem mexido nos dossiers de negócios de Collins, mas elas tinham-nos levado a todos. Sentimentalismo? Duvidava. Meghan era esperta, andava à procura
de alguma coisa. Seria a mesma coisa que ele tanto ansiava encontrar?
Orsini abriu o matutino na secretária. Uma notícia na primeira página, com mais novidades sobre o escândalo da Clínica Manning, anunciava que os investigadores
médicos estatais tinham ido à clínica na segunda-feira. Haviam encontrado frascos vazios entre os que continham embriões criopreservados, o que sugeria que a falta
de experiência médica de Helene Petrovic poderia ter resultado na má identificação dos embriões ou até na sua destruição.
Ao lado do artigo, vinha publicada uma cópia da carta de Edwin Collins, que recomendava vivamente a Dra. Helene Petrovic ao Dr. George Manning. A carta fora
escrita no dia 21 de Março, há quase sete anos, e tinha um carimbo que dizia ??Recebida no dia 22 de Março??.
Orsini olhou para a assinatura determinada de Edwin na carta. O suor inundava-lhe a testa. ??Algures ali ou nos dossiers que Meghan levou para casa está
a prova incriminatória que fará cair o castelo de cartas??, pensou ele. ??Mas será que alguém a encontra?
LoGo que a mãe foi para a cama na segunda-feira à noite, Bernie foi a currer lá para baixo para ver as cassetes de Meghan. As cassetes em que gravara os
noticiários tinham a voz dela, mas a que ele gravara do esconderijo na mata por detrás da casa dela era a sua preferida. Fazia-o ficar extremamente ansioso por estar
novamente perto dela.
Ficou toda a noite a ver as cassetes, e só foi para a cama quando os primeiros raios fracos da madrugada se infiltraram pela estreita janela da cave. A mãe
iria reparar se a sua cama lá em cima não estivesse desfeita.
Enfiou-se na cama todo vestido e puxou os lençóis mesmo a tempo. O ranger da cama no quarto ao lado anunciava que a mãe estava a acordar. Passados alguns
minutos, a porta do seu quarto abriu-se. Ele sabia que a mãe estava a fitá-lo e manteve os olhos fechados.
Depois de a porta se fechar de novo, ele soergueu-se apoiado sobre o cotovelo enquanto planeava o seu dia. Meghan tinha de estar no Connecticut. Mas onde?
Levantou-se às 7 em ponto e foi para a cozinha tomar o pequeno-almoço.
A mamã estava de mau humor.
- Eu espirrei muito ontem à noite - disse ela num tom ríspido enquanto servia um prato de papa de aveia do tacho no fogão. - Acho que me chegou ao nariz
o cheiro a pó que vinha da cave agora mesmo. Tu lavas o chão lá em baixo, não lavas?
- Sim, mamã, lavo.
- Gostava que arranjasses aquelas escadas da cave para eu poder lá ir ver.
Bernie sabia que a mãe nunca se arriscaria a descer aquelas escadas. Um dos degraus estava partido, e o corrimão abanava.
- Mamã, aquelas escadas são perigosas. Lembras-te do que aconteceu à tua anca? - Comeu a papa de cereais muito rapidamente. - Tenho de chegar cedo ao emprego.
Ela foi com ele até à porta.
- Não chegues atrasado para jantar.
Ele queria dizer-lhe que, se calhar, ia fazer horas extraordinárias, mas não se atreveu. Talvez lhe telefonasse mais tarde.
Bernie percorreu três quarteirões, depois parou junto a uma cabina telefónica. Tremia ao ligar o número da casa no Connecticut. Atendeu uma voz de mulher.
??Tem de ser a mãe de Meghan, pensou Bernie. Fez uma voz mais grossa e falou mais depressa.
- Bom dia, Mrs. Collins. Meghan está? Fala Tom Weicker.
- Ah, Mr. Weicker, Meg vai ficar com pena de não ter falado consigo. Hoje ela teve de viajar.
Bernie franziu o sobrolho. Queria saber onde ela estava.
- Posso contactá-la?
- Receio bem que não. Mas ela telefona-me logo à tarde. Quer que lhe diga para telefonar para si?
Bernie pensou rapidamente. Seria esquisito se não dissesse que sim.
- Sim, ela que me ligue. Ela ainda regressa hoje?
- Se não voltar hoje, volta de certeza amanhã.
- Obrigado.
Bernie desligou, zangado por não poder contactar Meghan mas contente por não ter desperdiçado uma viagem ao Connecticut. Voltou para o carro e foi para o
Aeroporto Kennedy, pois era aconselhável fazer umas corridas.
Às 3 horas, Meghan telefonou do quarto do hotel para casa. Foi uma conversa dolorosa. Incapaz de encontrar palavras que suavizassem o efeito, descreveu à
mãe o angustiante encontro com Frances Grolier.
- Foi horrível. Ela ficou de rastos, claro. Annie era filha única.
- Quantos anos tinha Annie, Meg? - perguntou a mãe baixinho.
- Não sei. Creio que era um pouco mais nova que eu. - Meghan percebeu que estava demasiado esgotada emocionalmente para continuar a falar. - Mãe, agora tenho
de desligar. Se conseguir contar isto a Mac sem que Kyle ouça, conte.
Meghan estava sentada na beirinha da cama, mas, depois de se despedir, recostou-se nas almofadas e fechou os olhos.
Acordou com o telefone a tocar. Sentou-se, apercebendo-se de que o quarto estava às escuras. O mostrador luminoso do rádio-despertador indicava que
passavam cinco minutos das 8 horas. Levantou o auscultador.
- Estou.
- Meghan, fala Frances Grolier. Pode vir falar comigo amanhã às nove?
EMboRa com o sofrimento bem marcado no seu rosto, Frances Grolier parecia mais serena na manhã seguinte quando abriu a porta a Meghan.
- Fiz café - disse ela.
Sentaram-se no sofá com as chávenas na mão. Frances não desperdiçou palavras.
- Conte-me como é que Annie morreu - pediu ela. - Conte-me tudo.
Meghan começou:
- Eu estava a fazer uma reportagem no Hospital Roosevelt-St. Luke, em Nova Iorque...
Tal como na conversa que tivera com a mãe, não tentou ser meiga. Falou do fax que recebeera: ??Engano. Annie foi engano.
Os olhos de Frances faiscavam.
- O que é que acha que isso significa?
- Não sei. - Meghan continuou sem omitir nada, incluindo a cédula falsa e a morte de Helene Petrovic e o mandado de captura emitido em nome do pai. - O carro
dele foi encontrado. A senhora sabia com certeza que o meu pai tinha licença de porte de arma. A arma dele estava no carro e foi com ela que Helene Petrovic foi
assassinada. Eu ? não acredito que ele fosse capaz de matar alguém.
- Eu também não.
- Ontem, disse-me que pensava que o meu pai podia estar vivo.
- Acho que é possível - disse Frances Grolier. - Meghan, isto é difícil mas você e a sua mãe merecem uma explicação. Conheci o seu pai há vinte e sete anos
na Loja de Couros Palomino, onde ele estava a comprar uma carteira para a sua mãe. Pediu-me para o ajudar a escolher, depois convidou-me para almoçar. Foi assim
que tudo começou. Ele tinha casado há três anos nessa altura.
- Sabia que o meu pai e a minha mãe eram felizes, não percebo que necessidade tinha ele de ter uma relação consigo. - Meghan falava num tom acusador e impiedoso,
mas não conseguia evitá-lo.
- Eu sabia que ele era casado. Exteriormente, Edwin tinha tudo: encanto, beleza, perspicácia, inteligência. Por dentro, era, ou é um homem desesperadamente inseguro.
Meghan, tente compreendê-lo e perdoar-lhe. Em muitos aspectos, o seu pai ainda era aquela criança magoada que receava ser novamente abandonada. Ele precisava de
saber que tinha outro sítio para onde ir. - Os olhos dela encheram-se de lágrimas. - A situação convinha aos dois. Eu estava apaixonada por ele, mas não queria a
responsabilidade de um casamento. Queria apenas ser livre para poder ser a melhor escultora que conseguisse ser. Para mim, a relação resultava. ?
- Uma criança não era uma responsabilidade - perguntou
Meghan.
- Annie não fazia parte dos nossos planos. Quando fiquei grávida, comprámos esta casa e dissemos às pessoas que éramos casados. Depois disso, o seu pai ficou
desesperadamente dividido, tentando sempre ser um bom pai para ambas e sentindo sempre que estava a falhar.
- Ele não se preocupava com a hipótese de vir a ser descoberto? - perguntou Meghan.
- Era perseguido por esse medo. À medida que Annie ia crescendo, fazia cada vez mais perguntas. Ela não acreditou na história de que ele tinha um emprego
secreto e importante no Governo. Annie começou a ser conhecida como escritora de viagens. Você começou a aparecer na televisão. Edwin teve uma dor horrível no peito
em Novembro, mas não quis ir para o hospital, quis regressar ao Connecticut. Na vez seguinte que cá voltou, deu-me uma obrigação ao portador de duzentos mil dólares.
? ?O empréstimo sobre o seguro, pensou Meghan.
- Disse que, se lhe acontecesse alguma coisa, a sua mãe e você ficariam bem, mas eu não.
- Quando é que viu o meu pai pela última vez? - perguntou Meghan.
- Saiu daqui no dia 27 de Janeiro. Ia a San Diego ver Annie, depois ia de avião para casa no dia 28.
- Porque é que acha que ele ainda está vivo? - Meghan tinha que perguntar.
- Porque, quando se foi embora, ele estava muito preocupado. Tinha sabido qualquer coisa a respeito do colaborador Victor Orsini que o horrorizara. ?
- Victor Orsini? O que foi que ele soube?
- Não sei, mas os negócios não iam bem há alguns anos. Depois, saiu um artigo num jornal local sobre uma festa dada pela filha do Dr. Manning, que
vive a uns cinquenta quilómetros daqui, para comemorar o septuagésimo aniversário do pai. O artigo dizia que o Dr. Manning planeava trabalhar mais um ano e depois
reformar-se. O seu pai disse que a Clínica Manning era cliente dele e telefonou ao Dr. Manning para sugerir começar a procurar um substituto para ele. Essa conversa
perturbou-o muito.
- Porquê? - perguntou Meghan, muito ansiosa. - Porquê?
- Não sei. Quando Edwin se despediu, as suas últimas palavras foram ??Estão a ser coisas a mais para mim. Todos os jormais publicaram a notícia do acidente
da ponte. Fiquei convencida de que ele morrera, mas Annie não se deu por satisfeita. Quando fora visitá-la naquele último dia, Edwin dera dinheiro a Annie para ela
comprar roupa: seis notas de cem dólares. Ele não percebeu que o papel do bloco-notas da Estalagem Drumdoe com o seu nome e número de telefone lhe caíra da carteira.
Annie descobriu-o depois de ele se ter ido embora e ficou com o papel.
A voz de Frances Grolier fraquejou quando continuou.
- Há duas semanas, Annie veio cá para me obrigar a falar. Tinha ligado para o seu número, e você atendera dizendo ??Meghan Collins e ela desligara. Queria
ver a certidão de óbito do pai. Eu acabei por lhe contar a verdade e implorei-lhe que não entrasse em contacto nem consigo nem com a sua mãe. Ela atirou aquele busto
de Ed ao chão e saiu porta fora. Não tornei a vê-la.
Frances levantou-se, pousou a mão na cornija da lareira e encostou a testa.
- Falei com o meu advogado e ele vai acompanhar-me a Nova Iorque hoje à noite para identificar o corpo de Annie e tratar das formalidades necessárias para
o trazer para cá. Lamento o embaraço que isto vai causar à sua mãe e a si. - Voltou a encarar Meghan. - Não permita que ninguém lhe diga que Edwin Collins é capaz
de matar, porque não é. - Fez uma pausa e concluiu: - Mas é capaz de começar uma vida nova que não a inclua a si nem à sua mãe. Nem a mim nem a Annie.
NA quarta-feira de manhã, logo que Kyle entrou para
a carrinha da escola, Mac partiu para o Hospital Valley Memorial, em Trenton, Nova Jérsia.
Enquanto seguia pela Estrada n.o 684 através do Westchester County, Mac não conseguia deixar de pensar em Meghan. Ela era louca por Edwin Collins - uma autêntica
menina do papá. Mac sabia que aqueles últimos meses, desde que o pai supostamente morrera, tinham sido um inferno para ela.
Não se pode alterar o passado??, pensou Mac, ??mas podem tomar-se providências em relação ao futuro. Descobrir se Edwin Collins ainda estava vivo, ou saber
o que lhe acontecera se não estava, libertaria Meg e Catherine da angústia da incerteza. Descobrir o médico com quem Helene Petrovic podia ter namorado quando era
secretária no Centro Dowling podia ser o primeiro passo para resolver o caso de homicídio.
Mac chegou ao hospital em Trenton às 10.30 e perguntou pelo director.
Frederick Schuller era um homem com cerca de quarenta e cinco anos cujo ar pensativo era desmentido pelo sorriso caloroso.
- Já ouvi falar em si, Dr. MacIntyre. O seu trabalho em terapia genética humana é muito interessante.
- Pois é - concordou Mac. - Estamos no limiar da descoberta de uma maneira de evitar imensas doenças terríveis. Mas eu hoje estou aqui por causa do escândalo
da Clínica Manning.
Schuller franziu o sobrolho.
- É sem dúvida uma situação complicada. Não posso acreditar que uma mulher que trabalhou no Centro Dowling como secretária tivesse conseguido fazer-se passar
por embriologista. Em que posso ajudá-lo?
- A semana passada, Meghan Collins, uma repórter da PCD Canal 3 de Nova Iorque, falou com a directora do Centro Dowling. Algumas das colegas de Helene Petrovic
achavam que ela podia ter uma relação com um médico deste hospital, mas ninguém sabe quem era. Estou a tentar ajudar Meg a encontrá-lo. Meg é filha de Edward Collins,
o homem que foi acusado de ter colocado Helene Petrovic na Clínica Manning.
Schuller começou a tomar apontamentos num bloco.
- Tem alguma ideia da altura em que Helene Petrovic poderá ter namorado esse médico?
- Tanto quanto percebi, um ano ou dois antes de ter ido para o Connecticut - disse Mac. - Mas é apenas uma conjectura.
- Já é alguma coisa. Vamos examinar os dossiers dos três anos em que ela trabalhou no DowlÍing. Pensa que essa pessoa poderá tê-la ajudado a adquirir conhecimentos
suficientes para se fazer passar por uma profissional experiente?
- Também não passa de uma conjectura.
- Está bem. Vou mandar fazer uma lista. Vamos incluir também as pessoas que trabalhavam nos laboratórios de pesquisa fetal e ADN. Nem todos os técnicos são
formados em Medicina, mas percebem daquilo que fazem.
Mac enfiou a mão no bolso.
- Isto é uma lista que fiz de todo o pessoal médico da Manning enquanto Helene lá trabalhou. Gostava que introduzisse estes nomes no seu computador e os
comparasse. - Levantou-se para se ir embora.
- Agradecemos-lhe muito a sua ajuda.
PELO MENOS fizera algumas centenas de dólares ao volante ontem.
Era o único consolo que Bernie conseguia encontrar quando acordou na quarta-feira de manhã. Aquele seria com certeza um dia melhor; podia ser que até visse Meg.
A mãe, infelizmente, estava de muito mau humor.
- Bernard, estive grande parte da noite acordada a espirrar. Quero que me arranjes aqueles degraus e apertes o corrimão para eu poder passar a ir àquela
cave outra vez. Tenho a certeza de que vem pó lá de baixo.
- Mamã, eu não tenho jeito para arranjar coisas. A escada está toda ela em mau estado. Vi que havia outro degrau solto. Quer magoar-se?
- Não posso dar-me ao luxo de me magoar. Quem é que mantinha esta casa limpa? Quem é que cozinhava para ti? Quem é que te impedia de te meteres em sarilhos?
- Eu preciso de si, mamã.
Bernie estava descontraído quando fez marcha atrás para sair de casa. Estava contente por ter mentido, dizendo à mãe que havia outro degrau solto. Não podia
deixar que ela visse a cave.
Decidiu relutantemente trabalhar pelo menos de manhã, mas não era um bom dia para arranjar serviços. No aeroporto, pôs-se junto à área de recolha de bagagem,
e aproximava-se dos clientes à medida que iam descendo no elevador.
- Carro limpo. Mais barato que um táxi. Óptimo condutor.
Ao meio-dia, estava a almoçar - um hamburger e uma cerveja - no bar da Estalagem Drumdoe.
CATHERINE foi para a estalagem na quarta-feira de manhã e trabalhou no seu gabinete até às 11.30. Havia vinte marcações para o almoço. Mesmo com as pessoas
que aparecessem por acaso, o pessoal conseguia perfeitamente tratar da cozinha. Ela podia ir para casa e continuar a ler os dossiers de Edwin.
Quando passou pela recepção, olhou para o bar. Já lá estavam dez ou doze pessoas sentadas: nada mau para um dia de semana. Não havia dúvida de que os negócios
em geral estavam a melhorar.
Mas isso não significava que ela conseguisse manter aquilo.
Entrou no carro pensando que as jóias que empenhara na segunda-feira não tinham rendido nada do que esperara. Pelo menos conseguira o suficiente para pagar
os juros trimestrais. Mas daqui a três meses teria de os pagar novamente. Estava uma mensagem na sua secretária de um agente imobiliário agressivo: - Está interessada
em vender a estalagem? Pode ser que tenhamos um comprador.
??Uma venda à pressa é o que o abutre quer, disse Catherine com os seus botões enquanto se dirigia para a saída do parque de estacionamento. ??E eu
talvez tenha de aceitar.
O telefone estava a tocar quando abriu a porta de casa, e ela deu uma corrida para o atender. Era Meghan.
- Mãe, tenho de me despachar. Os passageiros já estão a embarcar. Voltei a falar com a mãe de Annie hoje de manhã. Depois conto-lhe quando chegar
a casa. Devo chegar aí por volta das dez.
- Eu cá estarei. Ah, Meg, o teu patrão, Tom Weicker, queria que tu lhe telefonasses. Não me lembrei de te dizer quando falámos ontem.
- Já era tarde demais para o apanhar no escritório, de qualquer maneira.?A mãe importa-se de lhe telefonar a dizer que eu lhe falo amanhã.
??Aquele emprego é tão importante para Meg, censurou-se Catherine severamente. ??Como é que me fui esquecer de lhe falar na chamada de Mr. Weicker? Folheou
a agenda à procura do número do Canal 3. ??Estranho não me ter dado o número directo??, reflectiu ela enquanto esperava que a telefonista passasse a chamada para
o gabinete dele.
- Como vai, Mrs. Collins? - disse Weicker ao atender.
- Bem, obrigada. - Catherine explicou porque estava a telefonar-lhe.
- Eu não lhe liguei ontem - disse ele.
As mãos de Catherine ficaram frias e húmidas.
- Mr. Weicker, essa pessoa queria saber onde Meg estava e quando voltava para casa. - Deixou-se cair numa cadeira ainda agarrada ao telefone. - Andou uma
pessoa a fotografar Meg nas traseiras de nossa casa no outro dia.
- A Polícia está ao corrente disso?
- Está.
- Então, avise-os também sobre esta chamada e, por favor, informe-me se receber mais alguma. Diga a Meg que temos saudades dela.
Parecia genuinamente preocupado. Catherine apercebeu-se de que Meg daria a Weicker a história exclusiva do que descobrira em Scottsdale sobre a rapariga
morta que se parecia com ela. ??Não vai ser possível esconder o assunto da imprensa, pensou Catherine.
- Mrs. Collins, a senhora está bem?
- Estou e há uma coisa que o senhor tem de saber antes dos outros, Contou-lhe o que sabia e em seguida respondeu às perguntas dele.
Depois de pousar o auscultador, Catherine foi para a sala de jantar e sentou-se à mesa onde os dossiers ainda se encontravam espalhados tal como os deixara. Esfregou
as fontes com as pontas dos dedos. Estava a começar a ficar com dor de cabeça - uma dor surda e contínua.
A campainha da porta tocou baixinho. Levantou-se, cansada. Viu pelajanela da sala que estava um homem alto no alpendre. Quem seria? Apressou-se a abrir a
porta, surpreendida.
- Olá, Mrs. Collins - cumprimentou Victor Orsini. - Estou com esperança de que uns papéis de que preciso estejam arquivados nos dossiers de Edwin. Importa-se
de que dê uma vista de olhos?
MEGHAN apanhou o voo 292 da Ameriea West que saiu de Phoenix à I.25 e devia chegar a Nova Iorque às 8.05. Reclinou as costas da cadeira e fechou os olhos.
As suas emoções pareciam estar numa montanha-russa, indo de um extremo ao outro.
Estava furiosa com o pai. Furiosa com Frances. Tinha ciúmes de ter havido outra filha a quem o pai amara. Sentia curiosidade em relação a Annie; fora escritora
de viagens, devia ter sido inteligente. Parecia-se comigo. Era minha meia-irmã, pensou Meghan.
Sentia pena de toda a gente: de Frances Grolier e de Annie, da mãe e de si própria e do pai. Talvez um dia eu o veja como Frances o vê.
Serviram o almoço. Meghan não tinha fome, mas comeu a salada e um salgado e bebeu café. A cabeça começara a desanuviar-se-lhe. Tirou um bloco do saco e começou
a escrever uns apontamentos.
Dr. Manning. Frances disse-lhe que o pai havia ficado preocupado depois de falar com ele no dia anterior a desaparecer. Segundo os jornais, o Dr. Manning
dissera que a conversa fora cordial. Então, porque teria o pai ficado preocupado?
Victor Orsini. Seria ele a resposta para tudo? Frances tinha dito que o pai estava horrorizado com qualquer coisa que descobrira a respeito dele. O último
apontamento de Meghan resumia-se a quatro palavras: O pai está vivo?
BERNIE estava no bar quando Catherine olhou lá para dentro ao sair do hotel. Ele viu o reflexo dela no espelho, mas desviou imediatamente os olhos quando
ela olhou para ele.
Onde estaria Meghan? Bernie mandou vir outra cerveja. Qualquer coisa dentro de si avisava-o de que seria perigoso voltar à mata por detrás da casa dela.
Mas se não se encontrasse com Meghan num trabalho qualquer e não pudesse aproximar-se da casa dela, como é que ia vê-la? Enquanto bebia a sua segunda cerveja,
ocorreu-lhe a resposta - tão fácil, tão simples.
Aquilo não era só um restaurante, era uma estalagem. As pessoas dormiam lá. Havia uma tabuleta lá fora que anunciava QUARTOS VAGoS. Se reservasse um quarto, podia
entrar e sair sem atrair as atenções.
- Os quartos são caros? - perguntou ele ao barman.
- Os quartos são óptimos - respondeu o outro. - Foram remodelados há apenas dois anos. Agora não são caros, estamos na época baixa. Fale com Virginia Murphy,
que é a assistente de Mrs. Collins.
O quarto que Bernie escolheu era mais que satisfatório. Ficava no lado sul do edifício e dava mesmo para a casa dos Collins.
Virginia aceitou o cartão de crédito de Bernie com um sorriso simpático.
- Trouxe bagagem, Mr. Heffernan? - perguntou ela.
- Eu trago-a mais logo - disse ele.
Bernie foi para casa. Depois de jantar com a mãe, disse-lhe que o patrão queria que ele levasse o carro de um cliente para Chicago.
- Vou demorar três ou quatro dias, mamã. Mandaram-me voltar de autocarro.
No quarto, Bernie atirou umas roupas para um saco de nylon preto. Certificou-se de que levava todas as lentes, o telefone celular e muitas cassetes de vídeo
para a câmara.
MEGHAN chegou a casa pouco antes das 10.30. A mãe tinha posto queijo, bolachas e uvas na mesinha da sala de estar.
- Achei que podia apetecer-te comer qualquer coisa.
- Eu desço já. Vou pôr-me à vontade.
Meg levou a mala lá para cima, vestiu o pijama e o roupão e calçou os chinelos.
- Assim sinto-me melhor - disse ela quando voltou para a sala. - Mãe, importa-se se não falarmos de tudo hoje à noite? Já sabe o mais importante. A mãe de
Annie e o advogado apanham o avião que sai de Phoenix hoje à noite, às onze e vinte e cinco. Chegam a Nova Iorque por volta das seis da manhã; depois vão identificar
o corpo de Annie. Avisei-a de que a Polícia iria com certeza querer falar com ela e que a imprensa iria cobrir tudo.
- Meg, espero ter feito a coisa acertada. - Catherine hesitou. - Falei da tua viagem a Scottsdale a Tom Weicker. A PCD apresentou a história de Annie no
noticiário das seis, e tenho a certeza de que vão repeti-la no das onze. Vieram cá uns repórteres, mas eu vi as carrinhas lá fora e não Ihes abri a porta.
- Ainda bem que deu a história a Tom - disse Meg. - Quero que seja exclusivo. - Tentou fazer um sorriso à mãe. - Sua corajosa!
- Temos mesmo que o ser. E Meg, ... ele não te telefonou ontem. Quem quer que telefonou estava a tentar saber onde tu estavas. A Polícia vai vigiar a casa e passar
regularmente revista à mata.
??Quem poderia lembrar-se de usar o nome de Tom Weicker? interrogou-se Meg, mas disfarçou:
- Não sei o que está a passar-se, mãe, mas agora bem que podemos ver as notícias que já está na hora.
Uma coisa é ser corajosa, pensou Meg, ??outra é saber que umas centenas de milhares de pessoas estão a ver uma história que disseca a nossa vida particular.
Meghan olhava atentamente enquanto o apresentador do noticiário das 11 da PCD abria o programa com o apropriado ar sério.
Tal como anunciámos no nosso noticiário das seis horas, Edwin Collins, cujo paradeiro se desconhece desde o dia 28 de Janeiro e é suspeito no caso
de homicídio da Clínica Manning, é pai da jovem apunhalada no centro de Manhattan há doze dias. Mr. Collins...
Além disso, era pai de Meghan Collins, que faz parte da equipa de redacção dus nossos noticiários... mandado de captura... tinha duas famílias...
conhecido no Arizona como marido da proeminente escultora Frances Grolier...
Apareceu finalmente um anúncio.
Meg carregou no botão do telecomando.
- Uma das coisas que a mãe de Annie me contou foi que da última vez que esteve no Arizona o pai estava ho?rorizado com qualquer coisa que descobrira sobre
Victor Orsini.
- Victor Orsini!
O choque na voz da mãe espantou Meg.
- Sim. Porquê?
- Ele esteve cá hoje. Pediu para ver os dossiers de Edwin. Disse que precisava de uns papéis que lá estavam arquivados.
- Ele levou alguma coisa? A mãe deixou-o sozinho com os dossiers?
- Não. Bom, talvez um minuto ou dois. Ele esteve cá cerca de uma hora e quando se foi embora parecia desapontado. Meg, ele implorou-me que não dissesse nada
a Phillip. Eu prometi, mas não sei o que pensar do assunto.
- O que eu penso é que há algo naqueles dossiers que ele não quer que se veja. - Meg levantou-se. - Sugiro que vamos dormir. Amanhã, a mãe e eu vamos lê-los
novamente.
BERNiE estava à janela do quarto na Estalagem Drumdoe quando Meg chegou a casa. Tinha a máquina de filmar com a teleobjectiva pronta e começou a filmar quando
ela acendeu a luz do quarto. Suspirou de prazer. Conseguia vê-la de relance a andar de um lado para o outro enquanto se despia.
Percebeu como fora esperto. Um carro-patrulha passava em frente à casa dos Collins mais ou menos de vinte em vinte minutos. Para além disso, viu lanternas
na mata. Tinham contado aos polícias o que se passara.
Tinha de ser cuidadoso. Queria uma oportunidade para estar com Meghan, mas não podia ser perto de casa dela. Teria de esperar até ela ir sozinha de carro
para qualquer sítio. Meghan perceberia que ele nunca lhe faria mal, apenas queria ser amigo dela.
PHiLLiP foi o primeiro a telefonar na quinta-feira de manhã.
- Ouvi as notícias ontem à noite. Posso ir aí?
- Claro - disse-lhe Catherine. - Se conseguires passar pelos jornalistas. Estão acampados lá fora.
Quando Phillip chegou às 9.30, era óbvio que vinha muito preocupado.
- O dique rebentou, se é que esta é a metáfora mais apropriada - disse ele a Meg e Catherine. - Ontem, deu entrada no tribunal o primeiro processo. Um casal
que tem pago a manutenção de dez embriões criopreservados na Clínica Manning e que foi notificado de que só se encontravam sete no laboratório. É óbvio que Petrovic
andava a fazer muitos erros. A Collins e Carter foi citada como co-réu juntamente com a clínica.
- Não sei o que diga, excepto que lamento muito - disse Catherine.
Passado um bocado, ele foi-se embora e Meg ligou para Stephanie Petrovic mas continuava a não atender ninguém. Telefonou para o escritório de Mac para ver
se ele conseguira falar com ela.
Quando ele lhe contou do bilhete que Stephanie deixara, Meghan disse logo:
- Mac, esse bilhete é uma fraude. Stephanie não partiu com esse homem de livre vontade. Eu vi a reacção dela quando lhe sugeri procurá-lo para obter ajuda
para o filho. Ela morre de medo dele. Acho que o advogado de Helene Petrovic devia participar o seu desaparecimento.
Outro desaparecimento misterioso??, pensou Meghan. Já era demasiado tarde para ir ao sul de Nova Jérsia naquele dia. Iria no dia seguinte, partiria antes
do nascer do dia. Assim talvez conseguisse escapar à imprensa.
Queria falar com Charles Potter e pedir-lhe para a deixar ver a casa de Petrovic. Queria falar com o padre que dissera a missa por alma de Helene, que conhecia
as mulheres romenas que tinham assistido à missa.
A hipótese terrível era Stephanie saber alguma coisa sobre a tia que fosse perigosa para o assassino de Helene.
OS INVESTIGADORES especiais Bob Marron e Arlene Weiss interrogaram Frances Grolier no final da manhã de terça-feira. Martin Fox, o advogado dela,
estava ao seu lado na suite do Hotel Doral, em Manhattan.
Frances fora à morgue e identificara o corpo de Annie. Tinha o desgosto estampado na expressão, mas estava tranquila.
Não sabia de ninguém que pudesse ter acompanhado Annie a Nova Iorque. Annie não tinha inimigos. Não quis falar de Edwin Collins, a não ser para dizer
que havia a possibilidade de ele ter decidido desaparecer.
- Ele alguma vez exprimiu o desejo de viver no campo? - perguntou Arlene Weiss.
- Porque é que me pergunta isso? - retorquiu Frances.
- Porque quando encontrámos o carro dele, havia vestígios de lama e bocados de palha no piso dos pneus. Ms. Frances, acha que é o tipo ? de sítio onde ele
poderia escolher esconder-se?
- É possível. Ele sempre disse que a vida parecia muito menos complicada no campo.
NO ESCRITÓRIO da Collins e Carter, Jackie, a secretária, e Milly, a contabilista, discutiam, sussurrando, a tensão entre Phillip Carter e Victor Orsini.
Concordaram que era causada pela terrível publicidade e pelas acções que iam dando entrada no tribunal. As coisas não corriam bem desde o desaparecimento de Mr.
Collins.
- Um deles tem cá vindo à noite - sussurrou Jackie. - Sabes, percebe-se muito bem quando alguém mexe nos dossiers.
- Porque haveria algum deles de fazer isso? - protestou Milly. - Podem pedir-nos para procurar o que quiserem. É para isso que nos pagam.
- A única explicação que encontro é que um deles anda a tentar encontrar a cópia da carta de recomendação de Helene Petrovic para a Clínica Manning
- disse Jackie. - Não consigo encontrá-la.
- Só cá estavas há umas semanas quando a passaste à máquina. Ainda estavas a adaptar-te ao sistema de arquivo - lembrou-lhe Milly.
- De qualquer maneira, que importância é que isso tem? A Polícia tem o original.
- A verdade é que eu não me lembro de a ter dactilografado.Jackie tirou um recorte de jornal da carteira. - Desde que a vi impressa no jornal, que não paro de pensar
numa coisa. - Deu o recorte a Milly. - Estás a ver como são as aberturas de parágrafo? É assim que bato as cartas de Mr. Carter e Mr. Orsini. Mas Mr. Collins queria
sempre os parágrafos sem abertura.
- É verdade - concordou Milly. - Mas esta parece a assinatura de Mr. Collins.
- Mas é muito estranho uma carta assinada por ele estar escrita assim.
MAC TELEFONOU às 5.30 da tarde.
- Meg, que tal tu e Catherine virem cá jantar? Tenho a certeza de que não lhes apetece ir à estalagem.
- A companhia ia fazer-nos bem - disse Meg. - Estivemos todo o dia a ler os dossiers. Às seis e meia está bem para ti? Quero ver as notícias do Canal 3.
Vão apresentar a reportagem que fiz sobre o Centro Franklin.
- Vem para cá agora e vê-a aqui. Kyle pode mostrar-te como já aprendeu a gravar.
- Está bem.
ERA UmA boA história. Um dos melhores momentos foi o segmento filmado no escritório do Dr. Williams quando este apontou para as paredes cheias de fotografias
de crianças.
- Já imaginou a alegria que estas crianças têm trazido à vida das pessoas? - Meg dissera ao operador de câmara para filmar lentamente as fotografias enquanto
o médico ia falando. - Estas crianças só nasceram graças aos métodos de inseminação artificial disponíveis neste centro.
- Foi uma boa reportagem, Meg - disse Mac.
- Obrigada. E que tal se não víssemos o resto das notícias?
BERNIE ficou no quarto o dia todo e disse à empregada que não se sentia bem. Virginia Murphy telefonou minutos depois.
- Podemos mandar-lhe um tabuleiro aí acima quando quiser. Levaram-lhe o almoço; depois, mais tarde, Bernie pediu o jantar. Tinha levantado as almofadas para
parecer que estivera na cama a descansar. Logo que o empregado se foi embora, Bernie voltou para a janela.
Viu Meghan e a mãe saírem de casa um pouco antes das 6. Hesitou se devia ou não segui-las, mas depois resolveu que, se a mãe também ia, seria pura perda
de tempo.
Bernie ficou muito tempo à janela, a pensar em Meg, a imaginar que estava no quarto com ela.
DONALD ANDERSON tirara duas semanas de férias para ajudar com o bebé. Nem ele nem Dina queriam ajuda externa.
- Descansa - disse ele à mulher. - Jonathan e eu temos tudo sob controle.
O telefone tocara toda a semana com pedidos de entrevistas. Don ouvia as mensagens no gravador e não telefonava para ninguém. Na quinta-feira, o advogado
deles telefonou: havia provas conclusivas de conduta ilegal na Manning e avisou-os de que iriam ser instados a associarem-se à acção judicial conjunta que estava
para ser proposta.
- Nem pensar - disse Anderson. - Pode dizer que não a quem lhe telefonar.
Dina estava recostada no sofá a ler uma história a Jonathan.
- Porque é que não desligamos o telefone? - sugeriu ela ao marido. - Já não basta eu ter-me recusado a olhar para Nicky durante horas depois de ele ter nascido.
Só faltava agora ele vir a saber quando for grande que eu tinha processado alguém por ele estar aqui em vez de outro bebé.
Tinham-lhe chamado Nicholas por causa do tio de Dina - o tio com quem a mãe jurava que ele se parecia. Ouviram o bebé mexer-se no berço de vime, um gemido
e depois um choro a sério quando acordou.
NA sexta-feira, às 10.30 da manhã, Meghan estava na residência paroquial da igreja romena de St. Dominic, nos arredores de Trenton. Telefonara ao jovem pastor
na noite anterior a marcar uma hora para conversar com ele.
O padre Radzin abrira-lhe a porta e, depois de a mandar entrar para a sala, perguntou:
- Em que posso ajudá-la, Meghan?
- Tenho de descobrir quem era realmente Helene Petrovic - disse ela ao padre. - Está ao corrente do que se passou na Clínica Manning?
- Sim, tenho seguido a história. Também vi uma fotografia sua e da pobre rapariga que foi apunhalada no jornal hoje de manhã.
- Para dizer a verdade, foi com isso que isto tudo começou.Meghan inclinou-se para a frente. - O procurador-geral-adjunto acha que o meu pai é responsável
por a Clínica Manning ter contratado Helene e pela morte dela também. Eu não concordo. Há muitas coisas que não fazem sentido. Porque quereria ele que a clínica
contratasse uma pessoa não qualificada para o lugar? O que teria ele a ganhar?
- Há sempre uma razão, Meghan... por vezes, até há várias.. para todas as acções dos seres humanos.
- É isso exactamente que eu quero dizer. Não consigo encontrar nem uma, quanto mais várias. Porque se teria o meu pai envolvido com Helene se sabia
que era uma fraude? Eu sei que ele era consciencioso relativamente ao trabalho. Costumava falar muito sobre o trabalho. É muito grave colocar uma pessoa sem habilitações
num lugar de responsabilidade como aquele. E Helene? Não se preocupava com o facto de os pré-embriões poderem sofrer ou ser destruídos por causa do seu desleixo,
descuido ou ignorância?
- Helene não vinha regularmente à igreja - disse o padre Radzin. - Mas quando vinha à missa, ficava sempre para tomar um café. Se quisesse escolher adjectivos
para a qualificar, os últimos que me viriam à mente seriam ??desleixada, descuidada e ignorante.
- Estou com medo de que tenha acontecido alguma coisa à sobrinha dela, Stephanie. Chegou a conhecer o pai do bebé dela?
- Não. Nem eu nem ninguém que eu saiba. - Franziu o sobrolho. - Meg, se não conseguir obter informações sobre Helene, o conselho que lhe dou é que continue
a procurar até descobrir o motivo que levou o seu pai a participar nisso.
Meg levantou-se.
- Não vou tomar-lhe mais tempo, padre Radzin. Tenho de me ir embora. Vou ter com o advogado de Helene à casa dela.
CHARLEs PoteRs já estava à espera quando Meghan chegou. Ela achou que ele parecia o tipo de advogado de família retratado nos filmes antigos. O fato azul-escuro
era últra-conservador, o escasso cabelo grisalho estava muito bem penteado. Os óculos sem aros realçavam os olhos vivos cor de avelã.
Quaisquer que fossem os objectos que Stephanie levara, a aparência da sala, a primeira em que entraram, permanecia inalterada. Depois, Meghan reparou que
as encantadoras estatuetas Dresden, que admirara na sua anterior visita, já não estavam na cornija.
- Vou denunciar Stephanie por ter roubado as coisas de Helene, Miss Collins - disse o advogado. - Na qualidade de testamenteiro, sou responsável por todos
os bens de Helene.
- Compreendo. Só gostava que Stephanie fosse encontrada e persuadida a devolvê-los. Se emitirem um mandado de captura, ela pode ser deportada. Tem o bilhete
que ela deixou?
- Tenho. Está aqui.
Meghan leu-o.
- ela. O que pensava Helene da gravidez da sobrinha? - perguntou.
- O único comentário que ela me fez sobre isso foi muito compreensivo. Miss Collins, não tenho muito tempo. Parece-me que disse que gostaria de dar uma
vista de olhos pela casa?
- Pois gostava.
Meghan foi lá acima com ele. Também ali nada parecia fora do lugar. O quarto principal era luxuoso. As cortinas, colcha e tapeçarias tinham um ar dispendioso.
As portas de vidrinhos, davam para uma pequena salinha. Uma das paredes estava coberta de fotografias de crianças.
- São cópias das da Clinica Manning - disse ela.
- Helene mostrou-mas - disse-lhe Potters. - Ela orgulhava-se dos nascimentos bem-sucedidos na clínica.
Meg estudou as fotografias.
- Vi algumas destas crianças na reunião há menos de duas semanas. - Descobriu Jonathan. - Este é o filho dos Andersons, cuja história vem nos jornais.
Parou para estudar a fotografia do canto superior. Era uma fotografia de duas crianças, um rapaz e uma rapariga com camisolas iguais abraçados um ao outro.
O que havia neles de familiar?
- Tenho de trancar a casa agora, Miss Collins.
Havia insistência na voz do advogado. Meg não podia fazê-lo demorar mais. Lançou outro olhar demorado para a fotografia das crianças de camisolas iguais,
tentando memorizá- la.
??A úNICA coisa que consegui realmente ficar a saber nestas horas todas foi o número de vezes que o meu marido me andou a enganar??, pensou Catherine enquanto
afastava os dossiers, na sexta-feira ao final da tarde. Já não lhe apetecia lê-los. Era tão doloroso...
Lá fora estava um dia tempestuoso de Novembro. Dali a três semanas, era o dia de Acção de Graças, uma altura de muito movimento na estalagem.
Virginia tinha telefonado. A agência imobiliária estava a ser persistente. A estalagem estava à venda? Até tinham mencionado um preço.
Catherine matutou quanto tempo ela e Meg poderiam continuar assim.
Meg. Iria ela fechar-se numa concha por causa da traição do pai, como fizera quando Mac se casara com Ginger? Catherine via a maneira como Mac olhava para
Meg ultimamente e esperava que não fosse tarde demais. Meg construíra um muro à sua volta relativamente a Mac, e embora se mostrasse interessada em Kyle à sua maneira,
tinha escolhido não reparar na maneira esperançosa como Mac se comportava em relação a ela.
Catherine viu um vulto na mata. Ficou paralisada, depois descontraiu-se: era um polícia. Pelo menos, andavam a vigiar a casa.
Ouviu a chave na porta e agradeceu baixinho a Deus. A filha que tornava tudo o resto suportável estava sã e salva.
FREDERICK SCHULLER, do Hospital Valley Memorial, em Trenton, telefonou a Mac sexta-feira ao final da tarde.
- Mandei-lhe a lista do corpo clínico no correio da noite.
- Que rápido - disse Mac com sinceridade. - Agradeço-lhe muito.
- Vamos a ver se lhe é útil. Há uma coisa que talvez lhe interesse saber. Estive a ler a lista da Clínica Manning e vi o nome do Dr. Henry Williams. Isto pode não
ser relevante; Williams nunca trabalhou cá, mas lembro-me de que a mulher dele esteve muito tempo internada durante os dois ou três anos que Helene Petrovic trabalhou
no Dowling. Eu encontrava-o de vez em quando.
- Acha que há alguma hipótese de ele ser o médico com quem Petrovic andou quando estava no Dowling? - perguntou logo Mac.
Houve uma hesitação por parte de Schuller, que depois disse:
- Isto é quase má língua, mas andei a fazer umas perguntas nessa ala do hospital. A enfermeira-chefe lembra-se muito bem do Dr. Williams e da mulher.
Era óbvio que Frederick Schuller tinha relutância em falar do assunto. Depois de outra breve pausa, continuou:
- Mrs. Williams tinha um tumor cerebral. Ela era natural da Roménia e, à medida que o seu estado foi piorando perdeu a capacidade de comunicar em inglês.
O Dr. Williams só sabia umas palavras de romeno, e vinha uma amiga regularmente ao quarto de Mrs. Williams para traduzir.
- Essa mulher era Helene Petrovic? - perguntou Mac.
- A enfermeira nunca lhe foi apresentada, mas descreveu-a como uma mulher de cabelo escuro e olhos castanhos, de quarenta e poucos anos, bastante atraente.
- Schuller concluiu: - Como pode ver, isto é muito vago.
Ai isso é que não é, pensou Mac enquanto agradecia a Schuller. Era a primeira pista! Williams era o especialista que poderia ter ensinado a Helene Petrovic
o que ela necessitava de saber para se fazer passar por embriologista.
- KYLE, tu não devias estar a fazer os trabalhos de casa?
- indagou com meiguice Marie Dileo, a governanta, que tinha sessenta anos.
Kyle estava a ver a cassete que gravara com a entrevista de Meg no Centro Franklin. Olhou para cima.
- Só mais um minuto, Mrs. Dileo. A sério.
- Sabes bem o que o teu pai pensa de televisão a mais.
- Esta cassete é educativa. E diferente.
Mrs. Dileo abanou a cabeça.
- Tens resposta para tudo.
Olhou para ele afectuosamente. Kyle era uma criança encantadora: espertíssimo, engraçado e com o encanto de um rapazinho.
A entrevista com Meg estava a terminar, e ele desligou o aparelho. Kyle foi atrás de Marie para a cozinha, seguido de Jake. Foi buscar a mochila e despejou
os livros em cima da mesa da cozinha.
O telefone tocou. Era o marido de Marie a dizer que tinham levado o pai dela do lar para o hospital.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Kyle quando ela desligou.
- Aconteceu: o meu pai está doente. Ele é muito velho. Eu tenho de ir ao hospital. Vou deixar-te em casa de um amigo e escrevo um bilhete para o teu pai.
- Deixe-me em casa de Meg - disse Kyle. - Eu telefono-lhe. - Ligou e, passados uns segundos, anunciou, radiante: - Meg disse que podíamos ir já.
Marie escrevinhou um bilhete para Mac.
- Leva os trabalhos de casa, Kyle.
- Está bem. - Correu até à sala e agarrou na cassete que gravara com a entrevista de Meg. - Talvez ela queira ver isto comigo.
MEG estava hiperactiva e Catherine não compreendia porquê. Desde que voltara de Trenton, há duas horas, que Meg examinava os dossiers de Edwin, tirava papéis
e fazia vários telefonemas. Depois, sentou-se à secretária de Edwin e desatou a escrever furiosamente. Às 5 horas, Catherine foi lá vê-la.
- Pensei em fazer frango com cogumelos para o jantar. O que é que achas?
- Acho óptimo. Sente-se aí um segundo, mãe.
Catherine sentou-se na pequena cadeira de braços ao pé da secretária.
- Tive uma conversa interessante com o padre Radzi hoje de manhã - informou Meg. - Foi ele que disse a missa por alma de Helene Petrovic. Eu disse-lhe que
não encontrava nenhum motivo para o pai a ter colocado na Clínica Manning. Ele disse qualquer coisa no sentido de haver sempre uma razão para os actos das pessoas.
Talvez eu devesse reexaminar todas as circunstâncias.
- O que queres dizer com isso?
- Mãe, o que eu quero dizer é que nos aconteceram várias coisas traumáticas ao mesmo tempo. Vi o corpo de Annie a chegar ao hospital, soubemos que
é quase certo o pai não ter morrido no acidente da ponte e começámos a suspeitar de que ele tinha uma vida dupla; a seguir, ele é acusado de ser o responsável pela
cédula falsa de Helene Petrovic e pelo seu homicídio. - Meg inclinou-se para a frente. - Mãe se não fosse o choque, teríamos examinado melhor as razões que nos levaram
a pensar que o pai estava naquela ponte quando se deu o acidente.
- O que queres tu dizer com isso? - Catherine estava confusa.
- Victor Orsini estava a falar com o pai quando ele ia entrar na rampa de??cesso. Alguém que estava na ponte viu o carro dele cair pela borda. - É óbvio
que essa pessoa na ponte estava completamente enganada. E, mãe, nós só temos a palavra de Victor Orsini para nos dizer que o pai lhe estava a telefonar daquele lugar.
Suponha, suponha só, que o pai já tinha atravessado a ponte quando telefonou a Victor. Pode ter visto o acidente ocorrer atrás dele. Frances Grolier lembra-se de
o pai estar zangado com qualquer coisa que Victor fizera. Era mesmo do pai dizer a Victor que queria falar imediatamente com ele em vez de esperar pela manhã seguinte,
como Victor disse.
- Estás a dizer que Victor é mentiroso? - Catherine estava com uma expressão estupefacta.
- Seria uma mentira segura, não seria? Victor estava no escritório mais ou menos há um mês quando a carta de recomendação de Helene Petrovic foi enviada
para a Manning. Pode ter sido ele a mandá-la. Trabalhava para o pai.
- Phillip nunca gostou dele - murmurou Catherine. - Mas não temos maneira de o provar, Meg. E voltamos à mesma pergunta: Porquê? Por que haveriam o teu pai
ou mesmo Victor, de colocar Helene naquele laboratório?
- Ainda não sei.
O telefone tocou, e Meg atendeu. Era Kyle.
- Temos companhia para o jantar - disse ela depois a Catherine. - Espero que consiga esticar o frango e os cogumelos.
- Mac e Kyle?
- Sim.
- Óptimo. - Catherine levantou-se. - Gostava de estar tão entusiasmada como tu com estas possibilidades, Meg, mas podem não passar disso mesmo.
Meg levantou uma folha de papel.
- Esta é a conta de Janeiro do telefone do carro do pai. Olhe só quanto custou a última chamada. Ele e Victor falaram oito minutos. Não se leva oito minutos
a marcar uma reunião, pois não?
DEPoiS do jantar, Mac sugeriu que Kyle ajudasse Catherine a levantar a mesa. Quando ficou sozinho com Meghan na sala, contou-lhe a ligação do Dr. Williams
ao Dowling e possivelmente a Helene.
- O Dr. Williams ! - Meghan olhou fixamente para ele. - Mac, ele pura e simplesmente negou ter conhecido Helene antes de ela ir para a Clínica Manning. Mas
as coisas encaixam: sabemos que Helene tinha um enorme interesse pelo trabalho de laboratório, e ele é a pessoa ideal para a ter ajudado a falsificar o curriculum
vitae e a encaminhar para a Manning.
- Então, e onde é que se encaixa a carta de recomendação do teu pai? Ele colocou Williams na Manning, mas porque teria ele ajudado Helene Petrovic a arranjar
emprego lá?
- Tenho uma teoria sobre isso e envolve Victor Orsini. As peças estão a começar a encaixar... todas. - Olhou para cima e fez-lhe um sorriso, um sorriso genuíno,
como ele não lhe via nos lábios há muito tempo.
Estavam de pé em frente à lareira. Mac abraçou-a. Meghan ficou tensa e imediatamente mudou de posição para se libertar, mas ele não deixou e virou-a para
si.
- Vamos lá a falar francamente, Meghan - disse Mac. - Tu tinhas razão há nove anos atrás. Quem me dera ter percebido na altura. - Calou-se. - És a única
mulher para mim. Sei-o agora e tu também. - Beijou-a impetuosamente, depois libertou-a, recuando.Quando a tua vida acalmar outra vez, vamos ter uma longa conversa
sobre nós.
Kyle implorou que o deixassem mostrar a cassete com a entrevista de Meg.
- São só três minutos, pai. Quero mostrar a Meg como já sei gravar programas.
Assim, viram a cassete e, no fim, Meg assegurou- lhe:
- Fizeste um excelente trabalho.
NESSa noite, Meghan ficou muito tempo deitada na cama sem conseguir dormir. Os seus pensamentos estavam num turbilhão a examinar os últimos acontecimentos:
a ligação do Dr. Williams a Helene Petrovic, as suspeitas em relação a Victor Orsini. E Mac; não podia permitir-se pensar nele agora.
Aquilo tudo, e, no entanto, havia qualquer coisa que estava a escapar-lhe, qualquer coisa muito, muito importante. O que seria? Estava relacionada com a
cassete da entrevista no Centro Franklin. ??Vou pedir a Kyle que a traga amanhã, pensou ela. ??Tenho de a ver novamente.
Sexta-feira foi um dia longo para Bernie. Tinha dormido até às 7.10, o que para ele era tarde. Suspeitava de que tinha perdido Meghan, que ela saíra muito
cedo, pois as persianas do quarto dela estavam levantadas e a cama feita.
Esteve todo o dia sentado à janela à espera de que Meghan voltasse. Só viu o Mustang dela virar para casa ao final da tarde. Bernie fez um esforço para a
vislumbrar a subir o carreiro de acesso à casa. Vê-la fê-lo novamente feliz.
Não pensou em mandar vir u jantar, não tinha fome. Finalmente, às 111.30, Meghan acendeu a luz do quarto e despiu-se.
Era linda !
Na sexta-feira, às 4 da tarde, Jackie estava de pé no gabinete de Phillip Carter a tentar decidir o que fazer. Quando Mr. Carter estava aborrecido, era um
pouco assustador. Mr. Collins nunca se aborrecia.
Mas Mr. Carter era o patrão agora, e na noite anterior, Bob, o marido de Jackie, tinha-lhe dito que era obrigação dela contar a Carter que alguém andava
a mexer nos dossiers à noite. Agora, ela tinha praticamente a certeza de que era Mr. Orsini.
Quando Jackie falou naquele assunto, Phillip Carter ficou muito calmo. O seu rosto endureceu-se e disse:
- Obrigado, Jackie. Diga a Mr. Orsini para vir falar comigo quando chegar.
Vinte minutos depois, ela e Milly ouviram, através da porta fechada do gabinete, Carter a repreender Orsini em voz alta.
- Há já muito tempo que eu suspeitava de que andavas a colaborar com a Downes and Rosen - disse-lhe Carter. - Esta firma está em apuros agura e tu estás
a tratar de te safar indo trabalhar para eles. Mas pareces ter esquecido de que o teu contrato te proibe especificamente de abordar os nossos clientes. Agora, fora
daqui! E não vale a pena levares nada, já deves ter roubado o número suficiente de dussiers.
Nem Jackie nem Milly nlharam para Orsini quando ele passou pelas secretárias de ambas e se foi embora.
No sábado de manhã, Catherine foi à estalagem à hora do pequeno-almoço e teve uma longa conversa com Virginia. Tendo decidido não ficar para controlar o
serviço de almoço, voltou para casa às 11 horas. Encontrou Meg no escritório do pai a analisar os dossiers.
- Meg, vou aceitar a oferta que fizeram pela Drumdoe.
- O quê ?!
- Virginia concorda comigo. As despesas gerais são demasiado elevadas. Não quero que a estalagem acabe num leilão.
- O que é que Phillip acha? Por falar nele, ele tem aparecido muito por cá ultimamente - disse Meg. - Mais do que em todos os anos que trabalhou com o pai.
- Está a tentar ser simpático, e eu estou-lhe grata por isso.
- Não será mais do que simples simpatia?
- Espero que não. Tenho tantos problemas para resolver antes de sequer pensar nessas coisas. - E acrescentou baixinho: - Mas tu não.
- O que é que quer dizer com isso?
- Kyle não é o melhor dos ajudantes. Esteve a espreitá-los ontem à noite e veio dizer-me todo contente que Mac te tinha beijado.
- Não estou interessada..
- Pára com isso Meg - ordenou Catherine. - Não sejas como o teu pai, um deficiente emocional porque não foi capaz de perdoar a rejeição.
- Ele tinha todas as razões do Mundo para não perdoar a mãe!
- Em criança, sim. Em adulto, com uma familia que o amava, não.
Meg ergueu uma sobrancelha.
- A mãe consegue ser muito dura.
- Podes crer que sim. Meg, tu amas Mac, sempre amaste. Kyle precisa de ti: Agora por amor de Deus, pára de ter medo que Mac seja suficientemente imbecil
para querer Ginger de volta se ela aparecer novamente na sua vida.
- O pai chamava-lhe sempre uma mulher de armas. - Meg sentia as lágrimas a arderem-lhe nos olhos.
- Pois chamava. Quando voltar para a estalagem, vou telefonar para a agência imobiliária. Juro que os hei-de fazer subir a parada até implorarem misericórdia.
CATHeriNE espreitou para dentro do escritório, à 1.30, antes de voltar para a estalagem.
- Meg, lembras-te de eu ter dito que o nome da Loja de Couro, Palomino não me era estranho? Estou agora a lembrar-me de que a mãe de Annie já tinha deixado
a mesma mensagem para o pai no gravador cá de casa. Deve ter sido em meados de Março, há uns sete anos. A razão por que posso precisar a data é que fiquei tão furiosa
por o teu pai não vir à festa dos teus vinte e um anos que, quando ele chegou finalmente com uma carteira de pele para ti, eu disse-lhe que me apetecia atirar-lha
à cabeça.
No sábado, a mãe de Bernie não conseguia parar de espirrar. Os seios nasais já começavam a doer-lhe e a garganta arranhava.
Bernard deixara o pó acumular-se naquela cave. Tinha a certeza. Tinha de ser. Agora o pó estava a infiltrar-se na casa.
Às 2, já não aguentava mais. Tinha de ir lá abaixo limpar. Primeiro, atirou a vassoura e a esfregona lá para baixo, para a cave. Depois, encheu um
saco de plástico com panos e com o detergente e atirou-o escadas abaixo. Aterrou na esfregona.
A mamã enfiou o avental. Experimentou o corrimão, não estava assim tão solto, aguentava com ela. Desceu um degrau de cada vez com enorme cuidado.
Bom, consegui??, pensou ela ao pisar o chão da cave. Nessa altura, a ponta do sapato prendeu-se no saco dos panos e ela caiu pesadamente de lado, por cima do pé
esquerdo, torcido. O barulho do tornozelo partido da mamã fez-se ouvir.
Depois de ter ido para a estalagem, Meghan telefonou para casa de Philip. Quando ele atendeu, ela disse:
- Ainda bem que o apanho.
- Tem sido uma semana muito difícil. Tive de despedir Victor ontem.
- Porquê? - perguntou Meg, preocupada com aquela viragem súbita. Precisava de Victor por perto enquanto tentava relacioná-lo com a recomendação de Helene
Petrovic. E se ele desaparecesse?
- Ele não é de confiança, Meg. Tem andado a roubar clientes. Para ser franco, a julgar por um ou dois comentários que o teu pai fez antes de desaparecer,
acho que suspeitava de que Victor andava a tramar alguma.
- Eu também acho, e foi por isso que lhe telefonei. Estou convencida de que ele deve ter enviado a carta de Helene Petrovic quando o pai se encontrava ausente.
A data da carta é 21 de Março, não é?
- Acho que sim.
- Então, creio que descobri uma coisa. A mãe de Annie pode confirmar. Não tenho o número dela mas consegui falar com o advogado que a acompanhou e que me
disse que ia contactá-la. - Fez uma pausa e depois acrescentou: - Phillip, ainda há outra coisa. Acho que o Dr. Williams e Helene Petrovic tinham um caso. Se for
verdade, é possível que ele seja o homem que a vizinha de Petrovic viu a entrar no apartamento dela.
- Meg isso é incrível! Tens alguma prova?
- Ainda não, mas acho que não vai ser difícil obtê-la.
- Tem cuidado - avisou-a Phillip Carter.
FRANCES Grolier telefonou às 3 menos um quarto.
- Queria falar comigo, Meghan?
- Queria. Falou alguma vez cá para casa utilizando o código da Palomino?
Frances não perguntou porque é que Meg queria saber.
- Sim, telefonei. Foi quase há sete anos, no dia 10 de Março. Annie tivera um acidente frontal de carro, e os médicos achavam que não sobreviveria. Edwin
veio de avião nessa noite e esteve cá duas semanas até Annie ficar fora de perigo.
Meg pensou no dia 18 de Março de há sete anos atrás - o dia do seus vinte e um anos. Um jantar de cerimónia na Estalagem Drumdoe. Nu telefonema do pai nessa
tarde: estava com uma virose e sentia-se demasiado mal para vir de avião. Duzentos convidados. Ela passara a noite a tentar sorrir, a tentar não mostrar como estava
desapontada.
- Meghan? - inquiriu Frances Grolier na sua voz controlada.
- Desculpe. O que acaba de me dizer é muito importante. Meghan voltou a pousar o auscultador. Depois, ouviu a campainha. Devia ser Kyle. Mac ia lá deixá-lo.
KYLE entrou com um grande sorriso, e Meghan baixou- se para lhe dar um beijo.
- Nunca faças isso em frente dos meus amigos - avisou ele.A mãe de Jimmy espera por ele cá fora e dá-lhe um beijo quando ele sai du autocarro. Não é nojento?
- Porque é que me deixaste dar-te um beijo?
- Quando se está sozinho, não faz mal. Ninguém nos viu. Beijaste o meu pai ontem à noite, gostaste?
Meg pensou.
- Bem, digamns que não foi nojento. Queres umas bolachas com leite?
- Sim, se faz favor. Trouxe a cassete para tu veres. O meu pai disse que ia demorar-se mais ou menos uma hora. Tinha de ir buscar umas coisas à loja.
Meghan levou o prato com bolachas e os copos com leite para a salinha. Kyle sentou-se no chão aos pés dela. Fez passar novamente a cassete da entrevista
no Centro Franklin com a ajuda do telecomando. O coração de Meg começou a bater. Perguntou a si própria: ??O que terei eu visto nesta cassete?
Descobriu o que procurava na última cena no consultório do Dr. Williams, em que a câmara focou as fotografias das crianças nascidas através da fertilização
in vitro. Ela arrancou o telecomando das mãos de Kyle e carregou no botão PAusE.
- Meg, está quase a acabar - protestou Kyle.
Meg olhou para a fotografia do rapazinho e da rapariguinha com camisolas iguais. Tinha visto a mesma fotografia na parede da sala de estar de Helene Petrovic,
em Lawrenceville.
- Já acabou mesmo, Kyle. Eu já descobri o motivo.
O telefone tocou.
- Eu já volto - disse ela.
Era Phillip Carter.
- Meg, estás sozinha? - perguntou ele rapidamente.
- Phillip! Acabei de encontrar a confirmação de que Helene Petrovic conhecia o Dr. Williams. Acho que sei o que ela estava a fazer na Clínica Manning.
Ele repetiu, como se não a tivesse ouvido:
- Estás sozinha?
- Kyle está na salinha.
- Podes deixá-lo em casa? - Falava em voz baixa e agitada.
- Mac saiu. Posso deixá-lo na estalagem. Phillip, o que é que aconteceu?
Agora, Carter parecia inacreditavelmente à beira da histeria.
- Acabei de receber um telefonema de Edwin! Quer falar com nós dois. Está a tentar decidir se deve ou não entregar-se. Meg, ele está desesperado. Não digas
a ninguém.
- O pai telefonou-lhe? - Meg respirou fundo. Agarrou-se à secretária, atordoada. Numa voz tão chocada que não passava de um murmúrio, perguntou: - Onde é
que ele está? Tenho de ir ter com ele.
QuaNdo a mãe de Bernie recuperou os sentidos percebeu que não conseguiria subir as escadas. Teria de arrastar-se até à área onde Bernard tinha a televisão,
onde havia um telefone. O tornozelo doía-lhe muito.
Arrastou-se até ao recanto que o filho arranjara para uso dele. Mesmo com toda a dor que sentia, a mamã esbugalhou os olhos de espanto e fúria. Aquela televisão
enorme! Aqueles rádios! Aquelas máquinas!
O telefone estava numa velha mesa de cozinha. Não conseguia lá chegar, por isso puxou-o pelo fio e ligou para o 115. Quando atenderam, disse:
- Mandem-me uma ambulância.
- Kyle, - disse Meg apressadamente. - Vou ter de te deixar na estalagem. Vou deixar um bilhete na porta da rua para o teu pai. Diz à minha mãe que surgiu
uma coisa e que tive de me ir embora. Fica com ela. Não saias de lá, está bem?
- Porque é que estás tão preocupada, Meg?
- Não estou nada. É uma história muito importante, vou ter de fazer a cobertura.
Na estalagem, Meg ficou a olhar até Kyle chegar à porta. Ele acenou-lhe, e ela retribuiu o aceno, fazendo um esforço para sorrir. Depois, pôs o pé no acelerador.
Ia ter com Phillip a um cruzamento de West Redding, a cerca de trinta quilómetros de Newtown.
- Podes vir atrás de mim depois - tinha ele dito. - Seria impossível ires lá ter sozinha.
Meg não sabia o que pensar. A sua mente fervilhava com pensamentos confusos e emoções confusas. O pai estava vivo e encontrava-se desesperado! Porquê? Não
devia ser com certeza por ter assassinado Helene Petrovic. Por favor, meu Deus, tudo menos isso.
Quando Meg encontrou o cruzamento das estreitas estradas de campo, o Cadillac preto de Phillip estava à sua espera. Não se avistava mais nenhum carro.
Ele levantou a mão e fez-lhe sinal para o seguir. Oitocentos metros mais à frente, ele virou repentinamente para uma estrada de terra estreita e em mau estado.
Passados cinquenta metros, a estrada serpenteava por uma mata, e o carro de Meghan desapareceu da vista de quem por ali passasse.
V?CToR ORsiNI não ficara surpreendido com a cena final no escritório de Phillip Carter na sexta-feira à tarde. Nunca tinha sido uma questão de saber se aconteceria
ou não. A questão durante meses fora saber quando.
Pelo menos descobrira aquilo de que precisava antes de perder o acesso ao escritório. Depois de sair do gabinete de Carter, tinha ido directamente para casa,
a?ranjara um martini e pensara no que devia fazer.
A prova que possuía não era por si só suficiente e não valeria grande coisa em tribunal sem corroboração. E, para além disso, o que poderia contar-lhes sem
revelar coisas que o pudessem prejudicar?
Victor passara a noite de sexta-feira medindo os prós e os contras de ir falar com o procurador-geral-adjunto e expor o que achava que tinha acontecido.
Na manhã seguinte, fez jogging durante uma hora, uma corrida longa e saudável que lhe aclarou as ideias e o ajudou a tomar uma decisão.
Finalmente, no sábado, às 2.30 da tarde, ligou para o investigador especial Bob Marron, que atendeu ao primeiro toque.
Victor identificou-se e perguntou:
- Será que eu posso passar por aí daqui a meia hora? Acho que sei quem assassinou Helene Petrovic.
À porta de entrada da Estalagem Drumdoe, Kyle olhou para trás e viu Meghan afastar-se. Ia fazer a cobertura de uma história. Fixe. Gostava de poder ir com
ela.
Passados segundos, um carro saiu a alta velocidade do parque de estacionamento - um Chevy verde. ??Aquele foi o tipo que não atropelou Jake??, pensou Kyle.
Viu o Chevy virar na direcção em que Meghan seguira.
Kyle entrou no hall e viu a mãe de Meg e Mrs. Murphy na secretária. Aproximou-se delas.
- Olá.
- Kyle, o que é que tu estás aqui a fazer? - perguntou Catherine.
- Foi Meg quem me trouxe. Disse-me para ficar consigo. Ela foi fazer a cobertura de uma história. Alguém lhe telefonou, e ela disse que tinha de se ir embora
imediatamente.
- Não seria formidável se a tivessem chamado novamente?disse Catherine a Virginia. - Iria animá-la imenso.
- Tenho a certeza que sim - concordou Virginia.
- Agora, o que é que achas que devemos fazer com aquele indivíduo do quarto 3A? Francamente, Catherine, acho que se passa qualquer coisa estranha com ele.
Quem é que estava enfiado num quarto quase três dias e depois saía com tanta pressa que quase atirou gente ao chão? Posso garantir-te que Mr. Heffernan não parecia
nada doente. Lançou-se escadas abaixo e atravessou o hall a correr com uma câmara de vídeo.
- Vamos ver o quarto - disse Catherine. - Anda connosco, Kyle.
A atmosfera no 3A estava pesada.
- Este quarto foi limpo desde que ele cá chegou? - perguntou Catherine.
- Não, Betty disse que ele não a deixou entrar - disse Virginia.
- Elejá não estava na cama há um tempo. Olha para aquela cadeira ao pé da janela. Espera lá! - Catherine atravessou o quarto e sentou-se na cadeira. - Meu
Deus! - murmurou ela. - Daqui vêem-se as janelas do quarto de Meghan. - Catherine correu para o telefone e marcou um número.
- Polícia Estadual. Está a falar com o agente Thorne.
- Daqui fala Catherine Collins, da Estalagem Drumdoe, em Newtown - vociferou ela. - Acho que um homem hospedado na minha estalagem tem andado a espiar a
nossa casa. - Levou a mão ao bocal e perguntou: - Kyle, quando Meg te deixou aqui, viste se algum carro a tinha seguido?
- Não se preocupe - declarou Kyle. - O tipo do Chevy verde é porreiro. Salvou a vida de Jake quando passou em frente à nossa casa na semana passada.
Catherine gritou à beira do desespero:
- Sr. Agente, ele vai a seguir a minha filha agora. O carro dela é um Mustang branco. O dele, um Chevy verde. Procurem-na! Têm de a encontrar!
O carro-patrulha virou para o carreiro de acesso à casa térrea de madeira com aspecto desleixado em Jackson Heights, e dois polícias saltaram cá para fora.
Ouviu-se o uivo agudo da ambulância acima do guincho dos travões de um comboio na estação, a menos de um quarteirão dali.
Os agentes correram até à porta das traseiras, forçaram-na e desceram com dificuldade as escadas até à cave. Um degrau solto cedeu sob o peso do novato,
mas ele agarrou-se ao corrimão e conseguiu não cair.
Os agentes encontraram a senhora idosa estendida no chão, com o telefone ao lado. Estava deitada junto a uma mesa periclitante com uma pilha de listas telefónicas
em cima. Havia uma velha cadeira de baloiço mesmo em frente a uma televisão com um ecrã gigante. E um toucador velho estava apinhado com um rádio de ondas curtas,
um detector de mensagens da Polícia, uma máquina de escrever e um fax.
O agente mais novo ajoelhou-se ao pé da mulher.
- Sou o agente David Guzman, Mrs. Heffernan - disse ele numa voz tranquilizadora. - Já aí vem uma maca para a levar para o hospital.
A mãe de Bernie disse:
- O meu filho não faz isto por mal.
- Dave, olha para isto!
Guzman levantou-se de um salto.
- O que foi, sargento?
A Lista Telefónica de Qúeens estava aberta, e nessas páginas havia nove ou dez nomes com um círculo à volta. O sargento apontou.
- Todas estas pessoas se queixaram de ter recebido ameaças pelo telefone nas últimas semanas.
Ouviram a equipa da ambulância. A mãe de Bernie, semi-inconsciente, foi levada para a ambulância em menos de cinco minutos.
Os agentes não se foram embora.
- Temos mais que motivos para dar uma vista de olhos - comentou o sargento, e pegou nos papéis junto ao telefax e folheou-os. O agente Guzman abriu as gavetas
sem puxadores da mesa, viu um porta-moedas muito bonito e comentou:
- Parece que Bernie também se tem entretido a assaltar pessoas.
Enquanto Guzman olhava para a fotografia da carta de condução de Annie Collins, o sargento descobriu o original da mensagem de fax, que leu em voz alta:
- ??Engano. Annie foi um engano.
Guzman pegou no telefone que estava no chão.
- Sargento, o melhor é dizer ao chefe que encontrámos um assassino - disse ele.
FOI DIFÍCIL para Bernie manter-se suficientemente longe do carro de Meghan para evitar ser visto. Quase perdeu o carro dela e o carro grande escuro depois
do cruzamento, quando pareceram desaparecer repentinamente. A estrada poeirenta pelo meio da mata era o único sítio para ònde podiam ter ido. Virou cautelosamente.
Agora estava a chegar a uma clareira. O carro branco de Meghan e o outro carro escuro saltavam enquanto percorriam o chão sulcado. Bernie esperou até terem
passado a clareira e entrarem noutra zona arborizada, depois passou com o Chevy.
O segundo bosque não era tão denso como o primeiro. Agora a estrada ia dar directamente a uma casa e um celeiro lá ao longe. Com as teleobjectivas da máquina,
Bernie conseguiu segui-los até desaparecerem por detrás do celeiro.
Bernie ficou sentado muito quieto a pensar no que ia fazer. Havia umas sempre-vivas junto à casa. Talvez lá pudesse esconder o Chevy.
PassavA das 4 horas, e o Sol estava obscurecido pelas nuvens. Meg seguiu atrás de Phillip pela estrada sinuosa e acidentada. Viu à distância uns edifícios:
uma casa de quinta e um celeiro.
O pai estará aqui neste fim de mundo???, pensou Meg. Rezou para encontrar as palavras certas quando estivesse frente a frente com ele.
Contornou os edifícios atrás do carro de Phillip. Ele estacionou, saiu do Cadillac, aproximou-se e abriu a porta do carro de Meg, que, olhando para ele,
perguntou:
- Onde está o meu pai?
- Está aqui perto. - Phillip fitou-a nos olhos.
Foi a maneira brusca como ele respondeu que lhe chamou a atenção. ??Está tão nervoso como eu??, pensou ela enquanto saía do carro.
VICTOR ORSINI combinara estar no escritório de John Dwyer às 3 da tarde. Os investigadores especiais Arlene Weiss e Bob Marron estavam lá quando ele chegou.
Passada uma hora, ainda não descobrira, perante os rostos impassíveis deles, se estavam ou não a acreditar no que lhes dizia.
- Vamos lá rever a coisa outra vez - disse Dwyer.
- Está bem. Edwin Collins telefonou-me do carro no dia 28 à noite. Falámns cerca de oito minutos, até ele ter desligado, porque estava na rampa de acesso
à Ponte Tappan Zee e o piso estava muito escorregadio.
- O que é que levou oito minutos a dizer? - perguntou Arlene Weiss.
Era aquela parte que Victor esperara poder omitir, mas sabia que não acreditariam nele, a menos que contasse toda a verdade. Admitiu relutantemente:
- Ed soubera que eu tinha dado umas dicas a um concorrente sobre vagas que os nossos clientes precisavam de preencher. Sentiu-se ultrajado e mandou-me ir
ao escritório na manhã seguinte.
- E esse foi o seu último contacto com ele?
- No dia 29 de Janeiro estava no gabinete dele às oito da manhã. Sabia que Ed me ia despedir, mas não queria que ele pensasse que traíra a firma por dinheiro.
Ele tinha-me dito que, se obtivesse provas de que eu andava a meter comissões ao bolso, me ia processar. Na altura, pensei que estava a referir-se a comissões já
pagas. Agora, creio que se referia a Helene Petrovic. Acho que ele não estava ao corrente de nada e que depois descobriu e pensou que eu tinha feito um golpe.
- Nós sabemos que a comissão pela colocação dela na Clínica Manning entruu na conta da empresa - disse Bob Marron.
- Ele não podia saber. Eu pesquisei e vi que foi deliberadamente ocultada na quantia recebida pela colocação do Dr. Williams. Era óbvio que Edwin não era
suposto descobrir nada sobre Petrovic.
- Então, quem é que recomendou Helene Petrovic à Manning?
- perguntou Dwyer.
- Phillip Carter. Tinha de ser. Quando a carta que continha os documentos dela foi enviada para a Manning no dia 21 de Março, há quase sete anos atrás, eu
estava há pouco tempo na Collins e Carter. Eu nunca ouvi sequer o nome dessa mulher, e aposto o que quiserem que Ed também não. Ele esteve ausente em finais de Março
daquele ano, incluindo o dia 21. Quando vi no jornal a cópia da carta supostamente assinada por ele, percebi logo que era falsa.
Orsini apontou para a folha de papel que dera a Dwyer e prosseguiu:
- Com a antiga secretária, Ed adquirira o hábito de deixar uma pilha de folhas de papel timbrado assinadas para ela utilizar se ele lhe ditasse uma carta
pelo telefone. Ele confiava plenamente nela. Depois, ela reformou-se, e Ed não tinha ficado muito impressionado com Jackie, a substituta. Lembro-me de o ver rasgar
as folhas com a sua assinatura e dizer-me que dali em diante queria ler tudo o que saía assinado por ele.
- Mas você tem aí na mão uma folha em branco assinada.
- Tenho andado a ver os dossiers de Ed, na esperança de encontrar outras cartas assinadas em branco que lhe tenham escapado. Descobri essa na secretária de
Phillip Carter, e acho que ele a guardou para o caso de precisar de enviar mais alguma coisa assinada por Ed Collins.
Podem ou não acreditar em mim - continuou Orsini. - Mas, pensando novamente naquela manhã do dia 29, em que esperei por Ed no gabinete dele, fiquei com a
nítida sensação de que ele lá tinha estado recentemente. A gaveta do arquivo do H ao O estava aberta. Quase que jurava que tinha estado a examinar o dossier da Manning
à procura de qualquer menção a Helene Petrovic.
Enquanto eu estava à espera dele, Catherine Collins telefonou, preocupada por Ed não estar em casa. Ela fora a uma festa em Hartford na noite anterior e
encontrara a casa vazia quando regressara. Eu contei-lhe que tinha falado com ele na noite anterior quando estava na rampa de acesso à ponte. Nessa altura eu não
sabia nada do acidente - disse Victor. - Ela sugeriu que Ed poderia ter sido uma das vítimas. Depois de falar com Catherine, tentei contactar Phillip mas o telefone
estava ocupado, e como vive apenas a dez minutos do escritório, fui até casa dele. Achei que podíamos ir até à ponte ver se estavam a tirar as vítimas da água.
Quando cheguei, Phillip estava na garagem, a entrar no carro. O jipe também lá estava, e ele fez questão de me dizer que o trouxera do campo para o mandar
à revisão. Na altura, não liguei. Mas nesta última semana, comecei a pensar que, se Ed não esteve envolvido no acidente, foi ao escritório e descobriu uma coisa
que o levou a casa de Carter. Seja o que for que lhe aconteceu, aconteceu naquela casa. Carter deve ter levado Ed no seu próprio carro e escondido o carro. Ed sempre
disse que Phillip tinha muitas propriedades no campo.
Orsini olhou para os rostos impenetráveis dos interrogadores. ??Fiz o que achei que tinha de fazer, pensou ele.
- Isso pode ser-nos útil. Obrigado, Mr. Orsini, depois nós contactamo-lo - disse Dwyer num tom reservado.
Quando Orsini saiu, o procurador-geral-adjunto disse a Arlene Weiss e Bob Marron:
- Encaixa e explica os resultados do laboratório forense. Tinham acabado de saber que o exame feito ao carro de Edwin Collins revelara vestígios de sangue
no porta-bagagem.
ERaM quase 4 horas quando Mac acabou de fazer o que tinha a fazer e se dirigiu para casa. Tinha ido ao barbeiro, buscar a roupa à lavandaria e passara no
supermercado.
Mac sentia-se bem quando virou para a Baybeny Road. O primeiro indício de que algo se passava deparou-se-lhe quando se aproximava da estalagem. Viu carros
da Polícia estacionados à entrada; o parque de estacionamento encontrava-se vedado e estava um helicóptero da Polícia a aterrar, e ele avistou outro, com o logótipo
da televisão de New Haven, já no solo.
Parou o carro no relvado e correu para a estalagem. A porta abriu-se de par em par, e Kyle saiu a correr.
- Pai - soluçou ele. - O homem que não atropelou Jake é o tipo que tem andado a espiar Meg, e ele foi atrás dela no carro dele.
Meg! A visão de Mac toldou-se por instantes.
Kyle agarrou-lhe no braço.
- Os polícias vão mandar helicópteros à procura do carro de Meg e do carro verde do tipo. Mrs. Collins está a chorar. Pai, não deixe que aconteça nada de
mal a Meg.
Ao PERsEGUiR Meghan à medida que ela se embrenhava cada vez mais no campo atrás do Cadillac, Bernie sentira uma raiva lenta e intensa. Queria ficar sozinho
com ela. E se o tipo com quem Meg estava lhe causasse problemas a ele? Bernie deu uma palmadinha no bolso. Lá estava ela. Ele não deveria andar com aquilo, mas quando
se encontrava com alguém de quem gostava, ficava nervoso.
Bernie deixou o carro atrás da moita de sempre-vivas, pegou na máquina e aproximou-se cuidadosamente do grupo de edifícios em ruínas. Agora que estava mais
perto, viu que a casa de quinta era mais pequena do que parecia à distância.
Ao lado ficava o celeiro. Ouviu distintamente vozes por detrás dos edifícios. Esgueirou-se pelas traseiras e espreitou o suficiente para ver o que se estava
a passar.
Meghan estava com um homem que Bernie nunca vira e encontravam-se de pé a cerca de quinhentos metros do que parecia ser um velho poço. O carro grande estava
estacionado entre eles e Bernie. Ele agachou-se e avançou rastejando, escondido pelo carro. Depois, parou, levantou a máquina e começou a filmá-los.
- PHIlLip, antes que o meu pai cá chegue, acho que
descobri o motivo para Helene Petrovic estar na Manning.
- E qual é?
Ela ignorou o tom estranhamente desprendido da voz de Phillip.
- Quando estive em casa de Helene ontem, vi fotografias de crianças no escritório dela. Algumas são idênticas às que eu vira nas paredes do consultório do Dr. Williams,
no Centro Franklin em Filadélfia. Phillip, aquelas crianças não nasceram através da Clínica Manning, e Helene não estava a perder embriões na Manning por puro descuido.
Creio que ela os roubava para depois os dar ao Dr. Williams para serem utilizados no programa de dadores no Franklin.
Porque estaria Phillip a olhar para ela daquela maneira. pensou Meghan repentinamente.
- Ora veja lá se eu não tenho razão, Phillip - insistiu ela. - Helene trabalhou com o Dr. Williams durante seis meses na Manning. Antes disso, e durante
os três anos que trabalhou como secretária no Dowling, costumava rondar o laboratório. Agora, também podemos relacioná-la com Williams nessa altura.
Phillip já parecia descontraído.
- E achas que foi Victor, e não o teu pai quem enviou a carta de recomendação de Helene Petrovic para a Clínica Manning?
- Claro, o meu pai estava em Scottsdale, Annie estava às portas da morte. Nós podemos provar que o meu pai não estava no escritório quando a carta foi enviada.
- Claro que podem.
O TELEFoNEMA de Phillip Carter para o Dr. Henry Williams tivera lugar às 3.15 da tarde de sábado. A conversa fora breve mas arrepiante.
- Meghan Collins relacionou-te com a Helene - disse-lhe Carter.
- Embora pense que foi Orsini quem enviou a carta. Ainda nos podemos safar mas é melhor não abrires o bico.
Henry Williams conseguiu, sem saber como, acabar as consultas. A última acabou às 4.30. Era a essa hora que o Centro de Inseminação Artificial Franklin fechava
aos sábados.
Às 4,45, o pessoal já saíra todo, e ele ficou sozinho. Pegou na fotografia da sua falecida mulher e recostou-se na cadeira a estudá-la.
- Marie - disse ele em voz baixa. - Eu não sabia no que estava a meter-me. Pensei honestamente que estava a fazer o bem. Helene também acreditava nisso.
Voltou a colocar a fotografia no seu lugar, pousou o queixo nas mãos com os dedos entrelaçados e olhou fixamente em frente. Não reparou nas sombras a adensarem-se
lá fora.
Carter enlouquecera. Tinha de ser detido.
A verdade viria à tona. Williams sabia-o agora.
Pensou em Meghan Collins e no pai dela. Já era suficientemente aterrador saber que Carter assassinara Helene para a calar. Teria Carter também alguma
coisa a ver com o desaparecimento de Edwin Collins? E deveria Edwin Collins receber as culpas pelo que os outros tinham feito?
O Dr. Henry Williams pegou num bloco que estava na secretária e começou a escrever. Quando acabou, enfiou as páginas num envelope. Era Meghan Collins que
merecia apresentar aquilo às autoridades. Ele prejudicara-a grandemente a ela e à família.
Meghan deixara-lhe o cartão, o Dr. Williams descobriu-o, endereçou o envelope ao Canal 3 e colou cuidadosamente o selo.
O Dr. Williams apagou a luz ao sair do escritório pela última vez. Deitou a carta num marco de correio ali perto. Meghan Collins recebê-la-ia na terça-feira.
Nessa altura, já não o afectaria.
O SoL estava a baixar. Meghan tiritou. Tinha agarrado na gabardina Burberry quando saíra a correr de casa, sem se lembrar de que lhe tirara o forro para
a viagem a Scottsdale.
Carter estava de calças de ganga e casaco de Inverno, tinha as mãos nos bolsos e estava encostado ao poço de pedra aberto.
Meg começou a tremer. Seriam apenas nervos e frio?
- Vou-me sentar no carro até o meu pai chegar, Phillip. Ele vem de muito longe?
- Não, Meg. Para dizer a verdade está incrivelmente perto.
Phillip tirou as mãos dos bolsos. Numa delas tinha uma arma. Fez um gesto em direcção ao poço. - E já está morto há muito tempo.
- Não deixes que aconteça nada de mal a Meg -
Foi a prece fervorosa que Mac sussurrou quando ele e Kyle iam a entrar na estalagem. A zona da recepção estava a abarrotar de polícias e jornalistas. Catherine
estava empoleirada na beirinha de um pequeno sofá na sala de estar, muito pálida.
Quando Mac se aproximou, ela agarrou-lhe as mãos.
- Mac. Victor falou com a Polícia. Phillip estava por detrás disto tudo. Acreditas? Eu confiava plenamente nele. E Meg está a ser seguida por um homem perigoso
com um historial de ligações obsessivas a mulheres que nem sabiam de nada. Tenho tanto medo. Não posso perdê-la, Mac.
Arlene Weiss entrou a correr na sala.
- Mrs. Collins, a equipa de um helicóptero de controle de trânsito acha que viu o carro verde numa velha quinta perto de West Redding. Chegamos lá em menos
de dez minutos.
Mac deu a Catherine um abraço, que ele esperava que fosse tranquilizador.
- Eu vou descobrir Meg - prometeu ele. - Não lhe vai acontecer nada.
Depois, correu lá para fora. O jornalista e o operador de câmara de New Haven estavam a correr para o respectivo helicóptero. Mac enfiou-se atrás deles no
helicóptero.
- Não pode entrar aqui - gritou o robusto jornalista acima do ronco do motor a aquecer para a descolagem.
- Ai isso é que posso - disse Mac. - Sou médico. Podem necessitar de mim.
MEGghAN olhou fixamente para ele, confusa.
- Phillip, eu... eu não estou a compreender - gaguejou ela.O corpo do meu pai está nesse poço?
Deu um passo em frente, colocando as mãos na pedra húmida e fria. Já esquecera Phillip e a arma que ele lhe apontava. Fitava o enorme buraco de olhos esbugalhados
e totalmente horrorizada.
- Não vais conseguir vê-lo, Meg. Não há muita água aí em baixo, apenas a suficiente para o cobrir. Já estava morto quando o empurrei lá para dentro. Dei-lhe
um tiro na noite do acidente na ponte.
Meg virou-se para ele.
- Como é possível ter-lhe feito uma coisa dessas? Era seu amigo, seu sócio. Como é possível ter feito o que fez a Helene e a Annie?
- Eu não tive nada a ver com a morte de Annie.
- Você tencionava matar-me, mandou-me o fax a dizer que a morte de Annie tinha sido um engano.
Meg olhava rapidamente em redor. Haveria alguma maneira de conseguir chegar ao carro? Não, ele dava-lhe um tiro mal ela desse um passo.
- Meghan, eu soube do fax por ti. Foi como uma dádiva. Eu precisava que as pessoas acreditassem que Ed ainda estava vivo e tu ajudaste-me.
- O que é que fez ao meu pai?
- Ed telefonou-me do escritório na noite do acidente. Disse-me que Orsini andava a aldrabar-nos, que o Dr. Manning lhe tinha dito que nós tínhamos colocado
uma embriologista na clínica chamada Helene Petrovic de quem ele nunca sequer ouvira falar. Tinha ido ao escritório examinar o dossier da Manning e não conseguira
encontrar nenhuma referência a ela, e responsabilizava Orsini. Eu disse-lhe para ir a minha casa para tentarmos arranjar solução para o assunto. Quando lá entrou,
estava pronto a acusar-me, já encaixara as peças todas. O teu pai era muito esperto. Não me deixou outra alternativa. Percebi o que tinha de fazer.
? ?Tenho tanto frio, tanto frio!, pensou Meghan.
- Correu tudo bem por uns tempos - prosseguiu Phillip. - Depois Helene Petrovic demitiu-se, dizendo a Manning que tinha cometido um erro que iria causar
problemas. Eu não podia arriscar que ela deitasse tudo a perder, pois não? No dia em que foste ao escritório e me contaste da rapariga que tinha sido apunhalada
e de como ela era muito parecida contigo, foi quando me contaste do fax. Eu sabia que o teu pai tinha um romance algures no Oeste. Não era difícil imaginar que pudesse
ter uma filha. Pareceu-me a altura ideal para
o fazer ressuscitar.
- Pode não ter enviado o fax, mas fez o telefonema que mandou a minha mãe para o hospital. Encomendou as rosas e estava sentado ao lado dela quando foram
entregar-lhas. Como é que foi capaz de lhe fazer uma coisa daquelas?
- Meghan, eu perdi múito dinheiro com o divórcio. Gastei milhares de dólares em propriedades que estou a tentar manter. O Dr. Williams e eu descobrimos uma
maneira de fazer dinheiro sem prejudicar ninguém, e Helene Petrovic também meteu dinheiro ao bolso.
- Roubando embriões para o programa de dadores do Centro Franklin?
- Não és tão esperta como eu pensava, Meghan. Há muito mais para além disso, embriões doados são uma ninharia.
Levantou a pistola. Meghan viu a boca da arma apontada ao seu coração, viu o dedo apertar mais o gatilho e ouviu-o dizer:
- Guardei o carro de Edwin no celeiro até à semana passada. Agora, vou lá guardar o teu. E tu podes ir fazer-lhe companhia.
Meghan, instintivamente, atirou-se para o lado.
A primeira bala passou-lhe por cima da cabeça. A segunda atingiu-a no ombro.
Antes de ele conseguir disparar novamente, saltou um vulto vindo de algures lá de onde. Um vulto pesado que empunhava um punhal com uma lâmina brilhante,
uma espada vingadora que procurou e descobriu a garganta de Phillip.
Meghan sentiu uma dor insuportável no ombro esquerdo antes de mergulhar na escuridão.
Quando Meghan recuperou os sentidos, estava deitada no chão com a cabeça no colo de alguém. Fez um esforço
para abrir os olhos, olhou para cima e viu o sorriso angélico de Bernie Heffernan, depois sentiu os seus beijos húmidos no rosto, lábios e pescoço.
- Ainda bem que consegui salvar-te, Meghan. Não faz mal usar um punhal para salvar uma pessoa, pois não? - perguntou Bernie. - Eu nunca quero fazer mal a
ninguém. Eu não queria fazer mal a Annie naquela noite. Foi um engano. - Repetiu a frase baixinho como uma criança: - Annie foi um engano.
??Ele é louco??, pensou Meg. Aquele era Bernie, o alegre empregado do parque de estacionamento. Como é que ele teria vindo ali parar? Porque andaria a segui-la?
E ele dissera que tinha morto Annie. ??Meu Deus, ele matou Annie!? Meghan tentou sentar-se.
- Não queres ficar no meu colo, Meg? Eu nunca te faria mal.
- Claro que não. - Ela sabia que tinha de o tranquilizar, mantê-lo calmo. - O chão é que está muito frio.
- Desculpa, eu devia ter pensado nisso.
Ele manteve o braço à volta dela, chegando-a a si enquanto tentavam ambos pôr-se em pé. A pressão do braço dele à volta do ombro intensificava-lhe a dor
do ferimento. Ela ia desmaiar novamente.
- Bernie, dói-me tanto o ombro!
Meghan viu no chão o punhal que ele utilizara para matar Phillip. Teria sido com aquele punhal que ele matara Annie?
- Oh, desculpa. - Falava com os lábios no cabelo dela. - Mas fica aí um minuto. Quero filmar-te. Estás a ver a minha máquina?
A máquina dele. É claro. Devia ser ele o homem da câmara que quase estrangulara Kyle na mata. Meghan encostou-se ao poço enquanto ele a filmava.
Depois, Bernie pousou a câmara e aproximou-se dela.
- Meghan, eu sou um herói. - Os olhos dele pareciam dois botões azuis brilhantes. - Salvei-te a vida, mas não tenho permissão para andar armado. Um punhal
é uma arma. Vão fechar-me novamente no hospital da prisão. Detesto aquilo.
- Eu falo com eles.
- Não, Meghan. Foi por isso que tive de matar Annie. Ela começou a gritar. E quando a vi naquela noite, eu só me aproximei dela e disse: ??Este bairro é
perigoso. Eu tomo conta de ti. Pensei que eras tu, Meghan. Eu não queria fazer-lhe mal. Eu nem sequer sabia que tinha o punhal naquela noite.
- Ainda bem que o tinhas agora. - ??O carro??, pensou Meg. ?.As chaves estão lá. É a minha única hipótese.?? - Mas acho que não devias deixar ali o punhal
para a Polícia encontrar. - Ela apontou para o punhal.
Ele olhou por cima do ombro.
- Oh, obrigado, Meghan.
Se não fosse suficientemente rápida, ele perceberia que ela estava a tentar fugir e estaria com o punhal na mão. Mas quando ele se virou e se dirigiu ao
corpo de Phillip, que estava a meia dúzia de passos, Meghan deu meia volta e desatou a correr aos tropeções devido à fraqueza e à pressa, escancarou a porta do carro
e enfiou- se por detrás do volante.
- Meghan, o que estás a fazer? - guinchou Bernie.
As mãos dele agarraram-se ao puxador da porta do carro no momento em que ela a trancou. Ele continuou agarrado ao puxador enquanto ela punha o motor a trabalhar.
O carro deu um salto para a frente. Bernie continuou agarrado ao puxador por uns metros, aos gritos, depois largou-o e caiu. Meghan contornou rapidamente
os edifícios, mas ainda não chegara à área arborizada quando olhou pelo retrovisor e viu o carro dele a arrancar em sua perseguição.
O HELICÓPTERO estava a sobrevoar uma zona arborizada. O jornalista e o operador de câmara esforçavam os olhos.
- Olhem! - gritou o piloto. - Ali está a casa de quinta. Mac nunca chegou a perceber o que o fizera olhar para trás.
- Volte para trás ! - gritou ele. - Volte para trás ! O Mustang branco de Meg saiu disparado da mata com um carro verde poucos centímetros atrás, batendo
repetidamente contra ele. Enquanto Mac olhava, o Chevy pôs-se ao lado do Mustang e começou a bater-lhe de lado.
- Desça! - gritou Mac ao piloto. - Ele está a tentar matá-la.
O carro de Meghan era mais rápido, mas Bernie era melhor condutor. Ela conseguira manter-se à frente dele durante um bocado mas agora não conseguia fugir-lhe.
Ele batia contra a porta do condutor. Meghan manteve o pé no acelerador, e o carro ziguezagueou desenfreadamente pelos campos enquanto Bernie o atacava.
A porta do lado do condutor esmagou-se contra o ombro dela quando o motor oscilou e se virou de lado. Passado um segundo, as chamas irromperam do capô.
BERNIE queria ver o carro de Meghan a arder, mas a Polícia vinha a caminho. Ele ouvia as sirenes a aproximarem-se e um helicóptero lá em cima. Tinha de fugir.
Arrancou pela escuridão que se adensava rapidamente e atravessou a segunda zona arborizada. Chegou ao cruzamento onde tinham virado para a estrada de terra.
Acenderam-se uns faróis e um megafone disse:
- Polícia, Bernie. Saia do carro com as mãos no ar. Bernie começou a chorar.
- Mamã, mamã - soluçou ele. Abriu a porta e levantou os braços.
O CARRO estava de lado. A porta do condutor estava a apertá-la.
Meghan sentiu um cheiro a fumo, que começou a entrar pelo sistema de ventilação. ??Oh meu Deus, estou encurralada??, pensou Meghan. O carro estava caído sobre a
porta do passageiro.
Meghan começou a sentir ondas de calor. Tinha os pulmões cheios de fumo. Tentou gritar, mas não saiu nenhum som.
MAC CORREU à frente dos outros desde o helicóptero até ao carro de Meg. As chamas que saíam do motor aumentaram exactamente quando iam a chegar. Ele viu
Meg lá dentro tentando libertar- se, com o corpo iluminado pelas chamas que se espalhavam pelo capô.
- Temos que a tirar pela porta do passageiro - gritou ele.
Mac, o piloto, o jornalista e o operador de câmara puseram ao mesmo tempo as mãos no tejadilho sobreaquecido do Mustang. Empurraram, abanaram e tornaram
a empurrar todos ao mesmo tempo.
- Agora! - gritou Mac. Com um gemido, atiraram o peso dos corpos contra o carro, com as palmas das mãos a queimarem-se.
E o carro começou a mexer-se lentamente e oferecendo resistência. Por fim, rendeu-se rapidamente e caiu sobre os pneus, voltando mais uma vez à posição correcta.
Como num sonho Meg viu o rosto de Mac e conseguiu, sem saber como, esticar-se e abrir o trinco da porta antes de desmaiar.
O HELICÓPTERO aterrou no Centro Médico de Danbury.
Tonta e cega de dor, Meghan apercebeu-se de que a tiravam dos braços de Mac e a punham numa maca.
??Outra maca. Annie a ser levada à pressa para as urgências. Não! Não!??, pensou ela.
- Mac. Mac.
Sentiu uma mão sobre a sua.
- Estou aqui, Meggie. Estou aqui.
Ela ACoRDOU na sala de reanimação e apercebeu-se de que tinha uma ligadura espessa no ombro; uma enfermeira fitava-a. Mais tarde levaram-na na cama para
um quarto. A mãe. Mac. Kyle. À espera dela.
O rosto da mãe estava milagrosamente tranquilo quando os olhos de ambas se cruzaram. Parecendo ler-lhe os pensamentos, Catherine disse:
- Meg, o corpo do pai foi recuperado.
Mac tinha o braço sobre os ombros da mãe dela. Ele tinha as mãos ligadas. Mac, a sua torre de força. Mac, o amor da sua vida.
O rosto de Kyle manchado de lágrimas ao lado do dela.
- Não faz mal se me quiseres dar beijos em frente das outras pessoas, Meg.
O coRPo do Dr. Henry Williams foi encontrado no domingo à noite no carro dele, nos arredores do seu bairro tranquilo. Tinha tomado uma dose letal de sedativos.
As cartas que deixara ao filho e à filha continham mensagens de amor e pedidos de perdão.
Meghan teve alta do hospital na segunda-feira de manhã. Tinha o braço ao peito e sentia uma dor vaga e constante no ombro. Fora isso, estava a recuperar
rapidamente.
Quando chegou a casa, Catherine estava a desligar o telefone.
- Acabei de cancelar a venda da estalagem - informou ela.O seguro está a processar o pagamento de todas as apólices do pai. É muito dinheiro, Meg.
Meg beijou a mãe.
- Fico tão contente pela estalagem! A mãe ia sentir-se perdida sem ela.
Com um roupão confortável, enquanto bebia café e sumo leu os jornais. De manhã cedo, no hospital, vira a notícia do suicídio de Williams na televisão.
- Estão a passar a pente fino os arquivos do Centro Franklin para tentarem descobrir quem recebia os embriões que Petrovic roubava da Clínica Manning.
- Meg, deve ser uma coisa horrível para as pessoas que lá tinham embriões criopreservados pensar que o filho biológico delas poderá ter nascido de uma estranha
- disse Catherine Collins. - Haverá dinheiro no Mundo que compense fazer uma coisa dessas?
- Aparentemente, há. Phillip disse-me que precisava de dinheiro. Mas, sabe uma coisa, mãe? Quando eu lhe perguntei se Helene Petrovic andava a roubar embriões
para o programa de doação, ele disse-me que eu não era tão esperta como ele pensara.
Meghan beberricou o café e prosseguiu:
- O que quereria ele dizer com aquilo? E o que aconteceu a Stephanie Petrovic. Terá Phillip Carter matado a pobre rapariga? Mãe, o filho dela estava para
nascer por estes dias.
Tom WEickER telefonou na terça-feira às 9 da manhã. Não perguntou como é que Meghan se sentia e ela pressentiu a alteração de tom na voz dele mesmo
antes de ele dizer:
- Meg, nós temos uma história de arromba.
- Qual é, Tom?
- Recebemos uma carta do Dr. Williams para ti com as palavras ??Pessoal e confidencial.
- Do Dr. Williamas! Abra-a, Tom. Leia-ma.
Seguiu-se uma pausa enquanto ele abria o envelope.
- Meg, isto é a confissão de Williams. Vou mandar-te por fax. Vamos lê-la juntos.
Meghan correu lá para baixo. Chegou ao escritório a tempo de ouvir o apito estridente do fax. A primeira página da declaração do Dr. Henry Williams começou
lentamente a emergir. Eram cinco páginas. Meghan leu-a e releu-a.
O telefone tocou. Ela sabia que era Tom Weicker.
- O que é que achas, Meghan?
- Está lá tudo. Precisava de dinheiro por causa das contas acumuladas durante a longa doença da mulher. Helene Petrovic detestava ver os embriões criopreservados
serem destruídos, pois encarava-os como crianças que podiam encher a vida de casais sem filhos. Williams via-os como crianças que as pessoas pagariam fortunas para
adoptar e sondou Carter, que estava mais do que disposto a colocar Helene Petrovic na Manning utilizando a assinatura do meu pai.
- Pensaram em tudo - disse Weicker. - Uma casa isolada para onde levavam mulheres imigrantes ilegais, dispostas a serem mães de aluguer em troca de dez mil
dólares e de uma autorização de residência falsa. O preço não era elevado, se pensarmos que Williams e Carter vendiam os bebés no mínimo por cem mil dólares cada
um. Nos últimos seis anos, venderam mais de duzentos bebés.
- E depois Helene demitiu-se - prosseguiu Meghan -, dizendo que cometera um erro que estava para vir a público. A primeira coisa que o Dr. Manning fez foi
falar ao Dr. Williams a contar. O Dr. Manning confiava em Williams e precisava de alguém com quem falar. Contou a Williams que Helene Petrovic estava muito preocupada
por estar convencida de que destruíra o gémeo verdadeiro do bebé Anderson quando escorregara no laboratório.
Williams telefonou a Phillip, que entrou imediatamente em pânico - prosseguiu Meg. - Phillip tinha a chave do apartamento de Helene no Connecticut. Eles
não tinham nenhum envolvimento romântico. Por vezes, ele tinha de transportar imediatamente embriões que ela trazia da clínica depois de terem sido fertilizados
e antes de serem criopreservados. Ele levava-os rapidamente para a Pensilvânia para serem implantados no útero de mães de aluguer.
- Phillip Carter entrou em pânico e matou-a. Meg, o Dr. Williams deu-te a morada da casa onde ele e Carter mantinham aquelas raparigas grávidas. Somos obrigados
a dar essa informação às autoridades, mas queremos lá estar quando lá chegarem. Queres ir?
- Claro que quero. Pode mandar-me um helicóptero, Tom? Mande
um dos grandes. Esqueceu-se de uma coisa importante na confissão de Williams: foi ele que Stephanie Petrovic contactou quando precisou de ajuda.
Tom prometeu mandar imediatamente um helicóptero buscá-la à Estalagem Drumdoe. Meghan fez duas chamadas. A primeira foi para Mac.
- Podes vir, Mac? Queria que estivesses comigo.
A segunda foi para uma mãe que tivera um filho havia pouco tempo.
- A senhora e o seu marido podem vir ter comigo daqui a uma hora?
A casa que o Dr. Williams descreveu na sua confissão ficava a sessenta quilómetros de Filadélfia. Tom Weicker e a equipa do Canal 3 estavam à espera quando
o helicóptero que trazia Meghan, Mac e os Andersons aterrou num campo ali perto. Estavam meia dúzia de carros da Polícia estacionados ali perto.
- Porque é que viemos aqui, Meghan? - perguntou Dina Anderson quando entraram num carro do Canal 3 que estava à espera deles.
- Se eu tivesse a certeza, dizia-lhes - disse Meghan. Todos os seus instintos lhe diziam que tinha razão. Na sua confissão, Williams tinha escrito: ??Não
fazia a menor ideia de que, quando Helene me trouxe Stephanie e me pediu que lhe implantasse um embrião, ela tencionava, caso a gravidez chegasse a termo, criar
o bebé como se fosse seu.
As jovENs albergadas na velha casa encontravam-se em diferentes estádios de gravidez. Meghan viu o pavor estampado nos seus rostos ao verem-se confrontadas
com as autoridades.
- Por favor, não me mandem para casa, por favor! - implorou uma adolescente. - Quando o bebé nascer, pagam-me, por favor?
- Mães hospedeiras - sussurrou Mac a Meghan. - Williams disse se tinham registos com os nomes dos pais dos bebés que estas raparigas trazem no útero?
- Na confissão dizia que são bebés das mulheres que têm embriões criopreservados na Manning - disse Meghan. - Helene Petrovic vinha cá regularmente
certificar-se de que as raparigas estavam a ser bem tratadas.
Stephanie Petrovic não estava lá.
- Ela está no hospital da zona onde as nossas raparigas vão ter os bebés. Está em trabalho de parto - disse uma enfermeira.
- PoRQUE estamos nós aqui? - perguntou novamente Dina Anderson uma hora mais tarde, quando Meghan regressou ao átrio do hospital.
Tinham permitido a Meghan ficar junto de Stephanie na última fase do trabalho de parto.
- Vamos ver o bebé de Stephanie daqui a uns minutos - esclareceu Meghan. - Ela teve-o para Helene. Era esse o acordo delas.
Mac puxou Meghan de lado.
- É aquilo que eu estou a pensar?
Ela não lhe respondeu. Vinte minutos depois, o obstetra que assistira ao parto de Stephanie saiu do elevador e fez-lhes sinal.
- Podem subir agora - disse ele.
Dina Anderson agarrou na mão do marido. Demasiado ansiosa para falar, pensou: ??Será possível?
Tom Weicker e o operador de câmara acompanharam-nos e começaram a filmar quando uma enfermeira sorridente trouxe o bebé envolto num cobertor até à janela
do berçário e o mostrou.
- É Ryan! - gritou Dina Anderson. - É Ryan!
No domingo seguinte, os restos mortais de Edwin Collins foram enterrados após um serviço fúnebre muito íntimo em St. Paul. Mac estava junto à sepultura com
Catherine e Meg.
Chorei tantas lágrimas por si, pai, que acho que não me sobraram nenhumas, pensou Meg. Depois, murmurou tão baixinho que ninguém ouviu:
- Eu adoro-o, pai.
Catherine pensou no dia em que a campainha da porta tocara e ela deparara com Edwin Collins, bonito e com o sorriso fácil que ela tanto amara, com uma dúzia
de rosas na mão. Venhofazer-te a corte, Catherine. ??Daqui a algum tempo, só recordarei os bons momentos, prometeu ela a si mesma.
De mãos dadas, dirigiram-se os três ao carro que os aguardava.
ACERCA DA AUTORA
- As minhas heroínas são mulheres fortes que desempenham o papel principal na resolução dos seus problemas - diz Mary Higgins Clark. - Quando são
atingidas pela calamidade, continuam em frente.
É óbvio que esta atitude independente agrada aos leitores - Mary Higgins Clark é uma das autoras de policiais com mais livros vendidos no Mundo inteiro.
Mas o caminho até ao sucesso nem sempre foi fácil, Tal como a sua mais recente heroína, Meghan Collins, em Até à Vista, esta escritora sabe por experiência própria
o que custa perder um ente querido.
O pai dela, que geria um bar-grill no Bronx, morreu durante o sono quando ela tinha apenas dez anos.
- A sua morte súbita fez-me pensar na fragilidade da vida - diz ela.
- A minha mãe criou-me a mim e aos meus dois irmãos sozinha. O exemplo dela ensinou-me a enfrentar as provações.
Depois do liceu e da escola de secretariado, a escritora trabalhou numa agência de publicidade e depois como hospedeira. Seguiu-se o casamento com o comandante
de aviação Warren Clark. O casal viveu quinze anos felizes, até Warren falecer com um ataque de coração. Então, tal como a sua mãe, Mary Higgins Clark teve de criar
os filhos sozinha. Para fazer face às despesas, arranjou emprego como escritora de guiões para a rádio. Escrevia os seus textos entre as 5 e as 7 da manhã, antes
de tratar dos cinco filhos para irem para a escola. Naqueles duros anos, ela demonstrou talento, perseverança e, acima de tudo, humor. O seu grande êxito surgiu
em 1975 com o primeiro de onze best sellers, intitulado Onde Estão as Crianças ?, e publicado nos Livros Condensados em 1979.
A atitude positiva da escritora ajudou-a também noutro aspecto da sua vida. Em 1979, com cinquenta e um anos de idade, formou-se em Filosofia na Universidade
Fordham, em Nova Iorque - com nada mais nada menos que Bom, com distinção. Para comemorar, resolveu oferecer a si própria uma festa de formatura. O convite revelava
a sua visão optimista da vida: ??Este convite chega com vinte e cinco anos de atraso. ajude-me a provar que não é tarde demais.??
FimOBRAS DE MARY HIGGINS CLARK
Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz.
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
7 Atéà Vista
8 O Berço da Morte
O BERÇO DA MORTE
MARY HIGGINS CLARK
O BERÇO DA MORTE
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original The Cradle Will Fall
Tradução de Maria Teresa Pinto Pereira Tradução portuguesa (c) de P E A, 2001
Esta obra foi publicada anteriormente na colecção "Pêndulo" com o título A Clínica do Terror
Capa estúdios PEA
(c) 1980 by Mary Higgins Clark
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica
do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte
prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
secretariado @ europa-america.pt
Edição n ° 106708/7562 Janeiro de 2001
Execução técnica Gráfica Europam, Lda, Mira-Sintra Mem Martins
Depósito legal n ° 160102/01
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
Para Ray, sempre com amor
Envelhece comigo!
O melhor ainda está para vir,
O último da vida, para o qual o primeiro foi feito.
Robert Browning
Alguns doentes, embora conscientes da gravidade do seu estado, restabeleceram-se simplesmente devido ao seu contentamento com a afabilidade do médico
Hipocrates
Se o seu espírito não estivesse concentrado no caso que ganhara, Katie talvez não tivesse dado a curva com tanta velocidade, mas a satisfação intensa do veredicto
de culpado ainda a absorvia. Fora difícil. Roy O'Connor era um dos eminentes advogados de defesa em Nova Jérsia. A confissão do réu fora suprimida pelo tribunal,
um golpe importante para a acusação. Mas, mesmo assim, ela conseguira convencer o júri de que Teddy Copeland era o homem que assassinara traiçoeiramente Abgail Rawlings,
de 80 anos de idade, durante um assalto.
A irmã da Menina Rawlings, Margaret, estava no tribunal para ouvir a sentença e mais tarde viera ter com Katie. "Foi maravilhosa, Sr.a DeMaio", dissera. "Parece
uma jovem universitária. Nunca pensei que conseguisse, mas, quando falou, a senhora provou todos os pontos; levou-os a sentir o que ele fez à Abby. Que irá acontecer
agora?"
"Com o relato dele, esperemos que o juiz decida mandá-lo para a prisão para o resto da vida", respondeu Katie.
"Graças a Deus", dissera Margaret Rawlings. Os olhos, já húmidos e mortiços da idade, encheram-se de lágrimas. Limpou-as calmamente quando disse: "Sinto tanto a
falta da Abby. Éramos só as duas. E não consigo deixar de pensar no medo que ela deve ter sentido. Teria sido terrível se ele tivesse escapado sem castigo."
"Ele não escapou sem castigo!" A recordação dessa certeza distraía Katie naquele momento e fez com que ela carregasse com o pé no acelerador com mais força. O aumento
súbito de velocidade quando curvou fez o carro derrapar na estrada coberta de saraiva.
Oh... não! Ela agarrou o volante freneticamente. A estrada secundária estava escura. O carro atravessou a toda a velocidade a divisória e rodopiou. Viu faróis a
aproximarem-se ao longe.
Ela rodou o volante mas não conseguiu dominar o carro que
patinava. Este continuou a resvalar para a berma da estrada sobre um dos lados, mas a berma também era um lençol de gelo. Como um esquiador prestes a saltar, o carro
desequilibrou-se por instantes na berma, as rodas levantaram quando o carro desceu ruidosamente o talude íngreme e caiu nos campos arborizados.
Uma forma escura surgiu à sua frente: uma árvore. Katie sentiu o impacto nauseante quando o metal se cravou na casca. O carro tremeu. O seu corpo foi atirado contra
o volante, depois projectado de novo para trás com violência. Levantou os braços à frente do rosto, procurando protegê-lo das lascas de vidro que saltavam do pára-brisas.
Uma dor aguda, dilacerante, atacou-lhe os pulsos e os joelhos. Os faróis dianteiros e as luzes do painel apagaram-se. Uma escuridão cerrada, aveludada, concentrava-se
sobre ela quando ouviu algures ao longe uma sirena.
O ruído da porta do carro a abrir-se; uma rajada de vento frio.
Meu Deus, é Katie DeMaio!
Uma voz que ela conhecia. Tom Coughlin, o jovem e simpático polícia. Prestara declarações num julgamento na semana anterior.
Está inconsciente.
Tentou protestar, mas os seus lábios não formaram palavras. Não podia abrir os olhos.
O braço está a sangrar. Parece que cortou uma artéria. Seguravam-lhe o braço; apertava-o qualquer coisa. Uma voz diferente:
Ela pode ter lesões internas, Tom. Westlake é mesmo o fim da estrada. Vou pedir uma ambulância. Tu ficas com ela.
"Flutuando. Flutuando. Estou bem. Só que não consigo chegar-lhe."
Mãos ergueram-na e colocaram-na sobre uma maca; sentiu um cobertor a tapá-la, a saraiva batia-lhe no rosto.
Estava a ser transportada. Um carro punha-se em movimento. Não, era uma ambulância. Portas que se abriam e fechavam.
"Se ao menos pudesse fazê-los compreender. Eu ouço-os. Não estou inconsciente."
Tom estava a dar o seu nome.
Kathleen DeMaio, vive em Abbington. É promotora de Justiça. Não, não é casada. É viúva. Viúva do juiz DeMaio.
A viúva de John. Uma terrível sensação de solidão. A escuridão começava a desaparecer. Brilhava uma luz nos seus olhos.
Ela está a recuperar os sentidos. Que idade tem, Sr.a DeMaio?
12
Apergunta, tão prática, tão fácil de responder. Ela pode falar, finalmente.
Vinte e oito.
O torniquete que Tom lhe colocara no braço estava a ser tirado. O braço estava a ser suturado. Ela esforçou-se por não se assustar com as agulhas da dor.
Raios X. O médico das Urgências.
Teve muita sorte, Sr.a DeMaio. Algumas feridas bastante graves. Nenhuma fractura. Mandei que lhe fizessem uma transfusão. Perdeu muito sangue. Não tenha medo. Vai
ficar boa.
É que... Mordeu o lábio. Recuperava a razão e conseguiu dominar-se antes de apagar do espírito aquele medo de hospitais, terrível, cego e infantil.
Tom perguntava:
Quer que telefonemos à sua irmã? Vai ficar aqui esta noite.
Não. Molly está com gripe. Todos a tiveram. A voz parecia tão fraca. Tom teve de se curvar sobre ela para a ouvir.
Está bem, Katie. Não se preocupe com nada. Vou mandar rebocar o carro.
Foi levada na maca para uma secção da sala de Urgências, separada por uma cortina. Começou a gotejar sangue num tubo introduzido no braço direito. O espírito já
estava a desanuviar.
Doía-lhe muito o braço esquerdo e os joelhos. Doía-lhe tudo. Estava num hospital. Estava sozinha.
Uma enfermeira afastava-lhe suavemente o cabelo da testa.
Vai ficar boa, Sr.a DeMaio. Está a chorar?
Não estou a chorar. Mas estava.
Foi levada para um quarto. A enfermeira deu-lhe uma taça de papel e um comprimido.
Isto vai ajudá-la a descansar, Sr.a DeMaio.
Katie tinha a certeza de que era um soporífero. Não o queria. Iria dar-lhe pesadelos. Mas era muito mais fácil não discutir.
A enfermeira apagou a luz. Os seus passos produziram sons abafados e suaves quando saiu do quarto. O quarto estava frio. Os lençóis eram frios e ásperos. Os lençóis
dos hospitais seriam sempre assim? Katie adormeceu, consciente de que o pesadelo era inevitável.
Mas desta vez assumiu uma forma diferente. Ela estava numa montanha-russa. Esta subia cada vez mais alto, descia cada vez mais a pique, e não conseguia dominá-la.
Tentava controlá-la. Foi então que deu uma curva, saiu dos trilhos e despenhou-se. Acordou a tremer antes de embater no solo.
13
A saraiva batia na janela. Sentou-se na cama com esforço. A janela tinha uma fresta e fazia abanar a persiana. Era por isso que o quarto tinha tanta corrente de
ar. Fecharia a janela, subiria a persiana e então talvez pudesse dormir. De manhã podia ir para casa. Detestava hospitais.
Caminhou vacilantemente até à janela. A bata do hospital que lhe tinham dado mal chegava aos joelhos. As pernas estavam frias. E aquela saraiva. Agora estava misturada
com mais chuva. Encostou-se ao peitoril, olhou pela janela.
O parque de estacionamento transformava-se em correntes de água que jorrava.
Katie agarrou a persiana e olhou fixamente para o parque, dois andares abaixo de onde ela se encontrava.
A tampa da mala de um carro subia lentamente. Estava tão tonta. Vacilou, largou a persiana, e esta subiu com um estalido. Agarrou-se ao peitoril. Olhou fixamente
para a mala. Estava a deslizar qualquer coisa para dentro dela? Um cobertor? Uma trouxa grande?
Devia estar a sonhar, pensou Katie; em seguida levou a mão à boca para abafar o grito que lhe puxava a garganta. Olhava fixamente para a mala do carro. A luz da
mala estava acesa. Através das ondas de chuva misturada com saraiva que batiam na janela, viu a substância branca a dividir-se. Quando a mala se fechou, viu um rosto
o rosto de uma mulher, grotesca na naturalidade da morte.
O despertador acordou às duas em ponto. Longos anos de aprendizagem para acordar para as urgências faziam-no despertar num instante. Levantando-se, caminhou para
a pia da sala de observações, borrifou o rosto com água fria, compôs a gravata e fez um nó pequeno, penteou-se. As peúgas ainda estavam molhadas. Estavam frias e
húmidas quando as tirou do irradiador quase morno. Fazendo trejeitos, calçou-as e enfiou os pés nos sapatos.
Estendeu o braço para pegar no sobretudo, tocou-lhe e estremeceu. Ainda estava todo encharcado. Pendurá-lo perto do irradiador não valera de nada. Se o vestisse
acabaria por
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apanhar uma pneumonia. Além disso, as fibras brancas do cobertor podiam agarrar-se ao azul-escuro. Isso teria de ter uma explicação.
O velho Burberry que guardava no armário. Vestiria esse, deixaria ali o casaco molhado, deixá-lo-ia ficar na lavandaria no dia seguinte. A gabardina não tinha forro.
Iria morrer de frio, mas era a única coisa a fazer. Além do mais, era tão vulgar verde-seca, larga, agora que emagrecera. Se alguém viu o carro, viu-o dentro do
carro, havia menos hipóteses de ser reconhecido.
Dirigiu-se apressadamente ao armário da roupa, tirou a gabardina do cabide de fio metálico onde estava torta e cheia de pregas, e pendurou o Chesterfield ensopado
em água na parte de trás do armário. A gabardina cheirava a bafio um cheiro a pó irritante, que lhe atacou as narinas. Franzindo as sobrancelhas, enojado, vestiu-a
e abotoou-a.
Acercou-se da janela e puxou um pouco a persiana para trás. Ainda havia bastantes carros no parque de estacionamento, por isso a presença ou a ausência do seu dificilmente
seria notada. Mordeu o lábio quando se apercebeu de que a lâmpada partida que fazia sempre com que a zona mais afastada do parque estivesse satisfatoriamente escura
tinha sido substituída. A parte traseira do carro era delineada por ela. Teria de caminhar na sombra dos outros carros e meter o corpo na mala o mais depressa possível.
Estava na hora.
Abrindo o armário dos medicamentos, curvou-se. Com mãos hábeis tacteou os contornos do corpo sob o cobertor. Gemendo um pouco, meteu uma mão por baixo do pescoço,
a outra por baixo dos joelhos, e pegou no corpo. Em vida ela devia pesar cerca de cinquenta quilos, mas engordara durante a gravidez. Os músculos sentiam cada grama
daquele peso enquanto a levava para a mesa de observações. Aí, trabalhando apenas à luz da pequena lanterna apoiada sobre a mesa, embrulhou-a com o cobertor.
Examinou atentamente a parte de baixo do armário dos medicamentos e fechou-o de novo à chave. Abrindo a porta que dava para o parque de estacionamento, sem fazer
barulho, segurou a chave da mala do carro entre dois dedos. Dirigiu-se calmamente para a mesa de observações e pegou na mulher morta. Aqueles vinte segundos podiam
destruí-lo.
Passados dezoito segundos estava junto do carro. A saraiva batia-lhe na face; o fardo coberto por um cobertor pesava nos seus braços. Mudando o peso para que ficasse
quase todo sobre
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um só braço, tentou meter a chave na fechadura da mala. A neve gelou sobre a fechadura. Raspou-a impacientemente. Um instante depois a chave estava na fechadura
e a porta da mala ergueu-se lentamente. Relanceou o olhar pelas janelas do hospital. Do quarto do centro no segundo andar surgiu uma sombra de repente. Estava alguém
a olhar pela janela? A sua impaciência para colocar o corpo coberto com um cobertor dentro da mala, para o tirar dos seus braços, levou-o a mover-se depressa de
mais. No momento em que a mão esquerda largou o cobertor, o vento separou-o deixando à mostra o rosto. Estremecendo, deixou cair o corpo e fechou violentamente a
mala.
A luz incidira sobre o rosto. Alguém teria visto? Olhou de novo para a janela onde a sombra se formara. Estava lá alguém? Ele não tinha a certeza. Que se poderia
ver da janela? Mais tarde descobriria quem estava naquele quarto.
Estava perto da porta do condutor, rodando a chave no carro. Afastou-se rapidamente do parque, sem ligar os faróis, até se encontrar na estrada do condado.
Era incrível, mas esta era a segunda viagem a Chapin River nessa noite. Suponhamos que ele não ia a sair do hospital quando ela saiu de repente do escritório de
Fukhito e o chamou.
Vangie estava quase histérica, amparando a perna direita quando desceu o pórtico coberto a coxear em direcção a ele.
Doutor, não posso marcar um encontro com o senhor esta semana. Amanhã vou para Mineápolis. Vou falar com o médico que me costumava tratar, o Dr. Salem. Talvez até
fique lá e deixe que ele assista ao parto.
Se ele não a tivesse visto, tudo teria sido arruinado.
Em vez disso, persuadira-a a ir com ele ao escritório, conversara com ela, acalmou-a, ofereceu-lhe um copo de água. No último minuto, ela suspeitara, tentara passar
por ele com um repelão. Aquele rosto belo, petulante, enchera-se de medo.
E depois o pavor de saber que, apesar de ter conseguido silenciá-la, a possibilidade de ser descoberto ainda era muito grande. Fechou à chave o corpo no armário
dos medicamentos e tentou pensar.
O carro dela, vermelho e brilhante, fora o perigo imediato. Era vital tirá-lo do parque de estacionamento. Certamente seria estranho estar ali depois de terminarem
as horas das visitas. Um Lincoln Continental, último modelo, com a frente de cromo agressiva, cada linha arrogante a atrair as atenções.
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Ele sabia exactamente onde ela vivia em Chapin River. Ela dissera-lhe que o marido, piloto da United Airlines, só devia regressar no dia seguinte. Decidiu levar
o carro para a sua propriedade, deixar a carteira dentro de casa, para dar a impressão de que ela viera para casa.
Fora surpreendentemente fácil. Havia muito pouco trânsito por causa do mau tempo. O regulamento da região exigia terrenos para construção com um mínimo de dois acres.
As casas estavam muito afastadas da estrada e só tinham acesso através de caminhos tortuosos. Abriu a porta da garagem com o dispositivo automático no painel de
instrumentos do Lincoln e estacionou o carro na garagem.
Descobriu a chave da porta na argola com as chaves do carro, mas não precisou dela; a porta interior da garagem que dava para o gabinete não estava fechada à chave.
Havia luzes acesas por toda a casa, provavelmente ligadas a um dispositivo regulador do tempo. Atravessou rapidamente o gabinete e o vestíbulo e entrou na ala dos
quartos, procurando o quarto principal. Era o último à direita e não havia possibilidade de se enganar. Havia mais dois quartos, um adaptado para quarto de criança,
com gnomos coloridos e cordeiros alegres no papel de parede recentemente aplicado e obviamente um berço de madeira novo e uma arca.
Foi então que se apercebeu de que podia fazer com que a sua morte parecesse um suicídio. Se ela tivesse começado a mobilar o quarto três meses antes de o bebé nascer,
a iminência da perda desse bebé era um forte motivo para suicídio.
Entrara no quarto principal. Acama enorme estava mal feita, com a colcha com cordões de veludo estendida irregularmente sobre os cobertores. A camisa de noite e
o roupão estavam num canapé perto dela. Se ao menos pudesse pôr de novo o corpo ali, colocá-lo na sua própria cama! Era perigoso, mas não tão perigoso como largar
o corpo algures nos bosques. Isso implicaria uma investigação policial intensiva.
Deixou a carteira no canapé. Com o carro no hospital e a mala ali, pelo menos iria parecer que ela voltara do hospital.
Depois palmilhou as quatro milhas de volta ao hospital. Fora arriscado, e se um carro da Polícia tivesse descido a estrada daquela área cara e o tivesse detido?
Não tinha absolutamente nenhuma desculpa para estar ali. Mas fizera o percurso em menos de uma hora, contornou a estrada principal do hospital e esgueirou-se para
o escritório pela porta das traseiras que dava para o parque de estacionamento. Eram dez horas em ponto quando chegou.
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O casaco e os sapatos estavam encharcados. Ele tiritava. Compreendeu que seria demasiado perigoso tentar levar o corpo antes de haver a mínima hipótese de encontrar
alguém. Resolveu esperar até depois da meia-noite antes de voltar a sair. Pelo menos não tinha de se preocupar se seria observado por doentes da urgência ou por
um carro da Polícia que entrasse de roldão com um doente.
Pusera o despertador para as duas horas e ficara deitado na mesa de observações. Conseguiu dormir até o despertador tocar.
Agora metia pela ponte de madeira sobre Winding Brook Lake. A casa dela ficava à direita.
"Apaga os faróis; mete pelo caminho; contorna as traseiras da casa, pára o carro perto da porta da garagem; tira as luvas de conduzir; calça as luvas das operações;
abre a porta da garagem; abre a mala do carro; leva o corpo envolto, passa perto das prateleiras até à porta interior." Entrou no gabinete. A casa estava silenciosa.
Dentro de alguns minutos estaria a salvo.
Atravessou apressadamente o vestíbulo em direcção ao quarto principal, retesando-se sob o peso do corpo. Colocou o corpo na cama, soltando o cobertor.
No quarto de banho afastado do quarto, com uma sacudidela, deitou cristais de cianido no copo azul florido, juntou água e despejou quase todo o conteúdo na pia.
Lavou cuidadosamente a pia e voltou ao quarto. Colocando o copo ao lado da mulher morta, deixou cair as últimas gotas da mistura sobre a colcha. As impressões digitais
dela de certeza que estavam no copo. Os músculos começavam a ficar rígidos. As mãos estavam frias. Dobrou cuidadosamente o cobertor branco.
O corpo estava deitado de costas sobre a cama, olhos esbugalhados, lábios tortos, a expressão de uma agonia de protesto. Estava tudo bem. Muitos suicidas arrependiam-se
quando era tarde de mais.
Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Não. A carteira com as chaves estava no canapé; havia um resíduo do cianido dentro do copo. Casaco vestido ou despido? Deixá-lo-ia
vestido. Quanto menos mexesse nela melhor.
Sem sapatos ou com sapatos? Ela teria atirado fora os sapatos com um pontapé?
Pegou no cafetã comprido que ela envergava e sentiu o rosto a ficar sem sangue. O pé direito, inchado, estava enfiado num moccasin usado. O pé esquerdo só estava
tapado com a meia.
O outro moccasin devia ter caído. Onde? No parque de estacionamento, no escritório, naquela casa? Saiu do quarto a
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correr, procurando, voltando atrás até à garagem. O sapato não estava em casa nem na garagem. Inquieto com a perda de tempo, correu para o carro e espreitou para
a mala. O sapato não estava lá.
Por causa daquele pé inchado ela usava sempre aqueles moccasins. Ele ouvira a recepcionista gracejar com ela por causa deles.
Teria de regressar, esquadrinhar o parque de estacionamento, encontrar aquele sapato. E se alguém que a tinha visto com ele e o tinha apanhado? Falar-se-ia da sua
morte quando o corpo fosse descoberto. E se alguém dissesse: "Eu vi o moccasin que ela trazia no parque de estacionamento. Deve-o ter perdido quando ia para casa
na segunda-feira à noite"? Mas mesmo que ela tivesse dado alguns passos no parque de estacionamento sem um sapato, o pé da meia teria ficado muito sujo. A Polícia
iria dar conta. Tinha de voltar ao parque de estacionamento e encontrar aquele sapato.
Mas naquele momento, correndo de novo para o quarto, abriu a porta do armário. Um monte de sapatos de mulher estavam espalhados no chão. A maior parte deles tinha
saltos tremendamente altos. Era ridículo que alguém acreditasse que ela os usasse no seu estado e com aquele tempo. Havia três ou quatro pares de botas, mas ele
nunca seria capaz de fechar o fecho de uma bota com aquela perna inchada.
Foi então que os viu. Um par de sapatos de salto baixo, sapatos práticos do tipo que a maior parte das grávidas usava. Pareciam novos, mas tinham sido calçados pelo
menos uma vez. Aliviado, pegou neles. Correndo de novo para o quarto, tirou o único sapato do pé da mulher morta e calçou-lhe rapidamente os sapatos que acabara
de encontrar no armário. O direito estava apertado, mas conseguiu atar os atacadores. Metendo o moccasin que ela trouxera no bolso largo da gabardina, pegou no cobertor
branco. Com ele debaixo do braço saiu do quarto com grandes passadas, atravessou o vestíbulo, o gabinete e saiu para a escuridão.
Quando entrou no parque de estacionamento do hospital a saraiva e a chuva tinham parado, mas estava vento e frio. Dirigindo-se para o canto mais afastado da área,
estacionou o carro. Se por acaso o guarda da segurança passasse por ele e lhe falasse, limitar-se-ia a dizer que recebera um telefonema para se encontrar com um
dos seus doentes; que ela estava com as dores de parto. Se por qualquer razão esta história fosse examinada, ele mostrar-se-ia ofendido, diria que fora obviamente
a chamada de um excêntrico.
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Mas seria muito mais seguro não ser visto. Mantendo-se na sombra dos arbustos que contornavam a linha divisória para peões do parque, apressou-se a afastar-se da
zona onde guardara o carro, dirigindo-se para a porta do escritório. Era lógico que o sapato tinha caído quando ele mudara o corpo para abrir a mala. Acocorando-se,
esquadrinhou o terreno. Discretamente, aproximou-se mais do hospital. Todos os quartos dos doentes nesta ala já estavam escuros. Relanceou o olhar pela janela do
centro no segundo andar. A persiana estava descida. Alguém a ajustara. Inclinando-se para a frente, atravessou lentamente o macadame. E se alguém o vira! A raiva
e a frustração fizeram-no esquecer o frio glacial. Onde estava aquele sapato? Tinha de o encontrar.
Surgiram uns faróis na curva, iluminando o parque de estacionamento. Um carro chiou ao parar. O condutor, dirigindo-se provavelmente à sala de urgência, deve-se
ter apercebido de que se tinha enganado. Deu uma curva em U e saiu do parque a grande velocidade.
Tinha de sair dali. Era inútil. Caiu quanto tentava endireitar-se. A mão deslizou no macadame. E depois sentiu-o: o cabedal sob os dedos. Agarrou-o, levantou-o.
Mesmo na penumbra não podia ter dúvidas. Era o moccasin. Encontrara-o.
Quinze minutos depois, rodava a chave na fechadura da sua casa. Despindo a gabardina, pendurou-a no armário do vestíbulo. O espelho enorme na porta reflectiu a sua
imagem. Chocado, reparou que os joelhos das calças estavam molhados e sujos. O cabelo estava desgrenhado. As mãos estavam sujas. As faces estavam congestionadas,
e os olhos, sempre papudos, estavam salientes e dilatados. Parecia um homem com um choque emocional, uma caricatura de si mesmo.
Correndo pelas escadas acima, despiu-se, separou a roupa e atirou-a para dentro do cesto e do saco da lavandaria, tomou banho e vestiu o pijama e um roupão. Estava
demasiado excitado para dormir, e além disso, estava a morrer de fome.
A governanta deixara fatias de cordeiro num prato. Havia uma fatia fresca de Brie na tábua do queijo sobre a mesa da cozinha. Havia maçãs duras e azedas na caixa
da fruta do frigorífico. Preparou cuidadosamente um tabuleiro e levou-o para a biblioteca. Do bar encheu um copo com uísque e sentou-se à secretária. Enquanto comia,
rememorou os acontecimentos da noite. Se ele não tivesse parado para examinar o calendário não teria dado conta dela. Ela ter-se-ia ido embora e teria sido tarde
de mais para a deter.
Abrindo a secretária com a chave, puxou a gaveta grande do
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centro e fez deslizar o botão falso onde guardava sempre o ficheiro particular, corrente. Estava lá um único ficheiro de papel grosso. Pegou noutra folha de papel
e fez um último registo:
Fevereiro 15
Às 8.49p.m. este médico estava a fechar à chave aporta das traseiras do seu escritório A doente em causa acabara de sair do Fulkhito. A doente em causa veio ter
com este médico e disse que ia para Mineápolis e que o seu primeiro médico, Emmet Salem assistiria ao parto. A doente estava histérica e foi persuadida a entrar.
Obviamente que a doente não podia sair. Lamentando esta necessidade, este médico preparou-se para eliminar a doente. Com a desculpa de lhe ir buscar um copo de água,
este médico dissolveu cristais de cianido no copo e obrigou a doente a beber o veneno. A doente expirou precisamente às 8.51 p.m. O feto tinha 26 semanas. A opinião
deste médico é que, se tivesse nascido, podia ter sobrevivido. Os relatórios médicos completos estão neste ficheiro e devem substituir e anular os relatórios no
escritório de Westlake Hospital.
Suspirando, pousou a caneta, meteu o último registo no envelope de papel grosso e selou o ficheiro. Levantando-se, encaminhou-se para o último painel da estante.
Metendo a mão por detrás de um livro, tocou num botão, e o painel rodou nos gonzos, deixando à mostra um cofre na parede. Abriu rapidamente o cofre e introduziu
o ficheiro, notando no seu subconsciente que o número de envelopes aumentava. Podia dizer de cor os nomes delas: Elizabeth Berkeley, Anna Horan, Maureen Crowley,
Linda Evans mais de seis dúzias: êxitos e fracassos do seu génio médico.
Fechou o cofre e colocou de novo a estante no lugar com brusquidão, depois subiu as escadas lentamente. Despiu o roupão de banho, meteu-se na cama grande e antiga
com quatro colunas e fechou os olhos.
Agora que terminara, estava exausto ao ponto de se sentir doente. Deixara passar alguma coisa, esquecera-se de alguma coisa? Colocaria o frasco de cianido no cofre.
Os moccasins. Livrar-se-ia deles em qualquer parte na noite do dia seguinte. Os acontecimentos das últimas horas rodopiavam no seu espírito. Quando levara a cabo
o que devia ser feito, estava calmo.
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Agora que tudo terminara, como das outras vezes, o seu sistema nervoso gritava em sinal de protesto.
Deitaria fora o saco da roupa a caminho do hospital na manhã do dia seguinte. Hilda era uma governanta sem imaginação, mas daria conta da lama e da sujidade nos
joelhos das calças. Ele descobriria que doente estava no quarto do centro no segundo andar da ala oriental, o que o doente podia ter visto. "Não penses nisso agora.
Agora tens de dormir." Apoiando-se num cotovelo, abriu a gaveta da mesa de cabeceira e tirou uma pequena caixa de comprimidos. O sedativo fraco era o que precisava.
Com ele poderia dormir duas horas.
Os seus dedos tactearam e fecharam-se sobre uma cápsula pequena. Engolindo-a sem água, reclinou-se e fechou os olhos. Enquanto esperava que esta fizesse efeito,
tentou tranquilizar-se com a ideia de que estava livre de perigo. Mas por mais que se esforçasse, não conseguia deixar de pensar que a prova mais condenatória da
sua culpa lhe era inacessível.
Se não se importa, gostaríamos que saísse pela entrada das traseiras disse a enfermeira. O acesso da frente está todo gelado e os operários estão a tentar limpá-lo.
O táxi está ali à espera.
Não me importo de sair pela janela, desde que possa chegar a casa disse Katie com vivacidade. E a desgraça é que tenho de voltar aqui na sexta-feira. Vou ser submetida
a uma pequena intervenção cirúrgica no sábado.
Oh A enfermeira olhou para o relatório. Qual é o problema? Parece que herdei um problema que a minha mãe costumava ter. Tenho hemorragias quase todos os meses durante
o período.
Deve ter sido por isso que a contagem dos glóbulos estava tão baixa quando aqui chegou. Não se preocupe. Um D-e-C é fácil. Quem é o seu médico?
- O Dr. Highley.
Oh, é o melhor. Mas irá para a ala ocidental. Todos os seus doentes vão para lá. Parece um hotel de luxo. Sabe, ele é o máximo neste hospital. Ela ainda olhava para
o relatório de Katie. Não dormiu muito, pois não?
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Nem por isso. Katie enrugou o nariz repugnada quando abotoou a blusa. Estava salpicada com sangue, e deixou a manga esquerda solta sobre o braço com ligaduras. A
enfermeira ajudou-a a vestir o casaco.
A manhã estava nublada e terrivelmente fria. Katie concluiu que Fevereiro ia ser o mês de que gostaria menos. Tiritou quando saiu para o parque de estacionamento,
recordando o pesadelo. Aquela era a zona que olhara do seu quarto. O táxi parou. Encaminhou-se prontamente para ele, encolhendo-se com a dor nos joelhos. Â enfermeira
ajudou-a a entrar, despediu-se e fechou a porta. O motorista do táxi carregou com o pé no acelerador.
Para onde, senhora?
Da janela do quarto do segundo andar donde Katie acabara de sair, um homem observava a sua partida. O relatório que a enfermeira deixara na secretária estava na
sua mão. Kathleen N. DeMaio, 10 Woodfield Way, Abbington. Local de trabalho: escritório do promotor da justiça, Valley County.
Um estremecimento de medo perpassou por ele. Katie DeMaio.
O relatório indicava que lhe tinham dado um soporífero forte.
De acordo com a história médica, ela não tomava remédios com regularidade, incluindo soporíferos ou tranquilizantes. Portanto não teria resistência para eles e deveria
ter ficado muito tonta com o que lhe tinham dado na noite anterior.
Havia uma observação no relatório dizendo que a enfermeira da noite a encontrara sentada na beira da cama às 2.08 a.m. num estado de agitação e a queixar-se de pesadelos.
A sombra no quarto levantara-se de repente. Ela devia ter estado à janela. Que teria visto? Se ela tivesse observado qualquer coisa, mesmo que pensasse que estava
a ter um pesadelo, a sua experiência profissional atormentá-la-ia. Ela era um risco, um risco inaceitável.
Com os ombros a tocarem-se, sentaram-se na última loja do centro comercial da 87th Street. Muffins ingleses tinham sido postos de parte, sem lhes terem tocado, e,
melancólicos, beberam lentamente o café. O braço do casaco do uniforme azul-escuro
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estava pousado sobre o galão dourado da manga dele. Os dedos da mão direita estavam entrelaçados com os da mão esquerda dela.
Senti a tua falta disse ele, cuidadosamente.
Eu também senti a tua falta, Chris. É por isso que lamento teres-me encontrado esta manhã. Só piora as coisas.
Joan, dá-me algum tempo. Juro por Deus que resolveremos isto. Temos de resolver.
Ela abanou a cabeça. Ele voltou-se para ela e com um estremecimento notou como ela estava com um ar infeliz. Os seus olhos cor de avelã estavam turvos. O cabelo
castanho-claro, nessa manhã puxado para trás num chignon, revelava a palidez da pele geralmente macia e clara.
Ela interrogou-se pela milésima vez por que não rompera com Vangie quando fora transferido para Nova Iorque no ano anterior. Por que razão respondera ao apelo para
tentar salvar durante mais algum tempo o seu casamento quando dez anos de tentativas não o tinham conseguido? E agora ia nascer um filho. Pensou na terrível discussão
que tivera com Vangie antes de partir. Devia contar a Joan. Não, não adiantaria nada.
Gostaste da China? perguntou-lhe. Ela ficou mais animada.
Fascinante, completamente fascinante. Ela era hospedeira de bordo da Pan América. Tinham-se conhecido há seis meses no Havai quando um dos comandantes da United,
Jack Lane, dera uma festa.
Joan estava a viver em Nova Iorque e partilhava um apartamento em Manhattan com duas hospedeiras da Pan Am.
É uma loucura, é incrível como algumas pessoas se ajustam desde o primeiro minuto. Ele dissera-lhe que era casado, mas também pôde dizer honestamente que, quando
se mudara de Mineápolis para Nova Iorque, quisera romper com Vangie. A última tentativa para salvar o casamento não estava a resultar. A culpa não era de ninguém.
O casamento era algo que nunca devia ter acontecido.
E depois Vangie falara-lhe do bebé.
Joan estava a dizer:
Regressaste ontem à noite?
Sim. Tivemos um problema nos motores e o outro voo foi cancelado. Regressámos à borla. Cheguei por volta das seis e fui para a Holiday Inn, na 57th Street.
Por que não foste para casa?
Porque não te via há duas semanas e queria ver-te, precisava de te ver. A Vangie só está a contar comigo por volta das onze. Por isso não te preocupes.
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Chris, disse-te que tinha feito um requerimento para ser transferida para a Divisão Latino-Americana. Foi deferido. Irei para Miami na próxima semana.
Joan, não!
É a única maneira. Olha, Chris, lamento, é contra o meu feitio estar disponível para um homem casado. Não gosto de desfazer lares.
A nossa relação tem sido absolutamente inocente.
No mundo de hoje quem acreditaria nisso? O simples facto de que dentro de uma hora estarás a mentir à tua mulher sobre quando chegaste diz muito, não diz? E eu não
me esqueço, sou a filha de um pastor presbiteriano. Só vejo a sua reacção quando lhe disser que estou apaixonada por um homem que não só é casado mas também que
a sua mulher vai finalmente ter o filho que desejou durante dez anos. Deixa que te diga que ele sentiria orgulho de mim.
Ela terminou o café.
E digas tu o que disseres, Chris, sei que se não estiver perto ainda há possibilidade de tu e a tua mulher se reconciliarem. Estou a ocupar os teus pensamentos quando
devias estar preocupado com ela. E verás com espanto como uma criança consegue criar um elo de ligação entre duas pessoas.
Suavemente, desprendeu os dedos dos dele.
É melhor ir para casa, Chris. Foi um voo longo e estou cansada. É melhor ires para casa também.
Olharam um para o outro. Ele tocou-lhe no rosto, desejando fazer desaparecer as rugas fundas de infelicidade na testa.
De facto podíamos ter sido muito felizes. Depois acrescentou: Pareces muito cansado, Chris.
Não dormi muito a noite passada. Ele tentou sorrir. Não vou desistir, Joan. Juro-te que irei ter contigo a Miami, e quando lá chegar serei livre.
O táxi parou para Katie sair. Subiu penosamente os degraus do átrio, meteu a chave na fechadura, abriu a porta e sussurrou:
Graças a Deus estou em casa. Teve a impressão de que
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em vez de uma noite estivera semanas longe de casa e apreciou com outros olhos os tons de terra, suaves e agradáveis, do vestíbulo e da sala de estar, as plantas
suspensas que lhe tinham chamado a atenção quando visitara esta casa pela primeira vez.
Pegou na taça de violetas africanas e aspirou o perfume forte das suas folhas. Os cheiros de anti-sépticos e medicamentos estavam presos nas narinas. O corpo estava
dorido e entorpecido, agora ainda mais do que quando saíra da cama nessa manhã.
Mas pelo menos estava em casa.
John. Se ele estivesse vivo, se ele estivesse ali para telefonar na noite anterior...
Katie pendurou o casaco e deixou-se cair no sofá de veludo cor de damasco na sala de estar. Olhou para o retrato de John por cima da prateleira do fogão. John Anthony
DeMaio, o juiz mais jovem em Essex County. Lembrava-se também da primeira vez que o vira. Ele fora fazer um curso sobre delitos de natureza civil na Faculdade de
Direito em Seton Hall.
Quando a aula terminou, os alunos agruparam-se à volta dele.
Juiz DeMaio, espero que o Supremo Tribunal rejeite o recurso no caso Collins.
Juiz DeMaio, concordo com a sua opinião sobre Reicher versus Reicher.
E depois fora a vez de Katie.
Sr. Juiz, tenho de lhe dizer que não concordo com a sua decisão no caso Kipling.
John sorrira.
Isso obviamente é seu privilégio, Menina...
Katie... Kathleen Callahan.
Ela nunca percebeu por que razão acrescentara o Kathleen naquele momento. Mas ele sempre lhe chamara Kathleen Noel.
Nesse dia foram tomar café. Na noite seguinte levou-a a jantar ao restaurante Monsignor II em Nova Iorque. Quando os violinistas se aproximaram da mesa, ele pediu-lhes
que tocassem Viena, Cidade dos Meus Sonhos. Cantou-a com eles em voz baixa: "Wien, Wien nur Du allein..." Quando terminaram, ele perguntou:
Já foi a Viena, Kathleen?
Nunca saí do país a não ser numa viagem da escola a Bermuda. Choveu durante quatro dias.
Um dia gostaria de a levar ao estrangeiro. Mas primeiro hei-de mostrar-lhe a Itália. É um país maravilhoso.
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Quando a deixou à porta de casa naquela noite, disse:
Você tem os olhos azuis mais belos que tive o prazer de contemplar. Acho que uma diferença de doze anos não é muito,
não acha, Kathleen?
Três meses mais tarde, quando se licenciou em Direito,
casaram.
Aquela casa. John fora criado ali, herdara-a dos pais.
Estou muito ligado a ela, mas vê lá. Talvez queiras algo mais pequeno.
John, fui criada num apartamento com três quartos em Queens. Dormia num divã na sala de estar. "Privacidade" era uma palavra que tinha de procurar no dicionário.
Adoro esta casa.
Fico contente, Kathleen.
Amavam-se tanto mas, para além disso, eram tão bons amigos. Ela falou-lhe dos pesadelos.
Aviso-te que de vez em quando acordo a gritar como uma banshee. Tudo começou quando tinha oito anos, depois de o meu pai morrer. Ele estivera no hospital para se
restabelecer de um ataque cardíaco e depois teve um segundo ataque. Parece que o homem de idade que estava com ele no quarto não parava de tocar a campainha para
chamar a enfermeira, mas não vinha ninguém. Quando vieram era tarde de mais.
E então começaste a ter pesadelos.
Creio que ouvi tantas vezes o relato que causou uma horrível impressão em mim. No pesadelo estou num hospital andando de cama em cama à procura do meu pai. Nas camas
vejo sempre rostos de pessoas que conheço. Estão todas a dormir. Às vezes são raparigas da faculdade, ou primos... ou qualquer pessoa. Mas eu procurava o meu pai.
Sabia que precisava de mim. Por fim vejo uma enfermeira, corro para ela e pergunto-lhe onde está. E ela sorri e diz: "Oh, ele morreu. Todas essas pessoas estão mortas.
Tu também vais morrer aqui."
Pobrezita.
Oh, John, intelectualmente sei que é um disparate não superar isto. Mas juro-te que tenho pavor de ficar doente num hospital.
Ajudar-te-ei a superar isso.
Ela fora capaz de lhe dizer o que passou depois da morte do pai.
Senti tanto a falta dele, John. Fui sempre a menina do papá. A Molly tinha dezasseis anos e já andava com o Bill, por
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isso acho que não a afectou tanto. Mas durante todo o curso, estava sempre a pensar como seria divertido se ele estivesse presente nas representações e nas graduações
Em cada Primavera costumava recear o Jantar de Pais e Filhas.
Não tinhas um tio ou alguém que pudesse ir contigo?
Só um. Teria levado tempo de mais para o pôr sóbrio.
Oh, Kathleen! Riram-se os dois. John disse: Então, querida, vou extrair o âmago de tristeza que existe em ti.
Já extraíste, juiz.
Passaram a lua-de-mel a viajar pela Itália. O sofrimento começara nessa viagem. Regressaram a tempo da abertura do tribunal. John presidiu no lugar de juiz em Essex
County. Ela fora contratada para trabalhar para um juiz criminal em Valley County.
John foi fazer um exame médico um mês depois do regresso. A estada de uma noite em Mt. Sinai prolongou-se a três dias de testes suplementares. Então, uma noite,
ele estava à sua espera perto do elevador, impecavelmente elegante com o roupão de veludo vermelho-escuro, um sorriso triste no rosto. Correu para ele, consciente
como sempre dos olhares que os outros passageiros do elevador lhe lançavam, pensando como, mesmo de pijama e roupão, John parecia tão impressivo. Preparava-se para
lho dizer quando ele disse: "Temos problemas, querida."
Mesmo naquele momento, a maneira como ele disse "Temos problemas". Naqueles escassos meses, em todos os aspectos, eles tinham-se tornado numa só pessoa. De novo
no quarto, ele disse-lhe: "É um tumor maligno. Parece que é nos dois pulmões. E, por amor de Deus, Kathleen, nem sequer fumo."
Incrédulos, riram-se num paroxismo de dor e ironia. John Anthony DeMaio, juiz do Supremo Tribunal de Essex County, ex-presidente da Ordem dos Advogados de Nova Jérsia,
com menos de trinta e oito anos, fora condenado a uma sentença indeterminada de seis meses de vida. Para ele não haveria nenhuma comissão para lhe dar liberdade
condicional, nenhum recurso.
Ele voltaria a ocupar o lugar do juiz.
Morre envergando a tua toga; por que não? Ele encolhera os ombros. Promete-me que voltarás a casar, Kathleen.
Um dia, mas essa será uma lei difícil de seguir.
Fico contente que penses assim. Aproveitaremos todos os minutos que temos.
Mesmo no meio disto, sabendo que o tempo passava, divertiram-se.
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Um dia chegou a casa vindo do tribunal e disse:
A minha carreira como juiz está a chegar ao fim, suponho. O cancro alastrara. O sofrimento ia sendo cada vez pior. A princípio iria para o hospital durante alguns
dias para quimioterapia. O pesadelo recomeçou; acontecia regularmente. Mas John regressaria a casa e eles teriam mais tempo. Ela demitiu-se das suas funções de escrivã.
Queria passar todos os minutos com ele.
Próximo do fim, ele perguntou:
Gostarias que a tua mãe viesse da Florida para viver contigo?
Meu Deus, não. A minha mãe é fantástica, mas vivemos juntas até ir para a faculdade. Foi o suficiente. E, seja como for, ela gosta imenso da Florida.
Então, fico contente por Molly e Bill viverem aqui perto. Eles olharão por ti. E tu distrais-te com as crianças.
Depois ficaram calados. Bill Kennedy era cirurgião ortopédico. Ele e Molly tinham seis filhos e viviam em Chapin River, a duas cidades de distância. No dia em que
Katie e John casaram, tinham-se vangloriado na presença de Bill e Molly que iriam bater o recorde."Teremos sete filhos", dissera John
A última vez que foi fazer a quimioterapia não voltou. Estava tão fraco que o obrigaram a ficar no hospital durante a noite. Conversava com ela quando entrou em
coma. Ambos esperavam que o desenlace se desse em casa, mas ele morreu no hospital naquela noite.
Na semana seguinte, Katie solicitou um emprego no escritório do promotor de Justiça e foi aceite. Foi uma boa decisão. O escritório estava sistematicamente com falta
de pessoal, e ela tinha sempre mais casos do que podia tratar satisfatoriamente. Não havia tempo para introspecção. Durante todo o dia, todos os dias, mesmo em muitos
fins-de-semana, tinha de se concentrar no amontoado de casos.
E, por outro lado, era uma boa terapia. Aquela raiva que acompanhara o sofrimento, a sensação de ter sido enganada, a fúria de John ter sido privado de anos de vida,
descarregava-se nos casos que julgava. Quando processava um crime grave, sentia-se como se estivesse a combater tangivelmente pelo menos uma espécie de mal que destruía
vidas.
Não vendera a casa. John legara-lhe todos os seus bens; mas mesmo assim sabia que era um disparate que uma mulher de 28 anos, com um salário de vinte e dois mil
dólares, vivesse numa casa no valor de duzentos e cinquenta mil dólares com cinco acres em redor.
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Assim que Molly disse o nome, o pesadelo da véspera voltara. O rosto que ela vislumbrava através da janela do hospital era o de Vangie Lewis.
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Richard Carroll estacionou o carro dentro das linhas da Polícia em Winding Brook Lake. Ficou surpreendido ao notar que os Lewises viviam perto de Bill e Molly Kennedy.
Bill era médico residente quando Richard entrou no hospital de St. Vicent como interno. Mais tarde, ele especializou-se em Medicina Legal e Bill em Ortopedia. Ficaram
surpreendidos e contentes quando se encontraram inesperadamente no tribunal de Valley County no momento em que Bill aparecia como perito num julgamento de negligência
médica. A amizade que fora casual no tempo do St. Vincent's tornara-se mais íntima. Agora, ele e Bill jogavam golfe com frequência, e Richard parava muitas vezes
em casa deles para tomar uma bebida depois do jogo.
Conhecera a irmã de Molly, Katie DeMaio, no escritório do promotor de Justiça, e sentira-se imediatamente atraído pela jovem e dedicada advogada. Ela era um exemplo
do tipo ancestral dos tempos em que os espanhóis invadiram a Irlanda e deixaram descendentes com pele cor de azeitona e cabelo escuro que contrastava com o azul-vivo
dos olhos dos celtas. Mas Katie desencorajara-o subtilmente quando ele sugerira juntarem-se, e afastara-a filosoficamente dos seus pensamentos. Havia muitas mulheres
extremamente atraentes que apreciavam bastante a sua companhia.
Mas ouvindo Molly e Bill e os filhos falarem de Katie, como conseguia ser engraçada, como ficou dilacerada com a morte do marido, reacendera o seu interesse. Então,
nos últimos meses, estivera nalgumas festas em casa de Bill e Molly e constatou, irritado, que estava muito mais intrigado com Katie DeMaio do que desejava.
Richard encolheu os ombros. Estava ali a cargo da Polícia. Uma mulher de trinta anos suicidara-se. A sua função era descobrir provas médicas que pudessem indicar
que Vangie Lewis não se tinha suicidado. Mais tarde faria uma autópsia. A boca contraiu-se quando pensou no feto que ela trazia. Nunca
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tivera uma oportunidade. O que significava para o amor maternal? Cordialmente, objectivamente, já antipatizava com a falecida Vangie Lewis.
Um polícia jovem de Chapin River deixou-o entrar. A sala de estar ficava à esquerda do vestíbulo. Um homem com um uniforme de capitão de uma companhia de aviação
estava sentado num sofá, com as costas arqueadas, entrelaçando e desentrelaçando os dedos. Estava muito mais pálido do que muitos dos mortos com que Richard lidava
e tremia violentamente. Richard sentiu um laivo de compaixão. O marido. Um golpe brutal chegar a casa e descobrir que a mulher era uma suicida. Decidiu conversar
com ele mais tarde.
Por onde? perguntou ao polícia.
Por aqui. E acenou com a cabeça na direcção das traseiras da casa. A cozinha mesmo em frente, quartos à direita. Ela está no quarto principal.
Richard caminhou depressa, absorvendo o ambiente da casa. Com mobílias caras mas dispostas sem gosto nem mesmo interesse. A visão fugidia da sala de estar revelara-lhe
o aspecto típico de um desenhador de interiores sem imaginação que se vê em tantas lojas de decoração nas ruas principais de pequenas cidades. Richard tinha um sentido
apurado da cor. No fundo pensava que isso o ajudava consideravelmente no seu trabalho. Mas sombras confusas ficaram gravadas na sua consciência como o som de notas
dissonantes.
Charley Nugent, o detective encarregado da Brigada de Homicídios, estava na cozinha. Os dois homens trocaram breves cumprimentos com a cabeça.
Que lhe parece? perguntou Richard?
Falemos depois de você a ver.
Morta, Vangie Lewis não era uma visão agradável. O longo cabelo loiro agora parecia castanho como a lama; o rosto estava contorcido, as pernas e os braços, rígidos
com o ataque do rigor mortis, pareciam estar esticados sobre arames. O casaco estava abotoado e, por causa da gravidez, não tapava os joelhos. As solas dos sapatos
mal se viam debaixo de um longo cafetã florido.
Richard puxou o cafetã acima dos tornozelos. As pernas, obviamente inchadas, tinham esticado as meias-calças. As partes laterais do sapato direito feriram a carne.
Levantou um braço como perito que era, segurou-o por instantes, deixou-o cair. Examinou a descoloração em furta-cores à volta da boca onde o veneno a queimara.
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Charley estava ao lado dele.
Há quanto tempo pensa que foi?
Entre doze a quinze horas, suponho. Ela está muito rígida.
A voz de Richard era reservada, mas o seu sentido de harmonia estava perturbado. O casaco vestido. Os sapatos calçados. Acabara de chegar a casa ou planeava sair?
Que a fizera de repente suicidar-se? O copo de vidro estava ao lado dela sobre a cama. Curvando-se, cheirou-o. O cheiro inconfundível a amêndoa azeda de cianido
entrou-lhe nas narinas. Era incrível o número de suicidas que ingeriam cianido desde aquela confusão do culto de Jones na Guiana. Endireitou-se. Deixou alguma mensagem?
Charley abanou a cabeça. Richard pensou que Charley estava no trabalho certo. Tinha sempre um ar triste, as pálpebras caíam tristemente sobre os olhos. Parecia ter
um problema de caspa perpétuo.
Nenhuma carta, nada. Estava casada há dez anos com o piloto; é o indivíduo que está na sala de estar. Parece muito abalado. São de Mineápolis; mudaram-se para aqui
há menos de um ano. Ela sempre quis ter um filho. Finalmente ficou grávida e felicíssima. Estrelas a decorarem o quarto do bebé; fala do filho de manhã, à tarde
e à noite.
Depois mata-se e ao filho?
Segundo o marido, andava nervosa nos últimos tempos. Uns dias tinha uma espécie de ideia fixa de que ia perder o filho. Outras vezes tinha um medo enorme de dar
à luz. Parece que sabia que evidenciava sinais de uma gravidez tóxica.
E em vez de dar à luz ou enfrentar a perda do filho, suicida-se? O tom de Richard era céptico. Podia dizer a Charley que também não acreditava nisso. Phil está consigo?
perguntou ele. Phil era o outro membro sénior da equipa de Homicídios do promotor de Justiça.
Anda na vizinhança a falar com as pessoas.
Quem a encontrou?
O marido. Acabara de chegar de um voo. Chamou uma ambulância. Telefonou à Polícia local.
Richard olhou fixamente para as queimaduras à volta da boca de Vangie Lewis.
Ela deve ter bebido aquilo atabalhoadamente disse ele, pensativamente, ou talvez tenha tentado cuspi-lo mas era tarde de mais. Podemos falar com o marido, trazê-lo
aqui?
Certamente. Charley acenou ao jovem polícia, que se virou e atravessou a correr o longo pátio da entrada.
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Quando Christopher Lewis entrou no quarto, parecia que estava prestes a vomitar. A tez estava já verde-terrosa. Suor, frio e húmido, cobria a testa de gotas. Abrira
a camisa e desapertara a gravata. As mãos estavam metidas nos bolsos.
Richard observou-o atentamente. Lewis parecia louco, doente, nervoso. Mas faltava qualquer coisa. Não tinha o aspecto de um homem cuja vida tinha sido destruída.
Richard vira a morte vezes sem conta. Vira alguns dos parentes mais próximos a sofrerem em silêncio. Outros soltavam gritos histéricos, berravam, choravam, arrojavam-se
sobre o defunto. Alguns tocavam na mão morta, tentando compreender. Pensou no jovem marido cuja mulher tinha sido apanhada num tiroteio enquanto saíam do carro para
fazerem compras na mercearia. Quando Richard lá chegou, ele segurava o corpo desnorteado, falando com ela, tentando fazer com que o ouvisse.
Aquilo era sofrimento.
Qualquer que fosse a emoção que Christopher Lewis estivesse a sentir naquele momento. Richard apostava a sua vida no facto de que ele não era um marido com o coração
destroçado.
Charley estava a interrogá-lo:
Comandante Lewis, isto é duro para o senhor, mas tudo se tornará mais fácil se pudermos fazer-lhe algumas perguntas.
Aqui? Era um protesto.
Compreenderá porquê. Não demoraremos muito tempo. Quando viu a sua mulher pela última vez?
Há duas noites. Estava de partida para a Costa.
E a que horas chegou a casa?
Há cerca de uma hora.
Falou com a sua mulher nesses dois dias?
Não.
Qual era o estado mental da sua mulher quando partiu?
Eu disse-lhe.
E se dissesse ao Dr. Carroll.
Vangie estava preocupada. Andava com medo de abortar.
Ficou alarmado com essa possibilidade?
Ficara com muito peso, parecia que estava a reter líquido, mas tinha comprimidos para isso e sei que isso é uma situação comum.
Telefonou ao obstetra para discutir isso com ele, para se tranquilizar?
Não.
Muito bem Comandante Lewis, importa-se de observar este quarto e veja se falta alguma coisa. Não é fácil, mas
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examine atentamente o corpo da sua mulher e veja se há alguma coisa que esteja diferente. Por exemplo, aquele copo. Tem a certeza de que é o da sua casa de banho?
Chris obedeceu. O rosto ia ficando cada vez mais pálido, olhou cuidadosamente para cada detalhe da mulher morta.
Charley e Richard observavam-no com os olhos semicerrados.
Não murmurou ele por fim. Nada.
O comportamento de Charley tornou-se vivo.
Muito bem, sir. Assim que tirarmos algumas fotografias, levaremos o corpo da sua esposa para a autópsia. Podemos ajudá-lo a entrar em contacto com alguém?
Tenho de fazer alguns telefonemas. Para os pais de Vangie, Vão ficar com o coração destroçado. Vou para o gabinete e telefono-lhes já.
Depois de ele sair, Richard e Charley trocaram olhares.
Ele viu qualquer coisa que nós passámos em claro disse Charley prontamente.
Richard acenou com a cabeça.
Eu sei. Os dois homens olharam de modo severo para o corpo encolhido.
Antes de desligar, Katie falara a Molly do acidente e alvitrara o almoço. Mas Jennifer, a filha de Molly com doze anos e os gémeos com seis estavam em casa a restabelecerem-se
de um ataque de gripe.
A Jennifer está bem, mas não gosto de deixar aqueles dois rapazes sozinhos o tempo suficiente para esvaziarem o lixo dissera Molly, e combinaram que ela iria buscar
Katie e a levaria para sua casa.
Enquanto esperava, Katie tomou banho rapidamente, conseguindo lavar e secar o cabelo apenas com o auxílio da mão direita. Vestiu uma camisola grossa de lã vermelha
e umas calças de tweed com bom corte. A camisola vermelha dava um pouco de cor ao rosto, e o cabelo enrolado e solto mesmo abaixo da gola. Enquanto tomava banho
e se vestia, tentou racionalizar a alucinação da noite anterior.
Estivera mesmo à janela? Ou foi parte do sonho? Talvez a
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persiana tivesse subido de repente sem que ninguém lhe mexesse, arrancando-a de um pesadelo. Fechou os olhos quando a cena flutuou uma vez mais para a sua consciência.
Parecia tão real; a luz da mala incidia directamente no interior da mala, nos olhos esbugalhados, no cabelo comprido, nas sobrancelhas arqueadas. Por um instante
parecera tão claro. Era isso que a apavorava: a nitidez da imagem. O rosto era familiar mesmo no sonho.
Deveria falar nisso a Molly? Claro que não. Ultimamente Molly andava preocupada com ela. "Katie, estás demasiado pálida. Trabalhas de mais. Estás a ficar demasiado
taciturna." Molly persuadira-a a submeter-se à operação marcada. "Não podes continuar assim indefinidamente. Essas hemorragias podem ser perigosas se não te tratares."
E depois acrescentara: "Tens de te mentalizar de que és uma mulher jovem. Devias ter umas férias a sério, descontraíres-te, saíres daqui."
Do exterior, ouviu-se o som estridente de uma buzina quando Molly parou a velha carrinha. Katie vestiu com esforço um casaco quente de pele de castor, levantando
a gola até às orelhas, e saiu com a rapidez que os joelhos inchados lhe permitiram. Molly abriu-lhe a porta e debruçou-se para a beijar, observando-a atentamente.
Não estás propriamente resplandecente. Ficaste muito ferida.
Podia ter sido muito pior. O carro cheirava um pouco a manteiga de amendoim e a pastilha elástica. Era um cheiro reconfortante, familiar, e Katie sentiu-se mais
animada. Mas a boa disposição desapareceu imediatamente quando Molly disse: O nosso quarteirão está em desordem. A tua gente isolou a casa dos Lewises, e um detective
do teu serviço anda a fazer perguntas. Apanhou-me precisamente no momento em que ia a sair. Disse-lhe que era tua irmã e ambos afirmámos que eras maravilhosa.
Katie disse:
Talvez fosse Phil Cunningham ou Charley Nugent.
Um homem alto. Rosto cheio. Simpático.
Phil Cunningham. É bom homem. Que tipo de perguntas estavam a fazer?
Simples rotina. Se tínhamos reparado a que horas saíra ou regressara. Esse género de coisas.
E tu reparaste?
Quando os gémeos estão enjoados ou adoentados, não daria conta da entrada de Robert Redford na casa ao lado. Seja
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como for, num dia de sol mal conseguimos ver a casa dos Lewises, quanto mais à noite durante uma tempestade.
Atravessavam a ponte de madeira pouco antes da curva para Winding Brook Lane. Katie mordeu o lábio.
Molly, deixas-me na casa dos Lewises, não deixas? Molly virou-se para ela, surpreendida.
- Porquê?
Katie tentou sorrir.
Bem, sou assistente do Promotor de Justiça, e sem qualquer garantia, também sou conselheira do Departamento da Polícia de Chapin River. Normalmente não teria de
ir, mas, uma vez que estou aqui, acho que devia.
O carro funerário do departamento do Examinador Médico entrava de marcha atrás na alameda da casa dos Lewises. Richard estava na soleira da porta a ver. Aproximou-se
do carro quando Molly parou. Molly apressou-se a explicar:
Katie vai almoçar comigo e pensou que devia parar aqui. Por que não vem com ela, se puder?
Ele concordou e ajudou Katie a sair do carro.
Fico contente por estares aqui disse ele. Há uma coisa neste caso que não me agrada.
Agora que ela estava prestes a ver a mulher morta, Katie sentiu a boca a ficar seca. Recordou-se da imagem do rosto no seu sonho.
O marido está no gabinete disse Richard.
Eu conheço-o. Tu também deves conhecê-lo. Na festa da Molly no dia de Ano Novo. Chegaste tarde. Foram-se embora antes de chegares.
Richard disse:
Está bem. Será melhor falarmos disso mais tarde. O quarto é aqui.
Ela fez um esforço para olhar para o rosto familiar, e reconheceu-o imediatamente. Estremeceu e fechou os olhos. Estava a ficar louca?
Sentes-te bem, Katie? perguntou ele bruscamente. Que espécie de louca era ela?
Sinto-me muitíssimo bem disse ela, e para os seus próprios ouvidos a voz soou-lhe suficientemente normal. Gostaria de falar com o comandante Lewis.
Quando chegaram ao gabinete, a porta estava fechada. Sem bater, Richard abriu-a silenciosamente. Chris Lewis estava ao telefone de costas viradas para eles. A voz
era baixa, mas clara.
Sei que é incrível, mas eu juro-te, Joan, que ela não sabia de nós.
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Richard fechou a porta sem fazer barulho. Ele e Katie olharam espantados um para o outro. Katie disse:
Vou dizer a Charley que fique aqui. Vou informar Scott que iniciamos uma investigação completa. Scott Myerson era o Promotor de Justiça.
Eu mesmo farei a autópsia assim que a trouxerem disse Richard. Até agora temos a certeza que foi o cianido que a matou, é melhor começarmos por descobrir onde o
arranjou. Vem daí! não nos demoremos muito na casa da Molly.
A casa de Molly, como o carro, era um lugar de normalidade. Katie muitas vezes parava lá para beber um copo de vinho ou jantar quando vinha do trabalho a caminho
de casa. O cheiro a boa comida; o ruído dos pés dos miúdos nas escadas; o som estridente da televisão; as vozes ruidosas das crianças, que gritavam e bulhavam. Para
ela era reentrar no mundo real depois de passar o dia a lidar com assassinos, raptores, assaltantes, vândalos, tarados, acusados de fogo posto e trapaceiros. E como
ela adorava os Kennedys, a visita fazia-a apreciar a paz da sua própria casa. Excepto, claro, quando sentia o vazio da sua casa e tentava imaginar como seria se
John ainda estivesse vivo e os filhos tivessem começado a chegar.
Katie! Dr. Carroll! os gémeos apareceram a gritar para os cumprimentar. Viu os carros da Polícia, Katie? Aconteceu qualquer coisa na casa ao lado! Peter, mais velho
dez minutos do que o irmão, era o que falava sempre.
Mesmo aqui ao lado! John intrometeu-se na conversa. Molly chamava-os "Pete and Repeat". Os dois, desapareçam ordenou ela. E deixem-nos em paz enquanto comemos.
Onde estão os outros miúdos? perguntou Katie.
Billy, Diná e Moira já foram para a escola esta manhã, graças a Deus disse Molly. Jennifer está na cama. Espreitei agora mesmo e voltou a adormecer. Pobrezinha ainda
se sente mal.
Sentaram-se à mesa da cozinha. A cozinha era grande e bastante quente. Molly tirou Reubens do forno, ofereceu bebidas, que eles recusaram, e coou café. "Molly sabia
cozinhar", pensou Katie. Tudo o que ela arranjava sabia bem. Mas quando Katie tentou comer, verificou que a garganta estava tapada. Olhou de relance para Richard.
Ele cobrira a carne de conserva com mostarda quente e comia com manifesto prazer. Invejava-lhe a indiferença. Por um lado ele era capaz de apreciar uma boa sanduíche.
Por outro lado, ela tinha a certeza de que
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se concentrava no caso Lewis. A testa estava enrugada; a espessa cabeleira castanha parecia eriçada; os olhos cinzento-azulados estavam pensativos; os ombros largos
e magros arqueados enquanto tamborilava com dois dedos na mesa. Apostava que ambos estavam a pensar na mesma pergunta: Quem estava a falar com Chris Lewis ao telefone?
Recordou a única conversa que tivera com Chris. Fora na festa de Ano Novo, e falaram de assaltos. Ele era interessante, inteligente, amável. Com a sua beleza rude,
era um homem muito atraente. E lembrou-se que ele e Vangie estavam em extremos opostos da sala apinhada de gente e que ele ficara acabrunhado quando ela, Katie,
o felicitara pelo nascimento iminente do bebé.
Molly, que impressão tinhas dos Lewises... refiro-me ao seu relacionamento? perguntou ela.
Molly parecia perturbada.
Para ser franca, penso que estava desfeito. Ela estava tão preocupada com a gravidez que sempre que estavam aqui falava de bebés, e ele, obviamente estava perturbado.
E eu contribui para a gravidez, foi uma inquietação para mim.
Richard deixou de tamborilar com os dedos e endireitou-se.
Você fez o quê?
Bem, quero dizer, tu conheces-me, Katie. No dia em que se mudaram para aqui, no Verão passado, fui logo lá e convidei-os para o jantar. Eles vieram, e Vangie disse-me
imediatamente que tinha esperança de ter um filho e que estava muito preocupada por os seus melhores anos para engravidar estarem a chegar ao fim porque fizera trinta
anos.
Molly bebeu um gole de Bloody Mary e olhou com pesar para o copo vazio.
Falei-lhe de Liz Berkeley. Nunca conseguiu engravidar até ir a um ginecologista que é um especialista em fecundidade. Liz dera à luz uma menina e claro ficou extática.
Seja como for, falei no Dr. Highley a Vangie. Ela foi ter com ele e alguns meses depois engravidou. Mas desde então lamento ter-me envolvido.
Dr. Highley? Katie parecia surpreendida. Molly acenou com a cabeça.
Sim, aquele que vai...
Katie abanou a cabeça, e a voz de Molly, perdeu-se.
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Edna Burns gostava do seu trabalho. Era guarda-livros e recepcionista de dois médicos que recrutavam pessoal e dirigiam a equipa da Maternidade Westlake. "O Dr.
Highley é uma pessoa muito importante", confiava ela aos amigos. "Sabes, era casado com Winifred Westlake e ela deixou-lhe tudo. É ele quem manda em tudo."
O Dr. Highley era ginecologista/obstetra, e como Edna explicava: "É uma algazarra ver como as suas doentes reagem quando conseguem engravidar; tão felizes que pensaríamos
que inventavam crianças. Leva-lhes couro e cabelo, mas é por assim dizer um taumaturgo."
"Por outro lado", explicava ela, "Highley também é a pessoa certa para ver se uma pessoa tem um problema interno que não se quer que progrida. Se percebe o que quero
dizer", acrescentava com um piscar de olhos.
O Dr. Fukhito era psiquiatra. A Maternidade Westlake era uma daquelas em que se praticava medicina holistic; a mente e o corpo devem estar em harmonia para se conseguir
uma gravidez com êxito e muitas mulheres não eram capazes de engravidar porque estavam carregadas emocionalmente de medo e ansiedade. Todas as doentes de ginecologia
consultavam o Dr. Fukhito pelo menos uma vez, mas as grávidas precisavam de fazer visitas regulares.
Edna gostava de dizer aos amigos que o Centro de Concepção Westlake tinha sido idealizado pelo velho Dr. Westlake, que morrera antes de pôr em prática a ideia. Depois,
há oito anos, a sua filha Winifred casara com o Dr. Highley, comprara a Clínica River Falls quando esta abriu falência, deu-lhe o nome do pai e colocou o marido
na direcção da mesma. "Ela e o doutor eram loucos um pelo outro", dizia Edna, soltando um suspiro. "Quero dizer que ela era dez anos mais velha do que ele e nada
bonita, mas eram autênticos namorados. Ele fazia-me mandar-lhe flores duas vezes por semana, e, atarefado como estava, ia com ela comprar a sua roupa. Deixa-me que
te diga que foi um choque quando ela morreu. Ninguém sabia que estava tão mal do coração."
"Mas", acrescentava filosoficamente, "ele está sempre ocupado, "i mulheres que nunca tinham conseguido engravidar ficarem grávidas duas e três vezes. Claro, muitas
delas não chegavam ao fim da gravidez, mas, pelo menos, ficavam a saber que existia
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uma possibilidade. E devias ver o cuidado que elas têm. Vi o Dr. Highley trazer mulheres para aqui e interná-las no hospital durante dois meses antes do nascimento.
Custa uma fortuna, evidentemente, mas acredita em mim, quando se quer um filho e se tem recursos, paga-se qualquer coisa para o conseguir. Mas tu mesma podes ler
isto, muito em breve", acrescentava. "A revista Newsmaker acaba de elaborar um artigo sobre ele e sobre a Maternidade Westlake. Sai na quinta-feira. Vieram na semana
passada e fotografaram-no no escritório ao pé das fotografias de todos aqueles bebés a cujos partos assistiu. Foi mesmo bonito. E se pensas que temos muito que fazer
agora, espera até sair o artigo. O telefone nunca estará no gancho."
Edna era uma guarda-livros inata. Os seus registos eram maravilhas de precisão. Adorava receitas e sentia um orgulho sensual em fazer depósitos frequentes e substanciais
na conta bancária do patrão. Uma tabuleta elegante, mas espalhafatosa, sobre a sua secretária, informava que todos os pagamentos tinham de ser feitos em dinheiro;
não seriam enviadas contas mensais; os honorários e tabelas de pagamento seriam explicadas pela Menina Burns.
Edna fora informada pelo Dr. Highley que, a não ser que lhe fossem dadas instruções em contrário, deveria marcar logo as próximas consultas com as pessoas quando
saíssem; que, se por qualquer razão, a doente faltasse à consulta, Edna deveria telefonar para casa dessa doente e marcar nova consulta. Era uma disposição correcta
e, como Edna salientava alegremente, uma bonança financeira.
O Dr. Highley dava sempre os parabéns a Edna pelos excelentes registos que mantinha e pela sua habilidade em ter sempre cheio o livro de consultas. A única vez que
o Dr. Highley lhe falou com mais rispidez foi quando a ouviu por acaso a conversar com uma doente acerca dos problemas das outras doentes. Ela teve de admitir que
fora uma insensatez, mas dera-se ao luxo de beber alguns manhattans ao almoço nesse dia e isso enfraquecera a sua atenção.
O médico terminara o sermão dizendo: "Nada de conversa, senão fica em maus lençóis."
Ela sabia que ele falava a sério.
Edna suspirou. Estava cansada. Na noite anterior ambos os médicos tinham estado de serviço e houvera muita agitação. Depois trabalhara nos livros durante algum tempo.
Estava ansiosa por ir para casa nessa noite, e nem cavalos selvagens a fariam sair outra vez. Vestiria um roupão e prepararia uma
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série de manhattans. Tinha presunto enlatado no frigorífico, portanto isso seria a sua ceia e veria televisão.
Eram quase duas horas. Mais três horas e ela podia ir-se embora. Enquanto não havia barulho teria de verificar a lista do dia anterior para se certificar de que
marcara todas as consultas necessárias. Franzindo as sobrancelhas como um míope, apoiou o rosto largo, sardento numa mão grossa. O cabelo nesse dia estava em desalinho.
Não tivera tempo de o arranjar na noite anterior. Sentira-se um tanto cansada depois de tomar algumas bebidas.
Era uma mulher excessivamente forte de quarenta e quatro anos de idade que parecia dez anos mais velha. A sua mocidade ázima fora passada a cuidar de parentes que
envelheciam. Quando Edna via as fotografias da Escola de Secretariado Drake ficava vagamente surpreendida com a rapariga bonita que era há vinte e cinco anos atrás.
Sempre um pouco pesada de mais mas bonita apesar de tudo.
O seu pensamento estava concentrado em parte na página que estava a ler, mas depois algo despertou toda a sua atenção. Parou. A consulta das oito horas da noite
anterior para Vangie Lewis.
Na véspera, Vangie chegara cedo e sentou-se a conversar com Edna. Estava deveras preocupada. Bem, Vangie era um pouco queixosa, mas tão bonita que Edna gostava só
de olhar para ela. Vangie engordara bastante durante a gravidez e, para o olho clínico de Edna, estava a reter muito líquido. Edna rezava para que Vangie tivesse
aquele bebé sem problemas. Ela desejava-o com tanto ardor.
Por isso não censurava Vangie por ter caprichos de temperamento. Realmente não estava bem. No mês anterior começara a usar aqueles moccasins porque os outros sapatos
já não lhe serviam. Mostrara os a Edna. "Olhe para isto. O meu pé direito está tão mal, só consigo trazer estas chancas que a minha mulher da limpeza deixou ficar.
O outro está sempre a cair."
Edna brincara com ela. "Então, com esses chinelos de vidro terei de começar a chamar-lhe Cinderela. E chamaremos ao seu marido Príncipe Encantado." Ela sabia que
Vangie gostava muito do marido.
Mas Vangie limitara-se a fazer beicinho e a dizer com impaciência: "Oh, Edna, o Príncipe Encantado era o namorado da Bela Adormecida, não da Cinderela. Toda a gente
sabe isso."
Edna rira. "A mãezinha devia estar confundida. Quando me falou da Cinderela disse que o Príncipe Encantado apareceu com
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o chinelo de vidro. Mas isso não tem importância antes de saber isso, já terá o seu bebé e estará aqui outra vez com uns sapatos lindos."
Na noite anterior, Vangie levantara o cafetã comprido que passara a vestir para esconder a perna inchada.
"Edna", dissera ela, "quase não consigo calçar este sapato. E para quê? Deus Omnipotente, para quê?" Estava quase a chorar.
"Oh, está apenas a ficar deprimida, querida", dissera Edna. "É bom ter vindo para falar com o Dr. Fukhito. Ele fará com que se descontraia."
Precisamente nesse momento, o Dr. Fukhito tocara e dissera para mandar entrar a Sr.a Lewis. Vangie atravessou o corredor rumo ao seu escritório. Assim que se afastou
da área da recepção, tropeçou. Caminharia sem aquele sapato esquerdo, que não se segurava.
Oh, que vá para o diabo! gritou ela, e continuou a caminhar. Edna apanhou o moccasin, calculando que Vangie viria buscá-lo quando terminasse a consulta com o Dr.
Fukhito.
Edna ficava sempre até tarde nas noites de segunda-feira para trabalhar nos livros. Mas, quando estava pronta para ir para casa por volta das nove horas, Vangie
ainda não voltara. Edna resolveu correr o risco e telefonar ao Dr. Fukhito dizendo apenas que deixaria o sapato no lado de fora da porta do escritório no corredor.
Mas ninguém respondeu do escritório do Dr. Fukhito. Isso significava que Vangie saíra pela porta que dava para o parque de estacionamento. Era uma loucura. Ela iria
morrer de frio se molhasse o pé.
Indecisa, Edna ficara com o sapato na mão e fechara a porta à chave. Saiu para o parque de estacionamento encaminhando-se para o carro mesmo a tempo de ver o enorme
Lincoln Continental vermelho de Vangie com o Dr. Highley ao volante a arrancar. Tentara correr para lhe acenar, mas não adiantou. Por isso iria para casa.
Talvez o Dr. Highley já tivesse marcado uma nova consulta com Vangie, mas Edna telefonar-lhe-ia para se certificar. Marcou rapidamente o número dos Lewises. O telefone
tocou uma, duas vezes.
Uma voz de homem respondeu:
Residência dos Lewises.
A Sr.a Lewis, por favor. Edna deu à voz o tom seco mas amistoso da Escola de Secretariado Drake. Não sabia se estava a falar com o comandante Lewis.
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Quem fala?
Do escritório do Dr. Highley. Desejamos marcar a próxima consulta da Sr.a Lewis.
Um momento.
Ela podia afirmar que estavam a tapar o auscultador. Ouviam-se vozes abafadas. Que se poderia estar a passar? Talvez Vangie tivesse adoecido. Se assim fosse, o Dr.
Highley devia ser informado imediatamente.
A voz do outro lado ouviu-se de novo.
Aqui fala o detective Cunningham do departamento do promotor de Justiça de Valley County. Lamento, mas a Sr.a Lewis morreu de repente. Pode dizer ao médico que será
contactado amanhã de manhã por alguém do nosso departamento.
A Sr.a Lewis morreu! A voz de Edna foi um gemido de consternação. Oh, que aconteceu?
Houve uma pausa.
Parece que se suicidou. Cortaram a ligação.
Edna baixou lentamente o auscultador. Não era possível. Não era possível.
As suas doentes da consulta das duas horas chegaram ao mesmo tempo: a Sr.a Volmer para o Dr. Highley, a Sr.a Lashley para o Dr. Fukhito. Edna cumprimentou-as maquinalmente.
Sente-se bem, Edna? perguntou a Sr.a Volmer cheia de curiosidade. Parece incomodada.
Ela sabia que a Sr.a Volmer falara algumas vezes com Vangie na sala de espera. Estava-lhe debaixo da língua dizer-lhe que Vangie morrera. Mas um instinto avisou-a
para dizer primeiro ao Dr. Highley.
A doente da consulta da uma e meia saiu. Ele ouviu-se no intercomunicador:
Edna, mande entrar a Sr.a Volmer. Edna lançou um olhar às mulheres. Ela não podia falar no intercomunicador sem que elas a ouvissem.
Doutor, posso entrar por um instante, por favor? Queria falar com o senhor. Aquilo soou a eficiência. Ela estava satisfeita com o seu próprio controlo.
Certamente. Ele não parecia muito contente. Highley era um pouco assustador; no entanto conseguia ser simpático. Ela vira isso na noite anterior.
Atravessou o vestíbulo com a rapidez que o corpo excessivamente pesado lhe permitia. Arfava quando bateu à porta do escritório. Ele disse:
Entre, Edna. A sua voz deixava transparecer a irritação.
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Timidamente abriu a porta e entrou no escritório.
Doutor começou precipitadamente, o senhor precisa de saber. Telefonei agora mesmo à Sr.a Lewis, Vangie Lewis, para marcar uma consulta. O senhor disse-me que a queria
ver todas as semanas.
Sim, sim. E, por amor de Deus, Edna, feche essa porta. A sua voz pode ouvir-se em todo o hospital.
Ela obedeceu prontamente. Tentando não levantar o tom de voz, disse:
Doutor, quando telefonei para a casa dela, respondeu um detective. Ele disse que ela se matou e que vêm falar com o senhor amanhã.
A Sr.a Lewis o quê? Ele parecia chocado.
Agora que podia falar, as palavras de Edna amontoavam-se-lhe na boca, saindo em catadupa.
Estava tão perturbada ontem à noite, não estava, doutor? Quero dizer, ambos o vimos. A maneira como falou comigo e como se comportou dava a impressão de que não
se importava com nada. Mas o senhor deve saber isso; pensei que era a coisa mais simpática quando vi o senhor levá-la a casa ontem à noite. Tentei fazer-lhe sinal,
mas não me viu. Por isso penso que melhor do que ninguém o senhor sabe como ela estava mal.
Edna, com quantas pessoas falou acerca disto?
Havia qualquer coisa no seu tom que a pôs muito nervosa. Desorientada, evitou o seu olhar.
Com ninguém, sir. Soube agora mesmo.
Não falou da morte da Sr.a Lewis à Sr.a Volmer ou a qualquer outra pessoa na área da recepção?
Não... não, sir.
Nem ao detective ao telefone?
Não, sir.
Edna, amanhã quando vier a Polícia, a senhora e eu contar-lhes-emos tudo o que sabemos do estado de espírito da Sr.a Lewis. Mas agora preste atenção. Ele apontou
para ela e curvou-se. Inconscientemente, ela recuou. Não quero que mencione o nome da Sr.a Lewis a ninguém... ninguém, está a ouvir? A Sr.a Lewis era uma mulher
extremamente neurótica e instável. Mas na realidade o seu suicídio reflecte-se negativamente no nosso hospital. Qual pensa que será a impressão que causará se sair
nos jornais que ela era minha paciente? E não quero de forma alguma que tagarele na sala da recepção com as outras doentes, algumas das quais têm uma gravidez difícil.
Percebe-me?
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Percebo, sir disse Edna com voz trémula. Ela devia saber que ele iria pensar que daria com a língua nos dentes.
Edna, gosta do seu trabalho?
Gosto sim, sir.
Edna, não comente com ninguém ninguém, preste atenção uma palavra sobre o caso Lewis. Se souber que disse uma palavra acerca disto, deixará de trabalhar aqui. Amanhã
falaremos com a Polícia, mas mais ninguém. O estado de espírito da Sr.a Lewis é confidencial. Entendido?
Sim, sir.
Hoje à noite vai sair com amigos? Você sabe como fica quando bebe.
Edna estava quase a chorar.
Vou para casa. Não me estou a sentir bem, doutor. Quero ter a cabeça no lugar amanhã quando a Polícia falar comigo. Pobre Cinderela. Ela reprimiu as lágrimas quando
afloraram os olhos. Mas nessa altura viu a expressão do seu rosto. Encolerizado. Descontente.
Edna endireitou-se, passou a mão pelos olhos.
Vou mandar entrar a Sr.a Volmer, doutor. E o senhor não precisa de se preocupar acrescentou ela com dignidade. Eu tenho em grande conta o seu hospital. E sei a importância
que o seu trabalho tem para o senhor e para as suas doentes. Não vou dizer uma só palavra.
O resto da tarde foi agitado. Conseguiu esquecer Vangie enquanto conversava com as doentes, marcava futuras consultas, recebia dinheiro, chamava a atenção das doentes
se estas estavam atrasadas nos pagamentos.
Finalmente, pôde ir-se embora às cinco horas. Bem agasalhada com um casaco de imitação de pele de leopardo e com um chapéu a condizer, conduziu o carro em direcção
ao seu apartamento com jardim em Edgeriver, a seis milhas.
9
Na sala de autópsias, clinicamente impessoal, da Morgue de Valley County, Richard Carroll retirou com todo o cuidado o feto do cadáver de Vangie. Os seus dedos,
compridos e sensíveis ergueram o pequeno corpo, notando que o líquido amniótico
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começara a sair. Vangie Lewis não podia ter trazido no ventre este bebé por muito mais tempo. Calculou que pesasse cerca de um quilo e meio. Era um rapaz.
O primeiro filho. Ele abanou a cabeça, lamentando a destruição de uma vida quando o colocou numa prancha adjacente. Vangie estava num adiantado estado de toxemia.
Era incrível que um médico a tivesse deixado chegar àquele ponto nestas condições. Ele gostaria de saber qual era a percentagem de glóbulos brancos. Provavelmente,
muitíssimo alta.
Já mandara amostras de fluído para o laboratório. Ele tinha a certeza que o cianido matou a mulher. A garganta e a boca estavam muito queimadas. Ela engolira muito,
que Deus a guarde.
As queimaduras na parte exterior da boca? Richard examinou-as cuidadosamente. Tentou visualizar o momento em que ela bebera o veneno. Começara a engolir, sentiu
o ardor, mudou de ideias, tentou cuspi-lo. Ele escorrera para os lábios e para o queixo.
Tinha as suas dúvidas.
Havia filamentos brancos presos no casaco. Pareciam de um cobertor. Mandou-os analisar. Tinha a impressão de que ela estivera deitada em cima de uma colcha com cordões
de veludo. Queria comparar as fibras da colcha com as extraídas do casaco. Claro que o casaco estava muito usado, e elas podiam ter-se agarrado em qualquer outra
altura.
O corpo ficara tão inchado que parecia que Vangie vestira a roupa que conseguira encontrar que a pudesse tapar.
À excepção dos sapatos. Era outro aspecto incongruente. Os sapatos eram elegantes e caros. Mais do que isso, pareciam novos. Era pouco provável que Vangie pudesse
ter saído na segunda-feira com eles e ficar com eles em estado de novo. Não tinham pintas de água nem manchas de neve, apesar dos tornozelos das meias-calças terem
salpicos de neve com lama. Isso não dava a entender que ela devia ter saído, entrado, resolvido sair outra vez, trocado de sapatos e suicidado em seguida?
Isto também não era plausível.
Outra coisa. Aqueles sapatos estavam muito apertados. Principalmente o do pé direito. Ela mal podia apertar o sapato, e a gáspea era estreita. Seria como meter os
pés num torno. Tendo em conta a forma como ela estava vestida, porquê dar-se ao trabalho de calçar uns sapatos que nos matarão?
Sapatos que nos matarão...
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Richard não deixava de pensar na frase. Endireitou-se. O seu trabalho ali estava quase a terminar. Assim que tivessem um relatório do laboratório podia dizer a Scott
Myerson o que descobrira.
Virou-se para examinar uma vez mais o feto. O cianido entrara no sangue. Como a mãe, devia ter sentido as agonias da morte. Richard examinou-o cuidadosamente. O
milagre da vida nunca deixara de lhe inspirar temor. Quanto mais não fosse, aumentava com cada experiência que tinha com a morte. Maravilhava-se com o equilíbrio
delicado do corpo: a harmonia dos seus órgãos, músculos e fibras, ossos e tendões, veias e artérias; a complexidade extrema do sistema nervoso, a capacidade do corpo
para curar as suas próprias lesões, a tentativa complexa para proteger o que não nasceu ainda.
De repente, debruçou-se sobre o feto. Libertou-o rapidamente da placenta e examinou-o debaixo da lâmpada forte. Seria possível?
Era um pressentimento, um pressentimento que tinha de clarificar. Dave Broad era o homem que lhe interessava. Dave estava encarregado da investigação pré-natal em
Mt Sinai. Mandar-lhe-ia o feto e pediria uma opinião.
Se aquilo que ele pensava estava certo, havia um bom motivo para que o comandante Chris Lewis estivesse preocupado com a gravidez da mulher.
Talvez até suficientemente aborrecido para a matar!
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Scott Myerson, o promotor de Justiça de Valley County, marcou uma reunião para as cinco horas no seu escritório com a presença de Katie, Richard e os dois detectives
da Brigada de Homicídios destacados para o suicídio Lewis. O escritório de Scott não condizia com as imagens televisivas de todo o mundo dos aposentos privados de
um promotor de justiça. Era pequeno. As paredes estavam pintadas com um amarelo-pálido. A mobília estava danificada; os ficheiros antigos eram cinzentos-escuros.
As janelas davam para a prisão do distrito.
Katie foi a primeira a chegar. Sentou-se cuidadosamente na única cadeira razoavelmente confortável. Scott olhou para ela
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com um sorriso velado. Era um homem baixo com uma voz surpreendentemente forte. Uns óculos com armações largas, um bigode negro e bem aparado e um fato clássico
meticulosamente talhado faziam-no parecer mais com um banqueiro do que com um agente da lei. Estivera todo o dia no tribunal num caso que ele mesmo julgava e falara
com Katie apenas pelo telefone. Agora observava o braço ligado e a ferida debaixo do olho e o estremecimento de dor que lhe crispou o rosto quando mexeu o corpo.
Obrigado por ter vindo disse ele. Sei que está sobrecarregada com trabalho e eu avalio o que isso é. Mas seria melhor não trabalhar amanhã.
Katie abanou a cabeça.
Não. Estou bem, e provavelmente de manhã já não sentirei tantas dores.
Está bem, mas não se esqueça, se se começar a sentir mal, vá para casa. Ele tornou-se sério. O caso Lewis. Fizemos algum progresso?
Richard e os detectives entraram enquanto ela falava Acomodaram-se discretamente nas três cadeiras portáteis que restavam.
Scott batia com o lápis na secretária enquanto escutava. Voltou-se para os detectives.
Que descobriram?
Phil Cunningham tirou a agenda.
Aquela casa não era um ninho de amor. Os Lewises foram a algumas reuniões de vizinhos. Ele olhou para Katie. Imagine que a sua irmã tentou incluí-los. Toda a gente
gostava de Chris Lewis. Pensavam que Vangie era intratável obviamente com inveja dele; sem interesse em se envolverem com nenhuma actividade na comunidade; sem interesse
em nada. Nas festas ela seguia-o sempre de perto; ficava mesmo aborrecida quando ele falava mais de cinco minutos com outra mulher. Ele tinha muita paciência com
ela. Uma das vizinhas disse que o marido lhe disse depois de uma dessas festas que se ele fosse casado com a Vangie, matá-la-ia com as suas próprias mãos. Depois,
quando ela ficou grávida tornou-se verdadeiramente insuportável. Estava sempre a falar de bebés.
Charley abrira a agenda.
Telefonaram do escritório do obstetra para marcarem uma consulta. Disse que amanhã iríamos falar com o médico.
Richard disse calmamente:
Há algumas perguntas sobre o estado de Vangie Lewis que gostaria de fazer a esse médico.
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Scott olhou para Richard.
Terminou a autópsia?
Terminei. Foi cianido, sem sombra de dúvida. Morreu instantaneamente. A boca e a garganta estavam muito queimadas. O que leva ao ponto crucial.
Havia um jarro de água e copos de papel em cima do ficheiro. Aproximando-se do ficheiro, Richard deitou bastante água num copo de papel.
Muito bem disse ele, isto está cheio de cianido dissolvido. Vou-me matar. Bebo um trago. Engoliu rapidamente. O copo de papel ainda estava quase meio. Os outros
observavam-no atentamente.
Ele mostrou o copo.
Na minha opinião, Vangie Lewis deve ter bebido pelo menos os aproximadamente 85,2 cm3 que engoli agora mesmo para termos a quantidade de cianido que encontrámos
no seu organismo. Até aqui tudo certo. Mas aqui reside o problema. A parte exterior dos lábios, o queixo e mesmo o pescoço estavam queimados. Isso só poderia ter
acontecido se ela tivesse cuspido parte do veneno... Mas se ela engolisse tanto quanto engoliu de um trago, isso significa que a boca ficou sem nada. Teria bebido
outra vez e cuspido? De jeito nenhum. A reacção é instantânea.
Ela não podia ter engolido um pouco e cuspido o resto? perguntou Scott.
Richard encolheu os ombros.
Havia uma quantidade demasiado grande no organismo e no rosto que sugerisse meia dose. No entanto a quantidade derramada na colcha era insignificante, e havia apenas
algumas gotas no fundo do copo. Portanto se ela tivesse derramado algum nos lábios e no queixo, depois beberia o resto para justificar a quantidade consumida. Podia
ter sucedido assim, mas não creio. O outro problema são os sapatos que ela tinha calçados.
Explicou rapidamente que não acreditava que Vangie Lewis pudesse caminhar confortavelmente com aqueles sapatos que tinha apertados com os atacadores aos seus pés.
Enquanto escutava, Katie visualizou o rosto de Vangie. O rosto sem vida que vira no sonho e o rosto sem vida que vira na cama deslizava para trás e para a frente
no seu espírito. Tentou concentrar-se de novo na sala e apercebeu-se que Charley estava a falar com Scott.
.. Richard e eu pensamos que o marido notou qualquer coisa no corpo que não nos disse.
Suponho que foram os sapatos disse Richard.
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Katie virou-se para ele.
O telefonema que Chris Lewis fez. Já lhe falei nisso, Scott.
Falou. Scott reclinou-se na cadeira. Muito bem. Vocês dois ele apontou para Charley e Phil descubram tudo o que puderem sobre o comandante Lewis. Vejam quem é essa
Joan. Descubram a que horas chegou o avião dele esta manhã. Investiguem todos os telefonemas que Vangie Lewis fez nos últimos dias Mandem Reta ao médico da Sr.a
Lewis e que consiga a sua opinião sobre o estado mental e físico.
Eu posso dizer-lhe qual o seu estado físico disse Richard.
Se ela não tivesse o filho num curto espaço de tempo, não teria precisado do cianido.
Há outra coisa disse Scott. Onde arranjou ela o cianido?
Não há nenhum vestígio dele na casa informou Charley.
Nem uma gota. Mas parece que ela fazia jardinagem Talvez tivesse guardado algum do ano passado.
Para o caso de resolver suicidar-se? A voz de Scott não era irónica. Há mais alguma coisa?
Richard hesitou.
Talvez haja disse ele lentamente. Mas é tão remoto... e em função do que acabo de ouvir, penso que estou no caminho errado. Por isso dê-me mais vinte e quatro horas.
Então talvez tenha mais alguma coisa a comunicar.
Scott acenou com a cabeça.
Venham ter outra vez comigo. Ele levantou-se. Creio que estamos todos de acordo. Não vamos encerrar o caso, considerando-o um suicídio. Olhou para Richard Mais uma
pergunta. Há alguma possibilidade de ela ter morrido noutro lugar qualquer e ter sido colocada de novo na cama?
Richard franziu as sobrancelhas.
É possível... mas a forma como o sangue coagulou no corpo diz-me que estava na posição em que a encontrámos desde o momento em que ingeriu aquele cianido.
Muito bem, disse Scott. Apenas uma ideia. Punhamos uma pedra no assunto por hoje.
Katie começou a levantar-se.
Sei que é um disparate, mas... Sentiu o braço de Richard a ampará-la.
Estás mesmo perra interrompeu ele.
Por um instante estivera quase a contar-lhes o sonho disparatado que tivera no hospital. A voz dele fê-la voltar à realidade.
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Teriam pensado que estava louca. Agradecida, sorriu a Richard.
Perra sobretudo na cabeça, suponho comentou ela.
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Ele não podia deixar que Edna destruísse todo o seu trabalho. As mãos agarraram o volante com firmeza. Sentiu-as tremer. Tinha de se acalmar.
A ironia requintada de ela ser a única pessoa que o vira tirar o Lincoln do parque de estacionamento. Obviamente que presumira que Vangie estava com ele dentro do
carro. Mas assim que ela contasse a sua história à Polícia, tudo estaria acabado. Ele conseguia ouvir as perguntas: "Doutor, o senhor levou a Sr.a Lewis a casa?
Que fez depois de a deixar em casa? Chamou um táxi? A que horas foi isso, doutor? A Menina Burns diz-nos que o senhor saiu do parque de estacionamento pouco depois
das nove da noite."
A autópsia provaria certamente que Vangie morrera por volta dessa hora. Que pensariam se lhes dissesse que voltara a pé para o hospital com aquela tempestade?
Edna tinha de ser silenciada. A maleta estava no assento ao lado dele. Dentro dela estava apenas o pisa-papéis da secretária do escritório. Geralmente não se dava
ao trabalho de trazer uma maleta, mas levara-a essa manhã com a intenção de meter lá o moccasin. Tencionava ir jantar a Nova Iorque e deixar os sapatos em duas latas
do lixo que seriam recolhidas de manhã.
Mas nessa manhã Hilda chegara cedo. Ficou no vestíbulo a conversar com ele enquanto vestia o sobretudo verde de tweed. Ela dera-lhe o chapéu e a maleta. Era impossível
mudar os moccasins da Burberry para a maleta à frente dela. Que teria pensado? Mas tinha importância. A Burberry estava no fundo do armário. Ela não tinha nenhuma
precisão de chegar perto dela, e nessa noite, quando acabasse com Edna iria para casa. Livrar-se-ia dos sapatos na noite do dia seguinte.
Era uma sorte Edna viver tão perto do hospital. Era por isso que ele conhecia o seu apartamento. Deixara-lhe várias vezes trabalho para fazer quando ficava retida
na cama com ciática. Ele teria apenas de verificar o número do apartamento para se
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certificar. Teria de fazer com que parecesse um assassínio perpetrado durante um assalto à mão armada. O departamento de Katie DeMaio interferiria, mas certamente
não relacionaria o homicídio de uma guarda-livros desconhecida nem com o patrão nem com Vangie Lewis.
Tirar-lhe-ia a carteira, apanharia alguma jóia que ela tivesse. Dando tratos ao juízo, lembrou-se que ela possuía um broche em forma de borboleta com um rubi minúsculo
e um anel de noivado com um pequeno diamante incrustado. Mostrara-lhos quando deixara trabalho em sua casa há alguns meses.
"Este era o anel da minha mãe, doutor", dissera com orgulho. "O papá e ela apaixonaram-se no primeiro encontro e ele ofereceu-lho no segundo encontro. O senhor acreditaria
que na altura os dois já estavam na casa dos quarenta? O papá deu-mo quando a mamã morreu. Isso aconteceu há três anos, e o senhor sabe que ele viveu apenas dois
meses depois da sua morte. Claro, a mamã tinha uns dedos mais finos e é por isso que o uso no dedo mínimo. E ele deu-lhe o broche quando fizeram dez anos de casados."
Ouvira com irritação a narrativa fastidiosa, mas agora percebia que como tudo, era potencialmente útil. Sentara-se junto à cama. Ela guardava a caixa das jóias,
barata e de plástico, na gaveta de mesinha-de-cabeceira. Aquele anel, o broche e a carteira da bolsa de mão seriam fáceis de levar e estabeleceriam claramente a
ligação do assassínio com o roubo.
Depois livrar-se-ia deles e dos sapatos e isso seria o fim.
Exceptuando Katie DeMaio.
Humedeceu o lábio superior com a parte de dentro do lábio inferior. A boca estava seca.
Ele tinha de pensar no apartamento de Edna. Como iria entrar? Atrever-se-ia a tocar à campainha, a fazer com que ela o deixasse entrar? E se não estava sozinha?
Mas estaria sozinha. Ele tinha a certeza. Ela ia para casa para beber. Ele podia afirmá-lo pelos movimentos nervosos e ansiosos que ela fez enquanto a via do corredor.
Estava excitada, perturbada, obviamente ocupada com as histórias que queria contar à Polícia no dia seguinte.
Uma transpiração gelada ensopou-o quando pensou que ela podia ter resolvido falar com as doentes na sala de recepção antes de lhe falar de Vangie. As Ednas deste
mundo precisam de uma audiência. Escutem-me. Reparem em mim. Eu existo!
"Não por muito tempo, Edna, não por muito tempo."
Ele entrava com o carro na área do seu apartamento. A
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última vez deixara o carro atrás do apartamento numa das coberturas para as visitas. Arriscar-se-ia agora a conduzir o carro até lá? Estava frio, ventoso, escuro.
Poucas pessoas andariam por ali. Alguém que viesse a chegar, não o faria devagar nem repararia num carro perfeitamente vulgar, escuro e de preço médio. Da última
vez contornara a esquina do bloco de apartamentos. Ela vivia no rés-do-chão do último apartamento. Arbustos espessos tentavam esconder um cadeado enferrujado que
separava o complexo de uma ravina escarpada que tinha uma dúzia de pés de altura e terminava nas linhas férreas, de um ramal da linha principal.
A janela do quarto de Edna dava para o parque de estacionamento. Havia arbustos altos e por podar debaixo da janela. A janela ficava ao nível do solo bastante baixa,
se bem se lembrava. E se a janela não estivesse trancada? Àquela hora, se ele não estivesse enganado, Edna estaria embriagada. Ele podia entrar e sair pela janela.
Isso daria credibilidade ao assalto. Caso contrário, tocaria à campainha, entraria, matá-la-ia e sairia depois. Mesmo que fosse descoberto, fosse visto, diria simplesmente
que passara por lá para deixar uma papelada, depois resolvera não a deixar porque ela estava a beber. Um intruso qualquer podia ter entrado mais tarde. Ninguém no
seu perfeito juízo acusaria um médico abastado de roubar uma guarda-livros sem dinheiro.
Satisfeito, abrandou quando se aproximou do complexo de apartamentos. Os dois blocos, precisamente iguais, pareciam hirtos e abandonados na noite fria de Fevereiro.
No parque de estacionamento havia meia dúzia de carros. Parou o carro no meio de um camper e uma carrinha. O seu carro perdia-se no espaço semelhante a uma caverna
que os veículos de maior envergadura forneciam. Calçou as luvas das operações e meteu o pisa-papéis no bolso do casaco. Saindo discreta e cautelosamente, fechou
a porta sem fazer barulho e desapareceu nas sombras escuras projectadas pelo prédio. Deu graças aos deuses por Edna viver no último apartamento. Era absolutamente
impossível enganar-se no caminho.
A persiana do quarto estava quase toda descida, mas tinha uma planta na janela. A persiana estava pousada no cimo da planta, e ele podia ver perfeitamente. O quarto
estava iluminado por um candeeiro de vestíbulo. A janela só tinha uma fresta. Ela devia estar na sala de estar ou na zona de refeições. Ouvia o som fraco de um programa
da televisão. Entraria pela janela.
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Olhando rapidamente em redor, certifícou-se uma vez mais de que a zona estava deserta. Com uns dedos enluvados e fortes como o aço levantou a janela, puxou a persiana
para cima sem fazer barulho, pegou silenciosamente na planta e pousou-a no chão. Mais tarde seria uma prova evidente do método de entrada. Içou-se para cima do peitoril.
Para um homem alto era surpreendentemente ágil.
Estava no quarto. Na luz fraca absorveu a limpeza imaculada, a colcha com fios entrançados, o crucifixo por cima da cama, as fotografias emolduradas de um casal
de certa idade, o pano de renda sobre o tampo manchado do toucador folheado de mogno.
Agora para a parte necessária, a parte que ele detestava. Apalpou o pisa-papéis no seu bolso. Decidira dar-lhe uma mocada. Lera uma vez que um médico fora declarado
culpado de um assassínio por causa da punhalada certeira e perfeita. Ele não podia arriscar-se a que o seu conhecimento médico o denunciasse. Foi o seu conhecimento
médico que o levara a esta casa.
Começou a atravessar o pequeno vestíbulo em bicos de pés. O quarto de banho à direita. A sala de estar em frente a seis pés para a esquerda. Espreitou cautelosamente.
O aparelho de televisão estava ligado, mas a sala estava vazia. Ele ouvia o ruído de uma cadeira, que rangia. Ela devia estar sentada à mesa da pequena sala de jantar.
Com um cuidado infinito entrou na sala de estar. Este era o momento. Se ela o visse e gritasse...
Mas ela estava de costas para ele. Envolta numa túnica azul de lã, estava refastelada numa cadeira à cabeceira da mesa. Uma mão estava perto de um copo de cocktail
excessivamente grande, a outra fechada no regaço. Um jarro alto diante dela estava quase vazio. A cabeça estava caída sobre o peito. Uma respiração fraca, uniforme,
disse-lhe que estava a dormir. Tresandava a álcool.
Ele estudou rapidamente a situação. O seu olhar fixou-se no irradiador à direita da mesa, que produzia um som sibilante. Era um modelo antigo com canos cortantes,
expostos. Seria possível que não precisasse de um pisa-papéis? Talvez...
Edna sussurrou.
O que... oh... Ela levantou os olhos turvos para ele. Confusa, começou a levantar-se, torcendo-se desastradamente na cadeira. Doutor...
Um forte empurrão fê-la cair de costas no chão. A cabeça bateu no irradiador. Luzes ofuscantes explodiram no seu cérebro. "Oh, a dor! Oh, meu Deus, a dor!" Edna
soltou um
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suspiro. O calor calmante do sangue que saía em golfadas lançou-a nas trevas. A dor espalhou-se, aumentou, atingiu o ponto máximo, diminuiu, acabou.
Deu um salto para trás, com cuidado para não se aproximar do sangue salpicado, depois curvou-se cautelosamente sobre ela. Enquanto observava, a pulsação na garganta
tornou-se irregular e parou. Manteve o rosto perto do dela. Ela deixara de respirar. Deixou cair no bolso o pisa-papéis. Já não precisaria dele. Não teria de se
dar ao trabalho de a roubar. Daria a impressão que tinha caído. Foi bem sucedido. Era o tipo de homem que não corria riscos.
Voltando rapidamente pelo mesmo caminho, entrou de novo no quarto. Perscrutando para se certificar que a zona de estacionamento ainda estava deserta, saiu pela janela,
lembrou-se de colocar a planta no mesmo lugar, baixou a persiana e fechou a janela até ao ponto onde Edna a tinha.
Enquanto o fazia, ouviu o som persistente de uma campainha de porta a campainha da porta dela Olhou freneticamente em redor. O solo, duro e seco, não mostrava sinais
das suas pegadas. O peitoril estava meticulosamente limpo. Não havia poeira removida. Saltara por cima dele, por isso nenhum sinal dos seus sapatos estragava a superfície
branca.
Correu para o carro. O motor pegou sem fazer barulho. Sem acender os faróis afastou-se do complexo de apartamentos. Quando se aproximou da Route 4, acendeu os faróis.
Quem estaria na soleira da porta de Edna? Essa pessoa tentaria entrar? Edna estava morta. Agora não podia falar dele. Mas fora por pouco, por tão pouco.
A adrenalina passava-lhe pesadamente nas veias. Agora havia apenas uma ameaça possível: Katie DeMaio.
Agora começaria por fazer desaparecer essa ameaça. O seu acidente dera-lhe a desculpa que precisava para dar início à medicação.
Constava no relatório hospitalar que a percentagem de glóbulos estava baixa. Ela recebera uma transfusão na sala de urgência.
Ele prescreveria outra transfusão com o pretexto de a preparar para a operação.
Podia-lhe dar comprimidos de cumadin. Estes impediriam a coagulação e anulariam os efeitos da transfusão. Sexta-feira quando desse entrada no hospital ela estaria
quase a ter uma hemorragia.
Podia fazer-se uma operação de emergência sem se administrarem
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mais anticoagulantes. Mas se fosse necessário injectá-la-ia com heparin. Verificar-se-ia uma depleção total dos precursores da coagulação. Ela não sobreviveria à
operação.
A baixa percentagem de glóbulos inicial, o cumadin e o heparin seriam tão eficazes em Katie como fora o cianido em Vangie.
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Richard e Katie saíram juntos do escritório de Scott. Ela sabia que ele ficaria aborrecido se sugerisse chamar um táxi para a levar a casa. Mas, quando entraram
no carro dele, este disse:
Em primeiro lugar, jantar. Um bife e uma garrafa de vinho fará correr os teus sucos.
Que sucos? perguntou ela, cautelosamente.
Saliva. Estômago. Seja o que for.
Ela escolheu um restaurante tipo barraca que se erguia precariamente sobre os Penhascos. A pequena sala de jantar era aquecida por uma lareira e iluminada por velas.
Oh, isto é agradável disse ela. Obviamente, o proprietário conhecia bem Richard.
Dr. Carroll, um prazer disse ele enquanto os conduzia para a mesa à frente da lareira e puxava uma cadeira para Katie.
Ela sorriu ironicamente quando se sentou, pensando que ou Richard estava a conjecturar ou ela devia parecer tão enregelada e abatida como se sentia.
Richard mandou vir uma garrafa de St Emilion, um criado trouxe pão quente de alho. Ficaram sentados em silêncio amistoso, a beberricar e a mordiscar. Katie apercebeu-se
de que era a primeira vez que estava assim com ele, frente a frente, numa mesa pequena, separados das outras pessoas na sala, a olharem um para o outro.
Richard era um homem alto com um aspecto robusto e saudável que estava patente na cabeleira farta, castanha-escura, nas feições marcadas e regulares, e nos ombros
largos e salientes. "Quando for velho, terá uma elegância leonina", pensou ela.
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Estavas a sorrir disse Richard. Em que estás a pensar?
Ela contou-lhe.
Leonino. Ele pensou na palavra. Um leão no Inverno. Eu escolheria esta. Estás interessada no que estou a pensar?
- Claro.
Quando o teu rosto reage, os olhos ficam muito tristes, Katie.
Desculpa. Não é porque eu queira. Não me considero uma pessoa triste.
Sabes nestes seis últimos meses tenho esperado pela oportunidade de te convidar a saíres comigo, mas foi preciso um acidente que podia ter sido mortal para ti para
que isto sucedesse?
Nunca me convidaste disse ela evasivamente.
Nunca quiseste ser convidada. Transmites um aviso claro "Não incomode". Porquê?
Não acho bem sair com alguém com quem trabalho disse ela. Apenas com base em princípios gerais.
Eu compreendo. Mas não é disso que estamos a falar. Gostamos de estar um com o outro. Ambos sabemos. Mas tu não queres saber disso para nada. Aqui está a ementa.
Os seus modos alteraram-se, tornaram-se ríspidos.
L'entrecote e o bife aopoivre são as especialidades daqui disse-lhe ele. Quando ela hesitou, ele sugeriu: Experimenta o poivre. É fantástico. Excelente acrescentou
esperançado.
Bem feito disse Katie.
Ao ver a sua expressão de pavor, soltou uma gargalhada.
Excelente, claro.
O rosto desanuviou. Ele encomendou saladas com o molho da casa e batatas cozidas, depois reclinou-se na cadeira e observou-a atentamente.
Não queres saber disso para nada, Katie?
- Da salada? Do bife?
Não. Não continues a desviar a conversa. Está bem, não estou a ser sincero. Estou a tentar conhecer o teu íntimo e tu és uma audiência cativa. Mas diz-me o que fazes
quando não estás no escritório nem em casa dos Kennedys. Sei que praticas esqui.
Pratico. Tenho uma amiga da faculdade que é divorciada. No Inverno após a morte do John levou-me à força para Vermont. Agora, ela, eu e dois casais alugamos um condomínio
em Stowe durante a época do esqui. Sempre que posso, vou nos fins-de-semana. Não sou uma esquiadora exímia, mas divirto-me.
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Eu costumava praticar esqui disse Richard Fui obrigado a desistir por causa de uma luxação no joelho. Devia tentar outra vez. Talvez um dia me convides a ir contigo.
Ele não esperou por uma resposta. Velejar é o meu desporto. Levei o meu barco para as Caraíbas na Primavera passada e andei de ilha em ilha... "Esplendor de dias
sem nuvens com velas largas, enfunadas, deslizam suavemente ao vento encrespando a água verde", Eis o teu bife, finalizou de modo frívolo.
E também citaste William, Carlos William murmurou ela. Intimamente esperava que ele ficasse impressionado por ela
conhecer o texto citado.
Citei disse ele. O molho da casa é bom, não é? Beberam lentamente o café. Então Richard falou-lhe de si
mesmo:
Fiquei noivo durante o curso de medicina da rapariga que vivia ao lado. Creio que sabes que cresci em São Francisco?
Que aconteceu? perguntou Katie
Estávamos sempre a adiar o casamento. Acabou por casar com o meu melhor amigo, seja ele quem for. Richard sorriu.
Estou a brincar, claro. Joan era uma rapariga muito atraente. Mas faltava qualquer coisa. Uma noite, quando discutíamos pela quarta ou quinta vez o nosso casamento,
ela disse: "Richard, nós amamo-nos, mas ambos sabemos que há mais qualquer coisa." Ela tinha razão.
Sem qualquer arrependimento; sem segundas intenções?
perguntou Katie.
Nem por isso. Isso foi há sete anos. Fico um pouco surpreendido de que a "qualquer coisa" ainda não tenha acontecido.
Ele parecia não contar que ela fizesse comentários. Em vez disso começou a falar do caso Lewis.
Irrita-me tanto; qualquer desperdício de vida afecta-me. Vangie Lewis era uma mulher nova. Devia ter muitos anos à sua frente.
Estás convencido que não foi suicídio?
Não estou convencido de nada. Precisarei de ter muito mais informações antes de emitir uma opinião.
Não vejo Chris Lewis como um assassino. Hoje em dia é demasiado fácil conseguir o divórcio se se quer ser livre.
Há outro aspecto a considerar. Richard apertou os lábios. Vamos ficar por aqui com a conversa.
Eram quase dez e meia quando entraram na alameda da casa de Katie. Richard olhou com ar trocista para a bela casa de pedra.
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A casa é muito grande? perguntou ele. Quero dizer quantos quartos tens?
Doze disse Katie com relutância. Era a casa de John.
Não pensei que a tivesses comprado com o salário de assistente de promotor de justiça comentou Richard.
Ela começou a abrir a porta do carro.
Espera disse ele. Eu vou à volta. Ainda pode estar escorregadio.
Ela não tencionara convidá-lo a entrar, mas ele não lhe deu azo para dar as boas-noites à porta. Tirando-lhe a chave da mão, meteu-a na fechadura, abriu a porta
e entrou depois dela.
Não me vou demorar disse, mas tenho de admitir que sinto uma curiosidade enorme em saber como vives.
Ela acendeu a luz e viu-o um pouco irritada quando ele examinou o vestíbulo e depois a sala de estar. Assobiou.
Muito, muito bonito. Aproximou-se do retrato de John e examinou-o. Por aquilo que ouvi, ele era um homem especial.
Sim, era. Os lábios estavam firmes.
Quanto tempo estiveram casados, Katie?
Um ano.
Ele estava a olhar quando uma expressão de dor lhe aflorou o rosto; era mais do que isso: uma expressão de surpresa também, como se ainda estivesse confusa com o
que acontecera.
Quando descobriste que ele estava doente? Era cancro, eu compreendo.
Pouco depois de regressarmos da nossa lua-de-mel.
Por isso nunca fizeste outra viagem, pois não? Depois disso foi esperar pela morte. Desculpa, Katie; suponho que o meu trabalho me torna rude demasiado rude para
o meu próprio bem. Agora vou-me embora. Hesitou. Não achas que devias correr essas cortinas quando estás aqui sozinha?
Ela encolheu os ombros.
Porquê? Ninguém vai entrar de roldão para me atacar.
Tu, mais do que ninguém, devia estar a par do número de assaltos a casas. E neste local serias um alvo perfeito, principalmente se alguém soubesse que vives aqui
sozinha. Dás-me licença?
Sem esperar por uma resposta encaminhou-se para a janela e fechou as cortinas.
Vou-me embora. Até amanhã. Como vais para o trabalho? O carro estará pronto?
Não, mas os da oficina vão-me emprestar um. Deixam-no aqui de manhã.
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Está bem. Ficou um momento com a mão no puxador da porta, depois com um sotaque dialectal muito credível, disse: Vou-vos deixar, Katie Scarlett. Agora fecha a porta
à chave. Não gostaria que alguém assaltasse Tara. Curvou-se, beijou-lhe a face e saiu.
A sorrir, Katie fechou a porta. Uma recordação perpassou no seu espírito. Tinha cinco anos de idade, brincava alegremente no pátio enlameado com o vestido de Páscoa.
O grito de fúria da mãe. A voz divertida do pai a imitar Gerald O'Hara: "E a terra, Katie Scarlett" depois, numa voz meiga, para a mãe: "Não te zangues com ela.
Todos os irlandeses autênticos gostam da terra."
O relógio replicou melodiosamente. Depois da presença quente de Richard, a sala parecia vazia. Apressou-se a apagar a luz e subiu as escadas.
O telefone tocou precisamente no momento em que se meteu na cama. "Molly talvez tenha estado a tentar entrar em contacto comigo", pensou ela quando levantou o auscultador.
Mas foi uma voz de homem que respondeu quando perguntou quem era.
- Sr.a DeMaio?
- Sim.
Aqui é o Dr. Highley. Espero não estar a telefonar tarde de mais, mas à tardinha tentei várias vezes entrar em contacto consigo. O facto de ter tido um acidente
e ter passado uma noite no nosso hospital chamou-me a atenção. Como se sente?
Bastante bem, doutor. Mas que gentileza a sua telefonar-me.
Como está o problema da hemorragia? De acordo com o relatório fizeram-lhe uma transfusão ontem à noite.
Receio que esteja quase na mesma. Pensava que o período tinha acabado, mas veio outra vez, ontem. Para ser franca talvez tenha sido um pouco cabeça no ar quando
perdi o controlo do carro.
Bem, como a senhora sabe, devia ter tratado desse problema há um ano pelo menos. Deixe lá A esta hora da próxima semana tudo terá passado. Mas quero que faça outra
transfusão para se preparar para a operação, e quero também que comece a tomar uns comprimidos. Pode vir ao hospital amanhã à tarde?
Posso. Na realidade, havia uma probabilidade de ir aí. Soube o que aconteceu à Sr.a Lewis?
Soube. Uma situação terrível e triste. Então, até amanhã. Telefone de manhã e marcaremos uma hora.
Sim, doutor. Obrigada, doutor.
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Katie desligou. Quando apagou a luz lembrou-se que o Dr. Highley não se dirigira a ela na sua primeira visita. Seria por causa da sua atitude reservada, mesmo fria?
"Isto mostra como podes julgar mal uma pessoa", concluiu ela. "É muita gentileza da parte dele tentar entrar em contacto comigo esta noite."
13
Bill Kennedy tocou à campainha da casa dos Lewises. Como cirurgião de ortopedia no Lenox Hill Hospital, estivera a operar durante todo o dia e só soube da morte
de Vangie Lewis quando chegou a casa. Alto, prematuramente encanecido, douto e um pouco tímido na vida profissional, Bill tornava-se uma pessoa diferente quando
entrava no abrigo acolhedor do lar que Molly criara para ele.
A sua presença irrequieta fazia com que lhe fosse possível esquecer os problemas dos seus pacientes e descontrair-se. Mas nessa noite a atmosfera estava diferente.
Molly já dera de comer às crianças e ordenara-lhes que se mantivessem afastadas. Ela contou-lhe resumidamente o que acontecera a Vangie. "Telefonei a convidar Chris
para vir jantar e dormir no gabinete esta noite em vez de ficar lá sozinho. Ele não quer, mas tu vais buscá-lo e trazê-lo para aqui. Estou certa que virá jantar
pelo menos."
Enquanto caminhava por entre as casas, Bill pensou no choque que seria chegar a casa e ver que perdera Molly. Mas não seria o mesmo para Chris Lewis. Ninguém no
seu perfeito juízo seria capaz de pensar que aquele casamento se podia comparar com o dele e de Molly. Bill nunca dissera a Molly que uma manhã quando estava a beber
café num centro comercial próximo do hospital vira Chris numa loja com uma rapariga muito atraente na casa dos vinte. Via-se claramente que tinham um relacionamento.
Vangie soubera da rapariga? Teria sido por isso que se suicidara? Mas com tanta violência! O seu espírito recuou até ao Verão. Vangie e Bill tinham sido convidados
para um churrasco. Vangie começara a assar um malveísco e aproximou de mais a mão do calor. O dedo empolou e ela comportou-se como se tivesse queimaduras do terceiro
grau. Correra para Chris aos gritos,
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que tentara acalmá-la. Embaraçado por causa dela, Chris explicara: "Vangie tem uma fraca tolerância à dor". Quando Bill trouxe a pomada e a aplicou, a bolha tinha
quase desaparecido.
Onde é que uma pessoa com uma constituição emocional como Vangie iria arranjar coragem para tomar cianido? Alguém que tivesse lido alguma coisa sobre aquele veneno
saberia que apesar da morte ser quase instantânea, morria-se com um sofrimento atroz.
Não. Bill seria capaz de jurar que se Vangie Lewis se suicidasse teria engolido soporíferos e adormecido. Aquilo era uma prova da quase total ignorância do espírito
humano por parte das pessoas... mesmo de alguém como ele que devia ser um bom conhecedor da natureza humana.
Chris Lewis abriu a porta. Desde que o vislumbrara com a rapariga, Bill passara a ser um pouco reservado com Chris. É que ele não se dava com homens que tinham aventuras
quando as mulheres estavam grávidas. Mas naquele momento a visão do rosto desfigurado de Chris e a tristeza genuína nos seus olhos despertou a compaixão de Bill.
Ele agarrou os braços do homem mais jovem.
Lamento profundamente.
Chris acenou com a cabeça desajeitadamente. Parecia-lhe que, como uma cebola a soltar camada por camada, o significado do dia caía sobre ele. Vangie estava morta.
A discussão tê-la-ia levado a matar-se? Ele não podia acreditar nisso, e, no entanto, sentia-se só, assustado e culpado. Deixou que Bill o convencesse a ir jantar.
Ele tinha de sair daquela casa ali não era capaz de pensar. Molly e Bill eram pessoas generosas. Poderia confiar-lhes o que sabia? Poderia confiar em alguém? Como
que entorpecido pegou num casaco, acompanhou Bill pela rua abaixo.
Bill deu-lhe um uísque duplo. Chris bebeu-o de um só gole. Quando o copo estava meio vazio tentou controlar-se. O uísque queimava-lhe a garganta e o peito, deixando
passar a tensão. "Acalma-te", pensou, "acalma-te. Tem cuidado."
Os filhos dos Kennedy entraram no gabinete para darem as boas-noites. Miúdos bem comportados. Bonitos também. O rapaz mais velho, Billy, era parecido com o pai.
Jennifer era uma criança bela de cabelo escuro. As raparigas mais novas, Diná e Moira, eram loiras como Molly. Os gémeos. Chris quase sorriu. Os gémeos eram iguais.
Chris quisera sempre filhos. Agora o seu filho por nascer morrera com Vangie. Outra culpa. Ele tomara a mal a sua gravidez. O filho, e ele não desejaram aquilo,
nem
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por um segundo. E Vangie sabia. O quê, quem a levara a matar-se? Quem? Essa era a questão. Porque Vangie não estivera sozinha na noite anterior.
na noite anterior.
Ele não contara à Polícia. Seria como abrir uma lata de vermes, suplicar-lhes que dessem início a uma investigação. E a que conduziria isso? A Joan. A outra mulher.
A ele.
O empregado da recepção vira-o sair do motel na noite anterior. Resolvera ir para casa, ter uma explicação com Vangie. Chegara a fazer cálculos para discutir com
ela. Ela podia ficar com a casa. Dar-lhe-ia vinte mil libras por ano, pelo menos até o filho fazer dezoito anos. Dar-lhe-ia uma apólice de seguro elevada sobre a
vida do filho. Ele educaria o filho. Ela podia continuar a ir àquele psiquiatra japonês por quem estava louca. "Deixa-me ir, Vangie. Por favor deixa-me ir. Não posso
passar mais nenhum dia da minha vida contigo. Está a destruir-nos..."
Chegara a casa. Chegara por volta da meia-noite. Entrara com o carro e assim que a porta da garagem se abriu, apercebeu-se que algo acontecera. Porque bateu quase
no Lincoln. Ela estacionara-o no seu lugar. Não, outra pessoa tinha estacionado o carro dela no lugar dele. Porque Vangie jamais tentaria meter um carro tão largo
entre os postes e a parede da direita. A garagem tinha um tamanho fora do vulgar. Numa parte podiam caber dois carros. Essa era a parte que Vangie usava sempre.
E ela precisava de todas as polegadas. Guiava mal, e a visão periférica talvez não fosse muito boa. Não era capaz de calcular bem os espaços. Chris estacionava sempre
o Corvette na parte mais estreita. Mas nessa noite o Lincoln tinha sido habilmente estacionado.
Entrara e encontrara a casa vazia. A mala de Vangie estava sobre o canapé no quarto. Ficara confuso, mas não se alarmou. Obviamente fora passar a noite fora. Chegara
a ficar satisfeito com a possibilidade de ela ter uma amiga em quem confiar. Tentara sempre que ela fizesse amizades. E Vangie podia ser dissimulada. Perguntou a
si mesmo se ela se esquecera da mala. Vangie era esquecida, ou talvez tivesse acondicionado umas roupas para uma noite num saco e não quis saber da carteira pesada.
A casa deprimia Chris. Resolveu voltar para o motel. Não dissera a Joan que ia a casa. Tinha o cuidado de dizer o menos possível a Joan a respeito de Vangie. Para
Joan, qualquer referência a Vangie era uma lembrança constante daquilo que
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ela considerava ser a sua posição como intrusa. Se nessa manhã tivesse contado a Joan que ele e Vangie tinham discutido e que Vangie ficara tão perturbada que preferira
ir ter com outra pessoa a ficar sozinha, Joan teria ficado desolada.
Mas nessa manhã encontrara Vangie morta. Alguém lhe estacionara o carro antes da meia-noite. Alguém a tinha levado a casa depois da meia-noite. E aqueles sapatos.
O único dia em que os calçara não deixara de se queixar. Isso foi pelo Natal quando ele a levou a Nova Iorque, na esperança de ela se divertir um pouco. Divertir!
"Meu Deus, que dia miserável!" Ela não gostou da peça teatral. O restaurante não servia piccata de vitela e ela estava com imensa vontade de a comer. E não parara
de dizer que o sapato lhe magoava o tornozelo direito.
A partir desse dia, durante semanas usara apenas aqueles moccasins sujos. Pedira-lhe que fosse comprar uns sapatos decentes, mas ela dissera que aqueles eram os
únicos confortáveis. Onde estariam? Chris passou uma busca à casa. A pessoa que a levou a casa devia saber.
Ele não contara nada disto à Polícia. Não quisera envolver Joan."Instalei-me num motel porque a minha mulher e eu discutimos. Eu queria o divórcio. Resolvi vir a
casa e tentar convencê-la. Ela não estava aqui e eu fui-me embora." Não parecera necessário divulgar tudo isto. Mesmo que os sapatos não fossem assim tão importantes.
Vangie podia ter querido estar bem arranjada quando fosse encontrada. Aquela perna inchada embaraçava-a. Ela era vaidosa.
Mas ele devia ter contado aos polícias que estivera ali, a forma como o carro foi estacionado.
Chris, venha para a sala de jantar. Sentir-se-á melhor se comer alguma coisa. A voz de Molly era dócil.
Com lassidão, Chris levantou os olhos. A luz suave do vestíbulo desenhava em silhueta o rosto de Molly, e pela primeira vez conseguiu ver a semelhança entre ela
e Katie DeMaio.
Katie DeMaio. A irmã dela. Ele não podia discutir isto com Bill e Molly. Isso poria Molly no meio. Como poderia ela aconselhá-lo honestamente a revelar ou não a
sua vinda a casa na noite passada quando a sua própria irmã estava no gabinete do Promotor da Justiça? Não. Teria de resolver isto sozinho.
Coçou com uma mão os olhos inflamados.
Molly, gostaria de comer alguma coisa disse ele. Seja o que for, cheira mesmo bem. Mas não me posso demorar muito. O dono da agência funerária vai lá a casa para
levar as roupas
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de Vangie. A mãe e o pai querem que os deixe vê-la antes do enterro.
Onde vai ser? perguntou Bill.
A urna irá de avião para Mineápolis amanhã à tarde. Eu irei também nesse avião. O serviço religioso será no dia a seguir. O Examinador Médico entregou o corpo ao
fim da tarde. As palavras martelavam-lhe nos ouvidos... Urna... Corpo... Funeral... "Oh, meu Deus", pensou ele, "isto tem de ser um pesadelo. Queria ficar livre
de ti, Vangie, mas não queria que morresses. Levei-te ao suicídio. Joan tem razão. Devia ter ficado perto de ti."
Às oito regressou a casa. Às oito e meia, quando chegou o dono da agência funerária, ele tinha uma mala com roupa interior e o cafetã largo que os pais de Vangie
lhe tinham mandado para o Natal.
O dono da agência, Paul Halsey, era simpático e discreto. Pediu rapidamente as informações necessárias Nascida em 15 de Abril. Tomou nota do ano. Falecida em 15
de Fevereiro.
Apenas dois meses antes de completar trinta e um anos comentou ele.
Chris friccionou entre os olhos, onde lhe doía. Algo estava errado. Mesmo nesta situação fantástica onde tudo estava errado, havia qualquer coisa específica.
Não disse ele, hoje é dezasseis, e não quinze.
A certidão de óbito declara que a Sr.a Lewis morreu entre as oito e as dez de ontem à noite, dia quinze de Fevereiro disse Halsey. O senhor pensa que foi no dia
dezasseis porque a encontrou esta manhã. Mas o examinador que fez a autópsia pode dizer a hora com precisão.
Chris olhou fixamente para ele. Ondas de choque dissolveram a sensação de exaustão e irrealidade. Estivera em casa à meia-noite e o carro e a bolsa de Vangie estavam
lá. Esperara cerca de meia hora antes de voltar de carro para o motel em Nova Iorque. Quando chegara a casa, nessa manhã, supusera que ela voltara algum tempo depois
de ele se ir embora e se suicidara.
Mas à meia-noite ela já estava morta há três ou quatro horas. Isso significava que algum tempo depois da meia-noite, depois de ele sair, alguém trouxera para ali
o corpo, colocara-o na cama e pusera o copo vazio ao lado dela.
Alguém quisera simular que Vangie se suicidara.
Ter-se-ia suicidado noutro lugar? A pessoa que a trouxera simplesmente não queria ser envolvida? Claro que não. Vangie nunca ingerira nem sofrera com o cianido.
O assassino encenara o suicídio.
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Oh, Cristo balbuciou Chris. Oh, Cristo. Viu o rosto de Vangie. Os olhos grandes, pestanudos, petulantes, o nariz curto, direito; o cabelo cor de mel que lhe caía
sobre a testa; os lábios pequenos com uma forma perfeita. No último instante ela deve ter-se apercebido. Alguém a segurara, metera à força o veneno na sua boca,
matara-a traiçoeiramente e ao bebé que trazia no ventre. Uma compaixão brusca, dilacerante, fez-lhe vir as lágrimas aos olhos. Ninguém, nenhum marido podia ficar
calado e deixar aquelas mortes sem punição.
E se contasse à Polícia, se ele encetasse uma investigação, havia uma pessoa que acusariam inevitavelmente. Enquanto o dono da agência olhava fixamente para ele,
Chris disse em voz alta:
Tenho de lhes dizer, e eles vão-me culpar.
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Ele pousou lentamente o auscultador, Katie DeMaio não suspeitou de nada. Mesmo quando ela mencionou o nome de Vangie Lewis dera a entender que o seu departamento
queria apenas discutir com ele o estado emocional de Vangie.
Mas o acidente de Katie ocorrera há pouco mais de vinte e quatro horas. Ela ainda devia estar a sentir uma certa reacção do choque.
A percentagem de glóbulos já estava baixa. No dia seguinte, quando o cumadin fosse introduzido no seu organismo, o mecanismo de coagulação começaria a falhar, e
com a consequente hemorragia ela começaria a sentir-se desorientada, delirante. Certamente que ela não seria suficientemente analítica para separar um presumível
pesadelo de um acontecimento real.
A não ser, claro, que houvesse demasiadas perguntas sobre o suicídio. A não ser que a possibilidade do corpo de Vangie ter sido deslocada fosse apresentada e discutida
no seu departamento.
O perigo ainda era tão grande.
Ele estava na biblioteca do lar Westlake o seu lar agora. A casa era do tipo senhorial em estilo Tudor. Tinha arcadas e estantes embutidas e lareiras de mármore
e papel de parede antigo colocado à mão e vitrais Tiffany: o tipo de casa impossível
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de reproduzir actualmente por nenhum preço. Não existia mão-de-obra especializada.
A Casa Westlake. O Hospital Westlake. A Maternidade e o Centro de Concepção Westlake. O nome tinha-lhe sido útil, dera-lhe a entrada imediata, social e profissionalmente.
Ele era o distinto obstetra que conhecera Winifred Westlake num iate transatlântico, casara com ela e estabelecera-se de novo na América para prosseguir o trabalho
do pai dela.
O pretexto perfeito para deixar a Inglaterra. Ninguém, incluindo Winifred, sabia dos anos que passara em Liverpool no Christ Hospital em Devon.
Próximo do fim ela começara a fazer perguntas.
Eram quase onze horas e ele ainda não tinha jantado. Saber o que ia fazer com Edna tirara-lhe a vontade de comer.
Mas agora isso tinha passado, o alívio voltara. Agora a necessidade de comida tornara-se um desejo ardente. Foi à cozinha. Hilda deixara-lhe o jantar no forno de
microondas: uma galinha pequena à Cornualha com arroz com casca. Só precisava de o aquecer durante alguns minutos. Quando tinha tempo preferia cozinhar as suas refeições.
A comida de Hilda não variava muito, mesmo assim era bastante bem preparada.
Também era uma boa governanta. Ele gostava de vir para casa, para o asseio e elegância deste lugar, saborear uma bebida, comer quando lhe apetecia, passar horas
a trabalhar nos seus apontamentos na biblioteca, sem se sentir ameaçado pela possibilidade de alguém lhe fazer uma visita inesperada, como acontecia ocasionalmente
no laboratório do hospital.
Ele necessitava da liberdade da casa. Livrara-se da governanta residente que Winifred e o pai tinham tido. Aquela cadela hostil, a olhar para ele com os olhos irritados,
sombrios, inchados de chorar. "AMenina Winifred quase nunca adoecia até..."
Ele olhara fixamente para ela e esta não terminara a frase. Ela ia dizer... até casar com o senhor.
O primo de Winifred ficara muito ofendido com ele, tentara levantar problemas depois da morte de Winifred. Mas não pôde provar nada. Não havia uma única prova clara.
Consideraram o primo um ex-herdeiro descontente.
Evidentemente, que não havia assim tanto dinheiro. Winifred gastara muito na aquisição do hospital. Agora a sua pesquisa exigia somas espantosas, e a maior parte
do dinheiro tinha de vir directamente da clínica. Ele não podia solicitar uma doação, claro. Mas mesmo assim conseguia. As mulheres estavam dispostas a pagar o que
quer que fosse para engravidarem.
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Hilda deixara-lhe a mesa posta na pequena sala de jantar longe da copa a sala da manhã como lhe costumavam chamar. Não comeria nenhuma refeição na cozinha, mas a
sala de jantar de vinte por trinta pés era faustosa e ridícula para um homem jantar sozinho. Esta sala com a mesa de pé-de-galo, redonda, o móvel Queen Anne e a
vista do relvado coberto de árvores era muito mais atraente.
Tirando uma garrafa gelada de Pouilly-Fuissé do frigorífico, sentou-se para comer.
Acabou de jantar, pensativo, com o espírito a rememorar a dosagem exacta que daria a Katie DeMaio. O cumadin não seria descoberto no sangue depois da morte. A falta
de coagulação seria atribuída às transfusões. Se ele tivesse de administrar o heparin, apareceriam vestígios deste e do cumadin se houvesse uma autópsia minuciosa.
Mas ele sabia o que podia fazer para o evitar.
Antes de se deitar, foi ao armário do vestíbulo. Agora meteria aqueles moccasins no saco sem correr nenhum perigo, sem se arriscar a uma repetição da contrariedade
dessa manhã. Metendo de novo o braço dentro do armário, colocou a mão dentro de um bolso da Burberry e tirou um sapato deformado. Expectantemente introduziu a mão
livre no outro bolso primeiro prosaicamente, depois insistentemente. Por fim agarrou o casaco e revistou-o freneticamente. Em seguida caiu de joelhos e remexeu nas
galochas empilhadas ordenadamente na porta do armário.
Pôs-se de pé, por fim a olhar fixamente para o sapato usado que segurava na mão. Viu-se uma vez mais a arrancar o sapato do pé direito de Vangie.
O sapato direito.
O sapato que ele segurava.
Começou a rir histericamente sons estridentes, ásperos, arrancados da fúria frustrada do seu ser. Depois de todo o perigo, depois da reptação vergonhosa à volta
do parque de estacionamento, como um cão a farejar para encontrar o rasto, ele estragara tudo.
De qualquer maneira na escuridão, talvez quando se encostou aos arbustos no momento em que o carro entrou no parque de estacionamento com ruído, o sapato lhe tivesse
caído do bolso. O sapato que tinha encontrado, era o que ele já tivera.
E algures, o moccasin esquerdo, usado, velho e disforme, que Vangie Lewis trazia, esperava ser encontrado; esperava para seguir as pegadas dela até ele.
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Katie pusera o relógio a despertar para as seis da manhã, mas estava acordada muito antes da voz alegre e firme do coordenador da CBS lhe desejar uma manhã radiosa.
Tivera um sono agitado, chegara quase a saltar várias vezes, assustada por um sonho confuso, inquietante.
À noite baixava sempre o termostato. A tiritar, correu a ajustá-lo, depois fez rapidamente café e levou uma chávena para o quarto.
Recostada nas almofadas, embrulhada no abafo de lã grossa, deu pequenos goles com avidez quando o calor da chávena começou a aquecer os dedos.
Assim é melhor murmurou. E agora, que se passa contigo?
O toucador Williamsburg, antigo com o espelho oval no centro, ficava mesmo em frente da cama. Olhou para ele. O cabelo estava desgrenhado, uma mancha castanho-escura
nas fronhas cor de marfim com ilhós nas bordas. A ferida por baixo do olho estava agora vermelha com uma coloração amarela. Os olhos estavam inchados do sono. Crescentes
profundos acentuavam a magreza do rosto. Como diria a mãe, "pareço qualquer coisa que o gato arrastou cá para dentro", pensou.
Mas não era apenas a aparência. Era ainda mais do que as dores no corpo todo resultantes do acidente. Era uma forte sensação de apreensão. Começara a ter de novo
aquele pesadelo estranho e assustador na noite passada? Ela não podia ter a certeza.
Vangie Lewis. Uma sucessão de palavras do funeral de John veio-lhe à memória: "Nós que nos afligimos com a certeza da morte..." A morte era certa, evidentemente.
Mas não assim. Já era bastante confrangedor pensar em Vangie a suicidar-se, mas parecia impossível que alguém decidisse matá-la metendo-lhe cianido pela garganta
abaixo. Ela não acreditava que Chris Lewis fosse capaz desse tipo de violência.
Pensou na chamada do Dr. Highley. Aquela maldita operação. Oh, havia milhares de D-e-Cs realizados todos os anos em mulheres de todas as idades. Não era a operação
em si. Era a
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causa. E se a D-e-C não debelava a hemorragia? O Dr. Highley dera a entender que eventualmente podia ser necessário pensar numa histeroctomia.
Se ao menos tivesse engravidado durante o ano em que viveu com John. Mas não engravidara.
E se ela um dia voltasse a casar? Não seria uma partida amarga, terrível, se então não pudesse ter filhos? "Pára com isso", admoestou-se. "Lembras-te daquela frase
do Fausto? Choramos por aquilo que talvez nunca perderemos."
Bem, pelo menos estava a preparar-se para a operação. Daria entrada no hospital sexta-feira à noite. Sábado a operação. Domingo em casa. A trabalhar na segunda-feira.
Era simples.
Molly telefonara-lhe na véspera depois de chegar ao escritório. Ela dissera: "Katie, era capaz de afirmar que não querias falar na frente do Richard, mas não achas
que seria melhor adiar a tua ida para o hospital para o próximo mês? Ficaste muito abalada."
Ela fora peremptória. "De maneira nenhuma. Quero acabar com isto; e além do mais, Molly, não me admirava se este maldito problema tivesse contribuído para o acidente.
Senti tonturas na segunda-feira."
Molly ficara desolada. "Por que razão não me disseste?"
"Oh, deixa-te disso, Molly", dissera Katie. "Ambas detestamos queixosos. Quando for realmente mau, juro que grito por ti."
"Assim o espero", disse Molly. "Acho que também vais recuperar." Depois perguntou: "Vais dizer ao Richard?"
Katie tentara não dar a entender que estava exasperada. "Não, e não vou dizer ao rapaz do elevador nem ao guarda da passagem para peões nem aos do SOS. Só tu e o
Bill. E não se fala mais nisso. Está bem?"
"Está bem. E não te armes em esperta." Molly desligara decididamente, o tom de voz era uma combinação de afecto e autoritarismo, a voz admoestadora que usava quando
um dos miúdos saía da linha.
"Não sou tua filha, Molly, querida", pensou Katie naquele momento. "Gosto de ti, mas não sou tua filha." Mas enquanto bebia lentamente o café perguntou a si mesma
se não estava a ficar demasiado dependente de Molly e Bill, a tentar obter apoio emocional a partir deles. Estaria de facto a servir-se deles para se afastar do
rumo da vida?
"Oh, John." Ela olhou instintivamente para a fotografia. Naquela manhã era apenas isso, uma fotografia. Um homem belo com um ar sério, olhos meigos, penetrantes.
Uma vez
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durante aquele primeiro ano depois da sua morte pegara naquela fotografia, olhara fixamente para ela, depois pousou-a ao contrário com violência em cima do toucador
a chorar. "Como pudeste deixar-me?"
Na manhã a seguir recuperara a calma, com vergonha dela mesma, e decidira nunca mais beber três copos de vinho quando se sentisse deprimida. Quando endireitara a
fotografia, descobrira uma estria no tampo do belo e antigo toucador que fora feita pela moldura de prata trabalhada em relevo. Tentara explicar à fotografia. "Não
é só pena de mim mesma. Juiz. Estou zangada por tua causa. Queria que vivesses mais quarenta anos. Sabias como tirar prazer da vida; sabias o que fazer para que
a vida valesse a pena."
"Quem conheceu o pensamento do Senhor?, ou quem foi o Seu conselheiro?" Aquela frase da Bíblia perpassara no seu espírito naquele dia.
"Recordando", pensou Katie, "agora seria melhor reflectir nestas frases."
Despindo a camisa de noite verde-clara, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. A camisa de noite estava estendida no banco do toucador. Na faculdade preferia
pijamas soltos, às riscas. Mas John comprara-lhe vestidos e penteadores delicados em Itália. Ainda parecia apropriado usá-los ali naquela casa, no quarto dele.
Talvez John tivesse razão. Talvez ela continuasse a velar um morto. John seria o primeiro a censurá-la por causa disso.
O chuveiro quente ajudou-a a recobrar o ânimo. Tinha uma reunião de demanda judicial marcada para as nove, um veredicto às dez e dois casos novos para começar a
preparar para julgamento para a semana seguinte. E tinha muito que fazer no julgamento dessa sexta-feira. "Já é quarta-feira", pensou ela com consternação. "É melhor
apressar-me."
Vestiu-se rapidamente, escolhendo uma saia de lã castanho-pálida e uma blusa nova de seda turquesa com mangas compridas que tapavam a ligadura do braço.
O carro emprestado pela estação de serviço chegou quando ela terminava um segundo café. Deixou o motorista de novo na estação, assobiou quando viu os danos enormes
na parte da frente do carro, deu graças a Deus por não se ter ferido com gravidade e seguiu para o escritório.
Fora uma noite agitada no distrito. Uma rapariga de catorze anos tinha sido violada. As pessoas falavam de um acidente de viação por embriaguez de que resultaram
quatro mortes. Um
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chefe da Polícia local telefonara a pedir que o Promotor de Justiça ajudasse a alinhar os suspeitos que tinham sido detidos após um assalto à mão armada para que
a vítima os examinasse. Scott ia a sair do escritório naquele instante.
Bonita noite comentou Katie. Ele acenou com a cabeça.
Filho da mãe aquele bruto que se enfaixou no carro com aqueles miúdos todos estava tão bêbado que não se conseguia pôr de pé. Morreram os quatro miúdos. Eram seniores
de Pascal Hills que iam para uma reunião da comissão de baile. Por acaso tencionava mandar a Reta para conversar com os médicos do Westlake Hospital, mas ela está
a tratar do caso da violação. Estou particularmente interessado no psiquiatra a que ia Vangie Lewis. Gostaria de saber a sua opinião sobre o seu estado mental. Posso
mandar o Charley ou o Phil, mas penso que uma mulher daria menos nas vistas, talvez possa dar uma volta por lá para ver se a Sr.a Lewis falava com as enfermeiras
ou se fez amizade com outras doentes. Mas isso terá de esperar até amanhã. Reta esteve a pé toda a noite e agora anda com aquela miúda que foi violada para ver se
consegue descobrir o atacante. Temos quase a certeza que ele vive perto dela.
Katie hesitou. Não tencionava contar a Scott que era paciente do Dr. Highley nem que daria entrada em Westlake sexta-feira à noite. Mas seria impensável permitir
que alguém do departamento o informasse sobre isso. Ela contemporizou.
Talvez possa ajudar. O Dr. Highley é o meu ginecologista. Efectivamente hoje tenho uma consulta com ele. Ela comprimiu os lábios, concluindo que não havia necessidade
de fazer um relato enfadonho da operação programada.
As sobrancelhas de Scott levantaram-se de repente. Como sempre quando ficava surpreendido, a voz tornou-se mais grave.
Qual é a sua opinião sobre ele? Ontem o Richard fez uma alusão mordaz ao estado de Vangie, parecia achar que Highley estava a correr riscos com ela.
Katie abanou a cabeça.
Não concordo com Richard. A especialidade do Dr. Highley são gravidezes difíceis. Por assim dizer é considerado um taumaturgo. Essa é a particularidade. Ele tenta
levar a um termo viável os bebés que outros médicos perdem. Ela pensou no telefonema que ele lhe fez. Posso garantir que é um médico muito zeloso.
Scott, ao franzir as sobrancelhas, fez rugas profundas na testa e à volta dos olhos.
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Essa é a sua verdadeira reacção em relação a ele? Há quanto tempo o conhece?
Procurando ser objectiva, Katie pensou no médico.
Não o conheço há muito tempo nem muito bem. O ginecologista a que eu costumava ir aposentou-se e mudou-se já há alguns anos, e não me dei ao trabalho de procurar
outro. Então, quando comecei a ter problemas bem, seja como for, a minha irmã Molly conhecia o Dr. Highley porque a amiga dela fala dele com grande entusiasmo. Molly
vai a alguém em Nova Iorque, e eu não me quis incomodar com isso. Assim marquei uma consulta no mês passado. Ele é muito inteligente. Ela recordou o exame. Fora
amável, mas meticuloso. "Tem toda a razão em ter vindo", dissera ele. "Na realidade tenho de afirmar que não devia ter ignorado esta situação mais de um ano. Considero
o útero como um berço que deve estar sempre em bom estado de conservação".
A única coisa que a surpreendera era ele não ter uma enfermeira de serviço. O outro ginecologista chamava sempre a enfermeira antes de começar uma consulta, mas
ele também pertencia a outra geração. Calculava que o Dr. Highley estivesse na casa dos quarenta.
Qual é o seu programa para hoje? perguntou Scott.
Uma manhã agitada, mas esta tarde pode ser ajustada.
Muito bem. Vai visitar o Dr. Highley e evite falar muito, também. Veja se consegue se eles pensam ou não se ela seria capaz de se suicidar. Descubra quando foi a
última vez que esteve lá. Veja se ela falava do marido. O Charley e o Phil já estão a tirar informações sobre Chris Lewis. Estive acordado quase toda a noite e estive
sempre a pensar que Richard tem razão. Há qualquer coisa naquele suicídio que não cheira bem. Fale também com as enfermeiras.
Enfermeiras, não Katie sorriu. A recepcionista, Edna. Ela sabe da vida de toda a gente. Não estava na sala de espera há dois minutos no mês passado quando dei por
mim a contar-lhe a história da minha vida. Na realidade, talvez devesse contratá-la para interrogar testemunhas.
Devia contratar muita gente comentou Scott com secura. Fale com a Comissão dos Proprietários. Muito bem, até logo.
Katie entrou no seu escritório, pegou nos processos e correu para a reunião com um advogado de defesa por causa de um réu. Concordou em alterar a acusação de "Posse
de heroína com intenção de a distribuir" para simples "posse". De lá correu para
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uma sala de tribunal num segundo andar onde ouviu atentamente enquanto um jovem de vinte anos contra o qual movera uma acção judicial era condenado a sete anos de
cadeia. Ele podia ter apanhado vinte anos pelo assalto à mão armada e pelo ataque cruel. Dos sete anos, cumpriria provavelmente um terço da pena e voltaria para
as ruas. Ela sabia o seu cadastro de cor. "Não penses na reabilitação para este pássaro", pensou ela.
No monte de recados que a esperava, havia dois telefonemas do Dr. Carroll. Um chegara às nove e um quarto, o outro às nove e quarenta. Ela telefonou-lhe, mas Richard
saíra para tratar de um caso. A sensação de uma pressão ligeira dos dois telefonemas foi substituída por uma sensação de desapontamento quando não conseguiu encontrá-lo.
Telefonou para o consultório do Dr. Highley na esperança de ouvir o calor nasal da voz de Edna. Mas quem respondeu foi uma desconhecida, uma mulher seca e de poucas
falas.
Consultórios médicos.
"Oh", pensou Katie rapidamente e decidiu perguntar por Edna.
A Menina Burns está?
Houve uma fracção de uma pequena pausa antes de se ouvir uma resposta.
A Menina Burns não virá hoje. Ela está doente. Eu sou a Sr.a Fitzgerald.
Katie compreendeu o quanto contava falar com Edna.
Lamento que a Menina Burns não esteja bem. Em poucas palavras, explicou que o Dr. Highley esperava o telefonema dela e que ela gostaria também de falar com o Dr.
Fukhito. A Sr.a Fitzgerald pediu-lhe para esperar e alguns minutos depois dava a resposta.
Ambos a receberão, claro. O Dr. Fukhito está livre quinze minutos antes da hora, entre as duas e as cinco, e o Dr. Highley preferia às três horas se também lhe convier.
Às três horas com o Dr. Highley está bem disse Katie, e depois confirme por favor às três e quarenta e cinco com o Dr. Fukhito.
Pousando o auscultador, voltou para o trabalho que tinha em cima da secretária.
À hora do almoço, Maureen Crowley, uma das secretárias do escritório espreitou e ofereceu-se para trazer uma sanduíche a Katie. Embrenhada na preparação do julgamento
de sexta-feira, Katie acenou afirmativamente com a cabeça.
Presunto com pão de centeio, mostarda, alface e café puro
disse Maureen.
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Katie levantou os olhos, surpreendida.
É assim tão fácil adivinhar os meus pensamentos?
A rapariga tinha cerca de dezanove anos com uma farta cabeleira de um dourado-avermelhado, olhos verde-esmeralda e a bela tez clara do ruivo autêntico.
Katie, tenho de lhe dizer, a senhora come sempre a mesma coisa. A porta fechou-se atrás dela.
"Estás com um ar macilento". "Estás a velar um morto". "Estás numa rotina".
Katie sentiu um caroço na garganta e ficou admirada ao perceber que estava prestes a chorar. "Devo estar doente se estou a ficar com a pele fina", pensou.
Quando a sanduíche e o café chegaram, comeu e bebeu lentamente sem saber ao certo o que estava a tomar. O caso em que tentava concentrar-se era uma mancha. O rosto
de Vangie Lewis estava constantemente à sua frente. Mas por que razão o vira num pesadelo?
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Richard Carroll tivera uma noite difícil. O telefone tocou às onze horas, alguns minutos depois chegou a casa vindo da casa de Katie, para lhe comunicarem que estavam
quatro miúdos na morgue.
Ele pousou lentamente o auscultador. Ele vivia no décimo sétimo andar de um arranha-céus a norte da George Washington Bridge. Por momentos olhou fixamente pela janela
a todo o comprimento da parede para a linha do horizonte de Nova Iorque, para os carros que desciam como flechas a Henry Parkway, para as luzes verde-azuladas da
George Washington Bridge.
Naquele momento tocavam telefones para informarem os pais daqueles rapazes que os seus filhos não regressariam a casa.
Richard relanceou o olhar pela sala de estar. Estava confortavelmente mobilada com um sofá com um tamanho fora do normal, poltronas grandes, um tapete oriental em
tons de azul e castanho, uma estante de parede e mesas fortes de carvalho que em tempos tinham adornado a casa de campo de um antepassado
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de New England. Aguarelas originais com temas náuticos estavam espalhadas com gosto nas paredes. Richard suspirou. A cadeira de cabedal, funda e de encosto estava
perto da estante. Ele planeara arranjar uma bebida antes de se deitar, ler uma hora. Em vez disso resolveu ir à morgue para estar lá quando chegassem os pais para
identificarem aqueles rapazes. Só Deus sabia que havia muito pouco que alguém pudesse fazer por aquelas pessoas, mas estava ciente de que se sentiria melhor se tentasse.
Eram quatro da manhã antes de regressar ao apartamento. Enquanto se despia perguntou a si mesmo se estava a ficar demasiado triste com este trabalho. Aqueles miúdos
estavam numa lástima; o impacto do embate fora terrível. No entanto pôde ver como eram atraentes em vida. Uma rapariga em particular bulira-lhes com os nervos. Tinha
cabelo negro, um nariz fino e direito, e mesmo morta era donairosa.
Fazia-lhe lembrar Katie.
Só de pensar que Katie tivera um acidente de automóvel na noite de segunda-feira ficou novamente abalado. Parecia-lhe que tinham progredido anos-luz na sua relação
nas duas horas que passaram juntos ao jantar.
Pobre criança, que receava ela? Por que razão não se conseguia libertar de John DeMaio? Por que razão não conseguia dizer "Obrigada pela recordação" e seguir em
frente?
Quando se meteu na cama sentiu-se triste e grato por ter podido ajudar um pouco os pais. Pudera garantir-lhes que os jovens tinham tido morte imediata, que talvez
não se tenham apercebido nem sentido nada.
Dormiu um sono agitado durante duas horas e estava no escritório às sete. Alguns minutos depois chegou a notícia de que uma mulher de idade se enforcara numa zona
degradada de Chester, uma pequena cidade no extremo norte do distrito. Foi para o local da morte. A mulher morta tinha 81 anos, frágil como um pássaro. Tinha um
cartão preso no vestido com alfinetes: Não resta ninguém. Estou tão doente e cansada. Quero estar com o Sam. Perdoem-me por causar problemas.
O cartão tornava claro algo que importunava Richard. De tudo o que ouvira dizer a respeito de Vangie Lewis parecia dar a entender que se ela se tivesse suicidado,
teria deixado um bilhete para explicar ou atribuir a responsabilidade do seu acto ao marido.
A maior parte das mulheres deixavam bilhetes.
Quando chegou ao escritório, Richard tentou telefonar a
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Katie duas vezes, na esperança de a apanhar no intervalo das sessões do tribunal. Queria ouvir o som da sua voz. Por qualquer razão sentia-se nervoso por a deixar
sozinha naquela casa enorme na noite anterior. Mas não conseguia entrar em contacto com ela.
Por que razão tinha um pressentimento de que ela tinha qualquer coisa no espírito que a afligia?
Voltou para o laboratório e trabalhou sem parar até às quatro e meia. Regressando ao escritório, pegou nos recados e ficou tremendamente satisfeito por ver que Katie
respondera aos seus telefonemas.
"E por que não o faria?" perguntou a si mesmo cinicamente. Uma assistente do Promotor de Justiça não ignoraria os telefonemas de um Examinador Médico. Apressou-se
a telefonar-lhe. A telefonista da Secção do Promotor de Justiça disse que Katie saíra e não voltaria nesse dia. A telefonista não sabia para onde ela ia.
"Maldição!"
Isso significaria que não poderia falar com ela naquele dia. Ia jantar em nova Iorque com Clovis Simmons, uma actriz que fazia um dos anúncios de sabonetes. Clovis
era divertida, com ela divertia-se sempre, mas tudo indicava que estava a ficar sisuda.
Richard tomou uma decisão. Aquela era a última vez que sairia com Clovis. Era uma injustiça com ela. Recusando pensar no motivo daquela decisão inesperada, reclinou-se
na cadeira e franziu as sobrancelhas. Um alarme mental dava um sinal contínuo. Fez-lhe lembrar as viagens no Midwest quando a estação de rádio anunciava repentinamente
a existência de um torneio. Um aviso era o mais seguro. Um alerta sugeria calamidade potencial.
Ele não exagerara quando dissera a Scott que se Vangie Lewis não desse à luz dentro de pouco tempo não teria precisado do cianido. Quantas mulheres ficariam naquele
estado na Maternidade e Centro de Concepção Westlake? Molly gostava loucamente do obstetra porque uma das amigas tinha tido uma gravidez bem sucedida. E os fracassos
que lá havia? Quantas delas tinham lá estado? Houvera algo de invulgar na taxa de mortalidade entre as pacientes de Westlake? Richard ligou o intercomunicador e
chamou a secretária.
Marge tinha quarenta e tal anos. O cabelo, que ficava grisalho, estava cuidadosamente enrolado no estilo popularizado por Jacqueline Kennedy nos princípios dos anos
sessenta. A saia
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estava uma polegada acima dos joelhos. Parecia uma dona de casa suburbana de um concurso televisivo. Ela era de facto uma excelente secretária que se deliciava com
o drama constante do departamento.
Marge disse ele, estou com um pressentimento. Quero fazer uma investigação oficiosa ao Westlake Hospital apenas à secção da maternidade. Aquela maternidade está
em actividade há cerca de oito anos. Gostaria de saber quantas pacientes morreram tanto de parto como de complicações da gravidez e qual é a taxa de mortes e o número
de pacientes tratadas lá. Não quero que se saiba que estou interessado. É por isso que não quero pedir a Scott que mande citar os relatórios. Conhece lá alguém que
pudesse dar uma vista de olhos em segredo aos arquivos?
Marge franziu as sobrancelhas. O nariz, semelhante ao bico pequeno e fino do canário, ficou cheio de rugas.
Deixe que eu trato disse.
Óptimo. E outra coisa. Veja se descobre algum processo por negligência médica intentado contra qualquer um dos médicos na Maternidade Westlake. Não interessa se
os processos foram arquivados ou não. Se existir algum, quero saber qual foi o motivo.
Satisfeito por ter a investigação em marcha, Richard foi a correr para casa para tomar um banho de chuveiro e trocar de roupa. Segundos depois saía do escritório,
viera uma chamada para ele do Dr. David Broad do laboratório pré-natal do Mt Sinai Hospital. O recado que Marge recebeu pedia que Richard entrasse em contacto com
o Dr. Broad de manhã. O assunto era urgente.
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Katie foi para o hospital às três menos um quarto. O tempo tornara-se estável, sombrio, nublado e frio. Mas pelo menos o calor dos carros derretera a maior parte
do gelo das estradas. Deliberadamente, reduziu a velocidade ao fazer a curva que fora o ponto de partida do seu acidente.
Chegara alguns minutos antes da hora da consulta, mas podia ter poupado tempo. A recepcionista, a Sr.a Fitzgerald, foi relativamente amável, mas, quando Katie perguntou
se ela
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substituía Edna muitas vezes, a Sr.a Fitzgerald replicou rapidamente:
A Menina Burns raramente falta, por isso há muito pouca necessidade de a substituir.
Katie teve a impressão de que a resposta era excessivamente defensiva. Intrigada, resolveu continuar a falar do mesmo assunto.
Fiquei tão desolada ao saber que a Menina Burns hoje está doente acrescentou. Nada de grave, espero?
Não. A mulher estava nitidamente nervosa. Uma espécie de vírus apenas. Virá amanhã, tenho a certeza.
Havia várias mulheres grávidas sentadas na área da recepção, mas estavam concentradas em revistas. Katie não podia de modo nenhum encetar uma conversa com elas.
Uma grávida, com o rosto inchado, movimentos lentos e cautelosos, surgiu no corredor que conduzia aos escritórios dos médicos. Soou uma campainha na secretária.
A recepcionista pegou no auscultador.
Sr.a DeMaio, o Dr. Highley atende a senhora agora disse ela. Parecia aliviada.
Katie desceu rapidamente o corredor. O escritório do Dr. Highley era o primeiro, não se esquecera. Seguindo as instruções escritas em tipo de imprensa para bater
e entrar, ela abriu a porta e entrou no escritório de tamanho médio. Tinha o aspecto de um gabinete confortável. Prateleiras para livros cobriam uma parede. Gravuras
de mães com bebés tapavam quase por completo uma segunda parede. Uma cadeira de clube estava colocada perto da secretária exuberantemente cinzelada do médico. Katie
lembrava-se que a sala de observação, um lavatório e a zona da cozinha e esterilização de instrumentos cirúrgicos completavam os aposentos. O médico estava atrás
da secretária. Levantou-se para a cumprimentar.
Sr.a DeMaio. O seu tom foi cortês, o ténue sotaque britânico, quase imperceptível. Era um homem de estatura mediana, cerca de cinco pés e onze polegadas. O rosto
bem barbeado com faces rechonchudas, terminava num queixo oval. O corpo dava a impressão de força sólida, cuidadosamente controlada. Parecia poder engordar com facilidade.
Um cabelo ruivo e raro, raiado de cinzento, estava cuidadosamente penteado para o lado. Sobrancelhas e pestanas da mesma tonalidade ruiva acentuavam os olhos cinzentos
de aço, salientes. Traço por traço ele não era um homem atraente, mas o seu aspecto geral era imponente e autoritário.
Katie corou, percebendo que ele estava consciente do seu
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exame minucioso e aborrecido com ele. Sentou-se prontamente e para estabelecer comunicação agradeceu-lhe o telefonema. Ele dispensou a sua gratidão.
Desejava que tivesse alguma coisa para me agradecer. Se tivesse dito ao médico da sala de urgência que era minha paciente, ele ter-lhe-ia dado um quarto na ala ocidental.
Muito mais confortável, garanto-lhe. Mas a vista é quase a mesma acrescentou ele.
Katie começou a remexer no saco à procura de um bloco de apontamentos e papel. Ela levantou rapidamente os olhos.
Vista. Qualquer coisa seria melhor do que aquela que pensei que tive naquela noite. Porque... Ela calou-se. O bloco na sua mão recordou-lhe que estava ali no exercício
das suas funções. Que pensaria dela a falar de pesadelos? Inconscientemente procurou endireitar-se na cadeira demasiado baixa e fofa.
Doutor, se não se importa, falemos de Vangie Lewis em primeiro lugar. Ela sorriu. Suponho que os nossos papéis estão invertidos pelo menos durante alguns minutos.
Tenho de fazer perguntas.
A sua expressão tornou-se sombria.
Desejava que houvesse uma razão mais feliz para os nossos papéis se inverterem. Aquela pobre rapariga. Desde que ouvi as notícias quase não penso noutra coisa.
Katie acenou com a cabeça.
Eu conhecia Vangie superficialmente, e devo dizer que tive a mesma reacção. Agora, é pura rotina, claro, mas devido à inexistência de um bilhete, o meu departamento
pretende saber algo sobre o estado mental de uma vítima de suicídio. Ela fez uma pausa, depois perguntou: Quando foi a última vez que o senhor viu Vangie Lewis?
Ele reclinou-se na cadeira. Os dedos entrelaçaram-se sob o queixo, revelando umas unhas irrepreensivelmente limpas. Falou pausadamente:
Foi na última quinta-feira, à tardinha. Pedira à Sr.a Lewis para vir pelo menos uma vez por semana, uma vez que completou metade do tempo de gravidez. Tenho aqui
a ficha dela.
Ele apontou para a pasta de papel grosso sobre a secretária. Tinha uma etiqueta, LEWIS, VANGIE. Era um registo impessoal, concluiu Katie, um sinal de que exactamente
há uma semana Vangie Lewis estivera deitada na sala de observação contígua àquele escritório onde foi verificada a pressão arterial, confirmada a pulsação do feto.
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Como estava a Sr.a Lewis perguntou ela, física e emocionalmente?
Em primeiro lugar deixe-me responder acerca do seu estado físico. Era uma preocupação, claro. Existia o perigo de uma gravidez tóxica, que eu vigiava constantemente.
Mas a senhora compreende, cada dia que passava aumentava a possibilidade de sobrevivência do bebé.
Poderia ter levado a gravidez até ao fim?
Impossível. De facto, na última quinta-feira, avisei a Sr.a Lewis que era muito provável que a tivéssemos de internar nas duas próximas semanas e de provocar o parto.
Como é que ela reagiu a essas notícias? Ele franziu as sobrancelhas.
Esperava que a Sr.a Lewis tivesse uma preocupação muito válida com a vida do bebé. Mas o facto é que quanto mais ela se aproximava do nascimento potencial, mais
me dava a impressão que ela receava o parto. Cheguei mesmo a pensar que ela era uma garota que queria brincar às casinhas, mas que ficaria aterrorizada se a boneca
se transformasse num bebé de carne e osso.
Compreendo. Katie escrevinhou rapidamente no bloco que tinha na mão. Mas Vangie evidenciava alguma depressão específica?
O Dr. Highley abanou a cabeça.
Não a detectei. Todavia, penso que essa resposta deveria ser dada pelo Dr. Fukhito. Ele examinou-a na segunda-feira à noite, e ele está mais habilitado do que eu
para reconhecer um sintoma que está camuflado. A minha impressão geral era que ela estava a ficar com um medo mórbido de dar à luz.
Uma última pergunta fez Katie. O seu escritório é mesmo ao lado do escritório do Dr. Fukhito. O senhor viu a Sr.a Lewis na segunda-feira à noite, a qualquer hora?
Não vi.
Obrigada, doutor. O senhor deu-me uma grande ajuda. Enfiou de novo o bloco no saco à tiracolo. Agora é a sua vez de fazer perguntas.
Não tenho muitas. Respondeu a elas ontem à noite. Quando acabar de falar com o Dr. Fukhito, vá por favor para o quarto cento e um no outro lado do hospital. Vão-lhe
fazer uma transfusão. Espere cerca de meia hora antes de guiar depois de a receber.
Pensava que isso era para pessoas que davam sangue disse Katie.
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Só para se ter a certeza de que não há reacção. Também... Ele meteu a mão na gaveta funda na parte lateral da secretária. Tome o primeiro hoje à noite disse. Depois
um de quatro em quatro horas, amanhã; o mesmo na sexta-feira. Tome quatro comprimidos ao todo, amanhã e sexta-feira. Aqui tem que chegue. Devo acentuar que é muito
importante que não se esqueça. Como sabe, se esta operação não remediar o seu mal, temos de pensar numa cirurgia mais radical.
Eu vou tomar os comprimidos disse Katie.
Óptimo. Dará entrada no hospital cerca das seis horas da tarde de sexta-feira.
Katie acenou com a cabeça.
Óptimo. Estarei a fazer as últimas inspecções e far-lhe-ei uma breve visita. Não está preocupada, espero?
Ela dera-lhe a conhecer o seu medo por hospitais no primeiro encontro?
Não disse, deveras. Ele abriu-lhe a porta.
Então até sexta-feira, Sr.a DeMaio disse ele com brandura.
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A equipa de investigação de Phil Cunningham e Charley Nugent regressou ao escritório do promotor de Justiça às quatro da tarde a ressumar à excitação exagerada de
cães de caça que obrigaram a presa a refugiar-se numa árvore. Entrando de roldão no gabinete de Scott Myerson, trataram de lhe apresentar as suas descobertas.
O marido é um mentiroso disse Phil com rispidez. Devia ter regressado ontem de manhã, mas o avião apresentava uma deficiência no motor. Os passageiros foram desembarcados
em Chicago, e ele e a tripulação voltaram para Nova Iorque. Chegou segunda-feira ao fim do dia.
Segunda-feira ao fim do dia! exclamou Scott.
Sim. E hospedou-se na Holiday Inn na West Fiftyseventh Street.
Como conseguiram essa informação?
Arranjámos uma lista da tripulação do voo da segunda-feira
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e falámos com eles todos. O comissário de bordo vive em Nova Iorque. Lewis levou-o de carro para Manhattan e depois acabou por jantar com ele. Lewis contou-lhe uma
história da carochinha dizendo que a mulher não estava em casa e que ele ia ficar essa noite na cidade e assistir a um espectáculo.
Ele disse isso ao comissário de bordo?
Disse. Estacionou o carro na Holiday Inn, reservou um quarto, em seguida foram jantar. O comissário de bordo deixou-o às sete e vinte. Depois disso Lewis foi buscar
o carro, e os registos da garagem mostram que andou com ele mais de duas horas. Trouxe-o de volta às dez. E atenção ao que vou dizer. Voltou a sair à meia-noite
e regressou às duas.
Scott assobiou.
Ele mentiu-nos sobre o voo. Mentiu ao comissário de bordo sobre a mulher. Ele esteve algures no carro entre as oito e as dez e entre a meia-noite e as duas da manhã.
A que horas é que o Richard disse que Vangie Lewis morreu?
Entre as oito e as dez da noite disse Ed. Charley Nugent estivera calado.
Há mais disse ele. Lewis tem uma namorada, uma hospedeira da Pan Am. Chama-se Joan Moore. Vive no duzentos e um na East Eighty-seventh em Nova Iorque. O porteiro
de lá disse-nos que o comandante Lewis a levou do aeroporto para casa ontem de manhã. Ela deixou o saco com ele e foram tomar café no centro comercial do outro lado
da rua.
Scott bateu com o lápis na secretária, um sinal certo de que se preparava para transmitir ordens. Os seus colaboradores esperavam com os blocos de apontamentos na
mão.
São quatro horas disse Scott com secura. os juizes devem estar a sair. Entrem em contacto com um deles e peçam-lhe para esperar cerca de quinze minutos. Digam-lhe
que estamos a elaborar uma autorização judicial para uma busca domiciliária.
Phil saltou da cadeira e pegou no telefone.
Você Scott apontou para Charley descubra qual foi o dono da agência funerária que recolheu o corpo de Vangie Lewis em Mineápolis. Entre em contacto com ele. O corpo
não deve ser enterrado, e certifique-se de que Chris Lewis não decide cremá-lo. Podemos querer fazer mais investigações. Lewis disse quando voltava?
Charley acenou com a cabeça.
Ele disse-nos que regressaria amanhã imediatamente a seguir aos serviços e ao enterro.
Scott resmungou.
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Descubram em que avião vem e estejam à espera dele. Peçam-lhe que venha aqui para o interrogatório.
O senhor não pensa que ele vai tentar fugir? perguntou Charley.
Não, não penso. Ele vai tentar comportar-se como se não tivesse nada de que ter vergonha. Se for esperto saberá que não temos nada de específico contra ele. E eu
quero falar com a namorada. Que sabe acerca dela?
Ela compartilha um apartamento com outras duas hospedeiras. Tenciona mudar-se para a Divisão Latino-Americana da Pan Am e fazer os voos a partir de Miami. Neste
preciso momento está em Fort Lauderdale a assinar um contrato de arrendamento de um apartamento. Estará de volta sexta-feira ao fim da tarde.
Espere também pelo avião disse Scott. Peça-lhe para vir aqui para algumas perguntas. Onde estava na noite de segunda-feira?
Abordo de um avião em direcção a Nova Iorque. Temos a certeza absoluta.
Muito bem. Ele fez uma pausa. Outra coisa. Quero a lista de telefonemas da casa Lewis, em particular da semana passada, e, quando fizerem a busca vejam se existe
algum tipo de máquina que responda num deles. Ele é comandante de uma companhia de aviação. Fazia sentido ter um.
Phill Cunningham pousava o auscultador.
O juiz Haywood espera.
Scott pegou no telefone, marcou rapidamente o número do escritório de Richard, perguntou por ele e balbuciou:
Maldição. Tem de ser hoje o único dia em que sai cedo!
Precisa dele neste momento? O tom de Charley era de curiosidade.
Quero saber o que ele queria dizer ao afirmar que havia algo que não se ajustava. Lembram-se desse comentário? Talvez fosse importante saber o que é. Muito bem,
toca a trabalhar. E quando passarem a busca àquela casa, passem-na a pente fino. E procurem o cianido. Temos de descobrir sem delongas onde Vangie Lewis arranjou
o cianido que a matou.
Ou onde o comandante Lewis o arranjou acrescentou ele calmamente.
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Em comparação com o gabinete do Dr. Highley, o do Dr. Fukhito parecia mais espaçoso e claro. A escrivaninha com linhas longas e delicadas ocupava menos espaço do
que a secretária maciça em estilo inglês do Dr. Highley. Cadeiras elegantes com costas de palhinha e assentos e braços acolchoados e um canapé a condizer substituídos
por cadeiras de clube de cabedal no outro escritório. Em vez da parede com quadros com mães e bebés, o Dr. Fukhito tinha uma série de reproduções delicadas de xilogravuras
Ukiyo-e.
O Dr. Fukhito era alto para japonês. "Anão ser que", pensou Katie, "a sua postura seja tão direita que ele parecesse mais alto do que provavelmente era". Não, ela
calculava que ele tivesse cerca de cinco pés e dez polegadas.
Como o seu sócio, o Dr. Fukhito estava dispendiosa e conservadoramente vestido. O fato listrado era realçado por uma camisa azul-clara e gravata de seda em suaves
tons de azul. O cabelo e o bigode pequeno e bem arranjado completavam uma pele levemente dourada e uns olhos castanhos mais ovais do que em forma de amêndoa. Tanto
pelos padrões orientais como ocidentais ele era um homem impressionantemente belo.
"É provavelmente um psiquiatra muito bom", pensou Katie enquanto pegava no bloco de apontamentos, ganhando deliberadamente tempo para absorver impressões.
No mês anterior a sua visita com o Dr. Fukhito fora breve e informal. A sorrir, ele explicara: "O útero é uma parte fascinante da anatomia. Às vezes, um fluxo irregular
e excessivo pode indicar um problema emocional".
"Duvido", dissera-lhe Katie. "A minha mãe teve o mesmo problema durante anos, e eu sei que é hereditário, ou pode ser."
Ele fizera-lhe perguntas sobre a sua vida particular. "E suponha que um dia se torna necessária uma histeroctomia? Como reagiria a isso?"
"Sentir-me-ia muito mal", replicara Katie. "Sempre desejei uma família."
"Então tenciona casar-se? Tem uma relação com alguém?"
"Não."
"Por que não?"
"Porque presentemente estou mais interessada no meu trabalho."
Ela terminara abruptamente a entrevista. "Doutor, o senhor
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é muito gentil, mas não tenho grandes problemas emocionais, posso garantir-lhe. Estou ansiosa por me ver livre deste problema, mas asseguro-lhe que é um problema
meramente físico."
Ele concordara donairosamente, levantando-se imediatamente e estendendo a mão. "Bem, se vai passar a ser paciente do Dr. Highley, por favor lembre-se de que estou
aqui. E se alguma vez quiser desabafar com alguém, talvez queira recorrer a mim."
Várias vezes no mês anterior passara pelo espírito de Katie que talvez não fosse má ideia conversar com ele para obter um parecer profissional e objectivo sobre
o seu estado emocional. "Ou", perguntou a si mesma, "esse pensamento tomara forma muito mais recentemente por exemplo, desde o jantar com Richard ontem à noite?"
Pondo de parte esse pensamento, endireitou-se na cadeira e levantou a caneta. A manga caiu para trás, deixando à mostra o braço ligado. Para seu alívio, ele não
fez perguntas.
Doutor, como sabe, uma paciente sua e do Dr. Highley, Vangie Lewis, morreu na segunda-feira à tardinha.
Ela reparou que as sobrancelhas se ergueram ligeiramente. Seria porque ele estava à espera que ela afirmasse peremptoriamente que Vangie se suicidara?
Ela prosseguiu:
Doutor, o senhor viu Vangie por volta das oito horas dessa noite. Não é verdade?
Ele acenou com a cabeça.
Vi-a às oito horas em ponto.
Quanto tempo esteve aqui?
Cerca de quarenta minutos. Ela telefonou na segunda-feira à tarde e solicitou uma consulta. Geralmente trabalho até às oito às segundas-feiras e já tinha todas as
horas tomadas. Disse-lhe isso e sugeri-lhe que viesse terça-feira de manhã.
Como é que ela reagiu?
Começou a chorar ao telefone. Parecia bastante aflita, e claro, disse-lhe para vir, que a podia atender às oito.
Por que razão estava tão aflita, doutor?
Ele falou pausadamente, escolhendo as palavras com cuidado.
Ela discutira com o marido. Estava convencida de que ele não a amava nem queria o bebé. Fisicamente, a tensão da gravidez estava a começar a afectá-la. Era bastante
imatura, realmente filha única que tinha sido excessivamente mimada e enervada. O mal-estar físico aterrorizava-a, e a perspectiva do nascimento tornara-se subitamente
assustadora.
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Inconscientemente, os olhos dele fixaram-se na cadeira à direita da sua secretária. Ela sentara-se nela na noite de segunda-feira, com aquele cafetã comprido a envolver-lhe
o corpo. Por mais que ela tivesse afirmado que desejava um filho, Vangie detestava as roupas da maternidade, detestava ficar desfigurada. No último mês tentara esconder
o corpo descomunal e a perna inchada usando vestidos compridos. Foi um milagre não ter tropeçado e caído da forma como eles se enredavam nos pés.
Katie olhou fixamente para ele, cheia de curiosidade. Aquele homem estava nervoso. Que conselho dera a Vangie que a fizera correr para casa para se matar. Ou a levara
a um assassino, se a suspeita de Richard estivesse certa? A discussão. Chris Lewis não admitira que ele e Vangie tinham discutido.
Inclinando-se para diante rapidamente, Katie perguntou:
Doutor, compreendo que queira salvaguardar o carácter confidencial das conversas da Sr.a Lewis com o senhor, mas este é um assunto oficial. Precisamos de saber o
que nos puder contar sobre a discussão que Vangie Lewis teve com o marido.
Ele tinha a impressão que a voz de Katie vinha de muito longe. Via os olhos aterrorizados de Vangie fixos nele. Com um esforço enorme controlou-se e olhou de frente
para Katie.
A Sr.a Lewis disse-me que tinha a certeza que o marido estava apaixonado por outra mulher, que o acusara disso. Ela disse-me que o avisou que quando descobrisse
quem era a mulher, lhe faria a vida negra. Estava irritada, excitada, amargurada e assustada.
Que lhe disse?
Prometi-lhe que antes e durante o parto lhe dariam tudo o que fosse necessário para se sentir bem. Disse-lhe que esperávamos que ela iria ter o bebé que sempre desejou
e que ele podia ser o instrumento que daria mais tempo ao seu casamento.
Como é que ela reagiu a isso?
Começou a acalmar. Mas achei conveniente avisá-la que depois do nascimento do bebé, se a relação conjugal não melhorasse, devia pensar na possibilidade de uma ruptura.
- E então?
Ficou furiosa. Jurou que nunca permitiria que o marido a deixasse, que eu estava do lado dele, como toda a gente. Levantou-se e pegou no casaco.
Que fez o doutor?
Não era altura para fazer o que quer que fosse. Disse-lhe para ir para casa, que dormisse bem e me telefonasse de manhã.
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Compreendi que era cedo de mais para ela enfrentar o facto aparentemente irrevogável de que o comandante Lewis queria o divórcio.
E ela foi-se embora?
Foi. O carro estava estacionado na zona de estacionamento das traseiras. Às vezes perguntava se podia servir-se da minha entrada privada para sair pelas traseiras.
Na segunda-feira à noite não perguntou. Limitou-se a sair por aquela porta.
E não voltou a ter notícias dela?
Não.
Compreendo. Katie levantou-se e aproximou-se da parede coberta com as gravuras. Ela queria que o Dr. Fukhito continuasse a falar. Estava a esconder alguma coisa.
Estava nervoso.
Eu mesma fui uma doente deste hospital na segunda-feira à noite disse ela. Tive um pequeno acidente de automóvel e trouxeram-me para aqui.
Fico contente por não ter sido grave.
Sim. Katie parou em frente de uma das gravuras, Uma Pequena Rua em Yabu KojiAtagoshita. É bela disse ela. É da série Cem Vistas de Yedo, não é?
É. A senhora está muito bem informada sobre a arte japonesa.
Nem por isso. O meu marido era o perito e ensinou-me um pouco, e eu possuo outras reproduções da série, mas esta é maravilhosa. Interessante, não é, o conceito de
cem vistas do mesmo lugar?
Ele tornou-se cauteloso. Katie estava de costas para ele e não viu que este comprimiu os lábios de forma a ficarem uma linha rígida.
Katie virou-se.
Doutor, fui trazida para aqui por volta das dez horas da noite na segunda-feira. Pode dizer-me, é possível que Vangie não tenha saído às oito horas; que ainda estivesse
no hospital; que às dez horas, quando me trouxeram, a pudesse ter visto?
O Dr. Fukhito olhou fixamente para ela, sentindo um medo frio e húmido a perpassar na pele. Esforçou-se por sorrir.
Não vejo como disse ele. Mas Katie notou que as mãos estavam crispadas e brancas, como se estivesse a fazer um esforço para se sentar na cadeira, em vez de fugir,
e qualquer coisa seria raiva ou medo? cintilou nos seus olhos.
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Às cinco horas Gertrude Fitzgerald ligou o telefone ao serviço de atendimento e fechou à chave a secretária da recepção. Cheia de nervosismo, marcou o número de
Edna. Ninguém respondeu uma vez mais. Não havia dúvida. Edna nos últimos tempos andava a beber cada vez mais. Mas era uma pessoa tão alegre e amável. Na verdade
gostava de toda a gente. Gertrude e Edna almoçavam muitas vezes juntas, geralmente na cantina do hospital. Às vezes Edna dizia: "Vamos sair para comer alguma coisa
de jeito". Isso significava que ela queria ir ao pub próximo do hospital onde podia beber um Manhattan. Nesses dias Gertrude tentava sempre que não excedesse um
copo. Edna gracejava com ela. "Esta noite podes beber dois, querida", dizia.
Gertrude compreendia a necessidade de beber de Edna. Não bebia, mas sabia o que era aquela sensação de vazio quando tudo o que uma pessoa faz é ir para o trabalho
todos os dias, depois ir para casa e ficar a olhar para quatro paredes. Ela e Edna riam-se às vezes dos artigos que aconselhavam as pessoas a fazerem ioga ou a praticarem
ténis ou inscreverem-se num clube onde se estudam os hábitos das aves ou a tirarem um curso. E Edna dizia: "Com estas pernas gordas não conseguia cruzá-las; nunca
tocarei no chão sem dobrar os joelhos; sou alérgica a pássaros e ao fim do dia estou demasiado cansada para me preocupar com a história da Grécia antiga. Só queria
encontrar no caminho de casa um tipo simpático que quisesse vir ter comigo à noite, e podes crer, não me importava que ele ressonasse."
Gertrude era viúva há sete anos, mas pelo menos tinha os filhos e os netos; pessoas que se interessavam por ela, que lhe telefonavam, que às vezes lhe pediam emprestado
algumas centenas de dólares; pessoas que precisavam dela. Também tinha momentos de solidão, só Deus sabia, mas não era o mesmo como era para Edna. Ela tinha vivido.
Tinha sessenta e dois anos, saúde e recordações.
Ela era capaz de jurar que o Dr. Highley dera conta que estava a mentir quando disse que Edna telefonara a informar que se encontrava doente. Mas Edna admitira que
o Dr. Highley a advertira por causa da bebida. E Edna precisava do emprego. Os pais já idosos fizeram-na gastar um dinheirão antes de
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morrerem. Não que Edna se tivesse queixado alguma vez. Mas o que era triste, queria que eles ainda estivessem com ela; sentia muito a sua falta.
E se Edna não tivesse bebido? E se estava mesmo doente? O pensamento fez com que Gertrude suspendesse a respiração bruscamente. Não podia haver dúvidas. Precisava
de ver Edna. Iria já de carro para casa dela. Se ela estivesse a beber, obrigá-la-ia a parar e faria com que ficasse sóbria. Se estivesse doente, trataria dela.
Com o espírito apaziguado, Gertrude levantou-se rapidamente da secretária. "Outra coisa. Aquela Sr.a DeMaio do Departamento do Promotor de Justiça. Ela foi muito
simpática, mas podia asseverar que ela estava ansiosa por falar com Edna. Talvez telefone a Edna amanhã. Que poderá querer dela? Que poderá contar-lhe Edna a respeito
da Sr.a Lewis?"
Era um problema intrigante, um problema que manteve Gertrude ocupada enquanto percorria de carro as seis milhas até ao apartamento de Edna. Mas ainda não conseguira
encontrar uma resposta no momento em que entrou na zona de estacionamento para os não inquilinos atrás do apartamento de Edna e se dirigiu para a porta da frente.
As luzes estavam acesas. Apesar da cortina brilhante, forrada por ela, estar corrida, Gertrude podia dizer que vinha claridade da sala de estar e da pequena zona
das refeições. Quando se aproximou da porta, ouviu o som fraco de vozes. O aparelho de televisão, claro.
Uma irritação momentânea percorreu-lhe o corpo. Ela podia ficar deveras irritada se Edna estivesse confortavelmente sentada na cadeira de balouço e nem sequer se
dera ao trabalho de atender o telefone. Ela, Gertrude, fizera o trabalho por Edna, encobrira a sua falta, e agora fizera um desvio de milhas do seu trajecto para
se certificar de que não passava necessidades
Gertrude tocou à campainha. Esta produziu dois sons metálicos. Esperou. Apesar de ouvir mal, não houve nenhum som de pés apressados a aproximarem-se da porta, nem
uma voz familiar a gritar: "Já vai." Talvez Edna estivesse a enxaguar a boca com Scope. Ela estava sempre com medo que algum dos médicos entrasse de repente para
fazer algum trabalho de emergência. Isso acontecera algumas vezes em dias em que Edna não estava. Foi assim que o Dr. Highley se apercebeu pela primeira vez do problema
de Edna.
Mas não se ouvia o som reconfortante de vozes ou passos. Gertrude sentiu calafrios quando carregou de novo com força na
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campainha. Edna talvez estivesse a dormir para curar a bebedeira. Estava tanto frio. Queria apanhar-se na sua casa.
Depois de ter tocado quatro vezes à campainha, o aborrecimento desapareceu e Gertrude ficou alarmada. Não adiantava nada andar de um lado para o outro; algo de errado
se passava e ela tinha de entrar no apartamento. O superintendente, Sr. Krupshak, vivia mesmo do outro lado do pátio. Correndo para lá, Gertrude contou o que se
passava. O superintendente estava a jantar e parecia aborrecido, mas a esposa, Gana, pegou no anel enorme com as chaves que estava por cima da banca da cozinha pendurado
num prego.
Eu vou consigo disse ela.
As duas mulheres atravessaram o pátio a correr.
Edna é uma amiga a valer apressou-se a dizer Gana Krupshak. Às vezes à tardinha passo por lá, conversamos e tomamos uma bebida juntas. O meu marido não gosta de
bebidas alcoólicas, nem mesmo vinho. Ainda ontem estive lá às oito. Bebi um Manhattan com ela, e disse-me que uma das doentes de quem mais gostava se tinha suicidado.
Bem, já chegámos.
As mulheres estavam no pequeno átrio que ia dar ao apartamento de Edna. A mulher do superintendente mexeu desajeitadamente nas chaves.
É esta murmurou ela. Meteu a chave na fechadura, rodou-a.
Esta fechadura tem uma mania, tem de se abanar um pouco. O fecho girou e ela abriu a porta enquanto falava.
As duas mulheres viram Edna ao mesmo tempo: deitada no chão, com as pernas dobradas debaixo do corpo, o roupão azul aberto, revelando uma camisa de noite de flanela,
o cabelo, que estava a ficar grisalho, colado à volta do rosto, os olhos esbugalhados, uma crosta de sangue que formava uma coroa carmesim no alto da cabeça.
Não. Não. Gertrude sentiu a voz a subir de tom, um grito penetrante, uma entidade que ela não podia controlar. Comprimiu a boca com a mão.
Gana Krupshak disse numa voz desorientada:
Ainda ontem à noite estive aqui sentada com ela. E a voz da mulher embargou-se, ela estava bastante atrapalhada, a senhora sabe o que quero dizer, a forma como Edna
podia ficar
e estava a falar de uma doente que se matou. E depois telefonou ao marido da doente. Gana começou a soluçar sons estridentes, ruidosos. E agora a pobre Edna também
está morta!
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Chris Lewis ficou perto dos pais de Vangie à direita do caixão, quase sem se aperceber das expressões de pêsames de amigos. Quando lhes telefonara a participar a
morte dela, concordaram que veriam o corpo em casa, um serviço em memória da defunta na manhã do dia seguinte seguido de um funeral privado.
Em vez disso, quando chegou a Mineápolis nessa tarde, constatou que tinham planeado um velório público para essa noite e que depois do serviço na capela na manhã
do dia seguinte um cortejo seguiria o corpo de Vangie até ao cemitério.
Todos os amigos quererão despedir-se da nossa querida filha. Pensar que há dois dias estava viva e agora está morta disse a mãe dela a soluçar.
Era só quarta-feira? Chris tinha a impressão de que tinham decorrido semanas desde que entrara na cena do pesadelo no quarto na manhã do dia anterior. Ontem de manhã.
O nosso bebé não está lindo? perguntava a mãe a uma visita que se aproximara naquele momento do caixão.
A nossa filhinha. O nosso bebé. "Se ao menos a tivesse deixado crescer", pensou Chris, "tudo podia ter sido tão diferente". A hostilidade para com ele era controlada,
mas escondia-se por baixo da superfície pronta a saltar. "Uma rapariga feliz não se suicida", dissera-lhe a mãe dela acusadoramente.
Pareciam velhos, cansados e abalados do sofrimento pessoas francas, trabalhadoras, que se tinham privado de tudo para rodearem de luxo a filha imprevistamente bela,
que a criaram na convicção de que o seu desejo era lei.
Seria mais fácil para eles se a verdade revelasse que alguém tinha tirado a vida a Vangie? Ou não lhes devia dizer nada, para os poupar a esse horror final? A mãe
já estava a tentar encontrar conforto, a forjar uma versão com que pudesse viver: "Chris anda em viagem e nós estamos tão longe, e a minha bebé sentia-se tão doente,
bebeu um gole de qualquer coisa e adormeceu."
"Oh, meu Deus.", pensou Chris, "como as pessoas desvirtuam a verdade, desvirtuam a vida". Queria falar com Joan. Ela ficara tão perturbada quando soube o que aconteceu
a Vangie que
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quase não conseguira falar. "Ela sabia de nós dois?" Acabara por ter de admitir que Vangie suspeitava que ele estava interessado noutra pessoa.
Joan regressaria da Florida na sexta-feira à noite. Ele voltaria para Nova Jérsia no dia seguinte à tarde depois do funeral. Não diria nada à Polícia até ter tido
uma oportunidade de falar com Joan, para a avisar que podia ver-se envolvida nisto. A Polícia procuraria um motivo para ele matar Vangie. Aos seus olhos, Joan seria
o motivo.
Deveria deixar tudo como estava? Tinha o direito de envolver Joan naquilo, de desenterrar algo que feriria ainda mais os pais de Vangie?
Tinha havido outra pessoa na vida de Vangie? Chris relanceou o olhar pelo caixão, pelo rosto de Vangie agora sereno, pelas mãos tranquilamente entrelaçadas. Ele
e Vangie mal tinham vivido como marido e mulher nos últimos anos. Deitavam-se lado a lado como dois estranhos, ele exaurido emocionalmente das discussões contínuas,
ela desejosa de ser adulada, mimada. Chegara a sugerir quartos separados, mas ela ficara histérica.
Ela engravidou dois meses depois de se mudarem para Nova Jérsia. Quando ele concordou com uma última tentativa para salvar o casamento, fizera um esforço sincero
para que resultasse. Mas o Verão tinha sido péssimo. Em Agosto ele e Vangie mal se falavam. Apenas uma vez, a meio do mês, dormiram juntos. Ele pensara que era uma
ironia do destino que ao fim de dez anos ela engravidasse precisamente no momento em que ele conhecera outra pessoa.
Uma suspeita, que Chris supunha estar algures no seu subconsciente, brotou de repente. Seria possível que Vangie tivesse uma ligação com outro homem, um homem que
não quis responsabilizar-se por ela nem por um bebé? Vangie tinha avisado que se soubesse com quem andava Chris, faria votos para que ela morresse. E se ela tinha
alguma relação com um homem casado? E se ela lhe tivesse feito ameaças histéricas?
Chris apercebeu-se que estivera a apertar as mãos, a murmurar agradecimentos, a olhar para rostos familiares sem os ver na realidade: vizinhos do condomínio onde
ele e Vangie tinham vivido antes de se mudarem para Nova Jérsia; amigos da companhia de aviação; amigos dos pais de Vangie. Os seus pais estavam isolados na Carolina
do Norte. Nenhum deles estava bem. Ele dissera-lhes para não fazerem a viagem até Mineápolis com o tempo tão frio.
Lamento. O homem que lhe apertava a mão tinha
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sessenta e tal anos. Era um homem franzino, mas extremamente atraente, com o cabelo cinzento escuro e sobrancelhas espessas sobre uns olhos vivos, penetrantes. Sou
o Dr. Salem disse, Emmet Salem. Assisti ao nascimento de Vangie e fui o seu primeiro ginecologista. Foi uma das crianças mais bonitas que trouxe a este mundo, e
ela nunca mudou. Só queria não ter estado ausente quando ela telefonou para o meu escritório na segunda-feira.
Chris olhou fixamente para ele.
Vangie telefonou-lhe na segunda-feira?
Telefonou. A minha enfermeira disse que ela estava bastante perturbada. Queria ver-me imediatamente. Estava a orientar um seminário em Detroit, mas a enfermeira
marcou-lhe um encontro comigo para hoje. Talvez a pudesse ter ajudado.
Por que razão Vangie telefonara a este homem? Porquê? Chris achava aquilo inconcebível. Que a levaria a ir ter de novo com um médico que ela não via há anos? Ela
não estava bem, mas se queria uma consulta, porquê um médico a mil e trezentas milhas de distância?
Vangie esteve doente? O Dr. Salem estava a olhar fixamente para ele cheio de curiosidade, à espera de uma resposta.
Não, doente não disse Chris. Como talvez saiba, ela estava grávida. Foi uma gravidez difícil desde o princípio.
Vangie estava o quê? O médico levantou o tom de voz. Ele olhou para Chris com um ar de admirado.
Eu compreendo. Ela estava prestes a perder as esperanças. Mas em Nova Jérsia começou a frequentar a Maternidade e Centro de Concepção Westlake. Talvez tenha ouvido
falar dela, ou do Dr. Highley Dr. Edgar Highley.
Comandante Lewis, posso falar com o senhor? O dono da agência funerária tinha uma mão debaixo do braço dele, arrastando-o para o gabinete do outro lado do vestíbulo
próximo da sala do velório.
Com licença disse Chris ao médico. Desorientado com a agitação do dono da funerária, deixou-se conduzir para o gabinete.
O dono da funerária fechou a porta e olhou para Chris.
Acabo de receber um telefonema do escritório do Promotor de Justiça de Valley County, Nova Jérsia disse ele. Vem a caminho uma confirmação escrita. Estamos proibidos
de enterrar o corpo da sua mulher. O corpo da sua mulher deve ser
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enviado de avião novamente para o Escritório do Examinador Médico em Valley County logo a seguir ao serviço de manhã.
"Eles sabem que não foi suicídio", pensou Chris. "Já sabem isso." Não havia nada que pudesse fazer para o ocultar. Assim que tivesse uma oportunidade para falar
com Joan na sexta-feira à noite, contaria tudo o que sabia ou suspeitava ao departamento do Promotor de Justiça.
Sem responder ao dono da funerária, virou-se e saiu do gabinete. Queria falar com o Dr. Salem, descobrir o que Vangie tinha dito à enfermeira pelo telefone.
Mas quando entrou de novo na outra sala, o Dr. Salem já se tinha ido embora. Partira sem falar com os pais de Vangie. A mãe de Vangie limpava os olhos inchados com
um lenço húmido e enrodilhado.
Que disse ao Dr. Salem para ele sair daquela maneira? perguntou ela. Por que razão o indispôs daquela maneira?
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Na quarta-feira chegou a casa às seis da tarde. Hilda ia a sair. O rosto sem qualquer beleza especial, estólido, estava circunspecto. Ele era sempre frio com ela.
Sabia que ela gostava e precisava daquele emprego. Porque não? Uma casa que não se sujava; sem uma patroa a dar ordens constantemente; sem crianças para a porem
em desordem.
Nenhuma criança. Entrou na biblioteca, encheu um copo com uísque escocês e a matutar ficou a ver pela janela o corpo enorme de Hilda a desaparecer ao fundo da rua
na direcção da paragem de autocarros a dois quarteirões de distância.
Fora para medicina porque a sua própria mãe tinha morrido de parto. O seu nascimento. As histórias acumuladas dos anos, escutadas a partir do momento em que as podia
perceber, contadas pelo homem tímido, discreto, que tinha sido o seu pai. "A tua mãe desejava-te tanto. Sabia que estava a pôr em risco a sua própria vida, mas não
se importou. "
Sentado na farmácia em Brighton, observando o pai a aviar receitas, fazendo perguntas: "O que é aquilo?" "Para que é aquele comprimido?" "Por que é que põe rótulos
com avisos naqueles frascos?" Ficava fascinado, absorvendo a informação
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que o pai partilhava com ele de bom grado o único tema de que o pai podia falar; o único mundo que ele conhecia.
Fora para a faculdade de medicina, terminara com a melhor nota do seu curso; ofereceram-lhe lugares como interno em hospitais centrais em Londres e Glasgow. Escolhera
antes o Christ Hospital em Devon, com um laboratório de investigação magnificamente equipado possibilitava-lhe tanto a investigação como a prática. Passara a fazer
parte do quadro; a sua reputação como obstetra crescera rapidamente.
E o seu projecto empatado, retardado, amaldiçoado pela sua incapacidade para o ensaiar.
Aos vinte e sete anos casara-se com Claire, uma prima afastada do conde de Sussex com uma posição social infinitamente superior à dele, mas a sua reputação, a perspectiva
de proeminência futura tinham sido o factor nivelador.
E a ignomínia inconcebível. Ele, que negociava em nascimentos e fertilidade, tinha casado com uma mulher estéril. Ele, cujas paredes estavam cobertas de gravuras
de bebés que nunca deviam ter nascido, não tinha nenhuma esperança de vir a ser pai.
Quando começara a odiar Claire? Levou muito tempo, sete anos.
Foi quando compreendeu finalmente que ela não se importava; nunca se importara; que o seu desapontamento era falso; que ela soubera que não podia engravidar antes
de casar com ele.
Impaciente, afastou-se da janela. Seria outra noite fria e ventosa. Por que razão é que Fevereiro, o mês mais pequeno do ano, parecia sempre o mais longo? Quando
tudo terminasse faria umas férias. Estava a ficar irritável, a perder o controlo sobre os nervos.
Quase se traíra essa manhã quando Gertrude lhe disse que Edna telefonara a dizer que estava doente. Agarrara-se à secretária, vira as mãos a ficarem brancas. Depois
lembrara-se. A pulsação irregular que deixara de sentir, os olhos tortos, os músculos a afrouxarem in extremis. Gertrude estava a encobrir a amiga. Gertrude estava
a mentir.
Ele olhara Gertrude de sobrancelhas carregadas. Quando falou deu um tom glacial à voz. "É um transtorno enorme que Edna não venha hoje. Espero que ela esteja aqui
amanhã."
Dera resultado. Podia afirmá-lo devido ao lamber nervoso dos beiços, aos olhos desviados de Gertrude. Ela pensava que estava furioso por causa da ausência de Edna.
Sabia provavelmente que ele a repreendera por causa da bebida.
Gertrude podia revelar-se uma aliada.
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POLÍCIA: E como reagiu o doutor quando lhe disse que a Menina Burns tinha faltado ao serviço?
GERTRUDE: Ficou bastante zangado. É muito metódico. Não gosta de nada que altere a rotina.
O sapato que não apareceu. Nessa manhã tinha ido ao hospital pouco depois do amanhecer e esquadrinhara o parque de estacionamento e o escritório uma vez mais. Vangie
trazia-o quando entrou no seu escritório na segunda-feira à noite? Apercebeu-se de que não podia ter a certeza. Ela envergava aquele cafetã comprido, o casaco de
Inverno mal abotoado por cima dele. O cafetã era demasiado amplo; o casaco fazia pressão no abdómen. Ela levantou o cafetã para lhe mostrar a perna direita, inchada.
Ele vira o moccasin naquele pé, mas nunca reparara no outro sapato. Ela trazia-o na altura? Ele simplesmente não sabia.
Se ele tivesse caído no parque de estacionamento quando ele levava o corpo para o carro, alguém o apanhara. Talvez algum homem da manutenção o tivesse visto; o tivesse
posto de parte. Muitas vezes doentes que deixavam o hospital possuíam sacos de compras para deitar por fora, atulhados de cartões ou plantas e artigos pessoais que
à última hora não couberam na mala, e perdiam objectos entre o quarto do hospital e o parque de estacionamento. Perguntara na secretária dos perdidos-e-achados,
mas não tinham nenhum calçado. Talvez tivesse sido atirado para o saco do lixo.
Lembrava-se de ter tirado Vangie da mala do carro, de passar com ela perto das prateleiras na garagem. Estavam atulhadas com ferramentas de jardinagem. Seria possível
que o sapato mais folgado tivesse roçado nalguma coisa saliente? Se ele fosse encontrado numa prateleira da garagem, seriam feitas perguntas.
Se Vangie não tinha o sapato calçado quando saiu do escritório do Dr. Fukhito, o pé da meia teria ficado sujo. Mas o pórtico entre os escritórios era abrigado. Se
o pé esquerdo estivesse muito sujo, ele teria dado conta quando a deitou na cama.
O pavor de descobrir que levava o sapato direito, o sapato que tentara arrancar do pé de Vangie, desencorajara-o. Tanto mais tolo era por ter feito aquilo. Depois
do risco terrível, terrível.
O sapato direito estava no saco na mala do carro. Não sabia ao certo se deveria livrar-se dele não até ter a certeza que o outro não aparecera ainda.
Mesmo que a Polícia encetasse uma investigação intensiva ao suicídio, não havia nada que constituísse uma prova contra ele. A ficha dela no consultório podia suportar
um exame
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profissional minucioso. As fichas autênticas de Vangie, todas as fichas autênticas dos casos especiais, estavam ali no cofre de parede. Ele desafiava qualquer pessoa
a localizar aquele cofre. Nem sequer constava das plantas originais da casa. O Dr. Westlake instalara-o pessoalmente. Apenas Winifred sabia da sua existência.
Ninguém tinha motivo para desconfiar dele ninguém, excepto Katie DeMaio. Estivera quase para lhe contar alguma coisa quando ele fez referência à vista do quarto
do hospital, mas ela mudara de ideias de um momento para o outro.
Fukhito viera ter com ele quando estava a fechar a porta à chave nessa mesma noite. Fukhito estava nervoso. Ele dissera: "Sr.a DeMaio fez muitas perguntas. Será
possível que eles não acreditem que a Sr.a Lewis se suicidou?"
"Realmente não sei." Ele sentira prazer com o nervosismo de Fukhito; compreendia o motivo para ele.
"Aquela entrevista que deu à revista Newsmaker; vai sair amanhã, não vai?"
Ele olhara para Fukhito com desdém. "Vai. Mas garanto-lhe que dei a entender que me sirvo de um grande número de consultores psiquiátricos. O seu nome não aparecerá
no artigo."
Fukhito não se sentiu aliviado. "Mesmo assim vai concentrar as atenções neste hospital; em nós", queixou-se ele.
"Em si não é isso que o senhor está a dizer, doutor?"
Ele rira-se quase em voz alta do ar aflito e de culpa no rosto de Fukhito.
Agora, terminando o wisky, apercebeu-se de que tinha estado a deixar passar outra possibilidade de fuga. Se a Polícia chegasse à conclusão de que Vangie fora assassinada;
se investigassem Westlake; seria fácil sugerir com relutância que interrogassem o Dr. Fukhito. Principalmente tendo em conta o seu passado.
Afinal, o Dr. Fukhito era a última pessoa que se sabia ter visto Vangie Lewis viva.
23
Depois de deixar o Dr. Fukhito, Katie dirigiu-se à ala oriental do hospital para a transfusão. Foi-lhe dada uma área separada por uma cortina perto da sala de emergência.
Enquanto estava
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deitada numa cama, com a manga arregaçada, a agulha introduzida no braço, tentou reconstruir a sua chegada ao hospital na noite de segunda-feira.
Pensava lembrar-se de ter estado nesta sala, mas não tinha a certeza. O médico, que suturara o golpe no braço, espreitou.
Viva. Pensei tê-la visto na recepção. Vejo que o Dr. Highley mandou que lhe fizessem outra transfusão. Espero que esteja a controlar essa baixa percentagem de glóbulos.
Estou. Estou sob os cuidados do Dr. Highley.
Óptimo. Vamos ver esse braço. Ele ligou-o de novo enquanto ela estava ali deitada. Bom trabalho. Tenho de o admitir. Não terá uma cicatriz para mostrar aos seus
netos.
Se tiver algum disse Katie. Diga-me, doutor, estive nesta cama na noite de segunda-feira?
Esteve, tivemo-la aqui depois do raio X. Não se lembra?
É tudo tão confuso.
Perdeu muito sangue. Estava em estado de choque.
Compreendo.
Quando terminou a transfusão, lembrou-se que o Dr. Highley lhe dissera para não conduzir durante cerca de meia hora. Resolveu ir ao departamento de admissão de doentes
para preencher os impressos necessários. Assim não teria de se preocupar com eles na sexta-feira à noite.
Quando saiu do hospital eram quase seis horas. Deu por ela a virar o carro na direcção de Chapin River. "Que disparate", pensou. "Amanhã à noite vais jantar com
a Molly e o Bill. Não penses em ir lá esta noite."
Tomada a decisão, fez uma curva em U e dirigiu-se para Palisades Parkway. Estava a ficar com fome, e a ideia de ir para casa não a fascinava. Quem era o poeta que
escrevera sobre as alegrias da solidão e depois concluíra o poema com estas palavras: "Não vás para casa sozinho depois das cinco. Deixa que alguém esteja lá à tua
espera"?
Bem, ela aprendera a enfrentar a solidão, ensinara-a a desfrutar uma noite calma de leitura ao som da música stereo.
A sensação de vazio que ultimamente se apoderava dela, era algo diferente.
Passou pelo restaurante onde ela e Richard tinham comido na noite anterior e por impulso curvou para a zona de estacionamento. Nessa noite iria experimentar a outra
especialidade, o entrecôte. Talvez conseguisse pensar no restaurante quente, aconchegado e sossegado.
O proprietário reconheceu-a e sorriu de prazer.
101
Boa noite, minha senhora. O Dr. Carroll não fez nenhuma reserva mas tenho uma mesa perto da lareira. Ele está a estacionar o carro?
Ela abanou a cabeça.
Receio que seja só eu esta noite.
Por um instante o homem ficou com um ar embaraçado, mas recompôs-se rapidamente.
Então suponho que fizemos uma nova e bela amiga. Conduziu-a à mesa perto daquela que partilhara com Richard.
Acenando com a cabeça à sugestão de um copo de Burgundy, Katie reclinou-se e sentiu a mesma descontracção que tivera na noite anterior. Agora se ao menos fosse capaz
de controlar os pensamentos, de seleccionar as impressões que recebera ao conversar com o Dr. Highley e o Dr. Fukhito acerca de Vangie Lewis.
Tirando o bloco de apontamentos, começou a estudar o que anotara durante as entrevistas. Dr. Highley. Ela esperava que ele explicasse ou argumentasse que Vangie
Lewis tinha obviamente problemas graves com a gravidez. Ele fizera isso precisamente, o que lhe disse era perfeitamente razoável. Dia a dia ia comprar o tempo do
bebé. Os comentários que fizera sobre a reacção de Vangie ao parto eminente soavam a verdadeiros. Ela ouvira da boca de Molly a história da reacção histérica de
Vangie a uma bolha no dedo.
E depois? Que mais pretendia ela do Dr. Highley? Pensou no Dr. Wainwright, especialista do cancro em Nova Iorque, que tratara de John. Depois de John morrer, ele
falara com ela, com uma expressão e uma voz de pesar. "Quero que saiba, Sr.a DeMaio, que tentámos tudo o que era possível para o salvarmos. Fez-se tudo. Mas às vezes
Deus não nos ajuda."
O Dr. Highley expressara desapontamento pela morte de Vangie, mas pesar certamente que não. Mas, evidentemente, ele não podia deixar de ser objectivo. Ela ouvira
Bill e Richard a discutirem a necessidade de permanecer objectivo quando se exerce a profissão de médico. Caso contrário uma pessoa está sempre a sofrer e acaba
por se tornar inábil.
Richard. Instintivamente os seus olhos desviaram-se em direcção à mesa onde estivera com ele. Ele dissera: "Ambos sabemos que podíamos gostar um do outro. "Ele tinha
razão. Ela tinha consciência disso. Talvez fosse por isso que geralmente se sentia perturbada com ele, como se as coisas lhe pudessem ser tiradas das mãos. Seria
possível que aquilo pudesse acontecer duas vezes na vida? "Desde o princípio sabes que alguma coisa está certa, que alguém tem razão."
102
Quando ela e Richard saíam da casa de Molly depois daquele almoço rápido na véspera, Molly convidara-os para jantar na quinta-feira no dia seguinte. Molly disse:
"A Liz e o Jim Berkeley vêm cá. Ela é a tal que pensa que o Dr. Highley é Deus. Talvez estejam interessados em conversar com ela."
Katie compreendeu que esperava aquele jantar com um prazer antecipado.
Olhou de novo para as anotações. Dr. Fukhito. Havia ali algo de errado. Tinha a impressão de que ele pesara deliberadamente cada palavra que dizia quando falou da
visita de Vangie na segunda-feira à noite. Fora como se estivesse a observar uma pessoa a atravessar passo a passo um campo minado. Que receava? Mesmo tendo em conta
a preocupação razoável de proteger a relação médico-paciente, ele estava com medo de dizer alguma coisa que ela aproveitasse.
Depois fora notoriamente hostil quando ela perguntou se por acaso havia a possibilidade de Vangie estar ainda no hospital às dez horas quando ela, Katie, foi trazida
para lá.
E se ela tivesse visto Vangie de relance? E se Vangie fosse a sair do gabinete do Dr. Fukhito: se dirigisse para algum lugar no parque de estacionamento? Isso explicaria
o facto de ter visto o seu rosto naquele pesadelo disparatado.
Ninguém a vira ir embora.
E se ela não tivesse saído? E se ela ficara com o médico? E se ele tivesse saído com ela ou a tivesse seguido até casa? E se ele se tivesse apercebido que ela era
suicida, que era responsável de certa maneira...?
O bastante para o pôr nervoso.
O criado chegou para registar o que ela escolhera. Antes de arrumar o bloco de apontamentos, Katie fez uma última anotação: Investigar os antecedentes do Dr Fukhito.
24
Mesmo antes de atravessar a George Washington Bridge e descer o Harlem River e FDR Drive quarta-feira à tardinha, Richard sabia que devia ter cancelado o encontro
com Clovis. Estava preocupado com a morte de Vangie Lewis; o subconsciente insinuava que ele tinha deixado passar qualquer coisa em
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claro na autópsia. Havia qualquer coisa que tencionava examinar com mais atenção. O que era?
E estava preocupado com Katie. Parecia tão pálida na noite anterior. Estava extremamente pálida. Só ficara com alguma cor no rosto depois de beber dois copos de
vinho.
Katie não estava bem. Era isso. Era médico e devia ter descoberto isso mais cedo.
Aquele acidente. Fora examinada atentamente? Seria possível que se tivesse ferido mais do que se imaginava? O pensamento não saía do espírito de Richard enquanto
virava para a saída da Fifty-third Street e do FDR Drive e dirigiu-se ao apartamento de Clovis a um quarteirão de distância.
Clovis tinha uma garrafa de martini muito seco à espera de ser servida e um prato de pastéis de massa folhada com recheio de caranguejo acabados de tirar do forno.
Com uma pele impecável um corpo alto e esguio e aparência Viking, fazia lembrar a Richard uma jovem Ingrid Bergman. Até há pouco tempo divertia-se com a ideia de
que podiam acabar por se juntar. Clovis era inteligente, interessante e bem disposta.
Mas quando lhe retribuía o beijo com ternura sincera, estava perfeitamente consciente de que nunca se preocupara com Clovis da forma como se preocupava com Katie
DeMaio.
Apercebeu-se que Clovis estava a falar com ele.
.. e não estou em casa há dez minutos. O ensaio foi repetido. Houve muitas alterações. Por isso preparei as bebidas e os aperitivos e pensei que pudesses descansar
enquanto eu me vestia. Ei, estás-me a ouvir?
Richard aceitou a bebida e sorriu como quem pede desculpa.
Desculpa. Estou a tratar de um caso que não se resolve. Importas-te que faça umas chamadas enquanto tu te aprontas?
Claro que não disse Clovis. Vai lá telefonar. Pegou no copo e encaminhou-se para o vestíbulo que dava para o quarto e para a casa de banho.
Richard tirou o cartão de crédito da carteira e marcou o número da telefonista. Ele não podia pôr uma chamada para uma mulher na conta de outra mulher. Rapidamente
deu o número da sua conta à telefonista. Quando fizeram a ligação, deixou que o telefone tocasse uma dúzia de vezes antes de desistir. Katie não estava em casa.
Em seguida tentou a casa de Molly. Katie talvez tivesse parado lá. Mas Molly não falara com ela todo o dia.
Realmente não estou a contar com ela disse Molly. Vocês vêm amanhã à noite. Não se esqueça. Talvez me telefone
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mais tarde. Mas espero que já esteja em casa. Ela podia levar as coisas com calma.
Foi o começo de que ele precisava.
Molly, que é que Katie tem? perguntou. Há um problema físico, não há? Quero dizer para além do acidente?
Molly hesitou.
Acho que seria melhor conversar com Katie sobre isso. Certeza. O medo apoderou-se dele.
Molly, eu quero saber. Que é que ela tem?
Oh, uma coisa insignificante disse Molly precipitadamente. Garanto-lhe. Mas é uma coisa que ela não quis discutir. E agora talvez tenha dito mais do que devia. Até
amanhã.
Cortaram a ligação. Richard franziu as sobrancelhas com o auscultador mudo na mão. Primeiro colocou-o de novo no descanso, depois por impulso pediu uma chamada para
o escritório. Falou com o assistente do turno da noite.
Há alguma anormalidade? perguntou ele.
Recebemos agora mesmo um pedido para a carrinha. Foi encontrado um corpo num apartamento em Edgeriver. Provavelmente um acidente, mas a Polícia local pensou que
seria melhor darmos uma vista de olhos. O pessoal do Scott dirige-se para lá.
Liga-me ao escritório do Scott disse Richard. Scott não perdeu tempo com preâmbulos.
Onde está? perguntou ele.
Em Nova Iorque. Precisa de mim?
Preciso. Esta mulher foi encontrada em Edgeriver e é a recepcionista com quem Katie queria falar hoje em Westlake. Chama-se Edna Burns. Supõe-se que tenha telefonado
hoje a dizer que estava doente, mas não há dúvida que está morta há vinte e quatro horas. O corpo foi encontrado por uma co-trabalhadora de Westlake. Estou a tentar
entrar em contacto com Katie. Gostaria que ela fosse lá.
Dê-me a morada disse Richard.
Ele escreveu-a rapidamente e pousou o telefone. Katie quisera interrogar Edna sobre Vangie Lewis, e agora Edna Burns estava morta. Bateu à porta do quarto de Clovis.
Ela abriu-a, envolta num roupão de veludo frisado.
Ei, que pressa é essa? perguntou ela a sorrir. Saí agora mesmo do chuveiro.
Clo, desculpa. Ele explicou rapidamente. Agora estava num frenesim para se ir embora.
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Ela estava nitidamente desapontada.
Oh, claro que compreendo, mas estava a contar com a tua visita.
Já passaram algumas semanas tu sabes disso. Está bem. Vai, mas jantamos amanhã. Prometes? Richard contemporizou.
Bem, dentro de muito pouco tempo. Preparou-se para sair, mas ela agarrou-o pelo braço e baixou-lhe o rosto para um beijo.
Amanhã à noite disse-lhe ela com firmeza.
25
Ao ir para casa depois de sair do restaurante, Katie revolveu no pensamento a conversa que tivera com Edna Burns na primeira visita ao Dr. Highley. Edna era uma
ouvinte nata. Katie não tinha tendência para discutir assuntos pessoais, mas, quando Edna anotou a informação preliminar, ela tagarelara por simpatia. Sem acreditar
nos seus próprios ouvidos, Katie ouviu-se a contar a Edna tudo a respeito de John.
Que teria Vangie contado a Edna? Ela ia a Westlake desde o Verão passado. O que sabia Edna acerca do Dr. Fukhito? Havia qualquer coisa de estranho e intimidativo
no seu nervosismo. Que razão haveria para estar nervoso?
Katie parou em frente da sua casa e decidiu não arrumar o carro naquele momento. Era quarta-feira e a Sr.a Hodges estivera lá. A casa cheirava um pouco a cera de
limão. O espelho por cima da antiga mesa de mármore do vestíbulo estava a brilhar. Katie sabia que a cama tinha sido feita de lavado; os ladrilhos da cozinha deviam
estar a cintilar; os móveis e tapetes tinham sido limpos com o aspirador; a roupa já devia estar de novo nas gavetas ou no armário.
Sr.a Hodges trabalhara a tempo inteiro quando John era vivo. Já reformada, pedira que a deixasse ir um dia por semana para tomar conta da "minha casa".
Não duraria muito mais tempo. Não era possível. A Sr.a Hodges já passara dos setenta.
Quem iria arranjar quando a Sr.a Hodges já não pudesse ir? Quem teria o mesmo cuidado com o bricabraque valioso, as
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antiguidades, o mobiliário inglês, as belas e antigas peças orientais?
"É a altura de a vender", pensou Katie. "Eu sei."
Despindo o casaco, atirou-o para cima de uma cadeira. Eram apenas oito horas menos um quarto. Tinha a noite toda à sua frente. Edna dissera-lhe que vivia em Edgeriver.
Era um trajecto que se fazia em menos de vinte minutos. E se telefonasse a Edna? E se ela sugerisse que a fosse visitar? A Sr.a Fitzgerald dissera que Edna devia
ir trabalhar no dia seguinte, por isso não podia estar muito doente. Se Katie não se enganava, Edna adoraria ter uma oportunidade para conversar sobre Vangie Lewis.
A Sr.a Hodges deixava sempre um bolo fresco, uma torta ou muffins na caixa do pão para Katie. Levaria o que lá estivesse para casa de Edna e tomaria uma chávena
de chá com ela. Podiam-se trocar muitos mexericos durante um chá.
Edna figurava na lista telefónica. Katie marcou rapidamente o número. Tocou uma vez e levantaram o auscultador. Formou as palavras "Está lá, Menina Burns?", mas
nem sequer conseguiu dizê-las.
Sim? disse uma voz de homem. A palavra curta foi articulada numa voz seca, conhecida.
AMenina Burns está? perguntou Katie. Fala a Sr.a DeMaio, do gabinete do promotor de Justiça.
- Katie!
Naquele momento reconheceu a voz. Era Charley Nugent, e estava a dizer:
Ainda bem que o Scott entrou em contacto consigo. Pode vir já para aqui?
Ir para aí? Com medo do que ouvira, Katie fez a pergunta: Que está a fazer no apartamento de Edna Burns?
Não sabe? Ela está morta, Katie. Caiu... ou foi empurrada... de encontro ao irradiador. Rachou-lhe a cabeça. Baixou o tom de voz. Preste atenção a isto, Katie. Ela
foi vista pela última vez com vida cerca das oito horas da noite passada. Uma vizinha estava com ela. A voz transformou-se num sussurro. A vizinha ouviu-a a falar
com o marido de Vangie Lewis ao telefone. Edna Burns disse a Chris Lewis que ia falar da morte de Vangie à Polícia.
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Depois de terminar o segundo uísque foi à cozinha e abriu o frigorífico. Dissera a Hilda que não lhe preparasse nada para essa noite, mas dera-lhe uma longa lista
de compras. Acenou aprovativamente ao ver os artigos novos na gaveta da carne: os peitos de galinha sem osso, o lombinho de vaca; as grossas costeletas de cordeiro.
Espargos frescos, tomates e agrião estavam dentro da caixa dos legumes. Brie e Jarlsberg estavam dentro da caixa do queijo. Nessa noite comeria costeletas de cordeiro,
espargos e uma salada de agrião.
O cansaço emocional obrigava-o sempre a comer. Na noite em que Claire morreu, saíra do hospital, com o ar de um marido entorpecido pela dor, e dirigira-se a um restaurante
sossegado situado a uma dúzia de quarteirões e comera a fartar. Em seguida arrastara-se até casa disfarçando uma profunda sensação de bem-estar com a postura de
fadiga de alguém dominado pela dor. Os amigos que estavam reunidos para lhe darem as condolências, para lhe exprimirem o seu pesar, tinham sido enganados.
"Onde estiveste Edgar? Estávamos preocupados contigo."
"Não sei. Não me lembro. Andei por aí."
Tinha sido o mesmo depois da morte de Winifred. Deixara os parentes e amigos perto da sepultura, recusara convites para jantar com eles. "Não. Não. Preciso ficar
só." Voltara a casa, esperou bastante tempo para responder a alguns telefonemas, depois entrou em contacto com o serviço de atendimento. "Se alguém telefonar, por
favor explique que estou a descansar e que retribuirei todos os telefonemas mais tarde."
Depois meteu-se no carro e foi até Carlyle em Nova Iorque. Lá pedira uma mesa sossegada e encomendou o jantar. Quando estava quase a acabar a carne levantou os olhos
e viu o primo de Winifred, Glenn Nickerson, no outro lado da sala Glenn, o treinador de atletismo do liceu, que era o herdeiro de Winifred até ele aparecer. Glenn
envergava o fato azul-escuro e a gravata preta que vestira para o funeral, um fato a preço de saldo, que assentava mal, obviamente comprado para a cerimónia. O trajo
habitual era um casaco desportivo, calças largas e loafers.
Nickerson estava obviamente a observá-lo. Erguera o corpo num brinde, com um sorriso trocista no rosto. Também podia ter expressado os seus pensamentos em voz alta:
"Ao viúvo pesaroso."
Ele fizera o que era necessário: caminhou para ele sem o
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mínimo sinal de aflição e falou prazenteiramente: "Glenn, por que não foste ter comigo quando viste que eu estava ali? Não sabia que vinhas ao Carlyle. Este era
o restaurante onde gostávamos de jantar. Ficámos noivos aqui ou Winifred nunca te contou? Eu não sou judeu, mas penso que um dos mais belos costumes neste mundo
desconcertante é o da fé judia, em que depois de uma morte a família come ovos para simbolizar a continuidade da vida. Estou aqui para celebrar calmamente a continuidade
do amor."
Glenn olhara fixamente para ele, com uma expressão dura. Depois levantou-se e fez sinal para que lhe trouxessem a conta. "Admiro a tua capacidade para filosofar,
Edgar", disse ele. "Não. Eu não considero o Carlyle como um dos restaurantes usuais. Limitei-me a seguir-te até aqui porque decidira fazer-te uma visita e estava
a chegar ao teu quarteirão quando o teu carro arrancou. Tinha a impressão que seria interessante vigiar-te. E não me enganei"
Ele virara as costas a Glenn, voltara com dignidade para a mesa e não olhou mais na sua direcção. Alguns minutos mais tarde vira Glenn à porta da sala de jantar
a preparar-se para sair.
Na semana seguinte, Alan Levine, o médico que tratara Winifred, disse-lhe com indignação que Glenn lhe pedira que o deixasse ver os relatórios médicos de Winifred.
"Pu-lo fora do meu escritório", disse Alan acaloradamente. "Disse-lhe que revelara sintomas clássicos de angina e que faria um favor a ele mesmo se examinasse as
estatísticas actuais sobre mulheres na casa dos cinquenta com ataques cardíacos. Mesmo assim, teve o descaramento de falar com a Polícia. Recebi um telefonema do
escritório do Promotor de Justiça a perguntar em tantas palavras se podia ser provocada uma doença de coração. Desistiram logo, disseram que era obviamente um parente
deserdado a tentar arranjar complicações."
Mas pode provocar problemas cardíacos, Dr. Levine. Pode preparar jantares íntimos para a sua querida mulher. Pode servir-se da sua tendência para a gastrenterite
para provocar ataques tão fortes que revelem ataques cardíacos no cardiograma. Ao fim de alguns destes a senhora aparentemente tem um ataque fatal. Ela morre na
presença do seu próprio médico, que chega, e depara com o marido, também médico, a fazer respiração boca-a-boca. Ninguém sugere uma autópsia. E mesmo que alguém
o tivesse feito, não haveria grande perigo.
Só poderia haver perigo se tivessem pensado em investigar a morte de Claire.
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As costeletas estavam quase cozinhadas. Temperou habilmente o agrião, tirou o espargo do recipiente onde cozera com vapor e retirou uma garrafa de Beaujolais meio-cheia
da prateleira do vinho na despensa.
Começara a comer quando tocou o telefone. Pensou ignorá-lo, depois chegou à conclusão que era perigoso não atender as chamadas. Atirando com o guardanapo para cima
da mesa, correu para a extensão na cozinha.
Dr. Highley disse ele com rispidez. Ouviu-se um soluço no telefone.
Doutor oh, Dr. Highley. É a Gertrude. Gertrude Fitzgerald. Doutor resolvi ir ver Edna quando me dirigia para casa.
Ele crispou os dedos no auscultador.
Doutor, Edna está morta. A Polícia está aqui. Caiu. Doutor, podia vir já para aqui? Falam em fazer uma autópsia. Ela sempre detestou autópsias. Costumava dizer que
era horrível golpearem defuntos. Doutor, o senhor sabe como Edna ficava quando bebia. Disse-lhes que o senhor esteve aqui no apartamento dela; que a apanhou a beber.
Doutor, venha cá e diga-lhes como às vezes a encontrava. Oh, por favor venha cá e convença-os de que ela caiu e que não precisam de a golpear.
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Antes de sair de casa, Katie arranjou uma chávena de chá e levou-a para o carro. Conduzindo com uma mão, segurando o líquido borbulhante junto ao lábio com a outra.
Planeara levar bolo para casa de Edna e beber chá com ela. E agora Edna estava morta.
Como era possível que uma pessoa com quem estivera apenas uma vez a tivesse impressionado tanto? Seria apenas porque Edna era boa pessoa, porque se interessava profundamente
pelas doentes? A maioria das pessoas era tão indiferente, tão despreocupada. Nessa única conversa com Edna no mês anterior, tinha sido tão fácil falar de John
E Edna compreendera. Ela dissera: "Eu sei o que é ver alguém morrer. Por um lado queremos que deixem de sofrer. Por
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outro lado não queremos deixá-los partir." Ela partilhara o resultado da perda. "Quando o meu pai e a minha mãe morreram, todos os meus amigos disseram, Edna, agora
és livre. E eu disse, Livre para quê? E eu aposto que também sentiu o mesmo."
Edna tranquilizara-a em relação ao Dr. Highley. "Não podia encontrar um médico melhor para problemas ginecológicos. É por isso que fico tão irritada quando ouço
críticas a seu respeito. E todas essas pessoas que arquivam processos por incompetência médica! Deixe-me que lhe diga, eu mesma era capaz de as matar. Esse é o problema
quando as pessoas pensam que se é Deus. Pensam que se pode fazer o impossível. Digo-lhe que nos nossos dias quando um médico perde um doente, tem de se preocupar.
E não me refiro apenas aos obstetras. Refiro-me também aos médicos de geriatria. Creio que já ninguém devia morrer."
Que é que Charley tinha em mente ao dizer-lhe que Edna telefonara a Chris Lewis na noite anterior? Praticamente no mesmo tom de voz abafado, Charley insinuara a
possibilidade de crime.
Não acredito disse Katie em voz alta quando saiu da Route 4 e entrou em Edgeriver. Não seria de estranhar que Edna telefonasse a Chris Lewis para lhe dar os pêsames.
Estaria Charley a sugerir que Edna podia ter ameaçado Chris Lewis de alguma maneira?
Ela tinha uma vaga ideia onde se situava o bloco de apartamentos e conseguiu encontrá-lo facilmente. Pensava nisto, enquanto os apartamentos com jardim passavam,
que aquele estava a ficar um pouco degradado. Quando vendesse a casa mudar-se-ia provavelmente para um arranha-céu por algum tempo. Havia alguns prédios com vista
para o Hudson que tinham belos apartamentos com terraços. E seria interessante estar perto de Nova Iorque. Era mais provável que fosse ao teatro e aos museus. "Quando
vender a casa", pensou. "Em que momento o se se transformou em quando?"
Charley dissera-lhe que o apartamento de Edna era o último nas unidades 41 a 60. Ele dissera para seguir por trás dessa carreira e estacionar o carro. Ela abrandou,
apercebendo-se que um carro tinha entrado no complexo por outra rua e estava a entrar na mesma zona à frente dela. Era um carro preto do tamanho médio. Por um momento
o condutor hesitou, depois optou pelo primeiro lugar livre à direita na área de estacionamento. Katie passou por ele. Se o apartamento de Edna era
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o último da esquerda, tentaria ficar o mais próximo dele. Descobriu um lugar mesmo atrás daquele prédio e estacionou. Saiu do carro, pensando que devia estar a olhar
para a janela das traseiras do apartamento de Edna. A janela tinha uma fresta. A persiana estava descida até ao cimo de uma planta. Podia ver-se uma luz fraca no
interior do apartamento.
Katie pensou na vista das janelas do seu quarto. Davam para o pequeno lago nos bosques atrás da casa. Edna olhara para uma zona de estacionamento e uma vedação com
elos de corrente enferrujados. No entanto dissera a Katie que gostava imenso do apartamento, que era muito acolhedor.
Katie ouviu passos atrás dela e virou-se rapidamente. Na zona de estacionamento isolada, qualquer som parecia ameaçador. Uma figura humana surgiu esbatida perto
dela, uma silhueta realçada pela luz fraca de um candeeiro solitário. Uma sensação de familiaridade apossou-se dela.
Desculpe-me. Espero não a ter assustado. A voz purificada tinha um ligeiro sotaque inglês.
- Dr. Highley!
Sr.a DeMaio. Não contávamos ver-nos tão cedo e em circunstâncias tão trágicas.
Então, já sabe. O meu departamento telefonou-lhe, doutor?
Está frio aqui. Metamos por este carreiro à volta do prédio.
Mal lhe tocando no cotovelo com a mão, seguiu-a no caminho.
A Sr.a Fitzgerald telefonou-me. Ela substituiu a Menina Burns hoje e, evidentemente, foi a pessoa que a encontrou. Parecia extremamente perturbada e pediu-me que
viesse. Até este momento não tenho nenhum pormenor do que aconteceu.
Nem eu replicou Katie. Contornavam a esquina para a frente do prédio quando ela ouviu passos apressados atrás deles.
- Katie.
Ela sentiu aumentar a pressão dos dedos do médico no seu cotovelo que desapareceu quando olhou para trás. Richard estava ali. Voltou-se, disparatadamente contente
por o ver. Ele agarrou-a pelos ombros. Num gesto que terminou precisamente como começou, puxou-a para ele. Depois as mãos baixaram.
Scott entrou em contacto contigo?
Não. Telefonei a Edna por acaso. Oh, Richard, este é o Dr. Edgar Highley. Rapidamente apresentou os dois homens, e estes deram um aperto de mão.
Katie pensou: "Como isto é absurdo. Estou a fazer apresentações e já ali do outro lado daquela porta está uma mulher morta."
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Charley mandou-os entrar. Parecia aliviado por os ver.
Os seus colaboradores devem estar aqui dentro de alguns minutos disse a Richard. Tirámos fotografias, mas gostava que também desse uma vista de olhos.
Katie estava habituada à morte. No decorrer do seu trabalho, via constantemente fotografias vivas e cheias de sangue de vítimas de crimes. Geralmente conseguia separar-se
do aspecto emocional e concentrar-se nas ramificações legais da morte injusta.
Mas era diferente ver Edna enroscada contra o irradiador com a camisa de noite de flanela que a sua própria mãe considerava indispensável; ver o roupão azul de veludo
frisado tão parecido com aqueles que a sua mãe costumava adquirir em saldos no Macy's; ver a prova sólida da solidão as fatias de presunto enlatado, o copo de cocktail
vazio.
Edna fora uma pessoa tão alegre, que encontrava um pouco de felicidade naquele apartamento miseravelmente mobilado, e até o apartamento a traíra. Tornara-se o cenário
da sua morte violenta.
Gertrude Fitzgerald estava sentada no sofá de veludo, antiquado, no outro extremo da sala em forma de L, longe do corpo. Soluçava mansamente. Richard foi directamente
à pequena sala de jantar para examinar a mulher morta: Katie aproximou-se da Sr.a Fitzgerald e sentou-se a seu lado no sofá. O Dr. Highley seguiu-a e puxou a cadeira
de costas direitas
Gertrude tentou falar com eles.
Oh, Dr. Highley, Sr.a DeMaio, não é terrível simplesmente terrível? As palavras provocaram outro ataque de soluços. Katie pôs devagar uma mão nos ombros trémulos.
Lamento profundamente, Sr.a Fitzgerald. Sei que a senhora gostava da Menina Burns.
Ela era sempre tão gentil. Tão divertida. Fazia-me sempre rir. E talvez tivesse aquela pequena fraqueza. Toda a gente tem uma pequena fraqueza, e ela nunca incomodou
ninguém. Oh, Dr. Highley, o senhor também sentirá a falta dela.
Katie observava quando o médico se curvou sobre Gertrude, com o rosto sério.
Sentirei, certamente, Sr.a Fitzgerald. Edna era uma pessoa extraordinariamente eficiente. Sentia tanto orgulho no seu trabalho. O Dr. Fukhito e eu costumávamos dizer
por brincadeira que ela tinha as doentes tão descontraídas quando as examinávamos que podia ter posto o Dr. Fukhito no desemprego.
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Doutor disse Gertrude abruptamente, disse-lhes que o senhor esteve aqui. Disse-lhes isso. O senhor sabia do pequeno problema de Edna. É um disparate dizer que ela
não caiu. Por que razão desejaria alguém fazer-lhe mal?
O Dr. Highley olhou para Katie.
Edna sofria de ciática, e quando era obrigada a ficar de cama às vezes deixava o trabalho para fazer em casa. Certamente umas três ou quatro vezes. Uma vez quando
se pensava que ela estava doente, vim aqui por acaso e foi então que me apercebi que ela tinha um problema de alcoolismo.
Katie desviou os olhos dele e percebeu que Richard tinha acabado de examinar o corpo. Levantou-se, caminhou para ele e olhou para Edna. Rezou em silêncio:
Ó Deus, concedei-lhe o descanso eterno. Que legiões de anjos a saúdem. Que ela seja conduzida a um lugar de descanso, luz e paz.
Ignorando o nó na garganta, perguntou a Richard o que descobrira, em voz baixa. Ele encolheu os ombros.
Depois de ter tido oportunidade de ver a gravidade da fractura, diria que podia ter acontecido quer duma maneira quer doutra. Certamente foi uma pancada forte, mas
se ela estava embriagada e é óbvio que estava podia ter tropeçado quando tentou levantar-se. Era uma mulher bastante pesada. Por outro lado, existe uma grande diferença
entre ser atropelada por um carro ou por um comboio. E é esse o tipo de diferença que temos de avaliar.
Algum sinal de arrombamento? perguntou Katie a Charley.
Nenhum. Mas estas fechaduras são daquelas que uma pessoa podia soltar com um cartão de crédito. E se ela estava embriagada como pensamos que estava, qualquer pessoa
podia entrar e atacá-la.
Por que razão alguém a atacaria? Que me estava a dizer acerca do comandante Lewis?
A mulher do superintendente, cujo nome é Gana Krupshak, era uma amiga de Edna. De facto, ela estava com a Sr.a Fitzgerald quando encontraram o corpo. Deixámo-la
ir para o apartamento dela pouco antes de vocês chegarem. Ela está muito abalada.
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Em todo o caso, ontem à noite, veio aqui por volta das oito horas. Disse que Edna já estava com um grão na asa. Ficou até às oito e meia, depois resolveu apresentar
presunto, esperando que Edna comesse alguma coisa e começasse a ficar sóbria. Edna falou-lhe do suicídio de Vangie.
O que é que ela lhe disse ao certo? perguntou Katie.
Pouca coisa. Apenas mencionou o nome de Vangie e como ela era bonita. Depois a Sr.a Krupshak foi à cozinha e ouviu Edna a marcar um número no telefone. A Sr.a Krupshak
conseguiu ouvir quase toda a conversa. Jura que Edna chamou a quem quer que fosse que estivesse ao telefone "Comandante Lewis" e disse-lhe que tinha da falar com
a Polícia amanhã. E ouça isto. Krupshak jura que ouviu Edna a dar a Lewis instruções para vir aqui de carro e depois Edna disse qualquer coisa sobre o Príncipe Encantado.
Príncipe Encantado! Charley encolheu os ombros.
A sua suposição é tão boa como a minha. Mas a testemunha é categórica.
Richard disse:
Evidentemente que iremos tratar disto como um homicídio potencial. Começo a concordar com a desconfiança de Scott em relação a Chris Lewis. Olhou de relance para
a sala de estar. A Sr.a Fitzgerald parece muito abatida. Já falaste com ela, Katie?
Já. Ela não está em condições de ser interrogada agora.
Vou arranjar um dos carros de rádio-patrulha para a levar a casa ofereceu-se Charley. Um dos outros indivíduos pode ir atrás no carro dela.
Katie pensou: "Não acredito que Chris Lewis tivesse feito isto a Edna; não acredito que matou a mulher." Olhou em redor.
Tem a certeza de que não falta nada de valor? Charley encolheu os ombros.
Toda a casa renderia cerca de quarenta dólares no leilão de uma garagem. A carteira está na bolsa de mão; dezoito dólares. Cartões de crédito. O habitual. Nenhum
vestígio de alguma coisa ter sido remexida, revistada.
Muito bem. Katie voltou para o pé do Dr. Highley e Gertrude. Vamos mandar que a levem a casa, Sr.a Fitzgerald disse ela, brandamente.
Que vão fazer a Edna?
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Têm de examinar a amplitude dos ferimentos na cabeça. Para além disso creio que não examinarão mais nada. Mas se existir a mínima hipótese de alguém ter feito isto
a Edna, temos de saber. Considere isto como uma forma de mostrarmos que tínhamos em grande conta a sua vida.
A mulher fungou.
Creio que tem razão. Ela olhou para o médico. Dr. Highley, fui muito descarada ao pedir-lhe que viesse aqui. Desculpe.
De modo nenhum. Ele estava a meter a mão no bolso. Trouxe estes sedativos no caso de precisar deles. Como a vão levar a casa, tome já um.
Vou buscar um copo de água disse Katie. Dirigiu-se à pia da casa de banho. A casa de banho e o quarto ficavam distantes num vestíbulo na parte de trás do apartamento.
Quando deixou correr a água fria, compreendeu que odiava a ideia de Chris Lewis surgir como o principal suspeito nas duas mortes.
Levando o copo de água a Gertrude, sentou-se de novo ao lado dela.
Sr.a Fitzgerald, apenas para nos convencermos, queremos ter a certeza de que não há nenhuma possibilidade de Edna ter sido roubada. Sabe se ela tinha objectos de
valor, alguma jóia, talvez?
Oh, ela tinha um anel e um broche de que gostava muito. Só os usava em ocasiões especiais. Não posso saber onde os guardava. Compreende, esta é a primeira vez que
vim aqui. Oh, espere um pouco, doutor. Lembro-me de Edna ter dito que lhe mostrou o anel e o broche. De facto, ela disse-me que lhe mostrou o lugar onde os escondia
quando o senhor esteve aqui. Talvez possa ajudar a Sr.a DeMaio.
Katie examinou os olhos verdes e frios. "Ele detesta isto", pensou. "Está mesmo furioso por estar aqui. Não se quer ver envolvido nisto."
"Teria Edna uma paixoneta pelo médico?", perguntou a si mesma, inesperadamente. "Teria exagerado o número de vezes que ele podia ter ido lá para deixar trabalho,
talvez até tivesse dado a entender a Gertrude que tinha uma simpatia por ela? Talvez mesmo sem querer ocultar a verdade, tivesse inventado um pequeno romance, fantasiado
uma possível relação com ele. Se assim fosse, não era de admirar que estivesse com um ar embaraçado e constrangido naquele momento."
Realmente não tenho conhecimento de esconderijos disse ele, com a voz cheia de uma corrente de sarcasmo. Uma
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vez Edna mostrou-me um broche e um anel que estavam numa caixa na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Dificilmente considero isso um esconderijo.
Podia-me mostrar, doutor? perguntou Katie. Juntos atravessaram o pequeno vestíbulo e entraram no quarto. Katie acendeu o candeeiro, uma base barata de vidro amarelo-avermelhado
com um quebra-luz de papel pregueado.
Estava ali dentro disse-lhe o Dr. Highley, apontando para a gaveta da mesinha-de-cabeceira no lado direito da cama.
Servindo-se apenas das pontas dos dedos, Katie abriu a gaveta. Ela sabia que provavelmente haveria uma investigação completa em busca de provas e seriam chamados
peritos de impressões digitais.
A gaveta era invulgarmente funda. Metendo a mão dentro dela, Katie tirou uma caixa de jóias de plástico azul. Quando levantou a tampa, o tinido semelhante ao dos
sinos de uma caixa de música introduziu-se à força no silêncio opressivo. Um pequeno broche e um anel de diamante, fino e antigo, estavam escondidos no veludo de
algodão.
Aqueles são os tesouros, suponho disse Katie, e isto, penso eu, elimina a hipótese de roubo. Guardaremos isto no escritório até sabermos quem é o parente mais próximo.
Começou a fechar a gaveta, depois deteve-se e olhou para dentro dela.
Oh, Doutor, olhe. Colocou imediatamente a caixa das jóias em cima da cama e meteu a mão na gaveta.
A minha mãe costumava guardar o velho chapéu preto da mãe por razões sentimentais disse ela. Edna deve ter feito a mesma coisa.
Ela puxava por um objecto, retirando-o, levantando-o para ele ver.
Era um moccasin castanho, muito gasto, muito estragado, deformado e velho. Fora talhado para o pé esquerdo.
Enquanto o Dr. Edgar Highley olhava fixamente para o sapato, Katie disse:
Devia ser da mãe e considerava-o uma preciosidade que o guardou com aquelas jóias patéticas. Oh, doutor, se os acontecimentos memoráveis pudessem falar, teríamos
muitas histórias para ouvir, não teríamos?
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Às oito horas em ponto da manhã de quinta-feira, a Brigada de Investigação da Secção de Homicídios de Valley County partiu em direcção à casa de Lewis. A equipa
de seis homens era encabeçada por Phil Cunningham e Charley Nugent. Disseram aos detectives encarregados das impressões digitais que se concentrassem no quarto,
casa de banho principal e cozinha.
Era reconhecidamente pouco provável que descobrissem impressões digitais significativas que não pertencessem a Chris ou a Vangie Lewis. Mas o relatório do laboratório
levantara outra questão. As impressões digitais de Vangie estavam no copo de vidro que estava colocado perto dela, mas havia algumas dúvidas em relação à posição
dessas impressões. Vangie servia-se da mão direita. Quando deitou os cristais de cianido no copo, teria sido natural que segurasse o copo com a mão esquerda e deitasse
com a direita. Mas apenas as impressões da direita estavam no copo sem pé. Era um facto inconcludente, perturbador, que mais tarde desacreditava o suicídio aparente.
As gavetas dos medicamentos nas duas casas de banho e no quarto de hóspedes, coberto de pó, já tinham sido inspeccionados depois do corpo ter sido encontrado. Foram
examinados minuciosamente uma vez mais. Cada garrafa foi aberta, cheirada. Mas o odor acre da amêndoa que procuravam não foi detectado.
Charley disse:
Ela deve ter guardado o cianido dentro de alguma coisa.
A não ser que ela trouxesse apenas a quantidade que deitou no copo e depois atirasse os invólucros para a sanita? sugeriu Phil.
A casa de banho foi cuidadosamente aspirada na esperança de encontrarem cabelos humanos que não fossem da cabeça nem de Vangie nem de Chris. Como dizia Phil: "Qualquer
casa pode ter cabelos de pessoas que fazem a entrega de mercadorias, vizinhos, qualquer pessoa. Estamos sempre a deixar cair cabelos. Mas a maioria das pessoas não
trazem mesmo os amigos íntimos para o quarto. Portanto se encontrarem cabelo humano que não seja das pessoas que dormem no quarto, então talvez tenhas descoberto
alguma coisa."
Deu-se particular atenção às prateleiras da garagem. As habituais latas meio-vazias de tinta, terebentina, algumas ferramentas de jardinagem, mangueiras, insecticidas,
pó para roseiras e herbicidas havia em abundância. Phil resmungou de
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aborrecimento quando o dente de uma pá de mão se lhe prendeu no casaco. Aquele dente estava saído sobre a beira da prateleira, o cabo estava preso entre o extremo
da prateleira e uma pesada lata de tinta. Curvando-se para soltar a manga, reparou num bocado de algodão estampado enganchado no dente.
Aquela marca. Ele vira-a recentemente. Era aquele tecido indiano, desbotado; madras. O vestido que Vangie Lewis envergava quando morreu.
Ele chamou o fotógrafo da Polícia à garagem.
Tire uma fotografia daquilo disse ele, apontando para a ferramenta. Quero uma fotografia ampliada daquele material. Quando a fotografia foi tirada, tirou cuidadosamente
o bocado de tecido do dente e fechou-o num envelope.
Dentro de casa, Charley estava a examinar a escrivaninha da sala de estar. "Engraçado", pensou ele, "pode-se ter uma opinião verdadeira sobre as pessoas pela maneira
como guardam os registos. Chris Lewis obviamente que se encarregara de toda a contabilidade da família. Os talões do livro de cheques estavam escritos com exactidão,
os saldos descriminados até ao penny. Aparentemente as contas eram pagas à medida que chegavam. A grande gaveta do fundo continha ficheiros em posição vertical.
Estavam ordenados por ordem alfabética: AMERICAN EXPRESS, BANKAMERICARD; FEDERATED ANSWERING SERVICE; INSURANCE, PERSONAL LETTERS.
Charley pegou no ficheiro das cartas particulares. Folheou-o rapidamente. Chris Lewis mantinha uma correspondência regular com a mulher. Muito obrigado pelo cheque,
Chris. Não precisavas de ser tão generoso. Esta carta tinha sido escrita há apenas duas semanas. Uma carta de Janeiro começava: Comprei a TV ao pai para o quarto
e ele distrai-se imenso com ela Uma de Julho: o novo aparelho de ar condicionado é uma maravilha
Se Charley estava desapontado por não encontrar informações pessoais mais significativas, viu-se obrigado a admitir que Christopher Lewis era um filho interessado
e generoso para com os pais que envelheciam. Releu as cartas da mãe, na esperança de encontrar indicações sobre a relação de Vangie e Chris. As últimas cartas terminavam
todas da mesma maneira: Lamento que a Vangie não se esteja a sentir bem; Ou As mulheres às vezes têm gravidezes difíceis; Ou Diz a Vangie que estamos a torcer por
ela
Ao meio-dia, Charley e Phil resolveram deixar o resto da equipa para completar a busca e regressar ao escritório. Estava
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previsto irem esperar o avião de Chris Lewis às seis horas. Puseram de parte o arrombamento. Não havia vestígios de cianido na casa nem na garagem. O conteúdo do
estômago de Vangie revelava que ela comera pouco na segunda-feira; que ela tinha comido provavelmente torradas e chá cerca de cinco horas antes de morrer. Faltavam
duas fatias na carcaça no interior da caixa do pão. Os pratos sujos na máquina da louça contavam a sua própria história: um único prato do jantar, uma chávena e
uma colher, prato da salada, provavelmente da noite de domingo; um copo de sumo e uma chávena, do pequeno-almoço de segunda-feira; uma chávena, uma colher e prato
com migalhas de torrada da ceia de segunda-feira.
Aparentemente Vangie jantara sozinha no domingo; ninguém comera com ela segunda-feira à noite. A caneca do café não estava na banca na manhã de terça-feira. Sem
dúvida Chris Lewis tinha feito um café instantâneo algum tempo depois do corpo ter sido encontrado.
A alameda e os terrenos ajardinados em volta da casa estavam a ser examinados cuidadosamente e até ao momento não tinham revelado nada de invulgar.
Vão estar nisto todo o dia, mas não descurámos nada disse Charley, monotonamente. E para além do facto de ela ter rasgado o vestido naquele dente na prateleira da
garagem, ficámos reduzidos a um zero. Espera um pouco. Ainda não verificámos o serviço de atendimento para recados.
Obteve o número do Serviço de Atendimento Federado a partir do ficheiro na escrivaninha, marcou-o e identificou-se.
Dê-me qualquer mensagem deixada quer ao comandante quer à Sr.a Lewis a partir de segunda-feira pediu ele.
Tirando a caneta, começou a escrever. Phil olhou por cima do seu ombro: Segunda-feira, 15 de Fevereiro, 16 h, telefonou a Northwest Orient Reservations. A Sr.a Lewis
tem o bilhete confirmado para o Voo 235 das 16.10 do Aeroporto LaGuardia para o Twin Cities de Mineápolis, St Paul, na terça-feira, 16 de Fevereiro.
Phil assobiou em voz baixa. Charley perguntou:
A Sr.a Lewis recebeu a mensagem?
Ele afastou ligeiramente o auscultador da orelha para que Phil pudesse ouvir.
Oh, sim disse a telefonista. Eu mesma estava de serviço segunda-feira à tardinha e dei-lha por volta das sete e trinta. A voz da telefonista foi categórica. Ela
parecia muito aliviada. De facto, disse: "Oh, graças a Deus."
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Muito bem disse Charley. Que recebeu para além disto?
Segunda-feira, 15 de Fevereiro, 21.30, o Dr. Fukhito deixou um recado para a Sr.a Lewis lhe telefonar para casa assim que chegasse. Ele disse que ela tinha o número
da sua casa.
Charley levantou uma sobrancelha.
- É tudo?
Só mais uma replicou a telefonista. Uma Menina Edna Burns telefonou à Sr.a Lewis às 22 h de segunda-feira. Ela queria que a Sr.a Lewis lhe telefonasse sem falta
mesmo que fosse a altas horas da noite.
Charley rabiscou triângulos no bloco de apontamentos enquanto a telefonista lhe dizia que não havia mensagens no serviço nem na terça nem na quarta, mas sabia que
tinham feito uma chamada terça-feira à tardinha e que fora recebida pelo comandante Lewis. Preparava-me para atender quando ele apareceu explicou ela. Eu afastei-me
logo. Em resposta à pergunta de Charley, ela asseverou que a Sr.a Lewis não tivera conhecimento nem da chamada do Dr. Fukhito nem da da Menina Burns. A Sr.a Lewis
não contactara com o serviço depois das dezanove e trinta de segunda-feira.
Obrigado disse Charley. A senhora foi muito prestável. Talvez queiramos uma lista completa das mensagens que recebeu para os Lewises há algum tempo atrás, mas contactaremos
mais tarde por causa disso.
Ele pousou o auscultador e olhou para Phil.
Vamos embora. O Scott vai querer saber de tudo isto.
Como interpretas isto? perguntou Phil. Charley bufou.
De que outra maneira posso interpretar isto? Que Vangie Lewis tencionava ir para Mineápolis às dezanove e trinta de segunda-feira. Algumas horas depois está morta.
Que às vinte e duas horas de segunda-feira, Edna Burns tinha um recado importante para Vangie. Na noite a seguir Edna está morta e a última pessoa que a viu viva
ouviu-a falar com Chris Lewis, dizendo-lhe que tinha uma informação para a Polícia.
E aquele japonesinho que telefonou a Vangie segunda-feira à noite? perguntou Phil.
Charley encolheu os ombros.
Katie falou ontem com ele. Talvez tenha algumas respostas para nós.
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Para Katie, a noite de quarta-feira parecia interminável. Fora para a cama assim que voltou do apartamento de Edna, lembrando-se primeiro de tomar um dos comprimidos
que o Dr. Highley lhe dera.
Não dormira de um sono só, o subconsciente desassossegado com imagens do rosto de Vangie a flutuarem num sonho. Antes de acordar, aquele sonho dissolveu-se noutro:
o rosto de Edna quando morta; o Dr. Highley e Richard a inclinarem-se sobre ela.
Ela despertou com perguntas vagas, inquietantes que lhe escapavam, recusando-se a concentrarem-se. O velho e usado chapéu preto da avó. Por que razão estava a pensar
naquele chapéu? Claro. Por causa daquele sapato velho que Edna obviamente estimava, o sapato que guardara com as jóias. Era isso. Mas porquê apenas um sapato?
Fazendo um trejeito quando saiu da cama, concluiu que as dores no corpo todo tinham aumentado durante a noite. Os joelhos, pisados da pancada no painel dos instrumentos,
pareciam mais hirtos do que estavam logo depois do acidente. "Ainda bem que a Maratona de Boston não se disputa hoje", pensou ela constrangidamente. "Jamais venceria".
Esperando que um banho quente pudesse fazer desaparecer um pouco as dores, entrou na casa de banho, curvou-se e abriu as torneiras da banheira. Uma onda de tontura
fê-la cambalear, e agarrou-se ao bordo da banheira para não cair. Pouco depois a sensação desapareceu, e ela virou-se devagar, com medo que pudesse ainda desmaiar.
O espelho da casa de banho revelou a palidez de morte da pele, as pequenas gotas de suor na testa. "É esta maldita hemorragia", pensou. "Se não desse entrada no
hospital amanhã à noite, provavelmente acabaria por ser levada para lá."
O banho reduziu de facto parte da rigidez. A maquilhagem com base bege atenuou a palidez. Roupas diferentes uma saia pregueada e um casaco a condizer de tweed cor
de urze e uma camisola de gola alta completavam a pretensa camuflagem. "Pelo menos agora não estou com ar de quem está prestes a cair de cara no chão", concluiu
ela, "embora esteja."
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Engoliu outro dos comprimidos do Dr. Highley com o sumo de laranja e pensou no facto ainda inconcebível da morte de Edna. Depois de deixarem o apartamento de Edna,
ela e Richard foram a um restaurante com a forma de uma carruagem para tomarem café. Richard pediu um hamburger, explicando que planeara jantar em Nova Iorque. Ia
sair com uma pessoa. Ela tinha a certeza disso. E porque não? Richard era um homem atraente. Certamente não passava todas as noites sentado no seu apartamento ou
em reuniões familiares em casa de Molly e Bill. Richard ficara surpreendido e contente quando ela lhe disse que voltara ao restaurante Palisades. Várias vezes dera
a impressão de estar prestes a fazer-lhe uma pergunta, depois aparentemente mudava de ideia. Embora protestasse, ele insistiu em acompanhá-la até casa, entrar, verificar
se as portas e as janelas estavam fechadas.
- Não sei por que razão me sinto constrangido por ficares sozinha nesta casa - dissera-lhe ele.
Ela encolhera os ombros.
- Edna estava num apartamento com jardim com paredes finas. Ninguém se apercebeu que estava ferida e precisava de ajuda.
- Não precisava - disse Richard rispidamente. - Ela morreu quase instantaneamente. Katie, aquele Dr. Highley. Conhece-lo?
- Interroguei-o sobre Vangie esta tarde - disse ela, fugindo à pergunta.
O semblante carregado de Richard desanuviou.
- Claro. Está bem. Até amanhã. Suponho que Scott irá marcar uma reunião por causa de Edna Burns.
- Tenho a certeza que irá.
Richard olhara para ela, com uma expressão de preocupação.
- Fecha a porta com o ferrolho - dissera ele. Não houvera um beijo alegre de despedida na face.
Katie pôs o copo do sumo de laranja na máquina da louça. A toda a pressa pegou no casaco e na bolsa e dirigiu-se para o carro.
Charley e Phil iniciavam nessa manhã a busca à casa de Lewis. Scott estava a lançar conscientemente uma rede à volta de Chris Lewis - uma rede circunstancial mas
forte. Se ao menos ela pudesse provar que existia outra avenida a explorar antes de Chris ser acusado. O problema de se ser preso sob a acusação de homicídio é que
mesmo se uma pessoa provar a sua inocência, nunca perderá a notoriedade. Nos anos que se
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seguiriam as pessoas ainda diriam "Oh, aquele é o comandante Lewis. Esteve implicado na morte da mulher. Um advogado astuto conseguiu livrá-lo, mas ele é tão culpado
como o pecado." Ela chegou ao escritório antes das sete e trinta e não ficou surpreendida de Maureen Crowley já lá se encontrar. Maureen era a secretária mais conscienciosa
que tinham. Para além disso, tinha uma inteligência naturalmente viva e conseguia tratar assuntos sem estar sempre a pedir instruções. Katie parou junto da sua secretária.
Maureen, tenho uma tarefa difícil. Podia ir ter comigo quando tiver um minuto?
A rapariga levantou-se rapidamente. Tinha um corpo gracioso com uma cintura estreita. A camisola verde que trazia realçava o verde-vivo dos olhos.
E se for agora, Katie? Quer café?
Óptimo replicou Katie, depois acrescentou, mas sem pão de centeio com presunto pelo menos, por agora.
Maureen parecia embaraçada.
Lamento ter dito aquilo ontem. A senhora, mais do que ninguém, não caiu na rotina.
Não tenho a certeza disso. Katie entrou no seu gabinete, pendurou o casaco e sentou-se com o bloco de apontamentos que utilizara no Westlake Hospital.
Maureen trouxe o café, puxou uma cadeira e esperou em silêncio, com o bloco de estenografia no regaço.
Eis o problema disse Katie pausadamente. Não estamos persuadidos de que a morte de Vangie Lewis seja suicídio. Ontem falei com os médicos dela, o Dr. Highley e o
Dr. Fukhito, no Westlake Hospital.
Ela ouviu uma inspiração forte e levantou os olhos. O rosto da rapariga ficara lívido. Enquanto Katie observava, duas manchas brilhantes escureceram os malares.
Maureen, sente-se mal?
Não. Não. Desculpe.
Disse alguma coisa que a sobressaltasse?
Não. A sério.
Está bem. Céptica, Katie olhou de novo para o bloco de apontamentos. Tanto quanto sabemos, o Dr. Fukhito, o psiquiatra de Westlake, foi a última pessoa a ver Vangie
com vida. Quero saber tanto quanto puder acerca dele o mais rapidamente possível. Obtenha informações sobre a Sociedade Médica de County Valley e a AMA. Ouvi dizer
que ele fez trabalho voluntário no Valley Pines Hospital. Talvez consiga
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saber alguma coisa lá. Dê ênfase ao aspecto confidencial, mas descubra de onde veio, onde estudou, outros hospitais a que ele tenha estado ligado, antecedentes pessoais,
tudo o que conseguir.
Não quer que fale com ninguém no Westlake Hospital?
Meu Deus, não. Não quero que ninguém de lá saiba que investigamos o Dr. Fukhito.
Por alguma razão a mulher mais jovem parecia aliviada.
Vou já tratar disso, Katie.
Realmente não é justo mandá-la vir mais cedo para fazer outro trabalho e dar-lhe depois uma tarefa. O velho Valley County não trabalha horas extraordinárias. Ambas
sabemos disso.
Maureen encolheu os ombros.
Isso não tem importância. Quanto mais trabalho neste escritório, mais gosto dele. Quem sabe? Talvez vá tirar o curso de direito, mas isso significa quatro anos de
instituto superior e três na faculdade de direito.
Seria uma boa advogada disse Katie, com sinceridade. Estou admirada por não ter ido para a faculdade.
Fui suficientemente louca para ficar noiva no Verão em que concluí o liceu. Os meus pais convenceram-me a tirar o curso de secretariado antes de casar para que tivesse
ao menos uma formação específica. Como tinham razão! O noivado não suportou a espera.
Por que não se matriculou na faculdade em Setembro em vez de vir trabalhar? perguntou Katie.
O rosto da rapariga ficou sombrio. Katie achou que ela tinha um ar muito infeliz e concluiu que Maureen devia ter sofrido muito com o rompimento.
Sem olhar de frente para Katie, Maureen disse:
Sentia-me inquieta e não queria passar a ser uma colegial. Foi uma boa decisão.
Ela saiu da sala. Tocou o telefone. Era Richard. A sua voz era reservada.
Katie acabei de falar com o Dave Broad, o director da investigação pré-natal de Mt Sinai. Por causa de uma suspeita, mandei-lhe o feto que Vangie trazia no ventre.
Katie, a minha suspeita tinha fundamento. Vangie não estava grávida de Chris Lewis. A criança que lhe tirei do útero tinha características nitidamente orientais!
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Edgar Highley olhou fixamente para Katie DeMaio quando esta ficou com aquele sapato na mão, mantendo-o no ar para ele ver. Estaria a zombar dele? Não. Ela acreditava
no que estava a dizer, que o sapato era uma recordação sentimental para Edna.
Ele tinha de possuir aquele sapato. Se ao menos ela não falasse dele ao examinador médico ou aos detectives. E se ela resolvesse mostrá-lo? Gertrude Fitzgerald podia
reconhecê-lo. Ela estivera muitas vezes na secretária quando Vangie entrava. Ouvira Edna brincar com ela por causa dos chinelos de vidro de Vangie.
Katie voltou a pôr o sapato no seu lugar, fechou a gaveta e saiu do quarto, com a caixa das jóias metida debaixo do braço. Ele seguiu-a, ansioso por ouvir o que
ela ia dizer. Mas ela limitou-se a entregar a caixa das jóias ao detective.
O anel e o broche estão aqui, Charley disse ela. Creio que isso anula qualquer possibilidade de roubo. Não examinei a secretária nem o armário.
Não faz mal. Se Richard acredita na possibilidade de morte antinatural, passaremos esta casa a pente fino de manhã.
Ouviu-se uma pancada staccato na porta, e Katie abriu-a para deixar entrar dois homens que traziam uma maca.
Edgar Highley voltou para junto de Gertrude. Ela bebera a água no copo que Katie lhe dera.
Vou-lhe buscar mais água, Sr.a Fitzgerald disse ele calmamente. Olhou por cima do ombro. Os outros estavam todos de costas para ele, enquanto viam os empregados
a prepararem-se para levantar o corpo. Era a sua oportunidade. Tinha de se arriscar a tirar o sapato. Uma vez que Katie não se referira logo a ele, era pouco provável
que fosse chamar a atenção para ele naquele momento.
Caminhou rapidamente para a casa de banho, abriu a torneira e atravessou o vestíbulo sorrateiramente, entrou no quarto. Servindo-se do lenço para não deixar impressões
digitais, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira. Estava precisamente a pegar no sapato quando ouviu passos no vestíbulo. Fechou rapidamente a gaveta, enfiou o lenço
no bolso e estava parado à porta do quarto quando os passos deixaram de se ouvir.
Controlando-se para parecer calmo, voltou-se. Richard Carroll, o Examinador Médico, estava parado no vestíbulo entre o quarto e a casa de banho. O seu olhar era
inquiridor.
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Doutor disse ele, gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre Edna Burns. A voz era fria.
Certamente. Depois, num tom que ele esperava que fosse casual, acrescentou: Ainda agora estava aqui a pensar na Menina Burns. Que pena ter aproveitado tão mal a
vida.
Aproveitado mal? A voz de Richard era vincadamente inquiridora.
Sim. Efectivamente, tinha uma inclinação para a matemática. Nesta era de computadores, Edna podia ter usado esse dom para seu benefício. Em vez disso, tornou-se
uma alcoólica gorda e bisbilhoteira. Se isto parece cruel, digo-o com pesar. Eu gostava de Edna, e, para ser franco, vou sentir a sua falta. Com licença. Tenho a
água a correr. Quero dar um copo de água fria à Sr.a Fitzgerald. Pobre mulher, está muito angustiada.
O Dr. Carroll desviou-se para o deixar passar. Teria a sua crítica sobre Edna impedido o Examinador Médico de se interrogar sobre o que ele estava a fazer no quarto
de Edna?
Passou o copo por água, encheu-o e levou-o a Gertrude. Os empregados tinham-se ido embora com o corpo, e Katie DeMaio não estava na sala.
A Sr.a DeMaio foi-se embora? perguntou ele ao detective.
Não. Está a conversar com a mulher do superintendente. Ela volta já.
Ele não se queria ir embora antes de ter a certeza de que Katie não falava do sapato na frente de Gertrude. Mas quando ela voltou alguns minutos depois, não fez
referência a ele.
Saíram juntos do apartamento. A Polícia local mantê-lo-ia sob vigilância até estar completa a busca oficial.
Deliberadamente acompanhou Katie até ao carro, mas nessa altura o Examinador Médico juntou-se a eles.
Vamos tomar um café, Katie disse ele. Sabes onde fica o restaurante Golden Valley, não sabes?
O Examinador Médico esperou até ela estar dentro do carro e começara a andar antes de ele dizer:
Boa noite, Dr. Highley e arrancou.
Enquanto se dirigia para casa, Edgar Highley chegou à conclusão de que havia uma relação pessoal qualquer entre Katie DeMaio e Richard Carroll. Quando Katie se esvaísse
em sangue até morrer, Richard Carroll estaria profissional e emocionalmente interessado na causa da morte. Teria de ser muito, muito prudente.
Havia hostilidade na atitude de Carroll para com ele. Mas Carroll não tinha nenhuma razão para ser hostil com ele.
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Deveria ter examinado o corpo de Edna? Mas que adiantaria isso? Não a devia ter empurrado com tanta força. Deveria tê-la roubado? Essa fora a sua intenção. Se o
tivesse feito, teria encontrado o sapato na noite anterior.
Mas Edna falara. Edna dissera a Gertrude que ele tinha estado no apartamento. Edna até podia ter dado a entender que era mais frequente, mais importante. Gertrude
dissera a Katie que ele sabia onde estavam guardadas as jóias miseráveis. Se eles concluíssem que Edna tinha sido assassinada, iriam associar o assassino ao trabalho
de Edna no hospital? Que mais teria Edna contado às pessoas?
A ideia não lhe saiu da cabeça enquanto se dirigia para casa.
Katie era a chave. Katie DeMaio. Depois de eliminada sem nenhum risco não haveria nenhuma prova que o associasse à morte de Vangie ou à de Edna. Os ficheiros do
escritório estavam em ordem. As pacientes actuais podiam suportar o exame mais minucioso.
Virou para a alameda, entrou com o carro na garagem, entrou em casa. As costeletas de cordeiro estavam no prato, frias e cobertas de gordura; o espargo perdera o
viço; a salada estava mole e quente.
Voltaria a aquecer a comida no forno de micro-ondas, arranjaria outra salada. Dentro de alguns minutos a mesa teria o mesmo aspecto de antes de tocar o telefone.
Enquanto preparava uma vez mais a comida, apercebeu-se que estava a ficar calmo. Já faltava tão pouco para estar a salvo. E em breve seria possível partilhar o seu
génio com o mundo. Já obtivera êxito. Podia prová-lo indubitavelmente. Um dia poderia proclamá-lo. Ainda não, um dia. E ele não seria como aquele fanfarrão que asseverou
ter feito uma reprodução vegetativa com êxito mas que se recusou a apresentar uma prova que fosse. Ele tinha registos precisos, documentação científica, fotografias,
radiografias, os relatórios minuciosos, diários, de todos os problemas que tinham surgido e como tratara deles. Tudo no arquivo no cofre secreto.
Quando chegasse o momento oportuno queimaria os ficheiros sobre os fracassos e exigiria o reconhecimento que lhe era devido. Nessa altura haveria mais triunfos certamente.
Nada se podia atravessar no seu caminho. Vangie quase estragara tudo. E se ele não a tivesse encontrado no momento em que ela saía do gabinete do Dr. Fukhito? E
se ela não tivesse falado na sua decisão de consultar Emmet Salem?
Acaso. Sorte. Chamem-lhe o que quiserem.
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Mas também fora o acaso que mandara Katie DeMaio para a janela precisamente no momento em que ele saía com o corpo de Vangie. E uma ironia requintada que Katie tivesse
ido ter com ele em primeiro lugar.
Sentou-se uma vez mais à mesa. Com insana satisfação viu que o jantar tinha o mesmo aspecto apetitoso e delicioso que quando o preparara a primeira vez. O agrião
estava duro e viçoso; as costeletas a estalar; o espargo a fumegar sob uma delicada hollandaise. Deitou vinho num copo fino, admirando a macieza delicada e o brilho
do cristal quando pegou nele. O vinho tinha o gosto forte do Burgundy por que esperara.
Comeu devagar. Como sempre, a comida restaurava uma sensação de bem-estar. Faria o que devia e depois estaria a salvo.
No dia seguinte era quinta-feira. O artigo da Newsmaker estaria nas bancas. Ele aumentaria o seu prestígio tanto social como médico.
O facto de ele ser viúvo conferia-lhe um atractivo específico. Sabia como as suas pacientes falavam. "O Dr. Highley é tão brilhante. É tão distinto. Tem uma casa
maravilhosa em Parkwood."
Depois da morte de Winifred, permitira que cessassem as suas ligações com os amigos dela. Havia demasiada hostilidade. Aquele primo dela estava sempre a fazer insinuações.
Ele sabia. Foi por isso que naqueles três anos não se preocupara com outra mulher. Não que achasse a solidão um sacrifício. O trabalho absorvia-o, satisfazia-o.
O tempo que lhe dedicara fora recompensado. Os piores críticos da classe admitiam que ele era um bom médico, que o hospital estava magnificamente equipado, que a
Maternidade e o Centro de Concepção Westlake estava a ser copiado por outros médicos.
"As minhas pacientes não podem beber nem fumar durante a gravidez", dissera ao entrevistador da Newsmaker. "Têm de seguir uma dieta específica. Muitas mulheres supostamente
estéreis teriam os filhos que desejam se mostrassem a mesma dedicação dos atletas em treino. Muitos dos problemas de saúde de longa duração de que se padece nos
nossos dias teriam sido inteiramente evitados se as mães não tivessem comido a alimentação errada, tomado a medicação errada. Tivemos o exemplo do que a Thalidomide
fez a vintenas de vítimas desgraçadas. Admitimos que uma mãe sob o efeito de drogas pode gerar uma criança viciada; uma mãe alcoólica dará muitas vezes à luz uma
criança retardada, demasiado pequena, emocionalmente perturbada. E os inúmeros problemas que consideramos apenas do homem... Bronquite, dislexia, hiperactividade,
asma,
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enfraquecimento auditivo e visual? Creio que o local para se eliminar isto não é o laboratório, mas sim o útero. Não aceitarei uma paciente que não coopere com os
meus métodos. Posso enumerar-lhes dúzias de mulheres que tratei com uma série de abortos que agora têm filhos. Muitas mais poderiam sentir a mesma alegria, se estivessem
dispostas a mudar os seus hábitos, principalmente os hábitos relacionados com a comida e a bebida. Muitas engravidariam e dariam à luz um filho se as suas emoções
não estivessem tão abaladas porque na realidade usam contraceptivos mentais muito mais eficazes do que qualquer dispositivo à venda no mercado. Esta é a razão, a
base da Maternidade o Centro de Concepção Westlake."
A repórter da Newsmaker ficara impressionada. Mas a pergunta seguinte era embaraçosa. "Doutor, não é um facto que o senhor tem sido criticado pelos honorários exorbitantes
que cobra?"
"Exorbitante é a sua palavra. Os meus honorários, além de despensas de uma vida bastante espartana, são para desenvolver o hospital e realizar estudo pré-natal."
"Doutor, não é um facto que uma grande percentagem dos seus casos têm sido mulheres que abortaram várias vezes tratadas pelo senhor, mesmo depois de seguirem à risca
o seu plano e de lhe pagarem dez mil dólares, mais os custos do hospital e do laboratório?"
"Seria uma loucura da minha parte asseverar que conseguia levar a bom termo todas as gravidezes difíceis. Sim. Houve casos em que a gravidez desejada se iniciou,
mas abortou naturalmente. Depois de várias destas ocorrências, sugiro que a minha paciente adopte uma criança e ajudo a planear uma adopção adequada."
"Por dinheiro."
"Jovem senhora, suponho que lhe pagaram para me entrevistar. Por que é que você não aproveita o seu tempo para fazer trabalho voluntário?"
Fora insensato atacar a repórter daquela maneira. Insensato arriscar-se à animosidade, insensato dar-lhe um motivo para ela o desacreditar, aprofundar demasiado
o seu passado. Dissera-lhe que tinha sido o director de obstetrícia em Liverpool antes do casamento com Winifred. Mas não falara evidentemente do Chris Hospital
em Devon.
A pergunta que a entrevistadora lhe fizera depois destinava-se a apanhá-lo numa armadilha.
"Doutor, o senhor faz abortos, não faz?"
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"Sim, faço."
"Isso não é incongruente para um obstetra? Tentar salvar um feto e eliminar outros?"
"Eu refiro-me ao útero como sendo um berço. Desprezo o aborto. E deploro a dor que vejo quando as mulheres vêm ter comigo e que não tem esperança de engravidar porque
fizeram abortos e os úteros foram furados por médicos estúpidos, disparatados, descuidados. Penso que todos e incluo os meus colegas ficariam admirados se soubessem
quantas mulheres renegam qualquer esperança de maternidade porque decidiram diferir essa maternidade através do aborto. É meu desejo que todas as mulheres levem
a gravidez com saúde até ao fim. Para aquelas que não querem, pelo menos posso garantir que, quando finalmente desejarem um filho, ainda poderão tê-lo."
Este ponto fora bem recebido. A atitude da repórter mudara.
Acabou de comer. Reclinou-se na cadeira e deitou mais vinho no copo. Sentia-se efusivo, confortável. As leis estavam a modificar-se. Dentro de alguns anos poderia
proclamar o seu génio sem medo de uma acção judicial. Vangie Lewis, Edna Burns, Winifred, Claire... seriam estatísticas sem relação. A pista não seria encontrada.
Examinou o vinho enquanto bebia, encheu de novo o copo e bebeu. Estava cansado. Tinha marcada uma cesariana para a manhã do dia seguinte outro caso difícil que aumentaria
a sua reputação. Tinha sido uma gravidez difícil, mas o feto tinha uma pulsação forte; tinha de ser um parto bem sucedido. A mãe era um membro da socialmente proeminente
família Payne. O pai, Delano Aldrich, era um dos directores da Fundação Rockefeller. Este era o tipo de família cujo êxito seria importante se o escândalo de Devon
viesse alguma vez à superfície.
Só restava um obstáculo. Trouxera do escritório a ficha de Katie DeMaio. Começaria agora a preparar a ficha que a substituiria e que mostraria à Polícia depois da
sua morte.
Em vez da história que ela lhe dera de períodos de hemorragia prolongados durante o ano anterior, ele escreveria: "A paciente queixa-se de hemorragias frequentes
e espontâneas, independentemente dos períodos mensais." Em vez da natureza esponjosa das paredes uterinas, provavelmente de família, uma situação que seria remediada
indefinidamente por uma simples D-e-C, ele anotaria vestígios de perturbação vascular. Em vez de um teor um pouco baixo de hemoglobina indicaria que a hemoglobina
estava cronicamente na zona de perigo.
Entrou na biblioteca. O ficheiro assinado com o nome KATHELENN
131
T
DeMAIO, que ele trouxera do escritório, estava em cima da secretária. Tirou outra ficha da gaveta e escreveu o nome de Katie. Durante meia hora trabalhou com regularidade,
consultando o ficheiro do escritório em busca de informações sobre a sua prévia história médica. Estava exausto. Levaria para o hospital a ficha corrigida. Acrescentou
vários parágrafos à ficha que trouxera do escritório, aquela que colocaria no cofre da parede quando estivesse completa.
A paciente viu-se envolvida num acidente de automóvel sem consequências graves segunda-feira à noite, 15 de Fevereiro. Àss duas da manhã, a paciente, sob a acção
de sedativos, viu da janela do seu quarto a transferência dos restos mortais de Vangie Lewis pelo seu médico. A paciente não compreende ainda que aquilo que observou
foi um facto real e não uma alucinação. A paciente está um pouco traumatizada por causa do acidente, e tem hemorragias persistentes. Inevitavelmente ela conseguirá
lembrar-se com exactidão do que observou e por esta razão não se pode permitir que continue a ser uma ameaça para este médico
A paciente recebeu uma transfusão de sangue na segunda-feira á noite na sala de urgência do hospital. Este médico ordenou outra transfusão com o pretexto de preparação
para a operação de sábado. Este médico também deu medicação anticoagulante, comprimidos cumadin para serem tomados regularmente até sexta-feira à noite.
Enrugando os lábios, pousou a caneta. Era fácil imaginar como ele completaria este relatório.
A paciente entrou no hospital às 18 h de sexta-feira, 19 de Fevereiro, a queixar-se de tonturas e fraqueza geral. Às
21 h este médico, acompanhado pela enfermeira Renge, detectou a hemorragia. A tensão arterial descia rapidamente. Com todo aquele derrame de sangue foi realizada
uma operação de urgência às 21.45.
A paciente, Kathleen Noel DeMaio, expirou às 22 h
Sorriu em antecipação ao desfecho deste caso particular. Cada detalhe foi muito bem planeado, mesmo a transferência da enfermeira Renge para outro piso, na sexta-feira
à noite. Ela era jovem, inexperiente e tinha medo dele.
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Depois de colocar o ficheiro no esconderijo temporário na primeira gaveta da secretária, foi-se deitar e dormiu profundamente até às seis da manhã.
Três horas depois trazia ao mundo um rapaz saudável de uma cesariana a que fora submetida a Sr.a Delano Aldrich, e aceitava, porque lhe era devida, a gratidão lacrimosa
da paciente e do marido.
31
O serviço fúnebre para Vangie teve lugar na manhã de quinta-feira às dez horas na capela duma casa funerária de Mineápolis. Com o coração destroçado de compaixão
pelos pais de Vangie, Chris ficou ao lado deles, os seus soluços abafados atacavam-no como pancadas de martelo. Podia ter feito tudo de maneira diferente? Se a princípio
ele não tivesse tentado aplacar Vangie, jazeria agora ali? Se tivesse insistido com ela para que fosse com ele a um conselheiro matrimonial há anos atrás teria ajudado
o casamento? Ele sugerira-lhe isso. Mas ela recusara. "Não preciso de nenhum conselho", dissera. "E nunca insinues que fico impressionada com qualquer coisa no meu
estado de saúde. É precisamente o contrário. Tu nunca te impressionas com nada; não queres saber de nada nem de ninguém. Tu é que és o problema, e não eu."
"Oh, Vangie. Vangie. Haveria alguma verdade naquilo?" Ele deixara de se preocupar logo nos primeiros tempos do casamento.
Os pais dela tinham ficado chocados quando souberam que Vangie não podia ser sepultada, que o seu corpo devia ser transportado de avião de novo para o leste. "Porquê?"
"Não sei." Não valia a pena responder mais do que aquilo não naquele momento.
Graça assombrosa, como é suave o som. A voz de soprano do solista enchia a capela. Estive perdido em tempos, mas agora reencontrei-me.
Há meses, no Verão passado, sentira que a vida era triste e inútil. Então fora àquela festa no Hawai. E Joan estava lá. Lembrava-se do momento exacto em que a vira.
Ela estava no terraço com um grupo de pessoas. O que quer que fosse que lhes
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tivesse dito fê-los rir, e ela rira também, com os olhos enrugados, os lábios apartados, a cabeça inclinada para trás. Ele fora buscar uma bebida e juntara-se ao
grupo. E nessa noite não saíra mais do lado de Joan.
.. estava cego e agora vejo. O Examinador Médico não teria deixado sair o corpo de Vangie na terça-feira à noite se suspeitasse de crime. Que teria acontecido para
mudar de ideias?
Ele pensou na chamada telefónica de Edna. O que dissera ela às outras pessoas? Podia lançar alguma luz sobre a morte de Vangie? Antes de partir de Mineápolis, tinha
de telefonar ao Dr. Salem. Precisava de descobrir o que ele sabia a respeito de Vangie que o levara a reagir tão violentamente na noite anterior. Por que razão Vangie
marcara um encontro para o ver?
Tinha existido outra pessoa na vida de Vangie? Agora tinha a certeza. E se Vangie se matara na presença de alguém e essa pessoa a levara para casa? Deus sabia que
ela teria tido muitas oportunidades para se envolver com outro homem. Ele esteve longe de casa pelo menos metade do mês. Talvez tivesse conhecido alguém depois de
se mudarem para Nova Jérsia.
Mas Vangie teria causado dor a si mesma?
Nunca!
O padre estava a dizer a última oração:
.. quando todas as lágrimas estiverem enxutas... Chris conduziu os pais de Vangie para a antessala e recebeu as condolências dos amigos que tinham assistido ao
serviço. Os pais de Vangie iam ficar hospedados em casa de uns parentes. Concordaram que o corpo devia ser cremado em Nova Jérsia e a urna restituída para ser enterrada
no terreno da família.
Chris podia ir-se embora finalmente. Pouco passava das onze horas quando ele chegou ao Clube Atlético na parte baixa de Mineápolis e apanhou o elevador para o décimo
quarto andar. Já no solário pediu um Bloody Mary e levou-o para o pé de um telefone.
Quando entrou em contacto com o escritório do Dr. Salem, disse:
Aqui fala o marido de Vangie Lewis. É urgente que eu fale com o doutor imediatamente.
Lamento disse-lhe a enfermeira. O Dr. Salem partiu há instantes para a convenção da Associação Médica Americana em Nova Iorque. Só estará de volta na próxima semana.
Nova Iorque. Chris sintetizou a informação. Pode-me dizer onde vai ficar hospedado, por favor? Talvez venha a ser preciso contactá-lo lá.
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A enfermeira hesitou.
Creio que não há problema dizer-lhe isso. Tenho a certeza que o Dr. Salem tenciona pôr-se em contacto com o senhor. Pediu-me que procurasse o seu número de telefone
em Nova Jérsia, e sei que levou os relatórios médicos da sua mulher. Mas, para o caso de ele não o encontrar, pode entrar em contacto com ele no Essex House em Central
Park South em Nova Iorque. A extensão é 3219.
Chris tirara o pequeno bloco de apontamentos que guardava num compartimento da carteira. Repetindo a informação, escreveu-a rapidamente.
O cimo da página já estava cheio. Nele estavam a morada de Edna Burns e as indicações para se chegar ao seu apartamento em Edgeriver.
32
Scott convocou uma reunião para o meio-dia no seu escritório com as mesmas quatro pessoas que tinham estado presentes na reunião há um dia e meio para discutirem
sobre a morte de Vangie Lewis.
Esta reunião era diferente. Katie sentiu a atmosfera pesada quando entrou no gabinete. Scott tinha Maureen à espera com uma caneta e papel.
Vamos trazer sanduíches para aqui disse ele. Tenho de estar de novo no tribunal à uma e meia e precisamos de apanhar logo o comandante Lewis.
"Era como ela esperava", pensou Katie. "Scott está a concentrar-se em Chris." Olhou para Maureen. A rapariga tinha uma aura de nervosismo à volta dela que era quase
visível. "Começou esta manhã quando a encarreguei daquele trabalho", pensou Katie.
Maureen apanhou-a a olhar e esboçou um sorriso. Katie acenou com a cabeça.
Uh-huh. O costume. Depois acrescentou: Teve alguma sorte com os telefonemas?
Maureen olhou para Scott, mas ele estava a examinar um ficheiro e não fazia caso delas.
Até agora pouca coisa. O Dr. Fukhito não é membro da
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AMA nem da Sociedade Médica de Valley County. Dispensa grande parte do seu tempo a crianças deficientes na Clínica Psiquiátrica de Valley Pines. Tenho uma chamada
para fazer para a Universidade de Massachusetts. Frequentou lá a faculdade de medicina.
Quem lhe disse isso? perguntou Katie. Maurren hesitou.
Lembro-me de ter ouvido isso em qualquer parte. Katie teve uma sensação de evasiva na resposta, mas antes de poder aprofundar mais o assunto, Richard, Charley e
Phil entraram no gabinete. Rapidamente, disseram a Maureen o que queriam para o almoço, e Richard puxou uma cadeira para ao pé da de Katie. Colocou o braço sobre
a cadeira dela e tocou-lhe na nuca. Os dedos eram quentes e fortes quando lhe massajou por instantes os músculos do pescoço.
Rapaz, estás tenso disse ele.
Scott levantou os olhos, resmungou, e começou por dizer:
Muito bem, já todos sabem que o bebé que Vangie Lewis trazia no ventre tinha características orientais. Por isso isto abre duas possibilidades. A primeira: com o
nascimento iminente é possível que ela ficasse apavorada e se suicidasse. Deve ter ficado inquieta por saber que nunca poderia fazer passar o bebé como sendo do
marido. A segunda possibilidade é que Chris Lewis descobriu que a mulher tinha um caso e matou-a. Tentemos isto. Suponhamos que foi inesperadamente para casa na
noite de segunda-feira. Discutiram. Por que razão ia ela fugir para Mineápolis? Seria porque estava com medo dele? Não se esqueçam, ele nunca pensou que ela ia para
casa e ela esperava partir antes de ele regressar da viagem. Do que Katie nos diz, o psiquiatra assevera que ela saiu a correr do seu gabinete quase histérica.
O psiquiatra japonês, disse Katie. Agora mesmo mandei Maureen tirar informações sobre ele.
Scott olhou para ela.
Está a insinuar que na sua opinião havia qualquer coisa entre ele e Vangie?
Por enquanto não insinuo nada replicou Katie. O facto de ser oriental certamente não quer dizer que Vangie não conhecesse outro homem oriental. Mas posso dizer-lhes.
Estava nervoso quando falei com ele ontem, e escolhia cuidadosamente cada palavra que me dizia. Certamente não lhe arranquei toda a verdade.
O que nos leva até Edna Burns disse Scott. Quais são as novidades, Richard? Caiu ou foi empurrada?
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Richard encolheu os ombros.
Não é impossível que ela tenha caído. O nível de álcool no sangue era de 0,25. Ela estava intoxicada pelo álcool. Era pesada.
E os bêbados e os bebés que podem cair sem se magoarem? perguntou Katie.
Richard abanou a cabeça.
Isso pode ser verdadeiro a fracturas de ossos, mas não quando o crânio bate num objecto metálico, cortante. Diria isso a menos que alguém admita ter morto Edna,
nunca poderemos prová-lo.
Mas é possível que ela tenha sido assassinada? insistiu Scott.
Ele encolheu os ombros.
Absolutamente.
E ouviram Edna a falar com Chris Lewis acerca do Príncipe Encantado. Katie falou pausadamente. Pensou no belo psiquiatra. Alguém como Edna iria referir-se a ele
como sendo o Príncipe Encantado? Teria telefonado a Chris depois da morte de Vangie para lhe dizer que desconfiava de um caso? Não acredito nisso disse ela.
Os homens olharam para ela atentamente.
Não acredita em quê? perguntou Scott.
Não acredito em que Edna fosse vingativa. Sei que não era. Penso que ela jamais telefonaria a Chris Lewis depois de Vangie morrer para o fazer sofrer falando-lhe
de um caso que Vangie tivesse.
Talvez tivesse tido tanta pena dela que não queria que ele se considerasse um marido a quem morrera a esposa disse Richard.
Ou talvez andasse a ver se conseguia arranjar alguns dólares sugeriu Charley. Talvez Vangie lhe tivesse dito alguma coisa segunda-feira à noite. Talvez soubesse
que Chris e Vangie tinham discutido e porque discutiram. Ela não tinha nada. Parece que ainda estava a pagar contas do médico para os pais, e eles já morreram há
alguns anos. Talvez pensasse que não havia nenhum mal em pôr o braço em Chris Lewis. Ela ameaçou ir à Polícia.
Ela disse que tinha algo a contar à Polícia protestou Katie. Foi assim que se exprimiu a mulher do superintendente.
Está bem disse Scott. E em relação à casa Lewis? Que descobriram?
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Charley encolheu os ombros.
Até agora, pouca coisa. Há um número de telefone com um código de uma área, 612, rabiscado no bloco de apontamentos ao lado do telefone da cozinha. Sabemos que não
é o número dos pais de Vangie. Pensámos que podíamos telefonar daqui. Talvez Vangie conversasse com uma amiga, lhe dissesse alguma coisa do que tencionava fazer.
Ela também rasgou o vestido que trazia num dente que estava fora da prateleira na garagem
Que quer dizer com o vestido que ela trazia? perguntou Scott.
O vestido que envergava quando a encontraram. Era impossível que não o tivessem visto. Era uma coisa comprida com um daqueles desenhos madras.
Onde estão as roupas que ela trazia? perguntou Scott a Richard.
Provavelmente ainda estão no laboratório disse Richard Estávamos a fazer-lhe um exame de rotina.
Scott pegou no bloco de mensagens que Charley lhe entregara e atirou-o a Katie.
Por que é que não marca este número agora? Se for uma mulher, talvez consiga arrancar-lhe mais alguma coisa.
Katie marcou o número. Houve uma pausa e depois começou a tocar um telefone.
Consultório do Dr. Salem.
É um consultório sussurrou ela, com a mão sobre o auscultador. Disse para a outra pessoa no outro lado. Talvez me possa ajudar. Sou Kathleen DeMaio, de Valley County,
Nova Jérsia, do gabinete do promotor de Justiça. Estamos a proceder a um inquérito de rotina à morte da Sr.a Vangie Lewis na segunda-feira passada, e ela tinha o
número de telefone do médico no bloco de apontamentos.
Ela foi interrompida.
Oh é uma coincidência. Acabei de falar com o comandante Lewis. Ele também está a tentar contactar o Sr. Doutor. Como eu lhe expliquei, o Dr. Salem vai neste momento
a caminho de Nova Iorque para a convenção da AMA. Pode entrar em contacto com ele ao fim do dia no Essex House, em Central Park South
Óptimo. Assim faremos. Na esperança de conseguir mais alguma coisa, Katie acrescentou: Sabe alguma coisa do telefonema da Sr.a Vangie? Ela falou com o médico?
Não. Não falou. Falou comigo. Telefonou na segunda-feira e ficou muito desapontada por ele voltar ao consultório apenas na quarta-feira. Marquei-lhe uma consulta
de urgência para
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quarta-feira, porque ele ia ausentar-se outra vez. Ela disse que precisava de estar com ele.
Uma última pergunta disse Katie: Que tipo de médico é o Dr. Salem?
O tom da mulher era arrogante.
Oh, ele é um obstetra e ginecologista proeminente.
Compreendo. Obrigada. Foi muito prestável. Katie pousou o auscultador e relatou a conversa aos outros.
E Chris Lewis sabia da consulta disse Scott, e agora quer falar com o médico. Estou ansioso por falar com ele esta noite. Teremos muitas perguntas para lhe fazer.
Ouviu-se uma pancada na porta e Maureen entrou sem esperar por uma resposta. Trazia um tabuleiro de cartão com espaços para chávenas de café e um saco de sanduíches.
Katie disse ela, aquele telefonema de Boston sobre o Dr. Fukhito está na linha. Quer recebê-lo?
Katie acenou com a cabeça. Richard esticou-se e pegou no auscultador, estendendo-lho. Enquanto esperava que fizessem a ligação, Katie apercebeu-se de uma dor de
cabeça, lenta, persistente. Aquela pancada contra o volante não fora suficientemente forte para provocar uma contusão, mas sentia que a cabeça ultimamente a andava
a incomodar. "Só que não estou a trabalhar com os cilindros todos", pensou. Havia tantas coisas que a perturbavam. Que tentava recordar. Alguma coisa. Uma impressão.
Quando deu as suas credenciais, puseram-na rapidamente em contacto com o chefe do pessoal da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts. A voz do homem
era reservada.
Sim, o Dr. Fukhito licenciou-se na Universidade de Massachusetts sendo um dos três melhores do seu curso. Foi interno em Massachusetts General e mais tarde entrou
para o hospital e possuía também uma clínica particular. Abandonou o hospital há sete anos.
Por que razão se foi embora? perguntou Katie. Tem de compreender que se trata de uma investigação policial. Todas as informações serão mantidas em sigilo, mas precisamos
saber se existe algum factor no passado do Dr. Fukhito de que devemos ter conhecimento.
Houve uma pausa; depois o informador disse:
O Dr. Fukhito foi forçado a pedir a demissão há sete anos, e a licença de Massachusetts foi suspensa por um ano. Foi condenado por comportamento contra a ética depois
de defender sem êxito um processo por negligência médica.
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Qual foi a causa do processo? perguntou Katie.
Uma paciente antiga processou o Dr. Fukhito por a ter induzido a ter uma relação pessoal com ele enquanto estava sob tratamento psiquiátrico. Divorciara-se há pouco
tempo e estava com um grave problema emocional. Como consequência desta relação ela deu à luz o filho do Dr. Fukhito.
33
Molly andava numa azáfama na cozinha deleitando-se com o facto de todas as crianças estarem de novo na escola. Até Jennifer de doze anos de idade ficara suficientemente
boa para ir nessa manhã; de facto pedira para ir.
"És tal qual a Katie", resmungara Molly, "quando metes a cabeça para qualquer coisa. Está bem, mas não podes ir a pé. Está demasiado frio. Eu levo-te."
Bill só ia para Nova Iorque à tarde. Tencionava assistir a um dos seminários da convenção da AMA. Desfrutavam uma oportunidade rara de poderem conversar em paz enquanto
Bill estava sentado à mesa a saborear o café e Molly cortava os legumes.
Tenho a certeza que Richard Katie e os Berkeleys se vão divertir dizia Molly. Jim Berkeley é alegre e tem muita graça. Por que será que a maioria das pessoas que
trabalham em publicidade são tão interessantes?
Porque tudo o que precisam no seu trabalho são as palavras alvitrou Bill. Embora deva dizer que conheci algumas que eu não perderia tempo a visitar.
Oh claro concordou Molly distraída. Bem, se Liz não passar a noite toda a falar do bebé... Embora deva dizer que nesse aspecto está a ficar melhor. Quando telefonei
a convidá-la no outro dia só passou os vinte primeiros minutos a falar da última habilidade da Maryanne... que, por acaso, é espalhar a aveia pela casa fora, quando
lhe estão a dar de comer. Não é engraçado?
É como se fosse o teu primeiro filho e tivesses esperado quinze anos para teres um comentou Bill. Parece que te estou a ver a anotar no livro do bebé sempre que
a Jennifer pestanejava.
140
Molly começou a cortar aipo.
Lembras-te da tua tia me mandar um livro do bebé para guardar para os gémeos. Creio que nunca o desembrulhei... Seja como for, devia ser engraçado. E mesmo que Liz
fale com entusiasmo do bebé, talvez recaia alguma coisa sobre Katie e Richard.
As sobrancelhas de Bill levantaram-se.
Molly, és quase tão subtil como um martelo de forja. É melhor teres cuidado ou acabarão por se evitar.
Disparate, não vês como olham um para o outro? Há qualquer coisa latente mais do que latente. Meu Deus, Richard telefonou-me ontem à noite para saber se Katie estava
aqui e depois quis saber se havia algum problema com ela. Devias ter ouvido a sua voz de preocupação. Digo-te que ele está louco por ela, mas é suficientemente esperto
para não o mostrar e a espantar.
Falaste-lhe da operação?
Não. Katie fez um barulho dos diabos na manhã em que lhe perguntei se lhe tinha dito. Francamente, é espantoso como a maioria das pessoas deixa ficar tudo em suspenso
nos nossos dias... Olha, por que razão não pode dizer a Richard "Tenho um problema, é uma coisa incómoda, a minha mãe tinha-o e eu tenho de fazer um D-e-C de dois
em dois anos, e parece que tenho a mesma constituição que ela? Em vez disso, o desgraçado está preocupado que seja alguma coisa grave. Acho que é uma injustiça para
com ele.
Bill levantou-se, encaminhou-se para a banca, passou a chávena e a colher por água e meteu-as na máquina da louça.
Penso que nunca te apercebeste que Katie tem sofrido muito com a perda dos dois homens que amava e com quem contava... o vosso pai quando ela tinha oito anos, e
depois John quando tinha vinte e quatro. Ela faz-me lembrar a última cena de Gone With the Wind (E Tudo o Vento Levou) quando Rhett diz a Scarlett, "Dei-te o meu
coração e tu despedaçaste-o. Depois dei-o a Bonnie e ela despedaçou-o. Não arriscarei uma terceira vez." Isto é em parte o problema de Katie. Mas francamente, penso
que tem de ser ela a resolvê-lo. Andares sempre de volta dela como uma mãe águia não estás a ajudá-la. Não há nada que eu gostasse mais de ver do que ela se juntar
a Richard Carroll. Ele seria bom para ela.
E joga golfe contigo exclamou Molly. Bill acenou com a cabeça.
Isso também. Ele pegou num talo de aipo e mordiscou-o.
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Um conselho. Se Katie não quer falar da operação a Richard, não o enchas. Não é justo para com ela. Se ele persiste em se preocupar com ela, tem de lhe fazer qualquer
tipo de declaração. Juntaste-os. Agora...
Agora não chateies disse Molly, suspirando.
Mais ou menos isso. E amanhã à noite quando Katie for para o hospital, tu e eu vamos ao Metropolitan. Há meses que comprei bilhetes para o Otello e não tenciono
trocá-los. Estarás lá quando ela sair da sala de recuperação sábado de manhã, mas não lhe faz mal nenhum desejar que tivesse alguém com ela. Talvez sexta-feira à
noite pense um pouco.
Ir sozinha para o hospital? protestou Molly.
Sozinha disse Bill com firmeza. Ela é uma rapariga crescida.
Tocou o telefone.
Oxalá não seja a enfermeira da escola a dizer que um dos miúdos está outra vez com o vírus murmurou Molly. O seu "Está lá" foi reticente. Depois o tom de voz tornou-se
ansioso. Liz, olá. Agora não me digas que não vens logo à noite.
Ela escutou.
Oh, por amor de Deus, trá-la também. Tens o carro que se dobra. Claro, pômo-la no nosso quarto e ficará bem... Claro que não me importo. Assim se ela acordar trazemo-la
cá para baixo e deixamos que ela se associe à festa. Será como nos velhos tempos... Óptimo. Até às sete. Adeus.
Ela pousou o auscultador.
A ama de Liz Berkeley não pode ir e ela tem medo de a deixar com uma pessoa que não conheça, por isso vai trazer o bebé.
Óptimo. Bill olhou para o relógio da cozinha. É melhor ir-me embora. Está a fazer-se tarde. Beijou a face de Molly. Vais deixar de te preocupar com a tua irmãzinha?
Molly mordeu o lábio.
Não posso. Tenho esta sensação arrepiante em relação a Katie, como se lhe pudesse acontecer alguma coisa.
34
Quando Richard voltou ao escritório, ficou algum tempo a olhar pela janela. A vista era um pouco mais atraente do que a do escritório de Scott. Além da esquina nordeste
da cadeia do
142
distrito, via uma zona distinta do pequeno parque do tribunal. Apenas semiconsciente do que estava a ver, observava quando uma saraivada cobriu a relva gelada e
já escorregadia.
"Lindo tempo", pensou ele. Olhou para o céu. Formavam-se nuvens carregadas de neve. O corpo de Vangie Lewis ia de Mineápolis para Newark no voo das duas e meia.
Seria recolhido às sete e transportado para a morgue. Na manhã seguinte tornaria a examiná-lo. Não que esperasse descobrir mais alguma coisa do que já sabia. Nele
não havia absolutamente nenhuma equimose. Ele tinha a certeza. Mas havia qualquer coisa no pé esquerdo ou perna que ele tinha notado e considerara irrelevante.
Afastou aquele pensamento. Era inútil especular antes de poder reexaminar o corpo. Vangie era extremamente emotiva. Poderia ter sido induzida ao suicídio por Fukhito?
Se Vangie estava grávida de Fukhito, ele devia ter entrado em pânico. Estaria liquidado como médico se se descobrisse estar de novo envolvido com outra paciente.
Mas Chris Lewis tinha uma namorada uma boa razão para querer ver-se livre da mulher. E se ele tivesse sabido do caso? Aparentemente nem os pais de Vangie sabiam
que ela planeava ir a Mineápolis. Seria possível que Vangie desejasse que o obstetra de Minesota assistisse ao parto e o mantivesse em segredo? Talvez dissesse que
o perdera. Se queria preservar o casamento, talvez tivesse sido forçada a isso. Ou se ela compreendesse que o divórcio era inevitável, a prova absoluta da sua infidelidade
podia ter pesado na decisão.
Tudo soava a falso.
Suspirando, Richard esticou-se, premiu o botão do intercomunicador e chamou Marge. Ela estava a almoçar quando regressou ao escritório de Scott e não fora buscar
os recados.
Ela entrou a correr com um maço de tiras de papel na mão.
Nenhum destes é demasiado importante informou-o. Oh, é verdade, houve um logo depois de o senhor sair para o escritório do Sr. Myerson. Um Dr. Salem. Ele não perguntou
pelo senhor pelo nome; queria o Examinador Médico. Disse que o senhor era o EM e que o faria pessoalmente. Ele ia apanhar um avião de Mineápolis, mas perguntou se
lhe telefonaria para a Essex House em Nova Iorque por volta das cinco horas. Parecia ansioso por falar com o senhor.
Richard comprimiu os lábios num assobio silencioso.
Estou ansioso por falar com ele disse.
Oh, e eu consegui as estatísticas sobre as pacientes de
143
obstetrícia de Westlake disse Marge. Nos oito anos da Maternidade e Centro de Concepção Westlake, morreram dezasseis pacientes quer de parto quer de gravidezes tóxicas.
Dezasseis?
Dezasseis repetiu Marge com ênfase. Todavia a clientela é enorme. O Dr. Highley é considerado um excelente médico. Alguns dos bebés que conseguiu que sobrevivessem
são quase milagres, e as mulheres que morreram tinham sido todas avisadas por outros médicos que corriam graves riscos com a gravidez.
Quero examinar todos os acidentes mortais disse Richard, Mas se pedirmos a Scott que cite os ficheiros do hospital, iremos alertá-los, e por enquanto não quero fazer
isso. Conseguiu mais alguma coisa?
Talvez. Nestes oito anos duas pessoas apresentaram acções judiciais por negligência médica contra o Dr. Highley. Ambas as acções foram rejeitadas. E um primo da
mulher dele apareceu asseverando que não acreditava que ela tivesse morrido de ataque cardíaco. O gabinete do Promotor de Justiça contactou com o seu médico particular
e este disse que o primo era louco. O primo era o único herdeiro antes de Winifred casar com o Dr. Highley, por isso talvez tenha sido essa a razão por que quis
levantar problemas.
Quem era o médico particular de Winifred Westlake?
O Dr. Alan Levine.
Ele é um médico iminente disse Richard. Vou ter uma conversa com ele.
E as pessoas que apresentaram acções judiciais por negligência médica? Quer saber quem são?
Sim, quero.
Calculei. Aqui tem.
Richard olhou para os dois nomes na folha de papel que Marge lhe entregara. Anthony Caldwell, Old Country Lane, Peapack, N. J., e Anna Horan 415 Walnut Street, Ridgefield
Park. N. J.
Fez um trabalho excelente, Marge disse ele. Ela acenou com a cabeça.
Eu sei. O tom era de satisfação.
A esta hora Scott está no tribunal. É capaz de lhe deixar recado para me telefonar quando regressar ao escritório? Oh, e diga ao laboratório que quero as roupas
de Vangie Lewis preparadas para lhe vestir logo amanhã de manhã. Todos os testes da roupa têm de estar concluídos esta tarde.
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Marge saiu, e Richard voltou-se para o trabalho sobre a secretária.
Scott só telefonou depois das quatro. Ele ouviu a decisão de Richard de entrevistar os queixosos contra o Dr. Highley e não ficou impressionado.
Olhe, hoje em dia não há nenhum médico, seja lá quem for, que não seja atingido por um processo por negligência médica. Se o Dr. Schweitzer ainda fosse vivo, se
não estou errado, estaria a defender-se deles na selva. Mas vá em frente sozinho se quiser. Citaremos os registos do hospital quando estiver preparado para eles.
Estou preocupado com a alta percentagem de mortes obstétricas de mães, mas mesmo isso pode ser explicável. Ele lida com gravidezes de alto risco.
A voz de Scott tornou-se mais forte.
Estou mais interessado naquilo que o Dr. Salem tem para dizer. Você fala com ele e vem ter comigo e então eu entro em acção. Entre nós, Richard, penso que iremos
enredar Chris Lewis num caso circunstancial suficientemente difícil que talvez o forcemos a revelar tudo. Sabemos que os seus movimentos na noite de segunda-feira
não têm explicação, quando a mulher morreu. Sabemos que Edna Burns lhe telefonou na terça-feira à noite. Já sabemos que o director do funeral o deixou antes das
nove da noite na terça-feira. Depois disso ficou sozinho e podia ter saído facilmente. Suponha que ele a foi ver? Ele é habilidoso. Charley diz-me que ele tem ferramentas
sofisticadas na garagem. Edna estava embriagada quando lhe telefonou. O vizinho disse-nos isso. Suponha que foi de carro até lá, soltou a fechadura, entrou no apartamento
e empurrou aquela pobre senhora antes de ela saber o que a atingiu? Com franqueza, este é o meu ponto de vista, e tê-lo-emos aqui esta noite para nos contar tudo.
Talvez tenha razão disse Richard Mas mesmo assim vou investigar estas pessoas.
Ele apanhou o Dr. Alan Levine no momento em que este saía do escritório.
Pago-lhe uma bebida sugeriu Richard Só demorarei quinze minutos.
Combinaram encontrar-se no Parkwood Country Club. A meio caminho para ambos, tinha a virtude de ser sossegado nos dias de semana. Poderiam conversar no bar sem a
preocupação de serem ouvidos ou terem pessoas que paravam para os cumprimentarem.
Alan Levine era muito parecido com Jimmy Stewart um facto que o tornava estimado pelas suas pacientes mais velhas.
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Gostavam da cordialidade simples de profissionais, que se respeitavam uns aos outros, sentiam prazer em beber um copo juntos se os seus caminhos se cruzavam, cumprimentavam-se
com um aceno de mão nos campos de golfe. Richard foi directamente ao assunto.
Por várias razões estamos interessados no Westlake Hospital. Winifred Westlake era sua paciente. O primo dela tentou insinuar que ela não morreu de um ataque cardíaco.
Que me pode dizer a este respeito?
Alan Levine olhou de frente para Richard bebeu lentamente o seu martini, olhou para o canal coberto de neve através da janela panorâmica e comprimiu os lábios.
Tenho de responder a essa pergunta por etapas disse ele, pausadamente. Primeiro: Sim, Winifred foi minha paciente. Teve uma úlcera durante anos. Especificamente,
ela tinha todos os sintomas clássicos de uma úlcera duodenal, mas nunca se descobriu ao raio-X. Quando sentia dores, mandava-lhe tirar as radiografias usuais, obtinha
resultados negativos, prescrevia uma dieta para a úlcera, e ela sentia alívio quase imediatamente. Um problema de pequena gravidade.
Então um ano antes de conhecer e casar com Highley teve um violento ataque de gastroenterite que efectivamente alterou o cardiograma. Internei-a por um ataque cardíaco
suspeito. Mas passados dois dias no hospital o cardiograma estava dentro dos limites normais.
Então podia ter havido ou não um problema com o coração? perguntou Richard.
Eu achei que não havia. Nunca se descobriu nos testes clássicos. Mas a mãe dela morreu de um ataque cardíaco aos cinquenta e oito anos. E Winifred tinha quase cinquenta
e dois quando morreu. Sabe, ela era uns dez anos mais velha que Highley. Vários anos depois do casamento começou a visitar-me com mais frequência, queixando-se constantemente
de dores no peito. Os testes não revelaram nada de significativo. Disse-lhe para ter cuidado com a dieta.
E então teve um ataque fatal? perguntou Richard O outro médico acenou com a cabeça.
Uma noite, durante o jantar, teve um ataque de apoplexia. Edgar Highley telefonou imediatamente para o seu serviço. Deu-lhes o meu número, o número do hospital,
disse-lhes para chamarem a Polícia. Daquilo que me disseram, Winifred caiu à mesa da sala de jantar.
O senhor estava lá quando ela morreu? perguntou Richard
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Estava. Highley estava ainda a tentar fazê-la voltar a si. Mas foi inútil. Ela morreu alguns minutos depois de eu chegar.
E está convencido de que foi um colapso cardíaco? perguntou Richard
Houve de novo uma pequena hesitação.
Há alguns anos que ela sentia dores no peito. Nem todos os problemas de coração aparecem nos cardiogramas. Nos últimos dois anos antes de morrer sofria periodicamente
de tensão arterial alta. Não há dúvida que os problemas cardíacos geralmente são de família. Sim. Na altura estava convencido.
Na altura Richard sublinhou as palavras.
Creio que a convicção absoluta do primo de que havia algo de estranho na sua morte me tem perturbado nestes três anos. Praticamente que o atirei para fora do meu
consultório quando ele entrou e me acusou de falsificar relatórios. Calculei que ele era o parente descontente que odiava o homem que tomou o seu lugar no testamento.
Mas Glenn Nickerson é um homem bom. É treinador em Parkwood High, e os meus filhos vão lá agora. Gostam imenso dele. Ele é um homem de família, activo na igreja,
no conselho municipal; certamente não é o tipo de homem que ficasse com um grão na asa por ser deserdado. E devia saber certamente que Winifred deixaria os seus
bens ao marido. Ela era louca por Highley. Nunca consegui compreender. Ele é um peixe frio, se alguma vez vi algum.
Deduzo que o senhor não simpatiza com ele. Alan Levine terminou a bebida.
Não simpatizo mesmo nada com ele. E você já viu o artigo sobre ele na Newsmaker? Saiu hoje. Faz dele um pequeno deus de lata. Suponho que ficará ainda mais insuportável.
Mas tenho de lhe dar o crédito que lhe é devido. É um excelente médico.
Suficientemente bom para ter provocado quimicamente um ataque cardíaco na mulher?
O Dr. Levine olhou de frente para Richard
Para ser franco, já me arrependi muitas vezes de não ter insistido numa autópsia.
Richard fez sinal para que lhe trouxessem a conta.
Ajudou-nos muito, Alan.
O outro homem encolheu os ombros.
Não vejo como. Que utilidade terá isto para si?
Por agora, dá-me discernimento quando falo com certas pessoas. Depois disso, quem sabe?
Separaram-se à entrada do bar. Richard procurou dinheiro miúdo no bolso, encaminhou-se para o telefone público e telefonou para o Essex House Hotel em Nova Iorque.
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O Dr. Emmet tSalem, por favor.
Ouviu-se o som estridente de um telefone de hotel a tocar. Três, quatro, cinco, seis vezes. A telefonista interrompeu.
Lamento, mas ninguém responde.
Tem a certeza de que o Dr. Salem entrou no hotel? perguntou Richard.
Sim, sir, tenho a certeza. Ele telefonou expressamente para dizer que estava à espera de um telefonema importante e queria ter a certeza que o recebia. Isso foi
há vinte minutos. Mas se calhar mudou de ideias. Porque temos estado a ligar para o quarto e ninguém atende.
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Quando ela saiu do gabinete de Scott, Katie mandou entrar Rita Castile e juntas examinaram o material que iria precisar para os próximos julgamentos.
Aquele assalto à mão armada no dia vinte e oito disse Katie em que o réu cortou o cabelo na manhã a seguir ao crime. Vamos precisar do barbeiro para prestar declarações.
Não admira que a testemunha não conseguisse fazer uma identificação segura. Apesar de o termos feito usar uma peruca no alinhamento, não parecia o mesmo.
Percebi. Rita tomou nota da morada do barbeiro. É pena que não possa informar o júri do longo cadastro juvenil de Benton.
É a lei disse Katie, suspirando. Espero sinceramente que um dia deixe de ser maleável para proteger criminosos. Agora é quase tudo o que tenho para si, mas este
fim-de-semana não virei ao escritório, portanto a próxima semana vai ser uma trapalhada. Esteja preparada.
Não vem ao escritório? Rita levantou as sobrancelhas. Bem, já não era sem tempo. Há meses que não tem um fim-de-semana sem trabalho. Espero que esteja a planear
ir a algum lado para se distrair.
Katie sorriu ironicamente.
Não sei se será muito divertido. Oh, Rita, tenho um pressentimento que a Maureen hoje tem qualquer coisa que a preocupa. Sem ser espalhafatosa, sabe de algum problema?
Ela ainda anda deprimida por causa do rompimento com o noivo?
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Rita abanou a cabeça.
Não, de modo nenhum. Era uma coisa de garotos, e ela sabia. Os encontros regulares do tempo em que tinham quinze anos, um anel de noivado na noite do baile de estudantes.
No Verão passado ambos perceberam que não estavam preparados para casarem. Ele está agora na faculdade, por isso não há nenhum problema.
Então por que razão é tão infeliz? perguntou Katie.
Desgosto disse Rita simplesmente. Quase na altura em que romperam ela apercebeu-se que estava grávida e fez um aborto. Ela está cheia de remorsos. Contou-me que
está sempre a sonhar com o bebé, que o ouve a chorar e tenta encontrá-lo. Disse que teria feito tudo para ter tido o filho, mesmo que o tivesse dado para ser adoptado.
Katie lembrou-se do desejo enorme que tivera em conceber um filho de John, da raiva com que ficara quando depois da sua morte alguém comentou que ela tinha sorte
por não ter ficado presa com uma criança.
A vida é tão disparatada disse ela. As pessoas erradas engravidam, e depois é tão fácil cometer um erro com que teremos de viver para o resto da vida. Mas isso explica
tudo. Obrigada por me contar. Estava com medo que lhe tivesse dito alguma coisa que a ofendesse.
Não disse nada comentou Rita. Pegou nos ficheiros que Katie lhe entregara. Muito bem. Tratarei destas citações e procurarei o barbeiro.
Depois de Rita sair, Katie reclinou-se na cadeira. Queria falar outra vez com Gertrude Fitzgerald e Gana Krupshak. Eram amigas de Edna e tinham almoçado muitas vezes
juntas. A Sr.a Krupshak ia com frequência ao apartamento de Edna à noite. Edna talvez tivesse dito alguma coisa sobre o Dr. Fukhito ou Vangie a uma delas. Valia
a pena tentar.
Telefonou para o Westlake Hospital e disseram que a Sr.a Fitzgerald estava em casa, doente; pediu e conseguiu obter o número do telefone. Quando a mulher atendeu
era evidente que ainda estava perturbada. A voz era fraca e trémula.
Estou com uma das minhas enxaquecas, Sr.a DeMaio disse ela, e não é para admirar. Sempre que me lembro do aspecto de Edna, pobrezinha...
Eu ia sugerir que nos reuníssemos aqui ou em sua casa disse Katie. Mas amanhã vou estar todo o dia no tribunal, por isso penso que terá de esperar até segunda-feira.
Há só uma coisa que gostaria de lhe perguntar, Sr.a Fitzgerald, Edna
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alguma vez chamou a qualquer um dos médicos para quem trabalhava "Príncipe Encantado"?
Príncipe Encantado? A voz de Gertrude Fitzgerald era de surpresa. Príncipe Encantado? Meu Deus. O Dr. Highley ou o Dr. Fukhito? Por que razão alguém chamaria a qualquer
um deles Príncipe Encantado? Meu Deus, não.
Está bem. Foi só uma ideia. Katie despediu-se e marcou o número da Sr.a Krupshak. Atendeu o superintendente. A mulher saíra, explicou. Regressaria por volta das
cinco.
Katie olhou rapidamente para o relógio. Eram quatro e meia.
Acha que se importaria se eu parasse aí a caminho de casa para conversar com ela durante alguns minutos? Prometo que não demorarei muito tempo.
Faça como quiser respondeu o homem, laconicamente, depois acrescentou: Que se passa no apartamento de Edna? Ainda falta muito para saírem de lá?
Não se pode entrar nem tocar nesse apartamento até que este departamento ordene disse Katie com rispidez. Pousou o auscultador, meteu algumas pastas na mala e foi
buscar o casaco. Teria tempo suficiente para falar com a Sr.a Krupshak, ir para casa em seguida e trocar de roupa. Nessa noite não ficaria até tarde em casa de Molly.
Queria ter uma boa noite de sono antes da operação. Sabia que não dormiria bem no hospital.
Chegara antes da hora de ponta, e a Sr.a Krupshak estava em casa quando tocou à campainha.
Isso é que é pontualidade! exclamou ela para Katie. O choque de descobrir o corpo de Edna começara a desaparecer para esta mulher, e via-se que começava a divertir-se
com a agitação da investigação policial.
Hoje é a minha tarde de bingo explicou ela. Quando contei às minhas amigas o que aconteceu mal conseguiam manter as cartas direitas.
"Pobre Edna", pensou Katie, depois compreendeu que Edna teria adorado ser o centro de uma conversa animada.
A Sr.a Krupshak conduziu-a a uma sala de estar em forma de L, uma cópia do apartamento onde Edna vivera. A sala de estar de Edna fora mobilada com um sofá de veludo
antiquado, cadeiras de costas direitas a condizer, um tapete oriental desbotado. Como Edna, o apartamento tivera a sua própria dignidade.
A mulher do superintendente tinha um sofá de couro artificial e uma cadeira de clube, uma mesa para cocktails com
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tamanho fora do normal encimada por um arranjo de flores plásticas mesmo no centro e uma gravura outonal em tons de laranja por cima do sofá, que captava a tonalidade
berrante da alcatifa. Katie sentou-se. "Esta casa é vulgar." pensou. É banal se bem que seja limpa e confortável e fica-se com a impressão de que apesar do marido
ser brusco e insociável, Gana Krupshak é uma mulher feliz.., Depois Katie perguntou a si mesma por que razão ficou de um momento para o outro preocupada em definir
felicidade.
Encolhendo os ombros mentalmente, concentrou-se nas perguntas que queria formular.
Sr.a Krupshak disse ela, conversámos ontem à noite, mas evidentemente, estava tão perturbada. Seria capaz de recapitular comigo com muito cuidado o que aconteceu
na terça-feira à noite: quanto tempo esteve com Edna; de que falaram; ficou com a impressão de que ela marcou um encontro com o comandante Lewis quando falou com
ele.
Gana Krupshak reclinou-se na cadeira, desviou os olhos meio-fechados de Katie e mordeu o lábio.
Ora vejamos. Fui ao apartamento de Edna às oito horas em ponto, porque Gus começou a ver o jogo de basquetebol na televisão e eu pensei "Que se dane o jogo de basquetebol,
vou fazer uma visitinha à Edna e bebo uma cerveja com ela."
E foi até lá encorajou Katie.
Fui. Só que Edna tinha um jarro de manhattans e estavam quase todos bebidos e ela estava a sentir-se muito cambaleante. A senhora sabe, como é, às vezes ficava mal
disposta, bastante em baixo, se percebe o que quero dizer, e eu pensei que ela estava a atravessar uma dessas crises. Como na quarta-feira passada era o dia de aniversário
da mãe e eu fiz-lhe uma visita e ela chorava porque sentia muito a falta da mãe. Não quero dizer que ela desabafasse com a senhora, de forma alguma, mas quando passei
por lá na quarta-feira estava sentada com o retrato dos pais nas mãos e a caixa das jóias no regaço e as lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto abaixo. Dei-lhe um grande
abraço e disse, "Edna, vou-te dar um copo bem cheio de manhattan e vamos beber à saúde do teu estômago e se ela estivesse aqui associar-se-ia a nós." Se percebe
o que quero dizer, a gracejar consegui levantar-lhe o ânimo e ela ficou bem, mas quando lá fui na terça-feira à noite e a vi indisposta calculei que não superara
a fase da tristeza.
Disse-lhe que ainda estava deprimida na terça-feira à noite? perguntou Katie.
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Não. Não. Aí é que está. Ela estava um pouco excitada. Dizia coisas desconexas sobre uma doente que morrera, como era linda, como uma boneca, e como estava doente
e como ela Edna, quero dizer podia contar muita coisa à Polícia a respeito dela.
Depois o que aconteceu? perguntou Katie.
Bem bebi um manhattan, ou dois, com ela e depois pensei que seria melhor ir para casa, porque Gus fica maldisposto se eu não estou em casa quando ele vai para a
cama. Mas não gostava de ver Edna a beber muito mais, porque sabia que de manhã se sentiria mesmo mal, por isso tirei aquele maravilhoso presunto enlatado, abri-o
e cortei-lhe algumas fatias.
E foi nessa altura que ela fez o telefonema?
Tal como lhe contei ontem à noite.
E ela falou no Príncipe Encantado ao comandante Lewis?
Deus é minha testemunha.
Está bem, mas uma última coisa, Sr.a Krupshak: sabe se Edna guardava algum artigo de vestuário da mãe como uma recordação sentimental?
Vestuário? Não. Ela tinha era um lindo broche com diamantes e um anel.
Sim, sim, encontrámo-los ontem à noite. Mas, bem, por exemplo, a minha mãe costumava guardar o velho chapéu preto da mãe no armário por razões sentimentais. Reparei
num moccasin velho na gaveta das jóias de Edna. Era bastante velho. Alguma vez lho mostrou ou fez referência a ele?
Gana Krupshak olhou de frente para Katie.
De modo nenhum disse ela prontamente.
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O artigo da Newsmaker estava nas bancas quinta-feira de manhã. Os telefonemas começaram assim que foi para o escritório depois de pôr no mundo o bebé Aldrich. Ligou
os botões de maneira a que o telefone tocasse directamente para ele. Queria ouvir os comentários. Eram mais do que esperava.
Doutor, quando posso ter uma consulta? O meu marido e eu desejamos ardentemente um filho. Posso ir de avião para Nova Jérsia quando lhe convier. Deus o abençoe pelo
seu trabalho. Telefonaram da Faculdade de Medicina Dartmouth Se
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aceitava um convite para uma conferência. Um articulista do Ladies'Home Journal queria entrevistá-lo. Se o Dr. Highley e o Dr. Fukhito não se importavam de aparecer
juntos em Eyewitness News.
Aquele pedido inquietou-o. Tivera o cuidado de dar à repórter da Newsmaker a impressão de que trabalhava com uma série de psiquiatras, da mesma maneira que um advogado
de família podia mandar os seus clientes consultarem qualquer um de uma dúzia de conselheiros. Chegara a sugerir que o programa estava inteiramente sob seu controlo,
não era um esforço conjunto. Mas a repórter conseguira o nome de Fukhito por intermédio de uma série de pacientes de confiança que ele lhe dera para entrevistar.
Agora a repórter creditava Fukhito como o psiquiatra que parecia ter sido o primeiro a colaborar com o Dr. Edgar Highley na Maternidade e Centro de Concepção Westlake.
Fukhito ficaria terrivelmente perturbado com a publicidade. Foi por isso que fora escolhido. Fukhito não poderia abrir a boca mesmo que começasse a tornar-se suspeito.
Ele não podia permitir que um escândalo atingisse Westlake. Se isso acontecesse estaria perdido para sempre.
Fukhito estava a tornar-se um autêntico impecilho. Agora seria bastante fácil livrar-se dele. Ele dava muito tempo em regime voluntário à clínica Valley Pines. Agora
podia entrar sem dúvida para o corpo clínico. Provavelmente Fukhito ficaria contente por conseguir uma cobertura. Depois podia começar a revezar psiquiatras; ele
já sabia o suficiente acerca deles que não eram competentes para aconselharem quem quer que fosse. Seriam bastante fáceis de enganar.
Fukhito teria de se ir embora.
Tomada a decisão fez sinal para que entrasse a primeira paciente. Ela era nova, como eram as duas marcadas para depois dela. A terceira paciente era um caso interessante:
um útero tão inclinado que ela nunca poderia engravidar sem uma intervenção.
Ela seria a sua próxima Vangie.
A chamada telefónica chegou ao meio-dia precisamente no momento em que ele ia sair para almoçar.
A enfermeira, que estava de serviço na recepção, pediu desculpa.
Doutor, é uma chamada interurbana de um Dr. Emmet Salem de Mineápolis. Ele está neste momento numa cabina
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telefónica no aeroporto e insiste em falar com o senhor imediatamente.
Emmet Salem! Pegou no auscultador.
Edgar Highley.
Doutor Highley. A voz era muito ríspida. O Dr. Highley do Chris Hospital em Devon?
Sim. Um medo arrepiante e nauseante fez com que a língua ficasse pesada, os lábios como borracha.
Dr. Highley, soube ontem à noite que tratou uma antiga paciente minha, a Sr.a Vangie Lewis. Vou partir já para Nova Iorque. Ficarei hospedado no Essex House Hotel
em Nova Iorque. Devo dizer-lhe que tenciono ouvir a opinião do examinador médico em Nova Jérsia sobre a morte da Sr.a Lewis. Tenho os relatórios médicos dela comigo.
Para ser justo com o senhor, sugiro que discutamos o caso antes de levantar acusações.
Doutor, estou perturbado com o seu tom e insinuações. Já conseguia falar. Agora a sua voz tornara-se tão dura como pedaços de granito.
O meu avião está a abastecer-se. Vou ficar no quarto 3219 do Essex House Hotel e estarei lá pouco antes das cinco horas. Pode ir visitar-me lá. A ligação foi cortada.
Ele estava à espera no Essex House quando Emmet Salem saiu do táxi. Desapareceu rapidamente num elevador para o trigésimo segundo andar, passou pelo quarto 3219
até ao local onde o corredor fazia um ângulo recto. Parou outro elevador no andar. Estava à escuta, quando uma chave deu um estalido, um paquete disse:
Chegámos, doutor. Um minuto depois o paquete apareceu de novo. Obrigado, sir.
Esperou até ouvir o elevador a parar para o paquete entrar. Os corredores estavam silenciosos. Mas aquilo não duraria muito tempo. Muitos dos delegados à convenção
da AMA provavelmente estavam ali hospedados. Havia sempre o perigo de encontrar por acaso alguém que ele conhecesse. Mas tinha de se arriscar. Tinha de silenciar
Salem.
Abriu rapidamente a maleta de cabedal e tirou o pisa-papéis que há quarenta e oito horas apenas tencionara usar para silenciar Edna. Era absurdo, impossível, que
ele o médico, fosse obrigado a matar repetidas vezes.
Meteu o pisa-papéis no bolso do casaco, calçou as luvas, prendeu firmemente a maleta com a mão esquerda e bateu à porta.
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Emmet Salem abriu a porta. Acabara de tirar o casaco do fato.
Esqueceu-se de alguma coisa? A sua voz era arrastada. Era óbvio que ele pensara que o paquete tinha voltado.
Dr. Salem! Estendeu a mão para apertar a de Salem, avançando, fazendo recuar o homem mais velho para dentro do quarto, fechando a porta de mansinho atrás dele. Sou
Edgar Highley. É bom voltar a vê-lo. Pousou o auscultador tão bruscamente que não pude dizer-lhe que ia jantar com vários colegas que estão a assistir à convenção.
Só tenho alguns minutos, mas estou certo que podemos esclarecer quaisquer dúvidas.
Continuava a avançar, obrigando o outro homem a recuar. A janela atrás de Salem estava aberta de par em par. Provavelmente tinha pedido ao paquete que a abrisse.
O quarto estava muito quente. Ajanela era baixa. Os olhos ficaram entreabertos.
Tentei telefonar-lhe, mas a sua extensão está avariada.
Impossível. Acabei de falar com a telefonista. O Dr. Salem assumiu uma atitude rígida, o rosto repentinamente circunspecto.
Então peço desculpa. Mas não há problema. Estou ansioso por examinar o relatório Lewis com o senhor. Tenho-o aqui na minha maleta. Meteu a mão no bolso para pegar
no pisa-papéis, depois gritou: Doutor, atrás de si, cuidado!
O outro homem rodopiou. Segurando o pisa-papéis na mão, bateu com ele no crânio de Salem. A pancada fez com que Emmet cambaleasse. Foi de encontro ao peitoril.
Metendo de novo o pisa-papéis no bolso, Edgar Highley pôs as mãos em concha à volta do pé de Emmet Salem e puxou-o.
Não. Não. Cristo, por favor! O homem semiconsciente caiu abaixo da janela.
Ele estava a ver calmamente quando Salem caiu no telhado do prolongamento uns quinze pisos abaixo daquele em que se encontrava.
O corpo fez um ruído surdo.
Tinha sido visto? Tinha de se apressar. Tirou a argola com chaves do fato de Salem que estava sobre a cama. A chave mais pequena servia na pequena mala de documentos
em cima da prateleira da bagagem.
A ficha de Vangie Lewis estava por cima. Pegando nela, meteu-a na maleta, tornou a fechar à chave a mala de Salem, introduziu de novo as chaves no bolso do casaco
do fato. Tirou o pisa-papéis do bolso e colocou-o na maleta com a ficha. Aferida não deitara sangue, mas o pisa-papéis estava pegajoso.
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Fechou a sua maleta e olhou em redor. O quarto estava em perfeita ordem. Não havia nenhum vestígio de sangue no peitoril. Demorara menos de dois minutos.
Abriu cautelosamente a porta e espreitou. O corredor estava deserto. Saiu. Quando fechava a porta, o telefone no quarto de Salem começou a tocar.
Não se atrevia a ser visto a entrar no elevador naquele andar. A sua fotografia estava no artigo da Newsmaker. Mais tarde as pessoas talvez fossem interrogadas.
Ele podia ser reconhecido.
A escadaria de salvamento em caso de incêndio ficava ao fundo do corredor. Desceu quatro pisos até ao vigésimo oitavo andar. Lá voltou a entrar no corredor atapetado.
Estava a parar um elevador naquele preciso momento. Entrou, os olhos examinavam os rostos dos passageiros. Várias mulheres, dois jovens, um casal de certa idade.
Nenhum médico. Ele tinha a certeza.
No vestíbulo encaminhou-se rapidamente para a saída do hotel para a Fifty-eighth Street, virou para oeste e depois para sul. Dez minutos mais tarde foi buscar o
carro à garagem de estacionamento na West Fifty-fourth Street, atirou a maleta para dentro da mala do carro e partiu.
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Chris chegou ao aeroporto Twin Cities à uma menos dez. Tinha de esperar uma hora antes do seu avião partir para Newark. O corpo de Vangie iria a bordo desse avião.
Na véspera, ao vir para ali, não pensara noutra coisa a não ser naquele caixão dentro do avião. Agarrara-se a uma imagem de normalidade, garantindo a si mesmo que
em breve tudo teria acabado.
Precisava de ver o Dr. Salem. Por que razão ficara o Dr. Salem tão perturbado? Nessa noite quando ele saísse do avião em Newark, o departamento do Examinador Médico
estaria à espera do corpo de Vangie.
E o departamento do Promotor de Justiça estaria à espera dele. A certeza obcecava Chris. Evidentemente. Se tinham alguma suspeita sobre a morte de Vangie, iam contar
com ele para obterem respostas. Esperariam para o trazerem para o interrogatório. Até o podiam prender. Se tivessem indagado tudo, já sabiam que ele regressara à
área de Nova Jérsia na
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noite de segunda-feira. Precisava de falar com o Dr. Salem. Se fosse detido para interrogatórios talvez não pudesse falar com ele. Ele não queria falar do Dr. Salem
ao pessoal do Promotor de Justiça.
Pensou uma vez mais em Molly e Bill Kennedy. Que importância tinha que Molly fosse irmã de Katie DeMaio? Eram boas pessoas, pessoas honestas. Devia ter confiado
neles, falado com eles. Tinha de falar com Joan.
Tinha de falar com Joan.
A necessidade que tinha dela era um desejo ardente. Assim que começasse a dizer a verdade, Joan seria implicada.
Joan, que neste mundo frágil ainda conservava princípios inviolados, estava prestes a ser arrastada pela lama.
Ele tinha o número do telefone da hospedeira com quem ela ia ficar na Florida. Sem saber o que ia dizer, dirigiu-se ao telefone automaticamente deu o número do seu
cartão de crédito, ouviu o toque da campainha.
Kay Corrigan atendeu.
Kay, a Joan está aí? Daqui é o Chris.
Kay sabia dele e de Joan. A voz de Kay era de preocupação.
Chris, a Joan tem tentado telefonar-lhe. Tina telefonou do apartamento de Nova Iorque. O pessoal do departamento do Promotor de Justiça de Valley County tem andado
por aqui a fazer todo o tipo de perguntas sobre vocês os dois. Joan está inquieta.
Quando volta?
Ela já está no apartamento novo. Não tem telefone. De lá tem de ir para o escritório de pessoal da companhia em Miami. Ela só estará lá por volta das oito da noite.
Diga-lhe para não sair e que espere até eu lhe telefonar disse Chris. Diga-lhe que preciso de falar com ela. Diga-lhe... Ele cortou a ligação, encostou-se ao telefone
e abafou um soluço seco. "Oh, meu Deus, era de mais, era de mais." Não era capaz de pensar. Não sabia o que fazer. E dentro de algumas horas seria preso, suspeito
de ter morto Vangie... talvez acusado de ter morto Vangie.
Não. Havia outra hipótese. Apanharia o avião para LaGuardia. Ainda o podia fazer. Depois estaria em Manhattan e poderia falar com o Dr. Salem quase à mesma hora
a que ele chegava ao hotel. O Departamento do Promotor de Justiça só daria conta de que ele não ia no avião para Newark às seis horas. Talvez o Dr. Salem o pudesse
ajudar de qualquer maneira.
Por pouco não fazia o voo para LaGuardia. A segunda classe
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estava completa, mas ele comprou um bilhete para a primeira classe e pôde entrar no avião. Não se preocupou com a bagagem, que foi despachada para Newark.
No avião aceitou uma bebida que a hospedeira lhe ofereceu, recusou a comida com um aceno de mão e passou os olhos com indiferença pela revista Newsmaker. A página
abriu-se na Ciência e Medicina. O seu olhar fixou-se no título: "Maternidade e Centro de Concepção Westlake Oferece Nova Esperança a Casais sem Filhos." Westlake.
Leu o primeiro parágrafo. "Durante os últimos oito anos, uma pequena clínica privada em Nova Jérsia tem levado a cabo um programa designado por Maternidade e Centro
de Concepção Westlake que tem tornado possível que mães sem filhos engravidassem. Com o nome de um proeminente obstetra de Nova Jérsia, o programa realizado pelo
Dr. Edgar Highley, obstetra-ginecologista, que era o genro do Dr. Franklin Westlake..."
O Dr. Edgar Highley. O médico de Vangie. Estranho, ela nunca falava muito dele. Era sempre o psiquiatra. "O Dr. Fukhito e eu falámos hoje da mamã e do papá... disse
que era evidente que eu era filha única... O Dr. Fukhito pediu-me para fazer o retrato da mamã e do papá como eu os visualizava; foi fascinante. Quero dizer que
foi realmente interessante ver como eu os visualizava. O Dr. Fukhito fez perguntas sobre ti, Chris."
"E o que disseste, Vangie?"
"Que tu me adoravas. É verdade, não é, Chris? Por baixo desse teu jeito autoritário para comigo, não sou a tua menina?"
"Preferia que te considerasses a minha mulher, Vangie."
"Estás a ver, não posso conversar contigo sobre coisa nenhuma. Ficas sempre mal humorado..."
Ele gostava de saber se a Polícia tinha falado com algum dos médicos de Vangie.
Naquele último mês parecia tão doente. Ele sugerira que fosse a uma consulta. O médico da companhia teria recomendado alguém. Ou Bill teria podido certamente indicar
alguém do Lenox Hill. Mas claro, Vangie recusara-se a ter uma consulta.
Então, sem dizer a ninguém, marcara uma entrevista com o Dr. Salem.
O avião aterrou às quatro e meia. Chris atravessou o terminal a correr e chamou um táxi. Uma das poucas pausas daquele dia desgraçado era que ele não apanharia o
grande movimento das cinco horas.
A Essex House, por favor disse ele ao motorista.
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Eram apenas cinco menos dois minutos quando chegou ao hotel. Dirigiu-se a um telefone no vestíbulo.
O Dr. Emmet Salem, por favor.
Obrigado, sir. Houve uma pausa.
Essa linha está ocupada, sir.
Ele pousou o auscultador. Pelo menos o Dr. Salem estava ali. Pelo menos teria uma oportunidade para falar com ele. Lembrou-se que escrevera a extensão do Dr. Salem
na agenda, abriu-a e marcou 3219. O telefone tocou... uma... duas vezes. Depois de seis toques ele cortou a ligação e telefonou para a telefonista. Explicando que
a linha tinha estado ocupada há apenas alguns minutos, pediu à telefonista que tentasse por ele.
A telefonista hesitou, falou com alguém, depois voltou.
Sir, acabo de dar este recado a outra pessoa. O Dr. Salem entrou no hotel, contactou-me para dizer que esperava um telefonema importante e que fizesse os possíveis
para que ele o recebesse e depois parece que saiu. Por que não tenta outra vez daqui a alguns minutos?
Assim farei. Obrigado. Irresolutamente, pousou o auscultador, encaminhou-se para uma cadeira no vestíbulo virada para a rampa do elevador sul e sentou-se. Os elevadores
abriram-se e deixaram sair passageiros, encheram-se outra vez, desapareceram numa faixa de luzes ascendentes num painel.
Um elevador chamou-lhe a atenção. Havia algo de vagamente familiar numa pessoa. O Dr. Salem? Passou uma vista de olhos pelos passageiros. Três mulheres, algumas
jovens, um casal de certa idade, um homem de meia idade com a gola do casaco levantada. Não. Não era o Dr. Salem.
Às cinco e meia Chris tentou de novo. E às seis menos um quarto. Às seis e cinco ouviu sussurros que atravessavam o vestíbulo como um relâmpago.
Alguém se atirou de uma janela. O corpo foi descoberto no telhado do prolongamento. De qualquer lugar ao longo de Central Park South o silvo de uma ambulância e
oyip-yap dos carros da Polícia eram explosões frenéticas de som crescente.
Com a certeza do desespero, Chris aproximou-se da secretária do chefe dos paquetes.
Quem foi? perguntou ele. O tom foi seco, autoritário, sugeria que tinha o direito de saber.
O Dr. Emmet Salem. Era uma pessoa muito importante na AMA. Quarto 3219.
Caminhando com o passo cadenciado de um autómato, Chris
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transpôs a porta giratória que dava para a Fifty-eight Street. Um táxi procurava fregueses, circulando de oeste para este. Chamou-o, entrou e reclinou-se no assento
fechando os olhos.
LaGuardia, por favor disse ele, o terminal do National Airlines.
Havia um voo para Miami às sete horas. Ele ainda podia chegar a tempo.
Dali a três horas estaria com Joan.
Tinha de apanhar Joan, tentar fazê-la compreender antes de ser preso.
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Jennifer, com 12 anos de idade, abriu a porta quando Katie apareceu no passeio.
Olá, Katie. A voz era alegre, o abraço forte. Sorriram uma para a outra. Com os olhos de um azul-forte, cabelo escuro e pele cor de azeitona, Jennifer era uma versão
mais nova de Katie.
Olá, Jennie. Como te sentes?
Bem. E tu? Fiquei tão preocupada quando a mãe me falou do teu acidente. Tens a certeza de que já estás boa?
Vamos expor o assunto desta maneira: na próxima semana estarei em boa forma. Mudou de assunto. Ainda não chegou ninguém?
Todos. O Dr. Richard também cá está... Sabes qual foi a primeira pergunta que ele fez?
Não.
"Katie já cá está?" Aposto que tem um fraco por ti, Katie. A mãe e o pai também pensam o mesmo. Ouvi-os falar sobre isso. E tu? Tens um fraco por ele?
Jennifer! Quase a rir, meio irritada, Katie começou a subir a pequena escadaria em direcção ao gabinete nas traseiras da casa, depois olhou para trás por cima do
ombro. Onde estão os outros miúdos?
A mãe mandou-os com a ama para comerem no McDonald's e depois irem ao cinema. Disse que o bebé dos Berkeley não adormeceria nunca se os gémeos andassem de um lado
para o outro.
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Boa ideia murmurou Katie. Atravessou o vestíbulo que dava para o gabinete. Depois de deixar Gana Krupshak, fora para casa, tomara um banho de chuveiro e trocara
de roupa. Saíra de casa às sete menos um quarto a pensar, "Muito em breve Chris Lewis estará no escritório de Scott a ser interrogado... Que explicação poderia dar
para não admitir que estava na zona de Nova Jérsia na noite de segunda-feira? Por que não dissera logo isso de moto-próprio?"
Gostava de saber se Richard já tinha falado com o médico do Minnesota. Podia ter esclarecido muitas dúvidas. Tentaria apanhar Richard sozinho e perguntar-lhe-ia.
Ao dirigir-se para lá, resolvera não pensar mais no caso nessa noite. Talvez se não pensasse nele durante algum tempo conseguisse seguir os passos alusivos que continuavam
a escapar-lhe.
Chegou ao gabinete. Liz e Jim Berkeley estavam sentados no sofá de costas para ela. Molly estava a passar hors d'oeuvre. Bill e Richard estavam de pé a conversar
perto da janela. Katie examinou Richard cuidadosamente. Trazia um fato azul-marinho com riscas muito finas, que ela nunca vira. O cabelo castanho-escuro tinha algumas
madeixas grisalhas que ela nunca notara. Os dedos no pé do copo, que segurava, eram compridos e finos. Era engraçado como naquele ano reparara no conjunto sem prestar
atenção aos pormenores. Tinha a impressão de que ela era uma máquina fotográfica que fora fixada numa posição e começava de novo a focar. Richard estava com um ar
sério. Atesta estava enrugada. Perguntou a si mesmo se ele estava a contar a Bill o caso do feto Lewis. Não, ele não discutiria isso nem mesmo com Bill.
Naquele momento Richard virou a cabeça e viu-a.
Katie. O sorriso harmonizava-se com o tom de satisfação da sua voz. Foi a correr ter com ela. Tenho estado à escuta a ver se ouvia a campainha da porta.
Tantas vezes naqueles três anos entrara em salas onde ela era a intrusa, a solitária, no meio de casais. Nessa noite, ali, Richard estivera à sua espera, a ver se
a ouvia.
Antes de ter tempo para pensar nos seus sentimentos, Molly e Bill estavam a saudá-la, Jim Berkeley levantara-se e teve lugar a usual confusão dos cumprimentos.
A caminho da sala de jantar conseguiu perguntar a Richard se tinha entrado em contacto com o Dr. Salem.
Não. Parece que foi por pouco que não o apanhei às cinco explicou Richard. Depois tentei outra vez de minha casa às seis, mas ninguém atendeu. Dei este número à
telefonista do
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hotel e ao meu serviço de atendimento. Estou ansioso por ouvir o que aquele homem tem para dizer.
Por acordo tácito, nenhum deles fez alusão ao suicídio Lewis antes do jantar estar quase no fim. E nessa altura isso aconteceu porque Liz Berkeley disse:
Que sorte. Tenho de admitir que estive a reter o fôlego para que Maryanne não acordasse e ficasse irrequieta. Pobrezinha, as gengivas estão tão inchadas que ela
está num tormento.
Jim Berkeley riu-se. Era um moreno bonito com malares salientes olhos castanhos e sobrancelhas pretas, espessas.
Quando Maryanne nasceu, Liz costumava acordá-la de quinze em quinze minutos para se certificar de que ela ainda respirava. Mas desde que ela começou a ter dentes,
Liz passou a ser como todas as mães. Imitou a voz dela. Calado papalvo, não acordes o bebé.
Liz, um tipo como o de Carol Burnett, com um corpo esbelto e vigoroso, de rosto franco, prazenteiro e olhos castanhos brilhantes, fez uma careta ao marido.
Tens de admitir que me estou a tornar calma para ser normal. Mas ela é um milagre para nós. Estava quase a perder a esperança e então tentámos adoptar uma criança,
mas só que agora não há bebés. Principalmente agora que estamos quase com quarenta anos, disseram-nos que não pensássemos nisso. E aquele Dr. Highley. Aquele homem
é um taumaturgo.
Katie viu os olhos de Richard ficarem mais estreitos.
Pensa mesmo isso? perguntou Richard.
Absolutamente. Quero dizer, o Dr. Highley não é a pessoa mais simpática da terra começou Liz.
O que tu queres dizer é que ele é um filho da mãe egocêntrico e tão frio como um peixe que jamais vi interrompeu o marido. Mas quem se importa com isso? O que interessa
é que ele sabe do seu ofício, e tenho de dizer que cuidou muito bem de Liz. Fê-la estar de cama no hospital quase dois meses antes do parto e examinava-a três ou
quatro vezes por dia.
Faz isso com todas as gravidezes difíceis disse Liz. Não era só eu. Ouçam, rezo por aquele homem todas as noites. A diferença que aquele bebé fez nas nossas vidas,
nem sou capaz de lhes dizer! E não deixem que este vos intruje ela acenou com a cabeça na direcção do marido. Levanta-se dez vezes por noite para ver se Maryanne
está tapada e se não apanha nenhuma corrente de ar. Diz a verdade. Olhou para ele. Quando foste ao quarto de banho há bocado, não a espreitaste?
Ele riu-se.
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Claro que espreitei.
Molly disse aquilo que Katie estava a pensar.
Seria isso que Vangie Lewis teria sentido pelo filho. Richard lançou a Katie um olhar interrogador e ela abanou a cabeça. Ela sabia que ele estava ansioso por saber
se ela dissera a Molly e a Bill que o bebé Lewis era oriental. Deliberadamente Richard desviou a conversa sobre Vangie.
Deduzo que viveu em São Francisco disse ele a Jim. Cresci lá. Na realidade, o meu pai ainda exerce clínica no San Francisco General...
Uma das minhas cidades favoritas replicou Jim. Voltaríamos logo para lá, não era, Liz?
Enquanto os outros cavaqueavam, Katie escutava meio absorta, participando o suficiente na conversa, que o seu silêncio não foi notado. Tinha tanta coisa em que pensar.
Os poucos dias que passaria no hospital também lhe dariam tempo para isso. Sentia-se tonta e fatigada, mas não queria pôr-se a andar cedo de mais com medo de estragar
a reunião.
Surgiu a oportunidade quando se levantaram da mesa para irem para a sala de estar para tomarem uma última bebida.
Vou-me despedir disse Katie. Tenho de admitir que não dormi bem esta semana e estou deveras desorientada.
Molly olhou para ela com ar conhecedor e não protestou. Richard disse:
Acompanho-te até ao carro.
Óptimo.
A noite estava fria, e ela tiritou quando começaram a descer o passeio. Richard notou imediatamente e disse:
Katie, estou preocupado contigo. Sei que não te sentes bem. Parece que não queres falar nisso, mas pelo menos jantemos amanhã. Da forma como o caso Lewis se está
a desenrolar, amanhã o escritório será um jardim zoológico.
Richard, lamento muito. Não posso. Vou sair este fim-de-semana. Katie percebeu que o seu tom era apologético.
Vais o quê? Com tudo o que está a acontecer no escritório? O Scott sabe disso?
Eu... eu estou comprometida. "Que coisa tão pouco convincente, tão estúpida", pensou Katie. "Isto é ridículo. Vou dizer a Richard que estarei no hospital." As luzes
da alameda incidiam no seu rosto, e a sua expressão, um misto de desapontamento e desaprovação, era evidente.
Richard, não é uma coisa que tenha discutido, mas... A porta da frente abriu-se de repente.
163
Richard, Richard! O grito de Jennifer era impetuoso e excitado. Clovis Simmons está ao telefone.
Clovis Simmons! disse Katie. Não é a actriz daquela novela radiofónica?
É. Oh, diabo, era para lhe telefonar e esqueci-me. Espera aí, Katie. Volto já.
Não. Vejo-te de manhã. Vai lá. Katie entrou no carro e fechou a porta. Procurou a chave da ignição na carteira, encontrou-a e introduziu-a na ranhura. Richard hesitou
por instantes, depois foi rapidamente para casa, pondo-se à escuta enquanto o carro de Katie se afastava. "Diabo", pensou, "é sempre assim." O seu "Olá, Clovis",
foi brusco.
Então, doutor, é uma vergonha ter de te localizar, mas combinámos um jantar, não combinámos?
Clovis, desculpa. "Não, Clovis", pensou ele, "tu combinaste um jantar. Eu não."
Bem, obviamente que agora é demasiado tarde. O tom de voz foi frio. Efectivamente acabo de vir de uma gravação e queria pedir desculpa para o caso de teres reservado
esta noite. Já devia ter juízo.
Richard lançou um olhar a Jennifer, que estava perto dele.
Olha, Clovis, amanhã telefono-te. Agora não posso dizer muita coisa.
Ouviu um estalido forte. Richard pousou o auscultador. Clovis estava furiosa, mas mais do que isso, estava ofendida. "Como consideramos as pessoas como certas",
pensou ele. "Só porque não estavas interessado nela, não me dei ao trabalho de pensar nos seus sentimentos." No dia seguinte apenas podia telefonar, pedir desculpa
e ser suficientemente honesto para lhe dizer que existia outra pessoa.
Katie. Onde iria nesse fim-de-semana? Haveria outra pessoa? Ela parecia tão inquieta, tão preocupada. Seria que ele sempre a compreendera mal? Ele atribuíra a sua
reserva, a sua falta de interesse nele à probabilidade de ela estar a viver no passado. Talvez houvesse outra pessoa na sua vida. Estava a ser tão tolo em relação
aos seus sentimentos como fora com Clovis sob outro aspecto?
A possibilidade dissipou o prazer do serão. Desculpar-se-ia e iria para casa. Ainda não seria demasiado tarde para tentar entrar em contacto com o Dr. Salem uma
vez mais.
Entrou na sala de estar. Molly, Bill e os Berkeleys estavam lá. E envolta em cobertores, sentada, direita, no colo de Liz, estava uma bebé.
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Maryanne resolveu associar-se à reunião disse Liz. Que pensa dela? O seu sorriso era de orgulho quando virou o bebé para ele.
Richard fixou o olhar nuns olhos verdes, solenes num rosto em forma de coração. Jim Berkeley estava sentado ao lado da mulher, e Maryanne esticou-se e pegou-lhe
no dedo polegar.
Richard olhou fixamente para a família. Podiam ter posado para a capa de uma revista: os pais sorridentes, a filha formosa. Os pais belos, com pele cor de azeitona,
olhos castanhos, rosto quadrado; o bebé de pele clara, cabelo loiro avermelhado, com brilhantes olhos verdes.
"Quem pensam eles que intrujam?", pensou Richard. "Aquela criança foi adoptada de certeza."
39
Phil Cunningham e Charley Nugent aguardavam com descontentamento enquanto os últimos retardatários desfilavam através da sala de espera junto da Entrada II do Aeroporto
de Newark. A expressão de Charley, eternamente lúgubre, acentuou-se.
É isso. Encolheu os ombros. Lewis deve ter imaginado que estaríamos à espera dele. Vamos embora.
Dirigiu-se à cabina telefónica mais próxima e marcou o número de Scott.
Chefe, pode ir para casa disse ele. O comandante não se sentiu disposto a voar esta noite.
Ele não estava a bordo? E o caixão?
Esse chegou. Os homens de Richard estão a recolhê-lo. Quer que fiquemos por aqui? Há alguns voos indirectos em que ele pode vir.
Esqueça. Se amanhã não nos contactar vou passar um mandato de captura para ele como testemunha material. E logo de manhã quero que passem o apartamento de Edna Burns
a pente fino.
Charley pousou o auscultador. Virou-se para Phil.
Se conheço bem o chefe, diria que amanhã à noite a esta hora já haverá um mandato para a prisão de Lewis.
Phil acenou com a cabeça.
165
E depois de apanharmos Lewis, espero que possamos fazer alguma coisa àquele anão se foi ele que engravidou aquela pobre rapariga.
Os dois homens começaram a descer a escadaria em direcção à saída, com lassidão. Passaram a zona da bagagem, ignorando as pessoas agrupadas em volta dos carroceis
à espera da bagagem. Alguns minutos depois a zona estava deserta. Apenas um saco não reclamado girava abandonado na rampa: um enorme saco preto, devidamente etiquetado,
segundo os regulamentos da navegação aérea, COMANDANTE CHRISTOPHER LEWIS, N.° 4, WINDING BROOK LANE; CHAPIN RIVER, N. J. Dentro do saco, colocada lá à última hora,
estava a fotografia que os pais de Vangie tinham insistido que Chris levasse.
Era a fotografia de um jovem casal num clube nocturno. A inscrição dizia o seguinte: Recordação do meu primeiro encontro com Vangie, a rapariga que mudará a minha
vida. Com amor, Chris.
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Richard telefonou para o Essex House Hotel assim que chegou ao seu apartamento depois de sair da casa dos Kennedys. Mas uma vez mais ninguém respondeu do número
do Dr. Salem. Quando a telefonista restabeleceu a ligação, ele disse:
Telefonista, o Dr. Salem recebeu o recado para me telefonar? Sou o Dr. Carroll.
A voz da mulher era extremamente hesitante.
Vou verificar, sir.
Enquanto esperava, Richard esticou-se e ligou o aparelho de televisão com um movimento súbito. Eyewitness News começara naquele instante. A câmara estava a focar
Central Park South Richard prestou atenção quando o toldo do Essex House Hotel surgiu no ecran. Mesmo quando a telefonista disse:
Vou ligar ao nosso director. Richard ouviu a repórter Gloria Rojas dizer:
Esta noite no prestigioso Essex House Hotel, quartel-general da AMA, um proeminente obstetra-ginecologista, Dr. Emmet Salem de Mineápolis, Minnesota, caiu ou saltou
para a morte.
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Joan Moore, desorientada, estava sentada perto do telefone.
Kay, a que horas disse que telefonava? perguntou ela. A voz tremulou, e ela mordeu o lábio.
A outra jovem olhou para ela com pesar.
Já te disse, Joan. Ele telefonou esta manhã por volta das onze e meia. Disse que entraria em contacto contigo hoje à noite e que deverias esperar pelo telefonema.
Ele parecia transtornado.
A campainha da porta tocou insistentemente, fazendo-as saltar das cadeiras. Kay disse:
Não estou à espera de ninguém. Um instinto qualquer fez com que Joan corresse para a porta e abriu-a bruscamente.
Chris, oh meu Deus, Chris! Abraçou-o. Ele estava com uma palidez de morte, os olhos injectados de sangue, cambaleou enquanto ela o segurava. Chris, o que é?
Joan, Joan. A sua voz era quase um soluço. Estreitou-a nos braços com avidez. Não sei o que está a acontecer. Há algo de errado na morte de Vangie, e agora o único
homem que nos podia elucidar também está morto.
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Ele planeara ir do Essex House directamente para casa, mas depois de sair do parque de estacionamento e começar a subir a West Side Highway no trânsito intenso,
mudou de ideias. Estava com uma fome terrível. O estômago estivera vazio todo o dia. Ele nunca comia antes das operações, e nessa manhã o telefonema de Salem chegara
pouco antes de sair para almoçar.
Nessa noite não queria perder tempo a preparar a refeição. Iria ao Carlyle. Depois se alguma vez se levantasse a questão sobre o seu paradeiro nessa noite, podia
admitir sem mentir que estivera em Nova Iorque. O chefe de mesa garantiria à Polícia que o Dr. Edgar Highley era um cliente estimado e assíduo.
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Comeria salmão defumado, vichyssoise, uma perna de cordeiro... Aboca encheu-se de saliva em antegosto. O súbito e terrível desgaste de energia agora que tudo terminara
precisava de ser corrigido, ainda tinha outro dia à sua frente. Iria haver inevitavelmente uma investigação minuciosa quando Katie DeMaio morresse. Mas o seu antigo
ginecologista aposentara-se e saíra da cidade. Ninguém surgiria do passado com relatórios médicos para o intimar.
E depois estaria salvo. Naquele momento, na convenção da AMA, os médicos estariam provavelmente a discutir sobre o artigo da Newsmaker e a Maternidade e Centro de
Concepção Westlake. Os seus comentários estariam impregnados de inveja, claro. Mas mesmo assim, haveria propostas para ele discursar em futuros seminários da AMA.
Ele já estava na senda da fama pública. E Salem, que o podia ter impedido, estava liquidado. Estava ansioso por examinar a história médica de Vangie na ficha que
tirara a Salem. Incorporá-la-ia nos seus próprios registos. Aquela história seria preciosa na sua investigação futura.
A última paciente nova dessa manhã. Seria a próxima. Estacionou na rua em frente do Carlyle. Eram quase seis e meia. O estacionamento seria legal às sete horas.
Esperaria no carro até a essa hora. Dar-lhe-ia a possibilidade de se acalmar.
A maleta estava na mala do carro, fechada à chave. A ficha de Vangie, o pisa-papéis e o sapato estavam dentro dela. Como se deveria livrar do sapato e do pisa-papéis?
Onde deveria deitá-los? Qualquer um dos cestos do lixo a deitar por fora da cidade serviria. Ninguém os iria lá procurar. Seriam recolhidos de manhã juntamente com
as toneladas de lixo que se acumulavam todas as vinte e quatro horas naquela cidade de oito milhões, perdidos no cheiro de comida em decomposição e jornais postos
de parte...
Faria isso a caminho de casa, protegido pela escuridão, passando despercebido.
Uma sensação de vivacidade com a antecipação de como tudo estava a correr bem fê-lo endireitar-se de repente no assento. Curvou-se e olhou para o retrovisor. Apele
estava a reluzir, como se o suor estivesse prestes a saltar pelos poros. As pálpebras e a pele por baixo dos olhos estavam a acumular tecido gorduroso. O cabelo
na testa não revelava ainda nenhum sinal de queda, mas o ruivo escuro já estava raiado de prateado... Começava a envelhecer. A mudança subtil que começava aos quarenta
e tal anos estava a produzir-se nele. Já tinha quarenta e cinco.
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Bastante jovem, mas era também altura de ele tomar consciência da rápida passagem dos anos. Queria casar de novo? Queria ter os seus próprios filhos? Ele quisera,
mas não de Claire. Quando eles não vieram, examinara o seu esperma, achou-o com um nível surpreendentemente baixo, no seu íntimo culpara-se pela incapacidade de
Claire para engravidar. Até saber que ela o enganara.
Ele não se teria importado de ter um filho de Winifred. Mas tinha ultrapassado praticamente a idade de dar à luz um filho quando casou. Depois de começar a desconfiar
dele, não se deu ao trabalho de lhe tocar. Quando se planeia eliminar alguém, ela já está morta para essa pessoa, e o sexo é para os que vivem.
Mas agora. Uma mulher mais jovem. Uma mulher diferente de Claire e Winifred. Claire, rebaixava-o arrogantemente com os seus comentários sarcásticos sobre a farmácia
do pai; Winifred a benemérita, com as suas causas e obras de caridade. Agora precisava de uma mulher que não só tivesse à-vontade no convívio social, mas que também
gostasse de receber convidados, viajar, associar-se.
Ele detestava essas coisas. Sabia que o seu desprezo era evidente. Precisava de alguém que se encarregasse de tudo isso no seu lugar, que suavizasse a sua imagem.
Um dia poderia levar a cabo o seu trabalho publicamente. Um dia teria a fama que merecia. Um dia os tolos que diziam que o seu trabalho era impraticável seriam obrigados
a reconhecer o seu génio.
Eram sete horas. Saiu do carro e teve o cuidado de o fechar à chave. Caminhou para a entrada do Carlyle, o fato azul-escuro tapado por um casaco de caxemira azul,
os sapatos engraxados, o cabelo com as pontas prateadas que a aragem cortante da noite não emaranhou.
O porteiro segurou a porta para ele entrar.
Boa noite, Dr. Highley. Está um tempo péssimo, não está, sir? Ele acenou sem responder e entrou na sala de jantar. A mesa do canto, que ele preferia, estava reservada,
mas o chefe de mesa mudou rapidamente para outra mesa os clientes que esperavam, e conduziu-o para lá.
O vinho aqueceu-o e acalmou-o. O jantar deu-lhe a energia que ele esperava. A meia taça e o brandy restituíram-lhe o equilíbrio por completo. O espírito estava desanuviado
e frágil. Recapitulou cada passo do processo que levaria Katie DeMaio à morte por hemorragia.
Não haveria erros.
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Ele estava precisamente a assinar o cheque quando o chefe de mesa se aproximou da mesa, com passos desusadamente apressados, comportamento agitado.
Dr. Highley, receio que haja um problema.
Os dedos agarraram a caneta com firmeza. Levantou os olhos.
Sir, é que foi visto um rapaz a espiolhar a mala do seu carro. O porteiro viu-o no momento em que ele a abriu. Antes de poder ser detido, tinha roubado um saco da
mala. A Polícia está lá fora. Pensam que era um drogado que escolheu o seu carro por causa das chapas de licença MD.
Os lábios pareciam borracha. Era difícil articular palavras. Como um aparelho de raio-X examinou mentalmente o conteúdo do saco: o pisa-papéis com manchas de sangue,
a ficha médica não só com o nome de Vangie mas também com o de Salem; o moccasin de Vangie.
Quando falou, a voz estava surpreendentemente firme.
A Polícia pensa que o meu saco será recuperado?
Eu fiz essa pergunta, sir. Receio que não saibam. Pode ser abandonado a alguns quarteirões daqui depois de tirar o que pretende, ou talvez nunca mais apareça. Só
o tempo o dirá.
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Antes de se deitar, Katie acondicionou roupa no saco para a sua estada de uma noite no hospital. O hospital ficava a meio caminho da casa e do escritório, e teria
sido uma perda de tempo desnecessária voltar a casa no dia seguinte por causa do saco.
Apercebeu-se de que estava a arrumar a roupa com um sentido de urgência. Ficaria tão contente quando tudo terminasse. A forte sensação de não estar em boa condição
física estava a arrasá-la mentalmente e emocionalmente. Nessa noite quase se sentira alegre por ir para casa de Molly. Agora sentia-se esgotada, exausta, deprimida.
Era tudo somático, não era?
Ou era o pensamento incómodo que Richard pudesse estar envolvido com alguém que contribuíra para a sensação de depressão.
Talvez quando aquilo não pairasse sobre ela, fosse capaz de pensar com mais clareza. Era como se o espírito estivesse a ser atormentado por pensamentos incompletos,
como uma praga de
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mosquitos, que pousavam, picavam, mas que desapareciam antes que ela os pudesse apanhar. Por que razão tinha a impressão de passar em claro sequências, de não fazer
as perguntas certas, de interpretar mal os sinais?
Segunda-feira sentir-se-ia melhor, pensaria com lucidez.
Com lassidão, tomou um banho de chuveiro, lavou os dentes, escovou o cabelo e meteu-se na cama. Passado um minuto, levantou-se apoiando-se num cotovelo, pegou na
carteira e tirou o pequeno frasco que o Dr. Highley lhe dera.
"Quase me esqueci de tomar este", pensou ela enquanto engolia o comprimido com um golo de água do copo sobre a mesinha-de-cabeceira. Apagando a luz, fechou os olhos.
44
Gertrude Fitzgerald, fatigada, esperou que a água saísse fria na torneira da casa de banho e abriu o frasco de remédio. A enxaqueca começava a abrandar. Se ela não
começasse no outro lado da cabeça, de manhã já estaria boa. O último comprimido devia actuar.
Algo a perturbava... algo sobre a morte de Edna e não só. Estava relacionado com o telefonema da Sr.a DeMaio. Foi tão absurdo perguntar se Edna chamara alguma vez
Príncipe Encantado ao Dr. Fukhito ou ao Dr. Highley. Um perfeito disparate.
Mas Príncipe Encantado.
Edna tinha falado nele. Mas não em relação aos médicos, mas de qualquer maneira fora nas duas últimas semanas. Se ao menos se conseguisse lembrar. Se a Sr.a DeMaio
tivesse perguntado se Edna fizera alguma vez referência a ele, talvez a tivesse ajudado a lembrar-se imediatamente. Agora escapava-lhe, o pormenor exacto.
Ou estava a imaginar? Poder de associação.
Quando aquela dor de cabeça passasse, poderia pensar. Pensar deveras. E lembrar-se, talvez.
Engoliu o comprimido e meteu-se na cama. Fechou os olhos. A voz de Edna ressoou nos seus ouvidos. "E eu disse que o Príncipe Encantado não iria..."
Ela não se conseguia lembrar do resto.
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Às quatro horas da manhã Richard desistiu de tentar dormir, levantou-se e fez café. Telefonara para casa de Scott por causa da morte de Emmet Salem, e Scott alertara
imediatamente a Polícia de Nova Iorque para o facto de o seu departamento querer cooperar na investigação. Fora impossível fazer outra coisa. A Sr.a Salem não estava
em casa, em Mineápolis. O serviço de atendimento do médico só podia fornecer o número de emergência do médico que abrangia a clínica e não sabia como entrar em contacto
com a enfermeira.
Richard começou a fazer anotações. 1. Por que razão telefonou o Dr. Salem para o nosso departamento? 2. Por que razão Vangie marcou uma entrevista com ele? 3. O
bebé Berkeley.
O bebé Berkeley era a chave. A Maternidade e Centro de Concepção era tão famosa como fora apregoado? Ou era uma fachada para adopções para mulheres que ou não podiam
engravidar ou não podiam levar a gravidez a bom termo? Era o facto de elas serem hospitalizadas dois meses antes do suposto parto apenas uma fachada para o que se
tornaria um estado óbvio de não-gravidez?
Era difícil adoptar bebés. Liz Berkeley admitira publicamente que ela e o marido tinham tentado essa via. E se Edgar Highley tivesse dito: "Nunca poderão ter um
filho. Posso arranjar-lhes uma criança. Custar-lhes-á dinheiro e terá de ser absolutamente confidencial."
Eles tinham concordado. Ele tinha quase a certeza.
Mas Vangie Lewis engravidara. Por isso, ela não se encaixava no modelo de adopção. Admitindo que estava desejosa de ter um filho. Mas como esperava ela fazer passar
um bebé oriental como sendo do marido? Haveria alguma hipótese de existir sangue oriental numa das famílias? Nunca pensara nisso.
Os processos por negligência médica. Ele precisava de descobrir a razão que levou aquelas pessoas a processar Highley. E Emmet Salem fora médico de Vangie. O seu
escritório teria os seus relatórios médicos. Seria um ponto de partida.
O corpo de Vangie regressara no avião que Chris Lewis não tomara. Já estava no laboratório. Logo de manhã examinaria de
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novo os resultados da autópsia. Examinaria de novo o corpo. Havia qualquer coisa... Na altura não parecera importante. Passara uma esponja sobre isso. Estava demasiado
ocupado com as queimaduras de cianido.
Seria possível que Vangie tivesse simplesmente derramado cianido por cima dela? Talvez estivesse terrivelmente nervosa. Mas o copo teria mais impressões digitais.
Tê-lo-ia apanhado e enchido de novo; devia haver alguma coisa um invólucro, um frasco pequeno de que ela se tivesse servido que levasse mais cianido.
Não sucedera assim.
Às cinco e meia Richard apagou a luz. Pôs o despertador para as sete. O sono chegou finalmente. E sonhou com Katie. Estava parada atrás do apartamento de Edna Burns
a espreitar pela janela, e o Dr. Edgar Highley estava a observá-la.
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Como é próprio de um guarda-livros, Edna possuía registos meticulosos. Quando a equipa de investigação encabeçada por Phil Cunningham e Charley Nugent iniciaram
o trabalho no seu apartamento sexta-feira de manhã, descobriram uma declaração simples com um frontispício antiquado:
Uma vez que o meu único parente nunca se deu ao trabalho de perguntar pelos meus queridos pais quando estiveram doentes nem de mandar um cartão, decidi deixar os
meus bens materiais às minhas amigas, à Sr.a Gertrude Fitzgerald e à Sr.a Gana Krupshak. A Sr.a Fitzgerald deve receber o meu anel de diamantes e os objectos da
casa que quiser. A Sr.a Krupshak deve receber o meu broche de diamantes, o meu casaco de pele artificial e os objectos da casa que a Sr.a Fitzgerald não quiser.
Tratei do meu funeral com a agência que tratou tão bem das disposições dos meus pais. A minha apólice de seguro de 10 000 dólares, excepto as despesas do funeral
será dada à casa de saúde que tratou tão bem dos meus pais e para quem ainda estou em dívida.
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Metodicamente, a equipa deitou pó em busca de impressões digitais, aspirou em busca de cabelos e fibras, procuraram sinais de arrombamento. Uma mancha de lama na
base da planta do peitoril no quarto originou as rugas à volta dos olhos de Phil e a testa ficou franzida. Foi pelas traseiras do prédio de apartamentos, raspou
prudentemente uma amostra de lama gelada para dentro de um envelope e com as pontas dos dedos levantou a janela do quarto. Para uma pessoa de estatura mediana, era
bastante baixa para se passar por cima.
Possível disse ele a Charley. Alguém podia ter entrado por aqui e espiado a mulher. Mas com a terra tão gelada, provavelmente nunca poderás prová-lo.
Como última diligência, tocaram às campainhas de todos os vizinhos do pátio. A questão era simples: alguém tinha visto alguma pessoa estranha nas proximidades na
noite de terça-feira?
Realmente não esperavam ser bem sucedidos. A noite de terça-feira estava escura e fria. Os arbustos por podar teriam possibilitado a qualquer pessoa, que não quisesse
ser vista, ficar nas sombras do prédio.
Mas no último apartamento tiveram um êxito inesperado. Um rapaz de onze anos de idade acabara de chegar da escola para o almoço. Ouviu a pergunta que foi feita à
mãe.
Oh, eu disse a um homem em que apartamento vivia a Menina Burns informou ele. A mãe lembra-se, quando me obrigou a levar o Porgy a passear antes de eu ir para a
cama, logo a seguir a Happy Days...
Deve ter sido às nove e meia disse a mãe do rapaz. Não me disseste que falaste com uma pessoa disse ela para o filho, num tom de acusação.
O rapaz encolheu os ombros.
Era uma coisa sem importância. Um homem estacionou o carro na borda do passeio no momento em que eu descia o quarteirão. Perguntou-me se eu sabia onde era o apartamento
da Menina Burns. Indiquei-lho. É tudo.
Que aspecto tinha? perguntou Charley. O rapaz franziu as sobrancelhas.
Oh, tinha bom aspecto. Parece que tinha cabelo escuro, era alto e o carro era bonito. Era um "Vette".
Charley e Phil olharam um para o outro.
Chris Lewis disse Charley sem hesitar.
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47
Na manhã de sexta-feira, Katie entrou no escritório às sete horas e iniciou uma última análise do caso em que actuava como juiz. Os réus eram irmãos com dezoito
e dezassete anos respectivamente, acusados de actos de vandalismo por incendiarem doze salas de aula em duas escolas.
Maureen entrou às oito e meia trazendo uma cafeteira de café a fumegar. Katie levantou os olhos.
Vou prender aqueles dois dizia ela. Fizeram aquilo por prazer por prazer. Quando uma pessoa sabe o esforço que se faz para se pagarem os impostos para se manterem
as escolas que os filhos frequentam, é revoltante, é mais do que um crime.
Maureen pegou na chávena de Katie e encheu-a.
Uma dessas escolas fica situada na cidade onde vivo, e as crianças da casa ao lado da minha frequentam-na. O que tem dez anos concluíra um projecto para a exposição
de ciências. Era fantástico, uma unidade de aquecimento solar. Pobre miúdo trabalhou nele durante meses. Foi destruída durante o incêndio. Não ficou nada.
Katie fez uma anotação na margem da exposição de abertura.
Isso dá-me mais algumas munições. Obrigada.
Katie... A voz de Maureen era hesitante. Katie olhou para os olhos verdes perturbados.
- Sim?
Rita contou-me que lhe falou do... do bebé.
Sim, falou. Lamento profundamente, Maureen
É que eu não consigo superar isto. E agora este caso da Vangie Lewis... todo esse falatório sobre isso... só me traz isso à memória. Tenho tentado esquecer...
Katie acenou com a cabeça.
Maureen, teria dado tudo para ter tido um filho quando John morreu. Naquele ano rezei para engravidar, assim teria alguma coisa dele. Quando penso em todas as amigas
que tenho e que decidiram nunca ter filhos ou que fizeram abortos com a mesma indiferença com que arranjam o cabelo, interrogo-me sobre a finalidade da vida. Só
peço a Deus que um dia tenha
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filhos. Você também, claro, e ambas iremos estimá-los porque não temos os que já tínhamos desejado.
Os olhos de Maureen estavam marejados de lágrimas.
Assim espero. Mas é que no caso de Vangie Lewis... O telefone tocou. Katie pegou no auscultador. Era Scott.
Ainda bem que está aí, Katie. Pode vir aqui por um minuto?
Claro. Katie levantou-se. Scott precisa de mim agora. Conversaremos mais tarde, Maureen. Impulsivamente, abraçou a rapariga.
Scott estava em pé junto à janela a olhar fixamente para o exterior. Katie tinha a certeza de que ele não estava a ver as janelas com grades da prisão do distrito.
Virou-se quando ela entrou.
Hoje tem um julgamento... Os irmãos Odendall?
Tenho. Temos um bom caso.
Quanto tempo vai demorar?
Quase todo o dia, tenho a certeza. Vão apresentar provas de integridade do professor do jardim infantil, mas havemos de os apanhar.
Geralmente consegue, Katie. Ainda não ouviu falar do D. Salem? Refere-se ao médico de Mineápolis que telefonou a Richard? Não, esta manhã não falei com ninguém.
Fui directamente para o escritório.
Ele caiu, ou foi empurrado, de uma janela abaixo no Essex House ontem à noite alguns minutos depois de entrar no hotel. Estamos a trabalhar no caso com a Polícia
de Nova Iorque. E a propósito, o corpo de Vangie Lewis chegou ontem à noite de Mineápolis, mas Lewis não vinha no avião.
Katie olhou fixamente para Scott.
Que está a dizer?
Estou a dizer que ele provavelmente apanhou o avião que foi para LaGuardia. Deve-o ter deixado em Nova Iorque mais ou menos à hora em que Salem entrou no hotel.
Estou a dizer que se descobrirmos que ele esteve nas proximidades do hotel, talvez possamos encerrar este caso. Não gosto do suicídio Lewis, não gosto da morte acidental
de Edna Burns e não me agrada a ideia de Salem ter caído de uma janela abaixo.
Não acredito que Chris Lewis seja um assassino disse Katie sem hesitar. Onde pensa que ele está agora?
Scott encolheu os ombros.
Escondido algures em Nova Iorque, provavelmente. Julgo que quando falarmos com a namorada ela nos conduzirá a ele, deve vir hoje à noite da Florida. Pode estar por
aqui à tardinha?
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Katie hesitou.
Este é o fim-de-semana em que tenho de me ausentar. É algo que não posso alterar. Mas vou ser sincera, Scott. Sinto-me terrivelmente mal por nem sequer pensar com
lucidez. Vou terminar este julgamento... estou bem preparada; mas depois vou-me embora.
Scott observou-a.
Disse-lhe toda a semana que não devia ter vindo disse ele, e neste momento está mais pálida do que estava na terça-feira de manhã. Está bem, termine esse julgamento
e afaste-se daqui. Na próxima semana haverá muito trabalho sobre este caso. Segunda-feira examinaremos tudo. Acha que já cá estará?
De certeza.
Devia fazer um exame médico completo.
Vou a um médico esta semana.
Óptimo.
Scott olhou para a secretária, um sinal de que terminara a reunião. Katie voltou para o seu escritório. Eram quase nove horas, e era esperada no tribunal. Reviu
mentalmente o horário dos comprimidos que o Dr. Highley lhe dera. Tomara um na noite anterior, outro às seis horas da manhã. Nesse dia devia tomar um de três em
três horas. Era melhor engolir um antes de ir para o tribunal. Tomou-o com o último golo de café da chávena sobre a secretária, depois pegou na pasta. Aborda fina
da primeira página da pasta cortou-lhe um dedo. Arfou com a guinada e tirou rapidamente um pedaço de tecido da gaveta de cima enrolou-o no dedo e saiu apressadamente
da sala.
Quando meia hora depois, com o resto das pessoas na sala do tribunal, se levantou ao entrar o juiz, o tecido ainda estava cheio de sangue.
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Edna Burns foi sepultada na manhã de sexta-feira depois de uma Missa da Ressurreição às onze horas na Igreja de S. Francisco Xavier. Gana Krupshak e Gertrude Fitzgerald
seguiram o caixão até ao cemitério não muito distante e, segurando na mão uma da outra com firmeza, viram Edna a ser depositada na
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sepultura com os seus pais. O padre, Reverendo Durkin, fez a última cerimónia, espargiu água benta sobre o caixão e acompanhou-as de novo até ao carro de Gertrude.
As senhoras não querem tomar uma chávena de café comigo? perguntou ele.
Gertrude passou a mão pelos olhos e abanou a cabeça.
Tenho de ir trabalhar disse ela. Estou a substituir a Edna até arranjarem outra recepcionista, e ambos os médicos têm horas de expediente esta tarde. A Sr.a Krupshak
também recusou.
Reverendo, se o senhor vai de novo para a reitoria, não me poderia levar? Assim, a Gertrude não teria de fazer um desvio por minha causa.
- Claro.
Gana virou-se para Gertrude. Disse impulsivamente:
Por que é que não vai jantar connosco hoje? Estou a fazer um assado excelente.
A ideia de regressar sozinha para o apartamento afligiu Gertrude, e aceitou prontamente o convite. Seria bom conversar sobre Edna nessa noite com uma pessoa que
tinha sido amiga dela. Queria expressar a Gana a vergonha gritante que foi o facto de nenhum dos médicos ter ido à Missa, pelo menos o Dr. Fukhito mandara flores.
Talvez desabafar com Gana a ajudasse a raciocinar e assim seria capaz de dominar aquele pensamento que não deixava de andar à volta dentro da sua cabeça sobre qualquer
coisa que Edna lhe dissera.
Despediu-se de Gana e do reverendo Durkin, meteu-se no carro, ligou a ignição e destravou o carro. O rosto do Dr. Highley apareceu com uma forma vaga no seu espírito;
aqueles olhos grandes, frios, semelhantes aos de um peixe. Oh, ele fora bastante simpático para com ela terça-feira à noite, dando-lhe o comprimido para a acalmar
e tudo o mais. Mas havia qualquer coisa de estranho nele naquela noite. Como quando lhe foi buscar o copo de água, ela começara a segui-lo. Não queria que ele fosse
seu criado. Ele abrira a torneira e entrara no quarto. Do vestíbulo vira-o a tirar o lenço e a começar a abrir a mesinha-de-cabeceira de Edna.
Então, aquele simpático Dr. Carroll atravessara o vestíbulo e o Dr. Highley tinha fechado a gaveta, metido o lenço no bolso e recuou para que parecesse que apenas
estava parado na soleira da porta do quarto.
Gertrude deixou que o Dr. Carroll passasse por ela, depois esgueirou-se de novo para a sala de estar. Não queria que
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pensassem que estava a tentar escutar o que estavam a dizer. Mas se o Dr. Highley queria alguma coisa da gaveta, por que razão não o disse e depois ia buscá-la?
E por que razão abrira a gaveta com os dedos envoltos num lenço? Certamente não achava que o apartamento de Edna estava sujo de mais para ele lhe tocar. Ora, estava
imaculado!
O Dr. Highley sempre foi um homem estranho. Para falar verdade, como Edna, sempre tivera um pouco de medo dele. Ela nunca ocuparia o lugar de Edna se lho oferecessem.
Tomada esta resolução, Gertrude saiu da calçada do cemitério e seguiu para Forest Avenue.
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O corpo sem vida de Vangie Lewis foi colocado sobre a laje da sala de autópsia do Examinador Médico de Valley County. Com o rosto impassível, Richard prestou atenção
quando o seu assistente tirou o cafetã de seda que devia ter sido a veste de enterro de Vangie. O que parecera suave e natural à luz fraca da pequena sala funerária
agora assemelhava-se a um manequim de um centro comercial, feições com uma total ausência de vida.
O cabelo loiro de Vangie fora cuidadosamente penteado para pender sobre os ombros. A laca já começara a endurecer, separando os cabelos em madeixas finas como a
palha. Fugazmente, Richard lembrou-se que St. Francis Borgia abandonara a vida na corte e entrara para um convento depois de ver o corpo putrefacto de uma rainha
que outrora fora bela.
Bruscamente, concentrou o pensamento no problema médico que enfrentava. Ele deixara escapar qualquer coisa no corpo de Vangie na tarde de terça-feira. Tinha a certeza
disso. Era algo relacionado com as pernas ou os pés. Concentraria aí a sua atenção.
Quinze minutos depois encontrou o que procurava: um arranhão de duas polegadas no pé esquerdo de Vangie. Não ligara porque estava muito ocupado com as queimaduras
de cianido e o feto.
Aquele arranhão era recente. Não havia nenhum vestígio de cicatrização. Era isso que o tinha perturbado O pé de Vangie fora arranhado pouco antes da morte, e Charley
descobrira um
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bocado de tecido do vestido que ela envergava quando morreu preso numa ferramenta afiada no interior da garagem. Richard virou-se para o assistente.
O laboratório já deve ter terminado os exames das roupas que a Sr.a Lewis usava quando a trouxemos para aqui. Se não se importa, vá buscá-las e vista-lhas outra
vez. Chame-me quando ela estiver pronta.
De novo no escritório, escrevinhou num bloco: Sapatos que Vangie trazia quando encontrada. Sapatos práticos, bastante gastos dos lados. Não os podia trazer calçados
quando arranhou o pé.
Começou a examinar os apontamentos que fizera durante a noite. O bebé Berkeley. Ia falar com Jim Berkeley, obrigá-lo-ia a admitir que o bebé foi adoptado.
Mas que provaria isso?
Nada em si, mas iniciaria a investigação. Assim que aquela confissão fosse feita, toda a Maternidade e Centro de Concepção Westlake revelar-se-ia como uma fraude
gigantesca.
Alguém seria capaz de matar para impedir que essa fraude fosse descoberta?
Precisava de ver os relatórios médicos do Dr. Salem sobre Vangie Lewis. Scott já devia ter entrado em contacto com o consultório do Dr. Salem. Rapidamente, marcou
o número de telefone de Scott.
Falou com a enfermeira de Salem?
Falei, e com a mulher também. Ambas estão muito abaladas. Ambas julgam que ele não tinha nenhuma indicação de pressão arterial alta ou tonturas. Nenhum problema
pessoal, nenhum problema financeiro, uma agenda cheia de conferências para os próximos seis meses. Por isso digo-lhe, esqueça a hipótese de suicídio e queda acidental.
E em relação a Vangie Lewis? Que sabia a enfermeira?
O Dr. Salem mandou-a ir buscar a ficha de Vangie ontem de manhã ao escritório. Então, antes de ir apanhar o avião, fez uma chamada interurbana.
Podia ter sido a que ele me fez.
Possivelmente. Mas a enfermeira afirmou que ele lhe disse que tinha de fazer outras chamadas interurbanas, mas usara o cartão de crédito no aeroporto depois de o
ter visto para o voo. Aparentemente estava obcecado por chegar ao aeroporto com muita antecedência.
Ela vai-nos mandar a ficha de Vangie? Quero vê-la.
Não, não vai. A voz de Scott tornou-se mais dura. O Dr. Salem levou-a com ele. Ela viu-o a metê-la na mala de
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documentos. Essa mala foi encontrada no quarto. Mas a ficha Lewis não estava lá. E ouça isto: depois do Dr. Salem partir, Chris Lewis telefonou para o consultório.
Disse que precisava de falar com Salem. A enfermeira disse-lhe onde o Dr. Salem ia ficar hospedado em Nova Iorque, até lhe deu o número do quarto. Vou-lhe dizer
uma coisa, Richard: ao fim do dia espero estar a emitir um mandato para a captura de Lewis.
Quer dizer que havia qualquer coisa naquela ficha que levaria Chris Lewis a matar para a conseguir? Isso custa a crer.
Alguém queria aquela ficha disse Scott. É mais que evidente, não é?
Richard pousou o auscultador. Alguém queria a ficha. A ficha médica. Quem saberia o que havia nela que pudesse constituir uma ameaça?
Um médico.
As suspeitas de Katie em relação ao psiquiatra seriam justificadas? E Edgar Highley? Ele viria a Valley County com a aprovação do nome Westlake, um nome respeitado
nos círculos médicos de Nova Jérsia.
Impacientemente, Richard procurou na secretária a tira de papel que Marge lhe dera com os nomes das duas pacientes que tinham apresentado uma acção judicial contra
Edgar Highley por negligência médica.
Anthony Caldwell, Old Country Lane, Peapack.
Anna Horan, 415 Walnut Street, Ridgefield Park.
Ligando o intercomunicador, pediu a Marge que tentasse telefonar às duas pessoas.
Marge entrou alguns minutos depois.
ttAnthony Caldwell já não vive neste endereço. Mudou-se para Michigan no ano passado. Atendeu-me uma vizinha. Ela disse-me que a mulher dele morreu de uma gravidez
tubar e que apresentou uma acção judicial contra o médico, mas foi rejeitada. Ela estava ansiosa por falar nisso. Afirmou que a Sr.a Caldwell tinha sido informada
por outros dois médicos de que nunca engravidaria, mas que logo que começou o plano da Maternidade e Centro de Concepção Westlake engravidou. Mas sentiu-se sempre
muito mal e acabou por morrer no quarto mês de gravidez.
Isso por agora já me chega disse Richard. Vamos citar todos os registos do hospital. E em relação à Sr.a Horan?
Apanhei o marido em casa. É estudante de Direito em Rutgers. Diz que trabalha como programadora de computadores. Deu-me o número do telefone do emprego. Quer que
eu a ponha em contacto com o senhor?
Sim, por favor.
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Marge pegou no telefone de Richard, marcou o número e perguntou pela Sr.a Anna Horan. Pouco depois, ela disse:
Sr.a Horan, um momento, por favor. É o Dr. Carroll. Richard pegou no auscultador.
- Sr.a Horan.
Sim. Havia uma inflexão cadenciada na voz, um sotaque que ele não conseguia identificar.
Sr.a Horan, a senhora apresentou uma acção judicial por negligência médica no ano passado contra o Dr. Edgar Highley. Seria possível fazer-lhe umas perguntas sobre
esse caso. Está disposta a falar?
A voz no outro telefone tornou-se agitada.
Não... aqui não.
Compreendo. Mas é urgente. Seria possível vir hoje ao meu escritório depois do trabalho para conversar comigo?
Sim... está bem. Era evidente que a mulher queria desligar o telefone.
Richard deu o endereço do escritório e deu-lhe indicações, mas foi interrompido.
Eu sei o caminho... estarei aí por volta das cinco e meia. A ligação foi cortada. Richard olhou para Marge e encolheu os ombros.
Ela não ficou nada satisfeita, mas vem.
Era quase meio-dia. Richard resolveu ir à sala de tribunal onde Katie estava a julgar o caso Odendall para ver se iria almoçar com ele. Queria ventilar as suas ideias
sobre Edgar Highley. Katie entrevistara-o. Qual fora a reacção dela? Concordaria que talvez houvesse algo de errado na Maternidade e Centro de Concepção Westlake
um recinto de bebés ou um médico que arriscava a vida das suas pacientes?
Quando chegou à sala do tribunal, só lá estava Katie, que continuava sentada na mesa do promotor de justiça.
Preocupada com as suas anotações, mal levantou os olhos quando ele se aproximou. Quando sugeriu o almoço ela abanou a cabeça.
Richard, estou ocupada com isto. Aqueles canalhas retractaram-se da confissão. Agora estão a tentar asseverar que foi outra pessoa que deitou fogo, e eles são uns
mentirosos tão convincentes que aposto que o júri se vai deixar levar. Tenho de trabalhar no interrogatório. Os seus olhos fixaram-se de novo nas anotações.
Richard observou-a. Apele geralmente cor de azeitona estava lívida. Os olhos, quando olhara para ele, estavam mortiços e turvos. Reparou no tecido enrolado no dedo.
Suavemente, estendeu a mão e desenrolou-o.
Katie levantou os olhos.
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O que... oh, aquela maldita coisa. Deve ser fundo. Tem estado a sangrar toda a manhã. Precisava daquilo.
Richard examinou o golpe. Liberto do tecido, começou a sangrar. Comprimindo o tecido sobre o golpe, pegou num elástico e enrolou-o acima do golpe.
Deixa ficar isto cerca de vinte minutos. Isto deve estagná-lo. Tens tido algum problema de coagulação, Katie?
Tenho, alguns. Mas, Richard, agora não posso falar disso. Este caso está-me a fugir e eu sinto-me tão mal. Embargou-se-lhe a voz.
Na sala do tribunal só estavam os dois. Richard baixou-se e estreitou-a nos braços. Encostou a cabeça ao seu peito e pousou os lábios no seu cabelo.
Katie, vou-me já embora. Mas onde quer que vás este fim-de-semana, pensa um pouco. Porque estou a tentar a minha sorte. Preciso de ti. Quero cuidar de ti. Se há
alguém com quem te encontres agora, diz-lhe que tem um rival difícil, porque quem quer que seja, não está a olhar por ti. Se é o passado que te prende, vou tentar
quebrar essa força.
Ele endireitou-se.
Agora vai em frente e ganha o teu caso. Tu consegues. E por amor de Deus não trabalhes de mais este fim-de-semana. Segunda-feira, vou precisar da tua colaboração
num ângulo que vejo a desenvolver-se no caso Lewis.
Sentira tanto frio durante a manhã, um frio exasperador, um frio glacial. Nem mesmo o vestido de lã com mangas compridas ajudara. Agora, tão perto de Richard o calor
do seu corpo transmitia-se a ela. Quando ele se virou para se ir embora, ela agarrou-lhe impulsivamente a mão e encostou-a ao rosto.
Segunda-feira disse ela.
Segunda-feira concordou ele, e saiu da sala do tribunal.
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Antes de abandonarem o complexo de apartamentos com jardins, onde Edna vivera, Charley e Phil tocaram à campainha dos Krupshak. Gana acabara de chegar do funeral.
Terminámos a investigação no apartamento disse-lhe Charley. Já pode entrar nele. Mostrou-lhe o bilhete que Edna deixara. Tenho de verificar se isso constitui um
testamento,
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mas todas aquelas bugigangas não valem mil dólares, por isso creio que lhe devolveremos as jóias, e a senhora e a Sr.a Fitzgerald podem dividi-las assim como o mobiliário.
Pelo menos, podem dar-lhes uma vista de olhos e decidirem entre as duas; mas por enquanto não tirem nada.
Os dois investigadores regressaram ao escritório e foram directamente para o laboratório, onde entregaram o conteúdo do saco do aspirador, a planta que estava no
peitoril da janela e as partículas de terra que tinham recolhido do chão.
Examinem isto imediatamente ordenou Phil. Este material tem prioridade.
Scott estava à espera deles no gabinete. Ao saber que Chris estivera nas proximidades do apartamento de Edna na noite de terça-feira, bufou de satisfação.
Parece que o Lewis esteve em toda a parte esta semana disse ele, e onde quer que ele esteve morreu uma pessoa. Esta manhã mandei Rita a Nova Iorque com uma fotografia
de Chris Lewis. Dois porteiros identificaram-no como sendo o homem que esteve no vestíbulo do Essex House por volta das cinco horas. Estou a emitir um APB para ele
e a elaborar um mandato para a sua captura.
Tocou o telefone. Impacientemente, pegou nele e identificou-se. Depois com a mão sobre o auscultador, disse:
A namorada de Chris Lewis está a telefonar da Florida... Está lá, sim, daqui fala o promotor de justiça. Calou-se. Sim, procuramos o comandante Lewis. Sabe onde
ele está?
Charley e Phil trocaram olhares. A testa de Scott enrugou-se enquanto escutava.
Muito bem. Virá no avião com a senhora, que chegará a Newark às sete horas. Fico muito satisfeito por saber que ele se entrega voluntariamente. Se ele quiser aconselhar-se
com um advogado, talvez queira ter um aqui. Obrigado.
Ele pousou o auscultador.
Lewis vem aí disse ele. Esta noite esclareceremos este caso.
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Durante a longa noite de vigília, Edgar Highley racionalizou o problema do saco roubado. Talvez nunca aparecesse. Se tivesse sido abandonado depois do ladrão o ter
examinado, provavelmente nunca mais o veria. Poucas pessoas se dariam ao
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trabalho de tentar restituí-lo. O mais certo era ficarem com o saco e deitarem fora o conteúdo.
E se o saco fosse recuperado intacto pela Polícia de Nova Iorque? O seu nome e endereço do hospital estavam dentro dele. Se a Polícia lhe telefonasse, provavelmente
pediria uma lista dos objectos. Ele mencionaria simplesmente alguns medicamentos vulgares, alguns instrumentos cirúrgicos e várias fichas de pacientes. Uma ficha
médica com o nome de VANGIE LEWIS na etiqueta não lhes diria nada. Provavelmente não se dariam ao trabalho de a examinar. Limitar-se-iam a presumir que era dele.
Se quisessem fazer perguntas sobre o sapato e o pisa-papéis com manchas de sangue, negaria ter conhecimento da sua existência; obviamente chamaria a atenção para
o facto de que o ladrão os devia ter posto lá.
Não haveria problemas. E nessa noite o último problema seria eliminado. Às cinco da manhã deixou de se esforçar por adormecer, tomou um banho de chuveiro, ficando
sob o jacto quente e ficou perto de dez minutos até a casa de banho ficar cheia de vapor, vestiu um roupão pesado que lhe chegava aos tornozelos e foi para a cozinha.
Só ia para o consultório ao meio-dia, mas antes disso faria as visitas no hospital. Até lá examinaria os apontamentos da sua investigação científica. A paciente
da véspera seria a sua nova experiência. Mas ainda não escolhera o dador.
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Às quatro horas, Richard, Scott, Charley e Phil examinaram o corpo de Vangie Lewis, já com as roupas com que morrera. O bocado de tecido florido, que fora encontrado
na forquilha na garagem, ajustava-se perfeitamente no rasgão próximo da bainha do vestido. A meia-calça no pé esquerdo evidenciava um corte com duas polegadas mesmo
por cima do golpe recente.
Não há vestígio de sangue na roupa interior disse Richard Ela já estava morta quando o pé ficou preso na forquilha.
Que altura tinha a prateleira onde estava a forquilha? perguntou Scott.
Phill encolheu os ombros.
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Cerca de dois pés do chão.
Isso significa que alguém transportou Vangie Lewis através da garagem, colocou-a em cima da cama e tentou dar o aspecto de suicídio disse Scott.
Sem dúvida concordou Richard. Mas estava de sobrancelhas carregadas. Qual é a altura de Chris Lewis? perguntou ele.
Scott encolheu os ombros.
Ele é alto. Talvez cerca de um metro e setenta. Porquê?
Vamos experimentar uma coisa. Esperam um minuto. Richard saiu da sala, voltando com uma régua. Cuidadosamente, marcou na parede alturas de dois, três e quatro pés
do chão. Se partirmos do princípio que Chris Lewis foi a pessoa que levou Vangie para dentro de casa, creio que ela não se arranhou naquela forquilha. Virou-se para
Phil. Tem a certeza de que a prateleira estava a dois pés do chão?
Phil encolheu os ombros.
Cerca de uma polegada. Charley concordou com um aceno de cabeça.
Muito bem. Tenho quase um metro e oitenta. Suavemente, Richard pôs um braço por baixo do pescoço da mulher morta, o outro por baixo dos joelhos. Pegando nela, aproximou-se
da parede. Vejam onde chegam os pés dela. Era baixa. Ela não teria sido ferida por nenhum objecto a altura inferior a três pés na prateleira se foi transportada
por um homem alto. Por outro lado... Aproximou-se de Phill. Qual é a sua altura... Cerca de um metro e sessenta?
Mais ou menos.
Muito bem. Chris Lewis tem cerca de quinze centímetros a mais. Pegue nela e veja onde chega o pé quando a tiver nos braços.
Cautelosamente, Phil segurou o corpo e aproximou-se da parede. O pé de Vangie roçou na primeira marca que Richard fizera. Rapidamente Phil colocou-a de novo sobre
a laje.
Scott abanou a cabeça.
Inconcludente. Impossível de calcular. Talvez ele se tivesse curvado, procurando mantê-la afastada dele. Virou-se para o assistente. Vamos querer aquelas roupas
como prova. Trate bem delas. Tire algumas fotografias ao golpe, às meias e ao vestido.
Voltou ao escritório acompanhado por Richard.
Você ainda está a pensar no psiquiatra, não está? perguntou ele. Tem cerca de um metro e sessenta.
Richard hesitou e resolveu não dizer nada antes de falar com
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Jim Berkeley e com a paciente que apresentara a acção judicial por negligência médica. Mudou de assunto.
Como é que a Katie se está a sair? Scott abanou a cabeça.
É difícil de dizer. Aqueles vadios atribuem a responsabilidade do acto de vandalismo a um dos amigos que morreu num desastre de motorizada em Novembro último. A
nova versão é que eles pagam as favas porque têm pena dos pais dele, mas agora o padre persuadiu-os a dizer a verdade por causa da sua própria família.
Richard bufou.
O júri não se está a deixar levar por isso, pois não? Scott afirmou:
Já terminou. Preste atenção, por mais que se esforce na escolha do júri, há sempre um coração generoso que se deixa levar por uma história comovente. Katie fez um
excelente trabalho, mas podia ter tido outro desfecho. Muito bem. Até logo.
Às quatro e meia, Jim Berkeley retribuiu o telefonema de Richard.
Fui informado que tem tentado entrar em contacto comigo. A sua voz era cautelosa.
Sim. Richard respondeu no mesmo tom impessoal do outro homem. É importante que fale com o senhor. Pode passar pelo meu escritório quando for para casa?
Sim, posso. Naquele momento a voz de Jim tornou-se resignada. E creio que sei sobre o que quer falar.
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Edgar Highley afastou-se da rapariga sobre a mesa de observações. Já se pode vestir.
Ela afirmara ter vinte anos, mas ele tinha a certeza de que ela não tinha mais de dezasseis ou dezassete anos.
Eu estou...
Sim, minha cara. Efectivamente está grávida. Cerca de seis semanas, suponho. Quero que volte amanhã de manhã e nós poremos termo à gravidez.
Eu estava a pensar: acha que devia ter o bebé e fazer com que o adoptassem?
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Falou nisto aos seus pais?
Não. Ficariam muito aborrecidos.
Então, sugiro que adie a maternidade por vários anos, pelo menos. Amanhã às dez horas.
Ele saiu da sala, entrou no gabinete e procurou o número do telefone da nova paciente que escolhera na véspera.
Sr.a Englehart, daqui fala o Dr. Highley. Quero iniciar o seu tratamento. Quer ter a bondade de vir ao hospital amanhã de manhã às oito e meia e preparar-se para
pernoitar.
54
Enquanto o júri deliberava, Katie entrou no bar do tribunal. Escolheu cuidadosamente uma mesa pequena ao fundo da sala e sentou-se de costas para as outras mesas.
Não queria que ninguém fosse ter com ela ou a visse. A sensação de tontura já era persistente; sentia-se fatigada e fraca, mas não tinha fome. "Só uma chávena de
chá", pensou. "A mamã sempre fora de opinião que uma chávena de chá curava todos os males do mundo." Lembrava-se de voltar para casa depois do funeral de John, da
voz preocupada, suave da mãe: "Vou-te arranjar uma boa chávena de chá quente, Katie."
Richard. A mamã iria adorar Richard. Sempre gostou de homens altos. "O teu pai era magro e baixo, Katie, mas não parecia um grande homem?"
"Sim, parecia."
A mãe vinha na Páscoa. Só faltavam seis semanas. A mãe ficaria muito satisfeita se ela e Richard andassem juntos.
"Eu quero que isso aconteça, não quero?", pensou Katie enquanto bebia lentamente o chá. "Não é apenas por me sentir tão só esta semana."
Era mais do que isso. Muito mais. Mas nesse fim-de-semana no hospital, poderia pôr as ideias em ordem, pensar calmamente.
Ficou sentada quase uma hora, distraída a beber lentamente o chá recapitulando cada passo do seu resumo. Convencera o júri de que os Odendall estavam a mentir? O
padre. Por esse lado ganhara. Ele concordara que nenhum dos rapazes era frequentador da igreja; que nenhum dos rapazes nunca o tinham
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consultado. Seria possível que ele estivesse a ser usado por eles para reforçar a sua história? "Sim", concordou ele. "É possível." Ela provara que tinha a razão.
Tinha a certeza.
Às cinco horas regressou à sala do tribunal. Quando ela entrou o júri informou o juiz que tinha chegado a um veredicto.
Passado cinco minutos, o presidente dos jurados anunciou o veredicto:
Robert Odendall declarado inocente em todos os pontos de acusação. Jonathan Odendall, declarado inocente em todos os pontos de acusação.
Não posso acreditar. Katie não tinha a certeza se falara em voz alta. O rosto do juiz ficou com rugas profundas de irritação. Mandou sair os jurados com rispidez
e disse aos réus que se levantassem.
Vocês são muito afortunados disse ele com brusquidão, mais afortunados do que eu espero que jamais sejam nas vossas vidas. Agora saiam da minha sala, e se vocês
são espertos nunca mais aparecerão à minha frente.
Katie levantou-se. Independentemente do que o juiz sentia na realidade, o veredicto era incorrecto, ela perdera o caso. Ela devia ter-se esforçado mais. Em vez de
ver, sentiu o sorriso triunfante do advogado de defesa a atingi-la. Um caroço espesso e duro queimava-lhe a garganta, impedindo-a de engolir. Estava prestes a chorar.
Aqueles criminosos iam ser largados nas ruas injustamente. Um rapaz morto fora rotulado de criminoso.
Meteu os apontamentos na pasta. Talvez se ela não se tivesse sentido tão mal durante toda a semana teria orientado melhor o caso. Talvez se tivesse tratado do problema
da hemorragia há um ano em vez de adiar por causa daquele medo disparatado e infantil de hospitais, não teria tido o acidente na noite de segunda-feira.
O Estado quer ter a bondade de se aproximar?
Ela levantou os olhos. O juiz estava-lhe a fazer sinal. Dirigiu-se a ele. Os espectadores saiam em fila. Podia ouvir os gritos de alegria enquanto os Odendall abraçavam
as namoradas, com pastilhas elásticas na boca e sem soutien.
Excelência. Katie conseguiu manter a voz firme. O juiz curvou-se e sussurrou-lhe:
Não deixe que isto a deprima, Katie. Você provou este caso. Aqueles canalhas dentro de dois meses estarão aqui outra vez sob outras acusações. Ambos sabemos disso,
mas da próxima vez apanhamo-los.
Katie tentou sorrir.
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É precisamente disso que eu tenho medo, que eles voltem. Só Deus sabe os danos que farão antes de os podermos apanhar. Mas obrigada, senhor juiz.
Ela abandonou a sala do tribunal e voltou para o escritório. Maureen levantou os olhos com esperança. Katie abanou a cabeça e viu a expressão transformar-se em pena.
Encolheu os ombros.
Que podemos fazer, huh? Maureen seguiu-a até ao escritório.
Sr. Meyerson e o Dr. Carroll estão numa reunião. Não querem ser incomodados. Mas claro, a senhora pode entrar.
Não. Tenho a certeza de que é sobre o caso Lewis, e neste momento não lhes poderia ser útil a eles nem a ninguém. Na segunda-feira ponho tudo em dia.
Está bem. Katie, estou desolada por causa do veredicto do caso Odendall, mas tente não levar isso tanto a peito. Está mesmo com aspecto de doente. Está em condições
de conduzir? Não está tonta nem nada?
Não, a sério, e não vou para muito longe. Só vou guiar durante quinze minutos e depois vou estar inactiva até domingo.
Enquanto se dirigia para o carro, Katie tiritava. De tarde a febre subira quase a quarenta graus, mas estava a descer rapidamente outra vez. A humidade entrava pelas
mangas largas do casaco de agasalho de lã vermelha e passava através das meias de nylon. Pensou ansiosamente no seu quarto, na sua cama. Como seria maravilhoso poder
ir para lá naquele momento, para se meter na cama com um tody quente e dormir durante todo o fim-de-semana.
No hospital, o departamento de admissão de doentes já tinha os formulários completos à espera. A empregada estava muito animada. |
Meu Deus, Sr.a DeMaio, a senhora é tida em grande conta, í certamente. O Dr. Highley deu-lhe o quarto da Suite Um no ^ terceiro andar. É como ir de férias. Nem vai
imaginar que está | num hospital. Ele disse qualquer coisa a esse respeito murmurou Katie. Ela não ia revelar àquela mulher o seu medo de hospitais.
É capaz de se sentir um pouco só lá em cima. Só há três
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suites naquele andar, e as outras duas estão vazias. E o Dr. Highley mandou redecorar a sala de estar da sua suite. Porque, não sei. Foi feita há menos de um ano.
Mas seja como for, não vai precisar dela. Ficará aqui apenas até domingo. Se precisar de alguma coisa, só tem de carregar na campainha. O pessoal de enfermagem do
segundo andar cuida das pacientes do segundo e terceiro andares. De qualquer maneira são todas pacientes do Dr. Highley. Aqui tem a sua cadeira de rodas Se se sentar,
levamo-la rapidamente lá para cima. Katie arregalou os olhos consternada.
Não quer dizer que agora tenho de usar uma cadeira-de-rodas?
Normas do hospital disse com firmeza a empregada da admissão.
John numa cadeira de rodas a ir para quimioterapia. O corpo de John a contrair-se enquanto ela o via morrer. A voz de John a enfraquecer, o seu humor forçado, esgotado
quando a cadeira de rodas foi trazida para junto da cama: "Balança pouco, coche delicado, vens-me buscar para me levares para casa." O cheiro anti-séptico do hospital.
Katie sentou-se na cadeira e fechou os olhos. Não podia voltar atrás. A empregada, uma voluntária de meia-idade, rechonchuda, empurrando a cadeira através do corredor
até ao elevador.
Tem sorte por ter o Dr. Highley disse ela a Katie As suas pacientes são as que têm melhor assistência do hospital. Puxa aquela sineta para chamar alguém e terá uma
enfermeira à sua disposição em três segundos. O Dr. Highley é severo. Quando anda por aqui o pessoal todo treme, mas é boa pessoa.
Estavam no elevador. A empregada carregou no botão.
Esta casa é tão diferente da maioria dos hospitais. Na maior parte deles só a querem ver depois de estar pronta para o parto, e depois mandam-na embora quando o
bebé tem alguns dias de vida. O Dr. Highley não. Vi-o internar mulheres grávidas durante dois meses só como medida de precaução. É por isso que tem suites, para
que as pessoas tenham um ambiente como o de casa. A Sr.a Eldrich está no um no segundo andar. Teve ontem uma cesariana e ainda não parou de chorar. Está muito feliz
e o marido está na mesma. Ontem à noite dormiu no sofá na sala de estar. O Dr. Highley apoia isso. Eis o elevador.
Outras pessoas entraram com elas no elevador. Olharam para Katie cheias de curiosidade. Observando as revistas e as flores que traziam, concluiu que eram obviamente
visitas.
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Sentia-se estranhamente distante delas. "Assim que passas a ser uma doente perdes a tua identidade", pensou ela. "Passas a ser um caso."
Saíram no terceiro andar. O corredor estava alcatifado num verde suave. Excelentes reproduções de Monet e Matisse realçadas por molduras com entalhes estavam espalhadas
pelas paredes.
Contra a sua vontade, Katie estava tranquila. A voluntária levou-a através do corredor e virou à direita.
A senhora fica na última suite exclamou ela. É um pouco longe. Creio que hoje não há outras pacientes neste piso.
Por mim não há problema murmurou Katie. Pensou no quarto de John. Os dois querendo absorver-se um ao outro, para lutarem contra a separação. Pacientes ambulatórios
vinham à porta, espreitavam.
Como vai isso hoje, juiz? Parece melhor, não parece, Sr.a DeMaio?
E ela, mentindo:
Na verdade, parece. "Vão-se embora, vão-se embora. Temos tão pouco tempo." Não me importo de estar sozinha no piso repetiu ela.
Foi levada para um quarto. As paredes eram da cor do marfim; a alcatifa, o mesmo verde-suave do corredor. A mobília era branca e antiga. Cortinas estampadas em tons
de marfim e verde condiziam com a colcha.
Oh, isto é bonito! exclamou Katie. A empregada parecia satisfeita.
Pensei que iria gostar. A enfermeira estará aqui dentro de alguns minutos. Por que não arruma as suas coisas e não se põe à vontade?
Ela foi-se embora. Um pouco indecisa, Katie despiu-se, vestiu uma camisa de noite e um roupão quente. Colocou os artigos de toilete no toucador da casa de banho
e pendurou as roupas no armário. Que iria fazer durante a longa e triste noite que tinha pela frente? Na véspera àquela hora estava a vestir-se para ir ao jantar
de festa da Molly. E quando chegara, Richard estivera à sua espera.
Apercebeu-se de que estava a cambalear. Instintivamente, deitou a mão ao toucador e agarrou-se a ele. A sensação de tontura passou. Provavelmente era apenas a correria,
e o resultado de um julgamento e "Admite", pensou ela: "apreensão."
Ela estava num hospital. Por mais que tentasse tirar esse
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pensamento da cabeça, estava num hospital. Era incrível, infantil não ser capaz de vencer o medo. O pai. John. As duas pessoas que ela mais amara no mundo tinham
ido para o hospital e morrido. Por mais que tentasse raciocinar, racionalizar, não era capaz de perder aquela terrível sensação de pânico. Talvez aquela estadia
a ajudasse a vencê-lo. A noite de segunda-feira não fora assim tão má.
Havia quatro portas no quarto. A porta do armário, a porta da casa de banho, a que dava para o corredor. A outra devia dar para a sala de estar. Abriu-a e espreitou.
Como a empregada da admissão lhe dissera, estava em obras. A mobília estava no meio da sala e tapada com panos de pintor. Acendeu a luz. O Dr. Highley era com toda
a certeza um perfeccionista. Ela não conseguia ver nada de anormal nas paredes. Não era de admirar que as contas do hospital fossem tão exorbitantes.
Encolhendo os ombros, apagou a luz, fechou a porta e encaminhou-se para a janela. O hospital era em forma de U, as duas alas paralelas uma à outra em ângulos rectos
atrás da zona principal.
Ela estivera no outro lado na noite de segunda-feira, mesmo de fronte onde se encontrava agora. Os carros das visitas começavam a encher o parque. Onde ficava situado
o estacionamento com que sonhara? Oh, claro, aquele, para o lado, mesmo por baixo do último candeeiro. Estava lá um carro estacionado, um carro preto. No sonho era
um carro preto. Aqueles raios das rodas; como brilhavam à luz.
Como se sente, Sr.a DeMaio?
Ela virou-se rapidamente. O Dr. Highley estava no quarto. Uma enfermeira jovem esperava perto dele.
Oh, o senhor assustou-me. Estou óptima, doutor.
Bati à porta, mas não me ouviu. A sua voz era ligeiramente reprovadora. Aproximou-se da janela e puxou as cortinas. Façamos nós o que fizermos, estas janelas deixam
passar o ar comentou ele. Não queremos que apanhe frio. E se se sentasse na cama e me deixasse ver a sua pressão arterial. Também queremos tirar umas amostras de
sangue.
A enfermeira seguiu-o. Katie notou que as mãos da rapariga tremiam. Ela estava obviamente com medo do Dr. Highley.
O médico enrolou a tira da pressão no seu braço. Uma onda de tonturas fez com que Katie sentisse como se as paredes do quarto estivessem a afastar-se. Agarrou-se
ao colchão
Algum problema, Sr.a DeMaio? A voz do médico era branda.
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Não, não é nada. Só estou um pouco cansada. Ele começou a premir a bola em forma de bolbo.
Enfermeira Renge, quer ter a bondade de ir buscar um pano frio para a testa da Sr.a DeMaio ordenou ele.
A enfermeira obedientemente, precipitou-se para a casa de banho. O médico estava a examinar o manómetro
Está um pouco baixa. Algum problema?
Sim. A sua voz parecia que pertencia a outra pessoa, ou talvez como se ela estivesse numa câmara de ressonância. Estou outra vez com o período. Tem sido muito abundante
desde quarta-feira.
Não me surpreende. Para ser franco, se não tivesse marcado esta operação, tenho a certeza de que seria obrigada a fazê-la de urgência.
A enfermeira saiu da casa de banho com um pano muito bem dobrado. Mordia o lábio inferior para evitar que tremesse. Katie de repente sentiu pena dela. Ela não queria
nem precisava de uma compressa fria na testa, mas encostou-se à almofada. A enfermeira colocou-lha na cabeça. O pano estava encharcado, e sentiu a água gelada a
correr pelo couro cabeludo abaixo. Resistiu ao impulso de a tirar. Mas o médico daria conta, e ela não queria que a enfermeira fosse repreendida.
Um humor súbito levantou-lhe o ânimo. Só se via a dizer a Richard, "E este pobre miúdo assustado praticamente me afogou. A partir de agora talvez tenha bursitis
nas sobrancelhas."
Richard. Devia ter-lhe dito que vinha para ali. Queria que ele estivesse com ela naquele momento.
O Dr. Highley tinha uma agulha na mão. Ela fechou os olhos enquanto ele tirava sangue de uma veia no braço direito. Viu-o colocar os tubos de vácuo cheios de sangue
num tabuleiro que a enfermeira lhe estendeu.
Quero isto analisado imediatamente disse ele com brusquidão.
Sim, doutor. A enfermeira saiu a correr, obviamente satisfeita por se ir embora.
O Dr. Highley suspirou.
Receio que aquela jovem tímida esteja de serviço esta noite. Mas não precisará de nada de especial, tenho a certeza. Acabou de tomar os comprimidos que lhe dei?
Katie lembrou-se que não tinha tomado o comprimido das três horas e já passava das seis.
Lamento, mas esqueci-me de tomar o das três horas
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disse ela, pesarosa. Estava no tribunal e só me lembrei do julgamento, e suponho que já é tarde para tomar o último.
Tem os comprimidos consigo?
Tenho, na minha carteira. Olhou de relance para o toucador.
Não se levante. Eu dou-lho.
Quando lhe tirou o saco da mão, abriu o fecho de correr, procurou e tirou o pequeno frasco. Só tinha dois comprimidos. Havia um tabuleiro com uma garrafa de água
gelada e um copo em cima da mesinha de cabeceira. O Dr. Highley deitou água no copo e deu-lho.
Acabe com eles disse ele.
Os dois?
Sim. Sim. São muito fracos, e queria que os tomasse por volta das seis horas. Deu-lhe o copo e meteu o frasco vazio no bolso.
Obedientemente, engoliu os dois comprimidos, sentindo os seus olhos fixos nela. Os óculos com armação de aço brilhavam sob a luz do tecto. O brilho. Os raios do
carro a brilharem.
Havia uma mancha vermelha no copo quando ela o pousou. Ele viu-a, pegou-lhe na mão e examinou o dedo. O tecido estava outra vez húmido.
Que é isto? perguntou ele.
Oh, nada. Apenas um golpe feito por uma folha de papel, mas deve ser fundo. Não deixa de sangrar.
Estou a ver. Ele levantou-se. Pedi um soporífero para si. Por favor, tome-o assim que a enfermeira o trouxer.
Prefiro não tomar soporíferos, doutor. Parece que me provocam uma reacção muito forte. Ela queria parecer veemente. Em vez disso, a voz tinha um timbre arrastado,
fraco.
Receio bem ter de insistir no comprimido, Sr.a DeMaio, principalmente para uma pessoa como a senhora que provavelmente passará a noite de insónia e ansiedade sem
ele. Quero que esteja tranquila de manhã. Oh, eis que chega o seu jantar.
Katie prestou atenção quando uma mulher esguia na casa dos sessenta entrou no quarto com um tabuleiro e olhou nervosamente para o médico. "Ficam todos petrificados
com medo dele", pensou ela. Ao contrário dos tabuleiros de plástico ou metal geralmente usados nos hospitais, aquele era de verga branca e tinha um cesto lateral
com o jornal da tarde. A porcelana era delicada, a baixela de prata graciosamente entalhada. Uma única rosa vermelha estava colocada numa jarra esguia. Duas costeletas
de lombo de cordeiro eram mantidas quentes
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por uma tampa em forma de cúpula e de prata por cima do prato do jantar. Uma salada de arugula, feijão-verde à julienne, pequenos biscoitos quentes, chá e sumo de
frutas completavam a refeição. A empregada virou-se para se ir embora.
Espere ordenou o Dr. Highley. Disse a Katie: Como verá, todas as minhas doentes têm uma alimentação que se pode comparar com a comida de um restaurante de primeira.
Creio que os permanentes desperdícios nos hospitais são as toneladas de comida das instituições que são rejeitadas diariamente enquanto as famílias das doentes trazem
de casa embrulhos CARE. Franziu as sobrancelhas. Todavia, penso que preferia que não jantasse hoje. Cheguei à conclusão que quanto mais tempo a paciente estiver
sem comer antes da operação, menos probabilidades há de sentir mal-estar depois dela.
Não tenho fome nenhuma disse Katie.
Óptimo. Ele acenou com a cabeça à empregada. Ela pegou no tabuleiro e saiu a toda a pressa.
Agora vou deixá-la disse o Dr. Highley a Katie. Vai tomar o soporífero.
O aceno de Katie foi reservado. Parou perto da porta.
Oh, lamento, parece que o telefone está avariado. Os homens das reparações virão arranjá-lo de manhã. Está a contar que alguém lhe telefone para aqui hoje à noite?
Ou talvez venha a ter visitas?
Não. Nem telefonemas nem visitas. A minha irmã é a única pessoa que sabe que estou aqui, e está na ópera esta noite.
Ele sorriu.
Compreendo. Então, boa noite, Sr.a DeMaio, e descontraia-se, por favor. Pode descansar que eu trato da senhora.
Claro que posso.
Ele foi-se embora. Ela recostou-se na almofada, fechando os olhos. Flutuava em qualquer parte; o corpo flutuava, flutuava como...
Sr.a DeMaio. Uma voz jovem era apologética. Katie abriu os olhos.
O quê... oh, devo ter passado pelo sono. Era a enfermeira Renge. Trazia uma bandeja com um comprimido dentro de uma pequena taça de papel. Agora tem de tomar isto.
É o soporífero que o Dr. Highley prescreveu. Disse que devia ficar aqui para ter a certeza de que o tomava. Mesmo sem a presença do Dr. Highley, a rapariga parecia
nervosa. As doentes ficam sempre furiosas quando temos de as acordar para lhes darmos um soporífero, mas no hospital é assim.
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Oh. Katie pegou no comprimido, meteu-o na boca, bebeu água da garrafa.
Quer-se acomodar na cama agora? Eu puxo-lhe a colcha para trás.
Katie apercebeu-se que estivera a dormir em cima da colcha. Acenou com a cabeça, levantou-se com esforço e entrou na casa de banho. Lá tirou o comprimido debaixo
da língua. Parte já se derretera, mas conseguiu cuspi-lo quase todo. "Nem pensar", reflectiu. "Prefiro ficar acordada do que ter pesadelos". Salpicou o rosto com
água, lavou os dentes e voltou para o quarto. Sentiu-se tão fraca, tão pouco segura.
A enfermeira ajudou-a a deitar-se.
Está mesmo cansada, não está? Bem, eu aconchego-lhe a roupa da cama, e estou certa de que vai dormir toda a noite. Puxe só a sineta se precisar de mim para alguma
coisa.
Obrigada. A cabeça estava tão pesada. Os olhos pareciam colados.
A enfermeira Renge foi baixar a persiana.
Já começou a nevar outra vez, mas vai transformar-se em chuva. Está uma noite má, uma noite boa para estar na cama.
Não se importa de abrir as cortinas e levantar um pouco a janela? murmurou Katie. Gosto sempre de ar puro no meu quarto.
Com certeza. Posso apagar agora a luz, Sr.a DeMaio?
Por favor. Ela só queria dormir.
Boa noite, Sr.a DeMaio.
Boa noite. Oh, que horas são, por favor?
Oito horas em ponto.
Obrigada.
A enfermeira saiu. Katie fechou os olhos. Os minutos passaram. A respiração normalizou. Às oito e meia, não se apercebeu do ruído fraco que foi provocado quando
o puxador da porta da sala de estar da suite começou a rodar.
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Gertrude e os Krupshaks demoraram-se com o jantar de assado. Reconhecida, Gertrude acedeu à insistência de Gana para repetir, para comer uma boa fatia de bolo de
chocolate de fabrico caseiro.
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Geralmente não como tanto desculpou-se ela, mas não comi nada desde que encontrámos a pobre Edna.
Gana acenou sobriamente com a cabeça. O marido pegou na chávena de café e no prato de sobremesa.
Os Knicks estão a jogar informou ele. Vou ver. O tom brusco não era displicente. Acomodou-se na sala de estar e ligou o televisor.
Gana suspirou.
Os Knicks... Os Mets... Os Giants... Época após época. Mas por outro lado, ele está aqui. Olho e lá está ele. Ou se venho do bingo, sei que não vou entrar numa casa
vazia, como a pobre Edna sempre teve de fazer.
Eu compreendo. Gertrude pensou na sua casa solitária, depois pensou na neta mais velha. "Avó, por que não vem jantar?" ou "Avó, vai estar em casa no domingo? Pensávamos
ir fazer-lhe uma visita." Podia ser muito pior.
Talvez devêssemos ir dar uma vista de olhos ao apartamento de Edna disse Gana. Não quero que se apresse por minha causa... tome mais café, ou outro pedaço de bolo...
Não. Oh, não, devíamos ir lá. É uma coisa que não lhe agrada fazer, mas não pode furtar-se.
Vou buscar a chave.
Atravessaram o pátio a toda a pressa. Enquanto estavam à mesa, a combinação húmida e fria de neve e chuva começara a cair outra vez. Gana protegeu o queixo com a
gola do casaco. Pensou no belo casaco de imitação de leopardo de Edna. Talvez o pudesse levar para casa nessa noite. Era dela.
No interior do apartamento, ficaram caladas. O pó para as impressões digitais que os detectives tinham utilizado ainda se via nos tampos das mesas e nos puxadores
das portas. Inadvertidamente, olharam fixamente para o lugar onde estivera o corpo encolhido de Edna.
Ainda há sangue no irradiador murmurou Gana. Provavelmente o Gus vai pintá-lo de novo.
Sim. Gertrude sacudiu-se. "Acabemos com isto." Ela conhecia os gostos da neta. Para além do sofá de veludo, Nan adoraria aquelas cadeiras a condizer, as costas altas
com braços e pernas de mogno. Uma era uma cadeira de balouço, a outra uma cadeira direita. Lembrou-se que Edna lhe contara que, quando era criança, estavam estofadas
com veludo azul com folhas delicadas. Ela mandara-as restaurar sem gastar muito dinheiro e dizia sempre a suspirar, "Nunca ficaram com o mesmo aspecto."
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Se Nan as mandasse estofar de novo com veludo, ficariam lindas. E aquela mesa com tampo trabalhado. Altaian's tinha cópias daquela na galeria de reproduções. Custava
uma fortuna, também. Claro que aquela estava bastante rachada, mas o marido de Nan era capaz de retocar qualquer coisa. "Oh, Edna", pensou Gertrude. "Eras mais esperta
do que qualquer uma de nós. Sabias o valor das coisas."
Gana estava perto do armário a tirar o casaco de leopardo.
Edna emprestou-me este no ano passado disse ela. Ia a uma reunião com o Gus. Gosto imenso dele.
Não levaram muito tempo a dividir o recheio do apartamento. Gana estava pouco interessada no mobiliário; o que Gertrude não quisesse doava ao Salvation Army; mas
ficou encantada quando Gertrude sugeriu que ficasse com o prato de prata e a porcelana fina. Concordaram que as roupas de Edna iriam também para o Salvation Army.
Era mais baixa e mais forte do que qualquer uma delas.
Acho que é tudo disse Gana suspirando. Excepto as jóias, mas a Polícia devolvê-las-á dentro de muito pouco tempo. A senhora fica com o anel, e ela deixou-me o broche.
As jóias. Edna guardara-as na gaveta da mesinha de cabeceira. Gertrude pensou na noite de terça-feira. Essa era a gaveta que o Dr. Highley começara a abrir.
Isso faz-me lembrar disse ela. Nunca lá fomos ver. Certifiquemo-nos de que não nos esquecemos de nada. Ela abriu-a. Sabia que a Polícia tinha tirado a caixa das
jóias. Mas a gaveta funda não estava vazia. No fundo estava um moccasin velho.
Macacos me mordam! disse Gana, suspirando. Pode dizer-me por que razão Edna guardara aquilo? Pegou nele e viu-o contra a luz. Estava deformado; o tacão estava gasto;
manchas brancas nos lados sugeriam que estivera exposto à neve.
É isso! gritou Gertrude. Foi isso que me baralhou. Vendo a expressão de confusão de Gana, tentou explicar.
A Sr.a DeMaio perguntou-me se Edna chamou um dos médicos de Príncipe Encantado. E foi isso que me desorientou. Claro que não chamou. Mas Edna contou-me que a Sr.a
Lewis levava uns sapatos muito velhos às consultas. Ela chamou-me a atenção para eles há apenas algumas semanas quando a Sr.a Lewis ia a sair. Edna disse que gracejava
sempre com a
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Sr.a Lewis. O sapato esquerdo estava largo de mais, e a Sr.a Lewis estava sempre a deixá-lo cair. Edna costumava entrar com a Sr.a Lewis dizendo-lhe que devia estar
à espera que o Príncipe Encantado apanhasse a chinela de vidro.
Mas o Príncipe Encantado não era o namorado da Cinderela protestou Gana. Ele entrava no conto de fadas a "Bela Adormecida".
É isso que eu quero dizer. Disse a Edna que tinha feito confusão. Ela riu-se e disse que a Sr.a Lewis lhe dissera o mesmo, mas que a mãe dela lhe contara assim a
história e que para ela era quanto bastava.
Gertrude reflectiu.
A Sr.a DeMaio estava tão ansiosa quando pediu informações sobre aquela história do Príncipe Encantado. E quarta-feira à noite... pergunto a mim mesma: seria possível
que o sapato da Sr.a Lewis fosse aquilo que o Dr. Highley procurava na gaveta? Será possível? Sabe, estou quase tentada a ir ao escritório da Sr.a DeMaio para falar
com ela, ou deixar-lhe pelo menos uma mensagem. Sinto que não devo esperar até segunda-feira.
Gana pensou em Gus, que não desviaria o olhar do aparelho até perto da meia-noite. O seu gosto exagerado por excitação aumentou. Nunca tinha estado no gabinete do
promotor de Justiça.
A Sr.a DeMaio perguntou-me se Edna guardava o sapato velho da mãe por razões sentimentais disse ela. Aposto que ela se estava a referir a este moccasin Dir-lhe-ei
o que deve fazer: vamos lá no meu carro. Gus nunca saberá que saí.
56
Jim Berkeley estacionou o carro no parque de estacionamento do tribunal e entrou no principal salão de entrada. O anuário indicava que o escritório do Examinador
Médico ficava situado no segundo andar na ala antiga do edifício. Vira a expressão no rosto de Richard Carroll na noite anterior quando este olhou para o bebé. A
cólera e a indignação fizeram-no sentir vontade de dizer, "Então o bebé não se parece connosco. E daí?" Mas teria sido uma estupidez fazer isso. Pior, teria sido
inútil.
Depois de várias voltas em falso no labirinto do prédio,
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descobriu o gabinete de Richard. A escrivaninha da secretária estava vazia, mas a porta de Richard estava aberta, e ele saiu logo quando ouviu a porta da área de
recepção fechar-se com um ruído súbito.
Jim, foi muito amável em ter vindo. "Obviamente, ele estava a procurar ser gentil", pensou Jim. "Ele estava a tentar fazer com que isto pareça um encontro casual."
O cumprimento foi reservado e prudente. Entraram. Richard observou-o, Jim fitou-o impassivelmente. Não restava nada do humor do jantar da noite anterior.
Obviamente, Richard compreendeu. O seu comportamento passou a ser o de um homem de negócios. Jim assumiu uma atitude formalista.
Jim, estamos a investigar a morte de Vangie Lewis. Ela andava em tratamento na Maternidade Westlake. Onde a sua esposa teve o bebé.
Jim acenou com a cabeça.
Era evidente que Richard escolhia cuidadosamente as palavras.
Estamos preocupados com alguns problemas que vemos surgir na nossa investigação Agora, quero fazer-lhe algumas perguntas, e juro-lhe que as suas respostas não sairão
desta sala. Mas pode ser-nos muito útil se...
Se eu lhe disser que Maryanne é adoptada. Não é? -É.
A raiva saía de Jim. Pensou em Maryanne. Qualquer que fosse o custo, ela era preciosa.
Não, não é adoptada. Eu assisti ao parto. Filmei-o. Ela tem um pequeno sinal congénito no polegar esquerdo. Vê-se naquelas fotografias.
É muito pouco provável que pais, ambos com olhos castanhos, tenham um filho com olhos verdes disse Richard categoricamente. Depois fez uma pausa. É o pai da criança?
perguntou calmamente.
Jim olhou fixamente para as mãos.
Quer dizer se Liz teria tido uma relação com outro homem? Não. Tenho a certeza absoluta.
E inseminação artificial? perguntou Richard. O Dr. Highley é um perito em fertilidade.
Liz e eu falámos nessa possibilidade disse Jim. Rejeitámo-la há anos.
Liz podia ter mudado de ideias sem lhe dizer nada? Isso já não é assim tão invulgar. Todos os anos nascem cerca de quinze mil bebés por esse método nos Estados Unidos.
201
Jim meteu a mão no bolso e tirou a carteira. Abrindo-a com um movimento brusco, mostrou a Richard duas fotografias de Liz, dele e do bebé. Na primeira, Maryanne
era ainda bebé; os olhos estavam quase fechados. A segunda era uma Kodachrome recente. O contraste entre o tom de pele e a cor dos olhos dos pais e do bebé era evidente.
Jim disse:
Um ano antes de Liz engravidar, fomos informados de que era praticamente impossível adoptarmos uma criança. Liz e eu falámos na inseminação artificial. Ambos a rejeitámos,
mas eu fui mais categórico do que ela. Maryanne tinha cabelo castanho-claro quando nasceu, e olhos azuis. Muitos bebés começam por ter olhos azuis e depois ficam
da cor dos pais. Então foi só nos últimos meses que se tornou claro que havia algo de errado. Não que eu me importasse. Aquela criança é tudo para nós. Ele olhou
para Richard. A minha mulher é incapaz de dizer uma mentira mesmo entre amigos. Ela é a pessoa mais honesta que conheço. No mês passado resolvi facilitar-lhe as
coisas. Disse que estava errado em relação à inseminação artificial, que compreendia a razão que levava as pessoas a sujeitarem-se a ela.
Que é que ela disse? perguntou Richard.
Ela sabia o que eu queria dizer, claro. Disse que se eu pensava que ela era capaz de tomar uma decisão como aquela sem me dizer, eu não compreendia a nossa relação.
Pedi-lhe desculpa, jurei que não era aquilo que tinha em mente, passei um tormento para a tranquilizar. Finalmente, acreditou em mim. Ele olhou fixamente para a
fotografia. Mas evidentemente, eu sei que ela estava a mentir disse ele abruptamente.
Ou então não teve conhecimento do que o Dr. Highley lhe fez disse Richard categoricamente.
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Dannyboy Duke atravessou a Third Avenue aos ziguezagues, correndo para a Fifty-fifth e a Second, onde tinha o carro estacionado. A mulher dera pela falta da carteira
assim que ele subiu para a escada rolante. Ele ouvira-a gritar, "Aquele homem, o de cabelo escuro, roubou-me."
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Conseguira esgueirar-se através da parede de mulheres no piso principal do Alexander's, mas aquela cabra precipitou-se pela escada rolante abaixo atrás dele, aos
gritos e a apontar quando ele transpôs a porta. O guarda provavelmente iria persegui-lo.
Se ao menos conseguisse chegar ao carro. Não podia abandonar a carteira. Estava cheia de notas de cem dólares. Ele vira-as e precisava de uma injecção hipodérmica
com droga.
Tinha sido uma boa ideia entrar na secção de peles do Alexander's. As mulheres traziam dinheiro para o Alexander's. Levava muito tempo para se conseguir um cheque
ou cartão de crédito visado. Descobrira isso quando trabalhou lá como empregado no armazém enquanto frequentava o liceu.
Nessa noite vestira um casaco que o fazia parecer empregado do armazém. Ninguém lhe prestara atenção. A mulher tinha uma daquelas carteiras enormes; segurava-a por
uma tira enquanto esquadrinhava os cabides dos casacos. Fora fácil arrebatar-lhe a carteira.
Estava a ser seguido? Não se atrevia a olhar para trás. Faria recair as atenções sobre si mesmo. Era melhor manter-se rente às partes laterais dos prédios. Toda
a gente se apressava. Estava um frio terrível. Já podia ter uma injecção, muitas injecções.
E dentro de muito pouco tempo estaria no carro. Ele não seria um homem que corria nas ruas. Afastar-se-ia de carro até à Fifty-ninth Street Bridge, e estaria em
casa em Jackson Heights. Teria a sua injecção.
Olhou para trás. Ninguém corria. Nenhum polícia. A noite anterior tinha sido péssima. O porteiro quase o apanhara quando arrombou aquele carro de um médico. E o
que conseguiu com o risco que correu? Não havia drogas no saco. Uma ficha médica, um pisa-papéis sujo e um sapato velho, era inacreditável.
A carteira que ele arrebatara mais tarde à senhora de idade. Uns miseráveis dez dólares. Mal conseguira arranjar droga suficiente para se recompor nesse dia. A carteira
e o saco estavam no banco traseiro do carro. Teria de se livrar deles.
Estava perto do carro. Abriu-o, entrou rapidamente. Mesmo antes de ver a luz intermitente, ouviu a sirena do carro da Polícia quando subia em sentido contrário o
quarteirão a toda a velocidade. Tentou arrancar, mas o carro de rádio-patrulha interceptou-o. Um polícia, com a mão na coronha da pistola, saiu dum salto. Os faróis
cegavam Danny.
O polícia abriu a porta com um sacão, espreitou e tirou a chave da ignição.
203
Então, Dannyboy disse ele. Ainda andas nisto, não é? Nunca aprendes truques novos? Agora sai daí, põe-me essas mãos onde as possa ver e mantém-te firme para eu poder
ler-te o Miranda Tu és o que és, um indivíduo que foi batido três vezes? Acho que devias apanhar dez a quinze, se tivermos sorte com um juiz.
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O avião sobrevoou Newark. A descida foi aos solavancos. Chris lançou um olhar a Joan. Ela apertava a sua mão, mas ele sabia que isso não tinha nada a ver com o voo.
Joan não tinha absolutamente medo nenhum dentro de um avião. Ele ouvira-a discutir o assunto com pessoas que detestavam andar de avião. "Segundo as estatísticas,
estão muito mais seguros num avião do que num automóvel, num comboio, numa motorizada, ou na vossa banheira", dizia ela.
O seu rosto estava calmo. Ela insistira em tomarem uma bebida quando os cocktails foram servidos. Nenhum deles quisera jantar, mas ambos beberam café. A expressão
do seu rosto era séria, mas calma. "Chris", dissera ela, "não consigo deixar de pensar que Vangie se suicidou por minha causa. Não te preocupes por me envolveres
nisto. Dizes a verdade quando te interrogarem e não escondas nada."
Joan. Se conseguissem livrar-se daquilo, juntos teriam uma vida boa. Ela era uma mulher. Ele ainda tinha muito que aprender a seu respeito. Nem sequer se apercebera
que lhe podia dizer a verdade. Talvez tivesse caído no hábito de proteger Vangie para tentar evitar discussões. Tinha tanto que aprender sobre ele mesmo, abandonara
Joan.
A aterragem foi violenta. Vários passageiros gritaram quando o avião desceu aos solavancos. Chris sabia que o piloto tinha feito um bom trabalho. Havia um vento
dos diabos. Se se mantivesse, provavelmente encerrariam o aeroporto.
Joan sorriu-lhe.
A hospedeira deve ter-nos obrigado a entrar. Era uma piada antiga da companhia aérea.
Ou estava a passar pelas brasas, pelo menos. Ficaram calados quando o avião deslizou ao longo da linha
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até à cancela. As pessoas, que esperavam pelos passageiros, tinham de aguardar no lado de fora da cancela de segurança. Mas Chris não se surpreendeu ao ver os dois
detectives, que tinham estado em sua casa depois de ele encontrar Vangie, à sua espera.
Comandante Lewis. Menina Moore.
- Sim.
Venham connosco, por favor. A voz de Ed era formal. É meu dever informá-lo que é um suspeito na morte da sua mulher, Vangie Lewis, assim como em outros possíveis
homicídios. Aquilo que disser pode ser usado contra si. Não é obrigado a responder a perguntas. Tem direito a chamar um advogado.
Joan respondeu por ele.
Ele não precisa de advogado. E ele contará tudo o que sabe.
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Molly recostou-se quando a orquestra começou a tocar a abertura de Otello. Bill adorava ópera. Ela gostava. Em parte talvez fosse essa a razão por que não conseguia
descontrair-se. Bill já estava completamente absorto, a expressão serena e pensativa. Ela olhou em redor. O Metropolitan estava cheio, como de costume. Os lugares
eram excelentes. Tinham de ser. Bill pagara setenta dólares pelos dois. Por cima deles as luzes tremeluziam, cintilavam e depois começaram a apagar-se pouco a pouco
até ficar uma escuridão prateada.
Ela devia ter insistido para que fossem ver Katie ao hospital nessa noite. Bill não compreendia, não podia compreender o medo que Katie tinha dos hospitais. Não
era para admirar. Katie tinha vergonha de falar nisso. O pior é que havia um fundamento para o medo. O pai não tinha sido socorrido na devida altura. O homem de
idade que estava no quarto com ele dissera-lhes isso. Até Bill admitiu que se cometiam muitos erros nos hospitais. Com um sobressalto, ouviu aplausos quando Plácido
Domingo desceu do barco. Até àquele momento não ouvira nada da ópera. Bill lançou-lhe um olhar, e ela procurou parecer que se estava a divertir. Depois do primeiro
acto, telefonaria a Katie. Isso ajudaria a tranquilizá-la. E de manhã estaria sem falta no hospital antes da operação e certificar-se-ia se Katie não estava demasiado
nervosa.
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O primeiro acto parecia não ter fim. Nunca pensara que fosse tão longo. Chegou o intervalo, finalmente. Recusando com impaciência a sugestão de Bill para tomarem
uma taça de champanhe no bar, precipitou-se para um telefone. Marcou rapidamente o número e introduziu as moedas necessárias.
Uns minutos depois, com os lábios brancos, corria para Bill. Quase a soluçar, agarrou-lhe o braço.
Há qualquer coisa que não está bem, há qualquer coisa que não está bem... telefonei para o hospital. Não quiseram passar a chamada ao quarto de Katie. Disseram que
o médico proibiu as chamadas telefónicas. Liguei para a recepção e insisti com a enfermeira para que fosse ver Katie. Ela voltou agora mesmo. É uma garota, está
histérica, Katie não está no quarto. Katie desapareceu.
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Ele saiu do quarto de Katie e um sorriso de satisfação perpassou no seu rosto. Os comprimidos estavam a actuar. Ela já estava a começar a ter hemorragias. O dedo
provava que o sangue não coagulava.
Desceu ao segundo piso e entrou para ver a Sr.a Aldrich. O bebé estava num berço de madeira ao lado da cama. O marido estava com ela. Sorriu friamente aos pais,
depois curvou-se sobre a criança.
Um belo espécime na verdade exclamou ele. Penso que não o iremos entregar como pagamento parcial.
Ele sabia que as suas tentativas para ser jocoso eram desastrosas, mas às vezes era necessário. Aquelas pessoas eram importantes, muito importantes. Aldrich podia
mandar milhares de dólares dos fundos destinados à investigação científica para Westlake. Mais investigação. Podia trabalhar no laboratório com animais, dar conhecimento
dos seus triunfos. Então, quando começasse a trabalhar publicamente com mulheres, todas as experiências daqueles anos fariam com que o sucesso imediato se tornasse
inevitável. Fama adiada não é necessariamente fama recusada.
Delano Aldrich olhava fixamente para o filho, num misto de temor e admiração.
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Doutor, ainda não acreditamos. É óbvio que todos estavam equivocados. A ansiedade dela é que fora o principal problema. Fukhito descobrira isso. Distrofia muscular
na família do pai. Ela sabia que podia ser portadora. Isso e alguns quistos fibróides no útero. Ele tratara dos quistos e ela engravidara. Depois fizera um teste
antecipado ao líquido amniótico e pôde tranquilizá-la em relação ao problema da distrofia.
Todavia, era uma pessoa extremamente emotiva, quase hiperactiva. Já abortara duas vezes há cerca de dez anos atrás. Internara-a dois meses antes do parto. E resultara.
Passo por cá de manhã. Estas pessoas seriam testemunhas fervorosas para ele se houvesse alguma suspeita sobre a morte de Katie DeMaio.
Mas não haveria nenhuma dúvida. A queda da pressão arterial constaria do relatório hospitalar. A operação de emergência realizar-se-ia na presença das melhores enfermeiras
do corpo de enfermagem. Enviaria para a sala de urgência um cirurgião para assistir. Molloy estava de serviço nessa noite. Ele era um homem bom, o melhor. Molloy
poderia dizer à família e ao departamento de Katie que tinha sido impossível estancar a hemorragia, que o Dr. Highley chefiara uma equipa que trabalhara freneticamente.
Deixando os Aldriches, dirigiu-se à secretária da enfermeira Renge. Ele elaborara cuidadosamente o plano de serviço para que ela estivesse a trabalhar. Uma enfermeira
com mais experiência veria Katie de dez em dez minutos. Renge não era assim tão esperta.
Enfermeira Renge.
Doutor. Ela levantou-se rapidamente, as mãos agitavam-se nervosamente.
Estou muito preocupado com a Sr.a DeMaio. A pressão arterial está baixa, mas dentro do limite normal, mas desconfio que a hemorragia vaginal é mais abundante do
que ela supõe. Vou sair para jantar, depois volto. Quero pronto o relatório sobre a análise ao sangue. Não queria afligi-la ela toda a vida teve medo de hospitais
mas não me surpreenderia se tivéssemos de operar hoje à noite. Decidirei isso quando voltar daqui a uma hora. Convenci-a a não jantar, e se ela pedir algum alimento
sólido, não lho dê.
Sim, doutor.
Dê o soporífero à Sr.a DeMaio e não lhe dê a entender de nenhuma forma que pode ser necessária uma operação de urgência. Percebeu?
207
Sim, doutor.
Muito bem.
Ele fez questão de falar com várias pessoas na entrada principal. Resolvera jantar no restaurante adjacente aos terrenos do hospital. Não era mau. Podia-se comer
um bife bastante bom, e ele pretendia apresentar mais tarde a imagem do médico consciencioso.
"Estava preocupado com a Sr.a DeMaio. Em vez de ir para casa, jantei aqui perto e voltei logo para o hospital para a examinar. Ainda bem que o fiz. Pelo menos tentámos."
E outro ponto importante. Mesmo numa noite lúgubre como aquela, não seria invulgar ir a pé para o restaurante. Assim ninguém saberia ao certo quanto tempo estivera
fora.
Porque, enquanto esperava que o café fosse servido, tomaria a última e necessária providência. Deixara Katie às sete e cinco. Às oito menos um quarto estava no restaurante.
Às oito dariam o soporífero a Katie. Era um comprimido forte. Graças ao seu estado de fraqueza, prostá-la-ia imediatamente.
Cerca das oito e meia não haveria perigo em subir ao terceiro andar pelas escadas das traseiras, entrar na sala de estar da suite, certificar-se se Katie estava
a dormir e dar-lhe a injecção de heparin, o anticoagulante poderoso que, combinado com os comprimidos, fazia descer a pressão arterial e a percentagem de glóbulos
no sangue.
Voltaria ali e acabaria de tomar o café, pagaria a conta e em seguida regressaria ao hospital. Levaria a enfermeira Renge quando fosse ver Katie. Dez minutos depois
Katie estaria na sala de operações.
Ela tornara tudo mais fácil por não ter visitas. Evidentemente que ele estava preparado para essa eventualidade. Introduziria subrepticiamente o heparin na transfusão
que ela receberia durante a operação. Isso seria igualmente eficaz, mas mais arriscado.
O bife era satisfatório. Era estranho como ficava esfomeado em ocasiões como aquela. Teria preferido esperar até tudo estar terminado para comer, mas isso seria
praticamente impossível. Quando conseguissem entrar em contacto com a irmã de Katie há muito que teria dado a meia-noite, uma vez que ela estava na ópera. Esperaria
por ela no hospital para a consolar. Ela lembrar-se-ia da sua amabilidade. Só chegaria a casa perto das duas ou três horas. Não podia estar tanto tempo sem comer.
Deu-se ao luxo de beber um copo de vinho. Teria preferido a meia garrafa do costume, mas nessa noite era impossível.
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Todavia, o único copo que bebeu, aqueceu-o, tornou-o mais vivo, ajudou o seu espírito a recapitular as possibilidades, a prever o inesperado.
Aquilo seria o termo do perigo. O saco não aparecera. Provavelmente nunca iria aparecer. Salem, que constituía uma ameaça, fora eliminado. Os jornais noticiavam
a sua morte como "caiu ou saltou". Edna foi enterrada nessa manhã. Vangie Lewis fora enterrada na véspera. O moccasin no interior da gaveta de Edna não teria nenhum
significado para as pessoas que ficassem com os seus miseráveis haveres.
Uma semana terrível. E tão inútil. Ele devia ter permissão para prosseguir o seu trabalho publicamente. Há uma geração a inseminação artificial era considerada imoral.
Agora milhares de bebés nasciam por esse processo todos os anos.
Recuemos centenas de anos. Os árabes costumavam destruir os inimigos, infiltrando-se nos seus acampamentos e fecundando as éguas com algodão impregnado de sémen
de garanhões de qualidade inferior. Um génio extraordinário para ter planeado aquilo.
Os homens que tinham realizado com êxito fecundação in vitro pela primeira vez eram homens de génio.
Mas o génio dele superava-os todos. E nada o impediria de receber as recompensas que lhe eram devidas.
O Prémio Nobel. Recebê-lo-ia um dia. Por contributos à medicina que se pensavam impossíveis.
Sozinho, solucionara o problema do aborto, o problema da esterilidade.
E a tragédia era que se isso fosse conhecido, seria considerado um criminoso como Copérnico.
Gostou do jantar, doutor? A criada era conhecida. Oh, sim, ele assistira-a ao nascimento de um bebé há alguns anos atrás. Um rapaz.
Mesmo muito. E como está o seu filho?
Óptimo, sir. Óptimo.
Esplêndido. Foi incrível como aquela mulher e o marido pagaram os seus honorários, dando-lhe o dinheiro que tinham economizado para uma casa. Bem, ela conseguira
o que desejava.
Gostaria de um cappucino, por favor.
Certamente, doutor, mas isso demorará pelo menos dez minutos.
Enquanto o arranja, vou fazer uns telefonemas. Ausentar-se ia por menos de dez minutos. Assim a criada não daria pela falta dele.
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Viu através da janela que já não nevava. Evidentemente que não podia ir buscar o casaco ao depósito de bagagens. Esgueirando-se pela porta lateral próxima do pátio
de entrada com os telefones e vestiários, percorreu rapidamente o caminho. O frio fustigava-lhe o rosto, mas ele mal se apercebeu. Planeava todos os passos.
Era fácil manter-se ao abrigo das sombras. Tinha a chave da saída de emergência nas traseiras da ala da maternidade. Ninguém se servia daquelas escadas. Entrou no
edifício.
A escadaria estava muito iluminada. Desligou o interruptor. Ele era capaz de percorrer este hospital de olhos vendados. No terceiro andar, abriu cautelosamente a
porta, pôs-se à escuta. Não havia nenhum ruído. Entrou no vestíbulo sem fazer barulho. Pouco depois estava na sala de estar da suite de Katie.
Esse fora outro problema que ele tivera em consideração. E se alguém a acompanhasse até ao hospital; a irmã, uma amiga? E se essa pessoa pedisse para passar a noite
no sofá-cama na sala de estar? A Clínica Westlake encorajava a pernoita se a paciente o desejasse. Tendo mandado pintar de novo a sala de estar, tornara inviável
essa possibilidade.
Planear. Planear. Era tudo, tão útil e necessário tanto na vida como no laboratório.
Nessa tarde deixara a seringa na gaveta de uma pequena mesa debaixo de um pano para as pinturas. A luz do parque de estacionamento passava através da janela, dando-lhe
visibilidade suficiente para encontrar logo a mesa. Pegou na seringa.
Agora era o momento crucial. Se Katie acordasse e o visse, ficaria exposto ao perigo. O mais provável era voltar a adormecer imediatamente. Certamente ela nunca
desconfiaria da injecção. Mas quando ele voltasse mais tarde com a enfermeira Renge, se ela por acaso ainda estivesse consciente, se ela dissesse alguma coisa sobre
a injecção, seria um perigo. Oh, seria bastante fácil de explicar: ela estava confusa; ela referia-se ao momento em que lhe tirei as amostras de sangue. Mesmo assim.
O melhor seria que ela não acordasse naquele instante.
Ele estava no quarto, curvando se sobre ela. Pegou-lhe no braço. O cortinado estava parcialmente aberto. Uma luz fraca entrava no quarto. Ele conseguia ver o seu
perfil. O rosto estava virado na direcção contrária. A respiração era irregular. Ela estava a falar a dormir. Não conseguia perceber as palavras. Devia estar a sonhar.
Introduziu a agulha no braço, fez pressão. Ela estremeceu e
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suspirou. Os olhos, turvos de sono, abriram-se quando ela virou a cabeça. Na luz fraca, ele pôde ver as pupilas dilatadas. Ela levantou os olhos para ele, desorientada.
Dr. Highley murmurou ela, por que razão matou Vangie Lewis?
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Scott Myerson estava mais cansado do que furioso. Desde que o corpo de Vangie Lewis fora encontrado na manhã de terça-feira, tinham morrido mais duas pessoas. Duas
pessoas muito correctas uma recepcionista trabalhadora que merecia uns anos de liberdade depois de sustentar e tratar uns pais idosos e um médico que estava a dar
um contributo autêntico para a medicina.
Eles morreram porque ele não agira com a celeridade necessária. Chris Lewis era um assassino. Scott tinha a certeza disso. A teia que se enredava à volta de Lewis
era indestrutível. Se ao menos se tivessem apercebido logo de que a morte de Vangie Lewis era um homicídio. Ele teria prendido Lewis imediatamente para ser interrogado.
Podiam ter dado cabo dele. E se o tivessem feito, Edna Burns e Emmet Salem ainda estariam vivos.
Scott não podia esperar pela oportunidade de chegar até Lewis. Um homem, que era capaz de matar a mulher grávida, era capaz de cometer um assassínio a sangue-frio.
Lewis provava isso. Era a pior espécie de criminoso. Aquele que não parecia aquilo que era. Aquele em quem se confiava e nos traía.
Lewis e a namorada chegavam às sete horas. Deveriam estar ali por volta das oito. Lewis era calmo, não havia dúvida. Era suficientemente atilado para não fugir.
Pensava que podia comportar-se descaradamente. Sabe que é tudo circunstancial. Mas uma prova circunstancial pode ser muito melhor do que o depoimento de uma testemunha
ocular se for devidamente apresentada em tribunal. Scott iria julgar o caso. Teria todo o prazer nisso.
Às sete e cinquenta, Richard entrava no escritório de Scott. Não perdeu tempo com preâmbulos.
Acho que destapámos uma latrina disse ele, e ela chama-se Maternidade e Centro de Concepção Westlake.
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Se está a dizer que o baixote talvez andasse com Vangie Lewis, eu sou da mesma opinião afirmou Scott. Mas pensava que tínhamos chegado a essa conclusão esta tarde.
Seja como for, vai ser bastante fácil descobrir. Tire amostras de sangue ao feto e nós prendemos Fukhito. Ele não se pode recusar a que lhe façam uma análise ao
sangue. Se o fizer, é uma admissão clara de culpa, e ele ficará liquidado como médico se se provar outro caso de paternidade.
Não é disso que estou a falar interrompeu Richard com impaciência. Eu ando atrás de Highley. Creio que ele anda a fazer experiências com as pacientes. Acabei de
falar com o marido de uma delas. É impossível que ele seja o pai da criança, mas ele assistiu ao parto. Ele pensa que a mulher concordou com a inseminação artificial
sem o seu consentimento. Penso que não é só isto. Creio que Highley está a fazer inseminação artificial sem o conhecimento das suas pacientes. É por isso que elas
conseguem gerar bebés milagrosamente sob os seus cuidados.
Scott bufou.
Quer dizer que pensa que Highley injectaria Vangie Lewis com o sémen de um pai oriental e esperava escapar impune? Deixe-se disso, Richard.
Talvez ele não soubesse que o dador era oriental. Talvez cometesse um erro.
Os médicos não cometem erros como esse. Mesmo admitindo que a sua teoria está certa... e francamente, não acredito nisso... isso não prova que ele seja o assassino
de Vangie.
Há algo de errado em Highley insistiu Richard. Senti isso assim que o vi.
Olhe, vamos investigar a Maternidade Westlake. Não constitui nenhum problema. Se lá houver algum tipo de violação, nós iremos descobri-la e movemos-lhe um processo.
Se você estiver certo e se ele estiver a inseminar mulheres sem o seu consentimento, apanhá-lo-emos. É uma violação clara de Ofensa à Vontade Individual. Mas preocupemo-nos
com isso mais tarde. Neste momento Chris Lewis está em primeiro lugar na minha agenda de trabalho.
Faça isso insistiu Richard. Obtenha mais informações sobre o passado de Highley. Eu já estou a examinar as acções judiciais por negligência médica contra ele. Uma
mulher, a Sr.a Horan, estará aqui dentro em pouco para contar os motivos que a levaram a levantar-lhe um processo. Mas o artigo da Newsmaker diz que ele esteve em
Liverpool, em Inglaterra, antes de vir para aqui. Vamos telefonar para lá para vermos se
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descobrimos algum sinal de incorrecção. Eles dar-lhe-ão essa informação.
Scott encolheu os ombros.
Claro, vá em frente.
A campainha sobre a secretária tocou. Ele ligou o intercomunicador.
Façam-no entrar disse ele. Reclinando-se na cadeira, olhou para Richard.
O viúvo pesaroso, o comandante Lewis, está aqui com a amante disse ele.
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Dannyboy Duke estava sentado no distrito policial curvado numa cadeira. Estava a transpirar; com os nervos em franja. Os braços tremiam. Era uma cena difícil de
suportar. Mais trinta segundos e ele teria escapado. Estaria no seu apartamento, o alívio abençoado da injecção a percorrer-lhe o corpo. Em vez disso, aquele buraco
cheio de vapor e abrasador.
Dêem-me uma oportunidade sussurrou ele. Os polícias não se comoveram.
Tu é que nos deste uma oportunidade, Danny. Há sangue neste pisa-papéis, Danny. Quem agrediste com ele? Vá lá, Danny. Sabemos que não foi a senhora de idade cuja
carteira roubaste ontem à noite. Atiraste-a ao chão. Ela fracturou o osso ilíaco. Isso é muito mau quando se tem setenta e cinco anos de idade. O mais provável é
ela acabar por apanhar uma pneumonia. Talvez morra. Assim seriam dois assassínios, Dannyboy. Tu cooperas, nós veremos o que podemos fazer por ti, compreendes?
Não sei do que está a falar sussurrou Danny.
Claro que sabes. O saco do médico estava no teu carro. A carteira também estava. A carteira que roubaste no Alexander's, estava no teu bolso. Sabemos que roubaste
o saco ontem à noite. Recebemos a chamada. O porteiro viu-te em frente do Carlyle Hotel. Ele pode identificar-te. Mas quem agrediste com aquele pisa-papéis, Danny?
Diz-nos. E aquele sapato, Danny? Desde quando guardas sapatos velhos? Diz-nos.
Estava dentro do saco sussurrou Danny.
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Os dois detectives olharam um para o outro. Um deles encolheu os ombros e virou-se para o jornal sobre a secretária atrás dele. O outro deixou cair de novo no saco
a ficha que estivera a examinar.
Muito bem, Danny. Estamos a telefonar ao Dr. Salem para sabermos o que ele tinha neste saco. Resolve-se isto. Podia ser mais fácil se cooperasses. Estás aqui há
tempo suficiente para pensares nisso.
O outro detective levantou os olhos do jornal.
O Dr. Salem? A voz era de estupefacção.
Sim. É o nome que está na ficha. Oh, compreendo. A chapa tem o nome de um Edgar Highley. Se calhar tinha a ficha de uma doente de outro médico.
O detective mais novo aproximou-se da mesa com o Daily News da manhã. Ele abriu a ficha e examinou o molho de papéis com o nome EMMET SALEM, MD escrito em tipo de
imprensa no topo. Apontou para a página três do News. "Salem é o médico que foi encontrado no telhado da extensão do Essex House na noite passada. O Promotor de
Justiça de Valley County está a trabalhar com as nossas autoridades neste caso."
Os agentes da Polícia olharam para Dannyboy com interesse renovado e olhos semicerrados, desconfiados.
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Ele prestou atenção quando os olhos de Katie se fecharam e a respiração regularizou. Ela adormecera outra vez. A pergunta sobre Vangie viera de qualquer parte no
seu subconsciente, estimulada talvez por uma duplicação do seu estado mental da noite de segunda-feira. Ela talvez nem se lembrasse de ter feito a pergunta, mas
ele não se podia arriscar. E se ela voltasse a falar nisso na presença da enfermeira Renge ou dos outros médicos na sala de operações antes de a anestesiarem? O
seu espírito procurou uma solução. A sua presença na janela na noite da segunda-feira anterior ainda podia destruí-lo.
Ele precisava de a matar antes de a enfermeira Renge fazer a verificação, em menos de uma hora. A injecção de heparin actuaria imediatamente para impedir que o sangue
coagulasse; mas levaria várias horas a completar o processo. Foi aquilo que
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ele planeara. Agora não podia esperar. Tinha de lhe dar outra injecção, imediatamente.
Tinha heparin no gabinete. Não se atrevia a aproximar-se do dispensário do hospital. Teria de ir pelas escadas de emergência até ao parque de estacionamento, servir-se
da porta privada do gabinete, encher de novo a seringa para injecções hipodérmicas e voltar ali. Demoraria pelo menos cinco minutos. A criada começaria a interrogar-se
por ele não estar na mesa, mas não havia nada a fazer. Satisfeito por Katie estar a dormir, saiu apressadamente do quarto.
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O técnico do Laboratório de Medicina Legal de Valley County trabalhou horas extraordinárias sexta-feira à noite. O Dr. Carroll pedira-lhe para comparar todas as
amostras microscópicas da casa da presumível homicida, Vangie Lewis, com todas as amostras microscópicas da casa de Edna Burns, vítima de suposto acidente. Cuidadosamente
esquadrinhara o conteúdo do saco do aspirador da casa Lewis e do apartamento Burns e procurou diligentemente substâncias que pudessem ser invulgares.
O técnico sabia que possuía um instinto apurado para provas microscópicas, um pressentimento que raramente o deixava ficar mal. Ele tinha sempre um interesse especial
por cabelos, e gostava de dizer, "Somos como animais cobertos de pêlo. É espantoso como deixamos cair constantemente tanto cabelo, incluindo as pessoas que são praticamente
calvas."
Nas substâncias da casa Lewis descobriu uma quantidade razoável de fios de cabelo loiro escuro da vítima. Descobriu também cabelo castanho, em número apreciável,
do quarto de dormir. Sem dúvida do marido, uma vez que os mesmos cabelos estavam no gabinete e na sala de estar.
Mas também havia alguns cabelos ruivos prateados no quarto da vítima. Era estranho. Na cozinha ou na sala de estar, os fios de cabelo podiam muito bem ser de uma
visita ou de uma pessoa que fazia a entrega de mercadorias, mas no quarto? Mesmo hoje em dia, havia poucas pessoas não pertencentes à família que eram convidadas
a entrar no quarto. Tudo apontava
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para um significado especial. O cabelo era da cabeça de um homem. O comprimento sugeria isso automaticamente. Alguns dos fios de cabelo estavam no casaco que a vítima
trazia vestido.
E o técnico descobriu então a ligação que Richard Carroll procurara. Vários cabelos ruivos com raízes prateadas estavam presos no roupão azul desbotado de Edna Burns.
Ele colocou as amostras de cabelo em microscópios com grande poder de aumento e examinou cuidadosamente os dezasseis pontos do teste de comparação.
Não havia sombra para dúvidas. Uma pessoa estivera muito perto das duas mulheres mortas; suficientemente perto para chegar com a cabeça ao peito de Edna Burns e
para roçar com a cabeça no ombro de Vangie Lewis.
O técnico pegou no telefone para entrar em contacto com o Dr. Carroll.
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Ela tentou acordar. Ouviu-se um estalido: fechara-se uma porta. Alguém estivera ali. Doía-lhe o braço. O Dr. Highley. Adormecera... Que dissera ao Dr. Highley? Katie
despertou uns minutos depois e lembrou-se. Lembrou-se do carro preto e dos raios reluzentes das rodas e da luz nos seus óculos. Ela vira aquilo na noite de segunda-feira.
O Dr. Highley levara Vangie Lewis para o quarto na noite de segunda-feira. O Dr. Highley matara Vangie.
Richard desconfiara de alguma coisa. Richard tentara dizer-lhe. Mas ela não lhe deu ouvidos.
O Dr. Highley sabia que ela estava a par de tudo o que se relacionava com ele. Por que razão lhe fizera aquela pergunta? Precisava de sair dali. Ele ia matá-la também.
Ela tivera sempre pesadelos relacionados com hospitais. Porque pressentira que iria morrer num hospital.
Onde teria ido o Dr. Highley. Ele voltaria. Ela sabia. Voltaria para a matar. Ajuda. Ela precisava de ajuda. Por que razão estava tão fraca? O dedo sangrava. Os
comprimidos que ele lhe dera. Desde que os tomava sentira-se muito doente. Os comprimidos. Estavam a fazê-la sangrar.
"Oh, meu Deus, ajuda-me, por favor. O telefone. O telefone!"
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Katie procurou-o às apalpadelas. A mão, fraca e trémula, derrubou-o. Abanando a cabeça, esforçando-se por manter os olhos abertos, levantou-o puxando-o pelo fio.
Finalmente tinha o auscultador perto do ouvido. Não dava sinal. Freneticamente, agitou o telefone, tentou ligar para a telefonista.
O Dr. Highley dissera que o telefone estava a ser reparado. Puxou a sineta para chamar a enfermeira. A enfermeira iria ajudá-la. Mas o estalido que deveria ter acendido
a luz na parte de fora da porta não funcionou. Ela tinha a certeza que o sinal também não apareceu no painel da enfermeira.
Ela tinha de sair dali antes que o Dr. Highley voltasse. Ondas de vertigem provocaram-lhe náuseas quando se levantou.
Ela tinha de fugir. Vangie Lewis. O longo cabelo loiro, a impaciência petulante de uma criança. O Dr. Highley matara Vangie. Matara o seu filho. Houvera outras mortes?
Ela afastou-se da cama, segurando se à barra desta. O elevador. Desceria no elevador até ao segundo andar. Lá havia pessoas outras doentes, enfermeiras.
A pouca distância fechou-se uma porta. Ele vinha lá. Ele vinha lá. Freneticamente, Katie olhou para a porta aberta no corredor. Ele vê-la-ia se ela saísse naquela
altura. A porta da casa de banho não tinha fechadura. O armário. Ele iria descobri-la. Por simples força de vontade, conseguiu aproximar-se da porta aos tropeções
que dava para a sala de estar, abriu-a, entrou, fechou-a antes de ele entrar no quarto.
Para onde podia ir? Ele iria logo à sua procura. Não podia ficar ali. Se tentasse sair para o corredor, passaria pela porta aberta do quarto. Vê-la-ia. Tinha de
ir até ao vestíbulo e virar à esquerda, em seguida atravessar o corredor comprido até ao elevador. Ela não era capaz de lhe fazer frente. Para onde podia ir? Ouviu
uma porta a abrir-se lá dentro. Ele andava à procura dela no quarto. Devia tentar esconder-se debaixo dos panos? Não. Ficaria encurralada. Iria descobri-la, arrancá-la
de lá. Mordeu o lábio quando uma tontura se fincou no espaço atrás dos olhos. As pernas pareciam de borracha, a boca e a pele estavam esponjosas.
Arrastou-se até à porta da sala de estar, aquela que dava para o corredor. Lá havia outra porta, a saída de emergência. Ela vira-a quando a traziam na cadeira de
rodas. Desceria por lá até ao segundo andar. Conseguiria ajuda. Estava no corredor. Dentro de um minuto ele estaria atrás dela.
A porta das escadas de emergência era pesada. Puxou-a com força... puxou outra vez. Ela cedeu com relutância. Ela abriu-a,
217
entrou. Esta fechou-se lentamente. Ele vê-la-ia a fechar-se? As escadas. Estava tão escuro, muito escuro. Mas não podia acender a luz. Ele iria vê-la. Talvez viesse
a correr pelo corredor abaixo em direcção ao elevador. Se ele fizesse isso, teria mais um minuto. Ela precisava desse minuto. "Ajudem-me. Ajudem-me." Agarrou-se
ao corrimão. As escadas eram íngremes. Os pés descalços não faziam barulho. Quantos degraus num lanço? Treze. Não, isso era uma casa. Havia um patamar depois de
oito degraus. Depois outro lanço. Mais oito degraus, depois estaria a salvo. Sete... cinco... um. Estava perto da porta, tentou rodar o puxador. Só abria do outro
lado.
Ouviu abrir-se a porta do terceiro andar e passos pesados pela escada abaixo
66
Chris recusou-se a chamar um advogado. Sentou-se em frente do Promotor de Justiça. Estivera tão preocupado com este encontro, cheio de medo que não acreditassem
nele. Mas Joan acreditava nele; Joan dissera: "É natural que eles desconfiem de ti, Chris. Diz tudo o que sabes. Lembra-te daquela frase da Bíblia, A verdade libertar-te
Chris desviou o olhar do Promotor e fixou-o nos dois detectives que o esperavam no aeroporto.
Não tenho nada a esconder disse ele.
Scott não ficou impressionado. Um rapaz, com ar de intelectual com um bloco de estenografia, entrou na sala, sentou-se, abriu o bloco e tirou uma caneta. Scott olhou
de frente para Chris.
Comandante Lewis, é meu dever informá-lo que o senhor é um suspeito nas mortes de Vangie Lewis, Edna Burns e o Dr. Emmet Salem. Pode manter-se calado. Não é obrigado
a responder a nenhuma pergunta. Em qualquer altura pode recusar-se a continuar a responder às perguntas. Tem direito aos serviços de um advogado. Qualquer afirmação
que faça pode ser usada contra o senhor. Compreendeu bem?
- Sim.
- Sabe ler?
Chris olhou fixamente para Scott. Estava a ser sarcástico? Não, o homem estava a falar a sério.
218
Sei.
Scott empurrou um papel para o outro lado da secretária.
Isto é uma cópia da notificação Miranda que acabou de ouvir. Por favor, leia-a com atenção. Veja se não tem dúvidas e depois, se estiver disposto, assine-a.
Chris leu rapidamente a declaração, assinou-a e devolveu-a.
Muito bem. Scott puxou o papel para um lado. Os seus modos mudaram, tornaram-se um pouco mais vivos. Chris percebeu que o interrogatório ia começar.
"Engraçado", pensou ele, "todas as noites das nossas vidas, se quisermos, podemos ver imagens de polícias-e-ladrões ou dramas de tribunal, mas nunca pensamos que
nos podemos ver envolvidos num. Era evidente que o Promotor de Justiça pensava que tinha sido ele que tinha morto Vangie. Seria loucura não se aconselhar com um
advogado? Não...
O Promotor dizia:
Comandante Lewis, foi maltratado ou ofendido de alguma maneira?
Não.
Quer café ou comida? Chris passou a mão pela testa.
Gostaria de tomar um café, por favor. Mas estou disposto a responder a todas as suas perguntas.
Mesmo assim, não estava preparado para a pergunta de Scott.
Matou a sua mulher, Vangie Lewis? Chris fitou-o.
Não matei a minha mulher. Não sei se ela foi assassinada. Mas sei isto. Se ela morreu antes da meia-noite na segunda-feira, ela não se suicidou em nossa casa.
Scott, Charley, Phil e o estenógrafo ficaram estupefactos, o que era impróprio da sua profissão, quando Chris disse calmamente:
Eu estava lá pouco antes da meia-noite na segunda-feira. Vangie não estava em casa. Regressei a Nova Iorque. Às onze horas da manhã seguinte encontrei-a na cama.
Só depois do dono da agência funerária ir lá a casa buscar as roupas para vestir a minha mulher e me disse a hora da morte é que eu compreendi que o seu cadáver
devia ter sido levado para a nossa casa. Mas mesmo antes disso sabia que havia qualquer coisa de estranho. A minha mulher nunca teria usado nem mesmo tentado calçar
os sapatos que tinha nos pés quando foi encontrada. Porque seis semanas antes da sua morte os únicos
219
sapatos que podia trazer eram um par de moccasins velhos que a mulher da limpeza deixara lá em casa. A perna direita e o pé estavam muito inchados. Ela até usava
aqueles moccasins como chinelos de quarto...
Foi mais fácil do que ele esperava. Ouviu as perguntas que lhe faziam.
Saiu do hotel às oito da noite na segunda-feira e regressou às dez. Onde foi?
Ao cinema em Greenwich Village. Depois de regressar ao motel, não consegui dormir. Resolvi ir a casa de carro e falar com Vangie. Isso foi pouco depois da meia-noite.
Por que razão não ficou em casa e não esperou pela sua mulher? E depois aquela que foi como uma pancada de martelo no estômago: Sabia que a sua mulher trazia no
ventre um feto japonês?
Oh, meu Deus! O pavor misturado com uma sensação de alívio percorreu o corpo de Chris. O filho não era dele. Um feto japonês. Aquele psiquiatra. Ele seria assim
tão malvado para lhe fazer aquilo? Ela tinha tanta confiança nele. Oh, Deus, pobrezinha. Não era para admirar que tivesse tanto medo do parto. Deve ter sido por
isso que telefonou ao Dr. Salem. Ela queria esconder. Oh, Deus, ela era tão criança.
As perguntas surgiram:
Não sabia que a sua mulher tinha uma relação com outro homem?
Não. Não.
Por que razão foi ao apartamento de Edna Burns terça-feira à noite?
Veio o café. Ele tentou responder.
Espere, por favor não podemos registar isto tal como aconteceu? Começou a beber lentamente o café. Ajudou. Foi na terça-feira à noite, pouco depois de tomar consciência
de que Vangie tinha morrido antes de a trazerem para casa, que aquela mulher, Edna Burns, telefonou. Quase não se percebia o que dizia. Falou de Cinderela e do Príncipe
Encantado, disse que tinha uma coisa para mim, uma coisa que eu gostaria de ter, e que tinha uma história para a Polícia. Pensei que ela talvez soubesse com quem
Vangie andava. Pensei que se ela me contasse, talvez não tivesse de admitir que tinha estado em casa na noite de segunda-feira. Não queria que Joan se visse envolvida
nisto.
Pousou a chávena do café, recordando a noite de terça-feira. Parecia há tanto tempo. Estava tudo tão desajustado.
220
Fui de carro até à urbanização onde vivia a Menina Burns. Um miúdo andava a passear o cão e indicou-me o apartamento. Toquei à campainha e bati à porta. A televisão
estava ligada, a luz acesa, mas ela não respondeu. Calculei que tivesse desmaiado e não adiantava falar com ela, que talvez não passasse de uma pessoa excêntrica.
Fui para casa.
Não chegou a entrar?
Não.
A que horas foi isso?
Cerca das nove e meia.
Está bem. Que fez a seguir?
As perguntas, uma após outra; bebeu mais café. A verdade. Só a verdade. Era muito mais fácil do que as evasivas. Não esquecer o futuro. Se acreditassem nele, ele
e Joan teriam uma vida em conjunto. Pensou na forma como ela olhara para ele, como o abraçara na noite anterior no seu apartamento. Pela primeira vez na sua vida,
teve consciência que havia uma pessoa a quem poderia recorrer quando tivesse problemas; alguém que os queria partilhar com ele. Todos Vangie, mesmo os pais dele
tinham dependido sempre dele.
Tanto na felicidade como na adversidade.
"Seriam felizes. Joan, minha querida", pensou ele. Respirou fundo. Estavam a fazer perguntas sobre o Dr. Salem.
67
Richard sentou-se à secretária de Katie enquanto esperava que o chefe de pessoal do Christ Hospital, Devon, atendesse o seu telefonema. Apenas dando ênfase à necessidade
premente de falar com alguém nos postos de chefia, que estava no hospital há mais de dez anos é que lhe deram o número particular do homem.
Enquanto aguardava, olhou em redor. A mesa atrás da secretária de Katie estava cheia de processos em que ela estava a trabalhar. Não admirava que não tivesse tirado
uma folga depois do acidente. Mas por mais ocupada que estivesse, devia ter ficado em casa. Nessa tarde estava com muito mau aspecto. E o facto de ter perdido aquele
caso nesse dia devia tê-la perturbado muito. Gostava de ter estado com ela antes de se ir embora.
221
O telefone continuava a dar sinal. O homem devia estar ausente ou a dormir. Talvez pudesse protelar até de manhã. Não. Precisava de descobrir naquele momento.
Havia instantâneos numa moldura sobre a secretária de Katie. Katie com uma senhora de idade, provavelmente a mãe. Sabia que a mãe vivia algures na Florida. Katie
com Jennifer, a filha mais velha de Molly. Katie parecia a irmã mais velha de Jen. Katie com um grupo de pessoas com equipamento de esqui. Deviam ser os amigos com
que ficava em Vermont.
Nenhum retrato de John DeMaio. Mas Katie não era o tipo de pessoa que no trabalho fazia lembrar subtilmente aos outros que era a viúva de um juiz proeminente. E
havia certamente muitas fotografias dele por toda a casa.
O telefone continuava a tocar. Esperaria mais um minuto.
Richard compreendeu que estava satisfeito por não ver fotografias de outro homem. Estivera a analisar a sua reacção quando Katie lhe disse que iria passar o fim-de-semana
fora. Tentara fazer parecer que ficara surpreendido por ela não poder estar livre no momento em que estava iminente um caso importante.
Sim. Uma voz zangada e ensonada atendeu o telefone. Richard endireitou-se, apertou com mais força o auscultador.
Sr. Reeves? Sr. Alexander Reeves?
- Sim.
Richard foi direito ao assunto.
Peço imensa desculpa de lhe telefonar a esta hora, mas o assunto é vital. É uma chamada transatlântica. Sou o Dr. Richard Carroll, o Examinador Médico de Valley
County, Nova Jérsia. Preciso de obter informações sobre o Dr. Edgar Highley.
A sonolência desapareceu da voz do outro homem. Tornou-a viva e prudente.
Que deseja saber?
Acabo de falar com a Clínica Queen Mary em Liverpool e fiquei admirado ao saber que o Dr. Highley fez parte da direcção há relativamente pouco tempo. Tínhamos sido
levados a pensar o contrário. Todavia, disseram-me que o Dr. Highley fez parte do corpo directivo do Christ Hospital pelo menos durante nove anos. Não é assim?
Edgar Highley fez o internato connosco depois da licenciatura em Cambridge. Ele é um médico brilhante e foi convidado para o corpo directivo, especializando-se em
obstetrícia e ginecologia.
Quando saiu?
222
Depois da morte da mulher estabeleceu-se de novo em Liverpool. Depois soubemos que tinha emigrado para os Estados Unidos. Isso não é invulgar, claro. Muitos dos
nossos clínicos e cirurgiões não aceitarão os honorários relativamente baixos do nosso sistema médico socializado.
Não houve outro motivo para o pedido de demissão do Dr. Highley?
Não compreendo a sua pergunta. Richard aproveitou a ocasião.
Eu penso que o senhor compreende, Sr. Reeves. Isto evidentemente, absolutamente confidencial, mas não posso perder tempo a ser discreto. Creio que o Dr. Highley
pode estar a fazer experiências com as pacientes grávidas, talvez mesmo com as suas próprias vidas. Existe alguma justificação que possa apresentar para confirmar
esta possibilidade?
Houve um longo silêncio. As palavras que vieram a seguir foram lenta e cautelosamente articuladas.
Enquanto esteve connosco, o Dr. Highley não era apenas um médico que exercia a sua profissão, estava também profundamente empenhado na investigação pré-natal. Fez
experiências bastante brilhantes com embriões de rãs e mamíferos. Então um colega começou a desconfiar que ele fazia experiências com fetos humanos abortados o que
é, evidentemente, ilegal.
Que medidas foram tomadas?
Foi mantido em segredo, claro, mas estava a ser vigiado, aconteceu uma tragédia. A mulher do Dr. Highley morreu inesperadamente. Não podíamos provar nada, mas suspeitava-se
que ele tinha implantado na mulher um feto abortado. Pediram ao Dr. Highley que se demitisse. Isto é, claro, absolutamente confidencial. Não existe a mínima prova,
e devo contar que o senhor encare esta conversa como inviolável.
Richard absorveu o que ouvira. A sua suspeita tinha fundamento. Quantas mulheres matara Highley com as suas experiências? Uma questão surgiu no seu espírito uma
possibilidade louca, quase inimaginável.
Sr. Reeves perguntou, conhece por acaso um Dr. Emmet Salem.
A voz animou-se imediatamente.
Claro que conheço. Um bom amigo. O Dr. Salem estava cá na altura do escândalo Highley.
225
68
Katie desceu as escadas até ao piso principal sem fazer barulho. Agarrou desesperadamente no puxador, tentou abrir a porta. Mas ela não cedeu. Estava fechada à chave.
Lá em cima, os passos tinham parado. Ele estava a experimentar o puxador da porta do segundo andar, certificando-se de que ela não lhe escapara. Os passos começaram
de novo. Ele ia descer. Ninguém a ouviria se gritasse. Aquelas portas pesadas eram à prova de fogo. Ali não se ouvia nenhum som do hospital. Do outro lado da porta,
havia pessoas; visitas, pacientes, enfermeiras. A menos de seis polegadas. Mas eles não a podiam ouvir.
Ele vinha lá. Podia apanhá-la, matá-la. Sentiu uma dor forte, constante na zona pélvica. Estava a deitar muito sangue. O que quer que fosse que ele lhe dera provocara
a hemorragia. Sentia tonturas. Mas tinha de fugir. Ele fizera com que a morte de Vangie parecesse suicídio. Ainda podia escapar sem ser punido. Precipitou-se pela
escada abaixo. Havia mais um lanço. Provavelmente ia dar à cave do hospital. Ele teria de explicar como e porquê ela fora lá parar. Quanto mais se afastasse mais
perguntas seriam feitas. Tropeçou no último degrau. "Não caias. Não faças com que pareça um acidente. Edna caíra. Ou não?"
Ele também matara Edna Burns?
Mas ali ficaria encurralada. Outra porta. Aquela também devia estar fechada à chave. Rodou o puxador desesperadamente. Ele estava no patamar do meio. Escuro como
estava, ela conseguia ver movimento, um vulto a precipitar-se na sua direcção.
A porta abriu-se. O corredor estava pouco iluminado. Estava na cave. Viu compartimentos à sua frente. Havia tanto silêncio. A porta fechou-se atrás dela com um estalido.
Podia-se esconder em algum lugar? "Ajudem-me. Ajudem-me." Havia um interruptor na parede. Fez pressão com a mão em cima dele. O dedo sujou-o de sangue. O corredor
ficou envolto em escuridão quando a alguns passos atrás dela a porta da caixa da escadaria se abriu de repente.
69
Highley era suspeito da morte da sua primeira mulher. O primo de Winifred Westlake acreditava que ele tinha provocado
224
a morte de Winifred. Highley era um investigador brilhante. Highley podia ter andado a fazer investigações com algumas das mulheres que eram suas pacientes. Highley
podia ter injectado Vangie Lewis com o sémen de um homem oriental. Mas porquê? Esperava escapar impune? Sem dúvida que conhecia o passado de Fukhito. Tentaria acusá-lo?
Porquê? Fora um acidente? Utilizara o sémen errado? Ou teria Vangie um caso com Fukhito? A experiência possível do Dr. Highley seria apenas inerente à gravidez de
Vangie?
Richard não conseguia encontrar a resposta. Ficou sentado à secretária de Katie a girar a caneta Mark Cross. Ela trazia-a sempre. Devia ter saído a correr nessa
noite e esqueceu-se de a levar. Mas estava perturbada. O facto de ter perdido o caso devia tê-la irritado muito. Katie dificilmente iria aceitar isso. Havia muitas
coisas que Katie tinha dificuldade em aceitar. Gostava de saber onde ela estava. Queria falar com ela. Como sangrava o dedo. Teria de perguntar a Molly se ela sabia
se Katie tinha ou não uma percentagem baixa de plaquetas. Isso podia constituir um problema grave.
Um arrepio fez entorpecer os dedos de Richard. Isso podia ser um sintoma de leucemia. Oh, que desgraça. Na segunda-feira iria levar Katie a um médico nem que a tivesse
de amarrar para o fazer.
Ouviu-se uma pancada fraca na porta e Maureen espreitou. Os seus olhos eram verde-esmeralda, grandes e ovais. Belos olhos. Bela miúda.
- Dr. Carroll.
Maureen, desculpe por lhe ter pedido que ficasse. Pensei que a Sr.a Horan já aqui estivesse há muito tempo.
Não há problema. Ela telefonou. Vem a caminho. Surgiu qualquer coisa no emprego e precisaram dela. Mas estão aqui duas mulheres. São amigas da Menina Burns, que
morreu. Queriam falar com Katie. Disse-lhes que ela se tinha ido embora, e uma delas mencionou o seu nome. Conheceu-o na noite em que esteve no apartamento de Edna
Burns; uma Sr.a Fitzgerald.
Fitzgerald?... Claro. A Sr.a Fitzgerald é recepcionista em part-time no Westlake Hospital. Quando Richard disse "Westlake", levantou-se. Mande-as entrar. Talvez
fosse melhor telefonar a Scott.
Sr. Myerson não quer que o incomodem. Ele e Charley e Phil ainda estão a interrogar o comandante Lewis.
Está bem. Eu falo com elas. Depois se houver mais alguma coisa, pedimos-lhes que esperem.
225
Entraram juntas, os olhos de Gana pestanejavam com a excitação. Decidira com pesar que não vestiria o casaco de leopardo de Edna. Parecia cedo de mais. Mas tinha
a história para contar.
Gertrude trazia o moccasin dentro de um saco de papel. O cabelo quase grisalho estava impecavelmente penteado. O cachecol estava atado ao pescoço com um nó. O excelente
jantar não passava de uma recordação, e naquele momento só queria ir para casa e deitar-se. Mas estava contente por falar com o Dr. Carroll. Ia contar-lhe que naquela
noite no apartamento da infeliz Edna, o Dr. Highley estava a abrir a gaveta de mesinha-de-cabeceira. Não havia nada naquela gaveta a não ser o sapato. O Dr. Carroll
pensaria que o Dr. Highley queria apoderar-se daquele sapato por alguma razão?
A Sr.a DeMaio estava tão interessada naquela história do Príncipe Encantado. O Dr. Carroll podia querer saber disso, também. Podia contar à Sr.a DeMaio quando ela
chegasse na segunda-feira. O Dr. Carroll olhava para elas, expectante.
Gertrude inclinou-se para a frente, abanou o saco, e o moccasin velho caiu em cima da secretária de Katie. Ela começou por explicar com um ar afectado:
É por causa desse sapato que estamos aqui.
70
Ela atravessou o corredor aos ziguezagues. Ele saberia onde estava situado o interruptor? Atrever-se-ia a acender a luz? E se lá estivesse alguém? Ela devia tentar
gritar?
Ele conhecia aquele hospital. Para onde iria ela? Havia outra porta ao fundo do corredor. A porta mais distante. Talvez tentasse as outras em primeiro lugar. Talvez
ela se pudesse trancar em qualquer lugar. Podia não dar conta das portas laterais. Mas, se ela corresse em linha recta, teria de chegar àquela parede distante. A
porta ficava no meio. O dedo sangrava. Tentaria espalhar sangue na porta. Quando a enfermeira fizesse a inspecção, começariam à sua procura. Talvez vissem as manchas
de sangue.
Ele não se mexia. Estava a ver se a ouvia. Veria uma sombra quando a porta se abrisse? A mão estendida tocou numa parede
226
fria. "Oh, meu Deus, fazei com que eu encontre a porta". A mão deslizou pela parede. Tocou no caixilho de uma porta. Atrás dela ouviu um sussurro. Ele abrira aquela
primeira porta. Mas naquele momento não se daria ao trabalho de espreitar para dentro daquele compartimento. Ele perceberia que não ouvira aquele rangido, que ela
não forçara aquela porta. A mão encontrou um puxador. Rodou-o deliberadamente, roçando nele o dedo cortado. Um cheiro forte a formaldeído encheu-lhe as narinas.
Ouviu atrás dela passos apressados. Tarde de mais. Tarde de mais. Tentou fechar a porta, mas esta foi aberta com um empurrão. Tropeçou e caiu. Estava tão tonta,
tão tonta. Estendeu a mão. A mão tocou na perna de umas calças.
Está tudo acabado, Katie disse o Dr. Highley.
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Tem a certeza de que este sapato é o da sua mulher? perguntou Scott. Chris acenou com lassidão.
Tenho a certeza absoluta. Este é o sapato que lhe ficava largo... o esquerdo.
Quando Edna lhe telefonou, disse-lhe que tinha este sapato em seu poder?
Não. Ela disse que tinha algo para contar à Polícia e que queria falar comigo.
Ficou com a impressão de que se tratava de chantagem... de ameaça?
Não, verbosidade de pessoa embriagada. Sabia que ela trabalhava no Westlake Hospital. Na altura não me apercebi que ela era a recepcionista de que Vangie costumava
falar. Disse que Edna estava sempre a meter-se com ela a propósito das chinelas de vidro.
Está bem. O seu depoimento será dactilografado imediatamente. Leia-o atentamente, assine-o se o achar correcto e depois pode ir para casa. Vamos querer conversar
consigo de novo amanhã de manhã.
Pela primeira vez Chris teve a impressão que o Promotor de Justiça começara a acreditar nele. Levantou-se para se ir embora.
Onde está Joan?
227
Ela acabou de fazer um depoimento. Pode ir consigo. Oh, uma coisa: que impressão tem do Dr. Highley?
Nunca o vi.
Leu este artigo sobre ele? Scott mostrou a revista Newsmaker.
Chris olhou para o artigo, para a fotografia do Dr. Highley.
Vi isto ontem na viagem para Nova Iorque. Espicaçou a memória.
É isso disse ele. Era isso que eu não conseguia ordenar.
De que está a falar? perguntou Scott.
Aquele foi o homem que desceu no elevador no Essex Hospital ontem à noite, quando estava a tentar entrar em contacto com o Dr. Salem.
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Ele acendeu a luz. Por entre a névoa ela conseguia ver o seu rosto, os olhos salientes quando olhou fixamente para ela, a pele a cintilar de transpiração, o cabelo
ruivo desgrenhado sobre a testa.
Ela conseguiu pôr-se de pé. Estava num pátio pequeno semelhante a uma sala de espera. Estava tanto frio. Uma porta grossa de aço estava atrás dela. Recuou, encostando-se
à porta.
Simplificou-me as coisas, Sr.a DeMaio. Agora sorria-lhe. Toda a gente que lhe é chegada sabe do seu medo de hospitais. Quando a enfermeira Renge e eu fizermos a
inspecção daqui a alguns minutos, fingiremos que saiu do hospital. Telefonaremos à sua irmã, mas ela ausentar-se-á durante várias horas, não é? Só começaremos a
procurá-la no hospital muito mais tarde. Certamente que ninguém se vai lembrar de vir procurá-la aqui.
Um homem de idade morreu esta noite na sala de urgência. Ele está num daqueles subterrâneos. Amanhã de manhã quando o cangalheiro vier buscar o corpo, será descoberta.
Será óbvio o que lhe aconteceu. Estava com uma hemorragia; ficou desorientada, quase comatosa. Tragicamente, veio parar aqui e esvaiu-se em sangue até morrer.
Não. O rosto dele parecia uma mancha. Ela estava tão tonta. Cambaleava.
Ele estendeu a mão perto dela e abriu a porta de aço. Empurrou-a
225
através dela, segurou-a quando ela escorregou. Desmaiara. Ajoelhando-se perto dela, deu-lhe a última injecção de heparin. Provavelmente não voltaria a recuperar
os sentidos. Mesmo que voltasse a si, não conseguiria sair dali. Daquele lado a porta estava fechada à chave. Olhou para ela, pensativamente, depois pôs-se de pé
e limpou a mancha de pó das calças. Livrara-se finalmente de Katie DeMaio.
Fechou a porta de aço que separava os jazigos da área de atendimento da morgue e apagou a luz. Abriu com todo o cuidado a porta que dava para o corredor e desceu-o
a toda a pressa, saindo para o parque de estacionamento pela mesma porta por onde entrara há quinze minutos.
Alguns minutos depois, estava a beber o cappucino morno, recusando com um aceno de mão o café quente que a criada se prontificara a trazer-lhe.
As chamadas telefónicas demoraram um pouco mais do que contava explicou ele Agora tenho de voltar a correr para o hospital. Há uma paciente lá com quem estou bastante
preocupado.
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Boa noite, Dr. Fukhito. Sinto-me muito melhor. Obrigado. O rosto do rapaz esboçou um sorriso.
Fico contente. Dorme bem, Tom. Jiro Fukhito levantou-se devagar. Aquele rapaz ia conseguir. Estivera com uma depressão grave durante semanas, quase suicida. Vinha
a oitenta milhas por hora num carro que se esbarrou. O irmão mais novo morreu no acidente. Desgosto. Culpa. Era de mais para a capacidade do rapaz.
Jiro Fukhito sabia que o ajudara a ultrapassar a pior fase. O seu trabalho podia ser tão satisfatório, pensava enquanto percorria lentamente o corredor de Valley
Pines Hospital. O trabalho que fazia ali, o trabalho voluntário era ali que gostava de exercer clínica.
Oh, ele fizera bastante por muitos dos pacientes de Westlake. Mas havia outros que não ajudara, não fora autorizado a ajudar.
Boa noite, doutor. Alguns dos doentes da enfermaria de psiquiatria saudaram-no quando se dirigia para o elevador.
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Tinham-lhe pedido para trabalhar ali a tempo inteiro. Ele queria aceitar essa oferta.
Deveria dar início à investigação que inevitavelmente o destruiria?
Edgar Highley não hesitaria em revelar o caso de Massachussets se ele desconfiasse que o seu sócio falara da sua paciente com a Polícia.
Mas a Sr.a DeMaio já desconfiava de qualquer coisa. Ela vira o seu nervosismo quando o interrogou naquele dia.
Entrou no carro, ficou sentado dentro dele sem saber o que fazer. Vangie Lewis não se suicidou. Ela seria incapaz de se suicidar bebendo cianido. Começara a falar
do culto de Jones numa das sessões quando discutiam sobre religião.
Via-a sentada no seu gabinete, a sua explicação sincera, superficial das suas crenças religiosas. Não sou uma pessoa de ir à igreja, doutor. Acredito em Deus. Mas
à minha maneira. Às vezes penso em Deus. É melhor do que ir a correr assistir a um serviço religioso a que não se presta atenção, não acha? E quanto a esses cultos.
São todos loucos. Não compreendo por que razão as pessoas se envolvem neles. Lembra-se de todas aquelas pessoas que se mataram porque lhes mandaram? Ouviu a gravação
deles a gritarem depois de beberem aquela droga? Tive pesadelos com isso. E eles tinham um aspecto tão horrendo.
Sofrimento. Fealdade. Vangie Lewis? Nunca!
Jiro Fukhito suspirou. Ela sabia o que tinha de fazer. Uma vez mais a sua vida profissional iria pagar pelo erro terrível de há dez anos atrás.
Mas precisava de contar à Polícia o que sabia. Vangie saíra do seu gabinete a correr até ao parque de estacionamento. Quando saiu, quinze minutos depois, o Lincoln
Continental ainda estava no parque.
Jiro Fukhito tinha a certeza que Vangie Lewis entrara no gabinete de Edgar Highley.
Saiu do parque de estacionamento do hospital e virou na direcção do escritório do Promotor de Justiça de Valley County.
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Scott segurou na mão o moccasin. Richard, Charley e Phil estavam sentados à volta da secretária.
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Vamos tentar encaixar isto disse Scott. Vangie Lewis não morreu em casa. Foi levada para lá entre a meia-noite e as onze da manhã. O último lugar que se sabe que
visitou foi o gabinete do Dr. Fukhito no hospital. Vangie trazia os moccasins na noite de segunda-feira. Algures no hospital perdeu um deles, e Edna Burns encontrou-o.
Quem a levou para casa, calçou-lhe outros sapatos para tentar encobrir o que se perdera. Edna Burns descobriu o sapato e falava dele. E Edna Burns morreu.
Emmet Salem queria contactá-lo, Richard. Queria falar-lhe da morte de Vangie. Veio para Nova Iorque e caiu ou foi empurrado para a morte alguns minutos mais tarde,
e a ficha de Vangie, que ele trazia, desapareceu.
E Chris Lewis jura que viu Edgar Highley no Essex House interrompeu Richard.
O que pode não ser verdade lembrou-lhe Scott.
Mas o Dr. Salem sabia do escândalo no Chris Hospital disse Richard. Highley não iria querer que viesse a lume precisamente no momento em que estava a ter publicidade
a nível nacional.
Isso não é motivo para matar disse Scott.
E se Highley tentasse tirar aquele sapato da gaveta de Edna? perguntou Charley?
Não sabemos ao certo. Aquela mulher do hospital afirma peremptoriamente que ele estava a abrir a gaveta. Não tocou em nada. Scott franziu as sobrancelhas. É tudo
inconsistente. Estamos a lidar com um médico eminente. Não podemos perder o juízo porque ele esteve envolvido num escândalo abafado há dez anos. O problema maior
é o móbil. Highley não tinha nenhum motivo para matar Vangie Lewis.
O intercomunicador tocou. Scott ligou-o.
A Sr.a Horan está aqui disse Maureen.
Muito bem, mande-a entrar, e quero que anote o seu depoimento ordenou Scott.
Richard curvou-se. Aquela era a mulher que movera um processo a Edgar Highley por negligência médica.
A porta abriu-se e uma mulher jovem entrou na sala à frente de Maureen. Era japonesa com vinte e poucos anos. O cabelo caía solto sobre os ombros. Um baton vermelho-vivo
destoava na pele morena. O seu porte delicado, gracioso conferia um efeito flutuante mesmo ao fato barato que envergava.
Scott levantou-se.
Sr.a Horan, agradecemos muito ter vindo. Vamos procurar não a reter muito tempo. Não se quer sentar?
231
Ela acenou com a cabeça. Claramente nervosa, humedeceu os lábios e entrelaçou deliberadamente as mãos no regaço. Maureen sentou-se discretamente atrás dela e abriu
o bloco de estenografia.
Importa-se de dizer o seu nome e morada? perguntou Scott.
Sou Anna Horan. Vivo no 415 na Walnut Street em Ridgefield Park.
É ou era paciente do Dr. Edgar Highley?
Richard virou-se rapidamente quando ouviu Maureen a arfar. Mas a rapariga recompôs-se depressa, curvando a cabeça, recomeçou a tirar notas.
O rosto de Anna Horan tornou-se duro.
Sim, era paciente daquele assassino.
Aquele assassino? disse Scott. Agora as palavras saíam em catadupa.
Visitei-o há cinco meses. Estava grávida. O meu marido está no segundo ano de direito. Vivemos do meu salário. Decidi que devia fazer um aborto. Eu não queria, mas
pensava que devia.
Scott suspirou.
E o Dr. Highley fez o que a senhora lhe pediu e agora está a culpá-lo?
Não. Isso não é verdade. Disse-me para voltar lá no dia seguinte. E eu voltei. Levou-me para uma sala de operações no hospital. Deixou-me, e eu sabia sabia que fosse
qual fosse a nossa vida, eu queria o meu filho. O Dr. Highley voltou; eu estava a sentar-me. Disse-lhe que mudara de ideias.
E ele provavelmente disse-lhe que uma em duas mulheres diz a mesma coisa nessa altura.
Ele disse: "Deite-se." Fez-me deitar sobre a maca.
Estava mais alguém na sala? A enfermeira?
Não. Só o médico e eu. E eu disse: "Eu sei o que estou a dizer."
E a senhora deixou que ele a convencesse?
Não. Não. Não sei o que aconteceu. Ele injectou-me enquanto eu tentava levantar-me. Quando acordei, estava deitada numa maca. A enfermeira disse que já tinha passado
tudo. Disse que devia descansar um pouco.
Não se lembra do que aconteceu?
De nada. Nada. Só me lembro de tentar fugir. A boca mexia convulsivamente. Tentar salvar o meu filho. Eu queria o meu filho. O Dr. Highley tirou-me o meu filho.
232
Um grito seco de dor fez ecoar os soluços dilacerantes de Anna Horan. O rosto de Maureen estava contorcido, a voz era gemido.
Foi exactamente o que ele me fez.
Richard olhou fixamente para as jovens que choravam: a japonesa; Maureen com o cabelo loiro-avermelhado e olhos verde-esmeralda. E com absoluta certeza lembrou-se
onde tinha visto aqueles olhos.
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Saiu no segundo andar do hospital e sentiu imediatamente a tensão no ar. Enfermeiras assustadas corriam no corredor. Um homem e uma mulher com fatos de cerimónia
estavam junto da secretária da enfermeira Renge.
Ele aproximou-se rapidamente da secretária. A voz era desaprovadora e áspera quando perguntou:
Enfermeira Renge, há algum problema?
Doutor, é a Sr.a DeMaio. Ela desapareceu.
A mulher tinha trinta e tal anos e não lhe era estranha. Claro! Ela era a irmã de Katie DeMaio. O que a levara a vir ao hospital?
Sou o Dr. Highley disse-lhe ele. Que significa isto? Molly teve dificuldade em falar. Acontecera alguma coisa a Katie. Ela tinha consciência disso. Nunca perdoaria
a si mesma.
Katie... A voz embargou-se-lhe.
O homem que estava com ela meteu-se de permeio:
Sou o Dr. Kennedy disse. A minha mulher é irmã da Sr.a DeMaio. Quando a viu, doutor, e qual era o seu estado?
Aquele não era um homem fácil de enganar.
Vi a Sr.a DeMaio há pouco mais de uma hora. O seu estado não era bom. Como deve saber, ela recebeu duas unidades completas de sangue esta semana. O laboratório está
já a analisar o sangue. Conto que esteja baixo. Como a enfermeira Renge lhe dirá, espero realizar um D-e-C hoje à noite em vez de esperar até de manhã. Creio que
a Sr.a DeMaio tem vindo a esconder de toda a gente a gravidade da hemorragia.
Oh, meu Deus, então onde está ela? exclamou Molly. Ele olhou para ela. Ela seria mais fácil de convencer.
A sua irmã tem um medo de hospitais, quase patológico. É possível que ela se tivesse ido embora?
233
As roupas estão no armário, doutor disse a enfermeira Renge.
Algumas roupas podem estar no armário corrigiu ele. Desfez o saco da Sr.a DeMaio?
Não.
Então, não sabe quais eram as outras peças de vestuário que tinha com ela?
É possível disse Bill, pausadamente. Voltou-se para Molly. Querida, sabes que é possível.
Devíamos estar aqui disse-lhe Molly. Ela está muito mal, doutor?
Temos de a encontrar e trazê-la para aqui. Seria possível que tivesse ido para casa dela ou para a vossa?
Doutor a voz tímida da enfermeira Renge tinha um temor, aquele soporífero devia ter feito com que a Sr.a DeMaio dormisse. Foi o mais forte que o senhor prescreveu.
Ele fitou-a com um ar zangado.
Prescrevi-o pela simples razão de me ter apercebido da ansiedade da Sr.a DeMaio. Mandei-a ver se ela o tomava. Ela não queria o comprimido. Você viu-a tomá-lo?
Vi-a metê-lo na boca.
Viu-a a engoli-lo?
Não... realmente, não.
Ele virou as costas à enfermeira num gesto de desprezo. Falou com Molly e Bill, com um tom de voz ponderado, pesaroso.
Custa-me a crer que a Sr.a DeMaio ande a vaguear pelo hospital. São de opinião que ela pode ter-se ido embora de sua própria vontade? Podia ter-se metido no elevador,
ido para a entrada e saído com as visitas que entram e saem durante toda a noite. Acham que é possível?
Sim. Sim Eu acho. Molly rezou. Oxalá que seja assim
Então esperemos que a Sr.a DeMaio esteja em casa muito em breve.
Quero ver se o carro dela está no parque de estacionamento disse Bill.
O carro. Ele não pensara no carro. Se começassem já a procurá-la no hospital...
Bill franziu as sobrancelhas.
Oh, diabo, ela ainda anda com aquele carro emprestado. Molly, de que marca é? Acho que o não vi.
Eu... eu não sei disse Molly. Edgar Highley suspirou.
Penso que mesmo que conseguissem identificar o carro,
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estariam a perder o vosso tempo examinando o parque de estacionamento. Eu sugeria que telefonassem para casa dela. Se não estiver lá, vão e esperem para verem se
ela chega. Ela desapareceu há quase uma hora. Quando entrarem em contacto com ela, insistam por favor para que ela volte para o hospital. Pode ficar com ela, Sr.a
Kennedy. Doutor, se acha que isso reconforta a Sr.a DeMaio, teria todo o prazer em que estivessem comigo na sala de operações. Mas não podemos permitir que continue
com aquela hemorragia. A Sr.a DeMaio é uma rapariga muito doente.
Molly mordeu o lábio.
Compreendo. Obrigado, doutor. É muito amável. Bill, vamos para a casa de Katie. Talvez já lá esteja e não atenda o telefone.
Afastaram-se dele. Acreditaram nele. Não sugeririam uma busca pelo menos durante várias horas. Era tudo quanto precisava.
Virou-se para a enfermeira. Com o seu comportamento estúpido, disparatado, tinha sido muito útil. Era evidente que Katie não chegara a engolir aquele soporífero.
Evidentemente que ele tinha razões para o prescrever.
Tenho a certeza de que em breve teremos notícias da Sr.a DeMaio disse ele. Telefone-me imediatamente quando tiver notícias. Estarei em casa. Sorriu. Tenho de concluir
uns relatórios.
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Precisamos de deitar as mãos aos relatórios do Dr. Highley antes que ele os destrua. Tanto quanto sabe, guarda todos os relatórios no gabinete?
Jiro Fukhito fitou Richard. Dirigira-se ao gabinete do Promotor de Justiça pronto para prestar declarações. Ouviram-no quase com impaciência, e o Dr. Carroll explanou
a sua teoria em linhas gerais em seguida.
Seria possível? Jiro Fukhito rememorou as vezes em que as suspeitas se tinham formado no seu espírito, depois eram dissipadas pelo génio de Highley em obstetrícia.
Era possível.
Relatórios. Fizeram-lhe perguntas sobre relatórios.
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Edgar Highley nunca guardaria no gabinete do hospital relatórios que sugiram ilegalidade disse ele pausadamente. Há sempre o perigo de uma intimação por negligência
médica. Todavia, leva fichas para casa muitas vezes. Nunca percebi por que fazia isso.
Mande passar mandatos de busca domiciliária imediatamente disse Scott a Charley. Passamos busca ao escritório e à casa simultaneamente. Levo a brigada para a casa.
Richard, você vem comigo. Charley, você e Phil encarregam-se do escritório. Prenderemos Highley como testemunha material. Se não estiver lá, quero que cerquem a
casa e apanhamo-lo assim que chegar a casa.
O que me preocupa é que possa haver alguém que esteja a servir de cobaia neste momento disse Richard. Apostava que os cabelos que o laboratório encontrou nos corpos
de Edna e Vangie são de Highley. Olhou para o relógio. Eram nove e meia. Resolvemos isto esta noite vaticinou ele.
Gostaria que Katie estivesse ali. Ficaria aliviada ao saber que Chris Lewis estava prestes a ser eliminado como suspeito. O seu pressentimento em relação a Chris
tinha fundamento. Mas o seu pressentimento em relação a Highley também tinha fundamento.
O Dr. Fukhito levantou-se.
Ainda precisa de mim?
Por agora, não, doutor disse Scott. Manter-nos-emos em contacto com o senhor. Se por acaso tiver notícias do Dr. Highley antes de nós o prendermos, por favor não
lhe fale desta investigação. Percebe?
Jiro Fukhito sorriu com lassidão.
Edgar Highley e eu não somos amigos. Não teria nenhum motivo para me visitar. Ele contratou-me porque sabia que me podia dominar. Como estava certo! Esta noite analisarei
a minha conduta e calcularei quantas vezes reprimi as suspeitas que deviam ter sido exploradas. Tenho medo da conclusão a que vou chegar.
Saiu da sala. Enquanto atravessava o corredor, viu uma placa numa porta: SR.a DeMAIO. Katie DeMaio. Ela não devia ter sido internada nessa noite? Mas claro, ela
nunca seria operada enquanto Edgar Highley estivesse a ser investigado.
Jiro Fukhito foi para casa.
236
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Ela atravessava um corredor escuro sem destino. Mesmo ao fundo havia uma luz. Estaria quente quando lá chegasse. Quente e seguro. Mas algo a impedia. Havia uma coisa
que precisava de fazer antes de morrer. Precisava de lhes dizer o que o Dr. Highley era. O dedo estava a sangrar. Ela sentia-o. Estava estendida no chão. Estava
tão frio. Todos esses anos tivera pesadelos em que iria morrer no hospital. Mas afinal não era assim tão mau. Tinha tanto medo de ficar sozinha. Sem o pai, depois
sem John. Com tanto medo de sofrer. Somos todos iguais. Nascemos sozinhos e morremos sozinhos. Realmente não há nada de que ter medo. Seria capaz de escrever no
chão o nome do Dr. Highley com o dedo? Ele era louco. Tinha de ser detido. Lentamente, penosamente, Katie moveu o dedo. Para baixo, para o lado, para baixo de novo
H.
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Chegou a casa às nove e um quarto. A sensação gratificante de ter eliminado finalmente a última ameaça fê-lo sentir-se leve. Comera há menos de uma hora, mas nem
sequer se conseguia lembrar da refeição. Talvez Hilda tivesse deixado qualquer coisa de comer.
Era melhor do que esperava. Fondue. Hilda fazia um fondue muitíssimo bom. Era talvez dos melhores dos seus dotes culinários. Acendeu a chapa Sterno por baixo da
taça, pô-la com uma chama baixa. Uma tosta de pão francês estava dentro de um cesto, tapada com um guardanapo de damasco. Faria uma salada; havia arugula de certeza.
Dera ordem a Hilda para que comprasse alguma nesse dia.
Enquanto o fondue aquecia, completaria a ficha de Katie DeMaio. Estava ansioso por se ver livre dela. Queria pensar nas duas pacientes do dia seguinte: no dador
e no receptor. Estava certo de que podia duplicar o seu sucesso.
Mas seria isso o suficiente? Não seria mais interessante se desse gémeos ao receptor? Dois fetos de dadores distintos.
A teoria de imunidade reactiva que ele aperfeiçoara podia
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falhar. Quase de certeza. Mas quanto tempo levaria? Que problemas específicos provocaria?
Entrou na biblioteca, abriu a gaveta da secretária e tirou a ficha de Katie DeMaio do seu esconderijo. Fez um derradeiro registo na última página:
A paciente entrou no hospital cerca das 6 horas da tarde com 100/60 de pressão arterial, apenas 10 grs. de hemoglobina. Este médico deu os dois últimos comprimidos
de cumadin às 7 horas da tarde. Às 8.30 este médico voltou ao quarto da Sr.aDeMaio e injectou 5 ml de heparin. A Sr. "DeMaio acordou por instantes. Em estado quase
de coma perguntou a este médico: "Por que matou Vangie Lewis?"
Este médico deixou a Sr.a DeMaio para ir buscar mais heparin. Obviamente, não podia permitir que a Sr.a DeMaio repetisse aquela pergunta na presença de outras pessoas.
Quando este médico voltou, a paciente saíra do quarto. Provavelmente, dando-se conta do que dissera, tentou fugir. A paciente foi apanhada e foram injectados mais
5 ml de heparin. A paciente irá esvair-se em sangue até morrer hoje à noite no Westlake Hospital.
Esta ficha está já completa.
Pousou a caneta, espreguiçou-se, dirigiu-se ao cofre na parede e abriu-o. Banhadas de luz dos candeeiros de cristal, as fichas amareladas ficaram com reflexos dourados.
Eram douradas: os relatórios do seu génio que sabia de cor e salteado. Expansivamente, tirou-os todos, colocou-os sobre a secretária. Como um Midas a deleitar-se
com o seu tesouro, passou os dedos pelas etiquetas com os nomes. Os seus maiores êxitos. Berkely e Lewis. Os dedos pararam e a sua expressão tornou-se sinistra.
Appleton, Carey. Drake, Elliot... fracassos. Mais de oitenta. Mas não fracassos a valer. Ele aprendera muito. Todos tinham contribuído. As que tinham morrido, as
que tinham abortado. Faziam parte da história.
Lewis. Era necessária uma adenda. Na ficha de Vangie acrescentava um relato do seu encontro com Emmet Salem.
O fondue devia estar pronto. Irresolutamente olhou para as fichas. Devia guardá-las ou entregar-se ao prazer de ler algumas delas? Talvez devesse examiná-las. Aquela
semana fora tão difícil. Precisava de relembrar algumas das combinações de droga que iria necessitar no caso.
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Algures, ao longe um ruído começava a infiltrar-se na biblioteca: o grito dolente das sirenas da Polícia trazidas pelo vento glacial. O som aumentou na sala, depois
parou abruptamente. Correu para a janela, afastou a cortina e espreitou. Um carro da Polícia entrara na alameda. A Polícia estava ali!
Teriam encontrado Katie? Ela conseguira falar? Correu para a secretária como um relâmpago, empilhou as fichas, voltou a colocá-las no cofre ainda aberto, fechou-o
e baixou o painel.
Calmo. Tinha de estar calmo. Apele estava fria e húmida. Os lábios e os joelhos pareciam de borracha. Precisava de se controlar. Ainda havia uma carta no baralho
que podia sempre jogar.
Se Katie tivesse falado, estava tudo acabado.
Mas se a Polícia estivesse ali por outra razão, ainda podia despistá-los. Talvez Katie já estivesse morta e tivesse sido encontrado o seu corpo. Não esquecer as
perguntas e acusações quando Claire morreu. Não deram em nada. Não havia prova absolutamente nenhuma.
Todas as possibilidades e consequências explodiam no seu espírito ao mesmo tempo. Era exactamente o mesmo como no decorrer de uma operação ou de um parto quando
surgia algum problema e ele tinha de tomar uma decisão irrevogável.
E então acontecia. A calma glacial, deliberada, a sensação de poder, a omnisciência divina que nunca o abandonava durante uma operação difícil. Sentia-a a fluir
no corpo e no cérebro.
Ouviu-se uma pancada seca, autoritária na porta. Lentamente, deliberadamente, alisou o cabelo. Os dedos, agora miraculosamente secos e quentes, apertaram o nó da
gravata. Encaminhou-se para a porta da frente e abriu-a.
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Enquanto o carro da brigada se dirigia a grande velocidade para a casa de Edgar Highley, Scott rememorou metodicamente os depoimentos que ouvira nas últimas horas,
de Chris Lewis, Gertrude Fitzgerald, Gana Krupshak, Jiro Fukhito, Anna Horan e Maureen Crowley.
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Aparentemente apontavam numa direcção: ao Dr. Edgar Highley, expondo-o a graves suspeitas de negligência médica, comportamento ilegal e assassínio.
Há menos de três horas, grande parte desta mesma prova circunstancial apontara na direcção de Chris Lewis.
Scott pensou no Pick Up Sticks, o jogo em que tomava parte quando era miúdo. Uma pessoa tinha de tirar paus de um molho, um a um, sem tocar nos outros. Mesmo que
se tocasse só num pau, perdia-se. Era um jogo em que Scott era exímio. Mas o problema era que quase sempre, por mais cuidadoso que fosse, o molhe caía.
Uma prova circunstancial era como aquilo. No todo parece impressionante Mas se se decompuser peça por peça, dá de si.
Richard ia sentado ao lado dele no banco de trás do carro da brigada. Era por causa da insistência de Richard em recolher todas as provas contra Edgar Highley que
agora estavam ali a atravessarem Parkwood a toda a velocidade com sirenas estridentes. Richard levara esta investigação até ao ponto extremo argumentando que Highley
podia destruir as provas se soubesse que era suspeito.
Edgar Highley é um médico proeminente, um excelente obstetra. Muitas pessoas importantes estavam-lhe muito gratas por causa dos bebés das suas famílias a cujos partos
assistira. Se aquilo se transformasse numa caça às bruxas, o departamento do Promotor de Justiça seria atacado pela imprensa e pelo público.
Isto cheira mal. Scott não se apercebeu que tinha falado em voz alta.
Richard, absorto em pensamentos, virou-se para ele de sobrancelhas franzidas.
Que é que cheira mal?
Isto tudo: esta busca, esta suposição de que Highley é um misto de génio e assassino. Richard, que provas tem? Gertrude Fitzgerald pensa que Highley estava à procura
do sapato na mesinha-de-cabeceira. Chris Lewis pensa que viu Highley de relance no Essex House. Você pensa que Highley operou milagres no campo da medicina.
Preste atenção, mesmo que o júri de acusação apresente um requisitório, o que eu duvido, um bom advogado podia deslindar toda esta confusão talvez sem um julgamento.
Estou quase decidido a mudar de rumo agora mesmo.
Não faça isso! Richard agarrou o braço de Scott. Por amor de Deus, temos de apanhar aqueles relatórios.
Scott recostou-se no assento, soltando o braço com um puxão.
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Scott insistiu Richard, esqueça tudo excepto o número de mortes em grávidas no Westlake. Só isso é razão suficiente para uma investigação.
O carro da brigada fez uma viragem. Estavam na elegante zona ocidental de Parkwood.
Está bem disse Scott com rispidez. Não se esqueça, Richard, amanhã de manhã, nós os dois podemos estar arrependidos desta incursão.
Duvido disse Richard laconicamente. Gostava de poder vencer a preocupação crescente que lhe esmagava a boca do estômago. Não tinha nada a ver com aquele momento,
com aquele caso.
Era Katie. Estava desesperadamente, irracionalmente preocupado com Katie. Porquê? O carro entrou numa alameda.
Bem, chegámos disse Scott com irritação. Os dois detectives que estavam no banco da frente saíram dum salto do carro. Quando Richard ia a sair, notou o movimento
da cortina numa janela no extremo direito da casa.
Tinham estacionado atrás de um carro preto com o distintivo MD. Scott tocou na cobertura do motor.
Ainda está quente. Não pode estar aqui há muito tempo. O detective mais novo que guiara o carro bateu com força na porta da frente. Esperaram. Scott bateu com os
pés cheio de impaciência, procurando aquecê-los.
Por que não toca à campainha? perguntou ele, irritado. É para isso que serve.
Fomos vistos disse Richard. Ele sabe que estamos aqui. O investigador jovem acabara de levantar o dedo para tocar na campainha quando se abriu a porta. Edgar Highley
estava parado no vestíbulo. Scott foi o primeiro a falar.
- Dr. Highley?
Sim? O tom era frio e interrogador.
Dr. Highley, eu sou Scott Myerson, o Promotor de Justiça de Valley County. Temos um mandato de busca a este prédio, e é meu dever informá-lo que passou a ser um
suspeito nas mortes de Vangie Lewis, Edna Burns e do Dr. Emmet Salem. Tem o direito de consultar um advogado. Pode recusar-se a responder a perguntas. O que disser
pode ser usado contra si.
Suspeito. Não tinham a certeza. Não tinham encontrado Katie. Cada prova tinha de ser circunstancial. Ele desviou-se para o lado, abrindo mais a porta para os deixar
entrar. A sua voz foi ríspida com uma raiva controlada quando disse:
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Não percebo o motivo desta intrusão, mas entrem, senhores. Responderei a qualquer pergunta que queiram fazer; podem passar a busca à casa. Todavia, devo avisá-los,
quando consultar um advogado será para processar Valley County e processar cada um dos senhores pessoalmente.
Quando saíra do Christ Hospital em Devon, ameaçara intentar uma acção se transpirasse alguma coisa da investigação. E fora mantido em segredo quase tudo. Conseguira
ver a sua ficha na Clínica Queen Mary em Liverpool e não havia nenhuma referência.
Propositadamente levou-os para a biblioteca. Sabia que ficava com um aspecto imponente sentado atrás da secretária maciça da época de Jaime I da Inglaterra. Era
vital desencorajá-los, fazê-los ter medo de formularem perguntas demasiado íntimas.
Com um gesto que mal deixava de ser desdenhoso, mandou-os sentar no sofá e nas cadeiras de cabedal com um aceno de mão. O Promotor de Justiça e o Dr. Carroll sentaram-se;
os outros homens não. Scott entregou-lhe a notificação Miranda, impressa. Ele assinou-a com desdém.
Vamos tratar da busca disse o detective mais velho polidamente. Onde guarda os relatórios médicos, Dr. Highley?
No meu escritório, claro disse ele com brusquidão. Todavia, façam favor de ver. Tenho a certeza de que assim farão. Há uma gaveta de ficheiro com documentos pessoais
nesta secretária. Levantou-se, dirigiu-se ao bar e deitou Chivas Regal num copo de cristal sem pé. Deliberadamente adicionou-lhe gelo e água gasosa. Não realizou
o ritual de oferecer uma bebida aos outros. Mesmo que tivessem chegado uns minutos mais cedo ele ainda teria a ficha de Katie na gaveta da secretária. Eram investigadores
experimentados. Podiam ver o botão falso naquela gaveta. Mas nunca descobririam o cofre, a não ser que virassem a casa do avesso.
Sentou-se na cadeira de veludo, listrada e de costas altas perto da lareira, bebeu lentamente o uísque e olhou-os friamente. Quando entrara na biblioteca estava
tão apreensivo que nem reparara na fogueira que Hilda acendera para ele. Estava a arder muitíssimo bem. Mais tarde comeria o fondue e beberia o vinho ali.
O interrogatório começou. Quando vira Vangie Lewis pela última vez?
Como disse a Sr.a DeMaio...
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Doutor, tem a certeza que a Sr.a Lewis não entrou no seu gabinete segunda-feira à noite depois de deixar o Dr. Fukhito?
Como disse a Sr.a DeMaio... Não possuíam nenhuma prova. Absolutamente nenhuma.
Onde estava na segunda-feira à noite, doutor.
Em casa. Aqui mesmo onde me está a ver agora. Vim directamente para casa depois das horas de serviço.
Recebeu alguma chamada telefónica?
Que me lembre, não. O serviço de atendimento não recebera nenhum recado na noite de segunda-feira. Ele verificara.
Esteve no apartamento de Edna Burns na terça-feira à noite? O seu sorriso era insolente.
Impossível.
Vamos querer umas amostras do seu cabelo. Amostras de cabelo. Teriam encontrado algum em Edna ou
naquele apartamento? E em Vangie? Mas ele estivera no apartamento de Edna com a Polícia na quarta-feira à noite. Vangie trazia sempre vestido aquele casaco preto
quando ia ao consultório. Mesmo que tivessem encontrado cabelos dele perto da defunta, podiam ser explicados.
Esteve no Essex House Hotel ontem depois das cinco?
Não.
Temos uma testemunha que está preparada para jurar que o viu sair do elevador por volta das cinco e meia.
Quem o tinha visto? Relanceara o olhar pelo vestíbulo quando saiu do elevador. Tinha a certeza que não estava lá ninguém que ele conhecesse bem. Talvez estivessem
a tentar enganá-lo. De qualquer maneira, a identificação feita por uma testemunha ocular era notoriamente falível.
Não estava no Essex House ontem à noite. Estava em Nova Iorque no Carlyle! Janto lá muitas vezes; na realidade fiquei consternado, porque me roubaram a minha maleta
enquanto estava a jantar.
Daria informações gratuitas; faria com que parecesse que começava a cooperar. Fora um erro mencionar o nome de Katie deMaio. Seria natural contar àquelas pessoas
que ela não se encontrava no hospital? Obviamente não sabiam que ela recebia lá tratamento médico. A irmã ainda não os contactara. Não. Não digas nada. Sigilo médico-doente.
Mais tarde explicaria: "Podia ter-lhes dito, mas parti do princípio que a Sr.a DeMaio fugira do hospital num estado de nervosismo e ansiedade. Pensei que ela ficaria
perturbada se isso constasse da sua ficha profissional."
Mas foi insensato ter mencionado o roubo.
243
Que estava dentro da maleta? O interesse do Promotor de Justiça parecia perfunctório.
Um estojo de emergência básica, alguns medicamentos. Quase não valia o esforço do ladrão. Devia referir que continha fichas? Não.
O Promotor de Justiça quase não prestava atenção. Acenou ao investigador mais novo.
Vá buscar aquele embrulho ao carro.
Que embrulho? os dedos de Edgar Highley apertaram o copo. Seria um truque?
Ficaram sentados em silêncio à espera. O detective voltou e entregou a Scott um pequeno embrulho atado com um elástico. Scott arrancou o elástico e tirou o papel
de embrulho, mostrando um sapato velho.
Reconhece este moccasin, doutor?
Ele lambeu os lábios. Tem cuidado. Tem cuidado. Em que pé serviria? Tudo dependia daquilo. Curvou-se, examinou-o. O sapato esquerdo, aquele que estava no apartamento
de Edna. Não tinham encontrado a mala
Claro que não. Devia reconhecer este sapato?
Vangie Lewis, a sua paciente, usou-o sempre durante vários meses. Ela consultava-o várias vezes por semana. E nunca reparou?
A Sr.a Lewis usava um par de sapatos bastante gastos. Não concentro a minha atenção especificamente para reconhecer um sapato em particular quando o põem à minha
frente.
Alguma vez ouviu falar de um Dr. Emmet Salem? Ele enrugou os lábios.
Talvez. O nome parece familiar. Teria de examinar os meus registos.
Não trabalhava consigo no Christ Hospital em Devon?
Claro. Sim. Ele era um médico que viera de fora. De facto, lembro-me dele. O que saberiam sobre o Christ Hospital?
Visitou o Dr. Salem ontem à noite no Essex House?
Creio que essa pergunta já foi respondida.
Sabia que Vangie Lewis trazia no ventre um bebé oriental? Então, era isso. Ele explicou melifluamente:
A Sr.a Lewis estava a ficar aterrorizada com o parto iminente. Isso explica tudo, não explica? Sabia que nunca poderia fazer crer a ninguém que o marido era o pai.
Agora faziam perguntas sobre Anna Horan e Maureen Crowley. Estavam a aproximar-se; aproximar-se demasiado; como cães a latir à medida que se aproximavam da presa.
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Essas duas jovens são como muitas que querem abortar e depois culpam os médicos quando sofrem reacções emocionais. Não é invulgar. Confirme com qualquer um dos meus
colegas.
Richard prestava atenção enquanto Scott persistia no seu interrogatório. "Scott tinha razão", pensou com pesar. Em conjunto, tudo fazia sentido. Separadamente tudo
era refutável, explicável. Anão ser que pudessem provar morte injustificada nos casos de maternidade, seria impossível acusar Edgar Highley do que quer que fosse
e manter essa acusação.
Highley estava tão calmo, tão seguro. Richard tentou pensar na reacção que o pai, um neurologista, teria se fosse interrogado sobre a morte injustificada de um dos
seus pacientes. Como reagiria Bill? Como reagiria ele, Richard, como pessoa e como médico? Não como aquele homem com aquele sarcasmo, com aquele desdém.
Era uma representação. Richard tinha a certeza disso. Edgar Highley estava a representar. Mas como podiam prová-lo? Com uma certeza nauseante sabia que nunca encontrariam
nada nos relatórios que incriminasse Highley. Era esperto de mais para isso.
Scott estava a fazer perguntas sobre o bebé Berkeley.
Doutor, sabe que a Sr.a Elizabeth Berkeley deu à luz um bebé que tem olhos verdes. No ponto de vista médico isso não é impossível quando os pais e os quatro avós
têm olhos castanhos?
Eu diria que sim, mas é evidente que o Sr. Berkeley não é o pai dessa criança.
Nem Scott nem Richard contavam com a confissão.
Isso não quer dizer que saiba quem é o pai disse Edgar Highley com afabilidade, mas duvido que seja da competência do obstetra imiscuir-se em assuntos como esse.
Se uma paciente me quiser dizer que o marido é o pai do seu filho, então tudo bem.
"Uma lástima", pensou ele. Teria de adiar a fama por mais algum tempo. Agora nunca mais seria capaz de admitir o sucesso do bebé Berkeley. Mas haveria outros.
Scott olhou para Richard, suspirou e levantou-se.
Dr. Highley, amanhã quando for para o consultório ficará a saber que apreendemos todos os registos do hospital e do seu consultório. Estamos muito preocupados com
o número de mortes de parturientes no Westlake Hospital, e esse assunto está a ser investigado.
Ele conhecia o terreno que pisava.
Peço um exame minucioso de todos os relatórios das
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minhas pacientes. Posso garantir-lhe que a taxa de mortalidade em parturientes de Westlake é bastante baixa tendo em conta os casos com que lidamos.
O cheiro do fondue enchia a casa. Queria comê-lo. Estava cheio de fome. Se não fosse mexido, iria queimar-se de certeza. Só mais uns minutos.
O telefone tocou.
Deixarei que o meu serviço atenda disse ele, depois compreendeu que não podia. Devia ser do hospital a informarem que a Sr.a DeMaio ainda não tinha regressado a
casa e a irmã estava inquieta. Talvez fosse o momento ideal para informar o Promotor de Justiça e o Dr. Carroll sobre o desaparecimento de Katie. Pegou no auscultador.
Fala o Dr. Highley.
Doutor, fala o tenente Weingarden do 17. ° distrito policial de Nova Iorque. Acabámos de prender o homem que corresponde à descrição da pessoa que roubou um saco
da mala do seu carro na noite passada.
A maleta.
Foi recuperado? Algo na sua voz estava a traí-lo. O Promotor de Justiça e o Dr. Carroll observavam-no atentamente. O Promotor aproximou-se silenciosamente da secretária
e pegou na outra extensão.
Sim, recuperámos a sua maleta, doutor. Aí é que está o problema. Vários dos artigos no seu interior podem conduzir a acusações muito mais graves do que roubo. Doutor,
não se importa de descrever o conteúdo da sua maleta?
Alguns remédios, uns medicamentos básicos; um estojo de emergência.
E a ficha de uma doente do consultório do Dr. Emmet Salem, um pisa-papéis com manchas de sangue e um sapato velho?
Ele sentia o olhar severo e desconfiado do Promotor de Justiça. Fechou os olhos. Quando falou a sua voz estava extremamente controlada.
Está a brincar?
Pensei que o senhor iria dizer isso. Estamos a cooperar com o departamento do Promotor de Justiça de Valley County no que respeita à morte equívoca do Dr. Emmet
Salem na noite passada. Vou telefonar já ao Promotor de Justiça. Dá a impressão que o suspeito podia ter morto o Dr. Salem no decorrer de um roubo. Obrigado, sir.
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Ouviu a ordem de Scott Myerson para o agente da Polícia de Nova Iorque:
Não desligue!
Ele pousou lentamente o auscultador que tinha na mão. Estava tudo acabado. Agora que eles tinham o saco em seu poder, estava tudo acabado. Toda e qualquer hipótese
que tivera de sair ileso da investigação desaparecera.
O pesa-papéis coberto com o sangue de Emmet Salem. A ficha médica de Vangie Lewis que contradizia a informação nos relatórios do consultório. O sapato, aquele maldito
objecto imundo.
Se o sapato serve...
Ele olhou fixamente para os sapatos, contemplando objectivamente a patina dos seus belos cordovans ingleses.
Agora não deixariam de procurar até descobrirem as fichas genuínas.
Se o sapato serve, usa-o.
Os moccasins nunca tinham servido a Vangie Lewis. A ironia suprema era que lhe serviam a ele. Tão bem como se tivesse andado com eles, prendiam-no as mortes de Vangie
Lewis, Edna Burns, Emmet Salem.
Um riso histérico ressoava dentro dele, fazendo tremer a sua impassibilidade. O Promotor de Justiça completara a chamada telefónica.
Dr. Highley a voz de Scott Myerson era formal, está preso pela morte do Dr. Emmet Salem.
Edgar Highley observava no momento em que os detectives sentados à secretária se levantavam rapidamente. Não se apercebera que o homem tinha estado a fazer anotações.
Viu o detective a tirar algemas do bolso.
Algemas. Prisão. Um julgamento. Manchas humanas insignificantes a julgarem-no. Ele, que conquistara o acto primário da vida, o processo de nascimento, um prisioneiro
comum.
Recompôs-se. A força indómita voltava. Ele realizara uma operação. Apesar da sua inteligência a operação não fora bem sucedida. A paciente estava clinicamente morta.
Não havia mais nada a fazer a não ser desligar o aparelho de manutenção das funções vitais.
O Dr. Carroll olhava para ele atentamente. Desde que se conheceram na quarta-feira à noite, Carroll tinha sido hostil. De qualquer maneira Edgar Highley tinha a
certeza que Richard Carroll era o homem que desconfiava dele. Mas ele teve a sua vingança. A morte de Katie DeMaio era a sua vingança em Richard Carroll.
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O detective aproximou-se dele. As algemas captaram o brilho débil do lume.
Ele sorriu-lhe polidamente.
Agora me lembro que tenho na realidade uns relatórios médicos que lhe podem interessar disse ele. Caminhou em direcção à parede, soltou a mola que mantinha o painel
no lugar. O painel recuou lentamente. Maquinalmente abriu o cofre de parede.
Podia juntar os relatórios, precipitar-se para a lareira. A fogueira que Hilda acendera já estava bastante viva. Antes que eles o pudessem deter, podia livrar-se
das fichas mais importantes.
Não. Deixá-los conhecer o seu génio. Deixá-los lamentá-lo.
Retirou as fichas do cofre, empilhou-as em cima da secretária. Estavam todos a olhar fixamente para ele. Carroll aproximou-se da secretária. O Promotor de Justiça
ainda tinha a mão no telefone. Um detective aguardava com as algemas. O outro detective entrara de novo na sala. Devia ter estado a revistar a casa, a meter o nariz
nos seus haveres. Cães a perseguirem a presa.
Oh, existe outro caso que gostarão de ter. Aproximou-se da mesa perto da cadeira em frente à lareira
e pegou no uísque Levando-o para o cofre, bebeu-o com indiferença. O frasco estava lá, mesmo no fundo do cofre. Arrumara-o na segunda-feira à noite para uma utilização
eventual, futura. O futuro era aquele momento. Nunca pensara que tivesse aquele fim. Mas ainda controlava a vida e a morte. Só ele podia tomar a decisão suprema.
Um cheiro a queimado espalhava-se na sala. Com pesar, apercebeu-se que era o fondue.
Perto do cofre moveu-se com rapidez. Abriu o frasco com um movimento brusco e deitou cristais de cianido no copo. Enquanto a compreensão perpassava pelo rosto de
Richard ergueu o copo num brinde escarnecedor.
Não faça isso! gritou Richard, atravessando a sala como um relâmpago quando Edgar Highley levou o copo aos lábios e engoliu apressadamente o conteúdo. Richard atirou
com o copo quando Highley caiu, mas sabia que era tarde de mais. Os quatro homens ficaram a olhar impotentes enquanto os gritos e gemidos de Highley se extinguiam
no corpo contorcido pela dor.
Oh, meu Deus! exclamou o detective mais novo. Ele fugiu da sala com o rosto verde.
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Por que razão fez aquilo? perguntou o outro detective. Que morte mais horrível.
Richard curvou-se sobre o corpo. O rosto de Edgar Highley estava contorcido; bolhas de espuma empolavam os lábios. Os olhos verdes e salientes estavam abertos e
fixos. "Podia ter feito tanto bem", pensou Richard Em vez disso, era um génio egocêntrico que utilizava o dom que Deus lhe dera para fazer experiências com vidas.
Uma vez que me meti de permeio na conversa telefónica com a Polícia de Nova Iorque, ele sabia que já não podia mentir nem escapar disse Scott. Richard você estava
certo em relação a ele.
Endireitando-se, Richard dirigiu-se para a secretária e passou uma vista de olhos pelos nomes nas fichas. BERKELEY. LEWIS.
Estes são os relatórios que procuramos. Ele abriu a ficha Berkeley. A primeira página começava:
Elizabeth Berkeley, idade 39, tornou-se minha paciente. Ela nunca gerará o seu próprio filho. Decidi que ela será a próxima doente extraordinária.
Há aqui uma história médica disse ele calmamente. Scott estava perto do corpo.
E quando uma pessoa pensa que este sujeito era o médico de Katie murmurou ele.
Richard levantou os olhos da ficha de Liz Berkeley que estava a ler.
Que foi que disse? perguntou ele. Está a insinuar que Highley estava a tratar Katie?
Ela tinha uma consulta com ele na quarta-feira replicou Scott.
Ela tinha o quê?
Fez referência a isso por acaso quando... O telefone interrompeu-o. Scott atendeu.
Sim disse depois lamento, não é o Dr. Highley. Quem fala, por favor? A sua expressão mudou. Molly Kennedy. Molly!
Richard arregalou os olhos. A apreensão apertava-lhe os músculos do pescoço.
Não disse Scott. Não posso passar a chamada ao Dr. Highley. Qual é o problema?
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Ele ouviu, depois tapou o bocal com a mão.
Jesus! exclamou ele Highley internou Katie em Westlake hoje à noite e ela não aparece.
Richard arrancou-lhe o telefone da mão.
Molly, que aconteceu? Por que razão Katie estava aí? Quer dizer que ela desapareceu?
Ele ouviu.
Deixe-se disso Molly. Katie nunca sairia do hospital. Devia saber isso. Espere.
Deixando cair o telefone, espalhou freneticamente as fichas na secretária. Quase no fundo da pilha encontrou aquela que receava ver. DeMAIO, KATHLEEN. Abrindo a,
examinou-a rapidamente, o seu rosto empalidecia enquanto lia. Chegou ao último parágrafo.
Com a calma do desespero, pegou no telefone.
Molly, passe o telefone a Bill ordenou ele. Enquanto Scott e os detectives prestavam atenção, disse: Bill, Katie está com uma hemorragia algures no Westlake Hospital.
Telefone para o laboratório de Westlake. Vamos precisar de um frasco de O negativo assim que a encontrarmos. Eles que se preparem para tirarem uma amostra de sangue
e verificarem a hemoglobina, haematocrit e grupo sanguíneo e mistura para quatro unidades de sangue. Diga-lhes que preparem uma sala de operações. Encontro-me aí
consigo. Ele cortou a ligação.
"Incrível", pensou. "Ainda consegues actuar sabendo que já pode ser tarde de mais." Virou-se para o detective junto à secretária.
Telefone para o hospital. Leve a equipa que está a fazer a busca ao escritório de Highley e eles que comecem a procurar Katie. Diga-lhes para procurarem em toda
a parte, todos os quartos, todos os armários. Peça ajuda a todo o pessoal do hospital. Todos os segundos contam.
Sem esperar por instruções, o investigador mais novo correu para pôr o carro a trabalhar.
Venha, Richard disse Scott com brusquidão. Richard pegou na ficha de Katie.
Temos de saber o que ele lhe fez. Por um instante olhou para o corpo de Edgar Highley. Alguns segundos teriam evitado a sua morte. Chegariam tarde de mais para salvarem
Katie?
Com Scott, ele arqueou as costas na parte de trás do carro da brigada enquanto este se precipitava na noite. Highley dera o heparin a Katie há mais de uma hora.
Tinha um efeito rápido.
"Katie", pensou ele, "por que não me disseste? Katie, por que
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pensaste que devias passar por isso sozinha? Ninguém pode. Katie, juntos podíamos estar tão bem. Oh, Katie, podíamos ter o que Molly e Bill tem. Está lá à espera
que a apanhemos. Katie, tu também sentiste. Tens vindo a lutar contra ela. Porquê? Se ao menos tivesses confiado em mim, se me tivesses dito que consultavas Highley.
Nunca teria deixado que te aproximasses dele. Por que razão não vi que estavas doente? Por que razão não fiz com que me contasses? Katie, desejo-te. Não morras,
Katie. Espera. Deixa-me encontrar-te. Katie, espera..."
Estavam no hospital. Carros da Polícia entravam no parque de estacionamento a fazerem um barulho ensurdecedor. Subiram as escadas a correr até ao vestíbulo. Phil,
com o rosto com rugas vincadas, dirigia a busca.
Bill e Molly entraram de roldão no vestíbulo. Molly soluçava. Bill estava muito calmo.
John Pierce vem a caminho. É o melhor hematologista de Nova Jérsia. Tem aqui uma quantidade razoável de sangue. Encontraram na?
Ainda não.
A porta, que dava para as escadas de incêndio, entreaberta, abriu-se de repente. Um polícia jovem saiu.
Ela está estendida no chão. Creio que está morta. Segundos depois, Richard tinha-a nos braços. A pele e os
lábios estavam cor de cinza. Não conseguia tomar-lhe o pulso.
Katie, Katie.
A mão de Bill apertou-lhe o ombro.
Vamos levá-la lá para cima. Temos de trabalhar com celeridade se ainda existir alguma hipótese.
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Ela estava num túnel. Ao fundo havia uma luz. Estava calor no fundo do túnel. Lá seria tão fácil flutuar.
Mas alguém a impedia. Alguém a agarrava. Uma voz. A voz de Richard.
Aguenta, Katie, aguenta.
Ela sentia tanta vontade de voltar atrás. Era tão difícil, estava tão escuro. Seria muito mais fácil esgueirar-se.
Aguenta, Katie.
A suspirar, ela virou-se e iniciou a sua viagem de regresso.
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Segunda-feira à tardinha, Richard entrava no quarto de Katie em bicos de pés, com uma dúzia de rosas na mão. Estava livre de perigo desde domingo de manhã, mas apenas
ficara acordada o tempo suficiente para articular uma ou duas palavras.
Olhou para ela. Os olhos estavam fechados. Resolveu sair e pedir uma jarra à enfermeira.
Coloca-as sobre o meu peito. Ele deu uma volta.
Katie... Ele puxou uma cadeira. Como te sentes? Ela abriu os olhos e fez uma careta ao olhar para o aparato da transfusão.
Ouvi dizer que os vampiros estão a colocar piquetes de greve. Estou a pô-los no desemprego.
Estás melhor. Esperava que as lágrimas que lhe vieram aos olhos não se notassem.
Ela notara. Com a mão livre, ergueu-a lentamente e passou-lhe um dedo nas pálpebras.
Antes que eu adormeça outra vez, conta-me o que aconteceu, por favor. Caso contrário vou acordar por volta das três horas da manhã e tentarei reconstituir tudo.
Por que razão Edgar Highley matou Vangie Lewis?
Ele fazia experiências com as pacientes, Katie. Claro que sabes do bebé-proveta em Inglaterra.
Highley era muito ambicioso para se limitar a criar bebés in vitro para os pais naturais. O que ele começou por fazer foi tirar fetos de mulheres que abortaram e
implantava esses fetos nos úteros de mulheres estéreis. E conseguiu! Nestes últimos oito anos descobriu a forma de impedir que a mãe receptora rejeitasse um feto
de outra mulher.
Teve um sucesso total. Mostrei os seus relatórios ao laboratório de investigação no campo da fertilidade em Mt Sinai Hospital, e eles dizem que deu um salto enorme
na investigação embrionária.
Mas depois desse triunfo, quis fazer novas descobertas. Anna Horan, uma mulher a quem ele fez o aborto, afirma que
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quis desistir, mas que ele a anestesiou e lhe tirou o feto quando ela estava inconsciente. Ela tinha razão. Ele tinha Vangie Lewis num quarto ao lado à espera da
implantação. Vangie pensava que estava apenas a ser submetida a um tratamento para a ajudar a conceber o seu próprio filho. Highley nunca pensou que Vangie conservasse
o feto oriental durante tanto tempo, embora o seu sistema tivesse atingido um alto grau de perfeição, que o problema da raça não era de facto importante.
Uma vez que Vangie não abortou espontaneamente, não teve coragem de destruir o feto. Resolveu deixar ir a gravidez até ao fim, e depois quem o iria acusar se Vangie
Lewis tivesse um filho com características de oriental? A mãe natural, Anna Horan, é casada com um caucasiano.
Ele conseguiu conter o sistema de imunidade? Katie lembrou-se dos mapas complicados dos cursos de ciências da faculdade.
Conseguiu, e sem perigo para a criança. O perigo que a mãe corria era muito maior. Matou dezasseis mulheres nos últimos oito anos. Vangie estava a ficar muito doente.
Infelizmente para ela, encontrou Highley por acaso na noite de segunda-feira passada assim que deixou Fukhito. Disse-lhe que ia consultar o seu antigo médico de
Mineápolis. Isso teria sido um perigo, porque uma gravidez natural para Vangie era praticamente impossível, e qualquer ginecologista que a tivesse tratado, saberia
isso.
Mas foi quando ela mencionou o nome de Emmet Salem, que assinou a sua sentença de morte. Highley sabia que Salem iria adivinhar o que acontecera quando Vangie apresentasse
um filho meio oriental, então jurava que ela não tivera nenhuma ligação com um oriental. Salem estava em Inglaterra quando a primeira mulher de Highley morreu. Ele
sabia do escândalo.
E agora disse Richard chega. O resto pode esperar. Os teus olhos estão a fechar-se outra vez.
Não... Disseste que ele teve um triunfo. Ele transferiu efectivamente um feto e conseguiu levar a gravidez até ao fim?
Sim. E se tivesses ficado mais cinco minutos na casa de Molly na segunda-feira à noite e tivesses visto o bebé Berkeley, agora podias adivinhar quem é a mãe natural.
Liz Berkeley trouxe no útero o filho de Maureen Crowley.
O filho de Maureen Crowley. Os olhos de Katie ficaram esbugalhados. A sonolência desapareceu.
Calma. Ainda vais arrancar essa agulha. Ele tocou-lhe ao de leve no ombro, segurando-a quando se reclinou. Highley
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guardava relatórios completos daquilo que fazia desde o momento em que fez o aborto a Maureen e fez a implantação em Liz. Anotou todos os medicamentos, todos os
sintomas, todos os problemas até ao parto.
Maureen sabe?
Era mais do que justo contar-lhe e contar aos Berkeleys e deixar que os Berkeleys examinassem os relatórios. Jim Berkeley pensou sempre que a mulher lhe mentiu a
respeito da inseminação artificial. Sabes o que Maureen sofreu com aquele aborto. Está a destruí-la. Ela foi ver a filha. É uma rapariga feliz, Katie. Ela tê-la-ia
dado para ser adoptada se a tivesse tido naturalmente. Agora que viu Maryanne, percebe que os Berkeleys a adoram, está felicíssima. Mas creio que vais perder uma
excelente secretária. Maureen vai voltar para a faculdade no próximo Outono.
Anna Horan ficou destroçada por causa do aborto. Pensamos que não adianta fazê-la compreender que o filho teria nascido se Highley não tivesse assassinado Vangie
na semana passada. Ela terá mais filhos.
Katie mordeu o lábio. A pergunta que ela tivera medo de fazer. Precisava de saber.
Richard, por favor, diz-me a verdade. Quando me encontraram, estava com uma hemorragia. Até que ponto tiveram de ir para estancar o sangue?
Estás bem. Fizeram um D-e-C. Tenho a certeza de que te disseram isso.
Mas é tudo?
É tudo, Katie. Ainda podes ter uma dúzia de filhos, se os desejares.
A mão estendeu-se para tapar as dela. Aquela mão estivera ali puxara-a para trás quando estava às portas da morte. Aquela voz fizera-a desejar regressar.
Durante um longo momento de silêncio olhou para Richard. "Oh, como eu te amo", pensou ela. "Como eu te amo tanto."
A expressão perturbada, inquiridora, transformou-se subitamente num sorriso largo. Obviamente, ficou contente com o que viu no rosto dela.
Katie sorriu-lhe também.
Está muito seguro de si, não está, doutor? perguntou-lhe ela com vivacidade. A SÍNDROMA DE ANASTÁSIA
Com uma mistura de relutância e alívio, Judith fechou o livro que estivera a estudar e pousou a caneta sobre o grosso bloco de notas. Havia horas que trabalhava
sem parar, e sentiu que as costas lhe doíam ao afastar da secretária a antiquada cadeira rotativa. O dia estava nublado. Já tinha acendido muito antes o potente
candeeiro de secretária que comprara para substituir o candeeiro vitoriano, cheio de franjas, que pertencia ao apartamento mobilado que alugara no bairro de Knightsbridge,
em Londres.
Esticando os braços e os ombros, Judith dirigiu-se à janela e olhou a Rua Montpelier. Às três e meia, o cinzento dia de Janeiro já começava a deixar-se penetrar
pelo crepúsculo que se aproximava, e o ligeiro estremecimento das vidraças da janela revelava-lhe que o vento ainda soprava com força.
Sorriu inconscientemente, recordando-se da carta que tinha recebido em resposta à sua consulta sobre o apartamento:
Cara Judith Chase,
O apartamento estará disponível de 1 de Setembro a 1 de Maio. As suas referências são muitíssimo satisfatórias e é reconfortante saber que estará ocupada a escrever
o seu novo livro. A Guerra Civil na Inglaterra do século XVII tem-se revelado extraordinariamente fértil para os escritores românticos, e é agradável saber que uma
autora de sérios romances históricos da sua estatura vai ocupar-se dela. O apartamento é modesto mas espaçoso e penso que o achará apropriado. O elevador encontra-se
frequentemente avariado; todavia, três lanços de escadas não assustam ninguém, não lhe parece? Pessoalmente, prefiro subi-los a pé.
Acarta terminava com uma assinatura firme e araneiforme: "Beatrice Ardsley". Judith sabia, através de amigos comuns, que Lady Ardsley tinha 83 anos.
Tocou no peitoril da janela com as pontas dos dedos e sentiu o ar frio e áspero a abrir caminho do caixilho de madeira. Estremecendo, Judith concluiu que teria ainda
tempo para tomar um banho quente, se se apressasse. Lá fora, a rua estava quase vazia. Os poucos peões caminhavam rapidamente, de cabeça curvada, com as golas levantadas.
Quando começava a voltar-se, viu uma criança que corria pelo meio da rua, mesmo diante da sua janela. Horrorizada, Judith viu a menina tropeçar e cair. Se um carro
voltasse a esquina, o condutor não a veria a tempo. Havia um homem idoso a meio da rua. Judith começou a abrir a janela para lhe gritar que fosse ajudar a criança
mas nessa altura apareceu uma jovem, subitamente, que se precipitou para a criança e a ergueu e embalou nos seus braços.
Mamã, mamã ouviu-a Judith gritar.
Fechou os olhos e enterrou o rosto nas mãos, ouvindo-se a si própria choramingar: Mamã, mamã. "Oh, meu Deus. Outra vez, não!"
Obrigou-se a abrir os olhos. Tal como esperava, a mulher e a criança tinham desaparecido. Só lá estava o velho, caminhando cuidadosamente pelo passeio.
O telefone tocou quando estava a pregar um alfinete de diamantes no casaco do seu trajo de cocktail de faille. Era Stephen.
Querida, o trabalho hoje correu-te bem? perguntou ele.
Muito bem, julgo eu. Judith sentiu a pulsação acelerar-se. Aos 46 anos de idade, o seu coração ainda se punha aos saltos, como o de uma rapariguinha, ao ouvir a
voz de Stephen.
Judith, tenho um raio de uma reunião de emergência do Ministério e já se está a fazer tarde. Aborrecia-te muito ir ter comigo a casa da Fiona? Eu mando o carro buscar-te?
Não faças isso. Um táxi será muito mais rápido. Se te atrasares, é problema do Governo. Se eu me atrasar, o problema é meu.
Stephen riu-se:
Meu Deus, como tu me facilitas a vida! Baixou a voz. Estou louco por ti, Judith. Vamos ficar na festa só o tempo que parecer conveniente e depois fazemos um jantarzinho
tranquilo, sozinhos.
Perfeito. Adeus, Stephen. Adoro-te.
Judith pousou o auscultador enquanto um sorriso lhe brincava nos lábios. Dois meses antes, tinham-na feito sentar, num jantar, ao lado de Sir Stephen Hallett.
O melhor partido de Inglaterra tinha-lhe confidenciado a anfitriã,
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Fiona Collins. Um autêntico espanto. Encantador. Brilhante. Ministro do Interior. Toda a gente diz que vai ser o próximo primeiro-ministro. E, minha querida Judith,
acima de tudo é livre.
Encontrei o Stephen Hallett uma ou duas vezes em Washington há alguns anos dissera Judith. Kenneth e eu gostávamos muito dele. Mas eu vim para Inglaterra para escrever
um livro e não para me envolver com um homem, por muito encantador que ele seja.
Que disparate retorquia Fiona. Já é viúva há dez anos. É tempo suficiente. Já ganhou nome como escritora importante. Minha querida, acredite que é agradável ter
um homem em casa, especialmente se a casa vier a ser o n.210 de Downing Street. Algo me diz que fariam um par perfeito. Judith, você é uma mulher bonita mas está
sempre a emitir sinais que dizem "Afaste-se, não estou interessada". Não faça isso esta noite, por favor.
E ela não tinha emitido esses sinais. E nessa noite Stephen tinha-a acompanhado a casa e subido para tomar uma bebida. Tinham conversado até amanhecer. Quando partiu,
ele beijou-a levemente nos lábios.
Se alguma vez passei uma noite mais agradável na minha vida, não me recordo sussurrou ele.
Não foi tão fácil arranjar um táxi como tinha previsto. Judith aguardou uns dez minutos gelados até finalmente aparecer um. Enquanto aguardava no passeio, esforçou-se
por evitar olhar para a rua. Aquele era o local exacto onde, da suajanela, vira a criança cair. Ou imaginara vê-la.
A casa de Fiona era uma mansão em estilo Regência, em Belgravia. Sendo deputada, Fiona gostava que a comparassem com a acerba Lady Astor. Desmond, o seu marido,
presidente de um império editorial que se estendia ao mundo inteiro, era um dos homens mais poderosos de Inglaterra.
Depois de deixar o casaco no vestiário, Judith dirigiu-se à sala de toilette adjacente. Nervosamente, aplicou um pouco de baton nos lábios e ajeitou as madeixas
de cabelo que o vento havia espalhado. O seu cabelo possuía ainda um tom natural castanho-escuro; ainda não tinha começado a esconder os fios prateados. Um jornalista,
que a entrevistara, tinha um dia descrito os seus olhos como sendo de um azul de safira, e a sua pele de porcelana lembrava constantemente a toda a gente que se
supunha ser ela inglesa por nascimento e herança.
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Estava na hora de ir para a sala, para que Fiona a arrastasse de grupo em grupo. Fiona nunca deixava de fazer uma apresentação que soava um pouco a propaganda.
A minha queridíssima amiga Judith Chase. Uma das mais prestigiadas escritoras americanas. Prémio Pulitzer. Prémio do Livro Americano. Só não percebo por que é que
esta bela criatura se especializou em revoluções quando eu lhe podia fornecer mexericos deliciosos. No entanto, os livros que ela escreveu sobre a Revolução Francesa
e a Revolução Americana são simplesmente brilhantes, embora se consigam ler como se fossem romances. Agora está a escrever sobre a Guerra Civil, Charles I e Cromwell.
Está absolutamente mergulhada no assunto. Até tenho medo de que ela venha a descobrir alguns segredos vergonhosos, que alguns de nós teríamos preferido não conhecer,
sobre os nossos antepassados.
Fiona não cessava de fazer estes comentários até ter a certeza de que toda a gente sabia quem Judith era, e depois, quando Stephen chegasse, correria a informar
todos de que o ministro do Interior e Judith tinham jantado ao lado um do outro, ali mesmo em sua casa, e agora... nessa altura revirava os olhos e deixava o resto
por dizer.
À entrada da sala, Judith deteve-se por momentos, a fim de abarcar o ambiente. Cinquenta ou sessenta pessoas, calculou rapidamente; pelo menos metade eram suas conhecidas;
gente do Governo, o seu editor inglês, os amigos nobres de Fiona, um dramaturgo famoso... Cruzou-lhe a mente, de passagem, a noção de que, por mais vezes que entrasse
naquela sala, nunca deixava de se impressionar com a requintada simplicidade dos tecidos gastos dos sofás antigos, os quadros que poderiam estar expostos em museus,
a elegância inexprimível dos belos cortinados que emolduravam as portas que abriam para o jardim.
Miss Chase, não é verdade?
Sim. Judith aceitou uma taça de champanhe de um criado, enquanto sorria de maneira impessoal a Harley Hutchinson, o colunista e entrevistador televisivo que era
o maior coleccionador de mexericos de Inglaterra. Com quarenta e poucos anos, era um homem alto e esbelto, com uns olhos cor de avelã, cheios de curiosidade, e cabelos
castanhos, lisos, que lhe caíam sobre a testa.
Permite-me que lhe diga que está encantadora esta noite?
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Muito obrigada. Judith concedeu-lhe um breve sorriso e
começou a afastar-se.
É sempre um prazer ver uma mulher bonita abençoada por um requintado sentido de moda. É uma coisa que raramente se encontra a nível elevado, no nosso país. Como
vai o seu livro? Está a achar a nossa questiúncula Cromwelliana tão interressante como escrever sobre os camponeses franceses e os colonos americanos?
Oh, acho que a vossa questiúncula está à mesma altura das outras. Judith sentia que a angústia provocada pela alucinação da criança começava a desaparecer. O sarcasmo
velado que Hutchinson usava como arma restaurara-lhe o equilíbrio.
Diga-me uma coisa, Miss Chase. Guarda para si o seu manuscrito até estar terminado, ou vai-o mostrando à medida que o escreve? Há escritores que gostam de falar
do seu trabalho diário. Por exemplo, Sir Stephen está ao corrente do que tem escrito?
Judith achou que já era altura de o ignorar.
Ainda não falei à Fiona. Desculpe-me. Sem esperar pela resposta de Hutchinson, atravessou a sala. Fiona estava de costas para ela. Quando Judith a cumprimentou,
Fiona voltou-se, deu-lhe dois beijos rápidos, e murmurou:
Só um momento, minha querida. Consegui finalmente apanhar o Dr. Patel e quero ouvir o que ele tem para dizer.
O Dr. Reza Patel, psiquiatra e neurologista mundialmente famoso. Judith observou-o atentamente. Tinha cerca de 50 anos. Uns olhos negros intensos que fulguravam
sob as sobrancelhas grossas. Uma testa que se franzia frequentemente enquanto falava. Cabelos escuros e espessos a emoldurar um rosto sombrio de feições regulares.
Um fato cinzento de riscas finas, de bom corte. Além de Fiona, havia um aglomerado de quatro ou cinco pessoas em volta dele. As suas expressões, ao escutá-lo, iam
do cepticismo ao respeito temeroso. Judith sabia que a capacidade de Patel de fazer os seus pacientes, sob o efeito da hipnose, regressar à infância e levá-los a
descrever experiências traumatizantes, era considerada a maior descoberta da psicanálise daquela geração. Sabia igualmente que a sua nova teoria, a que ele chamava
a Síndroma de Anastásia, tinha simultaneamente chocado e alarmado o mundo científico. Penso que ainda passará muito tempo antes que me seja possível provar a minha
teoriadizia Patel. Mas, afinal, ainda há dez
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anos muita gente troçava da minha convicção de que uma combinação de medicamentação benigna e de hipnose poderia libertar os bloqueios que a mente cria para autoprotecção.
Hoje em dia, essa teoria é aceite e está a ser utilizada, de maneira geral. Por que motivo teria um ser humano de ser sujeito a anos de psicanálise para descobrir
a razão do seu problema, quando esta pode ser descoberta ao fim de poucas consultas?,
Mas por certo a Síndroma de Anastásia é muito diferente, não é? protestou Fiona.
Diferente, embora notavelmente semelhante. Patel agitou as mãos. Olhe para as pessoas que estão nesta sala. Típicas do creme de la creme de Inglaterra. Inteligentes.
Cultas. Chefes natos. Qualquer deles poderia ser o recipiente adequado para fazer vir até nós os grandes chefes dos séculos passados. Imaginem como o mundo estaria
muito melhor se pudéssemos contar com os conselhos de Sócrates, por exemplo. Olhem, aí vem Sir Stephen Hallett. Em minha opinião, será um soberbo primeiro-ministro,
mas não seria reconfortante saber que Disraeli ou Gladstone o iriam aconselhar? Que fariam praticamente parte do seu ser?
Stephen! Judith voltou-se rapidamente e depois deteve-se ao ver Fiona correr a cumprimentá-lo. Reparando que Hutchinson estava a observá-la, permaneceu deliberadamente
junto do Dr. Patel, enquanto os outros se afastavam.
Doutor, se bem entendo a sua teoria, a Anna Anderson, aquela mulher que afirmou ser Anastásia, estava a ser tratada de um esgotamento nervoso. Acredita que, durante
uma sessão em que se encontrava sob hipnose e tinha sido tratada com medicamentos, ela regressou inadvertidamente àquela cave, na Rússia, no momento exacto em que
a grã-duquesa Anastásia foi assassinada com o resto da família?
Patel acenou afirmativamente com a cabeça.
É precisamente essa a minha teoria. O espírito da grã-duquesa abandonou o seu corpo e, em vez de ir para o outro mundo, penetrou no corpo de Anna Anderson. As suas
identidades fundiram-se. Anna Anderson tornou-se efectivamente a personificação de Anastásia, com as suas recordações, as suas emoções, a sua inteligência.
E a personalidade de Anna Anderson? perguntou Judith.
Parece não ter havido conflito. Ela era uma mulher muito inteligente mas rendeu-se voluntariamente à sua nova posição de herdeira sobrevivente do trono da Rússia.
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Mas porquê Anastásia? Por que não a sua mãe, a czarina, ou qualquer das suas irmãs?
Patel ergueu as sobrancelhas.
Uma pergunta muito sagaz, Miss Chase, e, ao fazê-la, pôs exactamente o dedo no único problema da Síndroma de Anastásia. A história diz-nos que Anastásia era, de
longe, a personalidade mais forte entre as mulheres da família. Talvez as outras aceitassem a morte com resignação e passassem para outro plano. Ela não estava disposta
a partir, lutou para permanecer naquela zona temporal e aproveitou-se da presença inadvertida de Anna Anderson para se agarrar à vida.
Quer dizer então que as únicas pessoas que, em teoria, poderiam regressar seriam aqueles que morressem contra vontade, que desejassem desesperadamente viver?
Exactamente. Por isso falei em Sócrates, que foi forçado a tomar cicuta, em vez de Aristóteles, que morreu de causas naturais. É esse o motivo por que eu estava
a falar frivolamente quando disse que Sir Stephen poderia ser o recipiente adequado para absorver a essência de Disraeli. Disraeli morreu tranquilamente, mas um
dia possuirei também os conhecimentos suficientes para fazer voltar as pessoas que morreram tranquilamente, mas cuja orientação moral possa voltar a ser necessária.
E aí vem Sir Stephen ao seu encontro. Patel sorriu.Permita-me que lhe diga que admiro imensamente os seus livros. A sua cultura é um prazer.
Muito obrigada. Tinha de fazer a pergunta. Dr. Patel disse rapidamente, tem conseguido ajudar algumas pessoas a recuperar recordações de muita tenra idade, não tem?
Tenho. A sua expressão tornou-se concentrada. Não se trata de uma pergunta ociosa.
Pois não.
Patel meteu a mão no bolso e entregou-lhe um cartão.
Se alguma vez quiser falar comigo, telefone-me, por favor. Judith sentiu uma mão no seu braço e ergueu o rosto para Stephen. Esforçou-se por conservar um tom impessoal
na voz.
Stephen, que alegria ver-te. Conheces o Dr. Patel? Stephen cumprimentou Patel com uma breve inclinação da cabeÇa e, dando o braço a Judith, encaminhou-a para o outro
extremo da sala.
Queridamurmurou, em nome de Deus, por que estás a perder o teu tempo com esse charlatão?
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Ele não é... Judith deteve-se. Stephen Hallett era a ultima pessoa de quem poderia esperar que aprovasse as teorias do Dr. Patel. Os jornais já tinham publicado
a sugestão de Patel de que Stephen seria um bom candidato a ser impregnado com o espírito de Disraeli. Sorriu-lhe, deixando de se preocupar com o facto de estarem
a ser observados por quase toda a gente da sala.
Houve um movimento geral quando a primeira-ministra foi recebida à porta pela anfitriã.
Geralmente não venho a muitas destas festas, a não ser por sua causa, minha querida disse ela a Fiona.
Stephen passou o braço em volta da cintura de Judith.
Já é tempo de conheceres a primeira-ministra, minha querida.
Foram jantar ao Brown's Hotel. Enquanto comiam salada e linguado Véronique, Stephen falou-lhe do seu dia.
Talvez tivesse sido o mais frustrante de toda a semana. Que diabo, Judith, a P. M. tem de acabar depressa com as especulações. O país exige eleições. Nós precisamos
de um mandato e ela sabe disso. Os Trabalhistas sabem disso, e estamos num impasse. No entanto, compreendo-a. Se ela não se candidata à reeleição, o problema está
aí. Quando chegar a minha altura, também sentirei dificuldades em retirar-me da vida pública.
Judith começou a brincar com a salada no prato.
A vida pública é tudo para ti, não é, Stephen?
Durante todos aqueles anos em que Jane esteve doente, foi a minha salvação. Ocupava-me o tempo e o espírito, e todas as minhas energias. Durante os três anos que
se passaram desde a morte dela, nem sei dizer-te a quantas mulheres fui apresentado. Saí com algumas delas e apercebi-me de que confundia os seus rostos e os seus
nomes. Queres fazer um teste interessante a uma mulher? Quando ela faz planos em que estamos incluídos, fica visivelmente irritada quando chegamos inevitavelmente
atrasados? Depois, certa vez, numa fria noite de Novembro, conheci-te em casa da Fiona, e a vida tornou-se diferente. Agora, quando os problemas se acumulam, há
uma voz tranquila que me sussurra: "Daqui a pouco estarás com a Judith."
Estendeu a mão por cima da mesa e acariciou a dela.
Agora sou eu a fazer a pergunta. Tu tens uma carreira de sucesso. Já me disseste que chegas a trabalhar durante noites inteiras
e que te fechas dias a fio, quando tens um prazo a cumprir. Eu respeitaria o teu trabalho, como tu respeitarias o meu, mas haveria ocasiões, muitas ocasiões mesmo,
em que eu iria precisar de ti para estares presente ao meu lado, ou me acompanhares em viagens ao estrangeiro. Isso seria um fardo para ti, Judith?
Judith olhou para o copo. Durante os dez anos que se tinham passado desde a morte de Keneth, tinha criado uma vida nova. Era jornalista do Washington Post quando
Kenneth,
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correspondente da Casa Branca da Rede de Televisão Potomac Cable, tinha morrido num acidente aéreo. O dinheiro que recebera do seguro tinha chegado para abandonar
o trabalho e dedicar-se ao projecto que a perseguia desde que lera um livro de Barbara Tuchman. Estava decidida a vir a ser uma escritora séria de romances históricos.
As milhares de horas de enfadonhas pesquisas, as longas noites agarrada à máquina de escrever, as revisões e os problemas editoriais, tudo tinha sido compensador.
O seu primeiro livro, O Mundo às Avessas, sobre a Revolução Americana, tinha ganho um prémio Pulitzer e tornara-se num best-seller. O seu segundo livro, publicado
havia dois anos, sobre a Revolução Francesa, Crepúsculo em Versalhes, tinha tido um êxito igual e recebera um Prémio do Livro Americano. Os críticos consideravam-na
"uma fascinante romancista que possui a cultura de um lente de Oxford".
Judith pousou o olhar em Stephen. A iluminação suave que provinha dos candelabros da parede, cobertos com abat-jours, e da vela, num recipiente de vidro, que tremeluzia
sobre a mesa, suavizava as linhas severas do rosto aristocrático do homem e realçava os profundos tons cinzento-azulados dos seus olhos.
Penso que, tal como tu, amei o meu trabalho e mergulhei nele, simultaneamente, para fugir ao facto de que, na verdadeira acepção da palavra, não tenho tido uma vida
pessoal desde a morte de Kenneth. Houve tempos em que eu conseguia conjugar os prazos a cumprir com divertidos malabarismos destinados a satisfazer as exigências
que resultam de se estar casada com um correspondente da Casa Branca. Penso que são maravilhosas as compensações de ser mulher além de escritora.
Stephen sorriu e agarrou-lhe na mão.
Bem vês, pensamos da mesma maneira, não é assim? Judith retirou a mão.
Stephen, há uma coisa que tens de tomar em consideração. Aos
54 anos ainda tens idade para casar com uma mulher que te dê um
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filho. Eu sempre desejei ter família, mas isso nunca aconteceu. Aos
46 já não acontece, de certeza.,
O meu sobrinho é um rapaz fantástico e sempre adorou a Mansão de Edge Barton. Terei imenso prazer em deixar-lha, assim como o título que a acompanha, quando chegar
a altura. Nesta idade, as minhas energias não se alargam já à paternidade.
Stephen subiu ao apartamento dela para tomar um brande. Fizeram um brinde solene, concordando em que nenhum deles desejava atrair publicidade para a sua vida privada.
Judith não estava interessada em ser distraída pelas perseguições dos colonistas enquanto escrevia um livro. Quando chegassem as eleições, Stephen pretendia responder
a perguntas sobre os seus planos políticos, não sobre o seu namoro.
Embora, evidentemente, toda a gente vá adorar-te comentou. Linda, cheia de talento, e órfã de guerra inglesa. Já imaginaste o que eles vão ter para escrever quando
descobrirem a nossa ligação?
Invadiu-a uma súbita e real recordação do incidente dessa tarde. A criança, "Mamã, Mamã!". Na semana anterior, quando se encontrava junto da estátua de Peter Pan
nos Jardins de Kensington, tinha sido trespassada pela impressionante sensação de já ali ter estado. Havia dez dias, quase tinha desmaiado na gare de Waterloo, certa
de ter ouvido o som de uma explosão, de ter sentido fragmentos de escombros a cair à sua volta...
Stephendisse Há uma coisa que está a tornar-se muito importante para mim. Sei que ninguém me procurou, quando fui encontrada em Salisbury, mas eu estava bem vestida,
era óbvio que cuidavam bem de mim. Haverá alguma maneira de eu conseguir localizar a minha família? Ajudas-me?
Sentiu a tensão invadir os braços de Stephen.
Meu Deus, Judith, nem penses nisso! já me contaste todos os esforços que fizeste para localizar os teus parentes e que não encontraste uma única pista. A tua família
mais próxima foi provavelmente exterminada durante os ataques aéreos. E mesmo que fosse possível só conseguiríamos localizar algum primo afastado, capaz de ser negociante
de drogas ou terrorista. Por favor, por minha causa, nem sequer penses nisso, pelo menos enquanto eu for uma figura pública. Depois disso ajudo-te, prometo.
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A mulher de César deve estar acima de todas as suspeitas?
Ele atraiu-a contra si. Judith sentiu a boa lã do fato dele encostada ao seu rosto, sentiu a força dos braços que a envolviam. Os beijos dele, profundos e exigentes,
despertavam-lhe os sentidos, agitavam os seus sentimentos e os desejos que tinha resolutamente posto de parte ao perder Kenneth. Mas, mesmo assim, sabia que não
poderia esperar indefinidamente para começar a procurar a sua família.
Foi ela a interromper o abraço.
Disseste-me que tinhas uma reunião amanhã, de manhã cedo
recordou-lhe. E eu vou tentar escrever mais um capítulo esta noite.
Os lábios de Stephen acariciaram-lhe a face.
Fui buscar lã para me queimar, já vi. Mas tens razão, pelo menos no futuro imediato.
Judith viu, da janela, o motorista de Stephen abrir-lhe a porta do Rolls. As eleições eram inevitáveis. Num futuro próximo, andaria naquele Rolls como mulher do
primeiro-ministro da Grã-Bretanha? Sir Stephen e Lady Hallett...
Amava muito Stephen. Então, porquê aquela ansiedade? Impacientemente, dirigiu-se ao quarto, vestiu uma camisa de dormir e um roupão quente, e regressou à secretária.
Poucos minutos depois, encontrava-se profundamente concentrada na elaboração do capítulo seguinte do seu livro sobre a Guerra Civil em Inglaterra. Tinha terminado
os capítulos sobre as causas do conflito, os impostos avassaladores, a dissolução do Parlamento, a insistência no direito divino dos reis, a execução de Carlos I,
os anos de Cromwell, a restauração da monarquia. Agora estava pronta a escrever sobre o destino dos regicidas, aqueles que tinham planeado, assinado ou elaborado
a sentença de morte de Carlos I e iriam conhecer a pronta justiça de seu filho Carlos II.
O seu primeiro destino, na manhã seguinte, foi a Conservatória de Registos Públicos em Chancery Lane. Harold Wilcox, o conservador assistente, trouxe-lhe amavelmente
pilhas de documentos antigos. Judith teve a sensação de que séculos de poeira se haviam acumulado naquelas páginas.
Wilcox admirava incondicionalmente Carlos II.
Era um rapaz de perto de 16 anos quando teve de fugir do país para escapar à sorte que ameaçava o seu pai. E era bem esperto. O príncipe conseguiu passar pelas linhas
dos Cabeças Redondas em Truro e partir de barco para Jersey, e daí para França. Regressou
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para chefiar os Realistas, voltou a fugir para França e permaneceu aí, e na Holanda, até a Inglaterra recuperar o juízo e lhe suplicar que voltasse.
Esteve perto de Breda. Eu já lá estive observou Judith.
É um lugar interessante, não é? E se olharmos bem, encontraremos por lá muita gente com as feições características dos Stuart. Carlos II amava as mulheres. Foi em
Breda que ele assinou a famosa declaração, prometendo amnistia aos executadores do seu pai.
Não manteve a promessa. Na verdade, essa declaração era uma mentira bem urdida.
O que ele escreveu foi que manifestaria misericórdia nos casos em que ela fosse pretendida e merecida. Mas nem ele nem os seus conselheiros pensavam que alguém merecesse
essa misericórdia. Foram julgados vinte e nove homens pelo regicídio... a execução de um rei. Outros entregaram-se e foram para a prisão. Os que foram considerados
culpados, foram enforcados e esquartejados.
Judith acenou afirmativamente com a cabeça.
Sim. Mas nunca houve uma explicação clara para o facto de o rei ter assistido à decapitação de uma mulher, Lady Margaret Carew, que era casada com um dos regicidas.
Que crime terá ela cometido?
Harold Wilcox franziu o sobrolho.
Há sempre boatos a rodear os acontecimentos históricos disse. Eu nunca presto atenção aos boatos.
O frio desagradável dos últimos dias tinha dado lugar a um sol brilhante e a uma brisa quase balsâmica. Quando saiu da Conservatória, Judith dirigiu-se a pé até
Cecil Court e passou o resto da manhã a visitar as livrarias antigas daquela área. Os turistas faziam-se representar em toda a sua força, e ela concluiu que a estação
turística durava actualmente doze meses por ano. E então apercebeu-se de que, aos olhos dos ingleses, também era uma turista.
Com os braços cheios de livros, decidiu almoçar rapidamente numa das pequenas salas de chá perto de Covent Garden. Enquanto atravessava o mercado cheio de gente,
deteve-se para observar os malabaristas e bailarinos, que pareciam especialmente festivos naquele dia agradável em que o mau tempo se suspendera.
E então aconteceu. O gemido contínuo e penetrante das sirenes de um alarme aéreo rasgou o ar. As bombas apagaram o sol, caindo na
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sua direcção; o edifício por detrás dos malabaristas desfez-se, numa massa de tijolos estilhaçados, de onde irrompiam chamas. Sentiu-se quase asfixiada. O calor
e o fumo queimavam-lhe o rosto, fechavam-lhe os pulmões. Perdeu a força nos braços e os livros caíram no chão.
Freneticamente, estendeu os braços, procurando uma mão.
Mamã sussurrou.Mamã, não consigo encontrar-te.Subiu-lhe um soluço à garganta, enquanto o som das sirenes se afastava o sol regressava e o fumo se dissipava. Ao focar
de novo os olhos, apercebeu-se de que estava agarrada à manga de uma mulher pobremente vestida que empurrava um carrinho cheio de flores de plástico.
Está bem, minha filha? perguntou a mulher. Não vai desmaiar, pois não?
Não. Não, já estou bem. Conseguiu apanhar os livros e dirigiu-se a uma sala de chá. Sem olhar para a lista que a criada lhe apresentava, pediu chá e torradas. Quando
o chá chegou, as suas mãos ainda tremiam tão violentamente que mal conseguia segurar na chávena.
Quando pagava a conta, tirou da carteira o cartão que o Dr. Patel lhe tinha dado na festa de Fiona. Tinha visto uma cabina telefónica em Covent Garden. Falar-lhe-ia
daí.
Oxalá ele esteja, suplicou enquanto marcava o número.
A recepcionista não queria pô-la em comunicação com ele.
O Dr. Patel acabou de atender o último paciente. Não tem horas à tarde. Posso marcar uma consulta para a próxima semana.
Diga-lhe só o meu nome. Explique-lhe que é uma emergência. Judith cerrou os olhos. O gemido das sereias de ataque aéreo. Ia acontecer outra vez.
E então ouviu a voz do Dr. Patel.
Tem o meu endereço, Miss Chase. Venha imediatamente.
Quando chegou ao escritório da Rua Welbeck, já tinha recuperado parte do seu autocontrole. Uma mulher magra, com uns 40 anos, vestindo uma bata branca e usando o
cabelo louro preso atrás num carrapito severo, atendeu-a.
Chamo-me Rebecca Wadley disse. Sou assistente do Dr. Patel. O doutor está à sua espera.
A sala de recepção era pequena, o consultório era muito grande. Com paredes cor de cereja, uma parede coberta de livros, uma maciÇa secretária de carvalho, diversos
cadeirões confortáveis e um divã
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acolchoado a um canto, dando nas vistas, parecia o escritório de um estudioso. Nada sugeria um ambiente clínico.
Subconscientemente, Judith absorveu os detalhes do local, enquanto, a convite dele, depositava os seus sacos numa mesa de mármore junto à porta da sala de recepção.
Automaticamente, lançou uma olhadela ao espelho pendurado sobre a mesa e ficou sobressaltada ao ver que o seu rosto estava mortalmente pálido, os lábios acinzentados
e as pupilas dos olhos muito dilatadas.
Sim, está com o aspecto de alguém que acaba de sofrer um choque disse o Dr. Patel. Venha cá. Sente-se. Conte-me exactamente o que lhe aconteceu.
A atitude amistosa que ele tinha tomado na festa desaparecera. Havia uma expressão séria nos seus olhos, tinha um ar grave, enquanto escutava. De vez em quando,
interrompia-a, para melhor esclarecimento do que ela dizia.
Foi encontrada em criança, com menos de 2 anos, a vaguear em Salisbury. Ou ainda não tinha principiado a falar, ou não conseguia falar por causa do choque. Não tinha
qualquer placa de identificação. Para mim, isso sugere que viajava com um adulto. Infelizmente, era vulgar ser a mãe ou a ama quem transportava as placas de identificação
de uma criança, quando viajava com ela.
O meu vestido e a minha camisola eram feitos à mão disse Judith, e não me parece que isso sugira que eu tivesse sido abandonada.
Admira-me que tivesse sido permitida uma adopção observou Patel e, ainda por cima, por um casal americano.
A minha mãe adoptiva foi a Wren inglesa que me encontrou. Estava casada com um oficial da Marinha Americana. Estive num orfanato até ter quase 4 anos, altura em
que lhes foi permitido levarem-me.
Já tinha estado em Inglaterra?
Várias vezes. Depois da guerra, o meu pai adoptivo, Edward Chase, esteve no corpo diplomático. Vivemos no estrangeiro, em muitos países, até eu ir para um colégio.
Visitámos a Inglaterra e até voltámos ao orfanato. Estranhamente, não guardo qualquer recordação dele. Parecia-me que sempre tinha estado junto deles, e nunca me
1 As iniciais WREN correspondem a Women's Royal Navy Service, ou seja o Corpo Feminino da Marinha Real Inglesa. (N. da T.)
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preocupei com ele. Mas agora eles já morreram há alguns anos e eu estou a viver em Inglaterra há cinco meses, imersa em história inglesa, É como se todos os meus
genes ingleses começassem a agitar-se. Sinto-me em casa. Pertenço a esta terra.
E assim todos os bloqueios defensivos que construiu no seu cérebro, em pequena, estão a ser atacados? Patel suspirou. Isso acontece. Mas penso que há mais coisas
por detrás dessas alucinações do que pensa. Sir Stephen sabe que veio procurar-me?
Judith abanou a cabeça.
Não. Na realidade, ficaria até muito aborrecido.
Penso que "charlatão" é a classificação que ele me atribui, não é assim?
Judith não respondeu. As suas mãos tremiam. Apertou-as firmemente no regaço.
Não importa disse Patel. Vejo aqui três factores. Está a mergulhar na história inglesa... num certo sentido, forçando a sua mente a regressar ao passado. Os seus
pais adoptivos morreram e já não experimenta uma sensação de deslealdade para com eles ao procurar a sua família verdadeira. E, finalmente, o facto de viver em Londres
está a acelerar o processo. A estátua de Peter Pan nos Jardins de Kensington, que imaginou ver uma criança tocar, pode, provavelmente, ser explicada com a maior
facilidade. É muito possível que ali tenha brincado quando era criança. As sirenes dos ataques aéreos, os bombardeamentos. É provável que tenha sofrido ataques aéreos,
embora isso não explique que tenha sido abandonada em Salisbury. E agora deseja que eu a ajude?
Por favor. Ontem disse que podia fazer que as pessoas regressassem à infância.
Nem sempre com êxito. As pessoas de espírito forte, e naturalmente considero-a entre elas, lutam contra a hipnose. Têm a sensação de que a hipnose significa a rendição
da sua vontade à de outra pessoa. Por isso necessito da sua permissão para utilizar uma droga leve, se for necessário, para bloquear essa resistência. Pense nisso.
Poderá voltar na próxima semana?
Na próxima semana?Evidentemente, tinha esperado que ele a tratasse imediatamente. Judith tentou sorrir. Amanhã de manhã telefono à sua recepcionista para marcar
uma hora. ComeÇou a dirigir-se para a mesa de mármore, onde deixara a mala e os livros.
E então viu-a. A mesma criança. Desta vez saía da sala a correr.
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Tão perto dela que conseguiu ver o vestido que usava. A camisola de malha. O mesmo conjunto que ela vestia quando tinha sido encontrada em Salisbury, o conjunto
que se encontrava guardado num armário, no seu apartamento em Washington.
Deu um passo rápido em frente para ver a cara da criança, mas esta, agitando os caracóis louros que lhe cobriam a cabeça, desapareceu.
Judith desmaiou.
Quando recuperou a consciência, estava estendida no divã do consultório de Patel. Rebecca Wadley segurava um frasco por baixo das suas narinas. O odor pungente do
amoníaco fez Judith recuar. Afastou o frasco.
Já estou bem disse.
Conte-me o que sucedeu ordenou Patel. Que é que viu? Entrecortadamente, Judith descreveu a sua alucinação.
Estarei a enlouquecer? perguntou. Isto não é nada meu. Kenneth sempre disse que eu tinha mais juízo que toda a Washington em conjunto. Que é que está a acontecer-me?
O que está a acontecer é que está perto de uma descoberta. Mais perto do que eu imaginava. Sente-se suficientemente forte para iniciar já o tratamento? Quer assinar
os impressos de autorização necessários?
Quero, sim. Judith fechou os olhos enquanto Rebecca Wadley lhe explicava que ia abrir a gola da sua blusa, descalçar-lhe as botas e cobri-la com um cobertor leve.
Mas a mão de Judith estava firme ao assinar os impressos que ela lhe entregou.
Muito bem, Miss Chase, o doutor vai principiar disse a Dr.a Wadley. Está confortável?
Estou. Judith sentiu que lhe arregaçavam a manga, lhe envolviam o braço com algo almofadado. Depois sentiu a picada de uma agulha na mão.
Judith, abra os olhos. Olhe para mim. E depois pode começar a sentir-se descontraída.
"Stephen", pensou Judith, olhando para o rosto agora nublado de Reza Patel. "Stephen..."
O espelho decorativo por detrás do divã era, na realidade, espelhado só de um lado, possibilitando a observação e a filmagem das sessões hipnóticas a partir do laboratório,
sem distrair os pacientes. Rebecca Wadley dirigiu-se rapidamente ao laboratório. Ligou a câmara de vídeo, o aparelho de televisão, o intercomunicador e os aparelhos
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que iriam monitorizar a pulsação e a pressão sanguínea de Judith. Cuidadosamente, observou os lentos batimentos cardíacos, o baixamento da pressão, enquanto Judith
começava a sucumbir aos esforços de Patel para a hipnotizar.
Judith sentia-se a flutuar, sentia que estava a corresponder às suaves sugestões de Patel para se descontrair, que caía num sono tranquilo. "Não", pensou. "Não."
Começou a lutar contra aquele entorpecimento tranquilizante.
Não está a corresponder. Está a lutar disse a Dr.a Wadley em voz baixa.
Patel acenou afirmativamente com a cabeça e comprimiu o êmbolo da seringa hipodérmica fixada à mão de Judith, introduzindo uma pequena quantidade de droga no seu
sistema.
Judith esforçava-se por acordar. O corpo avisava-a de que não devia ceder. Começou a lutar para abrir os olhos.
Patel voltou a introduzir mais fluido na agulha hipodérmica.
Atingiu a dosagem máxima, Doutor. Ela não se vai deixar hipnotizar. Está a libertar-se.
Dê-me o frasco de litencum ordenou Patel.
Doutor, eu acho que não...
Patel já tinha utilizado aquela droga para penetrar bloqueios psicológicos em pacientes profundamente perturbados. Tinha as mesmas características da substância
utilizada no tratamento de Anna Anderson, a mulher que afirmava ser a grã-duquesa Anastásia. Era o medicamento que, administrado em quantidade, recriaria a Síndroma
de Anastásia, segundo Patel pensava.
Rebecca Wadley, que venerava Reza Patel como um génio e o amava como homem, ficou assustada.
Reza, não, por favor suplicou.
Judith ouvia vagamente as suas vozes. A sensação de entorpecimento estava a passar. Moveu-se.
Dê-me o frasco ordenou Patel.
Rebecca foi buscá-lo, abriu-o enquanto saía rapidamente do laboratório e entrava no consultório, e ficou a ver Patel extrair uma gota do seu conteúdo e injectá-la
na veia de Judith.
Judith sentiu que estava a deslizar. O consultório desapareceu. Estava escuro e quente e ela estava a deslizar.
A Dr.a Wadley regressou ao laboratório e consultou os monitores. Os batimentos cardíacos de Judith tinham-se tornado novamente mais lentos. A pressão sanguínea estava
a baixar.
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Está controlada.
O médico acenou afirmativamente com a cabeça.
Judith, vou fazer-lhe algumas perguntas. Vai ser fácil responder. Não sentirá desconforto nem dor. Sentir-se-á quente e confortável, como se estivesse a flutuar.
Vamos começar por esta manhã. Fale-me do seu novo livro. Não esteve a fazer pesquisas?
Ela estava na Conservatória, a conversar com o conservador assistente, falando a Patel da restauração da monarquia e do facto que tinha descoberto por acaso nas
suas primeiras investigações, e que a fascinava.
Que facto foi esse, Judith?
O rei assistiu à decapitação de uma mulher. Carlos II era notavelmente misericordioso. Foi generoso para com a viúva de Cromwell, até perdoou ao filho de Cromwell,
que se tinha tornado Lorde Protector. Afirmou que já tinha sido derramado sangue suficiente em Inglaterra. As únicas execuções a que assistiu foram as dos homens
que assinaram a sentença de morte de seu pai. Então, por que haveria de se sentir tão furioso com uma mulher ao ponto de assistir à sua execução?
Isso fascina-a?
Sim.
E depois de sair da Conservatória?
Fui até Covent Garden.
Rebecca Wadley vigiava e escutava, enquanto o Dr. Patel fazia Judith regressar até ao dia do seu casamento com Kenneth, ao seu décimo sexto aniversário, ao seu quinto
aniversário, ao orfanato, à adopção.
Judith Chase não era uma mulher vulgar, concluiu a Dr.a Wadley, enquanto a escutava. A clareza das suas recordações era impressionante, mesmo à medida que regressava
a pontos cada vez mais remotos da sua infância. A Dr.a Wadley pensou uma vez mais que, por muitas vezes que observasse aquele processo, nunca deixaria de se espantar
ao ver um espírito abrir-se e revelar os seus segredos, ao ouvir um adulto sofisticado e cheio de auto-segurança falar com a voz doce e difícil de entender de uma
criança pequena.
Judith, antes de ser levada para o orfanato, antes de ser encontrada em Salisbury... diga-me de que se lembra.
Judith abanava incansavelmente a cabeça de um lado para o outro.
Não. Não.
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O monitor indicou que os batimentos cardíacos de Judith se estavam a acelerar.
Ela está a tentar bloqueá-lo disse Wadley rapidamente. E
então, horrorizada, viu Patel introduzir mais uma gota na seringa. Doutor, não faça isso.
Ela está quase lá. Não posso deixá-la parar agora.
A Dr.a Wadley olhou para o ecrã da televisão. O corpo de Judith encontrava-se num estado de total relaxamento. Os seus batimentos cardíacos eram inferiores a quarenta,
a tensão arterial era de sete cinco. "Perigoso", pensou a Dr.a Wadley, "demasiado perigoso." Sabia que existia um zelota em Patel, mas nunca o tinha visto actuar
de forma tão irresponsável.
Diga-me o que a assustou, Judith. Tente.
Judith respirava em arquejos leves e rápidos. Agora as suas frases saíam fragmentadas, a sua voz tinha o tom suave e agudo de uma criança muito pequena. Iam apanhar
um comboio. Ela estava agarrada à mão da mamã. Começou a gritar, num choro infantil e assustado.
Que está a acontecer? Diz-me. A voz de Patel era suave. Judith agarrou-se ao cobertor e, numa cadência infantil, gritou pela mãe.
Eles vêm aí outra vez, como quando estávamos a brincar. Disse a Mamã. "Foge, foge!" A Mamã já não estava a segurar a minha mão. Está tão escuro... estou a subir
as escadas a correr. O comboio está ali... A Mamã disse que íamos apanhar o comboio.
Entraste no comboio, Judith?
Sim. Sim.
Falaste com alguém.
Não estava lá ninguém. Eu estava tão cansada. Queria dormir, para que a Mamã estivesse lá quando eu acordasse.
Quando é que acordaste?
O comboio parou. Já havialuz outra vez. Desci os degraus...Não me lembro de mais nada depois disso.
Não faz mal. Não penses mais nisso. És uma menina muito esperta. Podes dizer-me como te chamas?
Sarah Marrssh.
"Marsh ou Marrish", pensou Rebecca. Judith estava a falar como uma criança de 2 anos.
Quantos anos tens, Sarah?
Dois.
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Sabes quando fazes anos?
"Catro" de Maio.
Rebecca subiu o volume do aparelho, tomando notas, esforçando-se por entender as palavras arrastadas e infantis.
Onde moras, Sarah?
Kent Court.
É feliz aí?
A Mamã chora muito. Eu e a Molly brincamos...
Molly? Quem é a Molly, Sarah? A minha irmã. Quero a Mamã. Quero a minha mana. i Judith começou a chorar. Rebecca observou o monitor. A pulsação está a acelerar.
Ela está outra vez a lutar.
Vamos parar agora disse Patel. Tocou na mão de Judith. Judith, agora vai acordar. Vai sentir-se descansada e renovada. Recordar-se-á de tudo o que me contou.
Rebecca suspirou de alívio. "Graças a Deus", pensou. Conhecia o desejo em que Patel ardia de experimentar o litencum. Estendeu a mão para desligar o televisor e
então olhou o rosto de Judith e viu que estava convulsionada pela angústia e ouviu-a gritar:
Parem! Não lhe façam isso!
As agulhas dos monitores começaram a oscilar descontroladamente.
Fibrilação cardíaca exclamou Rebecca. Patel agarrou nas mãos de Judith.
Judith, escute-me. Tem de obedecer-me.
Mas Judith não o ouvia. Estava junto de um cepo de execução, no interior da Torre de Londres, em 10 de Dezembro de 1660...
Viu, horrorizada, que uma mulher de vestido e capa verde-escuros estava a ser conduzida pelos portões da Torre, por entre a multidão ululante. A mulher parecia ter
perto de 50 anos. O seu cabelo castanho estava raiado de fios grisalhos. Caminhava erecta, sem olhar para os guardas que a rodeavam. As suas feições, belamente esculpidas,
estavam contorcidas numa máscara de raiva e de ódio. Tinha as mãos atadas à frente, com fios finos, semelhantes a arames, que se cravavam nos pulsos. Uma cicatriz
de cor vermelha-viva, em forma de crescente, na base do polegar, brilhava à luz da madrugada.
Judith viu a multidão abrir-se para dar passagem a dúzias
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de soldados que marchavam ordenadamente em direcção a uma tribuna drapejada, perto do local da execução. As fileiras afastaram-se, dando passagem a um jovem esbelto,
de chapéu emplumado, calções escuros e casaca bordada. A multidão saudou com entusiasmo enquanto Carlos II erguia a mão, a agradecer. Como que num pesadelo, Judith
viu a mulher que estava a ser conduzida para o cepo parar diante de um poste, no qual havia sido espetada uma cabeça humana.
Continuai ordenou um soldado, empurrando-a.
Negais a despedida a uma esposa? O tom de voz da mulher estava gelado de desprezo.
Os soldados empurraram-na até ao local onde o rei se encontrava agora sentado. O dignatório a seu lado leu um pergaminho que segurava nas mãos:
Lady Margaret Carew, Sua Majestade considerou impróprio que fosseis enforcada e esquartejada.
A multidão em volta começou a apupar. Ela não tem entranhas iguais às da minha mulher? berrou um dos homens. A mulher parecia não os ouvir.
Simon Hallett disse amargamente traístes o meu marido. Traístes-me a mim. Se eu conseguir fugir do inferno, encontrarei uma maneira de vos castigar, a vós e aos
vossos.
Já falasteis de mais. O capitão da guarda agarrou a mulher e tentou empurrá-la para o cepo, onde o carrasco a aguardava. Num último gesto de desafio, ela voltou
a cabeça e cuspiu para os pés do rei.
Falso! exclamou. Prometesteis misericórdia, homem falso. Foi pena que não vos tivessem cortado a cabeça, quando cortaram a de vosso pai.
Um soldado bateu-lhe e arrastou-a para diante.
Esta morte é boa de mais para ti. Se fosse eu a mandar, eras queimada viva.
Judith arquejou ao notar que entre ela e a prisioneira existia uma extraordinária semelhança. Lady Margaret foi forçada a cair de joelhos.
Nunca mais exibirás este troçou um soldado, enquanto lhe cobria o cabelo com uma touca branca.
O carrasco ergueu o machado. Este ficou suspenso, por momentos, sob o cepo. Lady Margaret voltou a cabeça. Os seus olhos cravaram-se nos de Edith, suplicantes, irresistíveis.
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Parem! Não façam isso!gritou Judith e, precipitando-se para a plataforma, lançou-se sobre a condenada e abraçou-a no momento em que o machado caía.
Judith abriu os olhos. O Dr. Patel e Rebecca Wadley estavam de pé, junto dela. Sorriu-lhes:
Sarah disse. É esse o meu verdadeiro nome, não é?
Até que ponto se recorda daquilo que nos contou, Judith?perguntou Patel. O seu tom de voz revelava prudência.
Kent Court. Foi a rua de que falei, não foi? Agora já me lembro. A minha mãe. Estávamos perto da gare de caminho-de-ferro. Ela levava-nos pela mão, a mim e à minha
irmã. As bombas começaram a cair. Um zumbido de aviões lá em cima. As sirenes. O som dos motores parou. E depois toda a gente desatou a gritar. Algo me bateu na
cara. Não conseguia encontrar a minha mãe. Corri e subi para o combóio. E o meu nome... é Sarah, mas isso já lhes disse. Marsh ou Marrish. Ergueu-se e agarrou na
mão de Patel. Como posso agradecer-lhe? Pelo menos, já tenho qualquer coisa por onde posso começar a procurar. Aqui mesmo em Londres.
Qual é a última coisa de que se recorda, antes de eu a acordar?
De Molly. Doutor, eu tinha uma irmã. Mesmo que ela tenha morrido nesse dia, mesmo que a Mãe tenha morrido nesse dia, agora já sei alguma coisa acerca delas. Vou
procurar nos registos de nascimento. Vou encontrar a criança que fui.
Judith abotoou a blusa, desenrolou a manga arregaçada, passou os dedos pelo cabelo, inclinou-se e procurou as botas.
Se eu não conseguir encontrar a minha certidão de nascimento, pode hipnotizar-me outra vez? pediu.
Não disse Patel firmemente. Pelo menos, não tão cedo.
Depois de Judith partir, Patel voltou-se para Rebecca.
Mostra-me os últimos minutos da gravação. Observaram ambos sombriamente a mudança de expressão de Judith de choque e horror para uma raiva cega, e ouviram-na gritar:
Parem! Não lhe façam isso!
Não lhe façam o quê?inquiriu Rebecca.Que estava Judith Chase a viver?
Patel tinha a testa franzida, os olhos cheios de preocupação. Não faço ideia. Tinhas razão, Rebecca, eu não devia ter-lhe
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injectado o litencum. Mas talvez esteja tudo bem. Ela não se recordava da experiência que viveu, fosse ela qual fosse.
-Não sei, disse a Dr.a Wadley. Pousou a mão no ombro dele.
Reza eu tentei avisar-te. Não deves fazer experiências com os nossos pacientes, por muito que desejes ajudá-los. Judith Chase parece estar bem. Oxalá assim seja.
Rebecca fez uma pausa. Só há uma coisa em que eu reparei. Reza, Judith tinha uma leve cicatriz em forma de crescente na base do polegar direito quando chegou aqui?
Quando procurei uma veia na mão para introduzir a agulha, não a vi. Mas repara na última imagem antes de ela acordar. Lá está a cicatriz.
Stephen Hallett nem reparava na bela paisagem campestre inglesa, com uma prematura sugestão primaveril na tarde soalheira, enquanto o conduziam a Chequers, a propriedade
rural da primeiraministra. A primeira-ministra tinha ido para lá após a sua breve aparição na festa de Fiona. A sua abrupta convocatória daquela manhã só poderia
significar uma coisa: ia finalmente dizer-lhe que tencionava retirar-se. Ia indicar a sua preferência quanto ao seu sucessor na chefia do partido.
Stephen sabia que, com excepção de uma mancha na sua carreira, seria inevitavelmente escolhido. Durante quanto tempo aquele terrível escândalo de trinta anos antes
continuaria a persegui-lo? Teria destruído as suas actuais possibilidades? A primeira-ministra seria suficientemente generosa para lhe dizer pessoalmente que não
poderia apoiá-lo, ou iria comunicar-lhe o seu apoio?
Rory, seu motorista havia longo tempo, e Carpenter, o seu guarda-costas do Departamento Especial da Scotland Yard, eram homens muito inteligentes, e sentia que estavam
compenetrados da importância da reunião. Quando pararam diante da imponente mansão, Carpenter saiu do carro e fez-lhe continência, enquanto Rory lhe abria a porta
do veículo.
A primeira-ministra encontrava-se na biblioteca. Embora o calor do sol inundasse a elegante sala, vestia um pesado casacão de malha, e, de certo modo, notava-se
a ausência daquela energia vital que a caracterizava sempre. Quando o cumprimentou, até a sua voz tinha Perdido o vigor habitual.
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Stephen, não é bom perder o gosto pela luta. Estava precisamente a ralhar com a minha psique por me trair de tal maneira.
Com certeza, Primeira-Ministra! Stephen deteve-se. Não iria insultá-la com sentimentos ocos. Durante meses, a óbvia fadiga dela tinha sido assunto das especulações
dos meios de comunicação.
A primeira-ministra fez-lhe sinal para que se sentasse.
Tomei uma decisão que é muito difícil. Vou retirar-me da vida pública. Dez anos neste cargo são suficientes para qualquer pessoa. Pretendo passar mais tempo com
a minha família. O país está pronto para uma eleição e a campanha deverá ser dirigida por um chefe do partido recém-eleito. Stephen, acho que é o meu sucessor ideal.
Tem tudo o que é preciso.
Stephen esperou um pouco. Parecia-lhe que a palavra seguinte seria "mas". Enganou-se.
Não restam dúvidas de que a imprensa vai reavivar o antigo escândalo. Eu própria o mandei investigar de novo.
O antigo escândalo. Era um jovem advogado de 25 anos quando tinha ido trabalhar para a firma do seu sogro. Um ano mais tarde, o seu sogro, Reginald Harworth, era
condenado, por desvio de fundos dos seus clientes, a cinco anos de prisão.
O Stephen foi totalmente ilibado disse a primeira-ministra, mas uma coisa desagradável como essa tem tendência para estar constantemente a vir ao de cimo. Todavia,
acho que o país não deverá ser privado da sua capacidade e dos seus serviços por causa do infeliz do seu sogro.
Stephen apercebeu-se de que todos os músculos do seu corpo estavam retesados. A primeira-ministra ia apoiá-lo. O rosto dela tomou uma expressão severa.
Exijo uma resposta concreta. Existe alguma coisa na sua vida pessoal que possa embaraçar o partido e custar-nos uma eleição?
Não existe., Não há nenhuma daquelas mulheres fáceis que gostam de vender a sua história aos jornais? O Stephen é um homem atraente e é viúvo.
Ofende-me a sugestão, Primeira-Ministra.
Não se ofenda. Preciso de saber. A Judith Chase. Apresentou-ma na noite passada. Conheci o pai dela, o pai adoptivo, penso eu. Encontrámo-nos diversas vezes ao longo
dos anos. Ela parece acima de qualquer suspeita.
"A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita",
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pensou Stephen. Não era isso o que tinha dito Judith na noite anterior? Tenho esperanças de me casar com Judith. Ambos concordámos que não desejamos publicidade
pessoal nesta altura.
Muito sensato. Bem, pode considerar-se feliz. Os pais adoptivos
dela eram gente da melhor e ela ainda tem o encanto de ser órfã de guerra inglesa. É uma das nossas. A primeira-ministra sorriu, um sorriso que emprestou calor a
todo o seu corpo. Stephen, parabéns. Os Trabalhistas vão dar-nos luta mas havemos de ganhar. O Stephen será o próximo primeiro-ministro e ninguém terá maior gosto
que eu em vê-lo apresentar-se a Sua Majestade. Agora seja gentil e sirva-nos uma boa dose de uísque. Precisamos de fazer planos cuidadosos.
Quando saiu do consultório de Patel, Judith dirigiu-se imediatamente ao seu apartamento. No táxi, apercebeu-se de que sussurrava "Sarrah Marsh, Sarah Marrish". "Vou
gostar do meu verdadeiro nome", pensou, encantada. No dia seguinte iniciaria a procura da sua certidão de nascimento. Tinha esperanças de ter nascido em Londres.
Se as suas recordações estivessem certas, conhecer o seu nome e a data do seu nascimento tornava a busca infinitamente mais fácil. Não era de admirar que não a tivessem
conseguido localizar. Se ela se tinha metido num comboio em Londres e seguido até Salisbury, bloqueando depois a recordação do que tinha acontecido, isso explicava
a razão por que não tinha aparecido ninguém a procurá-la. Estava certa de que a mãe e Molly tinham morrido naquele dia. "Mas talvez primos", pensou Judith. "Quem
sabe se não tenho uma família enorme a viver mesmo ali à esquina?
Chegámos, Miss.
Oh!Judith procurou a carteira dentro da mala.Estava distraída.
No apartamento, fez uma chávena de chá e dirigiu-se resolutamente para a secretária. Sim, no dia seguinte teria tempo de sobra para iniciar a busca de Sarah Marrish.
Naquele dia seria preferível continuar a ser Judith Chase e voltar ao seu livro. Estudou as notas que tinha tomado na Conservatória e pensou de novo naquela mulher,
Lady Margaret Carew, que tinha sido executada na presença do reií perguntando a si própria qual teria sido o seu crime.
Eram perto de seis horas quando Stephen telefonou. O toque agudo do telefone, tão diferente do dos telefones americanos, arrancou
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Judith, sobressaltada, da concentração total que experimentava quando escrevia. Admirada, ao ver quanto tempo tinha passado apercebeu-se de que, com excepção do
candeeiro da secretária, o apartamento estava às escuras. Estendeu a mão para o telefone, às apalpadelas.
Está?
Querida, aconteceu alguma coisa? Pareces perturbada. A voz de Stephen revelava preocupação.
Santo Deus, não. É que, quando estou a escrever, entro noutro mundo. Levo um minuto ou dois a regressar à Terra.
E por isso que escreves tão bem. Jantamos esta noite na minha casa? Tenho notícias interessantes.
E eu tenho notícias interessantes também. A que horas?
Oito está bem? Eu mando o carro.
Oito está óptimo.
Pousou o auscultador, sorrindo. Sabia que Stephen detestava perder tempo ao telefone, mas conseguia sempre ser breve sem parecer abrupto. Decidindo que já tinha
trabalhado bastante, foi acendendo os candeeiros enquanto atravessava a sala e o pequeno hall, em direcção ao quarto.
"Há uma outra coisa terrivelmente inglesa em mim", pensou, alguns minutos mais tarde, enquanto se descontraía dentro de água quente e perfumada. "Adoro estas banheiras
de ferro com pés em forma de garras."
Tinha tempo para um breve repouso, para se deitar um pouco, pensou, enquanto se cobria com a colcha. Quais seriam as notícias de Stephen? O seu tom era quase neutro,
de modo que não deviam ter nada a ver com a eleição, ou teriam? Não, claro que não. Nem mesmo ele tinha assim tanto sangue-frio.
Começando a vestir-se, Judith decidiu^se por uma seda estampada que tinha comprado em Itália. Sempre tinha achado que as suas cores vivas se assemelhavam ao efeito
de tintas lançadas indiscriminadamente sobre uma paleta. Era um vestido capaz de iluminar a noite de Janeiro, agora nublada. Era um vestido com que se davam notícias
agradáveis.
Stephen, gostas do nome de Sarah?
Deixou o cabelo solto, a roçar a gola do fato. O colar de pérolas que tinha sido da sua mãe, da sua mãe adoptiva. Os brincos de pérolas e diamantes, a fina pulseira
de diamantes. Uma noite festiva. Não pareces ter a idade que tens, assegurou à sua imagem no espelho. E
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então pensou: "Hoje já tive 2 anos." Talvez isso ajudasse a recuperar um pouco da juventude. Sorrindo perante a possibilidade, olhou para as mãos, tentando decidir
que anéis usar.
E então viu-a. A leve marca da cicatriz em forma de crescente na base do polegar. Franzindo a testa, tentou recordar-se de há quanto tempo a tinha. Quando era adolescente,
tinha entalado uma mão na porta de um carro e ficado bastante ferida. As cicatrizes da cirurgia plástica tinham levado longo tempo a desaparecer.
E agora uma delas estava a reaparecer, pensou. Lindo!
Faltavam cinco minutos para as oito. Sabia que o carro já estava à sua espera. Rory chegava sempre cedo.
O apartamento citadino de Stephen ficava na Lord North Street. Ele recusou-se a transmitir-lhe as notícias antes de acabarem de jantar e estarem instalados no profundo
sofá de costas altas da biblioteca. No fogão de sala ardia um bom fogo e havia uma garrafa de Dom Perignon a gelar num balde de prata. Ele mandou sair os criados
e fechou as portas da biblioteca. Solenemente, pôs-se de pé, desenrolhou o champagne, encheu as taças e estendeu-lhe uma.
Vamos fazer um brinde.
A quê!
Às eleições gerais. À garantia da primeira-ministra de que me apoiará como seu sucessor na chefia do partido.
Judith pôs-se de pé, de um salto.
Stephen, oh meu Deus, Stephen.Tocou com o seu copo no dele. A Inglaterra tem muita sorte.
Os seus lábios encontraram-se e permaneceram colados. Depois ele avisou-a:
Querida, nem uma palavra disto a ninguém. O plano consiste em eu, nas próximas três semanas, mais ou menos, preparar uma estratégia de campanha, fazer declarações
políticas aos órgãos de comunicação, mostrar-me bastante nas conferências da CEE sobre terrorismo e ir discretamente recolhendo apoios.
Em Washington chama-se a isso desenvolver o perfil. Os lábios de Judith acariciaram-lhe a testa. Meu Deus, sinto tanto orgulho de ti, Stephen.
Ele riu-se.
Desenvolver o perfil é exactamente o meu objectivo. Nessa altura, a primeira-ministra anunciará a sua decisão de não se recandidatar.
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A primeira batalha será quando o partido escolher um novo líder. Há concorrência, mas com o apoio dela vai correr tudo bem. Uma vez que eu tenha sido eleito chefe
do partido, a P. M. irá falar com a rainha e pedir a dissolução do Parlamento. As eleições gerais seguem-se um mês depois. Envolveu-a nos braços.
E se o nosso partido ganhar as eleições e eu vier a ser primeiro-ministro, nem sei dizer-te o que representa para mim saber que estarás aqui, ao fim do dia. Querida,
nunca me tinha apercebido de como me encontrava sozinho, durante todos aqueles anos em que Jáne esteve doente, até àquela noite em casa da Fiona, em que te encontrei.
Tão elegantemente vestida. Tão espirituosa e bela. E nos teus olhos aquela sugestão de tristeza.
Não estão tristes agora.
Voltaram a instalar-se no sofá, ele com as longas pernas apoiadas na mesinha forrada de cabedal, ela aninhada ao lado dele.
Conta-me todos os pormenores da tua entrevista com a primeira -ministra exigiu.
Bem, garanto-te que, nos primeiros momentos, estava certo de que ela me ia pôr de parte com a maior delicadeza possível. Acho que nunca te falei do meu sogro.
Enquanto escutava o relato que Stephen lhe fazia do escândalo, e lhe falava do receio que sentira de que isso lhe custasse o apoio da primeira-ministra, Judith apercebeu-se
de que não poderia falar-lhe da sua visita ao Dr. Patel, nem podia pedir a ajuda dele para descobrir o seu passado. Não era de admirar que ele se tivesse oposto
tão veementemente ao seu desejo de descobrir a sua verdadeira família. E os jornais não quereriam outra coisa senão descobrir que a futura mulher do primeiro-ministro
tinha consultado o controverso Reza Patel.
Conta-me agora as tuas notícias disse Stephen. Disseste-me que tinhas boas notícias.
Judith sorriu e acariciou-lhe o rosto com a mão.
Ainda me lembro de quando Fiona me disse que ia colocar-me ao teu lado, naquele jantar. Disse-me que tu eras absolutamente espantoso. E tinha razão. As minhas notícias
empalidecem, depois de ouvir as tuas. Ia falar-te de uma conversa tremendamente interessante que tive hoje com o conservador. Pareceu-me que adorava o facto de Carlos
II ser louco por mulheres. Ergueu os lábios para os
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dele, abraçou-o e sentiu a ávida reacção do homem. "Oh, meu Deus", pensou, "amo-o tanto". E disse-lho.
Na sexta feira à noite foram para a casa de campo de Stephen, em Devon. Durante a viagem de três horas de carro, ele falou-lhe da Mansão de Edge Barton.
Fica em Branscombe, uma linda aldeia antiga. Foi construída nos tempos da Conquista Normanda.
Há cerca de novecentos anos interrompeu Judith.
Não me posso esquecer de que estou a falar com uma historiadora. A família Hallett adquiriu a propriedade quando Carlos II regressou ao trono. Penso que tenhas encontrado
algumas referências a ela nas tuas pesquisas. É um local encantador. Não me sinto muito orgulhoso do meu antepassado, Simon Hallett. Aparentemente, era um sujeito
muito traiçoeiro. Mas tenho esperanças de que irás adorar Edge Barton tanto como eu.
A mansão ficava situada numa saliência perto de uma ravina arborizada. Brilhavam luzes por detrás das janelas de caixilhos, enviando raios de luz para as pedras
do exterior. O telhado de ardósia brilhava, sombrio, sob o crescente luar. Do lado esquerdo, uma ala de empenas, com três andares, que Stephen lhe disse ser a mais
antiga do edifício, erguia-se majestosamente acima das copas das árvores. Stephen apontou para a porta ao estilo Cromwell, com uma bandeira semicircular e traves
brilhantes, perto da ala direita da mansão.
Os antiquários passam a vida a suplicar-nos que lhes vendamos aquela porta. De manhã poderás ver o que resta do fosso. Agora está seco, mas aparentemente constituiu
uma boa defesa, há mil anos.
As pesquisas que fizera para o seu livro tinham posto Judith ao corrente das casas antigas, mas quando o carro parou junto da porta principal de Edge Barton ela
apercebeu-se de que, fosse qual fosse a sensação que estava a experimentar, era totalmente diferente das suas reacções perante outras mansões históricas.
Stephen observava-lhe a expressão.
Bem, querida, parece-me que a aprovas. Sinto-me como se voltasse para casa.
De braço dado, exploraram o interior da casa.
Há anos que passo aqui muito pouco tempo disse Stephen. Jane estava muito doente. Ela preferia Londres, onde os amigos
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a podiam visitar mais facilmente. Eu vinha sozinho e permanecia aqui apenas o tempo suficiente para atender o meu eleitorado.
A sala de estar, a sala de jantar, o grande salão, o fogão de sala Tudor no quarto por cima da sala, a escadaria normanda da ala antiga as magníficas janelas de
forma côncava, a pedra macia e lisa do salão do andar superior que gerações de crianças haviam coberto com desenhos de barcos e pessoas, cavalos e cães, iniciais,
nomes e datas. Judith tinha parado a examiná-los quando um criado subiu as escadas.
Um telefonema para Sir Stephen.
Volto já, querida murmurou ele.
Havia um conjunto de iniciais que parecia arder na parede. V. C.,
1635. Judith passou os dedos sobre elas.
Vincent murmurou Vincent.
Como num sonho, atravessou o hall e subiu a escada que levava ao salão de baile no quarto andar. Tudo estava totalmente às escuras. Tacteando a parede, encontrou
o interruptor e observou a sala que se ia enchendo de pessoas com trajos formais do século XVII. A cicatriz da sua mão começou a brilhar. Era o dia 18 de Dezembro
de
1641...
Edge Barton é uma casa magnífica, Lady Margaret.
Não posso discordar. O tom de Margaret Carew era frio, ao dirigir-se ao jovem janota, cujos cabelos cuidadosamente encaracolados, feições correctas e roupas afectadas
não conseguiam esconder o ar de dissimulação e duplicidade que emanava de Hallett, filho bastardo do duque de Rockingham. O vosso filho Vincent lança-nos olhares
mal humorados. Penso que não lhe agrado disse. Terá ele alguma razão para não gostar de vós? Talvez pressinta que estou apaixonado por sua mãe. Na verdade, Margaret,
John Carew não é homem para vós. Tínheis 15 anos quando vos casastes com ele. Aos 32 sois mais bela que qualquer outra mulher presente nesta sala. Que idade tem
John? Cinquenta? E está praticamente incapacitado, desde que teve o acidente de caça.
E é o meu marido que eu amo ternamente. Margaret captou o olhar do filho e acenou-lhe com a cabeça. Rapidamente, ele atravessou a sala, ao seu encontro.
Mãe.
Era um belo rapaz, alto e bem desenvolvido para os seus 16
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anos. As suas feições revelavam nitidamente que era um Carew, mas como Margaret lhe recordava, por brincadeira, podia agradecer-lhe a ela o espesso cabelo castanho
e os olhos verde-azulados. Eram característicos da família Russel.
Simon, conheceis o meu filho Vincent. Vincent, recordas-te por certo de Simon Hallett.
Recordo-me.
E de que vos recordais exactamente a meu respeito, Vincent?
O sorriso de Hallett era condescendente.
Recordo-me de que vos mostrais absolutamente indiferente aos novos impostos que ameaçam toda agente nesta sala. Mas, como observou o meu pai, quando uma pessoa nada
tem sobre que pagar impostos é muito fácil prometer lealdade a um monarca que acredita no direito divino dos reis. Não é verdade, Mr. Hallett, que é a esperança
da vossa raça que as propriedades que são confiscadas por falta de pagamento dos impostos pela coroa venham um dia a ser entregues aos defensores do rei? A vós mesmo?
O meu pai já notou a cobiça nos vossos olhos quando acompanhais os vossos amigos à Mansão de Edge Barton. Será verdade que esta casa tenha um grande fascínio sobre
vós, para além do vosso óbvio interesse pela minha mãe?
A ira avermelhava o rosto de Hallett.
Soi's impertinente.
Lady Margaret riu-se e deu o braço ao filho.
Não, é um jovem muito astuto. Acaba de vos transmitir a mensagem exacta que eu lhe pedira que transmitisse. Tendes toda a razão, Mr. Hallett. O meu esposo, Sir John,
não se encontra bem e é por isso que não posso incomodá-lo, pedindo-lhe que fale convosco. Não volteis a entrar nesta casa com o pretexto de acompanhar amigos mútuos.
Não sois bem-vindo aqui. Se sois efectivamente tão íntimo do rei como pretendeis fazer-nos crer, dizei a Sua Majestade que o motivo por que muitos de nós fugimos
da sua Corte é o de não podermos suportar o seu desprezo pelo Parlamento, as suas afirmações de direito divino, a sua indiferença perante as genuínas necessidades
e direitos do seu povo. A minha família tem estado tanto na Câmara dos Lordes como na Câmara dos Comuns, desde que o Parlamento foi criado. Corre nas nossas veias
o sangue dos Tudor, mas isso não quer dizer que voltemos aos dias em que o único direito que o Monarca reconhecia eram as suas vontades e obstinação.
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A sala encheu-se de música. Margaret voltou as costas a Hallett, sorriu ao marido, que estava sentado entre amigos, com a bengala a seu lado, e dirigiu-se à pista
de dança com o filho.
Tens a graciosidade do teu paidisse. Antes do acidente, costumava dizer-lhe que era o melhor dançarino de Inglaterra.
Vincent não retribuiu o sorriso da mãe.
Mãe, o que vai acontecer?
Se Sua Majestade não aceitar as reformas que o Parlamento exige, haverá uma guerra civil.
Então eu lutarei pelo lado do Parlamento.
Praza a Deus que na altura em que tiveres idade para lutar tudo esteja já resolvido. Até mesmo Carlos deve saber que não pode ganhar esta batalha de consciência.
Judith abriu os olhos. Stephen estava a chamá-la. Abanando a cabeça, correu para a escada.
Estou aqui em cima, querido. Quando ele a alcançou, Judith rodeou-lhe o pescoço com os braços. Tenho a sensação de sempre ter conhecido Edge Barton.Não reparou que
a cicatriz da sua mão, que tinha ostentado um tom vermelho-vivo, voltava a ser uma marca pálida, quase indistinguível.
Na segunda-feira, Judith foi de carro até Worcester, para observar o local onde se travara o mais importante conflito da Guerra Civil. Tinha tido lugar naquela cidade
em 1651. Dirigiu-se em primeiro lugar à Casa do Comando, o edifício de madeira que servira de quartel-general a Carlos II. Totalmente reconstruída, continha uniformes,
elmos e mosquetes, em que os visitantes eram encorajados a pegar. Quando agarrou no uniforme de um capitão do exército de Cromwell, Judith experimentou uma sensação
de terrível tristeza. Uma representação audiovisual evocava, de forma realista, o recontro histórico e os acontecimentos que a ele tinham conduzido. Com os olhos
a arder, começou a ver o filme, sem se aperceber de que tinha cerrado os punhos.
Um assistente entregou-lhe um mapa daquilo a que o museu chamava o Périplo da Guerra Civil, onde estavam marcados os diversos passos da batalha de Worcester. Explicou-lhe:
As tropas realistas foram firmemente derrotadas na batalha de
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Naseby. A guerra terminou efectivamente nesse dia, ganha por Cromwell e pelos Parlamentaristas. Mas continuou a arrastar-se. Travou-se aqui o recontro final. Os
Realistas eram chefiados pelo jovem Carlos. Apenas com 21 anos de idade, os historiadores afirmam que ele constituiu "um incomparável exemplo de coragem", mas de
nada lhe serviu. Tinham perdido quinhentos oficiais em Naseby e nunca se conseguiram recuperar dessa perda.
Judith saiu da casa de Comando. Estava um dia típico de Janeiro, frio, um pouco húmido. Ela vestia uma Burberry, com a gola subida em volta do pescoço. Tinha prendido
o cabelo num coque, e algumas madeixas tinham-se escapado e vindo emoldurar o seu rosto agora muito pálido, com as pupilas dilatadas.
Seguiu o mapa, enquanto percorria a cidade, parando para consultar as suas notas e para anotar impressões. No cimo da Catedral de Worcester olhou para baixo, recordando-se
de que, naquele preciso local, Carlos II tinha estado a observar os preparativos de Cromwell para a batalha. E quando se tornara óbvio que a batalha estava perdida,
as tropas Realistas tinham avançado para um massacre inevitável, num ataque final contra os Parlamentaristas, a fim de proteger a fuga do seu futuro monarca. Dali
tinha partido Carlos para a sua longa e angustiosa jornada através da Inglaterra, até ao santuário em França.
"Foi pena que ele escapasse", pensou Judith amargamente, enquanto a cicatriz da sua mão começava a avermelhar-se. Já não estava diante dela a paisagem invernosa
de Worcester. Era uma quente tarde de Julho de 1644, e ela seguia numa carruagem fechada, através de Marston Moor, na esperança de descobrir que Vincent ainda se
encontrava vivo...
O toque dos tambores acompanhava a marcha de um pequeno destacamento de Cabeças Redondas. À vista da carruagem que se aproximava, duas sentinelas avançaram e barraram-lhe
a passagem com longas lanças.
Lady Margaret saiu da carruagem. Envergava um vestido simples de linho azul, com uma gola branca de folhos. Caía-lhe dos ombros uma capa a condizer. Com a excepção
da sua aliança de casamento, não usava jóia alguma. O seu espesso cabelo castanho, agora raiado de prata, estava preso na nuca. A dor ensombrava os seus olhos azul-esverdeados,
os olhos da aristocrática família Russel.
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Por favor suplicou. Sei que há aí muitos feridos caídos sem tratamento. O meu filho combateu aqui.
De que lado?Apergunta do soldado foi acompanhada de um sorriso de escárnio.
É oficial do exército de Cromwell.
Pelo vosso aspecto, diria que éreis um Realista. Lamento muito, minha senhora, mas já há mulheres de mais a procurar por estes campos. Tenho ordens para não deixar
passar mais ninguém. Nós nos ocuparemos dos corpos.
Por favor suplicou Margaret. Por favor. Um oficial avançou.
Como se chama o vosso filho, minha senhora?
Capitão Vincent Carew.
O oficial, um tenente de feições vulgares, com trinta e poucos anos de idade, falou com ar grave.
Conheço o capitão Carew. Não o vejo desde que a batalha terminou. Estava encarregado do regimento de Langdale. Encontrava-se naquele terreno húmido à direita. Talvez
devêsseis começar a procurar por ali.
Os campos estavam cobertos de mortos e moribundos. Entre eles moviam-se mulheres de todas as idades, procurando os seus maridos e irmãos, pais e filhos. As armas
quebradas e os cavalos mortos davam provas da ferocidade do recontro. O ar quente e abafado da tarde enchia-se de insectos que zumbiam em volta dos corpos caídos.
Ouviam-se esporádicos gritos de agonia e dor, quando eram encontrados entes queridos. Margaret começou também a procurar. Muitos dos corpos tinham o rosto voltado
para baixo, mas ela não precisava de os voltar. Procurava o cabelo castanho-claro do filho, que se recusara a adoptar o corte em redondo adoptado por muitos dos
componentes do exército de Cromwell, um cabelo espesso, encaracolado, a emoldurar um^ rosto juvenil.
À sua frente, uma jovem de cerca de 19 anos caiu de joelhos e abraçou-se a um soldado morto, que vestia o uniforme dos realistas. Gemendo, embalou-o nos braços.
Edward, meu esposo.
Margaret acariciou o ombro da rapariga, num gesto mudo de simpatia. E então constatou o que tinha acontecido. A espada do soldado morto ainda estava apertada na
sua mão. Tinha pedaços de pano agarrados. A poucos passos dele, jazia um jovem oficial
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Parlamentarista, com o peito aberto. Margaret empalideceu ao aperceber-se, instintivamente, de que o tecido que faltava na sua túnica era o que se agarrava à espada
do soldado. A cabeça envolta em cabelos castanhos. As belas feições patrícias tão semelhantes às de seu pai. Os olhos azul-esverdeados da família Russel, que a fitavam
sem a ver.
Vincent, Vincent. Ajoelhou-se ao lado dele, embalou a cabeça do filho contra os seios, aqueles seios que vinte anos antes os seus lábios infantis haviam procurado...
Lutarei pelo Parlamento. Praza a Deus que quando tiveres idade para combater, tudo esteja resolvido. Até mesmo Carlos deve saber que não poderá ganhar esta guerra
de consciência. A jovem cujo marido tinha morto Vincent começou a gritar:
Não... não... não...
Margaret olhou-a. Era jovem, pensou. Encontraria outro esposo. Eu nunca mais terei outro filho. Com infinita ternura, beijou Vincent nos lábios e na testa e estendeu-o
no terreno pantanoso. O cocheiro ajudá-la-ia a levar o seu corpo para a carruagem. Por momentos deteve-se junto da rapariga que soluçava.
Foi uma pena que a espada de vosso marido não tivesse trespassado o coração do reidisse. Se fosse minha, aí encontraria o seu alvo.
Judith estremeceu. O sol tinha desaparecido e a força do vento aumentava. Notou que se encontrava perto dela um grupo de turistas. Um deles tentou chamar a atenção
do guia:
Em que ano foi executado Carlos I?
Foi decapitado em 30 de Janeiro de 1649 disse Judith. Quatro anos e meio após a batalha de Marton Moor. Depois sorriu. Desculpe. Não queria intrometer-me. Desceu
apressadamente as escadas, ansiosa por se afastar daquele lugar, por regressar ao seu apartamento, acender o fogão de sala, beber um xerês. "É curioso", pensou,
enquanto guiava através do trânsito crescente, "quando comecei a escrever este livro sentia muito mais simpatia pelos Realistas. Achava que os Stuarts, desde Mary,
eram estúpidos ou manhosos, e que Carlos I era ambas as coisas mas não devia ter sido executado. Quanto mais aprofundo esta pesquisa, mais acredito que o Parlamentarista
que assinou a sua sentença de morte tinha razão, e se eu lá estivesse teria assinado com eles..."
No dia seguinte, com o coração aos pulos, Judith subiu o degrau
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baixo que conduzia ao guarda-vento da Conservatória do Registo Civil, St. Catherine's House, em Kingsway. "Deus queira que seja aqui", rezou silenciosamente, recordando-se
das histórias que os seus pais adoptivos lhe tinham contado sobre o modo como as autoridades tinham passado a pente fino os registos da paróquia de Salisbury e afixado
o seu retrato nas comunidades próximas, na esperança de localizar a sua família. Mas se ela tinha nascido em Londres e subido para o comboio... "Oxalá seja verdade",
pensou. "Oxalá seja verdade."
Tinha planeado aquela visita para o dia anterior, mas, ao consultar a sua agenda, verificara que tinha marcado para aquele dia a ida a Worcester e decidira, sem
hesitação, manter o seu programa. Teria sido por recear que fosse mais um beco sem saída, que a recordação do bombardeamento perto da estação, os nomes Sarah e Molly
Marsh ou Marrish não passassem de detalhes que a sua mente hipnotizada tinha caprichosamente produzido?
Ao balcão, teve de esperar numa bicha inesperadamente longa. Pelas conversas que ouvia, constatou que a maior parte das pessoas pretendia localizar antepassados.
Quando finalmente foi atendida, o empregado explicou-lhe que os registos de nascimento estavam guardados na primeira secção, arquivados em grandes volumes com indicação
dos vários anos.
Cada ano está dividido em quatro trimestres e os livros têm as indicações de Março, Junho, Setembro e Dezembro informou o funcionário. Que data pretende?... Quatro
ou catorze de Maio? Então terá de procurar no volume de Junho. Contém os registos de Abril, Maio e Junho.
A sala parecia uma colmeia em actividade. O único local para se sentar era a uma das mesas semelhantes a longos bancos. Judith despiu a capa verde com capuz que
tinha impulsivamente comprado nessa manhã no Harrods.
É encantadora, não é? tinha dito a vendedora. E está perfeita para este tempo estranho. Não é muito pesada, mas com uma camisola por baixo fica bastante quente.
Judith vestia o seu tipo de roupa favorito, uma camisola de malha grossa, calças e botas. Sem prestar atenção aos olhares de admiração que a seguiam, foi buscar
o livro com a indicação de Junho de 1942.
Com grande tristeza, descobriu que, sob os apelidos Marsh e Marrish não havia qualquer Sarah nem mesmo Molly registadas. Seria possível que tudo o que dissera sob
o efeito da hipnose não passasse
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de pura fantasia? Voltou à bicha e acabou por conseguir falar de novo com o funcionário.
É obrigatório registar o nascimento de uma criança dentro de um mês após o seu nascimento?
Exactamente.
Então tenho o livro certo.
Oh, não necessariamente. O ano de 1942 foi um ano de guerra.
É muito possível que o nascimento só tivesse sido registado no trimestre seguinte ou mesmo mais tarde.
Judith voltou para a mesa e começou a percorrer com o dedo as páginas dos Marrish e Marsh, procurando a inicial média S. "Talvez Sarah fosse o nome do meio", pensou.
"Há pessoas que chamam as crianças pelo nome do meio quando o primeiro nome é igual ao da mãe. Mas não havia qualquer Marsh ou Marrish do sexo feminino com essa
inicial. Cada linha continha o apelido e o nome próprio do recém-nascido, o nome de solteira da mãe e a freguesia onde o nascimento tinha ocorrido. E, juntamente
com essas informações, havia ainda o número do volume e da página do índice, necessários a fim de se obterem cópias da certidão de nascimento. "Sem o nome certo,
vou acabar num beco sem saída", pensou.
Só saiu à hora de fechar. Doíam-lhe os ombros de tantas horas que passara debruçada sobre os livros enormes. Ardiam-lhe os olhos e sentia a cabeça a latejar. Não
ia ser fácil. Se ao menos pudesse pedir ajuda a Stephen... Ele poria funcionários a ajudá-la na sua tarefa. Talvez houvesse meios de pesquisar registos que ela desconhecia...
E talvez a sua mente lhe tivesse pregado uma partida e Sarah Marrish ou Marsh não passasse de uma fantasia da sua imaginação.
Havia uma chamada de Stephen no gravador do telefone. Ao ouvir a sua voz, ficou mais animada. Apressou-se a marcar o número particular dele.
Continuas a queimar pestanas? perguntou-lhe quando ele veio ao telefone.
Stephen riu-se.
Posso perguntar-te o mesmo. Como correram as coisas em Worcester? Estás impressionada com a nossa falta de amor paternal?
Ela tinha deixado implícito que voltaria a Worcester naquele dia. Não iria falar-lhe da pesquisa sobre a sua família, decididamente.
Hesitou um pouco e depois disse rapidamente:
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A pesquisa foi um pouco lenta, hoje, mas são ossos do ofício. Stephen, gostaste tanto do nosso fim-de-semana como eu?
Ainda não parei de pensar nele. Pareceu-me um oásis, neste período da minha vida.
No sábado e no domingo em Edge Barton tinham andado a cavalo. Stephen tinha seis cavalos no estábulo. O seu próprio cavalo, Market, um cavalo castrado, negro de
azevinhe, e Juniper, uma égua, eram os seus favoritos. Eram ambos cavalos de salto. Stephen tinha ficado encantado ao ver que Judith o conseguiu acompanhar no passeio
a galope por toda a propriedade, saltando vedações.
Tinhas-me dito que montavas menos mal acusou-a ele.
Costumava montar muito. Mas nos últimos dez anos mal tive tempo para o fazer.
Pois não se nota. Fiquei assustado quando me apercebi de que não te tinha avisado do regato. A menos que o cavaleiro dê por ele, os cavalos têm tendência para borregar.
De certo modo, eu esperava que ele lá estivesse tinha ela respondido.
Depois de regressarem ao estábulo, tinham desmontado e, de braço dado, dirigiram-se para a casa. Longe dos olhares dos moços de estrebaria, Stephen abraçou-a.
Judith, já é definitivo. Dentro de três semanas, a primeira-ministra vai anunciar a sua saída e será escolhido o novo líder do partido.
Tu.
Tenho o apoio dela. Como te avisei, há vários outros a concorrer ao lugar, mas deve correr tudo bem. As próximas semanas até à eleição vão ser frenéticas. Vamos
ter muito pouco tempo para estar juntos. Importas-te?
Claro que não. E se eu conseguir acabar o livro enquanto estás em campanha, tanto melhor. A propósito, Sir Stephen, estou encantada por o ver num fato de montar,
em vez de num fato completo ou trajo de cerimónia. Com um toquezinho de Ronald Colman, acho eu. Adorava ver filmes antigos a meio da noite, e ele era o meu favorito
incondicional. Começo a sentir-me um pouco como os apaixonados de A Noiva Perdida. Smithy e Paula voltaram a encontrar-se quando tinham mais ou menos a nossa idade.
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Judith! a voz de Stephen parecia vir de muito longe.
Stephen, perdoa-me. Estava a pensar em ti e no fim-de-semana e a pensar se, neste momento, estarás parecido com o Ronald Colmi. Lamento desapontar-te, querida, mas
a comparação é injusta para o falecido Mr. Colman. Que é que vais fazer esta noite?
Vou preparar qualquer coisa para comer e sentar-me à máquina. O trabalho de pesquisa é necessário, mas o livro também tem de avançar.
Bem, então acaba-o. Judith, as eleições serão no dia 13 de Março. Agradar-te-ia um discreto casamento em Abril, de preferência em Edge Barton? É o sítio onde me
sinto mais em casa, em todo o mundo. E tenho a impressão de que tu também já captaste uma arte dessa sensação.
É certo.
Quando Judith pousou o auscultador no descanso, apetecia-lhe mais preparar qualquer coisa simples, meter-se na cama e ler um pouco. Mas tinha perdido um dia precioso
a fazer compras no Harrods e na Conservatória do Registo Civil.
Decidindo não ceder a tentações, tomou um duche, vestiu um pijama e um roupão quentes, aqueceu uma lata de sopa e voltou para a secretária. Com satisfação, folheou
o seu trabalho: o primeiro terço era dedicado aos acontecimentos que haviam conduzido à Guerra Civil; a secção média à vida em Inglaterra durante a guerra, às alternâncias
das marés da guerra, às oportunidades desperdiçadas de reconciliação entre o rei e o Parlamento, e à prisão, julgamento e execução de Carlos I. Agora já estava a
ocupar-se do regresso de Carlos II do exílio em França, da sua promessa de liberdade religiosa, "liberdade para usar a consciência", o julgamento dos homens que
haviam assinado a sentença de morte de seu pai.
Carlos regressou a Inglaterra no dia do seu trigésimo aniversário,
29 de Maio de 1660. Judith pegou na caneta para sublinhar as suas notas sobre o número de petições que ele recebera dos Realistas, assediando-o para obtenção de
títulos e das propriedades confiscadas aos partidários de Cromwel.
Sentia a cabeça a latejar. A cicatriz da sua mão direita começou a tomar um tom avermelhado.
Oh, Vincent sussurrou. Era o dia 24 de Setembro de 1660...
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Durante os dezasseis anos que decorreram desde a morte de Vincent, Lady Margaret e Sir John viveram discretamente em Edge Barton. Apenas a execução do rei e a derrota
dos exércitos Realistas tinham proporcionado algum consolo a Lady Margaret. Pelo menos, a causa por que o seu filho morrera tinha alcançado a vitória. Mas no decurso
desses anos, ela e John tinham-se afastado. Perante a sua exacerbada exigência ele tinha assinado com relutância a ordem de execução do rei e nunca se tinha perdoado
por o ter feito.
O exílio teria sido suficiente dizia-lhe tristemente, muitas vezes. E que conseguimos nós em troca? Um Lorde Protector que toma atitudes de realeza e cujas maneiras
puritanas roubaram à Inglaterra a liberdade religiosa e todas as alegrias que outrora conhecíamos.
Amar o marido quase tanto como odiara o rei executado, vera decadência de John que se transformava num velho senil, saber que ele não conseguia perdoar-lhe por o
ter forçado a ser um regicida, e a saudade constante que sentia do filho perdido tinham modificado Margaret. Sabia que se tinha transformado numa mulher amargurada.
O seu mau humor tornou-se famoso e o espelho dizia-lhe que já não se assemelhava à bela e jovem filha do duque de Wakefield, que tinha feito os encantos da Corte
antes de se casar com John Carew. Só quando se sentava junto de John, e o ouvia falar cada vez mais do passado, conseguia recordar como a sua vida tinha sido feliz
outrora.
Carlos II tinha regressado a Inglaterra em Maio. Afirmando que já havia sido derramado sangue de mais, tinha oferecido um perdão geral, excepto para os homens directamente
envolvidos na morte de seupai. Quarenta e um dos cinquenta e nove que tinham assinado a sentença de morte estavam ainda vivos. Carlos prometeu mostrar consideração
especial por aqueles que se entregassem.
Margaret não confiava no rei. Era evidente que restava muito pouco tempo de vida a John. A sua mente começava a falhar. Era frequente chamar por Vincent para que
o acompanhasse num passeio a cavalo. Tinha recomeçado a olhar para Margaret com o profundo amor que por ela mostrara durante tantos anos. Falava em ir à corte e
em planearem o baile anual em Edge Barton. A sua respiração débil e a sua palidez terrosa diziam a Margaret que o coração de John começava a falhar.
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Com a ajuda de um punhado de fiéis servidores, imaginou um plano. John partiria para Londres para se entregar ao rei. A carruagem seria vista a deixar a propriedade
por todos os rendeiros e habitantes da aldeia. E quando escurecesse a carruagem regressaria. Tinham preparado uns aposentos para John nos quartos secretos, que tinham
sido conhecidos em tempos como celas sacerdotais. Ali, no tempo da rainha Isabel I, tinham encontrado refúgio alguns membros do clero Católico, enquanto tentavam
fugir para França. Posteriormente, a carruagem seria levada para um local remoto, perto da estrada que levava a Londres, e ser-lhe-ia dado o aspecto de ter sido
atacada por salteadores, partindo-se do princípio de que os seus ocupantes teriam sido assassinados.
O plano funcionou bem. O cocheiro foi magnificamente pago e posto a caminho das colónias americanas. O criado pessoal de John permaneceu com ele nos aposentos ocultos.
Margaret descia à cozinha de noite e, com a ajuda de Dorcas, uma copeira idosa, preparava comida para eles.
Quando teve notícias do destino dos regicidas que haviam sido enforcados em Charing Cross e depois esquartejados, Margaret compreendeu que tinha tomado a única decisão
possível. John morreria em paz em Edge Barton.
Acompanhado por um contingente de soldados realistas, Simon Hallett chegou na madrugada de 2 de Outubro. Margaret tinha acabado de regressar ao seu quarto. Tinha
passado toda a noite com John, envolvendo o seu corpo frágil nos seus braços, sentindo o frio que precedia a morte. Sabia que ele teria apenas semanas ou mesmo dias
de vida. Apressadamente, enfiou um roupão, atando-o enquanto descia as escadas.
Tinham passado dezoito anos desde a última vez em que vira Simon Hallett. Quando a guerra terminara, ele tinha ido juntar-se ao rei no exílio em França. Agora as
suas feições outrora fracas tinham endurecido. A arrogância substituíra a expressão astuciosa que outrora a repelira.
Lady Margaret, que prazer em voltar a ver-vosdisse sardonicamente, quando ela abriu a grande porta de madeira. Sem esperar pela permissão dela, entrou e olhou em
volta. Edge Barton não tem sido bem cuidado desde a última vez em que aqui estive.
Enquanto estáveis em França, enlanguescendo aos pés do
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vosso real senhor, os ingleses que ficaram tiveram de pagar pesados impostos para compensar os custos da guerra. Margaret esperava que os seus olhos não revelassem
o terror que sentia, Simon Hallett suspeitaria de que a carruagem de John não tinha sido atacada por salteadores? A ordem que deu aos seus soldados veio confirmar
os seus receios.
Revistai cada centímetro desta casa. Tem de haver um esconderijo de padres. Mas tomai cuidado. Não causeis estragos. No estado em que se encontra, já sairá caro
restaurar a propriedade. Sir John está por aí escondido algures. Não voltamos sem ele.
Lady Margaret chamou a si todo o desprezo e desdém que ardiam na sua alma.
Estais muito enganado disse a Simon. Meu marido enfrentar-vos-ia com uma espada, se aqui estivesse. "E fá-lo-ias, John", pensou, "se aqui estivesses. Mas tu habitas
num passado feliz..."
Sala após sala, prosseguiu a pesquisa por toda a casa. Os armários eram abertos, as paredes experimentadas em busca de sons ocos que indicassem passagens secretas.
As horas iam passando. Margaret conservava-se sentada no salão grande, perto do fogão de sala que um criado havia acendido, sem saber se deveria ousar ter esperanças.
Simon percorria toda a casa, numa crescente impaciência. Finalmente regressou ao salão. Dorcas tinha acabado de trazer chá e pão a Margaret. Margaret percebeu que
tudo estava perdido quando viu Simon olhar pensativamente para a idosa mulher. Num salto rápido, que o levou quase ao outro extremo da sala, agarrou a criada pelos
braços e torceu-lhos atrás das costas.
Tu sabes onde ele está disse. Fala imediatamente.
Não sei de que está a falar, senhor, por favor disse Dorcas, tremendo. A sua súplica transformou-se num grito quando Simon lhe torceu de novo os braços e o som terrível
de ossos quebrados ecoou pela sala imensa.
Eu mostro-lhe onde ele está berrou. Mais não. Mais não.
Então mostra. Ainda a torcer-lhe os braços, Simon empurrou a velha soluçante pela grande escadaria acima.
Momentos depois, dois soldados arrastavam o corpo agrilhoado
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de Sir John Carew pelas escadas. Simon Hallett introduziu a espada na bainha.
Aquele valete não ficou vivo para lamentar a sua insolência
disse a Margaret.
Ela ergueu-se, entorpecida, e correu para o marido.
Margaret, não me sinto bem disse John, num tom de desorientação. Tenho muito frio. Pede que acendam o fogão da sala. E manda-me o Vincent. Não vi o rapaz durante
toda a manhã.
Margaret abraçou-o.
Eu sigo-te para Londres. Enquanto os soldados encaminhavam John para fora de casa, ela fitou Simon. Até aqueles loucos conseguem ver o estado em que ele está. E
se quiserem julgar alguém, julguem-me a mim. Fui eu que exigi a meu marido que assinasse a sentença de morte do rei.
Obrigado por essa informação, Lady Margaret. Hallett voltou-se para o oficial em comando. Sois testemunha da sua confissão.
Margaret foi impedida de assistir ao julgamento do marido. Os amigos contavam-lhe o que se estava a passar.
Disseram que ele se estava a fazer passar por louco, mas tinha elaborado um astuto plano de fuga. Foi condenado como regicida, será executado dentro de três dias.
Enforcado em Charing Cross. O seu corpo seria arrastado por cavalos e esquartejado. A sua cabeça exibida na ponta de um poste.
Tenho de falar ao rei disse Margaret. Tenho de fazê-lo compreender.
Os seus primos não tinham compreendido nem lhe tinham perdoado que tomasse o partido dos Parlamentaristas. Mas ela pertencia a uma das grandes famílias de Inglaterra.
Conseguiram uma audiência.
No dia em que John seria executado, Margaret foi levada à presença de Carlos II. Tinha ouvido dizer que o rei declarara aos seus conselheiros que estava farto de
enforcamentos e não queria Que houvesse mais. Iria suplicar-lhe que permitisse a Sir John uma morte em paz em Edge Barton, oferecendo-se para tomar o seu lugar.
Simon Hallett estava de pé, à direita do rei. Divertido, viu Margaret fazer uma profunda vénia.
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Majestade, antes de escutardes Lady Margaret, que sabe ser muito persuasiva, permitis que apresente outras testemunhas?
Estupefacta, Margaret viu entrar o capitão da guarda que tinha prendido John, e ouviu-o declarar ao monarca:
Lady Margaret jurou que tinha exigido a seu marido que assinasse a sentença de morte de Vossa Majestade.
Mas é isso precisamente que venho dizer-vos. Sir John não queria assiná-la. Nunca me perdoou por o ter forçado a fazê-lo exclamou ela.
Majestade interrompeu Simon Hallett. Toda a vida Sir John Carew, a sua carreira militar, os seus anos no Parlamento, demonstram que é um homem de convicções fortes,
não um homem que se deixe levar por uma mulher importuna. Não é para o desculpar que digo isto, mas para vos fazer compreender que, apesar da vossa natureza generosa
e misericordiosa, estais perante uma mulher que é tão culpada como se ela própria tivesse assinado aquele imperdoável documento. E tenho mais uma pessoa que vos
suplico que atendeis... Lady Elizabeth Sethbert.
Entrou uma mulher de cerca de 30 anos. Por que lhe parecia reconhecê-la?pensou Margaret. Em breve compreendia a razão. Vincent tinha sido morto pelo marido de Lady
Elizabeth.
Nunca me esquecerei, Majestade disse Lady Elizabeth, olhando para Margaret com gelado desprezo. Quando eu tinha nos meus braços o corpo do meu marido, feliz por
ele ter dado a sua vida por Vossa Majestade, esta mulher disse que lamentava que a sua espada não tivesse trespassado o coração do rei. E disse mesmo: "Se ela fosse
minha, aí teria encontrado o seu alvo." Quando ela partiu, perguntei o seu nome a um oficial Parlamentarista, visto que era, sem dúvida, uma dama de qualidade. Nunca
esquecerei o horror desse momento e já contei este caso a muitas pessoas, razão por que Simon Hallett veio a saber dele.
O rei voltou o olhar para Margaret. Ela tinha ouvido dizer que ele se considerava um bom observador de fisionomias e sabia reconhecer o carácter das pessoas pelo
estudo das suas feições. Disse:
Majestade, estou aqui para reconhecera minha culpa. Fazei de mim o que quiserdes, mas poupai um velho doente de corpo e de espírito.
Sir John Carew é suficientemente astuto para se fingir louco, Majestade disse Hallett. E se, com o vosso gracioso
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perdão, lhe for permitido regressar a Edge Barton, em breve será miraculosamente restituído à saúde. E depois ele e sua mulher continuarão a conspirar com os seus
amigos revolucionários, pessoas perigosas que ocupam altas posições. Esta canalha planeia para Vossa Majestade o mesmo destino que sofreu o nosso falecido rei, vosso
pai.
Estupefacta, Margaret olhou para Simon. Os seus primos haviam-na avisado de que, sob o seu exterior sorridente, Carlos II era perseguido pela premonição de que estava
destinado a experimentar o mesmo destino do pai.
Mentis!gritou Margaret a Simon. Mentis! Tentou precipitar-se para junto do rei. Majestade, o meu marido,poupai o meu marido.
Simon Hallett atirou-se sobre ela, fazendo-a cair no chão, cobrindo o corpo dela com o seu. Ela viu o brilho de uma adaga na sua mão. Pensando que ele tencionava
agredi-la, Margaret tentou tirar-lha. A adaga fez-lhe um golpe profundo na base do polegar; depois Simon introduziu-lhe a arma na mão à força, enquanto a punha de
pé.
íeis assassinar o rei! gritou Simon. Vede, Majestade, ela trouxe uma arma para esta audiência.
Margaret compreendeu que era inútil protestar. Escorria-lhe sangue da ferida, enquanto lhe atavam as mãos e era arrastada para longe da real presença. Simon seguiu-a.
Quero dar uma palavra a Lady Margaret disse aos guardas. Afastai-vos. Sussurrou-lhe ao ouvido: Neste momento Sir John está a balouçar na ponta de uma corda em Charing
Cross e as suas entranhas estão a ser-lhe arrancadas. O rei já me fez baronote. Como recompensa por o ter salvo do vosso louco ataque, poderei pedir, e ser-me-á
concedido, Edge Barton.
Durante o fim-de-semana, Reza Patel tentara repetidas vezes falar ao telefone com Judith. Quando foi atendido pelo gravador, não quis deixar uma mensagem. Pretendia
mostrar-se despreocupado e sugerir-lhe que passasse pelo seu consultório para fazer uma análise ou medir a tensão arterial, a fim de ter a certeza de que a droga
hipnótica não a tinha afectado fisicamente.
Na segunda-feira ela também não estava. Na terça-feira à tarde, ele e Rebecca ficaram no consultório depois das consultas e voltaram a estudar a gravação da hipnose
de Judith.
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Sucedeu qualquer coisa a nível psíquico disse Patel a Rebecca. Vê--se bem. Olhe para a cara dela. A raiva, o ódio que revela. Que género de pessoa terá Judith trazido
consigo? E de onde? Se a minha teoria estiver correcta, o espírito, a essência da grã-duquesa Anastásia invadiram totalmente Anna Anderson. Irá suceder o mesmo a
Judith Chase?
Judith Chase é uma mulher muito forte recordou-lhe Rebecca. Por isso precisou de receber tanta droga para regressar à infância. Sabes bem que não podes ter a certeza
de que a experiência, fosse ela qual fosse, não tivesse terminado quando a acordaste. Ela não se recordava dela. Não será presunção estares tão certo de que demonstraste
a Síndroma de Anastásia?
Quem me dera estar errado, mas não estou.
Então não poderás hipnotizar de novo Judith, fazê-la regressar com a essência que transportou e ordenar-lhe que a abandone lá?
Não sei para onde deveria mandá-la. Patel abanou a cabeça. Vou tentar telefonar-lhe de novo.
Desta vez alguém levantou o auscultador. O homem fez um sinal a Rebecca, informando-a de que Judith estava a responder. Inclinando-se sobre ele, Rebecca carregou
no botão do gravador.
Está?
Rebecca e Patel entreolharam-se, surpreendidos. Era a voz de Judith, e contudo não era. O timbre era diferente, o tom abrupto e altivo.
Miss Chase? Judith Chase?
Judith não está aqui.
O nome dela sussurrou Rebecca.
Importa-se de me dizer o seu nome, minha senhora? É amiga de Miss Chase?
Amiga? Nem pensar. A ligação foi interrompida. Patel enterrou a cabeça entre as mãos.
Rebecca, que fiz eu? Judith tem duas personalidades. A nova tem consciência da existência de Judith. E já é a dominante.
Stephen Hallett só chegou a casa à meia-noite. Tinha passado o dia em reuniões. Já corriam por toda a parte boatos da decisão da primeira-ministra. Não se tinha
enganado ao pensar que haveria quem
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testasse a sua eleição para chefe do partido. Hawkins, um jovem ministro, era dos mais recalcitrantes.
Embora não negue os métodos óbvios de Stephen Hallett, devo avisar-vos, a todos e a cada um de vós, que o antigo escândalo virá
a lume. Osjornais vão fazer dele gato-sapato. Não se esqueçam de que Stephen esteve à beira de ser condenado.
E fui absolvido ripostou Stephen. Tinha ganho a escaramuça Ganharia a eleição e seria chefe do partido. "Mas, santo Deus", pensou, enquanto se despia, fatigado,
"que peso ter de viver à sombra do delito de outro homem." Quando se meteu na cama, olhou para o relógio. Meia-noite. Era tarde de mais para telefonar a Judith.
Fechou os olhos. Graças a Deus ela era como era. Graças a Deus ela compreendia o motivo por que não podia permitir-lhe que iniciasse a busca da sua família. Sabia
que estava a exigir demasiado dela, ao pedir-lhe isso. Compensá-la-ia durante o resto da sua vida, prometeu a si próprio, quando o sono começava a embalá-lo.
A cama de quatro colunas, que pertencia à sua família havia trezentos anos, gemeu quando ele se instalou melhor. Stephen pensou nas alegrias de partilhar aquele
leito com Judith, no orgulho que sentiria quando ela o acompanhasse, como sua mulher, às cerimónias oficiais. O seu último pensamento, antes de adormecer, foi que
o melhor de tudo seria a sua vida particular em conjunto, no seu adorado refúgio, Edge Barton...
À meia-noite e dez, Judith ergueu o olhar, viu as horas e ficou sobressaltada ao constatar que a sopa na bandeja ao seu lado estava fria e que ela própria estava
enregelada até aos ossos. "A concentração é boa, mas isto é uma loucura", pensou, enquanto se dirigia para a cama. Despindo o roupão, puxou com prazer os cobertores
para cima, aconchegando-os em volta do pescoço. Aquela maldita cicatriz na sua mão. Estava muito vermelha. Enquanto a observava, a cicatriz empalideceu. "Deve ser
sinal de velhice, quando as cicatrizes antigas começam a reaparecer", pensou, enquanto estendia a mão para o candeeiro e apagava a luz.
Fechou os olhos e começou a pensar no desejo que Stephen manifestara de se casar em Abril. Faltavam umas dez a onze semanas.
"Vou acabar aquele maldito livro e depois começo a fazer compras",
prometeu a si mesma. Apercebeu-se de que tinha ficado encantada
Por Stephen ter sugerido que se casassem em Edge Barton. Durante
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as últimas semanas, as recordações dos seus anos de infância com os seus pais adoptivos, todos os anos que vivera em Washington com Kenneth, tinham começado a desvanecer-se
cada vez mais. Era como se a sua vida tivesse principiado na noite em que conhecera Stephen como se todas as fibras do seu ser reconhecessem que a Inglaterra era
a sua terra natal. Tinha 46 anos, Stephen 54. Na família dele vivia-se muito. "Ainda podemos ter uns bons vinte e cinco anos juntos" pensou. Stephen. Aquele aspecto
exterior formal e um pouco impressionante, que ocultava um homem solitário e, mesmo, por incrível que parecesse, bastante inseguro. Conhecer o que se passara com
o sogro ajudava-a a entender muita coisa...
"Preciso de conhecer o meu verdadeiro nome, Stephen", pensou, ao fechar os olhos. "A menos que eu tivesse inventado tudo, posso estar perto de o saber, neste momento.
Se é verdade que fiquei separada da minha mãe durante um ataque aéreo, hei-de conseguir saber o resto da história. Provavelmente foram ambas mortas naquele dia.
Gostaria de poder depor flores nas sepulturas delas, mas prometo-te solenemente que não vou desenterrar quaisquer primos obscuros que possam embaraçar-te." Adormeceu
com o pensamento feliz de que adoraria a sua vida quando fosse Lady Hallett.
Judith esteve a trabalhar durante toda a manhã seguinte, observando, com intensa satisfação, o contínuo crescimento da pilha de folhas que se acumulava junto da
máquina de escrever. Todos os seus amigos escritores lhe afirmavam que deveria comprar um computador. "Quando acabar este trabalho", decidiu, "faço um período de
descanso. Nessa altura hei-de aprender a usar um computador. Não deve ser assim tão difícil habituar-me a um. Kenneth chamava-me A Senhora Habilidosa... dizia que
eu deveria ter sido engenheira. Mas", reconheceu, enquanto se espreguiçava vigorosamente, "viajar por toda a parte para fazer pesquisas não dá muito jeito para procurar
uma impressora."
Quando ela e Stephen estivessem casados, havia de arranjar uma. Ele tinha mostrado tanto receio de que ela não se sentisse feliz quando tivesse que assistir a actos
oficiais junto dele, ou não se sentisse suficientemente ocupada quando ficasse sozinha. Pensava com interesse em ambos os aspectos da sua vida. Os dez anos que tinha
passado casada com Kenneth tinham sido maravilhosos mas excessivamente agitados, pois ambos estavam a estabelecer as suas carreiras. E o terrrível desapontamento
de nunca terem tido filhos. Depois aqueles dez anos de viuvez, em que o trabalho tinha sido o seu
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objectivo e a sua salvação. "Passei sempre a vida a correr?", perguntou a si própria. "Nunca estive em paz até agora?"
O sol entrava pela janela. Oh, estar em Inglaterra, agora que lá é Abril- Ou janeiro, ou qualquer outro mês, em Inglaterra todos a satisfaziam plenamente. Tinha
estado durante toda a manhã a escrever sobre o período da restauração em que, como anotara Samuel Pepys no seu diário, se tinham acendido muitas fogueiras e os sinos
repicavam alegremente. Faziam-se brindes à saúde do rei e havia de novo postes enfeitados nas aldeias. As cores garridas substituíam o cinzento triste dos Puritanos,
o rei e a rainha passeavam a cavalo em Hyde Park.
À uma hora, Judith decidiu sair e dar um passeio pela área em redor do Palácio de Whithall, para tentar experimentar a sensação de alívio que sentiam então as pessoas
por a monarquia ter sido restaurada sem uma nova guerra civil. Desejava especialmente visitar a estátua do Rei Carlos I. Sendo a mais antiga e a mais bela estátua
equestre de Londres, tinha sido entregue a um negociante de sucatas, com instruções para a destruir durante os anos de governo de Cromwell. Reconhecendo o seu grande
valor e sendo fiel ao falecido rei, o negociante de sucatas não a tinha destruído, conservando-a escondida até ao regresso de Carlos II. Foi então encomendado um
magnífico pedestal e a estátua foi colocada em Trafalgar Square, voltada para Whitehall, para o local onde Carlos tinha sido executado.
Tinha estado toda a manhã a trabalhar em roupão. Tomou um duche rápido, aplicou baton nos lábios e pintou os olhos, e depois secou o cabelo com uma toalha, reparando
que estava excessivamente longo. Não que tivesse mau aspecto, confessou a si própria enquanto se observava no espelho. "Mas, quase com 47 anos, será melhor tomar
um aspecto mais sofisticado." Depois ergueu as sobrancelhas. "Não pareces ter 47, minha filha." A imagem que o espelho lhe devolveu era tranquilizadora. Cabelos
castanhos-escuros com reflexos dourados. Quando era pequena, tinha sido loura. Uma pele de inglesa. O rosto oval, os grandes olhos azuis. "Gostava de saber se me
pareço com a minha verdadeira mãe", pensou.
Vestiu-se rapidamente, envergando calças cinzento-antracite, uma camisola branca de gola alta e botas. "O meu uniforme", pensou.
Não poderei andar assim vestida na cidade, quando estiver casada com Stephen." Deteve-se um pouco, para se decidir entre a gabardina Burberry e a capa nova. A capa.
Pegou no saco com os blocos de notas e o material de consulta de que poderia necessitar e saiu.
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Gracioso e calmo, ele cavalga
Passando pelo seu Whithall
Apenas sopra o vento nocturno
Não há multidões, nem rebeldes, nem clamores.
Judith recordou-se destes versos do poema de Lionel Johnson quando se encontrava em Trafalgar Square, observando a magnífíca estátua do rei executado. A sua figura
imponente, com os cabelos caídos sobre os ombros, a barba bem aparada, a cabeça erguida e o seu porte principesco possuíam, na verdade, uma expressão pacífica. O
garanhão que montava parecia escavar o chão. O casco direito estava erguido, como se se encontrasse ansioso por começar a galopar.
Contudo, Carlos I foi extremamente odiado, pensou Judith. Como seria hoje o mundo se ele tivesse conseguido destruir o Parlamento? Atrás de si, ouviu um dos inevitáveis
grupos de turistas, que se aproximava. O guia esperou até todos se encontrarem reunidos à sua volta, num semicírculo, e começou a sua exibição:
Aquilo a que actualmente chamamos Trafalgar Square fazia originalmente parte de Charing Cross explicou. Muito convenientemente, esta estátua foi erguida no preciso
local onde os regicidas foram executados, uma subtil forma de vingança para o rei morto, não lhes parece? As execuções não constituíram mortes agradáveis. Os condenados
foram enforcados, arrastados por cavalos e esquartejados, e a alguns arrancaram-lhes as entranhas enquanto ainda se encontravam vivos,
John a morrer assim... Pobre homem, doente, velho, desorientado...
O rei foi decapitado no dia 30 de Janeiro. Se aqui voltarem na próxima terça-feira poderão ver a coroa que a Royal Stuart Society coloca na base do pedestal. Tem
sido uma tradição desde que a estátua aqui foi colocada. Por vezes, os turistas e as crianças das escolas, também aqui colocam as suas próprias coroas. É uma cerimónia
muito comovente, na verdade.
A estátua devia ser arrasada e os tolos que aqui vêm colocar coroas castigados.
O guia voltou-se para Judith: Perdão, minha senhora. Disse alguma coisa?
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Lady Margaret não respondeu. Passou o saco com os livros para a mão esquerda e, com a mão direita, onde brilhava a cicatriz em forma de crescente, colocou os óculos
escuros e puxou o capuz para a frente, de modo a ocultar-lhe parte do rosto. Durante algum tempo, caminhou sem destino, descendo o Victoria Embankment, ao longo
do Tamisa, até chegar junto do Big Ben e das Casas do Parlamento. Aí se deteve, olhando para os edifícios, sem prestar atenção às pessoas que por ela passavam e
que, por vezes, a olhavam com curiosidade.
Soavam-lhe aos ouvidos as suas próprias palavras.
A estátua devia ser arrasada e os tolos que aqui colocam coroas castigados... Mas como, John? perguntou a si mesma. Como hei-de proceder?
Indecisa, começou a descer a Bridge Street, atravessou a Parllament Street, voltou à direita e encontrou-se na Downing Street. As casas no extremo do quarteirão
estavam rodeadas por polícias. Uma delas era o número 10 de Downing Street. A residência da primeira-ministra. A futura residência de Stephen Hallett, descendente
de Simon Hallett. Margaret sorriu amargamente. "Levou tanto tempo", pensou. "Mas finalmente aqui estou para fazer justiça por John e por mim mesma."
A estátua em primeiro lugar, decidiu. No dia 30 de Janeiro viria com os outros, colocar coroas. Mas a dela conteria um explosivo oculto entre as folhas e as flores.
Recordava-se da pólvora que, durante a Guerra Civil, tinha destruído tantas casas. Que explosivos se usariam agora? Dois quarteirões mais adiante, passou por umas
obras e deteve-se a observar um jovem operário, musculoso e coberto de suor, a balançar um malho. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, fazendo-a estremecer. O machado
a ser erguido e a descer velozmente. Aquele horrível momento de agonia, a luta para permanecer viva, sabendo sempre, de certo modo, que voltaria. Reconhecendo que
o momento tinha chegado quando Judith Chase se precipitara para a salvar.
O operário musculoso tinha visto que ela o olhava. Saiu-lhe dos lábios um assobio penetrante. Ela sorriu, de forma sedutora, e fez-lhe sinal para que viesse ao seu
encontro. Quando se separaram, ela tinha-lhe prometido que se encontraria com ele, no seu quarto, às seis horas.
Dali partiu para a Biblioteca Central, junto de Leicester
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Square, onde uma funcionária delicada lhe colocou em frente os livros que ia pedindo, murmurando os títulos à medida que os ia depositando: A Conspiração da Pólvora,
Autoridade e Conflito no Século XVII, A História dos Explosivos.
Nessa noite, nos braços suados do operário, entre carícias e lisonjas, Margaret confiou-lhe que precisava de deitar abaixo uma cocheira prestes a ruir, na sua propriedade
rural, e não tinha dinheiro para pagar a uma equipa de demolição. Rob era \ tão esperto. Não poderia ajudá-la a conseguir parte do material \ de que necessitava
e explicar-lhe como deveria servir-se dele? Pagar-lhe-ia bem.
A boca de Rob esmagou-lhe os lábios.
És uma mulher dinamite. Vem ter comigo aqui amanhã à noite, minha filha. O meu irmão vem de Gales. Trabalha numa pedreira. É fácil para ele obter aquilo de que tu
precisas.
Havia duas chamadas de Stephen no gravador do telefone, quando Judith chegou ao apartamento, às dez horas da noite. Quando às nove e meia tinha entrado num pub no
Soho tinha ficado chocada ao ver que horas eram. Aterrorizada, apercebeu-se de que a última recordação que tinha era do momento em que se encontrava junto da estátua
de Carlos I. Nessa altura eram cerca de duas horas. Que teria feito durante as horas intermédias? Tinha tencionado ir novamente investigar os registos de nascimento.
"Provavelmente foi isso que eu fiz", pensou. "Tendo falhado de novo, talvez tenha tido qualquer espécie de reacção psicológica." Mas não conseguia encontrar resposta
para esta dúvida.
Com a testa franzida de preocupação, escutou o pedido urgente de Stephen de que lhe telefonasse. Mas primeiro tomaria um duche, decidiu. O seu corpo estava dorido
e sentia-se vagamente suja. Tirou a capa. Que a teria levado a comprá-la? Apercebia-se agora de que não se sentia confortável com ela vestida. Guardou-a no fundo
do roupeiro, acariciou a Burberry suavemente.
És mais o meu estilo disse em voz alta.
Deixou que a água do chuveiro lhe lavasse o rosto e os cabelos e todo o corpo. Água quente, o seu sabonete e o seu champô deliciosamente perfumados, água fria para
contrastar. Por qualquer motivo inexplicável, ocorreu-lhe uma citação de Macbeth: Poderá todo o vasto oceano de Neptuno lavar o sangue das minhas mãos? Judith perguntou
a si mesma o que a teria feito pensar naquilo. Evidentemente,
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pensou enquanto se enxugava, aquela maldita cicatriz estava novamente avermelhada.
Com o roupão felpudo em volta da cintura estreita, uma toalha a
envolver os cabelos molhados, os pés introduzidos nuns chinelos confortáveis, Judith dirigiu-se ao telefone e ligou para Stephen. A voz dele revelou-lhe imediatamente
que tinha estado a dormir.
Querido, perdoa-me disse-lhe.
Ele interrompeu-a.
Se acordar durante a noite, sentir-me-ei muito melhor sabendo que já falei contigo. Que andaste tu a fazer, querida? A Fiona telefonou-me. Esperava que lá fosses
esta noite. Aconteceu alguma coisa?
Santo Deus, Stephen, esqueci-me completamente. Judith mordeu a língua, nervosamente.O gravador ficou a receber as chamadas e eu só agora estive a passá-las.
Stephen riu-se.
Uma mulher muito ocupada. Mas é melhor que te entendas com a Fiona, querida. Ela já estava zangada por não ter podido exibir-me como potencial chefe do partido.
Talvez seja melhor deixá-la oferecer-nos uma festa de noivado, depois das eleições. Devemos-lhe muito.
Devo-lhe o resto da minha vida disse Judith em voz baixa. Vou telefonar-lhe, logo de manhã. Boa noite, Stephen. Adoro-te.
Boa noite, Lady Hallett. Adoro-te.
"Desprezo os mentirosos", pensou Judith, ao pousar o auscultador, "e acabo de mentir." No dia seguinte iria consultar o Dr. Patel. Não existia qualquer Sarah Marrish
ou Marsh nos registos de Maio de 1942. Teria ela inventado tudo o que lhe havia dito? E, se assim fosse, estaria a sua mente a pregar-lhe novas partidas? Por que
teria perdido sete horas naquele dia?
Às dez horas da manhã seguinte, a recepcionista do Dr. Reza Patel violou as suas ordens de reter as chamadas telefónicas e ligou para o seu consultório, dizendo-lhe
que Miss Chase estava ao telefone e se tratava de uma emergência. Ele e Rebecca tinham discutido de novo o perigo potencial da situação de Judith. Patel premiu os
botões e Som alto e gravação do telefone. Avidamente, ele e Rebecca ficaram à escuta, enquanto Judith lhes falava do lapso de sete horas nas suas recordações.
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Acho que deveria vir cá imediatamente disse-lhe Patel. -^ Como se deve recordar, assinou uma autorização que me permitia gravar a sua consulta. Gostaria que visse
essa gravação. Talvez isso a ajude. Não tenho motivos para pensar que as suas recordações de infância não sejam exactas. E não fique muito preocupada com aquilo
que considera uma falha de memória. É uma mulher dotada de uma tremenda capacidade de concentração. Isso tornou-se evidente quando iniciei a hipnose. A própria Judith
me disse que chega a trabalhar durante horas, sem se aperceber de que elas passaram.
Isso é verdade disse Judith. Mas uma coisa é estar à secretária quando isso acontece e outra muito diferente é estar em Trafalgar Square às duas da tarde e encontrar-me
num pub do Soho às nove e meia da noite. Vou já para o seu consultório.
Naquele dia envergava calças beges, botas castanhas, uma camisola bege de cachemira, com uma écharpe castanha, bege e amarela presa sobre o ombro. Achou a Burberry
quente e confortavelmente familiar, quando a abotoou e afivelou o cinto, voltando a lamentar as trezentas libras que gastara na capa.
No consultório de Patel, uma Rebecca estupefacta perguntava:
Tenciona mesmo mostrar-lhe a gravação?
Só até à altura da regressão dela à infância. Rebecca, ela já está a fazer perguntas. É preciso que se concentre naquele aspecto da sessão e não no que poderá ter-lhe
acontecido. Ainda não sabemos como poderemos ajudá-la. E não saberemos, a menos que consigamos perceber o que se está a passar e quem ela está a albergar. Depressa,
faz um duplicado da fita até ao ponto em que eu comecei a dizer-lhe que acordasse.
No táxi, a caminho do consultório de Patel, Judith apercebeu-se de que estava profundamente preocupada. Ele tinha-lhe dado uma droga. Recordava-se de uma ocasião
em que tinha feito uma série jornalística sobre o LSD e os seus efeitos. Tentou recordar-se das consequências do uso do LSD. Alucinações. Perda de memória. Perda
de consciência. "Oh, meu Deus", pensou, "que fiz eu?"
Mas quando, pouco tempo depois, observou a gravação no monitor de vídeo, sentiu-se profundamente impressionada e comovida com o que estava a ver. As hábeis perguntas
de Patel. A sua passagem dos aniversários, o seu casamento com Kenneth, os seus pais adoptivos. O modo como Patel a tinha feito recuar à primeira infância. A sua
relutância
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em falar do bombardeamento. Sentia as lágrimas a arder nos olhos, quando, sob o efeito da hipnose, chorava pela mãe e pela irmã. E então apercebeu-se de uma coisa.
Os nomes. Molly. Marrish. Parem a fita, por favor pediu.
claro. Rebecca premiu o botão de pausa no controlo remoto
que segurava na mão.
Pode andar para trás? Sabem, recordei-me que tinha uma dificuldade na fala, quando era pequena. Disseram-me que eu tinha grande dificuldade em pronunciar os pês.
Na gravação, não estou certa de ter ouvido o nome da minha irmã como "Molly" ou "Polly". E suba o som na altura em que eu digo "Marrish" ou "Marsh". Não está muito
claro, pois não?
Observaram atentamente.
É possível disse Patel. Talvez tivesse tentado dizer "Parrish".
Judith pôs-se de pé.
Pelo menos é mais um caminho para as minhas pesquisas... quando acabar os Marsh e Marrish, e com os March e Markey e Markham e Marmac, e sabe Deus quantos outros
mais. Doutor, seja franco. Há alguma coisa que eu deva saber acerca deste tratamento? Por que motivo não me recordo de todas aquelas horas de ontem?
Sentiu que Patel pesava as palavras. Sentou-se à sua secretária maciça, brincando com um corta papéis. Olhando para o canto do consultório, ela reparou na mesa com
o espelho por cima. Estava a dirigir-se para essa mesa quando tivera a visão de uma criança.
Reza Patel viu Judith olhar na direcção da mesa e percebeu exactamente o que ela estava a pensar. Aliviado, apercebeu-se de que tinha descoberto uma maneira de lhe
responder.
Veio ter comigo na semana passada, porque estava a sofrer de repetidas alucinações a que eu preferiria chamar de afluxos de memória. Esse processo continua, talvez
de uma maneira ligeiramente diferente. Ontem dirigiu-se à Conservatória do registo de nascimentos. Já aí tinha sofrido um intenso desapontamento. Sugiro que tinha
provavelmente entrado lá e feito uma segunda investigação sem resultados positivos. Creio que tenha sido esse o motivo por que o cérebro fez aquilo que lhe tinha
sido ensinado que fizesse. Bloqueou a informação. Judith, talvez tenha captado algo significativo, hoje. Talvez o nome que estivesse a tentar pronunciar fosse Parrish
em vez de Marrish, ou um nome semelhante a Parrish. Sentiu-se frustrada
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por não conseguir encontrar rapidamente a informação que pretende. Peço-lhe que dê a si mesma mais uma oportunidade. Veja se tem consciência de algo invulgar, um
pensamento que cruze a sua mente e que lhe pareça estranho. A mente possui estranhas maneiras de nos proporcionar pistas quando sondamos o subconsciente. Fazia sentido,
mas Judith repetiu a sua pergunta:
Então não houve coisa alguma em relação com o tratamento, com o medicamento que utilizou, que pudesse ter provocado este tipo de reacção agora?
Rebecca pôs-se a olhar para o dispositivo de controlo remoto que tinha na mão. Reza Patel ergueu os olhos para Judith e fitou-a com firmeza.
De maneira nenhuma.
Quando Judith saiu, Patel perguntou a Rebecca, desesperado:
Que havia de dizer-lhe?
A verdade disse Rebecca calmamente.
De que serviria aterrorizá-la?
Penso que estarias apenas a avisá-la.
Judith regressou imediatamente ao seu apartamento. Não queria correr o risco de voltar à Conservatória do registo de nascimentos naquele dia. Em vez disso, instalou-se
à secretária rodeada de livros de notas abertos, diante da velha máquina de escrever que conhecia tão bem o toque dos seus dedos. Trabalhou sem parar até ao princípio
da tarde, experimentando o^conforto e a segurança de saber que o livro estava a avançar bem. Às duas horas, preparou apressadamente uma sanduíche e um bule de chá
e levou a bandeja para o escritório. Numa longa tarde de trabalho poderia completar o capítulo seguinte. Mais tarde iria jantar com Stephen.
Às quatro e meia começou a passar a limpo, à máquina, as suas notas sobre os julgamentos dos regicidas. "Alguns declaravam que os seus julgamentos eram justos, que
recebiam mais consideração que a que haviam prestado ao seu rei. De pé, no tribunal apinhado, sob os apupos da multidão Realista, proclamaram firmemente o seu compromisso
de consciência, a sua confiança em que o seu Deus os julgaria misericordiosamente."
Afastou os dedos do teclado. A cicatriz da sua mão começou a latejar. Judith afastou a cadeira e olhou para o relógio. Tinha marcado um encontro, não tinha?
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Lady Margaret dirigiu-se apressadamente ao roupeiro e pegou na capa verde. Julgavas que a podias esconder, Judith?, troçou. Prendeu-a no pescoço, mas, antes de levantar
o capuz, ergueu os braços e prendeu o cabelo num rolo sobre a nuca. Agarrando na mala excessivamente grande de Judith, colocou os óculos escuros e saiu do apartamento.
Rob aguardava-a no seu quarto. Havia duas latas de cerveja sobre o peitoril da janela.
Vens atrasada disse-lhe. Lady Margaret sorriu timidamente:
Não foi de propósito. Nem sempre é fácil livrarmo-nos.
Onde é que tu moras, amor? perguntou ele, desabotoando a capa e envolvendo-a nos braços.
Em Devon. Trouxeste aquilo que prometeste?
Temos muito tempo para isso.
Uma hora depois, deitada ao lado dele sobre a cama desfeita, Margaret escutava com extasiada admiração as explicações de Rob:
Agora já sabes que podes ir pelos ares juntamente com esse material, de modo que tens de prestar atenção ao que eu te vou explicar. Trouxe-te material suficiente
para fazer ir pelos ares o Palácio de Buckingham, mas devo confessar-te que gosto de ti. À mesma hora, amanhã à noite?
Claro que sim. E já te prometi pagar-te o incómodo. Duzentas libras chegam?
Às nove e dez, Judith ergueu o olhar. "Meu Deus", pensou, "o carro deve estar quase a chegar." Correu para o quarto, a fim de trocar de roupa, e depois decidiu tomar
um duche. "É porque estou excessivamente rígida, de estar tanto tempo sentada", pensou. Não conseguia compreender por que motivo se sentia novamente um pouco suja.
Na segunda-feira, dia 30 de Janeiro, o dia estava frio e desanuviado, o sol brilhava ofuscantemente, o ar estava seco e perfumado. Os professores vigiavam ansiosamente
as torrentes de crianças em idade escolar que se reuniam por detrás dos alunos que haviam sido escolhidos para colocar a coroa junto da estátua de Carlos I.
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Já aí se encontravam empilhadas outras oferendas florais. Tiravam-se fotografias e os grupos escoltados de turistas escutavam atentamente a descrição do drama da
vida e morte do rei executado.
Lady Margaret já tinha colocado a sua coroa. Agora escutava cinicamente uma criança de 12 anos, de óculos, timidamente orgulhosa que começava a recitar o poema de
Lionel Johnson.
"Junto à estátua do rei Carlos em Charing Cross", anunciou o rapaz.
Havia um polícia por perto, sorrindo ao ver os rostos sérios das crianças. Os dois que seguravam a coroa mostravam-se obviamente conscientes da sua importância.
Como eles estão lavados e a brilhar, pensou o polícia. Educadas crianças britânicas, a homenagear o seu monarca injustamente tratado. O guarda olhou para as coroas
já empilhadas contra o pedestal da estátua. Os seus olhos apertaram-se. Fumo. Filtrava-se fumo lentamente através da pilha de flores.
Para trás! gritou. Todos para trás! Precipitando-se para eles, correu para as crianças. Voltem-se e fujam, por favor. Todos para trás. Assustadas e desorientadas,
as crianças começaram a afastar-se e o círculo em volta da estátua alargou-se. Para trás, estão a ouvir-me bem?trovejou o polícia. Afastem-se daqui!
Agora também os turistas, pressentindo o perigo, começavam a fugir.
Gelada de raiva, Margaret viu o polícia afastar as coroas de flores, pegar no saco de papel que ela tinha colocado por debaixo destas e atirá-lo para a área desimpedida.
Guinchos e gritos de susto misturaram-se com a explosão, enquanto alguns estilhaços caíam sobre a multidão.
Ao fugir, Margaret apercebeu-se de que um dos turistas estava a registar toda a cena com a câmara de vídeo. Puxando mais o capuz para a cara, desapareceu no meio
da multidão que corria a tratar das crianças feridas. No Big-Ben batia meio-dia.
Estava a perder tempo de mais a andar, decidiu Judith, ao atravessar a porta giratória da Conservatória do Registo Civil, ao meio-dia e meia. Era certo que estava
a trabalhar desde a madrugada à secretária. Mas não deveria ter levado perto de uma hora a chegar ali,
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depois de sair do seu apartamento. Essa hora teria sido melhor aproveitada a consultar os registos.
Estava a tornar-se cada vez mais difícil esconder de Stephen o que andava a fazer. O interesse dele pelas suas investigações tinha-a encantado, a princípio. Agora
que estava a passar regularmente várias horas na Conservatória e na Biblioteca, a examinar registos dos bombardeamentos de 1942 em Londres, sentia que as suas respostas
eram excessivamente vagas, quando Stephen a interrogava sobre as suas actividades. "E estou a ficar muito descuidada", pensou. Não sabia como poderia ter perdido
duzentas libras da sua carteira.
Enquanto percorria o caminho já bem conhecido, entre as estantes da Conservatória, pensou: "E mais uma coisa, Santo Deusnunca mais me lembrei de telefonar à Fiona.
Quando fizer um intervalo, telefono-lhe daqui mesmo." Evitou cuidadosamente começar a procurar nos livros do P até estar convencida de que não existia qualquer registo
de nascimento com qualquer derivação possível do nome Marrish que lhe pudesse ter escapado, no mês de Maio, em qualquer volume de 1942.
Uma senhora idosa arranjou-lhe amavelmente espaço à mesa cheia de gente.
Absolutamente pavoroso, não acha? perguntou. Perante o olhar admirado de Judith, acrescentou:Há meia hora, alguém tentou fazer ir pelos ares a estátua de Carlos
I. Há dezenas de crianças com golpes e equimoses. E teriam morrido todas se não fosse um polícia de reacções rápidas que viu fumo e percebeu que havia qualquer coisa.
Uma vergonha, não acha? Estes terroristas merecem a pena de morte, e deixe-me que lhe diga, o Parlamento devia tratar disso.
Chocada, Judith pediu pormenores.
Ainda lá estive há dias disse. O guia falou da cerimónia da colocação das coroas que se faria hoje. As pessoas que colocam bombas devem ser loucas.
Ainda a abanar a cabeça de descrença, voltou a pegar nos volumes trimestrais de 1942 e consultou as suas notas. Pensou na gravação que Patel lhe tinha dado. Eu disse
"maio" nitidamente. "Catro" só poderia ser "quatro". Mas não poderia ter querido dizer catorze ou vinte e quatro? É evidente que eu estava a falar de um bombardeamento.
A sua investigação tinha-lhe demonstrado que o primeiro bombardeamento tinha caído em Londres a 13 de Junho de 1944. Tinha caído uma bomba perto da estação de Waterloo
em 24 de Junho. "Lembro-me de me meter num comboio", pensou Judith.
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vestia apenas uma camisola leve por cima do vestido, de modo que o tempo devia estar relativamente quente. Suponhamos que íamos a Waterloo nesse dia. A minha mãe
e a minha irmã foram mortas. Eu pus-me a vaguear pela estação e subi para um comboio. Fui encontrada na manhã seguinte em Salisbury. Isso poderia explicar o motivo
por que ninguém de Londres que pudesse conhecer-me chegou a ver a minha fotografia."
Tinha dito que vivia em Kent Court. Tinha caído uma bomba na Kensington High Street em 13 de Junho de 1944. Alguns dias depois, uma outra tinha atingido a Kensington
Church Street. Kensington Court er^ uma rua residencial na vizinhança.
A estátua de Peter Pan ficava nos Jardins de Kensington, o parque que se situava perto dali. Numa das suas alucinações, tinha visto uma criança a tocar na estátua
do Peter Pan. Os seus mapas e as suas investigações tinham-lhe provado que, se tivesse vivido na zona de Kensington era possível que tivesse testemunhado o primeiro
bombardeamento.
Judith começou a tremer. Estava a acontecer de novo. A mesa e as estantes desapareceram. A sala escureceu. A criança. Via-a a tropeçar por entre os escombros, ouvia-a
soluçar. O comboio. Aporta aberta. As embalagens e os sacos empilhados no interior.
A imagem desapareceu, mas desta vez Judith apercebeu-se de que tinha sido bem-vinda. "Estou a receber vislumbres de memória", pensou, triunfantemente. "Era uma espécie
de carruagem de carga. Por isso ninguém me viu. Deitei-me em cima de qualquer coisa e adormeci. AS datas ajustam-se."
No dia seguinte, 25 de Junho de 1944, Amanda Chase, a Wren que estava noiva de um oficial da Marinha Americana, Edward Chase, deparou com uma criança de 2 anos a
vaguear em Salisbury, com o seu vestido feito à mão e a sua camisola de malha muito suja. A criança, silenciosa, de olhos muito abertos, incapaz de falar, desconfiada,
a princípio, acabou por se acolher nos seus braços amigos. A criança não identificada. A criança que ninguém reclamou, Amanda e Edward Chase foram ao orfanato visitar
a menina, a que deram o nome de Judith, e levaram-na a passear. Quando ela começou a falar, chamava-lhes mamã e papá. Dois anos depois, terminados sem êxito os seus
esforços para encontrar a sua verdadeira família, Amanda e Edward Chase tinham recebido permissão para adoptar Judith.
Judith ainda se recordava do dia em que tinha ficado à espera de que eles a fossem buscar ao orfanato. (!
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posso realmente viver convosco?
Amanda, com um sorriso nos seus olhos castanhos, abraçoua.
Fizemos o possível por encontrar quem te perdeu. Mas agora és nossa.
Edward Chase, o homem que seria seu pai, alto e silencioso e cheio de amor.
Judith, há uma frase já muito gasta, na adopção: "Nós escolhemos-te". Neste caso, aplica-se inteiramente.
"Eles foram tão bons para mim", pensou Judith com renovada esperança, ao dar início a mais uma longa e entediante busca nos livros de registo. "Fui tão feliz com
eles."
Edward Chase, que terminara um curso superior em Annapolis, tinha decidido seguir a carreira da Marinha. Depois da guerra, tinha sido adido Militar Naval da Casa
Branca. Judith tinha vagas recordações da caça aos Ovos de Páscoa nos relvados da Casa Branca, do presidente Truman a perguntar-lhe o que queria ser quando crescesse.
Mais tarde, Edward Chase tinha sido adido militar no Japão, depois embaixador na Grécia e na Suécia.
Quem poderia ter desejado melhores pais?, pensou Judith, ao abrir o livro na secção que continha os nomes começados por M. Tinham cerca de trinta anos quando a tinham
adoptado, tinham morrido com um intervalo de um ano, havia oito anos, deixando bens consideráveis à sua "querida filha Judith".
E agora apercebia-se de que o falecimento deles a tinha libertado de uma sensação de culpa e de deslealdade ao tentar encontrar as pessoas que a haviam gerado. As
horas foram passando. Marsh. March. Mars. Merritt. Não havia qualquer nome derivado de Marrish, nem qualquer nome começado por M nos registos de Maio de 1942 que
tivesse "Sarah" como primeiro nome ou nome intermédio. Era a altura de procurar em P, na esperança de que talvez tivesse querido dizer "Parrish".
Os seus dedos percorreram as páginas dos nomes começados por P até alcançar Parrish. Parrish, Ann, Freguesia de Knighsbridge; Parrish, Arnold, Freguesia de Picadilly.
E de súbito encontrou
Nome da Mãe Freguesia Volume Página
Parrish Mary Elizabeth Travers Kensington 6B 32
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"Parrish! Kensington! Oh, meu Deus", pensou. Conservando o indicador sobre aquela linha, percorreu o resto da página. Parrish, Norman, Freguesia de Chelsea; Parrish,
Sarah Courtney, Nome da mãe Travers, Freguesia de Kensington, Volume BB, Página 32. Nem ousando acreditar que compreendia o que estava a ver, Judith correu ao balcão
para falar com a funcionária.
- Que é que isto quer dizer? - perguntou. A funcionária tinha um pequeno transístor em cima do balcão,
com o volume tão baixo que era quase inaudível. Relutantemente, arrancou-se às notícias da BBC. - Que horror, esta história da bomba - disse. Fez uma pausa. Desculpe.
Que queria saber?
Judith apontou para os nomes Mary Elizabeth e Sarah Courtney Parrish.
- Nasceram ambas no mesmo dia. A mãe tem o mesmo nome de solteira. Acha que isto quer dizer que fossem gémeas? - Eu diria que sim. E há sempre muito cuidado em registar
qual o gémeo mais velho. Isso representa muitas vezes a herança do título, compreende. Deseja adquirir as certidões de nascimento completas?
- Sim, evidentemente. E mais uma pergunta. Polly não é um diminutivo para Mary, em Inglaterra?
- Muito frequentemente. A minha prima, por exemplo. Para obter as certidões de nascimento, terá de preencher os devidos impressos e pagar cinco libras por cada uma.
Ser-lhe-ão enviadas pelo correio. - Que informações dão? - Muitas-respondeu a funcionária. -Data e local de nascimento. Nome de solteira da mãe. Nome e profissão
do pai. Endereço.
Judith regressou a pé ao seu apartamento, aturdida. Ao passar por um quiosque de jornais viu os enormes cabeçalhos que falavam da bomba colocada em Trafalgar Square.
Imagens de crianças a sangrar enchiam as primeiras páginas. Pesarosa, Judith comprou um jornal e leu-o logo que chegou a casa. "Pelo menos", pensou, "nenhum dos
ferimentos pôs em risco a vida de qualquer das crianças." O jornal estava cheio de notícias sobre a tempestuosa sessão no Parlamento. O ministro do Interior, Sir
Stephen Hallett, tinha feito um discurso dramático: "Há muito que defendo a necessidade da aplicação da pena de morte aos terroristas. Essa gente desprezível colocou
hoje uma bomba num local onde sabiam que iriam estar presentes crianças
72
das escolas. Se uma só dessas crianças tivesse morrido, não seria justo que os terroristas sentissem o pescoço em perigo? Tenho o acordo do Partido Trabalhista,
ou vamos continuar a amimar esses assassinos em potência?
Um outro artigo dizia que o explosivo usado tinha sido gelignite, e que se tinha iniciado uma investigação maciça no sentido de localizar aquisições e comunicações
de roubo daquele produto mortal.
Judith pousou o jornal e consultou o relógio. Eram quase seis horas. Sabia que Stephen ia telefonar e que seria conveniente poder dizer-lhe que tinha entrado em
contacto com Fiona.
Fiona estava demasiadamente interessada nos acontecimentos do dia para se zangar com o esquecimento de Judith.
Minha querida, que coisa horrível, não acha? O Parlamento está em polvorosa. Depois das eleições, a pena de morte será sem dúvida aplicada. Isso só poderá beneficiar
o nosso querido Stephen. As pessoas estão realmente indignadas. Pobre rei Carlos. Presumo que queriam mandar a sua estátua para a sucata. E seria uma pena que isso
acontecesse. É absolutamente a estátua equestre mais encantadora de todo o reino. Mas note que há algumas estátuas que eu não me importava nada de ver transformadas
em sucata. Há algumas cujos cavalos parecem destinados a puxar carroças, não a serem montados por reis. Oh, valha-nos Deus.
Stephen telefonou um quarto de hora mais tarde.
Querida, esta noite demoro-me muito. Tenho uma reunião com o comissário da Scotland Yard e alguns dos seus homens.
A Fiona falou-me de um alvoroço no Parlamento por causa da bomba. Já há alguma declaração de responsabilidade por parte dos terroristas?
Até agora, nada. É por isso que me vou reunir com a Scotland Yard. Como ministro do Interior, os actos de terrorismo caem sob a minha alçada. Tinha esperanças de
que, como nação civilizada, quando acabámos com a pena de morte, fosse para sempre, mas o que sucedeu hoje prova, sem dúvida, a necessidade da pena de morte. Penso
que seria uma dissuasão.
Julgo que muita gente pensa como tu, mas lamento dizer-te que eu não. A ideia de uma execução gela-me o sangue.
Há dez anos eu pensava exactamente do mesmo modo disse Stephen tranquilamente. Mas já não. Não, quando tantas vidas inocentes correm perigo constantemente. Querida,
estou cheio de pressa. Vou tentar despachar-me o mais cedo possível.
Seja qual for a hora a que aqui chegues, estarei à tua espera.
73
Reza Patel e Rebecca Wadley preparavam-se para sair para jantar quando o telefone do consultório começou a tocar. Rebecca levantou o auscultador:
- Miss Chase, que prazer ouvi-la. Como tem passado? O doutor está aqui mesmo.
Num movimento que já se tornara automático, Patel premiu os botões de som alto e gravação. Ele e Rebecca ouviram Judith falar-lhes da sua descoberta.
- Estava ansiosa por falar disto - disse, cheia de felicidade - e apercebi-me de que o doutor e a Rebecca são as duas únicas pessoas vivas que sabem do que se passa
e me podem compreender. Doutor, fez um milagre. Sarah Courtney Parrish. É um bonito nome, não lhe parece? Quando receber as certidões de nascimento, terei o endereço.
Não é incrível que Polly fosse minha gémea?
- Está a transformar-se numa boa detective - observou Patel, esforçando-se por parecer entusiasmado.
- Investigações - disse Judith rindo. - Ao fim de algum tempo, aprende-se a seguir pistas. Mas agora tenho de pôr isto de parte durante uns dias. Amanhã tenho de
me dedicar à máquina de escrever, e há uma exposição na National Portrait Gallery que quero ver. Apresenta muitas cenas da corte de Carlos I. Deve ser interessante.
-A que horas vai lá?-inquiriu Patel imediatamente.-Eu também estou a pensar em vê-la. Talvez possamos tomar uma chávena de chá.
- Magnífico. Três horas serve-lhe?
Quando ele pousou o auscultador no descanso, Rebecca perguntou a Patel:
- Que interesse há em encontrar-se com ela na Galeria?
- Não tenho mais motivos para a fazer vir aqui e gostaria de ver se consigo detectar qualquer indicação de modificações da personalidade dela.
Judith envergou um pijama de seda cor de pêssego e calçou chinelas a condizer, soltou os cabelos, escovou-os e deixou-os caídos sobre os ombros, retocou a maquilhagem
e pulverizou os pulsos com água de colónia Joy. Preparou uma salada e ovos mexidos para o jantar. Juntando-lhes um bule de chá, colocou os pratos na inevitável bandeja
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e, distraidamente, foi comendo enquanto planeava o capítulo seguinte. Às nove horas, foi buscar um prato com queijo e bolachas e os balões para o brande, e depois
voltou para a secretária.
Eram onze e um quarto quando Stephen Chegou. O rosto dele estava pálido de fadiga. Abraçou-a em silêncio.
- Meu Deus, como é bom estar aqui.
Judith massajou-lhe os ombros enquanto ele a beijava. Depois, abraçados, foram sentar-se no sofá de damasco castanhoavermelhado, excessivamente estofado, que constituía,
sem dúvida, um dos tesouros de Lady Beatrice Ardsley. Uma antiga cobertura acolchoada, que cobria as costas e os braços, estava entalada por detrás da estrutura
e das almofadas, e depois caía protectoramente por cima das almofadas até ao chão. Judith serviu o brande e entregou um copo a Stephen.
- Penso que realmente, em honra do futuro primeiro-ministro, devia retirar esta velha protecção e confiar em que tu não porias os pés em cima do precioso sofá de
Lady Ardsley.
Foi recompensada por um esboço de sorriso.
- Tem cuidado. Se fecho os olhos, acabo por passar aí a noite enrolado. Que dia terrível, Judith.
- Como correu a reunião com a Scotland Yard?
-Bastante bem. Felizmente, havia um turista japonês que estava a filmar tudo com uma câmara de vídeo e vamos ter um filme do que se passou. Também havia muita gente
por ali a tirar fotografias. Os meios de comunicação pretendem que essas fotografias lhes sejam entregues. Há uma recompensa substancial para alguma que possa conter
uma pista que leve à detenção e condenação do executante. Bem vês, seria uma sorte se a bomba tivesse começado a deitar fumo um minuto ou dois depois de ser colocada.
Talvez haja hipótese de se obter uma fotografia de alguém a colocá-la junto ao pedestal da estátua. -Espero que sim. As fotografias daquelas crianças feridas eram
comovedoras. -Judith esteve quase a dizer que a tinham feito pensar nas alucinações que tinha tido da criança apanhada pelos bombardeamentos aéreos, mas conteve-se.
Era duro, pensou, não poder dizer ao homem que amava tanto, que julgava ter descoberto a sua verdadeira identidade.
Havia uma maneira segura de evitar revelar-lhe o seu segredo. Deslizando pelo sofá, envolveu o pescoço de Stephen com os braços.
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O comissário assistente Philip Barnes era o chefe do Departamento Anti-Terrorista da Scotland Yard. Era um homem pequeno, de voz suave, quase de 50 anos, com cabelos
castanhos, que começavam a tornar-se ralos, e olhos cor de avelã. Parecia mais um pároco de província que um funcionário superior da polícia. Os seus homens tinham
vindo rapidamente a saber que a voz suave podia transformar-se numa arma contundente quando iam ao tapete por algo, desde um pequeno erro a um erro crasso. Todavia,
respeitavam Barnes ao ponto de quase o venerarem, e alguns tinham mesmo a coragem de gostar genuinamente dele.
Naquela manhã, o comissário Barnes estava simultaneamente irritado e satisfeito. Irritado por os terroristas terem escolhido um alvo tão pouco significativo como
a estátua equestre e por terem escolhido um dia em que a estátua se encontrava rodeada de crianças e turistas; satisfeito por ninguém ter morrido ou ficado ferido
com gravidade. E também se sentia frustrado.
Não faz sentido que os líbios ou iranianos atacassem a estátua disse. Se o IRA quisesse pôr uma bomba num monumento, teria atacado Cromwell. Foi ele quem dizimou
o país deles, não foi o pobre e velho Carlos.
Os seus homens ficaram à espera, sabendo que ele não contava com a sua resposta.
Quantas fotografias temos? perguntou.
Dúzias respondeu o seu ajudante, o comandante Jack Sloane. Sloane era alto e magro e tinha cabelos cor de areia, olhos azul-claros, a pele avermelhada do atleta
que pratica desporto durante todo o ano. Irmão de um baronete, era amigo íntimo de Stephen. A mansão rural da sua família, Bindon Manor, situava-se a seis milhas
de Edge Barton. Algumas delas ainda não foram reveladas, Sr. Comissário. Estão a sê-lo agora. E também temos aquele filme de vídeo, quando quiser vê-lo. E quanto
às investigações sobre o explosivo? Talvez já tenhamos uma pista. O capataz de uma pedreira de Gales tem andado à procura de uma quantidade de gelignite que desapareceu.
]
Quando é que ele deu pela falta?
Há quatro dias. O telefone tocou. A secretária do comissário Barnes tinha recebido instruções para só lhe passar as chamadas de uma única pessoa. Sir Stephendisse
Barnes, mesmo antes de pegar no telefone.
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Contou imediatamente a Stephen o que sabia sobre a gelignite desaparecida, as fotografias dos turistas, o filme de vídeo.
íamos agora mesmo vê-lo, Sr. Ministro. Voltarei a falar-lhe, se
valer a pena.
Cinco minutos depois, na sala mergulhada na penumbra, viam a projecção do filme. Tinham esperado ver os habituais resultados obtidos por um fotógrafo amador e ficaram
agradavelmente surpreendidos ao deparar com um filme bem focado. O panorama da área de Trafalgar Square. Um primeiro plano da estátua e do seu pedestal. As coroas
de flores já colocadas junto deste.
Pára ordenou Sloane.
O operador de câmara de vídeo, habituado a este tipo de ordens, parou imediatamente o filme.
Anda uma ou duas sequências para trás.
Que é que viu? perguntou o comissário Barnes.
Uma pequena coluna de fumo. Quando a imagem foi feita, a bomba já lá estava.
Foi uma pena não terem filmado a pessoa que a colocou! explodiu Barnes. Pronto, continua.
As crianças das escolas. Os turistas. Os alunos que seguravam a coroa. O envergonhado início do poema. O polícia a correr para a estátua, forçando as crianças a
afastarem-se.
Aquele homem devia ser proposto para a Georges Cross1 murmurou Barnes.
As pessoas a fugir. A explosão. A câmara a girar em volta.
Pára.
O operador voltou a parar a câmara e a mostrar as imagens imediatamente anteriores.
Aquela mulher de capa e óculos escuros. Percebeu que estava a ser filmada. Vejam a maneira como puxou o capuz para a cara. Todos os outros adultos da multidão correm
a socorrer as crianças. Ela está a afastar-se. Sloane voltou-se para um dos seus assistentes. Quero que extraiam a imagem dela de todas as sequências deste filme.
Ampliem-na. Vamos a ver se conseguimos identificá-la. Talvez consigamos descobrir alguma coisa.
Alguém acendeu as luzes.
1 Uma condecoração concedida principalmente a civis, por invulgar heroísmo.
(N. da T.)
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A propósito acrescentou Sloane. Vejam especialmente se algum dos turistas apanhou a mulher da capa, nas suas fotografias
Nessa tarde, ao vestir-se para ir visitar a National Portrait Gallery, Judith decidiu-se, com relutância, a vestir um fato de saia e casaco cinzento-claro e o seu
casaco zibelina, e a calçar sapatos de salto alto. Nos últimos dias, desde que Stephen tinha sido eleito chefe do Partido, tinham saído perfis dele em diversos jornais
e todos se referiam a ele como sendo o melhor partido e o mais atraente homem solteiro de Inglaterra. Desde Heath que não havia um primeiro-ministro solteiro, notava
um dos jornais, e corriam boatos confirmados de que Sir Stephen tinha um caso romântico que iria por certo agradar ao povo inglês.
"Essa observação provinha do colunista social Harley Hutchinson. De modo que é melhor eu não sair com o aspecto de uma hippie de Greenwich Village", pensou Judith,
suspirando, enquanto escovava cuidadosamente os cabelos e aplicava sombra e pintura nos olhos. Prendeu depois um alfinete de prata em forma de rosa na lapela do
casaco e observou o seu reflexo no espelho.
Vinte anos antes, tinha-se casado com Kenneth envergando o tradicional vestido branco e véu e grinalda. Que deveria vestir quando se casasse com Stephen? Um fato
de cocktail simples, decidiu. Com a presença de um grupo muito limitado de amigos. Tinha havido perto de trezentas pessoas no Country Club de Chevy Chase, havia
vinte anos. "Acontecer isto duas vezes numa vida", pensou. "Ninguém merece tanta felicidade."
Transferiu a carteira e a maquilhagem para a bolsa de camurça cinzenta que condizia com os sapatos de salto alto e que era uma versão mais pequena da sua grande
mala de trazer ao ombro. "Por muito apertadas que as coisas fiquem, preciso do meu bloco de notas", pensou, pesarosa.
A National Portrait Gallery ficava entre a st. Martin's Place e a Orange Street. A exposição especial apresentava cenas de corte, desde os Tudor ao Stuart. Os quadros
tinham sido cedidos por colecções particulares de toda a Inglaterra e Commonwealth, e as figuras menores representadas nos quadros, que podiam ser identificadas,
estavam indicadas em placas emolduradas. Quando Judith chegou, a galeria estava ainda cheia, e, divertida, reparou que as pessoas consultavam com interesse as listas
impressas das placas obviamente
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na esperança de localizarem qualquer antepassado esquecido havia
muito.
Estava particularmente interessada em ver as cenas de Corte em que estivessem representados Carlos I, Oliver Cromwell e Carlos II. Caminhando em sentido inverso,
comparou os trajos festivos do "Alegre Monarca", Carlos II, com os trajos simples e austeros, de estilo puritano, dos íntimos de Cromwell. As cenas de corte em que
apareciam Carlos I e a sua consorte, Henrietta Maria, eram especialmente curiosas. Sabia que, apesar da gelada desaprovação dos Puritanos, a Rainha Henrietta Maria
tinha apreciado os quadros vivos. Houve um quadro que lhe atraiu especialmente a atenção. O cenário era o Palácio de Whitehall. O rei e a rainha eram as figuras
centrais. Os membros da corte encontravam-se obviamente vestidos para um quadro vivo. Abundavam os cajados de pastores, as asas de anjos, os halos e as espadas de
gladiadores.
Miss Chase, como está?
Judith tinha estado absorvida pelo quadro.
Surpreendida, voltou-se e deparou com o Dr. Patel. O seu rosto de feições regulares sorria, mas ela reparou que a expressão dos seus olhos era grave. Tocou-lhe levemente
no braço.
Doutor, está com um ar muito sombrio. Ele fez uma ligeira vénia.
E eu estava a pensar que está muito bonita. Baixou a voz. Digo-lhe uma vez mais que Sir Stephen é realmente um homem de sorte.
Judith abanou a cabeça.
Aqui não, por favor. Pelo que vejo, esta sala está cheia de jornalistas por todos os lados. Voltou para o quadro.Não o acha fascinante? perguntou. E pensar que foi
pintado em 1640, pouco antes de Sua Majestade ter dissolvido o Pequeno Parlamento.
Reza Patel olhou o quadro. Na placa por baixo dele lia-se: "Artista desconhecido. Crê-se que tenha sido pintado entre 1635 e 1640."
Judith apontou para um elegante casal que se encontrava perto do rei sentado.
Sir e Lady Margaret Carewdisse a Patel.Estavam ambos preocupados, neste dia. Sabiam o que sucederia se o rei dissolvesse o Parlamento. Os antepassados de Lady Margaret
tinham sido Membros do Parlamento desde o seu início. A família dela encontrava-se terrivelmente dividida quanto a lealdades, nessa época.
Patel leu as informações contidas na placa. Além do rei e da
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rainha, do seu filho mais velho Carlos, duque de York, e de meia dúzia de parentes reais, as outras figuras do quadro não estavam identificadas.
As suas investigações devem ser extraordinárias disse.
Devia tê-las proporcionado aos historiadores daqui.
Lady Margaret apercebeu-se de que não deveria ter falado a Reza Patel de si própria e de John. Voltando-se abruptamente, afastou-se dele e começou a caminhar pela
galeria. À porta, ele alcançou-a e deteve-a:
Miss Chase, Judith. Que aconteceu?
Ela fitou-o sobranceiramente. Num tom altivo, disse:
Judith não se encontra aqui, neste momento.
Quem é a senhora? perguntou ele ansiosamente. Surpreendido, reparou na cicatriz avermelhada na mão direita dela.
Ela apontou para o quadro.
Já lhe disse. Sou Lady Margaret Carew. Afastando-se dele, abandonou a galeria.
Estupefacto, Patel voltou para junto do quadro e observou a figura que Judith tinha indicado ser Lady Margaret Carew. Reparou que existia uma notável semelhança
entre ela e Judith.
Extremamente apreensivo, saiu da galeria, sem reparar sequer nas pessoas que tentavam cumprimentá-lo. Pelo menos, disse a si próprio, sei quem está presente no corpo
de Judith. Agora teria de saber o que tinha acontecido a Margaret Carew e tentar antecipar o seu movimento seguinte.
O vento tinha começado a soprar com força. Ia começar a descer a St. Martin's Place quando sentiu que lhe seguravam no braço.
Dr. Patel disse Judith, rindo. Peço imensa desculpa. Estava tão absorvida a observar os quadros que me vim embora, com intenção de regressar a casa, e quase me esqueci
de que tínhamos planeado tomar chá juntos. Peço que me perdoe. |
A mão direita dela. Reza Patel viu a cicatriz ir perdendo cor até se transformar numa linha dificilmente discernível.
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O dia seguinte, 1 de Fevereiro, trouxe chuva forte e fria. Judith decidiu permanecer no apartamento e trabalhar. Stephen telefonou a dizer que ia à Scotland Yard
e depois partia para o campo.
Vota Conservador. Vota Hallett disse, brincando. É uma
pena que sejas americana, não posso contar com o teu voto.
Seria teu disse-lhe Judith. Talvez te ajude saber isto. O meu pai costumava dizer-me que em Chicago metade das pobres almas que estavam no cemitério ainda faziam
parte da lista de votantes.
Hás-de ensinar-me como é que isso se faz. Stephen riu-se.
O tom alterou-se. Judith, vou passar uns dias a Edge Barton. O problema é que raramente poderei estar em casa, mas gostarias de vir comigo? Saber que estarias lá
ao fim do dia representaria muito para mim.
Judith hesitou. Por um lado, desejava ardentemente voltar a Edge Barton. Por outro, a total preocupação de Stephen com a campanha que se aproximava deixava-a livre
para poder tranquilamente pesquisar o seu passado. Finalmente disse:
Eu quero estar lá. Eu quero estar contigo. Mas não trabalho bem, longe da minha secretária. E mal poderemos ver-nos, por isso acho melhor ficar aqui. Quando chegarem
as eleições, tenciono expedir o livro completo para o meu editor. Se o conseguir, garanto-te que vou ser uma mulher nova.
Uma vez terminada a eleição, não serei tão paciente, querida.
Espero que não. Deus te abençoe, Stephen. Amo-te.
Na Scotland Yard tinha sido separada uma sala para exposição das fotografias ampliadas que tinham sido feitas. Diversas entre elas apresentavam relances da mulher
de óculos escuros e capa. Nenhuma das fotografias oferecia muito mais que um perfil. O capuz quase ocultava o rosto da mulher, mesmo antes de ela o ter puxado mais
Para a frente, ao reparar na câmara de vídeo. Todas as fotografias em que ela aparecia tinham sido ampliadas e a sua imagem tinha sido extraída de todas elas.
Cerca de um metro e sessenta e cinco observou o comandante Sloane. Muito esbelta, não acha? Não deve pesar mais de cinquenta quilos. Cabelos escuros e uma boca severa.
Não ajuda muito, Pois não?
O inspector David Lynch entrou na sala, com passos rápidos.
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Acho que temos qualquer coisa mais, Comandante. Acaba de chegar outro grupo de fotografias. Olhe para estas.
As novas fotografias mostravam a mulher da capa a colocar uma coroa na base da estátua de Carlos I. A máquina tinha apanhado um canto de papel castanho por debaixo
da coroa.
Bom trabalho disse Sloane.
Isto é só metade dele disse Lynch. Andámos a fazer perguntas nas construções da área. Um capataz falou-nos de uma mulher muito atraente, com uma capa escura, que
esteve a namoriscar um dos seus homens, Rob Watkins, e disse-nos que Watkins se gabou de que ela ia ao quarto dele. Lynch fez uma pausa, gozando antecipadamente
o que ia dizer. Acabamos de falar com a dona da casa onde vive Watkins. Há menos de dez dias, ele teve uma visita. Foi lá duas tardes pelas seis horas, e ficou umas
duas horas no quarto com ele. Diz que ela tem cabelos pretos, usa óculos escuros, deve ter trinta e muitos ou quarenta e poucos, e usava uma capa verde com um capuz,
muito cara, por sinal, segundo diz a dona da casa. Além disso, usava umas botas de cabedal muito boas, uma mala ao ombro, excessivamente grande, e, segundo a mulher
diz, "parecia até ser a rainha, tal era a pose dela. Muito altiva..."
Acho que devemos ter uma conversinha com Mr. Rob Watkins, imediatamente disse Sloane. Voltou-se para o seu assistente. Separe todas as fotografias da senhora da
capa. Vamos ver se o tipo a consegue detectar no meio da multidão sem lhe darmos ajuda.
Outra coisa interessante prosseguiu Lynch. A dona da casa diz que a mulher era indubitavelmente inglesa, mas tinha um jeito estranho de falar.
Que é que isso quer dizer? retorquiu Sloane.
Pelo que eu depreendi, era a cadência da sua fala que parecia estranha. A dona da casa diz que lhe parecia estar a ouvir um desses filmes antigos em que as pessoas
se tratam por "vós". ^
Abanou a cabeça perante a expressão do comandante Sloane. Sinto muito, Comandante, eu também não percebo.
No dia 10 de Fevereiro, a primeira-ministra fez a sua comunicação havia tanto tempo esperada. Iria falar com a rainha e pedir a Sua Majestade que dissolvesse o Parlamento.
Não se recandidataria.
No dia 12 de Fevereiro, Stephen foi eleito chefe do Partido Conservador.
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No dia 16 de fevereiro, a rainha dissolveu o Parlamento e a campanha começou.
Judith disse a Stephen, por brincadeira, que, quando queria vê-lo, tinha de ligar a televisão. Quando conseguiam encontrar-se, era geralmente em casa dele. O carro
ia buscá-la e Rory dava a volta à casa, deixando-a na porta das traseiras. Assim era possível evitar a atenção dos meios de comunicação, sempre presentes.
Contudo, Judith constatou que era uma sorte Stephen estar em campanha durante o período em que ela terminava o seu livro. Aguardava ansiosamente a chegada das certidões
de nascimento. A sua disposição ia desde a ansiedade ao medo. E se Sarah Parrish fosse apenas alguém que ela tivesse conhecido quando era pequena? Que faria então?
Sabia que, quando estivesse casada com o primeiro-ministro de Inglaterra, nunca mais passaria despercebida. Nessa altura não lhe seria possível uma missão particular
como aquela.
Stephen telefonava-lhe todas as manhãs e voltava a telefonar a altas horas da noite. Estava frequentemente rouco, de tanto discursar. Ela sentia a fadiga dele, enquanto
conversavam.
Vai ser muito mais difícil do que prevíamos, querida disse-lhe ele. Os Trabalhistas estão a dar luta, e ao fim de quase uma década de governo Conservador há muita
gente que vai votar pela mudança. A preocupação que notava na voz dele era suficiente para que Judith o absolvesse completamente do seu egoísmo por não a ajudar
na sua busca de identidade. Só poderia comparar o desapontamento dele se não conseguisse ser primeiro-ministro com a angústia que ela própria sentiria se se sentasse
diante da máquina de escrever e subitamente se apercebesse de que já não conseguia escrever, de que perdera o seu dom...
Para satisfazer a sua necessidade de acabar o livro e de continuar a sua busca, Judith regulava o despertador cada vez mais cedo. Agora levantava-se às quatro da
manhã, trabalhava até ao meio-dia, preparava uma sanduíche e um bule de chá e trabalhava até às onze.
De vez em quando punha-se a andar a pé pela zona de Kensington, pensando que, se se concentrasse bastante, um dos antigos prédios de apartamentos que formavam as
belas ruas se tornaria subitamente reconhecível. Como desejava voltar a ver a criança fantasma a correr à sua frente, entrando para um prédio que podia ter sido
a sua casa. Nas alucinações que experimentara, ter-se-ia visto a si próPria, ou a Polly?, perguntava a si mesma, e era recompensada pelo
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pensamento imediato: "Eu andava sempre atrás de Polly. Ela corria mais depressa..." Ajanela do passado abria-se um pouco mais... Porque levariam tanto tempo a chegar
as certidões de nascimento? Não era a estação social em Londres. Fiona estava empenhada numa dura luta pelo seu lugar no Parlamento. Era fácil recusar os convites
para festas e jantares que Judith recebia. Administrava cuidadosamente o seu tempo e estava certa de não ter sofrido mais lapsos de memória. O Dr. Patel telefonava-lhe
regularmente e divertia-a notar que o seu tom de voz, no início da conversa, era sempre apreensivo, como se esperasse que ela lhe revelasse qualquer sinistra aberração.
No dia 28 de Fevereiro, terminou a primeira versão do seu livro, leu-a toda e apercebeu-se de que precisava de reescrever muito pouca coisa antes de o enviar ao
editor. Nessa noite, Stephen chegou da escócia, onde tinha ido participar na campanha dos candidatos Conservadores.
Não se tinham visto durante cerca de dez dias. Quando ela lhe abriu a porta, ficaram a olhar-se durante um longo momento. Stephen suspirou, ao abraçá-la, antes de
a beijar. Judith sentiu o calor e a força dos seus braços, o bater do seu coração, quando ele a apertou mais. Os seus lábios encontraram-se e as mãos dela envolveram-lhe
o pescoço. Voltou a aperceber-se de que, por muito que tivesse amado Kenneth, era nos braços de Stephen que sentia a realização de tudo quanto era possível entre
um homem e uma mulher.
Durante as bebidas, compararam impressões, concordando cada um deles em que o outro tinha um aspecto exausto.
Querida, estás muito mais magra. Quantos quilos perdeste?
Não tenho reparado. Não te preocupes. Recupero tudo quando o livro sair. E a propósito, Sir Stephen, também perdeu alguns quilos.
Os americanos pensam que conseguem vender-nos gato por lebre, Estão muito enganados. A propósito, é melhor eu telefonar para casa, para contarem connosco para jantar.
Não é preciso. Já mandei buscar. Uma coisa muito simples. Costeletas e salada e uma batata grande, para extrairmos energia dos hidratos de carbono. Serve-te?
E nem um único constituinte para me desejar sorte ou me aborrecer por causa dos impostos.
Trabalharam juntos na minúscula cozinha, Judith a preparar a salada, Stephen proclamando-se mestre em costeletas grelhadas.
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Stephen, com as mangas arregaçadas, um avental atado a cobri-lo todo, parecia ir perdendo visivelmente todos os sinais de fadiga.
- Quando era rapaz disse, a minha mãe dispensava os criados todos os domingos, a menos que tivéssemos convidados para o fim-de-semana. Adorava ir para a cozinha
e cozinhar para o meu pai e para mim. Sempre sentia falta desses dias maravilhosos em que ficávamos completamente sós. Sugeri que mantivéssemos a tradição quando
me casei com Jane.
Que é que a Jane disse? perguntou Judith, suspeitando qual seria a resposta.
Stephen riu-se.
Ficou apavorada. Lançou uma olhadela às costeletas. Mais uns três minutos, penso eu.
Salada pronta para a mesa. Batatas e pão já na mesa. Judith passou as mãos por água, enxugou-as e envolveu com elas o rosto de Stephen. Gostavas de instaurar de
novo a antiga tradição? Quando não sou escrava da máquina de escrever, sou uma óptima cozinheira.
Quatro minutos depois, quando ainda estavam nos braços um do outro, Stephen cheirou o ar e disse, alarmado:
Meu Deus, as costeletas!
A busca para encontrar a mulher que tinha colocado a bomba na base da estátua do rei Carlos terminou num impasse. O jovem operário da construção civil, Rob Watkins,
tinha sido interrogado implacavelmente, mas sem resultados. Identificou imediatamente a mulher da capa escura que se via nas fotografias tiradas à estátua do rei
Carlos, como sendo a mulher a quem tinha entregue a gelignite, mas persistiu inflexivelmente na sua versão de que Margaret Carew lhe dissera que tencionava utilizá-la
para demolir uma casa velha na sua propriedade de Devonshire. O passado de Watkins foi exaustivamente examinado. A Scotland Yard concluiu que ele era exactamente
aquilo que parecia ser: um operário que se considerava um conquistador de mulheres, com um desinteresse total pela política e com um irmão capaz de se apoderar de
tudo o que pretendesse numa Pedreira. O fogão de sala da vivenda dos seus pais em Gales tinha acabado de ser construído com valiosas placas de mármore, que condiziam
exactamente com o mármore usado no último trabalho do seu irmão.
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Com relutância, o comissário Philip Barnes acabou por concordar com o seu superior, o comandante Jack Sloane, que Watkins tinha sido utilizado e enganado pela mulher
da capa. A insistência de Watkins de que a mulher que dizia chamar-se Margaret Carew tinha uma cicatriz bem visível na base do polegar direito era a única pista
em que podiam depositar uma certa esperança.
A informação de Watkins foi escondida aos meios de comunicação. Foi acusado de receber mercadorias roubadas e detido sob uma fiança que não podia pagar. Conservaram
pendente sobre a sua cabeça a acusação de cumplicidade com uma terrorista, com vista a futura colaboração. Todos os políticos de Inglaterra receberam uma fotografia
ampliada da mulher da capa e dos óculos escuros, com instruções para estarem atentos. Foram particularmente instruídos no sentido de procurarem uma mulher de cabelos
escuros, com cerca de 40 anos, e com uma cicatriz na mão.
À medida que as eleições se aproximavam, a história da bomba foi perdendo interesse. Vendo bem, ninguém tinha ficado gravemente ferido. Grupo algum havia reivindicado
a responsabilidade pelo acto. O humor negro começou a fazer a sua aparição nos programas de televisão: "Pobre Carlos. Não contentes com a ideia de lhe terem cortado
a cabeça, trezentos anos depois tentam fazê-lo ir pelos ares. Já é tempo de o deixarem em paz."
E então, a 5 de Março, deu-se a explosão na Torre de Londres, na sala onde estavam expostas Jóias da Coroa. Ficaram feridas quarenta e três pessoas, seis das quais
em estado grave, e morreu um guarda e uma idosa turista americana.
Na manhã de 5 de Março, Judith apercebeu-se de que não estava satisfeita com a sua descrição da Torre de Londres. Sentiu que não tinha conseguido transmitir o medo
aterrador que tinham experimentado os regicidas e os seus cúmplices, que lá tinham sido aprisionados. Sabia que uma visita ao local que estava a descrever podia
geralmente ajudá-la a encontrar as sensações que tentava reproduzir. O dia estava seco e ventoso. Abotoou a sua Burberry, atou ao pescoço um lenço de seda, calçou
luvas e decidiu não levar a mala ao ombro. As longas horas de trabalho começavam a fatigá-la, tinha de confessar, e o peso da mala começava a provocar-lhe dores
no ombro. Em vez dela, meteu dinheiro e um lenço no bolso. Não tencionava tomar notas. Desejava simplesmente passear pela Torre.
Como habitualmente, os inevitáveis turistas enchiam os pátios e as salas. Os guias explicavam, numa dúzia de línguas, a história do enorme palácio. "Em 1066, quando
o duque da Normandia foi coroado
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rei de Inglaterra, começou imediatamente a fortificar Londres contra qualquer possível ataque. Inicialmente, a Torre foi concebida construída como um forte, mas
cerca de dez anos mais tarde foi erguida uma maciça torre de pedra que ficou conhecida como a Torre de Londres."
Era uma história que ela conhecia bem, mas Judith encontrou-se a seguir um grupo que estava a ser encaminhado através das torres e salas seleccionadas. As instalações
da Torre Sangrenta, onde Sir Walter Raleigh estivera aprisionado durante treze anos, fascinavam os turistas.
É maior que o meu apartamento comentou uma jovem.
Eram umas instalações muito melhores que as da maior parte dos outros desgraçados, pensou Judith, apercebendo-se de que estava gelada e a tremer de frio. Invadiu-a
uma sensação de pânico e de medo, e encostou-se à parede. "Sai daqui depressa", disse a si mesma, e depois pensou: "Não sejas ridícula, é essa a sensação que pretendo
transmitir no meu livro."
Com as mãos apertadas dentro dos bolsos, continuou a acompanhar o grupo até à Casa das Jóias da Coroa. "Desde o tempo dos Tudor, esta torre foi habitada por prisioneiros
de categoria", explicou o guia. "Durante os anos de Cromwell, o Parlamento mandou fundir os ornamentos da coroação e vendeu as pedras preciosas. Uma perda irreparável.
Mas quando Carlos II subiu ao trono, reuniu todas as jóias antigas que conseguiu, e foram feitos novos ornamentos para a sua coroação em 1661."
Judith percorreu lentamente a câmara inferior da Casa das Jóias, detendo-se^para olhar para a colher da Consagração, a Coroa de St. Edward, a Âmbula da Águia, que
continha os óleos sagrados para ungir o monarca, o Ceptro, que ostentava o diamante Estrela de África...
O Ceptro e a Âmbula foram feitos para a coroação dele, pensou Margaret. John e eu ouvimos falar da grandeza de tudo isto. Óleos para ungir o peito de um homem falso,
um ceptro que será empunhado por uma mão vingativa, uma coroa que vai ser colocada na cabeça de mais um déspota.
Abruptamente, Margaret passou pelo Guarda da Torre. O quarto onde me prenderam ficava nas Torres Wakefield. Disseram-me que tinha sorte por não ser colocada numa
masmorra, enquanto aguardava a execução. Disseram-me que o rei apenas se mostrava misericordioso a esse ponto por eu ser filha de um
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duque que havia sido amigo de seu pai. Mas arranjaram maneiras de me torturar. Oh, meu Deus, fazia tanto frio, e eles deliciaram-se a descrever-me a morte de John.
Morreu a chamar por mim e por Vincent, e espetaram a cabeça dele num poste, num local por onde eu iriapassar a caminho da minha execução. Hallett planeou tudo isto.
Hallett veio visitar-me e escarneceu de mim, falando-me da sua vida em Edge Barton.
Miss Chase, está bem?
A voz solícita do guarda seguiu Margaret, que subia cegamente as escadas de caracol, empurrando os grupos de turistas que se moviam lentamente. No pátio, passou
a mão pela testa, notando que a cicatriz estava tão nítida como na altura em que a haviam aprisionado ali. Hallett pegou-me na mão e observou a cicatriz, recordou-se.
Disse-me que era uma pena que uma mão tão bonita ficasse assim arruinada. Voltando-se, olhou para o Quartel de Waterloo. A coroa e as jóias criadas para Carlos II
nunca serão colocadas na cabeça e nas mãos de Carlos III, jurou a si mesma.
Outra vez a mulher da capa verde. O comissário delegado Barnes pareceu cuspir as palavras. Todos os polícias de Londres estavam avisados para a procurarem, e ela
conseguiu pôr uma bomba, logo na Torre de Londres! Que é que se passa com os nossos homens?
Havia montes de turistas disse Sloane em voz baixa. Uma mulher no meio de um grupo é difícil de distinguir, e este ano usam-se muito as capas. Imagino que os polícias
estivessem alerta durante as primeiras semanas, e depois, como não houve novos incidentes, esqueceram-se um pouco da mulher...
Ouviu-se uma pancada na porta e entrou apressadamente o inspector Lynch. Os seus dois superiores notaram imediatamente que ele se encontrava abalado.
Venho agora do hospital comunicou. O segundo guarda da Casa das Jóias não vai conseguir sobreviver, mas encontra-se suficientemente consciente para falar. Não pára
de repetir um nome... Judith Chase.
Judith Chase! exclamaram simultaneamente Philip Barnes e Jack Sloane, com igual perplexidade.
Santo Deus, homem disse Barnes. Não sabes quem é? A escritora. Simplesmente fantástica. Franziu a testa. Esperem
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Li algures que ela estava a escrever um livro sobre a Guerra Civil, no período entre Carlos I e Carlos II: talvez haja aí qualquer coisa. Na contracapa do último
livro dela há uma fotografia da autora... temo-lo em casa. Mande alguém comprá-lo. Podemos comparar a fotografia com as que temos e mostrá-la a Watkins. Judith Chase!
Em que mundo estamos a viver?
Jack Sloane hesitou um pouco, e depois disse:
Meu Comissário, é muito importante que ninguém saiba que vamos investigar Judith Chase. Eu vou comprar o livro. Não quero que nem a sua secretária saiba do nosso
interesse por essa senhora.
Barnes franziu a testa.
Onde quer chegar?
Como sabe, meu Comissário, a casa da minha família fica em Devonshire, a cerca de cinco milhas de Edge Barton, a mansão rural de Sir Stephen Hallett.
E então?
Miss Chase foi convidada de Sir Stephen em Edge Barton no mês passado. Consta que, logo que terminem as eleições, se vão casar.
Philip Barnes dirigiu-se à janela e olhou para fora. Era um gesto que os seus homens reconheciam. Estava a pesar e a analisar o potencial desastre. Sir Stephen,
na sua qualidade de ministro do Interior, era o ministro que se ocupava da administração da Justiça. Sir Stephen, se fosse eleito primeiro-ministro, seria o homem
mais poderoso do mundo. A sugestão de um escândalo relacionado com ele neste momento poderia facilmente alterar o resultado das eleições.
Que é que o guarda disse exactamente? perguntou Lynch. Lynch puxou do seu bloco de notas.
Tomei nota, Sr. Comissário. "Judith Chase. Voltou. Cicatriz." A fotografia de Judith, recortada da contracapa do livro, foi mostrada a Rob Watkins.
É ela! exclamou, mas depois, enquanto os seus interlocutores aguardavam, chocados, a sua expressão tornou-se menos segura. Não. Olhem para as mãos dela. Não tem
cicatriz. E a boca, e os olhos. Parecem diferentes, de certo modo. Oh, elas são muito parecidas. Podiam ser irmãs. Pousou a fotografia e encolheu os ombros. Não
me importava nada de andar com esta. Vejam se ma conseguem.
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Revoltada, Judith ouviu a notícia sobre a bomba colocada na Torre de Londres, quando ligou a televisão para escutar o noticiário das onze.
Estive lá esta manhã disse a Stephen, quando ele lhe telefonou uns minutos depois. Só queria sentir a atmosfera. Stephen pobre gente. Como é possível ser-se tão
cruel?
Não sei, querida. Só agradeço a Deus que tu não estivesses naquela sala quando a bomba rebentou. Só sei uma coisa. Se o meu partido ganhar e eu vier a ser primeiro-ministro,
vou criar a pena de morte para os terroristas, pelo menos para aqueles que provoquem mortes.
Depois do que sucedeu hoje, haverá mais pessoas que concordam contigo, embora eu ainda não consiga. Quando voltas para Londres, querido? Tenho saudades.
Vai ser uma semana, aproximadamente, mas, Judith, pelo menos estamos em contagem descendente. Mais dez dias até às eleições, e depois, ganhe ou perca, começaremos
a nossa vida.
Tu vais ganhar e eu termino a revisão. Estou extremamente satisfeita com o que escrevi esta tarde sobre a Torre. Acho que consegui realmente transmitir o que deverá
ter sentido um prisioneiro ali fechado. Adoro quando o trabalho corre bem. Perco completamente o sentido do tempo, mas é uma imersão gloriosa.
Depois de se ter despedido de Stephen, Judith dirigiu-se ao quarto e ficou surpreendida ao constatar que as portas da segunda secção do roupeiro, a área que Lady
Ardsley tinha reservado para as suas roupas, estavam ligeiramente entreabertas. Provavelmente nunca tinham estado bem fechadas, pensou Judith, enpurrando-as com
firmeza até ouvir o estalido do fecho. Não tinha reparado na mochila barata que estava meio escondida por detrás dos vestidos elegantes e fatos de bom corte que
constituíam o guarda-roupa londrino de Lady Ardsley.
Às dez horas da manhã seguinte, Judith ficou surpreendida ao ouvir o zumbido do intercomunicador da entrada da escada. "Um dos prazeres de Londres consiste em ninguém
nos vir visitar sem telefonar primeiro", pensou ela. Com relutância, abandonou a secretária e foi atender o intercomunicador. Era Jack Sloane, amigo de Stephen,
do Devonshire, que lhe solicitava uns minutos do seu tempo.
Era um homem atraente, pensou ela enquanto o via beber o café
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que tinha aceite imediatamente. Quarenta e cinco, mais ou menos. Muito britânico, com o seu cabelo louro e olhos azuis. Acanhado, com aquele toque de timidez que
caracterizava tantos ingleses de boas famílias. Tinha-o encontrado diversas vezes, nas festas de Fiona, e sabia que ele trabalhava para a Scotland Yard. Seria possível
que os boatos que corriam sobre ela e Stephen o tivessem feito começar a investigá-la oficialmente? Aguardou, permitindo-lhe que orientasse a conversa.
- Foi uma coisa terrível, aquela história da bomba na Torre, ontem - disse ele.
-Pavorosa-concordou Judith. - por acaso estive lá de manhã, apenas algumas horas antes de aquilo acontecer. Jack Sloane inclinou-se para a frente. - Miss Chase,
Judith, se me permite, é por isso que estou aqui. Ao que parece, um dos guardas da área das Jóias da Coroa reconheceu-a. Falou com ele?
Judith suspirou.
-Vai achar-me idiota. Eu tinha ido à Torre para captar a atmosfera para um dos capítulos do meu novo livro, que não me estava a soar bem. Receio bem que, quando
estou concentrada, me volte para dentro. Se ele falou comigo, não o ouvi.
- A que horas foi lá? Cerca das dez e meia, penso eu.
- Miss Chase, esforce-se por nos ajudar. Tenho a certeza de que é uma excelente observadora, embora, como diz, estivesse preocupada com a sua pesquisa. Alguém conseguiu
fazer entrar uma bomba durante a tarde. Foi um daqueles dispositivos de plástico, mas bastante mal feito, pelo que pudemos constatar. Não poderia ter sido levado
para lá mais que alguns minutos antes de explodir. No momento em que o guarda reparou no saco e lhe pegou, detonou. Quando passou pela segurança para entrar na Casa
das Jóias, pareceu-lhe que os guardas estavam atentos quando a sua mala passou pelo equipamento de detecção?
- Ontem não levei mala. Meti algum dinheiro no bolso da minha gabardina. -Judith sorriu. -Durante os últimos três meses tenho andado a fazer investigações por toda
a Inglaterra, e dói-me o ombro de carregar tantos livros e máquinas fotográficas. Ontem apercebi-me de que precisava apenas de dinheiro para os táxis e para o bilhete
de entrada, por isso sinto muito, mas não posso ajudá-lo.
Sloane pôs-se de pé.
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Não quer ficar com o meu cartão? perguntou. Por vezes vimos uma coisa e remetemo-la para o subconsciente. Quando obrigamos a nossa mente a um trabalho de pesquisa
e recuperação, de modo semelhante ao uso pelos computadores, é espantosa a quantidade de informações úteis que emergem. Estou muito satisfeito por ter tido a sorte
de não estar na Torre, na altura em que a bomba explodiu.
À tarde já estava sentada à minha secretária disse Judith, apontando para o escritório.
Sloane reparou na pilha de páginas dactilografadas ao lado da máquina. É impressionante. Invejo o seu talento.
Os olhos dele giravam em volta, registando a disposição do apartamento, enquanto ambos se dirigiam para a porta.
Depois das eleições, e quando as coisas tiverem acalmado, sei que a minha família está ansiosa por a conhecer.
"Ele sabe do que se passa entre mim e Stephen", pensou Judith. Sorrindo, estendeu-lhe a mão.
Ficaria encantada.
Jack Sloane olhou rapidamente para a mão dela. Havia uma marca quase imperceptível de uma antiga cicatriz ou marca de nascença na mão direita de Judith, mas nada
que se parecesse com o crescente vermelho-arroxeado que Watkins tinha descrito. "Uma mulher muito simpática", pensou, enquanto descia as escadas. No hall de entrada,
ia abrir a porta para a rua quando entrou uma senhora idosa que carregava um grande saco com artigos de mercearia. A respiração dela era ofegante. Sloane sabia que
o elevador estava avariado.
Posso levar-lhe o saco? perguntou.
Oh, muito obrigada arquejou a mulher. Estava a perguntar a mim mesma se conseguiria subir os três andares, e tinha a certeza de que o ajudante do porteiro não estaria
por aí, como é habitual.
Nessa altura lançou-lhe um olhar astuto, como se pensasse que ele poderia estar a tentar entrar no seu apartamento.
Jack Sloane percebeu o que ela estava a pensar.
Sou amigo de Miss Chase, que mora no terceiro andar disse.
Venho agora de casa dela.
O rosto da mulher iluminou-se.
Eu moro do outro lado do patamar, mesmo em frente dela. Que pessoa adorável. E tão bonita! Uma excelente escritora. Sabia que Sir
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Stephen Hallett a vem visitar? Oh, eu não devia falar disto. Que falta de educação a minha.
Subiam as escadas lentamente, levando Jack o saco. Apresentaram-se. Martha Hayward, disse-lhe ela. Mrs. Alfred Hayward. Pelo tom de tristeza com que ela pronunciou
este nome, Jack ficou certo de que o marido dela já tinha morrido.
Depositou os artigos de mercearia sobre a mesa da cozinha de Mrs. Hayward e, terminada a sua boa acção, preparou-se para sair. Ao despedir-se, fez uma pergunta que
nem esperava ouvir sair dos seus lábios:
Miss Chase costuma usar uma capa?
Oh, sim disse Mrs. Hayward calorosamente. Já a vi diversas vezes com ela, e é bem bonita. Verde-escura. Quando lha elogiei, no mês passado, disse-me que tinha
acabado de a comprar no Harrods.
Reza Patel lia o jornal da manhã no seu consultório. A mão que segurava a chávena tremia, enquanto o médico observava as fotografias das vítimas, mortos e feridos,
do atentado bombista na Torre de Londres. Felizmente, ou infelizmente, a bomba não tinha atingido o seu alvo. Tinha sido colocada num local onde maiores danos poderia
causar às coroas reais e acessórios da coroação, mas, quando o guarda lhe pegara, a força da explosão ocorrera longe das pesadas estruturas de metal que protegiam
aqueles incalculáveis tesouros. Os expositores de vidro tinham ficado estilhaçados, mas o seu precioso conteúdo não sofrera danos. Pegar no embrulho tinha custado
a vida ao guarda, bem como a vida da turista que se encontrava mais perto dele.
Um artigo separado contava a história dos ornamentos reais, como tinham sido quebrados e desmantelados após a execução de Carlos I e recuperados para a coroação
de Carlos II.
Outra vez Carlos I e Carlos II disse Patel, numa voz angustiada. Foi a Judith. Eu sei.
Judith não... Lady Margaret Carew corrigiu Rebecca. Reza, não te sentes na obrigação de ir à Scotland Yard? Ele bateu com o punho na secretária.
Não, Rebecca, não. Tenho uma obrigação para com Judith, a de tentar libertá-la desta presença maligna. Mas não sei se posso fazê-lo. Ela é a mais inocente das vítimas,
não compreendes? A nossa
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única esperança reside no facto de ela possuir uma personalidade forte. Anna Anderson submeteu-se voluntariamente à essência da grã-duquesa Anastásia. Judith lutará
subconscientemente pela sua própria identidade. Temos de dar-lhe tempo.
Patel tentou repetidas vezes, durante o dia, telefonar a Judith mas apenas lhe respondia o gravador. Mesmo antes de sair do consultório, tentou uma vez mais. Judith
atendeu-o. Uma Judith cuja voz transbordava de alegria.
Dr. Patel, recebi as certidões de nascimento. Imagine que tinham sido mal endereçadas. Por isso levaram tanto tempo a chegar. Nós vivíamos na Kent House em Kensington
Court. Lembra-se? Eu tentei dizer-lhe que vivia em Kent Court. Muito parecido, não é? Se eu estiver certa, o nome da minha mãe era Elaine. O meu pai era oficial
da RAF, o tenente Jonathan Parrish.
Judith, que boas notícias! Que é que vai fazer agora?
Amanhã vou a Kent House. Talvez alguém se lembre de qualquer coisa sobre a família, alguém que fosse jovem nessa altura e ainda viva no edifício. Se não resultar,
hei-de conseguir consultar os arquivos da RAF. A minha única preocupação é que Stephen saiba de alguma coisa, se eu começar a investigar em arquivos governamentais,
e sabe o que ele pensa a este respeito.
Eu sei. E como vai o livro?
Mais uma semana e estará pronto para editar. Já sabe que as sondagens colocam os Conservadores a ganhar? Não seria maravilhoso eu terminar o livro, ele ganhar as
eleições e, como bónus, eu conseguir localizar a minha família?
Maravilhoso, na verdade. Mas não se esforce demasiado. Tem tido problemas com lapsos de memória?
Nem um. Sento-me à secretária e o dia transforma-se em noite. Quando Patel desligou, olhou para Rebecca, que tinha estado a escutar na extensão.
Em que estás a pensar? perguntou-lhe ela.
Há esperanças. Quando Judith terminar o livro, deixará de se concentrar na Guerra Civil. Descobrir as suas raízes irá satisfazer a sua fome profunda. O casamento
com Sir Stephen ocupá-la-á por completo. O domínio de Lady Margaret desaparecerá. Vamos ver.
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O comandante Sloane apresentou-se ao comissário delegado Barnes, na Scotland Yard. Apenas o inspector Lynch teve permissão para se reunir a eles.
Falou com Miss Chase? perguntou Barnes.
Sloane reparou que, durante as semanas que se haviam seguido ao primeiro atentado bombista, no rosto magro de Barnes tinham começado a cavar-se profundas rugas,
que lhe corriam ao longo das faces e lhe vincavam a testa. Como chefe do Departamento Antiterrorismo, Barnes era responsável perante o comissário delegado do Crime,
que era a pessoa de mais elevado posto na Scotland Yard, depois do comissário. Sabia que Barnes tinha assumido a terrível responsabilidade de não falar aos seus
superiores da possível ligação de Judith Chase com os atentados. Qualquer deles teria contactado imediatamente Stephen Hallett. O comissário não gostava de Stephen
e acolheria com satisfação qualquer oportunidade de o embaraçar. Sloane admirava a decisão de Barnes de ocultar o nome de Judith; ao mesmo tempo, não invejava a
Barnes as consequências que sofreria se estivesse a laborar num erro.
O gabinete estava bastante aquecido, mas o dia frio e nublado fazia que Sloane desejasse uma chávena de café. Detestava as notícias que ia ter de transmitir.
Barnes carregou no intercomunicador e disse à secretária que retivesse todas as chamadas, hesitou, e depois disse bruscamente:
Excepto as óbvias. Recostando-se na cadeira, uniu as mãos, com os indicadores a apontar para cima, o que era sempre um sinal para os seus subordinados de que valia
mais responderem às suas perguntas.
Falou com ela, Jack disse Barnes com brusquidão. Que houve?
Ela não tem cicatriz alguma. Tem, efectivamente, umas ligeiras marcas na mão direita, mas é preciso estar a um centímetro da mão para se verem. Esteve na Torre ontem
de manhã, não de tarde. Não falou com o guarda e, se ele falou com ela, não deu por isso.
Então a história dela diverge do relato do guarda. Mas que é que ele queria dizer com "voltou"?
Comissário interveio Lynch. Não lhe parece tratar-se da mesma situação que se verificou com Watkins... não a mesma mulher, mas outra muito parecida com ela?
Assim parece. Suponho que devemos agradecer a Deus por não termos de prender a futura mulher do próximo primeiro-ministro, se
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é que é assim disse Barnes. Meus senhores, obviamente o facto de o guarda ter visto Miss Chase e de ela confirmar ter estado na Torre de manhã deve fazer parte do
relatório oficial. Mas não demos ênfase... e repito, não demos ênfase alguma... ao "voltou". É evidente que alguém que se parece com Miss Chase, a mulher que disse
a Watkins que se chamava Margaret Carew, é aquela que procuramos, mas por lealdade para com Miss Chase e Sir Stephen o nome dela não deverá ser arrastado para isto.
O comandante Sloane pensou na sua longa amizade com Stephen, e na preocupação que Judith Chase revelara ao falar com ele do atentado. Franzindo a testa e baixando
a voz, disse:
Há um outro facto que precisa de saber. Judith Chase possui uma dispendiosa capa verde-escura, que comprou no Harrods há um mês.
Judith encontrava-se diante da Kent House, no n. 34 de Kensington Court, olhando para os parapeitos em ameias e para a torre ornamentada de um edifício de apartamentos
em estilo Tudor. Mary Elizabeth Parrish e Sarah Courtney Parrish haviam sido levadas para aquela casa, após o seu nascimento no Queen Mary Hospital. Tocou à campainha
para chamar o porteiro e perguntou a si mesma, ao olhar para o mármore gasto do chão do hall de entrada, se a mente não estaria a pregar-lhe partidas. Lembrar-se-ia
efectivamente de correr sobre ele até às escadas, havia tanto tempo?
A mulher do porteiro tinha perto de 60 anos. Vestindo uma longa camisola de malha por cima de uma saia de lã deformada, com os pés enfiados em sapatos azuis e brancos
de imitação de cabedal, com o rosto simpático despido de maquilhagem mas enquadrado por cabelos brancos ondulados, limitou-se a entreabrir a porta:
Sinto muito, mas não temos um único apartamento para alugar disse.
Não é para isso que aqui estou. Judith entregou à mulher o seu cartão. Já tinha decidido o que havia de dizer-lhe. A minha tia tinha uma amiga muito querida que
viveu neste prédio durante a guerra. Chamava-se Elaine Parrish. Tinha duas filhas pequenas. Já foi há muito tempo, mas a minha tia tinha esperanças de conseguir
encontrá-la.
Oh, minha filha, não creio que ainda haja registos. O prédio já foi vendido imensas vezes, e de que serviria haver registos de pessoas
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que saíram? Há quantos anos foi isso? Quarenta e cinco ou cinquenta! Oh, é impossível. A mulher do porteiro começou a fechar a
porta.
Espere um pouco, por favor suplicou-lhe Judith. Sei que está muito ocupada, mas talvez eu pudesse pagar-lhe o tempo que perder.
A mulher sorriu.
Chamo-me Myrna Brown. Não quer entrar, minha filha? Há
realmente uns registos antigos na arrecadação.
Duas horas depois, com as unhas falhadas, sentindo-se suja e coberta de poeira por andar a mexer em dossiers velhos, Judith saiu da arrecadação e foi ao encontro
de Myrna Brown.
Acho que tinha razão. Não há hipótese. Houve um grande movimento nos vinte anos de registos que ali tem. Só há uma coisa. O apartamento quatro B. Pelo que vi, não
há registo de ter mudado de inquilinos até há quatro anos.
Myrna Brown ergueu as mãos ao ar.
Estou a ficar esquecida. Claro! Nós só aqui estamos há três anos, mas o porteiro que se reformou falou-nos de Mrs. Bloxham. Tinha 90 anos quando finalmente decidiu
abandonar a casa e ir viver para um lar. Viva como um coral, dizia ele, e saiu daqui sob protesto, mas o filho não queria que ela continuasse a viver sozinha.
Quanto tempo viveu ela aqui? Judith começou a sentir a boca seca.
Sempre, minha filha. Veio para aqui quando acabou de casar, com 20 anos, creio eu.
Ainda é viva?
Não faço a mínima ideia. Não é provável, acho eu. Mas nunca se sabe, não é assim?
Judith engoliu em seco. Tão perto. Tão perto. Para recuperar a calma, olhou em volta da pequena sala, com o seu garrido papel de parede às flores, um sofá rígido
de crina de cavalo e uma cadeira a condizer, aquecedores eléctricos por baixo das longas janelas estreitas.
O aquecedor. Ela e Polly tinham feito uma corrida. Ela tropeçara e caíra, embatendo no aquecedor. Lembrava-se do cheiro horrível a cabelos queimados, da sensação
dos cabelos agarrados à superfície Metálica. E depois uns braços que a envolviam, acarinhando-a, descendo a escada com ela ao colo, a pedir ajuda. A voz jovem e
assustada da sua mãe.
O correio de Mrs. Bloxham deve, com certeza, ser-lhe enviado.
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O correio não pode fornecer endereços, mas por que é que não telefonamos para a administração do prédio? Talvez eles saibam
Ao fim da tarde, num carro alugado, Judith atravessava os portões do Lar de Preakness, em Bath. Tinha telefonado antes. Muriel Bloxham continuava a viver lá, embora,
segundo lhe disseram, estivesse muito desmemoriada.
A enfermeira-chefe levou-a à sala de convívio. Era uma sala de grandes janelas, cheia de sol, com cortinados e alcatifa de cores alegres. Havia quatro ou cinco idosos,
nas suas cadeiras de rodas, em volta de um aparelho de televisão. Três mulheres que aparentavam setenta e tal anos conversavam e faziam tricot. Um homem de cabelos
brancos e rosto encovado olhava em frente, executando, com uma mão, os movimentos de um maestro. Ao passar por ele, Judith constatou que o homem trauteava uma música
em voz baixa com grande exactidão. "Santo Deus", pensou, "pobre gente..."
A enfermeira devia ter visto a expressão do seu rosto.
É indubitável que há pessoas que vivem mais tempo do que deviam, mas pode estar certa de que todos os nossos pensionistas se sentem aqui muito confortáveis.
Judith sentiu que estava a ser censurada.
Bem vejo que sim disse em voz baixa. "Sinto-me tão cansada", pensou. "O final do livro, o final da campanha, talvez o final da pista." Sabia que a enfermeira-chefe
pensava, provavelmente, que ela fosse parente da idosa Mrs. Bloxham, talvez uma parente com um complexo de culpa, que vinha fazer uma visita apressada.
Estavam junto da janela, que dava para um parque.
Viva, Mrs. Bloxham disse a enfermeira-chefe com uma voz animada. Hoje temos companhia. Não fica satisfeita?
A mulher, magra e pequena, mas ainda direita na sua cadeira de rodas, disse:
O meu filho está nos Estados Unidos. Não espero mais visitas. A sua voz era firme e lúcida.
Então isso são maneiras de tratar uma visita? ralhou a enfermeira-chefe.
Judith tocou no braço da enfermeira-chefe.
Por favor. Nós vamos entender-nos. Havia uma cadeira junto de uma pequena mesa. Puxou-a para junto da idosa senhora e sentou-se. "Que rosto maravilhoso", pensou,
"e que olhos ainda tão inteligentes." O braço direito de Muriel Bloxham estava pousado sobre a manta que a envolvia. Parecia muito fino e encolhido.
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Afinal quem é a senhora? perguntou Mrs. Bloxham. Sei
que estou a ficar velha, mas não a reconheço. A sua voz era fraca mas ainda perfeitamente clara. Sorriu. Quer a conheça, quer não, fico satisfeita por ter companhia.Depois
espalhou-se-lhe pelo rosto um ar de consternação. Devia conhecê-la? Dizem-me que estou muito esquecida.
Judith apercebeu-se imediatamente de que falar constituía um esforço para a velha senhora. Teria de fazer rapidamente as suas perguntas.
Chamo-me Judith Chase. Penso que deve ter conhecido a minha família há muito tempo, e queria fazer-lhe perguntas a esse respeito.
Mrs. Bloxham estendeu a mão esquerda e acariciou o rosto de Judith.,
É tão bonita. É americana, não é? O meu irmão casou-se com uma americana, mas isso foi há muito tempo.
Judith apertou na sua a mão gelada e coberta de veias azuladas da senhora.
Estou a falar do que se passou há muito tempo disse. Durante a guerra.
O meu filho esteve na guerra disse Mrs. Bloxham. Esteve prisioneiro, mas acabou por voltar. O mesmo não aconteceu com outros. Inclinou a cabeça para o peito e fechou
os olhos.
"Não vale a pena", pensou Judith. "Ela não vai lembrar-se." Notou que a respiração de Muriel Bloxham se tornava regular. Judith apercebeu-se então de que ela tinha
adormecido. Enquanto Mrs. Bloxham dormia, Judith estudou as feições da velha. Blammy tomava conta de mim e da Polly. Fazia-nos biscoitos e lia-nos histórias.
Tinha passado quase meia hora quando Muriel Bloxham voltou a abrir os olhos.
Desculpe. É o que sucede quando somos velhos disse ela. Os seus olhos estavam novamente cheios de vida.
Judith sabia que não podia perder tempo.
Mrs. Bloxham, esforce-se por pensar. Lembra-se de uma família de nome Parrish que viveu em Kent House durante a guerra? Bloxham abanou a cabeça.
Não, nunca ouvi esse nome.
Tente, Blammy suplicou Judith. Tente.
Blammy. O rosto de Muriel Bloxham iluminou-se. Nunca mais ninguém me chamou assim desde o tempo das gémeas.
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Judith esforçou-se por não elevar a voz.
As gémeas.
Sim. Polly e Sarah. Que lindas meninas. Elaine e Jonathan foram para lá viver quando se casaram. Ela era muito loura. Ele tinha cabelos escuros, era alto e bonito.
Que apaixonados eles estavam. Ele foi abatido uma semana depois de as gémeas nascerem. Eu ia lá a casa ajudar Elaine. Estava inconsolável. Depois, quando começaram
a cair as primeiras bombas, decidiu levar as meninas para o campo. Nenhum deles tinha família, sabe? Arranjei maneira de ela ficar em casa de uns amigos meus em
Windsor. No dia em que elas partiram, caiu uma bomba na estação de caminho-de-ferro.
A voz de Mrs. Bloxham estremeceu.
Foi terrível. Terrível. E laine morreu. A pequena Sarah ficou feita em pedaços, como muito mais gente. Nunca encontraram o corpo. Polly ficou gravemente ferida.
Polly não morreu!
O rosto de Mrs. Bloxham tornou-se inexpressivo.
Polly?
Polly Parrish, Blammy. Que lhe sucedeu? Judith sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Há-de conseguir lembrar-se.
Blammy sorriu.
Não chore, minha querida. Polly está muito bem. De vez em quando escreve-me. Tem uma livraria em Beverly, no Yorkshire. Chama-se Páginas Parrish.
Sinto muito, minha senhora, mas tem de ir-se embora. Já a deixei ficar para além da hora da visita. Havia reprovação no rosto da enfermeira-chefe.
Judith pôs-se de pé, inclinou-se e beijou os cabelos da velha senhora.
Adeus, Blammy, Deus a abençoe. Hei-de voltar a visitá-la. Enquanto se afastava, ouviu Muriel Bloxham falar à enfermeira-chefe das gémeas que lhe chamavam Blammy.
O amplo mecanismo de investigação da Scotland Yard começou a investigar discretamente a vida de Judith Chase. Dentro de alguns dias, os resultados empilhavam-se
sobre a secretária do comandante Sloane. Registos que vinham desde a infância, relatórios psicológicos, artigos que ela tinha escrito para o Washington Post, referências
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oficiais, notas escolares, actividades, clubes, discretos interrogatórios a colegas em Washington, ao seu editor, ao seu contabilista.
Tudo isto não passa de um monte de elogios comentou Sloa-
com Philip Barnes. Não há a mínima sugestão de protestos antigovernamentais ou de filiações radicais, desde que ela nasceu. Três vezes chefe da sua classe na escola
interna, residente do conselho de alunas em Wellesley, voluntária para todos os trabalhos, dedicada à caridade. Ainda bem que não nos precipitámos e não revelámos
que desconfiávamos dela.
Só há aqui um detalhe que me preocupa. Barnes tinha o livro de curso da escola interna aberto na sua frente. Por debaixo da fotografia dela havia a habitual biografia
sucinta, e uma frase que ele tinha sublinhado. "Miss Arranja-Tudo. Diz que quer ser escritora, mas não se admirem se a virem a construir pontes."
Aquelas bombas eram de fabrico caseiro, mas bastante eficazes. Se Watkins só lhe forneceu a gelignite, foi necessária uma certa habilidade mecânica para as preparar,
de modo a passarem despercebidas.
Não acho isso significativo, Comissário protestou Sloane. As minhas duas irmãs possuem uma habilidade mecânica natural, mas duvido que se servissem dela para fins
terroristas.
No entanto, quero que continuem a vigiar Miss Chase de noite e de dia. Lynch e Collins, têm alguma coisa a relatar?
Nada de especial, Comissário. Ela passa a maior parte do tempo no apartamento, mas ontem foi à Kent House, em Kensington Court. Foi perguntar por uma família que
viveu lá há muitos anos... gente conhecida da sua tia.
Da tia? Barnes fitou-o, alerta. Ela não tem parentes. Sloane franziu a testa. Era isso que tinha estado a preocupá-lo.
Devia ter-me apercebido disso, mas ela saiu da Kent House e foi a um lar em Bath, visitar uma senhora idosa, de modo que tudo me pareceu bastante inocente.
Por quem perguntou ela?
Não tenho a certeza, Comissário. Quando Lynch tentou falar com a velhota, ela já não se lembrava de nada. Parece que a mente dela já divaga um pouco.
^- Então sugiro-lhe que vá falar com a velhota e veja se consegue fazê-la falar. Não se esqueça de que Judith Chase foi uma órfã de guerra inglesa. Tanto quanto
sabemos, pode ter localizado pessoas do seu passado que estejam a influenciá-la.
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MARY HIGGINS CLARK
Barnes pôs-se de pé.
Faltam só seis dias para as eleições. Embora sem grande vantagem ainda, penso que os Conservadores vão ganhar. Por isso temos de ilibar absolutamente Judith Chase
antes de nos vermos perante a embaraçosa situação de fazer cair o governo antes de ele começar a funcionar!
Quando Judith regressou a casa, vinda de Bath, sentia-se como se se tivesse forçado emocional e fisicamente a um ponto que ultrapassava a exaustão. Preparou um banho
quente, permaneceu vinte minutos dentro de água e depois envergou uma camisa de dormir e um roupão. Ao olhar-se no espelho, constatou que estava mortalmente pálida,
que o seu cabelo estava a precisar de um corte e que o seu rosto estava tão magro que perdera a sua beleza. "Tenho de conceder a mim mesma um dia de descanso", pensou,
"amanhã vou fazer uma massagem facial, e arranjar as unhas e o cabelo..." Deixaria o livro em paz por um dia ou dois, e depois voltaria a ler as páginas que tinha
marcado para serem revistas. E no dia seguinte iria visitar as Páginas Parrish em Beverly, e descobrir se Blammy estava certa quanto a Polly Parrish...
"Polly viva! A minha irmã", pensou Judith. "A minha irmã gémea!" A revelação de que poderia ter efectivamente uma parente próxima era simultaneamente entusiasmante
e assustadora. "Vou até lá visitar a loja", pensou. "Por agora vou limitar-me a observá-la." Sabia que não poderia identificar-se a Polly antes de saber mais coisas
sobre ela. Mas mais tarde, depois da campanha, Stephen poderia mandar investigá-la. Ele não objectaria a isso, desde que ninguém conhecesse a razão da investigação.
"Mas ela vai passar", garantiu Judith a si mesma, ao meter-se na cama, demasiado fatigada para aquecer sequer um prato de sopa. "É curioso ela também se dedicar
ao mundo dos livros... Terá ela tentado escrever também?..."
Adormeceu tão profundamente que o telefone tocou uma dúzia de vezes antes que ela o ouvisse. A voz preocupada de Stephen acabou de acordá-la.
Judith, já estava a ficar preocupado. Estás assim tão cansada?
Assim tão feliz disse ela. Vou descansar uns dias para desanuviar a cabeça, depois embrulho o livro e entrego-o.
Querida, afinal não vou a Londres antes das eleições. Importas-te?
102
Judith sorriu.
Quase fico satisfeita. Pareço uma boneca de trapos. Uns dias mais dar-me-ão a oportunidade de me tornar apresentável.
Voltou a adormecer, pensando: "Stephen, amo-te... Polly, sou eu... A Sarah..."
Margaret sentia o seu poder sobre Judith a enfraquecer. Agora que o livro estava pronto, sabia que Judith afastaria a sua atenção da Guerra Civil. Margaret tinha
gasto as suas energias a preparar-se para o dia em que controlaria Judith. Agora sabia que podia falar como Judith, sem a cadência que Rob Watkins tinha achado tão
divertida. Já se sentia à vontade no mundo de Judith. Tinha-se apercebido naquele dia de algo que escapara por completo a Judith. Estavam a ser seguidas.
Havia tanta coisa a fazer. Tinha escolhido o local onde seria colocada a próxima bomba. Teria forças para controlar Judith novamente?
O inspector Lynch passou uma boa parte do dia seguinte à porta do salão de beleza do Harrods. Quando Judith de lá saiu às cinco horas, o seu cabelo brilhava, o seu
rosto resplandecia, as suas unhas tinham um oval perfeito. Tinha um ar descansado e feliz.
"Que estúpida perda de tempo", pensou Lynch, enquanto a seguia até ao restaurante, onde ela comeu um prato de spaghetti fumegante e bebeu Chianti; depois seguiu-a
até casa. "É tão terrorista como a minha avó", murmurou para si próprio enquanto ocupava o seu posto dentro de um carro situado do outro lado da rua, em frente da
porta do prédio onde ficava o apartamento dela. O seu substituto, Sam Collins, devia estar a chegar. Collins, um polícia de inteira confiança, tinha sido informado
de que tinham recebido uma carta anónima a implicar Miss Chase nos atentados bombistas, e, embora achassem a ideia ridícula, tinham de investigar. Tinha sido avisado
de que se tratava de um caso "altamente secreto".
Naquela noite, Lynch reparou que havia luz na janela da frente do apartamento de Judith. Devia ser o escritório, de acordo com a descrição do apartamento feita pelo
comandante Sloane, portanto ela estava novamente a trabalhar. Collins chegou alguns minutos depois.
Vais ter uma noite tranquila, posso garantir-te disse-lhe Lynch. Ela não é de farras.
Collins acenou afirmativamente com a cabeça. Era um homem de
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feições pesadas que parecia sempre trazer uma lancheira na mão. Lynch sabia que ele era extraordinariamente ágil.
Judith não tinha planeado trabalhar, mas depois da massagem facial, da pedicura e manicura, e da cabeleireira, sentia-se tão agradavelmente rejuvenescida que achou
que poderia rever as páginas que tinha marcado. A alegria da chamada telefónica da manhã para Beverly tinha-a conservado animada durante todo o dia. As Informações
tinham-lhe dado rapidamente o número de telefone das Páginas Parrish. Tinha ligado para lá e perguntado quais as horas a que a livraria estava aberta. Com naturalidade,
tinha perguntado:
Polly Parrish ainda é a dona? A resposta tinha sido:
Oh sim. Deve estar a chegar. Deseja que ela ligue para si?
Não é preciso. Obrigada.
Judith tinha passado o dia a pensar: "Amanhã. Amanhã vejo-a." E, dentro de poucos dias, as eleições estariam terminadas. Nas últimas semanas não tinha pensado nos
anos que a aguardavam junto de Stephen. Agora sentia vontade de ir para Edge Barton e passar dias e semanas ininterruptos com ele. Dias e semanas ininterruptos quando
Stephen fosse primeiro-ministro? Judith sorriu tristemente já teriam sorte se tivessem horas ininterruptas!
Apoiando o queixo com a mão, olhou afectuosamente em volta para a pequena biblioteca de Lady Ardsley, a sala que estava a utilizar como escritório. Volumes antigos
misturados com romances da Renascença, bugigangas Vitorianas ao lado de magníficas porcelanas antigas, um naperon engomado em cima de uma mesa Jacobeana muito bela.
Edge Barton, com os seus enormes tectos altos e salas magnificamente amplas, as suas janelas graciosas e as portas antigas... O interior estava a precisar dos cuidados
e da ternura de uma mulher, de um toque feminino. Parte do mobiliário teria de ser estofado de novo. Os cortinados precisavam de ser substituídos. Judith pensou
como seria bom pôr a sua marca em Edge Barton...
Volta ao trabalho. O Royal Hospital.
Era como se uma ordem lhe tivesse penetrado na mente. Surpreendida, afastou o cabelo que lhe caía sobre a testa e reparou que a cicatriz da mão tinha adquirido um
tom vagamente rosado. "Tenho de consultar um cirurgião plástico por causa desta maldita cicatriz",
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prometeu a si mesma. "É incrível a maneira como aparece e desaparece.
Folheou as páginas do livro até ao último capítulo, onde tinha marcado a secção sobre o Hospital Real de Chelsea. Era um belo edifício, magnificamente conservado,
que tinha sido construído por Carlos II como residência para veteranos e soldados inválidos.
Os veteranos de Carlos II. Os Simon Halletts do país agarrados às abas da casaca do Alegre Monarca! Era assim que lhe chamavam, o Alegre Monarca. Vincent morto em
combate, John executado, eu traída e assassinada e o Alegre Monarca constrói uma residência para os seus soldados, onde eles pudessem viver "como num colégio ou
num mosteiro".
Margaret empurrou o livro para o lado, atirando deliberadamente capítulos inteiros para o chão em volta da secretária. Pôs-se rapidamente de pé, dirigiu-se ao quarto
e retirou do roupeiro o saco que Rob Watkins lhe tinha dado. Havia mais luz na cozinha. Levou o saco para lá e despejou o seu conteúdo sobre a mesa.
Em frente da casa, Collins observava com crescente interesse a sucessão de luzes que se acendiam no apartamento Ardsley. Judith Chase devia ter saído do escritório
sem apagar a luz, pelo que, provavelmente, tencionava lá voltar. Faltava apenas um quarto para as oito. A luz acesa do quarto quereria dizer que ela tencionava deitar-se,
ou estaria a vestir roupa mais confortável? Viu acender-se a luz da cozinha e consultou o diagrama do apartamento que Sloane lhe tinha dado. As janelas do escritório,
da cozinha, da sala e do quarto davam todas para a rua; a porta da entrada e o hall que ligava as salas ficavam do lado de trás.
Sam apercebeu-se de que o tempo estava a mudar rapidamente. A noite tinha começado por ser límpida, com estrelas e a lua em quarto crescente. Agora haviam-se acumulado
nuvens espessas, obviamente ansiosas por cumprir rapidamente o seu destino.
Do interior do seu carro discreto, Sam continuou a vigiar o apartamento. Viu apagarem-se as luzes da cozinha e do quarto. "Provavelmente mudou de ideias, fez uma
chávena de chá", pensou ele, começando a recostar-se no assento. Subitamente deteve-se. O estore da janela do escritório tinha sido afastado. Por momentos, teve
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uma visão nítida de Judith Chase. Ela estava a olhar para o seu carro. Vestia roupa para sair.
Sam recuou para a obscuridade do interior do carro. "Ela sabe que estou aqui", concluiu. "Está a planear sair." Tinha inspeccionado o prédio na primeira noite de
serviço e sabia que havia uma porta nas traseiras do prédio e um pátio estreito que podia ser utilizado como saída entre os prédios, para a rua de trás.
Aguardou um momento e depois concluiu que Judith ia deixar a luz do escritório acesa. Deslizou para fora do carro e correu pelo passeio de cimento que separava as
casas. A porta de serviço abriu-se e Judith saiu. Sam recuou e espreitou da esquina do prédio. Havia luz suficiente para perceber que ela tinha vestido uma capa
escura. "Aquela denúncia é capaz de ser fundamentada", pensou. "Ela pode estar relacionada com os atentados bombistas! Que irá ela fazer agora? Uma reunião secreta
com os terroristas?" Teve uma grata visão de si próprio como um homem que resolvera o caso dos atentados bombistas de Londres. Não seria nada mau para a sua carreira,
pensou...
Margaret avançava rapidamente pelas ruas com pouco movimento. O homem da Scotland Yard estava, sem dúvida, a dormitar no carro, naquele momento. Por baixo da capa,
transportava o embrulho que tinha preparado. Tinha sido inocentemente introduzido num pequeno saco de compras do supermercado mais próximo, vendo-se nitidamente
uvas e maçãs pela abertura entre as pegas o tipo óbvio de saco com que entrava num lar de veteranos. As horas de visita deviam estar a chegar ao fim. Tinha pouco
tempo.
Sam Collins seguia silenciosamente a elegante figura que atravessava rapidamente a cidade e se dirigia para o Tamisa. Cerca de meia hora depois, quando ela voltou
para o Royal Hospital Road, abriu os olhos de surpresa. Que iria ela fazer? Iria simplesmente visitar um pensionista? Teria notado que estava a ser seguida e decidido
servir-se da porta das traseiras apenas para escapar ao incómodo de um seguidor? Ela vestia uma capa verde-escura, mas a própria mulher de Sam já tinha comentado
que as capas estavam muito em moda naquela estação e tinha mesmo comprado uma para oferecer à filha no dia do seu aniversário.
O vestíbulo em cúpula do magnífico edifício achava-se cheio de
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gente, que se deslocava de um lado para o outro. O relógio sobre o balcão da recepção indicava que eram oito e vinte. Sam viu Judith dirigir-se a esse balcão e pousar
sobre ele um pequeno saco de fruta. Quando ela recebesse o seu cartão de visitante, ele perguntaria à recepcionista quem era o pensionista que ela ia visitar, decidiu.
Mas depois, um instinto infalível fê-lo avançar até ao balcão e colocar-se por detrás dela, como se também fosse pedir um cartão.
- Gostaria de visitar Sir John Carew - disse Margaret numa voz baixa e apressada.
Carew! Collins deu um passo em frente.
- Posso falar consigo, minha senhora?
Margaret voltou-se bruscamente, com os olhos a arder de raiva. Notou que aquele homem corpulento, o homem que a devia ter seguido, estava a olhar para a sua mão.
A cicatriz parecia arder, num vivo tom roxo-avermelhado.
Pegou no saco que colocara sobre o balcão da recepção e atirou-o pelo vestíbulo fora, contra um trio de porteiros que tinham acabado de entrar no vestíbulo.
Instintivamente, Sam compreendeu que o saco continha uma bomba. Em poucos segundos, tinha atravessado o vestíbulo e mergulhou sobre ele...
Margaret encontrava-se no pátio quando a bomba detonou, reduzindo o vestíbulo a destroços em voo, paredes que se desmoronavam e vítimas aos gritos. Os vidros das
janelas estilhaçaram-se. Um fragmento de vidro roçou-lhe pelo rosto, quando escapava para aprotecção sombria da chuva que começara a cair de mansinho.
Reza Patel e Rebecca estavam a ver televisão no seu apartamento quando, durante o noticiário, falaram da tragédia do Hospital Real. Cinco mortos, doze pessoas gravemente
feridas. Patel, com o rosto cor de cinza, telefonou a Judith. Ela atendeu imediatamente.
-Estou sentada à secretária, Doutor. A trabalhar como habitualmente. - Patel achou que a sua voz soava alegre e normal. Depois Judith riu-se. - Só espero que os
meus leitores não tenham a mesma
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reacção ao meu livro que eu tive esta noite. Adormeci profundamente a lê-lo.
"Devo ter estado praticamente inconsciente", pensou Judith, ao encontrar uma página que não tinha notado, quando apanhara as folhas do chão. Apagou a luz do escritório,
dirigiu-se ao quarto e despiu-se rapidamente. Stephen tinha-lhe dito que tinha uma reunião até tarde e não tentaria telefonar-lhe nessa noite.
Sentia dores nas pernas. "Até parece que andei a correr a maratona", pensou. Achou que uma aspirina a ajudaria a descontrair-se. Observou-se no espelho do armário
dos medicamentos quando foi buscar as aspirinas. O seu novo penteado estava todo desmanchado. Os cachos em volta do rosto tinham-se transformado em anéis, e, quando
os puxou para trás notou que estavam ligeiramente húmidos, "Devia estar muito calor no escritório", concluiu. "Mas eu nunca transpiro...
Aplicou creme no rosto e ficou surpreendida ao ver uma gota de sangue numa das faces. Tinha um pequeno corte. Não se lembrava de ter sentido coisa alguma durante
a massagem facial, mas efectivamente a massagista tinha unhas compridas...
Quando se dirigia para a cama, notou, com irritação, que as portas do roupeiro de Lady Ardsley estavam de novo entreabertas. "Vou atá-las", pensou. "Seria terrível
que ela passasse por aqui e pensasse que eu andava a mexer nas coisas dela."
Na cama, com as luzes apagadas, tentou descontrair-se, mas as pernas continuavam a doer, a cabeça a latejar, e sentiu-se invadida por uma esmagadora sensação de
depressão. "É por causa de todo este trabalho", pensou, "e por não ter falado com Stephen esta noite." Murmurou "Stephen e Polly", mas os nomes não a reconfortaram.
Profundamente triste, teve a sensação de que ambos estavam a fugir-lhe.
Profundas rugas de desgosto e raiva marcavam o rosto do comissário delegado Barnes. O comandante Sloane e o inspector Lynch, cujos olhos estavam avermelhados de
fadiga, ainda conseguiam manter-se direitos nas suas cadeiras junto da secretária de Barnes. Sabiam que, por muito grave que fosse o problema, Barnes não gostava
de notar sinais de cansaço. Tinham ambos estado no local do° atentado durante toda a noite, mas em vão. Um médico que chegava ao vestíbulo tinha visto um saco atirado
pelo ar e um homem
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corpulento que corria para ele. O instinto tinha-o feito refugiar-se no corredor - uma reacção que lhe tinha indiscutivelmente salvo a vida. Os feridos não tinham
reparado em pessoa alguma com um saco. Os três porteiros, a cujos pés a bomba tinha caído, a recepcionista e o inspector Collins estavam mortos.
- A questão - disse abruptamente Barnes - está em saber se Collins seguia Judith Chase. Tudo indica que sim. A outra única possibilidade consiste em ter saído alguém
do apartamento dela ou de qualquer outro apartamento do prédio que tenha parecido suspeito a Collins. Telefonou a Miss Chase, Jack?
- Telefonei, sim, há uma hora. Servi-me da desculpa, um pouco esfarrapada, de que estávamos desesperados para encontrar uma pista, por muito pequena que fosse, e
queríamos saber se ela se recordava de qualquer coisa invulgar que tivesse visto na área das Jóias da Coroa.
- Qual foi a resposta dela?
-Directa. Absolutamente nada. Repetiu-me que a sua mente andava muito concentrada quando fazia pesquisas. Deixa praticamente de reparar naquilo que a rodeia.
- Detectou nervosismo na voz dela? Lynch franziu a testa.
- Nervosismo, não, Comissário. Pareceu-me abatida, isso sim. Disse-me que tinha terminado o seu livro e que ele tinha exigido muito dela. Tencionava ficar todo o
dia na cama, a lê-lo, e depois ia enviá-lo ao agente.
Barnes bateu com o punho na mesa, um gesto que avisava os seus subordinados de que estavam em maus lençóis.
-Por que diabo Collins não nos avisou de que ia abandonar o carro? Só levava trinta segundos para se servir do telefone da viatura.
- Talvez não dispusesse desses trinta segundos, Comissário. -Ou talvez não se desse a esse trabalho. Raios o partam, Sam era
um dos nossos melhores homens. Salvou uma dúzia de vidas, ao atirar-se sobre aquela bomba. Jack, e aquela velhota que Judith Chase foi visitar? Que é que ela disse
exactamente?
-Absolutamente nada, Comissário. Nem um único pensamento que fizesse sentido. A enfermeira-chefe disse-me que ela tem momentos de absoluta lucidez. Depois a mente
dela fica à deriva durante dias seguidos. A única informação que consegui foi que, depois de Miss Chase sair, Mrs. Bloxham falou à enfermeira-chefe de duas
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irmãs gémeas de 2 anos de idade, Sarah e Polly, que lhe chamavam Blammy. Gémeas! o inspector Lynch deu um salto na cadeira, esquecendo toda a fadiga. Sr. Comissário,
como sabe, Judith Chase foi encontrada a vaguear em Salisbury quando tinha 2 anos de idade. Nunca foi reclamada por pessoa alguma, apesar de se apresentar bem vestida.
Será possível que ela esteja a tentar encontrar, ou tenha mesmo encontrado, a sua verdadeira família? E tenha localizado uma irmã gémea?
Barnes mordeu o lábio inferior e puxou impacientemente para trás as madeixas de cabelo que lhe haviam caído sobre a testa.
Uma irmã gémea que se pareça muito com ela e possa ter filiações políticas desagradáveis? Fazia sentido. Meu Deus, amanhã é o dia das eleições. Temos de resolver
isto. Judith Chase esteve a fazer perguntas àquela velhota apenas há dois dias. Não me parece que ela tenha encontrado o que procura. Por isso, não podemos ainda
partir do princípio de que ela esteja em contacto com pessoas do seu passado. Se não está... e se nós conseguirmos descobrir quem são, e, se necessário, avisá-la
para que não entre em contacto com elas... talvez consigamos conservá-la a ela e a Sir Stephen fora disto. Ou, se ela as encontrou e se juntou a más companhias,
quero saber disso antes que Sir Stephen seja primeiro-ministro. Jack Sloane pôs-se de pé.
Comissário.
Volte àquele lar! Arranje um psiquiatra. Diga-lhe o que quer saber. Talvez ele tenha uma maneira de interrogar Mrs. Bloxham, se é que é esse o nome dela. A Chase
esteve a fazer perguntas à mulher do porteiro da Kent House, no outro dia, não esteve?
Esteve.
Vá até lá e fale outra vez com a mulher do porteiro. Além disso, quero uma lista de todos os pensionistas que estavam na noite passada no Hospital Real. Descubra
quais deles tiveram visitas por volta das oito e meia. Fale com essas visitas. Alguém pode ter visto Collins e a pessoa que ele seguia. E, pelo amor de Deus, assegure-se
de que Judith Chase não dá um passo sem alguém atrás dela.
O telefone sobre a secretária de Barnes começou a tocar insistentemente. A sua secretária parecia sem fôlego.
Peço desculpa de interromper. O comissário chefe quer que saiba que Sir Stephen convocou uma reunião de emergência para conhecer os progressos da investigação.
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Stephen telefonou a Judith às nove horas da manhã seguinte,
acordando-a de um sono profundo de exaustão em que tinha caído. A mão dela agarrou o telefone com mais força, ao ouvir a sua voz. Tinha a sensação de ter estado
a nadar em água morna e escura, esforçando-se por chegar a terra. Obrigando-se a acordar, murmurou nome dele, e depois apoiou-se sobre um cotovelo, quando ele disse:
Estou no carro, querida, a dez minutos da cidade. Vou directamente para uma reunião de emergência com a Scotland Yard. Depois tenho de voltar logo para o campo,
mas que tal tomar uma chávena de café com um homem ansioso por te ver?
Stephen, que maravilha! Claro.
Judith pousou o auscultador e saltou da cama. Ao ver-se no espelho da casa de banho, constatou que tinha os olhos inchados de sono. Havia uma gota de sangue seco
no lugar do pequeno golpe da face. "Estou horrível", pensou. Fazendo rodar as torneiras do duche, despiu a camisa de dormir, enfiou uma touca e deixou deliberadamente
que a água corresse primeiro quente e depois fria, para se libertar da sua letargia.
Cobriu o golpe com uma ligeira camada de maquilhagem. Um pouco de blush ajudou a disfarçar a palidez do seu rosto, uma escovadela rápida alisou o penteado perdido.
Um caftan de lã macia, com um desenho berrante em redemoinhos cor de laranja, azuis, lilás e fúcsia, sobre fundo preto, envolveu-a em cor. Correu para a cozinha,
pôs o café a fazer e começou a pôr a pequena mesa junto da janela. Reparou em qualquer coisa caída no chão e baixou-se para a apanhar. Era um pedaço de arame torcido.
De onde teria vindo aquilo? Perguntou a si mesma, ao atirá-lo para a lata do lixo. Ouviu o intercomunicador zumbir. Levantou o auscultador e disse:
O café está pronto, senhor. Faça o favor de subir.
Quando abriu a porta a Stephen, precipitaram-se nos braços um do outro.
Entre goles de café e dentadas nas torradas cobertas de marmelada, Stephen falou-lhe da chocante notícia sobre o atentado bombista no Hospital Real.
Trabalhei até tarde e não acendi o televisor disse Judith. Stephen, que mente pervertida é capaz de colocar uma bomba num lar de veteranos?
Não sabemos. É costume surgir um grupo qualquer a reivindicar
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o acto. Quando isso não sucede, só com muita sorte se consegue descobrir o perpetrador. Os protestos do público, esta manhã, são enormes. Até mesmo o Palácio de
Buckingham expressou profunda preocupação, além de ter enviado condolências às famílias das vítimas.
Isto terá alguma influência na eleição? Stephen abanou a cabeça.
Querida, detestaria passar o resto da vida a pensar que fui eleito por alguém andar a fazer explodir Londres, mas a minha posição inflexível em relação à pena de
morte para os terroristas vai certamente pesar nas urnas. Os Trabalhistas não podem mudar de opinião sobre a pena de morte, e o seu pedido de prisão perpétua sem
libertação condicional soa muito fraco perante uma nação que pergunta a si mesma se da próxima vez que os seus filhos forem, com a escola, visitar um monumento,
ou a um hospital para tirar as amígdalas, poderão ir pelos ares.
Os cinco minutos que Stephen dissera que podia demorar-se transformaram-se em trinta. Ao partir, disse-lhe:
Judith, estou sinceramente convencido de que vou ganhar as eleições. Se, e quando isso acontecer, serei convocado ao Palácio de Buckingham e Sua Majestade pedir-me-á
que forme um novo governo. Não seria apropriado ires a essa reunião, mas importas-te de ir no carro comigo?
Não há nada que eu mais deseje.
Eu desejo muito mais coisas, mas isso seria um bom começo para o resto das nossas vidas. Stephen beijou-a de novo e estendeu a mão para o puxador da porta. Num movimento
involuntário, Judith tocou-lhe no braço e fê-lo voltar-se de novo para ela. Já ouviste alguma vez aquela canção "Deixa-me ficar, deixa-me ficar nos teus braços"?
perguntou quase tristemente.
Durante um longo minuto, ele manteve-se abraçado a ela, e Judith ouviu-se a si própria pedir a Deus:
Por favor, que nada estrague isto. Por favor.
Quando Stephen partiu, serviu-se de outra chávena de café e voltou para a cama. "Provavelmente fui atacada por um vírus qualquer, insistiu consigo própria. Por isso
me sinto tão estranha." Sabia que não poderia fazer a viagem a Yorkshire naquele dia. "Vou conceder mais um dia a mim mesma e fazer a revisão final do livro. Não
quero sentir-me assim quando vir Polly."
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Ao meio-dia, o telefone tocou. O Dr. Patel estava ansioso por saber se ela tencionava ir a Beverley.
Só amanhãdisse Judith. Decidi não ir hoje. Desconfio que fui atacada por um vírus. Sinto-me toda dorida. Mas pode estar certo de que lhe telefonarei logo que a veja.
Reza Patel esforçou-se por falar com naturalidade:
Judith, é perita em assuntos do século XVII. Durante as suas investigações, deparou alguma vez com o nome de Lady Margaret Carew?
Claro que sim. Uma mulher fascinante. Ao que parece, convenceu o marido a assinar a sentença de morte de Carlos I, perdeu o seu único filho numa das grandes batalhas
da Guerra Civil e depois tentou assassinar Carlos II quando ele subiu ao trono. Ele ficou tão furioso que quis estar presente à execução dela.
Sabe qual foi a data da execução?
Tenho qualquer coisa sobre o assunto nas minhas notas. Porque pergunta?
Patel já previa essa pergunta.
Lembra-se de quando nos encontrámos na Portrait Gallery? Estava lá um amigo meu que pensou ter reconhecido Lady Margaret num retrato de grupo. Pelo menos ela parece-se
imenso com a mulher que o ramo da sua família renegou. Era só por curiosidade.
Vou rever as minhas notas. Mas talvez ele devesse esquecê-la. Lady Margaret só representa problemas.
Quando acabaram de falar, Patel voltou-se para Rebecca.
Sei que é arriscado, mas a única esperança de Judith é enviá-la de volta ao momento da morte de Lady Margaret. Para fazer isso, tenho de saber exactamente quando
ela morreu. Judith não suspeitou de nada.
Rebecca Wadley sentia que estava constantemente a ser colocada no papel de Cassandra.
Por esta altura, amanhã, quer se dê a conhecer quer não, Judith pode ter a certeza de ter encontrado não só um parente vivo, mas uma irmã gémea. Por que havia de
se deixar submeter novamente a hipnose? Tencionas contar-lhe a verdade?
Não! gritou Patel. Claro que não. Não vês o que isso poderia fazer a Judith Chase? Sentir-se-ia moralmente responsável, independentemente de tudo o que eu pudesse
dizer-lhe. Tenho de
descobrir uma maneira de a fazer voltar sem conhecer o motivo.
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Rebecca tinha os jornais da manhã abertos sobre a secretária. Estavam cheios de imagens da carnificina no Hospital Real.
Acho melhor que o faças depressa disse a Patel. Quer te agrade, quer não, estás a proteger uma criminosa.
O dia passado na cama não ajudou muito Judith. Uma leitura exaustiva do livro permitiu-lhe detectar pequenos erros dactilográficos e frases repetitivas e fê-la aperceber-se
de que, se, por um lado, aquele era o seu melhor livro até à data, por outro estava muito mais voltado contra Carlos I e Carlos II do que ela tencionava fazê-lo,
no início. "Defendi fortemente a lei Parlamentar", pensou, "e agora teria de voltar a escrevê-lo para o alterar." De certo modo, não conseguia experimentar a sensação
de alívio e de bem-estar que costumava sentir ao terminar um livro.
O seu sono dessa noite foi novamente inquieto e, às cinco da manhã, desistiu e deixou-se ficar, acordada, estendida na cama do quarto excessivamente mobilado de
Lady Ardsley. "Que se passa comigo?", perguntou a si própria. "Há seis meses, quando cheguei a Inglaterra, não tinha um único ser humano que pudesse considerar da
minha família. Agora vou casar-me com o homem que amo e hoje vou ver a minha irmã gémea. Por que estou a chorar?" Limpou as lágrimas impacientemente.
Às seis e meia levantou-se para se preparar para a viagem a Beverley. Ia apanhar o comboio das oito e meia. "Isto não passa de nervos", disse a si própria, durante
o duche e enquanto se vestia. "Quero ver Polly e estou com medo de a ver."
Passou-lhe pela cabeça que deveria levar a sua capa nova, porque o capuz lhe escondia o rosto, mas, por um motivo qualquer, a ideia desagradou-lhe. Em vez disso,
agarrou na sua velha Burberry e procurou no armário um lenço macio que atou em volta da cabeça. Os enormes óculos escuros e o lenço bastariam para ocultar a sua
aparência, concluiu, no caso de ela e Polly se parecerem muito.
No caminho para a estação parou para mandar fazer uma cópia do livro e enviou o original para o seu agente em Nova Iorque, com uma breve nota. Depois dirigiu-se
a Kings Cross, para apanhar o comboio.
Como poderia imaginar, pensou, que naquele momento se iria lembrar nitidamente do momento em que as bombas começaram a cair? A sua mão a procurar a da mãe, Polly
a gritar, a escuridão, o som de passos em corrida, e ela atrás delas, a soluçar, pensando que a mãe
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a ia abandonar. Quando entrou no comboio, sentiu como os degraus teriam sido altos para uma criança de 2 anos. Ao instalar-se num assento junto da janela, recordou-se
ou julgou recordar-se do esticão do comboio, ao sair da estação de Waterloo. Ainda sentia o saco em que se sentara, rígido e desconfortável. Sacos de correio, pensou,
cheios até acima, atados com uma corda. Estava tão absorvida nas suas recordações que nem reparou no homem de rosto magro, com cerca de 40 anos, que estava sentado
no banco atrás do seu, do outro lado da coxia, nem suspeitou de que, apesar de se fingir absorvido no jornal da manhã, o inspector David Lynch nunca tirava os olhos
dela.
Na Scotland Yard também tinha havido progressos.
O comandante Sloane tinha ido visitar o lar e encontrara Mrs. Bloxham absolutamente lúcida. Com a voz a tremer de emoção, ela falou-lhe das encantadoras gémeas que
viviam com a mãe viúva, no apartamento ao lado do seu, de como a mãe, Elaine Parrish, tinha sido morta durante um ataque aéreo, precisamente na altura em que ia
levar as crianças para o campo, de como o corpo da pequena Sarah nunca tinha sido encontrado, de que Polly possuía uma livraria em Beverley, no Yorkshire. No regresso
ao trabalho, a sua alegria por ter notícias para contar tinha sido prejudicada pela notícia de que Judith ia a caminho de Yorkshire e estava a ser seguida pelo inspector
Lynch.
Seria bom que tivéssemos uma oportunidade de investigar Polly Parrish antes que Miss Chase se lhe apresente, se for essa a intenção dela disse ele ao comissário
Barnes.
Tinha havido outro progresso, se é que se lhe podia chamar assim, disseram a Sloane. O interrogatório aos visitantes do hospital na noite do atentado tinha dado
resultados. Um homem que saíra às 22:20 tinha segurado a porta para deixar passar uma mulher de capa verde que passara por ele sem um gesto de agradecimento. Lembrava-se
de ter visto uma cicatriz vermelha na sua mão. Alguns passos atrás dela, um homem corpulento tinha segurado a porta antes que ela a fechasse.
Então temos outra vez a mulher da cicatriz e da capa disse "ames. Amanhã trazemos aqui Judith Chase para ser interrogada.
Com que fundamento? perguntou Sloane.
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Com o fundamento de lhe dizermos que achamos que a pessoa que procuramos se parece fortemente com ela e queremos saber se ela conseguiu localizar alguém da sua família.
Vamos também perguntar-lhe se conhece uma mulher chamada Margaret Carew.
E se ela conhecer? perguntou Sloane.
Amanhã realizam-se as eleições. Avisamos Sir Stephen contra ela. Evidentemente, se os jornais sabem da ligação deles, ele poderá ter de se demitir do seu cargo de
chefe do partido, o que significa que teremos outro primeiro-ministro.
O que seria uma perda terrível para ele e para o país! explodiu Sloane.
Uma vergonha ainda maior seria a mulher da capa, seja ela quem for, prosseguir o seu sujo trabalho e estar ligada a ele.
A viagem durou três horas. Judith mudou de comboio em Hull. Daí foi uma curta viagem até Beverley. Ao atravessar a praça do mercado, mal se apercebeu da magnífica
arquitectura eclesiástica que caracterizava a bela cidade. Um polícia indicou-lhe o caminho para a Queen Mary Lane, a estreita rua lateral onde ficava situada a
livraria Páginas Parrish. Corria um vento leve mas frio. Ela puxou o lenço para a frente e subiu a gola da gabardina. Já tinha colocado os grandes óculos escuros.
Passou por uma farmácia, uma mercearia, uma florista. Então viu o letreiro. Páginas Parrish. Tinha chegado à livraria.
Judith abriu a porta da loja e ouviu o leve toque de uma campainha a anunciar a sua entrada. Uma jovem de rosto simpático, com uns grandes óculos redondos, sentava-se
atrás do balcão da caixa. Ergueu o olhar para ela e sorriu, mas continuou a atender um cliente.
Judith ficou grata por haver pelo menos meia dúzia de pessoas a pesquisar as prateleiras. Isso deu-lhe tempo para observar o interior da loja. Era um espaço longo
e um pouco estreito, em que cada centímetro tinha sido aproveitado sem prejudicar o ambiente confortável de uma biblioteca familiar. Ao fundo, havia uma espécie
de sala de estar, com um antigo sofá de cabedal, um enorme cadeirão de veludo e mesas com lâmpadas de leitura. Sentada a trabalhar a uma pesada mesa de carvalho
encontrava-se uma mulher, uma mulher cujo perfil fez Judith pensar que estava a ver-se num espelho. O seu coração começou a bater mais depressa e sentiu as mãos
húmidas de suor. Polly! Só podia ser Polly.
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procura algum livro em especial? Era a jovem do balcão. Judith conseguiu engolir o nó que se havia formado na sua garganta.
Estou só a ver o que há, mas tenho a certeza de que hei-de encontrar qualquer coisa que me interesse. Que livraria encantadora.
,- É a primeira vez que cá vem, então? A empregada sorriu. Oh, a Páginas Parrish é famosa. Vêm cá pessoas de muito longe, de propósito. E já ouviu falar de Miss
Parrish?
Judith abanou a cabeça.
É uma contadora de histórias famosa. Toda a gente a convida para trabalhar, mas ela prefere ter o seu próprio programa na estação de rádio local, aos domingos, e
durante a semana dá duas aulas às crianças para as ensinar a contar histórias. É muito mais fácil fazer isso que viajar. É ela que está ali à secretária. Gostaria
de a conhecer?
Acho melhor não. Não quero incomodá-la.
Não incomoda. Miss Parrish gosta de conhecer os novos clientes.
Judith viu-se empurrada até ao fundo da loja. Estava diante da secretária. Polly ergueu o olhar e Judith sentiu o coração a palpitar na garganta.
Polly tinha mais alguns quilos que ela. O seu cabelo castanho-escuro estava abundantemente entremeado por fios prateados. O seu rosto, despido de maquilhagem, tinha
uma beleza natural, com uma expressão simultaneamente firme e calorosa.
Miss Parrish, temos aqui alguém que cá vem pela primeira vez disse a empregada.
Polly Parrish sorriu e estendeu-lhe a mão.
Agradeço-lhe muito que cá tenha vindo.
Judith estendeu também a mão e apercebeu-se de que estava a entrar em contacto físico com a sua gémea.
Chamo-me... Chamo-me Judith Kurner disse, utilizando instintivamente o seu nome de casada. "Polly", pensou. "Polly." Por momentos, sentiu vontade de dizer "Sou eu,
a Sarah", mas sabia que teria de esperar. Polly era uma famosa contadora de histórias. Tinha o seu próprio programa e aquela loja encantadora. "Oh, Stephen", Pensou,
"não vamos ter de esconder esta parente!"
O inspector Lynch observava-a de um canto. A sua boca apertou-se num assobio. Com excepção do cabelo, aquela mulher era absolutamente igual a Judith Chase. Não seria
uma maravilha investigarem
117
a Parrish e conseguirem ligá-la a um grupo de terroristas? Compreendeu imediatamente que Judith não iria identificar-se à Parrish. "Está aqui só para observar",
pensou. "Eis a razão do lenço e dos óculos escuros. Ainda bem que ela possui um tal bom-senso!"
Lynch percebeu que desejava ilibar Judith Chase de qualquer suspeita de ser a mulher da capa. Depois de ler os seus livros e o dossier que a Scotland Yard tinha
elaborado sobre ela, tinha começado a gostar dela e a admirá-la. Teve de recordar a si próprio que deveria manter uma total de objectividade. E nessa altura franziu
o sobrolho.
Precisamente no mesmo instante em que Judith se apercebeu do mesmo facto, reparou que Polly Parrish estava sentada numa cadeira de rodas.
Eram perto de seis horas quando Judith regressou ao apartamento. Depois de sair de Junto de Polly, tinha ido tomar chá a um pequeno restaurante ao voltar da esquina.
A criada irlandesa tinha respondido loquazmente às suas hábeis mas aparentemente naturais perguntas. Polly Parrish tinha sido criada ali mesmo, em Beverley. Tinha
sido recolhida por uma família encantadora, ao ter alta do hospital. Tinha ficado com a coluna partida durante um ataque aéreo que lhe matara a mãe e a irmã. Vivia
sozinha, numa vivenda encantadora a poucas milhas de distância. Escrevia para diversas revistas e jornais. E, oh, quando ela contava uma história, as pessoas de
todas as idades, tanto as crianças como os adultos, escutavam-na deliciadas e bebiam as suas palavras.
Digo-lhe uma coisa, é como se ela estivesse a desfiar magia.
Ela conta lendas antigas, ou cria as suas próprias histórias? tinha Judith conseguido perguntar, forçando-se a desfazer o nó que a estrangulava.
As duas coisas. Nessa altura a criada fez uma pausa na sua narração e disse: Sabe, não consigo deixar de pensar em como ela vive solitária, compreende? Tem montes
de amigos, mas não tem ninguém que lhe pertença.
"Tem sim, agora tem", pensou Judith, enquanto pendurava a gabardina. "Tem-me a mim!"
Durante a viagem de regresso a Londres, outras recordações tinham invadido a sua memória. Polly e ela a brincar no apartamento da Kent House. "Tínhamos carrinhos
de bonecas em verga branca
118
iguais", recordou-se Judith. "A capa do meu era amarela, a do de polly cor-de-rosa."
O dia seguinte era o dia das eleições. Na estação, tinha comprado os principais jornais. Todos eles previam uma vitória dos Conservadores. Longe de abraçarem o desejo
de mudança dos Trabalhistas, todas as sondagens revelavam que o votante médio estava extremamente preocupado com o terrorismo e que a exigência de Sir Stephen Hallett
quanto ao regresso da pena de morte levaria muitos Trabalhistas pouco convictos a virar a casaca e a ajudá-lo a tornar-se primeiro-ministro.
O livro estava terminado. Tinha encontrado Polly. No dia seguinte, os Conservadores ganhariam as eleições, e, no dia seguinte Stephen seria primeiro-ministro. Como
era possível, pensou Judith, que ela não estivesse a transbordar de alegria? Por que razão se sentiria tão intensamente triste, tão desesperada?
Fadiga de combate, concluiu, enquanto preparava uma salada e uma omeleta. Sentou-se à mesa da cozinha, a ler os jornais enquanto comia, e lembrou-se de que, na manhã
do dia anterior ela e Stephen se tinham sentado lado a lado no banco estreito. Ainda sentia o calor do ombro dele a roçar o seu, a mão dele sobre a sua, enquanto
bebiam café. Dentro de dias estaria abertamente ao lado dele. Terminada a eleição, acabaria a necessidade de se esconderem. Sorriu enquanto se servia do chá do gordo
bule de porcelana aquele aborrecido colunista, Harley Hutchinson, iria provavelmente afirmar que sempre tinha sabido de tudo!
Só depois de ter lavado e enxugado os poucos pratos e os ter arrumado foi até ao escritório e constatou que havia uma mensagem no gravador do telefone. O comandante
Jack Sloane da Scotland Yard solicitava-lhe o favor de se deslocar no dia seguinte à Scotland Yard. Poderia, por favor, telefonar-lhe para dizer que hora lhe convinha?
Às onze horas do dia das eleições, Sloane encontrava-se no Gabinete do comissário delegado Barnes. A expressão de ambos era sóbria.
É uma situação difícil confessou Barnes. Não pretendo dizer ainda a Miss Chase que está a ser investigada. Lynch disse que Polly Parrish, a irmã dela, sem cabelos
grisalhos é a Chase por uma pena. Leu as certidões de nascimento e o dossier da RAF sobre o pai?
Sloane acenou afirmativamente com a cabeça.
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Não houve mais descendência.
Isso não quer dizer que não possa haver uma prima, ou até mêsmo uma pessoa totalmente estranha, que se pareça imenso com Miss Chase. A única ligação directa que
temos é que o Collins estava a vigiar Judith Chase e se encontrava no hospital quando a bomba explodiu. Sabe o que um advogado faria com um testemunho deste tipo?
Iria desencantar uma dúzia de mulheres parecidas com a Chase e o caso ficava arrumado.
E entretanto teríamos destruído a reputação de Judith Chase.
Exactamente.
Aquela cicatriz de que o Watkins e a testemunha do hospital falaram... há alguma hipótese de ser falsa, de ela a pintar na mão como um qualquer símbolo esquisito?
Pressionámos o Watkins a esse respeito. Ele diz que a examinou de perto, que sentiu a sua textura. Disse que era óbvio que ninguém se tinha ocupado de a coser, contou-nos
que, quando estava na cama com ela, lhe tinha pedido que a esfregasse nas suas costas, porque lhe provocava uma certa sensação.
A expressão de Jack Sloane espelhou o seu nojo.
Judith Chase não é o género de mulher capaz de ir para a cama com esse patife.
Nós não sabemos quem é Judith Chase disse Barnes severamente. E já é tempo de o sabermos. Disse-lhe que estivesse aqui às onze, não foi?
Disse, sim senhor. E são onze horas.Sloane esperava que Judith não fizesse esperar o comisssário delegado: Barnes tinha a paixão da pontualidade. Não teve que preocupar-se.
Nesse momento, a secretária anunciou a chegada de Judith.
A vaga insegurança que Judith tinha sentido nos dois últimos dias tinha-a levado a vestir-se cuidadosamente. Como o dia se mostrava primaveril, tinha vestido um
fato de saia e um casaco fúcsia, com um corte magnífico, com uma saia justa e um casaco a três quartos semicintado. Atara ao pescoço uma écharpe preta e fúcsia.
Tinha pregado no casaco um alfinete de ouro, em forma de unicórnio. A mala de cabedal preta suspensa do ombro condizia com os finos sapatos de salto baixo. Tinha
os cabelos soltos a emoldurar-lhe o rosto e a maquilhagem, cuidadosamente aplicada, realçava os tons violeta dos seus olhos azuis.
Ao vê-la, ambos pensaram imediatamente que, tanto pelo aspecto
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como pelo porte, ela seria a escolha perfeita para mulher do primeiro-ministro.
Judith estendeu a mão e apertou a do comissário Barnes. Ao apertá-la, este observou-a rapidamente. Não havia cicatriz alguma. Talvez apenas a marca praticamente
apagada de um ferimento feito havia longo tempo, nada mais. Nada de pele levantada, nem descoloração. Sentiu-se profundamente aliviado não queria que aquela mulher
fosse a culpada.
O comandante Sloane viu Barnes observar a mão de Judith. "Pelo menos, ele já põe isso de parte", pensou.
Barnes entrou directamente no assunto. A única pista sólida que possuíam era que um operário da construção civil tinha dado um explosivo a uma mulher que dizia chamar-se
Margaret Carew e que, aparentemente, era muito parecida com Judith.
Por acaso conhece alguém com esse nome?
Margaret Carew!exclamou Judith. Por acaso houve uma, que viveu no século XVII. Deparei com o nome dela, ao fazer as minhas investigações.
Ambos os homens sorriram.
Isso não nos ajuda muitodisse Barnes. Também há dez na lista telefónica de Londres, três em Worcester, duas em Bath, seis em Gales. É um nome muito popular. Miss
Chase, recebeu alguma visita na terça-feira à noite?
Nesta última terça-feira? Não. Fui ao cabeleireiro, jantei num pub e fui directamente para casa. Estive a fazer a revisão final do meu livro. Acabo de o enviar para
a editora. Por que pergunta? Judith sentiu as palmas das mãos húmidas de suor. Não tinha sido convidada a ir ali somente por ter estado na Torre no dia da explosão.
Não saiu de casa?
De maneira nenhuma. Comissário, que está a implicar?
Miss Chase, não estou a implicar coisa alguma. O operário que pensamos ter dado o explosivo à mulher que tem estado a fazer explodir bombas viu a sua fotografia
na contracapa do seu livro e disse que a mulher que afirmou chamar-se Margaret Carew é parecida consigo. Disse categoricamente que não era a senhora. Na realidade,
essa mulher tem uma cicatriz na mão. O guarda da Torre, antes de morrer parecia estar a dizer que a senhora tinha voltado, de modo que aqui também temos uma mulher
aparentemente parecida consigo. Temos fotografias tiradas na altura da explosão da bomba junto da estátua equestre, e há uma mulher com uma capa e óculos escuros,
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que também se parece consigo, numa delas, a colocar um embrulho que contém a bomba, na base da estátua. Essa fotografia foi grandemente ampliada, e a cicatriz é
nitidamente visível. O facto é que há alguém que se parece muitíssimo consigo, e que anda a realizar esses actos loucos. Tem alguma ideia de quem possa ser?
"Eles sabem de Polly", pensou Judith. Tinha a certeza absoluta disso. "Tenho estado a ser vigiada."
Quer dizer, alguém que se pareça comigo ao ponto de ser minha gémea, só que a minha gémea é deficiente. Há quanto tempo anda a seguir-me?
Barnes respondeu à pergunta dela com outra.
Miss Chase, tem estado em contacto com outros membros da sua família, especialmente com alguém que se pareça muito consigo?
Judith pôs-se de pé. "A cicatriz", pensava ela, "a cicatriz." Lady Margaret Carew. Os lapsos de memória de que tinha falado a Patel.
Sir Stephen esteve aqui, numa reunião de alto nível, para conhecer os progressos da investigação. O meu nome foi referido?
Não, não foi.
Por que não? Ele deveria ter sido informado das vossas preocupações.
Sloane respondeu por Barnes.
Miss Chase, mesmo nas reuniões ao mais alto nível há fugas para a imprensa. Por sua causa, por causa de Sir Stephen, não queremos que se oiça o mínimo murmúrio sobre
o seu nome, a este respeito. Mas a senhora pode ajudar-nos. Tem uma capa verde-escura?
Tenho. Não a uso muito. Francamente, a que comprei no Harrods tem sido tão amplamente copiada que metade das mulheres de Londres usa capas iguais, nesta estação.
Nós sabemos. Nunca emprestou a sua?
Não, nunca. Desejam mais alguma coisa de mim?
Nãodisse-lhe Barnes. Por favor, Miss Chase, permita-me que sublinhe...
Não vale a pena sublinhar coisa alguma. Por um acto de pura força de vontade, Judith conseguiu que a sua voz continuasse a soar firme.
Jack abriu-lhe a porta, em silêncio. Quando a fechou atrás dela, olhou para o seu chefe:
Por baixo daquela maquilhagem, ficou branca como um fantasma quando falei da cicatriz disse-lhe Barnes. Mande pôr imediatamente o telefone dela em escuta.
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Quando regressou ao apartamento, Judith telefonou para o consultório de Patel. Ninguém atendeu. O serviço de atendimento disse-lhe que os doutores Patel e Wadley
se encontravam num seminário de dois dias em Moscovo e só voltariam ao fim dessa tarde.
Ele que me telefone, sejam as horas que forem disse Judith.
Acendeu a televisão e sentou-se, imóvel, diante dela. Apresentaram um fragmento que mostrava Stephen a votar no seu bairro. Havia evidentes traços de fadiga no rosto
dele, mas os seus olhos tinham uma expressão de confiança. Por momentos olhou directamente para a câmara e Judith teve a sensação de que ele estava a olhar para
ela. "Oh, meu Deus", pensou, "amo-o tanto."
Dirigiu-se à secretária e abriu a agenda, comparando cuidadosamente os dias dos atentados bombistas com os seus próprios programas. Com um desespero crescente, apercebeu-se
de que as explosões coincidiam com as alturas em que ela tinha adormecido à secretária, ou não tinha sentido passar as horas enquanto trabalhava.
Na semana anterior àquela em que os atentados tinham começado, tinha experimentado lapsos de memória. Tinha falado deles ao Dr. Patel. Por que motivo lhe teria Patel
perguntado a data exacta da morte de Margaret Carew? E por que motivo a cicatriz da sua mão se tinha apresentado avermelhada?
Voltou a olhar para o televisor, esperando ansiosamente ver imagens de Stephen. Apetecia-lhe estar com ele, sentir-se envolvida pelos seus braços.
Preciso de ti, Stephen disse em voz alta. Preciso de ti. Às três horas, ele telefonou. A sua voz soava cheia de júbilo.
As coisas só acabam quando chegam ao fim, querida, mas tudo indica que conseguimos.
Tu conseguiste. Esforçou-se por se mostrar excitada e feliz. Quando é que tens a certeza?
As urnas só fecham às nove e os primeiros resultados só serão conhecidos por volta da meia-noite. Só às primeiras horas da madrugada se conhecerá a tendência geral.
Os meios de comunicação prevêm uma vitória retumbante para nós, mas sabemos que poderão haver revezes. Judith, quem me dera que estivesses comigo. A espera seria
mais fácil.
Sei bem o que tu sentes. Judith agarrou no telefone com mais
123
força, ao sentir que a voz lhe falhava. Amo-te, Stephen. Adeus meu querido. Dirigiu-se ao quarto, vestiu uma camisa de dormir quente e um roupão de flanela e meteu-se
na cama. Mesmo com os cobertores por cima, não conseguia parar de tremer. Um desespero profundo tornava-lhe o corpo pesado. Fazer uma chávena de chá parecia-lhe
um esforço excessivo. Ficou ali estendida, hora após hora, a olhar para o tecto, sem reparar que tinha escurecido.
Às seis horas da madrugada, o Dr. Patel telefonou-lhe de Moscovo.
Aconteceu alguma coisa?
A pergunta fê-la perder o autocontrole que ainda lhe restava.
Sabe bem que sim disse ela. Que é que me fez? A sua voz transformou-se num grito agudo. Que é que me fez quando estive sob hipnose? Por que me perguntou por Margaret
Carew?
Patel interrompeu-a.
Judith, vou agora apanhar um avião de regresso. Vá ao meu consultório às duas horas. Deve ter anotado a data exacta em que Margaret Carew morreu. Tem essa informação?
Tenho, mas porquê? Quero saber porquê!
Está relacionado com a Síndroma de Anastácia. "Não", pensou, "não é possível.
Forçando-se a sair da cama, tomou um duche, enfiou uma camisola grossa e umas calças, fez chá e torradas e voltou para junto do televisor.
Pouco antes do meio-dia, os Trabalhistas admitiram a derrota. Com os olhos a arder de angústia, Judith viu Stephen confirmar a sua vitória na Câmara. O seu discurso
de agradecimento aos apoiantes locais e aos seus oponentes pela luta leal que haviam travado, foi vivamente ovacionado. Dali foi levado a Edge Barton, onde uma multidão
de simpatizantes aguardava a sua chegada. Viu-o nas escadas, a apertar mãos, com o rosto aberto em sorrisos.
Judith ficou a olhar para ele, e para a bela mansão de pedra de que tinha esperado voltar a fazer o seu lar.
"Voltar a fazer?", pensou.
Stephen fez um último aceno à multidão e penetrou em Edge Barton. Momentos depois, Judith ouviu o telefone tocar. Sabia que era Stephen. Com um poderoso esforço,
conseguiu voltar a parecer excitada e animada.
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- Eu sabia, eu sabia. Eu sabia! - exclamou. - Parabéns, querido.
-Vou partir para Londres agora. Às quatro e meia apresento-me a Sua Majestade. Rory vai buscar-te a tua casa a um quarto para as quatro e leva-te a minha casa. Teremos
uns minutos sozinhos antes de eu partir para o Palácio. Só queria poder levar-te comigo, mas não seria próprio. Iremos passar o fim-de-semana em Edge Barton e nessa
altura daremos a notícia. Oh, Judith, finalmente, finalmente.
Com as lágrimas a escorrer pelo rosto, a voz a tremer, Judith conseguiu convencer Stephen de que estava a chorar de alegria. Quando pousou o auscultador, começou
a revistar o apartamento.
Na Scotland Yard, O comissário Barnes e o comandante Sloane estavam no gabinete de Barnes, ouvindo pela décima vez a gravação da conversa entre Judith e o Dr. Patel.
Barnes escutou, perplexo, a explicação de Sloane sobre a teoria de Patel da Síndroma de Anastásia.
- Trazer pessoas de outras eras? Que disparate é esse? Mas será possível que ele tenha hipnotizado Judith Chase e a tenha levado afazer esses atentados? Temos de
ter uma conversa com ele antes da chegada de Miss Chase.
Quando Judith chegou ao consultório do Dr. Patel, os seus lábios estavam cor de cinza. Os olhos pareciam arder no rosto mortalmente pálido. Levava no braço a capa
verde-escura. Segurava na mão uma mala de viagem. Não se apercebeu de que o comissário Barnes e o comandante Sloane se encontravam no laboratório, por detrás do
espelho-visor, observando-a e escutando-a.
-Não consegui dormir na noite passada - disse a Patel. - Passei o tempo a pensar vezes sem conta em tudo o que me tinha parecido estranho. Sabe uma coisa? Eu andava
preocupada porque as portas do roupeiro que Lady Ardsley tinha reservado para seu uso se estavam sempre a abrir. A verdade é que não se abriam sozinhas. Alguém as
abria. Eu abria-as. Esta é a minha capa. Que eu saiba, só a usei uma ou duas vezes, e apenas com bom tempo, mas está suja de lama. As botas que eu calço com ela
estão sujas de lama. - Deixou cair a capa e as botas em cima de uma cadeira. -E olhe para isto: pó, arames. Pode-se fazer uma bomba de fabrico caseiro com isto.
- Cuidadosamente,
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pousou o saco em cima da mesa antiga com um espelho a condizer, junto da porta. Tenho medo de estar perto deste material. Mas por que é que eu o tenho? Que é que
o senhor me fez?
Judith, sente-se ordenou Patel. Quando lhe mostrei o vídeo da sua hipnose, não lhe mostrei a fita completa. Compreenderá melhor se a vir agora.
No laboratório, Rebecca Wadley observava as expressões incrédulas dos homens da Scotland Yard, ao verem a gravação em vídeo da hipnose de Judith.
Isto é o que eu lhe mostrei, até aqui disse Patel, a certa altura. Agora vai ver o resto.
Sem acreditar no que via, Judith observou a mudança da sua expressão, o seu grito desesperado, o modo como se contorcia no divã.
Dei-lhe aquela droga em excesso. Fê-la recuar até ao período da história de que a sua mente se estava a ocupar. Judith, provou a minha teoria. É possível trazer
ao presente uma presença do passado, mas é um poder que não pode ser usado. Quando morreu Lady Margaret Carew?
"Isto não pode estar a acontecer-me", pensou Judith. "Isto não pode estar a acontecer-me."
Foi decapitada no dia 10 de Dezembro de 1660.
Vou fazê-la regressar a esse momento. A Judith presenciou essa execução. Desta vez, afaste-se dela. Não a testemunhe. Não olhe para a cara de Lady Margaret Carew.
O contacto visual seria extremamente perigoso. Deixe-a morrer, Judith. Livre-se dela.
Patel carregou no botão da secretária e Rebecca saiu do laboratório, trazendo uma bandeja com uma seringa, uma agulha intravenosa e um frasco que continha o litencum.
Sloane e Barnes observavam silenciosamente do outro lado do vidro espelhado, ocupando os seus pensamentos com as implicações daquilo que estavam a presenciar.
Desta vez, Patel deu a Judith a quantidade máxima de litencum imediatamente, e os monitores indicaram que ela se encontrava num estado de sedação que conduziria
as suas funções corporais a um nível quase de coma.
Patel sentou-se perto do divã onde ela jazia, com a mão no braço dela.
Judith, quando aqui esteve antes, sucedeu uma coisa má. Assistiu à execução de Lady Margaret Carew em 10 de Dezembro de
1660. Agora vai voltar, percorrendo os séculos até essa data e até ao local da execução. Quando lá esteve antes, sentiu pena de Lady Margaret.
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Tentou salvá-la. Desta vez, lembre-se de que tem de lhe voltar as costas. Deixá-la morrer. Judith, fale comigo. Estamos a 10 de Dezembro de 1660. Vê alguma coisa
na sua mente?
Lady Margaret subiu os degraus até à plataforma sobre a qual o carrasco a esperava. Quase tinha conseguido dominar Judith, transformar-se nela, e agora tinham-na
feito regressar àquele momento horrível. Morrer agora seria trair Vincent e John. Olhou em volta, desvairada. Onde estava Judith? Não conseguia encontrá-la entre
a multidão de camponeses grosseiros, cujos rostos estavam vermelhos de excitação. Era um dia de festa, para eles, ver separar a cabeça do seu corpo.
Judith chamou. Judith.
Há uma grande multidão dizia Judith em voz baixa. Todos gritam. Estão ansiosos pela execução. O rei está num recinto cercado. Oh, repare naquele homem que está junto
dele. Parece-se com o Stephen. Estão a trazer Lady Margaret. Ela cuspiu sobre o rei. Está a gritar a Simon Hallett.
"Ela não conseguiria identificar as pessoas se Margaret Carew não estivesse ainda ligada a ela", pensou Patel.
Judith, não fique. Volte as costas. Fuja.
Margaret viu Judith de costas. Estava a tentar abrir caminho por entre a multidão, mas a multidão estava a avançar e forçava-a a voltar para junto da plataforma.
Margaret estava junto do cepo. Mãos fortes obrigaram-na a ajoelhar. Colocaram-lhe a touca branca sobre os cabelos.
Judith! gritou ela.
Ela está a chamar por mim. Eu não me volto! Não me volto! exclamou judith. Agitava desvairadamente as mãos. Deixem-me passar, deixem-me passar.
Fuja ordenou Patel. Não se volte.
Judith! gritou Margaret.Olha! Stephen está aqui. Vão executar Stephen. Judith voltou-se e fitou os olhos de Lady Margaret Carew, que exigiam o seu olhar, que a forçavam
a fitá-los. Começou a gritar, um grito frenético, aterrorizado.
127
^
Judith, que foi? Que está a acontecer? perguntou Patel. O sangue. O sangue a jorrar do pescoço dela. A cabeça dela. Mataram-na. Quero voltar para casa. Quero Stephen.
Vai voltar para casa, Judith. Vai acordar agora. Vai sentir-se em paz, quente e descansada. Durante alguns minutos vai recordar-se de tudo o que sucedeu e falaremos
sobre isso. E depois esquecerá tudo. Lady Margaret Carew deixará de ter significado para si, para além de um personagem que referiu no seu livro. Vai deixar aqui
a capa e as botas, e os arames e o pó que trouxe. Estas e todas as recordações deste caso serão destruídas. Vai casar-se com Sir Stephen Hallett e ser muito feliz
com ele. Agora acorde, Judith.
Ela abriu os olhos e tentou sentar-se. Patel colocou um braço em volta dela.
Muito devagar avisou. Fez uma longa e difícil viagem.
Foi horrível murmurou ela. Eu julgava saber o que fizeram àquelas pessoas, mas ver até que ponto a multidão estava enlouquecida... Era uma festa para eles. Doutor,
agora ela foi-se embora. Mas terei direito a Stephen? Tenho de contar-lhe o que sucedeu.
Não vai recordar-se do que sucedeu. Vá ter com Stephen. Conte-lhe o que soube da sua irmã. Depois vá ter com ela. Tenho a certeza de que ela não poderia ser sua
gémea sem ser parecida consigo.
Corriam lágrimas pelo rosto dela. Impacientemente, enxugou-as e dirigiu-se ao espelho.
Por que estou a chorar? perguntou. Estava perplexa. Deve ser por estar tão feliz. Caminhou lentamente até ao espelho.
Judith já está a esquecer disse Rebecca Wadley ao comissário Barnes e ao comandante Sloane.
Espera que acreditemos no que acabamos de ver? exclamou Barnes.Este dossier vai ser apreendido. Vamos mandar para aqui um guarda para que não toquem em nada. Não
nos compete decidir em relação a este caso.
Sloane estava a observar Judith. Estava a pintar os olhos. Via o seu rosto reflectido no espelho por cima da mesa antiga. O seu sorriso resplandecia de felicidade.
Não me devia ter demorado tanto disse ela a Patel. Não posso deixar o Stephen à espera. Vou acompanhá-lo no carro até ao palácio, onde se vai apresentar à rainha.
Oh, Doutor, muito obrigada por me ter ajudado a encontrar a minha irmã.
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Com um aceno da mão, partiu. Sloane sentiu-se gelar. Havia uma cicatriz vermelha na mão direita dela. No mesmo instante, apercebeu-se de que o saco que ela tinha
trazido e colocado sobre a mesa, junto à qual retocara a maquilhagem, se encontrava num ângulo diferente.
Meu Deus! exclamou. Vamos fugir daqui! Abriu a porta do laboratório, mas era tarde de mais. A bomba explodiu com estrondo. Pedaços dos corpos de Sloane, Barnes,
Patel e Wadley misturaram-se com fragmentos de dossiers, registos e gravações, no consultório desfeito. Depois irromperam chamas e todo o edifício se transformou
num holocausto.
Lynch seguiu pelas ruas a figura que caminhava rapidamente. Ouviu um estrondo, ao voltar a esquina, começou a voltar-se para trás, mas depois apercebeu-se de que,
ao contrário dos outros peões, Judith Chase não tinha abrandado o passo, nem tinha sequer voltado a cabeça na direcção do som. Em vez disso, tinha chamado um táxi.
Lynch apanhou outro e ordenou ao motorista que seguisse o dela. Tirou o telefone portátil do bolso e ligou para a central.
Judith estava a sair do táxi em frente do seu apartamento e a entrar num Rolls-Royce, quando Lynch foi informado de que o último atentado se tinha verificado no
n.B 79 da Welbeck Street. O endereço de Patel! Pediu que ligassem ao gabinete do comandante Sloane. A secretária disse-lhe que o comandante Sloane e o comissário
Barnes tinham saído juntos para contactar um tal Dr. Patel. O motorista deles? Não tinham. Tinham levado um dos carros sem distintivo.
"Oh, meu Deus, não!", pensou Lynch. "Eles estavam no consultório de Patel quando a bomba explodiu!"
Havia uma multidão de jornalistas e fotógrafos à porta da casa de Sir Stephen Hallett. Era sempre um momento histórico, quando um primeiro-ministro se ia apresentar
à rainha. Lynch aguardou na rua, escondido atrás de uma carrinha da BBC estacionada. Apercebera-se de que ninguém sabia ainda da explosão no consultório de Patel.
Alguns minutos depois, a limusina contornou lentamente a casa. O motorista estacionou junto do passeio. As janelas escuras protegiam o interior do carro dos olhares
curiosos.
Lynch estava certo de que Judith Chase se encontrava dentro do
129
carro. Houve um movimento geral em direcção à porta de entrada quando Sir Stephen saiu, rodeado por encarregados da segurança. O motorista saiu do carro e voltou-se
de costas para ele, enquanto esperava que o novo primeiro-ministro chegasse ao passeio.
Lynch compreendeu que era a sua oportunidade. Toda a gente estava voltada para a casa. Todos estavam de costas para o carro. Ergueu a gola da gabardina e, puxando
a aba do chapéu para os olhos atravessou a rua e abriu a porta do carro.
Miss Chase. E nessa altura viu-a. A cicatriz vermelha na mão direita, que ela estava a tentar ocultar com pó de arroz. A senhora é Margaret Carew disse ele, levando
a mão ao bolso...
Lady Margaret ergueu o olhar e viu a arma que lhe estava apontada. "Consegui chegar tão longe", pensou. "Enganei Judith, servindo-me do nome de Stephen. Matei-a
e regressei, e agora está tudo acabado."
Nem se deu ao trabalho de fechar os olhos, quando Lynch premiu o gatilho.
O som do disparo perdeu-se entre os aplausos da multidão, enquanto Stephen, apertando mãos pelo caminho, se dirigia para o carro. O seu guarda-costas entrou para
o lugar da frente e Rory abriu a porta para ele entrar.
Tudo bem, querida? perguntou Stephen, e depois gritou: Judith, Judith, Judith.
Margaret sentiu uns braços que a rodeavam e uns lábios que lhe percorriam as faces, ouviu um grito frenético a pedir auxílio. Depois, quando chegou a escuridão final,
quando sentiu que avançava para a eternidade, ao encontro de John e Vincent, apercebeu-se de que tinha alcançado a vingança final. Ouvia os soluços de Stephen, sentia
as suas lágrimas que se misturavam com o sangue que escorria da sua fronte. "Simon Hallett", pensou vitoriosamente. "Destrocei o coração dele, tal como tu destroçaste
o meu."
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TERROR NA REUNIÃO DE CURSO
Observou Kay pelo canto do olho. Durante aqueles três dias, tinha tido o cuidado de se manter longe dela, de nunca ser apanhado com ela numa fotografia de grupo.
Não tinha sido difícil. Tinham comparecido quase seiscentos alunos àquela reunião. Durante três dias tinham-lhe dado cabo dos nervos, desfiando aquelas fatigantes
recordações de todas as parvoíces feitas por miúdos, nos tempos que tinham passado juntos no Liceu de Garden State, em Passaic County, Nova Jérsia.
Kay tinha acabado de comer um cachorro-quente. Devia ter sentido qualquer coisa no lábio, porque passou com a ponta do dedo por ele e depois riu-se e meteu o dedo
na boca. Naquela noite, havia de segurar aqueles dedos entre os seus.
Estava de pé, perto de um grupo. Sabia que o peso que tinha perdido naqueles oito anos, a barba que tinha deixado crescer, as lentes de contacto em vez dos óculos
pesados, a zona calva por baixo do cabelo que começava a rarear, tinham modificado o seu aspecto muito mais do que sucedera com a maioria dos alunos. Mas havia coisas
que nunca mudavam. Nem um único se tinha aproximado dele e dito: "Donny, foi bestial apareceres." Se alguém o tinha reconhecido, não se tinha aproximado dele. Como
nos velhos tempos. Ainda se recordava do velho self-service, onde ia buscar a sanduíche embrulhada num guardanapo de papel ao balcão, e andava com ela de mesa em
mesa.
Desculpa, Donny murmuravam eles, não há lugar.. Finalmente tinha chegado ao ponto de se escapar para a escada de incêndio e comer aí o seu almoço.
^Mas naquele momento sentia-se satisfeito por, durante aqueles três dias, ninguém lhe ter dado uma palmada nas costas ou apertado a mão ou gritado: "Foi bestial
apareceres." Tinha conseguido mover-se sempre junto dos grupos, mas sem se misturar, e observar
131
Kay, para poder planear o que pretendia fazer. Dentro de exactamente meia hora ela seria dele.
De que classe eras tu?
Por momentos ficou sem saber se a pergunta lhe era dirigida. Kay estava a beber uma gasosa. Conversava com uma aluna que tinha pertencido à turma de Donny, uma Virginia
qualquer coisa. Os cabelos cor de mel de Kay tinham um tom mais vivo que aquele de que ele se recordava. Mas agora ela vivia em Phoenix. Talvez o sol os tivesse
aclarado. Tinha-os cortado curtos em caracóis que lhe emolduravam o rosto. Costumava usá-los caídos sobre os ombros. Talvez a obrigasse a deixá-los crescer outra
vez.
Kay, deixa crescer o cabelo. O teu marido é que manda. Di-lo-ia em tom de brincadeira, mas falaria a sério.
Qual era a pergunta estúpida que aquele estúpido lhe tinha feito? Oh, o ano em que tinha terminado o curso. Voltou-se. Estava a reconhecê-lo, era o novo reitor.
Tinha feito os comentários de abertura, na terça-feira anterior.
Acabei o curso há oito anos disse Donny.
É por isso que não te conheço. Eu só cá estive quatro anos. Gene Pearson.
Donny Rubel murmurou.
Têm sido três dias fantásticos disse Pearson. Veio montes de gente. Bom espírito de curso. Numa universidade seria de esperar. Mas num liceu... É fantástico.
Donny acenou afirmativamente com a cabeça. Pestanejou e fingiu que se voltava por o sol lhe estar a bater nos olhos. Viu que Kay estava a apertar mãos. Ia-se embora.
Onde é que vives actualmente? Pearson parecia decidido a prosseguir a conversa.
A umas trinta milhas daqui. Prevendo mais perguntas, Donny apressou-se a dizer: Tenho o meu próprio negócio de reparações. A minha carrinha é a minha oficina. Vou
fazer reparações a qualquer lado que fique a uma hora de viagem. Bom, tive muito prazer em conhecê-lo, Mr. Pearson.
Escuta, talvez gostasses de falar no dia das carreiras. Os miúdos precisam de saber que há alternativas à Faculdade...
Donny ergueu a mão, como se não o tivesse ouvido.
Tenho de ir. Vou jantar com uns tipos da minha turma. Não deu a Pearson oportunidade de responder. Começou a dirigir-se para a zona dos piqueniques. Tinha-se vestido
cuidadosamente, calças
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de caqui, uma camisola azul de gola alta. Metade dos homens estavam vestidos praticamente da mesma maneira. Tinha querido misturar-se com a multidão, chamar tão
pouco a atenção quanto a tinha chamado excessivamente durante os anos que passara no liceu. O único miúdo da aula que usava sobretudo quando todos tinham casaco
da escola.
Kay atravessava o pequeno bosque que separava a área de piqueniques do parque de estacionamento. A escola era contígua ao parque municipal, ideal para a reunião.
E ideal para Donny. Apanhou-a no momento exacto em que ela abria a porta do carro.
Miss Wesley disse. Quero dizer, Mrs. Crandell.
Ela ergueu o olhar, surpreendida. Ele sabia que, minutos depois, o parque de estacionamento estaria cheio. Tinha de apressar-se.
Sou o Donny Rubel disse. Aposto que não me reconhece. Ela mostrou-se um pouco insegura. Depois, aquele sorriso que ele revira tantas vezes, acordado durante a noite,
começou a abrir-se.
Donny. Que prazer em ver-te. Estás tão diferente. Estás aqui há muito tempo? Como é que eu ainda não te tinha visto?
Acabei de chegar explicou ele.É a única pessoa que eu queria ver. Onde é que está instalada?
Já o sabia. O Motel Garden View, na Estrada 80.
É perfeito disse ele, quando ela respondeu. Vai lá um carro buscar-me dentro de meia hora. Vim de táxi para cá. Haveria possibilidade de me dar uma boleia? Teríamos
uma oportunidade de conversar.
Ela suspeitaria de alguma coisa? Recordar-se-ia daquela última noite em que lhe tinha dito que não voltaria no período seguinte, que ia casar-se, e ele tinha começado
a chorar? Ela hesitou um pouco, e depois disse:
Claro que sim, Donny. Vai ser bom recordar os velhos tempos. Sobe.
Ele conseguiu baixarse e desatar o atacador enquanto dava a volta ao carro para entrar do lado do passageiro. Quando chegou junto do carro, baixou-se de novo e demorou
algum tempo a atar o atacador. Quem olhasse para o carro, juraria que Kay tinha partido sozinha.
Kay guiava rapidamente. Esforçava-se por acalmar a sua vaga irrittação pela presença do rapaz ao seu lado. Mike voltaria de Nova Iorque dentro de uma hora e, depois
da maneira indecente como o tinha tratado ao telefone, na noite anterior, estava desesperadamente
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ansiosa por fazer as pazes com ele. Aquela reunião de curso tinha-lhe feito bem. Tinha sido divertido rever os professores com quem tinha trabalhado durante dois
anos em que ali tinha dado aulas, e divertido recordar velhos tempos com os seus alunos. Tinha adorado ser professora. Esse era um dos problemas entre ela e Mike.
O trabalho dele consistia em montar novas fábricas para a sua companhia, o que significava que nunca ficavam num local mais do que um ano. Doze mudanças em oito
anos. Tinha-lhe dito, quando ele a deixara no motel, que dissesse à sua companhia que queria um trabalho permanente
Isso parece um ultimato, Kay dissera ele.
Talvez seja, Mike respondera ela. Quero raízes. Quero ter um filho. Quero permanecer num local durante tempo suficiente para poder voltar a ensinar. Não posso continuar
a andar assim de um lado para o outro. Não posso mesmo.
Na noite anterior ele tinha começado a dizer-lhe que a companhia lhe tinha prometido sociedade e uma situação permanente no escritório de Nova Iorque, se ele fizesse
mais um trabalho fora. Ela tinha desligado o telefone.
Estava tão preocupada com os seus próprios pensamentos que nem reparou no silêncio do seu passageiro, até que ele anunciou:
O seu marido foi a uma reunião da Companhia em Nova Iorque. Deve voltar esta noite.
Como é que sabes? Kay lançou uma rápida olhadela ao perfil impassível de Donny Rubel e depois cravou de novo os olhos na estrada.
Conversei com pessoas que falaram consigo.
Julguei que tinhas acabado de chegar ao piquenique.
Isso julgou a Kay. Não foi o que eu disse.
O ventilador introduzia ar fresco dentro do carro. Kay sentiu subitamente frio, como se a agradável tarde de Junho tivesse refrescado. Estavam a menos de uma milha
do motel. Carregou mais no acelerador. Algo a avisou de que não deveria fazer perguntas.
Calhou muito bem disse ela. O meu marido tinha a reunião de negócios em Nova Iorque. Eu soube da reunião de curso e...
Eu li o Notícias dos Alunos disse-lhe Donny Rubel. Dizia que a professora favorita do Liceu Garden State vinha à reunião.
Que simpático da parte deles. Kay tentou rir.
Não me reconheceu. Donny parecia satisfeito com o facto. Mas aposto que não se esqueceu de que foi ao baile comigo.
Ela tinha dado aulas de inglês e canto coral. A psicóloga orientadora,
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Marion Martin, tinha sugerido que Donny Rubel devia fazer parte do coro.
É um dos miúdos mais tristes que tenho conhecido disse a Kay. É um zero em desportos, não tem amigos, tenho a certeza de que é inteligente, mas só se afirma academicamente,
e sabe Deus que o pobrezinho devia estar atrás do portão quando a beleza foi distribuída. Se o conseguíssemos meter numa actividade em que ele pudesse fazer amigos...
Recordava-se dos sinceros esforços dele, das piadas dos outros, até que, num dia em que Donny faltara, ela tinha falado com eles.
Tenho uma coisa para lhes dizer, garotos. Acho que estão a ser indecentes. Eles tinham deixado de o incomodar, pelo menos durante o canto coral. Depois do concerto
da Primavera, ele costumava vir conversar com ela. Assim tinha ficado a saber que ele não ia ao baile dos estudantes. Tinha convidado três raparigas, e todas o tinham
recusado. Num impulso, tinha-lhe sugerido que fosse, de qualquer forma, e jantasse com ela.
Sou uma das acompanhantes dissera. Vou gostar que estejas comigo. Recordou-se, aborrecida, de que Donny tinha começado a chorar, no final do baile.
Já se via o indicativo do motel. Ela preferiu fingir que não notava que a mão de Donny se tinha movido e tocava na sua perna.
Lembra-se que, durante o baile, lhe perguntei se poderia vê-la durante o Verão? Disse-me que ia casar-se e que se ia embora. Tem vivido em muitos lugares. Eu tenho
tentado encontrá-la.
Tens? Kay esforçou-se por não revelar nervosismo.
Tenho. Procurei-a em Chicago, há dois anos, mas tinha ido viver para S. Francisco.
Foi pena não te ter visto.
Gosta de andar assim de um lado para o outro? Agora tinha pousado a mão sobre o joelho dela.
Ei, rapaz, esse joelho é meu. Ela tentou mostrar-se divertida.
Eu sei. Está realmente farta de andar assim de um lado para o outro, não está? Não precisa de continuar a fazê-lo.
Kay olhou para Donny. Os pesados óculos escuros ocultavam-lhe os olhos e metade do rosto, mas tinha a boca enrugada e parcialmente aberta. Estava a respirar por
ela, exalando um silvo quase silencioso, que soava de maneira estranha.
Leve o carro até ao fundo do parque e volte à esquerda por detrás do edifício principaldisse ele. Eu digo-lhe onde deve estacionar.
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A mão dele comprimiu-lhe o joelho. Ela sentiu, antes de ver, a pistola que tinha sido encostada ao seu flanco.
Eu sirvo-me dela, pode crer sussurrou ele.
Era impossível que aquilo estivesse a acontecer-lhe. Nunca deveria ter-lhe dado boleia. As suas mãos tremiam, quando fez girar o volante, obedecendo às instruções
dele. Sentia frio na boca do estômago. Deveria tentar chamar a atenção, talvez com o carro. Ouviu o estalido do fecho de segurança da pistola.
Não tente coisa alguma, Kay. Há seis balas nesta arma. Basta-me uma para si, mas não desperdiço as outras. Arrume ao lado dessa carrinha, do outro lado. No último
espaço.
Ela obedeceu-lhe e apercebeu-se imediatamente de que o seu carro ficaria totalmente escondido em relação às janelas do motel, oculto pela carrinha cinzenta-escura
à esquerda.
Agora saia do carro e não grite. A mão dele agarrava o seu braço. Ele saiu também, atrás dela. Ouviu-o retirar as chaves da ignição e deixá-las cair no chão. Num
movimento rápido, empurrou-a e abriu a porta da carrinha. Com um braço, levantou-a e meteu-a lá dentro e entrou atrás dela. A porta deslizou, fechando-se. Uma escuridão
quase total substituiu o brilho do sol do fim da tarde. Kay piscou os olhos.
Donny, não faças isto suplicou. Eu sou tua amiga. Conversa comigo, mas não...
Sentiu-se empurrada para a frente, tropeçou e caiu sobre um beliche estreito. Algo lhe tapava a cara. Uma mordaça. Em seguida, ele segurou-a com uma mão e, com a
outra, colocou-lhe umas algemas em volta dos pulsos, argolas nos tornozelos, e uniu-os com uma pesada corrente de metal. Fez deslizar a porta lateral da carrinha,
saltou para fora e fechou-a. Ela ouviu fechar-se a porta da frente e, momentos depois, a carrinha começava a mover-se. Os seus esforços desesperados para atrair
as atenções, batendo com as pernas agrilhoadas contra a parte lateral da carrinha, foram abafados pelo ruído dos pneus sobre o macadame.
Mike mordeu os lábios impacientemente quando o motorista do táxi abrandou para deixar passar uma carrinha que saía do motel. O seu corpo esbelto e disciplinado vibrava
de tensão, ao pedir ao motorista que guiasse mais depressa.
Sentia-se mal, por causa da maneira como ele e Kay tinham interrompido
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a conversa na noite anterior. Tinha estado prestes a ligar outra vez, quando ela desligara o telefone. Mas conhecia Kay. Ela nunca ficava muito tempo zangada. E
agora poderia dar-lhe o que ela queria. "Só mais uma missão, querida. Um ano, no máximo... talvez mesmo seis meses. E depois trazem-me definitivamente para o escritório
de Nova Iorque, como sócio." Se ela quisesse, poderiam construir uma casa naquela área. Ela gostava daquilo. O motorista parou junto da entrada.
Mike saltou do carro. Atravessou o hall em longas passadas.
Kay e ele estavam no quarto 210. A sua primeira reacção, quando fez rodar a chave e abriu a porta, foi de forte desapontamento. Era um pouco cedo para Kay estar
de volta, mas tinha esperado encontrá-la. Era um quarto típico de motel: alcatifa gasta, colcha bege e castanha, cómoda de carvalho envernizado, televisor disfarçado
num armário, janelas que davam para o parque de estacionamento. Na noite anterior tinha-se limitado a deixar Kay ali e tinha partido para a primeira reunião de vendas
em Nova Iorque. Custava-lhe a recordar-se de como Kay tinha franzido o nariz e dito:
Estes quartos. São todos iguais e já estive em tantos.
No entanto, como habitualmente, tinha conseguido dar um certo ar caseiro ao quarto. Havia flores frescas numa jarra e, junto desta, três pequenas molduras de prata.
Uma das fotografias mostrava-o a ele, segurando uma perca listada acabada de pescar; outra era um instantâneo de Kay em frente do andar que tinham habitado no Arizona;
na terceira moldura havia um cartão de Natal com uma fotografia da família da irmã de Kay.
Os livros que Kay tinha comprado para ler estavam em cima da mesinha-de-cabeceira. O pente, a escova e o espelho de mão em madrepérola, que tinham pertencido à mãe
dela, estavam muito bem arrumados em cima da cómoda. Quando abriu a porta do roupeiro, sentiu o vago perfume dos saquinhos que ela prendia nos cabides de cetim.
Inconscientemente, Mike sorriu. Os requintes de Kay constituíam uma contínua fonte de prazer para ele.
Decidiu que lhe faria bem tomar um duche rápido. Quando Kay voltasse, conversariam, fariam as pazes e ele levá-la-ia a um jantar festivo. "Vou ser sócio de pleno
direito, Kay. Dentro de um ano. Valeram a pena todas estas mudanças. Eu prometi-te que isto havia de acontecer." Quando pendurou o fato e enfiou a roupa interior,
as meias e a camisa no saco da roupa suja, ocorreu-lhe a ideia de que as
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mudanças constantes nunca o tinham incomodado porque Kay Conseguia fazer um lar de todos os quartos de motel ou apartamentos alugados em que tinham vivido.
Àss seis e um quarto, estava sentado junto da mesa redonda voltada para o parque de estacionamento, a ver as notícias, sempre à escuta da chave a rodar na fechadura.^
Tinha retirado uma garrafa de vinho do frigorífico-bar do quarto. Às seis e meia abriu a garrafa e serviu-se de um copo. Às sete começou a ver Dan Rather, que falava
de um novo surto de actividade terrorista. Às sete e meia começou a sentir uma justificável preocupação... "Muito bem, a Kay ainda está zangada comigo. Se resolveu
jantar com os amigos, podia ter deixado um recado." Às oito, telefonou para a recepção, pela terceira vez, e foi-lhe garantido por uma telefonista já irritada que
não havia mensagem alguma para Mr. Crande do quarto 210. Às nove horas, começou a consultar a agenda de Kay e conseguiu descobrir o nome de uma antiga aluna com
a qual sabia que Kay se mantinha em contacto. Virginia Murphy O'Neil. Ela atendeu ao primeiro toque. Sim, tinha visto Kay. Kay tinha abandonado o piquenique quando
as pessoas começavam a dispersar. Efectivamente, Virgínia tinha até visto Kay partir. Deviam ser cinco e um quarto ou cinco e meia. Estava absolutamente segura de
que Kay tinha partido sozinha.
Quando acabou de falar com Virginia O'Neil, Mike telefonou à polícia para saber se tinha havido algum acidente entre o liceu e o motel e, ao saber que não tinha
havido acidente algum, comunicou o desaparecimento de Kay.
As algemas enterravam-se-lhe nos pulsos; as argolas feriam-lhe os tornozelos; a mordaça estava a asfixiá-la.
Donny Rubel? Por que estava ele a fazer-lhe isto? Subitamente lembrou-se de Marian Martin, a psicóloga orientadora que lhe tinha pedido que levasse Donny para o
coro. Naquela última semana, tinha contado a Marian que convidara Donny a sentarse à sua mesa, no baile dos estudantes. Marian tinha ficado perturbada.
Já ouvi falar disso dissera. Donny gabou-se a alguém que tu o convidaste para te acompanhar ao baile. Suponho que é compreensível, dada a maneira como os outros
troçam dele, mas mesmo assim... Mas, na realidade, que importância tem isso? Tu vais-te embora, casas-te dentro de duas semanas.
"Mas ele não me perdeu de vista durante todos estes anos." Kay
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começou a entrar em pânico. Por mais que tentasse, não conseguia vê-lo através da divisória. A carrinha parecia invulgarmente ampla e na semiobscuridade, começavam
a distinguir-se os contornos de uma mesa de trabalho diante da tarimba. Por cima dela, havia um painel de cortiça onde estavam fixadas diversas ferramentas. Que
faria Donny com elas? Que estaria ele a planear fazer com ela? "Mike, ajuda-me, por favor."
A estrada parecia subir e descrever inúmeras curvas. A estreita tarimba oscilava e o seu ombro embatia na parede da carrinha. Para onde iriam? Finalmente sentiu
que começavam a descer. Mais curvas, mais solavancos, e a carrinha parou.
Ouviu o zumbido da divisória a descer.
Chegámos. A voz de Donny soava aguda e triunfante. Momentos depois, a parte lateral da carrinha abriu-se com estrondo. Kay encolheu-se quando Donny se inclinou sobre
ela. A respiração dele era rápida e quente na sua face, quando lhe retirou a mordaça.
Kay, não quero que grite. Estamos a milhas de distância de alguém que pudesse ouvi-la e só conseguirá enervar-me muito. Prometa.
Ela inspirou o ar fresco. Sentia a língua grossa e seca.
Prometo murmurou. Ele retirou-lhe as argolas e massajou-lhe os tornozelos, solicitamente. Depois retirou-lhe as algemas. Passou um braço em volta dela e levantou-a
da tarimba. Sentia as pernas dormentes. Cambaleou e ele quase desceu com ela ao colo o degrau alto da carrinha.
O sítio para onde ele a tinha levado era uma velha casa de madeira numa pequena clareira. No alpendre arqueado havia um baloiço enferrujado. As janelas estavam fechadas
com tábuas. As grossas árvores em volta da clareira quase tapavam os últimos raios oblíquos de sol. Donny encaminhou-se para a casa, abriu a porta, empurrou-a para
dentro e acendeu a luz do tecto.
A sala onde se encontravam era pequena e sórdida. Havia um piano vertical que, muito tempo antes, tinha sido pintado de branco, mas a tinta começava a descascar-se
mostrando a pintura preta original. Faltavam-lhe várias teclas. Havia um sofá e um cadeirão de veludo, excessivamente estofados, que deviam ter sido de um vermelho-vivo.
Entretanto tinham tomado diversos tons que iam do roxo ao cor de laranja. Uma carpete de argolas, manchada, cobria o centro do chão irregular. Sobre uma mesa de
metal, uma garrafa de champanhe dentro de um balde de plástico com gelo e dois copos. Ao lado do sofá, uma
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estante tosca estava atafulhada com cadernos escolares de apontamentos.
Vej a disse Donny. Fez Kay voltar-se, para olhar para a parede que ficava em frente do piano. Estava coberta com uma fotografia em tamanho de póster, que a representava
a ela, sentada ao lado de Donny, no baile. Suspenso do tecto via-se um cartaz mal pintado Dizia "BEM-VINDA AO LAR, KAY".
O detective Jimmy Barrott foi a pessoa designada para acompanhar a comunicação de Michael Grandell, o homem que tinha informado a polícia do desaparecimento da sua
mulher. A caminho do Motel Garden View, parou num restaurante de serviço rápido e pediu um hamburger e um café.
Comeu enquanto conduzia e, ao chegar ao motel, a sua ligeira dor de cabeça tinha desaparecido e era o mesmo indivíduo cínico de sempre. Ao fim de vinte e cinco anos
no gabinete do promotor público, sentia que já tinha visto tudo.
O instinto de Jimmy Barrott dizia-lhe que aquilo era uma perda de tempo. Uma mulher de 32 anos vai a uma reunião e não chega a casa cedo. O marido entra em pânico.
Jimmy Barrott sabia o que era chegar a casa tarde e não telefonar. Era essa a principal razão por que se tinha divorciado duas vezes.
Quando se abriu a porta do quarto 210, teve de confessar que o marido, Michael Grandell, parecia extremamente preocupado. Era um tipo simpático, pensou Jimmy Barrott.
Com cerca de um metro e oitenta e três de altura. O tipo de feições fortes de que as mulheres gostam. Mas a primeira pergunta de Mike enfureceu Jimmy:
Por que demorou tanto tempo?
Jimmy instalou-se numa cadeira junto da mesa e abriu a sua agenda.
Escute disse, a sua mulher está umas horas atrasada. Oficialmente, não pode ser dada como desaparecida senão ao fim de vinte e quatro horas, pelo menos. Discutiram?
Não lhe escapou a expressão culpada no rosto de Mike.
Discutiram sublinhou. É melhor falar-me do assunto e depois podemos pensar para onde é que ela foi acalmar-se.
Mike sentiu que estava a contar mal a história. Kay tinha ficado transtornada com a conversa da noite anterior. Tinha desligado o telefone. Mas as coisas não eram
como pareciam.
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Apressou-se a falar-lhe dos antecedentes de ambos. Kay tinha dado aulas no Liceu de Garden State durante dois anos. Tinham-se conhecido em Chicago, em casa da irmã
dela, e tinham-se casado lá. Ele nunca tinha conhecido os amigos dela de Nova Jérsia. Não valia a pena telefonar à irmã. Jean, o marido e os filhos estavam a passar
férias na Europa.
Dê-me uma descrição do carro pediu Jimmy Barrott. Um Toyota branco de 1986. Placa de matrícula do Arizona. O polícia anotou a matrícula. Vieram para muito longe
de carro observou.
Eu ia entrar de férias. Decidimos gozá-las em volta da reunião da companhia e da reunião dos alunos. Pensávamos regressar amanhã ao Arizona.
Jimmy fechou o livro de apontamentos.
O meu palpite é que ela esteja a jantar e a tomar umas bebidas com amigos, e volte dentro de umas horas. Olhou para as molduras em cima da mesa. A sua mulher está
em alguma?
Nesta. Tinha agarrado na fotografia em frente do prédio. Kay usava shorts e uma T-shirt. Tinha o cabelo preso com um elástico. Parecia ter 16 anos. Com a T-shirt
a delinear-lhe os seios, as pernas longas e esbeltas e os pés calçados em sandálias abertas, tinha um ar muito excitante. Mike sentiu que tinha sido essa a reacção
do detective.
Posso ficar com esta fotografia? sugeriu Jimmy Barrott. Habilmente, retirou-a da moldura. Se ela não tiver voltado durante as próximas vinte e quatro horas, emitir-se-á
um relatório dando-a como desaparecida.
O instinto fez que Jimmy Barrott desse uma volta ao parque de estacionamento antes de entrar no seu carro. Naquele momento, o parque encontrava-se quase cheio. Havia
dois Toyotas brancos, mas nenhum deles tinha placa do Arizona. Nessa altura, um carro isolado, ao fundo do parque de estacionamento, chamou-lhe a atenção. Aproximou-se
dele.
Cinco minutos depois estava a bater com força à porta do quarto
210.
O seu carro está no parque de estacionamento disse a Mike. As chaves estavam no chão. Parece que a sua mulher se foi embora sozinha.
Enquanto observava o ar de incredulidade no rosto de Mike, o telefone tocou. Ambos se precipitaram para o atender. Jimmy Barrott alcançou-o primeiro, levantou o
auscultador e segurou-o de modo a Poder ouvir o que se dissesse.
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O "Está?" de Mike foi quase inaudível. E depois os dois homens ouviram Kay dizer:
Mike, desculpa fazer-te isto, mas preciso de tempo para pensar. Deixei o carro no parque. Volta para o Arizona. Está tudo acabado entre nós. Depois contacto contigo
para tratarmos do divórcio.
Não... Kay... por favor... Não me vou embora sem ti.
Ouviu-se um estalido. Jimmy Barrott sentiu uma relutante compaixão pelo jovem chocado e desorientado que estava junto de si. Pegou na fotografia de Kay e colocou-a
sobre a mesa.
Foi isto mesmo que me fez a minha segunda mulher disse a Mike. A única diferença é que, enquanto eu estava a trabalhar, levou lá os homens das mudanças. Deixou-me
com uma caneca de cerveja e a roupa suja.
A observação interrompeu o entorpecimento.
Mas é isso mesmo disse Mike. Não vê? Apontou para a cómoda. Os acessórios de toilette de Kay. Não ia partir sem eles. A maquilhagem está no armário da casa de banho.
O livro que ela estava a ler. Abriu a porta do roupeiro. As roupas dela. Que mulher não leva qualquer coisa pessoal com ela?
Ficaria surpreendido se soubesse quantas disse Jimmy Barrott. Sinto muito, Mr. Grandell, mas tenho de considerar isto como uma desavença familiar.
Voltou ao seu gabinete para arquivar o relatório e depois seguiu para casa. Mas, mesmo depois de se deitar, Jimmy Barrott não conseguiu adormecer. Os fatos tão bem
pendurados, os artigos de toilette tão cuidadosamente arrumados. Algo dentro de si lhe dizia que Kay Crandell os teria levado consigo. Mas ela tinha telefonado.
Teria mesmo?
Jimmy sentou-se subitamente na cama. Algumas mulheres telefonavam. Ele tinha apenas a palavra de Mike Crandell de que se tratava da voz da sua mulher. E Mike Crandell
e a mulher tinham tido uma discussão antes do desaparecimento dela.
Passaram-se horas e Mike continuou sentado ao lado do telefone. "Ela vai telefonar outra vez", dizia a si próprio. "Vai mudar de ideias. Vai voltar."
Voltaria?
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Finalmente, Mike pôs-se de pé. Despiu-se e deixou-se cair na cama, do lado mais próximo do telefone, pronto a levantar o auscultador ao primeiro toque. Depois fechou
os olhos e começou a chorar.
Kay mordeu o lábio, esforçando-se por não gritar o seu protesto quando Donny interrompeu a ligação. Donny sorria-lhe solicitamente.
Foi muito bem, Kay.
Ele teria levado a cabo a sua ameaça? Tinha-a prevenido de que se ela não dissesse exactamente o que ele tinha escrito, e de forma convincente, iria ao motel naquela
noite e mataria Mike.
Estive no seu quarto duas vezes, na semana passada, sabia? dissera-lhe. Faço pequenas reparações no motel. Foi fácil fazer uma chave. Depois tinha-a conduzido ao
quarto. O mobiliário consistia numa cama de casal arqueada com uma colcha de felpa barata, uma mesinha de jogo a servir de mesa-de-cabeceira e uma cómoda em mau
estado. Gosta da colcha? perguntou Donny. Disse à vendedeira que era um presente para a minha mulher. Ela disse que a maior parte das mulheres gosta da felpa branca.
Apontou para o pente, a escova e o espelho que estavam em cima da cómoda. São quase da mesma cor dos seus. Abriu o roupeiro. Gosta das suas novas roupas? São todas
de tamanho oito, como as que tinha no motel. Havia algumas saias de algodão e T-shirts, uma gabardina, um roupão, um vestido estampado. Há roupa interior e uma camisa
de dormir nas gavetas disse Donny orgulhosamente. E veja, os sapatos também são todos do seu tamanho, sete médio. Comprei-lhe sapatos de ténis, mocassins e sapatos
de salto alto. Quero a minha mulher bem vestida.
Donny, eu não posso ser tua mulher murmurou ela. Donny fitou-a, perplexo.
Mas vai ser. Sempre quis casar-se comigo. Nessa altura, ela reparou na corrente muito bem arrumada a um canto, junto da cama e fixada a uma placa de metal na parede.
Donny viu a sua expressão horrorizada. Não se preocupe, Kay. Tenho uma em cada sala. É que, de noite, eu vou ficar a dormir na sala e não quero que tente fugir-me.
E durante o dia tenho de ir trabalhar, de modo que quero que fique confortável na sala.
Tinha-a levado de novo para a sala e retirado cerimoniosamente a rolha ao champanhe.
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A nós.
Enquanto o via colocar de novo o auscultador no descanso, Kay sentia um gosto desagradável na boca ao recordar-se do champanhe quente e adocicado e dos hamburgers
gordurosos que Donny tinha preparado.
Durante toda a refeição, ele mantivera-se em silêncio. Depois disse-lhe que acabasse o café, que ele voltava já. Quando regressou, trazia a cara rapada.
Só deixei crescer a barba para não me reconhecerem no liceu disse, orgulhosamente.
Depois disso, obrigou-a a acabar de beber o champanhe com ele e a telefonar a Mike. Agora tinha suspirado.
Kay, deve estar cansada. Vou deixá-la deitar-se cedo. Mas primeiro gostaria de ler-lhe alguns capítulos do meu primeiro caderno a seu respeito. Com um ar arrogante,
dirigiu-se à estante e retirou um dos cadernos.
"Isto não é possível", pensou Kay.
Mas era possível. Donny instalou-se no cadeirão excessivamente estofado, diante dela. A sala estava fria, agora, mas o suor escorria-lhe pelo rosto e pelos braços
e manchava a camisola de gola alta. A sua palidez pouco natural era acentuada pelas olheiras escuras. Quando ele retirara os óculos escuros, Kay notara, com surpresa,
como os seus olhos eram azuis. Lembrava-se de que eram castanhos. "São mesmo castanhos", disse a si própria. Ele devia usar lentes de contacto azuis. "Tudo nele
é fantasia", pensou. Ele ergueu o olhar para ela, quase timidamente.
Sinto-me como um miúdo de escola disse.
Um minúsculo sopro de esperança disse a Kay que talvez ela conseguisse criar uma certa autoridade sobre ele, como professora e aluno. Mas quando ele começou a ler
sentiu o pânico apertar-lhe a garganta.
"Dia 3 de Junho. Na noite passada fui ao baile do liceu com Kay leu ele. Dançámos todas as músicas. Quando a levei a casa, ela chorou nos meus braços. Disse que
a família a estava a obrigar a casar com um homem que não amava e que queria que eu a fosse buscar quando pudesse tomar conta dela. Minha bela Kay, prometo-te que
um dia irei buscar-te e serás minha mulher."
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Uma noite de insónia e o facto de não haver café no apartamento tornaram Jimmy Barrott invulgarmente irritável. Depois de uma paragem para tomar um café, dirigiu-se
ao trabalho. Quando o gabinete do promotor público se esvaziou, Jimmy foi falar com ele.
Há qualquer coisa errada disse ao seu chefe em relação àquele problema doméstico que arquivei na noite passada. Queria permissão para investigar o marido. Relatou
sucintamente a conversa com Mike, a descoberta do carro, o telefonema.
O promotor escutou-o e acenou afirmativamente com a cabeça.
Comece a pesquisar disse. Avise-me se precisar de ajuda.
Aos primeiros sinais da madrugada, Mike saltou da cama, tomou um duche e fez a barba. Tinha esperança de que o duche, primeiro quente e depois gelado, conseguisse
fazer desaparecer o torpor que lhe invadia o cérebro.
A certa altura, durante as horas negras da noite, o seu desespero perante o desaparecimento de Kay tinha-se transformado na certeza de que ela nunca o abandonaria
daquela maneira. Extraiu um bloco de notas da pasta e, entre goles de café, começou a anotar as possíveis medidas que poderia tomar. Virginia Murphy O'Neil. Tinha
estado com Kay mesmo no final do piquenique. Tinha visto Kay partir. Talvez Kay lhe tivesse dito qualquer coisa que não parecesse importante na altura. Iria a casa
de Virginia e falaria com ela. O detective Barrott tinha descoberto o carro às dez horas. Mas ninguém sabia a que horas ele tinha sido ali deixado. Iria falar com
as empregadas do motel. Talvez alguém tivesse visto Kay sozinha ou acompanhada.
Sentia vontade de se sentar junto do telefone, à espera de que Kay telefonasse outra vez, mas isso seria estúpido. Mike sentiu o sangue gelar nas veias à ideia de
que talvez ela não pudesse voltar a telefonar-lhe.
A sua primeira paragem foi junto da telefonista do motel. Esta garantiu-lhe que estava muito ocupada para dar recados a pessoas que telefonassem, mas teria muito
prazer em anotar qualquer chamada Que ele pudesse receber. Ele falou-lhe num tom confidencial:
Oiça, já alguma vez se zangou com o seu namorado? Ela riu-se.
Todas as noites.
Na noite passada discuti com a minha mulher. Ela foi-se embora.
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Agora eu tenho de sair, mas tenho a certeza absoluta de que ela vai telefonar. Por favor, importa-se de desligar a linha ou qualquer coisa no género, para não se
esquecer de lhe dar este recado?
Os olhos muito pintados da telefonista brilharam de curiosidade. Leu o bilhete em voz alta. Em maiúsculas, Mike tinha escrito: "Se telefonar Kay Crandell, diga-lhe
que Mike quer falar com ela. Ele concorda com tudo o que ela quer, mas peça-lhe que, por favor, deixe um número de telefone ou a hora a que volta a telefonar."
Nos olhos da operadora havia simpatia e alguma malícia.
Não percebo como é que uma mulher pode ser burra ao ponto de o abandonar disse.
Mike meteu-lhe uma nota de vinte dólares na mão.
Estou a contar que faça de Cupido.
Foi em vão, a conversa com os empregados do motel que pudessem ter visto o Toyota branco chegar ao parque de estacionamento. Não havia um encarregado do parque.
O único guarda de segurança existente tinha passado a maior parte da noite dentro do motel.
Só comecei hoje disse ele a Mike. Caso contrário nem estaria aqui. Na. Nem sombra de problemas. Coçou a cabeça. Pensando melhor, de facto roubaram um carro no ano
passado, mas abandonaram-no duas milhas mais adiante. O dono disse que até mesmo um ladrão via que ele não prestava. Riu-se.
Duas horas depois, Mike estava a trinta milhas de distância, sentado a uma mesa, em casa de Virginia, diante dela. Era uma rapariga baixa e esbelta, que tinha pertencido
ao coro de Kay no último ano em que Kay ensinara no Liceu de Garden State. A cozinha era grande e alegre e abria para uma sala de recreio, cheia de brinquedos. Os
gémeos de Virginia, com 2 anos de idade, brincavam ali, com uma energia barulhenta e desinibida.
Mike não tentou inventar uma história sobre os motivos por que procurava Kay. Tinha gostado de Virgínia e, instintivamente, confiava nela. Quando terminou, viu a
sua preocupação reflectida nos olhos de Virginia.
Isso é estranho disse ela. Kay não fazia uma coisa dessas. É demasiado ponderada.
Falou muito com ela durante a reunião?
Um urso de peluche voou até junto dos pés de Mike. Momentos depois, uma pequena figura corria atrás dele e dava-lhe um pontapé-
Porta-te bem, Kevin advertiu Virginia. Explicou a Mike:
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A minha tia deu ontem os ursos aos miúdos. Diná acarinha o dela. Kevin anda aos pontapés ao dele.
"Era isto que Kay pretendia", pensou Mike. "Uma casa como esta, filhos." A ideia trouxe-lhe uma nova e assustadora possibilidade.
Houve muita gente que trouxe os filhos à reunião?
Oh, havia montes de miúdos por todos os lados. O rosto de Virginia tornou-se pensativo. Sabe que a Kay se mostrou um pouco triste, quando pegou na Diná ao colo,
no outro dia, e disse: Todos os meus alunos têm família. Nunca esperei que a minha vida fosse assim.
Mike ergueu-se para partir, alguns minutos depois.
Que é que vai fazer?perguntou-lhe Virgínia. Ele tirou do bolso a fotografia de Kay. Vou mandar fazer posters e distribuí-los. É a única coisa de que consigo lembrar-me.
Quando Donny decidiu finalmente que eram horas de ir para a cama, disse a Kay que se despisse na minúscula casa de banho. Esta continha um pequeno lavatório, uma
sanita e um chuveiro improvisado. Entregou-lhe a camisa de dormir que tinha comprado, uma peça de nylon decotada e transparente, debruada com uma imitação de renda.
O robe condizia. Enquanto trocava de roupa, Kay esforçava-se desesperadamente por decidir o que havia de fazer se ele a atacasse. Era indubitável que ele conseguiria
dominá-la. A sua única esperança consistia em tomar o comando da situação, estabelecer um relacionamento de professora-aluno.
Mas quando ela saiu, ele não fez qualquer tentativa para lhe tocar.
Meta-se na cama, Kaydisse. Dobrou a colcha para trás. A cama tinha lençóis e almofadas de musselina com flores azuis. Tinham um ar engomado e novo. Ela dirigiu-se
para a cama, com firmeza.
Estou muito cansada, Donny disse friamente. Quero dormir.
Oh, Kay, prometo-lhe que não lhe toco antes de estarmos casados. Tapou-a e disse: Sinto muito, Kay, mas não posso correr o risco de tentar fugir-me enquanto eu durmo.
E depois prendeu-a Por um pé à corrente.
Ela permaneceu acordada durante toda a noite, tentando rezar, tentando fazer planos, conseguindo apenas sussurrar "Mike, ajuda-me, Mike, encontra-me". De madrugada,
caiu num sono inquieto.
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Ao acordar, viu Donny a olhar para ela. Mesmo na semiobscuridade notava-se bem a sua ansiedade. Entre os dentes cerrados, disse:
Só queria certificar-me de que se encontrava bem, Kay. É tão bonita a dormir. Estou ansioso por casar-me consigo.
Quis que ela lhe preparasse o pequeno-almoço.
O seu futuro marido tem muito apetite, Kay. Às oito e meia, instalou-a na sala. Sinto muito, mas tenho de fechar as janelas outra vez. Não posso correr o risco de
alguém passar e olhar cá para dentro. Isso nunca acontece, mas por certo há-de compreender. Agrilhoou-a à corrente da sala. Medi-a disse-lhe. Pode ir à casa de banho.
Deixo aqui na mesa coisas para fazer sanduíches e um jarro com água e umas gasosas. Pode chegar ao piano. Quero que pratique. E se lhe apetecer ler, pode ler os
meus cadernos. São todos a seu respeito, Kay. Durante estes oito anos fui escrevendo para si.
Deixou o telefone de gravador dentro do armário fechado a cadeado perto do tecto.
Vou deixar o gravador ligado, Kay. Há-de ouvir pessoas telefonar-me para encomendarem trabalhos. Mais ou menos de hora a hora recolho as chamadas no meu telefone
da carrinha. Nessa altura, falo consigo, mas a Kay não poderá falar comigo. Sinto muito. Vou ter um dia muito ocupado, de modo que só volto às seis ou sete horas.
Ao sair, ergueu-lhe o queixo com a mão. Sinta saudades minhas. Vai sentir saudades minhas, não vai, querida?
Deu-lhe um beijo cerimonioso na face. O seu braço apertou-se convulsivamente em volta da cintura dela.
Tinha pregado as tábuas nas janelas antes de partir e a fraca luz do tecto projectava sombras por toda a sala. Ela pôs-se de pé em cima do sofá, esticando a corrente
até a grilheta lhe roer o tornozelo, mas era impossível chegar ao armário que, ainda por cima, estava fechado a cadeado. Não havia hipóteses de fazer uma chamada.
A corrente estava presa a uma placa de metal na parede. Havia quatro parafusos que seguravam a placa. Se conseguisse desaparafusá-los, poderia fugir. Estaria muito
longe da auto-estrada? Conseguiria andar depressa com a grilheta no tornozelo e a corrente no braço? Como poderia desaparafusar a placa?
Kay pesquisou febrilmente a sala. A faca de plástico tinha saltado quando tentara usá-la na cabeça de um parafuso. Enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas de frustração.
Arrancou as almofadas do sofá. O estofo estava velho e viam-se as molas, mas não conseguiu soltar qualquer delas.
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Arrastou-se até ao piano. Se conseguisse alcançar as cordas, talvez encontrasse qualquer coisa afiada que pudesse arrancar.
Não encontrou.
Não havia maneira de soltar a placa de metal. A sua única esperança residia em aparecer alguém enquanto ele estivesse fora. Mas quem? Havia algum correio em cima
da estante. A maior parte estava dirigida a uma caixa postal em Howville. Todos tinham o número da caixa postal escrito a lápis no sobrescrito, pelo que não havia
distribuição de correio até ali.
O seu olhar caiu sobre as fileiras de cadernos pretos e brancos. Ele tinha-lhe dito que os lesse. Retirou meia dúzia deles e arrastou-se até ao sofá. A luz era fraca,
e teve de franzir a testa para se concentrar melhor. Tinha vestido a roupa que usara no piquenique, no dia anterior, querendo conservar a sua própria identidade.
Mas o vestido estava amarrotado e sentia-se suja. Suja pela sua presença naquele local, pela recordação das mãos dele a abraçarem-na convulsivamente pela cintura,
pela sensação de ser um animal enjaulado por um tratador louco. Esta ideia quase a deixou em estado de histeria. "Domina-te", disse a si própria, em voz alta. "Mike
está a tentar encontrar-te. Ele há-de encontrar-te." Era como se sentisse a intensidade do amor dele. "Mike. Mike. Amo-te. Não queria continuar a viajar. Queria
ficar sempre no mesmo lugar." Até Donny Rubel sabia disso. E estava a satisfazer o seu desejo. Kay deu consigo a rir alto, com gargalhadas agudas, semelhantes a
soluços, que terminaram num frenezim de lágrimas.
Mas, pelo menos, sentiu um certo alívio. Ao fim de alguns minutos, enxugou as lágrimas com as costas da mão e começou a ler.
Os cadernos eram todos semelhantes. Uma odisseia, contada dia a dia, de uma vida de fantasia que se iniciara na noite do baile. Algumas páginas estavam escritas
na forma de planos para o futuro. "Quando Kay e eu estivermos juntos, iremos acampar no Colorado. Viveremos numa tenda e partilharemos a vida rústica, ao ar livre,
dos nossos antepassados. Teremos um saco de dormir duplo e ela dormirá nos meus braços, porque receia um pouco os sons dos animais. Eu protegê-la-ei." Noutros pontos
escrevia como se já vivessem juntos. "Kay e eu passámos um dia maravilhoso. Fomos a Nova Iorque, o Seaport de South Street. Comprei-lhe uma blusa nova e sapatos
de saltos altos azuis. Kay gosta de me dar a mão enquanto passeamos. Ama-me muito e não gosta nada de estar longe de mim. Decidimos que, se um de nós adoecer alguma
vez, não correremos o risco
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de nos separarmos. Não temos medo de morrer juntos. Teremos o céu por toda a eternidade. Somos verdadeiros amantes."
Por vezes tornava-se impossível decifrar a escrita quase ilegível. Kay esforçou-se por não notar a dor de cabeça crescente, à medida que lia caderno após caderno.
A profundidade da loucura de Donny colocou-a à beira do pânico. Tinha de acabar de ler todos os cadernos. Algures, fosse como fosse, talvez conseguisse descobrir
uma pista sobre a maneira de o convencer a libertá-la, a levá-la a qualquer sítio público. Ele escrevia constantemente sobre passeios com ela.
A partir das dez horas, aproximadamente, o telefone começou a tocar. Ela escutava as mensagens que as pessoas iam deixando para Donny. Todos os nervos do seu corpo
vibravam ao ouvir aquelas vozes impessoais. Oiçam-me, sentia vontade de gritar. Ajudem-me.
Ao que parecia, Donny tinha um movimentado serviço de reparações. Uma chamada de uma pizzaria poderia chegar lá o mais depressa possível? Um dos fornos não estava
a funcionar. Diversas donas de casa não poderia ir dar uma olhadela ao televisor? A Videoteca? Uma vidraça partida. Mais ou menos de hora a hora, Donny recolhia
as mensagens e depois deixava uma mensagem para ela.
Kay querida, tenho muitas saudades suas. Vê como eu estou ocupado? Já fiz duzentos dólares esta manhã. Vou poder tomar bem conta de si.
Depois de cada chamada, ela voltava à leitura. Em todos os cadernos, Donny estava constantemente a referir-se à mãe. "Quando tinha 18 anos, deixou o meu pai ir longe
de mais e ficou grávida de mim, e teve de casar-se. O meu pai abandonou-a quando eu ainda era bebé e deitoulhe as culpas de tudo. Nunca serei como o meu pai. Não
tocarei em Kay com um dedo antes de nos casarmos. Caso contrário, ela poderia vir a odiar-me e a detestar os nossos filhos."
No penúltimo caderno, ficou a saber dos planos dele. "Ouvi, na televisão, um padre dizer que os casamentos têm mais probabilidades quando as pessoas já se conhecem
há quatro estações. Que há algo no espírito humano, tal como na natureza, que necessita desse ciclo. Eu estive nas aulas da Kay durante o Outono e o Inverno. Vou
buscá-la durante a reunião. Ainda será Primavera. Trocaremos os nossos votos, tendo apenas Deus como testemunha, no primeiro dia de Verão. Isso será no domingo,
dia 21 de Junho. Nessa altura partiremos juntos, para dar a volta ao país, só nós os dois, amantes."
Aquele dia era quinta-feira, 18 de Junho.
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Às quatro horas chegou uma chamada do Motel Garden View. Donny poderia passar por lá nessa tarde? Havia dois aparelhos de televisão avariados.
O Motel Granden View. Quarto 210. Mike.
Donny telefonou alguns minutos depois. A sua voz tinha um som estranho, oco.
Está a ver como é, Kay. Faço muitas reparações no motel. Ainda bem que eles telefonaram. Isso dá-me possibilidade de ver se Mike Crandell se vai embora. Espero que
tenha estado a praticar as nossas canções. Gostaria de cantar consigo esta noite. Adeus, por agora, minha querida.
Havia raiva na voz dele, ao pronunciar o nome de Mike. "Ele tem medo", pensou Kay. "Se alguma coisa alterar os planos dele, enlouquece." Não podia contrariá-lo.
Voltou a colocar os cadernos na estante e arrastou-se até ao piano. Estava irremediavelmente desafinado. As teclas em falta faziam que o que ela tentasse tocar fosse
alterado por sons discordantes.
Quando Donny chegou, eram perto de oito horas. O rosto dele estava sombrio, furioso.
Crandell não se vai embora disse a Kay. Anda a fazer uma data de perguntas a seu respeito. Anda a distribuir fotografias suas.
Mike estava no motel. Mike tinha percebido que havia qualquer coisa errada. "Oh, Mike", pensou Kay. "Encontra-me. Eu vou contigo para qualquer lugar que queiras.
Terei um filho em Kalamazoo ou Peoria. Que importa onde vivemos, desde que estejamos juntos?"
Era como se Donny pudesse ler os seus pensamentos. Deteve-se no umbral da porta, irritado com ela.
Não o fez acreditar em si, quando falou com ele na noite passada. A culpa é sua, Kay.
Entrou na sala e dirigiu-se para ela. Kay chegou-se para o extremo do sofá e a corrente enterrou-lhe a grilheta no tornozelo. Da carne magoada escorreu um fino fio
de sangue, quente e viscoso. Donny reparou.
Oh, Kay, isso está a fazê-la sofrer, eu sei. Foi à casa de banho e voltou com um pano embebido em água quente. Ternamente, ergueu-lhe a perna do chão e pousou-a
no colo. Agora vai sentir-se muito melhor...garantiu-lhe, envolvendo-lhe o tornozelo com O pano e logo que eu tenha a certeza de que voltou a apaixonar-se por mim,
tiro-lhe as correntes. Endireitou-se e os seus lábios roçaram-lhe
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o ouvido. Vamos chamar o nosso primeiro filho Donald Júnior? perguntou. Tenho a certeza de que vai ser um rapaz
Na quinta-feira à tarde, Jimmy Barrott visitou o escritório dos patrões de Michael Crandell, uma firma de engenharia denominada Fields, & Quinlan Brown. Depois de
exibir o seu distintivo, foi conduzido ao gabinete de Edward Fields, que ficou chocado ao saber que Kay Crandell desaparecera. Não, não tinham tido notícias de Mike
naquele dia, mas isso não era de estranhar. Mike e Kay tencionavam ir até ao Arizona no carro. Mike tinha tirado uma semana de férias. Mike Crandell? Um técnico
de primeira categoria. O melhor. Efectivamente, tinham decidido dar-lhe sociedade logo que ele acabasse uma obra que iria começar no mês seguinte, em Baltimore.
Sim, eles sabiam que Kay andava aborrecida com tantas mudanças. A maior parte das mulheres pensa assim. Jimmy saberia onde estava Mike?
Jimmy Barrott disse, prudentemente, que o mais provável era tudo aquilo não passar de um mal-entendido.
Edward Field tomou subitamente um ar muito formal.
Mr. Barrottdisse, se isso é tudo conversa e só pretende investigar Mike Crandell, faça a si mesmo o favor de não desperdiçar o seu tempo. Aposto nele a minha reputação
e a reputação da firma.
Jimmy telefonou para o seu escritório, para saber se havia mensagens para ele. Como não houvesse, seguiu directamente para casa. Não havia muita comida no frigorífico,
pelo que decidiu ir a um restaurante chinês. Mas, sem saber como, encontrou-se a caminho do Motel Garden View.
Eram nove e meia quando lá chegou. Soube pela recepcionista que Mike tinha andado a distribuir fotografias da mulher a todos os empregados, que tinha dado vinte
dólares à telefonista para dar um recado à mulher se ela telefonasse.
Não houve qualquer perturbação aqui na noite passada disse o recepcionista nervosamente. Não podia impedi-lo de distribuir as fotografias, mas isto não é o tipo
de publicidade que nos agrada.
A pedido de Jimmy, o empregado entregou-lhe uma das fotografias, uma ampliação do instantâneo, sob o qual se lia, em letras maiúsculas: KAY CRANDELLDESAPARECIDA;
PODE ESTAR DOENTE. TEM 32 ANOS, 1,50 DE ALTURA, PESA 48 KG. DÁ-SE UMA RECOMPENSA SUBSTANCIAL A QUEM INFORME SOBRE
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O SEU PARADEIRO. Seguia-se o nome de Mike e o número de telefone do motel.
Às dez horas, Jimmy bateu à porta do quarto 210. Esta abriu-se imediatamente e Jimmy notou o vivo desapontamento no rosto de Mike ao ver de quem se tratava. Com
relutância, Jimmy confessou a si mesmo que Mike Crandell parecia realmente muito preocupado. Tinha as roupas amarrotadas como se tivesse apenas passado pelo sono
em sofás. Jimmy passou por ele e viu a pilha de fotocópias da fotografia de Kay em cima da mesa.
Onde é que as tem distribuído? perguntou.
Sobretudo no motel. Amanhã vou entregá-las nas estações de caminhos-de-ferro e de camionetas, nas cidades em redor, e pedir às pessoas que as ponham nas montras
das lojas.
Não teve mais notícias? Mike hesitou.
Soube qualquer coisa disse-lhe Jimmy Barrott. Que foi? Mike apontou para o telefone.
Não confiei em que a telefonista se lembrasse. Pus um gravador esta tarde. Kay telefonou enquanto eu fui buscar um hamburger. Deviam ser oito e meia.
Tencionava contar-me isso?
Por que havia de fazê-lo? perguntou Mike. Por que havia o senhor de incomodar-se com... com aquilo a que chamou uma desavença doméstica? Havia um leve tom de histeria
na sua voz.
Jimmy Barrott dirigiu-se ao gravador, enrolou a fita e carregou no botão Play. A mesma voz feminina que tinha ouvido na noite anterior fez-se ouvir de novo.
Mike, estou realmente farta. Vai-te embora e pára de espalhar fotografias minhas por aí. É humilhante. Estou aqui porque quero. Ouviu-se o som do auscultador pousado
com violência.
A minha mulher tem uma voz suave, harmoniosa disse Mike. Esta voz revela tensão, nada mais. Esqueça as palavras que ela disse.
Escute disse Jimmy, num tom que, para ele, era muito simpático. As mulheres não terminam um casamento sem uma certa tensão. Eu sei. Até a minha primeira mulher chorou
durante o divórcio, e já estava grávida de outro tipo. Falei com os seus patrões. Têm-no em muito boa conta. Por que não volta para o seu trabalho e se dá por muito
feliz? Não há mulher que valha isso.
O rosto de Mike ficou branco.
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Telefonaram-me do meu escritório disse Mike. Ofereceram-se para arranjar um detective particular para me ajudar. Talvez aceite.
Jimmy Barrott inclinou-se sobre a mesa e retirou a cassete do gravador.
Pode dar-me o nome de alguém que possa identificar a voz da sua mulher? perguntou.
Mike passou toda a noite sentado, com a cabeça entre as mãos. Às seis e meia, saiu do motel e percorreu as estações de caminhos-de-ferro e de camionagem das cidades
vizinhas. Às nove horas estava no Liceu Garden State. Não havia aulas, por causa das férias de Verão, mas o pessoal de escritório continuava a trabalhar. Foi levado
ao gabinete do reitor, Gene Pearson. Pearson escutou-o atentamente, com o rosto magro franzido e pensativo.
Lembro-me bem da sua mulher disse. Disse-lhe que quando ela desejasse voltar a trabalhar aqui, tinha um lugar garantido. Pelo que os antigos alunos dela me disseram,
deve ter sido excelente professora.
"Ele ofereceu um cargo a Kay. Teria ela decidido aceitá-lo?
Como é que Kay reagiu?
Os olhos de Pearson estreitaram-se.
Por acaso, disse-me: "Tenha cuidado, olhe que eu posso levá-lo a sério". Subitamente ficou sério. Mr. Crandell, eu compreendo a sua preocupação, mas não vejo como
posso ajudá-lo. Pôs-se de pé.
Por favor suplicou Mike. Devem ter sido tiradas fotografias durante a reunião. Têm algum fotógrafo oficial?
Temos.
Quero o nome dele. Preciso de arranjar rapidamente uma série completa das fotografias que foram tiradas. Não pode recusar-me isso.
Dirigiu-se seguidamente ao fotógrafo da Center Street a seis quarteirões do liceu. Pelo menos ali o único problema foi o custo. Fez a sua encomenda e voltou ao motel
para escutar o gravador. Às onze e meia voltou ao fotógrafo, que tinha feito um monte de reproduções de 20 x 25 cm de todas as fotografias que tinha tirado durante
a reunião mais de duzentas fotografias, no total.
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Com as fotografias debaixo do braço, Mike dirigiu-se a casa de Virginia O'Neil.
Durante toda a noite de quinta-feira, Kay não conseguiu dormir sobre o colchão encaroçado, envolta nos seus lençóis novos e ásperos. A sensação que tinha de que,
no interior de Donny, algo estava prestes a atingir um nível explosivo, não a deixava descansar. Depois de ter telefonado e deixado a mensagem para Mike, tinha feito
o jantar para Donny. Ele tinha trazido latas de carne picada, legumes congelados e vinho. Tinha colaborado com ele, fingindo que era divertido trabalharem juntos.
Durante o jantar, tinha-o feito falar de si próprio, da sua mãe. Ele tinha-lhe mostrado uma fotografia da mãe, uma loura esbelta de quarenta e tal anos, com um biquini
que teria ficado bem a uma adolescente. Mas Kay tinha ficado toda arrepiada. Havia uma notável semelhança entre ela e a mãe de Donny. Eram do mesmo tipo, embora
tão distantes como o A do Z, mas do mesmo tipo, quanto a tamanho, feições e cabelos.
Ela casou-se outra vez, há sete anos disse-lhe Donny, numa voz inexpressiva. O marido dela trabalha num dos casinos de Las Vegas. É muito mais velho que ela, mas
os filhos dele adoram-na. São da idade dela. Donny mostrou-lhe a fotografia de dois homens de quarenta e tal anos, com os braços em volta da mãe. Ela também os adora.
Depois voltou a atenção para a comida que tinha no prato.
É muito boa cozinheira, Kay. Gosto disso. A minha mãe não gostava de cozinhar. Na maior parte das vezes eu tinha de comer sanduíches. Ela não parava muito em casa.
Depois do jantar, ela tocou piano e cantou com ele. Donny recordava-se das letras de todas as canções que ela ensinara ao coro. Tinha retirado as traves de madeira
das janelas, para deixar entrar o ar fresco da noite, mas era evidente que não receava ser ouvido. Ela Perguntou-lhe isso.
Já ninguém vem até aqui disse-lhe ele.O lago não tem peixes. Está demasiado poluído para se nadar. Todas as outras casas estão a cair. Estamos seguros, Kay.
Quando decidiu que eram horas de ir para a cama, retirou-lhe a corrente da perna e esperou novamente no exterior da casa de banho. Quando saiu do chuveiro, ela ouviu
a porta começar a abrir-se, mas,
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quando ela a fechou bruscamente, ele não voltou a tocar-lhe. Depois quando ela se dirigia rapidamente ao quarto, Donny perguntou-lhe
Que é que quer para a ceia do casamento, Kay? Devíamos planear qualquer coisa especial.
Ela fingiu ponderar seriamente a questão, e depois abanou a cabeça e disse com firmeza:
Não posso fazer plano algum para me casar até ter um vestido branco. Vamos ter de esperar.
Não pensei nisso, Kaydisse ele, ajeitando-lhe a roupa da cama e fixando-lhe a grilheta no tornozelo.
Estava sempre a adormecer e a acordar. De cada vez que acordava, via Donny aos pés da cama, a olhar para ela. Os seus olhos começavam a abrir-se e ela forçava-os
a fecharem-se, mas era impossível enganá-lo. A fraca luz que ele deixara acesa na sala incidia sobre a almofada.
Não se preocupe, Kay. Eu sei que está acordada. Fale comigo, querida. Tem frio? Dentro de dias, quando estivermos casados, eu aqueço-a. Às sete horas, levou-lhe
café. Ela sentou-se na cama, tendo o cuidado de entalar o lençol e o cobertor por baixo dos braços. O seu "Obrigada" foi silenciado com um beijo.
Não vou trabalhar todo o dia disse-lhe Donny. Estive toda a noite a pensar naquilo que me disse, que não tinha um vestido branco para usar no casamento. Hoje vou
comprar-lhe um vestido.
A chávena do café começou a tremer na sua mão. Com um tremendo esforço, Kay tentou conservar-se calma. Aquela poderia ser a sua única oportunidade.
Donny, desculpadisse. Não quero parecer ingrata, mas as roupas que me compraste não me assentam bem. Todas as mulheres gostam de escolher o seu vestido de casamento.
Não tinha pensado nisso disse Donny. Pareceu ficar desconcertado e pensativo. Isso quer dizer que eu teria de a levar à loja. Não sei bem se quero fazer isso. Mas
faria tudo para a fazer feliz.
Na sexta-feira de manhã, às seis e meia, Jimmy Barrott desistiu de tentar dormir e dirigiu-se à cozinha. Fez uma cafeteira de café, procurou uma esferográfica sobre
a mesa e começou a tomar notas no verso de um sobrescrito.
1. Foi Kay Crandell quem fez aqueles telefonemas? Pedir a Virgínia O'Neil que identifique a voz.
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2. Se a voz for a de Kay Crandell, confirmar o nível de tensão no laboratório.
3. Se Kay Crandell fez os telefonemas, sabia dos posters que Mike Crandell tinha começado a distribuir poucas horas antes, no motel. Como?
A última pergunta apagou quaisquer vestígios de sono que ainda permaneciam no cérebro de Jimmy. Tratar-se-ia de alguma estúpida mistificação cozinhada por Mike e
Kay Crandell?
Às dez e meia, Jimmy Barrott tomava relutantemente parte de um jogo de catch com o seu adversário de dois anos, Kevin O'Neil. Atirou a bola a Kevin, que a apanhou
com uma só mão, mas, ao atirá-la, Kevin gritou "Falhaste!" e Jimmy deixou escapar uma bola fácil.
"Falhaste" é a maneira de ele nos hipnotizar explicou Virginia. Não teve dúvida alguma em identificar a voz de Kay.Mas nem parece ela disse Virginia. Miss Wesley,
quero dizer, Mrs. Crandell, oh, bolas, ela está sempre a dizer-me que a trate por Kay... Kay tem uma voz agradável. É uma voz sempre calorosa e animada. Isso é a
voz dela, mas não é a voz dela.
Onde está o seu marido? perguntou Jimmy. Virginia fitou-o, perplexa.
Está a trabalhar. É vendedor da Mercantil Exchange.
É feliz?
Claro que sou feliz. O tom de Virginia era gelado. Posso saber qual a razão dessa pergunta?
Como falaria se se fosse embora, com ou sem os miúdos, e abandonasse o seu marido? Sentiria tensão?
Virgínia agarrou Kevin segundos antes de ele derrubar a sua gémea.
Detective Barrott, se eu deixasse o meu marido, sentar-me-ia a uma mesa com ele e dir-lhe-ia quando e porquê me ia embora. E quer saber uma coisa? Kay Wesley Crandell
faria exactamente a mesma coisa. É óbvio que está a projectar para este caso a maneira como pensa que mulheres como Kay e eu agimos. E agora, se não tem mais perguntas,
eu tenho muito que fazer. Pôs-se de pé.
Mrs. O'Neil disse ele. Falei com Mike Crandell antes de vir aqui. Sei que ele mandou fazer cópias das fotografias tiradas durante a reunião e estará aqui com elas
por volta do meio-dia. Volto ao meio-dia. Entretanto, tente lembrar-se se Kay combinou sair com alguém. Ou dê-me os nomes dos membros da faculdade de quem ela Parecia
amiga.
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Virginia separou os gémeos que estavam a lutar pela custódia de um dos ursos de peluche. Mudou de tom.
Estou a começar a simpatizar consigo, detective Barrott disse-lhe.
A mesma ideia que tinha ocorrido a Jimmy Barrott, que Kay sabia que ele andava a mostrar a fotografia dela poucas horas depois de ter distribuído fotografias no
motel, ocorreu a Mike, enquanto se dirigia, de carro, para casa de Virginia O'Neil, com as pilhas de fotografias da reunião.
Quando Virginia veio abrir a porta, Mike estava à beira da histeria. A visão do rosto sombrio de Jimmy Barrott constituiu mais um esticão nas cordas já tensas do
seu sistema nervoso.
Que é que está a fazer aqui?a sua pergunta abrupta saiu quase num grito.
Teve consciência da mão de Virginia O'Neil no seu braço, do facto de a casa parecer invulgarmente silenciosa.
Mike disse Virginia, o detective Barrott quer ajudar. Estão cá mais algumas mulheres da nossa turma; fizemos sanduíches; vamos todos ver as fotografias.
Pela segunda vez em dois dias, Mike sentiu as lágrimas inundarem-lhe os olhos. Desta vez conseguiu engoli-las. Foi apresentado às outras mulheres, Margery, Joan
e Dotty, todas alunas do Liceu Garden State nos anos em que Kay lá tinha dado aulas. Sentaram-se todos e observaram as fotografias que Mike tinha trazido.
Este é o Bobby... vive em Pleasantwood. Aqui a Kay está a conversar com o John Durkin. A mulher dele é esta. Este...
Foi Jimmy Barrott quem colou cada fotografia a uma folha de cartolina, marcou as cabeças de cada pessoa com um número, e depois pediu às mulheres que identificassem
todas as pessoas que conheciam. Em breve se tornou óbvio que havia em volta de Kay demasiadas pessoas de que ninguém conseguia lembrar-se.
Às três horas, Jimmy disse:
Sinto muito, mas não estamos a chegar a parte nenhuma. Sei que têm um novo reitor no liceu. Ele não vai ajudar-nos, mas haverá algum professor que lá esteja há bastante
tempo e que possa ajudar-nos a identificar os ex-alunos que as senhoras não conhecem?
Virginia e as amigas trocaram longos olhares pensativos. Virginia falou por todas.
A Marian Martindisse.Entrou para o Garden State no dia em que foi inaugurado. Reformou-se há dois anos. Vive em Litch-
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field, Connecticut, actualmente. Esteve para vir à reunião, mas tinha outros compromissos a que não podia faltar.
É dela que precisamos disse Jimmy Barrott. Alguém tem o número de telefone ou a morada dela?
A centelha de esperança que tinha começado a arder em Mike quando se apercebera de que Jimmy Barrott estava do seu lado transformou-se em chama. Havia gente a trabalhar
com ele, gente que queria ajudá-lo. "Kay, espera por mim. Eu hei-de encontrar-te."
Virginia já estava a consultar a sua agenda.
Está aqui o número de Miss Martin. Começou a marcá-lo.
Vina Howard tinha realizado uma ambição de toda a sua vida, ao abrir a loja O Cartel do Trajo em Pleasantwood, Nova Jérsia. Tinha sido vendedora ajudante na firma
J. C. Penney antes do seu inexoravelmente infeliz casamento. Quando, ao fim de dezoito anos, tinha finalmente deixado Nick Howard, tinha regressado a casa, a tempo
de tratar os pais idosos ao longo de uma série de ataques cardíacos e tromboses. Depois da morte deles, Vina tinha vendido a velha casa, comprado um pequeno apartamento
e realizado o sonho da sua vida, abrir uma loja de modas que agradasse à filha adolescente da moderna habitante dos subúrbios. E tinha sido esse erro que passara
a ser a sua preocupação quotidiana.
Na sexta-feira de manhã, dia 19, Vina estava a endireitar os vestidos no expositor, a polir o vidro por cima do balcão das bijutarias, a ajeitar as cadeiras junto
dos cubículos de provas tapados com cortinados, e a murmurar para si própria:
Que miúdos horríveis. Chegam aqui e provam tudo o que há. Deixam maquilhagem nas golas. Deixam tudo pelo chão. Esta é a última época que forneço roupas àqueles cretinos.
Vina tinha motivos de sobra para estar desanimada. Tinha acabado de mandar forrar o minúsculo gabinete de provas com um dispendioso papel de parede, e um dos garotos
tinha escrito a habitual palavra de cinco letras por toda a parede. Ela tinha acabado por conseguir limpá-la, mas o papel tinha ficado todo manchado e rasgado em
alguns pontos.
E, no entanto, o dia tinha começado de maneira agradável. Por volta das dez e meia, a hora a que chegara Edna, a sua ajudante, a loja estava cheia de gente e a caixa
registadora tilintava.
Às três e um quarto tinha havido uma pausa, e Vina e Edna
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tinham conseguido beber uma chávena de café em paz. Edna garantira que o marido seria capaz de esticar o papel que restava, por forma a substituir a zona danificada.
Uma Vina visivelmente mais animada tinha um sorriso caloroso no rosto quando a porta da loja se abriu e entrou um casal, composto por uma jovem bonita, de 26 ou
28 anos, vestindo uma saia e uma T-shirt baratas, e um homem de aspecto sinistro, mais ou menos da mesma idade, que a envolvia apertadamente com um braço. O cabelo
ruivo e encaracolado do homem dava-lhe o ar de ter acabado de sair do cabeleireiro. Os seus olhos azuis de porcelana brilhavam. Havia neles algo de estranho, pensou
Vina. O seu sorriso tornou-se mais rígido. Ultimamente tinha havido uma série de roubos, naquela área, cometidos por gente relacionada com as drogas.
Queremos um vestido branco comprido disse-lhe o homem. Tamanho oito.
A época dos bailes de estudantes já passou disse Vina inquieta. Não tenho uma grande colecção de vestidos de noite.
Este destina-se a um casamento. Vina dirigiu-se à jovem.
Tem preferência por algum estilo em especial?
Kay tentava desesperadamente descobrir uma maneira de comunicar com aquela mulher. Pelo canto do olho podia ver que a empregada da caixa registadora estava a notar
algo de estranho em Donny e nela. Aquela incrível peruca ruiva que ele tinha posto na cabeça. Sabia também que a mão direita de Donny agarrava a pistola dentro do
bolso, e que o mais leve esforço da sua parte para alertar aquelas mulheres se transformaria numa sentença de morte para elas.
Qualquer coisa de algodão disse. Tem bordado inglês? Ou talvez. jersex? Tinha avistado a sala de provas tapada com um cortinado. Teria de ir até lá sozinha para
provar o vestido... Talvez pudesse deixar uma mensagem. Quanto mais vestidos experimentasse, mais tempo teria.
Mas havia apenas um vestido branco comprido, de tamanho oito, em bordado inglês.
Levamos este disse Donny.
Quero experimentá-lo disse Kay firmemente. A sala de provas é ali. Apontou para o gabinete. Dirigiu-se até lá e correu o cortinado. Vê. Só tinha espaço para uma
pessoa. O cortinado não chegava ao chão.
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Está bem, pode experimentá-lo disse Donny. Eu espero aqui fora. Negou firmemente a oferta de Vina para ajudar Kay. Basta que lhe entregue o vestido.
Kay despiu a T-shirt e a saia. Freneticamente, olhou em volta do pequeno cubículo. Numa estreita prateleira havia uma caixa com alfinetes. Mas não havia um lápis.
Não havia maneira de deixar uma mensagem. Enfiou o vestido pela cabeça e agarrou num alfinete. O papel de parede de um dos lados do cubículo estava manchado e rasgado.
Tentou riscar do outro lado a palavra SOCORRO. O alfinete era muito fino. era impossível deslocá-lo rapidamente. Conseguiu fazer um grande S desajeitado.
Despache-se, querida. Ela afastou o cortinado.
Não consigo chegar a estes botões nas costas disse à vendedora.
Enquanto abotoava o vestido, Vina olhava nervosamente para a caixa registadora. Edna abanou ligeiramente a cabeça. Livra-te deles, estava ela a dizer.
Kay olhou-se no espelho de corpo inteiro.
Não acho que esteja muito bem disse. Não tem mais?
Levamos este interrompeu Donny. Fica linda com ele. Puxou de um maço de notas. Despache-se, querida ordenou. Já se está a fazer tarde.
No interior do cubículo, Kay despiu o vestido, entregou-o através do cortinado, enfiou a T-shirt e a saia e agarrou noutro alfinete. Com uma das mãos, fingiu estar
a ajeitar o cabelo; com a outra, tentava fazer o O no papel de parede, mas era impossível. Voltou-se subitamente ao ouvir Donny afastar o cortinado.
Por que leva tanto tempo, querida?perguntou. Ela estava de costas para a parede onde tinha começado a escrever. Continuou a alisar os cabelos com as mãos. Deixou
cair o alfinete para trás do corPO e viu os olhos de Donny percorrerem o minúsculo cubículo. Depois, aparentemente satisfeito, agarrou-lhe na mão e, com a caixa
debaixo do braço, puxou-a para fora da loja.
Marian Martin tinha acabado de plantar as suas novas azaleas quando o apelo do telefone a obrigou a entrar em casa. Era uma mulher alta, de 67 anos de idade, com
um corpo esbelto e bem preparado, cabelos curtos e encaracolados e um jeito bondoso e prático.
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Durante os dois anos que tinham passado desde que se reformara do seu cargo de psicóloga orientadora do Liceu de Garden State e se mudara para aquela tranquila cidade
do Connecticut, tinha-se alegremente dedicado à vocação para a qual nunca tinha tido tempo. Agora, o seu jardim inglês constituía um motivo de orgulho para ela.
Por isso, a chamada telefónica, naquela tarde de sexta-feira, não tinha sido uma interrupção muito bem recebida, mas quando acabou de escutar Virginia O'Neil, Marian
esqueceu-se das dálias que não chegara a plantar.
"Kay Wesley", pensou. "Uma professora nata. Estava sempre pronta a dedicar-se aos garotos que estavam em dificuldades. Todos os alunos a adoravam. Kay, desaparecida."
Tenho uma série de coisas a fazer disse a Virginia. Mas posso pôr-me a caminho às seis. Devo levar umas duas horas. Tenham as fotografias prontas. Não há um único
miúdo que tenha frequentado o Garden State cujo rosto eu não conheça.
Quando desligou, acorreu-lhe à memória Wendy Fitzgerald, uma aluna do Garden State que, vinte anos antes, tinha desaparecido durante um piquenique. O seu assassino
tinha sido Rudy Kluger, o faz-tudo do liceu. Rudy devia estar a sair da prisão. Marian sentiu a boca seca. "Isso não, por favor."
Às cinco e quarenta e cinco, tendo atirado a mala que continha os acessórios para passar a noite para dentro do porta-bagagens, seguia a caminho de Nova Jérsia.
Enchiam-lhe o espírito os pormenores daquela época horrível, desde a altura em que Wendy Fitzgerald tinha sido dada como desaparecida até ao dia em que o seu corpo
tinha sido encontrado. Estava de tal modo invadida pela sua apreensão em relação a Rudy, que se introduziu profundamente no seu subconsciente a noção de que Kay
estaria envolvida em qualquer incidente semelhante.
Virginia pousou o auscultador.
Miss Martin deverá estar aqui por volta das oito disse. Jimmy Barrott empurrou a cadeira para trás.
Tenho de ir ao escritório. Se essa psicóloga descobrir alguma coisa esta noite, seja o que for, telefonem para este número. Se não, eu volto amanhã de manhã. Entregou
a Virgínia um cartão um tanto deteriorado.
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As outras mulheres levantaram-se também. Também elas voltariam para trabalhar com Miss Martin no dia seguinte.
Mike pôs-se de pé.
Vou distribuir mais fotografias. Depois volto ao motel. Há sempre a hipótese de Kay telefonar outra vez.
Desta vez, pregou fotografias de Kay nos postes telefónicos nas ruas principais das cidades por onde passava e nos grandes centros comerciais. Em Pleasantwood quase
chocou com uma carrinha que passou subitamente por ele, quando entrava no parque de estacionamento municipal. "Idiota", pensou Mike. "Ainda mata alguém.
Donny tinha estacionado a carrinha no parque municipal por detrás do Cartel do Trajo. Quando saíram da loja, conservou o braço firmemente apertado em volta do corpo
de Kay, até chegarem à carrinha, depois abriu a porta lateral e empurrou-a para diante. Kay olhou, desvairada, para o jovem corpulento que punha o seu carro em andamento,
dois lotes mais adiante. Por momentos, conseguiu cruzar o seu olhar com o dele, e depois sentiu o cano da pistola encostado ao corpo.
Há uma criança no banco de trás daquele carro, Kay disse Donny com suavidade.Se emitir um único som, aquele tipo e o miúdo morrem.
Ela sentiu as pernas transformadas em borracha, ao tentar subir para a carrinha.
Aqui está a caixa, querida disse Donny em voz alta. Esperou até o outro carro passar por eles, e depois entrou na carrinha e fechou a porta violentamente.
Queria avisar aquele tipo, Kay silvou. A mordaça que lhe aplicou na boca ficou cruelmente apertada. Colocou-lhe as algemas e as grilhetas nos tornozelos com rudeza,
e passou a corrente pelas argolas. Colocou a caixa junto do beliche dela. Lembre-se do motivo por que comprámos este vestido, Kay, e não se ponha a olhar para outros
homens. Abriu um pouco a porta, olhou em volta, e depois abriu-a um pouco mais e saiu. No momento em que a luz se filtrou Para o interior da carrinha, Kay viu um
objecto fino e longo, caído no chão, por baixo da bancada de trabalho.
Uma chave de parafusos.
Se tivesse a chave de parafusos, poderia desaparafusar a placa de
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metal da parede da casa e talvez tivesse oportunidade de fugir enquanto Donny estava a trabalhar.
A carrinha arrancou bruscamente. Donny devia estar com os nervos em ponto de ruptura, para guiar àquela velocidade. "Meu Deus fazei que a polícia o veja", pediu
ela, "por favor." Mas a velocidade da carrinha abrandou perceptivelmente. Ele devia ter-se apercebido de que estava a guiar com excessiva velocidade.
Ela voltou-se de lado, baixou lentamente as mãos algemadas e, com as pontas dos dedos, tentou alcançar a chave de parafusos. Lágrimas de raiva e frustração enchiam-lhe
os olhos, mas enxugou-as pacientemente. Na semiobscuridade, mal conseguia ver o longo e fino contorno da ferramenta, mas, por mais desesperadamente que tentasse,
até as algemas lhe queimarem os ossos do pulso, não conseguiu alcançá-la.
Fez rolar o corpo de forma a ficar de costas e puxou as mãos para cima até repousarem sobre os joelhos. A tarimba gemeu, enquanto ela se esforçava por se sentar,
fazia descer as pernas, agitava o corpo até ficar quase à beira da tarimba, e estendia as pernas em direcção à chave de parafusos. Estava a menos de dois centímetros
do seu alcance. Ignorando as dores terríveis causadas pelas grilhetas, que se enterravam nas suas pernas, estendeu as pontas das sandálias até sentir a lâmina fina,
e depois agarrou-a entre as solas das sandálias e puxou a chave de parafusos para a tarimba. Finalmente, esta ficou mesmo por baixo dela. Fez subir as pernas, deixou-se
cair de costas e fez descer novamente as mãos até ao chão. A carne magoada enviava sinais de dor, que já nem sentia, porque os seus dedos estavam a fechar-se em
volta do cabo da chave de parafusos, agarrando-a, levantando-a.
Por momentos repousou, arquejando devido ao esforço, exultante com a sua vitória. Depois os seus dedos apertaram com mais força a ferramenta, quando um novo pensamento
a invadiu. Como poderia fazê-la entrar na casa? Não havia espaço para esconder na sua pessoa. A T-shirt barata moldava-lhe o corpo; a saia de algodão não tinha bolsos;
as sandálias eram abertas.
Estavam quase na cabana. Sentiu a carrinha a voltar, e avançar aos solavancos sobre a estrada de terra. A caixa do vestido voltou-se e roçou-lhe pelo braço. A caixa
do vestido. A empregada tinha feit° um nó duplo, ao atar o cordel em volta da caixa. Era impossível desmanchá-lo. Cuidadosamente, Kay meteu os dedos entre a tampa
e o fundo da caixa, e depois começou a introduzir lentamente a chave de
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parafusos pela abertura que os seus dedos faziam. Sentiu a tampa rasgar-se de lado.
A carrinha parou. Desesperadamente, empurrou a chave de parafusos, tentando forçá-la a introduzir-se entre as pregas do vestido, e conseguiu deitar a caixa de lado
antes que a porta se abrisse.
Chegámos, Kay disse Donny inexpressivamente.
Ela rezou para que ele não reparasse nas novas marcas que tinha nos pulsos e nos tornozelos, nem no rasgão da caixa. Mas os movimentos dele quando abriu as algemas
e as grilhetas e retirou a corrente eram automáticos. Meteu a caixa debaixo do braço sem olhar para ela, abriu a porta da casa e empurrou-a rapidamente para dentro,
como se tivesse medo de estar a ser seguido. O interior da cabana estava abafado.
O instinto dizia a Kay que deveria tentar acalmá-lo.
Estás com fome disse. Não comes há horas. Tinha-lhe dado o almoço quando ele regressara à cabana uma hora antes, mas estava demasiado agitado para comer. Vou fazer-te
uma sanduíche e uma limonada disse. Estás a precisar.
Ele atirou a caixa do vestido para cima do sofá e fitou-a.
Diga-me quanto me ama ordenou. Tinha as pupilas dilatadas e apertava-lhe os pulsos com mais força que as algemas. Respirava em arquejos curtos e irregulares. Aterrorizada,
Kay recuou até o veludo áspero do sofá lhe tocar nas pernas. Ele estava prestes a descontrolar-se. Perceberia imediatamente, se ela tentasse acalmá-lo com mentiras.
Em vez disso, ela disse secamente:
Donny, eu é que queria ouvir-te dizer porque me amas. Dizes que sim, mas estás sempre zangado comigo. Como é que eu posso acreditar-te? Lê-me um dos teus cadernos,
enquanto eu preparo qualquer coisa para comermos. Forçou-se a introduzir um tom de fria autoridade na voz. Donny, quero que comeces a ler já.
Está bem, eu leio, Miss Wesley. A voz dele tinha perdido o tom irado, tinha-se tornado mais aguda, quase adolescente. Mas primeiro tenho de ir ver as minhas mensagens.
Tinha deixado o telefone em cima da mesinha ao lado do sofá, ao saírem. Pegou num bloco de notas, tirou um lápis do bolso e carregou no botão de play. Havia três
mensagens. Uma de uma loja de ferragens: Donny poderia lá ir no dia seguinte? O homem que lhes fazia as reparações estava doente. Uma do Motel Garden View: precisavam
de ajuda extra para montar equipamento electrónico para um seminário. Precisavam que ele trabalhasse toda a tarde.
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A última chamada era, obviamente, de um homem idoso. Ouvia-se distintamente a sua respiração asmática, quando se identificou com voz fraca. Clarence Gerber. Poderia
Donny passar por sua casa para ver a torradeira? Não aquecia, e a mulher estava a queimar o pão todo, tentando fazer torradas no forno. Seguiu-se uma risada difícil,
e o homem acrescentou: "Ponhanos no topo da lista, Donny. Telefone-me para me dizer quando vem."
Donny pousou o bloco de notas, enrolou a fita do gravador e, desta vez, pôs-se de pé em cima do sofá e guardou o telefone no armário.
Não suporto aquele velho, o Gerber disse a Kay. Por mais que eu lhe diga... quando estou a arranjar qualquer coisa dele... mete-se na carrinha e põe-se a conversar
comigo, enquanto estou a trabalhar. E tenho de ir ao motel primeiro. Pagam-me logo. Poupei muito dinheiro para nós, Kay. Desceu do sofá. E agora vou-lhe ler. Mostre-me
quais os cadernos que ainda não leu.
"Senti desde aquele primeiro dia, no coro, quando Kay pousou as mãos no meu peito e me disse que cantasse, que havia algo de especial e de muito belo entre nós"
leu Donny, enquanto ia bebendo limonada. A sua voz foi-se acalmando ao falar das inúmeras vezes que ela lhe tinha telefonado e pedido que fosse ter com ela. Sentada
diante dele, Kay sentia-se quase incapaz de engolir. Ele repetia vezes sem conta como se sentiria feliz se morresse com ela, como seria glorioso morrer para defender
o direito a ela.
Parou de ler e sorriu.
Oh, já me esquecia disse. Arrancou a peruca ruiva, deixando à vista a calva incipiente e os ralos cabelos castanhos. Inclinou-se para a frente e, pela primeira vez,
tirou as lentes de contacto azuis. Fitou-a com as suas pupilas de um castanho baço, com estranhos reflexos verdes. Gosta de mim quando sou eu mesmo? perguntou. Sem
esperar pela resposta deu a volta à mesa e pegou nela. Tenho de ir ao motel. Vou deixá-la instalada na sala, Kay.
No Cartel do Trajo, Vina Howard e a sua ajudante Edna passaram cinco minutos a falar do casal que tinha comprado o vestido de bordado inglês branco.
Podia jurar que ambos tomam drogas afirmou Edna. Mas escuta, tínhamos ambas chegado à conclusão de que tinha sido asneira
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comprar aquele vestido. Não ias fazer um desconto? Assim, vendeste-o pelo preço marcado. E ainda por cima a dinheiro. Vina concordou.
Mas continuo a dizer que ele tinha um aspecto esquisito. Pinta o cabelo. Quase poderia jurá-lo. A porta abriu-se e entrou uma nova cliente. Vina ajudou-a a escolher
diversas saias, e depois conduziu-a ao gabinete de provas. A sua exclamação indignada sobressaltou tanto Edna como a cliente.
Olhem para isto explodiu Vina. Com um dedo tremente, apontava para o S serrilhado na parede.Ela ainda era pior que ele exclamou, furiosa. Agora não temos papel que
chegue para arranjar as duas paredes. Muito gostava de a apanhar ajeito. Nem mesmo as exclamações de compreensão da cliente, nem Edna a lembrar-lhe que tinham vendido
o vestido pelo preço marcado, conseguiram aplacar a indignação de Vina.
Vina continuou interiormente furiosa, de tal modo que, quando às seis horas fechou a loja e começou a caminhar em direcção à sua casa, a três quarteirões de distância,
olhou para o póster suspenso do poste telefónico e não registou na sua consciência que a mulher cujo rosto estava a ver era a mesma criatura miserável que tinha
acabado de lhe estragar o papel da parede.
Eram cerca de nove horas quando Mike regressou ao Motel Garden View. A noite tinha-se tornado quente e abafada, e a sua testa cobriu-se de gotas de suor mal saiu
do carro com ar condicionado. Começou a dirigir-se ao motel. Uma tontura forçouo a parar e a apoiar-se no carro junto ao qual passava, uma carrinha cinzenta-escura.
Apercebeu-se de que não tinha comido, desde a sanduíche que Virginia lhe oferecera. Dirigiu-se ao quarto e ligou o gravador. Não havia mais mensagens.
A cafetaria ainda estava aberta. Só havia três ou quatro compartimentos ocupados. Pediu uma sanduíche de carne assada e café. A criada dirigiu-lhe um sorriso compreensivo.
O senhor é aquele a quem desapareceu a mulher. Boa sorte. Tenho a certeza de que há-de correr tudo bem. Tenho um pressentimento.
Obrigado. "Quem me dera ter esse pressentimento", pensou Mike. Por outro lado, pelo menos as pessoas estavam a reparar na fotografia de Kay.
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A criada saiu de junto dele e regressou com um saco e a conta para o homem sentado dois compartimentos mais adiante.
Esta noite trabalha até tarde, hein, Donny? perguntou ela
Já passava das seis horas quando Donny partiu na carrinha. Logo que o ruído do motor se afastou, Kay meteu a mão na caixa do vestido, procurando a chave de parafusos.
Se conseguisse soltar a placa de metal da parede, talvez conseguisse chegar ao telefone. Mas, ao estudar o pesado cadeado do armário, percebeu que isso era impossível.
Era a placa de metal ou nada.
Aproximou-se da placa e acocorou-se no chão. Os parafusos estavam tão bem apertados que pareciam soldados à placa. A chave de parafusos era pequena. Passaram-se
minutos, passou-se meia hora, uma hora. Sem tomar consciência do calor, da transpiração que lhe inundava o corpo, do cansaço que lhe entorpecia os dedos, continuou
a trabalhar. Finalmente foi recompensada. Um dos parafusos começou a rodar. Com uma lentidão exasperante, foi-se desatarrachando. Finalmente soltou-se por completo.
Cuidadosamente, ela enroscou-o apenas o suficiente para que não saltasse, e ocupou-se do parafuso seguinte. Quanto tempo teria passado? Quanto tempo se demoraria
Donny?
Ao fim de algum tempo, começou a ficar entorpecida. Trabalhava como um robot, inconsciente das dores que lhe percorriam as mãos e os braços, das cãibras nas pernas.
Tinha acabado de sentir o segundo parafuso começar a mover-se quando compreendeu que o vago som que escutara era a carrinha a regressar. Freneticamente arrastou-se
para o sofá, introduziu a chave de parafusos entre as molas e agarrou no caderno que Donny tinha deixado sobre o sofá.
Aporta abriu-se. Os passos pesados de Donny ressoaram sobre as tábuas do chão. Trazia um saco na mão.
Trago-lhe um hamburger e uma soda, Kay disse. Vi Mike Crandell na cafetaria. Há fotografias suas por toda a parte. Não foi muito boa ideia obrigar-me a ir fazer
compras. Vamos ter de adiantar o nosso casamento um dia. Tenho de ir ao motel de manhã. Eles iam achar estranho que eu não fosse lá. E devem-me dinheiro. Mas quando
eu voltar, casamo-nos e vamo-nos embora daqui.
A decisão pareceu acalmá-lo. Dirigiu-se a ela e pousou o saco no sofá.
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Não lhe agrada que, sempre que compro alguma coisa para mim, pense em si? O beijo que lhe deu na testa foi demorado.
Kay esforçou-se por não revelar repulsa. Pelo menos, com a fraca luz, ele não podia notar como as suas mãos estavam inchadas. E ele ia trabalhar no motel no dia
seguinte de manhã. Isso queria dizer que só lhe restavam umas horas antes de desaparecer com ela.
Donny pigarreou.
Vou ser um noivo muito nervoso, Kay disse. Vamos praticar os nossos votos de casamento. "Eu, Donald, recebo-te a ti,
Kay..."
Tinha decorado completamente as frases do casamento tradicional. A mente de Kay encheu-se de recordações de quando dissera: "Eu, Kay, recebo-te a ti, Michael. Oh,
Mike", pensou, "Mike."
Então, Kay? o tom de irritação regressara à voz de Donny.
Não tenho uma memória tão boa como a tuadisse ela. Talvez seja melhor escreveres as palavras, para eu as decorar amanhã, quando estiveres a trabalhar.
Donny sorriu. À luz fraca, os seus olhos pareciam enterrados nas órbitas, o seu rosto magro ao ponto de parecer esquelético.
Acho isso muito agradável disse. Por que não come o seu hamburger?
Nessa noite, Kay conservou os olhos resolutamente fechados e forçou a sua respiração a manter-se regular. Tinha consciência de que Donny entrava e saía e a observava,
mas a sua mente focava-se apenas no facto de que, mesmo que conseguisse soltar a placa de metal antes do regresso dele, não havia garantia alguma de conseguir escapar-lhe.
Até onde conseguiria fugir, através de bosques desconhecidos, com um pé agrilhoado e carregando o peso da placa e da corrente?
O trânsito estava difícil na Estrada 95 Sul. Às seis e meia, Marian Martin apercebeu-se de que a ligeira dor de cabeça persistente de que estava a sofrer resultava,
provavelmente, do facto de ter comido apenas uma pequena sanduíche ao almoço. Apetecia-lhe imenso uma chávena de chá e um pãozinho. Mas a sensação de urgência que
crescia dentro dela obrigou-a a conservar o pé no acelerador até que, às sete e cinquenta, tomou o caminho que levava à vivenda de Virginia O'Neil na cidade de Jefferson.
Virginia tinha queijo e bolachas e uma garrafa de vinho gelado à
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espera, na sala de estar. Cheia de gratidão, Marian mordiscou o queijo, bebeu um pouco de Chablis e observou o ambiente da sala confortavelmente mobilada, com o
seu grande piano coberto com folhas de música, num recanto.
As folhas de música desencadearam algo na memória de Marian.
Tocava piano na aula de canto coral de Kay Wesley, não tocava? De que estou eu a tentar recordar-me em relação a essa aula? perguntou Marian a si própria, em voz
alta, com impaciência.
O jantar foi frango no forno temperado com limão, com arroz de legumes e uma salada, mas, cheia de fome como estava, Marian mal se apercebeu do que estava a comer.
Insistiu em estudar as fotografias da reunião enquanto comia. Rudy Kluger era alto e magro. Tinha trinta e poucos anos na altura em que assassinara Wendy Fitzgerald.
Isso queria dizer que teria uns 50 anos agora. Marian passou uma rápida vista de olhos pelas fotografias. Os alunos mais antigos teriam cerca de 40 anos. Não deveria
haver muitos homens mais velhos nas fotos.
Não havia. Os poucos que encontrou não se assemelhavam nem remotamente a Rudy. Enquanto observava as fotografias, Virginia foi informando que Mike estava a distribuir
a fotografia de Kay pelas cidades locais, que o detective encarregado do caso parecera, a princípio, duvidar de que se tratasse de um verdadeiro desaparecimento,
mas agora estava a ajudar activamente.
Ele vai ficar no escritório até bastante tarde, esta noite, julgo eu disse Virgínia Pediu-me que lhe telefonasse se achássemos que tínhamos descoberto alguma coisa.Puxou
a cadeira para mais perto de Marian, enquanto Jack levantava a mesa e preparava o café. Virginia agarrou numa das fotografias. Veja disse, isto foi mesmo no final.
Kay tinha acabado de comer um cachorro. Começou a despedir-se das pessoas que a rodeavam. Eu fui a última com quem ela falou. Depois seguiu pelo caminho fora, até
ao parque de estacionamento.
Marian observou a fotografia. Kay encontrava-se muito perto do caminho. Mas algo captou a atenção de Marian, nos bosques que levavam ao parque de estacionamento.
Tem uma lente? perguntou.
Alguns minutos depois, estavam ambas de acordo. Quase oculto por detrás de um grande ulmeiro, perto do parque de estacionamento, havia algo que poderia ser um homem
que evitava ser visto.
Isto provavelmente não quer dizer nada disse Marian,
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esforçando-se por manter uma voz calma.Mas talvez fosse boa ideia eu falar Já com o tal detective.
Jimmy Barrott estava sentado à secretária quando a chamada chegou. Por acaso, estava a estudar o dossier de um certo Rudy Kluger que, vinte anos antes, tinha "morto
e assassinado" uma aluna de
16 anos do Liceu Garden State, depois de a ter levado para os bosques perto da área de piquenique. Rudy Kluger tinha saído da Prisão de Trenton State havia seis
semanas e já tinha violado a sua liberdade condicional, não se apresentando à polícia.
Jimmy Barrott sentiu um peso no peito ao ouvir a antiga psicóloga orientadora dizer-lhe que, numa das fotografias, lhe parecia ver alguém a esconder-se no bosque,
precisamente quando Kay Crandell partia, e que estava muito preocupada por causa de Rudy Kluger.
Miss Martin disse Jimmy Barrott. Vou ser franco. Rudy Kluger saiu da prisão. Já andamos à procura dele. Mas pode fazer-me um favor? Faça de conta que Kluger não
existe. Veja essas fotografias com objectividade. Não sei porquê, mas tenho a sensação de que a senhora vai descobrir qualquer coisa que vai ajudar-nos.
Ele tinha toda a razão quanto à objectividade, ela sabia-o. Marian desligou e recomeçou a estudar as fotografias.
Às onze e meia já não conseguia manter os olhos abertos.
Já não sou tão jovem como era disse, desculpando-se.
O quarto de hóspedes ficava do outro lado do quarto das crianças, no andar de cima. Mesmo assim, Marian ouviu vagamente um dos gémeos chorar, a meio da noite. Voltou
a adormecer, mas, durante o breve período em que esteve acordada, apercebeu-se de que algo a estava a preocupar, algo que tinha visto nas fotografias, e que era
absolutamente vital recordar.
Clarence Gerber não dormiu bem na noite de sexta-feira. Não havia coisa alguma que Brenda mais apreciasse que torradas ao pequeno-almoço, e a torradeira não funcionava
havia dois dias. Como Brenda dizia, não valia a pena comprar uma nova, quando Donny Rubel a poderia pôr como nova por dez dólares.
Durante essa noite inquieta, Clarence reflectiu em que o verdadeiro problema da reforma consistia em a pessoa nada ter para fazer quando acordava, o que significava
não ter coisa alguma de que falar. Agora as irmãs de Brenda passavam tanto tempo lá em casa que
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ele nunca conseguia conversar com ela. Elas interrompiam-no sempre que começava a dizer alguma coisa.
Às cinco da manhã, enquanto Brenda resmungava e ressonava ao seu lado, tão afastada do seu corpo, na cama de casal, quanto lhe era possível sem cair, Clarence concebeu
o seu plano. Talvez para Donny não valesse a pena perder tempo a ir lá por dez dólares. Mas Clarence já tinha arquitectado uma solução. Tinha acontecido uma vez
ou duas não ter em casa dinheiro quando Donny lhe arranjava alguma coisa, pelo que tinha enviado um cheque a Donny pelo correio. Tinha a morada dele. Algures em
Howville. Timber Lane. Era isso. Perto daqueles lagos onde Clarence costumava ir nadar quando era criança. Nessa manhã iria até casa de Donny, deixaria lá a torradeira
se ele não estivesse em casa, com uma nota a dizer que a iria buscar logo que estivesse pronta.
O sono fechou-lhe as pálpebras. Tinha um meio-sorriso no rosto quando adormeceu. Era bom ter um plano, ter qualquer coisa para fazer ao acordar.
Muito antes do amanhecer, Kay ouviu sons de grande actividade na sala. Que estaria Donny a fazer? Escutou o som de objectos que caíam no chão. Donny estava a fazer
as malas. A inevitabilidade do que aqueles sons significavam fez que Kay levasse à boca os punhos fechados. Se alguma vez tinha precisado de se manter calma, para
evitar as suspeitas dele, seria precisamente durante as próximas horas. A única hipótese que tinha de lhe escapar seria enquanto ele fazia os seus últimos trabalhos
e entregas, nessa manhã. Se ele suspeitasse de alguma coisa, partiria imediatamente com ela.
Conseguiu imitar um sorriso sonolento quando ele lhe estendeu uma chávena de café, às sete horas.
És muito atencioso, Donny murmurou, sentando-se, tendo novamente o cuidado de entalar as cobertas por debaixo dos braços.
Ele pareceu ficar satisfeito. Vestia umas calças azuis-escuras e uma camisa branca de mangas curtas. Em vez dos habituais ténis, tinha calçado uns sapatos castanhos-claros
muito bem engraxados. Era óbvio que se tinha ocupado especialmente do cabelo. Estava colado ao crânio, como se tivesse usado laca. Os seus olhos de um castanho baço
pareciam arder de excitação.
Já tenho tudo planeado, Kay disse. Vou arrumar a maior parte das coisas dentro da carrinha antes de partir. Assim, logo que
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eU voltar, poderemos casarnos e fazer uma pequena refeição de casamento. Terá de ser um pequeno-almoço tardio, porque não quero esperar até tarde. Depois vamo-nos
embora. Vou colocar uma mensagem no gravador, a dizer que vou partir para umas longas férias. E vou dizer aos meus melhores clientes, esta manhã, que me vou casar.
Assim, ninguém vai estranhar se não regressarmos durante muito tempo.
Estava obviamente satisfeito com os seus planos. Inclinou-se e beijou os cabelos de Kay.
Talvez, quando tiver um filho, vamos visitar a minha mãe. Ela ria-se sempre de mim quando eu lhe dizia que não conseguia nada com as raparigas. Dizia-me sempre que
a única maneira de eu arranjar uma rapariga era amarrá-la. Mas quando ela vir como a Kay é bonita e quanto amamos o nosso filho, aposto que vai pedir-me desculpa.
Não deixou Kay vestir-se antes do pequeno-almoço.
Vista só o roupão. A intensidade emocional do corpo dele era quase febril. Ela não queria andar ao pé dele com a camisa de noite e o roupão transparentes.
Donny, está imenso frio. Empresta-me atua gabardina enquanto esperamos.
Ele tinha deixado de fora alguns utensílios e a cafeteira, a torradeira, dois pratos. Tudo o resto estava emalado.
Vamos passar a maior parte do tempo em tendas e cabanas até chegarmos a Wyoming, Kay. Não a incomoda um pouco de desconforto, pois não?
Ela teve de morder os lábios para conter uma gargalhada histérica. Tinha considerado alguns andares mobilados, muitos deles bastante elegantes, como "desconfortáveis".
Mike. Mike. Pensar no nome dele transformou o riso numa torrente de lágrimas. "Não chores", disse a si própria, "não chores."
Está a chorar, Kay?Donny inclinou-se sobre a mesa e observou-a. Ela conseguiu engolir as lágrimas.
Claro que não. Fingiu-se divertida. Todas as noivas têm os seus ataques de nervos antes do casamento.
O amplo afastamento dos lábios dele era a caricatura de um sorriso.
Acabe o pequeno-almoço, Kay. Tem de fazer a sua mala. Apresentou-lhe uma mala de um vermelho-vivo.
, Surpresa! Comprei-a para si. Mas recusou-se a permitir-lhe
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que vestisse jíeans e uma T-shirt. Não, Kay. Guarde tudo menos o vestido de noiva.
Partiu às nove e meia, prometendo que não estaria fora mais de duas a três horas. Na sala, as duas malas velhas dele ladeavam a mala nova vermelha dela. Apenas o
poster com a fotografia de ambos no baile do liceu permanecia na parede.
Vamos fazer os nossos votos diante dele tinha dito Donny.
O vestido de bordado inglês estava-lhe muito apertado nos ombros. Rasgou-se enquanto ela procurava a chave de parafusos entre as molas do sofá. Kay agarrou na chave
de parafusos e depois pousou-a e rasgou cuidadosamente a folha de papel onde Donny tinha escrito os votos de casamento. De qualquer modo, ele iria matá-la. Bem podia
desafiá-lo ao menos ali, onde, pelo menos, o seu corpo poderia ser um dia encontrado, e Mike poderia deixar de continuar a procurá-la.
Com a calma do desespero, pegou na chave de parafusos, levantou-se do sofá e dirigiu-se à placa de metal, arrastando a pesada corrente. Agachou-se, retirou o parafuso
já solto, deixou-o cair no chão, e depois aplicou a chave na cabeça do segundo parafuso, aquele que já tinha começado a soltar-se na tarde anterior.
Mike chegou a casa dos O'Neil às nove horas.
Era um belo dia de Junho, cheio de sol. Custava a crer que algo pudesse estar errado num dia como aquele, pensou Mike. Como num sonho, viu um jovem no relvado vizinho
ligar o aspersor de rega. À sua volta, as pessoas dedicavam-se às suas tarefas habituais dos sábados de manhã, ou iam jogar golfe, ou levavam os filhos a passear.
Durante as últimas três horas, ele tinha andado a pregar fotografias de Kay nos postes telefónicos em volta dos clubes de natação locais.
Abriu a porta de rede e entrou. Os outros já estavam sentados em volta da mesa da cozinha. Virginia e Jack O'Neil, Jimmy Barrott, as três colegas de Virginia. Mike
foi apresentado a Marian Martin. Sentiu imediatamente a tensão que pairava no ar. Receando perguntar, olhou, para Jimmy Barrott.
Diga-me o que sabe.
Não sabemos nada disse-lhe Jimmy Barrott. Pensamos que Miss Martin tenha visto alguém a esconder-se no caminho do parque, mesmo na altura em que Kay deixava o piquenique.
Mandámos ampliar essa fotografia. Nem sequer temos a certeza de que não
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se trate de um ramo de árvore ou qualquer outra coisa. Hesitou, como se fosse prosseguir, e depois disse: Sugiro que não percamos tempo. Vamos continuar a identificar
as pessoas que estão nas fotografias.
Os minutos passaram. Mike sentia-se inútil. Não podia ajudá-las. Pensou em ir até algumas cidades mais distantes, onde ainda não tivesse deixado fotografias de Kay,
mas alguma coisa o prendia ali. Tinha a sensação de que o tempo estava a correr. Pensava que todos a tinham.
Às nove e meia, Marian Martin abanou a cabeça com impaciência.
Eu julgava que conheceria todas as caras, mas fui estúpida. As pessoas mudam muito. Do que eu preciso é de uma lista dos estudantes que se inscreveram para a reunião.
Isso vai ajudar-me.
É sábado disse Virginia. A secretaria está fechada. Mas vou telefonar para casa de Gene Pearson. Vive a quatro quarteirões do liceu. É o reitor do Garden State disse
ela a Mike.
Já estive com ele. Mike recordou-se da relutância de Pearson.
Mas, quando chegou, pouco mais de trinta minutos depois, era óbvio que, como Jimmy Barrott, Gene Pearson tinha mudado de atitude. Não se tinha barbeado; parecia
ter vestido as roupas que estavam mais à mão; pediu desculpa por se ter demorado tanto.
Pearson entregou a Marian a lista de pessoas que tinham vindo à reunião.
Em que posso ajudar? - perguntou.
O telefone tocou. Todos se sobressaltaram. Virginia atendeu.
É para si disse a Jimmy Barrott.
Mike tentou decifrar a expressão de Jimmy mas não conseguiu.
OK. Leiam-lhe o raio dos direitos e façam-no assinar a declaração disse Jimmy. Vou já para aí.
Fez-se um silêncio mortal na cozinha. Jimmy pousou o auscultador e olhou para Mike.
Temos estado a tentar localizar um tipo chamado Rudy Kluger, Que tinha saído da prisão. Cumpriu vinte anos por assassinar uma rapariga que raptou da área de piquenique
perto do Liceu de Garden State.
Mike sentiu uma opressão no peito, enquanto aguardava.
Jimmy humedeceu os lábios.
Isto pode nada ter a ver com o desaparecimento da sua mulher,
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mas acabam de apanhar Kluger nesse mesmo bosque. Tentou assaltar uma rapariga que fazia jogging.
E pode ter lá estado na quarta-feira disse Mike.
É possível.
Eu vou consigo. "Kay", pensou Mike, "Kay."
Como se sentisse subitamente que a sua tarefa era inútil, toda a gente à mesa pôs de parte as fotografias. Uma das colegas de Virginia começou a soluçar.
Mike, a Kay telefonou-lhe na noite anterior à última recordou Virginia.
Mas não na noite passada. E agora o Kluger está a tentar apanhar outra pessoa.
Mike acompanhou Jimmy Barrott até ao carro. Tinha a noção de estar a sofrer uma reacção de choque. Não sentia absolutamente nada, nem sofrimento, nem desgosto, nem
raiva. Sussurrou de novo o nome de Kay, mas este não evocou emoção alguma.
Jimmy Barrott começava a fazer sair o carro em marcha atrás do caminho que levava à casa, quando Jack O'Neil saiu a correr.
Esperem aí! gritou. Estão a telefonar do seu escritório. Uma mulher chamada Vina Howard viu um dos posters com a fotografia de Kay e jura que Kay esteve na loja
dela em Pleasantwood ontem à tarde.
Jimmy Barrott travou bruscamente. Ele e Mike saltaram do carro e correram para dentro da casa. Jimmy agarrou no telefone. Mike e os outros reuniram-se à sua volta.
Jimmy fez perguntas e transmitiu instruções. Desligou e dirigiu-se a Mike.
A tal Howard e a assistente dela juram ambas que era a Kay. Estava com um tipo de vinte e tal anos. A Howard pensou que eles estivessem drogados, mas depois de falar
com a minha gente apercebeu-se de que Kay estava provavelmente aterrorizada. Kay riscou um S no papel de parede do gabinete de provas.
Um tipo com vinte e tal anos exclamou Mike. Então não pode ser o Kluger. O alívio misturava-se a um novo receio. Ela tentou escrever qualquer coisa no gabinete de
provas. A voz falhou-lhe ao murmurar: Uma palavra começada por S...
Devia estar a tentar escrever SOCORRO replicou Jimmy Barrott. A questão é que, pelo menos, sabemos que ela não estava com o Kluger.
Mas que fazia ela numa loja de vestidos? perguntou Jack O'Neil.
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O rosto de Jimmy Barrott revelava descrença.
Sei que parece parvoíce, mas estava a comprar um vestido de noiva.
Tenho de falar com essa mulher disse Mike.
Ela e a assistente dela chegarão aqui dentro de momentos num carro da esquadra disse Jimmy Barrott. Apontou para a mesa. Há uma hipótese de elas reconhecerem nestas
fotografias o tipo que estava com a sua mulher.
Clarence Gerber estava espantado ao ver como tudo tinha mudado no caminho para Howville. Nos seus tempos era tudo rústico, com as montanhas e os lagos escondidos.
Nunca se tinha desenvolvido como as cidades em volta. A poluição tinha-se instalado havia muitos anos. Os desperdícios das fábricas tinham destruído a natação e
a pesca. Mas não contava com a total desolação do local. As casas apodreciam como se tivessem sido definitivamente abandonadas. O ferro-velho e os carros destruídos
formavam pilhas de ferrugem nas ravinas ao lado da estrada. Era estranho que um tipo como Donny Rubel vivesse naquele sítio, pensou Clarence.
Regressavam-lhe à mente recordações enterradas havia muito tempo. A Timber Lane não dava directamente para a estrada. Teria de chegar àquela bifurcação da estrada,
a uma ou duas milhas de distância, percorrer cinco milhas e depois virar à direita, para uma estrada de terra que levava à Timber Lane.
Clarence estava satisfeito com o dia soalheiro, satisfeito por o seu carro, já com onze anos, se estar a portar tão bem. Tinha acabado de mudar o óleo, e embora
arquejasse um pouco nas subidas, "tal como eu", dizia ele, era um bom automóvel. Nada que se pareça com aqueles carros de lata que se vendem hoje em dia a preços
que, no seu tempo, chegariam para comprar uma mansão.
As irmãs de Brenda tinham chegado ainda antes de ele ter conseguido beber uma chávena de café. Todas ficaram satisfeitas por o ver sair, para poderem falar daquele
sujeito que andava a pregar cartazes da mulher desaparecida por toda a região. Clarence tentou imaginar que Brenda tinha desaparecido. Riu-se. Nunca o processariam
Por perturbar a paz a pregar fotografias dela por todo o lado.
Encontrou a bifurcação da estrada. "Mantém-te à direita", disse a si próprio. O letreiro da Timber Lane poderia ter desaparecido, mas ele saberia onde era quando
lá chegasse. Levava a torradeira ao seu
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lado, no banco do carro. Tinha-se lembrado de trazer uma folha de papel em branco e um sobrescrito. Se Donny não estivesse em casa deixar-lhe-ia uma mensagem. Talvez
quando voltasse a buscar a torradeira, pudesse fazer uma visita a Donny. Donny devia sentir-se solitário, a viver naquele local. Não parecia haver uma alma por muitas
milhas em redor.
O segundo parafuso já estava no chão. O terceiro começava a soltar-se. Kay fazia rodar o peso do corpo de um lado para o outro, enquanto fazia girar a chave de parafusos.
Começava a sentir o cabo um pouco solto. "Oh, meu Deus, por favor fazei que ela não se estrague." Há quanto tempo teria ele partido? Pelo menos uma hora? O telefone
tinha tocado duas vezes e as pessoas que haviam ligado tinham recebido a mensagem sobre as férias prolongadas, mas Donny não tinha falado. Endireitou-se e limpou
o suor que lhe escorria pela testa. Sentindo tonturas, apercebeu-se de que estava perto da exaustão. Tinha cãibras nas pernas. Embora detestasse a ideia de perder
tempo, pôs-se de pé e espreguiçou-se. Voltou-se, e o seu olhar caiu sobre a fotografia do baile, na parede oposta. Enojada, acocorou-se de novo, e, com um assomo
de energia, fez rodar o cabo da chave de parafusos. Subitamente apercebeu-se de que ele estava realmente a rodar. O terceiro parafuso estava livre. Arrancou-o e,
pela primeira vez, ousou ter esperanças de ter efectivamente uma possibilidade.
E nessa altura ouviu o som de um carro, um chiar de travões. Não, não, não. Desanimada, pousou a chave de parafusos no chão e cruzou as mãos. Deixá-lo ver o que
estava a fazer. Seria melhor que ele a matasse ali mesmo.
A princípio julgou que era imaginação sua. Não podia ser. Mas era. Alguém batia à porta. A voz de um velho gritava:
Está alguém em casa?
O gemido da sirene do carro da polícia, a velocidade louca passando as luzes vermelhas, fizeram que o percurso de dez milhas entre Pleasantwood e a casa dos O'Neil
em Jefferson Township parecesse uma eternidade a Vina Howard e à sua ajudante Edna. "Eu vi a fotografia daquela mulher ontem à noite", censurava-se Vina silenciosamente,
"e só me preocupei com o papel de parede. Se ao menos..." De veria ter-lhe parecido óbvio que havia algo de errado. "O homem estava
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tão apressado. Ela insistira em experimentar o vestido, tentava ganhar tempo, pedindo outros vestidos. Ele tinha aberto o cortinado do gabinete como se não confiasse
nela. "E eu só pensei no papel de parede."
Jimmy Barrott cortou a palavra a Vina quando ela tentou dizer-lhe tudo isto em casa dos O'Neil.
Mrs. Howard, por favor. Nós pensamos que quem raptou Kay Crandell possa estar nestas fotografias. Não se importava de as estudar. Tem a certeza de que ele tinha
cabelo ruivo? Tem a certeza de que ele tinha olhos azuis?
Absolutamente disse Vina. Nós até comentámos que ele parecia ter saído do cabeleireiro.
Marian Martin levantou-se da mesa.
Sentem-se aqui. Quero estudar outra vez a lista. Aquela terrível sensação persistente de que lhe estava a passar qualquer coisa... por que estaria a explodir dentro
dela? Dirigiu-se à sala dos brinquedos. Gene Pearson seguiu-a.
Virginia fez sinal às amigas. Todas se reuniram num sofá semicircular, em frente da sala onde estavam Marian Martin e Gene Pearson.
Mike conservou-se junto da mesa, a observar os rostos sérios das duas mulheres de meia idade que tinham visto Kay no dia anterior. Pleasantwood. Ele tinha estado
lá.
A que horas disse que Kay esteve na sua loja? perguntou a Vina.
Por volta das três horas. Talvez às três e um quarto, mais ou menos.
Ele tinha saído daquela casa no dia anterior às três horas e tinha-se dirigido para Pleasantwood. Devia ter estado na cidade ao mesmo tempo que Kay. A ironia da
situação fê-lo sentir vontade de dar murros na parede.
Jack O'Neil estava a empilhar as fotografias que Vina e Edna punham de parte.
Não podemos deixar de o encontrar disse Vina a Jimmy Barrott. Basta procurarmos aquele tipo de cabelo. Fez uma pausa
e agarrou numa fotografia. Sabe, é estranho. Há qualquer coisa nesta...
Que é? perguntou logo Jimmy Barrott.
Há qualquer coisa que eu reconheço. Vina mordeu o lábio, irritada. Oh, estou a perder tempo. Já sei o que é. Estou a ver a fotografia
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daquele. Apontou para o escritório onde Gene Pearson revia a lista da reunião com Marian.
Edna tiroulhe a fotografia da mão.
Percebo o que queres dizer, mas... Arrastou a voz. Continuou a estudar a fotografia. Pode ser parvoíce disse, mas há qualquer coisa neste homem de barba e óculos
escuros...
No escritório, Marian Martin estava a estudar a lista de alunos de um novo ponto de vista. Estava à procura de um nome que, por qualquer motivo, lhe tivesse escapado.
Estava precisamente a começar a lista dos R quando algo que Virginia disse lhe captou a atenção.
Recorda-se de que todas queríamos vestir-nos como Kay Wesley? Ela poderia ter sido a rainha do baile de finalistas quando lá foi tomar conta de nós.
"O baile", pensou Marian Martin. "Era disso que eu estava a tentar lembrar-me. Donny Rubel, aquele rapaz estranho e introvertido que tinha uma paixão por Kay." Os
seus dedos percorreram a página. Ele tinha-se inscrito para ir à reunião, mas ela não o tinha visto em fotografia alguma. Por isso o nome dele não lhe tinha vindo
à memória.
Virginia perguntou, alguém viu Donny Rubel na reunião?
Virginia olhou para as colegas.
Eu não o vi disse lentamente. As outras negaram com a cabeça. Ouvi dizer que ele tem um negócio de reparações, mas foi sempre um solitário prosseguiu Virginia. Duvido
que se desse com alguém do liceu, depois de sair. Penso que teria dado por ele, se ele tivesse ido à reunião.
Donny Rubel interrompeu Gene Pearson. Tenho a certeza de que falei com ele. Até falámos do negócio de reparações. Pergunteilhe se queria falar no dia das carreiras.
Foi mesmo no final do piquenique. Ele estava com tanta pressa que me despachou.
Um pouco forte disse Marian Cabelos castanhos-escuros, olhos castanhos. Perto de um metro e oitenta.
Não. Este era bastante magro. Tinha barba e pouco cabelo. Por acaso até fiquei surpreendido, quando me disse que tinha terminado o curso oito anos antes. Espere
aí. Gene Pearson pôs-se de pé e passou a mão pela cara onde a barba começava a notar-se. Ele ficou numa das fotografias comigo. Vou buscá-la.
Como uma só pessoa, Marian Martin, Virginia e as colegas dela correram do escritório para a cozinha. Vina Howard tinha acabado de
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tirar das mãos da sua ajudante a fotografia de Pearson e Donny Rubel.
Ele tinha uma peruca! gritou Vina. Por isso achámos que o cabelo estava tão bem penteado. É este o homem que foi à minha loja.
Marian Martin, Virginia e as amigas olhavam para o estranho magro, de barba, que nenhuma delas tinha reconhecido. Mas Gene Pearson gritou:
É esse o Rubel! É esse o Rubel!
Jimmy Barrott tirou a lista das mãos de Marian. O endereço de Donny Rubel estava junto do nome dele.
Timber Lane, Howville disse. Fica a quinze milhas daqui. O carro da polícia está lá fora disse a Mike. Vamos.
Clarence Gerber não conseguia acreditar nos seus ouvidos. Uma voz de mulher, dentro da casa, gritava-lhe que fosse buscar ajuda, que telefonasse à polícia, que lhes
dissesse que ela era Kay Crandell. E se aquilo não passasse de uma brincadeira, e a pessoa que estava lá dentro estivesse drogada ou coisa parecida? Clarence decidiu
tentar espreitar para o interior da casa. Mas era impossível forçar as portas ou as janelas.
Não perca tempo gritou Kay. Ele pode voltar a qualquer momento. Vá buscar ajuda. Ele mata-o, se o encontrar aqui.
Clarence deu um último empurrão às traves de madeira da janela da frente. Estava fechada por dentro.
Kay Crandell disse em voz alta, apercebendo-se de que já tinha ouvido aquele nome. Era a mulher de que Brenda e as irmãs estavam a falar de manhã, aquela cujo marido
andava a pregar posters. Era melhor dirigir-se rapidamente à polícia. Esquecendo-se completamente da torradeira que tinha deixado no alpendre, Clarence voltou para
o carro e tentou convencer o idoso motor a ganhar velocidade, enquanto este arquejava e gemia sobre o caminho de terra tortuoso e irregular. Kay ouviu o carro arrancar.
Que ele chegue a tempo, que ele chegue a tempo. A que distância estaria de um telefone? Quanto tempo levaria a polícia a chegar ali? Dez minutos? Um quarto de hora?
Meia hora? Poderia ser tarde de mais. O quarto parafuso continuava bem seguro. Nunca o conseguiria desaparafusar. Mas talvez. Com três parafusos retirados, pôde
servir-se da chave de Parafusos para afastar da parede um canto da placa de metal. Começou
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a fazer passar a corrente pela abertura até poder agarrá-la com ambas as mãos. Arqueou as costas, estendeu os braços e arrastou consigo a corrente, até ser recompensada
por um som de trituração de algo a ser arrancado; depois caiu de costas, quando a placa de metal se separou da parede, trazendo ainda agarrado um pedaço de estuque.
Kay pôs-se de pé, apalpando o fino fio de sangue no local onde a sua cabeça tinha embatido num braço do sofá. A placa de metal era pesada. Meteu-a debaixo do braço,
enrolou a corrente em volta do pulso e dirigiu-se para a porta.
Chegou então aos seus ouvidos o som bem conhecido da carrinha a entrar na clareira.
A excitação que crescia dentro de Donny tinha-se tornado febril. Tinha desistido de todos os trabalhos. Explicara a todos os seus clientes que se ia casar e fazer
umas longas férias. Todos tinham ficado surpreendidos, e depois tinham-lhe dito que estavam muito satisfeitos por ele e que iam sentir a sua falta. Pediram-lhe que
entrasse em contacto com eles logo que voltasse.
Ele nunca mais voltaria. Em toda a parte para onde ia, estava sempre a encontrar fotografias de Kay. Mike Crandell procurava-a por todos os lados. Donny apalpou
a arma que trazia no bolso do casaco. Antes de perder Kay, matá-la-ia a ela e a Mike.
Mas não queria pensar em coisas dessas. Tudo iria correr bem. Tinha tratado de todos os detalhes. Dentro de minutos, Kay e ele casar-se-iam e fariam a refeição de
casamento. Tinha comprado champanhe e trouxera algumas coisas da charcutaria, além de um bolo de coco que se parecia um pouco com um bolo de casamento. Depois ir-se-iam
embora. À noite já estariam na Pensilvânia. Conhecia alguns parques de campismo. Só lhe custava não ter tido tempo para comprar uma camisa de dormir de casamento
para Kay. Mas a que ela tinha era bastante bonita.
Chegou à bifurcação da estrada. Mais dez minutos. Esperava que Kay tivesse decorado os votos de casamento. Uma noiva de Junho. Gostaria de lhe ter comprado flores.
Havia de a compensar.
O teu marido vai tomar bem conta de ti, Kay disse em voz alta. O sol estava tão brilhante que, apesar dos óculos escuros, tinha de franzir os olhos. Feliz a noiva
para quem o sol brilha hoje. Pensou nos cabelos de Kay manchados pelo sol. Naquela noite, a cabeça dela
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repousaria no seu ombro. Os braços dela rodeá-lo-iam. Ela dir-lhe-ia quanto o amava.
Ouviu o velho carro que se aproximava, antes de o ver. Teve de encostar à berma para o deixar passar. Viu, de relance, uns fartos cabelos brancos e um homem pequeno
e magro debruçado sobre o volante. Tinha colocado grandes letreiros que diziam PROIBIDA A PASSAGEM na última curva da estrada que levava à sua casa, e, de qualquer
forma, ninguém se incomodaria a aproximar-se de uma casa com tábuas nas janelas. Mesmo assim, Donny sentiu-se fremir de ira. Não queria gente a bisbilhotar por ali.
Carregou imprudentemente no acelerador. A carrinha saltava sobre a estrada tortuosa. Cabelos brancos e fartos. Aquele carro. Já o tinha visto em qualquer sítio.
Detendo bruscamente a carrinha, Donny recordou-se do telefonema da noite anterior. Clarence Gerber. Era ele que ia no carro.
Saltou da carrinha e começou a correr para casa, e então viu a torradeira no alpendre. Recordou-se da maneira empenhada como Gerber guiava o carro. Gerber ia à polícia.
Donny saltou de novo para a carrinha. Ainda conseguiria apanhar Gerber. Aquele monte de sucata que ele guiava não conseguiria dar mais de quarenta. Atirá-lo-ia para
fora da estrada. E depois... Donny arrancou, cerrando os lábios numa linha fina e impiedosa. E depois voltaria e trataria de Kay, que agora sabia que o tinha atraiçoado.
Mike seguia ao lado de Jimmy Barrott, no banco traseiro do carro da polícia, escutando o gemido da sirene. Kay está a quinze milhas de distância, a doze milhas,
a oito. "Meu Deus, se Tu existes, e eu sei que existes, tudo o que quiseres de mim, juro que o farei. Por favor. Por favor", pensou.
A paisagem tinha-se alterado bruscamente. De súbito, já não passavam por bonitas cidades suburbanas, com relvados bem tratados e roseiras em botão. A estrada encontrava-se
ladeada por ravinas cobertas de sucata. O trânsito quase tinha desaparecido.
Jimmy Barrott estudava um mapa de estradas.
Aposto que não há aqui indicativos com nomes de ruas há vinte anos murmurou. Vamos chegar a uma bifurcação da estrada daqui a uma milha disse bruscamente, avisando
o polícia que seguia ao volante. Vire para a direita.
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Estavam quase na bifurcação quando o motorista carregou bruscamente no travão, para evitar atropelar um velho que cambaleava no meio da estrada, com os cabelos cobertos
de sangue colados à cabeça. Ao fundo da ravina via-se um carro a arder. Jimmy abriu a porta, saiu e ajudou o velho a entrar no carro da polícia.
Clarence Gerber disse, arquejante:
Ele atirou-me para fora da estrada. Donny Rubel. Ele tem a Kay Crandell.
Mal acreditando no que ouvia, Kay escutou os pneus da carrinha guincharem ao regressarem à estrada. Donny devia ter visto o carro do velho e devia ter suspeitado
de qualquer coisa. "Não deixes que ele lhe faça mal", suplicou a um Deus que lhe parecia silencioso e distante. Arrastou-se até à porta, puxou o ferrolho e abriu-a.
Se aquele velho conseguisse chegar a um telefone, ela teria uma hipótese de salvação. Talvez se pudesse esconder no bosque, até chegar ajuda. Não valia a pena tentar
fugir. Mal se podia mexer com o peso que arrastava. O instinto fê-la fechar a porta atrás de si. Se Donny revistasse a casa, ela teria mais uns minutos.
Onde deveria tentar esconder-se? O sol brilhava bem alto, no céu, alcançando, impiedosamente, todos os espaços abertos entre os ramos das árvores esparsas e raquíticas.
Ele pensaria que ela fugiria pela estrada. Arrastou-se até ao bosque do outro lado da clareira, dirigindo-se a um aglomerado de bordos. Mal tinha chegado lá quando
a carrinha voltou a aparecer na estrada e parou. Viu Donny, de arma em punho, avançar com passos decididos para a casa.
Confiem em mim. Eu sei para onde vou disse Clarence Gerber a Jimmy Barrott, com a sua voz irregular e trémula. Estive aqui há cinco minutos.
O mapa diz... Era evidente que Jimmy Barrott pensava que Gerber estava confundido.
Deixe lá o mapa disse Mike. Faça o que ele diz.
É um atalho disse-lhe Clarence. Tinha dificuldade em falar. Sentia-se tonto. Mal podia acreditar no que tinha acontecido. Num momento estava a guiar, imprimindo
ao seu velho carro a máxima velocidade que conseguia, e no momento seguinte era interceptado e forçado a desviar-se para a direita. Mal tinha tido tempo de ver de
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relance a carrinha de Donny Rubel, quando as suas rodas começaram a sair da estrada. Se viajasse em qualquer outro carro teria morrido, mas tinha-se agarrado ao
volante com todas as suas forças até o carro parar de dar cambalhotas. Tinha sentido o cheiro da gasolina e percebera que tinha de fugir depressa. A porta do seu
lado estava presa ao chão, mas tinha conseguido abrir a porta do passageiro e depois subira a ravina.
Por aídisse ao motorista. Faça o que eu lhe digo, está bem? Agora vire à direita, passando pelo letreiro de PROIBIDA A PASSAGEM. A casa dele fica numa clareira,
duzentos metros mais adiante.
Mike viu Barrott e os outros polícias puxarem das armas. "Kay, está aí, por favor, está aí. Viva. Por favor." O carro da polícia irrompeu na clareira e deteve-se
atrás da carrinha-oficina de Donny Rubel.
Kay viu Donny abrir a porta e afastá-la com um pontapé. Quase sentia a fúria dele ao aperceber-se da que ela tinha fugido. A cabana ficava a menos de trinta metros
do aglomerado de árvores onde ela se escondera. "Fazei que ele comece a procurar pela estrada", suplicou.
Momentos depois viu-o no limiar da porta, olhando em volta, desvairado, com a pistola em punho. Encolheu-se, encostando os braços ao corpo. Se ele olhasse para aquele
lado, o vestido branco destacar-se-ia entre as folhas e os ramos. Qualquer movimento faria tilintar a corrente.
Ouviu o som do veículo que se aproximava e no mesmo instante Donny correu para dentro de casa. Mas não fechou a porta. Ficou parado, à espera. O carro parou atrás
da carrinha. Kay viu a lâmpada redonda e vermelha a piscar. Um carro da polícia. "Tenham cuidado", pensou, "tenham cuidado. Ele mata seja quem for." Viu os dois
polícias fardados saírem do carro. Tinham estacionado junto à cabana. As janelas estavam com tábuas. Não havia maneira de poderem ver Donny, que começava a sair
para o alpendre, com uma ousada caricatura de sorriso nos lábios, A porta traseira do carro da polícia abriu-se. Saíram dois homens. Mike. Mike estava ali. Os polícias
empunhavam as suas pistolas. Moviam-se cautelosamente, encostados à casa. Mike estava com eles. Donny avançava nas pontas dos pés pelo alpendre. Dispararia quando
eles voltassem a esquina. Não se imPortava de morrer. Ia matar Mike.
A clareira estava mergulhada num silêncio total. Até mesmo os
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guinchos dos gaios azuis e o zumbido das moscas tinham cessado. Kay teve uma fugaz sensação de fim de mundo. Mike tinha avançado. Estava a menos de um metro da esquina
do alpendre onde Donny esperava.
Kay saiu de detrás da árvore.
Estou aqui, Donny gritou.
Viu-o correr na direcção dela, tentou comprimir-se contra a árvore, sentiu a bala roçar-lhe pela testa, ouviu o som de outras detonações, viu Donny cair no chão.
Depois Mike começou a correr para ela. Soluçando de alegria, Kay saiu a cambalear da clareira, caindo nos braços que se abriam para a acolher.
Jimmy Barrott não era uma pessoa sentimental, mas os seus olhos encontravam-se estranhamente húmidos ao olhar para Kay e Mike, cuja silhueta se recortava contra
as árvores, abraçados como se nunca mais tencionassem separar-se.
Um dos polícias inclinava-se sobre Donny Rubel.
Este foi-se disse a Jimmy.
O outro polícia tinha colocado uma ligadura em volta da cabeça de Clarence Gerber.
O senhor é dos duros disse a Clarence. São sobretudo lacerações, tanto quanto me parece. Vamos levá-lo ao hospital.
Clarence estava a tentar observar todos os detalhes, para contar a Brenda e às irmãs dela. O modo como Kay Crandell tinha tentado atrair o fogo de Donny Rubel, como
Donny tinha corrido para ela, a disparar. Como aquele jovem casal se tinha abraçado e como agora choravam nos braços um do outro. Olhou em volta, para, mais tarde,
poder descrever a cabana. As mulheres haviam de querer conhecer todos os detalhes. O seu olhar de teve-se em algo que se encontrava no alpendre, e Clarence apressou-se
a ir buscá-lo. Ainda que o pudesse considerar um herói, era mesmo de Brenda recordar-lhe que se tinha esquecido de levar a torradeira para casa.
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DIA DE SORTE
Era uma fria quarta-feira de Novembro. Nora caminhava rapidamente, satisfeita por o metropolitano ficar apenas a dois quarteirões de distância. Jack e ela tinham
tido sorte em arranjar um apartamento na Claridge House, quando abrira, seis anos antes. Considerando a maneira como os preços tinham subido em flecha para os novos
inquilinos, nunca conseguiriam alugá-lo agora. E a sua localização entre a Oitenta e Sete e a Terceira proporcionava-lhes um fácil acesso ao metropolitano e aos
autocarros. E a táxis também. Mas os táxis não estavam incluídos no orçamento deles.
Gostaria de ter vestido qualquer coisa mais quente que o casaco que lhe tinha cabido na festa do último filme em que tinha trabalhado. Mas, com o nome do filme a
adornar o bolso superior, o casaco constituía uma prova visível de que ela possuía uma sólida experiência de representação.
Parou na esquina. A luz estava verde, mas o trânsito estava a contornar a esquina e não valia a pena correr o risco de atravessar. Na semana seguinte era tempo de
Acção de Graças. Entre o Dia de Acção de Graças e o Natal, Manhattan seria um longo parque de estacionamento. Tentou não pensar que Jack já não receberia o bónus
de Natal da Merrill Lynch. Durante o pequeno-almoço, ele tinha-lhe confessado que fora incluído nos despedimentos da Merrill Lynch, mas que ia iniciar um novo trabalho
naquele dia. Mais um emprego.
Atravessou rapidamente a rua na altura em que o sinal mudava para vermelho, escapando por pouco a um táxi que atravessava o cruzamento a grande velocidade. O motorista
gritou-lhe:
Se te esborracharem perdes a graça toda, querida. Nora voltou-se rapidamente. O homem fazia-lhe um gesto obsceno com o dedo médio. Numa reacção reflexa, devolveu-lhe
o gesto, mas depois envergonhou-se de o ter feito. Correu ao longo do quarteirão, sem olhar para as montras, rodeando a senhora que dormia num saco de campismo junto
a uma loja.
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Estava prestes a mergulhar nas escadas do metro quando ouviu alguém chamá-la pelo seu nome.
Ei Nora, já não falas às pessoas? Por detrás da banca de jornais, Bill Regan, com o rosto curtido enrugado num sorriso que revelava uns dentes nitidamente postiços,
estendia-lhe um exemplar dobrado do Times. Anda a sonhar acordada acusou ele.
Acho que sim. Ela e Bill tinham-se conhecido por causa do seu encontro diário matinal. Antigo estafeta, já reformado, Bill preenchia os seus dias ajudando o vendedor
cego nas horas de ponta da manhã, e depois trabalhando como mensageiro.
Mantenho-me ocupado explicara ele a Nora. desde que a May morreu, sinto-me muito solitário em casa. Isto dá-me que fazer. Conheço muita gente simpática e dá-me oportunidade
de dar à língua. May sempre disse que eu gostava muito de dar à língua.
Ela tinha cometido o erro de, havia quatro meses, no aniversário da morte de May, convidar impulsivamente Bill para ir tomar uma bebida. Agora ele tinha adquirido
o hábito de aparecer em sua casa todas as semanas, sempre com uma desculpa qualquer. Jack estava farto daquilo. Depois de entrar no apartamento, Bill ficava grudado
durante duas horas pelo menos, até que ela arranjava maneira de o pôr fora ou acabava por o convidar para jantar.
Tenho um pressentimento, Nora disse Bill. O pressentimento de que este é o meu dia de sorte. Esta tarde sai um prémio dos grandes.
A lotaria estatual tinha atingido treze milhões de dólares. Ninguém ganhava havia seis semanas.
Esqueci-me de comprar um bilhete disse Nora. Mas não me sinto em maré de sorte. Procurou trocos no bolso. Tenho de me apressar. Vou a uma audição.
Parta uma perna. Bill estava obviamente orgulhoso do seu conhecimento da gíria do espectáculo. Farto-me de lhe dizer. É tal e qual a Rita Hayworth quando fez Gilda.
Ainda há-de ser uma estrela.
Por momentos os seus olhares cruzaram-se. Nora sentiu-se curiosamente gelada. A habitual expressão triste tinha desaparecido dos olhos azul-claros de Bill. Caíam-lhe
sobre a testa madeixas de cabelos branco-amarelados. O seu sorriso parecia postiço.
De uma maneira ou de outra, talvez tenhamos ambos sorte disse ela. Até à vista, Bill.
No teatro já havia noventa candidatos à sua frente. Deram-lhe
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um número e tentou encontrar um lugar para se sentar. Aproximou-se dela um rosto conhecido. No ano anterior, ela e Sam tinham conseguido pequenos papéis num filme
de Bodganovich.
Quantos papéis há? perguntou ela.
Dois. Um para mim, outro para ti.
Que engraçado.
Era uma hora quando teve oportunidade de ler o papel. Era-lhe impossível saber se tinha ido bem. O produtor e o autor mantinham rostos impassíveis.
Foi a uma agência buscar um impresso e depois fez uma audição para um filme publicitário de J. C. Penney. Não era nada mau se conseguisse este; representava pelo
menos três dias de trabalho.
Havia ainda outro local onde pretendia deixar uma fotografia, mas às quatro e meia decidiu desistir e ir para casa. A incessante sensação de mal-estar que a tinha
acompanhado durante todo o dia tinha-se transformado numa nuvem negra de apreensão. Atravessou algumas ruas a pé, até ao metropolitano, chegou à plataforma no preciso
momento em que o comboio partia, e instalou-se, com fatigada resignação, num banco coberto de inscrições.
Isso deulhe tempo para fazer aquilo que tinha querido fazer durante todo o dia. Pensar. Em Jack. Nela e Jack. No facto de o apartamento deles ir ser transformado
em propriedade horizontal e eles não terem dinheiro para o comprar. E Jack a mudar outra vez de emprego. Mesmo em Manhattan havia muitas casas de investimentos.
Ele nem sequer lhe tinha dito como se chamava a nova.
Era preciso enfrentar a verdade. Jack detestava ser vendedor de títulos. Só tinha começado a trabalhar no ramo para ganhar qualquer coisa enquanto ela tentava ser
actriz e ele escrevia, nos fins-de-semana. Tinham chegado a Nova Iorque com os diplomas universitários ainda húmidos, alianças de casamento ainda novas, seguros
de que iriam conquistar Manhattan. E agora, seis anos mais tarde, a frustração de Jack começava a revelar-se de muitas maneiras.
Entrou na estação um comboio apinhado. Nora entrou nele, abrindo caminho com dificuldade por entre as pessoas e agarrando-se a um varão. Quando conseguiu equilibrar-se
na carruagem em movimento, apercebeu-se de que devia ter começado a chover. As pessoas que a rodeavam tinham casacos molhados e a carruagem enchia-se do cheiro pesado
e bafiento de sapatos húmidos.
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O apartamento parecia um oásis, depois do dia que passara. Avista das janelas incluía o rio East, a Ponte de Triborough, e a Mansão Gracie. Nora nem sequer podia
imaginar que nenhum deles tivesse nascido em Manhattan. Eram simplesmente nova-iorquinos. Se ao menos ela conseguisse arranjar um papel numa telenovela, ao menos
poderia aguentar as finanças por mais algum tempo e dar a Jack a oportunidade de escrever. Quase o tinha conseguido, algumas vezes. Havia de conseguir.
Não devia tê-lo censurado, naquela manhã. Ele tinha-se mostrado tão embaraçado, ao confessar que tinha perdido o emprego na Merrill Lynch. Ela tinha-se tornado,
inconscientemente, tão crítica, que ele já não podia conversar com ela, ou seria ele que estava a perder a sua autoconfiança? "Amo-te, Jack", pensou. Correu à cozinha
e retirou do frigorífico um pedaço de queijo e um cacho de uvas. Quando ele chegasse a casa, estariam à sua espera, com uma garrafa de vinho. Enquanto preparava
a bandeja, ia buscar os copos de vinho, ajeitava as almofadas do sofá e apagava algumas luzes, de modo a que o ambiente ficasse na penumbra, realçando a vista dos
arranha-céus, Nora foi-se sentindo menos preocupada. Só quando entrou no quarto para se despir e vestir uma túnica reparou que a luz do gravador do telefone estava
a piscar.
Havia uma mensagem. Era de Bill Regan. A sua voz soava excitada, ofegante, e dizia:
Nora, não saia. Tenho de ir festejar consigo. Estou aí às sete. Nora, eu bem lhe disse. Eu sabia. É o meu dia de sorte.
Oh, meu Deus. Precisamente aquilo de que Jack precisava. Estar com Bill Regan naquela noite. Dia de sorte. Devia ter sido a lotaria. Provavelmente tinha voltado
a ganhar umas centenas de dólares. Desta vez ia mesmo ficar toda a noite e insistir em levá-los a jantar a uma cafetaria.
Quando^ chegava tarde, Jack telefonava sempre. Naquela noite não o fez. Às seis horas, Nora comeu uma fatia de queijo, às seis e meia serviu-se de um copo de vinho.
Se ao menos Jack tivesse chegado cedo naquele dia, teriam tido um pouco de tempo para eles, antes da chegada de Bill.
Às sete e meia, nenhum deles tinha chegado. Bill não costumava chegar atrasado. Por certo teria telefonado, se tivesse desistido de lá ir. A sua exasperação misturava-se
com alguma preocupação. Quer ele viesse, quer não, a noite estava estragada. E onde estaria Jack?
Às oito horas, Nora já não sabia o que fazer. Não sabia o nome do
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novo emprego de Jack. O serviço de mensagens do Edifício Fisk na Rua Cinquenta e Sete Oeste onde Bill tinha trabalhado estava fechado. Teria havido um acidente?
Devia ter visto as notícias locais na televisão. E Bill atravessava sempre o Central Park quando ia visitá-los. Dizia que o exercício lhe fazia bem. Fazia-o mesmo
quando chovia. Trinta quarteirões através do parque. Numa noite como aquela não haveria praticantes de jogging. Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa?
Jack chegou às oito e meia. O seu rosto magro e vivo estava mortalmente pálido, as pupilas dilatadas. Quando ela correu para ele, Jack abraçou-a e começou a embalá-la
lentamente.
Nora, Nora.
Jack, que aconteceu? Tenho estado tão preocupada. Tu e o Bil, ambos tão atrasados...
Ele afastou-a.
Não me digas que estás à espera de Bill Regan.
Estou, ele telefonou. Devia estar cá às sete. Jack, que é que tu tens? Desculpa o que sucedeu esta manhã. Não queria aborrecer-te. Jack, não me importo que mudes
de emprego. Só estou preocupada por tua causa... Talvez eu possa desistir do teatro durante algum tempo e arranjar um emprego certo. Dar-te-ia a tua oportunidade.
Jack, adoro-te.
Ouviu um som estrangulado e sentiu os ombros dele começarem a subir e a descer. Jack estava a chorar. Nora encostou a cabeça dele ao seu rosto.
Desculpa, não sabia que te tinha custado tanto.
Ele não respondeu, limitou-se a abraçá-la. Nora e Jack. Conheciam-se havia dez anos, desde o primeiro dia na Brown. Ela tinha-se sentido atraída pela tranquila intensidade
que sentia nele, pelo seu rosto magro e inteligente, o sorriso rápido que apagava a expressão geralmente séria. O rapaz encontra a sua rapariga. Nenhum deles se
tinha interessado por ninguém mais, depois desse primeiro encontro.
Ela ajudouo a despir a sua Burberry de imitação.
Jack, estás encharcado!
Acho que sim. Oh, meu Deus, querida, eu quero falar contigo, mas vou esperar. Dizes que o Bill vem aí. Começou a rir, e depois os seus olhos encheram-se novamente
de lágrimas.
Como uma criança obediente, seguiu as instruções dela para
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tomar um duche quente. Tinha-se passado qualquer coisa, mas não podiam falar antes de Bill chegar e se ir embora.
Que teria acontecido a Bill Regan? Vivia em Queens. Tinha-lhes mostrado fotografias de uma vivenda modesta. Talvez o número do telefone dele viesse na lista. Parecia-lhe
impossível que se tivesse esquecido de lá ir, mas ele tinha 75 anos de idade.
Havia uma dúzia de William Regans na lista de Queens. Desesperadamente, Nora espremeu o cérebro, tentando recordar-se do endereço dele. Desligou e foi buscar a sua
lista de cartões de Natal. No ano anterior tinha pedido a Bill que lhe desse a sua morada, para poder enviar-lhe um cartão. Armada das informações devidas, voltou
a ligar para as informações e obteve o número. Mas ninguém respondeu de casa de Bill.
Do quarto veio um som metálico agudo. Que diabo estaria Jack a fazer? A ideia ocorreu-lhe e desapareceu, enquanto marcava de novo o número de Bill. Ele não estava
mesmo em casa.
Jack saiu do quarto de pijama e roupão. Parecia mais calmo, agora, a intensidade que o envolvia parecia produzir electricidade estática. Bebeu um copo de vinho e
atacou vorazmente o prato de queijo.
Deves estar cheio de fome. Tenho spaghetti que sobrou na noite passada. Arrependida, Nora dirigiu-se à cozinha.
Jack seguiu-a.
Não estou aleijado. Começou a fazer uma salada, enquanto ela deitava um pouco de água na massa. Momentos depois, ouviu uma exclamação abafada. Voltou-se. Jack tinha
feito um profundo corte num dedo, de onde escorria sangue. Ambas as mãos dele tremiam. Tentou tranquilizá-la. Que estupidez a minha. A faca escorregou-me. Nora,
isto não tem importância. Arranja-me um penso ou coisa parecida.
Não conseguiu convencê-lo de que o golpe era profundo; talvez precisasse de pontos.
Estou a dizer-te que está tudo bem repetiu ele.
Jack, há qualquer coisa errada. Por favor, diz-me. Se perdeste a porcaria do emprego, esquece isso. Havemos de nos arranjar.
Ele começou a rir, um riso sem alegria que parecia nascer no fundo do peito, um riso que parecia troçar dela e excluí-la.
Oh, querida, desculpa conseguiu finalmente dizer. Meu Deus, que noite louca. Vá lá, arranja-me uns pensos rápidos e vamos comer. Depois falamos. Agora estamos ambos
muito nervosos.
Vou pôr três lugares, para o caso de o Bill aparecer.
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Por que não pões quatro? Talvez ele tenha engatado uma loura.
Jack!
Oh, raios, vamos lá comer qualquer coisa e acabar com isto. Comeram em silêncio. O lugar vago à direita de Nora recordava-lhe silenciosamente o facto indiscutível
de que Bill deveria ter chegado havia muito tempo. Sob a luz bruxuleante das velas, o penso no dedo de Jack começou a tomar um tom vermelho-vivo que em breve se
transformou numa mancha acastanhada e escura.
O molho Bolognese era uma especialidade de Nora, mas não conseguia engoli-lo. A cor era muito semelhante à do sangue no dedo de Jack. A apreensão estava a provocar-lhe
tensão e os músculos dos ombros começavam a contrair-se. Finalmente afastou a cadeira da mesa.
Preciso absolutamente de ligar para a polícia e saber se alguém com a descrição do Bill sofreu um acidente.
Nora, Bill faz entregas por toda a Manhattan. Pelo amor de Deus, por que esquadra vais começar?
Por aquela que serve o Central Park. Se ele sofreu qualquer acidente ou adoeceu enquanto trabalhava, alguém o levaria para um hospital. Mas sabes a mania que ele
tem de atravessar o Central Park a pé.
Telefonou para a esquadra local.
O Parque tem a sua própria esquadra, a Vigésima Segunda. Vou dar-lhe o número.
O sargento da recepção com quem falou foi extremamente tranquilizador.
Não, minha senhora, não temos notícia de quaisquer problemas no parque. Até mesmo os assaltantes estão a tentar não se molhar esta noite. Riu-se da sua própria piada.
É claro que terei muito gosto em tomar nota do nome e descrição dele e do seu nome. Mas não se preocupe. Provavelmente alguém o reteve.
Se ele tivesse ido para o hospital por se sentir mal, os senhores saberiam?
Está a brincar comigo. Os únicos casos de emergência que controlamos são os que aparecem com ferimentos de balas ou facas, ou aqueles que nós próprios apanhamos.
Não podemos mandar lá um Polícia de cada vez que alguém tem uma dor de barriga. Certo?
Então acha que eu devia ir aos bancos dos hospitais? Não fazia mal nenhum.
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Nora relatou rapidamente a Jack o que o polícia tinha dito e constatou que Jack parecia muito mais calmo.
Eu procuro os números, tu ligas disse ele. Começaram pelos principais hospitais de Manhattan. Um homem que parecia ajustar-se à descrição de Bill tinha sido levado
para o Roosevelt, sem documentos de identificação. Tinha sido atropelado por um carro por volta das seis e meia na rua Cinquenta e Sete perto da Oitava Avenida.
Se fosse Bill Regan, Nora poderia ir lá identificá-lo? Estava em coma e eles precisavam de contactar com os parentes para terem permissão para operar. Ela estava
certa de que se tratava de Bill.
Ele tem uma sobrinha algures na Marilândiadisse. Se for o Bill, posso ir a casa dele e descobrir o nome dela.
Não queria que Jack fosse, mas ele insistiu. Vestiram-se num silêncio sombrio, enquanto o penso ainda húmido de sangue deixava marcas na roupa interior dele, na
camisola e nos jeans. Enquanto vestia o blusão, ele apontou para a cama.
Nem posso dizer quanto estava ansioso por me meter na cama contigo esta noite.
Pretérito? A resposta tinha sido automática. O rosto de Bill pairava na sua mente. Coitado do velhote, com a solidão estampada no rosto e uma necessidade tão grande
de falar, falar, falar, tentando agarrar-se a alguém, conseguir que alguém o ouvisse. E, Nora, eu disse cá para mim, não podes ficar em Queens muito mais tempo.
A casa não presta para nada sem a May. O telhado tem de ser arranjado, chove lá dentro. Com um pouco de sorte, hei-de ir para a Florida, juntar-me a todos os outros
idosos que lá vivem, talvez até vá para um lar no género do do Cocoon onde possa arranjar uma data de amigos novos...
Tomaram um táxi para o Hospital Roosevelt. A vítima do acidente encontrava-se numa área da sala de emergências rodeado por cortinados, com tubos enfiados no nariz,
uma perna metida em talas, uma agulha de IV introduzida no braço. Tinha uma respiração entrecortada e esporádica. Nora agarrou a mão de Jack, ao olhar para o paciente.
Os olhos do homem estavam fechados, uma ligadura cobria-lhe metade do rosto. Mas as finas madeixas de cabelo grisalho eram demasiado esparsas. Bill tinha uma cabeleira
farta. Ela deveria ter-se lembrado de lhes dizer isso.
Não é Mr. Regan disse Jack ao médico.
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Quando se afastavam, Nora pediu a Jack que deixasse tratarem-lhe do dedo.
Vamo-nos embora daqui respondeu ele.
Apressaram-se a sair, ambos ansiosos por se afastarem do cheiro dos remédios e desinfectantes, da visão de uma maca que estava a entrar.
Morto dizia o enfermeiro. O idiota do miúdo meteu-se na frente de um autocarro. Falava num tom furioso e frustrado, como se o peso das desgraças humanas auto-infligidas
o esmagasse.
O telefone tocava, quando chegaram a casa. Nora correu a atendê-lo.
Era o sargento que tinha parecido tão divertido da primeira vez que falara com ela.
Mrs. Barton, receio bem que o seu palpite estivesse certo. Encontrámos um corpo no Central Park perto da Rua Setenta e Quatro. A carteira identifica-o como William
Regan. Gostaria de pedir-lhe que fizesse uma identificação positiva.
O cabelo dele. É farto... de umbranco-amarelado, mas farto, farto de mais para um homem da idade dele? Bem vê, o outro homem foi um engano. Talvez este seja engano
também.
Mas sabia que não era engano. Tinha sabido naquela manhã que alguma coisa iria suceder a Bill. No momento em que lhe tinha dito adeus, tinha sabido. Sentiu que Jack
lhe tirava o telefone da mão. Meio entorpecida, ouviu dizer que sim, que iria à morgue fazer a identificação.
Preferia não sujeitar a minha mulher... Está bem, eu compreendo. Pousou o auscultador e voltou-se para ela.
Como num espelho estilhaçado, ela viu a sombra acinzentada envolver-lhe os lábios, e um pequeno músculo que palpitava na face dele. Jack ergueu a mão para o fazer
parar e ela viu-o vacilar de dor. A ligadura tornou-se vermelha. Depois os braços de Jack envolveram-na.
Querida, tenho a certeza de que é o Bill. Eles querem que vamos até lá os dois. Bill tem o crânio fracturado... Não tem dinheiro na carteira. Pensam que fosse um
assaltante.
Os braços dele pareciam fitas de aço a envolvê-la. Tentou afastá-lo.
Estás a magoar-me... Ele pareceu não a ouvir.
Nora, vamos ultrapassar isto. Tenta pensar que Bill teve uma
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vida longa. Amanhã... oh, querida, amanhã, espera por amanhã e verás. O mundo inteiro, tudo te parecerá diferente... será diferente
Mesmo através das ondas de choque que a percorriam, dando-lhe uma sensação de descrença e dor, Nora apercebia-se de que a voz de Jack soava diferente, aguda, quase
histérica.
Jack, larga-me! A voz dela soou num grito. Ele largou-a e ficou a olhar para ela.
Desculpa-me, Nora. Estava a magoar-te? Não dei por isso... Oh, meu Deus, vamos lá acabar com isto.
Pela terceira vez em menos de duas horas chamaram um táxi. Desta vez tiveram de esperar durante longos e gélidos minutos. Doze mil táxis em Manhattan e todos ocupados.
A chuva estava a transformar-se em saraiva. Os flocos duros escapavam à protecção do chapéu de chuva e batiam nas faces de Nora. Nem mesmo a sua gabardina, forrada
com a pele de carneiro do casaco que tinha usado na faculdade, conseguia impedi-la de tremer de frio. A gabardina de Jack estava demasiado ensopada para valer a
pena vesti-la, e o sobretudo começava a ficar encharcado, enquanto ele corria futilmente de um lado para o outro. Finalmente parou diante deles um táxi com o letreiro
de Refeição. A janela abriu-se um pouco.
Para onde vão?
Para a... quero dizer, para a esquina da Trinta e Um com a rua Um.
Está bem. podem entrar. O motorista era loquaz.
Guiar um táxi num dia destes é um horror. Vou para casa mais cedo. Está uma boa noite para a gente se meter na cama.
Naquela altura já Bill estaria em sua casa, na tal vivenda modesta que ele e May tinham comprado em 1931. Deveria ter morrido na sua cama, pensou Nora. Não merecia
ficar caído ao frio e à chuva. Quanto tempo lá teria estado? Teria morrido instantaneamente? Pelo menos isso, pediu ela.
Era evidente que o homem que veio ao encontro deles quando entraram no edifício tinha estado à sua espera. Tinha trinta e alguns anos, cabelos cor de areia e uns
olhos astutos e apertados. Apresentou-se como o detective Peter Carlson e conduziu-os a um pequeno gabinete.
Tenho a certeza de que vão confirmar a identificação, quando virem o corpo disse. Se estão preparados, gostaria que o identificassem
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imediatamente. Se acham que vê-lo os vai perturbar, talvez seja melhor conversarmos primeiro um pouco.
Quero ter a certeza. Ela sabia que ele estava a estudá-los. Que estaria a ver? Deviam parecer dois pintos encharcados. Estaria a perguntar a si mesmo por que motivo
ela tinha telefonado tão insistentemente para comunicar uma possível vítima, antes mesmo de ela ser encontrada? Mas os relatórios das pessoas desaparecidas diziam
sempre "Pode ter sido vítima de crime", não diziam?
O pé de Jack tamborilava no chão um staccato constante, irritante, Jack que parecia sempre tão calmo, que tinha de ser forçado para confessar dor ou preocupação.
Tinha começado o dia a discutir com ele. Teria quebrado a camada protectora de que ele necessitava?
Como que orientados por um ponto oculto, ergueram-se os três ao mesmo tempo.
Não vai levar muito tempo.
Ela esperava que os levassem para um local onde houvesse filas de mesas. Era assim que se via nos filmes. Mas o detective Carlson levou-os por um corredor até uma
janela coberta com um cortinado. Incongruentemente, Nora recordou-se das janelas vidradas da sala dos bebés nos hospitais, e da primeira vez que vira o seu irmão
mais pequeno. Quando o cortinado foi corrido, não foi um bebé a berrar a plenos pulmões que viu, mas o rosto imóvel e pálido de Bill Regan. O cadáver encontrava-se
coberto com um lençol até ao pescoço, tinha a boca fechada com um adesivo, cobria-lhe a testa uma enorme equimose, acamando o cabelo que, na morte, parecia fino
e menos forte.
Não há dúvida disse Jack. Segurando-a pelos ombros, tentou afastá-la da janela. Por momentos, ela teve a sensação de estar paralisada, a olhar para a boca de Bill.
Era como se o adesivo tivesse sido retirado, sendo substituído pelo sorriso excessivamente brilhante, e, nos seus ouvidos, escutasse de novo a voz áspera e cheia
de esperanças:
Tenho um pressentimento, Nora, um pressentimento de que este é o meu dia de sorte.
De novo no gabinete, no andar de cima, falou ao detective Carlson dessa conversa, do facto de Bill realmente ter sorte na lotaria. Tinha ganho por diversas vezes
algumas centenas de dólares e estava sempre certo de que conseguiria a taluda.
Quando ele disse "dia de sorte", tenho a certeza de que se referia à lotaria. Tenho a certeza absoluta. Penso que fosse mesmo possível
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que ele tivesse sido uma das pessoas que obteve um prémio grande.
Só houve um único premiado disse-lhe o detective Carlson Tanto quanto sei, ninguém foi ainda receber o prémio. Ela reparou que ele fazia rabiscos no bloco, enquanto
ia tomando notas.
Tem a certeza de que Bill Regan tinha um bilhete?
Ele disse-me que tinha.
Bem, quando o encontrámos, não tinha. Mas quem lhe roubou a carteira podia bem ter levado o bilhete com o dinheiro, sem saber o que levava. Mas supondo que fosse
ele o grande premiado. Acha que ele andaria por aí a falar do assunto? Andar com um bilhete de lotaria é o mesmo que andar com dinheiro.
Nora nem se apercebeu de que um meio sorriso lhe tinha aflorado o rosto. Afastou o cabelo da testa, sentindo-o encaracolado por causa da chuva. "Parece mesmo a Rita
Hayworth a fazer de Gilda", dizia-lhe Bill frequentemente. Gostaria de lhe ter contado que tinha pedido a Gilda na videoteca e tinha constatado que havia realmente
uma grande semelhança. Bill teria gostado de ouvir isso. Mas era difícil meter alguma coisa na conversa dele. Era isso que o detective Carlson tinha perguntado.
Bill falava pelos cotovelos disse ela. Ele teria falado, sim.
Mas disse-me que ele não foi muito específico ao telefone. Só disse que era o seu dia de sorte. Isso poderia referir-se a um aumento, a uma boa gorgeta ao entregar
qualquer coisa, encontrar dinheiro na rua. Qualquer coisa, não lhe parece?
Eu acho que ele estava a falar da lotaria insistiu Nora.
Vamos investigar, mas houve uma série de assaltos naquela área nas últimas três semanas. Havemos de apanhar quem fez aquilo, isso garanto-lhe eu... e se mataram
Mr. Regan, vão pagar por isso.
Mataram Mr. Regan. Ela nunca tinha pensado em Bill como "Mr. Regan".
Olhou para Jack. Ele estava a olhar para o chão e tinha recomeçado a tamborilar com o pé. E depois começou a suceder algo de estranho. A sala estava a fechar-se
sobre ela. Estava a cair e não conseguia respirar. Tentou gritar "Jack", mas os seus lábios não se moviam. Sentiu-se deslizar da cadeira.
Quando abriu os olhos, estava estendida num sofá duro, coberto de plástico. Jack colocava-lhe uma compressa fria na testa. Do que
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lhe parecia uma grande distância, ouviu o detective Carlson perguntar a Jack se ele queria uma ambulância.
Já estou bem. Conseguia falar, mas a sua voz era tão fraca que Jack teve de se curvar para captar as suas palavras. Os lábios dela roçaram pelo rosto dele. Quero
ir para casa murmurou. Desta vez não tiveram de esperar por um táxi. Carlson, agora menos formal, mandou vir um carro da polícia. Nora tentou desculpar-se: Penso
que nunca desmaiei na minha vida... Foi aquela sensação estranha que tive todo o dia, e constatar que ela se tinha tornado verdade...
Ajudou-nos muito. Quem dera que todas as pessoas se preocupassem assim tanto com esta pobre gente idosa.
Dirigiram-se até à porta de entrada, novamente um trio com movimentos curiosamente sincronizados. Ambos os homens a apoiavam, uma mão firme por baixo de cada braço.
Lá fora, a chuva tornara-se menos intensa, mas a temperatura tinha descido abruptamente. Soube-lhe bem o ar frio. Teria sido apenas imaginação, o cheiro a formol
dentro daquele edifício?
Que é que vai suceder agora? perguntou Jack a Carlson, quando chegou o carro da polícia.
Tudo depende da autópsia. Vamos redobrar a vigilância no parque. É uma loucura, alguém andar a passear por lá com uma noite destas. Só lá tínhamos carros, ninguém
à paisana. Depois contactamos convosco.
Desta vez foi Jack quem insistiu com ela para tomar um duche quente, Jack que estava à sua espera com uma limonada quente e um comprimido para dormir, quando ela
saiu da casa de banho.
Um comprimido para dormir. Nora olhou para a cápsula vermelha e amarela. Quando é que arranjaste comprimidos para dormir?
Oh, quando fui fazer o checkup no mês passado disse que andava com insónias.
Que é que o médico pensa disso?
Uma ligeira depressão. Nada de importância. Mas não quis preocupar-te. Anda, mete-te na cama.
Uma ligeira depressão. E não lhe tinha dito nada. Nora pensou em todas aquelas noites em que se tinha fartado de falar dos bons papéis que tinha conseguido "São
só dois dias de trabalho, mas escuta, o filme é dirigido por Mike Nicols", as críticas do seu primeiro papel decente fora da Brodway, na Primavera anterior. Jack
tinha partilhado
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a sua alegria, tinha-lhe perguntado se continuaria ao lado dele depois de vir a ser uma estrela, e tinha voltado aos seus empregos sucessivos como vendedor de títulos.
O romance que ele tinha finalmente conseguido acabar não tinha obtido êxito junto das diversas editoras: "Não é exactamente o nosso género, mas volte sempre." O
desencorajamento nos olhos dele, quando lhe tinha dito: "Ao fim de um dia inteiro a tentar vender, quando sei que não sou um vendedor a tentar ficar excitado quando
a taxa sobe e um título qualquer alcança uma taxa tripla, quando isso não me interessa absolutamente nada, não sei, Nora, é como se não conseguisse espremer os miolos.
Sento-me à máquina e aquilo que eu queria pôr no papel não sai como eu gostaria. Mas eu sei que está lá. Só que não consigo expressar-me, sabendo que na segunda-feira
volto ao Jardim Zoológico.
Ela nem sequer o tinha escutado com atenção. Tinha-lhe dito que se sentia orgulhosa por o primeiro romance dele não ter sido propriamente rejeitado, que algum dia
ele seria famoso e falaria às pessoas dessas primeiras rejeições; tudo fazia parte do jogo.
O quarto servia de escritório a Jack. A máquina de escrever encontrava-se em cima da pesada secretária de carvalho que tinham comprado em segunda mão. Havia frascos
de líquido para emendas, uma chávena sem asa que servia de recipiente para os lápis e os marcadores, a pilha de papel que era o novo livro dele, aquela pilha que
ela se apercebeu de que tinha deixado de crescer.
Anda, bebe essa limonada e vamos ambos tomar comprimidos para dormir.
Ela obedeceu, receando falar, perguntando a si mesma se o seu amor por ele lhe transbordava dos olhos. Não era de admirar que Bill sentisse tanta necessidade de
companhia. Se acontecesse alguma coisa a Jack, ela não quereria voltar a acordar.
Jack enfiou-se do outro lado da cama, tirou-lhe a chávena da mão e apagou a luz. Os braços dele envolveram-na.
Como é aquela canção dos "dois sonolentos"? Se alguém me dissesse que este dia ia acabar assim...
Nora dormiu profundamente e acordou na manhã seguinte com a sensação de ter experimentado inúmeros sonhos. Custava-lhe abrir os olhos, parecia-lhe que tinha as pálpebras
coladas. Quando finalmente conseguiu erguer-se sobre um cotovelo, constatou que Jack já tinha saído. Os ponteiros do relógio encontravam-se ambos sobre o nove. Um
quarto para as nove. Nunca tinha dormido até tão tarde. Tentando livrar-se da sua letargia, vestiu o roupão e foi até à cozinha.
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O café estava a fazer, Jack tinha espremido laranjas e feito sumo, mais um dos inúmeros pequenos gestos dele que ela aceitava sem notar. Ele sabia quanto ela gostava
de sumo verdadeiro, embora ele próprio se contentasse perfeitamente com os sumos de pacote.
Já estava vestido para ir trabalhar. Parecia não ter perdido a tensão do dia anterior. Os círculos escuros em volta dos seus olhos sugeriam que o soporífero não
tinha tido grande efeito nele. Quando a beijou, os seus lábios estavam secos e febris.
Agora já sei como ter paz e sossego de manhã. Basta dar-te uma dose de cavalo.
A que horas te levantaste?
Por volta das cinco. Talvez quatro. Não sei bem.
Jack, não vás trabalhar. Senta-te e vamos conversar. Conversar a sério. Tentou disfarçar um bocejo. Oh, meu Deus, eu não consigo acordar. Como é que há pessoas que
tomam destas porcarias todas as noites?
Escuta, eu tenho de ir. Há coisas de que tenho mesmo que ocupar-me... Volta para a cama e acaba de dormir. Eu volto cedo, nunca depois das quatro, e esta noite nós...
esta noite vai ser especial.
Um novo bocejo e a sensação de que os olhos queriam fechar-se fizeram Nora compenetrar-se de que não era aquela a melhor altura para tentar sondar Jack.
Mas se vieres mais tarde, telefona. Na noite passada fiquei preocupada.
Não venho tarde. Juro.
Nora desligou a máquina do café, bebeu o copo de sumo de laranja a caminho da cama, e três minutos depois estava a dormir de novo. Desta vez com um sono sem sonhos,
e, quando o telefone a acordou duas horas depois, tinha a cabeça desanuviada.
Era o detective Carlson.
Mrs. Barton, achei que havia de querer saber. Investiguei o lugar onde Bill Regan trabalhava como mensageiro. Ele voltou lá às seis horas, na noite passada, pouco
antes de fecharem. Havia lá dois outros homens que se preparavam para partir também. Estava excitado; estava feliz; disse realmente que aquele tinha sido o seu dia
de sorte, mas quando lhe perguntaram o que queria dizer fechou-se em copas. Fez uns ares misteriosos. A autópsia está marcada para esta tarde. Mas a nossa teoria
é que, considerando o golpe na cabeça e
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a carteira vazia, ele foi provavelmente atacado pelo assaltante de que andamos atrás.
"Está enganado", pensou Nora. Tentou não parecer muito crítica ao dizer:
O que me intriga é o motivo por que, se ele foi assaltado, não lhe levaram a carteira? Penso que Bill nunca trazia mais que alguns dólares. Tinha trocos nos bolsos,
ou fichas?
Uns dólares em trocos, cerca de seis fichas. Mrs. Barton, sei que não está satisfeita porque se preocupava com Mr. Regan. Quando um assaltante tem tempo, deixa a
carteira na vítima. Assim, se for apanhado, não a tem consigo. O velhote tinha uns bolsos fundos. Se um assaltante abrisse a carteira e tirasse o que pretendia,
talvez não tivesse tempo para procurar os trocos. Não se pode saber com certeza se Mr. Regan levava ou não dinheiro consigo, pois não?
Não, claro que não. E procurou o bilhete da lotaria?
A voz de Carlson tornou-se mais formal, com uma sugestão de desaprovação nitidamente evidente.
Não havia qualquer bilhete de lotaria, Mrs. Barton. Quando Nora desligou, tinha-lhe ficado na mente uma frase da conversa telefónica. Não está satisfeita. Não, não
estava.
Estás louca, disse a si própria, quando descia apressadamente a rua. O tempo tinha-se modificado de maneira espectacular. O dia estava soalheiro, a brisa suave um
dia mais apropriado para Abril que para Novembro. Ainda bem. Tinha ficado satisfeita por poder usar o seu casaco gravado. A gabardina que usara e o sobretudo de
Jack ainda estavam encharcados devido à viagem à morgue na noite anterior. A gabardina que Jack levara para o trabalho no dia anterior continuava encharcada. Ele
tinha tido que vestir uma gabardina antiga, naquela manhã. Um vagabundo carregado de sacos estava a extrair deles a colecção de sanduíches meio comidas que tinha
pescado na lata do lixo. Onde estaria a velhota dos sacos que tinha visto na véspera?, pensou Nora. Teria arranjado abrigo na noite anterior?
Passou pela banca dos jornais sem olhar. O cego a quem ela pertencia devia estar surpreendido por Bill não ter aparecido naquela manhã. Mas não se sentia com forças
de lhe falar de Bill, naquele momento.
Tomou o Expresso da Avenida Lexington para a Rua Cinquenta e Nove, passou para o comboio RR e dirigiu-se ao Edifício Fisk. O Serviço de Mensageiros Dynamo Express
tinha uma única sala no quinto
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andar. O único mobiliário era uma secretária com um PBX, alguns armários de ficheiros, com gavetas, do tom cinzento dos navios de guerra, e dois longos bancos, sentados
nos quais esperavam vários homens pobremente vestidos. Quando ela fechou a porta, o homem que estava à secretária dizia bruscamente:
Tu, Louey, vais à Rua Quarenta. Buscar coisas para levar à Broadway e à Dezanove, Agora lê-me isto, para eu ver se percebeste tudo. Não quero que percas tempo a
ir ao endereço errado.
Um homem magro, sentado a meio do banco, levantou-se de um salto, nervosamente ansioso por agradar. Nora ouviu-o ler dificilmente as instruções, num inglês hesitante.
Muito bem. Podes começar.
Pela primeira vez, o homem sentado à secretária olhou para Nora. Tinha na cabeça um capachinho que assentava mal. Umas suíças exageradas cobriam-lhe as bochechas,
que contrastavam estranhamente com um nariz pequeno e pontiagudo. Os olhos da cor de moedas de cobre sujas percorreram o seu corpo, despindo-a mentalmente.
Que posso fazer por si, minha linda menina? A sua voz era agora amável, totalmente diferente do tom sarcástico e intimidante com que falara antes.
Quando ela avançou em direcção a ele, começaram a piscar luzes no painel do PBX e soou uma campainha. O homem carregou em diversos botões.
Serviço de Mensageiros Dynamo Express, um momento.Sorriu para Nora. Eles que esperem.
Já sabia do que se passara com Bill.
Esteve aqui um polícia a fazer perguntas, esta manhã. O velho tagarela. Meu Deus, o tipo nunca se calava. Tinha de lhe dar uns berros, para que ele deixasse de perder
tempo em todos os lados onde ia. Recebi algumas queixas.
Nora apercebeu-se de que deveria ter franzido o sobrolho.
Claro que quando digo "berros" quero dizer que lhe dizia assim: "Então, Regan, nem toda a gente quer ouvir a história da sua vida." Olhe, aposto que ele me falou
de si. É a actriz. Disse que se parecia com a Rita Hay worth. Por acaso tinha razão... Aguente aí, tenho de atender algumas destas chamadas.
Ela aguardou junto da secretária, enquanto ele atendia os telefonemas, anotava informações, despachava mensageiros que voltavam
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ao escritório. Entretanto, conseguiu fazer-lhe algumas perguntas.
Claro, o Bill estava todo excitado na noite passada disse-lhe o gerente. Fartou-se de tagarelar, dizendo que era o dia de sorte dele. Mas não quis dizer porquê.
Por brincadeira, perguntei-lhe se tinha engatado alguma pega.
Pensa que ele poderá ter dito a alguém?
Sei tanto como a senhora.
Tem uma lista dos locais onde ele foi ontem? Gostava de falar com as pessoas com quem ele conversou. Ele costuma ir a escritórios? Talvez conheça os recepcionistas
ou outras pessoas.
Penso que sim. Agora começava a ficar irritado. Mas arranjou-lhe a lista. O dia anterior tinha sido um dia atarefado. Bill tinha feito quinze recados. Nora começou
pelo primeiro: 101 Park Avenue, Sandrell e Woodworth, ir buscar um sobrescrito à recepcionista do décimo oitavo andar e entregá-lo no 205 da Central Park Sul.
A simpática matrona que era a recepcionista do décimo oitavo andar lembrava-se de Bill.
Oh, claro, é um velhote muito simpático. Vem cá muitas vezes. Uma vez mostrou-me a fotografia da mulher. Aconteceu-lhe alguma coisa?
Nora já esperava por esta pergunta e sabia como devia responder-lhe.
Teve um acidente na noite passada. Eu quero escrever à sobrinha dele. Ele tinha deixado uma mensagem no meu telefone, a dizer que ontem era o dia de sorte dele.
Queria contar-lhe isso, explicar-lhe o que ele queria dizer. Ele falou-lhe disso?
A recepcionista compreendeu, obviamente, que se tinha tratado de um acidente fatal, e uma breve preocupação pelo homem que tinha conhecido superficialmente passou-lhe
pelo rosto como uma nuvem.
Oh, que pena. Não, ou antes, sim, na realidade eu estava muito ocupada por isso entreguei-lhe o sobrescrito e disse: Passe um bom dia, Bill, e ele disse qualquer
coisa como "Tenho um pressentimento de que é o meu dia de sorte".
Inconscientemente, a mulher tinha imitado a voz de Bill. Nora sentiu um arrepio ao ouvi-la.
Foi exactamente o que ele me disse.
A paragem seguinte foi o apartamento na Central Park Sul. A porteira lembrava-se de Bill.
Oh, sim, claro, ele deixou um sobrescrito para Mr. Parker. Do
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contabilista, penso eu. Telefonei-lhe a perguntar se queria que lho fossem entregar à porta, mas Mr. Parker disse-me que ficasse com ele, porque estava quase a descer.
Não, ele não me disse nada. Acho que não lhe dei oportunidade. Aquela hora o balcão do correio está sempre cheio de gente.
Parecia que, na véspera, toda a gente estava ocupada de mais para atender Bill. Uma secretária, magra como uma lebre, num escritório da Broadway disse a Nora que
nunca encorajava os mensageiros a conversar.
São como os rapazes das entregas. Mal viramos as costas, roubam-nos a carteira. O seu encolher de ombros, como quem diz "sabe-como-é", convidou Nora a partilhar
o seu desdém pelos ladrões que tinha de aturar.
Depois dessa paragem, Nora apercebeu-se de que nunca conseguiria percorrer toda a lista se não se organizasse melhor. Bill tinha andado aos ziguezagues, de oriente
para ocidente, tinha feito algumas paragens no centro da cidade, três na Cinquenta, duas nas Trinta, quatro na parte de baixo da Quinta Avenida e duas na Wall Street.
Em vez de seguir exactamente o seu percurso, começou a agrupar os serviços por áreas. Os dois primeiros locais foram visitados em vão. Ninguém se lembrava sequer
de quem tinha levado a mensagem. O terceiro, uma escritora que tinha enviado a sua obra ao editor, falou a Nora no escritório do hotel. Sim, tinha pedido o envio
de um sobrescrito no dia anterior. Era evidente que não tinha conversado com o mensageiro. Havia algum problema? Não me diga que o livro não foi entregue.
Àss três horas, Nora apercebeu-se de que não se tinha dado ao trabalho de comer, que estava a procurar debalde, que Jack ia chegar cedo a casa e queria estar lá
com ele. E nessa altura falou com o jovem vendedor da loja de pianos.
Ele ergueu esperançadamente o olhar, quando ela entrou. A sala estava vazia, com excepção dos pianos e órgãos expostos, que estavam colocados em diferentes ângulos,
para exibir os seus melhores aspectos. Havia um póster que dizia DEIXE QUE A MÚSICA FAÇA PARTE DA SUA VIDA, colocado mesmo por detrás de um pequeno órgão com uma
boneca do tamanho de uma criança de 4 anos sentada no banco, com os curtos dedos de pano pousados sobre as teclas.
O momentâneo desapontamento do vendedor, ao aperceber-se de que Nora não era uma cliente em potência, desvaneceu-se perante a hipótese de passar algum tempo com
outro ser humano. Não lhe parecia
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que viesse a conservar-se no negócio musical, disse a Nora. Era muito pouco movimentado. Até o gerente confessava que os dias animados tinham passado havia seis
ou sete anos. Nessa altura, toda a gente queria um piano. Agora, nem pensar.
Na véspera? Um mensageiro? Com uns dentes esquisitos? Oh, claro, um velhote muito simpático. Se tinha falado? Nunca fazia outra coisa! Estava todo excitado. Disse-me
que era o seu dia de sorte.
Quer dizer que ele disse que se sentia com sorte? apressou-se a perguntar Nora.
Não, não foi isso. Lembro-me nitidamente de ele dizer que aquele era o seu dia de sorte. Mas não me disse mais nada, piscou-me o olho quando lhe perguntei o que
queria dizer com aquilo.
Havia apenas um lugar onde Bill tinha ido depois dessa entrega. Tinha estado na loja dos pianos às 16:10. Logo depois de ter deixado a mensagem no gravador dela.
E a paragem antes da loja de pianos tinha sido aquela onde o guarda-livros que aceitara a entrega lhe tinha dito: "Sim, o velhote disse-me qualquer coisa sobre sentir-se
com sorte ou coisa parecida. Eu estava ao telefone e fiz-lhe sinal de que podia ir-se embora. Estava a falar com o patrão e não podia interromper a conversa."
Disse que se sentia com sorte. Tem a certeza de que ele não disse que tinha tido sorte?
Tenho a certeza de que ele disse que se sentia com sorte, porque me lembro de pensar que me sentia pessimamente.
Ele tinha-se sentido com sorte às 15:45. Às 16:10, na sua paragem seguinte, tinha tido sorte. "Eu estava certa", pensou Nora, "eu sabia." A extracção da lotaria
tinha tido lugar entre as 15:30 e as 16:00. Teria Bill um dos bilhetes premiados? Parou para tomar um café num estabelecimento da Madison Avenue. O rádio estava
ligado. No dia anterior tinha havido mil e duzentos premiados com mil dólares, três premiados com cinco mil dólares e um premiado com treze milhões de dólares. O
locutor sugeria a quem tivesse comprado um bilhete em Manhattan que verificasse o seu número.
Supondo que Bill tinha ganho cinco mil dólares. Isso seria uma fortuna para ele. Já tinha ganho umas centenas por várias vezes. Era estranho como havia pessoas que
ganhavam repetidas vezes. Nora reviu a sua lista. Decidiu eliminar todos os locais onde Bill tinha ido antes das 15:30. Assim só lhe restava mais um. Desanimada,
constatou que se tratava do World Trade Center. Mas já que tinha ido tão longe, visitaria mais aquele local e depois iria para casa.
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Quando entrou no metropolitano pela oitava vez nesse dia, Nora perguntou a si mesma como conseguiria Bill manter aquele trabalho. Teria alguma vez admitido que as
pessoas não o escutavam, ou os seus dias seriam animados por um encontro com alguém como o jovem vendedor que ficava satisfeito por ter companhia?
O metro estava apinhado. Eram três e um quarto. As horas normais não eram assim tão más, mas nas horas de ponta era preciso suspender-se de uma correia ou agarrar-se
a um varão. O homem corpulento que estava ao seu lado caiu deliberadamente sobre ela quando o comboio arrancou. Afastou-se rapidamente dele.
O andar inferior do World Trade Center estava cheio de gente que atravessava deliberada e apressadamente o grande espaço aberto, desaparecendo nas passagens descendentes,
dirigindo-se a outros edifícios, mergulhando em restaurantes e lojas. Era gente bem vestida, na sua maioria. Nora perdeu cinco minutos, ao entrar por engano na torre
número dois em vez de na número um.
O seu destino era o quadragésimo segundo andar. Ao subir no elevador, pensou que o nome da firma não lhe era desconhecido. Talvez por ter olhado para ele durante
todo o dia.
Lyons and Becker era uma firma de investimentos. Não excessivamente grande, pelo que podia ver. Isso era bom. Haveria mais hipóteses de alguém se lembrar de Bill.
O escritório era pequeno mas bem decorado. Por detrás dele, Nora podia ver alguns gabinetes, onde homens e mulheres jovens negociavam títulos.
A recepcionista não se lembrava de ter visto Bill.
Mas espere um pouco, por essa hora eu estava no meu intervalo. Vou chamar a rapariga que ficou a substituir-me.
A substituta era uma loura de pernas esbeltas e seios excessivamente generosos. Por momentos escutou-a, surpreendida, mas depois abriu um amplo sorriso.
Oh, claro disse. Onde tinha eu a cabeça? Claro que me recordo do velhote. Quase se esqueceu do que vinha buscar.
Nora aguardou.
Eu estava a entregar-lhe o sobrescrito quando ele olhou em volta e avistou um dos nossos vendedores. Voltou-se para a colega. Tu sabes quem é. O Jack Barton, aquele
novo muito giro.
Nora sentiu frio na boca do estômago. Por isso o nome do escritório lhe tinha parecido conhecido. Era aquela a companhia de que Jack lhe tinha relutantemente falado
no dia anterior. O seu novo emprego.
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Seja como for, o velhote viu o Jack e ficou muito surpreendido. Disse: "Aquele é o Jack Barton? Ele trabalha aqui?" Eu disse que sim. Jack ia a sair por aquela porta.
Com a cabeça indicou a porta de saída do pessoal no outro extremo da sala. E o velhote ficou todo excitado. Disse: "Tenho de falar ao Jack do meu dia de sorte."
Tive que lhe gritar que levasse o sobrescrito. Pelo amor de Deus, para isso é que ele tinha cá vindo, não é verdade?
Tinha de haver um motivo para Jack não lhe ter dito que tinha visto Bill. Que motivo?
Nora tentou acalmar o medo que era a confirmação do seu mal-estar da véspera, comprando um jornal e lendo-o durante a viagem de metropolitano, mas as letras pareciam
dançar diante dos seus olhos. Quando chegou a casa, a primeira coisa que fez foi ir à casa de banho, onde estavam pendurados os abrigos de ambos, no varão do cortinado
do chuveiro. O que ela tinha usado na noite anterior estava completamente seco, apesar de ela ter apanhado chuva durante dez minutos. O sobretudo que Jack tinha
levado ao hospital e à morgue, o seu sobretudo bom, estava ainda levemente húmido. Mas a gabardina dele, a que ele tinha vestida quando chegara a casa, na noite
anterior, ainda estava encharcada. Ele não tinha apenas vindo a pé desde o metropolitano. Recordou-se de novo da sua fulgurante excitação, da tensão que crepitava
como uma corrente eléctrica em volta do corpo dele, da maneira como ele a tinha abraçado e chorado.
Que distância teria ele percorrido a pé na noite anterior. Por que teria andado a pé? E quem teria estado com ele?... Ou quem teria ele seguido?
Por favor, meu Deus, não choramingou. Não. Ele tinha chegado a casa e ela tinha-o feito tomar duche e tinha telefonado à polícia. Quando tinha saído do quarto, ele
tinha-a ajudado a fazer as chamadas. Tinha procurado os números. Mas ela estava ao telefone quando ele saíra do quarto. E, antes disso, ela tinha ouvido aquele som
estranho, aquele estalido metálico, e tinha perguntado a si mesma o que estaria ele a fazer.
Como uma condenada que se dirige a um destino inexorável, entrou no quarto e procurou, no roupeiro, o cofre de metal que continha os documentos importantes, a licença
da casamento de ambos, as apólices de seguro, as certidões de nascimento. Levou o cofre para a cama e abriu-o. A certidão de nascimento de Jack estava ao de cimoLentamente,
retirou os papéis um a um, até chegar ao último, um bilhete de lotaria cor-de-rosa e branco. "Não, Jack", pensou. "Não. Tu
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não. Por mil dólares não. Tu não eras capaz. Tu não farias isso. Tinha de haver uma explicação.
Mas quando comparou o número do bilhete com os dos bilhetes premiados na lista do jornal, percebeu tudo. Tinha na mão o bilhete que poderia ser trocado por treze
milhões de dólares.
Bill Regan tinha sabido que tinha tido sorte. Ela tinha sentido que algo de terrível pairava sobre ela. Olhou em volta, desvairadamente, tentando encontrar uma resposta.
O livro estava junto da máquina de escrever de Jack, o livro que não avançava porque ele se sentia incapaz de escrever. Os soporíferos de Jack para a sua "ligeira
depressão". Depois recordou-se na sua impiedosa repreensão da véspera, de manhã, quando ele, num sussurro embaraçado, murmurara o nome da sua nova companhia e lhe
dissera que tinha sido despedido da Merril Lynch... e depois acrescentara, num assomo de dignidade:
Fui incluído no despedimento geral. Sucede que eu era um dos que estavam em posição inferior na hierarquia. Não teve nada a ver com o meu trabalho.
E assim, no dia anterior, Bill tinha-lhe falado do bilhete, e algo tinha estoirado dentro de Jack. Devia ter visto Bill sair do Edifício Fisk e tinha-o seguido pelo
parque.
Que havia de fazer? Com uma violenta rejeição, Nora pôs de parte a ideia de contactar a polícia. Jack era a sua vida. Preferia matar-se a abandoná-lo.
É o meu dia de sorte. Bill tinha querido ir para a Florida, onde poderia viver num lar com pessoas interessantes como as de Cocoon, Teria merecido essa sorte.
Nora estava sentada no sofá da sala quando a chave rodou na fechadura e Jack entrou em casa. Tinha conseguido concentrar-se no facto de que os sofás estavam em muito
mau estado e que uma nova cobertura não conseguiria esconder as almofadas descaídas. Embora ainda só passasse um quarto das quatro, o crepúsculo começava a cair,
e ela recordou-se de que estavam apenas a um mês do dia mais curto do ano.
Levantou-se quando a porta se abriu. Jack trazia um braçado de rosas de longos caules.
Nora. A tensão tinha desaparecido. Tinha lamentado com ela a morte de Bill Regan, na noite anterior, mas aquela era a noite
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dele. Nora, senta-te, espera. Querida, espera um pouco até saberes o que nos aconteceu. Já posso escrever, tu podes ter uma criada, vamos comprar este andar, vamos
comprar uma casa no Cabo. Estamos instalados para o resto das nossas vidas. Queria dizer-te ontem quando cheguei a casa. Mas não queria que Bill Regan nos caísse
em cima. Por isso esperei. E depois, com o que aconteceu, foi impossível dizer-te.
Tu viste o Bill ontem. Jack fitou-a, perplexo.
Não, não vi.
Ele correu atrás de ti, quando saíste do escritório, às quatro.
Então não me apanhou. Nora, não percebes? Ouvi os números da lotaria, ontem à tarde. E pareceu-me que já os tinha visto. Foi uma loucura. Escolhi um bilhete ao acaso.
Geralmente quando compro um bilhete, escolho o nosso aniversário de casamento, a data dos nossos aniversários, ou qualquer coisa no género. E depois não conseguia
encontrar o raio do bilhete.
"Jack, não mintas, não mintas."
Ia ficando maluco. De repente lembrei-me. Quando estava a limpar a minha secretária na Merrill Lynch na semana passada, o bilhete estava em cima dela. A menos que
eu o tivesse deitado fora, tinha de estar num dos ficheiros que eu estava a organizar. Fui até lá e vi os ficheiros todos. Nora, ia ficando doido. Mas encontrei-o.
Nem conseguia acreditar. Acho que fiquei em estado de choque. Vim a pé até casa. E depois, quando tu disseste que não te importavas de desistir da tua carreira por
minha causa, deves ter pensado que eu estava maluco, quando desatei a chorar. Estava ansioso por te contar, mas depois lembrei-me de que o pobre do Bill nos ia cair
em cima e resolvi esperar. Tinha de ser uma noite só para nós.
Ele não parecia reparar na sua falta de reacção. Entregando-lhe as flores, disse:
Espera que eu já to mostro e correu para o quarto.
O telefone tocou. Automaticamente, ela levantou o auscultador mas depois desejou não o ter feito. Mas era tarde de mais.
Está?
Mrs. Barton, fala o detective Carlson. A voz era amistosa. Tenho de dizer-lhe que tinha razão.
Eu tinha razão?
Sim, foi tão persistente que revistámos outra vez a roupa dele. O pobre velhote tinha um bilhete da lotaria preso ao forro do boné-
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Ganhou mil dólares ontem. E vai gostar de saber que ele não foi assaltado. Julgo que a excitação foi de mais para ele. Morreu de um ataque cardíaco. Deve ter batido
com a cabeça numa pedra, quando caiu. Não... não... não... O grito de Nora uniu-se ao gemido desesperado de Jack que saía do quarto, com o cofre na mão, com as cinzas
do bilhete de lotaria a deslizarem, esvoaçando, por entre os seus dedos.
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VISÃO DUPLA
Jimmy Cleary acocorou-se junto dos arbustos, no exterior do jardim do apartamento de Caroline, em Princeton. Uma espessa madeixa de cabelo caiu-lhe sobre a testa,
e ele afastou-a com o gesto estudado que havia acabado por se tornar num maneirismo. A tarde de Maio estava excessivamente húmida e fria para a época. Mesmo assim,
a transpiração encharcava-lhe o fato de treino. Humedeceu os lábios com a ponta da língua. Sentia por todo o corpo o formigueiro causado pela excitação nervosa.
Fazia naquela noite cinco anos que ele tinha cometido o erro da sua vida. Tinha morto a rapariga errada. Ele, o melhor actor do mundo inteiro, tinha estragado a
sua cena máxima. Agora ia corrigir esse erro. Desta vez não haveria enganos.
A porta das traseiras do apartamento de Caroline dava para o parque de estacionamento. Nas últimas noites, tinha estudado a área. Na noite anterior, tinha desatarrachado
a lâmpada à porta do apartamento, de modo que, naquele momento, a entrada das traseiras estava mergulhada em profunda sombra. Eram 20:15; horas de entrar.
Tirou do bolso um instrumento semelhante a um espigão, introduziu-o na fechadura e torceu-o até ouvir um estalido. Com as mãos enluvadas, fez rodar a maçaneta e
abriu a porta apenas o suficiente para poder passar. Fechou-a e fez rodar de novo a fechadura. Havia uma corrente interior que ela provavelmente fixava de noite.
Óptimo. Naquela noite fechá-los-ia a ambos dentro da casa. Jimmy sentiu um nítido prazer ao imaginar Caroline a fechar cuidadosamente a casa. Seria como a história
de fantasmas que acaba assim: "Agora, ficamos fechados durante o resto da noite."
Encontrava-se na cozinha, que abria directamente, através de um arco, para a sala de estar. Na véspera, tinha-se escondido no exterior da janela da cozinha, a observar
Caroline. Havia plantas no peitoril da janela, de modo que o estore não descia até ao fim. Às dez horas, ela tinha saído do quarto, vestindo um pijama às riscas
vermelhas
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e brancas. Enquanto via as notícias, foi fazendo exercícios, dobrando-se pela cintura, de modo que o seu cabelo louro esvoaçava de um ombro para o outro.
Voltara para o quarto, onde provavelmente estivera a ler durante algum tempo, porque a luz permanecera acesa durante cerca de uma hora. Poderia facilmente ter acabado
com ela nessa altura, mas o seu sentido dramático exigia-lhe que esperasse pelo dia do aniversário.
A única luz provinha dos candeeiros da rua, mas não havia muitos sítios onde pudesse esconder-se, naquele apartamento. Podia meter-se debaixo da cama, que tinha
um folho de veludo antipoeira. Era uma ideia interessante: poderia aguardar ali, enquanto ela lia, ganhava sono, apagava a luz; esperaria até ela deixar de se mover
e a sua respiração se tornar regular. Depois poderia deslizar silenciosamente para fora do seu esconderijo, ajoelhar-se, observá-la do mesmo modo que observara a
outra rapariga, e então acordá-la. Mas, antes de se decidir, estudaria outras possibilidades.
Quando abriu a porta do roupeiro do quarto, acendeu-se automaticamente uma luz. Jimmy viu, de relance, um saco de viagem quase cheio. Ali não havia lugar para se
esconder.
Imagine-se uma mulher que tem menos de duas horas de vida. Pressenti-lo-á? Continuará a fazer a sua vida normal? Estas eram as questões hipotéticas que Cory Zola
tinha feito numa aula de arte de representar, certa noite. Cory era um professor famoso, que só aceitava alunos que achava que tinham o potencial necessário para
virem a ser estrelas. "Colocou-me na sua aula particular, logo que me fez a audição", recordou Jimmy naquele momento. "Ele sabe o que é talento."
Não havia lugar algum onde pudesse esconder-se na sala. Contudo, a porta principal abria directamente para esse compartimento, e havia um roupeiro de canto. A porta
do roupeiro estava entreaberta. Dirigiu-se até lá rapidamente, para o observar.
Este roupeiro não tinha luz automática. Tirou uma lanterna fina como um lápis de um dos bolsos e projectou a luz para o interior, que era inesperadamente fundo.
À frente estava pendurado um pesado saco para roupa, envolto em volumosas camadas de plástico. Era essa a razão por que a porta não fechava. Teria apertado o vestido.
Apostaria tudo como se tratava do vestido de noiva dela. Na véspera tinha-a seguido e ela tinha ido a uma loja de artigos para noivas
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e tinha lá ficado quase meia hora, provavelmente para a prova final Talvez a enterrassem com aquele vestido.
A cascata de plásticos constituía um esconderijo perfeito. Jimmy entrou no armário, enfiou-se entre dois casacos de Inverno e uniu-os. E se Caroline se dirigisse
ao roupeiro e o descobrisse? O pior que poderia acontecer seria não conseguir matá-la exactamente como tinha planeado. Mas os sacos de viagem do outro roupeiro estavam
quase cheios. Provavelmente ela já tinha acabado de fazer as malas. Sabia que ela seguiria de avião para St. Paul na manhã seguinte. Casar-se-ia na próxima semana.
Julgava que ia casar-se na próxima semana.
Jimmy saiu do roupeiro. Às cinco horas, no seu carro alugado, tinha estado à espera de Caroline, à porta do Gabinete do Promotor Público, em Trenton. Ela tinha trabalhado
até tarde. Tinha-a seguido até ao restaurante onde se fora encontrar com Wexford. Tinha ficado à espera, no exterior, e só se tinha ido embora quando, através da
montra, os viu encomendar a refeição. Depois tinha vindo directamente para ali. Ela só voltaria daí a uma hora, pelo menos. Serviu-se de uma lata de soda do frigorífico
e instalou-se no sofá. Estava na hora de se preparar para o terceiro acto.
Tudo tinha começado havia cinco anos e meio, no último semestre da Escola Rawlings de Artes, em Providence. Ele estava no departamento de arte de representar, a
estudar teatro. Caroline tinha estudado para ser directora de cena. Ele tinha entrado em algumas peças dirigidas por ela. Anteriormente, tinha desempenhado o papel
de Bill em A Morte de um Caixeiro Viajante. Tinha representado tão bem que metade da Escola passara a tratá-lo por Bill.
Jimmy bebeu uns goles de soda. Na sua memória, estava de novo na escola e fazia parte do elenco de uma peça, já adulto. Tinha o papel principal. O reitor tinha convidado
um velho amigo, um produtor da Paramount, para assistir à estreia, e constava que esse produtor procurava novos talentos. Desde o início que ele e Caroline não concordavam
quanto à sua representação do papel. Depois, duas semanas antes da estreia, ela tinha-lhe retirado o papel e tinha-o dado ao Brian Kent. Ainda estava a vê-la, com
o cabelo louro preso no alto da cabeça, a blusa pregueada metida para dentro das calças de ganga, o rosto sério e preocupado.
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Não serves para este papel, Jimmy. Mas acho que estarias perfeito para o segundo papel, o do irmão.
O segundo papel. O irmão tinha cerca de seis linhas para dizer. Tinha sentido vontade de suplicar, mas sabia que não valia a pena. Quando Caroline Marshall fazia
uma alteração do elenco, nada a fazia mudar de ideias. Ele tinha sentido dentro de si que fazer o papel principal naquela peça seria crucial para a sua carreira.
Numa fracção de segundo, tinha decidido matá-la e tinha começado imediatamente a representar. Tinha soltado uma gargalhada despreocupada, um pouco contrafeita, e
dito:
Caroline, tenho andado a ganhar coragem para te dizer que estou muito atrasado nos estudos. Nem sequer posso pensar em representar.
Ela tinha caído. E tinha ficado aliviada. O produtor da Paramount tinha aparecido. Tinha convidado Brian Kent para ir à Costa, fazer um teste para uma nova série.
O resto, como se diz em Hollywood, pensou Jimmy, era história. Ao fim de cerca de nove anos a série continuava entre as dez mais vistas, e Brian Kent acabava de
assinar o contrato para fazer um filme por três milhões de dólares.
Duas semanas após o final do curso, Jimmy tinha ido para St. Paul. A casa da família de Caroline era praticamente uma mansão, mas ele tinha rapidamente descoberto
que a porta lateral não estava fechada. Tinha percorrido o andar inferior, subido a ampla escada em curva, passado pela suite do quarto principal. A porta estava
aberta. A cama vazia. Depois tinha aberto a porta do quarto seguinte e vira-a: estava deitada e dormia. Ainda lhe parecia ver o quarto dela, a cama de latão com
quatro colunas, o brilho sedoso dos caros e macios lençóis de seda. Recordava-se de como se tinha inclinado sobre ela, enrolada no leito, com os cabelos louros a
brilhar sobre a almofada. Tinha sussurrado "Caroline" e ela tinha aberto os olhos, olhado para ele e dito "Não".
Tinha-a envolvido nos braços e tinha-lhe tapado a boca com as mãos. Ela escutara-o, revelando pânico nos olhos, dizer-lhe que a ia matar, que, se ela não lhe tivesse
tirado o papel, ele teria sido visto pelo produtor da Paramount em vez de Brian Kent. Finalmente, ele tinha-lhe dito:
Nunca mais voltarás a dirigir uma peça, Caroline. Tens um novo papel. O de vítima.
i Ela tinha tentado libertar-se dele, mas ele pregara-a à cama e enrolara-lhe a corda em volta do pescoço. Os olhos dela tinham-se
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desorbitado, aflitivamente cravados nele. Tinha erguido as mãos, com as palmas abertas, suplicantes, e depois tinha-as deixado cair, sem forças, sobre o lençol.
Na manhã seguinte, ele aguardara ansiosamente o jornal para o comprar. "Assassinada Filha de Importante Banqueiro de St. Paul". Recordava-se ainda de como tinha
rido e depois chorado de frustração ao ler as primeiras frases da notícia. O corpo de Lisa Marshall, de 21 anos, foi encontrado esta manhã pela sua irmã gémea.
Lisa Marshall. Irmã gémea.
A notícia prosseguia assim: A jovem tinha sido estrangulada. As duas gémeas encontravam-se sozinhas em casa. A polícia não conseguiu ainda interrogar Caroline Marshall.
Ao ver o corpo da irmã, ficou num estado de profundo choque e encontra-se sob o efeito de sedativos.
Havia de contar isto a Caroline, naquela noite. Durante todos aqueles anos, em Los Angeles, tinha assinado jornais de Minneapolis St. Paul, procurando notícias sobre
ela. Assim tinha sabido que Caroline estava noiva e se casaria no dia 30 de Maio na semana seguinte. Caroline Marshall, que era advogada do gabinete do Promotor
Público de Trenton, Nova Jérsia, ia casar-se com um professor da Universidade de Princeton, o Dr. Sean Wexford. Wexford frequentava um curso mais avançado, quando
Jimmy estudava na Rawlings. Tinha dado aulas de psicologia a Jimmy. Perguntava a si mesmo quando Caroline e Wexford tinham começado a namorar. Não andavam juntos
quando Caroline estudava na Rawlings. Disso tinha a certeza.
Jimmy abanou a cabeça. Levou a lata de soda para a cozinha e despejou-a no caixote do lixo. Caroline devia estar a chegar, agora. Foi à casa de banho e alarmou-se
com o ruidoso funcionamento do autoclismo. Depois, com infinito cuidado, introduziu-se no roupeiro e envolveu-se nos casacos de Inverno. Apalpou o fio que trazia
no bolso do fato de treino. Tinha sido cortado do mesmo rolo de fio de pesca grosso que tinha usado para estrangular a irmã. Estava pronto.
Capuccino, querida? Sean sorria-lhe do outro lado da mesa, onde ardiam velas. Os olhos azul-escuros de Caroline estavam pensativos, com aquele ar de tristeza absoluta
que por vezes os invadia.
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Era compreensível, naquela noite. Era o aniversário da última noite que ela tinha passado com Lisa. Tentando distraí-la, disse: Senti-me como um elefante numa loja
de porcelanas quando fui buscar o teu vestido, esta tarde.
Caroline ergueu as sobrancelhas.
Não o viste, pois não? Dá azar.
Nem me deixaram aproximar-me dele. A vendedora fartou-se de pedir desculpa, por não o poderem evitar.
Tenho feito tantas correrias nos últimos tempos que emagreci. Tiveram de o emendar.
Estás demasiado magra. Vou ter de te engordar em Itália. Massa três vezes por dia.
Estou ansiosa. Caroline sorriu-lhe. Adorava a enorme figura de Sean, o modo como o seu cabelo cor de areia parecia sempre um pouco despenteado, o humor nos seus
olhos cinzentos. A minha mãe telefonou-me esta manhã. Ainda está preocupada por o meu vestido não ter mangas. Lembrou-me por duas vezes que em Minnesota se diz uma
piada: "Quando é que começa o Verão?
Eu ofereço-me para te aquecer. O teu vestido está no roupeiro da entrada. A propósito, é melhor devolver-te as chaves extra.
Fica com elas. Se eu me esquecer de alguma coisa, poderás levar-ma na próxima semana.
Quando saíram do restaurante, Caroline acompanhou-o à espaçosa casa Vitoriana que seria a deles, quando regressassem de lua de mel. Deixaria o carro na segunda garagem
enquanto estivessem fora. Sean guiou o seu carro até à entrada de acesso, estacionou-o e meteu-se no dela. Ela chegou-se para o lado e ele levou-a até casa, com
um braço em volta dela.
Jimmy sentia-se orgulhoso porque, mesmo ao fim de estar uma hora parado em pé, sentia-se perfeitamente bem. Estava em boa forma, com a ginástica e as aulas de dança.
Tinha passado os últimos cinco anos a estudar, a bater a portas, a tentar ver contratadores de teatro, quase conseguindo trabalho e acabando por ser posto de parte.
Para se conseguir um bom agente, era preciso poder demonstrar que já tinha feito alguns bons papéis. Para conseguir contactar os bons contratadores, era preciso
ter um agente conhecido. E por vezes diziam-lhe a última coisa que gostaria de ouvir:
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Você tem o tipo de Brian Kent, e isso não ajuda muito. Esta recordação enfureceu-o e abanou a cabeça. E tudo isto depois de a mãe ter convencido o pai a financiá-lo
durante um ano para fazer aquilo a que ele chamava "tentar representar".
Jimmy sentiu de novo a raiva antiga. O pai nunca tinha gostado do que ele fazia. Quando Jimmy tinha mostrado toda a sua grandeza em A Morte de um Caixeiro Viajante,
o pai tinha mostrado orgulho nele? Não. Preferia aplaudir um filho que fosse avançado centro, que participasse do Trofeu Heisman.
Jimmy não se tinha incomodado a pedir mais dinheiro quando se acabara aquele que o pai lhe dera. A mãe enviava-lhe todos os meses tudo o que conseguia pôr de parte
nas despesas da casa. O velho podia estar cheio de massa, mas era um forreta. Mas teria adorado, oh sim, se fosse James Júnior quem assinara o contrato de três milhões
de dólares na semana anterior, em vez de Brian Kent.
É o meu filho havia de gritar para todos ouvirem.
E assim teria acontecido se, cinco anos antes, Caroline não lhe tivesse tirado o papel e não o tivesse dado a Brian Kent.
Jimmy endireitou-se. Tinha ouvido vozes junto da porta de entrada. Caroline. Não vinha sozinha. Uma voz de homem. Jimmy encolheu-se, encostado à parede. Quando a
porta se abriu e a luz se acendeu, olhou para baixo e ficou gelado. Entrava luz no roupeiro. Estava certo de que não poderiam vê-lo, mas as pontas das suas sapatilhas
gastas de corrida, voltadas para diante, revelavam a sua presença.
Caroline olhou em volta, para a sala, quando acendeu a luz. Naquela noite, por um motivo qualquer, a sala parecia-lhe diferente, estranha. Mas, evidentemente, devia
ser por causa da noite especial. O aniversário da morte de Lisa. Abraçou Sean e ele afagou-lhe carinhosamente a nuca.
Sabes que estiveste toda a noite a milhas de distância?
Estou sempre suspensa das tuas palavras. Era uma tentativa de se mostrar despreocupada, mas falhou. A sua voz alterou-se.
Caroline, não quero que fiques sozinha esta noite. Deixa-me ficar contigo. Escuta, eu sei por que queres ficar sozinha e compreendo-te. Vai para o teu quarto. Eu
estendo-me no sofá.
Caroline tentou sorrir.
Não, eu estou bem. Envolveu-lhe o pescoço com os braços. Abraça-me com força durante um minuto e põe-te a mexer disse. Vou regular o despertador para as seis e meia.
Prefiro arrumar as
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malas de manhã. Tu conheces-me. Vivinha pela manhã. Murcha à tarde.
Não tinha reparado. Os lábios de Sean roçaram-lhe a nuca, a testa, acariciaram-lhe os olhos. Conservou-a entre os braços, sentindo a tensão no seu corpo esguio.
Naquela noite, ela tinha-lhe dito:
Uma vez passado o aniversário, fico bem. É que durante uns dias, antes dele, tenho a sensação de que a Lisa está comigo. É uma sensação que não pára de crescer dentro
de mim. Como hoje. Mas eu sei que amanhã vou estar bem, e vou para casa preparar-me para me casar e ser feliz. Com relutância, Sean libertou Caroline do seu abraço.
Ela parecia fatigada, agora, e, curiosamente, isso fazia-a parecer muito jovem. Apesar dos seus 26 anos, naquele momento poderia passar por uma das suas alunas do
primeiro ano. Disse-lho.
Mas és mais bonita que qualquer delas concluiu. Vai ser incrivelmente agradável que o teu rosto seja a primeira coisa que vou ver de manhã, por toda a minha vida.
Todo o corpo de Jimmy Cleary estava encharcado de transpiração. E se ela deixasse Wexford passar ali a noite? Por certo o veriam de manhã, quando Caroline fosse
buscar o vestido de noiva ao roupeiro. Estavam abraçados a menos de meio metro do local onde ele se encontrava. E se um deles sentisse o cheiro da transpiração do
seu corpo? Mas Wexford ia-se embora.
Estou aqui às sete, meu amor disse ele a Caroline.
"E vais encontrá-la como ela encontrou a irmã", pensou Jimmy. É assim que a vais imaginar de manhã, pelo resto da tua vida.
Caroline fechou a porta logo que Sean saiu. Por momentos sentiu-se tentada a reabri-la imediatamente, chamar por ele, dizer-lhe que sim, que ficasse com ela. "Não
quero estar só. Mas eu não estou só", pensou ao retirar a mão do puxador. "Lisa está tão perto de mim, esta noite. Lisa. Lisa."
Dirigiu-se ao quarto e despiu-se rapidamente. Um duche quente ajudou a aliviar uma parte da tensão que sentia nos músculos do pescoço e das costas. Recordou o modo
como as mãos de Sean tinham massajado aqueles músculos. "Amo-o tanto", pensou. O seu pijama de riscas vermelhas e brancas estava pendurado na casa de banho. Tinha
ido comprar roupa interior e camisas de noite numa boutique da Madison Avenue e tinha-o descoberto.
Se gosta dele, é melhor decidir-se depressa tinha-lhe dito a vendedora. Só temos este em vermelho. É confortável e giríssimo.
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Apenas um. Isso tinha decidido Caroline. Uma das coisas mais difíceis nos últimos cinco anos tinha sido quebrar o hábito de comprar duas peças de cada. Durante anos,
sempre que via alguma coisa de que gostava, comprava-a automaticamente em duplicado. lisa fazia o mesmo. Tinham exactamente as mesmas medidas, a mesma altura, o
mesmo peso. Mesmo os pais tinham dificuldade em distingui-las. Quando andavam no liceu, a mãe tinha insistido com elas para comprarem vestidos diferentes para o
baile. Tinham ido separadamente a lojas diferentes e chegado ambas a casa exactamente com o mesmo vestido de seda branca com pintinhas azuis.
No ano seguinte, tinham lacrimosamente concordado com os pais e com a psicóloga do liceu, no sentido de que fariam um favor a si mesmas se frequentassem escolas
diferentes e se esquecessem de que eram gémeas idênticas.
Serem tão chegadas uma à outra é maravilhoso tinha dito a psicóloga, mas têm de pensarem si mesmas, como dois indivíduos. Nunca conseguirão alcançar a vossa capacidade
total a menos que dêem mais espaço uma à outra.
Caroline tinha ido para a Rawlings, Lisa para a Southern Cal. Na escola, Caroline divertia-se secretamente por as pessoas pensarem que ela tinha escrito na sua própria
fotografia "À minha melhor amiga". Até tinham terminado o curso no mesmo dia. A mãe tinha ido à festa de Lisa. O pai à de Caroline.
Caroline voltou à sala, lembrou-se de fechar a corrente da porta das traseiras, acendeu o televisor e, com pouco entusiasmo, começou a fazer os seus exercícios de
ginástica. Surgiu um anúncio de uma companhia de seguros. "Não o conforta saber que a sua família fica protegida quando desaparecer?" Caroline fechou o televisor,
bruscamente. Apagando a luz da sala, correu para o quarto e enfiou-se entre os lençóis. Deitada de lado, encostou as pernas ao corpo e enterrou o rosto entre as
mãos.
Sean Wexford não conseguia afastar a sensação de que se deveria ter categoricamente recusado a abandonar Caroline. Ficou sentado dentro do carro, durante alguns
minutos, a olhar para a porta. Mas ela precisava de estar só. Abanando a cabeça, Sean tirou do bolso as chaves do carro.
Enquanto conduzia o carro, de regresso a casa, as suas emoções oscilavam entre a sua preocupação com Caroline e a ideia de que, daí
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a uma semana, estariam casados. Como tinha ficado perplexo ao vê-la, no ano anterior, a praticar jogging à sua frente, no campo da universidade de Princeton. Ela
só tinha estado numa das aulas dele, na Rawlings. Naquela altura, estava a trabalhar tão afincadamente na sua tese de doutoramento que nem pensava em sair com raparigas.
Naquela manhã, havia um ano, ela tinha-lhe falado de ter frequentado a Faculdade de Direito de Columbia, trabalhado para um juiz do Supremo Tribunal de Nova Jérsia
e ter ido trabalhar para o gabinete do Promotor Público de Trenton. "E", pensou Sean, enquanto conduzia o carro pelo caminho de acesso a sua casa, "ambos soubemos,
ao bebermos juntos aquele primeiro café, o que estava a acontecer-nos." Arrumou o carro de Caroline atrás do seu e entrou em casa, sorrindo à ideia de que, muito
em breve, os carros de ambos estariam sempre estacionados no mesmo caminho de acesso.
Jimmy Cleary ficou surpreendido por Caroline ter desligado o televisor tão abruptamente. Voltou a pensar nas questões que Cory Zola tinha posto na aula de teatro:
Imagine-se uma mulher que tem menos de duas horas de vida. Ela pressenti-lo-á? Continuará a fazer a sua vida normal? Talvez Caroline estivesse a pressentir o perigo.
Quando regressasse à aula, voltaria àquela questão. "Em minha opinião", diria, "há uma aceleração do espírito quando se prepara para abandonar o corpo." Teve a sensação
de que Zola acharia a sua opinião profunda.
Jimmy sentiu uma cãibra na perna. Não estava habituado a estar de pé, absolutamente imóvel, durante tanto tempo, mas poderia continuar assim enquanto fosse necessário.
Se a intuição de Caroline estivesse a avisá-la do perigo, ela estaria à escuta dos mínimos sons. As paredes daqueles apartamentos não eram muito espessas. Um grito,
e alguém poderia ouvi-la. Estava satisfeito por ela ter deixado a porta do quarto aberta. Não teria de se preocupar com o facto de a porta ranger, quando fosse ao
encontro dela.
Jimmy fechou os olhos. Queria repetir a posição exacta em que tinha estado ao acordar a irmã dela. Um joelho no chão junto da cama, os braços prontos a envolvê-la,
as mãos em posição para lhe taparem a boca. Na realidade, tinha permanecido ajoelhado durante um minuto ou dois, antes de acordar a outra rapariga. Provavelmente
não se daria a esse luxo, desta vez. O sono de Caroline devia ser leve. O seu espírito dizia-lhe que estivesse atenta.
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Atenção. Uma bela palavra. Uma palavra para sussurrar do palco. Agora teria a sua carreira teatral. Broadway. Não apenas dinheiro por entrar num filme, mas prestígio.
O seu nome nos cartazes.
Era Caroline que lhe dava azar, e ela estava prestes a desaparecer.
Caroline estava deitada, a tremer. O edredão leve, de penas, não conseguia aquecê-la. Tinha medo. Sentia um medo terrível. Porquê?
Lisa sussurrou. Lisa, foi isto o que tu sentiste? Acordaste? Soubeste o que estava a suceder-te? Eu ouvi-te gritar nessa noite e voltei a adormecer?
Ainda não o sabia ao certo. Era apenas uma impressão, uma imagem difusa, como num sonho, que lhe surgira na mente nas semanas que se seguiram à morte de Lisa. Tinha
falado do assunto a Sean.
Penso que posso tê-la ouvido. Talvez se eu me tivesse forçado a acordar...
Sean tinha-a feito compreender que a sua reacção era a reacção das famílias das vítimas. A síndroma de "se ao menos eu". Naquele último ano, através dele e com ele,
tinha começado a sentir paz, a cura. Excepto naquele momento.
Caroline voltou-se, na cama, e forçou-se a estender as pernas e os braços. "Ansiedade irracional e profunda tristeza são sintomas de depressão", tinha lido algures.
"A tristeza é natural", pensou. "É o aniversário, mas não vou ceder à ansiedade. Pensa nos dias felizes com Lisa. Naquela última noite."
A mãe e o pai tinham ido a um seminário de banqueiros, em S. Francisco. Ela e Lisa tinham encomendado uma pizza com tudo, bebido vinho e conversado até se cansarem.
Caroline também tinha feito o exame de admissão à Faculdade de Direito, mas ainda não estava certa do que queria fazer.
Gostei imenso de estar no grupo de teatro disse a Lisa. Não sou uma boa actriz, mas sei o que é representar bem. Acho que dava uma boa directora de cena. A peça
correu muito bem, e Brian Kent, que eu sabia que era a pessoa certa para o papel principal, foi escolhido por um produtor. No entanto, se eu me licenciar em direito,
talvez possamos abrir um escritório e dizer às pessoas que recebem o dobro pelo mesmo preço.
Tinham ido para a cama por volta das onze horas. Os seus quartos eram adjacentes. Geralmente deixavam a porta aberta, mas Lisa
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tinha querido ver um espectáculo televisivo e Caroline estava com sono, de modo que atiraram beijos uma à outra e Caroline fechou a porta. "Se ao menos eu a tivesse
deixado aberta", pensou. "Por certo a teria ouvido, se ela tivesse tido oportunidade de gritar."
Na manhã seguinte só tinha acordado depois das oito. Lembrava-se de se ter sentado na cama, espreguiçado e pensado como era bom ter acabado as aulas. Como prémio
de final de curso, Lisa e ela tinham recebido uma viagem à Europa, nesse Verão.
Caroline recordava-se de como tinha saltado da cama e decidido ir buscar café e sumo, e depois tinha colocado os copos, as chávenas e a cafeteira numa bandeja e
subido as escadas.
A porta de Lisa estava entreaberta. Tinha-a aberto com um pontapé e gritado:
Acorda, rapariga! Daqui a uma hora temos ténis.
E então tinha visto Lisa. A cabeça inclinada de uma forma pouco natural, o fio enterrado no pescoço, os olhos fora das órbitas e cheios de medo, as palmas das mãos
estendidas como se tentasse afastar alguém. Caroline tinha deixado cair a bandeja, derramando café sobre as pernas, tinha conseguido cambalear até ao telefone e
marcar o
911, e depois tinha gritado, gritado, até os gritos se transformarem num som rouco e gutural. Acordara no hospital, três dias depois. Disseram-lhe que a polícia
a tinha encontrado deitada ao lado de Lisa, com a cabeça dela no seu ombro.
A única pista, a marca parcial enlameada de uma sapatilha de corrida, tinha sido encontrada no interior da porta lateral.
Mas dissera-lhe mais tarde o chefe dos detectives ele ou ela foram suficientemente educados para limpar o resto da lama no tapete.
"Se ao menos tivessem encontrado o assassino de Lisa", pensou Caroline, estendida no escuro. Todos os detectives achavam que tinha sido alguém que conhecia Lisa.
Não tinha havido tentativa de roubo. Nem tentativa de estupro. Tinham interrogado exaustivamente os amigos de Lisa, os rapazes com quem ela tinha saído na escola.
Tinha havido um jovem, na turma dela, que estava obcecado por Lisa. Tinha sempre sido um dos principais suspeitos, mas a polícia não tinha conseguido provar que
ele estivesse em St. Paul naquela noite.
Tinham pensado na possibilidade de erro de identidade, especialmente depois de saberem que nenhuma das jovens tinha dito aos colegas que tinha uma gémea idêntica.
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A princípio não dissemos porque tínhamos prometido não o fazer. Aquilo tornou-se num jogo para nós dissera Caroline.
E os amigos da escola que visitavam a vossa casa?
Nós não trazíamos a casa os amigos da escola. Gostávamos de estar juntas durante as férias grandes e as pequenas.
"Oh, Lisa", pensou Caroline, naquele momento. "Se ao menos eu soubesse porquê. Se ao menos eu tivesse podido ajudar-te naquela noite." Não tinha sono, mas subitamente
sentiu-se fatigada.
Finalmente as pálpebras começaram a fechar-se por si. "Oh, Lisa", pensou, "gostava que te sentisses tão feliz como eu. Se ao menos eu pudesse compensar-te."
A janela estava aberta alguns centímetros em baixo. Os fechos laterais de protecção impediam-na de subir mais. Naquela altura, uma rajada de vento fez bater o estore.
Caroline sentou-se na cama, assustada, percebeu o que se passara e forçou-se a deitar-se de novo. "Pára com isso", disse a si mesma, "pára com isso." Fechou deliberadamente
os olhos e, ao fim de algum tempo, caiu num sono leve, povoado de sonhos, um sono em que Lisa tentava chamá-la, avisá-la.
Era a altura. Jimmy Cleary sentia-o. O roçagar dos lençóis tinha cessado. Não vinha som absolutamente algum do quarto. Deslizou por entre os casacos que o tinham
escondido e afastou o saco que continha o vestido de Caroline. As dobradiças produziram um leve som de fricção quando abriu a porta do roupeiro, mas não houve reacção
alguma proveniente do quarto. Caroline tinha uma lâmpada nocturna acesa, que projectava apenas a luz suficiente para lhe permitir constatar que o seu sono era inquieto.
A sua respiração era regular mas pouco profunda. Voltou diversas vezes a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse a protestar.
Jimmy apalpou o fio dentro do bolso. Era estranhamente reconfortante pensar que provinha do mesmo rolo do que tinha usado na irmã dela. Aquele até era o mesmo fato
de treino que tinha usado cinco anos antes, e calçava as mesmas sapatilhas. Sabia que era um pouco arriscado conservá-las, no caso de a polícia o interrogar, mas
nunca tinha conseguido deitá-las fora. Tinha-as guardado num local onde ninguém fazia perguntas. Tinha, evidentemente, usado um nome diferente.
Nas pontas dos pés, aproximou-se da cama de Caroline e ajoelhou-se.
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Conseguiu saborear um minuto inteiro a observá-la, antes que os olhos dela se abrissem e as mãos dele lhe cobrissem a boca.
Sean viu o noticiário das dez horas, constatou que não sentia sono algum e abriu um livro que andava com vontade de ler. Minutos depois, pô-lo de parte, impacientemente.
Havia algo de errado. Sentia-o tão nitidamente como se visse fumo a sair do quarto ao lado e percebesse que a casa estava a arder. Ia telefonar a Caroline. Saber
como ela estava. Por outro lado, talvez ela tivesse conseguido adormecer. Dirigiu-se à garrafeira e serviu-se de uma generosa quantidade de uísque. Alguns goles
ajudaram-no a pensar que estava, provavelmente, a agir com excessivo nervosismo.
Caroline abriu os olhos ao ouvir sussurrar o seu nome. "É um pesadelo", pensou, "tenho estado a sonhar." Ia começar a gritar, quando sentiu uma mão tapar-lhe a boca,
uma mão dura, musculosa, que lhe esmagava os malares, que lhe fechava os lábios e quase lhe cobria as narinas. Arquejou, com falta de ar. Tentou afastar-se, mas
o homem estava a segurá-la com o outro braço. O seu rosto estava perto do dela.
Caroline murmurou, vim emendar o meu erro.
A luz nocturna projectava estranhas sombras em volta da cama. Aquela voz. Já a tinha ouvido antes. O contorno da sua testa ousada, o queixo quadrado. Os ombros largos.
Quem seria?
Caroline, a toda-poderosa directora de cena. Reconheceu a voz. Jimmy Cleary. Jimmy Cleary, e nesse mesmo instante percebeu porquê. Como numa cena de um filme, o
momento em que tinha dito a Jimmy que ele não servia para o papel perpassou na mente de Caroline. Ele tinha aceite tão bem. Demasiadamente bem. Ela não tinha querido
saber que ele estava a representar. Tinha sido mais fácil fazer de conta que ele concordava com a sua decisão. "E ele matou Lisa, quando queria matar-me amim.A culpa
foi minha." Um gemido escapou-se-lhe dos lábios, morreu na palma da mão dele. "A culpa foi minha. Minha."
E então ouviu a voz de Lisa, tão nitidamente como se Lisa estivesse a falar-lhe ao ouvido, a dizer-lhe segredos de novo, como faziam quando crianças. A culpa não
foi tua, mas será tua se o deixares matar de novo. Não permitas que isso aconteça ao pai e à mãe. Nãopermitas
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que isso aconteça a Sean. Envelhece por mim. Tem filhos. Dá a uma filha o meu nome. Tens de viver. Escuta-me. Diz-lhe que não cometeu um erro. Diz-lhe que também
me odiavas. Eu ajudo-te.
Sentia o calor da respiração de Jimmy Cleary no seu rosto. Ele falava-lhe do papel, de Brian Kent ter sido contratado pelo produtor, do novo contrato de Brian.
Vou matar-te exactamente da mesma maneira que matei a tua irmã. Um actor continua a desempenhar o seu papel até ser perfeito nele. Queres ouvir a última coisa que
eu disse à tua irmã? Ergueu um pouco a mão para que ela pudesse formular uma resposta.
Diz-lhe que tu és eu.
Durante uma fracção de segundo, Caroline viu-se com 6 anos de novo. Ela e Lisa estavam a brincar nas fundações de uma casa em construção perto delas. Lisa, sempre
mais ousada, sempre segura, seguia à frente, sobre os tijolos.
Não sejas medricas instou, vem atrás de mim. Ouviu-se a si mesma murmurar:
Adorava ouvir. Quero saber como é que ela morreu, para me rir. Tu mataste mesmo a Caroline. Eu sou a Lisa.
Sentiu a mão dele bater-lhe na boca com força selvagem.
Alguém tinha alterado o guião. Furiosamente, Jimmy enterrou os dedos nas faces dela. Nas faces de quem? De Caroline? Se já a tinha morto, por que é que a sua sorte
não tinha mudado? Sem mover o braço pousado sobre o peito dela, meteu a mão no bolso superior do fato de treino e tirou o fio; "Acaba com isso", disse a si próprio.
"Se estiverem ambas mortas, podes ter a certeza de que mataste a Caroline."
Mas era como estar no palco no terceiro acto, sem saber como a peça acabava. Se um actor não conhecesse o clímax, como se poderia esperar que a audiência sentisse
qualquer tensão? Porque havia uma audiência, uma audiência invisível chamada destino. Tinha de ter a certeza.
Se tentares gritar, não consegues soltar mais que um latido disse-lhe. Foi tudo o que a tua irmã conseguiu.
Ela tinha ouvido Lisa, naquela noite.
Por isso acena com a cabeça se prometes não gritar. Vou conversar contigo. Talvez, se me conseguires convencer, te deixe ficar viva. Wexford quer que tu sejas a
primeira coisa que ele vê todas as manhãs, durante o resto da vida, não é? Ouvio dizer isso.
Jimmy Cleary já lá estava quando eles tinham entrado. Caroline sentiu a escuridão cerrar-se à sua volta.
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Faz o que ele diz! Não te atrevas a desmaiar. A voz autoritária de Lisa. "Falou a duquesa", costumava dizer-lhe Caroline, e desatavam ambas a rir.
Jimmy flectiu o braço que se encontrava sobre o corpo de Caroline, passou o fio em volta do pescoço dela e atou-o num nó corrediço. Tinha o dobro do comprimento
do pedaço que tinha utilizado da última vez. Tinha-lhe ocorrido que, desta vez, faria um nó duplo, um gesto de final de acto, enquanto abandonava a ribalta da morte.
O comprimento extra dava-lhe a possibilidade de a manipular. Calmamente, disse-lhe que saísse da cama, que estava com fome, queria que ela lhe preparasse uma sanduíche
e café e que estava a segurar no extremo da corda e a puxaria até a estrangular se ela erguesse a voz ou tentasse fazer o que não devia.
Faz o que ele diz.
Obedientemente, Caroline sentou-se na cama, quando Jimmy retirou o peso do braço de cima do seu corpo. Os pés dela tocaram a madeira fria do chão. Automaticamente,
procurou as chinelas.. "Posso estar morta dentro de segundos e preocupo-me por estar descalça", pensou. Quando se inclinou para a frente, o fio enterrou-se-lhe no
pescoço.
Não... por favor. Havia pânico na sua voz.
Calada! Sentiu as mãos de Jimmy Cleary no seu pescoço, alargando o fio. Não te mexas tão depressa e não voltes a levantar a voz.
Lado a lado, atravessaram a sala e entraram na cozinha. A mão dele pousada na sua nuca. Os seus dedos agarravam o fio. Mesmo solto, ela sentia a sua pressão, como
uma tira de aço. Na sua mente, via o fio acinzentado enterrado na garganta de Lisa. Pela primeira vez começou a recordar-se do resto dessa manhã. Tinha ligado para
o 911 e começado a gritar. Depois tinha largado o auscultador. O corpo de Lisa estava à beira da cama, como se, no último momento, tivesse tentado fugir. "A pele
dela estava azul, pensei que ela devia ter frio e tentei aquecê-la", lembrou-se Caroline, ao abrir a porta do frigorífico. "Dei a volta à cama, meti-me entre os
lençóis e abracei-a, e comecei a falar com ela, e tentei retirar-lhe o fio do pescoço, e depois senti que estava a cair."
Agora o fio rodeava o seu pescoço. De manhã, iria Sean encontrá-la como ela encontrara Lisa?
Não. Isso não pode acontecer. Faz-lhe uma sanduíche. Faz-lhe café. Age como se estivessem ambos a representar uma grande cena. Diz-lhe
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como eu era autoritária. Anda. Aproveita as coisas boas e dá-lhes a volta. Culpa-me daquilo que ele me culpar.
Caroline olhou para o interior do frigorífico e teve uma rápida sensação de alívio por ter adiado o momento de o esvaziar. Tinha sempre à mão ingredientes para fazer
sanduíches a Sean; a mulher que fazia a limpeza levá-los-ia de manhã. Retirou fiambre e queijo, peru, alface, maionese e mostarda. Recordava-se de que, no liceu,
quando o elenco da peça saía para fazer uma refeição, Jimmy Cleary pedia sempre uma sanduíche gigante.
Como é que eu poderia saber isso? Pergunta-lhe o que é que ele quer.
Ergueu o olhar. A única luz provinha do frigorífico, mas os seus olhos começavam a adaptar-se à escuridão. Via nitidamente o inconfundível queixo quadrado que endurecia
o rosto de Jimmy Cleary, e a raiva e a confusão no seu semblante. Com a boca seca pelo medo, sussurrou:
Que tipo de sanduíche prefere? Peru? Fiambre? Tenho pão integral ou pãezinhos italianos.
Sentiu que tinha passado no primeiro teste.
Tudo. Mete tudo num pãozinho.
Sentiu o fio alargar um pouco. Pôs a chaleira ao lume. Fez a sanduíche rapidamente, empilhando peru e fiambre em cima do queijo, espalhando a alface, cobrindo o
pão com maionese e mostarda.
Ele fê-la sentar-se ao seu lado, à mesa. Ela serviu-se também de café, forçando-se a bebê-lo. O fio enterrava-se-lhe no pescoço. Ergueu a mão para o alargar.
Não lhe toques. Alargou-o ligeiramente.
Obrigada. Observou-o enquanto devorava a sanduíche. Fala com ele. Tens de convencê-lo antes que seja tarde de mais.
Penso que me disse o seu nome, mas não o fixei. Ele engoliu o último pedaço de sanduíche.
Nos cartazes é James Cleary. O meu agente e os meus amigos chamam-me Jimmy.
Ele estava a beber o café. Como poderia fazê-lo acreditar, confiar nela? Donde estava sentada, Caroline podia ver o roupeiro da entrada. Tinha estado quase fechado.
Era ali que ele tinha estado escondido. Sean tinha querido ficar com ela. Como desejava tê-lo deixado ficar. Naqueles primeiros anos depois da morte de Lisa, tinha
havido alturas em que lhe parecia demasiado difícil chegar ao fim do dia. Apenas as pesadas exigências do curso de Direito a tinham impedido
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de mergulhar numa depressão suicida. Agora revia o rosto de Sean, tão inexprimivelmente adorado. "Quero viver", pensou. "Quero o resto da minha vida."
Jimmy Cleary sentia-se melhor. Nem se tinha apercebido de como estava cheio de fome. De certo modo, aquilo estava a ser melhor que da última vez. Agora estava a
representar a cena do gato e do rato. Agora era o juiz. Aquela seria Caroline? Talvez não tivesse cometido um erro, da última vez. Mas se tinha despachado Caroline,
por que é que o seu azar não tinha desaparecido? Acabou de beber o café. Os seus dedos enrolaram-se em volta da extremidade do fio, apertando-o ligeiramente. Estendendo
a mão, acendeu o candeeiro que estava sobre a mesa. Queria estudar o rosto dela.
Diz-me lá então disse descontraidamente. Por que é que eu devo acreditar em ti? E se acreditar em ti, por que hei-de deixar-te viver?
Sean despiu-se e tomou um duche. Observou-se atentamente no espelho da casa de banho. Dentro de dez dias faria 34 anos. Caroline ia fazer 27 no dia seguinte. Festejariam
os seus aniversários em Veneza. Seria bom sentar-se na Praça de São Marcos com ela, a beber vinho e a escutar os sons suaves dos violinos, e a ver deslizar as gôndolas.
Era uma imagem que tinha acorrido à sua mente por diversas vezes, nas últimas semanas. Naquela noite não conseguia. A imagem não se formava no seu espírito.
Tinha de falar com Caroline. Envolvendo-se numa espessa toalha de banho, dirigiu-se ao telefone da mesa-de-cabeceira. Era quase meia-noite. Mesmo assim, marcou o
número. "Para o diabo as desculpas", pensou. "Vou só dizer-lhe que a amo."
Não é fácil ser-se gémea.Caroline inclinou a cabeça, para poder olhar directamente para Jimmy Cleary. A minha irmã e eu estávamos sempre a discutir. Eu chamava-lhe
a Duquesa. Era muito autoritária. Quando éramos pequenas, ela fazia as coisas e arranjava maneira de me culpar. Acabei por a odiar. Por isso fomos para escolas em
extremos opostos do continente. Eu queria afastar-me dela. Eu era a sombra dela, a sua imagem no espelho, não era uma pessoa. Naquela última noite, ela queria ver
televisão e tinha o televisor avariado. Por isso forçou-me a trocar de quarto. Quando a encontrei, de
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manhã, acho que desmaiei. Mas, como vê, nem sequer os meus pais deram pelo engano.
Caroline abriu os olhos. Baixou a voz, tornando-a íntima, dando-lhe um tom confidencial:
Você é um actor, Jimmy. Deve compreender. Quando voltei a mim, todos me chamavam Caroline. Sabe quais foram as primeiras palavras que a minha mãe disse quando eu
acordei? "Oh, Caroline, graças a Deus não foste tu."
Muito bem. Estás a convencê-lo.
Tinha 6 anos de novo. Estavam a brincar nas fundações da casa. Lisa corria cada vez mais depressa. Caroline tinha olhado para baixo e sentido tonturas. Mas continuava
a esforçar-se por a seguir.
Jimmy estava a divertir-se. Sentia-se como um agente a dizer a uma candidata que lhe fizesse uma leitura.
Então decidiste, de um momento para o outro, que ias ser a Caroline. Como é que te safaste? Caroline frequentava a Rawlings. Que é que sucedeu quando os amigos de
Caroline da Rawlings vieram a tua casa?
Caroline acabou o seu café. Detectava lampejos de loucura nos olhos de Jimmy Cleary.
Não foi difícil. Choque. Foi essa a desculpa. Os médicos chamaram-lhe amnésia psicológica. Toda a gente foi muito compreensiva.
Ou ela era uma belíssima actriz, ou estava a dizer a verdade. Jimmy sentia-se intrigado. Começava a sentir que uma parte da sua raiva estava a desaparecer. Aquela
rapariga era diferente de Caroline. Mais meiga. Mais simpática. Sentiu uma relação com ela, uma afinidade que lamentava. Fosse como fosse, não podia deixá-la viva.
O único problema estava em que, se ele tinha morto Caroline, se ela não estivesse a mentire ainda não tinha a certeza disso, por que é que a sua sorte não tinha
mudado cinco anos antes?
Como era encantador o pijama vermelho e branco que ela vestia. Pousou a mão no braço dela e depois retirou-o. Teve um pensamento súbito:
E Wexford? Como é que o conheceste?
Chocámos um com o outro. Ouvi-o chamar-me "Caroline" e percebi que era alguém que eu devia conhecer. Disse-me o seu nome quando me encontrou, num dia em que fazíamos
jogging e, logo a seguir, falou-me de me ter visto na sua aula, de modo que eu fingi que era assim.
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Recorda a Jimmy que Sean não ligou à verdadeira Caroline na Rowlings. Diz-lhe que por ti se apaixonou imediatamente.
Jimmy mudava constantemente de posição. Caroline disse:
Nem sei dizer-lhe quantas vezes Sean me disse que eu era muito mais simpática agora. E isso porque eu não sou a mesma pessoa. Não acha engraçado? Sinto-me satisfeita
por partilhar do meu segredo, Jimmy. Durante cinco anos tem sido o meu benfeitor secreto, e finalmente acabo por conhecê-lo. Quer mais café?
Ela estaria a tentar aldrabá-lo? Falaria verdade?
Tocou-lhe no cotovelo.
Sabia-me bem mais café. Ficou de pé, junto dela, um pouco para o lado, enquanto ela aquecia a chaleira no fogão. Era uma rapariga muito bonita. Mas sabia que não
poderia deixá-la viver. Acabaria o seu café, levá-la-ia de novo para o quarto e matá-la-ia. Primeiro havia de explicar-lhe a questão do seu azar. Olhou para o relógio.
Era meia-noite e meia. Tinha morto a outra irmã à meia-noite e quarenta, a sincronização era perfeita. Veio-lhe à mente a imagem da outra rapariga a estender as
mãos como se o quisesse arranhar, os olhos dela ardentes e desorbitados. Às vezes sonhava com aquilo. Durante o dia, a recordação dava-lhe prazer. De noite, fazia-o
suar.
O telefone tocou.
A mão de Caroline apertou convulsivamente a asa da chaleira. Sabia que era Sean. Em outras noites em que tinha sentido que ela estava deprimida, provavelmente sem
conseguir dormir, ele tinha-lhe telefonado.
Convence Jimmy de que tens de atender o telefone. Tens que dar a entender a Sean que precisas dele.
O telefone tocou uma segunda, uma terceira vez.
O suor brilhava na testa e sobre o lábio superior de Jimmy.
Deixa tocar disse ele.
Jimmy, tenho a certeza de que é o Sean. Se eu não responder, ele vai pensar que há qualquer coisa errada. Não o quero aqui. Quero conversar consigo.
Jimmy considerou a hipótese. Se fosse Wexford, ela estaria provavelmente a dizer a verdade. O telefone continuava a tocar. Estava ligado a um gravador.
Jimmy carregou no botão que tornava a conversa audível, levantou o auscultador e entregou-lho. Apertou o fio de modo a morder-lhe o pescoço.
Caroline sabia que a sua voz não poderia soar trémula.
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Está? Conseguiu parecer sonolenta e foi recompensada por um ligeiro afrouxamento da pressão no pescoço.
Caroline querida, estavas a dormir. Desculpa-me. Estava preocupado por estares tão deprimida. Sei o que esta noite representa para ti.
Não, ainda bem que telefonaste. Não estava propriamente a dormir. Estava a começar a ficar sonolenta. "Que é que eu hei-de dizer-lhe?" pensava Caroline desesperadamente.
O vestido. O vestido de noiva.
É um bocado tarde ouviu Sean dizer. Acabaste de fazer as malas ontem, afinal?
Jimmy tocou-lhe no ombro e acenou afirmativamente com a cabeça.
Sim. Sentia-me sem sono e acabei de fazer as malas. Jimmy começava a mostrar-se impaciente. Fez-lhe sinal para acabar com a conversa. Caroline mordeu o lábio. Se
não conseguisse fazer alguma coisa, era o fim.
Sean, adoro-te por me teres telefonado e estou muito bem. Estou pronta às sete e meia. Só uma coisa. Quando embalaram o meu vestido, lembraste-te de lhes dizer para
meterem muito papel por baixo das mangas para não se amarrotarem? Pensou: "Meu Deus, espero que ele não me traia."
Sean sentiu que os dedos que agarravam o auscultador se tornavam pegajosos de suor. O vestido. O vestido de Caroline não tinha mangas. E havia outra coisa. A voz
dela tinha um som cavo. Ela não estava na cama. Estava no telefone da cozinha e o botão de som alto tinha sido premido. Não estava sozinha. Com um esforço supremo,
conservou a voz calma.
Querida, poderia jurar sobre uma pilha de bíblias que a vendedora disse qualquer coisa a esse respeito. Julgo que a tua mãe também tinha telefonado a lembrar-lhe
isso. Agora escuta, dorme bem. Vemo-nos pela manhã e não te esqueças de que eu te amo. Conseguiu pousar o auscultador suavemente, e depois tirou a toalha e foi buscar
o fato de treino ao roupeiro. As chaves do apartamento de Caroline estavam em cima da cómoda com as chaves do carro. Deveria perder tempo a telefonar à polícia?
O telefone do seu carro. Telefonaria enquanto fosse a caminho. "Meu Deus", pensou, "peço-te..."
Sean tinha percebido. Caroline pousou o auscultador e olhou para Jimmy.
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Portaste-te bem disse ele. E sabes uma coisa? Começo a acreditar em ti. Levou-a outra vez para o quarto e forçou-a a deitar-se. Colocou o braço sobre ela, exactamente
como tinha feito com a irmã. Depois explicou-lhe o que o seu professor, Cory Zola, lhe tinha dito sobre o seu azar.Estávamos a representar um duelo, na aula, na
semana passada, e eu estava furioso. Feri o outro aluno. Zola zangou-se muito comigo. Tentei explicar-lhe que estava a pensar no azar que uma pessoa me tinha dado,
e que me fazia estragar tudo. Ele disse-me que não fosse às aulas enquanto não me livrasse dele. Por isso, mesmo que eu acredite que matei a Caroline, da outra vez,
tenho de me livrar dessa sensação, porque não posso voltar às aulas sem me ver livre dele,. E, segundo as minhas regras, Lisa... é esse o teu verdadeiro nome, hein?...
tu herdaste-a.
Os olhos dele chamejavam. Tinha uma expressão vazia, fria. "Está louco", pensou Caroline. "Sean vai levar quinze minutos a chegar aqui. Já passaram três. Ainda faltam
doze minutos. Lisa, ajuda-me."
É o Brian Kent que lhe dá azar. "O Desconhecido do Norte Expresso."
Sentia a boca muito seca. O rosto dele estava muito próximo do seu. Sentia o odor da transpiração que escorria pelo corpo dele. Sentiu os dedos dele começarem a
puxar o fio. Conseguiu falar num tom despreocupado.
Matar-me não vai resolver nada. É o Brian Kent que lhe dá azar, não eu. Se ele ficar fora do caminho, terá a sua oportunidade. E se eu o matar, ficarei tanto nas
suas mãos como você nas minhas.
O arquejo de estupefacção dele deu-lhe esperanças. Tocou-lhe na mão.
Pare de puxar esse fio, Jimmy, e escute-me durante dois minutos. Deixe-me sentar-me. Veio-lhe de novo à memória aquele dia em que brincava a seguir o chefe, nas
fundações da casa nova. A certa altura, tinham chegado a um espaço aberto destinado a uma janela. Lisa tinha saltado para o outro lado. Caroline, alguns passos atrás,
tinha hesitado, fechado os olhos e saltado, mal conseguindo ultrapassar o espaço aberto. Estava a dar um salto, naquele momento. Se falhasse, estava tudo perdido.
Sean vinha a caminho. Sabia que ele vinha. Só precisava de se manter viva durante os próximos onze minutos.
Jimmy afrouxou a pressão do braço, permitindo-lhe que se sentasse. Ela flectiu as pernas e encostou-as ao corpo, envolvendo os joelhos
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com as mãos. O fio enterrava-se nos músculos do pescoço, mas não ousava pedir-lhe que o afrouxasse mais.
Jimmy, disse-me que o seu grande problema era parecer-se muito com Brian Kent. E se acontecesse qualquer coisa a Brian? Iriam precisar de alguém que o substituísse.
Então, transforme-se nele. Substitua-o, como eu substituí Caroline. Ele sofre um acidente súbito, eles vão andar frenéticos à procura de alguém para entrar naquele
filme. Por que não havia de ser você?
Jimmy sacudiu o suor da testa. Ela estava a sugerir-lhe uma nova interpretação do papel que Brian desempenhava na sua vida. Sempre se tinha concentrado em ser uma
estrela, em ser maior que Brian, ultrapassá-lo, conseguir uma mesa melhor nos restaurantes, vê-lo desaparecer gradualmente. Nunca tinha pensado no desaparecimento
súbito de Brian. E mesmo que matasse aquela rapariga, aquela Lisa, porque agora acreditava que ela fosse Lisa, Brian Kent continuaria a assinar contratos, a pousar
para fotografias na revista People. E, o que era pior, os agentes continuariam a dizer-lhe que ele tinha o tipo de Brian Kent.
Ele estaria a acreditar nela? Com a língua, Caroline tentou humedecer os lábios. Estavam tão secos que tinha dificuldade em falar.
Se me matar agora, descobrem-no, Jimmy, a polícia não é parva. Puseram sempre em dúvida que tivesse sido morta a gémea certa.
Ele estava a escutá-la.
Jimmy, nós podemos fazer como no Desaparecimento do Norte Expresso. Lembra-se do enredo? Duas pessoas que trocam crimes. Não havia motivos. A sua única diferença
está em que levaremos tudo a cabo. Você já fez a sua parte. Tirou-me a Caroline do caminho. Agora deixe-me livrá-lo do Brian Kent.
O Desconhecido do Norte Expresso. Jimmy tinha representado uma cena desse filme numa aula. Tinha sido perfeito. Cory Zola tinha dito: "Jimmy, nasceste para isto."
Os olhos dele percorreram-lhe o rosto. Vejam só, estava a sorrir-lhe. Era das boas. Se ela tinha conseguido convencer a família de que era Caroline, seria capaz
de convencer Brian Kent e dar cabo dele. Mas que garantia poderia ter de que ela não desatava a gritar pela polícia, mal saísse de junto dela? Perguntou-lho.
Jimmy, tem a melhor garantia do mundo. Sabe que eu sou Lisa. Eles nunca investigaram as impressões digitais de Caroline. Podia entregar-me, se quisesse. Sabe o que
isso faria aos meus pais, a
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Sean? Acha que eles me perdoariam? Cravou os olhos directamente nos de Jimmy, aguardando a sua decisão.
Sean saiu de casa a correr, e depois mordeu o lábio, cheio de frustração. O carro de Caroline estava a bloquear o seu. Queria poder telefonar à polícia do caminho.
Voltou a correr para casa, agarrou nas chaves dela, tirou o carro dela do caminho e entrou no seu. Enquanto recuava com louca velocidade para a estrada, arrancou
o auscultador do telefone e marcou 911.
Jimmy experimentava uma estonteante sensação de renascimento. Quantas vezes, em L. A., tinha visto Brian Kent passar ao volante do seu Porsche? Tinham andado quatro
anos juntos no liceu, mas Brian nunca lhe tinha concedido mais que uma fria inclinação da cabeça, quando se encontravam. Tudo seria melhor se Brian deixasse de existir.
E Lisa era Lisa, estava convencido disso tinha razão. Ele ficaria com ela na mão. Deliberadamente, afrouxou o fio, mas não o retirou do pescoço dela.
Vamos supor que eu acredito em ti. Como é que o apanhavas? Caroline esforçou-se por afastar a sensação de desfalecimento
que acompanhava a esperança. Que havia de dizer-lhe?
Vais para a Costa. Vais procurar Brian.
Desesperadamente, procurou uma trama plausível. Voltou a ter 6 anos, saltava sobre as fundações da casa. Os espaços entre os blocos eram cada vez maiores.
Veneno. Veneno.
Sean tem um amigo, um professor universitário, especializado na história da Medicina. Na semana passada, ao jantar, esteve a falar de que há muitos venenos absolutamente
indetectáveis. Descreveu-nos um deles, e o modo de o preparar, a partir de coisas que há em todos os armários de remédios. Bastam umas gotas. No próximo mês, quando
voltar da minha lua de mel, tenho de ir à Califórnia, para servir de testemunha. Telefono ao Brian. Afinal fui eu... quero dizer, a Caroline... quem lhe deu a sua
oportunidade. Certo?
Tem cuidado.
Tinha-se distraído. Mas Jimmy não parecia ter notado. Escutava-a atentamente. A transpiração tinha-lhe encaracolado o cabelo de tal modo que lhe caía em caracóis
húmidos sobre a testa. Não se
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lembrava de o cabelo dele ser tão encaracolado. Ele devia ter ido ao cabeleireiro. Agora estava exactamente com o mesmo corte de cabelo que ela tinha visto a Brian
Kent no seu último filme.
Tenho a certeza de que ele vai ficar satisfeito por me ver prosseguiu. Como se estivesse a estender as pernas por causa das cãibras pousou os pés ao lado da cama.
A mão dele estendeu-se e rodeou a extremidade do fio. Ela colocou a mão sobre a dele.
Jimmy, há um veneno que leva uma semana, dez dias a actuar. Os sintomas só começam a sentir-se três ou quatro dias depois. Mesmo que haja um inquérito, quem ligaria
a um assassínio o facto de Brian ter tomado café com uma antiga colega, que acabou de se casar com um professor de Princeton? É um enredo perfeito.
Jimmy deu consigo a acenar afirmativamente com a cabeça. Aquela noite tinha-se transformado num sonho, num sonho que faria recomeçar toda a sua vida. Podia confiar
nela. Com uma estonteante clareza, aceitava a verdade do que ela lhe tinha feito ver. Enquanto Brian Kent estivesse vivo, ele, que era o melhor actor do mundo, continuaria
desconhecido. A lâmpada nocturna do quarto transformou-se numa luz da ribalta. A sala mergulhada na escuridão era o teatro onde a assistência se sentava. Ele estava
de pé, no palco. O público aplaudia. Saboreou esse momento e depois afagou o queixo de Caroline não, de Lisa.
Acredito em timurmurou. Quando é que vais à Califórnia?
Aguenta. Estás quase salva.
Corriam cada vez mais depressa sobre as fundações. Ela não conseguia aguentar mais. Caroline sentiu que a voz lhe falhava ao dizer:
Na segunda semana de Julho.
As dúvidas de Jimmy que ainda subsistiam desapareceram. Kent deveria iniciar o seu novo filme no dia 1 de Agosto. Se nessa altura estivesse morto, andariam todos
loucos à procura de um substituto.
Pôs-se de pé e fez Caroline levantar-se.
Vou tirar-te essa coisa do pescoço. Lembra-te de que ela fica no meu bolso, para o caso de voltar a precisar dela. Agora vou-me embora. Temos um acordo. Mas se tu
não cumprires a tua parte do acordo, uma noite em que o teu professor não esteja, ou numa tarde em que tenhas de parar no sinal vermelho, eu aparecerei.
Caroline sentiu o fio afrouxar, sentiu-o retirar-lho por cima da cabeça. Irrompiam-lhe na garganta soluços histéricos de alívio.
Está combinado conseguiu dizer.
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Ele enterrou os dedos nos ombros dela e beijou-a na boca.
Não selo os meus acordos com um aperto de mãos disse. É pena não ter mais tempo. Era capaz de me entusiasmar contigo. A sua caricatura de sorriso transformou-se
num sorriso aberto. Sinto que o azar já desapareceu. Vem. Dirigiu-se com ela até à porta das traseiras. Estendeu a mão para abrir a corrente.
Caroline viu, de relance, o relógio da cozinha. Tinham passado doze minutos desde o telefonema de Sean. Nos próximos trinta segundos, Jimmy ir-se-ia embora e ela
poderia fechar a porta e barricar-se. Dentro de alguns minutos Sean chegaria.
Novamente a recordação dos 6 anos, da corrida sobre as fundações. Ela tinha olhado para baixo. Estava a cerca de três metros do chão. Lá em baixo havia pedaços de
betão quebrado. Lisa deu o último salto sobre um amplo espaço destinado a uma porta...
Jimmy abriu a porta. Ela sentiu o ar frio da noite no rosto. Ele voltou-se para ela.
Sei que nunca tiveste oportunidade de me ver representar, mas sou um grande actor.
Sei que és um grande actor ouviu-se Caroline dizer. Não é verdade que, depois de A Morte de um Caixeiro Viajante, toda a gente no liceu te tratava por Bill?
Nas fundações, ela tinha hesitado naquele momento, antes de dar o salto final atrás de Lisa. Tinha perdido o ímpeto. Tinha caído e batido com a cabeça no cimento.
Doente de medo, percebeu que uma vez mais não tinha conseguido seguir Lisa.
A porta fechou-se bruscamente. Durante uma fracção de segundo, ela e Jimmy fitaram-se.
Lisa não teria podido saber disso sussurrou Jimmy. Estiveste a mentir-me. Tu és a Caroline. As mãos dele dirigiram-se ao seu pescoço. Ela tentou gritar, afastando-se
dele, voltando-se e correndo, aos tropeções, para a porta da frente. Mas apenas um gemido fraco lhe saiu dos lábios.
Sean atravessava a grande velocidade as ruas silenciosas. A telefonista do 911 perguntava-lhe o seu nome, de onde estava a telefonar, qual a natureza da emergência.
Mande um carro-patrulha ao número oitenta e um de Priscilla Lane, apartamento 1-Aberrou. Não interessa como é que eu sei se se está a passar alguma coisa. Mande
lá um carro.
E qual é a natureza da emergência? repetiu a telefonista.
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As mãos de Jimmy caíram sobre a porta da frente, quando ela tentava abrir a fechadura. Caroline baixou-se e fugiu-lhe, correndo em volta do cadeirão. À luz difusa,
viu-se de relance no espelho por cima do sofá, com a presença dele logo atrás. Sentia o hálito dele a queimar-lhe o pescoço. Se ao menos conseguisse viver mais um
minuto! Sean estava a chegar. Antes que conseguisse completar o pensamento, Jimmy tinha saltado sobre o cadeirão. Estava diante dela. Viu o fio nas mãos dele. Ele
fê-la girar. Sentiu que ele lhe puxava os cabelos, lhe colocava o fio em volta do pescoço, viu o reflexo de ambos no espelho por cima do sofá. Caiu de joelhos e
o fio esticou-se. Tentou fugir-lhe, de gatas, e sentiu-o inclinar-se sobre ela.
Acabou tudo, Caroline. Chegou realmente a tua vez de seres a vítima.
Sean voltou para a rua de Caroline. Os travões guincharam quando os calcou diante da casa. Ouvia sirenes à distância. Correu para casa e experimentou o puxador.
Bateu na porta com um punho, enquanto com a outra mão procurava as chaves dentro do bolso. Lembrou-se de que o raio da fechadura de segurança não tinha sido devidamente
montada. Era preciso puxar a porta para si, para conseguir abri-la. Na sua ansiedade, não conseguia dar o jeito devido. Teve de dar três voltas à chave antes de
soltar a segurança. Depois a outra chave, para a fechadura normal. Por favor...
Ela estava de joelhos, agarrada ao fio. Este estava a estrangulála. Ouvia Sean a bater à porta, a chamar por ela. Tão perto, tão perto. Os seus olhos abriram-se
mais, à medida que lhe faltava a respiração. Rolavam sobre ela ondas de escuridão. "Lisa... Lisa... eu tentei."
Não puxes. Inclina-te para trás. Inclina-te para trás, estou a dizer-te.
Num esforço final para salvar a vida, Caroline forçou-se para trás, a fazer deslizar o corpo em direcção a Jimmy em vez de se afastar dele. Por momentos, a pressão
na garganta afrouxou. Conseguiu respirar um pouco, antes que o fio recomeçasse a apertá-la.
Jimmy não queria ouvir as pancadas na porta nem os gritos. Nada
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mais importava no mundo senão matar aquela mulher que tinha arruinado a sua carreira. Nada mais.
A chave rodou na fechadura. Sean abriu a porta de rompante. O seu olhar caiu sobre o espelho por cima do sofá e sentiu que o sangue lhe fugia do rosto.
Os olhos dela chamejavam, desorbitados, tinha a boca aberta, as palmas das mãos estendidas, as unhas como garras. Havia uma volumosa figura, vestindo um fato de
treino, inclinada sobre ela, estrangulando-a com um fio. Por momentos, Sean ficou paralisado, incapaz de se mover. Nessa altura, o intruso ergueu o olhar e os olhos
de ambos cruzaram-se no espelho. E Sean viu, naquela fracção de segundo, ainda incapaz de se mover, a expressão horrorizada que transtornou o rosto do outro homem,
e viu-o largar o fio e tapar o rosto com as mãos.
Afasta-te de mim! gritou Jimmy. Não te aproximes! Vai-te embora.
Sean voltou-se. Caroline estava caída no chão, arrancando o fio que a sufocava. Sean mergulhou pela sala e caiu sobre o homem que a tinha estado a atacar. A força
do golpe lançou Jimmy contra a janela. O som dos vidros estilhaçados misturou-se com os seus gritos e o gemido das sirenes, quando os carros-patrulha travaram diante
da casa.
Caroline sentiu mãos que lhe arrancavam a corda do pescoço. Ouviu um gemido fraco que lhe saía da garganta. Depois a corda soltou-se e o ar penetrou-lhe nos pulmões.
A escuridão, uma doce e bemvinda escuridão envolveu-a.
Quando acordou, estava estendida no sofá, com uma compressa gelada em volta do pescoço. Sean estava ao seu lado, dando-lhe palmadinhas nas mãos. A sala estava cheia
de polícias.
Jimmy? a sua voz soava rouca como um grasnido.
Já o levaram. Oh, minha querida. Sean abraçou-a, apertando-a contra si, encostando-lhe a cabeça ao peito, acariciando-lhe os cabelos.
Por que é que ele começou a gritar? sussurrou ela. Que sucedeu? Mais uns segundos, e eu teria morrido.
Ele viu a mesma coisa que eu vi. Tu estavas reflectida no espelho por cima do sofá. Ele está completamente louco. Pensou que estava a ver Lisa. Julgou que ela vinha
vingar-se.
Sean não a quis deixar. Depois da saída da polícia, estendeu-se ao
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lado dela no espaçoso sofá, puxou a manta para cima de ambos e abraçou-se a ela.
Tenta dormir um pouco. Segura nos seus braços, totalmente exausta, conseguiu adormecer.
Ele acordou-a às 6:30.
É melhor começares a preparar-te disse. Se te sentes bem, eu vou para casa tomar um duche e vestir-me. O sol invadia a sala.
Cinco anos antes, naquela manhã, ela tinha entrado no quarto de Lisa e tinha-a encontrado. Naquela manhã, tinha acordado nos braços de Sean. Ergueu as mãos e colocou-as
em volta do rosto dele, adorando a barba que lhe despontava nas faces.
Estou bem. De verdade.
Depois de Sean sair, dirigiu-se ao quarto. Olhou deliberadamente para a cama, recordando-se do que tinha sentido ao abrir os olhos e ao ver Jimmy Cleary. Tomou um
duche, deixando a água quente correr durante longos minutos sobre o corpo e os cabelos, lavando todos os vestígios da presença dele. Vestiu um fato de casaco e calças
cor de caqui e colocou um cinto entrançado em volta da cintura. Enquanto escovava o cabelo, reparou no vergão roxo-avermelhado em volta do pescoço. Voltou-se rapidamente.
Era como se o tempo estivesse suspenso, à espera que ela fizesse o que tinha de ser feito. Fez a mala e colocou-a, com a sua carteira, perto da porta. E depois fez
o que tinha de fazer.
Ajoelhou-se no chão, tal como tinha estado ajoelhada enquanto Jimmy Cleary tentava estrangulá-la. Arqueou o corpo para trás e olhou para o espelho. Exactamente como
esperava. O fundo do espelho ficava menos de cinco centímetros acima dos seus cabelos. Não havia qualquer hipótese de se ter reflectido nele. Jimmy tinha razão:
tinha visto Lisa.
Lisa, Lisa, obrigada sussurrou. Não sentiu qualquer resposta. Lisa tinha partido, como Caroline já sabia. Pela última vez, passou-lhe pela mente a ideia de que tinha
sido a causa da morte de Lisa, mas conseguiu vencê-la. Tinh a sido um acto do destino, e não iria insultar a memória de Lisa pensando mais nisso. Pôs-se de pé e
viu-se reflectida no espelho. Ternamente, levou a ponta dos dedos aos lábios e soprou um beijo. Adeus. Adoro-te disse em voz alta.
Ouviu um carro parar na rua. O carro de Sean. Caroline correu para a porta, abriu-a, colocou no exterior a mala e a carteira, e depois pegou no saco de plástico
que envolvia o seu vestido de noiva e, com ele nos braços, fechou a porta atrás de si e correu ao encontro dele.
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O ANJO PERDIDO
Caía neve, naquela noite de véspera de Natal, numa torrente constante de pequenos flocos que fustigavam o ar, cobriam os ramos nus, se aglomeravam nos telhados.
Pela madrugada, a tempestade começou a abrandar e um sol precário irrompeu por entre as nuvens.
Às seis horas, Susan Ahearn saiu da cama, ligou o termostato e fez café. Tremendo de frio, envolveu a chávena com as mãos. Sentia sempre frio; provavelmente por
causa de todos os quilos que tinha perdido desde que Jamie desaparecera.
Os seus cinquenta e três quilos não chegavam para cobrir um metro e setenta de altura; os seus olhos, do mesmo verde-azulado dos de Jamie, pareciam grandes de mais
para o seu rosto; os malares tinham-se tornado salientes; até mesmo o seu cabelo castanho-claro tinha adquirido um tom mais escuro, que acentuava o tom pálido e
o ar magoado que agora apresentava.
Sentia-se infinitamente mais velha que os seus 28 anos; três meses antes, tinha passado o dia do seu aniversário a seguir mais uma pista inútil. A criança descoberta
no Wisconsin, em casa de pais adoptivos, não era Jamie. Correu a meter-se de novo entre os cobertores, enquanto o ar quente silvava e sussurrava, invadindo a casa
isolada, a vinte e duas milhas de Chicago.
O quarto tinha um aspecto curiosamente inacabado. Não havia quadros nas paredes, nem cortinados nas janelas, nem alcatifa ou carpetes no soalho de pinho. Havia caixotes
fechados, empilhados ao acaso, num canto junto do roupeiro. Jamie tinha desaparecido pouco antes de saírem daquela casa.
Tinha sido uma longa noite. Tinha passado acordada a maior parte dela, tentando vencer o medo que era o seu companheiro de todos os momentos. E se nunca mais encontrasse
Jamie? E se Jamie fosse mais uma daquelas crianças que simplesmente desaparecem? Para afugentar o vazio da casa, o gemido desolado do vento, o bater das janelas,
Susan começou a fazer de conta.
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És muito madrugadora disse.
Imaginou Jamie, com a sua camisa de noite de flanela vermelha e branca, a atravessar o quarto, descalça, e a trepar para a cama, deitando-se ao seu lado.
Tens os pés gelados...
Eu sei. A avó ia dizer que eu podia morrer. A avó diz sempre isso. Tu dizes que a avó é mórbida. Conta-me a história do Natal.
Não me venhas dizer o que diz a avó. Ela não tem grande sentido de humor. Os seus braços em volta de Jamie. Ajeitou os cobertores em volta dela. E agora vamos falar
de Nova Iorque na véspera de Natal. Depois de atravessarmos o Central Park num fiacre puxado por cavalos, vamos almoçar no Plaza. É um hotel muito grande e muito
bonito. E do outro lado da rua...
Vamos ver a loja de brinquedos...
A loja de brinquedos mais famosa do mundo. Chama-se F A O Schwarz. Tem comboios, e bonecas, e fantoches, e livros, e tudo.
Eu posso escolher três presentes...
Pensava que eram dois. Está bem, podem ser três. E depois vamos visitar o Menino Jesus em St. Pat...
O nome é Catedral de St. Patrick, mas nós, os irlandeses, somos mais amistosos. Toda a gente lhe chama St. Pat...
Fala-me da árvore... e das montras que parecem o país das fadas...
Susan conseguiu engolir o resto do café, apesar do nó que sentia na garganta. O telefone começou a tocar e ela tentou dominar os loucos batimentos de esperança do
seu coração, ao correr para ele. Jamie! Fazei que seja Jamie!
Era a sua mãe, a telefonar da Florida. O tom triste que tinha passado a ser o tom normal da voz da mãe, desde o desaparecimento de Jamie, era especialmente nítido
naquele dia. Determinadamente, Susan forçou a sua voz a soar positiva.
Não, mãe. Nem uma palavra. É claro que eu lhe teria telefonado... É difícil para todos nós. Não, tenho a certeza de que quero ficar aqui. Não se esqueça de que ela
telefonou uma vez... Pelo amor de Deus, mãe, não não acho que ela esteja morta. Tenha dó. Jeff é o pai dela. À sua maneira gosta muito dela...
Desligou a chorar, mordendo o lábio para não desatar a soluçar histericamente, libertando todos os seus demónios. Nem mesmo a mãe sabia quanto ela estava a sofrer.
Até agora, tinham sido pronunciadas seis sentenças para a prisão
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de Jeff. O empresário com quem julgava ter casado era, na realidade, um ladrão de jóias internacional. A razão daquela casa afastada, naquela região distante, era
proporcionar-lhe um bom esconderijo. Tinha sabido a verdade na Primavera anterior, quando os agentes do FBI tinham vindo prender Jeff, pouco depois de ele ter partido
numa das suas "viagens de negócios". Nunca tinha voltado, de modo que ela pusera a casa à venda. Estava a fazer preparativos para se mudar para Nova Iorque os quatro
anos que lá tinha passado na universidade tinham sido os mais felizes da sua vida. Depois, poucas semanas após o seu desaparecimento, Jeff tinha ido buscar Jamie
à escola infantil e tinha-a levado consigo. Isso tinha ocorrido sete meses antes.
No caminho para o trabalho, Susan não conseguia livrar-se do medo que o telefonema da mãe tinha desencadeado. Pensas que Jamie está morta? Jeff era absolutamente
irresponsável. Quando Jamie tinha 6 meses, tinha-a deixado sozinha em casa para ir comprar cigarros. Quando ela tinha 2 anos, não tinha reparado que ela estava dentro
de água fora de pé. Tinha sido salva por um salva-vidas. Como é que ele poderia tomar bem conta dela? Por que é que ele a tinha querido?
O escritório de venda de imobiliário estava todo enfeitado com decorações de Natal. Constituíam um grupo simpático, as dezasseis pessoas com quem ela trabalhava,
e Susan apreciava os olhares de esperança que lhe dirigiam todas as manhãs. Todos eles queriam ouvir boas notícias sobre Jamie. Naquele dia, ninguém estava muito
interessado em trabalhar, mas ela conservou-se ocupada, a rever documentos para futuras vendas. Tudo aquilo em que pegava lhe trazia recordações. Os Wilke um casal
que comprava a sua primeira casa porque esperava um bebé; os Conway, a vender a sua grande casa para ficarem mais perto dos netos. Quando acabou de falar com Mrs.
Conway, sentiu que as lágrimas, já habituais, lhe enchiam os olhos, e voltou a cabeça.
Joan Rogers, a agente da secretária do lado, estava a ler uma revista. Com uma punhalada de dor, leu o título do artigo: "As Crianças São Sempre Anjos no Dia de
Natal." A página estava semeada de caprichosas fotografias de crianças com túnicas brancas e halos.
Susan olhou para as fotografias e, de súbito, estendeu a mão e arrancou freneticamente a revista das mãos de Joan. O anjo do canto superior direito. Uma menina.
Com um cabelo tão louro que era quase branco. Mas os olhos. A boca. A curva arredondada do queixo.
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Jamie sussurrou Susan. Abriu a gaveta da secretária, procurou desastradamente entre as coisas que a enchiam, e descobriu um marcador. Com os dedos trementes, cobriu
o cabelo claro da criança da fotografia com a tinta castanha do marcador e viu a imagem do anjo tornar-se igual à fotografia emoldurada sobre a sua secretária.
Jamie olhou pensativamente pela janela do quarto para o frio cenário de Inverno, lá fora, tentando não escutar a discussão.
O papá e Tina estavam outra vez zangados. Alguém do prédio tinha mostrado ao papá a fotografia dela na revista. O papá gritava:
Que é que tu andas a fazer? Ainda acabamos todos na prisão. Quantas outras vezes é que ela posou?
Tinham vindo para Nova Iorque no final do Verão, e o papá tinha começado a fazer uma data de viagens sem elas. Tina disse que andava aborrecida e que gostava de
trabalhar um pouco como modelo. Mas a mulher com quem ela tinha ido falar tinha dito:
Não preciso do seu tipo, mas podíamos usar a menina.
Tinha sido fácil posar para a fotografia do anjo. Tinham-lhe pedido que pensasse em qualquer coisa boa, por isso ela tinha pensado na Véspera de Natal e nos planos
que ela e a mamã tinham feito para a passar nesse ano em Nova Iorque. Agora ela estava em Nova Iorque e encontrava-se perto de todos aqueles lugares onde a mamã
e ela tinham planeado ir mas não era a mesma coisa com o papá e Tina.
Perguntei-te quantas vezes posou ela! berrava o papá.
Duas ou três vezes gritou Tina.
Era mentira. Tinha ido ao estúdio montes de vezes, quando o papá não estava. Mas quando ele estava em Nova Iorque, Tina "desmarcava-a".
Agora Tina dizia:
Que é que queres que eu faça enquanto estás fora? Ler o Dr. Seuss e jogar às cartas?
Na rua, lá em baixo, as pessoas passavam apressadas, como se tivessem frio. Tinha nevado durante a noite, mas a neve derretia-se por baixo das rodas dos carros e
transformava-se em lama suja. Só pelo canto do olho conseguia ver o Central Park, onde a neve tinha o aspecto bonito que devia ter.
Jamie engoliu em seco. Sentia um nó na garganta. Sabia que o Menino Jesus vinha na noite de Natal. Todos os dias tinha rezado para que, nesse ano, quando Deus trouxesse
o Menino Jesus, lhe trouxesse
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também a sua mamã. Mas o papá tinha-lhe dito que a mamã ainda estava muito doente. E naquela noite iam meter-se outra vez num avião e partir para outro lugar qualquer.
Parecia que se chamava bananas. Não. Ba-ha-mas.
Jamie.
A voz de Tina soava sempre zangada, quando a chamava. Sabia que Tina não gostava dela. Estava sempre a dizer ao papá:
A miúda é tua.
O papá estava sentado à mesa, de roupão de banho. A revista com a sua fotografia tinha sido atirada para o chão e ele estava a ler o jornal. Geralmente dizia-lhe:
Bom dia, Princesa mas naquele dia nem sequer deu por ela, quando o foi beijar. O papá não era sempre mau para ela. A única vez que lhe tinha dado uma bofetada, tinha
sido quando ela tentara telefonar à^mamã. Tinha acabado de ouvir a voz da mamã ao telefone, a dizer "É favor deixar uma mensagem", quando o papá a tinha apanhado.
Conseguira dizer: "As melhoras, mamã. Tenho saudades tuas", antes que o papá atirasse o telefone ao chão e lhe batesse. Depois disso, ele fechava o telefone, quando
ele e Tina saíam. O papá tinha dito que a mamã estava tão doente que podia ficar pior só por falar. Mas a mamã não lhe tinha parecido doente, quando dissera "É favor
deixar uma mensagem".
Jamie sentou-se à mesa, onde a aguardavam os corn-flakes e o sumo de laranja. Era sempre o que Tina punha na mesa para ela.
O papá tinha a testa franzida e parecia furioso quando leu em voz alta: "Os criados pensam que o mais baixo dos dois ladrões pudesse ser uma mulher." Depois o papá
disse:
Eu avisei-te de que aquele disfarce te traía.
Tina inclinou-se sobre o ombro dele. Tinha o roupão aberto e parecia não caber na camisa de dormir. Tinha os cabelos todos despenteados e soprava anéis de fumo,
enquanto lia: "Pode tratar-se de umtrabalho feito por alguém da casa." Que mais queres?
Seja como for, vamo-nos embora disse o papá. Já trabalhámos de mais nesta cidade.
Jamie pensou em todos os apartamentos que tinham andado a ver.
Temos de ir para as ba-ha-mas?perguntou. Parecia-lhe tão longe. Cada vez mais longe da mamã. Gostei do apartamento que vimos ontem insistiu. Brincava com os cereais,
fazendo rodar a colher em volta deles. Lembras-te que disseste àquela senhora que achavas que era mesmo aquilo que procuravas?
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Tina riu-se.
Bem, de certo modo era, garota.
Está calada.O papá parecia muito zangado. Jamie recordou-se de como, na véspera, a mulher lhes tinha mostrado o apartamento, e tinha dito que eles faziam uma bonita
família. O papá e Tina vestiam os fatos que costumavam usar quando iam ver apartamentos, e o cabelo de Tina estava preso atrás, num rolo, e Tina quase não usava
maquilhagem.
Depois do pequeno-almoço, Tina e o papá foram para o quarto deles. Jamie decidiu vestir as calças roxas e a camisa de mangas compridas, às riscas, que tinha vestidas
no dia em que o papá a tinha ido buscar à escola e lhe tinha dito que a mamã estava doente e tinha de a levar para casa. Embora já lhe estivessem apertadas, gostava
mais delas que das suas roupas novas. Lembrava-se de quando a mamã lhas tinha comprado.
Penteou-se; ficava sempre surpreendida ao ver o aspecto esquisito que o seu cabelo tinha agora. Estava exactamente da cor do cabelo de Tina, e quando saíam o papá
obrigava-a a chamar "Mãe" a Tina. Sabia que Tina não era sua mãe, mas sempre tinha chamado mamã à mamã, por isso não se importava muito. Era um nome diferente para
uma pessoa diferente.
Quando voltou à sala, o papá e Tina estavam vestidos para sair. O papá tinha na mão uma pasta que parecia pesada.
Não vou sentir pena de sair daqui esta noite dizia ele. Jamie também não gostava daquela casa. Sabia que era bom viver apenas a um quarteirão do Central Park, mas
aquele apartamento era escuro e desarrumado, as mobílias eram velhas e a carpete tinha um rasgão. O papá estava sempre a dizer às pessoas que lhe mostravam os seus
apartamentos como estava ansioso por encontrar uma residência realmente boa em Nova Iorque.
Tina e eu vamos sairdisse-lhe o papá. Vou fechar as duas fechaduras, para ficares segura. Vai ler ou ver televisão. Depois a Tina leva-te à rua para comprares roupas
de Verão para as Bahamas, e podes comprar uns presentes de Natal. Não vai ser bom?
Jamie conseguiu sorrir-lhe, enquanto os seus olhos se desviavam para o telefone. O papá tinha-se esquecido de lhe pôr o cadeado. Quando eles saíssem, ia telefonar
outra vez à mamã. Queria falar do Natal com a mamã. O papá não ia saber.
Esperou alguns minutos, para ter a certeza de que eles já se tinham ido embora. Depois levantou o auscultador. Tinha repetido o
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número todas as noites, antes de adormecer, para não se esquecer dele. Até sabia que era preciso marcar 1 primeiro. Dizendo os números em voz alta, foi marcando:
"Um... três um dois-cinco quatro..." A chave rodou na fechadura. Ouviu o papá soltar uma imprecação e deixou cair o telefone antes mesmo que ele lho arrancasse das
mãos. Ele levou o auscultador ao ouvido, ouviu o som de ligação e depois pousou-o de novo e colocou o cadeado, antes de dizer:
Se não fosse Véspera de Natal, desancava-te.
Tinha saído de novo. Jamie sentou-se no grande cadeirão, envolveu as pernas com os braços e encostou a cabeça aos joelhos. Sabia que já era muito crescida para chorar.
Tinha quase 4 anos e meio. Mesmo assim, teve de morder o lábio para o fazer parar de tremer. Mas, passado um minuto, já estava capaz de fazer de conta.
A mamã estava com ela e iam fazer a sua Véspera de Natal especial. Primeiro iam andar de fiacre no Central Park. As campainhas dos cavalos iam tilintar. Depois iam
almoçar no grande hotel. Preocupada, reparou que não conseguia lembrar-se do nome do hotel. Franziu a testa, esforçando-se por o fazer voltar. Podia ver o hotel
na sua mente. Tinha feito o papá mostrar-lhe onde ficava. Já se lembrava. O Plaza. Depois do almoço, atravessariam a rua e iriam à loja de brinquedos. FAO Swarzzz...
Escolheria dois brinquedos. "Não", pensou Jamie, "a mamã disse que eu podia escolher três brinquedos."
Descemos a Quinta Avenida para visitar o Menino Jesus e depois...
Tina dizia que ela era uma chata, sempre a perguntar onde ficava tudo. Mas agora sabia exactamente como ir dali até à Quinta Avenida e como encontrar todos os lugares
que ela e a mamã tinham planeado ver juntas. A mamã tinha andado a estudar em Nova Iorque. Mas isso tinha sido muito tempo antes... talvez a mamã se tivesse esquecido
de como encontrar os lugares, mas Jamie sabia. De olhos fechados, deu a mão à mamã e disse:
A árvore grande e bonita fica mesmo além...
O número de telefone da revista vinha na capa. Os dedos de Susan pareciam voar sobre as teclas: 212... Sem reparar que os outros se reuniam em volta da sua secretária,
aguardou enquanto o telefone tocava. "Por favor, fazei que eles não estejam fechados hoje, por favor."
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A telefonista que finamente a atendeu esforçou-se por ser prestável.
Sinto muito, mas não está quase ninguém aqui. Uma criança modelo? Essa informação deverá estar na secção de contabilidade, que está fechada. Importa-se de telefonar
no dia 26?
Numa torrente de palavras, Susan falou-lhe de Jamie.
Tem mesmo que me ajudar. Como é que pagam a uma criança que posa? Não têm um endereço?
A telefonista interrompeu-a.
Um momento. Tem de haver uma maneira de se saber. Passaram alguns minutos. Susan agarrava-se ao auscultador,
mal se apercebendo de que alguém a agarrava pelos ombros. Joan, querida Joan, que por acaso estava a ler aquele artigo. Quando a telefonista regressou, vinha triunfante.
Consegui apanhar um dos editores em casa. A criança que utilizámos para aquele artigo veio da Agência de Modelos Lehman. Vou dar-lhe o número.
Puseram Susan em contacto com Dora Lehman. Em fundo, ouviam-se os sons de uma festa de Natal. A voz estridente mas amistosa e Lehman disse:
Claro, a Jamie é uma das minhas miúdas. Claro, mora aqui. Fez um belo trabalho na semana passada.
Ela está em Nova Iorque!gritou Susan. Ouviu vagamente os gritos de alegria que soaram por detrás dela.
Dora Lehman não tinha o endereço de Jamie.
Essa tal Tina costumava vir aqui buscar os cheques de Jamie. Mas tenho um número de telefone. Era para ser utilizado apenas se surgisse um trabalho muito importante.
Tina disse-me que fingisse que me tinha enganado no número, se o marido atendesse.
Susan anotou o número, louca de impaciência, e conseguiu não desligar quando a Lehman insistia com ela para levar lá a Jamie quando fosse a Nova Iorque.
Joan impediu-a de ligar.
Só vais alertá-los. Temos de falar com a polícia de Nova Iorque. Eles localizarão o endereço. Tu mete-te já num avião.
Ao fim de tantos meses de espera, poder fazer qualquer coisa. Alguém procurou os horários dos aviões. O próximo que ela poderia apanhar partia de O'Hare ao meio-dia.
Mas quando tentou fazer a reserva, a empregada quase riu.
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Não há um único lugar vago nos aviões que saem hoje de Chicago disse. As suas súplicas levaram-na a um vicepresidente.
Venha até cá disse-lhe ele. Vamos metê-la nesse avião, nem que seja preciso bater no piloto.
Joan acabou de falar com a polícia de Nova Iorque exactamente na altura em que ela desligou o telefone. Susan levou alguns momentos a perceber que o rosto de Joan
estava sombrio, que a excitação tinha desaparecido dos seus olhos.
Jeff acaba de ser preso por um roubo que ele e aquela mulher... Tina... com quem ele estava a viver cometeram na noite passada. Uma vizinha pensa ter visto Jamie
e a mulher chegarem num táxi quando ele estava a entrar para o carro da polícia. Se Tina sabe que Jeff está preso, sabe Deus para onde ela vai desaparecer com a
Jamie.
O papá e a Tina não estiveram ausentes muito tempo. Jamie sabia ver as horas e ambos os ponteiros estavam sobre o onze quando eles voltaram. Tina disse-lhe que vestisse
o casaco porque iam ao Bloomingdale.
Não era divertido fazer compras com Tina. Jamie reparou que até a senhora que lhes vendeu as roupas ficou surpreendida por Tina não parecer interessar-se pelo que
comprava. Disse apenas:
Oh, ela precisa de uns fatos de banho, uns calções e umas blusas. Isso serve para ela.
Depois foram à secção de brinquedos.
O teu pai disse que podias escolher umas coisas disse-lhe Tina.
Não lhe apetecia comprar nada. As bonecas, com os seus olhos brilhantes e vestidos cheios de folhos, não conseguiam ser tão bonitas como a ratinha Minnie de trapos
com que dormia em casa. Mas Tina ficou tão zangada quando ela disse que não queria levar coisa alguma, que acabou por apontar para uns livros e disse que os levava.
Tomaram um táxi para o apartamento, mas, quando o motorista parou junto ao passeio, Tina começou a agir de maneira estranha. Havia dois carros da polícia estacionados
à frente e Jamie viu o papá sair do prédio entre dois polícias. Começou a apontar para ele, mas Tina deu-lhe um beliscão num joelho e disse ao motorista:
Esqueci-me de uma coisa. Leve-nos outra vez ao Bloomingdale, por favor.
Jamie encolheu-se no banco. O papá tinha falado da polícia,
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naquela manhã. O papá estaria metido em sarilhos? Não ousou perguntar a Tina. A boca de Tina tinha aquele ar mau, e os dedos de que se tinha servido para lhe beliscar
o joelho continuavam no ar, prontos a atacar de novo.
De regresso ao Bloomingdale, Tina fez apenas compras para ela própria. Comprou uma mala, um vestido, um casaco e um chapéu, e uns grandes óculos escuros. Depois
de pagar, Tina retirou todas as etiquetas e disse à vendedora que tinha decidido levar as roupas novas já vestidas.
Quando saiu do Bloomingdale, parecia uma pessoa completamente diferente. O seu casaco branco e as calças de cabedal estavam dentro da mala. O casaco novo era preto
como aquele que ela usava quando iam procurar apartamentos; tinha coberto todo o cabelo e os óculos escuros eram tão grandes que mal se lhe via a cara.
Jamie estava cheia de fome. Durante todo o dia, só tinha comido os corn-flakes e o sumo de laranja. A rua estava apinhada. Passavam pessoas carregadas de embrulhos.
Algumas pareciam preocupadas e fatigadas. Outras tinham um ar feliz. Havia um Pai Natal na esquina e as pessoas deitavam dinheiro na caixa junto dele.
Perto da esquina, viu um carrinho de cachorros quentes e sodas, com um guarda-sol por cima. Timidamente, Jamie puxou pela manga de Tina.
Eu podia... Importas-te que eu... Por um motivo qualquer, sentia um nó na garganta. Estava cheia de fome. Não sabia por que é que o papá estava com os polícias e
sabia que Tina não gostava dela.
Tina tinha estado a tentar chamar um táxi.
És uma chata disse. Está bem, mas despacha-te.
Jamie pediu um cachorro quente com mostarda e uma Coca-Cola. O táxi chegou antes que o homem pusesse a mostarda, e Tina disse:
Despacha-te! Deixa lá a mostarda.
No táxi, Jamie esforçou-se por comer com cuidado, para não deixar cair migalhas. O motorista voltou-se para trás e disse a Tina:
Eu sei que a miúda não sabe ler. E a senhora, sabe?
Oh, desculpe, não reparei. Tina apontou para o letreiro. Diz ali que não se pode comer neste táxi. Espera até chegarmos à estação.
A estação era um edifício muito, muito grande, cheio de gente. Meteram-se numa longa bicha. Tina estava sempre a olhar em volta, como
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se estivesse com medo de alguma coisa. Quando chegaram ao balcão, perguntou pelas camionetas para Boston. O homem disse que havia uma às duas e vinte que elas podiam
apanhar. Nessa altura, um polícia começou a dirigir-se para elas. Tina voltou a cara para o lado e disse, entre dentes:
Valha-me Deus.
Jamie perguntou a si mesma se o polícia as iria meter num carro, como ao papá. Mas ele nem se aproximou delas. Começou a falar com dois homens que estavam a discutir.
A mamã sempre lhe tinha dito que os polícias eram amigos dela, mas sabia que em Nova Iorque devia ser diferente, porque o papá e a Tina estavam sempre com medo deles.
Tina levou-a para um sítio onde havia pessoas sentadas em filas de cadeiras. Havia uma senhora idosa que dormia com a mão em cima da mala. Tina disse:
Agora, Jamie, esperas aqui por mim. Tenho de ir fazer uma coisa, e pode levar algum tempo. Acaba o teu cachorro e a tua Coca-Cola e não fales com ninguém. Se alguém
falar contigo, diz que estás com aquela senhora.
Jamie sentiu-se satisfeita por se sentar e ter possibilidade de comer. O cachorro estava frio e preferia que tivesse mostarda, mas, mesmo assim, soube-lhe bem. Viu
Tina subir na escada rolante.
Esperou durante muito, muito tempo. Ao fim de algum tempo, começou a sentir as pálpebras pesadas e acabou por adormecer. Quando acordou, havia muita gente a passar
apressada, como se estivesse atrasada para qualquer coisa. A senhora idosa que estava sentada ao seu lado estava a abaná-la:
Estás sozinha? perguntou, preocupada.
Não, a Tina deve estar a chegar. Tinha dificuldade em falar, ainda estava com muito sono.
Estás aqui há muito tempo?
Jamie não tinha a certeza, por isso disse outra vez:
A Tina deve estar a chegar.
Então está bem. Tenho de apanhar a minha camioneta. Não fales com ninguém até a Tina chegar. A senhora idosa pegou na mala como se estivesse muito pesada e começou
a afastar-se.
Jamie tinha de ir à casa de banho. Tina ficaria furiosa se ela não esperasse ali, mas tinha mesmo de ir à casa de banho. Não sabia onde ficava a casa de banho e
gostava de saber como havia de encontrá-la,
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se não podia perguntar a ninguém. Nessa altura, ouviu a mulher que estava na cadeira atrás da dela dizer à amiga:
Vamos ao toilette antes de nos irmos embora.
Jamie sabia que aquilo queria dizer que iam à casa de banho. Tina dizia sempre "toilette". Pegou no embrulho com as roupas novas e os livros e seguiu-as tão de perto
que parecia que estava com elas.
Na casa de banho havia tanta gente, e muitas crianças como ela, que era fácil entrar e sair sem que lhe prestassem atenção. Lavou as mãos e saiu da suja casa de
banho logo que pôde. Reparou pela primeira vez no grande relógio de parede. O ponteiro pequeno estava sobre o quatro. O grande estava sobre o um. Isso queria dizer
que passavam cinco minutos das quatro. O homem do balcão tinha dito a Tina que a próxima camioneta saía às duas e vinte.
Jamie deteve-se, compreendendo que Tina nunca tinha pensado em levá-la consigo na camioneta... Tina não ia voltar.
Jamie sabia que, se ficasse ali, acabaria por vir um polícia falar com ela. Não sabia para onde ir. O papá não estava em casa e a Tina tinha-se ido embora. Talvez
se ela telefonasse à mamã, mesmo que a mamã estivesse doente, ela mandasse alguém. Mas não tinha dinheiro. Gostava tanto de ver a mamã. Sabia que ia começar a chorar.
Era Véspera de Natal, e ela e a mamã deveriam estar juntas.
As portas grandes; ao fundo da estação havia gente que entrava e saía por elas. Devia ser a saída para a rua. A caixa era pesada. A guita cortava-lhe os dedos, apesar
das luvas. Sabia o que podia fazer. O apartamento ficava entre a Rua Cinquenta e Oito e a Sétima Avenida. Era esse o endereço que o papá e a Tina davam sempre aos
motoristas dos táxis. Se conseguisse encontrar o apartamento, poderia andar um quarteirão mais até ao Central Park. Aí já sabia onde ficava o Plaza. Podia fazer
o jogo do faz-de-conta. Ia fingir que a mamã estava com ela e que tinham andado de carruagem pelo parque e ido almoçar ao Plaza. Depois iria à loja de brinquedos
em frente ao Plaza, tal como ela e a mamã tinham planeado. Desceria a Quinta Avenida e iria visitar o Menino Jesus e ver a grande árvore e as montras da Lord and
Taylor.
Estava na rua. Começava a escurecer e o vento fustigava-lhe as faces. Sentia muito frio, sem chapéu. Um homem de camisola cinzenta e avental branco vendia jornais.
Não queria que ele percebesse que ela estava sozinha, por isso apontou para uma mullher com um bebé ao colo que se esforçava por abrir um carrinho.
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Temos de ir para a esquina de Rua Cinquenta e Oito com a Sétima Avenida disse ao homem.
Ainda têm de andar muito disse ele. Apontou com a mão. São dezoito quarteirões naquela direcção e um quarteirão naquela.
Jamie esperou até que ele estivesse a dar o troco a outra pessoa e depois atravessou a rua a correr e começou a subir a Oitava Avenida, uma figurinha minúscula,
com um anorak cor-de-rosa e os cabelos quase brancos a emoldurar-lhe o rosto.
O avião partiu atrasado e levou uma hora e quarenta minutos a chegar ao Aeroporto de La Guardia. Eram três horas quando aterrou. Susan atravessou o terminal a correr,
tentando não ver as alegres boas-vindas que os outros passageiros recebiam.
Enquanto o táxi serpenteava por entre o trânsito da Ponte da Rua Cinquenta e Nove, tentou não pensar que era aquele o dia que ela e Jamie tencionavam passar em Nova
Iorque. Estava um dia frio e nublado e o motorista disse-lhe que provavelmente iria nevar de novo. Tinha a pala contra o sol coberta com fotografias da família.
Vou guardar o carro, depois desta viagem, e vou para casa, para junto dos miúdos. Tem filhos?
Na esquadra, havia um tenente Garrigan à sua espera, no gabinete.
Encontrou a Jamie?
Não, mas posso garantir-lhe que estamos a cobrir todos os aeroportos e estações de camionagem. Mostrou-lhe um cartaz com uma fotografia. Este é o seu ex-marido,
Jeff Randall?
É assim que ele se chama agora?
Em Nova Iorque é Jeff Randall. Em Boston, Washington, Chicago e numa dúzia de outras cidades, tem outro nome. Parece que ele e a namorada se têm feito passar por
pessoas abastadas, de fora da cidade, em busca de um apartamento em Nova Iorque. O facto de levarem a menina com eles, tornava tudo mais convincente. Ele tinha com
ele bilhetes de avião tencionavam fugir para Nassau esta tarde.
Susan viu compaixão nos olhos dele.
Posso falar com Jeff? perguntou.
Ele não tinha mudado durante aquele ano. O mesmo cabelo castanho ondulado, os mesmos olhos azuis inocentes, o mesmo sorriso franco, o mesmo jeito preocupado e protector.
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Susan, que bom ver-te. Estás com muito bom aspecto. Mais magra, mas fica-te muito bem.
Era como se fossem velhos amigos que se encontravam por acaso.
Para onde é que essa mulher teria levado a Jamie? perguntou Susan. Apertou as mãos uma contra a outra, receando agredi-lo.
De que é que estás a falar?
Estavam sentados um na frente do outro, no pequeno gabinete apertado. O ar despreocupado de Jeff dava a impressão de que as algemas nos seus pulsos não passavam
de uma miragem. Era como se os polícias de ambos os lados deles fossem estátuas, de tal modo ignorava a sua presença. O tenente continuava sentado à secretária,
já sem compaixão nos olhos.
Já vai passar suficientes anos na prisão, sem precisar de lhes juntar uma acusação de rapto disse. Penso que a sua ex-mulher não faria essa acusação, se a sua filha
for encontrada imediatamente.
Ele não quis responder a quaisquer perguntas, nem mesmo quando Susan se descontrolou e lhe gritou:
Eu mato-te, se lhe acontecer alguma coisa. Teve de morder o punho, para conter os soluços desgarrados, quando levaram Jeff para dentro.
O tenente levou-a para uma sala de espera. Tinha um banco de cabedal e algumas revistas velhas. Alguém lhe trouxe café. Susan tentou rezar, mas não conseguia encontrar
as palavras. Apenas um pensamento lhe ecoava na mente, insistentemente. "Quero a Jamie. Quero a Jamie."
Às quatro e dez, o tenente Garrigan disse-lhe que um empregado da Estação de Camionagem se recordava de que uma mulher com uma criança, parecida com a descrição
de Jamie, tinha comprado bilhetes para a camioneta das duas e vinte para Boston. Estavam a telegrafar para que confirmassem isso numa das paragens para descanso.
Às quatro e meia tinha sido concluído que elas não iam na camioneta. A um quarto para as cinco, Tina foi presa no Aeroporto de Newark, quando tentava apanhar um
avião para Los Angeles.
O tenente Garrigan tentou mostrar-se optimista, ao contar a Susan o que tinham sabido.
Tina deixou a Jamie sentada na sala de espera do Terminal de Canionagem. Um dos polícias de trânsito ainda está de serviço. Lembra-se de ter visto uma criança que
corresponde à descrição dela sair com duas mulheres.
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Podem tê-la levado para qualquer lado murmurou Susan. Que género de pessoas não levam logo à polícia uma criança perdida?
Há mulheres que levariam uma criança perdida primeiro para casa, para perguntarem aos maridos o que haviam de fazer disse o tenente. Acredite que é muito melhor
que isso tenha acontecido. Quer dizer que ela está segura. Nem quero pensar na Jamie a passear sozinha por Manhattan num dia como o de hoje. Há uma série de tarados
nas ruas, durante os feriados. Andam à procura de crianças que se tenham perdido dos adultos.
Devia ter notado no rosto de Susan, porque se apressou a acrescentar:
Vamos tentar fazer um apelo através da rádio e transmitir a fotografia dela no noticiário da noite. A tal Tina diz que Jamie conhece o endereço do apartamento e
o número do telefone. Temos um guarda no apartamento, para o caso de alguém telefonar. Talvez preferisse esperar lá. Fica a poucos quarteirões daqui. Levamo-la lá
num carro da polícia.
Havia um polícia jovem a ver televisão na sala. Susan percorreu o apartamento, reparando num prato com um resto de corn flakes já secos na mesa da cozinha, nos livros
para colorir empilhados ao seu lado. Um quarto mais pequeno... A cama estava por fazer, havia a marca de uma cabeça na almofada. Jamie tinha dormido ali na noite
anterior. A camisa de dormir dobrada em cima da cadeira. Pegou-lhe e encostou-a ao peito, como se Jamie pudesse materializar-se. Jamie tinha estado ali poucas horas
antes, mas não sentia a sua presença naquele quarto.
Susan sentia um aperto nos pulmões, um tremor nos lábios, a histeria a crescer dentro do seu peito. Dirigiu-se à janela, abriu-a e inspirou o ar^frio. Olhando para
baixo, podia ver o trânsito na Sétima Avenida. À esquerda, na Central Park sul, estavam alinhados os fiacres puxados por cavalos. Avista turvou-se-lhe, ao ver uma
família voltar da Sétima Avenida para a Central Park Sul. A mãe e o pai seguiam adiante. Os seus três filhos seguiam-nos, com os dois rapazes aos encontrões, a menina
mesmo atrás deles.
A Véspera de Natal. Ela e Jamie deveriam estar ali, juntas. Aquele iria ser o seu dia especial. Um pensamento súbito e irracional atravessou-lhe subitamente a mente
E se Jamie não estivesse com as tais mulheres... E se ela estivesse sozinha?
O polícia, cuja atenção se afastou imediatamente da televisão, tomou nota dos locais que ela lhe indicava.
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Vou telefonar ao tenente prometeu. Vamos passar a Quinta Avenida a pente fino, à procura dela. Susan agarrou no casaco. E eu também.
Jamie sentia os pés cansados. Tinha-se fartado de andar. A princípio tinha contado os quarteirões, mas depois tinha visto que os letreiros nas esquinas indicavam
os números. Quarenta e três, quarenta e quatro. Não gostava de andar por ali. Não havia muitas lojas com montras bonitas e as senhoras que estavam encostadas aos
prédios e aos portais vestiam-se como a Tina.
Tomava muito cuidado para andar sempre junto de pais com outras crianças. A mamã tinha-lhe falado disso.
Se alguma vez te perderes, vai sempre ter com alguém que tenha crianças. Mas ela não queria falar com aquelas pessoas. Queria brincar o jogo do faz-de-conta.
Percebeu logo quando chegou à Rua Cinquenta e Oito. Conhecia as lojas. Aquele era o sítio onde iam comer pizzas. Aquele era o quiosque onde o papá comprava os jornais.
O apartamento ficava naquele quarteirão.
Um homem veio ter com ela e pegou-lhe na mão. Tentou libertar-se, mas em vão.
Estás sozinha, não estás, querida? sussurrou ele.
O homem não lhe largava a mão. Sorria, mas, de certo modo, achava-o assustador. Era difícil ver-lhe os olhos, porque pareciam duas fendas. Vestia um casaco sujo
e as calças pareciam muito largas. Ela sabia que não devia dizer-lhe que estava sozinha.
Não disse rapidamente. A mamã e eu estamos com fome. Apontou para apizzaria e uma senhora que estava a comprar pizza olhou para ela e sorriu-lhe.
O homem largou-lhe a mão.
Pensei que precisavas de ajuda.
Jamie esperou até ele atravessar a rua e depois começou a correr. Quando estava três prédios mais adiante, viu um carro da polícia parar diante do apartamento. Durante
um minuto ficou com medo de que viessem buscá-la a ela também. Mas depois uma mulher saiu do carro e correu para o prédio e o carro foi-se embora. Esfregou os olhos
com as costas da mão. Só os bebés é que choravam.
Quando passou pelo prédio do apartamento, conservou a cabeça
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baixa. Não queria que alguém a visse e a fizesse parar e a levasse também para a prisão. Mas a caixa era tão pesada. Quando passou pelo prédio, deteve-se, por um
minuto, e colocou a caixa por detrás das floreiras de pedra. Talvez pudesse ficar ali durante algum tempo. De qualquer modo, mesmo que alguém a levasse, ela já não
precisava dos fatos de banho nem dos calções. Já não ia para as baha-mas.
Era muito mais fácil caminhar sem a caixa. Voltou a esquina e olhou para trás. O homem de casaco sujo vinha a segui-la. Isso assustou-a um pouco. Ficou satisfeita
por passarem algumas pessoas por ela, um pai, uma mãe e dois filhos. Chegou-se a eles. O grupo chegou à esquina e voltou à direita. Ela sabia que era aquele o seu
caminho. O Central Park ficava do outro lado da rua. Viu algumas pessoas subirem para os fiacres. Já podia começar o jogo do faz-de-conta.
Susan percorreu rapidamente a Central Park Sul, falando com todos os cocheiros dos fiacres. Os arreios dos cavalos estavam enfeitados com fitas e campainhas. Os
fiacres tinham lâmpadas vermelhas e verdes.
Os cocheiros queriam todos ajudá-la. Estudaram a fotografia de Jamie publicada na revista.
Que menina tão bonita... Parece mesmo um anjo. Todos prometeram avisar se a vissem. No Plaza, Susan falou com o porteiro, com os empregados da recepção, com a hospedeira
do Palm Court. O hall estava coberto de decorações natalícias. O restaurante Palm Court, no centro do hall, estava cheio de gente bem vestida que bebericava cocktailss,
de pessoas que tinham feito as suas últimas compras e se deliciavam, fatigadas, com um chá e sanduíches requintadas.
Susan conservava a revista aberta na fotografia de Jamie. Perguntava a toda a gente:
Viram esta criança?
Viu-se reflectida num espelho perto do elevador. A humidade tinha-lhe encaracolado os cabelos em volta da cara e sobre os ombros. O seu rosto estava muito pálido,
mas era o rosto que Jamie teria quando crescesse. Se chegasse a crescer.
Ninguém no Plaza se recordava de ter visto uma criança sozinha. Dirigiu-se em seguida ao F A O Schwarz. A loja de brinquedos estava cheia de pessoas que faziam as
suas últimas compras, agarrando
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ursos de peluche, jogos e bonecas. Dirigiu-se ao segundo andar. Uma empregada estudou cuidadosamente a fotografia.
Não tenho a certeza. Tenho estado sempre muito ocupada. Mas esteve aqui uma menina que me pediu uma ratinha Minnie de pano. O pai quis comprar-lha, mas ela disse
que não. Achei estranho. Sim, efectivamente tinha uma nítida semelhança com essa criança.
Mas estava com o pai murmurou Susan, acrescentando: Obrigada e afastou-se demasiado rapidamente para ouvir a empregada dizer que tinha pensado que o homem fosse
o pai da criança.
A empregada viu Susan chegar à escada rolante. Pensando bem, que criança deseja tão obviamente um brinquedo e não deixa o pai comprar-lho? E havia qualquer coisa
esquisita naquele homem. Ignorando uma cliente, a empregada saiu de detrás do balcão, tentando apanhar Susan. Tarde de mais Susan já tinha desaparecido.
Ver a Minnie tinha dado a Jamie vontade de chorar. Mas não podia deixar que aquele homem lhe comprasse um presente. Sabia disso. Sentia-se assustada por ele continuar
a segui-la.
No exterior da loja de brinquedos, as ruas já não estavam tão cheias, agora. Provavelmente iam todos para casa. Numa das esquinas, havia pessoas a cantar canções
de Natal. Parou a ouvi-las. Sabia que o homem que vinha a segui-la tinha parado também. As cantoras tinham bonés em vez de chapéus. Uma delas sorriu-lhe, quando
a canção terminou. Jamie sorriu-lhe também, e a mulher disse:
Não estás sozinha, pois não, minha filha? Não era propriamente mentir, porque estava a fingir que estava com a mamã, e Jamie disse:
A mamã veio comigo. Está além. Apontou para um grupo de pessoas que olhava para a montra de uma loja e apressou-se ajuntar-se a elas.
Na Catedral de St. Patrick parou e olhou em volta. Finalmente viu o presépio. Havia muita gente em volta, mas o Menino Jesus não estava na manjedoura. Havia um homem
que colocava velas novas nos castiçais e Jamie ouviu uma senhora perguntar-lhe onde estava o Menino Jesus.
É colocado durante a Missa do Galo disse ele.
Jamie conseguiu descobrir um lugar mesmo em frente da manjedoura. Murmurou uma prece que dizia havia longo tempo: "Quando vieres esta noite, traz a mamã contigo.
Por favor."
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Havia tanta gente que vinha à igreja. O órgão começou a tocar. Gostava de o ouvir. Seria bon sentar-se ali, onde estava bem e aquecida, e descansar um pouco. Mas,
de certo modo, o facto de dizer à senhora que estava a cantar que a mamã estava com ela tinha feito que isso parecesse verdade. Agora tinha de ir ver a árvore e
as montras da Lord and Taylor. Depois disso, se o homem ainda andasse atrás dela, talvez lhe perguntasse o que havia de fazer. Se ele gostava tanto dela, ao ponto
de andar a segui-la, talvez quisesse tomar conta dela.
Os olhos de Susan percorriam os rostos das crianças por que passava. Uma menina fê-la arquejar, com o seu cabelo dourado, o casaco vermelho. Mas não era Jamie. A
espaços, havia voluntários vestidos de Pai Natal a recolher dinheiro para as obras de caridade. Mostrou a todos a fotografia de Jamie. A uma esquina da Rua Cinquenta
e Três havia um coro de Exército de Salvação. Uma das cantoras tinha visto uma menina que se parecia muito com Jamie. Mas a criança tinha dito que estava com a mãe.
O tenente Garrigan apanhou-a quando estava prestes a entrar na catedral. Vinha num carro da polícia. Susan viu piedade nos olhos dele, ao olhar para a fotografia
que ela trazia na mão.
Receio que esteja a perder o seu tempo, Susan disse. Um motorista da Trailways disse que seguiam duas mulheres e uma criança na viagem das quatro e dez que saiu
da Estação Principal. Isso conjuga-se com a hora a que o polícia as viu.
Susan sentiu os lábios a tremer.
Para onde foram?
Saíram na Pascack Road, em Washington, Nova Jérsia. A polícia de lá foi muito cooperativa. Penso que ainda há hipóteses de recebermos um telefonema das mulheres...
se elas a levaram. A CBS concordou em deixá-la fazer um apelo especial antes do noticiário das sete. Mas temos de apressar-nos.
Não podíamos descer a Quinta até à Lord and Taulor? pediu Susan. Não sei... tenho um pressentimento...
Perante a insistência dela, o carro da polícia seguiu lentamente. A cabeça de Susan voltava-se de um lado para o outro, para ver as pessoas de um lado e do outro
da rua. Numa voz sem timbre, contou-lhe que uma vendedora tinha visto uma criança igual à Jamie mas
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que estava com o pai; uma cantora do exército de Salvação tinha visto uma criança igual à Jamie, que estava com a mãe.
Insistiu em que parassem em frente da Lord and Taylor. Havia pessoas que faziam bicha, pacientemente, para ver as montras.
Acho que se a Jamie estivesse em Nova Iorque e se lembrasse... Mordeu o lábio. Sabia que o tenente Garrigan pensava que estava a ser tola.
A menina do anorak azul e verde. Do mesmo tamanho de Jamie. Não. Aquela criança quase escondida por detrás do homem corpulento. Observou-a ansiosamente e depois
abanou a cabeça.
O tenente Garrigan tocou-lhe na manga.
Sinceramente, acho que a melhor coisa que pode fazer pela Jamie é ir à televisão fazer o seu apelo.
Susan concordou, com relutância.
Jamie observava os patinadores. Deslizavam pela pista em frente da árvore de Natal, como bonecos vivos. Antes de o papá a levar, a mamã e ela costumavam ir patinar
num lago perto da casa delas... A mamã tinha-lhe comprado uns patins de principiante.
A árvore era tão grande que ela nem percebia como podiam ter-lhe posto as lâmpadas. No ano anterior a mamã tinha tido que subir a um escadote para enfeitar a árvore
delas e Jamie tinha-a ajudado, entregando-lhe os enfeites.
Jamie apoiou o queixo nas mãos. Conseguia olhar para a pista mesmo por cima da grade. Na sua mente, começou a conversar com a mamã. "Podemos vir patinar aqui no
próximo ano? Os meus patins ainda me servirão? Ou talvez eu possa dá-los e receber uns maiores?" Podia ver a mamã a sorrir e a responder: "Não, acho que vamos enfiar
os teus pezinhos nos patins antigos."
Jamie voltou as costas à árvore. Havia mais um sítio onde tinha de ir. Ver as montras da Lord and Taylor. O homem e a mulher que estavam ao seu lado tinham dado
as mãos. Tocou no braço da mulher.
A minha mãe pediu-me que lhe perguntasse a que distância fica a Lord and Taylor.
Mais doze quarteirões. Era muito. Mas tinha de acabar o jogo do faz-de-conta. Tinha começado a nevar com mais força. Meteu as mãos dentro das mangas e curvou a cabeça
para a neve não lhe cair nos olhos. Nem olhou, para ver se o homem continuava a segui-la
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sabia que sim. Mas enquanto ela caminhasse perto das outras pessoas, ele não se aproximaria.
O carro da polícia parou junto dos estúdios da CBS, na Rua Cinquenta e Sete, perto da Décima Primeira Avenida. O tenente Garrigan entrou com ele. Mandaram-nos ao
andar superior, e um assistente de produção falou com Susan.
vamos chamar a este segmento "O Anjo Perdido". Vamos apresentar um grande plano da fotografia da Jamie e depois a senhora poderá fazer um apelo especial.
Susan esperou a um canto do estúdio de televisão. Algo lhe parecia prestes a explodir dentro dela. Era como se estivesse a ouvir a voz de Jamie a chamar por ela.
O tenente Garrigan esperava, ao seu lado. Agarrou-lhe no braço.
Diga-lhes que mostrem a fotografia. Peçam a outra pessoa que faça o apelo. Eu tenho de voltar lá. Um agudo "sshhh" fê-la compreender que estava a erguer a voz, que
podia ser captada pelos microfones. Puxou pela manga do tenente. Por favor, eu tenho de voltar lá.
Jamie esperou na bicha, para passar em frente das montras da Lord and Taylor. Eram tão bonitas como a mamã tinha dito, pareciam quadros tirados dos seus livros de
Histórias e Fadas, só que as figuras mexiam-se, curvavam-se e acenavam. Deu consigo a acenar-lhes também. Eram pessoas a fingir. Era como se compreendessem o seu
jogo do faz-de-conta.
No ano que vem murmurou Jamie eu e a mamã voltamos cá juntas. Queria ficar ali, continuar a ver as bonitas figuras inclinarem-se, girarem e sorrirem, mas havia alguém
que estava sempre a dizer:
Por favor, continuem a andar. Muito obrigado.
O pior era que o jogo do faz-de-conta tinha acabado. Tinha ido a todos os sítios onde ela e a mamã tencionavam ir. Agora não sabia o que havia de fazer. Tinha a
testa húmida de neve e puxou o cabelo para trás. Sentia o ar frio na cabeça.
Não queria parar de olhar para as montras. Encostou-se à corda, para que as pessoas pudessem passar por ela.
Estás perdida, não estás, minha querida? Ergueu o olhar.
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Era o homem que andava a segui-la. Falava tão baixo que ela mal tinha conseguido ouvi-lo. Se souberes onde vives, eu posso levar-te lá murmurou ele.
Uma bolha de esperança cresceu no peito de Jamie.
Pode telefonar à minha mãe?perguntou. Eu sei o número.
Claro que sim. Vamos já. Pegou-lhe na mão.
Continuem a andar, por favor repetiu a voz.
Anda sussurrou o homem. Temos de ir.
Havia qualquer coisa que afligia Jamie. Era mais que o cansaço, o frio e a fome. Estava assustada. Agarrou-se ao rebordo da montra, olhou para as figuras e murmurou
a sua prece ao Menino Jesus: "Por favor. Por favor, faz que a mamã venha agora."
O carro da polícia parou junto ao passeio.
Eu sei que pensa que eu estou doida disse Susan. A sua voz tornou-se arrastada, enquanto observava a multidão ainda compacta em volta das montras. A neve começava
a cair com força e as pessoas estavam a levantar as golas dos casacos e a puxar para a frente os lenços e os capuzes. Havia muitas crianças na bicha, mas era impossível
ver-lhes os rostos, porque estavam voltadas para as montras. Abria a porta do carro quando ouviu o tenente Garrigan dizer ao motorista:
Sam, já viste quem está naquela bicha? É aquele maldito tarado que não compareceu ao julgamento. Vamos!
Chocada, Susan viu-os correr pelo passeio, atravessar a bicha, agarrar os braços de um homem magro, com um casaco sujo e trazerem-no rapidamente para o carro. E
nessa altura viu-a. A pequena figura que não se voltou para trás como os restantes espectadores surpreendidos, a pequena figura com o seu desconhecido cabelo cor
de ouro-esbranquiçado, envolvendo umas faces e uma nuca que ela conhecia tão bem.
Estonteada, Susan avançou ao encontro de Jamie. Os seus braços esfomeados estenderam-se, inclinou-se e escutou a prece que Jamie continuava a repetir: "Por favor,
faz que a mamã venha agora."
Susan caiu de joelhos.
Jamie murmurou.
Jamie pensou que continuava a brincar ao faz-de-conta.
Jamie.
Não era a fingir. Jamie voltou-se, rapidamente, e sentiu uns
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braços que a envolviam. Mamã. Era a mamã. Abraçou-se ao pescoço da mamã. Enterrou a cabeça no ombro da mamã. A mamã estava a apertá-la com tanta força. A mamã estava
a embalá-la. A mamã não parava de repetir o seu nome.
Jamie. Jamie.A mamã estava a chorar. E, em volta delas, as pessoas sorriam, felicitavam-nas, batiam palmas. E, nas montras do país das fadas, as lindas bonecas continuavam
a curvar-se e a acenar.
Jamie acariciou a face da mamã.
Eu sabia que tu vinhas murmurou.És Minha
Mary Higgins Clark
(Livro Condensado)
PRÓLOGO
ELE JÁ JOGARA eSte mesmo jogo e previra que desta vez sentiria uma certa desilusão. Portanto, foi uma agradável surpresa perceber que estava ainda mais entusiasmado.
Embarcara em Perth, na Austrália, apenas no dia anterior, pensando prolongar o cruzeiro pelo menos até Kobe, no Japão. No entanto, encontrara-a imediatamente,
por isso não seria necessário tanto esforço. Ela estava sentada a uma mesa junto de uma vigia na sala apainelada do navio, um espaço discretamente elegante, típico
do Gabrielle. O pequeno navio de luxo tinha a dimensão perfeita para os seus objectivos, e ele escolhia sempre um segmento de um cruzeiro à volta do Mundo.
Era cuidadoso por natureza, embora na verdade existissem poucas possibilidades de ser reconhecido por anteriores companheiros de viagem. Tornara- se perito em alterar
a sua aparência, um talento que adquirira durante a sua experiência teatral no clube dramático da universidade. Regina Clausen Era uma daquelas mulheres de quarenta
anos que poderia ser bastante atraente se soubesse apresentar-se. O vestido de noite azul-claro fazia-a parecer deslavada. O cabelo castanhoestava penteado de modo
tão rígido que, mesmo visto do outro lado da grande sala, a fazia parecer mais velha.
e sabia quem ela era. Vira Regina Clausen em acção numa reunião de accionistas apenas há uns meses atrás, e tinha-a visto também na televisão na sua capacidade de
analista de mercados. Nessas ocasiões, ela evidenciara-se como uma mulher decidida e muito segura de si.
Foi por isso que, quando a viu melancolicamente sentada sozinha à mesa, ele percebeu de imediato que iria ser tudo muito fácil.
Ergueu o copo e, com um ténue movimento na direcção dela, fez-lhe um brinde silencioso.
??As tuas preces foram ouvidas, Regina, prometeu ele. A partir de agora, pertences-me."
TRÉSANOSDEPOIS
A Não seR que houvesse alguma nevasca ou qualquer coisa semelhante a um furacão, a Dra. Susan Chandler fazia sempre a pé o trajecto desde o seu apartamento,
situado num edifício de tijolo em Greenwich Village, até ao seu consultóri? no Soho. Psicóloga clínica de trinta e um anos, possuía um próspero consultório particular
e tornara- se, ao mesmo tempo, uma figura conhecida do grande público como apresentadora de um popular programa de rádio, Perguntem à Dra. Susan, transmitido todos
os dias úteis.
O ar daquela manhãzinha de Outubro apresentava-se agreste e ventoso, e ela estava contente por ter optado por uma camisola de gola alta de mangas compridas
por debaixo do casaco do fato. O seu cabelo louro-escuro por altura dos ombros, ainda húmido do duche, era sacudido pelo vento, levando-a a lamentar não ter posto
um lenço.
Parou num sinal na esquina da Mercer com a Houston. Eram apenas 7.30, e as ruas ainda não estavam apinhadas. Dali a uma hora estariam repletas de nova-iorquinos
de regresso ao trabalho.
??Graças a Deus que terminou o fim-de-semana", pensou Susan para consigo.
Passara a maior parte de sábado e domingo em Ryen com a mãe, que estava deprimida - compreensivelmente, pensava Susan - uma vez que domingo teria sido o quadragésimo
aniversário do seu casamento. Depois, para complicar ainda mais as coisas, Susan encontrara-se com a irmâ mais velha, Dee, que estava de visita, vinda da Califórnia.
No domingo à tarde, antes de regressar a casa, Susan fizera uma visita de cortesia ao casarão palaciano do pai, na vizinha Bedford Hills, onde ele e a segunda
mulher, Binky, davam uma festa. Susan suspeitava que a marcação da data da festa fora ideia de Binky.
Adoro os meus pais??, pensou Susan ao chegar ao edifício onde se situava o seu consultório, ??mas há alturas em que me apetecia mandá-los portarem- se como adultos."
Susan era normalmente a primeira ocupante do último andar a chegar. por isso ficou surpreendida ao ver que as luzes da zona da recepção e do corredor já estavam
acesas. Ela sabia que a ave madrugadora devia ser a sua velha amiga e mentora Nedda Harding.
Susan abanou a cabeça, exasperada, enquanto abria a porta exterior - que devia estar fechada à chave - e percorreu o corredor, dirigindo-se em frente à porta
aberta do gabinete de Nedda.
Uma das mais respeitadas advogadas de defesa de Nova Iorque, Nedda tinha um certo ar de avozinha que pouco revelava da inteligência e energia agressiva que ela empregava
no seu trabalho. As duas mulheres tinham-se conhecido e feito amizade há dez anos, na Universidade de Nova Iorque, quando Susan aí estudava Direito e Nedda era professora
convidada.
Todos os amigos de Susan, com a única excepção de Nedda, tinham ficado chocados quando, após dois anos no Ministério Público do condado de Westchester, Susan se
despedira do seu emprego de delegada do procurador para voltar à universidade e fazer o doutoramento em Psicologia.
Sentindo a presença de Susan à sua porta, Nedda olhou para ela.
- Olhem quem aqui está! Tiveste um bom fim-de-semana, Susan? Nedda sabia da festa de Binky e do aniversário.
- Era previsível - respondeu Susan. - Dee chegou no sábado, ela e a minha mãe acabaram a chorar nos braços uma da outra como duas Madalenas. Eu disse a Dee que a
depressão dela tornava as coisas mais difíceis para a mãe, e ela virou-se a mim. Disse que, se há anos eu tivesse visto o meu marido ser morto por uma avalancha,
como ela viu Jack morrer, eu compreenderia aquilo por que ela está a passar.
Depois, foi a festa do meu pai e de Binky naquela mansão que ele lhe construiu - continuou ela. - A propósito, o meu pai pede-me que o trate por Charles, o que revela
tudo sobre o resto. - Suspirou profundamente. - Mais um fim-de-semana como este e serei eu a precisar de acompanhamento psicológico.
Nedda fitou-a compreensivamente. Ela era a única amiga de Susan que sabia toda a história de Jack e de Dee e dos pais de Susan e respectivo divórcio complicado.
- Parece-me que precisas de um plano de sobrevivência.
Susan riu-se.
- Talvez tu consigas engendrar- me um. Põe na minha conta juntamente com tudo o que te devo por me arranjares o emprego na rádio. Agora, tenho de me ir embora.
Tenho de me preparar para o programa.
Há um ano, Marge Mackin, uma popular apresentadora de rádio amiga íntima de Nedda, convidara Susan para um dos seus programas para comentar, quer como especialista
jurídica, quer como psicóloga, um julgamento altamente mediático. O êxito daquela primeira exp riência radiofónica conduzira a aparições regulares no programa. Quando
Marge fora contratada para apresentar um programa de televisão, Susan fora convidada para a substituir no talk show radiofónico diário.
- Quem é hoje o teu convidado? - perguntou Nedda.
- Esta semana vou concentrar-me na questão de as mulheres deverem preocupar-se com a sua segurança em acontecimentos sociais. Donald Richards, um psiquiatra
que se especializou em criminologia, escreveu um livro intitulado Mulheres Desaparecidas. Muitos dos desaparecimentos foram resolvidos por ele, mas alguns casos
interessantes encontram-se ainda em aberto. Vamos discutir por que razão una mulher inteligente pode envolver-se com um assassino e como as nossas ouvintes podem
evitar situações potencialmente perigosas.
- Excelente assunto.
- Também acho. Decidi falar do caso do desaparecimento ? de Regina Clausen. Sempre me intrigou. Lembras-te dela? Eu costumava vê-la na CNBC e achava-a estupenda.
Nedda olhou para ela, franzindo o sobrolho.
- Regina Clausen desapareceu há uns três anos, depois de desembarcar de um cruzeiro à volta do Mundo em Hong Kong. Lembro-me muito bem. Foi muito badalado
na altura.
- Foi depois de eu ter saído do Ministério Público - disse Susan.
- Eu estava lá de visita a uma amiga quando a mãe de Regina Clausen, Jane, que na altura vivia em Scarsdale, foi falar com o procurador para ver se ele podia ajudar.
Não havia qualquer indicação de que Regina saíra de Hong Kong, por isso é claro que não era da jurisdição do procurador do Condado de Westchester. A pobre mulher
tinha fotografias de Regina e não se cansava de repetir como a sua filha ansiara por aquela viagem. Nunca me esqueci daquele caso.
A expressão de Nedda suavizou-se.
- Eu conheço vagamente Jane Clausen. Fomos colegas de ano no liceu. Ela vive actualmente em Beekman Place. Sempre foi muito calada. parece que Regina seria também
tímida em sociedade. Susan ergueu as sobrancelhas.
- Que pena eu não ter sabido antes. Podias ter-me arranjado uma entrevista com Mrs. Clausen.
Nedda franziu o sobrolho.
- Talvez não seja tarde demais. O advogado da família Clausen é Douglas Layton, e eu conheço-o. Tem trinta e poucos anos, mora na Park Avenue. Vou telefonar-lhe
às nove horas e perguntar-lhe se nos põe em contacto com Mrs. Clausen.
Às 9.10, o intercomunicador na secretária de Susan sooú. Era Janet, a secretária.
- Tem Douglas Layton na linha um.
Mal Susan começou a falar com o advogado da família Clausen, percebeu logo que ele não estava nada satisfeito.
- Dra. Chandler, nós condenamos em absoluto qualquer exploração do desgosto de Mrs. Clausen - disse ele bruscamente. - Regina era filha única. Já teria sido suficientemente
mau se o corpo tivesse sido encontrado, mas como não foi, Mrs. Clausen encontra-se numa grande agonia, perguntando a si mesma em que circunstâncias a filha poderá
estar a viver, se é que se encontra viva. Pensei que qualquer amiga de Nedda Harding estivesse acima deste tipo de sensacionalismo.
Quando Susan falou, o seu tom de voz era frio, mas calmo.
- Mr. Layton, o senhor mesmo já forneceu a razão pela qual o caso deve ser badalado. Nem a Polícia de Hong Kong nem os investigadores privados que Mrs. Clausen contratou
foram capazes de desvendar uma única pista sobre o que Regina fez ou onde poderá ter ido após ter desenbarcado. O meu programa é ouvido em cinco estados. Eu sei
que é pouco provável, mas talvez alguém que o ouça tenha estado naquele naviou estivesse de visita a Hong Kong na mesma altura e telefone para nos dizer algo de
útil. Afinal de contas, Regina aparecia regularmente na CNBC, e algumas pessoas possuem uma excelente memória para fixar pessoas.
Sem esperar pela resposta, Susan desligou, inclinou-se e ligou o rádio. Ela fizera promoção radiofónica do programa daquele dia, referindo o autor convidado e o
caso Regina Clausen. A promoção tinha sido difundida ao longo do dia na última sexta-feira, e Jed Geany, o produtor, prometera que seria passada novamente naquela
manhã.
Vinte minutos depois, ela ouviu o primeiro dos anúncios promocionais.
??Agora, vamos fazer figas para que alguém que saiba alguma coisa sobre o caso esteja também a ouvir", pensou ela.
FORA DECIDIDAMENTE um golpe de sorte o rádio do carro estar sintonizado para aquela estação na sexta-feira. Caso contrário, ele nunca teria ouvido o anúncio.
Por acaso, não estava a prestar muita atenção, mas ao aperceber-se do nome Regina Clausen, aumentara o volum e concentrara-se para ouvir melhor.
Não que houvesse motivos de preocupação, claro. Como sempre, tomara todas as precauções. Não tomara?
Agora, ao ouvir o anúncio novamente na manhã de segunda-feira, não tinha tanta certeza. Da próxima vez, seria especialmente cuidadoso. Mas a próxima
vez também seria a última. Tinha havido quatro. faltava uma, que seria escolhida na próxima semana, e assim que lhe pertencesse, a sua missão estaria completa e
ele poderia finalmente viver em paz.
? Zangado, ouviu novamente a promoção e a voz calorosa e encorajadora da Dra. Susan Chandler:
- Regina Clausen era uma conceituada consultora de investimentos. Era também uma boa filha, amiga e generosa benfeitora de obras? de caridade. Iremos
falar do seu desaparecimento no meu programa de hoje. Gostaríamos de solucionar o mistério. Talvez algum dos ouvintes possua uma peça do puzzle. Por favor, ouçam
o programa.
Ele desligou o rádio com violência.
- Dra. Susan - disse ele em voz alta -, deixe-se disso e depressa. Nada disso lhe diz respeito, e, estou a avisá-la, se eu vier a ter alguma coisa
a ver consigo, os seus dias estão contados.
O DR. DONALD RICHARDS, autor de Mulheres Desaparecidas, já estava no estúdio quando Susan chegou. Era alto e magro, de cabelo castanho-escuro, e parecia
ter perto de quarenta anos. Ao levantar-se para a cumprimentar, tirou os óculos de leitura. Os olhos azuis dele eram calorosos, e o sorriso foi breve enquanto apertava
a mão que ela lhe estendia.
- Dra. Chandler - disse ele - , este é o meu primeiro livro. Sou um novato nestas coisas da publicidade e estou nervoso. Se eu ficar enervado, prometa que
me socorre.
Susan riu-se.
- Trate-me por Susan e não pense no microfone. Faça de conta que somos vizinhos debruçados sobre o muro do jardim na coscuvilhice.
Quem é que ele estava a tentar enganar?, pensou Susan quinze minutos depois, quando Richards discutia com calma e uma autoridade tranquila os casos verídicos do
seu livro. Ela acenou com a cabeça, concordando, quando ele disse:
- Quando alguém desaparece, e estou a falar agora de um adulto, não de uma criança, a questão que as autoridades se colocam primeiro é se o desaparecimento terá
sido voluntário. Como sabe, Susan, é surpreendente o número de pessoas que decidem, de repente, fazer uma inversão de marcha no seu caminho para casa e começar uma
vida totalmente nova. O primeiro passo para localizar alguém que tenha desaparecido é verificar se começam a aparecer débitos nos seus cartões de crédito.
- Quer tenham sido débitos efectuados pelos próprios ou por alguém que tenha roubado os cartões - interpôs Susan.
- Exactamente - concordou Richards. - É claro que alguns desaparecimentos não são voluntários; alguns envolvem um acto criminoso. no entanto, nem sempre é fácil
de determinar. É muito difícil, por exemplo, provar que alguém é culpado de assassínio se não aparecer um cadáver.
Discutiram vários dos casos em aberto de que ele falava no seu livro; situações em que a vítima nunca fora encontrada. Depois, Susan perguntou:
- Agora, gostaria de ouvir a sua opinião, Dr. Richards, sobre um caso que não é tratado no seu livro, o de Regina Clausen. Deixe-me pôr os nossos ouvintes a par
das circunstâncias do seu desaparecimento.
Susan não precisava de consultar as suas notas.
- Regina Clausen era uma consultora de investimentos altamente conceituada que trabalhava na Lang Taylor Securities. Na altura do seu desaparecimento, tinha quarenta
e três anos e, segundo aqueles que a conheciam, era muito tímida na sua vida pessoal. Vivia sozinha e fazia normalmente férias com a mãe. Há três anos atrás, a mãe
estava a recuperar de um tornozelo partido, por isso Regina foi fazer sozinha parte de um cruzeiro à volta do Mundo no paquete de luxo Gabrielle. Embarcou em Perth,
na Austrália, planeando passar por
Bali, Hong Kong, Formosa e Japão e desembarcar em Honolulu. ? No entanto, desembarcou em Hong Kong, dizendo que ia passar mais algum tempo naquele território e que
voltaria a embarcar no Gabriel quando ele atracasse no Japão. Regina levou apenas uma mala e u saco de mão quando desembarcou, e quem a viu diz que parecia muito
feliz. Apanhou um táxi para o Peninsula Hotel, onde deu entrada. deixou as malas no quarto e saiu de imediato. Nunca mais tornou a ser vista. Dr. Richards, se o
senhor estivesse a começar a investigar este caso, que faria?
- Eu quereria ver a lista de passageiros e descobrir se mais alguém tinha ficado em Hong Kong - respondeu Richards prontamente. - Quereria saber se ela recebeu
telefonemas ou faxes no navio. Iria interrogar os companheiros de viagem para verificar se algum notara que ela iniciara uma amizade especial com alguem, muito provavelmente
um homem, que também viajasse sozinho. - Fez uma pausa. - Isto para começar.
- Tudo isso foi feito - disse- lhe Susan. - Uma investigação meticulosa. Só conseguiu determinar-se que Regina Clausen desapareceu no momento em que saiu
do hotel.
Pelos auscultadores, Susan ouviu um sinal do produtor.
- Agora, após estas mensagens, vamos passar aos telefonemas - disse ela.
Tirou os auscultadores e disse a Richards:
- Um par de mensagens também conhecidas por anúncios. São eles que pagam as contas.
Ele assentiu com a cabeça e depois disse:
- Eu estava fora do país quando o caso Regina Clausen apareceu nas notícias, mas é de facto um caso interessante. Pelo pouco que sei dele, no entanto, penso
que o culpado será um homem. Uma mulher tímida e sozinha é particularmente vulnerável quando está fora do ambiente que lhe é familiar, no qual ela possui a tranquilidade
e a segurança do emprego e da família.
??Você deve conhecer a minha mãe e a minha irmã", pensou Susan ironicamente, mas disse:
- Prepare-se. Estamos prestes a voltar ao ar.
Voltaram a pôr os auscultadores, através dos quais ouviram a contagem decrescente de dez segundos. Depois, ela começou.
- Dra. Susan Chandler de novo convosco. O meu convidado é o Dr. Donald Richards, criminólogo, psiquiatra, autor de Mulheres Desaparecidas, o estudo de casos
de mulheres que desapareceram nos últimos dez anos. Antes do intervalo, estávamos a discutir o caso de Regina Clausen, afamada corretora da Bolsa que desapareceu
em Hong Kong há três anos quando participava num cruzeiro à volta do Mundo.
Ela olhou para o monitor.
- Temos uma chamada de Louise, em Fort Lee.
As chamadas foram banais: ??Como é que mulheres espertas correm o erro de serem enganadas por um assassino?,? ??O que é que o Dr. Richards pensa do caso Jimmy Hoffa???
E depois chegou a altura de mais um anúncio e de uma última chamada.
Durante a pausa, o produtor falou com Susan.
- Há mais uma chamada que quero passar-te, mas aviso-te já de que quem quer que seja bloqueou a identificação de chamadas a partir do ponto de origem. Mas ela diz
que talvez saiba alguma coisa sobre o desaparecimento de Regina Clausen. Pediu para a tratarmos por Karen, mas não é esse o nome dela.
- Passa-ma - pediu Susan.
Quando se acendeu a luz ??No ar", ela disse para o microfone:
- Karen é a última ouvinte que vamos pôr no ar, e pode ser que tenha algo de importante para nos contar. Olá, Karen.
A ouvinte falou com uma voz arroucada, num tom quase demasiado baixo para se conseguir ouvir.
- Dra. Susan, eu participei em parte de um cruzeiro à volta do mumdo há dois anos. Sentia-me muito em baixo porque estava a meio de um divórcio. Os ciúmes do meu
marido tinham-se tornado intoleráveis. Ia um homem nessa viagem que me fez a corte de um modo tranquilo, até mesmo discreto. Nos locais onde atracávamos, ele combinava
que nos encontrássemos num sítio qualquer longe do navio, e explorámos esse porto juntos. Depois, regressávamos ao navio separadamente. Ele dizia que a razão para
aquele secretismo era detestar expor-nos a mexericos. Ele era muito atraente e muito atencioso, e eu necessitava imenso de atenção naquela altura. Sugeriu-me que
eu deixasse o navio em Atenas e passasse lá mais tempo. Depois, apanhávamos um avião para Argel, e eu podia embarcar novamente no navio em Tânger.
Susan relembrou a sensação que tinha quando trabalhava no gabinete do procurador e estava prestes a saber algo de importante de uma testemunha.
- Fez o que esse homem sugeriu? - perguntou ela.
- Ia fazer, mas o meu marido telefonou precisamente naquela altura e implorou-me que desse mais uma oportunidade ao nosso casamento. O homem com quem eu combinara
encontrar-me já tinha desembarcado. Tentei telefonar-lhe para lhe dizer que ficava no navio, mas ele não constava do registo do hotel onde dissera que ia ficar alojado,
por isso nunca mais o vi. Mas eu tenho uma fotografia com ele ao fundo, ele deu-me um anel de turquesa que tinha a inscrição ??Pertences-me que eu nunca cheguei
a devolver.
Susan escolheu as palavras com cuidado.
- Karen, aquilo que está a dizer pode ser muito importante. Importa-se de se encontrar comigo e mostrar-me esse anel e a fotografia?
- Eu... eu não posso envolver- me. O meu marido ficaria furioso.
- Karen, venha, por favor, ao meu consultório às três horas - disse Susan rapidamente. - A morada é a seguinte. - Ela disse-a rapidamente e depois
acrescentou em voz suplicante: - A mãe de Regima Clausen precisa de descobrir o que aconteceu à filha. Eu garanto que protejo a sua privacidade.
- Estou lá às três. - A ligação foi cortada.
CARol WeLls desligou o rádio e caminhou, nervosa, até à janela. Do outro lado da rua, o Metropolitan Museum estava envolvido no sossego típico de
uma segunda-feira, dia
em que estava fechado.
Desde que fizera aquele telefonema para o programa Perguntem à Dra. Susan, não conseguia livrar-se de uma terrível sensação de mau presságio.
??Quem me dera que não tivéssemos provocado Pamela para nos fazer uma das suas leituras", pensou ela, recordando os acontecimentos perturbantes da sexta-feira
anterior. Preparara um jantar do quadragésimo aniversário de Pamela Hastings, sua ex-companheira de quarto,? convidara também as outras duas mulheres com quem outrora
tinha partilhado um apartamento. Haviam decretado que seria uma noite de mulheres, e as quatro tinham coscuvilhado com a familiaridade descomplexada de velhas amigas.
Pamela, actualmente prufessora na Colúmbia, parecia ter o dom de vidente. Por vezes, chegava mesmo a ser chamada pela Polícia, discretamente, em casos de raptos
e pessoas desaparecidas. Há anos que as pessoas amigas não lhe pediam que lhes lesse a sina. Quando eram mais jovens, era para elas um ritual pedirem-lhe, meio a
brincar, que lhes visse o futuro com um novo namorado ou uma nova oferta de empreGo. Depois do jantar na sexta-feira anterior, Pamela concordara em ler o fu?turo
de cada uma delas. Como habitualmente, pedira a cada uma que ?escolhesse um objecto pessoal, que ela segurava enquanto fazia a obra.
??Eu fui a última", recorduu Carolyn, ??e porque teria eu escolhido aquele maldito anel para ela segurar? Nem sequer sei porque o guardava. O facto era que naquela
noite ela tirara o anel du estojo onde guarrdava as jóias de imitação, porque já naquele dia pensara em Owen Adams, o homem que lho dera. Tinham passado apenas dois
anos desde que oconhecera.
Pamela notara a inscrição quase ilegível dentro do aro.
- ??Pertences-me" - lera ela num tom meio divertido, meio escarnecido. - É um bocadinho forte nos tempos que correm, não é, Carolyn? Espero que Justin o tenha escrito
por brincadeira.
- Justin nem sabe da existência disso. Quando nos separámos, um sujeito deu-mo num cruzeiro. Fiquei sempre curiosa sobre o que lhe teria acontecido.
Pamela fechara a sua mão sobre o anel e, instantaneamente, tornara-se tensa, com uma expressão séria.
- Carolyn, este anel podia ter sido a causa da tua morte - disse, - E ainda u pode vir a ser. Quem quer que to tenha dado queria fazer-te mal. - Depois, como se
estivesse a queimar-lhe a mão, deixou cair o anel em cima da mesinha de café.
Foi nesse momento que se ouviu a chave na porta, e elas sobressaltaram-se como alunas comprometidas. A separação era um assunto mau para Justin. Carolyn apanhou
rapidamente o anel e pô-lo nu bolso. Ainda lá estava.
Os ciúmes excessivos de Justin tinham sido a causa da separação há três anos. No dia em que lhe telefonara para o navio, ele prometera mudar.
??E eu sei que ele tentou", pensou Carolyn, ??mas se eu me envolver nesta coisa da Dra. Susan, ele vai pensar que houve de facto alguma coisa entre mim e Owen Adams,
e voltaremos à estaca zero."
Decidiu não ir encontrar-se com Susan Chandler. Em vez disso, mandava-lhe a fotografia tirada no cocktail do comandante, aquela em que Owen Adams aparecia ao fundo.
Cortava a fotografia para não aparecer nela e mandava-a a Susan Chandler juntamente com o anel e o nome de Owen. Se existisse alguma ligação entre Owen Adans e Regina
Clausen, teria de ser Susan Chandler a descobri-la.
JANE CLAUSEN, de setenta e quatro anos, desligou o rádio e depois sentou-se a olhar pela janela para a corrente veloz do East River. Nos últimos três anos,
desde que a sua filha Regina desaparecera, ela sentia-se como que gelada por dentro.
Sabia que Regina estava morta. No seu íntimo, era uma certeza. Soubera-o desde o momento em que recebera o telefonema do navio para lhe dizerem que Regina
não voltara a embarcar como estava planeado.
Naquela manhã, o advogado dela, Douglas Layton, telefonara-? para a avisar de que uma tal Dra. Susan Chandler ia discutir o desaparecimento de Regina na
rádio.
- Tentei dissuadi-la - disse Douglas com uma voz tensa -, mas ela insistiu que seria um favor para si se toda a verdade fosse descoberta.
Apenas Douglas Layton, o advogado da firma de investimentos que tratava dos bens de família, sabia como ela procurara desesperadamente uma resposta para
o desaparecimento da filha. Investigadores privados de elevada categoria tinham prolongado uma investigação meticulosa muito depois de a Polícia ter desistido.
??Mas eu tenho andado enganada??, pensou Jane Clausne. Convenci-me de que a morte de Regina foi um acidente, e isso tornou a perda mais suportável.?? Mas
então como explicar o telefonema de Karen, que falou de um homem que a instigara a deixar o cruzeiro? falara de um anel, um anel com a inscrição ??Pertences-me??.
Jane Clausen reconhecera imediatamente a inscrição, e a simples menção daquela palavra familiar naquela manhã tinha-a gelado até aos ossos. Regina planeara
desembarcar do Gabrielle em Honoli Quando ela não regressou ao navio, as suas roupas e objectos pessoais que tinham ficado a bordo haviam sido remetidos para casa.
Ao examinar as coisas, Jane reparara no anel por ser tão insignificante - uma coisinha bonita e barata de turquesa, do género que os turistas compram por impulso.
Ela tinha a certeza de que Regina ou não reparara na inscrição no interior do anel ou a ignorara. A turquesa era a pedra do signo dela.
Mas se fora dado à tal Karen um anel semelhante apenas há dois anos, significaria isso que a pessoa responsável pela morte de Regina andava à caça de outras
mulheres?
Jane Clausen levantou-se, esperou que a dor nas costas abrandasse um pouco e depois caminhou devagar desde o escritório até ao quarto a que ela e a sua empregada
cuidadosamente se referiam como quarto de hóspedes.
Um ano após o desaparecimento, ela largara o apartamento de Regina e depois vendera a sua casa em Scarsdale, que era demasiado grande. Comprara este apartamento
de cinco assoalhadas na Beekman e mobilara o segundo quarto com a mobília e os pertences de Regina.
Dirigiu-se à cómoda, abriu a gaveta de cima e retirou o estojo onde Regina guardava as jóias.
O anel de turquesa estava num compartimento forrado a veludo. Pegou no anel e enfiou-o no dedo.
Foi até ao telefone e ligou para Douglas Layton.
- Douglas - disse ela calmamente -, hoje, às duas e quarenta e cinco, você e eu vamos estar no consultório da Dra. Susan Chandler. Presumo que tenha ouvido
o programa?
- Sim, ouvi, Mrs. Clausen.
- Eu pretendo falar com aquela mulher que telefonou.
Jane Clausen pousou o auscultador. Desde que soubera que lhe restava pouco tempo, consolara-se com o facto de que aquela terrível sensação de perda em breve ia terminar.
Mas agora sentia uma nova e ardente necessidade: assegurar-se de que nenhuma outra mãe teria o sofrimento que ela suportara durante os últimos três anos.
No caminho de regresso ao consultório,Susan Chandler reviu mentalmente as consultas que planeara para aquele dia.Dentro de menos de uma hora, ela devia conduzir
uma avaliação psicológica de um aluno do sétimo ano que mostrava sinais de depressão moderada.Uma hora depois,ia ver uma mulher de sessenta e cinco anos que estava
prestes a reformar-se e que, por essa razão,andava a passar noites sem
dormir,dominada pela ansiedade.
E às 3horas esperava encontrar-se com a mulher que se autodenominara Karen.No entanto,ela parecera tão assustada ao telefone que Susan receava que mudasse
de ideias. De que haveria ela de ter medo? perguntou Susan a si mesma.
Quando abriu a porta do consultório, a sua secretária, Janet, recebeu-a com um sorriso aprovador.
- Excelente programa, doutora.
- Obrigada - disse Susan. - Há algum recado importante?
- Sim, telefonou a sua irmã do aeroporto a dizer que tinha muita pena de não se ter encontrado consigo ontem. Queria pedir desculpa por ter disparatado consigo
no sábado. Queria também saber a sua opinião sobre Alexander Wright. Conheceu-o na festa do seu pai, depois de a doutora ter saído, e diz que ele é extremamente
atraente. - Janet entregou-lhe um recado escrito.
Susan pensou no homem que ouvira o pai a pedir-lhe a ela que o tra? tasse por Charles. Quarentão, com cerca de um metro e oitenta de altura, cabelo castanho-claro,
um sorriso cativante. Ele dirigira-se-lhe quando o pai se afastara para cumprimentar alguém que acabara de chegar.
- Não fique desanimada. Provavelmente, foi ideia de Binky - dissera ele, encorajador. - Vamos buscar champanhe e vamos até lá fora.
Estava uma daquelas gloriosas tardes do início do Outono, e eles ficaram no terraço a beberricar languidamente dus copos altos de champanhe.
Susan perguntuu a Alex Wright de onde é que ele conhecia o pai.
- Só o conheci hoje - explicou ele. - Mas conheço Binky há anos. - Depois, perguntou-lhe o que ela fazia e ergueu as sobrancelhas quando ela respondeu que
exercia psicologia clínica.
- Não estuu assim tão desactualizado - explicou ele rapidamente. - É que eu ouço psicóloga clínica e penso numa pessoa com um aspecto muito sério e mais
velha, e não numa mulher jovem e extremamente bonita como você, e as duas coisas não combinam.
Ela estava com um vestido justo de crepe de lã verde-escuro, realçado com um lenço verde-maçã.
- A maior parte das minhas tardes de domingo são passadas dentro de uma camisola largueirona e de calças de ganga - contou-lhe ela.Fica mais reconfortado
assim?
Ansiosa por se afastar da imagem do pai derretido ao lado de Binky, e não muitu ansiosa por reencontrar a irmã, Susan saíra logo depois; embora não antes
de uma das suas amigas lhe contar que Alex Wright era o filho do falecido Alexander Wright, o lendário filantropo.
- Biblioteca Wright, Museu de Arte Wright, Centro de Artes do espectáculo Wright. Muita, muita nota! - sussurrara-lhe ela.
Agora, Susan estudava a mensagem deixada por Dee.
??Não há dúvida de que ele é muito atraente??, pensou Susan. Hum."
QUANDO O segundo doente de Susan saiu,às 2.45,Janet apareceu com uma embalagem com canja de galinha e um pacote de bolachas de água e sal.Menos de um minuto
depois,Janet informou-a de que a mãe de Regina Clausen e o advogado Douglas Layton estavam na recepção.
- Recebo-os na sala de reuniões - disse Susan.
Impecavelmente vestida com um fato escuro,o cabelo grisalho perfeitamente penteado,Jane Clausen emanava a reserva indicativa de uma certa posição social.
O advogado, que fora tão acutilante ao telefone naquela manhã, parecia quase querer pedir desculpa.
- Dra.Chandler,esperamos não vir incomodar.Mrs.Clausen tem uma coisa importante para lhe mostrar e gostava de ter a oportunidade de conhecer a mulher que
telefonou esta manhã para o seu programa.
Susan viu-o corar ligeiramente por baixo do profundo bronzeado.
Olhou para o relógio: eram 2.50.
- Mrs.Clausen,eu não sei se a mulher vai aparecer.Eu vou recebê-la no meu consultório,e depois de descobrir o que ela eventualmente saberá,peço-lhe que considere
falar consigo.Mas se ela não concordar, não posso permitir que a privacidade dela seja violada.
Jane Clausen abriu a mala, procurou lá dentro e retirou um anel de turquesa.
- A minha filha tinha este anel no seu camarote no Gabrielle.
Encontrei-o quando os pertences dela me foram devolvidos.Por favor, mostre-o a Karen.Se for igual ao que ela tem,ela tem mesmo de falar comigo. - Entregou
o anel a Susan.
- Veja a inscrição - pediu Layton.
Susan espreitou a letrinha pequena,de olhos semicerrados,voltean-do-o até conseguir ler.Ficou boquiaberta e voltou-se para a mulher,que continuava de pé à sua espera.
- Sente-se,por favor,Mrs.Clausen.A minha secretária traz-lhe já um chá ou um café. E reze para que Karen apareça.
- Lamento,mas não posso ficar - disse Layton apressadamente.
Mrs. Clausen,lamento imenso,mas não consegui desmarcar a minha reunião.
- Eu compreendo, Douglas. - Notava-se uma ligeira irritação na voz dela. - O carro fica à minha espera. Eu fico bem.
SusaN obserRvou com uma frustração crescente os ponteiros do relógio rastejarem até às 3.05, depois 3.10. Três e um quarto passaram as 3.30, depois 3.45. Foi até
à sala de reuniões. O rosto de Jane Clausen estava cor de cinza.
??Ela está em sofrimento físico", pensou Susan.
- Agora, já bebia o tal chá, se a oferta ainda se mantém, Dr.a Chandler - disse Mrs. Clausen.
Apenas um ligeiro tremor na voz revelou o seu profundo desapontamento.
Às 4 HoRas, Carolyn Wells caminhava pela Rua Oitenta e Um em direcção ao correio com um envelope castanho endereçado a Susan Chandler debaixo do braço. Qualquer
tentação para não faltar ao encontro com a Dra. Susan Chandler desaparecera quando o marido Justin, lhe telefonara à 1.30.
- Querida, aconteceu uma coisa incrível - dissera ele com um tom jocoso na voz. - Barbara, a recepcionista, tinha o rádiu ligado de manhã e estava a ouvir
um programa qualquer para onde se pode telefonar a pedir conselhos. Bom, ela disse que uma mulher chamada Karin, que foi uma das pessoas que telefonaram, tinha uma
voz parecidíssima contigo e falou sobre um sujeito que conhecera num cruzeiro há dois anos. Há alguma coisa que te tenhas esquecido de me contar?
Carolyn fartara-se de rir, garantindo a Justin que não tinha tenpo para ouvir rádio a meio do dia. Mas, dada a história passada dos ciúmes quase obsessivos
dele, Carulyn estava preocupada, pensando que aquele assunto não ficaria por ali. Agora, só queria ver-se livre daquele anel e daquela fotografia para sempre.
O trânsito estava anurmalmente congestionado, mesmo para aquela hora do dia. Na Park Avenue, ela aguardou à frente de uma multidão de peões enquanto carros
e carrinhas dobravam a esquina.
Uma carrinha de entregas vinha a dobrar a esquina, com os travões a chiarem. Instintivamente, ela tentou dar um passo à retaguarda, afastando-se da beira
do passeio, mas não conseguiu recuar; alguém estava mesmo atrás dela, bloqueando-lhe o caminho. De repente, ela sentiu uma mão tirar-lhe o envelope de debaixo do
braço enquanto outra a empurrava pela cintura.
Carolyn desequilibrou-se na beira do passeio. Virando-se, vislumbrou um rosto familiar e conseguiu sussurrar ??não! enquanto caía para debaixo das rodas
da carrinha.
EsPERou por ela junto do edifício em que Susan Chandler tinha o consultório. À medida que os minutos passavam e ela continuava sem aparecer, as emoções dele foram
desde o alívio até à irritação; alívio por ela não aparecer, e fúria porque agora teria de a localizar.
Felizmente, lembrava-se do nome dela e sabia onde morava, por isso, quando Carolyn Wells não compareceu no consultório de Susan chandler, ele telefonou-lhe para
casa e depois desligou quando ela atendeu. Fora até ao Metropolitan Museum ofArt e sentara-se nos degraus no meio da pequena multidão de estudantes e turistas que
por ali estavam, apesar de este se encontrar fechado. Dali tinha uma boa panorâmica do edifício de apartamentos onde ela vivia.
Às 4 horas, a sua paciência fora recompensada. Ela saiu com um pequeno envelope castanho debaixo do braço.
O tempo estava tão agradável que as ruas se encontravam cheias de peões. Ele conseguira caminhar muito perto atrás dela e até mesmo ler algumas letras escritas no
envelope: DRA. SU. . .
Pensou que o envelope devia conter o anel e a fotografia de que ela falara quando telefonara para o programa. Ele sabia que tinha de a deter antes que chegasse
ao correio. A sua oportunidade surgiu na esquina da Park Avenue com a Oitenta e Um.
? Carolyn virara-se de lado quando ele a empurrara, e os olhos dela tinham encontrado os seus. Ela reconhecera-o como Owen Adams, um homem de negócios britânico.
Na viagem, ele tinha um bigode e uma cabeleira castanho-avermelhada. Mesmo assim, ele apercebera-se de que ela o reconhecera mesmo antes de cair. Tinha a certeza
disso.
Recordou com satisfação os gritos quando as pessoas viram o corpo desaparecer debaixo dos pneus da carrinha. Nessa altura, fora fácil dissimular o envelope,
que tinha agora escondido debaixo do casaco.
Esperou até se encontrar na segurança do seu escritório, com as portas fechadas à chave, para abrir o envelope.
O anel e a fotografia estavam envolvidos num saco de plástico. Não eram acompanhados por qualquer carta ou bilhete. Estudou a fotografia cuidadosamente, recordando
exactamente onde fora tirada: a bordo do navio, no grande salão, no cucktail de boas-vindas do comandante aos recém-chegados, que tinham embarcado em Haifa. É claro
que ele evitara o ritual da fotografia com o comandante, mas fora claramente descuidado. Rondando a sua presa, cometera o erro de se aproximar demasiado de Carolyn
e acabara por ficar na fotografia. pressentira a aura de tristeza que a envolvia, coisa que era essencial para os seus planos.
Olhou cuidadosamente para a fotografia. Embora estivesse de pé e o bigode sobressaísse, alguém com olho de perito que estudasse aquela fotografia podia reconhecê-lo.
Enfiou a fotografia numa trituradora de papel e viu-a transformar-se em tirinhas irrecunhecíveis. Enfiou o anel nu dedo mínimo. Admirou-o. observou-o mais
de perto e depois franziu o sobrolho e procurou um lenço para o polir.
Uma outra mulher teria muito em breve o privilégio de usar aquele mesmo anel, disse para consigo.
Sorriu por instantes enquanto pensava na sua próxima, e última, vítima.
ERam 4.50 quando Justin Wells regressou ao escritório na firma d arquitectura Benner, Pierce & Wells e tentou recomeçar o trabalho. Num gesto característico,
passou a mão pelo cabelo escuro. Depois deixou cair a caneta, empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Embora fosse um homem grande, afastou-se du estirador com
uma elegância felina e rápida.
??Ela vai ficar furiosa se descobrir o que estoú a fazer", disse para consigo mesmo enquanto os dedos se moviam, agilizados, em direcção ao telefone, que estava
em cima da secretária.
Talvez Barbara, a recepcionista, estivesse enganada, pensou ele. Talvez não tivesse sido Carolyn a telefonar para aquele programa de rádio. Mas a voz de
Carolyn era característica, bem modulada, com um ligeiríssimo sotaque inglês, graças aos verões da infância passados em Inglaterra.
Justin abanou a cabeça.
- Tenho de saber - sussurrou.
Ligou para a estação de rádio e passáram-no para o gabinete de Geany, u produtor de Perguntem à Dr.a Susan.
Deu a desculpa esfarrapada de que a sua mãe perdera o programa e ele queria a gravação para ela. Depois, quando lhe perguntaram se queria a gravação du programa
inteiro, ele estragou a história ao dizer abruptamente:
- Não, apenas as chamadas dos uuvintes. - Depois, tentou corrigir-se, acrescentando apressadamente: - Quero dizer, é para ouvir a chamada da minha mãe, mas,
por favor, façam uma gravação do programa inteiro.
Para piorar a situação, foi o próprio Jed Geany quem atendeu o telefonema para lhe dizer que o fariam com todo o prazer, porque era óptimo saberem que tinham ouvintes
tão interessados. Depois, pediu-lhe o nome e a morada.
Sentindo-se Com remorsos e miserável, Justin Wells deu o seu nome e a morada do escritório.
Mal tinha desligado quando recebeu um telefonema do Lenox Hill Hospital a informá-lo de que a mulher tinha ficado gravemente ferida num acidente de viação.
Quando SusaN passou pelo escritório de Nedda às 6 horas, encontrou- a prestes a fechar a secretária até ao dia seguinte.
- Que tal um copo de vinho? - perguntou Nedda.
- Parece-me uma excelente ideia. Eu vou buscar.
Susan foi pelo corredor até à kitchenette e abriu o frigorífico, onde havia uma garrafa de pinot grigio. Abriu a garrafa, serviu dois copos e regressou ao escritório
de Nedda. - Hora do cocktail - anunciou.
Nedda olhou fixamente para ela.
- Tu é que és a psicóloga, mas, se me é permitida uma opinião de amiga, pareces-me muito em baixo.
Susan acenou com a cabeça em concordância.
- Acho que estou. - Contou a Nedda a conversa irada de Douglas ao telefone, o telefonema da mulher que se identificara como Caren e, finalmente, a visita surpresa
de Jane Clausen.
- Estou surpreendida com Douglas Layton - disse Nedda. Quando eu falei com ele, não me pareceu de todo incomodado com o assunto.
- Bem, então mudou de ideias - disse Susan. - Veio ao meu consultório com Mrs. Clausen, mas não ficou. Disse que tinha uma reunião a que não podia faltar.
- Se eu fosse a ele, tinha faltado à tal reunião - disse Nedda friamente. - No ano passado, Jane nomeou-o um dos administradores do Fundo da Família Clausen. O que
é que seria tão importante para ele a deixar aqui sozinha, especialmente sabendo que Jane podia estar prestes a conhecer alguém que talvez pudesse descrever o homem
responsável pelo desaparecimento da sua filha, pOssivelmente até o seu assassino?
O ENORME APARTAMENTO de DOnald RiChardS, eM Central
West, servia-lhe de casa e consultório. O acesso às salas em que recebia os doentes era feito através de uma entrada separada a partir do corredor. As cinco assoalhadas
que reservava para si tinham a atmosfera claramente masculina de uma casa que não conhecia o toque de uma mulher há muito tempo. Tinham passado quatro anos desde
que a mulher, Kathy, uma modelo famosa, morrera durante uma sessão fotográfica nas Catskills.
Ele não estava lá quando aquilo acontecera. Mesmo assim, nunca deixara de se culpabilizar, e era certo que nunca recuperara.
A canoa na qual Kathy estava a pusar virara-se. O barco do fotógrafo e respectivos assistentes encontrava-se a uns cinco metros de distância, mas o complicado
vestido da viragem do século que ela envergava afundara-a antes que alguém conseguisse alcançá-la.
Os mergulhadores nunca recuperaram o corpo. Tinham-lhe dito:
- Mesmo no Verão, aquele lago é tão profundo que está gelado no fundo.
Ele sonhava frequentemente com ela. Por vezes, via-a encurraLada debaixo de uma saliência rOchosa na água gélida. Oútras vezes, o sonho mudava: o rosto dela
dissolvia-se e era substituído por outros, e todos eles sussurravam: ??A culpa foi tua".
A seguir ao programa Perguntem à Dra. Susan, ele foi directamente para casa. Rena, a governanta, já tinha o almoço pronto quando chegou.
Enquanto comia, Don pensou em Karen, a mulher que telefonara durante a transmissão do programa. Era uma situação intrigante. Regina Clausen desaparecera
há três anos. A mulher que se intitulava Karen falara sobre o seu envolvimento num romance a bordo de um navio apenas há dois anos. Era óbvio que Susan Chandler
faria a dedução inevitável de que, se era o mesmo homem que se envolvera com ambas as mulheres, ele pOdia ainda andar à procura de vítimas.
??Susan anda a meter-se num ninho de vespas, reflectiu Donald Richards, e interrogou-se sobre o que devia fazer em relação a isso.
No avião de regresso à Califórnia, Dee Chandler Harriman bebeu um copo de Perrier, descalçou as sandálias e recostou-se no assento, fazendo com que o cabelo cor
de mel se espalhasse sobre os ombros. Há muito habituada a olhares apreciativos, evitou deliberadamente fitar o homem do outro lado do corredor, que por duas vezes
tentara entabular conversa. Não havia ninguém sentado ao lado dela na segunda fila, o que era uma sorte.
Chegara a Nova Iorque na sexta-feira à tarde,ficara no apartamento que a sua Agência de Modelos Belle Aire tinha na Essex House e encontrara-se calmamente com duas
jovens modelos que esperava contratar.
As reuniões tinham corrido bem.
Que pena não poder dizer o mesmo sobre o dia de sábado,quando
fora visitar a mãe.Não devia ter sido tão mazinha para Susan,reflectiu. Ela é que acompanhara a mãe e acarretara com os problemas da separação e do divórcio.
??Mas,pelo menos,ela tem um curso superior??,pensou Dee.??Aqui estou eu com trinta e sete anos, grata por um simples diploma de estudos secundários.Mas também,desde
os meus dezassete anos,a única coisa que eu soube fazer foi passagens de modelo.Deviam ter-me obrigado a ir para a universidade.As duas atitudes inteligentes que
tomei na
minha vida foram casar com Jack e investir as minhas poupanças na agência."
Incomodada,recordou como tinha descarregado em Susan,dizendo-lhe que ela não compreendia o que era perder um marido.
Que pena não a ter encontrado na festa do pai ontem",pensou Dee,??mas ainda bem que lhe telefonei hoje de manhã.Estava a falar a sério quando disse que Alex Wright
é estupendo.??
Um sorriso aflorou aos lábios de Dee ao recordar o atraente homem de olhos afectuosos e inteligentes e um sentido de humor cativante.Ele perguntara-lhe se Susan
estava envolvida com alguém.
Dee tinha saudades de estar casada.A sensação de vazio com que
imiciara o fim-de-semana ameaçava aprofundar-se.Ela queria voltar a viver em Nova Iorque.Fora lá que Susan a apresentara a Jack,um fotógrafo comercial. Pouco depois,casaram-se
e mudaram-se para Los Angeles.
Estiveram cinco anos juntos.Há dois anos,ele insistira em ir esquiar um fim-de-semana.
? Dee sentiu as lágrimas a picarem-lhe os olhos.
Estou farta de estar sozinha - pensou ela zangada.
Procurou apressadamente dentro da carteira e encontrou o que procurava: uma brochura que descrevia um cru zeiro de duas semanas pelo canal do Panamá.
E porque não?", perguntou a si própria. ??Há dois anos que não tenho umas verdadeiras férias."
O agente de viagens dissera-lhe que ainda havia um bom camarote disponível no próximo cruzeiro. Ontem, o pai tinha-a instado a ir.
- Em primeira classe. Eu pago, querida - prumetera ele.
O navio zarpava da Costa Rica dentro de uma semana.
E eu estarei a bordo", decidiu Dee.
A FoRTE premunição de desastre que Pamela Hastings experimentara ao pegar no anel de turquesa de Carolyn na sexta-feira à noite ainda a assustava. Não falara
com Carolyn desde então, mas enquanto rodava a chave na porta do seu apartamento, na esquina da Madison com a Sessenta e Sete, registou mentalmente que tinha de
telefonar à sua amiga a dizer-lhe para se livrar do anel.
Olhou para o relógio. Eram 4.50. Foi directa para o quarto, trocouo fato azul-escuro por roupas confortáveis, serviu-se de um whiscky e sentou-se para ver
as notícias. O marido estava em viagem de negócios, e a filha, na universidade. Ia ser uma noite tranquila, só dela.
Às 5.05, olhou fixamente para a imagem da zona da Park Avenue que fora isolada e onde uma multidão de espectadores observava uma carrinha salpicada de sangue
com a grelha amachucada.
Incrédula e aturdida, Pamela ouviu o locutor em voz óffafirmar:
- Era este o cenário na esquina da Park Avenue e da Oitenta e Um onde a decoradora Carolyn Wells, de quarenta e um anos, caiu à frente de uma carrinha em
excesso de velocidade. A vítima foi rapidamente transportada para o Lenox Hill Hospital com ferimentos múltiplos na cabeça e lesões internas. O nosso repórter no
local falou com várias testemunhas do acidente.
Enquanto se levantava de um salto, Pamela ouviu uma série de comentários banais:
Aquela pobre mulher! ??É terrível que seja permitido as pessoas conduzirem daquela maneira.
Depois, uma velhota gritou:
- Vocês são todos cegos. Ela foi empurrada!
Pamela olhou fixamente enquanto o repórter aproximava rapida? mente um microfone da mulher.
- Não se importa de nos dizer o seu nume, minha senhora?
- Hilda Johnson. Eu estava perto dela. Ela tinha um envelope debaixo do braço. Um sujeito qualquer tirou-lho e depois empurrou-a.
- Que maluquice! Ela caiu - gritou outra testemunha.
O locutor voltou a fazer-se ouvir:
- Acabaram de ouvir o relato de uma testemunha ocular, Hilda Jomson, que afirmou ter visto um homem a empurrar Carolyn Wells para a frente da carrinha, ao
mesmo tempo que puxava o que parecia ser um envelope de debaixo do braço dela. Embora o relato de Ms. Johnson seja diferente das observações de todas as outras pessoas
que se encontravam no local, a Polícia diz que irá tomar em consideração o seu testemunho. Caso a história de Ms. Johnson venha a confirmar-se, o que poderia ter
sido um trágico acidente transforma-se de facto num potencial homicídio.
Pamela correu a buscar o casaco, e um quarto de hora depois estava sentada ao lado de Justin Wells na sala de espera da unidade de cuidados intensivos do Lenox Hill
Hospital. Ela enfiou a sua mão na dele.
- Está a ser operada - disse Justin num tom de voz frio e impassível.
Três horas depois, um médico veio falar com eles.
- A sua mulher está em coma - disse ele a Justin. - É demasiado cedo para lhe poder dizer se vai sobreviver. Mas ela parecia estar a chamar por alguém. Parecia
ser Win. Quem poderia ser?
Pamela sentiu a mão de Justin apertar a sua violentamente enquanto com uma voz angustiada, sussurrou, hesitante:
- Não sei. Não sei.
A recordação do corpo contorcido e a sangrar no alcatrão, o fato legante com marcas de pneus, enfraquecia Hilda Johnson, de oitenta anos, mas conseguiu recuperar
o suficiente para falar com o repórter. De?pois, voltou-se e, com grande dificuldade, dirigiu-se para sua casa, um apartamento na Oito Este. Uma vez lá dentro, fez
chá e, com mãos trémulas, bebeu-o devagar.
- A pobre rapariga - murmurava continuamente enquanto revivia o incidente uma e outra vez. Pelo menos dera uma boa olhadela ao homem antes de ele desaparecer na
multidão.
Por fim, achou que já recuperara o suficiente para telefonar para a esquadra. O sargento de serviço que atendeu era um com quem ela falara já várias vezes, normalmente
quando os informava sobre mendigos que incomodavam peões na Terceira Avenida. Ele ouviu a história pacientemente.
- Hilda, a senhora está enganada - disse ele, acalmando-a. - Já falámos com um monte de pessoas que estavam naquela esquina quando o acidente ocorreu. A pressão
da multidão quando a luz ficou verde fez Mrs. Wells perder o equilibrio, e mais nada.
- Foi a pressão de uma mão nas costas dela que deliberadamente a empurrou para a frente e que provocou a sua queda - argumentou Hilda. - Eu vou aí falar
com o capitão Shea amanhã de manhã. Às oito em ponto.
Desligou o telefone, indignada. Eram apenas 5 da tarde, mas ela precisava de se deitar. Sentia um aperto no peito que apenas um comprimido de nitroglicerina
debaixo da língua e descanso na cama poderiam aliviar.
Minutos depois, já estava aconchegada na sua camisa de noite quente, com a cabeça apoiada na almofada alta que a ajudava a respirar melhor. O latejar na
cabeça e a dor no peito estavam a desaparecer.
Hilda suspirou de alívio. Uma boa noite de descanso, e depois iria à esquadra contar tudu ao capitão Shea e apresentar uma queixa contra aquele sargento
idiota. A seguir, insistiria em sentar-se ao pé do desenhador da Polícia para descrever o homem que empurrara aquela desgraçada. ??Que coisa vil, pensou, recordando
a cara dele. Da pior espécie: muito bem vestido, com ar de muita classe, o género de pessoa em quem se julga que se pode confiar.
Aquele sargento palerma tratara-a como a uma criança. O seu último pensamento antes de adormecer foi que pela manhã iria armar um pé-de-vento. O sonu apoderou-se
dela no momento em que começava a rezar uma ave-maria por Carolyn Wells.
DePois de sair do escritório de Nedda, ao lusco-fusco, Susan foi a pé para casa, na Downing Street. O frio penetrante do início da manhã regressara. Estugou
u passo.
Virou para o seu prédio, um prédio de tijolo de três andares, e começou a subir até ao seu apartamento, no último andar. Tinha uma grande sala de estar,
uma cozinha espaçosa, um quarto de dormir com um tamanho fora do normal e um pequeno escritório. Artística e confortavelmente mobilado com as coisas que a mãe lhe
oferecera quando se mudara para um condomínio de luxo, Susan sempre o achara quente e acolhedor, quase como um abraço físico.
Naquela noite, parecia-lhe particularmente calmante, reflectiu Susan, premindo o interruptor que acendia a lareira a gás. Estava uma noite agradável. Já
em casa, concluiu com entusiasmo enquanto mudava de roupa para um
vestido solto de veludo. Ia fazer uma salada e um prato de massa e depois bebia um copo de Chianti.
? Pouco depois, quando estava a lavar agriões, o telefone tocou.
- Susan! Como está a minha menina?
Era o pai.
- Estou óptima, pai - respondeu Susan, e depois fez uma careta. - Quero dizer, estou óptima, Charles.
- Binky e eu tivemos imensa pena de que tivesses de sair tão cedo. Tu atraíste a atenção de Alex Wright. Ele não parava de falar de ti.
- Pareceu-me um sujeito simpático.
- Ele é muito mais do que isso. A família Wright é das melhores. Vou passar o telefone a Binky. Ela quer contar-te uma coisa.
- Porquê eu?", pensou Susan enquanto o telefone era passado.
O esfusiante ??Olá!" da madrasta produziu-lhe uma sensação desagradável à ouvido.
Antes que Susan pudesse corresponder, Binky começou a enaltecer as qualidades de Alexander Wright.
- Conheço-o há anos, querida - chilreou ela. - É exactamente o homem que Charles e eu imaginamos para ti ou para Dee. Nunca casou, está perto dos quarenta e no topo
da lista de toda a gente. Pertence à direcção da Fundação da Família Wright. Eles dão toneladas de dinheiro todos os anos. É a pessoa mais generosa e mais filantrópica
que jamais poderias querer conhecer. Não é como aqueles egoístas que só pensam em si próprios.
Não posso acreditar que tenha dito isso, pensou Susan.
- Querida, eu fiz uma coisa e espero que não te importes. Alex acabou de me telefonar e praticamente exigiu que eu lhe desse o teu número de casa.
- Eu preferia que não desse o número de minha casa, Binky - começou Susan asperamente, e depois suavizou o tom. - Mas, neste caso, acho que não faz mal.
Ela conseguiu interromper a profusão de garantias de Binky e desligou com a sensação de que a sua noite azedara repentinamente.
Passados menos de dez minutos, telefonou Alexander Wright.
- Eu obriguei Binky a dar-me o seu número de casa. Espero que
não se importe.
- Eu sei - disse Susan. - Charles e Binky telefonaram-me mesmo agora.
- Porque não trata o seu pai por pai quando fala comigo? Eu não me importo.
Susan riu-se.
- Você é muito perspicaz. Vou fazer isso.
- Ouvi o seu programa hoje e gostei imenso.
Susan ficou surpreendida ao perceber que o comentário lhe agradara.
- Fiquei sentado ao lado de Regina Clausen num jantar há seis
ou sete anos. Ela pareceu-me uma pessoa encantadora na altura. - Wright hesitou, depois disse em tom de desculpa: - Eu sei que é muito em cima da hora,mas acabei
agora uma reunião de direcção no Hospi tal St.Clare e estou esfomeado.Se ainda não jantou e não tem planos, consigo persuadi-la a sair comigo?
Susan concordou que ele a fosse buscar dali a vinte minutos.
Enquanto se dirigia ao quarto para mudar de roupa para uma camisola e umas calças largas de caxemira,convenceu-se de que a verdadeira razão por que ia sair neste
encontro de improviso era para ouvir quaisquer impressões que Alex Wright pudesse ter sobre Regina Clausen .
Alexandre Wright avistou o seu carro estacionado em segunda fila perto do Hospital St.Clare e entrou para o lugar traseiro antes que u motorista saísse para lhe
abrir a porta.
- Uma longa reunião, patrão - disse Jim Curley
enquanto ligava o motor.- Para onde vamos? - Falava com a familiaridade de um empregado de longa data,pois trabalhava para a família Wright há trinta anos.
- Jim,tenho o prazer de te informar que,daqui a cinco minutos, vamos buscar uma senhora muito atraente à Downing Street e vamos jantar ao I1Mulino - respondeu Wright.
Enquanto o carro abria caminho pur entre o tráfego lento da Nona Avenida, Curley ia olhando repetidamente para o espelho retrovisor, observando com alguma preocupação
que o patrão fechara os olhos e reclinara a cabeça de encontro à pele macia do encosto.
Quem quer que tenha dito que pode ser tão duro dar dinheiro como roubá-lo tinha razão, pensou Curley,compadecido.Ele sabia que, como presidente da Fundação da Família
de Alexander e Virginia right, Mr.Alex era constantemente assediado por indivíduos e organizações a suplicarem subsídios.E ele era tão simpático para toda a gente!
Provavelmente, demasiado generoso também.Nada como o pai.
??Espero que esta senhora da Downing Street seja divertida" pensou. Alex Wright merece divertir-se. Ele trabalha demasiado."
CoMo habitualmente, o I1Mulino estava à cunha.O aroma da boa
comida misturava-se com as vozes animadas dos comensais.O enorme prato de legumes a transbordar,logo à entrada, proporcionava um aconchego campestre à decoração
simples do restaurante.
Um empregado acompanhou-os a uma mesa.Alexander Wright pediu imediatamente uma garrafa de Chianti e uma de Churdonnay.
Quando viu o olhar de consternação de Susan,riu-se.
- Não tem de beber mais do que um copo ou dois,mas garanto-lhe
que vai apreciar ambos.Para ser franco,não almocei e estou esfomeado. Importa-se que consultemos imediatamente a ementa?
Susan decidiu-se por uma salada e salmão.Ele escolheu ostras, massa e vitela.
- A massa teria sido o meu almoço - disse ele.
Enquanto o maitre servia o vinho,Susan ergueu as sobrancelhas.
- Não acredito que há menos de uma hora eu estava com o meu cafetã preferido,planeando uma noite tranquila em casa -
contou-lhe ela.
- Podia ter vindo de cafetã - sugeriu ele.
- Só se quisesse tentar impressioná-lo - disse ela,arrancando
uma gargalhada a Wright.
Ela estudou-o enquanto ele acenava a alguém do outro lado da sala.
Estava de fato cinzento-escuro,camisa branca como a neve e uma gravata com um desenho miudinho em cinzento e vermelho.Era atraente e perturbador. Ele tinha qualquer
coisa de estranho.Alex Wright evidenciava a qualidade e o aprumo de gerações de uma educação esmerada,mas havia algo mais que a intrigava.
Acho que ele é um pouco tímido", concluiu ela. ??É isso mesmo." Agradava-lhe isso nele.
- Ainda bem que fui à festa ontem - disse-lhe ele serenamente.
- Tinha decidido ficar em casa a fazer as palavras cruzadas do Times, mas já havia aceitado o convite e não queria ser indelicado.Quero que saiba que lhe
estou muito grato por ter vindo jantar comigo com u?
convite à última hora.
- Disse que conhece Binky há bastante tempo? !
- Sim,mas apenas como se conhecem as pessoas que vão às mesmas festas. Das pequenas.Eu não suporto as grandes.Espero que não esteja a ofendê-la quando digo que ela
é uma cabeça tonta.
- Uma cabeça tonta muito persuasiva - disse Susan, pesarosa.
Que acha daquele castelo da Disney que o meu pai lhe construiu?
Riram-se.
- Mas ainda está magoada e incomodada com a situação? - observou ele.
??Quando não se quer dar uma resposta,faz-se uma pergunta",recordou Susan a si própria.
- Já conhece o meu pai e a minha irmã - contrapôs ela.- ?
você Tem irmãos?
Ele disse-lhe que era filho único,produto de um casamento tardio.
- O meu pai andava demasiado ocupado a fazer dinheiro para cortejar quem quer que fosse até chegar aos quarentas - explicou ele.- Depois,andava demasiado ocupado
a acumular riqueza para prestar muita atenção a mim ou à minha mãe.Mas garanto-lhe que,com a miséria humana de que ouço falar todos os dias na fundação,me considero
uma pessoa com muita sorte.
- Vistas bem as coisas,você é uma pessua com sorte - concordou
Susan.- Tal como eu.
Apenas quando estavam a tomar café é que o nome de Regina
Clausen veio à baila.Alex Wright não tinha muito mais para lhe contar do que já contara ao telefone.Havia ficado na mesma mesa que Regina num jantar da Futures Industry.
Achou-a uma mulher tranquila e inteligente.Parecia impossível que alguém com o tipo de vida dela pudesse simplesmente desaparecer.
- Levou a sério aquela chamada que recebeu no programa? - perguntou ele.- A da mulher que parecia muito nervosa?
Susan decidira não falar com ninguém sobre o anel que a mãe de
Regina Clausen lhe dera.Aquele anel,com a mesma inscrição
??Pertences-me" que Karen mencionara,era o único objecto tangível que podia relacionar o desaparecimento de Regina e a experiência de Karen com uma amizade a bordo
de um naviu.
- Francamente,não sei - respondeu ela.- É demasiado cedo
para ter a certeza.
- Afinal, como é que você entrou no mundo da rádio? - perguntou ele.
Ela deu por si a contar-lhe como Nedda a apresentara à ex-apresentadora e como deixara o cargo no Ministério Público do Condado de Westchester para voltar
a estudar. Por fim, acompanhando o conhaque, Susan disse :
- Geralmente, nas conversas, eu sou a ouvinte. Chega de falar só de mim. Já falei demais sobre mim, de facto.
Wright fez sinal a pedir a conta.
- Nem por sombras - disse ele.
? ? HILDA JOHNSON acordou às 10.30da noite,sentindo-se revigorada e ao mesmo tempo esfomeada. Uma chávena de chá e uma torrada caia-lhe bem,decidiu ela,sentando-se
e estendendo a mão para o roupão.
Enquanto atava o cinto de veludo,Hilda reviu mentalmente o rosto do homem que vira a empurrar Mrs.Wells.Agora que o choque passara, ela lembrava-se da cara
dele ainda com maior nitidez do que parecera recordar na altura. De manhã, ela daria ao retratista da Polícia uma descrição completa do homem.Os olhos dele eram
muito afastados,e
tinham-se semicerrado ao fitar Carolyn Wells; tinha pestanas compridas e um queixo decidido.
Hilda foi até à cozinha para encher a chaleira.Tinha acabado de acender o lume quando a campainha da entrada tocou.
Quem diabo seria àquela hora?,pensou enquanto caminhava para o minúsculo hall de entrada e pegava no auscultador do intercomunicador.
- Quem é? - Nem sequer tentou esconder a sua irritação.
- Miss Johnson,peço imensa desculpa por incomodar.- A voz do homem era baixa e agradável.- Sou o inspector Anders.Detivemos um suspeito que pode ser a pessoa
que viu a empurrar aquela senhora.
- Pensei que ninguém acreditava em mim quando eu disse que ela tinha sido empurrada - disparou Hilda.
- Não queríamos que se soubesse que estávamos no encalço de um suspeito. Posso subir só um minuto?
- Acho que sim.- Hilda premiu o botão que abria a porta da rua.
Esperou até o inspector Anders tocar à campainha para lhe abrir a porta.
Deve estar a arrefecer??,pensou ela.
Ele trazia a gola do casaco levantada e um chapéu de aba larga descaído sobre a testa.Além disso,estava de luvas.
- É só um minuto, Miss Johnson - disse ele.
- Entre - disse Hilda com vivacidade.
Enquanto o conduzia até à sala de estar, não ouviu o leve estalido da porta a fechar-se.
- Tenho uma coisa para lhe mostrar, Miss Johnson. - O visitante mostrou-lhe uma carta de condução com uma fotografia.
Hilda ficou sem respiração.
- É essa a cara! É esse o homem que eu vi a empurrar aquela mulher e a agarrar no envelope.
Pela primeira vez, olhou a direito para o inspector Anders. Ele tirou o chapéu, e a gola do casaco já não estava levantada à volta do seu pescoço.
Os olhos de Hilda arregalaram-se com o choque. A sua boca abriu-se, mas o único som que dela saiu foi um débil murmúrio.
- Oh, não! - Ficou lívida ao compreender que caíra numa armadilha.
Levantou as mãos, implorante. Depois, num fútil protesto, virou as palmas das mãos para fora para se proteger da faca que o seu visitante estava prestes
a enterrar-lhe no peito.
Ele saltou para trás para evitar o jorro de sangue e observou o corpo dela a perder as forças e a cair sobre o tapete surrado. Um olhar fixo espantado instalou-se
nos olhos de Hilda, mas ela conseguiu ainda murmurar:
- Deus... não... o... deixará... escapar...
Quando ele estendia o braço por cima dela para pegar na sua carta de condução, o corpo dela estremeceu violentamente e a mão de Hilda caiu em cima do sapato
dele.
Sacudindo a mão, ele dirigiu-se calmamente até à porta, abriu-a, verificou se estava alguém no patamar e em quatro passos estava na escada de incêndio. Quando
chegou ao átrio, entreabriu a porta e não viu ninguém, e úm instante depois ia a caminho de casa.
Seria que as palavras dela imediatamente antes de morrer o tinham amaldiçoado?, perguntou a si próprio. Elas relembraram-lhe o erro que cometera naquela
tarde, o erro que Susan Chandler, com sua experiência de advogada de acusação, podia eventualmente vir a descobrir.
Ele sabia que não podia deixar que isso acontecesse.
O soNo de Susan foi agitado, cheio de sonhos perturbadores. Quando acordou, recordou fragmentos de cenas nas quais Jane Clausen, Dee, Jack e ela estavam
todos presentes. A certa altura, Jane Clausen suplicara:
??Susan, eu quero a Regina, enquanto Dee estendia a mão e dizia:
??Susan, eu quero o Jack."
Bem, tu tiveste-o??, pensou Susan.
Saiu da cama e espreguiçou-se, esperando aliviar o já habitual aperto no coração. Perturbava-a profundamente que, passados todos aqueles anos, um sonho pudesse trazer
de novo essas recordações. Recordações dela própria com vinte e três anos, estudante de Direito, a trabalhar em part-time para Nedda. Jack, fotógrafo comercial,
de vinte e oito anos, a começar a afirmar-se. Os dois entendiam-se bem até à
Entrada em cena de Dee. Irmã mais velha, querida dos fotógrafos. Sofisticada. Divertida. Encantadora. Homens em fila querendo namorar com ela, mas ela quisera
Jack.
Susan foi à casa de banho. Escovou os dentes com energia, como se naquela acção conseguisse obliterar o sabor amargo que lhe ficara na boca. O mais engraçado,
pensou ela, é que Dee e Jack tinham sido feitos um para o outro. Amavam-se. Talvez até em demasia. Susan abriu a água quente no chuveiro. ??Por outro lado??, pensou
, ??se Jack e eu tivéssemos acabado por casar, eu podia ter sido apanhada pela avalancha e morrido também. Dee detesta o frio, mas eu certamente que estaria naquela
encosta com ele.??
Às 7.30, Susan estava a tomar o pequeno-almoço. Ligou o televisor para ver Bom Dia, Nova Iorque, para saber as notícias. Pouco depois, o repórter começou
a falar sobre uma velhota que tinha aparecido assassinada à facada no seu apartamento, no Upper East Side. Susan estava quase a desligar o televisor quando o apresentador
voltou a passar o fragmento das notícias da noite anterior, que incluía o relato em que Hilda Johnson, a velhota assassinada, afirmava que a mulher que fora atropelada
na Park Avenue fora deliberadamente empurrada durante algum tempo.
Susan fitou o televisor,dando-se conta de que a sua faceta de advogada de acusação se recusava a acreditar que aqueles dois acontecimentos fossem simples
coincidência, enquanto a sua faceta de psicóloga se questionava sobre que tipo de mente descontrolada poderia cometer
dois crimes tão brutais.
ELE DORMIRA intermitentemente, acordando diversas vezes durante a noite. De cada vez, ligara o televisor, sintonizara a estação noticiosa Jane 1 e ouvira
sempre a mesma coisa: Carolyn Wells, a mulher que fora atropelada na esquina da Park Avenue com a Oitenta e Um, estava? em coma; o seu estado era crítico.
Ele sabia que, se por qualquer golpe de azar ela recuperasse, contaria que fora empurrada por Owen Adams, um homem que havia conhecido durante um
cruzeiro.
? Através de Owen Adams não podiam chegar até ele, disso tinha certeza. O passaporte britânico, como todos os que usava nas suas viagens especiais, era falso. Não,
o verdadeiro perigo estava no factor de que ele fora reconhecido por Carolyn Wells ontem. O que significava que, se ela recuperasse, não era impossível que pudessem
voltar a encontrar-se por acaso em Nova Iorque um dia qualquer. Numa situação de cara a cara, ela certamente voltaria a reconhecê-lo.
Isso não pode acontecer nunca. Não lhe pode ser permitido recuperar.
Nas notícias das 4, foi anunciado que uma mulher idosa fora encontrada morta à facada no seu apartamento, no Upper East Side. Ele preparou-se para
as palavras seguintes do locutor.
- Como foi relatado ontem, a vítima, Hilda Johnson, afirmou ter visto alguém empurrar deliberadamente a mulher que foi ontem atropelada por uma carrinha
na esquina da Park Avenue com a Rua Oitenta e Um.
Franzindo o sobrolho, ele apontou o controle remoto e desligou o televisor. Se a Polícia estabelecesse uma correlação entre a morte de Hilda Johnson
e o suposto acidente de Carolyn Wells, haveria uma corrida desenfreada dos meios de comunicação. Poderia até vir a saber-se que fora Carolyn Wells quem telefonara
para o programa de Susan Chandler e falara de um anel de recordação com a inscrição Pertences-me". O pequeno gnomo encarregado daquela espelunca loja de recordações
a preços reduzidos em Greenwich Village poderia lembrar-se de que em diversas ocasiões um certo senhor cujo nome não sabia fora lá comprar anéis de turquesa com
a mesma inscrição.
Quando era novo, ouvira contar a história de uma mulher acusada de coscuvilhice, a quem fora dado como penitência que rasgasse uma almofada de penas
num dia de ventania e depois apanhasse todas as p nas que se espalhariam. Quando ela argumentara que isso era impossível, disseram-lhe que era tão impossível como
encontrar todas as pessoas que tinham ouvido as suas mentiras e repor a verdade.
Era uma história que o divertira na altura, mas ele agora enfrentava a almofada de penas num contexto diferente. Estavam a desmoronar as peças do
cenário que ele planeara com tanto cuidado.
Carolyn Wells. Hilda Johnson. Susan Chandler. O gnomo. De Hilda Johnson, já ele se safara. Mas os outros três ainda eram as penas ao vento.
EsTAvA uma daquelas manhãs douradas de Outubro que por
vezes se seguem a um dia particularmente fresco. O ar estava renovado e tudo parecia brilhar. Donald Richards decidiu gozar a manhã fazendo a pé o percurso entre
a esquina da Central Park West com a Oitenta e Oito e o estúdio radiofónico, na esquina da Quarenta e Um com a Broadway.
Chegou vinte minutos antes do início do programa, e a recepcionista disse-lhe que podia esperar na antecâmara. No corredor, cruzou-se com o produtor, Jed
Geany.
Geany cumprimentou-o, e preparava-se para seguir rapidamente caminho quando Richards o deteve.
- Não me lembrei de pedir uma gravação do programa de ontem para os meus arquivos - disse ele. - Não me importo de pagar, é claro, e podia gravar-me o programa
de hoje também? Geany encolheu os ombros.
- Claro. Por acaso, vou agora mesmo fazer uma gravação do programa de ontem para um sujeito qualquer que telefonou a dizer que a queria para a mãe. Faço
uma para si também. - Geany ergueu o envelope que lhe estava endereçado. - Justin Wells. Porque será que o nome me soa familiar? Tenho puxado pela cabeça a tentar
lembrar-me onde o ouvi.
Donald Richards optou por não responder, mas teve de se esforçar para não revelar a sua surpresa. Recordou a única visita que recebera de Justin Wells. Tratara-se
da habitual sessão exploratória, e Wells nunca mais voltara.
Richards recordava-se de ter telefonado a Wells instigando-o a tratar-se, dizendo-lhe que ele precisava de ajuda, de muita ajuda.
Durante a primeira parte do programa, Richards e Susan falavam sobre como as mulheres podiam evitar situações potencialmente perigosas.
- Repare - disse Richards -, a maior parte das mulheres entende que, se estacionar o carro num parque escuro e sem vigilância, se arrisca a ter problemas. Por outro
lado, essas mesmas mulheres são muitas vezes descuidadas quando se encontram em casa. Com a vida de hoje em dia, se deixamos as portas destrancadas, independentemente
do nível de segurança que o bairro aparenta ter, aumentamos as hipóteses de sermos vítimas de assalto ou talvez pior.
?? Ele tem uma forma de falar agradável??, pensou Susan. ??Não é paternalista.
No intervalo seguinte, ela disse-lhe:
- Acho que é melhor eu começar a ter cuidado se quiser mantero emprego. Você tem jeito para isto.
- Bem, estou a começar a gostar - assentiu ele. - Embora tenha de admitir que, quando terminar a tournée promocional para este livro, ficarei aliviado
por regressar ao meu mundo rotineiro.
- Não demasiado rotineiro, aposto. Você não viaja imenso?
- Bastante. Sou solicitado a prestar depoimento em tribunal como especialista internacionalmente.
- Dez segundos, Susan - avisou o produtor de dentro da cabina.
Estava na altura dos telefonemas dos ouvintes. O primeiro foi uma pergunta sobre o programa do dia anterior:
- Karen sempre foi ter consigo ao consultório, Dra. Susan?
- Não, não apareceu - disse Susan. - Mas, para o caso de ela estar a ouvir, vou pedir-lhe o favor de entrar em contacto comigo, mesmo que seja só
pelo telefone.
Apareceram vários telefonemas dirigidos a Donald Richards. Depois, Susan anunciou:
- A nossa próxima chamada é do Yonkers. Está no ar, Tiffany.
- Dra. Susan, eu adoro o seu programa. Eu estava a ouvir ontem, e lembra-se de aquela mulher, Karen, ter dito que recebeu um anel de um sujeito com
a inscrição ??Pertences-me"?
- Sim, lembro-me - respondeu Susan rapidamente. - Sabe alguma coisa sobre o homem?
Tiffany começou a rir-se.
- Só sei que deve ser um grande forreta. Dra. Susan, o meu namorado comprou-me uma vez um anel igual por brincadeira no ano passado, quando estávamos
em Greenwich Village. Era bonito, mas não? custou mais de dez dólares.
- Exactamente onde na Village é que o comprou? - perguntou? Susan.
- Não me lembro ao certo. Numa daquelas lojas deprimentes de recordações que vendem estátuas da Liberdade de plástico e elefantes de latão.
- Tiffany, se se lembrar de onde fica ou se algum dos nossos ouvintes neste momento souber, por favor, telefonem-me - pediu Susan.
- O homenzinho da loja disse-nos que era ele próprio quem fazia os anéis - disse Tiffany. - Ouça, eu entretanto rompi com o meu namorado, por isso posso dar-lhe
o anel. Mando-lho por correio.
- Anúncios - avisou Jed para os auscultadores de Susan.
- Muito obrigada, Tiffany - disse Susan apressadamente. - E agora uma mensagem dos nossos patrocinadores.
Mal o programa acabou, Donald Richards levantou-se.
- Uma vez mais, obrigado, Susan, e desculpe-me por sair à pressa. Tenho um doente à espera. - Depois, hesitou. - Gostava de jantar consigo um dia destes - disse
calmamente. - Telefono-lhe para o consultório.
Saiu. Susan sentou-se um momento a pensar no último telefonema. Seria possível que o anel de recordação que Jane Clausen encontrara entre os objectos pessoais de
Regina tivesse sido comprado naquela cidade? Significaria isso que o homem responsável pelo desaparecimento dela era de Nova Iorque?
Profundamente concentrada, levantou-se e dirigiu-se à régie. Geany estava a enfiar uma cassete dentro de um envelope.
- Richards saiu à pressa - comentou ele. - Parece ter-se esquecido de que me tinha pedido para gravar os programas. - Encolheu os ombros. - Acho que vou mandar-lhe
as gravações por correio juntamente com esta. - Apontou para o envelope endereçado a Justin Wells. Este sujeito telefonou ontem a pedir uma gravação do programa
porque a mãe dele não o ouviu.
- Que lisonjeiro! - observou Susan. - Até amanhã.
No táxi, a caminho do consultório, ela abriu o jornal. Na página 3 do Post havia uma fotografia de Carolyn Wells, a decoradora que ficara ferida no acidente da tarde
anterior na Park Avenue. Susan leu a história com interesse. Um pouco mais abaixo na coluna ela leu: ??O marido, o conhecido arquitecto Justin Wells...??
No instante seguinte, ela estava a falar do telemóvel para a estação. Apanhou Jed Geany mesmo quando ia a sair para almoçar. Ele concordou em mandar-lhe o pacote
endereçado a Justin Wells por um mensageiro.
Susan reviu mentalmente o seu dia. Tinha consultas umas atrás das outras toda a tarde. Mas depois levava a cassete ao Lenox Hill Hospital onde, segundo o jornal,
Justin Wells se mantinha em vigília à cabeceira da mulher.
??Ele pode não querer falar comigo", pensou Susan, mas de uma coisa tenho a certeza: seja qual for a razão pela qual ele queria o uma gravação do
programa de ontem, não foi por a mãe não ter conseguido ouvi-lo."
JaNe CLausEN não tinha a certeza se estaria suficientemente bem ? ? para comparecer à reunião da direcção do Fundo da Família Clausen:
Passara a noite cheia de dores e ansiava por passar o dia a descansar tranquilamente em casa. Só a consciência atormentadora de que o tempo estava a esgotar-se-
lhe é que lhe deu o ímpeto necessário para se levantar, tomar banho e vestir-se.
Enquanto bebia café, recordou a tarde anterior. O seu desapontamento por Karen não ter comparecido ao encuntro no consultório da Dra. Chandler continuava
a aumentar. Jane tinha muitas perguntas para lhe fazer: Como era o homem que ela conheceu? Sentiu algum perigo? Jane sabia que Regina tinha uma intuição apurada.
Para ela ter conhecido um homem e sido suficientemente seduzida para alterar u itinerário; ele devia parecer acima de qualquer suspeita.
- Acima de qualquer suspeita. - E agora aquela expressão perturbava-a porque levantava questões sobre Douglas.
Douglas Layton tinha um apelido distinto que era um garante da sua boa formação. Jane Clausen conhecera os Laytons de Filadélfia naju? ventude, embora
tivesse perdido o contacto com eles ao longo dos anos. Em todo o caso, lembrava-se bem deles, e muitas vezes nos últimos tempos, ao referir-se a eles, Douglas enganava-
se nos nomes. Jane não podia deixar de se interrogar até que ponto ele realmente pertencia à mesma família.
Os antecedentes académicos de Douglas eram excelentes. Não havia dúvida de que era muito inteligente.
??Então, u que está a perturbar- me?, perguntou Jane Clausen a si própria.
Fora o que acontecera no dia anterior, concluiu ela. O facto de Douglas Layton estar demasiado ocupado com outra pessoa para esperar com ela no consultório
da Dra. Chandler. Ela tinha a certeza de que ele mentira relativamente à suposta reunião. Mas porquê?
Naquela manhã, na reunião de administradores do fundo, iam decidir um certo número de subsídios substanciais. ??É difícil aceitar as recumendações de alguém sobre
quem se tem dúvidas??, pensou Jane Clausen. Se Regina estivesse ali, conversariam sobre o assunto. Regina costumava dizer: ??Duas cabeças pensam melhor do que uma,
mãe. Susan Chandler. Recordando a compaixão nos olhos de Susan, Jane percebeu como gostara imenso da jovem psicóloga.
??Ela é sensata e amável. Nunca tive paciência para esta coisa dos psicólogos, mas ela parece de imediato uma amiga. Ela percebeu como eu fiquei desapontada.
Jane Clausen levantou-se. Estava na hora de ir para a reunião.
Esta tarde telefono à Dra. Susan Chandler e marco um encontro com ela??.
Sorriu ao pensar: ??Sei que Regina aprovaria.??
TENHO DE VoLTaR ao mar novamente...
A cadência das palavras era como o rufar de um tambor na sua cabeça. Já se via no cais a mostrar a identificação a um cortês membro da tripulação,a ouvir
o cumprimento: ??Bem-vindo a bordo!??,a subir a prancha de embarque metálica,a ser conduzido ao camarote.
Reservava sempre o melhor alojamento possível em primeira classe, com varanda privada.Uma vez instalado,ficava livre para deambular e seleccionar a presa.
Fizera a primeira viagem daquelas há quatro anos.Agora,a sua jornada estava prestes a terminar.Só lhe faltava uma.E estava na hora de a encontrar. Havia
várias possibilidades de cruzeiros com destino ao luxemburgo, que fora decretado para a morte daquela última mulher solitária.Já decidira a identidade que ia assumir:
um investidor,criado na Bélgica,
filho de mãe americana e pai diplomata britânico.
Estava ansioso por encarnar o novo papel,por encontrar a mulher certa,por deixar o destino dela juntar-se ao de Regina,cujo corpo, lascado de pedras,jazia no fundo
da concorrida via marítima que é a baía de Kowloon; por unir a sua história à de Veronica,cujos ossos apodreciam no Vale dos Reis; à de Constance,que substituíra
Carolyn em Londres; à de Monica em Londres; à de todas estas irmãs na morte.
Tenho de voltar ao mar novamente.Mas primeiro havia um assunto
em aberto para tratar.Naquela manhã,ouvindo novamente o programa da ?Dra. Susan,ele decidira que uma das penas ao vento tinha de ser elançada imediatamente.
TINHAM-SE PASSADO cinquenta anus desde que Abdul Parki chegara à América, um jovem tímido e esguio de dezasseis anos, vindo de Nova Deli. Começara imediatamente
a trabalhar na minúscula loja de recordações do tio, na MacDougal Street, em Greenwich Village; Agora, Abdul era o dono, mas o resto estava tudo na mesma. A loja
parecia ter ficado parada no tempo. Até o letreiro onde se lia Lorn FsPEciALtDADEs KHvEM era uma cópia exacta daquele que o tio pendurara. Abdul continuava esguio,
e embora tivesse por necessidade ultra passado a sua timidez, possuía uma reserva natural que o fazia manter uma certa distanciação dos clientes. Os únicos com os
quais alguma vez falava eram aqueles que apreciavam a perícia e o esforço que ele investia nos anéis e pulseiras baratos que ele próprio fabricava. E embora nunca
tivesse perguntado qual era a razão, Abdul questionava-se sobre o homem que, em três ocasiões diferentes, viera comprar anéis de torquesa com a inscrição ??Pertences-me??.
Abdul, que fora casado com a falecida mulher durante quarenta e cinco anos, achava engraçado que aquele cliente mudasse regularmente de namorada.
Da última vez que u homem lá estivera, caíra-lhe um cartão- de visita da carteira. Abdul apanhara-o e olhara de relance para ele antes de o devolver. Ao ver o olhar
de desagrado no rosto do cliente, pedira desculpa, tratando o cliente pelo nome, percebendo imediatamente que cometera um segundo erro.
??Ele não quer que eu saiba quem ele é, e agora não vai cá voltar", tinha sido o pensamento imediato e arrependido de Abdul. E dado que passara um ano sem
o homem voltar a aparecer, ele suspeitava de que era realmente assim.
Abdul fechava a loja todos os dias à 1 da tarde e depois ia almoçar.
Naquela tarde, estava prestes a colocar o letreiro FECHADO, VOLTO mais logo, na porta quando o misterioso cliente apareceu, entrou e o cumprimentou calorosamente.
Abdul sorriu.
- Que bom voltar a vê-lo.
- Também é muito bom vê-lo a si. Pensei que já se tivesse esquecido de mim.
- Oh, não, senhor. - Teve o extremo cuidado de não usar o nome do homem.
- Aposto que não se lembra do meu nome - declarou convictamente o cliente.
- Ai isso é que me lembro, sim senhor - retorquiu Abdul, e pronunciou-o.
? - Ainda bem - disse o cliente calorosamente. - Abdul, eu preciso de outro anel. Sabe do que estou a falar. Espero que tenha algum.
- Acho que tenho três, senhor.
- Bem, talvez os leve todos. Ah, mas estou a perturbar a sua hora de almoço. Antes que entrem mais clientes, porque não pomos o letreiro e fechamos
a porta? Caso contrário, nunca mais sai daqui.
Abdul sorriu novamente, agradado com a amabilidade daquele cliente excepcionalmente afável. Entregou-lhe de boa vontade o letreiro e viu-o fechar a porta à chave.
Foi então que reparou que, embora ? estivesse ameno, o cliente trazia luvas.
Abdul foi até ao balcão com tampa de vidro e retirou um tabuleiro.
- Dois dos anéis estão aqui. Está mais outro na minha mesa de trabalho. Vou buscá-lo. - Transpôs rapidamente as cortinas para a pequena oficina.
Três raparigas de uma vez, pensou ele, sorrindo para consigo.
Abdul virou-se com o anel na mão e a boca abriu-se-lhe de espanto. O Cliente seguira-o.
- Encontrou o anel?
- Está aqui.- Abdul entregou-lho,sem perceber porque se sentia
de repente nervoso e encurralado.
? Quando viu o súbito brilho da faca, compreendeu.
Eu tinha razão em ter medo, pensou enquanto sentia uma dor aguda,antes de deslizar para a escuridão.
Às 2.50,QUANDO O doente das 2horas se preparava para sair, e Susan pensou em ir almoçar, recebeu uma chamada de Jane Clausen.Sentiu imediatamente a tensão
dissimulada sob a voz tranquila e educada do pedido de uma consulta.
- Desejo uma visita profissional - explicou Mrs.Clausen.-
Preciso de discutir uns problemas e é muito importante falar consigo o mais cedo possível.Hoje mesmo,se puder ser.
Susan tinha consultas marcadas para toda a tarde.Depois,tencionava ir imediatamente ao Lenox Hill Hospital.Era óbvio que isso teria de esperar.
- Estou livre às seis,Mrs.Clausen.
Mal desligou,Susan telefonou para o Lenox Hill Hospital,de que já decorara o número.Quando finalmente conseguiu ligação,explicou que pretendia falar com o marido
de uma doente que estava nos cuidados intensivos.
- Vou ligar à sala de espera da unidade de cuidados intensivos - disse a telefonista.
Atendeu uma mulher,e Susan perguntou se Justin Wells lá estava.
- Quem fala?
??Deve andar a ser perseguido por jornalistas", pensou Susan.
?? - Dra.Susan Chandler - respondeu ela.- Mr.Wells pediu uma gravação de um programa de rádio que eu fiz ontem,e eu queria entregar-lha pessoalmente
se ele ainda estiver no hospital às sete e meia.
Pelo som abafado no seu ouvido,Susan percebeu que a mulher tapava o bocal com a mão.Mesmo assim,conseguiu perceber a pergunta que foi feita:
- Justin,pediste uma gravação do programa da Dra.Susan Chandler ontem?
Ouviu a resposta distintamente:
- Que ridículo,Pamela! Alguém te contou uma piada de muito
? ? mau gosto.
- Dra.Chandler,lamento,mas parece ter havido um equívoco.
- Peço desculpa - disse Susan.- Foi essa a mensagem que
recebi do meu produtor.Lamento imenso ter incomodado Mr. Wels numa altura como esta.Posso perguntar como está Mrs.Wells?
Houve uma pausa breve.
- Reze por ela,Dra.Chandler.
A ligação foi interrompida.
Susan ficou um longo minuto sentada a olhar para o telefone. Teria sido o pedido da gravação uma brincadeira de mau gosto? E,se assim era,porquê?
Ou teria Justin Wells feito o pedido e agora precisava negar tê-lo feito à pessoa que tratara por Pamela? E,uma vez mais, se assim era,porquê?
Mas as perguntas teriam de esperar.Janet estava já a anunciar o nome do cliente das 3horas.
Douglas Layton estava do lado de fora da porta parcialmente aberta do pequeno gabinete que Jane Clausen reservava para si na suite ao Fundo da Família Clausen, no
Edifício Chrysler. Não precisava sequer de se esforçar para ouvir o que ela dizia ao telefone à Dra. Susan Chandler.
Enquanto ouvia, começou a transpirar. Ficou praticamente convencido de que era ele a razão pela qual Mrs. Clausen queria encontrarSusan Chandler.
e sabia que estragara a reunião daquela manhã. Mrs. Clausen já lá estava a estudar a agenda da reunião do fundo quando ele chegara. Ele levara-lhe café,
planeando arranjar as coisas de modo a ultrapassar qualquer irritação que ela pudesse ainda sentir.
- Não quero café - disse-lhe ela com um olhar frio e desdenhoso. Vemo- nos na sala da direcção.
Havia um processo em especial que chamara particularmente a atenção dela, pois ela trouxera-o à baila na reunião fazendo uma série de perguntas difíceis.
O processo continha informação sobre dinheiros destinados a um orfanato na Guatemala.
Eu tinha tudo sob controle??, pensou Douglas, zangado, e depois deitei tudo a perder.
Como um imbecil, esperando evitar qualquer discussão, ele dissera:
- Esse orfanato era particularmente importante para Regina, Mrs. Clausen. Ela disse-mo uma vez.
Douglas estremeceu, recordando o olhar gélido que Jane Clausen lhe dirigira. Tentara disfarçar ao acrescentar apressadamente:
- Quero dizer, foi a senhora mesma que citou Regina numa das nossas primeiras reuniões.
Como habitualmente, Hubert March, o presidente do conselho de administração, estava meio adormecido, mas os outros administradores ao fundo fitaram-no com
olhares críticos, enquanto Jane Clausen replia friamente :
- Não, eu nunca disse tal coisa.
E agora ela estava a marcar um encontro com a Dra. Susan Chandler. Douglas foi à casa de banho. Salpicou água fria para a cara, alisou o cabelo, endireitou
a gravata e olhou para o espelho. Dava graças a Deus pela sua aparência: cabelo louro-escuro, olhos cinzento-aço e nariz aquilino.
Douglas Layton tinha o ar de um conselheiro de confiança que trataria dos assuntos dafalecida Jane Clausen de uma forma que ela aprovaria.
Não havia dúvida de que o estado de saúde dela estava a piorar. Ela estava a morrer.Com a sua morte,Hubert March entregar-lhe-ia a gestão do fundo.
Tudo correra tão bem até agora.Não podia permitir-se que Jane Clausen, nos seus derradeiros dias de vida,interferisse no seu grande plano.
NO YONKERS,a jovem de vinte e cinco anos Tiffany estava ainda aturdida por ter conseguidu falar com a Dr.a Susan Chandler e conversado com ela em directo no seu
programa. Tiffany era uma empregada de mesa muito magra,com o cabelo espampanantemente pintado de louro, que fazia o turno da noite no Grotto, um restaurante italiano
de bairro. Ela era conhecida por nunca se esquecer da cara de um cliente nem do que tinha pedido em jantares anteriores.
Desde o casamento da amiga com quem partilhava o quarto,Tifany vivia sozinha num pequeno apartamento no piso superior de uma casa de dois andares. A sua
rotina era dormir até perto das 10 todas as manhãs e depois ouvir a Dra. Susan na cama enquanto bebia a sua primeira chávena de café. ?
No dia anterior,quando ouvira Karen falar com a Dra.Susan acerca de um anel de turquesa que um sujeito lhe dera num cruzeiro,ela lembrara-se de Matt Bauer,
que lhe oferecera um anel semelhante. O telefonema para a Dra.Susan naquela manhã fora um impulso,e Tiffani lamentou imediatamente ter-lhe dito que Matt era um forreta
só porque o anel tinha custado apenas dez dólares.Na verdade,até achava o anel bonito,e admitiu a si própria que fizera aquele comentário apenas porque Matt a deixara.
Ao longo do dia,Tiffany foi recordando mais e mais aquela tarde que passara com Matt em Greenwich Village no ano anterior.Pelas 4 horas da tarde, enquanto se preparava
para ir trabalhar,arranjando o cabelo e aplicando a maquilhagem, percebeu que não ia conseguir lembrar-se do nome da loja onde tinham comprado o anel.
- Vejamos - disse em voz alta para si mesma.- Almoçámos num bar de sushi.Depois,andávamos às voltas e passámos por aquela loja de recordações e eu disse
Vamos entrar".Então,Matt comprou-me uma recordação.Estávamos a tentar decidir entre um macaco de loiça e um Taj Mahal em miniatura quando entrou aquele tipo com
muita classe.
? Ela reparara nele imediatamente.Afastara-se de Matt,que pegara noutra coisa qualquer e estava a ler a etiqueta que explicava o que era. O sujeito não pareceu
notar que eles lá estavam porque se encontravam por detrás de um biombo pintado com camelos e pirâmides. O cliente era um borracho, reflectiu Tiffany. Lembrava-se
da expressão de surpresa dele quando se virou e deparou com ela. Depois de o homem ter saído, o dono da loja disse:
- Aquele senhor comprou vários destes anéis para as amigas dele. Talvez queira ver um.
Tão bonito??, pensou Tiffany. Olhou, melancólica, para o anel de turquesa que guardava numa caixinha de marfim. ??Não vou enviá-lo à ? Susan, pensou ela. ??Quem
sabe? Talvez Matt me telefone um dia destes. Talvez ele ainda não tenha uma namorada a sério."
Aquilo que parecia interessar verdadeiramente à Dra. Susan era a localização da loja, pensou Tiffany. ??Por isso, em vez de lhe enviar o anel, talvez eu
possa apenas definir suficientemente a localização para lhe maNdar. Eu lembro-me de que havia uma loja de artigos pornográficos do outro lado da rua, e tenho quase
a certeza de que ficava apenas a um ou dois quarteirões de distância de uma estação de metropolitano. Ela é esperta. Deve conseguir descobrir a loja a partir desta
informação.
Aliviada por ter tomado a decisão acertada, Tiffany pôs os brincos e anéis de pendentes. Telefonaria à Dra. Susan no dia seguinte. Uma vez feito isto, podia explicar
que queria pedir desculpas por ter dito aquela piada sobre o anel ser uma forretice, que apenas o dissera porque tinha múitas saudades de Matt. Ele era tão bom tipo.
A Dra. Susan poderia conseguir uma maneira de eles voltarem a juntar-se?
E Que tenho a perder?", perguntou a si mesma. ??Talvez ela me aconselhe à borla, ou talvez a mãe de Matt ou uma das amigas dela esteja a ouvir e lhe diga, e ele
fique lisonjeado e me telefone."
ALex WRighT vivia num casarão de tijolo com quatro andares, da
viragem do século, na Rua Setenta e Oito Leste, que era a sua casa de infância.Ainda estava mobilada como a mãe a deixara, com aparadores e estantes escuros,pesados
e vitorianos,sofás confortavelmente estofados e cadeiras forradas com ricos brocados,tapetes persas antigos e graciosas obras de arte.
? Até mesmo o quarto andar,a maior parte do qual fora concebido como quarto de brincadeiras de Alex,permanecia igual. Os módulos, encomendados na famosa FAO. Schwarz,tinham
aparecido na hitectural Digest.
Alex levava uma vida relativamente simples,empregando a
Jim como motorista e Marguerite, a governanta maravilhosamente eficiente e abençoadamente sossegada. Chegava às 8.30 todas as manhãs, a tempo de preparar
o pequeno-almoço a Alex, e ficava até fazer o jantar nos dias em que ele planeava ficar em casa, o que não acontecia mais de duas vezes por semana.
Na terça-feira,passou a maior parte do dia na sede da fundação. Depois, ao fim da tarde, jogou squash no clube. Não tinha a certeza dos seus planos para a noite
e instruíra Marguerite para preparar aquilo que chamava um jantar de contingência.
? Quando chegou a casa às 6.30,a primeira coisa que fez foi verificar o frigorífico.Uma tigela da excelente canja de galinha de Marguerite estava pronta para
enfiar no microondas,e tinham sido preparados pedaços de frango e alface para uma sanduíche.
Acenando com a cabeça em sinal de aprovação, Alex foi até à zona das bebidas,na biblioteca,seleccionou uma garrafa de Bordeaux e serviu um copo.Tinha começado a
beber quando o telefone tocou.
Decidiu deixar o atendedor de chamadas filtrar os telefonemas. Ergueu as sobrancelhas quando Dee Chandler Harriman se fez
anunciar.A voz,baixa e agradável,estava hesitante.
- Alex,espero que não se importe.Eu pedi ao meu pai o seu núnero de casa.Queria apenas agradecer-lhe ter sido tão amável para mim no outro dia,na festa de Binky
e do meu pai.Tenho andado muito em baixo ultimamente e você ajudou-me imenso,só por ser simpático.Vou tentar afogar as mágoas partindo num cruzeiro para a Costa
Rica na semana que vem.O meu pai tem vindo a incentivar-me para o fazer.De qualquer
maneira,obrigada.Só queria que soubesse que lhe estou agradecida. a propósito,para ficar a saber,o meu número de telefone é...
Acho que ela não sabe que eu convidei a irmã para jantar, pensou Alex.??Dee é linda,mas Susan é muito mais interessante."
Deuum gole no vinho e fechou os olhos.
De facto,Susan Chandler não lhe tinha saído da cabeça durante todo o dia.
ÀS 6 HORAS, Susan estava à secretária quando Jane Clausen chegou para a consulta. A tez acinzentada da sua visitante reforçou a suspeita de Susan
de que ela se encontrava gravemente doente.
- Dra. Susan Chandler... - começou Mrs. Clausen, e depois
hesitou.
- Por favor, trate-me só por Susan. Dra. Chandler é tão formal!
Jane Clausen assentiu com a cabeça e depois fitou Susan directamente.
- Você conheceu o meu advogado, Douglas Layton, ontem. Não ficou surpreendida por ele não ter esperado comigo?
- Sim, de facto fiquei.
- Porque ficou surpreendida?
Susan não teve de pensar antes de responder.
- Porque era perfeitamente possível que a senhora fosse conhecer a mulher que poderia lançar luz sobre o desaparecimento da sua filha, Por isso, seria de
esperar que ele ficasse a acompanhá-la para a ajudar.
Jane Clausen acenou com a cabeça em concordância.
- Exactamente,Susan.Douglas Layton sempre me disse que não
conhecia a minha filha.Agora,a partir de uma coisa que ele me disse esta manhã, penso que ele defacto a conhecia.
- E porque haveria ele de mentir sobre isso? - perguntou Susan.
- Não sei.- Jane Clausen falava pausadamente e tinha a testa
húmida de concentração.- Depois,mais tarde,dei por ele a escutar à porta quando eu estava a falar consigo ao telefone.A porta estava parcialmente aberta,e eu via
o reflexo dele no vidro do armário. Por que faria ele tal coisa? Que razão terá ele para se comportar furtivamente comigo?
- Perguntou-lhe?
- Não.Eu tive um momento de fraqueza e não estava apta a confrontá-lo. Vou pedir uma auditoria de uma doação em particular que estivemos a rever na reunião de hoje,um
orfanato na Guatemala.Douglas tem uma viagem marcada para lá na semana que vem para depois apresentar um relatório na próxima reunião da administração do fundo.Eu
questionei os montantes que temos dado,e Douglas deixou escapar que a Regina lhe dissera que aquela era uma das suas obras de caridade preferidas.
- E, no entanto, ele negava tê-la conhecido.
- Sim. Susan, eu precisava de partilhar isto consigo porque me apercebi de repente de uma possível razão para Douglas Layton ter saído tão apressadamente
deste consultório ontem.
Susan percebeu o que Jane Clausen estava prestes a dizer-lhe, que Layton tivera medo de se encontrar cara a cara com Karen.
Minutos depois, Jane Clausen estava de saída.
- Penso que amanhã o meu médico vai querer internar-me para mais uns tratamentos - disse ela. - Eu queria partilhar isto consigo primeiro. Sei que em tempos foi
magistrada do Ministério Público. Na verdade, não sei se lhe trouxe as minhas suspeitas para receber o conselho de uma psicóloga ou para perguntar a uma ex-funcionária
judicial os procedimentos para abrir um inquérito.
O DR. DONALD RICHARDS Saiu do estúdio imediatamente após
o programa e só tardiamente se apercebeu de que Rena já devia ter preparado o almoço.
Procurou uma cabina telefónica e ligou o número de casa.
- Tenho uma coisa para fazer - disse ele a Rena em tom de desculpa. - Demoro mais ou menos uma hora.
Quando chegou a casa, uma hora e meia depois, Rena tinha o almoço pronto.
- Eu ponho o tabuleiro na sua secretária, doutor - disse ela.
A consulta das 2 horas era uma mulher de negócios de trinta anos gravemente anoréxica. Era a quarta consulta dela, e Richards ouviu-a. fez algumas anotações num
bloco.
Às 2.50, depois de a doente ter saído, telefonou a Susan Chandler pensando que ela sem dúvida espaçaria as consultas como ele fazia: ver um doente
em cinquenta minutos, depois ter um intervalo de dez minutos antes da consulta seguinte.
A secretária disse-lhe que Susan estava ao telefone.
- Eu aguardo - disse ele.
Depois, ouviu-se a voz de Susan, um pouco sem fôlego.
- Dr. Richards?
- Lá por estar no consultório, não quer dizer que não possa tratar-me por Don.
Susan riu-se.
- Desculpe. Ainda bem que telefonou. As coisas têm andado um pouco agitadas por estas bandas, e eu queria agradecer-lhe por ter sido um excelente
convidado.
- E eu quero agradecer-lhe pela excelente publicidade. - Olhou para o relógio. - Tenho um doente a chegar, e você provavelmente também, por isso vamos ao que interessa.
Pode jantar comigo hoje?
- Hoje não, tenho de trabalhar até tarde.
- Amanhã?
- Sim, gostava muito.
- Vamos combinar por volta das sete. Telefono-lhe para o consultório amanhã. - ??Um encontro realmente planeado", pensou ele. ?a, era tarde demais.
- Estou aqui toda a tarde - disse-lhe Susan.
Richards tomou nota da hora, por volta das 7, e murmurou um apressado Adeus". Enquanto pousava o auscultador, perguntou a si mesmo quanto deveria revelar
a Susan Chandler.
Dee telefonara a Alex Wright do escritório da agência de modelos em Beverly Hills às 3.45. Isso significava que eram 5 horas em Nova Iorque, hora que ela
achou que ele poderia estar em casa. Quando Alex não atendeu, Dee concluiu que, se tivesse ido jantar fora, poderia tentar apanhá-la mais tarde. Com aquela esperança,
foi directa, do trabalho para sua casa, no condomínio em Palos Verdes, e às sete preparava, indiferente, uma refeição de um ovo mexido, torradas e fruta. Estava
aborrecida e nervosa.
Estou farta de trabalhar", admitiu a si própria. ??Gostava de regressar a Nova Iorque, mas não para arranjar outro emprego."
- Nem sequer sei fazer um ovo mexido decente - queixou-se em voz alta quando se apercebeu de que a chama debaixo da frigideira estava demasiado alta e o
ovo começava a ficar queimado.
Mas quem se casasse com Alex Wright não tinha de se preocupar com receitas e cozinhados, disse para consigo.
Decidiu comer na sala de estar, e estava mesmo a pousar o tabuleiro em cima da mesa de café quando o telefone tocou. Era Alex.
Quando pousou o auscultador,dez minutos depois,Dee sorria.Ele
telefonara porque ela lhe parecera muito em baixo e pensara que podia querer conversar. Explicou-lhe que tivera uma noite muito agradável com Susan e ia convidá-la
para um jantar no sábado à noite para comemorar um subsídio recente da Fundação Wright à Biblioteca Pública de Nova Iorque.
Dee congratulou-se com a sua própria rapidez de raciocínio.Ela convencera-o que, como na próxima semana estaria a caminho da Costa Rica,para embarcar no
cruzeiro, ia
no entanto estar em Nova Iorque no fim-de-semana.Alex percebeu a mensagem e convidou-a também para o jantar.
??Afinal de contas",disse Dee para consigo enquanto pegava no tabuleiro com a comida fria,??Susan ainda não está verdadeiramente enVolvida com ele."
Depois de Jane Clausen sair do consultório dela ao fim da tarde de terça-feira, Susan tratou de papelada até perto das 7 e a seguir telefonou para casa de Jed Geany.
- Problema - anunciou ela sem rodeios. - Telefonei a Justin Wells para combinar entregar-lhe a cassete do programa de ontem, e ele nega em absoluto ter feito
tal pedido.
- Susan, eu só posso dizer-te isto: quem quer que seja que telefonou estava nervoso. Talvez Wells não queira revelar o seu interesse na cassete. Ele começou
por pedir apenas a parte do programa em que recebemos os telefonemas dos ouvintes. Estou convencido de que era a única coisa que lhe interessava realmente.
- A mulher que foi atropelada por uma carrinha ontem na Park Avenue era a mulher dele - disse Susan.
- Vês o que eu quero dizer? Ele tem outras coisas na cabeça, pobre homem.
- Provavelmente, tens razão. Até amanhã. - Susan desligou o telefone e sentou-se a ponderar a situação. As chamadas do dia anterior tinham sido vulgares,
excepto aquela da mulher que se identificara como Karen e falara do anel de turquesa.
??Essa tem de ser a chamada em que Justin Wells, ou quem quer que seja, está interessado??, pensou, ??mas hoje o dia foi longo e eu agora não consigo descortinar
a razão do interesse dele.??
Foi buscaro casaco, apagou as luzes, fechou a porta do consultório e dirigiu-se para o elevador.
A caminho de casa, recordou a visita de Jane Clausen e a preocupação que Jane expressara sobre Douglas Layton.
Era possível que Layton tivesse uma reunião que não pudesse ter sido alterada no dia anterior. Mas, e então a convicção de Mrs. Clausen de que ele conhecera
Regina e mentira sobre isso? Susan lembrou-se dà Chris Ryan. Um agente do FBI reformado com quem ela trabalhava quando estava no Ministério Público. Chris tinha
agora a sua própria firma de segurança. Ele podia fazer uma pequena e discreta investigação sobre Layton.
Susan ia olhando em redor enquanto caminhava. As estreitas ruas da Village nunca deixavam de a fascinar. Deu por si a ver se conseguia descobrir uma loja
de recordações como aquela que Tiffany, a ouvinte daquele dia, descrevera. Tiffany afirmara que o namorado lhe tinha comprado um anel em Greenwich Village semelhante
àquele de que Karen falara.
Meu Deus, faz que ela mo mande, por favor??, rezou Susan. Se eu pelo menos conseguisse compará-lo com o que Mrs. Clausen me deu. Se viesse a confirmar-se que eram
idênticos e feitos aqui, podia ser um primeiro passo para resolver o desaparecimento de Regina.??
É ESPANTOSO COmO um passeio ao frio desanuvia a mente??, pensou Susan ao abrir a porta do seu apartamento. Eram 8 horas. Vestiu um ca fetã, abriu o armário para
tirar um pacote de linguine e tirou os ingre dientes da salada do frigorífico. Enquanto a água para a massa estava a aquecer, ligou o computador e verificou o correio
electrónico. Eram as mensagens habituais, excepto alguns comentários sobre como o Dr. Richards era interessante e sugestões para que Susan o convidasse de novo para
o programa. Impulsivamente, foi ver se Richards tinha uma página na Internet.
Tinha mesmo. Com um interesse crescente, Susan focou a sua atenção na informação pessoal: Dr. Donald J. Richards, nascido em Darien, Connecticut, criado
em Manhattan, frequentou colégios particulares, curso superior em Yale, licenciatura em Medicina e doutoramento em Psicologia Clínica em Harvard, mestrado em Criminologia
na Universidade de Nova Iorque. Casado com Kathryn Carver (falecida).
Seguia-se uma longa lista de artigos publicados, bem como críticas ao seu livro, Mulheres Desaparecidas. Depois, Susan encontrou informação que a fez erguer
as sobrancelhas. Uma biografia breve afirmava-lhe que o Dr. Richards passara um ano, entre o penúltimo e O último anos da faculdade, a trabalhar num paquete de cruzeiros
à volta do Mundo
i como director assistente de cruzeiro e, sob o título Lazer??, informava ? que ele fazia frequentemente pequenos cruzeiros. Como navio preferido, ele nomeara
o Gabrielle, salientando que fora nele que conhecera a mulher. Susan olhou, espantada, para o ecrã.
- Mas é o mesmo navio em que Regina Clausen ia quando desapareceu - disse em voz alta.
POR VEZES, à noite, ele dava grandes passeios a pé. Fazia-o quando as coisas se acumulavam até ao ponto em que se tOrnava necessário aliviar as tensões. Naquela
tarde, tudo correra bem. O velhote da loja de recordações morrera tranquilamente. Não aparecera nada sobre a morte dele nas notícias da noite, reflectiu, por isso
o mais provável era que, quando a loja não reabrira, ninguém se importara o suficiente para verificar se alguma coisa de errado se passava.
O seu objectivo naquela noite fora apenas caminhar sem destino pelas ruas da cidade, por isso ficou quase surpreendido ao dar por si perto da Downing Street. Susan
Chandler morava na Downing Street. Estaria ela em casa?, perguntou a si mesmo. Compreendeu que o facto de ter caminhado até ali naquela noite, especialmente de modo
relativamente inconsciente, era uma indicação de que não podia permitir que ela continuasse a armar-lhe sarilhos. Desde a manhã do dia anterior, tivera de eliminar
duas pessoas, Hilda Johnson e Abdul Parki, nenhuma das quais tencionara matar. Uma terceira, Carolyn Wells, ou morria ou teria de ser eliminada, caso recuperasse.
É claro que, enquanto continuasse em coma, ela não constituía perigo imediato. O verdadeiro perigo podia ser Tiffany, a rapariga que telefonara naquele
dia para o programa da Dra. Susan Chandler. Enquanto caminhava ao longo da Downing Street, amaldiçoou-se a si mesmo e Recordou a sua visita no ano anterior à loja
de Parki. Pensara que estava vazia. Do exterior não vira o jovem casal que estava atrás do biombo.
Mal dera por eles, percebera logo que cometera um erro. A rapariga estivera a observá-lo, e ele tinha a certeza de que ela o reconheceria se o visse
de novo. Se Tiffany, que telefonara ao Perguntem à Dra. Susan, e a rapariga da loja fossem a mesma pessoa, ela tinha de ser silenciada No dia seguinte. arranjaria
maneira de saber através de Susan Chandler se Tiffany lhe mandara o anel e, caso tivesse mandado, o que escrevera a acompanhá-lo.
Uma outra pena ao vento. Quando terminaria aquilo? Uma coisa era certa. Até à próxima semana, Susan Chandler tinha de ser detida.
NA QUARTA-FEIRA de manhã, Douglas Layton definiu a sua
estratégia. Ele sabia que tinha um longo caminho a percorrer para aplacar Jane Clausen antes de partir na sua viagem para a Guatemala, mas nas horas de insónia
da madrugada elaborara um plano. Desta vez, os riscos eram enormes. No táxi a caminho da Beekman Place, ele ensaiou cuidadosamente
a história que ia contar-lhe. Não devia ser difícil acalmá-la.
O recepcionista insistiu em anunciá-lo, embora ele lhe tivesse dito para não se incomodar porque estavam à sua espera.Quando saiu do elevador, a governanta
aguardava-o à porta do apartamento,apenas com uma nesga aberta.Informou-o de que Mrs.Clausen não estava a sentir-se bem.
- Vera,eu tenho de falar com Mrs.Clausen só por um minuto -
insistiu Douglas.
Ao ver o olhar hesitante de Vera, sussurrou-lhe:
- Os dois gostamos dela e queremos cuidar dela.- Depois,pôs as mãos debaixo dos cotovelos dela,forçando-a a sair do caminho.Em quatro grandes passadas, transpôs
as portas que conduziam à sala de jantar.
Jane Clausen estava a ler o Times.Ao ouvir os passos dele,levantou os olhoscom uma expressão quase de medo.
A situação é pior do que eu pensava, concluiu Douglas Layton. Não tenho hipótese de ela falar.
- Mrs.Clausen,tenho andado terrivelmente preocupado com a
possibilidade de me ter entendido mal ontem - disse ele numa voz decidida. - Eu enganei-me quando afirmei que Regina me dissera que o orfanato na Guatemala era uma
das suas obras de caridade preferidas.A verdade é que quando Mr.March me convidou para membro da direcção foi ele próprio quem me explicou o modo como Regina ficou
afectada com a situação difícil das crianças daquele país.
Era uma história suficientemente segura.March não se lembraria de o ter dito,é claro,mas também teria medo de o negar devido à crescente consciência da sua falta
de memória.
? - Foi Hubert quem lhe contou? - perguntou Jane Clausen tranquilamente. - Ele era como um tio para Regina.Isso é mesmo o tipo de coisa que ela lhe confiaria.
Douglas percebeu instantaneamente que estava no caminho certo.
- Como sabe,vou lá na próxima semana para poder elaborar um relatório para o conselho de administração sobre o progresso do orfanato. Eu sei como o seu estado
de saúde tem sido precário,mas não gostaria de vir comigo para ver com os seus próprios olhos o maravilhoso trabalho que o orfanato está a fazer por aqueles pobres
miúdos? Eu prometo acompanhá-la a cada passo.
Douglas Layton sabia, obviamente,que não havia qualquer hipótese de Jane Clausen poder fazer aquela viagem.Ela abanou a cabeça.
? - Quem me dera poder ir!
? Era como se observasse o gelo a derreter.
Ela quer acreditar em mim - pensou Douglas, congratulando-se mentalmente.Havia apenas um assunto que ele tinha de mencionar:
- Tenho de lhe apresentar as minhas desculpas por tê-la deixado ? sozinha no consultório da Dra. Chandler na segunda-feira. Eu tinha de facto uma reunião há muito
marcada, mas devia tê-la desmarcado. O problema é que não consegui contactar a cliente, e ela vinha de Connecticut expressamente para se encontrar comigo.
- Eu não o avisei com muita antecedência - contemporizou Jane ? Clausen. - Receio que esteja a tornar-se um hábito meu. Ontem, insisti com um outro especialista
para que me recebesse quase imediatamente.
Douglas sabia que ela se referia a Susan Chandler. O que teria ela contado à psicóloga?, interrogou-se.
Quando ele saiu minutos depois, ela insistiu em acompanhá-lo à porta. Douglas sorriu enquanto descia no elevador. Estava de regresso às boas graças
de Jane Clausen e uma vez mais a caminho da presidênCia do conselho de administração do Fundo da Família Clausen.
Ao sair do edifício, teve o cuidado de trocar umas quantas palavras com o recepcionista e de dar uma generosa gorjeta ao porteiro quando ele lhe chamou
um táxi. Havia sempre a hipótese de um deles ou ambos comentarem a amabilidade de Mr. Layton.
Uma vez no táxi, no entanto, a expressão de benigno homem desapareceu do rosto de Douglas Layton. Sobre que conversara Jan Clausen com a Dra. Chandler?,
perguntou a si mesmo. Além de ser psicóloga, Susan Chandler possuía uma mente de especialista jurídica. Ela seria a primeira a aperceber-se de algo que não soasse
a verdade.
Olhou para o relógio: eram 8.20. Devia chegar ao escritório antes das 9. Assim, teria uma boa hora para dar andamento à papelada antes de ouvir o
Perguntem à Dra. Susan.
NA QUARTA-FEIRA de manhã, Susan acordou às 6, tomou duche,
lavou a cabeça e secou o cabelo com a rapidez da experiência. Por u momento, estudou o seu reflexo no espelho, avaliando-se desapaixonadamente. Sobrancelhas, demasiado
espessas; não gostava da ideia? de as depilar com a pinça. Pele, boa; podia pelo menos orgulhar-se disso; Boca, como as sobrancelhas, demasiado generosa. Nariz,
direitinho; por aí estava bem. Olhos, cor de avelã, como os da mãe. Queixo, normal.
Pensou no que a Irmã Beatrice dissera a sua mãe pouco depois de ela entrar para a Academia do Sagrado Coração: ??Susan tem uma veia teimosa, e isso nela é uma virtude.
Quando aquele queixo vem para fora, eu sei logo que há qualquer coisa que ela acha que não está bem.
nNeste momento, acho que há muitas coisas que não estão bem, ou pelo menos devem ser analisadas??, pensou Susan, ??e já tenho a minha agenda pronta.??
A fim de poupar tempo, decidiu não fazer o habitual percurso a pé e chamou um táxi até ao consultório,onde chegou às 7.15.Ao entrar no consultório, ficou surpreendida
por verificar que,apesar de a porta da entrada não estar fechada à chave,não havia ninguém na secretária do segurança.
A segurança neste lugar não existe??,pensou enquanto subia
no elevador.Saiu do elevador e encontrou o último andar completamente às escuras.
- Isto é ridículo - murmurou entredentes enquanto procurava os
interruptores da luz do corredor.
Mas nem mesmo as luzes iluminaram o patamar adequadamente.
Não admira",pensou Susan,notando que faltavam duas das lâmpadas. Anotou mentalmente que tinha de falar com o administrador do condomínio. mas,uma vez no consultório,o
aborrecimento desvaneceu- se.
Começou imediatamente a trabalhar,e durante a hora seguinte pôs a correspondência em dia.Depois,preparou-se para dar andamento ao plano que elaborara na noite anterior.
Decidira ir ao atelier de Justin Wells e confrontá-lo relativamente à gravação e à sua convicção de que a mulher dele era a autora da chamada misteriosa. Se ele
lá não estivesse,ela passava aquele segmento do programa de segunda-feira para a secretária dele ouvir.A mulher que se
denominara Karen podia ser alguém que o pessoal dele conhecia, pensou Susan.E seria uma mera coincidência que a mulher de Justin Wells estivesse envolvida num acidente
logo após o telefonema. Susan perscrutou o resto das suas anotações, catalogando pontos que ainda a preocupavam.
Testemunha idosa do acidente de Carolyn Wells. Hilda Johnson teria razão ao declarar que alguém empurrara Carolyn? Igualmente significativo,seria o assassínio de
Hilda Johnson. Mais tarde seria uma outra coincidência?
Tiffany. Ela telefonara a dizer que tinha um anel de turquesa com uma inscrição idêntica aos que Regina e Karen tinham.Será que lho iria mandar?
A anotação seguinte na sua lista era sobre Douglas Layton.Ele agira de modo suspeito,pensou Susan.O modo como saíra disparado minutos antes de Karen estar
para chegar ao consultório.Estaria ele com medo de a encontrar? E se assim era,porquê?
O último assunto dizia respeito a Donald Richards. Seria apenas uma coincidência o navio de cruzeiros preferido dele ser o Gabrielle e o livro dele ser sobre mulheres
desaparecidas? Haveria mais qualquer coisa naquele homem aparentemente amável do que aquilo que estava à vista?
Susan levantou-se da secretária. Nedda já devia estar no gabinete dela e teria café a fazer. Susan fechou à chave a porta exterior do consultório
e, enfiando a chave no bolso, percorreu o corredor.
QUANDO SUSAN regressou ao seu consultório, Janet estava lá e ao telefone.
- Ah, espere um minuto. Ela já aqui está - disse Janet. Tapou o bocal com a mão.
- Alex Wright.
Susan pegou no telefone enquanto Janet saía da sala.
- Olá, Alex.
- Tentei apanhá-la em casa há meia hora atrás. Pensei que chegava ao consultório por volta das nove.
- Hoje, cheguei cá às sete e meia. Gosto de começar cedo.
- Somos compatíveis. Eu também sou madrugador. Treino do meu pai, que achava que quem dormia para além das seis da manhã estava a perder a oportunidade de
acumular mais dinheiro. Mas por vezes, quando não tenho reuniões, bato a almofada e leio os jornais na cama, só porque sei quanto isso o irritaria.
Susan riu-se.
- Cuidado. Está a falar com uma psicóloga.
- Oh, valha-me Deus, esqueci-me. Por acaso, não lhe telefonei para falar do meu pai nem para explicar os meus hábitos de sono. Queria apenas dizer-lhe que
passei uma noite muito agradável consigo na segunda-feira, e espero que esteja livre novamente no sábado à noite. A nossa fundação fez um donativo à Biblioteca Pública
de Nova Iorque, e vai haver um jantar de cerimónia na McGraw Rotunda, na Biblioteca Central da Quinta Avenida. Não é um grande acontecimento. umas quarenta pessoas.
A princípio, tinha pensado em arranjar uma desculpa, mas na verdade não o devo fazer, e se vier comigo, pode ser que até me divirta.
Susan notou, lisonjeada, o tom adulador na voz de Alex Wright.
- Sim, estou livre e vou com muito gosto - disse ela sinceramente.
- Óptimo. Vou buscá-la por volta das seis e meia, se achar bem.
- Está óptimo.
A voz dele alterou-se, tornando-se de repente hesitante.
- Ah, Susan, a propósito, falei com a sua irmã.
- Dee? - Susan percebeu que soara surpreendida.
- Sim. Conheci-a na festa de Binky depois de você ter saído. Ela telefonou-me para casa ontem à noite e deixou-me uma mensagem, e eu liguei-lhe. Dee
vai estar em Nova Iorque este fim-de-semana. Eu disse que ia convidá-la a si para o jantar e pedi-lhe que viesse também.
- Foi muito amável da sua parte - respondeu Susan.
Quando desligou o telefone passado um momento, recordou o modo como há sete anos Dee telefonara a Jack dizendo-lhe que estava preocupada com as ? novas fotografias
de publicidade e pedindo-lhe que ele as visse e a aconselhasse.
Foi aquilo", pensou Susan com um aperto de amargura, ??foi o princípio do fim do meu relacionamento com Jack." Seria que a história estava a repetir-se?
O escritório no atelier de arquitectura Benner, Pierce & Wells era peculiar, pensou Susan enquanto esperava na zona de entrada apainelada ao mesmo tempo que uma
jovem e nervosa recepcionista,cuja etiqueta a identificava como BARBARA GINGRAS,hesitantemente informava Justin Wells da sua presença.
Não ficou surpreendida quando a jovem disse:
- Dra.Susan,quero dizer,Dra.Chandler,lamento,mas Mr.Wells
não a esperava e não pode recebê-la agora.
? ? ? Ao compreender que a rapariga reconhecera o nome dela do programa de rádio,Susan decidiu arriscar.
- Mr.Wells telefonou ao meu produtor e pediu-lhe uma gravação
do programa Perguntem à Dra.Susan de segunda-feira.Eu,na verdade, queria apenas entregar-lha pessoalmente,Barbara.
- Então,ele acreditou mesmo em mim? - disse Barbara Gingras,
exultante.- Eu disse-lhe que Carolyn...a mulher dele, telefonara à senhora na segunda-feira.Eu estava a ouvir o programa quando ela telefonou, Por amor de
Deus,eu conheço a voz dela! Mas Mr.Wells ficou muito aborrecido quando eu lhe contei,por isso nunca mais disse uma palavra sobre o assunto.Depois,a mulher dele sofreu
um acidente terrível e o pobre homem tem andado demasiado preocupado para eu me arriscar sequer a falar com ele.
- Eu compreendo.- Susan tinha a cassete pronta a ser ouvida.
Ligando o leitor de cassetes, colocou-o em cima da secretária da recepcionista.
- Barbara, não se importa de ouvir por um momento?
Susan manteve o som baixo enquanto a voz da mulher que se denominara Karen começou a ouvir- se.
Com Susan a observar, a recepcionista assentiu com a cabeça, espantada.
- Exacto,é Carolyn Wells - confirmou ela.- E mesmo aquilo
de que ela fala faz sentido.Eu comecei a trabalhar aqui mais ou menos na altura em que ela e Mr.Wells se separaram.Eu lembro-me,porque ele andava impossível.Depois,quando
fez as pazes com ela,foi como do dia para a noite.Nunca vi um homem tão feliz.É óbvio que ele é louco por ela.Agora,desde o acidente,está outra vez impossível.Ouvi-o
contar a um dos sócios que o médico lhe disse que o estado de saúde dela não se deve alterar por uns tempos.
?? A porta exterior abriu-se e entraram dois homens.Olharam,curiosos, para Susan enquanto atravessavam a área da recepção. Barbara Gingras pareceu de repente
nervosa.
- Dra.Susan,se Mr.Wells sai e nos apanha a conversar,poderia ficar zangado comigo.
- Eu compreendo.- Susan guardou o leitor de cassetes.- Só mais uma coisa, Barbara. Os Wells têm uma amiga chamada Pamela. Conhece-a?
Barbara franziu o sobrolho,concentrada; depois,o seu rosto desanuviou-se.
- Ah,deve ser a Dra.Pamela Hastings...é professora na
Colúmbia.Ela e Mrs.Wells são grandes amigas.Eu sei que ela tem passado muito tempo no hospital com Mr.Wells.
Agora,Susan sabia tudo o que precisava de saber.
- Obrigada,Barbara.
? - Eu gosto imenso do seu programa,Dra.Susan.
Susan sorriu.
? - É muito amável.- Acenou em despedida e abriu a porta para o corredor.Aí,ela agarrou imediatamente no telemóvel e ligou para as informações.
- Universidade da Colúmbia,número geral,por favor - disse ela.
PRECISAMENTE às 9horas da manhã de quarta-feira,o Dr.Donáld Richards apareceu na recepção do décimo quinto andar do número 1440da Broadway.
- Sou o Dr. Richards. Fui convidado no programa Perguntem à ? Dr.a Susan ontem e na segunda-feira - explicou ele à mulher que estava por detrás da secretária. -
Eu tinha pedido as gravações dos programas, mas depois fui-me embora sem as levar. Mr. Geany, o produtor, já deve tê-las prontas.
- Eu acho que o vi - respondeu a recepcionista.
Pegou no telefone e ligou um número.
- Jed, o convidado de ontem da Susan está aqui. Esqueceu-se das cassetes que pediu.- Após ouvir por um momento, ela informou:
- Ele vem já ter consigo. Pode sentar- se.
? Richards escolheu uma cadeira perto de uma mesa de café sobre a qual se encontravam dois jornais matutinos.
Jed apareceu um momento mais tarde com um pacote na mão.
- Desculpe ter-me esquecido de o lembrar ontem,doutor.Eu ia
agora mesmo mandar-lhas para o correio.Pelo menos ainda as quer e não mudou de ideias como o outro sujeito.
- Justin Wells? - perguntou Richards.
- Exactamente.Mas ele vai ter uma surpresa.Susan vai levar a cassete do programa de segunda-feira ao atelier dele esta manhã.
Interessante, pensou Richards.??Muito interessante.Não deve
acontecer muitas vezes o apresentador de um programa de rádio de sucesso fazer de moço de recados.
Depois de ter agradecido a Jed, enfiou o pequeno embrulho na pasta,e quinze minutos depois apeava-se de um táxi na garagem ao virar da esquina do seu apartamento.
Às 10 HoRAs, Donald Richards conduzia para norte na Palisades em direcção à montanha do Urso. Ligou o rádio e sintonizou Perguntem à Dra. Susan, um programa que
não tinha intenção de perder.
Quando chegou ao seu destino,permaneceu dentro do carro até o programa terminar. Depois, ficou sentado calmamente durante mais alguns minutos antes de sair
do carro e abrir o porta- bagagem.Tirou uma caixa estreita lá de dentro e caminhou até à beira da água.
O ar da montanha estava frio e sereno.A superfície do lago brilhava sob o sol de Outono,mas,mesmo assim,havia zonas escuras que indicavam a profundidade da água.
Donald, Durante um longo período,ficou sentado no chão à beira do lago, com as mãos entrelaçadas à volta dos joelhos.Brilhavam-lhe lágrimas nos olhos, mas
ele ignorou-as.Por fim,abriu a caixa e retirou as rosas de longos caules,frescas como o orvalho,que estavam aninhadas dentro dela.Uma a uma,atirou-as para a água,até
cada uma das duas dúzias de rosas se encontrarem a flutuar.
- Adeus,Kathryn - disse em voz alta num tom sombrio.
Depois, voltou-se e regressou ao carro.
UMA HORA DEPOIS,estava na casa do guarda de Tuxedo Park,o luxuoso condomínio de montanha que fora em tempos o retiro de férias de Verão dos muito ricos e
importantes membros do jet-set da cidade de Nova Iorque. Agora muitos como a sua mãe, Elizabeth Richards, residiam ali permanentemente. O segurança acenou-lhe quando
ele passou, gritando:
- Prazer em vê-lo,Dr.Richards.
Encontrou a mãe no estúdio.Aos sessenta anos,começara a pintar, e em doze anos de aplicação o seu talento natural desenvolvera-se para se tornar num dom genuíno.Estava
sentada ao cavalete,de costas paraele, totalmente absorvida no seu trabalho.
- Mãe !
- Donald,já começava a pensar que não vinhas.- Levantou-se e veio até ele de braços abertos,mas em vez de o abraçar,roçou os lábios pelo rosto dele.
- Não quero sujar-te de tinta - disse ela.
De braço dado,desceram a larga escadaria e atravessaram a sala de estar até à sala de jantar da família,que tinha vista para os jardins.
- Onde foste esta manhã? - perguntou ela.
Don não se descoseu.
- Tive de passar por um estúdio de rádio.
- Foste outra vez ao lago, não foste? - insistiu ela.
? - Fui.
O rosto da mãe suavizou-se,e ela pousou a mão sobre a dele.
- Don, eu não me esqueci de que hoje era o aniversário de Kathe. mas já passaram quatro anos.No mês que vem fazes quarenta anos. Tens de seguir em frente,prosseguir
com a tua vida.Quero ver-te a conhecer uma mulher cujos olhos se iluminem quando tu entrares em casa ao fim do dia.
- Talvez ela também trabalhe - disse Don.- Não há muitas mulheres que sejam apenas donas de casa hoje em dia.
- Ora,deixa-te de coisas! Sabes bem o que eu quero dizer.
Quero que sejas feliz outra vez.Alguma vez pensaste que até mesmo os psiquiatras podem precisar de ajuda para recuperar de uma tragédia?
Ele não respondeu,mas sentou-se com a cabeça baixa.
- E quando foi a última vez que tiveste umas férias?
- Bingo! - disse Don,animando-se.- Na semana que vem,
depois, quando acabar a sessão de autógrafos em Miami,vou tirar seis ou sete dias de férias.
- Don,tu costumavas adorar fazer cruzeiros.- A mãe dele hesi?tou antes de prosseguir.- Lembras-te de como tu e Kathy costumavam fazer aquelas viagens impulsivas,pedir
à agência de viagens que vos marcasse um lugar em parte de um longo cruzeiro? Quero ver- te fazer esse tipo de coisa outra vez.Tu não pões o pé num paquete desde
que Kathy morreu.
O Dr.Donald Richards olhou para os olhos azul-cinza que reflectiam uma preocupação tão genuína.
Ai isso é que pus, mãe, pensou ele. - Isso é que pus.
SUSAN CONSEGUIU ligação para o escritório de Pamela Hastings,na Universidade de Colúmbia,mas foi informada de que não a esperavam antes das 11.A sua primeira aula
era às 11.15.
O mais provável seria ela passar pelo Lenox Hill para visitar
Carolyn Wells,pensou Susan.Deixou uma mensagem pedindo que a
Dr.a Hastings lhe telefonasse para o consultório a qualquer hora depois das aulas, salientando que precisava de falar com ela sobre um assunto confidencial e urgente.
Ela viu a desaprovação nos olhos de Jed Geany quando chegou ao rádio apenas dez minutos antes da hora de início da transmissão.
- Sabes,Susan,um destes dias...- começou ele.
- Eu sei.Um destes dias vais ter de começar sem mim.É um defeito de personalidade,Jed.Eu faço sempre as coisas em cima da hora.
Ele presenteou-a com um meio-sorriso relutante.
- O teu convidado de ontem,o Dr.RichardS,passou por cá.Queria
levantar as cassetes dos programas em que entrou.
Vou jantar com ele hoje, pensou Susan.??Podia ter-lhas levado.
Porquê tanta pressa???,perguntou a si mesma enquanto entrava no estúdio e punha os auscultadores.
Quando o técnico deu o aviso de trinta segundos,ela disse rapidamente:
- Jed,lembras-te daquele telefonema de Tiffany ontem? Eu não
estou à espera de que ela me telefone,mas se,por acaso, telefonar,lembra-te de tomar nota do número de telefone dela quando aparecer a identificação.
- Combinado.
- Dez segundos - avisou o técnico.
Nos seus auscultadores, Susan ouviu: ??E agora a vossa atenção para Perguntem à Dra. Susan", seguido de uma breve ponte musical. respirou fundo e começou.
? - Olá e bem-vindos! Sou a Dra. Susan Chandler. Hoje, vamos directamente para os telefonemas para responder a quaisquer questões que tenham
em mente, por isso, vá lá, telefonem. Talvez entre nós consigamos desdramatizar o que quer que seja que vos preocupa.
Como habitualmente, o tempo passou depressa. Algumas das ch
chamadas foram rotineiras:
??? - Dra. Susan, há uma pessoa no meu escritório que anda a dar comigo em doida. Se eu usar uma roupa nova, ela pergunta-me onde comprei, depois
aparece com a mesma coisa exactamente uns dias depois.
? ? Outras chamadas eram complexas:
- Eu tive de pôr a minha mãe de noventa anos num lar - diss uma mulher com a voz abatida. - Custou-me muito fazê-lo, mas ela está fisicamente incapaz. E
agora não fala comigo. Tenho tantos remorsos que não consigo trabalhar.
O tempo do programa estava quase a esgotar-se quando Susan ouviu Jed anunciar:
- A nossa próxima chamada é de Tiffany, de Yonkers, Dra. Susan.
Susan olhou para Jed, que acenou com a cabeça. Ele anotaria o número de telefone de Tiffany.
- Tiffany, eu fico extremamente contente por ter voltado a ligar hoje - começou Susan, mas foi logo interrompida antes de poder continuar.
- Dra. Susan - disse Tiffany apressadamente -, eu quase não tive coragem para telefonar, porque posso desapontá-la. Sabe...
Susan ouviu com consternação um discurso obviamente ensaiado sobre as razões por que Tiffany não podia enviar o seu anel de turquesa.
- Por isso, como acabei de explicar, Dra. Susan, espero não desapontá-la, mas Matt, o meu ex- namorado, deu-mo, e o anel lembra os bons tempos que
passámos juntos.
- Tiffany, eu gostava que me telefonasse para o consultório - disse Susan apressadamente, e depois teve uma sensação de déjà vu. ?
Não Dissera ela quase aquelas mesmas palavras a Carolyn Wells quarenta e oito horas antes?
- Dra.Susan,eu não vou mudar de ideias e dar-lhe o anel de recordação - disse Tiffany.
Ela decidira acrescentar mais uma coisa.
- E, se não se importa,eu quero dizer-lhe que trabalho no...
- Por favor,não diga onde trabalha - disse Susan firmemente.
- Eu trabalho no Grotto,o melhor restaurante italiano de Yonkers - gritou Tiffany em tom de desafio.
- Temos de ir para a publicidade,Susan - berrou Jed nos auscultadores.
Pelo menos,agora sei onde encontrá-la",pensou Susan.
Quando o programa terminou,ela foi à régie.Jed escrevera o número de telefone de Tiffany nas costas de um envelope.
- Ela parece burra,mas foi suficientemente esperta para conseguir um anúncio grátis para o patrão - observou ele em tom ácido.
A autopromoção era estritamente proibida no programa.
Susan dobrou o envelope e pô-lo no bolso do casaco.
- Parece solitária e muito vulnerável.E se algum louco estivesse a ouvir o programa e ficasse com ideias sobre ela?
- Vais contactá-la por causa do anel?
- Sim,acho que sim.Eu quero apenas compará-lo com o que
Regina Clausen tinha.Eu sei que é muito improvável que eles tivessem saído do mesmo lugar,mas não posso ter a certeza se não verificar.
- Susan,aquele tipo de anéis de recordação custam tuta e meia. Os sujeitinhos das lojas afirmam todos que as coisas deles são em primeira mão, mas quem é
que eles pensam que enganam? Por aqueles preços?! Nem pensar!
- Provavelmente,tens razão - disse Susan,concordando.-
Além disso...- começou ela,e depois deteve-se.Estivera prestes a contar a Jed sobre a suspeita de que a mulher de Justin Wells era a misteriosa Karen.
Não",pensou,??é melhor esperar até ver onde essa investigação me conduz antes de passar palavra."
Nat reparou que a loja de recordações de Abdul
ainda não abrira ao meio-dia de quarta-feira, e ficou preocupado.A loja Negros Prazeres,um estabelecimento pornográfico,ficava mesmo em frente,do outro lado da rua,da
Loja de Especialidades e os dois homens eram amigos há anos.
Nat, um homem seco e nervoso de cinquenta e um anos,com olhos
encovados,tinha um credo a que se mantinha fiel e que lhe havia sido sempre proveitoso: manter-se longe da Polícia.Foi por isso que tentou todas as outras vias disponíveis
quando se preocupou pela primeira vez com o facto de o seu amigo não ter aberto a loja naquela quarta-feira de manhã. Primeiro, tentou espreitar pela porta da loja
de Abdul. Não
vendo nada,telefonou depois para casa de Abdul.Não conseguindo encontrá-lo lá, tentou telefonar para o senhorio de Abdul.
Por fim,Nat fez aquilo que mostrava a profundidade da sua
preocupação. Telefonou para a esquadra local e relatou a sua preocupação de que algo poderia ter acontecido a Abdul.A Polícia revistou o escrupulosamente
arranjado apartamento de Abdul,na Jane Street.Um ramo de flores murchas estava colocado ao pé da foto da falecida mulher.Além disso, não havia qualquer indicação
de que ele lá estivera recentemente.
Portanto,decidiram forçar a entrada na loja e investigar.
Foi então que encontraram o corpo de Abdul Parki encharcado em sangue. Nat Small não era suspeito.A Polícia conhecia Nat,e todos sabiam que ele não tinha
motivo.Na verdade,a total ausência de motivo era o aspecto mais perturbador do caso.Havia quase cem dólares na caixa
registadora,e parecia que o assassino não fizera sequer menção de abrir o cofre.
O que a Polícia queria de Nat e dos outros comerciantes do quarteirão, era informações.Conseguiram saber que Abdul abrira a loja,como habitualmente,na terça-feira
às 9da manhã e fora visto a varrer o passeio por volta das 11.
- Nat - disse o inspector -,você está mesmo em frente de porta, do outro lado da rua.Reparou em alguém a entrar ou sair da loja de Abdul pouco depois das onze?
Quando foi interrogado às 3da tarde,Nat tivera já bastante tempo para pensar e recordar.Por volta da 1hora do dia anterior,ele estivera a colocar uns expositores
na montra da frente.Embora não tivesse propriamente olhado bem para ele,reparara num sujeito bem vestido no passeio,no exterior da sua loja,que parecia estar a ver
as coisas que
se encontravam em exposição,mas depois atravessara a rua e dirigira-se directamente à loja de Abdul. ??
Nat tinha uma ideia bastante razoável da aparência do homem, aquele sujeito bem vestido não seria certamente o assassino de Abdul - disse Nat para
consigo.Não,não valia sequer a pena mencioná-lo aos polícias.Se o fizesse,acabaria por desperdiçar a tarde inteira na esquadra com um desenhador da Polícia.Nem pensar
.
- Eu não vi ninguém - informou Nat. - Mas deixem-me avisá-los acrescentou, virtuoso -, vocês têm de fazer alguma coisa com os drogados que andam por aqui. Eles são
capazes de matar as avós por uma dose. E podem dizer ao presidente da Câmara que fui eu que disse isto!
JiM CuRtEv teve a certeza de que algo se passava quando foi buscar o patrão ao meio-dia à Fundação da Família Wright e este lhe pediu que passasse
pela Irene Hayes Wadley & Smythe, uma elegante florista no Centro Rockefeller. Uma vez lá, ao invés de mandar Jim lá dentro, Wright entrou na loja com a caixa debaixo
do braço e regressou quinze minutos depois, seguido de perto por uma florista que carregava um sumptuoso ramo de flores numa grande jarra.
Wright instruiu a florista para encaixar a jarra no chão do banco traseiro, onde ele pudesse ter a certeza de que não tombaria.
Com um sorriso, a florista agradeceu a Wright e fechou a porta.
- Próxima paragem: Soho - disse Wright em voz alegre. Depois, disse a Jim um endereço desconhecido e acrescentou:
- Vamos ao consultório da Dra. Susan Chandler, ou melhor, tu vais lá entregar estas flores. Eu espero no carro.
Ao longo dos anos, Jim entregara flores a muitas mulheres bonitas em nome do patrão, mas nunca vira Alex escolhê-las pessoalmente. Jim aproveitou-se da sua
lealdade de muitos anos para pôr uma questão:
- Mr.Alex,essa não é a jarra Waterford que a sua mãe trouxe da
bélgica?
- Tens olho vivo,Jim.Na outra noite,quando acompanhei a Dra.
Susan até à porta,vi que ela tinha uma jarra semelhante a essa,mas mais pequena.Pensei que precisava de uma companhia.Agora,é melhor despachares-te.Vou chegar atrasado
para o almoço no Plaza.
Às 2.30,ALEx estava de regresso à sua secretária nos escritórios da fundação da Família Wright.Às 2.45,a secretária anunciou um telefonema de Dee Chandler Harriman.
- Passa-me a chamada, Alice - disse ele com uma nota de densidade na voz.
A voz de Dee soou, calorosa e apologética.
- Alex, provavelmente está ocupado a doar cinco ou seis milhões de dólares a alguém, por isso eu não vou demorar mais do que um nuto.
- Desde ontem à tarde que não distribuo assim tanto dinheiro - assegurou ele.- Que posso fazer por si?
? - Nada de muito difícil,espero.Algures ao amanhecer,tomei uma decisão de extrema importância.Está na hora de regressar a Nova Iorque.Os meus sócios na agência
de modelos aqui estão dispostos a comprar a minha parte.Um vizinho fica-me com o apartamento. É por isso que estou a ligar-lhe.Pode recomendar-me um bom agente imobiliário?
Estou à procura de um apartamento de quatro ou cinco assoalhadas no East Side.
- Não vou ser de grande ajuda,Dee.Eu vivo na mesma casa desde que nasci - disse-lhe Alex.- Mas posso tentar saber de um intermediário para si.
- Obrigada,isso seria uma grande ajuda.Eu detesto maçá-lo, mas tinha a impressão de que não se importaria.Chego aí amanhã à tarde e Assim posso começar a procurar
na sexta-feira.
- Nessa altura,já tenho um nome para lhe dar.
- Então,dê-mo enquanto tomamos uma bebida amanhã à noite.
convido.
Desligou antes que ele pudesse responder.Alex Wright reclinou-se na cadeira.Aquilo era uma complicação inesperada.Ele percebera aalteração na voz de Susan
ao dizer-lhe que convidara a irmã para o jantar na biblioteca.Fora por isso que lhe mandara hoje as flores.
- Eu precisarei disto? - murmurou ele entredentes. Depois, recordou-se de que o pai gostava de dizer que qualquer situação negativa pode ser transformada
em algo positivo.O truque,pensou Alex seriamente, era descobrir como fazer isso acontecer neste caso.
COM UMA RESIGNAÇÃO abatida, Jane Clausen entrou no quarto
do hospital. Tal como suspeitara, o seu médico insistira em que ela fizesse outra sessão de quimioterapia. O cancro que estava inevitavelment a vencer a guerra contra
o seu corpo parecia decidido a não lhe dar nem sequer o tempo para tratar de tudo o que precisava de ser tratado. Jane desejava poder dizer apenas ??Não quero mais
tratamentos??, mas não estava preparada para morrer.Ainda não.Não enquanto houvesse uma
réstia de esperança de que pudesse descobrir a verdade sobre o destino de Regina.Se a mulher que telefonara para o programa da Dra.Susan se decidisse a aparecer
e a mostrar a fotografia do homem que lhe dera o anel de turquesa,teriam finalmente um ponto de partida.
Quando o jantar foi servido,ela aceitou apenas uma chávena de chá e uma torrada,depois enfiou-se na cama,tomou o analgésico que a enfermeira lhe trouxe e começou
a adormecer.
- Mrs.Clausen.
Abriu os olhos e viu Douglas Layton inclinar-se sobre ela.
- Telefonei para sua casa porque precisamos da sua assinatura para o impresso de impostos.Quando Vera me disse que estava aqui,vim ver se o podia assinar.
- Eu pensei que tinha assinado tudo na reunião - murmurou ela.
- Uma das páginas ficou esquecida,mas pode esperar.
- Que disparate! Dê-ma cá.- Ela pegou nos óculos e olhou de relance para o impresso que Douglas lhe estendia.- Ah,sim.- Pegou na caneta que ele lhe deu e rabiscou
a sua assinatura, esforçando-se por se cingir à linha.
Como fora precipitada ao desconfiar de Douglas no dia anterior, pensou Jane. Aquele era o problema.A sua doença e toda a medicação estavam a tirar-lhe a sensatez.
Amanhã,telefonaria à Dra.Susan a dizer que se enganara nas suas suspeitas sobre Douglas,que estava enganada
e fora terrivelmente injusta para com ele.
- Mrs.Clausen,precisa de alguma coisa?
- Não,de nada,mas obrigada,Douglas.
Ela já estava a dormir quando ele saiu em bicos de pés,mas mesmo que estivesse acordada,dada a escuridão do quarto,provavelmente não teria reparado no sorriso de
satisfação na cara dele.
DEPoIs do seu segundo telefonema para Perguntem à Dra.Susan,
Tiffany ficou extremamente satisfeita consigo mesma.Conseguira
transmitir a mensagem que queria e esperava que alguém contasse o telefonema a Matt.E tinha a certeza de que o seu patrão,Tony Sepeddi, ficaria encantado quando
soubesse da publicidade que ela fizera ao restaurante. Acabara de abrir a porta de casa para se preparar para ir trabalhar quando o telefone tocou.Ela atravessou
a pequena sala de estar a correr
e conseguiu levantar o auscultador ao terceiro toque.
Era a mãe de Matt,que não perdeu tempo com cumprimentos.
- Tiffany,tenho de insistir para que não fales do meu filho na rádio. Ele acaba de ficar noivo de uma excelente rapariga.Por isso, por favor, esquece-o e
não fales das tuas saídas com ele,particularmente em sítios onde os amigos dele ou a noiva possam ouvir. - Um clique decisivo soou ao ouvido de Tiffany.
Chocada,ela ficou totalmente imóvel durante um minuto inteiro, sentindo o desespero invadir-lhe o corpo.Depois,atirou com o auscultador. De lágrimas a escorrerem-lhe
pela cara,correu porta fora e escadas abaixo.
No carro,o desgosto e o desapontamento apossaram-se dela. Apetecia-lhe encostar o carro em qualquer lado e chorar até lhe passar. mas sabia que tinha de se controlar.
Quando chegou ao Grotto,escolheu um lugar afastado no parque de estacionamento e ficou um bocado sentada no carro.Depois pegou no pó-de-arroz.
- E quem precisa dele? - perguntou em voz alta enquanto retocava a maquilhagem.
Ao atravessar o parque de estacionamento,passou pelo contentor do lixo.Parou por instantes a olhá-lo.Num gesto resoluto,tirou o anel de turquesa do dedo e atirou-o
lá para dentro.
? - Porcaria de anel,só me trouxe azar! - disse Tiffany entredentes. Depois,correu para a porta da cozinha,abriu-a e gritou:
- pessoal! Tony já soube da publicidade grátis que eu fiz hoje a esta espelunca?
às duas horas, quando Susan chegou, entrou Janet.
- Telefonou uma tal Dra.Pamela Hastings.Está ansiosa por falar
consigo.
- Já lhe falo.
- Não são lindas aquelas flores? - perguntou Janet.
Susan mal reparara na jarra de flores que estava em cima do armário. Agora,ao caminhar em direcção a elas,os seus olhos abriram- se de espanto.
- Deve haver algum engano.Aquilo é uma jarra Waterford.
- Engano nenhum - assegurou-lhe Janet.- O sujeito que trouxe o ramo disse que era do patrão dele.
É claro que ela percebeu imediatamente quem as enviara.
Alex apercebeu-se de qualquer coisa na minha voz depois de me ter contado que tinha convidado Dee para o jantar de sábado à noite??, pensou. Isso explica um gesto
tão grandioso como este. Que perspicaz! e que estupidez da minha parte ser tão transparente nos meus sentimentos.
Por um momento, interrogou-se se devia telefonar imediatamente para lhe dizer que não podia de modo algum aceitar aquela jarra. Depois, abanou a cabeça. Podia tratar
daquilo mais tarde. Naquele momento, havia assuntos mais prementes. Pegou no telefone. A breve conversa terminou com a promessa de Pamela Hastings de estar no consultório
de Susan às 9 horas da manhã seguinte. Logo a seguir, telefonou Donald Richards.
? - Estou a ligar só para confirmar esta noite, Susan. Sete horas, certo?
Depois daquele telefonema, Susan viu que ainda tinha alguns minutosantes do próximo doente. Procurou o número de Jane Clausen e ligou-lhe rapidamente. Ninguém atendeu,
por isso deixou uma mensagem no gravador de chamadas.
ERaM 6.05 quando ela se despediu do último doente. Susan mal tivera tempo de dar uma penteadela no consultório antes de apanhar um táxi para o restaurante.
Fizera tenções de falar a Tiffany para casa, mas àquela hora a rapariga já devia estar a trabalhar, e o restaurante estava provavelmente no máximo do movimento da
hora de jantar. ??Telefono-lhe para lá mais tarde, quando chegar a casa??, pensou Susan. ??Ela provavelmente fica até bastante tarde.??
Depois, sentiu um arrepio. Porque seria que pensar em Tiffany lhe dava uma sensação de inquietude?
Ele NÃO SABIA O apelido de Tiffany, mas, mesmo que soubesse, não seria sensato tentar apanhá-la em casa. Além disso, não era necessário. Ela dissera-lhe onde podia
encontrá-la.
Telefonou para o Grotto a meio da tarde e pediu para falar com ela. como esperara, foi-lhe dito que ainda não chegara. Entrava às 5. Ele aprendera há muito tempo
que a melhor maneira de obter uma informação era deixar alguém corrigir uma afirmação errada.
- Ela sai por volta das onze, certo? - sugeriu.
- Meia-noite. Quer deixar recado?
- Não, obrigado. Vou tentar apanhá-la em casa outra vez.
Estava ansioso por que o tempo passasse até poder apanhá-la. Tiffany vira-o bem e, provavelmente, como muitas pessoas no ramo da restauração, ela tinha boa memória
para fisionomias.
E o namorado, Matt?
Ele reviu cuidadosamente a cena na loja de Parki. Fora quando se voltara para sair que ele vira o casal. Estava directamente na linha de visão da
rapariga. O sujeito que estava com ela observava a tralha das prateleiras, de costas voltadas. Ele não era problema.
Parki já estava fora do caminho. E depois desta noite Tiffany também deixaria de ser uma preocupação.
Veio-lhe à cabeça um verso de ??O Salteador, um poema que ? decorara em criança: Virei por ti ao luar mesmo que o inferno me barre o caminho.
Soltou uma risada sinistra.
DONALD RICHARDS estava à espera no bar do Palio quando Susan
chegou,às 7.10.Interrompeu o pedido de desculpas dela dizendo:
- O trânsito está terrível,e eu próprio acabei de chegar.Vai gostar de saber que almocei com a minha mãe hoje,e ela ouviu o seu programa quando eu participei e ficou
muito bem impressionada consigo. No entanto, fez-me um sermão sobre o facto de eu ter combinado encontrar-me consigo aqui.No tempo dela,parece que os cavalheiros
iam sempre buscar as senhoras a casa e levavam-nas ao restaurante.
Susan riu-se.
- Com o trânsito de Manhattan,se fosse buscar-me à Village,
quando estivéssemos de volta ao centro da cidade os restaurantes já teriam fechado.- Ela olhou à sua volta.O bar,em forma de ferradura, estava cheio.Tinha mesas
pequenas de ambos os lados.Um magnífico mural representando a famosa corrida de cavalos que dava o nome ao restaurante elevava-se por cima deles.A iluminação era
suave,a atmosfera, acolhedora e sofisticada.
- Nunca aqui estive.Parece muito agradável - disse ela.
- Eu também não,mas foi-me muito recomendado.A casa de jantar é no andar de cima.
Ela tentou não denunciar o interesse com que estava a analisar Donald Richards.O cabelo dele era castanho-escuro com um ligeiro tom arruivado,e usava óculos largos
de armação cinzento- metalizado.
As lentes salientavam-lhe o azul-acinzentado dos olhos - ou seriam olhos mesmo azuis e teriam a cor subtilmente alterada pela armação?
O elevador chegou. Entraram e subiram para o andar superior, onde o maitre d.hotel os cumprimentou e os acompanhou à mesa.
perguntou-lhes o que queriam beber, e Susan pediu Chardonnay, e don Richards, um martini puro.
- Eu normalmente não tomo puro - explicou ele. - Mas hoje foi um dia puxado.
Seria por ter almoçado com a mãe?, interrogou-se Susan. Teve o cuidado de não parecer demasiado curiosa sobre ele. Não podia esquecer-se de que ele era psiquiatra
e daria conta de qualquer esforço dela para o sondar. Susan sorriu calorosamente para o outro lado da mesa.
- Uma ouvinte telefonou hoje para dizer que, depois de o ouvir, foi comprar o seu livro e está a apreciá-lo imenso.
- Eu ouvi-a. É obviamente uma mulher de grande discernimento.
Ouviu-a?!??, pensou Susan. ??Os psiquiatras ocupados normalmente não ouvem programas de rádio com duas horas de duração.?? ? As bebidas chegaram. Richards ergueu
o copo num brinde.
- Agradeço-lhe o prazer da sua companhia.
Ela sabia que era o tipo de observação que as pessoas faziam durante um cocktail. Ainda assim, Susan sentiu que havia algo por detrás do cumprimento casual
- uma certa intensidade no tom.
- Dra. Susan - disse ele -, vou admitir-lhe uma coisa. Eu fui espreitar a sua página na Internet.
Já somos dois, pensou Susan. ??Amor com amor se paga.??
- Foi criada em Westchester? - continuou ele.
- Sim. Larchmont, depois Rye. Mas a minha avó sempre viveu em Grenwich Village, e eu passei muitos fins-de-semana com ela durante a infância e adolescência.
E sempre adorei aquilo.
- Pais?
- Divorciaram-se há três anos. E, infelizmente, não foi uma daquelas situações de separação amigável. O meu pai conheceu uma pessoa e apaixonou-se loucamente.
A minha mãe ficou destroçada.
- E você?
- Fiquei triste. Éramos uma família feliz, ou pelo menos era isso que eu pensava. Fazíamos programas juntos. Depois do divórcio, no entanto, tudo mudou.
Por vezes, penso que foi como um navio que embateu num recife e se afundou, e embora todos os que estavam a bordo tivessem sobrevivido, cada um de nós apanhou um
salva-vidas diferente.
- Por que razão deixou de ser magistrada do Ministério Público e voltou aos estudos para fazer um doutoramento em Psicologia Clínica?
Para Susan,aquela pergunta tinha resposta fácil.
- Satisfazia-me pôr criminosos inveterados atrás das grades, depois formulei a acusação de um processo em que uma mulher matara o marido porque ele estava
prestes a deixá-la.Ela apanhou quinze anos e eu nunca me hei-de esquecer da sua expressão aturdida,incrédula, quando ouviu a sentença.Ora,eu não pude deixar de pensar
que,se ?
tivesse sido apanhada a tempo,sido ajudada,teria libertado aquela cólera antes de ela a destruir...
- Um desgosto terrível pode despoletar uma cólera terrível - comentou ele serenamente.
Susan assentiu com a cabeça.
? ? - E o que o levou a si para este campo?
- Eu sempre quis ser médico.Na Faculdade de Medicina, compreendi até que ponto a psique afecta a saúde física,e por isso escolhi este caminho.
O maitre d'hotel chegou com as ementas,e depois de alguns momentos de troca de impressões sobre as várias hipóteses,eles fizeram os respectivos pedidos.
Susan esperava conseguir dirigir a conversa mais para ele,mas ele deu-lhe imediatamente a volta para falar do programa de rádio.
- Soube mais alguma coisa de Karen,a mulher que telefonou na segunda-feira? - perguntou ele casualmente.
- Não, não soube - respondeu Susan.
? Donald Richards partiu um pedaço de pão.
- O seu produtor mandou uma cópia do programa a Justin Wells?
A pergunta era inesperada.
- Cunhece Justin Wells?- perguntou ela,incapaz de esconder
a sua surpresa.
- Conheci-o profissionalmente.
- Andou a tratá-lo por causa dos ciúmes excessivos que sentia
da mulher?
- Porque pergunta isso?
? - Porque,se a resposta for sim,eu penso que tem a obrigação moral de contar o que sabe sobre ele à Polícia. Acontece que a mulher que se autodenominou Káren
é a mulher de Justin Wells,cujo nome verdadeiro é Carolyn,e ela caiu ou foi empurrada para a frente de uma carrinha umas horas depois de me ter telefonado.
A expressão de Donald Richards não foi tanto de surpresa como de seriedade e reflexão.
- Receio que provavelmente tenha razão. Eu devia falar com a polícia, - disse, muito sério.
Eu tinha razão, pensou Susan. ??Para mim, a relação óbvia entre o que aconteceu a Carolyn Wells e o telefonema são os ciúmes do marido.
- Como está a sua salada? - indagou Richards.
Era óbvio que pretendia mudar de assunto. E com razão, pensou, aliviada. Ética profissional.
- Está excelente. E já chega de falar sobre mim. E você? Tem irmãos?
- Não, sou filho único. Cresci em Manhattan. O meu pai morreu há dez anos, altura em que a minha mãe decidiu ir viver para o Tuxedo todo o ano. Ela é pintora; bastante
boa, talvez até mesmo excelente. O meu pai era um velejador nato e costumava levar-me como tripulante.
Susan cruzou mentalmente os dedos.
- Eu reparei que tirou um ano de folga da faculdade para trabalhar como director assistente de cruzeiro. Influências do seu pai, presumo?
Ele pareceu divertido.
- Ambos vamos buscar informação à Internet, não é? Sim, adorei aquele ano. Fiz um cruzeiro à volta do Mundo, passando pela maioria dos principais portos. Viajei
praticamente por todo o Globo.
- Que faz exactamente um director assistente de cruzeiro?
- Ajuda a organizar as actividades a bordo. Evita atritos. Descobre pessoas solitárias ou infelizes e fá-las conversar.
? - Segundo a sua biografia, conheceu a sua mulher a bordo do Gabrielle. Era o navio em que Regina Clausen ia quando desapareceu.
- Sim. Eu nunca conheci Regina, é claro, mas posso compreender por que razão o Gabrielle lhe foi recomendado. É um navio maravilhoso.
Continuaram a falar ao longo da refeição, pormenores, comentários sobre o jantar (altamente favoráveis), comparações com outros restaurantes conhecidos (a cidade
de Nova Iorque é um regalo para bons comensais), intercalados com as mais óbvias perguntas de sondagem. Ambos decidiram não comer sobremesa e pedir café. Depois
de pagarem, Richards mencionou o nome de Tiffany.
- Foi triste ouvi-la hoje. Ela é terrivelmente vulnerável, não acha?
- Acho que ela quer desesperadamente amar e ser amada - comentou Susan. - Ela deu o nome de Matt a essa necessidade.
Richards concordou.
- E aposto que, se Matt defacto lhe telefonar, não será por ela ter empolado tanto o impulso dele de lhe oferecer o anel como recordação, I Isso afugentaria a maior
parte dos homens.
? ?Estará ele a querer minimizar a importância do anel???, interrogou-se Susan.
Quando saíram do restaurante, Richards chamou um táxi. Ao entrarem, ele disse a morada dela ao motorista e olhou para ela, acanhado.
- Não sou bruxo. O seu nome vem na lista.
Uma vez chegados ao edifício de apartamentos dela, ele pediu ao táxi que esperasse enquanto a acompanhava à porta.
- A sua mãe ficaria contente. Um perfeito cavalheiro. - Ela pensou em Alex Wright, que fizera a mesma coisa duas noites atrás.
Dois cavalheiros em três dias, reflectiu ela. ??Nada mau.?? ?
Richards pegou-lhe na mão.
- Acho que lhe agradeci,pelo prazer da sua companhia no começo da noite. Repito-o ainda com mais ênfase. - Olhou muito sério para ela e acrescentou: - Não
tenha medo de um elogio, Susan. Você merece elogios, sabe? Boa noite.
?? Depois, foi-se embora. Susan rodou a chave na fechadura duas v zes e encostou-se à porta por um momento, tentando ordenar os sentimentos. A seguir, dirigiu-se
ao gravador de chamadas. Tinha duas mensagens. A primeira era da mãe:
??Telefona-me a qualquer hora até à meia-noite."
Eram 10.45. Sem ouvir a segunda mensagem, Susan ligou. O estado de nervos da mãe tornou-se óbvio quando começou a balbuciar acerca do seu telefonema.
- Susan, isto é uma loucura. Sinto-me como se estivesse a pôr-me na posição de ter de optar entre as minhas filhas. ? Susan ouviu a explicação desajeitada
da mãe de como Alex Wright ? tinha aparentemente gostado de a conhecer na festa de domingo e de como Binky estava a tentar que ele e Dee começassem a sair juntos.
- Nós sabemos que Dee está solitária e é agitada, mas detestaria vê-la interferir numa amizade que tu poderás estar a apreciar.
- Detestava ver Dee atirar-se novamente a uma pessoa que expressasse interesse em mim. É isso, não é, mãe? Olhe, eu tive um jantar muito agradável
com Alex Wright, mas é tudo. Eu soube que Dee anda a telefonar-lhe. Na verdade, ele convidou-a para ir a um jantar comigo no sábado à noite. Não estou a competir
com a minha irmã. Quando encontrar a pessoa certa para mim, ambos o saberemos, e não terei de me preocupar com a possibilidade de ele poder sair da linha quando
a minha irmã lhe estalar os dedos.
- Tenta compreender que a pobre Dee anda muito infeliz - pediu? a mãe. - Ela telefonou-me esta tarde para me contar que vai regressar a Nova Iorque. É um
tanto repentino, mesmo para Dee. Ela diz que tem saudades nossas e está farta da agência de modelos. O teu pai pagou- lhe um cruzeiro na próxima semana. Espero que
isso sirva para a acalmar.
- Eu também espero. Está bem, mãe, depois falamos.
? A segunda mensagem era de Alex Wright:
??Um jantar de trabalho cancelado, e eu atrevo-me a tentar apanhá-la outra vez em cima da hora. Não são muito boas maneiras, eu sei, mas queria mesmo vê-la. Amanhã
telefono.
Sorrindo, Susan voltou a ouvir a mensagem. ??Aquilo, sim, era ao que o Dr. Richards não me veria resistir??, pensou. ??E fico extremamente contente por saber que
Dee vai fazer um cruzeiro na próxima semana.??
QUANDO ESTAVA na cama e quase a adormecer,Susan lembrou-se de que queria telefonar a Tiffany para o Grotto.Acendeu a luz e olhou para o relógio. Faltava um quarto
para a meia-noite.
Pediu o número de telefone através das informações e ligou.O telefone tocou muito tempo antes que alguém atendesse.
Susan pediu para falar com Tiffany,depois esperou vários minutos até ela aparecer.Mal disse o seu nome,Tiffany explodiu.
- Dra.Susan,eu nunca mais quero voltar a ouvir uma palavra sobre aquele maldito anel.A mãe de Matt telefonou e disse-me que parasse de falar dele; disse
que ele vai casar-se. Por isso,eu atirei o raio do anel fora! Quem me dera que Matt e eu nunca tivéssemos sequer entrado naquela loja de recordações.E quem me dera
que não tivéssemos
dado ouvidos àquele homenzinho daquela loja estúpida quando nos contava que o sujeito que acabara de sair comprara aqueles anéis para várias amigas.
Susan sentou-se imediatamente na cama.
- Tiffany,isto é muito importante.Você viu o homem?
- Claro que vi.Era um borracho,um sujeito de classe.Nada como o Mat.
- Tiffany,eu tenho de falar consigo.Venha amanhã à cidade. Almoçamos juntas, e, por favor, diga-me: é possível recuperar o anel?
- Dra. Susan, a esta hora ele está debaixo de toneladas de ossos de frango e de piza, e é lá que vai ficar. Sinto-me uma completa idiota.
- Tiffany, lembra-se onde comprou o anel?
- Eu já lhe disse, foi na Village. Na West Village. Sei que não fica muito longe de uma estação do metro. A única coisa de que me lembro com certeza
é que havia uma loja de artigos pornográficos mesmo em frente. Tenho de desligar. Adeus, Dra. Susan.
Já completamente desperta, Susan pousou o auscultador. Tiffany deitara fora o seu anel de turquesa, o que era uma pena, mas parecia lembrar-se do
homem que aparentemente comprara vários. ia telefonar a Chris Ryan para investigar Douglas Layton, pensou ela. ??Vou dar- lhe também o número de telefone de casa
de Tiffany. Ele pode descobrir-me a morada dela. E se ele não conseguir, então amanhã à noite estarei Sentada no Grotto a jantar a melhor comida italiana de Yonker.
TIFFANY CONSEGUIU chegar ao fim daquela noite de trabalho. O facto de o Grotto estar cheio foi uma grande ajuda,pois assim não teve muito tempo para pensar. Apenas
por uma ou duas vezes a mágoa e a fúria a assaltaram em catadupas.
Por volta das 11horas,um sujeito entrou e sentou-se no bar. sentia-o despi-la com os olhos de cada vez que passava por ele a caminho das mesas.
??Idiota??,pensou.
?? Às 11.40,ele agarrou-lhe na mão e pediu-lhe que fosse tomar umabebida a casa dele quando saísse.
- Desaparece,anormal! - replicou ela.
Depois,ele apertou-lhe a mão com tanta força que ela gemeu de dor.
- Largue-a! - Joey,o empregado do bar,deu a volta ao balcão
num ápice.- Pague a sua conta e desapareça daqui,homem.
O sujeito levantou-se.Era grande,mas Joey era maior. Depois, o idiota atirou algum dinheiro para cima do balcão e saiu.
Imediatamente após o ocorrido,a Dra.Susan telefonou,e uma vez
mais Tiffany ficou ciente de como estava a sentir-se pessimamente.??
só quero é ir para casa e enfiar a cabeça debaixo dos cobertores, pensou ela.
Às 11.55,Joey chamou Tiffany.
- Ouve,miúda,eu vou contigo até ao carro.Aquele sujeito pode estar lá fora à tua espera.
Mas depois, quando Tiffany estava a abotoar o casaco para sair, entrou uma equipa de bowling, e o bar ficou cheio de clientes.
- Não há problema, Joey. Até amanhã - disse-lhe ela, e saiu. ? Só depois de estar lá fora é que se lembrou de que deixara o carro no ?canto mais afastado do parque
de estacionamento. Que chatice,? pensou Tiffany. ??Se o tal sujeito estiver mesmo à minha espera, pode ser desagradável.??
Com cuidado, perscrutou cada metro do parque. Viu uma pessoa, um homem que parecia ter acabado de sair do carro e se dirigia provavelmente ao bar. No entanto, mesmo
na luz sombria, via-se bem que não era o idiota que tentara meter-se com ela. Aquele sujeito era mais magro.
?Mesmo assim, houve qualquer coisa que lhe deu uma sensação estranha que a fez querer afastar-se o mais depressa possível. Enquanto caminhava rapidamente em direcção
ao carro, ela procurou as chaves na Carteira. Os seus dedos fecharam-se sobre elas. Estava quase lá. Depois, de repente, o homem que ela vira do outro lado do parque
estava à sua frente. Tinha qualquer coisa reluzente na mão. Uma faca. A descoberta fê-la imobilizar-se quase de imediato. ?Não!", pensou, incrédula, enquanto o via
avançar em direcção a si.
- Por favor - suplicou ela, não acreditando no que estava a acontecer - Porfavor.
Tiffany viveu o tempo suficiente para ver o rosto do atacante, o suficiente para que a sua excelente memória a ajudasse a reconhecer o seu assassino como o tipo
de classe que ela vira de relance naquela loja de recordações da Village, aquele que comprara os anéis com a inscrição pertences-me.
CONDUZINDO de regresso à cidade ao longo da via rápida que atravessava o Bronx, ele sentia a transpiração a brotar do seu corpo. Fora por pouco. Ele acabara de saltar
o muro baixo que separava o terreno da estação de serviço encerrada onde estacionara o carro quando vira um tipo a gritar ??Tiffany".
Felizmente, havia um declive, e ele não teve de ligar o motor até chegar à estrada. Uma vez lá chegado, virou à direita e embrenhou-se no trânsito, por isso o mais
certo era que ninguém o tivesse visto. Na semana seguinte, terminava tudo, recordou a si próprio. Escolhia para viver a selva molhada de chuva, e a sua missão terminaria.
Veronica, tão confiante, fora a primeira, agora enterrada no Egipto: aspirâmides ao longo do Nilo.
Regina,cuja confiança ele conquistara no Bali: Ver o nascerdo
sol numa ilha tropical.
? ? Constance,que substituíra Carolyn em Argel: Ver o mercado no alvorecer de Argel.
Atravessar o oceano num avião prateado.Ele recordou Monique, tímida herdeira que conhecera no voo para Londres. ??
Os anéis tinham sido um erro,é claro.Eles constituíam a sua brincadeira privada,como a ligação entre os nomes que ele usava nas viagens especiais. Ele devia ter
guardado as piadas só para si.
Mas Parki,que fazia os anéis,estava fora do caminho. Agora Tiffany, que o vira comprar um, fora-se.Ele tinha a certeza de que, tal como Carolyn,ela o reconhecera
no fim.
Bem,eram penas ao vento,e ele já não podia recuperá-las,mas certamente que voariam para longe sem serem notadas.Por muito que ele tivesse tentado manter-se
fora do alcance das máquinas fotográficas; era inevitável ter sido apanhado em segundo plano nalgumas fotografias tiradas nos navios de cruzeiro.
Afinal,Carolyn Wells estivera prestes a enviar a Susan Chandler uma fotografia com ele ao fundo.Só de pensar que escapara por pouco ainda o enervava.Ele imaginava
Susan a abrir o pacote,com os olhos a esbugalharem-se de surpresa e horror quando o reconhecesse.
??Daqui a uma semana,está tudo terminado",prometeu a si próprio.
??Nessa altura,inicio a última etapa da minha viagem. Susan Chandler terá sido eliminada,e eu estarei a iniciar o meu último cruzeiro.
Uma vez isso realizado,o terrível fogo dentro de si desapareceria, ele finalmente seria livre - livre para se tornar a pessoa que a sua mãe sempre acreditara que
ele poderia ser.
CHris RyaN fora agente do FBI durante trinta anos, antes de se reformar e criar a sua própria pequena empresa de segurança. Ele e Susan haviam-se tornado amigos
quando a família de uma vítima de homicídio o contratara para tentar resolver o crime independentemente da Polícia. Como magistrada do Ministério Público, Susan
estava directamente envolvida no caso, e as informações que Chris descobrira e partilhara com ela ajudaram-na a obter uma confissão.
Continuavam a encontrar-se de vez em quando para jantar,por isso, quando Susan lhe telefonou na quinta-feira de manhã, Chris ficou enteressado.
- Precisas de um almoço à borla? perguntou-lhe ele, bem-disposto. - Há uma nova steak house ao fundo do quarteirão. Na esquina entre a Quarenta e Nove e a Terceira.
Quando?
- Uma nova steak house na esquina da Quarenta e Nove e da ? Terceira, dizes tu? Parece-me que é aí que fica o Smith & Wollensky - disse Susan. - Acontece que eu
sei que já lá está há uns setenta anos. Há mesmo quem pense que és tu o dono. - Ela riu-se. - Claro que sim, mas primeiro tenho um favor para te pedir, Chris. Preciso
de uma investigação rápida sobre uma pessoa.
- Quem?
- Um advogado, Douglas Layton. Trabalha na Hubert March & associados, uma firma de consultadoria jurídica e de investimentos. É também um dos directores
do Fundo da Família Clausen.
- Parece ser bem-sucedido. Estás a pensar em casar com ele?
- Não, não estou. - Susan contou-lhe os antecedentes e explicou que Jane Clausen expressara alguma preocupação sobre Layton.
Depois, contou-lhe os acontecimentos desde o programa de rádio em que o desaparecimento de Regina Clausen fora mencionado pela primeira vez.
- E esse sujeito desapareceu como que por magia quando estavas à espera de que a dita Karen aparecesse no teu consultório?
- Sim. E uma coisa que Layton disse a Mrs. Clausen na terça-feira foi que ele conhecera a filha, facto que sempre negara até então.
? - Vou deitar mãos à obra - prometeu Ryan.
Pegou num bloco e na caneta.
- A partir de agora, o relógio não pára. Para onde mando a conta de Mrs. Clausen?
Ele percebeu a hesitação na voz de Susan.
- Lamento, mas não é assim tão simples. Tinha uma mensagem dela no meu gravador esta manhã dizendo que achava que tinha sido injusta quando me falou das
suas suspeitas sobre Layton. Claramente a explicação era que eu devia esquecer o assunto, mas eu não posso. Eu acho que ela não tenha sido de todo injusta e estou
preocupada com ela.
Por tudo? isso, manda-me a conta a mim - disse Susan.
Chris Ryan soltou um gemido.
- Graças a Deus que ainda recebo a minha pensão. Depois, digo-te qualquer coisa, Susie.
A SECRETÁRIA de Douglas Layton, Leah, uma mulher de cinquenta
e poucos anos que não admitia disparates,estudou o seu patrão com olhos desaprovadores.
??Está com ar de quem passou toda a noite fora de casa, pensou quando Layton passou por ela e resmungou um bom dia,? de passagem.
Sem perguntar,ela dirigiu-se à máquina de café,serviu-lhe uma chávena,bateu à porta e abriu-a.
- Eu não quero habituá-lo mal,Doug - disse ela -,mas parece estar a precisar disto.
- Leah, Mrs. Clausen está outra vez no hospital - disse Doug baixinho. - Acho que não lhe resta muito tempo.
- Ah,que pena.- Leah sentiu remorsos de súbito.- Ainda vai à Guatemala na próxima semana?
- Vou,claro.Mas não vou esperar para lhe mostrar a surpresa que estava a planear para ela quando regressasse com o meu relatório.
- O orfanato?
- Sim.Ela não sabe que a nova ala está quase pronta nem que
as pessoas que dirigem o orfanato o querem rebaptizar com o nome de Regina.Eu acho que não devemos esperar mais para lhe mostrar as fotografias. o processo,se faz
favor.
Juntos estudaram as fotos 20x 25do acrescento do orfanato.
- Espaço para mais duzentas crianças - disse Doug.- Pos
uma clínica equipada com tecnologia de ponta.Não faz ideia de qomo muitas destas crianças lá chegam em estado de subnutrição.- Ele abriu a gaveta da secretária.-
Aqui está um esboço da placa que vamos descerrar na inauguração.- As letras gravadas a ouro diziam CAsA REgina CLAUSEN.
- Oh,Doug,isso vai deixar Mrs.Clausen tão feliz! - disse ela com os olhos marejados.- Assim,pelo menos algo de bom vai sair da sua tragédia.
- Sem dúvida - concordou Douglas Layton fervorosamente.
Eram 9.10 quando a secretária de Susan a contactou pelo intercomunicador.
- Está aqui a Dra. Pamela Hastings para falar consigo, doutora.
Susan pediu a Janet que a mandasse entrar.
A mulher estava angustiada, tinha a testa vincada por linhas fundas de preocupação e os lábios cerrados. Mas quando falou, Susan gostou instintivamente dela, sentindo
que possuía cordialidade e integridade.
- Acho que lhe devo ter soado muito malcriada no outro dia quando telefonou para o hospital, Dra. Susan. Foi só por ter ficado surpreendida quando disse o seu nome.
- E sem dúvida ainda mais quando soube por que razão eu estava a telefonar, Dra. Pamela. - Susan estendeu a mão. - Por favor, vamos tratar-nos por Susan e Pamela,
se não se importa.
- Claro que não. - Pamela Hastings apertou a mão a Susan e sentou-se. - Eu não posso demorar-me muito. Tenho passado tanto tempo nohospital que não estou
devidamente preparada para a minha aula das nove e um quarto.
- E eu entro no ar daqui a cinquenta minutos - disse Susan - por isso acho que é melhor irmos directas ao assunto. Ouviu o telefonema que Carolyn Wells fez para
o meu programa na segunda-feira à tarde?
- Aquele da cassete que Justin negou ter pedido? Não.
- Gostava que verificasse se é de facto a voz dela na gravação. Mas deize-me contar-lhe o que ela disse.- Susan descreveu a conversa sobre o desaparecimento de Regina
Clausen e a chamada que recebera da ouvinte que se autodenominara Karen.
Quando Susan terminou,a outra mulher disse:
- Eu não preciso de ouvir a cassete.Eu vi um anel de turquesa com a inscrição na noite de sexta-feira passada.- Ela contou a Susan a festa do quadragésimo aniversário
que as amigas lhe tinham preparado.
Susan abriu a gaveta lateral da secretária e tirou a carteira.
- A mãe de Regina Clausen estava a ouvir o programa e ouviu a chamada de Carolyn.Depois telefonou-me e veio cá com um anel que tinha encontrado entre os objectos
pessoais da filha.
- Importa-se de dar uma olhadela,por favor? -
Abriu a carteira e tirou de lá o anel de turquesa.
Pamela Hastings empalideceu.Não tentou tirar o anel da mão de Susan, mas ficou sentada a olhar fixamente para ele.Por fim,disse:
?- É exactamente igual ao que Carolyn? me mostrou.O interior do anel não tem a inscrição ??Pertences-me"?
- Sim.Tome,veja.
Pamela abanou a cabeça.
- Não,não quero tocar-lhe.Como psicóloga,vai provavelmente
achar-me doida,mas eu tenho a bênção,ou talvez a maldição, de uma intuição muito apurada,ou segundo sentido.Quando toquei no anel de Carolyn no outro dia,eu
avisei-a de que ele poderia vir a ser a causa da morte dela.
Houve uma pausa embaraçosa. Depois, Susan disse:
- Notava-se um medo muito real na voz de Carolyn Wells quando me telefonou na segunda-feira.Deu-me a impressão nítida de que ela tinha medo do marido.
- Justin é muito possessivo relativamente a Carolyn - afirmou Pamela baixinho.
Era óbvio para Susan que Pamela Hastings estava a escolher as palavras cuidadosamente.
- Possessivo o suficiente para lhe fazer mal?
- Não sei.- As palavras eram angustiadas,como se lhe tivessem sido arrancadas.- Carolyn está inconsciente,mas eu acho que devo contar-lhe que ela parece
chamar por alguém.
- Quer dizer,alguém que você não conhece?
- Por várias vezes,ela disse muito claramente OWin.
- Tem a certeza de que era um nome?
- Eu perguntei-lhe isso ontem quando estava perto dela,com
a mão dela na minha,e ela apertou-me a palma da mão.
- Pamela,acha que Justin Wells é capaz de fazer mal à mulher num ataque de ciúmes?
Pamela reflectiu por um momento.
- Eu acho que ele era capaz disso - respondeu.- Talvez ainda
seja.Não sei.Ele está perturbado desde segunda-feira à noite,e agora a Polícia tem andado a falar com ele.
Susan recordou-se de Hilda Johnson,a velhota que afirmara ter visto alguém empurrar Carolyn Wells para a frente da carrinha e que fora assassinada escassas horas
depois.
? - Estava no hospital segunda-feira à noite com Justin Wells?
Pamela Hastings fez que sim com a cabeça.
- Estive lá entre as cinco e meia de segunda-feira à tarde e as seis horas da manhã de terça-feira.
? - E ele esteve lá o tempo todo?
- É claro - disse ela,e depois hesitou.- Não,por acaso não esteve o tempo todo.Depois de Carolyn ter saído da sala de operações, eram cerca de dez e meia
da noite, Justin saiu para dar um passeio a pé. estava com medo de ficar com uma das suas enxaquecas e queria tomar ar fresco. Mas eu lembro-me de que ele saiu durante
menos de uma hora.
Hilda Johnson vivia apenas a uns quarteirões do Lenox Hill hospital, pensou Susan.
- Como estava Justin quando regressou ao hospital? - perguntou ela.
- Muito mais calmo - disse ela, e depois fez uma pausa. demasiado calmo, se é que me entende. Eu diria que estava quase em estado de choque.
QUANDO SUSAN chegou ao estúdio,enfiou a cabeça no gabinete de
Jeany,que já preparava a advertência de que um destes dias ela não ia conseguir chegar a horas do início do programa.Mas naquele dia,ao virar-se para ela,a expressão
do produtor era lúgubre.
- Estou a começar a pensar que nós embruxamos quem nos telefona, Susan.Aquela empregada de mesa,Tiffany,foi esfaqueada ontem à noite, depois de sair do emprego.
- Ela foi o Quê ? - Susan sentiu-se como se tivesse acabado de levar um soco.Agarrou-se com firmeza ao bordo da secretária de Jed para se amparar.
- Calma.Tem calma - disse ele,levantando-se.- Tens um programa para fazer dentro de poucos minutos.
Tiffany.Susan recordou a conversa ao telefone,já tarde,na noite anterior. A rapariga estava tão ansiosa por reatar a ligação com o namorado, e ficara tão
magoada quando a mãe dele lhe telefonara.??Pobre rapariga - pensou Susan.
- Lembras-te de como tentaste impedi-la de dar o nome do lugar onde ela trabalhava? - perguntou Jed.- Bem,aparentemente um sujeito qualquer foi lá à procura
dela.Meteu-se com ela e ficou aborrecido quando ela o mandou passear.Ele é má rês.Tem um cadastro com um quilómetro de comprimento.
- Têm a certeza de que foi ele? - perguntou Susan, entorpecida.
- Pelo que ouvi,a Polícia está plenamente convicta disso,mas parece-me que ele ainda não confessou,nem nada - respondeu Jed.- Anda, temos de ir para o estúdio.
?Meio atarantada,Susan lá conseguiu fazer o programa.As linhas foram inundadas de telefonemas sobre Tiffany.Por sugestão de Susan, durante um intervalo publicitário
Jed telefonou para o Grotto,e ela falou com o dono,Tony Sepeddi.
- Joey, o nosso barman, disse a Tiffany que esperasse para ele a acompanhar ao carro - explicou Sepeddi com a voz embargada pela emoção.- Mas como ele estava muito
ocupado,ela saiu.Quando ele percebeu,correu lá para fora para se assegurar de que ela estava bem. Foi então que viu um tipo a correr na direcção da estação de serviço
aqui ao lado.Quando encontraram o corpo de Tiffany,o homem já tinha desaparecido,mas Joey tem quase a certeza de que era o mesmo que estava a incomodá-la no bar.
Teriam apanhado o homem certo? ??Isto não parece ser um incidente isolado",pensou Susan.??Carolyn Wells telefonou-me,e umas horas depois foi atropelada. Hilda Johnson
jurou publicamente que vira alguém empurrar Carolyn Wells; umas horas depois,foi assassinada. Tiffany viu um homem a comprar um anel de turquesa e telefonou-me a
dizer isso; agora,foi morta à facada.Coincidência? Acho que não.
será que o homem preso pela Polícia matou Tiffany? E Hilda Johnson?
E será que foi ele quem empurrou Carolyn Wells?"
Ao terminar o programa,Susan disse aos seus ouvintes:
- Agradeço todos os vossos telefonemas.Penso que naquele par de vezes que Tiffany falou comigo todos sentimos que começávamos a conhecê-la.Agora,sei que muitos de
vós sentem o mesmo terrível pesar que eu sinto com a sua morte.Se o atacante de Tiffany foi àquele bar porque ela nos disse onde trabalhava, isso prova uma vez mais
que nunca devemos de ânimo leve revelar tal informação a qualquer pessoa. - Susan sentiu a voz embargar-se ao concluir.- Por favor,
lembrem-se de Tiffany e da sua família nas vossas orações.O nosso tempo acabou.Voltarei amanhã .
Imediatamente após ter feito as despedidas,ela saiu do estúdio em direcção ao seu consultório.Uma Janet contrita disse-lhe que Alex Wright telefonara duas vezes.
- Tinha-me dito para anotar os recados que chegassem enquanto estava a conversar com a Dra.Pamela Hastings,e depois saiu tão depressa que eu não me lembrei de lhe
dizer que lhe telefonasse.A seguir ele deixou um segundo recado . ??
- Está bem.- O primeiro recado era para,por favor,telefonar a Alex antes do programa.O segundo Susan leu e releu.Alex ia encontrar-se com Dee no St.Regis às 5horas
para tomarem uma bebida,e ele queria que ela se lhes juntasse. Mana, pensou ela,??eu adoro-te, mas há limites. Não apenas te fizeste convidada para o jantar de sábado
à noite, como conseguiste arranjar um encontro com ele também hoje à tarde.
Com Janet a observar, Susan rasgou ambos os recados em pedaços e enviou-os para o cesto dos papéis. Ela não tinha qualquer intenção de ir com Alex e Dee
para tomar uma bebida nem para qualquer outra coisa.
Era meio-dia e meia.Isso dava-lhe meia hora antes da consulta da 1.
Posso fazer uns telefonemas??,disse para consigo.
O primeiro foi para a Polícia de Yonkers.Dos seus dias no
ministério Público do Condado de Westchester,ela conhecia lá vários inspectores. Conseguiu falar com um deles, Pete Sanchez,e explicou o seu interesse no homicídio
de Tiffany Smith.Sanchez revelou-lhe que os polícias de lá estavam convencidos de que tinham apanhado o assassino e esperavam que a confissão do suspeito,Sharkey
Dion,um ex-condenado, fosse apenas uma questão de horas.
- Quando ele foi posto fora do Grotto,um sujeito ouviu-o dizer
que havia de voltar para lhe tratar da saúde - contou Pete.
- Isso não significa que ele a tenha assassinado - disse Susan.- Já estão a examinar a arma?
Sanchez suspirou.
- Ainda não,mas confiscámos o contentor do lixo.
Depois,ela contou-lhe sobre o anel de turquesa,mas ele não se
mostrou muito interessado.
- Sim.Dê-me o seu número de telefone.Eu aviso-a quando Dion
terminar a confissão.
Susan pousou o auscultador e sentou-se por um momento, concentrada. O elemento aglutinador de tudo aquilo era o anel de turquesa.
Regina Clausen tinha um e estava morta.Carolyn Wells tinha um e podia morrer. Tiffany Smith tinha um e estava morta.
Tiffany disse-me que o anel dela estava enterrado debaixo de toneladas de ossos de frango e piza, pensou Susan.Quereria ela dizer num contentor do lixo?
Telefonou novamente a Sanchez.Suplicou-lhe que mandassem esquadrinhar o contentor não apenas à procura da arma do crime,mas também de um anel de turquesa com a inscrição
??Pertences-me??.
QUINTA-FEIRA era sempre um dia muito ocupado para o Dr.Donald
Richards,e,como habitualmente,ele começara cedo.O primeiro doente ia lá todas as semanas às 8 horas e era seguido às 9,10 e 11 poroutros doentes habituais. Muitos
deles expressaram a sua consternação quando souberam que ele se ausentaria na quinta-feira da semana seguinte numa viagem de promoção do seu livro.
Quando Richards se sentou,ao meio-dia,para um almoço rápido,já estava cansado e tinha ainda uma tarde bem atarefada à sua frente. tinha uma reunião com o
capitão Tom Shea na Esquadra Dezanove para falar sobre Justin Wells.
Enquanto Rena colocava um prato de sopa à sua frente,ele ligou o televisor para apanhar as notícias locais.A história principal era o homicídio da jovem
empregada de mesa em Yonkers.
- Este é o parque de estacionamento do restaurante italiano Groto em Yonkers,onde Tiffany Smith,de vinte e cinco anos,foi esfaqueada até à morte pouco depois
da meia-noite - disse o apresentador.
Sharkey Dion,um homicida em liberdade condicional a quem fora pedido que saísse do bar por ter alegadamente molestado Ms.Smith pouco antes,encontra-se preso preventivamente
e espera-se que venha a ser acusado do crime.
- Doutor,aquela não é a mulher que telefonou no outro dia quando estava naquele programa Perguntem à Dra.Susan ? - perguntou Rena, chocada.
- Sim,é - disse Richards baixinho.Empurrou a cadeira para trás.
- Rena,a sopa está com um aspecto delicioso,mas infelizmente não tenho muita fome neste momento.- Os seus olhos demoraram-se no ecrã do televisor enquanto a câmara
dava um aspecto panorâmico para mostrar um sapato vermelho-vivo de salto alto.
??Aquela pobre rapariga??,pensou ele enquanto desligava o televisor. Eu sei que Susan vai ficar consternada.Primeiro Carolyn Wells e agora Tiffany.Aposto que de
algum modo ela se culpa a si própria pela triste sorte de ambas.??
Só às cinco para as 4da tarde é que Donald Richards conseguiu
falar com Susan.
- Lamento imenso - disse ele.
- Estou desolada - disse-lhe Susan.- Eu rezo a Deus para que, se Sharkey Dion for o assassino,ele não tenha ido ao bar à procura de Tiffany por tê-la ouvido a falar
comigo no programa.
- Pelo que percebi das notícias,a Polícia não parece ter muitas dúvidas de que é ele o assassino - asseverou Richards.- E duvido muito que, sendo Sharkey
Dion do género que parece ser, ouvisse esse tipo de programa.
- Se é que o assassino é ele - repetiu Susan com voz inexpressiva. Don, eu tenho uma pergunta à qual tem de me responder: acha que ? Wells empurrou a mulher
para debaixo daquela carrinha?
- Não, não creio - disse-lhe Richards. - Eu penso que é muito ? provável ter sido um acidente. Falei com o capitão Shea hoje e disse-lhe isso mesmo. É verdade
que Wells está obcecado com a mulher, mas parte dessa obsessão é um medo extremo de a perder. Na minha opinião, ele nunca lhe faria deliberadamente mal.
Na continuação da conversa, Richards percebeu como Susan estava profundamente perturbada pelos acontecimentos recentes.
- Ouça - disse ele -, isto foi horrível para si. Porque não vamos jantar algures hoje à noite? Procuramos um restaurante perto da sua casa. Até vou buscá-la.
- Lamento, mas não posso - disse-lhe Susan. - Meti-me num projecto, e não sei quanto tempo vai demorar.
Eram 4 horas. Richards sabia que o seu último doente já estaria na sala de espera.
- Eu tenho jeito para projectos - disse ele apressadamente.Telefone-me se puder ajudar.
Franziu o sobrolho quando pousou o telefone. Susan tinha recusado educada mas firmemente, a sua ajuda. Que andaria ela a tramar? perguntou a si próprio. Era uma
pergunta para a qual precisava de resposta.
QUANDO Pamela Hastings chegou ao hospital na quinta-feira à noite, Justin Wells estava sentado no canto mais afastado da sala de espera dos cuidados intensivos,
de costas para ela.
Ela bateu-lhe ao de leve no ombro, e ele encarou-a.
- Ah, amigalhaça - disse ele. - A Polícia já te deitou a mão?
Pamela deixou-se afundar na cadeira ao lado dele.
- Não sei o que queres dizer, Justin. Porque haveria a Polícia de querer alguma coisa comigo?
- Eles pensam que eu tentei matar Carolyn. Tens alguma informação para os ajudar a apertar o cerco, velha amiga?
Ela decidiu não se deixar provocar.
- Justin, isto não nos leva a lado nenhum. Como achas que está a tua mulher hoje?
- Eu fui vê-la,mas apenas quando a enfermeira estava comigo.
Daqui a nada,estão a acusar-me de tentar acabar com ela.- Enterrou o rosto nas mãos e abanou a cabeça.- Eu não acredito nisto.
A enfermeira apareceu à porta.
- A Dra.Susan Chandler está ao telefone - disse ela.- Quer
falar consigo,Mr.Wells.
- Pois eu não quero falar com ela - disparou ele.- Tudo isto
começou com Carolyn a fazer aquele telefonema para ela .
- Justin,por favor - disse Pamela,levantando-se e dirigindo-se
ao telefone da sala de espera.- Ela está apenas a tentar ajudar.
Pegou no auscultador e estendeu-lho.
Ele olhou fixamente para ela por um momento,depois dirigiu-se-lhe e pegou no auscultador .
- Dra.Chandler -,porque anda a perseguir-me? Pelo que
sei,a minha mulher não estaria sequer no hospital se não se tivesse posto a caminho para ir falar consigo.Ainda não fez mal suficiente? Por favor, desapareça das
nossas vidas.
Ele ia desligar,mas deteve-se com o auscultador no ar .
- Eu não acho nem por um minuto que você tenha empurrado
sua mulher para debaixo daquela carrinha! - Susan gritou tão alto que Pamela ouviu-a.
Justin Wells chegou o auscultador ao ouvido.
- E porque me diz isso? - perguntou ele .
- Porque eu estou convencida de que outra pessoa tentou matá-la, e penso que essa pessoa matou Hilda Johnson,que foi testemunha do acidente da sua mulher,e Tiffany
Smith,uma outra mulher que telefonou para o meu programa - disse Susan.- Tenho de me encontrar consigo.Por favor! Você pode ter uma coisa de que eu preciso .
Justin desligou poucos minutos depois.Quando olhou para Pamela, ela viu apenas exaustão no seu rosto .
- Pode ser apenas uma armadilha para revistar o nosso apartamento sem mandado,mas vou lá encontrar-me com ela às oito.Pam, ela disse-me que pensa que Carolyn ainda
corre perigo,mas por parte do sujeito que ela conheceu naquele navio,e não vindo de mim.
Susan não sabia o que esperar da aparência de Justin Wells. Pamela Hastings e Don Richards tinham-no retratado como excessivamente ciumento.
Acho que esperava que ele tivesse de alguma forma um olhar sinistro", percebeu ela quando ele lhe abriu a porta do apartamento e ela deu por si a olhar para os olhos
preocupados de um homem de quarenta e poucos anos, cabelo escuro, ombros largos, porte atlético.
Ele é extremamente bem-parecido", concluiu ela. Se a aparência fosse critério, certamente que ele seria a última pessoa que pareceria um homem dado a acessos de
fúria ciumenta.
- Entre, Dra. Chandler - convidou Wells. - Pam também cá está. Mas primeiro queria pedir-lhe desculpa pelo modo como falei consigo anteriormente.
- O meu nome é Susan, e não Dra. Chandler. E não são necessários quaisquer pedidos de desculpa.
? A sala de estar reflectia claramente o facto de um arquiteeto e uma decoradora ali viverem. A sala tinha florões de gesso, uma lareira de exterior intrincadamente
trabalhada, chão de parquete acetinado, um tapete persa delicadamente bordado, sofás e cadeiras de aspecto confortável e mesas e candeeiros antigos.
Pamela Hastings cumprimentou Susan calorosamente. ?
- É muito amável da sua parte - disse ela. - Não sei dizer-lhe o quanto a sua vinda aqui significa para mim pessoalmente.
??Ela sente-se uma traidora a Justin Wells", pensou Susan ao ouvir as palavras de Pamela. Presenteou a outra mulher com um sorriso encantador e depois
disse:
- Olhe, eu sei como devem estar extenuados, por isso vou directa ao assunto. Quando Carolyn me telefonou na segunda-feira, disse-me que iria ao meu
consultório e levaria com ela um anel de turquesa e uma fotografia do homem que lho dera. Sabemos agora que ela poderá ter mudado de ideias e decidido, em vez disso,
enviar-me as coisas pelo
correio. O que eu espero é que haja talvez outras coisas, recordações ou coisas assim, que ela tenha guardado do cruzeiro e que nos poderão dar alguma indicação
sobre o homem mistério que ela mencionou, aquele
que tentou convencê-la a deixar o navio para ir a Argel. Lembrem-se de que ela disse que, quando tentou telefonar-lhe para o hotel onde estaria ele pretensamente
alojado, disseram-lhe que nunca tinham ouvido falar dele.
Justin Wells corou.
- Doutora - disse ele -, compreenderá com certeza que Carolyn Í eu nunca falámos sobre essa viagem, mas, tal como lhe disse ao telemóvel, esteja à vontade para procurar
o que quiser que nos possa ajudar a encontrar a pessoa que fez isto a Carolyn.
Susan notou um toque ameaçador no tom da voz dele.
CAROLYN WELLS tinha um escritório em casa, uma divisão grande
mobilada com uma secretária espaçosa, um sofá, um estirador e ficheiros.
- Ela tem também um escritório no Edifício Design - explicou Wells a Susan. - Mas, de facto, faz a maior parte do trabalho criativo aqui, e é certamente
aqui que trata de todo o correio pessoal. - A voz dele estava tensa.
- A secretária está fechada à chave? - perguntou Susan.
- Não sei. Nunca lhe toco. - Justin Wells virou-se como que dominado pela emoção de ver a secretária da mulher.
Pamela Hastings pôs a mão no braço dele.
- Justin, porque não esperas por nós na sala de estar? Isto não te faz bem.
- Tens razão, não faz. - Já estava de saída quando se voltou. Mas insisto numa coisa: quero ser informado de qualquer coisa que encontrem, boa ou má, que
possa ser útil - disse ele. - Posso confiar em vocês?
Ambas as mulheres concordaram. Quando ele se voltou para o co redor, Susan virou-se para Pamela Hastings.
- Vamos a isto - disse ela.
Pamela vasculhou nas gavetas dos armários de ficheiros enquanto Susan revistou a secretária. Na última gaveta da secretária, Susan encontrou pastas com nomes
escritos: MãE, JUSTIN, PAM.
Susan espreitou para dentro delas apenas o suficiente para ver que continham coisas como cartões de aniversário, notas pessoais e fotografias. Ao erguer
o olhar, viu que Pamela Hastings tinha quase terminado de examinar as três gavetas de ficheiros.
- Alguma coisa? - perguntou Susan.
Pamela encolheu os ombros.
- Nada. Pelo que consigo ver, Carolyn tinha aqui um mini-ficheiro dos seus trabalhos mais recentes. - Depois, fez uma pausa. - Espere um minuto. - Tinha
na mão uma pasta com a etiqueta SEAGODIVA. É o paquete em que Carolyn embarcou. - Levou a pasta para a secretária e puxou uma cadeira.
- Tenhamos esperança - murmurou Susan ao começarem a examiná-la.
Mas a pasta parecia inútil. Continha apenas o género de informação que as pessoas guardam como recordações de uma viagem, tal como o itinerário, os folhetos
diários do Seugodiva listando as actividades do dia e informação sobre os portos de escala que se aproximavam. Carolyn embarcou no navio em Mumbai, mas foi em Argel
que quase foi visitar a cidade com o homem mistério - disse Pamela. Olhe para a data,15 de Outubro. Faz exactamente dois anos na semana que vem.
Susan examinou os folhetos. O último descrevia possíveis excurSões a partir do navio. O título era VER O MERCADO NA VELHA ARGEL.
um verso da canção Pertences-me, pensou ela. Depois, reparou que havia algo escrito levemente a lápis na última página. Inclinou-se para examinar mais de perto.
Dizia: Palace Hotel, 555-0634. Mos?trou aquilo a Pamela.
- Talvez fosse aqui que ela ia encontrar-se com o homem mistério disse ela em voz baixa.
- Santo Deus, acha que é o tal OWin, aquele por quem ela chamara? - perguntou Pamela.
- Eu não sei. Se ao menos a fotografia que ela prometeu dar-me ainda aqui estivesse - disse Susan. - Aposto o que quiser em como a tinha guardado nesta pasta.
- Os olhos dela varreram a secretária como se esperasse que a fotografia se materializasse. Depois, reparou num bocadinho de cartão azul-vivo perto de uma tesoura.
- Carolyn tem empregada? - perguntou ela.
- Tem.Vem às segundas e sextas-feiras de manhã.Porquê?
- Porque Carolyn me telefonou pouco depois do meio-dia.Reze para que...-
Susan não completou a frase enquanto procurava o cesto dos papéis debaixo da secretária.Depois de o agarrar,entornou o conteúdo no tapete.Espalharam-se bocadinhos
de uma capa de cartão azul e uma fotografia com o rebordo irregular. ?? Susan pegou nela e estudou-a.
- Esta é Carolyn com o comandante do navio,não é?
- Sim,de facto - respondeu Pamela.- Mas porque a cortou dessa maneira?
- Quanto a mim,ela queria mandar-me apenas a parte da fotografia que mostrava o homem que lhe deu o anel de turquesa.Ela própria não queria ser envolvida nem identificada.
- E agora o resto foi-se - disse Pamela.
- Talvez sim - assentiu Susan ao reunir os fragmentos de cartão. - mas olhe para isto.O nome do fotógrafo em Londres que tirou estas fotografias está impresso na
capa, e há instruções para a encomenda de cópias adicionais.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
- Vou telefonar para o fotógrafo, e se eles ainda tiverem o negativo desta fotografia, vou conseguir obtê- la. Pamela - disse ela com a voz a elevar-se
de entusiasmo -, compreende que, se isto for possível, podemos estar a caminho de descobrir a identidade de um serial killer.
NAT SMALL estava um pouco surpreendido com o quanto sentia saudades do seu amigo Abdul Parki. Nos dois dias desde o assassínio de Parki, a Loja de Especialidades
assumira um ar de abandono tal que Parecia estar fechada há anos, disse Nat para consigo.
Ele sorriu ao pensar na prenda inusitada que Parki lhe dera no ano anterior - um pequenote gorducho com cabeça de elefante sentad num trono.
Era Ganesha, dissera-lhe Parki com aquele sotaque cantado dele, deus da sabedoria, prosperidade e felicidade.
Nat Small raramente cedia a impulsos sentimentalistas, mas em honra do seu amigo assassinado ele voltou à arrecadação, desenterrou o deus-elefante
e pô-lo à janela, posicionando-o de modo que a tromba do elefante apontasse para a loja de Parki.
??Vou deixá-lo ali até que alguém alugue a loja??, decidiu ele. ??Será uma espécie de memorial a um tipo simpático.??
DONALD RICHARDS dissera à governanta que tinha planos para o jantar; depois, não querendo jantar sozinho, telefonara a Mark Greenbei - um bom amigo e também
psiquiatra que ele consultara profissionalmente durante uns tempos após a morte da mulher. Greenbt estava livre para jantar.
- Betsy vai com a mãe à ópera - disse ele.
Encontraram-se no Kennedy's, na Rua Cinquenta e Sete. Greenberg, um homem de aspecto erudito e quarenta e muitos anos, esperou pelas bebidas e depois
disse:
- Don, nós não temos uma conversa de médico para doente há muito tempo. Como vão as coisas?
Richards sorriu.
- Estou agitado. Acho que isso é bom sinal.
- Ainda te culpas pela morte de Kathy? - perguntou Greenber.
- Gostava de acreditar que estou a começar a ultrapassar isso, mas por vezes ainda me afecta bastante. Tu já ouviste isto vezes suficientes, Mark. Kathy
não queria fazer aquele trabalho, andava a sentir-se enjoada. Depois, disse-me: ??Eu sei o que vais dizer, Don. Não é justo para os outros desistires à última hora."
Eu estava sempre a provocá-la por causa do hábito que ela tinha de cancelar planos à última hora, especialmente compromissos de trabalho. Bem, dar-me ouvidos tirou-lhe
a vida.
- Mas Kathy não te disse que suspeitava estar grávida - recordou-lhe Greenberg. - Caso contrário, tu tê-la-ias instado a ficar em casa.
- Não, ela não me disse. - Don Richards encolheu os ombros.Ainda há alturas difíceis, mas está a melhorar. Talvez o facto de estar a aproximar-me dos quarenta
anos me faça compreender que está na hora de esquecer o passado.
? - Já consideraste a hipótese de fazeres um cruzeiro, mesmo curto?
- Por acaso, estou a pensar em fazer um muito em breve. Acabo a viagem de promoção do livro na semana que vem em Miami, e estou a ver se arranjo um cruzeiro
que possa encaixar aí.
- Ainda bem - disse Greenberg. - Última pergunta: andas a sair com alguém?
- Ontem à noite, saí. Com Susan Chandler, uma psicóloga. Ela tem um programa de rádio diário e exerce clínica privada. É uma pessoa muito bonita e interessante.
- Então, deduzo que estás a planear revê-la?
Don Richards sorriu.
- Digamos que tenho grandes planos para ela, Mark.
QUANDO Don Richards chegou a casa às 10 horas, interrogou-se se devia mesmo telefonar a Susan, e decidiu que não era demasiado tarde para tentar.
Ela atendeu ao primeiro toque.
- Susan, como está?
- Ah, melhor, acho eu - respondeu Susan. - Ainda bem que telefonou, Don. Queria pedir-lhe uma coisa.
- Diga.
- Por acaso, não terá algumas fotografias que possam ter sido tiradas no Gabrielle ? Estou a tentar descobrir o nome do estúdio fotográfico que trabalha,
ou trabalhava, no Gabrielle.
- De certeza que tenho algumas fotografias.
- Não se importa de verificar? Ficava-lhe muito grata.
- Espere um momento.
Donald Richards pousou o telefone e foi até ao armário onde tinha guardadas fotografias e recordações do seu casamento. Tirou uma caixa da prateleira de
cima que estava marcada FéRias e levou-a para junto do telefone.
- Tenha um bocadinho de paciência - pediu ele a Susan. - Se as tiver, estarão na caixa que estou a examinar agora mesmo. - Abriu a tampa e olhou para uma
fotografia de Kathy e dele próprio na mesa deles no Gabrielle. Retirou a fotografia da capa e virou-a. Na parte de trás, havia informação sobre como encomendar cópias.
A sua voz estava firme quando a leu a Susan.
- Que sorte! - disse Susan. - Essa empresa que tratava das fotografias no Gabrielle é a mesma das do navio em que Carolyn viajou. Talvez consiga obter uma
cópia da fotografia que Carolyn Wells estava para me enviar por correio.
- A do tal homem que lhe deu o anel de turquesa?
Susan não respondeu directamente.
- Se calhar, não devia ser optimista. Provavelmente, eles já nem sequer têm o negativo.
- Olhe, eu vou para fora na segunda-feira. É a etapa final da viagem promocional do meu livro - informou Don. - Gostaria muito de a ver antes de partir.
Que tal um pequeno-almoço tardio, almoço oujantar no domingo?
Susan riu-se.
- Pode ser jantar - disse ela.
Depois de desligar, Donald Richards sentou-se por momentos a rever as fotografias das viagens que ele e Kathy tinham feito juntos. De repente, parecia ser
uma parte remota da sua vida.
Obviamente, era necessária uma mudança. Dali a uma semana, podia muito bem ter posto um fim a todo o tormento dos últimos quatro anos.
SusaN olhou para o relógio. Já passava das 10. Fora um dia longo, Infelizmente, não ia ser uma noite longa. Dali a menos de seis horas, tinha de se levantar e fazer
uns telefonemas.
Quatro da manhã em Nova Iorque seriam 9 da manhã em Londres. Era quando ela pretendia telefonar para a Ocean Cruise Photograph e perguntar como encomendar
fotografias tiradas no Gabrielle e Seagodiva nos cruzeiros em que Regina Clausen e Carolyn Wells tinham sido passageiras.Vestiu uma camisa de noite,pôs o despertador
e deitou-se. QUANDO O DESPERTADOR tocou,Susan esforçou-se por acordar.
Sentou-se na cama,depois agarrou no telefone e marcou a longa série de algarismos que a ligaria ao fotógrafo em Londres.
- Ocean Cruise Photography Limited,bom dia.
No momento seguinte,Susan falava com o departamento das novas fotografias.
- Talvez tenhamos de facto algumas fotografias
desses cruzeiros, minha senhora.Nós guardamos as fotografias das voltas ao Mundo durante um pouco mais tempo do que as outras.
Mas quando Susan percebeu quantas fotografias tinham sido tiradas entre Mumbai e Atenas no Seagodiva e entre Perth e Hong Kong no Gabrielle,teve um choque.
- Sabe,ambos os navios iam bastante cheios - explicou o empregado. - Por isso,se temos setecentas pessoas a bordo o mais provável é que enquanto talvez quinhentas
delas sejam casais, há ainda muitos passageiros solteiros,e nós tentamos tirar várias de cada pessoa.Temos vários fotógrafos a trabalhar enquanto os passageiros
estão a embarcar no navio, e muitas pessoas querem que tiremos fotografias nos vários portos de escala com o comandante nas recepções e em todos os principais acontecimentos
sociais.Por isso,como vê,há na verdade muitas oportunidades para recordações fotográficas.
Centenas de fotografias,pensou Susan; aquilo podia custar uma fortuna.
- Espere um minuto - disse ela.- A fotografia que eu quero do
godiva mostra uma mulher sozinha com o comandante.Seria possível examinar os negativos e fazer uma cópia de todas as fotografias tiradas a uma mulher sozinha
a posar com o comandante?
- Na etapa entre Mumbai e Atenas,em Outubro,há dois anos?
- Exactamente.
- Manda-me as fotografias por correio expresso ainda?hoje?
- O mais certo será amanhã. Compreende que devemos estar a falar de cerca de quatrocentas cópias fotográficas a 12,50dólares cada uma?
- Sim, compreendo.
- Tenho a certeza de que poderemos fazer-lhe um desconto. Podemos falar do assunto...
- Ouça - interrompeu Susan -, dê-me apenas a informação para que banco o dinheiro deverá ser transferido. Estará lá às três da tarde da vossa hora.
- Ah, lamento muito, mas assim não é de todo possível terminar o trabalho até amanhã. Em todo o caso, pode receber as fotografias na segunda-feira.
NA SEXTA-FEIRA de manhã,Chris Ryan recostou-se na velha cadeira giratória e começou a estudar os dados prliminares sobre Douglas Layton que tinha obtido das suas
fontes.
Passava-se algo de estranho com Layton e havia um ponto significativo que se salientava: para alguém cujo trabalho era lidar com somas impressionantes de
dinheiro,Layton parecia ter muito pouco de seu.
- Que estranho - murmurou Chris para consigo.- Aqui tenho um sujeito com trinta e poucos anos,solteiro,sem quaisquer responsabilidades financeiras aparentes.Trabalhou
com boas empresas por enormes salários,e no entanto parece não ter nada de valor. O carro é comprado em leasing; o apartamento é arrendado.A conta à ordem cobre
à justa as despesas mensais.Não tem contas a prazo nem de poupança.
??Então,o que faz Layton ao dinheiro???,interrogou-se Ryan.
Aquilo era decididamente o suficiente para justificar uma investigação mais aprofundada.
??Vou telefonar a Susan??,decidiu.??Ela provavelmente vai ficar satisfeita por saber que tinha razão.No que diz respeito a Douglas Layton, algo vai mal no
reino da Dinamarca.
QUANDO SUSAN chegou ao consultório, tinha um recado de Pet Sanchez no gravador de chamadas. Ela ouviu com uma sensação de triunfo a notícia de que tinha sido encontrado
o anel.
??Isto pode ser importante??, pensou ela, estendendo a mão para o telefone.
- O Ministério Público está a interrogar o suspeito - disse-lhe Sanchez, satisfeito. - Ele há-de ceder. De qualquer maneira, o que é que tem de especial aquele anel
da tanga?
Susan escolheu as palavras cuidadosamente.
- Pete, eu posso estar totalmente enganada, mas acho que estes anéis de turquesa têm tudo a ver com este caso.
Sanchez interrompeu-a:
- Susan, o indivíduo que atacou Tiffany está preso. Não vejo como um anel possa ter alguma coisa a ver com o caso. Investigámos o namorado, Matt Bauer, o
sujeito que lhe comprou o anel. Ele está inocente.
- Confie em mim, Pete, o anel pode ser significativo. Tem-no consigo?
- Aqui mesmo.
- Tem alguma inscrição no interior?
- Ah, tem. Diz ??Pertences-me?,.
- Pete - suplicou Susan -, por favor, considere o anel como importante e peça ao seu laboratório que faça fotografias ampliadas de todos os ângulos e mande-mas por
fax. E mais uma coisa: eu quero falar pessoalmente com Matt Bauer. Pode dar-me o número de telefone dele?
- Susan, o sujeito está limpo. - O tom de voz de Pete era indulgente.
- Vá lá,Pete.Já lhe fiz alguns favores.
Depois de um momento de silêncio,Sanchez deu-lhe o número e
depois disse:
- Se descobrir alguma coisa,Susan,eu quero saber.
- Combinado - prometeu Susan.
Ela mal tinha pousado o auscultador quando Janet anunciou uma
chamada de Chris Ryan,que lhe deu as informações sobre Douglas
Layton e concluiu dizendo:
- Estamos no rasto certo,Susie.
Sim, estamos??,pensou Susan,??e de mais maneiras do que tu imaginas".
Pediu a Chris que a mantivesse informada e depois alertou
Janet para ficar atenta a um fax de Yonkers.
TeRIa sido demasiado difícil e dado azo a demasiados comentários cancelar as reuniões da manhã,especialmente quando ele ia ausentar-se dentro de dias,por isso só
conseguiu apanhar um pouco do programa de rádio de Susan. Tal como esperava, os ouvintes continuavam a
querer falar da morte de Tiffany.
- Dra.Susan,eu vivo em Yonkers,e o sujeito que eles estão a interrogar sobre o assassínio de Tiffany é mesmo mau. Todos nós achamos que ele a matou.
- Dra.Susan,Tiffany tinha o anel de turquesa no dedo quando foi assassinada?
Esta última foi uma pergunta interessante e que o perturbou.
Teria ela o anel no dedo? Ele achava que não,mas agora desejava ter-se lembrado de procurá-lo.
Susan respondeu às questões exactamente como ele esperara: tinha de se partir sempre da presumível inocência,mesmo nos casos em que o suspeito já foi condenado por
um crime anterior.Ela não ouvira qualquer menção ao anel nos meios de comunicação.
? Ele sabia o que isso significava.Susan não aceitava a teoria da Polícia relativamente ao assassino de Tiffany.Ela era demasiado esperta para não fazer a
ligação entre a morte de Tiffany e a dos outros.
Isso não o preocupava.Já tinha determinado qual a melhor forma para eliminar Susan.Só faltava planear os pormenores.
No compartimento secreto na sua mala,transportava os três anéis de turquesa que levara da loja de Parki,mais o que Carolyn Wells planeara enviar a Susan
pelo correio.Ele só precisava de um,é claro.
Os outros atirava-os ao mar após ter lidado com a última dama solitária. Adoraria pôr um no dedo de Susan Chandler depois de a matar, mas isso levantaria demasiadas
questões. Não, não podia arriscar deixá-lo na mão dela,mas talvez apenas por um minuto pudesse enfiar-lho no dedo para dar a si próprio a satisfação de saber que
ela,como as outras, lhe pertencia.
Na sexta-feira a Dr.a Susan Chandler despediu-se quando viu o letreiro vermelho "no ar", por cima da porta do estúdio quando ela olhou para a regie, onde Jed estava
a tirar os auscultadores.
- Como correu? - perguntou ela, ansiosa.
- Muito bem. - A voz de Jed suavizou-se. - Sei que têm sido uns dias muito difíceis, mas as coisas estão a melhorar gradualmente. Afinal, hoje chegaste
ao estúdio vinte minutos adiantada, e agora é fim-de-semana!
Susan fez-lhe uma careta.
- Engraçadinho - disse ela ao empurrar a cadeira para trás e levantar-se. - Até segunda!
JANET ENTREGOU a Susan os faxes de Sanchez mal ela chegou.
- Obrigada, Janet - Susan sentou-se à secretária, espalhou os faxes das fotografias ampliadas e comparou-as com o anel que Jane Clausen lhe dera. O fotógrafo
conseguira tirar algumas excelentes imagens da inscrição no interior do anel. Tal como Susan esperava, havia semelhanças notáveis entre o anel das fotografias e
o que fora de Regina.
Tenho a certeza, pensou ela. Isto tem tudo a ver com os anéis. O que Mrs. Clausen me deu foi de certeza absoluta feito pelo mesmo sujeito que fez o de Tiffany, o
que significa que quase de certeza foi comprado na loja de recordações na Village de que Tiffany me falou. Demonstrava que Tiffany foi assassinada porque alguém
a ouviu a falar comigo no ar sobre um homem que ela vira a comprar um destes anéis, e teve medo de que ela o pudesse identificar.??
Janet entrou no consultório de Susan com um saco de snuck-bar na mão, que pousou em cima da secretária. Quando Susan pousou o anel turquesa, Janet pegou nele e examinou-o.
- Que inscrição simpática - disse ela, franzindo os olhos para lê-la. - A minha mãe adora as canções antigas, e Pertences-me?? é uma das preferidas dela. - Numa
voz que era baixa e apenas ligeiramente afinada, Janet começou a cantar: - Ver as pirâmides ao longo do Nilo, ver o nascer do Sol numa ilha tropical. - Fez uma pausa
e cantarolou uns tantos compassos. - Depois, há qualquer coisa sobre um mercado na velha Argel e também sobre fotografias e recordações. Eu
não me lembro de como é essa parte, mas é mesmo uma canção simpática.
- Sim, de facto - concordou Susan, distraída. Como um alarme tocoú: ela não conseguia desligar, as palavras da canção retiniam dentro de sua cabeça. ??Que haverá
nelas???, perguntou a si mesma. Voltou a pegar no anel e guardou-o na carteira.
Era 1 menos dez, e ela devia estar a preparar-se para a sessão seguinte, mas não queria esperar até às 2 para tentar contactar Matt, a única outra pessoa
que eventualmente seria capaz de lhe dar a localização da loja de recordações em que comprara o anel para Tiffany.
Susan ligou o número de telefone do emprego dele, mas disseram-lhe que Bauer não estava. Deixou um recado em como era urgente que ele lhe ligasse.
Mat Bauer gostava do seu emprego na Met Life e fazia tenção de vir um dia a sentar-se num dos gabinetes dos executivos. Era ? essa a razão por que estava com um
ar visivelmente angustiado quando se encontrou com Susan Chandler às 5.30 num café na Grand Centre Station.
Susan gostou imediatamente do jovem de ar sério e bem arranjado e foi compreensiva quando ele lhe explicou porque não se queria ver envolvido numa
investigação de homicídio.
- Dra. Susan - disse ele -, eu só saí com Tiffany poucas vezes. Ela era divertida, mas percebi de imediato que não havia qualquer semelhança entre
nós, e vi logo que o que ela queria era uma relação séria e não um encontro ocasional.
A empregada de mesa serviu-lhes café, e Matt Bauer bebeu um gole antes de continuar.
- Fomos ver um filme na Village. Depois, passeámos por ali um pouco a ver as montras. Eu não distingo uma ponta da Village de outra.
- Foi nessa altura que foram à loja de recordações? - perguntou Susan.
??Queira Deus que ele se recorde de onde fica??, rezou ela.
- Sim. Aliás, foi Tiffany quem parou quando uma coisa na montra lhe chamou a atenção.
- De que se lembra sobre a loja, Matt?
? Ele pensou um minuto.
- Estava atulhada de recordações baratas, mas não deixava de ser simpática, se é que me entende. O dono, ou empregado, ou lá o que ele era, era indiano,
e, além das habituais estátuas da Liberdade, tinha uma colecção de elefantes de bronze e deuses hindus, esse ? tipo de coisas.
Susan abriu a carteira, tirou o anel de turquesa que a mãe de Regina ? Clausen lhe dera e mostrou-o a Matt Bauer.
- Reconhece isto?
Ele estudou o anel cuidadosamente.
- Diz ??Pertences-me" no interior?
- Sim, diz.
- Então, pelo que eu me lembro, acho que é o anel que tinha Tiffany ou um igual.
- Pelo que Tiffany me contou, a razão por que lhe comprou o anel foi porque um homem qualquer entrou e comprou um, e o empregado disse-vos que o mesmo homem
já tinha comprado vários outros. Lembra-se?
- Lembro, mas eu não cheguei a ver o homem - disse Matt. a loja era pequena, para começar, e havia um biombo de madeira pintada que tapava a visão do balcão.
Além disso, se bem me lembro, eu estava a ler uma coisa sobre uma das figuras que tinha cabeça de elefante e corpo de homem e supostamente representava o deus da
sabedoria, prosperidade e felicidade. Mostrei a Tiffany o deus-elefante, mas ela não ?estava interessada. O anel era a recordação que ela queria. - Bauer abanou
a cabeça. - Custou apenas dez dólares, mas parecia que lhe tinha comprado um anel de noivado.
- Quantas vezes a viu depois disso?
- Só uma. - Ele olhou para o relógio. - Ouça, peço desculpa, mas tenho mesmo de ir. - Pediu a conta.
- Eu convido - disse Susan.
Propositadamente, até ali, ela não fizera quaisquer perguntas sobre a localização da loja. Ainda tinha a ligeira esperança de que, quando Matt conversasse sobre
os acontecimentos, emergisse do seu subconsciente alguma informação para a localização.
Quando acabou por perguntar, a única coisa que Matt lhe soube dizer foi que eles se dirigiam à estação de metropolitano na esquina da Quarta Oeste com a
Sexta Avenida quando viram a loja de recordações.
- Matt,Tiffany mencionou uma loja de artigos pornográficos em frente, do outro lado da rua.Lembra-se disso?
Enquanto se levantava para sair,ele abanou a cabeça.
- Não,não me lembro.- Fez uma pausa.- Sabe,por debaixo daquele exterior duro,Tiffany era uma miúda doce.Espero que encontrem quem lhe fez aquilo.Adeus.
? Susan pagou a conta,pegou na carteira e apanhou um táxi para a zona da Baixa até à esquina da Rua Quarta Oeste com a Sexta Avenida.O seu plano era caminhar
a partir da estação de metro através das ruas acidentadas da Village até encontrar uma loja de recordações contendo artigos indianos que se localizasse em frente
a uma loja de artigos pornográficos. Não parecia muito difícil.Afinal,quantas poderiam existir? Susan ainda não tinha chegado lá,mas estava a apertar o cerco
ao assassino. Ela sentiu-o.
Os Nomes das ruas por que ela passara ecoavam na sua cabeça como uma litania: Christopher, Grove, Barrow, Commerce, Morton. Ao contrário dos arruamentos da parte
residencial de Manhattan, as ruas da Village seguiam um padrão absolutamente irregular. Por fim, Susan desistiu, comprou o Post e entruu na Carmine, para um jantar
tardio. Depenicou pão de alho e bebeu um Chianti enquanto lia o jornal. Na página 3, viu uma fotografia de Tiffany tirada do livro de curso do seu últimu ano,com
uma história acerca do progresso da investigação sobre o homicídio.Depois,na página 6,ficou surpreendida ao ver uma fotografia de Justin Wells e o relato de que
ele estava a
ser interrogado sobre as circunstâncias que rodeavam o acidente da sua mulher.
Não vou conseguir convencer ninguém de que existe uma aliança entre estes dois casos até localizar a tal loja de recordações e falar com o empregado e mostrar-lhe
a fotografia do cruzeiro que deve chegar na segunda-feira."
Chegou a casa às 10 horas e dirigiu-se,cansada,ao gravador de chamadas. A luz indicadora de mensagens estava a piscar.Alex Wright telefonara às 9.
- Estou a telefonar só para dizer olá.Aguardo ansioso a noite de amanhã.No caso de não nos falarmos durante o dia,vou buscá-la às seis e meia.
Ele queria que ela soubesse que naquela noite não ia sair,pensou Susan. Óptimo.
Hoje não vou tomar um duche,decidiu ela.??Depois de um dia assim, preciso de um banho de imersão quente e longo.Não tenho um centímt ro quadrado,físico ou mental,que
não esteja preocupado, irritado ou doloroso."
Quarenta minutos depois,abriu as janelas do quarto,a última coisa que fez antes de ir para a cama.Quando olhou para a rua, reparou que estava deserta,à excepção
de um passeante solitário cuja silhueta mal conseguia distinguir.
Apesar de - ou talvez por causa da - exaustão que sentira anteriormente, Susan não conseguiu dormir bem. Acordou em três ocasiões diferentes durante a noite e deu
por si à escuta em busca de qualquer barulho que pudesse sugerir que estava alguém no apartamento. Da primeira vez que acordou, pareceu-lhe que ouvira a porta da
casa abrir. A sensação foi tão intensa que ela se levantou e correu para ela, mas encontrou-a trancada. Em seguida, sentindo-se ligeiramente assustada, testou os
fechos das janelas da sala de estar, da salinha e da cozinha.
Regressou ao quarto perseguida pela sensação de que qualquer coisa se passava,mas decidida a não fechar as janelas do quarto.??Estou vários andares acima
do chão",disse a si mesma severamente.
A temperatura descera bruscamente desde que ela fora para a cama, o quarto estava quase gélido.Puxou os cobertores para o pescoço,recordando o sonho que
a perturbara e acabara por acordá-la. Nele, vira Tiffany a sair de uma porta e a entrar num espaço mal iluminado.Tinha um anel de turquesa na mão e atirava-o para
o ar.Uma mão apareceu das sombras e apanhou o anel,e Tiffany exclamou:
- Não! Não o leves! Eu quero guardá-lo! - Depois,os seus olhos encheram-se de terror e ela gritou.
Susan estremeceu.??E agora Tiffany está morta porque me telefonou - pensou ela.??Oh,lamento,lamento!"
De repente,a persiana abanou,soprada por uma brisa cortante.??Foi aquilo que me assustou",percebeu ela,e pensou em levantar-se e fechar a janela. Em vez disso,puxou
os cobertores mais para o queixo e adormeceu em apenas alguns minutos.
Da segunda vez que acordou,deu um salto na cama,com a certeza
de que alguém estivera à janela. Controla-te, pensou enquanto puxava os cobertores quase para cima da cabeça.
Acordou uma terceira vez às 6horas.Compreendeu que o seu subconsciente estivera a analisar a lista de passageiros do Seagodiva que Wells a deixara trazer.
Nessa altura,acordada e sem esperança de voltar a adormecer,decidiu que um café a ajudaria a aclarar as ideias.Depois de fazer o café,levou uma chávena para a cama,recostou-se
em almofadas e começou a analisar o manifesto de passageiros do navio.
Reparou que,no caso dos casais,os nomes estavam listados por ordem alfabética,pelo que Mrs.Alice Jones era seguido de Mr.Robert e assim por diante.Eliminando todos
aqueles que eram claramente casais, Susan percorreu o manifesto,assinalando os nomes dos homens que não apareciam com um nome de mulher antes ou depois. O primeiro
nome no manifesto que parecia ser de um homem solteiro era Owin Adams.
Interessante",pensou Susan quando acabou de percorrer toda a lista de passageiros.Havia cento e vinte e cinco mulheres listadas individualmente, mas apenas dezasseis
homens que aparentemente viajavam sozinhos. Isso restringia as hipóteses em muito.
Depois, ocorreu-lhe outro pensamento: estaria o manifesto do Gabrielle entre os objectos pessoais de Regina Clausen? E se assim fosse, seria possível um
daqueles dezasseis homens do Seagodiva ter sido também passageiro daquele navio?
Susan afastou os cobertores para trás e dirigiu-se ao chuveiro.
Mesmo que Mrs. Clausen não esteja capaz de receber-me, vou perguntar-lhe pela lista de passageiros do Gabrielle", decidiu, ??e se foi devolvida juntamente com as
coisas de Regina, vou pedir-lhe que mande a empregada entregar-ma."
PeNas no vENto. Penas ao vento. Ele sentia-as espalharem-se, dançarem, troçarem dele. Agora, sabia que nunca conseguiria apanhá-las todas. Desejava que houvesse
uma maneira de poder acelerar o seu plano, mas era demasiado tarde. Os passos tinham sido planeados e nada podia ser alterado. Partiria como estava programado, mas
voltaria e eliminava-a nessa altura.
Na noite anterior, quando passava pelo prédio de tijolo de Susan, éla calhou de vir à janela. Sabia que ela não o conseguia ver claramente, mas aquilo fê-lo
compreender que não podia voltar a correr um risco como aquele.
Quando regressasse a Nova Iorque, arranjava uma maneira de tratar dela. Não ia segui-la e empurrá-la para o meio do trânsito como fizera com Carolyn Wells.
Não. Ele teria de apanhar Susan sozinha, como fizera com Tiffany. Isso seria o melhor.
Logo à tarde, disfarçado de mensageiro, ia inspeccionar o edifício do consultório dela. A ideia de matar Susan aí era extremamente satisfatória. Honrá-la-ia
com a mesma forma de morte que concedera a Veronica, Regina, Constance e Monica, a mesma morte que aguardava a sua última vítima, alguém numa viagem para ver a selva
molhada de chuva.
Dominava-a, atava-a e amordaçava- a, e à vista dela torturava-a I cologicamente: desdobrava vagarosamente o grande saco de plástico centímetro a centímetro
e cobria-a agonizante com ele. Uma vez coberta da cabeça aos pés, ele fecharia o saco. Haveria um pouco de ar lá dentro, o suficiente para ela ter alguns minutos
para se debater. Depois, quando começasse a ver o plástico a colar-se à cara dela e a tapar-lhe a boca e as narinas, ele ia-se embora.
Não ia conseguir livrar-se do corpo de Susan como se livrara dos outros; quer os que enterrara na areia, quer os que vira a desaparecer em águas sombrias levados
pelas pedras que lhes atara. Ele não podia ver desaparecer Susan Chandler, mas podia consolar-se com o facto que, depois de ela lhe sair do caminho, a próxima -
e última partilharia do mesmo tipo de funeral que as suas irmãs na morte.
Susan saiu de casa às 9horas da manhã de sábado.
Continuando a sua busca,explorou todos os quarteirões da
? Village cujas ruas desciam para oeste em direcção ao rio Hudson. A maior parte destas ruas era, em grande medida,
residencial,embora ela tenha ainda assim encontrado várias lojas de recordações. Em nenhuma delas,no entanto,conseguiu ver qualquer espécie de objectos de estilo
indiano.
Ao meio-dia,falou do telemóvel para Jane Clausen,que se encontrava no Memorial Sloan-Kettering Hospital.Para surpresa de Susan, Jane Clausen concordou prontamente
com o pedido de visita dela.
- Lá estarei às quatro - prometeu Susan.
O dia começara encoberto e gelado,mas no início da tarde o sol
conseguiu romper.Ela comprou um biscoito e uma coca-cola a um vendedor de rua e comeu enquanto continuava a sua busca.Explorou a zona a leste da Sexta Avenida e
voltou para a MacDougal Street.
Quando caminhava em direcção à Baixa pela Washington Square, deteve-se de maneira tão repentina que o adolescente que seguia atrás chocou com ela.
- Desculpe - disse ele entredentes.
Susan não lhe respondeu.Olhava fixamente para a montra de uma
loja que acabara de encontrar.Por cima da entrada,estava pendurado à porta um letreiro oval que dizia NEGROS PRAZERES.
Negros prazeres, de facto, pensou ela enquanto olhava novamente para a montra.Lá dentro,um cinto de ligas de cetim vermelho estava aberto sobre uma pilha de cassetes
de vídeo com títulos grosseiramente sugestivos. Mas a atenção de Susan foi atraída por um objecto no centro da montra: um deus-elefante com uma incrustação de turquesa
na tromba virada para fora.
Ela voltou-se. Do outro lado da rua, viu um letreiro ALUGA-SE na montra da Loja de Especialidades.
??Oh, não!", pensou ela. Atravessou a estreita rua até à loja, chegou perto da porta e espreitou lá para dentro. Via-se directamente em frente da entrada
um balcão com uma caixa registadora. À esquerda, ela conseguiu ver um grande biombo pintado que funcionava como uma divisória do espaço. ??Aquele deve ser o biombo
que Matt descreveu??, pensou ela, ??atrás do qual ele e Tiffany estavam quando o homem entrou na loja para comprar um anel de turquesa.
Mas onde se encontrava o empregado que ali estivera naquele dia? Então, Susan percebeu de repente que havia uma pessoa que talvez soubesse. Atravessou a
rua a correr, dirigindo-se à loja de artigos pornográficos. Parecia ter apenas um empregado, um homem magro sem atractivos que, tal como o que o rodeava, parecia
um pouco andrajoso.
O homem olhou para Susan, nervoso, quando ela se aproximou do balcão. Susan compreendeu instantaneamente que ele pensava que ela podia ser uma polícia à
paisana. Susan apontou para a Loja de Especialidades Khyem, do outro lado da rua.
- Quando fechou aquela loja? - perguntou ela.
O comportamento nervoso do empregado desapareceu.
- Minha senhora, não soube o que aconteceu? Abdul Parki, o sujeito que era dono daquela loja, foi assassinado na terça-feira à tarde.
- Assassinado! - Susan não fez qualquer esforço para esconder a consternação na voz. ??Outro", pensou ela. ??Outro! Tiffany falou sobre o dono da loja no
meu programa."
- Conhecia Parki? - perguntou o homem. - Era um sujeito sim? pático.
Ela abanou a cabeça esforçando- se para se recompor, e disse: ?
- Uma amiga minha recomendou-me a loja dele. Alguém lhe ofereceu um dos anéis de turquesa que ele fazia. - Ela abriu a mala e tirou o anel que Jane Clausen
lhe dera.
O homem olhou para o anel e depois para ela.
- Sim, esse é de facto um dos anéis de Parki. A propósito, chamo-me Nat Small. Sou dono desta loja.
- Susan Chandler. - Susan estendeu a mão. - Parece-me que ele era um grande amigo seu. Como é que foi?
- À facada. A Polícia acha que foram drogados, embora aparentemente não tenham levado nada.
Susan vislumbrou tristeza genuína no rosto de Nat Small.
- Houve testemunhas? - perguntou ela.
- Ninguém viu nada. - Small olhou para o lado quando falou.
- Por acaso, a mulher que me falou de Parki morreu com uma facada na quarta-feira à noite - disse Susan baixinho. - Eu acho que a pessoa que a matou a ela
e a Parki é um cliente que lhe comprou vários destes anéis nos últimos três ou quatro anos.
A compleição pálida de Nat Small tornou-se ainda mais cinzenta.
- Parki falou-me desse sujeito. Disse que era um verdadeiro cavalheiro.
Susan arriscou.
- Nat, eu sinto que há qualquer coisa que não me está a contar. Tem de me dizer antes que mais alguém morra.
Nat Small olhuu, nervoso, para a porta. A sua voz era quase um sussurro.
- Pouco antes da uma hora da tarde de terça-feira, andava por aqui ?1 sujeito às voltas a olhar para a minha montra. Eu pensei que ele talvez estivesse nervoso para
entrar aqui. Parecia um sujeito realmente . Mas depois atravessou a rua e entrou na loja de Parki. A seguir, entrou-me aqui um cliente, e eu não prestei
mais atenção.
- Contou o que viu à Polícia?
- Não fiz nada disso! A Polícia ia fazer-me examinar álbuns de fotografias, mas seria um desperdício. Ele não era do género que vem nos dossiers. Ele tinha
um ar de classe, trinta e muitos anos.
- Acha que conseguia reconhecer esse homem se visse uma fotografia dele?
- Sim, conseguia. Ele tinha óculos escuros, mas eu vi-lhe bem o rosto. Olhe, você tem de sair daqui, é má para o negócio. Os homens não querem comprar com
uma senhora de classe nas redondezas.
- Vou já. Ah, e mais uma coisa, Nat. Não fale disto a ninguém. Para a sua própria segurança, não fale disto.
- Está a brincar comigo? É claro que não. Prometo!
Quando Douglas Layton entrou no quarto de hospital de Jane Clausen, às 3.30, foi dar com ela sentada numa cadeira. Tinha vestido um robe de caxemira de um azul-suave
e estava com um cobertor aconchegado à sua volta.
- Douglas - disse ela com o cansaço patente na voz -, trouxe-me a minha surpresa? Tenho tentado imaginar o que poderá ser.
- Feche os olhos, Mrs. Clausen - disse ele enquanto virava o esboço emoldurado para que ela pudesse ver o orfanato que mostrava o nome de Regina no letreiro
gravado.
Jane Clausen abriu os olhos e por longos momentos estudou o desenho. Apenas uma lágrima no canto do seu olho esquerdo dava mostras da emoção que sentia.
- Que beleza - disse ela. - Não consigo imaginar melhor homenagem a Regina.
- Vou estar presente na consagração da nova ala na próxima semana. Estávamos a pensar aguardar e mostrar-lhe isto e as fotografias da cerimónia ao mesmo
tempo, mas achei que lhe daria algum ânimo ver isto já.
- Quer dizer, queria que eu o visse antes de morrer? - disse ela.
- Não, não é isso que quero dizer, Mrs. Clausen.
- Doug, não fique com esse olhar tão culpado. Eu vou morrer, ambos o sabemos. E ver isso dá-me uma grande alegria. - Ela sorriu tristemente. - É um consolo
para mim saber que o dinheiro que Regina teria herdado é utilizado para ajudar outras pessoas. De certa maneira, é como se ela vivesse através das pessoas cujas
vidas são tocadas e melhoradas devido a ela.
- Eu garanto-lhe, Mrs. Clausen, que todo o tostão que gastarmos em nome de Regina será cuidadosamente atribuído.
Ouviu-se um bater ao de leve na porta. Susan Chandler espreitou para dentro do quarto.
- Ah, Mrs. Clausen, não sabia que estava acompanhada. Fico na sala de espera enquanto estão aí os dois.
- De modo algum. Entre, Susan. Lembra-se de Douglas Layton, não lembra?
- Sim. Como está, Mr. Layton? - disse ela friamente.
- Bem, obrigado, Dra. Susan. - ??Ela sabe alguma coisa, pensou ele.
??Um sujeito de classe com trinta e muitos anos??, pensou Susan, reflectindo na descrição que Nat Small fizera do homem que vira no exterior da sua loja
no dia em que Abdul Parki fora assassinado. ??Mas também se enquadra com muitas dezenas de outros homens."
Alguém bateu à porta, e uma enfermeira espreitou para dentro do ? quarto.
- Mrs. Clausen, o doutor estará aqui dentro de um minuto.
- Valha-me Deus! Susan, lamentu, mas parece que a arrastei até aqui para nada. Importa-se de me telefonar amanhã de manhã?
- Claro que não.
- AMtes de se ir embora, tem de ver a surpresa que Doug tinha para mim. - Ela apontou para o esboço emoldurado. - É um orfanato na Guatemala que vai ser
dedicado á Regina na próxima semana.
Susan examinou-o de perto.
- Que bonito - disse sinceramente. - Parece que há uma necessidade desesperada de instalações destas em muitos países, e em especial na América Central.
- É exactamente assim - garantiu-lhe Layton. - E o Fundo da família Clausen está a ajudar a construí-los.
Quando se voltou para se ir embora, Susan reparou numa capa azul e de aspecto familiar em cima da mesinha-de-cabeceira. Dirigiu-se-lhe e pegou nela. Tal como esperava,
a frente da capa tinha o logótipo da Ocean Cruise Photography. Ela olhou para Jane Clausen.
- Posso?
- Claro. Essa foi provavelmente a última fotografia tirada a Regina.
Não havia dúvida de que a mulher na fotografia era filha de Jane Clausen. Os mesmos olhos e o mesmo nariz aquilino. Até a forma da cabeça da viúva era semelhante.
- Regina era muito bonita - disse Susan sinceramente.
- Pois era. Eu sei que essa fotografia foi tirada dois dias antes de desaparecer - disse Jane Clausen. - Ela está com um ar muito feliz. Saber isso tem sido de algum
modo um consolo, mas também um tormento. Pergunto a mim mesma se a sua felicidade tem a ver com o facto de ela ter confiado na pessoa responsável pelo seu desaparecimento.
- Tente não pensar nisso dessa maneira - sugeriu Doug Layton.
- Lamento ter de interromper. - O médico estava na soleira da porta. Era óbvio que queria que eles saíssem.
Susan não podia esperar mais que Layton saísse.
- Mrs. Clausen - disse ela apressadamente -, lembra-se se estava entre as coisas de Regina uma lista de passageiros do cruzeiro?
- Tenho a certeza de ter visto uma. Porquê, Susan?
- Porque, se for possível, eu gostaria muito que ma emprestasse por uns dias. Posso ir buscá-la amanhã?
- Se é importante, o melhor é irjá buscá-la. Eu insisti com? a Vera para tirar uns dias de férias e ir visitar a filha, e ela está a pensar ir amanhã muito cedo.
- Se não se importa, vou lá agora mesmo - disse Susan.
- De modo nenhum - disse Jane Clausen com a voz subitamente cheia de energia. - Douglas, dê-me a minha carteira, por favor. Está na mesinha.
Ela abriu a carteira e tirou um cartão. Depois de escrever nele qualquer coisa, entregou-o a Susan.
- Eu vou telefonar a Vera para lhe dizer que vai lá, mas pode levar este meu cartão, pelo sim, pelo não; tem a minha morada. Amanhã falamos.
Douglas Layton saiu com Susan. Foram juntos até ao elevador e desceram para a rua.
- Tenho muito prazer em acompanhá-la - sugeriu ele. - Vera conhece-me muito bem.
- Não, obrigada. Está ali um táxi. Vou apanhá-lo.
JÁ PASSAVA daS 5 horas quando Susan chegou à morada da Place. Sabendo que teria de ir a correr a casa para se arranjar para o jantar, ficou muito grata por
Jane Clausen ter previamente telefonado à empregada.
- Estas são todas as coisas de Regina - explicou Vera ao conduzir Susan ao elegante, mas acolhedor, quarto de hóspedes. - A mobília do apartamento dela.
Mrs. Clausen senta-se aqui sozinha por vezes. Faz dó vê-la.
Vera abriu a gaveta de cima de uma secretária antiga e tirou um envelope A4 de papel castanho.
- Todos os papéis encontrados no camarote de Regina estão aqui.
Lá dentro estava o género de recordações que Carolyn Wells também trouxera do seu cruzeiro. Além da lista de passageiros, havia meia dúzia de exemplares dos folhetos
noticiosos diários de bordo, com informação sobre os portos de escala que se seguiam, e postais que pareciam ser desses portos.
Susan pôs a lista de passageiros na mala e depois decidiu dar uma vista de olhos rápida aos postais e boletins. Folheou os postais, parando quando reparou
num de Bali que mostrava um restaurante ao ar livre. Uma mesa com vista para o mar tinha sido cuidadosamente assinalada com um círculo a caneta.
Porque seria especial?, perguntou Susan a si mesma. Procurou entre os folhetos até encontrar o de Bali. O título dizia:
VER o NASCER DO SOL NUMA ILHA TROPICAL.
- Vou levar este postal e este folheto - disse ela a Vera. - Tenho certeza de que Mrs. Clausen não se importa.
Passavam vinte minutos das 5 quando ela conseguiu finalmente tomar um táxi, e eram 5.50 quando abriu a porta do seu apartamento.
Quarenta minutos para me preparar para o grande encontro com Alex??, pensou, ??e ainda não decidi o que vou vestir."
? PAMELA HASTINGS estava sentada na sala de espera da unidade de cuidados intensivos no Lenox Hill Hospital, tentando consolar um triste Justin Wells. Apenas
há minutos, os monitores no quarto de Carolyn tinham emitido um alarme frenético, e o código de emergência fora activado.
- Pensei que a tinha perdido - dizia ele com a voz embargada pela comoção. - Pensei que a tinha perdido.
- Carolyn é uma lutadora. Ela vai sobreviver - disse Pamela, encorajadora. - Justin, um tal Dr. Donald Richards telefonou para o hospital para saber de Carolyn
e de ti. Ele deixou o número de telefone. É o o psiquiatra que consultaste quando tu e Carolyn tiveram problemas há uns tempos?
- O psiquiatra que eu devia ter consultado - disse Wells. - Só o uma vez.
- Deixou recado de que teria todo o prazer em ajudar de qualquer maneira possível.- Fez uma pausa,preocupada com o modo como ele iria reagir ao que ia dizer a seguir.-
Justin, posso telefonar- lhe? Eu prevejo que tu precisas de falar com alguém.- Ela sentiu o corpo de Justin contrair-se.
- Pam,ainda achas que eu fiz aquilo a Carolyn,não achas?
- Não,não acho - disse ela firmemente.- Vou dizer-te o que
penso o mais francamente possível.Estou convencida de que Carolyn pode salvar-se,mas também sei que ainda não estamos livres.Se ela não recuperar, (e espero em Deus
que recupere),tu vais precisar de ajuda.
Por favor,deixa-me telefonar ao psiquiatra.
Justin acenou com a cabeça devagar.
- Está bem.
Quando Pamela regressou uns minutos depois,tinha um sorriso nos lábios.
- Ele vem cá, Justin - disse ela. - Parece um homem muito bom. Por favor, deixa-o ajudar-te se ele puder.
- Chegou mais cedo - comentou Susan pelo intercomunicador da entrada em voz embaraçada.
- Eu não atrapalho,prometo - disse Alex Wright.- Detesto
esperar em carros.Faz-me sentir motorista de táxi.
Susan riu-se.
- Está bem,suba.
Azar",pensou ela.Ainda estava com o cabelo embrulhado numa
? toalha.O fato,casaco preto e saia comprida justa,estava pendurado em cima da banheira na casa de banho,num esforço para os últimos vinte minutos. Ela tinha
vestido o robe de banho felpudo branco que a fazia sentir-se um coelho da Páscoa.
Alex riu-se quando ela abriu a porta.
- Parece ter aí uns dez anos de idade - disse-lhe ele.- Quer
brincar aos médicos?
Ela fez uma careta.
- Porte-se bem e veja as notícias.- Ela fechou a porta do quarto. Sentou-se ao toucador e tirou o secador de cabelo.
- Eu estou atrasada - murmurou enquanto ligava o secador no máximo.
Quinze minutos depois,olhou para o espelho.O cabelo estava óptimo,e a maquilhagem disfarçava a tensão que ela notara há pouco no seu rosto,por isso parecia estar
tudo em ordem.No entanto,por qualquer razão,Susan não se sentia bem.Teria sido preocupação e pressa a mais,ou o quê? interrogou-se enquanto pegava na carteira.
Encontrou Alex a ver televisão conforme as instruções.Ele fitou-a e sorriu.
- Você está linda - disse.
- Obrigada.
- Eu vi as notícias, por isso, quando estivermos no carro, vou contar-lhe tudo o que se passou hoje em Nova Iorque.
- Estou ansiosa.
Esta é bonita, pensou Jim Curley, abrindo-lhe a porta do caro. ??Mesmo fantástica."
Durante a viagem até à biblioteca, ele manteve os olhos no trânsito, mas concentrou a sua atenção na conversa no assento traseiro.
- Susan, há uma coisa que eu gostaria de clarificar - disse Alex. - Eu não tinha planeado convidar a sua irmã para o jantar desta noite.
- Por favor, não se preocupe com isso. Dee é minha irmã, e eu gosto dela.
- Tenho a certeza que sim. Mas eu suspeito de que não a adora e talvez eu tenha cometido um erro ao convidá-la a ela e aos seus pais também.
? ?Ora bolas", pensou Jim.
- Eu não sabia que eles iam - disse Susan num tom de irritação.
- Susan, por favor, compreenda que eu só a queria a si comigo esta noite. Convidar Dee não foi minha intenção, e quando aconteceu, eu pensei que, se incluísse
o seu pai e Binky e lhes pedisse que trouxessem Dee, estaria a fazer uma afirmação.
Boa explicação, pensou Jim. ??Agora, vamos lá, Susan. Dê uma oportunidade ao homem." Ele ouviu-a rir.
- Alex, por favor, eu acho que estou a transmitir os sinais errados. não queria parecer tão irritada. Vai ter de me desculpar, tive uma semama terrível.
- Conte-me.
- Agora, não, mas obrigada por pedir.
? ?Vai correr tudo bem", pensou Jim com um suspiro de alívio.
- Susan, isto é uma coisa de que não falo muito, mas eu compreendo o que sente relativamente a Binky. Eu também tive uma madrasta, embora no meu caso fosse
um pouco diferente. O meu pai voltou a casar depois de a minha mãe morrer. Ela chamava-se Gerie.
??Ele normalmente nunca fala dela", pensou Jim. ??Está mesmo a abrir-se com esta Susan."
- Como era a sua relação com Gerie? - quis saber Susan. ? ?Nem queira saber", pensou Jim.
Embora já tivesse estado muitas vezes no interior da enorme delegação da Quinta Avenida da Biblioteca Pública de Nova Iorque,Susan Chandler não se lembrava de alguma
vez ter visto a McGraw Rotunda, onde a festa ia ter lugar.Era um espaço imponente.Com as altas paredes revestidas de pedra e os murais de tamanho real,fazia-a sentir-
se transportada para outro século.
Passada uma hora,apesar do cenário e do facto de estar realmente a apreciar a companhia de Alex Wright,Susan deu por si distraída e incapaz de se descontrair.
??Eu devia estar a gozar uma noite muito agradável, pensou ela, ??e aqui estou, preocupada, a pensar num homem muito duvidoso, proprietário de uma loja de artigos
pornográficos e que pode ser capaz de identificar um assassino. Talvez devesse ter ficado no Ministério Público.??
Entretanto, ouvia, distraída, Gordon Mayberry, um senhor idoso, decidido a contar-lhe a generosidade da Fundação da Família Wright relativamente à Biblioteca Pública
de Nova Iorque.
Dee, o pai e Binky entraram uns minutos depois de ela e Alex terem chegado. Dee, requintada com um vestido justo branco, abraçara-a calorosamente.
- Susie, já sabes que vou regressar a Nova Iorque de armas e bagagens? Vamos divertirmo-nos muito. Tenho saudades de não te ter por perto.
??Até acredito que ela está a falar a sério", pensou Susan. ??É por isso que o que tem tentado fazer com Alex é tão injusto."
- Já viu o livro que vai ser oferecido a Alex esta noite? - perguntou Gordon Mayberry.
- Não, não vi - respondeu Susan, forçando-se a si mesma a concentrar-se.
- Uma edição limitada,é claro.Será oferecido um exemplar a todos os convidados,mas talvez queira dar uma vista de olhos antes do jantar.Dar-lhe-á uma ideia da enorme
quantidade de bom trabalho que a Fundação da Família Wright tem conseguido realizar. - Ele apontou para um suporte perto da entrada da rotunda.- Está ali.
O livro estava aberto nas páginas centrais,mas Susan virou as páginas para o princípio do livro.O índice mostrava que o livro estava dividido em secções,de acordo
com as várias obras de caridade: hospitais, bibliotecas, orfanatos, unidades de investigação.
Folheou-o ao acaso.Depois,lembrando-se de Jane Clausen, consultou a secção que tratava dos orfanatos.A meio dessas páginas,deteve-se e estudou a fotografia
de um orfanato.
Isto deve ser uma estrutura típica para este fim, pensou ela.??O género de arranjo paisagístico também deve ser semelhante em todos.
- É verdadeiramente fascinante,não é? - Alex estava a seu lado.
- Bastante impressionante,diria eu - disse-lhe ela.
- Se conseguir afastar-se daqui...Estão prestes a servir o jantar.
Apesar da elegância da refeição,Susan voltou a dar por si distraída, de tal modo que nem reparou no que estava a comer.
Segunda- feira já devo ter as fotografias do cruzeiro de Carolyn",pensou ela.??Mas que quero eu descobrir?,? Quando Carolyn telefonara para a estação de rádio mencionara
a fotografia, dissera que o homem que a convidara para Argel estava ao fundo da tal fotografia. E no cruzeiro de Regina? Talvez houvesse fotografias da viagem dela
que o tivessem apanhado. Devia tê-las encomendado também", pensou ela.
A oferta do livro foi feita depois de a louça do prato principal ter sido levantada. A directora da biblioteca discursou sobre a generosidade da Fundação
da Família Wright e o subsídio para comprar e manter livros raros. Falou também da ??modéstia e dedicação de Alexander arter Wright, que tão desinteressadamente
dedica a sua vida a dirigir a fundação.
- Vê como eu sou uma pessoa simpática - sussurrou Alex a susan enquanto se levantava para aceitar o livro que a directora lhe oferecia.
Alex era bom orador, tinha à-vontade a falar e um toque de humor. Quando ele voltou a sentar-se, Susan murmurou:
- Alex, importa-se que eu troque de lugar com Dee para a sobremesa?
- Susan, passa-se alguma coisa?
- Não, de modo nenhum. Paz na família e tudo o mais. Eu percebo que Dee está infeliz a ouvir a conversa aborrecida e repetitiva de ? rdon Mayberry. Talvez,
se eu a salvar, nós nos aproximemos um pouco. - Riu- se.
Uma risada divertida de Alex seguiu-a enquanto ela se dirigia à mesa próxima e pedia a Dee que trocassem de lugares. ??Há outra razão para fazer isto??,
reconheceu Susan. ??Se vou começar a sair com Alex, quero ter bem a certeza de que Dee não vai fazer parte do cenário. Caso haja competição, eu quero acabar com
ela antes que comece. Não quero passar pela mesma situação que passei relativamente a Jack.,? ?e- Ela esperou até Mayberry estar a falar com Binky, antes de se entregar
uma vez mais a uma sensação de mau presságio.
Eu sei que Nat Small pode estar em risco??, reflectiu. ??E pode não ser o único. Pode haver outra pessoa destinada a receber um daqueles anéis de turquesa.
E Porque seria que a letra daquela canção continuava a martelar-lhe a cabeça? Agora, ela estava a ouvir Ver o nascer do sol numa ilha tropical.
É claro! Aquelas palavras estavam no boletim do Gabrielle que ela encontrara entre as coisas de Regina Clausen. ??Na segunda-feira, tenho as fotografias do Seagodiva",
pensou Susan. Isso significa que na segunda-feira à noite já devo ter encontrado a fotografia de Carolyn. i no estúdio puderei fazer cópias das fotografias do Gabrielle
terça-feira à tarde, recebo-as na quarta-feira. Gasto o tempo que for necessário a
vê-las, mesmo que tenha de ficar acordada toda a noite."
- Ao doMiNgo de manhã,Regina e eu costumávamos ir à missa
St.Thomas - contou Jane Clausen a Susan.- A música lá é simplesmente maravilhosa.Eu tive de esperar mais de um ano até conseguir voltar depois de a ter perdido.
? - Acabei de vir da missa das dez e um quarto em St. Patrick - disse-lhe Susan.- A música lá também é magnífica.- Ela viera a pé desde a catedral até ao
hospital.Estava outro lindo dia de Outono.
Jane Clausen compreendia claramente que lhe restava muito pouco tempo,e Susan tinha a sensação de que tudo o que ela dizia reflectia isso mesmo. ?
? - Foi muito amável da sua parte vir visitar-me novamente hoje - disse Jane Clausen.- Ontem,eu não tive oportunidade de falar consigo em particular,e preciso
mesmo de o fazer.Douglas Layton tem sido muito atencioso,muito amável.Eu disse-lhe que achava que o tinhajulGado mal e que as minhas dúvidas sobre ele eram infundadas.Por
outro lado,se eu fizer aquilo em que estou a pensar,e que é pedir ao actual director do fundo familiar para se reformar e deixar Douglas assumir a direcção, estarei
a dar-lhe uma enorme autoridade sobre uma substancial quantia de dinheiro.
Não faça isso!",pensou Susan.
Jane Clausen continuou:
- É por isso que eu quero pedir-lhe que Douglas Layton seja meticulosamente investigado antes de eu tomar esta importante decisão. compreendo que é uma imposição,mas
tenho vindo a considerá-la uma amiga de confiança.
Susan sabia que não era a altura de dizer a Jane Clausen que ele já estava a ser investigado.Escolheu as palavras cuidadosamente:
- Eu penso que é sempre sensato ter muito cuidado antes de fazer alterações importantes,Mrs.Clausen.Prometo tratar do assunto.
- Obrigada.Isso é um grande alívio para mim.
Susan procurou uma maneira apropriada para explicar o seu próximo pedido,mas percebeu que era melhor guardar as explicações para depois.
- Mrs.Clausen,eu tenho a minha máquina fotográfica comigo.
Importa-se que tire umas fotografias ao esboço do orfanato?
Jane Clausen apertou mais o xaile em redor dos ombros.
- Tem alguma razão para querer isso,Susan.Qual é?
- Importa-se que lhe diga amanhã?
- Prefiro saber agora,é claro,mas posso esperar.Diga-me,Susan, chegou a saber alguma coisa da rapariga que telefonou para o seu programa na segunda-feira
de manhã,aquela que disse que tinha um anel de turquesa como aquele que pertenceu a Regina?
Susan respondeu com cuidado:
- Karen? Sim e não.O nome verdadeiro dela é Carolyn Wells. Ficou gravemente ferida umas horas depois de ter feito o telefonema,e ainda não consegui falar
com ela porque está em coma.
- Que horror!
- Ela está continuamente a chamar por alguém chamado Win.
Penso que poderá ser o nome do homem que ela conheceu no paquete, mas ainda não consegui confirmar.Regina alguma vez lhe telefonou do Gabrielle, Mrs.Clausen?
- Várias.
- Alguma vez mencionou alguém chamado Win?
??? - Não.Ela nunca se referiu a qualquer dos passageiros pelo telefone.
Notando a fadiga na voz de Jane Clausen,Susan disse:
- Vou tirar as fotografias e pôr-me a andar.
O desenho estava encostado à parede na secretária em frente à
cama. Utilizando oflash,Susan tirou quatro fotografias e viu as revelações aparecerem uma a uma.Satisfeita com o resultado, voltou a meter a máquina fotográfica
na mala e dirigiu-se serenamente para a porta.
- Adeus,Susan - disse Jane Clausen com a voz pesada de sono.
- Sabe,acabou de me fazer recordar uma coisa agradável.No baile do meu debute, um dos meus acompanhantes chamava-se Owen. Há anos que não pensava nele,mas
tive uma enorme paixão por ele.
??Owen",pensou Susan.??É isso que Carolyn está a dizer.Não é
'Ob,Win',mas sim Owen'."
Lembrou-se de que havia um Owen Adams na lista de passageiros do Seagodiva. Fora o primeiro nome que ela vira que viajava não acompanhado. Vinte minutos
depois, entrava de rompante no seu apartamento, corria para a secretária e agarrava na lista de passageiros do Gabrielle.
?Tens de estar aqui??, pensou ela. ??Tens de estar.
Não havia nenhum Owen Adams na lista, mas, compreendendo que o homem que ela procurava podia muito bem ter viajado com um nome falso, ela continuou
a espiolhar a lista de passageiros do Gabrielle.
Estava quase no fim quando o encontrou. Um dos poucos passageiros da lista que aparecia com mais do que o primeiro e o último nome era Henry Owen
Young.
??Deve haver uma ligação qualquer??, pensou ela.
ALEX WRIGHT telefonou para casa de Susan às 10, às 11 e ao meio-dia, antes de finalmente conseguir apanhá-la à 1.
- Tentei contactá-la mais cedo, mas não estava em casa - disse ele. - Queria convidá-la para um pequeno-almoço tardio.
- Obrigada, mas não podia ir - respondeu Susan. - Fui ver uma amiga ao hospital. A propósito, Alex, existe uma coisa do género orfanato-padrão na
América Central?
- Padrão? Não sei o que quer dizer. Porquê?
- Porque eu tenho umas fotografias que preciso de lhe mostrar disse Susan.
- Vai ficar aí por casa?
- Toda a tarde.
- Estou a caminho.
??Eu sei que tenho razão, pensou Susan enquanto pousava o auscultador. ??Estes dois edifícios não são apenas semelhantes, são o mesmo. Mas desta maneira
terei a certeza absoluta.??
O livro sobre a Fundação da Família Wright estava em cima da sua secretária, com as páginas abertas na fotografia do orfanato de Guatemala que lhe
chamara a atenção. Linha a linha, parecia ser exactamente igual ao do esboço que Jane Clausen tinha no seu quarto de hospital.
QUANDO estudou as fotografias, Alex viu uma coisa em que Susan
não reparara, mas que, ao invés de distinguir um edifício do outro, confirmava o facto de que eram o mesmo. No desenho que Jane Clausen tinha, o artista
pintara um pequeno animal por cima da porta de entrada do orfanato.
- Olhe para isto - disse Alex. - É um antílope. Olhe para a fotografia do livro. Também lá está. O antílope é tirado do nosso brasão de família; temos
sempre um por cima da porta de qualquer edifício que financiamos. - Estavam sentados lado a lado à secretária na salinha de estar. - O letreiro gravado no desenho
é decididamente falso, Susan. Quanto a mim, alguém está a meter ao bolso o dinheiro que se destinava a financiar este edifício.
Susan fechou o livro da Fundação da Família Wright.
- Vou mostrar esta fotografia a Jane Clausen amanhã. Ela tem de a ver o mais depressa possível. - Olhou para a secretária, reparando de súbito como devia
parecer desarrumada aos olhos de Alex.
- Normalmente, não sou assim tão desarrumada - explicou. - Tenho andado a trabalhar numa série de projectos e os papéis acumularam-se.
Alex pegou no livrinho com a lista de passageiros do Seagudiva e perguntou:
- Esteve neste cruzeiro?
- Não.Nunca fiz nenhum cruzeiro.- Susan esperava que Alex
não fizesse mais perguntas sobre o livrinho.Ela não queria falar sobre o que estava a fazer com ninguém,nem mesmo ele.
? - Nem eu - disse ele,largando o livrinho na secretária.- Enjoo.
Levantou-se.
- Tenho de ir andando.Também tenho uma secretária
que precisa de ser arrumada.- À porta,virou-se para ela.- Susan - disse ele -,amanhã parto para a Rússia,São Petersburgo,para finalizar os planos para o hospital
que estamos a construir lá.Estarei fora
uma semana ou dez dias.Trabalhe o que quiser durante esse tempo, mas depois disso não faça muitos planos.Combinado?
Mal tinha fechado a porta atrás dele,o telefone tocou.Era Dee a telefonar-lhe para se despedir.
- Parto para a Costa Rica amanhã.Apanho o navio lá - disse ela. - A noite passada foi divertida,não foi?
- Foi óptima.
- Telefonei a Alex para lhe agradecer,mas ele não estava.
Susan ouviu a pergunta na voz da sua irmã,mas não tinha qualquer intensão de lhe explicar que Alex estivera com ela.
- Talvez o apanhes mais logo.Espero que tenhas uma viagem maravilhosa, Dee.
Desligou penosamente,ciente de que a razão por que não conseguia tirar maior prazer da companhia de Alex era porque ainda sentia que algo se podia desenvolver entre
ele e Dee,especialmente se Dee continuasse a persegui-lo.E Susan não tinha a mínima intenção de passar pela angústia de perder outro homem a favor da irmã.
DON RICHARDS sentira-se inquieto todo o dia. No domingo, logo de manhãzinha, fora correr para o Central Park. Depois, regressou a casa e preparou uma omeleta
de queijo, pensando que no tempo de casado costumava cozinhar sempre ao domingo de manhã, mas já perdera o hábito. Leu o Times enquanto comia, mas por fim, depois
de se servir de uma segunda chávena de café, percebeu que não conseguia de maneira nenhuma concentrar-se, por isso pousou o jornal e foi até ao quarto.
Tinha de fazer as malas para a sua viagem do dia seguinte e a perspectiva irritava-o. Mas aquilo estava quase no fim. Havia apenas mais uma semana de promoção
do livro e depois tirava uma semana de férias. A agência de viagens mandara por fax uma lista de navios de cruzeiro com lugares disponíveis em primeira classe que
podiam adaptar-se ao seu plano.
Regressou à secretária para dar uma olhadela à lista.
ÀS 2. HORAS, estava em Tuxedo Park. A mãe regressou a casa após um almoço no clube com umas amigas e deu com ele sentado nos degraus do alpendre.
- Don, querido, porque não me disseste que vinhas cá? - perguntou ela, fingindo irritação.
- Quando eu saí, não tinha a certeza de que cá vinha. Está muito bonita, mãe.
- Tu também. Gosto de te ver de camisola. - Ela reparou na mal ao lado dele. - Vais mudar-te para cá, querido?
Ele sorriu e respondeu:
- Não. Só quero pedir-lhe que me guarde isto no sótão.
- Há montes de espaço no sótão - disse Elizabeth Richards.
- Não vai perguntar-me o que está aqui dentro?
- Suspeito que tenha algo a ver com Kathy.
- Tirei lá de casa tudo o que ainda tinha de Kathy, mãe. Isto sossega-a?
- Don, eu acho que até agora tu precisavas daquelas recordações. No entanto, sinto que estás a tentar andar para a frente com a tua vida pessoal, e sabes
que Kathy não pode fazer parte dela. A propósito, sei que tens uma chave da casa. Porque não entraste?
- Vi que o seu carro não estava aqui, e de repente compreendi que não queria entrar numa casa vazia. - Levantou-se e espreguiçou-se. Vou tomar um chá consigo,
mas depois tenho de ir. Logo à noite, tenho um encontro. Já são dois na mesma semana com a mesma pessoa. Que tal?
Telefonou a Susan do átrio do prédio às 7 em ponto.
- Peço-lhe imensa desculpa, mas estou atrasada - disse ela ao abrir-lhe a porta do apartamento. - Há umas horas, decidi descansar uns minutos e acabei agora
de acordar. Ofereço-lhe um copo de vinho se me quiser conceder um quarto de hora para me arranjar.
- Combinado.
Ela percebeu que ele estava a estudar o apartamento sem sequer tentar disfarçar.
- Tem uns aposentos muito agradáveis, Susan - comentou ele.? Um dos meus doentes é uma corretora imobiliária. Ela diz-me que, mal entra numa casa, sente
vibrações das pessoas que lá vivem.
- Bem, não sei que género de vibrações é que esta casa emite, mas sinto-me muito confortável nela. Agora, deixe-me ir buscar-lhe o copo de vinho, e pode
bisbilhotar enquanto eu mudo de roupa.
Don acompanhou-a até a cozinha.
- Por favor, não se arranje demasiado - disse ele. - Como pode ver, eu não o fiz. Passei pela minha mãe esta tarde, e ela disse-me que fico muito bem de
camisola, por isso limitei-me a vestir um casaco por cima.
Susan foi até ao quarto. ??Há qualquer coisa de estranho em Don Richards??, pensou ela enquanto tirava o casaco do armário. - Não sei o que é, mas
há qualquer coisa nele que eu não consigo compreender.
Saiu do quarto para o hall de entrada,e estava prestes a dizer Estou pronta quando viu Donald Richards,de pé junto à sua secretária, a examinar as duas listas de
passageiros dos navios de cruzeiros. Ele ouviu-a,obviamente,porque olhou para ela.
- Alguma razão para coleccionar estas coisas,Susan? - perguntou ele baixinho.
Ela não respondeu imediatamente,e ele pousou-as.
- Desculpe se levei demasiado à letra o seu convite para bisbilhotar. Esta secretária é muito bonita,e eu queria vê-la mais de perto. As listas de passageiros não
pareciam nada de confidencial.
- Disse que foi muitas vezes passageiro do Gabrielle,não foi? - perguntou Susan.
Ela não gostou da ideia de o ver mexer nos papéis da secretária, mas decidiu não comentar.
- Sim, muitas vezes. É um belo navio. - Ele dirigiu-se a ela.
- Está muito bonita, e eu com muita fome. Vamos?
Jantaram num restaurante íntimo que servia peixe e marisco em Thompson Street.
- O pai de um dos meus doentes é o dono - explicou ele.
- Aquele pampo estava uma maravilha - disse-lhe Susan quando o empregado de mesa retirou os pratos.
- E o salmão também. - Ele fez uma pausa e bebeu um pouco de vinho. - Susan, disse-me no outro dia que, depois do divórcio dos seus pais, se sentia como
se todos tivessem apanhado salva-vidas diferentes. Porquê?
- Ei, não me analise! - protestou Susan.
- Pergunto-lhe como amigo.
- Então, respondo. É o que normalmente acontece quando há um divórcio: lealdades divididas. A minha mãe ficou destroçada, enquanto o meu pai andava de um
lado para o outro dizendo que nunca fora tão feliz. Isso fez-me questionar todos aqueles anos em que vivi com a impressão de que éramos uma família feliz.
- E a sua irmã? É muito chegada a ela? Nem tem de responder. Devia ver a cara que fez.
Susan ouviu-se a si mesma dizer:
- Há sete anos, eu estava prestes a ficar noiva. Depois, Dee apareceu em cena. Adivinhe com quem o tipo casou?
- Com a sua irmã.
- Exactamente. Depois, Jack morreu num acidente de esqui, e agora ela anda a preparar-se para tentar apanhar uma pessoa com quem tenho saído. Simpática,
não é?
- Você está interessada nesse sujeito?
- Ainda é demasiado cedo para dizer. E agora vai contar-me por que estava tão interessado naquelas listas de passageiros?
A cordialidade compreensiva nos olhos de Don Richards desapareceu.
- Se me disser porque marcou alguns nomes e pôs um círculo à volta de dois nomes: Owen Adams e Henry Owen Young.
- Owen é um dos meus nomes preferidos - disse Susan. - Está afazer-se tarde, Don. Você vai viajar de manhã cedo, e eu tenho um dia muito longo à minha frente.
Lembrou-se do telefonema que ia fazer às 8 da manhã do dia seguinte para Chris Ryan e do pacote de fotografias que devia receber depois à tarde.
NA SEGUNDA-FEIRA de manhã, Chris Ryan abriu a porta do
escritório às 8.20. Verificou as mensagens e encontrou algu? ? ? mas que requeriam acção imediata. A primeira fora deixada no sábado por uma fonte
em Atlantic City e continha informação interessante sobre Douglas Layton. A segunda, de Susan Chandler, chegara naquela manhã e dizia: ??Chris, fala Susan. Telefona-me
imediatamente."
Ela atendeu ao primeiro toque.
- Chris, estou na pista de uma coisa e preciso que me investigues duas pessoas. Uma foi um passageiro num navio de cruzeiros, o Gabrielle, há três anos. A segunda
esteve num outro navio de cruzeiros, o Seagodiva, há dois anos. Eu acho que não são pessoas diferentes. Devem ser a mesma, e se forem, trata-se de um serial killer.
Chris pegou numa folha de papel.
- Dá-me os nomes e as datas. - Quando os ouviu, comentou: - Estamos em meados de Outubro.
- As datas não me têm saído da cabeça, Chris - disse-lhe Susan. Se meados de Outubro fizer parte de um padrão, então alguma mulher pode estar em terrível perigo
neste preciso momento.
- Deixa-me tratar de descobrir. Os meus amigos do FBI podem fazer uma localização rápida. Ah, Susan, já descobri porque é que o teu amigo Doug Layton não
tem um tostão em nome dele. Ele é um jogador compulsivo relativamente conhecido em Atlantic City. Perdeu lá aparentemente um dinheirão na semana passada.
- O que queres dizer com um dinheirão?
- Que tal quatrocentos mil dólares? Espero que ele tenha alguma viúva rica. O problema é que ele acha que tem.
- A soma de quatrocentos mil dólares impressionou-a. Um homem que perde ao jogo quantias de dinheiro daquelas tem um grave problema. Pode também ficar desesperado
e tornar-se perigoso. - Obrigada, Chris - disse Susan.
Ela desligou o telefone e olhou para o relógio. Tinha tempo de visitar Jane Clausen antes de ir para o estúdio.
??Jane tem de ser informada acerca disto imediatamente??, pensou Susan. ??Se Layton deve assim tanto dinheiro, vai precisar dele i imediatamente,
e o Fundo da Família Clausen é onde ele irá buscá-lo.
JANE CLAUSEN percebeu que havia qualquer coisa de grave quando Susan lhe telefonou e pediu para a visitar logo de manhãzinha. Apercebeu-se também da tensão
na voz de Douglas Layton quando lhe telefonou minutos depois a dizer que precisava de passar por lá a caminho do aeroporto, porque uma outra requisição relacionada
com o orfanato precisava da assinatura dela.
- Vai ter de esperar até às nove horas - disse-lhe ela com firmeza.
- Mrs. Clausen, isso pode fazer-me chegar atrasado ao avião.
- Devia ter pensado nisso mais cedo, Douglas. Susan Chandler vem encontrar-se comigo daqui a uns minutos. - Ela fez uma pausa, depois acrescentou
num tom calmo: - Ontem, Susan tirou um Polaroids ao desenho do orfanato. Espero que não haja problema.
- É claro que não, Mrs. Clausen. Talvez eu possa passar sem a assinatura para já.
Quando Susan chegou, Jane Clausen disse:
- Não se preocupe com a minha reacção, seja o que for que tem para me dizer, Susan. Neste momento, estou convencida de que Douglas Layton anda a enganar-me
ou a tentar enganar-me. Mas gostaria de ver a prova.
Quando Susan abriu o livro sobre a Fundação da Família Wright, Jane Clausen fez um telefonema para Hubert March, que ainda estava em casa.
- Hubert, vá ao escritório, chame os nossos auditores e assegure-se de que Douglas Layton não pode deitar a mão a nenhuma das nossas contas bancárias ou
bens. E faça-o já! - Pousou o telefone e guardou a fotografia do orfanato no livro que tinha no colo.
- Lamento muito - disse Susan baixinho.
- Não lamente. Mesmo quando Douglas estava a ser extremamente atencioso, eu não conseguia libertar-me daquela sensação apreensiva sobre ele.
AGORA, Douglas Layton sabia perfeitamente como era sentir-se encurralado. Telefonara a Jane Clausen de uma cabina perto do aeroporto, prevendo que poderia
subir de imediato para obter a assinatura nessa hora.
Idiota, disse a si mesmo. ??Alertaste-a!"
Ele precisava do dinheiro sem falta. Tremia só de pensar no que lhe acomteceria se não honrasse a sua dívida ao casino. O problema era susan Chandler. Fora
ela que começara tudo. Se ao menos ele não se tivesse sentido com sorte na outra noite...
Permaneceu junto ao telefone tentando decidir o que fazer a seguir. Havia uma coisa que podia tentar que talvez funcionasse, mas ??tal não era o suficiente.
Tinha de funcionar.
0 seu telefonema apanhou Hubert March em casa quando estava prestes a sair para o escritório. A pergunta de saudação de Hubert:
- Douglas, que raio se passa?" confirmou a sua suspeita de que Mrs. Clausen lhe telefonara.
- Estou com Mrs. Clausen - disse Doug. - Lamento informar que ela tem períodos intermitentes de falta de lucidez. Ela acha que deve ter acabado de telefonar
para si e pede desculpa por seja o que for que lhe tenha dito.
O riso aliviado de Hubert March foi como um bálsamo para a alma de Douglas Layton.
- Não é necessário pedir-me desculpa a mim, mas espero que ela tenha pedido desculpas a si, meu caro.
JiM CuRLev levou Alex Wright ao Aeroporto Kennedy e colocoue as malas no tapete rolante do check-in.
- Está muita gente a esta hora, Mr. Alex - disse ele enquanto olhava para a mulher-polícia que rondava por ali, ameaçando multar os carros que ficassem demasiado
tempo estacionados.
- Que esperavas das nove horas da manhã de uma segunda-feira? - perguntou Alex Wright. - Vai-te embora antes que eu tenha de pagar uma multa. Lembras-te do que
eu te disse?
- Telefonar à Dra. Susan e dizer-lhe que estou à disposição dela.
- Certo - disse Alex, encorajador. - E?
- E ela vai provavelmente dar-me... o que é que lhes chamou? desculpas apropriadas para não precisar de carro, e essa é a minha deixa para dizer: ??Mr. Alex roga-lhe
que me permita servi-la, mas sob uma condição: a Dra. Susan não pode trazer um acompanhante para o carro.
Alex Wright riu-se.
- Eu sei que posso contar contigo, Jim. Agora, desaparece. Aquela mulher-polícia tem um livro para preencher, e está a dirigir-se ao carro.
SusaN tERMiNou o programa de rádio e regressou ao consultório uma hora e meia antes da primeira consulta, às 2 horas.
Aproveitou esse tempo para estudar a pasta que tinha compilado acerca dos acontecimentos da última semana. Incluía as recordações de Regina Clausen do cruzeiro
no Gabrielle, as recordações semelhantes de Carolyn Wells do Seagodiva e as fotografias do anel de turquesa de Tiffany que Pete Sanchez lhe enviara.
Por muito que se esforçasse, no entanto, elas não lhe revelaram nada de novo.
Disse a Janet que não encomendasse almoço senão depois da 1. À 1.30, Janet entrou a cantar ??Pertences-me".
- Dra. Susan - disse ela ao colocar o saco com o almoço em cima da secretária de Susan -, aquela canção não me saiu da cabeça todo o fim-de-semana.
Não consigo esquecê-la, e estava a irritar-me por não conseguir lembrar-me da letra toda, por isso telefonei à minha mãe e ela cantou-ma. É de facto uma canção muito
bonita.
- Sim, de facto - concordou Susan, distraída, enquanto abria o saco de papel e tirava a sopa do dia.
- Ver as pirâmides ao longo do Nilo, Ver o nascer do Sol numa ilha tropical... - Sem lhe ter sido pedido, Janet cantava a letra ??Pertences-me". - Ver o
mercado na velha Argel... Subitamente, Susan esqueceu a sopa.
- Pare um minuto, Janet - pediu ela.
Janet pareceu envergonhada.
- Desculpe, doutora.
- Não, não - disse Susan. - É só que enquanto a ouvia ocorreu-me uma coisa sobre essa canção.
Susan lembrou-se dos folhetos noticiosos do Gabrielle que falava de Bali como sendo uma ilha tropical e no postal de um restaurante de lá com um círculo
desenhado à volta de uma mesa na varanda. Com uma sensação de aperto no estômago, Susan sentia que as peças do pu?zle estavam a encaixar-se.
??Owen queria levar Carolyn Wells a conhecer Argel", pensou e? O mercado na velha Argel.
- Janet, não se importa de cantar o resto da letra, se faz favor?
- Se assim o deseja, doutora. Não sou grande cantora. Vejamos. Passar o oceano num aviãoprateado...
Há três anos, Regina desaparecera depois de ter estado em Bali, pensou Susan. Há dois anos atrás, podia ter sido Carolyn - e podia haver alguém que tivesse
sido escolhido em vez dela - em Argel. ??No mês passado, ele poderá ter conhecido uma mulher num avião em vez de um navio de cruzeiros. E que haveria antes disso?,
perguntou a si própria. ??Vamos recuar: teria conhecido uma mulher há quatro anos no Egipto? Isso estaria de acordo com o padrão??, decidiu ela.
- Ver a selva molhada de chuva - cantou Janet.
Isto podia ser o verso para a vítima deste ano??, pensou Susan. Alguém que não faz ideia de estar a ser seleccionado para morrer.
- Mas até regressares a casa, não esqueÇas: - Janet suavizou a voz ao concluir: - pertences-me.
Susan telefonou a Chris Ryan mal Janet saiu do gabinete.
- Chris, não te importas de ver se consegues descobrir mais uma coisa? Preciso de saber se existem relatos do desaparecimento de alguma mulher, provavelmente
turista, no Egipto em meados de Outubro de há quatro anos.
- Isso não deve ser difícil - garantiu-lhe Ryan. - De qualquer modo, eu estava para te ligar. Lembras-te daqueles nomes que me deste de manhã? Os passageiros do
navio de cruzeiro?
- Que se passa? - perguntou Susan.
- Aqueles homens não existem. Os passaportes que usaram eram falsos.
Eu sabia!?, pensou Susan. ??Eu sabia!"
Às 4.45daquela tarde,Susan quebrou uma regra que muito prezava. interromper uma consulta para atender uma chamada urgente de Chris Ryan.
- Estás a carregar nos botões certos,Susan - disse Ryan.? Há quatro anos,uma viúva de trinta e nove anos,do Alabama,desapareceu no Egipto a meio de um cruzeiro
ao Médio Oriente.Aparentemente, acompanhara a excursão organizada por terra e fora sozinha.O corpo nunca foi encontrado,e presumiu-se que,dada a agitação política
do
Egipto,ela fora vítima de algum grupo terrorista.
- Tenho quase a certeza de que isso não teve nada a ver com a causa da sua morte,Chris - disse Susan.
Alguns minutos depois,enquanto acompanhava o seu doente até à
porta, foi-lhe entregue uma encomenda volumosa de correio em que O remetente era Ocean Cruise Photography Ltd., em Londres.
- Eu abro, doutora - ofereceu- se Janet.
- Não - disse Susan. - Deixe estar. Eu trato disso depois.
O dia dela estava totalmente preenchido com consultas, e não terminaria a última antes das 7. Depois, poderia finalmente ver as fotografias que eventualmente revelariam
o rosto do homem que matara Regina Clausen e tantas outras.
DoNaLd RicHaRds cheguu ao Aeroporto de West Palm Beach ? às oito horas da manhã de segunda-feira. Um representante da sua editora foi buscá-lo ao aeroporto
e conduziu-o à Liberty, em Boca Raton, onde estava previsto ele autografar o seu livro. Quando chegou, ficou agradavelmente surpreendido por encontrar pessoas em
fila à sua espera.
Richards sentou-se à mesa preparada para o efeito, pegou na caneta e começou a assinar. Ele sabia o que o esperava naquele dia e o que tinha de fazer. Sentia
uma agitação fervilhante que lhe dava uma vontade desesperada de saltar da cadeira.
Uma hora e oitenta livros autografados depois, Donald estava a caminho de Miami, onde u esperava outra sessão de autógrafos com início às 2 horas.
- Lamento, mas limito-me a assinar sem mensagens pessoais - disse ele ao proprietário da livraria em Miami. - Surgiu um imprevisto e eu tenho de sair daqui
às três horas sem falta.
Poucos minutos depois das 3, estava de regresso ao carro.
- Próxima paragem, o Fontainebleau - disse o motorista.
- Errado. Próxima paragem, aeroporto - retorquiu Don. Havia um avião para Nova Iorque às 4, e ele pretendia estar a bordo.
Dee cHEoou à Costa Rica na segunda-feira de manhã e foi directamente do aeroporto para u porto, onde o paquete, o Valerie tinha acabado de atracar.
Segunda-feira à tarde, juntou-se sem grande entusiasmo à excursão para que se tinha inscrito. Quando, impulsivamente, decidira fazer aquele cruzeiro, parecera-lhe
uma excelente ideia. Agora, já não tinha certeza.
Regressou ao Valerie toda enlameada devido a uma fortíssima queda de água na floresta tropical e lamentando não ter cancelado a viágem. o seu camarote no
convés superior era lindo e tinha uma varanda espaçosa. Mesmo assim, sentia-se nervosa, ansiosa até. Ela sentia que aquela não era a melhor altura para se afastar
de Nova Iorque. Talvez se apanhar um avião no Panamá e conseguir um voo de regresso no dia seguinte, decidiu.
Quando se dirigia ao camarote, o empregado dos quartos deteve-a.
- Acabou de chegar um lindíssimo ramo de flores para a senhora - disse ele. - Pu-lo em cima da sua cómoda.
Esquecendo que se sentia molhada e pegajosa, Dee foi logo a correr ao quarto. Aí encontrou uma jarra com duas dúzias de rosas de um tom pálido. Leu rapidamente o
cartão que as acompanhava. Estava escrito: Adivinha ! ".
Dee não precisava de adivinhar. Ela sabia quem as mandara. Nojantar de sábado à noite, quando trocara de lugar com Susan, Alex Wright dissera-lhe:
- Ainda bem que Susan sugeriu que se sentasse ao meu lado. Não quero ver uma mulher bonita sozinha. Acho que sou mais parecido com ?eu pai do que pensava.
A minha madrasta era bonita como você, e bbém era uma viúva solitária quando o meu pai a conheceu num cruzeiro. Ele resolveu-lhe o problema da solidão casando com
ela.
É uma repetição de Jack, pensou Dee enquanto inalava o cheiro das rosas. ??Naquela altura, eu não queria magoar Susan, e certamente não quero magoá-la agora, mas
estou convencida de que ela não está verdadeiramente interessada em Alex por enquanto. Ela mal o cunhece. Tenho a certeza de que vai compreender."
Dee tomou um duche, lavou o cabelo e vestiu-se para jantar, imaginando como seria divertido se, em vez de ir para a Rússia, Alex também fosse um passageiro daquele
navio.
- Dra. Susan. Até para a semana.
Às 6.50, Susan acompanhou Anne Ketler, a última doente do dia até à porta. Ao passar pela secretária de Janet, viu que o pacote de fotografias fora aberto e as fotos
estavam empilhadas em cima da secretária.
Ouvidos tens, mas nada ouves", pensou ela.
Abriu a porta exterior do consultório a Mrs. Ketler, e pelo ruído percebeu que tinha sido deixada aberta.
- Está muito escuro lá fora - comentou Mrs. Ketler.
Susan espreitou sobre o ombro da mulher. Apenas um par de lâmpadas iluminavam o corredor, que estava mergulhado em sombras.
- Tem toda a razão - retorquiu ela. - Dê-me o braço que eu acompanho-a ao elevador.
Depois de o elevador chegar, Susan retrocedeu rapidamente para o corredor. Entrando na zona de recepção, pegou nas pilhas de fotografias em cima da secretária
de Janet sem reparar no recado que ela deixara debaixo do telefone. Dirigiu-se ao consultório, ciente do silêncio do edifício e do batimento acelerado do seu coração
só de pensar que ia finalmente ver uma fotografia do homem responsável por aquela série de assassínios.
??Porque estou eu tão nervosa?", perguntou a si mesma ao passar pelo armário do economato. A porta encontrava-se um tudo-nada aberta, mas com os braços cheios ela
não parou para a fechar.
Ao colocar o conjunto de fotografias em cima da secretária, embateu acidentalmente na bela jarra Waterford que Alex Wright lhe dera, derrubando-a. ??Que
pena??, pensou ela enquanto juntava os cacos que deitava para o cesto dos papéis. ??É o efeito de tudo o que se tem passado??, concluiu ela.
Uma hora depois, ela continuava a examinar as fotografias, ainda á procura daquela em que aparecia Carolyn Wells. ??Tem de estar aqi pensou Susan. ??Eles
disseram que mandavam todas onde apareciam mulheres a posar com o comandante.??
Ela tinha o resto amarrotado da fotografia que Carolyn deitara ao cesto de papéis e estava sempre a verificá-la, procurando a sua correspondente nas pilhas
de fotografias que tinha espalhadas diante déla. Mas por muitas vezes que as visse, não conseguia encontrá-la. Aquela fotografia, muito simplesmente, não estava
ali.
- Onde está ela? - perguntou em voz alta, com o desespero e o desapontamento a ameaçarem apoderar-se dela. - Porque é que de todas elas é aquela que falta?
- Porque sou eu que a tenho, Susan - respondeu uma voz conhecida.
Susan voltou-se, sendo atingida na fonte por um pisa-papéis.
TAL COMO planeado, ele seguiria o mesmo procedimento com Susan Chandler que com todas as outras. Atava-lhe os braços e mãos ao corpo, atava-lhe as pernas
juntas, amarrando-a de modo que, ao recobrar a consciência e compreender o que se passava, ela conseguisse debater-se um pouco - apenas o suficiente para ter alguma
esperança, mas insuficiente para se salvar.
Ao enrolar a corda à volta do seu corpo flácido, ele explicar-lhe-ia por que razão aquilo estava a acontecer. Também explicara às outras, embora a morte de Susan
não fizesse parte do seu plano original e fosse uma questão de conveniência, mesmo assim ela merecia saber que tomava parte num ritual que ele empreendera para expiar
os pecados da sua madrasta.
Tem de compreender, Susan - começou ele num tom de voz argumentativo -, eu nunca lhe faria qualquer mal se você não se tivesse metido. De facto, eu até gosto
bastante de si. Sinceramente.
Começou a enrolar-lhe a corda à volta dos braços, levantando-lhe o corpo delicadamente. Ela estava deitada ao lado da secretária.
- Por que razão teve de falar de Regina Clausen no seu programa de rádio, Susan? Não devia ter-se metido no assunto. Ela morreu há três anos. Está no fundo
da baía de Kowloon. - Ele cruzou e voltou a cruzar a corda sobre o tronco dela. - Para uma mulher tão inteligente, deixou-se convencer de modo incrivelmente fácil.
Mas é isso que acontece quando nos sentimos sozinhos. Queremos apaixonar-nos. Hong Kong é o local de repouso final de Regina, mas foi em Bali que se apaixonou por
mim.
Começou a atar as pernas de Susan.
Belas pernas, pensou.
Embora ela estivesse de calças e casaco, ele conseguia sentir-lhes a perfeição ao levantá-las e passar a corda à volta delas.
- O meu pai também foi facilmente enganado, Susan. Não é engraçado?
Susan ouvia uma voz familiar mesmo acima dela, mas sentia uma dor de cabeça tal que não se atrevia a abrir os olhos.
??Que está a acontecer???, interrogou-se ela.
??Alex Wright estava ali, mas quem me bateu? ? ? Ela apenas conseguira vislumbrar o homem antes de perder os sentidos. Tinha um cabelo desalinhado e comprido
e usava um boné e um fato de treino puído.
Espera, pensou ela, obrigando-se a concentrar-se. ??A voz é de Alex. isso significa que ele ainda aqui está. Então, porque é que não me defende?"
Depois, compreendeu finalmente o que estivera a ouvir e abriu os olhos. A cara dele estava a escassos centímetros da sua, de olhos cintilantes, brilhando com o tipo
de loucura que ela vira em olhos de doentes em enfermarias fechadas à chave. ??Ele é louco!,? pensou. Agora, já está bem. Era Alex com aquela cabeleira desgrenhada.
Alex, cujos
olhos eram como lascas afiadas de turquesa fazendo golpes profundos dentro dela.
- Tenho a sua mortalha,Susan - sussurrou ele.- Embora não
seja uma das damas solitárias,eu quis que tivesse uma mortalha.
exactamente igual às das outras.
? Ele levantou-se,e Susan percebeu que ele tinha um enorme saco plástico na mão,muito parecido com os que se usam para proteger vestidos nas lavandarias.
Meu Deus!",pensou ela.??Ele vai sufocar- me!
- Eu faço isto devagar,Susan - disse ele.- É a minha parte preferida. Quero ver a sua cara. Quero que preveja o momento em que o ar é cortado e a luta final
se inicia.Por isso,vou fazê-lo devagar e nãovou atá-lo demasiado apertado.Assim,demorará mais tempo a morrer,
alguns minutos pelo menos.
Ajoelhou-se em frente dela e levantou-lhe os pés,fazendo deslizar o saco de plástico por baixo dela para que os pés e as pernas ficassem dentro dele. Susan tentou
afastá-lo ao pontapé,mas ele inclinou-se sobre ela fitando-a nos olhos enquanto puxava o saco para lhe cobrir as ancas e depois a cintura.A luta dela não teve qualquer
efeito.Por fim,quando
chegou ao pescoço,ele fez uma pausa.
- Sabe,pouco depois de a minha mãe morrer, o meu pai fez um cruzeiro - explicou ele.- Foi onde conheceu Virginia Marie Owen, a quem chamavam Gerie,uma viúva
solitária,ou pelo menos era o que afirmava ser.Tinha menos trinta e cinco anos que o meu pai e era muito bonita. Ele disse-me que ela gostava de lhe cantar ao ouvido
enquanto dançavam.A canção preferida dela era ??Pertences-me".Sabe como passaram a lua-de-mel? Seguiram a letra da canção,começando no Egipto.
Susan observou a cara de Alex.Ele estava agora claramente absorvido na sua história,mas durante o tempo todo as suas mãos continuavam a brincar com o plástico,e
Susan sabia que a qualquer momento ia pô-lo por cima da sua cabeça.Pensou em gritar,mas quem a ouviria?
Estava sozinha com ele num edifício vazio.
- A minha madrasta odiava-me tanto que se dedicou a persuadir o meu pai a criar a fundação em vez de me deixar o dinheiro.Depois o meu papel na vida seria
administrá-la.Ela fez ver ao meu pai que eu teria um bom ordenado enquanto doava o dinheiro dele.O meu dinheiro. Disse-lhe que dessa maneira os nomes deles seriam
imortalizados.
resistiu um bocado,mas acabou por ceder.Eu jurei a mim mesmo que me vingaria.Mas depois ela morreu logo a seguir ao meu pai,e não cheguei a ter essa oportunidade.
Consegue imaginar como isso foi frustrante? Odiá-la com tal intensidade e depois ela privar-me da satisfação de a matar?
Susan estudou-lhe o rosto enquanto ele se ajoelhava junto dela com olhar distante.
??Ele é decididamente louco??, pensou. ??É louco e vai matar-me. Do mesmo modo que matou todas as outras.
Às 20 HORAS daquela noite, Doug Layton estava numa mesa de
blackjack num dos casinos ligeiramente menos em voga de Atlantic . Através de uma manipulação rápida de fundos, ele conseguira arranjar o dinheiro de que necessitava
para pagar as dívidas que tinha acumulado durante a sua última visita.
Doug sentia-se um pouco aliviado com o modo como as coisas estavam a correr. ??Mais cedo ou mais tarde, os auditores tinham-me apanhado. Prevenido, e antes
que fosse tarde demais, ele planeava agora fugir com o saque de meio milhão de dólares de que se apoderara hoje. Já fizera reserva num voo para St. Thomas, nas Caraíbas.
Daí viajaria para
uma das ilhas onde não existisse acordo de extradição com os Estados Unidos. Era isso que o pai dele tinha feito e nunca fora apanhado. Meio milhão serviria para
pagar um bom início de uma nova vida. Clayton estava decidido a deixar o país com aquele dinheiro.
- Não podes sair daqui sem tentares a tua sorte pelo menos mais uma vez - disse-lhe um dos amigos.
Doug Layton reconheceu que se sentia com sorte.
- Bem, talvez uma rodada de blackjack - assentiu ele. ? ? Eram apenas 9 horas quando saiu do casino. Quase não dando pelo que o rodeava, caminhou até à praia.
Não havia possibilidade de obter o dinheiro de que necessitava agora, o dinheiro que devia aos sujeitos que tinham voltado a ajudá-lo financeiramente naquele dia,
quando a sua sorte azedara pela última vez. Estava tudo acabado para ele. Sabia o que? se seguiria: condenação por desfalque, prisão ou pior.
Despiu o casaco e colocou o relógio e a carteira em cima dele. Era a única coisa que lhe parecia fazer sentido.
Ouvia o bater das ondas. Um vento cortante e frio soprava do mar e as ondas estavam grandes. Tremia em mangas de camisa. Perguntou a si mesmo quanto tempo demoraria
a afogar-se e decidiu que era melhor ? saber. Era uma daquelas coisas que nunca se sabem até se fazerem. Entrou na água com cautela, depois deu um passo em frente,
maior.
É tudo culpa de Susan Chandler, pensou ele enquanto a água ? gelada rodopiava à volta dos seus tornozelos. ??Se ao menos ela não se tivessse intrometido, ninguém
teria descoberto, e eu teria tido mais uns anos no fundo."
Susteve a respiração por causa do frio e avançou até os pés já nãotocarem no fundo. Uma onda grande apanhou-o e a seguir outra. Depois, começou a
sufocar, perdido num mundo de frio e escuridão, arrastado pelas ondas. Tentou não se debater.
Em silêncio, amaldiçoou Susan Chandler.
Espero que ela morra, Foi o último pensamento consciente de Doúglas Layton.
DON RICHARDS conseguiu apanhar o avião para La Guardia mes à justa. Fazia escala em Atlanta, mas isso não podia evitar. Mal se encontraram no aeroporto e
ele pôde utilizar o telefone, ligou para o consultório de Susan Chandler.
- Desculpe, Dr. Richards, mas ela está com um doente e não pode ser interrompida - informou a secretária. - Posso ficar com o recado e deixar-lhe
um bilhete para ela ver.
- Quanto tempo estará aí a doutora? - perguntou Don, impaciente.
- Ela tem consultas até às sete horas e mencionou há pouco que depois disso está a planear tratar de uns papéis .
- Então,por favor,anote este recado: ??Don Richards precisa de falar consigo sobre Owen.O avião dele chega por volta das oito horas. Ele vem buscá-la ao consultório.Espere
por ele.? ?
- Vou deixá-lo na minha secretária num sítio em que ela veja - prometeu Janet . ?
E Susan tê-lo-ia visto se não tivesse ficado escondido debaixo do telefone.
A hospedeira estava a oferecer-lhe uma bebida e aperitivos.
- Só café,se faz favor - disse Don Richards.Ele sabia que precisava de ter a cabeça fresca.??Depois,Susan e eu tomamos uma bebida e vamos jantar, pensou ele. Vou
contar-lhe o que acho que ela já adivinhou, que o nome que a pobre Carolyn tenta dizer é Owen,e não Win.
Desde que vira o nome Owen assinalado com um círculo em ambas as listas de passageiros em cima da secretária no apartamento de Susan, ele andara a matutar no assunto
e achara que era essa a explicação mais plausível .
Estava desesperado por regressar a Nova Iorque.Quem quer que Owen fosse realmente, era muito provavelmente o assassino. E se Don estivesse enganado, Susan corria
um grave perigo.
? Ela não pode continuar a trilhar este caminho sozinha??, jurou Don a si mesmo. ??É demasiado perigoso, muito mais perigoso do que ela pode pensar.
Don desembarcou do avião às 8.10. Correu para um telefone e ligou para o consultório de Susan. Ninguém atendeu, e ele desligou sem deixar mensagem. Também não obteve
resposta do apartamento dela.
Talvez eu deva tentar novamente o consultório", pensou. ??Ela pode ter saído por um momento.
Mas novamente ninguém atendeu. Desta vez, no entanto, ele decidiu deixar uma mensagem.
- Susan - disse ele -, vou passar pelo seu consultório. Espero que tenha recebido o recado que deixei hoje à sua secretária e que ainda esteja por aí. Com alguma
sorte, estou aí dentro de meia hora.
- CoM certeza que compreende por que estou tão zangado, Susan. Gerie considerava o facto de eu ter de gerir o fundo familiar como uma forma de justiça poética. Todos
os dias eu tinha de assinar cheques dando dinheiro que me pertencia. Já imaginou? Quando a fundação foi criada há dezasseis anos, valia cem milhões de dólares. Agora,
vale mil milhões, e eu sou o responsável pela maior parte do seu cresCimento. Mas, independentemente de quanto dinheiro existe nos cheques, eu continuo a receber
apenas o meu mísero ordenado.
Tenho de o manter a falar, disse Susan a si própria. ??A que horas vêm as equipas de limpeza?, perguntou a si mesma, e depois lembrou-se com uma sensação de esmorecimento
de que tinham andado a esvaziar os cestos de papéis quando Mrs. Ketler chegara às 6. Já se tinham ido embora há muito tempo.
Os dedos dele estavam agora a acariciar-lhe a garganta.
- Eu acho mesmo que podia ter sido feliz consigo, Susan - continuou ele. - Se me tivesse casado consigo, podia ter tentado esquecer o legado. Mas é claro que não
ia funcionar, pois não? Na outra noite, mandou Dee tomar o seu lugar ao meu lado à mesa. Fê-lo porque não queria estar comigo. Sabe isso, não sabe?
- Alex - disse Susan com uma voz aliciante -, não vai servir de nada matar-me. Há centenas de outras fotografias que vão ser entregues no meu consultório amanhã.
Não lhe vai ser possível destruí-las. A polícia vai estudá-las uma a uma. Vão estudar as pessoas nos planos de fundo.
- Penas ao vento - murmurou Alex com um tom desdenhoso.?
?? ??Posso estar a conseguir chegar até ele",pensou Susan.
- Alguém há-de reconhecê-lo,Alex.Você não vai a festas grandes e no entanto naquela primeira noite,quando concordei em jantar consigo, disse-me que conheceu
Regina num jantar da Futures Industry. foi um jantar grande,Alex.Houve qualquer coisa em si que começoa perturbar-me naquela noite.
- Penas ao vento - disse ele novamente.- Eu sei que não poderei continuar por muito tempo,Susan,mas vuu completar a minha missão antes de ser preso.Lembra-se da
canção? Ver a selva molhada de chuva. Sabe quem esteve hoje na selva? Dee.Ela esteve numa excursão na floresta tropical da Costa Rica.É parecido.Amanhã,há pessoas
que vão chorar por si quando o seu corpo for encontrado.Mas isso sóacontece antes das nove horas mais ou menos.Nessa altura,Dee e eu estaremos a tomar o pequeno-almoço
no Panamá.O navio dela atraca às oito,e eu irei surpreendê-la indo lá ter com ela.Tenho um anel
turquesa para lhe dar.Ela vai ficar encantada.
Devagar,muito devagar,ele começava a fechar o saco. Estava a apalpar-lhe o queixo.
- Alex - suplicou Susan,tentando esconder o desespero -,a ?
sorte está a acabar.Pode salvar-se se parar por aqui.
- Mas eu não quero parar - disse ele sem mostrar qualquer emoção.
O toque do telefone fê-lo saltar.Ambos escutaram com atenção enquanto Don Richards deixava uma mensagem dizendo que estava a caminho.
- Está na hora - disse Alex Wright calmamente.
E com um súbito movimento da mão puxou o saco por cima da cabeça dela e fechou-o. Depois,empurrou-a para debaixo da secretária.
Levantou-se e olhou para baixo,para a tarefa cumprida.
- Vai morrer muito antes de Richards aqui chegar.Deve demorar uns dez minutos.- Fez uma pausa para acentuar bem as palavras.?
Foi o que Regina durou. ?
- eu não inventei os engarrafamentos - disse o motorista de táxi a Don Richards. - O túnel de Midtown está entupido, o que Não é grande novidade.
- Você esteve ao telefone com o coordenador. Não podia ter evitado vir por aqui?
- Amigo, um sujeito qualquer tem um acidente, e trinta segundos depois temos um estrangulamento do tráfego e um engarrafamento.
Discutir com ele não vai servir de nada", disse Don para consigo. é tão frustrante estar preso desta maneira.
- Por favor, Susan - disse ele baixinho. - Deus permita que ela se encontre sã e salva.
o pouco ar que ficara dentro do saco estava quase a esgotar-se. sentia-se tonta.
E aquela dor começava a concentrar-se no peito. ??Não desmaies" - admooestou-se a si própria ferozmente. Sentia a cabeça a descontrair-se, o que provava que estava
pronta a desistir da luta.
Dee. Alex ia encontrar-se com ela no dia seguinte. Ela seria a última a morrer.
Vou adormecer", pensou Susan. ??Não consigo evitá-lo.?? Não quero morrer E não quero que Dee morra.
A sua mente lutava para continuar, lutava para sobreviver sem ar.
Ela estava enfiada debaixo da secretária. Com um súbito movimento, empurrou os pés de encontro ao painel frontal e puxou o corpo para fora uns centímetros.
Sentiu o cesto dos papéis de encontro ao seu braço direito.
?? Ocesto dos papéis! Os estilhaços dajarra partida estavam lá dentro! Já arquejante, Susan ergueu o seu corpo para o lado, sentiu o cesto
tombar, ouviu os cacos espalharem-se pelo chão. Ao virar a cabeça em direcção ao som, sentiu o cesto afastar-se e a escuridão a dominá-la. ?- Com um último esforço,
moveu a cabeça de um lado para o outro. Uma dor súbita e lancinante atingiu-a quando um estilhaço, apanhado entre o chão e o seu corpo, cortou o plástico grosso
debaixo dela. O sangue começou a ensopá-la abaixo do ombro, mas ela sentiu o plástico descolar-se. Continuou a arquejar, movimentando o corpo para trás e para diante,
para trás e para diante, sentindo o sangue jorrar da ferida, sentindo também a primeira ténue lufada de ar.
Foi ali, no chão do consultório, que Don Richards a encontrou meia hora depois. Estava praticamente inconsciente. Tinha a têmpora ferida e o cabelo empapado de sangue.
As costas sangravam em profusão, os braços e pernas estavam feridos e inchados devido à luta com a corda que a manietava. À sua volta, estilhaços de uma jarra.
Mas estava viva ! Viva !
Alex WRiGHt estava à espera na doca quando o Valerie atracou em Blas, no Panamá, na terça-feira de manhã. Eram 8 horas. Saíra de Nova Iorque na segunda à noite,
indo directo do consultório de Susan Chandler para o aeroporto. Interrogou-se se Don Richards, que telefonara pedindo a Susan que esperasse por ele, teria finalmente
desistido. Alex desligara as luzes ao sair, por isso Richards devia ter pensado que ela simplesmente não esperara. O mais provável era a secretária encontrar o cadáver
dali a uma hora mais ou menos.
Um grande número de passageiros do valerie estavam no convés. Havia algo de mágico em estar a bordo de um navio que entrava no porto, pensou ele. Mas talvez
fosse simbólico, porque cada novo porto significava o fim de viagem para alguém.
Esta seria a última viagem de Dee. Ela era a sua última dama solitária, e depois ele punha-se a caminho da Rússia. Era lá que estaria quando recebesse a
notícia da trágica morte das duas irmãs que tinham sido suas convidadas no sábado à noite. Susan disse que ele poderia ser detectado em algumas das fotografias do
cruzeiro de Regina. Talvez, pensou, mas estava muito diferente naquele cruzeiro. Será que alguém seria capaz de o identificar?
??Não creio??, concluiu ele, confiante.
Avistou Dee no convés. Ela sorria e acenava-lhe. Ou estaria a apontar para ele?
De súbito, deu conta de que uns homens se tinham postado ao lado dele. Depois, ouviu uma voz baixa e profunda dizer:
- Está preso, Mr. Wright. Por favor, acompanhe-nos sem oferecer resistência.
Alex Wright reprimiu a sua surpresa e encolheu os ombros. Dee virou-se para ir com eles. Compreendeu, com um toque de amarga ironia, que chegara para ele
o final da viagem.
DON RICHARDS ficou à espera na recepção enquanto Susan visitava Jane Clausen no hospital: Naquela manhã, Jane estava na cama, uma única almofada debaixo
da cabeça. As suas mãos estavam estendidas em cima da coberta. As cortinas encontravam-se corridas.
Apesar da escuridão do quarto, ela reparou imediatamente no ferimento na têmpora de Susan.
- Que aconteceu, Susan? - perguntou.
- Ah, nada. Foi só uma cabeçada, mais nada. - Susan sentiu lágrimas aflorarem-lhe aos olhos quando se inclinou para beijar a face de Jane Clausen.
- Como se tornou tão querida para mim - disse Jane. - eu creio que não vou estar aqui amanhã, mas pelo menos ontem consegui resolver tudo. Pessoas boas e
de confiança irão tomar conta do fundo por mim. Soube de Douglas?
- Sim. Eu não sabia se lhe tinham dito.
- Lamento o que lhe aconteceu. Ele podia ter feito tanta coisa na vida.
- Mrs. Clausen, não há uma maneira fácil de lhe dizer isto, mas penso que é uma coisa que vai gostar de saber. O homem que matou Regina, e pelo menos quatro
outras pessoas, foi preso. Há provas irrefutáveis da sua culpa. E o facto de Mrs. Clausen ter vindo falar comigo quando o fez teve um papel determinante na resolução
dos crimes.
Susan viu o longo estremecimento que percorreu o corpo da mulher moribunda.
- Ainda bem. Ele disse alguma coisa sobre Regina? Quero dizer, estaria muito assustada?
Regina deve ter ficado aterrada", pensou Susan. ??Eu sei que ficou.
- Espero que não - disse ela.
Jane Clausen fitou-a.
- Em breve estarei com ela, Susan. Adeus, minha querida, e obrigada por toda a sua amabilidade.
ENQUANTO descia no elevador, Susan recordou os acontecimentos da semana anterior. ??Ter-se-ia mesmo passado tudo num tão curto espaço de tempo?, perguntou
a si mesma. ??Ter-se-iam passado mesmo apenas nove dias desde o meu primeiro encontro com Jane Clausen??? ?, o mistério do desaparecimento de Regina Clausen fora
resolvido, nesse processo três outras pessoas tinham morrido e uma quarta encontrava-se gravemente ferida.
?Susan pensou em Carolyn Wells e no marido, Justin. Falara com ele de manhã. Carolyn saíra do coma, e os médicos previam agora uma recuperação total, embora
demorada. Susan começara por lhe pedir desculpas. Afinal de contas, se não tivesse sido ela a mencionar o assunto do desaparecimento de Regina Clausen, nenhuma daquelas
coisas terríveis teria acontecido nem a Carolyn nem a ele próprio. Justin insistira,
no entanto, que, apesar da agonia da última semana, tudo o que acontecera devia ter uma razão. Ele estava a planear regressar à terapia com o Dr. Richards e esperava
que, uma vez que os seus ciúmes extremos fossem controlados, o género de apreensão que levara Carolyn a ser tão reservada deixasse de fazer parte da vida deles.
Pelo menos, ele e Carolyn ficarão bem", pensou Susan. ??Mas a pobre Tiffany Smith, não, nem as outras duas pessoas cujas mortes? se encontram ligadas ao caso: Hilda
Johnson e Abdul Parki.??
Tudo começara tão inocentemente. Susan tencionara apenas levantar a questão de como as mulheres solitárias e confiantes, apesar da sua inteligência e aparente
sofisticação, podem ser atraídas para relações duvidosas e por vezes fatais por homens que fazem delas as suas vítimas. Era um excelente tópico e produzira alguns
programas animados E três homicídios, pensou ela. Depois, perguntou a si mesma: Teria medo de fazer aquele género de programa de investigação no futuro? Espero que
não. Afinal, foi apanhado um serial killer; quem sabe quem mais ele teria morto, além de mim e de Dee, se não tivesse sido apanhado?
E algumas coisas boas tinham resultado daquilo tudo. Conhecera Jane Clausen e conseguira reconfortá-la de algum modo. E conhecera Don Richards. Ele era uma
ave rara, reflectiu, um psiquiatra que negara a si próprio a ajuda que diariamente concedia a outros, mas que tinha finalmente arranjado a força para enfrentar os
seus próprios demónios.
Eu podia ter morrido se ficasse ali a sangrar toda a noite??, pensou ela, retraindo-se com a dor causada pelos pontos nos ombros e pensando em Quando Don chegara
ao consultório e o encontrara fechado à chave. um sexto sentido fizera-o pedir ao segurança que abrisse a porta e revistasse o consultório com ele.
Nunca fiquei tão contente por ver alguém na minha vida??, pensou Susan. Enquanto lhe rasgava o saco e a levantava, a expressão dele era de ternura e de alívio.
Quando Susan saiu do elevador, Don Richards levantou-se e foi ao encontro dela. Olharam um para o outro por um momento. Depois Susan sorriu-lhe, e ele pôs-lhe
o braço sobre o ombro, o que pareceu ambos a coisa mais natural do Mundo.
MARY HIGGINS CLARK é uma viajante inveterada e uma grande apreciadora de cruzeiros marítimos, por isso conhece bem o mundo que relata em És Minha. De facto, mal
terminou o mais recente dos seus move grandes sucessos literários, ela recompensou-se a si mesma com um cruzeiro de três semanas. Felizmente, áo contrário das mulheres
solitárias do seu livro, não foi sozinha. A autora, que voltou a casar recentemente, levou o seu novo marido, John J. Conheeney, como companheiro de viagem.
No entanto, Mary Higgins Clark não faz tenções de que o enorme êxito literário alguma vez conduza a uma vida de perigo.
- Alguém disse uma vez: Se quiseres ser feliz durante um ano, ganha a lotaria; se quiseres ser feliz a vida inteira, beneficia do teu trabalho."
É asssim que as coisas se passam comigo. Eu adoro contar histórias.
Quando o primeiro marido de Mary Higgins Clark morreu, tornou-se uma jovem viúva com cinco filhos de idades compreendidas entre os cinco e os treze anos. Assim,
teve de ?
passar a sustentar a família escrevendo guiões para a rádio sobre temas tão variados como bebés, alimentação e viagens.
- Tornei-me uma perita instantânea em tudo - explica ela. Necessitava de uma disciplina férrea, e isso foi muito útil quando passei a escrever romances.
Em resposta ao comentário de que deve ter sido uma vida dura, ela afirmou:
- Para mim, escrever é uma necessidade. É o grau de desejo que separa os verdadeiros escritores daqueles que apenas aspiram a sê-lo. Aqueles que dizem ??Hei-de escrever
quando tiver tempo?, provavelmente nunca o farão.
Fim--
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