Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
7 Até à Vista
8 O Berço da Morte
9 A Síndroma de Anastásia
10 Agora És Minha
11 Voltaremos a Encontrar-nos
MARY HIGGINS CLARK
VOLTAREMOS A ENCONTRAR-NOS
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: Well Meet Again
Tradução de Isabel Veríssimo Tradução portuguesa (c) P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
Copyright 1999 by Mary Higgins Clark All rights reserved.
Published by arrangement with the original publisher, Simon & Schuster, Inc.
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
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do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte
prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor: Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
E-mail: secretariado @ europa-america.pt
Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra Mem Martins
Edição n. 106711/7748 Dezembro de 2001
Depósito legal n ° 173302/01
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
Agradecimentos
"Era uma vez" é a forma como a maior parte das pessoas começam a contar uma história. Representa o começo de uma viagem. Procuramos as pessoas que começaram a formar-se
nas nossas mentes. Examinamos os seus problemas. Contamos as suas histórias. E necessitamos de toda a ajuda que pudermos obter ao longo do caminho.
Que as estrelas brilhem profusamente sobre os meus editores, Michael Korda e Chuck Adams, pela sua orientação infalível, edição e encorajamento. Eles são os melhores.
Um milhão de agradecimentos, rapazes.
O supervisor de revisão Gypsy da Silva, a assistente editorial Carol Catt, a revisora de provas Barbara Raynor, as assistentes Carol Bowie e Rebecca Head continuam
a exceder-se na sua generosidade de tempo e preocupação. Abençoados sejam e muito obrigada.
Um tributo agradecido ao meu publicitário, Lisl Cade, sempre um amigo leal, entusiasta e ouvinte atento das minhas ideias.
Glória e gratidão para os meus agentes, Gene Winick e Sam Pinkus, pelos bons conselhos e pelo encorajamento.
Profundos agradecimentos aos meus amigos que tão generosamente partilharam os seus conhecimentos médicos, judiciários e técnicos comigo: o psiquiatra Dr. Richard
Roukema, o psicólogo Dr. Ina Winick, o cirurgião plástico e de reconstrução Dr. Bennett Rothenberg, o advogado criminalista Mickey Sherman, as escritoras Lindy Washburn
e Judith Kelman, a produtora Leigh Ann Winick.
Merci egrazie à minha família por toda a ajuda e apoio ao longo do caminho: os Clarks, Marilyn, Warren e Sharon, David, Carol e Pat; os Conheeneys, John e Debbie,
Barbara, Trish, Nancy e David. Tiro o chapéu aos leitores do meu trabalho em progresso, Agnes Newton, Irene Clark e Nadine Petry.
E, claro, amor e flores para o "Próprio", o meu marido, John Conheeney, que é verdadeiramente um modelo de paciência, solidariedade e inteligência.
Para Marilyn,
a minha filha mais velha,
com amor.
PRÓLOGO
O Estado do Connecticut provará que Molly Carpenter Lasch, com a intenção de provocar a morte do marido, o Dr. Gary Lasch, lhe causou, de facto, a morte; que quando
ele estava sentado à sua secretária, de costas para ela, ela esmagou-lhe o crânio com uma pesada escultura de bronze; que o deixou depois a sangrar até à morte enquanto
subia para o quarto e ia dormir...
Os jornalistas, sentados atrás da arguida, escrevinhavam furiosamente, esboçando os artigos que teriam de terminar em apenas duas horas, se queriam ir a tempo da
próxima edição. Acolunista veterana da Women's News Weekly começou a escrever na sua habitual prosa exuberante: "O julgamento de Molly Carpenter Lasch, acusada do
homicídio do marido, Gary, começou esta manhã na aveludada dignidade da sala de audiências da histórica Stamford, Connecticut."
O julgamento contava com a cobertura de jornalistas de todo o país. O repórter do New York Post registava rapidamente uma descrição da aparência de Molly, referindo
em particular como ela se tinha vestido para o primeiro dia de julgamento. "Que brasa!", pensou. "Uma mistura espantosa de superioridade e beleza." Não era uma combinação
que ele visse muitas vezes especialmente na mesa da defesa. Reparou na forma como ela se sentava, alta, quase aristocrática. Sem dúvida, alguns diriam "desafiadora".
Sabia que ela tinha vinte e seis anos. Podia ver como era elegante. Tinha um pescoço alto e cabelos louro-escuros. Esticou o pescoço até ver que ela continuava a
usar aliança. Anotou esse pormenor.
Enquanto ele observava, Molly Lasch voltou-se e olhou em volta da sala de audiências como se estivesse à procura de rostos conhecidos. Os olhos de ambos encontraram-se
por momentos e ele reparou que os dela eram azuis; e as pestanas compridas e escuras.
O repórter do Observer estava a escrever as suas impressões da arguida e a relatar a evolução do julgamento. Como o seu jornal era semanal, tinha mais tempo para
compor o artigo. "Molly Carpenter
Lasch estaria mais à vontade num clube de campo do que numa sala de audiências", escreveu. Olhou de relance para a coxia, para a família de Gary Lasch.
A sogra de Molly, a viúva do lendário Dr. Jonathan Lasch, estava sentada com a irmã e o irmão. Uma mulher magra, por volta dos sessenta anos, exibia uma expressão
gelada e implacável. "Claramente, se lhe dessem hipótese, ela mergulharia de boa vontade a agulha com a dose letal em Molly", pensou o repórter do Observer.
Virou-se e olhou em volta. Os pais de Molly, um bonito casal no final da casa dos cinquenta, pareciam tensos, ansiosos e desolados. Registou essas palavras no seu
bloco de apontamentos.
Às 10.30, a defesa deu início à sua declaração de abertura.
"O delegado do Ministério Público acabou de vos dizer que provará a culpa de Molly Lasch para além da dúvida razoável. Minhas senhoras e meus senhores, eu afirmo-vos
que as provas mostrarão que Molly Lasch não é uma assassina. De facto, ela é tão vítima desta terrível tragédia como foi o marido.
"Depois de terem ouvido todas as provas deste caso, concluirão que Molly Carpenter Lasch voltou ao princípio da noite de domingo,
8 de Abril último, pouco depois das vinte horas, depois de passar uma semana na sua casa de Cape Cod; que encontrou o marido, Gary, deitado sobre a secretária; que
pousou a boca na dele para tentar ressuscitá-lo, ouviu os seus estertores finais e depois, apercebendo-se de que ele estava morto, subiu para o andar de cima e,
completamente traumatizada, caiu inconsciente na cama."
Calma e atenta, Molly estava sentada à mesa da defesa. "São apenas palavras", pensou, "não podem magoar-me." Tinha consciência dos olhos postos nela, curiosos e
acusadores. Algumas das pessoas que conhecera melhor e há mais tempo tinham-se aproximado dela no corredor, beijando-lhe a face, apertando-lhe a mão. Jenna Whitehall,
a sua melhor amiga desde os tempos do liceu na Academia Cranden, fora uma delas. Agora, Jenna era advogada, especialista em Direito das sociedades. O marido, Cal,
era presidente do Conselho de Administração do Hospital Lasch e da Organização de Cuidados de Saúde que Gary fundara com o Dr. Peter Black.
"Têm sido ambos maravilhosos", pensou Molly. Com necessidade de se afastar de tudo, tinha ficado algumas vezes com Jen em Nova Iorque ao longo dos últimos meses,
e isso ajudara tremendamente. Jenna e Cal continuavam a viver em Greenwich, mas, durante a semana, Jenna dormia frequentemente num apartamento que possuíam em Manhattan,
perto da U. N. Plaza.
Molly também tinha visto Peter Black no corredor. O Dr. Peter Black tinha sido sempre muito agradável com ela, mas, tal como a mãe
de Gary, agora ignorava-a. A amizade entre ele e Gary remontava aos dias da Faculdade de Medicina. Molly perguntou a si mesma se Peter poderia ocupar o lugar de
Gary como presidente do hospital e da OCS. Pouco depois da morte de Gary, ele tinha sido eleito pelo Conselho de Administração para assumir o cargo de director executivo,
com Cal Whitehall como presidente.
Ficou sentada, entorpecida, enquanto o julgamento começava. O delegado do Ministério Público começou a chamar testemunhas. À medida que chegavam e partiam, pareciam
a Molly ser apenas rostos e vozes confusos. Depois, Edna Barry, a mulher gorducha de sessenta anos que tinha sido sua empregada em part-time, sentou-se no banco
das testemunhas.
Entrei às oito horas da manhã de segunda-feira, como sempre declarou ela.
Segunda-feira, dia 9 de Abril?
- Sim.
Há quanto tempo é que trabalhava para Gary e Molly Lasch?
Há quatro anos. Mas já trabalhava para a mãe de Molly quando ela era uma menina. Ela foi sempre muito gentil.
Molly captou o olhar solidário que a Sr.a Barry lançou na sua direcção. "Ela não quer magoar-me", pensou, "mas vai dizer como me encontrou, e sabe como isso vai
soar."
Fiquei surpreendida, porque as luzes estavam acesas no interior da casa estava a dizer a Sr.a Barry. A mala de viagem da Molly estava no átrio, por isso fiquei a
saber que ela tinha voltado do Cape.
Sr.a Barry, por favor, descreva a planta do rés-do-chão da casa.
O átrio é grande... na realidade, é mais uma zona de recepção. Quando davam grandes festas, as bebidas eram servidas ali antes do jantar. A sala de estar fica imediatamente
a seguir ao átrio e de frente para a porta da entrada. A sala de jantar situa-se à esquerda, ao fundo de um largo corredor e a seguir a um bar de serviço. Acozinha
e a saleta íntima situam-se igualmente nessa área, ao passo que a biblioteca e o escritório do Dr. Lasch ficam na ala à direita da entrada.
"Cheguei cedo a casa", pensou Molly. "Não havia muito trânsito na 1-95 e cheguei mais cedo do que esperava. Só trazia uma mala. Levei-a para dentro e pousei-a no
chão. Depois, tranquei a porta e chamei Gary. Fui directamente para o escritório à procura dele."
Entrei na cozinha disse a Sr.a Barry ao delegado do Ministério Público. Havia copos de vinho e uma travessa com restos de queijo e bolachas de água e sal no aparador.
E havia algo de invulgar nisso?
Sim. Sempre que tinham visitas, Molly limpava tudo.
E o Dr. Lasch? perguntou o delegado do Ministério Público. Edna Barry sorriu indulgentemente.
Bem, o senhor sabe como são os homens. Ele não tinha o hábito de arrumar o que desarrumava. Fez uma pausa e franziu o sobrolho. Mas foi então que compreendi que
algo estava errado. Pensei que Molly devia ter chegado e ido embora.
Por que teria ela feito uma coisa dessas?
Molly viu a hesitação no rosto da Sr.a Barry quando a fitou uma vez mais. "A mãe ficava sempre um pouco aborrecida por a Sr.a Barry me chamar Molly e eu lhe chamar
Sr.a Barry. Mas eu não me importava", pensou ela. "Ela conhece-me desde que eu era criança.
Molly não estava em casa quando eu fui trabalhar na sexta-feira. Na segunda-feira anterior, enquanto eu lá estava, ela tinha partido para o Cape. Parecia terrivelmente
transtornada.
Transtornada, como?
A pergunta veio rapidamente e de forma abrupta. Molly estava consciente da hostilidade que o delegado do Ministério Público sentia em relação a si, mas, por algum
motivo, isso não a preocupou.
Ela estava a chorar enquanto fazia a mala e percebi que estava muito zangada. Molly é uma pessoa fácil de levar. É preciso muito para agitá-la. Durante todos os
anos que trabalhei lá, nunca a tinha visto tão perturbada. Ela não parava de dizer: "Como é que ele foi capaz? Como é que foi capaz?" Perguntei-lhe se podia fazer
alguma coisa.
Que é que ela disse?
Disse: "Pode matar o meu marido."
"Pode matar o meu marido."
Eu sabia que ela não estava a falar a sério. Só pensei que deviam ter tido uma discussão e achei que ela ia para o Cape para acalmar.
Ela ia-se embora muitas vezes dessa forma? Fazia as malas e partia?
Bem, Molly gosta do Cape; diz que lá consegue aclarar as ideias. Mas aquilo foi diferente... Eu nunca a tinha visto sair assim, tão perturbada. Olhou para Molly
e o seu olhar estava cheio de piedade.
Muito bem, Sr.a Barry, voltemos àquela segunda-feira de manhã, dia 9 de Abril. Que é que fez depois de constatar o estado em que se encontrava a cozinha?
Fui ver se o Dr. Lasch estava no escritório. A porta estava fechada. Bati e ninguém respondeu. Rodei a maçaneta e reparei que estava peganhenta. Depois abri a porta
e vi-o. A voz de Edna Barry tremeu. Estava caído sobre a cadeira, junto à secretária. Tinha a cabeça cheia de sangue seco. Havia sangue por cima dele, na cadeira
e na carpete. Percebi de imediato que ele estava morto.
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Ao escutar o testemunho da governanta, Molly voltou a pensar naquela noite de domingo. "Cheguei a casa, entrei, tranquei a porta da frente e fui para o escritório.
Tinha a certeza de que Gary estaria lá. A porta estava fechada. Abri-a... Não me recordo do que aconteceu depois disso."
Que fez então, Sr.a Barry? perguntou o delegado do Ministério Público.
Marquei imediatamente o 112. Depois pensei em Molly, que talvez ela estivesse ferida. Subi as escadas a correr para o quarto dela. Quando a vi lá, deitada na cama,
pensei que também estava morta.
Por que é que pensou uma coisa dessas?
Porque ela tinha uma crosta de sangue no rosto. Mas depois ela abriu os olhos, sorriu e disse: "Olá, Sr.a Barry, acho que dormi de mais."
"Olhei para cima", pensou Molly, sentada à mesa da defesa, "e depois percebi que ainda tinha as roupas vestidas. Por instantes, pensei que tinha estado envolvida
num acidente. As minhas roupas estavam sujas e tinha as mãos muito peganhentas. Sentia-me tonta e desorientada e pensei que estava num hospital, não no meu quarto.
Recordo-me de pensar se o Gary também tinha sido ferido. Depois bateram à porta do rés-do-chão e a Polícia entrou."
À sua volta, as pessoas falavam, mas as vozes das testemunhas começaram de novo a esbater-se. Molly estava vagamente consciente dos dias do julgamento a passarem,
de entrar e sair da sala de audiências, de observar as pessoas a sentarem-se e a saírem do banco das testemunhas.
Ouviu Cal e Peter Black e depois Jenna a testemunharem. Cal e Peter contaram como, no domingo à tarde, tinham telefonado a Gary, e dito que iam lá a casa, que tinham
percebido que se passava algo de errado.
Declararam que tinham encontrado Gary terrivelmente perturbado porque Molly tinha descoberto que ele estava a ter um caso amoroso com Annamarie Scalli.
Cal disse que Gary lhe tinha contado que Molly estivera na casa de Cape Cod toda a semana e que se recusava a falar quando ele telefonava, que desligava o telefone
quando ouvia a sua voz.
O delegado do Ministério Público perguntou:
Qual foi a vossa reacção quando o Dr. Lasch confessou ter este caso amoroso?
Cal disse que tinham ficado profundamente preocupados, tanto pelo casamento dos amigos como pelo potencial prejuízo que um escândalo envolvendo o Dr. Lasch e uma
jovem enfermeira representava para o hospital. Gary tinha-lhes garantido que não haveria qualquer escândalo. Annamarie ia sair da cidade. Estava a planear
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dar o bebé para adopção. O advogado dele tinha negociado um acordo de setenta e cinco mil dólares e uma declaração de confidencialidade que ela já tinha assinado.
"Annamarie Scalli", pensou Molly, "aquela jovem enfermeira bonita, de cabelos escuros e um aspecto sensual." Lembrou-se de tê-la conhecido no hospital. Gary estava
apaixonado por ela ou seria apenas um caso sem importância que se tinha descontrolado quando Annamarie ficara grávida? Agora nunca saberia. Havia muitas perguntas
sem respostas. "Gary amava-me realmente?", perguntou a si mesma. "Ou toda a nossa vida era uma farsa?" Abanou a cabeça. Não. Aqueles pensamentos eram demasiado dolorosos.
Em seguida, Jenna sentara-se no banco das testemunhas. "Sei que lhe custa testemunhar", pensou Molly. Mas o delegado do Ministério Público tinha-a intimado e ela
não tinha tido escolha.
Sim declarou Jenna, em voz baixa e hesitante, eu telefonei a Molly, para o Cape, no dia em que Gary morreu. Ela contou-me que o marido tinha estado envolvido com
Annamarie e que ela estava grávida. Molly estava totalmente destroçada.
Ouviu vagamente o que estavam a dizer. O delegado do Ministério Público a perguntar se Molly estava zangada. Jenna a dizer que a amiga estava magoada. E Jenna a
admitir finalmente que Molly estava muito zangada com Gary.
Molly, levante-se. O juiz está a sair.
Philip Matthews, o seu advogado, estava a segurar-lhe o cotovelo, forçando-a a levantar-se. Manteve a mão por baixo do braço dela, apoiando-a, enquanto saíam da
sala de audiências. Lá fora, os clarões dos flashes explodiram-lhe no rosto. Ele fê-la apressar-se pelo meio da multidão, empurrando-a para um carro que os esperava.
Encontramo-nos com a sua mãe e o seu pai em casa disse, enquanto o carro se afastava.
Os pais tinham vindo da Florida para estar com ela. Queriam que ela se mudasse, que saísse da casa onde Gary tinha morrido, mas ela não podia fazer isso. Tinha sido
um presente da avó e ela adorava-a. Por insistência do pai, tinha acedido a, pelo menos, redecorar o escritório. Toda a mobília fora oferecida e o aposento tinha
sido remodelado do chão ao tecto. Os pesados painéis de mogno tinham sido arrancados e a colecção de mobília dos primórdios da América e os objectos de arte de que
Gary tanto gostava haviam sido retirados. Os quadros, esculturas, tapetes, candeeiros a petróleo e a secretária da Wells Fargo, juntamente com o sofá e as cadeiras
de couro, tinham sido substituídos por um sofá de tons claros em chintz, uma cadeira namoradeira a condizer e mesas de carvalho branqueadas. Mesmo assim, a porta
do escritório estava sempre fechada.
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Uma das peças mais valiosas da sua colecção, uma escultura com setenta centímetros de um cavalo e cavaleiro, um bronze Remington original, continuava sob a custódia
do gabinete do delegado do Ministério Público. Era o que diziam que ela utilizara para esmagar a nuca de Gary.
Às vezes, quando tinha a certeza de que os pais estavam a dormir, Molly descia as escadas em silêncio e parava à porta do escritório, a tentar recordar-se de todos
os pormenores do momento em que encontrara Gary.
O momento em que encontrara Gary. Por muito que tentasse, quando pensava naquela noite, não havia um único momento em que se lembrasse de falar com ele ou de se
aproximar dele quando ele estava sentado à secretária. Não se recordava de ter pegado naquela escultura, de agarrar nas patas dianteiras do cavalo e o brandir com
força suficiente para o enterrar no crânio do marido. Mas era o que diziam que ela tinha feito.
Em casa, agora, após outro dia no tribunal, percebeu a preocupação crescente nos rostos dos pais e sentiu a protecção redobrada com que a abraçaram. Ficou rígida
dentro dos seus braços e depois recuou e olhou-os calmamente.
Sim, formavam um bonito casal toda a gente dizia isso. Molly sabia que se parecia com Ann, a mãe. Walter Carpenter, o pai, era muito mais alto do que elas. Agora,
os seus cabelos estavam prateados. Antigamente era louro. Dizia que era a sua costela de viquingue. A avó dele era dinamarquesa.
Tenho a certeza de que todos gostaríamos de uma bebida disse o pai, enquanto se dirigia para o bar.
Molly e a mãe optaram por um copo de vinho, Philip pediu um martini. O pai de Molly entregou-lhe a bebida e perguntou:
Philip, até que ponto foi negativo o testemunho que o Black deu hoje?
Molly percebeu o tom de optimismo forçado na resposta de Philip Matthews:
Creio que poderemos neutralizá-lo quando eu tiver a oportunidade de fazer o contra-interrogatório.
Philip Matthews, um poderoso advogado de defesa de trinta e oito anos, tinha-se tornado uma espécie de estrela da imprensa. O pai de Molly tinha jurado que arranjaria
a Molly o melhor que o dinheiro pudesse comprar, e, por muito novo que fosse, Matthews era o melhor. "Não tinha conseguido a absolvição daquele executivo da televisão,
cuja mulher tinha sido assassinada? "Sim", pensou Molly, "mas não o encontraram coberto com o sangue dela."
Sentiu a obscuridade que lhe toldava a cabeça desanuviar-se um
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pouco, embora soubesse que voltaria. Voltava sempre. Mas naquele momento compreendia o aspecto que tudo aquilo devia ter para as pessoas na sala do tribunal, especialmente
para os jurados.
Quanto tempo mais vai demorar o julgamento? perguntou.
Aproximadamente mais três semanas disse-lhe Matthews.
E depois vou ser considerada culpada disse ela com objectividade. Acha que eu sou culpada? Eu sei que toda a gente pensa que eu o matei por estar tão zangada com
ele. Suspirou pesadamente. Noventa por cento das pessoas pensam que eu estou a mentir quando digo que não me recordo de nada, os outros dez por cento pensam que
não consigo lembrar-me daquela noite porque sou doida.
Consciente de que eles iam atrás dela, percorreu o corredor para o escritório e abriu a porta. A sensação de irrealidade começava a aumentar outra vez.
Talvez o tenha feito disse ela, a voz inexpressiva. Aquela semana no Cape. Recordo-me de passear na praia e de pensar como tudo era injusto. Como, depois de cinco
anos de casamento, de perder o primeiro filho e de querer tanto ter outro, fiquei por fim grávida de novo e abortei aos quatro meses. Lembram-se? Vocês vieram da
Florida, mãe e pai, porque estavam preocupados por eu estar tão infeliz. E, então, apenas um mês depois de ter perdido o meu bebé, peguei no telefone, ouvi a Annamarie
Scalli a falar com Gary e percebi que ela estava grávida de um filho dele. Fiquei tão zangada e tão magoada. Lembro-me de pensar que Deus tinha castigado a pessoa
errada quando tirara o meu bebé.
Ann Carpenter abraçou a filha. Desta vez, Molly não resistiu ao abraço.
Estou tão assustada sussurrou. Estou tão assustada. Philip Matthews deu o braço a Walter Carpenter.
Vamos para a biblioteca disse ele. Acho que é melhor encararmos a realidade. Creio que vamos ter de começar a pensar num acordo.
Molly estava de pé diante do juiz e tentou concentrar-se enquanto o delegado do Ministério Público falava. Philip Matthews tinha-lhe dito que o delegado do Ministério
Público concordara relutantemente em deixá-la declarar-se culpada de homicídio involuntário, o que implicava uma sentença de dez anos de prisão, porque a única fraqueza
do caso era Annamarie Scalli, a amante grávida de Gary Lasch, que ainda não tinha testemunhado. Annamarie tinha dito aos investigadores que estava sozinha em casa
naquele domingo à noite.
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O delegado do Ministério Público sabe que eu vou tentar lançar suspeitas sobre Annamarie explicara-lhe Matthews. Ela também estava amargurada e zangada com Gary.
Podíamos fazer o júri não optar pela pena capital, mas, se fosse condenada, teria de cumprir prisão perpétua. Desta forma, estará cá fora daqui em apenas cinco anos.
Era a sua vez de proferir as palavras que esperavam que dissesse.
Sr. Dr. Juiz, embora não consiga recordar-me daquela noite horrível, reconheço que as provas do Estado são fortes e apontam para mim. Aceito que as provas demonstram
que matei o meu marido. "É um pesadelo", pensou Molly. "Mas daqui a pouco vou acordar e estarei em segurança em casa."
Passados quinze minutos, depois de o juiz ter decretado uma pena de prisão de dez anos, foi levada da sala, algemada, para a carrinha que a transportaria para a
Prisão Niantic, o Centro Feminino de Detenção do Estado.
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Cinco anos e meio depois
Gus Brandt, produtor executivo da NAF Cable Network, ergueu os olhos da secretária, no número 30 da Rockefeller Plaza em Manhattan. Fran Simmons, a quem contratara
recentemente como jornalista de investigação para o noticiário das seis horas e para trabalhos regulares no seu novo e famoso programa Crime Verdadeiro, acabava
de entrar no seu gabinete.
Já se sabe disse ele, excitado. Molly Carpenter Lasch vai sair da prisão em liberdade condicional. Vai ser libertada na próxima semana.
Ela conseguiu a liberdade condicional! exclamou Fran. Fico muito contente.
Não tinha a certeza se te lembrarias do caso. Há seis anos vivias na Califórnia. Sabes muito sobre o assunto?
Na verdade, sei tudo. Não te esqueças de que andei na Academia Cranden, em Greenwich, com a Molly. Durante o julgamento recebi os jornais locais.
Andaste na escola com ela? Isso é bestial. Quero agendar uma história completa da vida dela para a série o mais depressa possível.
Claro. Mas não penses que sou íntima da Molly, Gus avisou Fran. Não lhe ponho a vista em cima desde o Verão em que terminámos o liceu, e isso já foi há catorze anos.
Na altura em que comecei a estudar na Universidade da Califórnia, a minha mãe mudou-se para Santa Barbara e perdi o contacto com praticamente todas as pessoas de
Greenwich.
Na verdade, tinham existido muitos motivos para ela e a mãe se terem mudado para a Califórnia, deixando Connecticut tão para trás quanto a memória permitia. No dia
em que Fran terminara o liceu na Academia, o pai tinha-a levado a ela e à mãe para um jantar de comemoração. No final da refeição tinha brindado ao futuro de Fran
na sua universidade, beijara-as a ambas e depois, dizendo que tinha deixado a carteira no carro, fora ao parque de estacionamento e dera
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um tiro na cabeça. Nos dias seguintes, o motivo do suicídio tornou-se aparente. Uma investigação determinou rapidamente que ele tinha desviado quatrocentos mil dólares
do Fundo para o Edifício da Biblioteca de Greenwich, o qual se tinha oferecido para presidir. Gus Brandt já conhecia aquela história, evidentemente. Tinha falado
no assunto quando fora a Los Angeles oferecer-lhe o emprego na NAF-TV.
Escuta, isso faz parte do passado. Não precisas de te esconder aqui na Califórnia, e, para além disso, vir trabalhar connosco é o passo certo para ti em termos de
carreira dissera ele. Toda a gente que vence nesta profissão tem de andar de um lado para o outro. O nosso noticiário das seis horas está a suplantar as estações
locais, e o programa Crime Verdadeiro está nos Dez Mais do Top de audiências. Para além disso, admite: sentiste a falta de Nova Iorque.
Fran quase esperara que ele citasse a velha máxima de que fora de Nova Iorque tudo é Bridgeport, mas ele não tinha ido tão longe. Com cabelos grisalhos e ombros
curvados, Gus aparentava cada segundo dos seus cinquenta e cinco anos, e o seu semblante tinha permanentemente a expressão de alguém que tinha acabado de perder
o último autocarro numa noite de nevão.
Porém, esse ar era enganador e Fran sabía-o. De facto, ele tinha uma mente afiada como uma navalha, um currículo provado na criação de novos programas e um faro
competitivo inigualável na indústria do audiovisual. Praticamente sem pensar, tinha aceitado o emprego. Trabalhar para Gus significava andar na via rápida.
Nunca tiveste notícias nem contactos com Molly depois de terminarem o liceu? perguntou ele.
Não. Escrevi-lhe na altura do julgamento a oferecer a minha solidariedade e apoio, e recebi uma carta do advogado dela a dizer que, embora apreciasse a minha preocupação,
ela não se corresponderia com ninguém. Isso foi há mais de cinco anos e meio.
Como era ela? Quando era jovem, quero eu dizer.
Fran colocou uma madeixa de cabelos castanho-claros atrás da orelha num gesto inconsciente que indicava que estava a concentrar-se. Uma imagem passou-lhe pela mente,
e por um instante viu Molly como ela era aos dezasseis anos, na Academia Cranden.
Molly foi sempre especial disse alguns instantes depois. Já viste fotografias dela. Foi sempre uma beldade. Mesmo quando todas nós não passávamos de adolescentes
desajeitadas ela já voltava cabeças. Tinha uns olhos azuis incríveis, quase iridescentes, a somar a uma compleição pela qual as modelos matariam e cabelos loiros
e brilhantes. Mas o que mais me impressionava é que estava sempre muito composta. Recordo-me de pensar que se ela conhecesse o papa e a rainha de Inglaterra na mesma
festa, saberia como dirigir-se
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a cada um deles e por que ordem. E, no entanto, a parte engraçada é que suspeitei sempre de que, no íntimo, ela era tímida. Apesar da compostura notável havia algo
hesitante nela. Como se fosse um pássaro muito belo poisado na ponta de um ramo, equilibrado mas pronto para levantar voo a todo o momento.
"Deslizava pela sala", pensou Fran, recordando-se de a ver uma vez num elegante vestido de cerimónia. Parecia ainda mais alta do que o seu metro e oitenta, por ter
um porte tão fantástico.
Até que ponto é que vocês eram amigas? inquiriu Gus.
Oh, na verdade, eu não estava na órbita dela. Molly fazia parte do grupo do clube de campo dos endinheirados. Eu era uma boa atleta e concentrava-me mais no desporto
do que nas actividades sociais. Posso garantir-te que o meu telefone nunca estava desligado à sexta-feira à noite.
Como a minha mãe diria, cresceste bem disse Gus, secamente.
"Eu nunca me senti à-vontade na academia", pensou Fran. "Existem muitas famílias de classe média em Greenwich, mas a classe média não era suficientemente boa para
o pai. Ele estava sempre a tentar relacionar-se com as pessoas ricas. Queria que eu fosse amiga das raparigas de famílias ricas ou influentes."
Para além da aparência, como era a Molly?
Era um amor disse Fran. Quando o meu pai morreu e se soube o que ele tinha feito, o desfalque, o suicídio e tudo, eu comecei a evitar toda a gente. Molly sabia que
eu corria todos os dias e uma manhã cedo estava à minha espera. Disse que só queria fazer-me companhia durante algum tempo. Como o pai dela era uma das pessoas que
mais contribuía para o fundo da biblioteca, podes imaginar o que a demonstração de amizade dela significou para mim.
Não tinhas motivo para te envergonhares por causa do que o teu pai fez atirou Gus.
O tom de Fran tornou-se crispado.
Eu não tinha vergonha dele. Só sentia imensa pena... E também estava zangada, acho eu. Por que é que ele pensava que a minha mãe e eu precisávamos de coisas? Depois
de ele morrer, apercebemo-nos de como devia ter estado agitado nos dias anteriores, porque se preparavam para fazer uma auditoria aos livros de contabilidade dos
fundos da biblioteca e sabia que seria desmascarado. Fez uma pausa e depois acrescentou suavemente: Ele estava errado quando fez tudo aquilo, é claro. Errado ao
ter tirado o dinheiro e errado ao pensar que precisávamos dele. Ele também era fraco. Percebo agora até que ponto era terrivelmente inseguro. Mas, ao mesmo tempo,
era um homem extremamente agradável.
O Dr. Lasch também. E também era um bom administrador.
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O Hospital Lasch tem uma reputação de primeira classe e a Remington Health Management não é como tantas OCS incríveis que vão à falência e deixam pacientes e médicos
de mãos a abanar. Gus sorriu fugazmente. Tu conhecias Molly e andaste na escola com ela, e isso dá-te alguma visão das coisas. Achas que ela o matou?
Não está em dúvida se matou disse Fran sem hesitar. As provas contra ela eram avassaladoras e já fiz a cobertura de julgamentos de homicídio suficientes para compreender
que é muito improvável as pessoas arruinarem as suas vidas perdendo o controlo naquela fracção de segundo. No entanto, a menos que a Molly tenha mudado drasticamente
depois da época em que me relacionei com ela, seria a última pessoa no mundo que eu teria considerado capaz de matar alguém. Mas, precisamente por essa razão, posso
compreender por que é que teria bloqueado tudo da memória.
É por isso que este caso é bestial para o programa disse Gus. Começa a trabalhar nele. Quando Molly Lasch sair da Prisão Niantic na próxima semana, quero que faças
parte do comité de recepção que lhe dará as boas-vindas.
Uma semana mais tarde, num agreste dia de Março, com o colarinho da gabardina voltado para cima para tapar o pescoço, de mãos enfiadas nos bolsos e os cabelos cobertos
pelo seu chapéu de esqui preferido, Fran esperou no meio do grupo de jornalistas amontoados junto ao portão da prisão. O seu operador de câmara, Ed Ahearn, estava
ao seu lado.
Como sempre, havia resmungos; hoje era por causa da hora matinal e do tempo saraiva cortante, impelida por rajadas de vento gelado. Previsivelmente, havia também
um reavivar do caso que há cinco anos e meio enchera as páginas dos jornais de todo o país.
Fran já tinha gravado diversas reportagens com a prisão em segundo plano.
Mais cedo, naquela manhã, tinha feito uma reportagem em directo, e enquanto a estação transmitia imagens de arquivo como suporte à sua voz, anunciou:
Estamos à espera junto ao portão da Prisão Niantic, no Estado do Connecticut, a apenas alguns quilómetros da fronteira com Rhode Island. Molly Carpenter Lasch sairá
dentro de alguns momentos,
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após ter passado cinco anos e meio atrás das grades por se declarar culpada do homicídio involuntário do marido, Gary Lasch.
Agora, à espera de que Molly aparecesse, escutava as opiniões das outras pessoas que se encontravam junto de si. O consenso era de que Molly era culpada como o diabo
e que tinha tido muita sorte por ter saído apenas ao fim de cinco anos e meio; e quem pensava ela enganar ao dizer que não conseguia recordar-se de ter esmagado
o crânio do pobre homem?
Fran alertou a sala de controlo quando viu um carro azul-escuro emergir nas traseiras do edifício principal da prisão.
O carro de Philip Matthews está a começar a afastar-se disse ela. O advogado de Molly tinha chegado cerca de meia hora antes para a levar.
Ahearn ligou a câmara.
Os outros também tinham visto.
Aposto que estamos a perder o nosso tempo comentou o repórter do Post. Dez para um em como no momento em que aquele portão se abrir eles vão sair a toda a velocidade.
Eia, esperem um minuto!
Fran falou calmamente para o seu microfone.
O carro que leva Molly Carpenter Lasch para a liberdade acaba de iniciar a sua viagem. Depois, ficou assombrada ao avistar a elegante figura que caminhava ao lado
do carro azul-escuro. Charley disse para o apresentador do noticiário da manhã, Molly Lasch não está no carro, mas a caminhar ao lado dele. Aposto que vai fazer
uma declaração.
Holofotes fortes acenderam-se, fita rolou, microfones e câmaras de filmar foram empurrados uns contra os outros enquanto Molly Carpenter Lasch chegava ao portão,
parava e ficava à espera de que este fosse aberto. "Tem a expressão de uma criança que vê um brinquedo mecânico a funcionar pela primeira vez", pensou Fran.
É como se Molly não conseguisse acreditar no que está a ver declarou ela. Molly saiu para a rua e foi imediatamente rodeada. Os jornalistas empurraram-na enquanto
lhe gritavam perguntas. "Qual é a sensação? Alguma vez pensou que este dia chegaría? Vai visitar a família do Gary?Acha que alguma vez recordará o que aconteceu
naquela noite?"
Como os outros, Fran ergueu o microfone, mas manteve-se deliberadamente de lado. Tinha a certeza de que qualquer hipótese que pudesse ter de uma entrevista no futuro
ficaria arruinada se Molly a visse agora como o inimigo.
Molly levantou a mão num sinal de protesto.
Por favor, deixem-me falar disse, rapidamente.
"Está tão pálida e magra", pensou Fran. "Parece que esteve
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doente. Está diferente, e não é apenas por estar mais velha." Fran estudou a aparência dela à procura de pistas. Os cabelos em tempos dourados estavam agora tão
escuros como as sobrancelhas e as pestanas. Mais compridos do que Molly usava na escola, estavam apanhados num gancho na nuca. A compleição clara era naquela manhã
da tonalidade do alabastro. Os lábios de sorriso fácil de que Fran se lembrava estavam agora direitos e sombrios, como se não sorrissem há muito tempo.
As perguntas que lhe estavam a ser gritadas foram parando gradualmente até, por fim, se fazer silêncio.
Philip Matthews tinha saído do carro e estava ao lado dela.
Não faças isso, Molly. A comissão de liberdade condicional não vai gostar... disse ele, mas ela ignorou-o.
Fran observou o advogado com interesse. "Esta geração é F. Lee Bailey", pensou. "Como será ele?" Matthews era um homem de estatura mediana, cabelos cor de areia,
rosto magro, intenso. Passou-lhe pela mente a imagem de um tigre a proteger a sua cria. Apercebeu-se de que não teria ficado surpreendida se ele tivesse arrastado
fisicamente Molly para o carro.
Molly cortou-lhe a palavra.
Não tenho alternativa, Philip.
Olhou directamente para as câmaras e falou com clareza para os microfones.
Estou satisfeita por voltar para casa. Para garantir a liberdade condicional, tive de admitir que era a única responsável pela morte do meu marido. Admiti que as
provas eram avassaladoras. E embora tenha declarado isso, digo-vos agora que, apesar das provas, no fundo da minha alma sinto que sou incapaz de tirar a vida a outro
ser humano. Sei que a minha inocência talvez nunca seja provada, mas espero que, quando estiver em casa e houver alguma calma na minha vida, talvez então a recordação
completa daquela noite terrível possa voltar. Até que isso aconteça, nunca terei paz nem poderei começar a reconstruir a minha vida.
Fez uma pausa. Quando falou de novo, a sua voz tinha-se tornado mais firme.
Quando, por fim, comecei a lembrar-me daquela noite, mesmo que apenas parcialmente, o que recordei foi ter encontrado Gary a morrer no escritório. Há pouco tempo,
ocorreu-me outra impressão distinta daquela noite. Acredito que havia mais alguém naquela casa quando eu cheguei, e acredito que essa pessoa matou o meu marido.
Não acredito que essa pessoa seja uma invenção da minha imaginação. Essa pessoa é de carne e osso e vou descobri-la e obrigá-la a pagar por ter tirado a vida a Gary
e ter destruído a minha.
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Ignorando as perguntas gritadas na sequência da sua declaração, Molly voltou-se e entrou no carro. Matthews fechou a porta, deu rapidamente a volta e entrou para
o banco do condutor. Molly encostou a cabeça para trás e fechou os olhos enquanto Matthews, com a mão pousada na buzina, conduziu lentamente o carro pelo meio da
multidão de jornalistas e fotógrafos.
Aí tens, Charley disse Fran para o microfone. A declaração de Molly, um protesto de inocência.
Uma declaração surpreendente, Fran replicou o apresentador. Vamos seguir este caso de perto para ver o que acontece. Obrigado.
Muito bem, Fran, terminaste disseram-lhe da sala de controlo.
Que é que te pareceu aquele discurso, Fran? perguntou Joe Hutnik, um repórter de crime veterano do Greenwich Time.
Antes de Fran poder responder, Paul Reilly, do Observer, troçou:
Aquela senhora não é nada parva. Provavelmente, está a pensar no contrato para o livro. Ninguém quer que uma assassina lucre com um crime, mesmo de uma forma legal,
e os corações partidos vão adorar acreditar que outra pessoa matou Gary Lasch e que Molly também é uma vítima.
Joe Hutnik ergueu uma sobrancelha.
Talvez sim, talvez não, mas, na minha opinião, o próximo tipo que casar com Molly Lasch deve ter cuidado para não lhe voltar as costas quando ela se aborrecer com
ele. Que é que me dizes, Fran?
Os olhos de Fran estreitaram-se em sinal de irritação ao olhar para os dois homens.
Sem comentários retorquiu, rispidamente.
Enquanto se afastavam da prisão, Molly observou os sinais da estrada. Por fim, deixaram a Merritt Parkway na saída de Lake Avenue. "É tudo conhecido, claro, mas
não me lembro bem da viagem para a prisão", pensou. "Só me lembro do peso das correntes e de que as algemas se enterravam nos meus pulsos." Agora, sentada no carro,
olhou em frente e sentiu, mais do que viu, os olhares de soslaio que Philip Matthews lhe lançava.
Respondeu à pergunta que ele não fez.
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Sinto-me esquisita disse, lentamente. Não, "vazia" é uma palavra melhor.
Já te disse isto antes: foi um erro teres mantido a casa e um erro ainda maior voltares para lá disse ele. E também é um erro não deixares os teus pais virem ter
contigo agora.
Molly continuou a olhar em frente. A saraiva estava a começar a cobrir o vidro da frente mais depressa do que os limpa-pára-brisas conseguiam retirá-la.
Tudo o que eu disse àqueles repórteres foi a sério. Sinto que, agora que tudo isto terminou, se eu passar a viver lá em casa novamente posso recuperar a memória
de todos os pormenores daquela noite. Eu não matei Gary, Philip... não o posso ter feito. Sei que os psiquiatras pensam que estou a negar o que aconteceu, mas tenho
a certeza de que estão enganados. No entanto, mesmo que se prove que eles têm razão, encontrarei uma forma de viver com isso. Não saber é o pior.
Supõe que a tua memória está certa, Molly, que encontraste Gary ferido e a sangrar. Que ficaste em estado de choque e que a tua memória daquela noite acabará por
voltar, mais cedo ou mais tarde. Tens noção de que, se estiveres certa e te lembrares, então, tornas-te uma ameaça para a pessoa que o matou? E que o assassino pode
estar neste preciso momento a considerar-te uma ameaça muito real, uma vez que anunciaste que pensas que em casa poderás recordar mais acerca de outra pessoa ter
lá estado naquela noite?
Ela manteve-se em silêncio durante alguns momentos. "Por que é que pensas que disse aos meus pais para ficarem na Florida?", pensou Molly. "Se estiver enganada,
ninguém me incomodará. Se estiver certa, então, vou deixar a porta bem aberta para o verdadeiro assassino vir atrás de mim."
Olhou de soslaio para Matthews.
Quando eu era pequena, o meu pai levou-me para caçar patos, Philip disse ela. Eu não gostei nem um pouco. Era cedo e estava frio e a chover, e eu não parava de pensar
que preferia estar em casa, na cama. Mas, nessa manhã, aprendi uma coisa. Um isco dá resultado. Sabes, tu, como todas as pessoas no mundo, acreditam que eu matei
Gary num momento de loucura. E não negues que é isso que pensas. Ouvi-te a conversar com o meu pai sobre o facto de quase não teres esperança de conseguir uma absolvição,
sugerindo que a Annamarie Scalli tinha cometido o crime. Disseste que eu tinha uma boa hipótese de obter a condenação por homicídio involuntário por paixão/provocação
porque, provavelmente, o júri acreditaria que eu tinha matado Gary num acesso de raiva. Mas também disseste que não havia garantias de que não seria uma condenação
por homicídio
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premeditado, e que, se o delegado do Ministério Público aceitasse, o melhor era fazer um acordo de homicídio involuntário. Falaram sobre isso, não falaram?
- Sim - admitiu Matthews.
- Então, se eu matei Gary, tenho muita sorte em ter-me safado tão facilmente. E se tu e toda a gente no mundo, incluindo os meus pais, estiverem certos, eu estou
absolutamente a salvo quando digo que posso ter sentido outra presença na casa na noite em que Gary morreu. Como vocês não acreditam que estava lá outra pessoa,
não pensam que alguém possa vir atrás de mim. Está correcto, não está?
Está, sim disse ele, relutantemente.
Então, ninguém tem de se preocupar comigo. Se, por outro lado, eu estiver certa e assustar alguém o suficiente, isso pode custar-me a vida. E, quer acredites quer
não, eugostava que isso acontecesse. Porque, se eu aparecer assassinada, talvez alguém inicie uma investigação que não presuma automaticamente que eu matei o meu
marido.
Philip Matthews não respondeu.
É verdade, não é, Philip? perguntou Molly, num tom quase alegre. Se eu morrer, então, talvez alguém analise bem o homicídio de Gary e encontre o verdadeiro assassino.
"É bom estar de volta a Nova Iorque", pensou Fran, enquanto olhava do seu gabinete para o Centro Rockefeller. A manhã gelada e fustigada pela saraiva dera lugar
a uma tarde fria e cinzenta, mas, mesmo assim, adorou o que estava a ver, adorou contemplar os patinadores vestidos de cores claras, alguns muito elegantes, outros
quase incapazes de se manterem direitos. "A mistura peculiar dos dotados e dos esforçados", pensou. Depois, olhando para lá do ringue de patinadores até o Saks,
constatou como as montras das lojas da Quinta Avenida iluminavam a tristeza de Março.
As multidões que às cinco horas saíam dos edifícios de escritórios eram uma garantia de que, ao fim do dia, os nova-iorquinos, como as pessoas em todo o mundo, se
apressavam a ir para casa.
"Também estou pronta para ir para casa", decidiu ela, e pegou no casaco. "Foi um dia comprido e ainda não terminou." Tinha sido convocada para estar no ar às 18.40,
para fazer uma reportagem
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actualizada sobre a libertação de Molly Lasch da prisão. Depois disso, podia ir para casa. Já amava o seu apartamento na esquina da Segunda Avenida com a Rua Cinquenta
e Seis, com uma bela panorâmica sobre os arranha-céus do centro da cidade e o East River. Mas voltar para as caixas e cestos ainda por abrir era desanimador, pois
sabia que mais cedo ou mais tarde teria de arrumar tudo.
"Pelo menos, o seu gabinete estava em ordem", pensou com algum consolo. Os livros estavam desempacotados e arrumados nas prateleiras atrás da secretária. As suas
plantas quebravam a monotonia da mobília vulgar do gabinete que lhe tinha sido atribuído. As insípidas paredes beges tinham sido avivadas com reproduções coloridas
de quadros impressionistas.
Depois de ela e Ed Ahearn terem chegado ao escritório naquela manhã, ela fora ver Gus Brandt.
Vou deixar passar uma ou duas semanas, e depois tento marcar uma entrevista com Molly explicara, depois de ter discutido com ele a inesperada declaração de Molly
Lasch à imprensa.
Gus mastigava vigorosamente a pastilha de nicotina que não lhe dava alívio absolutamente nenhum na campanha pessoal antifumo.
Quais são as probabilidades de ela se abrir contigo? perguntara.
Não sei. Mantive-me afastada quando Molly fez a declaração, mas tenho quase a certeza de que ela me viu. Se me reconheceu ou não é uma coisa completamente diferente.
Seria bestial se conseguisse a colaboração dela na história. Se não, teremos de trabalhar sem a sua autorização.
Que é que pensaste daquela declaração?
Pessoalmente, diria que Molly foi muito convincente quando sugeriu que estava mais alguém na casa naquela noite, mas penso que está a dar um tiro no escuro disse
Fran. Claro que algumas pessoas vão acreditar nela, e talvez a sua verdadeira necessidade seja criar esse sentimento de dúvida. Ela vai falar comigo? Não sei, simplesmente.
"Mas posso esperar que sim", pensou Fran, relembrando aquela conversa enquanto percorria apressadamente o corredor para a sala de maquilhagem.
Cara, a maquilhadora, colocou-lhe uma capa à volta do pescoço. Betts, a cabeleireira, rolou os olhos.
Francamente, Fran. Esta noite dormiste com o teu gorro de esqui?
Fran sorriu.
Não. Só o usei esta manhã. Façam um milagre, vocês as duas. Enquanto Cara aplicava uma base e Betts ligava o ferro de
encaracolar, Fran fechou os olhos e pensou na frase de abertura: "Esta
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manhã, às 7.30, as portas da Prisão Niantic abriram-se e Molly Carpenter Lasch desceu a rua para fazer uma curta mas surpreendente declaração à imprensa."
Cara e Betts trabalharam à velocidade da luz e alguns minutos depois Fran estava pronta para enfrentar as câmaras.
Uma nova eu confirmou ela, enquanto se estudava ao espelho. Conseguiram novamente.
Tu tens tudo, Fran. A única coisa que acontece é que a tua cor é monocromática disse-lhe Cara, pacientemente. Precisa de acentuação.
"Acentuação", pensou Fran. "Isso é a última coisa que eu sempre quis. Eu fui sempre acentuada. A miúda mais baixa do jardim infantil. A miúda mais baixa do oitavo
ano. O piolho." Por fim, tinha crescido de repente, durante o primeiro ano em Cranden, e conseguira chegar a um respeitável metro e sessenta e cinco.
Cara estava a tirar a capa.
Estás linda! anunciou. Arrasa-os.
Tom Ryan, um apresentador maduro, e Lee Manners, uma rapariga extremamente atraente que tinha começado por apresentar a meteorologia, eram os pivots do noticiário
das seis horas. No fim do programa, depois de terem tirado os microfones e de se terem levantado, Ryan comentou:
Boa peça sobre a Molly Lasch, Fran.
Telefonema para ti, Fran. Atende na quatro disse uma voz da sala de controlo.
Para surpresa de Fran, era Molly Lasch.
Fran, bem me parecia que te tinha reconhecido na prisão, esta manhã. Ainda bem que eras tu. Obrigada pela reportagem que acabaste de fazer. Pelo menos, pareces não
ter ideias preconcebidas em relação à morte de Gary.
Bem, certamente eu quero acreditar em ti, Molly. Fran apercebeu-se de que tinha os dedos cruzados.
A voz de Molly Lasch ficou hesitante.
Será que estarias interessada em investigar a morte de Gary? Em troca, eu estaria disposta a deixar-te usar-me num dos programas informativos da tua estação. O meu
advogado disse-me que praticamente todas as estações ligaram, mas eu preferia ser entrevistada por uma pessoa que conheço e em quem sinto poder confiar.
Podes apostar que estou interessada, Molly disse Fran. Na verdade, estava a pensar telefonar-te exactamente para isso.
Combinaram encontrar-se na manhã seguinte, na casa de Molly, em Greenwich. Quando Fran pousou o auscultador, ergueu as sobrancelhas para Tom Ryan.
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Reunião de turma amanhã disse. Isto deve ser interessante.
A sede da Remington Health Management Organization situava-se no recinto do Lasch Hospital, em Greenwich. O director executivo, o Dr. Peter Black, chegava sempre
ao seu gabinete às sete horas da manhã em ponto. Dizia que as duas horas de trabalho antes de os funcionários chegarem eram as mais produtivas do dia.
Incaracteristicamente, naquela manhã de terça-feira, Black tinha ligado a televisão na NAF.
A sua secretária, que já estava com ele há anos, dissera-lhe que Fran Simmons tinha começado a trabalhar para a estação e recordara-lhe de quem se tratava. Mesmo
assim, tinha sido uma surpresa ver que ela era a jornalista que estava a cobrir a libertação de Molly da prisão. O suicídio do pai de Fran tinha ocorrido apenas
semanas depois de Black ter aceite a oferta de Gary Lasch para trabalhar no hospital, e durante muitos meses o escândalo tinha sido a grande história da cidade.
Duvidava de que alguém que tivesse vivido em Greenwich na época se tivesse esquecido.
Naquela manhã, Peter Black estava a assistir ao noticiário porque queria ver a viúva do antigo sócio.
Olhares frequentes para o ecrã, para se certificar de que não perdia o segmento que esperava, tinham-no finalmente forçado a pousar a caneta e a tirar os óculos
para ler. Black tinha uma profusa cabeleira de cabelos castanho-escuros, prematuramente grisalha nas têmporas, grandes olhos cinzentos, e transmitia uma imagem amistosa
que os membros recém-contratados do seu pessoal achavam tranquilizadora até cometerem o sério erro de se atravessarem no seu caminho.
Às 7.32, teve início o acontecimento de que estava à espera. Com um olhar sombrio, observou Molly a caminhar ao lado do carro do advogado para o portão da prisão.
Quando ela falou para os microfones, puxou a cadeira para mais perto do aparelho e inclinou-se para a frente, para perceber todos os cambiantes da sua voz e expressão.
Logo que ela começou a falar, aumentou o volume do televisor, embora conseguisse ouvir perfeitamente as palavras. Depois de ela terminar, recostou-se na cadeira
e cruzou as mãos. Passados alguns momentos, pegou no telefone e marcou um número.
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- Residência Whitehall.
O leve sotaque inglês da criada irritava sempre Black.
- Passe-me o Dr. Whitehall, Rita. Não disse o seu nome deliberadamente, mas não havia necessidade de o fazer, ela conhecia a voz. Ouviu o auscultador a ser levantado.
Calvin Whitehall não perdeu tempo com cumprimentos.
Eu vi. Pelo menos, ela é consistente quando nega que matou
Gary.
Não é isso que me preocupa.
Eu sei. Também não me agrada ver a Simmons na história. Se for necessário, tratamos do assunto disse Whitehall, e depois fez uma pausa. Encontramo-nos às dez horas.
Peter Black desligou sem se despedir. A perspectiva de algo correr mal perseguiu-o durante o resto do dia, enquanto participava numa série de reuniões de alto nível
sobre a possível aquisição de quatro outras OCS pela Remington, um negócio que transformaria a empresa num dos maiores jogadores no ramo notavelmente lucrativo dos
cuidados de saúde.
J.
Philip Matthews levou Molly a casa depois de esta sair da prisão. Queria entrar, mas ela não o permitira.
Por favor, Philip, deixa a minha mala à porta pedira ela. Depois, acrescentara secamente: Conheces aquela velha deixa da Greta Garbo: "Quero ficar sozinha"? Bom,
é isso mesmo que quero.
Parecia magra e frágil, parada no alpendre da bonita casa que partilhara com Gary Lasch. Nos dois anos que se tinham seguido à inevitável separação da mulher, que
já voltara até a casar, Philip Matthews tinha começado a perceber que as suas visitas à Prisão Niantic se haviam tornado talvez mais frequentes do que era profissionalmente
necessário.
Pediste a alguém que te fizesse as compras, Molly? perguntara ele. Quero dizer, tens alguma comida em casa?
A Sr.a Barry ficou de tratar disso.
A Sr.a Barry! Percebeu que a sua voz tinha subido dois decibéis. Que é que ela tem a ver com isto?
Vai começar a trabalhar para mim novamente dissera-lhe Molly. O casal que esteve a tomar conta da casa já se foi embora.
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Logo que souberam que ia sair, os meus pais entraram em contacto com a Sr.a Barry e ela veio, tratou da limpeza da casa e abasteceu a cozinha. Vai começar a vir
cá novamente três vezes por semana.
Aquela mulher ajudou a pôr-te na prisão!
Não, ela disse a verdade.
Durante o resto do dia, mesmo quando estava em conferências com o delegado do Ministério Público por causa do seu mais novo cliente, um importante agente imobiliário
acusado de atropelamento mortal, Philip não conseguiu afastar a sensação de apreensão crescente por saber que Molly estava sozinha naquela casa.
Às sete horas da tarde, enquanto se preparava para sair e pensava se devia ou não ligar a Molly, o telefone tocou. A sua secretária já tinha saído. Deixou-o tocar
diversas vezes antes de a curiosidade suplantar a inclinação inicial para deixar a chamada passar para o atendedor.
Era Molly.
Boas notícias, Philip. Lembras-te de eu te dizer que a Fran Simmons, que esteve na prisão esta manhã, andou na escola comigo?
Lembro, sim. Estás bem, Molly? Precisas de alguma coisa?
Estou óptima. Fran Simmons vem cá a casa amanhã, Philip. Está disposta a fazer uma investigação da morte de Gary para um programa em que trabalha chamado Crime Verdadeiro.
Não seria maravilhoso se, por milagre, ela pudesse ajudar a provar que estava outra pessoa cá em casa naquela noite?
Esquece isso, Molly. Por favor.
Seguiu-se um momento de silêncio. Quando Molly falou de novo, o seu tom de voz tinha mudado.
Sei que não devia ter esperado que compreendesses. Mas não faz mal. Adeus.
Philip Matthews sentiu o clique no seu ouvido. Enquanto pousava o auscultador, lembrou-se de como, anos antes, um comandante tinha colaborado com um escritor que
achava que poderia provar que ele era inocente do homicídio da mulher e dos filhos, apenas para ver mais tarde esse escritor aparecer como o seu principal acusador.
Dirigiu-se para a janela. O seu escritório situava-se no Battery Park, na baixa de Manhattan, e abria-se sobre a Upper Bay de Nova Iorque e a estátua da Liberdade.
"Se eu estivesse a acusar-te, Molly, ter-te-ia condenado por homicídio premeditado", disse para si mesmo. "Se essa jornalista começar a esgravatar, este programa
vai destruir-te; o que ela vai descobrir é que te safaste com muita facilidade.
Oh, Céus", pensou, "por que é que ela não pode simplesmente admitir que estava sob uma tensão terrível e que perdeu o controlo naquela noite?"
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Molly quase não conseguia acreditar que finalmente estava em casa e foi ainda mais difícil convencer-se de que tinha estado fora mais de cinco anos e meio. Depois
de chegar, tinha esperado até o carro de Philip desaparecer na estrada antes de abrir a bolsa, tirar a chave e abrir a porta de casa.
A porta principal era de um bonito mogno escuro com um painel lateral de vitral. Uma vez no interior, deixou cair a mala, fechou a porta e, num gesto reflexo, carregou
no ferrolho com o calcanhar. Depois percorreu lentamente todos os aposentos da casa, passando a mão pelas costas do sofá da sala de estar, tocando no serviço de
chá de prata ornamentada que a avó lhe deixara e que se encontrava na sala de jantar, enquanto se forçava a não pensar no refeitório da prisão, nos pratos toscos,
nas refeições que eram como cinzas na sua boca. Tudo parecia familiar; e, no entanto, não conseguia deixar de se ver como uma intrusa.
Parou à porta do escritório, a olhar lá para dentro, ainda surpreendida por não estar exactamente como Gary o tinha conhecido, com os seus painéis de mogno e mobiliário
grande de mais, e os artefactos que ele tinha adquirido tão meticulosamente. O sofá de chintz e a cadeira namoradeira pareciam deslocados, intrusos, demasiado femininos.
Depois fez aquilo que sonhava fazer há cinco anos e meio. Subiu as escadas para o quarto principal, despiu-se, foi buscar ao roupeiro o roupão de lã que adorava,
entrou na casa de banho e abriu as torneiras da banheira de hidromassagem.
Deixou-se ficar na água quente e perfumada enquanto esta se enchia de espuma e rodopiava à sua volta, lavando-lhe a pele até se sentir novamente limpa. Suspirou
de alívio quando a tensão começou a libertar-se dos seus ossos e músculos. Depois tirou uma toalha do toalheiro aquecido e enrolou-se nela, deliciada com o seu calor.
Em seguida, correu as cortinas e foi para a cama. Deitada, fechou os olhos, ficando a ouvir o bater insistente da saraiva nas janelas; adormeceu gradualmente, recordando-se
de todas as noites em que prometera a si mesma que aquele momento chegaria, o momento em que estaria uma vez mais na privacidade do seu quarto, sob o quente edredão,
com a cabeça afundada na almofada macia.
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Quando acordou, a tarde estava a chegar ao fim. Vestiu imediatamente o roupão, calçou os chinelos e desceu para a cozinha. "Agora, chá e torradas", pensou. "Assim,
vou ficar sem fome até ao jantar."
De caneca fumegante na mão, fez o telefonema prometido para os pais.
Estou bem disse com firmeza. Sim, é bom estar em casa. Não, sinceramente preciso de ficar algum tempo sozinha. Não demasiado tempo, mas algum. Depois escutou as
mensagens no atendedor de chamadas. Jenna Whitehall, a sua melhor amiga, a única pessoa para além dos pais e de Philip a quem tinha dado autorização para a visitar
na prisão, tinha deixado uma mensagem. Disse que queria passar lá por casa nessa noite, apenas para lhe dar as boas-vindas. Pedia a Molly que lhe telefonasse para
dizer se podia ser.
"Não", pensou Molly. "Esta noite, não. Não quero ver ninguém, nem sequer Jenna."
Assistiu ao noticiário das seis horas na N AF, na esperança de ver Fran Simmons.
Quando o programa terminou, telefonou para o escritório e falou com ela, pedindo-lhe que a usasse como tema para uma investigação especial.
Em seguida, telefonou para Philip. A sua desaprovação óbvia era exactamente o que ela sabia que devia esperar, e tentou não deixar que isso a aborrecesse.
Depois de conversar com ele, foi para o andar de cima, vestiu uma camisola e umas calças largas, e enfiou os pés nos chinelos velhos. Ficou sentada ao toucador durante
alguns minutos, a observar o seu reflexo no espelho. Tinha os cabelos demasiado compridos; precisavam de um corte. "Deveria aclará-los um pouco?", interrogou-se.
Antigamente eram louros, mas nos últimos anos tinham escurecido. Gary costumava dizer, em tom de brincadeira, que os seus cabelos louros eram tão dourados que metade
das mulheres na cidade tinham a certeza de que ela lhes dava uma ajuda para se manterem com essa cor.
Empurrou o banco para trás e entrou no quarto de vestir. Durante a hora seguinte examinou sistematicamente tudo o que lá havia, colocando de lado as roupas que sabia
que nunca mais voltaria a vestir. Alguns fatos fizeram-na sorrir inconscientemente, como o vestido e casaco dourados que usara na passagem de Ano no clube de campo
naquele último ano, e o fato de veludo preto que Gary tinha visto na montra do Bergdorf s e insistira que ela experimentasse.
Quando soubera que ia ser libertada da prisão, tinha mandado uma lista de compras à Sr.a Barry. Às oito horas, desceu novamente
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e começou a preparar o jantar que tinha planeado e já desejava há semanas: uma salada verde com molho de vinagre balsâmico; pão italiano tostado, aquecido no forno;
um molho de tomate leve que ela fez rapidamente, servido sobre linguine cozinhado al dente; um copo de Chianti Riservo.
Com o jantar pronto, sentou-se à mesa do pequeno-almoço, num recanto aconchegante voltado para o pátio das traseiras. Comeu lentamente, saboreando a massa condimentada,
o pão tostado e a salada perfumada, apreciando o calor aveludado do vinho enquanto contemplava o pátio escuro, apreciando a antecipação da Primavera a apenas algumas
semanas de distância.
"As flores vão atrasar-se", pensou, "mas em breve tudo estará de novo a florescer." Essa era outra das promessas que tinha feito a si própria - voltar a cavar o
jardim, a sentir a terra, quente e húmida, a observar as tulipas enquanto elas cresciam na sua amálgama de cor; voltar a plantar petúnias ao longo das bordas do
carreiro de lajes.
Comeu lentamente, apreciando o silêncio, tão diferente do ruído constante e entorpecedor da prisão. Depois de arrumar a cozinha, foi para o escritório. Ficou ali
sentada na penumbra, com as mãos a abraçar os joelhos. Ao sentar-se, tentou ouvir o ruído que lhe tinha sugerido que havia mais alguém lá em casa na noite em que
Gary tinha morrido, o som, conhecido e ao mesmo tempo desconhecido, que entrava e saía dos seus pesadelos há quase seis longos anos. Lá fora não havia nada a não
ser o vento, e, ali perto, o tiquetaque de um relógio.
Depois de sair do escritório, Fran caminhou pela cidade até ao apartamento de quatro assoalhadas que tinha arrendado na Segunda Avenida com a Rua Cinquenta e Seis.
Fora uma grande aventura vender o seu apartamento em Los Angeles, mas agora que ali estava percebeu que, como Gus tinha adivinhado, Nova Iorque estava-lhe realmente
no sangue.
"Afinal de contas, vivi em Manhattan até aos treze anos", pensou, enquanto subia a Madison Avenue e passava pelo Lê Cirque 2000, lançando um olhar de admiração para
o pátio iluminado que conduzia à entrada. "Depois, o pai fez um bom negócio na Bolsa de Valores e decidiu ser um cavalheiro rural."
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Fora então que se tinham mudado para Greenwich e comprado uma casa a pouca distância do local onde Molly vivia agora. A casa situava-se numa zona exclusiva de Lake
Avenue. É claro que, afinal de contas, não podiam pagá-la, e a casa fora seguida por um carro que não podiam pagar e roupas que não podiam pagar. "Talvez tivesse
sido por ter entrado em pânico que o pai não conseguiu ganhar mais dinheiro na Bolsa", pensou Fran.
Ele adorava ser activo nos assuntos da cidade e conhecer pessoas. Acreditava que os voluntários faziam amigos, e era um voluntário de sonho. Pelo menos, até "pedir
emprestados" os donativos para o fundo da biblioteca.
Andava apavorada com a ideia de abrir os caixotes que tinha trazido para o leste, mas a saraiva tinha parado e o frio era de cortar. Quando pôs a chave na fechadura
do apartamento, o 21 E, tinha mudado de ideias.
Pelo menos, a sala de estar estava bastante decente, disse para si mesma ao acender a luz e observar a alegre sala com o sofá e as cadeiras de veludo verde-musgo
e a carpete persa encarnada, marfim e verde.
A visão das estantes quase vazias galvanizou-a para a acção. Vestiu uma camisola velha e calças largas e começou a trabalhar. Uma música enérgica na aparelhagem
ajudou-a a aliviar a monotonia de esvaziar caixas e escolher livros e cassetes. A caixa com o equipamento da cozinha foi a mais fácil de arrumar. "Não tenho muitas
coisas lá dentro", pensou amargamente. "Mostra o género de cozinheira que sou."
Às nove e um quarto suspirou um fervoroso "Ámen" e arrastou as últimas caixas vazias para o armário de arrumações. "É preciso muito amor para transformar uma casa
num lar", pensou com satisfação, enquanto andava pelo apartamento, que por fim parecia o seu lar.
Fotografias emolduradas da mãe, do padrasto e dos meios-irmãos e das suas famílias fizeram-nos parecer mais próximos. "Vou sentir saudades de todos vocês", pensou
ela. Vir a Nova Iorque para uma visita curta tinha sido uma coisa, mas mudar-se e saber que não veria nenhum deles regularmente era muito mais difícil. Â mãe tinha
esquecido Greenwich. Nunca mencionava que tinha vivido lá, e quando voltara a casar tinha pressionado Fran a adoptar o apelido do padrasto.
"Nem pensar", pensou Fran.
Satisfeita com tudo o que tinha alcançado, hesitou em sair para jantar, mas depois contentou-se com uma sanduíche de queijo derretido. Comeu sentada à minúscula
mesa de ferro fundido diante
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da janela da cozinha que proporcionava uma vista muito bela do East
"Moll está a passar a primeira noite em casa depois de cinco anos e meio na prisão", pensou. "Quando avir, tenho de lhe pedir uma lista das pessoas com quem posso
falar, pessoas que estejam dispostas a falar comigo sobre ela. Mas tenho algumas outras perguntas para as quais tentarei obter respostas ao longo da investigação,
e nem todas são acerca de Molly."
Algumas delas eram perguntas que a perturbavam há muito tempo. Nunca tinha aparecido um registo dos quatrocentos mil dólares que o pai tinha desviado do fundo da
biblioteca. Tendo em conta a sua história de apostar em acções de risco, presumia-se que tinha perdido o dinheiro dessa forma, mas após a sua morte não tinha aparecido
um único pedaço de papel que mostrasse onde é que ele tinha feito um investimento tão avultado.
"Eu tinha dezoito anos quando saímos de Greenwich", pensou Fran. "Foi há catorze anos. Mas agora estou de volta e vou ver imensas pessoas que conhecia, vou falar
com muitas pessoas em Greenwich acerca de Molly e de Gary Lasch."
Levantou-se e pegou na cafeteira. Enquanto se servia, pensou no pai e no que a tentação provocada por uma "dica infalível" suscitaria. Lembrou-se de como ele tinha
estado ansioso por ser convidado a fazer parte do clube de campo, por fazer parte da multidão de homens que percorriam regularmente juntos o campo de golfe.
A suspeita começara a surgir inesperadamente. Uma vez que não se tinha conseguido encontrar um registo da soma de dinheiro que o pai tinha desviado, ela não podia
deixar de ter dúvidas. Seria possível que alguém em Greenwich, alguém que o pai estava a tentar impressionar, lhe tivesse dado aquela "dica" e depois tivesse ficado
com os quatrocentos mil dólares que o pai tão disparatadamente "pedira emprestados" ao fundo da biblioteca mas nunca investira?
E se telefonasses a Molly?
Jenna Whitehall olhou para o marido, que estava do outro lado da mesa. Vestida com uma confortável blusa larga de seda e calças pretas do mesmo tecido, tinha uma
aparência dramaticamente atraente, uma impressão que era realçada pelos cabelos castanho-carvão e por olhos
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cor de avelã. Tinha chegado a casa às seis horas e verificara as mensagens. Molly não tinha telefonado.
Tentando não transmitir a irritação que sentia, disse calmamente:
Tu sabes que eu deixei uma mensagem no atendedor de chamadas da Molly, Cal. Se ela quisesse companhia, tinha-me telefonado. É claro que esta noite não quer companhia.
Continuo sem perceber por que é que ela quis voltar para aquela casa comentou ele. Quero dizer, como é que ela pode entrar naquele escritório sem se recordar daquela
noite, sem pensar que pegou naquela escultura e esmagou a cabeça do pobre Gary com ela? A mim, provocar-me-ia arrepios.
Já te pedi antes, Cal, por favor, não fales nisso. Molly é a minha melhor amiga e eu gosto muito dela. Ela não se lembra de nada sobre a morte de Gary.
Essa é a história que ela conta.
E eu acredito. Agora que ela está em casa, pretendo estar com ela sempre que ela me quiser. E, quando não me quiser, vou dar-lhe espaço. Está bem?
Tu és muito atraente quando ficas zangada e tentas não o mostrar, Jen. Desabafa. Vais sentir-te melhor.
Calvin Whitehall empurrou a cadeira da mesa da sala de jantar e aproximou-se da mulher. Era um homem de quarenta e poucos anos, com um aspecto formidável, de ombros
largos, peito largo e forte e cabelos ruivos que começavam a rarear. As sobrancelhas espessas sob olhos azuis-gelo realçavam a aura de autoridade que emanava dele
mesmo em casa.
Não havia nada na presença ou no comportamento de Cal que sugerisse as suas origens humildes. Tinha colocado uma distância enorme entre si próprio e a casa bifamiliar
de madeira em Elmira, Nova Iorque, onde tinha crescido.
A bolsa de estudo em Yale e a capacidade para imitar rapidamente os modos e comportamento dos colegas de estudo mais bem nascidos tinham levado a uma ascensão espectacular
no mundo dos negócios. A sua piada privada era que a única coisa útil que os pais lhe tinham dado era um nome que, pelo menos, parecia ter classe.
Agora, confortavelmente instalado em Greenwich numa mansão de doze quartos mobilada com um gosto sofisticadíssimo, Cal vivia a vida com que sonhara há muitos anos
no quarto minúsculo e espartano que fora o seu refúgio dos pais, que passavam a noite a beber vinho barato e a discutir. Quando as discussões ficavam demasiado ruidosas
ou se tornavam violentas, os vizinhos chamavam a Polícia. Cal aprendeu a temer o som da sirene dos carros da Polícia,
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o desprezo nos olhares dos vizinhos, as risadas dos colegas de escola, os comentários na cidade sobre os seus pais rascas.
Ele era muito inteligente, o suficiente para saber que o único caminho da salvação era a educação, e na verdade os seus professores na escola depressa se aperceberam
de que ele tinha sido abençoado com uma inteligência quase de génio. No seu quarto com o chão solto, a tinta das paredes a descascar e uma única luz fraca no tecto,
estudava e lia vorazmente, concentrando-se especialmente em aprender tudo o que podia sobre as possibilidades e o futuro da informática.
Aos vinte e quatro anos, depois de um mestrado, fora trabalhar para uma dinâmica empresa de computadores. Aos trinta, pouco depois de se mudar para Greenwich, arrancara
o controlo da empresa ao espantado proprietário. Era a sua primeira oportunidade para brincar ao gato e ao rato, para brincar com a sua presa, sabendo de antemão
que era um jogo que venceria. A satisfação da caça acalmava em si a ira sempre presente por causa da opressão do pai e da necessidade subsequente de saltar de emprego
em emprego.
Alguns anos mais tarde, vendeu a empresa por uma fortuna, e agora passava o tempo a gerir a sua miríade de negócios.
O casamento não tinha produzido filhos, e ele estava grato por Jenna, ao invés de ter ficado obcecada com essa falta como acontecera com Molly Lasch, ter dedicado
as suas energias ao escritório de advocacia em Manhattan. Também ela tinha feito parte do seu plano. A mudança para Greenwich. A escolha de Jenna uma jovem mulher
arrebatadoramente bela e inteligente, de boas famílias mas com bens limitados. Estava plenamente consciente de que a vida que podia proporcionar a Jenna era uma
grande atracção para ela. Tal como ele, ela gostava de poder.
Também gostava de brincar com ela. Agora, sorria-lhe candidamente e passava-lhe a mão pelos cabelos.
Desculpa disse, arrependido. É que eu penso que Molly teria gostado de receber a tua visita mesmo não tendo telefonado. É uma grande mudança voltar para aquela casa
vazia, e ela deve estar a sentir-se bastante sozinha. Tinha bastante companhia na prisão, mesmo que se tratasse de companhia que ela não apreciava.
Jenna tirou a mão do marido da cabeça.
Pára com isso. Sabes que fico irritada quando me mexem no cabelo. E anunciou abruptamente: Tenho de ir estudar uns apontamentos para uma reunião de amanhã.
Estar sempre preparada. Isso é que é ser uma boa advogada. Não perguntaste sobre as nossas reuniões de hoje.
Cal era presidente do Conselho de Administração do Hospital
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Lasch e da Remington Health Management. Com um sorriso satisfeito, acrescentou:
Ainda está um pouco perigoso. A American National Insurance quer essas OCS tanto como nós, mas nós vamos consegui-las. E quando isso acontecer, seremos a maior OCS
do leste.
Jenna olhou para o marido com uma admiração rancorosa.
Consegues sempre aquilo que queres, não é? Ele acenou afirmativamente.
Consegui-te a ti, não consegui?
Jenna premiu o botão por baixo da mesa para a criada vir levantá-la.
Sim respondeu, calmamente, parece que sim.
"O tráfego da 1-95 está a chegar à altura da auto-estrada da Califórnia", pensou Fran enquanto esticava o pescoço, à espera de uma oportunidade para mudar de faixa.
Lamentou quase imediatamente não ter optado pela Merritt Parkway. O semi-reboque à sua frente fazia tanto barulho que parecia que estavam a ser atacados por bombas,
mas viajava quinze quilómetros abaixo do limite de velocidade, tornando a experiência de estar presa atrás dele duplamente irritante.
Durante a noite, os céus tinham ficado limpos, e como o reservado meteorologista da CBS tinha dito: "Hoje o céu estará parcialmente limpo, parcialmente nublado,
com hipótese de chuva."
"Isso abarca praticamente todas as situações possíveis", decidiu Fran, e depois apercebeu-se de que estava a concentrar-se no tempo e nas condições do tráfego porque
estava nervosa.
Como cada rotação dos pneus a deixava mais perto de Greenwich e do encontro com Molly Carpenter Lasch, sentiu que os seus pensamentos voltavam insistentemente para
a noite em que o pai se suicidara. Sabia porquê. A caminho da casa de Molly passaria por Barley Arms, o restaurante a que ele as tinha levado para o que acabou por
ser o último jantar de família.
Pormenores de que já não se recordava há anos voltaram-lhe à ideia, pequenos factos estranhos que, por alguma razão, lhe tinham ficado na memória. Pensou na gravata
que o pai tinha usado fundo azul com um pequeno padrão axadrezado. Lembrava-se de que fora
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muito cara quando viera a conta, a mãe tinha comentado: "Foi cosida com fio de ouro, Frank? É um preço de doidos para pagar por uma tira de pano minúscula."
"Usou aquela gravata pela primeira vez naquele último dia", pensou Fran. "Ao jantar, a mãe tinha brincado com ele a dizer que estava a guardá-la para a minha graduação.
Teria havido algo simbólico no facto de ele usar uma coisa tão extravagantemente dispendiosa quando sabia que ia suicidar-se devido a problemas financeiros?"
A saída para Greenwich aproximava-se. Fran saiu da 1-95, recordando uma vez mais a si própria que a Merritt era um caminho mais directo; depois começou a procurar
as ruas que dois quilómetros depois a levariam ao bairro onde passara quatro anos da sua vida. Deu por si a tremer, apesar do calor que estava no carro.
"Quatro anos formativos", disse para si mesma. E sem dúvida que tinham sido.
Ao passar pelo Barley Arms, manteve resolutamente os olhos na estrada, sem se permitir sequer um olhar de relance para o parque de estacionamento parcialmente escondido
onde o pai se tinha sentado no banco de trás do carro da família e disparara um tiro fatal sobre si próprio.
Evitou também deliberadamente a rua onde vivera durante esses quatro anos. "Haverá outro momento para isso", pensou. Alguns minutos depois estava a estacionar junto
à casa de Molly, uma casa de estuque cor de marfim com dois andares e portadas castanho-escuras.
Uma mulher forte com sessenta e tal anos, de cabelos grisalhos e olhos claros semelhantes aos de um pássaro, abriu a porta praticamente antes de o dedo de Fran soltar
a campainha. Fran reconheceu o rosto dos recortes de jornais acerca do julgamento. Era Edna Barry, a governanta que tinha apresentado um testemunho tão arrasador
para Molly. "Por que é que Molly voltara a contratá-la?", interrogou-se Fran, admirada.
Enquanto despia o casaco, soaram passos na escadaria. Um momento depois, Molly apareceu e atravessou rapidamente o átrio para a cumprimentar.
Por instantes, observaram-se mutuamente. Molly usava calças de ganga e uma blusa azul com as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Tinha o cabelo enrolado e apanhado
descontraidamente no alto da cabeça, e algumas madeixas caíam-lhe pelo rosto. Como Fran tinha reparado na prisão, Molly parecia demasiado magra, e à volta dos olhos
começavam a aparecer algumas rugas.
Fran tinha vestido o conjunto de dia de que mais gostava, umas calças e um casaco de bom corte com riscas finas, e de repente
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sentiu-se bem vestida de mais. Depois recordou bruscamente a si própria que, se queria fazer um bom trabalho, neste caso, tinha de separar a mulher do presente da
adolescente insegura que fora há muitos anos em Cranden. Molly foi a primeira a falar:
Estava com receio de que mudasses de ideias, Fran. Fiquei tão surpreendida quando te vi ontem na prisão, e tão impressionada quando te vi no noticiário a noite passada!
Foi então que tive esta ideia louca de que talvez pudesses ajudar-me.
Por que é que teria mudado de ideias, Molly? perguntou Fran.
Eu vejo o programa Crime Verdadeiro. Na prisão era muito popular entre todas nós, e percebi que eles não faziam muitos casos onde não existiam dúvidas. Mas, obviamente,
os meus receios eram infundados... tu vieste. Vamos começar. A Sr.a Barry fez café. Queres?
Adorava.
Respeitosamente, Fran seguiu Molly pelo corredor da direita. Conseguiu ver bastante bem a sala de estar e reparou no mobiliário discreto, de bom gosto e obviamente
caro.
À porta do escritório, Molly parou.
Este era o escritório de Gary, Fran. Onde ele foi encontrado. Acabou de me ocorrer que, antes de nos sentarmos, gostava que visses uma coisa.
Entrou no escritório e parou ao lado do sofá.
A secretária de Gary estava aqui explicou. Estava voltada para as janelas da frente, o que quer dizer que ele estava de costas para a porta. Eles dizem que eu entrei,
agarrei numa escultura que se encontrava na mesa lateral que estava aqui apontou de novo e esmaguei a cabeça de Gary com ela.
E aceitaste um acordo, porque tu e o teu advogado sentiram que um júri te condenaria por teres praticado o crime disse Fran, calmamente.
Fran, fica aqui onde estava a secretária. Eu vou para o átrio. Vou abrir e fechar a porta principal. Vou chamar-te. Depois vou voltar para aqui. Por favor, tem paciência
comigo.
Fran acenou afirmativamente e entrou no aposento, parando no local que Molly tinha indicado.
O corredor não estava atapetado. Ouviu os passos de Molly e, instantes depois, ouviu-a chamá-la.
"O que ela está a dizer é que se Gary estivesse vivo devia tê-la ouvido", pensou Fran.
Molly voltou.
Ouviste-me chamar, não ouviste, Fran?
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-Sim.
Gary telefonou-me para o Cape. Implorou-me que o perdoasse. No entanto, na altura, eu não falei com ele. Disse-lhe que o veria no domingo, aproximadamente às oito
horas da noite. Cheguei um pouco mais cedo, mas mesmo assim ele devia estar à minha espera. Não te parece que, se pudesse, ter-se-ia levantado ou, pelo menos, voltado
a cabeça quando me ouviu? Não faz sentido que me tivesse ignorado. O chão não estava forrado a alcatifa como está agora. Mesmo que não me tivesse ouvido chamá-lo,
não tenho qualquer dúvida de que me teria ouvido quando entrei no escritório. E ter-se-ia voltado. Quero dizer, quem não se voltaria?
Qual foi a reacção do teu advogado quando lhe disseste isso? perguntou Fran.
Disse que Gary podia simplesmente estar a dormitar sentado à secretária. Philip até sugeriu que a história podia voltar-se contra mim, que podia parecer que eu voltei
para casa e fiquei enraivecida por ele não estar ansiosamente à minha espera.
Molly encolheu os ombros.
Muito bem, eu fiz a minha parte. Agora, vou deixar-te fazer as perguntas. Vamos sentar-nos aqui, ou ficarias mais à vontade noutro aposento?
Creio que a decisão é tua, Molly disse Fran.
Então, vamos ficar aqui. No local do crime. Falou com espírito prático, sem um sorriso.
Sentaram-se juntas no sofá. Fran pegou no gravador e pousou-o sobre a mesa.
Espero que não te importes, mas tenho de gravar isto.
Já estava à espera.
Por favor, não te esqueças disto, Molly: a única maneira de eu te magoar quando fizermos este programa é concluindo com uma declaração como: "As provas esmagadoras
sugerem que, embora Molly Lasch afirme que não se recorda de ter causado a morte do marido, parece não haver outra explicação possível."Por instantes, os olhos de
Molly iluminaram-se com lágrimas.
Isso não chocaria ninguém disse, desanimada. É aquilo em que toda a gente acredita agora.
Mas se houver outra resposta, Molly, só poderei ajudar-te a descobri-la se fores absolutamente honesta comigo em todos os passos que dermos. Por favor, não desconfies
de mim nem me escondas nada, Por muito pouco à-vontade que possas sentir-te em relação a uma questão.
Molly acenou afirmativamente.
Após cinco anos e meio na prisão, aprendi o que é a total falta
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de privacidade. Se consegui sobreviver a isso, posso aguentar as tuas perguntas.
A Sr.a Barry trouxe café. Fran viu pela expressão da boca que a mulher desaprovava a presença delas naquele aposento. Ficou com a impressão de que a governanta era
protectora em relação a Molly; mas no julgamento apresentara provas que lhe tinham sido muito prejudiciais. "A Sr.a Barry está definitivamente na lista de pessoas
que quero entrevistar", pensou.
Nas duas horas seguintes, Molly Lasch respondeu às perguntas de Fran aparentemente sem hesitação. Pelas respostas de Molly, Fran ficou a saber que a rapariga que
tinha conhecido basicamente à distância se transformara numa mulher que, pouco depois de terminar o liceu, se tinha apaixonado e casado com um atraente médico dez
anos mais velho do que ela.
Eu estava a trabalhar na Vogue como estagiária disse Molly. Adorava o meu trabalho e comecei a subir muito depressa. Mas, depois, quando fiquei grávida, tive um
aborto. Pensei que talvez os horários muito ocupados e as viagens tivessem alguma coisa a ver com isso, por isso abandonei o emprego.
Fez uma pausa.
Eu queria tanto um bebé continuou, num tom de voz suave. Tentei ficar grávida durante mais quatro anos e, quando finalmente consegui, também perdi esse bebé.
Como era o teu relacionamento com o teu marido, Molly?
Em tempos, teria dito que era perfeito. Gary apoiou-me muito depois do segundo aborto. Estava sempre a dizer que eu era preciosa para ele, que não teria conseguido
criar a Remington Health Management sem a minha ajuda.
Que é que ele queria dizer com isso?
Devia estar a referir-se aos meus conhecimentos, creio eu. Os conhecimentos do meu pai. Jenna Whitehall foi uma grande ajuda. Era a Jenna Graham... provavelmente,
recordas-te dela do liceu.
Recordo-me de Jenna. "Outro membro do grupo importante", pensou Fran. Foi a nossa directora de turma no último ano.
Isso mesmo. Fomos sempre a melhor amiga uma da outra. Jenna apresentou-me Gary e Cal numa recepção no clube de campo. Mais tarde, Cal tornou-se sócio de Gary e de
Peter Black. Cal é um génio das finanças e conseguiu convencer algumas empresas importantes a aderirem à Remington. Sorriu. O meu pai também deu uma grande ajuda.
Vou querer falar com os dois Whitehalls declarou Fran. Ajudas-me a conseguir isso?
Sim, quero que fales com eles.
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Fran hesitou.
Molly, vamos conversar sobre Annamarie Scalli. Onde está ela
agora?
Não faço ideia. Sei que o bebé nasceu no Verão, depois da morte de Gary, e que foi dado para adopção.
Suspeitavas que Gary estava envolvido com outra mulher?
Nunca. Confiava plenamente nele. No dia em que descobri, estava no andar de cima e peguei no telefone para fazer uma ligação. Gary estava a falar e eu ia desligar,
mas depois ouvi-o dizer: "Annamarie, estás a ser histérica. Vou cuidar de ti e, se resolveres ficar com o bebé, eu apoio-te."
Como é que ele parecia?
Zangado e nervoso. Quase em pânico.
Como é que Annamarie reagiu?
Disse uma coisa do género: "Como é que posso ter sido tão estúpida?", e desligou.
Que é que fizeste, Molly?
Fiquei chocada, assombrada. Desci as escadas a correr. Gary estava aqui, ao pé da secretária, preparado para sair para o emprego. Eu tinha conhecido a Annamarie
no hospital. Confrontei-o com o que tinha escutado. Ele admitiu prontamente que se tinha envolvido com ela, mas disse que tinha sido uma coisa louca e disparatada
e que lamentava profundamente. Estava quase em lágrimas e implorou-me que o perdoasse. Eu estava furiosa. Depois, ele teve de sair para o hospital. A última vez
que o vi vivo foi quando lhe atirei com a porta depois de ele sair. Uma recordação bestial para o resto da vida, não é?
Amava-lo, não é verdade? perguntou Fran.
Amava-o, confiava nele e acreditava nele, ou, pelo menos, convenci-me disso. Agora não tenho tanta certeza; por vezes, duvido. Suspirou e abanou a cabeça. De qualquer
maneira, tenho a certeza de que na noite em que voltei do Cape estava muito mais magoada e triste do que zangada. Enquanto Fran olhava, uma expressão de tristeza
profunda e completa encheu os olhos de Molly. Ela apertou os braços em volta do peito e soluçou: Não percebes por que é que preciso de provar que não o matei?
Fran saiu alguns minutos depois. Todos os instintos lhe diziam que a explosão de Molly era a chave para a sua busca de exoneração. "Isto é uma forma de protecção",
pensou. "Ela amava o marido e fará qualquer coisa para arranjar alguém que lhe diga que existe uma possibilidade de não o ter matado. Acredito que na verdade ela
não se lembra, mas continuo a pensar que o matou. É uma perda de tempo e dinheiro para a NAF-TV tentar levantar sequer uma dúvida consistente em relação à sua culpa.
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"Vou dizer isso a Gus", pensou, "mas, antes de o fazer, vou descobrir tudo o que puder sobre Gary Lasch."
Impulsivamente, desviou a caminho da Merritt Parkway para passar pelo Hospital Lasch, que tinha substituído a clínica particular fundada por Jonathan Lasch, o pai
de Gary. Era para onde o seu pai tinha sido levado depois de ter dado um tiro em si próprio e onde morrera sete horas depois.
Ficou surpreendida ao ver que o hospital tinha agora o dobro do tamanho de que ela se recordava. Havia um semáforo do lado de fora da entrada principal e ela abrandou
o carro o bastante para perder o sinal verde. Enquanto esperava frente ao sinal vermelho, observou as instalações, reparando nas alas que tinham sido acrescentadas
à estrutura principal, no novo edifício do lado direito da propriedade, no parque coberto de estacionamento.
Com uma pontada de dor, procurou a janela da sala de espera no terceiro andar onde se lembrava de ter permanecido enquanto esperava notícias do pai, sabendo, instintivamente,
que não havia ajuda que pudesse valer-lhe.
"Será um bom sítio para vir falar com as pessoas", pensou Fran. O sinal mudou e cinco minutos depois encontrava-se no acesso para a Merritt Parkway. Enquanto conduzia
para sul, pelo meio do tráfego fluido, pensou no facto de Gary Lasch se ter envolvido com Annamarie Scalli, uma jovem enfermeira do hospital, e de essa indiscrição
irreflectida lhe ter custado a vida.
"Mas teria sido essa a sua única indiscrição?", perguntou inesperadamente a si mesma.
O mais certo seria descobrir que provavelmente ele tinha cometido um erro colossal, como o seu pai, mas por outro lado era o cidadão ilustre, o médico competente
e o fornecedor dedicado de cuidados de saúde que as pessoas conheciam e recordavam.
"E daí, talvez não", pensou Fran, enquanto passava a linha estadual entre o Connecticut e Nova Iorque. "Já ando nesta vida há tempo suficiente para esperar o inesperado.
Depois de ter acompanhado Fran Simmons à porta, Molly voltou para o escritório. Edna Bary foi ter com ela à uma e meia.
Molly, a menos que queira que faça alguma coisa, vou-me embora.
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Não quero mais nada, obrigada, Sr.a Barry. Edna Barry parou à porta, indecisa.
Gostaria que me deixasse fazer-lhe o almoço antes de me ir embora.
Não tenho fome, a sério.
A voz de Molly estava rouca. Edna percebeu que ela tinha estado a chorar. A culpa e o medo que tinham assombrado Edna Barry, a toda a hora, naqueles quase seis anos,
aprofundavam-se. "Oh, Deus", implorou ela. "Por favor, compreende. Eu não podia fazer mais nada."
Na cozinha, vestiu aparka e enrolou um lenço ao pescoço. Tirou o porta-chaves da bancada, contemplou-o durante alguns momentos e, com um gesto convulsivo, fechou
a mão à volta dele.
Menos de vinte minutos depois estava na sua modesta casa ao estilo de Cape Cod, em Glenville. Wally, o filho de trinta anos, estava a ver televisão na sala de estar.
Não tirou os olhos do aparelho quando ela entrou, mas, pelo menos, parecia calmo. "Alguns dias, mesmo quando está sob o efeito de medicação, pode estar tão agitado",
pensou.
Como naquele domingo terrível em que o Dr. Lasch tinha morrido. Naquele dia, Wally estava muito zangado porque o Dr. Lasch lhe tinha ralhado, naquela semana, quando
ele tinha ido lá a casa, entrado no escritório e pegado na escultura Remington.
Edna Barry tinha omitido um pormenor no relato do que acontecera naquele domingo de manhã. Não tinha dito à Polícia que a chave da casa dos Lasch não estava no chaveiro
onde devia estar, que tinha entrado com a chave que Molly mantinha escondida no jardim e que mais tarde encontrara a chave perdida no bolso de Wally.
Quando o confrontara, ele tinha começado a chorar e correra para o quarto, atirando com a porta.
"Não fale sobre isso, mamã", soluçara.
"Nunca, nunca devemos falar nisto a ninguém", tinha-lhe dito ela com firmeza, e fizera-o prometer que não falaria. E ele nunca tinha falado, pelo menos até hoje.
Ela tinha tentado convencer-se desde sempre que provavelmente não passara de uma coincidência. Afinal de contas, tinha encontrado Molly cheia de sangue. As impressões
digitais de Molly estavam na escultura.
Mas... e se Molly começasse mesmo a recordar-se de pormenores daquela noite?
E se na verdade ela tivesse visto alguém lá em casa?
"Wally teria estado lá? Como é que alguma vez poderei ter a certeza?", perguntou a Sr.a Barry a si própria.
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Peter Black conduziu pelas ruas escurecidas para a sua casa em Old Church Road. Em tempos tinha sido a cocheira de uma grande propriedade. Comprara-a durante o segundo
casamento, que, como o primeiro, tinha terminado passados alguns anos. Porém, a segunda mulher, ao contrário da primeira, tinha um gosto refinado e, depois de o
ter deixado, ele não fizera o menor esforço para mudar a decoração. A única alteração fora acrescentar um bar e fornecê-lo em abundância. A segunda mulher era abstémia.
Peter conhecera o falecido sócio, Gary Lasch, na Faculdade de Medicina, onde se tinham tornado amigos. Fora depois da morte do pai, o Dr. Jonathan Lasch, que Gary
tinha feito uma proposta a Peter.
"A gestão dos cuidados de saúde é a nova onda da medicina", dissera ele. "A clínica sem fins lucrativos que o meu pai abriu não pode continuar assim. Vamos expandi-la,
torná-la lucrativa, iniciar a nossa própria OCS."
Gary, abençoado com um apelido distinto na medicina, tinha ocupado o lugar do pai como director da clínica, que mais tarde se transformou no Hospital Lasch. O terceiro
sócio, Cal Whitehall, entrara para a empresa quando tinham fundado juntos a Remington Health Management Organization.
Agora, o Estado preparava-se para aprovar a aquisição pela Remington de uma série de OCS mais pequenas. Estava tudo a correr bem, mas o negócio ainda não tinha sido
concluído. Tinham chegado ao último degrau da escada de corda. O único problema com que podiam deparar-se consistia no facto de que a American National Insurance
também estava a lutar para adquirir essas empresas.
Porém, as coisas ainda podiam correr mal, pensou Peter enquanto estacionava diante da porta principal. Sabia que não pretendia voltar a sair nessa noite, mas estava
frio e queria uma bebida. Pedro, o seu cozinheiro e mordomo de há muitos anos, arrumaria o carro mais tarde.
Peter entrou e foi directamente para a biblioteca. O aposento era sempre acolhedor, com a lareira acesa e a televisão sintonizada no canal de notícias. Pedro apareceu
imediatamente e fez a pergunta de todas as noites:
O costume, senhor?
O costume era uísque escocês com gelo, excepto quando Peter resolvia mudar e pedia uísque americano ou vodca.
O primeiro uísque, bebericado lentamente e com deleite, começou a acalmar os nervos de Peter. Um pequeno prato de salmão fumado
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também apaziguou a leve sensação de fome. Só gostava de jantar no mínimo uma hora depois de chegar a casa.
Levou o segundo uísque consigo enquanto tomava duche. Levou o resto da bebida para o quarto, vestiu calças largas e uma camisa de caxemira de mangas compridas. Por
fim, quase descontraído e já atenuada a sensação perturbadora de que algo estava a correr mal, desceu para o rés-do-chão.
Peter Black andava frequentemente com amigas. No seu renovado estado de solteiro era bombardeado com convites de mulheres atraentes e socialmente desejáveis. Nas
noites em que estava sozinho em casa, normalmente, trazia um livro ou uma revista para a mesa. Aquela noite, no entanto, foi uma excepção. Enquanto comia espadarte
assado com espargos ao vapor e bebericava um copo de Saint Emilion, ficou sentado em silenciosa reflexão, a pensar nas reuniões que ainda teria de fazer relacionadas
com as fusões.
O toque do telefone na biblioteca não interrompeu o processo de pensamento. Pedro sabia o suficiente para dizer a quem quer que estivesse a ligar que ele retribuiria
o telefonema mais tarde. Foi por isso que, quando Pedro entrou na sala de jantar com o telefone portátil na mão, Peter Black ergueu as sobrancelhas, aborrecido.
Pedro tapou o bocal e sussurrou:
Desculpe, Sr. Doutor, mas pensei que podia querer atender este telefonema. É a Sr.a Lasch. A Sr.a Molly Lasch.
Peter Black fez uma pausa e depois despejou um copo de vinho de um só gole sem dar a si mesmo o tempo do costume para saborear o gosto delicado e pegou no telefone.
Tinha a mão a tremer.
Molly tinha dado a Fran uma lista de pessoas que ela poderia querer começar a entrevistar. O primeiro da lista era o sócio de Gary, o Dr. Peter Black. "Ele nunca
me disse uma palavra depois da morte de Gary", contara-lhe ela.
Depois, Jenna Whitehall: "Deves recordar-te dela de Cranden, Fran."
O marido de Jenna, Cal: "Quando eles precisaram de uma reserva de dinheiro para fundar a Remington, Cal arranjou o financiamento", explicara ela.
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O advogado de Molly, Philip Matthews: "Toda a gente pensa que ele foi maravilhoso porque conseguiu uma pena leve e depois lutou por uma liberdade condicional rápida.
Eu gostaria mais dele se pensasse que ele tinha ao menos uma ponta de dúvida em relação à minha culpa", dissera.
Edna Barry: "Tudo estava em perfeita ordem quando voltei para casa ontem. Foi quase como se os últimos cinco anos e meio nunca tivessem acontecido."
Fran tinha pedido a Molly para falar com cada uma dessas pessoas e avisá-las que ela iria telefonar. Mas quando Edna Barry foi vê-la antes de sair, Molly não sentiu
vontade de lhe mencionar o assunto.
Molly acabou por ir para a cozinha e espreitou para o frigorífico. Viu que a Sr.a Barry tinha parado na charcutaria antes de chegar. O pão de centeio com sementes
de alcaravia, o presunto da Virgínia e o queijo suíço que ela tinha pedido estavam lá. Tirou-os, fez uma sanduíche com um prazer cuidado e depois abriu o frigorífico
uma vez mais e encontrou a mostarda picante de que gostava.
"E umpickle", pensou. "Há anos que me apetece comer umpickle." A sorrir inconscientemente, levou o prato para a mesa, fez uma chávena de chá e depois olhou em volta
à procura do jornal local que não se tinha dado ao trabalho de abrir antes.
Estremeceu quando viu uma fotografia sua na primeira página. O título dizia: "Molly Carpenter Lasch libertada após cinco anos e meio na prisão." O relato relembrava
os pormenores da morte de Gary, o acordo e a sua declaração de inocência junto aos portões da prisão.
De leitura mais penosa foi a reportagem sobre o passado da família. O artigo incluía um perfil dos avós, há muito pilares da sociedade de Greenwich e de Palm Beach,
listando o que tinham conseguido e as suas obras de caridade. Também referia a sólida carreira de negócios do pai, a história distinta do pai de Gary na medicina
e o modelo de organização de cuidados de saúde que Gary tinha fundado juntamente com o Dr. Peter Black.
"Todos boas pessoas, que conseguiram coisas impressionantes, e tudo é transformado em sumarenta coscuvilhice por minha causa", pensou Molly. Já sem fome, empurrou
a sanduíche para longe. Como acontecera antes naquele dia, a sensação de fadiga e sonolência estava a arrasá-la. O psiquiatra da prisão tinha-a medicado por causa
de uma depressão e aconselhara-a a consultar o médico que a tratara enquanto aguardava julgamento.
Disse-me que gostava do Dr. Daniels, Molly. Disse que se sentia à vontade com ele, porque ele acreditava quando lhe dizia que não
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se recordava da morte de Gary. Não se esqueça, a fadiga extrema pode ser um sinal de depressão.
Enquanto esfregava a testa num esforço para afastar um princípio de dor de cabeça, lembrou-se de que gostava muito do Dr. Daniels e que devia ter incluído o nome
dele na lista que dera a Fran. Talvez tentasse marcar uma consulta com ele. Mais importante, telefonar-lhe-ia para lhe dizer que, se Fran Simmons telefonasse, ele
estava autorizado a falar livremente sobre ela.
Molly levantou-se da mesa, deitou o resto da sanduíche no triturador de lixo e começou a subir as escadas com a chávena de chá na mão. A campainha do telefone estava
desligada, mas decidiu ir ouvir as mensagens que tinha no gravador.
Agora tinha um número de telefone confidencial, por isso, só algumas pessoas o conheciam. Isso incluía os pais, Philip Morris e Jenna. Jenna tinha telefonado duas
vezes. "Não me interessa o que dizes, Moll, vou aí esta noite", dizia a mensagem. "Levo o jantar às oito."
"Quando ela cá estiver, vou ficar contente por vê-la", reconheceu Molly, quando recomeçou a subir as escadas. No quarto, terminou o chá, descalçou os sapatos com
uma sacudidela, deitou-se em cima da colcha e puxou-a para cima do corpo. Adormeceu imediatamente.
Teve sonhos fragmentados. Neles, estava em casa. Estava a tentar falar com Gary, mas ele não conseguia ouvi-la. Depois ouviu um som o que era? Se ao menos conseguisse
reconhecê-lo, então, tudo ficaria claro. Aquele som. Aquele som. O que era?
Acordou às seis e meia e sentiu lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. "Talvez seja um bom sinal", pensou. Naquela manhã, quando falara com Fran, chorara pela primeira
vez desde a semana que passara em Cape Cod há quase seis anos, onde não fizera nada a não ser chorar. Quando soubera que Gary estava morto fora como se algo tivesse
secado dentro de si, tornando-se permanentemente árido. Daquele dia até ao dia de hoje não tinha tido lágrimas.
Levantou-se com relutância, lavou o rosto, penteou os cabelos e trocou as calças de ganga e a blusa de algodão por uma camisola e umas calças beges. Depois, resolveu
pôr brincos e uma maquilhagem leve. Quando Jenna a visitara na prisão insistira para que ela usasse maquilhagem na sala de visitas. "O melhor pé à frente, Moll;
não te esqueças do nosso lema."
De novo no andar de baixo, Molly acendeu o aquecimento a gás na saleta familiar ao lado da cozinha. "Saleta familiar para uma família de uma pessoa", pensou ela.
Nas noites que estavam em casa,
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Gary e ela adoravam ver filmes antigos juntos. A colecção de filmes clássicos dele ainda enchia as prateleiras.
Pensou nas pessoas a quem tinha de telefonar para pedir que colaborassem com Fran Simmons. Estava insegura em relação a uma delas. Não queria telefonar a Peter Black
para o escritório, mas queria que ele aceitasse falar com Fran, por isso decidiu telefonar-lhe para casa. E, ao invés de adiar, resolveu tratar do assunto nessa
noite. Não, faria isso nesse mesmo momento.
Quase não pensara em Peter ao longo daqueles anos, mas quando ouviu a voz dele foi inundada pelas recordações dos jantares que Peter costumava dar. Muitas vezes
incluíam apenas os seis Jenna e Cal, Peter e a mulher ou namorada da altura, ela própria e Gary.
Não culpava Peter por não querer ter nada a ver com ela. Sabia que, provavelmente, sentiria o mesmo se alguém magoasse Jenna. Velha amiga, melhor amiga. Era a litania
que costumavam cantar uma para a outra.
Quase esperava ouvir dizer que Peter não podia atender e ficou surpreendida quando ouviu a sua voz. Hesitante, e depois rapidamente, Molly disse o que precisava
de dizer:
Amanhã a Fran Simmons da NAF-TV vai telefonar para marcar um encontro contigo. Vai fazer uma reportagem para o programa Crime Verdadeiro sobre a morte de Gary. Não
me importa o que dizes sobre mim, Peter, mas,porfavor, recebe-a. É bom avisar-te que a Fran disse que seria muito melhor se tivesse a tua colaboração, mas se isso
não acontecer, ela arranjará maneira de contornar a situação.
Esperou. Após uma longa pausa, Peter Black disse calmamente:
Pensei que terias a decência de desaparecer muito discretamente, Molly. A sua voz estava tensa, embora as palavras fossem apenas levemente mal articuladas. Não achas
que a reputação de Gary merece mais do que ter a história da Annamarie Scalli revivida? Pagaste um preço pequeno pelo que fizeste. Estou a avisar-te, tu vais ser
a maior perdedora, se um reles programa de televisão reeditar o teu crime para a televisão nacional...
O clique do auscultador quando ele desligou foi praticamente afogado pelo toque da campainha da porta principal.
Nas duas horas seguintes, Molly sentiu que a sua vida estava quase normal de novo. Jenna tinha trazido não só o jantar como uma garrafa do melhor Montrachet de Cal.
Bebericaram vinho na saleta íntima e depois comeram a refeição na mesma sala, à mesa do café. Jenna dominou a conversa, pois desvendou os planos que tinha feito
para a amiga. Molly tinha de ir para Nova Iorque passar alguns dias no seu apartamento, ir às compras e ao novo salão de cabeleireiro
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fantástico que ela tinha descoberto, onde podia tratar de tudo na mesma altura.
Cabelos, rosto, unhas, corpo, tudo disse Jenna, triunfante. Eu já tinha pensado tirar algum tempo para estar contigo. Sorriu para Molly. Diz a verdade. Estou bastante
bem, não achas?
Tu és um anúncio ambulante para o regime que estás a fazer, seja ele qual for concordou Molly. Qualquer dia faço o mesmo. Mas por agora, não.
Pousou o copo de pé alto.
Jen, a Fran Simmons esteve aqui hoje. Provavelmente, lembras-te dela. Ela andou em Cranden connosco.
O pai suicidou-se, certo? Foi o tipo que desviou todo aquele dinheiro da biblioteca.
Isso mesmo. Agora, ela é jornalista de investigação para a NAF-TV. Vai fazer um programa sobre a morte do Gary para o Crime Verdadeiro, um programa da estação.
Jenna Whitehall não tentou esconder o assombro.
Molly, não!
Molly encolheu os ombros.
Eu já esperava que nem sequer tu compreendesses, por isso, também não vais compreender o que te vou dizer a seguir. Jenna, eu preciso de ver Annamarie Scalli. Sabes
onde ela está?
Tu és doida, Molly! Em nome de Deus, por que é que queres ver essa mulher? Quando pensas... A voz de Jenna apagou-se.
Quando penso que se ela não tivesse andado com o meu marido ele talvez estivesse vivo hoje? É isso que queres dizer... certo? Concordo, mas preciso de a ver. Ela
continua a viver na cidade?
Não faço a menor ideia de onde ela está. Segundo sei, aceitou aquele dinheiro do Gary, saiu da cidade e nunca mais ninguém ouviu falar dela. Teria sido chamada para
testemunhar no julgamento, mas depois do acordo não foi necessário.
Jen, quero que peças ao Cal para pôr os seus homens à procura dela. Todos sabemos que Cal pode fazer qualquer coisa, ou, pelo menos, mandar alguém fazer por ele.
A atitude "posso fazer" de Cal era uma espécie de piada entre elas há já muitos anos. Porém, Jenna não se riu.
É melhor não disse ela, com a voz de súbito tensa. Molly pensou que compreendia o motivo da relutância de Jenna.
Jenna, tens de compreender uma coisa. Eu paguei o preço pela morte do Gary, quer tenha sido responsável por ela quer não. Acredito que neste ponto ganhei o direito
de saber o que aconteceu exactamente naquela noite e porquê. Preciso de tentar compreender as minhas próprias acções e reacções. Talvez depois disso consiga
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continuar a viver. Tenho de tentar construir para mim uma coisa que se assemelhe a uma vida normal.
Molly levantou-se, foi para a cozinha e voltou com o jornal da manhã.
Talvez tenhas visto isto. É o género de coisa que me seguirá até ao fim da vida.
Eu vi. Jenna afastou o jornal e pegou nas mãos de Molly. Molly, um hospital, como uma pessoa, pode perder a sua reputação devido a um escândalo. Todas as histórias
acerca da morte do Gary, incluindo a revelação do caso amoroso com uma jovem enfermeira, seguido pelo teu julgamento, foi muito prejudicial para o Hospital Lasch.
O hospital está a fazer um bom trabalho na comunidade e a Remington Health Management está a prosperar numa época em que muitas outras OCS estão com grandes problemas.
Por favor, para teu bem, para bem do hospital, desmarca tudo com Fran Simmons e esquece a ideia de encontrar Annamarie Scalli.
Molly abanou a cabeça.
Pensa bem no assunto, Molly insistiu Jenna. Escuta, sabes que vou apoiar-te faças o que fizeres, mas, por favor, pelo menos pensa no Plano A.
Vamos à cidade e eu mudo de visual. Certo? Jenna sorriu.
Isso mesmo. Levantou-se. Muito bem, é melhor ir andando. Cal está à minha espera.
De braço dado, dirigiram-se para a porta principal. Com a mão no puxador, Jenna hesitou e depois disse:
Às vezes gostaria que estivéssemos novamente em Cranden e começássemos tudo de novo, Moll. Nessa altura a vida era muito mais fácil. Cal é diferente de nós. Não
se rege pelas mesmas normas. Qualquer coisa ou qualquer pessoa que o fizer perder dinheiro torna-se o inimigo.
Incluindo eu? perguntou Molly.
Receio que sim. Jenna abriu a porta. Adoro-te, Molly. Não te esqueças de fechar tudo e de ligar o alarme.
Tim Mason, o apresentador desportivo de trinta e seis anos da NAF-TV, estava de férias quando Fran começou a trabalhar na
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estação. Criado em Greenwich, tinha vivido lá durante algum tempo depois da universidade, quando trabalhara durante um ano como repórter no Greenwich Time. Fora
nessa altura que compreendera que queria fazer jornalismo desportivo, por isso mudara para um jornal no Estado de Nova Iorque.
Um ano depois, começara a trabalhar na estação de televisão local e, ao longo dos doze anos seguintes, uma progressão de vários empregos levara-o à sua grande oportunidade,
a secção desportiva na NAF. Ali, o programa noticioso nocturno de uma hora já estava a subir de forma impressionante nos tops de audiências das três estações principais,
e Tim Mason depressa ficou conhecido como o melhor dos comentadores desportivos da nova geração.
Alto e com feições irregulares que lhe conferiam uma aparência de rapaz, afável e descontraído por natureza, Tim transformava-se numa personalidade de classe A quando
observava ou debatia um acontecimento desportivo, e essa imagem criava um laço com os ardentes fãs de desportos por todo o lado.
Quando passou pelo gabinete de Gus Brandt na tarde em que voltou de férias, encontrou Fran Simmons pela primeira vez. Ela ainda tinha o casaco vestido e estava a
relatar a Gus a visita que fizera nessa manhã a Molly Lasch.
"Eu conheço-a", pensou Tim, "mas de onde?"
O seu prodigioso banco de memória forneceu-lhe instantaneamente os factos que procurava. Tinha começado a trabalhar no Time em Greenwich no mesmo Verão em que o
pai de Fran Simmons, Frank, confrontado com a descoberta de que tinha desviado fundos da biblioteca, se suicidara. A coscuvilhice em Greenwich dizia que ele era
um alpinista social que usara o dinheiro para tentar fazer um bom negócio na Bolsa de Valores. Porém, o escândalo morrera rapidamente depois de a mulher e a filha
de Simmons terem saído de Greenwich quase imediatamente a seguir à tragédia.
Ao olhar para a mulher atraente em que ela se tinha tornado, Tim teve a certeza de que Fran não o devia reconhecer, mas ficou curioso por saber em que género de
pessoa se teria transformado. Trabalhar como jornalista de investigação no caso de Molly Lasch em Greenwich não seria uma coisa que ele tivesse escolhido fazer,
se estivesse no lugar dela. Mas claro que não estava, e não fazia ideia de como Fran Simmons se sentia em relação ao suicídio do pai.
"Aquele pulha deixou a mulher e a filha adolescente entregues aos lobos", pensou Tim. "Simmons escolheu o caminho da cobardia." Tim tinha a certeza de que era uma
coisa que não teria feito. Naquela situação, teria tirado a mulher e a filha da cidade, e depois enfrentado as consequências do seu acto.
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Ele tinha feito a reportagem do funeral para o Time, e recordava-se de ver Fran e a mãe a saírem da igreja depois da missa. Na época, ela era uma miúda, com olhos
abatidos e cabelos compridos que lhe cobriam o rosto. Agora, Fran Simmons era extremamente atraente, e ele descobriu que tinha um aperto de mão firme, um sorriso
caloroso e uma forma especial de olhar directamente para os seus olhos. Sabia que ela não podia ler os seus pensamentos, não podia saber que ele tinha estado a reviver
mentalmente o escândalo do pai dela, mas no breve instante do aperto de mão, Tim sentiu-se culpado e pouco à vontade.
Pediu desculpa por tê-los interrompido.
Normalmente, a esta hora, Gus está sozinho, a tentar decidir o que vai correr mal com o noticiário. Virou-se para sair, mas Fran impediu-o.
Gus disse-me que a sua família viveu em Greenwich e que você cresceu lá disse ela. Conheceu os Lasches?
"Por outras palavras", pensou Tim, "ela está a dizer: eu sei que tu sabes quem eu sou e que sabes tudo sobre o meu pai, por isso, vamos esquecer isso."
O Dr. Lasch, quero dizer, o pai de Gary, era o nosso médico de família disse. Um homem simpático e um bom médico.
E quanto a Gary? perguntou Fran, rapidamente. Os olhos de Tim endureceram.
Um médico dedicado disse, terminantemente. Cuidou maravilhosamente bem da minha avó antes de ela falecer no Hospital Lasch. Isso aconteceu poucas semanas antes da
sua própria morte.
Tim não acrescentou que, quando a avó estivera doente, a enfermeira de serviço que cuidava dela com frequência era Annamarie Scalli.
Lembrava-se de que Annamarie, uma jovem bonita, era uma enfermeira óptima e uma miúda simpática, apesar de pouco sofisticada. A avó gostava imenso dela. De facto,
Annamarie estava no quarto com a avó quando esta falecera. "Quando lá cheguei", pensou Tim, "a avó tinha morrido e a Annamarie estava sentada junto à cama dela a
chorar. Quantas enfermeiras reagiriam assim?", perguntou a si mesmo.
Tenho de ir ver o que se passa na minha secção anunciou. Falo contigo mais tarde, Gus. Prazer em conhecê-la, Fran.
Com um aceno, saiu do gabinete e percorreu o corredor. Não achava justo dizer a Fran como a sua opinião sobre Gary Lasch mudara totalmente depois de saber do envolvimento
dele com Annamarie Scalli.
"Ela não passava de uma criança", pensou Tim, zangado, "e de
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certa forma não era diferente de Fran Simmons, vítima do egoísmo de outra pessoa. Tinha sido obrigada a abandonar o emprego e a sair da cidade. O julgamento de homicídio
atraíra a atenção do país inteiro, e durante algum tempo ela estivera em todas as colunas de mexericos."
Perguntou a si mesmo onde estaria Annamarie agora e preocupou-se fugazmente com a possibilidade de a investigação de Fran Simmons poder prejudicar a vida nova que
talvez tivesse construído para si própria.
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Annamarie Scalli desceu rapidamente o quarteirão para a casa modesta em Yonkers, onde começava a ronda diária de cuidados domiciliares a pessoas idosas. Depois de
mais de cinco anos a trabalhar para o serviço de enfermagem ao domicílio tinha feito as pazes com a sua vida, pelo menos até certo ponto. Já não sentia a falta da
enfermagem de hospital que em tempos adorara. Já não olhava todos os dias para a fotografia do filho que tinha dado à luz. Após cinco anos, tinha chegado à conclusão
de que os pais adoptivos já não tinham de lhe mandar uma fotografia anual. Havia meses que recebera a última fotografia do rapazinho que estava a crescer para ser
a imagem do pai, Gary Lasch.
Agora usava o nome de solteira da mãe, Sangelo. O seu corpo estava mais forte e, como a mãe e a irmã, vestia agora tamanho 42. Os cabelos escuros que costumavam
dar-lhe pelos ombros estavam agora cortados curtos à volta do rosto em forma de coração. Aos vinte e nove anos, parecia ser o que era na realidade competente, prática,
bondosa. Nada na sua aparência fazia lembrar a curvilínea "outra mulher" do caso de homicídio do Dr. Gary Lasch.
Annamarie tinha visto no noticiário da noite a reportagem de Molly Lasch a fazer a sua declaração à imprensa. A visão da Prisão Niantic ao fundo tinha-a deixado
quase fisicamente doente. Desde então era assombrada pela recordação daquele dia, há três anos, em que uma necessidade desesperada a fizera passar pela prisão. Tinha
tentado visualizar-se igualmente lá dentro.
É onde eu devia estar sussurrou ferozmente para si própria enquanto subia os degraus de cimento estalados para a casa do Sr. Olsen. Mas ao passar de carro pela prisão
naquele dia tinha
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perdido a coragem e fora directamente para casa, para o seu pequeno apartamento em Yonkers. Fora a única vez que estivera perto de telefonar para aquele advogado
paternal que tinha sido seu paciente no Hospital Lasch e pedir-lhe que a ajudasse a entregar-se ao delegado do Ministério Público.
Enquanto tocava a campainha do Sr. Olsen e depois entrava com a sua chave e dizia um caloroso "bom dia", Annamarie teve a sensação terrível de que o interesse renovado
no homicídio Lasch traria inevitavelmente consigo um interesse renovado em encontrá-la. E não queria que isso acontecesse.
Tinha medo de que isso acontecesse.
Calvin Whitehall passou pela secretária de Peter Black, ignorando-a, e abriu a porta do imponente gabinete de Peter. Black levantou os olhos dos relatórios que estava
a ler.
Chegaste cedo.
Não cheguei nada atirou Whitehall. Jenna esteve com Molly a noite passada.
Molly teve a lata de me telefonar para avisar que era bom que eu estivesse disponível para Fran Simmons, aquela jornalista daNAF. Jenna falou-te no programa do Crime
Verdadeiro que a Simmons está a fazer sobre Gary?
Calvin Whitehall acenou afirmativamente. Os dois homens olharam um para o outro de lados opostos da secretária.
Há pior disse Whitehall, rispidamente. Molly parece estar determinada a localizar a Annamarie Scalli.
Black empalideceu.
Então, sugiro que encontres uma maneira de a fazer ir à caça de gambuzinos disse ele, calmamente. Neste caso, a bola está no teu campo. E é melhor tratares do assunto
com cuidado. Não preciso de te recordar o que isto pode significar para os dois.
Zangado, espalhou os processos que tinha estado a analisar pela secretária.
Todos estes são processos novos de potencial negligência médica.
Arrasa-os!
É o que pretendo fazer.
Cal Whitehall observou o sócio, reparando no ligeiro tremor da
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mão de Peter Black, nos capilares rebentados nas faces e no queixo. Com um frio desagrado patente no tom de voz, disse:
Temos de deter aquela jornalista e de manter Molly longe da Annamarie. Entretanto, é melhor tomares uma bebida.
No instante em que conheceu Tim Mason, Fran soube que ele estava a par do seu passado. "O melhor é habituar-me a isso", pensou. "Vou ver essa reacção vezes sem conta
nas pessoas de Greenwich. Tudo o que têm de fazer é somar dois mais dois. Fran Simmons? Espere um pouco. Simmons. O olhar especulativo. Porque é que esse nome me
parece conhecido? Oh, é claro. O pai dela foi aquele que..."
Não dormiu bem naquela noite e estava a sentir-se um lixo quando chegou ao escritório na manhã seguinte. Um lembrete imediato dos seus sonhos perturbados estava
à sua espera em cima da secretária uma mensagem de Molly Lasch, dando o nome do psiquiatra que a tinha tratado durante o julgamento: "Telefonei ao Sr. Daniels. Agora,
ele está semi-reformado, mas não se importa de te receber. O consultório dele fica na Greenwich Avenue", dizia a mensagem.
Dr. Daniels; o advogado de Molly, Philip Matthews; o Dr. Peter Black; Calvin e Jenna Whitehall; Edna Barry, a governanta que Molly tinha voltado a contratar estas
eram as pessoas que Molly sugerira que ela contactasse como ponto de partida para a investigação, mas Fran também tinha outras pessoas em mente. Annamarie Scalli,
por exemplo.
Pegou na mensagem de Molly e observou-a. "Vou começar pelo
Dr. Daniels", decidiu.
John Daniels tinha sido contactado por Molly Lasch e estava à espera do telefonema de Fran. Sugeriu prontamente que se ela quisesse aparecer nessa tarde ele poderia
recebê-la. Embora já tivesse feito setenta e cinco anos e estivesse semi-reformado, não tinha conseguido abandonar por completo a profissão, apesar da insistência
da mulher. Havia demasiadas pessoas que ainda dependiam dele e que ele podia ajudar.
Uma das poucas que sentia que não conseguira ajudar fora Molly Carpenter Lasch. Conhecia-a desde que ela era criança e por vezes
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ia jantar ao clube com os pais dela. Ela tinha sido uma menina linda, impecavelmente delicada e com uma compostura demasiado grande para a idade. Nada no seu comportamento
ou na bateria de testes que lhe tinha feito depois da detenção sugeriam que talvez fosse capaz do acesso de violência que resultara na morte de Gary Lasch.
A recepcionista, Ruthie Roitenberg, estava com ele há vinte e cinco anos e, com o privilégio da longevidade no emprego, tinha o direito de declarar as suas opiniões
francas e de contar todos os mexericos. Foi ela que, depois de ser informada de que Fran Simmons era esperada às duas horas, disse:
Doutor, sabe de quem é que ela é filha?
É suposto eu saber? perguntou Daniels, brandamente.
Lembra-se daquele homem que roubou o dinheiro todo do fundo da biblioteca e depois se suicidou? Fran Simmons é filha dele. Andou na Academia Cranden com a Molly
Carpenter.
John Daniels não a deixou perceber o quanto estava espantado com a notícia. Recordava-se bem de mais de Frank Simmons. Ele próprio tinha doado dez mil dólares para
o fundo da biblioteca. Afinal de contas, tinha sido dinheiro deitado ao lixo, graças a Frank Simmons.
Molly não disse nada. Deve ter achado que não era importante. A sua suave reprovação passou despercebida.
Se eu estivesse no lugar dela, tinha mudado de nome disse Ruthie. A propósito, acho que Molly seria esperta se mudasse de nome, saísse daqui e começasse de novo.
Sabe, doutor, toda a gente pensa que seria muito melhor se, ao invés de complicar novamente a vida de toda a gente, ela tivesse saído e dito o quanto lamentava ter
assassinado o pobre homem.
E se existir outra explicação para a morte dele?
Doutor, qualquer pessoa que acredite nisso ainda procura debaixo da almofada para ver se a fada dos dentes deixou uma moeda.
Fran não estava destacada para aparecer nos noticiários até à noite, por isso pôde passar a manhã no escritório a preparar entrevistas. Depois de terminar, comprou
uma sanduíche e uma gasosa para comer no carro e partiu para Greenwich quando passavam quinze minutos do meio-dia. Saiu cedo, para ter tempo para dar uma volta de
carro pela cidade e rever os lugares que conhecera quando lá vivia antes do encontro com o Dr. Daniels.
Em menos de uma hora chegou aos arredores de Greenwich. Durante a noite tinha caído uma leve camada de neve, e as árvores, os arbustos e os relvados brilhavam sob
o último sol de Inverno.
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"É um lugar encantador", pensou Fran. "Não posso culpar o pai por querer fazer parte dele." Bridgeport, onde o pai tinha crescido, ficava apenas a uma hora para
norte, mas havia um mundo de diferença nos estilos de vida dos dois lugares.
A Academia Cranden situava-se em Round Hill Road. Passou lentamente pelo campus, admirando os edifícios de pedra húmida, recordando os anos que passara ali, pensando
nas raparigas que tinha conhecido melhor e nas que conhecera apenas de longe. Uma delas era Jenna Graham, que era agora Jenna Whitehall. "Ela e a Molly estavam sempre
juntas", pensou Fran, "embora fossem muito diferentes. Jenna era muito mais decidida e extrovertida, ao passo que Molly era bastante reservada."
Com um carinho súbito pensou em Bobbitt Williams, que jogara com ela na equipa de basquetebol. "Será possível que ainda viva cá?", perguntou Fran a si própria. "Também
era uma boa executante musical", recordou, "tentou obrigar-me a ter aulas de piano com ela, mas eu disse-lhe que era uma nulidade. O Senhor deixou o talento musical
fora dos meus genes."
Quando virou o carro para a Greenwich Avenue, Fran apercebeu-se com um sobressalto de que queria genuinamente procurar algumas das velhas amigas de escola, pelo
menos aquelas de que se recordava com carinho, como Bobbitt. "A mãe e eu nunca falámos naqueles quatro anos que vivemos aqui, mas eles existiram, e talvez tenha
chegado a altura de eu reconhecer isso", pensou. "Havia muitas pessoas aqui de quem gostei realmente; talvez ver algumas delas seja terapêutico para mim.
"Quem sabe?", pensou, enquanto olhava de relance para o bloco de apontamentos para verificar a morada do Dr. Daniels, "Talvez um dia consiga vir a esta cidade sem
reviver a raiva e embaraço terríveis que senti desde que me apercebi de que o meu pai foi um patife."
O Dr. John Daniels escoltou Fran para o seu gabinete privado, sempre seguidos pelo olhar observador de Ruthie. Gostou imediatamente do que viu em Fran Simmons uma
jovem mulher calma e com voz suave, bem vestida, num estilo descontraído.
Por baixo da gabardina, Fran usava um casaco de tweed castanho e calças beges. Os cabelos castanho-claros com uma ondulação natural tocavam a gola do casaco. O Dr.
Daniels observou-a atentamente quando ela se instalou na cadeira defronte dele. Ela era realmente muito atraente. Eram os seus olhos, no entanto, que o intrigavam
verdadeiramente tinham um tom muito invulgar de
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azul-acinzentado. "Ficam mais azuis quando está feliz, ficam cinzentos quando está tensa", pensou. Percebeu inesperadamente que estava a ficar um pouco sonhador
de mais e abanou a cabeça. Não conseguia deixar de admitir para si mesmo que estava a observar Fran Simmons tão atentamente por causa do que Ruthie tinha revelado
sobre o pai dela. Esperava que ela não tivesse reparado.
Doutor, sabe que estou a planear fazer um programa sobre Molly Lasch e a morte do marido disse Fran, quase imediatamente, indo direita ao assunto. Sei que a Molly
lhe deu autorização para falar abertamente comigo.
Isso mesmo.
Ela era sua paciente antes da morte do marido?
Não, não era. Eu conhecia os pais dela, principalmente do clube de campo. Via a Molly lá desde que ela era uma criança.
Alguma vez, em algum momento, observou um comportamento agressivo nela?
Nunca.
Acredita nela quando ela diz que é incapaz de se recordar dos pormenores da morte do marido? Deixe-me refazer a pergunta, por favor. Acredita que ela não consegue
lembrar-se dos pormenores da morte do marido ou de o ter encontrado quando ele estava moribundo ou morto?
Acredito que a Molly está a dizer a verdade como ela a conhece.
Que quer dizer...?
O que quer dizer que o que quer que tenha acontecido naquela noite é tão doloroso que ela o empurrou para o fundo do subconsciente. Alguma vez vai recordar? Não
sei.
Se ela recuperar mesmo alguma recordação do que aconteceu naquela noite... por exemplo, sobre a sua sensação de que podia estar mais alguém lá em casa quando ela
voltou... será uma lembrança exacta?
John Daniels tirou os óculos e limpou-os. Voltou a pô-los, apercebendo-se, ao fazê-lo, de que, por muito ridículo que pudesse parecer, se tinha tornado tão dependente
deles que não os usar o fazia sentir-se vulnerável.
Molly Lasch sofre de amnésia dissociativa. Isso envolve falhas de memória que estão relacionadas com acontecimentos extremamente tensos e traumáticos. Obviamente,
a morte do marido, independentemente da forma como tiver acontecido, encaixa nessa categoria.
" Algumas pessoas que sofrem deste problema reagem bem à hipnose e conseguem recuperar a memória do acontecimento de uma forma significativa e muitas vezes fiel.
Molly concordou de bom-grado submeter-se à hipnose antes do julgamento, mas simplesmente não
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resultou. Pense nisso. Ela estava emocionalmente devastada pela morte do marido e aterrorizada pela iminência do julgamento, ou seja, demasiado angustiada e frágil
para poder ser hipnotizada com sucesso.
Existe alguma hipótese de ela recuperar gradualmente a memória exacta das coisas, doutor?
Gostaria de poder dizer que ela tem boa hipótese de recuperar a memória e de limpar o seu nome. Para ser honesto, penso que o que quer que ela possa vir a recordar
não será necessariamente digno de confiança. Se Molly parecer recuperar alguma noção do que aconteceu naquela noite, é muito possível que esteja a preencher a memória
com o que deseja que tenha acontecido. Ela pode acreditar honestamente que está mesmo a recordar o que aconteceu, mas isso não significará necessariamente que aconteceu
mesmo dessa maneira. É chamada "falsificação retrospectiva da memória".
De volta ao seu carro depois de sair do consultório do Dr. Daniels, Fran sentou-se durante vários minutos a tentar decidir o próximo passo. Eram três e um quarto.
Os escritórios do Greenwich Time ficavam apenas a alguns quarteirões de distância. De repente, pensou em Joe Hutnik. Ele trabalhava lá; tinha feito a cobertura da
libertação de Molly da prisão. Tinha sido inflexível ao declarar que acreditava que ela era culpada. "Também terá feito a cobertura do julgamento dela?", perguntou
a si mesma.
"Parece um tipo recto", pensou Fran, "e sem dúvida já anda nisto há muito tempo.
"Talvez demasiado tempo. Talvez ele também tenha feito a cobertura da história do teu pai. Queres realmente lidar com isso?"
Lá fora, o último sol de Inverno começava a desaparecer à medida que as nuvens densas e cinzentas se amontoavam. "Março, o mês imprevisível", pensou Fran, enquanto
continuava a hesitar sobre o que fazer a seguir. "Por que não arriscar?", decidiu por fim, pegando no telemóvel.
Quinze minutos depois estava a apertar a mão a Joe Hutnik. Ele estava no seu gabinete junto à sala de redacção cheia de computadores do Greenwich Time. Com cerca
de cinquenta anos, sobrancelhas largas e escuras e olhos alerta e inteligentes, indicou-lhe um banco de tamanho minúsculo, metade do qual albergava uma pilha de
livros.
Que é que a traz ao "Portal para a Nova Inglaterra", como a nossa bela cidade é conhecida, Fran? Não esperou por uma resposta. Não, deixe-me adivinhar. Molly Lasch.
Diz-se que está a fazer um programa sobre ela para o Crime Verdadeiro.
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As novidades correm depressa de mais para o meu gosto disse-lhe Fran. Podemos ser francos um com o outro, Joe?
Claro que sim. Desde que não me custe uma primeira página. Fran ergueu as sobrancelhas.
Você é cá dos meus. Pergunta: fez a cobertura do julgamento de Molly?
Quem não fez? Foi numa época com poucas notícias, e ela preencheu-a para todos nós.
Joe, eu posso tirar todas as informações de que preciso da Internet, mas, por muitos testemunhos que leia, é muito mais fácil avaliar a verdade quando conseguimos
ver o comportamento das testemunhas, especialmente no contra-interrogatório. Obviamente, você pensou que a Molly Lasch matou o marido.
Absolutamente.
Pergunta seguinte. Que é que pensava do Dr. Gary Lasch? Joe Hutnik recostou-se na cadeira da secretária, a girar de um lado para o outro enquanto pensava na resposta.
Depois, disse lentamente:
Fran, eu vivi em Greenwich a vida inteira. A minha mãe tem setenta e seis anos. Ela conta a história de quando a minha irmã teve pneumonia há quarenta anos. Tinha
três meses de idade. Naqueles tempos, os médicos iam a casa das pessoas. Era a visita ao domicílio. Não se dizia às pessoas que embrulhassem os miúdos e os levassem
às Urgências, certo?
Hutnik parou de girar a cadeira e dobrou as mãos na secretária.
Vivíamos no cimo de uma ladeira íngreme. O Dr. Lasch, Jonathan Lasch, quero dizer, o pai de Gary, não conseguiu levar o carro pela ladeira. As rodas não paravam
de patinar. Ele deixou o carro e subiu com neve pelos joelhos até à nossa casa. Isso aconteceu às onze horas da noite. Lembro-me de o ver debruçado sobre a minha
irmã. Tinha-a sob uma luz forte, deitada em cobertores em cima da mesa da cozinha. Deu-lhe uma injecção dupla de penicilina e certificou-se de que estava a respirar
sem dificuldade e de que a febre tinha baixado antes de ir para casa. De manhã voltou novamente para ver como estava.
Gary Lasch era esse género de médico? perguntou Fran. Hutnik pensou um momento antes de responder.
Ainda existem bastantes médicos dedicados em Greenwich, e em todo o lado, presumo. Gary Lasch era um deles? Honestamente, não sei a resposta para essa pergunta,
Fran, mas, pelo que ouvi, ele e o sócio, o Dr. Peter Black, estavam mais voltados para a vertente financeira da medicina e talvez um pouco menos para a prestação
de cuidados propriamente dita.
Parece que foram muito bem sucedidos. O Hospital Lasch
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duplicou de tamanho desde que o vi pela última vez comentou Fran. Esperava que a sua voz se mantivesse firme.
Desde que o seu pai morreu lá disse Hutnik, rapidamente. Escute, Fran, eu ando por aqui há muito tempo. Conheci o seu pai. Ele era um homem bom. É escusado dizer
que, tal como muitos outros residentes, não fiquei encantado ao ver todos os donativos desaparecerem da forma que desapareceram. Aquele dinheiro ia construir uma
biblioteca numa das zonas menos ricas da nossa cidade, para os miúdos poderem frequentá-la facilmente.
Fran estremeceu e desviou o olhar.
Desculpe disse Hutnik. Eu não devia ter falado no assunto. Vamos cingir-nos ao Gary Lasch. Depois de o pai morrer, ele trouxe o amigo médico para junto dele, o Dr.
Peter Lasch, de Chicago. Transformaram a Clínica Jonathan Lasch no Hospital Lasch. Deram início à Remington Health Management Organization, que é uma OCS realmente
bem sucedida.
Qual é a sua opinião sobre as organizações de prestação de cuidados de saúde em geral? perguntou Fran.
Concordo com o que a maioria das pessoas pensam. São um nojo. Mesmo as melhores... e penso que a Remington se pode enquadrar nessa categoria. Estão a pôr os médicos
entre a espada e a parede. A maior parte dos médicos têm de pertencer a um ou mais planos de prestação de cuidados de saúde, o que significa, é claro, que os seus
diagnósticos estão sujeitos a revisão e que se pensam que um paciente precisa de ser visto por um especialista o seu julgamento pode ser anulado. Para além disso,
os médicos são obrigados a esperar pelo seu dinheiro, quero dizer, até ao ponto de muitos deles ficarem numa posição financeira difícil. Os pacientes estão a ser
mandados para instalações longínquas apenas para os desencorajarem a fazer demasiadas visitas. E na época em que existem medicamentos e tratamentos para facilitar
as vidas das pessoas, os tipos que decidem se a pessoa tem direito a tratamento são os que ganham dinheiro se a pessoa não os fizer. Grande progresso, não lhe parece?
Joe abanou a cabeça, indignado.
Neste momento, a Remington Health Management, nas pessoas do director executivo, o Dr. Peter Black, e do presidente do Conselho de Administração, Cal Whitehall,
o nosso magnata residente, estão a negociar com o Estado para obterem autorização para comprar quatro OCS mais pequenas. Se isso acontecer, as acções da empresa
vão subir como uma flecha. Há algum problema com isso? Na verdade, não. Excepto que a American National Insurance também gostaria de ficar com as OCS mais pequenas,
e fala-se que também podem tentar uma compra hostil da Remington.
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É provável que isso aconteça?
Quem sabe? Provavelmente, não. A Remington Health Management e o Hospital Lasch têm uma boa reputação. Recuperaram do escândalo que envolveu o assassinato do Dr.
Gary Lasch e da revelação que ele tinha um caso amoroso com uma jovem enfermeira, mas tenho a certeza de que Peter Black e Cal Whitehall gostariam de ver o novo
negócio concretizado antes de a Molly Lasch voltar para a cidade com a sugestão de que a história do assassinato do doutor é mais complicada do que o que se soube
inicialmente.
Que género de "história mais complicada" é que poderia afectar uma fusão? perguntou Fran.
Joe encolheu os ombros.
Querida, por estranho que pareça, a escumalha está a ser afastada, pelo menos temporariamente. A American National é dirigida por um antigo bastonário da Ordem dos
Médicos que jura que vai reformar as organizações de prestação de cuidados de saúde. A Remington continua a ter mais força na aquisição, mas vivemos num mundo louco,
qualquer ventania fria pode gelar a colheita. E a menor possibilidade de escândalo pode desfazer o negócio.
"Não posso contar com ninguém", foi o primeiro pensamento de Molly ao acordar. Olhou de relance para o relógio. Seis e dez. "Nada mau", decidiu. Tinha ido para a
cama pouco depois de Jenna sair e isso significava que dormira sete horas.
Na prisão havia muitas noites em que não dormia nada, em que o sono era como uma pedra de gelo a fazer pressão entre os olhos enquanto ela desejava que derretesse
e escorresse pelo seu corpo.
Espreguiçou-se e deixou o braço esquerdo tocar a almofada vazia ao seu lado. Nunca tinha vizualizado Gary ao seu lado na estreita cama da prisão, mas agora estava
constantemente consciente da sua ausência, mesmo após todos aqueles anos. Era como se todo aquele tempo não tivesse passado de uma sequência de sonho. Sonho? Não,
pesadelo!
Tinha-se sentido tão completamente unida com ele. "Fomos unidos pela anca", era a sua expressão preferida nessa época. Teria andado a iludir-se?
"Naquele tempo, eu parecia presunçosa e convencida", pensou
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Molly, "e talvez fosse. Obviamente, também fui estúpida." Sentou-se na cama, completamente acordada. "Tenho de saber", pensou. "Quanto tempo é que durou aquele caso
amoroso com a enfermeira? Durante quanto tempo é que a minha vida com Gary foi uma mentira?"
Annamarie Scalli era a única pessoa que podia dar-lhe as respostas de que ela precisava.
Às nove horas telefonou para o escritório de Fran Simmons e deixou o nome do Dr. Daniels. Às dez telefonou para Philip Matthews. Só tinha estado no escritório dele
algumas vezes, mas conseguia visualizá-lo com clareza. Do seu gabinete do World Trade Center via-se a estátua da Liberdade. Quando lá estivera a ouvi-lo planear
a sua defesa, aquilo tinha-lhe parecido incongruente clientes em risco de ir para a prisão a observar o símbolo da liberdade.
Molly recordou-se de comentar isso com Philip, e ele dissera que considerava que ver a estátua podia funcionar como um prenúncio: quando aceitava um cliente, o seu
objectivo era a liberdade para ele.
Molly achou que Philip podia muito bem ter a última morada de Annamarie Scalli, porque ela tinha sido intimada para testemunhar no julgamento. Pelo menos, seria
um lugar por onde começar.
Philip Matthews tinha estado indeciso quanto a telefonar ou não a Molly, por isso, quando a secretária anunciou o telefonema ele pegou rapidamente no auscultador.
Desde o momento que saíra da prisão que ela lhe consumia os pensamentos. O facto de duas noites antes ter estado num jantar em que o entretenimento era saber o futuro
não tinha ajudado em nada. Como era um convidado, não havia maneira de evitar participar nos jogos, embora colocasse todas as adivinhações do futuro leitura da palma
da mão, astrologia, cartas de tarot, tabuleiros Ouija na mesma categoria: charlatanice.
Mas a verdade é que a vidente o tinha deixado apreensivo. Tinha estudado as cartas que ele escolhera, franzira o sobrolho, voltara a baralhar e mandara-o tirar outras,
e depois dissera em voz baixa:
Alguém próximo de si, uma mulher, creio, corre grande perigo. Sabe quem poderá ser?
Philip tentou dizer a si mesmo que a mulher a quem ela se referia era uma cliente que tinha sido acusada de homicídio veicular e cumpriria sem dúvida uma pena de
prisão, mas todos os seus instintos lhe diziam que a vidente estava a falar de Molly.
Agora, Molly confirmava os seus receios de que não tinha a intenção de deixar os pais virem para Greenwich para ficarem com ela.
Ainda não disse ela com firmeza. Philip, eu quero encontrar a Annamarie Scalli. Tens a última morada dela?
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Esquece tudo isso, Molly. Por favor. Acabou. Tu precisas de continuar com a tua vida.
É o que estou a tentar fazer. E é por isso que preciso de falar com ela.
Philip suspirou.
O último endereço conhecido dela foi o apartamento onde vivia na altura da morte de Gary. Não faço a menor ideia onde estará agora.
Ele percebeu que ela se preparava para desligar e estava ansioso por mantê-la em linha.
Molly, vou a tua casa. Se não quiseres ir jantar comigo, fico lá a bater à porta até os vizinhos se aborrecerem.
De certa forma, Molly imaginava-o a fazer isso mesmo. A voz dele tinha a mesma intensidade que ela vira no julgamento quando estava a contra-interrogar testemunhas.
Ele era, sem dúvida, um homem determinado, acostumado a conseguir aquilo que queria. No entanto, ainda não queria vê-lo.
Philip, preciso de mais algum tempo só para mim. Escuta, hoje é quinta-feira. E se viesses cá jantar no sábado? Eu não quero sair. Cozinho alguma coisa.
Momentos depois, ele aceitou o convite, resolvendo, por enquanto, satisfazer-se com isso.
Edna Barry estava a assar um frango. Era um dos jantares preferidos de Wally, especialmente quando ela fazia o seu próprio recheio. A verdade é que ela usava uma
mistura de recheio já preparada, mas o segredo era acrescentar cebolas salteadas e aipo e mais concentrado de galinha.
A fragrância convidativa encheu a casa, e o acto de cozinhar acalmou Edna. Recordou-lhe os anos em que o marido, Martin, estava vivo e Wally era um rapazinho inteligente
e normal. Os médicos diziam que não fora a morte de Martin que desencadeara a mudança no filho. Disseram que a esquizofrenia era uma doença mental que aparecia frequentemente
na adolescência ou no princípio da idade adulta.
Edna não acreditava que fosse essa a resposta. "Wally teve sempre saudades do pai", dizia às pessoas.
Por vezes, Wally falava em casar-se e ter uma família, mas ela sabia que agora provavelmente isso não ia acontecer. As pessoas não
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queriam estar ao pé dele. Ele era demasiado susceptível, perdia a cabeça com demasiada facilidade.
O que aconteceria a Wally depois de ela falecer era uma preocupação constante para Edna. Mas pelo menos enquanto estava viva podia cuidar dele, deste seu filho que
tinha sido tão maltratado pela vida. Conseguia obrigá-lo a tomar os medicamentos, embora soubesse que por vezes ele os cuspia.
Wally tinha reagido muito bem ao Dr. Morrow. Se ao menos ele ainda estivesse vivo...
Ao fechar a porta do forno, Edna pensou em Jack Morrow, o jovem médico dinâmico que tinha sido tão bom para pessoas como Wally. Ele era clínico geral e tinha o consultório
no rés-do-chão da sua modesta casa, a apenas três quarteirões dali. Tinha sido encontrado morto com um tiro apenas duas semanas antes de o Dr. Lasch morrer.
É claro que as circunstâncias tinham sido completamente diferentes. O armário de medicamentos do Dr. Morrow tinha sido arrombado e esvaziado. A Polícia tinha a certeza
de que se tratara de um crime relacionado com drogas. Tinham interrogado todos os seus pacientes. Edna disse sempre a si mesma que era engraçado estar grata por
o seu filho ter partido um tornozelo pouco antes disso. Ela tinha-o obrigado a pôr o gesso pouco antes de os polícias irem falar com ele.
Ao fim de apenas um dia soube que nunca devia ter voltado a trabalhar para Molly Lasch. Era demasiado perigoso. Havia sempre a possibilidade de Wally conseguir encontrar
o caminho para a casa de Molly, como tinha acontecido poucos dias antes de o Dr. Lasch morrer. Ela dissera-lhe para esperar na cozinha, mas depois ele tinha entrado
no escritório do Dr. Lasch e agarrara na escultura Remington.
"Haveria algum fim para as preocupações?", pensou Edna. "Nunca", disse para si mesma. Suspirou e começou a pôr a mesa.
Mamã, a Molly está em casa, não está?
Edna levantou os olhos. Wally estava à porta, de mãos nos bolsos, os cabelos escuros caídos para a frente na testa.
Porque é que queressaber, Wally? perguntou ela, bruscamente.
Porque quero vê-la.
Não podes ir a casa dela, nunca!
Eu gosto dela, mamã. Os olhos de Wally estreitaram-se como se ele estivesse a tentar recordar alguma coisa. Enquanto olhava por cima do ombro de Edna, disse: Ela
não gritaria comigo como o Dr. Lasch fez, pois não?
Edna sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Wally não aludia àquele incidente há anos, não desde que ela o proibira de falar no Dr. Lasch e na chave que encontrara
no bolso dele um dia depois do homicídio.
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Molly é muito bondosa para toda a gente disse ela com firmeza. Mas nunca mais vamos falar sobre o Dr. Lasch, pois não?
Está bem, mamã. No entanto, estou contente por o Dr. Lasch estar morto. Ele não vai voltar a gritar comigo. A sua voz estava completamente desprovida de emoção.
O telefone tocou. Nervosa, Edna atendeu. O seu "estou" foi proferido num tom de voz que tremia de ansiedade.
Sr.a Barry,espero não estar a incomodá-la. Fala a Fran Simmons. Encontrámo-nos ontem em casa de Molly Lasch.
Sim. Lembro-me. De repente, Edna Barry apercebeu-se de que estava a falar de uma forma muito abrupta. É claro que me lembro disse, numa voz mais calorosa.
Gostaria de saber se poderei ir a sua casa e passar algum tempo com a senhora no sábado.
Sábado? Edna Barry procurou freneticamente uma razão para se recusar a ver Fran.
Sim. A menos que domingo ou segunda-feira fosse mais conveniente.
"Porquê incomodar-me a adiar?", decidiu. Era evidente que não conseguiria afastar a mulher.
Pode ser no sábado disse Edna, tensa.
Onze horas é cedo de mais?
Não.
Muito bem, deixe-me confirmar se tenho a morada certa.
Quando desligou o telefone, Fran pensou, "Aquela mulher está com os nervos destroçados. Ouvi a tensão na sua voz. Ontem também estava enervadíssima, quando fui a
casa da Molly. Por que é que estará tão enervada?", perguntou a si mesma.
Edna Barry era a pessoa que tinha encontrado o corpo de Gary Lasch. Seria possível que a decisão de Molly de voltar a contratá-la estivesse relacionada com alguma
intuição vaga que ela tinha sobre a versão dos acontecimentos dada pela governanta?
"Perspectiva interessante", pensou Fran quando, depois de verificar o frigorífico, vestiu de novo o casaco com a ideia de descer o quarteirão para ir buscar um hambúrguer
ao P. J. Clarke's.
Percorreu rapidamente a Rua Cinquenta e Seis e pensou na possibilidade interessante de que talvez Molly pudesse não ser a única pessoa a sofrer de falsificação retrospectiva
da memória.
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Sei que és uma mulher inteligente, Jenna. Por isso, sou levado a pensar que podes compreender o que quero dizer quando afirmo que Annamarie Scalli, para todos os
desígnios e objectivos, desapareceu do cimo da terra. E mesmo que conseguisse localizá-la, e não consigo, garanto-te que não daria informações do seu paradeiro a
Molly Lasch, nem pensar!
As manchas encarnadas nas maçãs do rosto de Calvin Whitehall foram um aviso para a mulher de que ele estava impaciente, mas Jenna resolveu ignorá-las.
Que objecção é que podes ter a que Molly tente entrar em contacto com essa mulher, Cal? Talvez possa ajudá-la, talvez possa proporcionar-lhe uma espécie de conclusão.
Estavam a tomar café e sumo na sala de estar ao lado do quarto. Jenna estava pronta para sair para o emprego e tinha o casaco e a bolsa numa cadeira próxima, Calvin
pousou a chávena de café com força.
Não quero saber de Molly. O que precisa de ser concluído são as negociações em que ando a trabalhar há três anos para benefício de ambos. Respirou fundo. Agora é
melhor ires apanhar o teu comboio. Nem sequer o Lou conseguirá levar-te à estação a tempo se esperares muito mais.
Jenna levantou-se.
Acho que esta noite vou ficar no apartamento.
Como queiras.
Olharam um para o outro por instantes e depois a expressão de Calvin Whitehall mudou e ele sorriu.
Minha querida menina, gostava que pudesses ver a tua expressão. Aposto que se tivesses na mão aquela escultura do cavalo com o vaqueiro me farias o mesmo que a Molly
fez ao Gary. Não há dúvida de que as raparigas da Academia Cranden têm sentimentos fortes.
Jenna empalideceu.
Tu estás realmente preocupado com as tuas negociações, não estás, Cal? Normalmente, não és tão cruel.
Normalmente, também não estou em risco de ver um negócio de muitos biliões de dólares escorregar-me por entre os dedos. Tu és a única pessoa que parece ter influência
sobre Molly, Jen. Logo que seja possível, convence-a a ir para Nova Iorque contigo. Mete-lhe juízo na cabeça. Recorda-lhe que, ao tentar convencer-se a si própria
e ao mundo de que não matou Gary, está apenas a manchar ainda mais a memória dele e, provavelmente, a magoar-se ainda mais durante o processo.
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Sem responder, Jenna vestiu o casaco e pegou na bolsa. Enquanto se dirigia para a escadaria, o marido disse:
Um negócio de muitos biliões de dólares, Jen. Admite. Tu também não queres estragar isso.
Lou Knox, há muito tempo motorista e ajudante-de-campo de Cal, saiu rapidamente do carro quando viu Jenna sair de casa. Manteve a porta do veículo aberta, fechou-a
depois de ela entrar e, passados alguns segundos, já estava atrás do volante.
Bom dia, Dr.a Whitehall. Parece que hoje estamos em cima da hora. Bom, posso ir levá-la, se perdermos o comboio.
Não, Cal quer o carro e eu não quero o trânsito disse Jenna, rispidamente. Por vezes, as observações alegres de Lou irritavam-na, mas ele fazia parte da mobília.
Tinha sido colega de turma de Cal no liceu que tinham frequentado, esquecido por Deus, e Cal trouxera-o consigo quando chegara a Greenwich, há quinze anos.
Jenna era a única que sabia a história da amizade dos dois homens. "Escusado será dizer que Lou compreende que não precisa de ser do conhecimento geral o facto de
que cantámos canções escolares juntos", era a maneira como Cal punha a coisa.
Mas havia coisas que ela apreciava em Lou. Ele reagia aos seus estados de espírito. Pressentiu imediatamente que ela não queria falar e ligou sem demora o rádio
na estação de música clássica que ela preferia, mantendo o volume baixo. Era uma exigência dela, a não ser que, por algum motivo, quisesse ouvir a estação de notícias.
Lou tinha a idade de Cal, quarenta e seis anos, e, embora estivesse em boa forma física, Jenna tinha sentido sempre que havia nele alguma coisa pouco saudável. Era
um pouco subserviente de mais para o seu gosto, um pouco ansioso de mais para agradar. Não confiava nele. Mesmo agora, durante a curta viagem para a estação, teve
a sensação de que os olhos dele estavam a estudá-la pelo espelho retrovisor, a avaliar a sua disposição.
"Fiz todos os possíveis", disse para si mesma, a pensar na discussão que tivera com o marido. "Não há hipótese de Cal ajudar Molly a localizar a Annamarie Scalli."
Porém, ao invés de sentir raiva, sabia que, apesar do ressentimento pelo tom que ele tinha usado, a relutante admiração pelo marido era mais forte.
Cal era um homem poderoso e tinha o carisma que acompanhava esse poder. Subira a pulso desde aquela primeira empresa informática que ele referia como a operação
loja-de-doces-da-mamã-e-do-papá, até se transformar num homem cujo nome impunha respeito. Ao contrário dos empresários exibicionistas que faziam parangonas quando
ganhavam e perdiam fortunas, Cal preferia manter-se essencialmente na sombra, embora fosse conhecido e respeitado como
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uma figura de peso no mundo financeiro, e temido por quem quer que se atravessasse no seu caminho.
Poder fora também o que atraíra Jenna para ele em primeiro lugar. E era também o que continuava a encantá-la. Gostava do seu trabalho como sócia numa prestigiada
firma de advogados. Era algo que conseguira por mérito próprio. Se Cal nunca tivesse aparecido, ela poderia ter tido uma carreira de sucesso, e esse conhecimento
dava-lhe uma sensação de possuir o seu território privado. "O pequeno hectare da Jenna", chamava-lhe Cal, mas sabia que ele a respeitava por isso.
Mas ao mesmo tempo adorava ser a Sr.a Calvin Whitehall, com todo o prestígio que continuava a acumular-se à volta daquele nome. Ao contrário de Molly, ela nunca
tinha desejado ansiosamente ter filhos nem a elitista vida suburbana que a sua mãe e a mãe de Molly tinham vivido sempre.
Estavam a aproximar-se da estação. O apito do comboio soou.
Mesmo a tempo disse Lou, satisfeito. Parou, saiu de um salto e abriu-lhe a porta. Quer que venha buscá-la esta noite, Dr.a Whitehall?
Jenna hesitou e depois disse:
Sim, chego à hora do costume. Podes dizer ao meu marido que me espere.
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Bom dia, doutor.
Peter Black levantou os olhos. A incerteza no rosto da secretária avisou-o de que o que ela se preparava para lhe dizer não seria bem recebido. Como pessoa, Louise
Unger era tímida, mas como secretária era extremamente eficiente. A sua timidez aborrecia-o; mas valorizava a sua eficiência. Os seus olhos voltaram-se para o relógio
de parede. Eram apenas oito e meia. Ela tinha chegado cedo ao emprego, como acontecia com frequência.
Murmurou um cumprimento e esperou.
O Dr. Whitehall telefonou, Sr. Doutor. Teve de atender outro telefonema, mas pede-lhe que fique disponível. Louise Unger hesitou. Pareceu-me que ele estava muito
perturbado.
Peter Black já tinha aprendido há muito a controlar os músculos faciais para que as emoções não se reflectissem na sua expressão. Com um fraco sorriso, disse:
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Obrigado pelo aviso, Louise. O Dr. Whitehall está muitas vezes perturbado. Nós sabemos isso, não sabemos?
A mulher assentiu ansiosamente, os olhos de passarinho a brilhar enquanto acenava com a cabeça.
Só queria avisá-lo antecipadamente, Sr. Doutor.
Para ela, esta era uma declaração arrojada. Peter Black resolveu ignorá-la.
Obrigado, Louise disse, suavemente.
O telefone na sua secretária tocou. Ele acenou, indicando que ela devia atender.
Ela começou a dizer "consultório do Dr. Black", mas não foi mais longe do que "Doutor..."
É o Dr. Whitehall, Sr. Doutor disse, pondo o telefone em espera. Sabia o suficiente para sair rapidamente e fechar a porta.
Peter Black tinha plena consciência de que mostrar fraqueza a Calvin Whitehall era estar condenado. Tinha ensinado a si mesmo a ignorar as referências de Cal ao
que ele bebia e estava convencido de que o único motivo que levava Cal a restringir-se a um copo de vinho era provar a sua força de vontade superior.
Pegou no telefone e falou imediatamente.
Como é que vai o império, Cal? Peter Black gostava de fazer aquela pergunta. Sabia que irritava Cal.
Iria muito melhor se Molly Lasch não andasse por aí a fazer ondas. Peter teve a sensação de que o tom ressonante da voz de Calvin
Whitehall estava a fazer o auscultador vibrar. Segurou-o com a mão esquerda e esticou deliberadamente os dedos da mão direita, um truque que tinha engendrado para
aliviar a tensão.
Pensei que já tínhamos estabelecido que ela andava a fazer ondas respondeu.
Sim, depois de Jenna ater visto anteontem à noite. Molly quer que eu descubra Annamarie Scalli. Insiste que tem de a ver, e é óbvio que não pretende esquecer o assunto.
Jenna esteve a chatear-me com esse assunto hoje de manhã. Eu disse-lhe que não fazia a menor ideia aonde Annamarie se encontrava.
Eu também não. Black sabia que o seu tom era calmo, as palavras precisas. Recordou o pânico na voz de Gary Lasch: "Annamarie, é para o bem do hospital. Tens de ajudar."
"Na época, não sabia que ela estava envolvida com o Gary", pensou Peter Black. "E se Molly conseguisse encontrá-la agora?", perguntou a si mesmo. "E se Annamarie
decidisse contar o que sabe? Que é que aconteceria nesse caso?"
Percebeu que Cal ainda estava a falar. Que é que estava a perguntar?
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.. existe alguém no hospital que se possa ter mantido em contacto com ela?
Não faço ideia.
Um minuto depois, o Dr. Peter Black desligou e falou para o intercomunicador.
Não me passe nenhum telefonema, Louise.
Pousou os cotovelos em cima da secretária e pressionou a testa com as palmas das mãos.
A corda estava a esgaçar. Como poderia impedi-la de partir e de o atirar ruidosamente para o chão?
Ela não te quis preocupar, Billy.
Billy Gálio olhou para o pai, do outro lado da cama onde a mãe se encontrava, enquanto permaneciam na unidade de Cuidados Intensivos no Hospital Lasch. Os olhos
de Tony Gálio estavam cheios de lágrimas. Tinha os poucos cabelos grisalhos despenteados e a mão que acariciava o braço da mulher estava a tremer.
O parentesco entre os dois homens era inegável. Tinham feições marcadamente semelhantes olhos castanho-escuros, lábios cheios, maxilares quadrados.
Tony Gálio, funcionário de segurança de uma empresa, já reformado, com sessenta e seis anos, era agora guarda da passagem de peões de uma escola na cidade de Cos
Cob, uma figura severa e de confiança no cruzamento da Willow com a Pine. O filho, Billy, de trinta e cinco anos, tocava trombone na orquestra da companhia itinerante
de um musical da Broadway, e tinha vindo de avião de Detroit.
Não foi a mãe que não me quis preocupar disse Billy, num tom zangado. O pai é que não a deixou telefonar, não foi?
Billy, tu estiveste desempregado durante seis meses. Não queríamos que perdesses este emprego.
Que se lixe o emprego! Deviam ter-me chamado... Eu tê-los-ia enfrentado. Quando lhe recusaram autorização para ir a um especialista, eu não os teria deixado levarem
a sua avante.
Billy, tu não compreendes; o Dr. Kirkwood lutou para conseguir que ela fosse vista por um especialista. Agora autorizaram a cirurgia. Ela vai ficar boa.
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Mesmo assim, ele não a mandou a um especialista a tempo.
Josephine Gálio mexeu-se. Ouvia o marido e o filho a discutirem e tinha a vaga consciência de que era por sua causa. Sentia-se ensonada e sem peso. De certa forma,
era uma sensação agradável, estar ali deitada e quase a flutuar, sem ter de fazer parte da discussão entre os dois. Estava cansada de implorar a Tony que ajudasse
Billy quando ele estava desempregado. Billy era um bom músico e não estava talhado para um emprego das nove às cinco. Tony não conseguia compreender isso.
Não parava de ouvir as suas vozes zangadas. Não queria que discutissem mais. Josephine recordou a dor que a tinha arrancado ao sono nessa manhã; era a mesma dor
de que tinha falado ao Dr. Kirkwood, o seu médico de clínica geral.
Eles ainda estavam a discutir; as suas vozes pareciam estar a ficar mais alteradas, e ela queria pedir-lhes que fizessem o favor de se calar. Depois, algures à distância,
ouviu sinos a tocar. Ouviu passos a correr. E uma dor como a que a tinha acordado voltou em força. Uma onda gigante de dor. Tentou comunicar com eles:
- Tony... Billy...
Enquanto soltava o último suspiro, ouviu as suas vozes, em simultâneo, ansiosas, cheias de medo, inundadas de desgosto: "Mããããeeeeeeee", "Josiieeeeeeee." Depois
não ouviu nada.
23
Ao meio-dia e um quarto, Fran entrou no átrio do Hospital Lasch. Afastando as recordações daquele mesmo lugar anos antes, recordações de andar a cambalear e dos
braços da mãe à sua volta, obrigou-se a parar e a observar o espaço.
O balcão de recepção/informações situava-se na parede mais afastada, do lado oposto à entrada. "Isso é bom", pensou. Não queria uma voluntária solícita ou um guarda
a oferecerem-se para ajudar a orientá-la até um paciente. Se isso acontecesse, ela tinha uma história preparada: vinha buscar uma amiga que tinha vindo visitar um
paciente.
"Qualquer paciente", pensou.
Analisou a área. O mobiliário sofás e cadeiras individuais estava revestido com uma imitação de pele verde e tinha braços e pernas de plástico num acabamento final
de carvalho. Menos de
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metade dos assentos estavam ocupados. Um corredor à esquerda do balcão da recepção tinha uma seta e um letreiro onde se lia ELEVADORES. Depois, Fran encontrou o
que procurava o letreiro do outro lado do átrio dizia CAFETARIA. Enquanto se dirigia para lá, passou pela máquina de jornais. O jornal semanal da comunidade estava
em exposição e na primeira página vinha uma fotografia de Molly à porta da prisão. Fran procurou moedas no bolso.
Tinha chegado propositadamente antes do início da confusão da hora do almoço, e ficou à porta da cafetaria durante alguns momentos a olhar em volta, tentando escolher
o lugar mais vantajoso possível. O restaurante tinha cerca de vinte mesas e um balcão com uma dúzia de bancos altos. As duas mulheres atrás do balcão, com aventais
às riscas, eram voluntárias do hospital.
Havia quatro pessoas sentadas ao balcão; aproximadamente outras dez estavam espalhadas pelas mesas. Três homens com batas brancas, obviamente médicos, estavam embrenhados
na conversa junto à janela. Havia uma pequena mesa vazia ao lado da deles. Por momentos, Fran hesitou entre pedir ou não aquela mesa, quando a recepcionista, também
de avental às riscas, se aproximou dela.
Vou para o balcão disse Fran, rapidamente. Quando estivesse a tomar o café talvez conseguisse meter conversa com uma das voluntárias que trabalhavam ali. As duas
mulheres pareciam ter sessenta e poucos anos. Talvez uma ou as duas já fossem voluntárias ali há seis anos, quando Gary Lasch administrava o hospital.
A mulher que lhe serviu o café e uma baguete usava um dístico com um rosto sorridente onde se lia: "OLÁ, sou A SUSAN BRANAGAN." Uma mulher de rosto agradável, com
cabelos brancos e modos apressados que sentia claramente que parte do seu trabalho era fazer as pessoas falarem.
Dá para acreditar que a Primavera está a menos de duas semanas de distância? perguntou ela.
Aquilo deu a Fran a oportunidade que procurava.
Tenho vivido na Califórnia, por isso é difícil voltar a acostumar-me ao clima da Costa Este.
Veio visitar alguém ao hospital?
Estou apenas à espera de uma amiga que veio fazer uma visita. Já é voluntária há muito tempo?
Susan Branagan rejubilou^
Acabei de receber o meu crachá de dez anos.
Acho que é maravilhoso oferecer-se para ajudar aqui disse Fran com sinceridade.
Eu ficaria perdida se não viesse ao hospital três vezes por semana. Sou viúva e os meus filhos são casados e estão ocupados com
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as suas próprias vidas. Que é que faria com a minha vida, não me diz?
Claramente, era uma pergunta retórica.
Acho que deve ser muito enriquecedor disse Fran. Tentando parecer casual, pousou o jornal comunitário em cima do balcão, colocando-o de forma a que Susan Branagan
não pudesse deixar de ver a fotografia de Molly e o título por cima: VIÚVA DO DR LASCH AFIRMA
A SUA INOCÊNCIA.
A Sr.a Branagan abanou a cabeça.
Pode não se ter apercebido, uma vez que é da Califórnia, mas o Dr. Lasch era o director deste hospital. Foi um escândalo terrível quando ele morreu. Só tinha trinta
e seis anos e era um homem muito atraente.
Que é que aconteceu? perguntou Fran.
Oh, ele envolveu-se com uma enfermeira jovem que trabalhava aqui, e a mulher dele... bom, acho que a pobre senhora deve ter tido um ataque de loucura temporária,
ou uma coisa desse género. Disse que não se lembrava de o ter morto, embora ninguém acredite verdadeiramente nisso, é claro. Foi uma perda e uma tragédia enorme.
E o mais triste é que a enfermeira, a Annamarie, era a rapariga mais doce do mundo. Se quer que lhe diga, era a última pessoa no mundo que eu pensaria que andava
com um homem casado.
Está sempre a acontecer comentou Fran.
É verdade, não é? Mas, mesmo assim, foi uma surpresa completa, pois havia um jovem médico, que era o homem mais simpático do mundo, que gostava realmente dela. Todos
pensávamos que esse romance iria florescer, mas acho que o Dr. Lasch lhe deu a volta à cabeça. De qualquer maneira, o pobre Dr. Morrow, que descanse em paz, foi
abandonado.
Dr. Morrow. Descanse em paz.
Não se está a referir ao Dr. Jack Morrow, está?
Oh, conhecia-o?
Vi-o uma vez, há anos, quando estive cá durante algum tempo. Fran pensou no rosto bondoso do médico que tinha tentado consolá-la naquela noite terrível, há catorze
anos, quando ela e a mãe tinham seguido o pai moribundo para o hospital.
Ele foi morto no seu consultório apenas duas semanas antes de o Dr. Lasch ser assassinado. O seu armário de medicamentos tinha sido arrombado. Susan Branagan suspirou,
a recordar aquela época. Dois médicos jovens, ambos a morrerem tão violentamente. Sei que as mortes não estiveram relacionadas, mas pareceu-me uma coincidência terrível.
"Coincidência?", pensou Fran, e ambos envolvidos com Annamarie
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Scalli. Quando se tratava de homicídio havia uma coisa chamada coincidência?
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"Três noites em casa", pensou Molly. "Três manhãs a acordar na minha cama, no meu quarto."
Naquela manhã acordou alguns minutos antes das sete, desceu até à cozinha, fez café, encheu a sua caneca preferida e voltou para cima, com o café fragrante e a fumegar.
Endireitou as almofadas, deitou-se novamente e bebericou o café sem pressa. Olhou em volta do quarto, completamente consciente de um espaço que durante os cinco
anos do seu casamento ela tinha tido como certo.
Durante as noites sem dormir na prisão tinha pensado no seu quarto, pensado nos seus pés a tocarem o pêlo marfim da alcatifa, pensado no toque da camisa-de-dormir
de seda na pele, na cabeça a afundar-se nas almofadas grandes e fofas, nas persianas levantadas para poder olhar para o céu nocturno, uma coisa que fazia muitas
vezes com o marido a dormir calmamente a seu lado.
Enquanto bebericava o café, Molly reflectiu sobre os meses e anos de noites longas na prisão. Quando a sua mente clareara lentamente, tinha começado a formular as
perguntas que agora quase a obcecavam. Perguntas como: se Gary tinha sido capaz de a enganar tão completamente sobre a relação íntima de ambos, seria possível que
tivesse sido também desonesto em outras áreas da sua vida?
Preparava-se para ir tomar um duche quando parou para olhar pela janela. Era uma coisa muito simples, e no entanto era algo que lhe tinha sido negado durante cinco
anos e meio, e a liberdade daquele gesto ainda a surpreendia. Estava outro dia nublado e viu pedaços de gelo no passeio; mesmo assim, impulsivamente, decidiu vestir
um fato de treino e ir correr.
"Correr livremente", pensou, enquanto começava a vestir rapidamente as roupas de corrida. "E estou livre... para sair sem pedir autorização e sem esperar que as
portas sejam destrancadas." Sentiu uma felicidade inesperada. Dez minutos depois andava a correr pelas ruas antigas e conhecidas que, de repente, lhe pareciam desconhecidas.
"Por favor, que ninguém me reconheça", rezou. "Que eu não seja reconhecida por alguém que vá a passar de carro." Passou pela casa
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de Kathryn Busch, uma casa colonial antiga e encantadora na esquina da Lake Avenue. Lembrou-se de que Kathryn fazia parte do Conselho de Administração da Sociedade
Filarmónica e estivera muito envolvida na tentativa de criar um grupo de câmara.
"Tal como Bobbitt Williams", pensou Molly, imaginando o rosto da antiga colega de escola que quase tinha desaparecido da sua memória. "Bobbitt andava em Cranden,
na mesma turma que Jenna,Fran e eu, mas nunca foi muito sociável, e depois mudou-se para Darien."
Enquanto corria, a cabeça pareceu desanuviar e as pessoas e as casas e as ruas ficaram nítidas. Os Browns tinham acrescentado uma ala. Os Cateses tinham pintado
a casa. De súbito, apercebeu-se de que era a primeira vez que estava na rua, assim sozinha, desde aquele dia, há cinco anos e meio, em que tinha sido algemada, acorrentada
e fechada na carrinha para a viagem até à Prisão Niantic.
Esta manhã o vento estava gelado, mas revigorante ar fresco e limpo que lhe varreu os cabelos e lhe encheu os pulmões e o corpo, fazendo Molly sentir que, milímetro
a milímetro, os seus sentidos começavam a voltar à vida.
Estava a respirar pesadamente e já com dores quando, após uma corrida de três quilómetros em círculo, voltou a subir o seu caminho de acesso. Dirigia-se para a porta
da cozinha quando um impulso súbito a levou a cortar caminho pelo relvado gelado e a percorrer quase todo o comprimento da casa até ficar diante da janela do aposento
que tinha sido o escritório de Gary. Parou, aproximou-se da janela, afastou os arbustos e espreitou lá para dentro.
Por um breve instante, esperou ver a bonita secretária Wells Fargo de Gary ainda ali, as paredes forradas com painéis de mogno, estantes repletas de compêndios de
Medicina, as esculturas e os quadros que Gary coleccionara com tanto entusiasmo. Ao invés disso, viu um aposento que não passava de mais uma sala numa casa demasiado
grande para uma pessoa. A mobília impessoal forrada a chintz e as mesas de carvalho esbranquiçadas pareceram-lhe de súbito muito pouco atraentes.
Eu estava à porta, a olhar para a rua.
Foi um pensamento fortuito que lhe ocorreu de repente e desapareceu com igual rapidez.
De súbito semiconsciente da possibilidade de ser observada a espreitar pela janela da sua própria casa, Molly recomeçou a subir os degraus e entrou pela porta da
cozinha. Enquanto descalçava os ténis, percebeu que tinha tempo para tomar outra chávena de café e comer um queque antes de a Sr.a Barry chegar.
Sr.a Barry.
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Watty.
"Estranho, porque é que, sem mais nem menos, teria pensado nele?", reflectiu Molly enquanto voltava para cima, desta vez para tomar finalmente o seu duche.
Fran telefonou-lhe ao fim da tarde do escritório onde se encontrava a preparar-se para a emissão do noticiário da noite.
Molly, uma pergunta rápida disse ela. Conhecias o Dr. Jack Morrow?
A mente de Molly foi arrastada para uma distância de anos esquecidos, para aquela manhã em que um telefonema lhes tinha interrompido o pequeno-almoço. Tinha sabido
imediatamente que eram más notícias. O rosto de Gary ficara doentiamente cinzento enquanto escutava em silêncio. E depois de desligar proferira, quase num sussurro:
"Jack Morrow foi encontrado morto no seu consultório, alvejado com um tiro. Aconteceu a noite passada, não se sabe a que horas."
Conhecia-o mal disse-lhe Molly. Ele fazia parte da equipa do hospital e eu tinha-o encontrado em algumas festas de Natal, nesse género de acontecimentos. Ele e Gary
foram mortos com duas semanas de intervalo.
Subitamente consciente das suas próprias palavras, imaginou como aquela declaração devia soar a Fran. "Foram mortos." Uma coisa que tinha acontecido a dois homens,
mas não tinha nada a ver com qualquer acto que ela tivesse praticado. "Pelo menos, ninguém pode dizer que estive envolvida na morte de Jack Morrow. Nessa noite,
Gary e eu estivemos num jantar." Disse isso a Fran.
Molly, tens de saber que eu não estava a sugerir que tiveste alguma coisa a ver com a morte do Dr. Morrow declarou Fran. Só o mencionei porque descobri uma coisa
interessante. Sabias que ele estava apaixonado pela Annamarie Scalli?
Não, não sabia.
Está a tornar-se óbvio que tenho de falar com a Annamarie. Conheces alguém que possa saber onde ela está?
Já falei com a Jenna para pedir aos homens do Cal que a encontrem, mas Jen diz que Cal não se quer envolver.
Seguiu-se um momento de silêncio antes de Fran reagir.
Não me disseste que andavas a tentar localizar a Annamarie Scalli.
Molly percebeu o tom espantado na voz de Fran.
Fran explicou, o meu desejo de falar pessoalmente com Annamarie não tem nada a ver com a tua investigação. Os cinco anos e meio que passei na prisão estiveram directamente
relacionados com
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o facto de o meu marido estar a ter um caso amoroso com ela. Parece muito estranho que uma pessoa que eu nem sequer conhecia possa ter tido um impacto tão grande
na minha vida. Vamos fazer um acordo: se eu a localizar, ou se tiver uma pista, digo-te. Do mesmo modo, se tu a descobrires, dizes-me, está bem?
Vou ter de pensar no assunto respondeu Fran. Acho que vou telefonar ao teu advogado para lhe perguntar se sabe dela. A Annamarie estava na lista de testemunhas intimadas
para o teu julgamento, e ele deve ter a última morada dela no arquivo.
Eu já falei com Philip sobre isso e ele jura que não tem.
De qualquer maneira, vou falar com ele, nunca se sabe. Tenho de me despachar. Fran fez uma pausa. Tem cuidado, Molly.
Curioso. Jenna disse-me o mesmo na outra noite.
Molly pousou o auscultador e pensou no que tinha dito a Philip Matthews que, se alguma coisa lhe acontecesse, pelo menos isso serviria para provar que alguém tinha
motivos para temer a investigação de Fran sobre a morte de Gary.
O telefone tocou de novo. Instintivamente, soube que eram a mãe e o pai a telefonar da Florida. Falaram das coisas inconsequentes do costume antes de abordarem o
tema de como ela estava a reagir ao "sozinha naquela casa". Depois de os tranquilizar de que estava bem, perguntou:
Que aconteceu a tudo o que estava na secretária de Gary depois de ele morrer?
O gabinete do Ministério Público levou praticamente tudo, com excepção da mobília do escritório do Gary disse a mãe. Depois do julgamento, guardei tudo o que devolveram
em caixas no sótão.
A resposta deixou Molly ansiosa por terminar a conversa e levou-a ao sótão logo que desligou. Ali, encontrou as caixas muito bem arrumadas, tal como a mãe lhe dissera,
nas prateleiras de arrumação. Afastou as que continham livros e esculturas, fotografias e revistas, e procurou as duas que tinham a etiqueta SECRETÁRIA. Sabia o
que procurava: a agenda com que Gary andava sempre e a que tinha na gaveta de cima da secretária.
"Talvez haja algum género de anotações que me dê pelo menos uma ideia do que mais acontecia na vida do Gary", pensou.
Abriu a primeira caixa com uma sensação de pavor, com medo do que poderia encontrar, e, no entanto, determinada a descobrir tudo o que pudesse.
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"Há sete anos as nossas vidas eram tão diferentes", pensou Barbara Colbert, enquanto observava a paisagem conhecida. Como fazia todas as semanas, o seu motorista,
Dan, estava a levá-la do apartamento na Quinta Avenida para a Residência de Cuidados a Longo Prazo Natasha Colbert, no recinto do Hospital Lasch, em Greenwich. Quando
chegaram à frente da residência, ficou sentada durante vários minutos, sabendo que na próxima hora o seu coração ia apertar-se e partir-se enquanto pegava na mão
de Tasha e lhe dizia palavras que provavelmente ela não ouviria e que não tinha dúvida de estarem para além de qualquer compreensão.
Barbara Colbert era uma mulher de cabelos brancos, com setenta e poucos anos, e sabia que nos anos que se tinham seguido ao acidente parecia ter envelhecido vinte.
"A Bíblia refere-se a acontecimentos cíclicos em termos de sete anos de abundância, sete anos de fome", pensou, enquanto apertava o botão de cima do casaco de pele
de marta. Os acontecimentos cíclicos implicavam que alguma coisa podia mudar, mas sabia que não havia mudança possível para Tasha, que se encontrava no sétimo ano
de vida inconsciente.
"Tasha, que nos deu tanta alegria", agonizou Barbara Colbert. "O nosso presente belo e inesperado." Barbara tinha quarenta e cinco anos e o marido, Charles, cinquenta,
quando ela se apercebera de que estava grávida. Com os filhos na universidade, tinham presumido que já tinham passado a fase de criar uma família.
De cada vez que chegava a este ponto, enquanto se esforçava por sair do carro, tinha sempre a mesma lembrança. Na época viviam em Greenwich. Tasha, que estava de
férias da Faculdade de Direito, tinha aparecido na sala de jantar. Tinha o fato de treino vestido, os cabelos ruivos apanhados num rabo-de-cavalo, os olhos azul-escuros
calorosos, vivos e inteligentes. Faltava apenas uma semana para o seu vigésimo quarto aniversário. "Até já", dissera, e depois saíra.
Aquelas tinham sido as últimas palavras que eles a tinham ouvido proferir.
Uma hora depois tinham recebido o telefonema que os levara a correr para o Hospital Lasch. Houvera um acidente, tinham-nos informado, e Tasha tinha sido levada para
lá. Barbara lembrava-se da curta viagem para o hospital e do terror que sentira. Lembrava-se da oração incoerente que proferira vezes sem conta: "Por favor, bom
Deus, por favor."
Jonathan Lasch tinha sido o médico de família de Barbara quando as crianças eram pequenas, por isso sentiu algum consolo no facto
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de Gary Lasch, o filho de Jonathan, ir cuidar de Tasha. Porém, logo que o viu na sala de emergências, percebeu pela sua expressão que algo estava terrivelmente errado.
Ele contou-lhe que, enquanto estava a correr, Tasha tinha caído e batido com a cabeça no passeio. A ferida em si não tinha sido grave, mas antes de chegar ao hospital
tinha feito uma arritmia cardíaca. "Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance", prometera ele, mas em breve se tornou evidente que na realidade não podiam
fazer nada. Um ataque tinha cortado o fornecimento de oxigénio para o cérebro de Tasha, destruindo-o. Exceptuando a capacidade de respirar sozinha, para todos os
desígnios e objectivos, Tasha tinha morrido.
"Todo o dinheiro do mundo, a família de magnatas de jornais mais poderosa do país e, mesmo assim, não conseguimos ajudar a nossa única filha", pensou Barbara, enquanto
acenava para Dan indicando que estava pronta para sair do carro.
Reparando que ela se movia com dificuldade, ele pôs-lhe a mão debaixo do braço.
Pode haver um bocado de gelo, Sr.a Colbert disse. Deixe-me ajudá-la até à porta.
Depois de ela e o marido se terem por fim resignado com o facto de não haver esperança de Tasha vir a recuperar, Gary Lasch tinha-lhes pedido que considerassem a
hipótese de a colocarem, eventualmente, na unidade de cuidados de enfermagem de longo prazo que estava a ser construída ao lado do hospital.
Tinha-lhes mostrado os planos da modesta estrutura, e revelara-se uma distracção abençoada para eles chamarem o arquitecto e fazerem o donativo que mudara totalmente
e expandira a residência, de tal forma que todos os quartos eram claros e arejados, com uma casa de banho privada e mobiliário confortável, como se de uma casa se
tratasse, e equipamento médico do mais moderno e sofisticado que havia. Agora todos os residentes que, como Tasha, tinham visto as suas vidas inesperada e inexplicavelmente
abaladas recebiam o conforto que o dinheiro e os cuidados podiam proporcionar.
Tinha sido criado um apartamento especial com três quartos para Tasha, uma réplica exacta da sua suite em casa. Uma enfermeira e uma auxiliar estavam permanentemente
com ela. A música clássica que Tasha amava tocava suavemente dia e noite. Ela era mudada todos os dias do quarto para a sala, que estava voltada para um jardim particular.
Exercícios passivos, limpezas faciais, massagens, pedicures e manicures mantinham-lhe o corpo belo e macio. Os cabelos, ainda ruivos-flamejantes, eram lavados e
penteados diariamente e usados soltos à altura dos ombros. Vestia pijamas e roupões de seda. As
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enfermeiras tinham instruções para conversar com ela como se ela pudesse entender cada palavra.
Barbara pensou nos meses em que ela e Charles tinham vindo ver Tasha quase todos os dias. Mas os meses depressa se transformaram em anos. Esgotados por um cansaço
emocional e físico, acabaram por reduzir o número de visitas para duas vezes por semana. Quando Charles falecera, ela tinha, com grande relutância, seguido o conselho
dos filhos e desistido da casa em Greenwich, estabelecendo residência permanente no apartamento de Nova Iorque. Agora só fazia a viagem uma vez por semana.
Nesse dia, como sempre, Barbara atravessou a área de recepção e percorreu o corredor para a zona da suite da filha. As enfermeiras tinham sentado Tasha no sofá da
sala de estar. Barbara sabia que, por debaixo das mantas, havia correias de segurança que a mantinham rigidamente no lugar e a impediam de escorregar, uma precaução
contra ferimentos causados por contracções involuntárias que os músculos de Tasha tinham de vez em quando.
Com uma dor familiar, Barbara observou a expressão calmamente serena no rosto de Tasha. Por vezes pensava detectar movimento nos olhos, ou talvez ouvir um suspiro,
e tinha o pensamento impossível e louco de que, afinal de contas, talvez Tasha não estivesse para além de toda a esperança.
Sentou-se no sofá ao lado da filha e pegou-lhe na mão. Na hora seguinte falou-se sobre a família.
Amy está a começar a faculdade, Tasha, não te parece incrível? Só tinha dez anos quando tu tiveste o acidente. É muito parecida contigo. Quase podia ser tua filha
e não apenas tua sobrinha. George Júnior tem algumas saudades de casa, mas gosta muito do colégio.
Passada uma hora, esgotada mas em paz, Barbara beijou Tasha na testa e fez sinal à enfermeira para voltar para a sala.
Quando chegou à recepção, viu que o Dr. Peter Black estava à sua espera. Quando Gary Lasch fora assassinado, os Colberts tinham considerado a hipótese de mudar Tasha
para outra instituição, mas o Dr. Black convencera-os a deixarem-na ali.
Como é que achou a Tasha hoje, Sr.a Colbert?
Na mesma, doutor. Não posso esperar melhor, não é verdade? Barbara Colbert sabia que os sentimentos ambíguos que nutria por Peter Black não eram razoáveis. Gary
Lasch tinha-o escolhido para seu sócio e ela não tinha motivo algum para sentir que os cuidados administrados a Tasha falhavam de algum modo. Mesmo assim, não conseguia
gostar dele. Talvez essa antipatia se devesse à sua associação íntima com Calvin Whitehall, a quem Charles chamava com desprezo "o candidato a barão do roubo". Nas
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ocasiões em que voltava a Greenwich e jantava no clube com os amigos, via lá muitas vezes Black e Whitehall juntos.
Barbara desejou boa noite a Peter Black e encaminhou-se para a porta, sem se aperceber de que o médico estava a observá-la intensamente, nem que estava a lembrar-se
do momento terrível em que a filha dela sofrera danos catastróficos, e que estava a lembrar-se também das palavras que uma traumatizada Annamarie Scalli tinha gritado
para Gary: "Aquela rapariga chegou cá com nada mais grave do que uma pequena concussão. Agora, vocês os dois destruíram-na!"
Durante praticamente seis anos, Philip Matthews tinha acreditado que fizera todos os possíveis como advogado criminal para conseguir uma pena leve para Molly Lasch.
Cinco anos e meio pelo homicídio de um médico com uma expectativa de vida de trinta e cinco anos não era praticamente nada.
Tinha dito muitas vezes a Molly nas visitas que fizera à prisão: "Quando saíres, pões tudo isto para trás das costas."
Mas agora Molly tinha saído da prisão e estava a fazer precisamente o oposto. Era evidente que não pensava ter-se livrado facilmente.
Philip sabia que, acima de tudo, queria proteger Molly das pessoas que, inevitavelmente, quereriam explorá-la.
Pessoas como aquela Fran Simmons.
No fim da tarde de sexta-feira, quando se preparava para ir passar o fim-de-semana fora, a secretária anunciou um telefonema de Fran Simmons.
Philip pensou não atender, mas depois decidiu que podia muito bem falar com ela. Porém, o seu cumprimento foi frio.
Fran foi directa ao assunto:
Dr. Matthews, o senhor deve ter uma transcrição do julgamento da Molly Lasch. Gostaria de ter uma cópia o mais depressa possível.
Sr.a Simmons, sei que andou no liceu com Molly. Assim, na qualidade de velha amiga, queria que considerasse a ideia de desistir deste programa. Ambos sabemos que
só pode magoar a Molly.
Seria possível ter uma cópia da transcrição na segunda-feira, Dr. Matthews? perguntou Fran, rispidamente, e depois acrescentou: O senhor deve saber que eu estou
a elaborar este programa
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com a colaboração incondicional de Molly. Na verdade, foi até por um pedido dela que resolvi fazê-lo.
Philip resolveu tentar uma abordagem diferente.
Posso fazer mais do que segunda-feira. Vou mandar fazer uma cópia e amanhã ser-lhe-á entregue, mas quero pedir-lhe que reflicta sobre uma coisa. Estou convencido
de que a Molly está muito mais fragilizada do que todos nós pensamos. Se no decurso da sua investigação ficar convencida da culpa dela, então, peço-lhe que a poupe
e cancele este programa. Molly não vai obter a vingança pública que quer. Não a destrua com um veredicto de culpada só para conseguir audiências mais altas graças
aos abutres que querem ver as pessoas evisceradas.
Deixe-me dar-lhe a minha morada para o seu mensageiro disse Fran, a martelar as palavras, desejando soar tão furiosa como se sentia.
Vou passar à minha secretária. Adeus, Sr.a Simmons. Depois de desligar, Fran levantou-se e aproximou-se da janela.
Já devia estar na maquilhagem, mas agora sabia que primeiro precisava de um momento para se acalmar. Sem o conhecer, já antipatizava profundamente com Philip Matthews,
embora não pudesse deixar de pensar que ele era ardentemente sincero no seu desejo de proteger Molly.
Deu por si a pensar se alguém jamais pensara procurar outra explicação para a morte de Gary Lasch. Os pais e amigos de Molly Lasch, Philip Matthews, a Polícia de
Greenwich, e o delegado do Ministério Público que a tinha acusado todos tinham começado com a presunção da culpa dela.
"Que é exactamente o que eu também tenho estado a fazer", pensou Fran. "Talvez tenha chegado o momento de começar a abordar o assunto de um ponto de vista diferente.
"Molly Carpenter Lasch não matou o marido, Gary Lasch", disse para si mesma, avaliando como soava e perguntando a si mesma onde é que a levaria.
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Na sexta-feira à tarde, Annamarie Scalli foi directamente para casa, depois de tratar o último paciente. O fim-de-semana estendia-se assustadoramente à sua frente
e ela já sabia que ia ser difícil. Desde
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terça-feira de manhã, quando a libertação de Molly Lasch da prisão tinha recebido tanta cobertura jornalística, metade dos pacientes de Annamarie tinham-lhe falado
no caso.
Ela compreendia que não passava de coincidência, que não faziam a mínima ideia da sua ligação ao caso. Os seus pacientes estavam confinados a casa e passavam a vida
a ver os mesmos programas repetitivos, principalmente telenovelas. Ter um crime mais ou menos local como aquele era simplesmente algo novo e diferente para comentar
uma jovem privilegiada a afirmar que não acreditava ter assassinado o marido, embora tivesse aceitado um acordo para uma pena mais leve e cumprido uma pena de prisão
por causa disso.
Os comentários variavam desde a mal-humorada velha Sr.a O'Brien, a dizer que ele tinha recebido o que qualquer marido traidor merecia, até ao comentário do Sr. Kunzman,
de que se Molly Lasch fosse negra e pobre estaria a cumprir uma pena de vinte anos.
A sua cozinha era tão minúscula que ela dizia sempre que fazia a copa de um avião parecer espaçosa. Mas tinha-a melhorado, pintando o tecto de azul-céu e desenhando
uma cercadura de flores nas paredes; em resultado disso, o pequeno espaço transformara-se no seu jardim interior.
Todavia, naquela noite, não conseguia animar-se. Ter de revisitar as antigas recordações dolorosas deixara-a deprimida e solitária, e sabia que tinha de se afastar.
Havia um sítio para onde podia ir e que a ajudaria. A irmã mais velha, Lucy, vivia em Buffalo, na mesma casa em que tinham crescido. Annamarie não lhe fazia visitas
regulares desde o falecimento da mãe, mas este fim-de-semana faria a viagem. Depois de arrumar as últimas mercearias, pegou no telefone.
Quarenta e cinco minutos depois, atirou para o porta-bagagens um saco de lona que enchera apressadamente com roupas e, muito mais alegre, rodou a chave na ignição.
Era uma viagem longa, mas não se importava. Conduzir, dar-lhe-ia uma oportunidade para pensar. A maior parte do tempo era passado a lamentar. A lamentar não ter
dado ouvidos à mãe. A lamentar ter sido tão parva. A desprezar-se profundamente por aquele caso amoroso com Gary Lasch. Se ao menos tivesse conseguido ter força
de vontade para amar verdadeiramente Jack Morrow. Se ao menos tivesse compreendido o quanto tinha começado a gostar dele.
Recordou com vergonha renovada a confiança e amor que tinha visto nos olhos dele. Tinha enganado Jack Morrow como enganara toda a gente, e ele não sabia nem suspeitava
que ela estava envolvida com Gary Lasch.
Embora já passasse da meia-noite quando chegou, a irmã, Lucy,
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tinha ouvido o carro a chegar e estava a abrir a porta. Com um acesso de alegria renovada, Annamarie tirou o saco do porta-bagagens. Um momento depois estava a abraçar
a irmã, contente por estar onde, pelo menos durante o fim-de-semana, conseguiria afastar os pensamentos perturbadores de como podia ter sido.
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No sábado de manhã, Edna Barry acordou com um sobressalto nervoso. Aquela jornalista vinha vê-la e ela tinha de se certificar de que Wally não estava por perto quando
Fran Simmons chegasse. Ele andava mal-humorado há diversos dias e desde que vira Molly na televisão não parava de dizer que queria vê-la. Na noite anterior, tinha
anunciado que não ia ao clube, onde normalmente passava as manhãs de sábado. O clube, criado pelo Condado de Fairdield para pacientes externos como Wally, era normalmente
um dos lugares onde ele preferia ir.
"Vou pedir à Marta para ficar com ele em casa dela", pensou Edna. Marta Gustafson Jones era sua vizinha há trinta anos. Tinham-se apoiado ao longo de doenças e da
viuvez, e Marta adorava Wally. Era uma das poucas pessoas que conseguia lidar com ele e acalmá-lo quando ele ficava perturbado.
Quando Fran tocou à campainha às onze horas, Wally estava em segurança e fora do caminho, e ela conseguiu cumprimentá-la de uma forma razoavelmente agradável e até
lhe ofereceu café, que Fran aceitou.
E se nos sentássemos na cozinha? sugeriu ela, enquanto desabotoava o casaco.
Se quiser. Edna sentia-se justificadamente orgulhosa da sua cozinha imaculada, com a mesa de carvalho nova em folha que tinha comprado num saldo.
À mesa, Fran tirou o gravador da mochila. Pousou-o casualmente no tampo da mesa.
Sabe, Sr.a Barry, estou aqui porque quero ajudar Molly, e tenho a certeza de que a senhora também quer. É por isso que, com a sua autorização, preciso de gravar
a conversa. Talvez surja alguma coisa que contribua para ajudar Molly. Tenho a certeza de que ela está cada vez mais convencida de que não foi a responsável pela
morte do marido. Na verdade, está a começar a lembrar-se de coisas que aconteceram naquela noite, e uma delas é que havia mais alguém lá em casa quando ela chegou
do Cape. Se isso for provado, talvez
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signifique que a condenação poderá ser anulada ou, pelo menos, que a investigação poderá ser reaberta. Não seria maravilhoso? Edna Barry estava a deitar água na
máquina de café.
Sim, claro, seria maravilhoso! disse. E depois. Oh, céus. Os olhos de Fran semicerraram-se quando ela viu que a Sr.a Barry
tinha entornado água na bancada. "A mão dela está a tremer", pensou Fran. "Alguma coisa em tudo isto está a perturbá-la. Percebi que estava nervosa no outro dia
quando a vi em casa de Molly, e sem dúvida que estava tensa quando falei com ela pelo telefone para lhe pedir para vir aqui hoje."
Quando o aroma do café começou a encher o aposento, Fran dedicou-se a tentar fazer Edna Barry descontrair-se e a deixar cair a guarda.
Eu andei no liceu com a Molly, em Cranden disse ela. Ela disse-lhe isso?
Sim, disse. Edna tirou chávenas e pires do armário e pousou-os em cima da mesa. Espreitou para Fran por cima dos óculos durante alguns instantes antes de se sentar.
"Ela está a pensar no escândalo do fundo da biblioteca", pensou Fran, e depois afastou a preocupação e continuou a entrevista.
Mas parece que a conhece ainda há mais tempo do que eu...
Oh, sim. Trabalhei para os pais dela desde que ela era pequena. Mas eles mudaram-se para a Florida pouco depois de ela casar, e foi quando comecei a trabalhar para
ela.
Então, também conhecia o Dr. Lasch muito bem? Edna Barry pensou na pergunta.
Acho que a resposta para essa pergunta tem de ser sim e não. Ia lá três manhãs por semana. O doutor já tinha saído para o trabalho quando eu chegava às nove horas
e raramente estava em casa à uma, quando eu saía. Mas se Molly oferecia um jantar... o que acontecia com bastante frequência... nesse caso, eu vinha servir e limpar.
Na verdade, era a única altura em que os via juntos. Quando eu o via ele era sempre muito agradável.
Fran reparou que os lábios de Edna Barry se tinham apertado numa linha estreita, como se aquilo em que estava a pensar enquanto falava não fosse muito agradável.
Quando o via com a Molly tinha a impressão de que eles eram felizes? perguntou ela.
Até àquele dia em que cheguei e a Molly estava tão perturbada a fazer as malas para ir para o Cape, nunca percebi sequer vestígios de uma discussão. Acho que antes
daquele dia eu tinha sentido que o tempo pesava muito sobre ela. Fazia muito trabalho voluntário na cidade, e sei que é muito boajogadora de golfe, mas por vezes
dizia-me
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que sentia a falta de ter um emprego. E, é claro, também tinha alguns problemas difíceis. Estava tão ansiosa por iniciar uma família, e depois, quando teve aquele
último aborto, pareceu diferente, muito calma, muito circunspecta.
"Nada do que Edna Barry está a dizer ajuda realmente a Molly", pensou Fran, quando meia hora mais tarde terminou a segunda chávena de café. Só tinha mais algumas
perguntas para fazer e até agora a mulher não tinha colaborado muito.
Sr.a Barry, o sistema de alarme não estava ligado quando foi trabalhar naquela segunda-feira, pois não?
Não, não estava.
Verificou se havia alguma porta aberta que um intruso pudesse ter usado?
Não havia nenhuma porta aberta. A voz de Edna Barry tornou-se inesperadamente antagónica e as pupilas dos seus olhos dilataram-se.
"Toquei num ponto sensível", pensou Fran, e há mais alguma coisa que ela não me está a dizer.
Quantas portas tem a casa?
Quatro respondeu ela sem parar para pensar. A porta principal. A porta da cozinha. Tinham a mesma chave. Uma porta da sala íntima para o pátio. Essa só abria do
interior. Uma porta na cave que estava sempre fechada à chave e com ferrolhos.
Verificou-as todas pessoalmente?
Não, mas a Polícia verificou, Menina Simmons. Por que é que não fala com eles?
Não estou a questionar o que me disse, Sr.a Barry disse Fran, num tom conciliatório.
Aparentemente apaziguada, Edna Barry disse:
Naquela sexta-feira à tarde, quando saí, verifiquei todas as portas para ter a certeza de que estavam trancadas. O Dr. Lasch entrava sempre pela porta principal.
O ferrolho do chão não estava corrido naquela segunda-feira de manhã, o que quer dizer que, durante o fim-de-semana, alguém usou aquela porta.
O ferrolho do chão?
À noite, Molly corre-o sempre. A porta da cozinha estava fechada à chave quando eu entrei. Tenho a certeza disso.
As faces de Edna Barry estavam ruborizadas. Fran percebeu que a mulher estava à beira das lágrimas.
"Tem medo porque pensa que pode ter sido descuidada e deixado a casa aberta?", pensou.
Obrigada pela sua ajuda e pela hospitalidade, Sr.a Barry disse Fran. Já lhe ocupei demasiado tempo por agora, mas talvez
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queira fazer-lhe mais algumas perguntas depois e, possivelmente, vamos convidá-la para participar no nosso programa.
Eu não quero ser convidada para o programa.
Claro. Como queira. Fran desligou o gravador e levantou-se para sair. À porta, fez uma última pergunta:
Sr.a Barry, vamos considerar a possibilidade de estar mais alguém na casa na noite em que o Dr. Lasch morreu. Sabe se as fechaduras de alguma das portas foram mudadas?
Que eu saiba. não.
Vou sugerir à Molly que devem ser mudadas. Caso contrário, ela pode correr perigo de um estranho se introduzir na casa. Não concorda?
Foi então que a cor desapareceu do rosto de Edna Barry.
Menina Simmons disse ela, se tivesse visto o que eu vi no primeiro andar... Molly deitada naquela cama, coberta de sangue seco... saberia que naquela noite não entrou
nenhum intruso lá em casa. Pare de tentar arranjar problemas a pessoas inocentes.
A que pessoas inocentes é que estou a tentar arranjar problemas, Sr.a Barry? perguntou Fran. Pensei que estava a tentar ajudar uma jovem, uma pessoa que a senhora
conhece há muitos anos e de quem diz gostar, a conseguir talvez provar que é inocente deste crime!
A Sr.a Barry não disse nada e os seus lábios eram uma linha sombria e fina quando abriu a porta para Fran sair.
Voltaremos a falar, Sr.a Barry disse Fran, sem sorrir. Tenho a sensação de que ainda terei muitas perguntas para si que precisam de respostas.
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Como Molly suspeitou, quando o telefone tocou no sábado à tarde, tratava-se de Jenna.
Estive agora mesmo a falar com Philip Matthews disse Jenna. Já sei que vais cozinhar o jantar para ele. Aprovo.
Santo Deus, nem sequer penses nesses termos protestou Molly. Ia ter de o aguentar a bater à porta se não o deixasse vir cá, e como não estou preparada para ir a
um restaurante, pareceu-me a atitude mais lógica.
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Bem, nós decidimos que, convidados ou não, vamos aí tomar uma bebida. Cal está ansioso por te ver.
Não estão convidados disse Molly, mas venham por volta das sete horas.
Moll... disse Jenna, e depois hesitou.
Podes dizer. Tudo bem.
Oh, não é nada dramático, minha amiga. É só que pareces tu própria outra vez... e eu adoro!
"Quem é esta eu própria?", pensou Molly.
Nada como janelas sem grades e um lençol de cetim na cama comentou. Fazem maravilhas à alma.
Espera até estares em Manhattan para fazeres o tratamento completo. Que estás a pensar fazer hoje?
Molly hesitou e depois decidiu que não estava preparada para partilhar, nem mesmo com Jenna, o facto de estar a verificar as agendas de Gary, a analisar dia a dia,
na tentativa de encontrar pistas. Em vez disso, contentou-se com uma meia verdade.
Como vou ser anfitriã, por muito indesejado que seja esse papel, vou começar a preparar algumas coisas na cozinha. Há muito tempo que não faço nada desse género.
Era verdade. O resto da verdade era que as agendas de Gary remontavam a muitos anos antes da sua morte e estavam empilhadas na mesa da cozinha. A trabalhar de frente
para trás, começando pela data da morte dele, analisou-as página a página.
Molly recordava-se de que o horário de Gary sempre tinha sido intenso e que ele estava sempre a escrever notas para não se esquecer de nada. Ela já tinha encontrado
diversas anotações, coisas do género: "17 horas. Telefonar a Molly para o clube."
Angustiada, lembrou-se que havia alturas em que ele lhe telefonava e perguntava: "Por que é que tenho na agenda que é suposto telefonar-te agora?"
Às cinco e meia, pouco antes de pôr a mesa para o jantar daquela noite, Molly encontrou a anotação que queria. Era um número de telefone que aparecia diversas vezes
no último diário de Gary. Ligou para as informações e soube que o indicativo era em Buffalo.
Marcou o número e, quando uma mulher atendeu, Molly perguntou se Annamarie estava.
É a própria disse Annamarie Scalli, calmamente.
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Depois de sair da casa de Edna Barry, Fran embarcou numa peregrinação por Greenwich, mais uma viagem pela alameda da memória. Desta vez foi até ao Stationhouse Pub
com a ideia de ali almoçar. "Costumávamos vir aqui para um jantar rápido antes do cinema", recordou, nostalgicamente.
Fran pediu peru em pão de centeio. Era o preferido da mãe. Observou a sala de refeições. Era improvável que a mãe voltasse a pôr os pés em Greenwich. As recordações
eram demasiado dolorosas para ela. A piada naquele último Verão tinha sido que, ao invés de uma nova biblioteca, a cidade tinha ficado com uma nova instituição de
empréstimos: o Fundo Simmons. "Que gracinha", pensou amargamente.
Considerara a possibilidade de passar pela casa onde tinham vivido ao longo daqueles quatro anos, mas apercebeu-se de que ainda não estava preparada para dar esse
passo. "Não hoje", pensou Fran enquanto fazia sinal para pedir a conta.
Quando voltou para a cidade e para o prédio onde tinha o seu apartamento, Fran viu que Philip Matthews tinha cumprido a sua palavra. Um pacote volumoso estava à
sua espera na secretária do átrio. Abriu-o e constatou que se tratava da transcrição integral do julgamento de Molly Lasch.
Olhou ansiosamente para o documento, cheia de vontade de começar, mas sabia que teria de esperar. Primeiro tinha algumas coisas para fazer, lembrou a si mesma. Não
podia deixar de comprar alguma comida, depois precisava de ir à lavandaria e ao Bloomingdale's, para comprar collants e cosméticos.
Eram quatro e meia quando, por fim, conseguiu pôr tudo de lado, fazer uma chávena de chá e depois instalar-se na funda poltrona, instalar os pés sobre a otomana
e abrir a transcrição.
O texto não constituiu uma leitura bonita. O advogado de acusação apresentara um argumento forte e arrepiante: Há evidência de uma luta? Não. [...] ferimento aberto
na cabeça do Dr. Gary Lasch [...] crânio esmagado. [...] Ele foi atacado quando estava sentado à secretária, de costas para o atacante [...] completamente indefeso.
[...] As provas vão mostrar que as impressões digitais de Molly Lasch, nítidas e ensanguentadas, estavam naquela escultura, que o sangue de Gary Lasch estava no
seu rosto, mãos e roupas [...] que não havia sinais de arrombamento. [...]
"Não havia sinais de arrombamento", pensou Fran. "Obviamente, a Polícia verificou mesmo as portas. No entanto, não dizem nada sobre
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estarem fechadas à chave ou não. Philip Matthews seguiu essa pista?", perguntou a si mesma. Sublinhou aquela parte do testemunho com um marcador amarelo.
"Molly Lasch não assassinou o marido, Gary Lasch. Estou a começar a acreditar que isso pode ser verdade", pensou Fran. "Agora vamos avançar mais um passo. Vamos
presumir que outra pessoa assassinou Gary Lasch, e teve a sorte de a Molly ter entrado, ter descoberto o marido e ter ficado tão traumatizada que, inadvertidamente,
fez tudo o que estava ao seu alcance para se incriminar. Pegou na arma que o matara, tocou-lhe no rosto e na cabeça, salpicou-se toda com o sangue dele.
"Salpicou-se toda com o sangue dele", pensou Fran. "Se Gary Lasch ainda estava vivo quando Molly o encontrou, será possível que tenha conseguido dizer-lhe alguma
coisa? Se havia alguém na casa, então, Molly podia ter chegado momentos depois de Gary ter sido atacado.
"Teria Molly chegado a casa, ido para o escritório, encontrado o marido mortalmente ferido mas ainda vivo?", perguntou Fran a si mesma. Isso explicaria a razão por
que lhe tinha tocado, por que tinha a boca e o rosto cobertos de sangue. Teria tentado ressuscitá-lo quando o encontrara?
Ou só teria tentado ressuscitá-lo depois de se aperceber do que lhe havia feito?
"Se partirmos da ideia de que ela é inocente, então, neste momento, alguém está terrivelmente, terrivelmente nervoso", apercebeu-se Fran.
A certeza de que Molly Lasch corria um grande perigo invadiu-a. "Se Gary Lasch estava sozinho numa casa, uma casa que, segundo as provas, estava fechada, e aparentemente
não tinha ouvido o atacante entrar no escritório, então, a mesma coisa podia acontecer a Molly", pensou Fran.
Pegou no telefone. "Ela vai pensar que estou doida, mas vou telefonar-lhe."
O cumprimento de Molly pareceu-lhe apressado.
Fran. Parece hora de reunião explicou. Philip Matthews vem cá jantar e a Jenna e o Cal insistiram em passar por aqui para tomar uma bebida. E acabei de receber um
telefonema de Peter Black. Ele não ficou contente quando eu lhe disse que tu querias falar com ele, mas agora parecia bastante civilizado. Também vem cá a casa.
Então, não vou ocupar-te mais tempo disse Fran, mas lembrei-me de uma coisa. A Sr.a Barry disse-me que as portas têm as mesmas fechaduras que tinham quando compraste
a casa.
Isso mesmo.
Escuta, acho que seria boa ideia mudá-las.
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Não tinha pensado no assunto.
Quantas pessoas é que têm um conjunto de chaves?
Não é um conjunto. Na verdade, é apenas uma chave. A porta principal e a da cozinha têm a mesma chave. As portas do pátio e da cave estão sempre trancadas do interior.
Havia apenas quatro chaves. A do Gary. A minha. A da Sr.a Barry. E a que temos escondida no jardim.
Quem é que sabe da que está no jardim?
Creio que ninguém sabe. Era unicamente para emergências e nunca era usada. Gary nunca se esquecia das chaves e eu também não. A Sr.a Barry nunca se esquece de nada.
Vais ter de me desculpar, Fran, mas tenho de desligar.
Molly, chama uma pessoa para te mudar as fechaduras na segunda-feira. Por favor.
Fran, eu não estou em perigo, a menos...
A menos que tenhas tido o azar de chegar ao local de um crime e ficado traumatizada, e agora alguém andar com medo de que te lembres.
Fran ouviu Molly a arfar. Depois, com a voz embargada, Molly disse:
É a primeira vez em seis anos que oiço alguém sugerir que eu posso estar inocente.
Então, percebes por que é que quero que mudes as tuas fechaduras? Vamos combinar encontrarmo-nos na segunda-feira.
Sim, isso mesmo. Posso ter uma novidade muito interessante para ti disse Molly.
"Que é que ela quis dizer com aquilo?", perguntou Fran a si mesma ao pousar o auscultador. 31
Tim Mason tinha planeado fazer um último fim-de-semana de esqui em Stowe, Vermont, mas um telefonema do primo Michael, que continuava a viver em Greenwich, fê-lo
mudar de planos. A mãe de Billy Gálio, um velho companheiro de escola dos dois homens, tinha morrido de ataque cardíaco, e Michael pensara que Tim gostaria de ir
ao velório.
Foi por isso que no sábado à noite Tim estava na Merritt Parkway, a conduzir para o sul do Connecticut e a pensar nos anos do liceu em
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que ele e Billy Gálio tinham tocado juntos no grupo. Já nessa época Billy era um verdadeiro músico, reflectiu Tim. Lembrava-se de como tinham tentado criar a sua
própria banda no último ano e de como ensaiavam sempre em casa de Billy.
A Sr.a Gálio, uma mulher calorosa e hospitaleira, estava sempre a convidá-los para ficarem para o jantar, e nunca era necessário usar de muita persuasão. A cozinha
dela encantava-os, com aromas de pão acabado de fazer, alho e perfumado molho de tomate. Tim recordava-se de como o Sr. Gálio vinha para casa do emprego e ia directamente
para a cozinha, como se tivesse receio de que a mulher não estivesse lá. No minuto em que a avistava, o seu rosto abria-se num grande sorriso e ele dizia: "Josie,
estás novamente a abrir latas."
Com alguma pena, Tim pensou nos pais e nos anos que tinham antecedido o divórcio, quando ele ficava contente por escapar à frieza cada vez maior entre eles.
"O Sr. Gálio nunca deixava de dizer aquela frase pirosa", pensou ele. "E a Sr.a Gálio ria-se sempre como se fosse a primeira vez que a ouvia. Eram claramente doidos
um pelo outro." No entanto, o Sr. Gálio nunca fora muito próximo de Billy. Pensava que Billy estava a perder tempo ao tentar ser músico.
Enquanto conduzia e pensava naqueles dias do passado, Tim recordou outro funeral a que tinha assistido em Greenwich. Na altura, já tinha terminado os estudos e trabalhava
como jornalista.
Pensou em Fran Simmons, no desgosto profundo que ela tinha sentido. Na igreja, os seus soluços abafados tinham sido audíveis ao longo de toda a missa. Depois, quando
o caixão estava a ser erguido para a carreta, ele tinha-se sentido como um voyeur, a tomar notas para a sua história enquanto o operador de câmara captava imagens
fugazes.
Catorze anos tinham mudado Fran Simmons. Não era apenas por ter crescido. Tinha um profissionalismo frio, como se fosse uma armadura; sentira isso quando se tinham
encontrado no gabinete de Gus. Tim ficou embaraçado ao perceber que, quando tinham sido apresentados, ele estava a pensar no pai dela e que tinha sido um patife.
Por que é que tinha a sensação desconfortável de que lhe devia um pedido de desculpas por isso?
Estava tão embrenhado nos seus pensamentos que chegou à saída de North Street antes de se aperceber, e por pouco não via o desvio. Três minutos depois estava na
casa funerária.
O lugar estava cheio de amigos da família Gálio. Tim viu um grupo de rostos conhecidos, pessoas com quem tinha perdido o contacto, e diversas vieram ter com ele
enquanto aguardava na fila
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para falar com o Sr. Gálio e com Billy. A maior parte fez comentários lisonjeiros sobre as suas reportagens, mas logo a seguir a esses comentários vieram referências
a Fran Simmons, porque agora ela estava no programa com ele.
Aquela é a Fran Simmons cujo pai desfalcou o fundo da biblioteca, não é? perguntou a irmã da Sr.a Gálio.
A minha tia acha que a viu na cafetaria no Hospital Lasch comentou outra pessoa qualquer. Que diabo estaria ela a fazer lá?
Aquela pergunta foi feita a Tim no momento em que ele ficou frente a frente com Billy Gálio, que, obviamente, tinha ouvido. Com os olhos inchados de chorar, ele
apertou a mão a Tim.
Se a Fran Simmons está a investigar alguma coisa no hospital, diz-lhe que descubra por que é que estão a deixar os pacientes morrer quando isso não tem de acontecer
disse ele, amargamente.
Tony Gálio tocou na manga do filho.
Billy, Billy, foi a vontade de Deus.
Não, pai, não foi. Muitas pessoas com problemas cardíacos podem ser salvas. A voz de Billy, agitada e tensa, aumentou o volume. Ele apontou para o caixão da mãe.
A mãe não devia estar ali dentro, não antes de outros vinte anos. Os médicos no Lasch não se importaram... limitaram-se a deixá-la morrer. Agora estava praticamente
a soluçar. Tim, tu e a Fran Simmons e todos os jornalistas do teu programa de televisão deviam investigar isto. Têm de descobrir por que é que esperaram tanto tempo,
por que é que ela não foi mandada a um especialista a tempo.
Com um gemido estrangulado, Billy Gálio tapou o rosto com as mãos e rendeu-se uma vez mais às lágrimas contra as quais tinha estado a lutar. Tim apertou-lhe os dois
braços com mãos firmes, segurando-o até que os soluços de Billy acalmaram e, num tom de voz calmo e triste, ele conseguiu perguntar finalmente:
Tim, diz-me a verdade. Alguma vez provaste um molho para o esparguete melhor do que o que a minha mãe fazia?
"Não sei como é que deixei isto acontecer", pensou Molly, enquanto pousava uma travessa de queijo e bolachas na mesa da sala íntima.
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Ver Cal e Peter Black ali, juntos, perturbou-a de forma que ela não tinha previsto. A serenidade, o conforto que sentira ao ver-se na sua casa tinham desaparecido
inesperadamente. Era como se a sua privacidade tivesse sido violada. Ver aqueles dois homens ali trouxe de volta as muitas vezes em que se encontravam com Gary no
seu escritório. Os três passavam horas ali em conferência os outros elementos do Conselho de Administração da Remington Health Management eram apenas acessórios.
Naqueles últimos dias, tinha sentido a casa de uma forma diferente de como se lembrava. Era como se os cinco anos e meio que passara na prisão tivessem mudado a
sua percepção da vida como a conhecera.
"Antes de Gary morrer, eu acreditava que era feliz", pensou Molly. "Acreditava que a inquietação horrível que sentia se devia à minha frustração por não ter um bebé.
Agora sentia a opressão antiga e conhecida fechar-se à sua volta. Percebeu que Jenna tinha notado a sua mudança de humor e estava preocupada. Jenna tinha-a seguido
para a cozinha, insistira em cortar o queijo em cubos, colocara as bolachas na travessa, dobrara cuidadosamente os guardanapos.
Depois de ter sido tão antipático ao telefone, nesta noite, Peter Black estava a esforçar-se ao máximo para ser agradável. Ao entrar, beijara-a na face e apertara-lhe
a mão. A mensagem era clara: aquela tragédia terrível já acabou.
"Já?", pensou ela. "Será que podemos fazer coisas como estas... o homicídio, os anos de prisão... desaparecerem simplesmente, como se nunca tivessem acontecido?
Não me parece", decidiu, enquanto olhava para aqueles velhos amigos, ou o que quer que eles eram, reunidos naquela sala.
Olhou para Peter Black ele parecia extremamente desconfortável. Por que teria insistido em ir ali?
Philip Matthews parecia ser o único descontraído. Tinha sido o primeiro a chegar, apresentando-se pontualmente às sete horas da noite, com uma amarílis na curva
do braço.
Sei que andas com vontade de jardinar dissera. Talvez encontres um lugar para uma amarílis.
Os enormes rebentos de um encarnado-pálido eram uma beleza.
Tem cuidado avisou-o ela. A amarilis também se chama beladona-bastarda, e a beladona é um veneno.
A descontracção que sentira naquela altura tinha desaparecido. Agora, Molly sentia que até o ar estava envenenado. Cal Whitehall e Peter Black não estavam ali como
uma comissão de boas-vindas isso ficara claro desde o começo. Eles tinham uma agenda diferente.
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Isso também explicaria o nervosismo de Jenna, decidiu. Fora ela quem forçara a reunião.
Molly queria dizer a Jenna que não havia problema. Compreendia que Cal era um cilindro compressor, que se tivesse decidido ir, Jenna não teria conseguido impedi-lo.
O motivo por detrás da visita deles depressa se tornou evidente. Foi Cal o primeiro a abordar o assunto.
Molly, ontem aquela repórter de televisão, Fran Simmons, esteve na cafetaria do hospital a fazer perguntas. Foste tu que sugeriste a ida dela lá?
Não, eu não sabia que Fran lá ia respondeu ela com um encolher de ombros. Mas por mim não há problema.
Oh, Molly, por favor murmurou Jenna. Não compreendes o que estás a fazer a ti própria?
Sim, compreendo, Jen disse Molly em voz baixa mas com firmeza.
Cal pousou o copo na mesa com força desnecessária, provocando o derrame de alguns pingos.
Molly resistiu à necessidade de limpar imediatamente o líquido, parte do seu impulso para fazer alguma coisa que a fizesse escapar daquele pesadelo. Ao invés disso,
olhou para os dois homens que tinham sido os sócios do marido.
Cal não ia ignorar o líquido que tinha entornado. Deu um salto e balbuciou:
Vou buscar papel absorvente.
Na cozinha, olhou em volta e encontrou o suporte do papel. Quando se preparava para sair, os seus olhos pousaram na única anotação no calendário de parede. Estudou-a
cuidadosamente.
As faces de Peter Black estavam ruborizadas; era evidente que não era a sua primeira bebida da noite.
Moly, sabes que estamos em negociações para a aquisição de diversas outras organizações de prestação de cuidados de saúde. Se continuares a insistir em permitir,
e em encorajar, a continuação deste programa, podes pelo menos pedir a Fran Simmons que adie as investigações até a fusão estar concluída?
"Então, o problema é este", pensou Molly. "Eles têm medo de que, se eu abrir feridas antigas, a infecção se espalhe para eles."
É claro que não há nada para esconder acrescentou ele, enfaticamente. Mas conversas, coscuvilhices e rumores já arruinaram muitas negociações importantes.
Ele estava a beber uísque escocês e Molly observou-o enquanto ele esvaziava o copo. Recordou que há alguns anos ele bebia como uma esponja. Obviamente, não tinha
mudado.
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E, Molly, por favor, desiste da ideia de tentar localizar a Annamarie Scalli implorou Jen. Se ela soubesse da possibilidade de um programa de televisão, podia vender
a sua história a uma dessas revistas de escândalos.
Molly continuou sentada, calada, a olhar para aquelas três pessoas, sentindo os velhos medos e dúvidas a ferver por debaixo da superfície calma que tinha conseguido
ostentar até então.
Penso que o caso foi apresentado disse Philip Matthews, bruscamente, quebrando o silêncio incómodo. E se mudássemos de assunto?
Peter Black, Jenna e Cal saíram pouco depois. Philip Matthews esperou até a porta se fechar atrás deles e depois perguntou:
Molly, preferes esquecer o jantar e que eu desapareça da tua frente?
À beira das lágrimas, ela acenou afirmativamente e depois conseguiu dizer:
Como o jogo foi adiado por causa da chuva, se quiseres, podes receber um bilhete grátis para o próximo.
Claro que quero.
Molly tinha preparado coq au vin e arroz selvagem. Depois de Philip sair, tapou os pratos e guardou-os no frigorífico, e em seguida foi verificar se as portas estavam
bem fechadas e encaminhou-se para o escritório. Naquela noite, talvez por Cal e Peter Black terem estado ali, tinha a forte sensação de que algo espreitava nos limites
da sua mente consciente, tentando sair.
"Que seria?", perguntou a si mesma. Recordações antigas, velhos medos que a arrastariam mais profundamente para a depressão que sentia? Ou providenciariam respostas,
talvez até a ajudassem a escapar das trevas que ameaçavam envolvê-la? Teria de esperar para ver. Não acendeu nenhuma luz e enroscou-se no sofá, envolvendo as pernas
com os braços.
Perguntou a si mesma o que pensariam Cal, Peter e Philip Matthews se suspeitassem de que no dia seguinte, às oito horas da noite, num restaurante de beira de estrada
em Rowayton, ela ia encontrar-se com Annamarie Scalli?
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Ao abrir a porta do apartamento às sete e meia e descobrir o Times de domingo, volumoso e convidativo, à sua espera, Fran decidiu que não havia nada como as manhãs
de domingo em Manhattan. Preparou sumo, café e um queque, instalou-se na sua grande poltrona, pousou os pés na otomana e pegou no primeiro caderno do jornal. Alguns
minutos depois pousou-o, apercebendo-se de que tinha absorvido muito pouco do que lera.
Estou preocupada disse em voz alta, e depois recordou a si mesma que era mau hábito falar sozinha.
Não tinha dormido bem na noite anterior e tinha a certeza de que aquela inquietação tinha alguma coisa a ver com a misteriosa declaração de Molly, de que podia ter
uma novidade muito interessante para ela.
"Que tipo de novidade poderia ser muito interessante?", perguntou a si mesma.
"Se Molly está a fazer alguma investigação privada, pode arranjar problemas", pensou Fran. Desviou o jornal, levantou-se, serviu-se de uma segunda chávena de café
e voltou para a poltrona, desta vez para ler a transcrição do julgamento.
Na hora seguinte estudou os testemunhos, linha a linha. Havia testemunhos dos primeiros polícias a chegar ao local do crime, bem como do médico que examinara o cadáver.
Seguiam-se os testemunhos de Peter Black e dos Whitehalls, que descreviam o último encontro com Gary Lasch, algumas horas antes de ele morrer.
"Claramente, foi quase como arrancar dentes obrigar Jenna a dizer alguma coisa negativa", pensou Fran, enquanto estudava cuidadosamente o testemunho dela.
ACUSAÇÃO: Falou com a arguida na semana anterior à morte do marido, enquanto ela estava na casa de Cape Cod?
JENNA: Falei.
ACUSAÇÃO: Como é que caracterizaria o lado emocional dela?
JENNA: Estava muito triste.
ACUSAÇÃO: Estava zangada com o marido, Dr.a Whitehall?
JENNA: Estava perturbada.
ACUSAÇÃO: Não respondeu à minha pergunta. Molly Carpenter Lasch estava zangada com o marido?
JENNA: Sim, acho que se pode dizer que sim.
ACUSAÇÃO: Ela expressou grande raiva pelo marido?
JENNA:Não se importa de repetir a pergunta?
102
ACUSAÇÃO: Claro que não, e o meretíssimo juiz não se importa de dizer à testemunha para responder sem equívocos?
Juiz: A testemunha tem de responder à pergunta.
ACUSAÇÃO: Dr.a Whitehall, durante as suas conversas telefónicas com Molly Carpenter Lasch, na semana que antecedeu a morte do marido dela, ela expressou grande raiva
por ele?
JENNA: Sim.
ACUSAÇÃO: Sabia o motivo por que Molly Carpenter Lasch estava com raiva do marido?
JENNA: Não, inicialmente não sabia. Perguntei-lhe, mas ela não me queria contar. Só me disse naquele domingo à tarde.
Quando leu o testemunho de Calvin Whitehall, Fran decidiu que, intencionalmente ou não, ele tinha sido uma testemunha extremamente prejudicial. "O delegado do Ministério
Público deve tê-lo adorado", pensou ela.
ACUSAÇÃO: Dr. Whitehall, o senhor e o Dr. Peter Black visitaram o Dr. Gary Lasch no domingo, dia 8 de Abril, à tarde. Correcto?
CALVIN WHITEHALL: Correcto.
ACUSAÇÃO: Qual foi o objectivo da vossa visita?
CALVIN WHITEHALL: O Dr. Black disse-me que estava muito preocupado com Gary. Disse que tinha sido óbvio durante toda a semana que Gary estava profundamente preocupado,
por isso, resolvemos ir visitá-lo.
ACUSAÇÃO: Ao dizer "nós", está a referir-se...?
CALVIN WHITEHALL: Ao Dr. Peter Black e eu próprio.
ACUSAÇÃO: Que aconteceu quando lá chegaram?
CALVIN WHITEHALL: Eram aproximadamente cinco horas da tarde. Gary levou-nos para a saleta íntima. Tinha preparado um prato com queijo e bolachas e abrira uma garrafa
de vinho. Serviu um copo para cada um de nós e disse: "Lamento dizer isto, mas chegou o momento das verdadeiras confissões." Depois admitiu que tinha um caso amoroso
com uma enfermeira do hospital chamada Annamarie Scalli e que ela estava grávida.
ACUSAÇÃO: O Dr. Lasch estava preocupado com a vossa possível reacção?
CALVIN WHITEHALL: Claro. Aquela enfermeira tinha pouco mais de vinte anos. Tínhamos medo das ramificações... um
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processo por assédio sexual, por exemplo. Não podemos esquecer-nos de que Gary era o director do hospital. O nome Lasch, graças ao legado do pai, é um símbolo de
integridade que, evidentemente, se estendia ao hospital e depois para a Remington Health Management. Ficámos extremamente preocupados com a perspectiva de essa imagem
mudar devido a um escândalo.
Fran continuou a ler a transcrição do julgamento durante mais uma hora. Quando pousou o documento fez pressão na testa, esperando prevenir o início de uma dor de
cabeça que sentia aproximar-se.
"Gary Lasch e Annamarie Scalli parecem, sem dúvida, ter conseguido manter o caso secreto", pensou. "O que salta à vista nestas páginas é o choque absoluto de Molly,
de Peter Black e dos Whitehalls, as pessoas mais próximas dele, quando souberam."
Lembrou os olhos muito abertos de Susan Branagan, a voluntária da cafetaria do hospital, numa expressão de espanto. Ela tinha dito que toda a gente presumira que
Annamarie Scalli estava a apaixonar-se por aquele simpático Dr. Morrow.
"O Dr. Jack Morrow, que foi assassinado pouco tempo antes do Gary", recordou Fran a si própria.
Eram dez horas. Pensou ir correr, mas depois chegou à conclusão de que não lhe apetecia. "Talvez veja o que está a passar no cinema", pensou. "Vou ver uma fita,
como o pai diria."
O telefone tocou no momento em que ela pegava no suplemento de entretenimento do jornal para começar a procurar o filme certo, no cinema certo, na altura certa.
Era Tim Mason.
Surpresa disse ele. Espero que não te importes. Telefonei ao Gus e ele deu-me o teu número de telefone.
Não me importo nada. Se é uma sondagem desportiva, embora tenha vivido na Califórnia durante catorze anos, os Yankees são a minha equipa. Também quero que o Ebbets
Field seja reconstruído. E tenho de dizer que entre os Giants e os Jets a diferença é pouca, mas se tivesse de escolher no altar, escolheria os Giants.
Mason riu-se.
É disso que eu gosto... uma mulher que sabe tomar decisões. Na verdade, telefonei para saber se por acaso não terias nada melhor para fazer e, consequentemente,
considerarias a hipótese de te encontrares comigo para um brunch no Neary's.
O Restaurante Neary's ficava virtualmente ao virar da esquina do apartamento de Fran, na Rua Cinquenta e Sete.
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Fran percebeu que estava não apenas surpreendida mas contente com o convite. Quando se tinham conhecido, não gostara da forma como os olhos de Mason tinham reflectido
a consciência de quem ela era e de quem o pai tinha sido, mas depois dissera a si mesma que tinha de esperar essa reacção. Ele não tinha a culpa de saber que o pai
dela era um ladrão.
Obrigada. Gostava muito disse ela com sinceridade.
Ao meio-dia?
Óptimo.
Por favor, não te produzas muito.
Não estava a pensar produzir-me. Dia de descanso e tudo. Depois de desligar, Fran falou sozinha em voz alta pela segunda vez naquela manhã:
Afinal de contas, o que é isto? perguntou. De certeza que não é o velho "rapaz-conhece-rapariga".
Fran chegou ao Neray's e encontrou Tim Mason a conversar animadamente com o empregado de mesa. Usava uma camisa desportiva com o colarinho desapertado, casaco de
bombazina verde e calças castanhas. Tinha os cabelos despenteados e o casaco estava frio quando lhe tocou no braço.
Não sei porquê, mas parece-me que não apanhaste um táxi disse ela quando ele se voltou.
Não gosto de todos aqueles cartazes acerca da utilização do cinto de segurança disse ele. Por isso vim a pé. É bom ver-te, Fran. Sorriu-lhe.
Fran tinha calçado botins de saltos baixos e percebeu que se sentia como se sentira no primeiro ano do liceu baixa.
Um sorridente Jimmy Neary deu-lhes uma das quatro mesas de canto, o que indicou imediatamente a Fran que Tim Mason devia ser um cliente regular e favorito. Desde
que se tinha mudado para Nova Iorque, há algumas semanas, tinha ido ali uma vez com um casal do seu prédio. Também lhes tinha sido atribuída uma mesa de canto, e
eles tinham-lhe explicado o significado.
Enquanto bebiam Bloody Marys, Tim falou de si próprio.
Os meus pais saíram de Greenwich depois de se divorciarem contou-lhe. Foi no ano a seguir a eu ter acabado a faculdade, e estava a trabalhar para o Greenwich Time.
O editor dizia que eu era um repórter estagiário, mas na verdade eu era essencialmente um moço de recados. Foi a última vez que vivi lá.
Há quantos anos foi isso? perguntou Fran.
Catorze.
Ela fez um rápido cálculo mental.
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Foi por isso que tu reconheceste o meu nome. Sabias o que tinha acontecido ao meu pai.
Ele encolheu os ombros.
Sim. O seu sorriso foi apologético.
A empregada de mesa entregou-lhes as ementas, mas ambos pediram Ovos Benedict sem sequer olharem para as opções. Depois de a empregada se afastar, Tim bebeu um golo
do seu Bloody Mary e disse:
Tu não perguntaste, mas vou contar-te a história da minha vida, que penso que considerarás especialmente arrebatadora, já que, obviamente, sabes o que queres.
"Na verdade, não somos muito diferentes", pensou Fran, enquanto escutava Tim a falar sobre o seu primeiro trabalho, a comentar os jogos do liceu numa pequena cidade
de que ela nunca tinha ouvido falar, na parte superior do Estado de Nova Iorque. Depois, ela contou-lhe que tinha estagiado num pequeno canal por cabo local, numa
cidade localizada próximo de San Diego, onde o acontecimento mais empolgante era a reunião do Conselho da cidade.
No começo, uma pessoa aceita o emprego que consegue encontrar disse ela, enquanto ele acenava em sinal de concordância.
Também ele era filho único, mas ao contrário dela não tinha meios-irmãos.
Depois do divórcio, a minha mãe mudou-se para Bronxville explicou ele. Ela e o meu pai cresceram lá. Comprou uma moradia. E adivinha o que aconteceu? O meu pai comprou
uma no mesmo complexo. Nunca se deram bem enquanto estiveram casados, mas agora saem juntos e nas festas vamos tomar bebidas a casa dele e jantar a casa dela. No
princípio, fiquei confuso, mas parece funcionar bem com eles.
Bem, felizmente a minha mãe é muito feliz e tem bons motivos para isso disse Fran. Voltou a casar há oito anos. Calculou que eu acabaria por voltar para Nova Iorque
e sugeriu que adoptasse o apelido do meu padrasto. Tu sabes seguramente a enorme publicidade que houve em torno do meu pai.
Ele acenou afirmativamente.
Pois houve. Sentiste-te tentada a fazer isso? Fran dobrou e desdobrou o guardanapo.
Não, nunca!
Tens a certeza de que é sensato seres tu a investigar um caso passado em Greenwich?
Provavelmente, não é sensato, mas por que é que perguntas?
Fran, a noite passada estive num velório em Greenwich, de
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uma senhora que conheci quando era miúdo. Ela morreu de ataque cardíaco no Hospital Lasch. O filho dela é meu amigo e está terrivelmente zangado. Parece achar que
se podia ter feito mais por ela e acha que, já que estás com a mão na massa, devias investigar o tratamento que dão aos doentes no hospital.
Podia ter sido feito mais pela mãe dele?
Não sei. Ele podia estar apenas enlouquecido pelo desgosto, embora eu não ficasse surpreendido se ele te contactasse. Chama-se Billy Gálio.
Por que é que ele me telefonaria?
Porque ouviu dizer que foste vista na cafetaria do Hospital Lasch na sexta-feira. Aposto que neste momento toda a gente da cidade sabe que estiveste lá.
Fran abanou a cabeça, incrédula.
Não pensei que estivesse no ar há tempo suficiente para as pessoas me reconhecerem com essa facilidade. É pena disse com um encolher de ombros. No entanto, consegui
informações interessantes numa simples conversa com uma voluntária na cafetaria. Provavelmente, ela não se teria aberto se soubesse que sou jornalista.
Esta visita está relacionada com o programa que estás a fazer sobre Molly Lasch? perguntou ele.
Sim, embora seja essencialmente para me enquadrar disse ela, sem vontade nenhuma de falar sobre a investigação de Molly Lasch. Tim, conheces Joe Hutnik do Greenwich
Time?
Sim. Joe já fazia parte dos quadros quando eu trabalhei lá. Um bom tipo. Por que é que perguntas?
Joe não tem a generalidade das OCS em grande conta, mas parece pensar que a Remington Health Management não é pior do que as outras.
Bem, Billy Gálio não é da mesma opinião. Viu uma expressão de preocupação no rosto dela. Mas não te preocupes. Ele é um tipo verdadeiramente simpático... Só está
a passar por um momento de grande perturbação.
Quando a mesa foi levantada e o café servido, Fran olhou à sua volta. Agora, quase todas as mesas estavam ocupadas e o aconchegante pub estava alegremente movimentado.
"Tim Mason é realmente um bom tipo", pensou ela. "Talvez o amigo dele me telefone e talvez não. A verdadeira mensagem do Tim é que eu estou a dar nas vistas em Greenwich
e que as velhas histórias, e anedotas, sobre a morte do meu pai estão a ser revividas."
Enquanto observava a sala, não viu o olhar de compaixão de Tim Mason, nem se apercebeu de que a expressão dos seus olhos lhe trouxe nitidamente a imagem da adolescente
a chorar o pai.
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Annamarie Scalli tinha concordado em encontrar-se com Molly às oito da noite num restaurante em Rowayton, uma cidade quinze quilómetros para nordeste de Greenwich.
O local e a hora tinham sido sugeridos por Annamarie.
"Não está na moda e aos domingos é calmo, especialmente a uma hora tão tardia", dissera. "E tenho a certeza de que nenhuma de nós quer tropeçar em alguém conhecido."
Às seis horas demasiado cedo, sabia, Molly estava pronta para sair. Tinha mudado de roupa duas vezes, sentindo-se demasiado bem vestida no fato preto que vestira
primeiro e depois demasiado casual de calças de ganga. Por fim, resolveu-se por calças de lã azuis e uma camisola branca de gola alta. Torceu o cabelo num chinó
e prendeu-o, lembrando-se de como Gary gostava que o usasse assim, como gostava especialmente das madeixas que escapavam e caíam soltas no pescoço e orelhas. Dizia
que a fazia parecer real.
"Pareces sempre tão perfeita, Molly", dizia-lhe ele. "Perfeita, elegante e bem educada. Consegues fazer com que umas calças de ganga e uma camisola de algodão pareçam
um traje formal."
Na altura pensara que ele estava a brincar com ela. Agora, não tinha a certeza. Era o que precisava de descobrir. "Os maridos falam sobre as esposas com as amantes",
pensou. "Preciso de saber o que Gary contou à Annamarie acerca de mim. E, enquanto estou a fazer perguntas, quero falar-lhe sobre outra coisa: que é que ela estava
a fazer na noite em que Gary morreu. Afinal de contas, ela também tinha um bom motivo para estar muito, muito zangada com ele. Percebi pelo tom com que falou com
ele ao telefone."
Às sete horas, Molly decidiu que finalmente era razoável partir para Rowayton. Tirou a Burberry do armário do rés-do-chão e dirigia-se para a porta quando, com um
pensamento de último momento, voltou ao quarto, tirou um lenço azul da gaveta e procurou até encontrar uns óculos escuros Cartier enormes, um estilo que tinha estado
na moda há seis anos mas, provavelmente, agora estava ultrapassado. "Bom, pelo menos, vão dar-me a sensação de estar disfarçada", decidiu.
Em tempos, a garagem para três carros tinha albergado o seu BMW descapotável, o Mercedes de Gary e a carrinha preta que ele
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tinha comprado dois anos antes de morrer. Molly lembrava-se de como ficara surpreendida quando Gary aparecera com ela um dia. "Não pescas, não caças, só morto é
que te apanhavam num acampamento. Tens um porta-bagagens grande no Mercedes, onde cabem facilmente os tacos de golfe. Afinal de contas, para que é a carrinha?"
Na altura não lhe ocorrera que, por motivos pessoais, Gary podia querer um veículo que se assemelhasse exactamente a dúzias de outras carrinhas da zona.
Após a morte de Gary, o primo tinha ido buscar os carros dele. Quando Molly fora presa, tinha pedido aos pais que vendessem o seu. Logo que conseguiu a liberdade
condicional, eles tinham celebrado, comprando-lhe um carro novo, um carro azul-escuro que ela escolhera nos catálogos que eles lhe tinham mandado.
Fora ver o carro no dia em que voltara para casa, mas agora entrava nele pela primeira vez, e apreciou o cheiro da pele nova. Há quase seis anos que não conduzia
e, de repente, achou que a sensação da chave da ignição na sua mão era muito libertadora.
A última vez que tinha estado atrás do volante de um carro fora naquele domingo em que voltara de Cape Cod. Com as mãos no volante agora, Molly visualizou aquela
viagem. "Eu estava a apertar o volante com tanta força que as mãos doíam", recordou enquanto saía da garagem de marcha-atrás e depois usava o comando à distância
para fechar a porta. Conduziu lentamente pelo acesso comprido até à rua. "Normalmente, teria guardado o carro na garagem, mas lembro-me que naquela noite parei à
frente da porta e deixei-o ali mesmo. Por que é que fiz isso?", perguntou a si mesma, forçando-se a lembrar. "Seria por causa da mala, para não ter de a carregar
de mais longe?
"Não, foi porque estava doida para falar com Gary frente a frente. Ia fazer-lhe as mesmas perguntas que vou fazer agora a Annamarie Scalli. Precisava de saber o
que ele sentia por mim, por que é que se ausentava tanto, por que é que, se não estava feliz com o nosso casamento, não tinha sido honesto e conversado comigo ao
invés de me deixar perder tanto tempo e tanto esforço a tentar ser uma boa esposa para ele."
Molly sentiu os lábios apertarem-se, sentiu a velha ira e ressentimento invadirem-lhe o corpo. "Pára com isso!", admoestou-se. "Pára com isso já, ou volta para trás
e vai para casa!"
Annamarie Scalli chegou ao restaurante Sea Lamp às sete e vinte. Sabia que estava ridiculamente adiantada para o encontro
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com Molly Lasch, mas queria muito ser a primeira a chegar. O choque de falar com Molly, de ela a ter conseguido descobrir, não tinha abrandado até ter concordado
com o encontro.
A irmã, Lucy, tinha-se manifestado profundamente contra o facto de ela ir àquele encontro.
"Annamarie, aquela mulher estava tão perturbada por tua causa que esmagou o crânio do marido", dissera ela. "Que é que te leva a pensar que não vai atacar-te? O
próprio facto de ela poder estar a dizer a verdade quando diz que não se lembra de o ter matado indica que é um caso mental. E tu tiveste sempre medo porque sabes
demasiado sobre o que estava a acontecer no hospital. Não te encontres com ela!"
As irmãs tinham discutido todo o serão, mas Annamarie estava determinada a ir até ao fim. Tinha concluído que, uma vez que Molly Lasch tinha conseguido encontrá-la,
seria preferível encontrar-se frente a frente com ela no restaurante do que arriscar-se a que ela aparecesse na sua casa em Yonkers ou talvez até a empatasse enquanto
tentava cuidar dos seus clientes.
No interior do restaurante, Annamarie tinha-se dirigido para um lugar no canto mais afastado da sala comprida e estreita. Havia algumas pessoas sentadas ao balcão
com expressões sombrias. Igualmente descontente ficou a empregada de mesa, não gostou nem um pouco quando Annamarie recusou a mesa da frente em que ela tentou sentá-la.
A penumbra do restaurante só contribuiu para aumentar a sensação de ameaça e desânimo que se tinha apoderado de Annamarie durante a longa viagem de Buffalo. Sentia
a fadiga entranhar-se nos ossos. "Tenho a certeza de que é por isso que me sinto tão triste e deprimida", disse para si mesma sem convicção, enquanto bebericava
o café tépido que a empregada de mesa tinha atirado para a sua frente.
Sabia que grande parte do problema se centrava na discussão que ela tinha tido com a irmã. Embora a amasse profundamente, Lucy não tinha o menor pejo de atingir
Annamarie onde lhe doía mais, e a sua litania do "se ao menos" acabara por afectá-la.
"Annamarie, se ao menos tivesses casado com Jack Morrow. Como a mãe costumava dizer, ele era um dos melhores homens a caminhar por esta terra. Ele era louco por
ti. E era médico, e um bom médico! Lembras-te de que a Sr.a Monahan veio cá a casa fazer uma visita naquele fim-de-semana em que o trouxeste cá? Jack disse que não
gostava da cor com que ela estava. Se não a tivesse convencido a fazer aqueles exames e o tumor não tivesse sido descoberto, ela não estaria viva hoje."
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Annamarie tinha continuado a dar a mesma resposta que dera a Lucile nos últimos seis anos.
"Escuta, Lucy, esquece o assunto. Jack sabia que eu não estava apaixonada por ele. Talvez noutras circunstâncias eu pudesse tê-lo amado. Talvez tivesse resultado
se as coisas tivessem sido diferentes, mas não foram. O facto é que aos vinte e poucos anos já estava a trabalhar no meu primeiro emprego. Estava apenas a começar
a viver. Não estava preparada para o casamento. Jack compreendeu isso."
Annamarie lembrou-se de que na semana em que Jack fora assassinado ele tinha discutido com Gary. Ela ia a caminho do consultório de Gary mas fora detida na zona
da recepção pelo som de vozes zangadas. A secretária tinha sussurrado:
"O Dr. Morrow está lá dentro com o Dr. Lasch. Está terrivelmente perturbado. Não consegui perceber do que se trata, mas suponho que é o costume... um tratamento
que queria que um doente fizesse e que foi cancelado."
"Lembro-me de que na altura fiquei apavorada ao pensar que podiam estar a discutir por minha causa", pensou Annamarie. "Fugi, para não correr o risco de Jack me
confrontar ali; tinha a certeza de que ele tinha descoberto."
Mas mais tarde, quando Jack a interpelara no corredor, não tinha evidenciado o menor sinal de estar zangado com ela. Pelo contrário, tinha perguntado se ela ia visitar
a mãe brevemente. Quando Annamarie lhe dissera que ia lá daí a dois fins-de-semana, ele dissera que ia copiar um ficheiro muito importante que tinha compilado e
perguntara se ela não se importava de guardar essa cópia no sótão da mãe. Mais tarde, pedir-lho-ia de volta.
"Fiquei tão aliviada por ele não ter descoberto o que se passava entre mim e Gary e tão torturada pelo que sabia sobre o hospital que nem sequer senti curiosidade
para saber o que continha o ficheiro", pensou Annamarie. "Ele disse que mo daria em breve e obrigou-me a prometer que não contaria a ninguém. Mas nunca chegou a
dar-mo, e uma semana depois estava morto."
Annamarie?
Espantada, Annamarie levantou os olhos. Tinha estado tão imersa nos seus pensamentos que não vira Molly Lasch entrar. Um olhar para a outra mulher e de repente sentiu-se
pesada e feia. Os óculos demasiado grandes não conseguiam esconder as feições maravilhosas de Molly. As mãos que desapertaram o cinto do casaco eram compridas e
esguias. Quando tirou o lenço da cabeça, os cabelos eram mais escuros do que Annamarie se lembrava, mas continuavam finos e sedosos.
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Molly observou Annamarie enquanto se sentava no banco à frente dela. "Não é o que eu esperava", pensou Molly. Tinha visto Annamarie Scalli no hospital algumas vezes
e recordava-se dela como sendo muito bela, com uma figura provocante e uma massa de cabelos escuros.
Aquela mulher vestida com simplicidade que se encontrava à sua frente não tinha nada de provocante. Agora tinha os cabelos curtos e, embora o rosto continuasse bonito,
estava um pouco inchado. Era mais pesada do que Molly se lembrava. Mas os olhos eram encantadores, castanho-escuros e com pestanas negras, embora a expressão que
Molly viu neles fosse de infelicidade e medo.
"Ela tem medo de mim", pensou Molly, surpreendida por exercer aquele efeito numa pessoa.
A empregada de mesa reapareceu, agora mais amável. Annamarie percebeu que ela estava impressionada com Molly.
Chá com limão, por favor disse Molly.
E mais café para mim, se não der muita maçada acrescentou Annamarie quando a empregada se virou.
Molly esperou até estarem sozinhas antes de dizer:
Estou grata por ter concordado em encontrar-se comigo. Sei que provavelmente é tão estranho para si como é para mim, e prometo que não vou ocupá-la durante muito
tempo, mas pode ajudar-me se for sincera comigo.
Annamarie acenou afirmativamente.
Quando é que o seu relacionamento com Gary começou?
Um ano antes de ele morrer. Um dia, o meu carro não pegou e ele deu-me boleia para casa. Entrou para tomar um café. Annamarie olhou firmemente para Molly. Eu sabia
que ele se preparava para se atirar a mim. Uma mulher sabe sempre, não é verdade? Fez uma pequena pausa, com os olhos pousados nas mãos. A verdade é que eu estava
apaixonadíssima por ele, por isso facilitei as coisas.
"Ele estava preparado para se atirar a ela", pensou Molly. "Seria a primeira? Provavelmente, não. A décima?", perguntou a si mesma. Nunca saberia.
Ele estava envolvido com outras enfermeiras?
Que eu saiba, nenhuma, mas afinal de contas eu só trabalhava no hospital há alguns meses quando me envolvi com ele. E ele deixou bem clara a necessidade de discrição
absoluta, o que era óptimo para mim. Eu pertenço a uma família italiana profundamente católica, e a minha mãe teria ficado destroçada se soubesse que eu andava com
um homem casado.
"Sr.a Lasch, quero que saiba... Annamarie calou-se quando a
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empregada de mesa voltou com o chá e mais café. Annamarie reparou que ela não atirou a chávena para a frente de Molly Lasch. Quando a empregada já não podia ouvi-las,
ela continuou:
Sr.a Lasch, quero que saiba que lamento absolutamente, profundamente, o que aconteceu. Sei que isso destruiu a sua vida. Acabou com a vida do Dr. Lasch. Eu desisti
do meu bebé porque queria que ele tivesse um começo limpo, com pessoas que lhe dessem um lar feliz, com pai e mãe. Talvez um dia, quando for adulto, queira ver-me.
Se assim for, espero que consiga compreender e até perdoar-me. A senhora pode ter tirado a vida ao pai dele, mas os meus actos é que desencadearam toda a tragédia.
Os seus actos?
Se eu não me tivesse envolvido com o Dr. Lasch, nada disto teria jamais acontecido. Se não lhe tivesse telefonado para casa, provavelmente, nunca teria sabido.
Por que é que lhe telefonou para casa?
Bem, em primeiro lugar, ele disse-me que a senhora e ele andavam a falar em divórcio, mas que não queria que soubesse que havia outra mulher no caso. Disse que complicaria
o processo de divórcio e a senhora ficaria ciumenta e vingativa.
"Então, era isso que o meu marido andava a dizer à namorada sobre mim?", pensou Molly. "Ele disse que andávamos a falar em divórcio e que eu era ciumenta e vingativa?
Foi esse o homem que me levou à prisão, acusada de o ter matado?"
Ele disse que tinha sido melhor que tivesse perdido o bebé; disse que um bebé só teria complicado o rompimento.
Molly ficou sentada num silêncio assombrado. "Santo Deus, Gary teria conseguido realmente dizer aquilo?", pensou ela. "Ele disse que tinha sido melhor que eu tivesse
perdido o bebé.
Mas, quando eu lhe disse que estava grávida, ele entrou em pânico. Disse-me para me livrar do bebé. Deixou de me visitar e até me ignorava no hospital. O advogado
dele telefonou-me e ofereceu-me uma indemnização na condição de eu assinar uma declaração onde me comprometia a não revelar os factos. Telefonei para a sua casa
porque tinha de falar com ele e ele recusava-se a falar comigo no hospital. Eu estava desesperada; queria saber se ele queria ou não assumir o filho. Na altura,
não tinha a menor intenção de o dar para adopção.
E eu levantei o telefone e ouvi a conversa.
- Sim.
O meu marido alguma vez lhe falou sobre mim, Annamarie? Quero dizer, para além de dizer que estávamos a falar em divórcio?
-Sim.
Por favor, conte-me o que ele disse. Eu tenho de saber.
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Eu compreendo agora que tudo o que ele me disse sobre a senhora naquela altura era o que pensava que eu queria ouvir.
Mesmo assim, gostaria de saber exactamente o que foi. Annamarie calou-se, indecisa, e depois olhou directamente para a mulher que se encontrava à sua frente, uma
mulher que primeiro tinha desdenhado, depois odiado, e por quem agora, finalmente, começava a sentir alguma compaixão.
Ele dizia que a senhora era a tradicional e enfadonha esposa. "A tradicional e enfadonha esposa", pensou Molly. Por um momento, pareceu-lhe que estava uma vez mais
na prisão, a comer comida sem gosto, a ouvir o clique de fechaduras, a permanecer acordada noite de insónia atrás de noite de insónia.
Como marido... e como médico... ele não merecia o preço que a senhora pagou por tê-lo matado, Sr.a Lasch disse Annamarie, calmamente.
Annamarie, você deixou bem claro que acredita que eu matei o meu marido, mas devo dizer-lhe eu não estou assim tão segura disso. Genuinamente, não sei o que aconteceu.
Não estou convencida de que não recuperarei a memória do que aconteceu naquela noite. Pelo menos, é o que estou a tentar fazer. Diga-me, onde é que esteve naquele
domingo à noite?
No meu apartamento, a fazer as malas.
Estava alguém consigo na altura? Os olhos de Annamarie abriram-se.
Sr.a Lasch, está a perder o seu tempo se veio aqui com o objectivo de sugerir que eu tive alguma coisa a ver com a morte do seu marido.
Conhece alguém que pudesse ter um motivo para matá-lo? Molly viu o olhar espantado nos olhos da outra mulher. Annamarie, você tem medo de alguma coisa. O que é?
Não tenho medo de nada. Não sei mais nada. Escute, agora tenho de ir. Annamarie pousou a mão em cima da mesa, preparando-se para se levantar.
Molly estendeu a mão e agarrou-lhe o pulso.
Annamarie, você tinha pouco mais de vinte anos naquela altura. Gary era um homem sofisticado. Enganou-nos a ambas, e ambas tínhamos motivo para estar zangadas. Mas
não pense que o matei. Se tem algum motivo para pensar que havia mais alguém que podia ter alguma coisa contra ele, por favor, por favor, diga-me quem é. Pelo menos,
dar-me-ia um ponto de partida. Ele discutiu com alguém?
Que eu saiba, ouve uma discussão. Com o Dr. Jack Morrow.
Com o Dr. Morrow? Mas ele morreu antes de Gary.
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Sim, e, antes de morrer, o Dr. Morrow andava a comportar-se de forma estranha e pediu-me para lhe guardar uma cópia de um ficheiro. Mas foi assassinado antes de
ma dar. Annamarie afastou a mão de Molly. Sr.a Lasch, não sei se matou ou não o seu marido, mas se não matou é melhor ter muito cuidado com a maneira como anda por
aí a fazer perguntas.
Annamarie quase chocou com a empregada de mesa, que estava a voltar para saber se elas queriam mais alguma coisa. Molly recusou, pediu a conta e pagou rapidamente,
detestando a curiosidade descarada estampada nos olhos da mulher. Depois pegou à pressa no casaco, ansiosa por apanhar Annamarie. "Tradicional e enfadonha esposa",
pensou com amargura enquanto saía rapidamente do restaurante.
Ao voltar para Greenwich, Molly relembrou mentalmente a curta conversa com Annamarie Scalli. "Ela sabe alguma coisa que não me quer dizer", pensou Molly. "É quase
como se tivesse medo. Mas de quê...? Nessa noite, Molly olhou, chocada, para a notícia de abertura do noticiário das onze horas da CBS, que relatava o recém-descoberto
cadáver de uma mulher não identificada que tinha sido esfaqueada até à morte no seu carro, no parque de estacionamento do restaurante Sea Lamp, em Rowayton.
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O assistente de delegado do Ministério Público, Tom Serrazzano, não fora o acusador de Molly Carpenter Lasch, mas sempre tinha desejado ter tido essa sorte. Era
óbvio para ele que ela era culpada de homicídio e que por causa de ser quem era tinha conseguido o melhor acordo possível apenas cinco anos e meio de prisão por
ter ceifado a vida do marido.
Tom já estava no gabinete quando Molly fora julgada pelo crime da morte de Gary Lash. Tinha ficado estarrecido quando o acusador no julgamento tinha concordado com
uma acusação de homicídio involuntário. Acreditava que qualquer delegado do Ministério Público digno dessa função teria continuado o julgamento e conseguido uma
condenação por homicídio.
Incomodava-o especialmente quando os perpetradores tinham dinheiro e conhecimentos, como Molly Carpenter Lasch.
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No final da casa dos quarenta, toda a carreira judiciária de Tom tinha sido dedicada ao cumprimento da lei. Depois de ser assistente de umjuiz, tinha entrado para
o gabinete do Ministério Público e, durante um período de tempo, tinha ganho a reputação de acusador duro.
Na segunda-feira de manhã, o esfaqueamento de uma mulher jovem, primeiro identificada como Annamarie Sangelo, de Yonkers, ganhou um novo significado quando a investigação
revelou que o seu nome verdadeiro era Annamarie Scalli, a "outra mulher" no caso de homicídio do Dr. Gary Lasch.
O depoimento dado pela empregada de mesa do restaurante Sea Lamp, descrevendo a mulher com quem Scalli se tinha encontrado lá, resolveu o caso para Serrazzano. Já
o via como um caso encerrado.
Só que desta vez ela não vai conseguir um acordo disse ele sombriamente para os detectives que estavam a trabalhar no caso.
"É muito importante que eu seja absolutamente precisa quando lhes contar", disse Molly para si mesma vezes sem conta durante a noite.
"Annamarie saiu do restaurante antes de mim. Eu paguei a conta. Enquanto me dirigia para a porta senti que a minha cabeça estava a andar à roda. Só conseguia ouvir
a voz da Annamarie a dizer que Gary ficara aliviado por eu ter perdido o meu bebé, que pensava que eu era uma esposa tradicional e enfadonha. De repente, senti que
estava a sufocar.
"Estavam apenas alguns carros no parque de estacionamento quando cheguei ao restaurante. Um deles era um jipe. Reparei que continuava lá quando eu saí. Um carro
estava a arrancar quando saí. Pensei que era Annamarie e chamei. Lembro-me de que queria perguntar-lhe alguma coisa. Mas o quê? Que é que podia querer perguntar-lhe?
"A empregada de mesa vai descrever-me. Eles saberão quem eu sou. Vão fazer perguntas. Tenho de telefonar a Philip e explicar-lhe o que aconteceu.
"Philip pensa que eu matei Gary.
"E matei?
"Santo Deus, eu sei que não fiz mal a Annamarie Scalli", pensou Molly. "Eles vão pensar que sim? Não! Outra vez não! Não consigo passar por tudo de novo.
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"Fran. Fran vai ajudar-me. Ela está a começar a acreditar que não matei Gary. Sei que vai ajudar-me."
O noticiário das sete horas da manhã identificava a vítima do esfaqueamento em Rowayton como Annamarie Sangelo, uma funcionária do Serviço de Enfermagem ao Domicílio,
de Yonkers. "Ainda não sabem quem ela é", pensou Molly. "Mas vão descobrir em breve."
Obrigou-se a esperar até às oito horas para telefonar a Fran, e depois arrepiou-se com a perturbação e descrença na voz de Fran quando ela disse:
Molly, estás a dizer-me que viste a Annamarie Scalli a noite passada e que ela foi assassinada?
- Sim.
Telefonaste a Philip Matthews?
Ainda não. Meu Deus, ele disse-me para não a procurar! Rapidamente, Fran reviu mentalmente a transcrição do julgamento que tinha lido, incluindo o testemunho devastador
que Calvin Whitehall tinha dado.
Molly, vou telefonar imediatamente ao Matthews. Fez uma pausa e depois continuou com um tom de urgência na voz. Escuta. Não atendas o telefone. Não abras a porta.
Não fales com ninguém, nem sequer com Jenna, até Philip Matthews estar contigo. Jura que não o farás.
Fran, achas que matei Annamarie?
Não, Molly, não acho, mas outras pessoas vão pensar que mataste. Agora, senta-te quieta. Eu vou para aí o mais depressa possível.
Uma hora depois, Fran estava a virar para o caminho de acesso à casa de Molly. Molly já estava à espera e abriu a porta antes de ela tocar.
"Parece estar em estado de choque", pensou Fran. "Santo Deus, é possível que ela seja realmente culpada de dois homicídios?" A compleição de Molly estava pálida,
tão branca como o roupão de chenille que parecia grande de mais para o seu corpo magro.
Não vou conseguir passar por tudo outra vez, Fran. Prefiro suicidar-me sussurrou ela.
Nem te atrevas a pensar nisso disse Fran, pegando-lhe nas mãos. Sentiu como estavam trémulas e geladas. Philip Matthews estava no escritório quando eu liguei. Vem
a caminho. Molly, vai para cima, toma um duche e veste-te. Ouvi na rádio que Annamarie foi identificada. Não tenho a menor dúvida de que a Polícia vai
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passar por cá para falar contigo. Não quero que te encontrem neste estado.
Molly acenou afirmativamente e, como uma criança obediente, virou-se e começou a subir as escadas.
Fran despiu o casaco e espreitou apreensivamente pela janela. Estava consciente de que, logo que se soubesse que Molly se tinha encontrado com Annamarie Scalli no
restaurante, os órgãos de informação apareceriam como uma alcateia de lobos.
"Aqui vem o primeiro", pensou Fran quando um pequeno carro encarnado entrou na rua. Ficou aliviada ao ver Edna Barry atrás do volante. Apressou-se a entrar na cozinha
para a receber e reparou que não havia sinais de Molly ter sequer feito café. Ignorando a hostilidade instantânea que se estampou no rosto da Sr.a Barry ao entrar,
Fran disse:
Sr.a Barry, não se importa de fazer café imediatamente e preparar o que a Molly come normalmente ao pequeno-almoço?
Há algum problema com...?
A campainha da porta principal cortou a resposta.
Eu vou abrir disse Fran. "Por favor, Deus, faz com que seja Philip Matthews", rezou.
Ficou aliviada ao descobrir que era Philip, embora a expressão preocupada que este ostentava lhe dissesse ainda mais violentamente do que ela já sentia que ali poderia
haver facilmente uma precipitação de julgamento.
Ele não mediu as palavras:
Menina Simmons, aprecio o facto de me ter telefonado e aprecio que tenha avisado a Molly para não falar com ninguém antes de eu chegar. Mas esta situação deve ser
um verdadeiro sonho para si e para o seu programa. Devo avisá-la de que não tolerarei que interrogue a Molly e nem sequer que esteja por perto quando eu conversar
com ela.
"Ele está com a mesma expressão que ostentava quando tentou impedir Molly de falar para a imprensa à porta da prisão, a semana passada", pensou Fran. "Até pode acreditar
que ela assassinou Gary Lasch, mas continuo a pensar que é o género de advogado de que a Molly precisa. Se tiver de o fazer, matará dragões por ela."
Foi um pensamento tranquilizador. "Mantém a calma, Fran", pensou ela.
Dr. Matthews disse, eu estou suficientemente familiarizada com a lei para saber que as suas conversas com Molly são confidenciais e as minhas não. Penso que o senhor
ainda está convencido de que a Molly assassinou o Dr. Lasch. Eu comecei por acreditar nisso, mas nestes últimos dias fiquei com sérias dúvidas
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a esse respeito. No mínimo dos mínimos, tenho muitas perguntas para as quais quero respostas.
Philip Matthews continuou a olhá-la com frieza.
Suponho que pensa que se trata de um truque de jornalista atirou Fran. Não é. Na qualidade de alguém que gosta muito de Molly, quer ajudá-la e quer saber a verdade,
por muito dolorosa que esta possa ser, sugiro que tenha um espírito aberto em relação à Molly; se não, devia desaparecer da vida dela.
Voltou-lhe as costas. "Preciso tanto de uma chávena de café como a Molly", decidiu.
Matthews seguiu-a para a cozinha.
Escute, Fran... É Fran, não é? perguntou. Quero dizer, é o que os amigos lhe chamam?
-Sim.
Acho que é melhor começarmos a tratarmo-nos pelo primeiro nome. Obviamente, quando eu falar com Molly não poderá estar presente, mas seria útil se me contasse alguma
coisa que saiba e que possa ajudá-la.
O antagonismo tinha desaparecido do rosto dele. A forma protectora como disse o nome de Molly comoveu Fran. "Ela significa muito mais para ele do que uma simples
cliente", pensou. Era um pensamento extremamente tranquilizador.
Na verdade, gostaria de analisar uma série de coisas consigo disse ela.
A Sr.a Barry tinha acabado de preparar uma bandeja para Molly.
Café, sumo e uma torrada ou um queque é o pequeno-almoço que toma sempre explicou.
Fran e Matthews serviram-se de café. Fran esperou até a Sr.a Barry ter saído antes de perguntar:
Sabia que todos os funcionários do hospital ficaram surpreendidos quando souberam do caso de Annamarie com Gary Lasch, porque pensavam que ela estava envolvida romanticamente
com o Dr. Jack Morrow, que também pertencia aos quadros do hospital? E que por acaso o Dr. Jack Morrow foi encontrado assassinado no seu consultório duas semanas
antes da morte do Dr. Lasch? Sabia disso?
Não, não sabia.
Chegou a conhecer Annamarie Scalli?
Não, o caso foi resolvido antes de ela ser convocada para testemunhar.
Lembra-se se alguma vez foi mencionada uma chave de casa que estava sempre escondida no jardim?
Matthews franziu o sobrolho.
119
Pode ter sido mencionada, mas não levou a lado nenhum. Para falar com franqueza, a minha sensação é que, devido às circunstâncias do homicídio e à forma como Molly
estava coberta com sangue do Dr. Lasch, a investigação da morte começou e acabou com ela.
"Fran, vá lá acima e diga à Molly que preciso de falar com ela imediatamente disse Matthews. Lembro-me que ela tem uma sala de estar na suite. Posso conversar com
ela aí antes de deixar a Polícia aproximar-se. Vou mandar a Sr.a Barry fazê-los esperar algures cá em baixo.
Nesse momento, uma perturbada Sr.a Barry entrou espavorida na cozinha.
Eu fui agora mesmo lá acima com o pequeno-almoço da Molly e ela estava na cama, completamente vestida e com os olhos fechados. Fez uma pausa. Santo Deus, é exactamente
como da última vez!
37
O Dr. Peter Black iniciava invariavelmente o dia com uma verificação rápida dos mercados financeiros internacionais num dos canais de finanças por cabo. Depois,
tomava um pequeno-almoço espartano durante o qual insistia em ter silêncio absoluto e mais tarde ouvia música clássica no rádio do carro enquanto se dirigia para
o emprego.
Ocasionalmente, quando chegava ao recinto do hospital, dava um passeio rápido antes de se sentar à secretária.
Na segunda-feira de manhã o sol brilhava. De um dia para o outro a temperatura tinha subido imenso, e Black decidiu que um passeio de dez minutos lhe aclararia as
ideias.
Tinha sido uma semana conturbada. A visita a Molly Lasch no sábado à noite tinha sido outro fracasso, a noção estúpida e mal concebida que Cal Whitehall tinha de
como conseguir a colaboração de uma mulher.
Peter Black franziu o sobrolho ao ver um invólucro de pastilha elástica no chão do parque de estacionamento e tomou uma nota mental para mandar a secretária chamar
o responsável pelo Departamento de Manutenção e dar-lhe uma reprimenda pelo desleixo.
120
A insistência teimosa de Molly em persistir naquela ideia da sua inocência na morte de Gary enfurecia-o. "Não fui eu. O assassino safou-se." Quem pensava ela que
estava a enganar? No entanto, sabia o que ela estava a fazer. Pensava nisso como a estratégia de Molly: dizer uma mentira em voz bastante alta, com bastante convicção,
muitas vezes, e eventualmente algumas pessoas acreditarão.
"Vai ficar tudo bem", tranquilizou-se. "As fusões vão concretizar-se." Afinal de contas, eles tinham a estrutura interna para absorver as outras OCS, e o processo
já estava encaminhado. "É nisto que sentimos a falta de Gary", pensou Black. "Eu não tenho paciência nenhuma para as festas intermináveis, nem para ser simpático
para manter os executivos das empresas-chave do nosso lado. Cal pode recorrer à influência financeira para manter alguns deles na linha", disse para si mesmo, "mas
as suas agressivas demonstrações de poder não funcionam com toda a gente. Se não formos cuidadosos, alguns podem passar-se para outros planos de saúde.
De sobrolho franzido, com as mãos nos bolsos, Peter Black continuou o seu passeio à volta da nova ala do hospital, pensando nos primeiros dias que passara ali e
recordando com sombria admiração a forma como Gary Lasch costumava ser perfeito em todos os eventos sociais. Conseguia pôr o seu encanto a funcionar e também, quando
necessário, o comportamento solícito, aquele ar de interesse que tinha aperfeiçoado.
"Gary também sabia o que estava a fazer quando casou com a Molly", reflectiu Black. Molly era a anfitriã perfeita, com o seu aspecto, dinheiro e conhecimentos de
família. Na verdade, as pessoas importantes ficavam lisonjeadas ao serem convidadas para os jantares dela.
"Estava a correr tudo tão bem, exactamente como um relógio", reflectiu Black, "até Gary ser imprudente a ponto de se envolver com aquela Annamarie Scalli. De todas
as jovens com um aspecto sensual no mundo, ele tinha de engatar uma enfermeira que por acaso também era inteligente."
Demasiado inteligente.
Tinha chegado à entrada do edifício de tijolo de estilo colonial que albergava os escritórios da Remington Health Management Organization. Pensou brevemente em continuar
o passeio, mas depois decidiu entrar. Tinha um dia inteiro à sua frente e teria de o enfrentar mais cedo ou mais tarde.
Às dez horas recebeu um telefonema de uma quase histérica Jenna.
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Peter, ouviste a notícia? Uma mulher que foi assassinada a noite passada no parque de estacionamento de um restaurante em Rowayton foi identificada como sendo Annamarie
Scalli, e a Polícia está a interrogar Molly. Na rádio só faltou dizerem que ela é suspeita.
Annamarie Scalli está morta?! Molly é suspeita?! Peter Black disparou perguntas rapidamente, pressionando Jenna para lhe fornecer pormenores.
Parece que Molly se encontrou com a Annamarie no restaurante disse-lhe Jenna. Deves lembrar-te de que no sábado ela disse que queria vê-la. A empregada de mesa disse
que Annamarie saiu primeiro do restaurante, mas que Molly a seguiu menos de um minuto depois. Quando o restaurante fechou, um pouco mais tarde, alguém reparou que
um carro estava no parque de estacionamento há algum tempo e foi verificar porque têm estado a ter problemas com adolescentes que estacionam ali para beber. Mas
o que encontraram foi a Annamarie, esfaqueada até à morte.
Depois de desligar, Peter Black recostou-se na cadeira com uma expressão contemplativa no rosto. Momentos depois, sorriu e soltou um suspiro profundo, como se lhe
tivessem tirado um grande peso dos ombros. Abriu uma das gavetas laterais da secretária e tirou uma garrafa pequena. Serviu-se de uma pequena dose de uísque e ergueu
o copo num brinde.
Obrigado, Molly disse em voz alta, e depois bebeu.
Na segunda-feira à tarde, quando Edna Barry chegou a casa depois do dia de trabalho em casa de Molly, Marta, a vizinha e amiga íntima, chegou a correr antes mesmo
de ela sair do carro.
Está a dar em todos os noticiários disse Marta sem fôlego. Dizem que Molly Lasch está a ser interrogada pela Polícia e que é suspeita da morte daquela enfermeira.
Entra e bebe uma chávena de chá comigo disse Edna. Não vais acreditar no dia que tive!
À mesa da cozinha, a tomar chá e o seu bolo de café feito em casa, Edna descreveu o choque que sentira ao ver Molly deitada, completamente vestida, sob a colcha
da cama,
Pensei que o meu coração ia parar. Ela estava profundamente adormecida, como daquela última vez. E, quando abriu os olhos,
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parecia completamente confundida e depois sorriu. Não imaginas o arrepio que senti. Foi exactamente como há seis anos... quase esperei ver sangue nela.
Explicou como tinha corrido para o andar de baixo para ir chamar aquela jornalista, Fran Simmons, que tinha aparecido de manhã cedo, e o advogado de Molly. Eles
tinham feito Molly sentar-se, depois tinham andado com ela pela sala de estar, obrigando-a a beber diversas chávenas de café.
Passado algum tempo, Molly começou a ficar com alguma cor nas faces, embora os olhos ainda tivessem aquela expressão apática. E depois disse Edna Barry, aproximando-se
mais de Marta, Molly disse: "Philip, eu não matei Annamarie Scalli, pois não?"
Não! exclamou Marta, embasbacada, a boca um círculo de surpresa, os olhos muito abertos atrás dos óculos de arlequim.
Bem, não fazes ideia, no momento em que ela disse aquilo, Fran Simmons pegou no meu braço e puxou-me pelas escadas tão depressa que até fiquei tonta. Não queria
que eu contasse à Polícia alguma coisa que ouvisse.
Edna Barry não tinha acrescentado que a pergunta de Molly lhe tirara um grande peso de cima. Era evidente que Molly estava mentalmente instável. Ninguém que não
estivesse doente mataria duas pessoas e depois nem sequer saberia se o tinha feito. Toda a sua preocupação secreta com Wally tinha sido em vão.
Agora, na segurança da sua cozinha, com as preocupações com Wally esquecidas, Edna contou livremente os acontecimentos da manhã à sua confidente.
Logo que chegámos ao andar de baixo, um par de detectives tocou à porta. Eram do gabinete do delegado do Ministério Público. Fran Simmons levou-os para a sala íntima.
Disse-lhes que Molly estava a falar com o advogado, mas eu soube que, no fundo, ele estava apenas a tentar que ela falasse com algum nexo. Não a podiam ter levado
para baixo no estado em que ela estava.
Com um trejeito fino de desaprovação na boca, Edna esticou o braço para o outro lado da mesa, para o bolo de café, e serviu-se de uma segunda fatia.
Só meia hora depois é que o advogado de Molly veio para baixo. É o mesmo que a defendeu no julgamento.
E que é que aconteceu depois? perguntou Marta, ansiosamente.
O Dr. Matthews, o advogado, disse que ia fazer uma declaração em nome da cliente. Disse que Molly se tinha encontrado com a Annamarie Scalli, no restaurante, a noite
passada, porque queria
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encerrar a tragédia terrível que foi a morte do marido. Estiveram juntas quinze ou vinte minutos. Annamarie Scalli saiu do restaurante enquanto Molly pagava a conta.
Molly foi directamente para o carro e veio para casa. Soube da morte da Sr.a Scalli no noticiário e sente muito pela família. Para além disso, não tem conhecimento
do que pode ter acontecido.
Edna, viste a Molly depois disso?
Ela desceu no momento em que a Polícia saiu. Devia ter estado à escuta no átrio do primeiro andar.
Como é que se comportou?
Pela primeira vez nesta troca de palavras, Edna demonstrou um laivo de simpatia pela patroa.
Bem, Molly está sempre calma, mas esta manhã foi diferente. Era quase como se não estivesse consciente do que estava a acontecer. Quero dizer, foi mais ou menos
como aconteceu depois de o Dr. Lasch morrer, andava às voltas como se não soubesse ao certo onde estava nem o que tinha acontecido.
"A primeira coisa que ela disse ao Dr. Matthews foi: "Eles acreditam que a matei, não acreditam?" Depois, aquela Fran Simmons disse que gostaria de conversar comigo
na cozinha, mas era apenas uma maneira de não me deixar ouvir o que eles estavam a planear."
Então, não sabes de que é que conversaram? perguntou Marta.
Não, mas posso adivinhar. A Polícia quer saber se Molly assassinou aquela enfermeira.
Mãe, alguém está a ser mau para a Molly? Espantadas, Edna e Marta levantaram os olhos para ver Wally
de pé à porta.
Não, Wally, de maneira nenhuma disse Edna, suavemente. Não te preocupes. Estão apenas a fazer-lhe algumas perguntas.
Eu quero vê-la. Ela foi sempre boa para mim. O Dr. Lasch foi mau para mim.
Ora, Wally, não vamos falar sobre isso disse Edna, nervosa, esperando que Marta não desse importância ao tom de ira na voz de Wally nem reparasse no esgar terrível
que lhe distorcia as feições.
Wally dirigiu-se para a bancada e voltou-lhes as costas.
Ele foi lá a casa ontem para me ver sussurrou Marta. Disse-me que gostava de visitar a Molly Lasch. Talvez devesses levá-lo para a cumprimentar. Talvez ele fique
satisfeito com isso.
Edna já não estava a ouvir. Toda a sua atenção estava concentrada no filho. Percebeu que Wally estava a mexer na sua carteira.
E que é que estás a fazer, Wally? perguntou rispidamente, a voz fina e alta.
124
Ele voltou-se para ela e ergueu um porta-chaves. Só vou tirar a chave da Molly, mãe. Prometo que desta vez devolvo-a.
39
Na segunda-feira à tarde, a empregada de mesa Gladys Fluegel acompanhou de boa vontade o detective Ed Green ao tribunal em Stamford, onde relatou o que tinha observado
do encontro entre Annamarie Scalli e Molly Carpenter Lasch.
Tentando esconder o prazer que sentia perante o tratamento deferente de que estava a ser alvo, Gladys deixou que o detective Green a conduzisse para o interior do
tribunal. Ali foram recebidos por um homem mais jovem que se apresentou como Victor Packwell, assistente do delegado do Ministério Público. Levou-os para uma sala
com uma mesa de conferências e perguntou a Gladys se ela queria café, cola ou água.
Por favor, não fique nervosa, Menina Fluegel. Pode ajudar-nos muito garantiu-lhe.
É para isso que estou aqui respondeu Gladys com um sorriso. Cola. Diet.
Com cinquenta e oito anos, Gladys tinha um rosto sulcado de rugas, o resultado de quarenta anos de muitos cigarros. Os seus cabelos ruivos revelavam raízes grisalhas.
Graças à sua devoção pelas compras on-line, estava sempre com dívidas. Nunca tinha casado, nunca tivera um namorado sério e vivia com os truculentos pais idosos.
Quando os trintas tinham passado para os quarentas e depois estes se tinham fundido quase imperceptivelmente nos cinquentas, Gladys Fluegel tornara-se uma mulher
amarga. Já não tinha a certeza de que um dia alguma coisa maravilhosa lhe aconteceria. Esperara pacientemente que a aventura entrasse na sua vida, mas isso nunca
tinha acontecido. Até agora.
Gostava genuinamente de servir às mesas, mas ao longo dos anos tinha-se tornado impaciente e abrupta com os clientes, pelo menos de vez em quando. Magoava-a ver
casais de mãos dadas por cima das mesas ou observar pais numa festiva saída nocturna com os filhos, sabendo que ela tinha perdido aquele tipo de vida.
À medida que a sua atitude de ressentimento se aprofundara,
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tinha perdido uma série de empregos, até por fim se ter fixado no Sea Lamp, onde a comida era má e os benefícios escassos. O lugar parecia adequar-se à sua personalidade.
No domingo à noite tinha-se sentido especialmente irritada, devido ao facto de a outra empregada de mesa regular ter telefonado a dizer que estava doente e Gladys
ter sido forçada a substituí-la.
Uma mulher entrou aproximadamente às sete e meia da tarde explicou aos detectives, apreciando a sensação de importância que lhe dava o facto de ter estes polícias
a prestarem tanta atenção, já para não falar do escrivão, que estava a anotar todas as suas palavras.
Descreva-a, por favor, Sr.a Fluegel. Ed Green, o jovem detective que a tinha trazido até Stamford, estava a ser muito delicado.
"Será que os pais dele são divorciados?", pensou Gladys. "Se forem, não me importava nada de conhecer o pai."
Por que é que não me chamam apenas Gladys? É o que toda a gente faz.
Se é o que prefere, Gladys.
Gladys sorriu e depois levou a mão à boca como se estivesse a pensar, a tentar lembrar-se.
A mulher que entrou primeiro... Vejamos... Gladysapertou os lábios. Não ia dizer-lhes que tinha ficado irritada com a mulher por ela ter insistido num privado ao
fundo da sala.
Parecia ter trinta e tal anos, tinha cabelos curtos, escuros, vestia talvez tamanho 40. Era difícil dizer ao certo. Usava calças largas e umaparka.
Apercebeu-se de que certamente eles sabiam como era a mulher e que se chamava Annamarie Scalli, mas compreendia que, passo a passo, precisavam de conferir os factos.
Para além do mais, estava a adorar toda aquela atenção.
Disse-lhes que a Menina Scalli tinha pedido apenas café, nem sequer um pão ou uma fatia de bolo, o que, evidentemente, significava que a gorjeta não chegaria sequer
para comprar uma pastilha elástica.
Eles sorriram quando ela disse aquilo, mas os seus sorrisos eram benignos e ela tomou-os por um encorajamento.
Depois, entrou aquela senhora com verdadeira classe, e viu-se imediatamente que as duas não morriam de amores uma pela outra.
O detective Green mostrou uma fotografia.
É esta a mulher que se encontrou com Annamarie Scalli?
Precisamente!
Qual foi exactamente a atitude delas uma para com a outra, Gladys? Pense com cuidado... Isto pode ser importante.
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Estavam as duas nervosas disse ela, enfaticamente. Quando eu trouxe o chá para a segunda senhora, ouvi a outra chamar-lhe Sr.a Lasch. Não consegui ouvir o que disseram,
excepto uns pequenos fragmentos quando levei o chá e quando limpava uma mesa perto delas.
Gladys percebeu que aquela informação tinha desapontado os detectives, por isso apressou-se a acrescentar:
Mas o negócio estava praticamente parado, e como eu andava apenas a limpar umas mesas e alguma coisa naquelas mulheres excitou a minha curiosidade, sentei-me num
banco do bar a observá-las. Claro que mais tarde apercebi-me de que tinha visto a fotografia de Molly Lasch no jornal a semana passada.
Que é que viu acontecer entre Molly Lasch e Annamarie Scalli?
Bem, a mulher de cabelos escuros, quero dizer a que se chamava Annamarie Scalli, começou a parecer mais e mais nervosa. Juro por Deus, era quase como se estivesse
com medo de Molly Lasch.
Com medo, Gladys?
Sim, estou a falar a sério. Não a olhava nos olhos e, na verdade, não a culpo. A loura, quero dizer, a Sr.a Lasch... bem, acreditem no que vos digo, deviam ter visto
a expressão do rosto da Sr.a Lasch enquanto a Annamarie Scalli falava. Fria como um icebergue. Não tenho dúvida de que não gostou do que estava a ouvir.
"Depois, vi a Menina Scalli começar a levantar-se. Percebia-se que gostaria de estar a um milhão de quilómetros longe dali. Por isso aproximei-me para ver se elas
queriam mais alguma coisa... sabe, mais chá e café.
Ela disse alguma coisa? perguntaram o detective Green e o assistente do delegado do Ministério Público, Victor Packwell, em uníssono.
Deixem-me explicar disse Gladys. Annamarie Scalli levantou-se. A Sr.a Lasch agarrou-lhe o pulso de maneira a ela não conseguir sair. Depois, a Menina Scalli soltou-se
e afastou-se rapidamente. Estava com tanta pressa que quase me atirou ao chão.
Que é que a Sr.a Lasch fez? inquiriu Packwell.
Também mal podia esperar para se apanhar na rua disse Gladys, firmemente. Eu dei-lhe a conta. Era um dólar e trinta. Ela atirou-me com uma nota de cinco dólares
e saiu a correr atrás da Menina Scalli.
Pareceu-lhe perturbada? perguntou Packwell.
Gladys semicerrou os olhos num esforço dramático para se lembrar e para descrever Molly Lasch como ela tinha parecido naquele momento.
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Eu diria que ela tinha uma expressão esquisita no rosto, como se tivesse levado um murro no estômago.
Viu a Sr.a Lasch entrar no carro? Gladys abanou a cabeça enfaticamente.
Não, não vi. Quando ela abriu a porta que dava para o parque de estacionamento parecia estar a falar sozinha, e depois ouvi-a chamar, "Annamarie", e pensei que ela
ainda tinha alguma coisa para dizer à outra mulher.
Sabe se Annamarie Scalli a ouviu?
Gladys pressentiu que os detectives ficariam terrivelmente desapontados se ela dissesse que não tinha a certeza. Hesitou.
Bem, estou bastante certa de que ela deve ter captado a atenção dela, porque a Sr.a Lasch chamou uma vez mais o nome dela e depois disse: "Espere."
Ela pediu à Annamarie para esperar!
"Foi mesmo assim, não foi?", perguntou Gladys a si mesma. "De certa maneira, eu estava à espera de que a Sr.a Lasch voltasse para receber o troco, mas depois percebi
que a única coisa que lhe interessava era alcançar a outra mulher."
Espere,
"Foi a Molly Lasch que disse aquilo, ou aquele casal que tinha acabado de se sentar a uma mesa e chamou a empregada?"
Gladys viu a excitação estampada no rosto dos detectives. Não queria que aquele momento terminasse. Era parte do que ela tinha esperado. Toda a sua vida. Por fim,
tinha chegado a sua vez. Olhou de novo para os rostos ansiosos.
O que eu quero dizer é que ela chamou duas vezes o nome de Annamarie, e depois quando disse "Espere", eu fiquei com a impressão de que ela tinha conseguido chamar
a atenção da outra. Recordo-me de pensar que provavelmente Annamarie Scalli tinha esperado no parque de estacionamento para falar com a Sr.a Lasch.
"Foi mais ou menos assim que as coisas se passaram", disse Gladys para si mesma, enquanto os dois homens sorriam abertamente.
Gladys, a senhora é muito importante para nós disse Victor Packwell, agradecido. Tenho de lhe dizer que daqui a algum tempo terá de testemunhar novamente.
Estou contente por poder ajudar garantiu-lhe Gladys. Passada uma hora, depois de ter lido e assinado o seu depoimento,
Gladys estava a caminho de Rowayton no carro do detective Green.
1 Com a tradução, perde-se a semelhança de sons entre as palavras wait (espere) e waitress (empregada). (N. da T).
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A única coisa que toldava a sua felicidade era a resposta de Green à sua interrogação sobre o estado civil do pai.
Os pais dele tinham acabado de comemorar o quadragésimo aniversário de casamento.
Ao mesmo tempo, no tribunal de Stamford, o assistente de delegado do Ministério Público Tom Serrazzano apresentava-se perante um juiz para pedir um mandado de busca,
autorizando-o a fazer uma busca à casa e ao automóvel de Molly Carpenter Lasch.
MeretíssimoJuiz disse Serrazzano, temos causa provável para acreditar que Molly Lasch assassinou Annamarie Scalli. Estamos convictos de que as provas relevantes
para este crime podem ser encontradas nestes dois locais. Se existirem manchas de sangue, ou cabelos, ou fibras nas roupas dela ou uma arma no carro, queremos apanhá-las
antes de ela os limpar ou se livrar deles por outros meios.
40
Enquanto seguia de Greenwich para Nova Iorque, Fran reviu sistematicamente os acontecimentos da manhã.
Os órgãos de informação tinham chegado a casa de Molly a tempo de apanhar os detectives do gabinete do Ministério Público quando estes iam a sair. Gus Brandt tinha
passado uma reportagem de arquivo sobre a libertação de Molly da prisão, enquanto se ouvia a voz de Fran ao telefone directamente da casa desta.
Quando a Merritt deu lugar à Hutchinson River Parkway, Fran voltou a passar a reportagem na sua mente: "Num desenvolvimento surpreendente, foi confirmado que a mulher
encontrada esfaqueada até à morte a noite passada no parque de estacionamento do restaurante Sea Lamp em Rowayton, Connecticut, foi identificada como sendo Annamarie
Scalli. A Menina Scalli era a chamada "outra mulher" no caso de homicídio do Dr. Gary Lasch, que foi notícia há seis anos e novamente a semana passada, quando Molly
Carpenter Lasch, a esposa do Dr. Lasch, foi libertada da prisão onde cumpriu pena pelo homicídio do marido.
"Embora neste momento os pormenores ainda sejam escassos, a Polícia indicou que a Sr.a Lasch foi vista a noite passada no restaurante de Rowayton, a falar presumivelmente
com a vítima de homicídio.
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"Num depoimento preparado, o advogado da Sr.a Lasch, Philip Matthews, explicou que Molly Lasch teria pedido um encontro com a Menina Scalli para encerrar um capítulo
doloroso da sua vida, e que ela e Scalli tiveram uma conversa honesta e franca. Annamarie Scalli saiu do restaurante primeiro e Molly Lasch não voltou a vê-la. A
Sr.a Lasch apresenta as suas condolências à família Scalli."
Depois de terminar a transmissão televisiva, Fran tinha entrado no carro com o objectivo de ir imediatamente para a cidade, mas a Sr.a Barry saíra de casa a correr
para a chamar. Uma vez no interior, um Philip Matthews sombrio e desaprovador pedira-lhe para entrar no escritório. Lá dentro, estava Molly sentada no sofá, com
as mãos apertadas uma contra a outra, os ombros caídos. Fran tivera a impressão imediata de que as calças de ganga e a camisola de tricot azul que Molly usava tinham,
de repente, aumentado em tamanho, ela parecia pequena de mais dentro delas.
Molly garantiu-me que logo que eu sair te vai contar tudo o que me contou a mim dissera Matthews. Como advogado dela, só posso aconselhá-la. Infelizmente, não posso
obrigá-la a aceitar o meu conselho. Percebo que Molly a considere uma amiga, Fran, e acredito que goste dela, mas o facto é que se for intimada poderá ser forçada
a responder a perguntas que talvez não queiramos ver respondidas. Foi por essa razão que a aconselhei a não lhe contar o que aconteceu na noite passada. Mas, mais
uma vez, só posso aconselhá-la.
Fran tinha avisado Molly de que o que Philip dissera era absolutamente verdade, mas Molly insistira que, de qualquer maneira, queria que Fran soubesse o que tinha
acontecido.
A noite passada encontrei-me com Annamarie. Conversámos durante quinze ou vinte minutos dissera Molly. Ela saiu antes de mim e eu vim para casa. Não a vi no parque
de estacionamento. Um carro estava a arrancar quando eu saí do restaurante, e eu chamei, pensando que podia ser ela. Porém, quem quer que estava no carro não me
ouviu ou não quis ouvir.
Fran tinha perguntado se seria possível que Annamarie estivesse mesmo naquele carro e depois tivesse voltado para o parque de estacionamento mais tarde, mas Philip
referira que Annamarie fora encontrada no seu jipe; Molly tinha a certeza de que o veículo que vira a arrancar não era um jipe.
Depois de ouvir isto, Fran perguntara a Molly de que é que ela e Annamarie tinham conversado. Nesse aspecto do encontro, Fran sentira que Molly tinha sido menos
comunicativa. "Será que ela não quer que eu saiba alguma coisa?", pensou. Mas porquê, por que é que Molly estava a ser tão misteriosa? Estaria ela a tentar usá-la
de alguma forma?
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Enquanto virava o carro para a Cross County Parkway, que a levaria à West Side Highway em Manhattan, analisou algumas das suas perguntas sem respostas em relação
a Molly Lasch, entre as quais: por que é que Molly, nessa manhã, tinha voltado para a cama depois de ter tomado duche e de se ter vestido?
Um arrepio de dúvida percorreu a espinha de Fran. "Será que eu estava certa no começo?", perguntou a si mesma. "Molly matou mesmo o marido?"
E talvez a pergunta mais importante de todas: "Quem é a Molly e que género de pessoa é ela?"
Foi precisamente a pergunta que Gus Brandt atirou a Fran quando esta voltou para o seu gabinete.
Parece que isto se vai transformar noutro caso O. J. Simpson, Fran, e tu és íntima da Molly Lasch. Se ela continuar a apagar pessoas, quando fizeres um programa
sobre ela na série, vamos precisar de dois episódios para contar a história toda.
Estás convencido de que Molly esfaqueou a Annamarie Scalli? perguntou ela.
Nós temos estado a ver as gravações do local do crime. A janela do condutor do jipe estava aberta. Adivinha porquê. A Scalli ouviu a Lasch chamá-la e baixou o vidro.
Isso teria de significar que Molly foi àquele restaurante com tudo planeado e que até levou uma faca replicou Fran.
Talvez não tivesse conseguido encontrar uma escultura que coubesse na mala disse ele com um encolher de ombros.
Fran voltou para o seu gabinete com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. De repente, lembrou-se de como os irmãos costumavam troçar dela por causa daquele hábito.
"Quando as mãos da Franny estão quietas, o cérebro está a fazer horas extraordinárias", diziam.
"Vai acontecer tudo como da outra vez", pensou. "Mesmo que não consigam encontrar uma única prova concreta que ligue Molly à morte de Annamarie, isso não vai importar...
Ela já foi considerada culpada de um segundo homicídio. Ontem mesmo, estive a pensar que há seis anos ninguém se deu ao trabalho de procurar outra explicação para
a morte de Gary Lasch. E agora está a acontecer precisamente a mesma coisa."
Edna Barry disse em voz alta ao entrar no gabinete.
Edna Barry? Que é que ela tem?
Espantada, Fran voltou-se. Tim Mason estava mesmo atrás dela.
Tim, acabo de me lembrar de uma coisa. Esta manhã, a empregada de Molly Lasch, Edna Barry, desceu as escadas a correr
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para dizer ao Philip Matthews e a mim que Molly tinha voltado para a cama. Disse: "Santo Deus, é exactamente como da última vez".
Que queres dizer com isso, Fran?
Há uma coisa que me tem andado a incomodar. Mais do que aquilo que a Edna Barry disse, foi a maneira como o disse, Tim, como se estivesse contente por ter encontrado
Molly assim. Santo Deus, por que é que aquela mulher ficaria feliz ao vê-la duplicar a reacção à morte de Gary Lasch?
Ah!
Molly não atende o telefone. Leva-me directamente a casa dela, Lou.
Irritada e impaciente por não ter podido sair do escritório devido a uma reunião demorada que tinha sido marcada para a hora do almoço, Jenna apanhara o comboio
das duas e dez para Greenwich e dera instruções a Lou Knox para esperá-la na estação.
Lou semicerrou os olhos ao olhar pelo espelho retrovisor. Tendo reparado que Jenna estava de mau humor, sabia que não era o momento ideal para irritá-la, mas não
tinha outra opção.
Dr.a Whitehall, o seu marido quer que vá directamente para casa.
Bem, é uma pena, Lou. O meu marido pode esperar. Leva-me para a casa de Molly e espera por mim. Se ele precisar do carro, podes vir buscar-me mais tarde ou eu apanho
um táxi.
Estavam no cruzamento. Se virassem à direita iriam para a casa de Molly. Lou ligou o pisca da esquerda e obteve a reacção que esperava.
Estás surdo, Lou?
Dr.a Whitehall disse Lou, esperando soar suficientemente obsequioso, a senhora sabe que não posso contrariar o Dr. Whitehall. "Só a senhora é que pode", pensou ele
depois.
Quando entrou em casa, Jenna atirou com a porta principal com tanta força que o som reverberou por toda a estrutura. Encontrou o marido sentado à secretária no seu
escritório do primeiro andar. Com lágrimas de ultraje nos olhos e a voz a tremer de emoção por ser tratada com tanta falta de consideração, Jenna aproximou-se da
secretária e apoiou-se nela com as duas mãos. Olhou o marido directamente nos olhos e perguntou:
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Desde quando é que tens a noção absurda de que aquele teu lacaio bajulador me pode dizer onde é que eu posso ou não posso ir?
Calvin Whitehall olhou para a mulher com uma expressão gelada nos olhos.
Aquele "lacaio bajulador", como chamas a Lou Rnox, não teve outra alternativa a não ser cumprir as minhas ordens. Por isso, a tua zanga é comigo, minha querida,
não com ele. Só gostava de poder inspirar em ti a mesma devoção para me ajudares.
Jenna pressentiu que tinha ido longe de mais e recuou.
Desculpa, Cal. O problema é que a minha amiga mais querida está sozinha. A mãe de Molly telefonou-me esta manhã. Ouviu o que aconteceu com a Annamarie Scalli e implorou-me
que fosse para junto de Molly. Ela não quer que a filha saiba, mas o pai teve uma ligeira trombose a semana passada e os médicos não o deixam viajar. Se não fosse
esse problema viriam para cá, para a acompanharem em tudo isto.
A ira abandonou o rosto de Calvin Whitehall quando ele se levantou e rodeou a secretária. Abraçou a mulher e falou-lhe baixinho ao ouvido.
Nós parecemos estar em campos opostos, não parecemos, Jen? Eu não quis que fosses agora para casa de Molly porque há uma hora recebi uma informação. O gabinete do
Ministério Público conseguiu um mandado de busca para a casa e também para o carro dela. Por isso, como vês, não a ajudaria em nada e podia ser um desastre para
a fusão da Remington se alguém tão proeminente como a Sr.a Calvin Whitehall fosse publicamente relacionada com Molly enquanto o mandado estiver a ser executado.
Mais tarde, quero que estejas com ela, evidentemente. Está bem?
Um mandado de busca! Porquê um mandado de busca, Cal? Jenna afastou-se do abraço do marido e voltou-se para olhar para ele.
Pela razão muito válida de que as provas circunstanciais contra Molly na morte daquela enfermeira estão a chegar a um ponto que se está a tornar avassalador. A minha
fonte diz que vão aparecer mais factos. Parece que a empregada de mesa do restaurante em Rowayton esteve a falar com os investigadores do Ministério Público e apontou
o dedo a Molly. Foi por causa dela que conseguiram um mandado tão depressa. Mas a minha fonte também tem outra informação. Por exemplo, a carteira da Annamarie Scalli
estava claramente visível ao lado dela. Tinha diversas centenas de dólares. Se o motivo tivesse sido o roubo, certamente, tinham-na levado. Puxou a mulher para si
e abraçou-a de novo. Jen, a tua amiga continua a ser a menina com quem andaste na escola, a irmã
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que nunca tiveste. Amar aquela pessoa, sim; mas compreende igualmente que existem forças a trabalhar dentro dela que a levaram a tornar-se uma assassina.
O telefone tocou.
Provavelmente, é o telefonema de que estava à espera disse Cal enquanto soltava Jenna com uma última pancadinha no ombro.
Jenna sabia que, quando Cal estava à espera de um telefonema, aquele era o sinal para o deixar sozinho e para fechar a porta depois de sair.
42
"Isto não está a acontecer!", disse Molly para si mesma. "É um sonho mau. Não, não é um sonho mau. É um pesadelo mau! Existe tal coisa", perguntou a si mesma, "ou
dizer pesadelo mau é como dizer reiterar novamente?"
Desde aquela manhã a sua mente era uma confusão de pensamentos em conflito e de momentos semi-recordados. Tentar concentrar-se na questão da redundância gramatical
parecia um exercício tão prático como qualquer outro que podia imaginar. Enquanto considerava a questão do "pesadelo mau", sentou-se no sofá do escritório com as
costas apoiadas no braço, os joelhos levantados, as mãos a abraçá-los e o queixo pousado nas mãos.
"Uma posição quase fetal", pensou. "Aqui estou eu, encurralada na minha própria casa enquanto perfeitos desconhecidos a esventram e examinam tudo o que ela contém."
A sua mente recordou como ela e Jen costumavam brincar e dizer "assumir a posição fetal" sempre que alguma coisa era demasiado avassaladora.
Mas isso fora há muito tempo, quando uma unha partida ou uma derrota num jogo de ténis eram um verdadeiro drama. De repente, "avassalador" tinha assumido um significado
totalmente novo.
"Disseram-me para esperar aqui", pensou. "Pensei que depois de sair da prisão nunca mais teria de acatar ordens sobre onde podia ou não podia estar, nunca mais.
Há uma semana ainda estava presa. Mas agora estou em casa. E, embora esta seja a minha casa, não posso obrigar estas pessoas horríveis a irem-se embora.
"Seguramente, vou acordar e estará tudo acabado", disse para si mesma, fechando os olhos. Mas é claro que isso não ajudou nada.
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Abriu-os e olhou à sua volta. Os polícias tinham acabado de revistar aquele aposento. Tinham tirado as almofadas do sofá e aberto todas as gavetas das mesas de apoio,
tinham passado as mãos pelos reposteiros das janelas para o caso de haver alguma coisa escondida nas pregas.
Percebeu que estavam a demorar muito tempo na cozinha, sem dúvida a pesquisar todas as gavetas, todos os armários. Ela tinha ouvido alguém dizer que deviam levar
todas as facas de cozinha que encontrassem.
Ouviu o investigador mais velho dizer ao agente mais jovem para ir buscar a roupa e sapatos que a empregada de mesa descrevera como sendo os que ela usava na altura.
Agora só podia esperar. Esperar que a Polícia saísse e esperar que a sua vida voltasse ao normal o que quer que isso fosse.
"Mas não posso limitar-me a ficar aqui sentada", pensou Molly. "Tenho de sair daqui. Será que existe algum sítio onde as pessoas não me apontem o dedo, não sussurrem
sobre mim, e onde os jornalistas me deixem em paz?
"Dr. Daniels. Preciso de falar com ele", decidiu Molly. "Ele vai ajudar-me."
Eram cinco horas da tarde. "Ele ainda estará no consultório?", perguntou a si mesma. "Engraçado, ainda me recordo do número", pensou. "Embora já se tenham passado
praticamente seis anos."
Quando o telefone tocou, Ruthie Roitenberg estava a fechar a sua secretária à chave e o Dr. Daniels tirava o casaco do armário. Olharam um para o outro.
Quer que a chamada seja atendida pelo gravador? perguntou Ruthie. A partir de agora é o Dr. MacLean quem está de prevenção.
John Daniels estava cansado. Tivera uma sessão difícil com um dos seus pacientes mais perturbados e sentia cada dia dos seus setenta e cinco anos. Estava desejoso
de ir para casa, e agradecia aos céus por o jantar a que ele e a mulher tinham planeado ir ter sido cancelado.
Porém, um instinto qualquer disse-lhe que devia atender o telefonema.
Pelo menos vê quem é, Ruthie disse ele.
Viu o choque no olhar de Ruthie quando ela ergueu os olhos para ele e esboçou com os lábios as palavras "Molly Lasch". Por momentos, pareceu inseguro em relação
ao que fazer e ficou parado, com o casaco ainda na mão, enquanto Ruthie dizia:
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Infelizmente, o doutor já deve ter saído. Acabou de se dirigir para o elevador. Vou ver se consigo apanhá-lo.
Molly Lasch.
Daniels fez uma curta pausa e depois caminhou para a secretária e pegou no auscultador que Ruthie segurava.
Ouvi o que aconteceu com Annamarie Scalli. Como é que posso ajudá-la, Molly?
Ficou a ouvir, e trinta minutos mais tarde Molly estava no consultório.
Desculpe por ter demorado tanto tempo a chegar aqui, doutor. Eu queria trazer o meu carro, mas a Polícia não me deixou usá-lo. Tive de chamar um táxi.
O tom de Molly era de espanto, como se ela própria não acreditasse naquilo que estava a dizer. Os seus olhos fizeram Daniels pensar no cliché do veado apanhado pelos
faróis, embora ela estivesse claramente mais do que apenas espantada. Não, parecia quase assombrada. Percebeu de imediato que ela estava em risco de mergulhar no
mesmo estado de letargia que a invadira após a morte de Gary Lasch.
Que tal descansar no sofá enquanto conversamos, Molly? sugeriu. Ela estava sentada na cadeira à frente da secretária. Quando ela não respondeu, ele aproximou-se
e segurou-lhe o cotovelo. Sentiu a rigidez do corpo. Vá lá, Molly incitou, enquanto a obrigava a sentar-se.
Ela deixou-se ser guiada por ele.
Eu sei que é tardíssimo. O senhor é muito bondoso em receber-me agora, doutor.
Daniels lembrou-se da fantasticamente bem educada menina que tinha observado no clube. "Uma criança de ouro", pensou ele. "O produto perfeito da educação e da riqueza
discreta. Quem teria sonhado que este momento a espreitava no futuro, suspeita de um crime, um segundo crime... a Polícia a revistar-lhe a casa à procura de provas
contra ela." Abanou a cabeça pesarosamente.
Ao longo da hora seguinte, ela tentou explicar em voz alta tanto para si mesma como para o médico exactamente, por que é que tinha sentido necessidade de falar com
Annamarie.
Que é, Molly? Diga-me em que está a pensar.
É que apercebo-me agora de que, quando fugi naquela semana para Cape Cod, foi porque estava zangada. Mas não estava zangada por ter descoberto o que acontecera com
a Annamarie. Na verdade, doutor, não estava nada zangada por Gary estar envolvido com outra mulher. Estava zangada porque eu tinha perdido o meu bebé e ela ainda
estava grávida. Eu devia ter tido aquele bebé.
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Com o coração apertado, John Daniels esperou que Molly continuasse.
Doutor, eu quis ver Annamarie porque pensei que se não matei o Gary, então, talvez tivesse sido ela. Ninguém conseguiu provar onde ela esteve naquela noite. E percebi
que ela estava zangada com ele; era óbvio no seu tom de voz quando a ouvi a falar com ele ao telefone.
Perguntou-lhe isso quando se encontrou com ela a noite passada?
Sim. E acreditei nela quando disse que não o matou. Mas ela disse-me que Gary estava contente por eu ter perdido o bebé, que ia pedir o divórcio e um bebé teria
complicado tudo.
Muitas vezes, os homens dizem à outra mulher que estão a planear divorciar-se. Na maior parte dos casos, não é verdade.
Eu sei disso e talvez ele estivesse a mentir-lhe. Mas não estava a mentir quando lhe disse que estava contente por eu ter perdido o meu bebé.
Annamarie disse-lhe isso? -Sim.
Como é que isso a fez sentir-se?
É isso que me assusta tanto, doutor. Acho que naquele momento a odiei com todas as gotas de sangue do meu corpo apenas por ter dito aquelas palavras.
"Com cada gota de sangue do meu corpo", pensou Daniels. De repente, Molly começou a falar muito rapidamente.
Sabe o que me passou pela cabeça, doutor? Aquela frase da Bíblia: "Raquel chorando os seus filhos perdidos e não querendo ser consolada." Pensei em como eu tinha
chorado o meu bebé. Naquele momento, tornei-me Raquel, e a ira desvaneceu-se e eu estava de luto.
Molly suspirou e quando continuou toda a emoção se tinha escoado da sua voz.
Doutor, Annamarie saiu à minha frente. Já tinha desaparecido quando eu cheguei ao parque de estacionamento. Recordo-me muito claramente de que vim para casa e fui
para a cama cedo.
"Recorda-se muito claramente", Molly?
Doutor, os polícias estão a revistar a minha casa. Os detectives tentaram falar comigo esta manhã. Philip ordenou-me que não contasse a ninguém, nem sequer à Jen,
o que Annamarie Scalli me disse.
A sua voz ficou novamente agitada.
Doutor, é como da última vez? Eu fiz uma coisa terrível e apaguei-a de novo? Se isso aconteceu e eles o puderem provar, eu não vou novamente para a prisão. Preferia
morrer.
"Novamente", pensou Daniels.
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Molly, desde que voltou para casa, teve mais alguma vez a sensação de que havia alguém lá em casa naquela noite em que Gary morreu?
Observou a tensão a abandonar-lhe o corpo e alguma esperança brilhar nos seus olhos.
Havia alguém na casa naquela noite disse ela. Estou a começar a ter a certeza disso.
"E eu estou a começar a ter igual certeza de que não estava lá ninguém", pensou Daniels, tristemente.
Alguns minutos depois, levou Molly para casa. A casa estava às escuras. Ela comentou que não havia carros estacionados no exterior, nenhum sinal da Polícia. Daniels
não se afastou até Molly estar em segurança em casa e acender as luzes do átrio.
Esta noite não se esqueça de tomar o comprimido que eu lhe dei avisou ele. Falaremos amanhã.
O Dr. Daniels esperou até ouvir o clique da porta principal antes de voltar lentamente para o carro.
Não acreditava que ela já tivesse chegado ao ponto de fazer mal a si própria. Mas, se fossem encontradas provas que justificassem uma acusação contra ela na morte
de Annamarie Scalli, sabia que Molly Lasch poderia escolher outra forma de escapar à realidade. Desta vez, não seria amnésia dissociativa mas a morte.
Conduziu até casa lentamente, cheio de tristeza, para o seu jantar muito tardio.
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Quando Fran chegou ao escritório, na terça-feira de manhã, encontrou uma mensagem de Billy Gálio assinalada como "urgente". Dizia simplesmente que era amigo de Tim
Mason e que gostaria que ela lhe telefonasse por causa de uns assuntos muito importantes.
Quando lhe telefonou, Gálio atendeu ao primeiro toque e foi directamente ao assunto.
Menina Simmons, a minha mãe foi enterrada ontem. Morreu de um ataque cardíaco fulminante que podia e devia ter sido evitado. Sei que está a fazer uma história sobre
o homicídio do Dr. Gary Lasch, e queria pedir-lhe que a alargasse para incluir uma investigação ao suposto seguro médico que ele criou.
Tim falou-me sobre a sua mãe, e lamento verdadeiramente a sua perda disse Fran, mas tenho a certeza de que existe um
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lugar onde poderá registar uma queixa se sentir que ela não foi tratada da melhor maneira possível.
Oh, mas a senhora sabe as voltas que é preciso dar quando se tenta registar queixas, Menina Simmons disse Billy Gálio. Escute, eu sou músico e não posso dar-me ao
luxo de perder o emprego, que infelizmente é num espectáculo em Detroit. Tenho de voltar para lá rapidamente. Falei com Roy Kirkwood, o médico de clínica geral da
minha mãe, e ele contou-me que tinha apresentado uma recomendação urgente para serem feitos mais testes. Mas adivinhe o que aconteceu? O pedido foi recusado. Ele
acreditava fortemente que podia ter sido feito mais por ela, mas eles nem sequer o deixaram tentar. Por favor, fale com ele, Menina Simmons. Eu entrei no consultório
dele com vontade de lhe esmagar a cabeça, mas saí de lá com pena. O Dr. Kirkwood tem pouco mais de sessenta anos, mas disse-me que vai fechar o consultório e reformar-se
antes do tempo, tão grande é o desapontamento com a Remington Health Management.
"Esmagar-lhe a cabeça", pensou Fran. Passou-lhe pela cabeça o pensamento louco de que podia haver uma hipótese num milhão de um paciente ter sentido o mesmo em relação
a Gary.
Dê-me o número de telefone e a morada do Dr. Kirkwood disse ela. Eu falo com ele.
Às onze horas dessa mesma manhã, Fran estava uma vez mais a sair da Merritt Parkway para entrar em Greenwich.
Molly tinha concordado em almoçar com ela à uma hora, mas apesar dos rogos de Fran, recusara-se a sair de casa.
Não consigo disse com simplicidade. Sinto-me demasiado exposta. As pessoas iam ficar todas a olhar para mim. Ia ser horrível. Não posso fazê-lo.
Aceitou a oferta de Fran para ir comprar uma quiche na padaria da cidade e comerem-na lá em casa.
A Sr.a Barry não vem à terça-feira explicou e a Polícia levou o meu carro, por isso não posso sair para fazer compras.
"A única notícia boa até agora", pensou Fran, "é que a Sr.a Barry não vai estar lá em casa quando a Molly e eu estivermos a almoçar." Por uma vez, seria bom conversar
com Molly sem aquela mulher a entrar e a sair da sala de dois em dois minutos.
Mas queria ver Edna Barry, e a sua primeira paragem depois de chegar a Greenwich foi uma visita-surpresa à casa dela.
"Vou ser directa com ela", decidiu Fran, enquanto consultava as indicações para a casa. "Por alguma razão desconhecida, a Edna
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Barry é hostil para com Molly e tem medo de mim. Talvez eu consiga descobrir qual é o problema dela."
Parada no último degrau estreito da casa de Edna Barry, tocou à campainha. Não obteve resposta, e o Subaru encarnado da Sr.a Barry não estava no caminho de acesso.
Desapontada, Fran pensou se devia enfiar ou não uma mensagem por debaixo da porta a dizer que precisavam de ter uma conversa importante. Sabia que uma mensagem dessas
perturbaria a Sr.a Barry, e isso era óptimo. Era sua intenção encurralar a mulher.
Mas, pensando melhor, um bilhete não serviria apenas para avisá-la e deixá-la ainda mais de sobreaviso?, perguntou a si mesma. "Não restam dúvidas nenhumas de que
ela está a esconder alguma coisa, e pode ser terrivelmente importante. Não quero correr o risco de a assustar."
Enquanto reflectia sobre o que fazer, alguém a chamou:
hoo-hoooo.
Voltou-se e viu uma mulher de cinquenta e tal anos com um penteado ao alto e óculos de arlequim a atravessar apressadamente o relvado, vinda da casa ao lado.
Edna deve estar a chegar explicou a mulher, sem fôlego, ao chegar junto de Fran. Wally, o filho dela, estava muito perturbado hoje, por isso a Edna levou-o ao médico.
Quando Wally não toma os medicamentos, é um verdadeiro problema. Não quer esperar por ela na minha casa? Eu sou Marta Jones, a vizinha de Edna.
É muito simpática disse Fran com sinceridade. A Sr.a Barry não estava à minha espera, mas eu gostava muito de esperar por ela. "E adorava falar consigo", acrescentou
para si própria. Eu sou a Fran Simmons.
Marta Jones sugeriu que esperassem na salinha da televisão, que, obviamente, fizera em tempos parte do alpendre.
É muito agradável e alegre e poderemos ver Edna quando ela chegar disse, quando trouxe chávenas fumegantes de café acabado de fazer.
Eu gosto mais de café quando é feito na antiquada cafeteira explicou. O sabor não é igual ao daquelas máquinas modernas. Recostou-se na poltrona diante de Fran.
É uma pena Edna ter sido obrigada a levar Wally ao médico hoje. Pelo menos, não teve de faltar ao trabalho. Ela trabalha para Molly Lasch três vezes por semana...
segunda, quarta e sexta-feira.
Fran acenou afirmativamente, feliz por armazenar aquela informação no cérebro.
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Talvez tenha ouvido falar na Molly Lasch disse Marta Jones. É a mulher que acabou de sair da prisão depois de cumprir pena pela morte do marido, e agora corre o
rumor de que vai ser presa por matar a namorada do marido. Ouviu falar nela, menina... Desculpe, não ouvi o seu apelido.
É Simmons, Fran Simmons.
Viu a expressão dos olhos de Marta Jones e soube o que lhe estava a passar pela cabeça. Fran Simmons. É aquela jornalista de televisão e a filha do homem que roubou
o dinheiro do fundo para a biblioteca e se suicidou. Fran controlou-se, mas a expressão de Marta Jones transformou-se em simpatia.
Não vou fingir que não sei o que aconteceu com o seu pai disse ela, calmamente. Na época, tive imensa pena de si e da sua mãe.
Obrigada.
E agora está na televisão e está a fazer um programa sobre Molly. Por isso, é claro que sabe tudo sobre ela.
É verdade.
Bom, talvez Edna a escute. Posso chamar-lhe Fran?
Claro que sim.
A noite passada não consegui dormir, a pensar se não será perigoso a Edna trabalhar para Molly Lash. Quero dizer, uma coisa foi ela matar o marido. Foi insanidade
temporária, de certeza. Quero dizer, ele andava a enganá-la e tudo isso. Mas se, menos de uma semana depois de sair, mata a amante do marido à facada, acho que ela
está fora de controlo.
Fran pensou no que Gus Brandt tinha dito sobre Molly. "A ideia de que ela é uma assassina tresloucada e fora de controlo vai atingir proporções epidémicas", percebeu.
Vou dizer-lhe uma coisa continuou Marta. Eu não quereria estar horas e horas sozinha numa casa com aquele género de pessoa. Esta manhã, quando falei com Edna, antes
de ela sair para ir ao médico com Wally, disse-lhe: "Edna, que é que aconteceria ao Wally se Molly Lasch ficar maluca e te der uma pancada na cabeça ou te matar
à facada? Quem é que cuidaria dele?
Wally precisa de muitos cuidados?
Desde que tome a medicação, está bastante bem. Mas quando não toma e fica teimoso, bem, Wally fica uma pessoa diferente, por vezes um pouco descontrolado. Ontem
mesmo, tirou a chave da casa de Molly Lasch do porta-chaves da Edna. Queria ir visitá-la. É claro que Edna o obrigou a devolvê-la imediatamente.
Ele tirou a chave da casa de Molly Lasch? Fran tentou manter a voz controlada. Alguma vez tinha feito isso antes?
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Oh, acho que não. Edna não o deixa ir lá. O Dr. Lasch era tão cioso da sua colecção de arte. Parece que algumas peças eram bastante valiosas. Mas sei que uma vez,
Wally foi lá e pegou numa coisa em que não devia ter mexido, e Edna estava uma pilha de nervos. Ele não partiu nada, mas era uma peça valiosa e, aparentemente, o
Dr. Lasch parecia louco por causa disso, a gritar e a mandá-lo sair lá de casa. Wally não gostou nada disso... Oh, veja, lá vem a Edna.
Apanharam Edna Barry quando ela estava a abrir a porta principal. O olhar aflito no rosto da Sr.a Barry quando viu Fran com Marta Jones foi mais uma confirmação
de que a mulher tinha alguma coisa para esconder.
Vai para dentro, Wally disse bruscamente para o filho. Fran mal conseguiu vislumbrar o homem alto e atraente, com trinta e poucos anos, antes de Edna o enfiar em
casa e fechar a porta. Quando se voltou para encarar Fran, a ira ruborizou-lhe as faces e fez a sua voz tremer.
Menina Simmons disse, não sei por que é que está aqui, mas tive uma manhã muito difícil e não posso falar consigo agora.
Oh, Edna perguntou Marta Jones, Wally não está mais calmo?
Wally está óptimo disse Edna Barry, rispidamente, com um misto de medo e ira na voz. Marta, espero que não tenhas estado a encher os ouvidos da Menina Simmons com
coscuvilhices disparatadas acerca dele.
Edna, como podes dizer isso? Ninguém é mais amiga do Wally do que eu.
Os olhos de Edna Barry encheram-se de lágrimas.
Eu sei. Mas é tão difícil... Tens de me desculpar. Depois telefono-te, Marta.
Por um momento, Fran e Marta Jones ficaram nos degraus a olhar para a porta que Edna Barry acabara de fechar nas suas caras.
Edna não é uma pessoa rude disse Marta, calmamente. O problema é que tem uma vida dura. Primeiro o pai do Wally morreu, depois o Dr. Morrow. E logo depois o Dr.
Lasch foi assassinado e...
O Dr. Morrow? inquiriu Fran, interrompendo Marta Jones. Que é que ele tinha a ver com a Edna Barry?
Oh, ele era médico assistente do Wally e era verdadeiramente fantástico com ele. Também era uma óptima pessoa. Se Wally começava a recusar-se a tomar a medicação
ou armava alguma confusão, Edna só tinha de telefonar para o Dr. Morrow.
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Dr. Morrow disse Fran. Está a referir-se ao Dr. Jack Morrow?
Sim. Conheceu-o?
Conheci. Fran pensou uma vez mais no jovem bondoso que, há catorze anos, a tinha abraçado quando lhe dera a notícia da morte do pai.
Deve lembrar-se de que ele foi assassinado num roubo apenas duas semanas antes de o Dr. Lasch morrer disse Marta, tristemente.
Suponho que isso perturbou Wally?
Nem fale nisso. Foi horrível. E acho que foi logo depois disso que o Dr. Lasch lhe gritou. Pobre Wally. As pessoas não compreendem. Ele não tem culpa de ser como
é.
"Não", pensou Fran enquanto agradecia a hospitalidade a Marta Jones e entrava no carro. "Mas as pessoas não só não compreendem, podem nem sequer saber a gravidade
dos problemas do Wally." Poderia Edna Barry estar a esconder alguma coisa? Seria possível que ela tivesse deixado Molly ser condenada por um crime que na realidade
fora cometido pelo filho?
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O comprimido para dormir que o Dr. Daniels tinha dado a Molly fora altamente eficaz. Tinha-o tomado às dez horas da noite anterior e dormiu até às oito horas da
manhã. Tinha sido um sono longo e profundo, do qual emergiu de certa forma zonza mas retemperada.
Vestiu um roupão e decidiu ir fazer café e sumo e levá-lo para o andar de cima, para a cama; depois de instalada, tentaria pensar em tudo. Mas, mesmo antes de entrar
na cozinha, apercebeu-se de que primeiro tinha de cuidar da desordem que proliferava à sua volta em toda a casa.
Embora tivessem feito um esforço para arrumar bem as coisas, os polícias tinham mudado toda a atmosfera da casa. Eram subtis, mas Molly reconheceu todas as mudanças.
Tudo aquilo em que eles tinham tocado ou movido estava torto, fora do lugar, não estava certo.
A harmonia do seu lar, cuja recordação fora o seu sustentáculo naqueles dias e noites na prisão, tinha desaparecido e precisava de ser restaurada.
Depois de um duche rápido, vestiu calças de ganga, sapatos de
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ténis e uma camisola velha e ficou pronta para trabalhar. A tentação de telefonar para a Sr.a Barry e pedir-lhe que viesse ajudá-la veio e desapareceu rapidamente.
"É a minha casa", disse Molly para si mesma. "Vou eu própria pô-la novamente bem.
"A minha vida pode estar descontrolada", desesperou, enquanto enchia o lava-loiça com água quente e despejava detergente líquido, "mas ainda me consigo recompor
o suficiente para reclamar a minha casa.
"Não que haja nódoas terríveis em algum lado, apenas umas dedadas e manchas", pensou, enquanto arrumava os pratos em que eles tinham mexido e endireitava as panelas
e as frigideiras para ficarem alinhadas como sempre.
"Ter a Polícia a vasculhar-me a casa foi como uma inspecção de surpresa à cela", pensou. Recordou o som estridente de passos a marchar pelo corredor do bloco de
celas, a ordem para se encostar à parede, ser obrigada a ver a sua cama a ser desmantelada enquanto procuravam drogas.
Não se apercebeu de que tinha começado a chorar até esfregar a face com as costas da mão e uma bolha de sabão lhe entrar no olho.
"Existe outro motivo para eu estar contente por a Sr.a Barry estar de folga hoje", pensou ela. "Não tenho de enterrar as minhas emoções. Posso libertá-las. O Dr.
Daniels dar-me-ia um Muito Bom Mais.
Tinha estado a polir a mesa do átrio com cera quando Fran Simmons telefonou, às nove e meia.
"Por que é que concordei em almoçar com ela?", perguntou Molly a si mesma ao pousar o auscultador.
Mas sabia porquê. Apesar do que Philip tinha aconselhado, queria dizer a Fran que, por algum motivo, Annamarie Scalli parecia estar com medo.
"E não de mim", pensou Molly. "Ela não estava com medo de mim, embora estivesse convencida de que eu matei Gary.
"Oh, Deus, oh, Deus, por que é que estás a deixar que isto me aconteça?", perguntou em silêncio enquanto se deixava cair no fundo das escadas.
E, então, ouviu os seus próprios soluços. "Estou tão sozinha", pensou, "tão sozinha." Lembrou-se da mãe ao telefone no dia anterior: "Querida, tu estás bem, é melhor
não irmos para aí por enquanto."
"Eu queria que a mãe dissesse que vinham para junto de mim", pensou Molly. "Preciso deles aqui, agora. Preciso de alguém que me ajude."
Às dez e meia, a campainha da porta tocou. Dirigiu-se em bicos de pés para a porta, encostou-se a ela e esperou. "Não vou abrir", pensou. "Quem quer que esteja ali
tem de pensar que eu não estou em casa."
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E depois ouviu uma voz.
Abre, Molly. Sou eu.
Com um soluço de alívio, Molly destrancou a porta e um momento depois começou a chorar descontroladamente enquanto era abraçada por Jenna.
Boa amiga, melhor amiga disse Jenna, com lágrimas de pena nos olhos. Que é que posso fazer para ajudar?
Ainda a soluçar, Molly conseguiu no entanto soltar uma gargalhada.
Anda com o relógio doze anos para trás disse e não me apresentes a Gary Lasch. Se não conseguires isso, pelo menos, não te afastes de mim.
Philip ainda não chegou?
Ele disse que seguramente viria cá durante o dia. Tinha de ir ao tribunal.
Tens de lhe telefonar, Molly. O Cal recebeu uma informação. Eles encontraram vestígios do sangue da Annamarie Scalli nos botins que usaste no domingo à noite e também
no teu carro. Lamento. Cal ouviu dizer que o delegado do Ministério Público vai pedir a tua prisão.
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Depois de receber um telefonema a avisá-lo de que tinham sido encontrados vestígios do sangue de Annamarie Scalli no sapato e no carro de Molly Lasch, Calvin Whitehall
dirigiu-se imediatamente para o consultório do Dr. Peter Black.
Temos um circo de três arenas completamente novo em formação anunciou a Black, e depois fez uma pausa enquanto o observava com atenção. Não me pareces muito preocupado
com isso.
Estar preocupado porque a Annamarie Scalli, um problema potencial, já não está entre nós? Não, não estou disse Peter, com uma expressão de presunçosa satisfação
no rosto.
Tu disseste-me que não existia a menor prova de coisa nenhuma, e que se ela tivesse falado se teria incriminado no processo.
Sim, eu disse isso, e continuo a afirmá-lo. No entanto, de repente, dou por mim muito agradecido a Molly. Por muito sórdida que toda esta publicidade se possa tornar,
não tem nada a ver com nenhum de nós, nem com o hospital, nem com a Remington Health Management.
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Whitehall reflectiu nas palavras do sócio.
Peter Black sempre se tinha sentido intrigado com a capacidade de Cal para se sentar muito quieto e muito calmo quando estava concentrado. Era como se o seu corpo
poderoso se transformasse em pedra naquela imobilidade.
Por fim, Cal Whitehall acenou afirmativamente em sinal de concordância.
Tens toda a razão, Peter.
Como é que Jenna está a encarar tudo isto?
Jenna está neste momento com Molly.
Isso é sensato?
Jenna compreende que neste momento eu não tolerarei fotografias dela de braço dado com Molly estampadas nos jornais. Depois de a fusão estar concretizada, ela pode
ajudar Molly como quiser. Até lá, tem de manter uma certa distância.
Que ajuda é que ela pode dar, Cal? Se Molly for a julgamento novamente, nem sequer aquele advogado famoso conseguirá desencantar-lhe o tipo de acordo que arrancou
ao delegado do Ministério Público da última vez.
Estou consciente disso. Mas tens de compreender que Jenna e Molly são como irmãs. Admiro a lealdade da Jenna, embora neste momento tenha de a manter controlada.
Black olhou para o relógio com impaciência.
Quando é que ele disse que ia telefonar?
Deve estar a ligar a qualquer momento.
Acho bem que sim. Roy Kirkwood vem cá. Ele perdeu uma paciente no outro dia e está a culpar o sistema. O filho da paciente está tresloucado.
Kirkwood é imune a um processo penal. Ele queria exames complementares. Nós podemos resolver o assunto com o filho da paciente.
Não é uma questão de dinheiro.
Tudo é uma questão de dinheiro, Peter.
O telefone privado de Peter Black tocou. Ele pegou no auscultador, escutou um momento e depois tocou no botão de conferência e baixou o volume.
Cal está aqui e estamos prontos, doutor disse, num tom respeitoso.
Bom dia, doutor. A voz de comando de Cal não tinha o menor vestígio da habitual arrogância.
Parabéns, cavalheiros. Acredito que conseguimos outra vitória disse a voz na outra extremidade da linha E se eu estiver certo, todas as outras façanhas não terão
sido nada, em comparação.
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Quando Fran chegou a casa de Molly à uma hora, percebeu imediatamente que esta tinha estado a chorar. Os seus olhos estavam inchados e, embora usasse uma maquilhagem
ligeira, havia vestígios de manchas nas faces.
Entra, Fran. Philip chegou há pouco. Está na cozinha, a ver-me fazer uma salada.
"Então, Philip está cá", pensou Fran. "Que será que o trouxe aqui com tanta pressa? Seja o que for, aposto que não vai ficar satisfeito por me ver aqui."
Enquanto percorriam o corredor para a cozinha, Molly disse:
Jenna esteve aqui esta manhã. Teve de sair há alguns minutos para ir almoçar com Cal, mas sabes o que ela fez, Fran? Apareceu cá e ajudou-me a limpar a casa. Talvez
os polícias devessem fazer um curso para aprenderem a executar um mandado de busca sem deixar tudo na maior confusão.
A voz de Molly estava fragilizada. "Parece estar à beira da histeria ou de uma depressão", pensou Fran.
Era óbvio que Philip Matthews tinha chegado à mesma conclusão. Os seus olhos seguiam Molly constantemente enquanto ela andava pelo aposento a tirar a quiche da caixa
e a colocá-la no forno. Durante todo esse tempo, ela continuou a conversar no mesmo tom de voz rápido e enervado.
Aparentemente, encontraram vestígios do sangue da Annamarie nas botas que eu calcei no domingo à noite, Fran. E também no meu carro.
Fran trocou um olhar angustiado com Philip Matthews, certa de que a expressão de preocupação dele era um espelho da sua.
Quem sabe? Talvez esta seja a minha última refeição nesta casa durante algum tempo... Não é verdade, Philip? perguntou Molly.
Não, não é verdade replicou ele, tenso.
O que queres dizer é que depois de eu ser presa, saio novamente sob fiança. Bem, é uma das coisas boas de ter dinheiro, não é? As pessoas com sorte como eu podem
dar-se ao luxo de passar um cheque.
Pára com isso, Molly atirou Fran. Aproximou-se da amiga e agarrou-lhe nos ombros. Eu comecei a minha investigação partindo do princípio de que tinhas assassinado
o teu marido disse
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ela. Depois, comecei a ter dúvidas. Senti que a Polícia devia ter investigado melhor a morte de Gary, talvez considerado algumas outras possibilidades. Mas admito
que fiquei perturbada quando te vi tão determinada a encontrar a Annamarie Scalli. E depois encontraste-a, e agora ela está morta. Por isso, embora ainda não tenha
a certeza se és uma assassina patológica, continuo a ter dúvidas muito reais. Penso que existe uma grande teia de intrigas por aqui e que tu foste apanhada nela
como uma pessoa presa num labirinto. Claro que posso estar enganada. Tu podes ser o que noventa e nove por cento das pessoas parecem pensar que és, mas juro-te que
eu estou na zona do um por cento. Vou até às últimas consequências para provar que estás inocente das mortes de Gary Lasch e de Annamarie Scalli.
E se estiveres enganada? perguntou Molly.
Se estiver enganada, Molly, farei todos os possíveis para que sejas colocada numa prisão onde possas ficar confortável, segura e ser bem tratada.
Os olhos de Molly iluminaram-se com lágrimas não derramadas.
Não vou voltar a ser choramingona disse ela. Fran, tu és a primeira e a única pessoa a revelar vontade de investigar a possibilidade de eu estar inocente. Olhou
de relance para Philip. Incluindo tu, meu caro Philip, que sei que enfrentarias tigres por mim. E incluindo Jenna, que poria a mão no fogo por mim, e incluindo os
meus pais, que se pensassem que eu era inocente estariam aqui, neste momento, a revirar o inferno. Creio... e espero... estar inocente destas duas mortes. Se não
estiver, prometo que não estarei por cá para incomodar as pessoas por muito mais tempo.
Fran e Philip Matthews trocaram olhares. Num acordo sem palavras, não comentaram o que para os dois era uma ameaça de suicídio implícita.
"Elegância sob pressão", pensou Fran, enquanto Molly servia a quiche numa travessa Limoges lindíssima com um rebordo fino e base dourada. Os individuais com um delicado
padrão floral sobre a mesa do pequeno-almoço condiziam com o tom da sala.
A parede voltada para o jardim tinha uma grande janela saliente. Alguns rebentos verdes visíveis no exterior indicavam que o Inverno se aproximava do fim. No fundo
desnivelado da grande propriedade, Fran avistou o jardim rochoso e lembrou-se de uma coisa que queria conversar com Moly.
No outro dia, eu fiz-te uma pergunta sobre as chaves da casa, Molly. Tu disseste alguma coisa sobre uma chave de reserva?
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Escondemos sempre uma ali. Molly apontou na direcção do jardim rochoso. Uma daquelas rochas é falsa. Inteligente, não te parece? Pelo menos, é melhor do que ter
um Coelho Pedro de cerâmica com uma orelha removível, empoleirado no alpendre, a tomar conta da chave "para o caso de".
"Para o caso de..."? inquiriu Philip.
Para o caso de alguém se esquecer da chave.
Alguma vez te esqueceste da chave, Molly? perguntou Fran, casualmente.
Tu sabes que eu sou uma boa menina, Fran replicou Molly com um sorriso simultaneamente trocista e sério. Faço sempre tudo bem. Pelo menos, é o que toda a gente diz.
Deves lembrar-te disso desde os tempos de escola.
Sim, e todos diziam isso porque era verdade replicou Fran.
Eu costumava perguntar a mim mesma como seria se o caminho não me tivesse sido tão facilitado. É que eu tinha consciência de que tinha o caminho aberto. Sabia que
as coisas eram fáceis para mim, que eu era uma privilegiada. Admirava-te muito quando andávamos na escola porque tu trabalhavas para as coisas que querias. Recordo-me
de que quando começaste a jogar basquetebol ainda eras muito baixa, mas eras tão rápida e determinada que fazias a equipa.
"Molly Carpenter admirava-me", pensou Fran. "E eu que pensava que ela nem sequer sabia que eu existia."
E depois, quando o teu pai morreu, tive imensa pena. Sabia que as pessoas eram sempre deferentes com o meu pai, e é normal... ele atrai naturalmente respeito e merece-o;
foi e é um pai maravilhoso. Mas o teu pai conseguiu mostrar o enorme orgulho que sentia por ti. Ele era uma pessoa capaz de fazer isso, e tu deste-lhe a oportunidade...
o que nunca foi o meu caso. Deus, lembro-me perfeitamente da expressão no rosto do teu pai quando marcaste o cesto da vitória naquele último jogo do nosso último
ano. Foi o máximo!
"Não, Molly", quis Fran implorar. "Por favor, não continues."
Tenho imensa pena de que tantas coisas tenham corrido mal para ele, Fran. Talvez lhe tivesse acontecido o que me está a acontecer a mim. Uma cadeia de acontecimentos
que não podemos controlar. Molly pousou o garfo. A quiche é maravilhosa, Fran, mas eu não estou com fome.
Gary alguma vez se esqueceu da chave, Molly? perguntou Fran. Sem olhar para Philip Matthews, sentiu o seu olhar, a sua ordem não falada para que não massacrasse
Molly com perguntas.
Gary? Esquecer-se? Céus, não. Gary era perfeito. Costumava dizer-me que uma das coisas que adorava em mim era o facto de eu ser tão previsível. Ao contrário da maioria
das mulheres, eu nunca
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me atrasava, nunca deixava as chaves dentro do carro, nunca me esquecia das chaves. Tive um Muito Bom Mais por isso. Calou-se, e depois sorriu levemente como se
estivesse a lembrar-se de alguma coisa. Engraçado, já repararam como hoje estou a pensar em termos escolares? Níveis. Notas. Mais ou menos.
Molly afastou a cadeira e começou a tremer. Alarmada, Fran correu para junto dela. E, nesse momento, o telefone tocou.
Tem de ser a mãe e o pai, ou a Jenna. Molly falou tão baixinho que quase não se percebeu.
Philip Matthews levantou o auscultador.
É o Dr. Daniels, Molly. Quer saber como estás. Fran respondeu por Molly.
Ela precisa de ajuda. Pergunta-lhe se ele pode vir cá conversar com ela.
Após alguns momentos de uma troca de palavras sussurrada, Matthews desligou o telefone e virou-se para as duas mulheres.
Ele vem já prometeu. Molly, não queres deitar-te até ele chegar? Pareces bastante trémula.
Eu sinto-me bastante trémula.
Vamos. Philip Matthews abraçou Molly e puxou-a contra si enquanto a levava para fora da sala do pequeno-almoço.
"O melhor é arrumar tudo", pensou Fran enquanto olhava para a refeição quase intacta. "Tenho a certeza de que ninguém vai querer comer alguma coisa agora."
Quando Matthews voltou, ela perguntou:
Que é que vai acontecer?
Se os testes de laboratório a relacionarem de alguma forma com a morte de Annamarie, vai ser presa. Devemos saber dentro de muito pouco tempo.
Oh, santo Deus!
Fran, eu convenci Molly a esconder a maior parte da conversa que teve com a Annamarie Scalli. Algumas coisas foram terrivelmente dolorosas e poderiam parecer um
motivo para ela odiar Annamarie. Agora vou arriscar e contar-lhe tudo o que ela me disse, na esperança de que possa ajudá-la. Acredito em si quando diz que está
determinada em provar a inocência dela.
Da qual o próprio Philip não está convencido, certo? disse Fran suavemente.
Estou convencido de que ela não é responsável por nenhuma das mortes.
Não é a mesma coisa.
Em primeiro lugar, Fran, a Annamarie contou à Molly que o Gary lhe disse que estava aliviado por ela ter perdido o bebé; disse
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que só teria complicado as coisas. Depois, disse que tinha escutado Gary Lasch e o Dr. Jack Morrow numa discussão feia apenas alguns dias antes de Morrow ter sido
assassinado. Depois dessa discussão, o Dr. Morrow pediu a Annamarie que lhe guardasse um ficheiro muito importante, para se precaver, mas morreu antes de lho dar.
Molly disse-me que ficou com a impressão nítida de que a Annamarie sabia alguma coisa que não queria dizer, e que estava com muito medo.
Temia pela sua própria segurança?
É a impressão de Molly.
Bem, é uma pista. E quero investigar mais uma coisa. O filho da Sr.a Barry, Wally, um jovem com problemas emocionais e mentais profundos, ficou desesperadamente
perturbado com a morte do Dr. Morrow, e por algum motivo que ainda não deslindei também estava muito zangado com Gary Lasch. Para além do mais, parece ter um interesse
especial pela Molly. Ontem mesmo, tirou a chave desta casa do porta-chaves da mãe.
A campainha da porta tocou.
Eu abro disse Fran. Provavelmente, é o Dr. Daniels. Abriu a porta e encontrou dois homens com os distintivos e cartões de identidade na mão para ela poder ler. O
mais velho disse:
Temos um mandado para a prisão de Molly Carpenter Lasch. Leva-nos até ela, por favor?
Quinze minutos depois, os primeiros operadores de câmara estavam no local para gravar Molly Lasch, com as mãos algemadas atrás das costas, o casaco sobre os ombros,
a cabeça baixa, os cabelos caídos sobre o rosto, a ser levada de casa para um carro do gabinete do Ministério Público. Dali, foi levada para o tribunal de Stamford,
onde, numa reposição dos acontecimentos de há quase seis anos, foi acusada de homicídio.
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Sentindo cada dia dos seus sessenta e cinco anos, Edna Barry esperou pelo início do noticiário da noite enquanto bebericava uma chávena de chá a terceira na última
hora. Wally tinha ido dormir uma sesta para o quarto e ela rezou para que, quando acordasse, o medicamento já tivesse feito efeito e ele se sentisse melhor. Tinha
sido um dia mau, com as vozes que só ele ouvia a atormentarem-no.
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A caminho de casa, depois de vir do médico, tinha batido no rádio do carro com o punho porque pensara que o repórter estava a falar sobre ele.
Pelo menos de manhã, tinha conseguido obrigá-lo a entrar em casa antes de Fran Simmons poder ver até que ponto ele estava perturbado. Mas que é que Marta teria contado
acerca de Wally?
Edna sabia que Marta nunca faria nada para magoar Wally intencionalmente, mas Fran Simmons era uma rapariga esperta e já tinha começado a fazer perguntas sobre a
chave de reserva da casa de Molly.
No dia anterior, Marta tinha visto Wally a tirar a chave da casa de Molly da sua carteira e ouvira-o dizer que desta vez a colocaria no lugar. "Por favor, Deus,
que a Marta não tenha contado isso à Fran Simmons", rezou Edna.
A sua mente voltou àquela manhã terrível em que encontrara o corpo do Dr. Lasch, ao medo que sentira desde esse momento de cada vez que se mencionava uma chave.
"Quando a Polícia me perguntou sobre as chaves da casa, eu dei-lhes a chave que tinha tirado do esconderijo no jardim", recordou Edna. "Não tinha conseguido encontrar
a minha chave da casa naquela manhã, e estava com imenso medo de que Wally a tivesse tirado, um medo que mais tarde se revelou justificado. Tinha ficado aterrorizada
com a perspectiva de a Polícia querer fazer mais perguntas sobre a chave, mas ninguém tinha perguntado mais nada."
Edna concentrou-se no ecrã da televisão quando o noticiário começou. Chocada, ouviu a notícia de que Molly tinha sido detida sob a acusação de homicídio, acusada
em juízo, e há alguns minutos libertada sob uma fiança de um milhão de dólares, com a condição de permanecer em prisão domiciliária. A câmara passou para Fran Simmons,
ao vivo no parque de estacionamento do restaurante Sea Lamp, em Rowayton. O parque ainda estava vedado com aquela fita amarela dos locais de crime.
"Foi neste lugar que Annamarie foi esfaqueada até à morte", estava Fran a dizer, "um crime pelo qual Molly Lasch foi detida esta tarde. Soube-se que foram descobertos
vestígios de sangue num dos sapatos de Molly Lasch e também no seu carro."
Molly está outra vez toda ensanguentada, mãe?
Edna voltou-se e viu Wally atrás de si, com os cabelos desalinhados, os olhos brilhantes de fúria.
Não digas essas coisas, Wally! ordenou ela, nervosa.
A estátua do cavalo e do vaqueiro em que eu peguei daquela vez, lembra-se?
Wally, não fales sobre isso, por favor, não fales.
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Só quero falar-lhe sobre ela, nada mais disse ele, petulantemente.
Wally, nós não vamos falar sobre esse assunto.
Mas toda a gente está a falar no assunto, mãe. Agora mesmo, no meu quarto, estavam a gritar na minha cabeça... todos eles. Estavam a falar sobre a estátua. Não era
muito pesada para mim porque eu sou forte, mas era pesada de mais para Molly a levantar.
Consternada, Edna pensou que as vozes que o atormentavam estavam de volta. O medicamento não estava a fazer efeito.
Levantou-se, aproximou-se do filho e encostou as mãos nas têmporas dele.
Chiu disse, suavemente. Basta de conversas sobre Molly ou a estátua. Tu sabes bem como as vozes te confundem, querido. Promete-me que não vais dizer mais nenhuma
palavra sobre a estátua, nem sobre o Dr. Lasch, nem sobre a Molly. Está bem? Agora, vamos buscar mais um comprimido para tomares.
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Fran terminou o seu segmento na transmissão e desligou o microfone. Nessa noite, Pat Lyons, um jovem operador de câmara, tinha vindo de Nova Iorque para filmá-la
no restaurante Sea Lamp.
Gosto desta cidade disse ele. Aqui, perto da água, parece uma aldeia de pescadores.
É uma cidade agradável concordou Fran, lembrando-se de que, quando era mais nova, ocasionalmente, visitava uma amiga em Rowayton. "Embora seja verdade que o Sea
Lamp não é um lugar onde a elite se encontre para comer", pensou, enquanto olhava para o restaurante com um aspecto um pouco gasto. No entanto, pretendia ir lá jantar.
Apesar dos acontecimentos dos últimos dias, da presença da fita amarela no local do crime e de marcas de giz amarelo para indicar a localização do carro de Annamarie
Scalli, o local estava a funcionar.
Fran já se tinha certificado de que Gladys Fluegel, a empregada de mesa que servira Molly e Annamarie Scalli, estava de serviço naquela noite. Tinha de ter o cuidado
de ficar numa das mesas dela.
Ficou surpreendida ao constatar que o restaurante estava semicheio, mas depois compreendeu que isso se devia provavelmente à curiosidade gerada pelo homicídio e
a toda a publicidade subsequente. Ficou por
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alguns instantes à entrada, a pensar que teria mais hipóteses de falar com Fluegel se ficasse sentada ao balcão. Porém, o problema foi resolvido pela própria empregada,
que se aproximou rapidamente.
É Fran Simmons. Estivemos a vê-la gravar. Eu sou Gladys Fluegel. Fui eu que atendi Molly Lasch e Annamarie Scalli naquela noite. Elas sentaram-se precisamente ali.
Apontou para um reservado vazio ao fundo do restaurante.
Tornou-se óbvio para Fran que Gladys estava mais do que ansiosa por contar a sua história.
Na realidade, gostava de trocar algumas palavras consigo disse Fran. Se eu me sentar na mesma mesa, talvez possa fazer-me companhia. Tem um intervalo dentro de pouco
tempo?
Dê-me dez minutos disse Fluegel. Vou resolver uma pequena coisa. Acenou para um casal idoso sentado a uma mesa junto à janela. Ela está doida porque ele quer parmigiana
de vitela, e ela diz que lhe provoca gases. Vou dizer-lhes para se decidirem; depois de entregar o pedido na cozinha, vou sentar-me consigo.
Fran mediu a distância enquanto caminhava para o reservado do fundo. "A cerca de doze metros da entrada", decidiu. Enquanto esperava que Gladys ficasse disponível,
estudou o interior do restaurante. Para começar, estava mal iluminado e a mesa estava na penumbra, o que fazia dela uma escolha natural para alguém que não queria
dar nas vistas. Molly tinha dito que Annamarie parecia assustada quando tinham falado, mas não com medo dela. "De que é que teria medo?", perguntou Fran a si mesma.
E por que é que Annamarie mudara de nome? Seria apenas por pensar que a notoriedade que rodeara o caso do homicídio de Gary Lasch a perseguiria? Ou teria outro motivo
para tentar desaparecer?
Segundo Molly, Annamarie tinha saído primeiro do restaurante e depois ela pagara a conta e seguira-a. Quanto tempo teria demorado? Não podia ter sido muito tempo,
porque nesse caso seria lógico Molly acreditar que Annamarie já se tinha ido embora. Mas teria de ser o suficiente para Annamarie atravessar o parque de estacionamento
até ao jipe.
"Molly diz que a chamou da porta", pensou Fran. "Será que conseguiu apanhá-la?"
Adivinhe o que vão comer os dois? perguntou Gladys, a apontar com o polegar por cima do ombro na direcção do casal idoso. Solha grelhada e espinafres. Ela pediu
pelos dois. Ele está a ter um ataque, pobre tipo.
Pousou a ementa diante de Fran.
Os pratos do dia são frango de fricassé e goulash à húngara. "Como um hambúrguer no P. J. Clarke's, quando voltar para
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Nova Iorque", decidiu Fran, e depois murmurou algo sobre ter um jantar tardio e pediu café e uma sanduíche.
Quando Gladys voltou com o pedido, sentou-se.
Tenho mais ou menos dois minutos disse ela. Foi aqui que Molly Lasch se sentou. Aquela Annamarie Scalli estava no seu lugar. Como disse aos detectives ontem, a Scalli
estava nervosa... Juro que estava com medo da Lasch. Depois, quando a Scalli se levantou para sair, Molly Lasch agarrou-lhe no pulso. A Scalli teve de se afastar
do aperto dela e depois saiu daqui praticamente a voar, como se estivesse com receio de que a Molly Lasch a perseguisse, o que obviamente aconteceu. Quero dizer,
quantas mulheres é que dão uma nota de cinco dólares para pagar uma chávena de chá e um café que custam apenas um dólar e trinta cêntimos? Se quer saber, tenho pesadelos
ao pensar que apenas segundos depois de ter deixado a minha mesa aquela mulher, Scalli, estava morta. Suspirou. Acho que vou ter de me sujeitar a ser testemunha
no julgamento.
"Estás a morrer por testemunhar", pensou Fran.
Havia mais empregadas de mesa no domingo à noite? perguntou.
Querida, ao domingo à noite nesta espelunca não são necessárias duas empregadas de mesa. Na verdade, normalmente, o domingo é o meu dia de folga, mas a rapariga
que costuma fazê-los telefonou a dizer que estava doente, e adivinhe quem é que se lixou? Por outro lado, foi muito interessante estar aqui com tantas coisas a acontecer.
E um cozinheiro ou alguém no balcão? Deve haver esse tipo de ajuda aqui.
Oh, claro, o cozinheiro estava por aí, embora deva dizer-lhe que chamar "cozinheiro" àquele cretino é esticar muito o significado da palavra. Mas ele não estava
cá dentro... Está sempre nas traseiras. Não vê nada, não ouve nada. Se é que me entende.
Quem é que estava atrás do balcão?
Bobby Burke, um miúdo que anda na universidade. Trabalha aos fins-de-semana.
Gostaria de falar com ele.
Ele vive em Yarmouth Street, em Belle Island. É do outro lado da pequena ponte, a dois quarteirões daqui. Chama-se Robert Burke Júnior. O número deles vem na lista.
Queria entrevistar-me para a televisão ou coisa do género?
Quando estiver a gravar o programa sobre Molly Lasch, gostaria de conversar consigo disse Fran.
Será um prazer.
"Aposto que sim", pensou Fran.
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Fran telefonou para a residência Burke do telefone do carro. No começo, o pai de Bobby Burke recusou-se terminantemente a autorizar que ela falasse com o filho.
Bobby fez uma declaração à Polícia com tudo o que ele tinha para dizer. Mal reparou na mulher a entrar e a sair. E não conseguia ver o parque de estacionamento do
balcão.
Sr. Burke implorou Fran. Vou ser completamente honesta com o senhor. Estou apenas a cinco minutos daí. Acabei de falar com Gladys Fluegel e estou preocupada porque
acho que a interpretação que ela fez do encontro entre Molly Lasch e Annamarie Scalli pode estar um pouco retorcida. Eu sou jornalista, mas também sou amiga de Molly
Lasch. Andámos juntas na escola. Em nome da justiça, faço-lhe um apelo. Ela precisa de ajuda.
Espere um momento. Quando voltou à linha, ele disse:
Muito bem, Menina Simmons, pode vir cá falar com Bobby, mas insisto em permanecer na sala convosco. Deixe-me dar-lhe indicações para cá chegar.
"É o tipo de miúdo de que quaisquer pais se orgulhariam", pensou Fran, sentada na sala de estar da casa modesta. Era um rapaz muito magro de dezoito anos, com cabelos
castanho-claros e inteligentes olhos castanhos. Os seus modos eram tímidos e ocasionalmente olhava para o pai à procura de orientação, mas havia um toque de humor
no seu olhar quando respondeu a algumas das perguntas de Fran, e especialmente quando falou em Gladys.
O restaurante não estava movimentado, por isso vi as duas senhoras que entraram disse ele. Quero dizer, elas entraram separadas, com apenas alguns minutos de diferença.
Teve alguma piada. A Gladys tenta sempre sentar as pessoas a uma mesa perto do balcão para não ter de se mexer muito, mas a primeira senhora não lhe fez a vontade.
Apontou para o reservado do fundo.
Pareceu-lhe que estava nervosa?
Na verdade, não percebi.
Disse que não estava ocupado?
É verdade. Havia apenas algumas pessoas ao balcão. Embora, mesmo antes de as senhoras saírem, tenha entrado um casal que ocupou uma mesa. A Gladys estava junto das
senhoras quando esse casal chegou.
Ainda estava a atendê-las?
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A fazer a conta. Mas levou o seu tempo. Ela é naturalmente metediça e gosta de saber tudo o que se passa. Lembro-me de que o casal novo começou a ficar aborrecido
e chamaram-na. Isso aconteceu quando a segunda senhora ia a sair.
Bobby, achou que a primeira mulher a sair, a que depois foi assassinada no parque de estacionamento, saiu a correr como se estivesse nervosa ou com medo?
Ela estava a andar bastante depressa, mas não ia realmente a correr.
E quanto à segunda mulher? Deve saber que ela se chama Molly Lasch?
Sim, sei isso.
Viu-a sair? -Sim.
Ela ia a correr?
Também ia muito depressa. Mas fiquei com a impressão de que era porque estava a começar a chorar, e calculei que não queria que ninguém a visse. Tive pena dela.
"Estava a começar a chorar", pensou Fran. "Isso não me parece típico de uma mulher numa fúria homicida."
Bobby, ouviu-a chamar um nome ao sair?
Pareceu-me que tinha chamado alguém, mas não percebi o nome.
Ela chamou uma segunda vez? Ela gritou "Annamarie, espere"?
Não a ouvi chamar uma última vez. Mas nessa altura estava a servir café, por isso é possível que não tenha reparado.
Eu acabei de sair do restaurante, Bobby. O balcão fica perto da porta. Não lhe parece que se a Molly Lasch tivesse chamado suficientemente alto para alguém num carro
do outro lado do parque de estacionamento a ouvir, também a teria ouvido?
Ele pensou durante alguns momentos.
Acho que sim.
A Polícia fez-lhe perguntas sobre isso?
Não muitas. Perguntaram se eu tinha ouvido a Sr.a Lasch chamar a outra senhora à porta, e eu disse que achava que sim.
Quem é que estava ao balcão nessa altura, Bobby?
Nessa altura estavam apenas dois fulanos que vão lá de vez em quando. Tinham estado a jogar bowling. Mas estavam a conversar um com o outro e não prestaram atenção
a mais ninguém.
Bobby, quem eram as pessoas que entraram, ocuparam uma mesa e chamaram a Gladys?
Não sei os nomes deles. Têm aproximadamente a idade da minha mãe e do meu pai; vejo-os lá de vez em quando. Devem ir ao cinema e depois jantam a caminho de casa.
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Bobby, se eles voltarem, não se importa de lhes pedir os nomes e o número de telefone para mim, ou, se eles não lhe derem essa informação, dá-lhes o meu cartão e
pede-lhes que me telefonem?
Claro que sim, Menina Simmons disse Bobby com um sorriso. Eu gosto das suas reportagens no noticiário, e vejo sempre o Crime Verdadeiro. É bestial!
Eu só comecei agora a trabalhar no Crime Verdadeiro, mas agradeço-lhe disse Fran. O caso Lasch será o tema do meu primeiro programa. Levantou-se e voltou-se para
Robert Burke, Sénior. O senhor foi muito bondoso ao permitir que eu falasse com Bobby disse.
Bom, a verdade é que eu também vi alguns noticiários disse ele. E tenho a impressão de que neste caso existe uma grande precipitação no julgamento; obviamente, a
senhora sente o mesmo. Sorriu. É claro que eu posso estar a ser preconceituoso. Sou defensor público.
Acompanhou Fran até à porta e abriu-a.
Menina Simmons, se é amiga de Molly Lasch, devia saber mais uma coisa. Hoje, quando a Polícia interrogou Bobby, fiquei com a sensação de que a única coisa que queriam
ouvir era uma confirmação do que a Gladys Fluegel lhes tinha dito, e posso garantir-lhe que aquela mulher está ávida de atenção. Eu vou ficar surpreendido se ela
não começar a lembrar-se de todos os tipos de coisas. Conheço bem o género dela. Vai dizer à Polícia tudo o que eles quiserem ouvir, e pode apostar que nada do que
ela disser vai ajudar Molly Lasch.
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Tinha sido acusada. Tinham-lhe tirado as impressões digitais. Tinha sido fotografada. Ouvira Philip Matthews dizer: "A minha cliente declara-se inocente, Meretíssimo".
O acusador a alegar que ela podia desaparecer e a pedir prisão domiciliária. O juiz a pedir uma fiança de um milhão de dólares e a confiná-la a casa.
Ficar a tremer na sala de detenção. A fiança paga. Como uma criança obediente, Molly, apática e desligada, fez o que lhe mandaram, até, por fim, estar no carro com
Philip, que a levava para casa.
Com o braço à volta dela, quase a levou ao colo para casa e para a saleta íntima. Obrigou-a a deitar-se no sofá, colocou-lhe uma das
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almofadas decorativas debaixo da cabeça e depois foi procurar um cobertor e tapou-a cuidadosamente.
Estás a tremer. Onde é que está o acendedor da lareira? perguntou.
Em cima da pedra. Não teve consciência de estar a responder até ouvir a sua própria voz.
Um instante depois, o lume acendeu-se, quente e reconfortante.
Vou ficar cá disse Philip. Tenho a minha pasta; posso trabalhar na mesa da cozinha. Tu vais fechar os olhos.
Quando os abriu, com um sobressalto, eram sete horas e o Dr. Daniels estava sentado ao seu lado.
Sente-se bem, Molly?
Annamarie arquejou ela. Eu estava a sonhar com ela.
Quer contar-me o sonho?
Annamarie sabia que algo terrível ia acontecer-lhe. Foi por isso que saiu do restaurante com tanta pressa. Queria escapar ao seu destino. Ao invés disso, correu
para ele.
Acha que Annamarie sabia que ia morrer, Molly?
Acho, sim.
Por que é que pensa que Annamarie sabia uma coisa dessas?
Doutor, isso foi parte do sonho. Conhece a fábula do homem a quem disseram para se encontrar com a morte nessa noite em Damasco, por isso ele fugiu para Samara para
se esconder? E um estranho aproximou-se dele numa rua em Samara e disse: "Sou a Morte. O nosso encontro não era em Damasco?" Apertou a mão do Dr. Daniels. Foi tão
real.
Quer dizer que não havia maneira de a Annamarie se salvar?
Maneira nenhuma. E eu também não me posso salvar.
Fale-me sobre isso, Molly.
No fundo, não sei sussurrou ela. Hoje, quando estava na cela de detenção e trancaram aquela porta, eu não parava de ouvir outra porta a ser fechada ou aberta. Não
é estranho?
Era uma porta de prisão?
Não. Mas ainda não sei que porta era. O som é parte do que aconteceu naquela noite em que Gary morreu. Suspirou e, afastando o cobertor, sentou-se. Oh, Deus, por
que é que não consigo lembrar-me? Se conseguisse, talvez tivesse uma hipótese.
O facto de estar a recuperar a memória de incidentes ou sons específicos é um bom sinal, Molly.
É? inquiriu Molly num tom triste.
O médico observou-a cuidadosamente. Percebeu os efeitos ao stress recente no rosto: letárgica, deprimida, esgotada; certa de que o seu destino estava traçado. Era
claro que não queria falar mais.
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Molly, gostaria de me encontrar todos os dias consigo durante algum tempo. Não se importa?
Tinha esperado protestos, mas ela limitou-se a acenar com indiferença.
Vou dizer a Philip que me vou embora.
Ele também devia ir para casa. Estou muito grata aos dois. Agora já não há tantas pessoas por aqui. O meu pai e a minha mãe, por exemplo. Têm estado notoriamente
ausentes.
A campainha da porta tocou. O Dr. Daniels viu o pânico nos olhos de Molly. "Espero que não seja a Polícia", pensou, consternado.
Eu vou abrir disse Philip.
O Dr. Daniels observou o alívio que inundou Molly quando o ruído de saltos e uma voz de mulher precedeu a chegada de Jenna Whitehall. O marido dela e Philip seguiram-na
para a sala.
O Dr. Daniels observou aprovadoramente enquanto Jenna dava um rápido abraço a Molly e dizia:
O seu serviço de cozinheiro-expresso chegou, minha senhora. E não há empregada, mas o poderoso Calvin Whitehall em pessoa vai servir e arrumar a cozinha, com o auxílio
do advogado Philip Matthews.
Eu vou andando disse o médico com um sorriso fugaz, contente por os amigos de Molly terem vindo apoiá-la e ansioso por ir para casa. Sentia uma antipatia instintiva
por Calvin Whitehall, com quem tinha estado apenas algumas vezes. O seu instinto dizia-lhe que o homem era um tirano nato, que usaria sem a menor hesitação o seu
imenso poder, não apenas para alcançar os seus objectivos mas para manipular as pessoas unicamente para ter o prazer de as ver sofrer.
Ficou surpreendido e nada satisfeito quando Whitehall o seguiu até à porta.
Doutor disse Whitehall, em voz baixa, como se tivesse medo de que alguém o ouvisse, ainda bem que o vejo aqui com a Molly. Ela é terrivelmente importante para todos
nós. Acha que há alguma possibilidade de ela ser declarada incapaz de ser julgada, ou, se isso não for possível, ser julgada como inocente deste segundo crime por
motivo de insanidade?
A sua pergunta não deixa qualquer dúvida de que considera Molly culpada da morte de Anna marie Scalli declarou o Dr. Daniels, friamente.
Foi notório que Whitehall ficou surpreendido e ofendido com a censura implícita.
Penso que a minha pergunta reflecte a medida do afecto que a minha mulher e eu temos por Molly, e a nossa certeza de que, para ela, uma pena de prisão longa será
o mesmo que uma condenação à morte.
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"Deus ajude a pessoa que se meter consigo", pensou Daniels, reparando no rubor de indignação nas maçãs do rosto de Whitehall e no brilho gélido do seu olhar.
Aprecio a sua preocupação, Dr. Whitehall. Estou a pensar ver ou falar com Molly todos os dias, e temos simplesmente de lidar com um dia de cada vez, em tudo isto.
Ele acenou afirmativamente e voltou-se para a porta.
Enquanto conduzia para casa, o Dr. Daniels pensou que Jenna Whitehall podia ser a melhor amiga de Molly, mas era casada com um homem que não tolerava interferências
e que não deixava ninguém atravessar-se no seu caminho. Ocorreu-lhe que este interesse renovado no escândalo que rodeava a morte de Gary Lasch, o fundador da Remington
Health Management, não era seguramente uma reviravolta nos acontecimentos bem-vinda para o presidente do Conselho de Administração da Remington.
"Whitehall está em casa de Molly como marido da melhor amiga dela ou por que está a tentar engendrar o melhor plano para o controlo de danos?", pensou Daniels.
Jenna tinha trazido espargos gratinados, sela de borrego, batatas novas minúsculas, bróculos e biscoitos todos os pratos preparados e prontos para serem servidos.
Com uma pressa deliberada, pôs a mesa na cozinha enquanto Cal abria uma garrafa de vinho depois de dizer a Molly que era um bordéus Chateau Lafite Rothschild, "um
dos melhores da minha adega particular".
Molly ergueu os olhos a tempo de captar a expressão estupidificada de Philip e a ligeira careta de Jenna com o tom de gabarolice e pretensão de Cal.
"Eles são bem intencionados", pensou ela, cansada, "mas eu preferia que não tivessem vindo. Estão a tentar tão desesperadamente que pareça um serão normal em Greenwich,
e aqui estamos nós, a juntarmo-nos para um jantar informal na cozinha." Recordou como, há alguns anos, quando Gary ainda estava vivo e ela pensava que era feliz,
Jenna e Cal apareciam ocasionalmente sem serem esperados e ficavam sempre para jantar.
"Felicidade doméstica essa era a minha vida. Eu adorava cozinhar e não me custava nada improvisar um jantar em alguns minutos. Gostava de mostrar que não precisava
nem queria uma cozinheira ou uma empregada interna. Gary parecia tão orgulhoso de mim: Ela é não apenas lindíssima e inteligente, como também sabe cozinhar. Como
é que tive tanta sorte? perguntava, a rir-se para mim à frente dos convidados.
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"E tudo não passava de uma charada", pensou ela. Doía-lhe imenso a cabeça. Fez pressão nas têmporas com as pontas dos dedos, a massajar suavemente, a tentar afastar
a dor.
Molly, preferes que esqueçamos tudo isto? perguntou Philip, calmamente. Estava sentado à frente dela na mesa, onde Jenna os tinha mandado sentar.
Enquanto marido e médico, ele não valia o preço que pagou por tê-lo matado, Sr.aLash.
Molly levantou os olhos e viu Philip a fitá-la.
Que queres dizer com isso, Molly? perguntou ele. Confusa, Molly olhou para além dele. Jenna e Cal também estavam a observá-la.
Desculpem disse ela, hesitante. Acho que estou num ponto em que não percebo a diferença entre aquilo em que estou a pensar e o que estou a dizer. Só me lembrei do
que a Annamarie Scalli me disse quando me encontrei com ela no restaurante, no domingo à noite. O que me surpreendeu na altura foi ela estar tão convencida de que
eu matei Gary, quando eu tinha ido encontrar-me com ela com a esperança de descobrir que ela estava suficientemente zangada para o ter matado.
Não penses nisso agora, Molly pediu Jenna. Bebe o teu vinho. Tenta descontrair.
Escuta, Jenna disse Molly,numtomardente. AAnnamarie disse que, como médico, Gary não valia o preço que eu paguei por tê-lo matado. Que é que a levou a dizer isso?
Ele era um médico maravilhoso. Não era?
Fez-se silêncio enquanto Jenna continuava os preparativos. Cal limitou-se a observá-la.
Percebem onde estou a querer chegar? perguntou Molly, quase a implorar. Talvez houvesse alguma coisa na vida profissional de Gary que nós desconhecemos.
É um caminho possível disse Philip, calmamente. E se falássemos com a Fran sobre o assunto? Voltou-se para Cal e Jenna. Inicialmente, opus-me a que a Molly colaborasse
fosse de que maneira fosse com a Fran Simmons disse ele, mas, depois de conviver com ela e de a ver em acção, acredito honestamente que ela está do lado de Molly.
Voltou-se para Molly.
A propósito, ela telefonou enquanto estavas a dormir. Falou com o rapaz que estava a trabalhar no balcão do restaurante no domingo à noite. Ele diz que não te ouviu
chamar a Annamarie pela segunda vez, que é o que a empregada de mesa diz. É uma coisa pequena, mas podemos usá-la para desacreditar o testemunho da empregada.
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Que bom... Eu sabia que não me lembrava disso disse Molly. No entanto, por vezes, questiono-me em relação ao que é real e ao que imaginei. Acabei de dizer ao Dr.
Daniels que há uma coisa que não pára de me ocorrer e desvanecer-se acerca da noite em que Gary morreu... Alguma coisa acerca de uma porta. Ele diz que é bom sinal,
eu estar a ter recordações específicas. Talvez haja outras respostas para estas mortes. Espero que sim. O que sei é que nunca mais posso voltar para a prisão. Fez
uma pausa e depois sussurrou mais para si própria do que para os outros. Isso não vai acontecer.
Fez-se um longo silêncio que Jenna quebrou com alegre determinação.
Eia, não podemos deixar este jantar magnífico arrefecer disse ela, sentando-se à mesa.
Uma hora depois, no carro, a caminho de casa, sentados no banco de trás enquanto Lou Knox os conduzia, Jenna e Cal permaneceram em silêncio até esta dizer:
Cal, achas que é possível a Fran Simmons descobrir alguma coisa que possa ajudar Molly? Ela é uma jornalista de investigação, e se calhar é boa.
Mas primeiro é preciso haver alguma coisa para investigar disse Cal Whitehall, bruscamente. E ela não tem. Quanto mais a Fran Simmons cavar, mais encontrará a mesma
resposta, que é a óbvia.
Que é que pensas que a Annamarie Scalli quis dizer quando criticou Gary enquanto médico?
O que eu acho, minha querida, é que os pequenos surtos de memória são altamente duvidosos. Eu não lhes daria importância, e tenho a certeza de que nenhum júri dará.
Tu ouviste. Ela está a ameaçar suicídio.
É errado as pessoas darem uma esperança excessiva à Molly. Gostava que a Fran Simmons se mantivesse afastada de tudo isto!
Sim, Fran Simmons é um aborrecimento terrível concordou Cal.
Não precisou de olhar para o espelho retrovisor para saber que Lou Knox estava a observá-lo enquanto conduzia. Com um aceno quase imperceptível, respondeu à pergunta
não falada que ele lhe fez.
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"Detectei uma mudança na Tasha quando estive lá na semana passada, ou estou apenas a imaginar tudo agora?", perguntou Barbara Colbert a si mesma enquanto olhava
para a escuridão, a caminho de Greenwich. Nervosa, apertou as mãos uma na outra e soltou-as.
O Dr. Black telefonara quando ela se estava a preparar para ir para o Met, onde tinha um bilhete para a série de apresentações de ópera de terça-feira à noite.
Sr.a Colbert dissera o médico, num tom sério, infelizmente, houve uma alteração no estado da Tasha. Acreditamos que os seus sistemas possam estar a desligar.
"Por favor, que eu chegue lá a tempo", rezou Barbara. "Quero estar com ela quando ela se for. Disseram-me sempre que provavelmente ela não ouve nem compreende nada
do que lhe dizemos, mas eu nunca tive a certeza. Quando chegar o momento, quero que ela saiba que estou lá. Quero os meus braços à volta dela quando soltar o último
suspiro."
Recostou-se para trás e sobressaltou-se. A ideia de perder a sua menina tinha o impacto físico de um punhal no coração. "Tasha... Tasha...", pensou. "Como é que
isto pôde acontecer?"
Barbara Colbert chegou e encontrou Peter Black à cabeceira da cama de Tasha. O semblante do médico transmitia uma espécie de tristeza treinada.
Só podemos observar e esperar disse, num tom de voz solícito. Barbara ignorou-o. Uma das enfermeiras puxou uma cadeira para junto da cama, para ela poder sentar-se
com o braço à volta dos ombros de Tasha. Olhou para o rosto encantador da filha, tão sereno, como se ela estivesse simplesmente a dormir e pudesse abrir os olhos
a qualquer momento e dizer olá.
Barbara ficou ao lado da filha durante aquela longa noite, não consciente das enfermeiras que estavam por perto e de Peter Black a ajustar a solução que pingava
para as veias de Tasha.
Às seis horas, Black tocou-lhe no braço.
Sr.a Colbert, parece que a Tasha estabilizou, pelo menos até certo ponto. Não quer tomar uma chávena de café e deixar as enfermeiras tratarem dela? Depois, pode
voltar.
Ela levantou os olhos.
Sim, e preciso de falar com o meu motorista. Tem a certeza... Ele sabia o que ela queria dizer e acenou afirmativamente.
Ninguém pode ter a certeza, mas não me parece que Tasha esteja preparada para nos deixar já, pelo menos não por enquanto.
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A Sr.a Colbert saiu para a zona da recepção. Como esperava, Dan estava a dormir numa das poltronas. Uma mão no ombro foi o suficiente para o despertar completamente.
Dan já estava com a família antes de Tasha nascer, e ao longo dos anos tinham ficado muito íntimos. Barbara respondeu à pergunta que ele não chegou a fazer:
Ainda não. Dizem que por enquanto estabilizou. Mas pode acontecer a qualquer momento.
Tinham ensaiado aquele momento.
Vou chamar os meninos, Sr.a Colbert.
"Cinquenta e quarenta e oito anos, e ele ainda lhes chama rapazes", pensou Barbara, vagamente consolada com a percepção de que Dan estava a sofrer com ela.
Pede a um deles que vá buscar-me uma mala ao apartamento. Telefona e diz à Netty para a ter preparada.
Obrigou-se a ir para a pequena cafetaria. A noite sem dormir ainda não a tinha afectado, mas sabia que seria inevitável.
A empregada da cafetaria conhecia, sem dúvida, o estado de Tasha.
Estamos a rezar disse, e depois suspirou. Tem sido uma semana triste. O Sr. Magim morreu no princípio da manhã de domingo, sabia?
Não, não sabia. Lamento.
Não que não fosse esperado, mas estávamos todos com esperança de que ele passasse o octogésimo aniversário com vida. No entanto, sabe o que foi agradável? Os olhos
dele abriram-se mesmo antes de morrer e a Sr.a Magim jura que se focaram nela com expressividade.
"Se ao menos a Tasha pudesse despedir-se de mim", pensou Barbara. "Éramos uma família muito feliz, mas nunca fomos muito expansivos. Agora lamento isso. Tantos pais
terminam as conversas com os seus filhos dizendo adoro-te. Eu pensei sempre que era exagerado, até disparatado. Agora, gostava de nunca ter deixado a Tasha sair
de junto de mim sem lhe dizer isso mesmo."
Quando Barbara voltou para a suite, o estado de Tasha parecia inalterado. O Dr. Black encontrava-se de pé, junto à janela da sala de estar, de costas para ela. Estava
a falar ao telemóvel. Antes de Barbara poder indicar a sua presença, ouviu-o dizer:
Não aprovo, mas se insiste, então não tenho escolha, pois não? Tinha a voz tensa de raiva... ou seria medo?
"Quem será que lhe dá ordens?", pensou ela.
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Na quarta-feira de manhã, Fran tinha uma hora marcada em Greenwich com o Dr. Roy Kirkwood, que fora o clínico geral de Josephine Gálio, a mãe do amigo de Tim Mason,
cuja morte tinham pedido a Fran que investigasse. Ficou surpreendida ao constatar que a sala de espera do médico estava vazia. Nnão é uma situação normal para um
médico, nos dias de hoje", pensou ela.
A recepcionista fez deslizar o vidro que separava a sua secretária da sala de espera.
Menina Simmons disse ela sem perguntar o nome de Fran, o Sr. Doutor está à sua espera.
Roy Kirkwood parecia ter pouco mais de sessenta anos. Cabelo grisalho e ralo, sobrancelhas grisalhas, óculos com aros metálicos, testa enrugada e olhos bondosos
e inteligentes que levaram Fran a pensar imediatamente que aquele homem parecia um médico. "Se estivesse aqui por estar doente, teria confiança nele", decidiu ela.
Por outro lado. quando ele a convidou educadamente para se sentar, ocorreu-lhe que ela estava ali porque uma das suas pacientes tinha morrido.
É muito simpático da sua parte receber-me, doutor começou ela.
Não, eu diria que eu precisava de a ver, Menina Simmons interrompeu ele. Deve ter reparado que a minha sala de espera está vazia. Para além dos pacientes antigos,
dos quais cuidarei até poder transferir as suas fichas clínicas para outros médicos, estou reformado.
Tem alguma coisa a ver com a morte da mãe de Billy Gálio?
Tem tudo a ver com ela, Menina Simmons. No entanto, devo frisar que a Sr.a Gálio podia muito bem ter tido um ataque cardíaco fatal em quaisquer circunstâncias. Mas
com um bypass quádruplo também teria grandes probabilidades de viver. O cardiograma estava dentro dos parâmetros normais, mas um cardiograma não é a única coisa
que pode revelar que um paciente está com problemas. Suspeitei que ela podia estar a sofrer de artérias bloqueadas e quis fazer-lhe exames mais específicos. No entanto,
o meu pedido foi vetado.
Por quem?
Pela direcção... Pela Remington Health Management, para ser específico.
Protestou o veto?
Menina Simmons, protestei e continuei a protestar até ser tarde de mais. Protestei aquele veto da mesma forma que protestei
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muitos outros em casos em que as minhas recomendações para que os meus pacientes fossem consultados por especialistas eram negados.
Então, BiltyGallo estava certo... A mãe dele podia ter tido uma vida mais longa. É isso que está a dizer?
Roy Kirkwood parecia derrotado e triste.
Menina Simmons, depois de a Sr.a Gálio ter tido a oclusão coronária, fui ter com Peter Black e exigi que fosse feita a cirurgia de bypass que era necessária.
E que é que o Dr. Black disse?
Concordou, com relutância, mas depois a Sr.a Gálio morreu. Talvez pudéssemos tê-la salvo se aquela cirurgia tivesse sido autorizada mais cedo. Claro que para a OCS
foi apenas uma estatística, e a morte dela é um sinal mais para a coluna de lucro da Remington, por isso, é inevitável que nos interroguemos sobre se eles se importam
verdadeiramente.
O senhor deu o seu melhor, doutor disse Fran, calmamente.
O melhor? Estou no fim da minha carreira e posso reformar-me confortavelmente. Mas que Deus tenha piedade dos médicos novos. A maior parte deles começam a carreira
profundamente endividados e têm de pagar os empréstimos que pediram para tirar o curso. Acredite ou não, devem uma média de cem mil dólares. Depois, têm de pedir
empréstimo para equipar um consultório e iniciar a actividade. Da maneira como as coisas estão agora, ou trabalham directamente para uma organização de prestação
de cuidados de saúde, ou noventa por cento dos seus pacientes fazem parte delas.
"Hoje em dia, é dito ao médico quantos pacientes tem de ver. Alguns planos vão mesmo ao ponto de atribuir ao médico quinze minutos para atender o paciente e exige-se
que ele cumpra um horário. Não é invulgar os médicos trabalharem cinquenta e cinco horas por semana, por menos dinheiro do que ganhavam antes de as OCS se apossarem
da medicina.
Qual é a solução? perguntou Fran.
OCS sem fins lucrativos dirigidas por médicos, creio eu. E também que os médicos criem os seus próprios sindicatos. A medicina está a dar passos notáveis. Há muitos
medicamentos e tratamentos novos à disposição dos médicos, alguns dos quais permitem prolongar vidas e dar melhor qualidade de vida. A incongruência é que esses
novos tratamentos e serviços estão a ser arbitrariamente negados, como aconteceu no caso da Sr.a Gálio.
Como é que a Remington se compara com as outras OCS, doutor? Afinal de contas, foi fundada por dois médicos.
Por dois médicos que herdaram o valioso legado de um grande médico, Jonathan Lasch. Gary Lasch não pertencia à mesma classe do pai... nem como médico nem como ser
humano. Quanto à Remington,
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é o pior possível. Por exemplo, têm andado a acabar sistematicamente com serviços e a despedir funcionários como parte da campanha de redução de custos que está
em curso. Só gostava que as OCS que eles estão a absorver fossem tomadas pelo plano dirigido pelo antigo bastonário da Ordem dos Médicos. É o tipo de homem de que
o sistema de saúde precisa.
Roy Kirkwood levantou-se.
Peço desculpa, Menina Simmons. Tenho consciência de que estou apenas a atirar-lhe fumo. Mas tenho um motivo. Acho que estaria a prestar um grande serviço se usasse
o poder do seu programa para alertar o público para esta situação cada vez mais escandalosa e alarmante. Demasiadas pessoas estão alheadas do facto de que os lunáticos
se apoderaram do manicómio.
Fran também se levantou.
Dr. Kirkwood, conhecia o Dr. Jack Morrow? Kirkwood sorriu levemente.
Jack Morrow era o melhor. Não havia médico melhor, excelente a diagnosticar, gostava dos pacientes. A sua morte foi uma tragédia.
Parece estranho que este homicídio nunca tenha sido resolvido.
Se pensa que eu estou aborrecido com a Remington Health Management, devia ter ouvido Jack Morrow. Admito que ele é capaz de ter ido longe de mais nas suas queixas.
"Longe de mais"? perguntou Fran, rapidamente.
Jack fervia em pouca água. Sei que se referia a Peter Black e a Gary Lasch como "um par de assassinos". Isso é ir longe de mais, embora deva confessar que sinto
o mesmo em relação ao Black e ao sistema em que a Josephine Gálio morreu. Mas eu não disse isso.
Quem é que ouviu o Dr. Morrow fazer essa declaração, Dr. Kirkwood?
Bem, a Sr.a Russo, a minha recepcionista, para começar. Ela trabalhava para Jack. Se outras pessoas ouviram, não tenho conhecimento disso.
É a senhora que está lá fora? -É.
Obrigada pelo seu tempo, doutor.
Fran saiu para a sala de espera e parou junto à secretária da recepção.
Sei que trabalhou para o Dr. Morrow, Sr.a Russo disse ela para a mulher baixa, de cabelos grisalhos. Ele foi tão bom para mim quando o meu pai morreu.
Ele era bom para toda a gente.
A senhora sabia o meu nome quando eu entrei, Sr.a Russo. Sabe que estou a investigar a morte do Dr. Gary Lasch para o programa de televisão Crime Verdadeiro?
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Sei, sim.
O Dr. Kirkwood acabou de me contar que a senhora ouviu o Dr. Morrow referir-se ao Dr. Lasch e ao Dr. Black como "um par de assassinos". É uma linguagem bastante
forte.
Ele tinha acabado de chegar do hospital e estava terrivelmente perturbado. Tenho a certeza de que tinha sido a discussão do costume por causa de um paciente a quem
tinha sido negado um tratamento. E, depois, o pobre homem foi assassinado passados alguns dias.
Se me recordo correctamente, a Polícia decidiu que um toxicodependente tinha assaltado o consultório e o surpreendera a trabalhar até tarde.
É verdade. Todas as gavetas da secretária estavam espalhadas pelo chão e o armário de medicamentos estava vazio. Sei que os toxicodependentes podem estar desesperados,
mas por que é que tinham de o matar? Por que não levarem simplesmente o que queriam e amarrá-lo, ou coisa do género? Nos olhos da mulher brilharam lágrimas.
"A menos que quem quer que fosse tivesse receio de ser reconhecido", pensou Fran. "Normalmente, é por isso que um roubo se transforma em homicídio." Começou a despedir-se,
mas depois lembrou-se da outra pergunta que queria fazer.
Sr.a Russo, estava alguém por perto quando o Dr. Morrow chamou aos Drs. Lasch e Black um par de assassinos?
Apenas duas pessoas, graças a Deus, Menina Simmons. Wally Barry, que era paciente do Sr. Doutor há muito tempo, e a mãe, a Edna.
Lou Knox vivia num apartamento por cima da garagem, ao lado da residência dos Whitehalls. O apartamento de três assoalhadas era óptimo para ele. Um dos poucos passatempos
que tinha era trabalhar a madeira, e Calvin Whitehall permitira-lhe utilizar uma das arrecadações da enorme garagem para ter as ferramentas e a mesa de trabalho.
Também deixara Knox arranjar o apartamento ao seu gosto.
Agora, a sala de estar e o quarto estavam revestidos com painéis de carvalho branco-pálido. Estantes alinhavam-se nas paredes, embora não se pudesse dizer que eram
estantes de livros, uma vez que Lou Knox não era adepto da leitura. Ao invés disso, a sua televisão, a aparelhagem sofisticadíssima e as colecções de CD e vídeos
enchiam as prateleiras.
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Eram igualmente excelentes esconderijos para a grande e sempre crescente colecção de provas incriminatórias que tinha acumulado para possível uso contra Calvin Whitehall.
Estava bastante certo de que nunca precisaria de nenhuma delas, uma vez que há muito tempo que ele e Cal Whitehall tinham chegado a acordo sobre quais eram as suas
funções. Para além do mais, Lou sabia que utilizar aquelas provas seria incriminar-se também. Portanto, aquele era um trunfo a que Lou não tinha qualquer intenção
de recorrer a não ser como último recurso. Fazer isso seria prejudicar-se a si mesmo para se vingar de alguém, como costumava dizer a avó, que o criara, quando ele
se queixava do talhante para quem trabalhara como moço de entregas.
"Ele paga-te com regularidade?", perguntava-lhe a avó.
"Sim, mas pede aos clientes para porem a gorjeta na conta", costumava protestar Lou. "E depois contabiliza-a como parte do meu salário."Passados tantos anos, Lou
ainda ficava satisfeito ao recordar-se de como se vingara do talhante. Quando ia entregar uma encomenda, abria o pacote e tirava parte dela um pedaço de frango,
ou uma fatia da carne do lombo, ou carne picada em quantidade suficiente para um hambúrguer.
A avó, que trabalhava no turno das quatro à meia-noite como telefonista de um motel a quinze quilómetros de distância, deixava-lhe uma refeição de esparguete e almôndegas
em lata, ou outra coisa que ele achava igualmente horrível. Por isso, nos dias em que conseguia surripiar alguma da carne dos clientes, chegava a casa depois do
trabalho e fazia um banquete de frango ou carne de vaca. Depois, deitava o que a avó lhe tinha deixado para o lixo e ninguém percebia nada.
A única pessoa que descobriu o que Lou andava a fazer foi Cal. Uma noite, Cal chegara no momento em que ele estava a fritar um bife que tirara da encomenda enviada
pelo talhante a um dos seus melhores clientes.
"És um imbecil!" dissera Cal. "Os bifes grelham-se, não se fritam."
Aquela noite forjou uma aliança entre os dois jovens: Cal, o filho dos bêbados da cidade, e Lou, o neto de Bebe Clauss, cuja única filha fugira de casa com Lenny
Knox e voltara à cidade dois anos depois apenas o tempo suficiente para deixar o seu filho com a mãe. Sem esse fardo na sua vida, tinha desaparecido novamente.
Apesar das suas origens, Cal tinha ido para a faculdade, ajudado pela sua inteligência e por uma queda para o sucesso. Lou saltitou de emprego em emprego, e pelo
meio cumpriu trinta dias de prisão na cadeia da cidade por furto em lojas e três anos na penitenciária estadual
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por assalto à mão armada. Depois, há quase dezasseis anos, tinha recebido um telefonema de Cal, agora conhecido por Dr. Calvin Whitehall, de Greenwich, Connecticut.
"Tenho de ir beijar os pés ao meu velho amigo", foi a maneira como Lou caracterizou a chamada a Greenwich. Cal tinha deixado perfeitamente claro que aquele encontro
se baseava unicamente no valor potencial de Lou como faz-tudo.
Lou mudou-se para Greenwich nesse mesmo dia, para um quarto vago na casa que Cal tinha comprado. A casa era muito mais pequena do que aquela em que viviam agora,
mas não restavam dúvidas de que ficava no sítio certo.
A corte que Cal fez a Jenna Graham serviu para Lou abrir os olhos. Ali estava uma beldade cheia de classe e de cair para o lado a ser perseguida por um tipo que
parecia um ex-pugilista profissional. Que diabo podia ela esperar ver nele?
No instante em que fez a pergunta a si mesmo, Lou descobriu a resposta. Poder. Poder em bruto, puro. Jenna adorava o facto de Cal ser poderoso e fascinava-a a forma
como usava esse poder. Ele podia não ter a linhagem dela e podia não ter vindo do mesmo mundo, mas sabia comportar-se em qualquer situação; em breve, o mundo dela
era a casa dele. E independentemente do que algumas pessoas da velha guarda pudessem pensar de Cal Whitehall, eram inteligentes de mais para o trair.
Os pais de Cal nunca foram convidados para visitar o filho. Quando morreram, com pouco tempo de diferença um do outro, foi Lou quem tratou de tudo e os despachou
para o crematório o mais depressa possível. Cal não era sentimentalista.
Ao longo dos anos, o valor que Lou tinha para Cal aumentou significativamente e ele tinha consciência disso. No entanto, não tinha a menor dúvida de que, se em determinada
altura isso se tornasse conveniente para Calvin Whitehall, ele, Lou Knox, seria atirado aos lobos. Por isso, foi com algum divertimento sombrio que se lembrou de
como os trabalhos que fizera para Cal eram planeados de tal forma que Cal podia lavar as mãos de qualquer envolvimento. Assim, se alguém ficava para trás a segurar
o saco, adivinhe-se quem era?
"Bem, esse jogo pode ser jogado por dois", pensou, com um sorriso matreiro.
Agora competia-lhe a ele ver se Fran Simmons ia ser apenas um aborrecimento ou se estava a tornar-se perigosa. Achou que ia ser interessante. Tal pai, tal filha?
Lou sorriu ao lembrar-se do pai de Fran, aquele imbecil ansioso por agradar, cuja mãe nunca lhe ensinara a não confiar nos Calvin
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Whitehalls deste mundo. Por isso, quando por fim aprendera a lição, era um pouco tarde de mais.
O Dr. Peter Black raramente fazia a viagem para West Redding durante o dia. Era uma viagem de cerca de quarenta minutos desde Greenwich, mesmo quando não havia muito
trânsito, mas o problema é que fazia a viagem com uma regularidade suficiente para correr o risco de se tornar um rosto demasiado conhecido nas redondezas. O seu
destino era uma remota casa de quinta, equipada com um laboratório moderníssimo no primeiro andar.
Nos registos prediais do distrito, a estrutura estava listada como uma casa particular possuída e ocupada pelo Dr. Adrian Logue, um oftalmologista reformado. De
facto, a propriedade e o laboratório pertenciam à Remington Health Management, e quando era preciso fazer compras, estas viajavam no porta-bagagens do carro de Peter
Black.
Quando parou à frente da casa da quinta, as palmas das mãos de Black estavam a transpirar. Temia a inevitável discussão que o esperava; mais, era uma discussão que
sabia que não ganharia.
Quando de lá saiu, menos de meia hora depois, levava um embrulho cujo peso não justificava a tensão que sentiu ao colocá-lo no porta-bagagens do carro e começar
a viagem de volta para casa.
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Edna Barry percebeu imediatamente que Molly tinha tido companhia na noite anterior. Embora a cozinha estivesse arrumada e o botão LAVADA estivesse aceso na máquina
de lavar-loiça, as diferenças subtis estavam à vista. O saleiro e o pimenteiro tinham ficado no aparador e não na bancada, a fruteira estava na bancada
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de cortar e não em cima da mesa, a cafeteira estava fora do armário, destapada, sobre a bancada ao lado do fogão.
A perspectiva de restaurar a ordem do costume na cozinha era agradável para Edna. "Eu gosto do meu trabalho", pensou, enquanto pendurava o casaco no armário perto
da porta. "Vou detestar ter de o deixar outra vez."
Porém, era inevitável. Quando soubera que estava prestes a ser libertada da prisão, Molly pedira aos pais que contratassem Edna para ir limpar a casa e abastecer
a cozinha. Agora que recomeçara a vir regularmente a casa de Molly, o filho começara a ser um problema. Quase nunca mencionara Molly enquanto ela estava na prisão,
mas o seu regresso tinha-lhe feito qualquer coisa, desencadeara qualquer coisa nele. Agora, não parava de falar nela e no Dr. Lasch. E, de cada vez que falava neles,
zangava-se.
"Se eu não vier cá três vezes por semana, ele não se vai lembrar tanto", raciocinou Edna enquanto amarrava um avental por cima das calças e blusa de polyester a
condizer. O avental tinha sido escolhido por si. A mãe de Molly sempre lhe tinha dado um uniforme, mas Molly dissera: "Oh, Edna, isso não é necessário."Esta manhã
também não havia sinais de Molly ter feito café, aliás, nem sequer havia sinais de que já estivesse acordada. "Vou lá acima ver como ela está", decidiu Edna. "Depois
de tudo o que passou, talvez tenha dormido até mais tarde. E ela passou por muito. Ora, desde que aqui estive na segunda-feira, Molly foi já presa novamente por
homicídio e depois saiu sob fiança. É exactamente como há seis anos. Por muito que deteste pensar nisso, talvez fique melhor se estiver presa.
"A Marta pensa que eu devia deixar de trabalhar aqui porque a Molly é perigosa", pensou Edna enquanto subia as escadas, sentindo uma vez mais a artrite nos joelhos.
"Estás contente por ela pensar assim", sussurrou uma voz dentro da sua cabeça. "A Polícia que se concentre na Molly e não pense em Wally."
"Mas Molly foi sempre tão boa para ti", sugeriu outra voz. "Podias ajudá-la, mas não o farás. Wally esteve aqui naquela noite... tu sabes isso. Talvez ele pudesse
ajudá-la a recordar-se do que aconteceu. Mas tu não podes correr esse risco. Não podes prever o que ele vai dizer."
Edna chegou ao primeiro andar quando Molly estava a sair do duche, e quando entrou no quarto com o grosso roupão turco e os cabelos enrolados numa toalha, Edna lembrou-se
da menina que Molly fora em tempos, sempre tão delicada, que dizia: "Bom dia, Sr.a Barry", na sua voz suave e baixa.
- Bom dia, Sr.a Barry.
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Com um sobressalto, Edna percebeu que não era um eco da memória; era Molly, uma mulher crescida, a falar para ela agora.
Oh, Molly, apenas por um momento, juro que estava a vê-la como uma menina de dez anos! Parece que estou a perder o juízo, não parece?
A senhora não disse Molly. Eu talvez, mas seguramente a senhora não. Lamento que tenha sido obrigada a vir à minha procura. No entanto, não sou tão preguiçosa como
pareço. Fui para a cama bastante cedo, mas só adormeci praticamente ao amanhecer.
Isso não é bom, Molly. Não pode pedir ao médico que lhe dê alguma coisa para dormir?
Há duas noites pedi e foi uma grande ajuda. Vou ver se ele pode dar-me mais comprimidos daqueles. O problema é que, no fundo, o Dr. Daniels não é adepto de medicação.
Eu tenho alguns comprimidos para dormir que o médico receitou para dar ao Wally se ele ficar inquieto. Não são muito fortes. Quer alguns para ter à mão?
Molly sentou-se ao toucador e pegou no secador de cabelo. Depois, virou-se e olhou directamente para Edna Barry.
Gostaria muito, Sr.a Barry disse, lentamente. Tem um frasco a mais que eu possa dar-lhe depois?
Oh, a menina não precisa de um frasco cheio. O frasco que tenho no armário da casa de banho deve ter cerca de quarenta.
Então, divida-os comigo, está bem? Da maneira que as coisas estão a correr, posso precisar de um por noite nas próximas semanas.
Edna não sabia se devia ou não dizer-lhe que sabia que ela tinha sido detida novamente.
Lamento muito tudo o que aconteceu, Molly. A menina sabe.
Sim, eu sei. Obrigada, Sr.a Barry. E agora não se importa de me trazer uma chávena de café? Pegou no secador e ligou-o.
Quando teve a certeza de que Edna Barry ia para o andar de baixo, Molly desligou o secador e deixou os cabelos molhados caírem-lhe no pescoço. O calor do duche tinha
desaparecido e as madeixas de cabelo deixaram-lhe a pele fria e molhada.
"Não estás a pensar a sério em tomar uma dose fatal de comprimidos, pois não?", perguntou a si mesma. Olhou para o seu rosto no espelho... parecia-lhe uma pessoa
que ela mal reconhecia. "Não é quase como estar num sítio desconhecido à procura da saída, só para o caso de ser preciso sair rapidamente?" Inclinou-se mais para
o espelho e olhou para os olhos que via ali. Depois de ter feito as perguntas, não tinha a certeza das respostas.
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Uma hora depois, Molly estava no seu escritório a analisar o conteúdo de uma das caixas que tinha trazido do sótão. "Os acusadores viram estes papéis duas vezes",
pensou. "Confiscaram-nos depois de Gary morrer, devolveram-nos após o julgamento e voltaram a examiná-los ontem. Acho que já desistiram de encontrar alguma coisa
interessante neles.
"Mas de que é que eu ando à procura?", perguntou a si mesma. "Ando à procura de alguma coisa que me faça compreender o que a Annamarie queria dizer quando afirmou
que, como médico, Gary não valia o preço que paguei por tê-lo matado. Já nem sequer me preocupo com a infidelidade dele."
Havia algumas fotografias emolduradas dentro do caixote. Tirou uma delas e observou-a com atenção. Era uma fotografia dela e Gary tirada no Baile de Caridade para
a Associação do Coração, no ano em que se tinham casado. Observou-a friamente. Lembrou-se de como a avó costumava dizer que Gary lhe fazia lembrar Tyrone Power,
a estrela de cinema por quem ela tivera uma paixoneta sessenta anos antes.
"Acho que nunca vi para além do aspecto e do encanto", pensou ela. "Sem dúvida que em determinado ponto a Annamarie viu. Mas como é que descobriu? E o que é que
descobriu?"
Às onze e meia, Fran telefonou.
Molly, gostava de ir a tua casa alguns minutos. A Sr.a Barry está aí?
Está, sim.
Óptimo. Estou aí dentro de dez minutos.
Quando chegou, Fran aproximou-se directamente de Molly e abraçou-a.
Calculo que ontem deves ter tido uma tarde encantadora.
Nunca tinha tido uma tão boa. Conseguiu sorrir.
Onde é que está a Sr.a Barry, Molly?
Na cozinha, acho eu. Ela decidiu preparar-me o almoço, embora eu lhe tenha dito que não estou com fome.
Vem comigo. Tenho de falar com ela.
O coração de Edna apertou-se quando ouviu a voz de Fran Simmons. "Por favor, ajuda-me, bom Deus", rezou. "Faz com que ela não me faça perguntas sobre Wally. Ele
não tem a culpa de ser como é."
Fran foi directa ao assunto.
Sr.a Barry, o Dr. Morrow era médico do seu filho, não era?
Sim, é verdade. O Dr. Morrow também era psiquiatra, mas era clínico geral do Wally respondeu Edna, a esforçar-se ao máximo para que a inquietação crescente não se
revelasse no seu rosto.
175
No outro dia, a sua vizinha, a Sr.a Jones, disse-me que Wally ficou muito perturbado quando o Dr. Morrow morreu.
Sim, é verdade.
Penso que na época, Wally tinha gesso no pé? perguntou Fran.
Edna Barry ficou tensa e depois assentiu rigidamente.
Desde os dedos do pé até ao joelho confirmou. Ainda o usou durante uma semana depois de terem encontrado o pobre Dr. Morrow.
"Não devia ter dito aquilo", pensou. "Ela não acusou Wally de nada."
O que eu ia perguntar, Sr.a Barry, é se a senhora ou o Wally alguma vez ouviram o Dr. Morrow a falar do Dr. Gary Lasch ou do Dr. Peter Black, ou talvez referir-se
a ambos como um par de assassinos?
Molly engasgou-se.
Não me recordo de nenhum comentário desse género disse Edna Barry, suavemente, a tensão aparente na forma como não parava de limpar as mãos ao avental. Por que é
que me está a perguntar isso?
Não me parece que se tivesse ouvido uma declaração destas a esquecesse facilmente, Sr.a Barry. Tenho a certeza de que em mim teria uma impressão duradoura. Enquanto
vinha para cá, telefonei para o Dr. Matthews, o advogado da Molly, e perguntei-lhe sobre a chave de reserva desta casa, que é guardada no jardim. De acordo com os
apontamentos dele, a senhora entregou-a à Polícia na manhã em que o Dr. Lasch foi encontrado assassinado no escritório e disse-lhes que estava na gaveta da cozinha
há muito tempo. Disse que a Molly se tinha esquecido da chave de casa um dia, tirara a chave de reserva do esconderijo e ela nunca tinha sido recolocada no lugar.
Mas isso não é verdade protestou Molly. Eu nunca me esqueci da chave de casa e sei que a chave de reserva estava no esconderijo do jardim uma semana antes de Gary
morrer. Eu estava nas traseiras e fui verificar se ela se encontrava no sítio. Por que é que a senhora diria que estava cá em casa há muito tempo por minha causa,
Sr.a Barry? Não compreendo.
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No noticiário da noite, Fran concluiu a reportagem sobre os últimos desenvolvimentos da investigação do homicídio de Annamarie Scalli com um apelo: "Segundo Bobby
Burke, o empregado de balcão que estava de serviço no restaurante Sea Lamp na noite do homicídio, um casal entrou e sentou-se a uma mesa perto da porta momentos
antes de Annamarie Scalli sair apressadamente. O advogado de Molly Lasch, Philip Matthews, apela para que esse casal se apresente e dê o seu testemunho sobre o que
possam ter observado no parque de estacionamento antes de terem entrado ou que possam ter ouvido no próprio restaurante. O número do telefone do Dr. Matthews é o
212-555-2800, ou podem telefonar para mim, nesta estação de televisão, para o número 212-555-6850."
A câmara que estava focada em Fran ficou às escuras. "Obrigado pela reportagem, Fran", disse Bert Davis, o pivot do noticiário. "A seguir: desporto com Tim Mason,
seguido pela previsão do tempo com Scott Roberts. Mas em primeiro lugar, a publicidade."
Fran soltou o microfone do casaco e tirou o auricular. Antes de sair do escritório, passou pela secretária de Tim Mason.
Posso oferecer-te um hamburguer quando terminares? perguntou.
Tim ergueu as sobrancelhas.
Estava com vontade de comer um bife, mas se é um hambúrguer que queres, então, aceito com prazer.
Não. Um bife está óptimo. Estarei no meu gabinete. Enquanto esperava por Tim, Fran reviu os acontecimentos do dia.
Primeiro tivera o encontro com o Dr. Roy Kirkwood, em seguida o telefonema para Philip Matthews e para finalizar a reacção agitada de Edna Barry durante a discussão
sobre a chave de reserva. A Sr.a Barry afirmara que tinha quase a certeza de que a chave de reserva estava na gaveta há meses, e quando Molly negara ela tinha dito:
"Molly deve estar enganada; mas não admira, ela estava tão confusa naquela altura."
Enquanto voltava para a cidade, Fran telefonou de novo a Philip e disse-lhe que estava cada vez mais convencida de que Edna Barry tinha alguma coisa para esconder,
e que devia estar relacionada com aquela chave de reserva. Porém, não restavam dúvidas de que não tinha gostado que Fran a interrogasse sobre o assunto, por isso
sugeriu que Philip talvez tivesse de a convencer a dizer a verdade.
Philip tinha prometido estudar todas as palavras das declarações de Edna Barry à Polícia e do seu testemunho no julgamento, e depois perguntara qual fora a reacção
de Molly à afirmação da Sr.a Barry.
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Fran contou-lhe que ela tinha ficado claramente surpreendida, talvez até perturbada. Depois de a Sr.a Barry ir para casa, Molly tinha dito algo do género: "Se calhar,
eu já não estava bem antes mesmo do choque de descobrir o que se passava com a Annamarie. Juraria que aquela chave estava no jardim alguns dias antes de ter escutado
o telefonema dela para Gary."
"E aposto que tens razão, Molly", disse Fran para si mesma, zangada. Tim bateu e depois espreitou para dentro do gabinete. Ela acenou-lhe.
Vamos embora disse ele. Reservei mesa no Cibos, na Segunda Avenida.
Boa escolha. Adoro!
Enquanto desciam a Quinta Avenida para a Rua Quarenta e Um, Fran ergueu os braços numa saudação aos edifícios e à azáfama em volta deles.
A minha cidade disse com um suspiro. Adoro-a. É tão bom estar de volta.
Eu também a adoro concordou Tim e também estou contente por tu estares de volta.
No restaurante, escolheram um dos compartimentos privados. Depois de o empregado de mesa lhes ter servido o vinho e se afastar para transmitir os pedidos deles,
ela disse:
Tim, se não me engano, disseste que a tua avó morreu no Hospital Lasch. Quando é que isso aconteceu?
Deixa-me pensar. Foi há pouco mais de seis anos, creio... Por que é que perguntas?
Porque quando te conheci, na semana passada, falámos sobre Gary Lasch. Não me disseste que ele cuidou da tua avó de uma forma excelente antes de ela morrer?
Pois disse. Porquê?
Porque estou a começar a ouvir de alguns quadrantes que o Dr. Lasch tinha um outro lado enquanto médico. Falei com o médico que tratou a mãe de Billy Gálio... um
Dr. Kirkwood. Ele disse-me que lutou para que ela fosse consultada por um especialista, mas não conseguiu obter aprovação da OCS para mais tratamentos; depois, ela
teve um ataque cardíaco grave e morreu antes que se pudesse fazer alguma coisa. É claro que Gary Lasch já morreu há muito tempo e, directamente, não teve nada a
ver com isto, mas o Dr. Kirkwood diz que a abordagem de pulso firme à prestação de cuidados de saúde já vem de há algum tempo. Ele tem apenas sessenta e poucos anos
e diz que se vai reformar, que não pretende dedicar-se mais à medicina. Tem
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estado ligado ao Hospital Lasch durante a maior parte da sua carreira, e foi muito peremptório ao dizer que Gary Lasch não foi nada como o pai. Disse que os problemas
que teve com a Sr.a Gálio não foram nada de novo, que pôr o bem-estar dos doentes em primeiro lugar já há muito tempo não é uma prioridade para as pessoas que dirigem
o Hospital Lasch e a Remington. Fran inclinou-se mais e baixou a voz. Ele até me disse que o Dr. Morrow, o jovem médico que morreu num assalto duas semanas antes
de Gary Lasch ser assassinado, se referiu uma vez a Lasch e ao sócio dele, o Dr. Black, como um par de assassinos.
É uma linguagem bastante forte disse Tim, partindo um pedaço de pão. No entanto, tenho de dizer que a minha experiência pessoal foi muito mais positiva. Como eu
disse, gostava de Gary Lasch e fiquei com a impressão de que a minha avó foi muitíssimo bem assistida. Mas pensei numa coincidência que talvez não te tenha referido.
Eu disse-te que a Annamarie Scalli foi uma das enfermeiras que cuidou dela?
Os olhos de Fran abriram-se muito.
Não, não me disseste isso.
Não me pareceu importante. Todas as enfermeiras foram excelentes. Lembro-me da Annamarie como uma pessoa dedicada e muito carinhosa. Quando recebemos o telefonema
a informar-nos que a minha avó tinha falecido, fomos imediatamente para o hospital, é claro. Annamarie estava sentada junto à cama dela a soluçar. Quantas enfermeiras
reagem assim, especialmente quando se trata de um paciente que conhecem há muito pouco tempo?
Não muitas concordou Fran. Não se manteriam muito tempo na profissão se se envolvessem emocionalmente com todos os seus pacientes.
Anna marie era uma rapariga muito bonita, mas também me pareceu bastante ingénua recordou Tim. Valha-me Deus, tinha pouco mais de vinte anos. Mais tarde, quando
descobri que Gary Lasch tinha um caso com ela, fiquei enojado com ele enquanto homem, mas enquanto médico não me lembro de uma única coisa nele que possa criticar.
"Nós costumávamos dizer a brincar que a minha avó estava apaixonada pelo Gary contou Tim. Ele era um tipo verdadeiramente bonito e encantador, mas também nos transmitia
a ideia de que se importava profundamente com os doentes. O tipo inspirava confiança. Recordo-me de que por vezes a minha avó dizia que ele até vinha vê-la às onze
horas da noite. Quantos médicos é que fazem isso?
Molly Lasch disse que a Annamarie Scalli declarou que, como médico e como marido, Gary Lasch não valia o preço que ela tinha pago por tê-lo matado observou Fran.
Disse que Annamarie foi bastante peremptória em relação a isso.
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Mas, Fran, esse não é o tipo de conversa que seria lógico ouvir de uma mulher na posição de Annamarie?
Talvez como mulher ela dissesse isso, sim. Mas parece-me que ela estava também a falar do ponto de vista da enfermeira. Fran fez uma pausa e abanou a cabeça. Não
sei, talvez esteja a tirar conclusões precipitadas, mas acrescentando isto ao comentário do Dr. Morrow, em que se referia a Gary Lasch e a Jack Morrow como assassinos,
não consigo deixar de pensar que tudo isto tem algum significado. Sinto que estou no bom caminho, e suspeito que uma parte imensa desta história nunca se soube.
Tu és uma jornalista de investigação, Fran. Aposto em ti para descobrires a verdade. Mal conheci Annamarie Scalli, mas fiquei grato pelo carinho que ela dispensou
à minha avó. Gostava de ver o assassino atrás das grades, e é uma tragédia se Molly Lasch foi acusada injustamente.
O empregado de mesa estava a colocar as saladas à frente deles.
Acusada injustamente pela segunda vez disse Fran, sem rodeios.
Pode muito bem ser esse o caso, mas qual vai ser o teu próximo passo?
Consegui marcar um encontro para amanhã com o Dr. Peter Lasch. Deve ser interessante. Ainda estou a tentar marcar um encontro com a minha antiga colega de escola
na Academia Cranden, Jenna Whitehall, e o marido, o poderoso Calvin Whitehall.
Pessoas muito importantes. Fran acenou afirmativamente.
Eu sei, mas são cruciais para a história, e estou determinada a chegar até eles. Suspirou. E se esquecêssemos o assunto durante algum tempo? Então, que é que achas?
Este ano os meus Yankees vão ganhar o World Series novamente?
Tim sorriu.
É claro que sim.
Desta vez vim sozinha anunciou Jenna, quando telefonou para Molly do carro. Deixa-me entrar apenas por alguns minutos.
És um amor, Jen, mas acabei de implorar ao Dr. Daniels que se fosse embora... e deu trabalho. Sei que são apenas nove horas, mas
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os meus olhos estão a fechar-se. A verdade é que a única coisa que quero é ir para a cama.
Quinze minutos... não te peço mais nada.
Oh, Jen disse Molly com um suspiro. Venceste. Entra. Mas tem cuidado. Esta tarde havia alguns jornalistas por aqui e aposto que Cal não vai ficar nada satisfeito
se vir a mulher e a famosa Molly Lasch, na mesma fotografia, na primeira página dos jornais sensacionalistas.
Abriu a porta cautelosamente e Jenna esgueirou-se para o interior da casa.
Oh, Molly disse Jenna enquanto a abraçava. Lamento muito que estejas a passar por isto.
Tu és a minha única amiga disse Molly, e depois acrescentou rapidamente: Não, isso não é verdade. Fran Simmons está do meu lado.
Fran telefonou para marcar um encontro, mas ainda não combinámos a data. Cal prometeu-me que falava com ela, e soube que ela já marcou com Peter para se encontrar
com ele amanhã.
Eu sei que ela disse que queria conversar com todos vocês. Quero que se sintam à vontade para lhe dizerem o que quiserem. Acredito que ela me não vai fazer mal.
Foram para a saleta íntima, onde Molly tinha a lareira acesa.
Já decidi uma coisa disse ela. Nesta casa tão grande, vivo em três aposentos: a cozinha, o meu quarto e esta sala. Quando... se... tudo isto terminar, vou comprar
uma casa mais pequena.
Acho que é uma boa ideia disse Jenna, acenando em sinal de concordância.
Claro que, como sabes, o Estado do Connecticut tem outros planos para mim, e se conseguirem o que querem, eu vou ficar numa cela muito pequena.
Molly! protestou Jenna.
Desculpa. Molly recostou-se para trás e observou a amiga. Estás com um aspecto fantástico. Fato preto básico... Escada, não é? Saltos altos. Jóias discretas mas
fabulosas. Onde é que estiveste ou onde é que vais?
Um almoço de negócios. Assuntos da empresa. Apanhei um comboio tardio para casa. De manhã deixei o carro na estação e esta noite vim directamente para cá. Tenho-me
sentido muito mal o dia inteiro. Estou terrivelmente preocupada contigo, Molly.
Moly tentou esboçar um sorriso.
Eu também estou terrivelmente preocupada comigo. Estavam sentadas lado a lado no sofá, separadas pela largura de uma almofada.
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Jen, o teu marido está convencido de que eu assassinei o Gary, não está?
Sim disse Jenna, calmamente.
E também está convencido de que esfaqueei a Annamarie até à morte.
Jenna não respondeu.
Eu sei que está continuou Molly. Tu sabes o que significas para mim, mas, Jen, faz-me um favor... nunca mais tragas Cal cá a casa. O único lugar a que posso chamar
santuário é esta casa. Não preciso de inimigos nela.
Molly olhou de lado para a amiga.
Oh, Jen, não comeces a chorar ao pé de mim. Não tem nada a ver connosco. Nós ainda somos as meninas da Academia Cranden, não somos?
Podes apostar que somos disse Jenna, enquanto limpava impacientemente os olhos com as costas da mão. Mas, Molly, Cal não é o inimigo. Ele quer arranjar outros advogados,
os melhores peritos em direito criminal, para trabalharem com Philip na preparação da tua defesa por insanidade.
Defesa por insanidade?
Molly exclamou Jenna, não percebes que uma condenação por homicídio poderia significar prisão perpétua para ti? Especialmente, porque já tens uma condenação anterior?
Não podemos deixar que isso aconteça.
Não, não podemos disse Molly, e levantou-se. Vem ao escritório de Gary comigo, Jen.
A luz do escritório estava apagada. Molly acendeu-a e depois voltou a apagá-la deliberadamente.
A noite passada, depois de todos vocês se terem ido embora, eu fui para cima, para a cama, mas não conseguia adormecer. Aproximadamente à meia-noite, vim aqui...
E sabes uma coisa? Quando acendi a luz, exactamente como fiz agora, lembrei-me de ter feito a mesma coisa quando voltei do Cape naquela noite de domingo. Agora,
tenho a certeza de que a luz estava apagada quando eu cheguei aqui, Jenna. Podia jurar isso!
Que é que isso quer dizer, Molly?
Pensa nisso. Gary estava sentado à secretária. Havia papéis em cima dela, por isso, ele devia estar a trabalhar. Era de noite. Ele tinha de ter a luz acesa. Se tenho
razão ao lembrar-me de que vim para casa, abri esta porta e acendi a luz, isso significa que quem quer que matou Gary a apagou. Não percebes?
Molly murmurou Jenna, num tom de voz calmo mas de protesto.
Ontem eu disse ao Dr. Daniels que me lembrava de algo naquela noite sobre uma fechadura e uma tranca.
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Molly voltou-se para a amiga e viu a descrença estampada nos olhos dela. Os seus ombros caíram.
Hoje, a Sr.a Barry disse que a chave de reserva que escondíamos no jardim estava em casa há várias semanas. Disse que estava cá dentro porque um dia me esqueci da
chave. Mas eu também não me recordo disso.
Molly, deixa o Cal arranjar advogados para ajudarem Philip a preparar a tua defesa implorou Jenna. Hoje ele falou com dois dos melhores. São ambos muito experientes
na apresentação de defesas psiquiátricas, e pensamos realmente que poderiam ajudar-te. Viu a expressão de perturbação no rosto da amiga. Pelo menos, pensa no assunto.
Talvez seja por isso que estava a sonhar com uma porta e uma tranca disse Moly, sombriamente, ignorando a sugestão de Jenna. Talvez eu tenha uma escolha: uma cela
de prisão trancada ou um quarto trancado num manicómio.
Vá lá, Molly disse Jenna, levantando-se. Eu vou beber uma chávena de chá contigo e depois faço-te companhia até te deitares. Dizes que não tens dormido muito. O
Dr. Daniels não te deu alguma coisa para te ajudar a dormir?
Deu-me um comprimido, no outro dia, e esta tarde a Sr.a Barry trouxe uns comprimidos que o médico receitou a Wally.
Tu não devias tomar medicamentos que foram receitados para outra pessoa!
Tinham o rótulo. Sei que não faz mal. Não te esqueças de que fui mulher de um médico, e fui aprendendo algumas coisas.
Quando Jenna saiu alguns minutos depois, Molly trancou a porta principal e pisou o ferrolho do chão. O som do ferrolho algo entre um clique e um estalo fê-la parar.
Repetiu deliberadamente a abertura e o fecho do ferrolho, escutando cuidadosamente de cada vez, com vontade de que o seu subconsciente lhe desse o motivo porque
aquele som da casa era de repente tão arrepiante.
Na terça-feira de manhã, o Dr. Peter Black começou o dia indo visitar Tasha. "De acordo com todos os padrões médicos, nesta altura, já devia estar morta", pensou
ansiosamente enquanto descia o corredor para a suite.
"Talvez tivesse sido um erro utilizá-la para a experiência", pensou.
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Normalmente, esta experiência produziria resultados clínicos úteis e ocasionalmente fascinantes, mas estava a ser difícil de concretizar, principalmente devido à
mãe de Tasha. Barbara Colbert estava demasiado atenta e era muito bem relacionada. Havia bastantes pacientes na residência que eram candidatos mais prováveis para
aquela investigação extraordinária, pacientes cujos familiares nunca suspeitariam de nada fora do comum e que receberiam o mais leve sinal de consciência no leito
de morte como um presente do céu.
"Eu nunca devia ter mencionado ao Dr. Logue que o Harvey Magim pareceu reconhecer a mulher no fim", pensou Black, penitenciando-se. Mas agora era tarde de mais para
parar. Tinha de dar o passo seguinte. Isso ficara bastante claro. Aquele último passo estava contido no embrulho que trouxera do laboratório em West Redding, e estava
agora bem guardado no bolso do seu colete. Ao entrar no quarto, encontrou a enfermeira de serviço ao lado da cabeceira de Tasha. "Isto é bom", pensou. Uma enfermeira
ensonada, era precisamente daquilo que precisava. Deu-lhe uma desculpa para a afastar do quarto.
Sugiro que vá beber uma chávena de café disse ele, severamente, acordando-a com brusquidão. Traga-o para aqui. Eu espero. Onde é que está a Sr.a Colbert?
Está a dormir no sofá sussurrou a enfermeira. Pobre senhora, acabou por adormecer. Os filhos foram-se embora. Voltam novamente esta noite.
Black acenou afirmativamente e voltou-se para a paciente enquanto a enfermeira saía. O estado de Tasha mantinha-se estacionário desde a noite anterior. Sabia que
tinha estacionado graças à injecção que ele lhe dera quando ela começara a apagar-se.
Tirou o pequeno embrulho do bolso. Parecia invulgarmente pesado para o tamanho. A injecção da noite anterior tivera os resultados esperados, mas a que se preparava
para administrar era completamente imprevisível.
"Logue está fora de controlo", pensou Black.
Pegou no braço flácido de Tasha e beliscou-o para encontrar uma veia adequada. Espetou a seringa e empurrou lentamente o êmbolo enquanto observava o líquido a desaparecer
no corpo dela.
Olhou para o relógio. Eram oito horas. Dentro de aproximadamente doze horas estaria tudo terminado, de uma maneira ou de outra. Entretanto, tinha diante de si a
perspectiva nada agradável do encontro com aquela jornalista bisbilhoteira, Fran Simmons.
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Após uma noite inquieta, Fran foi para o escritório na quinta-feira de manhã cedo para fazer algum trabalho de preparação para a entrevista do meio-dia com o Dr.
Peter Black. Tinha pedido ao Departamento de Pesquisa que deixassem em cima da sua secretária todas as informações biográficas que conseguissem encontrar, e ficou
satisfeita ao ver que já lá estavam.
Leu-as rapidamente e constatou que eram escassas e nem remotamente impressionantes. Nascera em Denver, de pais da classe operária; frequentara escolas locais; tivera
notas medíocres a más na Faculdade de Medicina; fizera o estágio em Chicago, num hospital insignificante, e depois integrara os quadros desse mesmo hospital. "Não
tem um grande currículo", pensou.
"E isso leva uma pessoa a interrogar-se sobre a razão por que Gary Lasch o procurou", pensou Fran.
Ao meio-dia em ponto foi levada para o escritório do Dr. Black. Ficou imediatamente impressionada com a forma como o aposento estava mobilado. Achou que tinha uma
grandiosidade mais adequada para o executivo de uma grande empresa do que para um médico, mesmo que esse médico fosse director geral de um hospital e de uma organização
de cuidados de saúde.
Não sabia o que tinha esperado de Peter Black. "Talvez tivesse antecipado algo mais parecido com a descrição que me fizeram do Gary Lasch", pensou, enquanto lhe
apertava a mão e o seguia para uma zona de estar diante de uma grande janela panorâmica. Um bonito sofá de couro, duas poltronas a condizer e uma mesa de café criavam
uma confortável atmosfera de sala de estar.
De acordo com todos os relatos, Gary Lasch tinha sido um homem bonito e com uma personalidade arrebatadora. A compleição de Peter Black era pálida, e Fran ficou
surpreendida ao constatar que ele parecia nervosíssimo. Gotas de transpiração brilhavam-lhe na testa e no lábio superior. Havia alguma rigidez nele, especialmente
na forma como se sentava na ponta da cadeira. Era como se estivesse de guarda contra um possível ataque de surpresa. Embora estivesse a esforçar-se por ser cortês,
a tensão na sua voz era inegável.
Ofereceu café. Quando Fran recusou, ele disse:
Menina Simmons, hoje tenho um dia particularmente cheio e presumo que a senhora também, por isso, sugiro que vamos directos ao assunto. Acedi a recebê-la porque
queria realçar nos termos mais
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veementes que considero um ultraje que, na sua busca de audiências, esteja a explorar Molly Lasch, uma mulher que, sem dúvida, está mentalmente doente.
Fran fitou-o sem um piscar de olhos.
Pensei que estava a ajudar Molly não a explorá-la, doutor. Posso perguntar se o seu diagnóstico de doença mental se baseia numa avaliação médica concreta ou se é
meramente a precipitação de julgamento que parece ser a reacção típica de todos os amigos dela? |
Menina Simmons, é claro que não temos nada a dizer um ao outro. Peter Black levantou-se. Se me dá licença... |
Fran permaneceu sentada.
Não, infelizmente não dou. Dr. Black, o senhor sabe que eu vim | até aqui desde Manhattan porque tenho algumas perguntas para lhe fazer. O facto de ter permitido
que eu viesse foi, na minha opinião, uma aceitação tácita desse entendimento. Acho que me deve pelo menos dez minutos do seu tempo.
A resmungar, Peter Black voltou a afundar-se na sua poltrona. Dez minutos, Menina Simmons. Nem mais um segundo.
Obrigada. Molly contou-me que a visitou no sábado à noite com ^ os Whitehalls para lhe pedirem que adiasse a minha investigação í devido à fusão iminente com outras
organizações de prestação de cuidados de saúde. É verdade? Isso é verdade. Eu também estava a pensar no bem-estar de Molly. Expliquei-lhe isso. Dr. Black, o senhor
conhecia o Dr. Jack Morrow, não conhecia? "
Certamente. Era um dos nossos médicos. |
;!
Vocês eram amigos? |
Conhecidos. Diria que éramos conhecidos. Respeitávamo-nos ^ mutuamente. Mas se nos relacionávamos a nível social? Não. |
Discutiu com ele pouco antes de ele morrer? Não, não discuti. Sei que trocou algumas palavras com o meu | colega, o Dr. Lasch. Creio que foi por causa da recusa
de pagamento de um procedimento que o Dr. Morrow tinha recomendado para um dos seus pacientes.
Sabia que ele se referiu a si e ao Dr. Lasch como "um par de assassinos"?
Claro que não sabia, mas não me surpreende. Jack era um homem impetuoso e excitava-se com facilidade. \
"Ele está assustado!", pensou Fran, enquanto observava Peter Black. "Está assustado e está a mentir."
Doutor, na época sabia que Gary Lasch estava a ter um caso com a Annamarie Scalli?
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Não sabia. Fiquei chocado quando Gary nos contou.
Isso aconteceu apenas umas horas antes de ele morrer disse Fran. Não é verdade?
Sim, é verdade. Tinha sido óbvio durante a semana inteira que Gary andava perturbado, e, naquele domingo, Cal Whitehall e eu fomos visitá-lo. Foi quando soubemos.
Peter Black olhou para o relógio e inclinou-se quase imperceptivelmente para a frente.
"Está pronto para me pôr na rua", pensou Fran. "Mas antes eu tenho de conseguir fazer-lhe mais algumas perguntas."
Doutor, Gary Lasch era seu amigo íntimo, não era?
Muito íntimo. Conhecemo-nos na Faculdade de Medicina.
Encontraram-se regularmente depois de terminarem a faculdade?
Nem por isso. Eu fiquei a trabalhar em Chicago depois de terminar o curso. Gary veio para cá logo que concluiu o estágio e ficou a trabalhar com o pai. Levantou-se.
Menina Simmons, tenho mesmo de insistir em voltar ao trabalho. Virou-se e dirigiu-se para a sua secretária.
Fran seguiu-o.
Uma última pergunta, doutor. Pediu ao Dr. Lasch que o trouxesse para cá?
Gary mandou-me chamar depois de o pai falecer.
Doutor, com o devido respeito, ele convidou-o para vir para cá como sócio igualitário da instituição que o pai dele fundara. Havia uma série de médicos excelentes
aqui na área de Greenwich que poderiam seguramente ter sido convidados para o projecto, mas ele escolheu-o a si, embora o senhor apenas tivesse exercido as funções
de clínico residente de um hospital bastante insignificante de Chicago. Que é que o tornava tão especial?
Peter Black girou sobre os calcanhares para olhar para Fran.
Ponha-se na rua, Menina Simmons! rosnou. Tem uma lata extraordinária para chegar aqui e fazer insinuações difamatórias, quando metade das pessoas desta cidade foram
vítimas da gatunagem do seu pai.
Fran pestanejou.
Touché! disse ela. No entanto, Dr. Black, não pretendo deixar de procurar respostas para as minhas interrogações. E o senhor não está a dar-me nenhuma, pois não?
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Na quinta-feira de manhã, em Buffalo, Nova Iorque, após uma missa fúnebre privada, os restos mortais de Annamarie Scalli foram discretamente a enterrar na sepultura
da família. Os pormenores da cerimónia não foram tornados públicos. Não tinha havido velório. A irmã, Lucille Scalli Bonaventure, acompanhada pelo marido e por dois
filhos crescidos, foram as únicas pessoas presentes na missa e no enterro privados.
A falta de publicidade tinha sido uma decisão tomada e decretada por uma sombriamente decidida Lucy. Dezasseis anos mais velha do que Annamarie, sempre se referira
à irmã mais nova como a sua primeira filha. Com um rosto agradável mas sem grande encanto, Lucy tinha adorado aquela linda pequenina que crescia para ser tão inteligente
como ela era simpática.
À medida que Annamarie crescia, Lucy e a mãe falavam frequentemente sobre as escolhas dela em termos de namorados e as suas possíveis escolhas de carreira. Aprovaram
de todo o coração quando ela escolheu enfermagem. Era uma carreira completamente meritória e ela teria muitas hipóteses de vir a casar com um médico. Quem não quereria
casar com uma rapariga como Annamarie?, decidiram.
Quando aceitou o emprego no Hospital Lasch, no Connecticut, elas tinham ficado desapontadas, no começo, por ela ir para tão longe de casa, mas quando levou o Dr.
Jack Morrow, duas vezes a Buffalo, para uma visita de fim-de-semana à mãe, parecera que todos os sonhos dela para Annamarie se estavam a tornar realidade.
Sentada na primeira fila de bancos da capela durante a curta cerimónia, recordou aqueles tempos felizes. Recordou como Jack Morrow brincava com a mãe, dizendo-lhe
que mesmo que Annamarie não soubesse cozinhar como ela, não se importava de a aturar. Recordou especialmente a noite em que ele se tinha queixado: "Mamã, como é
que vou fazer aquela sua filha apaixonar-se por mim?"
"Ela estava apaixonada por ele", pensou Lucy enquanto lágrimas escaldantes lhe queimavam as faces, "até aquele odioso Gary Lasch decidir ir atrás dela. Ela não devia
estar deitada naquele caixão", pensou Lucy, zangada. "Devia ter casado com o Dr. Jack nestes últimos sete anos. Podia ter sido mãe e enfermeira... Ele não teria
querido que ela desistisse da sua profissão. A enfermagem estava-lhe tão enraizada na alma como ser médico estava na dele."
Lucy voltou-se e olhou angustiada para o caixão coberto com o pano branco que simbolizava o baptismo de Annamarie. "Sofreste tanto por causa disso... aquele maldito
Gary Lasch", pensou. "Depois
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de te ter dado a volta à cabeça, tentaste dizer-me que não estavas preparada para casar com Jack. Mas não era verdade. Estavas pronta. Só tinhas saído do teu caminho.
Annamarie. Eras uma criança. Ele sabia o que estava a fazer."
Que a alma dela e as almas de todos os fiéis que partiram...
Lucy quase não ouviu a voz do monsenhor quando ele benzeu o caixão da irmã. O seu desgosto e a sua ira eram demasiado grandes. "Annamarie, vê o que os homens te
fizeram", pensou Lucy. "Ele arruinou a tua vida de todas as maneiras. Até desististe da enfermagem de hospital que em tempos era a única coisa que querias fazer.
Não falavas no assunto, mas eu sabia que nunca te perdoaste por alguma coisa que aconteceu naquele hospital. O que foi?"
"E o Dr. Jack. Que dizer dele? A pobre mãe estava tão doida com ele, tão impressionada. Nunca lhe chamou Jack. Sempre Dr. Jack. Tu admitiste que nunca acreditaste
que ele foi morto por um toxicodependente."
"Annamarie, por que é que tiveste tanto medo durante todos estes anos? Mesmo quando Molly Lasch estava na prisão tu tiveste medo?"
Irmãzinha... irmãzinha.
Lucy apercebeu-se de soluços fortes e sentidos que enchiam a capela e soube que vinham de si mesma. O marido acariciou-lhe a mão, mas ela afastou-o. Naquele momento,
a única pessoa no universo a quem se sentia ligada era a Annamarie. O único consolo que teve enquanto o caixão era levado pela nave da capela foi que talvez num
mundo diferente a irmã e Jack Morrow tivessem uma segunda oportunidade para serem felizes.
Após o enterro, o filho e a filha de Lucy escapuliram-se para os seus empregos e o marido voltou para o supermercado onde era gerente.
Lucy foi para casa e começou a mexer na cómoda que pertencera a Annamarie quando ela estava a crescer. Estava guardada no quarto onde ela ficava sempre que vinha
a Buffalo fazer uma visita.
As três gavetas de cima continham roupa interior, meias e camisolas, que ficavam ali para que Annamarie pudesse vesti-las quando vinha passar um fim-de-semana.
A gaveta de baixo estava cheia de fotografias com e sem moldura, álbuns de família, envelopes cheios de instantâneos, algumas cartas e postais.
Foi quando estava a ver aquelas fotografias, com lágrimas a embotarem-lhe a visão e a queimarem-lhe os olhos, que Lucy recebeu um telefonema de Fran Simmons.
Eu sei quem a senhora é atirou Lucy, a voz carregada de
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uma emoção zangada. É a jornalista que quer revolver aquele assunto sujo outra vez. Bem, deixe-me em paz e deixe a minha irmã descansar em paz.
A falar de Manhattan, Fran disse:
Lamento muito a sua perda, mas, tenho de a avisar... a Annamarie não vai descansar em paz se o caso de Molly Lasch for a julgamento. O advogado de Molly não terá
outra hipótese a não ser retratar a Annamarie nos piores termos possíveis.
Isso não é justo! gemeu Lucy. Ela não era nenhuma destruidora de lares. Não passava de uma menina quando conheceu Gary Lasch.
Molly também disse Fran. Quanto mais oiço, mais pena tenho das duas. Sr.a Bonaventure, eu vou de avião para Buffalo amanhã de manhã, e gostaria de me encontrar com
a senhora. Por favor, confie em mim. Eu estou apenas a tentar saber a verdade sobre o que aconteceu, não apenas na noite em que a Annamarie morreu, mas há seis ou
mais anos no hospital onde ela trabalhava. Também quero saber por que é que a Annamarie estava tão assustada. Como deve saber, ela estava assustada.
Sim, eu sei. Aconteceu alguma coisa no hospital não muito antes de o Gary Lasch morrer disse Lucy, tristemente. Eu vou para Yonkers amanhã, para esvaziar o apartamento
da Annamarie. Não precisa de vir. Eu encontro-me consigo lá, Menina Simmons.
Na quinta-feira à noite, Edna Barry telefonou a Molly e pediu se podia passar por lá para vê-la durante apenas alguns minutos.
Certamente, Sr.a Barry disse Molly, com um tom intencionalmente descontraído. Edna Barry tinha sido taxativa em relação à chave de reserva, e não apenas isso, tinha
chegado a ser hostil na sua insistência de que Molly não se lembrava do que tinha acontecido. "Será que quer pedir desculpas?", interrogou-se Molly, enquanto recomeçava
a estudar as pilhas de material que tinha estendido no chão do escritório.
Gary era meticulosamente organizado e preciso em tudo o que fazia. Agora, graças à Polícia, os ficheiros pessoais e materiais de referência médica estavam espalhados
e misturados, pois tinham sido separados e arrumados ao acaso. "Que é que isso importa?", pensou ela. "O que eu tenho mais é tempo."
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Já tinha começado a pôr de lado uma pilha de fotografias que planeava mandar para a mãe dele. "Nenhuma onde eu apareço, é claro", pensou amargamente, "apenas as
do Gary com diversos VIP."
"Eu nunca fui muito íntima da Sr.a Lasch", pensou, "e não a culpo por me odiar. Tenho a certeza de que odiaria a mulher que acreditasse ter matado o meu único filho.
Ouvir falar na morte de Annamarie deve ter trazido de volta todas as recordações, e há grandes probabilidades de os jornalistas andarem também a tentar falar com
ela."
Os seus pensamentos passaram momentaneamente para Annamarie e para a conversa que tinham tido. "Quem terá adoptado o filho de Gary?", perguntou a si mesma. "Eu fiquei
tão desesperadamente magoada quando descobri que a Annamarie estava grávida. Odiei-a e senti inveja dela. Mas, mesmo sabendo o que sei sobre a forma como Gary me
enganou, lamento o bebé que perdi."
"Talvez um dia tenha outra oportunidade", disse a si mesma.
Molly estava sentada de pernas cruzadas no chão quando registou aquele último pensamento. Fez uma pausa, quase chocada com a ideia de que talvez um dia uma vida
diferente se abrisse para ela. "Que piada", disse para si mesma, a abanar a cabeça. "Até a Jenna, a minha melhor amiga, deixou claro que pensa que as minhas únicas
opções são uma cela de prisão ou um manicómio. Como é que eu posso sequer imaginar que este pesadelo vai acabar?"
Mas, mesmo assim, tinha aquela esperança e sabia porquê. Era porque estava a começar a desbloquear fragmentos de memória; momentos do passado, que estavam profundamente
enterrados no seu subconsciente, começavam a vir à superfície. "A noite passada, quando estava a fechar a porta, aconteceu alguma coisa", pensou ela, recordando
a sensação estranha que a tinha invadido. "Não sei o que foi, mas aconteceu."
Começou a separar as revistas e jornais médicos e científicos que se lembrava que Gary mantinha em cuidadosa ordem cronológica nas estantes. As publicações eram
variadas, mas, obviamente, Gary tinha tido um motivo para as guardar. Uma olhadela para o interior de algumas mostrou que em virtualmente quase todas elas ele tinha
procurado apenas um artigo no índice. "Provavelmente, podem ser todas deitadas fora",decidiuMolly,"mas,porcuriosidade, vou dar-lhes pelo menos uma espreitadela depois
de as organizar. Vai ser interessante ver o que Gary achou suficientemente interessante para guardar e referenciar."
A campainha da porta da cozinha tocou e depois ouviu a Sr.a Barry chamar.
Molly, sou eu.
Estou no escritório disse ela, enquanto continuava a arrumar
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as revistas; e depois ficou a escutar os passos que percorriam o corredor. Ao ouvi-los, lembrou-se de quantas vezes tinha pensado que a Sr.a Barry tinha um andar
pesado. Nunca usava outra coisa a não ser calçado ortopédico de solas de borracha, que sempre fazia um som firme no chão ao mesmo tempo que chiava.
Desculpe, Molly. Edna Barry mal tinha entrado no aposento quando começou a falar.
Molly ergueu os olhos e percebeu imediatamente que a Sr.a Barry não estava ali para pedir desculpa. A expressão dela era determinada, a boca estava presa numa linha
firme. Estava a baloiçar a chave de casa na mão.
Sei que não é uma coisa bonita ao fim de todos estes anos, mas não posso trabalhar mais para si. E preciso de parar imediatamente.
Assombrada, Molly tomou balanço e levantou-se. ^
Sr.a Barry, a senhora não precisa de se demitir por causa daquela chave. Ambas pensamos que estamos certas em relação a eu a ter trazido ou não do jardim, mas tenho
a certeza de que existe uma razão plausível, e estou confiante de que a Fran Simmons vai descobri-la. Tem de compreender por que é que este ponto é tão importante
para mim. Se mais alguém usou aquela chave para entrar em casa, então, foi essa pessoa e não eu que a deixou na gaveta. Suponha que alguém que conhecia o esconderijo
da chave no jardim das traseiras veio cá naquele domingo à noite?
Acho que ninguém veio cá naquela noite disse Edna Barry, num tom de voz gélido. E não vou desistir por causa da chave. Lamento dizer isto, Molly, mas tenho medo
de trabalhar para si.
Medo! Assombrada, Molly olhou para a empregada. Medo de quê?
Edna Barry desviou o olhar.
Não tem... medo... de mim!?... Oh, santo Deus. Chocada, Molly estendeu a mão. Eu fico com a chave, Sr.a Barry. Por favor, saia. Agora!
Tem de compreender, Molly. A culpa não é sua, mas você matou aquelas duas pessoas.
- Saia, Sr.a Barry!
Arranje ajuda, Molly. Por favor, arranje ajuda.
Com algo entre um gemido e um soluço, Edna Barry voltou-se e saiu rapidamente. Molly esperou até ver o carro da mulher sair do caminho de acesso e entrar na estrada
antes de cair de joelhos e enterrar o rosto nas mãos.
Enquanto se embalava para trás e para a frente, sons baixos de choro escaparam de dentro de si.
"Ela conhece-me desde que eu era bebé, e ela acredita que eu sou
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uma assassina. Que hipótese é que eu tenho?", perguntou a si mesma. "Que hipótese é que eu tenho?"
A algumas ruas de distância, enquanto esperava que o sinal mudasse, uma perturbada Edna Barry lembrou-se vezes sem conta de que não tinha escolha a não ser dar essa
razão a Molly para se despedir. Fortalecia a sua história sobre a chave de reserva e impedia Fran Simmons de ficar demasiado curiosa em relação a Wally. "Desculpe,
Molly", pensou Edna, recordando a dor que vira nos olhos dela, "mas tem de compreender, o sangue é mais espesso do que a água."
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Entre garfadas do almoço que a empregada lhe tinha servido numa bandeja no escritório, Calvin Whitehall rosnou ordens para Lou Knox. Tinha estado de mau humor toda
a manhã e Lou suspeitava que, em parte, isso se devia ao facto de a situação de Fran Simmons começar a perturbá-lo. Lou sabia que ela não parava de telefonar insistentemente
para marcar uma entrevista e que se recusava a deixar-se enganar pelas vagas promessas de Cal de tentar combinar alguma coisa. Pela conversa que tinha escutado entre
Jenna e Cal, Lou também sabia que Simmons combinara um encontro com Peter Black ao meio-dia.
Quando o telefone privado tocou ao meio-dia e meia hora, Lou teve o pressentimento de que seria Black a ligar para relatar o encontro. Os seus instintos estavam
correctos, e o que quer que Black tinha para dizer deixou Cal enraivecido.
Que é que lhe disseste quando ela perguntou por que é que Gary te tinha convidado? Se ela farejar isso... Afinal de contas, por que é que aceitaste falar com ela?
Sabes que não podes fazer nada a não ser magoar-te. Não é preciso ter cérebro para perceber isso.
Quando Cal atirou com o telefone, parecia à beira de uma apoplexia. O aparelho tocou quase imediatamente, e o seu tom ríspido suavizou-se de súbito quando percebeu
quem é que estava a ligar.
Sim, doutor, por acaso falei com o Peter há alguns momentos... Não, ele não me disse nada de especial. Devia ter dito?
Lou sabia que a pessoa que estava ao telefone tinha de ser Adrian Logue, o oftalmologista, ou o que quer que afirmava ser, que vivia na quinta em West Redding. Por
um motivo que Lou não compreendia,
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tanto Whitehall como Black e antes disso Gary Lasch tinham sempre tratado Logue com luvas de pelica. Ao longo dos anos, Lou levara Cal algumas vezes até à casa da
quinta. No entanto, ele nunca se demorava muito, e Lou tinha esperado sempre no carro.
Só vira Logue de perto uma ou duas vezes um fulano magricela, de olhar suave e cabelos grisalhos, que já devia ter mais de setenta anos. A observar o patrão, Lou
percebeu facilmente que o que quer que o doutor estava a dizer a Cal estava a deixá-lo descontrolado.
Era sempre mau sinal quando Cal ficava frio ao invés de explodir. Enquanto Lou observava, o rosto de Cal transformou-se numa máscara tensa e gelada, e os seus olhos
assumiram a expressão velada e semicerrada que fez Lou pensar num tigre preparado para saltar.
Quando falou, a voz de Cal soou controlada mas temível na sua confiança e autoridade. Doutor, tenho todo o respeito por si, mas o senhor não tinha direito absolutamente
nenhum de insistir que Peter Black continuasse este procedimento, e ele não tinha o direito de satisfazer o seu desejo. Não consigo lembrar-me de nada mais desnecessariamente
arriscado, especialmente nesta altura. Em circunstância alguma poderá estar presente quando a reacção se desencadear. Como sempre, terá de se contentar com a gravação
de vídeo.
Lou não conseguiu ouvir o que o Dr. Logue estava a dizer, mas percebeu que o tom de voz dele estava a aumentar. Cal interrompeu-o.
Doutor, garanto que terá a gravação esta noite. Desligou o telefone abruptamente e olhou para Lou de uma forma que o fez perceber que estava metido num grande sarilho.
Acredito que te dei a entender que a Fran Simmons era um problema disse ele. Chegou o momento de resolveres esse problema.
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Logo que Fran deixou o gabinete de Peter Black, fez um telefonema para Philip Matthews. Ele estava no escritório e, pelo seu tom de voz, ela percebeu que estava
profundamente preocupado com alguma coisa.
Onde é que está, Fran? perguntou ele.
Em Greenwich. Daqui a pouco vou para Nova Iorque.
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Há alguma hipótese de vir ao meu escritório esta tarde, por volta das três horas? Infelizmente, as coisas estão a piorar para Molly.
Estarei lá disse Fran, e depois premiu o botão de desligar no telefone do carro. Estava a aproximar-se de um cruzamento e travou quando o semáforo mudou. "Esquerda
ou direita?", perguntou a si mesma. Queria parar no Greenwich Time e tentar apanhar Joe Hutnik.
Mas agora um desejo poderoso estava a pressioná-la para passar pela casa onde ela e os pais tinham vivido durante aqueles quatro anos. A referência trocista que
Peter Black fizera ao seu pai magoara-a profundamente. Todavia, percebeu que a dor não era por si mesma mas pelo pai. Queria voltar a ver a casa. Era o último lugar
onde passara tempo com ele.
"Vamos a isso", decidiu. Três quarteirões mais à frente virou o carro para uma rua ladeada de árvores que lhe pareceu imediatamente muito familiar. Tinham vivido
a meio do quarteirão, numa casa estilo Tudor, em tijolo e estuque. Tinha planeado simplesmente passar por lá de carro, mas em vez disso estacionou no passeio do
outro lado da rua e ficou a contemplá-la com os olhos rasos de lágrimas.
Era uma casa encantadora, com janelas de vitrais que brilhavam ao sol. "Parece praticamente na mesma", pensou, enquanto visualizava a comprida sala de estar de tectos
altos com uma bonita lareira de mármore irlandês. Lembrou-se de que a biblioteca era pequena. O pai costumava dizer a brincar que tinha sido construída para albergar
dez livros, mas ela achava que era um esconderijo fantástico.
Ficou surpreendida ao constatar a quantidade de boas recordações que lhe vinham à ideia. "Se ao menos o pai tivesse aguentado as consequências", pensou. "Mesmo que
tivesse ido para a prisão, já teria sido libertado há anos e poderia recomeçar noutro lugar qualquer."
Não tinha de ter acontecido era isso que sempre a atormentara e à mãe. Tinham percebido alguma coisa nele naquele último dia? Teriam podido evitar a tragédia?
"Se ao menos ele tivesse falado connosco", pensou Fran. "Se ao menos ele tivesse dito alguma coisa!"
"E para onde é que foi o dinheiro?", perguntou a si mesma. "Por que é que não houve vestígios dele ou, pelo menos, um sinal de um investimento que não resultara?
Um dia vou descobrir a resposta", jurou, enquanto ligava o carro.
Olhou para o relógio. Era uma e vinte. O mais certo era que Joe Hutnik estivesse a almoçar, mas decidiu passar pelo Time, pois podia haver uma hipótese de ele estar
lá.
De facto, Joe estava sentado à sua secretária e garantiu veementemente que Fran não estava a interromper nada; para além do mais, queria conversar com ela.
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Muita água correu por debaixo da ponte desde a semana passada disse ele bruscamente enquanto lhe apontava uma cadeira e fechava a porta.
Eu diria o mesmo concordou Fran.
A matéria-prima para o seu programa está a expandir-se.
Joe, Molly é inocente dos dois crimes. Eu sei. Sinto. As sobrancelhas de Joe uniram-se.
Raciocine comigo, Fran. Está a brincar, certo? Porque, se não estiver, então, está a enganar-se a si mesma.
Nem uma coisa nem outra, Joe. Estou convencida de que ela não matou nem o marido nem a Scalli. Você tem o dedo no pulso da cidade. Que é que ouve?
Muito simples. As pessoas estão chocadas, tristes, mas não surpreendidas. Toda a gente pensa que Molly enlouqueceu.
Eu estava com receio disso.
Então, é melhor ter receio de outra coisa. Tom Serrazzano, o promotor, está a pressionar a comissão para a liberdade condicional dela ser revogada. Sabe que não
pode fazer nada em relação à fiança da nova acusação, mas argumenta que a declaração que ela fez à saída da prisão foi inconsistente com a audiência para a liberdade
condicional em que ela afirmou que tinha aceitado a responsabilidade pela morte do marido. Como está a negar isso agora, ele alega que ela perpetrou uma fraude na
comissão de liberdade condicional e que deve ser obrigada a cumprir o resto da pena. E é capaz de conseguir os seus intentos.
Isso significa que Molly pode voltar imediatamente para a prisão.
O meu palpite é que é isso mesmo que vai acontecer, Molly.
Não pode acontecer murmurou Fran, tanto para si própria como para Hutnik. Encontrei-me com o Dr. Peter Black esta manhã, Joe. Tenho andado a fazer algumas investigações
sobre o hospital e a OCS Remington. Passa-se alguma coisa lá; o que é, ainda não descobri. Mas sei que Black ficou nervoso quando falei com ele. Quase teve um ataque
de histeria quando perguntei por que é que achava que Gary Lasch o tinha ido desencantar num emprego insignificante para ser seu sócio na administração do Hospital
Lasch e da Remington Health Management, quando o seu currículo não tinha nada de impressionante e existiam candidatos muito melhor qualificados já na zona.
Isso é estranho disse Joe. Se bem me lembro, a impressão que nos foi transmitida é que tinha sido difícil persuadi-lo a vir trabalhar para o hospital.
Acredite que não foi. Ela levantou-se. Tenho de ir andando. Joe, queria arranjar cópias de tudo o que o Time escreveu acerca do
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desfalque no fundo para abiblioteca em que o meu pai esteve envolvido, e de tudo o que foi escrito sobre o meu pai e o dinheiro desaparecido depois da morte dele.
Eu trato disso prometeu ele.
Fran ficou agradecida por Joe não fazer perguntas, mas, mesmo assim, achou que lhe devia uma explicação.
Esta manhã, quando estava a tentar desmascarar o Dr. Peter Black, ele teve uma defesa arrasadora. Que direito tinha eu de o interrogar?, perguntou-me. Eu sou filha
de um ladrão que roubou os donativos de metade das pessoas da cidade.
Isso foi um golpe baixo disse Hutnik. Mas parece-me que é bastante fácil perceber o motivo. Neste momento, ele só pode estar sob demasiada pressão e não quer ouvir
falar de nada que possa ameaçar a aquisição das OCS mais pequenas pela Remington. A verdade, pelo menos segundo as minhas fontes, é que o negócio está com problemas,
Fran, muitos problemas. A American National está a ganhar terreno. E pelo que ouvi, neste momento, as coisas estão um pouco tremidas na Remington. Estas novas OCS,
por muito pequenas que sejam, trariam dinheiro extra e permitiriam à Remington comprar tempo.
Joe abriu-lhe a porta.
Como lhe disse no outro dia, o director da American National é um dos médicos mais respeitados do país e também um dos maiores críticos da forma como as OCS são
dirigidas. Ele pensa que um sistema nacional é a única resposta, mas, até esse dia chegar, a American National, sob a sua liderança, está a conseguir os maiores
contratos de prestação de cuidados de saúde.
Então, pensa que a Remington pode estar prestes a perder o negócio?
Parece que sim. As OCS mais pequenas, que supostamente deveriam estar eufóricas por se fundirem com a Remington, agora estão a querer juntar-se à American National.
Parece incrível, mas pode acontecer que o Whitehall e o Black, apesar de todas as acções que possuem na Remington, não consigam evitar uma aquisição hostil num futuro
não muito longínquo.
"Pode ser mesquinho da minha parte", pensou Fran, enquanto conduzia para Nova Iorque, "mas após aquele golpe baixo com o pai, nada me daria mais prazer do que ver
Peter Black fracassar."
Parou no escritório, verificou o correio e depois apanhou um táxi para o escritório de Philip Matthews, no World Trade Center, para a reunião das três horas.
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Encontrou-o sentado à secretária, que estava repleta de papéis; a sua expressão era sombria.
Acabei de falar com Molly disse ele. Ela está bastante abalada. Edna Barry despediu-se esta manhã, e sabe qual foi o motivo que deu? Oiça bem: tem medo de Molly,
medo de estar perto de uma mulher que assassinou duas pessoas.
Ela não se atreveu a dizer isso! Fran olhou para ele, incrédula. Philip, vou dizer-lhe outra vez, aquela mulher está a esconder alguma coisa!
Fran, eu estive a reler o depoimento que Edna fez à Polícia depois de ter descoberto o corpo de Gary. É absolutamente consistente com o que ela lhe disse a si e
à Molly ontem.
Refere-se à parte em que ela diz que Molly foi a única pessoa que usou a chave de reserva e que não voltou a guardá-la no esconderijo do jardim? Molly nega peremptoriamente
que isso tenha acontecido. Philip, depois de a Sr.a Barry ter descoberto o corpo, quando a Polícia estava a interrogar as pessoas, não fizeram também perguntas à
Molly sobre a chave?
Quando Molly acordou cheia de sangue naquela segunda-feira de manhã e soube o que tinha acontecido, ficou praticamente catatónica, e esse estado manteve-se durante
vários dias. Não tenho nenhum registo de ela ter sido interrogada a esse respeito. Não se esqueça de que não havia o menor sinal de arrombamento e que as impressões
digitais da Molly estavam por toda a arma do crime.
O que significa que vão acreditar na história de Edna Barry, por muito que Molly tenha a certeza de que ela está a mentir. Fran andou de um lado para o outro no
escritório, irritada. Meu Deus, Philip, Molly não tem hipótese nenhuma.
Fran, esta manhã recebi um telefonema do poderoso Calvin Whitehall. Ele quer contratar alguns pesos-pesados para ajudarem na defesa de Molly. Já falou com eles e
eles estão disponíveis. Foram-lhes dados pormenores do caso e, segundo Whitehall, todos concordam que ela deve declarar-se "inocente por motivo de insanidade".
Não deixe que isso aconteça, Philip.
Eu não quero que isso aconteça, mas há outro problema. O delegado do Ministério Público está a mover céus e terra para conseguir que a liberdade condicional de Molly
seja revogada.
Joe Hutnik, do Greenwich Time, avisou-me de que isso poderia acontecer. Então, as coisas estão neste ponto: a empregada de Molly diz que tem medo dela e os amigos
estão a tentar comprometê-la. Uma defesa de insanidade levaria a isso mesmo, não é verdade? Ela teria de passar muito tempo numa instituição de algum género, certo?
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Nenhum júri a deixaria em liberdade depois de um segundo homicídio, por isso, sim, ela ficaria presa acontecesse o que acontecesse. Seguramente, nunca conseguiremos
outro acordo, e não estou nada convencido de que a defesa de insanidade resulte.
Fran viu a tristeza que estava estampada no rosto de Philip.
Isto está a tornar-se pessoal para si, não está? perguntou. Ele acenou afirmativamente.
Já é pessoal há muito tempo. No entanto, juro-lhe que se pensasse que os meus sentimentos pela Molly interfeririam no meu discernimento ao defendê-la, entregaria
o caso ao melhor advogado criminalista que conhecesse.
Fran olhou para Philip Matthews com compaixão, lembrando-se de que a primeira impressão que tivera dele à porta da prisão fora de uma protecção feroz em relação
a Molly.
Acredito disse ela suavemente.
Vai ser um milagre impedir Molly de voltar para a prisão, Fran.
Vou encontrar-me com a irmã de Annamarie amanhã disse Fran. Hoje, assim que voltar para o escritório, vou pedir ao Departamento de Pesquisa que descubra tudo o que
for possível sobre a Remington Health Management e toda a gente relacionada com ela. Quanto mais oiço, mas acredito que aqueles homicídios têm menos a ver com Gary
Lasch ser mulherengo do que com problemas no Hospital Lasch e na Remington Health Management.
Pegou na mochila e, antes de sair, parou à janela.
Tem uma vista espectacular da Senhora Liberdade comentou. É para encorajar os seus clientes?
Philip Matthews sorriu.
É engraçado disse. Foi precisamente o que Molly me perguntou da primeira vez que aqui esteve, há seis anos.
Bem, para bem de Molly, esperemos que a Senhora Liberdade seja também Senhora Sorte. Tenho um palpite sobre uma coisa, e, se estiver certa, pode ser a saída de que
temos andado à procura. Deseje-me sorte, Philip. Até logo.
A mudança dramática em Tasha começou aproximadamente às cinco horas. Barbara Colbert viu-a acontecer.
Nos últimos dois dias as enfermeiras não tinham colocado a
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maquilhagem leve que dava um pouco de cor à sua compleição macilenta, mas agora estava a tornar-se evidente um brilho rosado.
A rigidez dos membros, que tinha sido mitigada por massagens constantes, pareceu relaxar espontaneamente. Barbara não precisou de ver a enfermeira afastar-se em
bicos de pés da cabeceira da cama nem ouvir o murmúrio ao telefone da sala de estar para saber que ela estava a chamar o médico.
"É melhor assim para a Tasha", tentou dizer a si mesma. "Por favor, Deus, dá-me força. E, por favor, deixa-a viver até os irmãos chegarem. Eles querem estar com
ela no fim."
Barbara levantou-se da cadeira e sentou-se na cama, tendo cuidado para não tocar no emaranhado de fios intravenosos e equipamento de oxigénio. Tomou as duas mãos
de Tasha nas suas. (
Tasha, Tasha murmurou. O meu único consolo é que vais para junto do papá, e ele amava-te tanto quanto eu.
A enfermeira estava à porta. Barbara levantou os olhos.
Quero ficar sozinha com a minha filha disse., Os olhos da enfermeira estavam cheios de lágrimas. Eu compreendo. Lamento muito.
Barbara acenou e virou-se. Por um instante, pareceu-lhe ver Tasha mexer-se, pareceu-lhe
sentir pressão nas mãos.
A respiração de Tasha tornou-se mais rápida. Barbara sentiu o coração apertar-se enquanto esperava pelo último suspiro.
- Tasha, Tasha.
Teve a consciência vaga de uma presença à porta. O médico. "Vá-se embora", pensou, mas não se deu ao trabalho de se desviar \ deste último momento da vida da filha.
De repente, Tasha abriu os olhos. Os lábios curvaram-se num sorriso familiar. \
Dr. Lasch, foi uma estupidez murmurou. Tropecei no atacador e estatelei-me no chão.
Barbara olhou-a, embasbacada. Tasha! Tasha virou a cabeça.
Olá, mãe...
Os seus olhos fecharam-se e voltaram a abrir-se lentamente.
Mãe, ajude-me... por favor. A sua última respiração foi um leve suspiro.
Tasha! guinchou Barbara. Tasha! Olhou para trás. Peter Black estava em pé, à porta, imóvel. Doutor, o senhor ouviu-a! Ela falou comigo. Não a deixe morrer! Faça
alguma coisa!
Oh, minha querida disse o Dr. Black suavemente, quando
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a enfermeira entrou a correr. Deixe a nossa querida menina ir. Acabou.
Ela falou comigo! gritou Barbara Colbert. Tasha, não morras. Tu estás a ficar melhor!
Braços fortes estavam a abraçá-la, a obrigá-la gentilmente a soltar a filha.
Mãe, estamos aqui.
Barbara ergueu os olhos para os filhos.
Ela falou comigo soluçou. Deus é minha testemunha. Antes de morrer, ela falou comigo!
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Lou Knox estava a ver televisão quando recebeu a chamada de que estava à espera. Cal avisara-o de que iria levar um pacote a West Redding, mas ele não sabia a que
horas tinha de partir.
Quando chegou a casa, encontrou Cal e o Dr. Peter Black na biblioteca. Percebeu instantaneamente que tinham acabado de ter uma discussão feia. A boca de Cal era
uma linha estreita e má, e tinha as faces ruborizadas. O Dr. Black segurava um copo grande do que parecia ser uísque puro e, pelo olhar vidrado, era óbvio que não
se tratava da primeira bebida da noite.
A televisão estava ligada, mas o ecrã mostrava o azul-profundo do canal de vídeo. O que quer que tivessem estado a ver, já não estava no ar. Quando Cal viu que Lou
tinha entrado, berrou para Black:
Dá-lha, seu estúpido!
Cal, estou a dizer-te... protestou o Dr. Black, num tom de voz monocórdico.
Dá-lha e pronto!
Black pegou numa pequena caixa levemente embrulhada em papel castanho que se encontrava na mesa a seu lado. Sem falar, entregou-a a Knox.
É este embrulho que devo entregar em West Redding, senhor? perguntou Lou.
Sabes perfeitamente bem que é, Lou. Agora despacha-te! Lou lembrou-se do telefonema que Cal tinha feito naquela manhã.
Tinha de ser a gravação de que ele estivera a falar com o oftalmologista, o Dr. Logue. Cal e Black deviam ter estado a vê-la, porque era evidente que o embrulho
tinha sido aberto e depois fechado novamente.
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Imediatamente, senhor disse ele, rapidamente. "Mas não antes de ver o que tem esta fita", pensou ao sair.
Voltou sem demora para o seu apartamento e fechou a porta à chave. Não foi difícil voltar a abrir o embrulho sem rasgar o papel.
Como esperava, havia uma cassete de vídeo no interior. Enfiou-a rapidamente no vídeo e premiu o botão PLAY.
"Que é isto?", pensou, enquanto observava o ecrã. Viu um quarto de hospital um quarto muito bonito com uma jovem adormecida ou inconsciente na cama e uma senhora
idosa cheia de classe sentada ao lado dela.
"Calma", pensou Lou, "eu sei quem é aquela mulher. É a Barbara Colbert, e a outra é a filha dela, a que está em coma há anos. A família deu imenso dinheiro para
a construção de uma unidade de cuidados prolongados no Lash e deram-lhe o nome da rapariga. (
A hora a que a gravação tinha sido feita aparecia no canto inferior direito do ecrã: 8.30 daquela manhã. "Será que gravaram o dia 1
inteiro?", interrogou-se Lou. "Seguramente, não havia doze horas naquela cassete."
Passou rapidamente até ao fim da fita e depois rebobinou um pouco e voltou a premir o PLAY. Agora, a imagem mostrava a senhora de idade a soluçar enquanto dois homens
a seguravam. O Dr. Black estava inclinado sobre a cama. "Arapariga deve ter morrido", pensou Lou. Verificou novamente a hora no fundo do ecrã: 17.40. \
"Apenas há algumas horas", pensou Lou. "Mas isto não pode ser
apenas a rapariga a morrer", reflectiu. "Ela esteve inconsciente durante anos, por isso sabiam que ela ia acabar por falecer." \
Lou sabia que a qualquer momento Cal podia subir as escadas,;
querendo saber o que o estava a demorar tanto. Com os sentidos alerta para detectar a aproximação de Cal, rebobinou de novo a fita, ^
desta vez recuando mais.
O que viu fê-lo tremer. Era difícil acreditar, mas ali estava: a rapariga que passara tantos anos em coma a acordar e virar a cabeça e falar claramente, falar sobre
o Dr. Lasch. Depois fechou os olhos e morreu. E depois ali estava Black, a dizer à mãe que não tinha ouvido a rapariga dizer fosse o que fosse.
Era arrepiante. E embora não compreendesse o significado de tudo aquilo, sabia que era importante. E também teve consciência do risco que estava a correr quando
perdeu tempo a duplicar os últimos quinze minutos da fita e a escondê-la no compartimento por detrás das prateleiras no seu apartamento.
Estava a entrar no carro quando Cal saiu.
Que se passou? Que andaste a tramar, Lou? Lou percebeu que o medo puro que sentia se estampou no seu |
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rosto, mas obrigou-se a controlá-lo. Sabia o que tinha naquela gravação e o poder que isso lhe dava. Muitos anos a fazer do fingimento uma forma de arte revelavam-se
agora úteis.
Estive na casa de banho. O meu estômago não anda muito bem.
Sem esperar uma resposta, fechou a porta do carro e ligou o motor. Uma hora depois estava na casa da quinta em West Redding a entregar o embrulho ao homem que conhecia
como Dr. Adrian Logue.
Quase febril de excitação, Logue tirou o embrulho da mão de Lou e bateu-lhe com a porta na cara.
Foi uma das coisas mais difíceis que já fiz em toda a minha vida explicou Edna Barry pelo telefone a Marta Jones. Tinha acabado de arrumar a cozinha depois do jantar
e parecera-lhe uma boa altura para beber uma última chávena de chá e contar a história à amiga.
Sim, deve ter sido pavoroso para ti concordou Marta. Edna não tinha dúvidas de que Fran Simmons voltaria ali para bisbilhotar, para fazer mais perguntas, e podia
muito bem ir visitar Marta. Bem, se isso acontecesse, Edna queria certificar-se de que a vizinha sabia a história certa. "Desta vez", jurou Edna, "Marta irá transmitir
informações que não prejudiquem Wally." Bebeu mais um gole de chá e mudou o telefone para a outra orelha.
Marta continuou ela, foste tu que me convenceste de que a Molly podia ser perigosa, lembras-te? Eu tentei não pensar no assunto, mas ela está a comportar-se de uma
forma estranha. Está muito calma. Senta-se durante horas sozinha. Não quer ninguém por perto. Hoje estava sentada no chão a ver o que havia dentro de umas caixas.
Tinha pilhas de fotografias do doutor à sua volta.
Não! exclamou Marta. Eu pensava que ela se tinha livrado delas há muito tempo. Por que razão as guardaria? Tu quererias olhar para a fotografia de um homem que tivesses
assassinado?
É a isso que me refiro quando digo que ela age de uma forma estranha disse Edna. Então, ontem, quando ela disse que nunca tirou a chave do esconderijo no jardim...
bem, Marta, apercebi-me de que aquela história de esquecer tudo começou antes de o doutor morrer. Creio que tudo começou quando ela teve o aborto. Nessa altura,
a depressão deve ter-se instalado e a Molly nunca mais foi a mesma.
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Pobre mulher disse Marta com um suspiro. Seria muito melhor para ela se a pusessem num lugar onde possa receber ajuda a sério, mas estou satisfeita por ficares longe
dela, Edna. Não te esqueças de que Wally precisa de ti e que tem de ser a tua primeira prioridade.
É o que eu sinto. É bom poder falar com uma amiga como tu, Marta. Tenho andado tão preocupada. E tinha de desabafar.
Podes contar sempre comigo, Edna. Vai cedo para a cama e vê se tens uma boa noite de sono.
Satisfeita por ter cumprido o seu objectivo, Edna levantou-se, apagou a luz da cozinha e foi para a sala de estar. Wally estava a ver o canal de notícias. O coração
de Edna caiu ao chão quando viu uma gravação de Molly à porta da prisão. O jornalista estava a dizer: "Molly Carpenter Lasch foi libertada da Prisão Niantic há apenas
dez dias, depois de ter cumprido uma pena de cinco anos e meio pelo homicídio do marido, o Dr. Gary Lasch. Desde então, foi presa pelo homicídio da amante do marido,
Annamarie Scalli, e o delegado do Ministério Público, Tom Serrazzano, está a fazer pressão para que a sua liberdade condicional seja revogada."
Por que é que não mudas de canal, Wally? sugeriu Edna.
Eles vão voltar a prender a Molly, mãe?
Não sei, querido.
Ela parecia tão assustada quando o encontrou. Eu tive pena dela.
Não digas isso, Wally. Tu não sabes o que estás a dizer.
Sei, sim, mãe. Eu estava lá, lembra-se?
Em pânico, Edna agarrou no rosto do filho com as duas mãos e obrigou-o a olhar para ela.
Lembras-te de como a Polícia te assustou quando o Dr. Morrow foi assassinado? Como não paravam de te fazer perguntas sobre onde estavas na noite em que ele morreu?
Lembras-te de que antes de eles chegarem eu te obriguei a pôr o molde de gesso e a usar as canadianas para eles te deixarem em paz?
Assustado, ele tentou fugir ao aperto da mãe.
Solte-me, mãe.
Edna manteve o contacto visual com o filho.
Wally, tu nunca deves falar sobre a Molly nem sobre aquela noite. Nunca mais, compreendes isso?
Não volto a falar.
Wally, eu não vou trabalhar mais para a Molly. Na verdade, tu e eu vamos fazer uma viagem. Vamos para muito longe, talvez para as montanhas, ou talvez até para a
Califórnia. Gostavas?
Ele pareceu duvidoso.
Acho que sim.
Então, jura que nunca mais voltas a falar sobre Molly.
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Houve uma longa pausa antes de ele dizer em voz baixa: Juro, mãe.
Embora Molly tivesse tentado, o Dr. Daniels não deixou que ela o dispensasse pela segunda vez. Disse-lhe que ia lá a casa às seis horas, e às seis horas em ponto
tocou à campainha.
Tem muita coragem para estar a sós comigo murmurou ela ao fechar a porta. Mas, se eu fosse o senhor, teria cuidado. Não me vire as costas. Eu posso ser perigosa.
O médico estava a despir o casaco quando ela disse aquilo. Parou, com um braço ainda na manga, e observou-a cuidadosamente.
Que é que isso quer dizer, Molly?
Entre. Eu conto-lhe tudo. Levou-o para o escritório. Mostro-lhe e conto-lhe disse ela, indicando as pilhas de ficheiros e revistas no chão, as fotografias e os albums
no sofá. Como pode ver, não tenho estado apenas sentada a pensar.
Eu diria que tem andado a fazer limpezas observou o Dr. Daniels.
De certa forma a fazer limpezas, sim, mas, na verdade, é um pouco mais do que isso, doutor. Chama-se "começar de novo", ou talvez "um capítulo novo", ou "enterrar
o passado". Escolha.
Daniels dirigiu-se para o sofá.
Posso? perguntou, a apontar para as fotografias.
Olhe para as fotografias que quiser, doutor. As da esquerda são para mandar para a mãe de Gary. As da direita vão para o arquivo circular.
Vai deitá-las fora?
Penso que é saudável, doutor, o senhor não é da mesma opinião? Ele estava a vê-las.
Aparentemente, há bastantes com os Whitehalls.
Jenna é a minha melhor amiga. Como sabe, Cal, Gary e Peter Black dirigiam a Remington juntos. Existem bastantes fotografias de Peter com as duas ex-mulheres por
aí algures.
Sei que gosta muito de Jenna, Molly. E de Cal? Também gosta muito dele?
Ergueu os olhos e vislumbrou a sombra de um sorriso nos lábios dela.
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Doutor, Cal não é uma pessoa de quem se goste replicou ela. Duvido que alguém goste verdadeiramente dele, incluindo o colega de escola-motorista-faz-tudo-Lou Knox.
As pessoas sentem mais fascínio pelo Cal do que gostam dele. Ele pode ser maravilhosamente divertido. E é muito inteligente. Lembro-me de uma vez que fomos a um
jantar em sua honra, onde estiveram cerca de seiscentas pessoas extremamente importantes. Sabe o que Jenna me sussurrou? "Noventa por cento destas pessoas estão
aqui por medo."
Acha que isso incomodou Jenna?
Céus, não. Jenna adora o poder de Cal. Embora, evidentemente, ela própria seja forte. Nada se atravessa no caminho dela. É por isso que já é sócia de uma prestigiada
firma de advocacia. E conseguiu isso por mérito próprio. Molly fez uma pausa. Por outro lado, eu sou muito mole. Sempre fui. Jenna tem sido bestial. Por outro lado,
Cal gostaria de me ver desaparecer da face da terra.
"Concordo com isso", pensou o Dr. Daniels.
Jenna vem cá esta noite? perguntou.
Não. Tinha um jantar em Nova Iorque, mas telefonou esta tarde. Ainda bem que o fez. Depois de a Sr.a Barry sair, eu estava a precisar de ânimo.
Daniels esperou. Enquanto a observava, o olhar de Molly mudou. Uma expressão de tristeza misturada com descrença inundou-lhe o rosto. A sua voz estava calma, até
monocórdica, enquanto lhe contou o que acontecera com Edna Barry e as suas palavras de despedida.
Esta tarde telefonei à minha mãe disse Molly. Perguntei-lhe se ela e o meu pai também tinham medo de estar comigo; perguntei se era por isso que estavam longe quando
eu precisava deles. Sabe, a semana passada não quis ninguém perto de mim. Quando cheguei a casa, senti-me como uma vítima de queimaduras se deve sentir: "Não me
toquem! Deixem-me em paz!" Mas depois de o corpo de Annamarie ter sido encontrado, eu queria que estivessem comigo. Precisava deles.
Que é que eles disseram?
Disseram que não podem vir. O meu pai vai ficar bem, mas teve uma pequena trombose. É por isso que não estão cá. Telefonaram à Jenna, contaram-lhe e pediram-lhe
para ficar perto de mim. E claro que ela tem estado. O senhor viu.
Molly olhou para um ponto distante.
Era importante falar com eles. Precisava de saber se me apoiavam. Eles sofreram tanto com tudo isto. Hoje, depois de a Sr.a Barry sair, se eu pensasse que eles também
me tinham abandonado, teria... A voz embargou-se.
Teria o quê, Molly?
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Não sei.
"É claro que sabe", pensou Daniels. "A rejeição dos seus pais tê-la-ia empurrado para o abismo."
Como é que se sente agora, Molly? perguntou suavemente.
Sem saída, doutor. Se a minha liberdade condicional for revogada e me mandarem novamente para a prisão, acho que não vou conseguir suportar. Preciso de mais tempo,
porque, juro-lhe: vou recordar-me exactamente do que aconteceu depois de eu ter voltado do Cape para casa naquela noite.
Podíamos tentar a hipnose, Molly. Não resultou antes, mas isso não significa que não resulte agora. Pode ser que o bloqueio de memória seja como um icebergue e esteja
a partir-se. Ahipnose podia ajudá-la.
Ela abanou a cabeça.
Não, tenho de o fazer sozinha. Há... Molly calou-se. Era demasiado cedo para dizer ao Dr. Daniels que durante toda a tarde um nome não parava de lhe vir à cabeça:
Wally.
Mas porquê?
Barbara Colbert abriu os olhos. "Onde estou?", pensou, ensonada. "Que aconteceu? Tasha. Tasha!" Lembrou-se de que Tasha tinha falado com ela antes de morrer.
Mãe. Walter e Bob, os filhos, estavam debruçados sobre ela, compreensivos, fortes.
Que aconteceu? sussurrou ela.
Mãe, sabe que a Tasha se foi? -Sim.
A mãe desmaiou. Choque. Exaustão. O Dr. Black deu-lhe um sedativo. Agora está no hospital. Ele quer que fique cá um dia ou dois. Para observação. Os seus batimentos
cardíacos não estavam muito bons.
Walter, a Tasha saiu do coma. Falou comigo. O Dr. Black deve tê-la ouvido. A enfermeira também; pergunta-lhe.
A mãe tinha mandado a enfermeira para o outro aposento. A mãe falou com a Tasha, mãe. Ela não falou consigo.
Barbara lutou contra a sonolência.
Eu posso estar velha, mas não sou louca! disse. A minha filha saiu do coma. Eu sei que sim. Falou comigo. Lembro-me
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claramente do que ela disse. Walter, escuta-me. Tasha disse: "Dr. Lasch, foi uma estupidez, tropecei no atacador e estatelei-me no chão." Depois reconheceu-me e
disse: "Olá, mãe." E depois implorou-me que a ajudasse. O Dr. Black ouviu-a pedir ajuda. Eu sei que ouviu. Por que é que não fez alguma coisa? Limitou-se a ficar
ali parado.
Mãe, mãe, ele fez tudo o que pôde pela Tasha. No fundo, é melhor assim.
Barbara tentou sentar-se.
Repito... eu não sou louca! Não imaginei que a Tasha saiu do coma disse ela, e a ira conferiu à sua voz o habitual tom de autoridade. Por algum motivo terrível,
Peter Black está a mentir-nos.
Walter e Rob Colbert seguraram as mãos da mãe quando o Dr. Black, que se tinha mantido fora do seu campo de visão, deu um passo em frente e lhe espetou uma agulha
no braço. (
Barbara Colbert sentiu-se mergulhar numa escuridão quente e envolvente. Lutou momentaneamente contra ela e depois sucumbiu.
O mais importante é que ela descanse garantiu o Dr. Black aos filhos. Por muito preparados que pensemos estar para perder um ente querido, quando chega o momento
de dizer adeus o choque pode ser avassalador. Eu virei vê-la mais tarde.
Quando chegou ao seu gabinete depois de fazer as rondas, Black tinha uma mensagem de Cal Whitehall à sua espera. Devia telefonar-lhe imediatamente.
Convenceste Barbara Colbert de que ela esteve a alucinar a noite passada? perguntou Cal.
Peter Black sabia que a situação era desesperada e que não adiantaria nada mentir a Cal.
Tive de lhe dar outro sedativo. Ela não vai convencer-se facilmente.
Por um longo minuto, Calvin Whitehall não reagiu. Depois, disse calmamente:
Suponho que te apercebes do que nos fizeste a todos. Black não respondeu.
Como se a Sr.a Colbert não fosse um problema suficientemente grande, acabo de receber notícias de West Redding. Depois de ver a gravação inúmeras vezes, o doutor
exige que o projecto seja revelado aos órgãos de informação.
Ele não sabe o que isso vai significar? perguntou Black, perplexo.
Não se importa. Está doido. Eu insisti que esperássemos até
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segunda-feira, para podermos fazer uma apresentação digna do feito. Nessa altura, já terei tratado dele. Entretanto, sugiro que tu te responsabilizes pela Sr.a Colbert.
Cal desligou o telefone com toda a força, não deixando na mente de Peter Black a menor dúvida de que esperava ser obedecido.
Lucy Bonaventure apanhou um avião de manhã bem cedo em Buffalo para o Aeroporto de La Guardia, em Nova Iorque, e às dez horas estava a entrar no apartamento de Annamarie,
em Yonkers. Nos quase seis anos que Annamarie vivera ali, Lucy nunca tinha visto a casa. Annamarie dissera-lhe que o apartamento era pequeno tinha apenas um quarto
e, para além do mais, era sempre mais conveniente a Annamarie ir de carro para Buffalo para os visitar.
Lucy sabia que a Polícia tinha revistado o apartamento depois de Annamarie morrer, e compreendeu por que é que a casa tinha um aspecto desmazelado. O bric-a-brac
da mesa do café estava todo misturado; livros estavam amontoados ao acaso nas estantes, como se tivessem sido tirados e recolocados sem cuidado. No quarto, era óbvio
que o conteúdo das gavetas tinha sido examinado e depois enfiado precipitadamente por mãos pouco cuidadosas.
Tinha pedido ao gerente do condomínio para se encarregar da venda do apartamento. A única coisa que Lucy tinha de fazer era tirar as coisas. Gostaria de fazer tudo
num dia, mas, realisticamente, sabia que precisaria de dois, pelo menos. Era-lhe doloroso estar ali, ver o perfume preferido de Annamarie no toucador, ver o livro
que ela andava a ler ainda na mesa-de-cabeceira, abrir o roupeiro e ver os fatos, vestidos e uniformes de Annamarie, e saber que ela nunca mais os usaria.
Todas as roupas, assim como a mobília, seriam recolhidas por instituições de caridade. "Pelo menos", pensou Lucy, "algumas pessoas necessitadas serão ajudadas."
Não passava de um pequeno consolo, mas era alguma coisa.
Fran Simmons, a jornalista, devia chegar às onze e meia. Enquanto esperava por ela, Lucy começou a despejar a cómoda de Annamarie, dobrando cuidadosamente o conteúdo
e colocando depois todas as coisas nas caixas de cartão que o zelador lhe tinha dado.
Chorou ao ver as fotografias que encontrou na gaveta de baixo,
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que mostravam Annamarie com o filho recém-nascido ao colo, fotografias obviamente tiradas minutos depois de ele ter nascido. Ela parecia tão jovem nas fotografias,
e estava a olhar para o bebé com tanta ternura. Havia outras fotografias dele, cada uma marcada nas costas, "primeiro aniversário", "segundo aniversário", até ao
último, o quinto. Era uma criança muito bonita, com brilhantes olhos azuis, cabelos castanho-escuros e um sorriso feliz e caloroso. "Annamarie ficou destroçada por
ter de o dar para adopção", pensou Lucy. Reflectiu sobre se devia mostrar as fotografias a Fran Simmons e depois decidiu que sim. Podiam ajudá-la a compreender Annamarie
e o preço terrível que tinha pago pelos seus erros.
Às onze e meia, Fran tocou pontualmente à campainha e Lucy Bonaventure convidou-a para entrar. Por um momento, as duas mulheres avaliaram-se reciprocamente. Fran
viu uma mulher roliça com quarenta e tal anos, olhos inchados, feições correctas e pele que parecia enrugada do choro.
Lucy viu uma mulher esbelta, com trinta e poucos anos, com cabelos castanho-claros pelos ombros e olhos azul-acinzentados. Como explicou à filha no dia seguinte:
"Ela não estava muito formal, tinha um fato de calças castanho-escuro e um lenço castanho e amarelo e branco ao pescoço, e brincos de ouro simples, mas parecia tão
nova-iorquina. É simpática, e quando me disse que sentia muito o que acontecera à Annamarie, eu percebi que não era apenas conversa. Eu tinha feito café e ela disse
que gostaria de beber uma chávena, por isso, sentámo-nos à pequena mesa de refeições da Annamarie."
Fran percebeu que seria sensato ir directa ao assunto.
Sr.a Bonaventure, comecei a investigar a morte do Dr. Gary Lasch porque a Molly Lasch, que eu conhecia dos tempos de escola, me pediu para fazer um programa sobre
o caso para o Crime Verdadeiro, uma série em que eu trabalho. Ela quer descobrir a verdade acerca destes homicídios tanto quanto a senhora. Passou cinco anos e meio
na prisão por um crime de que não se recorda e que eu comecei a acreditar que ela não cometeu. Existem demasiadas perguntas por responder sobre a morte do Dr. Lasch.
Na época, ninguém investigou verdadeiramente, e eu estou a tentar fazê-lo agora.
Sim, bem, o advogado dela tentou fazer parecer que a Annamarie tinha assassinado o Dr. Lasch disse Lucy com raiva recordada.
O advogado dela fez o que qualquer bom advogado faria. Realçou que Annamarie tinha dito que estava sozinha no seu apartamento em Cos Cob na noite do crime, mas que
não tinha ninguém que corroborasse as suas afirmações.
Se aquele julgamento não tivesse ido até ao fim, ele ia
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contra-interrogar a Annamarie e tentar fazê-la parecer uma assassina. Sei que era esse o plano. Ele ainda é o advogado da Molly Lasch?
Sim, é. E é muito bom. Sr.a Bonaventure, Molly não assassinou o Dr. Lasch. Não assassinou a Annamarie. E certamente não assassinou o Dr. Jack Morrow, que mal conhecia.
Três pessoas estão mortas e eu acredito que há um só responsável pelos homicídios de todas elas. A pessoa que pôs fim às suas vidas deve ser castigada, mas não foi
a Molly. Essa pessoa é o motivo por que a Molly foi para a prisão. Essa pessoa é o motivo por que ela foi presa pelo homicídio da Annamarie. Quer que Molly vá para
a prisão por um crime que não cometeu ou quer encontrar o assassino da sua irmã?
Por que é que a Molly Lasch procurou a Annamarie e lhe pediu para se encontrar com ela?
Molly acreditava que tinha um casamento feliz. Obviamente, não era verdade, se não Annamarie não teria aparecido no meio. Molly estava a tentar encontrar a resposta
para o homicídio do marido e para o fracasso do seu casamento. Que melhor forma de começar do que com a mulher que tinha sido amante do marido? É aqui que a senhora
pode ajudar. Annamarie estava com medo de alguém ou de alguma coisa. Molly percebeu isso quando se encontraram naquela noite, mas a senhora deve ter percebido muito
antes. Por que é que ela mudou de nome e adoptou o nome de solteira da vossa mãe? Por que é que desistiu da enfermagem hospitalar? Por tudo o que ouvi, ela era uma
enfermeira hospitalar maravilhosa e adorava o seu trabalho.
Pois era disse Lucy Bonaventure, tristemente. Estava a castigar-se quando desistiu.
"Mas o que eu preciso de saber agora é por que é que ela desistiu", pensou Fran.
Sr.a Bonaventure, a senhora disse que tinha acontecido uma coisa no hospital... uma coisa horrivelmente perturbadora para a Annamarie. Faz alguma ideia do que foi
ou quando aconteceu?
Lucy Bonaventure ficou sentada em silêncio durante alguns momentos, obviamente alutar contra o desejo de proteger Annamarie versus a necessidade ardente de castigar
o assassino.
Sei que não foi muito tempo antes de o Dr. Lasch ter sido assassinado disse ela, a falar lentamente. E foi durante um fim-de-semana. Houve um problema qualquer com
uma paciente. O Dr. Lasch e o sócio, o Dr. Black, estiveram envolvidos. Annamarie pensou que o Dr. Black tinha cometido um erro terrível, mas não o comunicou porque
o Dr. Lasch lhe implorou que se mantivesse calada, dizendo que se a notícia do erro se espalhasse o hospital ficaria destruído.
Lucy ergueu a cafeteira e fitou Fran, com uma interrogação no
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olhar. Fran abanou a cabeça e Lucy deitou mais café na sua chávena. Recolocou a cafeteira no suporte de aquecimento e sentou-se a olhar para o café durante alguns
momentos antes de voltar a falar. Fran percebeu que ela estava a tentar escolher as palavras cuidadosamente.
Nos hospitais acontecem erros honestos, Menina Simmons. Todos sabemos isso. Segundo o que Annamarie me contou, a jovem tinha estado a correr quando ficou ferida,
e estava desidratada quando a trouxeram para o hospital. O Dr. Black deu-lhe uma droga experimental qualquer em vez da solução salina normal, e ela mergulhou num
estado vegetativo.
Que horror!
Annamarie tinha o dever de comunicar e não o fez, a pedido do Dr. Lasch. Mas alguns dias depois, ouviu o Dr. Black dizer ao Dr. Lasch: "Desta vez dei-o à pessoa
certa. Fez logo efeito."
Quer dizer que eles andavam deliberadamente a fazer experiências com os pacientes? perguntou Fran, chocada com aquela revelação.
Só lhe posso dizer o que concluí a partir do pouco que a Annamarie me contou. Ela não gostava muito de falar no assunto e normalmente só o fazia se já tinha bebido
dois copos de vinho e precisava de desabafar. Lucy fez uma pausa e ficou uma vez mais a olhar para a chávena.
Havia mais alguma coisa? perguntou Fran, suavemente, ansiosa por fazer a mulher falar, mas sem querer pressioná-la de mais.
Sim. Annamarie contou-me que uma noite depois de ter sido administrado à jovem o medicamento errado, uma senhora de idade que tinha tido alguns ataques cardíacos
e estava no hospital há algum tempo morreu. Annamarie disse-me que não podia ter a certeza, mas suspeitava que tinham dado o medicamento experimental a essa senhora
e, aparentemente, era ela "a pessoa certa" a que ouvira o Dr. Black referir-se, porque fora a única que falecera no hospital naquela semana e porque o Dr. Black
andava sempre a entrar e a sair do quarto e não registava nada na ficha clínica.
Annamarie não se sentiu sequer tentada a comunicar aquela morte?
Ela não tinha prova absolutamente nenhuma de que alguma coisa estava errada no segundo incidente, e quando foram feitos exames à segunda mulher os resultados não
indicaram o menor vestígio de uma substância suspeita. A Annamarie falou com o Dr. Black e perguntou-lhe por que é que não tinha registado nada na ficha da senhora
de idade quando a tratara. Ele disse-lhe que ela não sabia do que estava a falar e avisou-a de que se começasse a espalhar
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rumores infundados seria processada por difamação. Quando o interrogou sobre a jovem que estava em coma, ele replicou que ela tinha feito uma paragem cardíaca na
ambulância.
Lucy fez uma pausa e encheu uma vez mais a chávena de café.
Tente compreender. Originalmente, Annamarie acreditava que o primeiro incidente tinha sido honesto. Estava apaixonada por Gary Lasch e naquela altura já sabia que
estava grávida dele, embora ainda não lhe tivesse dito. Não queria acreditar que ele tinha alguma coisa a ver com o sofrimento de alguém e não queria levantar problemas
nem para ele nem para o hospital. Mas depois, enquanto se torturava em relação ao que devia fazer, Jack Morrow foi assassinado, e de repente ela ficou assustada.
Estava convencida de que ele começara a suspeitar de que se estava a passar alguma coisa estranha no hospital, mas era apenas uma suspeita. Aparentemente, ele tinha
querido dar-lhe alguma coisa para ela guardar, um ficheiro ou papéis ou alguma coisa, mas nunca teve a oportunidade de o fazer. Foi assassinado antes disso. Depois,
passadas duas semanas, Gary Lasch foi assassinado. Nessa altura, Annamarie estava aterrorizada.
Annamarie alguma vez deixou de gostar de Gary Lasch? perguntou Fran.
No fim. Ele andava a evitá-la e ela tinha começado a receá-lo. Quando lhe disse que estava grávida, ele mandou-a fazer um aborto. Se não existissem os testes de
ADN, ele teria jurado que o filho não era dele.
"A morte de Jack Morrow foi um rude golpe para Annamarie. Embora tivesse um caso com o Dr. Lasch, estou convencida de que ela sempre amou Jack. Mais tarde, mostrou-me
a fotografia do Dr. Lasch e disse: "Eu estava obcecada por ele. Ele exerce esse efeito sobre as mulheres. Ele usa as pessoas."
Annamarie pensou que as coisas no hospital continuavam a correr mal, mesmo depois de Gary Lasch ter sido assassinado?
Não me parece que ela tivesse alguma forma de saber. E, para além do mais, as suas energias depressa se centraram no bem-estar da criança que trazia dentro de si.
Menina Simmons, nós implorámos à Annamarie para ficar com o bebé. Tê-la-íamos ajudado a criá-lo. Ela deu-o para adopção porque achou que não o merecia. Disse-me:
"Que é que digo ao meu filho... que tive um caso com o pai dele, que depois ele foi assassinado por causa da nossa relação? Quando ele me pedir para lhe contar como
era o pai, eu digo-lhe que era um perigo para os seus pacientes e que traiu as pessoas que confiavam nele?"
Annamarie disse a Molly que tanto como marido como como médico, Gary Lasch não valia o preço que ela pagou por ter ido para a prisão por causa dele contou Fran.
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Lucy Bonaventure sorriu.
É típico de Annamarie disse ela.
Não calcula o quanto lhe estou agradecida, Sr.a Bonaventure disse Fran. E sei como isto é difícil para si.
Pois é. Mas deixe-me mostrar-lhe uma coisa antes de se ir embora. Lucy Bonaventure entrou no quarto e pegou nas fotografias que tinha pousado em cima do toucador.
Mostrou-as a Fran.
Esta é Annamarie com o seu bebé. Pode ver como ela era jovem. A família adoptiva enviou-lhe uma fotografia de aniversário durante os primeiros cinco anos. Este é
o rapazinho de quem ela desistiu. Pagou um preço terrível pelos seus erros. Espero que se Molly Lasch estiver inocente consiga provar a verdade. Mas diga-lhe que,
de certa forma, Annamarie também esteve na prisão, talvez uma prisão auto-imposta, mas, mesmo assim, uma prisão cheia de dor e privações. E se quer saber de quem
ela tinha medo, tem razão, não acredito que fosse de Molly Lasch. Eu acho que a pessoa que ela receava verdadeiramente era o Dr. Peter Black.
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Que é que se passa contigo, Cal? Não fizeste outra coisa a não ser refilar comigo, quando a pior coisa que pareço ter feito foi sugerir que te afastes daqui durante
alguns dias e que se calhar te faria bem jogar um pouco de golfe.
Jenna, achei que o simples facto de leres os jornais diários com toda a cobertura sobre a morte daquela enfermeira e a prisão da Molly podia ajudar-te a compreender
por que é que estou enervado. Deves aperceber-te, minha querida, de que uma fortuna vai escapar-nos por entre os dedos se a American National conseguir aquelas OCS
e depois avançar para uma aquisição hostil da Remington. Ambos sabemos que te casaste comigo por causa do que eu te podia dar. E estás disposta a descer o nível
de vida?
Estou disposta a admitir que lamento muito ter tirado o dia de folga atirou Jenna. Tinha seguido Cal para o seu gabinete, alarmada com a tensão óbvia que ele tinha
evidenciado à mesa do pequeno-almoço.
E se fosses visitar a tua amiga Molly? sugeriu ele. Tenho a certeza de que ela vai ficar encantada por ser consolada por ti.
A situação está realmente grave, não está, Cal? perguntou
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Jenna, calmamente. Mas vou dizer-te o seguinte, não como esposa mas como outra lutadora: eu conheço-te; por muito más que as coisas estejam, tu vais arranjar uma
maneira de sair a lucrar.
A gargalhada de Calvin Whitehall foi um resmungo curto e triste.
Obrigado, Jenna, eu estava mesmo a precisar de ouvir isso. Porém, acredito que tens razão.
Eu vou visitar Molly. Fiquei mesmo preocupada quando a vi na quarta-feira à noite. Estava terrivelmente deprimida. E quando falei com ela ontem, depois de a Sr.a
Barry se ter demitido, ela estava bastante afectada com o golpe.
Tu contaste-me.
Eu sei. E sei que concordas com a Sr.a Barry. Tu também não gostarias de estar a sós com Molly, pois não?
Precisamente.
Cal, a Sr.a Barry levou a Molly cerca de vinte comprimidos para dormir que pertenciam a um frasco que o médico receitou ao filho dela. Estou muito preocupada com
isso. Receio que como está tão deprimida se possa sentir tentada a...
A suicidar-se? Que ideia tão perfeitamente maravilhosa. Seria exactamente o que o médico receitou. Cal olhou para além de Jenna. Não faz mal, Rita, pode entrar com
a correspondência.
Quando a empregada entrou, Jenna rodeou a secretária e beijou a testa do marido.
Cal, não brinques, por favor. Honestamente, não penso que Molly esteja a pensar em suicidar-se. Tu ouviste-a na outra noite.
A minha opinião mantém-se. Ela estaria a fazer um favor a si mesma se optasse por essa saída. E também estaria a fazer um favor a muitas outras pessoas.
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Marta Jones sabia que apenas Wally tocaria à sua campainha com tanta persistência. Quando os toques começaram, ela estava no andar de cima a arrumar o armário das
roupas de cama; com um suspiro paciente, desceu apressadamente as escadas, com os joelhos artríticos a protestar a cada passo.
Wally tinha as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça baixa.
Posso entrar? perguntou, a voz pesarosa.
Sabes que podes entrar sempre que quiseres, querido.
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Ele entrou.
Não quero ir.
Onde é que não queres ir, querido?
Para a Califórnia. A mãe está a fazer as malas. Partimos amanhã de manhã. Eu não gosto de estar muito tempo no carro. Não quero ir. Vim despedir-me.
"Califórnia?", pensou Marta. "Que se passa?"
Tens a certeza de que a tua mãe disse Califórnia, Wally?
Sim, Califórnia. Tenho a certeza. Agitou-se e depois fez uma careta. Também me quero despedir de Molly. Não vou incomodá-la, mas não me quero ir embora sem lhe dizer
adeus. Acha que não faz mal eu ir dizer adeus a Molly?
Não vejo que mal poderia ter.
Vou vê-la esta noite murmurou Wally.
Que disseste, querido?
Tenho de ir. A mãe quer que eu vá à minha reunião.
É boa ideia. Tu sabes que gostas sempre dessas reuniões, Wally. Escuta, não é a tua mãe a chamar-te?
Marta abriu a porta. Edna estava nos degraus da casa dela, com o casaco vestido, a chamar o filho.
Wally está aqui gritouMarta. Anda, Wally. Acuriosidade fê-la correr pelo relvado sem se preocupar sequer em ir buscar um casaco. Edna, é verdade que vais de carro
para a Califórnia?
Wally, entra no carro implorou Edna Barry. Sabes que estás atrasado. Ele obedeceu com relutância, atirando com a porta do passageiro depois de entrar.
Edna voltou-se para a vizinha e sussurrou:
Marta, não sei se vou acabar na Califórnia ou em Tombuctu, mas sei que tenho de sair daqui. De cada vez que ligo para as notícias parece que oiço alguma coisa má
sobre Molly. A última é que vai haver uma reunião especial da comissão de liberdade condicional na segunda-feira. O delegado do Ministério Público quer que a sua
liberdade condicional seja revogada. Se isso acontecer, vai ter de cumprir o resto da sentença original pelo homicídio do Dr. Lasch.
Marta estremeceu.
Oh, Edna, eu sei. Ouvi isso nas notícias esta manhã e acho que é simplesmente terrível. Aquela pobre rapariga devia estar numa instituição, não numa prisão. Mas
não deves preocupar-te ao ponto de fugires daqui.
Eu sei. Agora tenho de ir. Falo contigo mais tarde. Quando voltou para sua casa, Marta estava gelada e decidiu que precisava de uma chávena de chá. Depois de o preparar,
sentou-se à mesa a bebericá-lo lentamente. "Pobre Edna", pensou. "Está a sentir-se
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culpada por deixar o trabalho com a Molly, mas é claro que não tinha outra alternativa. Wally tem de ser a sua preocupação principal."
"Pensando nisso", recordou a si mesma com um suspiro, "só serve para provar que o dinheiro não compra a felicidade. Todo aquele dinheiro da família Carpenter não
serviu de nada para Molly se manter longe de uma cela de prisão."Marta pensou na outra família rica e poderosa de Greenwich que estivera nas notícias nessa manhã.
Tinha lido sobre Natasha Colbert, que estivera em coma durante seis anos. Por fim, ela tinha morrido, e a pobre mãe, prostrada de desgosto, sofrera um ataque cardíaco
e, aparentemente, não conseguiria sobreviver. "Talvez Deus lhe esteja a fazer um favor se a levar, pobre mulher", reflectiu Marta, a abanar a cabeça. "Todo aquele
desgosto..."Empurrou a cadeira para trás e voltou para o primeiro andar, para acabar de arrumar o armário das roupas de casa. Enquanto trabalhava, uma sensação persistente
de preocupação não parava de a incomodar. Por fim, percebeu o que a estava a causar. "Edna teria um ataque se soubesse que eu disse ao Wally que não faria mal ele
ir despedir-se de Molly Lasch", pensou Marta. "Oh, bem", decidiu ela, "provavelmente, ele estava apenas a dizer disparates, como faz a maior parte do tempo. De qualquer
maneira, amanhã vai estar longe daqui. Não vale a pena perturbar Edna, mencionando-lhe a conversa. Ela já tem preocupações de sobra."
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Depois de deixar a irmã de Annamarie, Fran Simmons ficou sentada no carro durante alguns minutos, a reflectir sobre qual seria o melhor caminho a seguir. Uma coisa
era se os médicos Gary Lasch e Peter Black tinham dado a medicação errada a uma paciente, uma droga que a tinha mergulhado num coma irreversível, e depois tinham
escondido o seu erro. Por muito terrível que isso fosse, não se comparava com a deliberação de usarem uma droga experimental para acabar com a vida de um paciente.
Mas, aparentemente, era isso que Annamarie Scalli pensava que tinha acontecido.
"E se ela estava lá na altura e sabia que não tinha maneira de provar as suas suspeitas, como posso eu ter esperança de provar alguma coisa agora?", pensou Fran.
Segundo Lucy Bonaventure, Annamarie tinha dito que Peter Black
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fora a pessoa que não só cometera o erro como possivelmente matara também uma paciente mais idosa. Isso daria a Black um motivo suficiente para assassinar Gary Lasch?
A morte de Lasch eliminara, efectivamente, uma testemunha credível do seu crime.
"Seria possível", decidiu ela. "Se se acreditasse que um médico poderia matar a sangue-frio. Mas porquê?"
O carro estava frio. Fran ligou o motor, puxou imediatamente o botão da temperatura até ao máximo e acendeu o aquecimento. "Não foi apenas o ar que me gelou", pensou,
"também estou gelada por dentro. Qualquer que fosse o demónio em acção naquele hospital, seguramente causara bastante dor a muitas pessoas. Mas porquê? Porquê? Molly
foi castigada por um crime que estou agora certa de que não cometeu. Annamarie desistiu do seu bebé e do trabalho que adorava apenas para se castigar. Uma jovem
foi deixada num estado vegetativo por causa de uma droga experimental. Uma senhora de idade pode ter morrido prematuramente como parte da experiência.
"E esses são apenas os casos que eu conheço", pensou. "Quantos mais poderá haver? Ora, isto pode ter ainda continuação", pensou Fran com um sobressalto.
"Mas aposto que a chave está no relacionamento, ou no laço, ou no que quer que existiu entre Gary Lasch e Peter Black. Tem de existir um motivo para Lasch ter trazido
Black para Greenwich e lhe ter, literalmente, oferecido sociedade no hospital que pertencia à sua família."Uma mulher que andava a passear o cão passou pelo carro
e olhou para Fran, curiosa. "É melhor ir-me embora", pensou Fran.
Sabia onde tinha de ir a seguir falar com Molly e ver se conseguia alguma luz sobre o que estava por detrás da ligação entre Gary Lasch e Peter Black. Se conseguisse
determinar o que os tinha unido, então, talvez pudesse começar finalmente a compreender o que se passava no hospital.
Acaminho de Greenwich, telefonou para o escritório para confirmar se tinha alguma mensagem e soube que Gus Brandt queria falar com ela e dissera que era urgente.
Antes de passares a chamada, por favor, vai ver se o material do Departamento de Pesquisa sobre Gary Lasch e Calvin Whitehall já chegou pediu à sua assistente.
Está na sua secretária, Fran foi informada. Com aquela pilha para ler, não pedirá material de leitura durante uma semana, especialmente com todas as coisas que tem
sobre Calvin Whitehall.
Mal posso esperar para me atirar a isso. Agora, passa-me a Gus, por favor.
O patrão preparava-se para sair para o almoço.
Ainda bem que me apanhaste, Fran disse ele. Parece que na segunda-feira à tarde vais visitar a tua amiga à prisão. O delegado
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do Ministério Público disse, e passo a citar, que não tem dúvidas de que a liberdade dela será revogada. E no momento em que souber a notícia oficial, ela estará
a caminho da Prisão Niantic.
Eles não podem fazer isso a Molly! protestou Fran.
Ai isso é que podem. E eu acho que vão fazer. Ela safou-se bem da primeira vez porque reconheceu que tinha matado o marido, e no momento em que foi posta em liberdade
começou a afirmar que não tinha cometido o crime. Isso, por si só, é violação da liberdade condicional, miúda. Com uma nova acusação de homicídio às costas, como
é que votarias se estivesses a decidir se ela deve estar ou não atrás das grades? De qualquer maneira, faz uma peça sobre isso esta noite.
Está bem, Gus. Vemo-nos mais tarde disse Fran com o coração apertado.
Tinha planeado telefonar a Molly a seguir e dizer-lhe que precisava de falar com ela, mas o facto de Gus mencionar que ia almoçar dera-lhe uma ideia. "Susan Branagan,
a voluntária que trabalha na cafetaria do Hospital Lasch, mencionou que tinha recebido o pin de dez anos de serviço naquela unidade, o que significa que estava por
lá quando uma jovem entrou em coma irreversível há mais de seis anos", pensou Fran. "Não é o género de coisa que aconteça todos os dias." Ela devia lembrar-se de
quem era a jovem e do que lhe tinha acontecido.
"Falar com a família dessa jovem e tentar obter os pormenores do acidente poderia ser uma boa maneira de começar a verificar a história que Annamarie contou à irmã",
pensou Fran. "Mas espero não encontrar o Dr. Peter Black", pensou Fran. "Ele teria um ataque se soubesse que ando a fazer mais perguntas acerca do hospital."
Era uma e meia quando chegou à cafetaria do hospital. A hora do almoço estava no auge, e as voluntárias trabalhavam arduamente. Estavam duas mulheres atarefadas
atrás do balcão dos almoços, mas, para seu grande desapontamento, Fran viu que Susan Branagan não era nenhuma delas.
Há um lugar ao balcão, ou se quiser esperar um pouco está a ser levantada uma mesa, neste momento disse-lhe a hospedeira.
Suponho que a Sr.a Branagan não está de serviço hoje disse Fran.
Oh, sim. Está cá. Hoje anda a servir às mesas. Ali vem ela agora, a sair da cozinha.
Será que posso esperar por uma das mesas dela?
Está com sorte. A que está a ser levantada pertence à área dela. Parece estar quase pronta.
A empregada conduziu-a pela sala, indicou-lhe uma pequena mesa e entregou-lhe a ementa. Instantes depois, uma voz alegre dirigiu-se a ela.
Ora boa tarde. Já decidiu o que quer ou precisa de mais algum tempo?
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Fran ergueu os olhos e percebeu imediatamente que Susan Branagan não só se lembrava dela como agora sabia quem ela era. Mantendo os dedos cruzados para não ser mal
recebida, disse:
É bom voltar a vê-la, Sr.a Branagan. Susan Branagan resplandeceu de prazer.
Não sabia que estava a falar com uma pessoa famosa quando a senhora e eu estivemos a conversar no outro dia, Menina Simmons. Logo que descobri, comecei a vê-la no
noticiário da noite. Adoro as suas reportagens sobre o caso da Molly Lasch.
Vejo que neste momento está ocupada, mas gostava de falar consigo durante alguns minutos, se estiver disposta a isso. Foi-me muito útil no outro dia.
E, desde que falámos, aquela pobre rapariga sobre quem me fez perguntas, aquela enfermeira, Annamarie Scalli, foi assassinada. Mal consigo acreditar. Acha que foi
mesmo Molly Lasch quem cometeu o crime?
Não, não acho, Sr.a Branagan. Vai sair do serviço daqui a pouco tempo?
Às duas horas. Nessa altura, isto está praticamente vazio. Por falar nisso, é melhor fazer o seu pedido.
Fran olhou de relance para a ementa.
Quero uma sanduíche mista e um café, por favor.
Vou fazer já o pedido e, se não se importar de esperar, vou gostar muito de voltar a conversar consigo mais tarde.
Meia hora depois, Fran observou a cafetaria. "Está exactamente como ela disse", pensou. "Era como se tivesse havido um exercício de prevenção de incêndios.
De repente, a sala estava quase vazia. Tanto o barulho dos pratos como o murmúrio das conversas tinham diminuído drasticamente. Susan Branagan tinha levantado a
mesa e prometeu que voltaria daí a pouco.
Quando voltou, já não usava o avental de voluntária e trazia uma chávena de café em cada mão.
Muito melhor disse, com um suspiro, ao pousar o café e sentando-se na cadeira à frente de Fran. Como lhe disse, adoro este trabalho. O problema é que os meus pés
não gostam tanto como o resto de mim. Mas não veio aqui para falar sobre os meus pés, e acabo de me lembrar que tenho marcação no cabeleireiro daqui a meia hora,
por isso, em que é que posso ajudá-la hoje?
"Gosto muito desta senhora", pensou Fran. "Ela não se importa de ir directamente ao assunto."
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Sr.a Branagan, no outro dia disse-me que já tem o seu pin de dez anos de serviço...
Isso mesmo. E, se Deus quiser, um dia vou receber o dos vinte.
Tenho a certeza de que receberá. Gostava de lhe fazer umas perguntas sobre uma coisa que aconteceu no hospital há bastante tempo. Na verdade, foi pouco tempo antes
de o Dr. Morrow e de o Dr. Lasch serem assassinados.
Oh, Menina Simmons, acontecem tantas coisas aqui protestou a Sr.a Branagan. Não sei se poderei ajudá-la.
Mas talvez se lembre deste incidente. Parece que uma mulher foi trazida para cá após ter sofrido um acidente quando andava a correr e ficou num estado de coma irreversível.
Pensei que talvez soubesse alguma coisa sobre ela.
Se eu sei alguma coisa! exclamou Susan Branagan. Está a falar de Natasha Colbert. Ela esteve na nossa residência de cuidados prolongados durante anos. Por acaso,
morreu a noite passada.
Morreu a noite passada!
Sim. É muito triste. Ela só tinha vinte e três anos quando teve o acidente, sabia? Caiu quando andava a correr e fez uma paragem cardíaca na ambulância. A senhora
tem de conhecer a família Colbert; são aqueles que têm a grande cadeia de jornais, por isso são muito ricos. Depois de a rapariga ter tido o acidente, a mãe e o
pai doaram dinheiro para a residência de cuidados prolongados, que ficou com o nome dela. Olhe para o outro lado do relvado... é aquele edifício encantador de dois
andares que está ali.
"Paragem cardíaca quando estava na ambulância", pensou Fran. "Quem era o motorista da ambulância? Quem eram os paramédicos?" Precisaria de falar com eles. Mas não
deveria ser muito difícil descobri-los.
A noite passada, a mãe teve um colapso quando Tasha morreu. Está aqui neste momento, e disseram-me que também teve um ataque cardíaco. SusanBranaganbaixouavoz. Está
a ver aquele senhor bem-parecido ali ao fundo? É um dos filhos da Sr.a Colbert. São dois. Um deles está permanentemente com ela. O outro desceu para almoçar há cerca
de uma hora.
"Se a Sr.a Colbert morrer por causa da tensão da morte da filha, então, é mais uma vítima do que está a acontecer aqui, seja o que for", pensou Fran.
É tão doloroso para os filhos disse Susan Branagan. Claro que, objectivamente, perderam a irmã há seis anos, mas, mesmo assim, é duro quando o fim chega realmente.
Baixou a voz.
Ouvi dizer que a Sr.a Colbert ficou um pouco louca após a morte
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de Tasha. A enfermeira disse que ela se pôs a gritar que a filha tinha acordado do coma e falado com ela... o que, como é óbvio, era completamente impossível. Ela
afirmou que a Tasha tinha dito alguma coisa do género: "Dr. Lasch, tropecei no atacador e estatelei-me no chão", e depois: "Olá, mãe."
Fran sentiu a garganta fechar-se. Quase não conseguiu proferir as palavras.
Na altura, a enfermeira estava com a Sr.a Colbert no quarto?
Tasha tinha uma suite, e a Sr.a Colbert tinha mandado a enfermeira para a sala de estar. Queria estar sozinha com a filha. Mas quando Tasha faleceu a Sr.a Colbert
não estava sozinha. No último minuto, o médico chegou lá. Ele diz que não ouviu nada e que a Sr.a Colbert estava a ter uma alucinação.
Quem era o médico? perguntou Fran, embora tivesse a certeza de que já sabia.
O director do hospital, o Dr. Peter Black.
"Se as suspeitas de Annamarie eram válidas há mais de seis anos e se a Sr.a Colbert tem razão em relação ao que aconteceu a noite passada, parece que, depois de
destruir Tasha, Black continuou a fazer experiências nela", pensou Fran.
Impotente, olhou para o outro lado do aposento onde se encontrava o homem que Susan Branagan lhe tinha indicado. Queria correr para ele, avisá-lo de que a mãe estava
em perigo por causa do Dr. Peter Black, e que ele devia tirá-la do hospital antes que fosse tarde de mais.
Oh, ali está o Dr. Black agora disse Susan Branagan. Está a aproximar-se do Sr. Colbert. Espero que não sejam más notícias.
Enquanto observavam, Peter Black falou calmamente com o homem, que acenou, ergueu o olhar e começou a segui-lo para fora da cafetaria.
Valha-me Deus! disse a Sr.a Branagan. Eu sei que são más notícias.
Fran não reagiu. Quando ia a sair, Peter Black avistou-a e os seus olhares cruzaram-se. O dele foi frio, zangado, ameaçador certamente, não os olhos de uma pessoa
cuja missão era curar.
"Vou apanhar-te", pensou Fran. "Nem que seja a última coisa que faça, vou apanhar-te!"
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Sempre que uma situação problemática chegava ao nível de crise, Calvin Whitehall tinha a capacidade invejável de eliminar todos os vestígios de frustração e ira
da sua mente. Essa capacidade foi colocada à prova com o telefonema que recebeu de Peter Black, às quatro e meia daquela tarde.
Deixa-me ver se percebo disse ele, lentamente. Estás a dizer-me que Fran Simmons estava sentada na cafetaria do hospital, na coscuvilhice com uma das voluntárias,
quando foste dizer ao filho da Barbara Colbert que a mãe tinha falecido?
Era uma pergunta retórica.
Depois falaste com a voluntária e perguntaste-lhe a natureza exacta da conversa com a Fran Simmons?
Peter Black estava a telefonar da biblioteca de sua casa e com o segundo uísque na mão.
A Sr.a Branagan já tinha saído quando eu consegui deixar os filhos da Sr.a Colbert sem levantar suspeitas. Telefonei para casa dela de quinze em quinze minutos até
a apanhar. Ela tinha ido ao cabeleireiro.
Não estou interessado em saber onde é que ela esteve disse Whitehall, friamente. Estou interessado no que ela disse à Simmons.
Estiveram a falar sobre Tasha Colbert disse Peter Black, pesarosamente. Simmons perguntou-lhe se ela sabia alguma coisa sobre uma paciente jovem que tinha tido um
acidente e depois mergulhara num coma irreversível há mais de seis anos. Aparentemente, a Sr.a Branagan identificou a paciente e esclareceu a Simmons com todos os
pormenores que conhecia.
Sem dúvida, isso incluía a declaração de Barbara Colbert de que ouvira a filha falar antes de morrer?
Sim. Cal. Que é que vamos fazer?
Eu vou salvar a tua pele. Tu vais acabar a tua bebida. Nós vamos falar mais tarde. Adeus, Peter.
O clique do auscultador a ser pousado foi quase inaudível. Peter Black terminou de um gole o resto do conteúdo do copo e encheu-o imediatamente.
Calvin Whitehall deixou-se ficar sentado durante vários minutos, quase imóvel, enquanto considerava e rejeitava possíveis caminhos a seguir. Passado algum tempo,
tomou uma decisão, analisou-a cuidadosamente e ficou satisfeito por poder eliminar dois dos seus problemas West Redding e Fran Simmons.
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Marcou o número de West Redding. O telefone tocou uma dúzia de vezes antes de alguém atender.
Calvin, tenho estado a ver a gravação. A excitação na voz do médico fazia-o parecer quase um jovem. Compreendes o que foi alcançado? Que providências tomaste para
a conferência de imprensa?
É exactamente por causa disso que estou a telefonar, doutor disse Cal, suavemente. O senhor não vê televisão, por isso não saberia do que estou a falar, mas existe
uma jovem que está a atingir uma grande importância nacional como jornalista de investigação e com quem estou a combinar uma viagem até aí para fazer uma entrevista
preliminar consigo. Ela compreende que temos de manter sigilo absoluto, mas dará imediatamente início aos planos para um especial de trinta minutos que irá para
o ar de hoje a uma semana. Tem de compreender que é essencial aguçar a curiosidade do público para que, quando esta descoberta científica assombrosa for desvendada,
o programa seja visto por uma forte audiência nacional. Vai ser tudo planeado com muito cuidado.
Whitehall obteve a resposta que antecipara.
Estou muito contente, Calvin. Calculo que teremos alguns pequenos problemas legais para resolver, mas têm pouca importância tendo em conta o significado do que eu
alcancei. Aos setenta e seis anos de idade, quero ver as minhas descobertas reconhecidas antes de o meu tempo se esgotar.
E verá, doutor.
Acho que não me disse o nome da jovem.
É Simmons, doutor. Fran Simmons.
Calvin desligou o telefone e premiu o botão do intercomunicador que o punha em contacto com o apartamento da garagem.
Vem cá, Lou disse.
Embora Cal tivesse não tivesse anunciado planos para sair nessa noite e Jenna tivesse saído há pouco tempo levando o seu próprio carro, Lou Knox estava à espera
da chamada. Tinha visto e ouvido o suficiente para saber que Cal estava a ter sérios problemas e que, mais cedo ou mais tarde, seria chamado para os resolver.
E, como sempre, tinha razão.
Lou disse Cal, o Dr. Logue, de West Redding, está a tornar-se um problema sério, do mesmo modo que a Fran Simmons.
Lou esperou.
Acredites ou não, vou combinar um encontro para a Menina Simmons entrevistar o bom doutor. Acho que devias estar por perto quando isso acontecer. Agora, devo dizer-te
que o Dr. Logue tem muitos materiais combustíveis no laboratório da quinta. O laboratório situa-se no primeiro andar, mas é bastante acessível graças a uma
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escada exterior que termina num alpendre nas traseiras e que dá acesso directo a ele. A janela voltada para o alpendre fica sempre ligeiramente aberta para ventilação.
Estás a seguir o meu raciocínio, não estás, Lou?
- Sim, Cal.
Dr. Whitehall, Lou, por favor. Se não for assim, podes esquecer-te à frente de outras pessoas.
Desculpe, Dr. Whitehall.
Existe um depósito de oxigénio claramente marcado no laboratório. Tenho a certeza de que um tipo tão inteligente como tu consegue atirar um objecto em chamas para
dentro daquela sala, descer rapidamente os degraus e afastar-se da casa antes de o tanque explodir. Não concordas?
Concordo, Dr. Whitehall.
Esta missão pode afastar-te daqui durante algumas horas. É claro que qualquer serviço de horas extraordinárias que faças para mim é sempre remunerado generosamente.
Tu sabes isso.
Sim, senhor.
Tenho estado a dar voltas à cabeça para encontrar a melhor maneira de persuadir a Menina Simmons para visitar a casa da quinta. Naturalmente, deve ser mantido um
segredo absoluto em relação à sua viagem. Portanto, parece-me que deve receber uma informação à qual não consiga resistir, preferivelmente de uma fonte anónima.
Percebes onde quero chegar?
Lou sorriu. -Eu.
Exactamente. Que me dizes, Lou?
"Que me dizes?" era o habitual toque de humor de Cal quando estava satisfeito por um bom plano estar prestes a ser concretizado.
Tu conheces-me disse Lou, engolindo o nome de Cal antes de o proferir. Eu adoro brincar à Garganta Funda.
E já o fizeste muito bem antes. Desta vez, acho que deve ser particularmente interessante. E compensador, Lou. Não te esqueças disso.
Enquanto sorriam um para o outro, Lou pensou no pai de Fran e na dica fabulosa que fizera chegar aos seus ouvidos, confidenciando-lhe que ouvira Cal falar de riquezas
que se podiam ganhar de um dia para o outro com umas acções que iam ser admitidas no mercado de capitais. Simmons tinha tirado apressadamente quarenta mil dólares
do fundo da biblioteca, pensando que os devolveria dentro de alguns dias. O que levara Simmons a acabar com a vida fora um segundo levantamento, com a sua assinatura
falsificada, que tinha aumentado o défice para quatrocentos mil dólares. Ele tinha plena consciência de
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que, depois de admitir o primeiro levantamento ilegal, ninguém acreditaria que não era culpado do segundo.
Lou recordou que, daquela vez, Cal tinha sido especialmente generoso. Tinha sido autorizado a ficar com os primeiros quarenta mil dólares que Simmons lhe enfiara
ansiosamente na mão e com certificados de acções sem valor que, ingenuamente, Simmons pusera em nome de Lou.
Tendo em conta a nossa história, parece-me muito apropriado que seja eu a fazer o telefonema para a Fran Simmons, senhor disse Lou para o antigo companheiro de escola.
E mal posso esperar para o fazer.
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Logo que saiu do hospital, Fran telefonou a Molly do carro.
Preciso realmente de te ver disse, com urgência.
E eu estou aqui replicou Molly. Aparece. Jenna está comigo, mas não pode demorar.
Espero ainda apanhá-la. Tenho andado a tentar marcar um encontro para falar com ela e com o marido. Estou aí dentro de alguns minutos.
"Não tenho muito tempo", pensou Fran. Viu as horas e calculou que na próxima meia hora tinha de partir para Nova Iorque. "Mas quero ver com os meus próprios olhos
o que Molly anda a fazer. É impossível ela não ter recebido ainda a notificação para a reunião da comissão de liberdade condicional marcada para segunda-feira."
Ocorreu-lhe que, se Jenna ainda lá estivesse, não podia perguntar a Molly por que é que Gary Lasch tinha convidado Peter Black para sócio do hospital. "De certeza
que ela ia contar ao marido. Obviamente, Fran apercebeu-se de que, dada a amizade entre as duas, de qualquer maneira, Molly podia contar a Jenna tudo o que tinham
dito.
Às dez para as três, Fran virou para o caminho de acesso à casa de Molly. Havia um Mercedes descapotável estacionado à frente da casa, e soube que tinha de ser o
carro de Jenna.
"Não a vejo há tantos anos", pensou Fran. "Ainda será a beldade que era naquela altura?" Por momentos, a velha sensação de insuficiência envolveu-a enquanto pensava
nos anos que vivera em Greenwich e andara na escola da região.
Quando estavam na Academia Cranden, toda a gente sabia que
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a família de Jenna não tinha dinheiro. A própria Jenna costumava brincar: "O meu trisavô ganhou uma fortuna e os descendentes gastaram-na toda!" Mas a sua linhagem
de sangue azul era irrepreensível. Tal como os antepassados de Molly, os de Jenna tinham vindo de Inglaterra para Boston, no final do século dezassete, como representantes
ricos da Coroa, não como a maioria dos que chegavam com a esperança de uma vida melhor no Mundo Novo.
Molly abriu a porta quando Fran subiu o carreiro. Obviamente, tinha estado à sua espera. Fran ficou espantada com a aparência de Molly. Estava fantasmagoricamente
pálida e tinha olheiras profundas à volta dos olhos.
A hora do reencontro disse ela. Jenna esperou para te ver. Jenna estava no escritório a ver um monte de fotografias.
Levantou-se de um salto quando viu Fran.
Voltaremos a encontrar-nos cantarolou, enquanto se precipitava pela sala para abraçá-la.
Não me recordes essa história idiota que escrevi para a aula implorou Fran com uma careta exagerada. Depois de um abraço rápido, recuou. Tem paciência, Jenna, não
achas que é mais do que tempo de começares a perder esse aspecto fabuloso?
Jenna estava realmente espectacular. Os cabelos castanho-escuros caíam numa elegância casual até um ponto abaixo da gola do casaco; os enormes olhos cor de avelã
estavam resplandecentes; o corpo magro movia-se com um toque de elegância descontraída e aparentemente inconsciente, como se a beleza que ela possuía e todos os
elogios que recebia não fossem mais do que merecidos.
Por um instante, Fran teve a impressão de que o relógio tinha andado para trás. O mais próximo que ela tinha estado de Molly e Jenna durante aqueles quatro anos
na academia fora na altura em que tinham trabalhado juntas no livro de curso. Hoje, aquela sala lembrou-lhe o gabinete dos livros de curso, com os seus montes de
papéis e ficheiros, as fotografias espalhadas, a pilha de revistas velhas.
Tem sido um dia produtivo disse Molly. Jenna chegou cá às dez horas e não parou de trabalhar desde essa hora. Temos estado a ver tudo o que estava na secretária
de Gary e nas estantes desta sala quando era o escritório dele. Livrámo-nos de imensas coisas.
Não tem sido um dia divertido, mas há tempo para isso mais tarde, não há, Fran? Quando este pesadelo terminar, Molly vem para a cidade e fica no apartamento comigo.
Vamos passar os dias a ser apaparicadas no maravilhoso salão de beleza novo que eu descobri. Vamos fazer uma maratona de compras que fará o termo "excessivo" parecer
inadequado, e depois vamos jantar aos melhores restaurantes de Nova Iorque. O Lê Cirque 2000 será o nosso pontapé de saída.
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Falou com tanta confiança que, por momentos, Fran suspendeu a realidade e acreditou realmente no que ela estava a dizer, ao ponto de ter a sensação de estar a ser
posta de parte e de sentir vontade de ser incluída nos planos. "Uma vez mais, sombras do passado", pensou.
Eu já desisti de acreditar em milagres, mas se acontecesse um, então, Fran seria seguramente uma das celebrantes disse Molly. Sem vocês as duas ao meu lado, eu não
teria conseguido chegar até aqui.
Vais conseguir safar-te, prometo, pela minha honra como esposa de Cal, o Poderoso declarou Jenna com um sorriso. Por falar nele, Fran, receio que este assunto da
fusão esteja a mantê-lo ocupado e irritado ao mesmo tempo, o que é uma combinação terrível. Posso encontrar-me contigo quase todos os dias da próxima semana, mas
seria melhor não tentares marcar nada com ele.
Abraçou Molly. (
Tenho de voar, e a Fran pode querer conversar contigo. É francamente bom voltar a ver-te, Fran. Na próxima semana, certo?
Fran pensou depressa. Se a liberdade condicional de Molly fosse revogada, isso aconteceria na segunda-feira, e Jenna quereria seguramente estar com ela.
Que tal na terça-feira, por volta das dez, no teu escritório?
Perfeito.
Molly acompanhou Jenna à porta. Quando voltou para o escritório, Fran disse:
Molly, tenho de voltar para Nova Iorque o mais depressa possível, por isso vou ser rápida. Tenho a certeza de que já sabes que a comissão de liberdade condicional
vai reunir-se na segunda-feira.
Oh, sim. Não só ouvi falar como recebi uma notificação para estar presente. O rosto e a voz de Molly estavam calmos.
Eu sei o que estás a pensar, mas aguenta, Molly. Juro-te que vai acontecer alguma coisa. Hoje falei com a irmã da Annamarie e ela contou-me coisas chocantes sobre
o Hospital Lasch. Envolvem o teu marido e Peter Black.
Peter Black não matou Gary. Eles eram muito amigos.
Molly, se metade das coisas que eu suspeito em relação ao Peter Black forem verdadeiras, ele é um homem maquiavélico, capaz de cometer qualquer crime. Há uma coisa
que eu preciso de saber, e com sorte tens a resposta: por que é que o teu marido convidou Peter Black para vir para cá e ser sócio dele no hospital? Eu fiz uma investigação
sobre o Black. Ele não era nada de especial como médico e não tinha um tostão para contribuir para a sociedade. Ninguém dá metade de um hospital a um amigalhaço
sem mais nem menos... e, aliás, eu não acredito que Peter Black fosse amigo de Gary Lasch. Sabes por que motivo é que Gary trouxe o Black para cá?
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Peter já estava no hospital quando eu comecei a sair com Gary. O assunto nunca foi mencionado.
Eu estava com receio disso. Não sei o que procuro, Molly, mas faz-me um favor e deixa-me voltar para verificar as coisas do Gary antes de as deitares fora. Talvez
encontre alguma coisa útil.
Se quiseres disse Molly com indiferença. Já tenho três sacos cheios de lixo na garagem. Vou guardá-los no armário de arrumos para ti. E quanto às fotografias?
Fica com elas por agora. Podemos querer algumas quando fizermos o programa.
Oh, sim, o programa! Molly suspirou. Foi apenas há dez dias que te pedi para iniciares uma investigação que pensei que provaria a minha inocência? Oh, a ingenuidade
do cordeiro disse ela com um sorriso triste.
"Desistiu de ter esperança", pensou Molly. "Sabe que todas as probabilidades apontam para que, na segunda-feira, ela volte para a prisão para cumprir o tempo que
lhe resta da pena original de dez anos, e isso antes mesmo do novo julgamento pelo homicídio de Annamarie Scalli."
Olha para mim, Molly! ordenou.
Eu estou a olhar para ti, Fran.
Tens de confiar em mim, Molly. Eu estou convencida de que o homicídio de Gary é apenas um de uma série de homicídios que seguramente tu não poderias ter cometido
e não cometeste. Acredita em mim, eu vou provar isso, e, quando o fizer, tu vais ser completamente exonerada.
"Ela tem de acreditar nisso", pensou Fran, com esperança de que tivesse sido suficientemente convincente. Era notório que Molly estava a afundar-se numa depressão
apática.
E depois faço um tratamento completo de corpo e cabelo e janto nos melhores restaurantes de Nova Iorque. Fez uma pausa e abanou a cabeça. Tu e a Jenna são grandes
amigas, mas acho que estão ambas a misturar realidade e ficção. Infelizmente, o meu destino está traçado.
Molly, vou para o ar hoje, por isso tenho de me preparar. Por favor, não deites nada disto fora. Fran olhou de relance para o sofá. As fotografias estavam espalhadas,
e viu que Gary Lasch parecia estar em todas elas.
Molly reparou que Fran estava a olhar para as fotografias.
Jenna e eu estávamos a lembrar os velhos tempos antes de tu chegares. Passámos alguns tempos bons, os quatro, ou pelo menos eu pensava que sim. Só Deus sabe o que
o meu marido pensava naquela altura. Provavelmente, uma coisa do género: "Céus, tenho de sair mais uma noite com a mulherzinha chata."
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Pára com isso, Molly! Pára de te magoar implorou Fran.
Magoar-me? Por que é que eu faria uma coisa dessas? Essa missão já pertence ao mundo inteiro. Não precisam da minha ajuda. Fran, tens de voltar para Nova Iorque,
por isso vai-te embora. Não te preocupes comigo. Oh, espera... uma pergunta rápida. Estas revistas velhas servem-te para alguma coisa? Dei-lhes uma vista de olhos,
mas só contêm artigos médicos que Gary estava a ler. Pensei que poderia lê-los, mas falta-me a curiosidade intelectual.
Ele escreveu algum dos artigos?
Não. Apenas marcou os que lhe interessavam.
"O que interessava Gary Lasch como médico interessa-me certamente a mim", pensou Fran.
Deixa-me levar as revistas comigo, Molly. Eu dou-lhes uma vista de olhos e depois deito-as fora. Baixou-se e pegou na pesada pilha que estava no chão.
Molly abriu-lhe a porta. Fran parou alguns instantes, dividida entre a necessidade de se ir embora e a relutância em deixar Molly naquele estado de espírito obviamente
abatido.
Algumas lembranças, Molly?
Pensei que estava a ter algumas, mas, como tudo o resto, parecem apenas som e fúria e não significam nada. A minha conversa fiada sobre a memória foi certamente
um erro, não te parece? Ao que tudo indica, na segunda-feira, vão oferecer-me mais quatro anos e meio de cama e comida grátis, e não tem nada a ver com o tempo que
terei de cumprir quando me condenarem e sentenciarem pelo homicídio de Annamarie Scalli.
Não desistas, Molly!
Não desistas, Molly! Foi o refrão que passou pela cabeça de Fran, quando, com olhares preocupados para o relógio do tablier, conduziu pelo trânsito mais denso do
que o habitual a caminho de Nova Iorque.
74
Eu não quero ir para a Califórnia, mãe. O tom de Wally Barry tinha-se tornado progressivamente mais beligerante à medida que o dia avançava.
Não vamos falar mais sobre esse assunto, Wally retorquiu a mãe com firmeza.
Impotente, Edna observou o filho a bater com a porta da cozinha
230
e a subir ruidosamente as escadas. Ao longo do dia tinha-se recusado a tomar os medicamentos e ela começava a ficar preocupada.
"Tenho de o afastar daqui", pensou. "Quando ele for para a cama, vou pôr alguns comprimidos num copo de leite morno. Isso vai fazê-lo acalmar e dormir."
Olhou para o prato com o jantar de Wally, em que este não tocara. Normalmente, o apetite de Wally era bastante bom e naquela noite, numa tentativa de lhe agradar,
Edna tinha-lhe preparado a sua refeição preferida costeletas de vitela, espargos e puré de batata. Mas, ao invés de comer, ele tinha ficado sentado à mesa a balbuciar
para si mesmo, numa atitude intratável. Esta noite, as vozes dentro da sua cabeça estavam a falar com ele. Edna percebeu e ficou preocupada.
O telefone tocou. Tinha a certeza de que era Marta; precisava de tomar uma decisão rápida. Teria sido agradável tomar uma chávena de chá rápida com Marta, mas não
seria boa ideia. Se Wally recomeçasse a falar sobre a chave e sobre a noite em que o Dr. Lasch morrera, Marta podia começar a levá-lo a sério.
"Provavelmente, é tudo imaginação dele", disse Edna para si mesma, para se tranquilizar, como fazia sempre que Wally mencionava a noite do crime. "E se não for tudo
imaginação dele?", pensou fugazmente, e depois esqueceu o assunto. "Mesmo que ele estivesse lá, o que aconteceu naquela noite não foi seguramente por culpa dele."
O telefone estava a tocar pela quarta vez, por isso finalmente atendeu.
Tinha sido muito difícil para Marta marcar o número de Edna. Chegara à conclusão de que seria melhor avisá-la sobre ter dito a Wally que não fazia mal ele ir despedir-se
de Molly Lasch. Ia sugerir que talvez na manhã seguinte, no caminho, Edna pudesse passar pela casa de Molly e deixar Wally falar com ela. Marta tinha a certeza de
que ele ficaria satisfeito com isso.
Quando Edna atendeu o telefone, ela disse:
Tinha pensado passar por aí para me despedir de ti e do Wally, se for conveniente.
Edna tinha a resposta na ponta da língua.
Marta, para te dizer a verdade, estou tão atrasada com as malas e com os preparativos que é melhor nem sequer te deixar entrar agora. No minuto em que fizer um intervalo
e me sentar, sei que não conseguirei fazer mais nada esta noite. E se viesses de manhã e tomasses o pequeno-almoço connosco?
"Bem, não posso impor-lhe a minha presença", pensou Marta, e ela parece realmente cansada. Não me apetece nada preocupá-la."
Espero que Wally esteja a ajudar-te.
231
Wally já está lá em cima no quarto a ver televisão disse Edna. Teve um dos seus dias difíceis, por isso vou pôr uma dose extra de medicamentos no leite morno e vou
levar-lho agora.
Oh, então ele vai conseguir descansar um pouco concordou Marta.
Desligou, aliviada por pensar que Wally estava em segurança no seu quarto e que em breve estaria a dormir. "Deve ter desistido da ideia de ir ver Molly esta noite",
decidiu Marta. "Menos uma coisa para ela se preocupar."
75
Entre as histórias mais importantes do noticiário daquela noite contava-se a da morte de Natasha Colbert, após seis anos num coma irreversível, seguida do falecimento,
menos de vinte e quatro horas depois, da mãe, a influente e filantropa Barbara Canon Colbert.
Fran sentou-se à secretária do estúdio e viu, com uma expressão sombria, as imagens no ecrã Tasha, radiante e viva, com flamejantes cabelos ruivos; a sua mãe bonita
e elegante. "Peter Black matou-vos a ambas!", pensou Fran. "Embora, realisticamente, talvez nunca consiga provar isso."
Tinha falado com Philip Matthews e ouvira a sua lúgubre previsão de que quase de certeza Molly estaria na prisão na segunda-feira à tarde.
Falei alguns momentos com ela depois de tu saíres disse Philip. Depois telefonei para o Dr. Daniels. Ele vai vê-la esta noite; concorda que, se ela for presa na
reunião da comissão de liberdade condicional na segunda-feira, provavelmente, terá um colapso completo. Eu estarei com ela, é claro, e ele também quer estar lá,
para jogar pelo seguro.
"Aqui está uma ocasião em que odeio o meu trabalho", pensou Fran, quando recebeu o sinal de que estava no ar.
A comissão de liberdade condicional do Connecticut convocou uma reunião de emergência para segunda-feira à tarde, sugerindo a forte probabilidade de que Molly Carpenter
Lasch voltará para a prisão para acabar de cumprir o que lhe faltava da sentença original de dez anos pela morte do marido, o Dr. Gary Lasch.
Concluiu a sua reportagem, dizendo:
No último ano, neste país, três assassinos condenados foram
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exonerados dos crimes que os tinham levado à prisão, graças à obtenção de novas provas ou à confissão do verdadeiro culpado. O advogado de Molly Lasch encetou uma
batalha incessante para contrariar ou anular a acusação, bem como para provar que ela está inocente da acusação de homicídio que lhe foi imputada na morte de Annamarie
Scalli.
Com um suspiro de alívio, Fran soltou o microfone e levantou-se. Por pouco, não chegava à estação a tempo de ir para a maquilhagem e vestir um casaco limpo. Não
tinha tido tempo para mais do que acenar a Tim enquanto corria para o set. Estava a passar um anúncio entre as suas reportagens e ele chamou-a:
Fran, espera por mim. Quero falar contigo.
A caminho do estúdio, tinha deixado as revistas que Molly lhe dera em cima da secretária, e não fizera mais do que olhar de relance para o material sobre Lasch e
Whitehall que requisitara ao Departamento de Pesquisa. Agora, enquanto esperava por Tim, puxou-o para si, ansiosa por começar.
Ao folhear o material de pesquisa, viu que as páginas sobre Calvin Whitehall e o Dr. Gary Lasch pareciam pormenorizadas e extremamente meticulosas. "Parece que desta
vez o pessoal da pesquisa esmerou-se", pensou, agradecida. "Tenho um palpite de que esta noite vou ler imenso."
Deves estar a pensar ler imenso. Fran ergueu os olhos. Tim estava à porta.
Pede um desejo depressa disse-lhe ela. Disseste exactamente aquilo em que eu estava a pensar, e quando isso acontece consegues tudo o que pedires.
Nunca ouvi essa, mas de qualquer maneira é fácil. Cá vai: desejo que comas um hambúrguer comigo. Que tal? perguntou com uma gargalhada. Telefonei para a minha mãe
hoje, e quando lhe contei que te deixei pagar o jantar no outro dia ela gritou comigo. Disse que não concorda com esta mania de os homens e as mulheres dividirem
contas, a não ser que se trate de um encontro de negócios ou de uma dificuldade financeira. Disse que, com o que eu ganho e com a minha ausência total de responsabilidades,
não devia ser tão avarento. Sorriu. Acho que ela estava certa.
Não tenho a certeza disso, mas sim, adorava ir comer um hambúrguer... Se não te importas que seja rápido. Fran apontou para a pilha de dossiers e revistas. Preciso
de começar a ler tudo isto esta noite.
Tive muita pena quando soube da reunião da comissão de liberdade condicional. Não é bom para Molly, pois não?
Não, não é.
Como está a correr a investigação? Fran hesitou.
255
Há alguma coisa terrivelmente errada, até bizarra, a acontecer no Hospital Lasch, mas, para ser franca, como ainda não tenho a mais pequena prova, nem sequer devo
falar no assunto.
De qualquer maneira, talvez seja boa ideia fazeres um intervalo sugeriu Tim. O P. J.s está bem para ti?
Claro que sim, e estarei a dois minutos de casa.
Com um movimento ágil, Tim pegou nas revistas e no material de pesquisa da secretária dela.
Queres todas estas coisas?
Sim. Vou ter o fim-de-semana inteiro para estudar isso.
Parece divertido. Vamos?
Enquanto comiam hamburguers no P. J. Clarke's falaram sobre basebol o início dos treinos da Primavera e as forças e fraquezas dos vários jogadores e equipas.
É melhor eu acautelar-me. Não tarda, ficas com o meu programa de desporto disse-lhe Tim, enquanto pagava a conta.
Se calhar, fazia melhor trabalho lá do que estou a fazer agora replicou Fran, amargamente.
Tim insistiu em acompanhar Fran até ao apartamento desta.
Não vou deixar-te carregar toda esta tralha disse ele. Partias o braço. Mas garanto-te que me vou logo embora.
Ao saírem do elevador no andar dela, ele mencionou as mortes de Natasha e Barbara Colbert.
Eu corro de manhã disse ele. E hoje, enquanto andava alegremente a correr, comecei a pensar como a Tasha Colbert saiu uma manhã para correr, como eu faço, tropeçou
num atacador solto e caiu e nunca mais voltou a pensar.
"Tropeçou num atacador solto?", pensou Fran, enquanto rodava a chave na fechadura e abria a porta. Acendeu a luz.
Onde é que queres que ponha isto? perguntou Tim.
Em cima dessa mesa, por favor.
Claro. Pousou as coisas e virou-se para sair. Acho que o motivo por que me lembrei tanto de Tasha Colbert foi porque ela deu entrada no hospital enquanto a minha
avó lá estava.
- Sim?
Tim ia a sair para o corredor.
Sim. Eu estava a visitá-la quando Tasha foi trazida uma tarde com paragem cardíaca. Estava apenas dois quartos a seguir ao da minha avó. A avó morreu no dia seguinte.
Ficou em silêncio durante alguns instantes e depois encolheu os ombros. Oh, paciência. Boa noite, Fran. Pareces cansada. Não trabalhes até muito tarde. Virou-se
e afastou-se rapidamente pelo corredor, não vendo a expressão tensa que se estampara no rosto da colega.
234
Fran fechou a porta e encostou-se a ela. Com todas as fibras do seu ser, teve a certeza de que a avó de Tim tinha sido a senhora de idade a que Annamarie Scalli
se referira, a que tinha problemas cardíacos e que era a receptora pretendida da droga experimental que destruíra Tasha Colbert e que, uma noite depois, também lhe
fora administrada.
Molly, antes de sair vou dar-lhe um sedativo que a vai fazer dormir esta noite disse o Dr. Daniels a Molly.
Se quiser, doutor replicou Molly com indiferença. Estavam na saleta íntima.
Vou buscar-lhe um copo de água disse o Dr. Daniels. Levantou-se para ir à cozinha.
Molly pensou no frasco de comprimidos para dormir que deixara em cima da bancada da cozinha.
O lava-loiças do bar é mais perto, doutor disse ela, rapidamente.
Percebeu que ele a observava atentamente quando ela pôs o comprimido na boca e o engoliu com água.
Eu estou bem, a sério disse ela ao pousar o copo.
Estará muito melhor depois de ter dormido um bom sono. Vá já para a cama.
Vou, sim. Acompanhou-o até à porta. Já passa das nove. Desculpe. Tenho a certeza de que estraguei as suas noites esta semana, não é verdade?
Você não estragou nada. Falo consigo amanhã.
Obrigada.
Não se esqueça. Já para a cama, Molly. Daqui a pouco tempo vai começar a sentir-se muito zonza.
Molly esperou até ter a certeza de que o carro dele se afastava antes de trancar a porta e pisar o ferrolho do chão. Desta vez, o som que este fez algo entre um
clique e um estalido pareceu-lhe familiar e nada ameaçador.
"Inventei tudo", pensou Molly com tristeza, "aquele som, a sensação de que havia alguém cá em casa naquela noite. Lembro-me de tudo assim porque era como queria
que fosse."
Tinha apagado todas as luzes do escritório? Não conseguia lembrar-se. A porta do aposento estava fechada. Abriu-a e espreitou
235
lá para dentro, à procura do interruptor da luz. Quando a luz inundou a sala, os seus olhos captaram alguma coisa. Estava alguma coisa a mexer-se do lado de fora
da janela da frente. Estava alguém lá fora? Sim. Graças ao brilho que jorrava do escritório, conseguiu ver Wally Barry, de pé, no relvado, a apenas alguns passos
da janela, a olhar para ela. Com um grito de surpresa, ela virou-se.
E, de repente, o escritório estava diferente. Estava novamente apainelado, como tinha estado... antes... E Gary estava ali, de costas para ela, à secretária estava
tombado para a frente, com a cabeça ensopada em sangue.
Escorria sangue do golpe profundo que ele tinha na cabeça, ensopando-lhe as costas, amontoando-se na secretária, pingando para o chão.
Molly tentou gritar mas não conseguiu. Virou-se e olhou ansiosamente para Wally, a pedir ajuda, mas ele tinha desaparecido. Ela tinha sangue nas mãos, no rosto,
nas roupas.
Aturdida pelo terror, cambaleou para fora do aposento, subiu as escadas e caiu em cima da cama.
Quando acordou, doze horas mais tarde, ainda tonta por causa do comprimido, percebeu que o horror vívido e sanguinário de que se recordava era apenas uma parte do
pesadelo intolerável em que a sua vida se tinha transformado.
77
Fran sabia que se tentasse ler na cama adormeceria, por isso optou por vestir um pijama velho e confortável e depois instalou-se na sua cadeira de couro, com os
pés na banqueta.
Primeiro, dedicou a sua atenção a um dossier sobre Gary Lasch. "Parece um perfil ligeiramente sofisticado de Beaver Cleaver", pensou. "Frequentou uma boa escola
e um bom liceu, mas não um dos melhores. Não conseguiu entrar para nenhum deles, aposto", pensou. "Acabou o liceu com média de bom menos e depois foi para a Faculdade
de Medicina Meridien, no Colorado. Em seguida, foi trabalhar com o pai. Pouco depois, o pai faleceu e Gary passou a ser director do hospital."
"E aqui começamos a brilhar", reparou Fran. O noivado com a conhecida Molly Carpenter. Cada vez mais artigos sobre o Hospital Lasch e o seu carismático presidente
do Conselho de Administração. Depois, histórias sobre Gary e o seu sócio, Peter Black, e sobre a fundação da OCS Remington com o financeiro Calvin Whitehall.
236
Seguia-se o seu deslumbrante casamento com Molly. Depois, recortes sobre o belo casal Gary e Molly em festas de beneficência e bailes de caridade e noutros eventos
sociais importantes.
Pelo meio, havia mais artigos sobre o hospital e a OCS, incluindo artigos sobre Gary ser convidado para fazer discursos em convenções médicas. Fran leu alguns deles.
"A treta habitual", decidiu, pondo-os de lado.
Tudo o resto no dossier de Gary Lasch estava relacionado com a sua morte. Resmas de artigos de jornais acerca do crime, do julgamento, de Molly.
Relutantemente, Fran concluiu que não havia absolutamente nada no material sobre Gary Lasch que indicasse que ele era mais do que um médico mediano que fora suficientemente
esperto para casar bem e entrar no circo das organizações de prestação de cuidados de saúde. Até ser assassinado, evidentemente.
"Bem, passemos ao todo-poderoso Calvin Whitehall", disse Fran para si mesma com um suspiro. Quarenta minutos depois, com os olhos a arder de fadiga, disse em voz
alta:
Ora, ora, este fulano é um cavalo de uma cor diferente. Creio que o adjectivo certo para o descrever seria "impiedoso", não "todo-poderoso". É um milagre ele ter
conseguido manter-se fora da prisão.
A lista de processos instaurados contra Cal Whitehall ao longo dos anos enchia diversas páginas. As anotações mostravam que alguns tinham sido resolvidos com uma
"soma não revelada", enquanto a maior parte eram encerrados ou resultavam num veredicto favorável para Whitehall.
Havia bastantes artigos recentes sobre a intenção de a Remington Health Management adquirir pequenas OCS, e havia também referência ao potencial de uma aquisição
hostil da própria Remington.
"Aquela fusão está verdadeiramente em risco", reflectiu Fran, enquanto continuava a ler. "Whitehall tem muito dinheiro, mas, segundo estes artigos, alguns dos maiores
accionistas da concorrente American National também são extremamente poderosos. Pelo que vejo aqui, todos acreditam que o futuro da medicina neste país pede a liderança
do presidente da American National, o antigo bastonário da Ordem dos Médicos. Se estas citações estiverem correctas, estão dispostos a fazer tudo para que isso aconteça."Ao
contrário do dossier de Gary Lasch, o de Whitehall não continha em seu abono uma lista de obras de caridade nem de apoio a eventos de beneficência. Porém, uma curadoria
cívica fez Fran perder o sono. Calvin Whitehall tinha sido membro da comissão do fundo da biblioteca com o seu pai! O nome dele era mencionado em artigos de jornais
no
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dossier sobre o roubo. "Eu nunca soube que ele fazia parte daquilo", pensou Fran. "Mas como poderia saber? Na época, eu não passava de uma miúda. A mãe recusava-se
a falar sobre o roubo, e ela e eu saímos de Greenwich pouco depois de o pai se suicidar."
Os artigos incluíam algumas fotografias pouco nítidas do pai. As legendas não eram lisonjeiras.
Fran levantou-se e encaminhou-se para a janela. Já passava da meia-noite e, embora ainda houvessem luzes acesas em muitos dos apartamentos, era evidente que a cidade
começava a adormecer.
"Quando, por fim, conhecer Whitehall, vou fazer-lhe algumas perguntas difíceis", pensou, zangada. "Por exemplo, como é que o meu pai conseguiu roubar tanto dinheiro
do fundo sem ser descoberto? Talvez ele me possa dizer onde é que encontro registos que provem que o meu pai tirou o dinheiro ao longo de um período de tempo ou
se o tirou todo de uma vez."
"Calvin Whitehall é um financeiro", pensou ela. "Naquela altura já era bem sucedido e rico. Deve poder dar-me algumas respostas sobre o meu pai, ou, pelo menos,
dizer-me como é que posso encontrá-las."Sentiu-se tentada a ir para a cama, mas decidiu que pelo menos iria folhear algumas das revistas que trouxera da casa de
Molly. Primeiro, observou as datas nas capas. Molly tinha dito que eram velhas, mas Fran ficou surpreendida ao constatar que a mais antiga tinha vinte anos. A mais
recente fora publicada há treze.
Concentrou-se primeiro na mais antiga. Um artigo intitulado "Um Apelo à Razão" estava assinalado no índice. O nome do autor pareceu-lhe vagamente conhecido, mas
talvez fosse apenas a sua imaginação. Fran começou a ler. "Não gosto da maneira como este tipo pensa", pensou, horrorizada com o que ele tinha escrito.
A segunda revista, com dezoito anos, tinha um artigo do mesmo autor. Intitulava-se "Darwin, a Sobrevivência dos Mais Aptos e a Condição Humana no Terceiro Milénio".
A acompanhar esta entrada vinha uma fotografia do autor, um professor de investigação da Faculdade de Medicina Meridian. Era mostrado no laboratório com dois dos
seus mais prometedores alunos assistentes.
Os olhos de Fran abriram-se, chocados, quando ligou o rosto do professor ao nome vagamente conhecido e depois reconheceu os dois alunos.
Bingo! disse ela. Isso explica tudo.
238
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Às dez horas da manhã de sábado, Calvin Whitehall pôs o seu plano em acção. Tinha chamado Lou Knox ao seu escritório para que este pudesse fazer o telefonema para
Fran Simmons na sua presença.
Se ela não estiver em casa, tentas de meia em meia hora disse ele. Quero que ela vá a West Redding hoje ou, o mais tardar, amanhã. Não consigo manter o nosso amigo
Dr. Logue controlado por muito mais tempo.
Lou sabia que não era suposto comentar ou reagir de maneira nenhuma. Neste ponto da acção, Cal tinha tendência para pensar em voz alta.
Tens o telemóvel?
Sim, senhor. O telemóvel seria usado para este telefonema porque não só a chamada apareceria como ANÓNIMA, se Fran tivesse identificação no visor, como, por precaução,
a factura daquele número era enviada para um nome falso numa caixa postal em Westchester County, em Nova Iorque.
Marca o número e fala com ela. E certifica-te de que fazes um bom trabalho para a convencer. Aqui tens o número. Felizmente, vem na lista. Cal pensou que se fosse
confidencial teria bastado dizer a Jenna que o pedisse a Molly, com a desculpa de que queria marcar o encontro com que a Simmons o andava a perseguir. Mas, felizmente,
não tinha precisado de dar esse passo. Teria violado a sua regra cardinal: em qualquer plano, quanto menos pessoas estiverem envolvidas, melhor.
Lou pegou no pedaço de papel e começou a marcar os números no telemóvel. Ouviu dois toques e depois o auscultador foi levantado. Acenou para Cal, que o observava
intensamente.
Está? disse Fran.
Menina Simmons? perguntou Lou, usando o ligeiro sotaque alemão do falecido pai.
Sim, quem fala, por favor?
Não posso dizer-lhe ao telefone, mas ontem ouvi-a na cafetaria do hospital a conversar com a Sr.a Branagan. Fez uma pausa para causar efeito. Menina Simmons, eu
trabalho no hospital, e a senhora tem razão. Passa-se mesmo algo terrível.
Na sala de estar, ainda em pijama, com o telefone portátil na mão, Fran procurou freneticamente a sua caneta, viu-a na banqueta e pegou no bloco-de-notas que se
encontrava em cima da mesa.
Eu sei que sim disse ela, calmamente, mas, infelizmente, não posso provar nada.
239
Posso confiar em si, Menina Simmons?
Confiar, como?
Há um velhote que tem andado a criar drogas que eles usam em experiências em pacientes no Lasch. Ele pensa que o Dr. Black quer matá-lo, e está com medo, e quer
contar a história da sua investigação antes que eles o impeçam de o fazer. Ele sabe que isso lhe vai trazer problemas, mas não se importa.
"Ele tem de estar a falar sobre o Dr. Adrian Lowe, o médico daqueles artigos", pensou Fran.
Ele falou com mais alguém acerca disto? perguntou.
Tenho a certeza que não. Eu entrego encomendas dele para o hospital. Faço isto há algum tempo, mas não sabia o que continham até ontem. Ele contou-me tudo sobre
as experiências. Estava praticamente a estourar de excitação. Quer que o mundo saiba o que ele fez para a rapariga Colbert sair do coma antes de morrer. Fez uma
pausa e baixou a voz, passando a falar num sussurro áspero. Menina Simmons, ele até tem tudo gravado. Eu sei; eu vi.
Gostaria de falar com ele disse Fran, a tentar manter a voz calma.
Menina Simmons, ele é um senhor de idade e praticamente um eremita. Até pode dizer que quer que as pessoas saibam o que ele fez, mas continua assustado. Se trouxer
um bando de pessoas consigo, ele vai fechar-se e não conseguirá nada.
Se ele quer que eu vá sozinha, eu vou sozinha disse ela. Na verdade, até prefiro assim.
Hoje, às sete horas da noite, é conveniente?
Claro que sim. Onde é que tenho de ir?
Lou fez um círculo com o dedo indicador e o polegar num símbolo de vitória para Cal.
Sabe onde fica West Redding, Connecticut, Menina Simmons? perguntou.
Edna telefonou a Marta ao princípio da manhã de sábado.
Wally ainda está a dormir, por isso vamos partir mais tarde disse ela, tentando parecer descontraída. Na verdade, o que queria dizer a Marta era que não precisava
de se incomodar a vir despedir-se, mas sabia que isso pareceria terrível, especialmente depois de a ter despachado a noite passada.
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Vou fazer um bolo de café disse Marta. Eu sei o quanto Wally gosta dos meus bolos. Dá-me um toque quando estiverem prontos, e eu vou para aí.
Nas duas horas seguintes, Marta esperou ansiosamente pelo telefonema de Edna. Tinha fortes suspeitas de que havia problemas na casa da vizinha. A tensão na voz da
amiga naquela manhã era ainda mais forte do que na noite anterior. Depois, também tinha reparado no carro de Edna a sair de marcha-atrás da garagem na noite anterior,
pouco antes das nove horas, e sabia que isso também era invulgar. Edna detestava conduzir à noite. Sim, definitivamente, alguma coisa estava errada.
"Talvez seja bom para eles saírem daqui", decidiu Marta. "Março é um mês terrível, e tem havido tantas notícias más... Aquela enfermeira assassinada em Rowayton;
Molly Lasch que provavelmente vai voltar para a prisão, não que não devesse ser presa em algum lado, é claro; a Sr.a Colbert e a filha Natasha, falecidas com horas
de intervalo uma da outra."
Às onze e meia, Edna telefonou.
Estamos prontos para esse bolo de café disse.
Vou já para aí replicou Marta, aliviada.
No momento em que entrou pela porta da cozinha de Edna, Marta percebeu que estava certa quanto aos problemas e não tinham acabado. Era notório que Wally estava numa
das suas disposições verdadeiramente sombrias. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos; parecia desgrenhado; não parava de lançar olhares raivosos para a mãe.
Vê o que trouxe para ti, Wally disse-lhe Marta. Desembrulhou o bolo da cobertura de papel de alumínio. Ainda está morno.
Ele ignorou-a.
Mãe, eu só queria falar com ela. Que é que há de tão errado nisso?
"Valha-me Deus", pensou Marta. "Aposto que ele foi ver Molly Lasch sozinho."
Eu não entrei. Só espreitei. Da outra vez também não entrei. Não acredita em mim, pois não?
Marta captou a expressão assustada do rosto de Edna. "Eu não devia ter vindo", pensou, a olhar de relance à sua volta como se estivesse à procura de um meio para
escapar^ "Edna odeia-me por estar por perto quando Wally fica perturbado. Às vezes, a língua dele solta-se de mais. Eu até já o ouvi insultá-la."
Wally, querido, come um pouco do bolo da Marta implorou Edna.
241
Ontem à noite, Molly fez a mesma coisa que tinha feito da última vez que eu estive lá, mãe. Acendeu a luz e assustou-se. Mas eu não sei por que é que ela ficou assustada
a noite passada. O Dr. Lasch não estava todo ensanguentado como da última vez.
Marta pousou a faca com que se preparava para cortar o bolo de café. Voltou-se para a amiga de trinta anos.
De que é que Wally está a falar, Edna? perguntou calmamente, enquanto as peças de um quebra-cabeças confuso se encaixavam na sua mente.
Edna desatou a chorar.
Ele não está a falar de nada. Ele não sabe o que está a dizer. Diz isso à Marta, Wally. Diz-lhe. Tu não estás a dizer nada!
Aquele ataque de choro da mãe intimidou-o.
Desculpe, mãe. Prometo que nunca mais volto a falar na Molly.
Não, Wally, eu acho que deves falar disse Marta. Edna, se Wally sabe alguma coisa sobre a morte do Dr. Lasch, seja teu filho ou não, tens de o levar à Polícia e
deixá-los ouvir o que ele tem para dizer. Não podes deixar aquela mulher ser apresentada diante da comissão de liberdade condicional e ser enviada novamente para
a prisão se ela não assassinou o marido.
Wally, tira as malas do carro. A voz de Edna Barry soou desanimada e resignada enquanto olhava para Marta com olhos implorantes. Eu sei que tens razão. Tenho de
deixar Wally falar com a Polícia, mas dá-me até segunda-feira de manhã. Tenho de arranjar um advogado para o proteger.
Se Molly Lasch passou cinco anos e meio na prisão por um crime que não cometeu e tu sabias, acho que tu é que vais precisar de um advogado para te proteger disse
Marta, com uma expressão triste e preocupada no olhar enquanto fitava a amiga do outro lado da cozinha.
Fez-se silêncio entre as duas, enquanto Wally mastigava ruidosamente uma fatia do bolo de café de Marta.
Fran passou o resto da manhã a estudar os artigos que o Dr. Adrian Lowe tinha escrito, ou que tinham sido escritos sobre ele. "Ele faz o Dr. Kevorkian parecer outro
Albert Schweitzer", pensou. A filosofia de Lowe era surpreendentemente simples: graças aos avanços da
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medicina, demasiadas pessoas viviam tempo de mais. Os idosos estavam a consumir recursos financeiros e médicos que seriam mais bem empregues noutro lado.
Um artigo afirmava que grande parte do tratamento de pessoas com doenças crónicas era um desperdício e era desnecessário. A decisão devia ser tomada por peritos
médicos e concretizada sem o envolvimento da família.
Outro artigo desenvolvia a teoria de Lowe, de que os incapacitados eram um recurso útil talvez até necessário para o estudo de drogas novas ou não testadas. Podiam
ser dramaticamente ajudados pela droga ou podiam morrer. Em qualquer dos casos, estariam melhor.
Seguindo a sua carreira através dos diversos artigos, Fran percebeu que Lowe se tinha tornado tão chocante e arrojado nas suas teorias que fora despedido da Faculdade
de Medicina onde ensinava e fora até condenado pela Ordem dos Médicos. Em determinada altura, fora acusado de matar deliberadamente três pacientes, mas o caso não
fora provado. Depois disso, saíra de circulação. Por fim, Fran lembrou-se de onde ouvira falar nele antes o médico tinha sido referido no curso de ética que ela
frequentara no liceu.
"Gary Lasch instalou o Dr. Lowe em West Redding para ele poder continuar a sua investigação científica aqui? E também trouxe o outro aluno dedicado de Lowe, Peter
Black, para o Hospital Lasch, para que este o ajudasse a fazer experiências nos doentes naquele hospital? Sem dúvida, estava a começar a parecer que fora isso mesmo."
"E também faz sentido", pensou Fran. "Faz um sentido terrível, lógico e brutal. Se Deus quiser, esta noite terei a prova. Se este médico louco quer que as suas pseudofaçanhas
sejam reconhecidas, então, veio ter com a pessoa certa. Deixem-me só apanhá-lo! Mal posso esperar."
A pessoa que lhe telefonara e que insistira em manter o anonimato dera-lhe indicações específicas para a localização de Lowe. West Redding ficava a cerca de noventa
quilómetros a norte de Manhattan. "Ainda bem que estamos em Março e não em Agosto", pensou Fran. Sabia que no Verão a Merritt Parkway estaria cheia de veraneantes
a caminho das praias. Mesmo assim, pretendia sair com bastante tempo de antecedência. Tinha de estar lá às sete horas da tarde bem, quanto mais depressa chegasse
a hora, melhor.
Pensou no tipo de equipamento de gravação que deveria levar consigo. Não queria assustar Lowe ao ponto de ele se fechar em relação ao seu trabalho, mas rezou para
que ele a deixasse gravar a entrevista, talvez até filmá-lo. Acabou por resolver levar o gravador e a câmara de vídeo. Ambos cabiam facilmente na mochila, juntamente
com o bloco de apontamentos.
Os artigos escritos acerca de Lowe depois de ele ter concedido
243
entrevistas eram específicos e cheios de pormenores. "Espero que ele continue a gostar de contar as suas teorias a toda a gente", pensou Fran.
Às duas horas tinha acabado de preparar as perguntas que queria fazer ao Dr. Lowe. Às três menos um quarto já tinha tomado duche e estava vestida. Telefonou a Molly
para saber como ela estava e ficou alarmada com o tom desanimado na sua voz.
Estás sozinha, Molly? -Sim.
Vai aí alguém?
Philip telefonou. Queria vir cá esta noite, mas Jenna vai estar aqui. Pedi-lhe que esperasse até amanhã.
Ainda não posso falar sobre o assunto, Molly, mas estão a acontecer muitas coisas e todas elas prometedoras. Parece que descobri uma coisa que pode ser uma verdadeira
ajuda para ti e para Philip na defesa do caso.
Não há nada como uma boa notícia, pois não, Fran?
Tenho de ir ao Connecticut esta noite, Molly, e se saísse já podia passar por aí e ficar contigo alguns minutos. Gostarias que eu fosse aí?
Não te incomodes comigo, Fran.
Estou aí dentro de uma hora disse Fran, e desligou imediatamente antes que Molly pudesse dizer que não.
"Ela desistiu", pensou Fran enquanto carregava impacientemente no botão do elevador. Naquele estado, não devia estar sozinha nem por um minuto.
"A culpa é minha", disse Philip Matthews a si mesmo vezes sem conta. "Quando Molly saiu da prisão eu devia tê-la arrastado para o carro. Ela não sabia o que estava
a fazer quando falou para os jornalistas. Não compreendeu que não se pode admitir à comissão de liberdade condicional que se aceita a responsabilidade pela morte
do marido e depois sair e dizer que não o fez. Por que é que não lhe meti isso na cabeça?""O delegado do Ministério Público podia ter pedido a revogação da liberdade
condicional no momento em que ela fez aquela declaração", pensou Philip. "Isso significa que ele só a vai perseguir agora por causa da segunda acusação."244
"A minha única hipótese de manter a Molly fora da prisão quando estivermos diante da comissão, na segunda-feira, é fazendo-os aceitar que existe uma possibilidade
legítima de ela ter sido erradamente acusada do homicídio de Annamarie Scalli. Nesse caso, terei de implorar aos membros que compreendam que ela não pretendia retractar-se
da sua admissão de culpa, mas que queria apenas recuperar a memória daquela noite para poder enfrentar plenamente o que aconteceu." Pensou no assunto. O argumento
pouco iria resultar. Se conseguisse persuadir Molly a corroborar aquela história... "Se...", contudo, era a palavra-chave.
"A Molly disse aos jornalistas que tinha a impressão de que havia mais alguém lá em casa na noite em que Gary Lasch foi assassinado", lembrou-se ele, "e também disse
que, no fundo do seu coração, sabia que não seria capaz de matar um ser humano. Talvez eu consiga persuadir a comissão de liberdade condicional de que esta declaração
veio de uma pessoa consumida pelo desgosto e pelo desespero, não de alguém que estava a tentar ludibriá-los para conseguir a liberdade condicional. Podia alegar
que consta dos registos que ela sofria de depressão clínica na prisão.""No entanto, todos os meus argumentos sobre o estado mental dela não servirão de nada se não
conseguir criar dúvida em relação à morte de Annamarie Scalli", pensou. "Tudo se resume a isso."
Foi por isso que, no fim da tarde de sábado, Philip Matthews se dirigiu para o restaurante Sea Lamp, em Rowayton. O parque de estacionamento onde Annamarie Scalli
tinha morrido já não estava vedado. Muito necessitado de uma camada de alcatrão e com as linhas brancas que marcavam os espaços de estacionamento quase invisíveis,
estava novamente operacional. Não havia qualquer indicação de que uma jovem mulher tinha sido ali brutalmente assassinada, nenhum vestígio de que Molly Lasch poderia
ter de passar o resto da sua vida na prisão porque tinham sido encontradas amostras de sangue da morta no seu sapato e no seu carro.
Philip tinha contratado um bom investigador para trabalhar consigo no caso, e, juntos, estavam a começar a delinear a defesa que ele apresentaria no tribunal.
Molly dissera que tinha visto um carro de tamanho médio a sair do parque de estacionamento quando deixara o restaurante naquela noite. O investigador de Philip já
tinha estabelecido que nenhum outro cliente deixara o restaurante pelo menos vários minutos antes de Annamarie sair apressadamente.
Molly dissera que tinha ido directamente para o seu carro. Reparara num jipe estacionado no parque quando chegara ao restaurante para se encontrar com Annamarie,
mas não tinha maneira
245
de saber que era o automóvel de Annamarie. O investigador concluíra que Molly devia ter pisado o sangue que fora encontrado no seu sapato e depois deixara uma marca
no tapete do carro.
"Todas as provas são circunstanciais", meditou Philip, enquanto entrava no restaurante. "O sangue no sapato é a única prova concreta que eles têm para a ligar ao
crime. Se o assassino estava naquele carro, isso significa que estava estacionado no parque, porque Molly viu-o arrancar. O que deve ter acontecido", concluiu Philip,
"foi que depois de ter esfaqueado a Annamarie, o assassino correu para o seu próprio automóvel e arrancou quando Molly estava a sair do restaurante. A arma do crime
não foi encontrada. O que eu posso alegar é que algumas gotas de sangue da faca caíram no alcatrão e Molly pisou-as acidentalmente, sem sequer reparar."
"Mas há outro grande problema que ainda não conseguimos explicar", pensou Philip, enquanto olhava uma última vez para o parque de estacionamento. "Um motivo para
este assassino anónimo. Por que é que alguém iria seguir Annamarie até ao restaurante, |
esperar que ela saísse e matá-la? Nada na vida pessoal dela, para além do caso amoroso com o marido da Molly, há anos, indica um motivo." Ele tinha mandado investigar
exaustivamente a vida dela. "Sei que Fran Simmons está a investigar uma teoria sobre o hospital |
que pode relacionar-se com a Annamarie", pensou. "Só posso esperar que ela descubra alguma coisa... depressa!" Ao entrar no restaurante, Philip ficou satisfeito
por ver que Bobby Bruke estava ao balcão. Também ficou aliviado por constatar que Gladys Fluegel não estava à vista. O detective avisara-o de que a história dela
sobre Molly impedir a Annamarie de sair do restaurante ficava mais sensacionalista de cada vez que a repetia.
Philip sentou-se ao balcão.
Olá, Bobby disse. Que tal servir-me uma chávena de café?
Céus, foi rápido, Dr. Matthews. AMenina Simmons deve ter-lhe telefonado imediatamente.
De que é que está a falar, Bobby?
Telefonei à Menina Simmons há cerca de uma hora e deixei mensagem.
Telefonou? Para quê?
Aquele casal de que vocês andam à procura, os que estiveram aqui no domingo à noite? Por acaso, vieram cá almoçar hoje. São de Norwalk. Acontece que foram para o
Canadá na segunda-feira de manhã e só chegaram a casa ontem à noite. Acredita que eles nem sequer sabiam o que aconteceu? Disseram que gostariam de falar com o senhor.
Chamam-se Hilmer. Arthur e Jane Hilmer.
Bobby baixou a voz.
246
Dr. Matthews, aqui entre nós, quando eu lhes contei o que a Gladys contou aos polícias, eles disseram que ela só dizia disparates. Disseram que não ouviram a Sr.a
Lasch gritar "Annamarie" duas vezes. De acordo com eles, chamou-a uma vez. E têm a certeza de que não gritou "Espere!" Foi a Sr.a Hilmer que gritou "empregada",
a tentar chamar a atenção de Gladys.
Ao longo dos anos, Philip Matthews tinha consciência de se ter tornado cínico. As pessoas eram previsíveis e nunca deixavam de desiludir as outras. Porém, naquele
momento, sentiu-se como uma criança na Terra dos Sonhos.
Dê-me o número do telefone dos Hilmers, Bobby disse ele. Isto é fantástico!
Bobby sorriu.
Há mais, Dr. Matthews. Os Hilmers dizem que quando chegaram naquela noite viram um homem sentado num automóvel de tamanho médio no parque de estacionamento. Até
viram bem o rosto dele, porque apanharam-no com os faróis ao estacionarem. Podem descrevê-lo. Tenho a certeza de que aquele tipo nunca entrou aqui, Dr. Matthews.
Foi uma noite de pouco movimento, e eu lembrar-me-ia.
"Desde o começo que Molly disse que viu um automóvel de tamanho médio a arrancar do parque de estacionamento", pensou Philip. "Talvez, por fim, esta seja a nossa
oportunidade."
Os Hilmers disseram que esta noite não vão estar em casa antes das nove horas, Dr. Matthews. Mas disseram que se alguém quisesse falar com eles depois disso, só
precisava de aparecer lá em casa. Eles compreendem até que ponto tudo isto pode ser importante para a Sr.a Lasch e estão ansiosos por ajudar.
Vou estar à porta deles disse Philip Matthews. Oh, céus, vou estar à porta deles!
Os Hilmers disseram que estacionaram mesmo ao lado de um Mercedes novo em folha naquela noite. Lembram-se disso porque estava frio e estacionaram o mais perto possível
da entrada. Eu disse-lhes que devia ser o carro da Sr.a Lasch.
Obviamente, contratei a pessoa errada para me ajudar na investigação, Bobby. Onde é que aprendeu isto tudo? perguntou Philip.
Bobby sorriu angelicamente.
Dr. Matthews, eu sou filho de um defensor público, e ele é um bom professor. E também quero ser defensor público.
Teve um começo fantástico! disse-lhe Philip. Dê-me o café, Bobby. Estou mesmo a precisar.
Enquanto bebia, Philip pensou telefonar a Molly e contar-lhe
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imedi atamente sobre os Hilmers, mas decidiu não o fazer. "Vou esperar até ter falado pessoalmente com eles", decidiu. "Talvez eles ainda possam dizer mais coisas
que a ajudem. E tenho de mandar vir cá um retratista... amanhã, se possível... para podermos ter uma ideia do tipo que eles viram no parque de estacionamento. Pode
ser a nossa salvação!"
"Oh, Molly", pensou Philip, ansiosamente, quando a imagem do rosto dela, acossado e triste, lhe encheu o pensamento. "Daria o meu braço direito para te ver livre
deste pesadelo. E daria qualquer coisa no mundo para te ver sorrir!"
Com um cuidado metódico, Calvin Whitehall preparou Lou para o trabalho em West Redding. Explicou que o elemento-surpresa era essencial para que o plano resultasse.
Com sorte, a janela do alpendre para o laboratório estará aberta e tu poderás atirar calmamente os panos ensopados em gasolina; se não, não terás outra solução a
não ser partir um vidro disse Cal. Agora, apercebo-me de que o rastilho ligado ao nosso pequeno dispositivo é curto, mas deve dar-te tempo suficiente para desceres
as escadas e afastares-te do edifício antes da explosão.
Lou escutou atentamente enquanto Cal lhe contou que o Dr. Logue tinha telefonado, excitadíssimo com o encontro com a imprensa. Era evidente que estava ansioso por
mostrar o laboratório a Fran Simmons, por isso, Lou podia estar certo de que os dois estariam no primeiro andar quando a bomba explodisse.
A hipótese de um acidente infeliz será muito mais plausível se o que restar deles for encontrado no laboratório disse Cal, descontraidamente. Para nem sequer referir
que se estivessem no andar de baixo poderiam ter tempo para fugir.
Será impossível escaparem do andar de cima continuou ele. A porta do laboratório para o alpendre tem duas fechaduras separadas e é sempre mantida trancada, porque
o Dr. Logue tem medo de que possa haver atentados contra a sua vida.
"E tem razão para ter medo", pensou Lou, mas depois admitiu para si mesmo que, como sempre, a atenção de Cal pelo pormenor era notável e sem dúvida seria uma salvaguarda
para ele.
A menos que faças uma asneira completa, Lou... e, nem tenho
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de te dizer, não faças!, o incêndio e a subsequente explosão resolverão o problema duplo do doutor e da Fran Simmons. A casa da quinta tem mais de cem anos e as
escadas interiores são muito estreitas e íngremes. Não há maneira, presumindo que a explosão é tão grande como eu prevejo, de qualquer deles conseguir sair do laboratório,
correr pelo corredor e depois descer aquelas escadas a tempo de escapar. Porém, é evidente que deves estar preparado para essa eventualidade.
"Estar preparado" era a maneira de Cal lhe dizer para levar a arma. Há vários anos que não a disparava, mas algumas capacidades nunca enferrujavam. "É como andar
de bicicleta ou nadar", pensou Lou. "Uma pessoa nunca se esquece." A arma mais recente de sua escolha tinha sido uma faca boa e afiada.
A quinta situava-se numa zona isolada e arborizada, e, embora a explosão pudesse ser ouvida, Cal tinha-lhe garantido que teria tempo de sobra para sair da zona adjacente
e entrar numa estrada principal antes de a Polícia e os bombeiros chegarem. Lou tentou não mostrar impaciência com todas as informações com que Cal estava a bombardeá-lo.
Já tinha estado na casa da quinta vezes suficientes para conhecer a configuração do terreno, e certamente sabia cuidar da sua pessoa.
Às cinco horas, Lou saiu do apartamento. Era desnecessariamente cedo, mas Cal acreditava que se devia estar em vantagem no jogo, e para que tudo corresse de acordo
com o que estava planeado era importante antecipar atrasos potenciais, como complicações no trânsito.
"Deves ter tempo mais do que suficiente para estacionar o carro, onde não possa ser visto da casa, antes de a Fran Simmons chegar", avisara Cal.
Quando Lou entrou no carro, Cal apareceu à esquina da garagem.
Só queria ver-te sair disse ele com um sorriso caloroso. Jenna vai passar o serão com Molly Lasch. Quando voltares, vai lá a casa beber um copo comigo.
"E depois de trabalhos destes não faz mal eu chamar-te Cal", pensou Lou. "Muito obrigado, velho amigo." Ligou o carro e dirigiu-se para o sentido norte da Merritt
Parkway, na primeira fase da sua importante viagem para West Redding.
249
Fran ficou com a impressão de que Molly tinha piorado de um dia para o outro. Tinha olheiras escuras sob os olhos; as pupilas estavam enormes; os lábios e a pele
macilentos. Quando falou, a sua voz soou baixa e hesitante. Fran quase teve de se esforçar para ouvi-la.
Sentaram-se no escritório e Fran viu Molly a olhar diversas vezes à volta do aposento como se estivesse surpreendida com o que estava aver.
"Ela parece tão terrivelmente sozinha, tão abandonada", pensou Fran; "parece tão preocupada. Se ao menos a mãe e o pai pudessem estar aqui com ela."
Molly, sabes que isso não me diz respeito, mas tenho que te perguntar disse ela. A tua mãe não pode deixar o teu pai e vir para cá? Tu precisas que ela esteja contigo.
Molly abanou a cabeça e, por um instante, a passividade abandonou-lhe a voz.
De maneira nenhuma, Fran. Se o meu pai não tivesse tido uma trombose, estariam os dois aqui, eu sei. Receio que a trombose tenha sido muito mais grave do que eles
admitem. Eu falei com o meu pai e ele parece bastante bem, mas, com toda a infelicidade que eu lhes causei, se lhe acontecesse alguma coisa enquanto estivessem aqui,
eu enlouqueceria.
E a infelicidade que eles sentiriam se te perdessem? perguntou Fran sem rodeios.
Que queres dizer com isso?
Quero dizer que estou morta de preocupação contigo e o Philip também, e tenho a certeza de que a Jenna não é excepção. Vamos ser claras: há uma grande hipótese de
tu seres presa novamente na segunda-feira.
Ah, finalmente estamos a ser francas disse Molly com um suspiro. Obrigada, Fran.
Escuta-me até ao fim. Acredito que existe uma hipótese muito boa de que, mesmo que tenhas de voltar para Niantic, saias em liberdade muito depressa... E não em liberdade
condicional, mas completamente exonerada!
Era uma vez... murmurou Molly, sonhadora. Não sabia que acreditavas em contos de fadas.
Pára com isso! implorou Fran. Molly, detesto deixar-te aqui assim, mas não posso ficar contigo agora. Tenho um encontro que é desesperadamente importante para muitas
pessoas, especialmente para ti. Se não fosse isso, não sairia do teu lado. Sabes porquê?
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Porque estou convencida de que tu já desististe; acho que decidiste que nem sequer vais apresentar-te diante daquela comissão de liberdade condicional.
Molly ergueu as sobrancelhas numa interrogação, mas não a contradisse.
Confia em mim, Molly, por favor. Estamos a chegar à verdade, eu sei que sim. Acredita em mim. Acredita no Philip. Pode nem sequer ser importante para ti, mas aquele
homem ama-te e não descansará enquanto não provar que tu és a verdadeira vítima de tudo isto.
Adorei aquela deixa em Uma Tragédia Americana murmurou Molly. Espero estar a lembrar-me correctamente: "Ama-me até eu morrer e depois esquece-te de mim."
Fran levantou-se.
Molly disse ela calmamente, se quiseres realmente acabar com a tua vida, vais encontrar um meio de o fazer quer estejas sozinha quer com o "corpo de guardas do papa",
como a minha avó costumava dizer.
"Vou dizer-te uma coisa: estou zangada com o meu pai por ele se ter suicidado. Não, estou mais do que zangada... estou furiosa. Ele roubou muito dinheiro e teria
ido para a prisão. Mas também teria saído da prisão, e eu teria estado lá para o receber em festa.
Molly estava sentada a olhar para as mãos.
Impacientemente, Fran limpou as lágrimas dos olhos.
Se o pior acontecer disse ela, tu cumpres a tua pena. Não acho que isso vá acontecer, mas faço essa concessão. Quando saísses ainda serias jovem para aproveitar...
e refiro-me a aproveitar a sério... outros quarenta anos, mais coisa, menos coisa. Tu não assassinaste a Annamarie Scalli. Todos sabemos isso, e Philip vai arrasar
o caso. Por isso, por amor de Deus, rapariga, controla-te. É suposto vocês, pessoas de sangue azul, terem classe. Prova-o!
Molly ficou à janela e viu Fran afastar-se de carro. "Obrigada pelas palavras de ânimo, mas é tarde de mais, Fran", pensou. "Já não resta classe nenhuma em mim."
O médico já estava há uma boa meia hora ansiosamente à espera que Fran Simmons aparecesse quando os faróis do carro dela
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assinalaram a sua chegada. Eram sete horas quando ela tocou à campainha, um cuidado com a pontualidade que ele achou gratificante. Ele próprio um cientista era pontual
e esperava que os outros também fossem.
Abriu a porta e, com uma saudação cortês, declarou-se encantado por conhecê-la.
Durante quase vinte anos, fui conhecido nesta zona como um oftalmologista reformado disse ele. O Dr. Adrian Logue. Na verdade, o meu verdadeiro nome, e aquele que
recuperarei de bom-grado, é Adrian Lowe. Como a menina já sabe.
As fotografias de Adrian Lowe que vira nas revistas tinham quase vinte anos e retratavam um homem decididamente mais robusto do que aquele que se encontrava à sua
frente.
Tinha pouco menos de um metro e oitenta, era magro e levemente curvado. Os cabelos escassos eram mais brancos do que grisalhos. A expressão dos seus olhos, de um
azul-pálido, só podia ser descrita como bondosa. Os seus modos eram deferentes, até um pouco tímidos, quando a convidou a entrar na pequena sala de estar.
"No geral", pensou Fran, "não é de maneira nenhuma o tipo de pessoa que eu esperava que fosse. Mas, afinal de contas, que é que eu esperava?", perguntou a si mesma
enquanto escolhia uma cadeira de costas direitas em vez da cadeira de baloiço que ele lhe ofereceu. "Depois de ler todas as coisas que ele escreveu e de saber o
que sei acerca dele, acho que pensei que ele devia parecer-se com um zelota, com olhos selvagens e braços no ar, ou com um médico nazi com passada militar."
Preparava-se para lhe perguntar se a autorizaria a gravá-lo quando ele disse:
Espero que tenha trazido um gravador consigo, Menina Simmons. Não quero que o sentido das minhas palavras seja deturpado.
De facto, trouxe, doutor. Fran abriu a mochila, tirou o gravador e ligou-o. "Não deixes que ele adivinhe o quanto já sabes sobre o que ele tem andado a fazer", avisou-se
a si própria. "Faz todas as perguntas importantes. Esta gravação tem de ser uma prova valiosa mais tarde."
Vou levá-la para o primeiro andar, directamente para o meu laboratório, e a maior parte da nossa conversa decorrerá lá. Mas, primeiro, deixe-me explicar-lhe por
que é que está aqui. Não, para ser mais preciso, deixe-me explicar por que é que eu estou aqui.
O Dr. Lowe encostou a cabeça às costas da poltrona e soltou um suspiro.
Menina Simmons, já deve ter ouvido o velho chavão: "Para todo
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o positivo existe um negativo." Essa premissa é especialmente verdadeira na prática da medicina. Portanto, têm de ser feitas escolhas... que por vezes são difíceis.
Fran escutou sem comentar, enquanto Adrian Lowe, com a voz por vezes suave, outras vezes excitada, explicava os seus pontos de vista sobre os avanços nos cuidados
médicos e sobre a necessidade de redefinir o conceito de "cuidados controlados".
Devia haver um corte no tratamento, mas não estou a falar meramente de sistemas de suportes vitais começou ele. Digamos que uma pessoa teve um terceiro ataque cardíaco
ou que já tem mais de setenta anos e faz hemodiálise há cinco anos, ou lhe foi concedido o enorme apoio financeiro para fazer face a um transplante de coração ou
fígado que falhou.
"Não chegou a hora de deixar essa pessoa em paz, Menina Simmons? É claramente a vontade de Deus, por isso para quê lutar contra o inevitável? O paciente pode não
concordar, é claro, e sem dúvida a família podia processar os médicos por não prosseguirem o tratamento. Portanto, deveria haver outra autoridade com poder para
apressar este desfecho inevitável sem discussão com a família ou com o paciente, e sem incorrer em mais despesas para o hospital. Uma autoridade capaz de uma decisão
clínica, objectiva, científica.
Assombrada, Fran escutou a filosofia quase inimaginável que ele estava a articular.
Compreendo, Dr. Lowe, que o senhor está a dizer que nem o paciente nem a família devem ter alguma coisa a dizer, ou sequer saber, acerca da decisão que está a ser
tomada para pôr fim à vida do paciente?
Exactamente.
Está também a dizer que os deficientes deviam ser cobaias, sem o seu acordo e sem o seu conhecimento, de quaisquer experiências que o senhor e os seus colegas quisessem
fazer?
Minha querida disse ele com condescendência, tenho uma gravação de vídeo que gostava que visse. Pode ajudá-la a compreender por que é que a investigação é tão importante.
Recentemente, deve ter ouvido falar de Natasha Colbert, uma jovem de uma família importante.
"Meu Deus, ele vai admitir o que lhe fez!", pensou Fran.
Devido a um acidente muito infeliz, o tratamento terminal que devia ser dado a uma mulher idosa com uma doença crónica foi administrado à Menina Colbert, ao invés
da solução salina de rotina de que ela precisava.
"Este engano resultou num coma irreversível, em cujo estado ela sobreviveu mais de seis anos. Eu tenho andado a fazer experiências
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para encontrar uma droga que reverta aquele coma profundo, e a noite passada, pela primeira vez, obtive sucesso, embora apenas por alguns momentos. Mas esse sucesso
é o começo de uma coisa maravilhosa na ciência. Deixe-me mostrar-lhe a prova.
Fran observou o Dr. Lowe colocar uma cassete no leitor de vídeo que estava acoplado a um grande ecrã de televisão.
Eu nunca vejo televisão explicou ele, mas tenho este aparelho para as minhas pesquisas. Vou mostrar-lhe apenas os últimos cinco minutos do último dia de vida de
Natasha Colbert. Não vai precisar de mais nada para compreender o que consegui nos anos que passei aqui.
Assombrada, Fran observou a gravação e viu Barbara Colbert a murmurar o nome da filha moribunda.
Percebeu que a arfada audível quando Natasha se esticou, abriu os olhos e começou a falar encantou o Dr. Lowe.
Vê, vê! exclamou ele.
Chocada, Fran viu Tasha reconhecer a mãe, depois fechar os olhos, abri-los novamente e implorar à mãe que a ajudasse.
Sentiu lágrimas acumularem-se nos olhos enquanto via Barbara Colbert a implorar à filha que vivesse. Com algo que se aproximava do ódio, testemunhou o Dr. Black
a negar a Barbara Colbert que Natasha tinha recuperado a consciência.
Ela só podia durar um minuto. A droga é poderosa a esse ponto explicou o Dr. Lowe, enquanto parava e rebobinava a fita. Um dia, a reversão de comas será um procedimento
rotineiro. Enfiou a fita no bolso. Em que é que está a pensar, minha querida?
Estou a pensar, Dr. Lowe, que com a sua óbvia genialidade é incrível que todos os seus esforços não estejam votados à preservação da vida mas à destruição de vidas
cuja qualidade o senhor decreta serem menos do que aceitáveis.
Ele sorriu e levantou-se.
Minha querida, o número de pensadores que concorda comigo é enorme. Agora, deixe-me mostrar-lhe o meu laboratório.
Sentindo uma mistura de horror e de angústia crescentes por estar sozinha com aquele homem, Fran seguiu Lowe pelas escadas estreitas. "Natasha Colbert", pensou,
zangada. "Ela foi deixada naquele estado por uma das drogas altamente eficazes dele. E também a avó de Tim, que tinha esperado celebrar o octogésimo aniversário.
E Barbara Colbert, que era demasiado inteligente para ser convencida pelo discípulo assassino de Lowe, Peter Black, de que estava a ter alucinações. Ele pode até
estar a falar da mãe de Billy Gálio. E quantos mais?", perguntou a si mesma.
O átrio do primeiro andar era sombrio e estava pouco iluminado,
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mas quando Adrian Lowe abriu a porta do laboratório foi como se entrassem noutro mundo. Embora fosse pouco conhecedora de laboratórios de investigação, Fran teve
consciência de que aquele parecia ser o epitome da perfeição técnica.
O aposento não era grande, mas o espaço limitado era mais do que compensado pela disposição cuidada do equipamento para que cada centímetro fosse optimizado. Para
além da mais recente tecnologia de informática, Fran reconheceu algum do equipamento que tinha visto no consultório moderníssimo do seu próprio médico. Havia também
um tanque de oxigénio bastante grande, com válvulas e tubos ligados. Muitas das máquinas pareciam destinar-se a testes químicos e outras eram mais adequadas para
testes em seres vivos. "Ratos, espero", disse Fran para si mesma com uma sensação de angústia. A maior parte do equipamento do laboratório não lhe dizia nada, mas
o que ela achou impressionante foi a extrema limpeza e arrumação do lugar. "É simultaneamente impressionante e aterrador", pensou, enquanto se internava no aposento.
O rosto de Adrian Lowe resplandeceu de prazer.
Menina Simmons, o meu antigo aluno, Gary Lasch, trouxe-me para aqui depois de eu ter sido escorraçado da medicina. Acreditou em mim e na minha investigação e devotou-se
a dar-me o apoio de que eu necessitava para executar os meus testes e experiências. Depois, mandou chamar Peter Black, outro dos meus antigos alunos que andara na
turma do Gary. Esse revelou-se não ter sido o passo mais sensato, em retrospectiva. Possivelmente, por causa do seu problema com o álcool, Black revelou-se um perigoso
cobarde. Falhou-me em diversas ocasiões, embora mais recentemente tenha ajudado a entregar-me a maior façanha da minha carreira. Para além do mais, há Calvin Whitehall,
que teve a bondade de combinar o nosso encontro e que tem sido um apoiante fervoroso da minha investigação, tanto financeira como filosoficamente.
Calvin Whitehall fez o quê? perguntou Fran, e um arrepio de alarme percorreu-lhe a espinha.
Adrian Lowe pareceu intrigado.
Ora, é claro que foi ele quem combinou este encontro. Ele sugeriu que você seria o contacto apropriado com a imprensa. Tratou de todos os pormenores consigo e confirmou
comigo que a menina podia vir.
Fran escolheu cuidadosamente as palavras seguintes:
Exactamente, o que é que o Sr. Whitehall lhe disse que eu faria por si, doutor?
Minha querida, a menina está aqui porque vai produzir uma entrevista de meia hora comigo que me permitirá partilhar as minhas
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descobertas com o mundo. Os membros da classe médica vão continuar a escoriar-me. Mas, com o tempo, até eles, como o público em geral, acabarão por abraçar a sabedoria
da minha filosofia e o génio da minha investigação. E você, Menina Simmons, abrirá caminho. Vai publicitar aquele programa antecipadamente e transmiti-lo na sua
prestigiada estação de televisão.
Fran ficou em silêncio durante algum tempo, embasbacada e horrorizada com o que tinha ouvido.
Dr. Lowe, o senhor tem consciência de que vai estar a expor-se, e ao Dr. Black, e ao Calvin Whitehall a um possível processo criminal?
Ele eriçou-se.
É claro que tenho. Calvin aceitou isso de bom-grado como uma parte necessária da nossa importante missão.
"Oh, valha-me Deus", pensou Fran, "ele tornou-se perigoso. E eu também. Este laboratório também representa perigo para eles. Têm de se livrar dele... e de mim. Caí
numa armadilha."
Doutor disse ela, tentando parecer mais calma do que se sentia, temos de sair daqui. Imediatamente. Armaram-nos uma cilada. Calvin Whitehall nunca o deixaria tornar
tudo isto público, especialmente na televisão. Tem de perceber isso!
Não compreendo... respondeu o médico, e uma confusão quase infantil estampou-se-lhe no rosto.
Confie em mim. Por favor!
O Dr. Lowe estava ao lado dela junto à ilha central do laboratório, com as mãos sobre a superfície de formica.
Menina Simmons, aquilo que diz não está a fazer sentido. O Dr. Whitehall...
Fran apertou-lhe a mão.
Doutor, não estamos seguros aqui. Temos de sair.
Ouviu um pequeno ruído e sentiu uma corrente de ar frio. Ao fundo do aposento, a janela estava a ser levantada.
Veja! gritou ela, apontando para o vulto na sombra, quase invisível na noite.
Viu o cintilar de uma chama minúscula, viu um braço erguê-la e depois pareceu recuar. De súbito, percebeu o que estava a acontecer. Quem quer que estava do lado
de fora daquela janela ia atirar uma bomba incendiária para dentro do aposento. Ia fazer explodir o laboratório e os dois com ele.
O Dr. Lowe arrancou a mão do aperto forte dela. Fran soube que era inútil correr, mas também soube que precisava de tentar.
Doutor, por favor.
Mas, num movimento rápido como um raio, ele procurou debaixo da bancada da ilha, tirou uma arma, destravou-acom um clique alto, sinistro,
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e depois apontou e disparou. O ruído ensurdeceu-a. Viu o braço que segurava a chama desaparecer e depois ouviu o cair de um corpo. Instantes depois, chamas ergueram-se
no alpendre.
O Dr. Lowe puxou um extintor de incêndios da parede e atirou-lho. Depois, correu para um cofre de parede, abriu-o com rapidez e começou freneticamente a procurar
no seu interior.
Fran inclinou-se para fora da janela. Chamas lambiam os sapatos do pretenso atacante, que jazia no alpendre. Estava a gemer e a apertar o ombro, tentando conter
o grande fluxo de sangue. Fran fez pressão com o dedo e uma torrente de espuma saltou do extintor, apagando as chamas que estavam directamente à sua volta.
Mas o fogo já se tinha espalhado para a balaustrada do alpendre e estava a segundos de alcançar os degraus. Algum do líquido flamejante da bomba incendiária também
tinha corrido pelas traves do alpendre, e ela viu que as chamas já o lambiam por baixo. Tornou-se claro para Fran que nenhum extintor poderia salvar aquela casa.
Também soube que se abrisse a porta do alpendre as chamas varreriam o laboratório e engoliriam o depósito de oxigénio.
Doutor, saia! guinchou ela. Ele acenou afirmativamente e, com os braços cheios de dossiers, correu para fora do laboratório e atravessou o corredor. Ela ouviu os
passos na escada enquanto ele descia.
Olhou de novo para o alpendre. Só havia uma forma de tentar salvar a vida do homem ferido, coisa que ela estava determinada a fazer. Não podia deixá-lo. Estaria
a condená-lo à morte quando o laboratório explodisse. Com o extintor na mão, Fran espremeu-se pela janela estreita e passou para o pequeno alpendre. As chamas tinham
voltado, aproximando-se do homem ferido e ameaçando invadir rapidamente a parede exterior da casa. Espalhou espuma do extintor de incêndios no espaço entre a janela
e as escadas, criando um caminho temporário. O suposto assassino estava caído quase ao cimo das escadas. Fran pousou o extintor, pôs as mãos sob o ombro direito
do homem e, com toda a sua força, ergueu-o e fê-lo rodar. Por um instante, ele vacilou no cimo das escadas, e depois, nu mmovimento lento que o fez soltar gritos
agonizantes, caiu pelas escadas abaixo.
Fran tentou endireitar-se mas perdeu o equilíbrio na espuma escorregadia e caiu quando os seus pés perderam o chão. A cabeça bateu no primeiro degrau, o ombro chocou
contra o topo aguçado do degrau seguinte, o tornozelo torceu-se quando, por fim, caiu no chão.
Tonta, conseguiu pôr-se de pé no momento em que o Dr. Lowe apareceu na parte lateral da casa.
Agarre-o! gritou ela. Ajude-me a tirá-lo daqui antes que a casa vá pelos ares.
O atacante tinha desmaiado durante a queda, e agora era um peso
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morto. Com força sobre-humana, Fran suportou a maior parte da carga, mas conseguiu, com a ajuda do Dr. Lowe, puxar Lou durante cerca de seis metros antes da explosão
que Calvin Whitehall planeara com tanto cuidado acontecer.
Procuraram abrigo enquanto as chamas subiam até ao céu e detritos caíam à volta deles.
Depois de Fran sair, Moly subiu para o primeiro andar e entrou na casa de banho, onde ficou diante do espelho, a observar o seu rosto. Parecia-lhe desconhecido,
como se estivesse a olhar para uma estranha uma estranha que não queria conhecer especialmente.
Em tempos foste Molly Carpenter, não foste? perguntou para a imagem no espelho. Molly Carpenter era uma pessoa com muita sorte, até privilegiada. Bem, adivinha o
que aconteceu? Ela já não está cá, e não podes voltar a fingir que és ela. Só podes voltar a ser um número que vive num bloco de celas. Não parece muito divertido,
pois não? E talvez não seja grande ideia.
Abriu as torneiras para encher o Jacuzzi, deitou sais de banho na banheira e foi para o quarto.
Jenna tinha dito que ia a um cocktail antes de ir para lá. A empregada entregaria o jantar. "Jenna vai estar fantástica!", pensou Molly. Depois, tomou uma decisão.
"Vou surpreendê-la... Esta noite vou fingir pela última vez que sou Molly Carpenter."
Uma hora depois, com os cabelos lavados e brilhantes, maquilhagem a camuflar-lhe as olheiras por baixo dos olhos, vestida com calças de seda verde-pálida e uma camisola
de capuz a condizer, Molly esperou a chegada de Jenna.
Ela chegou às sete e meia, tão bela como Molly tinha esperado.
Estou atrasada lamentou-se. Estive nos Hodges. São clientes da firma. Todos os chefões vieram de Nova Iorque, por isso não pude escapulir-me mais depressa.
Eu não ia a lado nenhum disse Molly, calmamente. Jenna recuou e olhou para ela.
Molly, estás fabulosa. Molly, estás maravilhosa! Molly encolheu os ombros.
Não sei se estou ou não. Eia, o teu marido quer que apanhemos um pifo? Quando o jantar chegou, vinha acompanhado por três garrafas daquele vinho bestial que ele
trouxe no outro dia à noite.
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Jenna soltou uma gargalhada.
É típico de Cal. Se uma garrafa é uma recordação agradável, três lembrar-te-ão de como ele é um homem importante. Eu diria que esse não é o pior traço da personalidade
dele.
De maneira nenhuma concordou Molly.
Vamos prová-lo sugeriu Jenna. Vamos apanhar uma bebedeira. Vamos fingir que ainda somos as raparigas que marcaram uma época nesta cidade.
"Marcámos, não marcámos?", pensou Molly. "Ainda bem que me arranjei. Pode ser a minha última festa, mas será divertida, eu sei o que tenho de fazer esta noite. Não
vou ser presa outra vez. Fran teve a lata de vir cá e fazer-me sentir culpada. Que é que ela sabe disto?" Lembrou-se das palavras de Fran: "Estou zangada com o meu
pai... estou furiosa... Acredita no Philip. Pode nem sequer ser importante para ti, mas aquele homem ama-te..."
Ficaram no bar construído num nicho no corredor da cozinha para a saleta íntima. Jenna procurou na gaveta, encontrou o saca-rolhas e abriu uma garrafa de vinho.
Inspeccionou as prateleiras e escolheu dois delicados copos de cristal.
A minha avó também tinha destes copos disse ela. Lembras-te do que diziam os testamentos das nossas avós? Tu ficaste com esta casa e Deus sabe que mais. Eu fiquei
com seis copos. Foi a esse ponto que a minha avó tinha descido quando partiu deste mundo.
Jenna serviu o vinho, entregou um copo a Molly e disse:
Até ao fim!
Enquanto brindavam, Molly teve a sensação perturbadora de estar a ver algo nos olhos de Jenna que não compreendia, algo novo e inteiramente inesperado.
Não conseguia imaginar o que significava.
Lou devia ter chegado às nove e meia. Como fazia sempre, Calvin Whitehall tinha calculado o tempo de que o seu faz-tudo precisaria para ir a West Redding, tratar
do assunto e voltar. Enquanto olhava para o relógio da biblioteca com intensidade crescente, admitiu para si mesmo que, a menos que Lou regressasse depressa, alguma
coisa devia ter corrido horrivelmente mal.
Azar o dele, porque este era um jogo de tudo ou nada. Se falhasse, não havia maneira de minimizar as perdas.
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Às dez horas já tinha começado a planear a rapidez com que poderia distanciar-se do seu ajudante-de-campo Lou Knox.
Dez minutos depois das dez horas, a campainha da porta principal tocou. Ele tinha dito à empregada que podia tirar a noite de folga, coisa que fazia com frequência.
Aborrecia-o ter empregados em casa o tempo todo. Obviamente, Cal compreendia que aquele sentimento era produto das suas origens. "Na maioria dos casos, por muito
que se consiga na vida, começos humildes desencadeiam reacções humildes", pensou.
Percorreu o corredor em direcção à porta, vendo o seu reflexo no espelho enquanto caminhava. O que viu foi um homem com o peito largo como um barril, uma compleição
rosada e cabelos a rarear. Por algum motivo, um comentário que tinha ouvido a seu respeito quando acabara de sair de Yale veio-lhe à ideia. A mãe de um dos Seus
amigos de Yale tinha sussurrado: "Cal não parece à-vontade no seu fato da Brooks Brothers".
Não ficou surpreso ao encontrar não uma mas quatro pessoas à porta. O porta-voz falou:
Dr. Whitehall, sou o detective Burroughs do gabinete do Ministério Público. O senhor está preso por tentativa de assassinato de Fran Simmons e do Dr. Adrian Lowe.
"Tentativa de assassinato", pensou ele, deixando a frase ecoar na sua mente.
Era pior do que ele esperava.
Cal olhou para o detective Burroughs, que devolveu o olhar alegremente.
Dr. Whitehall, para sua informação, o seu co-conspirador, Lou Knox, está a cantar como um pássaro na sua cama de hospital. E outra boa notícia: o Dr. Adrian Lowe
está a fazer um depoimento na esquadra da Polícia neste preciso momento. Ao que parece, não se cansa de louvá-lo por tudo o que o senhor fez para tornar a investigação
dele possível.
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Às sete horas, Philip Matthews estava estacionado em frente da casa dos Hilmers, esperançado de que eles viessem cedo para casa.
Todavia, já passavam dez minutos das nove quando eles entraram no caminho de acesso à casa.
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Lamento imenso disse Arthur Hilmer. Sabíamos que havia grandes hipóteses de estar alguém à nossa espera aqui, mas a nossa neta entrou numa peça, e... bem, sabe como
é.
Philip sorriu. "Um homem simpático", pensou.
É claro que o senhor não sabe como é corrigiu-se Hilmer. O nosso filho tem quarenta e quatro anos. Eu diria que provavelmente o senhor tem mais ou menos essa idade.
Philip sorriu.
O senhor é adivinho? Depois apresentou-se, explicando brevemente como Molly estava em risco de voltar para a prisão e como eles podiam ser importantes na defesa
do seu caso.
Entraram em casa. Jane Hilmer, uma mulher atraente e bem preservada, com sessenta e poucos anos, ofereceu uma bebida a Philip, um copo de vinho, ou café, mas ele
recusou.
Arthur Hilmer compreendeu obviamente que ele precisava de ir directo ao assunto.
Hoje falámos com Bobby Burke no Sea Lamp disse ele. Ficámos completamente confusos quando soubemos o que tinha acontecido ali naquele domingo à noite. Estivemos
a ver um filme num centro comercial e depois fomos ao restaurante comer uma sanduíche.
Partimos no dia seguinte, de manhã cedo, para visitar o nosso filho em Toronto contou Jane Hilmer. Só chegámos a noite passada. Hoje parámos no restaurante para
almoçar, a caminho da peça da Janie, e foi quando soubemos. Olhou para o marido.
Como eu disse, ficámos muito confusos. Dissemos a Bobby que era evidente que queríamos ajudar de todas as maneiras que pudéssemos. Provavelmente, Bobby disse-lhe
que vimos bastante bem o homem que estava no automóvel, no parque de estacionamento.
Disse, sim confirmou Philip. Vou pedir-lhes para fazerem um depoimento amanhã de manhã no gabinete do delegado do Ministério Público, e depois gostaria que se encontrassem
com o desenhador da Polícia. Um retrato do homem que viram naquele carro seria muito útil.
Teremos muito prazer em fazer isso disse Arthur Hilmer. Mas posso ser-lhe ainda mais útil, creio eu. Sabe, nós prestámos uma atenção especial às duas mulheres quando
elas saíram. Tínhamos visto a primeira mulher a passar junto à nossa mesa, e era óbvio que estava perturbada. Depois, a senhora loura com imensa classe, que agora
sei que era Molly Lasch, saiu. Estava a chorar. Ouvi-a chamar: "Annamarie!"
Philip ficou tenso. "Não me dê más notícias", implorou em silêncio.
É claro que a outra mulher não a ouviu disse Arthur Hilmer
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em voz baixa. Existe uma pequena janela oval por cima da mesa da caixa. De onde estava sentado, podia ver claramente o parque de estacionamento, ou pelo menos a
parte mais próxima do restaurante. A primeira mulher deve ter atravessado o estacionamento para o lado mais escuro... Não consegui vê-la. Mas tenho a certeza de
que vi aquela segunda senhora, quero dizer, a Molly Lasch, ir directamente para o carro e arrancar. Posso jurar que não havia forma, no céu ou na terra, de ela ter
atravessado o parque de estacionamento até àquele jipe e espetado uma faca na outra mulher, não no espaço de tempo em que a vi sair do restaurante e que ela se afastou
de carro.
Philip não percebeu que tinha os olhos cheios de lágrimas até as limpar com as costas da mão num gesto reflexo.
Não consigo sequer procurar as palavras... disse, e depois parou. Levantou-se. Vou tentar encontrar as palavras certas para vos agradecer amanhã disse. Agora, tenho
de ir para Greenwich.
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O Dr. Peter Black estava à janela do seu quarto, no primeiro andar, com um copo de uísque na mão. Viu com olhos embotados dois carros desconhecidos encostarem junto
à sua casa. Não precisou de observar os modos profissionais com que os quatro grandes homens emergiram e caminharam pelo acesso de lajes para saber que estava tudo
acabado. "Cal, o Poderoso, caiu finalmente", pensou, com um toque de humor. "Infelizmente, vai arrastar-me com ele."
"Ter sempre um plano de contingência era um dos lemas preferidos de Cal. Será que tem um agora?", pensou Peter Black. "Contudo, para dizer a verdade, nunca gostei
do tipo, por isso não quero saber."
Atravessou o quarto para junto da cama e abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira. Depois tirou um estojo de pele e extraiu uma agulha hipodérmica, já cheia de fluido.
Com um olhar de súbita curiosidade pessoal, estudou o instrumento. Quantas vezes tinha ele, com compaixão no rosto, dado aquela injecção, sabendo que os olhos confiantes
que o fitavam em breve perderiam o foco e depois se fechariam para sempre?
Segundo o Dr. Lowe, aquela droga não só não deixava vestígios no sangue como o efeito também não era doloroso.
Pedro estava a bater à porta do quarto para anunciar as visitas indesejáveis.
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O Dr. Peter Black estendeu-se na cama, bebeu um último gole de uísque e depois mergulhou a agulha no braço. Suspirou enquanto pensava brevemente que pelo menos o
Dr. Lowe tinha tido razão em relação à ausência de dor.
Estou bem insistiu Fran. Sei que não tenho nada partido. Tinha-se recusado a ir para o hospital, por isso fora levada num carro da Polícia para o gabinete do delegado
do Ministério Público em Stamford com o Dr. Lowe. Dali telefonou para a casa de Gus Brandt e contou ao patrão os acontecimentos da noite. Usando o sistema alta-voz
do telefone, ele pôs a história de Fran no ar, com imagens de arquivo como pano de fundo.
Quando a Polícia tanto Estatal como local chegara ao local da explosão, o Dr. Lowe anunciara que queria entregar-se às autoridades e fazer um depoimento pormenorizado
das descobertas médicas que a sua investigação tinha alcançado.
De pé, no meio do campo, com o incêndio ainda a lavrar descontrolado atrás dele e os dossiers apertados nos braços, pedira desculpa a Fran.
Eu podia ter morrido esta noite, Menina Simmons. Tudo o que consegui descobrir ter-se-ia perdido comigo. Tenho de registar tudo imediatamente.
Doutor dissera Fran, não posso deixar de observar que, embora já tenha mais de setenta anos, não há dúvida de que não foi nada filosófico quando alguém tentou acabar
com a sua vida.
Tinham sido transportados pela polícia para o gabinete do delegado do Ministério Público, em Stamford. Fran prestara declarações a um assistente do promotor, Rudy
Jacobs.
Gravei o Dr. Lowe disse-lhe ela. Se ao menos tivesse pensado em pegar no gravador antes de a casa explodir...
Menina Simmons, não vamos precisar dele disse-lhe Jacobs. Disseram-me que o bom doutor está a despejar tudo. Estamos a gravá-lo em vídeo e audio.
Identificaram o homem que tentou matar-nos?
Claro que sim. Chama-se Lou Knox. É de Greenwich, onde vive e trabalha como motorista de Calvin Whitehall, e aparentemente trata de muitos outros serviços.
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Ficou muito ferido?
Apanhou com alguns chumbos no ombro e no braço, e tem algumas queimaduras, mas vai ficar bem. Ouvi dizer que também está a contar tudo. Sabe que o apanhámos em flagrante,
e a sua única esperança é uma diminuição da pena por colaborar sem restrições.
Calvin Whitehall foi preso?
Acabaram de o trazer. Está a ser registado neste preciso momento.
Posso olhar para ele? pediu Fran com um sorriso triste. Andei na escola com a mulher dele, mas nunca o conheci. Seria interessante ver o tipo que tentou fazer-me
em bocados.
Não vejo por que não. Siga-me.
A visão do homem de peito largo como um barril, meio careca e com feições rudes, vestido com uma camisa desportiva enrugada, surpreendeu Fran. Tal como o Dr. Lowe,
não se parecia nada com as fotografias que tinha visto dele, não havia nada naquele homem desgrenhado que sugerisse "Cal, o Poderoso", como Jenna chamava ao marido.
Na verdade, era difícil imaginar Jenna bela, elegante, refinada casada com um homem que tinha uma aparência tão rude.
"Jenna! Como isto vai ser horrível para ela", pensou Fran. "Deve estar com Molly esta noite. Será que já sabe alguma coisa?"
"Seguramente, o marido de Jenna vai para a prisão", pensou Fran, enquanto reflectia sobre o futuro imediato. "Molly também pode ainda ter de ir para a prisão. A
menos, é claro, que alguma coisa do que eu descobri esta noite sobre as falcatruas no hospital Lasch possam ajudá-la de alguma forma. O meu pai preferiu suicidar-se
a enfrentar a prisão. Que laço estranho que nós, raparigas de Cranden, acabámos por criar: as três de alguma maneira confrontadas com a realidade da prisão.
Voltou-se para o assistente do promotor.
Dr. Jacobs, estou a começar a sentir todas as minhas dores e dorzinhas. Acho que vou cobrar-lhe agora aquela boleia para casa.
Claro, Menina Simmons.
Mas primeiro posso usar o seu telefone por alguns momentos? Gostaria de verificar se tenho alguma mensagem.
Claro. Vamos ao meu escritório.
Havia duas mensagens. Bobby Burke, o empregado de balcão do Restaurante Sea Lamp, tinha telefonado às quatro horas para lhe dizer que localizara o casal que estivera
no restaurante no domingo à noite ao mesmo tempo que Molly estava com Annamarie Scalli.
"Uma notícia fantástica!", pensou Fran.
O segundo telefonema era de Edna Barry e fora feito às seis horas:
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"Menina Simmons, isto é muito difícil para mim, mas sinto que tenho de desabafar tudo. Menti em relação à chave de reserva da casa da Molly porque tinha receio de
que o meu filho tivesse... tivesse estado envolvido na morte do Dr. Lasch. Wally está muito perturbado."
Fran apertou mais o auscultador contra o ouvido. Edna Barry estava a soluçar tanto que era difícil compreender as suas palavras.
"Menina Simmons, às vezes o Wally conta histórias disparatadas. Ouve coisas na sua cabeça e pensa que são verdadeiras. É por isso que eu tinha tanto medo por ele."
Está bem, Menina Simmons? perguntou Jacobs, reparando na sua expressão de preocupada concentração.
Fran levou o dedo aos lábios, enquanto se esforçava para ouvir a voz embargada de Edna.
"Eu não deixei Wally falar. Mandei-o sempre calar-se quando ele tentava. Mas agora há pouco ele disse uma coisa que, se for verdadeira, pode ser muito, muito importante.
"Wally afirmou ter visto Molly vir para casa na noite em que o Dr. Lasch morreu. Diz que a viu entrar em casa e acender a luz no escritório. Nessa altura, ele estava
junto à janela do escritório, e quando ela acendeu a luz ele viu que o Dr. Lasch estava coberto de sangue.
"Esta próxima parte é o que é tão importante, se for verdade e Wally não estiver apenas a imaginar coisas. Ele jura que viu a porta principal da casa abrir-se e
uma mulher começar a sair. No entanto, ela avistou-o e atirou-se novamente lá para dentro. Ele não lhe viu o rosto e não sabe quem é, e fugiu logo que a viu."
Houve uma pausa e mais soluços antes de ela recomeçar:
"Menina Simmons, eu devia ter deixado que ele fosse interrogado, mas ele nunca me tinha falado nesta mulher antes. Eu não queria magoar Molly... estava apenas com
medo pelo meu filho." O som de soluços encheu a cabeça de Fran durante vários momentos. Depois, a Sr.a Barry controlou-se o suficiente para continuar. "É tudo o
que lhe posso dizer. Suponho que a senhora ou o advogado de Molly quererão falar connosco amanhã. Estaremos aqui. Adeus."
Assombrada, Fran pousou o auscultador no suporte. "Wally diz que viu Molly voltar para casa", pensou. "É claro que ele não está bem. Pode não ser uma testemunha
credível. Mas, se ele está a dizer a verdade e viu realmente uma mulher a sair da casa de Molly..."
"Mas que mulher? Annamarie?", Fran abanou a cabeça. "Não, não acredito nisso... Outra enfermeira com quem ele estivesse a ter um caso amoroso...?"
Um som semelhante a um dique. "Eu própria ouvi um som parecido com um clique ontem na casa de Molly", apercebeu-se Fran. "Ouvi-o
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ontem quando fui lá e a Jenna estava com ela. Foi o clique que os saltos altos fizeram no átrio."
Jenna. "Boa amiga, melhor amiga."
"Oh, santo Deus, seria possível? Não havia arrombamento nem sinais de luta. Wally viu uma mulher a sair de casa. Gary teve de ser morto por uma mulher que conhecia.
Não a Molly. Não a Annamarie. Todas aquelas fotografias. A expressão que Jenna tinha nelas."
Não quero mais, Jenna, definitivamente, chega. Juro-te que estou a ficar com uma bebedeira.
Oh, por amor de Deus, Molly, bebeste um copo e meio.
Pensei que este era pelo menos o terceiro. Abanou a cabeça, como se estivesse a tentar desanuviá-la. Este vinho é forte, sabes?
Qual é a diferença? Com tudo o que tens na cabeça, o melhor que fazes é relaxar. Mal tocaste no jantar.
Comi bastante e estava bom. Mas não tenho muita fome. Levantou a mão num sinal de protesto quando Jenna deitou mais vinho no seu copo. Não, não posso beber mais.
Sinto a cabeça a andar à roda.
Deixa-a rodar.
Estavam sentadas no escritório, ambas com a cabeça para trás, os corpos afundados em poltronas confortáveis e fofas que estavam viradas uma para a outra, separadas
por uma mesa pequena e baixa. Durante vários minutos ficaram sentadas em silêncio, enquanto um CD de jazz tocava suavemente.
Numa pausa entre músicas, Molly falou.
Sabes uma coisa, Jen? A noite passada tive um pesadelo. Foi muito perturbador. Pareceu-me ver Wally Barry à janela.
Santo Deus!
Não fiquei assustada, apenas espantada. Wally nunca me faria mal; eu sei. Mas, depois de o ver à janela, voltei-me e de repente esta sala ficou igual ao que estava
naquela noite em que vim para casa e encontrei Gary morto à secretária. E acho que descobri por que é que fiz a ligação... Acredito que Wally esteve mesmo aqui naquela
noite.
Molly tinha mantido a cabeça para trás enquanto falava. Estava a começar a sentir uma grande sonolência. Esforçou-se por manter
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os olhos abertos e levantar a cabeça. Que é que tinha acabado de dizer? Alguma coisa sobre encontrar Gary.
Encontrar Gary.
De repente, os olhos abriram-se completamente e ela endireitou-se.
Jen, eu acabei de dizer uma coisa importante! Jenna riu-se.
Tudo o que tu dizes é importante, Molly.
Este vinho tem um gosto esquisito, Jen.
Bem, eu não vou dizer ao poderoso Cal que tu disseste isso. Ele sentir-se-ia insultado.
Clique, estalido. Foi outro som que eu ouvi.
Molly, Molly, estás a ficar histérica! Jenna levantou-se e dirigiu-se para a amiga. Parou atrás da cadeira, abraçou-a e inclinou a cabeça para a frente para o seu
queixo pousar na cabeça de Molly.
Fran está convencida de que vou suicidar-me.
Vais? perguntou Jenna, calmamente. Soltou o abraço, recuou e depois foi sentar-se na mesa diante de Molly.
Pensei que ia. Planeava suicidar-me. Foi por isso que me arranjei. Queria estar com classe quando me encontrassem.
Tu tens sempre classe, Molly disse Jenna, suavemente. Empurrou o copo de vinho de Molly para mais perto dela. Molly esticou a mão para pegar nele e entornou-o.
Não a suficiente para deixar de ser trapalhona murmurou, afundando-se na cadeira. Jen, eu vi mesmo o Wally à janela naquela noite. Tenho a certeza. A noite passada
pode ter sido um sonho, mas antes não foi. Telefona-lhe, está bem? Pede-lhe que venha cá falar comigo.
Sê razoável, Molly censurou Jenna. São dez horas da noite. Pegou nos guardanapos e limpou o vinho entornado em cima da mesa. Vou buscar-te uma recarga.
Nããão... não... não. Já bebi o suficiente. "Dói-me a cabeça", pensou Molly. Clique, estalido.
Clique, estalido disse.
De que é que estás a falar?
O som que ouvi naquela noite. Clique... estalido... clique, clique, clique.
Ouviste isso, querida? -Sim.
Molly, tenho a certeza de que estás a recuperar a memória. Devias ter-te recordado mais cedo. Fica aí sentada e relaxa. Vou buscar-te mais vinho.
Molly bocejou quando Jenna pegou no copo vazio e se dirigiu rapidamente para a cozinha.
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Clique, clique, clique disse Molly em voz alta, em sincronia com o som que os saltos altos de Jenna faziam no chão do átrio.
Enquanto seguia para Greenwich, Philip decidiu que deveria pelo menos avisar Molly alguns minutos antes de chegar à porta. Marcou o número da casa e esperou que
ela ou Jenna atendessem.
Escutou com preocupação crescente enquanto o telefone tocava sete, oito, dez vezes. Ou Molly estava a dormir um sono tão profundo que não conseguia ouvir o telefone
ou tinha desligado a campainha.
"Mas ela não a desligaria", pensou Philip. "Muito poucas pessoas têm o número dela, e seguramente não quereria ficar sem contacto com qualquer um de nós nesta altura."
Lembrou-se da conversa que tinha tido com ela nessa tarde. Na altura, Molly tinha parecido muito apática e deprimida talvez já estivesse a dormir. Não, Jenna devia
estar com ela, recordou Philip a si mesmo enquanto virava para a rua de Molly no cruzamento.
"Mas talvez Jenna tenha saído cedo." Olhou de relance para o relógio no tablier: dez horas. "Não é assim tão cedo", pensou. "Talvez por fim ela esteja a ter uma
noite de sono decente. Será melhor dar a volta e ir para casa?", pensou.
Não. Mesmo que tivesse de arrancar Molly da cama para lhe falar do testemunho dos Hilmers, ia fazê-lo. Nada lhe acalmaria mais o espírito do que aquela notícia.
Valeria a pena acordá-la para isso.
Ao aproximar-se da casa de Molly, um carro da Polícia com as luzes a piscar passou por ele a grande velocidade. Horrorizado, viu-o entrar no caminho de acesso à
casa de Molly.
Jenna voltou para o escritório com um novo copo de vinho para Molly.
Eia, que é que estás a fazer? perguntou.
Molly tinha ido para o sofá, onde espalhara todas as fotografias que tinham estado a ver antes.
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A alameda da memória replicou ela, com as palavras entarameladas. Pegou no copo e ergueu-o num brinde trocista. Céus, olha para nós os quatro disse, atirando uma
fotografia para cima da mesa do café diante do sofá. Na época, éramos felizes... ou, pelo menos, eu pensava que sim.
Jenna sorriu.
Éramos felizes, Molly. Nós os quatro vivíamos uma vida fantástica. Foi uma pena que tivesse de acabar.
Pois foi. Molly bebeu um gole de vinho e bocejou. Os meus olhos estão a fechar-se. Desculpa...
A melhor coisa que tens a fazer agora é terminar esse vinho e dormir um sono bom e prolongado.
Nós os quatro disse Molly com a voz entorpecida. Eu gosto de estar contigo, Jenna, mas não com Cal.
Não gostas do Cal, pois não, Molly?
Tu também não gostas dele. Na verdade, acho que o odeias. É por isso que tu e GaryMolly teve a vaga consciência do copo a ser-lhe tirado da mão, do
braço de Jenna à sua volta, de Jenna a levar-lhe o copo aos lábios, de Jenna a sussurrar suavemente:
Engole, Molly, não pares de engolir...
Ali está o carro de Jenna disse Fran Simmons a Jacobs, quando encostaram no acesso à frente da casa de Molly Lasch. Temos de nos despachar... Ela está lá dentro
com Molly!
Jacobs tinha vindo no carro da Polícia com Fran e dois agentes da Polícia. Antes mesmo de o veículo se imobilizar completamente, Fran já tinha a porta do seu lado
aberta. Ao saltar para fora do carro, viu outro automóvel subir o acesso atrás deles a toda a velocidade.
Sem ligar à dor constante que sentia no tornozelo, subiu os degraus para a casa e pôs o dedo na campainha.
Que se passa, Fran?
Fran voltou-se para ver Philip Matthews a correr pelos degraus. "Também estaria com medo por causa de Molly?", pensou fugazmente. No interior, ouvia a campainha
a ecoar pela casa.
Fran, aconteceu alguma coisa à Molly? Agora Philip estava ao lado dela, flanqueado pelos polícias.
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Philip! É a Jenna. Foi ela! Tem de ser. Ela foi a outra pessoa que esteve aqui na noite em que Gary Lasch foi assassinado. Ela não se atreve a deixar que Molly recupere
a memória. Sabe que Molly a ouviu correr para sair da casa naquela noite. Está desesperada. Temos de a deter! Eu sei que tenho razão.
Arrombem a porta! ordenou Jacobs aos polícias.
A porta, feita de mogno maciço, levou um precioso minuto antes das pancadas a soltarem das dobradiças e ela cair no chão.
Enquanto corriam para o átrio, um novo som ecoou pela casa os gritos histéricos de Jenna a pedir ajuda.
Encontraram-na ajoelhada ao lado do sofá, no escritório, onde Molly estava caída, com a cabeça a esconder parcialmente uma fotografia do marido assassinado, Gary
Lasch. Os olhos de Molly estavam abertos e o olhar sem vida. A mão caía, mole, do sofá. Um copo de vinho estava caído na carpete, o conteúdo a ensopar o pêlo espesso.
Eu não sabia o que ela estava a fazer! chorou Jenna. De cada vez que saía da sala devia ir pôr comprimidos para dormir no vinho. Abraçou o corpo inerte de Molly,
a chorar enquanto a embalava. Oh, Molly! Acorda, acorda...
Saia de perto dela. Com uma força abrupta, Philip Matthews agarrou Jenna e afastou-a para o lado. Puxou rapidamente Molly para cima. Não podes morrer agora! Agora
não! gritou ele. Não vou deixar-te morrer!
Antes de alguém poder avançar para ajudá-lo, pegou nela ao colo. Movendo-se com rapidez, mergulhou pela porta que dava acesso do escritório à casa de banho do andar
de baixo. Jacobs e um dos polícias seguiram-no lá para dentro.
Segundos depois, Fran ouviu o som do chuveiro a correr, seguido, pouco depois, pelo som entrecortado de Molly a esvaziar o estômago do vinho que Jenna enchera de
comprimidos para dormir.
Jacobs saiu da casa de banho.
Vá buscar o oxigénio ao carro! ordenou a um dos polícias. Chame uma ambulância disse para o outro.
Ela não parava de dizer que queria morrer chorava Jenna. Não parava de ir à cozinha e encher o copo. Estava a imaginar coisas esquisitas. Disse que tu estavas zangada,
que tu querias matá-la, Fran. Ela está louca. Está fora de si.
Se Molly alguma vez esteve louca, Jenna, foi quando confiou em ti disse Fran, calmamente.
Pois estava. Molly, apoiada por Philip e por um dos polícias, foi trazida para o escritório. Estava ensopada do duche e ainda muito
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sedada, mas a total condenação na sua voz e nos seus olhos era inegável.
Tu assassinaste o meu marido! disse ela. Tentaste matar-me. Foi a ti que ouvi naquela noite. Os teus saltos pelo corredor. Eu tinha trancado a porta principal. Tinha
empurrado o ferrolho. Foi esse som que ouvi. O clique dos teus saltos no corredor. Tu a puxares o ferrolho, a destrancares a porta.
Wally Barry viu-te, Jenna disse Fran. "Ele viu uma mulher", pensou. "Não viu o rosto de Jenna, mas talvez ela acredite em mim."
Jenna exclamou Molly, deixaste-me passar cinco anos e meio na prisão por um crime que tu cometeste. Ter-me-ias deixado voltar para a prisão. Querias que eu fosse
condenada pela morte de Annamarie. Porquê, Jenna? Diz-me porquê?
Jenna olhou para todos, primeiro com olhos quase suplicantes.
Molly, estás enganada começou.
Depois calou-se, percebendo que era inútil. Compreendeu que tinha sido apanhada. Que estava tudo acabado.
Porquê, Molly? perguntou. Porquê? O volume da sua voz começou a aumentar. PORQUÊ? Por que é que a tua família tinha dinheiro? Por que é que Gary e eu tivemos de
nos casar com o que tu e o Cal podiam oferecer-nos? Por que é que eu te apresentei Gary? Porquê sempre os quatro? Para Gary e eu podermos estar juntos o mais possível,
sem contar todas as vezes que estivemos juntos, sozinhos, ao longo dos anos.
Dr.a Whitehall, a senhora tem o direito de permanecer calada... começou Jacobs.
Jenna ignorou-o.
Nós apaixonámo-nos desde a primeira vez que olhámos um para o outro. E depois tu disseste-me, naquela tarde de domingo, que Gary estava a ter um caso com aquela
enfermeira e que ela estava grávida,
"Agora, eu era a outra mulher. Vim até cá para ter uma conversa definitiva com Gary. Estacionei ao fundo da rua para não veres o meu carro se viesses mais cedo.
Ele deixou-me entrar. Discutimos. Ele não parava de tentar obrigar-me a sair antes que tu chegasses. Depois, sentou-se à secretária, voltou-me as costas e disse:
"Estou a começar a pensar que não fiz assim tão mal em casar com Molly. Pelo menos, quando está zangada, vai para Cape Cod e recusa-se a falar comigo. Agora, vai
para casa e deixa-me em paz."
A ira abandonou a sua voz.
E depois aconteceu. Eu não planeei fazer nada daquilo. Não queria fazê-lo.
A sirene da ambulância a aproximar-se quebrou o silêncio que
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se instalara quando Jenna se calou. Fran voltou-se para Jacobs e disse.
Por amor de Deus, não deixe aquela ambulância levar a Molly para o Hospital Lasch.
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As taxas de audiência do programa da noite passada foram óptimas disse Gus Brandt, seis semanas mais tarde. Parabéns. É o melhor de todos os episódios do Crime Verdadeiro
que já foram para o ar.
Bem, podes agradecer a ti próprio por teres desencadeado tudo disse-lhe Fran. Se não me tivesses mandado fazer a cobertura da saída da Molly da prisão, nada disto
teria acontecido ou, então, teria acontecido sem mim.
Gosto especialmente do que a Molly Lasch disse no fim, a parte sobre a pessoa ter fé em si própria e aguentar quando as coisas se estão a desmoronar. Ela afirma
que foste tu que a impediste de se suicidar.
Jenna quase fez isso por ela disse Fran. Se o seu plano tivesse dado certo, todos teríamos presumido que Molly se tinha suicidado. Mesmo assim, acho que eu teria
tido as minhas dúvidas. Não acredito que quando chegasse a hora H, Molly tivesse coragem para tomar aqueles comprimidos.
Teria sido uma grande perda... Ela é uma mulher lindíssima disse Gus.
Fran sorriu.
Sim, e sempre foi... tanto por dentro como por fora. Isso é muito mais importante, não achas?
Gus Brandt retribuiu o sorriso de Fran, e a sua expressão passou gradualmente para uma expressão de benevolência.
Acho, sim. E por falar em importante, creio que é tempo de fazeres um pequeno intervalo. Aproveita e tira um dia de folga. Que tal no domingo?
Fran soltou uma gargalhada.
Existe um prémio Nobel para a generosidade?
De mãos nos bolsos, com a cabeça baixa, no que os irmãos chamavam "a posição pensante de Franny", voltou para o seu gabinete.
"Tenho estado na reserva desde o dia em que fui esperar que
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Molly saísse da Prisão Niantic", admitiu para si mesma. "Agora já tenho tudo atrás das costas", pensou, "mas ainda estou a lamber as feridas."
Tinham acontecido tantas coisas. Num esforço para escapar a uma possível pena de morte, Lou Knox tinha-se oferecido de boa vontade para dar todas as informações
que pudesse sobre Cal Whitehall e os misteriosos acontecimentos no Hospital Lasch. A pistola que ele tinha no bolso quando fora preso na quinta fora a arma usada
para matar o Dr. Jack Morrow. "Cal disse-me que Morrow era um daqueles tipos que só sabem arranjar sarilhos", dissera ele aos polícias. "Andava a fazer imensas perguntas
no hospital sobre alguns pacientes que tinham morrido. Por isso, tratei-lhe da saúde."Os Hilmers tinham identificado positivamente Lou como o homem que tinham visto
sentado no automóvel no parque de estacionamento do restaurante Sea Lamp. Knox explicou o motivo para a morte de Annamarie:
Ela podia arranjar problemas dos grandes disse ele. Ouviu Lasch e Black a falarem em livrar-se da velhota com problemas cardíacos. Também alinhou em proteger Black
quando ele fez asneira com a rapariga Colbert, mas Cal ficou em pânico quando viu no calendário de Molly que ela ia encontrar-se com a Scalli em Rowayton. E tinha
a certeza de que, a seguir, a Annamarie ia contar tudo o que sabia àquela Fran Simmons. Se ela investigasse, poderia chegar aos assistentes da ambulância que foram
subornados para dizer que Tasha Colbert tinha feito uma paragem cardíaca a caminho do hospital. Depois, eu teria de dar cabo deles. Por isso, era muito mais simples
livrarmo-nos da Scalli."
"Quando se começa a contar as pessoas assassinadas a sangue-frio porque foram consideradas uma ameaça, e se acrescenta a isso as que morreram em nome da investigação,
é tudo bastante arrepiante", disse Fran para si mesma. "E quando coloco o que aconteceu ao meu pai no mesmo contexto, apercebo-me de que ele também foi uma vítima.
A sua fraqueza comprometeu-o, é certo, mas Whitehall foi o culpado pela sua morte."
Jacobs mostrara-lhe os certificados de acções sem valor que Lou guardara como recordação de uma vigarice lucrativa ao pai dela. "Cal mandou Lou Knox dar ao seu pai
uma "dica infalível" para que comprasse quarenta mil dólares destas acções", contara-lhe Jacobs. "Tinha a certeza de que o seu pai cairia, porque, ao que parece,
ele praticamente idolatrava o sucesso financeiro do Whitehall.
"Cal Whitehall contava que o seu pai desviasse o dinheiro do fundo da biblioteca. Ele estava na comissão com o seu pai e também tinha acesso à conta. O levantamento
de quarenta mil dólares
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transformou-se num levantamento de quatrocentos mil graças às manipulações de Cal, e o seu pai percebeu que não poderia repor o dinheiro nem conseguiria provar que
não tinha retirado o dinheiro todo."
"Mesmo assim, ele tirou dinheiro que não lhe pertencia, embora apenas como uma espécie de empréstimo", pensou Fran. "Pelo menos, o pai deve estar a sorrir, já que
a outra dica infalível para me mandar para o outro mundo não resultou como ele esperava."
Ia fazer a cobertura dos julgamentos do Dr. Lowe, de Cal Whitehall e de Jenna para a estação de televisão. Ironicamente, parecia que a defesa de Jenna ia basear-se
na teoria de homicídio involuntário provocado pela paixão, precisamente a acusação de que Molly se afirmara culpada.
"Pessoas más, todas elas. Mas", reflectiu, "vão pagar pelo que fizeram com muitos anos na prisão. O lado positivo de tudo isto é que a Remington Health Management
vai ser absorvida pela American National Insurance, que tem um homem bom e decente no leme. Molly vai vender a casa e mudar-se para Nova Iorque, onde começará a
trabalhar numa revista no próximo mês. Philip está doido por ela, mas Molly precisa de muito tempo para se curar e para organizar a sua vida antes de pensar sequer
num compromisso. O que tiver de ser, será, e ele está consciente disso."
Fran pegou no casaco. "Vou para casa", decidiu. "Estou cansada e preciso de me reorganizar. Ou talvez seja a febre dos fenos a instalar-se", pensou, enquanto olhava
para as flores em exposição lá em baixo, no Centro Rockefeller.
Voltou-se e viu Tim Mason parado à porta.
Tenho andado a observar-te hoje disse ele. Cheguei à conclusão de que estás um bocado em baixo. A minha receita é vires imediatamente comigo ao Estádio dos Yankees.
O jogo começa daqui a quarenta e cinco minutos.
Fran sorriu.
Uma solução perfeita para a tristeza concordou, tomando uma decisão rápida.
Tim pôs o braço dela no seu.
O jantar será um cachorro quente e uma cerveja.
Quem paga és tu interrompeu Fran. Não te esqueças do que a tua mãe pensa sobre esse assunto.
Claro que não me esqueço. Porém, uma pequena aposta no resultado do jogo aumentaria a minha diversão.
Eu aposto nos Yankees, mas dou-te uma vantagem de três pontos ofereceu Fran.
Entraram no elevador e a porta fechou-se atrás deles.OBRAS DE MARY HIGGINS CLARK
Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
7 Até à Vista
8 O Berço da Morte
9 A Síndroma de Anastásia
10 Agora És Minha
11 Voltaremos a Encontrar-nos
12 Antes de Dizer Adeus
13 Gosta de Música, Gosta de Dançar
GOSTA DE MÚSICA GOSTA DE DANÇAR
MARY HIGGINS CLARK
GOSTA DE MÚSICA GOSTA DE DANÇAR
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original Loves Music, Loves to Dance
Tradução de Mafalda Ferrari Tradução portuguesa (c) P E A
Capa estúdios PEA
(c) 1991 by Mary Higgins Clark
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica
do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte
prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimentojudicial
Editor Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
Página www europa-america pt
E-mail secretariado@europa-america pt
Execução técnica Gráfica Europam, Lda, Mira-Sintra Mem Martins
Edição n ° 106713/7931 Junho de 2002
Depósito legal n" 65383/93
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
Agradecimentos sem fim a todos quantos me encorajaram e ajudaram a escrever este livro o meu editor, Michael V. Korda, o seu colega, editor sénior Chuck Adams; o
meu agente, Eugene H. Winick; Robert Ressler, director-adjunto dos Serviços Forênsicos. Beijos à minha filha, Carol Higgins Clark, pela pesquisa, comentários e sugestões
e por me acompanhar nas noitadas, quando nos aproximávamos do prazo de entrega do original. E, como não podia deixar de ser, os meus agradecimentos especiais à família
e amigos, que aturaram as minhas dúvidas habituais sobre se seria ou não capaz de escrever este livro; a sua santa paciência fê-los ganhar o céu.
Para os filhos do meu irmão John,
Luke e Chris Higgins,
e para a sua neta Laura.
Com amor.
O que é um amigo?
Uma alma apenas,
dividida entre dois corpos.
ARISTÓTELES
SEGUNDA-FEIRA
18 de Fevereiro
A sala estava escura. Ele sentou-se numa cadeira com os braços à volta das pernas. Estava a acontecer outra vez. Charley não se deixava ficar quieto no seu esconderijo.
Charley insistia em pensar em Erin. "Só mais duas", murmurava Charley, "depois eu paro."
Ele sabia que não valia a pena protestar, mas tornara-se cada vez mais perigoso. Charley tornara-se descuidado. Charley queria exibir-se.
Vai-te embora, Charley implorava ele. O riso trocista de Charley invadiu a sala.
"Se ao menos Nan o tivesse amado", pensou ele. Se ao menos o tivesse convidado para a festa de anos, quinze anos atrás... Ele amara-a tanto! Seguira-a até Darien
com o presente que lhe comprara numa loja de saldos: um par de sapatos de baile. A caixa de cartão era lisa e barata e ele tivera tanto trabalho em decorá-la, desenhando-lhe
na tampa o esboço dos sapatos.
Ela fazia anos no dia doze de Março, com o brotar da Primavera. Ele fora até Darien para a surpreender, com o presente que lhe comprara. E, ao chegar, encontrara
a casa dela brilhando, iluminada. Havia carros estacionados nas bermas. Ele avançou lentamente, chocado e espantado, ao descobrir que os estudantes da Brown estavam
ali.
Ainda se sentia envergonhado, ao lembrar-se de que chorara como um bebé, enquanto dava a volta para regressar. Depois, a lembrança do presente de aniversário fê-lo
mudar de ideias. Nan dissera-lhe que todas as manhãs, às sete horas, fizesse sol ou chovesse, costumava ir correr para a mata perto de casa. Na manhã seguinte ele
ali estava, esperando por ela.
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Lembrava-se ainda, perfeitamente, da surpresa dela ao vê-lo. Era surpresa e não prazer. Ela parara, com a respiração entrecortada. Um boné escondia-lhe o cabelo
loiro e sedoso e vestia uma camisola colegial por cima do fato de corrida. Nos pés trazia umas Nike.
Ele desejara-lhe um feliz aniversário, observara-a enquanto ela abria a caixa e escutara os seus agradecimentos fingidos. Depois, abraçara-a, dizendo:
Nan, amo-te tanto! Deixa-me ver como ficam os sapatos de baile nos teus lindos pés. Eu calço-tos. Poderemos dançar aqui mesmo.
Desaparece.
E, afastando-o, ela atirara-lhe a caixa à cara e continuara a correr. Foi Charley quem correu atrás dela, quem a agarrou e atirou para o chão. Foram as mãos de Charley
que lhe apertaram o pescoço até os braços dela caírem inertes. Foi Charley quem calçou os sapatos e dançou com Nan, cuja cabeça caía, inerte, sobre os ombros. Foi
Charley quem a deixou ficar ali no chão, com um dos sapatos de baile no pé direito e a sapatilha Nike calçada no esquerdo.
Passara-se muito tempo. Charley transformara-se numa recordação vaga, numa sombra pouco definida, espreitando algures no mais recôndito da sua mente, até há dois
anos. A partir daí, Charley não parava de lhe lembrar como era Nan: os seus pés magros e arqueados, os tornozelos estreitos, a sua beleza e graciosidade ao dançar
com ele...
La, lari, lolé. Agarra a música com o pé. Os dez porquinhos. A brincadeira que a mãe lhe costumava fazer, quando era pequeno. Este porquinho foi ao mercado. Este
porquinho ficou em casa.
Canta-ma dez vezes. Costumava ele pedir-lhe, quando ela parava. Uma para cada dedo do pé.
A mãe amara-o tanto! Depois tudo mudou. Podia ainda ouvir-lhe a voz a perguntar-lhe: "O que fazem estas revistas no teu quarto? Por que tiraste estes sapatos do
meu armário? Depois de tudo o que fizemos por ti. Que grande desilusão tu te tornaste para nós!"
Quando, dois anos antes, Charley reapareceu, ordenou-lhe que colocasse anúncios nas colunas pessoais. Todos aqueles anúncios!
1 Pequena lengalenga infantil, dedicada a cada um dos dedos dos pés. No original: Eeney-meeney-miney-mo. Catch a dancer by the toe. This little piggy went to the
market. This little piggy stayed home. (N. da T.)
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Charley chegara mesmo a ditar o que ele deveria escrever no anúncio especial.
Agora, tinha sete raparigas enterradas na propriedade, cada uma delas calçando no pé direito um sapato de baile, mantendo no esquerdo o que trazia calçado: bota,
sapato ou sapatilha...
Implorara a Charley que o deixasse parar por uns tempos. Ele não queria voltar a fazê-lo. Argumentou que o chão estava coberto de gelo
não poderia enterrá-las, e era perigoso guardá-las muito tempo na arca congeladora...
Mas Charley gritara-lhe:
Eu quero que estas duas sejam encontradas. Quero que sejam encontradas tal como Nan o foi.
Charley escolhera estas duas da mesma forma que escolhera as outras, depois de Nan. Chamavam-se Erin Kelley e Darcy Scott. Ambas tinham respondido a dois anúncios
diferentes e, o que para ele era ainda mais importante, ambas responderam igualmente ao seu anúncio especial.
De todas as respostas que recebera, foram as cartas e as fotografias daquelas duas que mais excitaram Charley. As cartas eram divertidas, o tipo de linguagem atraente,
era quase como ouvir a voz de Nan, com o seu espírito despretencioso e aquele humor inteligente e directo. E depois as fotografias. Ambas convidativas, ainda que
de forma diferente...
Erin Kelley mandara um instantâneo dela própria sentada no canto de uma secretária. Encontrava-se ligeiramente inclinada, como se fosse falar, os olhos brilhantes
e o corpo esguio e magro posicionado como se aguardasse um convite para dançar.
A fotografia de Darcy Scott mostrava-a de pé, com a mão pousada num assento forrado, no vão de uma janela. Encontrava-se de lado para a câmara. Era evidente que
a fotografia fora tirada de surpresa. Tinha amostras de tecido penduradas no braço e no rosto lia-se uma expressão concentrada, mas divertida. As maçãs-do-rosto
eram salientes, o corpo esguio, e as pernas compridas eram valorizadas pelos tornozelos finos. Nos pés elegantes calçava uns Gucci.
"Como elas iriam ficar muito mais bonitas com uns sapatos de baile nos pés!", dizia para si próprio.
Levantou-se e espreguiçou-se. As sombras escuras que invadiam a sala já não o perturbavam. A presença de Charley tornara-se completa e bem-vinda. A voz maçadora
que lhe pedia para desistir, desaparecera.
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Enquanto Charley, voluntariamente, se retirava para o seu antro obscuro, releu a carta de Erin e passou os dedos pela sua fotografia.
Soltou uma gargalhada, perante o anúncio enganoso que atraíra Erin até si.
Começava assim: Gosta de música. Gosta de dançar.
16
II
TERÇA-FEIRA
19 de Fevereiro
O frio. A neve derretida. A humidade. O trânsito terrível. Nada disto tinha importância. Era bom estar de volta a Nova Iorque.
Feliz, Darcy tirou o casaco, passou os dedos pelo cabelo e deu uma vista de olhos ao correio, cuidadosamente separado e pousado em cima da secretária. Bev Rothhouse,
a sua preciosa secretária, magra, viva e esperta, estudante trabalhadora na Escola de Design de Parson, identificava os montes por ordem de importância.
Contas informou, apontando para o canto exterior direito. Os talões de depósito estão a seguir. E são bastantes.
E substanciais, espero eu afirmou Darcy.
Bastante bons confirmou Bev. As mensagens estão ali. Tem pedidos para decorar mais dois apartamentos alugados. De certeza que sabia o que estava a fazer, quando
abriu este negócio.
Darcy riu-se.
Sanford e Filho. Sou eu.
No letreiro da porta lia-se: O Canto de Darcy, Design e Decoração de Interiores. O escritório ficava no Edifício Flatiron, na Rua 23.
E como estava a Califórnia? perguntou Bev.
Divertida, Darcy percebeu o tom de reverência na voz da jovem secretária. O que Bev realmente queria perguntar era: Como estão os seus pais? Que tal é estar com
eles? Eles são na vida real tão magníficos como aparecem nos filmes?
Darcy pensou que a resposta só podia ser: "Sim, são magníficos. Sim, são maravilhosos. Sim, eu amo-os e sinto-me orgulhosa. Só que nunca me senti à vontade no mundo
deles."
Quando partem para a Austrália? perguntou Bev, tentando Parecer indiferente.
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Já foram. Apanhei o avião para Nova Iorque, depois de os ver partir.
Darcy conciliara uma visita à família com uma viagem de negócios a Lake Tahoe, para decorar uma casa na neve, destinada a famílias de orçamento médio. A mãe e o
pai partiam para uma tournée internacional, com a peça que de momento representavam. Ela não os tornaria a ver durante, pelo menos, seis meses.
Abriu o recipiente do café, pegou no embrulho contendo o almoço e instalou-se na secretária.
Está óptima comentou Bev. Adoro esse fato.
O vestido de lã vermelha e decote quadrado com casaco a condizer era o fruto do passeio pelas lojas de Rodeo Drive que a sua mãe insistira em fazer. "Para uma rapariga
tão bonita, tu não cuidas nada das tuas roupas, querida", declarara a mãe. "Devias realçar esse teu ar diáfano."
Tal como o pai salientava muitas vezes, Darcy poderia servir de modelo ao retrato da sua antepassada materna de quem herdara o nome. A primeira Darcy deixara a Irlanda,
após a guerra da revolução, para se reunir ao seu noivo francês, um oficial no exército de Lafayette. Ambas possuíam os mesmos olhos rasgados, mais verdes do que
castanhos, o mesmo cabelo castanho e sedoso raiado de ouro, o mesmo nariz estreito.
Já conseguimos crescer um pouco desde essa altura, costumava Darcy salientar. Eu sou alta. A primeira Darcy era uma pequenitates. E isso ajuda, se quisermos manter
esse ar diáfano.
Darcy nunca esquecera as palavras de um realizador quando ela tinha seis anos.
Como é que duas pessoas tão bonitas conceberam uma garota tão enfezada? perguntara ele.
Lembrava-se perfeitamente de ter ficado imóvel, paralisada com o choque. Alguns minutos depois, quando a mãe tentou apresentá-la a alguém do estúdio dizendo: "Esta
é a minha filha Darcy", ela gritara: Não! e desatara a correr. Mais tarde, tivera de pedir desculpas pela sua indelicadeza.
Naquela manhã, depois de aterrar em Kennedy, passara pelo apartamento para deixar as malas e viera directamente para o escritório, sem perder tempo a vestir o fato
de trabalho que normalmente usava e que consistia numas calças de ganga e numa camisola. Bev esperou que ela bebesse o café e depois pegou nos recados, perguntando:
Quer que comece a telefonar a esta gente?
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Deixa-me primeiro ligar para Erin.
Erin atendeu ao primeiro toque. A saudação distraída disse a Darcy que Erin se encontrava já a trabalhar. Tinham sido companheiras de quarto na Faculdade em Mount
Holyoke. Erin estudara design de jóias. Recentemente, chegara a ganhar o prestigiado prémio Ayer, destinado aos designers revelação.
Darcy encontrara também a sua carreira profissional. Após quatro anos de trabalho numa agência de publicidade, resolvera largar o seu lugar de executiva e dedicar-se
à decoração de interiores. Contavam ambas vinte e oito anos de idade, e continuavam tão unidas como nos tempos em que partilhavam o quarto.
Darcy podia ver Erin, sentada na sua mesa de trabalho, vestida com umas calças de ganga e uma camisola larga, o cabelo ruivo preso por um gancho ou em rabo de cavalo,
concentrada no trabalho, alheia a tudo o que se passasse à sua volta.
A saudação distraída deu lugar a um grito de alegria ao ouvir a voz de Darcy.
Estás ocupada afirmou Darcy. Eu não te demoro. Queria só dizer-te que já cheguei e, claro, queria saber como está Billy.
Billy era o pai de Erin, um inválido que nos últimos três anos se encontrava internado numa casa de repouso em Massachusetts.
Está na mesma respondeu Erin.
E como vai o colar? Quando te telefonei na sexta-feira estavas muito preocupada.
Quando Darcy partira, no mês anterior, Erin conseguira uma encomenda da Joalheria Bertolini para desenhar um colar utilizando as pedras de família de um cliente.
A Bertolini era tão conceituada como a Cartier ou a Tiffany.
Estava um pouco assustada com o desenho, sim. E, na verdade, foi bastante difícil, mas agora está tudo bem. Vou entregá-lo amanhã de manhã, e na minha opinião está
sensacional. E como estava Bel-Hair?
Deslumbrante.
Riram-se as duas e depois Darcy pediu:
Conta-me as novidades da aventura dos anúncios.
Nona Roberts, produtora da estação de televisão Hudson, tornara-se amiga de Dracy e de Erin no ginásio local. Nona preparava um documentário acerca das colunas de
anúncios pessoais: que tipo de pessoas colocavam e respondiam aos anúncios e que experiências tinham, boas ou más.
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E Nona pedira a Darcy e Erin para a ajudarem nas pesquisas respondendo a alguns dos anúncios.
Não terão de se encontrar com eles mais de uma vez argumentara ela. Quase todos os solteiros da estação estão a ajudar-me e fartam-se de rir. E quem sabe se não
encontrarão alguém formidável. De qualquer forma, pensem nisso.
Erin, normalmente a mais arrojada, mostrara-se estranhamente relutante. No entanto, Darcy conseguira convencê-la de que seria divertido.
Nós não vamos colocar nenhum anúncio argumentara ela. Vamos simplesmente responder àqueles que acharmos mais interessantes. Não daremos as nossas moradas, mas apenas
um número de telefone. Marcamos os encontros em lugares públicos. Que temos a perder?
Seis semanas antes, tinham resolvido começar a responder a alguns anúncios. Darcy tivera tempo para um encontro apenas, antes de partir para Lake Tahoe e Bellair.
O homem com quem se encontrara tinha sessenta e um anos de idade. Darcy comentara depois com Erin que ele devia ter subido a um escadote antes de se ter medido.
Dizia também ser um profissional da publicidade, mas, quando Darcy mencionou alguns dos mais conhecidos nomes dentro do ramo, a ignorância dele era total. Um mentiroso
e um palerma, concluíram Erin e Nona.
Agora, sorrindo de excitação, Darcy pedia a Erin que lhe contasse as novidades.
Deixo isso para amanhã à noite quando nos encontrarmos com Nona. respondeu Erin. Tenho apontado tudo naquele caderno que me ofereceste no Natal. Devo dizer-te que,
desde a última vez que falei contigo, tive mais dois encontros, o que faz um total de oito encontros em três semanas. A maioria eram patetas e insignificantes. Um
deles eu já conhecia e um dos últimos era verdadeiramente atraente, mas escusado será dizer que não voltou a telefonar. Esta noite tenho mais um encontro. Parece-me
interessante, mas o melhor é esperar para ver.
Darcy sorriu e comentou.
É óbvio que não perdi grande coisa. A quantos anúncios respondeste por mim?
Cerca de uma dúzia. Achei que seria divertido respondermos as duas a alguns dos anúncios. Assim, poderemos trocar impressões, se os palermas nos responderem.
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Adoro a ideia. E onde te vais encontrar com o galã desta noite?
Num bar perto da Praça de Washington.
O que é que ele faz?
É advogado. É de Filadélfia. Está a tentar integrar-se. Podes
vir amanhã à noite, não podes?
Claro!
Tinham combinado encontrar-se com Nona para jantar.
O tom de Erin tornou-se mais sério ao afirmar:
Ainda bem que voltaste, Darce. Senti a tua falta.
Eu também respondeu Darcy comovida. Então, encontramo-nos depois. Começava a despedir-se, quando, levada por um impulso, resolveu perguntar: E como se chama o pinga-amor
desta noite?
Charles North.
Parece muito fino. Diverte-te, Erin fanfarrona. E desligou.
Bev aguardava pacientemente com os recados e, quando falou, o tom era já abertamente invejoso.
Juro que, quando vocês duas conversam, parecem duas garotas de escola. São mais chegadas do que muitas irmãs. E, se pensar na minha irmã, direi mesmo que vocês são
muito mais chegadas que a maioria das irmãs.
Tens toda a razão concordou Darcy calmamente.
A Galeria Sheridan, na Rua 78, no lado este da Avenida Madison, encontrava-se a meio de um leilão. O recheio da enorme casa de campo de um barão do petróleo já falecido
atraíra uma multidão de negociantes e coleccionadores.
Chris Sheridan observava os acontecimentos ao fundo da sala, pensando com prazer que fora um grande sucesso ter tirado à SOtheby e à Christie o privilégio de leiloar
aquela colecção: a magnífica mobília da época da rainha Ana; os quadros valorizados mais pela sua raridade do que pela técnica; a prata polida, que ele sabia capaz
de provocar euforia nos compradores.
Com trinta e três anos, Chris Sheridan parecia mais o desportista
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que fora na universidade do que uma autoridade em antiguidades. A sua estatura era acentuada pelo porte erecto, os ombros largos afunilavam na cintura, o cabelo
loiro emoldurava um rosto bem delineado. Os olhos azuis eram amigáveis e desarmantes. No entanto, os seus rivais sabiam que aqueles olhos depressa se tornavam duros
e decididos.
Chris cruzou os braços, enquanto assistia ao remate final de uma escrivaninha Domenico Cucci, de 1683, com painéis de pieira dura e relevos centrais de pedra embutida.
Era mais pequena e menos trabalhada do que o par que Cucci fizera para Luís XIV, no entanto não lhe faltava magnificência e ele sabia que o Met a desejava desesperadamente.
A sala silenciou-se, perante os lances oferecidos pelos dois maiores interessados: o Met e um banco japonês. Uma pancada no braço fez que Chris se voltasse, distraído.
Tratava-se de Sarah Johnson, a sua assistente, uma especialista em antiguidades que ele conseguira desviar de um museu privado de Boston. O seu rosto reflectia preocupação.
Chris, receio que haja um problema declarou ela. A sua mãe está ao telefone. Diz que tem de falar consigo imediatamente. Pareceu-me bastante perturbada.
O problema está naquele maldito programa! exclamou Chris.
Dirigiu-se para a porta, abriu-a e, ignorando o elevador, subiu as escadas a correr. Um mês antes, uma série de televisão muito popular, os Crimes Verdadeiros, apresentara
um apontamento acerca do assassínio da irmã gémea de Chris, Nan. Quando tinha dezanove anos, Nan fora estrangulada enquanto corria, perto da sua casa de Darien,
Connecticut. Apesar do protesto veemente, Chris não conseguiu evitar que as câmaras de televisão filmassem a casa e o terreno, nem evitara a reconstituição do crime
no bosque onde o corpo fora encontrado.!
Fartara-se de insistir com a mãe para que esta não assistisse ao programa, mas ela insistira em vê-lo. Os produtores tinham conseguido arranjar uma actriz com uma
notável semelhança física com Nan. A reconstituição mostrava-a a correr, a silhueta que a observava escondida entre as árvores, a confrontação, a tentativa de fuga,
o assassino atacando-a, matando-a, tirando-lhe a sapatilha do pé direito, substituindo-a por um sapato de salto alto.
Os comentários estavam a cargo de um locutor cuja voz poderosa soava fingidamente horrorizada.
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Teria sido um estranho a acabar com a vida da talentosa Nan Sheridan? Ela e o irmão tinham comemorado o seu décimo oitavo aniversário, na noite anterior ao crime.
Teria sido alguém que Nan conhecia, alguém que ainda na véspera lhe desejara um feliz aniversário e que, de repente, se tornou um assassino? Quinze anos depois ninguém
conseguiu descobrir nenhuma informação que ajudasse a solucionar tão horrível crime. Teria Nan Sheridan sido vítima de um monstro que escolheu o seu alvo ao acaso?
Ou será que a sua morte não passou de uma vingança pessoal?
Seguira-se uma montagem fotográfica. A casa e os arredores vistos de uma perspectiva diferente. O número de telefone para onde poderiam ligar, caso possuíssem qualquer
informação. A última imagem mostrava uma fotografia tirada pela polícia, do corpo de Nan, tal como fora encontrado, cuidadosamente colocado no chão, as mãos poisadas
junto à cintura, o pé esquerdo com a sapatilha calçada, enquanto no direito se podia ver o sapato de salto alto.
O comentário final:
Onde estão os pares da sapatilha e deste bonito sapato de baile? Será que o assassino ainda os tem em seu poder?
Greta Sheridan assistira ao programa de olhos enxutos. Quando este terminou, declarara:
Chris, tenho pensado nisto vezes sem conta. Por isso, insisti em ver o programa. Quando Nan morreu eu não conseguia raciocinar, mas ela falava-me tanto dos colegas
da escola. Eu... eu pensei que vendo o programa poderia recordar-me de algo importante. Lembras-te do dia do funeral? Toda aquela gente. Todos aqueles colegas. Lembras-te
do Chefe Harriman ter dito que estava convencido que o assassino se encontrava ali no meio da multidão? Lembras-te como eles montaram câmaras para poderem investigar
toda a gente presente no funeral?
Depois, como se algo a atingisse no rosto, Greta Sheridan desatara a soluçar.
Aquela rapariga parecia-se tanto com Nan, não achaste? Oh, Chris, tenho sentido tanto a falta dela durante todos estes anos. O pai ainda estaria vivo, se ela não
tivesse morrido. Aquele ataque cardíaco foi a maneira dele expressar o seu desgosto.
"Quem me dera ter pegado num martelo e ter destruído todas as televisões daquela casa", pensou Chris, enquanto se dirigia para o escritório. Os dedos da mão esquerda
tamborilavam, nervosos, em cima da secretária, quando pegou no auscultador e perguntou:
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Mãe, o que se passa?
A voz- de Greta Sheridan soou nervosa e perturbada.
Chris, lamento incomodarte a meio do leilão, mas recebi a carta mais estranha que possas imaginar.
"Outra consequência daquele maldito programa", concluiu ele. Todas as cartas que tinham recebido, desde médiuns oferecendo-se para fazer sessões espíritas, a gente
que lhes pedia dinheiro em troca das suas orações...
Gostava que não lesses essas porcarias declarou ele. Essas cartas dão cabo de ti.
Chris, esta é diferente. Diz que, em memória de Nan, uma bailarina de Manhattan irá morrer, na noite de dezanove de Fevereiro, da mesma maneira que Nan morreu. A
voz de Greta era agora mais intensa. Chris, supõe que a carta é verdadeira. Será que podemos fazer alguma coisa? Será que podemos avisar alguém?
Doug Fox pegou na gravata, ajeitou o nó com gestos precisos e cuidadosos e observou-se no espelho. No dia anterior, fizera uma limpeza e agora a sua pele brilhava.
A espuma que aplicara fazia com que o cabelo, já ralo, parecesse abundante e a madeixa loira cobria-lhe quase totalmente as brancas que começavam a aparecer.
"Um tipo bem-parecido", assegurou ele a si próprio, admirando o modo como a camisa branca seguia as linhas musculadas do seu peito. Pegou no casaco, apreciando o
toque macio da lã escocesa. O fato era azul-escuro com riscas brancas muito ténues, contrastando com o padrão miúdo e vermelho da gravata Hermes. Assentava-lhe perfeitamente
o papel de investidor bancário, cidadão conceituado de Scarsdale, marido dedicado de Susan Frawley Fox e pai de quatro rebentos bonitos e vivaços.
Doug pensava com divertida satisfação que ninguém suspeitaria da existência da sua outra vida, como ilustrador independente e solteiro, habitando um apartamento
no abençoado anonimato do London Terrace, na Rua 23 Oeste, com um esconderijo em Pawling e uma carrinha Volvo novinha em folha.
Doug deitou um último olhar ao espelho, compôs o lenço de bolso
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dando uma vista de olhos para se certificar de que não se esquecera de nada, dirigiu-se para a porta. Aquele quarto sempre o irritara, a mobília era rústica, francesa,
e fora escolhida por um maldito decorador de interiores muito medíocre. Mas Susan conseguira torná-lo ainda pior.
Viam-se pilhas de roupa em cima da cadeira, objectos de toilette dourados atirados para cima do guarda-fato, desenhos do jardim infantil pendurados nas paredes.
Deixem-me sair daqui suspirou Doug.
Na cozinha, encontrou o habitual cenário de capoeira. Donny, de
13 anos de idade, e Beth, de 12, atascavam a boca com comida. Susan não parava de avisar que o autocarro da escola vinha já a descer a rua. O bebé andava por ali
de fralda molhada e mãos pegajosas. Trish afirmava que não queria ir ao jardim infantil, queria ficar em casa com a mãe a ver "os meus filhos".
Susan vestia um velho roupão de flanela, por cima da camisa de noite. Quando casara era uma rapariga muito bonita. Uma rapariga bonita que se deixara engordar. Sorriu
a Doug e serviu-lhe café.
Queres panquecas?
Não.
Por que insistia ela naquilo, todas as manhãs, tentando empanturrá-lo? Doug deu um salto ao ver que o bebé tentava a todo custo abraçar-se às suas pernas.
Que raio, Susan, já que não consegues mantê-lo limpo, pelo menos afasta-o de mim. Não posso ir para o escritório cheio de nódoas.
O autocarro! berrou Beth. Adeus, mãe, adeus, pai. Donny agarrou os livros.
Podes vir ao meu jogo de basquete esta noite, pai?
Vou chegar tarde a casa hoje, tenho uma reunião muito importante. No próximo prometo que vou.
Claro respondeu Donny, batendo a porta à saída.
Três minutos depois, Doug conduzia o seu Mercedes em direcção à estação, com a recomendação de Susan ainda a martelar-lhe os ouvidos:
Vê lá se não chegas muito tarde.
Doug sentia-se próximo da saturação. Tinha trinta e seis anos e encalhara com uma mulher gorda, quatro garotos barulhentos e uma casa nos subúrbios. O Sonho Americano.
Aos 22 anos pensara ter sido muito esperto ao casar com Susan.
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Infelizmente, casar com a filha de um pai rico não era o mesmo que casar rico. O pai de Susan era um avarento. Emprestar sim, dar nunca. Aquela máxima não lhe saía
do pensamento.
Não era por não gostar dos miúdos ou mesmo de Susan, só que deveria ter esperado um pouco mais antes de assumir o papel de pai de família. Desperdiçara a sua juventude.
Como Douglas Fox, investidor bancário, conceituado cidadão de Scarsdale, a sua vida era um exercício de tédio.
Estacionou e correu para o comboio, consolando-se com o pensamento de que, quando se transformava em Doug Fields, artista qualificado, príncipe dos anúncios, a sua
vida era emocionante e secreta e, quando chegavam as mais obscuras necessidades, havia sempre um meio de as satisfazer.
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III
QUARTA-FEIRA
20 de Fevereiro
Na noite de quarta-feira, Darcy chegou ao escritório de Nona Roberts às seis e meia em ponto. Tivera um encontro com um cliente em Riverside Drive e telefonara a
Nona, sugerindo que se encontrassem ali e seguissem depois juntas para o restaurante.
O escritório de Nona consistia numa caixa fechada no 10.º andar da estação de televisão Hudson. Estava mobilada com uma espécie de secretária de carvalho, atulhada
de papéis, alguns ficheiros de metal (cujas gavetas não fechavam completamente), prateleiras de cadernos e fitas, uma cadeira particularmente pouco convidativa e
uma cadeira giratória que Darcy sabia não ser capaz de girar. Uma planta que Nona, insistentemente, se esquecia de regar, pendia murcha no parapeito da janela.
Nona adorava aquele escritório. Darcy perguntava-se por que razão tudo aquilo não começava a arder de um momento para o outro. Quando chegou, Nona estava ao telefone,
de maneira que resolveu ir buscar água para regar a planta.
Está a pedir misericórdia declarou ela ao regressar. Nona acabara de desligar o telefone. Deu um salto para vir beijar Darcy e exclamou:
Eu sei que não tenho queda para plantas.
Vestia um macacão de lã, que realçava fielmente a sua pequena estatura, preso na cintura por um cinto de couro estreito, cuja fivela dourada representava duas mãos
entrelaçadas. O cabelo louro, raiado de branco, estava cortado curto e mal lhe chegava ao queixo. O seu rosto vivo era mais interessante do que propriamente bonito.
Darcy sentiu-se feliz, ao ver que a dor que se espalhara nos olhos castanhos de Nona fora completamente substituída por uma expressão
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de boa disposição. O seu recente divórcio afectara-a profundamente, pois tal como ela dissera:
Já é suficientemente traumático quando se vira a casa dos quarenta, quanto mais quando o nosso marido nos troca por uma ninfa de vinte e um anos de idade.
Estou atrasada afirmou Nona. Encontramo-nos com Erin, às sete? Entre as sete e as sete e meia respondeu Darcy, tentando levantar com os dedos as folhas murchas da
planta.
Temos quinze minutos para lá chegar, e isto partindo do princípio de que encontraremos um táxi vazio à nossa espera. Óptimo. Há uma coisa que eu quero fazer antes
de sair. Por que não vens comigo e observas o lado sensível da televisão?
Eu nem sabia que esse lado existia.
Todos os escritórios ocupavam uma faixa central, apinhada de jornalistas sentados nas suas secretárias. Os computadores zumbiam e os faxes retiniam. No fundo da
sala, um apresentador transmitia as notícias a partir de um ecrã. Nona acenou a todos em geral, ao passar.
Não há um único solteiro que não me esteja a ajudar nesta história dos anúncios. Para falar verdade, tenho a impressão de que alguns deles, supostamente comprometidos,
se têm entretido também com alguns números da caixa postal.
Conduziu Darcy à sala da produção e apresentoua a Joan Nye, uma bonita loura que não aparentava mais de vinte e dois anos. Joan trata dos óbitos explicou ela. Acabou
agora de preparar um importante e pediu-me para o ver. E voltando-se para Nye acrescentou: Tenho a certeza de que está tudo bem.
Joan suspirou e respondeu:
Espero bem que sim. Accionou o botão e o filme apareceu. O rosto da grande actriz Ann Bouchard encheu o ecrã. Gary Finch,
o locutor principal da estação de televisão Hudson, adaptara a sua voz melíflua a um tom adequadamente pesaroso, quando começou a falar.
"Ann Bouchard ganhou o seu primeiro Oscar aos dezanove anos de idade, ao substituir Lillian Marker, que adoecera, no clássico de 1928 Caminho Perigoso"...
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Seguiram-se alguns excertos dos papéis mais conhecidos representados por Ann Bouchard e depois uma breve história da sua vida: Os sete maridos; as casas que habitara;
as bem publicitadas querelas que tivera com alguns dos responsáveis dos estúdios; excertos de entrevistas dadas ao longo da sua carreira; a emoção que manifestara
quando lhe foi atribuído um prémio pela sua carreira: "Fui abençoada. Fui amada. E amo-vos a todos." E terminou.
Eu não sabia que Ann Bouchard tinha morrido! exclamou jarcy. Meu Deus, ainda na semana passada estava ao telefone com a minha mãe. Quando foi que isso aconteceu?
Não aconteceu respondeu Nona. Nós preparamos os óbitos da gente célebre com antecedência, tal como fazem os jornais. E, normalmente, mantemo-los actualizados. A
despedida a George Burns já foi modificada vinte e duas vezes. Quando o inevitável acontecer, basta fazermos o cabeçalho. Este projecto tem um nome bastante irreverente:
Clube do Adeusinho.
Clube do Adeusinho?
Sim. Basta completar a parte final e dizemos adeusinho ao falecido explicou Nona, e depois voltando-se para Nye afirmou: Estava óptimo. Fiquei absolutamente à beira
das lágrimas. A propósito, tens respondido a algum anúncio?
Nye sorriu.
Podes não acreditar, Nona, mas na noite passada tinha um encontro com um palerma qualquer. Claro que apanhei alguns engarrafamentos. Por isso, estacionei o carro
em segunda fila e corri a avisar o tipo de que voltaria num instante. Quando cheguei cá fora, encontrei um polícia a multar-me. Por fim, arranjei lugar seis quarteirões
mais à frente e quando voltei a entrar...
Ele tinha desaparecido sugeriu Nona. Os olhos de Nye abriram-se de espanto.
Como sabes?
Porque já ouvi a história. Não leves a mal. Agora, o melhor é despacharmo-nos declarou ela e, ao chegar à porta, virou-se para trás e concluiu: Dá-me a multa, que
eu trato disso.
Durante a viagem de táxi, a caminho do restaurante onde iriam encontrar-se com Erin, Darcy deu por si intrigada por alguém ter Pregado uma partida daquelas. Nye
era verdadeiramente atraente.
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Seria demasiado jovem para o homem com quem se fora encontrar? Mas quando respondera ao anúncio devia ter dito a idade. Teria ele uma imagem preconcebida à qual
Nye não correspondia?,
Era uma hipótese perturbadora. Enquanto o táxi ia avançando e parando ao longo da Rua 72, ela comentou:
Nona, sabes que quando começámos a responder a estes anúncios eu pensei que iria ser muito divertido, mas agora não tenho bem a certeza. É como ter um encontro às
cegas sem a segurança do nosso par nos ter sido apresentado pelo melhor amigo do irmão de alguém. Consegues imaginar algum homem que conheças a fazer o que este
fez? Mesmo que o homem tivesse detestado o aspecto de Nye, ou a roupa, ou o penteado, pelo menos tomava uma bebida rápida com ela e dizia que tinha um avião para
apanhar. Conseguia na mesma escapar-se e não a fazia passar por parva.
Darcy, sabes que, por aquilo que tenho ouvido, a maior parte das pessoas que colocam anúncios são bastante inseguras. O que mais me preocupa é que hoje recebi uma
carta de uma agente do FBI, que ouviu falar no meu projecto e diz querer falar comigo acerca disso. Pede-me para incluir um alerta às pessoas, pois esses anúncios
são muitas vezes utilizados por psicopatas sexuais.
Que pensamento reconfortante!
Como sempre, o restaurante Bella Vita ofereceu-lhes um ambiente acolhedor. O habitual aroma a alho sentia-se no ar. Ouvia-se um leve rumor de conversas e risos.
Adam, o proprietário, saudou-as:
Ah, cá estão as lindas senhoras! A vossa mesa está pronta. E indicou-lhes uma mesa próxima da janela.
Erin deve estar a chegar afirmou Darcy, enquanto se sentavam. Estou admirada por ela não estar já à espera. Ela é sempre tão pontual, que às vezes até me sinto culpada.
O mais certo é ter apanhado um engarrafamento declarou Nona. Vamos pedir o vinho. Já sabemos que ela bebe borgonha branco.
Meia hora depois, Darcy levantou-se:
Vou telefonar-lhe. Só posso imaginar que, ao entregar o colar que desenhou para o Bertolli, tenha havido alguma alteração a fazer. Ela perde a noção do tempo, quando
está a trabalhar.
Foi o atendedor de chamadas que lhe respondeu. Darcy regressou
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à mesa e verificou que a expressão preocupada de Nona espelhava a preocupação que ela própria sentia.
Deixei recado de que estamos à espera dela e, se não puder vir,
para nos telefonar.
Encomendaram o jantar, mas naquela noite mal se aperceberam do que comiam. De minuto a minuto, Darcy olhava para a porta, esperando ver Erin entrar, com alguma explicação
lógica para aquele atraso.
Erin não apareceu.
Darcy morava no último andar de um edifício de pedra, na Rua 49 Este e Nona em Central Park Oeste. Ao saírem do restaurante, apanharam táxis diferentes, prometendo
que a primeira a ter notícias de Erin avisaria a outra.
Mal chegou a casa, Darcy voltou a tentar o número de Erin. Uma hora depois insistiu e antes de se deitar tornou a ligar. Desta vez, deixou uma mensagem:
Erin, estou muito preocupada contigo. São onze e um quarto de quarta-feira. Telefona-me, seja a que horas for.
Por fim, Darcy caiu num sono agitado.
Eram seis da manhã quando acordou e o seu primeiro pensamento foi para o facto de Erin não lhe ter telefonado.
Jay Stratton olhava pela janela do seu apartamento, um trigésimo andar do River Drive Este. Tinha uma vista espectacular, o East River, descrevendo um arco sob as
pontes de Brooklyn e Williamsburg, as torres gémeas à direita, o Hudson por detrás, as torrentes de tráfego descendo em lenta agonia na hora de ponta, mas naquele
momento avançando com alguma rapidez. Eram sete e meia.
Jay franziu a testa, um gesto que fazia com que os seus olhos, já de si estreitos, se tornassem quase invisíveis. O cabelo castanho, de corte caro e cuidado, encontrava-se
raiado de branco de forma atraente, contribuindo para manter o ar de elegância casual que ele cultivava. Sabia que tinha uma certa tendência para engordar na cintura,
de maneira que praticava exercícios vigorosos. Parecia um POUCO mais velho do que era na realidade, pois contava apenas trinta
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e sete anos, mas isso provara-se já ser uma vantagem. Normalmente as pessoas consideravam-no bem-parecido.
Sem dúvida que a viúva daquele magnata da imprensa, que na semana anterior ele acompanhara ao casino Taj Mahal, em Atlanta, o achara atraente. No entanto, quando
ele sugeriu a encomenda de algumas jóias, o rosto dela imediatamente se tornou de granito. Por favor, nada de vendas exigira ela secamente. Desde já temos de deixar
isso bem claro. Não voltara a incomodar-se com ela. Jay não gostava de perder tempo. Tinha almoçado no Clube Jockey e, enquanto esperava pela sua mesa, metera conversa
com um casal idoso. Os Ashtons encontravam-se em Nova Iorque de férias, comemorando o quadragésimo aniversário do seu casamento. Era óbvio que eram ricos, no entanto
pareciam um pouco perdidos fora do ambiente familiar da Carolina do Norte, de forma que corresponderam com entusiasmo às suas investidas para meter conversa.
O marido pareceu-lhe muito receptivo, quando lhe perguntou se oferecera à esposa uma jóia condigna do aniversário que celebravam.
Eu estou sempre a dizer à Francês que ela devia deixar-me oferecer-lhe uma jóia verdadeira e bonita, mas ela acha que devemos poupar para a Francês Junior.
Jay sugeriu então que, talvez um dia no futuro, Francês Junior apreciasse usar um colar ou uma pulseira valiosa e gostasse de poder dizer aos seus próprios netos
que se tratava de uma oferta especial que o avô fizera à avó.
É isso que todas as famílias reais cultivam há séculos explicara ele, entregando-lhes um dos seus cartões.
O telefone tocou. Jay apressou-se a atender. "Talvez sejam os Ashtons", pensou.
Tratava-se de Aldo Marco, o gerente da Bertolini.
Aldo! exclamou Jay alegremente. Estava a pensar telefonar-lhe. Está tudo bem?
Não, não está tudo bem. A voz de Marco era gelada. Quando me apresentou Erin Kelley eu fiquei muito impressionado com o trabalho dela. O desenho que ela fez era
estupendo, como sabe, e nós demos-lhe as pedras do meu cliente. Estava combinado que ela entregaria o colar esta manhã. Miss Kelley faltou ao encontro que tinha
marcado connosco e não responde aos sucessivos recados que temos deixado. Mr. Stratton, nós queremos o colar ou então as pedras que o nosso cliente nos confiou.
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Jay passou a língua pelos lábios secos. Percebeu que a mão que segurava o telefone estava húmida. Tinha-se esquecido do colar. Escolheu cuidadosamente as palavras
ao responder:
Eu estive com Miss Kelley na semana passada. Ela mostrou-me o colar. Estava uma beleza. Deve haver algum mal-entendido.
O mal-entendido que há é que ela não entregou o colar e ele vai ser preciso para a festa de noivado, na sexta-feira à noite. Por isso, repito, quero o colar ou as
pedras do meu cliente até amanhã. Fica você responsável por me entregar ou uma coisa ou outra. Percebeu? O ruído seco do telefone a ser desligado feriu os ouvidos
de Stratton.
Michael Nash atendia o seu último paciente, Gerald Renquist. Eram cinco horas de quarta-feira. Renquist reformara-se do Conselho de Administração de uma companhia
internacional farmacêutica e a reforma fizera com que o homem, cuja personalidade estivera directamente ligada às intrigas e às políticas de uma administração, se
sentisse contrariado e marginalizado.
Eu sei que me devia considerar feliz dizia Renquist, mas sinto-me tão inútil! Até a minha mulher passa a vida a dizer-me: eu casei contigo para o bom e para o mau,
mas não para te ter em casa para o almoço.
Deve ter feito alguns planos para a reforma. Renquist riu-se.
E fiz. Evitá-la o mais possível.
"Depressão", concluiu Nash. Amais comum das doenças mentais. Percebeu que se sentia cansado e não prestava a devida atenção a Renquist. "Não é justo", repetia para
si próprio. "Ele está a pagar-me para eu o ouvir." No entanto, foi com alívio que às seis menos dez conseguiu dar por terminada a consulta.
Assim que Renquist saiu, Nash começou a fechar tudo. O seu consultório ficava na Rua 71 e ele habitava um apartamento do mesmo edifício. Saiu pela porta que conduzia
ao vestíbulo.
A nova inquilina do 20B, uma loira de trinta e poucos anos, esperava
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pelo elevador. Nash conteve a irritação que sentiu com a perspectiva de subir com ela. O inegável interesse que lhe lia nos olhos era um aborrecimento, tal como
os seus constantes e inevitáveis convites para aparecer e beber um copo.
Michael Nash tinha aquele problema com muitas das suas pacientes. Conseguia ler-lhes o pensamento: tipo atraente, divorciado, sem filhos, trinta e tal anos, disponível.
A desconfiança tornara-se nele uma segunda natureza.
Pelo menos, desta vez a vizinha não repetira o convite. Talvez já tivesse percebido. Quando saíram do elevador, murmurou-lhe:
Boa noite.
O seu apartamento reflectia o cuidado com que ele tratava tudo na vida. Os sofás iguais da sala-de-estar tinham estofos de linho cor de marfim, que se repetia nas
cadeiras da sala-de-jantar, colocadas à volta da mesa de carvalho redonda. A mesa fora um achado que conseguira num leilão de antiguidades, no município de Bucks.
Os tapetes do chão exibiam padrões geométricos num fundo de marfim. Uma das paredes estava coberta de estantes com livros, havia plantas nos parapeitos, uma bacia
colonial servia-lhe de bar, viam-se inúmeros objectos que ele adquirira nas suas viagens pelo estrangeiro e bons quadros. Uma sala confortável e elegante.
A cozinha e o escritório ficavam à esquerda da sala e o quarto de dormir e o quarto-de-banho à direita. Um apartamento agradável e o complemento adequado à casa
enorme de Bridgewater que constituíra o grande orgulho dos seus pais. Muitas vezes, Nash sentira-se tentado a vendê-la, mas sabia que sentiria a falta dos passeios
que por lá dava aos fins-de-semana.
Despiu o casaco e hesitou entre assistir à parte final do noticiário das seis ou ouvir, no seu novo compacto, uma sinfonia de Mozart. Este último ganhou e, quando
os acordes da abertura invadiram com doçura o aposento, ouviu-se a campainha.
Nash sabia precisamente quem era. Resignado, foi atender. A nova vizinha ali estava, com um balde de gelo vazio. O truque mais velho do mundo. Graças a Deus, ainda
não tinha arranjado a sua bebida. Deu-lhe o gelo, explicou que não, não podia fazer-lhe companhia, estava pronto para sair e acompanhou-a até à porta. Quando ela
saiu, ainda murmurando um "talvez para a próxima", dirigiu-se ao bar, arranjou um martini seco e abanou a cabeça, pesaroso.
Sentou-se depois no sofá perto da janela, bebendo e apreciando o gosto suave e perfumado da bebida, perguntando-se como seria a rapariga
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com quem ia jantar. A resposta dela ao seu anúncio parecera-lhe muito divertida.
O seu editor rejubilara com a primeira metade do livro que ele andava a escrever. O livro dedicava-se a uma análise das pessoas que colocavam e respondiam a anúncios
pessoais, registando as suas necessidades psicológicas, os seus voos fantasiosos na maneira como se descreviam a elas próprias. O livro intitulava-se: Anúncios Pessoais:
Carências Afectivas ou Fuga à Realidade?
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IV
QUINTA-FEIRA
21 de Fevereiro
Darcy estava sentada à mesa, bebendo café e olhando para os jardins cá em baixo, sem os ver. Agora, encontravam-se despidos, cobertos com neve que não derretera
ainda, mas no Verão tornavam-se extremamente floridos e cuidados. Entre os conhecidos habitantes daquele edifício, contavam-se Katherine Hepburn e Aga Khan.
Erin adorava visitá-la, quando os jardins estavam em flor.
Da rua ninguém suspeitaria da sua existência suspirava ela. Garanto-te, Darce, que tiveste muita sorte quando conseguiste esta casa.
Erin. Onde estaria ela? Assim que acordou e percebeu que Erin não telefonara, Darcy ligou para a casa-de-repouso no Massachussetts, onde lhe disseram que o estado
de Mr. Kelley era estacionário. O estado de semicoma em que ele se encontrava poderia durar para sempre, ainda que ele estivesse a ficar cada vez mais fraco. Não,
ninguém tinha telefonado de urgência para a filha. A enfermeira do dia não lhe soube dizer se Erin fizera a sua chamada habitual na noite anterior.
Que hei-de fazer? perguntava-se Darcy em voz alta. Participar o seu desaparecimento? Chamar a polícia e pedir que verifiquem nos acidentes?
Um pensamento súbito fê-la estremecer. E se Erin tivesse sofrido um acidente dentro de casa? Ela tinha o hábito de se recostar para trás na cadeira, quando se concentrava.
E se ela tivesse ficado ali, inconsciente, durante todo aquele tempo?
Demorou três minutos a vestir o casaco e a calçar as sapatilhas. Sentiu-se agonizar, nos minutos que demorou até arranjar um táxi na Segunda Avenida.
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Rua Christopher, n° 101, e depressa por favor.
Toda a gente diz o mesmo. Eu digo, vamos mais devagar, qUe assim vivemos mais tempo comentou o motorista, piscando-lhe O olho através do retrovisor.
Darcy virou a cabeça. Não estava com disposição para discutir com o motorista. Por que não pensara antes na possibilidade de um acidente? No mês anterior, mesmo
antes de partir para a Califórnia Erin aparecera para jantar. Tinham ambas assistido às notícias. Um dos anúncios mostrava uma mulher velha e frágil caindo e conseguindo
ajuda imediata, fazendo soar um sinal de emergência que trazia pendurado ao pescoço, num fio.
Assim estaremos nós daqui a cinquenta anos comentara Erin. E, imitando a voz do anúncio, desatara a gritar: Socorro! Socorro! Caí e não consigo levantar-me.
Gus Boxer, o porteiro do n.9 101 da Rua Christopher, tinha olho para as mulheres bonitas. Por isso, quando abriu a porta perante o toque insistente da campainha,
a sua expressão aborrecida foi substituída por um torcer de boca.
Gostou do que viu. O cabelo castanho da visitante estava desalinhado, devido ao vento. Caía-lhe para a cara, lembrando-lhe os filmes de Veronica Lake que ele tanto
gostava de ver. O blusão de cabedal curto estava puído, mas tinha o ar distinto que ele aprendera a reconhecer desde que se mudara para aquele emprego em Greenwich
Village.
Os seus olhos satisfeitos demoraram-se nas longas e esbeltas pernas. Depois, percebeu por que razão ela lhe parecia familiar. Vira-a já meia dúzia de vezes com a
inquilina do 3B, Erin Kelley. Abriu a porta do vestíbulo e deu-lhe passagem, dizendo-lhe naquela que ele considerava ser a sua voz mais sedutora:
Às suas ordens, minha senhora.
Darcy passou por ele, tentando não se mostrar enfadada. De tempos a tempos, Erin queixava-se daquele Casanova de sessenta anos, vestido de flanela suja.
O Boxer causa-me arrepios comentara ela. Odeio a ideia de que ele possui uma chave-mestra do meu apartamento. Uma vez entrei e encontrei-o lá, com uma desculpa muito
esfarrapada acerca de um cano furado na parede.
Nunca te faltou nada? perguntara-lhe Darcy.
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Não. Eu guardo as jóias no cofre. Não tenho mais nada que valha a pena roubar. É mais aquela maneira atrevida que ele tem que faz ficar arrepiada. Bem, de qualquer
maneira ponho a corrente de segurança quando estou em casa e a renda é barata. E, se calhar, ele é inofensivo.
Darcy foi directa ao assunto.
Estou muito preocupada com Erin Kelley disse ela para o superintendente. Ficou de se encontrar comigo ontem à noite e não apareceu. Não atende o telefone. Quero
ir a casa dela. Pode ser que lhe tenha acontecido alguma coisa.
Boxer encolheu os ombros.
Ontem ela estava bem.
Ontem?
As pestanas espessas esconderam os olhos descorados. Os lábios separados deixaram entrever a língua. Franziu a testa.
Não, estou enganado. Eu via-a na terça-feira, à tardinha. Ela entrou carregada de compras... A voz tornou-se virtuosa. Eu até me ofereci para a ajudar.
Isso foi na tarde de terça-feira. Viu-a sair ou regressar na terça-feira à noite?
Não. Não posso dizer que a tenha visto. Mas ouça, eu não sou porteiro. Os inquilinos têm chaves próprias. Até os homens da mercearia têm de usar o intercomunicador
para entrarem.
Darcy assentiu. Mesmo sabendo que seria inútil, tinha tocado para casa de Erin antes de tocar para o superintendente.
Por favor. Receio que tenha acontecido alguma coisa. Tenho de entrar em casa dela. Tem a sua chave-mestra?
O sorriso torcido regressou ao rosto.
Tem de compreender que não costumo deixar as pessoas entrarem nas casas dos outros só porque mo pedem. Mas eu já a vi com a Kelley. Sei que são amigas. Você é como
ela. Bonita. Atraente.
Ignorando o piropo, Darcy começou a subir as escadas.
Tanto as escadas como os patamares estavam limpos, mas sombrios. As paredes sarapintadas eram cinzento-escuras, os ladrilhos dos degraus desnivelados. Passar do
vestíbulo para a casa de Erin era como sair de uma caverna e entrar na luz do dia. Quando Erin se mudara para ali, três anos antes, Darcy ajudara-a a pintar e a
escolher o papel. Tinham contratado uma transportadora e tinham dado uma volta por Connecticut e Nova Jérsia para arranjarem mobília em segunda-mão.
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A parede estava pintada de branco brilhante. No chão, um pouco estragado mas encerado, viam-se alguns tapetes indianos coloridos e, na parede, por cima do sofá de
veludo vermelho, repleto de almofadas coloridas, viam-se alguns cartazes de museus emoldurados.
As janelas davam para a rua e, embora o céu estivesse escuro, tinha muita luz. Sob as janelas, numa mesa de trabalho comprida viam-se os instrumentos de Erin cuidadosamente
arrumados: a lanterna; o perfurador manual; limas e alicates; grampos e pinças; soldador e aferidor. Darcy sempre se sentira fascinada, quando via Erin a trabalhar,
com o modo como os seus dedos esguios lidavam delicadamente com as pedras preciosas.
Junto à mesa de Erin, via-se uma extravagância: uma cómoda alta com dezenas de gavetas estreitas. Tratava-se de uma peça de farmácia, do século xix, e as últimas
gavetas serviam de cobertura ao cofre. Uma cadeira de repouso, uma televisão e uma boa aparelhagem estéreo completavam a mobília daquela sala confortável.
A primeira reacção de Darcy foi de intenso alívio. Não se via nada de anormal ali. Com Gus Boxer sempre atrás, dirigiu-se para a cozinha acanhada, um cubículo sem
janela, que elas tinham pintado de amarelo-vivo e decorado com toalhas de bar coloridas.
O pequeno corredor conduzia ao quarto-de-dormir. A cama de latão e o guarda-vestidos eram as únicas peças aí existentes. A cama estava feita. Não havia nada fora
do sítio. As toalhas do quarto-de-banho eram limpas e encontravam-se enxutas.
Darcy abriu o armário dos medicamentos. Com olho experiente, verificou que se encontravam ali a escova de dentes, os cremes e todos os objectos de higiene de Erin.
Boxer estava a ficar impaciente.
A mim parece-me tudo em ordem. Está satisfeita?
Não respondeu Darcy regressando à sala e dirigindo-se para a mesa. O atendedor do telefone mostrava que houvera doze chamadas. Darcy preparou-se para as ouvir.
Eh, não sei...
Ela cortou os protestos dele dizendo:
Erin desapareceu. Ainda não percebeu? Ela desapareceu. Eu vou ouvir estas mensagens e ver se alguma delas me poderá dar alguma ideia do seu paradeiro. Depois, vou
telefonar à polícia para ver se houve algum acidente. Há sempre a hipótese de ela se encontrar inconsciente em qualquer hospital. Você pode ficar aqui comigo ou,
se tiver que fazer, pode ir embora. O que prefere?
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Boxer encolheu os ombros.
Suponho que não há problema em deixá-la aqui sozinha.
Darcy virou-lhe as costas, pegou na bolsa e tirou um lápis e a sua agenda. As mensagens começaram e ela nem ouviu Boxer a sair. A primeira fora feita na terça-feira
à noite, às sete menos um quarto.
Alguém chamado Tom Schwartz. Agradecia ela ter respondido ao anúncio dele. Descobrira um pequeno restaurante barato. Poderiam encontrar-se para jantar? Ele voltaria
a telefonar.
Erin tinha um encontro com Charles North na noite de terça-feira, num bar perto da Praça Washington. Darcy concluiu que, às sete menos um quarto, ela já deveria
ter saído.
A chamada seguinte fora feita às sete e vinte e cinco. Michael
Nash.
Erin, gostei muito de a conhecer e espero poder levá-la para jantar um dia durante a semana. Se puder, telefone-me ainda esta noite.
E Nash deixou o número de casa e do consultório.
Na quarta-feira, as chamadas tinham começado de manhã às nove horas. As primeiras eram chamadas profissionais, mas houve uma que fez com que Darcy ficasse de garganta
seca: a de Aldo Marco, gerente do Bertollini:
Miss Kelley, estou muito desiludido consigo por não ter aparecido ao encontro que marcámos para as dez da manhã. É absolutamente necessário que eu veja o colar e
me assegure de que não necessitará de nenhum arranjo de última hora. Por favor, ligue-me o mais rapidamente possível.
Aquela chamada fora feita às onze. Seguiam-se mais três do mesmo homem, cujo tom de voz gradualmente crescia em irritação. Para além das mensagens que a própria
Darcy deixara, havia outra ainda respeitante ao contrato com o Bertollini.
Erin, fala Jay Stratton. O que se passa? Marco tem andado atrás de mim por causa do colar e diz que eu sou responsável pela sua entrega.
Darcy sabia que Stratton era o ourives que apresentara Erin ao Bertolini. A mensagem dele fora deixada na quarta-feira às sete horas. Darcy pressionou o botão para
rebobinar a fita. Talvez fosse melhor não apagar nada daquilo. Procurou o número da esquadra mais próxima. Quando lhe responderam afirmou: Quero participar um desaparecimento.
Informaram-na, então, de que teria de o fazer pessoalmente, pois
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aquele tipo de participação, relacionada com um adulto, não poderia ser feita pelo telefone.
"Passo por lá a caminho de casa", pensou Darcy. Dirigiu-se para a cozinha, fez um café, reparando que a única garrafa de leite existente estava intacta. Erin começava
o dia sempre com um café com leite. Boxer tinha-a visto com as compras na terça-feira à tarde, Darcy espreitou, então, o caixote do lixo arrumado debaixo da pia.
Tinha alguns resíduos, mas não havia sinal de qualquer garrafa de leite vazia. Erin não tinha acordado na quarta-feira de manhã, concluiu Darcy. Ela não tinha regressado
a casa na terça-feira à noite.
Trouxe o café e voltou à mesa de trabalho. Havia uma agenda na gaveta de cima. Deu-lhe uma vista de olhos, começando por aquele dia. Não tinha nenhum compromisso
marcado. Para quarta-feira havia dois: um com Bertolini às dez horas da manhã; outro, no Bella Vita, às sete da tarde, com Darcy e Nona.
Nas semanas que se seguiam, havia datas anotadas com nomes de homens que Darcy não conhecia. Estavam marcados entre as cinco e as sete da tarde. Na maioria constava
também o local do encontro: no O'Neal, no Mickey Mantle, no P. J. Clarke, no Plaza, no Sheraton... tudo bares de hotel ou bares conhecidos.
O telefone tocou e, enquanto atendia, Darcy rezou para que fosse Erin.
Está?
Erin? Tratava-se de uma voz masculina.
Não. Daqui fala Darcy Scott, uma amiga de Erin.
A desilusão imensa e arrebatadora apoderara-se de Darcy.
Quem fala?
Jay Stratton.
Jay Stratton tinha deixado aquele recado sobre o colar do Bertollini. Que dizia ele?
.. se tem alguma ideia do paradeiro de Erin, por favor diga-lhe que, se não entrega aquele colar, eles vão fazer queixa à polícia.
Os olhos de Darcy voltaram-se para o armário a seu lado. Ela sabia que Erin guardava o segredo do cofre no livro de endereços, ao lado do nome da empresa que lhe
vendera o cofre. Stratton continuava a falar.
Eu sei que Erin guardava o colar no cofre aí de casa. Será que você não poderia ver se ele ainda aí está? pediu ele aflito.
Espere um momento.
Darcy tapou o bocal do telefone com a mão e depois pensou:
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Que estupidez, não está aqui ninguém a quem eu possa perguntar. Mas, de certa forma, estava a perguntar a Erin. Se o colar não se encontrasse no cofre, poderia significar
que Erin fora vítima de roubo quando tentava entregá-lo. Se ali estivesse, era quase uma prova definitiva de que algo lhe acontecera. Nada poderia ter impedido Erin
de entregar o colar dentro do prazo.
pegou na agenda de Erin e abriu-a no D. Ao lado da indicação dos Cofres Dallton, havia uma combinação de números.
Já tenho a combinação disse para Stratton. Eu espero que você venha até aqui. Não quero abrir o cofre de Erin sem testemunhas. E, caso o colar aqui esteja, quero
que me passe um recibo.
Ele prometeu que iria de seguida. Depois de pousar o telefone, Darcy decidiu que pediria ao superintendente para também estar presente. Não sabia nada acerca de
Jay Stratton, a não ser o que Erin lhe tinha dito: que ele era um ourives e que fora ele quem a recomendara ao Bertolini.
Enquanto esperava, passou uma vista de olhos pelo ficheiro de Erin. Sob o nome de projecto pessoal, encontrou alguns recortes de revistas e jornais. Em cada um deles,
viam-se anúncios sublinhados. Teriam sido aqueles a que Erin tinha respondido ou estariam ainda por responder? Desanimada, Darcy verificou que os anúncios eram às
dezenas. Qual deles, se fora algum daqueles, teria sido colocado por Charles North, o homem com quem Erin se fora encontrar na noite de terça-feira?
Quando tinham combinado responder aos anúncios pessoais, tinham-no feito de uma forma sistemática. Tinham mandado fazer papel de carta, do mais barato, com os nomes
delas gravados no topo da folha.
Tinham escolhido a fotografia que deviam mandar, quando fosse necessário fazê-lo. Tinham passado uma noite muito divertida, escrevendo cartas que não tinham intenção
de mandar.
Adoro, adoro, adoro lavar sugerira Erin. O meu passatempo preferido é lavar a louça. Herdei a esponja da minha avó. A minha prima também a queria e por isso houve
uma grande disputa na família. Quando tenho o período fico um pouco irritada, mas no fundo sou muito boa pessoa. Por favor, telefone-me em breve.
Por fim, tinham conseguido aquilo que consideravam umas respostas razoavelmente apropriadas. E, quando Darcy partiu para a Califórnia, Erin disse-lhe:
Darce, vou enviar as tuas cartas duas semanas antes de
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regressares. Vou só modificar uma ou duas frases, de acordo com o anúncio.
Erin não tinha computador. Darcy sabia que ela dactilografara as respostas na sua máquina eléctrica, mas não as tinha fotocopiado Registava todas as informações
de que precisava na agenda que trazia na bolsa: o número das caixas dos anúncios a que respondera, os números das pessoas a quem telefonara e as suas impressões
durante os encontros.
Jay Stratton, recostando-se no táxi, fechou os olhos. A coluna colocada junto à sua orelha direita berrava música rock.
Não se importa de desligar isso? gritou ele.
Homem, você está a tentar privar-me da minha música?
O motorista devia ter cerca de vinte anos, o cabelo comprido e fino encaracolava-se-lhe à volta do pescoço. Olhou por cima do ombro, deparou com a expressão de Stratton
e baixou o volume do rádio.
Stratton sentia o suor por todo o corpo. Tinha de se desenrascar desta. Tacteou o bolso. Os recibos que Erin lhe passara na semana anterior, quando lhe entregara
as pedras do colar do Bertolini e os diamantes, encontravam-se na sua carteira. Darcy Scott pareceu-lhe uma rapariga esperta. Não podia levantar-lhe a mais pequena
suspeita.
O superintendente narigudo devia estar à espera dele. Encontrava-se no vestíbulo quando ele chegou. Reconheceu-o e disse-lhe:
Eu levo-o até lá cima. Vou ter de assistir à abertura do cofre. Stratton praguejou interiormente, enquanto seguia o sujeito pelas escadas acima. Não precisava de
duas testemunhas.
Quando Darcy lhes abriu a porta, o rosto de Stratton transformou-se numa máscara de simpatia, ainda que manifestando uma certa apreensão.
Tencionava exibir um certo optimismo, mas a expressão na cara de Darcy advertia-o em relação a banalidades. Assim, em vez disso, concordou que algo de terrível deveria
ter acontecido.
"Rapariga esperta", pensou ele. Darcy tinha decorado o segredo do cofre e não parecia disposta a mostrar o local onde Erin o guardava. Munira-se com um lápis e um
caderno e afirmou:
Quero registar tudo o que lá encontrarmos dentro. Deliberadamente, Stratton virou-se de costas enquanto ela girava os números e só se debruçou para o cofre quando
ela abriu a porta.
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Era um recipiente bastante fundo e continha caixas e sacos cuidadosamente alinhados.
Deixe-me entregar-lhe o que aqui está sugeriu ele. Eu
descrevo-lhe o que encontrarmos e você aponta.
Darcy hesitou, mas depois concluiu que era uma sugestão sensata. Ele era ourives. O braço dele roçou pelo dela e instintivamente Darcy afastou-o.
Stratton olhou por cima do ombro. Boxer, de rosto irritado, acendera um cigarro e olhava à sua volta, procurando um cinzeiro. Era talvez a sua única oportunidade.
Acho que é naquela caixa de veludo que está o colar. E, tentando pegar-lhe, deitou deliberadamente ao chão outra caixa mais pequena. Darcy deu um salto, assim que
viu o brilho das pedras que se espalhavam à sua volta, começando a apanhá-las. Um segundo depois, Stratton estava a seu lado, amaldiçoando o seu gesto desajeitado.
Passaram o chão a pente fino.
De certeza que as apanhámos todas declarou ele. São semipreciosas, adequadas a peças de acessórios. Mas, mais importante... E abriu a caixa de veludo. Aqui está
o Bertolini.
Darcy olhou para o colar lindíssimo. Esmeraldas, diamantes, safiras, opalas e rubis encontravam-se cravados numa armação de desenho elaborado, que lhe fazia evocar
aquelas jóias medievais que vira nos retratos do Museu Metropolitano.
Lindo, não é? perguntou Stratton. Pode agora calcular por que razão o gerente da Bertolini estava tão aborrecido com a perspectiva de algo ter acontecido a esta
peça. Erin é extremamente dotada. Não só conseguiu fazer com que estas pedras pareçam dez vezes mais valiosas, como conseguiu fazê-lo no estilo bizantino. A família
que encomendou o colar é originária da Rússia. Estas pedras constituem os únicos valores que conseguiram trazer quando tiveram de fugir em
1917.
Darcy podia imaginar Erin sentada à sua mesa de trabalho, com os tornozelos à volta das pernas da cadeira, da mesma maneira que costumava sentar-se quando estudava
na faculdade. Não conseguia afastar a sensação de que algo terrível lhe acontecera. Para onde iria Erin, voluntariamente, sem entregar aquele colar?
"Voluntariamente, a lado nenhum", concluiu ela.
Mordendo o lábio para se impedir de chorar, Darcy pegou na caneta:
Descreva-me então o que aí está. E suponho que o melhor é
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identificarmos as pedras aí existentes, para termos a certeza de que nada faltará.
Enquanto Stratton retirava outras bolsas e caixas de veludo do interior do cofre, Darcy deu conta de que a agitação dele era cada vez maior. Por fim, declarou:
Eu vou abrir tudo já e depois fazemos a lista. E olhando para ela explicou: O colar do Bertollini está aqui, mas uma bolsa que eu entreguei a Erin com diamantes,
no valor de vinte e cinco mil dólares, desapareceu.
Darcy deixou o apartamento acompanhada de Stratton. Vou à esquadra da polícia para participar o desaparecimento de Erin informou ela.
Faz muito bem concordou ele. Eu encarrego-me de entregar o colar imediatamente e se, dentro de uma semana, continuarmos sem saber nada de Erin, terei de participar
à companhia de seguros o desaparecimento das pedras.
Era meiodia em ponto quando Darcy entrou na 6.a Esquadra, na Rua Charles. Depois de insistir que algo de muito estranho se estava a passar, foi atendida por um detective.
Tratava-se de um negro muito alto, com quarenta e tal anos e porte militar. Apresentou-se como Dean Thompson e ouviu-a solicitamente, tentando acalmar-lhe os receios.
Na verdade, não podemos aceitar como desaparecida uma mulher só porque há um ou dois dias que ela não aparece explicou ele. Isso violaria o princípio da liberdade
de circulação. Agora, se me der uma descrição dela, eu posso procurar na lista dos acidentes.
Ansiosa, Darcy fez-lhe a descrição. Um metro e setenta, à volta de cinquenta e cinco quilos, cabelo ruivo, olhos azuis, vinte e oito anos de idade.
Espere, eu tenho aqui uma fotografia dela. Thompson estudou-a e depois devolveu-lha.
Uma mulher muito atraente. Deu-lhe um cartão e pediu-lhe o dela. Se aparecer alguma informação, eu transmito-lha.
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Susan Frowley Fox abraçou a pequena Trish de três anos e conduziu-lhe o passo relutante até à paragem do autocarro que a levaria
ao jardim infantil, para aí passar a tarde. A carita redonda de Trish estava quase a cobrir-se de lágrimas. O bebé, firmemente apoiado no outro braço de Susan, inclinou-se
e puxou-lhe os cabelos.
Foi o suficiente para Trish desatar a chorar.
Susan mordeu o lábio, dividida entre a pena e a irritação.
Ele não te magoou e tu não vais ficar em casa.
A condutora do autocarro, uma mulher de sorriso caloroso, declarou numa voz melada:
Vá lá, Trish. Hoje vais sentada aqui ao pé de mim.
Susan acenou um adeus vigoroso e suspirou de alívio, quando o autocarro se afastou.
Carregando o bebé em peso, dirigiu-se para a casa de tijolo rasteira. Ainda se viam manchas de neve, nos sítios mais isolados do jardim, e as árvores pareciam mortas
e áridas, recortadas no céu cinzento. Em poucos meses, a propriedade ficaria radiante e florida e os salgueiros cobrir-se-iam de folhas em cascata. Desde os tempos
da sua infância que Susan se habituara a procurar nos salgueiros os primeiros sinais da Primavera.
Abriu a porta, aqueceu um biberão para o bebé, levouo para o quarto, mudou-o e deitou-o para a sesta. Agora, tinha um certo tempo para descansar: uma hora e meia
até ele acordar. Sabia que devia apressar-se, as camas não estavam feitas, a cozinha estava uma confusão, pois nessa manhã Trish quisera fazer bolinhos e havia manteiga
espalhada na mesa da cozinha.
Susan olhou para a batedeira em cima do balcão e sorriu. Os bolinhos pareciam deliciosos. Se ao menos Trish não desgostasse tanto do jardim infantil! "Estamos quase
em Março", pensou ela, "o que irá acontecer quando ela entrar para a primeira classe e ficar fora o dia todo?"
Doug responsabilizava Susan pela relutância da garota em ir para a escola.
Se saísses mais sozinha, fosses almoçar ao clube ou te oferecesses para ajudar em qualquer associação social, ela estaria mais habituada a ficar entregue a outras
pessoas.
Susan pôs a chaleira ao lume, lavou a mesa e arranjou uma tosta de queijo e presunto.
"Afinal, Deus sempre existe", pensou ela, apreciando o silêncio abençoado.
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Bebendo a segunda chávena de chá, permitiu-se enfrentar a fúria que crescia dentro de si. Doug não voltara a casa naquela noite, mais uma vez. Quando ficava retido
por reuniões que se prolongavam pela noite dentro, normalmente pernoitava no quarto que a empresa punha à sua disposição, no Hotel Gateway, perto do escritório no
Centro World Trade. Ficava furioso quando ela lhe ligava para lá.
Caramba, Susan, a não ser que aconteça alguma calamidade dáme uma folga. Não posso estar sempre a ser interrompido durante as reuniões e, quando elas acabam, já
passa muito da meia-noite.
Levando a chávena consigo, Susan atravessou o comprido corredor até ao quarto. No canto oposto ao roupeiro, havia um espelho de corpo inteiro. Deliberadamente, Susan
examinou a sua imagem reflectida.
Graças aos dedos do bebé, tinha o cabelo em perfeito desalinho. Raramente se preocupava em maquilhar-se durante o dia, mas na verdade pouco precisava. A sua pele
mantinha-se fresca e jovem. A sua estatura permitia-lhe aguentar perfeitamente aqueles quilos a mais. Pesava cinquenta quilos quando casara com Doug, no entanto,
desde que Trish e Conner tinham nascido, raramente vestia outra coisa que não fosse as habituais calças de ganga, as camisolas largas e as sapatilhas.
"Tenho trinta e cinco anos", dizia para si própria, "posso perder alguns quilos, mas, ao contrário do que o meu marido pensa, não estou gorda. Não sou uma boa dona
de casa, mas sei que sou uma boa mãe. E uma boa cozinheira também. Não quero passar os meus dias fora de casa, quando tenho crianças que precisam de mim. Especialmente,
já que nunca vêem o pai durante o dia."
Bebeu o resto do chá, sentindo-se cada vez mais zangada. Na noite de terça-feira, quando Donny chegara do jogo de basquetebol, vinha dividido entre o êxtase e a
depressão. Fora ele quem marcara o ponto que dera a vitória à sua equipa.
Toda a gente se levantou e me aplaudiu, mãe. E depois acrescentara: O pai era talvez o único que não estava presente.
O coração de Susan apertou-se, com a dor que leu nos olhos do filho. A baby sitter não pudera vir à última da hora e por esse motivo também ela não pudera assistir
ao jogo.
Isto é um motivo mais do que urgente decidira ela Vamos ver se conseguimos falar com o pai e contar-lhe a novidade.
Douglas Fox não se encontrava registado naquele hotel. Nenhuma
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das salas de reuniões estava a ser utilizada. O quarto reservado aos empregados da Equities não estava ocupado.
se calhar, é alguma telefonista mais apatetada que entrou hoje ao serviço comentara ela para Donny, tentando manter uma voz convincente.
Claro, deve ser isso, mamã.
Mas não o enganara. De madrugada, Susan acordara com o som de soluços abafados.
Ficou do lado de fora da porta de Donny, sabendo que ele não gostaria que ela o visse chorar.
O meu marido não nos ama, nem a mim nem aos filhos concluiu Susan, dirigindo-se à sua imagem reflectida no espelho. Ele mente-nos. Dorme em Nova Iorque duas vezes
por semana, e conseguiu convencer-me a nunca lhe telefonar. Fez-me sentir uma gorda tonta e desmazelada. Estou farta disto.
Voltou as costas ao espelho e encarou o quarto-de-dormir. "Eu podia ser mais organizada", reconheceu ela. "E dantes era. Quando deixei de o ser? Quando me comecei
a sentir tão desmoralizada que achei que já não valia a pena tentar agradar-lhe?"
Não era difícil descobrir a resposta. Dois anos antes, quando ficara grávida, arranjara uma empregada sueca, e Susan tinha a certeza de que Doug tivera um caso com
ela.
"Por que não o enfrentei na altura?", censurou-se, começando a fazer a cama. "Porque o amava ainda? Ou porque odiava ter de reconhecer que o meu pai tinha razão
acerca dele?"
Casara com Doug uma semana depois de ter terminado o curso em Bryn Mawr.
O pai oferecera-lhe uma viagem à volta do mundo se ela mudasse de ideias.
Por baixo daquele ar de rapazinho, existe um patife de mau feitio avisara ele.
Meti-me nisto de olhos bem abertos reconhecia Susan, enquanto regressava à cozinha. Se o pai soubesse metade do que se passa, tinha um ataque.
Em cima de uma pequena mesa da cozinha, estavam arrumadas algumas revistas. Susan folheou-as, até encontrar aquilo que procurava. Um artigo da People sobre uma detective
privada de Manhatan. Algumas mulheres contratavam-na para investigar os homens com quem tencionavam casar. Tratava igualmente de casos de divórcio.
Susan pediu o número do telefone às informações e discou-o.
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Quando conseguiu falar com a investigadora, marcou um encontro para a segunda-feira seguinte, dia 25 de Fevereiro.
Estou convencida de que o meu marido tem andado com outra mulher explicou ela. Estou a pensar divorciar-me, por isso quero estar a par de tudo o que ele faz.
Depois de desligar, resistiu à tentação de continuar ali sentada a pensar em tudo aquilo e, em vez disso, atirou-se à cozinha com vigor. "É tempo de pôr isto em
ordem." Com alguma sorte, lá para o Verão já seria posta à venda.
Não iria ser fácil criar sozinha os quatro filhos. Susan sabia que Doug pouca ou nenhuma atenção daria aos filhos depois do divórcio. Ele era um perdulário, mas
avarento em dezenas de pequenas coisas. Iria certamente esquivar-se a manter os filhos adequadamente, mas seria muito mais fácil viver com um orçamento apertado
do que continuar com toda aquela farsa.
O telefone tocou. Era Doug, queixando-se das reuniões que o tinham mantido ocupado naquelas duas últimas noites. Sentia-se exausto e ainda não tinham chegado a nenhuma
conclusão. Voltaria naquela noite, mas muito tarde.
Não te preocupes, querido respondeu ela suavemente. Eu entendo perfeitamente.
A estrada era estreita, escura e cheia de curvas. Charley não se cruzou com nenhum carro. Aquele caminho encontrava-se quase completamente escondido pela vegetação,
até ao sítio em que desembocava na estrada. Um local secreto e escondido longe de qualquer olhar curioso. Comprara a propriedade seis anos antes, num leilão público.
Aquele sítio pertencera a um excêntrico, cujo passatempo fora dedicarse à sua transformação.
Construída em 1902, o exterior era despretencioso, enquanto no interior a renovação consistira em transformar todo o rés-do-chão numa sala imensa, contendo uma zona
dedicada à cozinha e uma lareira. O chão, revestido com traves largas de carvalho, brilhava, encerado. A mobília era oriunda da Pensilvânia, austera, mas bonita.
Charley acrescentara-lhe um sofá comprido forrado de veludo,)
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cadeira a condizer, e colocara um tapete entre o sofá e a lareira.
O segundo andar deixou-o tal como o encontrou. Dois quartos pequenos tinham sido transformados num só. A mobília era vulgar, com a cama de cabeceira trabalhada e
uma cómoda alta, ambas de pinho No quarto-de-banho moderno, deixara ficar a banheira de pés.
Só a cave estava diferente. Tinha um frigorífico onde já ninguém guardava comida e uma arca onde, quando era preciso, ele guardava os corpos das mulheres. Ali, cobertos
de gelo, esperavam então que as suas sepulturas fossem cavadas sob o sol morno da Primavera. Havia também uma mesa na cave, mesa essa onde estavam empilhadas dez
caixas de sapatos. Apenas uma não se encontrava decorada.
Uma casa encantadora escondida pelo bosque. Nunca trouxera ali ninguém, até que um dia, dois anos antes, começara a sonhar com Nan. Antes disso, possuir a casa tinha
sido suficiente. Quando queria fugir, era este o seu abrigo. Tão isolado! Ali, podia fingir que dançava com raparigas lindas. Passava velhos filmes no vídeo, e tornava-se
Fred Astaire e dançava com a Ginger Rogers, com a Rita Hayworth ou com a Leslie Caron. Copiava os passos de Astaire até conseguir executá-los sozinho, adoptando
a pose inclinada de Astaire, tomando nos braços a Ginger, a Rita, a Leslie ou qualquer outra companheira de Fred, sentindo os olhos delas adorando-o, adorando a
música, adorando dançar.
Até que um dia, dois anos antes, tudo acabara. A meio de uma dança, Ginger desapareceu e Nan estava novamente nos braços de Charley, tal como nos momentos que se
seguiram à sua morte, valsando no meio do caminho, o corpo leve e esguio tão fácil de conduzir, com a cabeça descaindo no seu ombro.
Quando a recordação o invadiu, correu à cave e, pegando no par do sapato de baile e na Nike que ela usava, abraçou-se a eles continuando a dançar ao som da música.
Era como se estivesse outra vez com Nan, e então soube o que tinha a fazer.
Primeiro, escondeu uma câmara de vídeo de forma a poder reviver mais tarde todos os instantes de tudo o que se iria passar. Depois, começara a trazer para ali as
raparigas, uma a uma. Erin fora a oitava a morrer ali. Mas Erin não iria juntar-se às outras enterradas na mata que rodeava a casa. Naquela noite, transportaria
o corpo de Erin. Já decidira o local preciso onde a iria deixar.
A carrinha avançou silenciosamente pelo caminho, até às traseiras da casa. Parou em frente à porta de ferro que conduzia à cave.
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A respiração de Charley tornou-se ofegante com a excitação. Pousou a mão no manípulo que abria a mala da carrinha, mas deteve-se, hesitante. O instinto dizia-lhe
que não devia demorar-se. Devia retirar o corpo de Erin da arca, transportá-lo até ao carro, regressar à cidade e abandoná-lo na doca deserta da Rua 56, junto à
estrada de West Side.
Mas a perspectiva de voltar a ver o filme de Erin, dançando con ele, tornara-se irresistível. Charley regressou à porta principal e entrou. Abriu a luz e, sem se
incomodar a tirar o casaco, correu para o vídeo. A fita de Erin encontrava-se em cima de todas as outras. Introduziu-a no aparelho e reclinou-se no sofá, sorrindo
de excitação. A fita começou a rodar.
Erin, tão bonita, sorrindo, entrando pela porta, soltando exclamações encantada com a casa:
Invejo-lhe este paraíso. Ele arranjando-lhe uma bebida. Ela enroscada no sofá. Ele sentando-se do outro lado, na cadeira, para de novo se levantar e acender a lareira
com um fósforo.
Não se incomode em acender a lareira dissera-lhe ela. Eu tenho mesmo de regressar.
Nem que seja por meia hora vale a pena garantira ele. Depois, ligara a aparelhagem, que emitia num tom baixo, doce e agradável, músicas dos anos quarenta. O nosso
próximo encontro tem de ser no Rainbow declarou ele. Se gostar de dançar tanto como eu...
Erin rira-se. O candeeiro aceso ao seu lado realçava-lhe o tom acobreado do cabelo.
Tal como escrevi quando respondi ao seu anúncio, adoro dançar.
Ele levantou-se e estendeu-lhe os braços, convidando-a:
E por que não agora? Depois, como se de repente isso lhe tivesse ocorrido, acrescentou: Espere aí, vamos fazer tudo como deve ser. Quanto calça? Trinta e oito? Trinta
e oito e meio? Trinta e nove?
Trinta e sete e meio.
Perfeito. Acredite ou não, a verdade é que tenho ali um par de sapatos de salto alto que lhe servem. A minha irmã pediu-me para lhe ir buscar um par de sapatos que
encomendara, e ela calça esse número. Como bom irmão que sou,fiz o que ela me pediu. Depois, telefonou e disse-me para os devolver, pois tinha encontrado outros
mais bonitos.
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Erin riu-se com ele.
É característico das irmãs mais novas.
_- Claro que não me vou dar ao trabalho de os devolver.
A câmara mantinha-se fixa nela, gravando-lhe o sorriso e a expressão feliz, enquanto olhava à sua volta.
Ele subira até ao quarto e abrira o armário, onde as caixas contendo os sapatos de noite novos estavam alinhadas numa das prateleiras. Primeiro escolhera os sapatos
e depois comprara esse modelo numa grande variedade de números. Eram cor-de-rosa e prateados, abertos nos dedos e nos calcanhares. Os saltos eram tão finos como
estiletes. Apertavam com uma fita no tornozelo. Procurou o par que correspondia ao número dela e trouxe-os para baixo, ainda embrulhados em papel.
Experimente-os, Erin.
Até ali ela não suspeitara de nada.
São lindos!
Ele ajoelhara-se e tirara-lhe as botas altas de pele, com gestos impessoais. Ela exclamara:
Oh, a sério, não...
Ignorando os protestos, ele apertou-lhe a fita nos tornozelos.
Promete que os usará no próximo sábado quando formos dançar ao Rainbow?
Ela erguera o pé do tapete alguns centímetros e sorria, admirando a elegância dos sapatos.
Não posso aceitá-los como presente...
Por favor! protestara ele, sorrindo-lhe.
Bom, deixe-me comprar-lhos. E o mais engraçado é que combinam na perfeição com um vestido novo, que apenas usei uma vez.
Ele estivera quase a dizer: "Eu vi-a com esse vestido", mas em vez disso murmurou-lhe:
Depois falamos do pagamento.
Poisou-lhe a mão no tornozelo, deixando-a ficar o temp o suficiente para a alertar. Em seguida, levantara-se e dirigira-se para a aparelhagem. A cassete que escolhera
especialmente para ela já estava no lugar.
"Até Que Tu Chegaste" era a primeira canção. A orquestra de Tommy Dorsey começou a tocar e a voz inesquecível de um Frank Sinatra ainda jovem encheu a sala.
Till There was you no original. (N. da T.)
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Regressou ao sofá e, estendendo as mãos a Erin, convidou:
Vamos experimentar.
O olhar por que tanto esperara apareceu, por fim, nos olhos dela, Aquela primeira centelha de desconfiança, a percepção de que algo não estava bem. Ela detectara
a subtil mudança que a voz e a maneira dele tinham sofrido.
Erin era igual às outras. Todas reagiam assim: começavam a falar muito depressa, com nervosismo.
Acho que o melhor é eu regressar. Amanhã de manhã cedo, tenho um compromisso.
É só uma dança.
Está bem respondera numa voz relutante.
Quando começaram a dançar ela pareceu descontrair-se. Todas elas eram boas dançarinas, mas Erin era perfeita. Sentiu-se desleal, por chegar a pensar que se calhar
ela era ainda melhor do que Nan. Não sentia peso nenhum nos braços. Toda ela era graciosidade. Mas, quando soaram as últimas notas de "Até que tu chegaste", ela
recuou, afirmando:
Está na hora de irmos. Então, ele dissera-lhe:
Tu não vais voltar para lado nenhum.
Erin começou a correr e, tal como as outras, tropeçou e escorregou no soalho, que ele encerara com tanto cuidado. Os sapatos de salto alto tinham-se tornado o seu
maior inimigo. Agora, tentava fugir-lhe, corria para aporta e, encontrando-a trancada, carregara no botão do alarme para descobrir que se tratava de um truque, pois
quando era accionado soltava uma série de gargalhadas horríveis e demoníacas. Um pequeno artifício que normalmente as punha a soluçar, enquanto ele lhes procurava
o pescoço.
Erin fora particularmente gratificante. Por fim, pareceu consciente de que seria inútil implorar e, num ímpeto animal de força, lutou contra ele, agarrando-se às
mãos que lhe apertavam o pescoço esguio. Só quando ele torceu a pesada corrente dourada que ela trazia ao pescoço e ela começou a perder a consciência a ouviu murmurar:
Oh, Deus, por favor, ajuda-me! Oh, paizinho...
A seguir, estava morta e ele dançou com ela novamente. Agora, não havia resistência naquele lindo corpo. Ela era a sua Ginger, a sua Rita, a sua Leslie, a sua Nan
e todas as outras. Quando a música terminou, ele tirou-lhe o sapato do pé esquerdo e calçou-lhe a bota.
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O vídeo acabava com ele a transportar o corpo para a cave, onde o guardou dentro da arca, arrumando de seguida o sapato e a bota na respectiva caixa.
Charley levantou-se do sofá e suspirou. Rebobinou a fita, tirou-a e desligou o aparelho. A cassete que preparara para Erin encontrava-se ainda no gravador, de forma
que ligou a música.
Enquanto a música enchia o aposento, Charley correu à cave e abriu a arca. Linda, linda, linda, suspirou ele ao olhar para o rosto imóvel, cujas veias azuis sobressaíam
na pele arroxeada. Pegou-lhe com ternura.
Era a primeira vez que dançava com o corpo congelado de uma das raparigas. Era uma experiência diferente, mas mesmo assim emocionante. Agora, os membros de Erin
não estavam flácidos, as costas não se vergavam. Encostara o rosto dela ao seu pescoço e apoiara o queixo no cabelo ruivo. Aquele cabelo anteriormente tão macio
estava agora queimado pelo gelo. Passaram alguns minutos. Finalmente, quando terminou a terceira canção, rodopiou com ela uma última vez e, satisfeito, parou e fez
uma vénia.
Tudo começara com Nan, quinze anos atrás, no dia 13 de Março, concluíra ele. Beijou os lábios de Erin da mesma forma que beijara os de Nan. O dia 13 de Março era
dali a três semanas. Nessa altura, já teria trazido Darcy até ali e estaria tudo acabado.
Percebeu então que a blusa de Erin começava a ficar molhada. Tinha de a levar para a cidade. Segurando-a por um braço, arrastou-a consigo até ao gravador e, enquanto
o desligava, nem reparou que um anel com um E gravado a ouro deslizara do dedo de Erin, nem ouviu o som fraco que este fez ao cair no chão, para depois se imobilizar,
meio escondido, entre a franja do tapete.
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v
SEXTA-FEIRA
22 de Fevereiro
Darcy olhava distraída para a planta do apartamento que estava a decorar. O proprietário, que fora passar um ano à Europa, tinha-lhe dado instruções muito concretas
acerca daquilo que pretendia.
Quero alugar a casa mobilada, mas vou guardar as minhas coisas. Não quero que algum tarado me queime as carpetes ou os sofás. Por isso, arranje-me a casa com mobílias
em conta, mas de bom gosto. Ouvi dizer que essa é a sua especialidade.
No dia anterior, depois de ter passado na esquadra da polícia, Darcy obrigara-se a assistir a uma liquidação total no Old Tappan, em Nova Jérsia. Adquirira um lote
razoável de mobília muito em conta. Alguma dela era perfeitamente adequada à casa em questão, o resto arrumaria no armazém para utilizar em encomendas futuras.
Pegou no bloco e no lápis. O móvel por módulos deveria ficar na parede comprida de frente para a janela. O... pousou o lápis e tapou a cara com as mãos. "Tenho de
acabar este trabalho, tenho de me concentrar", pensava desesperada.
Veio-lhe então à memória a última semana do seu segundo ano de faculdade. Ela e Erin enfiadas no quarto, agarradas aos livros. A música de Bruce Springsteen tocando
no gira-discos do quarto ao lado e ecoando através das paredes, tentando-as ajuntarem-se aos festejos daqueles que já tinham acabado os exames. Erin lamentando-se:
Darce, com o Bruce a tocar não consigo concentrar-me.
Tens de conseguir. Talvez seja melhor comprarmos uns tamPões para os ouvidos.
Erin respondera, com uma expressão maliciosa:
Tenho uma ideia melhor.
E, no fim de jantar, tinham ido para a biblioteca. À hora de fechar, tinham-se escondido no quarto-de-banho até os guardas saírem.
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Instalaram-se então às secretárias junto do elevador, no sétimo andar, onde as lâmpadas fluorescentes se mantinham acesas toda a noite, e aí estudaram em perfeita
paz, saindo pela janela, de madrugada.
Darcy mordeu os lábios ao perceber que estava quase a chorar. Com impaciência, esfregou os olhos, pegou no telefone e ligou para Nona.
Tentei falar-te ontem à noite, mas tinhas saído. E contou-lhe como fora ao apartamento de Erin, o seu encontro com Jay Stratton e como encontrara o colar do Bertolini,
apesar de faltar uma bolsa de diamantes.
Stratton vai esperar mais uns dias, para ver se Erin aparece, antes de participar o desaparecimento das pedras à companhia de seguros. A polícia não aceita a participação
do desaparecimento de Erin, porque diz que isso interfere com a liberdade de movimento de qualquer pessoa.
Isso é uma estupidez comentou Nona.
Claro que é. Nona, Erin foi encontrar-se com alguém na noite de terça-feira, por causa de um dos anúncios a que ela tinha respondido. É isso que me preocupa. Não
achas que deves telefonar àquele agente do FBI que te escreveu e lhe deves contar o que se passa?
Minutos depois, a cabeça de Bev assomava à porta do escritório de Darcy.
Eu não queria incomodá-la, mas é Nona.
Havia uma expressão de simpatia no seu rosto. Darcy contara-lhe acerca do desaparecimento de Erin. Nona foi directa ao assunto:
Deixei recado ao tipo do FBI para me telefonar. Depois, volto a ligar-te.
Se ele quiser falar contigo, eu gostaria de estar presente. Depois de desligar, Darcy olhou para a máquina de café, pousada numa mesa pequena junto da janela. Pôs
mais uma cafeteira a fazer, enchendo deliberadamente o recipiente com uma quantidade generosa de café.
Na noite em que se tinham escondido na biblioteca, Erin tinha trazido um termos cheio de café forte e anunciara ao fim da segunda chávena:
Isto faz que as células cinzentas se mantenham vivas e atentas. Agora, depois da segunda chávena, Darcy conseguia, por fim, concentrar-se na decoração do apartamento.
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- Tens sempre razão, Erin fanfarrona concluiu ela enquanto retomava os seus apontamentos.
Vince D'Ambrosio regressou ao seu escritório no 28.9 andar, finda a reunião que tivera na sede do FBI, na Praça Federal.
Tratava-se de um homem alto e entroncado e, ao vê-lo, ninguém duvidaria de que, ao fim de vinte e cinco anos, ele detinha ainda o recorde dos mil metros, conseguidos
para a sua escola, St. Joe, em Montvale, Nova Jérsia.
Tinha o cabelo ruivo cortado curto e os olhos castanhos eram grandes e afáveis. O rosto magro facilmente se abria num sorriso, e as pessoas imediatamente gostavam
e confiavam em Vince D'Ambrosio.
Vince trabalhara como investigador criminal no Vietname e, de regresso, completara o curso de Psicologia, para depois ingressar no departamento federal. Dez anos
antes, ajudara a implementar o programa de Detenção dos Criminosos Violentos na Academia de Treino do FBI, situada na base da Marinha de Quântico, perto de Washington.
O PDCV, assim era conhecido o programa, baseava-se na organização de um ficheiro processado pelo computador a nível nacional e tinha como objectivo a detecção dos
crimes em série.
Vince acabara de conduzir uma reciclagem do programa, destinado aos detectives de Nova Iorque que haviam frequentado o curso em Quântico. O objectivo daquele dia
fora informá-los das possibilidades do computador, que conseguia detectar e relacionar crimes aparentemente sem qualquer ligação. E aventava-se agora a hipótese
de um desses assassinos andar à solta em Manhattan.
Era a terceira vez naquela semana que Vince prestava as mesmas informações:
Como todos sabem, o PDVC é capaz de descobrir um padrão comum, em casos que nós consideramos não ter qualquer ligação aparente. Os investigadores do PDVC alertaram-nos
para a possibilidade de existir uma ligação entre seis mulheres que desapareceram, sem deixar rasto, nestes últimos dois anos.
Todas tinham casa em Nova Iorque, embora ninguém saiba se efectivamente se encontravam lá quando desapareceram. Continuam
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registadas na lista dos desaparecidos. Acreditamos agora que é um erro, e a probabilidade maior é estarem mortas.
A semelhança entre estas mulheres é notável. São todas magras e atraentes e têm entre vinte e dois e trinta e quatro anos. São todas acima da média, no que diz respeito
à sua origem e educação. Bonitas e extrovertidas. Finalmente, sabemos que todas elas tinham começado a responder a anúncios pessoais. Estou convencido de que estamos
perante um assassino que mata em série... e um bastante esperto.
Se isto é verdade, o perfil do sujeito é o seguinte: bem educado, sofisticado, terá entre vinte e muitos a quarenta e poucos e, fisicamente, deverá ser muito atraente.
Nenhuma destas mulheres se teria interessado por um diamante em bruto. Pode nunca ter sido preso por crime violento, mas pode ter uma história na sua infância que
o denuncie, como, por exemplo, o roubo de um objecto feminino. Poderá ter como passatempo a fotografia.
Os detectives tinham saído, todos prontos a atentar em possíveis participações de desaparecimento de jovens mulheres que correspondessem àquelas características.
Dean Thompson, o detective da Sexta Esquadra, deixou-se ficar para trás. Ele e Vince tinham-se conhecido no Vietname e, desde então, continuavam amigos.
Vince, ontem uma rapariga veio falar comigo, querendo participar o desaparecimento de uma amiga, Erin Kelley, que não é vista, desde terça-feira à noite. Trata-se
de uma jovem que corresponde ao perfil que acabaste de descrever. E andava a responder a anúncios pessoais. Vou manter-me informado.
E diz-me o que descobrires.
Agora, Vince passava os olhos pelos recados deixados na sua secretária e acenou, satisfeito, ao verificar que Nona Roberts lhe tinha ligado. Discou o número dela,
apresentou-se à secretária e imediatamente foi atendido.
Franziu a testa à medida que Nona Roberts ia expondo o seu problema: Erin Kelley, uma amiga minha que eu convenci a responder a alguns anúncios, desapareceu e não
é vista desde terça-feira à noite, Não existe qualquer possibilidade de Erin desaparecer assim, a não ser que tenha sofrido algum acidente... ou pior. E disso eu
tenho a certeza.
Vince olhou para a agenda. Tinha reuniões marcadas para toda
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a manhã e era esperado no gabinete do presidente da Câmara à uma e mmeia. Nada que pudesse desmarcar.
Às três horas está bem para si? perguntou ele, e depois de desligar o telefone suspirou em voz alta: Mais uma.
Momentos depois de ter telefonado a Darcy para a informar de que tinha um encontro marcado com Vince D'Ambrosio para as três, Nona recebeu a visita inesperada de
Austin Hamilton, presidente e o maior proprietário da estação de Televisão do Hudson. Hamilton tinha uma maneira de ser fria e sarcástica e era com apreensão que
o seu pessoal recebia as suas visitas.
Nona conseguira convencer Hamilton a autorizar o documentário acerca dos anúncios pessoais, apesar de a primeira reacção dele ter sido:
Quem se interessa por um bando de falhados que tenta conhecer outros tantos?
Conseguira convencê-lo, depois de lhe mostrar a quantidade de páginas que quer as revistas quer os jornais dedicavam ao assunto.
É o fenómeno social da nossa sociedade argumentara ela. Não sai barato colocar estes anúncios. É sempre a velha história. Rapazes querem conhecer raparigas. Executivos
de meia-idade pretendem conhecer divorciada rica. A questão é: será que o Príncipe Encantado encontra a sua Branca-de-Neve? Ou será que se trata apenas de uma humilhante
perda de tempo?
Hamilton acabara por conceder, relutante, que talvez ali houvesse material para uma história.
No meu tempo comentara ele, conhecíamos as pessoas socialmente, na escola, na universidade ou em festas. Arranjava-se um grupo de amigos seleccionados e era através
deles que alargávamos o nosso leque de conhecimentos.
Hamilton era um profissional prepotente, de sessenta anos de idade, e um snob assumido. Contudo, tinha conseguido construir sozinho aquela estação de televisão e
a sua programação inovadora constituía um sério desafio às outras três estações existentes.
Quando entrara no gabinete de Nona, não vinha muito contente.
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Embora ele andasse sempre impecavelmente bem vestido, Nona decidiu que conseguia parecer muito pouco atraente. O fato Sauile Row que trazia não lhe assentava nada
bem, devido aos ombros estreitos e à cada vez mais volumosa barriga. O cabelo, já escasso, estava pintado num tom de louro que não conseguia parecer natural, e os
lábios, estreitos, que por vezes eram capazes de exibir um sorriso caloroso, estavam firmemente comprimidos numa linha muito fina. Os olhos, azul-claros, estavam
gelados. Foi directo ao assunto.
Nona, estou farto deste teu projecto. Tenho a impressão de que não existe uma única pessoa neste edifício que não perca o seu tempo a responder a anúncios e a comparar
resultados. Ou terminas depressa com este assunto ou o melhor é cancelá-lo.
Ou Nona tentava acalmar Hamilton ou tinha de lhe renovar o interesse. Escolheu a segunda alternativa.
Eu não fazia ideia de como era explosivo este assunto dos anúncios.
E, procurando entre os papéis da sua secretária, entregou a Hamilton a carta que Vincent D'Ambrosio lhe tinha escrito. Observou a testa dele, enrugando-se à medida
que ia lendo a carta.
Ele vem aí às três horas continuou Nona. Como vê, ele próprio reconhece que existe um lado sombrio em tudo isto. Uma grande amiga minha, Erin Kelley, respondeu a
um anúncio, teve um encontro na terça-feira à noite e desapareceu.
O instinto de Hamilton para uma boa história venceu a sua petulância.
E pensas que há alguma ligação?
Nona virou a cabeça, reparando, inconscientemente, que a planta que Darcy tinha regado dois dias antes estava novamente a murchar.
Espero que não, mas não sei.
Diz-me qualquer coisa, depois de falares com ele.
Enojada, Nona percebeu que Hamilton salivava perante o eventual aproveitamento que poderia ter o desaparecimento de Erin, se fosse divulgada e explorada a sua história.
Fazendo um esforço visível para parecer pesaroso, concluiu:
O mais provável é que a tua amiga esteja de óptima saúde. Não te preocupes.
Assim que ele saiu, a secretária de Nona, Connie Frender, meteu a cabeça pela porta e perguntou:
Sobreviveste?
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- Com dificuldade. Nona tentou sorrir-lhe. Perguntou-se se alguma vez já tivera vinte e um anos. Connie era uma cópia em negro da responsável pelo clube Adeusinho,
Joan Nye: jovem, bonita e esperta. A mulher de Matt tinha agora vinte e dois anos. "E tu vais fazer quarenta e um, Nona", pensou. "Sem marido e sem filhos. Que pensamento
reconfortante."
- Esta mulher negra e solteira deseja conhecer qualquer ser que respire. - Riu-se Connie. - Tenho ali mais um monte de respostas daquelas caixas postais para onde
escreveu. Quer vê-las?
- Claro.
- Deseja mais café? Depois da visita do estranho Austin, o mais natural é precisar dele.
Desta vez, Nona percebeu que o seu sorriso era maternal. Connie ignorava que oferecer um café ao chefe era considerado um delito por muitos movimentos feministas.
Respondeu:
- Adorava. Connie regressou com ele, cinco minutos depois.
- Nona, Matt está ao telefone. Eu disse-lhe que estava em reunião, mas ele insistiu que era vital falar consigo.
- Estou certa de que assim é. - Nona esperou que a porta se fechasse e deu um gole no café, antes de pegar no telefone. Matthew. O que significava aquele nome? Dádiva
de Deus? Sem dúvida.
- Olá, Matt, como estás tu e a rainha das debutantes?
- Nona, será necessário que sejas sempre tão desagradável? Será que ele fora sempre assim tão agressivo?
- Não, na verdade não.
"Maldito sejas", pensou Nona. Dois anos passados e ainda lhe doía falar com ele.
- Nona, tenho pensado, por que não me compras a casa? Jeanie não gosta de Hamptons. O mercado continua péssimo, de maneira que eu ofereço-ta por um bom preço. Sabes
que podes recorrer aos teus pais para um empréstimo.
Fora nisto que o casamento com aquela garota o tornara.
- Eu não quero a casa - respondeu Nona calmamente. - Tenciono comprar a minha, assim que resolvermos este assunto.
- Nona, mas tu adoras aquele sítio. Só estás a fazer isso para me castigar.
- Até qualquer dia - despediu-se Nona, desligando o telefone. "Estás enganado, Matt", pensou ela. "Eu adorava a casa porque
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nós dois a tínhamos comprado e aí cozinhámos as lagostas para comemorar a nossa primeira noite e todos os anos a tornávamos ainda melhor. Agora, quero começar tudo
de novo. Sem recordações."
Dedicou a sua atenção à pilha de cartas que tinham acabado de chegar. Contactara mais de uma centena de pessoas que haviam recentemente colocado anúncios pessoais,
no sentido de partilharem com ela as suas experiências. Persuadira, igualmente, o locutor de| continuidade, Gary Finch, a convidar as pessoas a escrever acerca dos
resultados obtidos com os anúncios que tinham colocado ou a que tinham respondido e por que razão desistiam de o fazer, se fosse esse o caso.
O resultado daquele convite fora inesperado. Apenas um pequeno número de pessoas escrevia com entusiasmo que encontrara a pessoa mais maravilhosa do mundo e "estamos
noivos", "vivemos juntos"! ou... "casámos". Muitos exprimiam o seu desapontamento:
Ele disse que era um empresário. Esqueceu-se de acrescentar "falido". Tentou pedir-me dinheiro emprestado no nosso primeiro encontro.
Até ao desabafo do macho branco ofendido:
Ela passou o jantar a criticar-me. Disse que tinha muita lata por ter posto no anúncio que era atraente. Meu Deus, fez-me sentir um miserável!
Outros relatavam:
Comecei a receber telefonemas obscenos a meio da noite.
Quando voltei do trabalho, encontrava-o sentado na soleira da minha porta a snifar coca.
Muitas cartas não eram assinadas:
Eu não quero que saibam quem eu sou, mas tenho a certeza de que um dos homens com quem me encontrei através dos anúncios me assaltou a casa.
Ou:
Trouxe um atraente homem de negócios de meia-idade para casa e apanhei-o a tentar beijar a minha filha de dezassete anos.
Nona sentiu um aperto no coração, ao ler a última carta daquela pilha. Era de uma mulher de Lancaster na Pensilvânia:
A minha filha de vinte e dois anos de idade, que trabalhava como actriz, desapareceu há dois anos. Quando ela deixou de atender os nossos telefonemas, fomos até
Nova Iorque e verificámos que ela não ia a casa há muito tempo. Ela andava a responder a anúncios. Andamos desnorteados. Ela desapareceu sem deixar rasto.
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"Oh meu Deus", pensou Nona, "oh, meu Deus, por favor faz com que Erín esteja sã e salva." E as mãos tremiam-lhe enquanto agrupava as Cartas em três montes: os que
se sentiam contentes com o resultado; os desiludidos; e os que tinham arranjado problemas graves. A última carta pô-la de parte para mostrar ao tenente D'Ambrosio.
À uma hora, Connie trouxe-lhe uma sandes de queijo e fiambre.
Não há nada como tratarmos do nosso colesterol comentou
Não vale a pena encomendar-lhe atum, pois nunca o come
respondeu Connie.
As duas, Nona ditava algumas cartas a potenciais convidados. Lembrou-se de que deveria convidar um psicólogo ou um psiquiatra para estarem presentes no programa.
"Tenho de descobrir alguém que consiga fazer uma análise clara e simples acerca deste assunto dos anúncios", decidiu ela.
Vincent D'Ambrosio chegou às três menos um quarto.
Ele sabe que vem adiantado comunicou-lhe Connie, e não se importa de esperar.
Não faz mal. Manda-o entrar.
Em menos de um minuto, Vince D'Ambrosio esqueceu o quanto era desconfortável a cadeira verde que ocupava no gabinete de Nona. Considerava-se um bom avaliador de
pessoas e gostou de Nona imediatamente. Os modos dela eram directos, agradáveis. Achava-a atraente. Não era bonita, mas atraente, particularmente aqueles olhos castanhos
inteligentes. Quase não usava maquilhagem. Gostou igualmente dos toques cinzentos que lhe raiavam o cabelo loiro-escuro. Alice, a sua ex-mulher, também era loira,
mas as suas madeixas eram fruto das visitas regulares que fazia ao salão de Vidal Sassoon. Bom, pelo menos agora casara-se com alguém que tinha dinheiro para isso.
Era óbvio que Nona se encontrava desesperadamente preocupada.
O teor da sua carta confirma-se na maioria das respostas que tenho recebido informou ela. As pessoas queixam-se de terem encontrado ladrões, tarados, drogados, pervertidos.
E agora... calou-se e mordeu o lábio, e agora, alguém que nunca sonharia em responder a um anúncio desses, e que o fez como um favor pessoal, desapareceu.
Fale-me dela.
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Nona concluiu, com satisfação, que Vincent D'Ambrosio não perdia tempo com conversas de circunstância.
Erin tem vinte e sete ou vinte e oito anos. Conhecemo-nos há seis meses, no ginásio. Ela, Darcy Scott e eu frequentávamos a mesma aula de dança e tornámonos amigas.
Darcy não tarda aí a chegar. E, pegando na carta da mulher de Lancaster, entregou-lha, dizendo: E esta acabou de chegar.
Vince leu-a rapidamente e assobiou baixinho.
Ninguém nos participou esta. Esta rapariga não está na nossa lista. O que quer dizer que afinal são sete as desaparecidas.
No táxi, a caminho do escritório de Nona, Darcy recordava-se do dia em que ela e Erin tinham ido esquiar para Stowe, quando frequentavam o último ano da universidade.
As encostas estavam geladas e a maioria das pessoas tinha-se retirado mais cedo. Por insistência dela, Erin acedera a uma última corrida e acabara por bater num
monte de gelo e cair em cima de uma perna.
Quando a ajuda chegou, Darcy acompanhara Erin até à ambulância e recordava a expressão de sofrimento no seu rosto, enquanto tentava brincar com o acidente:
Espero que isto não me impeça de dançar. Esperava ser eleita rainha do baile.
E vais ser.
No hospital, depois de ver as radiografias, o cirurgião franzira a testa:
Não há dúvida de que fez aqui um bonito serviço, mas já vamos tratar de tudo. E, sorrindo para Darcy, concluira: Não fique tão aflita. Ela vai ficar óptima.
Não estou só aflita, estou cheia de remorsos respondera ela ao médico. Erin não queria fazer esta última descida.
Agora, enquanto entrava no escritório de Nona e era apresentada ao agente D'Ambrosio, Darcy percebeu que se sentia exactamente na mesma.
O mesmo alívio por alguém se encarregar do problema e o mesmo sentimento de culpa por ter convencido Erin a responder aos anúncios.
Nona só nos perguntou se não queríamos experimentar. Fui eu que convenci Erin a fazê-lo confessou ela a D'Ambrosio. Ele tomava notas, enquanto ela lhe contava a
conversa telefónica que tivera
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com Erin na terça-feira e como ela lhe dissera que se ia encontrar com Um tal Charles North, num bar perto da praça Washington. Notou a mudança de expressão no rosto
de D'Ambrosio, quando lhe contou que abrira o cofre, entregara o colar do Bertolini a Jay Stratton e que este alegara que faltavam uns diamantes. Fez-lhe algumas
perguntas acerca da família de Erin. Darcy olhava distraída para as mãos.
"Lembras-te quando chegaste a Mount Holyoke, no primeiro ano de caloira? Erin já lá estava, com as malas cuidadosamente empilhadas num canto. Avaliámo-nos mutuamente
e ambas gostámos do que vimos."
Os olhos de Erin abriram-se de espanto ao reconhecer a mãe e o pai, mas disse, sem perder a compostura:
Quando Darcy me escreveu no Verão, a apresentar-se, não percebi que era filha de Barbara Thirne e de Robert Scott. Acho que não perdi um único filme vosso. Depois
acrescentara:Darcy, não me quis instalar antes de tu chegares, pois podias ter alguma preferência em relação aos armários ou às camas.
Lembro-me do olhar que os pais trocaram entre si. Estavam apensar: "Que rapariga simpática é esta Erin".
E convidaram-na para jantar.
Erin viera sozinha e explicou que o pai era inválido. Tinham ficado a pensar por que razão ela não falava da mãe.
Mais tarde, contou-me que, quando tinha seis anos, o pai arranjara uma esclerose múltipla e ficara confinado a uma cadeira de rodas. A mãe partira quando ela tinha
sete anos.
Eu não vou dar explicações, Erin, mas se quiseres podes vir comigo dissera-lhe a mãe.
Não posso deixar o pai sozinho. Ele precisa de mim.
E, com o decorrer dos anos, Erin acabara por perder completamente o contacto com a mãe.
A última vez que tive notícias dela, estava a viver com um tipo qualquer que alugava barcos nas Caraíbas.
Encontrava-se em Mount Holyoke com uma bolsa de estudo. E como o meu pai diz, o facto de estar imobilizado permitiu-lhe ter tempo para ajudar a filha nos trabalhos
de casa. E, se não lhe podemos pagar a Universidade, pelo menos podemos ajudá-la a ganhar uma bolsa.
"Oh, Erin, onde estás? O que te aconteceu?"
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Darcy percebeu, então, que D'Ambrosio continuava à espera que ela respondesse à pergunta.
O pai encontra-se numa casa de saúde em Massachussets há já alguns anos respondeu ela. Já não entende muito bem o que se passa. Suponho que sou o que se pode chamar
a única parente de Erin.
Vince percebeu o sofrimento nos olhos de Darcy.
Na minha profissão, conclui-se muitas vezes que ter um bom amigo é muitas vezes melhor do que ter um monte de parentes.
Darcy conseguiu sorrir-lhe.
A citação preferida de Erin é de Aristóteles: "O que é um amigo? Uma alma apenas, dividida entre dois corpos."
Nona levantou-se e, colocando-se atrás da cadeira de Darcy, pousou-lhe as mãos nos ombros, tentando reconfortá-la. Olhou directamente para D'Ambrosio e perguntou:
Que podemos nós fazer para ajudar a encontrar Erin?
Muitos anos antes, Petey Potters trabalhara na construção civil.
Fiz grandes obras. Era o que repetia constantemente para quem estivesse disposto a ouvi-lo. O World Trade Center. Passei muito tempo pendurado naquelas traves-mestras.
Só vos digo que o vento assobia tanto que nós ficamos a pensar se nos conseguimos segurar. E ria-se. Mas que tem uma grande vista, lá isso tem.
Mas, de noite, o pensamento de voltar a subir aos andaimes no dia seguinte começou a incomodar Petey. Um trago de uísque, um par de cervejas e o calor instalava-se
no seu estômago e espalhava-se pelo corpo.
És tal e qual o teu pai berrava-lhe a mulher. Um bêbedo que não presta para nada.
Petey nunca se sentiu ofendido. Ele compreendia. E começava a rir quando a mulher arengava acerca do pai. Saíra cá uma bisca! Desaparecia durante semanas inteiras,
metia-se num abrigo em Bowery e depois voltava para casa.
Quando tenho fome não há problema confidenciara ele ao pequeno
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Petey de oito anos de idade. Tenho o abrigo do Exército de Salvação Nacional, dou um mergulho, arranjo uma refeição, um banho e uma cama... Nunca falha.
O que quer dizer com dar um mergulho? perguntou o pequeno Petey.
Quando se vai para o abrigo, eles falam-nos de Deus e do perdão e que somos todos irmãos e temos de nos salvar. Depois, pedem àqueles que acreditam no livro de Deus
que avancem e reconheçam o Criador. É assim que ganhamos a fé. Corremos, caímos de joelhos e dizemos qualquer coisa acerca da salvação. É a isso que se chama dar
um mergulho.
Quase quarenta anos depois, aquela recordação mantinha-se no espírito do desprezado e sem abrigo Petey Potters. Arranjara o seu próprio abrigo, uma combinação de
madeira, zinco e trapos velhos, que empilhara conseguindo uma construção tipo tenda encostada ao cais abandonado da Rua 56 Oeste.
As necessidades de Petey eram poucas. Vinho. Cerveja. Um pouco de comida. Uns caixotes pequenos onde guardava uma reserva de latas e garrafas, cujos depósitos podia
sempre levantar. Quando se sentia mais ambicioso, Petey levava um rolo e uma garrafa de água e postava-se à saída da rodovia de West Side. Nenhum dos condutores
queria realmente que ele lhes lambuzasse os vidros do carro, mas sentiam-se demasiado assustados para o recusar. Ainda na semana anterior, ele ouvira uma velha explodir
para a condutora de um Mercedes:
Jane, por que te deixas convencer desta maneira? E Petey adorara a resposta:
Porque, mãe, não quero que me risquem o carro por eu dizer que não.
Petey não riscava os carros quando o rejeitavam. Dirigia-se para o carro seguinte, armado com a sua garrafa, com um sorriso persuasivo no rosto.
O dia anterior fora um dos melhores. A neve era suficiente para tornar a rodovia lamacenta, e os pára-brisas ficavam cheios de porcaria vinda dos pneus dos carros
da frente. Pouca gente recusara os serviços de Petey na rampa de saída. Conseguira dezoito notas, o suficiente para uma boa sanduíche, cigarros e três garrafas de
vinho tinto.
Nessa noite, instalara-se na sua tenda, enrolado no seu velho cobertor do exército que a Igreja arménia da Segunda Avenida lhe dera,
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com um boné aquecendo-lhe a cabeça e o corpo aconchegado num sobretudo andrajoso cuja gola de pêlo, já meio comido, servia para lhe proteger o pescoço. Acabara a
sanduíche com a primeira garrafa de vinho e depois acomodara-se para melhor saborear o seu bem-estar numa névoa reconfortante. O pai a dar o mergulho. A mãe chegando
à casa da Avenida Tremont, estafada, depois de ter esfregado a casa dos outros. Birdie, a sua mulher. Harpie, não Birdie. Era esse o nome que lhe deviam ter dado.
Petey tremeu de gozo com aquele trocadilho. Perguntava-se onde estaria ela agora. E o garoto? O garoto era engraçado.
Petey não teve a certeza se era um carro a arrancar. Tentou manter-se sóbrio, instintivamente tentando proteger o seu território. Esperava que não fossem os chuis
a tentar derrubar-lhe a casa. Não. Os chuis não se incomodavam com aquele tipo de coisas a meio da noite.
Talvez fosse algum drogado. Petey agarrou numa das garrafas vazias pelo gargalo. Era melhor que se mantivessem afastados dali. Mas ninguém se aproximou. Passados
alguns minutos, ouviu o carro a afastar-se e então espreitou cautelosamente. Ainda se viam os faróis desaparecendo pela rodovia do West Side, agora deserta. Talvez
alguém tivesse ido verter águas, concluiu Petey, pegando na última garrafa.
Ia a tarde avançada quando Petey voltou a abrir os olhos. Sentia a cabeça vazia e tonta. Doía-lhe o estômago. Tinha a boca a saber a papel de música. Tentou recompor-se
e levantar-se. As três garrafas vazias de pouco lhe serviam. Encontrou vinte cêntimos no bolso do sobretudo. "Tenho fome", concluiu em silêncio, e espreitando pela
placa de zinco que lhe servia de porta concluiu que devia ser tarde. O cais já se cobrira de sombras. Os olhos detiveram-se então numa coisa que, definitivamente,
não era uma sombra. Petey inclinou-se, resmungou uma heresia e levantou-se.
Tinha as pernas rígidas e o passo incerto ao dirigir-se para aquilo que estava estendido na doca.
Tratava-se de uma mulher magra. Jovem. O cabelo ruivo encaracolado à volta do rosto. Tinha a certeza de que ela estava morta.
1 Birdie passarinho; Harpie gavião. (N. da T.)
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Tinha um colar à volta do pescoço. Vestia uma blusa e umas calças e os sapatos não eram iguais.
O colar brilhava, brilhava no crepúsculo. Ouro. Ouro verdadeiro. Petey lambeu os lábios com nervosismo. Forçando-se a tocar na rapariga morta, procurou o fecho do
colar trabalhado atrás do pescoço. Tinha os dedos desajeitados. Grossos e trémulos, não conseguiam accionar o fecho que o abria. Cristo, como ela estava gelada!
Não queria parti-lo. Seria o colar suficientemente largo para sair pela cabeça? Tentando ignorar o pescoço negro e azulado, agarrou no colar.
Os dedos sujos roçaram o rosto de Erin, à medida que Petey libertava o colar e o guardava no bolso. Os brincos. Também eram valiosos.
Petey ouviu a sirene da polícia ao longe. Como um coelho assustado, deu um salto, esquecendo-se dos brincos. Aquele não era lugar para ele. Tinha de arrumar as suas
coisas e arranjar outro abrigo. Quando encontrassem o cadáver, a presença dele seria suficiente para os chuis.
A consciência do perigo eminente tornouo sóbrio. Correu de volta para o abrigo. Tudo o que possuía podia ser embrulhado no cobertor. A almofada. Um par de meias,
alguma roupa interior. Uma camisa de flanela. Um prato, uma colher e um copo. Fósforos. Cigarros. E jornais velhos para as noites mais frias.
Quinze minutos depois, Petey desaparecia no mundo dos desalojados. Mendigando na 1.a Avenida, conseguiu quatro dólares e trinta e dois cêntimos. Utilizou-os para
comprar vinho e biscoitos. Na Rua 57 encontrou um tipo que lhe comprou a jóia quente. Deu a Petey vinte e cinco dólares pelo colar.
Isto é bom material, meu. Vê se me arranjas mais.
Às dez horas, Petey adormecia num gradeamento do metro que emanava algum calor. Às onze, alguém o abanava e uma voz, que não soava agressiva, dizia-lhe:
Vamos lá, homem. Hoje vai estar uma noite muito fria. Vamos levar-te para um sítio onde poderás ter uma cama decente e uma boa refeição.
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Às seis menos um quarto da tarde de sexta-feira, Wanda Libbey confortável e segura no seu -BMW novo, avançava lentamente pela rodovia de West Side. Estava encantada
com as compras que fizera na
5.a Avenida, no entanto não conseguia perdoar-se por se ter atrasado tanto no caminho de regresso a Tarrytown. A hora de ponta de sexta-feira era a pior da semana,
pois nessa altura muita gente aproveitava para ir até às suas casas de campo. Ela nunca voltaria a viver em Nova Iorque. Era demasiado sujo. Demasiado perigoso.
Wanda olhou para a bolsa Valentino pousada no banco ao lado. Quando, naquela manhã, estacionara no parque de Kinney, apertara-a firmemente debaixo do braço e fora
aí que a mantivera todo o dia. Não era suficientemente tola para se arriscar a que alguém lha roubasse.
Outro maldito semáforo. Faltava pouco para alcançar a rampa e sair daquela maldita rodovia.
Uma pancada no vidro fez com que Wanda se virasse rapidamente. Um rosto barbudo olhava-a sorridente. Com um trapo, começou a fazer movimentos giratórios no vidro
do carro.
Wanda comprimiu os lábios. Maldição. Abanou a cabeça vigorosamente. Não. Não.
O homem ignorou-a.
"Não me vou deixar levar por esta gente", resmungou Wanda, pressionando com o dedo o botão que abria a janela.
Não quero... começou ela a gritar. O trapo foi atirado contra o vidro. O frasco de líquido pingava para o chão. Uma mão entrou dentro do carro e ela viu a bolsa
desaparecer.
Um carro-patrulha dirigia-se para a Rua 55. De repente, o condutor perguntou:
O que se passa ali? À medida que se aproximava da rodovia, podia ver que o trânsito estava parado e que as pessoas começavam a sair dos carros. Vamos. E, com as
sirenes apitando e as luzes ligadas, o carro-patrulha avançou, abrindo caminho por entre o trânsito parado em duas filas.
Gritando de fúria e indignação, Wanda apontou para o cais:
A minha bolsa. Ele foi para ali.
Vamos.
O carro-patrulha voltou à esquerda, depois voltou à direita, com os pneus chiando ao entrarem na doca. O polícia que seguia no lugar
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do passageiro ligou um holofote, descobrindo a tenda que Petey abandonara.
- Vou ver ali dentro. - Depois exclamou: - Olha, ali! Depois do terminal. O que é aquilo?
A geada que cobria o corpo de Erin Kelley e o sapato prateado brilhavam reluzentes, sob a luz poderosa do holofote.
Darcy deixou o gabinete de Nona, juntamente com Vince D'Ambrosio. Apanharam um táxi até ao apartamento dela e aí entregou-lhe a agenda pessoal de Erin com as anotações
acerca dos anúncios pessoais a que tinha respondido. Vince examinou-os, cuidadosamente.
- Não temos muita coisa - comentou. - Teremos de verificar quem colocou os anúncios que ela sinalizou. Com alguma sorte, Charles North é um deles.
- Erin não é uma pessoa muito organizada - afirmou Darcy. Eu podia voltar a casa dela e voltar a ver na secretária. Pode ser que me tenha escapado qualquer coisa.
- Isso poderia ajudar. Mas não se preocupe. Se North estiver inscrito na ordem dos Advogados de Filadélfia, não será difícil encontrá-lo. -Vince ergueu-se e concluiu:
-Vou começar já a tratar disto.
- Vou voltar agora ao apartamento. Saio consigo - disse Darcy. Depois, vendo a luz do atendedor de chamadas a piscar, hesitou e pediu-lhe: - Não se importa de aguardar
um instante, enquanto verifico as chamadas? - E, tentando um sorriso, acrescentou: - Há sempre a possibilidade de Erin ter deixado algum recado.
Havia duas mensagens. Ambas relacionadas com os anúncios. Uma era engraçada: "Olá, Darcy. Aqui estou novamente a tentar apanhá-la. Gostei da sua carta. Espero poder
encontrar-me consigo um destes dias. Sou a caixa 4358, David Weld, 555-4890".
A outra mensagem era completamente diferente:
- Eia, Darcy, por que perdes tempo a responder aos anúncios e o meu tempo a tentar contactar-te? É a quarta vez que te telefono. Não gosto de deixar mensagens, mas
desta vez deixo-te uma: vai-te matar.
Vince abanou a cabeça:
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Este tipo ferve em pouca água.
Eu não deixei a máquina ligada enquanto estive fora declarou Darcy. Suponho que, se alguém tentou contactar-me em resposta às cartas, deve ter desistido. Erin começou
a responder em meu nome há duas semanas. Estas são as primeiras chamadas que recebo.
Gus Boxer ficou surpreendido, e particularmente pouco satisfeito, ao responder à campainha e deparar com a mesma jovem que no dia anterior o fizera perder tanto
tempo. Estava absolutamente decidido a recusar a entrada dela no apartamento de Erin Kelley, mas não chegou a ter possibilidades de o fazer.
Já comuniquei o desaparecimento de Erin ao FBI disse-lhe Darcy. E o agente responsável pelo caso pediu-me para ir ver a secretária dela.
O FBI! Gus sentiu um arrepio nervoso percorrer-lhe o corpo. Mas isso fora há tanto tempo! Não tinha nada que se preocupar. Duas pessoas tinham-lhe deixado os nomes
para o caso de haver alguma vaga. Uma rapariga com muito boa aparência chegara a oferecer-lhe mil notas por debaixo da mesa, caso ele a passasse para o primeiro
lugar da lista de espera. De forma que, se a amiga da Kelley conseguisse descobrir que alguma coisa lhe tinha acontecido, poderia receber um dinheirinho extra.
Estou tão preocupado com ela como você suspirou ele, tentando dar à voz um tom de simpatia e compreensão. Suba.
Entrando no apartamento, Darcy imediatamente acendeu as luzes, afastando o crepúsculo que entrava pela janela. Na véspera, a casa parecera-lhe normal. Agora, a continuada
ausência de Erin começava a deixar marcas. No peitoril da janela, via-se uma ténue camada de poeira, e a mesa de trabalho encontrava-se coberta de pó. Os cartazes
emoldurados, que sempre lhe tinham parecido alegres e coloridos, pareciam agora fazer troça dela. O Picasso de Geneva. Erin comprara-o na sua viagem ao estrangeiro.
Adoro-o, ainda que não seja o meu tema favorito comentara ela. Representava uma mãe e uma criança.
Não havia mais nenhuma mensagem no atendedor de chamadas. Uma busca à secretária demonstrou-se infrutífera. Havia uma cassette virgem no armário, e talvez o sargento
D'Ambrosio quisesse ouvir as gravações daquela, por isso Darcy substituiu-a.
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A casa de repouso. Era por volta desta hora que Erin costumava telefonar. Darcy procurou o número e discou-o. A enfermeira-chefe da secção de Billy Kelley atendeu-a.
Falei com Erin, como habitualmente, na terça-feira por volta das cinco. Eu disse-lhe que o pai estava muito perto do fim. Ela disse que passaria o fim-de-semana
em Wellesley. Depois acrescentou: Já soube que ela desapareceu. Todas nós temos rezado para que ela se encontre bem.
"Não há mais nada que eu possa fazer aqui", pensou Darcy, e sentiu-se de repente com um desejo enorme de ir para casa.
Eram seis menos um quarto quando chegou a casa. Decidiu que precisava de tomar um duche quente e um copo de leite.
Às seis e dez, embrulhada no seu roupão favorito de flanela, instalou-se no sofá e accionou o controlo remoto da televisão.
Começava nesse momento uma reportagem. John Miller, o repórter criminal do Canal 4, encontrava-se de pé, à entrada para o cais da West Side. Atrás dele, numa área
vedada, vislumbravam-se uma dúzia de polícias, recortados contra as águas frias do Hudson. Darcy aumentou o volume.
"... corpo de uma jovem não identificada acabou de ser descoberto nesta doca abandonada da Rua 56. Aparentemente, foi vítima de estrangulamento. A jovem é magra,
aparenta ter vinte e tal anos, tem cabelo ruivo. Usa calças e uma blusa estampada. O toque bizarro neste caso é que os sapatos que calça não condizem: no pé esquerdo
traz uma bota curta, de pele castanha, e no direito um sapato de salto alto.
Darcy ficou pregada ao ecrã. Cabelo ruivo. Vinte e tal anos. Blusa estampada. Ela oferecera uma blusa estampada a Erin, pelo Natal. Erin ficara encantada.
Tem todas as cores do casaco de José declarara ela. Adoro!
Ruiva. Magra. O casaco de José.
O bíblico casaco de José ficara manchado de sangue, quando os seus preciosos irmãos o mostraram ao pai como prova da sua morte.
Sem saber como, Darcy conseguiu encontrar na bolsa o cartão que O agente D'Ambrosio lhe entregara.
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Vince estava pronto a sair do gabinete. Ia encontrar-se com o filho de quinze anos de idade no Jardim de Madison Square. Tinham combinado um jantar rápido e depois
assistirem ao jogo dos Rangers. Enquanto ouvia o relato de Darcy, percebeu que afinal já esperava esta chamada. Só não esperava que chegasse tão cedo.
Isso não me cheira bem respondeu-lhe ele. Vou telefonar para a esquadra da zona onde o corpo foi encontrado. Deixe-se ficar aí que já lhe volto a ligar.
Desligou e marcou o número da estação de televisão do Hudson. Nona ainda estava no gabinete.
Vou já ter com Darcy prometeu ela.
Ela vai ter de identificar o corpo preveniu Vince.
De seguida, ligou para a esquadra da zona norte da cidade, onde foi posto em contacto com o chefe da brigada de homicídios. O corpo ainda não tinha sido removido
do local. Quando chegassem à morgue, enviariam um carro para trazer Miss Scott. Vince explicou-lhe, então, o seu interesse por aquele caso.
Agradecemos a sua colaboração responderam-lhe, e, a não ser que se prove um caso encerrado, gostaríamos de o passar pelo VICAP.
Vince ligou para Darcy novamente, informou-a do carro-patrulha que a iria buscar e que Nona se encontrava a caminho. Ela agradeceu-lhe, num tom inexpressivo e sem
emoção.
Chris Sheridan saiu da galeria às cinco e dez e, em grandes passadas, percorreu os catorze quarteirões que distavam da Rua 78 e Madison até às Ruas 65 e 50. Tivera
uma semana muito ocupada e muito proveitosa e saboreava a reconfortante liberdade de saber que tinha o fim-de-semana todo para si. Não fizera nenhum plano.
O seu apartamento ficava no décimo andar e estava voltado para Central Park. "Directamente em frente do Jardim Zoológico", costumava dizer aos seus amigos. Possuidor
de um gosto eclético, misturara mesas antigas, candeeiros e carpetes, sofás grandes e almofadados que ele forrara com um padrão heráldico copiado de uma tapeçaria
medieval. Os quadros eram paisagens inglesas. Pinturas
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de caça do século xix e uma Árvore da Vida, de seda, pendurada na parede, combinavam com a mesa Chippendale e com as cadeiras da sala-de-jantar
Tratava-se de uma sala confortável e convidativa, uma sala que, nos últimos oito anos, muitas jovens haviam olhado esperançadas.
Chris dirigiu-se para o quarto e vestiu uma camisa desportiva de manga comprida e umas calças de caqui. Decidiu que precisava de um Martini seco. Talvez mais tarde
saísse para comer um prato de pasta. De copo na mão, ligou para as notícias das seis e assistiu à mesma reportagem que Darcy.
A compaixão que sentiu pela rapariga morta e a identificação com o desgosto que a família iria sentir foi imediatamente substituído pelo horror. Estrangulada! Um
sapato de salto alto num dos pés!
Oh, Meu Deus! exclamou Chris em voz alta. Será que a pessoa que assassinara aquela rapariga seria a mesma que enviara a carta à sua mãe? A carta dizia que uma dançarina
de Manhattan morreria na noite de terça-feira, do mesmo modo que Nan.
Na tarde de terça-feira, depois de a mãe lhe ter telefonado, ele contactara o chefe da polícia de Darien. Moore fora então visitar Greta, lera a carta e assegurara-lhe
que se tratava com certeza de obra de algum tarado.
Depois, ligara para Chris.
Chris, mesmo que seja verdade, como poderemos proteger todas as raparigas de Nova Iorque?
Chris decidiu telefonar para a esquadra da polícia, mais uma vez, e ligaram-lhe para o chefe. Moore não sabia ainda nada acerca do assassínio de Nova Iorque.
Eu telefono ao FBI declarou. Se essa carta é do assassino, então trata-se de uma prova material. Devo avisar-te de que, provavelmente, o FBI quererá falar contigo
e com a tua mãe acerca da morte de Nan. Lamento, Chris. Eu sei o mal que isso lhe faz.
À porta do restaurante Charlie, no Jardim de Madison Square, Vince rodeou os ombros do filho com o braço.
Garanto-te que cresceste desde a semana passada. Agora,
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ele e Hank estavam da mesma altura. Um destes dias, estarás a comer do teu prato azul em cima da minha cabeça.
Que quer dizer isso?
O rosto esguio de Hank, sarapintado de sardas no nariz, era igual àquele que Vince recordava ver no espelho trinta anos atrás. Da mãe herdara apenas a cor azul-acinzentada
dos olhos.
O empregado veio atendê-los. Depois de se sentarem, Vince explicou:
O prato azul costumava ser o prato especial da noite, nos restaurantes baratos. Por setenta e cinco cêntimos, tinhas direito a um pedaço de carne, alguns vegetais
e a uma batata. O prato estava dividido de forma a deixar que os molhos se misturassem. O teu avô adorava esse tipo de prato.
Decidiram-se pelos hamburguers completos com batatas fritas e salada. Vince pediu uma cerveja e Hank uma cocacola. Vince fez um esforço para não pensar em Darcy
Scott e Nona Roberts, que deveriam encontrar-se a caminho da morgue para reconhecerem o corpo da vítima. Seria bastante duro para ambas.
Hank não parava de falar na sua equipa de atletismo.
Vamos correr no próximo sábado à ilha de Randall. Achas que podes ir?
Claro. A não ser...
Oh, claro. Ao contrário da mãe, Hank entendia as exigências da profissão de Vince. Estás a trabalhar nalgum caso novo?
Vince contou-lhe que temia que um assassino se encontrasse à solta, falou-lhe na conversa que tivera com Nona Roberts e sobre a possibilidade de o corpo de Erin
Kelley ter sido encontrado naquela noite, na doca abandonada.
Hank ouvia-o, atentamente.
Achas que vais ter de te meter nisso, pai?
Não necessariamente. Pode tratar-se de um caso para a polícia de Nova Iorque, mas eles solicitaram a colaboração da nossa unidade de Quântico, e eu tenciono ajudá-los
no que puder. E, pedindo a conta, concluiu: É melhor irmos andando.
Pai, eu vou voltar no domingo. Posso ir sozinho ao jogo. Bem sabes que estás ansioso por seguir este caso.
Não quero forçar-te a isso.
Olha, o jogo está esgotado. Faço um contrato contigo. Se conseguir vender o teu bilhete, exactamente pelo preço que ele te custou, fico com o dinheiro. Amanhã à
noite, tenho um encontro e estou falido
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não quero pedir dinheiro emprestado à mãe. Ela manda-me ir ter com aquele palerma com quem casou. Está ansioso por se tornar meu amigo-
Vince sorriu.
juro que tens tudo para te tornares um vigarista. Vemo-nos no domingo, amigo.
A caminho da morgue, Darcy e Nona deram as mãos no carro da polícia. Ao chegarem, foram conduzidas para uma sala-de-espera.
Eles vêm chamá-las quando estiver tudo pronto explicou o motorista que as trouxera. Devem estar agora a fotografá-la.
Fotografá-la. Erin, não te preocupes. Manda a tua fotografia, se ta pedirem. Perdida por um, perdida por mil. Darcy olhava em frente, sem se dar conta da sala onde
se encontrava, nem do braço que Nona lhe passara pelos ombros. Charles North. Erin encontrara-se com ele às sete horas da noite de terça-feira. Poucos dias se tinham
passado. Ainda na manhã de terça-feira ela e Erin se tinham rido daquele encontro.
Darcy disse em voz alta:
E agora estou aqui na morgue da cidade de Nova Iorque, esperando para identificar uma mulher morta que tenho a certeza que é Erin.
Vagamente, sentiu a pressão do braço de Nona.
O polícia regressou.
Vem a caminho um agente do FBI. Pede para esperarem por ele, antes de irem lá abaixo.
Vince seguiu entre Darcy e Nona, segurando-as com firmeza pelos cotovelos.
Pararam junto do vidro que os separava da silhueta imóvel deitada na maca. A um aceno de Vince, o empregado puxou o lençol descobrindo o rosto da vítima.
Mas Darcy já sabia. Uma madeixa de cabelo ruivo escapara à coberta. Agora, encarava aquele rosto familiar, os olhos azuis rasgados e agora fechados, as pestanas
compridas, os lábios antes sempre sorridentes e agora tão quietos.
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Erin. Erin. Erin fanfarrona. Foi o seu último pensamento, antes de mergulhar numa escuridão abençoada. Vince e Nona agarraram-na.
Não, não, eu estou bem. Lutou contra as ondas de escuridão que tentavam invadi-la e obrigou-se a endireitar-se. Afastou os braços que a agarravam e encarou Erin,
estudando com deliberação a lividez da sua pele, as marcas no seu pescoço.
Erin prometeu então solenemente. Juro-te que hei-de encontrar esse Charles North. Dou-te a minha palavra de honra de que ele irá pagar por aquilo que te fez.
E o som de soluços convulsivos invadiu o corredor escuro. Darcy apercebeu-se que eram dela.
A sexta-feira fora um dia particularmente bom para Jay Stratton. De manhã, passara pelo escritório da Bertolini. No dia anterior, quando trouxera o colar, Aldo Marco
estava furioso com o atraso. Mas, naquele dia, falava de um modo diferente. O cliente ficara extasiado. Miss Kelley conseguira, indubitavelmente, executar precisamente
aquilo que eles tinham idealizado, ao mandarem fazer o colar com as pedras da família. Estavam ansiosos por voltar a trabalhar com ela. A pedido deste, o cheque
de vinte mil dólares foi passado a Jay na sua qualidade de agente de negócios de Erin. Dali, Stratton seguira para a esquadra a fim de participar o desaparecimento
dos diamantes. Com a cópia da participação oficial na mão, seguiu para os escritórios da companhia de seguros. O empregado disse-lhe, então, que fora a companhia
londrina LloyS quem segurara aquelas pedras. Certamente que irão fazer uma investigação declarou ela com nervosismo. A Lloyds anda muito aborrecida com a quantidade
de roubos de jóias que tem havido em Nova Iorque.
Às quatro horas, Jay encontrara-se com Enid Armstrong, no Stanhope, para tomar uma bebida. Tratava-se de uma viúva que respondera a um dos seus anúncios. Ouviu-a,
atentamente, enquanto ela desabafava o quanto a solidão a incomodava.
Já foi há um ano afirmava ela com os olhos brilhantes.
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Sabe como é, as pessoas até são simpáticas e levam-me a sair de vez em quando, mas a verdade é que o mundo vive de casais, e uma terceira pessoa é sempre uma empata.
No mês passado, fui sozinha num cruzeiro às Caraíbas. Senti-me miseravelmente.
Jay ia emitindo uns sons apropriados de compreensão e pegou-lhe na mão. Ela era razoavelmente bonita, de cinquenta e muitos anos, com boas roupas, mas sem estilo.
Ele encontrara muitas vezes aquele tipo de pessoa. Casara cedo. Ficara em casa. Educara os filhos e tornara-se membro do clube local. Marido bem sucedido, rei do
seu território. O tipo de homem que garantia à mulher um futuro sem preocupações.
Jay observou-lhe os anéis de noivado e de casamento. Eram diamantes de grande qualidade. O solitário era lindo.
- O seu marido era muito generoso - comentou ele.
- Deu-mos no nosso vigésimo aniversário. Devia ver o alfinete que me deu quando ficámos noivos. - Os olhos brilharam novamente. - Éramos tão novos nessa altura!
Jay pediu outra taça de champanhe. Quando, por fim, deixou Enid Armstrong, esta sentia-se excitada perante a sugestão de se encontrarem novamente na semana seguinte.
Ela chegara mesmo a concordar em deixar que ele lhe transformasse os anéis.
- Gostava de a ver com um anel apenas, que tivesse todas essas pedras incorporadas. O solitário e as baguettes no centro, ladeados pelos diamantes, alternando com
as esmeraldas. Podemos usar os diamantes do anel de noivado e eu posso arranjar-lhe algumas esmeraldas de óptima qualidade por um preço muito razoável.
Depois, jantando calmamente no Clube Water, ponderou no prazer de substituir o solitário Armstrong por um cúbico de zircão. Alguns deles eram tão bons que conseguiam
enganar os peritos à vista desarmada. Claro que ele manteria o novo anel com o solitário no sítio. Era espantoso como as mulheres caíam naquela.
- Que gentil em o ter mandado avaliar. Vou já levá-lo à minha companhia de seguros.
Deixou-se ficar pelo bar do clube, depois de jantar. Era bom para descontrair. O esforço que fazia em ser simpático e solícito com aquelas mulheres era desgastante,
ainda que os resultados fossem compensadores.
Eram nove e meia quando regressou ao seu apartamento depois de percorrer os escassos quarteirões que o separavam do clube. Às dez, encontrava-se já de roupão e vestindo
o pijama que comprara recentemente
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no Armani. Instalou-se no sofá, tendo como companhia um bourbon com gelo, e ligou para o noticiário.
O copo tremeu-lhe nas mãos e o líquido espalhou-se pelo roupão enquanto pregava os olhos ao ecrã, ao ouvir que o corpo de Erin Kelley fora encontrado.
Michael Nash perguntava-se, aborrecido, se deveria oferecer a Anne Thayer, a loira que infelizmente comprara o apartamento ao lado do seu, uma análise gratuita.
Ao deixar o consultório, às seis menos dez de sexta-feira, encontrou-a na secretária do átrio falando com o porteiro. Assim que o viu, correu a acompanhá-lo, aguardando
pelo elevador.
Enquanto subiam, falava sem parar, como se procedesse a uma contagem decrescente para o seduzir antes de chegarem ao vigésimo andar.
Hoje fui ao Zabar e comprei um salmão maravilhoso. Fiz um prato de hors d'oeuvres. Uma amiga minha ficou de vir experimentálo, mas não pode vir. Não suporto a ideia
de ter de o deitar fora. Pensei se...
Nash interrompeu-a:
O salmão do Zabar é estupendo. Guarde-o. Vai aguentar-se algum tempo. Deu conta do olhar de compaixão que o moço do elevador lhe dirigiu e disse-lhe: Ramon, até
já. Não tarda, estou de saída.
Dirigiu um firme boa noite à desiludida Miss Thayer e desapareceu no seu apartamento. Tencionava sair, mas só dali a uma hora. E, se nessa altura a encontrasse,
podia ser que isso a fizesse perceber que o devia deixar sozinho.
Personalidade dependente, provavelmente neurótica, pode tornar-se perigosa se for desafiada proclamou em voz alta e depois riu-se. Eh, estou fora de serviço. O melhor
é esquecê-la.
Ia passar o fim-de-semana a Bridgwater. Havia um jantar em casa dos Balderstones, e eles sempre tinham convidados interessantes. E o mais importante era que tencionava
passar a maior parte do dia seguinte a trabalhar no seu livro. Nash reconhecia que se tornara tão
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interessado naquele projecto que começava a impacientar-se com as distracções.
Antes de sair, tentou o número de Erin Kelley. Quase sorriu, ao ouvir a mensagem na sua voz alegre:
- Fala a Erin. Desculpe não poder atender. Por favor, deixe um recado.
Fala o Michael Nash. Lamento não poder falar consigo, Erin. Já noutro dia tentei. Suponho que não está cá. Espero que nada tenha acontecido com o seu pai. Deixou
o número de casa e do consultório e desligou.
O caminho para Bridgewater, numa sexta-feira à noite, era habitualmente um aborrecimento devido ao trânsito. Foi só quando passou Paterson, a caminho da estrada
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Scotahay, o seu bem-estar era completo.
O pai comprara aquela propriedade quando Michael tinha onze anos. Quatrocentos acres de jardim, matos e campos, piscina, campo de ténis e estábulo. A casa fora copiada
de uma mansão britânica, com paredes de pedra, telhado vermelho, persianas verdes e pórtico branco. Ao todo, possuía vinte e duas divisões. Havia anos que Michael
não punha os pés em, pelo menos, metade delas. Irma e John Hughes eram o casal que tomava conta de tudo.
Irma esperava-o com o jantar pronto e serviu-o no escritório. Michael instalou-se na sua poltrona de couro favorita, estudando os apontamentos que iria utilizar,
no dia seguinte, para escrever um novo capítulo do livro. Nesse capítulo, iria concentrar-se nos problemas psicológicos das pessoas que, ao responderem a anúncios
pessoais, enviavam fotografias tiradas vinte e cinco anos antes. Teria de se concentrar nos factores que os levavam a tentar aquela fraude e nas razões que apresentavam
depois, quando se encontravam com a pessoa que respondera ao anúncio.
Aquilo acontecera com algumas das raparigas que tinha entrevistado: duas delas tinham-se sentido indignadas, as outras tinham feito um relato bem-humorado daqueles
encontros.
Às dez menos um quarto, Michael ligou a televisão e, enquanto esperava pelas notícias, debruçou-se novamente sobre os seus apontamentos. O nome de Erin Kelley fê-lo
erguer a cabeça, espantado. Pegou no controlo remoto e aumentou o volume, ansiosamente, até a voz do locutor se ouvir, aos gritos, por toda a sala.
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Quando a reportagem terminou, Michael desligou o televisor, ficou a olhar para o ecrã escuro.
Erin perguntou em voz alta, quem pode ter feito isso contigo?
Na noite de sexta-feira, Doug Fox parou para tomar uma bebida no bar Harris, antes de regressar a Scardsale. O bar servia de tubo de escape para a gente de Wall
Street e, como era habitual, encontrava-se cheio. O serviço de notícias que passava na televisão foi ignorado de forma que Doug não ouviu a reportagem sobre o corpo
da rapariga encontrado no cais abandonado.
Quando tinha a certeza de que o marido regressava a casa, Susan dava de comer aos pequenos primeiro e depois esperava e fazia-lhe companhia, mas, naquela noite,
quando ele chegou, ela encontrava-se na sala a ler. Mal levantou os olhos quando ele entrou e repeliu o beijo que ele tentou depositar-lhe na testa.
Donny e Beth tinham ido ao cinema com os Goodwyns, explicou ela. Trish e o bebé estavam a dormir. Não se ofereceu para lhe ir arranjar qualquer coisa para comer
e voltou a concentrar-se no livro. Por um momento, Doug hesitou sem saber o que fazer, mas depois deu meia volta e dirigiu-se para a cozinha.
"Deu-lhe para representar este papel logo na noite em que estou cheio de fome", pensou ele com amargura. "Ficou zangada só porque estive duas noites sem vir a casa
e hoje cheguei." Cada vez mais zangado, decidiu que o mínimo que ela podia fazer quando ele regressava a casa era ter alguma coisa pronta para ele.
Procurou os pacotes de presunto e queijo e dirigiu-se para a caixa do pão. O jornal semanal local encontrava-se em cima da mesa da cozinha. Doug fez uma sanduíche,
serviu-se de uma cerveja e começou a ler o jornal, enquanto comia. A página desportiva chamou-lhe a atenção. Inesperadamente, Scardsale derrotara Dobbs Ferry no
torneio escolar. O ponto que lhes dera a vitória fora convertido pelo segundo avançado Donald Fox. Donny! Por que não lho tinham dito?
Doug começou a sentir as palmas das mãos húmidas. Teria Susan tentado telefonar-lhe na noite de terça-feira? Donny sentira-se
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desiludido e triste, quando Doug lhe dissera que não podia ir ver o jogo. Seria mesmo típico de Susan sugerir que lhe telefonassem a contar-lhe as novidades. Terça-feira
à noite. Quarta-feira.
A telefonista nova do hotel. Essa não era como as raparigas novas que sempre aceitavam a nota de cem que ele lhes oferecia de vez em quando, pedindo-lhes:
-Lembrem-se de que, se vier alguma chamada para mim, devem dizer que estou em reunião. Se for muito tarde, dizem que eu deixei ordem para não ser incomodado.
A telefonista nova parecia que tinha feito um curso intensivo de moralidade, e ele ainda não descobrira a maneira de conseguir que ela mentisse por ele. No entanto,
não ficara muito preocupado. Mentalizara Susan de que não deveria telefonar-lhe, quando ele assistia àquelas reuniões tardias.
Mas ela tentara na noite de terça-feira. Ele tinha a certeza disso, pois, de outra forma, teria dito a Donny para lhe telefonar para o escritório na quarta-feira.
É claro que a estúpida da telefonista lhe dissera que não havia reunião nenhuma e que ele não se encontrava alojado na suite da empresa.
Doug olhou à sua volta na cozinha. Estava surpreendentemente limpa. Tinham renovado a casa oito anos antes, depois de a comprarem. A cozinha era o sonho de qualquer
cozinheira. Tinha a banca no centro com pia e mesa de trabalho, um balcão enorme, os aparelhos mais modernos. Luz natural.
O pai de Susan tinha-lhes emprestado o dinheiro para as obras. Também lhes emprestara a maior parte do dinheiro para a comprarem. Emprestara. Não dera nada. Se Susan
se zangasse de verdade... Doug deitou o resto da sanduíche no lixo e, pegando na cerveja, dirigiu-se para a sala.
Susan levantou os olhos, quando ele entrou. "O meu atraente marido", pensou ela. Deixara o jornal propositadamente em cima da mesa da cozinha, sabendo que Doug o
leria de certeza. "Agora, deve estar a transpirar. Deve calcular que eu telefonei para o hotel para o Donny lhe dar as boas notícias. Engraçado, quando acabamos
por enfrentar a realidade, as coisas tornam-se perfeitamente claras no nosso espírito.
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Doug sentou-se no sofá na frente dela. "Está com medo de me dar uma aberta", concluiu ela. Metendo o livro debaixo do braço levantou-se e disse:
Os miúdos estarão de volta por volta das dez e meia. Eu vou para a cama ler.
Eu espero por eles, querida. "Querida! Ele deve estar mesmo aflito."
Susan instalou-se na cama com o livro. Depois, sabendo que não conseguiria concentrar-se na leitura, poisou-o e ligou a televisão.
Doug entrou no quarto quando começavam as notícias das dez horas.
Está tudo muito sossegado na sala declarou ele e, pegando-lhe na mão, perguntou: Como está a minha pequena?
Boa pergunta comentou Susan. Como está ela?
Ele tentou interpretar aquilo como uma piada e, afagando-lhe o queixo, riu-se:
A mim parece-me bastante bonita.
Ambos se viraram para o televisor, quando o locutor leu os títulos do dia.
Erin Kelley, uma jovem desenhadora de jóias, já premiada, foi encontrada estrangulada na doca da Rua 56 Oeste. Fique para o desenvolvimento da notícia.
Um anúncio.
Susan olhou para Doug. Este olhava fixamente para o ecrã, completamente lívido.
Doug, o que se passa? Ele parecia não a ouvir.
.. a polícia procura Pettey Potters, um pedinte que habitualmente vivia ali e que pode ter visto qualquer coisa quando o corpo ali foi deixado.
Assim que a reportagem terminou Doug virou-se para Susan e, como se só naquele momento tivesse ouvido a pergunta, respondeu:
Nada.
Tinha a testa coberta de suor.
Eram três da manhã quando Susan acordou, de um sono leve, devido à inquietação de Doug a seu lado. Ele murmurava qualquer coisa. Um nome?... não pode... E um nome
outra vez. Susan soergueu-se, apoiada no braço, e concentrou a sua atenção.
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Erin. Era isso mesmo. O nome da jovem que tinha sido encontrada morta.
Estava prestes a abanar Doug quando subitamente se imobilizou. Com terror cada vez maior, Susan percebeu por que razão as notícias o tinham perturbado tanto. Sem
dúvida que ele o relacionara com aquele dia terrível, nos tempos da faculdade, quando ele fora um dos estudantes interrogados por causa de uma rapariga que tinha
sido estrangulada.
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VI
SÁBADO Fevereiro, 23
Na manhã de sábado, Charley leu o New York Post com imensa satisfação. No cabeçalho lia-se "Assassínio de Imitação" em letras garrafais.
A semelhança da morte de Erin Kelley com o programa Crimes Autênticos, no qual fora contada a história de Nan Sheridan. O tema era tratado nas páginas interiores.
Alguém informara o jornalista da carta que a mãe de Nan Sheridan recebera, avisando que uma jovem de Nova Iorque seria assassinada na noite de terça-feira. O repórter,
citando uma fonte não identificada, escrevia que o FBI se encontrava na pista de um possível caso de crimes em série. No decorrer dos dois últimos anos, sete raparigas
tinham desaparecido de Manhatan, depois de responderem a anúncios pessoais. Erin Kelley também respondera a anúncios.
As circunstâncias que rodearam a morte de Nan Sheridan eram novamente descritas.
Seguia-se o passado de Erin Kelley e entrevistas com alguns colegas de profissão. Todos eram unânimes: tratava-se de uma jovem amorosa, com imenso talento. A fotografia
que o Post publicara era a mesma que Charley recebera, e isso encantou-o.
A televisão ia repetir o programa acerca da morte de Nan Sheridan na noite de quarta-feira. Ia ser interessante assistir. Claro que ele gravara o anterior, mas mesmo
assim era diferente vê-lo novamente, sabendo que milhares de pessoas assistiriam igualmente, armadas em detectives e pensando quem teria sido. Quem teria sido suficientemente
esperto para nunca ter sido apanhado?
Charley franziu a testa.
Crime de Imitação.
Isso significava que eles pensavam que alguém o andava a imitar.
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Sentiu-se invadido por uma onda de fúria. Não tinham o direito de duvidar dele. Tal como Nan não tivera o direito de o excluir da sua festa, há quinze anos atrás.
Teria de voltar ao esconderijo nos próximos dias. Precisava de lá ir. Ligaria o vídeo e dançaria acompanhando os passos de Astaire. Não teria Ginger, nem Leslie,
nem Anne Miller nos braços.
O coração começou a bater descompassado. Desta vez, nem sequer seria Nan. Seria Darcy.
Pegou na fotografia de Darcy. O cabelo castanho, macio, o corpo esguio, os olhos grandes e inquiridores. Como ficaria muito mais bonito aquele corpo depois de ele
o segurar, frio e rígido, nos seus braços.
Crime de Imitação.
De novo franziu a testa. A raiva continuava a martelar-lhe a cabeça, provocando-lhe uma dor terrível. "Fui eu, Charley, sozinho, que tive o poder de vida ou de morte
destas mulheres na minha mão. Fui eu, Charley, que consegui apoderar-me de uma outra alma e dominá-la."
Ele apanharia Darcy e tirar-lhe-ia a vida com as próprias mãos, tal como fizera com todas as outras. E conseguiria confundir as autoridades com o seu génio, confundindo
e enganando aquelas mentes cansativas.
Crime de Imitação.
As pessoas que tinham escrito aquilo deveriam ver as caixas de sapatos que ele guardava na cave. Então ficariam a saber. Aquelas caixas continham um sapato e um
sapato de baile de cada uma das raparigas mortas, começando com o de Nan.
Claro!
Havia uma maneira de provar que ele não era um imitador. O corpo tremeu-lhe, tomado de um ataque de riso cruel e surdo.
Òh, sim. Sem dúvida. Havia uma maneira.
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VII
De SÁBADO, 23 de Fevereiro a TERÇA-FEIRA, 26 de Fevereiro
A semana seguinte passou para Darcy como se ela fosse apenas um robot que fora programado para executar determinadas tarefas.
No sábado, deslocara-se ao apartamento de Erin acompanhada de Vince D'Ambrosio e do detective da esquadra local. Havia mais três chamadas, desde que ela deixara
o apartamento na manhã de sexta-feira. Darcy rebobinou a fita. Uma delas era do gerente do Bertolini:
Miss Kelley, entregámos o cheque ao seu agente, Sr. Stratton. Não sabemos dizer-lhe o quanto ficámos satisfeitos com o seu trabalho.
Darcy ergueu o sobrolho.
Nunca ouvi a Erin referir-se a Stratton como seu agente.
A segunda chamada era de alguém que se identificou como sendo a Caixa 2695.
Erin, daqui fala Milton. Saímos juntos no mês passado. Gostaria de a ver novamente. O meu telefone é o 555-3681. E, ouça, perdoe-me se fui demasiado bruto da última
vez.
A terceira chamada era de Michael Nash.
Ele já tinha deixado uma mensagem declarou Darcy. Vince apontou os nomes e os números.
Vamos deixar a fita ligada por mais alguns dias.
Vince informara Darcy de que os peritos do departamento forense iriam passar pelo apartamento de Erin em busca de possíveis indícios, e ela pedira-lhe para vir também,
a fim de tratar dos papéis Pessoais de Erin.
Eu tenho o meu nome nas contas bancárias dela, assim como
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nas apólices de seguro e nos papéis do pai. Ela disse-me que tinha os papéis arquivados em nome dele.
As disposições de Erin eram simples e claras. Se alguma coisa lhe acontecesse, conforme o combinado, Darcy utilizaria o dinheiro do seguro para pagar as despesas
da casa-de-repouso. Ela combinara com um agente funerário de Wellesley que, quando chegasse a hora, ele trataria do funeral do pai. Tudo o que havia no seu apartamento,
incluindo jóias e roupas, eram para Darcy Scott.
Havia uma breve nota dirigida a Darcy:
Darcy, certamente que isto não irá ser preciso, mas sei que cumprirás a tua promessa de olhar pelo meu pai se eu não puder. E, caso isso aconteça, obrigada pelo
tempo maravilhoso que passámos juntas, e diverte-te por nós as duas.
De olhos enxutos, Darcy olhou a assinatura que tão bem conhecia.
Espero que siga o conselho dela declarou Vince, calmamente.
Um dia hei-de fazê-lo respondeu Darcy. Mas não por agora. Não se importa que eu tire uma cópia daqueles apontamentos que lhe entreguei?
Claro respondeu Vince, mas para quê? Nós vamos investigar as pessoas a quem ela respondeu.
Mas não vão sair com eles. Ela respondeu a alguns em nome das duas. Talvez eu receba algumas chamadas das pessoas com quem ela saiu.
Darcy saiu, quando o pessoal do departamento forense entrou. Dirigiu-se directamente para casa e começou a fazer alguns telefonemas. Ligou para o agente funerário
em Wellesley. Primeiro mostrou-se solidário, depois prático. Ele enviaria um carro fúnebre para a morgue, assim que o corpo de Erin fosse disponibilizado. E quanto
à roupa? E o caixão ficaria aberto?
Darcy lembrou-se das feridas no pescoço de Erin. Sem dúvida que iria aparecer a imprensa no funeral.
Caixão fechado. Eu levo-lhe a roupa.
Velório na segunda-feira e missa de corpo presente na terça, na Igreja de S. Paulo.
S. Paulo. Quando ficara com Erin e com Billy, acompanhara-os a S. Paulo.
Regressou ao apartamento de Erin. Vince D'Ambrosio ainda lá estava. Acompanhou-a ao quarto e ficou a vê-la abrir o armário.
Erin tinha imenso estilo declarou Darcy com voz trémula, enquanto procurava o vestido que escolhera. Costumava dizer-me
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que se sentiu muito deslocada quando eu entrei com os meus pais, no primeiro dia de faculdade. Eu vestia um fato assinado e umas botas Wianas, que a minha mãe me
obrigara a vestir. Lembro-me de ter pensado que ela ficava maravilhosamente com as calças de caqui, camisola a condizer e com aquelas jóias giríssimas. Já na altura,
era ela que as desenhava.
Vince era um bom ouvinte.
Vagamente, Darcy deu-se conta de que se sentia contente por ele a deixar falar.
Ninguém vai vê-la continuou ela, a não ser eu, talvez. Mas
quero que ela se sinta feliz com a roupa que eu escolhi... Erin dizia-me que eu devia ser mais atrevida com a minha roupa. Eu ensinei-a a confiar no seu instinto.
Ela tinha um gosto impecável.
Tirou um fato de passeio de duas peças: tratava-se de um casaco cor-de-rosa pálido, com delicados botões dourados e uma saia de chiffon rosa e prateada.
Erin comprou isto para ir a uma festa de beneficência. Ela era uma óptima dançarina. Isso era algo que nós partilhávamos com Nona. Conhecemo-la numa aula de dança
no nosso ginásio.
Vince recordou-se de que Nona já lhe contara aquela história.
Por aquilo que me contou, penso que ela gostaria dessa escolha. Não lhe agradava nada ver Darcy com as pupilas tão dilatadas.
Gostaria de poder telefonar a Nona Roberts. Ela dissera-lhe que tinha de deslocar-se a Nanuet para filmar, mas Darcy Scott não devia ficar sozinha por muito tempo.
Darcy percebeu que podia ler os pensamentos de D'Ambrosio. Também sabia que de nada serviria tentar aquietá-lo. A melhor coisa que podia fazer era sair dali para
fora e deixar que os peritos das impressões digitais, e só Deus sabe quem mais, fizessem o seu trabalho.
Tentou fazer que a voz não lhe tremesse ao perguntar:
O que vão fazer para encontrar o homem que saiu com Erin na noite de terça-feira?
Já encontrámos Charles North. Aquilo que Erin lhe contou confirma-se. Foi uma sorte ela ter-lhe falado dele. No mês passado, ele foi transferido de uma firma de
advogados de Filadélfia para outra de Park Avenue. Partiu ontem numa viagem para a Alemanha. Na segunda-feira, quando voltar, estaremos à espera dele. Há agentes
desta esquadra a percorrer todos os bares e restaurantes da zona da "raça Washington com fotografias de Erin. Queremos saber se algum
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dos empregados se lembra de a ter visto na noite de terça-feira e possa identificar Charles North como seu acompanhante. Darcy assentiu.
Vou até Wellesley. Ficarei lá até depois do funeral.
Nona Roberts vai lá ter consigo?
Na terça de manhã. Ela não pode ir antes respondeu Darcy tentando sorrir. Por favor, não se preocupe. A Erin tinha imensos amigos. Já falei com imensos colegas de
Mount Holyhoke. Eles estarão lá. Assim como alguns dos nossos amigos aqui de Nova Iorque. E ela passou toda a infância em Wellesley. Vou ficar com uma família que
toda a vida viveu na casa ao lado.
Regressou a casa para fazer a mala e aí recebeu uma chamada da Austrália. Eram os seus pais.
Querida, quem me dera estar ao pé de ti. Sabes que considerávamos Erin uma segunda filha.
Eu sei.
"Quem me dera poder estar ao pé de ti." Quantas vezes ouvira ela aquilo durante todos aqueles anos? Nos aniversários. Nas festas de formatura. Mas houvera muitas
alturas em que eles tinham estado presentes. Tantos miúdos ficariam felizes por ter o casal de ouro como pai e mãe. Por que razão tinha de manter sempre um pé atrás
em relação a eles?
É tão bom falar contigo. E como tem corrido a peça? Agora já estavam em terreno seguro.
O funeral foi um acontecimento mediático. Havia fotógrafos e câmaras por todo o lado, vizinhos, amigos e curiosos. Vince avisara-a de que câmaras escondidas estariam
a filmar toda a gente que se dirigisse à igreja ou ao cemitério, para o caso de o assassino ali se encontrar.
Um Monsenhor de cabelo branco, que toda a vida conhecera Erin, fez o elogio fúnebre:
Quem pode esquecer a imagem daquela garotinha empurrando a cadeira de rodas do pai até à igreja?
"... Tudo o que vos peço é que recordem que vos amo..."
O enterro. Quando todas as lágrimas secarem...
As horas que ela passava com Billy. "Ainda bem que ele não sabe",
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pensou ela segurando-lhe a mão. "Se ele consegue sentir a minha mão, só espero que pense que é Erin que aqui está."
Na tarde de terça-feira, regressou de avião a Nova Iorque, acompanhada de Nona.
__ Não podes tirar dois dias de folga, Darce? perguntou-lhe Nona. Têm sido uns dias difíceis para ti.
Assim que eu souber que prenderam Charles North, vou passar uma semana fora. Uns amigos meus têm uma casa em S. Tomás e querem que eu vá lá visitá-los.
Nona hesitou.
Tenho a impressão de que isso não será para já, Darcy. Vince telefonou-me ontem à noite. Apanharam Charles North. Na noite de terça-feira, ele encontrava-se numa
reunião de trabalho com vinte companheiros da firma. Quem quer que Erin tenha encontrado, andava a utilizar o nome dele.
Depois de ver a emissão e de ter falado com o Chefe Moore, Chris decidiu ir passar o fim-de-semana a Darien. Queria lá estar, quando o FBI fosse falar com a mãe.
Sabia que Greta tencionava assistir a um jantar de gala no clube, de maneira que parou para comer no Nicola e, chegando a casa por volta das dez, resolveu assistir
a um filme. Apreciador dos clássicos, optou pelo Ponte de San Luis Rey, perguntando-se depois se teria feito uma boa escolha. A ideia de vidas que se uniam num momento
particular sempre o intrigara. O que se devia ao destino? O que era coincidência? Ou haveria uma espécie de plano inexorável e inevitável que tudo destinava?
Ouviu a porta da garagem abrir-se, pouco antes da meia-noite, e dirigiu-se para as escadas da cave, para aí esperar por Greta, dando Por si a desejar, mais uma vez,
que ela arranjasse ajuda doméstica. Não lhe agradava a ideia de a saber a regressar àquela hora, a uma Casa tão grande e tão vazia.
Greta recusava sempre aquela sugestão. Dorothy, a
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mulher-a-dias de há trinta anos, servia-lhe perfeitamente. Ela e o serviço de limpeza semanal. Se oferecesse um jantar, o seu fornecedor era excelente. E pronto.
Quando a sentiu perto das escadas gritou-lhe:
Olá, Mãe!
O grito dela chegou-lhe aos ouvidos.
O quê? Oh, Meu Deus! Chris. Assustaste-me. Ando muito nervosa. E, olhando para cima, tentou sorrir. Fiquei tão contente quando vi o teu carro. Ali na penumbra, o
rosto delicado recordou-lhe as bonitas feições de Nan. O cabelo, raiado de prata, estava preso num puxo. Um casaco de marta caía-lhe solto por cima dos ombros e
trazia um vestido comprido de veludo preto. No próximo ano, Greta completava sessenta anos, mas era ainda uma mulher linda e elegante, cujo sorriso nunca afastava
a tristeza que se lia nos seus olhos.
De repente, Chris percebeu que a mãe parecia estar sempre à espera de alguma coisa ou de algum sinal. Quando era miúdo, o avô contara-lhe a história de um soldado
da primeira guerra mundial que não ligara a um aviso de ataque do inimigo. Mais tarde, o soldado sempre se culpara por todas as mortes havidas e passara o resto
da sua vida à procura da mensagem perdida.
Enquanto bebia o último copo, contou a Greta o que acontecera a Erin Kelley, e foi então que lhe ocorreu a semelhança entre as histórias. Greta sentia sempre que
Nan lhe dissera algo antes de morrer, que instintivamente lhe despoletara um certo alarme. Na semana anterior, mais uma vez, ela recebera um aviso e fora incapaz
de impedir uma tragédia.
A rapariga que encontraram tinha calçado um sapato de salto alto? perguntou Greta. Como Nan? O tipo de sapato que calçamos para dançar? Aquela carta dizia que uma
dançarina morreria.
Chris escolheu as palavras, com todo o cuidado.
Erin Kelley desenhava jóias. Daquilo que eu percebi, pensam que se trata de um crime de imitação, de alguém que teve esta ideia depois de ver aquele programa. Há
um agente do FBI que quer falar connosco acerca disso.
O chefe Moore telefonou-lhes no sábado. O agente do FBI, Vincent D'Ambrosio, gostaria de falar com eles no domingo.
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Chris ficou contente pelo facto de D'Ambrosio afirmar com veemência que ninguém poderia ter feito nada com base na carta que Greta recebera.
Mrs. Sheridan garantira ele, por vezes recebemos informações muito mais precisas do que essas e, mesmo assim, não conseguimos evitar as tragédias.
Depois, Vince pediu a Chris para o acompanhar até à porta.
A polícia de Darien tem o processo da morte da sua irmã
começou ele, e vão enviar-me uma cópia. Não se importa de me mostrar o sítio exacto onde ela foi encontrada?
Desceram a estrada que conduzia à zona arborizada onde Nan habitualmente corria. As árvores tinham crescido e os ramos eram mais largos do que há quinze anos atrás.
Tirando isso, afirmou Chris, o local mantinha-se na mesma.
Um cenário bucólico numa cidade próspera, contrastando com o cais abandonado do West Side. Nan Sheridan era uma garota com dezanove anos. Uma estudante. Uma desportista.
Erin Kelley era uma rapariga de vinte e oito anos, bem sucedida na sua profissão. Nan provinha de uma família com posição social. Erin era sozinha. As duas únicas
semelhanças existentes consistiam na maneira como tinham morrido e no sapato que calçavam. Vince perguntou, então, a Chris, se Nan respondera a algum anúncio pessoal
enquanto andava na escola. Chris sorriu e respondeu:
Acredite no que eu digo: Nan tinha rapazes à volta dela em número suficiente e não precisaria de recorrer aos anúncios para arranjar companhia. E, de qualquer maneira,
quando andávamos na escola, ainda não havia esse negócio dos anúncios.
Você andou na Brown?
A Nan andou. Eu andei em Williams.
Presumo que investigaram todos os namorados?
Seguiam pelo caminho rodeado de árvores, até que Chris parou.
Foi aqui que eu a encontrei declarou, enfiando as mãos nos bolsos do seu sobretudo. Nan achava que quem se prendia a um tipo era doida. Ela era mais para namoricos.
Gostava de se divertir. Se pudesse, nunca faltava a uma festa e dançava as músicas todas.
Vince voltou-se para o encarar.
Isto é importante. Tem a certeza de que o sapato que a sua irmã calçava, quando foi encontrada, não era dela?
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A certeza absoluta. Nan detestava saltos altos. Nunca teria comprado uns sapatos daqueles. É claro que ninguém encontrou o par no armário dela.
De regresso a Nova Iorque, Vince continuava a avaliar as diferenças e as semelhanças nos casos de Nan Sheridan e de Erin Kelley. "Deve tratar-se de um crime de imitação",
concluiu. A dançarina. Era isso que o incomodava. A carta que Greta Sheridan recebera. O facto de Nan Sheridan dançar todas as músicas. Isso teria sido mencionado
no programa dos Crimes Perfeitos? Erin Kelley conhecera Nona Roberts numa aula de dança. Seria pura coincidência?
Na tarde de terça-feira, Charles North foi interrogado por Vince D'Ambrosio pela segunda vez.
Tinham ido esperá-lo ao aeroporto Kennedy, na segundafeira à noite, e o espanto por ter à sua espera dois agentes do FBI depressa foi substituído pela fúria.
Não conheço nenhuma Erin Kelley, nem nunca respondi a nenhum anúncio. Considero-os ridículos. Não consigo imaginar quem poderia utilizar o meu nome.
Era simples confirmar que Charles North estivera numa reunião de trabalho às sete horas, hora que Erin Kelley mencionara como prevista para o encontro.
Desta vez o interrogatório teve lugar na sede do FBI, na Praça Federal. North era um homem de altura mediana e compleição forte.
O rosto, levemente ruborizado, sugeria alguma tendência para a bebida. No entanto, Vince concluiu que o seu ar distinto, autoritário e sofisticado deveria ter bastante
sucesso entre as mulheres. Contava quarenta anos de idade e fora casado durante doze até ao seu recente divórcio. Tornou claro que se sentia muito ofendido por ter
de voltar a ser interrogado.
Penso que devem ter em consideração que há pouco tempo me tornei membro de uma importante firma de advogados e que se pode tornar muito embaraçoso para mim ver-me
assim envolvido na
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morte dessa jovem. Embaraçoso, por motivos pessoais e por motivos profissionais.
Lamentamos imenso o transtorno, Mr. North respondeu Vince com frieza. Mas posso garantir-lhe que, de momento, não é considerado suspeito neste caso. No entanto,
Erin Kelley morreu vítima de um homicídio brutal. É possível que ela seja uma vítima de entre outras jovens que, depois de responderem a alguns anúncios, desapareceram.
Alguém utilizou o seu nome para responder ao anúncio. Alguém muito esperto que sabia que você deixara a sua firma de Filadélfia na altura do encontro com Erin Kelley.
E importa-se de me dizer por que razão isso iria interessar a alguém? resmungou North.
Acontece que muitas mulheres são suficientemente espertas e investigam o homem com quem pretendem sair. Suponha que o assassino de Erin Kelley temia que ela pudesse
fazê-lo. Que melhor nome poderia ele utilizar que o de um advogado que acabara de deixar a sua empresa de Filadélfia e acabava de se instalar em Nova Iorque? Ela
poderia até concluir que o senhor era divorciado e não teria qualquer receio em encontrar-se com Charles North.
Vince inclinou-se sobre a mesa e concluiu:
Queira ou não, Mr. North, é um elo que nos liga ao assassino de Erin Kelley. Alguém conhecedor das suas actividades utilizou o seu nome. Nós vamos seguir muitas
pistas. Vamos procurar todas as pessoas com quem Erin Kelley possa ter-se encontrado. Vamos pressionar a memória dos amigos para ver se ela terá mencionado algum
nome que nos tenha escapado. Em qualquer dos casos, iremos falar consigo para ver se o nome lhe diz alguma coisa.
North levantou-se.
Já percebi que isso é uma ordem e não um pedido. Só uma coisa. O meu nome foi mencionado aos jornalistas?
Não, não foi.
Então, veja se continua assim. E, quando me ligarem para o escritório, não se identifique como sendo do FBI. Diga que se trata de um assunto pessoal. E acrescentou
com um sorriso cruel: Não de um anúncio pessoal, claro.
Depois de ele sair, Vince recostou-se na cadeira. Não gosto nada de espertinhos, pensou, e, pegando no intercomunicador, pediu:
Betsy, quero uma investigação completa sobre Charles North. Uma investigação completa. E tem também outra para fazer: o superintendente do n. 2101 da Rua Christopher,
Gus Boxer. Trata-se do
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prédio onde vivia Erin Kelley. A cara dele tem-me perseguido desde sábado. Tenho a certeza de que ele tem cá ficha.
Vince estalou os dedos e exclamou:
Espere lá. Já me lembro, o nome dele é Hoffman. Era o superintendente daquele prédio onde assassinaram uma rapariga com vinte anos.
O Dr. Michael Nash não ficou surpreendido quando, ao regressar a Manhatan, na noite de domingo, encontrou um recado no atendedor de chamadas pedindo-lhe para contactar
o agente do FBI, Vincent D'Ambrosio.
Era óbvio que deviam estar a contactar as pessoas que tinham telefonado a Erin Kelley.
Na manhã de segunda-feira, fez a chamada e combinou com Vince que este passaria pelo consultório, antes da primeira consulta de terça-feira.
Vince chegou ao consultório de Nash eram oito e um quarto certas. A recepcionista esperava-o e fê-lo entrar para o gabinete, onde Nash o aguardava.
Vince decidiu que se tratava de uma sala típica. Tinha algumas cadeiras confortáveis, as paredes pintadas de amarelo-vivo e as cortinas deixavam entrar a luz do
dia, ao mesmo tempo que protegiam os ocupantes do aposento da vista dos transeuntes. E o sofá tradicional, ali numa versão de couro de uma chaise longue, encontrava-se
à direita da secretária.
Uma sala repousante; e os olhos do homem que o encarava eram amáveis e compreensivos. Vince recordou as tardes de sábado. A confissão. Perdoai-me, pai, porque pequei.
As transgressões que iam desde a desobediência aos pais, ao proferir frases mais obscenas nos seus anos de adolescente.
Sempre o incomodara ouvir dizer que a confissão tinha sido substituída pela análise. Costumava argumentar:
Na confissão culpamo-nos a nós próprios. Na análise, culpamos todos os outros.
E o seu diploma em Psicologia só servia para aumentar esta
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convicção. Teve a sensação de que Nash se apercebera da sua latente aversão a psiquiatras, que a sentira e a compreendera.
Mediram-se mutuamente. Bem vestido, sem ser vistoso, concluiu Vince. Vince sabia que não tinha muito jeito para escolher gravatas que combinassem com o fato. Era
Alice quem costumava fazer isso por ele. Não que ele se importasse muito com isso, mas preferia usar uma gravata castanha com um fato azul do que estar constantemente
a ouvi-la:
Quando te decides a deixar essa porcaria e arranjar um emprego onde possas ganhar bom dinheiro? Naquele dia pegara na primeira gravata que lhe aparecera e pusera-a,
enquanto descia no elevador. Era castanha e verde. O fato que trazia era às riscas azul e branco.
Alice tornara-se a Sr.a Malcolm Drucker. Malcolm só usava gravatas Hermes e fatos feitos por medida. Recentemente, Hank contara a Vince que Malcolm já usava o número
cinquenta e dois. Cinquenta e dois pequeno.
Nash vestia um casaco de tweed cinzento e Vince concedeu que se tratava de um tipo bem-parecido. Queixo forte, olhos profundos, a pele ligeiramente queimada. Vince
gostava que um homem mostrasse que não ficava em casa por causa do mau tempo.
Foi directo ao assunto.
Dr. Nash, o senhor deixou dois recados a Erin Kelley, que permitiam concluir que o senhor a conhecia e que se encontrara com ela. É assim?
Sim. Sabe que eu ando a escrever um livro dedicado à análise do fenómeno social que alimenta esse negócio dos anúncios pessoais. A minha editora é a Kearns e Brown
e trabalho com o Justin Crowell.
"Isto é para o caso de eu pensar que ele andava atrás de um encontro", pensou Vince, obrigando-se depois a afastar aquele tipo de pensamentos.
E como chegou a sair com Erin Kelley? Foi você que respondeu ao anúncio dela ou ela ao seu?
Ela respondeu ao meu disse, Nash abrindo uma gaveta. Já previa a sua pergunta e anticipei-me. Aqui tem o anúncio a que ela respondeu. Aqui está a carta dela. Encontrei-me
com ela no dia trinta de Janeiro, no Pierre, para tomarmos um copo. Era uma jovem muito atraente. Eu expressei a minha surpresa por uma rapariga tão bonita precisar
de recorrer aos anúncios para arranjar companhia. Ela foi muito franca comigo e explicou-me que respondia aos anúncios
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a pedido de uma amiga que preparava um documentário acerca do assunto. Normalmente, não confesso que ando a fazer uma investigação, mas desta vez também fui muito
franco com ela.
E foi essa a única vez que a viu?
Foi. Tenho andado terrivelmente ocupado. Estou quase a terminar o meu livro e estou ansioso para que isso aconteça. Tencionava telefonar novamente a Erin, depois
de o terminar. Na semana passada, percebi que demoraria ainda um mês a terminá-lo e que não me adiantava nada estar com tanta pressa.
De maneira que lhe telefonou.
Sim, no início da semana. Depois, voltei a ligar na passada quinta-feira. Não, foi na sexta, antes de sair de fim-de-semana.
Vince pegou na carta que Erin escrevera a Nash. O anúncio dele encontrava-se agrafado à carta:
Licenciado, médico, 37, atraente, bem sucedido, grande sentido de humor. Gosta de esqui, andar a cavalo, de museus e concertos. Procura companheira criativa, atraente,
sem compromisso. Caixa 3295.
A carta dactilografada de Erin dizia o seguinte:
Olá, caixa 3295. Talvez eu seja tudo isso. Não, tudo não, mas tenho um grande sentido-de-humor. Tenho vinte e oito anos, meço um metro e setenta e dois e peso cinquenta
quilos. A minha melhor amiga diz que eu sou atraente. Sou desenhadora de jóias e caminho para o sucesso. Sou boa esquiadora e consigo montar, se o cavalo for lento
e gordo. Sou definitivamente uma visita habitual de museus. Na verdade, é aí que arranjo muitas das ideias para os desenhos que faço. E considero a música uma necessidade.
Encontramo-nos? Erin Kelley, 212-555-1432.
Já percebeu por que razão eu lhe telefonei comentou Nash.
E nunca mais a viu.
Não voltei a ter oportunidade respondeu Michael Nash, erguendo-se. Lamento, mas temos de terminar a nossa conversa. O meu doente deve chegar mais cedo, mas eu não
vou sair daqui se precisar de mim. E, se houver alguma maneira de eu poder ajudar, por favor disponha. E como pensa poder ajudar? perguntou Vince, já de pé.
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Nash encolheu os ombros.
Não sei. Suponho que é o instinto de querer ver um assassino
entregue à justiça. É evidente que Erin Kelley amava a vida e tinha muito para dar. Tinha apenas vinte e oito anos E, estendendo a mão concluiu: Você não tem os
psiquiatras em muito boa conta,
pois não, -D'Ambrosio? Acha que os neuróticos e os egocêntricos vêm aqui para se queixarem e que o preço é demasiado alto. Deixe-me explicar-lhe como encaro o meu
trabalho. A minha vida profissional é dedicada a tentar ajudar as pessoas que, por um motivo ou por outro, estão prestes a afundar-se. Alguns casos são fáceis. Sou
como um salva-vidas que nada ao reparar que alguém passou o limite e tenta escoltá-lo no caminho de regresso. Outros casos são bem piores. É como tentar salvar uma
vítima de naufrágio em plena tempestade. Leva muito tempo, até chegar perto dela, e as vagas poderosas não param de me afastar. Fico muito satisfeito, quando consigo
salvá-lo.
Vince guardou a carta de Erin na pasta.
Talvez possa ajudar-nos, doutor. Vamos tentar localizar as pessoas que se encontraram com Erin através dos anúncios. Não se importa de os entrevistar, numa perspectiva
profissional, e de nos dar depois a sua opinião acerca das suas motivações?
Certamente!
Por acaso é membro da AAPD? Os psiquiatras que pertencem à Associação Americana de Psiquiatria e Direito estavam particularmente aptos a lidar com psicopatas.
Não, não sou. Mas, Mr. D'Ambrosio, a minha pesquisa demonstrou-me que a maioria das pessoas que publicam este tipo de anúncios o fazem devido à solidão ou ao tédio.
Outros poderão, no entanto, ter motivos bem mais sinistros.
Vince voltou-se e caminhou para a porta. E, ao rodar o puxador, concluiu:
E eu diria que no caso de Erin Kelley isso se verificou.
Na noite de terça-feira, Charley dirigiu-se ao seu esconderijo e foi directo à cave. Tirou as caixas de sapatos e pousou-as em cima da
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arca. Agrafado em cada uma, lia-se o nome da rapariga a quem pertencera. Não que ele precisasse que lho lembrassem, claro. Lembrava-se de todas elas e com todos
os pormenores. Além disso, à excepção de Nan, tinha um vídeo de cada uma delas. E tinha gravado o programa que reconstituíra a morte de Nan. Tinham feito um bom
trabalho. Aquela rapariga era muito parecida com Nan.
Abriu a caixa de Nan. Lá estava a sapatilha Nike e o sapato de cetim de salto alto. Era um sapato demasiado vistoso. O seu gosto melhorara, desde então.
Deveria mandar as coisas de Nan e de Erin ao mesmo tempo? Cuidadosamente, avaliou a ideia. Tratava-se de uma decisão tão interessante!
Não. Se ele fizesse isso, a polícia e os jornalistas perceberiam imediatamente que aquela ideia de crime de imitação estava errada. Ficariam a saber que tinham sido
as mesmas mãos a ceifar aquelas duas vidas.
Talvez fosse mais divertido brincar com eles por mais uns tempos.
Talvez começasse por devolver o sapato de Nan e o da primeira das outras raparigas. Charley tinha aparecido dois anos antes. Uma actriz de comédia musical, loura,
vinda de Lancaster. E dançava tão bem! Talentosa. Verdadeiramente talentosa. Na caixa guardara a bolsa dela, juntamente com a sandália branca e o sapato dourado.
Certamente que naquela altura a família já teria desocupado o apartamento.
Mandaria a encomenda para a morada de Lancaster.
Depois, todos os dias enviaria um pacote. Janíne. Marie. Sheila. Leslie. Annette. Tina. Erin.
Faria aquilo de tal maneira, que estariam todas entregues no dia
13 de Março, dali a quinze dias.
Nessa noite, fosse de que maneira fosse, Darcy estaria ali a dançar com ele.
Charley olhou para a arca. Darcy seria a última. Talvez a guardasse consigo para sempre.
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Na noite de terça-feira, quando Darcy regressou a casa, vinda do
aeroporto, tinha uma dúzia de mensagens no seu atendedor. Condolências de velhos amigos. Sete chamadas deveriam ser resultado dos
anúncios a que Erin respondera por ela. E a voz agradável de David Weld.
Desta vez deixara um número, assim como Len Parker, Cal Griffin e Albert Booth.
Havia também uma chamada de Gus Boxer, informando-a de que tinha um pretendente à casa de Erin. Poderia Miss Scott desocupar o andar até ao fim-de-semana? Se o fizesse,
não teria de pagar a renda do mês de Março.
Darcy rebobinou a fita, apontou os nomes e os números de telefone dos pretendentes a um encontro e mudou de cassete. Vince D'Ambrosio poderia necessitar de um registo
daquelas vozes.
Aqueceu uma lata de sopa, pô-la numa tigela e comeu-a em cima da cama. Quando acabou, pegou no telefone e na lista dos homens que pediam um encontro. Marcou o primeiro
número. Quando ouviu o sinal, pousou o auscultador com violência. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, enquanto soluçava:
Erin, era a ti que eu queria telefonar.
105
VIII
QUARTA-FEIRA
27 de Fevereiro
Darcy chegou ao escritório às nove horas. Bev já lá estava e o café borbulhava. Fizera sumo de laranja e tinha pãezinhos quentes. Havia uma planta nova no parapeito
da janela. Bev abraçoua e os olhos, extravagantemente pintados, estavam transbordantes de simpatia.
Pode adivinhar tudo o que tenho para dizer.
Posso sim respondeu Darcy, dando conta do aroma convidativo do café. Pegou num pãozinho e acrescentou:Não sabia que tinha tanta fome.
Bev assumiu uma atitude profissional e informou-a:
Teve duas chamadas, ontem. Gente que viu o milagre que fez no apartamento de Ralston Arms. Querem que vá redecorar a casa deles. E há também a proposta daquele hotel
residencial, na Rua 30 com a 9. Tem novos donos. Afirmam que possuem mais gosto do que dinheiro.
Antes de fazer seja o que for, tenho de desmontar o apartamento de Erin. Darcy deu um golo no café, afastou a cadeira e concluiu: E estou com pavor de o fazer.
Bev sugeriu-lhe que guardasse a mobília no armazém.
Não me disse que tem lá mobílias muito engraçadas? Podia utilizar a mobília de Erin, peça por peça, nos seus trabalhos. Uma das mulheres que telefonou quer redecorar
o quarto da filha de uma forma especial. A garota tem dezasseis anos e vai sair do hospital, depois de ter estado muito tempo internada. E vai ficar acamada durante
algum tempo.
Era bom pensar que a cama de latão e ferro seria apreciada por uma garota naquelas circunstâncias. Isso facilitava tudo.
107
O melhor é perguntar se não há nenhum problema em tirar tudo hoje.
E ligou para Vince D'Ambrosio.
Eu sei que a polícia já terminou o seu trabalho lá em casa informou ele.
Bev arranjou uma carrinha, para se deslocar à Rua Christopher no dia seguinte.
Eu vou lá com eles. Tem de me dizer o que quer que eu faça. Assim, durante a hora do almoço, acompanhou Darcy ao apartamento de Erin. Boxer abriu-lhes a porta.
Fico muito agradecido por me desocuparem a casa suspirou ele. Tenho uma inquilina muito simpática que se quer mudar rapidamente.
"Quanto terás tu recebido por debaixo da mesa?", perguntou-se Darcy. "Nunca mais quero voltar a este sítio."
Resolveu guardar alguns lenços e algumas blusas como recordação. O resto das roupas de Erin deu-as a Bev.
Tu vestes o mesmo número de Erin. Mas, por favor, não as leves para o escritório.
As jóias desenhadas por Erin. Cuidadosamente, juntouas, evitando a todo o custo pensar no quanto Erin era talentosa. Mas o que estaria a perturbá-la? Por fim, pousou
todas as peças em cima da mesa: brincos, colares, alfinetes, pulseiras. Ouro, prata, pedras semipreciosas. Todas as peças desenhadas com grande imaginação, quer
as mais clássicas quer as mais divertidas. Mas o que estaria a perturbá-la?
O colar novo. Erin completara-o, utilizando cópias douradas de moedas romanas antigas. E comentara a brincar:
Vai ser vendido em Abril por três mil dólares. Desenhei-o para uma passagem de modelos. Não tenho dinheiro para ficar com ele, mas, até lá, acho que vou usá-lo algumas
vezes.
Onde estava esse colar?
Teria Erin levado o colar na última noite que saíra? Isso, o anel com a sua inicial e o relógio. Estariam juntamente com a roupa que ela usava quando o corpo foi
encontrado?
Darcy guardou as jóias pessoais de Erin numa bolsa, juntamente com o conteúdo do cofre. Mandaria avaliar as pedras e depois ia vendê-las para pagar as despesas da
casa de repouso de Billy. Quando fechou a porta do apartamento 3B, pela última vez, não olhou para trás.
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Na tarde de quarta-feira, às quatro horas, um agente da 6.a Esquadra batia todos os bares da zona da Praça Washington. Até ali as investigações não tinham dado qualquer
resultado. Alguns empregados tinham admitido conhecer Erin.
Ela aparecia de vez em quando. Às vezes, vinha acompanhada.
Outras, encontrava-se aqui com alguém. Na terça-feira passada? Não. Não a vi durante toda a semana.
A fotografia de Charles North também não produzira nenhum efeito.
A esse, nunca o vi.
Por fim, no bar Aurora do Eddie, na Rua 4 Oeste, o empregado de bar afirmava, peremptoriamente:
Sim, essa rapariga esteve aqui na terça-feira passada. Eu fui para a Florida na quarta e só regressei hoje, por isso estou certo de que foi nesse dia. Até meti conversa
com ela. Disse-lhe que, finalmente, ia apanhar sol. Ela disse-me que, tal como todas as ruivas, a sua pele clara ficava sempre queimada. Ela estava à espera de alguém
e esperou durante quarenta minutos. Ele não chegou a aparecer. Era uma rapariga simpática. Por fim, pagou a conta e saiu.
O empregado tinha a certeza que se tratava de Erin, tinha a certeza de que ninguém aparecera e que ela chegara às sete horas. Descreveu pormenorizadamente a roupa
que ela usava, incluindo um colar bastante original que ela trazia, feito de moedas romanas antigas.
O colar era realmente original. E parecia valioso. Eu até a aconselhei a tapá-lo com a gola do casaco, quando andasse pela rua.
O agente fez o seu relatório a Vince D'Ambrosio, através do telefone do bar. Imediatamente, Vince telefonou a Darcy, que confirmou a existência do colar.
Pensei que tivesse sido encontrado com o corpo afirmou, acrescentando que faltava igualmente o anel e o relógio.
Ela trazia um relógio e uns brincos quando foi encontrada esclareceu Vince, pedindo seguidamente para a ir visitar.
Claro respondeu Darcy. Vou trabalhar até tarde.
Quando Vince chegou ao escritório, levava consigo uma cópia dos apontamentos de Erin sobre os anúncios pessoais.
- Fizemos uma análise exaustiva aos papéis de Erin. Num deles encontrámos o recibo de um desses cofres a que se tem acesso vinte
109
e quatro horas por dia. Erin alugou-o apenas na semana passada Disse ao gerente que era desenhadora de jóias e que não se sentia à vontade em guardar peças de tanto
valor dentro de casa.
Darcy ouviu atentamente, enquanto Vince D'Ambrosio lhe comunicava que ninguém aparecera para o encontro de Erin na noite de terça-feira.
Ela saiu do bar sozinha, às oito menos um quarto. Estamos a pensar na hipótese de se tratar de um crime por roubo. Ela usava o colar nessa noite, mas quando foi
encontrada não o trazia. E não sabemos do anel.
Ela usava sempre esse anel declarou Darcy. Vince assentiu.
E podia igualmente estar na posse dos diamantes. Perguntou-se se Darcy Scott o estaria a ouvir. Estava sentada
atrás da secretária, e a camisola amarelo-clara que trazia acentuava-lhe as madeixas loiras do cabelo castanho. A expressão do rosto era perfeitamente controlada,
e os olhos, naquele dia, pareciam mais verdes que castanhos.
Era contrariado que lhe entregava as cópias dos anúncios. Tinha a certeza de que ela iria começar a responder aos que se encontravam assinalados.
Inconscientemente, a sua voz soou mais grave quando disse:
Darcy, eu sei a revolta que sente por ter perdido uma amiga como Erin, mas gostaria muito que não começasse a responder a estes anúncios, com a ideia descabida de
que assim poderá encontrar o homem que se intitula Charles North. Nós faremos tudo o que está ao nosso alcance para apanharmos o assassino de Erin. E, acontece que,
mesmo que Erin não tenha sido uma das suas vítimas, a verdade é que existe um assassino que tem matado em série, através destes anúncios, e eu não quero que você
seja a próxima da lista.
Doug Fox não saiu de Scarsdale durante o fim-de-semana. Dedicou-se por completo a Susan e às crianças e foi agradavelmente recompensado no seu esforço, ao ouvir
Susan dizer que contratara uma babysitter para a tarde de segunda-feira. Ela queria fazer umas compras
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e propôs-lhe encontrarem-se nesse dia, em Nova Iorque, para jantarem, e depois regressariam juntos a casa. Ela não lhe dissera que antes de ir às compras tinha uma
entrevista marcada numa agência de detectives.
Doug levou-a a jantar a S. Domenico e fez questão em ser absolutamente sedutor, chegando mesmo a dizer-lhe que já se esquecera de quanto ela era bonita.
Susan rira-se.
Na noite de terça-feira, Doug chegou a casa, à meia-noite.
Malditas reuniões fora de horas suspirara ele.
Na manhã de quarta-feira, sentiu-se suficientemente seguro para dizer a Susan que tinha de levar um cliente a jantar e que por isso deveria pernoitar no Gateway.
Sentiu-se aliviado ao vê-la tão compreensiva.
Um cliente é um cliente, Doug. Não te importes com isso.
Na tarde de quarta-feira, saiu do escritório e dirigiu-se para o seu apartamento no London Terrace. Ia encontrar-se, no Soho, com uma divorciada de 32 anos, corretora
na bolsa, para tomarem uma bebida às sete e meia. Mas, primeiro, queria vestir uma roupa mais informal e fazer um telefonema.
Esperava naquela noite conseguir falar com Darcy Scott.
Na quarta-feira à tarde, Jay Stratton recebeu um telefonema de Merril Ashton de Winston-Salem, na Carolina do Sul. Ashton pensara muito na sugestão de Stratton,
para comprar uma jóia valiosa para oferecer a Francês, pelo 40. aniversário.
Se eu lhe falar nisso, ela convence-me a não comprar nada. declarou Ashton risonho. Acontece que tenho de ir a Nova Iorque na semana que vem, em negócios. Tem alguma
coisa para me mostrar? Pensei numa pulseira de diamantes.
Jay assegurou-lhe que tinha realmente algo para lhe mostrar.
Acabei de comprar uns diamantes particularmente bonitos, que estão agora a ser incrustados numa pulseira. Seria o presente ideal para a sua esposa.
Vou querer uma avaliação.
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Claro que sim. Se gostar da pulseira, poderá levá-la a um ourives de WinstonSalem da sua confiança e, se ele não reconhecer que são verdadeiras, esquecemos o negócio.
Está preparado para gastar quarenta mil dólares? Dá mil por cada ano de casado.
Sentiu a hesitação na voz de Ashton.
Bom, isso é um bocado puxado.
Trata-se de uma pulseira realmente única assegurou Stratton. Algo que a filha Francês terá orgulho em oferecer à própria filha.
Combinaram encontrar-se para uma bebida, na segunda-feira seguinte, dia 4 de Março.
"Está a ser tudo demasiado fácil", reflectiu Stratton, enquanto pousava o auscultador. O cheque de vinte mil dólares pelo colar do Bertolini. Alguém se lembraria
de lho pedir? O seguro pelos diamantes. Agora que o corpo de Erin fora encontrado, ninguém poderia provar que ela não fora roubada. Entregaria as pedras a Ashton
a um preço razoável. Um ourives de Winston-Salem não andaria à procura de pedras roubadas.
Uma onda de puro prazer percorreu-lhe o corpo. Stratton riu-se, recordando-se do que o seu tio lhe dissera vinte anos atrás:
Jay, mandei-te para uma boa escola. Tens cabeça suficiente para tirares boas notas por ti próprio, mas continuas a ser um aldrabão. O teu pai nunca morrerá por completo,
enquanto tu viveres.
Quando contara ao tio que convencera o reitor da Brown a dar-lhe uma nova oportunidade, se ele se oferecesse para o Serviço Cívico durante dois anos, o tio respondera,
sarcástico:
Tem cuidado. Não há nada para roubar no Serviço Cívico e pode acontecer teres mesmo de trabalhar.
Não tivera muito trabalho. Com 20 anos, entrara para a Brown como caloiro. "Nunca te deixes apanhar", avisara o pai. E, se fores apanhado, faças o que fizeres, certifica-te
de que não ficas com cadastro.
Claro que fora mais velho do que os outros estudantes. Todos tinham cara de bebés ainda, mesmo aqueles que eram mais ricos.
Excepto um.
O telefone tocou. Era Enid Armstrong. Enid Armstrong? Claro, a viúva de olhos tristes.
Gritou-lhe excitada:
Conversei com a minha irmã acerca da sua sugestão de transformar o meu anel, e ela disse: "Enid, se isso te fizer bem, não hesites. Tu tens de arrebitar."
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No noticiário das seis do canal 4, o jornalista John Miller apresentou uma reportagem sobre Erin Kelley. Sabia-se que diamantes no valor de um quarto de milhão tinham
desaparecido do cofre. A Lloyds de Londres oferecera cinquenta mil dólares de recompensa a quem os encontrasse. A polícia continuava convencida de que se tratava
de um crime de imitação e que o criminoso talvez não soubesse que ela transportava valores. A reportagem acabava, lembrando o público de que a dramatização do assassínio
de Nan Sheridan seria repetida às oito horas.
Darcy carregou no botão do controlo remoto.
Não teve nada a ver com roubo declarou em voz alta. Não teve nada a ver com crime de imitação. Digam o que disserem, teve tudo a ver com os anúncios pessoais.
Vince D'Ambrosio descobriria, sem dúvida, a identidade de alguns homens com quem Erin saíra. Mas ela ia encontrar-se, pela primeira vez, com aquele que se apresentara
como sendo Charles North e que não aparecera. Supondo que ele entrava no bar no preciso momento em que ela saía e se cruzavam à porta? Supondo que ele fora um daqueles
a quem ela mandara a fotografia? Supondo que ele dissera:
Erin Kelley, sou Charles North. Fiquei retido com o trânsito. Isto está cheio. Vamos a outro sítio.
Faz sentido, concluiu Darcy. Se existe um criminoso que mata indiscriminadamente e se já foi responsável por outras mortes, não é agora que vai parar. Se ao menos
soubesse ao certo a que anúncios Erin respondera e a que anúncios ela respondera pelas duas!
Eram sete horas, uma boa hora para retribuir as chamadas registadas no gravador. Nos quarenta minutos seguintes, falou com três Pessoas e deixou recado a outras
quatro. Agora, tinha um encontro com Len Parker no MacMullen's, na quinta-feira, uma bebida com David Weld, no bar Smith e Wollensky na sexta e um encontro com Albert
Booth, no café Vitoria, para sábado.
E os tipos que tinham deixado recado no atendedor de Erin? Dois deles tinham deixado o número de telefone, e ela anotara-os. Talvez fosse melhor ligar-lhes, contar-lhes
o que acontecera a Erin, para o
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caso de eles não saberem, e tentar arranjar um encontro com eles. Se eles andassem a sair com mais raparigas, talvez tivessem ouvido falar de algum encontro mais
estranho.
O primeiro não atendeu. O segundo atendeu imediatamente.
Michael Nash.
Michael. Chamo-me Darcy Scott e fui uma grande amiga de Erin Kelley. Suponho que já sabe o que lhe aconteceu.
Darcy Scott. A voz agradável tinha um tom de preocupação Erin falou-me de si. Lamento imenso. Ontem falei com um agente do FBI e assegurei-lhe que estou pronto a
ajudar no que for preciso, Erin era uma rapariga amorosa.
Darcy percebeu que tinha os olhos cheios de lágrimas.
Era, sim.
Era óbvio que ele detectara, pelo tom de voz, a sua emoção.
Deve ser muito duro para si. Posso convidá-la para jantar uma noite destas? Conversar talvez possa ajudá-la.
Gostaria muito.
Amanhã?
Darcy pensou rapidamente. Encontrava-se com Len às seis.
Se às oito for boa hora para si...
Está óptimo. Eu marco uma mesa no Le Cirque. A propósito, como vou reconhecê-la?
Cabelo castanho-claro. Levarei um vestido de lã azul com gola branca.
Eu serei o tipo mais insignificante da sala. Estarei à sua espera no bar.
Darcy desligou, sentindo-se, de certa forma, reconfortada. Pelo menos farei uso das roupas que comprei no Rodeo Drive, pensou, percebendo que instintivamente lhe
ocorrera telefonar a Erin e dizer-lho.
Levantou-se e massajou o pescoço. Uma dor de cabeça incomodativa lembrou-lhe que não comia nada desde o almoço. Eram oito menos um quarto. "Vou tomar um duche rápido
e quente", decidiu. "Depois aqueço uma sopa e assisto ao programa de televisão."
A sopa, razoavelmente apetitosa quando comida quente, transformara-se numa mistura de pedaços de legumes nadando numa calda de tomate, enquanto Darcy mantinha os
olhos pregados ao ecrã. Era horrível a imagem de uma rapariga de 19 anos de idade morta, com
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uma sapatilha num dos pés e no outro um sapato de saltos altos. Teria Erin ficado assim quando fora encontrada? As mãos crispadas na cintura e os pés calçados com
os sapatos diferentes virados para o ar? Que tipo de pessoa poderia querer repetir aquela imagem? O programa terminou com a sugestão de que um criminoso querendo
imitar aquele assassínio poderia estar por detrás da morte de Erin Kelley.
Quando terminou, desligou o televisor e enterrou a cara nas mãos. Talvez o FBI tivesse razão em relação ao crime. Não poderia ser coincidência o facto de, algumas
semanas depois de ter passado na televisão aquele documentário, Erin ter morrido da mesma maneira.
Mas porquê Erin? E o sapato servia-lhe? Se servia, como sabia o criminoso o número certo? "Talvez eu esteja maluca", pensou. "Talvez eu deva desistir e deixar este
assunto para aqueles que sabem o que estão a fazer."
O telefone tocou. Sentiu-se tentada a não atender. De repente, o cansaço era demasiado para lhe apetecer falar fosse com quem fosse. Mas poderia ser alguma coisa
relacionada com Billy. A casa de repouso tinha o seu número de telefone, para o caso de haver alguma emergência. Pegou no auscultador.
- Darcy Scott.
- Em pessoa? Até que enfim. Tenho tentado ligar-lhe há uma série de dias. Sou a caixa 2721. Doug Field.
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IX
QUINTA-FEIRA
28 de Fevereiro
Na manhã de quinta-feira, Nona, em conjunto com a assistente de produção Liz Croll, terminou a planificação do documentário. Liz era uma jovem de rosto esguio e
feições acentuadas e entrevistara os potenciais convidados, juntando os trapos, como ela dizia.
Temos uma boa mistura assegurou ela a Nona. Dois casais que acabaram por casar. Os Cairones apaixonaram-se à primeira vista e são suficientemente melados para satisfazer
os românticos. Os Quinlans responderam ao anúncio que cada um colocou e são bastante engraçados a contarem como as cartas se cruzaram no correio. Temos um muito
parecido com o Abe Lincoln, confidenciando que é muito tímido e que continua à procura da rapariga ideal. Temos uma rapariga cujo anúncio, por engano, a apresentava
como tratando-se de uma divorciada rica. Teve setecentas respostas e até agora já saiu com cinquenta e dois. Temos uma mulher que jantou com um homem e, no fim,
ele provocou uma briga com ela, levantou-se, foi-se embora e deixoulhe a conta por pagar. O tipo seguinte quase a atacou, quando a levou a casa. Agora, passa a vida
a rondar-lhe a casa. Ela diz que acordou uma manhã e deu com ele a espreitar-lhe pela janela do quarto. Se a sua amiga Erin Kelley realmente se foi encontrar com
alguém naquela noite, temos uma oportunidade fantástica.
Nunca o poderíamos fazer afirmou Nona calmamente, percebendo que nunca gostara de Liz.
A outra não pareceu dar-se conta.
Aquele agente do FBI, Vince D'Ambrosio, é engraçado. Falei com ele ontem. Vai mostrar fotografias daquelas raparigas durante O Programa e avisar as pessoas de que
todas elas tinham respondido
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a anúncios pessoais. Depois, vai perguntar se alguém tem alguma informação que possa ajudar. Isso preocupa-me um pouco. Não queremos parecer uma imitação dos "Crimes
Autênticos", mas que podemos nós fazer? - Levantou-se para sair. - Mais uma coisa. Sabes aquela Sr.a Barnes, de Lancaster, cuja filha Claire desapareceu há dois
anos? Ontem tive uma ideia. E se a convidássemos para o programa? Só para uma sequência breve. Encontrei-me com Hamilton e fiz-lhe essa sugestão. Ele disse que achava
a ideia óptima, mas que eu devia falar contigo.
Ninguém se encontra com Austin Hamilton por acaso. Nona sentiu a raiva substituir a apatia total que se apoderara dela naqueles últimos dias. Não conseguia deixar
de pensar em Erin. O rosto dela, sempre pronto a romper num sorriso, aquele corpo elegante e esguio. Tal como todas as outras, na classe de valsa, Nona era uma boa
dançarina, mas quer Erin quer Darcy se salientavam por serem melhores. Particularmente Erin.
Toda a gente parava para a admirar, quando ela dançava com o professor. "E eu tornei-me amiga delas e falei-lhes nesta ideia de fazer um programa acerca dos anúncios
pessoais. Se ao menos Vince D'Ambrosio tivesse razão." Ele acreditava que Erin fora uma vítima casual de um crime de imitação. "Por favor, Deus, faz com que assim
seja!", rezou Nona. "Por favor."
"Mas se Erin morreu por ter respondido a estes anúncios, deixa ao menos que este programa sirva para salvar outras."
- Eu telefono à Sr.a Barnes de Lancaster - respondeu para Kroll, num tom decidido e conclusivo.
Darcy sentara-se no parapeito da janela do quarto da adolescente, que estava a redecorar e que em breve sairia do hospital. A cama de latão e ferro de Erin ficaria
ali perfeitamente. O toucador feminino, da passagen do século, que ela adquirira no Old Tappan na semana anterior, tinha gavetas fundas e não ocupava muito espaço.
O actual toucador duplo, um objecto de mogno envernizado, era um horror. E algumas prateleiras extra no roupeiro serviriam para mais arrumações.
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Percebeu que a mãe da garota a olhava ansiosamente com uma expressão fatigada.
- A Lisa está há tanto tempo naquele quarto de hospital, tão desolador, que eu pensei fazer-lhe um quarto diferente para ver se ela se sente mais animada. Vai ter
de fazer terapia, mas está animada. Já disse aos médicos que daqui a dois anos vai regressar às aulas de dança. Desde bebé que, quando ouvia música, começava a dançar.
Lisa fora atropelada por um motociclista que circulava, a alta velocidade, contra a mão, numa rua de um só sentido. Fora contra ela e partira-lhe as pernas, os tornozelos
e os ossos dos pés.
- Ela adora dançar - concluiu a mãe com um suspiro.
Gosta de música, gosta de dançar. Darcy sorriu, lembrando-se do póster emoldurado com essa frase que Erin pendurara no seu quarto. Erin dizia sempre que era a primeira
coisa que via de manhã, e isso alegrava-lhe o dia. Com firmeza, afastou a ideia de o conservar como recordação e declarou:
- Tenho uma coisa perfeita para essa parede. - E sentiu que a dor cortante se atenuava um pouco. Era quase como se visse Erin acenando-lhe, aprovadora.
Susan Fox escolhera a agência Harkness da Rua 45 Este, uma agência de detectives discreta, para desvendar o devaneio nocturno do seu marido Douglas. O depósito de
cento e cinquenta dólares pareceu-lhe simbólico. Fora precisamente essa a quantia que conseguira pôr de lado para comprar uma prenda no aniversário de Doug, em Agosto.
Sorriu com tristeza, enquanto preenchia o cheque.
Na quarta-feira, telefonara a Carol Harkness.
- O meu marido tem um dos seus famosos encontros esta noite.
- Vamos mandar Joe Pabst, que é um dos nossos melhores homens, segui-lo - assegurou-lhe a outra.
Na quinta-feira, Pabst, um homem forte e jovial, fazia o seu relatório à chefe.
- Este tipo é uma obra de arte. Deixa o escritório, dirige-se para o London Terrace. Tem lá um apartamento, subalugado por dois anos ao proprietário, um engenheiro
chamado Cárter Field. Registou-se
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como sendo Douglas Field, o que não está mal pensado. Desta forma ninguém questiona um subalugamento ilegal e não é detectado por ninguém, nem em casa nem no trabalho.
Além disso, as iniciais são as mesmas. Teve sorte. Não tem de se preocupar com as iniciais dos botões de punho.
Pabst abanou a cabeça, numa admiração relutante:
Os vizinhos pensam que ele é ilustrador. O superintendente contou-me que ele tem uma data de coisas assinadas penduradas no apartamento. Contei ao homem uma história
acerca de uma missão governamental e deilhe os habituais vinte dólares por debaixo da mesa, para ele manter a boca calada.
Com trinta e oito anos, Carol Harkness parecia uma daquelas executivas que aparecem nos anúncios da televisão. O fato preto de bom corte era enfeitado apenas com
um alfinete de ouro na lapela. O cabelo, louro-claro, chegava-lhe aos ombros e os olhos castanhos tinham uma expressão fria e impessoal. Filha de um detective de
Nova Iorque, herdara no sangue o amor pelo trabalho policial.
E ele ficou lá ou saiu? perguntou ela.
Saiu. Por volta das sete. Devia ter visto a transformação. Trazia o cabelo de tal maneira penteado que parecia naturalmente encaracolado, camisola de gola alta,
calças de ganga, casaco de cabedal. Mas não me interprete mal, tinha um ar bastante requintado, aquele estilo que os tipos ligados à arte e ricos usam. Encontrou-se
com uma rapariga no Soho. Atraente. Trinta e poucos. Com classe. Fiquei na mesa atrás deles. Beberam dois copos e depois ela teve de ir embora.
Ansiosa por se livrar dele? perguntou Harkness de imediato.
Nada disso. Ela só tinha olhos para ele. Ele é um tipo bem-parecido e sabe ser agradável. Têm um encontro sexta-feira à noite. Vão dançar a um clube qualquer da
baixa.
Com a testa enrugada de concentração, Vince D'Ambrosio estudava o relatório da autópsia de Erin Kelley. Afirmava que ela comera, aproximadamente, uma hora antes
de ter sido morta. O corpo não mostrava qualquer sinal de decomposição. Tinha as roupas encharcadas. Este facto havia sido inicialmente atribuído à humidade e ao
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frio que se faziam sentir no dia em que o seu corpo fora encontrado. A autópsia revelara que os órgãos se encontravam parcialmente queimados. O médico concluía que
o seu corpo fora congelado, imediatamente a seguir à morte.
Congelado. Porquê? Porque era demasiado perigoso para o assassino livrar-se do corpo naquela altura? Onde a tinha guardado? Teria ela morrido na noite de terça-feira?
Ou seria possível que a tivesse retido nalgum sítio e só a matasse na quinta-feira?
Teria ela pensado guardar a bolsa de diamantes novamente no cofre? Pelo que sabia, Erin Kelley fora uma rapariga muito sensata. Certamente que não era o tipo de
mulher capaz de confidenciar a um estranho que transportava uma avultada quantia em jóias.
Ou seria?
Tinham investigado uma série de pessoas, autoras dos anúncios a que Erin respondera. Até agora, acontecera o mesmo que com aquele advogado North. Todos apresentaram
álibis para a noite de terça-feira. Alguns deles recolhiam a correspondência nos escritórios das revistas e dos jornais onde tinham colocado os anúncios, três das
outras moradas descobriram ser caixas de correio. Provavelmente tipos casados, que não queriam que as respectivas esposas apanhassem aquelas cartas.
Eram quase cinco horas quando D'Ambrosio recebeu uma chamada de Darcy Scott.
Estive todo o dia a pensar em telefonar-lhe, mas precisei de sair para tratar de uns negócios explicou ela.
"Melhor para ti", pensou Vince. Gostava de Darcy Scott. Depois de o corpo de Erin ter sido descoberto, perguntara a Nona acerca dos antecedentes familiares de Darcy
e ficou espantado ao descobrir que ela era filha de duas superestrelas. Aquela garota não tinha nada a ver com Hollywood. Era genuína. Era espantoso que nenhum tipo
a tivesse ainda agarrado. Perguntou-lhe como ia tudo.
Vai tudo bem respondeu ela.
Vince tentou analisar os sentimentos que lhe transpareciam na voz. Aprimeira vez que a vira, no escritório de Nona, o tom de voz grave e tenso sugeria intensa angústia.
Na morgue, até se ir abaixo, falara com a voz inexpressiva de uma pessoa em estado de choque. Agora, notava-se-lhe uma certa brusquidão e determinação. Vince Percebeu,
imediatamente, que Darcy Scott continuava convencida de que a morte de Erin fora resultado da resposta a algum anúncio.
Ia para lhe falar nisso quando ela perguntou:
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Vince, há uma coisa que me tem preocupado. Aquele sapato de salto alto que Erin calçava servia-lhe? Quero dizer, era mesmo o número dela?
Era o mesmo número da bota dela, trinta e sete estreito.
Então, como é que a pessoa que lho calçou sabia exactamente o número que ela calçava?
"Rapariga esperta!", pensou Vince. Cuidadosamente, escolheu as palavras.
Miss Scott, isso é algo em que temos estado a trabalhar. Andamos a tentar localizar o sapato, através do fabricante, para ver se descobrimos onde foi comprado. Não
é um sapato barato. Na verdade, o par deve custar algumas centenas de dólares, e isso reduz substancialmente o número de lojas que em Nova Iorque os podem vender.
Prometo que a mantenho informada de tudo o que descobrirmos. Hesitou, mas depois acrescentou: Espero que tenha desistido da ideia de realizar aqueles encontros que
Erin lhe arranjou.
Para falar a verdade respondeu-lhe Darcy, vou ter o meu primeiro encontro daqui a uma hora.
Len Parker às seis. Encontravam-se no McMullen da Rua 76 com a 3. "Um sítio muito concorrido", pensou Darcy, "e certamente seguro." Era um dos locais agradáveis
de Nova Iorque. Ela já lá estava fora com alguns amigos e gostara do dono, Jim McMullen. Ia só tomar um copo de vinho com Parker. Ele avisara-a de que tinha um encontro
com alguns amigos, no Clube Atlético, para jogar basquetebol.
Dissera a Michael Nash que levaria um vestido azul de lã com gola branca. Agora que o tinha posto, sentia-se excessivamente bem vestida. Erin sempre troçara das
roupas que a mãe lhe oferecia.
Quando as vestes, fazes com que pareça que nós nos vestimos na loja do João Barateiro.
Não era verdade, pensou Darcy, enquanto aplicava a sombra cinzenta nos olhos. Erin ficava sempre fantástica, mesmo na faculdade, quando tinha pouco dinheiro para
comprar roupa.
Decidiu usar o alfinete de prata e azurite que Erin lhe oferecera pelo seu aniversário.
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Falso, mas bonito comentara Erin. O alfinete tinha a forma de uma pauta de música. As notas estavam alinhadas em azurite azul, precisamente do tom do vestido. Completou
a toilette com pulseiras e brincos de prata e umas botas estreitas de camurça.
Darcy observou-se cuidadosamente ao espelho. Na viagem que fizera à Califórnia, a mãe insistira para que ela fosse ao seu cabeleireiro pessoal. Ele mudara-lhe o
risco, cortara-lhe algumas pontas e acentuara-lhe as madeixas, naturalmente loiras, do cabelo. Tinha de admitir que gostava do resultado. Encolheu os ombros. Tudo
bem, estou suficientemente bonita para não espantar o Len Parkar assim que aparecer.
Parker era alto, de ossos delgados, mas não era desinteressante. Contou-lhe que era professor na faculdade e que se mudara recentemente para Nova Iorque, vindo de
Wichita no Kansas, por isso não conhecia muita gente. Enquanto bebiam um copo de vinho, confidenciou-lhe que fora um amigo quem lhe sugerira que colocasse um anúncio
na coluna pessoal.
Na verdade, são caros. Ficaria surpreendida. Faz muito mais sentido respondermos aos anúncios dos outros, mas estou satisfeito por ter respondido ao meu. Tinha os
olhos castanho-claros, mas grandes e expressivos. Olhava fixamente para Darcy. Tenho mesmo de lhe dizer que você é muito bonita.
Obrigada.
Por que haveria algo nele que a fazia sentir-se pouco à vontade? Seria realmente professor ou seria como aquele homem com quem saíra antes de partir para a Califórnia?
Esse dissera-lhe que era um executivo publicitário e não sabia nada acerca das agências que ela mencionara.
Parker apoiara as mãos no banco do bar e rodava-o lentamente. Tinha uma voz grave e, com o barulho provocado pelas conversas das outras pessoas, Darcy precisava
de se inclinar para ele, para o conseguir ouvir.
Muito bonita repetiu ele. Sabe, nem todas as raparigas com quem me encontro são bonitas. Quando lemos as cartas que nos escrevem, pensamos que são a Miss Universo.
E depois quem aparece? A Olivia Palito.
Pediu novo copo de vinho e perguntou:
Também toma um?
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Está bem assim. E, escolhendo as palavras cuidadosamente acrescentou:
Certamente que nem todas eram assim tão más. Tenho a certeza de que já encontrou muitas raparigas bonitas.
Ele abanou a cabeça, com ênfase.
Como você não, nem pensar.
Foi uma hora muito longa. Darcy escutou a dificuldade que Parker tinha em arranjar um apartamento. Dos preços nem era bom falar.
Algumas raparigas acham que temos obrigação de as levar a restaurantes caros. Vá lá. Quem consegue suportar isso?
Por fim, Darcy conseguiu chamar o nome de Erin à conversa.
Eu sei. A minha amiga e eu conhecemos muita gente esquisita através destes anúncios. Ela chamava-se Erin Kelley. Por acaso chegou a conhecê-la?
Erin Kelley? Parker engolia convulsivamente. Não foi essa a rapariga que foi assassinada na semana passada? Ai, peço desculpa. Isso é terrível. E já encontraram
o assassino?
Ela não queria falar acerca da morte de Erin. Não havia qualquer possibilidade de Erin dar uma segunda hipótese a este tipo, mesmo que se tivesse encontrado com
ele. Olhou para o relógio e declarou:
Tenho de ir. E você vai chegar atrasado ao jogo de basquetebol.
Oh, não faz mal. Posso escapar-me. Fique para o jantar. Aqui têm bons hamburgers. Caros, mas bons.
Na verdade, não posso. Vou encontrar-me com outra pessoa. Parker franziu a testa.
E amanhã à noite? Quero dizer, eu sei que não sou grande coisa, e toda a gente sabe que os professores não ganham muito, mas na verdade gostaria muito de a voltar
a ver.
Darcy enfiou os braços no casaco.
Na verdade, não posso. Muito obrigada. Parker levantou-se e deu um murro no balcão.
Pois bem, podes pagar as bebidas. Achas que és boa de mais para mim. Pois eu é que sou bom de mais para ti.
Darcy sentiu-se aliviada, quando ele saiu do bar. Quando o empregado apareceu com a conta, disse-lhe:
Miss, não se preocupe com aquele tolo. Ele fez-lhe o truque do professor da faculdade? Trabalha nos serviços de manutenção da Universidade de Nova Iorque e consegue
muita bebida e muitos jantares à borla através destes anúncios. A si até lhe saiu barato.
Darcy riu-se.
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Também me parece. Foi então que lhe ocorreu um pensamento e, procurando o retrato de Erin na carteira, mostrou-lho: por acaso alguma vez cá apareceu com esta rapariga?
O empregado, que bem poderia ter sido actor de cinema, estudou a fotografia atentamente e depois confirmou.
Sem dúvida. Há cerca de duas semanas. Ela era uma brasa e
deixou-o aqui a falar sozinho.
Eram seis horas quando Nona foi agradavelmente surpreendida por uma chamada de Vince D'Ambrosio.
É óbvio que você também não cumpre horários declarou ele. Gostaria de falar consigo acerca do seu programa. Quer vir jantar comigo, daqui a uma hora?
Ela queria.
Está bem, vou reservar uma mesa numa boa casa de churrasco aí das redondezas.
Sorrindo, Nona desligou. D'Ambrosio era claramente um homem de boa alimentação, mas estava pronta a apostar o seu último dólar em como ele não sofria de colesterol.
Percebeu, então, que ficara inexplicavelmente contente por ter vestido o seu fato novo Donna Karan. Aquele tom ficava-lhe bem e o cinto dourado com a fivela em forma
de mãos entrelaçadas acentuava-lhe a cintura fina. A cintura era o seu motivo de orgulho. Depois, sentiu uma onda de angústia invadi-la. Fora Erin quem lhe oferecera
aquele cinto pelo Natal.
Abanando a cabeça, como para repelir a realidade da morte de Erin, levantou-se e passeou à volta da secretária, rodando os ombros. Passara o dia inteiro a trabalhar
para o documentário e agora parecia que tinha agulhas espetadas pelo corpo. Às três horas, Gary Finch, o locutor da rede de televisão de Hudson, viera trabalhar
com ela. Por fim, Finch, conhecido pelo seu perfeccionismo, sorriu e afirmou:
Vai ser óptimo.
Esperemos que Sir Hubert fique contente respondeu Nona, espreguiçando-se e tentando decidir se deveria, ou não, tentar novamente falar com Emma Barnes, em Lancaster.
Já ligara para lá três
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ou quatro vezes. Tinha de admitir que Liz fora esperta ao sugerir que a Barnes aparecesse no programa para falar da filha desaparecida que andava a responder a anúncios.
Liz era esperta e tinha imaginação.
"Mas estava a tentar passar-me a perna quando foi ter com Hamilton. Ela quer o meu lugar", decidiu Nona. Pois que tente tirar-mo. Espreguiçou-se novamente, sentou-se
à secretária e discou o número de Lancaster. Uma vez mais, ninguém respondeu da residência dos Barnes.
Vince chegou pontualmente às sete. Trazia um fato cinzento de bom corte e uma gravata castanha e beige. "É mais do que evidente que nenhuma mulher lhe escolhe as
gravatas", pensou Nona, recordando-se de quanto Matt se preocupava em combinar as gravatas com as camisas e com os fatos.
O restaurante ficava na Broadway a alguns quarteirões da casa de Nona.
Vamos deixar a conversa mais séria para a sobremesa sugeriu Vince, e, enquanto comiam as saladas, foram falando das suas vidas pessoais. Se publicasse algum anúncio,
o que diria de si própria? perguntou ele.
Nona reflectiu e respondeu:
Mulher branca, divorciada, quarenta e um anos de idade, produtora de televisão.
Ele ia bebendo o seu uísque e incitou:
Continue.
Nascida e criada em Manhattan, pensa que qualquer pessoa que viva noutro sítio por gosto é doente da cabeça.
Ele riu-se, e ela reparou que o riso lhe fazia umas covinhas simpáticas no canto dos olhos. Nona provou o vinho.
Este Borgonha é óptimo comentou. Espero que o prove, quando vier o bife.
Provo, sim. Por favor, termine o seu anúncio.
Formada em Barnard, nem para frequentar a faculdade saí de Manhattan. Passei um ano fora e gosto de viajar, desde que não me ausente mais de três semanas.
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O seu anúncio está a ficar caro.
já o termino. Limpa, mas não particularmente arrumada. Já deve ter visto, pelo meu escritório, que não tenho jeito nenhum para plantas. Boa cozinheira, mas odeio
comida complicada. Adoro jazz e, claro, sou uma boa dançarina.
" Foi nas aulas de dança que conheceu Erin e Darcy comentou Vince D'Ambrosio, reparando na dor que ensombrou de imediato o olhar de Nona. Apressou-se a mudar de
assunto: O meu anúncio é um pouco mais curto. Trabalha para o governo, homem branco, divorciado, quarenta e três anos de idade, agente do FBI, criado em Waldwick,
Nova Jérsia e formado pela Universidade de Nova Iorque. Não consegue dançar sem tropeçar nos seus próprios pés. Gosta de viajar, desde que não seja ao Vietname,
três anos passados lá foram suficientes. E, por fim, mas sem dúvida não menos importante, com um filho de quinze anos de idade, Hank, que é um miúdo bestial.
Tal como ela garantira, os bifes eram magníficos. Enquanto tomavam café, falaram acerca do programa.
Gravamo-lo daqui a duas semanas informou Nona. Gostava de o deixar para último, para que as pessoas levem o aviso a sério e se convençam de que existe um perigo
real em responder a esses anúncios. Vai mostrar as fotografias das raparigas desaparecidas, não vai?
Vou. Há sempre a possibilidade de algum espectador ter alguma informação.
Estava muito frio quando deixaram o restaurante. Um sopro de vento cortante, de Inverno, fez Nona gemer. Vince pegou-lhe no braço, enquanto atravessavam a estrada,
e não o voltou a tirar, enquanto percorriam a distância que os separava do apartamento dela.
Aceitou o convite dela para um último copo. Nona recordou, com satisfação, que fora o dia da mulher da limpeza, Lola, ir trabalhar, Por isso a casa estaria apresentável.
O apartamento, de sete assoalhadas, ficava num edifício anterior à guerra. Observou Vince D'Ambrosio erguer as sobrancelhas, quando entrou no amplo vestíbulo, Admirou
os tectos altos, as grandes janelas viradas para Central park, as pinturas da sala-de-estar e a consistente mobília jacobina.
Muito bonito comentou ele.
Os meus pais deram-ma quando se mudaram para a Florida. Sou filha única, e assim o meu pai pode vir a Nova Iorque e sentir-se
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confortável. Ele odeia hotéis declarou, dirigindo-se para o bar
O que vai tomar?
Serviu Sambuca para os dois e perguntou:
São só nove menos um quarto. Não se importa que eu faça um telefonema? Pegou na bolsa e, enquanto procurava o número dos Barnes, explicou-lhe por que razão os queria
contactar.
Desta vez, o telefone foi imediatamente atendido. Nona sentiu-se gelar ao ouvir o som de gritos de mulher. Uma voz masculina cumprimentou-a, distraída. Num estado
de choque evidente, declarou:
Quem quer que seja, por favor desligue. Tenho de telefonar imediatamente para a polícia. Passámos o dia fora e só agora abrimos o correio. Havia uma encomenda para
a minha mulher.
Os gritos eram agora cada vez mais audíveis. Nona fez sinal a Vince para pegar no telefone portátil pousado na outra mesa. A voz alterada continuou:
A nossa filha desapareceu há dois anos. Aquele embrulho traz um dos sapatos de Claire e outro de salto alto. Começou a berrar. Quem foi que mandou isto? Porquê?
Quer isto dizer que Claire está morta?
Darcy saiu do táxi, entrou no Le Cirque e começou a sentir-se exausta. Aquele encontro com Len Parker acabara por a deixar bastante abatida. Ficara baralhada ao
perceber que ele saíra com Erin. Por que negara ele? Erin deixara-o sozinho. Certamente, nunca mais saíra com ele. Seria simplesmente porque ele não queria ser interrogado
e ter de admitir que mentira?
Sempre que a mãe e o pai vinham a Nova Iorque, jantavam no Lê Cirque. Era um restaurante estupendo, e Darcy deu por si a perguntar-se por que razão não vinha ali
com mais frequência. Como é que duas pessoas tão maravilhosas tiveram uma filha tão enfesada? E por que razão aquela frase ficara tão profundamente gravada na sua
memória?
O bar era à esquerda. Pequeno e encantador, servia para as pessoas esperarem pela mesa. Via-se um casal jovem de pé, conversando animadamente.
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Ao fundo, encontrava-se um homem sozinho. O tipo mais insignificante que lá estiver.
Michael Nash não fora generoso consigo próprio. De cabelo louro__escuro, um rosto que não era demasiado bonito e convencional devido ao queixo afiado, o corpo esguio
e entroncado e vestia um fato azulescuro com riscas leves e gravata azul. Ao olhá-la, com visível prazer depois de a ter reconhecido, Darcy viu que os olhos de Michael
Nash eram de um tom invulgar algures entre a safira e o azul-escuro.
Darcy Scott.
Tratava-se de uma afirmação, não de uma pergunta. Fez sinal ao maítre d'hotel e poisou-lhe a mão no cotovelo. Sentaram-se numa mesa com vista completa para a entrada.
Michael Nash deveria ser um frequentador assíduo e respeitado no Le Cirque.
Uma bebida? Vinho?
Vinho branco, por favor, e um copo de água.
Ele encomendou uma garrafa de Pellegrino e de Chardonnay e depois sorriu:
E agora, tal como um amigo meu diz, que já tratámos das nossas necessidades básicas, Darcy, muito prazer em conhecê-la.
Na meia hora que se seguiu, Darcy percebeu que ele evitava deliberadamente mencionar o nome de Erin. Foi apenas quando ela começou a beber o vinho e pegou num pãozinho
que ele comentou:
Missão cumprida. Acho que agora já começa a sentir-se segura. Darcy olhou-o com espanto:
Que quer dizer com isso?
Quero dizer que tenho estado a observá-la. Vi a forma como entrou aqui dentro. Tudo em si sugeria uma tensão interior muito grande. O que aconteceu?
Nada. Na verdade, gostava de falar sobre Erin.
Eu também. Mas, Darcy... Ele hesitou e depois concluiu: Ouça, eu não consigo libertar-me daquilo que faço durante o dia. Sou psiquiatra afirmou com um sorriso envergonhado.
Ela sentia-se finalmente descontraída.
Sou eu que devo pedir desculpa. Tem toda a razão. Eu sentia-me realmente tensa quando aqui entrei. E contou-lhe acerca de Len Parker.
Ele ouviu-a atentamente com a cabeça levemente inclinada. Claro que vai comunicar isso à polícia.
Na verdade, ao FBI.
Vincent D'Ambrosio? Tal como lhe disse ao telefone, ele veio
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visitar-me ao consultório, na terça-feira. Infelizmente, pouco tinha para lhe dizer. Conheci Erin há algumas semanas. Tive imediatamente a certeza de que uma rapariga
como ela não necessitava de responder a anúncios. Disse-lho, e ela contou-me o que se passava com o programa de uma amiga. Falou-me de si. Disse que a melhor amiga
dela também andava a responder aos anúncios. Darcy assentiu, desejando não começar a chorar.
Normalmente, não explico que respondo aos anúncios por causa de um livro que ando a escrever, mas desta vez disse a Erin. Trocámos experiências acerca dos nossos
vários encontros. Já tentei recordar-me daquilo que ela me contou, mas ela não mencionou nomes, e as histórias eram engraçadas. Certamente, não falou em nada que
a tivesse assustado.
Encontros imediatos do pior grau, era como ela costumava chamar-lhes.
Nash riu-se.
Ela disse-me. Perguntei-lhe se poderíamos jantar juntos um dia, e ela concordou. Eu andava a alinhavar o meu livro, e ela tinha um colar para terminar. Prometi telefonar-lhe.
Quando tentei, não consegui apanhá-la. Por aquilo que Vince D'Ambrosio me contou, já era tarde de mais.
Isso foi na noite em que ela pensava que se ia encontrar com um tipo chamado Charles North. Eu continuo a pensar que, mesmo que o tipo não tenha aparecido, ela morreu
por causa de um destes anúncios.
A propósito, por que é que continua a responder aos anúncios?
Porque quero apanhar esse tipo.
Ele pareceu preocupado, mas não fez comentários. Estudaram o menu e ambos escolheram Linguado de Dover. Enquanto comiam, Nash parecia determinado em manter a conversa
afastada da morte de Erin. Falou-lhe da sua vida.
O meu pai fez fortuna com plásticos. Na verdade, foi o que se chama subir a pulso na vida. Depois, comprou uma mansão em Bridgewater bastante ornamentada. Ele era
um bom homem e sempre que eu me perguntava para que é que três pessoas precisam de vinte e dois quartos lembrava-me da felicidade dele, quando nos mostrou.
Falou do seu divórcio.
Casei-me na semana a seguir a ter-me licenciado. Um erro terrível para os dois. Não foi uma questão financeira, mas a carreira médica, principalmente quando envolve
o estudo contínuo da
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psicanálise, é uma carreira trabalhosa e dura. Não tínhamos tempo para outro. Ao fim de quatro anos, ela fartou-se. Sheryl vive agora em Chicago e tem três filhos.
Era a vez de Darcy. Cuidadosamente, evitou mencionar o nome famoso dos pais e começou a contar-lhe como deixara a companhia de publicidade para se dedicar à decoração.
já alguém me disse que eu era uma nova versão do Sanford e
Filho, e suponho que é verdade. Mas adoro o que faço.
E pensou no quarto que estava a decorar para a garota de 16 anos.
Se ele reparou nas lacunas da história dela, não fez comentários. As saladas chegaram no preciso momento em que um produtor amigo dos pais de Darcy parou junto da
mesa e exclamou:
Darcy!
Um beijo caloroso e um abraço, e ele apresentou-se a Michael Nash,
Harry Curtis. E, virando-se para Darcy, afirmou: Estás cada vez mais bonita. Já sei que os teus pais andam em tournée pela Austrália. Que tal tem corrido?
Foram há pouco tempo.
Bom, dá-lhes saudades minhas. Novo abraço, e Curtis dirigiu-se para a sua mesa.
Os olhos de Nash não demonstravam curiosidade. "É assim que os psiquiatras reagem", pensou Darcy. "Esperam que a gente lhes conte." Não lhe deu nenhuma explicação
acerca daquela conversa.
Foi um jantar agradável. Nash confessou ter duas paixões: andar a cavalo e jogar ténis.
É isso que me mantém ligado a Bridgewater. E, durante o café, regressou ao assunto da morte de Erin. Darcy, normalmente não dou conselhos às pessoas, mas acho que
deveria desistir da ideia de responder a esses anúncios. Aquele agente do FBI pareceu-me perfeitamente competente e, se conheço alguma coisa acerca das pessoas,
ele não descansará até apanhar o assassino de Erin.
Ele disse-me o mesmo por outras palavras. Suponho que todos fazemos o que devemos respondeu ela, sorrindo. A última vez que falei com Erin, ela contou-me que conhecera
um tipo simpático, mas que ele nunca mais lhe telefonara. Aposto que se referia a si.
Ele levou-a a casa de táxi, disse ao motorista para esperar e acompanhou-a até à porta.
O vento soprava forte, de forma que ele virou-se para a tentar proteger, enquanto ela abria a porta.
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Posso telefonar-lhe outra vez?
Gostaria muito.
Por um momento, Darcy pensou que ele ia beijá-la no rosto, mas limitou-se a apertar-lhe a mão e regressou ao táxi que o esperava
Com a pressão do vento, a porta fechou-se devagar. Mal ouviu o clique, o som de passos fê-la voltar-se.
Através do vidro, viu a figura de um homem a subir os degraus. Um segundo mais e teria conseguido entrar para o vestíbulo com ela. Ao olhar para ele, com a boca
demasiado seca para poder gritar, viu Len Parker esmurrar a porta, dar-lhe pontapés, para depois desaparecer a correr pela rua abaixo.
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x
SEXTA-FEIRA 1 de Março
Greta Sheridan hesitava se devia levantar-se ou tentar dormir mais uma hora. O vento frio de Março fazia com que as persianas batessem contra o vidro, e ela lembrou-se
de que Chris andava farto de insistir para que substituísse as persianas.
A luz da manhã escoava-se através dos reposteiros. Ela adorava dormir num quarto frio. A manta e os cobertores eram quentes, e o dossel acolchoado, branco e azul,
emprestava à cama um ar aconchegante.
Tinha sonhado com Nan. Dali a duas semanas seria o aniversário da sua morte, no dia 13 de Março. Na véspera, Nan completara dezoito anos. Se fosse viva, comemoraria,
naquele ano, o seu trigésimo quarto aniversário.
Se fosse viva...
Impaciente, Greta afastou os cobertores, pegou no roupão de veludo e levantou-se. Calçando os chinelos, dirigiu-se para o vestíbulo e desceu a escada até ao rés-do-chão.
Percebeu a preocupação de Chris. A casa era grande e toda a gente sabia que ela morava sozinha.
Tu não sabes como os assaltantes profissionais conseguem, facilmente, ultrapassar qualquer sistema de segurança avisara ele inúmeras vezes.
Adoro esta casa. Aqueles aposentos guardavam tantas memórias felizes! Sentia que, de certa forma, deixar a casa seria como renegar essas memórias. Sorrindo, inconscientemente,
concluiu que, se um daqueles dia Chris resolvesse assentar, aquela casa seria perfeita para receber os netos.
Tinha o Times do lado de fora da porta e, enquanto o café fervia,
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começou a desfolhá-lo. Nas páginas centrais havia um artigo acerca da rapariga que fora encontrada morta na semana anterior. Crime de imitação. Que pensamento terrível!
Como poderia haver duas pessoas tão malvadas, aquela que estrangulara Nan e a que acabara com a vida de Erin Kelley? Estaria Erin Kelley ainda viva, se aquele programa
não tivesse sido transmitido?
E o que fora que a incomodara e a obrigara a assistir à transmissão? "Nan, Nan", chamou em pensamento. "Tu disseste-me qualquer coisa que eu devia ter percebido
que era importante."
Nan a conversar acerca da escola, das aulas, dos amigos, dos namorados. Nan ansiosa pela viagem a França. Nan que adorava dançar. Podia passar a noite a dançar.
Aquela canção poderia ter sido escrita para ela.
Erin Kelley usava também um sapato de salto alto, quando fora encontrada. Salto alto? O que haveria com aquelas palavras? Impaciente, Greta abriu o Times nas palavras
cruzadas.
O telefone tocou. Era Gregory Layton. Ela conhecera-o num jantar do clube. Tinha sessenta e poucos anos, era juiz federal e vivia em Kent, a cerca de quarenta milhas.
Um viúvo atraente, murmurara-lhe Priscilla Clayburn. Ele era atraente e convidava-a para jantar naquela noite.
Greta aceitou, desligou o telefone e apercebeu-se de que estava ansiosa por que aquela noite chegasse.
Dorothy entrou, ao bater das nove.
Espero que não precise de sair esta manhã, Mrs. Sheridan. O vento não está para brincadeiras.
Trazia o correio, incluindo uma encomenda volumosa. Pousou tudo em cima da mesa e franziu a testa.
Que esquisita esta encomenda. Quero dizer, não tem remetente. Espero que não se trate de uma bomba ou qualquer coisa assim.
O mais certo é ser outra daquelas mensagens de doidos. Maldito programa afirmou Greta, começando a desatar o fio. Depois, sentindo-se invadida pelo pânico, exclamou:
Na verdade, isto é muito esquisito. Liga-me para o Glenn More.
O chefe Moore, da polícia local, acabara de chegar à esquadra.
Não toque nesse embrulho, Mrs. Sheridan ordenou ele bruscamente. Nós vamos já para aí.
Ligou para a polícia estatal e eles prometeram enviar imediatamente uma brigada móvel para a residência dos Sheridans.
Às dez horas, manuseando o embrulho com todo o cuidado, um
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agente da brigada de explosivos conseguiu pô-lo em posição de ser radiografado.
Da sala-de-estar, para onde Greta e Dorothy haviam sido recambiadas, puderam ouvir a gargalhada de alívio do agente. Com Dorothy logo atrás, Greta correu para a
cozinha.
Isto não explode, minha senhora assegurou-lhe o agente.
Não há ali mais nada a não ser um par de sapatos desirmanados.
Greta viu a expressão de espanto no rosto de Moore, sentiu o sangue parar-lhe nas veias, à medida que o embrulho ia sendo aberto, mostrando o desenho de um sapato
na tampa. Levantaram a tampa e, no interior, bem acamados em pano, via-se um sapato de salto alto e uma sapatilha desbotada.
Oh, Nan, Nan!
E Greta já não sentiu quando Moore a segurou, desmaiada.
Às três horas de sexta-feira, Darcy foi acordada de um sono inquieto pela campainha do telefone. Pegando no auscultador, confirmou as horas no despertador. O seu"Está",
soou rápido e sem fôlego.
Darcy. Alguém sussurrou o seu nome. A voz parecia-lhe familiar, mas não conseguia localizá-la.
Quem fala?
O sussurro tornou-se um berro.
Nunca mais me feches a porta na cara. Ouviste? Nunca mais!
Len Parker. Desligou o telefone e puxou os cobertores até ao pescoço. Um momento depois, o telefone recomeçou a tocar. Não atendeu. A campainha continuava. Quinze,
dezasseis, dezassete vezes. Sabia que devia tirar o auscultador do descanso, mas não conseguia tocar-lhe, sabendo que Len Parker se encontrava do outro lado.
Por fim, parou.
Correu para a sala e ligou o atendedor de chamadas, depois voltou a correr para o quarto e fechou a porta.
Teria ele feito o mesmo a Erin? Tê-la-ia seguido, quando ela o deixou? Talvez a tivesse seguido até ao bar onde se ia encontrar com Charles North. Talvez a tivesse
obrigado a entrar para o carro.
Telefonaria para Vince D'Ambrosio de manhã.
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Nas duas horas que se seguiram, ficou acordada, acabando por cair num sono desassossegado e cheio de pesadelos.
Às sete e meia acordou, sentindo-se invadida pelo medo, e só depois se lembrou do motivo. Um duche demorado e quente conseguiu aliviá-la um pouco daquela tensão.
Vestiu umas calças de ganga uma camisola de gola alta e calçou as suas botas preferidas.
No atendedor de chamadas, estavam registadas chamadas interrompidas. Bebeu sumo de laranja e café junto à janela, enquanto olhava absorta para o jardim sem vida.
Às oito horas, o telefone voltou a tocar. "Por favor, o Len Parker não." Falou num tom receoso.
Darcy, espero que não seja demasiado cedo para estar a telefonar. Só queria dizer-lhe que gostei muito de estar consigo na noite passada.
Darcy soltou um suspiro de alívio.
Oh, Michael, não sabe quanto apreciei sair consigo também.
Aconteceu alguma coisa. O que foi?
A preocupação que detectava na voz dele era reconfortante. Contou-lhe o que se passara com Len Parker, o que acontecera à porta e a chamada que recebera.
A culpa foi minha, por não ter subido consigo.
Não, não.
Darcy, telefone àquele agente do FBI e conte-lhe acerca desse Len Parker. Que posso eu fazer para a convencer a deixar de responder a esses anúncios?
Receio bem que não possa fazer nada. Mas vou já telefonar a Vince D'Ambrosio.
E, depois de se despedir, desligou, sentindo-se profundamente confortada.
Telefonou a Vince do escritório. Foi uma Bev de olhos escancarados que assistiu, de pé, junto à secretária, enquanto ela conversava com outro agente. Vince fora
a Lancaster, mas o outro agente anotou a informação.
Estamos a trabalhar com a brigada da polícia. Vamos já tratar do assunto. Muito obrigado, menina.
De seguida, Nona ligou-lhe e explicou-lhe por que razão Vince tinha ido para Lancaster.
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Darce, isto é tão assustador! Uma coisa é alguém ter visto o episódio dos Crimes Verdadeiros e ser suficientemente pervertido para imitar, mas isto quer dizer que
há alguém que deve andar a fazer isto há muito tempo. Claire Barnes desapareceu há dois anos. Ela e grin eram tão parecidas! Ela estava prestes a ter a sua grande
oportunidade num musical da Broadway. Erin tivera a sua grande oportunidade com o Bertolini.
A sua primeira oportunidade com o Bertolini. As palavras ecoavam na cabeça de Darcy, enquanto fazia e recebia chamadas, lia os jornais de Connecticut e Nova Jérsia,
procurando avisos de leilões e se dedicava ao apartamento que estava a decorar. Finalmente, parou para almoçar uma sanduíche e um café.
Foi então que percebeu que havia algo a incomodá-la. A sua grande oportunidade com o Bertolini. Erin dissera-lhe que iria receber vinte mil dólares pelo desenho
do colar. Com o desenrolar dos acontecimentos, esquecera-se do estranho recado que ficara gravado no atendedor de Erin. Resolveu telefonar-lhes para confirmar.
Foi Aldo Marco quem atendeu o telefone. Tratava-se de um familiar?
Sou a executora dos bens de Erin informou ela, sentindo que aquelas palavras lhe pareciam terríveis.
O pagamento já tinha sido feito ao agente de Miss Kelley, Jay Stratton. Havia algum problema?
Estou certa de que não.
De forma que Stratton armara-se em agente de Erin.
Ele não estava em casa. Deixou-lhe uma mensagem brusca:
Por favor, telefone-me logo que chegar por causa do cheque de Erin.
Jay Stratton telefonou-lhe às cinco horas.
Peço desculpa, é claro que já lhe devia ter telefonado. Tenho estado fora. Como quer que lhe envie o cheque? E fez questão em contar a Darcy que, mesmo fora da cidade,
não conseguira esquecer O que acontecera a Erin. Aquela rapariga tão bonita e tão talentosa. Estou convencido de que alguém sabia da existência daquelas Jóias e
a matou por causa delas, fazendo depois com que parecesse um crime de imitação.
"Tu, mais do que ninguém, sabias da existência das jóias." Foi com esforço que ouviu Stratton e que tentou responder-lhe sem rudeza.
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Ele estaria ausente durante dois dias, por isso combinaram encontrar-se à noite.
Depois de desligar o telefone, Darcy permaneceu imóvel, durante alguns minutos, com o olhar fixo em frente, perdida em pensamentos, até que disse em voz alta.
Afinal, tal como diz, Mr. Stratton, dois amigos tão chegados de Erin deveriam conhecer-se melhor.
Suspirou. Ainda tinha muito trabalho para fazer, antes de se ir arranjar para o encontro com a Caixa 1527.
Vince apanhou o primeiro avião da manhã para Lancaster, na sexta-feira. Pedira ao pai de Claire Barnes para não comentar com ninguém fora da família a encomenda
que recebera. Mas, quando chegou ao aeroporto, viu que o assunto era notícia de primeira página, nos jornais locais. Telefonou para casa dos Barnes e a criada informouo
de que Mrs. Barnes tinha entrado no hospital na noite anterior.
Lawrence Barnes era um sólido homem de negócios e Vince estava convencido de que, noutras circunstâncias, teria sido capaz de uma forte presença de espírito. Encontrouo
sentado à cabeceira da cama, na companhia de uma jovem e olhando angustiado para a esposa, que se encontrava sob o efeito de pesados sedativos. Vince apresentou-lhe
o seu cartão e seguiu-o até ao corredor.
Barnes apresentou a jovem como sendo a sua outra filha, Karen.
Aconteceu que, quando entrámos nas urgências, deparámos com um repórter declarou Barnes numa voz ausente. Ele ouviu Emma a gritar que tinha recebido uma encomenda
e que a Claire estava morta.
Onde estão os sapatos?
Em casa.
Karen Barnes conduziu-o até lá. Era advogada em Pitsburgo e nunca partilhara do optimismo dos pais de que um dia Claire acabaria por aparecer.
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Nada a poderia ter impedido de aproveitar a oportunidade de entrar no espectáculo de Tommy Tune.
A casa dos Barnes era grande, de estilo colonial, e ficava num bairro importante. "Tem pelo menos um acre", concluiu Vince. Via_se uma carrinha da televisão na rua.
Karen acelerou, entrou na alameda e parou junto às traseiras. Um polícia impediu o repórter de se aproximar.
A sala estava decorada com retratos de família, muitos deles mostrando Karen e Claire nas várias etapas do crescimento. Karen pegou numa que estava em cima do piano.
Tirei esta, a última vez que vi Claire. Estávamos em Central Park, algumas semanas antes de ela desaparecer.
Magra. Bonita. Loura. Vinte e poucos anos. Sorriso feliz. "Tu sabes escolhê-las, filho da mãe", pensou Vince com azedume.
Posso levá-la? Eu mando fazer algumas cópias e depois devolvo-lhe o original.
A encomenda encontrava-se em cima da mesa do vestíbulo. O papel de embrulho era vulgar, castanho, e poderia adquirir-se em qualquer lado, a letra era de imprensa,
o carimbo de Nova Iorque. A caixa não tinha nenhuma marca especial, a não ser o desenho de um sapato de salto alto na tampa.
Os sapatos desirmanados. Uma sandália Bruno Magli e o outro uma sandália de apertar no tornozelo, aberta à frente e de salto alto. Eram precisamente do mesmo número.
Tem a certeza de que esta sandália era dela?
Sim, eu tenho umas iguais. Comprámo-las juntas no último dia que eu passei em Nova Iorque.
Há quanto tempo andava a sua irmã a responder a anúncios?
Começou cerca de seis meses antes de desaparecer. A polícia ainda investigou aqueles com quem ela tinha saído, pelo menos aqueles que conseguiu localizar.
E ela nunca publicou nenhum?
Que eu saiba, não.
Onde vivia ela em Nova Iorque?
Na Rua 63 Oeste. Tinha um apartamento num edifício de pedra. O meu pai ainda pagou a renda, quase durante um ano após o desaparecimento dela, depois desistiu.
Onde guardou as coisas dela?
139
A mobília não valia o preço do transporte. As roupas, os livros e as coisas pessoais estão lá em cima no quarto dela.
Gostaria de as ver.
Havia uma caixa em cima do armário com os papéis pessoais.
Fui eu que os arrumei disse Karen. A agenda, o livro de telefones, algumas cartas e esse tipo de coisas. Quando participámos o seu desaparecimento, a polícia passou
revista a tudo.
Vince pegou na caixa e abriu-a. A agenda, agora com dois anos de atraso, encontrava-se por cima de tudo. Passou-lhe os olhos. De Janeiro a Agosto estava cheia de
encontros. Claire Barnes não voltara a ser vista, depois do dia 4 de Agosto.
O que torna tudo mais difícil é saber que Claire tinha um código pessoal afirmou Karen Barnes com a voz trémula. Está a ver, onde diz Jim, queria dizer o estúdio
de Jim Hayworth, que era onde ela frequentava aulas de dança. Veja, dia 5 de Agosto, Tommy, isso queria dizer ensaio para o espectáculo de Tommy Tune, Grande Hotel.
Ela acabara de ser contratada.
Vince virou as páginas para trás. No dia 15 de Julho às cinco horas, ela tinha escrito Charley..
Charley.
Numa voz inexpressiva, perguntou: Sabe quem é este?
Não. Embora ela tenha mencionado um Charley que a levou a dançar. Acho que a polícia também não conseguiu localizá-lo. O rosto de Karen ficou lívido. Aquele sapato.
É o tipo de sapato que se usa para dançar.
Precisamente, Miss Barnes, por favor vamos manter este nome entre nós dois. A propósito, há quanto tempo morava a sua irmã naquele apartamento?
Há cerca de um ano. Antes disso, tinha uma casa em Village.
Onde?
Na rua Christopher, n. 101.
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Às cinco menos um quarto, Darcy entregou a Bev uma lista de contas para pagar e, obedecendo a um impulso, telefonou à mãe da adolescente doente. A garota regressava
a casa no final da semana seguinte. O pintor que Darcy contratara, um guarda bem-disposto que se dedicava também àquele tipo de actividades, já se encontrava a trabalhar.
Na próxima quarta-feira teremos tudo pronto garantiu Darcy.
"Ainda bem que tive o bom senso de trazer roupa comigo esta manhã", pensou, enquanto trocava a camisola e as calças de ganga por uma blusa de seda, de manga comprida
e decote oval e por uma saia também de seda em tons de verde e dourado com lenço a condizer. Um fio de ouro, uma pulseira dourada e brincos também dourados tudo
jóias desenhadas por Erin completavam o conjunto. De certa forma, sentia que usar os acessórios de Erin era como vestir uma armadura que a ajudaria a vencer aquela
batalha.
Soltou o cabelo e penteou-o. Bev entrou precisamente quando ela acabava de aplicar a sombra nos olhos.
Está fabulosa, Darcy exclamou Bev, e depois, hesitante, concluiu: Quero dizer, sempre me pareceu que nunca tirou partido da sua figura e agora, oh, meu Deus, já
não sei o que digo.
Erin costumava dizer-me o mesmo assegurou-lhe Darcy. Estava sempre a dizer-me que eu devia pintar-me mais e usar as roupas bonitas que a minha mãe me manda.
Bev trazia uma saia e uma camisola que Darcy já lhe vira por diversas vezes.
Por falar nisso, como te ficam as roupas de Erin?
Perfeitas. Fiquei tão contente por mas ter dado! As propinas voltaram a subir e juro que, ao preço a que está a roupa, estive quase a fazer de Scarlett O'Hara e
aproveitar os cortinados para fazer um vestido.
Darcy riu-se.
Essa continua a ser a minha cena favorita de E Tudo o Vento Levou. Olha, eu sei que te pedi para não usares a roupa de Erin no escritório, mas ela seria a primeira
a gostar de ver, por isso, usa-as à vontade.
Tem a certeza?
Darcy trocou o casaco de cabedal que costumava usar pela capa de cachemira e respondeu:
Claro que sim.
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Ia encontrar-se com a caixa 1527, David Weld, no restaurante do Smith e Wollensky, às cinco e meia. Ele dissera que ocuparia o último banco do bar ou ficaria perto
dele. Cabelo castanho, olhos castanhos cerca de seis pés de altura, e usaria um fato escuro.
Foi fácil descobri-lo.
"Um tipo agradável", concluiu Darcy quinze minutos depois. Encontravam-se sentados frente a frente, numa das mesas pequenas. Ele nascera e crescera em Boston, trabalhava
na cadeia de lojas Holden e passara os últimos três anos de um lado para o outro, acompanhando o crescimento da loja.
Ela calculou que deveria andar à volta dos 35 anos e depois perguntou-se se haveria alguma coisa naquela idade que levava os solteiros a recorrerem aos anúncios
pessoais.
Foi fácil desviar a conversa. O pai e o avô tinham sido executivos da Holden e ele trabalhava para eles desde miúdo. Depois da escola. Aos sábados, nas férias de
Verão.
Nunca me ocorreu fazer outra coisa confessou ele. A venda a retalho está no sangue da família.
Nunca conhecera Erin. Lera a notícia da sua morte.
É por isso que nos sentimos esquisitos ao colocar anúncios comentou ele e, após uma pausa, concluiu: Tudo o que eu quero é conhecer gente simpática. Você é simpática.
Obrigada.
Gostaria muito de jantar consigo, se puder ficar para jantar sugeriu, olhando-a com ansiedade. No entanto, o pedido fora formulado com dignidade.
"Este não tem problemas com o seu ego", pensou Darcy.
Sinceramente, não posso ficar, mas aposto que já encontrou muita gente simpática através dos anúncios.
Ele sorriu.
Algumas, sim. Uma delas... acredita que começou a trabalhar na loja Holden de Paramus, em Nova Jérsia? É ela que faz as compras. Tem o tipo de trabalho que eu tinha
antes de passar para a parte administrativa.
Ah, sim? E qual era? Comprava sapatos para as nossas lojas de Nova Inglaterra.
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Vince regressou ao seu escritório da Praça Federal às três horas de sexta-feira. Tinha um pedido para telefonar, com urgência, para o chefe da polícia de Darien,
o chefe Moore. Por ele, Vince soube da encomenda que chegara a casa dos Sheridan.
Tem a certeza de que se trata dos pares de sapatos que Nan usava?
Já os comparámos. Agora, estão os dois pares completos.
E os jornais já sabem?
Até agora, não. Temos tentado manter isto em segredo, mas sem garantias. Conhece Chris Sheridan. Essa foi a sua primeira preocupação.
E é também a minha apressou-se Vince a dizer. Agora, ficamos a saber que o assassino começou a matar há quinze anos, se não antes. Ele deve ter uma razão para ter
começado a mandar estes sapatos agora. Quero falar com um dos nossos psiquiatras para saber o que pensam eles disto. Mas, se conseguirmos relacionar alguém do tempo
de Nan Sheridan com Claire Barnes já é um grande avanço.
E Erin Kelley? Não a inclui também?
Continuo a manter tudo em aberto. A morte dela pode estar relacionada com as jóias desaparecidas, e alguém ter aproveitado para lançar a pista do crime de imitação.
Vince combinou que iria buscar os sapatos no dia seguinte e desligou.
O seu assistente, Ernie Cizek, um agente novo vindo do Colorado, contou-lhe o relato de Darcy acerca de Len Parker.
Esse tipo é esquisito afirmou Cizek. Trabalha na manutenção da Universidade de Nova Iorque. É perito em electricidade. Consegue arranjar seja o que for. Sozinho.
Tem a paranóia do dinheiro, mas ouça esta, a família é riquíssima. Parker tem um rendimento muito bom. Um curador garante-lhe um bom rendimento. A única vez que
retirou uma grande quantidade de dinheiro foi há alguns anos. O curador pensa que ele comprou uma propriedade. Parece que Vive do salário que ganha e mora num prédio
barato e sem elevador,
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na 9.§ Avenida. Tem uma carrinha velha. Não tem garagem. Estaciona-a na rua.
Tem cadastro?
Só algumas queixas por este tipo de coisas. Segue raparigas a casa, berra-lhes, bate com portas. É daqueles que põem muitos anúncios, mas toda a gente o rejeita.
Até agora, não há queixas de ataques físicos e nunca foi condenado.
Traga-o cá.
Falei com o psiquiatra dele. Diz que é inofensivo.
Claro que é. Tal como os mirones, nunca concretizam as suas fantasias. Nós bem o sabemos, não é?
Quando Susan anunciou que tencionava levar as crianças e ir visitar o pai a Guilford, Connecticut, durante o fim-de-semana, o marido concordou com satisfação. Doug
combinara ir dançar com a corretora divorciada e tinha andado a pensar se deveria cancelar o encontro. Naquela semana, chegara tarde duas vezes e, apesar de Susan
aparentemente ter apreciado o jantar de segunda-feira, em Nova Iorque, havia qualquer coisa no comportamento dela que ele não conseguia definir.
A saída de Susan e das crianças dava-lhe duas noites de folga. Não se ofereceu para ir com eles. Teria sido um gesto inútil. O pai de Susan nunca gostara dele e
estava sempre a mandar-lhe piadas acerca de como ele devia ser importante para ter tanto trabalho à noite. Dizia:
O curioso é que, com tanto trabalho que tens, ainda precisas de pedir dinheiro emprestado para comprar a casa, Doug. Se quiseres, eu não me importo de fazer contas
contigo e ficamos a saber para onde vai esse dinheiro.
Isso era o que ele queria.
Diverte-te, querida disse Doug a Susan ao sair na manhã de sexta-feira. E dá cumprimentos meus ao teu pai.
Naquela tarde, enquanto o bebé dormia, Susan telefonou para a agência de detectives, para lhe fazerem o relatório. Calmamente, apontou as informações que lhe iam
transmitindo. O encontro com a
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mulher no bar do Soho. O encontro que tinham marcado para irem dançar. O apartamento que ele habitava no London Terrace sob o nome de Douglas Field.
__- Carter Field é um velho amigo dele contou ela ao detective. __ São os dois iguais. Não é preciso voltar a segui-lo. Não quero saber mais nada.
O pai morava todo o ano numa casa anterior à revolução, que antes lhes servia de casa de Verão. Vários ataques cardíacos tinham-no deixado com uma palidez permanente,
que despedaçava o coração de Susan. Mas a sua voz autoritária nada tinha de frágil. Depois do jantar, Beth e Donny foram visitar uns vizinhos. Susan deitou Trish
e o bebé, depois arranjou uma última bebida e dirigiu-se para a biblioteca.
Sabia que o pai a estava a observar, enquanto lhe preparava uma chávena com adoçante e uma rodela de limão.
E quando é que eu vou ouvir a razão desta visita inesperada, ainda que agradável?
Susan sorriu.
Vai já saber. Vou divorciar-me de Doug. O pai aguardou.
"Promete que não vais dizer eu bem te avisei", rezou Susan interiormente e depois continuou:
Mandei uma agência de detectives segui-lo. Ele tem um apartamento alugado em Nova Iorque sob o nome de Douglas Field. Diz-se um ilustrador que trabalha por conta
própria. Como sabe, Doug tem muito jeito para desenhar. Tem imensos encontros. Entretanto, continua a dizer-me que trabalha imenso e que tem de assistir a todas
aquelas reuniões. Donny percebe que é tudo mentira e sente-se zangado e revoltado. Para ele, é melhor não esperar nada do pai do que estar sempre à espera que isto
mude.
Queres vir morar para aqui, Susan? Há imenso espaço. Ela dirigiu-lhe um sorriso grato.
Numa semana ficavas doido. Não. A casa de Scardsale é muito grande. Doug insistiu em comprá-la para impressionar a gente do clube. Nessa altura, não tínhamos dinheiro
para ela, e começo a entender por que razão não temos dinheiro para ela agora. Vou vendê-la, arranjo uma mais pequena, para o ano ponho o bebé numa creche, há uma
estupenda na cidade, e arranjo um emprego.
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Não vai ser fácil.
Vai ser muito melhor do que agora.
Susan, estou a fazer um grande esforço para não dizer Eu bem te avisei, mas agora já disse. Esse tipo nasceu um mulherengo e um mau carácter. Lembras-te de quando
fizeste dezoito anos? Nessa noite, ele vinha tão bêbedo que eu tive de o pôr fora de casa. Na manhã seguinte, tinha os vidros do meu carro todos partidos.
Não pode ter a certeza de que foi Doug.
Vá lá, Susan. Já que decidiste começar a encarar os factos, encara-os todos de uma vez. E, diz-me uma coisa, não estavas a protegê-lo quando ele foi interrogado
por causa da morte daquela rapariga?
De Nan Sheridan?
Claro. De Nan Sheridan.
Doug nunca seria capaz...
Susan. A que horas ele te veio buscar na manhã em que ela foi morta?
Às sete. Queríamos ir a Brown para ver o jogo de hóquei.
Susan, eu arranquei a verdade à avó antes de ela morrer. Tu estavas lavada em lágrimas porque pensavas que Doug te tinha deixado ficar para trás mais uma vez. Ele
chegou a nossa casa às nove. Pelo menos, dá-me a satisfação de ouvir agora a verdade da tua boca.
A porta da frente bateu ao ser fechada, e Donny e Beth entraram. O rosto de Donny espelhava felicidade e segurança. Estava a tornar-se uma cópia de Doug, quando
tinha a idade dele. Desde o liceu que ela tinha um fraco por Doug.
Susan sentiu uma dor aguda no peito. "Nunca conseguirei esquecê-lo totalmente", reflectiu ela.
"Susan, o meu carro avariou. Estão a tentar acusar-me. Querem arranjar um culpado. Por favor, diz-lhes que eu cheguei aqui às sete."
Doug aproximou-se para a beijar. Ela estendeu a mão e afagou-lhe o cabelo e, virando-se depois para o pai, respondeu:
Vá lá, pai. Sabe como a avó andava baralhada. Nessa altura ela não distinguia um dia do outro.
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XI
SÁBADO
2 de Março
Eram duas e trinta da madrugada de sábado quando ele chegou ao sítio. Nessa altura, a necessidade de lá chegar era insuportável. Quando ali estava, Charley podia
ser ele próprio. Não precisava de se esconder atrás do outro. Podia dançar em sintonia com Astaire, sorrindo para o fantasma nos seus braços, cantarolando ao ouvido.
A maravilhosa solidão daquele sítio, os cortinados opacos, protegendo-o de qualquer possível curioso, as fechaduras protegendo-o do mundo exterior, a percepção ilimitada
dele próprio, sem repressões de ouvintes ou de observadores, livre para mergulhar na delícia das memórias.
Nan. Claire. Janine. Marie. Sheila. Leslie. Annette. Tina. Erin. Todas elas sorrindo para ele, felizes por estarem com ele, sem nunca terem hipóteses de se virarem
contra ele, troçarem dele, de o olharem com desprezo. No fim, depois de perceberem, tinha sido tão maravilhosamente gratificante. Lamentava não ter dado a Nan uma
oportunidade para perceber o que se passava, de lhe pedir pela vida. Leslie e Annette tinham pedido que as poupasse. Marie e Tina tinham chorado.
Por vezes, as raparigas vinham ter com ele uma a uma. Outras vezes, apareciam juntas.
"Troca de parceiro e dança comigo." Àquela hora as duas encomendas já deviam ter chegado. Oh, se ao menos pudesse ser mosca e pudesse assistir ao momento em que
as pessoas abriam as caixas, ver as expressões de surpresa transformarem-se em reconhecimento!
Crime de imitação.
Não poderiam chamar-lhe isso outra vez. Agora, a seguir, fora
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Janine ou teria sido Marie? Janine. Vinte de Setembro, dois anos antes. Ia agora enviar a encomenda dela.
Desceu à cave. As caixas com os sapatos eram uma visão tão engraçada. Calçou as luvas de plástico, que sempre utilizava quando pegava em qualquer coisa que pertencesse
às raparigas, e pegou na caixa que dizia Janine. Endereçou-a para a família, que vivia em White Plains.
Os olhos detiveram-se na última, onde se lia Erin. Começou a rir. E por que não a mandava agora? Isso acabaria de uma vez por todas com aquela história do crime
de imitação. Ela dissera-lhe que o pai estava internado numa casa de repouso. Mandá-la-ia para a casa dela de Nova Iorque.
Mas e se o porteiro não fosse suficientemente esperto para entregar o embrulho à polícia? Que desperdício se alguém o arrumasse nalgum armário.
E se os mandasse para a morgue? Afinal, essa fora a sua última morada em Nova Iorque. Não deixaria de ser divertido.
Primeiro, limpava os sapatos e as caixas de maneira a apagar todas as impressões digitais. Depois, livrava-se das identificações. Ele costumava tirar-lhes as carteiras
e depois enterrava as bolsas.
Papel novo a embrulhar os sapatos. Tirar as etiquetas. Admirou os seus desenhos. Estavam cada vez melhor. O desenho da caixa de Erin era quase de profissional.
Papel castanho de embrulho, fita adesiva. Quer um quer outro poderiam ter sido comprados em qualquer parte dos Estados Unidos da América.
Primeiro, endereçou a encomenda de Janine.
Agora era a vez da de Erin. A lista telefónica de Nova Iorque certamente teria a morada da morgue.
Charley franziu a testa. E se algum palerma não a abrisse e resolvesse devolvê-la ao carteiro dizendo-lhe:
Não trabalha aqui ninguém com esse nome.
Sem remetente, a encomenda ficaria esquecida nalgum armário dos correios.
Havia outra solução. Seria um erro? Não. Na verdade, não. Desatou a rir. Sem dúvida que aquilo iria fazê-los pensar.
Começou a escrever o nome da pessoa que escolhera para receber a bota de Erin e o sapato de salto alto.
DARCY SCOTT...
148
No sábado, Darcy encontrou-se com a caixa 1143, Albert Booth, para um copo no café Vitory. Deulhe à volta de 40 anos. Da conversa telefónica que haviam tido e do
anúncio dele, ela depreendera que dizia ser um técnico de computadores, que gostava de ler, de fazer esqui, jogar golfe, dançar valsa, de passear pelos museus e
de ouvir música. Também afirmara possuir um grande sentido de humor.
E lá convencido era ele, concluiu Darcy, depois de ele lhe perguntar se o facto de responder a uma caixa a fazia sentir-se encaixotada. Na altura em que ela terminou
de beber o seu café, já duvidava de tudo o resto, excepto do facto de ele ser um perito em computadores. Ele tinha aquele ar de quem aprecia demasiado um bom sofá,
para poder gostar de esquiar, dançar ou de passear pelos museus.
O assunto da conversa resumia-se simplesmente ao passado, presente e futuro dos computadores.
Há quarenta anos atrás era preciso uma sala cheia de computadores para fazer aquilo que aqueles que hoje temos em cima das nossas secretárias fazem.
Eu acabei por comprar um no ano passado. Ele pareceu ficar chocado.
Enquanto comiam uns Ovos Benedito, ele manifestou o seu desgosto pela forma como os garotos mais espertos alteravam o registo das escolas, entrando no sistema dos
computadores.
Deviam ir para a cadeia, pelo menos durante cinco anos. E pagar também uma multa grande.
Darcy tinha a certeza de que, para ele, a violação de um santuário ou de um templo não seria um acto mais grave do que aquele.
Enquanto bebiam a última chávena de café, ele acabou, finalmente, de expor a sua teoria de que no futuro as guerras seriam ganhas ou Perdidas por peritos capazes
de destruir os computadores do inimigo.
Mudar todos os números, se é que me entende. Você pensa que tem duas mil ogivas nucleares no Colorado. Alguém transforma esse número em duas centenas. Fica com os
exércitos desarmados. As estatísticas mudam. Onde está a 5.a Divisão? E a 1.a. Já ninguém sabe ao certo? Não acha?
149
Acho, sim. Sorriram ambos.
Você é uma boa ouvinte, Darcy. Não se encontram muitas raparigas que saibam ouvir.
Era a deixa que ela aguardava.
Eu comecei agora a responder a anúncios. Não há dúvida de que se encontra muita gente diferente. Como é a maioria das pessoas que tem encontrado?
A maioria é muito aborrecida. E Albert, inclinando-se por cima da mesa, perguntou: Ouça, quer saber com quem saí há duas semanas?
Com quem?
Com aquela rapariga que foi assassinada. Erin Kelley. Darcy tentou não se mostrar muito anciosa.
E como era ela?
Uma rapariga bonita. Simpática. Estava preocupada com qualquer coisa.
Darcy deu um golo no café.
E ela disse-lhe o que a preocupava?
Sem dúvida. Disse-me que andava a terminar um colar qualquer, que era o seu primeiro grande trabalho, e que, mal recebesse o dinheiro, ia procurar uma casa nova.
Por alguma razão especial?
Ela disse que o superintendente tentava sempre encostar-se quando ela passava e estava sempre a arranjar desculpas para entrar dentro do apartamento dela. Ou porque
andava à procura dum cano furado ou por causa do aquecimento, esse tipo de coisas. Ela disse que ele parecia inofensivo, mas era arrepiante pensar que um dia entrava
no quarto e dava de caras com ele. Acho que isso aconteceu na véspera de ela sair comigo.
Não acha que devia contar isso à polícia?
Nem pensar! Eu trabalho na IBM. Eles não querem ver o nome dos empregados nos jornais, a não ser quando casam ou morrem. Se eu contar à polícia, eles começam a investigar-me,
não é? Mas, pergunto-me, acha que devo escrever-lhes uma carta anónima?
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Todos os recursos ao alcance do FBI tinham sido utilizados para tentar localizar o sítio onde os sapatos de salto alto, um enviado para casa de Claire Barnes e o
outro encontrado no pé de Erin Kelley, tinham sido comprados. No caso de Nan Sheridan, quinze anos antes a polícia identificara a loja, na Rua em Connecticut. Mas
ninguém se lembrava do comprador.
O sapato de Claire Barnes era caro, era um Charles Jourdan, que se vendia em qualquer loja de boa qualidade, em qualquer ponto do país. Mais precisamente, havia
dois mil pares à venda. Impossíveis de localizar. O de Erin Kelley tratava-se de um modelo corrente de Salvatore Ferragamo.
Os detectives e agentes da Polícia de Nova Iorque começavam a bater agora todas as lojas e sapatarias.
Len Parker foi trazido para ser interrogado. Começou por dizer como Darcy tinha sido rude para com ele.
Eu só queria pedir desculpa. Bem sei que fui mau. Talvez ela tivesse mesmo um compromisso para jantar, por isso eu seguia-a e vi que ela não tinha mentido. E fiquei
à espera cá fora, ao frio, enquanto ela jantava naquele restaurante bonito.
E ficou sempre ali?
Sim.
E depois?
Ela apanhou um táxi com um tipo. Eu apanhei outro. Saí um pouco mais à frente. O tipo acompanhou-a até à porta e foi-se embora. Eu aproximei-me e, quando avancei
para lhe pedir desculpa, ela fechou-me a porta na cara.
E quanto a Erin Kelley? Também a seguiu?
Por que havia de o fazer? Essa deixou-me a falar sozinho. Talvez a culpa tivesse sido minha. Estava maldisposto, quando me encontrei com ela. Disse-lhe que todas
as mulheres eram umas malditas caçadoras de fortunas.
Então, por que não o admitiu a Darcy Scott? Quando ela lhe perguntou, você disse que não conhecia Erin.
Porque sabia que iria acabar aqui.
Você vive na 9.a Avenida com a Rua 48?
Sim.
O seu procurador no banco está convencido de que você tem outra residência. Há cerca de cinco ou seis anos você levantou uma Quantidade considerável de dinheiro.
O dinheiro é meu e gasto-o como quiser.
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E comprou alguma casa?
Prove-o.
Na tarde de sábado, depois de terminar o interrogatório de Len Parker, Vince D'Ambrosio dirigiu-se ao 101 da Rua Christopher e tocou à campainha. Gus Boxer, de rosto
comprimido, veio à porta. Vestia uma camisola interior de manga comprida e, a segurar as calças largas, trazia uns suspensórios. Ficou impassível perante o distintivo
do FBI.
Estou de folga. O que me quer?
Quero falar contigo, Gus. Aqui ou na esquadra? E deixa de te fingir indignado. Tenho a sua ficha na minha secretária, Mr. Hoffman.
Os olhos de Boxer começaram a piscar de nervosismo.
Entre. E fale baixo.
Não tinha dado conta de que estava a falar alto.
Boxer conduziu-o ao seu apartamento do rés-do-chão. Tal como Vince esperava, da maneira como ele estava vestido, a casa era como um prolongamento da sua personalidade.
Estofos sujos e manchados, os restos do que em tempos deveria ter sido um tapete bege e uma mesa desengonçada atulhada de revistas pornográficas.
Vince folheou-as e comentou:
Grande colecção que tu aqui tens.
Há alguma lei que as proíba? Vince pousou as revistas e exclamou:
Ouve Hoffman, nós nunca te apanhámos, mas o teu nome aparece sempre no computador de uma maneira muito pouco saudável. Há dez anos, eras o superintendente de um
edifício onde uma rapariga de vinte anos foi encontrada morta na cave.
Não tive nada a ver com isso.
Ela tinha apresentado queixa ao proprietário, por te ter encontrado no apartamento dela a revistar-lhe o armário.
Andava à procura de um cano roto. Havia uma fuga de água no cano que passava atrás do armário.
Não foi essa a história que há duas semanas contaste a Erin Kelley?
Quem disse isso?
Ela disse a alguém que iria mudar de casa, assim que pudesse, porque te encontrou no quarto dela.
Eu estava...
152
à procura de um cano roto, eu sei. Agora, vamos conversar
acerca de Claire Barnes. Quantas vezes te apanhou em casa dela, quando aqui vivia?
Nunca.
Assim que deixou Boxer, Vince dirigiu-se directamente para o seu escritório, chegando mesmo a tempo de receber um telefonema de Hank. Não se importava se ele só
chegasse às oito? Tinha um jogo de basquetebol na escola, e os amigos estavam a pensar em ir comer uma pizza depois do jogo.
Era um garoto bestial, repetiu Vince para si próprio, enquanto garantia a Hank que não havia qualquer problema. Tinha valido a pena passar todos aqueles anos a tentar
recompor o seu casamento com Alice. Bem, pelo menos agora ela era feliz. A esposa embonecada de um tipo cuja carteira era tão gorda quanto a sua cintura. E ele?
Gostaria de encontrar alguém, admitiu para si próprio, percebendo subitamente que no seu pensamento tinha surgido o rosto sorridente de Nona Roberts.
O seu assistente Ernie informou-o de que havia uma pista. Um agente da Esquadra do norte da cidade apanhara Petey Potters, o tipo que vivia na doca onde Erin fora
encontrada. Tinham trazido Petey para ser interrogado.
Vince correu para o elevador.
Petey estava com problemas de visão. Via a dobrar. Isso acontecia-lhe com frequência, depois de algumas garrafas de tinto. O que queria dizer que, em vez de três
polícias, ele via três conjuntos de polícias gémeos. "Já nem nos olhos nos podemos fiar!"
Petey pensou na rapariga morta. Como ela estava fria quando ele lhe tirara o colar.
O que estava o chui a dizer?
Petey, encontrámos impressões digitais na garganta de Erin Kelley. Vamos compará-las com as tuas.
Através da névoa que lhe turvava a visão, Petey pensou num amigo que tinha apunhalado um tipo. Há cinco anos que estava na Prisão e o tipo que ele tinha apunhalado
só ficara arranhado. Petey nunca tivera problemas com os chuis. Nunca. Ele não fazia mal a uma mosca.
153
MARYHIGGINS CLARK
Disse-lhes isso mesmo. E ficou convencido de que ninguém acreditou.
Oiçam confidenciou ele, voluntariamente. Eu encontrei a rapariga. Não tinha dinheiro sequer para beber um café. E as lágrimas acudiram-lhe aos olhos ao pensar em
como tinha sentido sede. Percebi que o colar era mesmo de ouro. Tinha uma corrente grande com moedas e calculei que, se não fosse eu a levá-lo, outro que ali chegasse
o faria. Incluindo alguns chuis de quem já ouvi falar acrescentou, arrependendo-se imediatamente.
E o que fizeste com o colar, Petey? perguntou Vince.
Vendi-o por vinte cinco notas, àquele grande janota que trabalha na 7.a Avenida, perto da parte sul de Central Park.
O Bert Compra e Vende explicou um dos polícias. Nós apanhamo-lo.
Quando encontraste o corpo, Petey?
Quando acordei, de manhã resmungou Petey, e os olhos ficaram com uma expressão matreira. Tudo estava a voltar novamente ao seu lugar. Mas, de manhã cedo, ainda estava
tudo escuro eu ouvi um carro entrar na doca, passar por mim e parar. Calculei que fosse alguma troca de droga e deixei-me estar quieto. Verdade.
Mesmo depois de o ouvires partir? perguntou um dos agentes. Nem sequer espreitaste?
Bom, quando tive a certeza de que tinham ido embora...
E viste alguma coisa, Petey?
Eles tinham acreditado, Petey sabia. Se ao menos lhes pudesse dizer alguma coisa para eles perceberem o quanto ele queria colaborar... Petey tentou afastar a névoa
alcoólica, para procurar no mais recôndito da sua memória. Todos aqueles dias passados com uma garrafa de água e um trapo à saída da rua 56 para a rodovia de West
Side. Aí, tivera muitas oportunidades de ver como eram as traseiras de um carro.
De repente, lembrou-se das luzes traseiras do carro a desaparecer no cais. Havia algo no vidro traseiro.
Era uma carrinha declarou com voz triunfante. Juro pela sepultura de Birdie que era uma carrinha.
À medida que ia ficando mais uma vez baralhado, Petey fez um esforço para não se descair. O mais certo era Birdie ainda estar viva.
154
Darcy e Nona tinham combinado jantar, na noite de sábado. Outros amigos tinham telefonado para se encontrarem, mas Darcy não se sentia com disposição para ver mais
ninguém.
Combinaram encontrar-se no restaurante Jimmy Neary, na Rua
57 Este. Darcy chegou primeiro. Jimmy reservara-lhes a mesa do canto mais resguardada.
Foi uma pena declarou ele, saudando-a. Erin foi uma das raparigas mais bonitas que aqui entrou, Deus a tenha em descanso. E, dando uma palmadinha na mão dela^ concluiu:
E não pense que eu não sei que era muito amiga dela. Às vezes, quando ela aparecia para comer qualquer coisa, eu sentava-me um bocadinho ao pé dela. Disse-lhe para
ter muito cuidado ao responder a esses anúncios malucos.
Darcy sorriu.
Estou surpreendida por ela lhe ter falado nisso, Jimmy. Ela sabia que não teria a sua aprovação.
Pode ter a certeza de que não foi ela. Mas, na semana passada, ao pegar num lenço de dentro do bolso, caiu-lhe um anúncio cortado de uma revista. Caiu ao chão, eu
apanhei-o e chamou-me a atenção. Eu disse-lhe: "Erin Kelley, espero que não ande metida nessas patetices".
Era isso que eu receava explicou Darcy. Erin podia ser uma óptima desenhadora de jóias, mas não era muito organizada com os seus papéis. O FBI tem tentado identificar
toda a gente com quem ela se encontrou, mas tenho a certeza de que a lista não está completa. Darcy decidiu que seria melhor omitir que também ela andava a responder
aos anúncios. E lembra-se do que dizia o anúncio?
Neary enrugou a testa, pensativo.
-Não, não, mas olheio com atenção e vou tentar. Tinha qualquer coisa a ver com música ou... ah, hei-de lembrar-me. Aí vem Nona, e vem acompanhada.
Vince seguiu Nona até à mesa.
Não me demoro mais de um minuto disse para Darcy. Não
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quero intrometer-me no vosso jantar, mas andava à sua procura. Telefonei a Nona e soube que a encontraria aqui.
Está tudo bem e gostava que ficasse respondeu Darcy notando que os olhos de Nona tinham um brilho que ela nunca vira. Contaram-lhe que Erin disse a um dos homens
com quem saiu que encontrou o superintendente outra vez dentro do seu apartamento?
Hoje fui falar com Boxer explicou Vince, erguendo a sobrancelha. Outra vez?
Erin tinha-me dito isso no ano passado, mas considerou-o inofensivo. Pelos vistos, há duas semanas mudou de ideias.
Temo-lo debaixo de olho, assim como a muitos outros. Gostaria que me falasse acerca do tipo de ontem.
Era um tipo simpático...
Liz chegou, para tomar nota das encomendas. Dirigiu a Darcy um sorriso rápido e compreensivo. "Ela foi sempre tão prestável para nós", pensou Darcy. Um dia contara
a Erin que, como nascera na Irlanda, também já fora ruiva.
Dubonnet para Darcy e Nona. Para Vince, uma cerveja.
Nona exclamou para Vince.
Tem de comer alguma coisa!
Ele optou por carne de vaca com couve.
Vince retomou, então, a conversa acerca do encontro de Darcy.
Quero saber todos os encontros que tenha. Já conheceu dois que admitiram ter saído com Erin. Por favor, deixe que seja eu a decidir quem é importante e quem não
é.
Ela contou-lhe então acerca de David Weld.
É um executivo, da cadeia de lojas Holden de Boston e, pelo que percebi, tem andado de um lado para o outro nos últimos anos, acompanhando o crescimento das lojas.
Darcy podia ler os pensamentos de Vince. "De um lado para o outro, nos últimos anos." Darcy continuou: A única coisa que me chamou a atenção foi o facto de ele ter
estado ligado à compra de sapatos.
Sapatos! Como se chama esse tipo? perguntou Vince, apontando o nome na agenda. David Weld, caixa 1527. Acredite-me, Darcy, que vamos investigá-lo. Nona já lhe contou
acerca dos sapatos que foram devolvidos aos pais daquela rapariga de Lancaster?
Já.
Ele hesitou, olhou em volta e viu que as pessoas da mesa ao lado se encontravam absorvidas pelas suas próprias conversas.
Temos tentado manter isto em segredo. Ontem, foi devolvido
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outro par de sapatos desirmanados. Eram os pares daqueles que Nan Sheridan calçava, quando foi encontrada morta, há quinze anos.
Darcy agarrou-se à mesa.
Então, a morte de Erin pode não ser um crime de imitação.
Não sabemos. Andamos a investigar se alguém que conheceu Claire Barnes esteve, de alguma forma, relacionado com Nan Sheridan.
E Erin? perguntou Nona.
Claro que isso implicaria que estamos perante outro Ted gundy, que há muitos anos anda por aí a cometer assassínios respondeu Vince, pousando o garfo. Vou ser muito
claro. O que acontece é que a maioria das pessoas que respondem a estes anúncios são muito diferentes daquilo que pretendem ser. Todas as jovens que o nosso computador
descreveu como tendo sido possíveis vítimas são mais ou menos da vossa idade e têm o vosso grau de beleza e inteligência. Por outras palavras, o nosso assassino
pode sair com cinquenta raparigas e só se sentir atraído por uma delas. Eu sei que não vou conseguir convencê-la a desistir de responder a esses anúncios. Na verdade,
conseguiu arranjar-nos alguns elementos que precisam de ser investigados. No entanto, você não está preparada para servir de isco, pois é uma jovem simpática e vulnerável
que não tem capacidade de se defender se, subitamente, se vir entre a espada e a parede.
Não tenciono deixar que alguém me ponha entre a espada e a parede.
Vince bebeu um café e retirou-se. Explicou que o seu filho Hank estava a chegar no comboio, vindo de Long Island, e ele queria estar em casa quando ele chegasse.
Os olhos de Nona seguiram-no, enquanto ele pagava a conta.
Reparaste na gravata? perguntou ela. Hoje vestiu uma azul e preta com um fato de t weed castanho.
A sério? De certeza que isso não te incomoda?
Não, até gosto. Vince D'Ambrosio está tão determinado a apanhar o assassino que tenho a certeza de que se esquece de tudo o resto. Acontece que eu telefonei para
casa dos Barnes em Lancaster, logo a seguir a eles terem recebido os sapatos, e digo-te que era de cortar o coração. Hoje, telefonei ao irmão de Nan Sheridan para
o convidar para o programa. Podia distinguir-se a mesma dor na voz dele- Oh, Darcy, por amor de Deus, tem cuidado!
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XII
DOMINGO
3 de Março
Às nove horas da manhã de domingo, Michael Nash telefonou-lhe.
Tenho estado a pensar em si. Na verdade, tenho estado preocupado. Como vai isso?
Darcy dormira razoavelmente bem.
Bem, acho eu.
Pronta para ir até Bridgewater em Nova Jérsia e jantar por lá? E, sem esperar pela resposta dela, concluiu: Não sei se já olhou pela janela, mas hoje está um lindo
dia. Parece mesmo Primavera. A minha governanta é uma óptima cozinheira e fica muito frustrada se eu não lhe levar alguém, pelo menos uma vez por semana.
No fundo, ela temia aquele dia. Quando não tinham planos, ela e Erin encontravam-se frequentemente aos domingos, para comer qualquer coisa, e passavam a tarde no
centro Lincoln ou num museu.
Parece-me óptimo.
Combinaram que ele iria buscá-la às onze e meia.
E não é preciso arranjar-se de forma especial. Na verdade, se gostar de montar a cavalo, vista umas calças de ganga. Tenho dois cavalos muito bons.
Adoro montar.
Nash apareceu num Mercedes de dois lugares.
Muito moderno comentou ela.
Vestia uma camisola de gola alta, umas calças de ganga e um casaco espinhado. Na noite anterior, ela ficara com a impressão de que Os seus olhos eram bondosos. Naquele
dia, continuavam bondosos, mas havia qualquer coisa mais. "Talvez seja este o olhar de um tipo que está interessado numa mulher", pensou Darcy, e a hipótese agradou-lhe.
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O passeio foi agradável. À medida que avançavam pela Estrada
287, os subúrbios iam desaparecendo. As casas que se viam da estrada estavam agora cada vez mais distantes. Nash falava-lhe dos pais, com afecto caloroso.
Parafraseando aquele velho anúncio, o meu pai fez fortuna à maneira antiga, trabalhando. Quando eu nasci, ele começava a ter sucesso. Durante dez anos, mudámos de
casa regularmente, para uma sempre maior que as outras, até que, quando eu tinha onze anos comprou esta. Como já lhe disse, os meus gostos são um pouco mais simples,
mas, Deus, como ele estava feliz no dia em que nos mudámos! Até levou a minha mãe ao colo.
Na verdade, era fácil falar com Michael Nash acerca dos seus pais famosos e da mansão de Bel-Air.
Sempre me senti deslocada ali, como se a filha dos reis vivesse numa cabana e eu fosse ali uma impostora. Como é que duas pessoas tão maravilhosas tiveram uma filha
tão enfezada?
Erin era a única pessoa que sabia aquela história. Agora, Darcy deu por si a contá-la a Michael Nash. Por fim, acrescentou:
Ei, hoje é domingo, doutor, e você não está de serviço. Tem de ter cuidado, pois como ouvinte é excelente.
Ele olhou-a, de relance.
E quando cresceu nunca se olhou ao espelho e verificou como essa frase estava desactualizada?
Acha que sim?
Eu diria que sim.
Tinham saído agora da estrada principal e entrado numa secundária.
A vedação marca o início da propriedade. Passou um minuto, até depararem com o portão.
Meu Deus, quantos acres tem aqui?
Quatrocentos.
Quando tinham jantado no Le Cirque, ele dissera que a casa era demasiado vistosa.
Darcy concordou, em silêncio, decidindo, no entanto, que se tratava de uma mansão de certa forma imponente. As árvores e as plantas estavam ainda sem folhas, mas
os arbustos que rodeavam a longa alameda eram espessos e luxuriantes.
Se achar que se divertiu e voltar cá para o mês que vem, vai ver que a paisagem vale bem a viagem comentou Nash.
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Mrs. Hughes, a governanta, preparara um almoço leve com sanduíches recheadas com frango, fiambre e queijo, bolinhos e café. Olhou para Darcy, aprovadora, e para
Michael com severidade.
Espero que isto seja suficiente, menina. O doutor disse-me que, como vão jantar mais cedo, o almoço deveria ser leve.
Está perfeito respondeu Darcy com sinceridade. Comeram na sala dos pequenos-almoços, e depois Michael mostrou-lhe o resto da casa.
A decoração interior é perfeita declarou ele. Não acha? As antiguidades custaram uma fortuna. Tenho a impressão de que grande parte delas são falsas. Um dia destes
mudo tudo, mas para já acho que não vale a pena. A não ser quando tenho convidados, não saio do escritório. Aqui estamos nós.
Aqui está uma sala confortável! exclamou Darcy encantada. Quente. Habitada. Com uma óptima vista. Boa luz. É o tipo de ambiente que eu tento criar quando faço a
decoração de qualquer sala.
Na verdade, nunca me falou muito acerca do seu trabalho. Quero que me conte tudo. Mas e se fôssemos agora dar um passeio a cavalo? John já tem os cavalos prontos.
Darcy aprendera a montar quando tinha 3 anos. Era uma das poucas actividades que nunca partilhara com Erin.
Ela tinha medo dos cavalos disse ela para Michael, enquanto trepava para a sela de uma égua preta.
Então, dar um passeio a cavalo não a fará recordar coisas tristes. Que bom!
O ar fresco e limpo parecia que lhe limpava do nariz o cheiro das flores fúnebres. Trotaram pela propriedade de Michael e diminuíram a velocidade ao entrarem na
cidade, onde encontraram outros cavaleiros, que Michael lhe apresentou como sendo seus vizinhos.
Às seis horas, jantaram na pequena sala-de-jantar. Arrefecera muito. A lareira estava acesa, o vinho branco estava fresco e havia uma garrafa de vinho tinto no aparador.
John Hughes, agora fardado, serviu a refeição preparada na perfeição: cocktail de marisco, medalhões de vitela, espargos, batatas assadas e salada verde com queijo.
Sorvete de frutas e café.
Darcy suspirou ao beber o café.
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Não sei como lhe hei-de agradecer. Se tivesse passado o dia em casa sozinha, teria sido bem mais difícil.
E se eu tivesse passado aqui o dia sozinho teria sido bastante aborrecido.
Darcy não pôde deixar de ouvir o comentário de Mrs. Hughes para o marido, quando eles partiam:
Ora aqui está uma rapariga encantadora. Espero que o doutor a traga novamente.
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XIII
SEGUNDA-FEIRA
4 de Março
Na noite de segunda-feira, Jay Stratton encontrou Merril Ashton no Bar Oak, do Plaza.
A pulseira cravada de diamantes ao estilo vitoriano mereceu imediata aprovação de Ashton.
Francês vai adorar exclamou, entusiasmado. Ainda bem que me convenceu a comprar-lha.
Eu sabia que ia gostar. A sua esposa é uma mulher muito bonita. Esta pulseira ficará maravilhosamente no braço dela. Como lhe disse, quero que a mande avaliar quando
chegar à sua terra. Se o seu joalheiro lhe disser que ela vale um centavo a menos de quarenta mil dólares, o negócio fica sem efeito. Na verdade, estou convencido
de que ele lhe irá dizer que fez um óptimo negócio e a verdade é que espero que, no próximo Natal, se decida oferecer a Francês outra jóia. Um colar de diamantes?
Uns brincos? Depois veremos.
Então este é o isco que me preparou? perguntou Ashton, rindo, enquanto pegava no livro de cheques. É um bom negócio.
Jay sentiu a excitação do risco apoderar-se dele. Qualquer joalheiro competente diria a Ashton que, mesmo por cinquenta mil dólares, o negócio continuava a ser uma
pechincha. No dia seguinte tinha um almoço marcado com Enid Armstrong. Mal podia esperar para lhe deitar a mão ao anel.
"Obrigado Erin", pensou ele aceitando o cheque.
Ashton convidou Jay para uma refeição rápida antes de tomar o avião. Ia apanhar o avião das nove e meia para Winston Salem, ^tratton explicou-lhe que tinha um encontro
com um cliente marcado para as sete. Claro que não lhe disse que Darcy Scott não era o tipo de cliente que ele mais gostava de encontrar. No bolso tinha um
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cheque de dezassete mil e quinhentos dólares. Os vinte mil do Bertollini menos a sua comissão.
Despediram-se com entusiasmo.
Os meus cumprimentos para Francês. Eu sei como ela vai ficar feliz.
Stratton não reparou que outro homem se levantava de uma mesa perto e que seguiu Merril Ashton até ao átrio.
Posso falar consigo, senhor?
Ashton leu o cartão que o outro lhe apresentou: Nigel Bruce, Lloyd's de Londres.
Não entendo exclamou Ashton.
Senhor, se Stratton sair não quero que ele me veja. Não se importa de entrar comigo na joalharia ali à frente? Um dos nossos peritos virá ter connosco. Gostaríamos
de dar uma vista de olhos à peça que acaba de comprar informou o investigador e, vendo o ar aparvalhado de Ashton, acrescentou: Trata-se de uma questão de rotina.
Rotina? Está a sugerir que a pulseira que eu acabei de comprar foi roubada?
Não estou a sugerir nada, senhor.
O raio é que não está. Bem, se há alguma coisa de errado com esta pulseira, eu quero sabê-lo imediatamente. O cheque não está visado. Posso cancelá-lo de manhã.
O jornalista do New York Post, encarregado da investigação, desempenhou bem o seu trabalho, pois conseguiu apurar que tinha sido entregue uma encomenda em casa de
Nan Sheridan, contendo os pares dos sapatos que ela calçava quando foi morta. Assim, na primeira página, via-se a fotografia de Nan Sheridan, a fotografia de Erin
e de Claire Barnes, ampliadas, lado a lado, e sob o título "Assassino de Mulheres Anda à Solta".
Darcy leu o jornal dentro do táxi a caminho do Plaza. Aqui estamos, Menina.
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- O quê? Oh, está bem. Obrigada.
Estava contente por ter os encontros todos seguidos. Uma vez mais trouxera uma muda de roupa para o escritório e desta vez vestira um conjunto de lã vermelha, adquirido
igualmente no Rodeo Drive. Ao sair do táxi lembrou-se de que era aquele fato que usava da última vez que falara com Erin. Se ao menos a pudesse ter visto uma vez
mais.
Faltavam dez minutos para as sete e ia adiantada para o seu encontro com Jay Stratton. Darcy decidiu ir entrando para o bar. Fred, o chefe do restaurante, era um
velho amigo.
Desde que se lembrava, sempre que os pais vinham a Nova Iorque ficavam no Plaza.
Havia uma coisa que Michael Nash lhe dissera na véspera e que a andava a incomodar. Ele sugerira que ela ainda guardava um certo ressentimento por um comentário
cruel e descuidado que deixara de ter qualquer validade. Deu por si ansiosa por voltar a ver Nash. "Suponho que é como ter uma consulta de borla, mas gostava de
lhe perguntar isto", concluiu enquanto Fred se apressava ao seu encontro para a cumprimentar.
Eram sete em ponto, quando entrou na porta ao lado que conduzia ao bar. Jay Stratton ocupava uma mesa ao canto. Só o vira uma vez em casa de Erin, e a sua primeira
impressão fora acentuadamente desfavorável. Ele estava zangado devido ao desaparecimento do colar do Bertollini e depois ficara preocupado com o desaparecimento
da bolsa de diamantes. Mostrara muito mais preocupação com o desaparecimento do colar do que com o de Erin. Naquela noite parecia outra pessoa, tentava realmente
ser simpático. No entanto, ela tinha a certeza de que o verdadeiro Stratton era aquele que vira pela primeira vez.
Perguntou-lhe onde conhecera Erin.
Não se ria. Acontece que ela respondeu a um anúncio que eu coloquei. Conheci-a por acaso e telefonei-lhe. Uma destas coincidências inexplicáveis. Bertollini pedira-me
para arranjar alguém para desenhar aquele colar e quando li a carta dela lembrei-me daquela Peça maravilhosa que ela desenhou e que ganhou o Prémio Ayer. Foi assim
que nos encontrámos. Foi um encontro de negócios, embora ela me tenha pedido para a acompanhar a uma festa de beneficência. Um cliente dera-lhe os convites. Dançámos
a noite toda.
Por que sentia ele a necessidade de realçar que se tratara simplesmente de um encontro de negócios?, perguntou-se Darcy. Teria Erin
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pensado o mesmo? Havia seis meses apenas que Erin lhe confidenciara:
- Sabes, Darce, cheguei a um ponto onde o que mais desejo é conhecer um tipo simpático e apaixonar-me terrivelmente.
Aquele Jay Stratton que se encontrava à sua frente, solícito, simpático, elegante e capaz de reconhecer o talento de Erin poderia muito bem corresponder às suas
expectativas. - E a que anúncio seu é que ela respondeu? Stratton encolheu os ombros. - Francamente, eu coloquei tantos, que acabei por me esquecer.
- E, sorrindo, acrescentou: - Ficou chocada, Darcy. Eu explico-lhe o que também expliquei a Erin. Um dia destes hei-de casar com uma mulher muito rica. Ainda não
a encontrei, mas pode ter a certeza de que a encontrarei. Conheço muitas mulheres através destes anúncios. Não é muito difícil convencer mulheres mais velhas a aliviar
a sua solidão, através da compra de uma jóia bonita ou alterando aquelas que já possuem. Elas ficam felizes e eu fico feliz.
- Por que me está a confidenciar isso? - perguntou Darcy. Espero que não pense que me lisonjeia assim. Não pensei no nosso encontro como um encontro de prazer. Quanto
a mim, estamos aqui para tratar de negócios.
Stratton abanou a cabeça.
- Deus me livre de ser tão pretensioso. Estou apenas a contar-lhe o que disse a Erin quando ela me explicou a razão por que respondia aos anúncios. Por causa da
vossa amiga produtora, não foi?
- Sim.
- O que estou a tentar dizer, e se calhar não o fiz da melhor maneira, é que não houve nada de romântico entre mim e Erin. A próxima coisa que quero fazer é apresentar
as minhas sinceras desculpas pela minha atitude da última vez que nos encontrámos. Bertollini é para mim um cliente muito importante, e eu nunca tinha trabalhado
com Erin. Não a conhecia suficientemente bem para ter a certeza de que ela não partiria para qualquer lado esquecendo o compromisso assumido. Acredite que passei
uns momentos muito desagradáveis, pensando na impressão que lhe devo ter causado quando a encontrei tão preocupada, e eu só me preocupei com os meus clientes.
"Um bonito discurso", pensou Darcy. "Devia avisá-lo de que vivi a maior parte da minha vida com dois dos melhores actores deste país." Perguntou-se se seria muito
inadequado bater palmas. Em vez disso, respondeu:
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- Trouxe o cheque do colar?
- Sim. Não sabia a quem dirigi-lo. Acha que ao herdeiro de Erin Kelley está bem?
Herdeiro de Erin Kelley. Todos aqueles anos Erin vivera sem as coisas que todos os seus amigos consideravam essenciais. Orgulhosa de poder manter o pai numa casa
de repouso particular. Encontrava-se à beira do sucesso total.
Engolindo em seco, Darcy respondeu:
- Serve perfeitamente.
Olhou para o cheque. Dezassete mil e quinhentos dólares à ordem do herdeiro de Erin Kelley, a sacar ao banco Chase Manhattan e assinado por Jay Charles Stratton.
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XIV
TERÇA-FEIRA
5 de Março
Na manhã de terça-feira, quando o agente D'Ambrosio entrou nas galerias Sheridan, olhou rapidamente à sua volta antes de subir até ao escritório de Chris Sheridan.
A mobília lembrou-lhe a que vira na sala de Nona Roberts. Engraçado.
Uma das coisas que sempre quisera fazer fora um curso de arte e antiguidades. O departamento de Roubos de Arte só conseguira aguçar-lhe o apetite.
"Entretanto", pensava Vince enquanto seguia a secretária pelo corredor, vou vivendo com os erros de Alice." Na altura do divórcio cansara-se de esperar uma atitude
correcta da parte dela e dissera-lhe: "Leva o que quiseres, se isso é assim tão importante para ti."
E ela assim fizera.
Sheridan estava ao telefone. Sorriu e, com um gesto, convidou Vince a sentar-se. Sem o aparentar, Vince atentou na conversa, qualquer coisa acerca de uma colecção
estar exageradamente valorizada.
Sheridan dizia:
Diga a Lorde Kilman que eles podem prometer-lhe essa quantia mas não vão pagá-la. Nós estamos prontos a negociar razoavelmente. O mercado não está tão forte como
há alguns anos atrás, mas estará ele preparado para esperar mais três ou cinco anos? De qualquer maneira, acho que se ele estudar cuidadosamente as nossas estimativas
verificará que muitas das peças que adquiriu recentemente lhe darão um lucro bastante razoável.
Confiante. Conhecedor. Simpatia inata. Fora assim que Vince avaliara Chris Sheridan, na semana anterior, quando fora a Darien. Nessa altura, Sheridan vestia uma
camisa desportiva e um blusão de
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couro. Naquele dia usava um fato cinzento, uma camisa branca, uma gravata cinzenta e vermelha, parecendo-se muito com um executivo. Chris desligou o telefone e estendeu
a mão por cima da mesa. Vince pediu desculpa por não ter avisado da sua visita e foi directo ao assunto.
Quando falei consigo na semana passada, estava firmemente convencido de que o assassínio de Erin Kelley se devia a um crime de imitação devido ao programa dos Crimes
Verdadeiros acerca da sua irmã. Agora, já não tenho a certeza. E contou-lhe o que se passara com Claire Barnes e com o embrulho que fora enviado para casa dela.
Chris ouviu atentamente.
Outra.
Pareceu a Vince que naquela palavra se concentrava toda a dor de ter perdido a irmã.
Posso fazer alguma coisa para ajudar? perguntou Chris.
Não sei respondeu Vince com franqueza. Quem matou a sua irmã devia conhecê-la. O número do sapato não pode ser coincidência. Temos três possibilidades. O mesmo assassino
continuou a matar mulheres durante todos estes anos. O mesmo assassino parou de matar e agora recomeçou. A terceira possibilidade é que o assassino de Nan Sheridan
tenha transmitido a sua maneira de agir a outro que resolveu adoptá-la. Esta é a menos provável.
Quer dizer que vai tentar encontrar alguém conhecido de Nan, que se tenha relacionado com alguma destas?
Precisamente. Embora no caso de Erin Kelley, devido aos diamantes desaparecidos, haja a possibilidade de termos um culpado diferente. Por isso, tencionamos explorar
ambas as hipóteses.A razão por que aqui estou deve-se a tentarmos fazer essa mesma ligação entre Nan, Erin Kelley e Claire Barnes.
Alguém que tenha conhecido a minha irmã há quinze anos e que depois tenha conhecido as outras através dos anúncios?
Isso mesmo. Darcy Scott era a melhor amiga de Erin Kelley. Andavam ambas a responder a anúncios porque uma amiga produtora de televisão preparara um documentário
sobre o assunto e lhes pediu para a ajudarem na pesquisa. Darcy esteve fora da cidade durante um mês. Entregou a Erin um exemplar da carta de resposta e uma fotografia.
Sabemos que Erin respondeu a alguns anúncios pelas duas. Darcy Scott está esperançada de que o assassino de Erin a venha a contactar.
Chris franziu a testa.
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- Quer dizer que autorizou outra rapariga a correr o risco de ser morta?
Vince ergueu a mão, rejeitando aquela possibilidade.
Você não conhece Darcy Scott. Eu não autorizei nada. Ela está determinada a fazê-lo. A única coisa de que eu tento convencê-la é de que, como ela já se encontrou
com alguns tipos interessantes, já nos ajudou bastante.
Continuo a achar uma ideia péssima declarou Chris.
Também eu, e, agora que estamos ambos de acordo, aqui está como eu acho que você pode ajudar. Quanto mais depressa apanharmos o tipo, menos possibilidades há de
Darcy Scott ou outra rapariga qualquer sofrerem um acidente. Nós vamos a Brown fazer um levantamento de toda a gente que frequentou a faculdade ou que pertencia
ao corpo docente na altura em que a sua irmã lá andou. Verificaremos se há algum nome comum com as pessoas que Darcy Scott tem encontrado. Acho que seria uma boa
ideia se ao mesmo tempo ela visse as fotografias e os álbuns dos amigos da sua irmã. Tem de compreender que nem toda a gente que responde aos anúncios usa o seu
verdadeiro nome. Quero que Darcy Scott veja as fotografias de Nan para ver se reconhece alguma cara.
Claro que temos imensas fotografias de Nan respondeu Chris lentamente. Há dez anos, depois de o meu pai morrer, consegui convencer a minha mãe a encaixotar tudo
e a guardá-las no sótão. A mãe admitiu que o quarto dela estava a ficar um túmulo.
Ainda bem declarou Vince. Deve ter sido bastante convincente.
Chris sorriu por momentos.
Fiz-lhe ver que se tratava de um dos quartos da casa com mais luz e que seria o ideal para os futuros netos. O problema está, tal como a minha mãe me diz com frequência,
no facto de eu não me resolver. O sorriso desapareceu. Eu só posso ir a Connecticut no fim-de-semana. No domingo trago-lhe isso tudo.
Vince levantou-se.
Agradecia-lhe. Eu sei como tudo isto tem sido difícil para a sua mãe, mas, se conseguirmos apanhar o tipo responsável pela morte da sua irmã, acredite que isso lhe
irá trazer muita paz de espírito.
Quando estava para sair soou o bip.
Importa-se de que eu use o seu telefone?
Sheridan entregou-lhe o telefone e ficou a observá-lo enquanto D'Ambrosio enrugava a testa.
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E como está Darcy?
Chris sentiu uma onda de apreensão. Não conhecia a rapariga mas sentiu um súbito pavor por ela. Nunca dissera a ninguém que na manhã em que Nan saíra para correr
ele a ouvira sair. Meio a dormir começara a levantar-se. O instinto impelia-o a segui-la. No entanto afastara aquela sensação e voltara a adormecer.
Vince desligou o telefone e virou-se para Chris.
Haverá alguma possibilidade de conseguir as fotografias imediatamente? A polícia de White Plain telefonou. O pai de Janine Wetzl, outra das raparigas desaparecidas,
acabou de receber o mesmo tipo de encomenda que a sua mãe e a família Barnes receberam. O sapato dela e um de salto alto de cetim branco. E, dando um murro na mesa,
concluiu: E, enquanto um dos agentes atendia esta chamada, Darcy Scott telefonou. Acabava de abrir uma encomenda que chegou no correio da manhã. Continha os pares
dos sapatos que Erin Kelley trazia nos pés.
Chris sabia que a raiva e a frustração que lia no rosto do agente D'Ambrosio eram um reflexo dos seus próprios sentimentos.
Por que raio está ele a fazer isto? gritou ele. Para provar que elas estão mortas? Para gozar? O que o faz agir?
Quando eu souber isso, sei quem ele é respondeu Vince calmamente. E, agora, importa-se de que eu volte a usar o seu telefone? Tenho de ligar para Darcy Scott.
No momento em que Darcy viu a encomenda, soube o que continha.
O carteiro chegou estava ela a sair para o escritório. Entregou-lhe o embrulho juntamente com as outras cartas e revistas. Mais tarde Darcy recordou-se de como ele
ficara espantado por ela não ter respondido à saudação dele.
Como um autómato, ela regressara ao apartamento e poisara o embrulho em cima da mesa, junto à janela. Deliberadamente, manteve as luvas calçadas enquanto o abria,
desapertando a fita e descolando a fita-cola do papel.
O desenho do sapato na tampa. Tirou a tampa. Separou o papel interior.
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Olhou para a bota de Erin e para o sapato rosa e prateado que a acompanhava.
"O sapato é tão bonito", pensou ela. Ficaria lindamente com o vestido com que Erin fora enterrada.
Não foi preciso procurar o número do detective Vince D'Ambrosio, pois lembrou-se dele sem esforço. Este não estava, mas prometeram que o iriam localizar.
Pode esperar por ele?
Posso.
Ele telefonou alguns minutos depois e chegou ao apartamento meia hora mais tarde.
Isto é muito duro para si.
Toquei no salto do sapato com a minha luva confessou ela. Tinha de ver se era mesmo o número de Erin. E era.
Vince olhoua com compaixão.
Talvez seja melhor tirar o dia de hoje. Darcy abanou a cabeça.
Isso seria a pior coisa que eu podia fazer. E, tentando sorrir, concluiu: Tenho um grande projecto para hoje e, além disso, sabe que mais? Hoje tenho um encontro.
Depois de Vince sair com o embrulho, Darcy seguiu directamente para o hotel da Rua 23 Oeste que acabara de ser comprado. Era pequeno, num total de trinta quartos.
Precisava de uma pintura, mas oferecia possibilidades tremendas. Os proprietários, um casal de trinta e muitos anos, explicou-lhe que o custo das obras lhes deixaria
muito pouco para o redecorar. Ficaram deliciados com a sugestão dela, de o redecorar ao estilo de uma estalagem tipicamente inglesa.
Posso arranjar imensos sofás e cadeirões, candeeiros e mesas em boas condições no mercado particular disse-lhes ela. Podemos dar a este sítio imenso charme. Vejam
o Algonquin. É o bar mais frequentado de Manhattan e dificilmente existe lá uma cadeira que não seja em segunda-mão.
Percorreu os quartos com eles, tomando nota das diversas medidas e marcando a mobília que poderia ser recuperada. O dia passou
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num instante. Tencionava regressar a casa, mudar de roupa para o encontro, mas depois resolveu não o fazer. Quando Doug Field telefonara a confirmar o encontro,
dissera-lhe que vestia de forma simples.
Calças e uma camisola são o meu uniforme.
Tinham combinado encontrar-se às seis, no Bar da Rua 23. Darcy chegou precisamente à hora marcada. Doug Field chegou quinze minutos atrasado. Entrou apressado pelo
bar dentro, visivelmente irritado e cheio de desculpas.
Juro que nunca tinha visto tanto trânsito neste quarteirão. Os carros eram tantos que parecia uma linha de montagem numa fábrica de Detroit. Lamento imenso, Darcy.
Não é meu hábito fazer esperar ninguém. É um princípio que tenho.
Não tem importância.
"É bem-parecido", pensou Darcy. "Atraente." Por que achara ele necessário insistir que não costumava fazer esperar as pessoas?
Enquanto bebiam um copo de vinho, Darcy estudou-o atentamente. Ele era divertido, autoconfiante, bem-falante. Extremamente atraente. Fora criado na Virgínia, aí
frequentara a faculdade e desistira da faculdade de Direito.
Teria dado um péssimo advogado. Não tenho garra para me atirar ao pescoço de ninguém.
Atirar ao pescoço. Darcy lembrou-se das marcas no pescoço de Erin.
Mudei para a escola de Arte. Fiz notar ao meu pai que, em vez de estudar, andava a fazer caricaturas dos professores. Foi uma boa decisão. Adora fazer ilustrações
e tenho-me dado bem.
Existe um velho ditado que diz: "Se queres ser feliz por um ano ganha a lotaria, se queres ser feliz para toda a vida, ama o que fazes." Darcy esperava ter soado
descontraída. Este era o tipo de homem que Erin gostaria de ter conhecido, o tipo em quem ela teria confiado após um encontro ou dois. Um artista? O desenho dos
sapatos? Seriam todos suspeitos?
Surgiu a pergunta inevitável.
Por que anda uma rapariga tão bonita a responder a anúncios? Desta vez a pergunta era fácil de responder:
Por que anda um tipo bem-parecido e bem sucedido a colocar anúncios?
Essa é fácil respondeu ele imediatamente. Fui casado durante oito anos e agora já não sou. Não me interessam os compromissos
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sérios. Se somos apresentados numa roda de amigos a uma mulher e a convidamos a sair, toda a gente fica à espera de que se anuncie o compromisso. Desta forma, encontro
uma data de mulheres bonitas. Ponho as cartas na mesa desta maneira e vejo se pega. Diga-me, quantos encontros já teve esta semana?
Você é o primeiro.
Então, na semana passada. Comece pela segunda.
"Na segunda feira estava junto do caixão de Erin", pensou Darcy. "Na terça vi o caixão a ser enterrado. Na quarta-feira assisti à reconstituição da morte de Nan
Sheridan." Na quinta encontrara-se com Len Parker. Na sexta com David Weld, aquele homem calmo, de meia-idade que dizia ser um executivo numa cadeia de lojas e não
conhecera Erin.
No sábado, Albert Booth, o operador de computador, que se entusiasmava com as maravilhas da informática e que lhe dissera que Erin tinha medo do superintendente.
Oh, vá lá, admita que na semana passada teve alguns encontros. insistiu Doug. Eu telefonei-lhe na quarta e você só estava livre esta noite.
Espantada, Darcy deu conta de que lhe estava a acontecer, com frequência, as pessoas terem de repetir as perguntas.
Desculpe. Sim, saí umas duas vezes na semana passada.
E divertiu-se?
Lembrou-se de Len Parker a dar-lhe murros na porta.
Acho que posso dizer que sim. Ele riu-se.
Isso diz tudo. Também já conheci gente muito importante. Agora, que já lhe contei a história da minha vida, que tal contar-me a sua?
Ela fez-lhe um relato elaborado da sua vida. Doug franziu a testa.
- Sinto que há muitas omissões, mas talvez quando vier a conhecer-me melhor as preencha.
Darcy recusou um segundo copo de vinho.
Na verdade, tenho de ir embora. Ele não argumentou:
Na verdade, também eu. Quando posso voltar a vê-la, Darcy? Amanhã à noite? Vamos jantar juntos.
Vou estar ocupada. Quinta-feira?
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Estou a fazer um trabalho que me vai manter ocupada. Por que não me telefona um dia destes?
Sim. E, se continuar a recusar, eu prometo que não a aborreço mais. Mas espero que não o faça.
"Na verdade, ele é simpático", pensou Darcy, "ou então é muito bom actor."
Doug meteu-a num táxi, para depois se apressar a arranjar um lugar para si próprio. Já no apartamento, despiu as calças e a camisola e voltou a vestir o fato que
levara para o escritório. Às oito menos um quarto estava no comboio para Scarsdale.
Às nove menos um quarto lia uma história à cabeceira de Irish, enquanto Susan lhe grelhava um bife. Não havia dúvida de que ela se mostrava compreensiva perante
aquelas horríveis reuniões tardias.
Trabalhas demasiado, Doug, querido dissera-lhe ela calmamente, quando ele entrou em casa queixando-se de que perdera o comboio anterior por uma unha negra.
Durante as horas que durou o interrogatório, Jay Stratton manteve-se calmo.
A sua única explicação para o facto de os diamantes terem sido encontrados na pulseira que vendera a Merril Ashton era que tudo aquilo não passava de equívoco inexplicável.
Erin Kelley tinha sido incumbida de engastar muitos diamantes valiosos. Stratton afirmava que, de alguma forma, ele se enganara e, inadvertidamente, as trocara por
outras pedras quaisquer e as guardara na bolsa que entregara a Erin.
E isto não queria dizer que as outras não fossem igualmente valiosas.
E poderiam verificar nas apólices de seguro.
Um mandado de busca não descobriu nenhuns diamantes desaparecidos, nem no seu apartamento nem no seu cofre-depósito. Foi acusado de receber pedras roubadas e estabeleceram-lhe
uma fiança.
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foi com ar desdenhoso que Stratton abandonou a esquadra na companhia do seu advogado.
Vince assistira ao interrogatório dos agentes da Esquadra n. 6. Todos o sabiam culpado, mas, tal como Vince sublinhara, "Trata-se do homem mais convincente que alguma
vez encontrei, e acreditem-me que encontrei muitos."
"O mais estranho", concluiu Vince enquanto deixava o escritório, "é que Darcy Scott acaba por ser uma testemunha abonatória para Stratton. Foi ela que lhe abriu
o cofre e jurava que a bolsa não estava lá." É claro que a grande dúvida era a seguinte: teria Stratton participado o desaparecimento dos diamantes a não ser que
tivesse a certeza de que Erin Kelley não apareceria para o desmentir?
Já no escritório, Vince deu as suas instruções: Quero saber tudo, mesmo tudo, acerca de Jay Stratton. Jay Charles Stratton.
177
XV
QUARTA-FEIRA 6 de Março
Chris Sheridan examinou Darcy Scott e gostou do que viu. Ela trazia um casaco de cabedal, apertado na cintura, e calças justas que desapareciam dentro de umas botas
de cano alto. O lenço de seda apertado à volta do pescoço acentuava a curva da nuca. O cabelo castanho, raiado de louro, era macio e caía solto à volta do rosto.
Os olhos eram de um castanho raiado de verde e enfeitados por umas pestanas compridas e escuras. As sobrancelhas, escuras, acentuavam-lhe a delicadeza das feições.
Deu-lhe vinte e tal anos.
"Ela lembra-me Nan." E, ao perceber isso, sentiu-se chocado. No entanto, elas não eram parecidas. Nan fora uma daquelas típicas belezas nórdicas, de pele branca
e rosada, olhos azuis vivos e o cabelo da cor do narciso. Então, onde estava a semelhança? Estava na graça com que Darcy se movia. Nan andava assim, como se caminhasse
ao som de música, como se executasse um passo de dança.
Darcy percebeu que Chris Sheridan a examinava, e ela própria fizera o seu estudo. Gostou dos traços fortes dele, da curva ligeira do seu nariz, provavelmente resultado
de alguma queda. A largura dos ombros e uma impressão generalizada de estar em forma sugeriam um atleta em potência.
Alguns anos antes, tanto a mãe como o pai se tinham sujeitado a uma operação plástica.
Puxa-se daqui, estica-se dali comentara a mãe rindo.Não Ponhas esse ar desaprovador, Darcy. Lembra-te de que a aparência é Parte importante do nosso negócio.
Como era agora perfeitamente irrelevante recordar aquilo, pensou Darcy. Estaria ela simplesmente a tentar evitar relembrar o choque que sentira ao abrir a caixa
que continha a bota de Erin e o sapato de salto alto? Ela reagira bem no dia anterior, mas acordara no dia seguinte com o rosto e a almofada encharcados em lágrimas.
Mordeu
179
o lábio, ao lembrar-se, mas não conseguiu evitar que os olhos ficassem cheios de lágrimas.
Lamento muito afirmou, tentando aparentar segurança. -_ Foi muito simpático da sua parte ter ido a Connecticut buscar as fotografias na noite passada. Vince D'Ambrosio
contou-me que teve de alterar os seus planos.
Não eram muito importantes respondeu Chris Sheridan sentindo que Darcy Scott tentava fazer que ele ignorasse o seu desgosto. Há para aqui imensa coisa declarou,
indo directo ao assunto. Mandei pôr tudo em cima da mesa da sala de reuniões. Sugiro que vá até lá dar uma vista de olhos. Se as quiser levar para sua casa ou para
o seu escritório, eu mando alguém levar-lhas lá. Se quiser levar apenas uma parte, também se arranja. Eu conheço a maior parte das pessoas que estão nas fotografias.
Claro que algumas não sei quem são. De qualquer forma, o melhor é irmos ver.
Desceram as escadas. Darcy percebeu que durante os quinze minutos que estivera no escritório de Chris Sheridan a multidão, esperando para assistir ao leilão seguinte,
aumentara consideravelmente. Ela adorava leilões. Na sua juventude, acompanhava muitas vezes o agente dos pais.
Eles próprios nunca conseguiam ir. E, se era tornado público que um deles estava interessado na aquisição de algum quadro ou de alguma antiguidade, o preço subia
imediatamente. E, ao ouvir as histórias de como a mãe e o pai faziam as suas aquisições, sentia-se pouco à vontade.
Acompanhava Sheridan para as traseiras do edifício, quando descobriu uma secretária cilíndrica, imediatamente se aproximando dela e perguntando:
É uma Roentgen verdadeira?
Chris passou a mão pela superfície de mogno e respondeu:
É, sim. Conhece as antiguidades. Não me diga que trabalha no ramo!
Darcy pensou na Roentgen existente na biblioteca da casa de Bel-Air. A mãe adorava contar a história de como Maria Antonieta a enviara para Viena, como presente
para a sua mãe, a Imperatriz, e por isso tinha escapado ao saque que se seguira à Revolução Francesa. Era óbvio que também aquela fora enviada para fora do país.
Trabalha neste ramo? repetiu Chris Sheridan.
Oh, desculpe! respondeu Darcy, sorrindo ao pensar no hotel
180
QUe estava a redecorar com móveis em segunda-mão. De certa forma, acho que sim.
Chris franziu a testa, mas não fez perguntas.
_- Por aqui.
Um átrio amplo conduzia a uma sala de porta dupla. Lá dentro, um pano protegia uma mesa de banquete georgiana. Álbuns, livros, fotografias emolduradas e pacotes
de slides encontravam-se metodicamente alinhados em cima da mesa.
Não se esqueça de que foram todos tirados há quinze e há dezoito anos atrás avisou Sheridan.
Eu sei concordou Darcy, avaliando a quantidade de material a examinar. Costuma precisar desta sala?
Nem por isso.
Então, seria possível deixar tudo aqui e deixar-me vir cá para as ver? O problema é que quando estou no escritório tenho sempre que fazer e a minha casa não é grande.
Além disso, não paro por lá muito tempo.
Chris sabia que não tinha nada a ver com isso, mas não conseguiu resistir e afirmou:
O agente D'Ambrosio contou-me que você anda a responder a anúncios. Reparou que o rosto de Darcy se tornara tenso.
Erin não queria responder àqueles anúncios respondeu Darcy. Foi eu que a convenci. A única maneira que tenho de me redimir um pouco é ajudar a apanhar o assassino.
Não faz mal, se andar a entrar e a sair? Prometo que não vou incomodá-lo, nem a si nem ao seu pessoal.
Chris entendeu o que Vince D'Ambrosio queria dizer ao afirmar que Darcy Scott iria levar a sua avante, no que dizia respeito aos
anúncios.
Não dá maçada nenhuma. Uma das secretárias está aqui sempre às oito. O pessoal da limpeza fica até às dez da noite. Eu deixo ordens para lhe abrirem a porta. Melhor
ainda, deixe-me arranjar-lhe uma chave.
Darcy sorriu.
Prometo não fugir com um Sèvres. E será que agora posso ficar Por aqui um bocado? Tenho algumas horas livres.
Claro. E lembre-se de que conheço muitas daquelas pessoas. Venha ter comigo, se quiser saber algum dos nomes.
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Eram três e meia quando Sheridan regressou, seguido por uma criada que transportava um tabuleiro com o lanche.
Pensei que poderia fazer um intervalo. E, se não se importa faço-lhe companhia. Óptimo.
Darcy deu conta de que tinha uma ligeira dor de cabeça e que acabara por não almoçar.
Aceitou uma chávena de chá, verteu algumas gotas de leite, da delicada leiteira de Limoges, e tentou não parecer esfomeada ao pegar numa bolacha de açúcar. Esperou
até a criada se retirar e depois comentou:
Eu sei como deve ter sido difícil para si pegar nisto tudo. O reino das recordações é um espaço assombrado.
A minha mãe fez a maior parte. Ela surpreende-me. Desmaiou quando chegou aquele embrulho com os sapatos, mas agora só se preocupa em tentar fazer alguma coisa para
que o tipo que matou Nan seja apanhado e não possa fazer mal a mais ninguém.
E você?
Nan era seis minutos mais velha do que eu. E nunca deixou que eu esquecesse isso. Chamava-me irmão mais novo. Ela era desenvolta. Eu, tímido. Parecia que nos completávamos.
Já há muito tempo que desisti de ver o assassino dela em tribunal. Agora, a esperança renasceu. Olhou para a pilha de fotografias que ela separara. Reconheceu alguém?
Darcy abanou a cabeça.
Até agora, não.
Às cinco e um quarto, meteu a cabeça pela porta do escritório e disse:
Vou-me embora.
Chris levantou-se de um pulo:
Aqui tem a chave. Esqueci-me de lha dar quando fui ter consigo.
Darcy meteu-a ao bolso.
Provavelmente, amanhã de manhã cedo estarei de volta. Chris não resistiu e perguntou:
Vai ter algum daqueles encontros? Desculpe, não tenho o direito de lhe perguntar. Só que me sinto preocupado porque acho isso muito perigoso.
182
Desta vez ficou contente, ao ver que Darcy não ficara retraída. Ela respondeu simplesmente:
Eu fico bem. E, com um aceno, despediu-se dele.
Ele ficou a olhá-la, lembrando-se da única vez que fora caçar. A corça estivera a beber água num regato. Pressentindo o perigo, levantara a cabeça e escutara, pronta
a fugir.
Um instante depois, estava estendida no chão. Ele não se reunira aos gritos exultantes com que os outros brindaram a presa. O seu instinto fora o de gritar um aviso
ao animal. Era esse mesmo instinto que agora o atormentava.
Como vai o programa? perguntou Vince a Nona, enquanto procurava uma posição confortável na cadeira verde do escritório.
Vai e não vai suspirou Nona. Num gesto inconsciente, passou a mão pelo cabelo. O mais difícil é encontrar um ponto de equilíbrio. Quando você me escreveu, pediu-me
para incluir um apontamento acerca dos perigos possíveis para as pessoas que respondem aos anúncios. Eu não fazia ideia do que a semana seguinte nos traria. Continuo
a achar que a minha ideia original está correcta. Quero dar uma panorâmica geral sobre o assunto e depois deixar o aviso. Sorriu-lhe e concluiu: Fico feliz por me
ter convidado para comer pasta.
Fora um dia muito comprido. Às quatro e meia, Vince sentia-se mentalmente exausto. Mandara fazer uma lista dos encontros das oito mulheres desaparecidas e arranjou
pesquisadores para começarem a recolher anúncios dos jornais e revistas, da área de Nova Iorque, publicados nos três meses anteriores àqueles encontros.
A sensação de que estaria perante uma pista nova fê-lo sentir-se exausto. E a perspectiva de regressar a casa e tentar encontrar alguma coisa no frigorífico negligenciado
tornara-se deprimente. Assim, Quase sem dar conta, pegou no telefone e ligou para Nona.
Eram agora sete horas. Acabara de chegar ao escritório dela e Nona estava quase pronta.
O telefone tocou. Nona ergueu os olhos para o céu, pegou no telefone e identificou-se.
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Vince observava-a, à medida que a expressão do seu rosto se ia modificando.
Tens razão, Matt. Sabes sempre que me encontras aqui. QUe queres de mim? Calou-se e escutou. Matt, vê se entendes. Eu não estou disposta a comprar a tua parte. Nem
hoje, nem amanhã. Não sei se te lembras que no ano passado, quando apareceu um comprador, tu achaste que ele não ofereceu o suficiente. O costume. Agora, eu posso
esperar. Tu também podes. Por que raio havemos de ter pressa? Será que é a Janine que anda a precisar de reforços?
Nona riu-se ao desligar.
Era o homem a quem eu prometi amar e honrar para o resto da minha vida. O problema é que ele se esqueceu de se lembrar.
Isso acontece muitas vezes.
Foram ao Amantes de Pasta, na Rua 58 Oeste.
Venho aqui muitas vezes, sozinha confessou Nona. Espere até provar a pasta. É capaz de levantar o espírito de qualquer um.
Um copo de vinho tinto. Salada. Pão quente.
Falta a ligação ouviu-se Vince dizer. Tem de haver uma ligação entre um homem e aquelas raparigas.
Pensei que todos partiam do princípio de que, à excepção do caso de Nan Sheridan, a ligação estava nos anúncios.
E está. Mas não percebe? É impossível que ele tenha sempre, precisamente, o sapato certo para cada caso. É claro que ele poderia comprá-los depois de as matar, mas
não há dúvida de que, pelo menos o de Nan Sheridan, ele tinha quando a atacou. Este tipo de assassino, normalmente, segue um padrão.
Quer dizer que está a pensar num tipo que conhece estas raparigas, consegue arranjar maneira de saber o número que elas calçam, sem levantar qualquer suspeita, e
depois consegue levá-las a um sítio qualquer, onde elas desaparecem de vez.
É isso mesmo.
Enquanto comiam linguine com molho de marisco, Vince explicou-lhe o seu plano de verificar todos os anúncios colocados nos três meses anteriores ao desaparecimento
das raparigas, para ver se havia algum em comum.
É claro que pode tratar-se de um fio sem ponta. Pelo que sabemos, o tipo pode publicar uma dúzia de anúncios diferentes.
Ambos pediram descafeinado, e Nona começou a falar acerca do seu documentário.
Ainda não arranjei um psiquiatra declarou ela. E, na
184
verdade, não quero um daqueles profissionais do espectáculo que aparece sempre que discamos um número.
Vince falou-lhe de Michael Nash.
É um tipo muito sóbrio. E anda a escrever um livro sobre esses anúncios. Conheceu Erin.
Darcy falou-me dele. Uma boa ideia, agente D'Ambrosio.
Vince levou Nona a casa, de táxi, e esperou até vê-la entrar no edifício.
Parece-me que hoje estamos ambos estoirados declarou, em resposta ao convite dela para uma última bebida. De qualquer forma, apenas adio o convite.
Combinado respondeu Nona, sorrindo. Estou cansada, e a minha mulher-a-dias não aparece desde sexta-feira. Tenho a impressão de que você não está preparado para enfrentar
a minha verdadeira natureza.
Foi o suficiente para recordar a Vince que, tecnicamente, ele se encontrava de serviço, o que não o impediu de imaginar como seria a sensação de tomar Nona Roberts
nos seus braços.
De volta a casa, encontrou um recado no atendedor de chamadas. Tratava-se de Ernie, o seu ajudante.
Não é urgente, mas achei que gostaria de saber isto, Vince. Temos a lista dos estudantes do tempo de Nan Sheridan na Brown. Adivinhe quem frequentou a escola e algumas
das aulas dela? Nada mais nada menos do que o nosso amigo joalheiro Jay Stratton.
Darcy tinha um encontro com a caixa 4307, um Cal Griffin, às cinco e meia. A sua primeira sensação foi que ele não tinha 30 anos. Griffin devia andar perto dos 50
e tratava-se de um tipo balofo, que penteava o cabelo para cima da cabeça a fim de tapar a careca. Estava vestido com roupa cara e clássica. Era de Milwaukee, mas,
como explicou, vinha a Nova Iorque com frequência.
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Seguiu-se um desabafo sugestivo. Não devia interpretá-lo mal. Ele tinha um casamento feliz, mas a verdade é que, quando vinha em negócios, apreciava a companhia
de uma amiga. Piscou-lhe o olho. devia acreditar que ele sabia como tratar uma mulher. Que espectáculos ainda não vira? Ele sabia como arranjar bilhetes. Qual o
seu restaurante favorito? O Lutéce? Era caro, mas valia o dinheiro.
Darcy conseguiu perguntar-lhe qual fora a última vez que viera a Nova Iorque.
Há muito tempo. No mês anterior levara a mulher e os filhos "adolescentes bestiais, mas sabe como são os adolescentes", a esquiar a Vail. Possuíam aí uma casa. E
estavam a construir uma maior. Dinheiro não era problema. De qualquer forma, os filhos tinham levado os amigos e tinha sido uma barafunda. Aquela coisa do rock.
Era de dar em doido, ela não achava? Tinha uma aparelhagem muito potente lá em casa.
Darcy pediu uma Perrier. A meio da bebida, conseguiu olhar para o relógio.
O meu patrão ficou realmente zangado por eu ter saído declarou ela. Não me posso demorar nada.
Esqueça-o ordenou Griffin. Você e eu vamos passar uma noite estupenda.
Estavam sentados em banquetas. Um braço balofo rodeou-lhe o pescoço, e ele depositou-lhe um beijo lambusado na orelha. Darcy não queria fazer uma cena.
Oh, meu Deus! exclamou, apontando para uma mesa onde um homem sozinho estava sentado de costas para eles. É o meu marido. Tenho de ir embora.
Imediatamente, o braço desapareceu da sua cintura. Griffin parecia chocado.
Não quero nenhuma chatice.
Eu saio sem ele ver murmurou Darcy. já De regresso a casa, teve de reprimir o riso dentro do táxi. "Bom, uma coisa é certa", concluiu, "este não foi. Ao meter a
chave na fechadura, ouviu o telefone tocar. Tratava-se de Doug Field.
Olá, Darcy. Por que se torna tão inesquecível? Eu sei que me disse que esta noite estava ocupada, mas resolvi tentar a sorte. Que diz a um hamburger no P. J. Clark
ou qualquer coisa assim?
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Darcy percebeu que se tinha esquecido de falar de Doug Field a Vince D'Ambrosio. Um tipo simpático. Atraente. Um artista. O tipo por quem Erin facilmente se interessaria.
Parece-me óptimo respondeu ela. A que horas?
"Até que ponto é que o Doug pensa que eu sou estúpida?", perguntava-se Susan, sentada à mesa da cozinha com Donny, que fazia o trabalho de casa de geometria. A assistente
social telefonara-lhe naquela tarde. Havia algum problema lá em casa? Donny, que sempre fora bom aluno, estava a descer a todas as disciplinas. Parecia distraído
e deprimido.
Bem, é isso mesmo declarou ela, alegremente. Tal como o meu professor de geometria dizia: você mostra do que é capaz, Menina Frawley, desde que esteja decidida a
aprender.
Donny sorriu e arrumou os livros.
Mamã... chamou ele hesitante.
Donny, tu foste sempre capaz de te abrir comigo. O que se passa?
Ele olhou em volta.
Os miúdos estão na cama, Beth está a tomar um daqueles duches de meia hora. Podemos conversar à vontade assegurou-lhe Susan.
E o pai está numa daquelas reuniões comentou ele com azedume.
"Ele suspeita", pensou Susan. "Não há razão para tentar protegê-lo. Aí está uma boa altura para falar francamente com ele."
Donny, o pai não está em nenhuma reunião.
Tu sabes? A cara dele exprimia alívio.
Sei, sim. Mas como descobriste? Ele olhou para o chão e respondeu.
Patrick Driscoll, um dos tipos da minha equipa, foi a Nova Iorque na sexta-feira à noite, quando fomos visitar o avô. O pai estava num restaurante com uma mulher.
Estavam de mãos dadas e beijavam-se. Patrick disse que metiam nojo. A mãe dele queria contar-te, o pai é que não deixou.
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Donny, estou a pensar divorciar-me do teu pai. Não é por vontade minha, mas viver assim não nos faz bem nenhum. Assim, não ficaremos sempre à espera de que ele resolva
vir para casa, nem temos de engolir as mentiras dele. Espero que ele resolva vir visitar-vos, mas não sei dizê-lo. Lamento muito. Lamento mesmo muito.
E começou a chorar.
Donny deulhe uma palmadinha no ombro.
Mãe, ele não te merece. Eu prometo que ajudo a tomar conta dos outros. Juro que farei melhor do que ele fez connosco.
"Donny pode ser muito parecido com o pai", pensou Susan, "mas, graças a Deus, herdou o suficiente de mim para nunca vir a ser como ele." Beijou-o no rosto e pediu:
Para já, não vamos dizer nada a ninguém.
Susan foi-se deitar às onze. Doug ainda não tinha chegado. Ligou para as notícias da noite e ouviu horrorizada o locutor, que dava os pormenores acerca dos últimos
desenvolvimentos do caso das mulheres desaparecidas e dos sapatos desirmanados que estavam a ser enviados para as famílias.
O locutor continuava:
Embora o FBI se recuse a fazer comentários, fontes fidedignas garantem-nos que os últimos sapatos que foram devolvidos pertenciam a Erin Kelley. Se assim for, o
caso dela fica relacionado com o desaparecimento de duas outras mulheres, uma de Lancaster e outra de White Plains, que viviam em Manhattan, e ao assassínio, ainda
por esclarecer, de Nan Sheridan.
Nan Sheridan. Erin Kelley.
Oh, meu Deus! gemeu Susan. Com os punhos cerrados, continuou com os olhos fixos no ecrã.
Passavam agora as fotografias de Claire Barnes, Erin Kelley, Janine Weltz e de Nan Sheridan. E o homem continuava:
As mortes parecem ter começado há quinze anos, naquela manhã fria de Março, quando Nan Sheridan foi assassinada, enquanto corria pela mata, nas proximidades de sua
casa.
Susan engoliu em seco. Quinze anos antes, mentira para proteger Doug, quando ele fora interrogado acerca da morte de Nan. Se não o tivesse feito, teria evitado a
morte daquelas outras raparigas? Naquela noite, quase há duas semanas, em que fora anunciada a morte de Erin Kelley, Doug tivera um pesadelo. E chamara por Erin
enquanto dormia.
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O FBI está a cooperar com a polícia de Nova Iorque, na tentativa de localizar os sapatos de noite. O caso de Nan Sheridan foi reaberto...
E supondo que iriam interrogar Doug outra vez? "Supondo que me interrogam a mim também?", pensou Susan. Deveria dizer à polícia que mentira há quinze anos?
Donny. Beth. Trish. Conner. Como seria a vida deles se se descobrisse que eram filhos de um assassino?
Entrevistavam agora o Comissário da Polícia.
Estamos convencidos de que se trata de um tarado.
Tarado.
Que hei-de fazer? perguntou Susan num murmúrio. As palavras do pai martelavam-lhe nos ouvidos. Tarado...
Dois anos antes, quando o acusara de ter uma relação com a rapariga que tomava conta das crianças, o rosto dele contorcera-se de fúria. O medo que sentira naquela
altura voltou a apoderar-se dela. Quando as notícias acabaram, Susan obrigou-se a enfrentar uma verdade que sempre recusara.
Pensei que nessa noite ele me ia bater.
"Vamos dançar? Vamos dançar? Vamos dançar? Vamos voar numa nuvem brilhante de música?... Vamos ficar abraçados um ao outro? Vamos dançar? Vamos dançar? Vamos dançar?"
Charley soltou uma gargalhada de pura alegria. Volteando e dançando a par com Yul Bryner, batia com os pés, volteava e dançava com uma Darcy imaginária nos seus
braços. Na semana seguinte, dançariam juntos.
Depois, Astaire! Que felicidade! Que felicidade! Faltavam apenas sete dias para o quinquagésimo aniversário de Nan.
"Sabendo que tudo se pode tornar realidade, vamos dançar? Vamos dançar? Vamos dançar?"
A música parou.
Pegou no controlo remoto e desligou o vídeo. Se ao menos pudesse passar ali a noite! Mas isso seria um erro. Tinha de fazer o que ali viera fazer.
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As escadas da cave rangeram e ele franziu a testa. Tinha de compor aquilo. Annette fugira por aquelas escadas.
O ruído dos saltos altos batendo na madeira nua tinham-no excitado. Se Darcy resolvesse tentar escapar por ali, não queria que o barulho da madeira viesse estragar
o som dos sapatos, tentando uma fuga inútil.
Darcy. Como fora difícil sentar-se à mesa com ela. Queria ter-lhe dito: "Vem comigo." E trazê-la para ali. Tal como o Fantasma da ópera, convidando a amada para
o seu mundo subterrâneo.
As caixas de sapatos. Agora eram cinco. Marie, Sheila, Leslie, Annette e Tina. De súbito, percebeu que queria mandá-las todas de uma vez. Acabar com aquilo. E depois
só ficaria uma.
Na semana seguinte, só a caixa de Darcy estaria ali. Talvez nunca a devolvesse.
Levantou a tampa da arca congeladora e ficou a olhar para o espaço vazio. Aguardava uma nova donzela de gelo, pensou Charley. E esta ele não ia devolvê-la.
190
XVI
QUINTA-FEIRA
7 de Março
Conhecia bem Nan Sheridan? perguntou Vince. Ele e o detective da Esquadra estavam a interrogar Jay Stratton.
Stratton mantinha-se impassível.
Ela andava na Brown, quando eu lá estive.
Você desistiu do curso e regressou quando ela era caloira?
É verdade. Não fui grande estudante no meu tempo de caloiro. O meu tio, que era o meu tutor, achou que me faria bem amadurecer um pouco mais. E fui para o Serviço
Cívico durante dois anos.
Repito a pergunta: conhecia bem Nan Sheridan?
"Muito bem, na verdade", pensou Stratton. Linda Nan! Dançar com ela era como dançar com uma pluma. Os olhos de Vince semicerraram-se. Vira algo no rosto de Stratton.
Não me respondeu. Stratton encolheu os ombros.
Não tenho nada para responder. Claro que me lembro dela. Eu estava lá, quando toda a gente não falava em mais nada a não ser na tragédia que lhe aconteceu.
Foi convidado para a festa de aniversário?
Não, não fui. Nan e eu éramos colegas nalgumas disciplinas, e nada mais.
Vamos então falar sobre Erin Kelley. Você não perdeu tempo a Participar os diamantes desaparecidos à companhia de seguros.
Tal como Miss Scott pode testemunhar, a minha primeira reacÇão foi de irritação. Na verdade, eu não conhecia bem Erin. Conhecia melhor o trabalho dela. Quando ela
faltou com a palavra de entregar O colar do Bertolini, eu pensei que ela se tinha descuidado com o
191
tempo. Quando conheci Darcy Scott, verifiquei que isso era um disparate. E a preocupação dela fez-me ver a situação com clareza.
Acontece-lhe com frequência confundir pedras valiosas?
Certamente que não. Vince tentou outra abordagem.
Você não conhecia bem Nan Sheridan. Mas lembra-se de alguém que tivesse um fraco por ela? Para além de si, claro acrescentou deliberadamente.
192
XVII
SEXTA-FEIRA
8 de Março
Na sexta-feira à tarde, Darcy dirigiu-se ao apartamento de West Side, onde acabara de redecorar o quarto de Lisa, a adolescente convalescente. Trouxera algumas plantas
para a janela, algumas almofadas, um conjunto de toilette de porcelana que arranjara numa promoção. E o póster de que Erin tanto gostava.
As peças maiores já lá estavam: o toucador e a cama de latão, a cómoda, a cadeira de balanço. O tapete indiano da sala de Erin ficava ali lindamente. O papel de
parede às riscas dava movimento ao quarto. "Quase como um carrossel", pensou Darcy. As cortinas apanhadas de lado eram do mesmo padrão do papel. Os folhos branco-sujos
de algodão condiziam com o branco-brilhante do tecto.
Cuidadosamente, Darcy pendurou o póster. Representava uma pintura de Egret, um dos seus primeiros e menos conhecidos trabalhos: uma jovem bailarina voando pelo ar
de braços estendidos e pés esticados. Ele chamara-lhe: Gosta de música, gosta de dançar.
Enquanto o pendurava, pensou nas aulas de dança que ela e Erin tinham frequentado.
Por que havemos de andar a correr ao frio, se podemos fazer o mesmo exercício dançando? costumava Erin perguntar. Há um velho ditado: Se queres tornar a tua vida
mais alegre, tenta dançar.
Darcy recuou, para se certificar de que o póster ficara direito. Estava. Então o que estava a incomodá-la? Os anúncios. Mas porquê agora?
Encolhendo os ombros, fechou a caixa das ferramentas.
193
Dirigiu-se directamente para as galerias Sheridan. Até ali, de nada tinha servido andar a ver todas aquelas fotografias. Acabara por dar com Jay Stratton numa delas,
mas Vince D'Ambrosio já o tinha descoberto no livro de curso. No dia anterior, Chris Sheridan acabara por comentar que ela tinha mais hipótese de ganhar na lotaria
do que de descobrir algum rosto familiar. Ela receara que ele estivesse arrependido por a ter autorizado a utilizar a sala de reuniões, mas não era esse o caso.
Você parece-me esgotada declarara ele na tarde do dia anterior. Já sei que está aqui desde as oito horas da manhã.
Consegui desmarcar alguns compromissos. Isto parece-me mais importante.
Na noite anterior, saíra com a caixa 3823, Owen Larkin, um interno do Hospital de Nova Iorque. Ele parecia muito seguro de si próprio.
O problema de ser um médico solteiro é que as enfermeiras passam a vida a oferecer-me uma refeição caseira. Era de Tulsa e odiava Nova Iorque. Assim que acabar o
meu internato, meto-me a caminho da terra divina. Podem guardar estas cidades superpovoadas.
Casualmente, ela mencionou o nome de Erin. Em tom confidencial, ele disse:
Eu não a conheci, mas um dos meus amigos do hospital, que também responde a anúncios, conheceu. Só uma vez. Ele anda a fazer figas para ela não ter nenhum registo
destes encontros. A última coisa de que ele precisa é de ser interrogado num caso de homicídio.
Quando é que ele saiu com ela?
No princípio de Fevereiro.
Pergunto-me se eu o conheci.
Só se foi nessa altura. Nessa altura, ele tinha-se zangado com a namorada, mas agora já fizeram as pazes.
Como é que ele se chama?
Brad Whalen. Mas, diga-me, isto é algum interrogatório? Vamos falar de nós dois.
Brad Whalen. Outro nome para Vince D'Ambrosio investigar.
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Chris encontrava-se à janela do escritório, quando viu um táxi parar e Darcy sair.
Enfiou as mãos nos bolsos. Estava vento, e Darcy fechou a porta do táxi, levantou a gola do casaco e atravessou o passeio, ligeiramente inclinada para a frente.
No dia anterior, estivera muito ocupado. Tivera uns clientes japoneses muito importantes a examinar as pratas do espólio de Van Wallens, que seria leiloado na semana
seguinte. E passara a maior parte da tarde com eles.
Mrs. Vail, a governanta da galeria, encarregara-se de levar a Darcy o café da manhã, um almoço leve e o lanche.
Aquela pobre rapariga está a dar cabo dos olhos, Mr. Sheridan lamentara ela.
Às quatro e meia, Chris dirigira-se à sala-de-reuniões. Percebeu que falara de mais, ao comentar que aquela era uma tarefa inglória. Ele não queria dizer aquilo
que parecia. Apenas considerava que a hipótese de Darcy Scott encontrar alguém que conhecera Nan e reconhecê-lo numa fotografia, com 15 anos, era muito vaga.
No dia anterior, perguntara-lhe se Nan alguma vez saíra com alguém chamado Charles North.
Que ele soubesse, não. Quando fora a Darien, Vince D'Ambrosio fizera aquela pergunta a si e à sua mãe.
Chris percebeu que lhe apetecia descer e falar com Darcy. Perguntou-se se ela iria pensar outra vez que ele queria ver-se livre dela.
O telefone tocou. Deixou que a secretária atendesse. Um momento depois, soou o intercomunicador.
É a sua mãe, Chris. Greta foi directa ao assunto.
Chris, sabes aquela história acerca de alguém chamado Charles. Já que tivemos de mexer nas fotografias de Nan, resolvi dar uma volta às coisas dela. Não vale a pena
deixar esse trabalho para tu fazeres depois. Voltei a ler as cartas. Há uma, datada de Setembro anterior... antes de ela morrer. Ela começara o semestre de Outono.
Dizia que tinha ido dançar com um tipo chamado Charley que troçou dela por usar Capezios.
São estas exactamente as palavras dela: Consegues imaginar que um tipo da minha geração ache que as raparigas deviam usar saltos altos?
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Acabei de ver os meus doentes às três e achei que era muito mais fácil vir aqui falar consigo do que tratar deste assunto pelo telefone declarou Michael Nash, enquanto
tentava encontrar uma posição confortável na cadeira verde do escritório de Nona. Ele não conseguia deixar de se perguntar por que razão uma pessoa obviamente esperta
e desenvolta acharia necessário submeter as suas visitas a semelhante tormento.
Doutor, lamento imenso. E, com os olhos, indicou-lhe uma cadeira mais confortável junto à sua secretária. Por favor.
Nash mudou-se, de boa vontade.
Na verdade, podia livrar-me daquela coisa desculpou-se Nona. Só que nunca me dei a esse trabalho. Arranjo sempre algo mais interessante para fazer do que andar por
aí a tratar da mobília. Esboçou um sorriso culpado e pediu: Mas, por favor, não conte isto a Darcy.
Ele devolveu-lhe o sorriso.
Na minha profissão, estou habituado a guardar segredo. Agora, diga-me, em que posso ajudá-la?
"O homem é mesmo atraente", pensou Nona. Trinta e muitos, com uma maturidade que provavelmente adquirira ao exercer a profissão de psiquiatra. Darcy contara-lhe
a visita que fizera à casa dele em Nova Jérsia. Tal como a tia de Nona costumava dizer: Não deves casar por dinheiro, mas olha que é tão fácil amar um homem rico
como um pobre. Claro que Darcy não precisava de casar por dinheiro. Os pais já faziam milhões muito antes de ela nascer. No entanto, Nona sempre sentira uma certa
solidão em Darcy, parecia uma garota perdida. E sem Erin isso tinha-se acentuado. Seria óptimo se ela agora encontrasse o homem da sua vida.
Percebeu que o Dr. Michael Nash a olhava com uma expressão divertida.
Passei no exame? perguntou ele.
Sem dúvida. E, pegando na pasta do documentário, continuou: Darcy e Erin provavelmente já lhe contaram a razão que as levou a responder aos anúncios.
196
GOSTA DE MÚSICA, GOSTA DE DANÇAR
Nash assentiu.
Temos o programa quase pronto, mas eu gostava de convidar um psiquiatra para nos dar uma visão geral acerca do tipo de pessoas que publicam ou respondem a estes
anúncios e sobre as suas motivações. Talvez fosse possível darnos algumas pistas sobre o tipo de comportamento que poderá tornar-se alarmante. Estarei a exprimir-me
bem?
Explicou-se muito bem. Suponho que o agente do FBI se irá concentrar no aspecto do potencial assassino.
Nona sentiu-se ficar tensa.
Sim.
Mrs. Roberts, Nona, se me permite, gostaria que visse a expressão no seu rosto neste momento. Você e Darcy são muito parecidas. Têm de acabar com essa tortura. Não
são mais responsáveis pela morte de Erin do que a mãe que leva o filho a passear e este é atropelado por um carro desgovernado. Há coisas que devemos considerar
como actos do destino. Chorem a vossa amiga. Façam tudo o que puderem para alertar os outros de que existe um louco à solta. Mas não tentem fazer o papel de Deus.
Nona tentou manter a voz firme.
Quem me dera ouvir isso de cinco em cinco minutos. E, se é mau para mim, é dez vezes pior para Darcy. Espero que também lhe tenha dito isso.
O sorriso de Michael Nash reflectiu-se-lhe nos olhos.
A minha governanta telefonou-me três vezes, durante a semana, sugerindo ementas para o caso de eu levar Darcy até lá. Ela vai até Wellesley visitar o pai de Erin
no domingo, mas no sábado jantará comigo.
Ainda bem. E, agora, quanto ao programa... A gravação é na próxima quarta-feira e irá para o ar na noite de quinta.
Normalmente, eu tento fugir destas coisas. Há muitos colegas meus dispostos a vir à televisão ou a oferecerem-se para testemunhar em tribunal. Mas talvez possa ajudar
neste. Pode contar comigo.
Óptimo.
Levantaram-se os dois ao mesmo tempo, e Nona, apontando para as secretárias do escritório exterior, ofereceu:
Eu sei que anda a escrever um livro acerca dos anúncios. Se precisar de mais material, a maioria dos solteiros daqui andaram a ajudar-me.
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Obrigado, mas a minha pesquisa foi já bastante exaustiva. No fim do mês, terei o livro pronto.
Nona ficou a ver Nash, dirigindo-se para o elevador num passo longo e ágil. Depois, fechou a porta e ligou para casa de Darcy Quando o atendedor de chamadas atendeu,
ela deixou recado:
Eu sei que ainda não chegaste, mas tinha de te dizer. Acabei de conhecer Michael Nash, e ele é um amor.
O sexto sentido de Doug estava bem alerta. Quando, naquela manhã, telefonara a Susan, dizendo-lhe que não quisera acordá-la na noite anterior para lhe dizer que
ficava a dormir na cidade, ela fora calorosa e compreensiva.
Que simpático da tua parte, Doug. Na verdade, ontem deitei-me cedo.
E ainda mais alarmado ficou quando, depois de desligar, percebeu que ela nem sequer tinha perguntado se ele regressava a casa naquela noite. Há umas semanas atrás,
ela teria repetido as queixas do costume:
Doug, essa gente tem de entender que tu tens uma família, não é justo que te obriguem a ficar nas reuniões noites e noites seguidas.
Ela parecera-lhe bastante feliz, quando a levara a jantar em Nova Iorque. Talvez fosse melhor telefonar-lhe e sugerir-lhe voltarem a encontrar-se naquela noite.
Ou talvez fosse melhor regressar cedo a casa e fazer uma grande festa aos filhos. Eles tinham passado fora o fim-de-semana anterior.
Se Susan se zangasse, se ela se zangasse de verdade, agora que havia tanto barulho acerca do caso de Nan...
O escritório de Doug ficava no quadragésimo quarto andar do World Trade Centre. Sem ver, fixou os olhos na estátua da Liberdade.
Chegara a altura de representar o papel de marido e pai devotado à família.
E havia mais. Devia deixar de utilizar o apartamento, durante algum tempo. As roupas, os desenhos, os anúncios. Quando tivesse oportunidade na semana seguinte, tinha
de os trazer para a casa.
E talvez fosse melhor deixar também a carrinha.
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Seria possível? Darcy pestanejou, enquanto pegava na lente de aumento. Aquele instantâneo de Nan Sheridan e dos amigos na praia. O homem da manutenção que se via
atrás. O rosto era-lhe familiar ou estaria a ficar maluca?
Nem ouviu Chris Sheridan entrar e a saudação dele:
Não queria incomodá-la Darcy. Fê-la saltar de susto. Chris apressou-se a pedir desculpa:
Eu bati, mas você não me ouviu. Lamento imenso. Darcy esfregou os olhos.
Não precisava de bater à porta. A casa é sua. Acho que estou a ficar muito assustadiça.
Ele olhou para a magnífica lente que ela empunhava e perguntou:
Acha que descobriu alguma coisa?
Não tenho a certeza, mas este tipo... E apontou para a figura que aparecia por detrás do grupo de raparigas. Parece-se com alguém que eu conheço. Lembra-se desta
fotografia?
Chris examinoua e respondeu:
Foi em Belle Island. Fica a alguns quilómetros de Darien. Uma das melhores amigas de Nan tinha uma casa de praia.
Posso levá-la?
Claro que sim!
Preocupado, Chris observou Darcy a guardar a fotografia na mala-de-mão e a arrumar as fotografias que ela mantivera ordenadas por pilhas.
Darcy. hoje à noite vai ter algum daqueles encontros? Ela confirmou.
Uma bebida, um jantar?
Eu tento sempre ficar-me por um copo de vinho. Nessa altura, penso que já consigo decidir se o tipo conheceu Erin ou não.
Mas não o acompanha a casa dele, pois não?
Por Deus, não!
Ainda bem. Não me parece que conseguisse ter força suficiente Para enfrentar alguém que a tentasse atacar. E, depois de uma hesitação, Chris acrescentou: Acredite
ou não, eu não estou aqui para
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me meter nos assuntos que não me dizem respeito. Só queria dizer-lhe que a minha mãe encontrou uma carta de Nan, datada de seis meses antes de ela morrer e nela
Nan menciona um tal Charley que pensava que as raparigas deveriam andar de saltos altos. Darcy olhou-o.
Já contou a Vince D'Ambrosio?
Ainda não. Claro que vou dizer-lhe. Mas pensei se não seria boa ideia você falar com a minha mãe. Foi o facto de ter mexido nestas fotografias que a levou a voltar
a examinar as coisas de Nan. Ninguém lhe pediu para o fazer, só que penso que, se a minha mãe sabe alguma coisa, poderá vir-lhe à memória mais facilmente, se ela
conversar com uma mulher que entende o tipo de dor com que ela tem vivido todos estes anos.
"Nan era seis minutos mais velha do que eu. E nunca me deixou esquecer isso. Ela era extrovertida. Eu era tímido."
"Chris Sheridan e a mãe já teriam talvez esquecido a morte de Nan Sheridan. O programa Crimes Verdadeiros, o assassínio de Erin, a devolução dos sapatos e agora
eu. Foram obrigados a reviver tudo o que já tinham cicatrizado. Para eles, tal como para mim, não haverá paz enquanto isto não for resolvido."
O desgosto que se espelhou no rosto de Chris Sheridan roubou-lhe, por instantes, o ar sofisticado de executivo que fora tão evidente naqueles últimos dias.
Gostaria de conhecer a sua mãe declarou Darcy. Ela mora em Darien, não é?
Sim. Eu levo-a lá.
No domingo de manhã, vou a Wellesley visitar o pai de Erin. Se estiver de acordo, ao fim da tarde passo por Darien.
Parece-me que será um dia muito cansativo. Não seria melhor lá ir amanhã?
Darcy pensou em como era ridículo corar com aquela idade.
Tenho um compromisso para amanhã.
Levantou-se para sair. Ia encontrar-se com Robert Kruse, no Mickey Mantle, às cinco e meia. A não ser aquele, mais ninguém tinha telefonado. Estava a ficar sem encontros.
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e não havia nada que não conseguisse consertar. Não que tivesse estudado muito. Era o toque dos arames nas mãos, o sentir de uma chave dos interruptores. Competia-lhe
fazer a manutenção de rotina, mas muitas vezes, quando via qualquer coisa avariada, compunha-a sem dizer nada a ninguém. Era a única coisa que lhe dava paz.
Mas, naquele dia, os pensamentos tornaram-se confusos. Berrara ao seu curador por ter sugerido que ele comprara uma casa. Que tinham eles a ver com isso?
A família? O que tinha a família? Os irmãos e as irmãs. Nunca o tinham convidado a visitá-los. Estavam contentes por se livrarem dele. Aquela rapariga, Darcy. Talvez
ele tivesse sido mau para ela, mas ela não percebera o frio que estava, enquanto ele esperava cá fora para lhe pedir desculpa, à porta daquele restaurante todo chique?
Contara aquilo a Mr. Doran, o curador, e ele respondera-lhe:
Lenny, se ao menos entendesses que tens dinheiro suficiente para comer no Le Cirque, ou noutro sítio qualquer, todas as noites até ao resto da tua vida...
Mr. Doran não percebia.
Lenny lembrava-se de como a mãe berrava constantemente ao pai:
Ainda vamos todos parar ao meio da rua, com esses teus investimentos malucos. Lenny costumava encolher-se na cama. Detestava pensar que poderia ir parar à rua com
aquele frio.
Foi nessa altura que começou a sair de pijama, para se ir habituando caso isso viesse a acontecer. Ninguém sabia que o fazia e, quando o pai conseguiu enriquecer,
ele já estava habituado ao frio.
Era difícil lembrar-se. Ficava tão baralhado! Às vezes, imaginava coisas que não aconteciam.
Como Erin Kelley. Olhou para a morada dela. Disseram-lhe que morava em Greenwich Village, e ali estava: Erin Kelley, 101 Rua Christopher.
Uma noite chegara a segui-la ou não?
Estaria enganado?
Ou foi só num sonho que a viu entrar no bar, enquanto ele ficava cá fora?
Ela sentara-se e bebera qualquer coisa. Ele não sabia o que fora. Vinho? Água? Que diferença fazia? Ele tentava decidir se devia ou não entrar e ir ter com ela.
201
Depois, ela saíra. Ele estava pronto a ir ter com ela, quando apareceu uma carrinha.
Não se lembrava se tinha visto o condutor. Às vezes, sonhava com um rosto.
Erin entrara.
E isso fora na noite em que eles dizem que ela desapareceu.
O problema era que Lenny não tinha a certeza se sonhara tudo aquilo. E, se contasse aquilo aos chuis, eles eram capazes de dizer que ele era maluco e levá-lo para
um sítio onde o manteriam fechado.
202
XVIII
SÁBADO 9 de Março
Ao meio-dia de sábado, os agentes do FBI, Vince D'Ambrosio e Ernie Cizek, estavam sentados no interior de um Chrysler cinzento do lado oposto ao 101, da Rua Christopher.
Ali vai ele anunciou Vince. Todo arranjado para o seu dia de folga.
Gus Boxer tinha saído do prédio. Vestia um casaco velho de xadrez, vermelho e preto, por cima de umas calças de polyester castanho-escuras e largas.
Calçava umas botas fortemente apertadas, e a pala de um boné escondia-lhe parte da cara.
Chama àquilo arranjado? exclamou Ernie. Eu pensei que ele devia estar a pagar uma promessa.
É porque nunca o viste de roupa interior e suspensórios. Vamos ordenou Vince, abrindo a porta do carro.
Tinham sido informados pelo proprietário de que Boxer estava de folga do meio-dia de sábado até segunda feira de manhã. Era, então, substituído por José Rodriguez,
que anotava as reclamações e tratava das reparações mais simples.
Rodriguez abriu-lhes a porta. Tratava-se de um homem encorpado, de 35 anos, sóbrio e directo, e Vince perguntou-se por que razão ° proprietário não o metia a ele
a tempo inteiro. Mostraram os cartões de identificação e disseram-lhe:
Vamos de apartamento em apartamento interrogar todos os inquilinos acerca de Erin Kelley. Muitos deles não estavam, da última vez que cá viemos.
203
Vince não acrescentou que desta vez ia verificar o que todos pensavam de Gus Boxer.
No quarto andar, acertou em cheio. Uma senhora de 80 anos abriu a porta, sem retirar o cadeado de segurança. Vince mostrou-lhe o seu distintivo, e Rodriguez explicou:
Está tudo bem, Mrs. Durkin. Eles só querem fazer algumas perguntas. Eu fico aqui, se for preciso alguma coisa.
Não consigo ouvi-lo berrou a velhota.
Quero apenas...
Rodriguez tocou no braço de Vince.
Ela ouve melhor do que eu ou do que o senhor murmurou. Vá lá, Mrs. Durkin, eu sei que a senhora gostava de Erin Kelley. Lembra-se de como ela costumava vir perguntar-lhe
se precisava de alguma coisa da loja e como às vezes ia consigo à missa? A senhora quer que a polícia apanhe o criminoso, não quer?
A porta abriu-se ao comprimento do cadeado.
Faça as suas perguntas ordenou a velhota, olhando com severidade para Vince. E não berre, que me faz dor de cabeça.
Nos quinze minutos seguintes, Vince ouviu a opinião de uma octagenária acerca da maneira como a cidade era dirigida.
Vivi aqui toda a minha vida informou ela com aspereza. Não era preciso trancarmos as portas. Para quê? Quem nos incomodava? Mas, agora, este crime... e ninguém faz
nada. Nojento. Pois eu digo-lhe que deviam despachar estes traficantes de droga todos para o fim do mundo.
Concordo plenamente, Mrs. Durkin afirmou Vince calmamente. Agora, acerca de Erin Kelley...
O rosto da senhora ensombrou-se.
Rapariga mais amorosa não era possível encontrar. Gostava de deitar as mãos a quem lhe fez aquilo. Pois bem, há alguns anos atrás, aconteceu que eu estava aqui sentada
à janela a olhar para aquele apartamento ali em frente. Uma mulher tinha sido assassinada. Eles vieram cá fazer perguntas, mas May e eu, ela vive aqui ao lado, resolvemos
não abrir a boca. E vimos tudo. Sabemos quem o fez. Mas aquela mulher não prestava e não havia nenhum motivo para falarmos.
Testemunhou um crime e não contou à polícia? perguntou Ernie, incrédulo.
204
Ela apertou os lábios
Se foi isso que eu disse, não era isso que eu queria dizer. Tenho as minhas suspeitas, e a May também. E é tudo.
Suspeitas! "Ela viu mesmo o crime", pensou Vince. Também sabia que ninguém conseguiria convencê-la ou à amiga, May, a testemunhar.
Suspirando interiormente, perguntou:
Mrs. Durkin, a senhora senta-se à janela e eu tenho a impressão de que é muito observadora. Viu Erin Kelley sair com alguém naquela noite?
Não. Saiu sozinha.
E levava alguma coisa?
Só a bolsa-de-mão.
E era grande?
Erin trazia sempre uma bolsa grande. Transportava jóias com frequência e não queria que alguém lha pudesse tirar.
Então toda a gente sabia que ela transportava jóias?
Acho que sim. Toda a gente sabia o que ela fazia. Da rua, conseguíamos vê-la sentada à mesa, a trabalhar.
Ela saía muito?
Saía. Mas não muito. Claro que podia encontrar-se com as pessoas noutros lugares. É assim que os jovens fazem, hoje em dia. No meu tempo, o nosso acompanhante vinha-nos
buscar a casa ou então não saíamos. Nessa altura, era melhor.
Estou inclinado a dar-lhe razão. Continuavam todos de pé no vestíbulo. Mrs. Durkin, pergunto-me se poderíamos entrar por alguns instantes. Não queria que ninguém
nos ouvisse.
Tem os sapatos com lama?
Não, senhora.
Eu fico aqui à espera prometeu Rodriguez.
O apartamento tinha a mesma disposição do de Erin Kelley. Estava meticulosamente limpo. A mobília estofada com tecido de crina estava protegida com cobertas. Havia
candeeiros de pé alto, com quebra-luzes de seda ornamentados, mesas polidas e fotografias de família de homens engravatados e mulheres de ar severo. Vince sentiu-se
transportado para a sala da sua avó, em Jackson Heights.
Não os convidou a sentarem-se.
Mrs. Durkin, diga-me o que pensa de Gus Boxer. Soltou um som desdenhoso e respondeu:
Acredite-me que este é o único apartamento onde ele não se
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atreve a vir procurar um dos seus famosos canos rotos. E é precisamente este que tem um. Não gosto desse homem. Não entendo por que razão o administrador o mantém
ao serviço. Anda sempre com aquelas roupas nojentas. É mal-educado. A única explicação que me ocorre é que ele lhes deve sair barato. Uma semana antes de morrer
eu ouvi Erin Kelley dizerlhe que, se o encontrasse novamente no seu apartamento, chamaria a polícia.
Erin disse-lhe isso?
Pode apostar que sim. E tinha razão.
E Gus Boxer sabia da quantidade de jóias que Erin guardava?
Gus Boxer está a par de tudo o que acontece dentro deste edifício.
Mrs. Durkin, ajudou-nos imenso. Há mais alguma coisa que nos queira dizer?
Ela hesitou.
Algumas semanas antes de Erin desaparecer, havia um tipo que costumava andar aí na rua. Aparecia sempre ao escurecer, por isso não consegui vê-lo bem. Claro que
não sei o que ele andava a tramar, mas, naquela terça-feira, quando Erin saiu pela última vez, eu vi que ela saiu sozinha e levava consigo a mala-de-mão grande.
Os meus óculos estavam embaciados, por isso não tenho a certeza se era o mesmo tipo que se encontrava do outro lado da rua, mas estou convencida de que sim, e quando
Erin começou a descer o quarteirão ele seguiu na mesma direcção.
Não o viu com clareza naquela noite, Mrs. Durkin, mas com certeza noutras ocasiões conseguiu vê-lo melhor. Como era ele?
Magro. Colarinho levantado. Tinha as mãos dentro dos bolsos, como se pressionasse os braços contra o corpo. Rosto magro. Cabelo escuro e despenteado.
"Len Parker", pensou Vince, e olhou para Ernie que, obviamente, se lembrara do mesmo.
Estava ansiosa por este dia declarou Darcy, reclinando-se no banco do passageiro do Mercedes e sorrindo para Michael. Foi uma semana e tanto!
206
Também me pareceu respondeu Michael secamente. Não consegui apanhá-la nem em casa nem no escritório.
Eu sei. Lamento muito.
Não lamente nada. Está um óptimo dia para passear, não está? Seguiam pela Estrada 202 e aproximavam-se de Bridgwater.
Nunca conheci Nova Jérsia muito bem comentou Darcy.
A não ser pelas anedotas. Toda a gente faz o seu juízo, baseando-se na parte da auto-estrada que tem as refinarias. Acredite ou não, possui uma das maiores costas
de todos os Estados do lado ocidental e tem a maior quantidade de cavalos por pessoa do país.
Ainda bem. Riu-se Darcy.
Ainda bem. E quem sabe? Com o meu zelo missionário, talvez a consiga converter.
Mrs. Hughes desfez-se em sorrisos:
Oh, Miss Scott, desde que o doutor me disse que vinha que eu tenho pensado num belo jantar.
Que simpático da sua parte.
O quarto de hóspedes, ao cimo das escadas, está pronto. Pode refrescar-se lá, depois do passeio a cavalo.
Óptimo.
Se possível, o dia estava ainda melhor que no domingo anterior. Fresco. Cheio de sol. Sentia-se o cheiro da Primavera no ar. Darcy decidiu entregar-se por completo
ao prazer do passeio.
Quando pararam para descansar os cavalos, Michael afirmou: Não preciso de te perguntar se te estás a divertir. Nota-se.
O entardecer tornou-se, subitamente, frio. No escritório de Michael, alguém acendera a lareira. A corrente de ar que descia pela chaminé era de tal forma grande
que as chamas crepitavam.
Michael serviu-a de vinho, preparou um cocktail para ele e sentou-se ao lado dela, no sofá de couro, esticando as pernas e Pousando-as na mesa de café. Com o braço,
rodeava o encosto do sofá.
Sabes... começou ele. Passei muito tempo, durante esta semana, a pensar no que me contaste. É terrível que um comentário
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ocasional possa marcar de tal maneira uma criança. Mas, Darcy, honestamente, poderás dizer-me que nunca te olhaste ao espelho e viste como eras bonita?
Não consigo. Darcy hesitou e concluiu: Deus me perdoe não devia pedir uma consulta de borla, mas gostava de conversar contigo acerca disso. Não, é melhor não.
Ele passou -lhe a mão pelo cabelo e convidou:
O quê? Vá lá, diz.
Ela olhou-o, concentrando-se na simpatia que se lia nos olhos dele.
Michael, tenho a impressão de que tu entendes como esse comentário foi devastador para mim, mas que pensas, como hei-de explicar, que eu, subconscientemente, tenho
culpado durante todos estes anos a minha mãe e o meu pai pelo que aconteceu.
Michael assobiou.
Ei, ainda me pões no desemprego. A maior parte das pessoas demoram um ano de terapia até conseguirem tirar essa conclusão.
Não me respondeste. Ele beijou-a na face.
E não te vou responder. Vamos. Acho que Mrs. Hughes tem o jantar na mesa.
Regressaram ao apartamento dela às dez horas. Ele estacionou o carro e acompanhou-a até à porta.
Desta vez, não saio daqui até ver que estás em segurança lá dentro. Gostava que me deixasses levarte a Wellesley amanhã. Afinal, é uma viagem muito longa para se
fazer num dia só.
Eu não me importo. E, além disso, no regresso tenho de fazer uma paragem.
Outro leilão de garagem?
Ela não queria falar-lhe das fotografias de Nan Sheridan.
Exactamente. Mais uma expedição de pesca.
Ele poisou-lhe as mãos nos ombros, levantou-lhe o rosto e aproximou a sua boca da dela. Beijou-a, breve mas calorosamente.
Darcy, telefona-me amanhã quando chegares. Quero ter a certeza de que chegaste bem.
Está bem. Obrigada.
Ela ficou do lado de dentro da porta até o carro se afastar. Depois, cantando, subiu as escadas a correr.
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Hank chegava ao princípio da noite de sábado. "Temos tão pouco tempo juntos", pensou Vince enquanto abria a porta do seu apartamento. Quando estava casado com Alice
morava em Great Neck. Não havia grande necessidade em manter essa distância, depois de se separarem, de forma que, depois de venderem a casa, ele alugara aquele
apartamento entre a Segunda Avenida e a Rua 19. Na zona de Gramercy Park. Claro que não era mesmo em Gramercy Park. Isso não era possível, com o seu salário.
Mas gostava daquele apartamento. Do nono andar, as janelas ofereciam-lhe uma vista típica da baixa. À direita, vislumbrava o parque com os seus edifícios elegantes
de pedra, que desciam até ao tráfego assassino da Segunda Avenida.
Do outro lado da rua, viam-se blocos de residências e edifícios comerciais com restaurantes, pronto-a-comer, produtos coreanos e uma loja de vídeos.
Tinha dois quartos, dois quartos-de-banho, uma sala-comum de tamanho razoável, uma copa e uma kitchnette minúscula. O segundo quarto era para Hank, mas colocara
lá algumas prateleiras e uma secretária e servia igualmente de escritório.
A sala e a copa estavam mobiladas com mais um dos enormes erros de Alice. No ano anterior ao rompimento, ela redecorara a sala num tom pastel, cor de pêssego e branco,
desde a carpete às cadeiras sem braços. As mesas eram de vidro e os candeeiros pareciam ossos no deserto. Ela impingira-lhe aquilo tudo e ficara com as mobílias
tradicionais de que ele tanto gostava. Um daqueles dias, quando tivesse disposição, Vince livrar-se-ia de tudo aquilo e arranjaria mobília antiga e confortável.
Estava farto de se sentir como se estivesse na casa de sonho da Barbie.
Hank ainda não chegara. Vince despiu-se, tomou um duche quente e vestiu umas calças e uma camisola. Abriu uma cerveja, espreguiçou-se e passou o caso em revista.
Tratava-se de uma investigação complicada. Cada pedra que se levantava descobria uma nova pista.
Boxer. Erin ameaçara-o com a polícia. No dia anterior, Darcy
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telefonara-lhe dizendo que lhe parecia ter descoberto Boxer numa das fotografias. Estavam agora a verificá-la.
Por seu lado, Mrs. Durkin descrevia uma pessoa que correspondia a Len Parker, vagueando pela Rua Christopher, e ela afirmava que ele seguira Erin Kelley na noite
em que ela desaparecera.
Havia uma ligação directa entre o vigarista Jay Stratton e Nan Sheridan. Uma ligação directa entre Jay Stratton e Erin Kelley.
Vince ouviu uma chave a rodar na fechadura. Hank entrou e disse:
Olá, pai.
Deixou cair o saco de noite e deu-lhe um abraço rápido.
Vince sentiu o cabelo crespo roçar-lhe no rosto. Sempre se controlara de forma a não demonstrar o amor feroz que sentia pelo filho. O miúdo ficaria embaraçado.
Olá, pá. Como vão as coisas?
Óptimas, acho eu. Tive um A a química.
Estudaste para isso.
Hank tirou o casaco da escola e mandou-o pelo ar.
Como é bom ter acabado os exames. Com passos largos, dirigiu-se à cozinha e abriu o frigorífico. Pai, parece-me que podes começar a utilizar o serviço das "Refeições
sobre Rodas".
Eu sei. Foi uma semana e tanto. E, subitamente inspirado, acrescentou: Encontrei um restaurante que serve uma pasta bestial. Fica na Rua 58. E depois podemos ir
ao cinema.
Óptimo exclamou Hank, espreguiçando-se. Oh, como é bom estar aqui. A mãe e o Blubber andam amuados.
"Não é nada comigo", pensou Vince, mas não resistiu e perguntou:
Porquê?
Ela quer um Rolex de dezasseis e meio como prenda de anos.
Dezasseis mil e quinhentos dólares? E eu que pensava que ela era cara, quando casou comigo.
Hank riu-se.
Eu amo a mãe, mas sabes como ela é. Ela pensa em grande. E como vai o caso do assassínio das raparigas?
O telefone tocou. Vince franziu a testa. Outra vez na noite de Hank não, pediu ele, notando que o rosto do filho apenas exprimia interesse.
Talvez haja novidade sugeriu Hank, enquanto Vince atendia. Tratava-se de Nona Roberts.
Vince, detesto ter de lhe telefonar para casa, mas como me deu o seu número... Andei por fora todo o dia e só agora cheguei ao escritório. Tinha um recado do Dr.
Nash. O editor não quer que ele fale
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agora acerca dos anúncios, pois o livro dele deverá ser publicado em breve. Não tem mais nenhuma ideia de um psiquiatra particularmente virado para este assunto?
Eu conheço alguns que são membros da AAPL. Trata-se de uma organização de psiquiatras especializados em psiquiatria e em Direito. Vou tentar arranjar-lhe um na segunda-feira.
Obrigadíssima. Mais uma vez, peço desculpa por o ter incomodado. Vou agora até ao Amantes de Pasta comer um prato de spaghetti.
Se lá chegar primeiro, peça uma mesa para três. Hank e eu íamos a sair. E, percebendo que estava a ser presumido, acrescentou: A não ser, claro, que vá com os seus
amigos. "Ou amigo", pensou.
Estou sozinha. Vai ser óptimo. Encontramo-nos lá. E desligou o telefone.
Vince olhou para Hank.
Não te importas, chefe? perguntou ele. Ou preferias que fôssemos só os dois?
Hank pegou no casaco que caíra em cima de uma cadeira.
Não me importo nada. O meu dever é fiscalizar os teus encontros.
211
XIX
DOMINGO
10 de Março
Darcy partiu para o Massachusetts às sete horas da manhã de domingo. Quantas vezes ela e Erin tinham ido ver Billy, perguntava-se, enquanto virava para a faixa do
East River. Costumavam guiar alternadamente, parando a meio do caminho para tomar um café no MacDonalds, decidindo sempre que deveriam arranjar um termos igual ao
que tinham no tempo da Faculdade.
Da última vez que tinham decidido isso, Erin rira-se:
Pobre Billy, estará morto e enterrado e nós sem termos o termos.
Agora, era Erin que estava morta e enterrada.
Darcy não parou e chegou a Wellesley às onze e meia. Estacionou em S. Paulo e tocou à campainha da sacristia. O padre que celebrara a missa fúnebre de Erin estava
lá. Bebeu um café com ele.
Deixei recado na casa de repouso disse-lhe, mas gostava que também soubesse que, se Billy precisar de alguma coisa, se ele piorar ou ficar consciente, por favor,
mande-mme chamar.
Ele já não voltará a si respondeu o monsenhor calmamente. Penso que, no caso dele, isso é uma Graça Divina.
Darcy ficou para a missa do meio-dia e pensou menos no elogio do que há duas semanas atrás. "Quem poderá esquecer a visão daquela rapariguinha empurrando a cadeira
de rodas do pai até à igreja?"
Dirigiu-se ao cemitério. O chão não estava ainda liso sobre a sepultura de Erin. A terra castanho-escura mantinha-se revolta, e uma ténue camada de gelo brilhava
à luz dos raios tímidos do sol de Março. Darcy ajoelhou-se, tirou a luva e pousou a mão sobre a sepultura.
Erin. Erin.
213
Dali, dirigiu-se para a casa de repouso e sentou-se à cabeceira de Billy durante uma hora. Ele não abriu os olhos, mas ela segurou-lhe na mão e manteve uma conversa
contínua com ele.
Bertolini ficou doido com o colar que Erin desenhou para ele Agora, querem que ela faça muitas outras coisas.
Falou-lhe dos negócios dela:
Honestamente, Billy, se me visses a mim e a Erin a vasculhar os sótãos à procura de mobílias, ias pensar que somos malucas. Ela tem um olho excelente e descobria
muita coisa que eu deixaria passar.
Ao sair, inclinou-se para ele e beijou-o na testa.
Deus te abençoe, Billy.
Sentiu uma leve pressão na mão. Ele sabe que eu estou aqui, pensou ela.
Voltarei em breve prometeu.
Darcy possuía uma carrinha Buick com telemóvel. O trânsito avançava lentamente na direcção sul e, às cinco horas, ligou para a casa de Sheridan em Darien. Foi Chris
quem atendeu.
Vou chegar mais tarde do que esperava explicou ela. Não quero interferir com os planos da sua mãe... ou com os seus.
Não temos planos assegurou ele. Venha.
Entrou na propriedade dos Sheridan às seis e um quarto. Estava quase noite cerrada, mas luzes exteriores iluminavam a elegante mansão Tudor. A longa alameda terminava
numa rotunda à frente da porta de entrada. Darcy estacionou o carro.
Era óbvio que Chris Sheridan estava à sua espera, pois a porta abriu-se e ele saiu para a cumprimentar.
Fez uma boa média declarou ele. Que bom voltar a vê-la, Darcy.
Trazia uma camisa cinzento-escura, calças de veludo canelado e sapatos desportivos. Quando ele lhe estendeu a mão para a ajudar a sair do carro, Darcy deu por si,
mais uma vez, a admirar-lhe a largura dos ombros. Ficou igualmente satisfeita por ele não estar de fato e gravata. Durante o caminho, ocorrera-lhe que iria chegar
à
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hora de jantar e que as suas calças de bombazina e a camisola de lã não seriam propriamente a roupa mais indicada.
O interior da casa exibia uma combinação encantadora de conforto e gosto requintado. Carpetes persas estendiam-se no vestíbulo de tectos altos. Um candelabro Waterford
com castiçais a condizer realçavam o magnífico embutido da escadaria. Quadros que Darcy gostaria de examinar melhor cobriam as paredes da escadaria.
Tal como a maioria das pessoas, a minha mãe utiliza o seu gabinete mais do que qualquer outro aposento, informou Chris. Por aqui.
Darcy observou a sala-de-estar quando passaram. Chris reparou e disse:
A casa está cheia de antiguidades nacionais. Desde o princípio da colonização até ao revivalismo grego. A minha avó adorava antiguidades, e acho que todos herdámos
esse gosto.
Greta Sheridan encontrava-se sentada, junto à lareira, num cadeirão convidativo. Tinha o New York Times aberto na sua frente. A secção de domingo estava aberta na
página dos passatempos, e ela estudava um dicionário de palavras cruzadas. Ergueu-se com graciosidade.
Deve ser a Darcy disse, apertando-lhe a mão. Lamento imenso o que aconteceu à sua amiga.
Darcy assentiu. "Que mulher maravilhosa!", pensou. Muitas das estrelas de cinema, amigas da mãe, gostariam de possuir os ossos do rosto de Greta Sheridan, as suas
feições patrícias e o seu contorno elegante. Vestia umas calças azul-claras de lã, uma camisola de gola alta a condizer, uns brincos de diamantes e um diamante do
feitio de uma ferradura.
"Nascida em berço d'ouro", pensou Darcy.
Chris serviu o xerez. Em cima da pequena mesa estava um prato de queijo e bolachas. Espicaçou o lume e afirmou:
Quando chega o fim do dia é que damos conta de que ainda estamos em Março.
Greta Sheridan perguntou-lhe como correra a viagem.
Tem mais coragem do que eu em ir e vir para Massachusets no mesmo dia.
Eu ando muito de carro.
Darcy, nós conhecemo-nos há apenas cinco dias comentou
215
Chris, e continuo sem saber o que faz. E, virando-se para Greta, explicou: A primeira vez que levei Darcy pela sala principal da galeria ela identificou a escrivaninha
Roentgen pelo canto do olho. Depois, disse-me que de certa forma se dedicava ao mesmo ramo.
Darcy riu-se.
Não vão acreditar-me, mas eu conto-vos. Greta Sheridan estava fascinada.
Que ideia sensacional! Se quiser, eu posso descobrir-lhe algumas coisas. Não calcula a quantidade de mobília óptima que as pessoas deitam fora nesta zona.
Às seis e meia, Chris disse:
Sou eu o cozinheiro. Espero que a Darcy não seja vegetariana. Vamos comer bifes, puré de batata e salada. A especialidade de um perito.
Não sou vegetariana. Parece-me óptimo.
Quando ele saiu, Greta Sheridan começou a falar da filha e do reavivar da sua morte, devido ao programa Crimes Verdadeiros.
Quando recebi aquela carta a dizer que uma rapariga iria morrer em Nova Iorque, em memória de Nan, pensei que endoidecia. Não há nada pior que a impotência para
evitar uma tragédia que se sabe que vai acontecer.
A não ser se nós contribuímos para que ela acontecesse respondeu Darcy. Eu sei que a única forma de compensar, de certa forma, o facto de eu ter insistido com ela
para que respondesse a estes malditos anúncios, é impedir que o assassino dela magoe mais alguém. Obviamente, deve sentir o mesmo. Eu entendo como deve ter sido
difícil emprestar as cartas e as fotografias de Nan e estou-lhe muito grata por isso.
Encontrei mais algumas. Estão aqui explicou Greta, apontando para um monte de álbuns pequenos ali empilhados. Estavam numa prateleira da biblioteca e por isso passaram
despercebidos. Pegou no que estava no cimo. Darcy aproximou a cadeira dela e, juntas, percorreram as fotografias. No último ano, Nan interessou-se muito por fotografia.
Nós oferecemos-lhe uma Cannon pelo Natal, por isso estas foram tiradas entre o fim de Dezembro e o meio de Março.
"Os dias da juventude", pensou Darcy. Ela tinha álbuns como
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aquele com o grupo de Mount Holyhoke. A única diferença residia no facto de Mount Holyhoke ser apenas feminino. Naquelas fotografias, havia tantos homens como raparigas.
Começou a examiná-las, atentamente.
Chris apareceu à porta para anunciar: Têm cinco minutos de tolerância.
Você é um bom cozinheiro declarou Darcy, aprovadora, ao terminar o bife.
Comentaram, então, a referência de Nan a alguém chamado Charley, que gostava de raparigas que usassem saltos altos.
Era disso que não conseguia lembrar-me confessou Greta.
No programa e nos jornais fartaram-se de falar nos sapatos de salto alto. Era a carta de Nan acerca dos saltos altos que me andava a incomodar. Infelizmente, a verdade
é que não serviu de muito, pois não?
Ainda não respondeu Chris.
Chris levou o tabuleiro com o café para o escritório.
Dás um óptimo mordomo elogiou a mãe com afecto.
Como te recusas a ter empregados internos, não tive outro remédio se não aprender.
Darcy pensou na mansão de Bel-Air com três empregadas internas.
Quando acabou o café, levantou-se.
Lamento imenso ter de interromper, mas ainda me falta uma hora de caminho até casa e, se me deixo descansar muito, ainda adormeço ao volante. Hesitou e depois pediu:
Posso voltar a ver o primeiro álbum?
No primeiro álbum, numa das últimas páginas, via-se uma fotografia de grupo.
Aquele tipo alto de camisola começou Darcy, aquele de cara virada para a câmara. Há qualquer coisa nele... Encolheu os ombros e concluiu: Tenho a impressão de que
o conheço de qualquer lado.
Greta e Chris Sheridan examinaram a fotografia.
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Consigo identificar alguns dos miúdos afirmou Greta, mas esse não. E tu, Chris?
Não. Mas, olha, a Janet também aí está. Ela era uma das grandes amigas de Nan explicou para Darcy Ela vive em Newport. E, virando-se para a mãe, sugeriu: Ela adora
vir visitar-te. Por que não lhe telefonas para cá vir?
Ela anda sempre tão atarefada com as crianças, mas eu posso ir até lá.
Quando Darcy se despedia, Greta Sheridan sorriu e disse-lhe:
Darcy, tenho-a observado toda a noite. A não ser a cor do cabelo, nunca ninguém lhe disse que era extraordinariamente parecida com Barbara Thorne?
Nunca respondeu Darcy sem mentir. Não era aquele o momento indicado para confessar que Barbara Thorne era a sua mãe. Retribuiu o sorriso e disse:Mas devo dizer-lhe,
Mrs. Sheridan, que isso é uma coisa muito simpática para dizer a alguém.
Chris acompanhou-a até ao carro.
Não está demasiado cansada para guiar?
Oh, não! Devia ver as grandes viagens que faço, quando ando por aí a caçar mobílias.
Na verdade, estamos os dois no mesmo ramo.
Sim, só que você está num plano mais elevado.
Amanhã aparece na galeria?
Lá estarei. Boa noite, Chris. Greta Sheridan esperava-o à porta.
Ela é uma rapariga amorosa, Chris. Amorosa. Chris encolheu os ombros.
Eu também acho. E, recordando-se de como Darcy corara quando ele lhe pedira para vir no sábado, acrescentou: Mas não comeces a armar em casamenteira-mãe, tenho a
impressão de que está comprometida.
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Durante o fim-de-semana, Doug foi o pai e o marido que qualquer esposa desejaria ter. Mesmo sabendo que o seu comportamento era uma farsa, Susan conseguiu atenuar
o medo de que ele fosse um assassino de mulheres.
Acompanhou Donny ao treino de basquetebol e depois juntou-se a um treino no pátio exterior com os garotos que puderam ficar. Por fim, levou-os todos ao Burger King
para o almoço.
Não há nada como um almoço saudável troçou.
O lugar estava cheio de famílias jovens. "Este é o tipo de coisas que nos tem faltado", reflectiu Susan. "Mas, agora, é demasiado tarde." E olhou para Donny, que
se encontrava do outro lado da mesa e não proferira palavra.
De volta a casa, Doug brincou com o bebé, ajudando-o a construir um castelo com blocos.
Vamos agora meter o pequeno príncipe lá dentro. Coner guinchava de prazer.
Levou Trish a dar uma volta de lambreta.
Nós ganhamos a qualquer um aqui das redondezas, não é, amor?
Teve uma conversa amigável de pai para filha com Beth.
A minha pequena está cada dia mais bonita. Vou ter de construir uma vedação à volta desta casa, para impedir que os rapazes venham atrás de ti.
Enquanto ela preparava o jantar, ele beliscoulhe o pescoço.
Devíamos ir dançar um dia destes, querida. Lembras-te de como costumávamos dançar na faculdade?
Como um sopro de ar frio, isto acabou com toda a fantasia de que, se calhar, era ridículo suspeitar que ele fosse mais do que um simples mulherengo. Os sapatos de
baile encontrados nos pés daquelas mulheres...
Mais tarde, na cama, Doug aproximou-se dela.
Susan, já alguma vez te disse que te amo muito?
Muitas vezes, mas há uma que nunca esquecerei. "Quando eu menti por ti", depois da morte de Nan. Doug apoiou-se no cotovelo e olhoua no escuro.
E qual é essa? perguntou trocista. "Não deixes perceber o que estás a pensar."
No dia do nosso casamento, claro respondeu ela, rindo-se
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com nervosismo. Oh, Doug, não, por favor, estou verdadeiramente cansada.
Não conseguia suportar o toque dele. Percebeu, então, que o temia.
Susan, que raio é que tu tens? Estás a tremer.
No domingo, repetiu-se a cena. União familiar. Mas Susan conseguiu detectar uma expressão vaga nos olhos de Doug e, à volta da boca, lia-se uma certa preocupação.
Será que devo comunicar à polícia as minhas suspeitas? E, se admitir que menti há quinze anos, irei também parar à prisão? Se isso acontecesse, que aconteceria às
crianças? Se ele suspeitasse que eu quero contar à polícia a verdade acerca da manhã em que a Nan morreu, será que ele tentaria impedir-me?
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XX
SEGUNDA-FEIRA
11 de Março
Na segunda-feira de manhã, Vince telefonou a Nona.
Arranjei um psiquiatra para o seu programa. O Dr. Martin Weiss. Um tipo simpático, sensível. É membro da AAPL e muito conceituado. Vai directo às coisas e está disposto
a colaborar no programa. Quer tomar nota do número dele?
Claro respondeu Nona, repetindo-o, e depois acrescentou: Gostei muito do Hank, Vince. Ele é bestial.
Ele mandou perguntar se o quer ir ver fazer uns lançamentos quando começar a época.
E levo os Cracker Jacks.
Nona telefonou ao Dr. Weiss. Ele concordou em estar no estúdio às quatro horas de quarta-feira.
Começamos a gravar às cinco. Irá para o ar na noite de quinta, às oito.
Darcy passou grande parte de segunda-feira no armazém, arranjando mobília para o hotel. Às quatro horas, chegou às galerias Sheridan. Estavam a realizar um leilão.
Viu Chris, ocupando um lugar na primeira fila, de costas voltadas para ela. Esgueirou-se pelo corredor até à sala-de-reuniões. Muitas fotografias estavam datadas.
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Queria tentar encontrar algumas daquela data. Talvez encontrasse outra fotografia com aquele estudante que lhe parecera familiar.
Eram seis e meia e continuava ainda a procurar. Chris entrou. Ela levantou os olhos e sorriu-lhe.
O leilão parecia estar animado. Que tal correu o dia?
Correu bem. Ninguém me disse que cá estava. Agora é que vi a luz acesa.
Ainda bem. Chris, este tipo parece-se com aquele que eu indiquei ontem?
Ele observou a fotografia e respondeu:
Parece, sim. A minha mãe deixou-me recado há pouco. Esteve hoje com Janet. Esse tipo foi um dos muitos interrogados quando Nan morreu. Ele tinha um fraco por ela.
Chama-se Doug Pox. E, perante a expressão de Darcy, perguntou: Então, sempre o conhece?
Como Doug Fields. E através de um anúncio.
Querida, telefonaram-me para uma reunião de emergência. Não posso contar-te agora, mas uma das companhias que eu recomendei a um dos nossos maiores clientes está
a ir abaixo.
Susan conseguiu resistir à noite. Deu um banho a Trish e ao bebé e ajudou Beth e Donny com os trabalhos de casa.
Por fim, conseguiu desligar as luzes e ir para a cama. Durante horas, ficou acordada. Ele conseguira ficar em casa durante o fim-de-semana, mas agora andava outra
vez à solta. E, se ele era o responsável pela morte daquelas raparigas, ela era igualmente culpada.
Seria tão bom se ao menos pudesse fugir! Meter os garotos no carro e ir o mais longe possível.
Mas as coisas não se resolviam assim.
Na tarde do dia seguinte, depois de acompanhar Trish ao autocarro da escola e de pôr o bebé a dormir, Susan pegou no telefone e pediu o número da sede do FBI de
Manhattan.
Discou o número e aguardou. Uma voz respondeu:
Departamento de Investigação Federal.
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Ainda não era tarde para desligar. Susan fechou os olhos e, forçando a voz, afirmou:
Quero falar com alguém acerca do caso dos sapatos de baile. Acho que tenho algumas informações.
Na noite de segundafeira, Darcy encontrou-se com Nona para jantar no Neary.
Contou-lhe acerca de Doug Fox.
Vince não estava quando eu lhe liguei declarou ela. Deixei-lhe recado. Partiu um bocado de pão e espalhou um pedaço de manteiga por cima. Nona, Doug Fox ou Doug
Fields, que foi como ele se apresentou, é exactamente do tipo de pessoa de quem Erin teria gostado e em quem teria confiado. Ele é bem-parecido, esperto, artista
e tem um daqueles rostos de garoto que agradariam aos instintos maternais de Erin.
Nona ficou muito séria.
É assustador pensar que ele foi interrogado quando Nan Sheridan morreu. É melhor não voltares a vê-lo. Claro que Vince disse que muitos tipos não dão os nomes verdadeiros
quando respondem aos anúncios.
Mas quantos é que foram interrogados no caso da morte de Nan Sheridan?
O melhor é não termos demasiadas esperanças. Até agora, não passa de mais uma pista, tal como o facto de Jay Stratton ter andado também na Brown ou de o superintendente
ter trabalho perto de casa de Nan há quinze anos atrás.
Quem me dera que tudo terminasse.
Vamos mudar de assunto. Tens estado a comer sem dar conta. Como vai o trabalho?
Claro que tem andado muito negligenciado. Mas hoje tive um telefonema muito simpático acerca de um quarto que redecorei para uma garota de dezasseis anos que sofreu
um acidente terrível. Utilizei muita coisa de Erin. A mãe quis-me dizer que a filha, Lisa, saiu do hospital no sábado e adora o quarto. E sabes do que é que ela
gostou realmente?
223
De quê?
Lembras-te do poster que Erin tinha na parede em frente da cama? Aquele retirado do quadro de Egret?
Claro que lembro: Gosta de música, gosta de dançar.
Não se tinham apercebido de que Jimmy Neary se aproximara da mesa.
É isso mesmo exclamou ele com veemência. Meu Deus, é isso mesmo. Era assim que o anúncio começava, aquele que caiu do bolso de Erin, aí mesmo, nessa mesma mesa.
224
XXI
TERÇA-FEIRA
12 de Março
Na terça-feira, Susan contratou uma baby-sitter e apanhou o comboio para Nova Iorque. Vince pedira-lhe para ir até lá.
Eu entendo como deve ser difícil para si, Mrs. Fox, declarou ele, cautelosamente. Não lhe disse que já tinham uma pista que conduzia ao marido. Fazemos o que podemos
para manter a nossa investigação longe dos media, mas, quanto mais soubermos mais fácil se torna fazê-lo.
Às onze horas, Susan chegava à sede do FBI.
Pode contactar a agência de detectives Harkness disse ela para Vince. Eles têm andado a seguir Doug. Eu gostava de pensar que ele é apenas um mulherengo, mas, se
é mais do que isso, não poderei ignorá-lo.
Vince leu a agonia no rosto da jovem e bonita rapariga sentada na sua frente.
Não, não pode ignorá-lo concordou ele, calmamente. No entanto, é um grande salto partir do facto de o seu marido andar por aí a escapar-se, a pensar que ele poderá
ser um assassino. O que a fez dar esse salto?
Eu tinha apenas vinte anos e estava completamente apaixonada por ele.
Era como se Susan falasse sozinha.
Há quanto tempo foi isso?
Há quinze anos.
Vince manteve-se impassível.
O que aconteceu nessa altura, Mrs. Fox?
Ela tinha os olhos fixos num ponto da parede atrás dele e contou a Vince a mentira que dissera por Doug no dia em que Nan fora
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assassinada e como Doug chamara Erin pelo nome enquanto dormia na noite em que o seu corpo fora encontrado.
Quando ela acabou, Vince perguntou: E a agência Harkness sabe onde fica o apartamento dele? Sim.
Depois de lhe contar tudo o que sabia e suspeitava, Susan sentiu um vazio dentro de si. Agora, tinha apenas de viver consigo o resto da vida.
Mrs. Fox, esta é uma das coisas que suponho será mais dura para si. Precisamos de falar com a agência Harkness. O facto de eles terem andado a seguir o seu marido
pode ser muito valioso para nós. Poderá agir normalmente com ele durante os próximos dias? Não se esqueça de que a nossa investigação pode ilibá-lo.
Não é difícil manter as aparências com o meu marido. A maior parte das vezes nem repara em mim, a não ser para se queixar.
Quando ela saiu, Vince chamou Ernie.
Conseguimos a nossa primeira pista prometedora e não quero perdê-la. Vamos fazer o seguinte...
Na tarde de terça-feira, Jay Charles Stratton foi preso por roubo. Os detectives da polícia de Nova Iorque, em conjunto com os agentes de segurança da Lloyds de
Londres, descobriram o ourives que engastara alguns dos diamantes roubados. O resto das pedras que constavam da lista das pedras desaparecidas foram descobertas
num cofre-depósito alugado em nome de Jay Stratton.
Fora uma reunião muito longa, e a tensão no escritório era brutal. Como se explica a um dos melhores clientes da nossa empresa que o
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contabilista de uma empresa nos enganou? Esse tipo de coisas não devia acontecer.
Doug telefonou diversas vezes para casa e ficou surpreendido quando a baby-sitter o atendeu. Definitivamente, algo se passava. Tinha mesmo de voltar a casa naquela
noite. Não era muito difícil dar a volta a Susan. Sentiu a confiança abandoná-lo. Ela não podia suspeitar... ou podia?
Na noite de terça-feira, Darcy foi directa do escritório para casa. Queria aquecer uma lata de sopa e ir directamente para a cama. A tensão daquelas duas últimas
semanas começava a afectá-la, e estava a ir-se abaixo.
Às oito horas, Michael telefonou:
Já ouvi vozes cansadas, mas a tua ganha o primeiro prémio.
Não duvido.
Tens-te esforçado de mais, Darcy.
Não te preocupes. O resto da semana tenciono vir directamente para casa.
Ora aí está uma boa ideia, Darcy. Vou estar fora da cidade durante alguns dias, mas guarda o sábado para mim, está bem? Ou então o domingo. Ou, talvez melhor, os
dois dias.
Darcy riu-se.
Vamos combinar para sábado. Diverte-te.
Não é divertimento. Trata-se de uma convenção de psiquiatria. Pediram-me para substituir um amigo que, à última hora, cancelou a sua intervenção. Queres que eu te
diga como é estar numa sala com quatrocentos psiquiatras ao mesmo tempo?
Não consigo imaginar.
227
XXII
QUARTA-FEIRA
13 de Março
"O dia D", pensou Nona, enquanto tirava a capa e a mandava para cima da cadeira. Ainda não eram oito horas e ficou satisfeita por ver que Connie já tinha chegado
e o café já fervia.
Connie seguiu-a até ao escritório.
Vai ser um programa óptimo, Nona animou ela, trazendo duas chávenas acabadas de lavar.
Tenho a impressão de que até Cecil B. de Mille conseguiu acabar as suas epopeias em menos tempo do que eu levei a montar este programa comentou Nona secamente.
Mas a Nona não deixou de fazer os seus programas habituais, durante este tempo sublinhou Connie.
Suponho que sim. Vamos confirmar a presença de todos os convidados, através do telefone. Não te esqueceste de lhes mandar uma carta?
Claro que não! Connie parecia espantada por ela ter perguntado.
Nona sorriu.
Desculpa, mas o Hamilton tem sido um chato com este programa, e Liz está determinada a ficar com os louros pela parte positiva e deixar para mim aquilo que correr
mal...
Eu sei.
Por vezes, pergunto-me quem manda neste escritório, Connie, se és tu ou se sou eu. Sabes, há um aspecto em que eu gostaria que não fôssemos parecidas.
Connie aguardou, e Nona, apontando para a planta pousada no parapeito da janela, explicou:
Gostava que te preocupasses com as plantas, mas és como eu.
229
Nunca damos por elas. Aquela desgraçada ali. Deita-lhe qualquer coisa para ela beber, está bem?
Na manhã de quarta-feira, Len Parker sentia-se cansado. No dia anterior, não conseguira deixar de pensar em Darcy Scott. Quando saiu do trabalho, vagueou junto à
porta do edifício onde ela morava e viu-a sair de um táxi por volta das seis e meia ou sete. Esperou até às dez, mas ela não voltara a sair. Ele queria realmente
falar com ela. Outras vezes, sentia-se zangado por ela ter sido tão má para ele. No dia anterior, ele lembrara-se de qualquer coisa importante, mas agora já se esquecera
outra vez. Perguntou-se se se voltaria a lembrar.
Vestiu o uniforme. Era bom usar um uniforme, assim não gastava dinheiro em roupas para ir trabalhar.
A secretária de Vince anotou o recado de Darcy Scott, na manhã de quarta-feira, pois ele não chegara ainda. Ela iria passar o dia fora, mas queria que ele soubesse
que Erin andara a responder a um anúncio que começava: Gosta de música, gosta de dançar. Sem dúvida que aquele parecia o tipo de anúncio capaz de levar as outras
raparigas a responder, pensou Vince.
Seguir a pista de um anúncio pessoal era uma tarefa árdua. Qualquer pessoa que queira manter o anonimato pode falsificar alguns cartões de identidade, abrir uma
conta no banco e alugar uma caixa postal, mandando para lá os jornais, as revistas e as respostas aos anúncios. Assim, não era possível identificá-los pela morada.
E as pessoas que alugavam aquelas caixas postais faziam questão de manter o sigilo quanto aos seus clientes.
Tinham um longo caminho a percorrer. Mas este anúncio tinha qualquer coisa de especial. Ligou para o responsável pela investigação.
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Os detectives tinham andado a investigar Doug Fox, também conhecido como Doug Field. O ficheiro que a agência de detectives possuía acerca dele era o sonho de qualquer
polícia.
Field subalugara o apartamento há dois anos, precisamente na altura em que Claire Barnes tinha desaparecido.
Joe Pabst, o detective da agência, sentara-se junto a Fox no restaurante do Soho. Tornara-se óbvio que ele conhecera a sua acompanhante através de um anúncio.
Ele tinha combinado levá-la a dançar.
Ele tinha uma carrinha.
Pabst estava certo de que Fox possuía um outro qualquer esconderijo, pois ouvira-o dizer à sua acompanhante que possuía um refúgio e que adoraria levá-la até lá.
Fazia-se passar por ilustrador. O porteiro do London Terrace já entrara muitas vezes no apartamento e afirmava que havia por lá muitos desenhos e de boa qualidade.
E ele fora interrogado por causa da morte de Nan Sheridan.
"Mas não passavam de provas circunstanciais", sublinhou Vince para si próprio. Teria Doug Fox colocado os anúncios, respondido apenas ou ambas as coisas? Seria melhor
pôr-lhe o telefone sob escuta, até ver se aparecia alguma pista?
Deveriam interrogá-lo? Era uma decisão difícil.
Bom, pelo menos Darcy Scott já estava alertada para a possibilidade de Doug ser o assassino. Não iria deixar-se encurralar por ele.
E não seria óptimo se acabassem por descobrir que fora Doug quem colocara aquele anúncio que Erin Kelley trazia consigo? Gosta de música, gosta de dançar.
Ao meio-dia, Vince recebeu um alerta geral da sede em Quântico. Choviam chamadas de todo o país: Vermont, Washington, Oaio, Jórgia, Califórnia. Mais cinco embrulhos
de sapatos desirmanados tinham sido devolvidos.
Todos eles continham um sapato ou uma bota e um sapato de salto alto. Todos eles tinham sido enviados aos familiares das jovens que constavam dos ficheiros, como
tendo desaparecido em Nova Iorque, nos últimos dois anos.
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Às três e meia, Vince estava pronto para seguir para a estação de televisão de Hudson. No entanto, a sua secretária deteve-o à saída e entregou-lhe o telefone. É
o Sr. Charles North. Diz que é muito importante. Vince ergueu as sobrancelhas. "Não me digam que aquele barril ambulante resolveu começar a cooperar", pensou para
si. D'Ambrosio anunciou com rudeza. Mr. D'Ambrosio, tenho pensado muito. Vince aguardou. Descobri uma explicação possível para o facto de os meus planos terem sido
ouvidos por alguém.
Vince sentiu o interesse aumentar.
Quando, no início de Fevereiro, cheguei a Nova Iorque para ultimar os últimos detalhes, assisti a uma gala de beneficência no Plaza, como convidado do meu sócio
mais velho. Tratava-se da 21ª Gala de Beneficência da Century Playwrights. Estava imensa gente famosa: Helen Hayes, Tony Randall, Martin Charnin, Lee Grant, Lucille
Lortel. Durante o cocktail, fui apresentado a imensa gente. O meu sócio estava ansioso por me tornar conhecido. Conversei com um grupo de cinco ou seis pessoas,
antes de o jantar ser anunciado. Um deles pediu-me o cartão, mas não me lembro do nome.
Como era ele?
Está a falar com alguém com uma memória muito fraca para nomes e caras, o que o deve surpreender dada a sua profissão. Não tenho uma ideia muito nítida dele. Alto,
trinta e muitos anos, perto dos quarenta. Bem-falante.
Acha que se conseguirmos uma lista dos convidados da gala isso poderá espevitar a sua memória?
Não sei. Talvez.
Muito bem, Mr. North. Agradeço-lhe o telefonema. Vamos arranjar a lista e talvez possa perguntar ao seu sócio se ele reconhece algum dos nomes com quem conversou.
A voz de North soou alarmada.
E como lhe explico a necessidade dessa informação?
A gratidão que Vince pudesse ter sentido, por aquela tentativa em ser útil, desapareceu de imediato.
Mr. North cortou ele, o senhor é advogado. Devia estar habituado a conseguir informações sem ter de as dar. E, desligando o telefone, berrou por Ernie. Preciso da
lista de convidados da 21. Gala da Century Playwrights que se realizou no Plaza, no princípio
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de Fevereiro ordenou ele. Não deve ser difícil de arranjar. Sabes onde me poderás encontrar.
Era dia 13 de Março, dia do aniversário da morte de Nan. No dia anterior, ela teria completado 34 anos.
Há muito que Chris passara a festejar o seu aniversário no dia 24, que era quando Greta fazia anos. Era mais fácil para ambos. A mãe telefonara-lhe na véspera, antes
de ele sair para o trabalho.
Chris, agradeço às estrelas por cada dia que passa e ainda te tenho. Feliz aniversário, querido.
Hoje ele ligara-lhe.
Hoje é o tal dia, mãe.
E vai ser sempre. Tens a certeza que queres ir a esse programa?
Se quero? Não, mas acho que, se puder fazer alguma coisa para resolver este caso, vale a pena o sacrifício. Talvez alguém que esteja a assistir se lembre de alguma
coisa acerca de Nan.
Espero que sim concordou Greta com um suspiro e já com outro tom de voz, perguntou: Como está Darcy? Chris, ela é tão amorosa!
Acho que esta história toda a está a deitar abaixo.
Ela também vai ao programa?
Não. E também não quer assistir à gravação.
Foi um dia óptimo na galeria. Chris conseguiu pôr a papelada em dia. Deixara instruções para o avisarem, caso Darcy aparecesse. Mas não havia sinal dela. Talvez
não se sentisse bem. Ás duas, ligou-lhe para o escritório. A secretária informou-o de que ela estava fora a concluir um trabalho e que depois tencionava ir directamente
para casa.
Às três e meia, Chris entrava num táxi e seguia para a estação de televisão.
"Vamos lá a isto", decidiu-se com amargura.
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Os convidados para o programa estavam reunidos nos bastidores.
Nona apresentou-os: os Corras, um casal de meia-idade. Tinham-se separado e cada um publicara um anúncio. Ambos responderam ao anúncio do outro. Fora o suficiente
para se juntarem novamente.
Os Daleys, outro casal de cinquenta anos. Nenhum deles tinha casado. Ambos se sentiam embaraçados por terem publicado anúncios. Tinham-se conhecido três anos antes.
Foi bom desde o início afirmava Mrs. Daley Eu sempre fui muito tímida e fui capaz de escrever no papel o que nunca consegui dizer a ninguém. Ela era cientista e
ele professor universitário.
Adrian Greenfield, uma divorciada bem-disposta de quarenta e tal anos.
Divirto-me imenso dizia ela para os outros, na verdade eles enganaram-se a imprimir o anúncio. Deviam ter escrito simpática e escreveram rica. Juro que preciso de
caixotes para guardar a correspondência.
Wayne Harsh, um tímido industrial de brinquedos, vinte e tal anos, o sonho que qualquer mãe gostaria de ver realizado para a filha, decidiu Vince. Harsh apreciava
os seus encontros. No seu anúncio, dizia que se sentia frustrado ao ver os brinquedos que fabricava serem apreciados pelas crianças do mundo inteiro, enquanto ele
não tinha filhos. Estava ansioso por conhecer uma mulher decente e inteligente, de 20anos, que procurasse um tipo que chegaria a casa a horas e não espalharia a
roupa suja pela casa.
Os pombinhos, os Cairones. Tinham-se apaixonado no seu primeiro encontro. No fim da noite, ele sentara-se ao piano do restaurante onde tinham jantado e cantara-lhe
a canção Leva-me ao altar. Casaram um mês depois.
Até estes aparecerem, preocupava-me não ter nenhum casal novo confidenciou Nona a Vince, quando este chegou. Aqueles dois fazem-nos acreditar no romance.
Vince viu o psiquiatra, Dr. Martin Weiss, entrar e apressou-se a ir cumprimentá-lo.
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Weiss era um homem de 60 anos, rosto forte e cabelo prateado, olhos azuis penetrantes. Dirigiram-se para a máquina de café.
Obrigado por fazer isto com tão pouca antecedência, Doutor agradeceu Vince.
Olá, Vince.
Vince voltou-se, enquanto Chris se dirigia para eles. Lembrou-se de que era o aniversário da morte de Nan.
Hoje não é um dos melhores dias para si comentou.
Às cinco e um quarto, Darcy reclinou-se no táxi e fechou os olhos. Pelo menos naquele dia, compensara um pouco o tempo perdido. Os pintores começariam a trabalhar
no hotel na segunda-feira seguinte. Naquele dia, levara uma brochura do Hotel Pelham de Londres.
Trata-se de um hotel absolutamente elegante e íntimo. É como o vosso, pois os quartos não são grandes, a recepção é pequena, mas a sala dá perfeitamente para receber
os visitantes. Reparem no pequeno bar do canto. Podiam fazer o mesmo. E vejam os quartos. Não vamos fazê-los tão luxuosos, claro, mas podemos dar-lhes este efeito.
Eles estavam visivelmente encantados.
"Agora", pensou Darcy, "tenho de contactar o decorador de montras de Wilston." Sentira-se chocada ao perceber que, quando uma montra era desfeita, os produtos recolhidos
eram vendidos ao desbarato. Metros e metros de tecidos de boa qualidade.
Abanou a cabeça, tentando aliviar uma pontada dolorosa que sentia na cabeça.
Não sei se estou a ficar doente ou se é apenas uma dor de cabeça, mas hoje também vou para a cama cedo.
O táxi conduziu-a directamente para casa.
No apartamento, tinha o atendedor de chamadas a piscar. Bev deixara um recado.
Darcy, há cerca de vinte minutos recebeste uma chamada completamente louca. Liga-me quando chegares.
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Rapidamente, Darcy discou o número do escritório.
Bev, qual é o recado?
Foi uma mulher qualquer, falava muito baixinho, mal a conseguia ouvir. Queria saber como podia contactar contigo. Eu não quis dar-lhe o número de tua casa, por isso
disse-lhe que te daria o recado. Ela disse que estava no bar na noite em que Erin desapareceu, mas tinha medo de o admitir porque estava com um homem que não era
o marido. Viu Erin encontrar-se com alguém que acabava de entrar quando ela saía. Afastaram-se a conversar. Ela diz que o viu muito bem.
Como posso contactar com ela?
Não podes. Não quis deixar o nome. Quer que tu vás ter com ela ao mesmo sítio. É o Eddie's Aurora, na Rua 4 Oeste, perto da Praça Washington. Ela disse para ires
sozinha e para te sentares perto do bar. Ela estará lá às seis, a não ser que não consiga sair, para não esperares depois das seis. Ela telefona-te amanhã se não
conseguirem encontrar-se hoje.
Obrigada, Bev.
Ouve, Darcy, eu vou ficar aqui até tarde. Vou ter um exame, preciso de estudar e no meu apartamento as minhas companheiras não me dão sossego. Depois telefona-me,
está bem? Quero ter a certeza de que tudo correu bem.
Vai tudo correr bem, mas eu telefono-te. Darcy esqueceu o cansaço.
Eram cinco e cinco.
Tinha tempo suficiente para lavar a cara, pentear o cabelo e trocar os jeans cheios de pó por uma saia e uma blusa. "Oh, Erin", pensou. "Talvez tudo isto esteja
a terminar."
Nona observava o genérico passar no ecrã, enquanto os convidados conversavam calmamente, ainda no ar, mas com os microfones desligados.
Ámen exclamou ela quando o ecrã ficou negro. Levantou-se de um salto e, descendo os degraus a correr, juntou-se aos convidados.
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- Vocês foram maravilhosos - declarou ela. - Todos vocês. Não sei como vos hei-de agradecer.
Os participantes exibiam agora um sorriso descontraído. Chris, Vince e o Dr. Weiss levantaram-se ao mesmo tempo.
- Ainda bem que acabou - suspirou Chris. - É compreensível - apoiou o Dr. Weiss -, por aquilo que ouvi hoje, quer você quer a sua mãe deram provas de uma força notável.
- Era a nossa obrigação, doutor. Nona aproxímou-se deles.
Bem Os outros vão-se embora, mas eu gostava que vocês viessem até ao meu escritório para uma bebida. Não há dúvida de que o mereceram.
- Oh, não me parece... - começou Weiss abanando a cabeça, para depois hesitar. - Tenho de telefonar para o meu consultório. Posso fazê-lo daqui?
- Claro.
Chris lutava consigo próprio. Percebeu que se sentia muito em baixo. A secretária de Darcy dissera-lhe que ela iria directamente para casa. Perguntou-se se conseguiria
convencê-la a vir jantar com ele.
- Posso também utilizar o seu telefone? - Força.
Entretanto, o bip do cinto de Vince começou a apitar. - Espero que tenha muitos telefones por aqui, Nona.
Vince telefonou da mesa da secretária e recebeu o recado para ligar para o gabinete responsável pelo 21. Festival da Century Playwrights. Quando conseguiu falar
com Ernie, este estava exultante com as notícias.
- Já tenho a lista dos convidados. Adivinhe quem lá estava naquela noite! - Quem? " - Erin Kelley e Jay Stratton.
- Santo Deus! - exclamou ele, lembrando-se da descrição que North fizera do homem a quem dera o seu cartão. Alto. Trinta e tal ou quarenta e poucos anos. Bem-falante.
Mas Erín Kelley! Naquela tarde, no apartamento de Erin, Darcy escolhera um vestido cor-de-rosa e prateado para vestir Erin para o enterro. Darcy dissera-lhe na altura
que a amiga o comprara para uma festa de beneficência.
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Depois, quando pegara nos sapatos que tinham chegado pelo correio ela comentara que o sapato da encomenda combinava melhor com o fato cor-de-rosa de Erin do que
aqueles que a amiga tinha comprado. Subitamente percebeu por que razão os sapatos ficavam tão bem. O assassino tinha estado na festa e vira-a com aquele vestido.
Vem ter comigo ao escritório de Nona ordenou a Ernie. Depois, seguimos juntos para a baixa.
Já no escritório, o Dr. Weiss parecia mais descontraído.
Não há problema. Estava preocupado com um doente que era capaz de me ir consultar esta noite. Mrs. Roberts, vou abusar da sua gentileza. O meu filho acabou de se
formar em comunicação. Como é que se entra para este negócio?
Chris Sheridan deslocara o telefone para a janela. Distraído, apalpou a planta cheia de pó. Darcy não estava em casa. Quando ligou para o escritório, a secretária
respondera com evasivas, dizendo qualquer coisa sobre estar à espera de um telefonema dela. Aparecera-lhe um encontro muito importante.
A intuição avisava-o de que algo estava errado.
Ele tinha a certeza.
Darcy não devia esperar para lá das seis horas. Esperou até às seis e meia e depois decidiu desistir. Era óbvio que a mulher que lhe telefonara não conseguira vir.
Pagou a Perrier e saiu.
Ao chegar à rua, deu conta de que o vento soprava outra vez e parecia cortar-lhe o corpo. "Espero conseguir arranjar um táxi", disse para si própria.
Darcy, ainda bem que te consegui apanhar. A tua secretária disse-me que estarias aqui. Entra.
Oh, salvaste-me a vida! Que sorte.
Len Parker vagueava pela rua e viu as luzes desaparecerem. Era a repetição daquela vez em que Erin Kelley saíra e alguém a chamara de dentro de uma carrinha.
Supondo que era aquele o homem que matara Erin Kelley? Deveria
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telefonar ao agente do FBI? Ele chamava-se D'Ambrosio. Len tinha o cartão dele.
Pensariam eles que ele estava maluco?
Erin Kelley abandonara-o e Darcy Scott recusara-se a jantar com ele.
Mas ele também fora mau para elas.
Talvez devesse telefonar.
Gastara uma data de dinheiro em táxis, seguindo Darcy Scott naqueles últimos dias.
E o telefonema custaria apenas uma moeda.
Chris virou-se e afastou-se da janela. Tinha de perguntar, e Vince D'Ambrosio acabara de entrar na sala.
Sabe se a Darcy hoje tinha algum daqueles encontros dos anúncios? perguntou.
Vince viu a preocupação no rosto de Chris e, ignorando o tom beligerante que sabia não lhe ser dirigido em particular, respondeu:
Pelo que Nona me disse, Darcy tencionava deitar-se cedo.
É verdade. O sorriso desaparecera do rosto de Nona. Quando lhe telefonei, a secretária disse-me que ela iria directamente para casa assim que acabasse a decoração
que está a fazer naquele hotel.
Pois bem, algo a fez mudar de ideias respondeu Chris. E a secretária está muito misteriosa.
Qual é o número do escritório? perguntou Vince, agarrando no telefone. Quando Bev atendeu, ele identificou-se. Estou preocupado com os planos de Darcy Scott. Se
sabe quais eram, deve dizer-me.
Na verdade, eu gostaria que fosse ela a telefonar-lhe... começou Bev, mas imediatamente foi interrompida.
Ouça, menina, não tenho qualquer interesse em interferir na vida privada dela, mas, se tem alguma coisa a ver com os anúncios, eu quero saber. Estamos muito perto
de solucionar este caso, mas ainda não prendemos ninguém.
Bom, se prometer não interferir...
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Onde está Darcy Scott? Bev contou-lhe.
Vince deu-lhe o número de Nona.
Assim que ela lhe ligar, peça-lhe para me telefonar imediatamente. E, desligando o telefone, explicou: Ela foi encontrar-se com uma mulher que afirma ter visto Erin
sair do Eddies Aurora na noite em que desapareceu e que pode descrever o homem que ela encontrou à saída. Esta mulher não aparecera ainda, pois não se encontrava
com o marido.
Acreditas nisso? perguntou Nona.
Não gosto nada desta história. Mas, se Darcy se encontrar com ela naquele bar, não deve haver problema. Que horas são?
Seis e meia respondeu o Dr. Weiss.
Então, Darcy deve estar a telefonar para o escritório. Só deveria esperar até às seis e meia pela mulher do telefonema.
Não foi isso mesmo que aconteceu a Erin Kelley? perguntou Chris. Pelo que sei, ela foi a esse bar, esperou, saiu e desapareceu.
Vince sentiu a pele do pescoço arrepiar-se.
Vou ligar daqui. Quando, do bar, alguém atendeu o telefone, disparou algumas perguntas rápidas, ouviu as respostas e poisou o auscultador. O empregado do bar afirma
que uma rapariga que corresponde à descrição de Darcy saiu há alguns minutos. Não apareceu ninguém ao encontro.
Chris praguejava baixinho. O momento em que encontrara o corpo de Nan, quinze anos antes, veio-lhe à memória com nitidez. Um rapaz da recepção bateu à porta.
Está aqui um Mr. Cizek, do FBI, que diz estarem à espera dele disse para Nona.
Manda-o entrar concordou Nona.
Cizek trazia a vasta lista de convidados da gala dentro de um envelope e tentou tirá-la mal entrou pela porta. Estava presa. Quando puxou com mais força, o clip
caiu e as folhas espalharam-se pelo chão. Nona e o Dr. Weiss ajudaram-no a recolhê-las.
Vince reparou que Chris abria e fechava as mãos com nervosismo.
Temos dois suspeitos principais informou ele, e estão ambos a ser seguidos.
O Dr. Weiss examinava uma das folhas que recolhera do chão. Como se pensasse alto, comentou:
Pensei que ele andava demasiado ocupado com a história dos anúncios para poder ir a festas.
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Vince olhou-o e perguntou imediatamente:
Está a falar de quem? Weiss parecia embaraçado.
Do Dr. Michael Nash. Perdão, foi um comentário descabido.
Nada é descabido nesta fase respondeu Vince com aspereza. Pode ser muito importante o facto de o Dr. Nash ter ido a essa festa. Pareceu-me que você não gosta dele.
Porquê?
Todos tinham os olhos postos no Dr. Weiss. Este parecia debater-se consigo próprio, e por fim respondeu:
Isto não deve sair daqui. Uma das antigas pacientes do Dr. Nash, que agora se consulta comigo, encontrouo num restaurante com uma jovem que ela conhecia. Quando
encontrou a amiga, resolveu meter-se com ela.
Vince sentia os nervos tensos, como sempre acontecia quando um caso apresentava novas possibilidades.
Continue, doutor.
Weiss parecia pouco à vontade.
A jovem amiga da minha paciente disse que o tinha conhecido através de um anúncio pessoal e que não estava surpreendida por saber que ele mentira acerca do seu nome
e profissão, pois sentira-se muito pouco à vontade com ele.
Vince sentia que o Dr. Weiss escolhia as palavras com cuidado.
Doutor interrompeu ele, sabe o caso que temos em mãos. Tem de me ajudar. Que opinião tem desse Dr. Nash?
Considero pouco ético da parte dele fazer pesquisas para um livro utilizando uma identidade falsa respondeu o Dr. Weiss, cautelosamente.
Está a fugir à pergunta insistiu Vince. Se estivesse no banco de testemunhas, como o descreveria?
Weiss olhou em volta.
Solitário respondeu simplesmente. Reprimido. Agradável à superfície, mas basicamente antissocial. Provavelmente, tem problemas enraizados que se manifestam desde
a infância. No entanto, é um dissimulador nato e enganaria muitos profissionais.
Chris sentia o sangue pulsando nas têmporas.
Darcy tem saído com este tipo?
Sim respondeu Nona num murmúrio.
Doutor continuou Vince rapidamente, quero entrar em contacto com essa mulher imediatamente, para averiguar qual foi o anúncio a que ela respondeu.
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A minha doente mostrou-mo respondeu Weiss. Tenho-o no meu consultório.
Não se lembra se começa assim: Gosta de música, gosta de dançar? perguntou Vince.
E enquanto Weiss respondia: "Mas é isso mesmo", o bip de Vince começou a apitar. Agarrou no telefone e berrou o nome. Nona, Chris, o Dr. Weiss e Ernie aguardavam
em silêncio absoluto, enquanto viam as rugas da testa de Vince D'Ambrosio ficarem mais profundas. Ainda com o auscultador na mão, explicou-lhes:
Aquele lunático Len Parker acaba de telefonar. Andava a seguir Darcy. Ela saiu daquele bar e entrou para a mesma carrinha que levou Erin Kelley na noite em que desapareceu.
Fez uma pausa e depois acrescentou: Trata-se de uma Mercedes preta, registada em nome do Dr. Michael Nash, de Bridgwater, Nova Jérsia.
Tens um carro diferente.
Só costumo usar este no campo.
Regressaste mais cedo da convenção.
O colega que eu ia substituir acabou por se sentir melhor e apareceu.
Percebo, Michael, és um amor, mas acho que hoje quero ir directamente para casa.
O que jantaste ontem à noite? Darcy sorriu e respondeu:
Uma lata de sopa.
Encosta a cabeça para trás e descansa. Dorme, se conseguires. Mrs. Hughes tem a lareira acesa, um jantar óptimo, e depois podes vir a dormir no caminho de regresso
a casa. Aproximou-se dela e afagou-lhe o cabelo. São ordens do médico, Darcy. Sabes que eu gosto de cuidar de ti.
É bom ter alguém que cuide de nós. Oh! exclamou ela, pegando no telefone do carro. Posso ligar para a minha secretária? Prometi que lhe ligava.
Ele poisou a mão em cima da dela e respondeu:
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Lamento, mas terás de esperar até chegarmos a casa. O telefone está avariado. Agora, descansa.
Darcy sabia que Bev ficaria no escritório nas horas seguintes. Fechou os olhos e dormitou. Quando desceram para o túnel Lincoln, ela já ia a dormir profundamente.
Vamos verificar o apartamento de Nash declarou Vince, mas ele nunca a levaria nem para lá nem para o consultório, pois seria visto pelo porteiro.
Darcy contou-me que a propriedade dele em Bridgwater tem quatrocentos acres. Ela já lá foi duas vezes informou Nona, agarrando-se à mesa com ambas as mãos.
Então, se ele sugerisse levá-la lá esta noite, ela não suspeitaria de nada.
Vince sentia-se cada vez mais zangado consigo próprio. Ernie regressou, vindo do escritório ao lado.
Já confirmei com os seguranças informou. Doug Fox está em casa em Scardsale e Jay Stratton em Park Lane, com uma tipa qualquer.
Isso iliba-os.
"Tudo faz sentido", concluiu Vince, furioso consigo próprio. Nash deixara uma mensagem no atendedor de Erin, para que lhe telefonasse, precisamente na noite em que
saíra com ela. "Nunca me lembrei de confirmar. Deixou uma mensagem estranha à secretária de Darcy e depois, provavelmente, diz-lhe que foi a própria secretária quem
lhe disse onde a podia encontrar. Sabemos que Darcy confia nele. Claro que ela entra no carro dele. E, se aquele tolo do Parker não andasse a segui-la, ela teria,
igualmente, desaparecido."
Como vamos encontrar Darcy? perguntou Chris à beira do desespero. Um medo agonizante comprimia-lhe o peito, impedindo-o de respirar. Percebeu, então, que durante
aquelas semanas se apaixonara por Darcy Scott.
Vince encontrava-se ao telefone, dando ordens.
Alertem a polícia de Bridgwater dizia ele. Eles que venham ter connosco.
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Cuidado, Vince avisou Ernie. Não temos nenhuma prova e a única testemunha não é de muita confiança.
Chris respondeu-lhe, furioso:
Tenha cuidado, você. Weiss apertou-lhe o braço.
Vamos para casa de Nash continuava Vince, e tenham um helicóptero pronto na esquadra da Rua 30.
Cinco minutos depois, encontravam-se no interior de um carro-patrulha, luzes ligadas, as sirenes gemendo, correndo pela 9. Avenida. Vince ia à frente com o condutor.
Nona, Chris e Ernie Cizek seguiam no banco de trás. Chris declarara, simplesmente, que também ia, e Nona olhara para Vince com olhos implorantes.
Vince não partilhou com eles a informação terrível que recebera da polícia de Bridgwater. A propriedade de Nash tinha uma grande quantidade de edifícios espalhados,
incluindo alguns em zonas arborizadas. Uma busca iria levar muito tempo.
"E um minuto perdido é um minuto que Darcy tem a menos", pensou Vince.
Chegámos, querida. Darcy espreguiçou-se.
Adormeci, não foi? E, bocejando, continuou. Desculpa, não fui grande companhia.
Ainda bem que adormeceste. O repouso faz bem ao corpo e à alma.
Darcy olhou para fora.
Onde estamos?
A dez milhas da casa. Tenho aqui um pequeno refúgio, onde venho escrever, e noutro dia esqueci-me do meu manuscrito. Não te importas se pararmos aqui? Na verdade,
até podemos tomar um copo de xerez.
Desde que não seja para demorar. Quero ir cedo para casa, Michael.
244
E vais, prometo. Entra. Desculpa estar tão escuro. Pegou-lhe no braço e conduziu-a.
Como descobriste este sítio? perguntou Darcy, enquanto ele abria a porta,
Por sorte. Sei que por fora não é grande coisa, mas lá dentro é bastante agradável.
Ele abriu a porta e procurou o interruptor. Por debaixo, Darcy viu um botão com o letreiro: PERIGO. Darcy olhou em volta.
Oh, que bonito! declarou ela ao ver a zona de estar ao redor da lareira, a cozinha aberta e os chão envernizado. Depois, reparou no enorme ecrã de televisão e nas
colunas sofisticadas ligadas à aparelhagem. Este equipamento é magnífico. Não será um desperdício tê-lo aqui?
Não é, não.
Ele tirou-lhe o casaco. Darcy estremeceu, apesar de a sala estar razoavelmente quente. Via-se uma garrafa de vinho, num suporte de prata pousado na mesinha junto
ao sofá.
Mrs. Hughes também trata disto aqui?
Não. Nem sabe que isto existe.
Ele atravessou a sala e aproximou-se da aparelhagem. Das colunas chegou os acordes iniciais de Até Que Tu Chegaste1.
Vem cá, Darcy. Ele serviu um cálice de xerez e entregou-lho. Numa noite fria, isto sabe maravilhosamente, não achas?
Ele sorria-lhe com afeição. Então, o que haveria de errado? Por que razão, de repente, ele lhe parecia tão diferente? A voz parecia arrastada, como se tivesse bebido.
Os olhos. Era isso mesmo. Havia qualquer coisa nos olhos.
Instintivamente, sentiu vontade de correr para a porta, mas sentiu-se ridícula. Procurou ansiosamente qualquer coisa para dizer. Tinha os olhos postos na escada,
de forma que perguntou:
Quantos quartos tens lá em cima?
Aos seus ouvidos, a pergunta soou despropositada. Ele pareceu não ter reparado.
Apenas um quarto pequeno com quarto-de-banho. Esta é uma daquelas cabanas à moda antiga.
O sorriso ainda lá estava, mas os olhos dele eram diferentes, as pupilas
1 No original Till there was you. (N. da T.)
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estavam dilatadas. "Onde está o computador e a impressora e os livros, indispensáveis a quem escreve?"
Darcy sentiu a testa cobrir-se de suor. O que se passava com ela afinal? Estaria doida em suspeitar... o quê? Eram os nervos. Aquele era o Michael.
Segurando o copo, ele sentou-se numa cadeira larga, do lado oposto do sofá, e esticou as pernas. Tinha os olhos fixos no rosto dela.
Deixa- me dar uma vista de olhos. E vagueou por ali, fingindo examinar algumas peças decorativas, passando os dedos pelo balcão que separava a cozinha do resto da
sala.
Que lindos armários!
Mandei-os fazer, mas fui eu que os montei.
A sério?
A voz dele era cortante.
Eu disse-te que o meu pai foi um homem que subiu a pulso. E quis que eu aprendesse a fazer de tudo.
E não há dúvida de que te ensinou bem.
Não podia ficar ali mais tempo, de maneira que deu a volta e encaminhou-se para o sofá, tropeçando em qualquer coisa sólida que se encontrava escondida entre franjas
da carpete.
Ignorando-a, Darcy sentou-se rapidamente. Sentia os joelhos tremerem e não tinha a certeza de conseguir aguentar-se de pé. O que se passava? Por que sentia tanto
medo?
Aquele era o Michael, o bondoso e respeitador Michael. Não queria agora pensar em Erin, mas o rosto de Erin persistia em vir-lhe ao pensamento. Bebeu um golo de
xerez, para aliviar a secura que sentia na boca.
A música parou. Michael parecia aborrecido. Levantou-se e dirigiu-se para o armário. Da prateleira superior, tirou um monte de cassettes e começou a examiná-las.
Não tinha dado conta de que a fita estava tão perto do fim. Era como se estivesse a falar sozinho. Darcy agarrou o pé do cálice.
Agora eram as mãos que tremiam. Caíram algumas gotas de xerez no chão. Ela pegou no guardanapo e baixou-se, para limpar as manchas. Quando começava a endireitar-se,
reparou que havia qualquer coisa presa à franja da carpete, alguma coisa que brilhava à luz do candeeiro. Devia ter sido naquilo que tropeçara. Provavelmente, um
botão. Tentou alcançá-lo. Com o dedo indicador e o polegar apanhou-o. Não era um botão, mas sim um anel. Darcy olhou-o, sem acreditar no que via.
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Um E dourado, incrustado num suporte de ónix. O anel de Erin.
Erin estivera naquela casa. Erin respondera ao anúncio de Michael Nash.
O horror apoderou-se de Darcy. Michael mentira ao afirmar que encontrara Erin apenas uma vez, para uma bebida no Pierre.
De repente, a música soou alta.
Desculpa pediu Michael, ainda de costas voltadas.
Muda de par e dança cantarolava ele, acompanhando os acordes iniciais da orquestra, enquanto baixava o volume e se virava para ela.
"Ajudem-me", rezava Darcy. "Ajudem-me. Ele não pode ver o anel." Ele estava de olhos fixos nela. Darcy uniu as mãos, conseguindo enfiar o anel no dedo, enquanto
ele se aproximava de braços estendidos.
Nunca dançámos juntos, Darcy. Eu danço bem e sei que tu também.
O corpo de Erin fora encontrado com um sapato de baile calçado. Teria ela dançado com ele naquela sala? Teria ela morrido ali dentro? Darcy recostou-se no sofá.
Não pensei que ligasses muito à dança, Michael. Quando te falei das aulas que eu, Erin e Nona frequentávamos, não me pareceste muito interessado.
Ele deixou cair os braços e pegou no copo. Desta vez, sentou-se na cadeira, mas tão à pontinha que parecia aguentar o peso todo nas pernas.
Como se estivesse pronto para saltar sobre ela.
Adoro dançar declarou ele. Não pensei que te fizesse bem falar de uma coisa que te deu prazer partilhar com Erin.
Darcy coçou a cabeça, como se estudasse a resposta, e declarou:
Não deixamos de conduzir só porque alguém de quem gostamos sofre um acidente, pois não? Sem esperar pela resposta, tentou mudar de assunto e, examinando o cálice
gabou: Lindo vidro.
Comprei um conjunto em Viena respondeu ele. Garanto que fazem com que o xerez saiba ainda melhor.
Ela retribuiu-lhe o sorriso. Agora, ele parecia o Michael que ela conhecia. O olhar estranho desaparecera dos seus olhos, por instantes. "Mantém-no assim", avisava
a sua intuição. Fala com ele. Fá-lo falar contigo.
Michael... E, fazendo um tom hesitante e confidencial, perguntou: Posso fazer-te uma pergunta?
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Claro. Ele parecia interessado.
No outro dia, acho que estavas a sugerir que eu fazia os meus pais pagarem por aquele comentário que tanto me magoou, quando eu era garota. É possível que eu seja
assim tão egoísta?
Durante os vinte minutos que demorou a viagem de helicóptero, ninguém falou. Com o espírito em grande concentração, Vince revira todos os detalhes daquela investigação.
Michael Nash. "Eu, sentado no consultório dele, a pensar que ele era um dos poucos psiquiatras com bom senso." Seria isto uma caça ao pato bravo? Quem lhes garantia
que, com o dinheiro que tinha, Nash não arranjara um refúgio em Connecticut ou a norte de Nova Iorque?
Talvez o tivesse feito, mas, com aquela propriedade, o mais certo era trazer para ali as suas vítimas. Acompanhando o ritmo da hélice, Vince lembrou-se do nome de
imensos assassinos que enterravam as suas vítimas no sótão ou na cave das suas próprias casas.
O helicópetro sobrevoava uma estrada secundária.
Ali berrou Vince, apontando para a direita, onde dois holofotes altos brilhavam, abrindo caminho na escuridão. A polícia de Bridgwater disse que esperariam do lado
de fora da casa de Nash. Desça isto.
A mansão estava estranhamente tranquila. Viam-se algumas luzes acesas no andar principal. Vince insistiu para que Nona ficasse cá fora com o piloto. Com Ernie e
Chris atrás de si, correu a atravessar o campo, subiu a longa alameda e tocou à campainha.
Deixem-me falar a mim.
Uma mulher respondeu, utilizando o intercomunicador:
Quem é?
Vince cerrou os dentes. Se Nash estava ali, já tinha sido prevenido.
Agente do FBI Vince D'Ambrosio, minha senhora. Tenho de falar com o Dr. Nash.
Um momento depois, a porta abria-se devagarinho. A cadeia de segurança continuava no seu lugar.
Posso ver a sua identificação, senhor? Desta vez era o tom cortês de um criado.
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Vince passou-a, através da porta.
Depressa exclamou Chris.
A cadeia de segurança foi retirada e a porta abriu-se. "Um casal de empregados", pensou Vince. Pediu-lhes que se identificassem.
Somos John e Irma Hughes. Trabalhamos para o Dr. Nash.
Ele está?
Está, sim respondeu Mrs. Hughes. Tem estado toda a noite. Está a terminar o livro e não quer ser incomodado.
Darcy, na verdade tens um grande poder de introspecção declarou Michael. Já to tinha dito a semana passada. Sentes-te um pouco culpada em relação aos teus pais,
não sentes?
Suponho que sim. Darcy podia ver que as pupilas dele tinham regressado ao normal, o azul-cinzento dos olhos era agora maior.
A fita começou a canção seguinte. Rosas Vermelhas para Uma Senhora Triste1. O pé direito de Michael começou a mover-se ao ritmo da música.
Devo sentir-me culpada? apressou-se ela a perguntar.
Onde fica o escritório do Dr. Nash? perguntou Vince. Eu assumo a responsabilidade por ter de o incomodar.
Ele fecha sempre a porta quando quer privacidade, e não responde. É muito exigente em não ser incomodado quando está a trabalhar. Nós ainda nem o vimos desde que
regressámos das compras ao fim da tarde, mas o carro está ali.
Para Chris era o suficiente.
Ele não está lá em cima. Anda por aí numa carrinha, fazendo
1 Red Roses for a blue lady No original. (N. da T.)
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só Deus sabe o quê. Chris olhou para as escadas e perguntou: Onde raio fica o escritório dele?
Mrs. Hughes olhou, implorativamente, para o marido e depois conduziu-os pela escada acima. As repetidas pancadas na porta não obtiveram resposta.
Tem alguma chave? perguntou Vince.
O doutor proibiu-me de a utilizar quando ele a deixa fechada.
Vá buscá-la.
Tal como Vince esperava, o quarto estava vazio.
Mrs. Hughes, temos uma testemunha que viu Darcy Scott entrar para a carrinha do doutor hoje à noite. Acreditamos que ela corre grande perigo. O Dr. Nash tem alguma
outra propriedade ou casa para onde possa tê-la levado?
Deve estar enganado protestou a mulher. Ele já trouxe a menina cá a casa, por duas vezes. São grandes amigos.
A senhora não respondeu à minha pergunta.
Nesta propriedade há celeiros, um estábulo e alguns armazéns. Não há mais nenhuma casa onde ele pudesse levar uma senhora. Tem também o escritório e o apartamento
de Nova Iorque.
O marido acenava em concordância. Vince sabia que eles estavam a dizer a verdade.
Senhor chamou Mrs. Hughes timidamente, trabalhamos para o Dr. Nash há catorze anos. Se Miss Scott está com ele, posso assegurar-lhe que não tem nada a temer. O Dr.
Nash não faria mal a uma mosca.
Há quanto tempo estavam a conversar? Darcy não sabia. A música de fundo era suave.
Agora tocava Begin the beguine. Quantas vezes ela vira o pai e mãe a dançarem aquela música?
Na verdade, foi a minha mãe e o meu pai que me ensinaram a dançar disse ela a Nash. Por vezes, punham discos e dançavam fox-trots e valsas. São mesmo bons.
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Os olhos dele continuavam bondosos. Eram os mesmos das vezes em que ela saíra com ele. Desde que ele não suspeitasse que ela sabia, talvez ele a deixasse ir ou a
levasse até à outra casa para jantar. "Tenho de fazer com que ele continue a falar comigo."
A mãe sempre lhe dissera:
Darcy, tens um talento inato para representar. Por que o escondes?
"Se isso é verdade, terei agora de o provar", rezou ela.
Toda a vida ouvira a mãe e o pai discutirem sobre como deveriam representar uma cena. Alguma coisa devia ter aprendido.
"Não posso deixar que ele perceba como estou assustada", pensou Darcy. "Vou canalizar o meu nervosismo para esta representação." Como faria a mãe esta cena? Uma
mulher apanhada por um assassino. A mãe deixaria de pensar no anel de Erin que tinha no dedo e faria precisamente o que Darcy estava a tentar fazer. Faria o papel
de uma paciente, confiando-se ao seu psiquiatra, na pessoa de Michael Nash.
O que estava ele a dizer?
Já reparaste, Darcy, que quando começas a falar dos teus pais ficas animada? Acho que gostaste da tua infância muito mais do que pensas.
"Gente sempre à volta. Lembras-te daquela vez em que era tanta gente que te perdeste da mão da tua mãe?"
Diz-me, Darcy, em que estás a pensar? Diz, manda tudo cá para fora.
Eu estava tão assustada. Não conseguia vê-los. Soube naquele momento que odiava...
O quê?
As multidões. Ter sido separada deles...
A culpa não foi deles.
Se eles não fossem tão famosos...
Sentes-te ressentida com a fama.
Não. Estava a resultar. A voz dele era a mesma. "Não quero falar acerca disto", pensou ela, "mas tenho de o fazer. Tenho de ser honesta com ele. É a minha única
chance. Mãe. Paizinho. Ajudem-me. Apoiem-me agora." Estão tão longe! Nem percebeu que dissera aquilo em voz alta.
Quem?
Os meus pais.
Queres dizer, agora?
257
Sim. Estão a fazer uma tournée, na Austrália. Pareces tão receosa, até mesmo assustada. Estás assustada Darcy? "Não o deixes pensar isso." Não, tenho é pena porque
não os vou ver durante seis meses. Achas que aquele dia em que te perdeste foi a única vez que te sentiste abandonada? Ela queria gritar: "Sinto-me abandonada agora."
Em vez disso, obrigou-se a pensar no passado.
Sim.
Hesitaste, porquê?
Houve outra altura, quando eu tinha seis anos. Estava no hospital e toda a gente pensava que eu não sobreviveria. Tentou não olhar para ele. Tinha tanto medo que
os olhos dele voltassem a ficar vazios e escuros.
Lembrou-se, então, da personagem das Mil e Uma Noites que tinha de contar histórias para sobreviver.
Chris sentiu-se invadido por um sentimento de impotência. Darcy estivera alguns dias antes naquela casa com o homem que matara Nan e Erin Kelley e todas aquelas
raparigas e agora ia ser a próxima vítima.
Estavam na cozinha, onde Vince arranjara uma linha aberta para a central e uma outra para a esquadra. Mais reforços policiais encontravam-se a caminho.
Nona estava junto de Vince, e parecia que poderia desmaiar a qualquer instante. Os Hughes, de rostos assustados e admirados, encontravam-se sentados, de ombros juntos,
na mesa grande. Um polícia local interrogava-os acerca das actividades de Nash. Ernie Cizek encontrava-se no helicópetero que fazia uma ronda pelas redondezas em
voo baixo. Chris conseguia ouvir o barulho do motor através das janelas fechadas. Procuravam a carrinha Mercedes preta de Michael Nash. Patrulhas locais percorriam
a propriedade, verificando nos outros edifícios.
Com tristeza, Chris recordou-se de como ficara feliz quando, no
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ano anterior, comprara uma carrinha Mercedes. O vendedor tinha-o convencido a instalar o sistema Lojack.
Está directamente ligado à ignição explicara-lhe ele. Se o seu carro for roubado, pode ser localizado minutos depois. Você comunica à polícia o seu número Lojack,
aí metem-no no computador e um transmissor acciona o sistema no seu carro. Muitos carros de polícia já estão equipados para seguirem o sinal.
Chris possuía a carrinha há uma semana, quando fora roubada à porta da galeria, contendo um quadro de cem mil dólares na mala. Entrara por um instante no escritório,
para ir buscar uma pasta, e quando chegara cá fora tinha desaparecido. Telefonara a comunicar o roubo e, quinze minutos depois, a carrinha fora localizada e recuperada.
Se ao menos Nash tivesse levado Darcy num carro roubado que pudesse ser localizado.
Oh, meu Deus!
Chris atravessou a sala a correr e, pegando no braço de Mrs. Hughes, perguntou:
Nash guarda os papéis pessoais aqui ou em Nova Iorque? Ela ficou espantada.
Aqui. Numa sala junto à biblioteca.
Quero vê-los. Vince interrompeu:
Espere aí disse para o telefone. O que foi, Chris? Chris não respondeu.
Há quanto tempo é que o doutor tem a carrinha?
Há cerca de seis meses respondeu John Hughes. Ele troca de carro regularmente.
Então, aposto que também tem aquilo.
Os arquivos estavam arrumados num armário muito bonito de mogno. Mrs. Hughes sabia onde as chaves estavam escondidas.
Os papéis do Mercedes foram fáceis de encontrar. Chris agarrou-os. O seu grito de alegria trouxe os outros a correr. Da pasta, retirou o folheto Lojack. Ali estava
o número de código da carrinha de Nash.
O polícia de Bridgwater percebeu o que Chris encontrara.
Dê-me isso ordenou ele. Vou transmiti-lo. Os nossos carros-patrulha têm o sistema.
253
Estavas no hospital, Darcy... relembrou Michael Nash em voz calma.
Ela tinha a boca seca. Queria um copo de água, mas não se atrevia a distraí-lo.
Sim, tive uma meningite. Lembro-me de me sentir muito mal. Pensei que ia morrer, os meus pais estavam à minha cabeceira. Eu ouvi o médico a dizer-lhes que estava
convencido de que não me safaria.
E como reagiram eles?
Abraçaram-se. E o meu pai disse: "Barbara, ainda nos temos um ao outro."
E isso magoou-te, não foi?
Soube então que eles não precisavam de mim murmurou ela.
Oh, Darcy, não sabes que, quando pensamos que vamos perder alguém a quem amamos, o instinto manda-nos procurar outro alguém a quem nos possamos agarrar? Eles tentavam
enfrentar a situação, ou seja, preparavam-se para isso. Acredites ou não, isso é saudável. E, a partir daí, começaste a mantêlos afastados, não foi?
Seria verdade? Sempre resistira às roupas que a mãe comprava para ela, aos seus presentes, troçando da maneira de eles viverem, de algo por que eles tinham lutado
a vida inteira. Até mesmo o trabalho dela. Seria aquela forma de trabalhar uma maneira de provar alguma coisa?
Não, não é.
O que é que não é?
O meu emprego. Eu adoro aquilo que faço.
"Adoro aquilo que faço." Michael repetiu aquelas palavras de uma forma cadenciada. Ouvia-se uma nova canção. Guarda a Última Dança para Mim1. Levantou-se. E eu adoro
dançar. Agora, Darcy. Mas, primeiro, tenho um presente para ti.
Ajoelhou-se na frente do sofá e tirou-lhe as botas. O instinto dizia
1 No original: Save the Last dance for me. (N. da T.)
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a Darcy para não protestar. Cravou as unhas na palma da mão para não gritar.
O anel de Erin estava virado para baixo e podia senti-lo a cravar-se-lhe na pele.
Michael abria uma caixa de sapatos e afastava o papel. Tirou um sapato e exibiu-o para ela o admirar. Tratava-se de um sapato de cetim, de salto alto e aberto à
frente. Fitas diáfanas, quase transparentes, douradas e prateadas, apertavam no tornozelo. Michael pegou no pé direito de Darcy e enfiou-o no sapato, atando-o com
dois laços. Procurou a caixa, tirou o outro sapato e guioulhe o outro pé, acariciando-lhe o tornozelo.
Quando ela ficou com os dois sapatos bem calçados, levantou os olhos e sorriu:
Sentes-te como a Cinderela? perguntou.
Ela não conseguiu responder.
O radar indica que a carrinha está a noroeste afirmou o guarda de Bridgwater, enquanto guiava o carro-patrulha a toda a velocidade pela estrada secundária. Vince,
Chris e Nona seguiam com ele.
O sinal está a ficar mais forte declarou alguns minutos depois. Estamos a aproximar-nos.
Até lá chegarmos não estamos suficientemente perto explodiu Chris. Não pode andar mais depressa?
Contornaram uma curva. O condutor carregou no travão, o carro guinou e depois endireitou-se.
Oh, inferno!
O que se passa? perguntou Vince.
Estão a compor a estrada aqui. Não podemos passar. E vamos perder tempo se voltarmos para trás.
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A música enchia a sala, mas não abafava o riso maníaco. Os passos de Darcy acompanhavam os dele.
Não costumo dançar valsas de Viena berrou ele, mas esta noite planeei uma para ti.
Avanço, recuo, volta. O cabelo de Darcy caía-lhe para o rosto. Ela arfava, mas ele não parecia reparar.
A valsa terminou. Ele continuou com os braços à volta dela. Os olhos brilhavam, como buracos escuros e vazios.
- Não Posso Passar sem Ti:. Com à vontade, iniciou o passo do foxtrot. Sem esforço, ela acompanhou-o. Ele apertava-a de encontro ao peito, quase a esmagando. Darcy
não conseguia respirar. Era assim que ele fazia com as outras? Levava-as a confiar nele, depois trazia-as para aquela casa isolada. Onde estariam os corpos? Enterrados
por ali algures?
Que possibilidades teria ela de lhe escapar? Ele apanhava-a, antes de conseguir chegar à porta. Ao entrar, Darcy reparara no botão. Estaria ligado a algum sistema
de segurança? Sabendo que alguém vinha a caminho, talvez ele a poupasse.
Agora, havia uma pressa crescente em Michael. O braço dele era como aço a agarrá-la e a girar em perfeito compasso com a música.
Queres saber o meu segredo?murmurou ele. Esta casa não é minha, é de Charley.
Charley?
Passo atrás. Volta. Roda.
Sim, é esse o meu verdadeiro nome. Edward e Janice Nash eram meus tios. Eles adoptaram-me e, quando tinha um ano de idade, mudaram-me o nome de Charley para Michael.
Ele olhava-a fixamente. Darcy não conseguia olhá-lo nos olhos. Passo atrás. Passo ao lado. Volta.
O que aconteceu aos teus pais verdadeiros?
O meu pai matou a minha mãe. Depois, electrocutaram-no.
1 No original Can't Get Started Without You. (N. da T.)
256
Sempre que o meu tio se zangava comigo, costumava dizer-me que eu estava a ficar parecido com ele. A minha tia era boa para mim, quando eu era pequeno, mas depois
deixou de me amar. Dizia que tinham sido loucos em adoptar-me. Dizia que o sangue é mais forte que tudo.
Ouvia-se uma nova canção. Frank Sinatra. Olá, Bonecas,Calçem as Botas de Baile e Venham Dançar Comigo1.
Passo. Passo. Volta.
Ainda bem que me contas isso, Michael. Ajuda desabafar, não ajuda?
Quero que me chames Charley.
Está bem.
Ela tentava não parecer assustada. Ele não podia perceber o medo dela..
Não queres saber o que aconteceu aos meus pais? Quero dizer, aqueles que me criaram?
Quero, sim.
Darcy pensou em como tinha as pernas cansadas. Não estava habituada aos saltos altos. Parecia que os atilhos lhe cortavam a circulação.
Passo ao lado. Volta.
Sinatra cantava: Ama-me no Meio da Multidão2.
Quando eu tinha vinte e um anos tiveram um acidente de barco. O barco explodiu.
Lamento muito.
Eu não. Fui eu que armadilhei o barco. Sou como o meu pai verdadeiro. Estás a ficar cansada, Darcy.
Não. Não. Estou óptima. Gosto muito de dançar contigo. "Fica calma... fica calma..."
Em breve, poderás descansar. Ficaste surpreendida ao receber os sapatos de Erin?
Sim, muito surpreendida.
Ela era tão bonita. E gostava de mim. No nosso encontro, falei-lhe do meu livro e ela falou-me do programa e sobre ti e explicou-me por que razão andavam a responder
aos anúncios. Foi realmente engraçado. Eu já tinha decidido que irias tu a seguir a ela.
No originall there, Cutes, put onyour dancing boots and come dance with me. (N. da T.)
2 No original Romance with me on a crowded floor. (N. da T.)
257
"A seguir a ela."
E por que nos escolheste?
"E enquanto o ritmo bate as coisas românticas que eu te direi"1 cantava Sinatra.
Ambas responderam ao meu anúncio especial. Todas as raparigas que eu aqui trouxe o fizeram. Mas Erin também respondeu a um dos outros, àquele que eu mostrei ao agente
do FBI.
És muito esperto, Charley.
Gostas dos sapatos que comprei para Erin? Condiziam com o vestido.
Eu sei.
Eu também fui àquela festa de beneficência. Reconheci Erin pela fotografia que ela me tinha mandado, mas fui confirmar o nome dela à lista dos convidados, para ter
a certeza. Ela estava sentada quatro mesas mais à frente. Foi o destino que fez com que eu já tivesse um encontro marcado para o dia seguinte.
Passo. Passo. Volta. Vira.
Como soubeste o número de Erin? E o meu?
Foi tão fácil! Comprei os sapatos de Erin de diferentes tamanhos. Queria que eles lhe servissem perfeitamente. Lembras-te, na semana passada, quando tinhas um prego
na tua bota e eu te ajudei a tirá-lo? Nessa altura, vi que número calçavas.
E as outras?
As raparigas gostam de ser elogiadas. Eu dizia: tens um pé tão elegante! Que número calças? Às vezes, comprava os sapatos de propósito. Outras vezes, escolhia de
entre aqueles que já tinha.
O verdadeiro Charles North não colocou nenhum anúncio, pois não?
Não. Também o conheci na festa. Não parava de falar de si próprio e eu pedi-lhe o cartão. Nunca utilizo o meu nome verdadeiro quando telefono às raparigas que respondem
ao meu anúncio especial. Tu facilitaste-me a vida. Foste tu quem me telefonou.
Sim, ela tinha-lhe telefonado.
Disseste que Erin gostou de ti quando a conheceste pela primeira vez. Não tiveste medo que ela te reconhecesse a voz quando lhe telefonaste a dizer que eras Charles
North?
1 No original And while the rhythm pings what coo-coo things III be saying.
(N. da T.)
258
Telefonei-lhe da estação de Penn, onde há imenso barulho. Disse-lhe que ia apanhar o comboio para Filadélfia. Baixei a minha voz e falei muito depressa. Tal como
hoje à tarde, quando falei com a tua secretária. E, mudando de voz para um tom agudo, perguntou: Não pareço mesmo uma mulher a falar assim?
Supõe que eu não podia ir ao bar esta noite. O que terias feito?
Disseste-me que não tinhas planos para esta noite. Eu sabia que farias qualquer coisa para apanhar o tipo que Erin encontrara na noite em que morreu. E tinha razão.
Sim, Charley, tinhas razão.
Ele virou o pescoço. Passo. Passo. Volta.
Fiquei tão contente por ambas terem respondido ao meu anúncio especial. Sabes qual é, não sabes? Gosta de música, gosta de dançar.
"Porque o que é dançar se não fazer amor ao ritmo da música?", continuava Sinatra.
Esta é uma das minhas canções preferidas murmurou Michael. Fê-la dar uma volta, sem contudo aliviar a pressão. Quando a voltou a aproximar, o seu tom tornou-se quase
pesaroso: Foi culpa de Nan eu ter começado a matar raparigas.
De Nan Sheridan?
O rosto de Chris Sheridan apareceu com toda a clareza na mente de Darcy. A tristeza que lhe enchia os olhos quando falava da irmã... A autoridade e a presença que
ele mantinha na galeria. A maneira como os empregados demonstravam o quanto gostavam dele. A mãe dele. O fácil relacionamento entre ambos. Podia ouvi-lo dizer: "Espero
que não seja vegetariana, Darcy. Eu adoro cozinhar."
A preocupação dele por ela andar a responder àqueles anúncios. Como tivera razão. "Gostava de ter podido conhecer-te melhor, Chris. Gostava de ter podido dizer aos
meus pais que os amava."
Sim, Nan Sheridan. Depois de acabar o curso em Stanford, passei um ano em Boston antes de começar o curso de Medicina.. Costumava ir imenso à Brown. Foi onde conheci
Nan. Ela era uma magnífica bailarina. Tu danças bem, mas ela era maravilhosa.
Soaram os acordes familiares de "Boa noite, amor"1 "Não", pensou Darcy, "não." Passo atrás. Passo ao lado. Volta.
1 No original Good Night sweetheart. (N. da T.)
259
Michael, há outra coisa que eu gostava de te perguntar acerca da minha mãe começou ela.
Ele puxou-lhe a cabeça de encontro ao ombro.
Já te disse para me chamares Charley. Não fales mais ordenou ele com firmeza. Vamos só dançar.
"O tempo curará a tua dor", flutuava pela sala. Darcy não reconhecia a voz do cantor.
"Boa noite, amor, boa noite."2
E as últimas notas esvaíram-se no ar.
Michael deixou cair os braços e sorriu para Darcy.
Chegou a hora declarou ele em voz amigável, embora a expressão do rosto fosse aterrorizadora. Vou contar até dez para tu poderes fugir. Não achas que é justo?
Estavam de volta à estrada.
O sinal vem da esquerda. Esperem aí, parece que nos estamos a afastar declarou o polícia de Bridgwater. Deve haver por aqui alguma estrada secundária.
As rodas chiaram quando o carro fez inversão de marcha. A sensação de um desastre iminente crescia em Chris até um ponto de explosão. Abriu a janela do carro.
Ali, por amor de Deus, há ali um caminho.
O carro-patrulha travou a fundo, deu meia volta e seguiu a toda a velocidade pelo caminho indicado.
1 No original Time will heal your sorrow. (N. da T.)
2 No original Good night, sweetheart, good night. (N. da T.)
260
Darcy escorregava e tropeçava no chão encerado. Os saltos altos tinham-se tornado os seus inimigos, enquanto corria para a porta. Perdeu um momento precioso a tentar
tirar os sapatos, mas não conseguiu. Os laços duplos dos atilhos estavam demasiado apertados.
Um dizia Charley atrás de si. Ela chegou à porta.
Alcançou a porta e agarrou-se à maçaneta. Não abria.
Dois. três. Quatro. Cinco. Seis. Estou a contar, Darcy. O botão. Pressionou-o com toda a força. Hahahahahaha... uma gargalhada cava e trocista ecoou pela sala. Hahaha...
O som vinha do botão.
Dando um guincho, Darcy deu um salto. Agora, Charley também se ria.
Sete. Oito. Nove...
Ela voltou-se e, vendo as escadas, correu na sua direcção.
Dez.
Charley corria para ela, com as mãos estendidas, dedos esticados, os polegares rígidos.
"Não! Não!" Darcy tentava alcançar as escadas. Tropeçou. Torceu o tornozelo. Uma dor aguda e penetrante. Gemendo, deixou-se cair no primeiro degrau e sentiu-se puxada
para trás.
Nem percebeu que estava a gritar.
Ali está o Mercedes berrou Vince. O carro-patrulha travou a fundo e parou atrás do outro.
Saltou para fora do carro com Chris e o polícia logo atrás.
Fica aí berrou Vince para Nona.
Ouçam disse Chris segurando-lhe a mão. Está alguém a gritar. É Darcy.
Vince e ele atiraram-se contra a espessa porta de carvalho. Esta nem se mexeu.
O polícia tirou o revólver e enfiou seis balas na fechadura. Desta vez, Chris e Vince atacaram a porta e esta abriu-se.
261
Darcy tentou pontapear Charley com os saltos aguçados, mas ele continuava a agarrá-la, como se nem sentisse os saltos a baterem-lhe nas pernas. Tinha as mãos à volta
do pescoço. Ela tentou segurá-las. "Erin, Erin também foi assim contigo?" Já não conseguia gritar. Abriu a boca ansiosa por ar, mas não entrava nenhum. Seria ela
que gemia?
Tentou lutar de novo, mas não conseguia erguer os braços.
Vagamente, ouviu barulho de pancadas. Estaria alguém a tentar ajudá-la? "É... é tarde de mais", pensou ela, antes de mergulhar no vazio.
Chris foi o primeiro a entrar. Darcy pendia, como uma boneca de trapos, com os braços caídos ao longo do corpo, as pernas dobradas. Uns dedos grandes e vigorosos
estavam agarrados ao seu pescoço. Os gritos tinham parado.
Com um grito de fúria, Chris voou pela sala e agarrou Nash, que se desequilibrou e caiu, arrastando Darcy consigo.
As mãos convulsas tremeram, mas apertaram ainda mais o pescoço dela.
Vince atirou-se a Nash, passou o braço pelo pescoço dele forçando a cabeça para trás. O polícia de Bridgwtaer agarrou-o pelos pés.
As mãos de Charley pareciam ter vida própria. Chris não conseguia despegá-las do pescoço de Darcy. Nash parecia possuído de uma força sobrenatural e mantinha-se
insensível à dor. Desesperado, Chris cravou os dentes na mão direita do homem que tirava a vida a Darcy.
Com um grito de dor, Charley levantou a mão direita e aliviou a pressão na esquerda.
Vince e o polícia torceram-lhe os braços atrás das costas, prendendo-lhe os pulsos com algemas, enquanto Chris agarrava Darcy.
262
Nona tinha assistido a tudo, da porta. Agora, entrou na sala e caiu de joelhos aos pés de Darcy. Os olhos de Darcy estavam desfocados. Viam-se nódoas vermelhas e
horríveis no pescoço esguio e elegante.
Chris cobriu a boca de Darcy com a sua, apertou-lhe as narinas com os dedos e forçou a entrada de ar nos pulmões.
Vince olhou para os olhos vazios de Darcy e começou a massajar-lhe o peito.
O polícia de Bridgwater vigiava Michael Nash, que agora se encontrava algemado ao corrimão. Nash começara a entoar uma canção: Eeney meeney miney moo, apanha a dança
com o pé...
"Ela não está a reagir", pensava Nona, desesperada. Agarrou nos tornozelos de Darcy e, pela primeira vez, reparou que ela calçava sapatos de salto alto. "Não consigo
suportar isto, não posso." Quase sem dar por isso, Nona começou a tentar desapertar os nós dos atilhos.
Um porquinho foi ao mercado. Um porquinho ficou em casa. Canta outra vez, mamã. Eu tenho dez porquinhos.
"Podemos ter chegado tarde de mais", pensou Vince, furioso, enquanto tentava uma reacção de Darcy. "Mas, se assim foi, seu maldito estupor, não penses que se te
puseres a cantar canções de embalar te safas como maluco."
Chris levantou a cabeça enquanto inspirava e olhou para o rosto de Darcy. Tinha o mesmo olhar de Nan no dia em que a encontrara. A garganta ferida. O tom azul-pálido
da pele. "Não, não posso deixar que isto aconteça. Darcy, respira."
Nona, que agora chorava, conseguira finalmente retirar o nó. Desatando os atilhos, começou a tirar os sapatos do pé de Darcy.
Sentiu qualquer coisa. Seria impressão sua? Não.
Ela mexeu o pé berrou. Está a tentar tirar o sapato. No mesmo instante, Vince sentiu um pulso fraco bater no pescoço
e Chris sentiu um longo e profundo suspiro sair-lhe dos lábios.
263
XXIII
QUINTA-FEIRA
14 de Março
Na manhã seguinte, Vince telefonou para Susan.
Mrs. Fox, o seu marido pode ser um mulherengo mas não é um criminoso. Temos o assassino preso e provas irrefutáveis de que se trata do único responsável pelos crimes
dos sapatos de baile, a começar pelo de Nan Sheridan.
Obrigada. Calculo que saiba o que isso significa para mim.
Quem era? perguntou Doug, que ficara em casa. Sentia-se péssimo, não era doente.
Susan contou-lhe. Ele olhou-a, espantado:
Queres dizer que disseste ao agente do FBI que pensavas que eu era um assassino? Pensaste realmente que eu tinha assassinado Nan Sheridan e aquelas mulheres?
Tinha o rosto alterado pela fúria. Susan devolveu-lhe o olhar.
Pensei que seria uma possibilidade e, por ter mentido por ti há quinze anos, eu também poderia ser responsável pelas outras mortes.
Juro-te que nunca me aproximei de Nan no dia em que ela morreu.
É óbvio que não. Então, onde estiveste? Pelo menos agora, tenho o direito de saber.
A fúria desapareceu do rosto dele. Olhou em frente e depois virou-se para ela com um sorriso forçado.
Susan, eu disse-te naquela altura. O carro avariou-se.
Quero a verdade. Acho que me deves isso. Doug hesitou e depois confessou, lentamente:
Estive com Penny Knowles, Susan. Lamento muito. Eu não queria que tu soubesses, pois tinha medo de te perder.
265
Queres dizer que Penny Knowles estava quase a ficar noiva de Bob Carven e não queria deixar passar a oportunidade de deitar a mão ao dinheiro dos Carven? Ela deixaria
que fosses acusado de assassínio, antes de confessar que tinha estado contigo.
Susan, eu sei que nessa altura fartei-me de fazer asneiras...
Naquela altura? O riso de Susan era duro. Naquela altura? Ouve-me bem, Doug. Todos estes anos o meu pai nunca me perdoou por eu ter cometido perjúrio por tua causa.
Vai fazer as malas. Muda-te para o teu apartamento de solteiro. Vou pedir o divórcio.
Ele passou o resto do dia a pedir-lhe uma nova chance.
Susan, prometo-te...
Vai.
Ele não quis sair, antes de Donny e Beth chegarem a casa, vindos da escola.
Prometo que vos venho visitar.
E, quando se afastava, Trish correu atrás dele e agarrou-se-lhe aos joelhos. Doug pegou-lhe ao colo e trouxe-a de volta até Susan.
Susan, por favor.
Adeus, Doug. Ficaram a vê-lo afastar-se. Donny chorava:
Mãe, neste fim-de-semana, quero dizer, se ele fosse assim sempre...
Susan tentou reter as lágrimas:
Nunca devemos dizer nunca, Donny. O teu pai tem muito que amadurecer. Vamos ver como ele reage.
Vais assistir ao teu programa? perguntou Vince a Nona, quando lhe telefonou na quinta-feira à tarde.
Definitivamente, não. Preparámos um apontamento especial. Fui eu que o escrevi. Aliás, fui eu que o vivi.
O que te apetece comer hoje?
Um bife.
A mim também. O que vais fazer no fim-de-semana?
266
Estou a pensar num fim-de-semana calmo. Pensei em ir até Hamptons. Depois destas últimas semanas, preciso ver o mar.
Tens lá uma casa.
Sim. Acho que estou a mudar de ideias e que acabarei por comprar a parte de Matt. Adoro aquele sítio e, afinal, ele não é assim tão difícil de esquecer. Queres vir?
Adoraria.
Chris trouxe a Darcy uma bengala antiga, para a ajudar enquanto o tornozelo não estava completamente curado.
É demasiado bonita reclamou ela. Ele abraçou-a.
Estás pronta? Onde estão as tuas coisas?
É só aquele saco.
Greta telefonara, insistindo com Chris para que trouxesse Darcy para Darien, durante o fim-de-semana. O telefone tocou.
Vamos embora disse Darcy, acrescentando depois: Não, espera, eu tentei ligar para os meus pais na Austrália. Talvez a telefonista tenha conseguido localizá-los.
Tinha o pai e a mãe em linha.
Estou perfeitamente bem... só queria dizer... Hesitou e depois concluiu:... que realmente sinto saudades vossas... Darcy riu-se. O que queres dizer com isso de eu
ter arranjado alguém?
Piscou o olho a Chris.
Na verdade, conheci um rapaz muito simpático. Chama-se Chris Sheridan. Vão gostar dele. Ele tem a mesma profissão que eu, só que em grande escala. É dono de uma
galeria de antiguidades. É bonito, simpático e consegue aparecer precisamente no momento em que mais precisamos dele... Como o conheci?
Só Erin, pensou ela, poderia apreciar realmente a ironia da sua resposta:
Acreditem ou não, conheci-o através dos anúncios pessoais. Levantou os olhos para Chris, e os seus olhares cruzaram-se. Ele sorriu-lhe. "Estou enganada", pensou
ela. "Chris também entende."
FimObras de Mary Higgins Clark
Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
7 Até à Vista
8 O Berço da Morte
9 -O Síndroma de Anastácia
10 Agora És Minha
11 Voltaremos a Encontrar-nos
12 Antes de Dizer Adeus
13 Gosta de Música, Gosta de Dançar
14 Perigosa Obsessão
15 Lembra-te
Lembra-te
Mary Higgins Clark
Lembra-te
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original Remember me
Tradução de Isabel Veríssimo Tradução portuguesa (c) de P E A
Capa estúdios PEA
(c) 1994 by Mary Higgins Clark
Direitos reservados por Publicações Europa-América Lda
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica
do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte
prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
E-mail secretariado @ europa-america pt
Site www europa america pt
Execução técnica Gráfica Europam, Lda, Mira-Sintra Mem Martins
Edição n ° 106715/8060 Novembro de 2002
Depósito legal n ° 80496/95
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
AGRADECIMENTOS
Há vinte anos, li um livro chamado The Narrow Land, de Elizabeth Reynard. Os mitos, lendas e crónicas populares que ali encontrei são a razão por que este livro
existe. Também tenho de agradecer aos seguintes escritores do passado pelo material de fundo que me proporcionaram: Henry C. Kittredge pelo seu Cape Colders, People
and their History e Mooncussers of Cape Cod; Doris Doane por A Book of Cape Cod Houses, com ilustrações de Howard L. Rich; Frederick Freeman pela History of Cape
Cod; e William C. Smith pelo seu History of Chatham.
Os meus profundos e sinceros agradecimentos a Michael V. Korda, meu editor há muito tempo, e ao seu sócio, o editor-chefe Chuck Adams. Como sempre, rapazes, sine
qua non.
Coroas de flores para Frank e Eve Metz, pela sempre fantástica concepção de capas e de interiores. Santidade para Gypsy da Silva, pela magnífica supervisão da revisão.
Graças a Eugene H. Winick, o meu agente, e a Lisl Cade, a minha publicitária, companheiros valiosos nesta viagem que é escrever um livro.
Glória a Ina Winick, que me deu orientação profissional para compreender a perturbação pós-traumática. Agradecimentos especiais à Biblioteca Eldradge, a Sam Pinkus,
à Dr.a Marina Stajic, ao Grupo da Guarda Costeira de Woods Hole, ao Departamento da Polícia de Chatham, ao gabinete do delegado do Ministério Público do distrito
de Barnstable, a Ron Aires da Aires Joalheiros. Se algum dos termos técnicos não estiver correcto, não foi certamente culpa vossa.
Tiro o chapéu à minha filha Carol Higgins Clark, pelo seu discernimento e sugestões.
E agora, querida família e amigos. Se se Lembrarem de Mim, telefonem-me. Estou disponível para jantar.
Em memória de Maureen Higgins Dowling, "MO", cunhada e amiga, com amor.
17 de Agosto
Às nove da noite, a tempestade estava no auge, e um vento forte fazia ondas poderosas baterem na costa leste de Cape Cod. "Vamos ter mais do que um ligeiro nordeste",
pensou Menley enquanto se aproximava do lava-loiça para fechar a janela. Até podia ser divertido, pensou ela, esforçando-se por se sossegar. Os aeroportos do Cape
estavam fechados, por isso Adam alugara um carro para vir de Boston. Daí a pouco, estaria em casa. Havia imensa comida. Ela juntara muitas velas, para o caso de
faltar a electricidade, embora, se o que ela começava a suspeitar estivesse certo, a ideia de estar naquela casa apenas à luz da vela fosse assustadora.
Ligou o rádio, rodou o sintonizador e descobriu a estação de Cahtham, que passava música dos anos 40. Ergueu uma sobrancelha, surpreendida, quando a orquestra de
Benny Goodman começou os primeiros acordes de Remember^.
"Uma canção especialmente apropriada quando se vive numa casa chamada Lembra-te", pensou ela. Contrariando a vontade de rodar novamente o sintonizador, pegou numa
faca de serrilha e começou a cortar tomates para uma salada. Quando telefonara, Adam dissera-lhe que não tinha tido tempo para comer.
"Mas esqueceste-te de te lembrar" cantou o vocalista.
O som único que o vento fazia quando passava pela casa estava outra vez a começar. Empoleirada no alto da escarpa, por cima da água revolta, a casa transformou-se
numa espécie de fole numa tempestade de vento, e o som sussurrante que emitia tinha o efeito de uma voz distante a gritar "Lembra-te, Lembra-te...". A lenda dizia
que, ao longo dos tempos, aquela peculiaridade dera à casa o nome que agora tinha.
Menley tremeu enquanto ia buscar o aipo. "Adam estará cá em breve", prometeu a si mesma. Beberia um copo de vinho enquanto ela fazia a massa.
Ouviu-se um barulho repentino. Que era aquilo? Ter-se-ia uma porta escancarado? Ou uma janela? Alguma coisa estava errada.
Desligou o rádio. O bebé! Estava a chorar? Era um grito ou um som abafado, amordaçado? Menley correu para o balcão, pegou no monitor e encostou-o ao ouvido. Outro
som sufocado e depois nada. O bebé estava a sufocar!
Correu da cozinha para o vestíbulo, e depois para as escadas. A delicada clarabóia por cima da porta da entrada deixava entrar sombras cinzentas e roxas, que se
alongavam no chão de soalho.
Os seus pés mal tocaram nos degraus quando ela correu para o andar de
1 Lembra-te. (N. da T.)
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cima e atravessou o corredor. Passado um instante, estava à porta do quarto do bebé. Não vinha nenhum som da cama de grades.
Hannah, Hannah gritou ela.
Hannah estava deitada de barriga para baixo, os braços distendidos, o corpo imóvel. Fora de si, Menley inclinou-se para baixo, voltando o bebé enquanto lhe pegava.
Depois, os seus olhos abriram-se, horrorizados.
A cabeça de porcelana de uma boneca antiga repousava na sua mão. Uma cara pintada olhava para ela.
Menley tentou gritar, mas dos seus lábios não saiu nenhum som. E depois, atrás de si, uma voz murmurou:
Lamento, Menley. Está tudo acabado.
15 de Julho
Mais tarde, seguro durante o interrogatório, Scott Covey tentou fazer toda a gente compreender como as coisas se tinham passado.
Ele e Vivian tinham estado a dormir a sesta numa manta estendida no convés do barco, o sol semiencoberto e o balanço suave da água tinham-nos deixado numa agradável
sonolência.
Ele abrira um olho e bocejara.
Estou com calor dissera ele. Queres ir ver como está o fundo do oceano?
Vivian tocara-lhe no queixo com os lábios.
Acho que não me apetece. A sua voz suave estava preguiçosa, mais se assemelhando a um murmúrio satisfeito.
A mini apetece-me. Ele levantou-se, decidido, e olhou para o mar. Lá em baixo está perfeito. A água está clara como um espelho.
Eram quase quatro da tarde. Estavam a cerca de uma milha da ilha Monomoy. A capa de humidade caía como chiffon translúcido, mas começara a levantar-se uma ligeira
brisa.
Vou buscar o meu equipamento dissera-lhe Scott. Atravessara o convés e descera para a pequena cabina que usavam como compartimento de arrumações.
Vivian levantara-se, tentando afastar a sonolência.
Traz também as minhas coisas. Ele voltara-se.
Tens a certeza, querida? Vou mergulhar só alguns minutos. Por que é que não ficas a dormir?
Nem pensar. Ela correra para ele e rodeara-lhe o pescoço com os braços. Quando formos ao Havai no próximo mês quero ser capaz de explorar aqueles recifes de coral
contigo. O melhor é ir praticando.
Mais tarde, ele alegou, choroso, que não reparara que todos os outros barcos tinham desaparecido enquanto eles dormiam. Não, não ligara o rádio para verificar o
tempo.
Estavam lá em baixo há vinte minutos quando a tempestade começou. A água ficou agitada. Lutaram para alcançar o barco ancorado. Quando estavam a chegar à superfície,
foram atingidos por uma onda de um metro e meio. Vivian desaparecera. Ele procurara e voltara a procurar, mergulhando várias vezes na água até ficar sem ar na garrafa.
Eles sabiam o resto. O pedido de socorro fora recebido pela Guarda Costeira quando a tempestade estava no auge.
A minha mulher desapareceu!gritara Scott. A minha mulher desapareceu!
28 de Julho
Elaine Atkins sentou-se à frente de Adam Nichols. Estavam no Chillingsworth, o restaurante em Brewster onde Elaine recebia todos os clientes importantes. Agora,
no auge da estação de Cape Cod, todas as mesas estavam ocupadas.
Não é preciso escutar para saber de que é que estão todos a falar disse ela calmamente. A mão moveu-se ligeiramente, num gesto que abrangia a sala. Uma jovem, Vivian
Carpenter, desapareceu há algumas semanas quando estava a fazer mergulho. Fui eu que lhe vendi a casa em Chatham, e ficámos muito amigas. Enquanto estavas ao telefone,
disseram-me que o corpo dela deu à costa há uma hora.
Uma vez eu estava num barco de pesca quando alguém pescou um cadáver que estava na água há algumas semanas disse Adam. Não era uma coisa muito agradável de ver.
Como é que aconteceu?
Vivian era uma boa nadadora, mas não era uma mergulhadora experiente. Scott estava a ensiná-la. Não tinham escutado o aviso no rádio sobre a tempestade. O pobre
homem está devastado. Só estavam casados há três meses.
Adam ergueu uma sobrancelha.
Parece que foi muito negligente terem ido mergulhar mesmo antes de uma tempestade.
Bastante trágico disse Elaine com firmeza. Viv e Scott eram muito felizes. Ela é que conhecia estas águas. Tal como tu, enquanto cresceu, passou todos os Verões
no Cace. É uma pena. Até conhecer Scott, Viv era uma espécie de alma perdida. É da família dos Carpenter de Boston. A mais nova de uma família de empreendedores.
Expulsa do colégio. Bastantes desavenças com a família. Teve imensos empregos. Depois, há três anos, quando fez vinte e um, recebeu o fundo que a avó lhe deixou.
Foi então que comprou a casa. Adorava Scott, queria fazer tudo com ele.
Incluindo mergulhar com mau tempo? Que é que esse tipo faz?
Scott? Era agente da casa de espectáculos do Cape no ano passado. Foi nessa altura que conheceu Viv. Acho que ela o visitou durante o Inverno. Depois, ele voltou
de vez em Maio, e a seguir toda a gente soube que se tinham casado.
Qual é o apelido dele?
Covey. Scott Covey. É de algures no Midwest.
Um estranho que se casa com uma rapariga rica, e a rapariga rica
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morre três meses depois. Se eu fosse da Polícia, quereria ler rapidamente o testamento dela.
Oh, pára protestou Elaine. Tu deves ser advogado de defesa, não de acusação. Eu vi imenso aqueles dois. Andava a mostrar-lhes casas. Eles queriam morar numa casa
maior. Estavam a planear começar uma família e queriam mais espaço. Confia em mim. Foi um acidente horrível.
Provavelmente. Adam encolheu os ombros. Talvez eu me esteja a tornar demasiado céptico.
Estavam a beberricar vinho. Elaine suspirou.
Vamos mudar de assunto disse ela. Esta devia ser uma ocasião festiva. Tu estás com óptimo aspecto, Adam. Mais do que isso... estás com um ar feliz, satisfeito, contente
com a vida. Está tudo realmente bem, não está? Com Menley, quero eu dizer. Estou tão ansiosa por a conhecer.
Menley é uma mulher corajosa. Vai ficar bem. A propósito, quando ela vier para cá, não fales no que te contei sobre os ataques de ansiedade. Ela não gosta de falar
nisso.
É compreensível que não goste.
Elaine estudou-o. O cabelo castanho-escuro de Adam estava a começar a ficar grisalho. Tal como ela, faria 39 anos no seu próximo aniversário. Alto e elegante, tivera
sempre uma qualidade mercurial. Conhecia-o desde a altura em que tinham ambos 16 anos, quando a família dele contratara uma governanta de Verão na agência de empregos
que a mãe dela geria.
"As coisas nunca mudam", pensou Elaine. Reparara nos olhares furtivos das outras mulheres quando ele se sentara à mesa que ela ocupava.
O empregado de mesa trouxe as ementas. Adam estudou a sua.
Bife tártaro, bem passado sugeriu com uma gargalhada. Ela olhou-o, muito séria.
Não sejas mau. Eu era uma miúda quando isso aconteceu.
Nunca te vou deixar esquecer, laine, estou contentíssimo por me teres obrigado a vir aqui para ver a Casa "Lembra-te". Quando a outra casa falhou, nunca pensei que
conseguíssemos arranjar um aluguer decente para o mês de Agosto.
Ela encolheu os ombros.
Essas coisas acontecem. Felizmente, tudo acabou bem. Nem quero acreditar que o aluguer que te arranjei em Eastham tinha, afinal, todos aqueles problemas com a canalização.
Mas esta casa é uma verdadeira pérola. Tal como te disse, não estava ocupada há trinta e cinco anos. Os Paley viram a casa, perceberam que tinha potencialidades
e compraram-na ao preço da chuva há alguns anos. Tinham acabado a parte pior das remodelações quando Tom teve o ataque cardíaco. Trabalhara doze horas num dia de
calor quando tudo aconteceu. Finalmente, Jan Paley decidiu que a casa era demasiado grande para uma pessoa, e é por isso que ela está à venda. Não há assim tantas
casas de capitão disponíveis, por isso não vou demorar muito a vendê-la, como deves calcular. Estou esperançada de que vocês dois decidam comprá-la.
Veremos. Gostava de voltar a ter uma casa aqui. Se vamos continuar a viver na cidade, faz sentido. Aqueles velhos marinheiros sabiam como construir uma casa.
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Esta até tem uma história ligada a ela. Parece que o capitão Andrew Freeman a construiu para a noiva, em 1703, e acabou por a abandonar quando descobriu que ela
o enganava com um tipo qualquer da cidade enquanto ele andava no mar.
Adam sorriu.
A minha avó contou-me que os primeiros colonos eram puritanos. De qualquer maneira, não vou fazer quaisquer reformas. Estamos apenas a passar férias, embora eu tenha
inevitavelmente de ir várias vezes a Nova Iorque e de ficar alguns dias em cada viagem. Tenho de trabalhar no novo julgamento do caso Potter. Talvez tenhas lido
sobre isso. A mulher foi maltratada. Quem me dera tê-la defendido a ela primeiro.
Gostava de te ver em acção no Tribunal, um dia.
Vem a Nova Iorque. Pede a John que te leve. Quando é que se casam? Ainda não marcámos a data, mas será durante o Outono. Como era de esperar, a filha de John está
tudo menos encantada com o noivado. Teve John só para ela durante muito tempo. Amy vai para a Faculdade em Setembro, por isso achamos que perto do Dia de Acção de
Graças será a melhor altura.
Pareces feliz, laine. E também estás com óptimo aspecto. Muito atraente e com muito sucesso. Nunca te vi tão magra. E o teu cabelo também está mais louro, e gosto
dele assim.
Elogios vindos de ti? Não estragues a nossa amizade. Elaine riu-se. Mas agradeço-te. Na verdade, estou muito feliz. John é o Senhor Certo de que tenho estado à espera.
E, graças a Deus, estás bem outra vez. Acredita, Adam, o ano passado, quando vieste para cá depois de tu e Menley se terem separado, fiquei preocupada contigo.
Foi um período bastante difícil. Elaine examinou a ementa.
Este almoço é por conta da Agência de Compra e Venda de Propriedades Atkins. Nada de protestos, por favor. A Casa "Lembra-te" está à venda, e se, depois de a alugares,
decidires que é uma grande compra, nesse caso eu recebo a comissão.
Depois de terem feito os pedidos, Adam disse:
O telefone estava ocupado quando tentei falar para Menley há bocado. Vou fazer-lhe um telefonema rápido agora.
Voltou pouco depois, e parecia perturbado.
Continua ocupado.
Não têm Retenção de Chamadas?
Menley detesta. Diz que é muito indelicado estar sempre a dizer às pessoas "aguarde um momento" e depois sair da linha.
Ela tem uma certa razão, mas mesmo assim é muito prático. Elaine hesitou. De repente, pareces preocupado. Ela agora está mesmo bem?
Parece estar bem disse Adam lentamente. Mas, quando vêm aqueles ataques de ansiedade, é um inferno. Ela fica destroçada quando revive o acidente. Tentarei novamente
daqui a um minuto, mas, entretanto, já te mostrei uma fotografia do bebé?
Tens uma contigo?
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O papa é católico? Pôs a mão no bolso. Aqui está a mais recente.
Chama-se Hannah. Fez três meses a semana passada. Não é um espanto?
Elaine observou cuidadosamente a fotografia.
É lindíssima disse com sinceridade.
Parece-se com Menley, por isso vai continuar a ser um espanto
disse Adam decididamente. Voltou a guardar a fotografia na carteira e afastou a cadeira. Se a linha ainda estiver ocupada, vou pedir à telefonista para interromper.
Elaine observou-o a atravessar a sala. "Está nervoso por ela estar sozinha com o bebé", pensou.
Elaine.
Ela ergueu os olhos. Era Carolyn March, uma publicitária cinquentona a quem vendera uma casa. March não esperou que ela a cumprimentasse.
Ouviu dizer qual era o valor do fundo de Vivian Carpenter? Cinco milhões de dólares! Os Carpenter nunca falam de dinheiro, mas a mulher de um dos primos deixou escapar.
E Vivian disse às pessoas que deixaria tudo ao marido. Não acha que tanto dinheiro deveria secar as lágrimas de Scott?
"Deve ser Adam. Ele disse que ligaria por volta desta hora." Menley encostou o bebé ao ombro e esticou-se para chegar ao telefone.
Vá lá, Hannah murmurou. Já bebeste metade do segundo biberão. A comer assim, vais ficar um verdadeiro pote.
Segurou o auscultador entre o ouvido e o ombro enquanto dava pancadinhas nas costas do bebé. Não era Adam, mas sim Jane Pierce, editora-chefe da revista Travel Times.
Como sempre, Jane não desperdiçou palavras.
Menley, vais para o Cape em Agosto, não vais?
Faz figas disse Menley. Disseram-nos ontem à noite que a casa que íamos alugar está com problemas graves nas canalizações. Adam foi lá esta manhã para ver se conseguíamos
arranjar outra casa qualquer.
É bastante tarde para conseguir alguma coisa, não achas? perguntou Jane.
Temos um trunfo na manga. Uma velha amiga de Adam é dona de uma agência de compra e venda de propriedades. Foi Elaine que nos arranjou a primeira casa, e garante
que tem uma substituta fantástica. Esperemos que Adam concorde.
Nesse caso, se fores para lá...
Jane, se formos para lá, vou fazer pesquisa para um livro novo da série de David. Adam falou-me tanto sobre o Cape que posso querer que a acção do próximo se passe
lá. David era, há dez anos, o personagem de uma série de romances que tinham tornado Menley uma conhecida escritora de livros para crianças.
Sei que isto é suplicar-te um favor, Menley, mas do que eu preciso
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para este artigo é da forma especial como tu fazes pesquisa histórica alegou a editora.
Quando Menley desligou o telefone, quinze minutos depois, fora convencida a escrever um artigo sobre Cape Cod para a Travel Times.
Afinal de contas, Hannah disse, enquanto dava a última pancadinha nas costas do bebé, foi Jane quem me deu a minha primeira oportunidade, há dez anos atrás. Não
é verdade? É o mínimo que posso fazer.
Mas Hannah estava profundamente adormecida no seu ombro. Menley dirigiu-se para a janela. Do apartamento, num vigésimo oitavo andar da Avenida East End, desfrutava-se
uma vista assombrosa do rio East e das pontes que o atravessavam.
Voltar de Ryan para Manhattan depois de terem perdido Bobby salvara a sua sanidade mental. Mas seria bom irem para fora no mês de Agosto. Depois do primeiro e terrível
ataque de ansiedade, o obstetra encorajara-a a consultar um psiquiatra.
A senhora tem o que se chama distúrbios pós-traumáticos, o que não é invulgar depois de uma experiência assustadora, mas tem tratamento, e eu recomendo que o siga.
Ela visitava a psiquiatra, a Dra Kaufman, todas as semanas, e ela apoiou incondicionalmente a ideia de umas férias.
Os episódios são compreensíveis e, a longo prazo, benéficos disse ela. Durante quase dois anos após a morte de Bobby, você negou o que acontecera. Agora que tem
Hannah, está finalmente a encarar a situação. Faça estas férias. Vá para fora. Divirta-se. Mas tome os medicamentos. E, claro, telefone-me a qualquer hora, sempre
que precisar. Caso contrário, ver-nos-emos em Setembro.
"Vamos divertir-nos", pensou Menley. Levou o bebé adormecido para o quarto, deitou-o, mudou-lhe rapidamente a fralda e tapou-o.
Agora sê uma querida e dorme uma grande soneca sussurrou ela, olhando para a cama de grades.
Sentia os ombros e o pescoço rígidos, e esticou os braços e rodou a cabeça. O cabelo castanho que Adam descrevia como sendo da cor de xarope de bordou roçava no
colarinho da sweatshirt. Desde que se conhecia, Menley desejara ser mais alta. Mas, aos 31 anos, reconciliara-se com a altura definitiva de um metro e sessenta.
"Pelo menos, posso ser forte", consolava-se a si mesma, e o seu corpo forte e elegante era testemunha das suas romarias diárias ao ginásio no segundo andar do prédio.
Antes de apagar a luz, observou o bebé. "Milagre, milagre", pensou ela. Fora criada com um irmão mais velho que a transformara numa menina traquinas. Por isso, sempre
desprezara bonecas, e preferia jogar futebol a brincar às casinhas. Sentia-se sempre à vontade com os rapazes, e na adolescência tornou-se a confidente preferida
e a baby-sitter dos dois sobrinhos.
Mas nada a preparara para as torrentes de amor que sentira quando Bobby nascera e que eram despertadas agora por este bebé perfeito, de carinha redonda e às vezes
mal-humorado.
Árvore da família das Aceráceas. (N. da T.)
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O telefone tocou quando ela chegou à sala de estar. "Aposto que é Adam e que ele esteve a tentar falar para mim enquanto eu estive ao telefone com Jane", pensou,
enquanto corria para atender.
Era Adam.
Olá, amor disse ela alegremente. Encontraste uma casa?
Ele ignorou a pergunta.
Olá, querida. Como te sentes? Como está o bebé?
Menley fez uma pequena pausa. Sabia que, no fundo, não o podia criticar por se preocupar, mas, no entanto, não pôde resistir a uma pequena alfinetada.
Eu estou bem, mas, para falar com franqueza, ainda não fui ver Hannah desde que saíste esta manhã disse-lhe ela. Espera um bocadinho, que eu vou espreitá-la.
Menley!
Desculpa disse ela, mas, Adam, foi a forma como perguntaste; é como se estivesses à espera de más notícias.
Mea culpa disse ele, arrependido. É que vos amo tanto... às duas. Quero que tudo esteja bem. Estou com Elaine. Temos uma casa fantástica. Uma casa de capitão com
quase trezentos anos na ilha Morris, em Chatham. A localização é magnífica, numa escarpa mesmo por cima do oceano. Vais adorar o sítio. Até tem um nome, Casa "Lembra-te".
Conto-te tudo sobre ela quando chegar a casa. Parto logo a seguir ao jantar.
É uma viagem de cinco horas de carro protestou Menley, e já a fizeste uma vez hoje. Por que é que não passas aí a noite e vens de manhã?
Não me importo que seja tarde. Quero estar contigo e com Hannah esta noite. Amo-te.
Eu também te amo disse Menley ardentemente.
Depois de se despedirem, ela colocou o auscultador no descanço e murmurou para si mesma:
Só espero que a verdadeira razão de vires a correr para casa não seja porque tens medo de me deixar sozinha com o bebé.
31 de Julho
Henry Sprague deu a mão à mulher enquanto passeavam pela praia. O sol de fim de tarde aparecia e desaparecia por detrás das nuvens, e sentiu-se satisfeito por ter
posto um lenço quente na cabeça de Phoebe. Reflectiu que a noite que se aproximava dava uma aparência diferente à paisagem. Sem os banhistas, o areal e as águas
frias do oceano pareciam voltar a uma harmonia primitiva com a natureza.
Observou as gaivotas a pairarem na crista das ondas. Conchas de mexilhões em tons subtis de cinzento, cor-de-rosa e branco agrupavam-se na areia húmida. Viu um ocasional
resto de um navio naufragado. Há anos, descobrira um salvavidas do Andrea Doria que dera à costa naquele local.
Era a altura do dia de que ele e Phoebe mais gostavam. Fora naquela mesma praia, há quatro anos, que Henry notara, pela primeira vez, os sinais de esquecimento nela.
Agora, triste, reconheceu que não poderia tê-la consigo muito mais tempo. Fora-lhe receitada tacrina, e por vezes parecia que ela estava a melhorar bastante, mas
recentemente escapara-se várias vezes de casa mal ele se distraía. Ainda há poucos dias, ao anoitecer, a encontrara naquela praia, dentro do oceano, com a água já
pela cintura. No preciso momento em que correra para ela, uma onda fizera-a cair. Completamente desorientada, estivera prestes a afogar-se.
"Tivemos quarenta e seis anos maravilhosos", disse para si mesmo. "Posso ir visitá-la todos os dias ao lar. É para bem dela." Ele sabia que tudo aquilo era verdade,
mas, mesmo assim, era muito difícil. Ela arrastava-se a seu lado, calada, perdida num mundo só seu. A Dr.a Phoebe Cummings Sprague, professora catedrática de História
em Harvard, que já não se lembrava de como atar um lenço ou se tinha acabado de tomar o pequeno-almoço.
Reparou onde estavam e olhou para cima. Para lá da duna, nos terrenos mais altos, a casa recortava-se contra o horizonte. Fizera-lhe sempre lembrar uma águia, empoleirada
como estava na escarpa majestosa e atenta.
Phoebe disse ele.
Ela voltou-se e olhou para ele, franzindo o sobrolho. O franzir tornara-se automático. Começara quando ela tentava ainda, desesperadamente, não parecer estar esquecida.
Ele apontou para a casa que se erguia acima deles.
Contei-te que Adam Nichols vai alugar a casa no mês de Agosto, com a mulher, Menley, e o novo bebé deles? Vou convidá-los para nos visitarem um dia destes. Tu gostaste
sempre de Adam.
Adam Nichols. Por um instante, o nevoeiro cerrado que invadira a mente
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de Phoebe, forçando-a a andar às apalpadelas para compreender, desapareceu. "Aquela casa", pensou ela. "O seu nome original era Nickquenum."
Nickquenum, a palavra indiana solene que queria dizer "vou para casa". "Eu estava a andar por aqui", disse Phoebe a si mesma." Eu estava naquela casa. Alguém que
conheço... quem era?... afazer alguma coisa estranha...A mulher de Adam não pode viver lá..." O nevoeiro regressou rapidamente ao seu cérebro e envolveu-o. Ela olhou
para o marido.
Adam Nichols murmurou lentamente. Quem é ele?
1 de Agosto
Scott Covey só fora para a cama à meia-noite. Mesmo assim, ainda estava acordado quando os primeiros raios da alvorada começaram a projectar sombras no quarto. Depois,
caiu num sono inquieto e acordou com uma sensação de pressão na testa, o começo de uma dor de cabeça. Fazendo uma careta, afastou os cobertores. À noite, arrefecera
bastante, mas ele sabia que a descida da temperatura era temporária. Ao meio-dia estaria um dia óptimo no Cape, soalheiro e com o calor do meio do Verão temperado
por brisas marítimas salgadas. Mas agora ainda estava frio, e se Vivian estivesse ali ele teria fechado as janelas antes de ela se levantar da cama. Hoje era o dia
do funeral de Vivian. Quando se levantou, Scott olhou rapidamente para a cama e pensou quantas vezes nos três meses de casados lhe tinha trazido café quando ela
acordava. Depois, ficavam aconchegados na cama a bebê-lo juntos. Ainda podia vê-la, as pernas flectidas a equilibrar o pires, as costas encostadas a uma pilha de
almofadas. Lembrava-se dela a brincar por causa da cabeceira da cama em latão.
A mãe redecorou o meu quarto quando eu tinha dezasseis anos contara-lhe naquela sua voz baixa. Eu queria tanto uma destas... mas a mãí disse que eu não tinha o mínimo
talento para decoração de interiores e que as camas de latão estavam a ficar muito corriqueiras. A primeira coisa que fiz quando pus as mãos no meu dinheiro foi
comprar a mais ornamentada que encontrei. Depois rira-se. Tenho de admitir que uma cabeceira almofadada é um encosto muito mais confortável.
Naquela manhã, ele tirara-lhe o pires e a chávena da mão e pousara-os no chão.
Encosta-te a mim sugerira ele. Era engraçado lembrar-se daquele episódio precisamente agora. Scott foi para a cozinha, fez café e uma torrada e sentou-se ao balcão.
A frente da casa dava para a rua, e das traseiras avistava-se Oyster Pond. Da janela lateral, através da folhagem, via a esquina da propriedade dos Spragues. Vivian
dissera-lhe que a Dr.a Sprague seria posta num lar dentro da pouco tempo. Henry já não gosta que eu vá visitá-la, mas temos de o convidar para jantar quando ele
estiver sozinho dissera ela. É divertido ter companhia quando o fazemos os dois juntos acrescentara ela. Depois, pusera os braços em volta do pescoço dele e abraçara-o
fortemente. Tu amas-me de verdade, não amas, Scott?
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Quantas vezes a tranquilizara, a abraçara, lhe acariciara o cabelo, a confortara até ela, outra vez alegre, começar a enumerar as razões por que o amava.
Sempre desejei que o meu marido tivesse mais de um metro e oitenta,
e tu tens. Sempre esperei que ele fosse louro e encantador, para toda a gente me invejar. Bem, tu és, e toda a gente me inveja. Mas, mais importante que tudo o resto,
queria que ele fosse louco por mim.
E eu sou. Ele dissera-lhe aquilo vezes sem conta.
Scott olhou pela janela, pensando nas últimas duas semanas, lembrando-se de que alguns dos primos da família Carpenter e muitos dos amigos de Viv se tinham apressado
a vir consolá-lo logo que ela fora dada como desaparecida. Mas um número significativo de pessoas não viera. Os pais dela tinham sido especialmente reservados. Sabia
que, aos olhos de muitas pessoas, ele não passava de um caçador de fortunas, de um oportunista. Algumas das reportagens nos jornais de Boston e do Cape incluíam
entrevistas com pessoas que eram abertamente cépticas quanto às circunstâncias em que se dera o acidente.
A família Carpenter era proeminente no Massachusetts há várias gerações. Ao longo dos tempos, produzira senadores e governantes. Tudo o que lhes acontecia era notícia.
Levantou-se e aproximou-se do fogão para ir buscar mais café. De repente, a perspectiva das horas que se seguiriam, do serviço fúnebre e do enterro, da presença
inevitável dos órgãos de comunicação social foi opressiva. Todos estariam a observá-lo.
Malditos sejam todos, nós estávamos apaixonados! disse ele encarniçadamente, atirando com a cafeteira para cima do fogão.
Bebeu um golo de café. Estava a ferver. Com a boca a escaldar, correu para o lava-loiça e cuspiu.
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Pararam em Buzzards Bay o tempo suficiente para comprar café, bolos e um exemplar do Boston Globe. Enquanto se dirigiam para a Ponte Sagamore na carrinha cheia de
bagagem, Menley suspirou.
Achas que há café no céu?
Espero bem que sim. Se não, tu não ficas acordada o tempo suficiente para apreciares a tua recompensa eterna. Adam olhou-a rapidamente, com um sorriso nos olhos.
Tinham partido de manhã cedo, e às sete horas já estavam na estrada. Agora, às onze e meia, estavam a atravessar o canal de Cape Cod. Depois de berrar durante os
primeiros quinze minutos, uma Hannah raramente cooperante dormira durante o resto da viagem.
O sol do fim da manhã conferia um reflexo prateado à estrutura metálica da ponte. No canal em baixo, um cargueiro navegava lentamente na água calma. Depois, entraram
na Via Rápida n.g 6.
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Era neste ponto que o meu pai costumava gritar, todos os Verões: "Estamos de volta ao Cape." disse Adam. Foi sempre a sua verdadeira casa.
Achas que a tua mãe lamenta tê-la vendido?
Não. O Cape já não era o mesmo depois de o pai morrer. Ela é mais feliz na Carolina do Norte, junto das irmãs. Mas eu sou como o pai. Este sítio está-me no sangue;
a nossa família faz férias aqui há três séculos.
Menley ergueu-se ligeiramente, para poder observar o marido. Estava feliz por estar finalmente ali com ele. Tinham planeado vir no Verão em que Bobby nascera, mas
o médico não quisera que ela fosse para tão longe no final da gravidez. No ano seguinte, tinham acabado de comprar a casa em Rye e estavam a instalar-se, por isso
não fazia sentido irem para o Cape.
No Verão seguinte, tinham perdido Bobby. "E, depois disso", pensou Menley, "tudo o que senti foi um horrível torpor, a sensação de estar desligada de todos os outros
seres humanos, a incapacidade de reagir a Adam."
No ano anterior, Adam tinha vindo sozinho. Ela pedira-lhe que se separassem temporariamente. Resignado, ele concordara.
Na verdade, não podemos continuar assim, Menley admitira ele, o nosso casamento está a desmoronar-se.
Ele estava fora há três semanas quando ela descobrira que estava grávida. Durante todo aquele tempo, ele não lhe tinha telefonado. Ela debatera-se vários dias com
a indecisão de lhe dizer ou não, perguntando a si mesma qual seria a reacção dele. Por fim, telefonara. O seu cumprimento impessoal destroçara-lhe o coração, mas
quando ela dissera: "Adam, talvez não seja a notícia que queres ouvir, mas estou grávida e estou muito feliz com isso", o seu grito de alegria emocionara-a.
Vou já para casa dissera ele sem hesitação. Agora sentia a mão de Adam na sua.
Será que estamos ambos a pensar na mesma coisa? disse ele. Eu estava aqui quando soube que a princesa vinha a caminho.
Ficaram um momento em silêncio; depois, Menley afastou as lágrimas e começou a rir-se.
E lembras-te de como, quando ela nasceu, Phyllis não deixava de lhe chamar Menley Hannah? Imitou o tom estridente da cunhada. Acho que é muito agradável manter a
tradição familiar de chamar Menley à primeira filha, mas, por favor, não lhe chamem Hannah. É tão antiquado. Por que é que não lhe chamam Menley Kimberly? Depois
podemos chamar-lhe Kim? Não seria amoroso?
A voz readquiriu o tom normal.
Francamente!
Nunca te zangues comigo, querida disse Adam, rindo-se. Espero que Phyllis não esgote a paciência da tua mãe. A mãe de Menley estava a viajar pela Irlanda com o filho
e a nora.
Phyl está determinada a pesquisar os dois lados da árvore genealógica da família. Aposto que, se encontrar ladrões de cavalos entre os seus antepassados, nunca saberemos
que eles existiram.
Ouviram barulho no banco de trás. Menley olhou por cima do ombro.
Bem, parece que sua alteza não vai demorar muito ajuntar-se a nós,
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e aposto que vai acordar esfomeada. Inclinando-se para trás, enfiou a chucha na boca de Hannah. Reza para ela se aguentar até chegarmos a casa.
Pôs o recipiente vazio do café num saco e pegou no jornal.
Adam, olha. Vem uma fotografia do casal de que me falaste. Foi ela que morreu afogada quando estavam a mergulhar. O funeral é hoje. Pobre homem. Que acidente tão
trágico.
Acidente trágico. Quantas vezes ouvira ela aquelas palavras. Despoletaram recordações terríveis. Foi envolvida por elas. "Aguiar naquela estrada de província desconhecida,
Bobby no banco de trás. Um glorioso dia de sol. Sentia-se tão bem. Cantava para Bobby o mais alto que podia. Bobby acompanhava-a. A passagem de nível sem guarda.
E depois o sentir das vibrações. Olhar pela janela. O rosto frenético do maquinista. O rugido e o guincho do metal quando o comboio a travar se aproximou deles.
Bobby agritar: Mamã, mamã. O carregar no acelerador. O choque quando o comboio bateu na porta de trás, junto de Bobby. O comboio a arrastar o carro. Bobby a soluçar:
Mamã, mamã. Depois, os olhos dele a fecharem-se. Saber que ele estava morto. Embalá-lo nos braços. Gritar e gritar: Bobby, eu quero Bobby. Bobbyyyyyyyyyyyyy. "
Uma vez mais, Menley sentiu o corpo cobrir-se de suor. Começou a tremer. Fez força com as mãos contra as pernas, para controlar os espasmos dos membros.
Adam olhou-a rapidamente.
Oh, meu Deus. Estavam a aproximar-se de um local de paragem para descansar. Ele desviou para lá, travou o carro e virou-se para a abraçar. Está tudo bem, querida.
Está tudo bem.
No banco de trás, Hannah começou a choramingar. Bobby a choramingar: "Mamã, mamã." Hannah a choramingar.
Obriga-a a parar! gritou Menley. Obriga-a a parar!
Era meio-dia e um quarto, reparou Elaine, olhando para o relógio do painel de instrumentos do carro. Adam e Menley deviam chegar a qualquer momento, e ela queria
verificar a casa antes de eles se instalarem para ver se estava tudo em ordem. Um dos serviços que ela oferecia aos clientes era que uma casa alugada era completamente
limpa antes e depois de os inquilinos saírem. O seu pé carregou com mais firmeza no acelerador. Estava atrasada porque fora ao funeral de Vivian Carpenter Covey.
Impulsivamente, parou no supermercado.
"Vou comprar um pouco do salmão fumado que Adam adora", pensou ela. Ligava lindamente com a garrafa de champanhe gelado que deixava semPre aos clientes mais importantes.
Depois, podia escrever um bilhete de boasvindas e ir-se embora antes de eles chegarem.
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A manhã nublada dera lugar a um dia esplêndido, soalheiro, a temperatura rondava os vinte e oito graus centígrados, a luminosidade era intensa, Elaine esticou-se,
abriu o tecto e pensou no que tinha dito ao repórter da televisão. Quando o cortejo fúnebre estava prestes a sair da igreja, ela reparara que ele estava a interceptar
pessoas ao acaso para lhes pedir que comentassem o que acontecera. Deliberadamente, ela aproximara-se dele
Posso dizer uma coisa? Olhara francamente para a câmara.
O meu nome é Elaine Atkins. Vendi a Vivian Carpenter a sua casa em Chatham há três anos, e um dia antes de ela morrer andei a mostrar casas maiores a ela e ao marido.
Eles estavam muito felizes e estavam a planear iniciar uma família. O que aconteceu é uma tragédia, não um mistério. Acho que as pessoas que andam a espalhar horríveis
boatos sobre o Sr. Covey deviam verificar quantas pessoas saíram de barco naquela manhã e não ouviram o aviso da Guarda Costeira, quase sendo apanhadas quando a
tempestade se abateu.
A recordação provocou-lhe um sorriso de satisfação. Tinha a certeza de que Scott Covey estivera a observá-la do interior da limusina.
Passou pelo farol e seguiu para o sector Quitnesset da ilha Morris, passou pela Reserva Nacional da Vida Selvagem de Monomoy; virou para Awards Trail, depois entrou
na rua privada que levava à Casa "Lembra-te", Quando fez a curva, e a casa ficou à vista, tentou imaginar a reacção de Menley ao vê-la pela primeira vez.
Maior e mais harmoniosa do que a maior parte dos exemplares arquitectónicos do princípio do século xvI, era um tributo do amor que o capitão Andrew Freeman sentira
inicialmente pela sua jovem noiva. Com bonitas e sóbrias linhas, e empoleirada como estava na costa íngreme, a sua silhueta era majestosa contra o fundo de céu e
mar. Ipomeias e azevinho rivalizavam com rosas silvestres para encherem de cor a propriedade. Alfarrobeiras e carvalhos, com muitos anos, ofereciam oásis de sombra
do sol brilhante.
O caminho pavimentado ia desde o lado da casa até à zona de estacionamento atrás da cozinha. Elaine franziu o sobrolho quando avistou a carrinha de Carrie Bell.
Carrie era uma mulher-a-dias excelente, mas atrasava-se sempre. Àquela hora já não devia estar ali.
Elaine encontrou Carrie na cozinha, com a mala debaixo do braço. O seu rosto magro e de feições vincadas estava pálido. Quando falou, a sua voz, que era sempre ligeiramente
alta de mais, estava acelerada e baixa.
Oh, Menina Atkins. Sei que estou um pouco atrasada, mas tive de deixar Tommy na casa da minha mãe. Está tudo em ordem, mas deixe que lhe diga que estou muito satisfeita
por me ir embora daqui.
Qual é o problema? perguntou Elaine rapidamente.
Apanhei o maior susto da minha vida disse Carrie, com a voz ainda trémula. Estava na sala de jantar quando tive a certeza de ter ouvido passos no andar de cima.
Pensei que tinha sido a menina que tinha entrado e chamei-a. Como ninguém respondeu, fui lá acima dar uma vista de olhos. Menina Atkins, sabe aquele berço antigo
que está no quarto que só tem uma cama e um berço?
- Claro que sei.
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O rosto de Carrie ficou um pouco mais pálido. Apertou o braço de Elaine.
Menina Atkins, as janelas estavam fechadas. Não havia nenhuma corrente de ar. Mas a colcha da cama estava um pouco amarrotada, como se alguém se tivesse sentado
em cima dela. E o berço estava a baloiçar. Alguém que eu não podia ver estava sentado em cima daquela cama, a embalar o berço!
Ora, Carrie, você ouviu aquelas histórias disparatadas que as pessoas inventaram sobre esta casa quando ela foi abandonada disse-lhe Elaine.
Aqueles soalhos velhos são irregulares. Se aquele berço estava a mover-se, é porque a senhora tem um andar pesado e provavelmente pisou uma tábua solta.
Das traseiras, ouviu o som de um carro a subir o caminho de acesso à casa. Adam e a família tinham chegado.
É uma história ridícula disse ela severamente. Não se atreva a dizer uma palavra sobre isso aos Nicholse avisou ela, voltando-se para observar Adam e Menley, que
saíam da carrinha. Todavia, sabia que o seu aviso era inútil... Carrie Bell partilharia aquela história com todas as pessoas que encontrasse.
8
Nathaniel Coogan estava na Polícia de Chatham há oito anos. Natural de Brooklyn, Nat estudava no John Jay College, em Manhattan, a fazer uma licenciatura em Ciências
Criminais, quando conhecera a mulher, que residira toda a sua vida em Hyannis. Deb não tinha qualquer interesse em viver em Nova Iorque, por isso, quando concluiu
os estudos, ele concorrera de boa vontade a um lugar no Departamento da Polícia do Cape. Agora, aos
42 anos e detective, com dois filhos adolescentes, era uma daquelas aves raras, um homem despreocupado e feliz, satisfeito com a família e com o emprego e cuja maior
preocupação eram os cerca de sete quilos que os excelentes cozinhados da mulher tinham acrescentado à sua já ampla figura.
No entanto, no princípio daquele dia, surgira outra preocupação. Na verdade, era uma coisa que já estava a incomodá-lo há algum tempo. Nat sabia que o seu chefe,
o capitão Frank Shea, acreditava piamente que a morte de Vivian Carpenter Covey fora um acidente.
Nesse dia tivemos dois outros quase afogamentos realçou Frank. O barco era de Vivian Carpenter. Ela conhecia aquelas águas melhor do que o marido. Se alguém se devia
ter lembrado de ligar o rádio, era ela. No entanto, o caso continuava a preocupar Nat, e, tal como um cão a roer um osso, não estava disposto a esquecer o assunto
até as suas suspeitas serem justificadas ou provar que não tinha razão.
Naquela manhã, Nat chegou cedo ao escritório e estudou as fotografias da autópsia que o médico legista enviara de Boston. Embora tivesse ensinado a si mesmo, há
muito tempo, a ser clinicamente objectivo quanto às fotografias das vítimas, a visão do corpo elegante ou do que restava
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dele inchado pela água, mutilado pelas dentadas dos peixes, atingiuo como a broca de um dentista num nervo exposto. Vítima de assassínio ou vítima de acidente? Qual
dos dois casos seria?
Às nove da manhã, foi ao escritório de Frank e pediu que lhe fosse atribuído o caso.
Quero realmente tratar deste caso. É importante.
Um dos teus palpites? perguntou Shea.
Sim.
Acho que estás enganado, mas não faz mal nenhum ser rigoroso. Vai em frente.
Às dez, Nat estava no serviço fúnebre. "Nenhum elogio fúnebre para a pobre miúda", pensou ele. Que é que os rostos de pedra dos pais e das irmãs de Vivian Carpenter
escondiam? Desgosto que era noblesse oblige esconder de olhos bisbilhoteiros? Raiva por uma tragédia sem sentido? Culpa? Os jornais tinham escrito muito sobre a
história infeliz de Vivian Carpenter. Não era nada parecida com a das irmãs mais velhas, uma delas cirurgiã, outra diplomata, ambas muito bem casadas, enquanto Vivian,
expulsa do colégio interno por fumar erva, abandonara mais tarde os estudos em várias universidades. Embora não precisasse do dinheiro, quando se mudara para o Cape
arranjara um emprego, depois despedira-se, atitude que se repetiria meia dúzia de vezes.
Scott Covey estava sentado, sozinho, na primeira fila, e chorou durante a cerimónia. "Está como eu me sentiria se alguma coisa acontecesse a Deb", pensou Nat Coogan.
Quase convencido de que estava a bater à porta errada, saiu da igreja no fim da cerimónia, depois deixou-se ficar lá fora para ouvir os comentários das pessoas.
E as coisas que ouvia eram interessantes.
Pobre Vivian. Tenho pena por ela, mas ela era cansativa, não era? A mulher de meia-idade a quem aquelas palavras eram dirigidas suspirou.
Eu sei. Ela nunca conseguia estar descontraída.
Nat recordou-se de que Covey tinha dito que insistira infrutiferamente com a mulher para que ela ficasse a dormir a sesta enquanto ele ia mergulhar.
Um repórter de televisão estava a abordar as pessoas e a filmar. Nat observou uma atraente loura dirigir-se ao repórter por iniciativa própria. Reconheceu-a, era
Elaine Atkins, a agente de compra e venda de propriedades. Ele aproximou-se para escutar os comentários dela.
Quando acabou, Nat tomou algumas notas num bloco de apontamentos. Elaine Atkins disse que os Covey tinham andado à procura de uma casa nova e que estavam a planear
iniciar uma família. Ela parecia conhecê-los razoavelmente bem. Decidiu que teria de ter uma conversa com a Menina Atkins.
Quando regressou ao escritório, voltou a pegar nas fotografias da autópsia, tentando perceber o que achara estranho nelas.
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Menley afastou-se do braço de Adam e passou para o seu lado da cama. Ele balbuciou o nome dela mas não acordou. Ela levantou-se, vestiu o robe e ao olhar para ele,
um sorriso aflorou-lhe os lábios.
O dinâmico advogado criminal, que era capaz de fazer os jurados mudarem de opinião com a sua retórica, parecia completamente indefeso a dormir. Estava deitado de
lado, com a cabeça em cima de um braço. O cabelo estava desgrenhado, as madeixas grisalhas mais aparentes, o fraco começo de uma tonsura era claramente visível.
O quarto estava gelado, por isso Menley debruçou-se e tapou-lhe os ombros com o cobertor, aflorando-lhe ao de leve a testa com os lábios. No seu vigésimo quinto
aniversário, chegara à conclusão de que, provavelmente, nunca encontraria ninguém com quem quisesse casar-se. Duas semanas depois, conhecera Adam num navio de cruzeiros,
o Sagafjord. O navio estava a fazer uma viagem à volta do mundo, e, como tinha escrito muito acerca do Extremo Oriente, Menley fora convidada para fazer uma série
de palestras no percurso entre Bali e Singapura.
No segundo dia de viagem, Adam parara junto da cadeira em que ela estava sentada no convés e tinham começado a conversar. Estivera a registar testemunhos escritos
na Austrália e, impulsivamente, comprara um bilhete para aquele mesmo percurso.
Paragens óptimas ao longo do caminho, e estava mesmo a precisar de uma semana de férias explicara ele. No fim daquele dia, ela tinha percebido que Adam era a razão
por que rompera o noivado três anos antes.
Para ele fora diferente. Apaixonara-se por ela gradualmente, durante o ano seguinte. Por vezes, Menley perguntava-se se teria voltado a ter notícias dele se não
morassem a três quarteirões de distância um do outro em Manhattan.
O facto de terem algumas coisas importantes em comum ajudou. Eram ambos nova-iorquinos activamente empenhados na cidade e apaixonados por Manhattan, embora tivessem
crescido em mundos bastante diferentes. A família de Adam tinha um duplex em Park Avenue e ele frequentara os melhores colégios. Ela crescera em Stuyvesant Town,
na Rua Catorze, onde a mãe ainda vivia, e frequentara as escolas paroquiais locais. Mas, por coincidência, ambos se tinham licenciado na Universidade de Georgetown,
embora com oito anos de diferença. Ambos adoravam o oceano, e Adam passara todos os Verões em Cape Cod, enquanto ela ia à praia Jones, mas regressava a casa no mesmo
dia.
Quando começaram a sair juntos, foi óbvio para Menley que, aos 32 anos, Adam estava muito satisfeito com a sua vida de solteiro. E por que não? Era um advogado de
defesa de grande sucesso. Tinha um apartamento encantador, um sem-fim de namoradas. Por vezes, passavam-se várias semanas sem ele telefonar.
Quando ele se declarara, Menley suspeitara de que tinha alguma coisa a ver com a aproximação do seu trigésimo terceiro aniversário. Ela não se importou. Quando se
casaram, algo que a avó lhe dissera há muitos anos
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voltou-lhe à memória: "No casamento, muitas vezes um está mais apaixonado do que o outro. É melhor se for a mulher a amar menos profundamente." "Por que é que é
melhor?", perguntara Menley a si mesma, e perguntou-se novamente enquanto o contemplava a dormir tão placidamente. "Qual é o problema de se ser aquele que ama mais?"
Eram sete da manhã. A intensa luz do Sol estava a forçar a entrada no quarto através do topo dos reposteiros corridos. O espaçoso quarto estava" apenas mobilado
com uma cama de quatro colunas, uma cómoda, um roupeiro, uma mesa-de-cabeceira e uma cadeira de costas direitas. Todas as peças de mobiliário eram obviamente autênticas.
Elaine dissera-lhe que, antes de o Sr. Paley morrer, ele e a mulher iam a leilões para comprar mobília do princípio do século xvI. Menley adorava o facto de todos
os quartos terem uma lareira, embora fosse altamente improvável virem a necessitar delas em Agosto. O quarto ao lado do deles era pequeno, mas parecia perfeito para
o bebé. Menley apertou melhor o robe quando saiu para o corredor.Quando abriu a porta do quarto de Hannah, foi recebida por uma brisa fresca. "Devia tê-la tapado
com uma colcha", pensou Menley, desanimada com o esquecimento. Eles tinham ido ver o bebé às onze horas, antes de irem para a cama, discutiram se deviam ou não tapá-la
com a colcha e tinham chegado à conclusão de que não era necessário. Obviamente, durante a noite tinha arrefecido muito mais do que eles pensavam. Menley aproximou-se
rapidamente da cama de grades. Hannah estava a dormir profundamente; estava muito bem tapada com a colcha. "Não me poderia ter esquecido se tivesse vindo cá durante
a noite", pensou Menley. Quem é que a tapou?" Depois sentiu-se ridícula. Adam devia ter-se levantado e ido ver como estava o bebé, embora fosse coisa que raramente
acontecia, pois ele tinha um sono muito pesado. "Ou posso ter vindo eu mesma", apercebeu-se ela. Os médicos tinham-lhe receitado um sedativo que a fazia ficar terrívelmente
zonza. Queria beijar Hannah, mas sabia que, se o fizesse, arriscava-se a que ela acordasse imediatamente. Até logo, querida sussurrou. Primeiro, preciso de tomar
calmamente uma chávena de café. Ao fundo das escadas parou, subitamente consciente do bater acelerado do coração, de uma sensação de profunda tristeza. Foi invadida
pelo pensamento: "Também vou perder Hannah. Não! Não! É ridículo", disse ferozmente a si mesma. "Como é que podes pensar numa coisa dessas?" Foi para a cozinha e
pôs o café no filtro. Dez minutos depois, de chávena fumegante na mão, ficou na saleta da frente a olhar para o oceano Atlântico enquanto o Sol se erguia no céu.
A casa dava para Monomoy Strip, o estreito banco de areia entre o oceano e a baía que tinham contado a Menley ter sido o cenário de inúmeros naufrágios. Há alguns
anos, o oceano galgara o banco de areia; Adam mostrara-lhe onde é que as casas tinham ruído para o mar. Mas a Casa "Lembra-te", garantira-lhe ele, fora construída
bastante atrás, por isso estaria sempre em segurança. Menley viu o oceano carregar sobre o banco de areia, espalhando repuxos ]
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de neevoeiro salgado. Raios de sol dançavam na crista das ondas. O horizonte estava perlado de barcos de pesca. Ela abriu a janela e escutou o grasnar das gaivotas,
o piar fino e ruidoso dos pardais.
Sorrindo, afastou-se da janela. Ao fim de três dias, sentia-se confortavelmente instalada ali. Ia de quarto em quarto, planeando o que faria se estivesse a decorar
a casa. O quarto principal continha o único mobiliário autêntico. A maior parte das mobílias dos outros quartos eram do tipo que as pessoas põem em casas que pretendem
alugar sofás baratos, mesas de formica, candeeiros que pareciam ter sido comprados numa venda de garagem. Mas o banco de lenha, agora pintado de verde-berrante,
podia ser lixado e restaurado. Passou a mão pelo banco, imaginando o toque aveludado da nogueira.
Os Paley tinham feito enormes reparações estruturais no edifício. Havia um telhado novo, canalizações novas, instalações eléctricas novas, um sistema de aquecimento
novo. Ainda faltava fazer imenso trabalho de embelezamento o papel de parede desmaiado, com um padrão dissonantemente moderno, era um espinho na sala de jantar;
tectos acústicos baixos destruíam a altura nobre das salas e da biblioteca mas nenhuma dessas coisas interessava. A própria casa é que era importante. Seria uma
alegria completar os restauros. Havia uma sala comum, por exemplo se ela fosse dona da casa, usaria uma delas como gabinete de trabalho. Mais tarde, Hannah e os
amigos gostariam de ter um lugar para se reunirem.
Correu os dedos pelo móvel que estava embutido na parede ao lado da lareira. Ouvira as histórias dos primeiros colonos e como era oferecido ao padre um cálice de
uma bebida alcoólica sempre que ele fazia uma visita. "Provavelmente, o pobre homem bem precisava", pensou ela. Naqueles dias, raramente havia uma lareira acesa
nas salas. O padre devia estar roxo de frio.
As primeiras famílias do Cape viviam na casa de estar, nome que se dava então à cozinha, o aposento onde uma grande lareira aquecia o ar, onde o ambiente era convidativo
com o aroma dos cozinhados, onde as crianças faziam os trabalhos da escola à luz das velas na mesa das refeições, onde a família se reunia nos longos serões de Inverno.
Imaginou como seriam as gerações de famílias que tinham substituído naquela casa os donos originais, cujo destino tinha sido tão trágico.
Ouviu passos nas escadas e foi para o vestíbulo. Adam vinha a descer, com Hannah ao colo.
Quem diz que não a oiço quando ela chora? Parecia contente consigo mesmo. Mudei-lhe a fralda e está esfomeada.
Menley pegou no bebé.
Dá-ma cá. Não é maravilhoso termo-la só para nós, apenas com uma baby-sitter a tempo parcial? Se a futura enteada de Elaine for tão boa baby-sitter como dizem que
é, teremos um Verão fantástico.
A que horas é que ela vem?
Por volta das dez, acho eu.
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Exactamente às dez da manhã, um pequeno carro azul entrou no caminho de acesso à casa. Menley observou Amy enquanto ela se dirigia para a porta da frente, reparando
na sua silhueta elegante e no comprido cabelo louro apanhado num rabo de cavalo. Menley achou que havia algo agressivo na postura da rapariga, na forma como as mãos
estavam enfiadas nos bolsos dos calções, na forma beligerante como projectava os ombros.
Não sei murmurou Menley enquanto ia abrir a porta.
Adam levantou os olhos do trabalho do escritório que espalhara em cima da mesa.
Não sabes o quê?
Chiu avisou Menley.
No entanto, depois de estar dentro de casa, a rapariga deu uma impressão diferente. Apresentou-se, e depois foi imediatamente para junto do bebé, que estava no parque
onde a punham durante o dia e que fora colocado na cozinha.
Olá, Hannah. Mexeu suavemente a mão até Hannah lhe agarrar um dedo. Linda menina. Tens força. Vais ser minha amiga?
Menley e Adam trocaram olhares. A afeição parecia genuína. Depois de falar durante alguns minutos com Amy, Menley sentiu que pelo menos Elaine não exagerara a experiência
da rapariga. Ela tomava conta de crianças desde os 13 anos, e, mais recentemente, ficara com uma família que tinha gémeos de 1 ano. Queria ser educadora de infância.
Combinaram que ela viria várias tardes por semana, para ajudar Menley enquanto ela estava] a fazer pesquisa para os seus trabalhos literários, e, ocasionalmente,
ficaria à noite, se eles quisessem ir jantar fora. Quando a rapariga se preparava para sair, Menley disse: Estou muito contente por Elaine te ter sugerido, Amy.
E, agora queres fazer-me alguma pergunta? Sim... eu... não, não é nada. É
Que é? Nada, a sério, não é nada. Quando a rapariga já não os podia ouvir, Adam disse calmamente: Aquela miúda está com medo de alguma coisa.
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Henry Sprague sentou-se no sofá do solário, com o álbum de fotografias no colo. Phoebe estava a seu lado, aparentemente atenta. Ele estava a mostrar-lhe fotografias.
Esta foi tirada no dia em que levámos os miúdos a ver a Rocha de Plymouth pela primeira vez. Na rocha, contaste-lhes a história do desembarque dos Peregrinos1.
1 Nome dado aos primeiros colonos que fundaram, em 1620, a colónia de Plymouth. (N. da T.)
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Na altura, só tinham 6 e 8 anos, mas ficaram fascinados. Tu sempre fizeste a história parecer um romance de aventuras.
Olhou para ela de soslaio. Os seus olhos não revelavam qualquer sinal de reconhecimento, mas ela assentiu, ansiosa por lhe agradar. Tinha sido uma noite difícil.
Acordara às duas da manhã e descobrira que o lado da cama onde Phoebe dormia estava vazio. Angustiado, correra para verificar se ela saíra outra vez de casa. Embora
tivesse posto fechaduras especiais nas portas, na semana anterior ela conseguira inexplicavelmente sair pela janela da cozinha. Apanhara-a quando ela estava a tentar
pôr o carro a trabalhar.
Na noite anterior, estivera na cozinha com a chaleira ao lume e com um dos bicos do gás aberto.
Ontem tivera notícias do lar. Haveria uma vaga no dia 1 de Setembro.
Por favor, reserve-a para a minha mulher dissera ele, sentindo-se
muito infeliz.
Que lindas crianças disse Phoebe. Como é que se chamam?
Richard e Joan.
Já são crescidos?
Sim. Richard tem quarenta e três anos. Vive em Seattle com a mulher e os filhos. Joan tem quarenta e um anos e vive no Maine com o marido e a filha. Tu tens três
netos, querida.
Não quero ver mais fotografias. Tenho fome.
Um dos efeitos da doença era que o cérebro enviava sinais falsos para os sentidos.
Acabaste de tomar o pequeno-almoço há alguns minutos, Phoebe.
Não tomei nada. A sua voz tornou-se teimosa.
Está bem. Vamos para dentro e eu arranjo alguma coisa para tu comeres. Quando se levantaram, ele pôs o braço em volta dos ombros dela. Sempre se orgulhara do corpo
dela, alto e elegante, da forma como erguia a cabeça, da segurança que emanava dela. "Quem me dera que pudéssemos ter mais um dia como os de antigamente", pensou
ele.
Enquanto Phoebe comia vorazmente um bolo e engolia um copo de leite, ele disse-lhe que iam ter uma visita.
Um homem chamado Nat Coogan. São assuntos de trabalho.
Não valia a pena tentar explicar a Phoebe que Nat Coogan era um detective e que vinha falar com ele sobre Vivian Carpenter Covey.
Quando passou pela casa de Vivian Carpenter, Nat estudou-a cuidadosamente. Era o tipo de casa que tinha sido acrescentada e ampliada ao longo dos anos, e agora espalhava-se
agradavelmente pela propriedade. Rodeada por hortênsias azuis e roxas e com malmequeres nos canteiros das janelas, era uma casa digna de figurar em postais, embora
ele soubesse que, provavelmente, os aposentos eram bastante pequenos. No entanto, estava obviamente bem conservada e inserida numa propriedade valiosa. Segundo ^
agente de compra e venda de propriedades, Elaine Atkins, Vivian e Scott Covey tinham andado à procura de uma casa maior para a família que tinham planeado iniciar.
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"Quanto
é que valerá esta propriedade?", perguntou Nat a si mesmo. "Situada em Oyster Pond, talvez um acre de terreno? Meio milhão? Como o testamento de Vivian deixava
tudo ao marido, era outro bem que Scott Covey herdara.
A residência Sprague era a casa seguinte. Outro local muito agradável. Era uma casa da praia autêntica, provavelmente construída no fim do século xviii. Nat nunca
conhecera pessoalmente os Spragues, mas costumava gostar muito dos artigos que a professora Phoebe Sprague escrevia para o Cape Cod Times. Eram todos acerca de lendas
relacionadas com os primórdios do Cape. Todavia, nos últimos anos, ela tinha deixado de escrever.
Quando Henry Sprague abriu a porta, o convidou a entrar e lhe apresentou a mulher, Nat compreendeu imediatamente por que é que Phoebe Sprague já não escrevia artigos
para o jornal. "Doença de Alzheimer", pensou, e com compaixão reparou nas rugas profundas em volta da boca dei Henry Sprague, na dor muda dos seus olhos. Recusou
a oferta de café. Não vou roubar-lhe muito tempo. Só queria fazer-lhe algumas perguntas. Conhecia bem Vivian Carpenter Covey? Henry Sprague queria ser simpático.
Também não queria parecer dissimulado.
Como deve saber, Vivian comprou aquela casa há três anos. Nós apresentámo-nos a ela. Como pode ver, a minha mulher não está bem. O problema dela começou a tornar-se
óbvio nessa altura. Infelizmente, Vivian começou a vir cá a casa constantemente. Estava a fazer um curso de culinária, e não parava de trazer amostras de comida
que ela própria preparara. A certa altura, a minha mulher começou a ficar muito nervosa. Vivian queria ser simpática, mas por fim tive de lhe pedir que parasse com
as visitas, a não ser que combinássemos especificamente encontrar-nos.
Fez uma pausa e acrescentou: Emocionalmente, Vivian era uma jovem muito carente.
Nat assentiu. Coadunava-se com o que ouvira de outras pessoas.
Conhecia bem Scott Covey?
É claro que o conhecia. Ele e a pobre Vivian casaram-se muito discretamente, mas ela deu uma recepção lá em casa e nós fomos convidados. Foi no princípio de Maio.
A família dela estava lá, bem como um grupo de amigos e outros vizinhos. Que é que pensou de Scott Covey? Henry Sprague evitou uma resposta directa. Vivian estava
radiantemente feliz. Fiquei contente por ela. Scott parecia muito dedicado. Viu-os com frequência desde esse dia?
Apenas ao longe. Eles saíam muito de barco. Por vezes, quando estávamos todos a fazer um churrasco nas traseiras, falávamos um pouco.
Estou a ver. Nat sentiu que Henry Sprague estava a esconder-lhe alguma coisa. Sr. Sprague, o senhor disse que Covey parecia muito dedicado à mulher. Ficou com a
impressão de que ele a amava realmente?:
Sprague não teve dificuldade em responder àquela pergunta. Não há dúvida de que agia como se estivesse.
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Mas havia mais alguma coisa, e Henry Sprague hesitou novamente. Sentiu que poderia ser culpado de simples coscuvilhice se contasse ao detective uma coisa que acontecera
no fim de Junho. Ele deixara Phoebe no cabeleireiro, e Vivian também lá estava, a arranjar o cabelo. Para passar o tempo, ele atravessara a rua e entrara no Cheshire
Pub, para beber uma cerveja e ver o jogo dos Red Sox com os Yankees.
Scott Covey estava sentado num banco alto ao balcão do bar. Os olhos dos dois cruzaram-se, e Henry foi cumprimentá-lo. Não sabia porquê, mas ficara com a impressão
de que Covey estava nervoso. Um momento depois, entrara uma loura espampanante de vinte e tal anos. Covey levantara-se de um salto.
Meu Deus, Tina, que fazes por aqui? dissera ele. Pensei que tinhas ensaio às terças-feiras à tarde.
Ela olhara para ele, confundida, mas recompusera-se rapidamente.
Scott, que bom encontrar-te. Hoje não há ensaio. Eu devia encontrar-me com os outros rapazes do espectáculo, ou aqui ou no Impudent Oyster. Já estou atrasada, por
isso, como eles não estão aqui, é melhor ir depressa ter com eles.
Depois de ela sair, Scott disse a Henry que Tina fazia parte do coro do musical que estava em exibição na Casa de Espectáculos do Cape.
Vivian e eu fomos à estreia e conversámos com ela na festa que houve depois para o elenco no Restaurante Playhouse explicara ele cuidadosamente.
Henry acabara por comer uma sanduíche e beber uma cerveja com Scott enquanto viam o jogo. Às duas e meia Covey saíra.
Viv já deve estar despachada dissera ele.
Mas quando Henry fora buscar Phoebe, meia hora depois, Covey ainda estava na zona de recepção do salão, à espera da mulher. Quando, por fim, ela saíra, tremulamente
orgulhosa das madeixas louras no cabelo, ele ouvira Covey garantir-lhe que não se tinha importado nada de esperar, que ele e Henry tinham visto o jogo juntos enquanto
almoçavam. Na altura, Henry perguntara a si mesmo se a omissão do encontro com Tina fora deliberada.
"Talvez não", pensou Henry agora. Talvez se tivesse esquecido, simplesmente porque não era importante para ele. Talvez Henry tivesse imaginado que Covey parecia
nervoso naquele dia. "Não sejas um coscuvilheiro intrometido", disse a si mesmo enquanto estava sentado ao pé do detective. "Não vale a pena mencionar o que se passou."
"Que é que não me está a dizer?", perguntou-se Nat enquanto entregava o seu cartão a Henry Spraque.
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Menley levou Adam de carro ao Aeroporto Barnstable. Estás muito amuado troçou ela enquanto parava na zona de Partidas.
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Um sorriso desanuviou rapidamente a expressão séria do rosto dele.
Admito. Não quero ter de ir constantemente a Nova Iorque. Não quero deixar-te, nem a Hannah. Não quero sair do Cape. Fez uma pausa. Vejamos que mais.
Pobre bebé disse Menley, divertida, pondo-lhe as mãos no rosto. Nós vamos sentir a tua falta. Hesitou e depois acrescentou: Estes poucos dias foram maravilhosos,
não foram?
Espectaculares.
Ele endireitou a gravata.
Acho que gosto mais de te ver de calções e sandálias.
Eu também gosto mais. Men, tens a certeza de que não queres que Amy passe a noite lá em casa?
Tenho a certeza absoluta. Adam, por favor...
Está bem, querida. Telefono-te logo à noite. Inclinou-se para o banco de trás e tocou no pé de Hannah. Não te metas em sarilhos, boneca disse-lhe.
O sorriso radioso e desdentado de Hannah seguiuo quando, com um aceno final, ele desapareceu dentro do terminal.
Depois do almoço, Adam recebera um telefonema urgente do escritório. Havia uma audiência de emergência marcada para anular a fiança da mulher Potter. A acusação
alegava que ela fizera ameaças à sogra. Adam esperara ter pelo menos dez dias no Cape antes de ter de ir a Nova Iorque, mas aquilo parecia uma verdadeira emergência,
e ele decidiu que era necessário tratar pessoalmente do assunto.
Menley conduziu para fora do aeroporto, virou para a rotunda e seguiu a placa que indicava a Estrada n.s 28. Chegou à passagem de nível e sentiu que começava a formar-se-lhe
um suor gelado na testa. Parou e depois olhou, assustada, para os dois lados. Ao longe, nos carris, via-se um comboio de mercadorias. Não estava em movimento. As
luzes de aviso não estavam a piscar. As cancelas estavam levantadas. Mesmo assim, ela ficou paralisada por um momento, incapaz de se mexer.
O som das buzinadelas impacientes dos carros atrás de si forçaram-na a agir. O carro deslizou por cima dos carris. Depois, teve de carregar no travão para evitar
bater no carro que ia à sua frente. "Oh, meu Deus", pensou ela, "ajuda-me, por favor." Hannah saltou no banco do carro e começou a chorar.
Menley entrou no parque de estacionamento de um restaurante e estacionou no canto mais afastado. Depois parou, foi para o banco de trás e tirou Hannah da cadeira.
Embalou a filha e choraram juntas.
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Graham Carpenter não conseguia dormir. Tentou ficar quieto na cama extragrande que há muito tempo substituíra a cama de casal que ele e Anne tinham partilhado nos
primeiros tempos de casados. Quando se aproximava o vigésimo aniversário do casamento, tinham ambos admitido que queriam mais espaço e tinham trocado a cama. Mais
espaço para se esticarem, mais tempo livre, mais viagens. Com a segunda filha na Universidade, tudo era possível.
Na noite em que a cama chegou, brindaram com champanhe. Vivian foi concebida pouco depois disso. Por vezes, perguntava a si mesmo se ela não soubera desde sempre
que não fora desejada. A hostilidade que sentira sempre por eles e a insegurança que sentia em relação às outras pessoas teria sido despoletada no útero da mãe?
Uma noção fantasiosa. Vivian fora uma criança exigente e rebelde que se tornara uma adolescente problemática e uma adulta difícil. Má aluna no colégio, com pena
de si mesma, o seu lema fora: "Faço o melhor que posso."
E ele respondia-lhe sempre, furioso: "Que diabo, não, tu não fazes o melhor que podes. Nem conheces o significado da palavra."
No colégio interno, onde as outras filhas tinham sido alunas excelentes, Vivian fora suspensa duas vezes e, por fim, fora expulsa. Durante algum tempo consumira
drogas, mas, felizmente, fora coisa que não tivera continuidade. E, depois, havia a necessidade aparentemente constante de aborrecer Anne. Pedia-lhe que fosse com
ela às compras e depois recusava-se a seguir todas as sugestões que ela lhe dava.
Não acabara os estudos universitários, nunca ficara mais de seis meses num emprego. Há alguns anos, ele implorara à mãe que não a deixasse ter acesso ao fundo antes
de ela ter 30 anos. Mas ela recebera todo o dinheiro aos 21, comprara aquela casa e, depois disso, raramente os contactara. Fora um choque absoluto quando ela lhes
telefonara em Maio, para os convidar para uma recepção em sua casa. Tinha-se casado.
Que podia ele dizer acerca de Scott Covey? Bem-parecido, com boas-maneiras, suficientemente esperto, certamente dedicado a Vivian. Ela estava literalmente radiante
de felicidade.
A única nota desagradável fora quando um dos amigos dela troçara de um acordo pré-nupcial. Ela enfurecera-se.
Não, não fizemos acordo nenhum. Na verdade, estamos a fazer testamentos a favor um do outro.
Graham perguntara a si mesmo o que teria Scott para deixar a alguém. Vivian insinuara que ele tinha uma renda. Talvez.
Pelo menos desta vez, Vivian dissera uma simples verdade. Ela alterara O testamento no mesmo dia em que se casara, e agora Scott herdaria todo o dinheiro do fundo,
bem como a casa dela em Chatham. E tinham estado casados doze semanas. Doze semanas.
- Graham. A voz de Anne era suave.
Ele pegou-lhe na mão.
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Graham, eu sei que o corpo de Viv estava em muito mau estado. E quanto à mão direita dela?
Não sei, querida. Porquê?
Porque ninguém disse nada sobre o anel de esmeralda. Talvez a mão tivesse desaparecido. Mas, se não desapareceu, Scott pode ter o anel, e eu gostaria de o reaver.
Esteve sempre na nossa família, não posso imaginar nenhuma outra mulher a usá-lo.
Vou descobrir, querida.
Graham, por que é que eu nunca consegui entender Vivian? Que fiz de errado?
Ele apertou-lhe a mão com mais força. Não podia dar-lhe nenhuma resposta.
Naquele dia, ele e Anne tinham jogado golfe. Era uma terapia física e emocional para ambos. Chegaram a casa por volta das cinco horas, tomaram duche e ele arranjou
bebidas para os dois. Depois disse:
Anne, enquanto estavas a vestir-te, tentei entrar em contacto com Scott. Há uma mensagem no atendedor de chamadas. Ele está no barco e deve regressar por volta das
seis. Vamos passar por lá para lhe perguntar o que aconteceu ao anel. Depois, podemos ir jantar fora. Fez uma pausa. Isto é, eu e tu podemos ir jantar fora.
Se ele tiver o anel, não é obrigado a separar-se dele. Foi de Vivian e ficou para ele.
Se ele tiver o anel, oferecer-nos-emos para lho comprar ao preço de mercado. Se isso não resultar, pagar-lhe-emos o que ele pedir.
Na boca de Graham Carpenter desenhou-se um vinco austero. A reacção de Scott a este pedido afastaria ou confirmaria a suspeita e a dúvida que abalava a sua alma.
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Eram cinco e meia quando Menley e Hannah chegaram finalmente a Chatham. Quando saíram do parque de estacionamento, ela forçara-se a atravessar novamente a passagem
de nível. Depois circulara pela rotunda e atravessara a passagem uma terceira vez. "Nunca mais vou entrar em pânico a conduzir", prometeu a si mesma. "Não quando
isso significa que estou a pôr Hannah em perigo."
O Sol ainda estava alto sobre o oceano, e pareceu a Menley que a casa tinha um ar satisfeito enquanto armazenava os raios quentes que a envolviam. Lá dentro, o sol
que fluía através do vidro colorido da clarabóia por cima da porta projectava um arco-íris de cores no soalho de carvalho.
Apertando Hannah fortemente contra si, Menley foi até à porta da frente e olhou para o oceano. Perguntou a si mesma se, quando a casa fora construída, a jovem esposa
teria observado o mastro do navio do marido quando ele
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regressava de uma viagem. Ou estaria demasiado ocupada a brincar com o amante?
Hannah mexia-se, inquieta.
Está bem, é hora da papa disse Menley, desejando uma vez mais ter podido amamentar Hannah.
Quando começaram os sintomas de distúrbios pós-traumáticos, o médico receitara tranquilizantes e mandara interromper a amamentação. "A senhora precisa de calmantes,
mas ela não", explicara ele.
"Oh, que importa, estás a crescer na mesma", pensou Menley enquanto preparava o biberão e o punha a aquecer numa panela.
Às sete horas, deitou Hannah na cama de grades, desta vez enfiada num saco-de-dormir. Um olhar ao quarto confirmou que a colcha estava dobrada em cima da cama, no
sítio onde devia estar. Menley olhou para ela pouco à vontade. Perguntara casualmente a Adam se ele tapara o bebé durante a noite. "Não", respondera ele, obviamente
intrigado com a pergunta.
Ela pensara rapidamente e dissera:
Então ela já não dá tantos pontapés aqui como quando estávamos em casa. Possivelmente, o ar do mar mantém-na a dormir mais tranquila.
Ele não se apercebera de que houvera um motivo muito diferente para a pergunta.
Ela hesitou do lado de fora do quarto do bebé. Era idiota deixar a luz do corredor acesa. Estava demasiado claro. Mas, sem saber porquê, Menley sentiu-se inquieta
com a perspectiva de subir as escadas apenas com uma luz fraca a iluminar-lhe os pés.
Tinha o serão planeado. Havia tomates frescos no frigorífico. Faria rapidamente um molho de tomate para comer com linguine e faria uma salada de agrião. Havia metade
de um pão italiano no congelador.
"Será perfeito", pensou Menley. "E, enquanto como, posso tomar algumas notas para o livro."
Os poucos dias em Chatham tinham-lhe dado ideias para a acção da história. Com Adam fora, passaria o longo e calmo serão a aperfeiçoá-las.
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Ele passara o dia inteiro no Viv
Toy.
O barco de sete metros, com motor fora-de-borda e motor de porão, estava em excelente estado. Vivian andara com ideias de o trocar por um veleiro. "Agora, que tenho
um capitão para ele, será que devíamos comprar um suficientemente grande para navegar a sério?"
Tantos planos! Tantos sonhos! Scott não voltara a mergulhar desde
1 O brinquedo de Viv. (N. da T.)
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aquele último dia com Vivian. Hoje pescou um pouco, verificou os covos, e, foi recompensado com quatro de um quilo, depois vestiu o equipamento de mergulho e desceu
um bocado. Atracou o barco na marina e chegou a casa às cinco e meia, indo imediatamente a casa dos Sprague, que era mesmo ao lado da sua, com duas das lagostas.
Henry Sprague abriu a porta.
Sr. Sprague, na recepção do nosso casamento, disse-me que a sua mulher gosta de lagosta. Hoje apanhei algumas e achei que gostaria de ficar] com estas duas. É muito
simpático da sua parte disse Henry com sinceridade.. Não quer entrar?
Não, muito obrigado. Espero que gostem delas. Como está a Dr.a Sprague?
Mais ou menos na mesma. Gostaria de a cumprimentar? Espere, aqui está ela.,
Voltou-se quando a mulher atravessava o corredor.
Phoebe, querida, Scott trouxe-te lagosta. Não foi simpático? Phoebe Sprague olhou para Scott Covey, e os seus olhos abriram-se
muito.,
Por que é que ela gritava tanto? perguntou ela. Agora já está bem?
Ninguém estava a gritar, querida disse Henry Sprague suavemente. Pôslhe um braço em volta dos ombros. (
Phoebe Sprague afastou-se dele.
- Escuta-me guinchou ela. Estou sempre a dizer-te que há uma mulher a viver na minha casa e tu não acreditas. Você aí! Agarrou no braço de Scott e apontou para o
espelho por cima da mesa do vestíbulo. Estavam os três reflectidos nele. Está a ver aquela mulher? Esticou-se para a frente e tocou na sua própria imagem. Ela está
a viver na minha casa e ele não acredita em mim.
Bastante perturbado com as divagações de Phoebe Sprague, Scott foi para casa, mergulhado nos seus pensamentos. Planeara cozinhar no vapor uma das lagostas que tinham
sobrado, mas chegou à conclusão de que não lhe apetecia comer. Preparou uma bebida e foi verificar se havia recados no atendedor de chamadas. Havia duas mensagens:
Elaine Atkins tinha telefonado. Ele queria que a casa continuasse à venda? Ela tinha uma pessoa interessada em comprá-la. A outra era do pai de Vivian. Ele e a mulher
tinham um assunto urgente para tratar com ele. Passariam lá em casa mais ou menos às seis e meia. Só faltavam alguns minutos.
"Que é isto?", perguntou-se Scott. Verificou as horas; já eram seis e dez. Pousou a bebida e foi tomar um duche rápido. Vestiu uma camisola de malha azul-escura,
calças de sarja e sapatos de vela. Estava a pentear o cabelo quando a campainha tocou.
Era a primeira vez que Anne Carpenter ia a casa da filha desde que o corpo fora encontrado. Sem saber o que procurava, examinou a sala de estar.
1 Uma espécie de cestos utilizados para apanhar lagostas. (N. da T.)
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Durante os três anos que Vivian tivera a casa, Anne só lá estivera algumas
vezes e a casa estava tal qual ela se lembrava. Vivian tinha substituído a mobília do quarto, mas tinha deixado aquela sala como estava quando comprara a casa. Na
primeira visita, Anne sugerira que a filha devia desfazer-se da cadeira dos namorados e de alguns dos quadros sem valor, mas ela zangara-se, embora lhe tivesse pedido
sugestões.
Scott insistiu para que tomassem uma bebida.
EU acabei de preparar uma para mim. Por favor, façam-me companhia. Não tenho querido ninguém à minha volta, mas é muito bom vê-los.
Relutantemente, Anne teve de admitir que ele se comportava como se estivesse genuinamente triste. Ele era tão espantosamente bonito com o seu cabelo louro, tez bronzeada
e olhos cor de avelã, que era fácil perceber por que é que Vivian se apaixonara por ele. "Mas que é que ele via nela, à excepção do seu dinheiro?", perguntou Anne
a si mesma, e depois arrependeu-se. "Que pensamento horrível para uma mãe", ralhou a si própria.
Quais são os seus planos, Scott? perguntou Graham Carpenter.
Não tenho planos nenhuns. Ainda tenho a impressão de que tudo isto é apenas um pesadelo. Acho que ainda não me compenetrei da realidade. Sabem que Viv e eu andávamos
à procura de uma casa maior. Os quartos do andar de cima são bastante pequenos, e, quando tivéssemos um bebé, queríamos uma casa onde pudéssemos ter uma empregada
interna. Até já tínhamos escolhido nomes. Graham, se fosse um rapaz, Anne, se fosse uma menina. Ela disse-me que sentira sempre que era uma grande desilusão para
vocês dois e queria compensá-los. Achava que a culpa era dela, não vossa.
Anne sentiu um nó na garganta. Observou os lábios do marido apertarem-se convulsivamente.
Parecíamos nunca nos entender disse ela calmamente. Às vezes as coisas acontecem assim, e, como pais, esperamos que mudem. Fico contente se Viv queria realmente
que as coisas mudassem. Nós queríamos.
O telefone tocou. Scott levantou-se de um pulo.
Seja quem for, telefono-lhe depois. Dirigiu-se apressadamente para a cozinha.
Um momento depois, Anne observou com curiosidade o marido pegar no copo e percorrer o corredor até à casa de banho. Voltou quando Scott entrou na sala.
Só queria pôr um pouco de água no uísque explicou Graham.
Devia ter ido buscar gelo à cozinha. O telefonema não era nada particular. Era a agente de compra e venda de propriedades que queria saber se poderia mostrar a casa
amanhã a um cliente que está interessado em comprá-la disse Scott. Eu disse-lhe para tirar a casa do mercado.
Scott, temos de lhe perguntar uma coisa. Graham Carpenter estava claramente a tentar manter as suas emoções controladas. É sobre o anel de esmeraldas que Vivian
usava sempre. Está na família da mãe dela há várias gerações. Você tem-no?
Não, não tenho.
Você identificou o corpo. Ela nunca o tirava do dedo. Não o tinha quando foi encontrada?
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Scott olhou para longe.
Sr. Carpenter, dou graças a Deus por o senhor e a Sr.a Carpenter não terem visto o corpo. Foi tão atacado pela fauna marítima que havia muito pouco para identificar.
Mas, se eu tivesse aquele anel, podiam considerá-lo vosso. Eu sabia que era um tesouro de família. Há mais alguma coisa de Vivian que queiram? Será que as roupas
dela servem às irmãs?
Anne estremeceu.
Não... não.
Os Carpenter levantaram-se ao mesmo tempo.
Dentro em breve, convidá-lo-emos para jantar, Scott disse Anne.
Aceitarei com muito prazer. Gostava que nos tivéssemos conhecido melhor.
A não ser que não possa separar-se delas, talvez nos pudesse dar algumas fotografias de Vivian disse Graham Carpenter.
Claro.
Quando entraram no carro e começaram a afastar-se, Anne voltou-se para o marido.
Graham, tu nunca pões água no uísque. Que estavas a fazer?
Queria dar uma vista de olhos ao quarto. Anne, não reparaste que não havia uma única fotografia de Vivian na sala-de-estar? Bem, tenho novidades. Também não há nenhuma
fotografia dela no quarto. Aposto contigo em como não há um único vestígio da nossa filha em lado nenhum naquela casa. Não gosto de Covey e não confio nele. É um
fingido. Sabe mais do que está a dizer, e eu hei-de descobrir o que aconteceu.
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Eles tinham colocado um computador, uma impressora e um fax na secretária da biblioteca. O computador e a impressora ocupavam a maior parte da secretária, mas não
tinha importância, especialmente porque Menley não pretendia passar muito tempo a trabalhar. Adam tinha a sua máquina de escrever, de que Menley estava sempre a
tentar desfazer-se, mas que se podia instalar em qualquer lado.
Até agora, Adam tinha resistido com sucesso aos esforços de Menley para o tentar ensinar a utilizar o computador. Mas Menley também tinha sido igualmente teimosa
sobre aprender a jogar golfe.
Tu tens boa coordenação de movimentos. Poderias jogar muito bem insistia Adam.
A recordação fez Menley sorrir enquanto trabalhava na grande mesa da cozinha. "Não, não na cozinha, na sala-de-estar", lembrou a si própria. "Tenho de empregar correctamente
a gíria, especialmente se vou escrever um livro cuja acção se centra aqui." Sozinha em casa, apenas com o bebé, parecia mais acolhedor trabalhar nesta divisão maravilhosamente
velha, com a enorme lareira e o fogão a lenha e o cheiro a pão de alho a pairar no ar. E,
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aquela noite, ela só ia tomar notas. Tomava sempre notas num bloco de apontamentos de folhas removíveis.
Cá vamos nós outra vez murmurou ela em voz alta enquanto escrevia As Aventuras de David na Terra Estreita. "Era tão estranho como tudo acontecera", pensou ela.
Depois da Universidade, conseguira arranjar emprego na Travel Times. Sabia que queria ser escritora, mas não sabia bem sobre que queria escrever. A mãe desejara
sempre que ela se concentrasse na arte, mas ela sabia que não era a sua vocação.
A grande oportunidade dela na revista surgiu quando o editor-chefe lhe pediu para fazer uma reportagem um novo hotel em Hong-Kong. O artigo fora aceite praticamente
sem alterações. Depois, hesitante, ela mostrara os desenhos a aguarela que fizera do hotel e das redondezas. A revista ilustrara o artigo com os seus desenhos, e,
aos 22 anos, Menley tornou-se editora sénior de viagens.
A ideia de escrever uma série de livros infantis usando um tema "do passado e do presente", no qual David, uma criança contemporânea, volta ao passado e acompanha
a vida de uma criança de outro século, desenvolveu-se gradualmente. Mas agora já escrevera quatro, fazendo o texto e as ilustrações. A acção de um passava-se em
Nova Iorque, a de outro em Londres, a de outro em Paris e a de outro ainda em São Francisco. Tinham-se tornado populares imediatamente.
Ao ouvir todas as histórias de Adam sobre o Cape, ela ficara interessada em centrar a acção do próximo livro ali. Seria acerca de um rapaz na época dos Peregrinos
a crescer no Cape, a Terra Estreita, como os índios lhe chamavam.
Como todas as outras ideias que tinham acabado por se transformar em livro, uma vez surgida, não desapareceria. Há alguns dias, tinham ido à biblioteca de Chatham
e ela trouxera livros sobre a história do Cape. Depois, encontrara alguns livros velhos e empoeirados na biblioteca da Casa "Lembra-te". Por isso, naquela noite
sentou-se a ler; e, em breve, estava alegremente embrenhada nas suas pesquisas.
Às oito horas, o telefone tocou.
Sr.a Nichols?
Ela não reconheceu a voz.
Sim disse cautelosamente.
Sr.a Nichols, fala Scott Covey. Elaine Atkins deu-me o seu número de telefone. O Dr. Nichols está?
Scott Covey! Menley reconheceu o nome.
Lamento, mas o meu marido não está disse ela. Volta amanhã, pode apanhá-lo se ligar amanhã ao fim da tarde.
Muito obrigado. Peço desculpa por tê-la incomodado.
Não incomodou nada. E lamento muito o que aconteceu à sua mulher.
Foi horrível. Só espero que o seu marido me possa ajudar. Já é suficientemente mau ter perdido Viv, mas agora os polícias estão a agir como se achassem que não foi
um acidente.
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Adam telefonou uns minutos mais tarde, parecendo esgotado. A família de Kurt Potter está determinada a garantir que Susan volte para a prisão. Sabem que ela o matou
em legítima defesa, mas admitir isso também implica reconhecer que eles ignoraram os sinais de perigo. Menley percebia que ele estava exausto. Após apenas três dias
de férias ele já estava de novo no escritório. Não teve coragem para falar no pedido de Scott Covey naquela altura. Quando ele chegasse, no dia seguinte, pedir-lhe-ia
que se encontrasse com Covey. Ela compreendia bem o que era ter a Polícia a investigar um trágico acidente. Garantiu a Adam que ela e Hannah estavam óptimas, que
ambas ssentiam saudades dele e que ela estava ocupada a fazer pesquisa para o livro novo. Porém, a conversa com Scott Covey, e depois com Adam, quebrara-lha a concentração,
e às nove horas apagou as luzes e foi para cima. Foi ver Hannah, que dormia calmamente, e depois cheirou o ar. Pairava um cheiro a bolor. De onde viria?, perguntou-se.
Abriu a janela mais alguns centímetros. Uma brisa marítima forte e salgada varreu rapidamente o quarto. "Assim está melhor", pensou. O sono não veio facilmente.
A passagem de nível que atravessara naquele dia tinha trazido de volta recordações muito vívidas do terrível acidente. Desta vez, pensou no sinal de aviso no dia
do acidente. Tinha a certeza de que tinha olhado para ele, era uma coisa que fazia automaticamente, mas o sol estava tão forte que não se apercebera de que estava
a piscar. A primeira indicação do que estava a acontecer tinham sido as vibrações causadas pelo comboio que vinha na direcção deles. Depois, ouvira o guincho frenético
e estridente do seu apito. A sua garganta secou, os lábios ficaram sem pinga de sangue. Mas pelo menos desta vez não começou a transpirar nem a tremer. Por fim,
caiu num sono inquieto. -
Às duas da manhã, sentou-se muito direita. O bebé estava a gritar, um som de um comboio a aproximar-se ecoava pela casa.
5 de Agosto
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Adam Nichols não conseguia perder a sensação de que algo estava errado. Dormiu mal e, sempre que acordava, tinha a certeza de que tivera apenas um sonho vago e perturbador,
mas não se lembrava o que fora.
Às seis horas, quando o dia nasceu no rio East, atirou os lençóis para trás e levantou-se. Fez café e levouo para a varanda, desejando que fossem sete e meia para
poder telefonar a Menley. Esperaria até essa altura, pois o bebé agora dormia até depois das sete.
Um sorriso bailou-lhe nos lábios quando pensou em Menley e em Hannah. A sua família. O nascimento de Hannah há três meses. O desgosto de terem perdido Bobby começava
a atenuar-se para ambos. Há um ano, tinha estado sozinho no Cape e não dava um tostão furado pela sobrevivência do seu casamento. Tinha falado sobre o assunto com
um conselheiro, que lhe tinha dito que a morte de uma criança provocava frequentemente o fim do casamento. O conselheiro dissera que os pais sentiam tanta dor que,
por vezes, não conseguiam viver sob o mesmo tecto.
Adam começara a pensar que talvez fosse melhor para ambos começarem uma nova vida separados. Depois, Menley telefonara e Adam soube que desejava desesperadamente
que o casamento resultasse.
A gravidez de Menley fora calma. Ele estivera com ela na sala de partos. Ela tivera muitas dores, mas estava a portar-se de forma admirável. Depois, do fundo do
corredor, começaram a ouvir uma mulher a gritar. A mudança em Menley tinha sido dramática. O seu rosto ficara pálido. Os enormes olhos azuis tornaram-se ainda maiores,
depois escondeu-os com as mãos. "Não... não... ajudem-me por favor", gritara, a tremer e a soluçar. A tensão do seu corpo fizera aumentar de forma alarmante as contracções,
a dificuldade do parto.
E quando, finalmente, Hannah nascera e o médico a colocara nos braços de Menley na sala de partos, incrivelmente, ela afastara-a.
Quero Bobby soluçara. Quero Bobby.
Adam pegara no bebé e encostara-o contra o seu pescoço, sussurrando:
Está tudo bem, Hannah. Nós amamos-te, Hannah... como se tivesse medo de que ela compreendesse as palavras de Menley.
Mais tarde, Menley dissera-lhe:
No momento em que ma entregaram, eu estava a reviver o momento em que peguei em Bobby depois do acidente. Foi a primeira vez que percebi realmente o que senti naquele
momento.
Foi o princípio do que os médicos chamaram distúrbios pós-traumáticos. u primeiro mês fora muito difícil. Nos primeiros tempos de vida, Hannah
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tivera muitas cólicas e gritava durante horas. Tinham contratado uma enfermeira interna, mas, uma tarde em que a enfermeira fora fazer umas compras, o bebé começara
a chorar. Adam chegou a casa e encontrou Menley sentada no chão ao lado do berço, pálida e trémula, a tapar os ouvidos com os dedos. Mas, milagrosamente, uma mudança
de leite transformou Hannah
num bebé alegre, e a maior parte dos ataques de ansiedade de Menley passaram.
"Não a devia ter deixado sozinha tão cedo", pensou Adam. "Pelo menos devia ter insistido para que a baby-sitter ficasse a dormir lá em casa."
Às sete horas, não conseguiu esperar mais. Telefonou para o Cape. O som da voz de Menley trouxe-lhe um profundo alívio. Sua alteza obriga-te a levantar cedo, querida?
Só um bocadinho. Eu gosto das manhãs. " Havia algo na voz de Menley. Adam refreou a pergunta que lhe veio
imediatamente aos lábios. "Estás bem?" Menley não gostava que ele a controlasse.
Chego no voo das quatro horas. Queres pedir a Amy para tomar conta de Hannah enquanto vamos jantar fora? Hesitação. Qual era o problema? Mas, depois, Menley disse:
Acho óptimo. Adam... Que é, querida?
Nada. Tenho saudades tuas.
Quando desligou, Adam telefonou para a companhia de aviação.
Há um voo mais cedo em que eu possa ir? perguntou ele. Estaria despachado do tribunal ao meiodia. Havia um voo à uma e meia que ele talvez pudesse apanhar.
Alguma coisa estava errada, e o pior de tudo era que Menley não ia dizer-lhe o que era.
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O escritório de compra e venda de propriedades de Elaine Atkins era na rua principal de Chatham. "Localização, localização, localização", pensou ela quando um transeunte
parou a olhar para as fotografias que ela tirava das casas que tinha para venda. Desde que se mudara para a rua principal. a clientela tinha aumentado imenso, e
cada vez mais ela convertia estas pressões de interesse preliminar numa excelente percentagem de vendas.
Este Verão, tentara uma nova táctica. Mandara tirar fotografias aéreas de casas com localizações especialmente boas. Uma delas era a Casa "Lembra-te". Hoje, ao chegar
ao escritório, às dez horas, Marge Salem, a sua secretária, disse-lhe que já tinham aparecido duas pessoas a pedir informações acerca da casa.
Aquela fotografia aérea resulta imenso. Acha que foi sensato alugá-la aos Nichols sem pedir autorização para a mostrar? perguntou Marge.
Foi necessário disse Elaine asperamente. Adam Nichols não é o
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tipo de pessoa que gostaria de ter pessoas a bisbilhotar numa casa que alugou e ele pagou muito bem por ela. Mas não estamos a perder uma venda. Tenho o palpite
de que os Nichols decidirão comprar aquela casa.
Eu achei que eles prefeririam comprar em Harwich Port. É de onde a família dele é oriunda e onde passaram sempre as férias.
mas Adam gostou sempre de Chatham. E ele sabe reconhecer um
bom negócio quando o vê. E, para além do mais, ele gosta de comprar, não de alugar. Acho que ele ainda lamenta não ter comprado a casa da família quando a mãe a
vendeu. Se a mulher dele for feliz aqui, temos um comprador. Vais ver. Ela sorriu para Marge. E se, por acaso, ele não comprar, bem Scott Covey adora aquele lugar.
Quando as coisas acalmarem, ele vai procurar outra casa. Não vai querer ficar com a casa de Vivian.
O rosto alegre de Marge ficou sério. A dona de casa de 50 anos começara a trabalhar para Elaine no princípio do Verão e descobrira que gostava muito do negócio de
compra e venda de propriedades. Também gostava muito de mexericos e, como Elaine costumava dizer em tom de brincadeira, apanhava-os no ar.
Há imensos boatos a circular por aí acerca de Scott Covey.
Elaine fez um gesto rápido com a mão, o que era sempre um sinal de impaciência.
Por que é que as pessoas não deixam o pobre homem em paz? Se Vivian não tivesse recebido aquele fundo, toda a gente estaria solidária com a dor dele. É o problema
das pessoas desta região. Por princípio, não gostam de ver dinheiro de família ir para um estranho.
Marge assentiu.
Só Deus sabe como isso é verdade.
Foram interrompidas pelo tilintar da campainha da porta da frente, assinalando a chegada de um potencial cliente. Depois disso, estiveram ocupadas toda a manhã.
À uma hora, Elaine levantou-se, foi para a casa de banho e saiu depois de retocar o baton e pentear o cabelo.
Marge observou-a. Elaine usava um vestido de linho branco e sandálias, o que fazia um atraente contraste com o bronzeado profundo dos braços e das pernas. O cabelo
louro-escuro, raiado de madeixas, estava preso atrás com um laço.
Se é que ainda não lhe disse, está um espanto disse Marge. Obviamente, o noivado faz-lhe bem.
Elaine esticou o dedo anelar, e o grande solitário brilhou.
Concordo. Vou almoçar com John no Impudent Oyster. Aguenta o barco.
Quando ela voltou, uma hora depois, Marge disse:
Houve alguns telefonemas. O que está em cima é o mais interessante. Era do detective Nat Coogan. Precisava imperativamente de falar com a Menina Atkins logo que
ela pudesse.
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A meio da manhã, Menley começara a convencer-se de que o terror que a acordara fora simplesmente um sonho muito real. Com Hannah firmemente apertada nos seus braços,
saiu de casa e foi até à ponta da escarpa. O céu estava profundamente azul e reflectia-se na água que batia suavemente na margem. A maré estava baixa, e a longa
extensão de areal estava tranquila.
"Mesmo sem o oceano, é uma propriedade maravilhosa", pensou Menley enquanto observava o terreno. Durante os muitos anos em que a casa estivera abandonada, a alfarrobeira
e os carvalhos tinham crescido livremente. Agora, completamente cheios de folhas, harmonizavam-se perfeitamente com a suave plenitude dos pinheiros
"O aspecto luxuriante do meio do Verão", pensou Menley. Depois, reparou que algumas folhas estavam já a amarelecer. "O Outono aqui será igualmente maravilhoso",
reflectiu. O pai morrera quando o irmão Jack tinha 11 anos e ela apenas 3. A mãe decidira que a educação era mais importante do que uma casa e usara todo o dinheiro
que conseguia poupar do seu salário de enfermeira-chefe no Hospital Bellevue para os mandar a ambos para Georgetown. Continuava a viver no mesmo apartamento de três
assoalhadas onde Menley e Jack tinham crescido.
Menley sempre quisera morar numa casa. Quando era criança, costumava desenhar imagens da casa que teria um dia. "E era bastante parecida com este lugar", pensou
ela. Tivera tantos planos para a casa que ela e Adam tinham comprado em Rye... Mas, depois da morte de Bobby, a casa tinha demasiadas recordações.
O melhor para nós é morarmos em Manhattan disse para Hannah em voz alta. O papá pode chegar a casa em dez minutos depois de sair do trabalho. A avó gosta de tomar
conta de ti e eu só sei viver no meio da confusão. Mas a família do papá esteve sempre no Cape. Faziam parte dos primeiros colonos. Seria fantástico termos esta
casa para as férias e para fins-de-semana prolongados. Que achas?
Hannah virou a cabeça e olharam as duas para a casa atrás delas.
Ainda há uma montanha de trabalho para fazer disse Menley. Mas seria divertido restaurá-la para ela ficar como era originalmente. Aposto que foi só por estarmos
as duas aqui sozinhas que aquele sonho pareceu tão real quando eu estava a acordar. Não concordas?
Hannah mexeu-se, impaciente, e começou a fazer beicinho.
Já percebi, estás a ficar cansada disse Menley. Meu Deus, tu és uma menina ranzinza. Começou a dirigir-se para a casa, depois parou e observou-a de novo. É muito
acolhedora, não é? murmurou ela.
Subitamente, sentiu-se despreocupada, esperançada. Adam chegaria naquela tarde e podiam recomeçar as férias. A não ser...
"A não ser que Adam decida representar Scott Covey", pensou ela. "Adam nunca faz nada sem se empenhar a fundo." Ocupar-lhe-ia muito tempo. "Mesmo assim, espero que
ele o represente." Lembrava-se do horror
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que sentira quando, duas semanas depois do funeral de Bobby, Adam recebera um telefonema. O delegado do Ministério Público estava a considerar a hipótese de processar
Menley por homicídio involuntário.
Ele disse que tu já tinhas sido multada algumas vezes, por excesso de velocidade. Acha que vai conseguir provar que tu ignoraste o sinal de aviso na passagem de
nível porque estavas a guiar a grande velocidade para ultrapassar o comboio. Depois, o rosto de Adam ficara sombrio. Não te preocupes, querida. Nem vai conseguir
ir a Tribunal. O delegado do Ministério Público desistira depois de Adam ter arranjado uma lista formidável de outros acidentes fatais naquela passagem de nível.
Elaine tinha-lhes dito que uma das razões por que Scott Covey estava a ser julgado tão severamente era por algumas pessoas dizerem que ele sabia da aproximação da
tempestade.
"Não me importo se isso interferir nas nossas férias. Covey precisa tanto de ajuda como eu precisei", pensou Menley.
19
A casa de Verão dos Carpenter em Osterville não era visível da estrada. Quando o detective Nat Coogan passou pelo portão e conduziu o carro pela larga alameda, observou
a relva bem aparada e os canteiros cuidados. "Estou convenientemente impressionado", pensou ele. "Muitos, muitos dólares, mas dinheiro antigo. Sem ostentação."
Parou defronte da casa. Era uma velha mansão vitoriana com um grande alpendre e treliças de gengibre. As fendas por pintar tinham desbotado para um cinzento-suave,
mas o branco das persianas e dos caixilhos das janelas brilhava ao sol da tarde.
Quando telefonara, de manhã, a pedir que o recebessem, ficara de certa forma surpreendido com a boa vontade com que o pai de Vivian Carpenter concordara em recebê-lo.
Quer vir hoje, detective Coogan? Estávamos a planear ir jogar golfe esta tarde, mas temos muito tempo para isso.
Não foi a reacção que Nat previra. Os Carpenter não tinham reputação de serem pessoas acessíveis. Ele esperara uma resposta fria, a exigência de saber por que é
que ele queria vê-los.
"Interessante", pensou.
Uma criada levou-o para o jardim de Inverno, nas traseiras da casa, onde Graham e Anne Carpenter estavam sentados em cadeiras de verga almofadadas, a beber chá gelado.
Na cerimónia fúnebre, Nat ficara com a impressão de que eles eram pessoas frias. As únicas lágrimas que vira serem vertidas por Vivian tinham sido as do marido.
Ao olhar para o casal à sua frente, ficou embaraçado ao perceber como tinha sido injusto. Os rostos aristocráticos dos pais dela estavam visivelmente cansados, com
expressões de profunda tristeza.
Cumprimentaram-no discretamente, ofereceram-lhe chá gelado ou o
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que ele quisesse beber. Quando recusou a oferta, Graham Carpenter foi directo ao assunto:
Não veio aqui para nos dar os pêsames, Sr. Coogan.
Nat escolhera uma cadeira de costas direitas. Inclinou-se para a frente, com as mãos entrelaçadas, um hábito que os colegas teriam reconhecido como a sua postura
inconsciente quando sentia que estava na pista de qualquer coisa
Dou-lhes os meus pêsames, mas o senhor tem razão, Sr. Carpenter. Não é por isso que aqui estou. Vou ser muito directo. Não tenho a certeza de que a morte da vossa
filha tenha sido um acidente, e até ter a certeza vou ver muitas pessoas e fazer um grande número de perguntas.
Foi como se tivessem apanhado um choque eléctrico. A letargia desapareceu das suas expressões. Graham Carpenter olhou para a mulher.
Anne, eu disse-te... Ela assentiu. Eu não queria acreditar. Em que é que não queria acreditar, Sr.a Carpenter? perguntou Natl rapidamente. Eles descreveram-lhe os
motivos por que suspeitavam do genro, mas Coogan ficou desapontado.
Compreendo os vossos sentimentos por não encontrarem uma única fotografia da vossa filha em toda a casa disse-lhes, mas sei, por experiência, que, depois de tragédias
deste tipo, as pessoas reagem de formas diferentes. Algumas rodeiam-se de todas as fotografias que conseguem encontrar da pessoa que perderam, enquanto outras arrumam
ou até destroem fotografias e recordações, dão as roupas, vendem o carro da pessoa falecida, até mudam de casa. É quase como se acreditassem que fazer desaparecer
todas as recordações tornará mais fácil ultrapassar a dor da perda.
Tentou uma nova abordagem.
Os senhores conheceram Scott Covey depois de a vossa filha se ter casado com ele. Como ele era um estranho, devem ter ficado preocupados. Será que mandaram investigar
o passado dele?
Graham Carpenter assentiu.
Sim, mandei. Não foi uma investigação muito exaustiva, mas tudo o que ele nos disse era verdade. Nasceu e foi criado em Columbus, Oaio. O pai ( e a madrasta foram
viver para a Califórnia. Ele frequentou a Universidade do Kansas, mas não acabou o curso. Tentou representar, mas não teve grande sucesso, e trabalhou como agente
de algumas companhias teatrais pequenas. Foi assim que Vivian o conheceu, no ano passado. Sorriu tristemente. Vivian insinuou que ele tinha alguns rendimentos. Acho
que foi uma invenção para nós não ficarmos mal impressionados.
Estou a perceber. Nat levantou-se. Vou ser franco. Até agora,, tudo o que me disseram confirma-se. A vossa filha era louca por Covey, e não há dúvida de que ele
se comportava como se estivesse apaixonado por ela.. Estavam a pensar ir ao Havai, e ela disse a várias pessoas que estava decidida a ser uma boa mergulhadora quando
lá chegassem. Ela queria fazer tudo com ele. Ele é um excelente nadador, mas nunca manobrara um barco
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antes de a conhecer. Não se previa que a tempestade chegasse antes da meia-noite. Francamente, ela é que tinha experiência e devia ter ligado o rádio para verificar
as condições meteorológicas.
Isso quer dizer que vai desistir da investigação? perguntou Carpenter.
Não. Mas quer dizer que, se exceptuarmos os factos de que Vivian era uma jovem saudável e de que só estiveram casados algumas semanas, na verdade, não há nada para
continuar.
Estou a compreender. Bem, muito obrigado por ter partilhado isto connosco. Acompanho-o até ao carro.
Estavam a chegar à porta do jardim de Inverno quando Anne Carpenter o chamou.
Sr. Coogan.
Nat e Graham Carpenter voltaram-se.
Só mais uma coisa. Eu sei que o corpo da minha filha estava em muito más condições devido ao tempo que passou dentro de água e aos ataques que sofreu por parte da
fauna marinha...
Infelizmente, é verdade confirmou Nat.
Anne, querida, por que é que estás a torturar-te? protestou o marido.
Não, oiçam-me até ao fim. Sr, Coogan, os dedos da mão direita da minha filha estavam intactos, ou tinham desaparecido?
Nat hesitou.
Uma mão estava bastante mutilada. A outra não. Acho que era a mão direita que estava em muito mau estado, mas teria de verificar as fotografias da autópsia. Por
que é que pergunta?
Porque a minha filha usava sempre um anel de esmeraldas muito valioso no anelar da mão direita. Desde o dia em que a minha mãe lho deu, Vivian nunca mais o tirou
do dedo. Perguntámos a Scott se sabia alguma coisa dele, porque era uma jóia de família e queríamos recuperá-lo se ele tivesse sido encontrado. Mas ele disse-nos
sem hesitação que a mão direita dela estava mutilada e que o anel desaparecera.
Telefono-vos dentro de uma hora disse Nat.
De volta ao seu gabinete, Nat estudou as fotografias da autópsia durante vários minutos antes de telefonar aos Carpenter.
As pontas dos dez dedos tinham desaparecido. Na mão esquerda, a aliança de casada estava no anelar. Mas o anelar da mão direita estava um horror. Entre o nó do dedo
e a mão, tinha sido comido até ao osso. "Que é que teria levado os limpa-fundos a sentirem-se atraídos por ele?", perguntou-se Nat.
Não havia sinais do anel de esmeralda.
Quando telefonou aos Carpenter, Nat teve o cuidado de não tirar conclusões precipitadas. Disse a Graham Carpenter que a mão direita da filha sofrera grandes danos
e que o anel desaparecera.
Sabe se lhe estava largo ou apertado? perguntou.
Tinha ficado apertado disse Carpenter. Depois, fez uma pausa antes de perguntar: Que está a querer dizer?
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Não estou a querer dizer nada, Sr. Carpenter. É apenas mais uma circunstância a considerar. Eu dou notícias.
Depois de desligar, Nat pensou no que acabara de saber. "Poderá ser a pista?", pensou ele. "Apostava tudo em como Covey arrancou o anel e depois se afastou daquela
pobre miúda. Se o dedo estivesse magoado, haveria sangue perto da superfície, e isso teria atraído os limpa-fundos."
6 de Agosto
20
Elaine fica a dever-me um favor resmungou Adam, enquanto espreitava pela janela da cozinha e observava um carro a entrar no caminho de acesso à casa. Eles tinham
levado um cesto de piquenique para a praia enquanto Hildy, a mulher-adias que Elaine mandara, limpava a casa. Às duas da tarde, foram para casa porque se aproximava
a hora do encontro que Adam tinha marcado com Scott Covey.
Adam tomou um duche e vestiu uns calções e uma T-shirt. Menley ainda estava com o fato de banho e a saída de praia quando ouviram o carro de Covey aproximar-se da
casa.
Ainda bem que ele chegou disse ela a Adam. Enquanto estás ocupado, vou dormir uma soneca com Hannah. Quero estar em forma quando conhecer todos os teus velhos amigos.
Elaine ia dar um jantar em honra deles em sua casa e convidara algumas das pessoas com quem Adam crescera durante os Verões no Cape. Ele abraçou-a pela cintura.
Quando te disserem como és afortunada, não te esqueças de concordar.
Por favor...
A campainha da porta tocou. Menley olhou de relance para o fogão. Não conseguiria pegar no biberão de Hannah e sair da cozinha antes de Scott Covey entrar. Estava
curiosa por conhecer o homem por quem sentia tanta empatia, mas também queria manter-se afastada, não fosse Adam, por qualquer razão, decidir não o representar.
No entanto, a curiosidade venceu; ela decidiu esperar.
Adam dirigiu-se para a porta. Cumprimentou Scott Covey de forma cordial mas reservada.
Menley olhou para o recém-chegado. "Não admira que Vivian Carpenter se tivesse apaixonado por ele", pensou ela imediatamente.
Scott Covey era espantosamente bem-parecido, com feições harmoniosas mas fortes, um bronzeado profundo e cabelo louro, que, embora o usasse curto, era ondulado e
encaracolado. Era magro, mas os ombros largos davam uma sugestão de força. Todavia, quando Adam o apresentou a Menley, aquilo que mais a impressionou foram os olhos
dele. Eram de um castanho-profundo, mas não foi a cor o que mais a impressionou. Antes, viu neles a mesma angústia que vira nos seus próprios olhos quando se olhava
ao espelho a seguir à morte de Bobby.
"Ele está inocente", decidiu. "Apostaria a minha vida." Estava a segurar
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Hannah no braço direito. Com um sorriso, mudou o bebé e estendeulhe a mão.
Muito prazer em conhecê-lo... disse ela, e depois hesitou. Concluiu que ele tinha mais ou menos a sua idade, e era um bom amigo de uma das melhoras amigas de Adam.
Por isso, como devia tratá-lo? Sr. Covey parecia-lhe demasiado formal... Scott acabou. Pegou no biberão do bebé. E agora eu e Hannah vamos deixá-los à vontade para
conversarem.
Hesitou de novo. Era impossível ignorar a razão por que ele estava ali.
Sei que já lhe disse quando falámos ao telefone no outro dia, mas lamento muito o que aconteceu à sua mulher.
Obrigado. A voz dele era baixa, profunda e musical. "O tipo de voz em que se pode confiar", pensou ela.
Hannah não tinha qualquer intenção de ir dormir. Quando Menley a deitou, ela berrou, afastou o biberão e deu pontapés nos cobertores.
Olha que posso dar-te para adopção ameaçou Menley com um sorriso. Olhou para o berço antigo. Acho eu.
A pequena cama de solteiro do quarto tinha duas almofadas. Ela pôs uma no berço, deitou uma Hannah ainda inquieta em cima dela e tapou-a com a colcha leve. Depois,
sentou-se em cima da cama e começou a embalar o berço. O reboliço de Hannah acalmou. Daí a poucos minutos, os seus olhos começaram a fechar-se.
Os olhos de Menley também estavam a ficar pesados. "Devia tirar o fato de banho antes de adormecer", pensou ela. "Mas agora já está seco, por isso, qual é o problema?"
Deitou-se e puxou o cobertor que estava dobrado aos pés da cama. Hannah recomeçou a choramingar.
Está bem, está bem murmurou ela, esticando a mão e embalando suavemente o berço.
Algum tempo depois, não sabia ao certo quanto, foi acordada pelo som de passos leves. Abriu os olhos e percebeu que devia ter estado a sonhar, pois não estava ali
ninguém. Mas havia uma corrente de ar no quarto. A janela estava aberta, e a brisa devia ter arrefecido. Ela pestanejou e olhou para o berço. Hannah estava a dormir
pacificamente.
"Vejam bem, miúda, o serviço a que tens direito", pensou ela. "Embalo-te, mesmo enquanto estou a dormir!"
O berço estava a baloiçar para um lado e para o outro.
21
Esta casa é maravilhosa disse Scott Covey enquanto seguia Adam para a biblioteca. A minha mulher e eu estivemos a vê-la alguns dias antes de ela morrer. Ela queria
fazer uma oferta por ela, mas, como uma verdadeira nativa da Nova Inglaterra, não pretendia dar a impressão de estar ansiosa para comprá-la.
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Elaine contou-me. Adam indicoulhe uma das velhas cadeiras junto das janelas e sentou-se na outra. Nem preciso de lhe dizer que as mobílias foram compradas em vendas
de garagem.
Covey sorriu fugazmente.
Viv estava cheia de ideias para ir a antiquários e dar aos aposentos o aspecto que tinham no princípio do século dezasseis. No Verão anterior, ela tinha trabalhado
durante algum tempo com um decorador de interiores. Era como uma criança dentro de uma loja de doces com a perspectiva de decorar, ela própria, esta casa.
Adam esperou.
É melhor ir directo ao assunto disse Covey. Em primeiro lugar, obrigado por me receber. Sei que está de férias e que não o teria feito se Elaine não lhe tivesse
pedido.
É verdade. Elaine é uma velha amiga e acredita que você precisa de ajuda.
Covey ergueu as mãos num gesto de futilidade.
Dr. Nichols...
Adam.
Adam, eu percebo por que é que há tanto falatório. Eu sou um estranho. Vivian era rica. Mas juro por Deus que não fazia ideia de que ela tinha tanto dinheiro. Viv
era desesperadamente insegura e sabia ser reservada. Ela amava-me, mas estava apenas a começar a perceber o quanto eu a amava. A imagem que ela fazia de si mesma
era terrível. Tinha imenso receio de que as pessoas só se interessassem por ela por causa da sua ascendência e do seu dinheiro.
Por que é que a imagem que ela fazia de si mesma era assim tão má? A expressão de Covey tornou-se amarga.
Por causa daquela maldita família dela. Estavam sempre a rebaixá-la. Em primeiro lugar, os pais não queriam tê-la, e quando ela nasceu tentaram fazer dela uma cópia
perfeita das irmãs. A avó era a única excepção. Compreendia Viv, mas infelizmente era inválida e passava a maior parte do tempo na Florida. Viv disse-me que a avó
lhe deixara um fundo de um milhão de dólares e que há três anos, aos vinte e um anos, o recebera. Disse-me que pagara seiscentos mil pela casa, que estava a viver
do resto e que não receberia nem mais um centavo até fazer trinta e cinco anos. Pelos parâmetros de qualquer pessoa, ela estava bem de vida, mas fiquei com a impressão
de que, se lhe acontecesse alguma coisa, o saldo do fundo reverteria para o património da avó. Sim, com a morte dela eu recebi a casa, mas nunca pensei que os bens
dela ultrapassassem algumas centenas de milhares de dólares. Não fazia a mínima ideia de que ela já tinha recebido cinco milhões de dólares.
Adam juntou os dedos e olhou para o tecto, pensando alto.
Mesmo que ela valesse apenas a quantia que lhe disse, as pessoas diriam justificadamente que, para um casamento de três meses, o senhor se saiu bastante bem.
Olhou novamente para Covey e disparou a pergunta seguinte.
Mais alguém sabia que a sua mulher não tinha partilhado a sua verdadeira situação financeira consigo?
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Não sei.
Nenhuma amiga íntima que fosse sua confidente?
Não. Vivian não tinha propriamente amigas íntimas.
Os pais dela aprovavam o casamento?
Eles não souberam até o facto estar consumado. Foi Vivian quem tomou a decisão. Ela queria um casamento discreto numa conservatória, uma lua-de-mel no Canadá e depois
uma recepção em casa quando voltássemos. É possível que ela lhes tenha dito que eu não sabia o valor da herança. De certa forma, por muito que os desafiasse, Vivian
precisava desesperadamente da aprovação deles.
Adam assentiu.
Quando me telefonou, disse que um detective lhe fez perguntas sobre um anel de família.
Scott Covey olhou directamente para Adam.
Sim, era um anel de esmeralda, uma peça que passava de mães para filhas, acho eu. Lembro-me perfeitamente de que Viv usava o anel no barco. A única coisa que faz
sentido é que, naquela manhã, ela o mudou para a mão esquerda. Quando estava a examinar as coisas dela, encontrei o anel de noivado numa gaveta lá em casa. O anel
de noivado era uma aliança de ouro fina. Ela usava sempre o anel de noivado e a aliança de casamento juntos.
Ele mordeu o lábio.
O anel de esmeralda estava a ficar tão apertado que lhe cortava a circulação. Naquela última manhã, Viv estava a puxá-lo com força e a torcê-lo. Quando eu ia a sair
para fazer compras, disse-lhe que, se estava determinada a tirá-lo, primeiro devia ensaboar ou engordurar o dedo. Ela ficava com nódoas negras por tudo e por nada.
Quando regressei, saímos para o barco e nem me lembrei de lhe perguntar, e ela também não mencionou o assunto. Mas Viv era muito supersticiosa em relação àquele
anel. Nunca ia a lado nenhum sem ele. Acho que quando identifiquei o corpo e não vi o anel presumi que fosse por a mão onde o usava estar mutilada.
De repente, o seu rosto ficou desfigurado. Empurrou os nós dos dedos contra a boca para abafar os soluços sem lágrimas que lhe sacudiam os ombros.
Você não pode compreender. Ninguém pode. Num minuto estávamos lá em baixo, a nadar ao lado um do outro, observando um cardume de percas listradas, a água tão límpida
e calma. Os olhos dela estavam tão felizes, como uma criança num parque de diversões. E depois, num segundo, tudo mudou. Enterrou o rosto nas mãos.
Adam estudou Scott Covey atentamente.
Continue disse.
A água ficou cinzenta e tornou-se muito agitada. Percebi que Viv estava a entrar em pânico. Peguei-lhe na mão e coloquei-a no meu cinto. Ela sabia que eu queria
que ela se segurasse a mim. Comecei a nadar para o barco, mas ele estava muito longe. A âncora devia ter sido arrastada, porque a corrente estava forte. Não estávamos
a avançar, por isso Viv largou o meu cinto e começou a nadar novamente a meu lado. Percebi que ela achava que avançaríamos mais depressa se nadássemos os dois. Depois,
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quando estávamos a chegar à superfície, uma onda enorme envolveu-nos e ela desapareceu. Desapareceu.
Deixou cair as mãos que seguravam o rosto e desabafou: Cristo, como é que alguém pode pensar que eu deixaria deliberadamente a minha mulher morrer? Sou perseguido
pela ideia de que devia ter sido capaz de a salvar. Foi culpa minha não a ter encontrado, mas Deus sabe que tentei.
Adam endireitou-se. Lembrou-se da noite em que Bobby morrera, com Menley sob o efeito de sedativos, quase inconsciente, soluçando sem parar: "A culpa foi minha,
a culpa foi minha..." Esticou-se e fez pressão sobre o ombro de Scott Covey.
Eu represento-o, Scott disse ele, e tente descontrair-se. Vai ultrapassar tudo isto. Tudo ficará bem.
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Amy chegou às sete horas para tomar conta de Hannah. Cumprimentou Menley e depois ajoelhou-se logo à frente do baloiço do bebé que Adam fixara na cozinha.
Olá, Hannah disse Amy com meiguice. Foste nadar hoje? Hannah olhou complacentemente para a recém-chegada.
Devias tê-la visto a chapinhar numa poça na areia disse Menley. Até gritou quando a tirei de lá. Vais descobrir que a Hannah sabe mostrar quando não está contente.
Amy sorriu fugazmente.
É o que a minha mãe costumava dizer sobre mim.
Menley sabia que Elaine estava noiva do pai de Amy, mas não sabia se ele era divorciado ou viúvo. Pareceu-lhe que Amy estava a encorajar a pergunta.
Fala-me da tua mãe sugeriu ela. É evidente que ela criou uma boa filha.
Ela morreu quando eu tinha doze anos. A voz da rapariga era neutra, sem emoção.
Deve ter sido muito difícil. Menley esteve prestes a sugerir que era óptimo que Elaine fosse a nova mãe de Amy, mas suspeitava de que não era assim que a rapariga
encarava a situação. Lembrava-se de como o seu irmão Jack se opusera quando a mãe começara a sair. Um homem, um médico, gostava imenso dela. Sempre que ele telefonava,
Jack gritava: "Stanley Beamish, para si, mãe." Stanley Beamish era um personagem muito irritante de uma série para televisão que, felizmente, durara muito pouco
tempo e que fora exibida quando eles eram crianças.
A mãe sussurrava: "O nome dele é Roger!", mas os seus lábios estavam retorcidos num sorriso quando pegava no telefone. Depois, Jack abanava os braços numa imitação
de Stanley Beamish, que tinha a capacidade de voar.
Roger não durara muito tempo como potencial padrasto. Era um tipo
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simpático, pensava Menley agora, e quem sabe?, a mãe poderia ter sido muito mais feliz se tivesse tentado, em vez de dizer a Roger que não resultaria. "Talvez este
mês eu tenha hipótese de falar um pouco com Amy", pensou ela. "Talvez possa facilitar-lhe as coisas."
Está na hora de deitar a princesa - disse ela. Fiz uma lista dos telefones de emergência: Polícia, bombeiros, ambulância. E o número de Elaine.
Esse eu sei. Amy endireitou-se. Posso pegar em Hannah?
Claro. Acho que é uma boa ideia.
Com o bebé nos braços, Amy parecia mais confiante.
A senhora está muito bonita, Sr.a Nichols disse ela.
Obrigada. Menley sentiu-se muito feliz com o elogio. Percebeu que se sentia um pouco enervada com a perspectiva de conhecer os amigos de Adam. Ela não tinha a aparência
estonteante dos modelos com quem ele costumava sair, e sabia que, ao longo dos anos, ele trouxera algumas mulheres muito belas para o Cape. Porém, muito mais importante
do que isso, tinha a certeza de que devia ser objecto de especulação. Toda a gente sabia o que lhe acontecera. A mulher de Adam, que perdera o filho dele ao atravessar,
de carro, uma passagem de nível. A mulher de Adam, que não estava com ele no ano anterior durante o mês que ele passara no Cape.
"Oh, não há dúvida de que eles vão observar-me bem", pensou ela. Depois de muita indecisão, resolvera usar um macaco de seda azul-pavão com um cinto azul e branco
entrançado e sandálias brancas.
Por que é que não tentamos deitar Hannah antes de eu ir? Dirigiu-se para as escadas à frente de Amy. A televisão está na sala de estar. Mas gostava que deixasses
o monitor com o volume bem alto e que fosses vê-la de meia em meia hora. Ela adora destapar-se, e a mulher-a-dias pôs os dois sacos-cama na máquina de lavar. A máquina
de secar ainda não está arranjada.
Carrie Bell. Ela esteve cá? A voz de Amy soou incrédula.
Bem, não, esta mulher chama-se Hildy. Vai passar a vir uma vez por semana. Porquê?
Estavam ao cimo das escadas. Menley parou e voltou-se para olhar para Amy.
Amy corou.
Oh, nada. Desculpe. Eu sabia que Elaine lhe ia sugerir outra pessoa. Menley tirou Hannah do colo de Amy.
O pai vai querer dar-lhe as boas noites. Foi para o quarto principal. Adam estava a vestir o casaco desportivo azul-marinho. Uma das tuas jovens admiradoras para
te prestar homenagem disse-lhe ela.
Ele beijou Hannah.
Nada de encontros tardios, fofinha, e não dês muito trabalho a Amy. A ternura do seu rosto desmentia o tom sério da sua voz. Menley sentiu um aperto no coração.
Adam fora louco por Bobby. Se acontecesse alguma coisa a Hannah...
"Por que é que estás sempre a pensar nisso?", perguntou a si mesma, furiosa. Forçou a voz a soar trocista.
A tua filha acha que estás fantástico. Quer saber se tu te estás a embonecar para todas as tuas antigas namoradas.
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Não. Adam olhou-a de soslaio. Eu só tenho uma namorada. Não corrigiu, duas namoradas. Falou para o bebé. Hannah, diz à tua mamã que ela está muito sexy e que eu
não a atiraria para fora da cama por ninguém.
Rindo-se, Menley levou o bebé para o seu quarto. Amy estava de pé ao lado do berço, com a cabeça inclinada, como se estivesse a escutar alguma coisa.
Não sente uma sensação estranha neste quarto, Sr.a Nichols? perguntou ela.
Que queres dizer com isso?
Desculpe. Não sei o que estou a dizer. Amy parecia embaraçada. Por favor, não me ligue. Só estou a ser parva. Divirtam-se muito. Pode estar descansada que Hannah
vai ficar bem e eu telefono imediatamente se houver algum problema. Para além disso, a casa de Elaine fica a menos de três quilómetros daqui.
Menley parou um momento. Haveria alguma coisa estranha no quarto do bebé? Não o sentira ela própria? Depois, abanando a cabeça com a sua parvoíce, Menley deitou
Hannah na cama de grades e enfiou-lhe a chucha na boca antes de ela começar a protestar.
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Elaine vivia perto da Pousada Chatham Bars, numa pequena casa típica da região do Cape, que começara a sua existência em 1870 como meia casa. Ao longo dos anos,
fora aumentada e reformada, e agora não ficava nada atrás das suas vizinhas mais imponentes.
Às sete horas, ela fez rapidamente uma última inspecção. A casa estava impecável. As toalhas dos convidados estavam no lavabo, o vinho estava gelado, a mesa muito
bem posta. Fora ela quem fizera a salada de lagosta, um trabalho moroso e cansativo; o resto da comida era preparada por uma empresa que a fornecia. Estava à espera
de vinte pessoas, e contratara um empregado para servir a comida e outro para servir no bar.
John oferecera-se para ficar no bar, mas ela não aceitara.
Tu vais ajudar-me a receber os convidados, não vais?
Se é isso que queres.
"O que Elaine quer, Elaine consegue", pensou ela, sabendo exactamente o que ele ia dizer antes mesmo de abrir a boca.
O que Elaine quer, Elaine consegue disse John com uma pequena gargalhada. Era um homem grande e sensato, com modos estudados. Aos
53 anos, o seu cabelo cada vez mais esparso estava completamente grisalho. O seu rosto era franco e alegre. Vem cá, queridinha.
John, não me despenteies o cabelo.
Eu gosto dele despenteado, mas está bem. Só te quero dar um presentinho.
Elaine pegou no pequeno embrulho.
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John, que querido. Que é?
Um frasco de azeitonas, que mais podia ser? Abre.
Era um frasco de azeitonas, mas lá dentro parecia haver apenas um pedaço de tecido azul.
Que é isto? perguntou Elaine enquanto tirava a tampa do frasco e punha a mão lá dentro. Começou a puxar o tecido.
Com cuidado avisou ele. Essas azeitonas são caras.
Ela segurou o pedaço de tecido na mão e abriu-o. Lá dentro estava um par de brincos de ónix em forma de meia lua, guarnecidos de diamantes.
John!
Disseste que ias usar um vestido preto e prateado, por isso achei que devias ter brincos a condizer.
Ela rodeou-lhe o pescoço com os braços.
Tu és bom de mais para ser verdade. Eu não estou habituada a ser mimada.
Vou ter o maior prazer em te mimar. Tu trabalhas de mais, há muito tempo, e mereces.
Segurou-lhe o rosto nas mãos e encostou os lábios aos dele.
Obrigada.
A campainha tocou. Estava alguém à porta de rede.
Querem fazer o favor de parar de se abraçar e abrir a porta aos convidados?
Os primeiros convidados tinham chegado.
"É uma festa muito agradável", disse Menley a si mesma quando voltou da mesa do buffet e ocupou o seu lugar no sofá. Seis dos casais tinham passado os Verões no
Cape toda a vida, e alguns deles estavam a recordar episódios do passado.
Adam, lembras-te daquela vez em que levámos o barco do teu pai para Nantucket? Ele ficou zangadíssimo.
Eu esqueci-me de lhe comunicar os nossos planos disse Adam com uma careta.
A minha mãe é que ficou uma fera disse Elaine. Não parava de me ralhar por eu ser a única rapariga no meio de cinco rapazes. "Que é que as pessoas vão pensar?"
E nós ficámos furiosas por não termos sido convidadas disse a morena sossegada de Eastham lentamente. Todas nós estávamos apaixonadas por Adam.
Não estavas apaixonada por mim? protestou o marido.
Isso foi só no ano seguinte.
"E quando nós cavámos o buraco para cozer o marisco...? Quase parti o pescoço a apanhar algas... Aquele miúdo estúpido que correu pela praia e quase caiu no buraco...
E no ano em que...?"
Menley sorriu e esforçou-se por ouvir, mas a sua mente estava longe.
O noivo de Elaine, John Nelson, estava sentado numa cadeira ao lado do sofá. Voltou-se para Menley.
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Que andava a fazer quando era adolescente, quando estas pessoas andavam a divertir-se no Cape?
Menley virou-se para ele, aliviada.
Estava a fazer a mesma coisa que Amy está a fazer agora, a tomar conta de crianças. Fui para a costa de Jérsia três anos seguidos com uma família que tinha cinco
crianças.
Não eram grandes férias.
Não era mau de todo. Eram miúdos simpáticos. A propósito, quero dizer-lhe que Amy é uma rapariga encantadora. É espantosa com a minha filha.
Obrigado. Não me importo de lhe dizer que é uma pena que ela não goste de Elaine.
Não acha que ir para a Universidade e conhecer novos amigos mudará tudo isso?
Espero que sim. Ela costumava preocupar-se porque eu ficaria sozinho quando ela fosse para a Universidade. Agora, parece ter medo de, depois de eu e Elaine nos casarmos,
deixar de ter um lar. É ridículo, mas a culpa é minha porque eu fazia-a sentir-se a dona da casa, e agora ela não quer ser destronada. Encolheu os ombros. Paciência.
Há-de passar-lhe. Agora, minha jovem senhora, desejo que aprenda a gostar do Cape como eu aprendi. Nós viemos da Pensilvânia para passar férias aqui há vinte anos,
e a minha mulher gostou tanto que acabámos por ficar a viver cá. Felizmente, eu consegui vender a minha empresa de seguros e comprar uma em Chatham. Quando quiserem
comprar uma casa, eu vou cuidar bem de vocês. Muitas pessoas não compreendem a vantagem dos seguros. É um negócio fascinante.
Dez minutos depois, Menley desculpou-se dizendo que ia buscar outra chávena de café. "Os seguros não são assim tão fascinantes", pensou ela, e depois sentiu-se culpada
por esses pensamentos. John Nelson era uma pessoa muito simpática, embora fosse um pouco maçador.
Adam aproximou-se dela quando ela estava a encher de novo a chávena.
Estás a gostar, querida? Estavas tão entretida a conversar com John que nem consegui captar a tua atenção. Que achas dos meus amigos?
São óptimos. Ela esforçou-se por parecer entusiasmada. A verdade é que preferia, de longe, estar em casa sozinha com Adam. A primeira semana de férias já estava
quase no fim, e ele passara dois dias em Nova Iorque. E, ainda por cima, naquela tarde tinham saído cedo da praia por causa do encontro dele com Scott Covey, e agora
estavam com todas aquelas pessoas que ela não conhecia.
Adam estava a olhar para longe.
Ainda não tive oportunidade de falar com Elaine a sós disse ele. Quero contar-lhe o que se passou no meu encontro com Covey.
Menley lembrou a si mesma que ficara encantada quando Adam lhe dissera que decidira aceitar o caso de Scott.
A campainha tocou e, sem esperar que fossem recebê-la, uma mulher com cerca de 60 anos abriu a porta de rede e entrou. Elaine levantou-se de um salto.
Jan, ainda bem que pôde vir.
62
Adam disse:
Elaine disse-me que ia convidar Jan Paley, a dona da Casa "Lembra-te".
Oh, que interessante. Gostava imenso de ter a oportunidade de falar com ela.
Menley observou a Sr.a Paley enquanto ela cumprimentava Elaine. "Atraente", pensou ela. Jan Paley não usava maquilhagem. O cabelo quase branco tinha uma ondulação
natural. A pele estava finamente enrugada, com o aspecto de alguém que não tinha problemas em se expor ao sol. O seu sorriso era caloroso e generoso.
Elaine trouxe-a para conhecer Menley e Adam.
Os seus novos inquilinos, Jan disse ela.
Menley percebeu o olhar de compaixão que aflorou aos olhos da outra mulher. Obviamente, Elaine contara-lhe o que acontecera a Bobby.
A casa é maravilhosa, Sr.a Paley disse ela com sinceridade.
Ainda bem que gosta de lá. Paley recusou a oferta de Elaine para lhe servir um prato. Não, obrigada. Acabo de vir de um jantar no clube. Mas gostaria de um café.
Era uma boa altura para deixar Adam falar com Elaine sobre Scott Covey. As pessoas tinham começado a circular pela sala.
Sr.a Paley, por que não nos sentamos? Menley apontou para a cadeira dos namorados vazia.
Perfeito.
Enquanto se instalavam, Menley ouviu o início de outra história sobre uma aventura de Verão passada há muitos anos.
Há alguns anos, fui com o meu marido à sua reunião do quinquagésimo aniversário do fim de curso disse Jan Paley. Na primeira noite, pensei que ia dar em doida com
as histórias dos bons velhos tempos. Mas, depois de esquecerem esse assunto, diverti-me imenso.
Tenho a certeza de que é assim mesmo.
Tenho de lhe pedir desculpa disse Paley. A maior parte dos móveis da casa são verdadeiramente pavorosos. Nós ainda não tínhamos acabado a remodelação e resolvemos
usar o que lá estava quando a comprámos até a casa estar pronta para ser decorada.
As peças do quarto principal são lindas.
Sim. Vi-as num leilão e não as deixei fugir. Quanto ao berço, encontrei-o na cave, debaixo de uma pilha de lixo. É do princípio do século dezassete, acho eu. Pode
ter feito parte da mobília original. A casa tem uma história incrível, sabia?
Aversão que eu ouvi é que um capitão do mar a construiu para a esposa e depois a abandonou quando soube que ela estava envolvida com outra pessoa.
Mas isso não é tudo. Supostamente, a mulher, Mehitabel, jurou que estava inocente, e, no seu leito de morte, jurou ficar naquela casa até o seu bebé lhe ser devolvido.
Mas é claro que metade das casas antigas do Cape têm lendas. Algumas pessoas perfeitamente sensatas juram que vivem em casas assombradas.
Assombradas!
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Sim. De facto, uma grande amiga minha comprou uma casa velha que tinha sido destruída por fantasmas. Depois de a casa estar completamente restaurada e decorada com
mobiliário da época, uma manhã cedo, quando ela e o marido estavam a dormir, ela acordou ao ouvir passos a subir as escadas. Depois, a porta do quarto abriu-se e
ela jura que se viam marcas de pegadas na carpete.
Acho que eu teria morrido de susto.
Não, Sarah disse que teve uma sensação de benevolência, do tipo que sentimos quando somos crianças e acordamos com a mãe a aconchegar-nos os cobertores. Depois,
sentiu um toque no ombro, e em pensamento ouviu uma voz dizer-lhe: "Estou tão contente com o cuidado que teve com a minha casa." Ela teve a certeza de que a senhora
para quem a casa fora construída queria que ela soubesse como estava feliz por ela ter sido restaurada.
Ela alguma vez viu um fantasma?
Não. Agora, Sarah é viúva e bastante idosa. Diz que às vezes sente uma presença benevolente e acha que são duas raparigas velhas a desfrutarem da sua casa juntas.
Acredita nisso?
Não acredito nem deixo de acreditar disse Jan Paley lentamente. Menley bebeu o café e depois arranjou coragem para fazer uma pergunta. Teve alguma vez a sensação
de haver alguma coisa estranha no quarto do bebé na Casa "Lembra-te", o pequeno quarto defronte do quarto principal?
Não, mas nós nunca o utilizámos. Francamente, durante algum tempo depois de o meu marido morrer, o ano passado, eu pensei ficar com a casa. Mas depois, às vezes,
sentia uma tristeza tão grande que percebi que seria melhor vendê-la. Eu nunca devia ter deixado Tom fazer tanto trabalho de restauros, embora ele tivesse adorado
cada momento.
"Sentimo-nos todos culpados quando morre alguém que amamos?", perguntou-se Menley. Olhou para o outro lado da sala. Adam estava num grupo com três outros homens.
Sorriu tristemente quando viu Margaret, a morena elegante de Eastham, juntar-se a eles e sorrir radiosamente para Adam. "Terá ficado com um fraquinho por ele?",
pensou ela. "Não posso culpá-la por isso."
Jan Paley disse:
Comprei os seus quatro livros de David para o meu neto. São maravilhosos. Está a trabalhar num agora?
Decidi que a acção do próximo vai passarse no Cape, nos finais do século dezassete. Estou a começar a fazer pesquisa.
Que pena. Se tivesse sido há alguns anos, poderia falar com Phoebe Sprague. Ela era uma grande historiadora, e estava a preparar notas para um livro sobre a Casa
"Lembra-te". Talvez Henry a deixe ver algum do material dela.
A festa acabou às dez e meia. A caminho de casa, Menley contou a Adam a sugestão de Jan Paley.
Achas que seria muito indelicado pedir ao Sr. Sprague que me
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emprestasse os apontamentos da mulher, ou, pelo menos, que me dissesse onde é que ela encontrou o melhor material?
Conheço os Sprague desde que nasci disse Adam. De qualquer maneira, pretendia visitá-los. Quem sabe? Henry pode até gostar de partilhar as pesquisas de Phoebe contigo.
Quando chegaram, Amy estava a ver televisão na sala de estar.
Hannah nunca acordou disse ela. Fui vê-la de meia em meia hora.
Quando Menley a acompanhou à porta, Amy disse-lhe timidamente:
Sinto-me tão parva por causa do que disse há bocado, que havia alguma coisa estranha no quarto de Hannah. Acho que é por causa daquela história que Carrie Bell andou
a contar a toda a gente, sobre o berço a baloiçar sozinho e a colcha amarrotada como se alguém estivesse sentado na cama.
Menley sentiu a garganta seca.
Eu não sabia isso, mas é ridículo disse ela.
Deve ser. Boa noite, Sr.a Nichols.
Menley foi directamente para o quarto do bebé. Hannah estava a dormir profundamente, na sua posição preferida, com os braços por cima da cabeça.
Já não lhe podemos chamar "sua berceza" murmurou Adam.
Quantos nomes é que chamamos a esta pobre criança? perguntou Menley quando se enfiou na cama alguns minutos depois.
Não sei contar tantos números. Boa noite, querida. Adam abraçou-a. Espero que te tenhas divertido.
Diverti. Mais tarde, murmurou: Não estou com sono. Não te importas de que leia um pouco?
Sabes que eu consigo dormir no meio de uma centena de luzes. Ele amachucou a almofada. Escuta, quando Hannah acordar, abana-me até eu me levantar. Eu tomo conta
dela. Tu tens-te levantado por causa dela toda a semana.
Óptimo. Menley pegou nos óculos para ver ao pé e começou a ler um dos livros sobre a história dos primórdios do Cape que encontrara na biblioteca. Era pesado, e
a capa, muitas vezes molhada, estava a encaracolar. No interior, as páginas estavam quebradiças e cheias de pó. Mesmo assim, a sua leitura era fascinante.
Ficou intrigada ao saber que os rapazes iam para o mar quando tinham apenas 10 anos e que alguns deles se tornavam capitães dos seus próprios barcos com pouco mais
de 20 anos. Decidiu que no novo livro de David seria interessante ter um rapaz do século xvII que fizera carreira na navegação.
Chegou ao capítulo onde havia biografias breves de alguns dos navegadores mais importantes. O seu olhar foi atraído por um nome. O capitão Andrew Freeman, nascido
em 1663, em Brewster, fora para o mar em criança e tornara-se capitão do seu próprio navio, o Godspeed, aos 23 anos. Piloto e capitão, tinha a reputação de ser completamente
destemido, e até os piratas aprenderam a passar ao largo do Godspeed. Afundou-se em 1707, quando, contra toda a razão, se fez ao mar sabendo que se aproximava vento
de nordeste. Os mastros partiram-se e o barco soçobrou e afundou-se com
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toda a tripulação. Os destroços espalharam-se por várias milhas ao longo da costa de Monomoy.
"Tenho de descobrir mais coisas sobre ele", pensou Menley. Quando, por fim, pousou o livro na mesa-de-cabeceira e apagou a luz, às duas horas, sentiu a alegria que
sempre sentia quando o fio condutor de uma história estava firmemente delineado na sua mente.
Hannah começou a acordar às sete e um quarto. Como prometera, Menley despertou Adam e deitou-se novamente com os olhos fechados. Alguns minutos depois, ele voltou,
com o bebé encostado ao ombro, ainda meio a dormir.
Menley, por que é que mudaste Hannah para o berço, a noite passada? Menley sentou-se sobressaltada e olhou para ele.
Confusa e ligeiramente alarmada, pensou: "Não me lembro de ir vê-la. Mas, se disser isso, Adam vai pensar que estou louca." Em vez disso, bocejou e murmurou:
Quando Hannah acordou, não queria ficar sossegada, por isso embalei-a um bocado.
Foi o que pensei concordou Adam.
Hannah ergueu a cabeça do ombro dele e voltou-se. As persianas estavam corridas, e a luz que espreitava nos cantos era fraca. Hannah bocejou primorosamente e piscou
os olhos, depois sorriu e espreguiçou-se.
No quarto escurecido, os contornos do rosto dela eram tão parecidos com os de Bobby, pensou Menley. Também era assim que Bobby costumava acordar, a bocejar e a sorrir
e a espreguiçar-se.
Menley ergueu os olhos para Adam. Não queria que ele visse que ela estava prestes a entrar em pânico. Esfregou os olhos.
Li até muito tarde. Ainda estou cheia de sono.
Dorme até quando quiseres. Dá um beijo à estrela da manhã e eu levo-a para o andar de baixo. Tomo bem conta dela. Deu-lhe o bebé.
Eu sei que sim disse Menley. Apertou tanto Hannah que o pequeno rosto ficou a poucos centímetros do seu.
Olá, anjo murmurou, enquanto pensava: "O teu pai pode tomar bem conta de ti e eu prometo-te isto: se algum dia pensar que não posso, desapareço."
7 de Agosto
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Henry e Phoebe Sprague estavam sentados numa mesa da esplanada da Pousada Wayside. Pela primeira vez naquela estação, Henry tinha trazido Phoebe para um brunch de
domingo fora, e ela sorria, encantada. Gostara sempre de observar as pessoas, e a rua principal de Chatham estava muito concorrida. Turistas e residentes andavam
a ver montras, a entrar e a sair das lojas especializadas ou a dirigir-se para um dos muitos restaurantes.
Henry deu uma vista de olhos à ementa que a empregada de mesa lhe entregara. "Vamos pedir Ovos Beneditina", pensou ele. "Phoebe gostou sempre da maneira como são
confeccionados aqui."
Bom dia. Já escolheram?
Henry ergueu os olhos para a atrevidamente bonita empregada. Era Tina, a jovem que ele vira no pub em frente do cabeleireiro no princípio de Julho, aquela que Scott
Covey tinha dito que era actriz no musical da casa de espectáculos do Cape.
O rosto dela não revelou nenhum sinal de reconhecimento, mas, afinal, ela mal olhara para ele antes de sair apressadamente ao pub naquela manhã.
Sim, já escolhemos disse ele.
Durante a refeição, Henry Sprague esteve sempre a fazer comentários sobre as pessoas que passavam.
Olha, Phoebe, aqueles são os netos de Jim Snow. Lembras-te de como costumávamos ir ao teatro com os Snow?
Pára de perguntar se me lembro disse Phoebe asperamente. Claro que me lembro. Ela continuou a bebericar o café. Um momento depois, curvou-se para a frente e olhou
em volta, os olhos a voarem de mesa para mesa. Tantas pessoas... murmurou ela. Não quero estar aqui.
Henry suspirou. Esperara que a explosão de mau humor fosse um bom sinal. Para algumas pessoas, a tacrina é uma droga extremamente benéfica, detendo temporariamente,
e até mesmo invertendo, a deterioração nas pessoas que sofrem da Doença de Alzheimer. Desde que fora receitada a Phoebe, ele julgara perceber alguns lampejos ocasionais
de lucidez. Ou estaria a imaginar coisas?
A empregada trouxe a conta. Quando Henry pousou o dinheiro, ergueu os olhos para ela. A jovem parecia preocupada e deprimida, o sorriso 1 Refeição que se toma ao
fim da manhã e que serve de pequeno-almoço e almoço. (N. da T.)
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exuberante extinguira-se. "Ela reconheceu-me", pensou Henry, "e pergunta a si mesma se eu a relacionei com Scot Covey."
Gostou da sensação e resolveu prolongá-la um pouco mais. Com um sorriso impessoal, levantou-se e puxou a cadeira de Phoebe para trás.
Estás pronta, querida?
Phoebe levantou-se e olhou para a empregada.
Como está, Tina? perguntou ela.
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Nat Coogan e a mulher, Debbie, tinham um barco com motor fora-de-borda de seis metros. Tinham-no comprado em segunda-mão quando os rapazes eram pequenos, mas, como
Nat o tratava com muito desvelo, ainda estava em excelente estado. Como os rapazes iam passar a tarde no Parque Fenway, no jogo dos Red Sox, Nat sugeriu a Debbie
que fizessem um piquenique no barco.
Ela ergueu uma sobrancelha.
Tu não gostas de piqueniques.
Não gosto de me sentar nos campos, com formigas a trepar para tudo.
Pensei que ias verificar os covos e depois vinhas para casa ver o jogo. Encolheu os ombros. Há outra coisa qualquer que eu não estou a perceber, mas está bem. Vou
fazer algumas sanduíches.
Nat olhou afectuosamente para a mulher. "Não posso esconder nada de Deb", pensou.
Não, descansa alguns minutos. Eu trato de tudo.
Foi à charcutaria e comprou salmão,patê, bolachas de água e sal e uvas. "Já agora, podemos fazer tudo o que eles fizeram", pensou ele.
Muito fino observou Deb quando arrumou a comida num cesto. Eles não tinham pasta de fígado?
Não. Era isto que eu queria. Tirou uma garrafa de vinho gelado do frigorífico.
Debbie leu o rótulo.
Estás com complexo de culpa por alguma razão? Esse vinho é caro.
Eu sei que é. Vá lá. O tempo vai mudar mais tarde.
Lançaram a âncora exactamente a uma milha e meia da ilha Monomoy. Nat não disse à mulher que aquele era o local onde Vivian Covey passara as suas últimas horas.
Se lhe dissesse, podia perturbá-la.
Por acaso, isto é engraçado admitiu Debbie. Mas que aversão é essa agora a cadeiras desmontáveis?
Só pensei que uma mudança seria interessante. Estendeu uma velha manta de praia e dispôs a comida. Tinha trazido almofadas para se sentarem. Por fim, encheu os copos
com vinho.
Eia, tem calma protestou Debbie. Não quero ficar com os copos.
Por que não? perguntou Nat. Quando acabarmos, podemos dormir a sesta.
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O sol estava quente. O barco baloiçava suavemente. Bebericaram o vinho, foram comendo o queijo e o pâtê, depenicaram as uvas. Uma hora depois, Debbie olhou sonolentamente
para a garrafa vazia.
Não posso acreditar que bebemos tudo isto disse ela.
Nat embrulhou a comida que sobrara e arrumoua no cesto de piquenique.
Queres esticar-te? perguntou ele enquanto dispunha as almofadas lado a lado na manta. Sabia que ela não estava habituada a beber durante o dia.
Grande ideia. Debbie deitou-se e fechou imediatamente os olhos. Nat estendeu-se ao lado dela e começou a passar em revista algumas das coisas que ficara a saber
nos últimos dias. Na sexta-feira, depois de estudar as fotografias da autópsia, fora a casa de Scott Covey. A explicação de Covey de que, provavelmente, a mulher
passara o anel de esmeralda para a outra mão parecera-lhe pouco sincera e talvez ensaiada.
Olhou para a garrafa de vinho vazia a aquecer ao sol. O relatório "da autópsia revelava que Vivian Carpenter consumira vários copos de vinho pouco antes da sua morte.
Mas, quando ele interrogara os pais sobre os hábitos de beber da filha, ambos lhe tinham dito que ela não costumava beber durante o dia. Um único copo de vinho tornava-a
sonolenta, especialmente ao sol, a mesma reacção que Debbie estava a ter naquele preciso momento.
Uma pessoa que estava sonolenta de beber vinho, e que estava a aprender a fazer mergulho, teria insistido em acompanhar o marido quando ele dissera que ia mergulhar
durante algum tempo?
Nat achava que não.
Às três horas, sentiu uma mudança subtil no movimento do barco. Previam-se chuvadas fortes para cerca das três e meia.
Nat levantou-se. Aquele lugar estava na direcção da entrada do porto, e, enquanto ele observava, inúmeros barcos dirigiam-se para o porto, vindos de todas as direcções.
Covey alegara que ele e Vivian estavam lá em baixo há cerca de vinte minutos quando a tempestade se abatera. Isso significava que, quando ele se levantara da sesta
naquela tarde, tinha de ter reparado nas pequenas embarcações a dirigirem-se para terra. Devia ter sentido que a corrente estava a ficar mais forte.
"Naquela altura, qualquer pessoa com meio cérebro teria ligado o rádio e verificado o boletim meteorológico", raciocinou Nat.
Debbie espreguiçou-se e sentou-se.
Que estás a fazer?
A pensar. Baixou a cabeça para olhar para ela enquanto ela se espreguiçava. Queres ir nadar um pouco, querida?
Debbie deitou-se outra vez e fechou os olhos.
Esquece murmurou. Tenho demasiado sono.
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Scott Covey passou o domingo em casa. Embora estivesse aliviado por Adam Nichols ter decidido representá-lo, continuava preocupado com os avisos concretos que Adam
lhe fizera. "Quando uma mulher rica morre pouco depois de se ter casado com um homem que ninguém conhece bem, e esse homem é a única pessoa presente no momento da
sua morte, é normal que haja falatório. Você colaborou com a Polícia, e fez bem. Agora, pare de colaborar. Recuse-se a responder a mais perguntas."
Aquele conselho estava óptimo para Scott.
O segundo conselho de Nichols também era fácil de seguir. "Não altere o seu estilo de vida. Não comece a esbanjar dinheiro."
Ele não pretendia ser tão imbecil.
Finalmente, Adam dissera:
E, muito importante!, não seja visto com outra mulher enquanto a Polícia suspeitar abertamente de si.
Tina. Deveria explicar a Adam que, antes de conhecer Viv, estivera envolvido com ela? Que o relacionamento começara no ano anterior, quando ele estava a trabalhar
na casa de espectáculos? Adam compreenderia que ele não tinha nada com ela desde que conhecera Viv?
Podia explicar que Tina não percebera que ele voltara para o Cape. Depois, infelizmente, deixara o emprego em Sandwich e começara a trabalhar na Estalagem Wayside.
Depois de o ver a jantar lá com Viv, começara a telefonar-lhe. A única vez que aceitara encontrar-se pessoalmente com ela, Henry Sprague, justamente ele, tinha de
estar sentado ao seu lado no pub! Sprague não era nada parvo. Deveria explicar a Adam que Tina apenas fora lá a casa uma vez depois de Viv desaparecer, para lhe
oferecer apoio?
Às quatro horas, o telefone tocou. Sombriamente, Scott foi atender. "Era bom que não fosse aquele detective", pensou ele.
Era Elaine Atkins, a convidá-lo para um churrasco em casa do noivo.
Estarão lá alguns dos amigos de John disse ela. Pessoas importantes, o tipo de pessoas com quem deve ser visto. A propósito, vi Adam a noite passada. Ele disse-me
que vai representá-lo.
Nunca poderei agradecer-lhe o bastante, Elaine. E, claro, terei muito gosto em fazer-vos companhia.
Quando descia a rua, uma hora depois, reparou que o Chevy com oito anos de Nat Coogan estava estacionado à frente da casa dos Sprague.
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Nat Coogan aparecera em casa dos Sprague sem telefonar a avisar. No entanto, não era coisa que tivesse feito sem pensar. Sabia que havia alguma coisa sobre Scott
Covey que Henry Sprague não lhe contara, e esperava que
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o elemento surpresa encorajasse Sprague a responder à pergunta que ele pensava fazer-lhe.
O cumprimento frio de Sprague deu a Nat a mensagem que ele esperava. Um telefonema a avisar teria sido bem-vindo. Estavam à espera de convidados.
Só demoro um minuto.
Nesse caso, faça o favor de entrar.
Henry Sprague conduziu-o rapidamente pela casa até ao terraço. Uma vez ali chegados, Nat percebeu o motivo por que ele se apressara tanto. Sprague deixara a mulher
lá fora sozinha, e, logo que ele desaparecera, ela começara a atravessar o relvado para a casa Carpenter/Covey.
Sprague apanhoua rapidamente e levoua de volta para o terraço.
Senta-te, querida. Adam e a mulher vêm visitar-nos. Não convidou Nat para se sentar.
Nat decidiu pôr as cartas na mesa.
Sr. Sprague, acho que Scott Covey abandonou deliberadamente a mulher quando estavam a mergulhar, e vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para o provar. No
outro dia, fiquei com uma sensação muito forte de que havia alguma coisa que o senhor não sabia se havia de me dizer ou não. Sei que o senhor é o tipo de pessoa
que não se mete na vida dos outros, mas este assunto também lhe diz respeito. Imagine como Vivian se deve ter sentido aterrorizada quando percebeu que ia morrer
afogada. Imagine como o senhor se sentiria se alguém conduzisse deliberadamente a sua mulher para o perigo e depois a abandonasse.
Durante algum tempo, Henry Sprague tentara heroicamente deixar de fumar. Agora, deu por si a procurar no bolso da camisa desportiva o cachimbo que guardara na gaveta
da secretária. Prometeu a si mesmo que iria buscá-lo quando o detective saísse.
Sim, tem razão, havia uma coisa. Três semanas antes da morte de Vivian, por coincidência, eu estava no pub Cheshire na mesma altura em que Scott Covey se encontrava
lá disse ele relutantemente. Entrou uma jovem chamada Tina. Tenho a certeza de que eles tinham combinado um encontro. Ele fingiu ficar surpreendido ao vê-la, e ela
percebeu a dica e apressou-se a ir-se embora. Eu não a conhecia. Mas esta manhã voltei a vê-la. Ela é empregada de mesa na Estalagem Wayside.
Obrigado disse Nat calmamente.
Há mais uma coisa. A minha mulher sabia o nome dela. Não sei onde poderiam ter-se encontrado, a não ser...
Olhou para a casa de Vivian Carpenter Covey.
Ultimamente, várias vezes em que me afastei, Phoebe foi para a casa dos Carpenter. A casa não tem ar condicionado, e normalmente as janelas estão abertas. Ela pode
ter visto Tina lá. É a única explicação que consigo encontrar.
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Acho que foi boa ideia pedir a Amy que tomasse conta de Hannah durante algumas horas disse Adam enquanto passavam pelo farol e pelo centro de Chatham. Pelo que percebi,
Phoebe não reage bem a grandes distracções. Também me parece que, provavelmente, não será capaz de falar sobre as suas notas, mas estou contente por Henry ter sido
receptivo à ideia de as partilhar contigo.
Eu também. Menley tentou parecer entusiasmada, mas foi difícil. "Devia ter sido um dia perfeito", pensou ela. Tinham passado algumas horas na praia, depois tinham
lido os jornais de domingo enquanto Hannah dormia a sesta. Por volta das três e meia, quando a trovoada começara, ficaram à janela a ver a chuva fustigar o oceano
e as ondas crescerem em fúria. Um dia calmo e agradável, tempo que passavam juntos, partilhando coisas, o tipo de dia que costumavam passar antigamente.
O problema é que, agora, o espectro de um esgotamento nervoso estava sempre no espírito de Menely. Que estava a acontecer-lhe?, perguntou-se. Não contara a Adam
que tivera um ataque de pânico na passagem de nível, embora, se lhe tivesse contado, ele tivesse compreendido. Mas dizer-lhe que, na noite em que ele ficara em Nova
Iorque, acordara ao ouvir o som de um comboio que parecia estar a rugir pela casa! Que é que qualquer ser humano racional pensaria de uma história daquelas? E poderia
igualmente contar-lhe que não se lembrava de ter estado no quarto do bebé na noite anterior? Não, nunca!
Teria parecido piegas dizer a Adam que, na festa de Elaine, se sentira isolada pelo companheirismo que testemunhara mas não podia partilhar. "Eu tenho imensos amigos",
tranquilizou-se Menley. "O que acontece é que sou uma estranha. Se decidirmos comprar a Casa Lembra-te, vou conhecê-los todos intimamente. E convidarei os meus amigos
para virem visitar-nos."
De repente, ficaste muito calada disse Adam.
Estava só a sonhar acordada.
O tráfego de domingo à tarde era intenso e levaram imenso tempo a atravessar a rua principal. Na rotunda, viraram à esquerda e percorreram mais um quilómetro e meio
até à casa dos Sprague, em Oyster Pond.
Quando Adam travou à frente da casa, um Chevy azul arrancou. Henry Sprague estava à porta da frente. Cumprimentou-os cordialmente, mas era evidente que estava preocupado.
Espero que Phoebe esteja bem murmurou Adam para Menley quando o seguiam para o terraço.
Henry dissera à mulher que eles vinham. A Dr.a Sprague fingiu reconhecer Adam e sorriu distraidamente a Menley.
"Doença de Alzheimer", pensou Menley. Era horrível perder o contacto com a realidade. Em Bellevue, por vezes, a mãe tivera pacientes que sofriam da Doença de Alzheimer
no andar que ela supervisionava. Menley tentou recordar-se de algumas das histórias que a mãe lhe contara sobre ajudá-los a recuperar a memória.
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A senhora fez muitas pesquisas sobre a história dos primórdios do Cape disse ela. Eu vou escrever uma história para crianças sobre o Cape no século dezassete.
A Dr.a Sprague assentiu mas não respondeu.
Henry Sprague estava a descrever a Adam a visita que Nat Coogan lhe fizera.
Senti-me como um alcoviteiro desprezível disse ele, mas há alguma coisa naquele tipo, Covey, que não bate certo. Se há alguma hipótese de ele ter deixado a pobre
rapariga morrer afogada...
Elaine não é dessa opinião, Henry. Pediu-me que falasse com Scott Covey a semana passada. Eu aceitei representá-lo.
Tu! Pensei que estavas de férias, Adam.
E devia estar, mas é óbvio que Covey tem razão em estar preocupado. A Polícia está a fazer uma verdadeira expedição de caça. Ele precisa de ter uma pessoa que o
represente.
Então, foi despropositado falar-te sobre isto.
Não. Se houver uma acusação formal, a defesa tem o direito de saber quais as testemunhas que serão chamadas a depor. Eu vou querer falar pessoalmente com essa Tina.
Então sinto-me melhor. Henry Sprague suspirou de alívio e voltou -se para Menley. Esta manhã, juntei tudo o que consegui encontrar dos apontamentos de Phoebe sobre
os primeiros tempos do Cape. Sempre lhe disse que parecia impossível que uma pessoa que apresentava artigos e ensaios impecáveis tivesse sempre os seus apontamentos
numa trapalhada medonha. Ele riu-se. Ela respondia-me que trabalhava no meio de um caos ordeiro. Vou buscá-los.
Entrou em casa e voltou, alguns minutos depois, com uma braçada de pastas cheias de papéis.
Terei muito cuidado com eles e devolvelos-ei antes de nos irmos embora prometeu Menley. Entusiasmada, olhou para o material. Vai ser um desafio analisar tudo isto.
Henry, nós estamos a considerar seriamente a hipótese de comprar a Casa "Lembra-te" disse Adam. Já a viu desde que foi restaurada?
Subitamente, a expressão de Phoebe Sprague mudou, e ela ficou assustada.
Não quero ir à Casa "Lembra-te" disse ela. Eles obrigaram-me a entrar no oceano. É o que vão fazer à mulher de Adam.
Querida, estás confusa. Tu não estiveste na Casa "Lembra-te" disse Henry pacientemente.
Ela pareceu indecisa.
Pensei que sim.
Não, estiveste na praia, perto da casa. Esta senhora que está aqui contigo neste momento é a mulher de Adam.
É?
Sim, querida. Ele baixou a voz.
Há algumas semanas, Phoebe escapou-se de casa por volta das oito
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da noite. Andava toda a gente à procura dela. Nós sempre gostámos de passear na vossa praia, e decidi ir de carro até lá. Encontrei-a dentro de água, não muito longe
da vossa casa. Mais alguns minutos e teria sido tarde de mais.
Não consegui ver as caras deles, mas conheço-osdisse Phoebe Sprague tristemente. Eles queriam fazer-me mal.
8 de Agosto
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Na segunda-feira de manhã, Adam telefonou para a Estalagem Wayside, confirmou que uma empregada de mesa chamada Tina estava escalonada para trabalhar naquele dia,
depois telefonou para Scott Covey e marcou um encontro com ele na estalagem.
Menley pedira a Amy para vir tomar conta de Hannah enquanto ela investigava os apontamentos de Phoebe Sprague, coisa que era óbvio estar ansiosa por começar a fazer.
Não vais sentir a minha falta riu-se Adam. Pelo brilho dos teus olhos, pareces-me um pirata a perseguir um navio cheio de ouro.
O facto de estar nesta casa ajuda imenso a ter a percepção dos tempos antigos disse Menley, entusiasmada. Sabias que a porta da sala principal é tão grande porque
era feita com a largura suficiente para permitir a entrada de um esquife?
Que interessante disse Adam. A minha avó costumava contar-me histórias sobre a velha casa em que vivia. Esqueci-me da maior parte delas. Calou-se, ficando pensativo
por um momento. Bem, vou-me embora para começar a defesa do meu cliente.Menley estava a dar a papa a Hannah. Adam beijou Menley no alto da cabeça e deu uma palmadinha
carinhosa no pé de Hannah. Estás demasiado suja para te dar um beijo, Fofa disse-lhe.
Hesitou, tentando decidir se devia ou não mencionar que tinha planeado passar pela agência de Elaine e fazer-lhe uma visita se ela lá estivesse. Resolveu não dizer
nada. Não queria que Menley soubesse o motivo daquela visita.
Adam chegou à Estalagem Wayside quinze minutos antes da hora que combinara com Covey. Foi fácil reconhecer Tina pela descrição de Henry Sprague. Quando ele entrou,
ela estava a levantar uma pequena mesa perto da janela. Pediu à recepcionista para o sentar lá.
"Muito atraente, mas espalhafatosa", pensou enquanto pegava na ementa que ela lhe estendera. Tina tinha cabelo preto-brilhante, olhos castanhos expressivos, pele
clara e dentes perfeitos que emolduravam um sorriso radioso. Um uniforme desnecessariamente justo evidenciava todas as curvas do seu corpo roliço. Chegou à conclusão
de que tinha vinte e muitos anos e já vivera muito.
O seu jovial "Bom dia, senhor" foi seguido por um olhar francamente admirador. Uma frase da canção Paper Doll, que a sua mãe costumava cantar,
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veio-lhe à memória: "olhos muito, muito provocantes..." Decidiu que Tina tinha, sem dúvida, olhos provocantes.
Por agora, só quero um café disse ele. Estou à espera de uma pessoa.
Scott Covey entrou às nove horas em ponto. Do outro lado da sala, Adam observou a expressão dele alterar-se quando percebeu que Tina era a empregada que servia a
mesa deles. Mas, quando se sentou e ela voltou com a ementa, ele aceitoua sem dar sinais de a conhecer, e ela fez a mesma coisa, não evidenciando qualquer sinal
de o ter reconhecido, dizendo simplesmente:
Bom dia, senhor.
Pediram ambos sumo, café e um bolo.
Ultimamente, não tenho tido muito apetite disse Covey calmamente.
Terá ainda menos se não for honesto comigo avisou Adam. Covey ficou surpreendido.
Que está a insinuar?
Tina estava a levantar uma mesa perto da deles. Adam acenou na direcção dela.
Estou a dizer que a Polícia sabe que você se encontrou com aquela jovem encantadora no pub Cheshire antes de a sua mulher morrer e que ela poderá ter estado em sua
casa.
Henry Sprague. Covey pareceu aborrecido.
Henry Sprague percebeu que você não se tinha encontrado casualmente com ela no pub. Mas, se não tivesse inventado uma história mirabolante sobre ela fazer parte
do elenco da peça da Casa de Espectáculos do Cape, ele não teria dito nada ao detective. E como é que a Dr.a Sprague conhece Tina?
Não conhece.
Phoebe conhecia-a suficientemente bem para a tratar pelo nome. Quantas vezes é que Tina esteve em sua casa?
Uma vez. Foi lá quando Viv estava desaparecida. Aquela mulher Sprague não sabe o que faz. É bastante macabro vê-la espreitar pela janela ou abrir a porta e entrar.
Desde que ficou tão mal, confunde as casas. Devia estar por ali quando Tina foi lá a casa aquela única vez. Não se esqueça de que foram imensas pessoas lá a casa
durante aqueles dias, Adam.
Qual era o seu relacionamento com Tina antes de a sua mulher morrer?
Absolutamente nenhum desde o momento em que conheci Viv. Antes disso, sim. No ano passado, quando estava a trabalhar no escritório da casa de espectáculos, saía
com ela.
Adam ergueu uma sobrancelha.
Saía?
Estava envolvido com ela. Scott Covey estava angustiado. Adam, eu era solteiro. Ela era solteira. Olhe para ela. Tina é uma rapariga que gosta de se divertir. Ambos
sabíamos que não levaria a lado nenhum, que quando a temporada acabasse eu me ia embora. Ela trabalhava na Estalagem Daniel Webster, em Sandwich. Foi um grande azar
ela ter arranjado
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um emprego aqui e Viv e eu a termos encontrado. Telefonou-me uma vez, para me convidar para tomar uma bebida com ela. Foi lá a casa para me dizer que lamentava muito
o que acontecera com Viv. Foi tudo. Tina dirigiu-se para eles com a cafeteira do café.
Outra chávena, senhor? perguntou a Scott.
Tina, este senhor é o meu advogado, Adam Nichols disse Scott. Ele vai representar-me. Eu sei o que andam a dizer sobre mim.
Ela pareceu indecisa e não disse nada.
Está tudo bem, Tina disse-lhe Scott. O Sr. Nichols sabe que somos velhos amigos, que costumávamos sair juntos e que tu foste lá a casa para me dar apoio.
Por que quis encontrar-se com Scott nopub Cheshire, naquele dia em que Henry Sprague lá estava? perguntou Adam.
Ela olhou directamente para ele.
Quando Scott saiu do Cape, no fim da temporada, no ano passado, nunca mais voltei a saber nada dele. Depois, quando ele entrou aqui com a mulher, fiquei furiosa.
Pensei que ele andava com ela enquanto estávamos envolvidos um com o outro. Mas não era verdade. Ele conheceu-a no fim do Verão. Eu só precisava de ouvir isso.
Sugiro que não se esqueça de contar essa história à Polícia disse Adam, porque vai ser interrogada. Quero mais um café e a conta, por favor.
Quando ela se afastou da mesa, Adam inclinou-se para Scott.
Escute como nunca escutou antes. Aceitei representá-lo; mas tenho de lhe dizer que estão a acumular-se imensos factos negativos. À sua custa, vou pôr um investigador
a trabalhar neste caso.
Um investigador! Porquê?
O trabalho dele será fazer precisamente as mesmas investigações que a Polícia de Chatham está a levar a cabo. Se houver uma audiência do Grande Júri, não podemos
dar-nos ao luxo de ter surpresas. Precisamos de ver as fotografias da autópsia, o equipamento de mergulho que a sua mulher usava na altura do acidente, saber as
correntes desse dia, descobrir outros barqueiros que testemunhem que quase naufragaram por a tempestade se ter aproximado tão depressa.
Calou-se quando Tina pousou a conta em cima da mesa e se afastou; depois recomeçou.
Precisamos de mais testemunhas como Elaine, que possam testemunhar como o vosso casamento era maravilhoso. E, finalmente, o meu investigador vai investigá-lo, tal
como os polícias estão a fazer neste preciso momento. Se tiver alguns podres no seu passado, preciso de os conhecer e de poder justificá-los.
Olhou para a conta e tirou a carteira.
Por favor, deixe-me ser eu a pagar. Scott pegou na conta. Adam sorriu.
Não se preocupe. Vai ser incluída na conta das despesas. Enquanto desciam os degraus exteriores da estalagem, o Chevy azul que Adam vira afastar-se da casa dos Sprague
entrou no parque e estacionou.
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Tina tem uma visita disse Adam secamente quando o detective Coogan saiu do carro e entrou no restaurante.
30
Amy chegou às nove e meia. Depois de cumprimentar Menley, em vez de ir imediatamente para junto de Hannah, deixou-se ficar junto da mesa da cozinha, onde estavam
agora amontoados os livros e pastas que Menley planeava estudar.
Sr.a Nichols, o meu pai e Elaine convidaram algumas pessoas para um churrasco a noite passada, e Scott Covey também lá esteve. Ele é um espanto!
"Então é por isso que ela tem aquele brilho especial no olhar esta manhã", pensou Menley.
Tens toda a razão concordou ela.
Ainda bem que o Dr. Nichols vai representá-lo. Ele é tão simpático, e a Polícia está a fazê-lo passar um mau bocado.
Foi o que nos disseram.
É esquisito pensar que ele e a mulher estiveram a ver esta casa um dia ou dois antes de ela morrer.
Pois é.
Ele falou comigo durante algum tempo. A mãe dele morreu e ele tem uma madrasta. Disse-me que a princípio não queria gostar dela e que depois teve pena de ter perdido
tanto tempo a ser mesquinho para ela. Agora são muito amigos um do outro.
Ainda bem que ele te disse isso, Amy. Sentes-te um pouco melhor com a ideia do casamento do teu pai? Ela suspirou.
Acho que sim. Ouvir o que ele me disse fez-me acreditar que ficará tudo bem.
Menley levantou-se da mesa e pôs as mãos nos ombros da rapariga.
Vai ficar tudo mais do que bem. Vais ver.
Acho que sim disse Amy. Só que... não, vai ficar tudo bem. Só quero que o meu pai seja feliz.
Hannah estava no parque, examinando uma roca. Naquele momento, sacudiua vigorosamente.
Menley e Amy olharam para ela e riram-se.
Hannah não gosta de ser ignorada disse Menley. Por que não a pões no carrinho e te sentas um pouco lá fora?
Quando saíram, ela abriu os ficheiros Sprague, amontoou o seu conteúdo na mesa da cozinha e começou a tentar dar alguma ordem aos papéis, aos livros e aos recortes.
Era um verdadeiro tesouro de pesquisa histórica. Havia cópias de cartas que remontavam ao século xvII. Havia contas e genealogias e velhos mapas e páginas e mais
páginas de memorandos que Phoebe Sprague fizera, anotando as suas fontes.
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Menley encontrou ficheiros catalogados em dúzias de categorias, entre as quais: NAUFRÁGIOS; PIRATAS; SAQUEADORES; SALAS DE REUNIÕES; CASAS; CAPITÃES DO MAR. Tal
como Henry Sprague avisara, os papéis dentro das pastas estavam longe de estar ordenados. Estavam simplesmente lá, alguns dobrados, outros apenas pedaços rasgados,
alguns com parágrafos sublinhados.
Menley decidiu dar uma olhada rápida a cada pasta, para ter uma ideia do seu conteúdo e tentar ficar com uma ideia geral. Estava também alerta para qualquer menção
ao capitão Andrew Freeman, na esperança de saber mais coisas sobre a Casa "Lembra-te".
Uma hora depois, encontrou a primeira. Na pasta intitulada CASAS, havia uma referência a uma casa que estava a ser construída por Tobias Knight para o capitão Andrew
Freeman. "Uma casa de habitação de bom tamanho, para poder acolher os bens que ele transportou." O ano era o de 1703. "Deve ser uma referência a esta casa", pensou
Menley.
Mais para o fim daquela pasta, encontrou a cópia de uma carta que o capitão Freeman escrevera a Tobias Knight, dando instruções para a construção da casa. Evidenciava-se
uma frase: "Mehitabel, minha esposa, é de tamanho e força pequenos. Que as juntas sejam bem apertadas para que nenhuma corrente de ar incómoda entre para a gelar."
Mehitabel. Aquela era a esposa infiel. "De tamanho e força pequenos", pensou Menley. "... para que nenhuma corrente de ar incómoda entre para a gelar." Por que é
que qualquer mulher enganaria um homem que gostava tanto dela? Afastou a cadeira, levantou-se, dirigiu-se para a sala da frente e olhou lá para fora. Amy colocara
o carrinho quase à ponta da escarpa e estava sentada ao lado dele, a ler.
"Quanto tempo vivera Mehitabel naquela casa?", perguntou Menley a si mesma. "Será que esteve alguma vez apaixonada pelo capitão Freeman? Quando se aproximava a altura
em que ele devia regressar de uma viagem, ela subia alguma vez ao passeio da viúva para ver se ele estava a chegar?"
Perguntara a Adam o que era a pequena plataforma circundada por uma balaustrada que coroava os telhados de muitas das casas antigas do Cape. Ele dissera-lhe que
eram chamados passeios das viúvas, porque antigamente, quando um capitão do mar era esperado em casa, a mulher fazia uma vigília ali, esforçando os olhos para ver
os mastros do navio logo que ele surgia no horizonte. Naquela altura, havia tantas embarcações que não voltavam que se tornaram conhecidos como passeios das viúvas.
Pensou que o daquela casa devia ter uma vista arrebatadora do oceano. Podia imaginar uma jovem elegante de pé lá no alto. Seria um dos esboços que ela desenharia
para ilustrar o livro.
Depois, sorriu ao olhar para o carrinho lá fora com Hannah a dormir ao sol. De repente, sentiu-se calma e em paz. "Vou ficar bem", pensou. "Preocupo-me de mais.
O trabalho equilibra-me sempre."
Voltou para a cozinha e começou a analisar mais pastas e a compilar as suas próprias listas nomes típicos das épocas; descrições de vestuário; referências ao tempo.
Quando olhou para o relógio, eram onze e um quarto. "É melhor começar a pensar no almoço", decidiu, e foi lá fora chamar Amy e Hannah.
Hannah ainda estava a dormir profundamente.
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Este ar é como um sedativo, Amy disse Menley, sorrindo. Quando penso que esta criança não pregou olho durante as primeiras seis semanas de vida!
Ficou inconsciente no momento em que o carrinho começou a rodar disse Amy. Devia cobrar-lhe metade do preço.
Nem penses nisso. O facto de estares aqui significou que tive algumas horas maravilhosas. As pastas que estive a estudar têm material fantástico.
Amy olhou para ela com curiosidade.
Oh, pensei que a tinha visto ali em cima. Apontou para o passeio da viúva.
Amy, para além de alguns minutos em que estive a olhar pela janela do résdochão, não me mexi até agora. Protegendo os olhos com a mão, levantou a cabeça e observou
o passeio da viúva. Há um pedaço de metal na chaminé da esquerda. Da forma como o sol está a incidir nele, parece que está alguma coisa a mexer-se.
Amy não pareceu convencida, mas abanou a cabeça e disse:
Bem, eu estava virada para o sol quando olhei para cima, e tive de piscar os olhos. Devo ter pensado que a vi.
Mais tarde, enquanto Amy estava a dar de comer a Hannah, Menley esgueirou-se para o andar de cima. Uma escada amovível num armário do segundo andar levava ao passeio
da viúva. Abriu a porta do armário e sentiu uma rajada de ar frio. "De onde é que vem esta corrente de ar?", perguntou a si mesma.
Puxou a escada para baixo, subiu os degraus, destrancou o alçapão e depois saiu lá para fora. Cautelosamente, tacteou o chão. Era seguro. Deu alguns passos e pôs
a mão na balaustrada. Dava-lhe quase pela cintura. Também a vedação era segura.
Que é que Amy vira quando pensara que ela estava lá em cima?, perguntou a si mesma. O passeio tinha cerca de três metros quadrados e estava aninhado entre as duas
grandes chaminés. Atravessou-o e olhou para o lugar, a mais de trinta metros, onde Amy estivera sentada. Depois, virou-se para examinar o espaço atrás de si.
Fora o pedaço de metal na esquina da chaminé da esquerda que atraíra o olhar de Amy? Os raios de sol estavam a reflectir-se no metal, criando som bras que se moviam.
"Continuo sem perceber como é que ela pôde enganar-se tanto", pensou Menley enquanto descia a escada. "Meu Deus, aqui está húmido." Tremeu com o frio intenso que
se sentia no estreito armário.
Ao fundo dos degraus, ficou paralisada com um súbito pensamento. "Seria possível que Amy tivesse razão? Quando estava a imaginar Mehitabel à espera do capitão no
passeio da viúva, seria a imagem tão real porque eu subi cá acima?", perguntou-se Menley.
"Poderei estar a perder o contacto com a realidade?" A possibilidade encheu-a de desespero.
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Adam deixou o carro na Estalagem Wayside e percorreu a pé os dois quarteirões que o separavam da agência de compra e venda de propriedades de Elaine. Através da
janela, viu-a sentada à secretária. Estava com sorte. Ela estava sozinha.
A montra estava cheia de fotografias de propriedades para venda. Quando se virou para a porta, reparou na fotografia aérea de Casa "Lembra-te" e estudou-a. "Boa
fotografia", pensou. Tinha captado todo o panorama que se avistava da casa; o oceano, o banco de areia, a praia, o rochedo, um barco de pesca, todos realçados com
notável clareza. Leu o cartão que estava preso à fotografia: "CASA LEMBRA-TE. PARA VENDA." "Nem pensar", pensou ele.
Quando a porta se abriu, Elaine ergueu o olhar, depois afastou a cadeira e dirigiu-se rapidamente para a área da recepção.
Adam, que surpresa tão agradável. Beijou-o levemente.
Ele seguiu-a para o gabinete dela e sentou-se numa cadeira confortável.
Eia, que estás a fazer, a vender a minha casa às escondidas? Ela ergueu uma sobrancelha.
Não sabia que ias comprá-la.
Digamos que é um talvez muito concreto. Só que ainda não te tinha dito. Menley adora a casa, mas não quero apressá-la a assumir um compromisso. Temos uma reserva
até Setembro, não temos?
Sim, e eu tinha a certeza de que iam querer ficar com ela.
Então por que é que tens a fotografia na montra? Ela riu-se.
Atrai negócios. As pessoas fazem perguntas sobre a casa e eu digo que está reservada e sugiro-lhes outra propriedade qualquer.
Foste sempre uma menina esperta.
Tinha de ser. A minha pobre mãe nunca conseguiu aguentar-se num emprego. Arranjava sempre conflitos com outras pessoas e era despedida.
Os olhos de Adam suavizaram-se.
Não tiveste uma vida fácil enquanto crescias, laine. Detesto fazer demasiados elogios, mas tenho de te dizer que agora estás sempre com um aspecto fantástico.
Elaine fez-lhe uma careta.
Estás a ficar piegas.
Não, nem por isso disse Adam calmamente. Talvez um pouco menos denso. Não sei se alguma vez te agradeci por teres sido tão maravilhosa quando aqui estive o ano passado.
Depois de perderes o Bobby e de te separares da Menley, estavas bastante em baixo. Fiquei contente por poder dar-te o apoio de que necessitavas.
Agora vou pedir-te mais ajuda.
Há algum problema? perguntou ela imediatamente.
Não, na verdade, não há problema nenhum. Mas acontece que vou ter de ir muito mais vezes a Nova Iorque do que tinha previsto. Não gosto muito
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da ideia de deixar Menley sozinha tanto tempo. Acho que ela está a ter mais crises de pânico e de visões do que me está a contar. Acho que ela sente que tem de resolver
os seus problemas sozinha, e talvez seja verdade.
Ajudaria se Amy ficasse lá a dormir?
Menley não quer. O que eu pensei foi que, algumas noites em que eu estiver fora, Amy pode ficar a tomar conta de Amy e tu, ou tu e John, podias convidar Menley para
jantar fora. Quando eu estiver em casa, o melhor será passarmos a maior parte do tempo juntos. Ainda estamos... Bem, não interessa.
Adam, que se passa?
Nada.
Elaine conhecia Adam suficientemente bem para saber que não devia pressioná-lo para concluir o que estivera prestes a dizer. Em vez disso, disse:
Avisa-me quando fores novamente para Nova Iorque.
Amanhã à tarde.
Telefono hoje à noite, convido-os aos dois para jantar amanhã, depois insisto para que Menley venha sozinha.
E eu insisto também. Adam sorriu. É um alívio. A propósito, tomei o pequeno-almoço com Scott Covey.
E? Os olhos de Elaine esbugalharam-se.
Nada que te possa contar agora. Confidencialidade advogado-cliente.
Acabo sempre por ser posta de parte disse ela, e depois suspirou. Oh, isso faz-me lembrar uma coisa. Grandes notícias. Marca na tua agenda o sábado a seguir ao Dia
de Acção de Graças. É o dia em que John e eu nos casamos.
Magnífico. Quando marcaram a data?
A noite passada. Tivemos um churrasco, e Scott Covey esteve lá. Falou com Amy sobre a madrasta dele, e mais tarde ela disse ao pai que estava feliz por nós. John
telefonou-me à meianoite. Scott fez realmente a diferença.
Tu estás sempre a dizer-me que Covey é um tipo simpático. Adam levantou-se. Acompanha-me à porta.
Na área da recepção, ele pôs o braço sobre os ombros de Elaine.
Achas que, depois de estarem casados, John vai ficar zangado se eu vier a correr para ti sempre que tiver um problema?
É claro que não.
À porta, ele abraçou-a e beijou-lhe a face.
Costumavas fazer melhor do que isso riu-se ela. Num movimento súbito, voltou-lhe o rosto e premiu firmemente os lábios contra os dele.
Adam recuou e abanou a cabeça.
É a isso que eu chamo memória a longo prazo, laine.
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O serviço de pequenos-almoços estava praticamente terminado. Já só restavam alguns comensais, que acabavam de beber o café sem pressas. O gerente dissera a Tina
para se sentar a uma das mesas do fundo e conversar com o detective. Ela levou café para ambos. Depois, acendeu um cigarro.
Estou a tentar parar disse a Nat, depois da primeira passa. E só fraquejo de vez em quando.
Como quando está nervosa? sugeriu Nat. Os olhos de Tina semicerraram-se.
Não estou nervosa retorquiu ela rispidamente. Por que estaria?
Diga-me você convidou Nat. Uma razão que poderia dar-lhe é, talvez, se você andasse a divertir-se com um homem recém-casado cuja mulher rica morreu de repente. E
se essa morte, afinal, fosse um homicídio, muitas pessoas poderiam perguntar-se até que ponto você estava a par dos planos do marido desolado. Caso hipotético, é
claro.
Oiça, Sr. Coogan disse Tina, eu saí com Scott o ano passado. Ele disse sempre que no fim do Verão seguiria o seu caminho. Tenho a certeza de que já ouviu falar de
romances de Verão.
E ouvi falar de alguns que não terminaram quando o Verão acabou disse Nat.
Este terminou. Foi só quando o vi com a mulher, precisamente nesta sala, e perguntei por aí e me disseram que ele andava com ela desde Agosto do ano passado, que
fiquei furiosa. Havia um tipo que era louco por mim, que até queria casar comigo, e eu dei-lhe com os pés por causa de Scott.
E foi por isso que há um mês se encontrou com Scott naquele pub?
Como acabei de dizer ao Dr. Nichols...
Dr. Nichols?
É o advogado de Scott. Esteve aqui com ele esta manhã. Expliquei-lhe que fui eu que telefonei a Scott, não o contrário. Ele não queria ver-me, mas eu insisti. Depois,
quando entrei no pub, estava um homem a falar com Scott e eu percebi logo que ele não queria que parecesse que eu ia encontrar-me com ele, por isso desandei.
Mas viu-o alguma outra vez?
Telefoneilhe. Ele pediu-me que dissesse o que tinha a dizer pelo telefone. Por isso, deilhe uma ensaboadela.
Deu-lhe uma ensaboadela?
Disse-lhe que gostaria que ele nunca tivesse aparecido na minha vida, que se ele me tivesse deixado em paz eu teria casado com Fred e estaria muito bem agora. Fred
era louco por mim e tinha dinheiro.
Mas você disse que soube sempre que Scott pretendia ir-se embora depois de terminada a temporada da casa de espectáculos.
Tina deu uma grande passa no cigarro e suspirou.
Escute, Sr. Coogan, quando um tipo como Scott corteja uma mulher e lhe diz que está louco por ela, essa mulher pensa que talvez seja ela quem vai conseguir apanhá-lo.
Montes de raparigas fisgaram tipos que juravam que nunca se casariam.
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É capaz de ter razão. Então estava furiosa com Scott porque achou que ele tinha andado consigo e com Viv ao mesmo tempo.
Mas não era verdade. Ela conheceu-o na última semana em que ele esteve cá. Escreveu-lhe. Visitou-o quando ele arranjou emprego no teatro em Boca Raton. Perseguiu-o.
Pelo menos, isso fez-me sentir melhor.
Scott disse-lhe isso?
Sim.
E depois fez-lhe uma visita para o consolar quando a mulher dele desapareceu. Talvez tivesse esperança de que ele se voltasse para si naquela hora de necessidade.
Bem, não voltou. Tina afastou a cadeira. E, mesmo que tivesse tentado, não teria adiantado nada. Estou novamente com Fred, por isso. como vê, não há nenhuma razão
para andar a incomodar-me. Gostei de o conhecer, Sr. Coogan. O meu intervalo para café terminou.
Ao sair, Nat parou no escritório da Estalagem Wayside e pediu para ver a ficha que Tina preenchera quando se candidatara a empregada de mesa. Através da sua leitura,
ficou a saber que ela era de Nova Bedford, estava no Cape há cinco anos e o seu último emprego fora na Estalagem Daniel Webster, em Sandwich.
Nas referências que fornecera, descobriu o nome que procurava. Fred Hendin, carpinteiro em Barnstable. Barnstable era a cidade a seguir a Sandwich. Apostava qualquer
coisa em como Fred Hendin era o mãos-largas que Tina abandonara no ano anterior e com quem depois fizera as pazes. Não quisera perguntar muitas coisas sobre ele
a Tina. Não queria que ela o avisasse de que seria interrogado.
Seria interessante falar com o paciente pretendente de Tina e com as suas colegas da Estalagem Daniel Webster.
"Uma jovem descarada", pensou Nat enquanto devolvia a ficha de Tina. "E bastante convencida. Acha que me levou à certa. Veremos."
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Anne e Graham Carpenter tinham recebido convidados em casa durante o fim-de-semana; as filhas Emily e Barbara tinham-nos visitado com as respectivas famílias. Foram
todos andar de barco, depois os adultos foram jogar golfe enquanto os três adolescentes ficaram na praia com amigos. No sábado à noite, jantaram no clube. O facto
de não haver nenhuma da discórdia e das brigas que Vivian trouxera àquelas reuniões de família serviu, de uma forma perversa, para tornar Anne mais consciente da
sua ausência.
"Nenhum de nós a amou como ela precisava de ser amada", disse para si mesma. Aquele pensamento e a questão do anel de esmeralda não paravam de a importunar. O anel
era o único objecto que Vivian estimara sinceramente. Teria sido arrancado da sua mão pela única pessoa que a
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fizera sentir-se amada? A dúvida incomodou Anne Carpenter durante todo o fim-de-semana.
Na segundafeira de manhã, ao pequeno-almoço, aludiu à questão do anel.
Graham, eu acho que Emily teve uma boa ideia acerca da esmeralda.
Qual foi, querida?
Ela referiu que o anel ainda está incluído na nossa apólice de seguros. Acha que devíamos participar que ele desapareceu. O seguro não cobriria uma situação destas?
Talvez. Mas estaríamos a dar o dinheiro a Scott, que é o herdeiro de Vivian.
Eu sei. Mas aquele anel está avaliado em duzentos e cinquenta mil dólares. Não achas que, se insinuássemos na companhia de seguros que duvidamos da versão de Scott
sobre como ele se perdeu, eles poderiam destacar um detective para deslindar a situação?
O detective Coogan está a levar a cabo uma investigação. Tu sabes isso, Anne.
Faria algum mal se a companhia de seguros se envolvesse?
Suponho que não.
Anne assentiu quando a governanta se aproximou da mesa com o bule de café.
Quero mais um pouco, Sr.a Dillon, obrigada. Bebericou em silêncio durante alguns minutos e depois disse:
Emily lembrou-me que Vivy se queixara de que o anel estava muito apertado quando o tirava para o limpar. Lembras-te? Ela partiu aquele dedo quando era pequena e
o nó alargou. Mas o anel servia depois de estar no sítio, por isso a história de Scott acerca de ela o passar para a outra mão não faz sentido.
Os olhos dela brilharam com lágrimas quando disse:
Recordo-me das histórias que a minha avó costumava contar-me sobre esmeraldas. Uma delas era que dá muito azar perder uma esmeralda. A outra é que as esmeraldas
têm a reputação de encontrar o caminho de volta para casa.
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Jan Paley passara um domingo sossegado. Para ela, era o dia mais difícil da semana. Tinha demasiadas recordações de domingos agradáveis em que ela e o marido, Tom,
liam os jornais, faziam juntos as palavras cruzadas, passeavam na praia. Vivia em Lower Road, em Brewster, na mesma casa que tinham comprado há trinta anos. Tinham
planeado vendê-la quando as obras de remodelação da Casa "Lembra-te" estivessem concluídas. Agora, estava profundamente grata por ainda não se terem mudado quando
perdera Tom.
Jan sentia-se sempre aliviada quando chegava a segundafeira e
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recomeçavam as suas actividades dos dias de semana. Recentemente, oferecera-se como voluntária na Biblioteca das Senhoras de Brewster e trabalhava lá às segundas-feiras
à tarde. Era um passa-tempo agradável e útil, e ela gostava da companhia das outras senhoras.
Naquele dia, enquanto se dirigia de carro para a biblioteca, pensou em Menley Nichols. Gostara daquela jovem assim que a conhecera, o que era gratificante, já que
admirava imensamente os seus livros. Estava igualmente contente por a acção do próximo livro da série de David decorrer no Cape. No sábado à noite, quando ela e
Menley tinham falado na Casa "Lembra-te", Menley dera a entender que poderia usar o capitão Andrew Freeman como modelo para a história de um rapazinho a crescer
e a ir para o mar.
Jan perguntou a si mesma se Menley seguira o seu conselho e pedira a Henry Sprague o material das pesquisas de Phoebe, mas, durante a viagem na via rápida de três
faixas, lembrou-se de outra coisa. No princípio do século xviI, era prática comum um capitão do mar levar a mulher, e até os filhos, consigo numa longa viagem. Algumas
dessas mulheres tinham escrito diários que faziam agora parte da colecção da Biblioteca das Senhoras de Brewster. Ainda não tivera oportunidade de os ler, mas seria
interessante dar-lhes uma vista de olhos agora e ver se, por acaso, a mulher do capitão Freeman fora uma das contribuintes.
Estava um dia lindo, e, como era previsível, o único carro no parque de estacionamento pertencia a Alana Martin, a outra voluntária das segundas-feiras. "Esta tarde
terei tempo de sobra para ler", pensou Jan.
Aquelas raparigas passeavam muito murmurou para Alana, uma hora mais tarde, quando se sentou a uma das compridas mesas com uma dúzia de diários manuscritos empilhados
à sua volta. Uma delas escreveu: "Estive dois anos a bordo." Foi à China e à índia, teve um bebé durante uma tempestade no Atlântico e voltou para casa "revigorada
e tranquila de espírito, apesar de algumas dificuldades durante a viagem". Estamos na era do avião a jacto, mas eu nunca fui à China.
Os diários ofereciam uma leitura fascinante, mas não conseguiu encontrar nenhuma referência à mulher do capitão Freeman. Finalmente, desistiu.
Parece-me que a mulher do capitão Andrew Freeman não sabia escrever, ou, se sabia, não temos as suas memórias aqui.
Alana estava a verificar as prateleiras para ver se havia livros fora do sítio. Fez uma pausa e tirou os óculos, um hábito que tinha quando estava a tentar lembrar-se
de alguma coisa.
Capitão Freeman murmurou ela. Lembro-me de encontrar algum material sobre ele há alguns anos para Phoebe Sprague. Parece-me que até temos um retrato dele algures.
Ele cresceu em Brewster.
Não sabia disse Jan. Pensei que era de Chatham. Alana voltou a pôr os óculos.
Deixa-me dar uma vista de olhos.
Alguns minutos depois, Jan estava a ler os anais de Brewster e a tomar notas. Descobriu no livro que a mãe de Andrew fora Elizabeth Nickerson, filha de William Nickerson,
de Yarmouth, que, em 1653, casara com Samuel
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Freeman, agricultor. Como prenda de casamento, recebera do pai uma parcela de quarenta acres de terreno elevado e dez acres em Monomoy, como Chatham era naquela
época conhecida.
"Será que a propriedade de Chatham foi onde a Casa "Lembra-te" acabou por ser construída?", pensou Jan.
Samuel e Elizabeth Freeman tiveram três filhos, Caleb, Samuel e Andrew. Apenas Andrew chegou à idade adulta, e aos 10 anos foi para o mar no Mary Lou, um pequeno
barco de um mastro, sob o comando do capitão Nathaniel Baker.
Em 1702, Andrew, com 38 anos, agora capitão do seu próprio navio, o Godspeed, casou com Mehitabel Winslow, de 16 anos, filha do reverendo Jonathan Winslow, de Boston.
"Mal posso esperar por contar a Menley Nichols que descobri tudo isto", exultou Jan. "É claro que ela pode ter os apontamentos de Phoebe e já ter encontrado todas
estas informações."
Queres dar uma espreitadela ao capitão Andrew Freeman?
Jan ergueu o olhar. Alana estava a seu lado, sorrindo triunfalmente.
Eu sabia que tinha visto um retrato dele. Deve ter sido feito por alguém do navio dele. Não é imponente?
O desenho a aparo de tinta mostrava o capitão Freeman ao leme do Godspeed. Um homem forte, entroncado e alto, com uma barba curta, feições fortes, boca firme, olhos
que estavam semicerrados como se ele estivesse a olhar para o Sol. O seu aspecto emanava confiança e comando.
Tinha a reputação de ser destemido, e parece que era mesmo verdade, não achas? comentou Alana. Digo-te que não gostaria de ser a mulher que o enganou e foi apanhada.
Achas que não faz mal se eu fizer uma fotocópia disto? perguntou Jan. Terei muito cuidado.
Não faz mal nenhum.
Quando foi para casa, ao fim da tarde, Jan telefonou a Menley e disse-lhe que tinha algumas coisas interessantes para ela.
Fiz uma descoberta verdadeiramente especial prometeu ela. Deixo-lhe tudo aí amanhã. Vai estar em casa por volta das quatro horas?
Claro que sim concordou Menley. Hoje estive a fazer alguns esboços para as ilustrações, e claro que o material da Dr.a Sprague é formidável. Tenho de lhe agradecer
a sugestão. Hesitou, e depois perguntou: Sabe por acaso se haverá algum retrato de Mehitabel algures?
Não sei disse Jan. Mas pode ter a certeza de que vou continuar a procurar.
Quando desligou, Jan ficou perdida nos seus pensamentos. Menley Nichols parecera verdadeiramente contente por ter notícias dela, mas havia alguma coisa na sua voz
que inquietara Jan. Que seria? E depois a pergunta sem resposta veio-lhe outra vez à lembrança.
Tom tivera o ataque cardíaco na Casa "Lembra-te". Acabara de entrar, a esfregar o peito, depois de ter estado a trabalhar lá fora. Ela obrigara-o a deitar-se, e
depois correra para telefonar ao médico. Quando voltara, ele agarrara-lhe na mão e apontara para a lareira.
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Jan, eu acabei de ver...
Que é que Tom vira? Ele não vivera o suficiente para terminar a frase.
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Menley mandou Amy para casa às duas horas, depois de porem Hannah a dormir a sesta. Apanhara várias vezes a adolescente a observá-la e estava ligeiramente enervada
com aquele exame minucioso. Ela tinha a mesma expressão que via tantas vezes no rosto de Adam, e sentiu-se desconfortável. Ficou aliviada quando ouviu o carro de
Amy afastar-se da casa.
Sabia que Adam só chegaria a casa dentro de aproximadamente uma hora. Depois de se encontrar com Scott Covey, tinha uma partida de golfe marcada com três dos amigos
que tinham estado na festa de Elaine. "Bom, pode ser que se fartem de todos os lembras-te", pensou ela, e depois sentiu-se um pouco culpada. "Adam adora golfe e
tem tão poucas oportunidades para jogar, e é bom ele ter amigos aqui."
"O problema é que eu estou muito confusa", meditou ela. "Ouvir o comboio, não me lembrar de ter posto Hannah no berço, não ter a certeza absoluta de não ter estado
no passeio da viúva quando Amy julgou ver-me. Mas ficarei louca se Adam insistir em ter alguém aqui o tempo todo." Detestava pensar naquele primeiro mês depois de
Hannah nascer, quando tivera as frequentes crises de ansiedade e tinham uma enfermeira a viver lá em casa. Ainda conseguia ouvir a suave voz bem intencionada, mas
incrivelmente irritante, a afastá-la constantemente do bebé. " Então, Sr.a Nichols, por que não vai descansar um bocadinho? Eu tomo bem conta de Hannah."
Não podia deixar que isso voltasse a acontecer. Foi até ao lavaloiça e passou água fria no rosto. "Tenho de superar estas recordações do passado e os lapsos de memória",
pensou.
Menley sentou-se à mesa da cozinha e voltou a concentrar-se no material de Phoebe Sprague. O que se intitulava NAUFRÁGIOS ofereceu uma leitura fascinante. Barcos
de um mastro e paquetes e escunas e baleeiros durante os séculos xvI e xvII tinham-se afundado tantos em violentas tempestades naquela área, mesmo defronte daquela
casa. Naqueles tempos, a faixa de Monomoy era conhecida como o Cemitério Branco do Atlântico.
Havia uma referência ao Godspeed, que, em batalha feroz, dominara "os ataques violentos de um navio pirata", e cujo capitão, Andrew Freeman, arreara pessoalmente
a "bandeira sangrenta" que os piratas tinham içado no topo do mastro.
"O lado duro do capitão", pensou Menley. "Ele deve ter sido um homem dos diabos." Uma imagem dele começou a formar-se na sua mente. Rosto magro, pele enrugada e
endurecida pelo sol e pelo vento. Uma barba curta. Feições fortes e irregulares dominadas por olhos penetrantes. Pegou no bloco de desenho e, com traços rápidos
e seguros, transferiu a imagem mental para o papel.
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Eram três e um quarto quando ela olhou novamente para cima. Alan já não devia demorar e estava na hora de Hannah acordar. Só tinha tempo para estudar mais uma pasta.
Escolheu a que estava catalogada SALAS DE REUNIÕES. No Cape, no passado, as salas de reuniões eram as igrejas. Phoebe Sprague tinha copiado velhos registos que achava
obviamente interessantes. As páginas incluíam histórias de pastores ardentes que ficavam no púlpito falando sobre o "Apetite de Deus" e "A Imediata Confusão do Diabo";
jovens pastores tímidos que aceitavam com gratidão o salário de cinquenta libras por ano e "uma casa e terra e um bom fornecimento de lenha cortada e trazida à porta".
Multar um membro da congregação por pequenas violações do dia de descanso fora uma ocorrência vulgar. Havia uma longa lista de infracções menores, como assobiar
ou deixar um porco fugir no Dia do Senhor.
Depois, quando se preparava para fechar a pasta, Menley encontrou o nome de Mehitabel Freeman.
No dia 10 de Dezembro de 1704, numa reunião, várias boas esposas levantaram-se para testemunhar que, no mês anterior, enquanto o capitão Andrew Freeman estava no
mar, tinham observado Tobias Knight a visitar Mehitabel Freeman "a horas impróprias".
Segundo o relato, Mehitabel, grávida de três meses naquela época, tinha-se levantado de um salto para negar veementemente a acusação, mas Tobias Knight, "humilde
e arrependido, confessou o adultério e agradeceu a oportunidade de purificar a sua alma".
No julgamento, os diáconos louvaram Tobias Knight pela piedosa renúncia que fizera do seu pecado e "recusaram-se a dar-lhe um castigo público, mas obrigaram-no a
pagar, pela dita ofensa, a soma de cinco libras para os pobres da freguesia." A Mehitabel foi dada a oportunidade de renunciar à quebra da castidade. A sua veemente
recusa e a mordaz denúncia de Tobias Knight e dos seus acusadores selaram o seu destino.
Foi decretado que na primeira reunião da cidade, seis semanas depois de ter o bebé, "a adúltera Mehitabel Freeman apresentar-se-ia para receber quarenta chicotadas
menos uma".
Havia uma anotação com a letra de Phoebe Sprague: "O Godspeed regressou de uma viagem a Inglaterra no dia 1 de Março e partiu novamente no dia 15 de Março. O capitão
estava presente quando o bebé nasceu? Nascimento registado no dia 15 de Junho, como filho de Andrew e Mehitabel, por isso parece que não houve dúvidas de que ele
era o pai. Ele voltou em meados de Agosto, perto da altura em que a sentença deve ter sido executada. Voltou a partir imediatamente, levando consigo o bebé, e esteve
fora quase dois anos. O registo seguinte mostra que o Godspeed regressou em Agosto de
1707."
"E, durante todo aquele tempo, ela não soube onde estava o seu bebé, nem mesmo se ele estava vivo", pensou Menley.
Eia, estás mesmo concentrada nesses papéis. Menley ergueu o olhar, espantada.
Adam!
É o meu nome.
Claramente descontraído, ele sorria. A pala do boné escurecia-lhe o
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rosto, mas a camisa desportiva azul estava desapertada no colarinho e revelava um toque de bronzeado recente, que era também evidente nos seus braços e pernas. Inclinou-se
para ela e abraçou-a.
Quando estás tão concentrada nas pesquisas nem vale a pena perguntar-te se sentiste a minha falta.
Tentando voltar de novo ao presente, Menley encostou a cabeça ao braço dele.
Contei todos os minutos em que não estiveste cá.
Que caso sério. Mas onde está sua alteza?
A dormir a sono solto.
Menley ergueu os olhos e viu-o olhar fugazmente para o monitor do bebé. "Está a certificar-se de que está ligado", pensou ela. Um grito, ardente e magoado, ecoou
no seu espírito. "Oh, meu amor, por que não podes confiar em mim?"
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Quando Fred Hendin desviou o carro para a entrada da sua modesta casa de Cape Cod em Barnstable, percebeu que o homem no carro estacionado do outro lado da rua estava
à sua espera.
Nat Coogan, de distintivo na mão, alcançou-o ao pé da porta.
Sr. Hendin?
Fred olhou brevemente para o distintivo.
Já dei no escritório. O seu meio sorriso desmentia a ideia de sarcasmo.
Não ando a vender bilhetes para o baile da Polícia disse Nat, alegremente, avaliando rapidamente o homem que estava à sua frente. "Trinta e muitos anos", pensou.
"Ascendência noroeguesa ou sueca." O homem era baixo, com braços e pescoço fortes, cabelo louro e ralo a precisar de um corte. Usava um macacão de ganga e uma T-shirt
completamente ensopada de suor.
Hendin enfiou a chave na fechadura.
Entre.
Movimentou-se e falou pausadamente, como se ponderasse sobre tudo antes de falar ou agir.
A sala em que entraram fez Nat recordar-se da primeira casa que tinham comprado quando ele e Deb se tinham casado. Era composta por aposentos pequenos, mas nunca
mais se esquecera de como era acolhedora.
A sala de estar de Fred Hendin podia ter sido mobilada por catálogo. Sofá de imitação de pele com espreguiçadeira a condizer, mesas folheadas a nogueira, mesa de
café a condizer, arranjo de flores artificial, carpete bege puída, cortinas beges pretensiosas que não chegavam bem ao peitoril das janelas.
O obviamente dispendioso equipamento de laser guardado numa bonita estante de madeira de cerejeira parecia deslocado. O equipamento consistia
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de uma televisão de oitenta centímetros, vídeo e aparelhagem estereofónica com leitor de CD. Havia prateleiras cheias de cassetes de vídeo. Nat inspeccionou-as descaradamente
e depois assobiou.
- Tem uma belíssima colecção de filmes clássicos comentou ele. Depois, examinou as cassetes- e os CD. Deve gostar da música dos anos quarenta e cinquenta. Eu e a
minha mulher também adoramos.
Música de jukebox disse Hendin. Faço colecção há anos. Nas prateleiras de cima havia meia dúzia de esculturas de veleiros em madeira.
Se eu estiver a ser intrometido, não hesite em dizer-me disse Nat enquanto se esticava e pegava cuidadosamente numa escuna primorosamente esculpida. O senhor fez
isto?
Hum-hum. Faço esculturas enquanto estou a ouvir música. Um bom passatempo. E ajuda a descontrair. Que é que o senhor costuma fazer enquanto ouve música?
Nat arrumou a escultura e virou-se para olhar para Hendin.
Às vezes, estou a arranjar alguma coisa em casa ou a consertar o carro. Se os miúdos não estão em casa e nos apetece, a minha mulher e eu dançamos.
Aí é que me apanhou. Eu tenho dois pés esquerdos. Vou buscar uma cerveja para mim. Quer uma? Ou um refrigerante?
Não, obrigado.
Nat observou as costas de Hendin quando ele desapareceu na soleira da porta. "Um tipo interessante", pensou. Olhou novamente para as prateleiras de cima da estante,
apreciando as esculturas finamente esculpidas. "É um verdadeiro artesão", pensou. Não sabia porquê, mas não conseguia imaginar aquele homem e Tina juntos como um
casal.
Quando Hendin voltou, trazia latas de cerveja e de refrigerante.
Estão aí, se mudar de ideiasdisse, e colocou os refrigerantes à frente de Nat. Muito bem, que quer?
É apenas rotina. Deve ter lido ou ouvido falar sobre a morte de Vivian Carpenter!?
Os olhos de Hendin semicerraram-se.
- E o ano passado Scott Covey andou com a minha namorada e o senhor quer saber se ele ainda está envolvido com ela. Nat encolheu os ombros.
O senhor não perde tempo, Sr. Hendin.
Fred.
Muito bem, Fred.
Tina e eu vamos casar. Começámos a sair juntos no princípio do Verão do ano passado, e depois apareceu Scott Covey. Era um verdadeiro galã. Eu avisei Tina de que
ela estava a perder tempo, mas oiça, o senhor viu o tipinho. Nem imagina a música que ele lhe deu. Infelizmente, ela caiu na conversa.
Como é que você se sentiu?
1 Aparelho que toca uma música mediante a colocação de uma moeda. (N. da T.)
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Triste. E, de uma forma estranha, senti pena de Tina. Ela não é tão sabida como parece.
"Ai isso é que é", pensou Nat.
Aconteceu exactamente o que eu tinha previsto disse Hendin. Covey encenou um belo desaparecimento no fim do Verão.
E Tina voltou para si a correr. Hendin sorriu.
Eu até gostei da atitude dela. Foi corajosa. Eu fui vê-la onde ela trabalhava como empregada de mesa e disse-lhe que sabia que Covey se tinha ido embora e que achava
que ele era um pulha. Ela disse-me que não desperdiçasse a minha piedade.
E queria com isso dizer que ainda estava em contacto com ele? perguntou Nat rapidamente.
Nem pensar. Queria dizer que não me ia ficar agradecida. Só saímos esporadicamente durante o Inverno. Ela saiu com muitos outros tipos. Depois, na Primavera, por
fim, ela chegou à conclusão de que eu não sou assim tão mau.
Ela disse-lhe que entrou em contacto com Scott Covey quando ele se mudou outra vez para cá?
A testa de Hendin ficou profundamente enrugada.
Não imediatamente. Disse-me há algumas semanas. O senhor tem de entender que Tina não é pessoa para esquecer facilmente o que lhe fazem. Estava bastante magoada
e teve de desabafar. Gesticulou. Está a ver esta sala, esta casa? Era da minha mãe. Mudei-me para cá há alguns anos, depois de ela falecer. Bebeu um longo golo de
cerveja.
Quando Tina e eu começámos a falar em casamento, ela disse-me que nunca na vida viveria com toda esta porcaria. Ela tem razão. Eu não me preocupei em mudar nada,
excepto o móvel e a estante para os meus filmes e fitas. Tina quer uma casa maior. Andamos à procura de uma casa em mau estado para eu restaurar. Mas o que eu quero
dizer com isto é que Tina diz tudo o que tem a dizer na cara das pessoas.
Nat consultou os seus apontamentos.
Tina vive num apartamento alugado em Yarmouth.
É verdade. Mesmo nos limites da cidade, a alguns quilómetros daqui. É conveniente para nós os dois.
Por que é que ela deixou o trabalho na Estalagem Daniel Webster e foi trabalhar em Chatham? Durante o Verão, com o aumento do tráfego, deve demorar pelo menos quarenta
minutos de carro.
Ela gostava da Estalagem Wayside. O horário é melhor. As gorgetas são boas. Oiça, Coogan. Deixe Tina em paz.
Hendin pousou a cerveja e levantou-se. Era evidente que não queria falar mais naquele assunto.
Nat afundou-se ainda mais na cadeira e sentiu os topos afiados de plástico partido em volta da zona gasta por detrás da sua cabeça.
Então é claro que você desculpou a visita que Tina fez a Scott Covey quando a mulher dele ainda estava desaparecida.
"Em cheio", pensou Nat enquanto observava o rosto de Hendin a
92 ensombrar-se. Um ligeiro rubor escureceu o tom de pele do rosto dele, acentuando as maçãs-do-rosto salientes.
Acho que já falámos o suficiente disse ele em tom monocórdico.
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Tinha sido um dia extremamente agradável. Tal como acontecia de vez em quando, por qualquer razão inexplicável, Phoebe tivera breves momentos de lucidez.
A certa altura, perguntara pelas crianças e Henry estabelecera imediatamente uma conferência telefónica. A escutar numa extensão, ouvira a alegria nas vozes de Richard
e de Joan enquanto falavam para a mãe. Durante alguns minutos, entabularam uma verdadeira conversa.
Depois ela perguntou:
E como estão...
Henry compreendeu a pausa. Phoebe estava a tentar lembrar-se dos nomes dos netos. Indicou-lhos rapidamente.
Eu sei. Agora a voz de Phoebe soava irritável. Pelo menos, não começaste a frase dizendo "Lembras-te...". O seu suspiro foi uma censura irada.
Paizinho. Joan parecia estar à beira das lágrimas.
Está tudo bem avisou-a ele.
Um clique indicou que Phoebe tinha desligado. Os momentos maravilhosos de normalidade tinham acabado. Henry continuou ao telefone o tempo suficiente para dizer aos
filhos que o lar tinha uma vaga no dia 1 de Setembro.
Reserve-a para ela disse Richard firmemente. Nós vamos para aí e ficamos no Dia do Trabalhador.
- Nós também disse Joan.
Vocês são bons meninos disse Henry, tentando afastar o nó que começava a formar-se na sua garganta.
Eu quero estar com uma pessoa que ainda me considera uma menina
disse-lhe a filha, com a voz embargada pela emoção.
Vemo-nos daqui a algumas semanas, paizinho prometeu Richard.
Coragem.
Henry estivera na extensão do quarto, Phoebe no seu antigo escritório. Henry dirigiu-se apressadamente para o vestíbulo, sempre com a preocupação de que Phoebe pudesse
escapar-se. Mas ela não fugira; encontrou-a sentada à secretária onde passara tantas horas produtivas.
A gaveta do fundo, que guardara tantas pastas, estava aberta e vazia. Phoebe estava a olhar para ela. O cabelo que antigamente costumava usar num perfeito chinó
escapava-se agora dos ganchos que Henry lhe pusera na tentativa de o prender num carrapito.
Ela voltou-se quando o ouviu entrar.
Os meus papéis. Apontou para a gaveta vazia. Onde estão eles?
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Nem mesmo agora ele deixaria de lhe dizer a verdade.
Empresteios à mulher de Adam. Ela quer consultá-los para um livro que está a escrever. Vai fazer referência a ti, Phoebe.
A mulher de Adam. O olhar de irritação que lhe passara pelo rosto transformou-se num franzir interrogador.
Ela esteve aqui ontem. Ela e Adam vivem na Casa "Lembra-te". Ela vai escrever um livro sobre a época em que a casa foi construída e vai usar a história do capitão
Freeman.
Os olhos de Phoebe Sprague ficaram sonhadores.
Alguém devia reabilitar o nome de Mehitabel disse ela. Era isso que eu queria fazer. Alguém devia investigar Tobias Knight.
Fechou a gaveta com força.
Estou com fome. Estou sempre com fome.
Depois, quando Henry se dirigiu para junto dela, olhou-o directamente nos olhos.
Amo-te, Henry. Ajuda-me, por favor.
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Ao fim da tarde, quando Hannah acordou, Menley e Adam foram nadar. A propriedade da Casa "Lembra-te" incluía direitos de praia privada, o que significava que, embora
toda a gente pudesse passear na praia deles, ninguém podia permanecer nela.
O calor do meio da tarde tinha já um ligeiro toque do princípio do Outono. A brisa estava fria e não havia ninguém a passear.
Enquanto Menley nadava, Adam sentou-se ao lado de Hannah, que estava confortavelmente instalada na cadeirinha.
Não há dúvida de que a tua mãe adora água, miúda disse ele, enquanto observava Menley a mergulhar em ondas cada vez mais turbulentas. Alarmado, ele levantou-se quando
a viu aventurar-se mais para o largo. Por fim, caminhou para a margem e acenou-lhe, fazendo-lhe sinal para ela voltar.
Ela não o via ou estava só a fingir que não o via?, perguntou ele a si mesmo quando ela se afastou ainda mais. Uma grande onda formou-se, cresceu e rebentou. Ela
enrolou-se nela e emergiu na espuma, cuspindo e sorrindo, o cabelo cheio de sal a cobrir-lhe a cara.
Fantástico! exultou ela.
E perigoso. Menley, isto é o oceano Atlântico.
Não me digas. Eu pensava que era uma piscina para crianças. Juntos, caminharam pela praia até ao local onde Hannah continuava sentada, a observar complacentemente
uma gaivota que saltitava à beira da água.
Men, não estou a brincar. Quando eu não estiver cá, não quero que nades para tão longe.
Ela parou.
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E não te esqueças de deixar o monitor ligado quando a tua filha estiver a dormir. Estou certa? E não achas que seria bom pedir a Amy que passasse a noite cá em casa?
Para tomar conta de mim, não de Hannah, de mim? Certo? E a tua pequena arma não é a ameaça implícita de que precisamos de ajuda interna porque talvez estes distúrbios
pós-traumáticos sejam um problema? Afinal de contas, fui eu que guiei o carro para a frente do comboio quando o teu filho morreu.
Adam agarrou-lhe nos braços.
Menley, pára com isso. Raios. Continuas a culpar-me por não te perdoar pela morte de Bobby, mas isto não é uma questão de culpa. O único problema é que não consegues
perdoar-te a ti própria.
Voltaram para casa, perfeitamente conscientes de que se tinham magoado profundamente um ao outro e que deviam ter uma conversa muito séria. Porém, o telefone estava
a tocar quando abriram a porta e Adam correu para o atender. Qualquer conversa teria de vir mais tarde. Menley enrolou uma toalha em volta do fato de banho molhado,
pegou em Hannah ao colo e escutou.
Elaine! Como estás?
Menley reparou que ele ficou com um ar preocupado. Que é que Elaine estaria a dizer-lhe?, perguntou-se ela. E, pouco depois: "Que é que ele queria dizer com Obrigado
por me dizeres?"
Depois o seu tom mudou, ficando novamente alegre.
Amanhã à noite? É pena, mas vou para Nova Iorque. Mas escuta, talvez Menley...
"Não", pensou Menley.
Adam tapou o bocal com uma mão.
Men, Elaine e John vão jantar amanhã ao Captain's Table em Hyannis. Querem que vás com eles.
Agradece-lhes muito, mas eu quero ficar em casa a trabalhar. Fica para outra vez. Menley aconchegou Hannah de encontro a si. És uma miúda incrível murmurou ela.
Men, Elaine quer mesmo que tu vás. Detesto imaginar-te sozinha nesta casa. Por que não vais? Podes pedir a Amy que fique aqui algumas horas.
"A ameaça implícita", pensou Menley. "Vai e mostra como és sociável, ou Adam vai querer que fique alguém contigo o tempo todo." Forçou um sorriso.
Aceito com muito prazer. Adam voltou a falar para o telefone.
laine, Menley adoraria ir. Às sete está perfeito. Cobriu novamente o bocal com a mão e disse: Men, eles acham que seria boa ideia Amy ficar cá a dormir. Não querem
que ela vá sozinha para casa de carro de noite.
Menley olhou para Adam. Teve consciência de que até Hannah sentiu a tensão do seu corpo. O bebé parou de sorrir e começou a choramingar.
Diz à laine disse Menley, acentuando o nome e o diminutivo que Adam usava que eu sou perfeitamente capaz de ficar sozinha nesta casa ou noutra qualquer, e que se
Amy não puder ir de carro para casa às dez da noite numa noite de Verão, então é demasiado imatura para tomar conta da minha filha.
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A zanga começou a passar ao jantar. Enquanto Menley deu de comer a Hannah e lhe deu banho, Adam fez uma rápida viagem ao mercado e voltou com lagostas frescas, agriões,
feijão-verde e um pão italiano.
Prepararam o jantar juntos, bebericaram um chardonnay gelado enquanto as lagostas coziam no vapor e ao fim do jantar levaram as chávenas de café e passearam até
ao extremo da propriedade, contemplando as poderosas ondas a bater na areia.
O sabor do ar salgado nos lábios acalmou Menley. "Se fosse Adam que estivesse a passar por estas crises de ansiedade e depressão, eu também estaria preocupada",
disse ela a si mesma.
Mais tarde, quando se preparavam para se deitar, foram ver Hannah pela última vez naquela noite. Ela mexera-se na cama de grades e estava a dormir atravessada. Adam
endireitou-a, tapoua e deixou ficar a mão pousada nas costas dela durante algum tempo.
Outra coisa que Menley descobrira nas pastas veiolhe à lembrança. Nos velhos tempos do Cape, o amor especial entre um pai e a sua filha bebé fora reconhecido e até
tivera um nome. A filha era o tesouro do pai.
Mais tarde, abraçados um ao outro, quase a dormir, Adam fez a pergunta que já não podia reprimir.
Men sussurrou ele, por que não quiseste que Amy soubesse que tinhas estado no passeio da viúva?
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Quando Nat Coogan chegou ao emprego na terça-feira de manhã, encontrou um recado na secretária. "Vá ver-me." Estava assinado por Frank Shea, o chefe da Polícia.
"Que se passa?", perguntou a si mesmo enquanto se dirigia para o gabinete do chefe. Frank estava ao telefone com o promotor de Justiça. Os dedos de Shea estavam
a tamborilar na secretária. A sua expressão normalmente amigável desaparecera.
Nat instalou-se numa cadeira, escutando metade da conversa que conseguia ouvir e adivinhando o resto.
As coisas começavam a aquecer. A companhia de seguros de Graham Carpenter tinha-se envolvido na situação. Estavam mais do que satisfeitos por apoiar a ideia do Sr.
Carpenter, que acreditava que a filha fora vítima de jogo sujo, que o anel de esmeralda lhe fora retirado do dedo à força por Scott Covey e que estava agora na posse
dele.
Nat ergueu as sobrancelhas quando percebeu que a parte seguinte da discussão tinha a ver com o estudo das correntes do oceano. Depreendeu que peritos da Guarda Costeira
estavam dispostos a testemunhar que, se Vivian Carpenter Covey estivera a fazer mergulho onde o marido afirmava que
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tinham estado quando se separaram, o seu corpo não teria dado à costa em Stage Harbour e teria sido arrastado na direcção de Martha's Vineyard. Quando Shea desligou
o telefone, disse:
Nat, ainda bem que escutaste o teu palpite. O promotor de Justiça ficou muito satisfeito quando soube que temos uma investigação activa a decorrer. Ainda bem que
já começámos, porque, quando os órgãos de comunicação social souberem o que se passa, isto vai virar um circo. lembra-te do que fizeram no caso Von Bullow.
Sim, claro. E enfrentamos alguns dos problemas com que a acusação se deparou nesse caso. Inocente ou culpado.Von Bullow safou-se porque tinha um bom advogado. Estou
convencido de que Covey é culpado como o diabo, mas provar isso é uma história completamente diferente. Ele também tem um advogado excelente. Foi um grande azar
para nós Adam Nichols ter aceite o caso do Covey.
Muito brevemente, poderemos ter a oportunidade de descobrir até que ponto Nichols é bom.
Estamos prestes a descobrir mais provas contra Covey. Baseando-se no desaparecimento do anel de esmeralda e em tudo o resto que sabemos, o promotor de Justiça vai
emitir um mandado de busca à casa e ao barco de Covey. Quero que esteja lá quando os homens dele executarem o mandado.
Nat levantou-se.
Mal posso esperar.
Na privacidade do seu gabinete, Nat deu vazão a alguma da irritação que sentia. Agora que era óbvio que os órgãos de comunicação social farejariam o caso e começariam
à cata de notícias, o promotor de Justiça ia passar o comando da investigação para a Polícia estadual. "Não é questão de querer ser eu a deslindar este caso", pensou
Nat. " Mas penso que é uma jogada estúpida enviar o caso às pressas para um Grande Júri antes de termos alguma coisa verdadeiramente concreta com que avançar."
Tirou o blusão, arregaçou as mangas e afrouxou o nó da gravata. Agora sentia-se confortável. Deb andava sempre a chateá-lo para não afrouxar o nó da gravata quando
saíam para jantar. Ela diria: "Nat, ficas tão elegante, mas quando alargas o nó da gravata e desapertas o botão do colarinho estragas tudo. Juraria que foste enforcado
numa encarnação anterior. Dizem que é por isso que algumas pessoas não conseguem usar nada apertado em volta do pescoço."
Nat deixou-se ficar sentado à secretária mais alguns momentos, pensando em Deb, em como tinha sorte em tê-la, pensando no laço que os unia, no amor e na confiança
que nutriam um pelo outro.
Pegou na caneca do café, foi à máquina no vestíbulo, encheu-a distraidamente e levou-a novamente para o seu gabinete.
Confiança. Uma boa palavra. Até que ponto confiara Vivian Carpenter no marido? A avaliar pelas palavras do próprio Scott Covey, não confiava nele o suficiente para
lhe dizer qual era o verdadeiro valor da sua herança.
Novamente sentado à secretária, Nat recostou-se para trás e bebericou o café enquanto olhava para o tecto. Se Vivian fora tão insegura como toda
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a gente parecia revelar, -não teria procurado sinais de que nem tudo estava certo com Covey?
Telefonemas. Será que Tina alguma vez telefonara para casa deles para falar para Covey, e, se isso acontecera, teria Vivian tido conhecimento? A conta do telefone
de Vivian. De certeza que era ela quem pagava as despesas. Será que Covey fora tão tolo que ligara para Tina de casa? Teria de tirar aquilo a limpo.
Outra coisa. O advogado de Vivian, o que preparara o novo testamento depois do casamento. Valeria a pena fazer-lhe uma visita.
O telefone tocou. Era Deb.
Estive a ouvir as notícias disse ela. Fizeram uma grande reportagem acerca de uma investigação sobre a morte de Vivian Carpenter. Estavas à espera disso?
Acabei de saber. Sucintamente, Nat contou à mulher a reunião que tivera com Jack Shea e o que estava a planear fazer agora. Há muito tempo que se apercebera de que
Deb era uma excelente conselheira.
As contas do telefone são uma boa ideia disse Deb. Aposto o que quiseres em como ele não seria estúpido ao ponto de telefonar para o apartamento de uma namorada
de casa, mas tu disseste que Tina é empregada de mesa na Estalagem Wayside. Telefonemas de casa para a estalagem não seriam registados, mas podes perguntar se Tina
recebe muitas chamadas particulares e se alguém sabe quem as faz.
Muito inteligente disse Nat, encantado. Não há dúvida de que te eduquei para pensares como um polícia.
Poupa-me. Mas há outra coisa. Vai ao cabeleireiro de Vivian. Os cabeleireiros são verdadeiros antros de coscuvilhice. Ou, melhor ainda, talvez fosse melhor eu começar
a ir lá. Posso ouvir qualquer coisa. Disseste-me que ela era cliente do Tresses, não foi?
Sim.
Vou fazer uma marcação para hoje à tarde.
Tens a certeza de que é apenas trabalho? perguntou Nat.
Não, não é. Há imenso tempo que quero fazer madeixas. Eles trabalham bem, mas os preços são muito elevados. Agora não preciso de me sentir culpada. Adeus, querido.
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Depois da pergunta de Adam sobre Menley não querer que Amy soubesse que ela tinha estado no passeio da viúva, não tinham falado mais e estavam tristemente deitados
lado a lado, sem se tocarem, cada um consciente de que o outro estava acordado. Pouco antes de o dia nascer, Menley levantara-se para ir ver o bebé. Encontrou Hannah
a dormir descansada, com os cobertores bem aconchegados à sua volta.
Menley deixou-se ficar ao pé da cama de grades, iluminada apenas pela luz da noite, absorvendo as bonitas feições pequeninas, o narizinho
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minúsculo, a boca suave, as pestanas que lançavam sombras nas bochechas redondas, os tufos de cabelo dourado que tinham começado a encaracolar em volta do seu rosto
de bebé.
"Não posso jurar que não era eu que estava no passeio da viúva quando Amy pensou que me viu, mas sei que nunca negligenciaria ou esqueceria ou magoaria Hannah",
pensou ela. "Tenho de entender a preocupação de Adam", avisou-se a si própria, "mas ele tem de compreender que não estou disposta a ter uma baby-sitter que conte
à sua velha compincha Elaine tudo o que se passa comigo."
Depois de tomar aquela decisão, foi mais fácil voltar para a cama, e, quando Adam a abraçou com um braço, ela não o afastou.
Às oito horas, Adam foi comprar pão fresco e os jornais. Enquanto comiam e bebiam café, Menley estava consciente de que estavam ambos a tentar afastar os últimos
vestígios de tensão. Sabia que, quando ele partisse para Nova Iorque naquela tarde, nenhum deles queria que os restos de uma zanga pairassem entre eles.
Estendeu-lhe os jornais para ela escolher o que queria.
Ela sorriu.
Sabes bem que queres começar pelo The New York Times.
Bom, talvez.
Tudo bem. Ela abriu a primeira secção do Cape Cod Times e logo de seguida disse: Ena pá, olha para isto. Atirou-lhe o jornal por cima da mesa.
Adam examinou cuidadosamente a reportagem que ela indicara, e depois levantou-se de um salto.
Raios! Eles querem mesmo tramar Scott. Neste momento, o promotor de Justiça deve estar a sofrer uma pressão quase insustentável para convocar um Grande Júri.
Pobre Scott. Achas que há alguma hipótese de o acusarem formalmente?
Acho que a família Carpenter está a exigir sangue, e têm imensa influência. Tenho de falar com ele.
Hannah já estava farta do parque. Menley levantou-a, pegou nela ao colo e deulhe um canto de pão para ela morder.
Sabe bem, não sabe? perguntou. Acho que vêm alguns dentes a caminho.
Adam estava a segurar no telefone.
Covey não está em casa e não deixou o atendedor de chamadas ligado. Devia saber que tem de estar sempre em contacto comigo. Tem de ter lido o jornal.
A menos que tivesse ido pescar cedo sugeriu Menley.
Bom, se foi, espero que não haja nada em casa dele que a Polícia ache interessante. Podes apostar o que quiseres em como antes de o dia terminar algum juiz estará
a assinar um mandado de busca. Atirou com o auscultador para o descanso. Raios!
Depois, abanou a cabeça e aproximou-se dela.
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Escuta, já é suficientemente mau eu ter de ir a Nova Iorque. Não posso fazer nada até Covey me telefonar, por isso, não vamos perder tempo. As meninas alinham numa
ida à praia?
Claro. Vamos vestirnos.
Menley estava vestida com um robe de algodão às flores. Adam sorriu-lhe.
Pareces ter dezoito anos comentou ele. fez-lhe uma festa no cabelo e depois pôs-lhe a mão na face. Você é uma senhora muito bonita, Menley McCarthy Nichols.
Menley sentiu o coração derreter. "Um dos bons momentos", pensou ela... "daqueles que costumavam ser constantes. Amo-o tanto." Mas depois Adam perguntou:
A que horas disseste que Amy vem?
Ela planeara dizer-lhe naquela manhã que seria o último dia de Amy, mas não queria começar uma discussão. Não agora.
Pedi-lhe que viesse por volta das duas horas disse ela, tentando parecer vaga. Esta tarde vou trabalhar no livro, depois de voltar do aeroporto. Ah, esqueci-me de
te dizer. Jan Paley descobriu alguns factos interessantes sobre o capitão Andrew Freeman. Passa cá em casa por volta das quatro horas.
Que bom disse ele, abanando a cabeça. Sabia que a reacção entusiástica de Adam era uma indicação do seu desejo de a ter rodeada de pessoas.
"Só espero que não sugiras que eu peça a Jan para dormir cá em casa", pensou com amargura, apertando o bebé enquanto afastava a mão dele e se levantava.
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Scott Covey só se apercebeu de que o encontro com Adam Nichols o aborrecera profundamente quando saiu de barco ao princípio da manhã de terça-feira. Dizia-se que
as percas estavam a fugir de Sandy Point. Quando o Sol nasceu, às seis da manhã, ele estava ancorado no local onde supostamente elas tinham sido avistadas.
Sentado pacientemente com a cana de pesca na mão, Scott obrigou-se a pensar nos avisos que Adam Nichols lhe fizera. E Adam dissera que ia mandar o seu próprio detective
investigá-lo para descobrir quaisquer "manchas" que o seu passado pudesse ter.
Ocorreulhe que já não falava com o pai e com a madrasta há cinco anos. "A culpa não é minha", pensou. "Eles mudaram-se para San Mateo; a família dela vive toda lá,
e quando eu faço uma visita nunca há lugar para eu passar lá a noite. " Mas as pessoas poderiam perguntar-se por que é que os familiares dele não tinham vindo nem
ao casamento nem ao funeral. Decidiu telefonar ao pai e pedir-lhe apoio.
Estava um bonito dia de Agosto, mais um de uma série de dias soalheiros
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e pouco húmidos. O horizonte estava salpicado de barcos cujas dimensões variavam entre botes e iates.
Vivian quisera um veleiro. "Só comprei este para me habituar a manejar um barco sozinha", explicara ela. "Foi por isso que lhe chamei Vívi's Toy."
Agora, a navegar no barco com aquele nome pintado de lado, sentiu-se deprimido. Naquela manhã, enquanto percorria a doca, Scott vira vários homens ao lado do barco,
a olhar para ele e a falar baixo. "Sem dúvida, a especular sobre o acidente."
Logo que aquele assunto estivesse resolvido, mudar-lhe-ia o nome. Não. Melhor do que isso. Venderia o barco.
Um forte puxão na linha trouxe-o de volta para o presente. Tinha um peixe grande para apanhar.
Vinte minutos mais tarde, uma perca listrada com cerca de dez quilos estava a agitar-se violentamente no convés.
Com a testa perlada de suor, Scott observou a sua luta de morte. Depois sentiu-se impelido a reagir. Cortou a linha, conseguiu agarrar no peixe escorregadio e atirou-o
para o oceano. Hoje não tinha estômago para pescar, decidiu, e dirigiu-se para casa.
Por impulso, foi almoçar ao Clancy's, em Dennisport. Era um local gregário e alegre, e ele sentia necessidade de estar na companhia de muitas outras pessoas. sentou-se
ao balcão e pediu uma cerveja e um hamburger. Reparou várias vezes nos olhares que as pessoas lhe dirigiam.
Quando os bancos ao lado dele ficaram vagos, foram imediatamente ocupados por duas mulheres jovens e atraentes. Começaram logo a conversar com ele, explicando que
era a primeira vez que visitavam o Cape, e pediram-lhe se podia indicar-lhes os sítios divertidos onde valia a pena ir.
Scott engoliu o resto do hamburger.
Estão num dos melhores disse em tom agradável e pediu a conta. "Era só isto que me faltava", pensou. "Com a sorte que tenho, Sprague vai entrar e ver-me a conversar
com estas raparigas."
Pelo menos nessa noite poderia descontrair-se. Elaine Atkins e o namorado tinham-no convidado para jantar no Captains's Table em Hyannis. Também tinham convidado
Menley Nichols, e ela tinha sido genuinamente simpática para ele.
A caminho de casa, decidiu parar para comprar um jornal. Atirou-o para o banco do lado e não o abriu até chegar a casa. Foi então que viu o título da primeira página:
"A FAMÍLIA CARPENTER EXIGE RESPOSTAS."
"Oh, meu Deus", murmurou e correu para o telefone. Telefonou para Adam Nichols, mas ninguém respondeu.
Uma hora depois, a campainha da porta da frente soou. Ele dirigiu-se para a porta e abriu-a. Do outro lado, encontravam-se meia dúzia de homens carrancudos. Scott
só reconheceu um deles, o detective de Chatham que o interrogara antes.
Confuso, viu que lhe acenavam com um pedaço de papel, e depois ouviu as palavras alarmantes.
Temos um mandado de busca para revistar esta propriedade.
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Depois de deixar Adam no aeroporto, Menley chegou a casa às duas e um quarto. O telefone estava a tocar quando ela abriu a porta, e, ainda a segurar Hannah com um
braço, correu para o atender.
Era a mãe a telefonar da Irlanda. Depois das primeiras efusões de alegria, deu por si a tentar tranquilizar a mãe, dizendo-lhe que estava tudo bem.
Que conversa é essa de ter um pressentimento de que está alguma coisa errada, mãe? Isso é uma loucura. O bebé está óptimo... Estamos a passar umas férias maravilhosas...
A casa que alugámos é fascinante... Até estamos a considerar seriamente a hipótese de a comprar... O tempo está fantástico... Fale-me sobre a Irlanda. Que achou
do itinerário que elaborei para vocês?
Ela já fora à Irlanda meia dúzia de vezes em visitas de trabalho e ajudara a planear a viagem da mãe. Foi um alívio saber que os planos eram muitíssimo satisfatórios.
E Phyllis e Jack estão a divertir-se?
Estão a divertir-se imenso respondeu-lhe a mãe. Depois baixou a voz, acrescentando: Escusado será dizer que Phyl anda atarefadíssima a pesquisar a árvore genealógica
da família. Ficámos dois dias em Boyle enquanto ela analisava velhos registos do condado. Mas não lhe podemos retirar o mérito. Conseguiu localizar a quinta do avô
em Ballymote.
Eu nunca duvidei de que ela conseguiria disse Menley, rindo-se, e depois tentou persuadir Hannah a palrar para a avó.
Antes de a conversa terminar, Menley voltou a garantir à mãe que estava a sentir-se bem, que quase não tinha vestígios de SDPT.
E não seria bom se fosse verdade? perguntou tristemente a Hannah quando desligou o telefone.
Amy chegou alguns minutos depois. Menley cumprimentoua friamente e percebeu que Amy era suficientemente esperta para captar a sua mudança de atitude.
Enquanto Amy pôs Hannah no carrinho e a levou lá para fora, Menley instalou-se confortavelmente para analisar as pastas Sprague. Uma nota que Phoebe Sprague escrevera
sobre a casa de reuniões construída em 1700 intrigou-a. Depois das estatísticas do edifício "20 pés por 32 e 13 pés nas paredes", os nomes dos homens que tinham
sido contratados para "arranjar a madeira e fazer a estrutura da casa", "para trazer tábuas e pranchas" e "para comprar mais materiais para acabamento" a Sr.a Sprague
escrevera: "Nickquenum (Casa "lembra-te") era muito maior que a casa de reuniões, o que causou provavelmente grande descontentamento na cidade. As pessoas estavam
indubitavelmente dispostas a pensar o pior de Mehitabel Freeman."
1 Síndroma Depressiva Pós-Traumática. (N. da T.)
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Depois, no que era claramente um memorando posterior, escrevera a lápis: "Tobias Knight", seguido por um ponto de interrogação.
"O construtor. Porquê a interrogação acerca dele?", perguntou Menley a si mesma.
Pouco antes das três horas, telefonou um agitado Scott Covey, à procura de Adam. A Polícia chegara com um mandado de busca. Ele queria saber se podia fazer alguma
coisa para os deter.
Adam tentou entrar em contacto consigo esta manhã disse Menley, e deu-lhe o número do telefone do escritório de Adam em Nova Iorque. Mas posso garantir-lhe o seguinte...
disse-lhe ela, uma vez que um juiz emite um mandado de busca, nenhum advogado consegue que seja cancelado, mas mais tarde pode ser contestado em tribunal. Depois
acrescentou suavemente: Lamento muito, Scott.
Jan Paley chegou pontualmente às quatro horas. Menley teve a sensação de estar em terreno firme quando cumprimentou a bonita mulher mais velha.
É tão simpática em fazer pesquisas para mim.
De modo nenhum. Quando Tom e eu nos interessámos por esta casa, costumávamos conversar com Phoebe Sprague sobre ela. Ela estava fascinada pela história da pobre
Mehitabel. Ainda bem que Henry lhe emprestou os papéis de Phoebe. Relanceou o olhar pela mesa. Posso ver que está a estudá-los exaustivamente disse ela, sorrindo
enquanto observava as pilhas de papéis.
Menley foi espreitar como estavam Amy e o bebé, pôs a chaleira ao lume para fazer chá, depois dispôs chávenas, açúcar e leite num dos extremos da mesa.
Acredite ou não, tenho um computador, uma impressora e todo o equipamento de que necessito instalados na biblioteca, mas há um ambiente tão acolhedor nesta cozinha,
ou deveria chamar-lhe sala de estar?, que me sinto mais feliz a trabalhar aqui.
Jan Paley assentiu, compreendendo o que ela queria dizer. Passou a mão por um tijolo saliente na parte da frente da grande lareira.
Estou a ver que entrou bem no espírito da casa. Antigamente, a sala de estar era o único aposento em que as pessoas realmente viviam. Os Invernos eram terrivelmente
frios. A família dormia nos quartos, debaixo de pilhas de cobertores, e depois vinham a toda a pressa para aqui. E pense um pouco. Quando tem uma festa em casa,
por muito espaço que haja, os convidados normalmente acabam sempre por ir para a cozinha. É o mesmo princípio. Calor, comida e vida.
Apontou para a porta da despensa, defronte da lareira.
Ali costumava ser a sala de partos disse ela. Era onde a mulher dava à luz e também para onde traziam as pessoas doentes para serem curadas ou para morrerem. Obviamente,
fazia sentido. O lume também mantinha aquela divisão quente.
Por um momento, os seus olhos brilharam, e ela afastou as lágrimas.
Espero que vocês decidam comprar esta casa disse ela. Poderia ser um lar maravilhoso, e você sente-se atraída por ela.
Acho que sim concordou Menley. Esteve prestes a contar àquela
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senhora inteligente e simpática a história inexplicável da figura no passeio da viúva, de Hannah ser mudada durante a noite para o berço e do som do comboio a ecoar
em toda a casa, mas não conseguiu. Não queria que mais ninguém olhasse para si como se estivesse a especular sobre a sua estabilidade emocional.
Em vez disso, dirigiu-se para junto do fogão, onde a chaleira estava agora a assobiar, deitou água a ferver no bule para o aquecer e pegou na lata do chá.
Você sabe fazer uma boa chávena de chá comentou Jan Paley.
Espero bem que sim. A minha avó tinha um ataque cardíaco se alguém usava saquinhos de chá. Dizia que os Irlandeses e os Ingleses sabiam fazer um chá como deve ser.
Antigamente, muitos capitães do mar levavam chá como parte da carga comentou Jan Paley. Enquanto bebericavam o chá e comiam bolachas, ela pegou na enorme mala à
tiracolo.
Disse-lhe que tinha encontrado algum material interessante sobre o capitão Freeman. Tirou um sobrescrito de dentro da mala e entregou-o a Menley. Lembrei-me de uma
coisa: a mãe do capitão Freeman era uma Nickerson. Desde o princípio, os vários ramos da família começaram a pronunciar o apelido de formas diferentes... Nickerson,
Nicholson, Nichols. O seu marido foi descendente do primeiro William Nickerson?
Não faço ideia. Sei que os antepassados dele vêem do século dezasseis disse Menley. Adam nunca teve grande interesse em descobrir a sua ascendência.
Bem, se resolverem comprar esta casa, ele pode ficar interessado. O capitão Freeman pode ter sido um primo em trigésimo quinto grau, depois de se descobrirem todas
as gerações.
Menley começou a ler rapidamente o material da Biblioteca Brewster enquanto Jan a observava.
A surpresa que lhe prometi está na última página.
Óptimo. Menley pegou numa pasta que estava em cima da mesa. Aqui está algum do material que consegui reunir até agora. Gostaria que lhe desse uma vista de olhos.
Quando estava a chegar à última página do material de Brewster, Menley ouviu o desiludido protesto de Jan Paley:
Oh, já tem um retrato do capitão Freeman, e eu pensei que ia dar-lhe uma alegria enorme descobrindo-lhe um.
Menley sentiu a boca ficar seca.
Jan estava a olhar para o esboço que Menley fizera quando imaginara como retrataria o capitão Freeman em adulto no novo livro de David.
Estava a olhar, embasbacada, para a fotocópia que Jan fizera do retrato do capitão Andrew Freeman ao leme da sua escuna.
Os rostos eram idênticos.
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Scott Covey levou uma cerveja para o terraço enquanto o grupo de polícias e detectives vasculhavam a sua casa. De rosto sombrio, sentou-se de costas para a casa
dos Sprague. A última coisa de que precisava era de ver Henry Sprague observar o que ajudara a iniciar. "Se o nome de Tina não tivesse sido metido nesta história,
os polícias não estariam aqui agora", era o pensamento que não conseguia afastar.
Depois, tentou tranquilizar-se. Não tinha nada com que se preocupar. Que é que eles esperavam encontrar? Por muito que procurassem, não havia nada em casa que o
incriminasse.
Adam Nichols dissera-lhe que ficasse quieto até tudo sobre a morte e o testamento de Vivian estar solucionado, mas Scott sabia que estava a começar a odiar a casa
e também o Cape. Sabia que, para ele, seria sempre como viver num aquário de peixes dourados.
Durante o Inverno anterior, trabalhara no escritório de uma casa de espectáculos em situação financeira difícil em Boca Raton, na Florida. Tinha gostado de trabalhar
lá, por isso seria ali que compraria uma casa quando tudo aquilo terminasse. Talvez até comprasse aquela casa de espectáculos, em vez de criar uma nova, como ele
e Viv tinham planeado.
"Pensa no futuro", disse para si mesmo. "Eles não têm nada contra mim e nada para continuar a não ser suspeita, ciúmes e mentes porcas. Nada disso serve num tribunal."
Este lugar está limpo disse um dos investigadores do promotor de Justiça a Nat Coogan.
Está demasiado limpo disse Nat rispidamente, e continuou a revistar a secretária. Tinham encontrado muito pouca correspondência particular dirigida a Vivian, cartas
de amigos a felicitarem-na pelo casamento; postais de primos que andavam a viajar pela Europa.
Havia um monte pequeno e arrumado de contas, todas com a indicação de que estavam pagas. "Não tem hipoteca; nem prestações de cartões de crédito; nem empréstimo
do carro: não há dúvida de que ele mantém as coisas simples", meditou Nat. "Também o ajuda a permanecer móvel, sem nada a prendê-lo."
A conta do telefone não era muito alta. Ele sabia de cor o número de Tina, mas não houvera um único telefonema para ele durante os três meses que o casamento durara.
Também tinha o número do telefone do advogado de Vivian. Não houvera telefonemas para ele nos últimos três meses.
Os extractos bancários tinham algum interesse. Vivian só tinha uma conta à ordem no banco local, e estava apenas em seu nome. Se Covey tinha o seu próprio dinheiro,
não o tinha nas proximidades. Se estivera dependente dela para tudo, ela ia-lhe dando dinheiro. Claro que um bom advogado podia alegar que a falta de registos em
casa validava a história de Covey de que a mulher não lhe confiara o valor exacto dos seus bens.
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Os Carpenter tinham contado a Nat como a casa estava desprovida de fotografias de Vivian. Nat descobriu-as no quarto de hóspedes. Covey também preparara uma caixa
para dar à família. Não incluíra nenhuma das fotografias em que aparecia com Vivian. Nat foi obrigado a reconhecer que aquilo revelava sensibilidade.
Por outro lado, as fotografias de Covey e Vivian juntos estavam amontoadas no fundo de um armário de arrumações. "Não é exactamente o sítio onde se guardam os objectos
sentimentais", pensou ele.
As roupas de Vivian estavam cuidadosamente arrumadas nas suas malas dispendiosas. Quem iria recebê-las?, perguntou-se. Tina não. Ela era demasiado forte para elas.
O palpite de Nat era de que as roupas e as malas se destinavam a uma loja de artigos em segunda-mão.
Não estivera verdadeiramente à espera de encontrar o anel de esmeralda. Mesmo se Covey o tivesse, não seria estúpido a ponto de o guardar onde ele pudesse ser encontrado.
Aparentemente, Vivian não era grande apreciadora de jóias. Tinham encontrado o seu anel de noivado, algumas pulseiras, braceletes e brincos, tudo guardado numa pequena
caixa de jóias no quarto principal. Nada, incluindo o anel de noivado, tinha grande valor.
Nat decidiu inspeccionar pessoalmente a garagem. Contígua à casa, era uma estrutura de bom tamanho, com capacidade para guardar dois carros. As prateleiras ao fundo
estavam cheias de equipamento de mergulho e de pesca, uma mala térmica, algumas ferramentas a panafernália normal. O equipamento que Vivian usava quando o corpo
dera à costa ainda estava a ser analisado.
Covey e Vivian tinham apenas um carro, um BMW de um dos modelos mais recentes. Nat sabia que o carro pertencera a Vivian. Quanto mais via esta tarde, mais pensava
no desgosto que a mãe tivera quando a sua irmã mais velha se casara, há muitos anos. "Jane trabalhou durante todos estes anos para conseguir o que tem", dissera
a mãe, irritada. "Que é que ela viu naquele parasita miserável? A sua única contribuição para o casamento foi um conjunto de roupa interior."
Nat tinha a impressão de que Covey tinha trazido a mesma quantidade de bens materiais para a sua união com Vivian.
Depois, os seus olhos iluminaram-se. O BMW estava estacionado do lado esquerdo da garagem. O chão do lado direito estava manchado de óleo.
Nat ajoelhou-se. Não havia sinais de fugas de óleo no BMW, e ele sabia que não havia marcas de óleo no caminho de acesso à casa.
"Quem teria estacionado ali, não uma mas várias vezes?", interrogou-se ele, "e por que é que o carro de um visitante seria arrumado na garagem? Uma razão, claro,
seria garantir que ninguém saberia que a pessoa estava lá."
Nat sabia que o próximo passo seria ver se o carro de Tina tinha fugas de óleo.
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Deb Coogan estava a passar um bocado maravilhoso. Normalmente, lavava o cabelo curto e encaracolado, secava-o com uma toalha e, aproximadamente de seis em seis semanas,
ia ao pequeno cabeleireiro do outro lado da cidade para o arranjar. Esta era a sua primeira visita ao Tresses, o melhor salão de beleza de Chatham.
Estava descontraída, a apreciar plenamente o luxuoso interior cor-de-rosa e verde do elegante salão, a lavagem prolongada que incluía uma massagem ao pescoço, as
madeixas que deram reflexos dourados ao seu cabelo castanho-médio, as mãos sofisticadamente arranjadas e a primeira vez que arranjava os pés. Decidindo que era seu
dever cívico tentar entabular conversa com o maior número possível de empregadas, escolhera todos aqueles serviços.
O receio que tivera de que as funcionárias do salão tivessem relutância em falar desapareceu rapidamente. Toda a gente no local cochichava a novidade de que Scott
Covey poderia ser suspeito na morte da mulher.
Deb conseguiu facilmente pôr Beth, a rapariga que estava a lavar-lhe a cabeça, a falar sobre a falecida Vivian Carpenter Covey, mas tudo o que apurou foi que Beth
quase desmaiara quando lera que Vivian valia tanto dinheiro.
Nunca me deu uma gorjeta, e só dava uma miserável à cabeleireira. E acredite no que lhe digo. Se um pingo de água caía perto do seu ouvido, ela começava logo a refilar
que tinha tímpanos sensíveis. Pergunto-lhe, até que ponto é que podiam ser sensíveis? Estava sempre a gabar-se de andar a aprender a fazer mergulho.
A cabeleireira foi um pouco mais generosa.
Oh, bem, todas nós fomos cabeleireiras de Vivian. Ela estava sempre preocupada por não ficar bem. E, se achava que não estava bem, claro que a culpa era sempre da
empregada. Na verdade, é uma pena. Ela era uma mulher bonita, mas estava dividida entre estar no pedestal da família Carpenter e aborrecer-se com eles. Fazia um
santo perder a paciência.
A manicure também era tagarela, mas, infelizmente, não foi especialmente útil:
Ela era louca pelo marido. Não acha que ele é um espanto? Um dia, vinha a atravessar a rua para vir buscá-la, e uma das nossas raparigas novas viu-o pela janela.
E disse: "Desculpem-me, eu vou correr lá para fora e atirar-me para a frente daquele borracho." Claro que ela estava a brincar, mas acredita que estava a acabar
de arranjar as mãos de Vivian? E ainda se fala em ir ao tecto. Vivian gritou-lhe: "Por que é que todas as vadias do mundo querem insinuar-se ao meu marido?"
"Querem insinuar-se", pensou Deb. "Isso sugere que ele não lhes ligava."
Quando é que isso aconteceu? perguntou ela.
Oh, cerca de duas ou três semanas antes de ela morrer afogada.
Só quando estava a arranjar os pés é que Debbie soube que a sua tarde não fora um extravagante desperdício. Os pés eram arranjados numa zona
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distinta, separada por um biombo, com duas cadeiras lado a lado por cima de bacias para pôr os pés.
Tente manter os dedos quietos, Sr.a Coogandisse Marie, apedicure. Não quero cortá-la.
Não consigo evitar confessou Debbie. Tenho imensas cócegas. Marie riu-se.
É como uma das minhas clientes. Ela quase nunca arranj a os pés, mas nas vésperas do casamento todas lhe dissemos que ela tinha de ter pés bonitos.
Reconhecendo uma aberta, Debbie mencionou o nome de Vivian.
Quando se pensa que Vivian Carpenter só viveu três meses depois de se casar... Suspirou e deixou a voz apagar-se.
Eu sei. Foi horrível, não foi? Sandra, a cliente de quem estava a falar, aquela que nunca arranjava os pés?
Sim.
Bem, no dia em que os arranjou para o casamento, estava precisamente sentada nesta cadeira, e Vivian estava sentada ao lado dela. Começaram a falar. Sandra é o tipo
de pessoa que conta a vida dela a toda a gente.
De que é que ela estava a falar nesse dia?
Estava a dizer a Vivian que ia ao escritório do advogado para se encontrar com o noivo para assinarem um rígido acordo antenupcial.
Debbie sentou-se mais direita.
Que é que Vivian disse?
Bem, disse algo como "acho que, se não podem iniciar um casamento amando-se e confiando um no outro, nem se deviam casar".
Marie aplicou loção nos pés de Debbie e começou a massajá-los.
Sandra não é o tipo de pessoa que ouve e cala. Disse a Vivian que já fora casada uma vez e que se tinham separado passados três anos. Sandra tem uma cadeia de boutiques.
O ex-marido alegou que a ajudara muito porque... veja só... à noite ela contava-lhe os seus planos de expansão. Conseguiu um acordo óptimo. Sandra disse que quando
se casaram ele não sabia o que significava a palavra "boutique" e continuava sem saber quando se separaram. Disse a Vivian que quando um dos cônjuges tem dinheiro
e o outro não, se o casamento se desfaz, o que tem dinheiro paga couro e cabelo.
Que é que Vivian disse? perguntou Debbie.
Vivian pareceu um pouco perturbada. Disse que era muito interessante e que ela era capaz de ter razão. Disse: "Talvez seja melhor telefonar ao meu advogado."
Ela estava a brincar?
Não sei. Com ela, nunca se sabia. Marie apontou para os frascos de verniz. A mesma cor que tem nas unhas das mãos, vermelho-morango?
Por favor.
Marie agitou o frasco, destapouo e começou a pintar as unhas dos pés de Debbie com pinceladas cuidadosas.
Que pena suspirou ela. No fundo, Vivian era boa pessoa, o problema é que era extremamente insegura. Esse dia, em que esteve a falar com Sandra, foi o último dia
que a vi. Morreu três dias depois.
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Do restaurante Captain's Table, situado no Iate Clube de Hyannis, avistava-se o porto.
Como era membro do clube há muitos anos e cliente assíduo do restaurante, John conseguira uma boa mesa na varanda envidraçada da sala de jantar. Insistiu para que
Menley se sentasse de frente para a janela para poder apreciar a paisagem do Nantucket Sound, os bonitos barcos de pesca, os iates brilhantes e os pesados barcos
a vapor da ilha que transportavam turistas entre Martha's Vineyard e Nantucket.
Quando Menley saíra de casa às sete e um quarto, Hannah já estava deitada. Agora, enquanto bebia champanhe, um pensamento perseguiu-a. Haveria um retrato do capitão
Andrew Freeman nos papéis de Phoebe Sprague, um que ela vira de passagem e que lhe ficara no subconsciente enquanto estava a folhear a imensa confusão de papéis?
Fora nisso que deixara Jan Paley acreditar. E depois perguntou-se quantas vezes nos últimos dias usara as palavras "inconsciente" e "subconsciente". Lembrou a si
mesma que até os tranquilizantes que tomava com pouca regularidade podiam fazê-la sentir-se zonza.
Abanou a cabeça para afastar os pensamentos que a distraíam. Agora que estava no restaurante, estava contente por ter vindo. Talvez fosse por isso que Adam estava
ansioso para que ela tivesse pessoas à sua volta. Ela gostava muito de sair, mas depois da morte de Bobby tornara-se um verdadeiro esforço tentar parecer alegre
e interessada em alguém ou em alguma coisa.
Durante a gravidez de Hannah, escrevera o último livro de David e ficara contente por estar totalmente envolvida na tarefa de o terminar. Descobrira que quando não
estava ocupada começava a preocupar-se porque algo podia correr mal, porque talvez abortasse ou o bebé nascesse morto.
E desde o nascimento de Hannah lutara contra as crises horríveis de distúrbios pós-traumátícos recordações, ataques de ansiedade, depressão.
"Uma litania bastante lúgubre de problemas para um homem como Adam, que tem uma carreira de enorme sucesso à sua frente", pensou ela. Anteriormente, tinha-se sentido
tão ressentida com os esforços transparentes de Adam para a forçar a sair, para que Amy passasse a noite lá em casa. Agora, desejou desesperadamente que ele estivesse
a seu lado naquela mesa.
Menley sabia que, por fim, a sua aparência voltara a ser a de antigamente. A sua linha de cintura tinha voltado ao normal, e esta noite decidira vestir uma saia
de seda cinzento-clara com um bolero e sandálias. Botões cinzentoescuros acentuavam o corpete cinzentoescuro. O cabelo, descorado pelo sol, estava preso com um laço
simples na nuca. A gargantilha de prata e diamantes e brincos a condizer, que Adam lhe dera quando estavam noivos, complementava a roupa. Percebeu que era bom arranjar-se
novamente.
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Fora uma surpresa não desagradável descobrir que Scott Covey era o outro convidado de John e Elaine. Menley percebeu o olhar de admiração dele quando o maitre d'
a conduziu até à mesa. Uma parte do encanto dele, disse a si mesma, era que Scott parecia ignorar completamente que era extremamente atraente. Os seus modos eram,
quanto muito, um pouco envergonhados, e tinha o dom de prestar muita atenção à pessoa com quem estava a falar.
Mencionou rapidamente o mandado de busca.
O seu conselho estava correcto, Menley. Quando telefonei a Adam, ele disse-me que não podia fazer nada, mas disse-me para me manter mais em contacto e para ter o
atendedor de chamadas ligado permanentemente.
Adam é um tipo muito determinado disse Elaine, sorrindo.
Estou muito contente por ele estar do meu lado disse Covey, mas depois acrescentou: Não estraguemos a noite a falar no assunto. O consolo de não ter nada a esconder
é que é uma invasão terrível quando a Polícia anda a revolver a nossa casa a tentar provar que somos criminosos, mas há uma grande diferença entre uma pessoa sentir-se
ultrajada e sentir-se preocupada.
Exaltada, Elaine disse:
Não me puxem pela língua. Os Carpenter deviam ter mostrado metade da preocupação quando Vivian era viva do que pensam que estão a mostrar agora que ela morreu. Deixem-me
que vos diga, quando aquela pobre miúda comprou a casa há três anos, parecia completamente sozinha. Mais tarde, levei-lhe uma garrafa de champanhe, e ela ficou tão
agradecida que foi quase patético. Estava sozinha em casa.
Elaine! advertiu John.
Quando viu os olhos de Scott marejados de lágrimas, Elaine mordeu o lábio.
Oh, meu Deus, Scott, lamento muito. Tem razão. Vamos mudar de assunto.
Eu mudo disse John, radiante. Vamos fazer aqui a festa do nosso casamento, e vocês os dois são os primeiros a ser oficialmente notificados de que o acontecimento
decorrerá às quatro horas da tarde de sábado, dia vinte seis de Novembro. Até já escolhemos a ementa: guizado de peru. A sua gargalhada soou a hehhehheh. Não se
esqueçam de que é dois dias depois do Dia de Acção de Graças. Apertou a mão de Elaine.
Menley pensou que Elaine parecia uma noiva. O vestido branco de gola subida era realçado por um colar de pérolas e ouro. O cabelo louro bem penteado favorecia o
rosto magro e algo angular. O grande diamante em formato de pêra na mão esquerda era um sinal claro e presente da generosidade de John.
"E o lado desagradável", decidiu Menley à sobremesa, "é que John adora realmente falar sobre seguros e leva a conversa muito a sério." Ela estava acostumada à verbosidade
rápida e veemente de Adam, e era excruciante ouvir John recomeçar mais uma vez, "Isso faz-me lembrar uma história sobre..."
A certa altura, durante uma fastidiosa narração, Scott Covey ergueu
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uma sobrancelha para ela, e ela sentiu os lábios contorcerem-se de riso. "Conspirador", pensou ela.
Mas John era um homem bom e íntegro, e provavelmente muitas mulheres invejavam Elaine.
Mesmo assim, quando se levantaram da mesa, Menley estava mais do que pronta, até mesmo ansiosa, por chegar a casa. John sugeriu que ele e Elaine a seguiriam até
casa para se certificarem de que ela chegava em segurança.
Oh, não, por favor, eu estou bem. Tentou não parecer irritada. "Estou a desenvolver uma reacção de reflexo rotuliano a todas as tentativas de protecção", pensou
ela.
Hannah estava a dormir pacificamente quando Menley chegou a casa.
Ela tem estado muito bem disse Amy. Quer que venha amanhã à mesma hora, Sr.a Nichols?
Não, não vai ser necessário disse Menley calmamente. Eu depois entro em contacto contigo. Lamentou a dor que viu no rosto pesaroso de Amy. mas percebeu que queria
estar sozinha com Hannah até Adam voltar de Nova Iorque, no dia seguinte.
Nessa noite foi-lhe difícil ir dormir. Não é que estivesse nervosa. Mas não conseguia deixar de pensar na pilha de imagens e esboços nas pastas de Phoebe Sprague.
Pensara que mal reparara neles. A maioria eram desenhos dos primeiros colonos, alguns deles sem nome, e de edifícios; mapas de propriedades; desenhos de veleiros
na realidade, uma confusão desordenada.
Seria possível ter encontrado um que não tinha nome e, subconscientemente, tê-lo copiado quando estava a tentar imaginar o capitão Andrew Freeman? O aspecto dele
não era assim tão invulgar. Muitos capitães do mar do princípio do século xvII tinham barbas curtas e escuras.
"E depois, por coincidência, eu desenhei precisamente a cara dele?", troçou ela. Subconscientemente, inconscientemente "outra vez aquelas palavras", pensou. "Meu
Deus, que está a acontecer comigo?"
Antes das duas da manhã, levantou-se três vezes para ir ver como estava Hannah, e de todas as vezes encontrou-a a dormir profundamente. "Em pouco mais de uma semana
aqui, parece maior", meditou Menley enquanto tocava levemente na pequena mão esticada.
Por fim, sentiu os seus próprios olhos ficarem pesados e teve consciência de que não demoraria a adormecer. Voltou a deitar-se e tocou na almofada de Adam, sentindo
profundamente a sua falta. Ele telefonara naquela noite? Provavelmente, não. Amy ter-lhe-ia dito. Mas por que não tentara por volta das dez e trinta? Sabia que ela
estaria em casa às dez horas.
"Ou podia ter-lhe telefonado eu", pensou Menley. "Devia ter-lhe contado como me diverti esta noite. Ele pode ter tido receio de me telefonar, não fosse eu queixar-me
por ter saído."
"Oh, meu Deus, só quero ser eu mesma, só quero ser normal."
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Às quatro da manhã, o som de um comboio a aproximar-se ruidosamente ecoou pela casa.
Ela estava na passagem de nível, tentando atravessá-la a tempo. O comboio estava a aproximar-se.
Ela deu um pulo, enfiou os dedos nos ouvidos, tentando abafar o som, e cambaleou desenfreadamente para o quarto do bebé. Tinha de salvar Bobby.
Hannah estava a gritar. Esbracejava e pontapeava os cobertores com os pés.
Menley pensou que o comboio também ia matá-la a ela, e tentou desesperadamente alcançar algum sentido de realidade no meio de toda aquela confusão.
Mas depois acabou. O comboio estava a afastar-se, o chiar das rodas desvanecia-se na noite.
Pára gritou Menley para o bebé. Pára! Pára! Hannah gritou mais alto.
Menley afundou-se na cama em frente à cama de grades, a tremer, a abraçar-se a si própria, com medo de confiar em si mesma para pegar em Hannah.
E depois, no andar de baixo, ouviu-o chamá-la, a sua voz excitada e alegre, intimando-a a ir ter com ele:
Mamã, mamã.
De braços estendidos, a soluçar o nome dele, ela correu ao encontro de Bobby.
10 de Agosto
46
O promotor de Justiça convocou uma reunião para quarta-feira à tarde no seu gabinete no tribunal de Barnstable. Os participantes seriam os três funcionários do seu
gabinete que tinham participado na busca da casa Covey, o médico que efectuara a autópsia, dois peritos do grupo da Guarda Costeira em Woods Hole um para comprovar
as correntes do dia em que Vivian morrera afogada, o segundo para atestar o estado do equipamento de mergulho que ela usava e Nat Coogan.
Isso quer dizer que o meu dia vai começar cedo disse Nat a Debbie na quarta-feira de manhã. Quero dar uma vista de olhos ao carro de Tina para ver se ele perde óleo,
e quero ir falar com o advogado de Vivian para saber se ela entrou em contacto com ele.
Deb estava a pôr uma nova dose de Waffles no prato do marido. Os dois filhos já tinham terminado o pequeno-almoço e saído para os seus empregos de Verão.
Não te devia dar mais esses suspirou ela. Tu tens de emagrecer sete quilos.
Hoje preciso de energia, boneca.
Pois sim. Debbie abanou a cabeça.
Da mesa do pequeno-almoço, Nat olhou apreciadoramente para os reflexos brilhantes no cabelo dela.
Estás um espanto disse ele. Hoje vou levar-te a jantar fora para te exibir. A propósito, nunca me disseste quanto custa fazer tudo isso.
Come os teus waffles disse Debbie enquanto lhe passava a geleia. Não vais querer saber.
A primeira paragem de Nat foi na Estalagem Wayside. Espreitou para a sala de jantar. Como esperara, Tina estava a trabalhar. Depois, foi para o escritório, onde
encontrou apenas a secretária.
Só uma pergunta disse ele sobre Tina. A secretária encolheu os ombros.
Acho que não faz mal. No outro dia, deixaram-no ver o dossier dela.
Quem saberia se ela recebesse muitas chamadas particulares aqui? perguntou Nat.
Não as teria atendido. A menos que seja uma grande emergência, nós recebemos a mensagem e a empregada telefona durante a sua hora de descanso.
"Parece-me que estou num beco sem saída", pensou ele.
Sabe por acaso qual é o carro de Tina?
Ela apontou para o parque de estacionamento nas traseiras do edifício.
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Aquele Toyota verde é de Tina.
O carro tinha, pelo menos, 10 anos. Manchas de ferrugem nos guarda-lamas estavam a deteriorar-se e a transformar-se em brechas no metal. Resmungando enquanto se
agachava, Nat espreitou para a subestrutura. Gotas brilhantes de óleo eram claramente visíveis. Havia manchas no alcatrão.
"Tal como eu pensei", exultou ele. Pôs-se de pé e espreitou lá para dentro, pela janela do condutor. O carro de Tina estava sujo. No banco da frente estavam espalhadas
várias cassetes. Latas de refrigerantes vazias amontoavam-se no chão. Olhou pelo vidro de trás. Jornais e revistas estavam espalhados em cima do banco. E depois,
meio escondidas por sacos de papel, viu duas latas de meio litro de óleo vazias no chão.
Voltou apressadamente para o escritório.
Uma última pergunta... por acaso, Tina faz serviço na secretária de reservas?
Bem, sim, faz replicou a secretária. Fica lá das onze até às onze e trinta, durante a pausa para descanso de Karen.
Então poderia ter recebido chamadas particulares lá?
Suponho que sim.
Muito obrigado. Nat caminhou animadamente para a sua próxima paragem, onde teria uma conversa com o advogado de Vivian.
O ilustríssimo Leonard Wells tinha uma confortável suite de escritórios a um quarteirão da rua principal de Hyannis. Era um homem com ar reservado, na casa dos 50,
com óculos de aros finos que realçavam olhos castanhos sonhadores, e usava um fato bege de tecido leve. Nat teve imediatamente a impressão de que Wells era o tipo
de homem que nunca desapertava o botão do colarinho nem afrouxava o nó da gravata em público.
Deve saber, detective Coogan, que já fui visitado pelo pessoal do promotor de Justiça, pelo advogado da família Carpenter e pelo representante da companhia de seguros
onde foi feita a apólice do anel de esmeralda. Não consigo compreender como posso contribuir mais para esta investigação.
Talvez não possa, doutor disse Nat, alegremente. Mas há sempre a hipótese de alguma coisa ter sido esquecida. É evidente que eu estou a par das cláusulas do testamento.
Todo o dinheiro que Vivian tinha, bem como a sua casa, barco, carro e jóias, foram herdados pelo seu novo marido. A voz de Wells denotou uma desaprovação gelada.
Quem era beneficiário do seu testamento anterior?
Não havia um testamento anterior. Vivian veio ao meu escritório há três anos, quando herdou a parte principal do fundo, cinco milhões de dólares.
Por que veio consultá-lo? Quero dizer, seguramente, a família tem advogados.
Eu tinha feito alguns trabalhos para um amigo dela, que aparentemente ficou bastante satisfeito. E, na época, Vivian disse-me que não queria ser representada pelos
advogados da família. Pediu-me que lhe
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recomendasse um banco para alugar um cofre. Queria o nome de um corretor idóneo a quem pudesse confiar a sua extensa carteira de títulos. Queria o meu conselho sobre
os seus herdeiros potenciais.
Queria fazer um testamento?
Não, especificamente, ela não queria fazer um. Queria saber quem herdaria no caso de ela morrer. Eu disse-lhe que seria a família.
E ela ficou satisfeita? perguntou Nat.
Disse-me que não o queria deixar como presente para eles, porque não o mereciam, mas, como não havia ninguém no mundo por quem se interessasse, já agora podiam tê-lo
de facto. Claro que tudo mudou quando ela conheceu Covey.
Aconselhoua a fazer um acordo ante-nupcial?
Era tarde de mais. Ela já se tinha casado. No entanto, insisti com ela para que fizesse um testamento mais complexo. Fiz-lhe ver que, da forma como o testamento
fora redigido, o marido herdaria tudo. Disse-lhe igualmente que deveria incluir cláusulas a favor de crianças ainda por nascer. Ela disse que pensaria nesse assunto
quando ficasse grávida. Também a aconselhei a reflectir sobre a hipótese de o casamento não ser bem sucedido, e nesse caso havia medidas que tinha de tomar para
proteger os seus bens.
Nat olhou em volta da sala. Paredes apaineladas com uma fina patina; livros de Direito cuidadosamente arrumados em estantes que iam do chão ao tecto atrás da secretária
de mogno. Cenas de caça inglesas elegantemente emolduradas; um grande tapete oriental. O efeito geral denotava um bom gosto harmonioso, um ambiente de fundo apropriado
para Leonard Wells. Nat decidiu que gostava daquele homem.
Dr. Wells, Vivian consultava-o com regularidade?
Não. Mas sei que seguiu o meu conselho de ter apenas uma conta à ordem relativamente modesta no Banco local. Estava satisfeita com o especialista em título que lhe
recomendei e reunia-se com ele de três em três meses em Boston. Deixou a chave do cofre do Banco no meu escritório. Ocasionalmente, quando vinha cá buscá-la, conversávamos
um pouco.
Por que é que ela deixou a chave do cofre do Banco aqui? perguntou Nat.
Vivian tinha tendência para ser descuidada. O ano passado, perdeu a chave duas vezes e teve de pagar uma grande multa para a substituição. Como o Banco fica mesmo
ao lado do meu escritório, ela decidiu que nós ficaríamos com a chave à nossa guarda. Enquanto foi viva, era a única pessoa que tinha acesso a ela. Depois da sua
morte, o conteúdo do cofre foi obviamente retirado e inventariado, como calculo que deve saber.
Vivian telefonou-lhe três dias antes de morrer?
Sim. A chamada foi feita na altura em que eu estava de férias.
Sabe por que é que ela queria falar consigo?
Não, não sei. Não precisava da chave e não quis dizer ao meu sócio de que se tratava. Deixou recado para eu lhe telefonar logo que chegasse. Infelizmente, nessa
altura já estava desaparecida há dois dias.
Como estava ela quando falou com a sua secretária? Parecia perturbada?
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Vivian ficava sempre perturbada quando as pessoas que queria ver não estavam disponíveis para ela.
"Isso não é de grande ajuda", pensou Nat. Depois, perguntou:
Alguma vez viu Scott Covey, Dr. Wells?
Apenas uma vez. Na leitura do testamento.
Que achou dele?
A minha opinião, claro, não passa de uma opinião. Antes de o conhecer, já tinha decidido intimamente que ele era um caçador de fortunas que tinha seduzido uma mulher
jovem, altamente vulnerável e emocional. E ainda continuo a achar que é uma verdadeira desgraça uma fortuna Carpenter inteira ser desfrutada por um estranho. Há
imensos primos distantes Carpenter a quem daria jeito uma sorte dessas. Confesso que depois senti de forma diferente. Fiquei muito bem impressionado com Scott Covey.
Ele parecia genuinamente destroçado com a morte da mulher. E, a menos que seja um actor magnífico, ficou estupefacto ao tomar conhecimento do valor da fortuna dela.
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Henry Sprague tinha mau gosto na boca. Na terça-feira à tarde, tinha observado os carros da Polícia quando eles entraram no caminho de acesso à casa de Scott Covey.
Sentindo-se um terrível coscuvilheiro, espreitara pela janela lateral enquanto o que presumiu ser um mandado de busca era entregue a Covey. Mais tarde, quando ele
e Phoebe estavam sentados no terraço, estivera desconfortavelmente consciente de que Covey estava sentado no seu próprio terraço, a sua postura reflectindo tristeza
e desespero.
"Se não tivesse visto aquela mulher, Tina, no pub Cheshire, não teria um único motivo para suspeitar de Scott Covey", lembrara Henry a si mesmo durante aquela noite,
em que não conseguira pregar olho.
As suas recordações recuaram até ao dia em que conhecera Phoebe. Ela preparava-se para fazer o doutoramento em Yale. Ele tinha um M. B. A. de Amos Tuck e trabalhava
no negócio de importação e exportação da família. Desde o minuto em que pousou os olhos nela, as outras raparigas com quem saíra deixaram de ser importantes. Uma
delas, que se chamava Kay, ficara verdadeiramente magoada e continuara a telefonar-lhe.
"Suponhamos que eu tinha acedido a encontrar-me com Kay depois de estar casado, apenas para conversar sobre o assunto, e alguém tirava conclusões erradas acerca
do encontro?", pensou Henry. "Poderia ser esse o caso agora?
Na quarta-feira de manhã, sabia o que tinha de fazer. Betty, a empregada de limpeza que já trabalhava para eles há muitos anos, estava lá, e sabia que podia confiar
nela para vigiar Phoebe.
Pressentindo que Scott podia dizer-lhe para ficar em casa, não lhe telefonou. Em vez disso, às dez horas atravessou o relvado e tocou à campainha.
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Através da porta de rede via Scott, sentado à mesa da cozinha, a beber café e a ler o jornal.
Henry lembrou a si mesmo que Covey não tinha motivos para parecer encantado quando percebesse quem era o visitante.
Ele veio até à porta, mas não a abriu.
Que quer, Sr. Sprague? Henry não mediu as palavras.
Sinto que lhe devo uma desculpa.
Covey usava uma camisa desportiva, calções de caqui e sandálias de couro. O cabelo louro-escuro estava húmido, como se tivesse acabado de tomar duche. O ar carrancudo
desapareceu.
Não quer entrar?
Sem perguntar, tirou outra caneca do armário e encheua com café.
Vivian disse-me que o senhor é viciado em café.
Henry gostou de comprovar que o café era muito bom, excelente até. Sentou-se à frente de Covey, do outro lado da pequena mesa, e bebeu calmamente durante alguns
momentos. Depois, escolhendo cuidadosamente as palavras, tentou transmitir a Covey que lamentava ter contado ao detective que vira Tina naquela tarde no pub.
Gostou do facto de Covey não objectar.
Oiça, Sr. Sprague, eu compreendo que o senhor fez o que achou que tinha de fazer. Também compreendo de onde vem a Polícia e a atitude da família e dos amigos de
Vivian. Mas tenho de dizer que Viv não tinha muitos amigos que se importassem realmente com ela. Fico contente se o senhor está a começar a perceber que é muito
difícil sentir tanto a falta da minha mulher e as pessoas tratarem-me como um assassino.
Sim, acho que estou a começar a compreender.
Sabe o que é realmente assustador? perguntou Scott. É a forma como os Carpenter estão a agitar toda a gente; há grandes hipóteses de eu ser acusado de assassínio.
Henry levantou-se.
Tenho de voltar para casa. Se puder fazer alguma coisa por si, pode contar comigo. Não devia ter-me deixado envolver em mexericos. Posso prometer-lhe o seguinte:
se for convocado para testemunhar, direi alto e a bom som que, desde o dia em que você e Vivian se casaram, eu observei a transformação de uma jovem muito infeliz.
É tudo o que lhe peço disse Scott Covey. Se toda a gente se limitasse a contar a verdade, eu não teria problemas.
Henry.
Os dois homens voltaram-se quando Phoebe abriu a porta de rede e entrou. Olhou em volta, com olhos tristes.
Falaste-lhe sobre Tobias Knight? perguntou vagamente.
Phoebe... Phoebe... Jan Paley estava alguns passos atrás dela. Oh, Henry, lamento muito. Eu fui fazer-vos uma visitinha e disse a Betty que podia continuar o que
tinha estado a fazer, que eu ficaria a fazer companhia a Phoebe. Virei as costas e...
Eu compreendo disse Henry. Vem, querida. Apertou
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tranquilizadoramente a mão de Scott, depois pôs um braço em volta da mulher e levou-a pacientemente para casa.
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A busca frenética de Menley nos aposentos do andar de baixo não revelara de onde vinha a voz de Bobby. Por fim, os berros de Hannah tinham penetrado na sua consciência,
e ela voltara para o quarto do bebé. Nessa altura, o choro convulsivo de Hannah tinha-se transformado em soluços convulsivos.
Oh, meu amorzinho murmurara Menley, chocada com a percepção de que Hannah já estava a chorar há muito tempo. Pegara na filha, enrolara os cobertores em volta dela
e deixara-se cair na cama à frente da cama de grades.
Rastejando para debaixo da colcha, tirara a alça do ombro e pusera os lábios do bebé ao peito. Não pudera amamentar, mas o seu peito pulsava enquanto os minúsculos
lábios chupavam o mamilo. Finalmente, os soluços pararam e Hannah adormeceu calmamente nos seus braços.
Ela queria manter o bebé junto a si, mas a exaustão era uma nuvem que empurrava Menley para um estado letárgico. Como fizera há alguns dias, colocou uma almofada
no berço, deitou Hannah em cima dela, tapoua com os cobertores, e também ela adormeceu profundamente, com a mão no berço, um dedo minúsculo a rodear o seu polegar.
O toque do telefone acordou-a às oito da manhã. Enquanto se dirigia apressadamente para o quarto principal para o atender, reparou que Hannah ainda estava a dormir.
Era Adam.
Não me digas que tu e Hannah ainda estão na cama!? Como é que ela nunca dorme até tão tarde quando eu estou em casa?
Ele estava a brincar. Menley sabia. O tom da voz dele era divertido e carinhoso. Então por que é que ela procurava imediatamente um duplo sentido em tudo o que ele
dizia?
Andas sempre a gabar o ar fresco do oceano disse ela. Parece que Hannah começou a acreditar em ti. Pensou no jantar. Adam, ontem à noite diverti-me imenso.
Oh, ainda bem. Estava com medo de perguntar. "Tal como eu suspeitei", pensou Menley.
Estava mais alguém para além de ti, de Elaine e de John?
Scott Covey.
Que bom. Eu disse-lhe claramente que precisava de poder contactá-lo sempre. Ele falou sobre a busca?
Só disse que fora uma intrusão, mas não fora preocupante.
Bom. Como é que tu estás, querida?
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"Estou bem", pensou Menley. "Imaginei que ouvi um comboio a ecoar por esta casa. Imaginei que ouvi o meu filho morto a chamar-me. E deixei Hannah gritar durante
meia hora enquanto o procurava."
Bem respondeu.
Por que é que tenho a sensação de que me estás a esconder alguma coisa?
Porque és um bom advogado, treinado para procurar sentidos escondidos. Forçou uma gargalhada.
Não houve crises?
Eu disse que estou bem. Tentou não parecer irritada ou em pânico. Adam sempre conseguira perceber o que se passava no seu íntimo. Tentou mudar de assunto. O jantar
foi realmente agradável, mas, Adam, sempre que John começa a dizer as palavras "Isso faz-me lembrar uma história", foge para bem longe. Ele não se cala.
Adam riu-se.
laine deve estar apaixonada. Se não, não o aguentaria. No aeroporto às cinco horas?
Estarei lá.
Depois de Hannah estar de banho tomado e barriguinha cheia, e temporariamente feliz no parque da cozinha, Menley telefonou à psiquiatra de Nova Iorque que estava
a tratá-la dos distúrbios pós-traumáticos.
Estou com alguns problemas disse ela, tentando parecer calma.
Conte-me o que se passa.
Escolhendo cuidadosamente as palavras, contou à Dr.a Kaufman o que acontecera quando acordara, imaginando que estava a ouvir o som do comboio, pensando que ouvira
Bobby chamá-la.
E decidiu não pegar em Hannah ao colo quando ela estava a chorar? "Ela está a tentar descobrir se eu tive medo de magoar o bebé", pensou
Menley.
Estava a tremer tanto que tive receio de a deixar cair se lhe pegasse.
Ela estava a chorar?
A gritar.
Isso perturbou-a muito, Menley? Ela hesitou, depois murmurou:
Sim, perturbou. Queria que ela parasse.
Percebo. Acho que seria melhor aumentarmos a sua medicação. Reduzi-a na semana passada, e pode ter sido cedo de mais. Terei de lhe enviar a receita por correio expresso.
Não posso receitar para outro Estado pelo telefone.
"Podia pedir-lhe que a mandasse para o escritório de Adam", pensou Menley. "Ele podia trazê-la para cá. Mas não quero que Adam saiba que falei para a médica."
Não sei se lhe dei a morada de cá disse ela calmamente.
Quando desligou o telefone, dirigiu-se para a mesa. No dia anterior, depois de Jan Paley ter saído, ela analisara rapidamente a pasta de desenhos de Phoebe Sprague,
à procura de um retrato do capitão Andrew Freeman.
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Agora, passou várias horas a observar todas as pastas, especificamente à procura de um retrato dele. Mas não conseguiu encontrar nenhum.
Comparou o seu desenho com o que Jan trouxera. Todos os traços eram precisamente iguais. A única diferença era que o desenho da Biblioteca de Brewster mostrava o
capitão ao leme do seu navio. "Como é que eu sabia como ele era?", perguntou novamente a si mesma.
Pegou no bloco de desenho. Uma imagem mental de Mehitabel enchia-lhe a mente, exigindo ser liberta. Cabelo castanho pelos ombros, a esvoaçar ao vento; um rosto delicado
em forma de coração; olhos escuros e grandes; mãos e pés pequenos; lábios sorridentes; um vestido de linho azul com mangas compridas, pescoço alto e gola de renda,
a saia ondulando ao vento.
Desenhou-a com traços rápidos e seguros, os dedos transferindo habilidosamente a imagem para o papel. Quando acabou, encostou-o ao retrato que Jan trouxera e compreendeu
o que tinha feito.
No desenho da Biblioteca de Brewster, percebia-se um vestígio da saia esvoaçante de Mehitabel atrás da figura do capitão.
Menley pegou na lupa. As pequenas marcas que se viam na manga de Andrew Freeman, no desenho de Brewster, eram pontas de dedos dos dedos de Mehitabel. "Teria ela
estado atrás do marido no navio quando o artista desconhecido o tinha retratado há quase trezentos anos? Seria parecida com a forma como a visualizei?", pensou Menley.
Subitamente assustada, enterrou os três esboços no fundo de uma das pastas, pegou em Hannah ao colo e saiu para a rua, para a luz do Sol.
Hannah palrou e puxou o cabelo da mãe, e, enquanto libertava os dedinhos, Menley lembrou-se de uma coisa: "Na noite passada, quando acordei com o ruído do comboio,
Hannah estava a gritar."
O comboio também te acordou? exclamou ela. Foi por isso que estavas tão assustada? Oh, Hannah, que está a acontecer-nos? Que espécie de loucura estás tu a apanhar
de mim?
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Robert Shore, o delegado do Ministério Público, conduziu a reunião na sala de conferências do seu gabinete no Tribunal Distrital de Barnstable. Sentou-se à cabeceira
da mesa, e o médico legista, os detectives e os peritos ocuparam os outros lugares. Ele colocara Nat Coogan no extremo oposto, um tributo ao trabalho exaustivo que
o detective fizera neste caso.
Que é que nós temos? perguntou Shore, e fez sinal a Nat para que começasse a expor os factos.
Passo a passo, Nat apresentou os factos que reunira. O médico legista falou a seguir.
O corpo estava mutilado por limpa-fundos. Vocês estão especialmente interessados no estado das mãos dela. As pontas dos dedos das duas mãos desapareceram, o que
é normal. Num caso de afogamento, é um dos primeiros
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sítios que os caranguejos atacam. O resto dos dedos da mão esquerda estão intactos. Uma estreita aliança de ouro, a sua aliança de casamento, estava no dedo anelar.
Levantou uma fotografia tirada na autópsia.
A mão direita conta uma história diferente. Para além das pontas dos dedos que faltam, o anelar foi comido até ao osso entre o nó e a mão. Isso sugere que o dedo
sofreu um traumatismo prévio que provocou a subida do sangue até à superfície e atraiu os limpa-fundos.
O marido alega que, na manhã do dia em que morreu, Vivian tinha estado a torcer e a puxar o anel de esmeralda para o tirar disse Nat. Isso poderia ter provocado
o traumatismo?
Sim, mas ela tinha de o ter puxado com muita força.
Shore, o promotor de Justiça, pegou na fotografia que o médico exibira.
O marido admite que ela usava o anel de esmeralda no barco, mas afirma que ela o deve ter passado para o dedo anelar da mão esquerda. Se estivesse largo, poderia
ter escorregado na água?
Certamente. Mas nunca teria escorregado através do nó da mão direita. Mas aqui há outra coisa. O médico legista exibiu outra fotografia da autópsia. Não sobrou muito
do tornozelo direito dela, mas há algumas marcas que poderiam ter sido feitas por queimaduras de corda. É possível que a dada altura ela tenha sido atada e até arrastada
por uma distância considerável.
Shore inclinou-se para a frente.
Deliberadamente?
É impossível dizer.
Falemos do teor de álcool no corpo dela.
Entre o humor vítreo, ou, em termos leigos, o fluido do olho e o sangue, apurámos que ela consumira o equivalente a três copos de vinho. Se estivesse a conduzir,
considerar-se-ia que estava "sob a influência" do álcool.
Noutras palavras disse Shore, não tinha nada de ir mergulhar naquele estado. Mas não há nenhuma lei que o proíba.
As duas testemunhas do grupo da Guarda Costeira de Woods Hole foram os seguintes. Um deles trazia cartas marítimas, que colocou num suporte. Com a ajuda de um ponteiro,
apresentou as suas descobertas.
Se ela desapareceu aqui indicou um local a uma milha da ilha Monomoy, o corpo deveria ter dado à costa na costa de Monomoy. Um local onde nunca poderia aparecer
é onde foi encontrado, em Stage Harbor. A menos que concluiu ele, a menos que tivesse sido apanhada numa rede de pesca e arrastada até aqui, o que também é possível.
O perito em equipamento de mergulho espalhou o fato que Vivian vestia no dia da sua morte.
Este equipamento estava bastante usado comentou ele. Não se supunha que ela era rica?
Acho que posso explicar isso disse Nat. Vivian deu um equipamento de mergulho novo ao marido como prenda de casamento. A história dele é que ela queria usar o fato
velho dele para ver se gostava de fazer mergulho. Se gostasse, compraria um dos mais sofisticados, igual ao dele.
Parece-me razoável.
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Foi debatida a possível ligação de Tina com Scott, e o promotor de Justiça fez de advogado do diabo.
Actualmente, Tina está noiva? perguntou ele.
Sim, de um antigo namorado disse Nat, e depois contou-lhes a impressão com que ficara de Fred Hendin. Em seguida, falou sobre o óleo no chão da garagem da casa de
Scott Covey.
Eu diria que é uma prova bastante inconsistente admitiu ele. Um bom advogado de defesa... e Adam Nichols é um dos melhores... podia contestá-la facilmente.
Os registos tirados da casa de Covey foram apresentados.
Não há dúvida de que Covey fez o seu trabalho de casa resmungou Shore. Não há lá nada. Mas... quanto a Vivian? Onde é que ela guardava os seus registos pessoais?
No cofre do Banco disse Nat.
E o marido não tinha acesso a ele?
Não.
No fim da reunião, concordaram relutantemente que, baseados nos factos que tinham até à data, seria quase impossível conseguir que um grande júri acusasse Scott
Covey formalmente.
Vou telefonar para o juiz Marron em Orleães e pedir-lhe que marque um inquérito decidiu Shore. Deste modo, todos os factos passarão a ser do conhecimento público.
Se ele considerar que temos dados suficientes, pedirá provas de negligência criminal ou traição, e depois nós convocamos o grande júri.
Endireitou-se.
Meus senhores, façamos uma votação informal. Esqueçam o que é admissível ou inadmissível para um júri. Se estivessem a votar inocente ou culpado, que é que diriam?
Deu a volta à mesa. Um a um, responderam calmamente: " Culpado... Culpado... Culpado... Culpado... Culpado... Culpado... Culpado."
Culpado concordou Shore sem hesitação. É unânime. Podemos ainda não conseguir prová-lo, mas todos acreditamos que Scott Covey é um assassino.
50
Susan Potter, a cliente de Adam, chorava baixinho, sentada à frente dele no escritório de Park Avenue da firma de advocacia Nichols, Stand e Miller. Com 28 anos,
ligeiramente gorda, cabelo castanho-arruivado e olhos azulesverdeados, poderia ser muito atraente se as suas feições não estivessem deformadas pelo medo e pelo stress.
Condenada por homicídio involuntário do marido, conseguira um novo julgamento graças ao apelo de Adam. Começaria em Setembro.
Acho que não vou conseguir passar por tudo novamente disse ela.
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Estou tão agradecida por estar fora da prisão, mas o pensamento de que poderei ter de voltar...
Não vai voltar disse-lhe Adam.Mas, Susan, não se esqueça... não tenha quaisquer contactos com a família de Kurt. Desligue o telefone se os pais dele lhe telefonarem.
O objectivo deles é levarem-na a dizer alguma coisa provocadora, alguma coisa que eles possam interpretar vagamente como uma ameaça.
Eu sei. Ela levantou-se para se ir embora. O senhor está de férias, e esta é a segunda vez que veio a Nova Iorque por causa do meu problema. Espero que saiba o quanto
aprecio o que está a fazer por mim.
Só aceito as suas palavras de reconhecimento quando a livrarmos de uma vez por todas. Adam contornou a secretária e acompanhou-a até à porta.
Quando a abria, ela ergueu os olhos para ele.
Agradeço a Deus todos os dias da minha vida por o senhor ter aceitado a minha defesa.
Adam viu nos olhos dela que o adorava como um herói.
Mantenha o queixo erguido, Susan disse ele.
Rhoda, a sua secretária de 50 anos, estava na antessala. Seguiu-o para o seu gabinete particular.
Juro por Deus, Adam, você encanta todas as senhoras. Todas as suas clientes do sexo feminino acabam por se apaixonar por si.
Vá lá, Rhoda. Um advogado é como um psiquiatra. A maioria das pacientes apaixona-se pelo psiquiatra durante algum tempo. É a síndroma do ombro para se apoiarem.
Aquelas palavras ecoaram-lhe aos ouvidos enquanto pensava em Menley. Ela sofrera outro ataque de ansiedade; tinha a certeza disso. Conseguia captar o stress na voz
dela tão claramente como uma pessoa com um ouvido perfeitamente apurado detectaria uma nota dissonante. Fazia parte do seu treino, parte da razão por que era um
advogado de sucesso. Mas por que é que ela não falava no assunto? "Até que ponto teria o ataque... ou ataques... sido grave?", perguntou-se ele.
O passeio da viúva. O único acesso para aquele precário miradouro era uma estreita escada. "Supondo que ela tentava levar Hannah lá para cima e ficava tonta. Supondo
que ela deixava cair a bebé?"
Adam sentiu um nó na garganta. A recordação do rosto de Menley enquanto olhava para o caixão de Bobby perseguia-o. A sanidade mental de Menley nunca sobreviveria
se perdessem Hannah.
Ele sabia o que tinha a fazer. Relutantemente, telefonou para a psiquiatra da mulher. O seu coração apertou-se quando ouviu a Dr.a Kaufman dizer:
Oh, Adam, eu estava a decidir se devia ou não telefonar-lhe. Não sabia que estava na cidade. Quando é que vai voltar para o Cape?
Esta tarde.
Então, mando-lhe a nova receita de Menley e você leva-lha.
Quando é que esteve a falar com Menley? perguntou ele.
Hoje. O tom da Dr.a Kaufman mudou. Não sabia? Adam, por que está a telefonar-me?
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Ele disse-lhe que estava com receio de que Menley estivesse a ter crises de distúrbios pós-traumáticos e não lhe contasse. A médica não comentou.
Depois, Adam contou-lhe que a baby-sitter vira Menley no passeio da viúva e que Menley negara ter lá estado.
Ela tinha Hannah com ela?
Não. O bebé estava com a baby-sitter.
Houve uma pausa. Depois, escolhendo cuidadosamente as palavras, a médica disse:
Adam, não acho que Menley deva ser deixada sozinha com Hannah, e acho que a devia trazer novamente para Nova Iorque. Quero interná-la no hospital durante algum tempo.
É melhor jogar pelo seguro. Não precisamos de mais tragédias na sua família.
51
Amy passara o dia na praia Nauset com os amigos. Por um lado, fora agradável estar com eles. No entanto, por outro lado, andava a juntar o dinheiro que ganhava a
tomar conta de crianças para comprar um carro novo para usar na Faculdade, e ainda lhe faltava muito para conseguir a quantia de que necessitava. O pai prometera-lhe
que pagaria metade, mas ela tinha de juntar o resto.
Eu sei que to podia oferecer dizia-lhe muitas vezes o pai, mas lembra-te do que a tua mãe costumava dizer: "Aprecias aquilo para que trabalhas."
Amy lembrava-se muito bem. Lembrava-se de tudo o que a mãe dizia. "A mãe não fora nada parecida com Elaine", pensou Amy. Fora o que a maioria das pessoas chamaria
simples: não usava maquilhagem, não vestia roupas da moda, não tinha ares. Mas fora real. Amy recordava-se de como, quando o pai contava aquelas histórias enfadonhas,
ela costumava dizer, afectuosamente: "John, querido, vai direito ao assunto." Não se ria da forma que Elaine fazia, dando risadinhas incontroláveis, comportando-se
como se ele fosse o Robin Williams ou coisa do género.
No dia anterior, Amy percebera que a Sr.a Nichols estava zangada com ela. Compreendeu que não devia ter contado ao pai que vira a Sr.a Nichols no passeio da viúva,
e que a Sr.a Nichols negara ter lá estado. É claro que o pai contara a Elaine, que por sua vez contara ao Dr. Nichols; ela estava na sala quando Elaine lhe telefonara.
Mas havia uma coisa que estava a preocupar Amy. Quando estivera em casa com a Sr.a Nichols no dia anterior, ela vestia calções e uma T-shirt branca de algodão. Mas
quando lhe parecera vê-la no passeio da viúva, ela usava uma espécie de vestido comprido.
Amy ficara espantada, e por momentos perguntara a si mesma se a Sr.a Nichols seria um pouco louca. Ouvira Elaine dizer ao pai que possivelmente a Sr.a Nichols estava
no meio de um esgotamento nervoso.
Mas, se a Sr.a Nichols tivesse razão, se fosse apenas uma ilusão óptica por
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causa do metal da chaminé? Quando pensou nisso, Amy lembrou-se de que somente alguns minutos depois de pensar que tinha visto aquela figura, a Sr.a Nichols saíra
de casa de calções e T- shirt.
Amy pensou que era tudo muito assustador e esquisito. "Ou talvez eu tenha ouvido demasiadas histórias sobre a Casa "Lembra-te", e, tal como Carrie Bell, pense que
estou a ver coisas."
Queria tentar explicar-se com a Sr.a Nichols. Olhou para o relógio. Eram quatro horas. Sim, ia telefonar-lhe.
A Sr.a Nichols atendeu ao primeiro toque. Parecia ligeiramente ofegante.
Desculpa, Amy, mas agora não posso falar. Vou para o aeroporto e Hannah já está no carro.
Só queria dizer-lhe que lamento muito se pensou que eu estava a falar de si gaguejou Amy. Não era minha intenção. O que eu quero dizer é que, está a perceber...?
Tentou explicar que vira o vestido e que tinha a certeza de que se tinha enganado. A senhora saiu de casa logo a seguir.
Depois esperou. Houve uma pausa antes de a Sr.a Nichols dizer:
Ainda bem que telefonaste, Amy. Obrigada.
Tenho saudades de trabalhar para a senhora. Lamento muito.
Está tudo bem, Amy. Estás livre para tomar conta de Hannah amanhã? Eu preciso mesmo de estudar todo o material da Dr.a Sprague, e preciso que cuides de Hannah.
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Henry Sprague levou a mulher a dar um grande passeio na sua praia favorita, por acaso a que ficava em frente da Casa "lembra-te". Eram seis e um quarto quando viram
Adam e Menley com o bebé à beira da água. Pararam para os cumprimentar.
Cheguei agora mesmo de Nova Iorque explicou Adam, e tinha de encher os sapatos de areia imediatamente. Subam e bebam um copo de vinho connosco.
Phoebe tivera um dia mau. Depois de ela, Henry e Jan Paley terem vindo da casa de Scott, ela estivera terrivelmente agitada. Fora para o escritório e andara à procura
dos seus papéis, acusando Henry e Jan de lhos terem roubado. Henry pensou que seria boa ideia se ela visse onde estavam agora, enquanto lhe explicava novamente por
que é que Menley os tinha. E queria contar a Adam que fora falar com Scott.
Aceitou o convite, e seguiram os Nichols desde a praia até à casa. Enquanto atravessavam o relvado, explicou a Menley o que queria fazer.
Menley escutou, sentindo o coração oprimido, e rezou para que Phoebe não insistisse em levar os papéis para casa.
Mas, quando chegou à cozinha, Phoebe Sprague só pareceu contente por ver as arrumadas pilhas de pastas e papéis e livros. Carinhosamente, passou os dedos por eles,
e enquanto o marido, Menley e Adam a observavam, o seu rosto desanuviou-se. A expressão vaga dos seus olhos desapareceu.
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Eu queria contar a história dela murmurou quando abriu a pasta dos desenhos.
Menley viu que Phoebe queria olhar para todos os retratos. Quando Phoebe encontrou os que Menley desenhara, ergueu-os e exclamou:
Oh, copiou estes do retrato que eu tenho de Mehitabel e Andrew juntos no barco. Não fui capaz de o encontrar. Pensei que o tinha perdido.
"Graças a Deus", pensou Menley. "Há um retrato que eu posso ter copiado. Com a porcaria dos medicamentos, sei que a minha cabeça não está bem."
Phoebe estudou durante alguns momentos o rosto de Mehitabel. Conseguia sentir-se a si própria a regredir, a ser arrastada para a escuridão confusa, a ficar novamente
perdida. Forçou a mente a continuar lúcida. O marido amava-a, pensou, mas não acreditava nela. "É por isso que ela morreu. Tenho de avisar a mulher de Adam. O plano
é para ela."
Plano! Plano! Tentou agarrar-se ao pensamento, mas já não tinha qualquer significado.
Mehitabel. Andrew. Quem mais? Antes de a sua mente ficar outra vez nublada, cinzenta e vazia, conseguiu sussurrar a Menley:
Mehitabel está inocente. Tobias Knight. A resposta está na pasta SAQUEADORES.
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Graham e Anne Carpenter receberam o telefonema do promotor de Justiça ao fim da tarde de quarta-feira. Tinham começado a jogar golfe, mas tinham desistido depois
do nono buraco porque Anne não se estava a sentir bem.
Graham compreendeu que podia ter sido um erro pressionar as autoridades para acusarem abertamente Scott Covey de ser responsável pela morte de Vivian. Os órgãos
de comunicação social estavam encantados por terem uma história suculenta, e tinham exposto todos os pormenores da vida de Vivian que tinham conseguido descobrir.
Agora, os jornais sensacionalistas referiam-se a ela como "a pobre rapariguinha rica", "a proscrita", "a rebelde que fumava erva". Pormenores das suas vidas privadas
estavam a ser distorcidos e expostos à zombaria e ao entretenimento de toda a gente.
Anne estava arrasada, humilhada e amarga.
Talvez tivesse sido melhor termos deixado as coisas como estavam, Graham. Não podíamos trazê-la de volta, e agora eles estão a destruir a memória dela.
Pelo menos, o inquérito desanuviaria o ar, pensou Graham enquanto preparava os martinis das cinco horas e levava o tabuleiro para o jardim de Inverno, onde Anne
estava a repousar.
- É um bocado cedo, não achas? perguntou ela.
Um pouco concordou ele. Foi o promotor de Justiça quem
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telefonou. O juiz em Orleães vai marcar um inquérito para segundafeira à tarde.
Em resposta à sua expressão alarmada, ele disse:
Pelo menos, as circunstâncias vão ser divulgadas. É uma audiência pública, e, depois de serem apresentados todos os factos, queremos que o juiz tome uma de três
decisões possíveis: não há evidência de traição; não há evidência de negligência; não há evidência de negligência criminal.
Supõe que o juiz decide que não há evidências de negligência ou de traição? disse Amy. Teremos passado por toda esta publicidade horrível para nada.
Para nada, não, querida. Eu sei.
Do interior, ouviu-se o retinir do telefone. Um momento depois, a governanta apareceu à porta, trazendo o telefone celular.
É o Sr. Stevens, Sr. Carpenter. Disse que é importante.
É o detective a quem a companhia de seguros mandou investigar Covey disse Graham. Eu insisti em ser imediatamente avisado se ele descobrisse alguma coisa.
Anne Carpenter observou enquanto o marido escutava atentamente e depois fez perguntas rápidas. Quando desligou, parecia eufórico.
Stevens estava na Florida, em Boca Raton. Foi onde Scott passou o Inverno passado. Aparentemente, ele foi visitado várias vezes por uma morena espampanante chamada
Tina. A sua última visita foi uma semana antes de ele vir para cá para se casar com Vivian!
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Logo que foi buscar Adam ao aeroporto, Menley teve a impressão de que alguma coisa o alterara. Compreendeu o que era quando se estavam a preparar para ir para a
cama e ele lhe deu o pacote de medicamentos da Dr.a Kaufman.
Qual de vocês telefonou ao outro? perguntou ela calmamente.
Eu telefonei-lhe, e ela estava a pensar se devia ou não telefonar-me.
Acho que preferia falar sobre isso de manhã.
Se é isso que queres.
Era assim que tinham ido para a cama a maior parte das noites durante o ano que se seguiu à morte de Bobby e antes de ela ficar grávida de Hannah, pensou Menley.
Um beijo impessoal; deitados de costas um para o outro; emoções díspares separando-os com tanta eficácia como uma prancha.
Ela virou-se para o seu lado e pôs o braço debaixo do rosto. Uma prancha. Era curioso ter feito aquela comparação. Acabara de descobrir a definição daquele acessório
dos tempos coloniais. No Inverno, quando dois jovens noivavam, frequentemente a casa estava tão fria que os noivos eram autorizados a deitarem-se na mesma cama,
completamente vestidos, embrulhados em cobertores e com uma comprida prancha de madeira firmemente colocada entre os dois.
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"Que é que a Dr.a Kaufman contou a Adam?" interrogou-se Menley. "Será que ela se sentiu na obrigação de lhe contar o que aconteceu quando pensei ter ouvido o comboio
e Bobby chamar-me?"
Depois, Menley sentiu-se gelar. "Será que a médica disse a Adam que o choro de Hannah foi profundamente perturbador, que eu não confiei em mim própria para lhe tocar?
Será que Adam contou à médica o episódio do passeio da viúva? Eu não lhe falei no assunto.
"A Dr.a Kaufman e Adam podem ter medo de que eu magoe Hannah", pensou Menley. "Que é que eles decidiram fazer?" Iriam insistir para que estivesse sempre presente
uma baby-sitter ou uma ama quando Adam fosse para fora?
"Não", pensou ela, havia uma possibilidade mais terrível. Com o coração apertado, Menley estava certa de que tinha acertado na resposta. "Adam vai levar-me para
Nova Iorque, e a Dr.a Kaufman vai internar-me num hospital psiquiátrico. Não posso deixar que isso aconteça. Não posso ser afastada de Hannah. Isso destruir-me-ia."
"Estou a ficar melhor", disse a si própria. "Consegui atravessar a passagem de nível quando levei Adam ao aeroporto esta semana. Mesmo na outra noite, quando pensei
que tinha ouvido Bobby a chamar-me, consegui superar a crise sozinha. E voltei para Hannah. Não a magoei e acalmei-a. E quero ficar aqui."
Com cuidado para não incomodar Adam, Menley aconchegou o cobertor em volta do pescoço. Em tempos mais felizes, quando acordava com frio, limitava-se a deslizar para
os braços de Adam. "Agora não. Não assim.
"Não posso deixar Adam perceber qualquer sinal da minha ansiedade", disse para si mesma. "De manhã, tenho de atacar de forma contundente e dizer que gostaria que
Amy ficasse o dia inteiro para ajudar a tratar de Hannah. Daqui a um dia ou dois terei de lhe dizer que me sinto muito melhor, que talvez a médica tivesse razão,
que a medicamentação não deveria ter sido reduzida tão cedo.
"Não gosto de ser desonesta com ele, mas ele não está a ser honesto comigo", pensou ela. "O telefonema de Elaine a convidar-nos para jantar ontem à tarde tinha sido
combinado com antecedência.
"Será muito mais fácil ter uma baby-sitter cá em casa o dia inteiro. Não terei a sensação de andar a tropeçar nela como acontece no apartamento. E Hannah está a
dar-se bem aqui.
"O novo livro é um projecto fascinante. O trabalho mantém-me sempre equilibrada. Um livro de David com Andrew como o rapaz que cresce para se tornar capitão do seu
próprio navio poderá ser o melhor. Sinto-o.
"Não acredito em fantasmas, mas a história de Jan Paley sobre pessoas que reclamam uma presença nas suas velhas casas intriga-me e intrigaria os leitores. Daria
um belo artigo histórico para a Travel Times.
"E quero contar a história de Mehitabel. Phoebe insiste que ela é inocente e que a prova está na pasta SAQUEADORES. Aquela pobre rapariga foi condenada por adultério,
chicoteada publicamente, desprezada pelo marido, e a filha foi-lhe tirada. Era suficientemente mau se fosse culpada, mas inimaginável se estava inocente. Quero descobrir
a prova da sua inocência, se é que ela existe.
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"Será que sinto afinidade com ela porque o meu marido poderá estar a conspirar com a minha psiquiatra para me separarem da minha bebé e porque estou inocente do
que eles me acusam, de não ser capaz de cuidar dela?
"Com Scott Covey deve passar-se a mesma coisa", pensou. "As pessoas a observarem, a murmurarem, tentando descobrir uma forma de o prender." Os seus lábios entreabriram-se
num sorriso quando se lembrou da sobrancelha erguida de Scott e da leve piscadela enquanto ouviam John contar uma das suas intermináveis histórias durante o jantar,
na noite anterior.
Por fim, Menley sentiu que começava a descontrair e a adormecer. Acordou sobressaltada, sem saber ao certo quanto tempo tinha dormido. Iria verificar se Hannah estava
bem tapada. Quando estava a deslizar para fora da cama, Adam levantou-se de um pulo e perguntou rispidamente:
Menley, onde vais?
Ela engoliu uma resposta azeda e tentou parecer descontraída.
Oh, acordei com frio e pensei que era melhor ir ver Hannah. Tens estado acordado, querido? Talvez tenhas ido ver se ela está tapada.
- Não, estive a dormir.
Volto já.
O quarto cheirava a bafio. Hannah virara-se e estava a dormir de rabo para o ar, com as pernas encolhidas. Os cobertores estavam espalhados pelo chão. Os animais
empalhados que costumavam estar em cima da cómoda estavam dispostos à volta dela dentro da cama de grades. A boneca antiga estava sentada no berço.
Freneticamente, Menley amontoou os brinquedos na cómoda, apanhou os cobertores e sacudiu-os.
Eu não fiz isto, Hannah murmurou, enquanto tapava a filha. Eu não fiz isto.
Que é que não fizeste, Menley? perguntou Adam da soleira da porta.
55
Na quintafeira de manhã, o céu estava coberto de nuvens, e uma brisa gelada fez os residentes de Chatham correrem para os roupeiros à procura de camisas de manga
comprida e casacos. Era o tipo de dia que Marge, a assistente de Elaine, dizia que "lhe dava ânimo".
A Agência de Compra e Venda de Propriedades Atkins tinha vários imóveis novos para vender, e Elaine fora vê-los pessoalmente para tirar fotografias que favorecessem
as propriedades. Revelara e aumentara as fotografias e, no dia anterior, trouxera-as para o escritório.
Sentindo o frio no ar quando acordou, Marge decidiu ir mais cedo para o escritório e aproveitar uma hora em que não seria interrompida para redecorar as montras.
Chegou às sete e trinta e começou a retirar as fotografias que estavam em exposição.
Às nove e dez tinha terminado e estava parada no passeio, a observar
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criticamente o seu trabalho. "Muito bonito", pensou, enquanto admirava o efeito.
As fotografias eram invulgarmente boas e favoreciam imenso as propriedades. Havia uma encantadora casa típica do Cape em Cockle Cove Ridge, uma amorosa casa de praia
em Deep Water Lane, uma casa contemporânea em Sandy Shoes Lane e uma dúzia de outras propriedades menos imponentes mas agradáveis.
A propriedade mais importante era uma casa junto à praia em Wychmere Harbor. Elaine contratara o fotógrafo aéreo que usava sempre para tirar uma fotografia panorâmica
daquela propriedade. Marge colocara-a no centro da montra, no lugar onde estivera a fotografia aérea emoldurada da Casa "Lembra-te".
Atrás de si, Marge ouviu o som de aplausos. Virou-se rapidamente.
Compro-as todas disse Elaine enquanto saía do carro.
Vendidas! Marge esperou que Elaine se aproximasse e parasse a seu lado. A sério, que acha?
Elaine analisou a exposição.
Acho que estão estupendas. Já estava na hora de tirar a minha preferida, a fotografia da Casa "lembra-te".
Francamente, também acho que sim, principalmente porque tem tanta certeza de que os Nichols vão comprá-la.
Elaine entrou na agência à frente dela.
Receio que isso ainda esteja por resolver disse ela em tom sério. Estou a ficar com a impressão de que Menley Nichols não está nada bem.
Nunca a conheci disse Marge, mas Adam Nichols é um homem encantador. Recordo-me de como ele estava triste quando veio para cá o ano passado e tu lhe fizeste companhia.
Ele alugou o chalé dos Spark, perto da tua casa, não foi?
Isso mesmo. Elaine avistou a fotografia da Casa "Lembra-te", encostada a uma cadeira. Tive uma ideia disse ela. Vamos mandar esta a Scott Covey. Se tudo se resolver
sem problemas para ele, não ficaria surpreendida se ele decidisse ficar no Cape, e ele e Vivian estavam loucos por aquela casa. Pelo menos, assim não se esquece
da casa. Para o caso de os Nichols não a comprarem.
Mas supõe que ele não está interessado? Se a propriedade voltar a ser posta à venda, terás pena de lha ter oferecido, Elaine.
Tenho o negativo. Posso fazer outras cópias.
Foi para o seu gabinete. Marge começou a transferir as fotografias que tirara da montra para o álbum enorme da mesa da recepção. O tilintar da campainha da porta
da frente anunciou o primeiro visitante.
Era o rapaz das entregas da florista. Trazia uma jarra de rosas com o pé alto.
Para a Menina Atkins disse ele.
Nunca pensei que fossem para mim comentou Marge. Leve-lhas. Já conhece o caminho.
Depois de ele sair, Marge foi admirar as flores.
Absolutamente fantásticas. Está a tornar-se uma ocorrência frequente. Mas que diabo é isso?
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Havia uma fita no ramo, com o número 106 gravado.
Sei que não és assim tão velha, Elaine.
John está só a ser amoroso. São os dias que faltam para o nosso casamento.
Ele é um romântico. E só Deus sabe como já há poucos. Elaine, achas que vocês os dois vão querer ter um filho?
Ele já tem uma, e gosto de pensar que eu e Amy estamos a ficar mais amigas.
Mas Amy tem dezassete anos. Vai para a Universidade. Seria diferente se fosse bebé.
Elaine riu-se.
Se ela fosse bebé, eu não me casaria com John. Não sou assim tão doméstica.
O telefone tocou.
Eu atendo. Elaine levantou o auscultador. Agência de Compra e Venda de Propriedades Atkins. Escutou. Adam!... Isso é mau? Quero dizer, um inquérito soa tão intimidante.
Claro que posso rever o meu testemunho. Almoço contigo está perfeito. À uma hora? Até lá.
Quando desligou, disse a Marge:
Parecem boas notícias. Vão marcar um inquérito para apurar as causas da morte de Vivian Covey, o que significa que os jornalistas vão estar presentes. Será uma oportunidade
para todos nós defendermos Scott. Levantou-se. Onde está a fotografia da Casa "Lembra-te"?
Ao lado da minha secretária disse-lhe Marge.
Vamos mandar-lha por um mensageiro com um bilhete.
No seu gabinete, escreveu rapidamente algumas frases na sua letra clara e decidida.
Caro Scott,
Acabei de saber que vai haver um inquérito e estou contente por ter uma oportunidade para dizer a toda a gente como você e Vivian estavam felizes naquela tarde em
que estiveram a ver a Casa "Lembra-te". Você gostou tanto da paisagem que quero que fique com esta fotografia para não se esquecer dela.
Cumprimentos,
Elaine.
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Às dez da manhã de quinta-feira, quando o serviço de pequenos-almoços estava a abrandar, Tina Aroldi usou o seu descanso de quinze minutos para ir ao escritório
da Estalagem Wayside. A secretária estava lá sozinha.
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Jean, por que é que o detective estava a olhar para debaixo do meu carro, ontem? perguntou Tina.
Não sei de que estás a falar protestou a secretária.
É claro que sabes exactamente de que é que eu estou a falar. Não precisas de te dar ao trabalho de mentir. Alguns ajudantes viram-no pela janela.
Não preciso de mentir sobre nada gaguejou Jean. O detective pediu-me para lhe indicar qual era o teu carro, depois voltou cá dentro e quis saber se tu alguma vez
atendes o telefone das reservas.
Estou a perceber.
Preocupada, Tina voltou para o seu lugar na sala de jantar. Alguns minutos depois da uma hora, não gostou de ver o advogado de Scott Covey, Adam Nichols, entrar
com Elaine Atkins, a vendedora de propriedades, que trazia frequentemente clientes à estalagem.
Viu Nichols gesticular na sua direcção. Fantástico. Queria ter a certeza de que ela iria servi-los. A recepcionista sentou-os a uma das suas mesas e, relutantemente,
de bloco de apontamentos na mão, Tina foi cumprimentá-los.
Ficou surpreendida com o sorriso caloroso com que Nichols a brindou. "Não há dúvida de que é atraente", pensou Tina. Não era lindo de morrer, mas tinha qualquer
coisa. Ficava-se com a sensação de que era um tipo muito excitante. E via-se que era esperto.
"Bem, ele pode estar a sorrir hoje, mas no outro dia de manhã, quando veio cá com Scott, não foi nada simpático", reflectiu Tina. Provavelmente, era um daqueles
fulanos que só era simpático quando precisava das pessoas.
Respondeu friamente ao cumprimento e perguntou:
Querem alguma coisa do bar?
Pediram cada um um copo de chardonnay. Quando ela se afastou, Elaine disse:
Que será que se passa hoje com Tina?
Suspeito de que está nervosa por ser obrigada a testemunhar no inquérito respondeu Adam. Bem, tem de se habituar à ideia. O promotor de Justiça vai certamente intimá-la,
e eu quero ter a certeza de que ela transmite uma impressão favorável.
Pediram hamburguers e dividiram uma dose de cebola cortada em rodelas.
É bom não almoçar contigo com frequência disse Elaine. Engordaria uns dez quilos. Normalmente, como uma salada.
É como nos bons velhos tempos disse Adam. Lembras-te de como, depois dos nossos empregos de Verão, nos empanturrávamos com porcarias, nos amontoávamos naquele barco
com motor fora-deborda decrépito que eu tinha e dizíamos que íamos dar o nosso passeio ao pôr do Sol?
Não me esqueci.
Na outra noite, em tua casa com o velho grupo, senti que tinham desaparecido quinze anos disse Adam. O Cape faz-me isso. E tu também, laine. Por vezes, é bom sentir-me
um miúdo.
Bem, tens tido muito com que te preocupar. Como está Menley? Ele hesitou.
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Está bem.
Não pareces nem falas como se estivesses a dizer a verdade. Eia, estás a falar com a tua velha amiga, Adam. Lembras-te?
Ele assentiu.
Eu pude sempre falar contigo. A médica acha que seria sensato levar Menley para Nova Iorque e interná-la num hospital.
Espero que não estejas a referir-te a um hospital psiquiátrico.
Infelizmente, é isso mesmo.
Adam, não te precipites. Ela parecia óptima na festa e no jantar. Para além disso, quando conversei com John, ele disse-me que a partir de agora Amy vai ficar o
dia inteiro em vossa casa.
Só por isso é que poderei ficar cá. Esta manhã, Menley disse-me que quer trabalhar no livro dela, e sabe que eu vou estar ocupado a preparar-me para o inquérito,
por isso, por enquanto, quer que Amy fique todo o dia.
Então, não achas que devias deixar as coisas como estão? Tu estás em casa à noite.
Acho que tens razão. Esta manhã, por exemplo, Menley estava como é realmente. Descontraída, engraçada, entusiasmada com o livro. Nunca adivinharias que ela tem sofrido
de distúrbios pós-traumáticos... mais precisamente, alucinações. Ontem, ela contou à médica que ouvira Bobby chamá-la. Deixou Hannah a gritar enquanto procurava
por toda a casa.
Oh, Adam.
Por isso, para bem dela e para a segurança da própria Hannah, tem de ser hospitalizada. Mas, enquanto Amy puder cá estar e eu tiver de me preparar para o inquérito,
espero. No entanto, depois disso, vou levar Menley para Nova Iorque.
E tu também ficas lá?
Não sei. Pelo que percebi, a Dr.a Kaufman não quer que eu visite Menley durante uma semana, ou coisa parecida. Em Nova Iorque está um calor dos diabos, e a baby-sitter
que contratamos sempre está fora. Se Amy ajudar, cuidando de Hannah durante o dia, eu posso cuidar dela durante a noite, por isso posso ficar cá pelo menos essa
semana.
Acabou de comer o hambúrguer.
Sabes, se quiséssemos realmente reviver os velhos tempos, devíamos ter bebido cerveja de lata em vez de copos de vinho. No entanto, acho que só vou querer café.
Ele mudou de assunto.
Como o inquérito é uma audiência pública, posso dar uma lista de pessoas que quero que sejam chamadas a testemunhar. Isso não quer dizer que o promotor não tente
armadilhar as suas perguntas para tentar dar uma má imagem de Scott. Vamos analisar o tipo de coisas que podem perguntar-te.
Terminaram o café e beberam uma segunda chávena antes de Adam assentir em sinal de satisfação.
Tu és uma boa testemunha, Elaine. Quando estiveres no banco das testemunhas, dá relevo à grande solidão em que Vivian parecia estar quando comprou a casa, à felicidade
dela durante a recepção do casamento; e fala sobre quando ela e Covey andavam à procura de casa, e de todos os planos para um bebé. Não fará mal nenhum eles saberem
que Vivian
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tinha mais do que a sua parte da parcimónia dos naturais da Nova Inglaterra. Isso ajudaria a explicar por que é que ela não comprou logo um equipamento de mergulho
novo.
Quando estava a pagar a conta, ele ergueu o olhar para a empregada de mesa.
Tina, você acaba o seu turno às duas e meia. Depois disso, gostaria de falar uns quinze minutos consigo.
Tenho um encontro.
Tina, vai receber uma intimação para testemunhar em Tribunal na próxima semana. Sugiro que discuta o seu testemunho comigo. Garanto-lhe que, se o juiz decidir desfavoravelmente,
será porque pensa que você foi o motivo para o assassinato de Vivian, e talvez até suspeite de que você esteve envolvida. Ser cúmplice de um crime é bastante grave.
Tina empalideceu.
Encontro-me com o senhor no café ao lado da Livraria Yellow Umbrella.
Adam concordou.
Desceu o quarteirão até à agência de compra e venda de propriedades com Elaine.
Eia disse ele, olhando para a montra, onde está a fotografia da minha casa?
Da tua casa?
Bem, talvez. Não te esqueças de que tenho uma opção que posso decidir executar.
Lamento. Enviei a fotografia a Scott. Tenho de manter todas as hipóteses em aberto. Se tu não a comprares, há grandes hipóteses de ele o fazer. E o dinheiro da venda
faria jeito a Jan Paley. Ela e Tom enterraram muito dinheiro naquela remodelação. Eu mando fazer outra cópia para ti. Até a ponho numa bonita moldura.
Não me vou esquecer do que disseste.
Tina estava claramente na defensiva quando falou com Adam.
Oiça, Sr. Nichols, eu tenho um bom namorado. Fred não vai gostar que eu tenha de testemunhar nesta coisa.
Fred não tem nada a ver com este assunto. Mas ele podia ajudá-la.
Que quer dizer com isso?
Ele poderia confirmar que vocês os dois saíram algum tempo durante o Verão passado e que depois romperam por causa de Scott; que voltaram a andar juntos e que agora
vão casar-se.
Nós não começámos logo a andar juntos. Eu saí com outros homens durante o último Inverno.
Está bem. O que eu quero dizer é que gostaria de conversar com Fred e decidir se ele seria ou não uma boa testemunha.
Não sei...
Tina, por favor, compreenda bem isto. Quanto mais depressa o nome de Scott for reabilitado, melhor será para si.
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Eles estavam sentados a uma das pequenas mesas na esplanada do café Tina brincava com a palhinha do seu refrigerante.
Aquele detective está a enervar-me imenso desabafou ela. Ontem, esteve a espreitar para debaixo do meu carro.
É esse tipo de coisas que eu preciso de saber disse Adam rapidamente. De que é que ele andava à procura?
Tina encolheu os ombros.
Não sei. Vou livrar-me dele brevemente. O raio do carro parece uma peneira a perder óleo.
Quando se separaram, Adam pediu-lhe o número do telefone de Fred, mas prometeu que só telefonaria à noite, depois de Tina ter tido hipótese de lhe explicar o que
se passava.
Entrou na carrinha e ficou sentado durante alguns minutos, a pensar. Depois, pegou no telemóvel e marcou o número de Scott Covey.
Quando Covey atendeu, Adam disse abruptamente:
Vou para aí imediatamente.
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Phoebe passara a noite inquieta. Tivera um pesadelo que a fizera gritar várias vezes durante o sono. Uma vez gritara: "Não quero entrar aqui", outra vez murmurara:
"Não me faça isso."
Por fim, de madrugada, Henry conseguiu persuadi-la a tomar um sedativo forte, e ela caiu num sono drogado.
Durante o solitário pequeno-almoço, Henry tentou imaginar o que a teria perturbado. No dia anterior, parecera descontraída enquanto tinham passeado pela praia. Parecera
gostar de visitar Adam e Menley na Casa "Lembra-te. Ficara contente ao ver ali o material das suas pesquisas, e parecia compl etamente lúcida quando disse a Menley
que a resposta estava na pasta SAQUEADORES.
Que respostas? Que queria ela dizer com aquilo? Obviamente, recordara-se de algum aspecto da sua pesquisa e estava a tentar comunicá-lo. Mas ela também fora clara
quando falara sobre o esboço que Menley fizera do capitão Freeman e de Mehitabel.
Henry levou o café para o estúdio de Phoebe. Recebera uma carta do director do lar, sugerindo que ele deveria escolher algumas recordações para Phoebe ter no seu
quarto quando fosse viver para lá. O director escrevera que os objectos familiares, especialmente os que envolviam memória a longo prazo, ajudavam a aumentar a consciência
nos pacientes da doença de Alzheimer. "Devia começar a escolher o que vou mandar para lá", pensou ele. "E este é o sítio ideal para procurar."
Como sempre, sentar-se à secretária de Phoebe trouxe de volta, com a agudeza de uma faca, a realidade de como as coisas eram diferentes para eles agora, quando comparadas
com alguns anos antes. Depois de Phoebe deixar de dar aulas, passava todas as manhãs ali, alegremente absorvida
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nas suas pesquisas, a trabalhar tanto como ele calculava que Menley Nichols trabalhava.
"Espera um minuto", pensou Henry. "O retrato do capitão e da mulher de que Phoebe falou ontem estava na pasta extragrande. E essa pasta não fazia parte do material
que dei a Menley. Não sabia que existia outro retrato dos dois juntos. Parece-me que essa pasta tinha imenso material sobre os Freeman e a Casa "Lembra-te". Onde
será que Phoebe a guardou?", perguntou-se ele.
Olhou em volta do quarto, observando as prateleiras que iam do chão ao tecto e a mesa de canto ao lado do sofá. Depois, pensou: "Claro, o armário da esquina."
dirigiu-se para junto dele. As prateleiras abertas do belíssimo móvel antigo albergavam peças raras de vidraria do princípio do período Sandwich. Lembrava-se de
como Phoebe coleccionara cada uma delas com muito amor, e decidiu que algumas dessas peças deveriam encontrar-se entre os objectos que ela teria consigo no lar.
O armário sob as prateleiras estava atulhado de livros, papéis e pastas. "Não me tinha apercebido de que ela tinha todas estas coisas aqui", meditou Henry.
No meio da assombrosa confusão, conseguiu encontrar a pasta que procurava, e dentro dela o retrato do capitão Freeman e Mehitabel. A inclinação da saia dela e das
velas sugeriam um vento forte e frio. Ela estava de pé, um pouco atrás dele, como se ele estivesse a protegê-la. O rosto dele era forte e decidido, o dela suave
e sorridente; a mão dela estava levemente pousada no braço dele. O artista desconhecido captara a atracção que existia entre eles. "É evidente que se amavam", pensou
Henry.
Deu uma vista de olhos à pasta. Viu várias vezes a palavra saqueador. "Pode ser isto que Phoebe queria que Menley lesse", decidiu ele.
Oh, foi aí que eu deixei a boneca?
Phoebe estava na soleira da porta, com o cabelo desgrenhado, a camisa de noite manchada. Henry lembrou-se de que tinha deixado o frasco de sedativo em cima da mesa-de-cabeceira.
Phoebe, tomaste mais remédio? perguntou ansiosamente.
Remédio? Ela parecia surpreendida. Acho que não. Cambaleou para junto do armário e baixou-se ao lado dele.
Foi aí que pus a boneca da Casa "Lembra-te" disse ela, excitada e contente.
Puxou os papéis da funda prateleira de baixo, deixando-os espalhados no chão. Depois, enfiou a mão no fundo do armário e tirou uma boneca antiga com um vestido de
algodão comprido e amarelecido. Um gorro de renda com fitas de cetim emoldurava o delicado e belo rosto de porcelana.
Phoebe olhou para ela, franzindo o sobrolho. Depois, entregou-a a Henry.
Ela pertence à Casa "Lembra-te" disse ela vagamente. Eu queria devolvê-la, mas esqueci-me.
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Depois do almoço, Amy sentou-se à frente do baloiço do bebé, a brincar com Hannah.
Bate palminhas, bate palminhas até o pai vir para casa. O papá tem dinheiro e a mamã não tem nenhum cantarolou ela, enquanto batia com as mãos de Hannah uma na outra.
Hannah arrulhou, deliciada, e Menley sorriu.
Que canção de embalar tão sexista disse ela.
Eu sei concordou Amy. Mas não me sai da cabeça. A minha mãe costumava cantar-ma quando eu era pequena.
"Ela pensa muito na mãe, pobre miúda", pensou Menley. Amy chegara pontualmente às nove da manhã, quase pateticamente agradecida por estar de volta. Menley sabia
que a atitude dela reflectia mais do que o desejo de ganhar dinheiro. Ela parecia genuinamente feliz por estar ali.
A minha mãe diz que evitava o mais possível cantar para nós comentou Menley enquanto esfregava o lava-loiça. Ela é completamente dura de ouvido e não queria que
eu e o meu irmão ficássemos como ela. Mas ficámos. Passou o lava-loiça por água.
Sinceramente, Hildy não é grande coisa queixou-se ela. Aquela mulher-a-dias que estava a sair quando nós chegámos deixou a casa a brilhar. Quem me dera que ela tivesse
voltado.
Elaine zangou-se com ela. Menley voltou-se e olhou para Amy.
Por que é que ela se zangou?
Oh, não sei disse Amy precipitadamente.
Acho que sabes, Amy disse Menley, pressentindo que poderia ser importante.
Bem, o que acontteceu foi que Carrie Bell se assustou na manhã em que vocês chegaram. Disse que tinha ouvido passos no andar de cima, mas não estava lá ninguém.
Depois, quando entrou no quarto do bebé, o berço estava a baloiçar sozinho, pelo menos, foi o que ela disse. Elaine disse que aquilo era ridículo e que não queria
que se espalhassem histórias daquele género sobre a casa, porque está para venda.
Estou a perceber. Menley tentou não parecer excitada. "Já somos três", pensou ela. "Amy, Carrie Bell e eu." Sabes como posso entrar em contacto com Carrie? perguntou.
Oh, claro. Ela limpa a nossa casa há anos.
Menley pegou num pedaço de papel e anotou o número que Amy lhe deu.
Vou ver se ela pode voltar para cá, e depois peço a Elaine para dispensar Hildy.
Como estava muito frio, decidiram que Amy enrolaria Hannah num cobertor e a levaria para um passeio no carrinho.
Hannah gosta de saber o que se passa à sua volta disse Amy, sorrindo.
"Não gostamos nós todos?", pensou Menley enquanto se sentava à mesa
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e pegava de novo na pasta SAQUEADORES. Por um momento, olhou para o ar, pensativa. De manhã, Adam não se preocupara em escolher as palavras.
Menley dissera ele, tenho a certeza de que, se telefonares à Dr.a Kaufman, verás que ela concorda comigo. Enquanto estás a ter crises de ansiedade tão perturbadoras
e alucinações, tenho de insistir para que Amy fique aqui contigo e com Hannah quando eu estiver ausente.
Menley recordou-se do esforço que fizera para engolir uma resposta furiosa. Em vez disso, limitara-se a realçar que a ideia de ter Amy com eles fora dela, por isso
ele não precisava de ser tão arrogante. Mesmo assim, Adam tinha ficado à espreita até o carro de Amy entrar no acesso da casa, e depois fora rapidamente lá fora
falar com ela. Depois disso, fechara-se na biblioteca, preparando-se para o inquérito. Saiu de casa ao meio-dia e meia, dizendo que voltaria ao fim da tarde.
"Falou em particular com Amy porque nem sequer confia em mim para cumprir a minha palavra", pensou Menley. Depois afastou aqueles pensamentos e sentou-se, determinada
a trabalhar.
Antes do almoço, ela estivera a tentar compreender o material da pasta SAQUEADORES, preparando os seus próprios apontamentos, que seleccionara do material que Phoebe
Sprague coligira.
Releu esses apontamentos:
As quinze milhas de correntes traiçoeiras e canais sem saída e bancos de areia móveis que constituíam o litoral de Chatham eram a destruição de incontáveis embarcações.
Afundavam-se e partiam-se em nevascas e temporais ou chocavam contra bancos de areia, partindo o casco e afundando-se nas águas violentas.
SAQUEADORES era o nome dado às pessoas que roubavam os restos de naufrágios, que se apressavam a pilhar as cargas e a desviar o espólio. Levavam os seus pequenos
barcos para junto da embarcação moribunda, transportando pés-de-cabra, serrotes e machados, e tiravam-lhe toda a carga, madeira e ferragens. Barris e baús e utensílios
domésticos eram içados pelos lados para dentro da embarcação que aguardava.
Até os membros do clero pilhavam embarcações. Menley encontrara relatos nos apontamentos de Phoebe sobre o ministro que, a meio do sermão, olhou pela janela, viu
um navio em apuros e informou imediatamente a congregação daquele acontecimento fortuito. "Comece a faina", gritara, e saíra a correr da sala de reuniões, seguido
de perto pelos outros saqueadores.
Outra história que Phoebe anotara era a do ministro que, quando recebeu um recado a informá-lo de que estava a afundar-se uma embarcação, ordenou aos paroquianos
que inclinassem as cabeças numa oração silenciosa, enquanto ele se esgueirava para procurar despojos. Ao regressar, cinco horas depois, com o saque cuidadosamente
escondido, encontrou a obediente congregação, de pescoço rígido e esgotada, ainda na mesma posição.
"Histórias maravilhosas", pensou Menley, "mas que têm a ver com
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Tobias Knight?" Continuou a ler; uma hora depois, encontrou finalmente uma referência a ele. Estava registado que ele tinha denunciado "os bandos de saqueadores
que roubaram todo o carregamento de farinha e rum da escuna encalhada Red Jacket, privando a Coroa dos seus bens".
Tobias fora encarregue dessa investigação. Não havia menção ao sucesso ou falhanço da sua missão.
"Mas qual é a ligação a Mehitabel?", perguntou-se Menley. "Certamente, o capitão Freeman não terá sido um saqueador."
E depois encontrou outra referência a Tobias Knight. Em 1707, houvera uma votação para o substituir como investigador e assessor e para nomear Samuel Tucker para
concluir a construção do curral dos carneiros que Knight começara. A razão: "Tobias Knight já não aparece na nossa comunidade, para grande prejuízo da nossa congregação."
Phoebe Sprague anotara: "Provavelmente, o grande prejuízo deveu-se a já lhe terem pago para construir o curral. Mas que lhe aconteceu? Não há registos da sua morte.
Terá partido para evitar ser forçado a alistar-se? A Guerra da Rainha Ana, a guerra entre os Franceses e os índios, estava a decorrer. Ou o seu desaparecimento está
relacionado com a investigação da Coroa que começara dois anos antes?"
"A investigação da Coroa!", pensou Menley. "É uma ideia nova. Tobias Knight deve ter sido uma pessoa incrível. Atirou Mehitabel aos lobos. Liderou as buscas para
recuperar os despojos do Red Jacket, o que implica que estava a investigar os seus próprios concidadãos, e depois desapareceu, deixando o curral dos carneiros por
acabar."
Levantou-se e olhou para o relógio. Eram duas e meia. Amy estivera quase duas horas sozinha com o bebé. Preocupada, levantou-se de um salto, dirigiu-se para a porta
da cozinha e ficou aliviada ao ver que o carrinho estava naquele preciso momento a virar para o caminho de terra batida que delimitava o princípio da propriedade.
"Algum dia conseguirei não me preocupar excessivamente com Hannah?", perguntou-se.
"Pára de pensar assim", advertiu-se a si mesma. "Nem sequer olhaste para o oceano desde que te levantaste", pensou. " Olha para ele. Exerce sempre um efeito benéfico
sobre ti."
Saiu da cozinha, entrou na sala principal e abriu as janelas da frente, saboreando a corrente de ar salgado. Agitada pela forte brisa, a água era uma massa de cristas
brancas de espuma. Embora soubesse que devia estar frio na praia, deu por si ansiosa por ir dar um passeio e sentir a água nos tornozelos. Que sentia Mehitabel por
esta casa? Conseguia até visualizar a forma como escreveria a história.
Voltaram da viagem à China e encontraram a casa pronta. Examinaram-na, aposento por aposento, reparando com alegria nas colunas e nas vigas e nos painéis de madeira,
no perfeito acabamento das lareiras com os tijolos que Andrew encomendara em West Barnstable, nas pilastras e entalhes que rodeavam a grande porta da frente, com
os seus painéis em forma de cruz.
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Tinham ficado encantados com a clarabóia que tinham admirado em Londres, pois projectava formas adoráveis no vestíbulo. Depois, desceram a íngreme encosta para contemplarem
a casa como ela se avistava da praia.
"Tobias Knight é um bom construtor", disse Andrew enquanto olhavam para cima. A água batia na ponta da saia de Mehitabel. Ela levantou-a e avançou para a areia seca,
comentando: "Adoraria sentir a água nos tornozelos."
Andrew riu-se: "A água está muito fria, e tu com a criança. Acho que não é aconselhável."
Sente-se bem, Sr.a Nichols?
Menley virou-se. Amy estava à porta, com Hannah no colo.
Oh, claro que me sinto bem. Vais ter de me desculpar, Amy. Quando estou a escrever ou a desenhar, fico num mundo diferente.
Amy sorriu.
É como a professora Sprague costumava descrever a escrita quando visitava a minha mãe.
A tua mãe e a professora Sprague eram amigas? Não sabia.
A minha mãe e o meu pai eram membros de um clube de fotografia. Eram bons fotógrafos amadores. O meu pai ainda é, claro. Conheceram a professora Sprague no clube,
e ela e a minha mãe tornaram-se grandes amigas. O tom de Amy mudou. Foi lá que o meu pai conheceu Elaine. Ela também é sócia do clube.
A garganta de Menley secou. Hannah estava a fazer festas no rosto de Amy. Mas, ao olhar para Amy, ela pareceu-lhe diferente. Mais magra. Não tão alta. O cabelo louro
mais escuro, o rosto mais pequeno e em forma de coração. O sorriso meigo e triste quando beijou a cabeça do bebé e o embalou nos braços. Seria assim que ela retrataria
Mehitabel nas semanas que decorreram entre o nascimento da filha e o dia em que a perdeu.
Depois, Ámy estremeceu.
Cá dentro está um frio de morrer, não está? Não se importa que eu faça uma chávena de chá?
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Quando Adam chegou a casa de Scott, encontrou-o a esfregar a garagem. Franziu o sobrolho quando viu que Covey tinha estado concentrado numa zona manchada de óleo.
Está a ser muito diligente observou ele.
Nem por isso. Há algum tempo que queria fazer isto. Há alguns anos, Viv fez um curso de mecânica de automóveis, e durante algum tempo achou que queria ser mecânica.
Tinha um velho Caddy e gostava de lhe pôr gasolina e mudar o óleo.
O Caddy tinha uma fuga de óleo? perguntou Adam rapidamente.
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Não sei se tinha uma fuga ou se Viv entornava metade do óleo. Ela estacionava sempre o carro neste espaço. Só comprou o BMW depois de nos casarmos.
Estou a perceber. Sabe, por acaso, se os polícias tiraram fotografias do chão da garagem quando estiveram cá?
Scott pareceu espantado.
Que quer dizer com isso?
Ontem, o detective Coogan esteve a espreitar para debaixo do carro de Tina. E o carro dela tem uma fuga de óleo.
Abruptamente, Scott desligou a mangueira e atiroua ao chão.
Consegue perceber o que isto significa para mim, Adam? Estou a ficar doido. Tenho de lhe dizer que, mal o inquérito esteja concluído, me vou embora daqui. As pessoas
que pensem o que quiserem. Seja como for, vão pensar sempre.
Depois, abanou a cabeça como se estivesse a aclarar as ideias.
Desculpe. Eu não devia descarregar em si. Entre. Cá fora está imenso frio. Pensei que Agosto seria o melhor mês do ano no Cape.
Para além do frio que faz hoje, até agora, não vi nada no tempo que contradissesse isso disse Adam suavemente.
Desculpe-me outra vez. Adam, preciso de falar consigo. Voltou-se abruptamente e entrou em casa à frente de Adam.
Adam recusou a oferta de uma cerveja, e, enquanto Scott foi buscar uma para si próprio, usou o tempo para estudar atentamente a sala de estar. Parecia precisar de
uma boa arrumação, mas isso podia ser o resultado da busca. Os polícias não tinham a fama de deixarem os locais que revistavam em perfeita ordem.
Mas Adam notou outra coisa, um vazio na sala. Não havia nada pessoal em lado nenhum, nenhuma fotografia, nenhum livro, nenhuma revista. A mobília não era velha,
mas não era bonita nem coordenada. Adam lembrou-se de que Elaine lhe dissera que Vivian comprara a casa mobilada. Não parecia que tivesse feito o que quer que fosse
para lhe conferir a sua marca, e, se a personalidade de Scott Covey estava reflectida na sala, Adam não conseguia detectá-la.
Pensou na cozinha da Casa "Lembra-te". Estavam lá há duas semanas e Menley já lhe conferira uma atmosfera acolhedora, e fizera-o sem qualquer esforço. Gerânios alinhavam-se
no peitoril da janela. A enorme saladeira de madeira estava cheia de fruta. Tinha arrastado uma cadeira-de-baloiço velha da salinha pequena e colocara-a junto à
lareira. Um cesto de vime, que possivelmente tinha sido utilizado para transportar toros, servia agora para arrumar revistas e jornais.
Menley era uma dona de casa inata. Adam pensou com remorsos na forma como saíra precipitadamente de casa naquela manhã para avisar Amy de que teria de ficar com
Menley até ele chegar. "Menley não teria mandado Amy para casa", disse para si mesmo. "Está tão preocupada com aqueles ataques de ansiedade como eu. Ontem telefonou
à Dr.a Kaufman." Até tinha sugerido ficar com Amy todo o dia.
Que estava a reter Covey? Era preciso assim tanto tempo para deitar uma cerveja num copo? "E que raio estou a fazer aqui?", perguntou Adam
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a si mesmo. "Estou de férias. A minha mulher precisa de mim e eu deixo-me convencer a aceitar este caso." Entrou na cozinha.
Há algum problema?
Scott estava sentado à mesa, de braços cruzados, e não tocara na cerveja.
Adam disse ele em tom monocórdico. Não fui honesto consigo.
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Nat Coogan decidiu que seria boa ideia fazer uma segunda visita a Fred Hendin. Armado das informações que o investigador da companhia de seguros partilhara consigo,
chegou a casa de Hendin às quatro e meia.
O carro de Hendin estava no caminho de acesso à casa. Nat não ficou satisfeito ao ver que o Toyota verde de Tina estava estacionado atrás. "Por outro lado, poderia
ser interessante observá-los juntos", pensou ele.
Subiu lentamente o passeio e tocou à campainha. Quando Hendin veio à porta, ficou visivelmente descontente.
Esqueci-me de que tínhamos um encontro? perguntou ele.
Não temos disse Nat, divertido. Posso entrar? Hendin afastou-se para um lado.
Não pode é continuar a incomodar a minha namorada. Tina estava sentada no sofá, a secar os olhos com um lenço.
Por que não pára de me incomodar? perguntou.
Não tenho qualquer intenção de a incomodar, Tina disse Nat calmamente. Estamos a efectuar a investigação de um possível homicídio. Quando fazemos perguntas, é para
obtermos respostas, não para incomodarmos as pessoas.
O senhor anda a falar de mim com outras pessoas. Anda a espreitar para o meu carro. Mais lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
"És uma péssima actriz", pensou Nat. "É só exibição para Fred ficar com pena." Olhou fugazmente para Hendin e viu irritação e pena no seu rosto. "E está a resultar",
pensou.
Hendin sentou-se ao lado de Tina, e a sua mão calejada do trabalho fechou-se sobre as dela.
Que se passa com o carro?
Não reparou que o carro de Tina tem uma grande fuga de óleo?
Reparei. Vou dar um carro novo a Tina quando ela fizer anos. O que será dentro de três semanas. Não vale a pena gastar dinheiro a arranjar o outro.
O chão da garagem de Scott Covey tem uma mancha de óleo bastante grande disse Nat. E o óleo não veio do BMW novo.
Os olhos de Tina secaram de repente, e ela disse rispidamente:
Nem veio do meu carro. Hendin levantou-se.
Sr. Coogan, Tina disse-me que vai haver um inquérito. O advogado
142
de Covey vem falar comigo, e eu vou dizer-lhe exactamente o que estou a dizer-lhe agora, por isso oiça bem. Tina e eu separámo-nos no Verão passado porque ela andava
com Covey. Saiu com bastantes tipos durante o Inverno, e eu não tenho nada a ver com isso. Estamos juntos desde Abril último, e desde então não houve uma única noite
que eu não a tivesse visto, por isso não faça um grande romance de ela ter encontrado Covey naquele bar ou ter passado por casa dele para lhe oferecer apoio quando
a mulher dele desapareceu.
Pôs um braço em volta dos ombros de Tina, e ela sorriu-lhe.
É uma pena estar a estragar todas as minhas surpresas, mas tenho outra para esta senhorinha. Para além do carro, comprei-lhe um anel de noivado e ia dar-lho no dia
dos anos dela, mas, no estado em que as coisas estão, ela vai tê-lo no dedo quando formos a Tribunal na próxima semana. Agora saia, Coogan. O senhor e as suas perguntas
enojam-me.
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"Então é agora que a defesa se desmorona", pensou Adam. "Na cozinha de Vivian Carpenter."
Que quer dizer com não estar a ser honesto comigo? perguntou rapidamente.
Scott Covey observou o copo de cerveja em que não tocara. Não olhou para Adam quando disse:
Disse-lhe que não vi Tina desde que me casei com Vivian, a não ser naquele dia no pub e quando ela veio cá a casa oferecer-me apoio. É verdade. O que não corresponde
à verdade é a impressão que lhe dei de que ela e eu nos tínhamos separado no Verão passado.
Viu-a depois de sair do Cape em Agosto do ano passado?
Ela foi a Boca Raton cinco ou seis vezes. Eu queria contar-lhe; de qualquer modo, tenho a certeza de que o seu investigador descobrirá.
O investigador que quero está de férias até à próxima semana. Mas tem razão. Ele teria descoberto. E também a equipa do promotor de Justiça, se é que não descobriram
já.
Scott afastou a cadeira e levantou-se.
Adam, sinto-me um canalha ao dizer isto, mas é verdade. Eu rompi realmente com Tina no Verão passado. Não foi só por andar com Vivian. Foi porque Tina queria tornar
a nossa relação mais séria e eu não queria. Depois, quando fui para Boca, apercebi-me de que tinha muitas saudades de Viv. Normalmente, estes romances de Verão são
um fiasco. Você sabe bem. Telefonei a Viv e percebi que ela sentia o mesmo por mim. Ela veio a Boca, encontrámonos algumas vezes em Nova Iorque, e na Primavera tínhamos
ambos a certeza de que queríamos casar-nos.
Se está a dizer a verdade agora, por que não a disse desde o princípio? Adam disparou a pergunta em tom acusador.
Porque Fred não sabe que Tina continuou a ver-me durante o Inverno.
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Não o incomodou que ela andasse com outros homens, mas odeia-me porque ela o abandonou por minha causa no Verão passado. Foi esse o verdadeiro motivo por que ela
pediu para eu me encontrar com ela. Queria ver-me cara a cara e ouvir-me prometer que nunca contaria a ninguém que ela fora à Florida.
Voltou a vê-la depois de ela ter saído do pub naquele dia? Scott encolheu os ombros.
Telefonei-lhe e disse-lhe que dissesse o que tinha a dizer ao telefone. Depois, quando ouvi o que era, ri-me imenso. Perguntei-lhe a quem é que ela pensava que eu
ia contar que ela fora a Boca. Que espécie de crápula é que ela pensava que eu era?
Acho que vamos precisar de algumas testemunhas no inquérito que confirmem que Tina andava a persegui-lo, e não o contrário. Pode sugerir alguém?
Scott ficou animado.
Algumas das outras empregadas de mesa da Estalagem Daniel Webster. Tina era amiga delas, mas depois zangaram-se com ela. Contou-me que elas tinham ficado furiosas
porque alguns dos clientes habituais que davam boas gorjetas começaram a pedir para serem servidos por ela.
Parece que Tina joga em vários campos disse Adam. Espero que o seu amigo Fred não se importe que se torne do conhecimento público que ela andava a mentir-lhe. "Por
que é que me meti nisto?, perguntou-se de novo. Continuava a acreditar que a mulher de Scott Covey morrera num trágico acidente, mas também acreditava que Covey
usara Tina até Vivian resolver casar com ele. "Este tipo pode estar inocente de assassínio, mas isso não faz que ele não seja um miserável", pensou.
De repente, a pequena cozinha pareceu fechar-se sobre Adam. Ele queria voltar para Menley e Hannah. Só teriam alguns dias juntos antes de ele ter de levar Menley
para o hospital em Nova Iorque. Tinha de começar a prepará-la para o que ia acontecer.
Dê-me os nomes dessas empregadas disse ele abruptamente.
Liz Murphy e Alice Regan.
Escreva-os. E esperemos que elas ainda trabalhem lá. Adam voltou-se e saiu da cozinha.
Ao passar pela sala de jantar, olhou lá para dentro. Em cima da mesa, estava uma grande fotografia emoldurada; era a vista aérea da Casa "Lembra-te" que Elaine tivera
em exposição na montra. Aproximou-se para a examinar.
"É uma belíssima fotografia", pensou. A casa parecia majestosamente indiferente. As cores eram espectaculares o verde-exuberante dos ramos das árvores que rodeavam
a casa, as hortênsias azul-arroxeadas que circundavam a fachada, o oceano azul-esverdeado, tranquilo, com uma preguiçosa rebentação. Até se viam pessoas a passear
na praia e um barco pequeno ancorado junto à linha do horizonte.
Adorava ter esta fotografia comentou ele.
Foi um presente de Elaine disse Scott rapidamente. Se não, até lha dava. Acho que ela pensa que, se você não comprar a Casa "lembra-te", eu poderia estar interessado.
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E estaria?
Se Viv estivesse viva, sim. No estado em que as coisas estão, não. Hesitou. O que quero dizer é que, no meu actual estado de espírito, não. Talvez mude de ideias
se um juiz me ilibar.
Olhar para esta fotografia seria, sem dúvida, um incentivo para comprar a casa. Pelo menos, para mim é disse Adam. Depois, voltou-se para se ir embora. Vou andando.
Falamos depois.
Estava a entrar no carro quando Henry Sprague lhe fez sinal.
Encontrei mais material que me parece que Menley gostaria de ver explicou ele. Entra, para eu to dar.
A pasta estava na mesa da entrada.
E Phoebe tem insistido muito que esta boneca pertence à Casa "lembra-te". Não sei por que é que ela tem tanta certeza, mas importas-te de a levar?
Provavelmente, Menley vai ficar encantada com ela disse Adam. Obviamente, é uma verdadeira antiguidade. Não se admire se aparecer desenhada no livro. Obrigado, Henry.
Como é que Phoebe está hoje?
Agora está a dormir. Não passou bem a noite. Não sei se te contei; vou pô-la num lar a partir do princípio do mês que vem.
Não me tinha contado. Lamento muito.
Enquanto Adam punha a pasta debaixo do braço e pegava na boneca, sobressaltou-se com um grito.
Ela está a ter outro pesadelo disse Henry, e correu para o quarto, com Adam atrás de si.
Phoebe estava deitada na cama, com as mãos a tapar o rosto. Henry debruçou-se e pegoulhe nas mãos.
Está tudo bem, querida disse suavemente.
Ela abriu os olhos, olhou para ele, e depois virou a cabeça e viu Adam segurar a boneca.
Oh, eles afogaram-na suspirou ela. Mas ainda bem que decidiram deixar o bebé vivo.
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Menley telefonou a Carrie Bell às quatro horas. A cautelosa resposta inicial de Carrie quando Menley se identificou foi substituída por alegria genuína quando percebeu
o motivo do telefonema.
Oh, isso é maravilhoso disse ela. O dinheiro faz-me bastante falta. Nestas duas semanas perdi bastante trabalho.
Bastante trabalho? perguntou Menley. Porquê?
Oh, não devia ter falado nisso. Estarei aí amanhã de manhã cedo. Muito obrigada, Sr.a Nichols.
Menley contou a conversa a Amy.
Sabes a que é que ela se referia quando disse que tinha perdido muito trabalho?
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Amy pareceu pouco à vontade.
É que Elaine recomenda-a às pessoas que estão a vender ou a alugar as suas casas. Carrie vai lá alguns dias e não há ninguém que faça uma casa parecer tão impecável
como ela. Mas Elaine diz que, como ela é uma tremenda coscuvilheira, não vai recomendá-la para mais trabalhos. Até já tentou convencer o meu pai a despedi-la.
Durante o jantar, Menley contou aquela conversa a Adam.
Não achas que foi maldade? perguntou, enquanto o servia de chilli pela segunda vez. Pelo que Amy me contou, Carrie Bell é uma mãe solteira muito trabalhadora, que
tem de sustentar um filho com três anos.
Nunca fizeste um chilli tão bom comentou Adam. Para te responder, sei que Carrie é boa. Ela limpava o chalé que ocupei o ano passado quando vim para cá sozinho.
Mas também sei que Elaine se mata a trabalhar. Não é à toa que é tão bem sucedida. É porque não deixa nada ao acaso. Se acha que a língua de Carrie Bell está a prejudicar
as suas hipóteses de vender casas, Carrie perde o emprego. Oh, já te disse que, para além da comida, gosto do ambiente?
Menley apagara o candeeiro do tecto e regulara os apliques de parede para uma luminosidade suave. Estavam sentados de frente um para o outro à mesa da cozinha. Todo
o material que Phoebe coligira, bem como os livros e os apontamentos e desenhos de Menley, estavam agora na biblioteca.
- Decidi que, como comemos sempre aqui, é uma pena ter a mesa tão atravancada explicou ela.
Aquilo era apenas parte da verdade, reconheceu intimamente. O resto era que quando Adam chegara a casa, ao fim da tarde, e lhe dera a pesada pasta que trouxera da
casa de Henry Sprague, ela lhe dera uma vista de olhos e ficara chocada ao ver o retrato de Mehitabel e Andrew no navio. Era exactamente como ela os visualizara.
"Tem de haver outro retrato deles no meio de toda esta papelada", pensou ela, "e eu devo tê-lo visto." Mas era mais um exemplo de se esquecer de uma coisa importante.
Foi nesse momento que decidiu interromper por alguns dias as pesquisas sobre a Casa "Lembra-te" e despachar o artigo para a Travel Times. Telefonara a Jan Paley,
que concordara fazer uma selecção de algumas casas históricas para ela visitar.
As histórias que me contou sobre as casas onde as pessoas sentem uma presença seriam perfeitas dissera ela a Jan. Sei que a editora adoraria. "E quero saber o que
essas pessoas têm a dizer", pensara ela.
Hoje escreveste muito ou ainda estás a estudar os papéis de Phoebe? perguntou Adam.
Por acaso, não fiz nada disso; estive a trabalhar noutra coisa. Contou-lhe a conversa que tivera com Jan e o que pensava fazer.
"Será que fui precipitada na explicação?", perguntou-se Menley. "Parecia tão ensaiada."
Histórias de fantasmas? perguntou Adam, sorrindo. Tu não acreditas nesses disparates.
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Acredito em lendas. Reparou que o chilli desaparecera do prato dele. Estavas com fome. Que almoçaste?
Um hambúrguer, mas já foi há muito tempo, laine almoçou comigo. Estivemos a rever o testemunho dela no inquérito.
A forma como Adam falava quando se referia a Elaine era sempre carinhosa, até íntima. Ela tinha de perguntar.
Adam, alguma vez estiveste envolvido com Elaine... mais do que como grande amigo?
Ele pareceu pouco à vontade.
Oh, saíamos juntos quando éramos miúdos, e por vezes encontrávamo-nos quando eu passava algum tempo no Cape enquanto andei na Faculdade de Direito.
E, desde então, nunca mais?
Oh, que raio, Men, não estás à espera de que te conte toda a minha vida amorosa. Antes de te conhecer, costumava trazer para cá a rapariga com quem namorava para
passar fins-de-semana prolongados quando a minha mãe ainda tinha a casa grande. Outras vezes, vinha sozinho. Se nenhum de nós estava ocupado, laine e eu saíamos
juntos. Mas isso foi há vários anos. Nada de especial.
Estou a perceber. "Deixa-te disso", disse Menley para si mesma. "Era só o que faltava, começares uma discussão por causa de Elaine."
Adam esticou a mão por cima da mesa.
Estou com a única rapariga que amei de verdade e com quem quis estar disse ele. Fez uma pausa. Em cinco anos, tivemos mais altos e baixos do que a maioria das pessoas
tem numa vida inteira. Tudo o que me interessa é ultrapassá-los e voltar a sentir-me em terra firme.
Menley tocou com as pontas dos dedos nas pontas dos dedos dele. Empurrou-os para trás.
Estás a tentar dizer-me qualquer coisa, não estás, Adam?
Com um horror crescente, escutou enquanto ele expunha o seu plano:
Men, quando falei para a Dr.a Kaufman, ela disse-me que achava aconselhável fazeres uma terapia agressiva. Uma coisa é ter uma visão do acidente. Outra completamente
diferente é pensares que ouviste Bobby chamar e correres pela casa toda à procura dele. Ela quer que sejas internada durante um curto espaço de tempo.
Era precisamente o que ela receara.
Estou a ficar melhor, Adam.
Sei que te estás a esforçar imenso. Mas, depois do inquérito, seria melhor seguirmos o conselho dela. Sabes bem que confias nela.
Naquele momento, odiou-o e teve plena consciência de que a expressão do seu rosto mostrou os seus sentimentos. Virou-se e viu que ele pusera a boneca antiga na cadeira
alta de Hannah. Agora, a boneca olhava-a fixamente com olhos de porcelana azuis, uma paródia do milagre que Hannah representava.
Não é uma questão de confiar na Dr.a Kaufman, é uma questão de confiar em mim.
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63
Jan Paley ficara surpreendida e contente com o telefonema que Menley Nichols lhe fizera naquela tarde. Menley queria conhecer casas históricas que tinham lendas
ligadas a elas.
O que eu quero dizer com casas históricas é que pretendo ver bons exemplos de arquitectura dos primórdios do Cape, e, quanto às lendas, refiro-me a histórias sobre
uma presença inexplicável, um fantasma disse-lhe Menley.
Jan concordara prontamente em ser sua guia. Sentara-se imediatamente e fizera uma lista dos lugares onde a levaria.
A velha casa Dillingham em Brewster era uma das que visitariam. Era a segunda casa mais antiga do Cape. Ao longo dos anos, algumas das pessoas que a alugaram disseram
ter a impressão de ver uma mulher passar pela porta de um dos quartos.
A Estalagem Dennis era outro lugar onde teria de a levar. Os proprietários até tinham dado um nome ao espírito brincalhão que desarrumava constantemente a cozinha.
Chamavam-lhe Lillian.
Podiam visitar Sarah Nye, a amiga que ela mencionara a Menley quand o tinham conversado na festa de Elaine. Sarah tinha a certeza de estar a partilhar a casa com
a senhora para quem ela fora construída em 1720.
E que tal a casa de praia em Harwich, cujo andar de baixo era agora ocupado por uma loja de decoração de interiores? Os donos garantiam que tinham um fantasma residente
e estavam convencidos de que era um jovem de 16 anos que ali morrera no século xix.
Jan fez alguns telefonemas, marcou encontros e telefonou a Menley.
Está tudo combinado. Vou buscá-la amanhã de manhã, às dez horas.
Tudo bem, e, Jan, sabe alguma coisa acerca de uma boneca antiga que Phoebe Sprague tinha? Henry disse a Adam que ela garante que a boneca pertence à Casa "Lembra-te".
Oh, ela encontrou-a? exclamou Jan. Estou tão contente. Tom descobriu-a sob o beiral do sótão. Só Deus sabe há quanto tempo ali estava. Phoebe queria mostrá-la a
um perito em antiguidades. Algumas pesquisas que ela fizera sugeriam que podia ter pertencido a Mehitabel. Naquela época, não me apercebi de que Phoebe estava a
começar a perder a memória. Ela enfiou a boneca algures e depois não conseguiu encontrá-la.
Por que é que ela pensava que a boneca pertencia a Mehitabel? perguntou Menley a Jan.
Phoebe disse-me que uma descrição que lera mencionava que, depois de o marido lhe tirar o bebé, Mehitabel era vista no passeio da viúva, segurando uma boneca.
12 de Agosto
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Scott Covey passou a maior parte do dia de sexta-feira no barco. Pôs um almoço de piquenique num cesto, trouxe as canas de pesca e passou o dia mais calmo de há
muitas semanas. O calor dourado de Agosto voltara em pleno, substituindo o frio que predominara no dia anterior. A brisa do oceano era de novo perfumada. Os seus
covos estavam cheios.
Depois do almoço, deitou-se no convés, entrelaçou as mãos atrás da cabeça e ensaiou o testemunho que daria no inquérito. Tentou recordar-se de todas as coisas negativas
que Adam Nichols lhe enumerara e como podia refutar cada uma delas.
O seu envolvimento com Tina no último Inverno ia ser o maior problema. Sem parecer um canalha e um grosseirão, como podia fazer o juiz compreender que fora ela que
o perseguira?
E depois lembrou-se de uma coisa que Vivian lhe dissera. No final de Junho, quando a ajudara a ultrapassar um dos seus ataques periódicos de insegurança chorosa,
ela suspirara: "Scott, tu pertences àquela espécie de homens lindíssimos por quem as mulheres se apaixonam naturalmente. Eu tento compreender isso. Sei que outras
pessoas também o compreendem instintivamente. A culpa não é tua; não consegues evitá-lo."
Vivy disse ele em voz alta, vou ter de te agradecer por me safares neste inquérito.
Olhando para o céu, encostou os dedos aos lábios e soprou-lhe um beijo.
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"Os patinhos todos em fila", pensou Nat Coogan enquanto analisava a lista de testemunhas que tinham intimado para o inquérito. Estava no gabinete do promotor de
Justiça, em Barnstable.
Robert Shore, o promotor de Justiça, estava sentado atrás da secretária, a estudar os seus próprios apontamentos. Tinha marcado uma conferência para o meiodia, para
coordenar os preparativos finais para o inquérito.
Está bem. Vamos ser acusados de não termos intimado as pessoas com grande antecedência, mas é sempre assim. Este caso é importante, não podemos deixá-lo arrastar-se.
Há algum problema?
O encontro durou uma hora e meia. Nessa altura, os dois homens
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estavam de acordo em que tinham um bom caso para apresentar ao juiz. Mas Nat sentiu que tinha de o avisar:
Oiça, já vi este tipo em acção. Consegue chorar lágrimas de crocodilo. Pode não ter conseguido singrar como actor, no palco, mas confie em mim... ele é capaz de
conseguir ganhar um Tony no Tribunal Distrital.
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Na sexta-feira de manhã, Adam saiu de casa logo que Amy chegou.
Tenho de entrevistar a empregada de mesa que pode equilibrar qualquer testemunho acerca de Tina visitar Scott na Florida explicou ele a Menley.
Jan vem buscar-me às dez horas disse ela mecanicamente. Devo chegar a casa por volta das duas ou duas e meia. Carrie Bell vem fazer limpeza hoje, por isso ela e
Amy vão estar em casa com Hannah. Está bem assim?
Menley! Ele foi abraçá-la, mas ela virou-se e afastou-se.
Quer dizer-me qual é o problema? perguntou Jan a Menley quando atravessavam a ponte da ilha Morris para a estrada que levava ao farol e à Estrada n.2 28.
O problema é que o meu marido e a minha psiquiatra parecem concordar que o meu lugar é numa cela almofadada.
Isso é ridículo.
Sim, claro que é. E não vou deixar que isso aconteça. Deixemos as coisas como estão. Mas, Jan, tenho o pressentimento de que Phoebe está a tentar dizer-me alguma
coisa. No outro dia, quando esteve lá em casa e viu as pastas dela, olhou para elas, e acho que compreendeu realmente o que eram.
É possível concordou Jan. Há momentos em que Phoebe parece recuperar temporariamente a memória.
O tom da voz dela era tão urgente. Disse que Mehitabel estava inocente. Depois disse algo como: "Tobias Knight. Resposta na pasta SAQUEADORES." Isso diz-lhe alguma
coisa?
Nem por isso. Sabemos que Tobias Knight construiu a Casa "lembra-te", pouco mais. Mas, quando estive a planear os sítios onde a levaria hoje, descobri que ele também
construiu uma das casas mais antigas de Eastham. Se tiver tempo, podíamos passar por lá e dar-lhe uma vista de olhos. É ocupada pela Sociedade Histórica de Eastham,
e pode ser que eles tenham coligido algumas informações sobre ele.
1 Um prémio anual semelhante aos Óscares, mas para trabalhos de televisão.
(N. da T.)
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Tina conheceu Scott Covey aqui contou Liz Murphy a Adam. Ele veio cá jantar com alguns dos elementos da casa de espectáculos, e ela atirou-se a ele furiosamente.
E ninguém sabe atirar-se a um homem melhor do que Tina.
Adam estava a entrevistar a jovem empregada de mesa no escritório da Estalagem Daniel Webster, em Sandwich.
Isso aconteceu em Julho do ano passado?
No princípio de Julho. Nessa época, Tina andava com Fred. Ele é um tipo impecável. Mas ela pôs Fred a andar quando Scott apareceu em cena.
Achou que Scott tinha intenções sérias em relação a Tina?
É claro que não. Todas nós achávamos que Scott tinha grandes planos para si próprio. Nunca iria viver com uma pessoa que precisava de trabalhar para se sustentar.
Nós dissemos-lhe que ela era parva em deixar Fred por causa dele.
Tanto quanto sabe, Tina viu Scott durante o Inverno?
Ela sabia que ele estava em Boca Raton, e queria arranjar um emprego lá. Mas acho que ele lhe disse que, se as coisas resultassem como ele queria, ele voltaria para
o Cape.
E ela sabia que ele andava com Vivian Carpenter?
Sabia e não se importava.
"Exactamente o que Scott me disse", pensou Adam.
Vivian sabia da existência de Tina?
A menos que Scott lhe tivesse dito, não sei como poderia saber.
Sabe por que é que Tina se despediu deste emprego?
Ela disse-me que Scott se casara e que ela ia começar a andar novamente com Fred e queria ter as noites livres para sair com ele. Disse-me que Fred se levanta tão
cedo todas as manhãs para ir trabalhar que vai para a cama às dez da noite. Queria um emprego onde servisse pequenos-almoços e almoços, mas aqui não havia vagas
para esse turno.
Liz, você vai ser intimada para testemunhar no inquérito. Não se preocupe. O promotor de Justiça vai fazer-lhe perguntas muito semelhantes às que lhe fiz agora.
A outra empregada de mesa, Alice Regan, começava a trabalhar às onze horas, por isso Adam esperou por ela. A sua história coincidia com o que Liz Murphy lhe dissera.
Ele sabia que o promotor de Justiça massacraria Tina por ela ter decidido trabalhar em Chatham, num restaurante frequentado por um examante, mas isso daria uma imagem
má de Tina, não de Scott.
Adam seguiu pela Estrada n.- 6A e parou no edifício do Tribunal. No gabinete do promotor de Justiça, apresentou os nomes de Liz Murphy e Alice
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Regan para serem acrescentados à lista de testemunhas que queria intimar.
Posso ter mais uma ou duas testemunhas disse à assistente do promotor de Justiça.
A sua paragem seguinte foi em Orleães, para falar com um pescador cujo barco ficara alagado durante a mesma tempestade que roubara a vida a Vivian Carpenter.
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Carrie Bell andou atarefada na cozinha, a limpar o interior dos armários enquanto tagarelava com Amy.
É uma criança adorável disse ela. E tão sossegadinha. Amy estava a dar o almoço a Hannah.
Como se tivesse compreendido o elogio, Hannah virou-se para Carrie com um sorriso radioso e pôs o pulso no frasco dos pêssegos.
Hannah! protestou Amy, rindo.
E vai ficar muito parecida com o irmão anunciou Carrie.
Eu também acho concordou Amy. Aquela fotografia no toucador da Sr.a Nichols revela uma verdadeira semelhança.
Ainda é mais evidente no vídeo de Bobby que o Dr. Nichols trouxe o ano passado. Carrie baixou a voz. Eu sei, costumava limpar o pequeno chalé perto da casa de Elaine.
Bem, uma vez entrei, e o Dr. Nichols estava a ver um vídeo de Bobby a correr para a mãe. Juro que a tristeza dele quase me partiu o coração.
Pegou na boneca antiga.
Tu não queres andar sempre a tirar a boneca da cadeira alta e a voltar a pô-la lá, pois não, Amy? Por que não a pões no berço velho no quarto do bebé? Parece que
é lá o lugar dela.
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À uma hora, uma dúzia de páginas do bloco de apontamentos de Menley estavam preenchidas, e tinha duas horas de entrevistas no gravador.
Enquanto Jan conduzia pela Estrada n.- 6, em direcção a Eastham, Menley meditou nas similaridades das experiências que ouvira.
Todas as pessoas com quem conversámos parecem sentir que, se há algo inexplicável nas suas casas, é uma presença benevolente disse ela. Mas a sua amiga em Brewster,
Sarah, não teve nenhuma manifestação a não ser a primeira.
Jan olhou para ela.
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Sarah disse-nos que uma manhã, cedo, quando ela e o marido estavam a dormir, foi acordada pelo ruído de alguém a subir as escadas. Depois, a porta abriu-se e ela
viu marcas de pegadas na carpete.
Isso mesmo.
Menley folheou o bloco de apontamentos.
Sarah disse-nos que teve uma sensação de conforto. Foi assim que ela descreveu o que aconteceu: "É como quando somos crianças pequenas e a nossa mãe entra no quarto
e nos aconchega a roupa.
Sim, foi assim que ela descreveu o que se passou.
E depois disse que sentiu um toque no ombro, e foi como se alguém estivesse a falar, mas ela estava a ouvir com a mente, não com os ouvidos. Sabia que era Abigail
Harding, a senhora para quem a casa fora construída, e Abigail estava a dizer-lhe como estava feliz por a beleza original da sua casa ter sido restaurada.
Foi sempre assim que Sarah descreveu a experiência.
Onde eu quero chegar continuou Menley é que houve uma razão para Abigail contactar Sarah. Ela tinha alguma coisa para lhe dizer. Sarah diz que nunca mais voltou
a sentir nada específico e que quando tem aquela sensação de presença benevolente, agora, pode estar simplesmente a sentir uma atmosfera tranquila na casa. Acho
que o que estou a tentar dizer é que talvez uma coisa inacabada mantenha uma presença presa à terra.
É possível concordou Jan.
Pararam para um almoço rápido no pequeno restaurante à beiramar em Eastham, e depois foram ver a casa que Tobias Knight construíra naquela cidade. Era na Estrada
n.J 6 e estava rodeada por restaurantes e lojas.
A localização não se pode comparar com a da Casa "Lembra-te" observou Menley.
A maior parte das casas de capitães eram construídas longe do mar. Os primeiros colonos respeitavam aqueles nordestes. Mas a casa é semelhante à Casa "Lembra-te",
talvez até elaborada da mesma forma. Esta remonta a 1699. Como pode ver, não tem clarabóia.
O capitão e Mehitabel trouxeram a clarabóia de Inglaterra disse Menley.
Não sabia. Deve ter encontrado essa informação no material das pesquisas de Phoebe.
Menley não respondeu. Entraram, pararam junto à secretária da recepção, pegaram em brochuras sobre a casa e depois passearam pelas divisões. A planta da casa magnificamente
restaurada era semelhante à da Casa "Lembra-te".
Aqui, os aposentos são maiores observou Jan, mas não se esqueça de que os acabamentos da Casa "Lembra-te" são mais requintados.
Menley manteve-se silenciosa durante a viagem de volta para Chatham. Algo estava a preocupá-la, mas não sabia bem o que era. Agora estava ansiosa por chegar a casa
e falar com Carrie Bell antes de ela sair.
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Fred Hendin trabalhava na equipa de carpinteiros de um pequeno construtor em Dennis, que se especializara em restauros. Fred gostava do trabalho, e o que mais apreciava
era sentir a madeira nas mãos. A madeira tem uma personalidade própria, bem como uma dignidade inerente. E ele considerava-se assim.
Agora, aquela propriedade à beira-mar valia uma fortuna; compensava restaurar as casas de orçamento reduzido que estavam situadas nos lotes da frente. A casa à beira-mar
em que estavam a trabalhar agora era uma dessas. Tinha cerca de quarenta anos, e eles estavam praticamente a reconstruí-la. Parte do projecto consistia em desmantelar
a cozinha, substituindo os armários de madeira prensada que os construtores usavam em casas baratas por armários de cerejeira feitos à medida.
Na verdade, Fred estava interessado numa das que estavam em frente àquela onde trabalhava, um verdadeiro tesouro para uma pessoa que soubesse restaurá-la, com direitos
de praia e uma vista formidável. Estivera a ver os vendedores da agência de compra e vendas da localidade trazerem possíveis compradores para a ver, mas nenhum deles
ficava muito tempo. Não viam mais nada para além do facto de a casa estar uma miséria. Fred sabia que, se a comprasse e lhe dedicasse seis semanas de trabalho árduo,
acabaria com uma das casas mais bonitas que alguém poderia desejar, e para além disso teria feito um bom investimento.
"Só faltam duas semanas para o fim de Agosto", pensou ele. Depois, o preço baixaria. No Cape, a actividade de compra e venda de propriedades abrandava muito durante
o Inverno.
Fred sentou-se a almoçar com os outros colegas da equipa. Trabalhavam bem juntos, e nos intervalos partilhavam algumas gargalhadas.
Começaram a falar sobre o inquérito à morte de Vivian Carpenter Covey. Matt, o electricista, fizera alguns trabalhos para Vivian em Maio, pouco depois de ela se
ter casado.
Não era uma dama fácil contou ele. No dia em que lá estive, o marido foi à loja e ficou fora de casa um bocado. Ela atirou-se a ele quando ele voltou, disse que
não pensasse que ia fazer dela parva. Disse-lhe que fosse fazer as malas. Depois começou a chorar e a agarrar-se a ele quando ele lhe lembrou que ela lhe pedira
para passar pela lavandaria e que fora isso que o atrasara. Acreditem no que vos digo, aquela mulher era um problema.
Sam, que entrara recentemente para a equipa, perguntou:
Não se diz que Covey tem uma namorada, uma empregada de mesa das redondezas que é uma autêntica brasa?
Esquece disse Matt, franzindo o sobrolho e olhando de esguelha para Fred.
Fred enfiou o guardanapo no termos do café.
Isso mesmo. Esquece disse rispidamente, perdendo de repente a boa disposição. Empurrou a cadeira para trás e saiu da mesa.
Quando voltou ao trabalho, demorou algum tempo a acalmar. Havia imensas coisas que não lhe saíam do pensamento. Na noite anterior, depois
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de o detective sair, Tina admitira que andara com Covey durante todo o Inverno anterior e que fizera várias viagens à Florida.
"Isso tem importância?", perguntou-se Fred enquanto pendurava os armários. Como Tina dissera, ela e Fred não namoravam naquela altura. "Mas por que é que ela lhe
tinha mentido?", perguntou a si mesmo. Depois, pensou se também estaria a mentir quando dissera que não tinha visto Covey desde que ele se casara. E que acontecera
no último mês, desde que a mulher dele morrera?
Ao fim do dia, quando chegou a casa para esperar por Adam, ainda estava a tentar decidir se alguma vez poderia voltar a confiar em Tina.
Não diria nada ao advogado de Covey. Por enquanto, manter-se-ia ao lado de Tina e dar-lhe-ia o anel de noivado para usar no inquérito. Da forma como aquele detective
falava, a Polícia não se importaria nada de envolver Tina numa conspiração de homicídio. Ela não parecia compreender como tudo aquilo se tinha tornado sério.
Não, ficaria a seu lado por agora, mas se o mau pressentimento continuasse a aumentar, sabia que, por muito louco que fosse por Tina, não podia casar com ela. Um
homem tinha de ter a sua dignidade.
Preocupado, pensou em todos os bonitos presentes que lhe dera naquele Verão, como o relógio de ouro da mãe e as pérolas e a pregadeira. Ela guardava-os naquele livro
oco, que na realidade era uma caixa de jóias, numa prateleira na sala de estar.
Quando o inquérito terminasse, se decidisse romper com Tina, pedir-lhe-ia o anel de noivado e também as outras jóias.
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Foi uma tarde ocupada na agência. Elaine recebeu duas novas propriedades para vender, de pessoas que foram visitá-la, e saiu para as inspeccionar. Fotografou uma
delas imediatamente, uma réplica encantadora de um barco com velas redondas em Ryders Pond.
Esta vende-se depressa garantiu ao proprietário.
A outra casa tinha estado sempre alugada e precisava de um grande arranjo. Diplomaticamente, sugeriu que, se a relva fosse cortada e os arbustos aparados, o efeito
geral seria melhorado. A casa também necessitava de uma boa limpeza. Relutantemente, ofereceu-se para mandar lá Carrie Bell, ela tinha alguns contras, mas ninguém
trabalhava melhor.
Telefonou a Marge do telemóvel.
Vou directamente para casa. John e Amy vão lá jantar, e quero revelar as fotografias novas antes de ter de começar a cozinhar.
Estás a ficar muito doméstica troçou Marge.
Que remédio.
Quando chegou a casa, Elaine fez mais um telefonema, desta vez para Scott Covey.
Por que não vem jantar connosco?
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Se me deixar levar o jantar... Acabo de vir do barco com um balde cheio de lagostas.
Eu sabia que tinha de haver um motivo para estar a telefonar-lhe. Recebeu a fotografia?
Sim.
Nem sequer me agradeceu brincou ela. Mas sabe por que lha mandei.
Para me lembrar, eu sei.
Vejo-o mais tarde, Scott.
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Carrie Bell estava a aspirar no primeiro andar quando Jan deixou Menley em casa. Menley foi ter com ela.
Amy tem o bebé lá fora, no carrinho, Sr.a Nichols esclareceu ela. Deixe-me dizer-lhe que aquele bebé é um anjinho.
Nem sempre foi assim tão boa. Menley sorriu. Olhou em volta. Está tudo a brilhar. Obrigada, Carrie.
Bem, eu gosto de fazer as coisas bem feitas. Já estou quase a acabar. Quer que volte na próxima semana?
Claro que quero. Menley abriu a mala, tirou a carteira e, com uma oração silenciosa, começou a levar a conversa para o tema que queria abordar. Carrie, só entre
nós, que é que a assustou da última vez que cá esteve?
Carrie pareceu alarmada.
Eu sei que é só a minha imaginação, Sr.a Nichols, e, como diz a Menina Atkins, tenho um andar tão pesado que, provavelmente, pisei uma tábua solta e foi isso que
fez o berço baloiçar.
Talvez. Mas também lhe pareceu ter ouvido alguém a andar lá em cima. Pelo menos, foi o que Amy disse.
Carrie inclinou-se para a frente e baixou a voz:
Promete que não conta nada disto à Menina Atkins, Sr.a Nichols?
Prometo.
Sr.a Nichols, eu ouvi realmente alguma coisa naquele dia, e hoje tentei andar pesadamente quando entrei no quarto do bebé, mas o berço não se mexeu.
Então hoje não notou nada estranho?
Não. Nada estranho. Mas estou um pouco preocupada com Amy.
Porquê? Que aconteceu?
Oh, não há problema nenhum. O que aconteceu foi que, pouco antes de Hannah acordar da sesta, Amy estava a ler na salinha pequena com a porta fechada. Pareceu-me
tê-la ouvido chorar. Não quis parecer intrometida, por isso não fui para junto dela. Sei que está preocupada por o pai ir casar com a Menina Atkins. Depois, mais
tarde, perguntei-lhe se estava preocupada com alguma coisa, e ela negou. A senhora sabe como são os
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miúdos. Às vezes, revelam-nos as suas almas. Outras vezes só querem que ninguém se MNSV.
MNSV?
Meta Na Sua Vida.
Claro. Menley entregou as notas dobradas a Carrie. Muito obrigada.
Obrigada. A senhora é muito boa. E, deixe que lhe diga, tenho um filho com três anos e posso entender como deve ter sido terrível para a senhora perder aquele rapazinho
tão lindo. Vieram-me as lágrimas aos olhos quando vi aquele vídeo dele o ano passado.
Você viu um vídeo de Bobby?
O Dr. Nichols tinha-o cá quando alugou o chalé. Estive a contar há pouco a Amy que ele tinha uma expressão tristíssima no rosto ao vê-lo. Mostrava-o na piscina com
Bobby, e ele pegava nele ao colo, e a senhora chamava-o, e ele corria para si.
Menley engoliu em seco.
Essa gravação foi feita apenas duas semanas antes do acidente disse ela, tentando manter a voz firme. Nunca consegui vê-la. Foi um dia tão feliz...
"Quero vê-la agora", pensou. "Estou preparada para a ver." Carrie guardou o dinheiro na mala.
A Menina Atkins estava com o Dr. Nichols nesse dia, e ele estava a contar-lhe tudo sobre Bobby e como se sentia culpado porque achava que devia ter estado com os
dois no dia do acidente e em vez disso foi jogar golfe.
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Enquanto virava para a estrada particular que levava à Casa "lembra-te", Adam achou que fora um bom dia de trabalho. Infelizmente, não tinha terminado. Já eram quase
três horas, e às cinco tinha um encontro com Fred.
Mas, pelo menos, estaria quase duas horas em casa, e estava um dia de praia perfeito. Isto é, se Menley estivesse disposta a ir com ele para a praia.
O carro de Amy estava estacionado junto à entrada. Teve sentimentos mistos de alívio e irritação. Ela era uma miúda simpática e responsável, mas seria óptimo ficar
sozinho com a família, sem ter sempre alguém no meio.
"Se eu reajo desta maneira, como é que Menley se sente, tendo sempre alguém por perto?", perguntou-se ele. Deprimido, percebeu que estavam a voltar rapidamente ao
estado de coisas de antes da gravidez de Hannah. Afastados um do outro. Ambos nervosos.
Não estava ninguém em casa. Teria Menley voltado, e, nesse caso, estariam na praia? Caminhou até à escarpa e olhou lá para baixo.
Menley estava sentada de pernas cruzadas em cima da toalha, com Hannah encostada a si. "A fotografia perfeita", pensou Adam. O cabelo de
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Menley esvoaçava atrás de si. O seu corpo elegante estava bronzeado e encantador. Ela e Amy pareciam embrenhadas na conversa.
Amy estava deitada na areia, de frente para Menley, apoiada nos cotovelos, com o queixo a repousar nas palmas das mãos. "Tem de ser difícil para ela", pensou ele.
"Ter de ir para longe de casa para a Faculdade, é sempre assustador, e, segundo Elaine, ela continua sem aceitar a ideia de que o pai vai voltar a casar-se." Mas
Elaine também dissera: "Ela nem sabe a sorte que tem por John poder mandá-la para Chapel Hill."
Elaine não andara na Universidade. Há vinte e um anos, no final do Verão, quando o resto do grupo fora para Universidades de elite, a mãe dela acabara de ser despedida
de outro emprego, por isso Elaine arranjara emprego como dactilógrafa numa agência de compra e venda de propriedades. Era bem patente que Elaine fora bem sucedida,
reflectiu Adam. Agora era a dona da agência.
Nesse instante, Menley olhou para cima. Adam desceu com alguma dificuldade o caminho íngreme. Quando chegou junto delas, teve a impressão de ser um intruso.
Olá disse. Menley não respondeu. Amy levantou-se.
Olá, Dr. Nichols. Já veio de vez para casa?
Sim, Adam, já vieste de vez para casa? perguntou Menley. Se vieste, tenho a certeza de que Amy gostaria de ter algumas horas livres.
Ele decidiu ignorar o tom impessoal.
Podes ir, Amy. Obrigado. Baixou-se ao pé da toalha e esperou enquanto Amy se despedia de Hannah e de Menley.
Quando ela já não os podia ouvir, disse:
Vou dar-lhe tempo para mudar de roupa, e depois vou lá acima vestir os calções de banho.
Nós subimos contigo. Já estivemos tempo suficiente na praia.
Que diabo, Menley, pára com isso.
Paro com quê?
Men, não deixes que isto nos aconteça suplicou ele. Hannah ergueu os olhos para ele, indecisa.
Está tudo bem, meu amor disse ele, só estou a tentar fazer que a tua mãe deixe de estar zangada comigo.
Adam, não podemos reduzir isto a uma zanga. Falei para a Dr.a Kaufman. Ela vai telefonar-nos às quatro e meia. Vou recusar-me terminantemente a ser internada num
hospital. Também deixei recado à minha mãe para me telefonar da Irlanda. Vou pedir-lhe para abreviar a viagem. Se houver alguma forma de tu e a Dr.a Kaufman poderem
internar-me contra a minha vontade, então a minha mãe, que é enfermeira diplomada, tomará conta da minha filha, não a tua amiguinha laine.
Que raio queres dizer com isso?
Adam, quando vieste para cá no ano passado, viste muito Elaine?
É uma velha amiga. Claro que a vi. E não significou nada.
Como disseste a noite passada, não tens o hábito de contar a tua vida amorosa. Mas por que é que ela tinha de ver vídeos do meu filhinho contigo?
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Meu Deus, Men, ela apareceu lá em casa por acaso quando eu estava a ver a gravação. Eu não estava só a ver Bobby naquele vídeo. Estava a ver-te a ti.
Com a tua amiguinha.
Não, com a minha velha amiga.
Que disse à futura enteada que, depois de me enfiares num hospital psiquiátrico em Nova Iorque, vais ficar aqui com Hannah.
Adam levantou-se.
Vou mudar de roupa e tomar um banho de mar.
Seguramente, não estás a pensar deixar Hannah sozinha comigo? Ele não respondeu, mas voltou-se e afastou-se.
Menley ficou a ver Adam subir o caminho. Estava inclinado para a frente, de mãos nos bolsos. Pensou no que Carrie Bell o tinha ouvido dizer a Elaine, que se sentia
culpado por não ter estado com ela no dia do acidente.
Adam dissera-lhe isso imediatamente após a morte de Bobby, e ela insurgira-se contra ele. "Não tentes fazer-me sentir melhor. Tu tinhas uma partida de golfe marcada
há muito tempo. Eu não queria que alterasses os teus planos por causa de um convite de última hora."
Ele nunca mais voltara a tocar no assunto.
Quando Adam voltou, dez minutos depois, ela disse:
Adam, eu conheço-me. Vou dizer à Dr.a Kaufman que estou a começar a controlar estes ataques de ansiedade. Também vou dizer-lhe que, se tu não consegues aceitar esse
facto, então o nosso casamento não vai durar muito tempo. A história desta casa é a de um marido que não confiou na mulher. Não perpetues esse erro.
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A caminho de casa, Amy tentou decidir se devia ou não avisar o pai de que Carrie Bell poderia contar-lhe que ela estivera a chorar. A Sr.a Nichols perguntara-lhe
porquê.
Eu não estive a chorar protestara ela. Juro. Carrie anda a ouvir coisas.
Pensava que a Sr.a Nichols tinha acreditado nela, mas, possivelmente, o pai acreditaria em Carrie. Agora o pai estava sempre preocupado com ela. Se ao menos ele
parasse de lhe dizer como seria maravilhoso ter uma nova mãe.
"Vou fazer dezoito anos no próximo mês", pensou Amy. "Gostava que o pai parasse de tentar vender-me a Elaine. Ainda bem que ele se vai casar outra vez, mas gostava
que não fosse com ela."
Nessa noite, gostaria de ir com o grupo para Hyannis. Mas Elaine decidira que ia cozinhar uma refeição para oles, por isso o pai semiordenara, semi-implorara que
Amy fosse com ele.
Não magoes os sentimentos de Elaine pedira ele.
"Estou ansiosa para ir para a Universidade", pensou Amy enquanto
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conduzia no meio do trânsito da rua principal em direcção à rotunda. Depois suspirou. "Oh, mãezinha, por que tiveste de morrer e de nos deixar?"
Talvez fosse por esse motivo que se sentia tão próxima da Sr.a Nichols. Tal como ela sentia a falta da mãe, também a Sr.a Nichols sentia a falta do seu rapazinho.
"Mas agora a Sr.a Nichols tem Hannah."
"E eu tenho a Elaine", pensou amargamente enquanto entrava no acesso de sua casa.
Mas, mais tarde, ficou contente por o pai a ter obrigado a acompanhá-lo a casa de Elaine. Scott Covey estava lá, e ela ajudou-o a cozer no vapor as lagostas que
ele trouxera. Ele era tão simpático, e, embora estivesse a enfrentar imensos problemas, não os descarregava em cima de ninguém. Falou sobre Chapel Hill.
Uma das peças em que eu andei em tournée esteve em cena na Universidade durante algumas semanas disse-lhe ele. É uma cidade fantástica. Vais divertir-te muito.
Durante o jantar, Amy reparou que eles evitavam qualquer referência ao inquérito. Elaine perguntou se Carrie Bell ouvira mais passos quando estivera a fazer limpeza
naquele dia.
Amy aproveitou a oportunidade para dizer alguma coisa sobre o choro.
Não, mas se, por acaso, ela vos disser que me ouviu chorar, aviso-vos desde já que se enganou.
Ela ouviu chorar? perguntou Elaine. Foi Menley?
A Sr.a Nichols saiu muito tempo com a Sr.a Paley, e quando chegou estava óptima.
Amy não queria falar sobre a Sr.a Nichols com Elaine. Sabia que Elaine pensava que a Sr.a Nichols estava à beira de outro esgotamento nervoso. "Se ao menos tivesse
trazido o meu carro, em vez de ter vindo com o pai", pensou. "Não quero ficar aqui a noite inteira."
Quando Scott Covey começou a falar em ir para casa, ela viu a sua hipótese de se ir embora.
Importava-se de me deixar em casa, Scott? perguntou ela, e depois tentou parecer cansada quando se virou para o pai. Pai, eu tive um dia muito cansativo e gostava
de ir para casa. A não ser que queira que eu a ajude a arrumar a cozinha, Elaine.
Não, podes ir-te embora. Tratar de um bebé o dia inteiro é uma tarefa cansativa.
Agora, que dissera que estava cansada, Amy apercebeu-se de que não tinha nada que fazer o resto do serão. Não podia dizer que ia encontrar-se com os amigos. Não
havia nada interessante na televisão, e não queria pedir a Scott que a levasse ao clube de vídeo. "Mas espera lá", pensou. "Elaine tem uma colecção fabulosa de filmes
antigos. Ela está sempre a emprestá-los ao pai."
Elaine pediu, pode emprestar-me um dos seus vídeos?
Todos os que quiseres disse Elaine. Leva alguns. Mas não te esqueças de os devolver.
"Eu sei bem que tenho de os devolver", pensou Amy, ressentida. O pai
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estava precisamente a começar a contar uma das suas histórias compridas e sem graça quando ela foi para o quarto principal.
A parede mais longa estava coberta de estantes. Metade delas estavam repletas de filmes vídeo, com os títulos voltados para fora, por ordem alfabética.
Amy observouos todos e escolheu The Country Girl, com Grace Kelly, e Horse Feathers, uma comédia dos irmãos Marx.
Estava prestes a sair quando se lembrou de outro velho filme que sempre quisera ver: Birth of a Nation. Estaria ali?
Leu lentamente os títulos começados por B e encontrou-o. Quando o retirava da prateleira, caíram várias cassetes que o ladeavam. Ao voltar a colocá-las no lugar,
percebeu por que é que elas estavam salientes. Havia uma cassete atrás delas, encostada à parede.
O seu título era "BOBBY EAST HAMPTON ULTIMA GRAVAÇÃO". Seria a do filho dos Nichols que Carrie Bell vira no ano anterior?
"Adorava vê-la", pensou Amy. "Elaine pode ainda nem ter percebido que ela está aqui. A cassete pertence aos Nichols e ela pode não querer emprestá-la. Devolvo-a
com as outras e não digo nada."
Enfiou as cassetes na mala a tiracolo e voltou para a sala de jantar.
O pai estava a acabar a história.
Scott Covey sorria educadamente. Elaine parecia sufocada de riso. Amy tinha vontade de estrangular Elaine todas as vezes que ouvia aquele riso fingido.
Pensou: "A mãe teria dito: John, prometes não maçar ninguém com esse monólogo sem fim pelo menos durante uma semana?"
E depois ter-se-ia rido com o pai, não dele.
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Não, não aumentei a medicação disse Menley à Dr.a Kaufman. Não achei necessário.
Estava ao telefone na biblioteca, com Hannah no colo. Adam estava na extensão da cozinha.
Menley, tenho a impressão de que acha que Adam e eu somos seus inimigos disse a Dr.a Kaufman.
Não, isso não é verdade. Não lhe contei que a baby-sitter disse que me tinha visto no passeio da viúva simplesmente porque pensei que ela se tinha enganado. E agora
ela também chegou a essa conclusão.
Então quem é que Amy viu?
Eu acho que ela não viu ninguém. Há uma tira de metal naquela chaminé. Quando o sol incide nela, dá a impressão de alguém a mexer-se.
E quanto à recordação de ouvir o comboio e Bobby a chamá-la? Disse-me que ficou com medo de pegar em Hannah.
Não queria que ela chorasse mais, mas tive medo de pegar nela porque estava a tremer muito. Lamento ter falhado com ela nessa altura. Mas,
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mesmo sem uma mãe que esteja a ter um ataque de ansiedade, por vezes os bebés são deixados a chorar.
Hannah puxou-lhe o cabelo enquanto ela estava a falar. Menley baixou a cabeça.
Ui.
Menley! Adam pareceu espantado.
O bebé está a puxar-me o cabelo e eu disse "ui", e, Dr.a Kaufman, por favor, escute o que estou a tentar dizer-lhe. Adam está pronto para largar o telefone e correr
para aqui ao mínimo sinal de qualquer coisa. Tenho de dizer que acho que está a tratar o doente errado.
Fez uma pausa e mordeu o lábio.
Vou desligar agora e deixá-los conversar os dois. Doutora, se a senhora e Adam conseguirem internar-me num hospital psiquiátrico contra a minha vontade, vão esperar
até a minha mãe chegar da Irlanda para tomar conta da minha filha. Entretanto, ficarei aqui nesta casa encantadora a escrever o meu livro. Quando comecei a ter estes
ataques de ansiedade, a senhora falou connosco acerca da importância do apoio dele. Bem, eu não acho que Adam mo tenha dado, e preciso dele. Todavia, chegará uma
altura em que eu não precisarei de apoio, e então não precisarei de Adam, nem o quererei.
Pousou o auscultador calmamente.
Bem, Hannah disse ela, isto é que foi falar.
Eram exactamente quatro e quarenta. Às quatro e quarenta e três, Adam parou à porta.
Eu sempre disse que nunca te queria ver zangada comigo. Hesitou. Agora tenho de ir falar com Fred Hendin. Não me apetece nada. Tenho pena de me ter envolvido neste
caso de Covey. Mas, uma vez que estamos a ser tão honestos, tenho de te lembrar que foste tu que me convenceste a ajudar este tipo.
Eu sei disse Menley.
Mas, quando voltar, gostaria de vos levar a jantar fora. Dás de comer a Sua Berceza enquanto eu estiver fora, e depois levamo-la connosco. Costumávamos fazer isso
com Bobby.
Pois costumávamos.
Mais uma coisa. Deixaste recado para a tua mãe te ligar. Quando ela telefonar, não lhe peças para interromper as férias. A Dr.a Kaufman acredita que tu estás bem
e eu concordo. Podes ter uma baby-sitter ou não. É contigo.
Saiu. Menley esperou até ouvir o som da porta da cozinha a fechar-se antes de dizer:
Às vezes temos de enfrentar as pessoas, Hannah. Vamos ficar bem.
Às seis e meia, quando estava a sair do duche, a mãe telefonou de Wexford.
Menley, disseram-me para te telefonar com urgência. Qual é o problema?
Menley fez um esforço determinado para parecer alegre.
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Não há problema nenhum, mãe. Só queria saber como estavam. Hannah está a contar piadas a si mesma. Está deitada na minha cama, a rir... Não, não tive nenhum motivo
especial para telefonar... Jack e Phyllis estão bons?
Ainda estava ao telefone quando Adam entrou no quarto. Ela chamou-o.
Mãe, deixa-me contar a Adam. Ele vai adorar. Explicou rapidamente. Phyl agora anda a pesquisar as origens da família do meu pai. Já recuou cinco gerações, até 1860.
Descobriu Adrian McCarthy, um professor do Trinity College. Os McCarthy subiram na consideração dela. A caçada continua.
Passou-lhe o telefone.
Diz rapidamente olá à tua sogra.
Estudou Adam enquanto ele conversava com a mãe dela, percebendo como parecia cansado. "Não têm sido umas grandes férias para ele", pensou. Quando ele desligou, ela
disse:
Não temos de ir jantar fora. A lota do peixe ainda não fechou. Por que não vais lá comprar qualquer coisa?
Por acaso, preferia isso. Obrigado, Men.
Voltou com escalopes de cherne, espigas de milho pequenas recém-colhidas, tomate e pão francês.
Hannah contemplou o pôr do Sol com eles. Depois, deitaram-na na cama de grades e prepararam o jantar juntos. Por acordo tácito, não falaram sobre a conversa com
a Dr.a Kaufman.
Em vez disso, Adam contou-lhe os encontros que tivera nesse dia.
Aquelas empregadas de mesa serão boas testemunhas disse ele, e o namorado de Tina também. Mas, Men, tenho de te dizer que Scott Covey me parece, cada vez mais, um
oportunista.
Mas, seguramente, não um assassino.
Não, isso não.
Depois do jantar, leram um pouco. Continuavam sensíveis por causa das coisas que tinham sido ditas antes, por isso falaram muito pouco.
Foram para a cama às dez e trinta, sentindo ambos que continuavam a precisar de algum espaço entre os dois. Menley sentia-se invulgarmente cansada e adormeceu quase
imediatamente.
Mamã, mamã. Era a tarde que tinham passado em East Hampton duas semanas antes de Bobby morrer. Estavam a passar o fim-de-semana com Louis Miller, um dos sócios de
Adam no escritório de advocacia. Lou estava a filmar com a câmara de vídeo. Adam tinha Bobby na piscina. Tinha-o pousado no chão.
Vai ter com a mamã disse-lhe ele.
Bobby correu para ela, de braços estendidos, um sorriso radioso.
Mamã, mamã.
Ela girou-o no colo e virou-o para a câmara.
Como te chamas? perguntou ela.
Wobert Adam Nikko disse ele orgulhosamente.
E como é que as pessoas te chamam?
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Bobby.
E vais à escola?
Cola ifati.
Cola ifati repetiu ela, e o som de gargalhadas encerrava a gravação.
Bobby. Bobby.
Estava a chorar. Adam estava inclinado sobre ela.
Está tudo bem, Men. Ela abriu os olhos.
Desta vez foi só um sonho.
Quando Adam a abraçou, ouviram Hannah começar a mexer-se. Menley recompôs-se.
Eu vou vê-la disse Adam, levantando-se logo da cama. Trouxe-a para o quarto deles.
Aqui está ela, mamã.
Menley envolveu o bebé com os braços. Foi invadida por uma sensação de paz e de cura quando Hannah se aconchegou a ela.
Vai dormir, querida disse Adam calmamente. Daqui a pouco ponho Sua Majestade na cama.
Ela adormeceu, lembrando-se da voz feliz e alegre de Bobby. "Mamã, mamã." No próximo Verão, Hannah também saberia chamá-la.
Pouco depois, sentiu que Hannah lhe era tirada dos braços. Passados alguns minutos, Adam puxou-a para junto de si e sussurrou:
Uma coisa que não deves negar é que tens visões do passado, querida.
13 de Agosto
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Ao fim da manhã de sábado, Nat Coogan acompanhou obedientemente a mulher à cidade. O aniversário de casamento deles aproximava-se, e Debbie vira um quadro numa das
galerias que achava perfeito para colocar sobre a lareira.
É uma vista panorâmica do oceano e da costa disse-lhe ela. Acho que, se olhasse todos os dias para ele, teria a sensação de estar a viver na água.
Se gostas dele, compra-o, querida.
Não, tens de o ver primeiro.
Nat não era nenhum crítico de arte, mas quando viu a aguarela achou que era um trabalho bastante amador e não valia o preço de duzentos dólares que estavam a pedir
por ele.
Não gostas dele. Vê-se logo disse Debbie.
É bonito.
O vendedor interveio.
O artista tem apenas vinte e um anos e tem muito potencial. Um dia, este quadro poderá valer muito dinheiro.
"É melhor esperarmos sentados", pensou Nat.
Vamos pensar no assunto disse Debbie. Quando saíram, ela suspirou. Hoje não parecia assim tão bom. Oh, paciência.
A galeria de arte era perto da rua principal.
Queres almoçar comigo? perguntou Nat quando chegaram ao passeio.
Possivelmente, preferes sair de barco.
Não, tudo bem. Vamos à Wayside. Tina está a trabalhar hoje e gosto de que ela me veja por lá. Uma das boas hipóteses que temos de apanhar Covey é baralhando-a quando
ela testemunhar.
Passaram pela agência de compra e venda de propriedades Atkins. Debbie parou e olhou para a montra.
Olho sempre para ver que propriedade à beira-mar é que têm em exposição na montra em cada semana contou ela a Nat. Afinal de contas, quem sabe se um dia não ganhamos
a lotaria. Tive tanta pena quando tiraram aquela fotografia da Casa "Lembra-te"... Era a minha preferida. Acho que foi ela que me levou a interessar-me pela aguarela.
Parece que Marge se prepara para pôr novamente a fotografia da Casa "lembra-te" na montra observou Nat.
Dentro do escritório, Marge estava a abrir o vidro da montra, e, enquanto
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eles observavam, colocou a fotografia bem emoldurada num espaço vazio da zona de exposição. Ao reparar neles, Marge acenou e veio cá fora cumprimentá-los.
Olá, detective Coogan disse ela. Posso ser-lhe útil em alguma coisa? Temos algumas propriedades muito interessantes.
Assunto não oficial disse-lhe Nat. A minha mulher está apaixonada por aquela fotografia. Apontou para a fotografia aérea da Casa "lembra-te". Infelizmente, aquela
propriedade está um pouco acima das nossas posses.
Aquela fotografia trouxe-nos mais clientes comentou Marge. Na verdade, esta é uma cópia da que viram. Elaine fê-la para Adam Nichols, e só estou a pô-la na montra
até ele vir buscá-la. Ela deu a original a Scott Covey.
Scott Covey! exclamou Nat. Para que quer ele a fotografia?
Elaine diz que ele mostrou interesse pela casa.
Eu pensava que ele estava ansioso por se ir embora do Cape disse Nat. Logo que estivesse livre para partir.
De repente, Marge percebeu constrangidamente que podia estar a pisar terreno perigoso. Ouvira dizer que Nat Coogan estava a investigar Scott Covey. Por outro lado,
era o trabalho dele, e ele e a mulher eram pessoas muito simpáticas e no futuro podiam ser clientes da agência. A mulher dele continuava a contemplar a fotografia
da Casa "Lembra-te". Marge recordou-se de que Elaine tinha dito que tinha o negativo e podia fazer todas as cópias que quisesse.
Gostaria de ter uma cópia desta fotografia? perguntou ela. Debbie disse:
Adoraria. Até já tenho um sítio para a colocar.
Eu tenho a certeza de que Elaine fará uma cópia para a senhora disse Marge, solícita.
Então está resolvido decidiu Nat.
Na Estalagem Wayside, souberam que Tina telefonara a dizer que estava doente.
Estou a começar a assustá-la disse Nat. Isso é bom. Quando estavam a acabar os pastéis de lagosta, Debbie observou subitamente:
Aquela não é a mesma fotografia, Nat.
Que queres dizer com isso?
Havia alguma coisa diferente na fotografia da Casa "Lembra-te" que vimos esta manhã, e já percebi o que era. A que estava antes na montra tinha um barco. A que Marge
nos mostrou hoje não tinha. Não é estranho?
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No sábado de manhã, Adam disse a Menley para não se esquecer de avisar Amy de que não precisariam dela nesse dia. Ele tinha um encontro com um perito em assuntos
marítimos que o comandante do porto de Chatham lhe recomendara.
Quero alguém que neutralize o testemunho das pessoas de Woods Hole que vão levantar o problema do local onde o corpo apareceu, mas não devo demorar muito. Estarei
em casa ao meio-dia ou à uma hora.
"É melhor que nada", pensou Menley. "Pode não ter acreditado que eu não tive uma alucinação quando sonhei com Bobby, mas pelo menos está disposto a deixar-me sozinha
com o bebé."
Esta manhã quero trabalhar disse ela. Vou pedir a Amy que venha tomar conta de Amy até à hora do almoço.
Tu é que sabes, querida.
Amy chegou quando ele ia a sair. Ficou consternada ao ouvir Menley perguntar:
Adam, onde está aquela gravação de Bobby em East Hampton? Já estou preparada para a ver.
Está no apartamento.
Da próxima vez que lá fores, trazes-ma?
Claro. Vamos vê-la juntos.
"Deveria dizer-lhes que a tinha?", pensou Amy. "Eles poderiam não gostar da ideia de eu a ter visto. Não, seria melhor voltar a pô-la em casa de Elaine o mais depressa
possível. O Sr. Nichols poderia lembrar-se de que a deixara no Cape e pedi-la a Elaine."
Quando Menley entrou na biblioteca e fechou a porta, percebeu imediatamente que havia algo diferente na atmosfera. Estava muito frio. Devia ser isso. Aquela divisão
não apanhava sol de manhã. Mesmo assim, decidiu não voltar a levar os papéis para a cozinha. Estava a perder demasiado tempo a examinar a pilha de pastas. Ia espalhá-las
no chão, da mesma forma que costumava trabalhar no seu escritório em casa, e prendia a cada uma delas uma folha de papel onde escrevia o seu conteúdo em letra grande
e a negro. Dessa forma, podia encontrar mais facilmente o que procurava, e quando acabasse podia simplesmente fechar a porta sobre toda a confusão em vez de ter
de arrumar tudo.
Passou a primeira hora a espalhar os papéis a seu contento, e depois abriu a nova pasta de Phoebe Sprague e começou a analisar o seu conteúdo.
Os desenhos estavam no topo. Estudou novamente o do capitão e Mehitabel no barco, depois colou-o na parede ao lado da secretária. Ao lado, pendurou os desenhos que
fizera deles e o retrato que Jan trouxera da Biblioteca de Brewster. "Quase permutáveis", pensou ela. "Devo ter encontrado qualquer coisa parecida nas pastas."
Já planeara o seu método de trabalho. Começou por estudar o novo material, à procura de qualquer referência a Tobias Knight.
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A primeira vez que viu o nome dele foi relativamente à decisão sobre o castigo de Mehitabel. "Na reunião da cidade em Monomoit, na terceira quarta-feira de Agosto
do ano do Senhor de mil setecentos e cinco, Mehitabel, esposa do capitão Andrew Freeman, foi apresentada e o julgamento do tribunal efectuado na presença do marido,
dos seus acusadores, do parceiro arrependido e do povo da cidade, que se aventurou a sair de suas casas e largar os seus deveres para testemunhar e saber qual o
castigo para a incastidade."
"A terceira quarta-feira de Agosto", pensou Menley. "Seria por volta desta altura. E Andrew observou a tortura dela. Como pôde ele fazer uma coisa dessas?"
Phoebe fizera uma anotação: "O capitão Freeman partiu nessa noite, levando consigo a filha de seis semanas e uma escrava índia como ama."
"Ele deixou-a naquele estado e tirou-lhe a filha bebé." Menley ergueu os olhos para o desenho que fizera de Andrew Freeman. "Espero que naquele dia não tenhas parecido
forte e seguro", pensou. Arrancou o desenho da parede, pegou num lápis de carvão e, com traços rápidos e seguros, alterou a expressão confiante.
Pretendera mostrar crueldade, mas, por mais que se esforçasse, quando terminou o rosto de Andrew Freeman era o de um homem arrasado pelo desgosto.
"Talvez tenhas recebido a graça divina de te arrependeres do que lhe fizeste", pensou ela.
Amy trouxe Hannah para beber um biberão de sumo. Com o bebé ao colo, parou, indecisa, na cozinha. Da frente da casa parecera-lhe ouvir alguém soluçar baixinho. "Foi
isto que Carrie ouviu ontem", pensou ela. "Talvez a Sr.a Nichols ontem tenha chegado mais cedo do que nós pensávamos."
A Sr.a Nichols mantinha uma fachada muito boa quando as pessoas estavam com ela, mas, na verdade, estava deprimida, pensou Amy perguntando a si mesma se seria seu
dever falar no assunto ao Dr. Nichols.
Depois, escutou novamente. Não, aquilo não era a Sr.a Nichols a chorar. A brisa começara a soprar, tal como no dia anterior, e fazia o som soluçante que ecoava na
chaminé. "Outra vez enganada, Carrie", pensou Amy.
14 de Agosto
78
No domingo de manhã, Adam insistiu em ir tomar o brunch fora depois da missa.
Ambos acabámos por trabalhar a noite passada, o que não estava nos nossos planos, e esta tarde tenho de passar pelo menos uma hora com Scott Covey.
Menley não podia recusar, embora quisesse ficar sentada à secretária. A partir de registos da cidade que estavam na última pasta de Phoebe Sprague, conheceu as circunstâncias
da morte de Mehitabel.
O capitão Andrew Freeman estivera ausente durante dois anos depois de ter partido, e levara a filha bebé consigo. Mehitabel esperara-o no passeio da viúva de "Nickquenum",
nome pelo qual a casa era conhecida na altura.
Quando avistou as suas velas, fora para o porto esperá-lo. "Uma visão comovente", de acordo com uma carta escrita pelo investigador Jonathan Weekes.
Claramente a sofrer, ela ajoelhou-se humildemente perante ele e suplicoulhe que lhe desse o bebé. Ele disse-lhe que a filha bebé nunca poria os olhos na mãe incasta.
Ordenou a Mehitabel que saísse de sua casa. Mas a sua doença e fadiga foram observadas por todos e foi transportada para lá para ser levada nessa noite para prestar
contas ao Céu. Diz-se que o capitão Freeman testemunhou a sua morte e que as últimas palavras dela foram: "Andrew, aqui espero a minha filha e aqui, cruelmente injustiçada,
morro sem pecado."
Menley discutiu com Adam o que descobrira enquanto comiam Ovos Beneditina no Red Pheasant, em Dennis.
O meu pai adorava este sítio disse Adam, olhando em volta. é uma pena ele já não estar entre nós. Seria uma grande ajuda para ti. Ele sabia a história do Cape de
trás para a frente.
E só Deus sabe quanto é que Phoebe Sprague sabia disse Menley. Adam, achas que não fazia mal telefonar aos Sprague para saber se Hannah e eu podemos ir visitá-los
enquanto vais falar com Scott?
Adam hesitou.
Às vezes, Phoebe diz coisas disparatadas.
Nem sempre.
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Ele fez um telefonema e voltou para a mesa, sorrindo.
Phoebe hoje está a ter um dia bastante bom. Henry disse para ires já.
"Mais dezoito dias", pensou Henry enquanto observava Phoebe a brincar com Hannah, que estava sentada ao colo de Menley. Temia a manhã em que acordaria sem ela a
seu lado.
Hoje ela estava a andar melhor. Arrastava menos os pés do que era costume. Ele sabia que isso não duraria muito. Ela tinha cada vez menos momentos de lucidez, mas
pelo menos, graças a Deus, já não tinha pesadelos. Dormira razoavelmente bem nas duas últimas noites.
A minha neta também gosta desta brincadeira disse Phoebe, falando para Hannah. Ela tem aproximadamente a tua idade.
Laura já tinha 15 anos. Era como o médico dissera. A memória a longo prazo era a última a desaparecer. Henry ficou agradecido pelo olhar de compreensão que a mulher
de Adam trocou com ele. "Menley é uma rapariga muito bonita", pensou ele. Naquelas duas semanas, o seu cabelo aclarara com o sol e tinha a pele bronzeada. A coloração
realçava-lhe o azul dos olhos. Ela tinha um sorriso encantador, mas naquele dia reparou que ela estava diferente, com um ar de indefinível tristeza que não lhe tinha
notado antes.
Depois, quando a ouviu falar para Phoebe, perguntou-se se estaria a deixar que as pesquisas da Casa "Lembra-te" a influenciassem. Era, sem dúvida, uma história trágica.
Encontrei o relato da morte de Mehitabel estava ela a dizer a Phoebe. Parece-me que, quando percebeu que Andrew não lhe traria a filha, simplesmente desistiu.
Phoebe queria dizer alguma coisa. Tinha a ver com Mehitabel e com o que ia acontecer à mulher de Adam. Ela seria arrastada para aquele lugar escuro onde Andrew Freeman
deixara Tobias Knight a apodrecer e depois seria afogada. Se ao menos Phoebe conseguisse explicar aquilo... Se ao menos os rostos e as vozes das pessoas que iam
matar a mulher de Adam não fossem sombras obscuras... Como podia avisá-la?
Vá-se embora! gritou ela, enquanto empurrava Menley e o bebé. Vá-se embora!
A mãe e o pai de Vivian vão ser testemunhas fortes e emocionais avisou Adam. Vão pintá-lo como um caçador de fortunas que tinha uma namorada espampanante que o visitou
uma semana antes do seu casamento e que, depois de assassinar a filha deles, lhe arrancou um anel do dedo como acto final de ganância.
Scott Covey estava a mostrar a tensão que sentia face ao inquérito que se aproximava. Estavam sentados frente a frente à mesa da sala de jantar, com os apontamentos
de Adam espalhados entre eles.
Só posso dizer a verdade disse ele calmamente.
O que importa é a forma como a diz. Tem de conseguir convencer aquele juiz de que é uma vítima tão grande daquela tempestade quanto Vivian foi. Eu tenho uma boa
testemunha corroboradora, um tipo que quase
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perdeu o neto quando o barco se encheu de água. Tê-lo-ia perdido se não tivesse agarrado o pé do miúdo quando ele caía pela amurada.
Tê-lo-iam acusado de ter assassinado a criança se não tivesse conseguido agarrá-lo? perguntou Covey amargamente.
É exactamente esse pensamento que queremos plantar no espírito do juiz.
Ao despedir-se, uma hora depois, Adam disse:
Ninguém pode prever o resultado destas audiências. Porém, temos uma boa hipótese. Mas lembre-se de que não pode perder as estribeiras, e não critique os pais de
Vivian. Ultrapasse isso, sim, eles são pais enlutados e você é um marido enlutado. Não se esqueça da palavra "marido" quando eles tentarem pintá-lo como um assassino
oportunista.
Adam ficou surpreendido ao encontrar Menley e Hannah à espera dele no carro.
Infelizmente, parece que perturbei Phoebe disse-lhe Menley. Nunca lhe devia ter falado em Mehitabel. Por alguma razão, ficou terrivelmente agitada.
Não há explicação para o que origina aquelas crises disse Adam.
Quanto às dela, não sei. As minhas são despoletadas por estímulos, não são?
Não é a mesma coisa. Adam colocou a chave na ignição. Mamã, mamã. Um som tão feliz. A noite em que lhe parecera ouvir Bobby chamá-la. Teria estado a sonhar com a
forma como soara naquele dia em East Hampton? Teria ligado uma recordação feliz à alucinação?
Quando é que tens de ir novamente para Nova Iorque? perguntou.
Devemos conhecer a decisão do juiz ao fim do dia de amanhã ou na quintafeira de manhã. Mas juro que será tudo quanto a trabalho este mês, Men.
Quero que tragas a gravação de Bobby em East Hampton
Eu já te disse que ia trazer, querida. Quando Adam conduziu o carro para longe do passeio, perguntou a si mesmo: "Porquê isto agora?"
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Fred Hendin foi jantar fora com Tina no domingo à noite. Ela dissera que estava com dor de cabeça quando ele lhe telefonara naquela manhã, mas concordou que peixe
e batatas fritas e algumas bebidas no Clancey's nessa noite contribuiriam para a animar.
Beberam um gim tónico no bar e Fred ficou surpreendido com a vivacidade e a animação de Tina. Ela conhecia o empregado do bar e alguns dos clientes e brincou com
eles.
Fred achou que ela estava espantosa na sua minissaia vermelha e no top vermelho e branco, e percebia que muitos homens no bar estavam a
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fazer-lhe olhinhos. Não havia dúvida acerca disso. Tina atraía os homens. Era o tipo de mulher por quem um homem podia perder a cabeça.
No ano anterior, quando tinham andado juntos, ela estava sempre a dizer-lhe que ele era um verdadeiro cavalheiro. Por vezes, ele perguntava a si mesmo se era um
elogio. Depois, ela deixara-o como se ele fosse um trapo velho no momento em que Covey aparecera em cena. No Inverno anterior, quando ele tentara reatar a relação
com ela, ela não lhe facilitara as coisas. Depois, subitamente, em Abril, telefonara-lhe. "Fred, por que não apareces cá em casa?", dissera, como se nada tivesse
acontecido.
"Teria ela decidido contentar-se comigo apenas quando não conseguiu apanhar Covey?", pensou enquanto Tina começava a rir às gargalhadas de uma anedota que o empregado
do bar contara.
Haja algum tempo que ele não a ouvia rir assim. Naquela noite, ela parecia verdadeiramente feliz.
Era isso mesmo, apercebeu-se ele de súbito. Embora estivesse nervosa por ter de testemunhar no inquérito, parecia feliz.
Ao jantar, falou-lhe no anel.
Fred, eu gostaria de usar o anel de noivado quando for testemunhar. Trouxeste-o?
Agora estás a tentar estragar o que resta da surpresa. Dou-to quando chegarmos a tua casa.
Tina vivia num apartamento mobilado por cima de uma garagem em Yarmouth. Não era grande dona de casa e não fizera grande esforço para o personalizar, mas, no momento
em que entraram, Fred reparou que a pequena sala de estar estava diferente. Faltavam algumas coisas. Ela tinha uma colecção bastante boa de música rock, mas quase
todas as cassetes e CD tinham desaparecido. Bem como a fotografia dela a esquiar com a família do irmão no Colorado.
"Estava a planear uma viagem e não queria dizer-lhe?", perguntou-se Fred. "E, se era esse o caso, iria sozinha?"
15 de Agosto
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Ao amanhecer, Menley foi acordada pelo som de alguém a chorar baixinho. Soergueu-se, apoiando-se num cotovelo, e esticou-se para escutar. "Não, deve ser uma gaivota",
pensou. As cortinas abanavam suavemente e o quarto estava impregnado do odor do oceano.
Voltou a deitar a cabeça na almofada. Adam estava a dormir profundamente, a ressonar baixinho. Menley recordou-se de algo que a mãe lhe dissera há muitos anos. Estivera
a ler uma coluna de conselhos, possivelmente a Ann Landers ou a Dear Abby, e uma mulher escrevera a queixar-se de que o ressonar do marido não a deixava dormir.
A resposta fora que, para algumas mulheres, não havia som mais reconfortante do que o som do ressonar do marido. Pergunte a qualquer viúva.
A mãe comentara, "E não é mesmo verdade?"
"A mãe criou-nos sozinha", pensou Menley. "Eu nunca senti, em primeira-mão, a interacção entre pessoas com um casamento feliz. Nunca soube o que era ver pessoas
casadas enfrentarem problemas e ultrapassá-los.
"Por que estou a pensar nisso agora?", perguntou-se. "É porque estou a começar a ver uma vulnerabilidade em Adam que não sabia que existia? De certa forma, tratei-o
sempre com luvas de pelica. Ele é o homem atraente, bem sucedido e desejado que poderia ter tido quem quisesse, mas foi a mim que pediu em casamento."
Percebeu que não valia a pena tentar adormecer de novo. Deslizou para fora da cama, pegou no robe e nos chinelos de quarto e saiu em bicos de pés.
Hannah não dava qualquer sinal de estar prestes a acordar, por isso Menley desceu as escadas sem fazer barulho e entrou na biblioteca. Com sorte, ainda poderia ter
duas horas antes de Adam e Hannah se levantarem. Abriu a pasta nova.
Sensivelmente a meio, encontrou um grupo de papéis presos com um clip e que tratavam de naufrágios de navios. Já tinha lido sobre alguns, como por exemplo o naufrágio,
em 1717, do navio pirata Whidaw. Os saqueadores tinham feito desaparecer toda a sua carga.
E depois viu uma referência a Tobias Knight: "A maior busca casa-acasa à procura do saque antes do Whidaw foi quando o Thankfull se perdeu, em 1704, ao largo de
Monomoy." Phoebe anotara: "Tobias Knight foi levado a Boston para ser interrogado. Estava a ficar com má reputação e suspeitava-se de que era um saqueador."
A página seguinte era um relato do naufrágio do Godspeed, o navio do capitão Andrew Freeman. Era a cópia de uma carta para o governador
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Shute, escrita por Jonathan Weekes, um investigador. A carta informava Sua Excelência de que "no dia 31 de Agosto, no ano do Senhor de 1707", o capitão Andrew Freeman
fez-se ao mar contra todos os conselhos, "havendo um vento de nordeste que era indicação certa de uma tempestade a aproximar-se". O único sobrevivente, Ezekiel Snow,
um criado, "disse-nos que o capitão estava perturbado e muito enlouquecido, gritando que tinha de devolver a filha bebé aos braços da mãe. Todos sabiam que a mãe
da criança tinha morrido e ficaram muito alarmados. O Godspeed, conduzido para os baixios, aí se partiu com uma penosa perda de vidas".
"O corpo do capitão Freeman foi levado para Monomoit e enterrado ao lado da mulher-, Mehitabel, pois, segundo o testemunho do criado, ele foi ao encontro do Criador
a gritar o seu amor por ela.
"Aconteceu alguma coisa que o fez mudar de ideias", pensou Menley. "Que seria? Ele estava a tentar trazer o bebé para a mãe já morta. Foi ao encontro do Criador
gritando o seu amor por ela."
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Embora não tivesse dúvida de que o dia ia estar quente, Scott Covey decidiu vestir um fato azulmarinho de Verão, camisa branca de mangas compridas e gravata em tons
de azul-marinho e cinzento para o inquérito. Pensara usar o blusão verde, calças de caqui e uma camisa desportiva, mas chegou à conclusão de que não conseguiria
transmitir a impressão que queria ao juiz.
Não sabia bem se devia usar a aliança de casamento. Pareceria que estava a exibir a sua situação? Provavelmente, não. Enfioua no dedo.
Quando acabou de se arranjar, observou-se ao espelho. Vivian dissera-lhe que tinha inveja da facilidade com que ele se bronzeava.
Eu queimo-me e cai-me a pele, queimo-me e cai-me a pele suspirara ela. Tu ficas com esse bronzeado fabuloso, e os teus olhos parecem mais verdes e o teu cabelo mais
louro e muito mais raparigas se viram para olhar para ti.
E eu estou a olhar para ti troçara ele.
Estudou o seu aspecto da cabeça aos pés e franziu o sobrolho. Tinha calçado um par de sapatos Gucci. De certa forma, faziam-no parecer perfeito de mais. Abriu o
armário e tirou o seu par de sapatos velhos e bem engraxados. "Melhor", pensou quando se viu novamente ao espelho.
De repente, ficou com a boca seca e disse em voz alta:
Chegou a hora.
Jan Paley chegou para ficar com Phoebe enquanto Henry ia ao inquérito.
Ontem à tarde ela não esteve bem avisou Henry. Alguma coisa que Menley disse sobre a Casa "Lembra-te" perturbou-a. Fico com a
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impressão de que ela está a tentar dizer-nos alguma coisa e não consegue encontrar as palavras.
Talvez se eu falar com ela sobre a casa, ela consiga dizer-me o que quer sugeriu Jan.
Amy chegou à Casa "Lembra-te" às oito horas. Era a primeira vez que via o Dr. Nichols de fato, e olhou-o com admiração. "Ele emana elegância", pensou ela. "Faz-nos
sentir que qualquer coisa que faça será bem feita."
Parecia preocupado, a verificar os papéis que tinha na pasta, mas olhou para ela e sorriu.
Olá, Amy. Menley está a vestir-se e tem o bebé com ela. O melhor é ires lá acima tomar conta de Hannah. Estamos a ficar atrasados.
"Ele é um homem tão simpático", pensou Amy. Detestava pensar que ele ia perder tempo à procura da gravação de Bobby em Nova Iorque, quando a cassete estava a poucos
minutos de distância na casa de Elaine. Ganhou confiança e disse:
Sr. Nichols, posso contar-lhe uma coisa, e não diz que soube por mim? Pareceu-lhe que ficara preocupado, mas depois ele disse:
Claro.
Ela explicou-lhe o que acontecera com a cassete, como reparara nela, a levara para casa e a recolocara onde a encontrara.
Não disse a Elaine que a tinha levado, por isso, se ela soubesse, era capaz de ficar zangada. Eu só queria ver como era o vosso rapazinho disse ela quase apologeticamente.
Poupaste-me imenso trabalho, Amy. Não temos mais cópias, e a minha mulher ficaria muito triste se ela desaparecesse. O ano passado fui-me embora do Cape à pressa
e Elaine teve de me enviar algumas coisas. Será fácil pedir-lhe que a procure sem te envolver no assunto.
Ele olhou para o relógio.
Tenho de ir andando. Oh, lá vêm elas.
Amy ouviu passos nas escadas, e depois a Sr.a Nichols entrou, apressada, com Hannah nos braços.
Já estou pronta, Adam, ou pelo menos acho que estou. Esta miúda não parou de rastejar para a cabeceira da cama. É toda tua, Amy.
Amy estendeu os braços para lhe pegar, e a Sr.a Nichols acrescentou, sorrindo:
Temporariamente, é claro.
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Às nove da manhã, o Tribunal em Orleães tinha a lotação esgotada. Lá fora, não faltavam jornalistas. A enorme publicidade em volta da morte de Vivian Carpenter Covey
tinha atraído os caçadores de notícias sensacionalistas, que competiam com os amigos e os habitantes da cidade na conquista dos poucos lugares vagos.
É como um jogo de ténis foi um dos comentários que Nat ouviu um jornalista dizer a outro pouco antes do almoço.
"Tem a ver com crime, não com jogos", pensou Nat, "mas hoje não temos provas suficientes para o provar." O delegado do Ministério Público apresentara bem as provas.
Passo a passo, construíra o seu caso: o envolvimento de Covey com Tina até uma semana antes do casamento dele com Vivian; o dedo ferido e o anel desaparecido; a
falha de não ligar o rádio para saber o boletim meteorológico; o facto de o corpo de Vivian não dever ter dado à costa onde fora encontrado.
O juiz tinha frequentemente perguntas a fazer às testemunhas. Com meticulosa atenção, estudou as cartas e os relatórios da autópsia.
Tina foi uma testemunha desencorajadoramente boa para Covey. Admitiu prontamente que ele a avisara de que estava envolvido com Vivian, mas ela fora visitá-lo a Boca
Raton, na esperança de que ele voltasse a interessar-se por ela.
Eu estava doida por ele disse, mas tive a certeza de que estava tudo acabado quando ele se casou com Vivian. Ele estava verdadeiramente apaixonado por ela. Agora
estou noiva de outro homem. Da cadeira das testemunhas, dirigiu um sorriso radioso a Fred.
Durante o intervalo, Nat viu os olhos dos espectadores passarem de Scott Covey, com o seu ar de estrela de cinema e toda a sua segurança, para Fred Hendin, baixo,
forte e néscio, com o cabelo já a rarear e um ar de profundo embaraço. Era fácil ler os seus pensamentos. Ela contentara-se com Fred Hendin quando não conseguira
roubar Covey a Vivian.
O testemunho de Conner Marcus, o habitante de Eastham com 65 anos que quase perdera o neto na tempestade, podia ter sido decisivo, mesmo sem o testemunho de Covey.
Ninguém que não tivesse estado lá poderá compreender o quão subitamente a tempestade se abateu disse ele, a voz a tremer de emoção. Num minuto, Terry, o meu netinho,
e eu estávamos a pescar. Depois, a corrente tornou-se forte. Menos de dez minutos depois, as ondas varriam o barco, e Terry quase foi arrastado para a água. Ajoelho-me
todas as noites e agradeço a Deus não estar no lugar daquele jovem. De lágrimas nos olhos, apontou para Covey.
Com calma autoridade, Elaine Atkins descreveu a mudança de Vivian Carpenter quando conhecera Scott Covey, e a felicidade que testemunhara depois do casamento deles.
No dia em que estiveram a ver a Casa" lembra-te", falaram em
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comprá-la. Queriam ter uma família grande. Mas Vivian disse que primeiro teriam de vender a outra casa.
Nat nunca ouvira aquilo antes. E corroborou a história de Covey de que não fazia a mais pequena ideia do montante da herança de Vivian.
Fizeram um intervalo para o almoço. À tarde, o advogado de Vivian em Hyannis foi chamado e deu provas de ser uma testemunha friamente credível para Covey. Henry
Sprague depôs na qualidade de vizinho do lado que testemunhara a devoção mútua dos recém-casados. O investigador da companhia de seguros só pôde confirmar o que
Tina já admitira: que tinha ido visitar Covey a Boca Raton.
O pai e a mãe de Vivian testemunharam. Admitiram que a filha tivera sempre problemas emocionais e que tinha grande dificuldade em manter as amizades. Realçaram que,
à mais pequena falha, ela terminava um relacionamento, e aventaram a possibilidade de ter acontecido alguma coisa que fizera Vivian virar-se contra Scott e ameaçar
deserdá-lo.
Anne Carpenter falou no anel de esmeralda.
Nunca esteve muito apertado disse enfaticamente. Para além do mais, Vivy era supersticiosa em relação a ele. Tinha jurado à avó que nunca o tiraria. Costumava segurá-lo
virado para a luz e admirá-lo. Pediram--lhe para descrever o anel, e ela disse: Era uma pedra colombiana maravilhosa de cinco carates e meio, com um grande diamante
de cada lado, e estava engastada em platina.
E depois Covey foi chamado a depor. Começou o seu testemunho num tom de voz controlado. Sorriu quando falou no princípio do namoro com Vivian.
Getting to Know You era a nossa canção preferida disse ele. Falou sobre o anel de esmeralda:
Estava a magoá-la. Na última manhã, não parava de lhe mexer. Mas tenho a certeza absoluta de que o tinha quando estávamos no barco. Deve tê-lo passado para a mão
esquerda.
E, por fim, a descrição de como a perdera na tempestade. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas, a voz falhou, e quando abanou a cabeça disse:
Não suporto pensar no terror que ela deve ter sentido. Havia muitos mais olhos húmidos na sala do tribunal.
Tenho pesadelos em que estou à procura na água e não consigo encontrá-la disse ele. Acordo a chamá-la.
Depois, começou a soluçar.
A decisão do juiz de que não havia provas de negligência nem provas de traição foi quase um anticlímace.
Os jornalistas pediram a Adam que fizesse uma declaração.
Foi uma provação terrível para Scott Covey disse ele. Não só perdeu a jovem mulher como foi sujeito a rumores e a acusações escandalosos. Espero que esta audiência
pública tenha servido não apenas para apresentar as verdadeiras circunstâncias que rodearam esta tragédia mas também para garantir a este jovem a paz e privacidade
de que ele precisa desesperadamente.
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Perguntaram a Scott quais eram os seus planos.
O meu pai não está bem, razão pela qual ele e a minha madrasta não puderam estar presentes. Vou viajar de carro pelo interior do país até à Califórnia para os visitar.
Pararei em algumas das cidades onde estive em tournée e onde tenho amigos, mas, acima de tudo, quero estar sozinho para decidir o que vou fazer com o resto da minha
vida.
Vai ficar no Cape? perguntou um repórter.
Não sei disse ele com simplicidade. O Cape representa muito sofrimento para mim.
Menley estava um pouco afastada, a escutar. "Conseguiste novamente, Adam", pensou com orgulho. "És maravilhoso."
Sentiu um ligeiro toque no braço. Uma mulher com sessenta e tal anos disse:
Queria apresentar-me. O meu nome é Norma Chambers. Os meus netos adoram os seus livros e ficaram muito desiludidos quando desistiu de alugar a minha casa em Agosto.
Alugar a sua casa? Oh, claro, está a referir-se à primeira casa que Elaine nos arranjou. Mas, quando soube do problema das canalizações, trocou-nos para a Casa "Lembra-te"
disse Menley.
Chambers pareceu espantada.
Não havia problema nenhum. Aluguei a casa um dia depois de vocês terem desistido. Onde foi buscar essa ideia?
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Depois de testemunhar, Henry Sprague telefonou para casa para saber como estava Phoebe. Jan insistiu para que ele ficasse até ao fim da audiência.
Nós estamos bem insistiu ela.
Porém, não tinha sido um dia fácil. Phoebe perdera o equilíbrio ao descer os dois degraus para o pátio das traseiras, e Jan quase não conseguira impedi-la de cair.
À hora do almoço, Phoebe pegou numa faca e tentou comer a sopa com ela.
Quando lhe colocou a colher na mão, Jan pensou tristemente nas inúmeras vezes que ela e Tom tinham jantado naquela casa com os Sprague. Nessa época, Phoebe era uma
anfitriã amável e divertida e presidia à mesa com individuais e guardanapos a condizer e velas e um centro de mesa que fazia com flores do jardim.
Era muito triste ver que esta mulher, que a olhara com gratidão patética por compreender que ela não sabia que utensílio usar, era a mesma pessoa.
Phoebe dormiu um pouco depois do almoço, e quando acordou, a meio da tarde, pareceu mais alerta. Jan decidiu tentar descobrir o que poderia ela estar a tentar transmitir
sobre a Casa "lembra-te".
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No outro dia, a mulher de Adam e eu fomos falar com outras pessoas que têm casas antigas começou ela. A mulher de Adam está a escrever um artigo sobre casas que
estão ligadas a lendas. Acho que a da Casa "Lembra-te" é a mais interessante de todas. Depois, fomos a Eastham e vimos outra casa que Tobias Knight construiu. É
muito parecida com a Casa "Lembra-te", mas não tão bonita, e as divisões são maiores.
As divisões. Casa "Lembra-te". Um cheiro a bafio envolveu as narinas de Phoebe. Cheirava como um túmulo. Era um túmulo. Ela estava ao cimo de uma escada estreita.
Havia pilhas de lixo por todo o lado. Começou a vasculhá-lo, e as suas mãos tocaram no esqueleto. E as vozes vieram de baixo, e falavam sobre a mulher de Adam.
Dentro da casa conseguiu dizer.
Há alguma coisa dentro da Casa "Lembra-te", querida?
Tobias Knight murmurou ela.
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Scott Covey insistiu para que Elaine, Adam, Menley e Henry fossem a sua casa beber um copo de vinho.
Não vou demorá-los, mas quero ter a oportunidade de falar convosco. Adam olhou fugazmente para Menley e ela assentiu.
Só um pouco concordou ele.
Henry não aceitou parar em casa de Covey, nem que fossem apenas alguns minutos.
Jan tem estado todo o dia com Phoebe explicou ele.
Menley estava ansiosa para voltar para Hannah, mas queria perguntar a Elaine por que razão os passara para a Casa "Lembra-te", desistindo da casa da Sr.a Chambers.
A paragem em casa de Scott Covey dar-lhe-ia a oportunidade para o fazer.
A caminho, ela e Adam discutiram o inquérito.
Eu não gostaria de ser Fred Hendin, com toda a gente a ouvir a minha noiva contar como se atirava a outro homem observou ela, mas ele apoiou-a quando testemunhou.
Se for esperto, rompe com ela disse Adam, mas espero que não o faça. Scott tem sorte por ela ter corroborado a sua história, mas este inquérito não invalida a convocação
de um grande júri se forem descobertas mais provas. Scott tem de ter cuidado.
Scott abriu uma garrafa de Bordéus de uma óptima colheita.
Esperava poder usá-lo nesta ocasião disse ele. Depois de servir o vinho, ergueu o copo. Não é uma comemoração começou ele. Só seria se Vivian estivesse connosco
agora. Mas quero brindar com vocês, meus amigos, por tudo o que fizeram para me ajudar. Adam, você é o melhor.
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Menley, sei que insistiu para que Adam me ajudasse. Elaine, que posso dizer a não ser obrigado? Bebeu, e depois disse:
E agora quero partilhar com vocês, e apenas com vocês, os meus planos para o futuro. Vou-me embora amanhã de manhã cedo, e não voltarei. Tenho a certeza de que compreendem.
Nunca mais poderei andar numa rua desta cidade sem que as pessoas me apontem e sussurrem coisas sobre mim. Acho que os Carpenter poderão viver melhor se não correrem
o risco de me encontrar. Por isso, Elaine, queria que pusesse a casa à venda imediatamente.
Se é isso que quer... murmurou Elaine.
Não posso discordar do seu raciocínio comentou Adam.
Adam, vou andar por aí durante algum tempo. Telefonarei para o seu escritório na próxima semana, e se tiver a minha conta pronta mando-lhe um cheque. Sorriu. Por
muito alta que seja, você valeu cada tostão.
Alguns momentos depois, Adam disse:
Se vai sair de manhã cedo, deve querer fazer as malas, Scott. Menley e Adam despediram-se, mas Elaine ficou para discutir os pormenores da venda da casa.
Enquanto se dirigiam para o carro, Adam perguntou a si mesmo por que não se sentia mais vitorioso. Por que é que algo lhe dizia que fora enganado?
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Depois do inquérito, Nat Coogan não bebeu um copo de vinho para comemorar. Em vez disso, sentou-se na sala de estar, a beber um copo de cerveja gelada e, a rever
mentalmente o que acontecera nesse dia.
É isto que acontece disse a Debbie. Os assassinos safam-se dos crimes. Podia passar os próximos dois dias a citar casos em que toda a gente sabe que o marido ou
o vizinho ou o sócio cometeram o crime, mas não há provas suficientes para uma condenação.
Vais continuar a trabalhar no caso? perguntou Debbie. Nat encolheu os ombros.
O problema é que não há pistas.
Nesse caso, vamos planear o nosso aniversário de casamento. Vamos dar uma festa?
Nat ficou alarmado.
Tinha pensado convidar-te para um jantar a dois num bom restaurante, e talvez depois passássemos a noite num motel. Piscou-lhe o olho.
No Motel No-Tell? Era uma piada já muito antiga entre os dois. Nat terminou a cerveja.
Raios, Deb disse ele. Há uma pista. E está bem debaixo do meu nariz. Eu sei que está. Mas não consigo descobri-la!
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Enquanto levava Tina a casa depois do inquérito, Fred Hendin teve a horrível sensação de que talvez nunca mais conseguisse voltar a levantar a cabeça. Não lhe escapara
o facto de que as pessoas que estavam a assistir à audiência o estavam a comparar com aquele gigolo, Scott Covey. Fred sabia que Covey era um impostor de falinhas
mansas, mas isso não tornara as coisas mais fáceis quanto Tina admitira de boa vontade que se atirara a ele durante todo o Inverno.
Quando fora chamado a depor, fizera o melhor possível para a apoiar, e a decisão do juiz revelava que ele achava que o caso entre Tina e Covey não tivera qqualquer
relação com a morte de Vivian Carpenter.
Fred conhecia Tina melhor do que ela se conhecia a si mesma. No corredor, durante o intervalo, ela olhara furtivamente para Scott algumas vezes. O olhar dela dissera
tudo. Até um cego podia perceber que ela continuava doida por ele.
Estás muito calado, Fred disse Tina, enfiando o braço no dele.
Pois estou.
Estou muito contente por estar tudo acabado.
Também eu.
Vou ver se consigo tirar algum tempo de férias para ir visitar o meu irmão. Estou farta de que as pessoas andem a falar de mim nas minhas costas.
Não te censuro, mas o Colorado fica muito longe para quem quer apenas afastar-se.
Não fica assim tão longe. Fica apenas a cinco horas do Aeroporto Logan.
Encostou a cabeça ao ombro dele.
Freddie, agora só quero ir para casa e dormir. Importas-te?
Não.
Mas amanhã à noite teremos um bom jantar. Eu até vou cozinhar. Fred sentiu dolorosamente o quanto lhe apetecia afagar o cabelo negro e brilhante que estava espalhado
na sua camisa. "Estou louco por ti, Tina", pensou. "Isso não vai mudar."
Não te preocupes com o jantar disse ele, mas podes tomar uma bebida enquanto esperas por mim. Estarei lá às seis.
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Que é que te levou a questionar laine sobre a casa em Eastham? perguntou Adam enquanto iam a caminho de casa depois da visita a Scott Covey.
Porque ela nos mentiu quanto à razão que a levou a mudar-nos para a Casa "Lembra-te". A outra casa não tinha problema nenhum nos canos.
O que ela me disse foi que a dona da casa, a Sr.a Chambers, nunca admitirá os problemas constantes que tem com os canos.
Nesse caso, por que é que Elaine alugou a casa a outras pessoas? Adam riu-se.
Acho que estou a perceber o que aconteceu. Possivelmente, laine percebeu que nós poderíamos ser bons candidatos à compra da Casa "Lembra-te". Aposto que foi por
isso que nos mudou para lá. Ela sempre soube que há mais de uma maneira de esfolar um gato.
Incluindo mentir? Adam, tu és um advogado fantástico, mas às vezes a tua insensibilidade espanta-me.
Depois de velha, estás a ficar má, Men.
Não, estou a ficar sincera.
Dirigiam-se para a ilha Morris e estavam naquele momento a descer Quitnesset Lane. Ao fim da tarde, o tempo estava a ficar mais frio. As folhas das alfarrobeiras
estavam a ficar amareladas, e algumas tinham começado a cair.
Esta região deve ser linda noutras estações observou Menley.
Bem, dentro de duas semanas vamos decidir se queremos descobrir isso pessoalmente.
Amy tinha terminado de dar de comer a Hannah. O bebé esticou os braços alegremente quando Menley se inclinou para ele.
Ela está toda peganhenta avisou Amy quando Menley a tirou da cadeira alta.
Eu não me importo. Tive saudades tuas disse para Hannah.
Eu também tive saudades dela disse Adam, mas a tua blusa pode ser lavada na máquina e o meu fato não. Olá, fofinha. Soprou um beijo a Hannah, mas manteve-se fora
do seu alcance.
Menley disse:
Eu levo-a para cima. Obrigada, Amy. Amanhã à tarde, por volta das duas horas, está bem para ti? Depois de deixar o ganha-pão da família no aeroporto, quero trabalhar
pelo menos durante quatro horas.
Amy assentiu e, quando Menley já não os podia ouvir, perguntou:
Falou com Elaine acerca da gravação, Dr. Nichols?
Sim. Ela tinha a certeza de que ma tinha devolvido. Tens a certeza de que viste o filme certo?
Estão lá vocês todos. O senhor içou Bobby para fora da piscina e disse-lhe que corresse para a mãe. Ele chamou "Mamã, mamã" e depois a
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Sr.a Nichols perguntou-lhe como é que ele se chamava e em que escola é que andava.
Cola ifati disse Adam.
Amy viu o brilho de lágrimas nos olhos dele.
Ainda bem que têm Hannah disse em voz baixa. Mas é essa a gravação de que anda à procura, não é?
Sim, é. Amy, Elaine não gosta de reconhecer que se enganou. Talvez fosse melhor tu tirares a cassete da próxima vez que fores a casa dela. Parece um furto, mas ela
pertence-nos, e eu não posso insistir que ela a tem sem te causar problemas.
Acho melhor fazermos assim. Obrigada, Dr. Nichols.
16 de Agosto
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Às seis da manhã de terça-feira, Scott Covey arrumou a última mala no BMW e inspeccionou mais uma vez a casa. Elaine ia mandar alguém para fazer uma limpeza a fundo,
por isso não precisava de se preocupar com isso. Verificou novamente as gavetas e os armários do quarto, para se certificar de que não se tinha esquecido de nada.
"Alto lá", pensou ele. Esquecera-se das oito ou dez garrafas de vinho que estavam numa caixa na cave. Seria um desperdício deixá-las para a mulher-a-dias.
Todavia, havia uma coisa que estava a incomodá-lo as fotografias de Vivy. Queria pôr uma pedra sobre tudo o que acontecera no Verão, mas poderia parecer insensível
se as deixasse ali. Levouas também para o carro.
Tinha posto o lixo e os sacos recicláveis no contentor. Perguntou-se se deveria tirar a fotografia da Casa "lembra-te" da moldura e rasgá-la em pedacinhos. Depois,
encolheu os ombros. O lixo seria recolhido daí a uma hora. No dia anterior, no inquérito, pedira ao advogado de Vivian, Leonard Wells, para cuidar dos bens dela
e legitimar o testamento. Agora, que o juiz o ilibara, a família não podia protelar a transferência dos bens. Wells dissera-lhe que talvez tivesse de vender uma
grande quantidade de acções para pagar os impostos. O Governo estava sempre disposto a receber o dinheiro das outras pessoas.
" Acho que, por muito dinheiro que uma pessoa herde, sente-se sempre assim", pensou Scott.
Tirou o carro da garagem e circundou a casa. Parou um instante; depois carregou no acelerador.
Adeus, Vivy disse em voz alta.
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Passaram a terça-feira de manhã na praia, só os três. Tinham trazido o parque para Hannah e tinham-no colocado sob a sombra do chapéu de sol. Adam esteve deitado
ao sol a ler os jornais. Menley tinha revistas no saco de praia, mas também tinha trazido um molho de papéis da pasta grande de Phoebe.
Os papéis estavam enrolados com um elástico e não pareciam estar organizados
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numa ordem especial. Menley estava a ficar com a impressão de que, à medida que a doença de Alzheimer começara a invadi-la, as pesquisas de Phoebe se tinham tornado
progressivamente mais desorganizadas. Era como se ela juntasse os dados e se limitasse a atirá-los para dentro da pasta. Até havia receitas tiradas há alguns anos
do Cape Cod Times, presas a histórias dos primeiros colonos.
Que grande confusão murmurou ela. Adam levantou a cabeça e olhou para ela.
Quê?
Os apontamentos mais recentes de Phoebe. São de há quatro anos, creio eu. É óbvio que ela estava a ter sérios problemas na altura. E o pior é que ela deve ter-se
apercebido de que estava a perder as faculdades mentais. A maior parte dos memorandos para si própria são terrivelmente vagos.
Vejamos. Adam deu uma vista de olhos aos papéis. Ora aqui está uma coisa interessante.
Quê?
Há uma referência a este sítio, laine disse-me as pessoas começaram a chamar-lhe Casa "Lembra-te" porque durante as tempestades a casa funciona como um fole. A forma
como o vento sopra contra ela parece alguém a gritar "Leeeeemmbraaaaa-teeeeee".
Foi isso que Jan Paley me disse.
Então, de acordo com isto, estão ambas enganadas. Está aqui uma cópia de um registo da cidade, de 1705. Regista o nascimento de uma criança do capitão Andrew Freeman
e de sua esposa, Mehitabel, uma filha chamada "Lembra-te".
O nome da bebé era "Lembra-te"?
E olha para isto. É um registo da cidade, datado de 1712. "A dita propriedade conhecida como Nickquenum, uma casa de habitação e móveis e terreno limitado a leste
pela escarpa ou rochedo até à água salgada, a sul pela terra do alferes William Sears, a sudoeste pela terra de Jonathan Crowel e a norte pela terra de Amos Nickerson
por vontade do capitão Andrew Freeman, foi passada para a sua mulher e, se esta tiver falecido, para os seus descendentes. Tendo Mehitabel, sua esposa, falecido
antes dele, a única herdeira é uma filha chamada Lembra-te, registada nos assentos de nascimento no ano do Senhor de mil setecentos e cinco. Sendo o paradeiro da
referida criança desconhecido, a propriedade que passou a ser conhecida como Casa Lembra-te vai ser vendida para pagamento dos impostos."
Menley estremeceu.
Que é, Men? perguntou Adam imediatamente.
É que há uma história sobre um dos colonos no fim do século dezasseis, uma mulher que sabia que ia morrer quando o bebé nascesse e pediu que lhe chamassem "Lembra-te",
para que o filho se lembrasse sempre dela. Pergunto-me se Mehitabel conheceria essa história. Pode ter suspeitado de que ia perder a criança.
- Então, se decidirmos comprar a casa, talvez fosse melhor
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mudarmos-lhe o nome para o original. Fazes alguma ideia do que "Nickquenum" significa?
É uma palavra índia que, na essência, significa "vou para casa". Na época dos primeiros colonos, se um viajante estava a atravessar território hostil, só tinha de
dizer essa palavra e ninguém o impediria de continuar a viagem.
Deves ter aprendido isso durante as tuas pesquisas. "Será que foi?", perguntou-se Menley.
Vou nadar um pouco disse ela. E prometo não me afastar de mais.
Se te afastares, eu vou salvar-te.
Espero que sim.
À uma e meia, deixou Adam no aeroporto de Barnstable.
Lá vamos nós outra vez disse ele. Quando voltar, na quinta-feira, vamos começar umas verdadeiras férias. Não vou trabalhar mais. E, se tomar conta de Sua Berceza
durante a manhã, estás disponível para ir para a praia ou dar uns passeios durante a tarde?
Podes apostar.
Poupamos Amy para alguns jantares fora.
Só nós dois, espero bem.
Ao voltar do aeroporto, Menley decidiu passar rapidamente por Eastham para ver novamente a casa de Tobias Knight.
Agora, Hannah instruiu, tens de me prometer que vais portar-te bem. Eu preciso de ver aquele sítio outra vez. Há uma coisa que não compreendo.
Naquele dia, estava uma voluntária diferente, uma mulher mais idosa, Letitia Raleigh, sentada à secretária da recepção. Estava a ter uma tarde calma, segundo disse
a Menley, e tinha tempo para conversar.
Menley ofereceu uma bolacha a Hannah.
É tão dura como um biscoito para cão disse ela, mas sabe-lhe bem porque tem os dentes a romper. Vou ter cuidado para ela não atirar migalhas para o chão.
Feliz, Hannah acalmou e Menley começou a falar sobre Tobias Knight.
Não consigo encontrar muitas coisas sobre ele explicou ela.
Era um homem misterioso confirmou Raleigh. Sem dúvida, um construtor maravilhoso, e muito avançado para o seu tempo. Esta casa é bonita, mas eu sei que a que ele
construiu em Chatham foi completamente inovadora para aquela época.
Eu aluguei-a disse Menley. É linda, mas as divisões são mais pequenas que as desta casa.
Não percebo como é que isso é possível. Supostamente, as dimensões são semelhantes. Raleigh procurou na secretária. Há algures por aqui uma biografia que não costumamos
dar às pessoas. Não é muito lisonjeira
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para ele. Aqui está o retrato dele. Com boa aparência, embora pomposo, não acha? E um pouco afectado para aquela época.
O desenho mostrava um homem de feições regulares, com cerca de 30 anos, com uma barba curta e cabelo comprido. Usava calças, um gibão, uma capa e uma camisa com
gola de folhos e colarinho alto, e os sapatos tinham fivelas de prata.
Ela baixou a voz
Segundo esta biografia, Tobias Knight abandonou Eastham com má fama. Meteu-se em sarilhos quando se envolveu com algumas donas de casa, e muitas pessoas tinham a
certeza de que ele chefiava um negócio de pilhagem de destroços... que era um saqueador, sabe?
Folheou a brochura e entregou-a a Menley.
Aparentemente, em 1704, alguns anos depois de Tobias se instalar em Chatham, foi interrogado pela Coroa quando a carga do Thankful desapareceu. Toda a gente tinha
a certeza de que ele era culpado, mas ele deve ter conseguido arranjar maneira de esconder o saque. Desapareceu dois anos depois. A teoria é que se tornou demasiado
perigoso ele ficar na zona de Chatham e que desapareceu para recomeçar de novo noutro sítio qualquer.
Qual era a carga? perguntou Menley.
Roupas, cobertores, utensílios de casa, café, rum... o motivo por que causou tanta confusão foi porque toda a carga se destinava à mansão do governador, em Boston.
Onde é que eles costumavam esconder a carga?
Em abrigos, enterrada na costa, e alguns até tinham quartos secretos dentro de suas casas. Esses quartos ficavam, normalmente, atrás da lareira.
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Na terça-feira de manhã, Nat Coogan saiu para o trabalho mais cedo do que era habitual. Por curiosidade, passou pela casa de Scott Covey para ver se havia algum
sinal de ele estar a preparar-se para desaparecer. Nat não tinha dúvidas de que agora, que o inquérito estava concluído e a decisão lhe fora favorável, Covey sacudiria
o pó do Cape dos sapatos.
Mas, embora ainda fosse cedo, percebeu que Covey já se tinha ido embora. As persianas estavam corridas e havia alguns sacos de lixo ao lado da casa, à espera de
serem recolhidos. "Não é preciso um mandado de busca para revistar coisas que foram deitadas fora", pensou Nat enquanto estacionava o carro.
Um saco continha latas e garrafas para reciclar, bem como afiados pedaços de vidro partido. O outro tinha lixo, incluindo uma moldura com restos de vidro partido
agarrados e uma fotografia com arranhões em forma de cruz. "Vejam só isto", pensou Nat. Ali estava a fotografia aérea original da Casa "Lembra-te", a que estivera
na montra da agência de compra e venda de propriedades. Mesmo no seu estado mutilado, era mais nítida do
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que a que Marge lhe mostrara na agência. Mas a zona que tinha o barco tinha sido destruída. "Porquê", perguntou-se Nat. " Por que é que ele tentou destruí-la? Por
que é que não se limitou a deixá-la, se não queria dar-se ao trabalho de a levar? E por que destruiu o barco da fotografia? E por que é que ele também faltava na
cópia?"
Colocou a fotografia mutilada no porta-bagagens do carro e dirigiu-se para a rua principal. Elaine Atkins estava a abrir nesse momento. Cumprimentou-o alegremente.
Tenho a fotografia que o senhor quer. Se quiser, posso mandar emoldurá-la.
Não se incomode disse Nat rapidamente. Levo-a agora. Deb quer encarregar-se pessoalmente da moldura. Estendeu a mão para pegar na fotografia. Observou-a. Fantástica!
É uma fotografia maravilhosa!
Concordo. Uma fotografia aérea panorâmica pode ser uma verdadeira ferramenta de vendas, mas, independentemente disso, esta é maravilhosa.
No departamento, por vezes, precisamos de trabalhos aéreos. Usa alguém de cá?
Sim, Walter Orr, de Orleães.
Nat continuou a observar a fotografia. Era a mesma versão que Marge colocara em exposição na montra há três dias. Nat disse:
Estarei enganado ou a fotografia tinha um barco quando estava na montra?
O negativo danificou-se disse Elaine rapidamente. Tive de retocar um pouco a fotografia.
Reparou que a cor dela se intensificou. "E por que estás tão nervosa?", perguntou a si mesmo.
Quanto lhe devo? perguntou ele.
Nada. Sou eu que faço as revelações.
É muito amável da sua parte, Menina Atkins.
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A terça-feira não foi um dia fácil para Fred Hendin. Saber que estava prestes a desistir de Tina para sempre era um ataque aos seus sentidos. Já tinha 38 anos e
saíra com várias raparigas ao longo dos anos. Pelo menos metade delas teriam, provavelmente, casado com ele.
Fred sabia que, por certos padrões, ele era um bom partido. Era muito trabalhador e tinha uma vida confortável. Fora um filho devotado e seria um marido e pai devotado.
As pessoas ficariam surpreendidas se soubessem exactamente o quão avultada era a sua conta bancária, embora tivesse tido sempre a impressão de que Tina pressentia.
Naquele preciso momento, se telefonasse a Jean, ou a Lillian ou a Mareia, sabia que teria companhia para jantar nessa noite.
O problema é que ele se apaixonara verdadeiramente por Tina. Soubera
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sempre que ela podia ser mal-humorada e exigente, mas, quando saía de braço dado com ela, sentia-se um rei. E ela podia ser muito divertida.
Tinha de a tirar da cabeça. Esteve todo o dia distraído, a pensar nela e em ter de desistir dela. O patrão até lhe chamara a atenção várias vezes.
Eia, Fred, pára de sonhar acordado. Temos um trabalho para terminar.
Olhou novamente para a casa do outro lado da rua; por qualquer razão, hoje não parecia ter o mesmo encanto. Oh, claro que, possivelmente, a compraria, mas não seria
a mesma coisa. Tinha imaginado Tina a viver nela com ele.
Mas um homem tinha a sua dignidade, o seu orgulho. Tinha de terminar tudo com Tina. Os jornais do dia estavam cheios de pormenores do inquérito. Não se tinham esquecido
de nada: o estado da mão direita de Vivian; o anel de esmeralda desaparecido; as visitas de Tina a Covey, na Florida. Fred estremecera ao encontrar o seu nome no
jornal mencionado como namorado-ex-namorado-namorado-novamente e agora noivo. O relato fazia-o parecer um parvo.
Sim, tinha de romper com ela. No dia seguinte, quando a levasse ao aeroporto, dir-lhe-ia. Mas havia uma coisa que o preocupava. Seria típico de Tina recusar devolver-lhe
as jóias da mãe dele.
Às seis horas, quando chegou a casa de Tina e viu que, como era costume, ela não estava pronta, ligou a televisão e depois abriu a caixa das jóias.
As pérolas, o relógio e a pregadeira da mãe estavam lá, bem como o anel de noivado que acabara de oferecer a Tina. "Serviu o seu objectivo, e provavelmente ela estava
morta por tirá-lo do dedo", pensou ele. Guardou as peças no bolso.
E depois os seus olhos arregalaram-se de espanto. Enterrado por debaixo das correntes e pulseiras baratas de Tina, percebeu que havia um anel. Era uma grande pedra
verde com um diamante de cada lado, engastado em platina.
Pegou nele e observouo. Até um tonto teria reconhecido a pureza e o tamanho daquela esmeralda. Fred sabia que estava a segurar no anel de família que tinha sido
arrancado do dedo de Vivian Carpenter.
Quando Menley chegou da visita à casa de Tobias Knight, Amy estava sentada nos degraus.
Deves ter pensado que me tinha esquecido de ti disse Menley em tom apologético.
Eu sei que não se esqueceu. Amy soltou Hannah da cadeira do carro.
Amy, ontem ouvi-te conversar com o meu marido sobre a cassete de Bobby. Conta-me o que se passou.
Relutantemente, Amy voltou a contar como a cassete lhe fora parar às mãos.
E onde está ela agora?
Em casa. Ontem à noite, tireia da casa de Elaine quando lhe pedi
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mais filmes emprestados. Ia entregá-la ao Dr. Nichols quando ele regressasse, na quinta-feira.
Dá-ma amanhã de manhã.
Claro.
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No dia a seguir ao inquérito, Graham e Anne Carpenter decidiram ir fazer um cruzeiro.
Precisamos de nos afastar daqui decidiu Graham.
Anne, profundamente deprimida devido aos últimos acontecimentos, concordou com indiferença. As duas outras filhas tinham vindo para o inquérito, e Emily, a mais
velha, disse abruptamente:
Mãe, a senhora tem de parar de se culpar. À sua maneira, a pobre Vivy amava-vos muito, a si e ao pai, e não me parece que gostasse de a ver assim. Vão fazer uma
viagem. Afastem-se de tudo isto. Divirta-se muito com o pai, e tomem bem conta um do outro.
Na terça-feira à noite, depois de Emily, Barbara e os maridos se irem embora, Anne e Graham sentaram-se no alpendre da frente, a fazer planos para a viagem. A voz
de Anne estava mais animada, e riu-se enquanto recordaram alguns dos cruzeiros que tinham feito.
Graham tinha de pôr em palavras o que sentia.
Não foi agradável para nenhum de nós sermos descritos como pais horríveis nos jornais sensacionalistas, e tenho a certeza de que vão ter um dia em cheio a descrever
o inquérito. Mas nós fizemos o que tínhamos a fazer, e sei que, algures, Vivian sabe que tentámos garantir que lhe era feita justiça.
E rezo para que ela saiba que não podemos fazer mais nada.
Oh, olha, ali vai Pres Crenchaw com o Brutus.
Observaram o vizinho mais velho descer a rua lentamente e passar defronte do portão deles, com o pastor-alemão pela trela.
Acerta o teu relógio disse Graham. São dez horas em ponto. Alguns instantes depois, um carro passou ao portão.
Pres devia ter cuidado, esta rua é escura disse Anne. Voltaram-se e entraram em casa.
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Menley convidou Amy para jantar com ela. Sentiu que a jovem se sentia infeliz.
Só vou fazer uma salada e linguine com molho de mexilhão explicou ela, mas gostaria que jantasses comigo.
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Adorava.
"É uma miúda amorosa", pensou Menley, "e, na verdade, não é assim tão miúda. Tem quase dezoito anos e um ar sossegado que a torna verdadeiramente atraente. Para
além do mais, é mais responsável do que muitos adultos. Mas é óbvio que não gosta da ideia de o pai estar prestes a casar com Elaine."
Todavia, era um assunto que Menley não tinha a intenção de abordar. O que abordou foi os preparativos de Amy para a Universidade.
Ao discutir os seus planos, Amy ficou animada.
Falei pelo telefone com a minha companheira de quarto. Parece simpática. Combinámos como serão as colchas e as cortinas. A mãe dela vai ajudá-la a comprá-las e depois
eu pago a minha parte.
Que providências tomaste em relação às roupas?
Elaine disse que um dia destes vamos a Boston e faremos as duas um... espere, como é que ela disse?... um "divertido dia de raparigas". Não é um horror?
Amy, não entres em guerra aberta com ela disse Menly. Ela vai casar com o teu pai.
Porquê? É óbvio que não o ama.
Claro que ama.
Menley, isto é, Sr.a Nichols, o meu pai é um homem muito maçador.
Amy! protestou Menley.
Eu sei o que estou a dizer. É simpático e delicado, e bom e bem sucedido, mas não é disso que estamos a falar. Elaine não o ama. Ele dá-lhe presentes pirosos, ou
pelo menos oferece-lhos de uma maneira pirosa, e ela faz uma grande fita. Ela vai fazê-lo infeliz, e sabe que eu sei, e é por isso que não me suporta.
Amy, espero que Hannah não fale assim do pai um diadisse Menley, abanando a cabeça, embora soubesse que Amy tinha toda a razão.
Está a brincar? O Dr. Nichols é o tipo de homem que as mulheres querem. E, se quer que lhe diga, a lista começa com Elaine.
Quando Amy se foi embora, Menley deu uma volta pela casa, para fechar tudo. Sintonizou o canal meteorológico local e ficou a saber que estava em progressão uma tempestade
que assolaria o Cape no dia seguinte ao fim da tarde ou ao princípio da noite. "É melhor certificar-me de que temos uma lanterna e velas, para o caso de serem precisas",
pensou.
O telefone tocou quando ela se preparava para se sentar à secretária, na biblioteca. Era Jan Paley.
Ontem não a vi quando esteve na casa de Scott Covey disse Jan. Queria dizer-lhe que Phoebe esteve novamente a falar em Tobias Knight. Acho que você tem razão, Menley.
Ela está a tentar dizer-nos alguma coisa acerca dele.
Hoje, depois de deixar Adam no aeroporto, passei pela casa que ele construiu em Eastham disse Menley. A recepcionista mostrou-me o retrato dele. Jan, ele parecia
matreiro e pedante. Não consigo imaginar como é que Mehitabel se interessaria por ele. Outra coisa interessante é que,
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de acordo com as datas que temos, ela já estava grávida de pelo menos três meses do filho de Andrew Freeman quando foi denunciada. Fez uma pausa.
Acho que estou a pensar em voz alta. Estive grávida duas vezes, e a última coisa no mundo que me apetecia durante os primeiros três meses das duas gravidezes era
envolver-me num caso amoroso.
Então, que tem em mente? perguntou Jan.
Tobias Knight era um saqueador. Estava a ser interrogado pela Coroa por causa da carga do Thankful na altura em que foi visto a visitar Mehitabel a horas impróprias.
E se ele não ia visitá-la? Suponha que ela nunca soube que ele lá estava? Se ele não tivesse confessado que era amante de Mehitabel, eles teriam procurado outro
motivo para ele lá estar. Suponha que ele escondeu alguma carga do Thankful nesta propriedade, ou mesmo nesta casa?
Oh, não pense na casa protestou Jan.
As dimensões dos quartos do primeiro andar são mais reduzidas que na casa de Eastham. Mas do lado de fora a casa é do mesmo tamanho. Vou bisbilhotar um pouco.
Não me parece que vá adiantar grande coisa. Se alguma vez houve uma zona de arrecadação, possivelmente já está tapada há uns duzentos anos. Mas é possível que naquela
época existisse uma.
Alguém sugeriu alguma vez que esta casa poderia ter um quarto secreto?
Não a mim. E o último empreiteiro fez imenso trabalho na casa. Foi Nick Bean, de Orleães.
Importa-se de que eu fale com ele amanhã?
Claro que não. E esteja à vontade para espreitar o que quiser. Boa noite, Menley.
Quando pousou o auscultador, Menley recostou-se na cadeira e analisou os retratos de Mehitabel e Andrew. No navio, pareciam tão felizes juntos.
Mehitabel morrera a jurar a sua inocência, e, uma semana depois, Andrew fizera-se ao mar, na iminência de uma tempestade, desesperado para trazer o bebé de volta
e a gritar o amor que sentia pela mulher. Seria possível que se convencera da inocência da mulher e ficara louco de remorsos?
Todos os instintos diziam a Menley que ela estava no caminho certo.
Sentou-se novamente à secretária, mas agora não estava interessada em estudar os papéis. Algo que Amy dissera durante o jantar tinha de ser encarado. Elaine podia
estar noiva de outro homem, mas estava apaixonada por Adam. "Senti isso naquela noite ao jantar", pensou Menley. "Elaine não se esqueceu de que tinha aquela cassete.
Escondeu-a deliberadamente, sabendo que era insubstituível para nós. Para que lhe serviria ela a não ser para olhar para Adam?"
"Ou terá encontrado outra utilização para ela?"
Às dez horas foi para cima, vestiu uma camisa de dormir e um robe e telefonou a Adam para o apartamento em Nova Iorque.
Ia agora mesmo telefonar para te desejar boa noite disse ele. Como estão as minhas meninas?
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Estamos bem. Menley hesitou, mas sabia que tinha de fazer a pergunta que não lhe saía da cabeça. Amy jantou comigo e fez uma observação interessante. Ela acha que
Elaine está apaixonada por ti, e eu tenho de admitir que concordo com ela.
Isso é ridículo.
Achas que sim? Adam, por favor, não te esqueças de que, depois de Bobby morrer, eu não fui grande mulher para ti durante um ano. No Verão passado, pedi-te a separação,
e provavelmente estaríamos divorciados neste preciso momento se eu não tivesse descoberto que estava grávida de Hannah. Durante aquele tempo em que estivemos separados
tornaste-te muito íntimo de Elaine, não foi?
Depende do que considerares íntimo. Apoiámo-nos sempre um ao outro desde miúdos.
Adam, esquece a rotina dos companheiros. Isso não aconteceu já antes? Disseste que ela foi uma rocha quando o teu pai morreu. E, ao longo dos anos, quando não tinhas
outra namorada séria, telefonavas-lhe para saírem juntos. Não era assim que acontecia sempre?
Menley, não podes pensar que estive envolvido com Elaine o ano passado.
Estás envolvido com ela agora?
Meu Deus, Menley, não!
Tinha de perguntar. Boa noite, Adam.
Adam ouviu o clique no ouvido. Quando chegara ao apartamento, percebera o que estava a incomodá-lo. Um dia, no Inverno anterior, quando Menley saíra, ele vira a
gravação de Bobby. A cassete estava onde ele a tinha deixado, na gaveta da secretária. Ele tinha-a trazido para casa no Verão anterior. Por que é que Elaine fizera
uma cópia e não lhe dissera nada?
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Na quarta-feira de manhã, Nat trouxe a segunda chávena de café para a sala de estar e observou as duas fotografias da Casa "lembra-te". A muito custo, conseguira
tirar a fotografia mutilada da moldura, e agora estava pousada na cornija da lareira, ao lado da cópia que Elaine lhe dera.
A destruição da fotografia que ele tirara do lixo de Scott Covey era ainda mais aparente agora, que a fotografia estava separada da moldura. Parecia que os rasgões
em forma de cruz poderiam ter sido feitos com uma faca afiada ou até com um pedaço de vidro partido. Havia um buraco no sítio onde estivera o barco.
A outra cópia mostrava uma ligeira mancha onde o barco estivera, como se Elaine tivesse tentado retocar o negativo, mas não tivesse completado o trabalho.
Adeus, pai.
Os dois filhos de Nat, Kevin e Danny, de 16 e 18 anos, respectivamente, apareceram à porta, sorrindo-lhe.
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Se está a decidir qual delas comprar, pai, eu se fosse a si escolheria a da direita disse Kevin.
É óbvio que alguém não gostou da outra comentou Danny.
Concordo disse Nat. A questão é, por que é que ele não gostou dela? Até logo, rapazes.
Debbie entrou alguns minutos depois.
Ainda não compreendeste? perguntou ela.
Nada faz sentido. Em primeiro lugar, não posso acreditar que Elaine Atkins tenha acreditado realmente que Scott Covey queria comprar aquela propriedade. Depois,
quando partiu, por que não se limitou a deixá-la lá em casa? Porquê dar-se ao trabalho de a destruir e cortar o barco? E por que é que Elaine apagou o barco na cópia?
Tem de haver uma razão.
Debbie pegou na fotografia mutilada e voltou-a.
Talvez devesses conversar com a pessoa que tirou a fotografia. Olha, tem um nome registado no verso. Walter Orr. Também tem a morada e o número do telefone.
Eu sei o nome dele disse Nat. Elaine deu-mo.
Debbie virou novamente as fotografias e endireitou os cantos enrolados.
Olha. A data e a hora em que esta foi tirada estão marcadas aqui ao fundo. Olhou para a outra fotografia. Na cópia que Elaine te deu não há nada.
Nat olhou para a data.
15 de Julho, às três e meia! exclamou ele.
Esta data tem algum significado?
Podes crer que sim disse Nat. 15 de Julho foi o dia em que Vivian Carpenter morreu afogada. Covey telefonou para a guarda-costeira às quatro e meia dessa tarde.
Em duas passadas, chegou junto do telefone.
O rosto de Nat ficou desapontado quando ouviu uma mensagem gravada. Depois deixou o nome e o número do telefone da esquadra da Polícia e terminou dizendo:
Sr. Orr, é imperativo que eu fale imediatamente consigo. Quando desligou, disse:
Orr saiu para fazer um trabalho e estará de volta às quatro horas. Portanto, isto terá de esperar até lá. Mas, Deb, acabo de me lembrar de que, quando Marge disse
que nos arranjaria uma cópia, comentou que Elaine tinha o negativo. E, obviamente, já o alterou. Por isso, se isto tinha alguma coisa, talvez nunca venhamos a saber
o que era. Raios!
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Na quarta-feira de manhã, quando Menley acordou, às sete horas, havia uma sensação de desassossego no ar. A brisa era húmida e o quarto ainda estava na penumbra.
A luz que penetrava pelos intervalos das cortinas era fraca, e nenhum raio de sol dançava nos peitoris das janelas.
Ela tinha dormido bem. Embora o quarto de Hannah ficasse perto e ela
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tivesse deixado ambas as portas abertas^ deixara o monitor ligado toda a noite na mesa-de-cabeceira a seu lado. Às duas horas, ouvira o bebé mexer-se e fora vê-lo,
mas Hannah não acordou.
"E não tive sonhos, nem visões, graças a Deus", pensou Menley enquanto pegava no robe. Aproximou-se das janelas que davam para a água e afastou os cortinados. O
oceano estava cinzento, as ondas ainda batiam suavemente na margem. Alguns raios de sol espreitavam através de pesadas nuvens que se amontoavam por cima da água.
"Oceano e céu e areia e espaço", pensou ela. "Esta casa maravilhosa, esta vista especial." Estava a gostar de se habituar a todo aquele espaço. Quando o pai morrera,
a mãe dera ao irmão o quarto mais pequeno e passara a cama de Menley, igual à do irmão, para o seu quarto. Quando Jack fora para a Universidade, tinha sido a vez
de Menley ter um quarto só para si, e daí em diante, quando Jack estava em casa, dormia no sofá-cama da sala.
"Lembro-me de como, quando era pequena, costumava fazer desenhos de casas bonitas com lindos quartos", pensou Menley enquanto contemplava o oceano. "Mas nunca imaginei
uma casa como esta, uma localização como esta. Talvez seja por isso que a casa que eu e Adam tivemos em Rye nunca me atraiu como esta."
"A Casa "Lembra-te" seria uma casa para o coração", pensou ela. "Posso imaginar-me a vir cá passar o Dia de Acção de Graças e o Natal e os Verões iguais aos que
Adam passou enquanto crescia, e fins-de-semana prolongados noutras estações. É o equilíbrio perfeito para toda a agitação da vida em Manhattan, com o escritório
de Adam a poucos minutos de distância.
"Quais teriam sido os planos de Mehitabel para a sua vida?", perguntou-se ela. "Muitas das mulheres dos capitães do mar viajavam com os maridos pelo mundo e levavam
com elas os filhos pequenos. Mehitabel fizera uma viagem com Andrew depois de se casarem. Antes de tudo correr mal, teria desejado fazer outras viagens?
"Faria sentido se Tobias Knight tivesse construído uma área de arrecadação na propriedade, ou dentro da própria casa, e fosse esse o motivo que o levava a ser visto
por aqui? Vou escrever a história assim", decidiu ela.
"Por que é que não consigo deixar de pensar nela esta manhã?", perguntou a si mesma. E depois compreendeu o motivo. Na terceira quarta-feira de Agosto, há todos
aqueles anos, Mehitabel fora condenada como adúltera, chicoteada, e tinham-na trazido para casa, onde ela descobrira que o marido lhe levara a filha bebé. Hoje era
a terceira terça-feira de Agosto.
Pouco depois, Menley não precisou de que o monitor a informasse de que Hannah estava acordada e com fome.
Já vou, Berceza disse em voz alta enquanto ia para o quarto do bebé.
Amy chegou às nove horas. Era óbvio que estava preocupada. Não demorou muito tempo a descobrir o que se passara.
Elaine estava na nossa casa quando eu cheguei ontem à noite disse ela. O Dr. Nichols tinha-lhe perguntado pela cassete de Bobby, e acho que ela deve ter calculado
que eu a tinha trazido. Pediu-ma.
"Eu não lha dei. Disse-lhe que vos pertencia e que tinha prometido trazê-la. Ela disse que era apenas uma cópia que ela fizera porque o Dr. Nichols estava tão perturbado
o ano passado que ela teve medo de que ele perdesse
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a cassete, e ela sabia que a senhora não a tinha visto. Os olhos de Amy marejaram-se de lágrimas. O meu pai ficou do lado de Elaine. Também está zangado comigo.
Amy, lamento que tenhas tido problemas por causa disto. Mas não acredito que Elaine tenha feito uma cópia daquela gravação por minha causa. E estou muito contente
por não lha teres dado. Onde está ela agora?
Amy pôs a mão na mala.
Está aqui.
Menley pegou na cassete por um momento, e depois pousou-a na mesa das refeições.
Vou vê-la mais tarde. Acho que seria boa ideia pores Hannah no carrinho e irem dar um passeio. Se a tempestade irromper, deve durar até amanhã à tarde.
Adam telefonou uma hora depois.
Como vão as coisas, amor?
Está tudo bem disse-lhe ela, mas o tempo está a mudar. Está prevista uma tempestade.
Amy levou a gravação de Bobby?
Sim.
Já a viste?
Não. Confia em mim, Adam. Vou vê-la esta tarde enquanto Amy estiver com Hannah, mas sei que posso aguentar.
Quando desligou, olhou para o ecrã do computador. A última frase que escrevera antes de o telefone ter começado a tocar, fora: "Poderia parecer que Mehitabel implorou
ao marido que confiasse nela."
Às onze horas, conseguiu falar para o empreiteiro Nick Bean, que remodelara a casa. Homem afável, Bean falou de boa vontade sobre a Casa "Lembra-te" e deulhe algumas
informações.
Uma obra sem preço disse ele. Não havia um prego em lado nenhum na construção original. Só juntas de encaixe.
Ela perguntou-lhe o que ele sabia sobre compartimentos secretos nas casas dos primeiros colonos.
Já encontrei alguns em várias dessas casas velhas explicou ele. As pessoas exaltam-nos. Originalmente, chamavam-lhes "quartos índios", porque eram os locais onde
as famílias se escondiam quando as casas eram atacadas por índios.
Menley percebeu o divertimento na voz dele quando continuou:
Só há um problema. Os índios do Cape não eram hostis. Esses quartos serviam para esconder as cargas roubadas ou eram os locais onde as pessoas deixavam as coisas
de valor quando iam viajar. Acho que se poderá dizer que era a versão deles de um cofre-forte.
- Acha possível a Casa "Lembra-te" ter um quarto secreto? perguntou Menley.
É possível confirmou Bean. Parece que o último homem que tive a trabalhar lá mencionou alguma coisa acerca disso. Há um grande espaço entre os quartos e o centro
da casa, onde as chaminés foram construídas.
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Mas isso não significa que o consigamos descobrir, se ele existir. Pode ter sido tão bem camuflado que só um génio o descobriria. Um lugar para começar a procurar
é o armário da sala. Por vezes, um painel amovível atrás dele levava a uma área de armazenamento.
Um painel amovível. Logo que desligou, Menley apressou-se a ir inspeccionar o armário da sala principal. O móvel estava do lado esquerdo da lareira. Ela abriu-o,
e as suas narinas foram invadidas por um cheiro a bafio. "Devia deixar a porta aberta para arejar", pensou. Mas o fundo do armário embutido não tinha junções que
indicassem a entrada para uma área de armazenamento.
"Talvez quando a casa for nossa possamos explorá-la mais a fundo", pensou ela. "Não podes começar a partir paredes." Voltou para a secretária, mas percebeu que estava
a ficar cada vez mais distraída. Queria ver a gravação de Bobby.
Esperou até depois do almoço, quando Amy levou Hannah lá para cima para dormir a sesta. Depois, pegou na cassete e levou-a para a biblioteca. Já tinha um nó na garganta
quando pôs a cassete no vídeo e premiu o botão de começo.
Tinham visitado um dos sócios de Adam em East Hampton naquele fim-de-semana. Lou Miller tinha uma câmara de vídeo e trouxera-a para o jardim no domingo, depois do
brunch. Adam tinha Bobby na piscina. Ela estava sentada à mesa, à sombra do chapéu-de-sol, a conversar com a mulher de Lou, Sherry.
Lou tirara fotografias de Adam a ensinar Bobby a nadar. "Bobby parecia-se tanto com Adam...", pensou Menley. Estavam a divertir-se tanto. Depois, Adam içara Bobby
para fora da piscina e pousara-o no chão. Ela lembrava-se de Lou ter desligado a câmara e dito: "Muito bem, já chega da festa aquática. Vamos filmar Bobby com Menley.
Adam, põe-no no chão. Menley, tu vais chamá-lo."
A seguir, ouviu a sua própria voz. "Bobby, vem cá. Quero-te."
"Quero-te, Bobby."
Menley esfregou os olhos enquanto via o filho de 2 anos, de braços estendidos, a correr para ela, e o ouvia chamá-la: "Mamã, mamã."
Ofegou. Era a mesma voz feliz que ouvira quando pensara que Bobby estava a chamá-la na semana anterior. Soara tão vibrante, tão viva. Foi a forma como ele costumava
dizer "Mamã" que a comoveu. Ela e Adam tinham -se rido muito com isso. Adam dissera: "Parece mais mam-eu, com ênfase no eu."
Fora exactamente assim que ele a chamara na noite em que ela vasculhara a casa inteira à procura dele. Teria sido simplesmente um sonho muito real ao acordar e não
uma alucinação? A Dr.a Kaufman dissera-lhe que as recordações felizes começariam a substituir a recordação traumatizante. Mas o apito do comboio fora, sem dúvida,
uma alucinação.
A gravação estava a passar. Bobby a atirar-se para os seus braços; ela a virá-lo para a câmara.
"Como te chamas?"
Começou a soluçar quando ele disse orgulhosamente:
"Wobert Adam Nikko."
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Os soluços sufocaram-na, e quando a gravação terminou ficou sentada durante alguns minutos, com o rosto enterrado nas mãos. E depois um pensamento reconfortante
atenuou a dor: dali a dois anos, Hannah poderia responder à mesma pergunta. Como é que ela pronunciaria Menley Hannah Nichols?
Ouviu Amy descer as escadas e chamou-a. Amy entrou, com ar preocupado.
A senhora está bem, Sr.a Nichols?
Menley ainda tinha os olhos cheios de lágrimas.
Estou disse ela, mas gostava que visses isto comigo.
Amy pôs-se a seu lado enquanto ela rebobinava a fita e a punha a rodar novamente. Quando acabou, Menley perguntou:
Amy, quando Bobby estava a chamar-me, reparaste em alguma coisa especial na forma como ele falava?
Amy sorriu.
Está a referir-se a mam-eu? Era como se ele estivesse a dizer: "Eia, mãe, venha antes a mãe até mim!"
Foi o que eu pensei. Só queria ter a certeza de não estar a imaginar coisas.
Sr.a Nichols, alguma vez nos recompomos da perda de uma pessoa que amamos? perguntou Amy.
Menley sabia que Amy estava a pensar na mãe.
Não disse ela, mas temos de aprender a estar gratos por termos tido a pessoa, mesmo que não tenha sido por muito tempo. E, para citar a minha própria mãe, ela disse
sempre ao meu irmão e a mim que tinha preferido passar doze anos com o meu pai do que setenta anos com outra pessoa qualquer.
Abraçou Amy.
Tu vais sentir sempre a falta da tua mãe, tal como eu vou sentir sempre a falta de Bobby, mas temos de nos lembrar sempre disso. Eu sei que vou tentar.
No momento em que foi recompensada com o sorriso de Amy, Menley lembrou-se repentinamente de que, das duas vezes que ouvira o comboio, Hannah também o ouvira.
O chamamento, o comboio. E se ela não o tivesse imaginado?
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Graham e Anne Carpenter passaram a maior parte do dia de quarta-feira a fazer as malas. Às duas horas, Graham viu passar a carrinha dos Correios e foi ver se havia
correspondência.
Quando tirou o correio, olhou para dentro da caixa e ficou surpreendido ao ver um pequeno pacote ao fundo. Estava embrulhado em papel castanho e atado com um cordel,
por isso, percebeu que não era uma daquelas amostras de sabonetes que apareciam regularmente na caixa do correio.
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O pacote era dirigido a Anne, mas não tinha selo nem a morada do remetente. Graham levou-o para casa e foi para a cozinha, onde Anne estava a falar com a governanta.
Quando lhe contou que o tinha encontrado, viu um ar preocupado estampado no rosto da mulher.
Queres que o abra? perguntou ele. Anne assentiu.
Viu a sua expressão expectante enquanto cortava o cordel. Perguntou-se se ela estaria a pensar no mesmo que ele. Havia algo distintamente estranho naquele pacote
com uma letra bonita e bem amarrado.
Quando o abriu, os seus olhos esbugalharam-se com o choque. O belo verde-profundo do anel de esmeralda da família brilhava através de um saco de plástico.
A governanta engasgou-se:
Não é...?
Anne arrancou-lhe o saco da mão e tirou o anel, apertando-o na mão. A sua voz estava estridente, à beira de um ataque de histeria, quando exclamou:
Graham, de onde veio isto? Quem o trouxe aqui? Lembras-te de que eu te disse que as esmeraldas encontram sempre o caminho de casa?
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Nat Coogan estava no carro, a caminho de Orleães, quando recebeu, às três e um quarto, um telefonema do gabinete do delegado do Ministério Público. Um assistente
do delegado do Ministério Público informou-o de que o anel de esmeralda fora devolvido aos Carpenter na noite anterior e que, precisamente às dez horas, um vizinho
idoso, Preston Crenshaw, vira um carro desconhecido abrandar junto à caixa do correio dos Carpenter.
Não podemos ter a certeza de ter sido a pessoa que estava no carro quem deixou o anel, mas já temos alguma coisa para continuar disse-lhe o assistente do delegado
do Ministério Público. A descrição do Sr. Crenshaw do veículo que viu foi bastante boa. Um Plymouth verde-escuro ou preto, matrícula do Massachusetts com um 7 e
um 3 ou 8 nos números.. Estamos a fazer uma pesquisa. Plymouth", pensou Nat. "Verde-escuro ou preto." Onde é que vira um recentemente Depois recordou-se. Fora ao
pé da casa de Fred Hendin, e vira Fred e Tina dentro dele depois do inquérito.
O namorado da Tina Arcoldi, Fred Hendin, tem um Plymouth verde-escuro disse ele. Verifiquem a matrícula do carro dele. Esperou. O assistente do delegado do Ministério
Público voltou ao telefone, e a sua voz soou triunfante. A matrícula de Hendin tem um 7 e um 3. O chefe diz que quer que vá ^ connosco quando o formos deter para
interrogatório. Então encontramo-nos em casa de Hendin às cinco horas. Eu vou tratar de uma coisa que pode levar a outra pista.
199
O fotógrafo aéreo, Walter Orr, ouvira as mensagens e respondera ao telefonema de Nat. Nat ia encontrá-lo no escritório dele às quatro horas.
"Está a resolver-se", pensou Nat, exultante, pousando o telefone no tablier.
Dez minutos depois, deixava a Via Rápida n.9 6 na saída de Orleães. Cinco minutos mais tarde, estava no escritório de Orr, no centro da cidade.
Orr tinha cerca de 30 anos e era um homem bronzeado que parecia mais um estivador do que um fotógrafo. Estava a fazer café.
Foi um dia comprido disse a Nat. Estive a fazer umas fotografias em Nova Londres.,E pode acreditar que fiquei contente por voltar para casa. Aquela tempestade vai
chegar cá dentro de poucas horas, e não me apetecia nada voar no meio dela.
Levantou uma caneca.
Café?
Nat abanou a cabeça.
Não, obrigado.Mostrou-lhe a fotografia aérea mutilada. Foi você que tirou isto?
Ele observou-a rapidamente.
Fui. Quem a cortou?
Isso faz parte do que estou a investigar. Soube que Elaine Atkins o contratou para a tirar e que é ela que tem o negativo.
É verdade. Ela especificou que queria ficar com o negativo e pagou mais para isso.
Muito bem, agora dê uma vista de olhos a esta cópia.Nat desenrolou a fotografia que Elaine lhe dera. Está a ver a diferença?
Claro que sim. O barco foi tirado. Quem fez isso? Elaine?
Foi o que me disseram.
Bom, é dela, pode estragá-lo à vontade, acho eu.
Ao telefone, disse-me que, quando tira fotografias aéreas, a hora exacta e a data ficam marcadas no negativo.
Correcto.
Nat apontou para o canto inferior direito da fotografia original.
Esta tem marcado sexta-feira, 15 de Julho, 15:30.
E o ano está por debaixo.
Estou a ver. O que eu quero que fique claro é se é a hora exacta em que a fotografia foi tirada. Estou certo?
Absolutamente.
Preciso de ver o barco que falta. Quantas fotografias tirou... e há mais alguma semelhante?
Orr hesitou.
Oiça, isto é mesmo importante para si? Acha que o barco transportava droga ou qualquer coisa do género?
Pode ser importante para muitas pessoas disse Nat. Orr pressionou os lábios um contra o outro.
Sei que não está aqui só porque quer admirar a minha fotografia. Só entre nós, eu vendi a Elaine o rolo inteiro, mas fiz um duplicado do negativo
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desta fotografia para mim. Não a teria vendido a mais ninguém, mas é uma fotografia fantástica. Queri-aa como amostra do meu trabalho.
Que boa notícia disse Nat. Pode fazer outra cópia, rapidamente?
Claro. Exactamente como esta?
- Sim, exactamente como o original, mas no que eu estou verdadeiramente interessado é no barco.
Que quer saber acerca dele?
Tudo o que a sua habilidade puder revelar-me. Escrevinhou o número do telefone celular nas costas do seu cartão e entregou-o a Orr. O mais depressa possível. Fico
à espera da sua chamada.
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Foram buscar Fred Hendin pouco depois das cinco e levaram-no para o gabinete do delegado do Ministério Público, no Tribunal. Calma e educadamente, ele respondeu
às perguntas que lhe foram postas. Não, nunca conhecera Vivian Carpenter. Não, também nunca conhecera Scott Covey, embora o tivesse visto na Estalagem Daniel Webster
no ano anterior. Sim, estava noivo de Tina Arcoldi.
O anel? Não fazia a menor ideia do que eles estavam a falar. Não estivera em Osterville na noite passada. Saíra com Tina e depois fora directamente para a cama.
Sim, no inquérito ouvira falar muito sobre um anel que desaparecera. O Cape Cod Times do dia anterior trazia uma descrição. Quase um quarto de um milhão de dólares
era muito anel. Quem quer que o devolvera era certamente uma pessoa honesta.
Tenho de me ir embora daqui disse Fred aos seus interrogadores. Vou levar a minha noiva ao Aeroporto Logan. Ela tem um voo para Denver às nove horas.
Acho que Tina vai perder o avião, Fred disse Nat. Vamos trazê-la para cá agora.
Observou o rubor, que era um sinal de que ia falar, aparecer no pescoço de Fred e subir até ao seu rosto. Estavam quase a apanhá-lo.
Tina quer ir visitar o irmão e a família disse Fred, zangado. Todo este assunto foi muito aborrecido para ela.
Foi aborrecido para muitas pessoas disse Nat calmamente. Se tem pena de alguém, sugiro que comece pelos Carpenter. Não a desperdice com Tina.
Nat foi com Bill Walsh, um investigador do gabinete do delegado do Ministério Público, a casa de Tina. A princípio, ela recusou-se a deixá-los entrar, mas por fim
abriu a porta.
Encontraram-na rodeada de bagagem. A sala de estar tinha obviamente
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sido despojada de todos os objectos pessoais. "Ela não tinha intenção de voltar", pensou Nat.
Não tenho tempo para vocês disse Tina com rispidez. Tenho de apanhar um avião. Estou à espera de Fred.
Fred está no gabinete do delegado do Ministério Público, Tina disse-lhe Nat. Estivemos a falar com ele, e agora é muito importante falarmos também consigo. Se tudo
se esclarecer rapidamente, ainda vai poder apanhar o seu avião.
Tina pareceu espantada.
Não faço ideia por que é que querem falar com Fred ou comigo. Vamos despachar isto rapidamente.
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Menley acompanhou Amy até à porta.
O meu pai e eu vamos jantar a casa de Elaine hoje disse ela. Supostamente, vamos conversar sobre o meu relacionamento com ela.
Querem tentar ter uma relação mais equilibrada? perguntou Menley.
Na noite passada ela disse alguma coisa sobre não estar disposta a envolver-se numa situação tão hostil. Amy encolheu os ombros. Vou dizer-lhe que vou estar algumas
semanas na Universidade e, se houver algum problema em voltar para casa nas férias, manter-me-ei longe. A minha avó ainda vive na Pensilvânia; vai gostar de me ter
com ela. Pelo menos, não terei de ver Elaine a fazer troça do meu pai.
Às vezes piora antes de melhorar disse Menley, abrindo a porta. Uma rajada de vento varreu o aposento.
Ainda bem que Adam não vai voar hoje comentou ela.
Depois de Amy sair, Menley deu de comer a Hannah, deu-lhe banho e viu o noticiário das seis horas de Boston com a bebé ao colo. Às seis e um quarto passou um boletim
em rodapé no ecrã. A tempestade desencadear-se-ia por volta das sete horas, e fazia-se um aviso especial aos habitantes do Cape e das ilhas daquela zona.
É melhor irmos buscar velas e lanternas disse Menley a Hannah. O céu estava completamente nublado. A água, cinzentoescura e revolta, rebentava agora na areia. Ela
foi, de quarto em quarto, acender as luzes.
Hannah começou a ficar irrequieta, e Menley deitoua na cama de grades, descendo depois para o andar de baixo. Lá fora, a velocidade do vento aumentava, e ela ouviu
o fraco brado que ele fazia enquanto soprava em volta da casa: Leeeeemmmmmbraaaaaaaa...
Adam telefonou às sete menos um quarto.
Men, o jantar que eu tinha hoje foi cancelado à última hora. Apanhei um táxi para o aeroporto para seguir para aí num voo directo, íamos a caminho quando soubemos
que o Aeroporto Barnstable está encerrado. Vou
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apanhar o avião de carreira para Boston e quando lá chegar alugo um carro. Com sorte, estarei em casa entre as nove e meia e as dez. Adam vinha para casa nessa noite!
Que bom disse Menley. Esperamos juntos que a tempestade passe.
Sempre.
Não tiveste oportunidade de comer, pois não? perguntou ela.
Não.
Eu espero por ti com o jantar pronto. Possivelmente, será à luz das velas, e não só pelo efeito.
Men... Hesitou.
Não tenhas medo de perguntar se estou bem. Sim, estou.
Viste a cassete de Bobby?
Duas vezes. Amy viu-a comigo da segunda vez. Adam, lembras-te de como Bobby tinha aprendido há pouco tempo a dizer "Mam-eu"?
Lembro. Porquê, Men?
Não tenho bem a certeza.
Men, os passageiros estão a embarcar. Tenho de ir. Vemo-nos daqui a pouco.
Adam desligou e correu para a porta de embarque. Vira a gravação, que encontrara na biblioteca do apartamento. "Mam-eu". Quase parecia que Bobby estava a chamar
Menley para junto dele. "Oh, Meu Deus", pensou Adam, "por que não fui para o Cape antes de o aeroporto fechar?"
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Nat e Bill Walsh, o investigador, levaram as malas de Tina para uma das salas de interrogatórios. Ela sentou-se à mesa e olhou ostensivamente para o relógio.
Se não estiver fora daqui dentro de meia hora, perco o avião disse ela. Onde está Fred?
Ao fundo do corredor disse Nat.
Que é que ele fez?
Talvez nada, a não ser uma entrega. Tina, vamos conversar sobre o anel de esmeralda desaparecido de Vivian Carpenter.
Os olhos dela semicerraram-se.
Que se passa com ele?
Então sabe que ele existe.
Qualquer pessoa que leia os jornais sabe que ele existe, para nem falar de todo o falatório no inquérito.
Então sabe que é o tipo de anel que não seria confundido com outro qualquer. Oiça, vou ler-lhe a descrição dele fornecida pela companhia de seguros. Nat pegou numa
folha de papel. "Esmeralda colombiana, cinco carates e meio, verde-profundo e límpido sem inclusões visíveis, dois
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diamantes cortados em forma de esmeralda, um carate e meio cada, engastados em platina, avaliado em um quarto de milhão de dólares." Pousou o papel e abanou a cabeça.
Consegue perceber por que é que os Carpenter o querem de volta, não consegue?
Não sei de que está a falar.
Muitas pessoas parecem pensar que esse anel foi arrancado do dedo de Vivian depois de ela morrer, Tina. Se for verdade, poderá trazer grandes problemas a quem quer
que o tenha agora. Por que não pensa nisso? O Sr. Walsh vai ficar aqui consigo. Eu vou falar com Fred.
Trocou um olhar com o investigador. Agora, Walsh podia usar a abordagem paternal com Tina, e, mais importante, não a deixaria sozinha para ela poder ir procurar
nas malas. Nat não deixara de reparar no olhar rápido e nervoso de Tina quando ele mencionara o anel. "Ela está convencida de que ele está dentro da mala", pensou.
Fred Hendin ergueu o olhar quando Nat entrou na sala.
Tina está aqui? perguntou em voz baixa.
Sim confirmou Nat.
Deliberadamente, tinham deixado Fred sozinho durante quase uma hora.
Café? ofereceu Nat.
Sim.
Eu também quero. Tem sido um dia cansativo.
A sombra de um sorriso passou pelos lábios de Fred Hendin.
Acho que pode dizer isso.
Nat esperou até o café ser trazido, depois inclinou-se para a frente, de homem para homem.
Fred, você não é tipo de pessoa que se preocupa com impressões digitais. O meu palpite é que há algumas impressões digitais suas no pacote que alguém, e sublinho
alguém, num Plymouth verde-escuro com matrícula de Massachusetts com os números 7 e 3 ou 8, colocou na caixa de correio dos Carpenter a noite passada.
A expressão de Hendin não mudou.
Como eu vejo as coisas disse Nat, alguém que você conhece podia ter aquele anel. E você lembrou-se de a ter visto com ele, ou talvez o tivesse visto na cómoda dela
ou na caixa das jóias, e depois do inquérito, ao ler todos os jornais, ficou preocupado. Talvez não quisesse que essa pessoa ficasse ligada ao que pode ter sido
um crime, por isso ajudou-a tirando o anel da posse dela. Ajude-me, Fred. Não foi assim que as coisas se passaram?
Quando Hendin permaneceu em silêncio, Nat disse:
Fred, se Tina tinha o anel, cometeu perjúrio no inquérito. Isso quer dizer que ela vai para a prisão a não ser que faça um acordo, que é o que ela devia fazer. A
menos que tenha estado implicada numa conspiração para matar Vivian Carpenter, ela é peixe miúdo. Se quer ajudá-la, comece a colaborar, porque, se o fizer, Tina
terá de seguir o seu bom exemplo.
As mãos de Fred Hendin estavam entrelaçadas. Parecia que estava a
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estudá-las. Nat sabia que ele devia estar a reflectir. "Fred é um homem honesto. E orgulhoso. Cada dólar que ganha é conseguido honestamente." Nat também concluiu
que Fred sabia o suficiente de leis para ter consciên cia de que, como Tina tinha dito sob juramento que não sabia nada acerca do anel de esmeralda, podia estar
metida em grandes sarilhos. Por isso é que Nat estava a insinuar que ela podia evitar problemas se colaborasse.
Nat também pensou que podia calcular como Tina iria reagir. Defender-se-ia em todos os ângulos até ser encurralada num canto. Com sorte, conseguiriam fazê-la falar
naquela noite. Sabia que talvez não fosse difícil descobrir o paradeiro de Covey, mas não queria esperar muito tempo.
Eu não quero que Tina se meta em sarilhos disse Fred finalmente, quebrando o silêncio. Apaixonar-se por uma cobra como Covey não devia meter ninguém em sarilhos.
"Não há dúvida nenhuma de que meteu Vivian Carpenter em sarilhos", pensou Nat.
Depois, Fred Hendin disse:
Tirei o anel de esmeralda da caixa de jóias de Tina a noite passada.
O investigador, Bill Walsh, manteve uma expressão simpática quando Tina disse rispidamente:
Isto é como viver na Alemanha nazi.
Por vezes, temos de pedir ajuda para as nossas investigações a pessoas inocentes disse Walsh suavemente. Tina, você não pára de olhar para a sua bagagem. Quer que
eu lhe traga alguma coisa?
Não. Escute, se Fred não pode levar-me a Logan, eu tenho de chamar um táxi, e isso vai custar-me uma fortuna.
Com este tempo horrível, aposto que o seu voo está atrasado. Quer que confirme? Walsh pegou no telefone. Qual é a companhia de aviação e a hora de partida?
Tina escutou enquanto ele confirmava a reserva dela. Quando ele desligou, estava a sorrir abertamente.
Pelo menos uma hora de atraso, Tina. Temos imenso tempo. Alguns minutos depois, Nat juntou-se a eles.
Tina disse ele, vou ler-lhe os seus direitos.
Claramente surpreendida e confusa, Tina escutou-o, incrédula, leu e assinou o papel que Nat lhe deu e mencionou o seu direito a um advogado.
Não preciso de nenhum. Não fiz nada. Vou falar consigo.
Tina, sabe qual é a pena por ser cúmplice de homicídio neste Estado?
E que é que isso me interessa?
No mínimo, aceitou um valioso anel que pode ter sido arrancado do dedo de uma vítima.
Isso é mentira.
Você tinha o anel. Fred viu-o e devolveu-o aos Carpenter.
Ele... quê? Ela correu para a pilha de malas que estavam arrumadas ao canto e pegou na mala de mão. Num gesto rápido, abriu o fecho e tirou de lá de dentro um livro.
"Uma dessas caixas de jóias disfarçadas", pensou Nat, vendo Tina a
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abri-la e revelar o interior oco. Viu o rosto dela ficar sem pinga de sangue. O patife miserável resmungou ela.
Quem, Tina?
Fred sabe onde eu guardo as minhas jóias atirou ela. Ele deve ter tirado... Calou-se.
Tirado o quê, Tina?
Depois de algum tempo, ela disse:
As pérolas e a pregadeira e o relógio e o anel de noivado que me deu.
É tudo? Tina, se você não colaborar, acusamo-la de perjúrio.
Ela olhou para Nat durante muito tempo. Depois, sentou-se e enterrou o rosto nas mãos.
O estenógrafo registou a história de Tina. Depois da morte trágica da mulher, Scott Covey voltara-se para ela à procura de consolo, e tinham-se apaixonado outra
vez. Ele tinha encontrado o anel de esmeralda na caixa de jóias e oferecera-o a Tina como símbolo da vida futura dos dois. Mas, quando aqueles horríveis rumores
tinham começado, concordaram que seria muito mau admitir que ele tinha o anel. Também concordaram que ela devia continuar a andar com Fred até estar tudo resolvido.
Tem planos para ir ter com Scott? perguntou Nat. Ela assentiu.
Nós estamos mesmo muito apaixonados um pelo outro. E quando ele precisou de consolo...
Eu sei disse Nat. Voltou-se para si. Fez uma pausa. Só por curiosidade: você visitou-o em casa dele algumas vezes e estacionou o carro na garagem, não foi?
Ànoite, Fred ia sempre cedo para casa. Às vezes, eu ia fazer uma visita a Scott.
Agora, Tina estava a chorar. Nat não sabia bem se era porque estava a começar a compreender as implicações sérias das perguntas ou porque não conseguira safar-se.
Onde está Scott agora?
A caminho do Colorado. Vai encontrar-se comigo lá, na casa do meu irmão.
Está à espera de ter notícias dele antes disso?
Não. Ele pensou que seria melhor esperarmos. Disse que os Carpenter são suficientemente poderosos para pôr o telefone dele sob escuta.
Nat e os assistentes do delegado do Ministério Público discutiram seriamente o testemunho de Tina.
De certeza que temos o suficiente para um grande júri, mas, se ela continuar a contar aquela história de como Covey lhe deu o anel depois de o encontrar... e ela
pode acreditar que é verdade... não temos nada concreto, nada mais grave do que mentir sobre o anel ter sido perdido disse um assistente. Depois de a mulher morrer,
o anel era de Covey e ele podia fazer dele o que lhe apetecesse.
O telefone celular no bolso de Nat começou a tocar. Era Walter Orr.
Então, que quer saber sobre aquele barco? Ele parecia triunfante.
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"Não brinques", pensou Nat. Tentando não mostrar a irritação que sentia, perguntou:
Que me pode dizer?
É um barco com motor fora de borda e motor de porão, com cerca de seis ou sete metros. Está um homem a apanhar sol no convés.
Sozinho? perguntou Adam.
Sim. A seu lado, parece ter os restos de um almoço.
Consegue ler o nome do barco?
A resposta foi exactamente a que Nat esperara ouvir.
Viv's Toy disse Orr.
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O avião andou às voltas sobre o Aeroporto Logan durante dez minutos antes de, por fim, aterrar. Adam saiu apressadamente do avião e depois correu pelo corredor até
ao terminal. No balcão de aluguer de automóveis havia uma longa fila de pessoas. Teve de esperar dez minutos até conseguir os documentos necessários e ser conduzido
numa carrinha para a área de recolha dos carros. Telefonou novamente a Menley para dizer que ia a caminho.
Ela estava distraída.
Estou a segurar uma lanterna e a tentar acender as velas disse-lhe ela. Faltou a luz. Não, está tudo bem. Voltou outra vez.
Por fim, estava a dirigir-se a passo de caracol no meio do tráfego compacto para o Túnel Sumner. Eram nove e um quarto quando chegou à Via Rápida n. 3, a estrada
que levava directamente ao Cape.
Menley parecia perfeitamente calma, pensou Adam, tentando sossegar. "Será melhor telefonar a Elaine e pedir-lhe, a ela e a John, para irem lá e ficarem com ela até
eu chegar?"
Não. Sabia que Menley nunca mais lhe perdoaria se ele fizesse aquilo.
"Mas por que é que tenho esta sensação opressiva de que há um problema?", perguntou a si mesmo.
Era a mesma sensação opressiva que tivera no dia do acidente. Jogara golfe naquela tarde e chegara a casa a tempo de pegar no telefone quando o polícia telefonara.
Ainda conseguia ouvir aquela voz controlada e simpática: "Dr. Nichols, lamento, mas tenho más notícias."
207
102
Depois de Adam telefonar do aeroporto, Menley foi ao andar de cima verificar como estava o bebé. Hannah estava inquieta, embora não tivesse acordado. "Os dentes
ou só o barulho do vento?", perguntou Menley a si mesma enquanto esticava os cobertores e os aconchegava em volta da filha. Ouvia o som lamentoso do vento a envolver
a casa, parecendo mais ou menos uma voz a gritar: "Leeeemmmmbraaaaaa..."
Claro que era apenas a sua imaginação, os poderes de sugestão em acção, disse a si mesma com firmeza.
No andar de baixo, ouviu uma portada bater. Fazendo uma última festa nas costas do bebé, Menley apressou-se a ir descer as escadas para tentar prender a portada
que estava solta. Era numa das janelas da biblioteca. Abriu a janela, e gotas de chuva molharam-na quando se esticou e puxou as duas portadas e as fechou.
"A estrada deve estar horrível", pensou ela. "Tem cuidado, Adam." Tinha-lhe dito para ter cuidado? De repente, percebeu que tinha estado tão ocupada a ressentir-se
com a preocupação dele com ela que se esquecera de se preocupar com o marido.
Tentou acalmar-se, mas estava demasiado inquieta para ver televisão. Adam não chegaria a casa antes das nove e meia, e ainda faltava uma hora e meia. Decidiu tentar
dar alguma ordem aos livros que estavam nas estantes da biblioteca.
Carrie Bell tinhalhes obviamente limpo o pó desde que Menley estivera a vê-los há poucas semanas. Mas as páginas de muitos dos livros mais antigos estavam enroladas
e rasgadas. Um dos antigos donos da casa gostara, sem dúvida, de comprar livros em segunda-mão. Os preços marcados a lápis no interior da capa de muitos deles eram
tão baixos como dez cêntimos.
Folheou alguns livros enquanto os organizava. A leitura esporádica ajudou-a a ignorar o tempo. Finalmente, eram nove horas e estava na altura de começar a fazer
o jantar. O livro que ela tinha na mão fora publicado em
1911 e era uma história pouco interessante de navios afundados, ilustrada com desenhos. Sabia que lhe tinha dado uma vista de olhos alguns dias depois de terem chegado.
E depois, quando se preparava para o fechar, viu o desenho seu conhecido de Andrew e Mehitabel no navio. A legenda dizia: "O capitão de um barco e a mulher, no princípio
do século xvII, retratados por um artista desconhecido."
Menley sentiu que lhe saía um grande peso de cima. "Eu vi mesmo aquele retrato, e copiei-o subconscientemente", pensou ela. Pousou o livro aberto em cima da secretária,
debaixo dos desenhos que colara na parede. As luzes piscaram novamente, falhando alguns segundos. Nas profundas sombras do quarto, ela teve a sensação inquietante
de que o desenho que ela fizera de Andrew com uma expressão desolada e profundamente desgostosa se parecia, àquela luz, de certa forma, com Adam.
"Como Adam se vai sentir muito em breve", passou-lhe pela mente.
"Ridículo", pensou Menley, e foi para a cozinha, onde tomou a precaução de acender as velas para o caso de a electricidade faltar de vez.
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Adam saiu da Via Rápida n.- 6 para a Via Rápida n." 137. "Mais onze quilómetros", pensou. "Vinte minutos no máximo. Desde que te despaches", pensou, zangado com
o condutor do carro que viajava alguns carros à frente do seu e que ia a passo de caracol. Todavia, não se atreveu a fazer ultrapassagens. O tráfego na direcção
contrária era moderado, e as estradas estavam tão molhadas que possivelmente chocaria de frente.
"Só faltam nove quilómetros", disse para si mesmo alguns minutos depois, mas a sua sensação de urgência estava a aumentar bastante. Agora estava a conduzir por zonas
que estavam na mais profunda escuridão.
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Menley ligou o rádio, rodou o sintonizador e descobriu a estação de Catham, que passava música dos anos 40. Ergueu uma sobrancelha, surpreendida, quando a orquestra
de Benny Goodman começou os primeiros acordes de Remember. "Uma canção especialmente apropriada", pensou ela. Pegou numa faca de serrilha e começou a cortar tomates
para uma salada.
"Mas esqueceste-te de lembrar" cantou o vocalista.
O som único que o vento fazia quando passava pela casa estava outra vez a começar. "Leeeemmmmmbraaaaaaaa-teeeeee."
Menley tremeu enquanto ia buscar o aipo. "Adam estará cá em breve", lembrou a si mesma.
Ouviu-se um barulho repentino. Que era aquilo? Ter-se-ia uma porta escancarado? Ou uma janela? Alguma coisa estava errada.
Desligou o rádio. O bebé! Estava a chorar? Era um grito ou um som abafado, amordaçado? Menley correu para o balcão, pegou no monitor e encostou-o ao ouvido. Outro
som sufocado e depois nada. O bebé estava a sufocar!
Correu da cozinha para o vestíbulo e depois para as escadas. Os seus pés mal tocavam nos degraus enquanto ela corria para o andar de cima, e, passado um instante,
estava à porta do quarto do bebé. Não vinha nenhum som da cama de grades.
Hannah, Hannah gritou ela.
Hannah estava deitada de barriga para baixo, os braços distendidos, o corpo imóvel. Fora de si, Menley inclinou-se para baixo, voltando o bebé enquanto lhe pegava.
Depois, os olhos abriram-se, horrorizados.
A cabeça de porcelana de uma boneca antiga repousava na sua mão. Uma cara pintada olhava para ela.
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Menley tentou gritar, mas dos seus lábios não saiu nenhum som. E depois, atrás dela, uma voz murmurou:
Lamento, Menley. Está tudo acabado.
Ela girou sobre os calcanhares. Scott Covey estava ao lado da cama de grades, com uma arma na mão.
O berço. Menley estava deitada nele. Hannah, agitada, a começar a choramingar. Menley sentiu-se aliviada, mas em seguida foi invadida por um profundo terror. De
repente, sentiu-se tola, invadida por uma sensação de irrealidade. Scott Covey? Porquê?
Que está a fazer aqui? conseguiu perguntar através de lábios tão secos que quase não pôde formar as palavras. Não compreendo. Como é que entrou?
A expressão de Covey era a mesma de sempre: educado, atencioso. Tinha uma camisola e sapatos de ténis. Mas estavam secos. "Por que não está encharcado?", perguntou-se
Menley.
Não interessa a forma como entrei, Menley disse ele em tom divertido. O problema é que demorei mais tempo do que pensava a chegar, mas como Adam está em Nova Iorque
não tem importância.
Adam. Ele estivera a falar com Adam?
Era como se ele pudesse ler os seus pensamentos.
Elaine disse-me, Menley.
Elaine? Não compreendo. Estava a pensar rapidamente. "Que se passa? Isto não pode estar a acontecer. É um pesadelo! Scott Covey? Porquê?" Ela e Adam tinham sido
amigos dele. Ela tinha convencido Adam a representá-lo. Adam livrara-o de uma acusação de homicídio. E Elaine? Que é que Scott tinha a ver com Elaine? Parecia tudo
tão irreal.
Mas a arma na mão dele era real.
Hannah choramingou mais alto, começando a acordar. Menley percebeu o ar preocupado do rosto de Covey. Olhou rapidamente para o bebé, e a mão com a arma mexeu-se.
Não! exclamou ela. Debruçando-se, tirou Hannah do berço. No momento em que a encostou a si, as luzes apagaram-se, e ela saiu do quarto a correr.
Na escuridão, correu para as escadas. Tinha de se orientar. Conhecia todos os cantos da casa. Scott não. Se ao menos conseguisse chegar à porta da cozinha antes
de ele a encontrar... A chave do carro estava pendurada ao lado da porta. A carrinha estava lá fora. Só precisava de um minuto. Correu pela escada abaixo, encostada
à parede, a rezar para que os degraus não chiassem.
Ele não vinha atrás dela. Devia ter ido para o outro lado; talvez estivesse à procura dela nos outros quartos. "Por favor, meu Deus, por favor, meu Deus, dá-me só
esse minuto", rezou ela.
O estrondo de um trovão ecoou pela casa, e Hannah começou a gritar.
O barulho do comboio, o grito de Bobby, a sua própria voz a gritar.
Menley afastou a recordação. Ouviu passos rápidos por cima da cabeça. Ele vinha aí. Encostando mais Hannah a si, correu pelo corredor e entrou na cozinha. Atravessou
o aposento, desejando ardentemente não ter acendido as velas. Agora brilhavam tanto. Olhando por cima do ombro, viu Covey à
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entrada da porta da cozinha. A sua expressão agora era diferente. Os olhos estavam mais fechados, os lábios apertados.
Os seus dedos estavam a fechar-se sobre a chave do carro quando ele a apanhou, puxando-a bruscamente.
Menley, é você, ou você e o bebé. Escolha, a Hannah novamente no berço e venha comigo, porque, se não a puser novamente lá, Adam vai ficar sem as duas.
A voz dele era calma, baixa, quase casual. Teria sido mais fácil se ele estivesse nervoso, se houvesse alguma hesitação. Nesse caso, talvez pudesse convencê-lo a
deixá-la. Por que estava ele a fazer aquilo? Continuou a tentar compreender. No entanto, ele falara claramente a sério. Tinha de o afastar de Hannah.
Vou pô-la na cama prometeu ela, desesperada. Vou consigo. Ele pegou numa das velas. Ela sentiu a pressão da arma contra as suas costas durante o percurso até ao
quarto, e deitou a assustada e chorosa bebé na cama de grades.
No berço - disse ele. Ponha-a no berço. E ponha outra vez a boneca na cama de grades.
Porquê? "Empata", pensou ela, "ganha tempo. Mantém-no a falar. Adam não pode estar longe. Adam, despacha-te. por favor, despacha-te."
Porque você é doida, Menley, é por isso. Doida e alucinada e deprimida. Todos, inclusivamente Adam, vão ficar muito aliviados por não ter levado o bebé consigo quando
se suicidou.
Não. Não. Não vou fazer isso.
Ou põe o bebé no berço ou o traz consigo. A escolha é sua, Menley. De qualquer das formas, você vai agora.
Ela tinha de o afastar de Hannah. Sozinha, se ele a levasse num carro, poderia saltar, poderia tentar fugir. Talvez pudesse salvar-se, mas não ali, não com Hannah
em perigo. Teria de deixar Hannah ali.
Menley deitou o bebé, provocando mais choro na assustada criança.
Chiu... Deu um impulso para o berço começar a baloiçar e ergueu o olhar. Vou consigo disse ela, esforçando-se para se manter calma. Depois, de súbito, teve de conter
um grito.
Uma parte da parede atrás de Scott Covey estava a abrir-se. Um odor a bafio e a podre soltou-se do espaço atrás dele. Covey chamou-a com um gesto.
Por aqui, Menley.
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Enquanto a chuva batia contra o párabrisas, Adam conduziu pela rua principal de Chatham, que estava às escuras. Não conseguia ver mais de alguns metros à sua frente
e obrigou-se a não acelerar. Virou à direita. Agora corria paralelamente ao oceano.
Passou pelo farol. Daí a cinco minutos, estaria em casa. Estava a chegar
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à ilha Morris. E depois chegou ao sítio onde Little Beach e a ilha Morris se juntavam. Estava inundado e a estrada estava fechada.
Sem hesitar, Adam atravessou a barreira. Tão claramente como se ela estivesse no carro, sentiu que Menley estava a chamá-lo.
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Quando Scott Covey a forçou a passar através da abertura no quarto do bebé, Menley percebeu que ela não teria mais de cinquenta centímetros.
Vá por aí, Menley disse ele.
Ouviu um leve ruído quando a porta se fechou atrás deles, e os gritos de Hannah foram amortecidos. A luz tremeluzente da vela espalhava sombras loucas naquele espaço
apertado. Scott apagou-a quando pegou na lanterna que deixara em cima de uma pilha de destroços, e o seu feixe revelou os contornos de um pequeno quarto cheio de
roupas podres e móveis partidos.
O cheiro a bafio era insuportável. Era o mesmo cheiro que ela notara várias vezes no quarto de Hannah e no armário da sala do andar de baixo.
Já cá esteve antes exclamou ela. Esteve outras vezes no quarto do bebé.
Estive cá o menos possível, Menley disse-lhe Covey. Há uma escada ao canto. Eu desço atrás de si. Não tente nada.
Não tentarei disse ela rapidamente, tentando desesperadamente desanuviar a cabeça, para ultrapassar aquela sensação de irrealidade. "Ele não sabe que Adam vem aí",
pensou Menley. "Talvez o possa fazer falar. Talvez o distraia. Talvez consiga pregar-lhe uma rasteira. Sou mais forte do que ele julga", pensou ela. "Talvez pudesse
surpreendê-lo, tirar-lhe a arma."
Mas conseguiria usá-la? Sim. "Não quero morrer", pensou ela. "Quero viver e ficar com Adam e Hannah. Quero o resto da minha vida." Sentiu uma grande calma invadi-la.
Olhou em volta, apreendendo o mais que podia àquela luz. Aquele lugar. Era o que ela suspeitara. Havia um quarto secreto naquela casa. Na realidade, era mais do
que um simples quarto. Entre as chaminés, todo o centro da casa era uma área de armazenamento. "Estas pilhas de farrapos podres faziam parte da carga do Thankful?",
perguntou-se ela.
"Ganha tempo", disse a si mesma. Embora soubesse que Hannah ainda devia estar a chorar, não conseguia ouvi-la. Aquelas paredes eram tão grossas que, se morresse
ali, nunca a descobririam.
Se morresse ali.
"Será esse o plano de Covey?", pensou.
Eu não vou sair daqui viva, pois não? disse ela.
Não vai? Ele sorriu. Que a faz pensar nisso?
Menley teve um acesso de puro ódio. Agora, estava a brincar com ela. Mas depois disse:
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Menley, lamento muito tudo isto, honestamente. Estou a fazer o que tenho de fazer. A sua voz era completamente sincera.
Porquê? Pelo menos diga-me porquê.
Pode acreditar ou não disse ele. Eu não queria matar Vivian. Ela era louca por mim, sempre a dar-me prendas quando ia à Florida, mas nem um centavo depois de casarmos.
Nenhuma conta bancária conjunta, nenhuns bens em meu nome, nenhum dinheiro. Comprava-me tudo o que eu queria, mas acredita que eu tinha de lhe pedir todos os tostões
que gastava? Abanou a cabeça, descrente.
E depois queria que eu assinasse uma coisa qualquer a renunciar a todos os direitos da fortuna dela se o casamento não durasse pelo menos dez anos. Disse que isso
provaria que eu a amava, que ouvira pessoas no cabeleireiro murmurarem que eu me casara com ela por dinheiro.
E então matou-a?
Sim. Relutantemente. Quero dizer, ela não era má pessoa, mas estava a fazer de mim parvo.
Mas que é que isso tem a ver comigo? Eu ajudei-o. Tive pena de si. Convenci Adam a defendê-lo.
Pode culpar Adam por estar aqui agora.
Adam! Adam sabe que você está aqui? No momento em que perguntou, soube que não era possível.
Temos de nos pôr a mexer. Menley, vou simplificar as coisas. Elaine foi sempre louca pelo Adam. Ao longo dos anos, pensou algumas vezes que ele estava a apaixonar-se
por ela, mas isso nunca aconteceu. O ano passado, quando pensou que vocês os dois estavam a separar-se, teve a certeza de que ele se voltaria para ela. Depois, ele
voltou para si a correr, e ela desistiu. Depois disso, achou que não valia a pena. Mas, quando Adam telefonou para alugar a casa em Eastham e ela descobriu como
você estava emocionalmente instável, elaborou este plano.
Está a dizer-me que está a fazer isto por Elaine? Porquê, Scott? Não compreendo.
Não, estou a fazer isto por mim. Elaine reconheceu o meu barco naquela fotografia aérea desta propriedade. Ela percebeu que eu estava sozinho no barco às três e
meia, e isso acabou com a minha história sobre o que acontecera a Vivian. Ela estava disposta a usar aquela informação. Por isso, fizemos um acordo. Ela seria a
minha testemunha principal. E eu ajudava-a a enlouquecê-la. Adam tinha-lhe falado sobre as suas alucinações e depressão, e ela calculou que esta casa velha, com
as suas lendas e quartos secretos... de cuja existência ela soubera por alguns trabalhadores... seria o sítio ideal para a levar à loucura. Ela planeou tudo; eu
só a ajudei na execução.
"Ela trouxe-me cá a casa, mostrou-me tudo, explicou-me o que queria que fosse feito. Foi no dia em que aquela mulher maluca entrou e nos seguiu até aqui. Teve imensa
sorte porque o marido apareceu quando eu a levei para dar um passeio no oceano.
Menley estremeceu. Ele podia ter estado a falar de um passeio à beira-mar. "Era disso que Phoebe estava a tentar lembrar-se, para me avisar", pensou ela.
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Mantém-no a falar. Mantém-no a falar.
O anel. Que aconteceu à esmeralda? Onde está o anel? Ele sorriu.
Tina. Ela é uma verdadeira brasa. E dar-lhe o anel foi um golpe de mestre. Se eles tentarem condenar-me, ela é cúmplice. Vai ter de manter a boca calada. Elaine
e eu teríamos feito uma boa equipa. Pensamos da mesma forma. Ela andou por aqui à noite várias vezes. Acho que inventou umas coisas que a perturbaram, tal como gravar
a voz do seu filho numa cassete e passar a gravação com o som de um comboio especialmente para si durante a noite. Não há dúvida de que funcionou. O que se diz em
Chatham é que você está à beira de um esgotamento nervoso.
"Onde estará Adam?", pensouMenley freneticamente. Será que conseguiria ouvi-lo quando ele chegasse? Ali não. Viu Covey olhar para a escada.
Vá lá, Menley. Agora já sabe tudo.
Acenou a arma. Tentando seguir o feixe da lanterna, ela continuou a percorrer o chão tosco e desnivelado. Escorregou quando estava a chegar ao buraco de onde partia
o primeiro degrau da escada. Covey apanhou-a antes de ela cair.
Não queremos que fique com marcas disse ele. Já foi suficientemente difícil explicar a ferida no dedo de Vivian.
A madeira da escada era tosca, e espetou uma farpa na palma da mão. Tacteou com os pés à procura dos degraus e desceu cuidadosamente. Poderia deixar-se cair para
o nível inferior e escapar-lhe? Não. Se torcesse um tornozelo, então ficaria verdadeiramente incapacitada. "Espera", pensou, "espera."
Chegou à zona do rés-do-chão. Era mais larga que a parte de cima; mas havia destroços espalhados por todo o lado. Covey estava mesmo atrás dela. Desceu o último
degrau.
Olhe para isto disse ele, apontando a lanterna para o que parecia ser um monte de farrapos. Depois, deulhe um pontapé. Há ossos aqui debaixo. Elaine encontrou-os
no dia em que me mostrou este sítio. Alguém está aqui enterrado há muito tempo. Discutimos se seria um bom plano para si, Menley, deixá-la aqui. Mas, se você desaparecesse
simplesmente, Elaine tinha medo de que Adam passasse o resto da vida à espera de que você voltasse.
Ela sentiu um momento de esperança. Ele não ia matá-la ali. Lá fora, poderia ter uma hipótese. Enquanto ele a empurrava à sua frente, ela olhou uma vez mais para
os ossos. Phoebe dissera que Tobias Knight estava naquela casa. Era isto que ela queria dizer?
Por aqui. Segurando a lanterna, Covey apontou para uma abertura no chão. Ela sentiu um cheiro a humidade vindo lá do fundo.
Deixe-se escorregar lentamente. Não há escada. Esperou até ela ter descido. Depois, desceu cuidadosamente atrás dela, fechando o pesado alçapão atrás de si, selando
a abertura. Fique aqui.
Menley percebeu que estavam numa estreita arrecadação na cave. Covey movimentou a lanterna para a frente e para trás. Um grande impermeável amarelo estava no chão,
perto do sítio onde tinham descido, e ao
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lado do impermeável encontrava-se um par de botas. Ela compreendeu que fora por isso que as roupas dele não estavam molhadas. Ele entrara por ali.
Com um movimento rápido, Covey pegou no impermeável, enrolou nele as botas e pôs a trouxa debaixo do braço.
Menley sentiu uma mudança nele. Agora queria despachar as coisas rapidamente. Mandou-a seguir na direcção da grande porta da cave e empurroua para cima.
Eles vão pensar que saiu por aqui disse ele. Vai fazer que pareça um pouco doida.
Eles pensariam que ela deixara o bebé sozinho e que saíra no meio da tempestade. Onde estava o carro de Covey? Talvez ele pretendesse levá-la de carro para qualquer
lado. No carro, ela poderia ter oportunidade para saltar para a rua ou provocar um acidente. Virou para o caminho de acesso, mas ele segurou-lhe o braço.
Por aqui, Menley.
Estavam a ir em direcção à praia. Ele ia afogá-la, percebeu ela subitamente.
Espere, Menley disse ele. Dê-me a sua camisola. Se o seu corpo nunca aparecer, pelo menos saberão o que lhe aconteceu.
A chuva caía intensamente e o vento agitava-lhe as roupas. O seu cabelo estava ensopado e caía-lhe no rosto, tapando-lhe os olhos. Tentou afastá-lo para trás. Scott
parou, soltou-lhe a mão direita.
Levante o braço, Menley.
Entorpecida, ela obedeceu. Num gesto rápido, ele puxou-lhe a camisola pelo pescoço e tirou-lha, primeiro do braço esquerdo e depois do direito. Atirando a camisola
para o chão, prendeu-lhe o braço e obrigou-a a descer o caminho que levava à praia e depois ao mar. No dia seguinte, com aquela catadupa de chuva, não haveria vestígios
das pegadas deles.
"Vão encontrar a minha camisola", pensou Menley, "e pensarão que me suicidei." O seu corpo apareceria? O de Vivian tinha aparecido. Talvez eles estivessem a contar
com isso. "Adam. Adam, preciso de ti."
As ondas rebentavam na praia. O recuo das ondas empurrá-la-ia para o largo, e ela não teria hipótese. Tropeçou quando ele a obrigou a descer mais rapidamente a escarpa
íngreme. Por muito que tentasse, não conseguia libertar-se daquele aperto que mais parecia um torno.
A força da tempestade fustigou-os quando chegaram ao sítio onde ainda no dia anterior ela estivera estendida numa manta com Adam e Hannah. Agora não havia praia,
só as ondas, a rebentar na terra, a invadi-la, a reclamá-la, esfomeadas.
Lamento muito, Menley disse Scott Covey. Mas morrer afogada não é assim tão mau. Vivy só demorou um minuto. Descontraia-se. Vai acabar depressa.
Empurrou-a para a água e, agachando-se, segurou-a debaixo da ameaçadora rebentação.
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Adam viu a bruxuleante luz das velas na cozinha quando correu para a casa. Como não estava lá ninguém, pegou numa lanterna e correu pelas escadas acima.
Menleygritou ele enquanto corria para o quarto do bebé. Menley!
Varreu o quarto com o feixe de luz da lanterna.
Oh, meu Deus exclamou Adam quando o feixe se reflectiu no rosto de porcelana da boneca antiga.
E depois ouviu um soluço atrás de si. Virou-se e apontou o feixe pelo quarto até encontrar o berço a baloiçar suavemente. Hannah estava lá! "Graças a Deus!", pensou
ele. Hannah estava bem!
Mas Menley...
Adam voltou-se e correu para o quarto deles. Estava vazio. Correu pelas escadas abaixo e procurou em todas as divisões.
Menley desaparecera!
Não era normal Menley deixar Hannah sozinha. Ela nunca faria isso. Mas não estava em casa!
Que teria acontecido? Teria ouvido novamente a voz de Bobby? Sabia que não a devia ter deixado ver aquela gravação. Que não devia tê-la deixado sozinha.
Lá fora! Ela devia ter ido lá para fora! Freneticamente, Adam correu para a porta da frente e abriu-a. A chuva encharcou-o imediatamente quando ele saiu e começou
a chamá-la.
Menley! gritou ele. Onde estás, Menley?
Atravessou o relvado da frente, dirigindo-se para o caminho que ia dar à praia. Escorregando na relva molhada, caiu. A lanterna escapou-lhe da mão e precipitou-se
na escarpa.
A praia! Ela não podia ter ido para lá, pensou desesperado. No entanto, tinha de ir verificar. Ela tinha de estar em algum lado.
Menley chamou outra vez. Onde estás, Menley?
Chegou ao caminho e desceu-o, escorregando de vez em quando. Lá em baixo, a rebentação rugia, enquanto a escuridão o rodeava. E depois um clarão de luz iluminou
o oceano enfurecido.
Subitamente viu-a, o seu corpo a vir à superfície na crista de uma onda enorme.
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Menley teve de se obrigar a não entrar em pânico. Retivera a respiração até os pulmões estarem quase a rebentar, e forçara o corpo a ficar flácido quando lhe apetecia
lutar furiosamente. Sentiu a água revolta em torno deles, as mãos fortes de Covey a segurá-la, a empurrá-la para baixo. E depois
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ele soltoua. Ela voltou rapidamente a cabeça, engolindo ar. Por que é que ele a libertara? Teria pensado que ela estava morta? Ainda estaria ali?
Depois, de súbito, compreendeu. Adam! Ouviu Adam chamá-la. A chamar o seu nome!
Começou a nadar no momento em que a onda rebentou em cima dela. Momentaneamente aturdida, sentiu-se ser puxada pelo recuo da poderosa onda.
"Oh, meu Deus", pensou ela, "não deixes que me afogue." Engasgada e a tossir, tentou aproximar-se da margem. As ondas gigantescas estavam por todo o lado, puxando-a
e sugando-a para baixo, arremessando-a para a frente. Forçou-se a suster a respiração quando a água se abateu sobre ela, a lutar para voltar à superfície. A sua
única hipótese era entrar numa onda em formação que a levasse para terra.
Engoliu mais água, depois os braços e as pernas fraquejaram. "Não entres em pânico", pensou ela. "Entra numa onda."
Sentiu uma onda formar-se atrás de si, erguendo-lhe o corpo para a superfície.
"Agora!", pensou ela. "Agora! Nada! Luta! Não deixes que ela te leve para trás."
De repente, um forte feixe de luz iluminou tudo o que a rodeava, o mar, a praia. Adam! Lá estava Adam, a descer a íngreme escarpa para junto dela.
Enquanto a tempestade rugia à sua volta, ela atirou o corpo para a onda e deixou-se ir para a margem, para Adam.
Ele estava apenas a alguns metros dela quando ela sentiu o forte puxão do recuo da onda arrastá-la para o largo.
Depois ele estava com ela, o braço dele a prendê-la com firmeza, puxando-a para a margem.
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Às onze horas, Amy e o pai estavam a despedir-se de Elaine. O serão não fora propriamente um sucesso. Elaine explicara a Amy a importância de nunca tirar nada sem
pedir autorização e nunca, nunca, dar esse objecto a outra pessoa. O pai concordara, mas Elaine continuara a falar na mesma coisa até que o pai, já farto, dissera:
Acho que já esgotámos este assunto, Elaine.
Tinham jantado tarde porque a electricidade faltara durante mais de uma hora e o assado não estava pronto. Quando estavam, por fim, a terminar a sobremesa, Elaine
voltara a falar em Menley Nichols.
Têm de compreender que Adam está muito preocupado com Menley. Ela está num estado de profunda depressão, e ver a gravação do filho poderá perturbá-la profundamente,
e ainda por cima vai estar sozinha duas noites. Isso é uma grande preocupação para Adam.
Eu não acho que ela esteja deprimida disse Amy. Estava triste quando viu a gravação, mas falámos nisso, e a Sr.a Nichols disse que
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devíamos estar gratas por termos tido a oportunidade de amar uma pessoa maravilhosa, mesmo que não a tenhamos tido muito tempo connosco. Contou-me que a mãe dela
diz sempre que preferiu estar casada doze anos com o pai dela do que setenta anos com outra pessoa qualquer. Depois, Amy olhou para o pai e acrescentou:
E eu concordo com ela. Com alguma satisfação, viu o pai ruborizar-se. Estava magoada e irritada com ele por ficar tão veementemente do lado de Elaine no caso da
cassete. "Mas, se calhar, vai ser sempre assim de agora em diante", pensou ela.
A conversa foi tensa durante o jantar. E, para cúmulo, Elaine parecia estar extremamente nervosa. Até o pai de Amy notara. Por fim, perguntou-lhe se havia algum
problema.
E foi então que Elaine soltou uma verdadeira bomba.
John, tenho estado a pensar disse ela. Acho que devíamos adiar o casamento. Eu quero que seja perfeito para nós, e isso não vai ser possível enquanto Amy estiver
tão obviamente infeliz.
"Tu não estás nada preocupada que eu esteja feliz ou infeliz", pensou Amy. "Aposto que é mais do que isso."
Elaine, como você disse durante todo o Verão, daqui a algumas semanas eu vou para a Universidade e vou iniciar a minha vida de mulher adulta. Você vai casar com
o meu pai, não comigo. A minha única preocupação é a felicidade do meu pai, e essa devia ser também a sua preocupação.
Elaine soltara a bomba quando eles estavam a preparar-se para se irem embora. Amy gostou do ar digno com que o pai disse:
Acho que este é um assunto de que tu e eu devemos falar noutra altura, Elaine. Telefono-te amanhã.
Quando Elaine abriu a porta da frente, viram um carro da Polícia com as luzes a piscar parar à porta dela.
Que poderá ter acontecido?
Amy pressentiu algo estranho no tom de voz de Elaine. Parecia tensa, como se estivesse assustada.
Nat Coogan saiu do carro-patrulha e parou um instante, olhando para Elaine Atkins, que estava parada à porta. Ele tinha acabado de chegar a casa quando recebera
o telefonema da esquadra. Scott Covey fora à ilha Morris e tentara assassinar a mulher de Adam Nichols. Fugira quando Nichols aparecera e fora capturado numa barreira
de estrada na Via Rápida n.s6.
Agora, Nat Coogan ia ter o enorme prazer de prender Elaine Atkins. Ignorando a chuva forte, ele atravessou o passeio e subiu até ao alpendre.
Menina Atkins disse ele. Tenho um mandado para a sua prisão. Vou ler-lhe os seus direitos e depois terei de lhe pedir que faça o favor de me acompanhar.
Amy e o pai olharam para Elaine enquanto toda a cor lhe fugia do rosto.
Isso é ridículo disse ela num tom de voz chocado e irritado. Nat apontou para o carro.
Scott Covey está naquele carro. Vamos levá-lo para a prisão. Ele
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estava tão seguro de si que contou a Menley Nichols toda a história do seu interessante acordo com ele e como você a queria fora do caminho para poder ter Adam Nichols
para si. E tem sorte por Covey não ter conseguido afogá-la. Assim, só será acusada de tentativa de assassinato. Mas vai precisar de um bom advogado, e acho que não
deve contar com Adam Nichols para a defender.
John Nelson suspirou.
Que se passa, Elaine? De que é que ele está a falar? Nat, seguramente você não...
Oh, cala-te, John! disse Elaine bruscamente. Olhou-o com desprezo.
Seguiu-se um longo silêncio enquanto os dois se olharam. Depois, Amy sentiu o pai pegar-lhe no braço.
Vamos, querida disse ele, já estivemos por aqui demasiado tempo. Vamos para casa.
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Quando Menley acordou, na quintafeira de manhã, raios de sol dançavam no parapeito da janela, estendendo-se pelo chão de soalho. A sua mente estava inundada de recordações
do que acontecera na noite anterior e que saltaram rapidamente para o momento em que soube que estava a salvo, quando chegaram a casa e Adam chamara a Polícia enquanto
ela corria para Hannah.
Depois de os polícias se irem finalmente embora e eles terem ficado sozinhos, foram-se abraçando um ao outro e abraçando Hannah um de cada vez. Depois, ambos cansados
de mais para sequer pensarem em comer, levaram o berço para o quarto principal, incapazes de deixar Hannah sozinha no quarto dela até a zona de armazenamento ser
limpa e permanentemente selada.
Menley olhou em volta. Adam e Hannah ainda estavam a dormir. Os seus olhos passaram de um para o outro, maravilhando-se com o milagre de estar com eles, de saber
que estava forte e inteira.
"Posso prosseguir com a minha vida", pensou ela. Mehitabel e Andrew nunca tinham tido uma segunda oportunidade.
Os polícias tinham visto a zona de armazenamento na noite anterior, dizendo que voltariam para fotografar para servir de prova nos julgamentos. Também tinham examinado
o esqueleto. As fivelas de prata que repousavam ao lado dos ossos dos pés tinham as iniciais T. K. Tobias Knight.
Um dos lados do crânio estava amassado, como se tivesse levado um grande golpe. "O meu palpite é que o capitão Freeman surpreendeu Tobias Knight", meditou Menley,
"e sabendo, ou adivinhando, a verdadeira razão para as suas visitas lá a casa a meio da noite, abateuo por forjar a mentira que destruíra Mehitabel. Depois, deixou
o corpo aqui com a mercadoria roubada. Deve ter suspeitado da verdade da inocência da mulher. Sabemos
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que ele estava fora de si com o desgosto quando se fez ao mar em direcção à tempestade.
"Phoebe e eu tínhamos razão. Mehitabel estava inocente. Morreu a proclamar esse facto e a desejar o seu bebé. Quando escrever a sua história, vou mencionar também
o nome de Phoebe. Era a história que ela queria tanto contar."
Sentiu o braço de Adam rodeá-la.
Ele voltou-a para si.
A noite passada, disse que és uma nadadora fantástica? perguntou ele. Depois, o tom ligeiro desapareceu da sua voz.Men, quando penso que fui tão obtuso sobre tudo
e que quase morreste por minha culpa, apetece-me matar-me.
Ela pôs um dedo nos lábios dele.
Nunca digas isso. Quando me disseste que não havia nenhum apito de comboio na gravação de Bobby, comecei a desconfiar de que estava a acontecer alguma coisa. Mas
tu não sabias o que eu tinha andado a ouvir, por isso não posso censurar-te por pensares que eu estava doida.
Hannah começou a mexer-se. Menley debruçou-se e pegou nela, pondo-a na cama com eles.
Foi uma noite e pêras, não foi, fofinha? perguntou ela.
Nat Coogan telefonou quando estavam a acabar de tomar o pequeno-almoço.
Detesto estar a incomodá-los, mas estamos a ter sérias dificuldades para manter a imprensa afastada. Estariam dispostos a falar para os jornalistas depois de os
nossos homens terminarem a investigação?
É melhor replicou Adam. Diga-lhes que precisamos de estar mais algum tempo sozinhos e que depois os recebemos, às duas horas.
Todavia, alguns minutos depois o telefone voltou a tocar uma estação de televisão querendo marcar uma entrevista. Essa chamada foi seguida por outras, tantas que,
por fim, eles desligaram o telefone, ligando-o apenas o tempo suficiente para Menley telefonar a Jan Paley, aos Sprague e a Amy.
Quando desligou, depois de fazer a última chamada, estava sorridente.
Amy parece uma pessoa diferente disse ela. O pai não pára de lhe dizer que gostava de ter metade do senso comum que ela tem. Eu disse-lhe que sou da mesma opinião.
Ela soube sempre que Elaine era uma fingida.
Uma fingida muito perigosa disse Adam em voz baixa.
Amy quer tomar conta de Hannah amanhã à noite... de graça! O pai vai pagar-lhe o carro na totalidade.
Não vamos deixá-la esquecer a oferta. Como está Phoebe?
Henry disse-lhe que nós estávamos bem e que estava muito orgulhoso por ela ter tentado avisar-nos. Tem a certeza de que ela compreendeu um pouco do que ele estava
a dizer-lhe. Menley fez uma pausa. Tenho tanta pena deles.
Eu sei. Adam abraçou-a.
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E Joan vem cá. Disse que traria os ingredientes para fazer o almoço e ofereceu-se para trazer o correio, e eu aceitei.
Quando os polícias chegaram para fotografar o quarto secreto, Adam e Menley levaram cadeiras e o carrinho de Hannah para a praia. Agora, a água estava calma e convidativa,
com ondas suaves a desfazerem-se numa margem que estava num surpreendente bom estado, tendo em conta a violência da tempestade da noite anterior. Menley sabia que,
daí em diante, se sonhasse com aquela noite, o sonho acabaria sempre com a mão de Adam a fechar-se sobre a sua.
Olhou para a casa e para o passeio da viúva. O metal da chaminé brilhava, os raios de sol reflectiam-se nela por entre sombras inconstantes causadas por nuvens ocasionais.
"Aquilo provocou realmente uma ilusão óptica naquele dia em que Amy julgou ter-me visto?", perguntou a si mesma.
Em que estás a pensar? perguntou Adam.
Estou a pensar que, quando escrever a história de Mehitabel, vou dizer que ela era uma presença nesta casa, à espera de que a sua inocência fosse provada e que o
seu bebé regressasse.
E se ela ainda estivesse presente aqui, quererias viver nesta casa? perguntou Adam, trocista.
Quase desejo que ela cá esteja disse Menley. Vamos comprá-la, não vamos? Hannah vai adorar crescer a passar os Verões no Cape como tu passaste. E adoro esta casa.
É o primeiro sítio em que sinto realmente uma profunda sensação de lar.
Claro que vamos comprá-la.
Ao meio-dia, poucos minutos depois de os fotógrafos da Polícia saírem, Jan chegou. O seu abraço silencioso valeu por mil palavras.
A única correspondência para vocês era uma carta da Irlanda. Menley abriu-a imediatamente.
É de Phyllis disse ela. Oh, escutem isto, ela fez mesmo uma pesquisa exaustiva sobre os McCarthy.
Havia um monte de registos genealógicos, certidões de nascimento e de óbito, cópias de notícias de jornais, algumas fotografias desbotadas.
Deixaste cair o bilhete dela disse Adam. Pegou nele e entregou-lho. O seu conteúdo era o seguinte:
Querida Menley,
Estou tão excitada. Queria que visses isto imediatamente. Descobri a árvore genealógica da tua família até à primeira Menley, e é uma história maravilhosa. Foi criada
desde a infância pelos primos do pai, os Longford, em Connemara. Não há registos de onde nasceu, mas a data do nascimento foi registada como tendo sido em 1705.
Aos
17 anos casou com Squire Adrian McCarthy, de Galway, e tiveram
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quatro filhos. Parte dos alicerces da sua casa podem ainda ser vistos. A casa estava junto ao oceano.
Ela deve ter sido muito bela (vê a fotocópia do seu retrato), e vejo uma semelhança de família distinta entre tu e ela.
Mas, Menley, esta é a melhor parte, e é uma coisa que Hannah poderá querer saber se decidir que gosta mais do teu nome que do dela mas não quiser ser conhecida como
"jovem Menley" ou "pequena Menley".
A razão para o teu nome fora do comum é que, quando era nova, a tua antepassada não conseguia pronunciar o seu nome verdadeiro e chamava a si mesma Menley.
O nome que lhe deram à nascença foi "Lembra-te"...Obras de Mary Higgins Clark
Obras publicadas na Colecção "Obras de Mary Higgins Clark":
1 As Rosas da Morte
2 Noite de Paz
3 O Luar Fica-te Bem
4 Crimes na Alta-Roda
5 Enquanto o Meu Amor Dorme
6 A Noite Inteira
7 Até à Vista
8 O Berço da Morte
9 O Síndroma de Anastásia
10 Agora És Minha
11 Voltaremos a Encontrar-nos
12 Antes de Dizer Adeus
13 Gosta de Música, Gosta de Dançar
14 Perigosa Obsessão
15 Lembra-te
16 Um Olhar na Escuridão
Mary iiiggins Clark
Um Olhar na Escuridão
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: Stillwatch
Tradução de Ana Maria Sampaio Tradução portuguesa (c) de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
(c) Mary Higgins Clark, 1984
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,
xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica
do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte
prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor: Tito Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
E-mail: secretariado @ europa-america.pt
Site: www.europa-america.pt
Execução técnica: Gráfica Europam, Lda. Mira-Sintra Mem Martins
Edição n.°: 106716/8169 Março de 2003
Depósito legal n 103234/03
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.
Para Pat Myer, minha agente,
e
Michael Korda, meu editor
Pelos seus inestimáveis apoio, conhecimentos, ajuda e encorajamento, ofereço alegremente "a voz sempre calma da gratidão".
Pat conduzia lentamente, os seus olhos perscrutando as ruas estreitas de Georgetown. O céu cheio de nuvens estava escuro, as decorações de Natal brilhavam contra
a neve. O efeito era de grande calma. Virou para a Rua N, andou mais um quarteirão, sempre à procura dos números das casas, e atravessou o cruzamento.
"Deve ser aqui", pensou. "A casa da esquina. Lar, doce lar."
Ficou sentada durante um bocado a estudar a casa. Era a única na rua que não estava iluminada, e mal se distinguiam as suas linhas elegantes. As enormes janelas
da frente estavam semiocultas pelas sebes que tinham crescido ao acaso.
Após a viagem de nove horas desde Concord, o corpo doía-lhe cada vez que se movia, mas, mesmo assim, viu-se a adiar o momento de abrir a porta e entrar.
"Foi o raio da chamada", pensou. "Deixei-me afectar por isso." Uns dias antes de deixar o seu emprego numa estação de televisão, a telefonista dissera-lhe:
Tenho na linha um maluco qualquer que insiste em falar consigo. Quer que me mantenha em linha?
Sim.
Agarrara no auscultador, identificara-se e ouvira uma voz, nitidamente masculina, murmurar:
Patricia Traymore, é melhor não vir para Washington. Não deve fazer o programa sobre a senadora Jennings. E não deve ficar a viver nessa casa.
Ela ouviu a exclamação da telefonista.
Quem fala? perguntou secamente.
A resposta, no mesmo tom murmurado, provocou-lhe suores frios.
Sou um anjo de misericórdia, de entrega e de vingança.
Pat tentara encarar este incidente como um dos telefonemas habituais recebidos nas estações de televisão, mas era impossível não se sentir perturbada. A notícia
da sua saída da Rede de Televisão de Potomac para fazer uma série chamada As Mulheres no Governo, aparecera em vários jornais. Lera-as todas para ver se havia alguma
menção à morada onde iria viver, mas não vira nada.
O Washington Tribune era o que trazia a história mais pormenorizada:
A ruiva Patricia Traymore, com a sua voz rouca e simpática, olhos castanhos, é a agradável aquisição da Rede de Televisão de Potomac. Os seus perfis de celebridades
na Rede de Boston foram duas vezes nomeados para os Emmy. Pat tem a aptidão mágica de fazer que as pessoas se revelem. A personalidade do seu primeiro programa será
Abigail Jennings, a senadora de Virgínia. De acordo com Luther Pelham, director dos noticiários e homem importante da rede de Potomac o programa incluirá aspectos
da vida privada e pública da senadora. Washington está ansiosa por ver se Pat Traymore conseguirá quebrar a reserva de gelo da bela senadora.
Pat ficou perturbada ao pensar no telefonema. Era a cadência da voz, a forma como dissera "aquela casa".
Quem saberia acerca da casa? O carro estava frio. Pat apercebeu-se de que o motor tinha ido abaixo havia alguns minutos. Um homem com uma pasta passou apressado,
deteve-se quando a viu ali sentada, e depois continuou o seu caminho.
"É melhor pôr-me a andar antes que ele pense que sou uma vagabunda e chame a polícia", pensou ela.
Os portões de ferro frente à estrada estavam abertos. Parou o carro no caminho de pedra que dava para a porta da frente e procurou a chave na mala. Fez uma pausa
à entrada, procurando analisar os seus sentimentos. Previra uma reacção. Em vez disso,
1 Prémio atribuído aos melhores programas de televisão. (N. da T.)
o que lhe apetecia era entrar, retirar as malas do carro, fazer um café e uma sanduíche. Deu a volta à chave, abriu a porta e acendeu as luzes.
A casa parecia muito limpa. O chão de tijoleira da entrada estava brilhante, o candeeiro brilhava. Um segundo olhar mostrou haver algumas marcas junto dos rodapés.
A maior parte da mobília precisaria de ser restaurada. As peças boas armazenadas no sótão da casa de Concord seriam entregues no dia seguinte.
Atravessou o primeiro andar. A casa de jantar, enorme e agradável, ficava à esquerda. Quando tinha dezasseis anos fizera um passeio escolar a Washington e visitara
aquela casa, mas não se apercebera de que os compartimentos eram tão espaçosos. Do exterior a casa parecia estreita.
A mesa estava manchada, os aparadores tinham marcas, como se tivessem sido colocadas travessas quentes directamente sobre a madeira. Mas ela sabia que aquela era
uma mobília de família que valeria a pena restaurar, custasse o que custasse. Olhou de relance para a cozinha e para a biblioteca, mas continuou deliberadamente
a andar. Todas as notícias dos jornais tinham descrito a casa em pormenor. A sala de estar era o último compartimento à direita. Sentiu um aperto na garganta à medida
que se aproximava. Seria louca por fazer aquilo regressar ali tentando apanhar uma recordação que seria melhor esquecer?
A porta da sala de estar estava fechada. Colocou a mão na maçaneta e rodou-a hesitantemente. A porta abriu-se e ela acendeu a luz. A sala era grande e bonita, com
um tecto alto, uma consola delicada sobre a lareira de tijolo branco, e um banco recuado junto à janela. Não continha nada, excepto um enorme piano de concertos,
uma extensão de mogno escuro à direita da lareira.
A lareira.
Começou a caminhar nessa direcção.
Os seus braços e pernas começaram a tremer. Sentiu o suor escorrer-lhe pela testa e palmas das mãos. Não conseguia engolir. Sentia tudo a andar à roda. Correu para
as portas de vidro situadas na parede da esquerda, abriu-as e saiu para o pátio coberto de neve.
O ar gelado invadiu-lhe os pulmões quando inspirou profunda e nervosamente. Um estremecimento violento fê-la colocar
os braços à volta do corpo. Começou a oscilar e teve de se encostar à parede para não cair. Viu os contornos das árvores sem folhas oscilar consigo.
A neve chegava-lhe até aos tornozelos. Sentia a humidade penetrar-lhe nas botas, mas recusou-se a entrar até lhe passarem as tonturas. Só passados minutos conseguiu
regressar à sala. Trancou cuidadosamente as portas, hesitou, e depois voltou-se e dirigiu-se para a lareira. A medo, correu o dedo pela superfície branca de tijolos.
Havia muito tempo que fragmentos da memória a invadiram como os destroços de um navio. No ano anterior sonhara frequentemente que era uma criança naquela casa. Costumava,
então, acordar cheia de medo, tentando gritar, incapaz de articular um único som. Juntamente com o medo sentia uma sensação de perda irremediável.
"A verdade está nesta casa", pensou.
Fora ali que acontecera. Os grandes cabeçalhos dos arquivos dos jornais vieram-lhe à memória:
CONGRESSISTA DO WISCONSIN, DEAN ADAMS, ASSASSINA A MULHER E MATA-SE. FILHA DE TRêS ANOS EM PERIGO DE VIDA.
Lera as histórias tantas vezes que as sabia de cor.
O senador John F. Kennedy comentou: "Não percebo. Dean era um dos meus melhores amigos e não tinha nada de violento."
O que levara o popular congressista ao assassínio e suicídio? Houvera rumores de que ele e a mulher se encontravam à beira do divórcio. Teria Dean Adams agredido
a mulher quando ela tomara a decisão irrevogável de o deixar? Deveriam ter lutado com a arma. Havia nela impressões digitais dos dois. A filha de três anos fora
encontrada estendida junto à lareira com fractura de crânio e a perna direita partida.
Verónica e Charles Traymore tinham-lhe dito que era adoptada. Só quando entrara para o liceu e quisera reconstituir a sua
ascendência, tinha conhecido toda a sua verdade. Chocada, soubera que Verónica era irmã da mãe.
" Estiveste em coma durante um ano, e não se esperava que sobrevivesses dissera-lhe Verónica. Quando finalmente recuperaste a consciência, eras como um bebé e tiveste
de aprender tudo de novo. A mãe, isto é, a tua avó até chegou a mandar a notícia do óbito para os jornais. Como vês, ela estava muito determinada a que o escândalo
não te perseguisse durante o resto da vida. Charles e eu estávamos a viver em Inglaterra. Adoptámos-te, e dissemos aos nossos amigos que vinhas de uma família inglesa."
Pat recordou-se como Verónica tinha ficado furiosa quando ela insistira em ocupar a casa de Georgetown.
" Pat, é errado voltares para lá dissera ela. Devíamos ter vendido a casa em vez de a ter alugado durante todos estes anos. És uma pessoa conhecida na televisão.
Não arrisques essa posição desenterrando o passado. Vais encontrar pessoas que te conheceram quando eras miúda, e alguém pode juntar dois e dois."
Os lábios de Verónica tinham-se cerrado quando Pat insistira.
" Fizemos tudo o que foi humanamente possível para que recomeçasses tudo. Vai para a frente, se insistes, mas não digas que não te avisámos."
No fim tinham-se abraçado as duas, ambas trémulas e perturbadas.
" Vamos lá dissera Pat. O meu trabalho é procurar a verdade. Se eu desenterro o bom e o mau da vida das pessoas, como poderei ter paz se não fizer isso comigo?"
Naquele momento entrou na cozinha e agarrou o telefone. Mesmo quando criança se referira a Verónica e a Charles pelos primeiros nomes, e nos últimos anos deixara
de lhes chamar mãe e pai. Contudo, suspeitava que isso os aborrecia.
Verónica atendeu ao primeiro toque.
Olá, mãe. Estou aqui, sã e salva. Não encontrei muito trânsito.
Onde é o aqui?
Na casa de Georgetown.
11
Verónica quisera que ela ficasse num hotel até a mobília chegar. Sem lhe dar qualquer hipótese de refilar.
É mesmo melhor assim. Posso montar o equipamento na biblioteca e preparar-me para a entrevista com a senadora Jennings, amanhã.
Não estás nervosa?
Imaginou o rosto magro e preocupado de Verónica.
Esqueçam-se de mim e preparem-se para o cruzeiro. As malas já estão feitas?
Claro. Pat, não me agrada que fiques sozinha no Natal.
Vou estar demasiado preocupada com o programa para ter tempo de pensar nisso. De qualquer maneira tivemos um maravilhoso Natal mais cedo. Olha, tenho de ir descarregar
o carro. Beijinhos para os dois. Faz de conta que estão de novo em lua-de-mel, e deixa o Charles fazer amor louco contigo.
Pat disse Verónica com um misto de desaprovação e agrado. Mas arranjou maneira de dar mais um conselho antes de desligar. Fecha bem as portas.
Abotoando o casaco, Pat aventurou-se a sair para o frio, e, durante os dez minutos seguintes, carregou malas e caixotes. A caixa dos lençóis e dos cobertores estava
pesada; teve de parar para descansar a caminho do segundo andar. Cada vez que tentava carregar algo pesado, a perna direita parecia ir-se abaixo. O caixote com os
pratos, panelas e mercearias teve de ser erguido até ao balcão da cozinha.
"Devia ter esperado pelos homens da entrega da mobília", pensou. Mas aprendera a ser céptica em relação aos prazos marcados. Acabara de pendurar a roupa e de fazer
café quando o telefone tocou. O som pareceu explodir na calma da casa. Pat deu um salto e soltou uma exclamação quando algumas gotas de café lhe caíram sobre a mão.
Rapidamente colocou a chávena sobre o balcão e agarrou no auscultador.
Pat Traymore.
Olá, Pat.
Agarrou o auscultador, desejando que a sua voz não passasse de amigável.
Olá, Sam.
12
Samuel Kingsley. Congressista pelo 26.° Distrito de Pensilvânia, o homem que amara com todo o seu coração e a outra razão por que decidira ir para Washington.
Quarenta minutos mais tarde, Pat tentava fechar o colar, quando a campainha da porta anunciava a chegada de Sam. Vestira um vestido de malha verde, com debruados
de cetim. Sam dissera-lhe uma vez que o verde lhe fazia sobressair o tom ruivo dos cabelos.
A campainha voltou a tocar. Os seus dedos tremiam de mais para conseguir apertar o fecho. Agarrando na mala, deixou cair o colar lá para dentro. Enquanto descia
as escadas fazia um esforço para se mostrar calma. Recordou-se de que durante os oito meses após a morte da mulher, Janice, Sam não telefonara uma única vez. No
último degrau, apercebeu-se novamente de que a perna direita lhe falhava. Fora a insistência de Sam para que ela consultasse um especialista que finalmente a obrigara
a contar-lhe a verdade.
Hesitou, ligeiramente, depois abriu a porta com lentidão.
Sam quase que enchia a entrada. A luz incidira sobre as brancas do seu cabelo castanho. Sob sobrancelhas espessas os seus olhos castanhos eram perscrutantes. Tinha
vincos pouco habituais à volta dos olhos. Mas o sorriso era o mesmo de sempre, quente e terno. Ficaram desajeitadamente, cada um à espera que o outro esboçasse o
primeiro movimento. Sam trazia uma vassoura que estendeu solenemente.
Os amish vivem no meu distrito. Um dos seus costumes é levarem uma vassoura nova e sal para uma casa.
Enfiou a mão no bolso e retirou o saleiro. Dando um passo rodeou-lhe os ombros com os braços e curvou-se para a beijar.
Bem-vinda à nossa cidade, Pat. É bom ter-te por cá.
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"Então são estas as saudações", pensou Pat. "Velhos amigos que se reencontram. Washington é demasiado pequena para tentar enterrar alguém do passado, portanto, é
melhor enfrentá-la. Nem penses nisso, Sam", continuou a reflectir. "Este jogo é novo, desta vez jogo para ganhar."
Beijou-o, deixando deliberadamente os seus lábios contra os dele o tempo suficiente para sentir a intensidade dele, depois recuou e sorriu-lhe.
Como soubeste que eu estava aqui? perguntou ela. Mandaste vigiar isto?
Não foi preciso. Abigail disse-me que amanhã ias ao gabinete dela. Telefonei para a estação de televisão de Potomac para me darem o teu número de telefone.
Percebo.
Havia algo de íntimo no tom de Sam quando mencionou a senadora Jennings. Pat sentiu o coração dar um salto e baixou os olhos não querendo que Sam lhe visse a expressão
do rosto. Procurou o colar dentro da bolsa.
Esta coisa tem um fecho que nem o Houdini seria capaz de o manejar. Queres tentar? perguntou, estendendo-lho.
Ele colocou-lho à volta do pescoço e ela sentiu o calor dos seus dedos, que se demoraram sobre a pele dela.
Pronto, acho que já está. Não tenho uma visita guiada à casa? perguntou-lhe ele, depois.
Ainda não há nada para ver. O camião das mudanças faz a entrega amanhã. Este sítio vai parecer outro dentro de alguns dias. Além disso estou esfomeada.
Que me lembre sempre estiveste!
Agora os olhos de Sam traíam contentamento genuíno.
Como é que uma coisinha como tu pode engolir grandes batidos e biscoitos de manteiga sem engordar um único quilo...
"Muito bem, Sam", pensou Pat, enquanto tirava o casaco do armário. "Conseguiste fazer de mim uma coisinha pequena com um grande apetite."
Onde vamos? perguntou.
Reservei mesa no Maison Blanche. A comida é sempre boa. Estendeu-lhe o casaco.
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Têm alguma ementa para crianças? perguntou, docemente.
Quê?... Oh, percebo. Desculpa, pensei que te estava a fazer um cumprimento.
Sam estacionou o carro atrás do dela, na estrada. Desceram o caminho, a mão dele agarrando ligeiramente o braço dela. Pat, a perna direita está a falhar-te?perguntou,
preocupado.
Só um bocadinho. É da viagem.
Corrige-me se estiver enganado: esta casa não é tua?
Ela falara-lhe nos pais durante a única noite que tinham passado juntos.
Limitou-se a acenar, distraidamente. Recordara muitas vezes aquela noite no Motel Ebb Tode em Cafre Cod. Só precisava do cheiro do oceano e da imagem de duas pessoas
num restaurante, de dedos entrelaçados sobre a mesa, sorrindo como amantes secretos. E naquela mesma noite tinham dado por finda a sua relação. De manhã, calma e
tristemente, à mesa do pequeno-almoço, tinham conversado e chegado à conclusão de que não tinham direito um ao outro. A mulher de Sam, já confinada a uma cadeira
de rodas, com esclerose múltipla, não merecia sofrer mais com o conhecimento de que o marido estava envolvido com outra mulher.
"E ela viria a saber", dissera Sam. Pat fez um esforço para regressar ao presente, e tentou mudar de assunto.
Não é uma rua óptima! Faz-me lembrar uma pintura num cartão de Natal.
Quase todas as ruas em Georgetown parecem saídas de um cartão de Natal nesta época do ano disse Sam.
Não é boa ideia querer desenterrar o passado, Pat. Chegaram junto ao carro. Ele abriu a porta e ela entrou.
Esperou até que ele se sentasse e pusesse o carro a trabalhar, e então disse:
Não posso. Há qualquer coisa que me perturba, Sam, e não vou ter paz enquanto não descobrir o que é.
Sam reduziu a velocidade num sinal de paragem.
Pat, não sabes o que estás a tentar fazer? Queres rescrever a história, recordar aquela morte e concluir que não foi só um
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acidente terrível, que o teu pai não quis magoar-te, nem matar a tua mãe. Só estás a tornar as coisas mais difíceis para ti.
Sam, já alguma vez enjoaste no mar? perguntou ela.
Uma ou duas vezes. Costumo ser um bom marinheiro.
Eu também. Mas lembro-me de viajar no QE 2, no Verão, com Verónica e Charles. Apanhámos uma tempestade e, já não sei porquê, perdi as barbatanas. Não me lembro de
me ter sentido infeliz. Passo a vida a desejar enjoar. E é o que acontece comigo agora. As coisas passam a vida a vir-me à cabeça.
Ele voltou o carro para Pennsylvania Avenue.
Que coisas?
Sons... impressões... às vezes muito vagas; outras vezes, principalmente quando me levanto... extremamente claras, e, no entanto, desaparecem antes de eu as conseguir
agarrar. Até tentei a hipnose, o ano passado, mas não deu resultado. Depois li algures que alguns adultos conseguiam lembrar-se bem das coisas que aconteceram quando
tinham dois anos. Um dos estudos diz que a melhor forma de reavivar a memória é reconstituir o ambiente. Feliz ou infelizmente, isso é uma das coisas que posso fazer.
Continuo a achar que é má ideia.
Pat olhou pela janela do carro. Estudara o mapa para ficar com uma ideia da cidade, e agora tentava testar a precisão das suas impressões. Mas o carro movia-se depressa
de mais e estava demasiado escuro para se poder distinguir alguma coisa.
O maitre de Maison Blanche cumprimentou Sam afavelmente, e acompanhou-os até uma mesa.
O habitual? perguntou a Sam depois de estarem sentados.
Pat assentiu, bem consciente da proximidade de Sam. Então era aquela a mesa preferida dele. Quantas mulheres tinha levado ali?
Dois Chivas Regal on the rocks com um pouco de soda e uma rodela de limão, por favor pediu Sam. Esperou até o maitre se afastar e depois disse: Pronto, então conta-me
tudo sobre estes últimos anos. Não deixes nada de fora.
Isso é muita coisa. Deixa-me pensar um minuto.
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Eliminaria aqueles primeiros meses, após terem concordado em deixar de se ver, em que ela passara os dias numa infelicidade irremediável. Falou do seu emprego, no
facto de o seu programa sobre a recém-eleita presidente da Câmara de Boston ter sido nomeado para o Emmy, sobre a sua observação crescente em fazer um programa sobre
a senadora Jennings.
E porquê Abigail? perguntou Sam.
Porque penso que já é tempo de uma mulher ser nomeada para presidente. Daqui a dois anos haverá uma eleição nacional, e Abigail Jennings deveria ganhar. Olha só
para o currículo dela: dez anos na Câmara; a cumprir o terceiro mandato no Senado, membro do Comité das Relações Estrangeiras, do Comité Orçamental; primeira mulher
a ser líder feminina. Não é verdade que o Congresso ainda funciona porque o presidente conta que ela apresente o orçamento da maneira que ele quer?
Sim, é verdade. E o que é mais, é que ela o vai fazer.
Que pensas dela? Sam encolheu os ombros.
É boa. Muito boa, mesmo. Mas tem pisado calos muito importantes, Pat. Quando Abigail se aborrece, não vê o que faz, nem a quem o faz.
Presumo que isso também se passa em relação à maioria dos homens.
Provavelmente.
Exacto.
O criado apareceu com as ementas. Encomendaram, tendo decidido partilhar uma salada César. E isso era outra recordação. Naquele último dia passado juntos, Pat fizera
um farnel de piquenique e perguntara a Sam que salada deveria levar. " César dissera ele, prontamente, com muitas anchovas, por favor."
Como podes comer essas coisas? perguntou ela.
E como não? É um gosto adquirido, mas, uma vez adquirido, nunca mais se perde.
Ela experimentara naquele dia e decidira que era bom. Ele também se lembrou. Enquanto devolviam as ementas, ele comentou:
Ainda bem que não desististe das anchovas. Ela sorriu.
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Voltando a Abigail, estou admirada por ela ter concordado com o documentário.
Para dizer a verdade, também estou. Escrevi-lhe a falar nisso há três meses. Investiguei bem o passado dela e fiquei absolutamente fascinada pelo que descobri. Sam,
que sabes tu acerca do passado dela?
É de Virgínia. Tomou o lugar do marido no Congresso quando ele morreu. É uma fanática do trabalho.
Exacto. É o que toda a gente pensa. A verdade é que Abigail é de Nova Iorque e não da Virgínia. Ganhou o concurso de beleza do Estado de Nova Iorque, mas recusou-se
a ir a Atlantic City para a final de Miss América porque tinha ganho uma bolsa para Radcliffe e não queria perder um ano. Tinha só trinta e um anos quando ficou
viúva. Estava tão apaixonada pelo marido que passaram cinco anos e ela não voltou a casar.
Não casou outra vez, mas também não tem vivido num convento.
Isso não sei, mas a julgar pelas informações que consegui, grande parte dos seus dias e noites são passados a trabalhar.
Isso é verdade.
De qualquer forma, na minha carta disse-lhe que gostaria de fazer um programa que desse aos espectadores a impressão de a conhecerem pessoalmente. Delineei a minha
ideia, e obtive a maior rejeição da minha vida. Então, há algumas semanas, Luther Pelham telefonou-me. Vinha de propósito a Boston para almoçar comigo, pois queria
que fosse trabalhar para ele. Durante o almoço contou-me que a senadora lhe tinha mostrado a minha carta; já lhe ocorrera a ideia de fazer uma série chamada As Mulheres
no Governo. Conhecia o meu trabalho, gostava dele e achava que eu era a pessoa indicada para esse trabalho. Disse também que pretendia que eu participasse numa base
regular no noticiário das sete.
"Podes imaginar como me senti. Pelham deve ser o comentador mais importante do meio; a cadeia de TV é tão importante como a do Tuner; o ordenado é óptimo. Vou começar
a série com um documentário sobre a senadora Jennings, e ele pretende-o o mais depressa possível. Mas continuo sem perceber a razão por que a senadora mudou de ideias.
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Eu digo-te porquê. O vice-presidente deve estar à beira da demissão. Está mais doente do que as pessoas pensam...
Pat pousou o garfo e olhou para ele.
Sam, queres dizer que...
Quero dizer que faltam ao presidente menos de dois anos para terminar o seu segundo mandato. E que melhor ideia de agradar a todas as mulheres do país que nomear
vice-presidente a primeira mulher da História?
Mas isso significa... Se a senadora vai ser vice-presidente, não vão poder negar-lhe a nomeação para presidente, da próxima vez.
Calma, Pat. Estás a ir depressa de mais. O que eu disse foi que se o vice-presidente se demitir, há grandes hipóteses de ser substituído por Abigail Jennings ou
Claire Lawrence. Claire é praticamente a Erma Bombeck do Senado: muito popular, muito talentosa, uma legisladora de primeira. Faria um óptimo trabalho. Mas Abigail
anda nisto há mais tempo. Tanto o presidente como Claire são do centro do país, e politicamente isso não é bom. Ele vai preferir nomear Abigail, mas também não pode
ignorar o facto de que ela não é conhecida a nível nacional. E tem alguns inimigos poderosos no Senado.
Então pensas que Luther Pelham quer o documentário para que as pessoas conheçam Abigail de uma forma mais íntima e pessoal.
Pelo que me contaste, é esse o meu palpite. Acho que ele quer provocar um apoio em massa. Foram muito íntimos durante algum tempo, e tenho a certeza de que ele gostaria
de ter a amiga no lugar de vice-presidente.
Comeram silenciosamente, enquanto Pat pensava nas implicações do que Sam lhe contara. Claro que aquilo explicava a súbita oferta do lugar e a necessidade de rapidez.
Olha que estou aqui! disse Sam, por fim. Não me perguntaste o que fiz durante estes últimos dois anos.
Tenho seguido a tua carreira respondeu ela. Fiz um brinde quando foste reeleito, embora isso não me tivesse surpreendido. Escrevi e rasguei mais de uma dúzia de
bilhetes quando Janice morreu. E, em princípio, deveria ter facilidade de expressão, mas não me saiu nada de jeito. Deve ter sido duro para ti.
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Foi. Quando se tornou evidente que Janice não ia durar muito mais tempo, anulei os meus compromissos para passar o tempo todo com ela. Acho que isso ajudou.
Claro que sim.
E teve de perguntar:
Sam, por que razão esperaste tanto tempo para me telefonar? Ter-me-ias telefonado se eu não tivesse vindo para Washington?
Telefonei-te disse ele várias vezes, mas arranjei coragem para desligar antes que tu atendesses, Pat. Quando te conheci, ias ficar noiva. E eu estraguei tudo.
Contigo ou sem ti, isso teria acontecido. Rob é um tipo simpático, mas só isso não chega.
É um advogado talentoso, com um futuro excelente. Estarias agora casada com ele, se não fosse por minha causa, Pat. Tenho quarenta e oito anos. Tu tens vinte e sete.
Vou ser avô daqui a três meses. E tu queres ter filhos, e eu não me sinto com forças para criar uma nova família.
Percebo. Posso perguntar uma coisa, Sam?
Claro.
Amas-me, ou também já te libertaste disso?
Amo-te o suficiente para te dar a oportunidade de voltares a encontrar alguém da tua idade.
E tu já encontraste alguém da tua idade?
Não saio com ninguém em especial.
Percebo disse ela, conseguindo sorrir. Bom, agora que já pusemos as cartas na mesa, por que não me pagas aquela deliciosa sobremesa por que estou a ansiar?
Ele pareceu aliviado. Estaria à espera que ela o pressionasse? Parecia tão cansado. Onde estava o entusiasmo de alguns anos atrás?
Uma hora mais tarde, ele deixou-a à porta de casa. Pat lembrou-se de uma coisa que tinha para lhe dizer.
Sam, recebi um telefonema maluco na semana passada. Contou-lho e depois acrescentou:
Lá no Congresso vocês também recebem correspondência e telefonemas destes?
Ele não pareceu especialmente preocupado.
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Muitos não, e também não nos preocupamos de mais com isso.
Estive a pensar. Acho que vou falar com Claire Lawrence para ver se ela está a tentar afastar Abigail.
Pat ficou a vê-lo afastar-se, depois fechou e trancou a porta. A casa fê-la sentir ainda mais a sensação de vazio.
"Com a mobília vai ser diferente", tranquilizou-se.
Algo no chão lhe chamou a atenção. Um sobrescrito branco. Devia ter sido enfiado debaixo da porta, enquanto estivera fora. Tinha o seu nome escrito em letra de imprensa
negra, ligeiramente inclinada para a direita. Pensou que era alguma carta de negócios. Mas não tinha o habitual remetente, e o sobrescrito era de papel ordinário
e barato.
Lentamente abriu-o e retirou a folha de papel. Dizia:
AVISEI-A PARA NÃO VIR.
Na manhã seguinte o despertador tocou às seis. Pat saltou da cama de boa vontade. O colchão rangente não a tinha induzido ao sono e ouvira ruídos durante toda a
noite. Por muito que tentasse não conseguia esquecer-se do bilhete. Alguém a observava.
Os homens das mudanças tinham prometido chegar às oito. Tencionava transferir os papeis da cave para a biblioteca.
A cave era húmida, com paredes e soalho de cimento. Havia umas mobílias de jardim arrumadas no meio. O quarto de arrecadações ficava à direita do da caldeira. Uma
pesada tranca estava ferrugenta devido aos anos.
Quando Charles lhe entregara as chaves, tinha avisado:
Não sei o que irás encontrar, Pat. A tua avó deu instruções para o escritório de Dean mandar as suas coisas pessoais para a casa. Nunca lhes mexemos.
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Durante um momento, pareceu que a chave não entrava na fechadura. Estava húmido na cave, com um leve cheiro a vazio. Perguntou a si própria se a fechadura teria
encravado. Tornou a tentar e sentiu-a mover-se. Empurrou a porta.
Lá dentro um intenso cheiro a bafio entrou-lhe pelo nariz. Havia dois armários tão cobertos de pó e teias de aranha, que quase não conseguiu distinguir a cor. Havia
vários caixotes amontoados ao lado. Com o polegar, limpou alguns rótulos: LIVROS DO CONGRESSISTA DEAN W. ADAMS. OBJECTOS PESSOAIS DO CONGRESSISTA DEAN W. ADAMS.
Todos os rótulos diziam o mesmo: CONGRESSISTA DEAN W. ADAMS, PESSOAL.
Congressista Dean W. Adams leu Pat em voz alta. Repetiu o nome, cuidadosamente.
"Engraçado", pensou ela. "Não o vejo como congressista. Só o situo nesta casa. Que espécie de representante terá ele sido?"
Exceptuando a fotografia formal utilizada nos obituários dos jornais, nunca vira um retrato dele. Verónica mostrara-lhe álbuns repletos de fotografias de Renée criança,
jovem, no seu primeiro concerto profissional, com Pat nos braços. Não era difícil adivinhar a razão por que Verónica não guardara recordações de Dean Adams.
A chave dos armários estava no porta-chaves que Charles lhe entregara. Preparava-se para abrir o primeiro quando começou a espirrar. Concluiu que era disparate tentar
examinar o que quer que fosse naquela cave. Já os olhos lhe ardiam devido ao pó.
"Vou esperar até estar tudo na biblioteca", pensou.
Mas primeiro teria de lavar os armários e tirar a maior parte do pó dos caixotes.
Foi um trabalho extenuante. Não havia nenhum lavatório na cave, e passou a vida a subir até à cozinha para trazer um recipiente com água quente, regressando, passados
momentos, com a água e a esponja negras.
Na última viagem trouxe uma faca e arrancou os rótulos dos caixotes. Retirou também os das gavetas dos armários. Satisfeita, analisou o seu trabalho. Os armários
eram verde-azeitona e ainda estavam em condições aceitáveis. Ficariam bem numa das paredes da biblioteca. Os caixotes iriam para lá também. Ninguém pensaria que
não tinham vindo de Boston.
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"Outra vez a influência de Verónica", pensou ela. " Não digas a ninguém, Pat. Pensa bem. Quando casares, gostarias de que os teus filhos soubessem que a razão por
que a tua perna falha se deve ao facto de o teu pai ter tentado matar-te?"
Mal teve tempo de lavar as mãos e o rosto antes de os homens das mudanças chegarem. Os três homens transportaram a mobília, desenrolaram carpetas, desencaixotaram
louças e vidros, levaram coisas para a despensa. Ao fim da tarde foram-se embora, visivelmente satisfeitos.
De novo sozinha, Pat foi directamente para a sala de estar. A transformação era notável. A carpeta oriental com os seus desenhos damasco, verdes e amarelos contra
um fundo negro dominava a sala. O banco verde estava colocado junto à parede mais pequena, à direita do sofá de cetim cor de damasco. As cadeiras altas a condizer
estavam junto à lareira. E a mesa de madeira de Bombaim ficava à esquerda das portas que davam para o pátio. A sala era bem o restauro daquilo que fora. Ela atravessava-a,
tocando nos tampos das mesas, ajustando uma cadeira ou candeeiro, passando a mão pelos tecidos. Que sentia? Não sabia ao certo. Não era exactamente medo, embora
tivesse feito um esforço para passar junto à lareira. Que seria então? Nostalgia? Mas de quê? Seria possível que algumas dessas impressões difusas fossem recordações
de dias felizes passados naquela sala? E, nesse caso, que mais poderia fazer para as recuperar?
Faltavam cinco minutos para as três quando saiu de um táxi, frente ao edifício do Senado Russel. A temperatura descera abruptamente nas últimas horas, e sentiu-se
bem quando entrou. Os seguranças fizeram-na passar pelo detector de metais e conduziram-na ao elevador. Alguns minutos mais tarde dava o seu nome à secretária de
Abigail Jennings.
A senadora Jennings está um pouco atrasada explicou a jovem. Tem várias pessoas que vieram falar com ela. Mas não vai demorar muito.
Não me importo de esperar.
Pat escolheu uma cadeira de costas direitas e olhou em volta. Abigail Jennings ocupava, obviamente, um dos mais desejáveis gabinetes. Tinha uma cor de vastidão que
ela sabia não ser habitual
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naqueles edifícios superlotados. Havia uma separação entre a sala de espera e a zona de secretaria. Um corredor à direita dava para uma série de gabinetes privados.
As paredes estavam cobertas por fotografias da senadora emolduradas. A pequena mesa junto ao sofá de couro tinha panfletos explicativos da posição da senadora sobre
a legislação pendente.
Ouviu a voz familiar, suavemente modelada por um ténue sotaque do Sul, despedindo-se dos visitantes.
Ainda bem que passaram por cá. Só tenho pena de não ter mais tempo...
Os visitantes eram um casal de sessenta anos, bem vestido, efusivo em agradecimentos.
Bem, na campanha de recolha de fundos, disse-nos para aparecermos em qualquer altura, e eu disse aqui à Violet que, já que cá estamos, valia a pena aproveitar.
Não está mesmo livre para jantar? interrompeu a visitante ansiosamente.
Quem me dera estar.
Pat ficou a observar a senadora enquanto esta conduzia as visitas à porta, fechando-a depois lentamente.
"Bem feito", pensou. Sentiu a adrenalina subir.
Abigail voltou-se e parou, dando a Pat uma oportunidade para a estudar de perto. Pat tinha-se esquecido de que a senadora era muito alta e tinha um porte gracioso
e erecto. O fato cinzento acompanhava-lhe as linhas do corpo; ombros largos acentuavam-lhe a linha do busto; as coxas angulares acabavam em pernas esguias.
Tinha o cabelo curto, louro-acinzentado que lhe emoldurava uns extraordinários olhos azuis. O nariz era brilhante, os lábios pálidos e indefinidos. Parecia não utilizar
absolutamente maquilhagem nenhuma como se tentasse deliberadamente afirmar a sua beleza notável. Exceptuando as rugas à volta dos olhos e da boca, parecia a mesma
pessoa de há seis anos atrás.
Pat observou-a, enquanto o olhar da senadora caía sobre ela.
Olá disse a senadora, dirigindo-se rapidamente para ela. Com um olhar de repreensão disse para a recepcionista: Cindy, devias-me ter dito que Miss Traymore estava
cá. Bem, não faz mal. Entre, por favor, Miss Traymore. Posso chamar-lhe
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Pat? Luther recomendou-a tanto que até parece que a conheço. Vi alguns dos programas que fez em Boston. Luther passou-os para eu ver. São esplêndidos. Tal como mencionou
na sua carta, conhecemo-nos há alguns anos. Foi quando eu falei em Wellesley,
não foi?
Foi, sim disse Pat, seguindo a senadora até ao gabinete.
Que bonito! exclamou.
Sobre uma delicada secretária de nogueira estava um candeeiro chinês, um gato egípcio de valor evidente e uma caneta dourada num suporte. A cadeira de couro carmim,
larga e confortável, com braços arqueados e pregos, era provavelmente do século xvI. Uma carpeta oriental tinha como tons predominantes o carmim e o azul. As bandeiras
dos Estados Unidos e da Comunidade de Virgínia encontravam-se pregadas na parede atrás da secretária. Cortinas azuis, de seda, atenuavam o cinzento dia de Inverno
do lado de lá da janela. Uma das paredes estava coberta por estantes de mogno. Pat escolheu a cadeira mais próxima da secretária da senadora. A senadora pareceu
satisfeita com a reacção de Pat ao gabinete.
Alguns dos meus colegas pensam que quanto mais sombrios e desordenados os seus gabinetes parecerem, mais os seus constituintes pensarão que eles são pessoas ocupadas.
Eu cá não consigo trabalhar no meio da confusão. A harmonia é para mim muito importante. Consigo trabalhar muito mais nesta atmosfera.
Fez uma pausa.
Tenho uma votação dentro de uma hora, portanto, o melhor é começarmos. Luther contou-lhe que, na verdade, eu detesto a ideia deste programa?
Pat sentiu-se em terreno seguro. Muitas pessoas costumam resistir a programas sobre si próprias.
Sim, disse respondeu, mas, francamente, acho que vai ficar satisfeita com os resultados.
Só assim é que consenti nisto. Vou ser completamente honesta: prefiro trabalhar com Luther e consigo que ter outra rede de TV a produzir uma história não autorizada.
Mas, mesmo assim, gostaria de voltar aos tempos em que isto não se usava.
Abigail abriu uma gaveta da secretária e retirou uma cigarreira.
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Já não fumo em público disse. Uma vez, uma única vez, repare bem, um jornal publicou uma fotografia minha com um cigarro na mão. Recebi dúzias de cartas de pais
furiosos, dizendo que eu dava mau exemplo.
Estendeu a cigarreira.
Fuma?
Pat abanou a cabeça.
Não, obrigado. O meu pai pediu-me para não fumar até fazer os dezoito anos, e quando lá cheguei já tinha perdido o interesse.
E manteve a sua promessa? Nada de passas dadas às escondidas?
Não.
A senadora sorriu.
Acho isso tranquilizante. Sam Kingsley e eu partilhamos uma certa antipatia pelos meios de comunicação. Você conhece-o, não conhece? Quando lhe falei neste programa,
ele garantiu-me que você era diferente dos outros.
Foi simpático da parte dele disse Pat, tentando parecer natural. Senadora, penso que a melhor maneira de resolver isto é dizer-me exactamente por que razão a ideia
do programa lhe desagrada tanto. Se eu souber com antecedência o que lhe desagrada, pouparemos muito tempo.
Ficou a observar, enquanto o rosto da senadora se tornava pensativo.
Enfurece-me que ninguém se dê por satisfeito com a minha vida pessoal. Sou viúva desde os trinta e um anos. Ocupei o lugar do meu marido no Congresso, após a sua
morte, sendo depois reeleita e tendo por isso ido para o Senado... tudo isto me fez sempre continuar muito ligada a ele. Amo o meu trabalho e sou-lhe dedicada. Mas
claro, não posso saber como é o primeiro dia do Joãozinho na escola porque nunca tive filhos. Ao contrário de Claire Lawrence, não posso ser fotografada com um conjunto
de netos. E aviso-a, Pat, não vou tolerar neste programa nenhuma imagem minha de fato de banho e saltos altos.
Mas você foi Miss Nova Iorque. Não pode ignorar isso.
Não? Os seus olhos faiscaram. Sabia que pouco depois da morte de Willis, houve um crápula qualquer que publicou a
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minha fotografia a ser coroada Miss Nova Iorque, com a legenda O SEU VERDADEIRO PRÉMIO É REPRESENTAR O SUL NO CONGRESSO.
"O governador quase desistiu de me nomear para completar o mandato de Willard. Foi preciso Jack Kennedy persuadi-lo de que eu trabalhei sempre lado a lado com o
meu marido, desde o dia em que foi eleito. Se Jack não tivesse tanta influência, eu poderia não estar aqui neste momento. Não, obrigado, Pat Traymore. Nada de fotografias
de rainhas de beleza. Comece o seu programa quando eu era estudante da Universidade de Richmond, recém-casada com Willard, e ajudando-o a fazer a campanha para o
primeiro mandato no Congresso. Foi aí que começou a minha vida.
"Não podes fingir que os primeiros vinte anos da tua vida não existiram", pensou Pat. "E porquê?"
Em voz alta sugeriu:
Encontrei uma fotografia sua quando criança frente à sua casa de família em Apple Junction. É esse tipo de background que tenciono usar.
Pat, eu nunca disse que essa era a minha casa de família. Eu só disse que lá vivi. De facto, a minha mãe foi governanta da família Saunders, e ela e eu ocupávamos
um pequeno apartamento nas traseiras. Por favor, não se esqueça de que sou senadora por Virgínia. A família Jennings tem sido proeminente em Tidewater, Virgínia,
desde Jamestown. A minha sogra sempre me chamou a mulher yankee de Willard. Fiz grande esforço para ser considerada uma Jennings de Virgínia e esquecer Abigail Foster,
de Nova Iorque. Vamos abordar assim a questão, está bem.
Bateram à porta. Um homem de rosto oval e ar sério, com cerca de trinta anos, entrou, vestido com um fato cinzento de riscas que lhe acentuava o ar esguio. O cabelo
fino e loiro estava puxado para trás para tapar a careca. Os óculos davam-lhe um ar de meia-idade.
Senadora disse ele, eles preparam-se para votar. Tocou agora a campainha.
A senadora levantou-se abruptamente:
Pat, desculpe. A propósito, este é Philip Buckley, o meu assistente administrativo. Ele e Toby reuniram algum material para si, todo o tipo de coisas: recortes de
jornais, cartas, álbum
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de fotografias, até alguns filmes de família. Por que não os observa e voltaremos a falar dentro de dias?
Pat não teve outro remédio senão concordar. Falaria com Luther Pelham. Os dois teriam de convencer a senadora de que não poderia sabotar o programa. Apercebeu-se
de que Philip Buckley a estudava cuidadosamente. Estaria a detectar uma certa hostilidade nos seus modos?
Toby levá-la-á a casa continuou a senadora, apressada.
Onde está ele, Phil?
Aqui mesmo, senadora. Tenha calma.
A voz animadora veio de um homem corpulento que imediatamente deu a Pat a impressão de ser um lutador.
O seu rosto era gorducho e formava papos sob os olhos pequenos e argutos. O cabelo aloirado estava já bastante grisalho. Vestia um fato azul-escuro e segurava um
boné nas mãos. Deu consigo a mirar as mãos do homem. Eram as maiores que vira em toda a sua vida. Um anel com um ónix quadrado acentuava a espessura dos dedos.
"Tenha calma. Teria mesmo dito aquilo?" Admirada, olhou para a senadora. Mas Abigail Jennings ria-se.
Pat, este é Toby Gorgone. Enquanto a leva a casa, dir-lhe-á quais são as funções. Eu nunca consegui descobrir isso, e ele trabalha para mim há vinte e cinco anos.
Também é de Apple Junction, e, a seguir a mim, é a melhor coisa que de lá saiu. E agora tenho de ir. Vamos, Phil.
Saíram.
"Isto vai ser um bico de obra", pensou Pat.
Tinha três páginas inteiras de pontos que queria discutir com a senadora, e só abordara um. Toby conhecia Abigail Jennings desde a infância. Que ela tolerasse a
insolência dele era inacreditável. Talvez ele respondesse a algumas perguntas na viagem de regresso.
Tinha chegado à recepção, quando a porta se abriu de repente e a senadora Jennings entrou apressada, seguida por Philip. O ar descontraído desaparecera.
Toby, graças a Deus que ainda te encontro disse ela.
Onde foste buscar a ideia de que só tenho de estar na Embaixada às sete?
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Foi o que me disse, senadora.
Pode ter sido o que eu te disse, mas tu deverás verificar os meus compromissos, não é?
Sim, senadora disse Toby.
Tenho de lá estar às seis. Quero que estejas lá em baixo um quarto de hora antes. As palavras foram cuspidas.
Senadora, vai chegar atrasada à votação disse Toby. É melhor mexer-se.
Eu chegaria tarde a todo o lado, se não tivesse olhos nas costas para te controlar.
Desta vez a porta bateu atrás dela. Toby riu-se.
É melhor irmos indo, Miss Traymore.
Pat assentiu sem palavras. Não conseguia imaginar um dos criados em casa, dirigir-se a Verónica ou a Charles com tanta confiança e descaradamente, sem receio de
ser repreendido. Que circunstâncias teriam criado um comportamento tão bizarro entre a senadora Jennings e o seu motorista?
Decidiu-se a descobrir.
Toby enfiou o Cadillac Sedan de Ville pelo tráfego intenso. Pela centésima vez reflectiu que conduzir em Washington nos fins de tarde era um pesadelo para qualquer
motorista. Todos os turistas, nos seus automóveis alugados, que não se apercebiam de que algumas ruas eram de sentido único, criavam o caos.
Olhou pelo espelho retrovisor e gostou do que viu. Tinham sido precisos os três ele, Phil e Pelham para convencer Abby a concordar com aquele documentário. Por isso,
Toby sentia-se mais do que responsável pelo seu sucesso. Na verdade não podia censurar Abby por estar nervosa. Estava a um palmo daquilo que sempre ambicionara.
Os seus olhos encontraram os de Pat pelo retrovisor. Que sorriso tinha a rapariga! Ouvira Sam Kingsley
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dizer a Abigail que Pat Traymore conseguia levar as pessoas a confessar coisas que nunca sonhariam partilhar com ninguém. Pat viera a pensar na melhor forma de abordar
Toby, e concluíra que o melhor era fazê-lo directamente. Quando o carro parou num semáforo em Constitution Avenue, inclinou-se para a frente. Com uma pequena gargalhada,
disse:
Toby, tenho de confessar que pensei não estar a ouvir bem quando você disse à senadora para ter calma.
Ele virou a cabeça e olhou-a directamente.
Oh, eu não devia ter dito isso na primeira vez que você a visita. Não costumo fazer isso. O que se passa é que eu sabia que a Abby estava atrasada, e um monte de
repórteres estava à espera dela para lhe perguntar por que não iria votar com os outros, pensei que lhe faria bem desanuviar o ambiente. Mas não interprete isso
mal. Eu respeito a dama. E não se admire por ela me descompor. Passados cinco minutos já não se lembra de nada.
Vocês cresceram juntos? perguntou Pat gentilmente. O sinal passou a verde. O automóvel arrancou suavemente.
Toby fez uma manobra para a faixa direita antes de responder.
Bem, não foi exactamente assim. Todos os miúdos em Apple Junction foram à mesma escola, excepto, claro, os que frequentaram a escola paroquial. Mas ela andava dois
anos à minha frente, por isso nunca estivemos nas mesmas aulas. Depois, quando eu tinha quinze anos, comecei a trabalhar na parte rica da cidade. Acho que Abby lhe
contou que viveu na casa dos Saunders.
Sim, contou.
Eu trabalhei para umas pessoas aí perto. Um dia ouvi Abby gritar. O velho que vivia do outro lado metera na cabeça que precisava de um cão de guarda e comprara um
pastor-alemão. O velho deixou a porta aberta e o cão saiu e apanhou Abby quando ela descia a rua. Dirigiu-se logo para ela.
E você salvou-a?
Pode crer que sim. Comecei a gritar para o distrair. Tive azar, pois quase me despedaçou... até que lhe consegui agarrar o cachaço. E depois... aqui, a voz encheu-se
de orgulho acabou-se o cão de guarda.
Com uma das mãos, Pat retirou o gravador e ligou-o.
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Percebo a razão por que a senadora gosta de si comentou. Os japoneses acreditam que quando se salva a vida de alguém, nos tornamos responsáveis por ela. Acha que
foi isso que aconteceu consigo? A mim parece-me que você se sente responsável pela senadora.
Bem, não sei. Talvez seja isso, ou então foi ela que teve um fraquinho por mim quando éramos miúdos.
O carro deteve-se.
Desculpe, Miss Traymore. Devíamos ter passado aquele sinal, mas aquele nabo ali anda a ler os nomes das ruas.
Não faz mal. Não tenho pressa. A senadora ficou com um fraco por si?
Eu disse que talvez. Olhe, esqueça isso. A senadora não gosta que eu fale de Apple Junction.
Aposto que ela fala da maneira como você a ajudou insistiu Pat. Imagino como me sentiria se um cão me viesse atacar e alguém se metesse no meio.
Oh, Abby ficou grata, claro. O meu braço começou a sangrar, ela enrolou a camisola à volta dele e até quis ficar comigo enquanto me cosiam. A partir daí ficámos
amigos para toda a vida.
Toby olhou por cima do ombro.
Amigos... repetiu enfaticamente e não namorados. Abby não é sapato para o meu pé, nem lhe preciso de dizer isso. Nem se pôs essa questão. Mas às vezes, durante a
tarde, ela vinha falar comigo enquanto eu trabalhava no jardim. Detestava Apple Junction como eu. E quando eu falava mal inglês, ela corrigia-me. Nunca tive cabeça
para livros. Dêem-me uma peça de uma máquina que eu desmonto-a e volto a montá-la em dois minutos, mas não me peçam para dividir uma oração.
"De qualquer forma, Abby foi para o liceu e eu fui até Nova Iorque, casei e não resultou. Arranjei um emprego com uns apostadores e a coisa correu mal. Depois disso
fui motorista de um ricaço em Long Island. Nessa altura já Abby tinha casado, o marido era congressista e eu li que ela sofrera um acidente de viação porque o motorista
ia bêbedo. Aí pensei, que raio! Escrevi-lhe e, duas semanas mais tarde, o marido contratou-me e isso
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dura há vinte e cinco anos. Ouça, Miss Traymore, qual é o número da sua casa? Já estamos na Rua N.
Três mil respondeu Pat. É a casa da esquina, no próximo bloco.
Aquela casa? Toby tentou, tarde de mais, encobrir o tom chocado.
Sim. Porquê?
Eu costumava trazer aqui Abby e Willard Jennings para algumas festas. Pertencia nessa altura a um congressista chamado Dean Adam. Sabe que ele matou a mulher e depois
se suicidou?
Pat desejou que a sua voz se mantivesse calma.
O advogado do meu pai foi quem tratou do arrendamento. Ele mencionou que houve aqui uma tragédia, há muitos anos, mas não entrou em pormenores.
Toby parou o carro.
O melhor é esquecer isso. Ele até tentou matar a própria filha... ela morreu mais tarde. Coisinha bonita. Chamava-se Kerry. Mas que se pode fazer? Abanou a cabeça.
Vou parar aqui só por um minuto. Os chuis não nos aborrecem a não ser que uma pessoa se demore muito.
Pat esboçou o gesto de agarrar a maçaneta da porta, mas Toby antecipou-se. Num instante saiu do seu lugar, abriu a porta de Pat e segurou-lhe o braço.
Cuidado, Miss Traymore. Há aqui muito gelo.
Eu sei. Muito obrigada.
Sentiu-se grata pelo crepúsculo lhe ocultar o rosto e não deixar transparecer os seus sentimentos à frente de Toby. Ele podia não ser intelectual, mas percebia-se
que era extremamente intuitivo. Ela pensara naquela casa unicamente no contexto daquela noite. Claro, deveria lá ter havido festas.
Abigail Jennings tinha cinquenta e seis anos. Willard Jennings fora oito ou nove anos mais velho. O pai de Pat teria, se fosse vivo, cerca de sessenta anos. Tinham
sido contemporâneos em Washington naquele tempo.
Toby abriu a mala do carro. Ela estava ansiosa por lhe perguntar coisas sobre Dean e Renée Adams e sobre "essa coisinha linda" chamada Kerry. Mas acautelou-se.
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Toby seguiu-a até casa, com duas caixas de cartão debaixo do braço. Pat percebeu que eram pesadas, mas ele transportava-as com facilidade. Conduziu-o até à biblioteca
e indicou-lhe o espaço junto às caixas vindas da cave. Abençoou-se por ter retirado todas as etiquetas com o nome do pai.
Mas Toby mal olhou para as caixas.
É melhor eu ir indo, Miss Traymore. Esta caixa disse ele, apontando tem recortes de imprensa, álbuns com fotografias, esse tipo de coisas. A outra tem cartas de
eleitores, cartas pessoais, onde se pode ver o tipo de ajuda que a Abby lhes dá. Também havia alguns filmes, a maior parte deles do tempo em que o marido era vivo,
o material habitual. Tenho muito prazer em lhe passar os filmes e identificar as pessoas.
Deixe-me primeiro ver as coisas que eu depois entro em contacto consigo. Obrigada, Toby. Tenho a certeza de que você vai dar uma grande ajuda a este projecto. Talvez
entre os dois consigamos fazer algo que agrade à senadora.
Bem, se não agradar, ambos o saberemos. O rosto carnudo de Toby iluminou-se num sorriso.Boa noite, Miss Traymore.
E por que não me chama Pat? Afinal, você trata a senadora por Abby.
Sou o único que a trata assim. Ela detesta. Mas, quem sabe? Talvez eu tenha a hipótese de lhe salvar a vida.
Não hesite se essa oportunidade lhe aparecer.
Depois de ele sair, ela ficou à porta, absorta. Teria de aprender a não mostrar qualquer emoção quando o nome de Adam Dean fosse mencionado. Tivera sorte por Toby
ter falado nele quando ela se encontrava na escuridão protectora do automóvel.
Da sombra de uma casa precisamente em frente, outro observador via Toby afastar-se. Com curiosidade zangada, estudou Pat enquanto esta se mantinha à porta. Tinha
as mãos metidas nos bolsos do sobretudo. Calças de algodão brancas, meias brancas e solas de borracha brancas, confundiam-se com a neve que se amontoava junto da
casa. Os seus pulsos ossudos apertaram-se enquanto cerrava as mãos, e a fusão subia-lhe pelos músculos dos braços. Era um homem alto, com uma postura tensa e a cabeça
puxada para trás. O cabelo, cinzento-prateado, pendia-lhe para
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a testa. Ela estava ali. Ele vira-a descarregar o carro na noite anterior. Apesar dos avisos ia continuar com o seu programa. Aquele era o carro da senadora, e as
caixas continham, provavelmente, alguns registos. E ela tencionava ficar naquela casa. A recordação daquela manhã longínqua veio-lhe à memória! O homem caído de
costas entre a mesa de café e o sofá, os olhos da mulher fixos no espaço; o cabelo da criancinha manchado de sangue...
Ficou ali em silêncio, muito tempo depois de Pat ter fechado a porta, como se não fosse capaz de se afastar.
Pat estava na cozinha a fritar uma costeleta quando o telefone começou a tocar. Não estava à espera de nenhuma chamada de Sam, mas...
Com um sorriso rápido, agarrou no auscultador.
Estou... Um sussurro.
Patricia Traymore.
Sim. Quem fala? Mas já conhecia aquela voz adocicada e sussurrante.
Percebeu a minha carta? Tentou manter a voz calma.
Não sei por que está tão perturbado! Diga-me.
Esqueça o seu programa sobre a sua senadora, Miss Traymore. Eu não quero castigá-la. Não me obrigue a isso. Mas lembre-se do que o Senhor disse: "A quem quer que
faça mal a uma das minhas criancinhas, ser-lhe-á colocada uma pedra à volta do pescoço para que mergulhe nas profundezas do mar."
A ligação foi cortada.
Fora só a chamada de algum maluco algum excêntrico que provavelmente pensava que as mulheres pertenciam à cozinha e não aos cargos públicos. Pat recordou-se de um
tipo em Nova Iorque que costumava parar na Quinta Avenida, com citações
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das Escrituras sobre o dever das mulheres obedecerem aos maridos. Esse era inofensivo. Tal como este também. Não acreditava que fosse mais do que isso. Levou um
tabuleiro para a biblioteca e jantou enquanto examinava os papéis sobre Abigail. A sua admiração pela senadora aumentava à medida que ia lendo coisas. Abigail Jennings
falara a sério quando dissera que estava casada com a sua profissão. "Os seus eleitores são a sua família", pensou Pat.
Nessa manhã Pat tinha um encontro marcado com Pelham na estação de TV. À meia-noite foi-se deitar. O compartimento principal da casa era construído por um quarto
enorme, um quarto de vestir, e um quarto de banho. A mobília Chippendale, com os seus retorcidos delicados, fora fácil de colocar. Era óbvio que fora comprada para
aquela casa. O cabide encaixava entre os armários; o guarda-fatos espelhado fazia parte da mobília, a cama tinha a cabeceira esculpida e estava encostada à parede
enorme, frente à janela.
Verónica mandara pôr um colchão novo e a cama estava muito confortável. Mas as excursões até à cave para recolher as papeladas tinham-lhe provocado de novo a dor
na perna, mais aguda do que era habitual, e, embora estivesse muito cansada, foi-lhe muito difícil adormecer. "Pensa em algo de agradável", disse para si própria,
enquanto se mexia inquieta na cama, e se virava para um lado e para o outro Depois na escuridão sorriu. Pensaria em Sam.
Os escritórios e os estúdios da Cadeia de Televisão de Potomac ficavam junto a Farrasut Square. Enquanto entrava Pat lembrou-se do que o director de Informação da
estação de Boston lhe dissera: "Nem se põe a hipótese de não aceitares o lugar, Pat. A oportunidade de trabalhar para Luther Pelham acontece uma vez na vida. Quando
ele saiu da CBS para Potomac deu-se a maior convulsão no meio."
Durante o almoço com Luther, em Boston, ela ficara admirada com os olhares de toda a gente na sala. Habituara-se a ser reconhecida na área de Boston e a que as pessoas
fossem ter com ela à mesa pedir-lhe autógrafos. Mas, dessa vez, os olhos fixavam-se todos em Luther Pelham.
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Consegue ir a algum sítio sem se tornar o centro das atenções? perguntara-lhe.
Poucos, felizmente. Mas você terá oportunidade de descobrir isso por si. Daqui a seis meses as pessoas segui-la-ão a si, quando descer a rua, e metade da população
feminina tentará imitar essa sua voz rouca.
Exagerado, claro, mas absolutamente lisonjeador. Depois de lhe ter chamado "Mr. Pelham" pela segunda vez, ele dissera:
Pat, você é uma das nossas. Eu tenho nome próprio. Use-o. Luther Pelham fora sem dúvida encantador, mas nessa ocasião estava a oferecer-lhe um emprego. Agora era
seu patrão. Quando foi anunciada, Luther veio até à recepção para a saudar. Os seus modos eram efusivamente cordiais, a voz bem modelada, calorosa:
Estou muito satisfeito por a ter aqui, Pat. Quero que conheça a equipa.
Acompanhou-a pela sala, apresentando-a. Por detrás das amabilidades ela sentia a curiosidade e a especulação no olhar das pessoas. Sabia que elas estavam a pensar
se seria capaz de dar conta do recado. Mas agradaram-lhe as primeiras impressões. Potomac estava rapidamente a tornar-se numa das maiores estações de televisão do
país, e a sala transbordava de actividade. Uma jovem transmitia da sua secretária, ao vivo, os acontecimentos mais recentes; um perito militar fazia a sua rubrica
bi-semanal, membros da Redacção redigiam as notícias, a partir dos elementos chegados pelo telex. Ela sabia que a calma aparente das pessoas era uma coisa absolutamente
necessária. Toda a gente naquele meio vivia sob tensão constante, sempre alerta, à espera de algo que acontecesse, receosos de que lhes escapasse alguma história
importante. Luther concordara que ela escrevesse em casa até estarem preparados para a gravação. Mostrou-lhe o cubículo que lhe fora destinado e depois levou-a até
ao seu gabinete privado, uma sala com paredes de carvalho.
Ponha-se à vontade, Pat ordenou ele. Tenho de fazer uma chamada.
Enquanto ele telefonava, Pat teve oportunidade de o examinar de perto. Era, sem dúvida, um homem impressionante e elegante. O seu cabelo grisalho e espesso, cuidadosamente
cortado, contrastava
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com a pele jovem e os olhos escuros, vivos. Sabia que ele tinha feito sessenta anos recentemente. A festa que a mulher dera na propriedade de Chevy Chase, aparecera
noticiada nas colunas de todos os jornais. Com o seu nariz aquilino e dedos compridos, que batiam nervosamente sobre o tampo da secretária, fazia-lhe lembrar uma
águia. Ele desligou o telefone.
Passei o exame? perguntou, com os olhos divertidos.
Brilhantemente respondeu ela.
Por que razão seria, perguntou-se, que sempre se sentia profissionalmente à vontade, enquanto costumava ter dificuldades nas suas relações pessoais?
Ainda bem. Se você não me analisasse, ficaria preocupado. Parabéns. Ontem causou uma boa impressão a Abigail.
Um pequeno piropo e, depois, o trabalho. Ela apreciou isso e não iria fazê-lo perder tempo.
Também fiquei muito impressionada com ela. Quem não ficaria? Depois acrescentou: Pelo menos enquanto estive com ela.
Pelham acenou com a mão como que a afastar uma realidade desagradável.
Eu sei. Abigail é uma pessoa difícil. Foi por isso que lhe disse para reunirem algum material pessoal para si. Não espere muita colaboração da parte daquela dama.
Marquei o programa para o dia vinte e sete.
Vinte e sete? Vinte e sete de Dezembro?! exclamou Pat em voz alta. A próxima quarta-feira! Isso quer dizer que tenho de redigir, gravar e fazer tudo numa semana!
Exactamente! confirmou Luther.E você é a pessoa indicada para isso.
Mas porquê tanta pressa?
Ele recostou-se, cruzou as pernas e sorriu, com o ar dos grandes momentos.
Porque não vai ser unicamente mais um documentário. Pat Traymore, você vai ter a hipótese de ser uma grande senhora.
Ela pensou no que Sam lhe tinha dito.
O vice-presidente?
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O vice-presidente confirmou ele. E é bom que você guarde bem isto. Aquele triplo by-pass que ele fez não resultou muito bem. Os meus informadores do hospital dizem-me
que tem lesões extensas no coração e que se quiser viver vai ter de mudar o seu estilo de vida. Isso quer dizer que provavelmente vai ter de se demitir. E para que
todos fiquem satisfeitos, o presidente vai mandar investigar três ou quatro candidatos para o lugar. Mas o que consta é que Abigail é quem tem mais hipóteses. Quando
transmitirmos o programa, queremos motivar milhões de americanos para que enviem telegramas de apoio a Abigail ao presidente. É esse o objectivo do programa. E pense
bem no que isso poderá significar para a sua carreira.
Sam falara na possibilidade da demissão do vice-presidente e da candidatura de Abigail. Luther Pelham estava obviamente convencido de que as duas coisas eram probabilidades
iminentes. Estar no local certo, na altura certa, apanhar uma boa história, era o sonho de qualquer jornalista.
Se se souber que o vice-presidente está gravemente doente...
E mais do que isso disse-lhe Luther. Vou anunciar isso no noticiário de hoje à noite, incluindo os rumores de que o presidente está a considerar a hipótese de nomear
uma mulher.
Então o programa sobre Jennings poderá bater o nível de audiências. A senadora Jennings não é muito conhecida pela maioria dos eleitores. Toda a gente vai querer
saber coisas acerca dela.
Exactamente. Assim já percebe a necessidade de funcionar com rapidez e fazer algo de fantástico.
A senadora... Bom, se fizermos este programa tão insípido como ela quer, não vamos receber nem catorze telegramas, quanto mais milhões. Antes de propor este documentário,
fiz investigações profundas a fim de saber o que as pessoas pensam acerca dela.
E...?
Os mais velhos compararam-na a Margaret Chase Smith. Disseram que ela era impressionante, corajosa e inteligente.
E que mal há nisso?
Nenhum dos mais velhos sentiu que a conhecia como ser humano. Vêem-na como uma pessoa distante e formal.
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Continue.
Os mais novos fazem uma abordagem diferente. Quando lhes disse que a senadora foi rainha de beleza pelo Estado de Nova Iorque, acharam que isso era bestial. Querem
saber mais. Lembre-se, se Abigail Jennings for escolhida para vice-presidente será a segunda personalidade do país. Algumas pessoas, que sabem que ela é do nordeste,
ressentem o facto de ela nunca mencionar isso. Acho que ela faz mal. E nós também, se ignorarmos os primeiros vinte anos da sua vida.
Ela nunca autorizará que mencione Apple Junction disse Luther, sem rodeios. Portanto não percamos tempo com isso. Ela contou-me que quando renunciou ao título de
Miss do Estado de Nova Iorque, quase a lincharam lá.
Luther, ela está errada. Acha mesmo que em Apple Junction alguém, neste momento, se preocupa com o facto de Abigail não ter ido a Atlantic City tentar o título de
Miss América? Neste momento aposto que qualquer adulto está a pensar se conheceu Abigail nessa altura. Quanto a ter anunciado a renúncia ao título, encaremos os
factos. Quem não sentiria simpatia se Abigail dissesse que fora pateta em se meter no concurso de beleza mas que concluíra não lhe agradar a ideia de se pavonear
em fato de banho, e ser julgada como uma peça de carne? Os concursos de beleza estão ultrapassados. Vamos até engrandecê-la por se ter apercebido disso antes de
toda a gente.
Luther bateu com os dedos sobre a secretária. Todos os seus instintos lhe diziam que Pat tinha razão, mas Abigail fora muito firme em relação a este ponto. E se
a convencessem a deixar fazê-lo e resultasse mal? Luther estava decidido a lançar Abigail à força como vice-presidente. Claro que os líderes dos partidos fariam
Abigail prometer não se candidatar ao lugar mais nenhuma vez, mas, que raio, essas promessas são feitas para serem quebradas. Apoiaria Abigail em todas as frentes
até chegar o dia em que ela se sentasse no Gabinete Oval, e aí, devê-lo-ia a ele...
Apercebeu-se subitamente de que Pat Traymore o observava calmamente. A maior parte das pessoas que ele contratava sentiam-se muito pouco à vontade durante o primeiro
encontro. O facto de Pat parecer completamente à vontade agradou-lhe e aborreceu-o simultaneamente. Pensara muito nela, durante as
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duas semanas após lhe ter oferecido o lugar. Ela era esperta; fizera as perguntas certas em relação ao seu contrato; era terrivelmente atraente, tinha classe. Era
uma entrevistadora nata; os olhos e a voz peculiar conferiam-lhe uma qualidade simpática e ingénua que provocavam uma atmosfera de confidências.
E havia nela algo de muito sexy, que se tornara particularmente intrigante.
Diga-me como acha que se deveria fazer a abordagem à vida pessoal dela ordenou.
Em primeiro lugar, Apple Junction respondeu Pat, prontamente. Quero ir lá e ver pessoalmente o que consigo descobrir. Tirar, talvez, alguns instantâneos à cidade,
à casa onde ela viveu. O facto de a mãe ter sido governanta e ela ter frequentado o liceu com uma bolsa só joga a favor dela. É o sonho americano, só que desta vez
aplica-se a uma líder nacional, que, por acaso, é mulher. Retirou da mala o bloco de apontamentos. Claro que vamos dar ênfase aos primeiros anos em que esteve casada
com Willard Jennings. Ainda não vi os filmes, mas parece-me que podemos tirar dali bastante sobre as suas vidas públicas e privadas.
Luther assentiu, em confirmação.
A propósito, é capaz de encontrar várias vezes Jack Kennedy nessas fotografias. Ele e Willard foram amigos muito chegados. Isso foi quando Jack ainda era senador,
claro. Willard e Abigail fizeram parte dos anos pré-Camelot. As pessoas não sabem disso. Inclua todas as fotografias que encontrar deles com qualquer dos Kennedy.
Sabia que quando Willard morreu, Jack acompanhou Abigail no funeral?
Pat escrevinhou algumas palavras no seu bloco.
A senadora Jennings não tinha família? perguntou.
Acho que não. Luther agarrou impacientemente a cigarreira. Tenho tentado passar sem estes malditos! Acendeu um, e, por instantes, pareceu descontrair-se. Só lamento
não ter ido a Washington nessa altura disse ele. Pensei que a acção estava em Nova Iorque. Tenho-me safado bem, mas aqueles foram anos loucos em Washington. É incrível,
mas, nessa altura, morreram violentamente homens jovens. Os irmãos Kennedy;
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Willard, num acidente aéreo. Dean Adams suicidou-se... Ouviu
falar dele?
Dean Adams? perguntou ela.
Assassinou a mulher explicou Luther. Depois matou-se. E quase matou a miúda. Até acho que ela morreu. E foi melhor. Teria ficado psiquicamente afectada, sem dúvida.
Ele era congressista de Wisconsin. Ninguém entendeu as razões. Deve ter enlouquecido. Se encontrar fotografias dele ou da mulher em grupo, retire-as. Não é necessário
estar a recordar isso.
Pat desejou que o seu rosto não traísse perturbação. O tom de voz manteve-se determinantemente brusco quando disse:
A senadora Jennings foi uma das forças determinantes quando foi aprovada a lei da prevenção de crianças raptadas. Há cartas maravilhosas nos arquivos. Pensei em
procurar algumas das famílias que ela reuniu, a escolher a melhor para um momento do programa. Isso neutralizará a senadora Lawrence e os seus netos.
Luther assentiu.
Óptimo. Dê-me as cartas. Eu arranjo aqui alguém para ajudar. E, a propósito, nos seus tópicos não constava nada em relação ao caso de Eleanor Brown. E eu quero incluí-lo.
Você sabe que ela também veio de Apple Junction. A directora da escola pediu a Abigail que lhe desse um emprego, depois de ter sido apanhada a roubar numa loja.
O meu instinto diz-me para não pegar nisso disse Pat. Pense nisso. A senadora dá à condenada a hipótese de recomeçar. Até aí tudo bem. Depois Eleanor Brown foi acusada
de roubar setenta e cinco mil dólares dos fundos da campanha. Jurou estar inocente. Basicamente, foi o depoimento da senadora que fez que ela fosse condenada. Já
viu alguma fotografia dessa rapariga? Tinha vinte e três anos quando foi presa pelo desvio, mas parecia ter dezasseis. As pessoas têm uma tendência natural para
sentirem pena de quem está na mó de baixo; e o propósito deste programa é fazer que toda a gente fique a gostar de Abigail Jennings. No caso de Eleanor Brown, ela
aparece como a má da fita.
Esse caso prova que alguns legisladores não abafam as vigarices dos elementos do seu pessoal. E se quer atenuar a imagem
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de Abigail, jogue com o facto de, graças a ela, a miúda ter tido uma pena muito leve para quem roubou tanto dinheiro. Não desperdice as simpatias com Eleanor Brown.
Ela simulou um colapso nervoso na prisão, foi transferida para um hospital psiquiátrico, foi considerada doente externa e cavou. Era uma safada. Mais alguma coisa?
Gostaria de partir para Apple Junction esta noite. Se encontrar alguma coisa que valha a pena, telefono-lhe, e arranjaremos uma equipa de filmagens. Depois disso
quero seguir um dia da senadora no seu gabinete, tomar alguns planos e depois voltar lá para gravar...
Luther levantou-se, sinal de que o encontro estava no fim.
Muito bem disse. Vá lá para... como é que se chama isso... Apple Junction? Que raio de nome. Veja se consegue fazer um bom trabalho. Mas não deixe que os nativos
percebam que vão sair no filme. Quando perceberem isso, começarão a pensar em todas as palavras caras que sabem e no fato que vão usar.
Contorceu o rosto num esgar preocupado, e falou com voz nasalada.
Mystle, traz o spray. Tenho uma nódoa no casaco.
Estou convencida de que vou lá encontrar gente decente.
Pat esforçou-se por sorrir. Luther ficou a observá-la, enquanto ela saía, reparando no fato cinzento de tweed, obviamente um modelo original, nas botas de pele,
com a pequena marta Gucci, a mala a condizer e o casaco de peles sobre o braço.
Dinheiro. Patricia Traymore tinha dinheiro de família. Era uma coisa que se podia ver. Ressentido, Luther pensou no seu começo humilde, numa quinta do Nebrasca.
Não houvera água canalizada até fazer dez anos. Ninguém mais que ele poderia compreender o interesse de Abigail em não querer desenterrar os primeiros anos.
Teria procedido bem em deixar Pat Traymore fazer as coisas à sua maneira? Abigail ia ficar zangada, mas ficaria com certeza muito mais zangada quando descobrisse
que não a tinham informado da viagem.
Luther ligou o intercomunicador.
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Ligue-me ao gabinete da senadora Jenningsdisse. Depois hesitou: Não, deixe lá.
Pousou o telefone e encolheu os ombros. Para quê arranjar sarilhos?
Pat sentiu os olhares das pessoas caírem sobre si quando saiu do gabinete de Pelham. Deliberadamente ostentou um meio sorriso e caminhou rapidamente. Ele fora muito
cordial: submetera-a à fúria da senadora Jennings quando lhe dera a autorização de ir a Apple Junction; mostrara acreditar na capacidade de ela pôr o programa no
ar num curto espaço de tempo...
"Então que se passa comigo?", perguntou-se. "Deveria sentir-me optimamente."
Cá fora o dia estava frio e claro. As ruas estavam limpas, e resolveu ir a pé para casa. Ficava a alguns quilómetros, mas queria fazer exercício.
"Por que razão não admiti-lo?", pensou. "É o que Pelham disse acerca do caso de Dean Adams; e o que Toby disse ontem. É a sensação de que toda a gente recua quando
se menciona o nome de Dean Adams, o facto de ninguém querer admitir que o conhecem. Que tinha Luther dito acerca dela? Oh, sim, ele pensava que a criança tinha morrido
e que, provavelmente, fora melhor assim, pois, caso contrário, teria provavelmente ficado psiquicamente afectada. Não fiquei psiquicamente afectada", pensou Pat,
enquanto se afastava de um esguicho de lama. "Mas fiquei afectada. Pelo menos a minha perna ficou. Odeio o meu pai pelo que me fez! Matou a minha mãe e tentou matar-me."
Fora para ali, pensando que só queria entender o que o tinha levado a agir assim. Agora via as coisas melhor. Teria de enfrentar a raiva que reprimira durante todos
aqueles anos.
Faltava um quarto para a uma quando chegou a casa. Pareceu-lhe que esta começava a ter um ar confortável. A mesa antiga
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de mármore e o tapete serapi no vestíbulo tornavam insignificante a tinta da parede, já um tanto desvanecida. Os balcões da cozinha eram agora alegrados por latas
coloridas; a mesa de metal oval com cadeiras a condizer, encaixava perfeitamente na área entre as janelas, e fazia que se não notassem as manchas nos canos antigos.
Rapidamente preparou um chá e uma sanduíche, enquanto telefonava a reservar o bilhete de avião. Ficou "pendurada" sete minutos a ouvir uma infeliz selecção musical
antes de ser atendida. Reservou bilhete para Albany e alugou um automóvel.
Decidiu utilizar as poucas horas que lhe restavam antes do voo para passar os olhos pelos pertences do pai.
Lentamente abriu a primeira caixa e pôs-se a olhar para uma fotografia poeirenta de um homem alto e risonho com uma criança sobre o ombro. Os olhos da criança estavam
arregalados de prazer; a boca, entreaberta e sorridente. Tinha as mãos juntas como se fosse bater palmas. Tanto o homem como a criança estavam de fato de banho junto
à água. Reflectiam-se na areia as suas sombras alongadas.
"A menininha do papá", pensou Pat, amargamente. Já vira crianças sobre os ombros dos pais, penduradas nos seus pescoços, até com os dedos enrolados nos seus cabelos.
O medo de cair era um instinto básico. Mas a criança naquela fotografia, a criança que ela fora, confiava obviamente no homem que a segurava. Pousou a fotografia
no chão e continuou a esvaziar a caixa.
Quando acabou, a carpeta ficou repleta de objectos do gabinete do congressista Dean Adams. Um retrato normal da mãe ao piano. "Ela era linda", pensou Pat. "Eu pareço-me
mais com ele." Havia uma colagem de fotografias de Pat bebé e depois criança, que deveria ter estado pendurada na parede do gabinete, a agenda de couro verde-escura,
com as iniciais gravadas a ouro; o conjunto de prata de secretária, completamente enferrujado; o diploma emoldurado da Universidade de Wisconsin; outro de um curso
de Inglês com menção honrosa; a licenciatura em Direito pela Universidade de Michigan; um louvor da Conferência Episcopal dos Bispos pelo seu trabalho em prol das
minorias; uma placa do Homem do Ano, oferecida pelo Clube Rotário de Madison Wisconsin. Ele devia gostar de paisagens com mar.
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Havia algumas excelentes gravuras de barcos, navegando sobre as águas turbulentas.
Abriu a agenda. Quase todas as páginas continham rabiscos e figuras geométricas. "É daqui então que vem o meu hábito", pensou Pat.
Não conseguia retirar os olhos da sua fotografia com o pai. Parecia tão absolutamente feliz! O pai olhava-a com uma expressão de tanto amor! Segurava-a com tanta
força!
O retinir do telefone quebrou a magia. Levantou-se, alarmada por verificar que era tão tarde e que teria de fazer a mala.
Pat. Era Sam.
Olá disse, mordendo o lábio.
Pat, como de costume, estou cheio de pressa. Tenho uma reunião do Comité dentro de cinco minutos. Há um jantar na Casa Branca, sexta-feira à noite, em honra do primeiro-ministro
canadiano. Queres ir comigo? Terei de comunicar o teu nome à Casa Branca.
À Casa Branca! É maravilhoso. Adoraria ir disse, engolindo orgulhosamente em seco, tentando reprimir o tremor na voz.
O tom da voz de Sam alterou-se.
Pat, passa-se alguma coisa? Pareces perturbada. Não estás a chorar, pois não?
Por fim ela conseguiu controlar o tremor na voz.
Oh, não. Acho que apanhei uma constipação.
No aeroporto de Albany, Pat foi buscar o carro alugado, debruçou-se sobre o mapa das estradas juntamente com o empregado da Hertz, para ver qual seria o melhor caminho
para Apple Junction, a cerca de trinta quilómetros.
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É melhor pôr-se a caminho, miss avisou o empregado.
Parece que esta noite vai cair neve.
Sugere-me algum sítio para ficar?
Se quer mesmo ficar na cidade, o melhor é o Apple Motel. Mas não é tão bom como o Big Apple. E não é preciso preocupar-se com reservas.
Pat agarrou nas chaves do carro e no saco. Não parecia muito animador, mas agradeceu ao empregado.
Caíam os primeiros flocos de neve quando chegou à entrada do edifício horrível que tinha um letreiro em néon que dizia MOTEL APPLE. Tal como previra o empregado
da Hertz, um aviso dizia: HÁ VAGAS. O recepcionista, metido num cubículo, tinha cerca de setenta anos. Óculos com armação de arame pendiam-lhe do nariz. Tinha o
rosto enrugado e do crânio saíam-lhe cabelos grisalhos. Os seus olhos cansados brilhavam de surpresa quando Pat empurrou a porta.
Tem um quarto para uma ou duas noites? perguntou ela. Ele sorriu, revelando uma placa dentária amarelecida devido ao tabaco.
O tempo que quiser, miss. Pode escolher um quarto simples, duplo, ou até a suite presidencial.
Seguiu-se um sorriso sarcástico.
Pat sorriu educadamente e começou a preencher o registo. Omitiu deliberadamente a profissão. Queria dar umas voltas antes de o motivo da sua visita ser conhecido.
O empregado analisou o registo, desapontado.
Vou pô-la na primeira unidade disse. Assim ficará perto do escritório, no caso de a neve aumentar. Tem uma espécie de bar. Apontou para três pequenas mesas encostadas
na parede, ao fundo. De manhã há sempre sumo, café e torradas para ajudar a começar o dia. Olhou-a, perscrutadoramente.
Que a traz por cá?
Negócios respondeu Pat, acrescentando rapidamente em seguida: Ainda não jantei. Vou deixar o saco no quarto e talvez me possa indicar um restaurante.
Ele olhou para o relógio.
É melhor apressar-se. O Lampião fecha às nove, e já são quase oito. Vire à esquerda, ande dois quarteirões, depois volte
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à esquerda na direcção do Man. Fica à direita. Não pode falhar. Aqui está a sua chave. Consultou o registo: Miss Traymore. concluiu. Eu sou Travis Blodgett. Sou
o dono disto.
A sua voz era um misto de desculpas e orgulho. A respiração ligeiramente ofegante sugeria um enfisema.
Exceptuando um pequeno cinema mal iluminado, o Lampião era o único sítio aberto nos dois blocos que constituíam a parte movimentada de Apple Junction. Um menu engordurado
e escrito à mão colocado na porta, anunciava o prato do dia, sauerbraten com couve roxa, por três dólares e noventa e cinco cêntimos. O chão estava coberto por um
oleado gasto. A maior parte das toalhas, da cerca de uma dúzia de mesas, estava parcialmente coberta por guardanapos enrugados. "Provavelmente", pensou Pat, "para
esconder as nódoas deixadas por comensais anteriores." Um casal de velhos comia uma carne escura, de pratos a transbordar. Mas teve de admitir que o cheiro era apetitoso
e apercebeu-se de que estava cheia de fome.
A única pessoa que atendia era uma mulher de meia-idade sob um avental limpo, uma camisola grossa cor de laranja e umas calças já sem forma que deixavam ver camadas
de gordura. Mas o seu sorriso era agradável.
Está sozinha?
Sim.
A mulher olhou à volta, hesitante, e depois conduziu Pat até uma mesa perto da janela.
Aqui pode olhar lá para fora e apreciar a paisagem.
Pat contorceu os lábios. A paisagem! Um carro alugado numa rua lúgubre. Depois sentiu-se envergonhada. Aquela reacção seria de esperar de Luther Pelham.
Quer tomar alguma coisa? Temos vinho ou cerveja. E é melhor encomendar o que quer comer. Está a ficar tarde.
Pat pediu vinho e o menu.
Oh, não perca tempo com o menu disse-lhe a mulher. Experimente o sauerbraten. Está bom!
Pat passou os olhos pela sala. Obviamente era isso que o velho casal estava a comer.
Só se me servir pelo menos metade daquilo...
A mulher sorriu, revelando grandes dentes brancos.
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Oh, claro disse, e depois acrescentou, baixando a voz: Encho-lhes os pratos. Só têm dinheiro para comer fora uma vez por semana, por isso, gosto de lhes servir uma
refeição decente.
O vinho tinto não era mau de todo. Passados alguns minutos a mulher saiu da cozinha com um prato de comida a ferver, e um cestinho de biscoitos.
A comida estava deliciosa. A carne estivera marinada em vinhos e ervas; o molho era espesso; a couve era óptima. A manteiga derretia-se nos biscoitos ainda quentes.
"Meu Deus, se comesse assim todas as noites, estaria do tamanho de uma casa." Mas começou a sentir-se mais animada.
Depois de Pat acabar, a empregada retirou o prato e voltou com a cafeteira.
Tenho estado a olhar para si disse a mulher. Não a conheço? Não a vi na televisão?
Pat assentiu. "É muito bem feito por andar aqui a meter o nariz", pensou.
Claro continuou a empregada.Você é Patricia Traymore. Vi-a na TV quando estive de visita à minha prima em Boston. Sei a razão por que está aqui. Vai fazer um programa
sobre Abby Foster, quero dizer, sobre a senadora Jennings.
Conheceu-a? perguntou Pat, rapidamente.
Se a conheci! Vou mas é tomar chá consigo, não acha? Era uma pergunta retórica. Retirando uma chávena de outra mesa, deixou-se cair pesadamente na cadeira em frente
de Pat.
O meu marido é que cozinha, pode muito bem encarregar-se de fechar isto. Esteve muito calmo esta noite, mas doem-me os pés. Isto de estar em pé...
Pat emitiu apropriados sons de compreensão.
Abigail Jennings, hum... Aby-gail Jennings repetiu a mulher. Vocês vão meter gente de Apple Junction no programa?
Ainda não sei respondeu Pat com honestidade.Conheceu bem a senadora?
Muito bem, não. Andámos na mesma turma, na escola. Mas Abby estava sempre tão sossegada, nunca se sabia no que estava a pensar. As miúdas costumavam trocar confidências
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umas com as outras. A Abby não. Não me lembro de ela ter uma amiga íntima.
Que é que as outras raparigas pensavam dela? perguntou Pat.
Bem, sabe como é. Quando se é tão bonita como Abby era, as outras miúdas sentem ciúmes. E também toda a gente tinha a sensação de que ela era melhor que nós, e isso
não a tornava muito popular.
Pat pensou durante um momento.
Também sentia o mesmo em relação a ela, Mrs...?
Stubbins. Ethel Stubbins. De certo modo acho que sim, mas também entendia. Abby queria crescer para sair daqui. O Clube de Troca de Ideias foi a única actividade
em que ela participou aqui. Nem sequer se vestia como nós. Quando toda a gente andava de camisolões e botas, ela vinha de blusa e saltos altos. A mãe era a cozinheira
dos Saunders. Acho que isso incomodava bastante a Abby.
Pensei que a mãe tivesse sido governanta disse Pat.
Cozinheira repetiu Ethel, enfaticamente. Ela e Abby partilhavam um pequeno apartamento junto à cozinha. Eu sei porque a minha mãe todas as semanas ia lá limpar a
casa.
"Havia alguma diferença entre dizer que a mãe fora governanta em vez de cozinheira?" Pat encolheu mentalmente os ombros. "Que havia de mais inofensivo nesta pequena
promoção da mãe por parte da senadora Jennings?" Debateu-se entre as duas hipóteses. Às vezes tomar notas ou utilizar o gravador estragava imediatamente uma entrevista.
Decidiu arriscar.
Importa-se que grave? perguntou.
De maneira nenhuma. Quer que fale mais alto?
Não, está bem assim.
Pat retirou o gravador e colocou-o sobre a mesa.
Fale de Abigail tal como se lembra dela. Disse que ela não gostava de mencionar que a mãe era cozinheira?
Imaginou como Sam reagiria àquela pergunta. Considerá-la-ia uma intrusa.
Ethel apoiou os cotovelos pesados sobre a mesa.
Pois não gostava! A minha mãe até costumava dizer que Abby tinha uma grande lata. Se vinha alguém a passar ela
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costumava subir o caminho em direcção à porta principal, como se habitasse lá e, depois, quando não havia ninguém a olhar, esgueirava-se para as traseiras. A mãe
costumava ralhar-lhe, mas não adiantava nada.
Ethel! São nove horas.
Pat ergueu os olhos. Um homem de olhos castanhos-claros e ar simpático estava junto à mesa, desapertando o avental branco. Os seus olhos detiveram-se no gravador.
Ethel explicou o que se passava e apresentou Pat.
Este é o meu marido, Ernie.
Ernie sentia-se obviamente curioso com a perspectiva de contribuir para a entrevista.
Conta-lhe como Mrs. Saunders apanhou Abby a sair pela porta principal, e a meteu no seu lugar sugeriu ele. Lembras-te de quando a obrigou a voltar para trás e a
sair pelas traseiras?
Oh, sim respondeu Ethel. Isso foi terrível, não foi? A mamã disse-me que tinha pena de Abby até ver a expressão do rosto dela. De gelo, segundo disse a mamã.
Pat tentou imaginar uma jovem Abigail, obrigada a utilizar a entrada dos criados para mostrar que sabia ocupar o seu lugar. De novo sentiu que se estava a imiscuir
na intimidade da senadora. Não iria insistir naquele tópico. Recusando a oferta de Ernie de mais vinho, perguntou:
Abby... quer dizer, a senadora, deve ter sido uma boa estudante, para ter conseguido a bolsa em Radcliffe. Era a melhor da aula?
Oh, era óptima em Inglês, História e Línguas respondeu Ethel. Mas muito fraca em Matemática e Ciências. Passava sempre à justa nestas disciplinas.
Pareço eu sorriu Pat. Falemos agora do concurso de beleza.
Ethel riu-se com vontade.
Havia quatro finalistas para o lugar de Miss Apple Junction. Aqui a sua amiga era uma delas. Acredite ou não, eu pesava cinquenta e seis quilos nessa altura, e era
muito engraçada.
Pat ficou à espera do inevitável. Ernie não a desiludiu.
Ainda és, querida.
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Abby ganhou de caras continuou Ethel. Depois meteu-se no concurso para Miss do Estado de Nova Iorque. Toda a gente ficou para morrer quando ela ganhou. Claro, sabíamos
que ela era bonita, mas estávamos todos habituados a vê-la. A cidade ficou excitada! Ethel emitiu um ruído com os lábios.
Diga-se que Abby também deu motivos para falatório durante esse Verão. O grande acontecimento social do ano aqui era o baile do clube, em Agosto. Todos os miúdos
ricos desta zona lá iam. Nenhuma de nós, claro. Mas, nesse ano, Abby Foster foi lá. Segundo o que ouvi, ela parecia um anjo com o vestido comprido debruado com fitas
de seda negras. E adivinhe quem engraçou com ela? Jeremy Saunders! Tinha acabado de se formar por Yale. E estava praticamente noivo de Evelyn Clinton. Ele e Abby
estiveram sempre de mãos dadas e ele passou a vida a beijá-la.
"No dia seguinte toda a cidade murmurava. A mamã disse que Mrs. Saunders devia estar a deitar fogo; o seu rico filho, embeiçado pela filha da cozinheira! E, então
Ethel encolheu os ombros, acabou assim, sem mais nem menos. Abby renunciou ao título de Miss do Estado de Nova Iorque e partiu para a faculdade. Afirmou saber que
nunca seria Miss América, que não sabia cantar nem dançar, e que, de forma nenhuma, se iria pavonear em Atlantic City para regressar vencida. Muitas das pessoas
tinham-se quotizado para lhe arranjar um guarda-roupa para o concurso de Miss América. Ficaram todos muito aborrecidos.
Lembras-te de Toby ter dado uns murros nuns tipos que disseram que Abby tinha deixado as pessoas ficar mal? perguntou Ernie a Ethel.
Toby Gorgone? perguntou Pat, rapidamente.
Esse mesmo respondeu Ernie. Sempre foi doido por Abby. Sabe como é o falatório entre miúdos. Se algum dissesse mal de Abby em frente dele, arrependia-se sempre.
Agora trabalha para ela informou Pat.
A sério? Ernie abanou a cabeça. Diga-lhe olá por mim. Pergunte-lhe se ele ainda perde dinheiro nos cavalos.
Eram onze horas quando Pat chegou ao Apple Motel Junction, e a essa hora a Unidade Um estava gelada. Desfez rapidamente
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a mala (não havia armário, unicamente um cabide na porta), despiu-se, tomou duche, escovou o cabelo e, encostando-se nas almofadas estreitas, meteu-se na cama com
o bloco de apontamentos. Como sempre a perna doía-lhe, uma dor ligeira que começava na anca e acabava cá em baixo.
Olhou para os apontamentos que tomara durante a noite. Segundo Ethel, Mrs. Foster saíra da casa Saunders logo a seguir ao baile do clube, e fora trabalhar como cozinheira
no hospital do distrito. Nunca ninguém soubera se se despedira ou fora despedida. Mas o novo emprego devia ter-lhe sido difícil. Fora uma mulheraça.
" Acha que eu sou pesada dissera Ethel, devia ter visto Francey Foster." Francey morrera havia muito tempo e ninguém vira Abigail depois disso. E, claro, antes disso,
ainda menos a tinham visto.
Ethel debruçou-se com eloquência sobre o tema Jeremy Saunders.
" Abigail teve sorte em não se casar com ele. Ele nunca foi grande coisa. O que lhe valeu foi a família ter dinheiro, de outra forma teria, sem dúvida, morrido de
fome. Diz-se que o pai deixou tudo a fundações, até fez Evelyn executora do testamento. Jeremy foi para ele um grande desapontamento. Pareceu sempre um diplomata
ou um lorde inglês e, afinal, saiu um palerma."
Ethel insinuara que Jeremy era um bêbedo, mas sugeriu que Pat lhe telefonasse.
" Com certeza que ele vai adorar companhia. Evelyn passa a maior parte do tempo com a filha casada que vive em Westchester."
Pat apagou a luz. No dia seguinte de manhã tentaria visitar a directora reformada que pedira a Abigail para arranjar um emprego para Eleanor Brown, e tentaria marcar
encontro com Jeremy Saunders.
Nevou durante a noite, mas os limpa-neves já tinham passado quando Pat tomou café com o proprietário do Apple Motel.
Andar às voltas em Apple Junction era uma experiência deprimente. A cidade era particularmente lúgubre e inexpressiva. Metade das lojas estavam fechadas ou em ruínas.
Na rua principal via-se uma única fileira de iluminações de Natal. Nas ruas laterais as casas colavam-se umas às outras, com a tinta a estalar.
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A maior parte dos carros estacionados eram muito velhos. Não havia sinais de edifícios novos em construção, residenciais ou escritórios. Via-se pouca gente nas ruas,
uma sensação de vazio invadia a atmosfera. Seria que os jovens voavam dali tal como fizera Abigail? E quem os poderia censurar?
Viu um letreiro que dizia SEMANÁRIO DE APPLE JUNCTION e, impulsivamente, estacionou o carro e entrou. Havia duas pessoas a trabalhar, uma jovem que parecia travar
uma discussão ao telefone, e um homem com cerca de sessenta anos, que fazia um grande barulho, batendo nas teclas da máquina de escrever manual. Este último, soube
mais tarde, era Edwin Shepherd, editor e proprietário do jornal, que se mostrou extremamente satisfeito por falar com Pat.
Acrescentou muito pouco ao que ela já sabia sobre Abigail. Contudo, procurou amavelmente nos arquivos os exemplares que se referiam aos dois concursos de beleza
que Abigail vencera.
Mas a fotografia de Abigail com a faixa de Miss Apple Junction era nova e estranha. Abigail estava em pé sobre um estrado, com as outras três finalistas à sua volta.
A coroa que tinha na cabeça era de papier-maché. As outras raparigas ostentavam sorrisos de satisfação (Pat apercebeu-se que a jovem numa das pontas era Ethel Stubbins),
mas o sorriso de Abigail era frio, quase cínico. Parecia completamente deslocada.
Há também uma fotografia dela com a mãe informou Shepherd, voltando a folha.
Pat soltou uma exclamação. Seria possível que a Abigail de feições delicadas fosse o fruto daquela mulher obesa? A legenda dizia: MÃE ORGULHOSA ACOLHE RAINHA DE
BELEZA DE APPLE JUNCTION.
Por que não leva estes exemplares? perguntou Edwin Shepherd. Eu tenho mais. Não se esqueça de me mencionar se utilizar este material no seu programa.
Pat pensou que teria sido indelicado recusar a oferta.
"Estou mesmo a ver os resultados se usar aquela fotografia", pensou, enquanto agradecia ao editor, saindo rapidamente.
Meio quilómetro abaixo de Main Street, a cidade alterou-se drasticamente. As estradas tornaram-se mais largas, as casas mais opulentas, os pavimentos mais cuidados.
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A casa dos Saunders era amarela com portas negras. Ficava num canto, e um caminho comprido conduzia aos degraus da entrada. Pilares graciosos fizeram lembrar a Pat
a arquitectura de Mount Vernon. As árvores alinhavam-se ao longo do caminho. Um pequeno letreiro indicava a porta de serviço nas traseiras. Estacionou o carro e
subiu os degraus, reparando, numa inspecção mais cuidadosa, que a tinta começara a desvanecer-se e as armações metálicas das janelas estavam enferrujadas. Carregou
na campainha e, algures lá dentro, ouviu o seu ecoar distante. Uma mulher magra e grisalha, com um avental por cima de um vestido negro, veio à porta.
Mr. Saunders está à sua espera. Encontra-se na biblioteca. Jeremy Saunders, vestindo um casaco de veludo castanho,
estava instalado numa cadeira de encosto junto à lareira. Tinha as pernas cruzadas e, sob a dobra das calças azul-escuras, viam-se peúgas de seda azul, de qualidade.
Tinha feições muito correctas e um agradável cabelo branco ondulado. Só os papos debaixo dos olhos traduziam uma predilecção pela bebida. Levantou-se, apoiando-se
no braço da cadeira.
Miss Traymore! A sua voz tinha um toque tão "bem" que sugeria aulas de dicção. Quando me telefonou não me disse que era a Patricia Traymore.
Seja o que for que isso signifique disse Pat, sorrindo.
Não seja modesta. Você é a jovem que está a fazer um programa sobre Abigail.
Indicou-lhe a cadeira do lado oposto à sua.
Quer tomar um Bloody Mary?
Obrigada.
O misturador estava já meio vazio. A empregada levou-lhe o casaco.
Obrigado, Arma. Para já, não é preciso mais nada. Talvez daqui a pouco Miss Traymore me queira fazer companhia num almoço leve.
O tom de voz de Jeremy Saunders tornou-se ainda mais enfático quando falou com a criada, que saiu silenciosamente da sala.
Feche a porta, por favor, Arma! disse ele. Obrigado, minha cara.
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Saunders esperou até ouvir o trinco da porta e, depois, suspirou.
Hoje em dia é impossível arranjar bons empregados. Já não é igual aos tempos em que Francey Foster presidia na cozinha e Abby servia à mesa.
Pat não respondeu. Havia uma espécie de crueldade naquele homem. Sentou-se, aceitou a bebida e aguardou. Ele ergueu o sobrolho.
Não tem um gravador?
Sim, tenho. Mas, se preferir, não o utilizo.
De forma alguma. Quero que as minhas palavras sejam imortalizadas. Talvez algum dia haja uma biblioteca Abigail Jennings, perdão, senadora Abigail Jennings. As pessoas
poderão carregar num botão e ouvir-me falar da sua caótica mudança de idade.
Pat retirou silenciosamente da mala o gravador e o bloco de apontamentos. Sentiu de repente que tudo o que iria ouvir seria inútil.
Tem seguido a carreira da senadora começou.
Sem sombra de dúvidas. Sinto a maior admiração por Abby. Desde os tempos em que ela tinha dezassete anos e ajudava a mãe nos trabalhos domésticos, que a admiro.
Ela é inteligente.
Ajudar a mãe é uma forma de inteligência? perguntou Pat, calmamente.
Claro que não. Isto quando se quer, de facto, ajudar a mãe. Por outro lado, se ela se oferece porque o jovem Saunders voltou de Yale, aí o caso muda de figura, não
acha?
Está a falar de si? perguntou Pat, sorrindo com relutância. Jeremy Saunders tinha um ar sardónico, não desagradável de todo.
Acertou. De vez em quando vejo fotografias dela, mas não se pode confiar em fotografias, pois não? Abby foi sempre muito fotogénica. Como é ela em pessoa?
Muito bonita respondeu Pat. Saunders pareceu desapontado.
"Ele adoraria ouvir que a senadora precisa de uma plástica", reflectiu Pat.
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Sem saber bem porquê, não via muito bem por que razão a jovem Abby se teria deixado impressionar por Jeremy.
E Toby Gorgone? perguntou Saunders. Ainda faz de guarda-costas e escravo de Abby?
Toby trabalha para a senadora respondeu Pat. É-lhe obviamente muito devotado e ela parece confiar nele plenamente.
"Guarda-costas e escravo", pensou ela. Era uma forma de descrever a relação de Toby com Abigail Jennings.
Suponho que ainda se safarão mutuamente?
Que quer dizer?
Jeremy ergueu a mão num gesto de desinteresse. Não é nada. Ele provavelmente contou-lhe como salvou Abby das garras daquele cão do nosso excêntrico bairro.
Sim, contou.
E contou-lhe que Abby foi o seu álibi na noite em que ele provavelmente conduziu um automóvel roubado?
Não, não contou, mas isso não parece ser um delito muito grave.
É-o, quando o carro da polícia que persegue o veículo "pedido emprestado" sai fora de mão e atropela uma jovem mãe e as suas duas crianças. Alguém parecido com ele
foi visto junto ao carro. Mas Abigail jurou que estivera a ensinar inglês a Toby, aqui mesmo, nesta casa. Foi a palavra de Abigail contra a de uma testemunha incerta.
Não foi apresentada queixa e o delinquente não foi apanhado. Muitas pessoas acreditaram no envolvimento de Toby Gorgone. Ele sempre fora um obcecado pelas máquinas,
e o carro roubado era um novo modelo sport. Não é de admirar que tenha querido ir dar uma volta.
Está, então, a sugerir que a senadora mentiu?
Não estou a sugerir nada. Contudo, as pessoas aqui não tem a memória curta e o depoimento fervoroso de Abigail, feito sob juramento, claro, ficou registado. E, na
verdade, pouco poderia ter acontecido a Toby se se provasse que ele seguia no carro. Ainda era menor. Abigail, no entanto, já tinha dezoito anos, e se tivesse cometido
perjúrio, seria criminalmente culpada. Oh, Toby, afinal, pode muito bem ter passado aquela tarde a estudar. A gramática dele melhorou?
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A mim pareceu-me normal.
Então é porque não falou com ele durante muito tempo. Agora fale-me de Abigail. Aquela fascinação irresistível que ela exerce sobre os homens! Com quem anda ela
agora?
Não anda com ninguém respondeu Pat. Por aquilo que me disse, o marido foi o grande amor da sua vida.
Talvez. Jeremy Saunders acabou a bebida. E quando se pensa que ela não tinha bases nenhumas, um pai que se embebedou até morrer quando ela tinha seis anos, uma mãe
metida entre tachos e panelas...
Pat decidiu fazer outra abordagem a fim de obter algum material utilizável.
Fale-me desta casa pediu.Afinal Abigail cresceu aqui. Foi construída pela sua família?
Jeremy Saunders sentia-se obviamente orgulhoso, tanto da casa como da família. Durante a hora seguinte, fazendo unicamente uma pausa para voltar a encher os copos,
traçou a história dos Saunders desde "não exactamente dos tempos do Mayflower" (supunha-se que um Saunders tinha participado naquela viagem histórica, mas adoecera
e só regressara dois anos mais tarde), até ao presente.
E assim concluiu, sorrindo lamento dizer que sou o último dos Saunders... Você é uma ouvinte muito atenta, minha cara. Espero não me ter alongado de mais.
Pat retribuiu o sorriso.
Claro que não. Os familiares da minha mãe também foram dos primeiros colonos, e orgulho-me disso.
Tem de me falar da sua família disse Jeremy, galantemente. Vai ficar para almoçar?
Terei muito prazer.
É melhor mandar servir aqui. É muito mais confortável que a sala de jantar. Concorda?
"E muito mais perto do bar", pensou Pat, desejando poder retomar o assunto Abigail.
A oportunidade surgiu enquanto fingia sorver o vinho que Jeremy insistira servir com a salada de frango.
Ajuda a empurrá-lo, minha cara disse-lhe ele. Acho que quando a minha mulher está fora, Arma se descuida. Não é
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como a mãe da Abby. Francey Foster tinha brio em tudo quanto fazia. Os pãezinhos, os bolos, os souflés... Abby sabe cozinhar?
Não sei respondeu Pat, e a sua voz tomou um tom de confidência. Mr. Saunders, não consigo deixar de sentir que o senhor tem um ressentimento qualquer em relação
à senadora Jennings. Será que estou enganada? Fiquei com a impressão de que houve um tempo em que gostaram muito um do outro.
Ressentimento contra ela? Eu? disse ele, com voz grossa. Você não ficaria ressentida com alguém que fizesse de si parva?
Estava a acontecer, o momento que surgia em tantas das suas entrevistas, em que as pessoas deixavam cair as suas defesas e se começavam a revelar.
Estudou Jeremy Saunders. Aquele homem sobrealimentado e bêbedo, ridiculamente vestido, reconstituía recordações desagradáveis. Havia dor e raiva nos seus olhos,
na boca de fraco, no queixo gordo.
Abigail disse ele, em tom mais calmo. Senadora dos Estados Unidos, por Virgínia. Minha cara Patricia Traymore, está a falar com o antigo noivo dela.
Pat tentou sem êxito esconder a sua surpresa.
O senhor esteve noivo de Abigail?
Durante o último Verão que ela cá passou. Foi tudo muito breve, claro. Só o tempo suficiente para ela conseguir o que pretendia. Vencera o concurso de beleza mas
foi suficientemente esperta para ver que, em Atlantic City, não conseguiria ir mais longe. Tentou uma bolsa de estudos em Radcliffe, mas as notas a Ciências e Matemática
não eram grande coisa. Claro que Abby não fazia intenção de frequentar a escola local. Foi um dilema terrível para ela, e ainda hoje me pergunto se não houve a mão
de Toby a engendrar a solução.
"Eu tinha acabado de me formar, em Yale, e ia entrar no negócio do meu pai, uma perspectiva que já não tinha nada de novo para mim. Ia ficar noivo da filha do melhor
amigo do meu pai, coisa que não me excitava. E ali estava Abigail, a viver na mesma casa, enfiando-se na minha cama à noite, enquanto a pobre Francey Foster ressonava
no seu quarto de criada. Resultado: comprei um belo vestido para Abigail, acompanhei-a ao baile
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do clube e declarei-me. Quando chegámos a casa fomos comunicar a boa-nova. Está a imaginar a cena? A minha mãe, que se comprazia em mandar Abby entrar pela porta
das traseiras, a ver os planos que fizera para o filho irem todos por água abaixo. Vinte e quatro horas depois Abigail saiu da cidade com um cheque de dez mil dólares,
dado pelo meu pai, e as malas cheias com o guarda-roupa que os habitantes da cidade lhe tinham dado. Sabe, é que ela já tinha sido aceite em Radcliffe. Só lhe faltava
o dinheiro para frequentar aquela instituição.
"Segui-a até lá. Ela foi bem explícita, assegurando que tudo o que meu pai dizia dela era verdade. Até ao dia em que morreu, o meu pai não deixou de me lembrar a
figura de parvo que fiz. Em trinta e cinco anos de casamento, cada vez que Evelyn ouve o nome de Abigail, ainda fica irritada. Quanto à minha mãe, só ficou satisfeita
quando pôs Francey Foster na rua e bem nos prejudicámos com isso, pois não voltámos a ter uma cozinheira decente.
Quando Pat saiu da sala em bicos dos pés, Jeremy estava a dormir com a cabeça caída.
Faltava quase um quarto para as duas. O dia estava a ficar enevoado, como se fosse cair mais neve. Enquanto se dirigia ao encontro de Margaret Langley, a directora
reformada, perguntou-se se a versão de Jeremy Saunders quanto ao comportamento da jovem Abigail Foster Jennings seria verdadeiro? Manipulador? Caluniador? Mentiroso?
O que quer que fosse não condizia com a reputação de absoluta integridade, que era um dos pilares da carreira pública da senadora Abigail Jennings.
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Faltava um quarto para as duas quando Margaret Langley tomou a decisão pouco habitual de fazer café, sabendo que o desconforto de uma gastrite a poderia afectar
mais tarde.
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Como acontecia sempre que se encontrava nervosa, atravessou a sala, procurando conforto junto às folhas verdes das plantas penduradas junto à janela. Estava a meio
da releitura dos sonetos de Shakespeare, acompanhada do café da manhã, quando Patricia Traymore lhe telefonara, pedindo autorização para a visitar.
Margaret abanou a cabeça nervosamente. Era uma mulher ligeiramente curvada, de setenta e três anos. O seu cabelo grisalho formava ondas à volta da cabeça, juntando-se
num pequeno puxo na nuca. O seu rosto longo, quase cavalar, era iluminado por um ar de sensatez bem-humorada. Na blusa trazia preso o alfinete que a escola lhe oferecera
quando se reformara: uma coroa de louros de ouro, com o número 45 gravado, significando os anos em que prestara serviço como professora e directora.
Eram vinte para as duas quando começou a desejar que Patricia Traymore tivesse mudado de ideias mas, nesse momento, viu um pequeno carro subir lentamente a rua.
A condutora deteve-se junto à caixa do correio, provavelmente a verificar o número da casa. Relutantemente, Margaret dirigiu-se para a porta.
Pat pediu desculpas pelo atraso.
Enganei-me no caminho explicou, aceitando com satisfação a oferta de uma chávena de café.
Margaret começou a sentir a ansiedade diminuir. Havia algo de sensato naquela jovem, na forma como limpara as botas no tapete, antes de pisar o chão encerado. Era
tão bonita, com aquele cabelo ruivo e os belos olhos castanhos. Sem saber bem porquê, Margaret esperava que ela fosse muito agressiva. Quando falasse de Eleanor,
talvez Patricia Traymore a escutasse. Enquanto servia o café, começou a falar.
Sabe começou Margaret, e a voz soou, aos seus próprios ouvidos, esganiçada e nervosa, o problema na altura em que o dinheiro desapareceu em Washington foi que toda
a gente falou de Eleanor como se ela fosse uma ladra profissional. Miss Traymore, alguma vez ouviu falar do objecto que, supostamente, ela roubou quando andava no
liceu?
Não. Acho que não respondeu Pat.
Seis dólares. Arruinou a vida por causa de um frasco de perfume de seis dólares! Miss Traymore, nunca lhe aconteceu
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preparar-se para sair de uma loja sem se ter apercebido que levava alguma coisa na mão que tencionava comprar?
Algumas vezes concordou Pat. Mas com certeza que ninguém é condenado por se ter esquecido de pagar um artigo de seis dólares.
É-se, sim, quando há na cidade uma onda de roubos em lojas. Os lojistas andavam nervosos e o representante do tribunal tinha prometido dar o exemplo com a próxima
pessoa a ser apanhada.
E Eleanor foi a próxima?
Sim.
Pequenas gotas de transpiração acentuaram as linhas da testa de Margaret. Alarmada, Pat reparou que a pele dela estava a ficar acinzentada.
Miss Langley, não se sente bem? Quer que lhe dê um copo de água?
A velhota abanou a cabeça.
Não, isto passa. É só um minuto.
Deixaram-se ficar em silêncio enquanto as cores regressavam lentamente ao rosto de Miss Langley.
Estou melhor. Parece que falar de Eleanor me perturba. Sabe, Miss Traymore, o juiz fez dela o exemplo: mandou-a para o reformatório durante trinta dias. Depois disso
ela ficou diferente. Mudada. Algumas pessoas não suportam esse tipo de humilhação. É que ninguém acreditou, excepto eu. Conheço os jovens. Ela não era atrevida.
Era do tipo que nunca mascava pastilha elástica nas aulas, não conversava quando a professora não estava, nem copiava nos pontos. Não era só boa rapariga. Era tímida.
Margaret Langley estava a ocultar alguma coisa. Pat sentiu-o. Inclinou-se para a frente e disse, com delicadeza:
Miss Langley, há nesta história algo que não me contou. Os lábios da mulher tremeram.
Eleanor não trazia consigo dinheiro suficiente para pagar o perfume. Explicou que ia pedir para lho embrulharem e guardarem. Nessa noite ia a uma festa de aniversário.
O juiz não acreditou nela.
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"Nem eu acredito", pensou Pat. Sentia-se triste por não conseguir aceitar a explicação em que Margaret Langley acreditava tão apaixonadamente. Ficou a observar,
enquanto a antiga directora levava as mãos à garganta, tentando acalmar-se.
Aquela rapariga vinha aqui muitas vezes continuou Margaret Langley, tristemente porque sabia que eu era a única pessoa que acreditava nela sem reservas. Quando acabou
o liceu, eu escrevi a Abigail pedindo-lhe para lhe arranjar um emprego no seu gabinete.
E não é verdade que a senadora deu a Eleanor a oportunidade, confiou nela e ela roubou fundos da campanha? perguntou Pat.
O rosto de Margaret tornou-se muito cansado e o tom de voz baixou.
Eu estava de licença sabática quando isso aconteceu. Viajava pela Europa. Quando cheguei já tudo tinha acabado. Eleanor fora condenada, enviada para a prisão e sofreu
um colapso nervoso. Encontrava-se na enfermaria psiquiátrica da prisão-hospital. Escrevi-lhe regularmente, mas ela nunca respondeu. Depois, segundo o que sei, saiu
por razões de saúde, com a única condição de ir a uma clínica como doente externa, duas vezes por semana. E, um dia, desapareceu, pura e simplesmente. Foi há
nove anos.
E nunca soube nada dela?
Eu... bem... não... mm... Margaret levantou-se. Desculpe, quer mais um pouco de café? Ainda há bastante. Vou beber mais algum. Não devia, mas vou beber.
Tentando sorrir, Margaret dirigiu-se à cozinha. Pat desligou o gravador. "Ela teve notícias de Eleanor e não consegue ocultá-lo", pensou Pat. Quando Miss Langley
regressou, perguntou-lhe suavemente.
E que sabe agora sobre Eleanor?
Margaret Langley pousou a cafeteira sobre a mesa e dirigiu-se à janela. "Iria magoar Eleanor confiando em Pat Traymore? Iria, de facto, apontar uma pista que conduzisse
ao rasto de Eleanor?" Um pássaro solitário bateu as asas junto à janela e pousou num ramo gelado de uma árvore em frente. Margaret decidiu-se. Confiaria em Patricia
Traymore, mostrar-lhe-ia as cartas, falar-lhe-ia
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daquilo em que acreditava. Voltou-se, encarou Pat e viu a preocupação nos seus olhos.
Quero mostrar-lhe uma coisa disse, abruptamente. Quando Margaret Langley regressou à sala, trazia uma folha de papel dobrada em cada mão.
Tive notícias de Eleanor duas vezes disse ela. Esta carta acrescentou, estendendo a mão direita foi escrita no dia do suposto roubo. Leia-a, Miss Traymore.
O papel estava desbotado como se tivesse sido manuseado muitas vezes. Pat olhou para a data. A carta tinha onze anos. Pat leu rapidamente o conteúdo. Eleanor esperava
que Miss Langley estivesse a aproveitar a viagem à Europa; Eleanor fora promovida e adorava o seu trabalho. Frequentava aulas de pintura na Universidade George Washington,
e tudo lhe corria bem. Regressava de uma tarde passada em Baltimore. Tinham-na mandado pintar uma cena aquática e escolhera a baía de Chesapeake. Miss Langley sublinhara
um parágrafo. Dizia:
Quase não consegui lá chegar. Tive de fazer um recado à senadora Jennings. Ela deixou o anel de brilhantes no gabinete da campanha, e pensou que ele tinha ficado
fechado no cofre. Mas não estava lá, e fui em vão.
"Isto é uma prova?", perguntou-se Pat. Ergueu os olhos e encarou com o olhar esperançado de Margaret Langley.
Não vê? disse Margaret. Eleanor escreveu-me na noite do suposto roubo. Por que razão iria inventar esta história?
Pat não conseguiu suavizar o que tinha para dizer.
Podia estar a querer arranjar um álibi para si própria.
Se tentasse arranjar um álibi não iria escrever a alguém que poderia levar meses a receber a carta respondeu ela. Depois, suspirou. Bem, eu tentei. Só espero que
tenha a bondade de não remexer nisso. Aparentemente, Eleanor vive a sua vida e merece que a deixem em paz.
Pat olhou para a outra carta que Margaret segurava.
Ela escreveu-lhe depois de desaparecer?
Sim. Há seis anos recebi isto.
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Pat agarrou na carta. O papel era barato e de má qualidade.
O bilhete dizia:
Querida Miss Langley,
Por favor, compreenda que é melhor eu não manter contacto com ninguém do passado. Se me encontrarem voltarei de novo para a prisão. Juro-lhe que nunca toquei naquele
dinheiro. Tenho estado muito doente, mas tento refazer a minha vida. Alguns dias são bons. Quase acredito que é possível voltar a ficar bem. Outras vezes sinto-me
tão assustada que receio ser reconhecida. Penso muito em si e sinto a sua falta.
A assinatura de Eleanor era trémula, e a letra incerta, muito diferente da caligrafia graciosa da carta anterior. Foi preciso todo o poder persuasivo de Pat para
convencer Margaret Langley a deixá-la levar as cartas.
Tenciono incluir o caso no programa disse ela, mas, mesmo que Eleanor seja reconhecida e alguém a denuncie, talvez a possamos ajudar, e assim não teria de se esconder
durante o resto da vida.
Gostaria tanto de a voltar a ver sussurrou Margaret com lágrimas nos olhos. Ela é quase como se fosse minha filha. Espere, vou mostrar-lhe a fotografia.
Numa das prateleiras da estante encontravam-se pilhas de livros de fim de curso.
Possuo um por cada ano que estive na escola explicou ela. Mas tenho o de Eleanor por cima. Folheou as páginas. Ela acabou o curso há dezassete anos. Não é um amor?
A rapariga da fotografia tinha uma farta cabeleira castanha e olhos meigos e inocentes. A legenda dizia:
Eleanor Brown: Hobby: pintura; Ambição: ser secretária. Actividades: coro; Desporto: patins; Preferências: ser o braço direito de um executivo e casar jovem, dois
filhos. Coisa que mais aprecia: sair à noite com perfume parisiense.
Meu Deus! exclamou Pat. Que crueldade.
Exactamente. Por isso é que eu quis que ela se fosse embora.
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Pat abanou a cabeça e olhou para os outros livros.
Espere um momento disse. Por acaso tem aí o livro de curso da senadora Jennings?
Claro. Vejamos, deve estar algures por aqui.
Era o segundo livro em que Margaret pegou. Naquela fotografia, Abigail tinha o cabelo cortado à pajem. Os seus lábios estavam ligeiramente entreabertos, como se
tivesse obedientemente conferido as indicações do fotógrafo. Os olhos, grandes e pestanudos, eram calmos e imperscrutáveis. A legenda dizia:
Abigail Foster (Abby): Hobby: assistir a reuniões municipais; Ambição: a política. Actividades: debates; Preferências: ser representante de Apple Junction na Assembleia;
Coisa que mais aprecia: ler qualquer livro que haja na biblioteca.
Representante na Assembleia! exclamou Pat. É formidável.
Meia hora depois saiu com o livro de curso da senadora debaixo do braço. Quando ia a entrar no carro decidiu que enviaria uma equipa para filmar alguns planos da
cidade, incluindo a Rua Pirnic Principal, a casa dos Saunders, o liceu, e a auto-estrada com o autocarro para Albany. Antes de exibir isso poria a senadora Jennings
a falar sobre a sua adolescência e os seus interesses políticos precoces. Fecharia esse segmento com a fotografia da senadora como Miss do Estado de Nova Iorque
e, depois, com a fotografia de fim de curso do liceu, e a explicação de que a decisão de ir para Radcliffe em vez de Atlantic City fora a mais importante da sua
vida.
Com a sensação perturbante de que algo lhe escapava naquela história, Pat andou às voltas pela cidade durante uma hora, decidindo quais os locais a filmar. Depois
retirou as suas coisas do Apple Motel, seguiu para Albany, devolveu o carro alugado, e foi com alívio que tomou o avião de regresso a Washington.
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"Washington é uma cidade bela", pensou Pat "vista de qualquer ângulo, a qualquer hora. À noite, a iluminação do Capitólio, e os monumentos parecem conferir-lhe um
ar de tranquilidade perene." Só saíra dali havia trinta horas e, no entanto, parecia-lhe que tinham passado vários dias. O avião aterrou com uma ligeira trepidação
e atravessou suavemente a pista.
Quando abria a porta de casa ouviu o telefone tocar e correu para atender. Era Luther Pelham. Parecia nervoso.
Pat, ainda bem que te apanhei. Não me disseste que ias ficar em Apple Junction. Quando te localizei já tinhas partido.
Desculpa, devia ter telefonado esta manhã.
Abigail vai fazer um discurso importante amanhã, antes da votação do orçamento. Sugere que passes todo o dia no gabinete dela. Ela entra às seis e meia.
Estarei lá.
Como correram as coisas na terra natal?
Interessantes. Conseguiremos arranjar material simpático que não irá desagradar à senadora.
Gostava de saber pormenores. Acabei de jantar no Jockey Club e ponho-me em tua casa em dez minutos disse, desligando o telefone.
Mal teve tempo de vestir umas calças e uma camisola antes de ele chegar. A biblioteca estava atulhada com o material da senadora. Pat conduziu-o à sala de estar
e ofereceu-lhe uma bebida. Quando regressou com ela, ele apreciava o candelabro sobre a consola.
Belo espécime de Sheffield disse ele. Nesta sala tudo é bonito.
Em Boston ela ocupara um pequeno estúdio semelhante ao de outros jovens profissionais. Não lhe ocorrera que aquelas mobílias caras naquela casa poderiam levantar
suspeitas.
Tentou falar com naturalidade.
Os meus pais tencionam mudar-se para um apartamento. Temos um sótão cheio de coisas, e a minha mãe disse-me para escolher o que quisesse.
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Luther sentou-se no sofá e agarrou no copo.
Só sei que com a tua idade vivia numa espelunca. Bateu no assento ao seu lado.
Senta-te aqui e fala-me da Nossa Cidade.
"Oh, não", pensou ela. "Hoje não vai haver tentativas de empate, Luther Pelham." Ignorando a sugestão sentou-se numa cadeira do outro lado e passou a relatar a Luther
o que apurara em Apple Junction. Não era edificante.
Abigail pode ter sido a rapariga mais bonita daquelas paragens concluiu, mas não foi certamente a mais popular. Agora já entendo a razão por que se mostra tão nervosa
quanto à perspectiva de se mexer no seu passado lá. Jeremy Saunders denegri-la-á até morrer. Ela tem razão em recear que, recordando que foi Miss do Estado de Nova
Iorque, faça que as pessoas mais velhas se recordem que contribuíram com dois dólares para a vestir e que depois ela se pirou. Miss Apple Junction. Veja só a fotografia.
Luther assobiou.
Custa a crer que essa matrona fosse mãe de Abigail. Depois reflectiu:
Está bem. Ela tem uma razão válida para esquecer Apple Junction e todos os que lá estão. Pensei que me tinhas dito que se arranjava material com interesse humano.
E arranjámos. Imagens da cidade, da escola, da casa onde ela cresceu. Depois entrevistaremos a directora da escola. Margaret Langley, sobre o facto de Abigail costumar
ir a Albany assistir às assembleias municipais. Acabamos com a fotografia do livro de fim de curso. Não é muito, mas já é alguma coisa. A senadora tem de compreender
que não é nenhum OVNI, que aterrou na Terra aos vinte e um anos. De qualquer modo ela concordou em colaborar com este documentário. Não lhe demos o controlo criativo,
espero.
Claro que não mas, pelo menos, tem o poder de voto. Não te esqueças, Pat. Não estamos simplesmente a fazer isto sobre ela; estamos a fazê-lo com ela, e a sua cooperação
para nos deixar consultar os arquivos pessoais é essencial.
Ele levantou-se.
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Uma vez que insistes em ter essa mesa a separar-nos... contornou a mesa, aproximando-se dela e cobrindo-lhe as mãos com as suas.
Rapidamente ela levantou-se, mas não foi suficientemente lesta. Ele puxou-a a si.
És muito bonita, Pat disse levantando-lhe o queixo. Os seus lábios pressionaram os dela. A sua língua tornou-se insistente.
Ela tentou libertar-se, mas em vão.
Por fim conseguiu fincar-lhe os cotovelos no peito.
Deixa-me. Ele sorriu.
Pat, não me queres mostrar o resto da casa? Não havia equívoco no significado.
É muito tarde respondeu ela, mas, a caminho da saída, podes espreitar para a biblioteca e sala de estar. Gostaria mais que esperasses até ter as coisas arranjadas
e os quadros pendurados.
Onde é o teu quarto?
Lá em cima.
Gostaria de o ver.
Na verdade, e mesmo até quando estiver tudo arranjado, gostaria de que pensasses que aquele segundo andar é interdito a visitantes masculinos.
Preferia que não brincasses, Pat.
E eu prefiro que encaremos esta conversa como uma brincadeira. Caso contrário terei de pôr as coisas noutros termos. Não durmo nem no trabalho nem fora dele. Nem
hoje. Nem amanhã. Nem no ano que vem.
Percebo.
Ela acompanhou-o até à saída; entregando-lhe o casaco. Enquanto o vestia, ele sorriu com acidez.
Às vezes as pessoas que tem o teu tipo de insónias deparam com dificuldades em cumprir as suas responsabilidades disse. Muitas vezes descobrem que são mais felizes
numa qualquer estação obscura que nas mais importantes. Será que Apple Junction possui uma estação de TV? Talvez gostasses de investigar isso, Pat.
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Pontualmente às dez para as seis Toby entrou pela porta traseira da casa de Abigail, em McLean, Virgínia. A cozinha, enorme, estava repleta de utensílios. Abigail
descontraía-se passando uma noite inteira a cozinhar. Dependendo da sua disposição, preparava sete ou seis tipos de entradas, pratos de peixe ou de carne. Outras
vezes fazia meia dúzia de molhos, biscoitos, ou bolinhos que se derretiam na boca. Depois metia tudo no frigorífico. Mas quando dava uma festa nunca admitia ter
sido ela a cozinheira. Detestava qualquer associação com a palavra "cozinheira".
Abigail comia muito pouco. Toby sabia que ela era perseguida pela recordação da mãe, a pobre Francey, aquela mulher enorme, com pernas gordas e pés tão largos que
era difícil encontrar sapatos que lhe servissem. Toby tinha um apartamento por cima da garagem. Quase todos os dias entrava e fazia café, ou sumos de frutas. Mais
tarde, depois de deixar Abby no escritório, tomava um pequeno-almoço substancial e, no caso de ela não precisar dele, jogava póquer. Abigail entrou na cozinha, pregando
um alfinete de ouro na lapela. Vestia um fato púrpura que lhe realçava o azul dos olhos.
Estás com óptimo aspecto, Abby disse ele.
O sorriso dela foi rápido e desapareceu imediatamente. Sempre que Abby tinha um discurso importante a fazer sentia-se nervosa como um gato, irritando-se facilmente
se algo corria mal.
Não vamos perder tempo com o café atirou ela.
Tens muito tempo tranquilizou-a Toby. Às seis e meia estarás lá. Bebe é o café. Sabes que ficas muito irritadiça sem ele.
Passado um bocado ele colocou as chávenas no lava-loiças, sabendo que Abby ficaria furiosa se fizesse menção de as lavar. O carro encontrava-se à porta da frente.
Enquanto Abby foi buscar o casaco e a pasta, ele apressou-se a ligar a chauffage.
Às seis e dez estavam no parque de estacionamento. Mesmo para um dia em que ia discursar, Abby estava tensa de mais. Deitara-se cedo na noite anterior. Ele perguntou-se
se ela teria conseguido dormir. Ouviu Abby suspirar e fechar a mala.
Se neste momento ainda não sei o que vou dizer, então é melhor não fazer mais nada disse ela. Se este maldito orçamento não for votado rapidamente, as sessões prolongar-se-ão
até ao dia de Natal. Mas não vou permitir isso.
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Toby observou-a pelo espelho retrovisor enquanto ele se servia do café guardado no termos. Pela atitude dela percebeu que estava disposta a falar.
Dormiu bem na noite passada, senadora? De vez em quando, mesmo quando estavam sozinhos, tratava-a por senadora. Isso servia para indicar que sabia manter as distâncias.
Não, não dormi. Comecei a pensar neste programa. Fui estúpida em ter concordado. Vai dar mau resultado. Sinto-o nos ossos.
Toby franziu as sobrancelhas. Tinha muito respeito pelos ossos de Abby. Ainda não lhe contara que Pat vivia na casa de Dean Adams, pois ela tornar-se-ia supersticiosa.
E aquela não era a altura ideal para a fazer perder a calma. No entanto ela teria de vir a saber. Era inevitável. Toby começou também a ter maus pressentimentos
em relação ao programa.
Pat pusera o despertador para as cinco. Durante o seu primeiro emprego na televisão descobrira que, mantendo a calma, canalizava toda a energia para o projecto entre
mãos. Ainda se lembrava do reboliço quando, ao entrevistar o governador de Connecticut, se apercebera de que se tinha esquecido das perguntas cuidadosamente preparadas.
Depois de dormir no Apple Motel sabia bem estar deitada na sua cama larga e confortável. Mas dormiu mal, pensando na cena com Luther Pelham. Havia muitos homens
naquele meio que faziam tentativas de engate, e alguns deles tornavam-se vingativos quando elas eram goradas. Vestiu-se rapidamente, escolhendo um vestido de lã
preta, de mangas compridas, e um casaco de camurça. Parecia que aquele ia ser mais um dos dias frios e agrestes que caracterizavam aquele mês de Dezembro.
Algumas das janelas não tinham portadas e as vidraças da parte norte da casa batiam, impelidas pelo vento.
Chegou ao cimo das escadas.
O ruído aumentou. Mas, agora, era uma criança a gritar. "Desci as escadas a correr. Estava muito assustada, e chorava..." Uma tontura fê-la agarrar-se ao corrimão.
"Vai acontecer", pensou. "Vai acontecer de novo."
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A caminho do gabinete da senadora sentiu-se perturbada. Não conseguia libertar-se do medo resultante daquela recordação. Por que razão haveria de sentir medo?
Que teria visto naquela noite?
Philip Buckley estava à sua espera. À luz cálida da manhã, a sua atitude em relação a ela pareceu ainda mais cautelosa e hostil que dantes. "De que tem ele receio?",
perguntou-se Pat. "Até parece que sou uma espia britânica num campo colonial." E disse-lho. O sorriso dele foi breve e frio.
Se pensássemos que era uma espia britânica, não se encontrava neste campo colonial comentou ele. A senadora deve estar a chegar. Talvez queira dar uma vista de olhos
pela agenda de hoje. Isso dar-lhe-á uma ideia da quantidade de trabalho que ela tem.
Olhou por cima do ombro dela, enquanto ela lia.
Na verdade, vamos ter de retirar daí pelo menos três pessoas. Achamos que, se se sentar no gabinete da senadora e ficar a observar, poderá decidir quais as partes
do dia que quererá incluir no seu programa. Obviamente que se ela tiver de discutir assuntos confidenciais, terá de sair. Mandei colocar no gabinete dela uma secretária
para si. Assim não se tornará tão conspícuo.
Você pensa em tudo disse-lhe Pat. Vamos lá, sorria. Tem de guardar um sorriso para a câmara, quando começarmos a filmar.
Estou a guardar o sorriso para quando vir a versão final do documentário disse ele, parecendo, no entanto, mais descontraído.
Abigail entrou passados alguns minutos.
Sinto-me muito satisfeita por a ter aqui disse para Pat.
Como não conseguimos contactá-la, pensei que tivesse saído da cidade.
Recebi o seu recado ontem à noite.
Oh, Luther não tinha a certeza se conseguiria dar-lho. "É então esta a razão da conversa", pensou Pat. A senadora queria saber onde ela tinha estado. Mas não lho
iria dizer.
Vou ser a sua sombra até o programa estar pronto disse.
Provavelmente vai fartar-se de me ver andar atrás de si.
71
Abigail não pareceu acalmar.
Tenho de poder contactar consigo rapidamente. Da maneira que tenho a agenda não é muito frequente saber com antecedência quando vou ter algum tempo livre. Agora,
ao trabalho!
Pat seguia até ao gabinete e tentou passar despercebida. Passados momentos a senadora estava envolvida em profunda discussão com Philip. Um dos relatórios que ele
colocara sobre a secretária dela chegara atrasado. Secamente, perguntou porquê.
Devia tê-lo aqui desde a semana passada disse.
Os números não estavam compilados.
Porquê?
Simplesmente porque não houve tempo.
Se não há tempo durante o dia há tempo à noite atirou Abigail. Se alguém na minha equipa anda a olhar muito para o relógio, quero sabê-lo.
Às sete horas começaram as entrevistas. A admiração de Pat por Abigail foi crescendo à medida que cada pessoa entrava no gabinete. Gente da Indústria do petróleo,
gente ligada ao ambiente, pedidos para a causa dos veteranos. Um representante de uma associação opôs objecções específicas a uma proposta de isenção de alguns contribuintes.
Uma delegação de cidadãos mais velhos protestava contra os cortes respeitantes à Segurança Social.
Quando o Senado reuniu, Pat acompanhou Abigail e Philip até à Câmara. Pat não tinha cartão para entrar para a zona reservada aos jornalistas, de forma que se sentou
na galeria reservada ao público. Ficou a observar os senadores que entravam e se cumprimentavam, sorrindo. Havia-os para todos os gostos: magros e gordos; altos
e baixos, alguns com muito cabelo, outros cuidadosamente barbeados, outros carecas. Quatro ou cinco pareciam professores de liceu.
Havia mais duas senadoras, Claire Lawrence, de Oaio, e Phyllis Holzer, de New Hampshire, que fora eleita como independente numa conjuntura espantosa.
Pat estava especialmente interessada em observar Claire Lawrence. A jovem senadora de Oaio vestia um fato de malha de três peças, azul-marinho, que lhe assentava
perfeitamente. O cabelo curto formava ondas naturais que lhe suavizavam o rosto angular. Pat reparou no genuíno prazer com que esta mulher
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era saudada pelos seus colegas, nas gargalhadas que se seguiam aos cumprimentos. Claire Lawrence era, sem dúvida, popular, e o seu maior talento consistia em não
fazer acalmar discursos inflamados sem comprometer o assunto em questão.
No bloco, Pat escreveu "humor" e sublinhou a palavra. Abigail era tida como séria e intensa. Deveriam ser incluídos no programa alguns desses elementos.
Uma campainha persistente acalmou os senadores. O velho senador de Arcansas substituía o vice-presidente na condução da Assembleia. Depois de cumpridas algumas formalidades,
o presidente chamou a senadora de Virgínia.
Abigail levantou-se, sem qualquer ponta de nervosismo, colocou cuidadosamente os óculos de aros azuis. Tinha o cabelo apanhado atrás, o que lhe realçava as linhas
elegantes do perfil e do pescoço.
Duas das mais conhecidas frases da Bíblia começou ela são: "O Senhor dá e o Senhor é que tira." "Seja louvado o nome do Senhor." Nos últimos anos o nosso Governo,
de forma exagerada e desconsiderada, tem dado e voltado a dar. E tem tirado e tirado. Mas são poucos aqueles que o abençoam. Qualquer cidadão responsável concordará,
penso eu, que grande parte das acções empreendidas foi necessária. Mas, agora, é a altura de examinar o que fizemos. Eu defendo que a cirurgia foi demasiado radical,
e os cortes drásticos de mais. Penso que chegou a altura da restauração de muitos programas necessários. Com certeza que nenhum dos presentes nesta augusta câmara
põe em dúvida que qualquer ser humano neste país tem direito a um lar e à alimentação.
Abigail era uma excelente oradora. O seu discurso fora cuidadosamente preparado, documentado e recheado de pormenores pitorescos que atraíam até aqueles profissionais.
Falou durante uma hora e dez minutos. Os aplausos foram prolongados e genuínos. Quando o senador acalmou, Pat reparou que o líder da maioria foi cumprimentar Abigail.
Pat esperou com Philip até que, finalmente, a senadora se afastou dos colegas e assistentes que a rodeavam. Juntos dirigiram-se ao gabinete.
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Foi bom, não foi? perguntou Abigail, mas não havia qualquer dúvida na sua voz.
Excelente, senadora respondeu Philip, prontamente.
Pat? perguntou Abigail, olhando para ela.
Fiquei doente por não ter gravado o seu discurso respondeu Pat, honestamente. Gostaria imenso de incluir no programa excertos do discurso.
Almoçaram no gabinete da senadora. Abigail mandou vir unicamente café e um ovo escalfado. Foi interrompida quatro vezes por telefonemas urgentes. Um deles era o
de uma voluntária da campanha.
Claro, Maggie disse Abigail. Não, não está a interromper nada. Sabe que estou sempre disponível para si. Que se passa?
Pat viu que o rosto de Abigail se tornara sério e franzido.
Quer dizer que no hospital a mandaram levar a sua mãe, quando ela nem sequer consegue levantar a cabeça da almofada?... Percebo. Tem alguma ideia?... Seis meses
de espera? E que vai fazer, entretanto? Maggie, telefono-lhe mais tarde.
Atirou com o auscultador.
Este tipo de coisas põe-me doida. Maggie tenta educar três filhos. Tem um segundo emprego aos sábados e, agora, mandam-na levar para casa uma mãe senil e inválida.
Philip, localize-me Arnold Pritchard. E não me interessa se ele está a almoçar. Descubra-o já.
Passados quinze minutos a chamada que Abigail aguardava, veio.
Arnold, ainda bem que o encontro. Não, não estou nada bem. De facto, sinto-me até bastante preocupada.
Cinco minutos mais tarde, Abigail concluiu a conversa, dizendo:
Sim, de acordo. Willows parece um lugar bastante aceitável. E é suficientemente perto para que Maggie a visite sem perder o dia inteiro de domingo. Sei que posso
contar consigo, Arnold, para fazer que a velhota fique bem instalada... Sim, mande uma ambulância buscá-la ao hospital durante a tarde. Maggie ficará tão aliviada!
Abigail piscou o olho a Pat, enquanto desligava o telefone.
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Esta é uma faceta do trabalho que eu adoro disse. Não devia perder tempo a telefonar a Maggie, mas vou fazê-lo.
Discou rapidamente o número
Olá, Maggie. Estamos com sorte.
Pat decidiu que Maggie seria uma das convidadas do programa.
Havia uma reunião de um comité do ambiente entre as duas e as quatro. Durante o encontro Abigail travou um duelo verbal com um dos depoentes, citando o seu relatório.
O depoente disse:
Senadora, os seus números estão completamente errados. Penso que o que tem são os dados antigos e não os actuais.
Claire Lawrence também fazia parte do comité.
Talvez eu possa ajudar sugeriu. Parece-me que tenho os números reais, e talvez os possa ajudar...
Pat observou a pose rígida dos ombros de Abigail, a forma como abria e fechava os punhos, enquanto Claire Lawrence lia o seu relatório.
A atraente jovem, sentada atrás de Abigail fora, aparentemente, quem ajudara a compilar o relatório deficiente. Durante o discurso da senadora Lawrence, Abigail
olhou para ela várias vezes. A jovem estava, obviamente, muito embaraçada. Tinha o rosto congestionado e mordia os lábios para os impedir de tremer.
Abigail interveio no preciso momento em que a senadora Lawrence se calou.
Sr. Presidente, gostaria de agradecer à senadora Lawrence a sua ajuda e também queria pedir desculpas a este comité pelo facto de os dados que me foram fornecidos
serem inexactos, e de os ter feito perder tempo. Prometo que não voltará a acontecer.
Voltou-se para a sua ajudante. Pat conseguiu ler-lhe nos lábios:
Está despedida!
A rapariga deslizou da cadeira e saiu da sala com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
Interiormente, Pat resmungou. O encontro estava a ser televisionado e, qualquer pessoa que tivesse presenciado a cena, teria, sem dúvida, sentido simpatia pela jovem
assistente.
Quando o encontro acabou, Abigail apressou-se a regressar ao seu gabinete. Era evidente que toda a gente estava a par do que acontecera. As secretárias e funcionárias
no gabinete exterior
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não levantaram as suas cabeças quando ela passou. A infeliz rapariga que cometera o erro, estava a olhar pela janela, limpando os olhos.
Entra, Philip atirou Abigail. Você também, Pat. É bom que fique com uma ideia do que se passa aqui.
Sentou-se à secretária. Exceptuando a palidez das suas feições e os lábios crispados, parecia totalmente calma.
Que aconteceu, Philip? perguntou calmamente.
Até Philip perdera a sua calma habitual. Engoliu em seco enquanto começava a falar.
Senadora, as outras raparigas explicaram-me agora. O marido de Eileen deixou-a há algumas semanas e, pelo que me disseram, ela tem andado num estado terrível. Como
sabe, está connosco há três anos, e a sua ajuda tem sido preciosa. Não quer considerar a hipótese de lhe dar uma licença até ela recuperar? Ela adora este trabalho.
Ai, sim? Gosta tanto que até me deixa fazer figura de parva numa reunião televisionada. Está arrumado Philip. Dou-lhe quinze minutos para sair. E sinta-se muito
satisfeito por não ser também despedido. Quando viu que o relatório estava atrasado, a sua obrigação deveria ter sido investigar as razões. Com tanta gente talentosa
à procura de lugares, incluindo o meu, acha que me vou deixar vulnerabilizar, só porque não tenho colaboradores à altura?
Não, senadora murmurou Philip.
Aqui não há segunda chance. Estamos entendidos?
Sim, senadora.
Então saia daqui e faça o que lhe dizem.
Sim, senadora.
"Hem!", pensou Pat. "Não era de admirar que Philip estivesse à defesa com ela." Apercebeu-se de que a senadora a olhava.
Bem, Pat disse Abigail, calmamente. Deve pensar que sou um monstro, não?
Não esperou pela resposta.
Os meus funcionários sabem que, se tiverem um problema pessoal que os esteja a afectar profissionalmente, deverão dizê-lo e meter licença. Esta política pretende
evitar este tipo de incidentes. Quando um elemento comete um erro, isso reflecte-se
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em mim. Trabalhei de mais, durante demasiados anos, para me ver agora comprometida devido à estupidez de alguém. E, acredite-me, Pat, se isso acontecer uma vez,
vai acontecer mais vezes. Meu Deus, estão à minha espera na escadaria da frente para me tirarem uma fotografia com um soldado!
Quando faltava um quarto para as cinco, a secretária bateu timidamente na porta do gabinete de Abigail.
Uma chamada para Miss Traymore sussurrou.
Era Sam. A sua voz calorosa fez subitamente melhorar a disposição de Pat. Sentia-se perturbada pelo episódio desagradável e pela infelicidade patente no rosto da
jovem.
Olá, Sam disse, sentindo o olhar arguto de Abigail.
Os meus espiões disseram-me que estavas aí. Que tal irmos jantar?
Jantar? Não posso, Sam. Tenho de trabalhar esta noite.
Também tens de comer. Que almoçaste? Um dos ovos escalfados de Abigail?
Ela tentou não se rir. A senadora estava, obviamente, a ouvir a conversa.
Desde que não te importes de comer rapidamente e cedo cedeu ela.
Por mim está bem. Que tal se te for buscar à porta do edifício Russel dentro de meia hora?
Depois de desligar, Pat olhou para Abigail.
Já viu todo o material que lhe fornecemos, os filmes? perguntou Abigail.
Não.
Não viu nada?
Não admitiu Pat, sentindo-se satisfeita por não trabalhar para aquela dama.
Pensei que poderia vir jantar a minha casa para discutirmos aquilo que quer incluir no documentário.
De novo uma pausa. Pat ficou à espera.
Contudo, uma vez que ainda não viu o material, é melhor dedicar o serão à leitura. Abigail sorriu. Sam Kingsley é um dos solteiros mais interessantes desta cidade.
Não sabia que o conhecia tão bem.
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Pat tentou responder com à-vontade.
Não verdade, não o conheço assim tão bem disse, mas não pôde deixar de pensar que Sam estava a ter dificuldade em se manter afastado dela.
Olhou pela janela, desejando ocultar a expressão do seu rosto. Lá fora era quase noite. As janelas da senadora davam para o Capitólio. À medida que a luz do dia
desaparecia, o edifício em cúpula, recortado contra o azul do céu, parecia uma pintura.
Que maravilha! exclamou. Abigail olhou para a janela.
Sim, na verdade é concordou. Essa vista, a esta hora do dia, recorda-me sempre o que estou a fazer aqui. Não imagina a satisfação que tenho por, devido ao que fiz
hoje, uma velha ser tratada num lar decente.
Havia como que uma energia sensual em Abigail Jennings quando falava do seu trabalho, pensou Pat. "Ela sente o que diz." Mas também lhe ocorreu que a senadora já
tinha apagado da sua memória a rapariga que despedira havia algumas horas.
Pat estremeceu enquanto descia as escadas do edifício, onde se situava o gabinete da senadora, até ao carro. Sam inclinou-se para lhe beijar a face.
Como está a grande realizadora?
Cansada respondeu ela. Acompanhar a senadora Jennings não é receita para um dia calmo.
Sam sorriu.
Percebo o que queres dizer. Trabalhei com Abigail em várias legislações. Ela nunca se vai abaixo.
Penetraram por entre o trânsito e ele virou para Pensylvania Avenue.
Pensei que era boa ideia irmos ao Chez Grandmère. em Georgetown disse ele. É calmo, a comida excelente, e fica perto de tua casa.
Chez Grandmère encontrava-se praticamente vazio.
Em Washington não se janta às seis menos um quarto disse Sam, sorrindo, enquanto o maítre lhes dava a escolher uma das mesas.
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Enquanto tomavam um cocktail, Pat relatou-lhe o dia, incluindo o incidente desagradável.
Isso foi mau para Abigail. Era desnecessário.
Será que um incidente como este poderia influenciar a decisão do presidente? perguntou Pat.
Pat, tudo pode influenciar a decisão do presidente. Basta um erro para arruinar uma carreira. E tens um exemplo. Se não fosse o caso Chappaquiddick, hoje, Ted Kennedy,
poderia ser presidente. Depois, claro, tens Watergate e Abscam, e um sem-número de outros casos. Tudo se reflecte sobre o homem, ou mulher, que detém a responsabilidade.
É um milagre que Abigail tenha sobrevivido ao escândalo do desvio de fundos, e, se tentasse ajudar a colaboradora, teria sido o fim da sua credibilidade. Como é
que se chama a rapariga?
Eleanor Brown.
Pat pensou no que Margaret Langley dissera. " Eleanor não seria capaz de roubar. É demasiado tímida."
Eleanor sempre reclamou estar inocente disse ela a Sam. Ele encolheu os ombros.
Pat, eu fui representante do Ministério Público durante anos. Queres saber uma coisa? Nove em cada dez criminosos reclamam a sua inocência. E, pelo menos, oito entre
nove são mentirosos.
Mas há sempre um que está inocente insistiu Pat.
Muito esporadicamente disse Sam. Que te apetece comer?
Pareceu-lhe que ele se descontraíra durante a hora e meia que estiveram juntos.
"Faço-te bem, Sam", pensou ela. "Posso fazer-te feliz." Quando tomavam café, ele perguntou:
Como te estás a dar lá em casa? Algum problema?
Ela hesitou e, depois, resolveu falar-lhe do bilhete que encontrara debaixo da porta e do segundo telefonema.
Mas, como tu dizes, deve ser algum maluco concluiu ela.
Sam não retribuiu o sorriso.
O que eu disse foi que uma única chamada poderia não ser importante, mas tu estás a contar-me que, durante estes três
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dias, recebeste outro telefonema e um bilhete. Como é que esse tarado terá conseguido a tua morada?
Como é que tu a conseguiste?
Telefonei para a rede de Potomac e disse que era teu amigo. Uma secretária deu-me o teu número de telefone e a morada e até me disse quando chegavas. Sinceramente,
até fiquei um pouco surpreendido por me terem dado estas informações.
Eu autorizei. Vou utilizar a casa como quartel-general para elaborar o programa, e ficarias surpreendido se soubesses a quantidade de gente que se oferece para colaborar,
contando episódios pitorescos ou recordações. Não queria correr o risco de perder essas informações. Pensei que não havia nada de mal nisso.
Então o tarado pode ter sabido da mesma forma que eu. Por acaso tens o bilhete contigo?
Está na minha carteira disse ela, retirando-o, satisfeita por se ver livre dele.
Sam analisou-o de sobrolho franzido.
Duvido que isto possa ser localizado, mas deixa-me mostrá-lo a Jack Carlson. Ele é agente do FBI e perito em caligrafia. E não te esqueças de desligar o telefone
se houver outro telefonema.
Deixou-a em casa às oito e meia.
Tens de pôr aqui umas lâmpadas comentou ele, quando se encontravam à porta. Qualquer pessoa pode chegar aqui e enfiar um bilhete debaixo da porta sem ser vista.
Ele sorriu fugazmente e, nesse instante, a tensão desapareceu dos seus olhos. A minha mãe ensinou-me a ser educado para com a miúda mais gira da cidade.
Fechou as mãos sobre as dela. Por momentos ficaram em silêncio e, depois, ele curvou-se e beijou-a no rosto.
Ainda bem que não estás a tentar nada murmurou ela.
O quê?
Na outra noite beijaste-me debaixo do olho direito, esta noite, debaixo do esquerdo.
Boa noite, Pat. Tranca a porta.
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Pat mal tinha chegado à biblioteca quando o telefone retiniu. Por um breve momento teve receio de atender.
Pat Traymore. A sua própria voz pareceu-lhe brusca e tensa.
Miss Traymore disse uma voz de mulher. Sou Lila Thatcher, a sua vizinha da frente. Sei que acabou de chegar, mas seria possível vir à minha casa? Quero dizer-lhe
uma coisa importante.
"Lila Thatcher", pensou Pat. "Lila Thatcher. Claro. Era a vidente que escrevera vários livros sobre fenómenos paranormais. Há uns meses, fora louvada por ter ajudado
a encontrar uma criança fugida."
Vou já para aí concordou Pat, relutantemente, mas receio não poder demorar-me.
Enquanto atravessava a rua, evitando enfiar os pés na lama, tentou ignorar a tensão que sentia.
Tinha a certeza de não querer ouvir o que Lila Thatcher se preparava para lhe dizer.
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Uma criada abriu-lhe a porta e acompanhou-a à sala. Pat não sabia que tipo de pessoa esperava visualizara uma cigana de turbante; mas a mulher que se levantou para
a receber, poderia ser unicamente descrita como acolhedora. Era rechonchuda e grisalha, com olhos brilhantes e inteligentes, e um sorriso caloroso.
Patricia Traymore disse ela. Tenho muito prazer em conhecê-la. Bem-vinda a Georgetown!
Agarrando na mão de Pat, estudou-a atentamente.
Sei que está muito ocupada com a preparação do programa. É um projecto importante. Como se está a dar com Luther Pelham?
Até aqui muito bem.
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Espero que continue assim.
Lila Thatcher usava óculos, presos por uma longa corrente de prata. Distraidamente agarrou-os e começou a bater com eles contra a palma da mão esquerda.
Também disponho de pouco tempo. Dentro de meia hora tenho uma reunião e, amanhã, vou apanhar o avião para a Califórnia. Por isso é que resolvi telefonar-lhe. Não
costumo fazer este tipo de coisas. Contudo, em consciência, não posso partir sem a avisar. Sabe que há vinte e três anos se deu um suicídio... assassínio na casa
que agora ocupa?
Já me contaram isso.
Era aquela a resposta mais próxima da verdade.
Isso não a perturba?
Mrs. Thatcher, grande parte das casas em Georgetown devem ter cerca de duzentos anos. Deve ter morrido gente em todas elas.
Não é a mesma coisa.
A voz da mulher tornou-se mais rápida e nervosa.
O meu marido e eu mudámo-nos para cá um ano antes de se dar a tragédia. Lembro-me da primeira vez que lhe disse sentir algo de escuridão na atmosfera que rodeava
a casa Adams. Durante os meses seguintes isso aparecia e desaparecia, mas cada vez que se repetia era mais pronunciado. Dean e Renée Adams formavam um casal muito
atraente. Ele era muito bem-parecido, um daqueles homens magnéticos que atraem imediatamente a atenção. Renée era diferente, calma, reservada, muito introvertida.
Eu achei que ela não era a pessoa indicada para ser mulher de um político, e que o seu casamento iria, inevitavelmente, ser afectado por isso. Mas ela estava muito
apaixonada pelo marido, e ambos eram muito devotados à criança.
Pat ouvia, imóvel.
Uns dias antes de morrer, Renée disse-me que ia voltar para New England, com Kerry. Estávamos à porta de sua casa, e eu não consigo descrever a sensação de perigo
que senti. Tentei avisar Renée. Disse-lhe que, se a sua decisão era irrevogável, deveria partir sem demora. E, depois, foi tarde de mais. Nunca mais tornei a experimentar
aquela sensação, até esta semana.
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Mas, agora, sinto-a. Não sei porquê, mas é como da outra vez. Sinto a escuridão a envolvê-la. Não deve ficar ali! Pat perguntou cautelosamente:
Há mais alguma razão, para além de sentir essa aura à volta da casa, para me avisar?
Sim. Há três dias a minha criada viu um homem parado na esquina. Depois viu pegadas na neve. Pensámos que podia ser um ladrão e notificámos a polícia. Voltámos a
ver pegadas ontem de manhã, após o nevão. Quem quer que anda por aí, só vai até esse rododendro. Por detrás dele, qualquer pessoa pode observar a sua casa sem ser
observado, das janelas ou da rua.
Mrs. Thatcher rodeou-se com os braços, como se tivesse, subitamente, frio. O seu rosto estava muito sério e tenso. Olhou para Pat com intensidade e, depois, os seus
olhos arregalaram-se com uma expressão de secreta descoberta. Quando Pat saiu, alguns minutos mais tarde, a velhota estava visivelmente perturbada e, mais uma vez,
insistiu com Pat para que deixasse a casa.
"Lila Thatcher sabe quem eu sou", pensou Pat. "Estou certa disso."
Dirigiu-se directamente para a biblioteca e serviu-se de uma boa quantidade de brande.
Assim é melhor murmurou, enquanto recuperava o calor.
Tentou não pensar na escuridão lá fora. Mas, pelo menos, a polícia estava avisada. Esforçou-se por se manter calma. Lila pedira a Renée para sair dali. Se a sua
mãe lhe tivesse dado ouvidos, e obedecido ao aviso, poderia a tragédia ter sido evitada? Deveria obedecer ao conselho de Lila e mudar-se para um hotel ou alugar
um apartamento?
Não posso disse, em voz alta. Não posso, de forma nenhuma.
Tinha tão pouco tempo para preparar o documentário! Seria impensável estar a desperdiçá-lo com mudanças. O facto de, como vidente, Lila Thatcher sentir o perigo,
não queria dizer que o pudesse evitar, pensou Pat. "Se a mãe tivesse ido para Boston, o papá, provavelmente, tê-la-ia seguido. Se alguém estiver decidido
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a encontrar-me, vai consegui-lo. Em qualquer apartamento teria de ter tanto cuidado como aqui. E vou ter."
De qualquer forma, a ideia de que Lila poderia ter adivinhado a sua identidade, era reconfortante. "Ela gostava da minha mãe e do meu pai. Conheceu-me quando era
miúda. Depois de acabar o programa vou falar com ela, puxar-lhe pela memória. Talvez me ajude a reconstituir as coisas."
Mas, agora, era absolutamente essencial começar a analisar os documentos pessoais da senadora e seleccionar alguns para o programa.
Os filmes estavam misturados nos caixotes que Toby trouxera. Felizmente estavam todos rotulados. Começou a retirá-los. Alguns eram de actividade política, campanhas
e discursos. Finalmente encontrou os filmes pessoais que lhe interessavam mais. Começou pelo filme rotulado WILLARD e ABIGAIL - RECEPÇÃO NUPCIAL EM HILLCREST.
Sabia que eles tinham fugido antes de ele se graduar pela Faculdade de Direito de Harvard; Abby tinha acabado o primeiro ano em Radcliffe. Willard candidatara-se
ao Congresso alguns meses após o casamento. Ela ajudara-o na campanha e, depois, acabara o curso na Universidade de Richmond. Aparentemente, tivera lugar uma recepção
quando ele a trouxera para Virgínia.
O filme começava com a imagem de uma festa num jardim. As mesas estavam colocadas sob toldos coloridos. Junto às árvores, criados moviam-se por entre a multidão
de convidados mulheres com vestidos e chapéus de Verão, homens de casacos escuros e calças de flanela branca.
No terraço encontrava-se uma mulher deslumbrante, a jovem Abigail, com um vestido comprido de seda branca, junto a um jovem com ar de estudante. Uma mulher mais
velha, obviamente a mãe de Willard Jennings, encontrava-se à direita de Abigail. O seu rosto aristocrático tinha linhas duras. À medida que os convidados iam passando,
ela apresentava-os a Abigail. Nem uma só vez olhou directamente para ela.
"Que é que a senadora dissera? A minha sogra sempre me considerou a ianque que lhe roubou o filho."
Era evidente que Abigail não tinha exagerado.
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Pat estudou Willard Jennings. Era ligeiramente mais alto que Abigail, com cabelo loiro e rosto simpático. Tinha um ar tímido, enquanto apertava mãos ou beijava rostos.
Dos três, só Abigail parecia completamente à vontade: sorria constantemente, inclinando a cabeça para a frente, como que a querer assimilar os nomes, estendendo
a mão para mostrar os anéis.
"Se ao menos houvesse banda sonora", pensou Pat.
Fora cumprimentada a última pessoa. Pat observou Abigail e Willard voltarem-se um para o outro. A mãe de Willard continuou a olhar em frente. Naquele momento, o
seu rosto parecia mais pensativo que zangado.
E, então, sorriu calorosamente. Um homem alto e arruivado aproximava-se. Abraçou Mrs. Jennings, soltou-a, abraçou-a de novo, e depois, virou-se para felicitar os
recém-casados. Pat inclinou-se para a frente. Quando o rosto do homem apareceu em primeiro plano, ela fixou a imagem.
Aquele convidado atrasado era o seu pai, Dean Adams. "Parece tão novo", pensou Pat. "Não pode ter mais de trinta anos!" Tentou libertar-se do nó que sentia na garganta.
Lembrava-se dele assim. Os seus ombros largos enchiam o écran. "Parece um jovem deus", pensou ela, transmitindo energia magnética.
Feição a feição, estudou-lhe o rosto, parado no écran, vulnerável a um exame minucioso. Perguntou-se onde estaria a sua mãe e, depois, lembrou-se de que, quando
aquilo fora filmado, a mãe ainda era uma estudante do Conservatório de Boston que tencionava seguir uma carreira musical.
Dean Adams era, nessa altura, um congressista recém-eleito por Wisconsin. Ainda ostentava o ar saudável do Médio Oeste.
Ela carregou no botão e as personagens voltaram à vida. Dean Adams a brincar com Willard Jennings, Abigail estendendo-lhe a mão. Ele ignorou-a e beijou-lhe o rosto.
O que quer que tenha dito a Willard todos se riram.
A câmara seguiu-os enquanto desciam as escadas do terraço e começaram a circular entre os convidados. Dean Adams dera o braço à velha Mrs. Jennings. Conversaram
animadamente e gostavam, obviamente, um do outro.
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Depois de o filme acabar, Pat voltou a passá-lo, assinalando segmentos que poderiam ser utilizados no programa. Willard e Abigail a cortarem o bolo, a brindarem,
a abrirem o baile. Não poderia usar nenhuma imagem de recepção dos convidados. O descontentamento no rosto de Mrs. Jennings era demasiado visível. E, claro, estava
fora de causa utilizar o filme onde aparecia Dean Adams. "Que sentiria Abigail naquela tarde?", perguntou-se. "Aquela bela mansão branca, a concentração da melhor
sociedade de Virgínia... quando havia ainda poucos anos saíra dos quartos dos empregados da casa Saunders, em Apple Junction. Â casa Saunders! A mãe de Abigail,
Francey Foster! Onde estaria ela nesse dia? Teria declinado o convite para a recepção do casamento da filha, achando que se iria sentir deslocada no meio de tanta
gente fina? Ou teria Abigail decidido por ela?"
Uma a uma Pat começou a rever todas as imagens, tentando contrariar o choque de ver o pai aparecer frequentemente.
Mesmo sem possuir as datas, teria sido possível dar aos filmes uma sequência cronológica.
A primeira campanha: imagem de Abigail e Willard de mãos dadas, a descerem a rua, cumprimentando os transeuntes... Abigail e Willard observando umas obras de construção.
A voz do locutor "Ao candidatar-se esta tarde ao lugar deixado vago pelo seu tio, o congressista Porter Jennings, Willard Jennings prometeu continuar a tradição
familiar de defender o eleitorado." Havia uma entrevista com Abigail: " Como se sente por passar a lua-de-mel em campanha? Resposta de Abigail: Não encontro uma
maneira melhor de o ajudar a começar a sua carreira na vida pública."
Havia, na voz de Abigail, o sotaque inconfundível do Sul. Pat fez um cálculo rápido. Nessa altura Abigail estava em Virgínia havia menos de três meses. Marcou esse
segmento para usar no programa. Ao todo havia imagens de cinco campanhas. Por ordem crescente de aparição, Abigail representava um papel cada vez mais importante
nos esforços para a reeleição. O seu discurso começava frequentemente assim: "O meu marido encontra-se em Washington a trabalhar para vós. Ao contrário de muitos
outros, não se serve do tempo do Congresso para fazer a sua campanha. Eu tenho muito prazer em vos falar dos seus esforços."
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Os filmes referentes a acontecimentos sociais na propriedade eram os mais difíceis de observar 35." ANIVERSÁRIO DE WILLARD. Dois jovens casais posando com Abigail
e WillardJack e Jackie Kennedy, e Dean e Renée Adams ambos recém-casados...
Era a primeira vez que Pat via um filme com a mãe. Renée usava um vestido comprido verde-pálido; o cabelo escuro caía-lhe sobre os ombros. Havia nela algo de tímido
mas, quando sorria para o marido, a sua expressão era de adoração. Pat não conseguiu suportar aquilo. Avançou com o filme. Algumas sequências depois, os Kennedy
e os Jennings posavam juntos. Tomou um apontamento no bloco. Aquela imagem seria óptima para o programa, pensou amargamente.
O último filme que visionou dizia respeito ao funeral de Willard Jennings. Havia uma reportagem que começava no exterior da catedral. O locutor estava emocionado:
"O cortejo funerário do congressista Willard Jennings acaba de chegar. Os grandes e importantes estão aqui para se despedirem do legislador de Virgínia, que morreu
quando o avião fretado em que seguia, a caminho de um compromisso profissional, se despenhou. O congressista Jennings e o piloto, George Graney, morreram instantaneamente.
A jovem viúva é acompanhada pelo senador John Fitzgerald Kennedy, de Massachusets. A mãe do congressista Dean Adams, de Wisconsin. O senador Kennedy e o congressista
Adams eram os melhores amigos de Willard Jennings."
Pat viu Abigail sair do carro, o rosto composto, um véu negro cobrindo-lhe o cabelo loiro. Vestia um fato simples de seda negra e usava um colar de pérolas. O jovem
e atraente senador de Massachusets deu-lhe, gravemente, o braço.
A mãe do congressista estava, obviamente, muito abalada. Quando a ajudaram a sair da limusina, os seus olhos pousaram sobre o caixão coberto pela bandeira nacional.
Crispou as mãos e abanou a cabeça num gesto de agonia e rejeição. Pat observou que o pai dava o braço a Mrs. Jennings e lhe agarrava a mão. Lentamente o cortejo
entrou na catedral.
Pat vira tudo o que lhe fora possível observar numa tarde. O interesse humano que procurara estava amplamente presente naqueles filmes. Apagou as luzes da biblioteca
e passou para o vestíbulo. O vestíbulo estava frio. Não havia janelas abertas na
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biblioteca. Verificou a sala de jantar, a cozinha e o salão. Tudo estava fechado.
No entanto havia uma corrente de ar.
Uma sensação de apreensão acelerou o ritmo de respiração de Pat.
A porta da sala de estar estava fechada. Pousou a mão sobre a maçaneta. O espaço entre a porta e o rodapé estava gelado. Lentamente abriu a porta. Uma lufada de
ar invadiu-a. Acendeu as luzes. As portas que davam para a varanda estavam abertas. Uma vidraça que fora cortada da sua armação encontrava-se no chão.
E foi então que viu.
Deitada junto à lareira, sobre a perna direita, bibe branco manchado de sangue, encontrava-se uma boneca, Raggedy Ann. Ajoelhando-se, Pat olhou para ela. Uma mão
habilidosa pintara a expressão da boca, acrescentara lágrimas às faces e traçara rugas na testa, de forma que o sorriso habitual da boneca se transformara numa imagem
de dor e choro. Colocou a mão contra a boca para evitar chorar. Porquê? Meio escondido sob o bibe, havia um papel pregado com um alfinete. Agarrou nele; os seus
dedos encolheram-se quando tocaram no sangue seco. Era o mesmo tipo de papel do outro bilhete, a mesma caligrafia.
Este é o último aviso. Não deve aparecer nenhum programa laudatório sobre Abigail Jennings.
Um restolhar. Uma das portas que davam para o pátio moveu-se. Estaria ali alguém? Pat deu um salto. Mas era apenas o vento que empurrara a porta de um lado para
o outro. Atravessou a sala a correr e trancou as portas. Mas era inútil. A mão que retirara o vidro poderia enfiar-se de novo pela abertura e entrar de novo. Talvez
o intruso ainda lá se encontrasse, escondido no jardim, atrás dos arbustos.
As mãos tremiam-lhe enquanto discava o número da polícia. A voz do agente tranquilizou-a:
Vamos já mandar um carro para aí.
Enquanto esperava, Pat releu o bilhete. Aquela era a quarta vez que a avisavam para se afastar do programa. Subitamente
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desconfiada perguntou-se se aquelas ameaças seriam a sério. Seria possível que aquilo fosse um truque sujo da campanha para dar mais publicidade ao documentário
sobre a senadora? E quanto à boneca? Chocara-a principalmente devido ao seu significado. Examinando-a mais atentamente, pareceu-lhe mais bizarra que assustadora.
Até o bebé manchado de sangue podia ser uma tentativa cruel de a assustar. "Se fosse um repórter a descobrir esta história, colocaria uma fotografia desta coisa
na primeira página", pensou. A sirena do carro da polícia fê-la decidir-se. Rapidamente agarrou no bilhete e colocou-o sobre a lareira. Correndo para a biblioteca
arrastou um caixote de debaixo da mesma e meteu lá a boneca. O bibe manchado provocou-lhe náuseas. A campainha estava a tocar, um toque insistente. Impulsivamente
arrancou o bibe e enterrou-o dentro do caixote. Sem ele a boneca parecia uma criança ferida.
Voltou a meter o caixote debaixo da mesa e apressou-se a ir abrir a porta à polícia.
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Dois carros da polícia, com os faróis acesos, encontravam-se no caminho de acesso à casa. Um terceiro carro seguira-os.
"Deus queira que não seja a imprensa", pensou. Mas era.
Foram tiradas fotografias à janela partida; o chão foi revistado, e a sala de estar examinada para verificar a existência de impressões digitais.
Foi difícil explicar o bilhete.
Estava preso a alguma coisa? perguntou um dos detectives. Onde o encontrou?
Aqui mesmo junto à lareira.
Era uma verdade suficiente. O repórter era do Tribune. Pediu para ver o bilhete.
Eu preferia não o tornar público disse Pat, mas autorizo-o a lê-lo.
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Que quer dizer este "aviso"? perguntou o detective. Já recebeu outras ameaças?
Omitindo a referência "àquela casa", ela disse que recebera dois telefonemas relacionados com a carta que encontrara na primeira noite.
Este não está assinado referiu o detective. Onde se encontra o outro?
Não o guardei. Também não estava assinado.
Mas, ao telefone, ele intitulou-se um anjo vingador?
Disse algo como "sou um anjo de vingança, de justiça..."
Parece mesmo de um maluco comentou o detective, analisando-a com pormenor. É curioso ele ter-se dado ao trabalho de entrar cá em casa. Por que razão não terá metido
o sobrescrito debaixo da porta?
Perturbada, Pat observava o repórter escrevinhar no seu bloco de notas.
Finalmente os polícias preparavam-se para sair. A superfície de todas as mesas da sala estavam cobertas por pó de impressões digitais. As portas de vidro tinham
sido amarradas para não poderem ser abertas até à substituição da vidraça.
Era impossível ir-se deitar. Aspirar o pó da sala poderia ajudar, decidiu. Enquanto trabalhava, não conseguia esquecer a boneca Raggedy Ann. "A criança tinha entrado
na sala... e tropeçado... a criança caíra sobre algo macio, e as suas mãos tornaram-se húmidas e pegajosas... e a criança ergueu os olhos e viu."
"Que vi eu?", perguntou-se Pat. "Que vi eu?"
As suas mãos trabalhavam inconscientemente, aspirando o pó e, depois, polindo as belas mesas de madeira, removendo bibelots, levantando e empurrando a mobília. A
carpeta tinha marcas dos pés dos polícias.
"Que vi eu?"
Começou a recolocar a mobília. "Não, aqui não, aquela mesa pertence junto à parede, aquele candeeiro fica sobre o piano, a cadeira de balouço junto às portas que
dão para a varanda." Foi só quando acabou que viu bem o que estivera a fazer.
A cadeira de balouço. Os homens da mudança tinham-na colocado junto ao piano.
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"Atravessara o vestíbulo em direcção à sala. Ela gritara: Papá, papá... Tropeçara no corpo da mãe. A mãe sangrava. Ergueu os olhos e então..."
E, então, só escuridão...
Eram quase três horas.
Não conseguia pensar mais naquilo. Sentia-se exausta e doía-lhe a perna. O seu coxear era evidente, se alguém a estivesse a observar, enquanto guardava o aspirador
e subia as escadas.
Às oito horas o telefone tocou. Era Luther Pelham. Mesmo ensonada, Pat apercebeu-se de que ele estava furioso.
Pat, soube que foste assaltada ontem à noite. Estás bem? Ela piscou os olhos, tentando espalhar o sono e aclarar as ideias.
Sim.
Vens na primeira página do Tribune. E tem um grande cabeçalho. JORNALISTA AMEAÇADA DE MORTE. Vou ler-te o primeiro parágrafo:
Um assalto a uma residência de Georgetown foi a mais recente de uma série de ameaças bizarras recebidas pela conhecida jornalista de televisão, Patricia Traymore.
As ameaças estão relacionadas com o documentário Perfil da Senadora Abigail Jennings, que Miss Traymore está a produzir, e que deverá ser transmitido na próxima
quarta-feira à noite, na estação de TV de Potomac.
É mesmo desta publicidade que Abigail precisa.
Lamento articulou Pat. Tentei esconder o bilhete do repórter.
Por acaso ocorreu-te telefonar-me em vez de à polícia? Francamente, julguei que tinhas mais bom senso que o que demonstraste ontem à noite. Podíamos ter contratado
alguns detectives privados para te vigiar a casa. Deve ser obra de algum maluco, mas a questão escaldante em Washington vai ser "quem odeia tanto Abigail"?
Ele tinha razão.
Lamento repetiu Pat. Depois, acrescentou: Contudo, se desses conta de que a tua casa tinha sido assaltada e pensasses
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que algum tarado ainda lá podia estar dentro, acharias que chamar a polícia era uma reacção normal.
Não vale a pena discutir mais até avaliarmos os prejuízos. Viste os filmes de Abigail?
Sim. Há lá material excelente para transmitir.
Não disseste a Abigail que tinhas ido a Apple Junction? Não, não disse.
Bem, se fores esperta, não lho vais dizer. É só o que lhe faltava ouvir!
Sem se despedir, Luther desligou o telefone.
Arthur tinha o hábito de ir à padaria, pontualmente às oito horas comprar pão e, depois, o jornal da manhã. Naquele dia inverteu o procedimento. Estava tão ansioso
por ver se havia alguma coisa sobre o assalto que se dirigiu ao quiosque em primeiro lugar.
Lá estava na primeira página. Leu a história toda, pensando em cada palavra e, depois, encolheu os ombros. Não havia nada sobre a boneca Raggedy Ann. A boneca fora
a sua forma de os fazer entender que já fora utilizada a violência naquela casa e que poderia voltar a sê-lo.
Comprou dois pãezinhos e andou os três quarteirões até ao edifício onde ficava o horrível apartamento, no segundo andar. Somente a meio quilómetro, King Street tinha
bons restaurantes e lojas, mas os arredores eram pobres e lúgubres. A porta do quarto de Glory estava aberta, e viu que ela já estava vestida com uma camisola vermelho-vivo
e jeans. Ultimamente fizera amizade com outra rapariga do escritório, tipo brasa, que ensinara a Glory algumas coisas sobre maquilhagem e a persuadira a cortar o
cabelo.
Ela não ergueu os olhos, embora devesse tê-lo ouvido entrar. Suspirou. A atitude de Glory em relação a ele começava a tornar-se distante, até impaciente. Como na
noite anterior, quando ele lhe tentara contar como tinha sido difícil fazer que a velha Mrs. Rodriguez engolisse o remédio, e como ele partira o comprimido em dois
e lhe dera um pedaço de pão para tirar o mau sabor. Glory interrompera-o.
Pai, não podemos falar de mais nada sem ser do lar?
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E, depois, fora ao cinema com umas colegas. Ele colocou os pães num prato e serviu o café.
Está servido! chamou.
Glory apressou-se a ir para a cozinha. Tinha o casaco vestido e a mala debaixo do braço, como se estivesse ansiosa por sair.
Olá disse ele, suavemente.A minha menina está hoje muito bonita!
Glory não sorriu.
Como foi o filme? perguntou ele.
Foi bom. Olhe, não se incomode de mais a ir buscar pão para mim. Eu tomo o pequeno-almoço no escritório com as outras.
Ele sentiu-se esmagado. Gostava de partilhar o pequeno-almoço com Glory antes de ela sair para o trabalho.
Ela deve ter sentido o seu desapontamento, pois olhou para ele, e a sua expressão suavizou-se.
É tão bom para mim disse ela, numa voz ligeiramente triste.
Depois de ela sair, ele ficou um bocado, fitando o espaço. A noite passada fora exaustiva. Depois de todos aqueles anos, voltar àquela casa, àquela sala, colocar
a boneca de Glory no local exacto onde a criança tinha ficado estendida... Depois de a colocar sob a lareira, com a perna direita sob o corpo, quase esperou ver
também, de novo, os corpos do homem e da mulher.
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Após o telefonema de Luther, Pat levantou-se, fez café e começou a delinear o programa. Tinha decidido esboçar as duas versões do documentário, uma incluindo um
segmento de abertura sobre o começo de vida de Abigail em Apple Junction, a outra começando a partir da recepção nupcial. Quanto mais pensava mais lhe parecia que
a fúria de Luther era justificada. Abigail já estava demasiado sensível em relação ao programa, e
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não precisava daquela publicidade desnecessária. "Pelo menos, tive a sensatez de esconder a boneca", pensou. Às nove da noite estava na biblioteca a ver o resto
dos filmes.
Luther já lhe tinha enviado alguns segmentos sobre o caso de Eleanor Brown, mostrando Abigail a sair do tribunal após o veredicto de "culpada". O seu depoimento
sentido! "Este é um dia muito triste para mim. Só espero que Eleanor tenha a decência de dizer onde escondeu aquele dinheiro. Era dinheiro para a minha campanha,
é certo, mas, mais importante que isso, era dinheiro doado por pessoas que acreditam nos ideais que defendo."
Um repórter perguntara: "Então, senadora, não há ponta de verdade na insistência de Eleanor de que o seu motorista lhe telefonou a pedir para ir à procura do anel
de diamantes no cofre dos fundos da campanha?"
"O meu motorista, nesse dia, conduziu-me a uma reunião em Richmond. O anel encontrava-se no meu dedo."
E, então, o recorte mostrava uma fotografia de Eleanor Brown, em grande plano, que revelava nitidamente cada feição do seu rosto miúdo e pálido, e dos seus olhos
e boca tímidos.
O filme acabava com uma cena de Abigail dirigindo-se a uns estudantes da faculdade. O assunto eram os Fundos Públicos, e o tema, a responsabilidade absoluta de um
legislador para se manter e à sua equipa, acima de qualquer suspeita.
Havia outro segmento, uma compilação de discursos da senadora exigindo regulamentações mais estritas. Referiu-se várias vezes ao facto de ser viúva e por o marido
ter confiado a sua vida a um piloto inexperiente com um avião em mau estado.
No final de cada um destes segmentos, Luther marcara: "Dois minutos de discussão entre a senadora J e Pat T. sobre o assunto."
Pat mordeu os lábios. Aqueles dois segmentos não se enquadravam naquilo que ela pretendia fazer.
"Que aconteceu ao meu poder criativo?", perguntou-se. "Está tudo a andar demasiado depressa."
O telefone tocou no momento em que começava a examinar as cartas dos eleitores de Abigail. Era Sam.
Pat, li o que te aconteceu. Telefonei à agência que me alugou a casa.
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Sam vivia nas Torres Watergate.
Há vários apartamentos vagos. Quero que alugues um por um mês, até este caso estar esclarecido.
Sam, não posso. Sabes a tensão em que tenho andado. Já mandei colocar outra fechadura. A polícia vai manter a casa vigiada. Tenho aqui todo o meu material de trabalho.
Tentou mudar de assunto. O meu problema agora é o que vestir para o jantar na Casa Branca.
Tu estás sempre bem. Abigail também vai. Encontrei-a hoje de manhã.
Passado pouco tempo a senadora telefonou para exprimir o seu choque sobre o assalto. Depois foi ao fundo da questão.
Infelizmente, a sugestão de que você está a ser ameaçada por causa deste programa, está a levar a todo o tipo de especulação. Quero tudo isto abafado, Pat. Obviamente,
quando o programa for transmitido, as ameaças pararão, mesmo que venham de um maluco qualquer. Já viu os filmes que lhe mandei?
Vi, sim respondeu Pat. É material óptimo e assinalei-o. Mas queria pedir-lhe Toby emprestado. Preciso de alguns nomes e de informações mais específicas.
Concordaram que Toby iria dentro de uma hora. Quando Pat desligou, ficou com a sensação de que aos olhos de Abigail, se tinha tornado um empecilho. Toby chegou quarenta
e cinco minutos mais tarde, o rosto duro sorridente.
Gostava de cá estar quando esse brincalhão tentou cá entrar, Pat disse-lhe. Eu tinha-o feito em carne picada.
Aposto que sim.
Ele sentou-se à mesa da biblioteca enquanto ela ligava o projector.
Aquele é o velho congressista Porter Jennings. Foi ele que disse que não se retiraria se Willard não ocupasse o seu lugar. Você conhece a aristocracia de Virgínia.
Pensam que são donos do mundo. Mas tenho de dizer que ele arrumou a cunhada quando apoiou a sucessão de Abigail a Willard. A mãe de Willard, aquela velha de um raio,
tentou afastar Abigail do Congresso. E, aqui para nós, ele era muito melhor congressista que Willard. Willard não era suficientemente agressivo. Percebe o que quero
dizer?
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Enquanto Toby esperava, Pat reviu os recortes do jornal sobre o caso de Eleanor Brown. O caso parecia simples de mais. Eleanor dissera que Toby telefonara e a mandara
à sede da campanha. Cinco mil dólares do dinheiro tinham sido recuperados numa arrecadação da cave de casa dela.
E acha que Eleanor pensava safar-se com uma história tão inconsistente? perguntou Pat.
Toby encostou-se na cadeira de couro, cruzando as pernas e encolhendo os ombros. Pat reparou no charuto que ele trazia no bolso. Contra vontade convidou-o a fumar.
Ele inclinou-se, e o seu rosto ficou sulcado de vincos.
Obrigado. A senadora não suporta o cheiro do charuto. Por muito tempo que esteja à espera dela, não me atrevo a fumar no carro.
Acendeu o cigarro e inalou com gosto.
É sobre Eleanor Brown sugeriu Pat, pousando os cotovelos sobre os joelhos e as mãos no queixo.
O que eu acho confidenciou a Pat é que Eleanor não pensou que se desse logo pela falta do dinheiro. Eles até tornaram a lei mais rígida desde aí, mas, nessa altura,
era habitual guardar grandes quantias de dinheiro nas sedes das candidaturas durante algumas semanas.
Mesmo setenta e cinco mil dólares em dinheiro?
Miss Traymore... Pat, tem de compreender que muitas empresas contribuíram para a campanha. Eles querem ter a certeza de estar com o vencedor. E, claro, não se pode
entregar o dinheiro em mão no gabinete de um senador. Isso é contra a lei. Então, o que se costuma fazer, é visitar o senador, dar-lhe a conhecer que vai fazer uma
doação, dar em seguida uma volta com um colaborador do senador ou senadora, e entregar-lhe o dinheiro. O senador nunca lhe toca, mas sabe da sua existência. É colocado
directamente nos fundos da campanha. Mas, e porque é dinheiro contado, se se for eleito a coisa não é tão óbvia. Percebe onde quero chegar?
Percebo.
Não me interprete mal. É tudo legal. Mas Phil tinha recolhido alguns grandes donativos para Abigail, e claro que Eleanor sabia disso. Talvez tivesse um namorado
que quisesse montar um
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negócio, e tenha tirado o dinheiro a título de empréstimo. Mas, depois, como deram conta muito rapidamente, teve de arranjar uma desculpa.
Ela não me parece uma pessoa assim tão sofisticada observou Pat, lembrando-se da fotografia no livro de curso.
Bem, tal como disse o acusador público, ainda há muita água para correr. Lamento ter de apressá-la, Pat, mas a senadora vai precisar de mim.
Só tenho mais uma ou duas perguntas a fazer. O telefone tocou.
Não demoro disse Pat, agarrando no auscultador. Daqui é Pat Traymore.
Como está, minha cara? ela reconheceu instantaneamente aquela voz pretensiosa.
Como está, Mr. Saunders?
Tarde de mais lembrou-se que Toby conhecia Jeremy Saunders. Toby inclinou a cabeça. Teria associado o nome Saunders com o de Jeremy Saunders que conhecera em Apple
Junction?
Tentei falar consigo várias vezes, ontem à noite disse Saunders, e ela teve a certeza que, desta vez, não estava bêbedo.
Não deixou o seu nome.
As mensagens gravadas podem ser ouvidas por ouvidos trocados. Não concorda?
Um momento, por favor.
Pat olhou para Toby. Este fumava pensativamente o cigarro, parecendo indiferente ao telefonema. Talvez não tivesse associado o nome Saunders com o homem que não
via há mais de trinta e cinco anos.
Toby, isto é uma chamada particular. Importava-se de... Ele levantou-se rapidamente, antes de ela poder acabar.
Quer que espere lá fora?
Não, Toby. Desligue, por favor, quando eu chegar à extensão da cozinha, está bem?
Repetiu deliberadamente o nome dele para que Jeremy ouvisse e não começasse a falar antes de se certificar que Pat se encontrava em linha.
Toby agarrou descontraidamente no auscultador, mas tinha a certeza de que era Jeremy Saunders. Por que razão telefonaria
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a Pat Traymore? Teria ela contactado com ele? Abigail iria ficar furiosa. Do outro lado do telefone ouviu um som ténue de respiração. "Aquele palhaço fedorento",
pensou. "Se tenta tramar Abigail..."
Ouviu-se a voz de Pat.
Toby, importa-se de desligar?
Com certeza, Pat disse ele, com voz alegre. Pousou o auscultador com um clique audível e não se atreveu a levantá-lo de novo.
Toby disse Jeremy Saunders em tom incrédulo. Não me diga que está aí com Toby Georgone.
Ele está a ajudar-me a recolher material para o programa respondeu ela, mantendo a voz baixa.
Claro, ele tem acompanhado cada passo da nossa mulher de Estado, não tem? Pat, eu telefonei porque me apercebi de que a combinação do vodca com a sua simpatia me
tornaram muito indiscreto. Insisti em que a nossa conversa permaneça completamente confidencial. A minha mulher e filha não gostariam de ver a sórdida história do
meu envolvimento com Abigail transmitida pela televisão.
Não tenciono citar nada daquilo que me disse respondeu Pat. O Mirror poderia estar interessado nesse tipo de coscuvilhice, mas asseguro-lhe que eu não estou.
Muito bem. Fico muito aliviado disse Saunders com uma voz amável. Estive com Edwin Shepherd no clube. Ele disse-me que lhe deu uma cópia do jornal que trazia uma
fotografia de Abby como rainha. Já me tinha esquecido disso. Espero que utilize a fotografia de Miss Apell Junction com a adorável mãe. Essa vale um milhão de palavras.
Acho que não vou utilizar respondeu Pat, friamente. A presunção dele irritou-a. Tenho de retomar o trabalho, Mr. Saunders.
Ela desligou e regressou à biblioteca. Toby estava sentado na cadeira onde ela o tinha deixado, mas havia nele algo de diferente. Aboa disposição desaparecera. Parecia
absorto e saiu logo em seguida. Depois de ele ter saído, abriu a janela para se livrar do cheiro do charuto. Mas o odor permaneceu na sala. Apercebeu-se
que, de novo, se sentia pouco à vontade, saltando ao ouvir qualquer som.
De regresso ao escritório, Toby dirigiu-se directamente a Philip:
Como vão as coisas?
Philip ergueu os olhos para o céu.
A senadora está furiosa com a história. Acaba de descompor Luther Pelham por a ter convencido a deixar fazer o programa. Se não houvesse já publicidade, ela anulava-o.
Como correram as coisas com Pat Traymore?
Toby não estava disposto a falar de Apple Junction, mas pediu a Philip que verificasse o aluguer da casa de Adams, que também o preocupava.
Bateu à porta do gabinete de Abigail. Ela já estava calma, demasiado calma. Tinha na mão a edição do vespertino.
Olha para isto! disse-lhe. Uma famosa coluna de mexericos começava:
Brincalhões da colina do Capitólio têm feito apostas relativas à identidade da pessoa que ameaçou a vida de Patricia Traymore, se ela levar por diante o documentário
sobre a senadora Jennings. A bela senadora de Virgínia goza entre os seus colegas de reputação de perfeccionista.
Toby viu o rosto de Abigail Jennings contorcer-se com fúria, amarrotar o jornal e atirá-lo para o cesto dos papeis.
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Sam Kingsley apertou o último botão da camisa de cerimónia e colocou o laço. Olhou de relance para o relógio, colocado sobre a consola do quarto, e resolveu que
tinha tempo suficiente para um uísque.
O seu apartamento em Watergate tinha uma vista impressionante para o Potomac. Da janela lateral da sala olhou para o
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Centro Kennedy. Algumas noites em que chegara tarde do escritório, ainda ia ver o segundo e terceiros actos da ópera favorita.
Após a morte de Janice, não houvera razão para continuar com a enorme casa em Chevy Chase. Karen vivia em São Francisco, e tanto ela como o marido passavam as férias
com os sogros em Palm Springs. Sam dera a Karen a escolha dos pratos, dos bibelots, das pratas e mobília, vendera quase todo o resto. Queria começar tudo de novo,
na esperança de que aquela permanente sensação de desalento desaparecesse.
Sam levou o copo até à janela. O Potomac brilhava devido às luzes do edifício e aos focos do Centro Kennedy. A febre de Potomac. Ele tinha-a, como a maioria das
pessoas que para ali iam. "Seria Pat também contagiada?", perguntou-se.
Estava muitíssimo preocupado com ela. O seu amigo do FBI, Jack Carlson dissera-lhe sem rodeios:
" Primeiro, ela recebe uma chamada, depois, um bilhete debaixo da porta, depois, outra chamada e, finalmente, alguém lhe entra em casa e lhe deixa um aviso. Imagina
o que poderá acontecer da próxima vez.
"Temos aqui um psicopata prestes a explodir. As impressões digitais não nos levam a nada, e compara estes bilhetes. Foram escritos em dias diferentes. Algumas das
letras do segundo bilhete são praticamente ilegíveis. A tensão dentro deles está prestes a vir ao de cima. E, de uma forma ou de outra, essa tensão parece dirigida
a Pat Traymore."
A sua Pat Traymore. Naqueles meses anteriores à morte de Janice, ele conseguira manter Pat afastada dos seus pensamentos. Sempre se sentira grato por isso. Ele e
Janice tinham conseguido recuperar algo da velha proximidade. Ela morrera convencida do seu amor.
Depois, ele sentira-se exausto e sem forças, velho. Velho de mais para uma rapariga de vinte e sete anos, cheia de vida. Só queria paz e sossego.
Mais tarde soubera que Pat vinha trabalhar para Washington e decidira convidá-la para jantar. Não havia maneira alguma de poder evitá-la, nem ele o queria, e não
tencionava permitir que o seu primeiro encontro fosse condicionado pela presença de
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terceiros. Por isso a convidara para sair. Cedo se apercebeu de que o que houvera entre eles não desaparecera, antes permanecia, ateado, pronto a rebentar, e era
isso que ela queria. Mas que queria ele?
Não sei disse Sam em voz alta. O aviso de Jack retinou-lhe aos ouvidos: "Suponhamos que acontece alguma coisa a Pat?"
O telefone interno tocou.
Está aqui o seu carro, congressista informou o porteiro.
Obrigado. Desço já.
Sam pousou o copo meio vazio sobre o bar e foi ao quarto buscar o casaco e o sobretudo. Os seus movimentos eram bruscos. Dentro de poucos minutos estaria com Pat.
Pat decidira usar, para o jantar na Casa Branca, um vestido de cetim verde-esmeralda, com o peitilho bordado. Era um modelo Oscar de la Renta que Verónica insistira
que ela comprasse para o baile da orquestra Sinfónica de Boston. Sentiu-se satisfeita por o ter feito. A condizer com o vestido colocou as esmeraldas da avó.
Não pareces a jovem repórter comentou Sam quando a foi buscar.
Não sei se hei-de tomar isso como um cumprimento. Sam vestia um casaco de caxemira azul-marinho, e usava um cachecol de seda branca sobre o fato preto de cerimónia.
"Que é que Abigail lhe tinha chamado? Um dos solteirões mais atraentes de Wasthington?"
A minha intenção era que o fosse. Não recebeste mais chamadas ou bilhetes? perguntou ele.
Não.
Não lhe falara na boneca nem o queria fazer naquele momento.
Ainda bem. Sentir-me-ei melhor quando o programa acabar.
Tu é que te vais sentir melhor!
Dentro da limusina, a caminho da Casa Branca, ele fez-lhe perguntas sobre a actividade dela.
Trabalho disse ela prontamente. Luther concordou com os clips de filmes que eu escolhi, e já delineámos o programa. Ele não quer, de forma nenhuma, desagradar à
senadora por
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incluir fragmentos do início da sua vida. Está a tornar aquilo que deveria ser um documentário num penegírico que não vai ter grande interesse do ponto de vista
jornalístico.
E não podes fazer nada em relação a isso?
Posso desistir. Mas não vim para cá para desistir logo passada uma semana, pelo menos, se o puder evitar.
Encontravam-se junto à Eighteenth Street e a Pensylvania Avenue.
Sam, alguma vez existiu um hotel naquela esquina!
Sim. O velho Roger Smith. Deitaram-no abaixo há dez anos. "Quando eu era miúda fui lá uma vez a uma festa de Natal. Vestia
um vestido de veludo encarnado, meias brancas e sapatos pretos de pele. Entornei gelado de chocolate sobre o vestido e chorei, e o papá disse: A culpa não é tua,
Kerry."
A limusina subia a ala norte da Casa Branca. Esperaram, em fila, enquanto todos os automóveis eram verificados pela segurança. Quando chegou a sua vez, um guarda
respeitoso confirmou-lhes os nomes nas listas dos convidados.
Lá dentro a mansão tinha um ar festivo, com decorações alegres. Abanda da Marinha tocava no átrio de mármore. Criados serviam champanhe. Pat reconheceu rostos familiares
entre os convidados: estrelas de cinema, senadores, membros do gabinete, uma grande dama do teatro.
Já cá vieste alguma vez? perguntou Sam.
Numa visita escolar, quando tinha dezasseis anos. Demos a volta e disseram-nos que Abigail Adams costumava pendurar a roupa lavada no que agora é a sala Leste.
Agora já não encontras lá a lavandaria. Se queres fazer carreira em Washington é melhor conheceres algumas pessoas.
Passados momentos apresentava-a ao secretário do presidente para a Imprensa.
Brian Sakem era um homem amável e roliço.
Quer pôr-nos nas manchetes, Miss Traymore? perguntou, sorrindo.
Portanto, no Gabinete Oval, o assunto fora discutido.
A polícia tem algumas pistas?
Não tenho bem a certeza, mas acho que foi algum maluco.
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Penny Salem era uma mulher de ar arguto, com cerca de quarenta anos.
Brian bem sabe a quantidade de cartas malucas enviadas ao presidente.
Lá isso sei concordou o marido com prontidão. Qualquer pessoa com um cargo público corre esse risco. Quanto mais poderoso se é, maior é a probabilidade. E Abigail
Jennings é alguém. Oh, por falar na dama, cá está ela. Não está linda? perguntou, sorrindo subitamente
Abigail acabara de entrar. Naquela noite resolvera expor toda a sua beleza. Usava um vestido de cetim cor de damasco com o corpo bordado a pérolas. A saia era em
forma de sino e trazia o cabelo apanhado atrás. Ondas suaves enquadravam-lhe o rosto sem rugas. Uma sombra azul-clara acentuava-lhe os olhos extraordinários, e colocara
nas faces um blush rosado.
Esta era uma Abigail diferente, que ria com suavidade, deixando a mão pousada um momento mais sobre o braço de um embaixador octogenário, aceitando os elogios como
devidos.
Pat perguntou-se se todas as mulheres da sala se sentiriam como ela se sentia incolor e insignificante.
Abigail calculara bem a sua chegada. Um minuto depois, a banda da Marinha tocou o hino de recepção. O presidente e a primeira dama desciam dos seus aposentos privados.
Com eles estava o novo primeiro-ministro do Canadá com a mulher. Quando os últimos acordes do hino soaram, ouviu-se o hino nacional canadiano.
Formou-se uma fila para cumprimentos. Quando Pat e Sam se aproximaram do presidente e da primeira dama, Pat apercebeu-se de que o seu coração batia com força. A
primeira dama era bastante mais atraente em pessoa que nas fotografias. Tinha um rosto tranquilo, uma boca generosa e olhos castanho-claros. O cabelo era grisalho.
Ostentava um ar de total autoconfiança. Os olhos cerravam-se quando sorria e a boca revelava dentes fortes e perfeitos. Contou a Pat que, quando jovem, a sua ambição
fora um lugar na televisão.
E, em vez disso concluiu, olhando para o marido, mal acabei o curso em Vassar, vi-me casada.
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Eu fui suficientemente esperto para a agarrar antes que alguém o fizesse disse o presidente. Pat, muito prazer em conhecê-la.
Era uma emoção palpável sentir o sólido aperto de mão do homem mais poderoso do mundo.
São boas pessoas comentou Sam, enquanto aceitava uma taça de champanhe. E ele tem sido um bom presidente. Até custa acreditar que esteja a acabar de cumprir o segundo
mandato. É jovem, nem sequer tem ainda sessenta anos. Vai ser interessante observar o que ele vai fazer durante o resto da vida.
Pat analisava a primeira dama.
Adoraria fazer um programa sobre ela. Parece sentir-se muito bem na sua pele.
O pai dela foi embaixador em Inglaterra; o avô, foi vice-presidente. Gerações de aristocracia e dinheiro associadas a antecedentes diplomáticos são uma boa forma
de fazer que uma pessoa se sinta autoconfiante, Pat.
Na sala de jantar as mesas estavam postas com louças de Limoges, com um intrincado padrão verde, bordejado a ouro. As toalhas e guardanapos eram de damasco verde,
os centros de mesa tinham rosas vermelhas em pequenas taças de cristal.
É pena não ficarmos juntos comentou Sam, mas parece que ficaste numa boa mesa. E repara onde Abigail foi colocada.
Encontrava-se na mesa presidencial, entre o presidente e o convidado de honra, o primeiro-ministro canadiano.
Quem me dera poder filmar isto! murmurou Pat. Olhou para o menu: salmão em molho, supreme de capão com molho de brande, arroz. O seu companheiro de jantar era o
director-geral do Pessoal. Os restantes elementos incluíam um presidente de uma faculdade, um Prémio Pulitzer (dramaturgo), um bispo episcopaliano, o director do
Centro Lincoln.
Olhou à volta para ver onde estava Sam. Fora colocado na mesa presidencial, mesmo em frente à senadora Jennings. Sorriam um para o outro. Com uma pontada dolorosa,
Pat desviou os olhos.
Já perto do fim do jantar, o presidente convidou os presentes a recordarem o vice-presidente, gravemente doente.
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Muitos de nós apercebemo-nos de que ele trabalhava catorze horas por dia, sem se preocupar com o prejuízo que isso lhe trazia para a saúde.
Depois de ter sido prestada a homenagem, não ficou qualquer dúvida no espírito dos presentes, de que o vice-presidente não voltaria a ocupar o seu lugar. Quando
se sentou, o presidente sorriu para Abigail. Havia algo de bênção pública naquele sorriso.
Então, divertiste-te? perguntou-lhe Sam, a caminho de casa. Aquele dramaturgo na tua mesa parecia conquistado. Dançaste com ele duas ou três vezes, não foi?
Enquanto tu dançavas com a senadora. Sam, não foi uma honra colocarem-te na mesa do presidente?
É sempre uma honra ser colocado lá.
Um estranho constrangimento apossou-se deles. Pat ficou com a impressão de que a noite se deteriorara subitamente. Conhecer gente em Washington teria sido a verdadeira
razão por que ele a convidara. Teria ele sentido uma certa obrigação em a ajudar antes de se retirar de novo da sua vida?
Esperou enquanto ela abria a porta, mas declinou uma bebida.
Amanhã vou ter um dia muito longo. Parto para Palm Springs no voo das seis, para passar o feriado com Karen e Tom. E tu vais para Concord, Pat?
Ela não lhe quis dizer que Verónica e Charles tinham empreendido um cruzeiro às Caraíbas.
Este vai ser um Natal de trabalho respondeu. Vamos fazer uma comemoração tardia, depois de o programa estar concluído. E, nessa altura, dou-te o presente de Natal.
Está bem.
Ela desejou que a sua voz soasse tão naturalmente amigável como a dele. Não queria demonstrar o vazio que sentia.
Estavas maravilhosa, Pat! Ficarias surpreendida com o número de pessoas que ouvi falarem de ti.
Espero que fossem todas da minha idade. Boa noite, Sam. Abriu a porta e entrou.
Raios, Pat!
Sam entrou e fê-la virar-se. O casaco caiu-lhe dos ombros, enquanto ele a agarrava.
105
As mãos dela rodearam o pescoço dele; os seus dedos tocaram nas bandas do casaco, tactearam a pele por baixo, revolveram-lhe o cabelo espesso. Era tal como se lembrava,
o cheiro bom do seu hálito, a sensação do seu abraço, a certeza absoluta de que pertenciam um ao outro.
Oh, meu amor! sussurrou ela. Tenho sentido tanto a tua falta!
Foi como se o tivesse esbofeteado. Num movimento involuntário, ele endireitou-se e recuou. Confundida, Pat deixou cair os braços.
Sam!
Pat, desculpa... Ele tentou sorrir. És atraente de mais para mim.
Durante um longo minuto olharam um para o outro. Depois agarrou-lhe os ombros.
Não achas que seria mais fácil continuar o que deixámos no outro dia? Não vou fazer-te isso, Pat. És uma jovem muito bonita. Dentro de seis meses terás meia dúzia
de jovens que te poderão dar a vida que mereces. Pat, o meu tempo já passou. Quase perdi o meu lugar nas últimas eleições. E sabes o que disse o meu opositor? Disse
que já é tempo de haver sangue novo. Sam Kingsley já anda por aqui há tempo de mais. Precisa de descansar!
E tu acreditaste?
Acreditei porque é verdade. Aquele último ano e meio com a Janice deixou-me vazio e exausto. Pat, tenho dificuldade em tomar decisões. Escolher uma gravata já constitui
um grande esforço, mas com esse posso eu bem. Não vou dar cabo da tua vida de novo.
E já pensaste que poderás dar cabo dela não querendo voltar para mim?
Com ar infeliz, olharam um para o outro.
Não quero acreditar nisso, Pat. Depois foi-se embora.
106
15
Glory estava diferente. Começara a arranjar o cabelo de manhã. Tinha roupas novas e mais coloridas. As blusas tinham golas altas em vez de botões e, recentemente,
comprara dois pares de brincos. Ele nunca a vira usar brincos antes.
Todos os dias ela lhe diria para não lhe preparar uma sanduíche para o almoço, pois comeria fora.
Sozin
ha? perguntara-lhe.
Não, pai.
Com Opal?
Como fora, é só isso respondeu ela com aquele tom de impaciência tão pouco habitual.
Já não queria ouvir falar do trabalho dele. Este ainda tentara contar-lhe que, mesmo com ventilador, a velha Mrs. Gúlespie tinha muita dificuldade em respirar. Glory
costumava ouvi-lo com simpatia quando ele lhe falava dos doentes, e concordava com ele quando o pai lhe dizia que seria uma obra misericordiosa se os anjos viessem
buscar mais doentes. A concordância dela ajudava-o a levar a cabo a sua missão.
Andava tão preocupado com Glory, que quando entregara Mrs. Gillespie ao Criador, fora descuidado. Pensara que ela estava a dormir mas, quando a retirara do ventilador,
e começara a rezar, ela abrira os olhos. Percebera o que ele estava a fazer. O queixo tremera-lhe e sussurrara:
" Por favor, por favor, oh... Mãe de Deus, ajuda-me..."
Observara a expressão dos seus olhos alterar-se de aterrorizada para vazia. "E Mrs. Harnick vira-o sairdo quarto de Mrs. Gillespie."
Fora a enfermeira Sheehan quem encontrara Mrs. Gillespie. Esta não tinha aceitado a morte da velhota como vontade de Deus. Em vez disso insistira que se verificasse
se o ventilador estava a funcionar em condições. Mais tarde ele vira-a com Mrs. Harnick. Mrs. Harnick apontava, muito excitada, para o quarto de Mrs. Gillespie.
Toda a gente do lar gostava dele, com excepção da enfermeira Sheehan. Esta passava a vida a repreendê-lo, a dizer-lhe que passava das marcas.
107
" Nós temos capelães dizia-lhe ela. Você não tem nada que dar conselhos às pessoas."
Se ele soubesse que, nesse dia, a enfermeira Sheehan estava de serviço, nunca se teria aproximado de Mrs. Gillespie. O que o consumia era a preocupação em relação
ao documentário sobre a senadora Jennings, que não o deixava pensar com lucidez. Avisara Patricia Traymore quatro vezes para que não continuasse com o programa.
Não haveria um quarto aviso.
Pat não tinha sono. Depois de passar uma hora inquieta, desistiu e agarrou num livro. Mas o seu espírito recusava-se a envolver-se na biografia de Churchill, que
estava ansiosa por ler. À uma da manhã fechou os olhos. Às três dirigiu-se à cozinha para aquecer uma chávena de leite. Deixara acesa a luz da entrada, mas mesmo
assim as escadas estavam às escuras e teve de se agarrar ao corrimão.
"Ela costumava sentar-se neste degrau, fora da vista das pessoas e observava-as. Eu tinha um roupão azul com flores. Nessa noite usava-o. Estava ali sentada e, de
repente, assustei-me e voltei para a cama."
E depois...
Não sei disse em voz alta. Não sei.
Nem o leite quente fez que adormecesse.
Às quatro da manhã voltou a descer as escadas e trouxe para cima o esboço do programa. Este abriria com a senadora e Pat sentadas no estúdio, em frente a uma grande
fotografia de Abigail e Willard Jennings a receberem cumprimentos do dia do casamento. A velha Mrs. Jennings fora retirada da imagem. Enquanto corria o filme da
recepção, a senadora contava como conhecera Willard quando este frequentava Radcliffe.
"Pelo menos assim arranjo qualquer coisa sobre o Nordeste", pensou Pat.
Depois mostrariam um resumo das campanhas de Willard, enquanto Pat colocaria questões a Abigail sobre o seu envolvimento na vida política. As comemorações do 35.°
aniversário de Willard dariam relevo aos anos pré-Camelot com os Kennedy. Depois viria o funeral, com Abigail acompanhada por Jack Kennedy. Eliminariam o segmento
que mostrava a sogra seguindo
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num carro à parte. Depois Abigail no Congresso, vestida de luto, o rosto pálido e grave. A seguir vinha a história sobre os desvios dos fundos da campanha, e o depoimento
de Abigail sobre a segurança aérea.
"Ela parece tão segura e grave", pensou Pat. "E depois olhamos para a fotografia daquela criança assustada, Eleanor Brown. E uma coisa é estar-se preocupado com
a segurança aérea, outra coisa é apontar um dedo para o piloto que também perdeu a vida..."
Mas sabia que não conseguiria convencer Luther a alterar aquele segmento.
No dia seguinte ao Natal, filmariam Abigail no seu gabinete, com o seu staff e alguns visitantes cuidadosamente seleccionados. O Congresso estaria no fim e as filmagens
seriam rápidas.
Pelo menos Luther concordara em passar uma cena de Abigail na sua própria casa com amigos. Pat sugerira uma ceia de Natal, com Abigail a arranjar a mesa do bufete.
Os convidados seriam algumas distintas personalidades de Washington, assim como alguns elementos da sua equipa que não tivessem possibilidade de passar o Natal com
as famílias. A última cena mostraria a senadora regressando a casa ao crepúsculo, com uma pasta na mão. E, depois, o final: "Tal como muitos milhões de adultos livres
nos Estados Unidos, a senadora Abigail Jennings encontrou a sua família, a sua vocação, a felicidade no trabalho que adora." Luther escreveria esse texto para Pat
ler.
Às oito da manhã, Pat telefonou a Luther pedindo-lhe de novo para persuadir a senadora a autorizar a inclusão no programa de alguns fragmentos da sua adolescência.
Aquilo que temos não é grande coisa dissera ela. Excepto aqueles filmes de carácter pessoal, o resto são trinta minutos de campanha eleitoral.
Luther interrompeu-a.
Viste o filme todo?
Sim.
E as fotografias?
Havia muito poucas.
Telefona para ver se há mais. Não, eu telefono. Neste momento a senadora não te tem em grande conta.
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Quarenta e cinco minutos mais tarde Philip telefonara-lhe. Toby passara lá ao fim da tarde com álbuns de fotografias. A senadora pensava que Pat encontraria ali
algum material interessante.
Inquieta, Pat desligou e dirigiu-se à biblioteca. Tinha posto o caixote com a boneca sobre a mesa. Aproveitaria o tempo para examinar mais alguns pertences do pai.
Quando retirou a boneca, levou-a à janela e examinou-a cuidadosamente. Uma caneta habilidosa pintara uns olhos escuros, as sobrancelhas, dera à boneca aquela expressão
de sofrimento. À luz do dia parecia ainda mais patética. Seria suposto representá-la a ela?
Pô-la de lado e começou a esvaziar o caixote: as fotografias da mãe e do pai, os molhos de cartas e papéis; os álbuns de fotografias. As suas mãos foram ficando
sujas e cheias de pó, enquanto retirava o material aos montes. Depois sentou-se no chão, de pernas cruzadas, e começou a examiná-lo.
Mãos carinhosas tinham guardado as recordações de infância de Dean Adams. Os cartões de estudante estavam ordenados com sequência e as cadernetas com notas altas,
também.
Ele vivera numa quinta a alguns quilómetros de Milwaukee. A casa tinha um tamanho médio, com caixilhos brancos e uma entrada. Havia fotografias dele e dos pais dele.
"Os meus avós", pensou Pat. Deu-se conta que ignorava os seus nomes. Nas costas de uma das fotografias estava escrito Irene e Wilson com Dean, aos seis meses de
idade.
Agarrou numa pilha de cartas. O elástico rebentou e elas espalharam-se pela carpeta. Rapidamente agarrou-as e passou os olhos por elas. Houve uma que lhe chamou
particularmente a atenção.
Querida mãe,
Obrigado. Acho que estas são as únicas palavras para todos os anos de sacrifício que fizeste, para eu poder frequentar o liceu e a faculdade. Sei de todos os vestidos
que não pudeste comprar, das saídas que não fizeste com as outras senhoras da cidade. Há muito tempo que prometi vir a ser como o papá. Mantenho essa promessa. Amo-te.
E, por favor, não te esqueças de ir ao médico. Essa respiração ofegante preocupa-me.
O teu filho querido
DEAN
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Uma notícia obituária de Irene Wagner Adams encontrava-se por debaixo da carta. Tinha a data de seis meses mais tarde.
Os olhos de Pat encheram-se de lágrimas por aquele jovem que não se tinha envergonhado de exprimir o amor pelo pai e pela mãe. "Também ela experimentara esse amor
generoso. A sua mão na dele. Os seus gritos de prazer quando ele regressava a casa. Papá, papá. Atirava-a ao ar e, depois, as mãos possantes agarravam-na. Seguia
no seu triciclo pelo caminho fora... O joelho raspara no cimento... a voz dela. Não dói nada, Kerry. Vamos limpar isso. Que gelado queres?..."
A campainha tocou. Pat juntou as fotografias e as cartas e levantou-se. Metade espalhou-se enquanto ela tentava enfiá-las no caixote. A campainha voltou a tocar,
desta vez com mais insistência. Agarrou nas fotografias e cartas espalhadas e escondeu-as juntamente com as outras. Saiu da sala, mas apercebeu-se de que se esquecera
de guardar as fotografias dos pais e a boneca Raggedy Ann. Olha se Toby entrava e as via! Atirou-as para dentro do caixote e empurrou-o para debaixo da mesa.
Toby preparava-se para tocar de novo à campainha, quando ela escancarou a porta. Involuntariamente recuou, quando viu o vulto robusto encher a entrada.
Já ia desistir! disse ele, numa tentativa falhada de se mostrar bem disposto.
Não desista por minha causa, Toby disse ela, em tom frio. Quem era ele para se mostrar aborrecido por ter esperado alguns segundos? Ele parecia estudá-la. Ela baixou
os olhos e reparou que tinha as mãos sujas de pó e que esfregara os olhos com elas. O seu rosto estava provavelmente todo sujo.
Parece que esteve a fazer bolos de lama.
Havia uma expressão intrigada no rosto dele. Ela não lhe respondeu. Ele retirou o pacote debaixo do braço e apontou com o dedo.
Onde quer este material, Pat? Na biblioteca?
Sim.
Seguiu-a tão próximo que ela teve a sensação perturbadora de que iria contra ela, se parasse subitamente. A perna direita doía-lhe por ter estado tanto tempo sentada
com as pernas cruzadas.
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Está a coxear, Pat. Por acaso não escorregou no gelo, pois não?
"Não lhe escapa nada", pensou ela.
Ponha a caixa sobre a mesa disse.
OK. Tenho de me ir embora já. A senadora não ficou muito satisfeita por ter de procurar estes álbuns. Eu sei onde fica a saída.
Ela esperou até ouvir a porta da frente fechar-se e, depois, foi trancá-la. Enquanto se aproximava da porta, esta voltou a abrir-se. Toby pareceu admirado por a
ver ali especada e, depois, o seu rosto contorceu-se num sorriso desagradável.
Esta fechadura não aguenta muito, Pat disse ele. Não se esqueça de trancar a porta.
O material adicional da senadora era constituído por um monte de recortes de jornais e cartas de fãs. A maior parte das fotografias diziam respeito a cerimónias
políticas, jantares de Estado, cortes de fitas, inaugurações. Enquanto Pat virava as folhas, algumas desprendiam-se, caindo no chão. As últimas páginas do álbum
pareciam ser as mais prometedoras. Deu com uma fotografia em ponto grande dos jovens Abigail e Willard sentados num cobertor, junto ao lago. Ele lia para ela. Era
um cenário idílico. Pareciam amantes sobre um fundo vitoriano. Havia mais alguns instantâneos que lhe poderiam ser úteis. Por fim acabou de ver o material e curvou-se
para apanhar as folhas que tinham caído. Encontrou dobrada uma folha de papel de carta. Dizia:
Querido Billy,
Falaste tão bem esta tarde. Sinto-me tão orgulhosa de ti. Amo-te e anseio por passar a minha vida contigo, por trabalhar contigo. Oh, meu querido, os dois vamos
fazer um grande par!
A carta tinha a data de 13 de Maio. Willard Jennings encontrara a morte a 20 de Maio.
"Que efeito impressionante teria aquilo!", exultou Pat. Acalmaria aqueles que pensavam que a senadora era fria e insensível.
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Se ao menos ele conseguisse persuadir Luther a deixá-la ler o bilhete durante o programa.
Como soaria?
Querido Billy leu em voz alta. Lamento... A voz falhou-lhe. "Que se passa comigo?", perguntou-se com impaciência. Firmemente, começou: Querido Billy. Foste maravilhoso...
16
No dia 23 de Dezembro, às duas da tarde a senadora Abigail Jennings encontrava-se sentada na biblioteca da sua casa, com Toby e Philip, a verem a transmissão da
apresentação do pedido de demissão do vice-presidente dos Estados Unidos.
Abigail tinha os lábios secos, as unhas cravadas nas palmas das mãos, enquanto ouvia, recostada nas almofadas da cama, o vice-presidente moribundo anunciar com uma
voz surpreendentemente forte:
Tencionava adiar a minha decisão até ao primeiro dia do ano. Contudo, acho que é meu dever deixar este lugar vago. Sinto-me honrado pela confiança que o presidente
e o meu partido depositaram em mim, por me terem escolhido duas vezes para vice-presidente. Estou grato ao povo dos Estados Unidos por me ter concedido a oportunidade
de o servir
Com mágoa profunda, o presidente aceitou a demissão do seu velho amigo e companheiro. Quando lhe perguntaram se já tinha alguém para o substituir, respondeu:
Tenho umas ideias.
Mas recusou confirmar ou negar os nomes sugeridos pela imprensa.
Toby assobiou:
Bom, aconteceu, Abby.
Senadora, ouça bem o que lhe digo... começou Philip.
Calem-se e ouçam! atirou ela.
113
Quando terminou a cena no quarto do hospital, a câmara focou Luther Pelham na sala de noticiários da estação de TV de Potomac.
Um momento histórico comentou Luther.
Com moderação, reconstituiu a breve história da vice-presidência e, depois, foi ao cerne da questão.
Chegou a altura de ser uma mulher a ocupar este alto posto... uma mulher com a experiência necessária e competência comprovada. Sr. Presidente, escolha-a agora!
Abigail sorriu com nervosismo.
Quer dizer eu!
O telefone começou a tocar.
Hão-de ser os repórteres... Não estou disse ela.
Uma hora mais tarde, a Imprensa estava acampada à porta de casa de Abigail. Finalmente ela acedeu a conceder uma entrevista. Exteriormente estava calma. Declarou
encontrar-se ocupada com os preparativos para uma ceia de Natal que ia dar a uns amigos.
Quando lhe perguntaram se esperava ser nomeada para vice-presidente, respondeu em tom bem-humorado:
Bem, não vão esperar que eu comente isso.
Uma vez fechada a porta, a sua expressão e modos alteraram-se. Nem Toby se atreveu a passar a linha.
Luther telefonou a confirmar o horário para as gravações. A voz de Abigail ouvia-se por toda a casa.
Sim, vi. Queres saber uma coisa? Eu provavelmente já tinha isto no papo sem precisar do raio do programa. Disse-te que foi uma má ideia. Não me venhas dizer que
só quiseste ajudar. Quiseste que eu ficasse em dívida para contigo, ambos sabemos isso.
A voz de Abigail baixou de tom, e Philip trocou um olhar com Toby.
Que descobriste? perguntou.
Pat Traymore esteve, na semana passada, em Apple Junction. Foi ao jornal local e só recolheu alguns números antigos. Visitou Saunders, o tipo que foi o querido de
Abby quando ela era miúda. Depois avistou-se com a directora reformada da escola que conheceu Abby. Eu encontrava-me em casa de Pat, em Georgetown, quando Saunders
lhe telefonou.
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Que danos poderão essas pessoas provocar à senadora? perguntou Philip.
Toby encolheu os ombros.
Depende. Descobriste alguma coisa acerca da casa?
Alguma disse Philip. Conseguimos chegar à empresa que a tem alugado. Tinham uma pessoa interessada, mas o banco que controla os bens dos herdeiros disse que havia
alguém na família interessado em viver lá, e que, portanto, não seria alugada.
Alguém da família? repetiu Tobby. Quem da família?
Talvez seja Pat Traymore disse Philip, sarcasticamente.
Não te armes em brincalhão atirou Toby. Quero saber quem é agora o proprietário daquela casa, e qual é o familiar que a está a habitar.
Com um misto de emoção, Pat observou a estação de Potomac cobrir a renúncia do vice-presidente. No final do comentário de Luther, o moderador disse ser improvável
que o presidente nomeasse um sucessor antes do Ano Novo.
"E nós vamos pôr o programa no ar a vinte e sete", pensou Pat.
Tal como Sam previra, a primeira noite que ela passara em Washington poderia vir a ter influência na escolha da primeira mulher para vice-presidente. Uma vez mais
o seu sono fora interrompido por sonhos perturbantes. Lembrar-se-ia, de facto, tão nitidamente do pai e da mãe, ou estava a misturar os filmes e as fotografias com
a realidade? A recordação do joelho ferido e do gelado era autêntica. Disso ela estava certa. Mas não houvera também tempos em que colocara a almofada sobre os ouvidos
por causa dos gritos zangados e choros histéricos? Estava decidida a acabar de ver os pertences do pai. Examinou o material e começou a ficar preocupada com as referências
à mãe. Havia cartas da avó para Renée. Uma delas, datada de seis meses antes da tragédia, dizia:
Querida Renée,
O tom da tua carta preocupou-me. Se sentes que estás a ter novamente indícios de depressão, trata-te urgentemente.
Fora a avó quem, de acordo com os artigos dos jornais, declarara que Dean Adams tinha uma personalidade instável. Encontrou
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uma carta do pai para a mãe, escrita um ano antes da tragédia.
Querida Renée,
Estou aborrecido por saber que queres passar todo o Verão em New Hampshire com Kerry. Sinto muito a vossa falta. Tenho, obrigatoriamente, de ir a Wisconsin. Por
que não fazes uma tentativa? Podemos alugar um Steinway para enquanto estiveres lá. Sei que o velho piano da minha mãe não é lá grande coisa. Por favor, querida.
Faz isso por mim.
Pat sentiu como se estivesse a arrancar adesivos sobre uma ferida aberta. Quanto mais se aproximava da ferida mais difícil era arrancar o adesivo. A sensação de
dor, tanto emocional como física, era gradualmente mais profunda.
Um dos caixotes estava cheio de orçamentos e iluminações de Natal. Isso deu-lhe uma ideia. Por que não arranjar uma pequena árvore de Natal? Onde se encontravam
Verónica e Charles? Consultou o itinerário. O navio deveria atracar em St. John no dia seguinte. Perguntou-se se lhes conseguiria telefonar no dia de Natal.
O correio foi abundante. Recebeu vários cartões e convites dos seus amigos em Boston:" Vem cá passar nem que seja só o próprio dia." "Estamos todos ansiosos pelo
programa." "Um Emmy para este, Pat, e não só a nomeação."
Uma das cartas vinha da estação de TV de Boston.
A morada do remetente dizia: Catherine Graney, 22, Balsam Place, Richmond, Va.
"Graney", pensou Pat. Aquele era o nome do piloto que morrera com Willard Jennings.
A carta era pequena,
Cara Miss Traymore,
Soube que está a preparar um programa sobre a senadora Abigail Jennings. Como uma pessoa que já teve oportunidade de apreciar alguns dos seus óptimos documentários,
sinto-me na obrigação de lhe comunicar que esse programa poderá vir a ser alvo de procedimento judicial. Aviso-a: não dê à senadora a
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oportunidade de discutir a morte de Willard Jennings. Para seu bem, não a deixe afirmar que foi um erro do piloto que provocou a morte do marido. Esse piloto, o
meu marido, também morreu. E, creia-me, até é anedótico que ela finja a pose de viúva inconsolável. Se desejar falar comigo, pode ligar para este telefone:
804-555-6841.
Pat agarrou no telefone e discou o número. Tocou várias vezes. Preparava-se para desligar quando atenderam. Era Catherine Graney. Ouvia-se um barulho de fundo, como
se estivessem lá muitas pessoas. Pat tentou marcar um encontro.
Terá de ser amanhã disse-lhe a mulher. Dirijo uma loja de antiguidades, e hoje tenho um leilão.
Combinaram uma hora e ela deu apressadamente a morada a Pat.
Nessa tarde Pat foi às compras. A primeira paragem foi numa loja de arte. Deixou lá para encaixilhar uma das várias gravuras com barcos, que tinham vindo do gabinete
do pai. Seria o seu presente de Natal para Sam.
Está pronta daqui a uma semana, miss. É uma óptima gravura. Vale dinheiro se a quiser vender.
Não quero.
Passou na mercearia perto de casa para encomendar algumas coisas, incluindo um pequeno peru. Na florista comprou flores e um vaso de "sempre-verdes" para colocar
sobre a consola da chaminé. Encontrou uma árvore de Natal que lhe dava pelos ombros. As melhores árvores já tinham sido vendidas, mas aquela servia e as agulhas
eram brilhantes.
Ao fim da tarde tinha as decorações acabadas. A árvore fora colocada junto às portas que davam para a varanda. Uma jarra fora colocada numa mesa baixa, junto ao
sofá, a outra, numa mesa de cocktail.
Pendurara todos os quadros. Tivera de pôr a adivinhar-se para os pendurar mas, mesmo assim, a sala estava agora completa.
"Uma lareira acesa", pensou. "Há sempre uma lareira."
Acendeu a lareira. Depois fez uma omeleta e uma salada e levou a bandeja até à sala. Nessa noite limitar-se-ia a ver televisão e a descontrair-se. Sentiu que se
tinha esforçado de mais, que
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deveria deixar as recordações aparecerem naturalmente. Pensara que aquela sala lhe iria ser repugnante, mas, apesar do terror da noite passada, achou-a acolhedora
e confortável. Guardaria também recordações felizes?
Ligou a televisão. O presidente e a primeira dama apareceram no écran. Entravam para um avião da Força Aérea, para passarem o Natal com a família. Uma vez mais o
presidente viu-se confrontado com a pergunta sobre a escolha.
Dir-vos-ei quem é ela ou ele no Ano Novo disse. Feliz Natal.
Ela. Teria sido um deslize involuntário? Claro que não. Sam telefonou uns minutos mais tarde.
Pat, como vai isso?
Ela esperou que a boca não lhe secasse ao ouvir a voz dele.
Óptimo. Viste o presidente na televisão?
Sim, vi. Bem, há duas pessoas em jogo. Ele vai nomear uma mulher. Vou telefonar a Abigail. Ela deve estar a roer as unhas.
Pat ergueu as sobrancelhas.
No lugar dela também eu estaria... Como está o tempo? perguntou, torcendo o cinto.
Quente como o raio. Francamente, prefiro o Natal num cenário invernoso.
Então não devias ter partido. Eu andei por aí a escolher uma árvore de Natal e estava bastante frio.
Quais são os teus planos para o dia de Natal? Vais estar na ceia de Abigail?
Sim. Estou admirada por não teres sido convidado.
Fui. Pat, é bom estar com Karen e Tom, mas, bem, esta é a família de Karen e não a minha. Tive de me morder durante todo o almoço para não dizer a um asno pomposo
todos os erros que a Administração tem cometido.
Pat não resistiu.
A mãe de Tom não te está a arranjar uma das suas conhecidas ou familiares?
Sam riu-se.
Receio que sim. Não vou ficar até ao Ano Novo. Regresso uns dias depois do Natal. Não recebeste mais ameaças, pois não?
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Nem sequer um telefonema de um tipo a arfar. Sinto a tua falta, Sam acrescentou, deliberadamente.
Fez-se uma pausa. Ela conseguia imaginar a expressão preocupada dele, tentando encontrar a expressão certa. "Gostas tanto de mim agora como há dois anos", pensou
ela.
Sam?
A voz dele também era tensa.
Também sinto a tua falta, Pat. És muito importante para mim.
Que maneira fantástica de pôr a questão.
E tu és um dos meus amigos mais queridos. Sem esperar pela resposta dele, ela desligou.
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Papá, viste a minha boneca Raggedy Ann?
Ele sorriu para Glory, esperando não se mostrar nervoso.
Não, claro que não vi. Não a tinhas no armário do quarto?
Sim. Não sei onde possa estar... Pai, tens a certeza de que não a deitaste fora?
Por que haveria de a deitar fora?
Não sei. Levantou-se da mesa.
Vou fazer umas compras de Natal. Não volto tarde.
Pai, estás de novo a sentir-te doente? Tens falado durante o sono. Ouvi no meu quarto. Passa-se alguma coisa? Não voltaste a ouvir aquelas vozes, pois não?
Ele reparou no pânico dos olhos dela. Nunca deveria ter falado a Glory nas vozes.
Ela não percebeu nada. Pior, começara a preocupar-se com ele.
Oh, não. Estava a brincar quando te falei nisso. Teve a certeza de que ela não acreditou.
Ela rodeou-lhe os ombros com o braço.
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Fartaste-te de dizer o nome de Mrs. Gillespie. Não foi a mulher que morreu lá no lar?
Depois de Glory sair, Arthur sentou-se à mesa da cozinha, com pernas entrelaçadas nas traves da cadeira, a pensar. A enfermeira Sheehan e os médicos tinham-no interrogado
sobre se ele passara pelo quarto de Mrs. Gillespie.
" Sim admitira. Fui só ver se ela estava bem."
" Quantas vezes lá foi?"
" Só uma. Estava a dormir. Estava bem."
" Mrs. Harnick e Mrs. Dury acham que o viram. Mas Mrs. Dury diz que foi às três e cinco, enquanto Mrs. Harnick afirma que foi mais tarde."
" Mrs. Harnick está enganada. Só lá fui uma vez."
Tiveram de acreditar nele. A maior parte do tempo, Mrs. Harnick encontrava-se em estado de senilidade. Mas durante o restante tempo era muito arguta.
Agarrou subitamente no jornal. Fora de metro para casa. Uma velha com um saco de compras, apoiada numa bengala, encontrava-se sobre a plataforma. Estivera para avançar
e oferecer-lhe ajuda quando o comboio chegara. A multidão lançara-se lá para dentro, e um jovem, com os braços cheios de livros, quase a derrubara na ânsia de arranjar
um lugar. Lembrou-se de que a tinha ajudado a entrar, mesmo antes de as portas se fecharem.
" Está bem? perguntou."
" Oh, sim. Julguei que ia cair. Os jovens são tão descuidados! Não é como no meu tempo."
" São cruéis disse ele, suavemente."
O jovem saiu em Dupont Circle e atravessou a plataforma. Ele seguira-o, conseguira aproximar-se dele, mesmo junto à plataforma. Quando o comboio se aproximara, dera-lhe
um empurrão no braço e os livros começaram a cair. O jovem tentou agarrá-los. Desequilibrou-se e foi fácil empurrá-lo para a frente. Tanto o jovem como os livros
caíram sobre os carris.
O jornal. Lá estava na página três: ESTUDANTE DE DEZANOVE ANOS MORTO PELO METRO.
A morte fora considerada acidental. Um espectador vira um livro escorregar. O jovem tentara apanhá-lo e desequilibrara-se.
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A chávena de café, nas mãos de Arthur, tornara-se fria. Faria mais café e, depois, iria trabalhar.
Havia tanta gente velhinha no lar a precisar de atenção. O seu espírito estivera concentrado em Patricia Traymore. Por isso não fora mais cuidadoso no que respeitava
a Mrs. Gillespie. No dia seguinte diria a Glory que ficava a trabalhar até mais tarde e voltaria a casa de Patricia Traymore.
Tinha de entrar lá de novo. Glory queria a boneca.
Às dez horas do dia 24 Pat dirigiu-se a Richmond. O Sol brilhava com força, mas o ar era ainda muito frio. Seria um Natal gelado.
Depois de sair da auto-estrada tomou três caminhos errados e exasperou-se consigo mesma. Por fim encontrou Balsam Place. Era uma rua de casas estilo Tudor, de aspecto
confortável. A casa número 22 era maior que as outras e ostentava, no relvado, um letreiro que dizia: ANTIGUIDADES.
Catherine Graney estava sentada à entrada. Tinha cerca de cinquenta anos, um rosto quadrado, os olhos azuis e um corpo esguio. O cabelo grisalho estava cortado curto.
Apertou calorosamente a mão de Pat.
Sinto-me como se a conhecesse. Vou muitas vezes comprar coisas a New England e, sempre que posso, vejo o seu programa.
Cá em baixo ficava a sala de exposição. Cadeiras, sofás, jarras, candeeiros, quadros, tapetes orientais e louças finas estavam todos marcados. Uma vitrina Queen
Anne continha figurinhas delicadas. Um setter irlandês dorminhoco estava deitado no chão a dormir.
Eu vivo lá em cima explicou Mrs. Graney. Tecnicamente a loja está fechada, mas telefonaram-me a perguntar se podiam aqui passar para uma compra de última hora. Toma
café, não toma?
Pat despiu o casaco. Olhou à volta estudando o conteúdo da sala.
Tem peças muito bonitas.
Também acho disse Miss Graney, parecendo satisfeita. Adoro procurar antiguidades e restaurá-las. O meu atelier fica na garagem. Serviu café de uma cafeteira Sheffield,
e estendeu uma chávena a Pat. E tenho o prazer de estar
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rodeada por coisas belas. Com esse cabelo ruivo e a blusa dourada, você parece pertencer a esse sofá Chippendale.
Obrigada.
Pat apercebeu-se de que gostava daquela mulher franca. Havia algo nela de sério e honesto. Seria fácil ir ao cerne da questão.
Mrs. Graney, a sua carta deixou-me muito admirada. Mas poderá dizer-me por que razão não contactou directamente a estação em vez de me escrever?
Catherine Graney bebeu um golo de café.
Como já lhe disse, vi alguns dos seus documentários. Sinto que há integridade no seu trabalho e pensei que não gostaria de ver perpetuada uma mentira. Por isso apelei
para si, para ter a certeza de que o nome de George Graney não vai ser mencionado no programa Jennings, e de que Abigail Jennings não se vai referir ao "erro do
piloto" em ligação com a morte de Willard. O meu marido sabia conduzir tudo o que tivesse asas.
Pat pensou nos segmentos do programa já preparados. A senadora denunciara o piloto, mas teria mencionado o seu nome? Pat não tinha a certeza de alguns pormenores
do acidente.
As investigações não concluíram que o seu marido ia a voar muito baixo? perguntou.
O avião ia muito baixo e dirigia-se contra a montanha. Quando Abigail Jennings começou a utilizar aquele acidente para ver o seu nome nos jornais, como porta-voz
da linha aérea, eu deveria ter reagido imediatamente.
Pat observou o setter irlandês, que parecia aperceber-se da tensão na voz da sua dona, levantar-se, atravessar a sala e deitar-se aos pés dela. Catherine curvou-se
e acariciou-o.
Por que razão não falou imediatamente?
Por muitas razões. Algumas semanas depois do acidente, tive um bebé. E suponho que também foi por consideração para com a mãe de Willard.
A mãe de Willard?
Sim. Sabe, George costumava transportar Willard Jennings. Tornaram-se bons amigos. A velha Mrs. Jennings sabia disso, e foi comigo, e não com a nora que veio ter
quando se soube do acidente, e ficamos as duas sentadas à espera da palavra final. Ela depositou uma quantia muito generosa para a educação do
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meu filho. Eu não a quis fazer infeliz, utilizando a arma que tinha contra Abigail Jennings. Ambas tínhamos as nossas suspeitas mas, para ela, o escândalo era um
anátema.
Três relógios de parede deram as horas ao mesmo tempo. Era uma hora. O Sol inundava a sala. Pat reparou que Catherine Graney torcia a aliança de casamento enquanto
falava. Aparentemente não voltara a casar.
Que arma poderia ter utilizado? perguntou.
Podia ter dado cabo da credibilidade de Abigail Jennings. Willard sentia-se muito infeliz com as actividades políticas dela. No dia em que morreu, tencionava anunciar
que não se recandidataria e que ia aceitar a direcção de uma faculdade. Ele queria a vida académica. Nessa última manhã ele e Abigail tiveram uma discussão terrível
no aeroporto. Ela implorou-lhe que não anunciasse a renúncia. E ele disse-lhe à frente de George e à minha frente: "Abigail, não te vai fazer a menor diferença.
Acabou tudo entre nós."
Abigail e Willard Jennings estavam à beira do divórcio?
Aquela pose de "viúva nobre" sempre foi uma fraude. O meu filho, George Graney Júnior, é agora piloto da Força Aérea. Nunca conheceu o pai. Mas não vou deixar que
ele seja afectado por mais uma mentira dela. E, quer ganhe o processo ou não, vou tornar pública a fraude que ela tem sido.
Pat tentou escolher cuidadosamente as palavras:
Mrs. Graney, vou fazer tudo para que o seu marido não seja referido de forma perjorativa. Mas devo dizer-lhe que tenho andado a analisar os arquivos provados da
senadora e tudo sugere que Abigail e Willard Jennings estavam muito apaixonados.
Catherine Graney tornou-se desdenhosa.
Eu gostava de ver a cara da velha Mrs. Jennings se tivesse ouvido isso! Até lhe digo mais: agora, de regresso, dê mais uma volta e passe por Hillcrest. É a propriedade
Jennings. E calcule como uma mulher se deve ter sentido para não a deixar, e nem sequer a chave, à nora.
Quinze minutos mais tarde, Pat olhava para os portões de ferro da bela mansão.
Como viúva de Willard, Abigail tinha todo o direito a pensar que deveria ter herdado aquela propriedade, assim como a
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ocupar o seu lugar no Congresso. Por outro lado, como mulher divorciada, ficaria de fora.
Se se desse crédito a Catherine Graney, a tragédia sobre a qual Abigail falava tão emocionadamente, fora, de facto, o golpe de sorte que vinte e cinco anos antes
a retirara do anonimato.
18
Estás magnífica, Abby disse Toby.
Deve fotografar bem concordou ela. Estava a admirar a árvore de Natal na sala de estar de Abigail. Sobre a mesa, já se encontrava o bufete natalício.
Amanhã de manhã devem andar por aí inúmeros repórteres disse ela. Vê lá a que horas são as primeiras missas na catedral. Tenho de ser vista lá.
Não fazia tenção de deixar uma única pedra por mover. Desde que o presidente dissera: "Vou nomeá-la", que Abby andava doente dos nervos.
Eu sou a melhor candidata dissera uma dúzia de vezes. Claire é da mesma região dele. Isso não é bom. Se, ao menos, não nos tivéssemos envolvido no raio do programa.
Pode ser que ajude disse ele, tranquilizador, embora interiormente estivesse tão preocupado quanto ela.
Toby, talvez ajudasse se estivessem na corrida vários candidatos. Mas não acho que o presidente veja o programa e comece aos saltos a gritar "é ela". Mas, por outro
lado, poderá ficar a aguardar alguma reacção negativa antes de anunciar a sua decisão.
Não te preocupes. De qualquer maneira, agora não podes voltar atrás. O programa já foi anunciado.
Ela escolheu cuidadosamente os convidados para o bufete de Natal. Entre eles, contavam-se dois senadores, três congressistas, um juiz do Supremo Tribunal e Luther
Pelham.
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Quem me dera que o Sam Kingsley não estivesse na Califórnia disse ela.
Por volta das seis estava tudo arranjado. Abby tinha um ganso no forno. Servi-lo-ia frio, à ceia, no dia seguinte. O cheiro apetitoso invadira a casa. Fez lembrar
a Toby a cozinha da casa dos Saunders. Aquela cozinha cheirava sempre a bons petiscos. Francey Foster fora uma boa cozinheira.
Bem, acho que vou andando, Abby.
Tens um encontro muito importante, Toby?
Não, não muito.
A empregada da casa de hamburgers começava a aborrecê-lo. Todas acabavam por o fazer.
Então até amanhã. Vem-me buscar cedo.
Certo, senadora. Durma bem. Amanhã tem de mostrar bom aspecto.
Tobby deixou Abby entregue a umas decorações de Natal que não estavam bem penduradas. Dirigiu-se para o seu apartamento, tomou duche, vestiu umas calças, uma camisa
de fantasia e um casaco desportivo. A miúda dos hamburgers afirmara peremptoriamente que não iria cozinhar nessa noite. Teria de a levar a jantar fora, e depois,
voltariam ao apartamento dela para uma bebida.
Toby não gostava de gastar o seu dinheiro em comida e, então, quando apostar era tão interessante, deu o nó na gravata de malha verde-escura, e olhava-se ao espelho
quando o telefone tocou. Era Abby.
Vai à rua e compra-me um exemplar do National Mirror pediu ela.
Do Mirror?
Ouviste o que eu disse. Vai lá e compra-o. O Philip acaba de me telefonar. Miss Apple Junction e a sua elegante mãe vem na primeira página. Quem descobriu aquela
fotografia? Quem?
Toby agarrou o auscultador. Pat Traymore estivera nas instalações do jornal em Apple Junction. Jeremy Saunders telefonara a Pat Traymore.
Senadora, se há alguém a querer lixá-la, eu faço-a em picado. Pat estava em casa às três e meia, ansiosa por descansar uma hora. Como habitual, o trabalho extra
de pendurar os quadros
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na noite anterior tinha-lhe afectado a perna. Aquela dor persistente e chata não a largara desde que saíra de Richmond. Mas mal acabara de entrar em casa quando
o telefone tocou. Era Lila Thatcher.
Ainda bem que a apanho, Pat. Está livre esta noite?
Na verdade...
Apanhada desprevenida, Pat não conseguiu pensar numa desculpa razoável. Não se pode mentir facilmente a uma médium", pensou ela
Lila interrompeu-a.
Não esteja ocupada. O embaixador convidou as pessoas habituais para a ceia de Natal, e eu telefonei-lhe a dizer que gostaria de a levar. Afinal, você agora é vizinha
dele. Ele ficou satisfeitíssimo.
O octogenário embaixador, agora reformado, era talvez o mais velho e distinto dos homens de Estado do distrito. Poucos dirigentes mundiais deixavam de o visitar
quando iam a Washington.
Tenho muito prazer em ir disse, calorosamente. Obrigada por se ter lembrado de mim.
Depois de desligar, Pat dirigiu-se ao quarto. Os convidados para a casa do embaixador deveriam ser uma multidão bem vestida. Resolveu vestir um vestido de veludo
negro com punhos de arminho. Ainda tinha tempo de se meter num banho de imersão durante quinze minutos e, depois, descansar um pouco.
Enquanto se recostava na banheira, Pat reparou que um bocado do papel bege da parede estava a descolar-se. Por baixo via-se um azul-wedgwood. Estendendo a mão, arrancou
um bom bocado de papel...
Era daquilo que se lembrava aquele lindo violeta, azul-wedgwood. "E a cama tinha uma colcha de cetim mármore", pensou "e tínhamos uma carpeta azul no chão."
Mecanicamente, secou-se e vestiu um robe. O quarto já estava frio e cheio das sombras da tarde. Como precaução preparou o despertador para as quatro e meia, antes
de se deitar e dormir.
"As vozes zangadas... os cobertores puxados por sobre a sua cabeça. Os ruídos... outro ruído enorme... os seus pés descalços e silenciosos nas escadas..."
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O retinir insistente do despertador acordou-a. Esfregou a testa, tentando reconstituir o sonho. Teria o papel de parede despertado algo na sua cabeça? Oh, Deus,
se ao menos não tivesse ligado o despertador.
"Mas estou a aproximar-me", pensou. "A verdade aproxima-se cada vez mais..."
Lentamente levantou-se e foi até ao espelho. Tinha o rosto tenso e pálido. Um ruído de estalar, lá em baixo, fê-la dar um salto, levando a mão à garganta. Mas, claro,
era a madeira da casa.
Pontualmente, às cinco, Lila Thatcher tocou à campainha. Ali à entrada parecia quase um elfo de bochechas rosadas e cabelos brancos. Tinha um ar festivo, com o seu
casaco de vison castanho.
Temos tempo para um xerez? perguntou Pat.
Acho que sim.
Lila olhou para a mesa de mármore de Carrara e para o espelho emoldurado a condizer.
Sempre gostei destas peças. Ainda bem que as vejo de novo.
A senhora sabe. Era uma afirmação. Fiquei com essa impressão a noite passada.
Colocara uma garrafa de xerez e um prato de biscoitos sobre a mesa, Lila deteve-se à porta da sala.
Sim disse ela. Fez um bom trabalho. Claro, já lá vai tanto tempo, mas está tal e qual como me lembro. Aquela carpeta maravilhosa. Aquele sofá. Até os quadros murmurou.
Não admira que eu tenha andado perturbada. Pat, tem a certeza de que isto não é um erro?
Sentaram-se e Pat serviu o xerez.
Não sei se é um erro ou não. Sei que é necessário.
De que se lembra?
Pedaços. Bocados. Nada que se encaixe.
Eu costumava telefonar para o hospital para saber de si. Esteve inconsciente durante meses. Quando saiu, deram-nos a entender que, se sobrevivesse, nunca mais seria
normal. E, depois, apareceu a notícia da morte.
Verónica... a irmã da minha mãe e o marido adoptaram-me. A minha avó não queria que nenhum escândalo nos perseguisse.
E foi por isso que também lhe mudaram o primeiro nome?
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O meu nome é Patricia Kerry. Acho que o Kerry foi ideia do meu pai. Patricia era o nome da minha avó. Decidiram que, uma vez que iam alterar o último nome, poderiam
usar o meu primeiro.
E então Kerry Adams transforma-se em Patricia Traymore. Que espera encontrar aqui?
Lila bebeu um gole de xerez e pousou o copo. Inquieta, Pat levantou-se e dirigiu-se para o piano. Num acto reflexo, Pat levantou a tampa e depois retirou as mãos.
Lila observava-as.
Toca?
Só por prazer.
A sua mãe tocava constantemente. Mas você sabe isso.
Sim. Verónica contou-me. Sabe, a princípio eu só queria entender o que se passara aqui. Depois conclui que detesto o meu pai desde que me lembro. Detesto-o por me
ter magoado tanto, por me ter privado da minha mãe. Acho que esperava encontrar qualquer explicação de que ele era doente, não sei. Mas agora, à medida que recordo
pequenas coisas, concluo que é mais do que isso. Não sou a mesma pessoa que teria sido se... fez um gesto na direcção do local onde os corpos tinham sido encontrados
se nada disto tivesse acontecido. Preciso de associar a criança que fui com a pessoa que sou. Perdi um bocado de mim. Tenho tantas ideias preconcebidas... a minha
mãe foi um anjo, o meu pai um demónio. Verónica deu-me a entender que o meu pai destruiu primeiro a carreira musical da minha mãe e, depois, a vida dela. Mas e ele?
Ela casou com um político e, depois, recusou-se a partilhar a sua vida! Isso foi justo? E onde entro eu como catalisador das discussões entre eles? Verónica disse-me
uma vez que esta casa era demasiado pequena. Quando a minha mãe praticava, eu acordava e começava a chorar.
Catalisador disse Lila. É isso mesmo que eu receio que você seja, Pat. Está a mexer em coisas que estariam melhor sossegadas. Analisou-a. Parece ter-se recomposto
bem das feridas.
Levou muito tempo. Quando finalmente recuperei a consciência, tiveram de me ensinar tudo de novo. Não entendia
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as palavras. Não sabia usar um garfo. Usei aparelho na perna até aos sete anos.
Lila apercebeu-se de que tinha muito calor. Momentos antes sentira frio. Não queria debruçar-se sobre a razão da mudança. Só sabia que aquela sala não tinha ainda
completado o seu cenário de tragédia. Levantou-se.
É melhor não fazermos o embaixador esperar disse, bruscamente.
Via no rosto de Pat as feições e a boca sensível de Renée, os olhos grandes e o cabelo ruivo de Dean.
Está bem. Lila já me analisou o suficiente disse Pat. Com quem me pareço?
Com ambos respondeu Lila honestamente. Mas acho que saiu mais ao seu pai.
Em todos os aspectos, não, por amor de Deus disse Pat, com um sorriso falhado.
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Bem escondido nas sombras das árvores e arbustos, Arthur observava Pat e Lila. Ficara desiludido por ver as luzes acesas e o carro à porta. Talvez naquela noite
não pudesse procurar a boneca. Mas queria desesperadamente que Glory a tivesse no Natal. Tentou ouvir o que as duas mulheres diziam, mas só apanhava uma palavra
ou outra. Usavam ambas vestidos de cerimónia. Iriam sair? Resolveu esperar. Avidamente, estudou o rosto de Patricia Traymore. Estava tão séria, tinha um ar tão perturbado.
Teria começado a levar a sério os seus avisos? Esperava que sim, para bem dela.
Observava-as havia alguns minutos quando se moveram. Iam sair. Silenciosamente dirigiu-se para a casa e, passado uns momentos, ouviu bater a porta da entrada. Não
levaram o carro. Não deviam ir muito longe. Talvez a casa de algum vizinho ou a um restaurante ali perto. Teria de se apressar.
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Rapidamente voltou ao pátio. Patricia Traymore deixara acesas as luzes da sala e ele viu as novas fechaduras das portas que davam para a varanda. Mesmo que conseguisse
partir um painel não poderia entrar. Já tinha previsto aquilo, e planeou o que iria fazer. Havia uma árvore junto ao terraço, uma daquelas que era fácil trepar.
Na noite em que deixara a boneca reparara que a janela não se fechava completamente ao cimo. Seria fácil abri-la. Passados minutos, pisava silenciosamente o soalho.
Pôs o ouvido à escuta. A sala dava a sensação de estar assombrada. Cautelosamente acendeu a lanterna. A sala estava vazia e ele começou a dirigir-se para o vestíbulo.
Tinha a certeza de estar sozinho em casa. Por onde começaria a busca? Tivera tanto trabalho por causa da boneca. Quase fora apanhado no lar a roubar a amostra de
sangue do laboratório. Esquecera-se de que Glory gostava tanto daquela boneca e de que, sempre que ele entrava no quarto para ver se ela estava a dormir, a encontrava
abraçada à boneca.
Era incrível que, pela segunda vez naquela semana, se encontrasse no interior daquela casa. A recordação daquela manhã distante ainda estava muito viva: a ambulância,
os faróis acesos, as sirenas, os pneus a chiarem na rua. O passeio apinhado de gente, os vizinhos com casacos compridos por cima de roupões caros, carros da polícia
barricando a Rua e polícias por todos os lados. Uma mulher a gritar. Fora a governanta que encontrara os corpos. Ele e o ajudante da ambulância do Hospital de Georgetown
tinham-se apressado a entrar em casa. Um jovem polícia estava de guarda à porta
Não tenham pressa. Eles já não precisam.
O homem, estendido de costas com uma bala na testa, devia ter morrido instantaneamente. A arma encontrava-se entre ele e a mulher. Ela caíra para a frente, e o sangue
da ferida do peito manchara o tapete. Tinha os olhos abertos sem fitar qualquer ponto especial, como se se perguntasse o que tinha acontecido. Não devia ter mais
de trinta anos. O cabelo escuro cobria-lhe os ombros. O rosto esguio tinha narinas delicadas e feições correctas. O roupão de seda amarela cobria-a como um vestido
de noite. Ele fora o primeiro a debruçar-se sobre a miúda. O seu cabelo ruivo estava tão empapado em sangue que se tornara vermelho;
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a perna direita pendia do roupão florido, com o osso à mostra. Debruçara-se sobre ela.
Viva! sussurrara. Penduraram uma garrafa de sangue O negativo, colocaram-lhe no rosto uma máscara de oxigénio e compuseram-lhe a perna. Ele ajudara a segurar a cabeça
passando-lhe os dedos pela testa, enrolando os caracóis dela. Alguém dissera que ela se chamava Kerry.
Se for vontade de Deus, salvar-te-emos, Kerry sussurrara.
Ela não vai conseguir dissera rudemente o interno, afastando-o do caminho. Os agentes da polícia tiraram fotografias à rapariguinha e aos cadáveres. Na carpeta,
foram desenhados a giz os contornos e posições dos corpos.
Até nessa altura ele sentira que aquele era um local de mal e pecado, um local onde duas flores inocentes, uma jovem mulher e uma miúda, tinham sido premeditadamente
violadas. Uma vez mostrara a casa a Glory e falara-lhe dessa manhã.
A pequena Kerry ficara durante dois meses numa unidade de cuidados intensivos do Hospital de Georgetown. Ele ia vê-la sempre que podia. Ela nunca acordava, estava
ali deitada, parecia uma boneca adormecida. Ele percebera que ela não ia resistir e tentara encontrar uma forma de a entregar ao Senhor. Mas, antes de poder fazer
qualquer coisa, ela fora transferida para Boston e, passado pouco tempo, soubera que ela tinha morrido.
"A irmã tinha uma boneca: Deixa-me tratar dela, pediu ela. Vamos fingir que ela está doente e eu trato dela. A mão pesada do pai caíra-lhe sobre o nariz: Então faz
isso bem, ó maricas."
Começou a procurar a boneca de Glory no quarto de Patricia Traymore. Abrindo o roupeiro examinou as prateleiras e o chão, mas não encontrou nada. Com raiva súbita
observou as roupas caras. Blusas de seda e negligés, vestidos, e o tipo de fatos que se vê nos anúncios das revistas.
Glory usava calças de ganga e camisolões, e comprava-os num armazém. As pessoas no lar usavam habitualmente camisas de flanela e roupões muito largos que lhes deformavam
os corpos. Um dos vestidos de Patricia deixou-o admirado. Era uma túnica de lã castanha, com um cinto de corda. Fez-lhe lembrar o hábito de um monge. Retirou-o do
armário e colocou-o contra o
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corpo. A seguir investigou o fundo das gavetas da cómoda. A boneca também não estava ali. Se a boneca ainda se encontrava em casa não era ali. Não podia perder tanto
tempo. Deu uma vista de olhos pelos roupeiros do quarto vazio, e desceu as escadas.
Patricia Traymore deixara acesa a luz do vestíbulo assim como um candeeiro na biblioteca e outros na sala de estar, até deixara acesas as luzes da árvore de Natal.
"Era uma desperdiçada", pensou ele, zangado. Era injusto gastar tanta energia quando havia velhos que não tinham dinheiro sequer para aquecer as suas casas. E a
árvore já estava seca. "Se uma chama a tocasse, inflamar-se-ia, os ramos partir-se-iam e os ornamentos derreter-se-iam."
Um dos ornamentos caíra da árvore. Apanhou-o e colocou-o no lugar. Não havia, de facto, nenhum esconderijo na sala. A biblioteca foi o último sítio onde procurou.
As gavetas estavam fechadas fora ali que provavelmente ela a guardara. Depois reparou no caixote de cartão empurrado para debaixo da mesa. E soube. Teve de utilizar
muita força para abrir o caixote, mas, quando o conseguiu, o seu coração bateu de alegria. Ali estava a preciosa boneca de Glory.
Não tinha o avental, mas não havia tempo para o procurar. Atravessou todos os compartimentos, apagando cuidadosamente todos os vestígios da sua presença. Não acendera
nenhuma luz nem tocara em nenhuma porta. Tinha muita experiência adquirida no lar. Claro que, se Patricia Traymore procurasse a boneca, saberia que alguém tinha
lá entrado. Mas o caixote estava muito enfiado debaixo da mesa. Talvez não desse pela sua falta durante uns tempos. Sairia tal como entrara pela janela do quarto
do segundo andar. Patricia Traymore não utilizava aquele quarto, provavelmente passavam-se dias sem que lá fosse.
Entrara em casa às cinco e um quarto. As badaladas da igreja perto do liceu batiam as seis quando ele descia da árvore, se metia furtivamente pelo pátio e desaparecia
dentro da noite.
A casa do embaixador era enorme. As paredes brancas constituíam um óptimo fundo para a sua magnífica colecção de arte.
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Os sofás e as mesas de estilo atraíram a atenção de Pat. Junto das portas que davam para o terraço, erguia-se uma enorme árvore de Natal, com decorações prateadas.
A mesa da sala de jantar fora transformada num bufete elaborado: caviar e esturjão, presunto da Virgínia, gelatina de peru, bolos quentes e saladas. Dois criados
enchiam discretamente os copos dos convidados. O embaixador Cardell, pequeno, magro e de cabelo branco, deu delicadamente as boas-vindas a Pat e apresentou-a à sua
irmã, Rowena Van Cleef, que vivia agora com ele.
Sou a ama dele disse Mrs. Van Cleef a Pat, com olhos brilhantes. Só tenho setenta e quatro anos, Edward tem oitenta e dois.
Estavam presentes cerca de quarenta pessoas. Em voz baixa, Lila assinalou as mais conhecidas.
O embaixador britânico e a mulher, Sir John e Lady Clemens; o embaixador francês, Donald Arlem, vai ser nomeado presidente do Banco Mundial; o general Wilkins é
aquele homem alto junto à lareira, vai ocupar o comando da NATO; o senador Whitlick... mas não é a mulher que está com ele...
Apresentou Pat às pessoas da vizinhança. Pat surpreendeu-se por se ver o centro das atenções. Havia já indícios sobre o autor do assalto? O presidente não ia nomear
a senadora Jennings vice-presidente? Era fácil trabalhar com a senadora? Iam gravar o programa com antecedência?
Gina Butterfield, a colunista do Washington Tribune, tinha-se aproximado e ouvia avidamente tudo o que Pat dizia.
É tão extraordinário que alguém tenha entrado em sua casa e deixado um bilhete ameaçador comentou a jornalista. Claro que não levou isso a sério!?
Pat tentou mostrar-se descontraída.
Bem, todos achamos que é obra de algum tarado. Acho que se fez muito barulho à volta disto. É uma injustiça para com a senadora.
A jornalista sorriu.
Minha querida, isto aqui é Washington. Com certeza que não acredita ser possível ignorar algo noticiável. Parece muito fria... eu, se estivesse no seu lugar, teria
ficado bastante assustada por ver a minha casa assaltada e a minha vida ameaçada.
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Especialmente aquela casa disse alguém. Sabe que o senador Adams se suicidou lá?
Pat olhou para as bolhas na taça de champanhe.
Sim, ouvi falar. Mas foi há muito tempo, não foi?
E temos de falar nesse assunto? interrompeu Lila. évéspera de Natal.
Um momento disse Gina Butterfield rapidamente. Disse Adams. Congressista Adams. Quer dizer que Pat está a viver na mesma casa onde ele se matou? Como é que isso
escapou à Imprensa?
Que relação é que isso pode ter com o assalto? atirou Lila. Pat sentiu a velhota tocar-lhe no braço em sinal de aviso. Estaria a expressão do seu rosto a revelar
de mais?
O embaixador deteve-se junto do grupo.
Por favor, venham cear disse.
Pat voltou-se para o seguir, mas uma pergunta da jornalista deteve-a:
Você vivia aqui em Georgetown na altura das mortes?
Vivia, sim respondeu a mulher.
A minha casa ficava perto da deles. A minha mãe era viva nessa altura. Conhecíamos o casal Adams muito bem.
Isso foi antes de eu vir para Washington explicou Gina Butterfield. Mas acho que ouvi os rumores. É verdade que houve muito mais que aquilo que veio a público?
Claro que é verdade.
A mãe de Renée, Mrs. Schuyler, fez o papel de grande dame em Boston. Declarou à Imprensa que Renée se apercebera de que o seu casamento foi um erro, e que tencionava
divorciar-se de Dean Adams.
Pat, vamos comer qualquer coisa? O braço de Lila puxou-a.
E ela não se ia divorciar? perguntou Gina.
Duvido respondeu a outra. Ela era doida pelo Dean, terrivelmente ciumenta, não gostava do trabalho dele. Era um mono nas festas. Nunca abria a boca. E passava oito
horas por dia ao piano. Quando o tempo estava quente, quase dávamos em malucos com o barulho. E, acredite, ela não era nenhuma Myra Hess.
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"Não acredito nisto", pensou Pat. "Não quero acreditar. Que estava a jornalista a perguntar? Algo sobre a reputação de Dean Adams como mulherengo?"
Ele era tão atraente que as mulheres se atiravam a ele. A vizinha encolheu os ombros.
Eu só tinha vinte e três anos nessa altura e tinha um fraco por ele. Ele costumava passear à noite com a pequena Kerry. Eu tratava de me fazer encontrada, mas não
adiantou nada. Acho melhor irmos comer. Estou esfomeada.
O congressista Adams era mesmo uma pessoa perturbada e instável?
Claro que não. A mãe de Renée é que começou a espalhar isso. Sabia o que estava a fazer. Lembre-se de que havia impressões digitais dos dois na arma. A minha mãe
e eu sempre pensámos que foi Renée quem enlouqueceu e disparou. E, quanto a Kerry... ouça, aqueles dedos de pianista tinham muita força. Não me custaria a acreditar
que foi ela que feriu a pobre criança naquela noite.
20
Sam bebia uma cerveja, enquanto olhava distraidamente a multidão no Clube de Palm Springs. Virando a cabeça olhou para a filha e sorriu: "Karen herdara as cores
da mãe: a pele bronzeada fazia que o cabelo loiro parecesse ainda mais claro." Tinha a mão pousada sobre o braço do marido. Thomas Walton Snow, Jr. era um bom tipo.
Um bom marido, um homem de negócios bem sucedido. A família dele era demasiado maçadora para o seu gosto, mas sentia-se satisfeito por a filha ter feito um bom casamento.
Desde a sua chegada que Sam tinha sido apresentado a várias mulheres atraentes na casa dos quarenta viúvas, mulheres de carreira, cada uma disposta a escolher um
homem para o resto da vida. Isto só fez que Sam se sentisse inquieto, inadaptado, sem saber bem onde pertencia.
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E onde diabo pertencia ele?
A Washington. Era isso. Era bom estar com Karen, mas não lhe interessava absolutamente nada as outras pessoas que Karen achava interessantes.
"A minha filha tem vinte e quatro anos" pensou. "Fez um bom casamento. Está à espera de bebé. Eu não quero ser apresentado às quarenta e tal mulheres disponíveis
de Palm Springs."
Papá, por favor, deixa de franzir o sobrolho.
Karen debruçou-se sobre a mesa, beijou-o e voltou a sentar-se, com o braço de Tom por cima dos ombros. Ele olhou para os rostos alegres dos familiares de Tom. Mais
um dia ou dois e começaria a fartar-se. Ele era um hóspede difícil.
Querida disse ele a Karen, em tom de confidência. Perguntaste-me se pensava que o presidente ia nomear a senadora Jennings vice-presidente, e eu disse que não sabia.
Mas acho que vai.
Todos os olhares caíram sobre ele.
Amanhã à noite a senadora vai dar uma festa. Vão ver alguma coisa na televisão. Ela gostaria que eu fosse. Se não levam a mal, eu acho que devo ir.
Todos compreenderam. O sogro de Karen mandou buscar um horário. Se Sam partisse de Los Angeles no voo das oito, da manhã seguinte, estaria no Aeroporto Nacional
às quatro e meia, pela hora da costa leste. Que interessante, ser convidado numa festa a transmitir pela TV. Todos iriam ver o programa. Só Karen se mantinha calada.
Depois, rindo, disse:
Papá, vamos lá! Ouvi dizer que a senadora anda de olho em ti!
21
Às nove e quinze, Pat e Lila regressavam silenciosamente da festa do embaixador. Só quando chegaram junto das casas é que Lila disse calmamente:
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Pat, nem calcula quanto lamento.
Que parte do que aquela mulher disse é verdade e que parte é exagero? Tenho de saber.
As frases martelavam-lhe o cérebro.
"... neurótica... dedos longos e esguios... mulherengo... Bateu naquela pobre criança."
Tenho mesmo de saber qual é a verdade repetiu.
Pat, ela é uma mexeriqueira. Sabia muito bem o que estava a fazer quando começou a falar do passado da casa com aquela mulher do Washington Tribune.
Ela estava enganada, claro disse Pat sem qualquer ênfase.
Enganada?
Encontravam-se junto ao portão de Lila. Pat olhou para o outro lado, para a sua própria casa. Embora tivesse deixado várias luzes acesas, parecia ainda remota e
sombria.
Sabe, é que há uma coisa que tenho a certeza de me lembrar. Quando corri da entrada para a sala naquela noite, tropecei
no corpo de minha mãe. Virou-se para Lila. Portanto já vê o que me faz confusão: uma mãe neurótica que aparentemente não me queria, e um pai que enlouqueceu e me
quis matar. Mas que herança, hem?
Lila não respondeu. A sensação estranha estava a tornar-se aguda.
Oh, Kerry, eu quero ajudar! Pat apertou-lhe a mão.
E está a ajudar-me, Lila disse ela. Boa noite.
Na biblioteca, o botão vermelho do gravador estava aceso. Pat pôs a fita a rodar. Havia só uma chamada.
É Luther Pelham. São sete e vinte. Temos uma crise. Seja a que horas for telefone-me para casa da senadora Jennings,
703/5550/43. Temos de nos encontrar ainda esta noite.
Com a boca subitamente seca, Pat ligou para aquele número. Estava ocupado. Teve de tentar mais três vezes até conseguir. Foi Toby quem atendeu.
Aqui é Pat Traymore. Que se passa?
Muita coisa. Onde está?
Em casa.
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Muito bem. Mr. Pelham tem um carro preparado para a ir buscar. Estará aí dentro de dez minutos.
Toby, que se passa?
Isso, Miss Traymore, é uma coisa que terá de explicar à senadora respondeu, desligando.
Meia hora mais tarde, o carro da agência que Luther mandara, parava à frente da casa da senadora Jennings, em McLean. Durante o caminho Pat fizera um sem-número
de suposições, mas todos os seus pensamentos levavam à mesma conclusão assustadora: algo acontecera que perturbara a senadora, e, fosse o que fosse, era ela a culpada.
Um Toby de cara sombria abriu a porta e conduziu-a à biblioteca. Sombras silenciosas estavam sentadas à mesa, num conselho de guerra.
A senadora Jennings, com uma calma de aço e a expressão esfíngica, parecendo talhada a mármore, olhava para Pat. Philip encontrava-se à direita da senadora, com
as madeixas longas de cabelo descolorido a caírem-lhe sobre o crânio. As bochechas de Luther Pelham estavam púrpura. Parecia estar à beira de um ataque.
"Isto não é um julgamento", pensou Pat. "É uma inquisição. Já fui considerada culpada. Mas de quê?"
Sem lhe oferecer o lugar, Toby deixou-se cair sobre a última cadeira da mesa.
Senadora disse Pat, há algo de muito errado que, obviamente, tem a ver comigo. Querem dizer-me o que se passa?
Havia um jornal no centro da mesa. Com um gesto Philip pegou nele e empurrou-o para Pat.
Onde arranjaram eles esta fotografia? perguntou friamente.
Pat olhou para a primeira página do National Mirror. O cabeçalho dizia: SERÁ MISS APPLE JUNCTION A PRIMEIRA MULHER IMPORTANTE? A fotografia, que ocupava toda a página
era de Abigail, com a sua coroa de Miss Apple Junction, ao lado da mãe.
Ampliada, a fotografia mostrava ainda mais cruelmente as dimensões de Francey Foster. As banhas saíam-lhe contra o vestido mal cortado. O braço à volta de Abigail
era gordo; o sorriso orgulhoso só lhe fazia aumentar o duplo queixo.
138
Já conhece esta fotografia! atirou-lhe Philip.
Sim.
"Que horrível para a senadora", pensou. Recordou o comentário de Abigail de que levara mais de trinta anos a tentar esquecer Miss Apple Junction. Ignorando os outros,
Pat dirigiu-se directamente à senadora.
Não acredita que eu tive algo a ver com o facto de o Mirror ter publicado essa fotografia?
Ouça, Miss Traymore respondeu Toby, não se incomode a mentir. Eu descobri que você andou a meter o nariz em Apple Junction, incluindo desenterrar números antigos
do jornal. Eu estava em sua casa no dia em que o Saunders telefonou.
Toby já não falava em tom de deferência.
Eu disse à senadora que foste a Apple Junction contra as minhas ordens explícitas disse Luther.
Pat entendeu o aviso. Não deveria dar a entender a Abigail Jennings que Luther concordara com a viagem ao local de nascimento de Abigail. Mas isso agora não interessava.
O que interessava era Abigail.
Senadora começou ela, eu percebo como se deve sentir...
O efeito das palavras foi explosivo. Abigail deu um salto.
Sim? Eu pensava que tinha sido explícita, mas vou repetir tudo de novo. Detestei cada minuto que vivi naquela casa fedorenta. Luther e Toby puseram-me a par das
suas actividades, por isso, sei que esteve com Jeremy Saunders. Que é que esse inútil lhe disse? Que eu utilizava a porta das traseiras e que a minha mãe era a cozinheira?
Aposto que foi isso. Acho que foi você que divulgou a fotografia, Pat Traymore! E sei porquê. Você está decidida a fazer o meu perfil à sua maneira. Gosta de histórias
de Cinderela. Insinuou isso nas suas cartas. E quando eu fui suficientemente tola para ter concordado com este programa, você decidiu que ia ser feito à sua maneira.
Nem que isso me custasse tudo por que tenho lutado toda a minha vida.
Acredita que eu ia mandar a fotografia e prejudicar a minha carreira? Pat olhou de uns para os outros. Luther, a senadora já viu o plano do programa?
Sim, já viu.
139
E quanto ao plano alternativo?
Esquece esse.
Que plano alternativo? perguntou Philip.
Aquele que eu tenho andado a pedir ao Luther para utilizar, e asseguro-lhes que não faz qualquer menção ao concurso de beleza.
Senadora, de certa forma até tem razão. Eu quero fazer este programa à minha maneira. Mas tudo pelas melhores razões. Admiro-a muito. Quando lhe escrevi, não sabia
se havia alguma hipótese de vir a ser brevemente nomeada vice-presidente. Pensava em termos futuros, e esperava que para o ano fosse uma séria candidata à nomeação
presidencial.
Pat fez uma pausa para recuperar o fôlego, depois continuou:
Gostaria que desenterrasse a primeira carta que lhe escrevi. O problema é que o público americano a considera fria e distante. Essa fotografia é um bom exemplo.
Obviamente, você não sente vergonha. Mas repare na expressão do rosto de sua mãe. Tão orgulhosa de si! Ela é gorda, é isso que a preocupa? Milhões de pessoas são
obesas, e, na geração da sua mãe, havia muitas mais. Portanto, se fosse a si, quando a interrogassem diria que esse fora o seu primeiro concurso de beleza, e que
participara porque sabia que a sua mãe ficaria muito feliz se ganhasse. Não há mãe no mundo que não passe a gostar de si. Luther poderá mostrar-lhe o resto das minhas
sugestões para o espectáculo. Mas posso dizer-lhe isto: se não for nomeada vice-presidente, não será por causa desta fotografia; será por causa da sua reacção a
ela e por se sentir envergonhada do seu passado.
"Vou pedir ao motorista para me levar a casa prosseguiu. Depois, com os olhos a brilhar, acrescentou para Luther: Podes telefonar-me amanhã e dizeres-me se queres
que continue com o programa. Boa noite senadora.
Voltou-se para sair. A voz de Luther interrompeu-a:
Toby, levanta o cu da cadeira e vai fazer café. Pat, senta-te e vamos tentar reparar esta confusão.
Era uma e meia quando Pat chegou a casa. Vestiu uma camisa de dormir e um roupão. Fez chá, levou-o para a sala e enroscou-se no sofá.
140
Fixando a árvore de Natal, pôs-se a reflectir sobre o dia. Se aceitasse o que Catherine Graney lhe tinha dito, toda a conversa sobre o grande amor entre Abigail
e Willard Jennings era mentira. Se acreditasse no que ouvira na festa do embaixador, a mãe era uma neurótica. Se fosse a acreditar na senadora Jennings, tudo o que
Jeremy Saunders lhe contara era mentira. Devia ter sido ele quem mandara a fotografia de Abigail para o Mirror. Tinha um espírito suficientemente mesquinho para
o fazer. Sorveu o último golo de chá e levantou-se. Não valia a pena pensar mais no assunto. Dirigindo-se para a árvore de Natal, estendeu a mão para os interruptores
para apagar a luz. Depois deteve-se. Enquanto ela e Lila tomavam xerez pensou ter reparado que um dos ornamentos da árvore tinha escorregado e caído ao chão.
"Enganei-me", pensou.
Encolheu os ombros e foi para a cama.
22
Às nove e um quarto da manhã do dia de Natal, Toby estava junto ao fogão na cozinha de Abigail Jennings, à espera de que o café estivesse pronto. Esperava poder
tomar uma chávena antes de Abby aparecer. Era verdade que a conhecia desde miúda, mas nesse dia não podia prever qual seria a sua disposição. A noite passada fora
uma enorme confusão, só a vira assim tão enervada duas vezes, e não gostava de se lembrar de nenhuma delas.
Depois de Pat Traymore sair, Abby, Pelham e Phil tinham ficado mais uma hora, tentando decidir o que fazer. Ou melhor, Abby gritara com Pelham, repetindo sem cessar
que Pat Traymore estava a trabalhar para Claire Lawrence, e que talvez também fosse o caso de Pelham,
Mesmo para ela, Abigail fora longe de mais; e Toby estava espantado por Pelham ter encaixado tudo. Mais tarde Phil dera uma explicação.
141
Bem, ele é uma personalidade televisiva importante do mundo das notícias. Fez milhões. Mas tem sessenta anos e aborrece-se muito. Agora quer ser outro Edward R.
Murrow. Murrow culminou a sua carreira como chefe do Departamento de Informação dos Estados Unidos. Pelham está morto por ter esse lugar. Dá um prestígio enorme
e não há competição. A senadora fará o jogo dele se ele fizer o dela. Ele sabe que ela tem o direito de reclamar de forma como o programa está a ser conduzido. Toby
teve de concordar com o que Pelham dissera. Quer quisessem ou não, o mal estava feito. Ou o programa incluiria o episódio de Apple Junction e o concurso de beleza,
ou pareceria uma farsa.
Não podes ignorar o facto de vir na capa do National Mirror dizia Pelham a Abby. É lido por quatro milhões de pessoas e passado sabe Deus a quantos mais. Aquela
fotografia vai ser reimpressa por todos os jornais sensacionalistas do país. Tens de resolver o que lhes vais dizer.
O que lhes vou dizer atirara Abby. Vou dizer-lhes a verdade: que o meu pai era um sacana e a única coisa decente que fez foi morrer quando eu tinha seis anos. Depois
posso dizer que a minha mãe gorda tinha mentalidade de sopeira e a sua maior ambição era que eu fosse Miss Apple Junction e viesse a ser uma boa cozinheira. Não
acham esse o background ideal para uma vice-presidente?
Chorava lágrimas de raiva. E Abigail não era de choros. Toby só se lembrava de poucas ocasiões... Dera o seu parecer.
Abby, presta atenção. Estás entalada com a fotografia de Francey. Portanto recompõe-te e aceita a sugestão de Pat Traymore.
Aquilo acalmara-a. Confiava nele.
Ouviu os passos de Abby no vestíbulo. Estava ansioso por ver o que ela vestia. Pelham concordara que ela devia aparecer nas cerimónias natalícias da catedral e usar
algo fotogénico mas não luxuoso de mais.
" Deixa o vison em casa dissera-lhe."
Bom dia, Toby. Feliz Natal. O tom era sarcástico mas controlado. Mesmo antes de se voltar viu que Abby recuperara o sangue-frio.
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Feliz Natal, senadora disse, olhando para ela. Ei, estás magnífica!
Ela vestia um fato forrado, vermelho-brilhante, com mangas compridas e saia pregueada.
Pareço uma ajudante do Pai Natal atirou ela, e a sua voz ainda que estivesse tensa, mostrava já uma ponta de humor. Agarrou na taça, e ergueu-a num brinde. Vamos
sair desta, não vamos, Toby?
Podes apostar que sim!
Aguardavam-na na catedral. Logo que Abigail saiu do automóvel, um correspondente da televisão estendeu-lhe o microfone.
Feliz Natal, senadora.
Feliz Natal, Bob.
"Abby é esperta", pensou Tobby.
Faz questão de saber os nomes de toda a gente da Imprensa e TV, por muito insignificantes que sejam.
Senadora, vai participar nas cerimónias natalícias da catedral. Vai rezar por algo em particular?
Abby hesitou o tempo suficiente. Depois disse:
Bob, creio que estamos todos a torcer pela paz mundial, não estamos? E depois disso a minha oração é para os que têm fome. Não seria maravilhoso se soubéssemos que
todos os homens, mulheres e crianças do planeta tinham hoje um óptimo jantar? sorriu e juntou-se à multidão que entrava na catedral.
Tobby voltou a entrar no carro.
"Bestial", pensou. Meteu a mão debaixo do assento e retirou os papéis das corridas. Os póneis não lhe tinham dado muita sorte nos últimos tempos. Já era tempo de
a sorte mudar.
A cerimónia durou uma hora e quinze minutos. Quando a senadora saiu tinha outro repórter à sua espera. Este punha questões mais difíceis de responder.
Senadora, viu a cara do National Mirror esta semana? Tobby acabara de chegar junto dela para lhe segurar a porta.
Reteve a respiração à espera de ver como ela se saía. Abby sorriu, com um sorriso feliz e caloroso.
143
Sim, claro.
Que pensa disso, senadora? Abby riu
Fiquei estupefacta. Devo dizer que estou mais habituada a ser mencionada no Congressional Record que no National Mirror.
Essa fotografia perturbou-a, senadora?
Claro que não. Por que razão haveria de perturbar? Suponho que nas festividades a maioria das pessoas pensa nos entes queridos que já não se encontram entre nós.
Aquela fotografia fez-me lembrar como a minha mãe ficou contente quando ganhei aquele concurso. Entrei nele para lhe agradar. Ela era viúva e educou-me sozinha.
Éramos muito, muito chegadas.
Os seus olhos humedeceram-se e os seus lábios tremeram. Rapidamente baixou a cabeça e enfiou-se no carro. Com decisão, Toby fechou-lhe a porta.
A luz do atendedor de chamadas estava acesa quando Pat regressou da missa matinal. Automaticamente premiu o botão, fazendo a fita andar para trás; depois pôs-se
a ouvir as mensagens.
As primeiras três tinham sido desligadas. Depois ouviu-se Sam com voz nervosa.
Pat, tenho tentado contactar-te. Vou agora apanhar um avião. Vemo-nos logo na festa de Abigail.
Sam planeara passar a semana com Karen e o marido. E agora vinha a correr para casa. Obviamente Abigail convidara-o, por ser um dos amigos mais íntimos. Havia algo
entre eles! Abigail era oito anos mais velha, mas não parecia. Há muitos homens que casam com mulheres mais velhas.
Luther Pelham também telefonara.
Continue a trabalhar na segunda versão do programa. Esteja em casa da senadora às quatro. Se os jornalistas lhe perguntarem se viu a fotografia do Mirror, diga que
não.
A mensagem seguinte começava com uma voz suave e perturbada:
Miss Traymore, hem, Pat, se calhar não se lembra de mim! (Uma pausa). Claro que se vai lembrar, só que conhece tanta gente, não é? (Pausa). Tenho de me apressar.
Daqui
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fala Margaret Langley. Sou a directora... reformada, claro, da Escola Secundária de Apple Junction.
O tempo para a mensagem esgotara-se. Exasperada, Pat mordeu os lábios. Miss Langley voltara a ligar. Desta vez disse rapidamente:
Para continuar, por favor telefone-me para o 518 555-2460. Ouviram-se sons de respiração trémula. Depois Miss Langley acrescentou de rompante: Miss Traymore, soube
notícias de Eleanor!
O telefone tinha tocado apenas uma só vez, antes de Miss Langley atender. Pat identificou-se e foi interrompida de imediato:
Miss Traymore, depois de tantos anos tive por fim notícias de Eleanor! Quando vinha a chegar da igreja o telefone tocou e ela disse "olá" naquela voz doce e tímida,
e ambas começámos a chorar.
Miss Langley, onde está Eleanor! Que faz ela?
Fez-se uma pausa, depois Margaret Langley falou cuidadosamente, como se estivesse a escolher as palavras exactas.
Ela não me disse onde está. Disse que está muito melhor e não quer levar o resto da vida escondida. Disse que está a pensar em se entregar. Sabe que irá para a cadeia,
pois violou a liberdade provisória. Disse que gostaria que eu a visitasse.
Entregar-se! Pat pensou no rosto consternado de Eleanor Brown após a condenação.
Pedi-lhe para lhe telefonar a si. Pensei que podia fazer que a pusessem de novo em liberdade condicional. Depois Margaret Langley acrescentou com voz emocionada:
Miss Traymore, por favor, não deixe que aquela rapariga volte para a prisão.
Vou tentar prometeu Pat. Tenho um amigo, um congressista, que ajudará. Miss Langley, para bem de Eleanor, sabe onde a posso encontrar?
Não, a sério que não sei.
Se ela voltar a ligar, peça-lhe para me contactar antes de se entregar. Faremos que a sua posição se fortaleça.
Sabia que você iria ajudar. Sabia que você é boa pessoa disse Margaret Langley, alterando o tom de voz. Fiquei muito satisfeita por aquele simpático Mr. Pelham ter
telefonado a convidar-me
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a aparecer no seu programa. Vêm cá amanhã gravar a entrevista.
"Então Luther sempre aproveitara a sugestão." Ainda bem disse Pat, tentando mostrar-se entusiástica. Então, lembre-se de pedir à Eleanor para me telefonar.
Baixou lentamente o auscultador. Se Eleanor Brown era a rapariga tímida que Miss Langley dizia ser, entregar-se seria um tremendo acto de coragem. Mas para Abigail
poderia ser fatalmente embaraçoso, se a vulnerável jovem fosse novamente conduzida para a prisão, continuando a protestar a sua inocência em relação ao roubo no
escritório de Abigail.
23
Enquanto atravessava o corredor do lar, Arthur pressentiu a tensão e ficou imediatamente de sobreaviso. O local parecia calmo. Havia pequenas árvores de Natal e
velas sobre as mesas de jogo, cobertas com neve a fingir. Todas as portas dos quartos dos doentes tinham pendurados cartões de Natal. Ouviam-se canções de Natal.
Mas algo estava errado.
Bom dia, Mrs. Harnick. Como se sente?
Ela avançava vagarosamente, apoiada na sua bengala, com o cabelo despenteado caindo-lhe sobre a testa. Olhou para ele sem erguer a cabeça. Só os olhos se moveram,
aguados e receosos.
Mantém-te longe de mim, Arthur disse ela com voz trémula. Eu disse-lhes que te vi sair do quarto de Anita, e sei que não me enganei.
Ele tocou no braço de Mrs. Harnick, mas ela afastou-se.
Claro que estive no quarto de Mrs. Gillespie disse ele. Ela e eu éramos amigos.
Ela não era tua amiga. Tinha medo de ti. Ele tentou controlar a fúria.
Vamos lá, Mrs. Harnick...
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Sei muito bem o que disse. Anita queria viver. A filha, Anne Marie, vinha visitá-la. Já não vinha cá há dois anos. Anita disse que não se importava de morrer, desde
que voltasse a ver Anne Marie. Ela não deixou de respirar. Eu disse-lhes.
A enfermeira-chefe, Elisabeth Sheehan, estava sentada à secretária a meio do corredor. Ele odiava-a. Ela tinha um rosto sério e olhos azul-cinza que se tornavam
escuríssimos quando estava zangada.
Arthur, antes de começares a ronda, vem ao meu gabinete.
Ele seguiu-a até ao escritório do lar, o local onde as famílias discutiam os pormenores para se verem livres dos seus velhotes. Mas hoje não havia ali nenhuns familiares,
só um jovem com cara de bebé de gabardina e sapatos por engraxar. Tinha um sorriso amável e modos delicados, mas Arthur não se deixou enganar.
Sou o detective Barrott disse ele.
O superintendente do lar, Dr. Cole, também se encontrava lá.
Arthur, senta-te disse ela tentando mostrar-se amável.
Obrigado, enfermeira. Pode sair.
Arthur escolheu uma cadeira direita e lembrou-se de cruzar as mãos sobre o regaço e de se mostrar um pouco confuso, como se não fizesse ideia do que se passava.
Ensaiara aquele ar frente ao espelho.
Arthur, Mrs. Gillespie morreu na passada quinta-feira disse o detective Barrott.
Arthur assentiu com expressão pesarosa. Ficou subitamente satisfeito por ter encontrado Mrs. Harnick à entrada.
Eu sei. Desejava tanto que ela vivesse um pouco mais. A filha vinha visitá-la, e ela já não a via há dois anos.
Sabias isso? perguntou o Dr. Cole.
Claro, Mrs. Gillespie contou-me.
Percebo. Não sabíamos que ela tinha discutido contigo a visita da filha.
Doutor, o senhor sabe que demorava muito tempo dar de comer a Mrs. Gillespie. Às vezes ela tinha de descansar e então falávamos.
Arthur, ficaste satisfeito quando Mrs. Gillespie morreu?
perguntou o detective Barrott.
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Fiquei satisfeito por ela ter morrido antes de o cancro piorar. Iria ter dores terríveis. Não é verdade doutor? acrescentou, olhando para o Dr. Cole com os olhos
muito abertos.
É possível, sim disse o Dr. Cole contra vontade. Claro, nunca se sabe...
Mas eu gostava que Mrs. Gillespie tivesse vivido para ver Anne Marie. Ela e eu costumávamos rezar por isso. Ela, às vezes, pedia-me para lhe ler orações do Missal
de Santo António.
O detective Barrott analisava-o atentamente.
Arthur, visitaste Mrs. Gillespie no domingo passado?
Oh, sim, passei por lá antes de a enfermeira Krause fazer a ronda. Mas Mrs. Gillespie não precisava de nada.
Mrs. Harnick diz que te viu sair do quarto de Mrs. Gillespie por volta das quatro ou cinco horas. É verdade?
Arthur já tinha a resposta preparada.
Não, não entrei no quarto dela. Espreitei, mas ela estava a dormir. Passara uma noite má e eu estava preocupado. Mrs. Harnick viu-me espreitar.
O Dr. Cole recostou-se de novo na cadeira. Parecia aliviado. A voz do detective Barrott tornou-se mais suave.
Mas ontem disseste que Mrs. Harnick estava enganada.
Não, alguém me perguntou se eu tinha entrado duas vezes no quarto de Mrs. Gillespie, mas eu não o tinha feito. Depois, pensei melhor e lembrei-me de que, afinal,
tinha espreitado. Assim, tanto Mrs. Harnick como eu estávamos certos.
O Dr. Cole sorria agora.
Arthur é um dos nossos ajudantes mais prestáveis comentou. Já lho tinha dito, Mr. Barrott.
Mas o detective Barrott não sorriu.
Arthur, há muitos ajudantes que rezam com as doentes, ou és só tu?
Oh, acho que só eu. Sabe, eu frequentei um seminário. Tencionava ser padre, mas adoeci e tive de me vir embora. De certa forma vejo-me como padre.
Os olhos do detective Barrott, claros e límpidos, encorajavam confidências.
Quantos anos tinhas quando andaste nesse seminário? perguntou com simpatia.
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Tinha vinte. E fiquei lá até aos vinte anos e meio.
Percebo disse o detective Barrott. Diz-me, Arthur, em que seminário andaste?
Em Collegeville, Minesota, na Comunidade Beneditina. O detective Barrott puxou de um bloco e apontou. Demasiado tarde, Arthur apercebeu-se de que já falara de mais.
E se o detective Barrott entrasse em contacto com a comunidade e lhe contassem que após a morte do padre Damian o tinham mandado embora?
Arthur andou preocupado com isso durante todo o dia. Embora o Dr. Cole o tivesse mandado regressar ao trabalho, sentiu o olhar desconfiado da enfermeira Sheehan.
E todos os doentes o olhavam de forma estranha.
Quando foi ver como estava o velho Mr. Thoman, a filha encontrava-se lá e disse-lhe:
Arthur, não precisa de se preocupar mais com o meu pai. Pedi à enfermeira Sheehan para lhe arranjar outro empregado.
Foi como uma bofetada. Ainda na semana anterior Mr. Thoman lhe dissera:
Não vou aguentar muito mais tempo estar assim doente. Arthur reconfortara-o, dizendo:
Talvez Deus também não queira isso, Mr. Thoman. Arthur tentou manter o sorriso enquanto atravessava a sala de estar para ajudar Mr. Whelan, que tentava pôr-se em
pé. Enquanto conduzia Mr. Whelan aos lavabos, apercebeu-se de que lhe doía muito a cabeça, uma daquelas dores que até nos fazem ver estrelas. Sabia o que iria acontecer
a seguir.
Enquanto ajudava Mr. Whelan a sentar-se, olhou para o aparelho de televisão. O écran estava embaciado mas, depois, começou a desenhar-se um rosto, o rosto de Gabriel,
tal como aparecia no dia do Juízo Final. Gabriel só falou para ele.
Arthur, já não estás seguro aqui.
Percebo.
Não deu conta de que tinha falado alto, até Mr. Whelan dizer:
Chiu...
Quando se dirigiu ao seu armário, Arthur ensacou todos os seus pertences, deixando unicamente um uniforme a mais e uns sapatos velhos. No dia seguinte estava de
folga, portanto só iriam
149
descobrir que não iria regressar se, por alguma razão, lhe revistassem o armário e verificassem que estava vazio.
Vestiu o casaco sport, aquele castanho e amarelo que comprara no ano anterior em J. C. Penney. Guardara-o ali para o caso de se ir encontrar com Glory e aparecer
com bom aspecto.
No bolso da gabardina meteu o par de meias dentro do qual se encontravam trezentos dólares. Tinha sempre dinheiro para uma emergência, tanto ali como em casa, para
a eventualidade de ter de sair precipitadamente.
A sala dos armários estava fria. Não se via ninguém por ali. Tinham dado o dia de folga a quase todos. Ele oferecera-se para ficar.
As suas mãos estavam inquietas e secas. Os nervos estavam à flor da pele. Não tinham o direito de o tratar assim. Os seus olhos inquietos olharam à volta do armazém.
A maior parte dos mantimentos estavam fechados num grande armazém, mas havia um armário nas escadas. Estava repleto de garrafas abertas, latas de detergente e tapetes
por lavar. Pensou naquela gente lá em cima: Mrs. Harnick acusando-o, a filha de Mr. Thoman mandando-o afastar-se de seu pai, a enfermeira Sheehan... como se atreviam
a falar dele, interrogá-lo, rejeitá-lo!
No armário encontrou uma lata meio cheia de terebintina. Retirou a tampa e, depois, entornou a lata. Gotas de terebintina começaram a cair no chão. Deixou a porta
do armário aberta. Ali mesmo ao lado havia cerca de uma dúzia de sacos de lixo à espera de serem levados para o contentor.
Arthur não fumava, mas sempre que os visitantes deixavam esquecido algum maço, ele costumava levá-lo para Glory. Retirou um Salem do bolso, acendeu-o, puxando até
ter a certeza de que não se iria apagar. Desapertou um dos sacos de lixo e entornou-o. Não levaria muito tempo. O cigarro chegaria ao fim, depois pegaria fogo ao
lixo e, então arderiam os outros sacos e a terebintina faria que o fogo aumentasse de proporções. Os tapetes do armário fariam que o fumo ficasse espesso, e quando
o pessoal tentasse retirar os velhotes, já o edifício estaria completamente queimado. Pareceria um acidente por descuido, um cigarro aceso deitado no lixo, um fogo
causado por uma lata de terebintina
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que tinha caído da prateleira, isto se os investigadores conseguissem reconstituir alguma coisa.
Voltou a apertar o saco, enquanto o cheiro ténue e agradável lhe fez tremer as narinas. Depois apressou-se a sair do edifício e a descer a rua solitária até ao metro.
Glory estava sentada no sofá da sala a ler um livro quando Arthur chegou a casa. Vestia um casaco azul-escuro muito bonito, com um fecho que chegava ao pescoço e
mangas compridas. O livro que estava a ler era um romance bestseller que custara quinze dólares e noventa e cinco centimes. Arthur nunca na vida gastara mais de
um dólar por um livro. Ele e Glory costumavam ir a alfarrabistas procurar e sair com seis ou sete títulos. E tinham muito prazer em se sentar a lê-los juntos. Mas,
de qualquer forma aqueles volumes usados, com capas manchadas, que tinham sido comprados com tanto prazer, pareciam pobres ao lado daquele livro de capa brilhante
e páginas novas. As colegas de escritório tinham-lho oferecido.
Glory preparara-lhe uma galinha assada e bolinhos quentes. Mas não tinha graça comer sozinho o jantar de Natal. Ela dissera que não tinha fome. Parecia encontrar-se
em profunda meditação. Ele apanhou-a várias vezes a olhá-lo com olhos inquietos e perturbados. Faziam-lhe lembrar a maneira como Mrs. Harnick o olhara. Não queria
que Glory tivesse medo dele.
Trouxe-te um presente disse-lhe. Sei que vais gostar. No dia anterior comprara num armazém, em saldo, um avental para a boneca Raggedy Ann, e, exceptuando algumas
marcas no vestido, a boneca parecia a mesma. E comprara papel de fantasia, de modo que parecia mesmo um presente.
E eu também tenho um presente para ti, pai. Trocaram solenemente de embrulhos.
Abre tu primeiro disse. Queria observar a expressão dela. Iria ficar tão feliz!
Está bem.
Glory sorriu e ele reparou que o cabelo parecia mais claro. "Andaria a pintá-lo?" Retirou cuidadosamente o laço, amarrotou o papel, e o que viu primeiro foi o avental.
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O quê... Oh, pai! disse, com ar de admiração. Encontraste. E que avental tão bonito.
Parecia satisfeita, mas não tão feliz quanto ele esperava. Então o seu sorriso tornou-se preocupado.
Olha para esta carinha triste. E era assim que me via. Lembro-me do dia em que a pintei. Estava tão doente não estava?
Vais voltar a levá-la para a cama contigo? perguntou ele.
Foi para isso que a quiseste, não foi?
Óh, não, só queria olhar para ela. Abre o teu presente. Acho que vais ficar satisfeito.
Era uma camisola de lã azul e branca, muito jeitosa com um decote em V e mangas compridas.
Tricotei-o para ti, pai disse-lhe Glory com ar feliz.
Acreditas que, finalmente, consegui levar uma coisa até ao fim? Acho que estou a aprender. E já é tempo. Não achas?
Gosto de ti como és disse ele.
Gosto de tomar conta de ti. Mas, dentro de algum tempo, isso poderá ser impossível disse ela.
Ambos sabiam o que ela queria dizer. Era altura de lhe dizer:
Glory disse ele, cautelosamente. Hoje pediram-me uma coisa muito especial. Há alguns lares no Tenessi que precisam de pessoal e do tipo de ajuda que eu posso prestar
aos muito doentes. QUEREM QUE EU VÁ JÁ PARA LÁ!
Mudar? De novo? perguntou ela, olhando à volta.
Sim, Glory. Eu faço o trabalho de Deus, e agora chegou a minha vez de pedir a tua ajuda. Dás-me um grande conforto. Partiremos na quinta-feira de manhã.
Tinha a certeza de que estaria seguro até lá. Pelo menos o incêndio teria causado muita confusão. Na melhor das hipóteses, os seus dados pessoais seriam destruídos.
Mas mesmo que o fogo fosse dominado antes de consumir todo o edifício, levaria naturalmente alguns dias até que a polícia pudesse verificar as suas referências,
encontrar grandes lapsos entre os empregos ou ficar a saber que tinha sido posto fora do seminário. Na altura em que o detective o quisesse interrogar novamente
já ele e Glory se encontrariam longe. Glory manteve-se calada durante bastante tempo. Depois disse:
152
Pai, se a minha fotografia aparecer naquele tal programa de quarta-feira, eu vou entregar-me. Toda a gente me vai ver, e eu não vou aguentar só de pensar que as
pessoas estão a olhar para mim, sabendo quem sou. Se isso não acontecer, vou contigo para o Tenessi.
O lábio tremeu-lhe e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.
Ele foi ter com ela e fez-lhe uma festa. Não podia contar a Glory que a única razão por que ia esperar até quinta-feira era pelo tal programa.
Pai disse Glory. Estava a começar a ser feliz aqui. Não é justo que te peçam para andares sempre a mudar.
24
À uma e trinta, Lila tocou na campainha de Pat. Trazia um pequeno embrulho.
Feliz Natal!
Feliz Natal! Entre.
Pat ficou genuinamente feliz com a visita.
Tentava resolver se deveria contar a Luther ou não que Eleanor poderia vir a entregar-se à polícia. E como abordar o assunto de Catherine Graney? A hipótese de um
processo judicial pô-lo-ia em órbita.
Não demora nada disse Lila. Só lhe quis trazer bolo de frutas. É uma especialidade minha.
Pat abraçou-a impulsivamente.
Ainda bem que veio. É tão estranho estar tudo tão calmo na tarde de Natal. Que tal um copo de xerez?
Lila olhou para o relógio.
Às duas menos um quarto tenho de sair comunicou. Pat conduziu-a à sala de estar, foi buscar um prato, uma faca
e copos, serviu o xerez e cortou o bolo em fatias finas.
Maravilhoso! pronunciou-se, depois de o provar.
É bom, não é? concordou Lila.
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Os seus olhos percorreram a sala.
Fez aqui mudanças.
Troquei alguns dos quadros. Cheguei à conclusão de que estavam em sítios errados.
E está a lembrar-se de muita coisa?
Alguma coisa admitiu Pat. Estava a trabalhar na biblioteca. Então, algo me fez entrar aqui. Logo que entrei, vi que a natureza-morta e a paisagem tinham de ser trocadas.
Que mais, Pat? Há mais.
Ando tão sensível disse Pat. E não sei porquê.
Pat, por favor, não fique aqui. Mude-se para um apartamento ou para um hotel.
Lila juntou as mãos implorativamente.
Não posso disse Pat. Mas ajude-me agora. Esteve cá alguma vez no dia de Natal. Como era?
Esse último ano, você tinha três anos e meio e ainda não entendia o que era o Natal. Estavam ambos tão deslumbrados consigo. Foi um dia de verdadeira felicidade.
Às vezes penso que me lembro um pouco desse dia. Tinha uma boneca que andava e tentava fazê-la andar comigo. Poderá ser verdade?
Você, nesse ano, teve, de facto, uma boneca que andava.
A minha mãe tocou piano nessa tarde, não tocou?
Sim.
Pat dirigiu-se ao piano e abriu-o.
Lembra-se do que ela tocou nesse Natal?
Com certeza foi a sua canção de Natal preferida. Chamava-se Sinos de Natal.
Eu sei. Verónica quis que eu a aprendesse. Disse que a minha avó a adorava.
Lentamente, os seus dedos começaram a mexer nas teclas. Lila ouvia e observava. Quando as notas musicais desapareceram no ar ela disse:
Parecia mesmo a sua mãe a tocar. Eu disse-lhe que se parece com o seu pai, mas até agora não me tinha apercebido de que essa semelhança fosse tão visível. Alguém
que o tenha conhecido bem, poderá somar dois e dois.
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Às três horas, a equipa da cadeia de televisão de Potomac chegou a casa da senadora Jennings, a fim de fazer a cobertura da ceia de Natal.
Tobby observava-os com olhos de falcão, certificando-se de que não rasgavam nem partiam nada nas salas de estar e de jantar. Sabia bem o que aquela casa representava
para Abby. Pat Traymore e Luther Pelham chegaram com uma diferença de minutos um do outro. Pat trazia um vestido de lã branca que lhe realçava a figura. Tinha o
cabelo apanhado atrás. Toby nunca a vira assim. Quem diabo lhe fazia ela lembrar? Parecia descontraída, mas era visível que Pelham não o estava. Logo que chegou,
começou a berrar com um dos operadores de câmara. Abigail estava contraída, e isso também não ajudava.
Pouco depois começou a discutir com Pat, esta queria colocar a comida na mesa do bufete e filmar a senadora a retocar alguns pormenores, Abigail não queria pôr a
mesa tão cedo.
Senadora, leva tempo a conseguir exactamente aquilo que se quer disse-lhe Pat. É muito mais fácil fazê-lo agora do que quando os seus convidados estiverem a ver.
Eu não quero que os meus convidados andem para aí como figurantes de um filme da série B atirou-lhe Abigail.
Então sugiro que fotografemos a mesa agora.
Toby reparou que Pat não desistia quando pretendia alguma coisa. Luther comentou que fora Abby quem preparara toda a comida, e isto foi mais uma acha na fogueira.
Pat queria filmá-la na cozinha.
Senadora, toda a gente pensa que você telefona a encomendar as coisas quando dá uma festa. Mostrar a todas as mulheres, que passam o dia enfiadas na cozinha, que
é você quem prepara as refeições, atrairia as simpatias de todas, para não falar dos homens, cujo hobby é cozinhar.
Abby rejeitou a ideia, mas Pat insistiu.
Senadora, o objectivo de tudo isto é mostrá-la como um ser humano.
Por fim, foi Toby quem persuadiu Abby a alinhar.
Abby recusou-se a pôr um avental sobre a blusa e as calças, mas, quando começou a preparar os aperitivos, ficou bem claro que era uma cozinheira gourmet. Toby observou-a
enquanto ela
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estendia a massa, picava presunto para a quiche, temperava mariscos, com aqueles dedos esguios a trabalharem miraculosamente. Na cozinha Abby não fazia barafunda.
Nisso, tinha de ser feita justiça a Francey Foster. Após a equipa ter começado as filmagens, Abby descontraiu-se. Passado um bocado Pat disse:
Senadora, obrigada. Acho que já temos o que pretendíamos. Agora, se não se importa de vestir a roupa que vai usar na festa, vamos filmá-la na sala de jantar.
Toby estava ansioso por ver o que Abby iria usar. Ela tinha andado hesitante entre várias indumentárias. Ficou satisfeito quando a viu aparecer com uma blusa de
cetim amarelo a condizer com o tom amarelo da saia de tafetá pregueada. O cabelo caía-lhe com suavidade sobre o rosto e pescoço. A maquilhagem estava mais pesada
que habitualmente. Estava deslumbrante. Além disso, havia nela aquele brilho especial. Toby sabia porquê. Sam Kingsley telefonara a dizer que estaria presente.
Não havia dúvidas de que Abby estava interessada em Sam Kingsley. Não escapara a Toby o facto de ela insistir com os amigos para que colocassem o nome de Sam na
lista de convidados. Havia nele qualquer coisa que fazia Toby lembrar-se de Billy, e, claro, daí a atracção de Abby por ele. Não o demonstrara publicamente, mas
ficara em farrapos quando Billy morrera.
Toby sabia quem Sam era e não gostava dele. Mas isso não era problema. Sam não duraria mais que os outros. Abby era demasiado dominadora para a maior parte dos homens.
Ou se ajustavam completamente aos seus horários e disposições ou se opunham. Abby fartava-se deles. Ele, Toby, faria parte da vida de Abby até que um deles morresse.
Ela ficaria perdida sem ele, e ela sabia-o. Enquanto a observava a posar junto à mesa do bufete, uma réstia de remorso fê-lo ficar com a garganta seca. De vez em
quando sonhava em como teria sido diferente se tivesse sido aplicado na escola. Em vez de se armar em esperto, se se tivesse tornado engenheiro, não seria agora
pau para toda a obra. E que bom que seria se fosse tão bem-parecido como aquele imbecil do Jeremy Saunders, em vez de atarracado! Bem, quem poderia dizer? Talvez
Abby então se tivesse apaixonado por ele.
Afastou a ideia e voltou para o trabalho.
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Pontualmente às cinco o primeiro carro apareceu. O presidente reformado do Supremo Tribunal de Justiça e a mulher entraram uns minutos depois.
Feliz Natal, Sr.a Vice-Presidente saudou o juiz. Abigail retribuiu calorosamente o beijo.
Dos seus lábios para os ouvidos de Deus disse, rindo-se. Outros convidados começaram a chegar. Os criados contratados serviam champanhe e ponche.
Deixem as bebidas pesadas para mais tarde sugeria Luther.
Sam foi o último a chegar. Abigail abriu-lhe a porta. O seu beijo foi afectuoso. Luther focava a câmara na direcção deles. Pat sentiu o coração saltar. Sam e Abigail
formavam um casal esplêndido ambos altos, o cabelo louro dela contrastando com o cabelo escuro dele, os seus cabelos grisalhos constituindo um equilíbrio subtil
com as rugas à volta dos olhos dela.
Pat via toda a gente reunida à volta de Sam. "Só o vejo como Sam", pensou ela. "Nunca o vi no seu elemento profissional. Teria sido assim com os seus pais?" Tinham-se
conhecido quando se encontravam ambos em férias na quinta de Martha. Casaram passado um mês, sem nunca chegarem a entender os respectivos mundos, e então, começara
a dar-se a ruptura. "Só que eu não romperia contigo, Sam. Gosto do teu mundo."
Abigail devia ter dito algo de muito engraçado, toda a gente se riu. Sam sorriu-lhe.
Aí está um bom plano, Pat disse o operador de câmara. Um pouco sexy, percebes o que quero dizer? Nunca se vê a senadora Jennings com um tipo. E as pessoas gostam
disso.
Toda a gente gosta de amor respondeu Pat.
Já temos suficiente anunciou Luther subitamente. Deixemos a senadora e os seus convidados em paz. Pat, amanhã de manhã não te esqueças das filmagens no gabinete
da senadora. Eu estarei em Apple Junction. Sabes o que é preciso concluiu, virando-lhe as costas.
Seria esta atitude o resultado da fotografia no Mirror ou da recusa de ir com ele para a cama? Só o tempo o diria.
Deslizou por entre os convidados até ao vestíbulo onde deixara o casaco. " Pat.
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Voltou-se.
Sam!
Ele estava encostado à ombreira, olhando-a.
Ah, congressista. Festas felizes! Agarrou no casaco.
Pat, não te vais embora, pois não?
Ninguém me convidou a ficar.
Ele aproximou-se, tirando-lhe o casaco.
Que coisa é essa que vem na primeira página do Mirror? Contou-lhe.
E parece que a senadora de Virgínia acredita que fui eu quem mandou a fotografia para conseguir as coisas à minha maneira.
Ele colocou-lhe a mão no ombro.
Não foste?
Isso parece uma pergunta.
Acreditaria ele que ela tinha algo a ver com a história do Mirror? Nesse caso não a conhecia nada. Ou talvez fosse altura de se aperceber que o homem que ela pensava
conhecer não existia.
Pat, ainda não posso ir embora, mas conseguirei sair daqui a uma hora. Vais para casa?
Sim, vou. Porquê?
Vou lá ter logo que possa. Levo-te a jantar.
Todos os restaurantes decentes se encontram fechados. Fica e diverte-te disse, tentando afastar-se dele.
Miss Traymore, dê-me as suas chaves que eu vou buscar-lhe o carro.
Separaram-se, embaraçados.
Toby, que raio está a fazer aqui? atirou-lhe Sam. Toby olhou-o impassível:
A senadora vai chamar os convidados para cear, congressista, e pediu-me que os reunisse. Pediu-me especialmente para o procurar a si.
Sam ainda segurava no casaco de Pat. Ela agarrou nele.
Eu posso ir buscar o meu carro, Toby disse, olhando-o de frente.
Ele encontrava-se junto à porta. Ela tentou passar mas ele não se moveu.
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Posso?
Ele olhava-a com expressão absorta.
Oh, claro. Desculpa.
Afastou-se e, inconscientemente, ela encolheu-se contra a parede para evitar tocar nele.
Pat conduzia a grande velocidade, tentando fugir à recordação do calor com que Abigail e Sam se tinham saudado, à forma subtil com que os outros pareciam tratá-los
como casal. Faltava um quarto de hora para as oito quando chegou a casa. Satisfeita por ter tido a ideia de deixar o peru já cozinhado, fez uma sanduíche e encheu
um copo de vinho. A casa estava escura e vazia. Acendeu as luzes da entrada, da biblioteca, da sala de jantar e de estar e, depois, iluminou a árvore de Natal.
No dia anterior, a sala parecera mais acolhedora e mais viva. Naquele momento, por alguma estranha sensação, estava desconfortável, sombria. Porquê? Os seus olhos
caíram sobre um pedaço de fio de lantejoulas caído numa zona da carpeta. No dia anterior, quando ela e Lila tinham lá estado, pensara ter visto um ornamento de Natal
com lantejoulas sobre aquela área da carpeta.
O aparelho de televisão encontrava-se na biblioteca. Mudou-se para lá com a sanduíche e o vinho. A cadeia de Potomac tinha noticiários de hora a hora. Perguntou
a si própria se mostrariam Abigail na igreja. Mostraram. Pat observou friamente Abigail sair do carro, o fato vermelho-berrante contrastava com a pele e o cabelo.
Os olhos exprimiam compaixão enquanto rezava pelos esfomeados. Aquela era a mulher que Pat respeitava. O locutor anunciou:
A senadora Jennings inquirida acerca da fotografia publicada no National Mirror desta semana, mostrando-a como jovem rainha de beleza.
Mostraram uma redução da fotografia.
Com lágrimas nos olhos, a senadora recordou a vontade que a mãe tinha de a ver entrar naquele concurso e o seu orgulho por a saber vencedora. A Rede de Televisão
de Potomac deseja à senadora Abigail Jennings um Feliz Natal. E estamos convencidos
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de que se a mãe pudesse presenciar o seu êxito, se sentiria orgulhosa dela.
Meu Deus! exclamou Pat. Dando um salto, desligou o aparelho. E Luther tem a lata de chamar a isto notícias. Não admira que critiquem os media.
Com nervosismo, começou a reunir os depoimentos contraditórios que ouvira durante a semana:
Catherine Graney disse que Abigail e Willard se iam divorciar.
A senadora Jennings diz que amava o marido.
Eleanor Brown roubou setenta e cinco mil dólares à senadora Jennings.
Eleanor Brown jura que não roubou esse dinheiro.
George Graney era um bom piloto, o seu avião foi cuidadosamente inspeccionado antes de levantar voo.
A senadora Jennings disse que George Graney era um piloto descuidado, com equipamento gasto.
"Nada condiz", pensou Pat. "Absolutamente nada!"
Eram quase onze horas quando a campainha assinalou a chegada de Sam. Às dez e meia, prestes a desistir de esperar por ele, Pat fora para o quarto, dizendo a si mesma
que se Sam não viesse, teria telefonado. Vestiu um pijama de seda que era confortável e ao mesmo tempo, aceitável para receber "visitas".
"Não vale a pena parecer um rato de esgotos", pensou, "ainda mais quando ele vem de estar com a rainha de beleza."
Pendurou as roupas que tinha deixado espalhadas pelo quarto. Seria Sam uma pessoa arrumada?
"Nem sequer isso sei", pensou.
A única noite que tinham passado juntos não serviu com certeza de barómetro para verificar os hábitos pessoais de cada um. Quando tinham entrado no motel ela lavara
os dentes com a escova portátil que trazia sempre na bolsa de toilette.
" Quem me dera também ter uma dessas dissera ele. Ela sorrira ao reflexo dele no espelho. Uma das minhas partes
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favoritas em Random Harvest é quando o padre pergunta a Smithy e Paula se estão tão apaixonados que até usam a mesma escova de dentes. Passara a sua por água quente
pusera-lhe pasta e entregara-lha, dizendo: " Faz favor."
Aquela escova encontrava-se agora dentro de um guarda-jóias na primeira gaveta da cómoda. "Algumas mulheres guardam rosas ou atam as cartas com laços", pensou Pat.
"Eu guardo a escova de dentes."
Acabou de descer as escadas quando a campainha tocou de novo.
Entre, quem quer que seja disse ela. Sam ostentava uma expressão triste.
Pat, desculpa. Não pude safar-me tão depressa quanto desejava. E ainda fui a casa deixar as malas e buscar o carro. Ias deitar-te?
De maneira nenhuma. Se te referes ao pijama, e de acordo com a etiqueta da Saks, é perfeito para receber convidados à noite.
Então, sê cuidadosa com os convidados que recebes disse Sam. Esse fato é bem sexy.
Tirou-lhe o casaco, o tecido ainda estava frio devido ao vento gelado
Ele curvou-se para a beijar.
Queres uma bebida?
Sem esperar pela resposta, levou-o até à biblioteca, e apontou silenciosamente para o bar. Ele serviu dois brandes e estendeu-lhe um.
Presumo que então a tua ideia é ficares em casa.
Ela assentiu, escolhendo deliberadamente a poltrona frente ao sofá.
Sam mudara de roupa quando passara pelo apartamento. Vestia agora uma camisola com desenhos azuis e cinzentos, que condiziam com o azul dos olhos e com os cabelos
grisalhos. Sentou-se no sofá, e pareceu-lhe a ela que havia cansaço na forma como se movia e nas rugas à volta dos olhos.
Como correram as coisas depois de eu sair?
Como tu as viste. Tivemos, no entanto, um ponto alto. O presidente telefonou a Abby, desejando-lhe Feliz Natal.
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O presidente telefonou-lhe! Sam, isso quer dizer...?
Penso que ele está a fazer render o peixe... Provavelmente também telefonou a Claire Lawrence.
Queres dizer que ele ainda não se decidiu?
Acho que ainda está a experimentar balões de ensaio. Viste a forma como ele tratou Abigail na Casa Branca, na semana passada. Mas ele e a primeira dama também ofereceram
um jantar a Claire no dia seguinte.
Sam, aquela fotografia no Mirror prejudicou muito a senadora Jennings?
Ele encolheu os ombros.
É difícil dizer. Abigail feriu o gosto aristocrático sulista. Por outro lado isso pode trazer-lhe simpatias. Outro problema é que as ameaças em relação a ti provocaram
uma série de anedotas em Capitol Hill, e todas elas sobre Abigail.
Pat pôs-se a olhar para o brande em que mal tocara. De repente sentiu a boca seca. Na semana passada Sam preocupara-se com ela devido ao assalto. Agora partilhava
a reacção de Abigail em relação à publicidade. Bem, de certa maneira, tornava as coisas mais fáceis.
Se este programa provocar reacções desfavoráveis em relação à senadora Jennings, isso poderá custar-lhe a vice-presidência?
Talvez. Nenhum presidente, principalmente com uma administração imaculada, iria arriscar.
Tinha medo de que dissesses isso.
Ela falou-lhe de Eleanor Brown e de Catherine Graney.
Não sei o que fazer concluiu. Deverei avisar Luther para retirar estas rubricas do programa? Se o fizer, ele vai ter de dizer a razão à senadora.
Abigail já não suporta mais agravos disse Sam, sem rodeios. Depois de os outros saírem, ela ficou arrumada.
Depois de os outros saírem! Pat ergueu uma sobrancelha. Queres dizer que tu ficaste?
Ela pediu-me.
Sentiu o coração afundar-se. Confirmava tudo o que tinha pensado.
Então não devo dizer nada ao Luther.
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Tenta desta forma: se aquela rapariga...
Eleanor Brown.
Sim, se ela te telefonar, convence-a a aguentar. Nesse caso não haveria publicidade, pelo menos até o presidente anunciar a sua escolha.
E Catherine Graney?
Deixa-me analisar os registos do acidente. Provavelmente não há qualquer consistência no que ela diz. Achas que qualquer uma destas mulheres poderá ter-te feito
as ameaças?
Nunca vi Eleanor. Tenho a certeza de que não era Catherine Graney. E não te esqueças de que era voz de homem.
Claro. Ele não voltou a telefonar?
Os seus olhos caíram no caixote debaixo da mesa. Ela considerou, depois rejeitou a ideia de mostrar a Sam a boneca Raggedy Ann. Não queria que ele se preocupasse
mais com ela.
Não. Não voltou.
Ainda bem.
Acabou o brande. Colocou o copo sobre a mesa.
É melhor ir indo. O dia foi muito longo e deves estar arrasada.
Era a deixa que ela aguardava.
Sam, quando vinha da casa da senadora esta noite, pensei muito. Queres ouvir?
Claro.
Vim para Washington com três metas específicas e idealistas: ia fazer um documentário que iria ganhar um Emmy sobre uma mulher nobre e maravilhosa; ia encontrar
uma explicação para o que o meu pai fez à minha mãe e a mim; e ia ver-te e seria o encontro do século. Bem, nada aconteceu como eu esperava. Abigail Jennings é uma
boa política e uma líder forte, mas não é uma pessoa simpática. Eu fui metida no programa porque as minhas ideias preconcebidas em relação a Abigail agradavam a
Luther Pelham. Há tanta coisa nessa dama a soar a falso que até me assusto.
"Também cá estou há tempo suficiente para saber que a minha mãe não foi nenhuma santa, como me tinham feito acreditar, e que talvez ela tenha levado o meu pai a
uma forma temporária de insanidade naquela noite. Ainda não tenho a história completa: mas estou perto!... E quanto a nós, Sam, devo-te umas desculpas.
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Fui muito ingénua por pensar que poderia ser para ti mais que um caso passageiro. O facto de nunca me teres telefonado após a morte de Janice, deveria ter-me feito
entender, mas não tenho o raciocínio muito rápido. Podes deixar de te preocupar. Não tenciono embaraçar-te com mais declarações de amor. É muito evidente que manténs
uma ligação qualquer com Abigail Jennings.
Não tenho nada!
Oh, sim, tens. Talvez ainda não o saibas, mas tens. Aquela dama quer-te, Sam. Qualquer pessoa só com um olho pode ver isso. E tu não interrompeste as férias e vieste,
acorrendo ao seu pedido, sem mais nem menos. Realmente, Sam, toda a conversa de andares estourado e sem capacidade para decidir não convence ninguém. Podes acabar
com isso!
Disse-to porque é verdade.
Então, esquece. És um homem jeitoso e viril com uns bons trinta anos à tua frente. Conseguiu sorrir. Talvez a perspectiva de te tornares avô seja um pouco chocante
para o teu ego.
Acabaste?
Quase.
Então, se não te importas, vou-me embora. Levantou-se com o rosto congestionado.
Ela estendeu a mão.
Não há razão para não ficarmos amigos. Washington é uma cidade pequena. Foi por isso que me telefonaste logo, não foi?
Ele não respondeu.
Com uma certa satisfação Pat ouviu-o bater com a porta.
25
Senadora, provavelmente vão querer que seja a vedeta do Today disse Toby. Olhou pelo retrovisor para observar a reacção de Abby. Iam a caminho do escritório. Às
seis e meia da
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manhã, do dia 26 de Dezembro, ainda estava escuro e fazia um frio de rachar.
Não tenho razão especial para aparecer no Today de hoje nem em qualquer outro espectáculo atirou Abigail. Toby, qual é o meu aspecto? Não preguei olho a noite passada.
Toby, o presidente telefonou-me... telefonou-me pessoalmente. Disse-me para descansar bem no Natal, porque depois iria ter um ano muito ocupado. Que quereria ele
dizer com isto? Toby, eu sinto-o. A vice-presidência. Toby, por que não segui os meus instintos? Por que deixei que Luther Pelham me convencesse a concordar com
este programa? Onde tinha eu a cabeça?
Senadora, ouça. Aquela fotografia pode ser o que de melhor lhe aconteceu até agora. Tenho a certeza de que aquela flor de estufa da Claire Lawrence nunca ganhou
concursos de beleza. Talvez Pat Traymore tenha razão. Isto torna-a mais... acessível. Será esta a palavra?
Iam a passar pela Ponte Roosevelt e o tráfego aumentava. Toby concentrou-se na condução. Quando ergueu de novo os olhos para o retrovisor, Abby conservava as mãos
no colo.
Toby, trabalhei para isto.
Eu sei, Abby.
Não é justo perder tudo, só porque subi à minha custa.
Não vai perder nada, senadora.
Não sei. Há algo em Pat Traymore que me perturba. Ela já me conseguiu por duas vezes publicidade embaraçosa. Há ali mais do que nós sabemos.
Senadora, Phil investigou-a. Ela adora-a desde os tempos da faculdade. Escreveu um ensaio sobre si no último ano em Wellesley. Está ao nível. Pode ter tido azar,
mas está ao nível.
Ela representa sarilhos. Aviso-te de que há ali qualquer coisa.
O carro passou pelo Capitólio e parou à porta do Edifício Russel.
Vou já para cima, senadora, e prometo andar de olho em cima de Pat Traymore. Ela não se vai atravessar no seu caminho.
Saiu do carro e abriu a porta a Abby. Esta aceitou a mão que se lhe estendia, saiu, e, depois, impulsivamente, apertou-lhe os dedos.
Toby, repara nos olhos dela. Há qualquer coisa... algo de secreto... como se...
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Não acabou a frase. Com Toby não era necessário.
Às seis horas, Philip estava à porta do escritório, para deixar entrar Pat e a equipa de filmagens.
Guardas sonolentos, com rostos cansados e pacientes, eram as únicas pessoas visíveis no Edifício Russel. No gabinete de Abigail, Pat e os operadores debruçaram-se
sobre o storyboard.
Damos só três minutos a este segmentodisse Pat.Quero agarrar a sensação de a senadora chegar a um gabinete vazio e começar a trabalhar antes que alguém apareça.
Depois entra Philip... um plano da agenda do dia; depois, o resto do pessoal a chegar, os telefones a começarem a tocar; uma imagem da correria do dia. A senadora
cumprimenta visitas do Estado, a senadora a falar com um eleitor; Phil a entrar e a sair com os recados. Sabem o que queremos: o ar verdadeiro dos bastidores de
um dia de trabalho no gabinete da senadora.
Quando Abigail chegou, estavam prontos para ela. Pat explicou como queria o primeiro plano, a senadora assentiu e regressou ao vestíbulo. As câmaras começaram a
funcionar. A sua expressão era preocupada e de profissional. Despiu a capa de caxemira cinzenta que cobria um fato cinzento às riscas, justo e de bom corte. Até
a forma como passou as mãos pelo cabelo, depois de retirar o chapéu, foi natural, o gesto de alguém que se interessa pela aparência mas que está preocupada com assuntos
mais importantes.
Corta disse Pat. Senadora está muito bem, é o que eu queria.
O elogio espontâneo soou paternalista mesmo até aos seus próprios ouvidos. O sorriso da senadora Jennings foi simpático.
Obrigada. E agora?
Pat explicou as cenas com o correio, com Phil e com Maggie Sayles.
As filmagens decorriam lentamente. Pat depressa se apercebeu de que a senadora Jennings possuía um instinto especial para se apresentar à câmara do melhor ângulo.
O fato às riscas dava-lhe o ar de executiva, que iria contrastar agradavelmente com a saia de seda da festa de Natal. Os brincos eram de prata. O alfinete da gravata
também, e a blusa, de seda cinzenta. A senadora teve a ideia de se fotografar no seu gabinete, tendo como
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fundo as bandeiras dos Estados Unidos e de Virgínia, depois só a dos Estados Unidos em grande plano.
Pat verificava o ângulo de filmagem, enquanto Abigail escolhia cuidadosamente uma carta do monte de correspondência que tinha em cima da secretária uma carta com
caligrafia infantil. "Outro golpe de teatro", pensou Pat. "Que espertalhona!" Depois a constituinte, Maggie, entrou, a tal a quem Abigail ajudou a encontrar um lar
de repouso para a mãe. Abigail levantou-se, beijou-a afectuosamente, conduziu-a a uma cadeira, toda ela animação e simpatia.
"Ela preocupou-se mesmo", pensou Pat. "Eu estava aqui quando ela arranjou o lar para a velhota. Mas agora há tanta mise en scene. Os políticos serão todos assim?
Serei demasiado ingénua?"
Por volta das dez horas tinham terminado. Garantiram a Abigail que tinham tudo o que queriam. Pat e a equipa de filmagens prepararam-se para sair.
Vamos fazer a primeira montagem esta tarde disse Pat ao realizador. Depois, logo à noite, revejo tudo com Luther.
Acho que vai ficar óptimo respondeu ele.
Vai ser um bom espectáculo. Isso posso eu garantir disse Pat.
26
A noite de Arthur fora preenchida a sonhar com o olhar fixo de Mrs. Gillespie. De manhã estava cansado e olheirento. Levantou-se, fez café, e ia sair para comprar
pão, mas Glory pediu-lhe que não o fizesse.
Eu não quero nada, e depois de eu sair, devia descansar. Não dormiu, pois não?
Como sabes?
Ele estava sentado do outro lado da mesa a observá-la.
Fartou-se de falar. A morte de Mrs. Gillespie afectou-o assim tanto, pai? Eu sei que costumava falar dela.
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Foi invadido por um arrepio de apreensão. Supondo que interrogavam Glory? Que diria ela? Claro que não diria propositadamente nada que o magoasse, mas como sabê-lo?
Escolheu cuidadosamente as palavras.
É porque fiquei muito triste por ela não ver a filha antes de morrer. Ambos o desejávamos.
Glory acabou de beber o café e levantou-se da mesa.
Pai, acho que devia tirar uns dias e descansar. Está a trabalhar de mais.
Estou óptimo, Glory. Que disse eu durante o sono?
Fartou-se de dizer a Mrs. Gillespie que fechasse os olhos. Que estava a sonhar?
Glory olhava-o como se tivesse medo dele. Que saberia ou adivinharia ela? Depois de ela se ir embora, fixou a chávena, preocupado e cansado. Estava inquieto e resolveu
dar um passeio. Não ajudou. Passado um bocado voltou para trás.
Tinha chegado à esquina da rua quando reparou no burburinho. Estava um carro da polícia parado à sua porta. Instintivamente enfiou-se na entrada de uma casa e ficou
a espreitar. Quem quereriam? Glory? Ou ele? Tinha de a avisar. Dir-lhe-ia para se encontrar com ele algures e ir-se-iam embora. Trazia consigo trezentos dólares,
e tinha seiscentos e vinte e dois numa conta de poupança em Baltimore, sob um nome diferente. Poderiam aguentar-se até ele arranjar trabalho. Era fácil conseguir
um lugar num lar.
Deslizou encostado à parede da casa, correu até à esquina e telefonou para o escritório de Glory.
Ela estava a falar noutra linha.
Chame-a! ordenou ele, zangado. É importante. Diga-lhe que é o pai e é importante.
Quando Glory atendeu o telefone fê-lo com voz impaciente.
Pai, que é?
Ele disse-lhe. Pensou que ela ia chorar ou ficar nervosa. Mas não houve qualquer reacção. Só o silêncio.
Glory...?
Sim, pai.
A sua voz era calma e sem vida.
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Sai imediatamente, não digas nada, como se fosses ao quarto de banho. Encontramo-nos no metro em Central. Afastar-nos-emos antes que tenham hipótese de nos encontrar.
Levantamos o dinheiro em Baltimore e, depois, vamos para o Sul.
Não, pai.
A voz de Glory era agora forte e segura.
Não vou fugir mais. Obrigada pai. Já não precisas de correr mais por minha causa. Eu vou à polícia.
Glory. Não. Espera. Talvez tudo se componha. Não vás. Pelo menos já.
Apareceu um carro da polícia, lentamente, na esquina. Não tinha um minuto a perder. Quando ela sussurrou: "Juro", ele desligou e enfiou-se num portal. Depois de
os carros da polícia terem passado, enfiou as mãos nos bolsos e dirigiu-se à estação do metro.
Foi uma Abigail vencida que entrou no carro às dez e meia. Toby começou a falar, mas algo fez que ele se calasse. Que fosse Abby a decidir se queria desabafar ou
não.
Toby, ainda não me apetece ir para casa disse Abigail, subitamente. Leva-me a Watergate. Como lá qualquer coisa.
Certo, senadora.
O pedido não era habitual. Ele sabia a razão por que Abigail escolhera aquele local. Sam Kingsley habitava no mesmo edifício do restaurante. Se calhar, logo que
lá chegasse, telefonaria lá para cima convidando Sam a reunir-se-lhe.
Pois, mas a conversa entre Sam Kingsley e Pat Traymore na noite anterior não fora casual. Havia algo entre aqueles dois. Não queria ver Abby magoada de novo. Perguntou-se
se haveria de lhe tocar no assunto.
Olhando por cima do ombro reparou que Abigail retocava a maquilhagem.
Está fantástica, senadora.
No complexo Watergate o porteiro abriu-lhe a porta do carro e Toby reparou no sorriso e na vénia respeitosa. Raios, havia uma centena de senadores em Washington,
mas só um vice-presidente.
"Quero esse lugar para ti, Abby", pensou ele. "Ninguém se meterá no meio se eu puder evitar."
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Estacionou o carro junto dos outros motoristas, e saiu para os cumprimentar. Só se falava em Abigail. Ouviu o motorista de um membro do Gabinete dizer: "Está praticamente
tudo cozinhado para a senadora Jennings."
"Abby, estás quase lá", pensou, exultante.
Abby tinha saído havia mais de uma hora, portanto, teve tempo de ler o jornal. Finalmente abriu a secção Style e passou os olhos pelas colunas. Às vezes conseguia
informações úteis que passava a Abby, pois esta estava quase sempre demasiado ocupada para ler mexericos.
Gina Butterfield era a colunista mais lida em Washington. Hoje, a sua coluna tinha um cabeçalho que cobria as duas páginas centrais da secção. Toby leu, depois releu,
não querendo acreditar.
O título dizia:
A CASA FATÍDICA ADAMS CENÁRIO DE AMEAÇAS. SENADORA JENNINGS ENVOLVIDA.
Os primeiros parágrafos da história vinham em caracteres maiúsculos:
Pat Traymore, a conhecida repórter ao serviço da rede de televisão de Potomac para produzir um documentário sobre a senadora Jennings, tem sido perseguida por cartas,
telefonemas e ameaças de morte, caso continue ligada ao programa.
Convidada da esplêndida ceia de Natal em casa do embaixador Cardell, a bela Pat revelou que a casa alugada foi o cenário do assassínio-suicídio Adams há vinte e
quatro anos. Pat refere não se sentir afectada pela história sinistra da casa, mas outros convidados, há muito residentes na zona, defendem o contrário...
O resto da coluna era dedicada aos pormenores do caso Adams. Havia fotografias dos seus cadáveres embrulhados e um grande plano da filha pequena, coberta de ligaduras
ensanguentadas.
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SEIS MESES MAIS TARDE, KERRY ADAMS PERDE A LUTA PELA VIDA.
Era esta a legenda sob a fotografia. O artigo referia também o veredicto de assassínio-suicídio:
A aristocrática Patrícia Remington Schuyler, mãe da falecida, insistiu que o congressista Adams não andava bem e disse que a mulher ia divorciar-se dele. Mas muitos
da velha guarda de Washington pensam que foi Renee Adams quem pegou na arma nessa noite.
Ela estava perfeitamente perdida por ele disse-me um amigo e era muito ciumenta.
Teriam sido os ciúmes responsáveis pelo que se passou nessa noite?
Quem poderá ter precipitado um fim tão trágico? Vinte e quatro anos depois Washington ainda especula.
Havia em proeminência uma fotografia de Abigail como Miss Apple Junction. A legenda dizia:
A maior parte dos perfis de celebridades são material já sem grande interesse. Mas o programa sobre a senadora Abigail Jennings vai, com certeza, ultrapassar todas
as expectativas de audiência. Afinal, a senadora, poderá tornar-se a primeira mulher vice-presidente. Toda a gente espera que o programa inclua mais fotografias
da distinta senadora de Virgínia, com a coroa que conquistou como rainha de beleza. E, falando a sério, ninguém acredita que exista alguém que odeie tanto Abigail
Jennings, que chegue ao ponto de ameaçar a repórter que concebeu o programa.
Na parte direita da página havia uma frase em maiúsculas:
OS ANOS PRÉ-CAMELOT.
Havia imensas fotografias, a maior parte delas, instantâneos informais. O texto anexo dizia:
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Numa estranha coincidência, a senadora Abigail Jennings era visita assídua da casa dos Adams. Ela e o falecido marido, o congressista Willard Jennings, foram amigos
íntimos de Dean e Renée Adams, assim como dos Kennedy. Os três casais não poderiam adivinhar a sombra negra que iria abater-se sobre aquela casa e sobre as suas
vidas.
Havia fotografias dos seis juntos, e em grupos, no jardim da casa de Georgetown, na propriedade dos Jennings em Virgínia, e no complexo de Porto Hyannis. E havia
mais meia dúzia de fotografias de Abigail sozinha no grupo após a morte de Willard.
Toby soltou uma exclamação furiosa. Começou a amarrotar os jornais, desejando que aquelas folhas nojentas se desintegrassem, mas não adiantou nada. Teria de mostrar
aquilo a Abby logo que ela chegasse a casa. Só Deus sabia qual seria a reacção dela. Tinha de manter a calma, tudo dependia disso.
Quando Tobby parou o carro, Abby encontrava-se à saída com Sam Kingsley ao lado. Fez menção de sair, mas Kingsley abriu rapidamente a porta a Abigail e ajudou-a
a entrar.
Obrigada pelo apoio, Sam disse ela. Sinto-me muito melhor. Tenho pena de que não estejas livre para jantar.
Toby conduziu rapidamente, ansioso por pôr Abigail em casa, como se necessitasse de a retirar dos olhos públicos, até lhe poder dar apoio na altura em que ela reagisse
ao artigo.
Sam é especial disse Abby, subitamente, pondo fim ao silêncio pesado. Sabes o que se tem passado comigo durante todos estes anos, mas, Toby, de certa maneira ele
faz-me lembrar o Billy. Tenho a sensação, é só uma sensação, de que se poderá desenvolver qualquer coisa entre Sam e eu. Seria como ter uma segunda chance.
Era a primeira vez que ela falava assim. Toby olhou pelo espelho retrovisor. Abigail estava recostada no banco, com o corpo descontraído e um meio sorriso no rosto.
E ele era o sacana que iria destruir toda aquela esperança.
Toby, compraste o jornal? Não valia a pena mentir.
Sim, comprei, senadora.
Deixa-me vê-lo, por favor.
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Ele estendeu-lhe uma parte.
Não, não me apetece ler as notícias. Onde está a coluna social?
Agora não, senadora.
O trânsito não era muito, encontravam-se sobre Chani Bridge. Dentro de poucos minutos estariam em casa.
Que significa esse "agora não"?
Ela não respondeu, e fez-se uma pausa longa. Depois, Abigail disse em tom ríspido:
Vem algo de horrível, algo que me pode fazer mal, não é?
Algo que não lhe vai agradar, senadora. Seguiram em silêncio durante o resto do caminho.
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Durante o feriado oficial de Natal Washington era uma cidade-fantasma. O presidente encontrava-se na sua residência particular do Sul; o Congresso estava parado,
as universidades fechadas para férias. Washington tornara-se numa cidade sonolenta, numa cidade à espera da explosão de actividade que assinalaria o regresso do
seu chefe executivo, dos legisladores e dos estudantes.
Pat conduzia em direcção a casa por entre o trânsito escasso. Não tinha fome. Uns pedacitos de peru e uma chávena de chá era tudo o que desejava. Perguntou-se como
estaria Luther a dar-se em Apple Junction. Ter-se-ia servido do charme que já tentara usar com ela? Tudo isso parecia ter-se passado há muito tempo.
A propósito de Apple Junction perguntou-se se Eleanor Brown teria telefonado a Miss Langley. Eleanor Brown. A rapariga era uma figura pivot na dúvida crescente de
Pat quanto à integridade do programa de televisão. Quais eram os factos? Era a palavra de Eleanor contra a de Toby. Teria ele telefonado a pedir-lhe para ir ao gabinete
de campanha, à procura do anel da senadora? A senadora apoiava a afirmação de Toby de que ele a conduzia a
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casa na altura do suposto telefonema. E parte do dinheiro fora encontrado entre as coisas de Eleanor. Como esperaria ela ter escapado com um álibi tão precário?
"Quem me dera ter a transcrição do julgamento", desejou Pat.
Abriu o bloco e estudou as frases que escrevera na noite anterior. Não faziam ainda sentido. Na página seguinte escreveu Eleanor Brown. Que dissera Margaret Langley
sobre a rapariga? Batendo com a caneta na secretária, e franzindo o sobrolho em concentração, começou a juntar pedaços da conversa:
Eleanor era tímida... nunca mastigava pastilha elástica na aula, nem falava quando a professora saía da aula, gostava do seu trabalho no gabinete da senadora, acabara
de ser promovida, seguia aulas de arte... Ia nesse dia a Baltimore desenhar...
Pat leu e releu os apontamentos. Uma rapariga, a desempenhar as suas funções bem, que fora promovida, mas estúpida ao ponto de esconder dinheiro roubado no seu apartamento.
Algum dinheiro roubado. O grosso, setenta mil dólares, nunca foram encontrados. Uma rapariga tão tímida que até fora uma fraca testemunha em sua própria defesa.
Eleanor tivera um esgotamento nervoso na prisão. Teria de ser uma actriz consumada para simular aquilo. Mas violara a liberdade condicional.
E quanto a Toby? Ele fora a testemunha que contradissera a história de Eleanor. Jurara que não lhe telefonara nessa noite. A senadora Jennings confirmara que Toby
a conduzia de carro na altura do alegado telefonema.
Iria a senadora Jennings deliberadamente mentir por Toby fazendo que uma rapariga inocente fosse parar à cadeia?
Mas supondo que alguém imitando Toby telefonara a Eleanor. Nesse caso, todos eles, Eleanor, Toby e a senadora teriam falado verdade. Quem mais saberia do sítio onde
Eleanor guardava as suas coisas no apartamento?
E quanto à pessoa que fizera as ameaças, entrara ali dentro e deixara a boneca? Poderia ele ser o factor no desvio dos fundos da campanha?
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Aboneca! Pat empurrou a cadeira para trás e puxou o caixote que se encontrava sob a mesa da biblioteca, depois mudou de ideias. Não ganharia nada olhando para a
boneca. A visão daquele rosto choroso era tão perturbante. Depois de o programa ir para o ar, se não houvesse mais ameaças, deitá-la-ia fora. Se houvesse mais cartas,
telefonemas, ou tentativas de assalto, teria de mostrar a boneca à polícia.
Na página seguinte do bloco escreveu Toby, depois procurou nas gavetas as cassetes para a entrevista.
Gravara a voz de Toby no automóvel naquela primeira tarde. Ele não se apercebera disso e a sua voz estava um tanto rouca. Colocou o som o mais alto possível, carregou
no botão play e começou a tomar notas.
Talvez Abby se tenha arriscado por mim... Eu trabalhava para um apostador em Nova Iorque e quase me meti num sarilho... Costumava levar Abby e Willard Jennings àquela
casa, para as festas... espertinha, aquela Kerry.
Ficou satisfeita por ouvir a seguir a entrevista de Ethel Stubbins e do marido, Ernie. Tinham dito algo acerca de Toby. Encontrou o segmento em que este dizia: "Diga-lhe
olá por mim. E pergunte-lhe se ainda perde dinheiro com os cavalos."
Jeremy Saunders fala de Toby. Ouviu os comentários dele sobre o acidente, a história do pai dele ter comprado o silêncio de Abigail: "Sempre pensei que aí andou
mãozinha do Toby."
Depois de ouvir a última cassete, Pat leu e releu as transcrições. Sabia o que tinha a fazer. Se Eleanor se entregasse e voltasse para a prisão, Pat iria continuar
com o caso até se convencer da culpabilidade ou inocência de Eleanor. "E se eu acreditar na história dela", pensou Pat, "farei tudo o que puder para a ajudar. Prejudique
quem prejudicar."
Pat foi da biblioteca para a entrada e, depois, dirigiu-se para as escadas. Olhou à volta e depois hesitou. "O degrau acima da curva. Era ali que me costumava sentar."
Impulsivamente subiu as escadas a correr, sentou-se no degrau, encostou a cabeça à balaustrada e fechou os olhos.
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"O pai encontrava-se no vestíbulo. Ela encolhera-se cada vez mais na sombra, sabendo que ele estava zangado, que desta vez não iria brincar com ela. Correra para
a cama."
Subiu a correr o resto das escadas. O seu antigo quarto ficava a seguir ao quarto de hóspedes, do outro lado da casa, dando para o jardim. Estava vazio agora. Entrara
ali naquela primeira manhã, enquanto os homens das mudanças entravam e saíam constantemente, mas aquilo não lhe trazia absolutamente nenhuma recordação. Agora parecia-lhe
que se lembrava da cama, a pequena cadeira de balouço junto da janela, com a caixa de música e as prateleiras de brinquedo.
"Voltei para a cama nessa noite. Estava assustada por ver o papá tão zangado. A sala de estar fica mesmo por baixo deste quarto. Consegui ouvir vozes, gritavam.
Depois um ruído maior e a mãe a gritar: Não... Não.
"A mãe a gritar. Depois do grande ruído. Teria conseguido gritar depois de ter sido atingida, ou gritara quando se apercebera de que tinha atingido o marido?"
Pat sentiu o corpo começar a tremer. Agarrou-se à porta para se apoiar, sentindo a humidade nas palmas das mãos e na testa. A respiração saía-lhe num arfar pesado.
"Tenho medo", pensou. "Mas acabou-se. Foi há tanto tempo."
Ela voltou-se e apercebeu-se de que corria pelo vestíbulo, descia as escadas a correr. "Cá estou de novo", pensou. "Vou lembrar-me.
"Papá, papá chamou docemente."
Ao fundo das escadas, virou-se e começou a caminhar aos tropeções, com os braços estendidos. "Papá... papá!"
À porta da sala caiu de joelhos. Sombras vagas rodeavam-na, mas não tomavam forma. Escondendo o rosto nas mãos começou a soluçar.
Mãe, pai, voltem para casa!
"Acordara e vira uma baby-sitter estranha. Mamã, papá. Quero a minha mãe. Quero o meu pai. E eles tinham vindo. A mãe embalava-a: Kerry. Kerry, está tudo bem. O
papá a fazer-lhe festas, os seus braços à volta das duas. Chiu, Kerry, estamos aqui."
Passado um bocado Pat sentou-se e encostou-se à parede, olhando à volta.
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Outra recordação. Tinha a certeza de que era vigorosa. "Quem quer que tenha sido culpado", pensou ela, "sei que ambos me amavam."
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Havia um cinema na Avenida Wisconsin que abria às dez. Arthur entrou numa cafetaria ali perto, tomou um café, depois deu umas voltas até a bilheteira abrir.
Quando estava perturbado gostava de ir ao cinema. Costumava escolher um lugar cá atrás, encostado à parede. E comprava o maior saco de pipocas que havia, comia-o,
e observava sem ver os vultos que se movimentavam no écran.
Gostava de sentir a proximidade das pessoas sem que estas se apercebessem dele, a música, o anonimato do auditório às escuras. Dava-lhe tempo para pensar. Instalou-se
e olhou fixamente para o écran.
Fora um erro desencadear o incêndio. Não houvera qualquer referência no jornal. Quando Sam saiu do metro, telefonou para o lar e a telefonista atendeu de imediato.
Ele disfarçou a voz.
Sou o filho de Mrs. Harnick. O incêndio foi grave?
Oh, foi extinto logo. Foi provocado por um cigarro aceso atirado para o caixote do lixo
Isso queria dizer que tinham visto a lata entornada. Ninguém acreditaria que caíra acidentalmente.
Se ao menos ele não tivesse mencionado o mosteiro. Claro que nos escritórios poderiam simplesmente dizer: "Sim, os nossos registos indicam que Arthur Stevens trabalhou
connosco durante algum tempo." E se fossem pedidos pormenores?
" Saiu por sugestão do director espiritual."
" Podemos falar com o director espiritual?"
" Morreu há alguns anos."
Diriam a razão por que fora convidado a sair? Analisariam os arquivos do lar para verificar quais os doentes que tinham
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morrido durante aqueles anos, e quantos desses ele tinha ajudado? Tinha a certeza de que não entenderiam que ele só queria ser simpático aliviando os que sofriam?
Já tinha sido interrogado duas vezes sobre casos em que doentes seus tinham sido chamados ao Senhor.
" Ficaste satisfeito por eles terem morrido, Arthur?"
" Fiquei satisfeito por os ver em paz. Fiz todo o possível para os ajudar."
Quando não havia esperança nem alívio para a dor, quando os velhos ficavam demasiado fracos para sussurrar ou gemer, quando os médicos e familiares concordavam que
seria uma caridade se Deus os levasse, então ele ajudava-os a libertarem-se.
Se ele tivesse sabido que Anita Gillespie estava ansiosa por ver a filha, teria esperado. Ter-lhe-ia dado tanta alegria saber que Mrs. Gillespie morrera feliz. Esse
era o problema. Ela lutara contra a morte, não se reconciliara com ela. Por isso não se apercebera de que ele só queria ajudá-la.
Fora a sua preocupação em relação a Glory que o tornara descuidado. Lembrava-se da noite em que tudo começara. Estavam a jantar, cada um lendo uma parte do jornal
e Glory gritara:
Oh, meu Deus! Olhava para a página com os programas de televisão e vira o anúncio do documentário sobre a senadora Jennings.
Incluiria todos os pontos importantes da sua carreira. Ele pedira a Glory para não se afligir, tudo se iria resolver. Mas ela não ligara. Começara a soluçar:
Talvez seja melhor eu enfrentar dissera. Não quero viver assim o resto da minha vida.
E fora aí que a sua atitude se começara a alterar.
A ele não lhe tinha sido dado o privilégio de tomar formalmente os votos. Mas fizera o juramento para si mesmo. Pobreza, castidade e obediência. Nunca o quebrara...
mas sentia-se tão só!...
Então, havia nove anos, conhecera Glory. Ela estava sentada na sala de espera de uma clínica agarrada à boneca Raggedy Ann, esperando a sua vez de ser examinada
pelo psiquiatra. Fora a boneca que atraíra a sua atenção. Esperara por ela cá fora.
Caminharam juntos até à paragem do autocarro. Ele explicara que era padre mas que deixara o trabalho da paróquia, a fim de
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trabalhar directamente com os doentes. Ela falara-lhe de si, de como tinha estado presa por um crime que não cometera, que estava sob liberdade condicional e vivia
num quarto mobilado.
Não posso fumar no meu quarto dissera-lhe ela. Nem ter um disco eléctrico para fazer café ou sopa quando não quero sair para comer.
Tinham ido comer um gelado e, entretanto, escurecera. Ela disse que já era tarde e que a dona da casa ficaria zangada. Depois começara a chorar e dissera que preferia
morrer a ter de voltar para lá. E ele levara-a para sua casa.
Ficarás à minha guarda dissera-lhe. E ela era como uma criança frágil. Ele deu-lhe o seu quarto e passou a dormir no sofá e, no início, ela deitava-se na cama e
chorava. Durante algumas semanas os polícias passaram pela clínica para ver se a encontravam, mas depois perderam o interesse. Mudaram-se para Baltimore. Foi então
que ele lhe disse que iria comunicar a toda a gente que ela era sua filha.
Tu também já me chamas pai dissera ele. E dera-lhe o nome de Glory.
Lentamente ela começara a melhorar. Mas, durante quase sete anos só saíra do apartamento à noite. Estava convencida de que qualquer polícia a poderia reconhecer.
Ele trabalhava em lares diferentes à volta de Baltimore e, há dois anos atrás, fora necessário partir e tinham ido para Alexandria. Glory gostava de estar perto
de Washington, mas tinha muito medo de encontrar pessoas que a pudessem reconhecer. Ele convenceu-a de que era tola.
Nenhum membro do Governo da senadora virá aqui a este bairro.
Mesmo assim, sempre que saía, Glory usava óculos escuros. Gradualmente, a depressão foi desaparecendo. Cada vez necessitava menos dos remédios que ele lhe trazia
do lar, e arranjara um emprego como dactilógrafa.
Arthur acabou de comer as pipocas. Não sairia de Washington antes da noite do dia seguinte, depois de ver o programa sobre a senadora Jennings. Nunca ajudava as
pessoas a morrer, sem ter primeiro a certeza de que os médicos não podiam fazer nada por elas. Também não iria condenar Patricia Traymore sem ter provas.
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Se ela não falasse de Glory nem mostrasse fotografias, Glory estaria a salvo. Encontrar-se-ia então com ela e iriam embora os dois.
Mas Glory se fosse exposta como ladra, iria com certeza entregar-se. E, desta vez, morreria na prisão, ele tinha a certeza. Já conhecera muitas pessoas que tinham
perdido a vontade de viver. Mas, se isso acontecesse, Patrícia Traymor seria punida por um pecado terrível. Ele iria a casa dela e faria justiça.
Rua Três Mil N. Até a casa onde Patrícia Traymore vivia era um símbolo de sofrimento e morte.
O filme estava a chegar ao fim. Para onde iria agora?
"Tens de te esconder, Arthur."
Mas onde?
Apercebeu-se de que tinha falado alto. A mulher sentada à sua frente voltou-se para trás.
" Rua Três Mil N sussurraram as vozes. Vai lá, Arthur. Entra pela janela. Pensa no armário."
A imagem do armário no quarto desocupado ocupou-lhe o espírito. Estaria confortável e seguro escondido entre as prateleiras do armário. As luzes do cinema acenderam-se
e ele levantou-se rapidamente. Não queria dar nas vistas. Iria a outro cinema a seguir. Nessa altura já teria escurecido. Que sítio melhor para passar o tempo até
à transmissão do programa, do que a casa de Patricia Traymore? Ninguém se lembraria de o procurar lá.
" Ela deve ter uma hipótese, Arthur... Não sejas apressado."
As palavras giravam-lhe à volta da cabeça.
Eu sei disse ele. Se não houvesse referência a Glory no programa, Patricia Traymore nunca saberia que ele lá estava. Mas se Glory fosse mostrada e identificada,
Patricia seria punida pelos anjos. Ele acenderia a tocha vingadora.
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À uma hora a criada de Lila Thatcher regressou das compras. Lila encontrava-se no seu gabinete a preparar uma palestra que tencionava dar na semana seguinte, na
Universidade de Maryland.
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O assunto era "Desenvolver os seus poderes mentais". Lila estava debruçada sobre a máquina de escrever, com as mãos enclavinhadas.
A criada bateu à porta.
Miss Lila, não parece muito satisfeita.
A criada falou com a familiaridade confortável de uma empregada que se tornou, há muito, uma amiga de confiança.
E não estou, Guida. Para alguém que tenta ensinar as pessoas a usar as suas aptidões mediúnicas, estou bastante em baixo.
Trouxe o Tribune. Quer lê-lo agora?
Sim, acho que sim.
Alguns minutos depois, numa incredulidade zangada, Lila lia a coluna de Gina Butterfield.
Quinze minutos mais tarde tocava à porta de Pat. Com inquietação verificou que Pat estivera a chorar.
Quero mostrar-lhe uma coisa disse ela.
Entraram para a biblioteca. Lila colocou o jornal sobre a mesa e abriu-o. Olhou para Pat, enquanto esta lia, e viu-a empalidecer. Pat olhou para a fotografia.
Meu Deus, até parece que me andei a gabar do assalto á senadora, desta casa, de tudo. Lila, eles vão ficar aborrecidíssimos. Luther Pelham retirou dos filmes antigos
todas as imagens dos meus pais. Não queria nenhuma ligação entre a senadora e, citando-o, "a confusão Adams". É como se estivesse em acção uma força que não consigo
deter. Não sei se tente explicar, se me demita, ou o quê.
Tentou afastar as lágrimas de raiva. Lila começou a dobrar o jornal.
Não posso nem quero aconselhá-la quanto ao emprego, mas posso dizer-lhe que não deve voltar a olhar para isto, Kerry. Tive de lhe mostrar, mas vou levar o jornal.
Não é aconselhável que você se veja como ficou naquele dia, uma boneca partida.
Pat agarrou o braço da velhota.
Por que disse isso?
Quê? Quer dizer por que é que lhe chamei Kerry? Saiu-me.
Não, por que é que me comparou a uma boneca partida? Lila olhou para ela e, depois, para o jornal.
Vem aqui disse ela. Limitei-me a ler. Veja.
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Gina Butterfield tinha incluído uma transcrição, feita na altura, sobre o caso.
"O chefe da polícia Collins, comentando a cena macabra, disse: Nunca vi coisa mais medonha. Quando olhei para aquela pobre criança, que parecia uma boneca partida,
perguntei-me por que razão ele não a tinha morto também. Teria sido melhor para ela."
Uma boneca partida! sussurrou Pat. Seja quem for que ma deixou, conhecia-me nessa altura.
Deixou o quê, Pat? Sente-se, parece que vai desmaiar. Vou buscar um copo de água.
Lila apressou-se a sair da sala. Pat encostou a cabeça às costas do sofá e fechou os olhos. Quando olhara para a notícia reparara nas fotografias dos corpos a serem
retirados, e na sua própria figura, ensanguentada sobre a maca. Mas ver aquilo sobreposto aos rostos sorridentes daqueles jovens casais, ainda era pior. Não se lembrava
de ter lido aquele comentário do chefe da polícia. Talvez não tivesse lido aquele exemplar. Mas provava que quem quer que a tivesse ameaçado, sabia quem ela era,
tinha-a conhecido então.
Lila voltou. Trazia um copo cheio de água.
Estou bem disse Pat. Lila, na noite em que alguém aqui entrou, não se limitou a deixar um bilhete.
Tentou puxar o caixote que se encontrava debaixo da mesa, mas estava tão cheio que não se moveu.
"Não posso acreditar que enchi isto assim", pensou Pat. Enquanto tentava tirá-lo, contou a Lila a história da boneca. Chocada, Lila absorveu o que ouvia. O intruso
deixara uma boneca ensanguentada junto à lareira. Pat corria perigo. Sempre o pressentira.
Pat libertou o caixote. Abriu-o, procurando com rapidez. Lila observou a sua expressão alterar-se de surpresa para alarme.
Pat, que é?
A boneca. Desapareceu!
Tem a certeza...
Fui eu que a pus lá. Ainda noutro dia a vi e tirei-lhe o vestido. Atirei-o para aqui. Talvez ainda aqui esteja.
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Pat procurou no caixote.
Olhe aqui está.
Lila olhou para o pedaço amarrotado de algodão branco, pintalgado de vermelho de sangue.
Quando viu a boneca pela última vez?
No sábado à tarde. Pu-la em cima da mesa. O motorista da senadora veio cá trazer mais caixotes com fotografias. Escondi aqui o caixote. Não queria que ele o visse.
Pat fez uma pausa.
Espere. Passou-se algo com Toby quando aqui entrou. Os seus modos foram bruscos e fartou-se de olhar à volta. Eu não abri a porta logo a seguir ao toque da campainha
e acho que ele percebeu que eu estivera a ocultar alguma coisa. E, depois, disse que sabia o caminho da saída. Quando ouvi a porta fechar-se, decidi ir trancá-la,
e, Lila, a porta estava a abrir-se novamente. Toby trazia na mão uma espécie de cartão de crédito. Tentou disfarçar dizendo que estava a verificar se a porta era
suficientemente segura.
"Ele conheceu-me quando era pequena. Talvez seja ele quem tem andado a ameaçar-me? Mas porquê?
Ainda a tarde não estava a meio, mas o dia já se tornara cinzento e nublado. A madeira escura e o crepúsculo faziam que Pat se sentisse pequena e vulnerável.
Temos de chamar a polícia imediatamente disse Lila. Eles interrogarão o motorista.
Não posso fazer isso. Que é que a senadora ia pensar. Mas conheço alguém que poderá fazer umas investigações sobre Toby.
Pat reparou na aflição de Lila.
Vai tudo ficar bem tranquilizou-a. Vou manter a porta trancada. E, Lila, se tudo o que me está a acontecer é uma tentativa para deter o programa, então, é tarde
de mais. Esta noite vamos filmar a senadora a chegar a casa. Amanhã filmaremos umas cenas em estúdio e, à noite, irá para o ar. Depois disso não valerá a pena tentar
assustar-me. E começo a pensar que isto é mesmo uma tentativa para me assustar.
Lila saiu alguns minutos depois. Pat tinha de estar no estúdio às quatro horas. Prometera telefonar ao congressista amigo, Sam
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Kingsley, e pedir para investigar o motorista. Para consternação de Lila, Pat insistiu em ficar com o jornal.
Tenho de ler cuidadosamente para ver o que diz. Se não mo der, vou lá fora e compro um.
A criada de Lila abriu a porta quando ela ainda subia as escadas.
Tenho estado a observá-la, Miss Lila explicou. Não acabou de almoçar e saiu daqui perturbada.
Tens estado a observar-me, Guida?
Lila entrou na sala de jantar e foi até à janela que dava para a rua. Dali via toda a frontaria e o lado direito da casa de Pat.
Não vai resultar murmurou. Ele entrou pelo pátio e daqui não o vejo.
Que disse, Miss Lila?
Não é nada. Vou manter-me vigilante e tinha pensado pôr a máquina de escrever sobre uma mesa à janela.
Vigilante?
Sim, quer dizer, que quando há algo errado, se deve ficar vigilante.
Acha que há algo errado com Miss Traymore? Acha que o assaltante pode lá entrar outra vez?
Lila olhou para a escuridão pouco natural que rodeava a casa de Pat. Com uma sensação aguda de premonição, respondeu:
É isso mesmo que penso.
30
Desde o momento em que o pai lhe telefonara, que Glory aguardava a chegada da polícia. Às dez horas aconteceu. A porta do escritório abriu-se e entrou um homem com
aspecto de trintão. Ela ergueu os olhos e viu um carro da polícia. Retirou os dedos da máquina de escrever.
Detective Barrott disse o visitante, mostrando a insígnia. Queria falar com Glory Stevens. Onde está ela?
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Glory levantou-se. Já imaginava as perguntas deles: "O seu nome verdadeiro não é Eleanor Brown? Por que desrespeitou a liberdade condicional? Por quanto tempo pensou
que se iria manter escondida?"
O detective Barrott aproximou-se dela. Tinha um rosto franco e bochechudo, e cabelo louro que se encaracolava à volta das orelhas. Os seus olhos eram inquisidores
mas amigáveis. Ela notou que ele devia ter mais ou menos a idade dela e pareceu-lhe menos assustador que aquele detective desdenhoso que a interrogara depois de
o dinheiro ter sido encontrado no seu apartamento.
Miss Stevens? Não esteja nervosa. Será que posso falar consigo a sós?
Podemos ir para ali respondeu ela, conduzindo-o para o gabinete de Mr. Schuller. Havia duas cadeiras de couro em frente à secretária de Mr. Schuller. Ela sentou-se
numa e o detective noutra.
Pareceu-me assustada disse ele gentilmente. Não tem nada a recear. Queremos só falar com o seu pai. Sabe onde o podemos encontrar?
"Falar com o seu pai!" Engoliu em seco.
Quando saí de casa ele ainda lá ficou. Provavelmente foi à padaria.
Mas não voltou. Talvez tenha visto o carro da polícia e achou melhor não entrar. Acha que ele poderá estar com alguns familiares ou amigos?
Eu... eu não sei. Por que razão quer falar com ele?
Só para lhe fazer algumas perguntas. Por acaso ele não lhe telefonou esta manhã?
"Aquele homem pensava que Arthur era pai dela. Não estava interessado nela."
Ele... ele telefonou. Mas eu estava ocupada com o meu patrão.
Que queria ele?
Ele... queria que eu fosse ter com ele e eu disse que não podia.
Onde queria ele que se encontrassem?
As palavras do pai ecoaram-lhe nos ouvidos. Estação Central... Saída 12 G... Estaria lá naquele momento? Estaria em apuros? Ele tomara conta dela durante todos aqueles
anos. Não o podia magoar agora. Escolheu cuidadosamente as palavras.
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Não pude falar muito com ele. Só disse que não podia sair do escritório e quase lhe desliguei o telefone na cara. Que querem dele? Que se passa?
Bem, talvez não seja nada. A voz do detective era gentil.
O seu pai fala sobre os doentes?
Sim.
Era fácil responder àquela questão.
Ele preocupa-se com eles.
Algum dia lhe falou na Mrs. Gillespie?
Sim. Ela morreu na semana passada, não foi? Ele ficou tão triste. Por causa da filha que a ia visitar.
Lembrou-se do que ele gritara durante o sono. " Feche os olhos, Mrs. Gillespie. Feche os olhos." Talvez tivesse cometido algum erro enquanto tratava de Mrs. Gillespie
e agora o quisessem culpar disso.
Ultimamente tem notado alguma diferença nele? Tem andado nervoso?
Ele é o melhor homem que eu conheço. Toda a sua vida se dedicou a ajudar as pessoas. Por acaso até o convidaram agora para trabalhar num lar do Tenessi
O detective sorriu.
Que idade tem, Miss Stevens?
Trinta e quatro.
Ele pareceu surpreendido.
Não parece. De acordo com os registos de emprego, Arthur Stevens tem quarenta e nove anos.
Fez uma pausa, depois acrescentou:
Ele não é o seu verdadeiro pai, pois não? Dali a pouco estaria a fazer montes de perguntas.
Ele foi padre, mas depois decidiu ocupar a vida ajudando os doentes. Quando eu estive muito doente e não tinha ninguém, ele tomou conta de mim.
Agora iria perguntar-lhe o verdadeiro nome. Mas não o fez.
Percebo. Miss... Miss Stevens. Nós queremos falar com o padre Stevens. Se ele contactar consigo, comunica-nos?
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Estendeu-lhe o seu cartão. Detective William Barrott. Sentiu que ele a analisava. Por que razão não lhe fazia perguntas sobre o seu passado?
Ele foi-se embora. Ela ficou ali sentada até Opal entrar.
Glory, passa-se alguma coisa?
Opal era uma boa amiga, a melhor que já tivera. Opal ajudara-a a assumir-se de novo como mulher. Opal convidava-a sempre para as festas, dizendo que o namorado lhe
arranjaria companhia. Ela recusava sempre.
Glory, que se passa? repetiu Opal. Estás com mau aspecto.
Não se passa nada. Dói-me a cabeça. Achas que posso ir para casa?
Claro. Eu acabo o teu trabalho. Glory, se eu puder ajudar... Glory olhou para o rosto inquieto da amiga.
Agora já não é preciso. Obrigada por tudo. Dirigiu-se para casa. A temperatura andava perto dos cinco graus, mas, mesmo assim, o dia estava frio e a humidade penetrava-lhe
por entre o casaco e as luvas, fazendo-a arrepiar-se. O apartamento, com a sua mobília alugada, parecia estranhamente vazio, como se pressentisse que eles não iriam
regressar. Foi ao roupeiro e retirou a velha mala que o padre comprara num saldo. Arrumou as poucas roupas que tinha, os cosméticos e o livro que Opal lhe oferecera
pelo Natal. A mala não era grande e custou-lhe fechá-la.
Havia mais qualquer coisa... a boneca Raggedy Ann. Na clínica o psiquiatra pedira-lhe para descrever o que sentia em relação a si própria, mas não o conseguira fazer.
A boneca encontrava-se numa prateleira juntamente com outras, ele dera-lha.
Acha que poderia mostrar-me como pareceria esta boneca se fosse você?
Não fora difícil pintar as lágrimas, desenhar os olhos assustados e modificar-lhe a expressão da boca de forma que, em vez de sorrir, parecia chorar.
É assim tão mau? perguntou o psiquiatra depois de ela ter acabado.
Pior.
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"Oh, pai", pensou ela. "Quem me dera ficar aqui até contactares comigo. Mas eles vão descobrir. Aquele detective a esta hora já sabe tudo sobre mim. Já não consigo
fugir. Tenho de entregar-me enquanto ainda me resta alguma coragem. Talvez isso ajude e me dêem uma pena mais leve por não ter cumprido a liberdade condicional."
Havia uma promessa que podia cumprir. Miss Langley pedira-lhe que telefonasse à celebridade televisiva Patricia Traymore, antes de fazer alguma coisa. Fez a ligação,
disse o que planeara e ouviu impassível os pedidos de Pat.
Finalmente, às três horas saiu. Havia um carro estacionado na rua. Tinha dois homens sentados lá dentro.
É aquela a rapariga disse um deles. Ela mentiu quando disse que não tencionava reunir-se a Stevens acrescentou, com pena.
O outro carregou no acelerador.
Eu disse-te que ela estava a ocultar coisas. Aposto dez dólares em como ela vai levar-nos ao Stevens.
31
Pat atravessou a cidade a grande velocidade até ao Restaurante Lotus, na Avenida Wisconsin. Tentava desesperadamente encontrar forma de persuadir Eleanor a não se
entregar imediatamente. Com certeza que se deixaria convencer se desse ouvidos à razão. Tentara contactar com Sam mas, passados momentos, atirara com o auscultador
e saíra a correr. Agora, enquanto atravessava apressadamente o restaurante, perguntava-se se iria reconhecer a rapariga. Usaria o seu próprio nome? Provavelmente
não. A proprietária recebeu-a.
É Miss Traymore?
Sou.
Miss Brown está à sua espera.
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Ela estava sentada numa mesa retirada, beberricando chablis. Pat sentou-se na cadeira em frente, tentando reconstituir o que queria dizer. Eleanor Brown não diferia
muito da fotografia do liceu. Estava, obviamente, mais velha, já não era tão magra, e era mais bonita do que Pat esperava, mas era reconhecível.
Falou suavemente.
Miss Traymore? Obrigada por ter vindo.
Eleanor, por favor, ouça-me. Podemos arranjar-lhe um advogado. Pode sair sob caução. Você estava com um desequilíbrio nervoso quando violou a liberdade condicional.
Há muitas maneiras para o advogado pegar no caso.
O criado apareceu com aperitivos de camarão.
Eu costumava sonhar com isto disse Eleanor. Quer tomar alguma coisa?
Não. Nada. Eleanor, entendeu o que eu disse?
Sim, entendi.
Eleanor mergulhou um camarão no molho espesso e doce.
Oh, isto é bom!
O seu rosto estava pálido mas determinado.
Miss Traymore, espero que me concedam de novo a liberdade condicional, mas se isso não acontecer, sinto-me agora suficientemente forte para cumprir a pena que me
derem. Posso dormir numa cela, comer aquela mistela a que eles chamam comida e aguentar as buscas e o tédio. Quando sair, não terei mais nada para esconder, e vou
passar o resto da minha vida a tentar provar a minha inocência.
Eleanor, o dinheiro foi encontrado na sua posse, não foi? Miss Traymore, quase toda a gente naquele gabinete conhecia o meu apartamento. Muitos me ajudaram a fazer
a mudança. Até fizemos uma festa. Parte do dinheiro foi encontrado lá, mas setenta mil dólares foram parar ao bolso de outra pessoa.
Eleanor, você diz que Toby lhe telefonou e ele diz que não. Não achou estranho pedirem-lhe para ir à sede da campanha num domingo?
Eleanor afastou o prato com as cascas.
Não. Sabe, a senadora preparava-se para ser reeleita. Havia muita coisa a fazer. Costumava passar por lá a dar uma ajuda para fazer que os voluntários se sentissem
importantes. Quando
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fazia isso, costumava tirar o grande anel de diamantes. Estava-lhe um bocadinho largo e ela era descuidada com ele. Várias vezes saiu sem ele.
E Toby, ou alguém que parecia ele, disse que ela se tinha voltado a esquecer do anel.
Sim. Eu sabia que ela tinha passado pela sede no sábado, portanto, pareceu-me perfeitamente natural que se tivesse esquecido dele, e que alguém o tivesse guardado
no cofre. Acredito que no momento em que o telefonema foi feito, Toby conduzisse a senadora. A voz estava disfarçada e quem quer que falou comigo, não disse muito.
Foi qualquer coisa neste género.
""Veja se o anel da senadora está na sede da campanha e, se assim for, informe-a."
"Eu fiquei aborrecida porque tencionava ir a Richmond fazer uns esboços, e até disse qualquer coisa como "provavelmente ela vai encontrá-lo debaixo do nariz". Quem
quer que tenha telefonado, deu uma risada e desligou. Se Abigail Jennings não tivesse falado tanto sobre a segunda chance que me tinha dado, e não me tivesse chamado
ladra, eu teria todo o benefício da dúvida. Perdi onze anos da minha vida por um erro que não cometi, e não vou perder nem mais um dia.
Levantou-se e colocou o dinheiro sobre a mesa.
Isto deve chegar. Curvando-se, agarrou a mala e, depois, fez uma pausa. Sabe o que é mais difícil para mim? Estou a quebrar uma promessa que fiz ao homem com quem
tenho vivido e que tem sido bom para mim. Ele pediu-me para não ir já à polícia. Só gostava de lhe poder explicar, mas não sei onde ele está.
Quer que eu tente telefonar-lhe mais tarde? Como se chama? Onde trabalha?
Chama-se Arthur Stevens, e acho que está com problemas no trabalho. Não o encontra lá. Não pode fazer nada. Desejo que o seu programa seja um êxito, Miss Traymore.
Fiquei muito perturbada quando li que ia fazê-lo. Sabia que se mostrassem uma fotografia minha, passadas vinte e quatro horas estaria presa. Mas, sabe, isso fez-me
entender como estava cansada de correr. De certa forma deu-me a coragem de encarar de novo a prisão, para que um dia pudesse ser livre. O pai, quer dizer,
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Arthur Stevens, não podia aceitar isto. E, agora, é melhor ir-me embora antes que me falte a coragem.
Impotente Pat viu-a afastar-se.
Enquanto Eleanor saía do restaurante dois homens que estavam numa mesa do canto, levantaram-se e seguiram-na.
32
Abby, as coisas não estão assim tão más
Há quarenta anos que a conhecia, e aquela era a terceira vez que a rodeava com os braços. Ela soluçava convulsivamente.
Por que não me disseste que ela vivia naquela casa?
Não havia motivo para dizer.
Encontravam-se na sala de estar de Abigail. Ele mostrara-lhe o artigo quando chegaram, depois, tentara acalmar a explosão inevitável.
Abby, este jornal vai andar a apanhar papéis.
Mas eu não quero apanhar papéis! gritou ela. Ele serviu-lhe um uísque e fê-la beber.
Vamos lá, senadora, componha-se. Talvez haja por aí algum fotógrafo escondido.
Cala-te, palerma!
Mas a sugestão fora suficiente para a impressionar. E, após a bebida, começara a chorar.
Toby, parece aquelas velhas folhas de escândalo. E aquela fotografia. Toby, aquela fotografia!
Não se referia à dela e Francey. Ele abraçou-a, bateu-lhe desajeitadamente nas costas e apercebeu-se com mágoa que para ela era apenas um pilar onde se agarrava
quando sentia a terra fugir-lhe debaixo dos pés.
Se alguém analisar com atenção aquelas fotografias! Toby, olha para aquela.
Ninguém se vai preocupar.
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Toby, aquela rapariga, a Pat Traymore. Como alugou ela aquela casa? Não pode ser coincidência.
A casa foi alugada a doze inquilinos diferentes nos últimos vinte e quatro anos. Ela é mais uma.
Toby tentou manter-se aprumado. Não acreditava naquilo, mas, por outro lado, Phil ainda não descobrira os pormenores do arrendamento.
Senadora, tem de se agarrar a isto. Quem quer que ameaçou Pat Traymore...
Toby, como é que temos a certeza de que houve ameaças? Como é que temos a certeza de que isto não é uma manobra calculada para me prejudicar?
Ele ficou tão admirado que deu um passo para trás. Num gesto reflexo, ela afastou-se dele e olharam um para o outro.
Meu Deus, Abby, acha que ela engendrou isto tudo? O retinir do telefone fê-los saltar. Ele olhou para ela.
Quer que...
Sim.
Ela levou as mãos ao rosto.
Não me interessa quem é. Não estou cá.
Residência da senadora Jennings. Toby fez voz de mordomo. Posso ficar com uma mensagem para a senadora. Neste momento ela não está disponível.
Piscou o olho a Abby e ela sorriu levemente.
O presidente... Oh, um momento, senhor. Cobriu com a mão o bocal.
Abby, é o presidente...
Toby, não te atrevas...
Abby, por amor de Deus, é o presidente!
Ele levantou as mãos à boca e depois agarrou o aparelho.
Se isto é alguma brincadeira...
Fala Abigail Jennings.
Toby viu a sua expressão modificada.
Sr. Presidente. Desculpe, Desculpe. Estava a ler. Por isso mandei dizer que não estava. Desculpe... Sim, senhor, claro. Sim, posso estar na Casa Branca amanhã à
noite... oito e meia, claro. Sim, temos andado muito ocupados com o programa. Francamente, não me sinto muito à vontade por ser o objecto deste
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programa. Oh... é muito simpático. Sim, quer dizer... não sei bem o que dizer... Claro que compreendo. Obrigada. Desligou. Meia tonta olhou para Toby.
Não posso dizer a ninguém. Ele vai anunciar a minha nomeação amanhã à noite após o programa. Disse que não é má ideia que o país me possa conhecer um pouco melhor.
Riu-se da fotografia do Mirror. Disse que a mãe dele também fora uma brasa e que eu sou muito mais bonita agora do que quando tinha dezassete anos. Toby, vou ser
vice-presidente dos Estados Unidos!
Riu histericamente e atirou-se para os braços dele.
Abby, conseguiste! disse ele, erguendo-a no ar. O rosto dela tornou-se subitamente tenso.
Toby, não pode acontecer-me nada... Nada pode impedir isto.
Ele agarrou-lhe nas mãos.
Abby, pois juro que ninguém vai impedir! Ela começou a rir e depois a chorar.
Tobby, estou tonta. Tu e aquele uísque. Sabes que não posso beber. Toby... vice-presidente.
Ele teve de a acalmar.
Mais tarde vamos dar uma volta e passaremos pela tua nova casa, Abby. Finalmente vais ter uma mansão! Próxima paragem Massachusetts Avenue.
Toby, cala-te. Faz-me uma chávena de chá. Vou tomar um duche e tentar acalmar. Vice-presidente! Meu Deus! Meu Deus!
Ele pôs a chaleira ao lume, e, mesmo sem vestir o casaco, foi ver a caixa do correio. O lixo habitual cupões, publicidade... Noventa por cento do correio de Abby
ia para o gabinete.
Então viu-o. O sobrescrito azul com a morada manuscrita. Um bilhete pessoal para Abby. Olhou para o remetente e empalideceu.
A carta era de Catherine Graney.
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Sam atravessou a cidade em direcção à Rua 7, já um pouco tarde para a reunião com Larry Saggiotes, do National Transportation Safety Board. Depois de deixar Pat,
fora para casa e ficara acordado durante grande parte da noite experimentando uma série de emoções em relação às acusações de Pat.
Posso ajudar, senhor?
Quê? Oh, desculpe.
Embaraçado, Sam verificou que estava tão imerso nos seus pensamentos que não se apercebera de ter entrado no edifício. O funcionário da segurança olhava-o com curiosidade.
Subiu até ao oitavo andar e deu o nome à recepcionista
É só um momento disse ela. Sam sentou-se numa cadeira.
"Teriam Abigail c Willard Jennings discutido violentamente nesse último dia?", perguntou-se. Mas isso não queria forçosamente dizer alguma coisa. Lembrou-se de que
houvera alturas em que ameaçara deixar o Congresso e arranjar um emprego que proporcionasse alguns dos luxos que Janice merecia. Ela discutira com ele, e alguém
que tivesse ouvido a conversa, poderia ser levado a pensar que eles não podiam um com o outro. Talvez a viúva do piloto tivesse ouvido Abigail discutir com Willard
Jennings nesse dia. Talvez Willard estivesse aborrecido com alguma coisa e disposto a desistir da política e ela não concordasse.
Sam tinha telefonado ao seu amigo do FBI, Jack Carlson, para localizar o relatório sobre o acidente.
" Há vinte e sete anos? Isso pode ser difícil dissera Jack. O National Transportation Safety Board dirige as investigações dos acidentes, mas há muitos anos que
a responsabilidade passou para a Aeronáutica Civil. Eu telefono-te mais tarde."
Às nove e meia Jack telefonara.
" Estás com sorte dissera, laconicamente. A maior parte dos arquivos são destruídos passados dez anos, mas quando há gente proeminente envolvida, os relatórios são
guardados. Eles têm os dados relativos aos acidentes envolvendo toda a gente, desde Amélia Earhart e Carole Lombard, até Dag Hammarskjold e
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Hale Boggs. O meu contacto na direcção é Larry Saggiotes, o relatório irá parar ao gabinete dele. Ele sugeriu que aparecesses ao fim da tarde."
Desculpe, senhor, Mr. Saggiotes vai recebê-lo agora. Sam ergueu os olhos. Tinha a sensação de que a recepcionista tentava chamar-lhe a atenção. "É melhor concentrar-me",
pensou. Seguiu-a pelo corredor.
Larry Saggiotes era um homem grande, cujas feições e pigmentação reflectiam a herança grega. Trocaram cumprimentos. Sam deu uma explicação cuidadosamente preparada,
sobre a razão por que pretendia investigar o acidente.
Larry recostou-se na cadeira, franzindo o sobrolho.
Aqui o dia está bom, não está? comentou. Mas em Nova Iorque está nevoeiro, há neve em Mineapolis e chove a potes em Dallas. No entanto, nas próximas vinte e quatro
horas, cento e vinte mil aviões militares e privados levantarão voo neste país. E as possibilidades de que um deles se despenhe são astronómicas. È por isso que
quando um avião que foi verificado por um mecânico e conduzido por um bom piloto se despenha subitamente, num dia de boa visibilidade, ficamos preocupados.
É o caso do avião de Jennings.
Sim confirmou Larry. Acabei agora de ler o relatório. Que aconteceu? Não sabemos. O último contacto com George Graney foi quando ele falou pela última vez com o
controlo, em Richmond. Não havia sinais de perigo. Era um voo rotineiro de duas horas.
E o veredicto foi erro de pilotagem? perguntou Sam.
Causa provável. Acaba sempre assim quando não arranjamos outras respostas. Era um Cessna de dois motores e os engenheiros andaram aí para provar que o avião estava
em boas condições. A viúva de Willard Jennings fartou-se de berrar que o marido se queixara das aterragens bruscas de Graney.
Ocorreu-vos a possibilidade de sabotagem?
Congressista, a possibilidade de sabotagem é sempre investigada. Primeiro verificamos como poderia ter sido feita. É que há muitas maneiras de não deixar vestígios.
Por exemplo, com tantas fitas magnéticas que são usadas hoje em dia, um magneto forte escondido na carlinga, poderia dar cabo de todos os instrumentos.
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Há vinte e sete anos isso não poderia ter acontecido. Mas se alguém tivesse mexido no gerador do avião de Graney, este perderia por completo o controlo.
"O botão do combustível seria outra possibilidade. Aquele avião possuía dois tanques. O piloto accionava o segundo tanque quando o indicador do primeiro mostrava
que estava vazio. Suponhamos que o botão não funcionava? Ele não teria hipóteses de se servir do segundo tanque. Depois, claro, temos o ácido corrosivo. Alguém que
não quisesse que o avião chegasse a bom porto, poderia muito bem ter preparado uma fuga de combustível a bordo. Poderia ser na área da bagagem, sob uma cadeira,
etc. Mas isso seria fácil de descobrir.
Alguma destas coisas veio a público? perguntou Sam.
Os pedaços que foram recuperados não foram suficientes. Portanto, o que havia a fazer a seguir era procurar um motivo. E não encontrámos absolutamente nenhum. A
empresa de aviação de Graney ia bastante bem; ele não fizera nenhum seguro nos últimos tempos. O congressista estava tão mal segurado que até fazia impressão, mas
também, quando se tem dinheiro, isso não é preciso. A propósito, este é o segundo pedido que tenho de uma cópia do inquérito. Mrs. Graney veio buscar uma na semana
passada.
Larry, se for possível, quero manter a senadora Jennings afastada disto para lhe evitar embaraços. Claro, eu mesmo vou estudar o relatório, mas quero perguntar-lhe:
há algum indício de que George Graney fosse um piloto descuidado ou inexperiente?
Absolutamente nenhum. Ele tinha um currículo impecável. Tinha combatido na guerra da Coreia. Este tipo de pilotagem era canja para ele.
E quanto ao equipamento?
Sempre na melhor forma. Os mecânicos eram bons.
Então a viúva do piloto tem uma razão válida para ficar perturbada por as culpas do acidente recaírem sobre George Graney.
Larry deitou cá para fora uma baforada de fumo.
Pode crer que tem... mais que válida!
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Pat conseguiu apanhar Sam às quatro e dez. Sem mencionar a discussão anterior, falou-lhe de Eleanor Brown.
Não pude impedi-la. Ela estava decidida a entregar-se.
Calma, Pat. Vou mandar-lhe um advogado. Vais ficar aí na televisão? Quanto tempo?
Não sei. Já viste o Tribune de hoje?
Só os títulos.
Lê a segunda folha. Uma colunista que conheci noutro dia, soube onde eu vivia e desenterrou tudo.
Pat, vou ficar aqui. Aparece cá quando saíres daí. Luther aguardava-a no gabinete. Ela contava ser tratada como uma pária, mas ele falou-lhe com contenção.
As filmagens em Apple Junction correram bem disse-lhe. Nevou lá ontem e aqueles bosques brancos pareciam o sonho americano. Filmámos a casa Saunders, o liceu, a
creche em frente, e Main Street com a sua árvore de Natal. Colocámos um letreiro em frente à Câmara: APPLE JUNCTION, LOCAL DE NASCIMENTO DA SENADORA ABIGAIL FOSTER
JENNINGS. Luther continuou: Aquela velhota, Margaret Langley, deu uma boa entrevista. Muito delicada e com classe. Foi agradável ouvi-la dizer que a senadora tinha
sido uma estudante dedicada e mostrou-nos depois o livro de curso.
Pat apercebeu-se de que fora ideia de Luther fazer as filmagens em Apple Junction.
Já viste o trabalho de ontem à noite e hoje de manhã? perguntou-lhe ela.
Sim. Está bom. Podiam ter posto mais material de Abby a trabalhar à secretária. A sequência do jantar de Natal estava óptima.
Viste o Tribune de hoje?
Sim.
Luther esmagou o cigarro no cinzeiro e acendeu outro. A sua voz alterou-se. Apareceram-lhe manchas vermelhas no rosto.
Pat, é importante que ponhas as cartas na mesa e me digas a razão por que forneceste aquela história?
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O quê?
Desta vez Luther não fez qualquer esforço para se conter.
Talvez muita gente considere coincidência o facto de esta semana ter acontecido tanta coisa à senadora. Por acaso, eu não acredito em coincidências. Eu concordo
com o que Abigail disse depois de aquela primeira fotografia ter saído no Mirror. Desde o primeiro dia que nos quiseste obrigar a fazer o programa à tua maneira.
E acho que utilizaste todos os meios possíveis para conseguir publicidade para ti. Não há ninguém em Washington que não fale de Pat Traymore.
Se acreditas nisso, devias despedir-me.
E dar-te mais publicidade? Nem pensar. Mas, por curiosidade, respondes-me a algumas perguntas?
Dispara.
No primeiro dia, neste gabinete, disse-te para omitires qualquer referência ao congressista e à mulher. Sabias que tinhas alugado a casa deles?
Sim, sabia.
E não seria natural que o mencionasses!
Não acho. De facto, retirei todas as imagens deles. Até fiz um bom trabalho.
Sim. Fizeste um bom trabalho. Agora vamos supor que me dizes quais as razões das ameaças. Qualquer pessoa deste meio, concluiria que quer trabalhasses ou não neste
programa, ele iria ser concluído.
Pat escolheu cuidadosamente as palavras.
Acho que as ameaças foram só... ameaças. Acho que ninguém teve intenção de me fazer mal, só quiseram assustar-me. Acho que alguém que tem medo do programa pensou
que, se eu não o fizesse, se desistiria do projecto. Fez uma pausa e acrescentou deliberadamente: Essa pessoa não podia adivinhar que não sou mais que uma marioneta
na campanha, para levar Abigail Jennings à vice-presidência.
Estás a tentar insinuar...?
Não, insinuar, não, estou a afirmar. Olha, eu caí na esparrela. Primeiro, por ter sido contratada tão rapidamente, depois, por ter de fazer em duas semanas trabalho
que levaria três meses, por ter o material pronto a comer, entregue por ti e pela senadora.
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A pequena parte do programa que poderia ser considerada honesta deve-se aos segmentos que tive de vos fazer engolir. É só por causa da publicidade nefasta que, inadvertidamente
arranjei a Abigail Jennings, que vou fazer que este programa seja o melhor possível para ela. Mas aviso-te, quando acabar, há coisas que vou investigar.
Tais como...?
Tais como Eleanor Brown, a rapariga condenada por desviar fundos da campanha. Estive hoje com ela. Vai entregar-se à polícia. E jura que não tocou no dinheiro.
Eleanor Brown entregou-se? interrompeu-a Luther. Podemos tirar partido disso. Como violadora da liberdade condicional, não vai poder sair sob caução.
O congressista Kingsley está a preparar-lhe a caução.
Isso é um erro. Vou fazer que ela fique na mesma até o presidente fazer a nomeação. Depois disso o que é que interessa? Ela teve um julgamento justo. Mencionaremos
o caso no programa tal como estava escrito e acrescentaremos que, por causa do programa, ela se entregou. Isso acalmá-la-á se se preparar para armar sarilhos.
Pat sentiu que, de algum modo, tinha traído a confiança de Eleanor.
Por acaso penso que essa rapariga está inocente, e se assim for, vou lutar para que ela seja julgada de novo.
É culpada! atirou Luther. De outra maneira, por que razão violou a liberdade condicional? Provavelmente já estourou os setenta mil dólares e agora quer deixar de
fugir. Não te esqueças: um grupo de jurados condenou-a por unanimidade. Ainda acreditas no sistema de jurados, ou não? E agora? Há mais alguma coisa? Alguma coisa
de má que penses que pode reflectir-se na eleição da senadora a vice-presidente?
Ela falou-lhe de Catherine Graney.
Então ela falou em processar-nos? perguntou Luther com ar muito satisfeito. Estás preocupada com isso?
Se ela começa por aí a falar sobre o casamento Jennings... só o facto de a sogra da senadora lhe não ter deixado um tostão...
Abigail terá o apoio de todas as mulheres americanas que têm de aturar as sogras. Quanto ao casamento Jennings é a palavra
199
de Graney contra a da senadora e de Toby... não te esqueças de que ele assistiu ao último encontro. E quanto à carta que me entregaste que a senadora enviou ao marido,
data de alguns dias antes da morte dele.
Presumimos isso. Outras pessoas poderão dizer que a carta não menciona o ano.
Ela pode pô-lo agora, se necessário. Mais alguma coisa?
Tanto quanto sei, há dois locais onde a senadora poderia arranjar publicidade prejudicial. Estou preparada para dar a minha palavra de honra.
Está bem. Luther parecia mais calmo. Vou levar uma equipa para filmar o regresso a casa da senadora... a velha cena do final de um dia de trabalho.
Não queres que eu assista à gravação?
Quero-te bem longe de Abigail até ela se acalmar. Pat, leste cuidadosamente o teu contrato connosco?
Acho que sim.
Então sabes que temos o direito de te anular o contrato, contra uma indemnização a combinar? Francamente, não acredito nessa treta de haver alguém que não quer que
o programa se faça. Mas quase chego a admirar-te por te teres tornado conhecida em Washington, e de teres desenterrado o passado de uma mulher que dedicou toda a
sua vida ao serviço público.
Leste o meu contrato? perguntou Pat.
Fui eu que o escrevi.
Então sabes que me deste o controlo criativo dos projectos que estão à minha responsabilidade. Achas que cumpri o meu contrato esta semana?
Abriu a porta do gabinete de Luther, convencida de que toda a gente cá fora estava a ouvir.
As palavras de Luther ecoaram pela sala:
Na próxima semana, a esta hora, os termos do teu contrato serão discutidos.
Foi uma das poucas vezes na sua vida em que Pat bateu com uma porta.
Quinze minutos mais tarde encontrava-se a dar o nome na recepção do edifício onde Sam vivia.
200
Sam aguardava-a à entrada quando o elevador parou no seu andar.
Pat, pareces desfeita disse-lhe ele.
E estou.
Arrasada olhou para ele. Ele vestia a mesma camisola Argyle que usara na noite anterior. Com mágoa, reparou que isso lhe acentuava o azul dos olhos. Ele pegou-lhe
no braço e desceram o corredor.
Dentro do apartamento, a sua impressão imediata foi de surpresa. Nas paredes havia uma porção de boas gravuras e alguns quadros de primeira qualidade. A carpeta
ia de uma parede à outra, numa combinação cinzenta, negra e branca.
Esperava encontrar na casa de Sam um ar mais tradicional, um sofá com braços, cadeiras de encosto, peças de família. Um tapete oriental, ainda que usado, melhoraria
bastante o aspecto. Ele perguntou-lhe o que ela pensava da casa e ela disse-lhe.
Os olhos de Sam brilharam.
Tu sabes fazer-te convidada, não sabes. Tens razão, claro. Eu quis começar de novo, mudar tudo, e, naturalmente, excedi-me. Concordo. Isto parece a entrada de um
motel.
Então por que ficas aqui? Deves ter outras hipóteses.
Oh, o apartamento é bom respondeu logo Sam. A mobília é que me incomoda. Fartei-me do antigo, mas também não sabia muito bem como era o novo.
Era uma afirmação meio a brincar que, de repente, tomou muito peso.
Por acaso não tens por aí um scotch para uma dama cansada? perguntou ela.
Claro.
Ele dirigiu-se para o bar.
Montes de soda, um cubo de gelo, uma rodela de limão, se possível, mas se não houver limão não te preocupes.
Ele sorriu.
Acho que não sou assim tão chato.
Chato, não, só delicado.
Ele serviu as bebidas e colocou-as sobre a mesa de cocktail.
Senta-te e acalma-te. Como correram as coisas no estúdio?
201
Provavelmente, para a semana a esta hora, estarei sem emprego. Sabes, é que Luther pensa que eu estou a provocar toda esta publicidade, e até admira a minha lata.
Acho que Abigail também tem a mesma opinião. Pat ergueu o sobrolho.
Acho que serias o primeiro a saber. Sam, eu não esperava que me telefonasses tão depressa, após a noite passada. De facto, o que eu esperava era um período de silêncio
de três meses, antes de nos encontrarmos como amigos desinteressados. Mas preciso de ajuda e rapidamente, e não posso ir ter com Luther Pelham. Portanto, receio
que terás de ser tu.
Não é exactamente a razão que me agrada mais, mas estou ao teu dispor.
Sam estava diferente. Ela sentia-o. Era como se a hesitação e a insegurança tivessem desaparecido.
Sam há outra coisa relacionada com o assalto.
Tão calmamente quanto possível ela falou-lhe da boneca Raggedy Ann.
E agora a boneca desapareceu!
Pat, estás a tentar dizer-me que alguém tem entrado em tua casa sem tu saberes?
Sim.
Então não vais lá ficar nem mais um minuto. Inquieta ela levantou-se e foi até à janela.
Isso não é solução. Sam, de certa forma o facto de a boneca ter desaparecido até é tranquilizante. Acho que quem quer que me tem ameaçado não tem intenção de me
fazer mal. De outra maneira já o teria feito. Acho que tem medo do efeito que o programa possa ter nele. E tenho algumas ideias.
Rapidamente expôs a sua opinião sobre o caso Eleanor Brown.
Se Eleanor Brown não mentiu, então mentiu Toby. Se Toby mentiu, a senadora cobriu-lhe a mentira e isso parece incrível. Mas supõe que havia outra pessoa envolvida
que imitou a voz de Toby, que conhecia o apartamento de Eleanor que pôs lá o dinheiro para ela ser apanhada?
E como explicas a boneca e as ameaças?
Penso que é alguém que me conheceu quando era miúda e me deve ter reconhecido. Está a tentar assustar-me e impedir
202
a transmissão do programa. Sam, que pensas disto? Toby conheceu-me quando eu era miúda. Toby tem-se mostrado hostil em relação a mim. Primeiro pensei que era por
causa da senadora e de toda a má publicidade mas, outro dia, apanhei-o a olhar para a biblioteca como se procurasse alguma coisa. E depois de sair, tornou a entrar.
Não se apercebeu de que eu ia atrás dele para trancar a porta. Disse que estava a experimentar a fechadura e que eu deveria ter cuidado, pois qualquer pessoa poderia
lá entrar. Acreditei nessa, mas, Sam, desconfio dele. Podias mandá-lo investigar e saber se ele algum dia se meteu em sarilhos? Quero dizer, sarilhos a sério.
Sim, posso. Nunca gostei desse passarão.
Ele pôs-se atrás dela, rodeou-lhe a cintura com os braços. Instintivamente ela encostou-se a ele.
Senti a tua falta, Pat.
Desde a noite passada?
Não, de há dois anos para cá.
Olha que ninguém o diria.
Por momentos ela deixou-se disfrutar da alegria de estar junto dele. Depois voltou-se e encarou-o.
Sam, um restinho de afeição, não é propriamente o que ambiciono. Então por que não...
Os braços dele apertaram-na. Os seus lábios procuraram os dela. Durante muito tempo ali ficaram, recostados contra a janela.
Finalmente Pat afastou-se. Olharam um para o outro.
Pat disse ele, tudo o que disseste ontem à noite é verdade, excepto uma coisa. Não se passa absolutamente nada entre mim e Abigail. Não podes dar-me um tempinho
para eu me encontrar? Não me tinha apercebido de que me tinha comportado como um zombie até te ter encontrado esta semana.
Ela tentou sorrir.
Pareces esquecer que eu também preciso de algum tempo. Os esconderijos da memória não são tão simples quanto eu julgava.
Achas que estás a conseguir reconstituir aquela noite? Talvez, mas as impressões não são muito agradáveis. Começo a acreditar que pode ter sido a minha mãe quem
enlouqueceu naquela noite, e isso ainda é mais duro.
203
Por que pensas isso?
Não é a razão por que penso que interessa, mas sim a razão por que isso possa ter acontecido. Bem, mais um dia e "a vida de Abigail Jennings" vai ser apresentada
ao mundo. E nessa altura vou começar a fazer investigações a sério. Só gostava que isto não tivesse sido tudo tão precipitado, Sam, há muita coisa que não condiz.
E não me interessa o que Luther Pelham pensa. Aquele segmento sobre o acidente com o avião vai rebentar no nariz de Abigail. Catherine Graney não estava a brincar.
Declinou o convite dele para jantar.
Este foi um dia horrível. Levantei-me às quatro e amanhã acabamos as gravações. Vou comer uma sanduíche e às nove horas estarei na cama.
À porta ele agarrou-a uma vez mais.
Quando eu tiver setenta anos, tu terás quarenta e nove.
E quando tu tiveres cento e três, eu terei oitenta e dois. Investiga o Toby e diz-me quando souberes alguma coisa de Eleanor Brown, está bem?
Claro.
Quando Pat saiu, Sam telefonou a Jack Carlson, e rapidamente lhe disse o que Pat lhe contara. Jack soltou um assobio.
Queres dizer que esse tipo voltou a atacar? Sam, tens aí um maluco. Claro que podemos investigar esse Toby. Faz-me um favor. Arranja-me uma amostra da letra dele,
está bem?
35
O detective Barrott era simpático. Acreditou que ela dizia a verdade, mas o mais velho mostrou-se hostil. Repetia sem cessar as mesmas perguntas. Como podia ela
confessar que tinha setenta mil dólares, se nunca os tinha visto?
Ficara zangada com Patricia Traymore por esta ser a responsável pelo programa que a tinha levado a entregar-se? Não, claro
204
que não. Primeiro, tinha medo, e, depois, chegara à conclusão de que não se podia esconder por mais tempo e ficara satisfeita por tudo isto ir acabar.
Sabia onde vivia Patricia Traymore? Sim, o pai tinha-lhe dito que Patricia vivia na casa Adams, em Georgetown. Mostrara-lhe a casa uma vez. Ele seguiu-a na ambulância
do hospital de Georgetown quando a tragédia ocorrera. Assaltar a casa? Claro que não? Como seria possível? Na cela, sentou-se na beira do catre, perguntando-se como
pudera pensar que tinha força suficiente para regressar àquele mundo. As barras de ferro, a promiscuidade insultante do quarto de banho aberto, a sensação de prisão,
a depressão, eram como um nevoeiro negro que começava a envolvê-la.
Deixou-se ficar ali sentada e perguntou-se onde teria ido o pai. Parecia impossível que eles sugerissem que o pai era capaz de fazer mal a alguém deliberadamente.
Era o homem mais bondoso que conhecera. Mas tornara-se extremamente nervoso após a morte de Mrs. Gillespie. Esperava que ele não ficasse aborrecido por ela se ter
entregado. Prendê-la-iam de qualquer maneira. Tinha a certeza de que o detective Barrott tencionara investigá-la.
Teria o pai ido embora? Provavelmente. Eleanor pensou nas muitas vezes que ele tinha mudado de emprego.
Onde estaria agora?
Arthur jantou cedo numa cafetaria da Rua 14. Escolheu estufado de carne, tarte de limão merengada e café. Comeu lenta e cuidadosamente. Era importante que comesse
bem. Poderiam passar vários dias até voltar a comer uma refeição quente.
Os seus planos estavam feitos.
Após o escurecer iria a casa de Patricia Traymore. Entraria pelas janelas do andar de cima. Esconder-se-ia no armário do quarto de hóspedes. Levaria latas de água
tónica. Ainda tinha no bolso um chocolate dinamarquês e dois pãezinhos do pequeno-almoço. Seria melhor levar também algumas latas de sumo. E talvez pão de centeio
e manteiga de amendoim. Com tudo isto aguentar-se-ia até ao final do programa, na noite seguinte.
Teve de gastar noventa dos seus preciosos dólares numa televisão em miniatura. Assim poderia ver o programa em casa de Patricia Traymore.
205
A caminho de casa dela compraria na farmácia comprimidos de cafeína. Não podia correr o risco de falar durante o sono. Provavelmente ela não ouviria nada no seu
quarto, mas não valia a pena arriscar.
Quarenta minutos depois encontrava-se em Georgetown, a duas ruas de distância da casa de Patricia Traymore. Toda a zona se encontrava mais calma do que ele gostaria.
Agora que as compras de Natal tinham acabado, um estranho dava muito mais nas vistas. A polícia até podia andar a vigiar a casa de Miss Traymore. Mas o facto de
a casa dela ficar na esquina, ajudava: a casa por detrás da dela estava às escuras.
Arthur deslizou para o pátio da casa às escuras. A sebe de madeira que separava os pátios traseiros não era muito alta. Deixou cair o saco das compras sobre a sebe,
certificando-se de que caía sobre um monte de neve e, depois, trepou com facilidade. Esperou. Não se ouvia um som; a casa estava totalmente às escuras. O carro de
Miss Traymore não estava estacionado. Era difícil subir à árvore com o saco das compras atrás. O tronco estava gelado, e ele tinha dificuldade em se agarrar. Sentia
o frio através das luvas. Custou-lhe a abrir a janela. Quando entrou no quarto, em silêncio, o soalho estalou audivelmente.
Durante alguns terríveis minutos, ficou junto à janela, pronto a saltar cá para fora, descer a árvore e fugir. Mas só havia silêncio.
Começou a arrumar o seu esconderijo no armário. Para sua satisfação verificou que as prateleiras não estavam presas. Se as separasse um bocadinho, teria muito mais
espaço atrás.
Cuidadosamente começou a instalar-se. Escolheu um cobertor pesado e colocou-o no chão. Era suficientemente grande para fazer de saco-cama; arrumou o aparelho de
TV e os mantimentos. Havia quatro almofadas enormes na prateleira de baixo.
Passados minutos estava instalado. Agora tinha de fazer algumas explorações.
Infelizmente ela não deixara nenhuma luz acesa. Isso queria dizer que teria de utilizar uma lanterna, apontando-a ao chão, para que não se visse o reflexo pela janela.
Experimentou várias vezes o caminho entre o quarto de hóspedes e a sala. Tentou o soalho e descobriu o local onde estava.
206
Levou quinze segundos a ir do seu armário até ao quarto de Pat. Entrou e observou a cómoda. Nunca vira objectos tão bonitos. O pente, o espelho e as escovas eram
debruados a prata. Retirou a tampa ao frasco de perfume e inalou a suave fragrância.
Depois foi até ao quarto de banho, reparou na camisa de dormir pendurada atrás da porta e tocou-lhe. Zangado, pensou que aquele era o tipo de roupa que Glory apreciaria.
Teria a polícia ido ao escritório de Glory para a interrogar? A esta hora já devia estar em casa. Queria falar com ela. Passou pela cama, encontrou o telefone na
mesinha-de-cabeceira e discou o número. Ao quarto toque começou a franzir o sobrolho. Ela falara em entregar-se à polícia, mas não o iria fazer depois de lhe ter
prometido que esperaria. Não, provavelmente estaria deitada na cama, a tremer, à espera de ver se a sua fotografia seria exibida no programa. Poisou o auscultador
mas ficou sentado na cama de Pat. Já tinha saudades de Glory. Sentia profundamente o silêncio da casa. Mas sabia que, em breve, as suas vozes se lhe reuniriam.
36
Foi óptimo, senadora disse Luther. Desculpe ter-lhe pedido para mudar de roupa, mas queremos dar a imagem de um dia de trabalho, por isso, convinha o mesmo fato
à entrada e à saída da casa.
Está bem. Eu devia ter pensado nisso disse Abigail sucintamente.
Encontravam-se na sala de jantar. Os elementos da equipa arrumavam o equipamento. Toby percebeu que Abigail não tencionava oferecer uma bebida a Pelham. Só queria
ver-se livre dele.
Luther recebeu a mensagem.
Despachem-se disse para os outros. Depois, sorriu, bajulador. Sei que foi um dia muito longo para si, Abigail. Só mais uma sessão no estúdio amanhã, e acaba-se.
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Esse será o momento mais feliz da minha vida.
Toby desejou que Abigail se descontraísse. Tinham dado um passeio e passado várias vezes pela mansão do vice-presidente. Abby até gracejara: "Imaginas o que os jornalistas
diriam se me vissem andar aqui às voltas?"
Mas, assim que a equipa de filmagens chegara, tornara a ficar tensa. Pelham vestiu o casaco.
O presidente convocou uma conferência de Imprensa para amanhã às nove da noite. Tenciona ir lá, Abigail!
Acho que serei convidada respondeu ela.
Isso é óptimo. O programa será exibido entre as seis e meia e as sete, portanto, não haverá sobreposição para os espectadores.
Tenho a certeza de que toda a Washington está a tremer de excitação disse Abigail. Luther, estou mesmo muito cansada.
Claro. Desculpe-me. Até amanhã. Às nove horas, se concordar.
Mais um minuto e eu teria dado em maluca disse Abigail, quando ela e Toby ficaram finalmente sozinhos. E quando penso que tudo isto é desnecessário.
Não, não é desnecessário, senadora disse Toby, tranquilizador. Ainda tem de ser confirmada pelo Congresso. Claro que vai ter a maioria, mas seria bonito se houvesse
muitas pessoas a mandar telegramas. E o programa pode provocar isso.
Nesse caso valerá a pena.
Abby, precisa de mim para hoje à noite?
Não, vou-me deitar cedo e ler até adormecer. Foi um longo dia.
Ela sorriu e ele apercebeu-se de que ela começava a descontrair-se.
Qual é a criada agora? Ou é algum jogo de póquer?
Pat chegou a casa às seis e meia. Acendeu as luzes da entrada, mas parte das escadas permaneceram às escuras.
"As palavras zangadas do pai ecoaram-lhe subitamente nos ouvidos: Não devias ter vindo. Nessa última noite a campainha tocara com insistência; o pai abrira a porta;
alguém passara por ela; essa pessoa
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olhara para cima por isso ela estava tão assustada; o papá estava zangado e ela tinha medo de que ele a visse."
A mão tremeu-lhe quando se apoiou no corrimão. Não valia a pena ficar perturbada. Estava muito cansada, pois o dia tinha sido muito duro. Iria vestir algo confortável
e arranjar o jantar.
No quarto, despiu-se rapidamente e agarrou no roupão. Depois resolveu que vestia antes o cafetã de veludo castanho. Era quente e confortável. Junto à mesa de toilette
amarrou o cabelo e começou a passar creme pelo rosto. Mecanicamente as pontas dos dedos moveram-se rotativamente pelo rosto, tal como a esteticista lhe ensinara,
pressionando-os contra as têmporas, tocando na ténue cicatriz ao cimo da testa.
A mobília por detrás dela reflectia-se no espelho; os postes da cama pareciam sentinelas. Olhou com atenção para o espelho. Tinha ouvido dizer que se imaginarmos
um ponto na testa e se nos conseguirmos concentrar, nos podemos hipnotizar a nós próprios e recuar ao passado. Durante um minuto concentrou-se no ponto imaginário,
e teve a sensação estranha de se observar a recuar para dentro de um túnel... e parecia-lhe que não estava sozinha. Sentia outra presença. Ridículo. Estava a ficar
pateta. Foi até à cozinha, preparou uma omeleta, café e torradas, que se esforçou por comer.
A cozinha tinha um calor tranquilizante e acolhedor. Ela e os pais deviam ter ali comido algumas vezes. Lembrava-se de estar sentada ao colo do pai, junto àquela
mesa? Verónica mostrara-lhe o último cartão de Natal deles. Estava assinado "Dean, Renée e Kerry". Disse os nomes em voz alta:
Dean, Renée e Kerry. E perguntou-se por que razão a cadência parecia errada.
Passou os pratos por água e colocou-os na máquina de lavar. Serviu de pretexto para adiar o que tinha de ser feito. Tinha de analisar o artigo do jornal e ver se
divulgava alguns factos novos sobre Dean e Renée Adams.
O jornal ainda se encontrava sobre a mesa da biblioteca.
Abrindo-o, fez um esforço para ler todas as linhas do texto. Muito daquilo já ela sabia, mas isso não ajudava a amortecer a dor... a arma tinha impressões digitais
dos dois... Dean Adams
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morrera instantaneamente devido à bala que lhe atingira a testa... Renée Adams não morrera logo...
Uma das colunas dava ênfase aos rumores que os vizinhos tinham deixado no ar durante a festa: que o casamento era infeliz, que Renée tinha insistido com o marido
para sair de Washington, que ela não gostava das recepções constantes, que tinha ciúmes das atenções que o marido despertava noutras mulheres...
Aquele comentário de uma vizinha: "Ela estava completamente apaixonada por ele e ele tinha cá um olhar matreiro..."
Houvera rumores persistentes de que fora Renée e não Dean quem disparara a arma. Durante o inquérito a mãe de Renée tentara acabar com a especulação.
" Não é nenhum mistério dissera ela. É uma tragédia. Poucos dias antes de ser assassinada, a minha filha disse-me que voltava para casa com Kerry, e que iria pedir
o divórcio e a custódia da filha. Acho que foi a decisão dela que fez despoletar a violência."
"Pode ter razão", pensou Pat. "Lembro-me de tropeçar num corpo. Por que será que tenho a certeza que era o da mãe e não o dele. Mas não tenho a certeza."
Analisou as fotografias informais que ocupavam a maior parte da segunda página. Willard Jennings tinha um ar muito académico. Catherine Graney dissera que ele queria
deixar o Congresso e aceitar a direcção de uma faculdade. E Abigail fora uma mulher espectacularmente bela. Havia um instantâneo misturado com outros. Pat olhou
para ele várias vezes e, depois, colocou a folha do jornal junto do candeeiro.
Era uma fotografia tirada na praia. O pai, a mãe e Abigail encontravam-se num grupo de que faziam parte mais duas pessoas. A mãe estava absorvida com a leitura de
um livro. Os dois estranhos estavam deitados sobre as toalhas, de olhos fechados. A câmara apanhara o pai e Abigail olhando um para o outro. Não havia equívocos
no ar de intimidade.
Havia uma lupa na secretária. Pat colocou-a sobre a fotografia. Aumentada, a expressão de Abigail era de paixão. E os olhos do pai eram meigos, olhando para ela.
As suas mãos tocavam-se. Pat dobrou o jornal. Que queriam dizer as fotografias? Um flirt casual. O pai fora um homem atraente. Abby era, sem dúvida
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alguma, uma viúva muito atraente. Talvez não tivesse passado disso. Como sempre fazia quando ficava perturbada, Pat voltou-se para a música. Acendeu as luzes da
árvore de Natal e, impulsivamente, apagou o candeeiro. Passou os dedos pelas teclas do piano até estes encontrarem as notas suaves da Patética de Beethoven.
Sam fora de novo ele próprio, igual à imagem que ela tinha dele, forte e confiante. Precisava de tempo. Claro que precisava. Também ela. Dois anos atrás tinham-se
sentido tão culpados devido à sua ligação. Agora podia ser diferente.
"Seu pai e Abigail Jennings! Teriam tido alguma ligação? Teria ela sido apenas mais uma numa série? O pai podia ter sido um mulherengo. Por que não? Era bastante
atraente, ao estilo dos novos políticos em ascensão, bastava olhar para os Kennedy... Eleanor Brown. Teria o advogado conseguido libertá-la sob caução? Sam não telefonara."
"Está inocente", pensou Pat. "Tenho a certeza."
O Liebertraum, de Liszt. Era o que tocava agora. E o Beethoven. Escolhera inconscientemente as duas peças na outra noite. Tê-las-ia tocado a mãe ali? Ambas as melodias
eram tristes e amarguradas.
" Renée, ouve. Pára de tocar e ouve.
" Não posso. Deixa-me em paz."
"As vozes: a dele perturbada e urgente, a dela, desesperada."
"Discutiam tanto", pensou Pat. "Depois das discussões ela costumava tocar durante horas. Mas, às vezes, quando se sentia feliz, sentava-me no banco ao seu lado."
" Não, Kerry, assim não. Põe os teus dedos aqui... Ela apanha as notas quando eu a trauteio. Tem ouvido."
Pat sentiu os seus dedos tocarem as notas de abertura do Opus 30, número 3 de Mendelsohn, outra peça que sugeria sofrimento. Levantou-se. Havia demasiados fantasmas
naquela casa.
Sam telefonou quando ela se preparava para subir de novo as escadas.
Não querem libertar Eleanor Brown. Têm medo de que ela desapareça. Parece que o homem com quem ela tem vivido é suspeito de algumas mortes num lar de repouso.
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Sam, não suporto a ideia de ver aquela rapariga numa cela.
Frank Crowley, o advogado que mandei, acha que ela diz a verdade. De manhã vai arranjar a transcrição do julgamento. Faremos o que pudermos por ela, Pat. Receio
que não possa ser muito... Como estás?
Prestes a ir deitar-me.
Está tudo fechado?
Bem trancado.
Ainda bem, Pat. Pode estar tudo prestes a acabar. Alguns de nós fomos convidados para a Casa Branca, amanhã à noite. O presidente vai fazer uma comunicação importante.
O teu nome consta da lista de jornalistas.
Sam, achas que...
Não sei. Tudo aponta para Abigail, mas o presidente ainda não deu nada a entender. Ainda não foi dada protecção dos Serviços Secretos a nenhum dos candidatos. Acho
que o presidente quer manter o suspense até ao último minuto. Mas seja quem for, nós os dois vamos comemorar.
Suponhamos que não concordas com a escolha dele?
Nessa altura estou-me nas tintas para quem for escolhido. Tenho outras coisas em que pensar. Quero comemorar o simples facto de estar contigo. Quero recuperar os
dois últimos anos. Depois de termos deixado de nos ver, a única forma de ultrapassar as saudades que sentia, era dizer para mim próprio que não teria resultado mesmo
que eu fosse livre. Passado pouco tempo acho que comecei a acreditar nas minhas próprias mentiras.
O riso de Pat foi trémulo. Tentou afastar as lágrimas repentinas.
Desculpas aceites.
Então não quero que desperdicemos mais tempo.
Pensei que precisavas de mais tempo...
Nenhum de nós precisa.
Até a sua voz era diferente, confiante, forte, tal como ela o recordava durante as longas noites em que ficara acordada a pensar nele.
Pat, apaixonei-me por ti naquele dia em Cape Cod. Nada modificará isso. Ainda bem que esperaste por mim.
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Não tive outra hipótese. Oh, meu Deus, Sam, vai ser maravilhoso. Amo-te tanto!
Depois de se terem despedido, Pat deixou-se ficar alguns minutos com a mão no telefone, como se, tocando-lhe, pudesse ouvir de novo cada palavra de Sam. Finalmente,
ainda a sorrir suavemente, começou a subir as escadas. Um estalar de madeira sobressaltou-a. Sabia o que era. Aquela trave de madeira, ao cimo das escadas, que estalava
quando alguém lá passava.
"Não sejas ridícula!", disse para si própria.
Ao cimo das escadas a iluminação era deficiente.
Fez menção de entrar no quarto. Depois, impulsivamente, deu a volta e encaminhou-se para as traseiras da casa. Deliberadamente pisou a trave e ouviu-a estalar. "Juraria
que foi este o som que ouvi." Voltou para o quarto. Os seus pés ecoaram no soalho. O quarto estava abafado.
A porta do quarto de hóspedes não estava bem fechada. Lá dentro estava muito mais fresco. Sentiu uma corrente de ar e dirigiu-se para a janela, que estava aberta.
Tentou fechá-la, mas verificou que o fecho, estava partido.
"É isso, o ar faz que a porta se mova", pensou. Mesmo assim, abriu o armário e olhou para as prateleiras dos cobertores e roupa de cama.
Já no seu quarto despiu-se e enfiou-se na cama.
Era ridículo sentir-se tão nervosa. Pensou em Sam, pensou na vida que iriam viver os dois.
A última impressão antes de adormecer foi de que não estava sozinha. Não fazia sentido, mas estava demasiado cansada para pensar nisso.
Com um suspiro de alívio, Catherine Graney virou o letreiro da loja de "ABERTO" para "FECHADO". Para um dia depois do Natal, o negócio estivera bom. Um cliente do
Texas comprara o par de candelabros Rudolstadt, as mesas de jogo e a carpeta Stouk. Fora uma boa venda.
Catherine desligou as luzes da loja e subiu para o apartamento, com Sligo atrás. Acendera a lareira de manhã. Limitou-se a avivar o lume. Sligo deitou-se no seu
lugar preferido.
Foi até à cozinha e começou a preparar o jantar. Na semana seguinte, quando o jovem George lá estivesse, cozinharia com gosto grandes refeições.
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Mas o que queria naquele momento era uma costeleta com uma salada.
George telefonara-lhe no dia anterior, desejando-lhe um feliz Natal e contando-lhe as novidades.
Fora promovido a major.
" Vinte e sete anos e já major! exclamou ela. Meu Deus, como o teu pai ficaria orgulhoso."
Catherine colocou a carne no grelhador. Mais uma boa razão para não deixar Abigail Jennings conspurcar o nome de George. Trabalhara muito naquilo antes de o enviar
pelo correio.
Insisto em que aproveite o programa para comunicar publicamente que nunca existiu um só indício que provasse ter havido erro do piloto, no acidente que provocou
a morte do seu marido. Já basta de manchar a reputação de George Graneyl É necessário repor a verdade. Se não o fizer, processá-la-ei por difamação, e revelarei
a sua verdadeira relação com Willard Jennings.
Às onze horas viu o noticiário. Às onze e meia Sligo tocou-lhe na mão.
Já sei resmungou ela. Bem, vai lá buscar a trela.
A noite estava escura. Antes houvera estrelas mas, agora, o céu estava cheio de nuvens. A brisa era gelada e Catherine subiu a gola do casaco.
Este passeio vai ser muito rápido disse para Sligo. Havia um caminho que atravessava o bosque junto da casa.
Habitualmente ela e Sligo davam uma volta por ali.
Agora ele empurrava-a para o seu passeio favorito, entre os arbustos e as árvores. Depois deteve-se subitamente e rosnou.
Anda lá disse Catherine, impaciente, só lhe faltava que ele fosse atrás de um rafeiro.
Sligo saltou para a frente. Petrificada, Catherine viu uma mão avançar e agarrar o animal pelo pescoço.
Ouviu-se um ruído horrível, e o corpo inerte de Sligo caiu sobre o chão de neve.
Catherine tentou gritar, mas não saiu nenhum som. A mão que estrangulara Sligo ergueu-se sobre a sua cabeça, e, no instante antes de morrer, Catherine Graney entendeu
finalmente o que acontecera havia muito tempo.
214
37
Na manhã de 27 de Dezembro, Sam levantou-se às sete horas, releu o relatório sobre o acidente que provocara a morte do congressista Willard Jennings, sublinhou uma
frase e telefonou a Jack Carlson.
Como vão as investigações sobre Toby Gorgone?
Estão prontas às onze.
Estás livre para almoçar? Quero mostrar-te uma coisa. Era a frase que tinha transcrito: "O motorista do congressista
Jennings, Toby Gorgone, colocou a bagagem no avião."
Sam queria ler o relatório sobre Toby antes de o discutir. Combinaram encontrar-se ao fim da tarde no Restaurante Gangsplanck. A seguir, Sam telefonou a Frank Crowley,
o advogado que contratara para representar Eleanor Brown, e convidou-o para o mesmo almoço.
Consegue trazer consigo a transcrição do julgamento de Eleanor Brown?
Vou levá-la, Sam.
Sam serviu-se de uma chávena de café e ligou o rádio da cozinha. O noticiário estava quase no fim. O meteorologista prometeu um dia solarengo. A temperatura iria
estar perto dos trinta graus negativos. E, depois, voltaram a anunciar as principais notícias, incluindo o facto de ter sido encontrado o corpo de uma antiquária,
Mrs. Catherine Graney, num bosque perto de sua casa. Tinham partido o pescoço ao cão dela. A polícia pensava que o animal morrera a tentar defendê-la.
Catherine Graney morta! Logo quando se preparava para fazer rebentar um escândalo envolvendo Abigail.
Não acredito em coincidências disse Sam, em voz alta. Não acredito!
Durante o resto da manhã esteve preocupado. Pegou no telefone várias vezes para falar para a Casa Branca, mas de todas as vezes acabou por desistir. Não tinha provas
absolutamente nenhumas de que Toby Gorgone fosse mais alguma coisa do que aparentava, o motorista devotado de Abigail. Mesmo que Toby fosse
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culpado do crime, ele não tinha provas absolutamente nenhumas de que Abigail tivesse conhecimento das suas actividades.
O presidente anunciaria a nomeação do vice-presidente nessa noite, disso Sam estava certo. Mas até ao processo de confirmação, faltavam algumas semanas. Haveria
tempo para levar a cabo uma investigação. E, desta vez, certificar-se-ia de que não ficariam coisas por apurar.
Sam tinha a sensação de que Toby era o responsável pelas ameaças a Pat. Se tivesse algo a esconder, não quereria vê-la desenterrar o passado.
Se se descobrisse que era ele...
Sam cerrou os punhos. Já nem se lembrava que ia ser avô.
Abigail torceu as mãos nervosamente. Devíamos ter saído mais cedo disse ela. Agora apanhamos o trânsito todo. Despacha-te.
Não se preocupe, senadora disse Toby, tranquilizador. Não podem começar a gravar sem si. Dormiu bem?
Passei a noite a acordar. Só pensava na minha eleição como vice-presidente dos Estados Unidos. Liga o rádio, ouçamos o que dizem sobre mim...
O noticiário da CBS, das oito e meia, estava a começar.
Persistem os rumores de que a razão por que o presidente convocou uma conferência de Imprensa para esta noite, é para anunciar a escolha da senadora Abigail Jennings
ou da senadora Claire Lawrence para vice-presidente, a primeira mulher a ter tal honra.
E a seguir:
Numa coincidência trágica, soube-se que Mrs. Catherine Graney, a antiquária de Richmond, foi assassinada quando passeava o cão Ela era a viúva do piloto que morreu,
há vinte e sete anos, num acidente de avião, juntamente com o congressista Willard Jennings. Abigail Jennings começou a sua carreira política quando foi nomeada
para substituir o marido...
Toby!
Ele olhou pelo espelho retrovisor. Abigail pareceu chocada.
Toby, que horror!
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Sim, é horrível! disse, vendo a expressão de Abigail endurecer.
Nunca esquecerei que a mãe de Willard foi ter com aquela mulher e esperou ao lado dela quando o avião começou a ficar atrasado. Nem sequer telefonou a saber como
eu estava.
Bem, agora estão juntas, Abby. Olhe, o trânsito está a andar mais depressa. Chegaremos ao estúdio mesmo a tempo.
Enquanto se dirigiam ao parque de estacionamento privativo, Abigail perguntou calmamente:
Que fizeste na noite passada, Toby? Jogaste póquer ou tiveste um encontro com uma rapariga?
Estive com aquela dama que trabalha no Steakburger e passei a noite com ela. Porquê? Anda a investigar-me? Quer falar com ela, senadora? perguntou, indignado.
Não, claro que não. Durante o teu tempo podes estar com ela à vontade. Espero que te tenhas divertido.
Diverti-me. Ultimamente não tenho tido muito tempo livre para mim.
Eu sei. Tenho-te dado muito trabalho disse, em tom conciliador. É que...
Quê, senadora?
Nada... nada...
Às oito horas Eleanor foi levada para o detector de mentiras. Dormira simplesmente bem. Recordou aquela primeira noite numa cela, havia onze anos, em que começara
subitamente a gritar.
"Você exprimiu uma claustrofobia aguda nessa noite", dissera-lhe um psiquiatra, após o colapso nervoso. Mas agora sentia uma curiosa tranquilidade por não ter de
continuar a fugir. Seria possível o pai ter morto aquelas velhotas? Eleanor procurou na sua memória uma situação em que ele não tivesse sido delicado ou gentil.
Não encontrou nenhuma.
Por aqui.
A matrona levou-a para uma sala pequena perto da zona das celas. O detective Barrott lia o jornal. Ficou satisfeita por o ver. Ele não a tratava como uma mentirosa
qualquer. Olhou para ela e sorriu.
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Mesmo quando outro homem entrou e a ligou ao detector, não começou a gritar como acontecera da outra vez. Em vez disso, sentou-se na cadeira, segurando a boneca
com embaraço, e perguntou se poderia ficar com ela. Não reagiram como se fosse um pedido louco. Frank Crowley, aquele homem simpático com ar paternal, entrou. No
dia anterior ela tentara explicar-lhe que não poderia pagar-lhe mais que os quinhentos dólares que poupara, mas ele dissera-lhe para não se preocupar.
Eleanor, ainda pode recusar-se a fazer este teste disse ele, mas ela assentiu.
Primeiro, o homem que lhe fez o teste, perguntou coisas simples e até patetas, sobre a sua idade, educação e até pratos preferidos. Depois, passou para aquelas que
ela receava ouvir.
Já roubou alguma coisa?
Não.
Nem mesmo quando era miúda, uma coisa insignificante, como um lápis ou um bocado de giz?
A última vez que lhe tinham feito aquela pergunta começara a soluçar: "Não sou uma ladra. Não sou uma..." Mas agora não estava a ser tão difícil. Fez de conta que
estava a falar com o detective Barrott e não com aquele estranho, brusco e impessoal.
Nunca, nunca roubei nada na minha vida! disse ela, francamente. Nem sequer um lápis ou um pedaço de giz. Não seria capaz de roubar nada a ninguém.
E o frasco de perfume quando andava no liceu?
Não o roubei... Juro. Esqueci-me de o pagar.
Costuma beber? Todos os dias?
Oh, não. Só bebo vinho às vezes, e pouco. Faz-me sono. Reparou que o detective Barrott sorria.
Roubou os setenta e cinco mil dólares do gabinete da campanha da senadora Jennings?
Da outra vez, durante o teste, ficara histérica com aquela pergunta. Agora limitou-se a responder:
Não, não roubei.
Então como é que o dinheiro foi parar ao seu apartamento? As perguntas continuaram:
Mentiu quando disse que Toby Gorgone lhe telefonara?
Não, não menti.
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Tem a certeza de que era Toby Gorgone?
Na altura pensei que fosse; se não era, parecia. Depois começaram as perguntas incríveis:
Sabia que Arthur Stevens é suspeito da morte de uma das suas doentes, uma Mrs. Anita Gillespie?
Quase perdeu o controlo.
Não, não sabia. Nem posso acreditar.
Depois lembrou-se do que ele gritara durante o sono: " Feche os olhos, Mrs. Gillespie! Feche os olhos!"
Acredita que é possível! Estou a ver isso no teste.
Não sussurrou ela. O pai não seria capaz de magoar ninguém, só de ajudar. Ele fica tão triste quando vê um dos seus doentes em sofrimento!
Acha que ele seria capaz de tentar acabar com esse sofrimento?
Não sei o que quer dizer.
Acho que sabe, Eleanor. Arthur Stevens tentou pegar fogo ao lar no dia de Natal.
É impossível!
O choque do que ouvira abalou-a. Horrorizada, olhou para o inquisidor, enquanto este fazia a última pergunta:
Tem alguma razão para suspeitar de que Arthur Stevens é um maníaco homicida?
Durante a noite, de duas em duas horas, Arthur engolia as pílulas de cafeína. Não podia arriscar-se a adormecer e falar alto. Deixou-se ficar sentado no armário,
demasiado tenso para se deitar, fixando o escuro. Fora tão descuidado. Quando Patricia Traymore chegara a casa, ele ouvira-a movimentar-se pela casa. Ouvira-a tomar
duche. Depois ela descera as escadas e ele ouvira a máquina de café a trabalhar. Mais tarde ela começara a tocar piano. Sabendo que podia sair com segurança, saiu
do armário e sentou-se a ouvir a música cá fora.
Foi então que as vozes lhe começaram a falar, dizendo-lhe que quando aquilo acabasse, deveria procurar outro lar onde pudesse continuar a sua missão. Estava tão
concentrado na meditação, que não se apercebera de que a música parara, até ouvir os passos de Patricia Traymore nas escadas. Com a pressa de
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recolher ao seu esconderijo, pisou a trave solta, e ela apercebeu-se de que se passava alguma coisa. Ele nem se atrevera a respirar quando ela abrira a porta do
armário. Mas claro que não lhe ocorrera espreitar atrás das prateleiras.
E, assim, mantivera-se vigilante toda a noite, ouvindo todos os sons, satisfeito quando ela saiu finalmente de manhã, mas com medo de sair do armário por mais de
alguns minutos de cada vez. Poderia entrar a mulher-a-dias e ouvi-lo. Longas horas passaram. Depois as vozes disseram-lhe para ir buscar o roupão castanho de Patricia
Traymore e vesti-lo.
Se ela traísse Glory, ele estaria convenientemente vestido para a punir.
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Pat chegou ao edifício da televisão às nove e trinta e cinco e decidiu tomar café e comer um brioche no drugstore. Não estava preparada para a atmosfera tensa, irritabilidade
e nervos à flor da pele, que sabia a esperavam neste último dia de gravações. Doía-lhe a cabeça e tinha o corpo dorido. Tivera um sono inquieto cheio de pesadelos.
A certa altura chegara a gritar, mas não se lembrava do que tinha dito.
No carro ligara o rádio e ouvira as notícias da morte de Catherine Graney. Não conseguia tirar da cabeça a imagem da mulher, a forma como o seu rosto se iluminara
quando falara do filho, a sua afeição em relação ao velho setter irlandês. Catherine Graney teria levado avante a ameaça de processar a senadora Jennings e a cadeia
de televisão, após o programa ir para o ar. A sua morte acabara com a ameaça. Teria sido vítima acidental de um homicídio? No noticiário tinham dito que ela tinha
ido passear o cão. Como se chamava ele? Sligo? Não era muito natural que um criminoso escolhesse uma mulher acompanhada por um cão tão grande.
220
Pat pôs de lado o brioche. Não tinha fome. Havia apenas três dias que tomara café com Catherine Graney. Agora, aquela mulher atraente e vibrante, estava morta.
Quando chegou ao estúdio, Luther já se encontrava lá, com o rosto congestionado, os lábios exangues e os olhos a girar de um lado para o outro.
Já disse para tirarem essas flores gritou ele. Não me interessa se chegaram agora ou não. Parecem mortas. Ninguém sabe fazer nada de jeito aqui? Essa cadeira não
é suficientemente alta para a senadora!
Então viu Pat.
Vejo que, finalmente, chegaste. Ouviste a notícia sobre a Graney? Temos de refazer o segmento em que Abigail fala sobre a segurança dos transportes. Ela é um bocado
dura em relação ao piloto. É capaz de provocar reacções negativas quando as pessoas descobrirem que a viúva do piloto foi vítima de um crime. Começamos a gravar
dentro de dez minutos.
Pat ficou a olhar para Luther. Catherine Graney fora uma pessoa decente, e aquele homem só estava preocupado com o facto de ter de fazer alterações ao programa.
Sem uma palavra dirigiu-se para o camarim.
A senadora Jennings estava sentada em frente ao espelho, com uma toalha sobre os ombros. A maquilhadora, curiosamente debruçada sobre ela, aplicava-lhe pó sobre
o nariz. Os dedos da senadora estavam fortemente cruzados. A sua saudação foi cordial:
Cá estamos, Pat. Ficará tão satisfeita como eu por ver isto acabado?
Sim, acho que sim, senadora.
A maquilhadora agarrou na lata de laca e testou-a.
Não quero nada disso atirou a senadora. Não quero parecer uma boneca Barbie.
Desculpe disse a rapariga.A maior parte das pessoas... Consciente de que Abigail a observava pelo espelho, Pat evitou deliberadamente qualquer contacto visual.
Há uns pontos que temos de discutir. A voz de Abigail era brusca e profissional. Ainda bem que vamos refazer o segmento sobre a segurança aérea, embora a morte de
Mrs. Graney
222
tenha sido horrível. Mas quero dar mais ênfase à necessidade de melhorar as condições nos pequenos aeroportos. E decidi que deveremos falar mais sobre a minha mãe.
Não vale a pena ignorar a fotografia no Mirror, e o artigo no Tribune de ontem. E deveremos dar ênfase ao meu papel nos assuntos estrangeiros. Preparei algumas perguntas
para você fazer.
Pat pousou a escova que tinha na mão, e voltou-se para a senadora.
Sim?
Quatro horas mais tarde, comendo sanduíches e bebendo café, um pequeno grupo assistia na sala de projecções à gravação já completa. Abigail estava na primeira fila,
rodeada por Luther e Philip. Pat estava sentada várias filas atrás com o assistente do realizador. Na última fila, Toby cumpria a vigilância solitária.
O programa abria com Pat, Luther e a senadora sentados em semicírculo.
Boa noite e bem-vindos ao primeiro programa da série As Mulheres no Governo...
Pat estudou-se criticamente. A sua voz era mais brusca que o habitual. Havia algo na sua postura que sugeria tensão. Luther estava totalmente à vontade e, no conjunto,
a abertura parecia muito bem. Ela e Abigail complementavam-se. O vestido de seda azul de Abigail fora uma boa escolha; exprimia feminilidade sem frivolidade. O seu
sorriso era caloroso, os seus olhos brilhantes. A sua reacção à apresentação lisonjeadora não tinha vestígios de vaidade. Discutiram a sua posição como senadora
por Virgínia.
É um trabalho muito exigente e gratificante...
A montagem de fotografias em Apple Junction. A fotografia de Abigail com a mãe. A voz de Abigail a tornar-se tensa:
A minha mãe enfrentou o mesmo problema que muitas mães trabalhadoras enfrentam hoje. Ficou viúva quando eu tinha seis anos. Não quis deixar-me sozinha e, então,
arranjou emprego como governanta. Sacrificou uma carreira como gerente de hotel para estar junto de mim quando regressava da escola. Éramos muito unidas. Preocupava-se
com a questão do seu peso. Tinha um problema glandular. Acho que muita gente compreenderá.
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Quando eu quis que ela fosse viver com Willard e comigo, ela riu-se e disse: "Nem pensar. A montanha não vai para Washington." Era uma mulher muito querida.
Aqui a voz de Abigail tremeu. E, a seguir, falou no concurso de beleza.
Fi-lo pela minha mãe.
Pat viu-se envolvida pela magia de Abigail. Até a cena em que a senadora apelidara a mãe de tirana gorda lhe parecia irreal agora. "Mas é real", pensou ela. "Abigail
Jennings é uma actriz consumada."
A imagem da recepção e da primeira campanha.
As perguntas de Pat.
Senadora, a senhora foi uma noiva jovem, completava a faculdade e ao mesmo tempo ajudava o seu marido na conquista de um lugar no Congresso. Diga-nos como se sentiu.
A resposta de Abigail:
Foi maravilhoso! Eu estava muito apaixonada. Sempre me tinha imaginado como secretária de alguém num serviço público. Assisti a tudo desde o princípio. Sabe, embora
um Jennings sempre tivesse ocupado um lugar, a luta para a eleição de Willard foi dura. Na noite em que soubemos que Willard tinha sido eleito... nem consigo descrever.
Toda a vitória eleitoral é importante, mas a primeira é inesquecível.
A imagem dos Kennedy na festa de anos de Willard JenningsAbigail disse:
Éramos todos tão novos... Havia três ou quatro casais que costumavam juntar-se regularmente, e ficávamos horas a conversar. Estávamos todos muito certos de que podíamos
ajudar a mudar o mundo e tornar a vida melhor. Agora já não existem esses novos estadistas. Eu sou a única no Governo, e muitas vezes penso nos planos que Willard,
Jack e os outros tinham.
"E o meu pai era um dos outros", reflectiu Pat, enquanto olhava para o écran.
Havia algumas cenas genuinamente comoventes.
Maggie no gabinete de Abigail, agradecendo-lhe por ter arranjado um lugar para a mãe num lar, uma jovem mãe agarrada à filha de três anos, contando-lhe como o ex-marido
lhe raptara a filha.
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Ninguém me ajudava. Ninguém. E então alguém me disse: "Telefona à senadora Jennings. Ela resolve as coisas."
"Lá isso resolve", concordou Pat.
Depois, com Luther a entrevistá-la, Abigail falou do desvio dos fundos da campanha.
Estou muito satisfeita por Eleanor Brown se ter entregado para completar a sua dívida para com a sociedade. Só desejo que ela seja completamente honesta e devolva
o que resta do dinheiro ou então diga com quem o gastou.
Algo fez Pat voltar-se para trás. Na semiescuridão, o corpanzil de Toby mexeu-se na cadeira, as mãos apoiando o queixo, o anel de ónix a brilhar no dedo. A sua cabeça
assentia em aprovação. Rapidamente Pat voltou-se para a frente, evitando encará-lo.
Luther interrogou Abigail sobre o seu empenhamento na segurança aérea
Willard estava constantemente a ser solicitado para falar em faculdades, e aceitava sempre que podia. Ele dizia que era na faculdade que os jovens amadureciam as
suas posições face ao mundo, face ao Governo. Vivíamos do salário dele e tínhamos de ser cuidadosos. Hoje sou viúva porque o meu marido alugou o avião mais barato
que encontrou... Sabe quantos pilotos da Força Aérea compram aviões em segunda mão e tentam constituir uma linha aérea de fretes de avião? A maior parte deles já
se afastaram do negócio! Não tinham dinheiro para manter os aviões em ordem. O meu marido morreu há vinte e cinco anos, e eu tenho tentado, desde então, acabar com
esses aviões. E sempre colaborei com a Associação dos Pilotos para manter padrões rígidos de segurança.
George Graney não fora mencionado, mas, mais uma vez, estava implícita a causa da morte de Willard Jennings.
"Após todos estes anos Abigail não desiste de nomear o culpado do acidente", pensou Pat
Enquanto se via no écran apercebeu-se de que o documentário ficara como ela sempre o tinha imaginado. Mostrava Abigail Jennings como um ser humano solidário e congressista
dedicada. Essa conclusão não lhe trouxe nenhuma alegria especial.
O programa acabava com Abigail a regressar a casa ao fim do dia, e o comentário de Pat de que, tal como muitos adultos
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sem família, Abigail ia para casa sozinha, e passaria o resto do dia à secretária a abalizar a legislação.
O écran ficou escuro, a sala iluminou-se e todos se levantaram. Pat observou a reacção de Abigail. A senadora voltou-se para Toby. Ele assentiu, aprovadoramente,
e, com um sorriso descontraído, Abigail anunciou que o programa era um êxito.
Olhou para Pat:
Apesar de todos os problemas, você fez um bom trabalho. E utilizou muito bem o meu background. Desculpe ter-lhe dado tantos incómodos. Luther, que é que achas?
Acho que resultou muito bem. E tu, Pat?
Pat reflectiu. Todos estavam satisfeitos, e o final estava tecnicamente bom. Então, que é que a fazia insistir em introduzir uma cena adicional. A carta. Queria
ler a carta que Abigail escrevera a Willard Jennings.
Tenho um problema disse. São os aspectos pessoais que fazem que este programa seja especial. Não devíamos ter acabado com o aspecto profissional.
Abigail ergueu os olhos, impaciente. Toby franziu o sobrolho. Subitamente a atmosfera tornou-se tensa. Ouviu-se a voz do projeccionista.
Que faço?
Passa a última cena disse Luther.
A sala escureceu e foram projectados os dois últimos minutos do programa.
Todos observavam atentamente. Luther foi o primeiro a comentar.
Podemos deixar assim, mas acho que Pat tem razão...
Que bonito disse Abigail. E que tencionam fazer? Daqui a algumas horas tenho de estar na Casa Branca, e não tenciono chegar em cima da hora.
"Conseguirei convencê-la?", perguntou-se Pat. Por qualquer razão queria desesperadamente ler a carta que começava por "Billy querido", e queria apanhar a reacção
espontânea da senadora. Mas Abigail insistira em ver tudo antes de gravarem. Pat tentou falar com voz natural.
Senadora, a senhora foi muito generosa em ter posto à nossa disposição os seus arquivos pessoais. Na última remessa
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que Toby me levou encontrei uma carta que pode dar o toque pessoal que queremos para o final. Claro que pode lê-la antes de gravarmos, mas acho que seria mais espontâneo
se não a lesse. De qualquer modo, se não resultar, podemos acabar com o que temos.
Os olhos de Abigail estreitaram-se. Olhou para Luther.
Leste a carta?
Sim, li. Concordo com Pat. Mas a decisão é sua. Ela voltou-se para Philip e Toby.
Vocês verificaram tudo o que entregámos para possível utilização no programa?
Tudo, senadora.
Ela encolheu os ombros.
Nesse caso... certifiquem-se só de que não vou ler nenhuma carta a dizer quem foi Miss Apple Junction a seguir a mim.
Todos se riram.
"Há qualquer mudança nela", pensou Pat. "Está muito mais segura de si."
Filmamos dentro de dez minutos disse Luther.
Pat apressou-se em direcção ao camarim. Limpou com pó as gotas de transpiração que tinham ficado na testa.
"Que se passa comigo?", perguntou.
A porta abriu-se e Abigail entrou. Abriu a bolsa e retirou uma caixa de pó-de-arroz.
Pat, o programa está muito bom, não está?
Sim, está.
Eu era contra ele. Tinha um mau pressentimento. Você fez um bom trabalho, fazendo-me parecer uma boa pessoa. Vendo a gravação, gostei mais de mim.
Ainda bem.
Aqui estava de novo a mulher que ela tanto admirava. Alguns minutos mais tarde voltaram ao estúdio. Pat tapou a carta que ia ler com a mão.
Luther começou a falar:
Senadora, queremos agradecer-lhe por ter partilhado connosco o seu tempo, de forma tão pessoal. Aquilo que conseguiu, constitui, sem dúvida, inspiração para todos
e um exemplo de como da tragédia podem sair coisas boas. Quando preparávamos
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este programa, forneceu-nos alguns papéis pessoais. Entre eles encontrámos uma carta que escreveu ao seu marido, o congressista Willard Jennings. Acho que esta carta
mostra bem a jovem que foi e a mulher que se tornou. Posso autorizar Pat a lê-la?
Abigail assentiu com a cabeça com uma expressão interrogativa.
Pat desdobrou a carta. Começou a lê-la lentamente.
"Billy querido."
A sua garganta apertou-se. Fez um esforço para continuar. De novo sentiu a boca seca.
Ergueu os olhos. Abigail olhava-a sem pinta de sangue.
"Foste esplêndido hoje à tarde. Estou tão orgulhosa de ti. Amo-te tanto. Anseio por uma vida ao teu lado, trabalhando contigo. Oh, meu querido, nós os dois vamos
fazer a diferença neste mundo."
Luther interrompeu:
Esta carta foi escrita a 13 de Maio, e o congressista Willard Jennings morreu no dia 20. Willard Jennings morreu, e a senhora, sozinha, fez a diferença neste mundo.
Senadora Abigail Jennings, obrigado!
Os olhos da senadora brilhavam. Um sorriso terno bailava-lhe nos lábios. Baixou a cabeça, e os seus lábios articularam a palavra "obrigada".
Cortar! disse o realizador. Luther deu um salto.
Senadora, foi perfeito. Toda a gente...
Parou a meio da frase enquanto Abigail se lançava para a frente e arrancava a carta a Pat.
Onde arranjou isso? gritou. Que está a tentar fazer-me?
Senadora, já lhe disse que podemos não a utilizar protestou Luther.
Pat olhou para Abigail enquanto o rosto desta se contorcia numa máscara de fúria e de dor. Onde é que vira aquela expressão naquele rosto?
Um vulto corpulento passou rapidamente por ela. Toby abanou a senadora, quase gritando:
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Abby, controle-se. Este foi um grande final para o programa. Abby, não faz mal ler às pessoas a última carta que escreveu ao seu marido.
A... minha... última... carta? Abigail ergueu uma mão para ocultar o rosto, como se pudesse alterar a expressão.Claro... desculpem... É que Willard e eu passávamos
a vida a escrever esses bilhetes um ao outro... Estou tão satisfeita por terem encontrado... esse último.
Pat ficou imobilizada.
"Billy querido. Billy querido..."
As palavras tinham a cadência do bater de um tambor, soando-lhe na cabeça. Agarrando-se aos braços da cadeira ergueu os olhos e viu o olhar enraivecido de Toby.
Encolheu-se, aterrorizada.
Voltou-se para Abigail, e, juntamente com Luther e Phil, acompanhou-a para fora do estúdio. Um a um, os flashes apagaram-se.
Ei, Pat! chamou o operador de câmara. Isto é o final não é?
Por fim Pat conseguiu levantar-se.
É o final, é concordou.
39
Sempre que Sam tinha um problema, dar um passeio era uma forma de aclarar as ideias. Foi por isso que decidiu caminhar alguns quilómetros, do seu apartamento até
à parte sul. O restaurante Gang Plank ficava no canal Washington e, enquanto se aproximava, observava o padrão desigual dos telhados brancos. Cape Cod. Nuset Beach.
Pat caminhando ao seu lado, o cabelo ondulando ao vento, o braço enfiado no seu, a incrível sensação de liberdade, como se só existissem os dois, o céu, a praia
e o oceano.
"No próximo ano voltaremos", prometeu a si mesmo.
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O restaurante parecia um barco ancorado na doca. Atravessou a ponte apreciando a sensação de ondulação.
Jack Carlson já estava sentado numa mesa junto à janela. Havia vários cigarros esmagados no cinzeiro à sua frente, e bebia um Perrier. Sam desculpou-se pelo atraso.
Eu é que vim cedo disse Jack. Era um homem magro, de cabelo grisalho e olhos brilhantes e inquisidores. Ele e Sam eram amigos havia mais de vinte anos.
Sam encomendou um martini com gim.
Talvez isto me acalme, ou então me levante o moral explicou, tentando sorrir. Sentiu os olhos de Jack analisando-o.
Já te vi com melhor aspecto comentou Jack.
Sam, qual foi a razão que te levou a investigar Toby Gorgone?
Só um palpite disse Sam, ficando tenso. Encontraste alguma coisa de interessante?
Acho que sim.
Olá, Sam.
Frank Crowley, com o rosto habitualmente pálido, encarnado devido ao frio, e os cabelos em desalinho, juntou-se-lhes.
Apresentou-se a Jack, ajustou os óculos, abriu a pasta e retirou um espesso sobrescrito.
Tive sorte em conseguir cá chegar disse. Comecei a ler a transcrição do julgamento e quase me ia esquecendo das horas. Um vodca-martini muito seco pediu ele ao empregado
que se aproximava. Sam, tu deves ser o único que conheço que ainda consegue beber martini com gim. Sem esperar por resposta, continuou: Os Estados Unidos versus
Eleanor Brown. É uma leitura interessante e leva-nos a uma questão muito simples: qual o membro da família oficial da senadora Jennings que mentiu: Eleanor ou Toby?
Eleanor fez a sua própria defesa. Um grande erro. Começou a falar do pequeno furto na loja e o advogado de acusação fez um estardalhaço que até parecia que ela tinha
assaltado o Fort Knox. O testemunho da senadora também não ajudou nada. Falou de mais em dar a Eleanor uma segunda oportunidade. Assinalarei as páginas mais relevantes
concluiu, entregando as folhas a Carlson.
Jack retirou um sobrescrito do bolso.
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Aqui está o que te interessava sobre Gorgone, Sam.
Apple Junction: suspeito de furto de carro. A perseguição da polícia resultou na morte de três pessoas. Não houve condenação.
Apple Junction: suspeito de jogo ilícito. Não houve condenação.
Nova Iorque: suspeito de colocar uma bomba num automóvel, provocando a morte de um agiota. Não houve condenação. Pensa-se que girava na órbita da Mafia.
Pode ter pago dívidas de jogos, fazendo uns trabalhinhos para eles.
Outro facto relevante: aptidões mecânicas excepcionais.
Um currículo muito limpo disse Sam, sarcasticamente.
Enquanto comiam sanduíches de carne, discutiram, compararam e avaliaram a folha sobre Toby Gorgone, a transcrição do julgamento de Eleanor Brown, o resultado do
inquérito ao acidente de avião, e o assassínio de Catherine Graney. Quando o café foi servido, já tinham, separada e juntamente, chegado a possibilidades perturbadoras.
Toby era um perito em mecânica, que podia ter colocado uma mala no avião de Jennings, poucos minutos antes de este ter levantado voo. E o avião despenhara-se em
circunstâncias misteriosas. Toby era um jogador que podia ter dívidas na altura em que os fundos da campanha tinham desaparecido.
Quer-me parecer que a senadora Jennings e este tipo vão trocando favores comentou Crowley. Ela fornece-lhe álibis, e ele puxa a brasa à sardinha dela.
Não posso acreditar que Abigail Jennings tenha mandado deliberadamente uma jovem para a prisão disse Sam. É claro que não acredito que ela tenha sido cúmplice na
morte do marido.
Apercebeu-se de que sussurravam. Falavam de uma mulher que dentro de poucas horas poderia ser nomeada vice-presidente dos Estados Unidos. O restaurante começava
a esvaziar-se. Os comensais, a maior parte deles pessoas do Governo, apressavam-se a voltar aos seus locais de trabalho. Provavelmente, durante o almoço, todos eles
deviam ter especulado sobre a conferência de Imprensa dessa noite.
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Sam, eu já vi dúzias de tipos como este Toby disse Jack.
A maior parte deles a trabalhar para a Mafia. São muito delicados sem chefes. Abrem-lhes o caminho e tomam conta deles. Talvez a senadora Jennings não estivesse
envolvida nas actividades de Toby. Mas repara: digamos que Toby sabia que Willard Jennings queria desistir do seu lugar no Congresso e divorciar-se de Abigail. Jennings
só por ele não valia cinquenta mil dólares. Era a mãe quem tinha o dinheiro. Por isso Abigail teria de sair da cena política, seria abandonada pelo círculo de amigos
de Willard Jennings e voltaria a ser uma ex-rainha de beleza de uma cidade de província. E Toby decidiu que isso não aconteceria.
Estás a sugerir que ela retribuiu bem o favor, protegendo-o na questão do dinheiro? perguntou Sam.
Não necessariamente disse Frank. Olha, lê o depoimento da senadora. Ela admitiu que passaram numa estação de serviço na altura em que Eleanor recebeu a chamada.
O motor estava com um problema e Toby queria verificá-lo. Ela jura que não o teve fora de visão. Mas ela ia fazer um discurso e entreteve-se a estudar os apontamentos.
Se calhar, a certa altura, viu Toby em frente ao carro examinando o motor, logo a seguir, talvez o tenha visto ir buscar qualquer coisa à mala. Quanto tempo demora
a ir a uma cabina discar um número e deixar uma mensagem de dois segundos? Eu teria arrasado esse depoimento. Mas, mesmo partindo do princípio de que estamos certos,
não entendo a razão por que Toby escolheu Eleanor.
É fácil disse Jack. Ele sabia dos antecedentes dela. Sabia como ela era sensível. Sem aquele caso, que se arrumou logo, teria havido uma investigação completa do
desvio de fundos. Ele teria sido suspeito e o seu passado seria investigado. Ele é suficientemente esperto para se safar novamente sem condenação, mas a senadora
teria sido pressionada a ver-se livre dele.
Se o que pensamos sobre Toby Gorgone se verificar concluiu Sam. A morte de Catherine Graney torna-se demasiado oportuna, demasiado conveniente para ser acidental.
Se Abigail Jennings for nomeada esta noite pelo presidente
disse Jack. E se ficar provado que o motorista matou a Graney, isso vai provocar um escândalo mundial.
231
Os três homens estavam sentados à mesa, cada um reflectindo sombriamente no possível embaraço para o presidente. Finalmente um quebrou o silêncio.
Se conseguirmos provar que Toby foi o autor daquelas ameaças escritas e o prendermos, deixarei de me preocupar com Pat.
Frank Crowley assentiu para Jack:
E se o teu pessoal arranjar provas suficientes contra ele, Toby poderá ser persuadido a dizer a verdade sobre os fundos da campanha. Digo-te, que se me partiu o
coração ao ver hoje aquela pobre rapariga no detector de mentiras, jurar que nunca tinha roubado nem sequer um pedaço de giz. Ela não parece ter dezoito anos, quanto
mais trinta e quatro. Aquela experiência na prisão quase a matou. Depois do colapso nervoso, um psiquiatra fê-la pintar, no rosto de uma boneca, a maneira como se
sentia. Ainda hoje ela anda com essa boneca. Aquilo até faz arrepios. Parece uma criança espancada!
Uma boneca! exclamou Sam. Ela tem uma boneca! Por acaso será uma boneca Raggedy Ann!
Quando viu o assentimento admirado de Frank, mandou vir mais café.
Acho que estamos a ver tudo ao contrário disse, exausto. Recapitulemos.
40
Toby verteu um Manhattan no copo de cocktail previamente gelado e colocou-o em frente de Abigail.
Beba isso, senadora. Bem precisa.
Toby, onde é que ela foi arranjar aquela carta? Onde?
Não sei, senadora.
Não podia estar entre os papeis que lhe entregaste. Não a voltei a ver depois de a ter escrito. Que é que ela sabe Toby, se ela provar que estive lá naquela noite...
232
Não pode, senadora. Ninguém pode. E o que quer que ela tenha desenterrado não possui provas. Olhe lá, ela até lhe fez um favor. Aquela carta despertou simpatias.
Espere e verá!
Conseguiu, finalmente, acalmá-la da maneira habitual.
Confie em mim. Não se preocupe. Já alguma vez a deixei ficar mal?
Ela acalmou-se um pouco, mas, mesmo assim, continuou numa pilha de nervos. E dentro de algumas horas teria de comparecer na Casa Branca.
Ouça, Abby disse ele. Enquanto eu arranjo qualquer coisa para o chá, quero que beba dois Manhattans. Depois tome um banho quente e durma durante uma hora. A seguir
ponha o seu melhor fato. Esta é a noite mais importante da sua vida.
E ele sabia-o bem. Ela tinha razão para estar perturbada. Carradas de razões. Quando ouvira ler aquela carta levantara-se. Mas assim que Pelham dissera: "O seu marido
morreu uma semana mais tarde", verificou que tudo estava bem. Abby quase tinha deitado tudo a perder. Uma vez mais ele tinha-a impedido de cometer um grande erro.
Abby agarrou no copo.
Corações ao alto disse ela, com um ligeiro sorriso.Toby, daqui a pouco teremos conseguido a vice-presidência!
É verdade, senadora.
Ah, Toby! disse ela. Que teria sido de mim sem ti?
Representante do Estado na Assembleia de Apple Junction.
Oh, claro disse ela, tentando sorrir.
Tinha o cabelo solto, e não parecia ter mais de trinta anos. Era tão magra como qualquer mulher devia ser. Não um saco de ossos, mas elegante.
Toby, parece que estás a pensar. Isso seria novidade. Ele riu-se para ela, contente por a ver animada.
Você é que é a esperta Pensar é consigo! Ela sorveu a bebida rapidamente.
O programa resultou bem?
Estou farto de lhe dizer... não faria sentido continuar a bater na carta. Ela até lhe fez um favor.
Eu sei... é só que...
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O Manhattan começara a fazer efeito. Tinha de arranjar-lhe a comida.
Senadora, descontraia-se. Vou arranjar-lhe qualquer coisa para comer.
Sim, seria uma boa ideia. Toby, já te capacitaste bem de que daqui a algumas horas, vou ser nomeada vice-presidente dos Estados Unidos?
Claro que sim, Abby.
Todos sabemos como o gabinete é exigente. Mas, Toby, se eu fizer um bom trabalho, não serão capazes de me negar o lugar de cima para o topo. É o que tenciono que
aconteça.
Eu sei, senadora.
Toby encheu-lhe de novo o copo.
Vou arranjar-lhe uma omeleta. Depois vai dormir uma boa soneca. Esta é a sua noite.
Toby levantou-se.
Já não conseguia ver ansiedade no rosto dela. Vira-a no dia em que ela soubera que não ganhara a bolsa para Radcliffe. Ela fora ter com ele e mostrara-lhe a carta,
depois, sentara-se num degrau, com a cabeça pendente sobre os joelhos. Tinha dezoito anos.
" Toby, quero ir tanto para lá. Não posso apodrecer nesta cidade de merda. Não posso..."
E então ele sugerira-lhe o romance com aquele palerma do Jeremy Saunders...
Tinha-a ajudado também de outras vezes, ajudado a encontrar o seu destino.
E, agora, uma vez mais, alguém tentava estragar-lhe tudo.
Toby foi até à cozinha. Enquanto preparava o jantar, tentou imaginar como seria ver Abby a um passo da presidência.
O telefone tocou. Era Phil.
A senadora está bem?
Está óptima. Estou a preparar-lhe o jantar.
Tenho a informação que querias. Adivinha a quem pertence a casa de Pat Traymore.
Toby ficou à espera.
A Pat Traymore. É proprietária da casa desde os quatro anos.
234
Toby assobiou. Aqueles olhos, aquele cabelo, aquela cor... Por que não tinha visto antes? Podia ter estragado tudo com a sua estupidez.
A voz de Philip era arrastada.
Ouviste? Eu disse...
Ouvi. Não comentes com ninguém. O que a senadora não souber, não a vai magoar.
Passado pouco tempo dirigiu-se ao seu apartamento por cima da garagem. Sob sua indicação, Abigail decidira ver o programa, enquanto descansava no quarto. Às oito
horas ele traria o carro e sairiam em direcção à Casa Branca.
Esperou até o programa ter começado, depois, saiu do apartamento. O seu automóvel, um Toyota negro, encontrava-se estacionado à entrada. Empurrou-o até à estrada.
Não queria que Abby soubesse que ele ia sair. Tinha pouco menos de uma hora e meia para ir a casa de Pat Traymore.
Era mais que suficiente.
41
Pat atravessou Massachusetts Avenue, subiu na Rua Q, passou a ponte Buffalo em direcção a Georgetown.
Doía-lhe a cabeça. Sentia-a a latejar.
Encontrava-se agora na Rua 31, fez a curva e estacionou. Subiu os degraus, o vento batendo-lhe no rosto. Os seus dedos procuravam as chaves dentro da mala. Empurrou
a porta e entrou para a calma escuridão do vestíbulo. Num acto reflexo fechou a porta e encostou-se a ela. O casaco pesava-lhe sobre os ombros. Tirou-o. Ergueu a
cabeça, os seus olhos fixaram-se no último degrau das escadas. "Havia ali uma criança sentada. Uma criança com longos cabelos ruivos, o queixo apoiado na palma das
mãos, a expressão curiosa."
"Eu não estava a dormir", pensou ela. "Ouvi a campainha e quis ver quem era. O papá abriu a porta e alguém passou por ele. E estava zangado. Corri de novo para a
cama.
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"Quando ouvi o primeiro tiro não desci logo. Fiquei na cama e gritei pelo papá.
"Mas ele não veio. E ouvi outro estampido e desci as escadas a correr.
"E então..."
Apercebeu-se de que estava trémula e tonta. Entrando na biblioteca serviu-se de um brande e bebeu-o rapidamente. Por que razão a senadora Jennings ficara tão perturbada
com a carta? Ficara em pânico, furiosa e assustada.
Porquê? Não fazia sentido.
"E por que razão fiquei eu tão perturbada ao lê-la? Por que razão me perturba cada vez que a leio?
"O olhar de Toby, como se me odiasse! A forma como gritou com a senadora. Ele não estava a tentar acalmá-la. Estava a tentar avisá-la em relação a qualquer coisa.
Mas o quê?" Sentou-se aninhada no canto do sofá, com os braços a rodearem os joelhos. Costumava sentar-se assim quando o seu pai trabalhava na secretária.
" Podes ficar, Kerry, se prometeres ficar quieta."
"Por que razão a sua memória era agora tão nítida?" Conseguia vê-lo, não como ele aparecia nas fotos e nos filmes, mas como costumava estar naquela sala, encostado
na cadeira, batendo com os dedos na secretária quando se queria concentrar.
O artigo do jornal ainda estava aberto sobre a secretária. Impulsivamente, pegou-lhe e releu-o cuidadosamente. Os seus olhos caíram constantemente sobre a fotografia
do pai e de Abigail Jennings. Havia ali uma intimidade inegável. Um flirt ocasional? Supondo que a mãe erguera os olhos e vira o olhar que tinham trocado? Por que
razão estava com tanto medo? Dormira mal na noite anterior. Um banho quente e um repouso rápido ajudariam a acalmar. Lentamente subiu as escadas em direcção ao quarto.
De novo teve a sensação estranha de estar a ser observada. Sentira o mesmo na noite anterior, antes de adormecer, mas de novo afastou isto do seu espírito.
O telefone tocou no momento em que chegava ao quarto.
Era Lila.
Pat, está bem?... Estou preocupada consigo. Não... Não quero alarmá-la, mas tenho de o fazer. Sinto perigo à sua volta. Não quer vir até aqui e ficar comigo?
236
Lila, acho que a impressão que tem é que eu hoje estou mesmo à beira do colapso, lembrando-me daquela noite. Hoje, aconteceu uma coisa, durante a gravação final,
que pareceu despoletar isto. Mas não se preocupe, seja o que for, eu posso controlar.
Pat, preste atenção. Não deve estar nessa casa.
É a única forma de conseguir reconstituir as coisas.
"Ela está nervosa por causa dos assaltos, disse Pat para consigo, enquanto estava deitada dentro da banheira. "Tem medo de que eu não consiga enfrentar a verdade."
Vestiu o roupão de flanela. Sentando-se à mesinha de toilette, soltou o cabelo e começou a escová-lo. Trouxera o cabelo apanhado atrás durante quase toda a semana.
Sabia que Sam gostava mais dele solto. Nessa noite iria usá-lo assim.
Meteu-se na cama e ligou o rádio. Não tencionava adormecer, mas em breve dormitava. O som do nome de Eleanor despertou-a. O relógio marcava seis e quinze. O programa
iria para o ar dentro de quinze minutos.
Dando como motivo o facto de não aguentar mais o medo de ser reconhecida, Miss Brown entregou-se e foi presa. Continua a protestar a sua inocência, em relação ao
roubo por que foi condenada. Um porta-voz da polícia disse que, durante os nove anos em que violou a liberdade condicional, Miss Brown viveu com o paramédico Arthur
Stevens. Stevens é suspeito de uma série de mortes em lares de repouso, e recai sobre ele neste momento um mandato de captura. Fanático religioso, tem a alcunha
de Anjo do Lar.
Anjo do lar! A primeira vez que telefonara, a voz identificara-se como um anjo de misericórdia, de vingança. Pat endireitou-se e agarrou o telefone. Freneticamente
discou o número de Sam, deixou o telefone tocar dez, doze, catorze vezes antes de o pousar. Se ao menos tivesse percebido o que Eleanor dissera quando lhe falara
de Arthur Stevens! Ele pedira a Eleanor para não se entregar. Para salvar Eleanor, seria até capaz de tentar deter o programa. Estaria Eleanor ao corrente das ameaças?
"Não, claro que não", pensou Pat. "O advogado dela deve ter conhecimento disto antes de comunicarmos à polícia."
237
Eram seis e vinte e cinco. Levantou-se, apertou o cinto do roupão e enfiou os chinelos. Enquanto descia rapidamente as escadas, perguntou-se onde estaria Arthur.
Saberia que Eleanor estava presa? Assistiria ao programa e culpá-la-ia quando mostrassem a fotografia de Eleanor? Culpá-la-ia por Eleanor não ter cumprido a promessa
de esperar antes de ir à polícia?
Na sala ligou todos os candeeiros e também a árvore de Natal, e só depois ligou o televisor. Mesmo assim, a sala manteve-se lúgubre. Instalando-se no sofá, observou
atentamente os anúncios posteriores ao noticiário das seis. Queria assistir ao programa sozinha. No estúdio teria a consciência de que todos os olhos se virariam
para ela. Mesmo assim, apercebeu-se de que receava ver o programa de novo. Era muito mais que o nervosismo habitual de uma estreia. O programa ia começar. Criticamente,
Pat analisou os três a senadora, Luther e ela própria sentados em semicírculo. O cenário era bom. Luther tinha razão em mudar as flores. Abigail não exteriorizava
nenhuma tensão que exibisse quando não estava a ser filmada. As imagens de Apple Junction tinham sido bem escolhidas. As reminiscências de Abigail em relação à sua
vida tinham um toque de interesse humano. "E é tudo mentira", pensou Pat.
À medida que iam sendo passadas as imagens, iam-se vendo diversos filmes de Abigail e Willard Jennings: durante a recepção nupcial, em festas do Governo, durante
as campanhas. As recordações ternas de Abigail..." Willard e eu... o meu marido e eu!..."
Engraçado, nunca se referia a ele como Billy.
Com lucidez crescente, Pat apercebeu-se de que os filmes de Abigail, quando jovem, tinham uma particularidade familiar. Eram a evocação de recordações que não tinham
nada a ver com o facto de as ter visto tantas vezes. Por que razão estava isso a acontecer agora?
Houve um intervalo para anúncios. O segmento sobre Eleanor e o desvio de fundos viria a seguir.
Arthur ouviu Patricia Traymore descer as escadas. Cautelosamente andou em bicos de pés até ouvir o som da televisão, vindo cá de baixo. Receara que alguns amigos
tivessem vindo com ela para ver o programa, mas ela estava sozinha.
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Pela primeira vez naqueles anos todos sentia-se vestido segundo a vontade de Deus. Que direito tinha ela de usar o hábito dos escolhidos?
Regressando ao seu esconderijo, colocou os auscultadores, ligou o aparelho e focou a imagem. A imagem estava bem nítida. Ajoelhando como se estivesse perante um
altar, as mãos unidas em prece, Arthur começou a ver o programa.
Lila estava sentada a ver o documentário, com o jantar num tabuleiro a seu lado. Era-lhe difícil conseguir comer. A certeza absoluta de que Pat corria perigo aumentou
quando a viu no écran.
"Os avisos de Cassandra", pensou, amargamente. "Pat não me quis ouvir. Ela tem de sair daquela casa, ou sofrerá uma morte mais violenta que a dos pais. E o tempo
está a esgotar-se."
Lila encontrara Sam Kingsley uma única vez e gostara dele. Sentia que ele era importante para Pat. Valeria a pena tentar falar com o congressista Kingsley, partilhando
com ele a preocupação? Conseguiria ela obrigá-lo a persuadir Pat para que saísse de casa até que a sua aura negra se dissolvesse? Pôs o tabuleiro de lado e agarrou
na lista. Telefonar-lhe-ia de imediato.
Sam foi directamente do restaurante para o seu gabinete. Tinha várias reuniões marcadas, mas não conseguia concentrar-se em nenhuma delas. O seu espírito voltava
sempre à discussão do almoço.
Tinham construído um forte caso circunstancial contra Toby Gorgone, mas Sam fora delegado do Ministério Público o tempo suficiente para saber que as provas circunstanciais
podiam ser destruídas como um baralho de cartas. E a boneca Raggedy Ann não condizia com as provas contra Toby. Se Toby estava inocente do envolvimento na queda
do avião e no desvio de fundos, se Catherine Graney fora vítima de um assassínio casual, então Abigail Jennings era o que parecia ser acima de qualquer suspeita
e uma boa candidata. Mas quanto mais Sam pensava em Toby, mais preocupado se sentia.
Às seis e vinte ficou finalmente livre e ligou o número de Pat. O telefone estava ocupado. Fechou rapidamente as gavetas. Queria
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ir para casa ver o documentário. O telefone deteve-o quando ia a sair. Um instinto disse-lhe que não devia ignorá-lo. Era Jack Carlson.
Sam, estás sozinho?
Sim.
Temos novidades no caso de Catherine Graney. O filho encontrou a cópia de uma carta que ela escreveu à senadora Jennings. A carta chegou provavelmente ontem a casa
da senadora. É bastante dura. Mrs. Graney tencionava contestar a versão da senadora Jennings no que respeita ao seu relacionamento com o marido, e ia processá-la
se ela não se retractasse no programa sobre a pretensa responsabilidade do piloto.
Sam assobiou.
Queres dizer que Abigail pode ter recebido a carta ontem?
Exactamente. Mas há mais. Os vizinhos de Mrs. Graney deram uma festa ontem à noite. Conseguimos a lista de convidados e contactámo-los. Um jovem casal que chegou
atrasado, cerca das onze e quinze, teve problemas em localizar a rua. Perguntaram a um tipo que ia a entrar no carro dois quarteirões atrás. Ele despachou-os a toda
a velocidade. O carro era um Toyota negro com matrícula de Virgínia. E eles descreveram alguém parecido com Gorgone. A rapariga até se lembra que ele tinha um anel
escuro e pesado. Vamos prender Toby para averiguações. Achas que devemos telefonar para a Casa Branca?
"Toby podia ter sido visto perto do local do assassínio de Catherine Graney. Se a tivesse morto, tudo o resto era possível e até lógico."
Abigail tem de saber isto imediatamente disse Sam. Eu vou ter com ela. Devo dar-lhe a oportunidade de retirar o seu nome da corrida. Se recusar, eu próprio telefono
ao presidente. Mesmo que ela não soubesse o que Toby tramou, tem de aceitar a responsabilidade moral.
Acho que essa dama nunca se preocupou com responsabilidades morais. Se J. Edgar fosse vivo, ela não teria chegado tão longe. Tu viste o artigo no Tribune que dizia
que ela era muito amiga do congressista Adams e da mulher.
Vi.
Como dizia o jornal, corria o boato de que outra mulher fora a causa da discussão fatal. Eu era novo no ofício mas,
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quando li o artigo, lembrei-me de qualquer coisa. Fui aos arquivos. Tudo indica que Abigail Jennings era a outra.
Por muito que tentasse, Abigail não conseguia dormir, O conhecimento de que dentro de poucas horas seria nomeada vice-presidente dos Estados Unidos, era demasiado
excitante.
Sr.a Vice-presidente, o avião do vice-presidente, Air Force Two, e a mansão junto ao velho Observatório Naval. Presidir no Senado e representar o presidente por
todo o mundo.
Dentro de dois anos a nomeação para presidente. "Vou ganhar!", prometeu a si mesma. "Golda Meir. Indira Gandhi. Margaret Thatcher. Abigail Jennings."
O Senado fora um bom trampolim. Na noite em que fora eleita, Luther dissera: " Bem, Abigail, passaste a membro do clube mais exclusivo do mundo."
E agora outro grande passo. Já não seria uma entre centenas de senadores, mas a segunda figura da Nação.
Decidira vestir um fato de três peças, uma blusa e saia de seda, com um casaco de malha, em tons de cinza e cor-de-rosa. Iria sobressair na televisão. Vice-presidente
Abigail Jennings...
Era umas seis e um quarto. Levantou-se, foi até à mesa de toilette e escovou o cabelo. Com gestos decididos aplicou sombra e rimmel. A excitação colorira-lhe as
faces; não precisava de blush. Podia começar a vestir-se, ver o programa e treinar o discurso de aceitação até serem horas de ir para a Casa Branca.
Vestiu o fato e colocou um alfinete de ouro e diamantes no casaco. A televisão da biblioteca tinha o écran maior. Assistiria lá ao programa.
Continuam a ver Mulheres no Governo.
Já vira o programa quase todo, excepto os últimos minutos. Mesmo assim, era tranquilizante vê-lo de novo. Apple Junction debaixo de uma camada de neve tinha um ar
provinciano que lhe ocultava o aspecto lúgubre. Pensativamente, observou a casa dos Saunders. Lembrou-se do dia em que Mrs. Saunders a mandara voltar para trás e
entrar pela porta de serviço. Fizera aquela bruxa pagá-lo bem caro. Se Toby não tivesse arranjado uma maneira de ela conseguir o dinheiro para ir para Radcliffe,
onde estaria agora?
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"Os Saunders deviam-me aquele dinheiro", disse para si mesma. "Doze anos de humilhações naquela casa!" Viu as imagens da recepção no dia do casamento, das primeiras
campanhas, do funeral de Willard. Lembrava-se da alegria que sentira quando, no carro funerário, Jack Kennedy concordara em ajudá-la para que ela fosse nomeada para
completar o mandato de Willard.
O toque insistente da campainha assustou-a. Seria alguém da Imprensa? Apressou-se a ir à porta.
Quem é?
Sam.
Abriu-lhe a porta. Ele entrou, de rosto sombrio, mas ela mal o olhou.
Sam, então não estás a ver o programa? Vem.
Agarrando-lhe na mão, correu para a biblioteca. No programa, Luther interrogava-a sobre o seu envolvimento na segurança aérea.
Abigail, preciso de falar contigo.
Sam, por amor de Deus! Não queres que eu veja o meu próprio programa?
Isto não pode esperar.
Tendo o documentário como fundo, contou-lhe as razões da sua ida ali. Observou a incredulidade nos olhos dela.
Queres dizer que Toby pode ter assassinado a Graney? Estás maluco!
Estou?
Ele saiu nessa noite. A criada poderá confirmar.
Duas pessoas descreveram-no perfeitamente. A carta que Catherine Graney te escreveu foi o motivo.
Que carta?
Olharam um para o outro e ela empalideceu.
Ele recolhe o teu correio, não é, Abigail?
Sim.
E fê-lo ontem?
Sim.
E que te entregou?
A tralha habitual. Espera aí... não podes acusá-lo à toa. Vais acusá-lo na sua presença.
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Sam observou-a, enquanto Abigail ligava um número. Friamente observou o fato novo que ela trazia. Estava bem vestida. Abigail segurou o auscultador.
Provavelmente não atende. Não pensa que seja eu.
A voz fraquejou e depois tornou-se subitamente decidida.
Sam, não é possível que acredites no que estás a dizer. Foi Pat Traymore quem te meteu nisto. Ela quis sabotar tudo desde o início.
Pat não tem nada com o facto de Toby ter sido visto junto da casa de Catherine Graney.
No écran de televisão Abigail falava da sua luta pela segurança aérea.
Hoje estou viúva porque o meu marido alugou o avião mais barato que encontrou.
Sam apontou para a televisão.
Aquele depoimento seria o suficiente para fazer que Catherine Graney fosse amanhã mesmo para os jornais, e Toby sabia-o. Abigail, se o presidente convocou a conferência
desta noite para te nomear vice-presidente, tens de lhe pedir para adiar a comunicação até tudo estar esclarecido.
Estás maluco? Não me interessa que Toby tenha estado perto do local onde aquela mulher foi morta. Que é que isso prova? Talvez ele tenha uma namorada ou um jogo
de cartas em Richmond. Quem me dera não ter atendido a porta.
Uma sensação de urgência apoderou-se de Sam. No dia anterior Pat dissera-lhe que lhe parecia que Toby se tinha tornado hostil em relação a ela, e ela ficava nervosa
quando ele estava por perto. Havia poucos minutos, Abigail dissera que Pat tentara sabotá-la. Toby acreditaria nisso! Sam agarrou Abigail pelos ombros.
Há alguma razão para Toby considerar Pat uma ameaça para ti?
Sam, pára! Deixa-me ir. Ele estava tão preocupado como eu com a publicidade que ela provocou, mas isso acabou por se resolver. Na verdade, ele até pensa que ela
me fez um grande favor.
Tens a certeza?
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Sam, Toby nunca tinha posto os olhos em Pat Traymore até à semana passada. Não estás a ser racional.
"Nunca lhe tinha posto os olhos até à semana anterior?" Não era verdade. Toby conhecera Pat quando era criança. Tê-la-ia reconhecido? Abigail andara envolvida com
o pai de Pat. Teria Pat conhecimento disto? "Perdoa-me, Pat", pensou ele. "Tenho de lhe dizer."
Abigail, Pat Traymore é Kerry, a filha de Dean Adams!
Pat Traymore é... Kerry?
Os olhos de Abigail arregalaram-se com o choque. Depois libertou-se.
Não sabes o que estás a dizer. Kerry Adams morreu!
Digo-te que Pat Traymore é Kerry Adams. Disseram-me que tiveste uma ligação com o pai dela, que podes ter provocado a última discussão. Pat está a lembrar-se de
pequenos pedaços dessa noite. Toby seria capaz de fazer alguma coisa para te proteger ou a ele próprio, de algo que ela pudesse descobrir?
Não disse Abigail sem rodeios. Não me importo que se lembre de mim. Nada do que aconteceu foi por minha culpa.
Toby? E então o Toby. Ele não estava lá?
Ela não o chegou a ver. Quando ele lá voltou a buscar a minha carteira, ela já estava inconsciente.
As implicações do que ela tinha dito caiu como uma bomba sobre eles. Sam correu para a porta. Abigail seguiu-o aos tropeções.
Arthur viu pela televisão as imagens de Glory, algemada, a ser conduzida para fora da sala de audiências, após o veredicto de culpada. Mostraram um grande plano.
O seu rosto era inexpressivo, mas tinha as pupilas muito dilatadas. O ar de dor dos olhos dela fez assomar lágrimas aos olhos dele. Cobriu o rosto com as mãos enquanto
Luther Pelham fala sobre o colapso nervoso de Glory, do seu estatuto de doente externa de psiquiatria, do seu desaparecimento havia cinco anos. E, então, não querendo
acreditar no que ouvia, ouviu Pelham dizer:
Ontem, dando como razão o medo de ser reconhecida, Eleanor Brown entregou-se à polícia. Está agora sob custódia e deverá regressar à prisão para acabar de cumprir
a pena.
"Glory entregara-se à polícia. Não cumprira a promessa que lhe fizera."
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Não, não, fora forçada a quebrar a promessa levada pela convicção de que aquele programa a iria expor. Sabia que não a voltaria a ver.
As vozes, zangadas e vingadoras, começaram a falar-lhe. Apertando os punhos, ouviu atentamente. Quando se calaram, ele desligou o aparelho. Sem se preocupar em disfarçar
o esconderijo, saiu do armário e desceu as escadas.
Pat estava sentada imóvel, vendo o programa. Viu-se a si mesma lendo a carta. "Billy querido."
Billy sussurrou. Billy.
Analisou a expressão chocada de Abigail Jennings, o cerrar involuntário dos punhos antes de conseguir uma pose comovida, enquanto ouvia ler a carta.
Já vira aquela expressão antiquada no rosto de Abigail. "Billy querido. Billy querido."
" Não deves chamar Renée à mamã."
" Mas o papá chama-te Renée."
A forma como Abigail se atirara a ela no final das filmagens.
" Onde arranjou essa carta. Que está a tentar fazer?"
O grito de Toby:
" Está bem, Abby. Não faz mal as pessoas ouvirem a última carta que escreveu ao seu marido."
Seu marido. Foi o que ele lhe tentara dizer.
A fotografia com Abigail e o pai na praia, com as mãos a tocarem-se.
"Fora Abby quem tocara à campainha nessa noite... que empurrara o pai, o rosto contorcido pela raiva."
" Não deves chamar-me Renée, nem deves chamar Billy ao papá."
A carta! Encontrara-a no chão da biblioteca no dia em que escondera os pertences do pai, de Toby. A carta devia ter caído do caixote dele e não de entre as coisas
de Abigail.
Abigail estivera ali naquela noite. Ela e Dean Adams Billy Adams tinham sido amantes! Teria ela precipitado a discussão final?
Uma rapariguinha aninhada na cama, com as mãos nos ouvidos para afastar as vozes zangadas.
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O tiro.
"Papá! Papá!"
Outro estampido.
"E então desci as escadas a correr. Tropecei no corpo da mãe. Mais alguém lá estava. Abigail? Oh, Deus, Abigail Jennings estaria lá quando corri para o quarto?"
"A porta do pátio abriu-se."
O telefone começou a tocar, e, no mesmo momento, os candeeiros apagaram-se. Pat deu um salto e olhou à volta. Iluminada pelas luzes da árvore de Natal, uma aparição
vinha na direcção dela, o vulto alto de um monge, com cabelo grisalho, que caía sobre brilhantes olhos azuis.
Toby conduziu até Georgetown com cuidado para não ultrapassar o limite de velocidade. Não estava nada interessado numa multa. Só saíra depois de o documentário ter
começado. Sabia que Abby ia ficar colada ao aparelho durante meia hora. Se ela lhe telefonasse após o programa, podia sempre dizer que estava cá fora a verificar
o carro.
Desde o princípio que notara algo familiar em Pat Traymore. Vários anos atrás, não derramara lágrimas quando soubera que Kerry Adams "não resistira aos ferimentos
e morrera". Não que o depoimento de uma miúda de três ou quatro anos valesse alguma coisa em tribunal... Mas...
Abby tivera razão. Pat Traymore tinha decidido, desde o princípio, dar-lhe cabo da vida. Mas não ia consegui-lo.
Encontrava-se na Rua M, em Georgetown. Virou para a Rua 31 e seguiu para a N, depois voltou à esquerda. Sabia onde devia estacionar. Já o tinha feito antes. O lado
direito da propriedade estendia-se por meio quarteirão. Deixou o carro junto à esquina e, ignorando o portão, trepou pela sebe. Silenciosamente, fundiu-se com as
sombras. Era impossível não pensar naquela outra noite, naquele local... arrastando Abby, tapando-lhe a boca para a impedir de gritar, metendo-a no carro, ouvindo
o gemido aterrorizado "a minha carteira ficou lá", e voltando lá para a buscar.
Colado aos troncos das árvores, Toby seguiu pelas traseiras até se encontrar no pátio, a pouca distância das portas. Voltando a cabeça, olhou cautelosamente lá para
dentro.
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Ficou petrificado. Pat Traymore estava estendida sobre o sofá, com as mãos e os pés amarrados. Tinha a boca amordaçada. Um padre ou um monge, de costas para a porta,
estava ajoelhado ao lado dela, acendendo as velas de um candelabro de prata. Que raio estava ele a fazer? O homem voltou-se e Toby poude vê-lo melhor. Não era um
padre verdadeiro. Aquilo não era um hábito, era uma espécie de roupão. O olhar dele fez Toby lembrar-se de um vizinho que tinha enlouquecido há alguns anos.
O tipo gritava com Pat Traymore. Toby mal conseguia distinguir as palavras.
Não ligou aos meus avisos. Eu dei-lhe várias oportunidades.
Avisos. Eles tinham pensado que Pat Traymore inventara a história dos telefonemas e dos assaltos. Mas se não tinha... Toby viu o homem levar o candelabro até junto
da árvore de Natal e colocá-lo no ramo mais baixo. Ia pegar fogo à casa. Pat Traymore ficaria lá dentro. Ele só tinha de voltar para o carro e regressar a casa.
Toby coseu-se com a parede. O homem dirigia-se para as portas do pátio. "E se o encontrava ali?" Toda a gente sabia que Pat Traymore tinha recebido ameaças. Se a
casa ardesse e ela fosse encontrada juntamente com o tipo que a ameaçara, o caso ficaria encerrado. Não haveria mais investigações, nem a hipótese de alguém ter
visto um carro estranho estacionado na vizinhança.
Toby ouviu o barulho da fechadura. O homem de roupão abriu as portas do pátio, depois voltou-se para olhar lá para dentro.
Silenciosamente, Toby pôs-se atrás dele.
Enquanto passavam os nomes dos colaboradores no programa, Lila ligava de novo para casa de Sam. Mas era inútil. Não obtinha resposta. Tentou de novo o número de
Pat. Depois de deixar tocar um bocado, desligou e foi até à janela. O carro de Pat encontrava-se à entrada. Lila tinha a certeza de que ela estava em casa. Enquanto
olhava, pareceu-lhe ver um brilho encarnado por detrás da aura escura que rodeava a casa.
Deveria telefonar à polícia? E se Pat, afinal, estivesse a recuperar e a reconstruir o passado? E se o perigo que Lila pressentia fosse de natureza emocional e não
física? Pat queria tanto entender
247
como é que o pai ou a mãe a tinham magoado tanto. E se a verdade fosse ainda pior do que ela supunha?
Que poderia a polícia fazer se Pat simplesmente se recusasse a abrir a porta? Não iriam forçar a entrada só porque Lila tinha premonições. Lila sabia bem como os
polícias, por vezes, desprezam essas coisas.
Impotente, deixou-se ficar à janela, olhando para as nuvens de escuridão que rodeavam a casa do outro lado da rua.
As portas do pátio estavam abertas nessa noite. Ela erguera os olhos, vira-o e correra para ele, agarrando-lhe as pernas. Toby, o amigo que costumava brincar com
ela. E ele agarrara-a e atirara-a para o chão.
"Toby... fora Toby!"
E agora ali estava, atrás de Stevens.
Arthur sentiu a presença de Toby e virou-se. O murro que Toby lhe deu apanhou-o em cheio na garganta e atirou-o para dentro da sala. Com um grito estrangulado, caiu
junto da lareira, tinha os olhos fechados. A cabeça pendeu-lhe para o lado.
Toby entrou na sala. Pat contorceu-se quando viu aquelas pernas grossas metidas nas calças escuras, o corpo maciço, as mãos fortes, o anel de ónix.
Curvou-se sobre ela.
Já sabes, não sabes, Kerry? Logo que soube quem tu eras, vi que ias descobrir. Lamento o que aconteceu, mas tinha de tomar conta de Abby. Ela estava maluca pelo
Billy. Quando viu a tua mãe atingi-lo, ficou desfeita. Se eu não tivesse voltado para buscar a carteira, juro que não te teria tocado. Só te queria calar por um
bocado. Mas agora andas atrás de Abby e isso não pode ser. Desta vez tornaste-me as coisas mais fáceis, Kerry. Toda a gente sabe que tens recebido ameaças. Não contava
ter tanta sorte. Agora este maluco será encontrado contigo e não haverá mais perguntas. Fazes perguntas de mais, sabias?
Os ramos por cima do candelabro começaram a estalar e rolos de fumo subiram para o tecto.
Daqui a pouco a sala estará toda em chamas, Kerry. Tenho de ir. É uma noite muito importante para Abby. Tocou-lhe na cara. Lamento.
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Toda a árvore ficou em chamas.
Enquanto o via fechar as portas atrás dele, a carpeta começou a arder. O odor do azevinho misturou-se com o fumo. Tentou reter a respiração. Quase não conseguia
manter os olhos abertos. Ia sufocar ali. Rolando até à beira do sofá, atirou-se para o chão. A testa bateu contra a perna da mesa de cocktail. Gemendo com a dor,
começou a arrastar-se em direcção ao vestíbulo. Com as mãos amarradas atrás, mal se podia mexer. Conseguiu rolar de costas e lançar-se para a frente. O roupão de
flanela prendia-lhe os movimentos. Os pés descalços escorregavam sobre a carpeta.
À entrada da sala parou. Se conseguisse fechar a porta impediria o fogo de alastrar, pelo menos por alguns minutos. Tentou agarrar a maçaneta. O metal arranhou-lhe
a pele das mãos. Atirou o ombro contra a porta e inclinou-se para a frente até ouvir um clique metálico. O vestíbulo já estava a encher-se de fumo. Já não sabia
para onde ia. Se cometesse um erro e voltasse para a biblioteca não teria nenhuma hipótese.
Dirigiu-se para a porta da frente.
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Lila tentou uma vez mais apanhar Pat. Desta vez pediu à telefonista para verificar o número. Estava em ordem.
Não podia esperar mais. Algo de muito grave se passava. Ligou para a polícia. Podia pedir-lhes para virem a casa de Pat, dizendo que pensava ter visto um assaltante.
Mas quando o sargento de serviço a atendeu, não conseguiu falar. A garganta apertou-se-lhe. As suas narinas inalaram o cheiro acre do fumo. Sentiu dores nos pulsos
e nos tornozelos. Sufocava de calor. O sargento repetiu o nome, impaciente. Por fim, Lila recuperou a voz.
Três mil. Rua N! gritou. Patricia Traymore está a morrer! Patricia Traymore está a morrer!
Sam conseguiu conduzir a uma velocidade louca, desobedecendo aos sinais vermelhos, desejando ter uma escolta policial. A seu lado seguia Abigail, com as mãos contra
os lábios.
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Abigail, quero a verdade! Que aconteceu na noite em que Dean e Renée Adams morreram?
Billy prometera divorciar-se... Nesse dia telefonou-me a dizer que era impossível... que tinha de tentar recuperar o casamento... Que não era capaz de abandonar
Kerry. Eu pensava que Renée estava em Boston e fui lá. Renée ficou louca quando me viu. Descobrira a nossa ligação. Billy guardava uma pistola na secretária. Apontou-a
para si própria. Ele tentou tirar-lhe a arma... ela disparou-se... Sam, foi um pesadelo. Ele morreu ali à minha frente!
Então quem a matou a ela? perguntou Sam. Quem?
Ela matou-se a si mesma! soluçou Abby. Toby sabia que tinha havido sarilho, pois ficara à espera no pátio. Arrastou-me até ao pátio. Sam, eu estava em choque. Não
sabia o que estava a acontecer. A última coisa que vi foi Renée com a pistola na mão. Toby teve de lá voltar para buscar a minha carteira. Sam, eu ouvi o segundo
tiro antes de ele entrar naquela casa. Juro. Ele só me falou de Kerry no dia seguinte. Disse que a vira descer as escadas logo após terem saído, e que Renée a devia
ter atirado contra a lareira para a afastar. Mas não se apercebeu de que ela estivesse gravemente ferida.
Pat lembra-se de tropeçar no corpo da mãe.
Não. Isso é impossível.
Os pneus chiaram quando viraram para a Avenida Wisconsin.
Sempre acreditaste no Toby acusou ele. Sempre quiseste acreditar nele! Para ti ele era mais cómodo. Acreditaste que a perda do avião foi um acidente, Abigail? Acreditaste
em Toby quando lhe arranjaste o álibi para a campanha de fundos?
Sim... sim.
As ruas estavam cheias de peões. Ele colou a mão na buzina. A multidão dirigia-se para os restaurantes. Atravessaram a Rua M, a Rua 31 e a esquina da Rua N, onde
Sam teve de fazer uma travagem brusca. Foram ambos atirados para a frente.
Oh, meu Deus! sussurrou Abigail.
Uma velhota, gritando por ajuda, batia com os punhos na porta de Pat. Um carro da polícia, com a sereia a gritar, aproximava-se.
A casa estava em chamas.
250
Toby apressou-se em direcção à sebe. Estava tudo acabado. Já não havia viúva de piloto para arranjar sarilhos a Abigail. Nem Kerry Adams para se lembrar do que acontecera
na sala naquela noite.
Tinha de se apressar. Dali a pouco Abby andaria à sua procura. Dentro de uma hora tinha de estar na Casa Branca.
Alguém gritava por socorro. Alguém devia ter reparado no fumo. Ouviu a sirena da polícia e começou a correr. Acabava de chegar à sebe quando um carro virou a esquina
e se deteve. Ouviu bater as portas e um homem gritar o nome de Pat Traymore. Sam Kingsley. Tinha de sair dali. As traseiras da casa já estavam a arder. Alguém podia
vê-lo.
A porta da frente, não. Sam, vamos aqui por trás.
Toby deteve-se. Abby. Era Abby. Corria ao longo da casa em direcção ao pátio. Aproximou-se dela e agarrou-a.
Por amor de Deus, Abby, afaste-se daqui!
Ela olhou para ele desorientada. O cheiro a fumo enchia o ar. De uma janela saíam chamas que passavam para o relvado.
Toby, Kerry está lá dentro?Abby agarrou-o pela lapela.
Não sei do que está a falar.
Toby, tu foste visto perto da casa da Graney na noite passada.
Abby, cale-se! Na noite passada jantei com a minha amiga do restaurante. Você viu-me entrar às dez e meia.
Não vi nada.
Viu sim, senadora!
Então é verdade... O que Sam me disse...
Abby, não me venha com essas merdas. Eu tomo conta de si. Você toma conta de mim. Sempre foi assim, e você sabe-o.
Um segundo carro da polícia passou por eles.
Abby tenho de sair daqui. Não havia medo na voz dele.
A Kerry está lá dentro?
Não fui eu quem pegou fogo. Não lhe fiz mal nenhum.
Ela está lá dentro?
Sim!
Irresponsável! Assassino irresponsável. Tira-a já dali! Bateu-lhe no peito. Ouviste o que eu disse. Faz o que te digo! gritou.
257
Por momentos olharam um para o outro. Depois Toby encolheu os ombros, cedendo, e correu ao longo do jardim em direcção ao pátio. O som dos carros de bombeiros ouvia-se
quando ele forçou as portas.
O calor lá dentro era sufocante. Despindo o casaco, Toby cobriu com ele a cabeça e os ombros. Ela tinha ficado no sofá, algures à direita das portas. "É porque ela
é a filha de Billy", pensou ele. "Está tudo acabado para ti, Abby. Esta não podemos abafar." Passou as mãos pelo sofá. Não a via. Ela não estava lá.
Apalpou o chão à volta do sofá. Um som forte explodiu-lhe na cabeça. Tinha de sair dali, aquilo ia cair tudo.
Dirigiu-se para a porta aos tropeções, guiado unicamente pela corrente de ar. Pedaços de cal caíram sobre ele, que se desequilibrou e caiu. A sua mão tocou em carne
humana. Um rosto, mas não o rosto de mulher. O rosto de um louco.
Toby levantou-se, sentiu-se tremer, sentiu a sala tremer. Passado um momento, o tecto desabou.
Abby!
Mas sabia que, desta vez, ela não o podia ajudar.
Arrastando-se centímetro a centímetro, Pat movia-se ao longo do corredor. A corda apertada paralisara-lhe a circulação na perna direita. Teve de arrastar as pernas,
usando apenas os dedos e as palmas das mãos para andar para a frente. O chão estava a ficar insuportavelmente quente. O fumo acre entrava-lhe nos olhos e na pele.
Estava desorientada. Não valia a pena. Ia morrer ali queimada. Depois começou a ouvir. As pancadas... a voz... a voz de Lila gritando por ajuda... Pat contorceu
o corpo, moveu-se em direcção ao som. Um ruído enorme vindo das traseiras abanou o solo. A casa estava a ruir. Sentiu a consciência fugir-lhe. Estava destinada a
morrer naquela casa. Enquanto a escuridão a envolvia, ouviu um conjunto de ruídos cacofónicos. Estavam a tentar entrar pela porta. Ela estava tão perto. Uma corrente
de ar frio. As chamas e o fumo em direcção à corrente... Vozes de homens a dizerem:
É tarde de mais. Não se pode entrar lá dentro! Os gritos de Lila:
Ajudem-na, ajudem-na! A voz desesperada de Sam.
252
Deixem-me entrar!
"Sam... Sam." O som dos passos a correrem. Sam a gritar o seu nome. Com as últimas forças, Pat ergueu as pernas e bateu com elas contra a parede.
Ele voltou-se. À luz das chamas viu-a, pegou nela e saiu a correr.
A rua estava cheia de carros de bombeiros e de polícia. Havia mirones num silêncio chocado. Abigail parecia uma estátua enquanto o pessoal da ambulância se ocupava
de Pat. Sam estava ajoelhado junto à maca, acariciando os braços de Pat; o rosto mascarado pela preocupação. Lila, trémula e pálida, estava a alguns metros de distância,
com os olhos fixos no corpo imóvel de Pat. À volta deles caíam faúlhas vindas da casa.
A pulsação está mais forte disse um enfermeiro. Pat moveu-se tentando afastar a máscara do oxigénio.
Sam...
Estou aqui, querida.
Ergueu os olhos quando Abigail lhe tocou no ombro. O rosto dela estava mascarrado de fumo. O fato que tencionava levar à Casa Branca estava sujo e amarrotado.
Estou satisfeita por Kerry estar bem, Sam. Trata bem dela.
É o que tenciono fazer. Eu vou pedir a um polícia para me levar até uma cabina telefónica. Não me sinto capaz de dizer pessoalmente ao presidente que terei de me
afastar da vida pública. Diz-me o que terei de fazer para ajudar Eleanor Brown.
Lentamente dirigiu-se para o carro da polícia mais próximo. Reconhecendo-a, os mirones desataram a cumprimentá-la e abriram-lhe caminho. Alguns bateram palmas.
O seu programa foi óptimo, senadora alguém gritou. Gostamos de si!
Enquanto entrava no carro, Abigail Jennings voltou-se e, com um meio sorriso doloroso, aceitou os cumprimentos da multidão pela última vez.
253
43
No dia 29 de Dezembro, às nove horas, o presidente entrou na sala leste da Casa Branca, para a conferência de Imprensa que adiara dois dias antes. Dirigiu-se para
junto dos microfones.
Pergunto-me: por que razão estamos todos aqui?comentou.
Ouviram-se gargalhadas.
O presidente exprimiu o seu pesar pelo afastamento do antigo vice-presidente. Depois continuou:
Há muitos legisladores proeminentes que ocupariam o lugar com muita distinção e que poderiam ocupar o meu lugar se fosse preciso. Contudo, a pessoa que escolhi para
vice-presidente, com a aprovação dos principais responsáveis pelo Governo, e sujeito à confirmação do Congresso, é a única que ocupará um lugar único na História
deste país. Senhores e senhoras, tenho o maior prazer em vos apresentar a primeira mulher vice-presidente dos Estados Unidos, a senadora do Wisconsin, Claire Lawrence.
Ouviu-se uma grande ovação, enquanto a audiência presente na Casa Branca se punha de pé.
Enroscados no sofá do apartamento dele, Sam e Pat assistiram à conferência de Imprensa.
Será que Abigail está a ver isto? perguntou Pat.
Calculo que sim.
Ela nunca precisou do tipo de ajuda de Toby. Podia ter conseguido tudo sozinha.
É verdade. Essa é a parte mais triste.
Que lhe vai acontecer?
Vai sair de Washington. Mas não a ponhas de fora. Abigail é persistente. Vai lutar para ocupar de novo o seu lugar. E, desta vez, sem aquele louco atrás dela.
Ela fez tanta coisa boa disse Pat, com tristeza. Em muitas coisas, foi a mulher que eu pensei que ela era.
Ouviram o discurso de aceitação de Claire Lawrence. Depois, Sam ajudou Pat a levantar-se.
254
Com as sobrancelhas e as pestanas chamuscadas tens um ar incrivelmente surpreendido.
Apoiou o rosto com as mãos.
É bom estar fora do hospital?
Sabes que sim.
Estivera tão perto de a perder. Agora ela olhava para ele com o rosto confiante mas perturbado.
Que vai acontecer a Eleanor? perguntou ela. Não disseste nada e eu tive medo de te perguntar.
Não fiz de propósito. O novo depoimento de Abigail, juntamente com tudo o que temos sobre Toby, ilibá-la-á. E tu? Agora que conheces a verdade, como te sentes em
relação aos teus pais?
Feliz por não ter sido o meu pai quem puxou o gatilho. Com pena da minha mãe. Satisfeita por nenhum deles me ter ferido nessa noite. Não estavam de forma nenhuma
destinados um para o outro. Mas muito do que aconteceu não foi culpa de ninguém. Talvez eu comece a compreender melhor as pessoas. Pelo menos assim o espero!
Pensa nisto. Se os teus pais não se tivessem conhecido, tu não estavas aqui, e eu poderia passar o resto da minha vida a viver num sítio que parece... como é que
disseste... uma entrada de um motel?
Foi mais ou menos isso.
Já decidiste quanto ao emprego?
Não sei. Luther parece que quer mesmo que eu fique. Acho que o programa até foi bem recebido. Ele pediu-me para planear um sobre Qlaire Lawrence e acha que até poderemos
fazer um sobre a primeira dama. É tentador. Ele jura que desta vez terei todo o poder criativo. E contigo aqui, ele não tentará de novo engatar-me.
É melhor que nem tente!
Sam abraçou-a e viu o princípio de um sorriso.
Vem, vá. Tu gostas de vistas com água.
Foram até à janela e olharam. A noite estava cheia de nuvens, mas o Potomac brilhava com as luzes do centro Kennedy.
Acho que nunca senti nada tão forte como quando vi a casa a arder, sabendo que estavas lá dentro disse ele, apertando-a mais. Não posso perder-te, Pat, nem agora,
nem nunca!
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Beijou-a.
Não quero perder mais tempo. Uma lua-de-mel em Cancel Bay, na próxima semana, agrada-te?
Poupa o dinheiro. Prefiro voltar a Cape.
A Ebb Tide?
Adivinhaste. Só com uma diferença... Ergueu os olhos para ele e o seu sorriso tornou-se radiante. Desta vez regressaremos os dois no mesmo avião!
FimA MENINA DO PAPÁ
MARY HIGGINS CLARK
A MENINA DO PAPÁ
Tradução de JOSÉ LUÍS LUNA
BERTRAND EDITORA
CHIADO 03
Título Original
DADDY' S LITTLE GIRL
Autor Mary Higgins Clark
Mary Higgins Clark 01
Todos os direitos para a publicação desta obra em línguaportuguesa,
excepto Brasil reservado;» por
Bertrand Editora Lda
Rua Anchieta, 29 1º °
1249 060 Lisboa Telefone 210 305 500
Fax 21 305563
Correio electrónico editora@bertrand pt Revisão André Cardoso
Fotocomposição e montagem
Espaço 2 Gráfico Impressão e acabamento
Tipografia Guerra
Depósito Legal n Q 190370/03
Acabou de imprimir-se em Janeiro de 03
ISBN 972-25-1290-0
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao usoexclusivo de portadores de deficiência visual.
À afectuosa memória do meu pai, Luke Joseph Higgins
AGRADECIMENTOS
Esta história, escrita na primeira pessoa, foi, para mim, um percurso de génerodiferente e é por essa razão que estou sinceramente grata pelos conselhos,encora
jamento e apoio do meu editor de longa data, Michael Korda, e do seucolega Chuck Adams, editor-chefe. Mille grazie, queridosamigos.
Obrigado, sempre, aos meus agentes literários, Eugene Winick e Sam Pinkus, peloseu cuidado, assistência e amizade constantes.
À minha estimada publicista, Lisl Cade, continua, como sempre, a ser a minha mãodireita. A minha eterna gratidão.
Ainda os meus agradecimentos ao director associado do secretariado de redacção,Gypsy da Silva, com quem trabalho há tantos anos. Um beijo à memória
dasecretária de redacção, Carol Catt, cuja falta será tristemente sentida.
Felicitações ao sargento Steven Marron e ao inspector Richard Murphy, reformados do Departamento de Polícia de Nova Iorque, Repartição do Magistrado
Federal doCondado de Nova Iorque, pelos seus conselhos e assistência em questões deinvestigação e detecção.
Bênçãos às minhas assistentes e amigas, Agnes Newton e Nadine Petry, e à minhacunhada e leitora dos meus livros em curso, Irene Clark.
Judith Kelman, escritora e amiga, que respondeu imediatamente ao meu apelo.Gosto muito de ti, Judith.
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A minha gratidão aos frades franciscanos Emil Tomaskovic e Bob Warren, daExpiação de Graymoor, em Garrison, Nova Iorque, pela sua valiosa ajuda
namontagem das cenas neste livro e pelo maravilhoso trabalho que eles e os seusirmãos frades fazem por aqueles que necessitam mais de ajuda.
O meu amor e gratidão ao meu marido, John Conheeney, aos nossos filhos e netossó por crescerem e multiplicarem-se. Eles são tudo o que me interessa.
Saudações aos amigos que têm estado à espera que eu termine este livro para nos«reunirmos em breve».
Estou pronta!
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO UM
Ellie acordou naquela manhã com a sensação de que algo terrível tinhaacontecido.
Estendeu instintivamente a mão para Ossos, o macio cão depelúcia com quem, desde que se lembrava, partilhava a almofada. Quando no mêspassado
fizera sete anos, Andrea, a irmã de 15, tinha-lhe dito para a arreliarque já era altura de guardar Ossos no sótão.
Ellie lembrou-se então do que a afligia: Andrea não tinha voltado para casa nanoite passada. Tinha ido depois de jantar a casa de Joan, a sua melhor
amiga, afim de estudar para um teste de Matemática e prometera voltar às nove. Às quinze para as nove, a mamã foi buscar Andrea a casa de Joan, masdisseram-lhe
que ela tinha partido às oito.
A mamã tinha voltado a casa inquieta e quase em lágrimas no momento em que opapá chegava do trabalho. O papá era tenente da Polícia Estatal de
Nova Iorque.Ele e a mamã telefonaram imediatamente a todas as amigas de Andrea, mas ninguéma tinha visto. A seguir, o papá disse que ia passar de carro pelo
salão debowling e pela casa de gelados para ver se Andrea estaria lá.
Se ela mentiu e não esteve a fazer os trabalhos de casa até às nove, duranteseis meses não põe mais os pés na rua disse irritadamente.
Virou-se depois para a mamã.
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Já te disse mil vezes. Não quero que ela saia de noite sozinha. Apesar do tomelevado da voz, Ellie percebeu que o papá estava mais preocupado do
que zangado.
Por amor de Deus, Ted, ela saiu às sete horas. Foi a casa da Joan. Fazia tençãode voltar para casa por volta das nove e eu até fui lábuscá-la.
Então onde é que ela está?
Meteram Ellie na cama e ela tinha acabado por adormecer, acordando só agora.Talvez Andrea já estivesse em casa, pensou, cheia de esperança. Saltou
da cama e precipitou-se pelo corredor fora até ao quarto de Andrea.Abriu a porta. A cama da irmã estava vazia.
Descalça, desceu em bicos de pés as escadas. A vizinha, a Sra. Hilmer, estavasentada com a mamã na cozinha. A mamã não tinha mudado de roupa e
parecia terestado a chorar durante muito tempo.
Ellie correu para ela.
Mamã!
A mamã abraçou-a e começou a soluçar. Ellie sentiu a mão da mamã fincar-se noombro com tanta força que quase a magoava.
Onde é que está a Andrea, mamã?
Não... sabemos. O papá e a polícia andam à procura dela.
Por que é que não te vais vestir enquanto eu te preparo o pequeno-almoço, Ellie? propôs a Sra. Hilmer.
Ninguém lhe disse que tinha de se apressar porque o autocarro da escola estava a chegar. Ellie percebeu logo que hoje não iria à escola.
Lavou obedientemente o rosto e as mãos e, depois, vestiu roupa para brincar umacamisola de gola alta e as calças azuis preferidas. Voltou a descer
as escadas.
No momento em que se sentou à mesa, onde a Sra. Hilmer tinha posto sumo de fruta e cereais, o papá entrou pela porta da cozinha.
Não há sinal dela disse. Procurámos por toda a parte. Houve um tipo que, ontem,andou pela cidade a pedir dinheiro de porta em porta para uma instituição
decaridade falsa. Jantou no restaurante e foi-se embora por volta das oito. Épossível que,
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a caminho da estrada, tenha passado pela casa da Joan na altura em que a Andreasaiu. Andam agora à procura dele.
Ellie notou que o papá estava quase a chorar. Não parecia ter reparado nela, mas Ellie não se importou. Às vezes, o papá regressava a casa preocupado
comqualquer coisa má que tinha acontecido no trabalho, e durante uns momentos nãodizia palavra. Tinha, agora, a mesma expressão no rosto.
Ellie tinha a certeza de que Andrea estava a esconder-se. Tinha provavelmentepartido mais cedo da casa de Joan de propósito para se encontrar com
RobWesterfield no esconderijo e, depois, talvez tivesse ficado tarde e ela receasse voltar para casa. O papá tinha dito que se ela voltasse a mentir sobre
ondetinha estado, não a deixaria continuar a fazer parte da banda da escola.Dissera-lhe isso quando descobriu que ela tinha ido dar um passeio no carro deRob
Westerfield em vez de estar na biblioteca.
Andrea adorava pertencer à banda de música; o ano passado, fora a única caloiraa ser escolhida para a secção de flauta. Mas, mesmo que ela tivesse
saído decasa de Joan mais cedo para encontrar-se com Rob e o papá viesse a descobrir,isso não significava que ela seria obrigada a abandoná-la. A mamã dizia
sempreque Andrea podia enrolar o papá à volta do mindinho, mas já não disse a mesmacoisa quando, o mês passado, um polícia contou ao papá que tinha multado
RobWesterfield por excesso de velocidade e que Andrea estava no carro com ele.
O papá só falou do assunto depois do jantar e perguntou então a Andrea quantotempo tinha ficado na biblioteca.
Ela não lhe respondeu.
Vejo que és suficientemente esperta para te dar conta de que o polícia quemultou o Westerfield me viria dizer que estavas com ele. Andrea, esse
tipo nãosó é rico e mimado como também podre até ao caroço. Não hás-de estar no carrodele quando ele se matar num acidente. Estás absolutamente proibidade
o ver.
O esconderijo deles era na garagem por detrás da enorme casa onde a velha Sra.Westerfield, a avó de Rob, passava todo o Verão. A porta estava sempre
aberta e, às vezes, Andrea e as amigas escondiam-se
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lá dentro a fumar cigarros. Quando estava a tomar conta de Ellie, Andrea tinha-a lá levado umas quantas vezes.
As amigas tinham ficado furiosas com ela por trazer a irmã, mas Andrea tinhadito.
A Ellie é uma boa menina. Não é nenhuma queixinhas. Ao ouvir aquilo, Ellietinha-se sentido toda vaidosa. Mas Andrea não a deixara nem
sequer dar uma baforada.
Ellie tinha a certeza de que, na noite passada, Andrea saíra da casa de Joanmais cedo porque tencionava encontrar-se com Rob Westerfield. Ellie
tinha-aouvido falar com ele ontem ao telefone. Estava praticamente a chorar quandodesligou.
Disse ao Rob que ia a uma festa com o Paulie e, agora, ele zangou-se comigodisse ela.
Ellie pôs-se a pensar naquela conversa enquanto comia os cereais e bebia o sumode fruta. O papá estava de pé junto ao fogão com uma chávena de
café na mão. Amamã estava novamente a chorar, mas quase sem fazer nenhum som.
O papá pareceu então reparar nela pela primeira vez.
Acho que estarias melhor na escola, Ellie. Vou lá levar-te à hora do almoço.
Posso agora ir lá para fora?
Podes. Mas não te afastes de casa.
Ellie foi a correr buscar o blusão e saiu porta fora. Era o dia 15 de Novembro e as folhas estavam húmidas e afundavam-se molemente debaixo dos pés.
O céuestava pesado, coberto de nuvens, e ela sabia que iria chover outra vez. Elliedesejou estar de volta a Irvington onde costumavam viver. Isto aqui era
um sítio solitário. A casa da Sra. Hilmer era a única que existia nesta estrada.
Apesar de o papá gostar de viver em Irvington, tínhamo-nos mudado para aqui,cinco pequenas cidades mais longe, porque a mamã queria uma casa e um
jardimmaiores. Deram-se conta de que poderiam arranjar uma residência assim se fossemmorar mais para norte de Westchester, para uma cidadezinha que ainda
não setivesse tornado um subúrbio da cidade de Nova Iorque.
Quando o papá dizia que tinha saudades de Irvington, onde ele crescera e tinhamvivido até há dois anos, a mamã dizia-lhe
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que a nova casa era formidável. E, então, ele respondia que, em Irvington,tínhamos uma vista de um milhão de dólares sobre o rio Hudson e a ponte
TappanZee, e que ele não tinha de guiar oito quilómetros para comprar um jornal ou pão.
Havia bosques à volta de toda a propriedade. A grande mansão dos Westerfieldficava directamente atrás da nossa, mas do outro lado do arvoredo. Olhando
paraa janela da cozinha para se certificar de que ninguém a via, Ellie desatou acorrer por entre as árvores.
Chegou à clareira cinco minutos mais tarde e atravessou o terreno dos Westerfield. Sentindo-se cada vez mais sozinha, acelerou o passo para subir
ocaminho e dar a volta à casa. Era uma pequenina figura perdida no meio dassombras ameaçadoras da tempestade que se aproximava.
Havia uma porta lateral que dava para a garagem e era essa que não estavafechada à chave. Mas, mesmo assim, foi-lhe difícil girar a maçaneta. Conseguiufinalmen
te abri-la e penetrou na escuridão do interior. A garagem tinhacapacidade para quatro carros, mas o único que a Sra. Westerfield deixava depois do Verão era
uma carrinha. Andrea e as amigas tinham trazido velhas mantas esentavam-se sempre no mesmo lugar ao fundo da garagem por detrás da carrinhapara, no caso
de alguém espreitar pela janela, não as ver. Ellie sabia que, seAndrea ali estivesse, era esse o local onde estaria escondida.
Sem saber porquê sentiu de repente medo e, agora, em vez de se apressar, tinhade praticamente arrastar os pés para se aproximar do fundo da garagem.
Viu então a ponta de uma manta a aparecer por detrás da carrinha. Andrea estava realmente aqui! Nunca ela nem as amigas teriam deixado as mantas à vista; dobravam-nassempre
antes de partir e escondiam-nas no armário das arrumações.
Andrea...
Correu chamando a irmã baixinho para não a assustar. Está provavelmente adormir, decidiu Ellie.
Estava pois. Embora a garagem estivesse envolta em sombras, Elie conseguia ver o longo cabelo de Andrea caído por debaixo das mantas.
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Sou eu, Andrea.
Ajoelhou-se ao lado dela e puxou a manta que lhe tapava o rosto.
Andrea tinha uma máscara, uma horrível máscara monstruosa e peganhenta. Ellieestendeu a mão para a arrancar e os dedos enfiaram-se por um espaço
vazio natesta de Andrea. Ao puxar assustadamente a mão, reparou que o sangue a escorrerdo corpo da irmã lhe manchara as calças.
Ouviu então alguém a respirar uma respiração rouca e pesada que se transformounuma espécie de riso.
Aterrorizada, tentou levantar-se, mas os joelhos escorregaram na poça de sanguee caiu por cima do peito de Andrea. Os seus lábios roçaram por um
objecto macioe frio o medalhão de ouro de Andrea. Conseguiu pôr-se de pé, virou-se e desatoua fugir.
Só percebeu que gritava quase ao chegar a casa. Ted e Genine Cavanaugh acorreram ao pátio das traseiras e viram a filha mais nova sair do bosque a
correr debraços estendidos e o corpo coberto com o sangue da irmã.
CAPÍTULO DOIS
Excepto quando a sua equipa treinava ou tinha um jogo durante a época debasebol, Paulie Stroebel, de 16 anos, trabalhava na estação de serviço
deHillwood depois das aulas e durante todo o dia aos sábados. A alternativa eraajudar na charcutaria dos pais que ficava a um quarteirão de distância na
ruaprincipal, coisa que fazia de vez em quando desde os sete anos.
Lento nos estudos, mas bom em trabalhos mecânicos, adorava consertar carros e os pais tinham-se mostrado compreensivos quanto ao seu desejo de trabalhar
paraoutras pessoas. Com cabelo louro desgrenhado, olhos azuis, face redonda e umfísico robusto com um 1,70 metros de altura, Paulie era considerado um empregado
trabalhador e tranquilo pelo patrão, e um idiota chapado pelos colegas do liceu Delano. A sua única proeza era ser membro da equipa de futebol.
Na sexta-feira, quando a informação sobre o assassínio de Andrea Cavanaughchegou ao liceu, foram despachados conselheiros escolares para todas as
aulas afim de participar a notícia aos estudantes. Paul estava a meio de um período deestudo quando Miss Watkins entrou na aula, falou em voz baixaao
ouvido do professor e tamborilou no tampo da secretária para chamar aatenção.
Tenho uma notícia muito triste a dar a todos vocês começou. Acabámos de saber...
E, em frases hesitantes, informou-os que a aluna Andrea Cavanaugh tinha sidoassassinada. A reacção foi um coro de arquejos chocados e protestos
lacrimosos.
Um «não» gritado silenciou os outros. O plácido Paulie Stroebel, de rostocontorcido pela dor, tinha-se levantado de um pulo. Quando os colegas se
viraram para ele, os seus ombros tremiam. Violentos soluços sacudiam-lhe o corpo e elesaiu da aula a correr. Ao fechar a porta atrás dele, disse algo em voz
demasiado abafada para a maior parte dos estudantes ouvir. No entanto, o aluno sentadoperto da porta jurou mais tarde tê-lo ouvido dizer: «Não posso acreditar
queesteja morta!»
Emma Watkins, a conselheira escolar, já meio atordoada pela tragédia, sentiu-secomo se uma faca lhe tivesse atravessado o corpo. Simpatizava com
Paulie ecompreendia o isolamento daquele estudante honesto e marrão,que se esforçava tanto para agradar.
Ela estava certa de que as palavras angustiantes que ele tinha gritado eram: «Não julguei que estivesse morta!»
Nessa tarde, e pela primeira vez desde que há seis meses trabalhava na estaçãode serviço, Paulie não apareceu nem telefonou ao patrão para justificar
a suaausência. Quando os pais chegaram a casa, deram com ele deitado em cima da camacom fotografias de Andrea espalhadas à sua volta a fitar o tecto.
Tanto Hans como Anja Wagner Stroebel tinham nascido na Alemanha e imigrado emcriança para os Estados Unidos juntamente com os pais. Tinham-se conhecido
ecasado perto da casa dos 40 e usado as suas poupanças para abrir a charcutaria.Pouco demonstrativos de temperamento, protegiam encarniçadamente o único
filho.
Toda a gente que vinha à loja falava do assassínio,perguntando-se quem poderia ter cometido um crime tão horrendo. Os Cavanaugheram clientes
habituais e os Stroebel juntaram-se às chocadas conversas queAndrea talvez tivesse ido encontrar-se com alguém na garagem da propriedade dosWesterfield.
Concordavam que ela era bonita, mas um bocado impetuosa. Devia ter ficado aestudar com Joan Lashley até às nove horas,
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mas resolvera inesperadamente sair mais cedo. Tinha ela planeado encontrar-secom alguém ou fora assaltada a caminho de casa? Anja Stroebel agiu
por instintoao ver as fotografias de Andrea espalhadas sobre a cama do filho. Recolheu-as emeteu-as entre as páginas do seu livro de apontamentos. Abanou
a cabeça quando o marido lhe lançou um olhar interrogador para indicar que ele não devia fazerquaisquer perguntas e, a seguir, sentou-se ao lado de Paulie e
abraçou-se a ele.
A Andrea era tão bonita disse ternamente com um sotaque que se tornava maisacentuado quando estava preocupada.
Lembro-me de como ela te felicitou quando apanhaste aquela bola e salvaste aequipa na Primavera passada. Como todos os outros amigos dela, estás
muito,muito triste.
Ao princípio, Paulie julgou que a mãe lhe estava a falar de muito longe. Comotodos os outros amigos. O que é que ela queria dizer?
A polícia vai procurar a pessoa que tiver sido mais íntima de Andrea, Pauliedisse lentamente, mas com firmeza.
Convidei-a para uma festa disse ele em voz entrecortada. E ela prometeu que iria comigo.
Anja tinha a certeza de que o filho nunca antes convidara uma rapariga parasair. O ano passado, tinha recusado ir ao baile dos caloiros.
Gostavas então dela, Paulie? Paulie Stroebel começou a chorar.
Amava-a tanto, mamã.
Gostavas dela, Paul corrigiu-o Anja com insistência.
Não te esqueças disso.
No sábado, já recomposto e desculpando-se por não ter ido trabalhar nasexta-feira à tarde, Paulie Stroebel apareceu na estação de serviço.
Ao princípio da tarde desse mesmo dia, Hans foi entregar pessoalmente fiambre de Virgínia e saladas a casa dos Cavanaugh e pediu à vizinha deles, a
Sra. Hilmer, que veio à porta, que lhes transmitisse os seus mais sinceros pêsames.
CAPÍTULO TRÊS
É pena que o Ted e a Genine sejam ambos filhos únicos ouviu Ellie a Sra. Hilmerdizer umas duas vezes no sábado. Numa altura destas, é mais fácil
quando hámuitos parentes à nossa volta.
Ellie não estava interessada em ter mais família. Desejava apenas Andrea devolta, que a mamã deixasse de chorar e que o papá falasse com ela. Mal
lhe tinha dirigido uma palavra desde que chegara a casa a correr e ele a tinha pegado aocolo e ela conseguira dizer-lhe onde se encontrava Andrea e que a irmã
estava ferida.
Mais tarde, depois de ele ter ido ao esconderijo e visto Andrea e toda a polícia chegar, o papá veio ter com ela.
Ellie, já sabias ontem à noite que a tua irmã podia estar na garagem. Por que éque não nos disseste?
Não me perguntaste e obrigaste-me a ir para a cama.
Pois foi admitiu ele.
Mas, depois, ouviu-o falar com um dos polícias.
Se eu ao menos soubesse que a Andrea estava naquela garagem... Talvez às novehoras ela ainda estivesse viva. Podia tê-la encontrado a tempo.
Alguém da polícia falou com Ellie e fez-lhe perguntas sobre o esconderijo esobre quem costumava lá ir. Ellie ouvia a voz de Andrea dentro da sua
cabeça adizer: «A Ellie é uma boa menina. Não é nenhuma queixinhas.»
Pensar em Andrea e saber que a irmã nunca mais regressaria acasa fez Ellie começar a chorar tanto que o polícia parou de a
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interrogar.
A seguir, na tarde de sábado, um homem que disse ser o inspector Marcus Longoveio a casa deles. Levou Ellie para a sala de jantar e fechou a porta.
Elaachou-o simpático e ele contou-lhe que tinha um filho exactamente com a mesmaidade, que era muito parecido com ela.
Tem os mesmos olhos azuis disse. E cabelo da mesma cor que o teu. Costumodizer-lhe que, quando está sol, se parece com areia.
E, depois, disse-lhe que quatro das amigas de Andrea tinham confessado quecostumavam ir para o esconderijo com ela, mas que nenhuma delas tinha
lá estadonessa noite. Mencionou o nome das raparigas e, depois, perguntou-lhe:
Conheces mais algumas outras raparigas que possam ter-se encontrado lá com a tua irmã, Ellie?
Se elas mesmas já tinham confessado, não estava a denunciá-las.
Não respondeu Ellie em voz baixa. Essas são todas que eu sei.
Há mais alguém com quem a Andrea possa ter-se encontrado no esconderijo?
Hesitou. Não podia falar-lhe de Rob Westerfield. Isso seria realmente denunciarAndrea.
Alguém fez tanto mal à Andrea que ela já não está viva, Ellie disse o inspectorLongo. Não protejas essa pessoa. A Andrea havia de gostar que nos
contasses tudo o que sabes.
Ellie baixou os olhos para as mãos. Nesta grande casa de quinta, esta sala era a sua preferida. Dantes, o papel das paredes era muito feio, mas agora
as paredes estavam pintadas de amarelo-claro e havia um lustre novo sobre a mesa, cujaslâmpadas pareciam velas. A mamã tinha-o encontrado numa venda de objectos
emsegunda mão e dizia que era um tesouro. Levara muito temPO a limpá-lo, mas agora todas as visitas o admiravam.
Embora o papá achasse parvoíce fazerem tanta cerimónia, jantavam sempre na sala de jantar. A mamã tinha um livro que mostrava como
pôr a mesa para um jantar formal, e Andrea estava encarregada de pôr a mesa assim todos os domingos, mesmo
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quando estavam sozinhos. Ellie ajudava-a e divertiam-se a colocar os talheres de prata e os pratos de porcelana.
Hoje, o nosso convidado de honra é o Lorde Malcolm Rabogrande dizia Andrea.
A seguir, e seguindo à risca o livro de etiqueta, ela sentava-o à direita damamã.
Oh, não, Gabrielle, o jarro de água tem de ser colocado ligeiramente à direitada faca de trinchar.
O verdadeiro nome de Ellie era Gabrielle, mas, à parte Andrea por brincadeira,ninguém a chamava assim. Perguntou a si própria se, a partir de agora,
seria ela a pôr a mesa aos domingos. Esperava bem que não. Sem Andrea já não teriagraça.
Era esquisito estar a pensar daquela maneira. Por um lado, sabia que Andreaestava morta e seria enterrada na manhã de terça-feira no cemitério
de Tanytownjunto ao avô e à avó Cavanaugh. Mas, por outro, ainda esperava ver a irmã entrar a qualquer instante em casa, aproximar-se dela e contar-lhe um segredo.
Um segredo. Andrea encontrava-se às vezes com Rob Westerfieldno esconderijo. Mas Ellie tinha feito um juramento e prometido não dizer nada.
Quem fez mal à Andrea pode fazer mal a qualquer outra pessoa se não oprendermos, Ellie disse o inspector Longo.
A voz dele era tranquila e amigável.
Acha que a Andrea está morta por minha culpa? O papá acha que sim.
Não, não acha nada, Ellie disse o inspector Longo. Mas tudo o que nos disseressobre os segredos que tu e a Andrea partilhavam pode agora ajudar-nos.
Rob Westerfield, pensou Ellie. Talvez não fosse quebrar uma promessa falar deleao inspector Longo. Se tinha sido Rob quem magoara Andrea, toda
a gente devia saber. Fitou novamente as mãos.
Às vezes, ela encontrava-se com o Rob Westerfield no esconderijo sussurrou.
O inspector Longo inclinou-se para a frente.
Sabes se ela ia encontrar-se lá com ele naquela noite?
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Acho que sim. O Paulie Stroebel tinha-lhe pedido para ir com ele à festa deAcção de Graças e ela tinha dito que sim. A Andrea não queria realmente
ir com ele, mas o Paulie tinha-lhe dito que sabia que ela via oRob Westerfield às escondidas e a minha irmã teve medo que ele contasse ao papáse ela não
aceitasse o convite. Mas, então, o Rob zangou-se com ela e Andreaqueria explicar-lhe que concordara sair com o Paulie para convencê-lo a nãocontar nada ao
papá. Talvez fosse portanto por isso que ela saiu de casa da Joan mais cedo.
Como é que o Paulie descobriu que a Andrea andava a ver o Rob Westerfield?
A Andrea disse que ele às vezes seguia-a até ao esconderijo. O Paulie queria que ela fosse namorada dele.
CAPÍTULO QUATRO
A máquina de lavar a roupa tinha sido usada.
O que é que era tão importante que não podia esperar até eu voltar, Sra.Westerfield? perguntou Rosita em tom defensivo, como se receasse não tercumprido
as suas tarefas.
Tinha saído da cidade quinta-feira para ir visitar a tia doente. Era agorasábado de manhã e ela tinha acabado de chegar.
Não devia dar-se ao trabalho de lavar a roupa. Anda muito ocupada a decorartodas essas casas.
Sem saber bem porquê, Linda Westerfield sentiu uma campainha de alarme ressoarna cabeça e não respondeu directamente aos comentários de Rosita.
Oh, às vezes, quando estou a verificar as pinturas e sujo a roupa, mais valelavá-la logo do que deixá-la por aí disse.
Bem, a julgar pela quantidade de detergente que utilizou, deve ter sido umgrande monte de roupa. Ouvi ontem a notícia da morte da menina Cavanaugh
nasinformações. Não consigo deixar de pensar nela. Quem havia de acreditar que umacoisa dessas podia acontecer numa cidadezinha como esta, Sra. Westerfield?
Quepena!
Pois é.
Devia ter sido Rob quem utilizara a máquina, pensou Linda.; O marido, Vince, emnenhumas circunstâncias a teria utilizado.: Nem sequer deveria saber
como pô-laa funcionar. ;
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Os olhos negros de Rosita humedeceram de lágrimas e ela esfregou-os com a mão.
Pobre mãe...
Rob? O que é que ele teria para lavar com tanta urgência?
Era um velho truque dele. Quando tinha 11 anos, tentara tirar o cheiro a tabacoda roupa.
A Andrea Cavanaugh era a coisa mais linda. E o pai é tenente da polícia! Seriade julgar que um homem desses devia poder proteger a própria filha...
Pois.
Linda estava sentada ao balcão da cozinha e percorria os esboços que fizera para as janelas da nova casa de um cliente.
Pensar que alguém foi capaz de esmagar a cabeça da pobre rapariga. Tem de ser um monstro. Espero que o enforquem quando o apanharem.
Rosita falava agora com os seus botões e parecia não esperarpor nenhuma resposta. Linda guardou os desenhos numa pasta.
Eu e o Sr. Westerfield vamos encontrar-nos com uns amigos para jantar, Rositadisse, deixando-se escorregar do banco.
O Rob vai ficar em casa? Boa pergunta, pensou Linda.
Ele foi dar um passeio, mas deve voltar dentro de instantes. Pergunte-lhe.
Julgou sentir um ligeiro tremor na voz. Ontem, Rob tinha passado todo o diaagitado e de mau humor. Quando a notícia da morte de Andrea Cavanaugh
seespalhou pela cidade, tinha esperado que o filho se sentisse perturbado, mas, em vez disso, ele mostrara-se despreocupado.
Mal a conhecia, mamã tinha-lhe dito.
Seria simplesmente porque Rob, como muitos rapazes de 19 anos, nãoconseguia enfrentar a morte de uma pessoa jovem? Como se, de certo modo, sentisse
a sua própria mortalidade ameaçada?
Linda subiu lentamente as escadas com a sensação repentina de uma catástrofeiminente. Tinham-se mudado há seis anos de uma casa na Rua 70 Este,
emManhattan, para esta mansão construida
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antes da Revolução Americana, quando Rob fora para um colégio interno. Nessaaltura, tanto ela como o marido sabiam que era na casa da mãe de Vince,
ondetradicionalmente passavam o Verão, que queriam viver para sempre. Vince tinhadito que havia óptimas oportunidades para ganhar dinheiro e começara a investirem
bens imobiliários.
A casa, com a sua presença alheia ao tempo, era uma constante fonte de prazertranquilo, mas, hoje, Linda não fez uma pausa para afagar a madeira
polida do corrimão nem parou para contemplar da janela no alto dasescadas a vista do vale.
Foi directamente ao quarto de Rob. A porta estava fechada. Ele tinha saído háuma hora para correr no bosque e poderia voltar a qualquer instante.
Abriunervosamente a porta e entrou. A cama estava desfeita, mas o resto do quartoestava estranhamente arrumado. Rob era bastante meticuloso com a sua roupa
e, às vezes, chegava a mandar passar a ferro calças acabadas de vir da lavandariapara acentuar o vinco, mas era desarrumado. Tinha esperado ver a roupa que
eleusara na quinta e na sexta-feira no chão para Rosita a apanhar.
Atravessou rapidamente o quarto e verificou o cesto de roupa suja que se encontrava na casa de banho. Estava vazio.
Entre a manhã de quinta-feira, dia em que Rosita fora visitar a tia doente, ebem cedo esta manhã, Rob tinha lavado e secado a roupa que usara anteontem
eontem. Porquê?
Linda teria gostado de inspeccionar o guarda-fato, mas sabia que searriscava a que ele a encontrasse ali. Não estava preparada para umaconfrontação.
Saiu do quarto, sem se esquecer de voltar a fechar a porta, epercorreu o corredor em direcção à suite que ela e Vince tinham mandadoacrescentar quando ampliaram
a casa.
Consciente de que estava prestes a sentir uma enxaqueca, pousou a pasta num sofá da sala e dirigiu-se para a casa de banho, a fim de tomar um remédio.
Engoliudois comprimidos e, ao olhar-se no espelho, ficou chocada com o seu aspectopálido e ansioso.
Estava vestida com um fato de treino porque fazia tenção de ir correr depois detrabalhar nos esboços. Tinha o cabelo curto castanho preso atrás
por um elástico e não se maquilhara. Perante
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o seu olhar hipercrítico, parecia mais velha do que os seus 44 anos, compequeninas rugas à volta dos olhos e aos cantos da boca.
Ao lançar um olhar pela janela da casa de banho que dava para o pátio daentrada, viu um carro desconhecido a aproximar-se e a campainha da porta
principal tocou momentos mais tarde. Esperava que Rosita usasse ointercomunicador para a prevenir de quem era, mas, em vez disso, a criada subiuas escadas
e entregou-lhe um cartão-de-visita.
Esse senhor quer falar com o Rob, minha senhora. Disse-lhe que o Rob estava acorrer no bosque e ele disse então que ficaria à espera dele.
Linda era uns centímetros mais alta do que Rosita, a qual tinha apenas umpouco mais de metro e meio, mas teve quase de apoiar-se a ela para não
cair aoler o nome no cartão-de-visita: inspector da polícia Marcus Longo.
CAPÍTULO CINCO
Onde quer que fosse, Ellie sentia-se a mais. Foi à procura da mamã depois dosimpático inspector ter-se ido embora, mas a Sra. Hilmer disse-lhe que
o médicolhe tinha dado um remédio para a ajudar a descansar. E o papá passava quase todo o tempo fechado no seu gabinete. Tinha dito que queria ficar sozinho.
A avó Reid, que vivia na Florida, chegou ao fim da tarde de sábado, mas tudo oque fez foi chorar.
A Sra. Hilmer e algumas das amigas da mamã do clube de bridge sentaram-se à mesa da cozinha. Ellie ouviu uma delas, a Sra. Storey, dizer:«Sinto-me
muito inútil, mas também julgo que a Genine e o Ted, sabendo queestamos aqui, se sentirão menos sozinhos.»
Ellie saiu e foi sentar-se no baloiço. Balançou as pernas até o baloiço subircada vez mais alto. Queria passar por cima da barra do baloiço, cair
lá do altoe magoar-se. Talvez então a dor que sentia dentro dela parasse.
Já não chovia, mas ainda não havia sol e fazia frio. Passados uns momentos,Ellie deu-se conta de que não valia a pena continuar; o baloiço não
ia maisalto. Voltou a entrar em casa pela porta ao lado da cozinha. Ouviu a voz da mãede Joan. Tinha-se juntado às outras senhoras e Ellie percebeu que ela
estava achorar.
Fiquei admirada por a Andrea sair mais cedo. Já tinha anoitecido e passou-mepela cabeça levá-la a casa de carro. Se ao menos...
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A seguir, Ellie ouviu a Sra. Lewis.
Se ao menos a Ellie lhes tivesse dito que a Andrea costumava ir para aquelagaragem... O «esconderijo», como elas lhe chamam... Talvez então o Ted
chegasselá a tempo.
Se a Ellie ao menos...
Ellie subiu em bicos de pés as escadas de trás para que elas não a ouvissem. Amala da avó estava em cima da cama dela. Era esquisito. Então a avó
não iadormir no quarto da Andrea? Agora estava
vazio.
Ou, se calhar, iam deixá-la, a ela, dormir no quarto da irmã. Se acordasse ameio da noite, poderia, então, fingir que Andrea iria voltar a qualquerinstante.
A porta do quarto de Andrea estava fechada. Abriu-a tão silenciosamente comosempre fazia nas manhãs de sábado para ver se a irmã ainda estava a
dormir.
O papá estava sentado à secretária de Andrea. Tinha uma fotografia emolduradanas mãos. Ellie sabia que era a fotografia de Andrea em bebé, aquela
que tinhauma moldura de prata, e a frase: «A Menina do Papá» gravada em cima.
Enquanto ela o observava, ele abriu a caixa de música. Mais um presente que opapá tinha oferecido a Andrea pouco depois de ela ter nascido. O papá
costumavacontar que Andrea, quando era bebé, nunca queria dormir e que ele então davacorda à caixa de música, dançava à volta do quarto com ela ao colo e
cantava aletra da música até ela adormecer.
Ellie tinha perguntado se o papá também fizera isso com ela, mas a mamãtinha-lhe dito que não, porque ela adormecia com facilidade. Desde que tinhanascido
que não dava trabalho nenhum.
Fragmentos da letra vieram à cabeça de Ellie enquanto a música tocava. «... És a menina do papá para abraçar e dar colinho... És o espírito do Natal,
a minhaestrela no topo da árvore... E és a menina do papá.»
Enquanto ela o observava, o papá sentou-se à beira da cama de Andrea e desatou a chorar.
Ellie recuou e saiu do quarto, fechando a porta tão silenciosamente como a tinha aberto.
SEGUNDA PARTE
Vinte e três anos mais tarde
CAPÍTULO SEIS
A minha irmã, Andrea, foi assassinada há quase 23 anos, mas parece sempre comose isso tivesse acontecido ontem.
Rob Westerfield foi preso dois dias depois do funeral e acusado de homicídio emprimeiro grau. A partir quase unicamente da informação que lhes dei,
a políciaconseguiu obter autorização para fazer uma busca na casa dos Westerfield e nocarro de Rob. Encontraram a roupa que ele tinha usado na noite em que
a matou e, apesar de ele a ter limpo com todo o cuidado, o laboratório conseguiuidentificar manchas de sangue, e o macaco usado como arma do crime foiencontrado
no porta-bagagens do carro. Também o tinha lavado, mas ainda haviavestígios do cabelo de Andrea.
A defesa de Rob foi que, nessa noite, tinha ido ao cinema e que, como o parquede estacionamento estava cheio, ele deixara o carro na estação de
serviço aolado. Disse que as bombas de gasolina estavam fechadas, mas que tinha encontrado Paulie Stroebel a trabalhar na garagem e pedira-lhe para deixar lá
o carro.Viria buscá-lo depois da sessão.
Rob declarou que, enquanto ele estava a ver o filme, Paulie Stroebel devia terguiado o carro até ao esconderijo, assassinado Andrea e voltado depois
aestacionar o carro na estação de serviço. Disse ainda que tinha levado pelomenos uma dúzia de vezes o carro a afinar na estação de serviço e que, numadessas
ocasiões, Paulie poderia ter feito outra chave.
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Tentou explicar o sangue na roupa e nas solas dos ténis, e afirmou que Andrealhe tinha suplicado para se encontrar com ela no esconderijo. Disse
que Andrea o importunava com telefonemas e que lhe tinha telefonado à hora de jantar nanoite em que fora morta. Tinha-lhe dito que ia a uma festa com Paulie
Stroebel e que não queria que ele ficasse zangado com ela.
Não me importava com quem ela saía declarou no decorrer do julgamento. Eraapenas uma miúda apaixonada por mim. Seguia-me por toda a parte. Sempre
quevinha à cidade, ela aparecia logo. Ia jogar bowling e, de repente, ela estava na pista ao lado. Apanhei-a, a ela e às amigas dela, afumar na garagem da
minha avó. Queria ser simpática e, assim, disse-lhe que nãofazia mal. Estava sempre a pedir-me para a levar a passear de carro. Estavasempre a telefonar-me.
Tinha uma explicação para o facto de ter ido ao «esconderijo» nessa noite.
Saí do cinema e meti-me no carro a caminho de casa disse. Mas, depois, fiqueipreocupado por causa dela. Apesar de ter recusado encontrar-me com
a Andrea, ela dissera-me que, de qualquer modo, ficaria à minha espera. Pensei que era melhor passar por lá para me certificar de que a Andrea tinha voltado para
casa antesdo pai dar pela sua falta. A lâmpada da garagem estava fundida e tive de meaproximar da carrinha às apalpadelas. A Andrea e as amigas costumavam
sentar-seem mantas a fumar cigarros atrás da carrinha.
Senti a manta debaixo dos pés e distingui com dificuldade um vulto lá deitado.Pensei que a Andrea se tinha cansado de esperar por mim e acabara
por adormecer. A seguir ajoelhei-me e toquei-lhe no rosto. Senti sangue e fugi.
Perguntaram-lhe porque tinha fugido.
Porque receei que alguém pensasse que tinha sido eu.
O que é que julgou que tinha acontecido a Andrea?
Não sei. Fiquei assustado. E, quando descobri que o macaco no porta-bagagemestava sujo de sangue, percebi logo que tinha sido o Paulie quem a matara.
Era muito manhoso e o seu testemunho tinha sido bem ensaiado. Era um jovem bemparecido e causou uma forte impressão.
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Mas eu era a punição de Rob Westerfield. Lembro-me de ir à barra das testemunhas e de responder às perguntas que o promotor público fez.
A Andrea telefonou ao Rob Westerfield antes de ir estudar
para casa da Joan, Ellie?
Telefonou.
Ele alguma vez lhe telefonou?
Às vezes, mas se o papá ou a mamã respondiam ele desligava. Queria que fosse aAndrea a telefonar-lhe porque tinha um telefone no quarto.
Havia algum motivo especial para a Andrea lhe ter telefonado na noite em quemorreu?
Havia.
Ouviste a conversa?
Só um pouquinho. Entrei no quarto da minha irmã e ela estava quase a chorar.Dizia ao Rob que tinha de ir à festa com o Paulie porque não queria
que o Paulie fosse contar ao papá que, às vezes, se encontrava com o Rob no esconderijo.
O que é que aconteceu depois?
Ela disse ao Rob que ia estudar com a Joan e ele disse-lhe para se encontrar com ele no esconderijo.
Ouviste-o dizer isso?
Não, mas ouvi a minha irmã dizer: «Vou tentar, Rob» e, quando ela desligou,disse-me: «O Rob quer que eu saia mais cedo da casa de Joan e me vá
encontrarcom ele no esconderijo. Está zangado comigo. Disse-me que eu não devia sair commais ninguém.»
A Andrea disse-te isso?
Disse.
E, a seguir, o que é que aconteceu?
Revelei depois o último segredo de Andrea e quebrei a promessa sagrada que lhetinha feito o juramento «eu-morra-já-aqui» se alguma vez falasse
a alguém domedalhão que Rob lhe tinha oferecido. Era de ouro e tinha a forma de um coraçãocom pedrinhas azuis. Andrea mostrara-me as iniciais que Rob tinha
mandado gravar na parte de trás. Nessa altura, desatei a chorar porque tinha muitas saudadesda minha irmã e custava-me falar dela.
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Ela pôs o medalhão antes de sair e, assim, tive a certeza que ela iriaencontrar-se com ele acrescentei sem que ninguém me perguntasse nada.,
Um medalhão?
Foi o Rob quem lho deu. A Andrea usava-o por debaixo da blusa para que não avissem. Mas eu sentio-o quando encontrei a minha irmã na garagem.Lembro-me
de estar sentada no banco das testemunhas e de evitar olharpara Rob Westerfield que me fitava com ódio.
Juro que podia ler os pensamentos da minha mãe e do meu pai sentados por detrásdo promotor público: devias ter-nos contado, Ellie; devias ter-nos
contado.
O meu testemunho foi atacado pelos advogados de defesa. Disseram que Andreausava frequentemente uma jóia que o meu pai lhe tinha dado, que era a
mesma quese encontrava em cima do toucador de Andrea depois do seu corpo ter sido encontrado e que eu estava a inventar histórias ou a repetir as histórias
queAndrea inventara acerca de Rob.
Quando a encontrei, a Andrea tinha o medalhão que o Rob lhe deu insisti.,|
Senti-o explodi. É por isso que sei que era o Rob Westerfield que estava noesconderijo quando encontrei a Andrea. Tinha voltado para tirar o medalhão.
Os advogados de Rob ficaram furiosos e a minha observação foi riscada dosregistos. O juiz virou-se para os jurados e disse-lhes para não a tomarem
emconsideração.Alguém acreditou no que lhes disse sobre o medalhão que Rob oferecera a Andrea?Não sei. O caso foi apresentado ao júri que se
retirou durante quaseuma semana. Soubemos que, ao princípio, alguns jurados eram a favor de umveredicto por homicídio involuntário, mas o resto insistiu
que ele deveria sercondenado por crime premeditado. Achavam que Rob tinha levado o macaco paraa garagem porque estava decidido a matar Andrea.Reli
a transcrição do julgamento no decorrer das primeiras vezesque Westerfield pediu liberdade condicional e escrevi cartas veementes protestando
contra a sua libertação. Mas, como ele já tinha39
passado quase 22 anos na prisão, sabia que, desta vez, a liberdade condicionalpoderia vir a ser-lhe concedida e foi por isso que voltei aOldham-on-the-Hudson.
Tenho 30 anos, vivo em Atlanta e trabalho como repórter para o Atlanta News.O redactor-chefe, Pete Lawlor, considera uma afronta pessoal ofacto
de um jornalista ter férias nem que seja uma vez por ano e, assim,esperava que ele trepasse pelas paredes quando lhe comuniquei que precisavaimediatamente
de uns dias de folga e que, mais tarde, talvez precisasse ainda de mais tempo.
Vais-te casar?
Garanti-lhe que era a última coisa que me passaria pela cabeça.
Então o que é que aconteceu?
Nunca tinha falado da minha vida pessoal a ninguém do jornal, mas Pete Lawlor éo género de pessoa que parecia saber tudo sobre toda a gente. Trinta
e um anos,já meio calvo e em luta constante para perder aqueles quilos a mais, eratalvez o homem mais esperto que eu jamais tinha conhecido. Seis meses
depois deeu ter começado a trabalhar para o News e feito uma reportagemsobre uma adolescente assassinada, ele tinha-me dito bruscamente: «Deve ter sido
muito duro para ti. Sei o que aconteceu à tua irmã.»
Não esperava uma resposta, nem eu lhe dei nenhuma, mas senti a sua empatia. Oque me ajudou. Tinha sido um trabalho emocionalmente extenuante.
O assassino da Andrea vai pedir novamente liberdade condicional e receio bemque, desta vez, a consiga. Quero ver se há alguma coisa que eu possa
fazer paraimpedir que isso suceda.
Pete recostou-se na cadeira. Andava sempre com uma camisa aberta no peito e umacamisola. Por vezes perguntava-me se ele tinha algum casaco.
Quantos anos é que ele já cumpriu?
Quase 22.
E quantas vezes pediu liberdade condicional?
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Duas.
Teve algum problema na prisão?
Senti-me como uma menina de escola a ser interrogada num exame.
Que eu saiba, nenhum.
Então vai provavelmente sair em liberdade.
É isso que eu acho.
Então qual é o problema?
Sinto apenas que tenho de o fazer.
Pete Lawlor não acredita em perder tempo nem palavras. Não me fez mais nenhumapergunta e acenou simplesmente com a cabeça.
OK. Quando é que é a audiência?
Na próxima semana. Tenho de falar com alguém da comissão que está a rever o caso na segunda-feira.
Voltou-se para a papelada em cima da sua secretária, sinal que a conversa estava acabada.
Vai lá.
Mas, quando me virei para me ir embora, ele acrescentou.
Não és tão dura como julgas que és, Ellie.
Sou, sim.
Não me dei ao trabalho de lhe agradecer a folga.
Isto passou-se sexta-feira. Tomei o avião no sábado de Atlanta para o aeroportodo condado de Westchester e aluguei um carro quando lá cheguei.
Podia ter ficado num motel em Ossining, perto de Sing Sing, a prisão onde oassassino de Andrea estava encarcerado. Mas preferi percorrer vinte e
poucosquilómetros para chegar à minha cidade natal, Oldham-on-the-Hudson, e conseguiarranjar um quarto na pitoresca estalagem Parkinson. Lembrava-me vagamentetermos
lá ido almoçar ou jantar algumas vezes.
Era óbvio que os negócios da estalagem prosperavam. Neste sábado frio deOutubro, as mesas da sala de jantar estavam cheias de gente informalmentevestida,
a maior parte casais e pequenos grupos. Senti saudades. Era assim queme lembrava da minha vida anterior, nós os quatro a almoçar aos sábados e depois o papá
deixar-nos às vezes, a mim e à Andrea, à porta do cinema. Ela ia
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encontrar-se com amigas, mas não se importava que eu fosse com ela.
A Ellie é uma boa menina. Não é nenhuma queixinhas
dizia.
Quando o filme terminava mais cedo, precipitávamo-nos todas para o esconderijoonde Andrea, Joan, Margy e Dottie partilhavam um cigarro à pressa
antes deregressarmos a casa.
E se o papá dizia que a roupa dela cheirava a fumo, Andrea tinha uma respostasempre pronta.
Não tenho culpa. Fomos comer uma pizza depois do cinema e havia lá uma data de gente a fumar.
E, depois, piscava-me o olho.
A estalagem Parkinson tinha apenas oito quartos, mas ainda havia um vago. Era um espaço espartano com uma cama de ferro, uma secretária de duas gavetas,
umamesinha-de-cabeceira e uma cadeira. A janela dava para leste, na direcção em que a casa onde tínhamos vivido ficava. Nessa tarde, o Sol estava incerto eescondia-se
por entre as nuvens, por vezes a brilhar e outras completamenteescondido.
Fiquei à janela a olhar lá para fora e pareceu-me ter novamente sete anos eestar a observar o meu pai com a caixa de música nas mãos.
CAPÍTULO SETE
Lembro-me dessa tarde como o dia que definiu a minha vida. «Dai-nos a criançaaté ela ter sete anos e eu mostrar-vos-ei o homem», disse Santo Inácio
deLoyola.
Assumo que ele também se referia às mulheres. Mantive-me ali, quieta como umrato, a observar o pai que eu adorava agarrado à fotografia da minha
irmã mortae a chorar enquanto os frágeis sons da caixa de música voltejavam em redor dele.
Olho para trás e pergunto a mim própria se ocorreu lançar-me nos seus braços eabraçá-lo, absorvendo o seu pesar e deixando-o misturar-se como
meu. Mas a verdade é que, mesmo nessa altura, compreendi que a sua dor eraúnica e que, por mais que fizesse, nunca conseguiria consolá-lo.
O tenente Edward Cavanaugh, oficial condecorado da Polícia Estatal de NovaIorque, herói de uma dúzia de situações perigosas, não fora capaz de
impedir a morte da sua bela e teimosa filha de 15 anos, e a angústia dele não podia ser partilhada nem sequer por alguém do seu próprio sangue.
Acabei por compreender, ao longo dos anos, que quando a dor não é partilhada, aculpa é passada de uma pessoa para outra como uma batata quente e
cola-se àsmãos daquela que é menos capaz de se desembaraçar dela.
Neste caso, essa pessoa era eu.
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O inspector Marcus Longo não perdeu tempo para se aproveitar do facto de eu terviolado a confiança que Andrea depositara em mim. Tinha-lhe dado
duas pistas,dois suspeitos possíveis: Rob Westerfield, que utilizou as suas tácticasrequintadas de menino rico para seduzir Andrea, e Paul Stroebel, adolescenterústico
e tímido com uma paixão pela linda caloira que aplaudia entusiasticamente as suas proezas desportivas no campo de râguebi.
Sempre a fazer claque pela equipa da casa ninguém era melhor nisso de queAndrea!
Enquanto os resultados da autópsia ao corpo da minha irmã estavam a serexaminados e decorriam os preparativos para ela ser enterrada no cemitérioPortas
do Céu, junto dos nossos avós paternos que eu mal me lembrava, oinspector Longo interrogava Rob Westerfield e Paul Stroebel. Ambos protestaramque não tinham
visto Andrea na quinta-feira à noite nem tinham planeadoencontrar-se com ela.
Paul tinha trabalhado na estação de serviço e, embora esta tivesse fechado àssete, declarou que ficara mais tempo na garagem a consertar vários
carros. RobWesterfield jurou que tinha ido ao cinema local e até apresentou um bilhete como prova.
Lembro-me de estar de pé à beira da sepultura de Andrea com uma única rosa namão e de me dizerem, depois do serviço fúnebre ter terminado, para
eu a colocarem cima do caixão. Também me lembro que me sentia morta por dentro, tão morta equieta como Andrea se encontrava quando me debrucei sobre ela na
garagem.
Queria dizer-lhe como lamentava ter revelado o seu segredo acerca dos seusencontros com Rob e também queria dizer-lhe, com igual emoção, que tinha
muitapena por não ter contado tudo aos nossos pais assim que nos demos conta de queela já tinha saído da casa de Joan, mas ainda não chegara a casa. Mas
claro quenada disse. Deixei cair a flor que escorregou do caixão e, antes que eu pudesserecuperá-la, a minha avó adiantou-se e colocou a dela como devia ser,
esmagandocom o pé a minha rosa na terra enlameada.
Momentos mais tarde, saímos em fila do cemitério e, no meio da multidão derostos solenes, entrevi olhares coléricos lançados na minha direcção.
OsWesterfield não assistiram ao funeral, mas
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os Stroebel, ladeando Paulie e tocando-lhe com os ombros, encontravam-se lá.Lembro-me do sentimento de culpa que me rodeava, me esmagava e sufocava.
Foi umsentimento que nunca mais perdi
Tentei dizer-lhes que, ao ajoelhar-me ao lado do corpo de Andrea, tinha ouvidoalguém a respirar, mas não acreditaram em mim porque eu estava muito
assustada e histérica. A minha própria respiração quando fugi do bosque era tão arquejantee difícil como veio a tornar-se durante as minhas crises de crupe Mas,
ao longodos anos, tenho acordado muitas vezes com o mesmo pesadelo estou debruçada sobre o corpo de Andrea, a escorregar no seu sangue e a ouvir aquela respiraçãorouca,
animalesca seguida de um riso estridente de predador
Por instinto e através do medo que tem salvo a humanidade de extinção, sei queRob Westerfield é habitado por uma criatura feroz, a qual, se for
libertada,voltará a atacar
CAPÍTULO OITO
Quando senti as lágrimas a picar-me os olhos afastei-me da janela, peguei namochila, atirei-a para cima da cama e abri-a. Quase sorri enquanto tirava
asminhas coisas, imaginando que era muita lata da minha parte criticar, nem quefosse mentalmente, o vestuário informal de Pete Lawlor. Estava vestida comjeans
e uma camisola de gola alta, e, dentro da mochila, tinhaapenas uma saia comprida de lã e duas outras camisolas, além de uma camisa denoite e roupa interior.
Os meus sapatos favoritos são socos, o que mais valeporque tenho 1,73 metros de altura. O meu cabelo manteve o seu tom de areia. Écomprido e uso-o enrolado
no alto da cabeça ou preso atrás do pescoço.
A bonita e feminina Andrea parecia-se com a mãe. Tenho as feições fortes do meupai, as quais assentam melhor num homem do que numa mulher. Nunca
ninguém mechamou a estrela da árvore de Natal.
Aromas tentadores provenientes da sala de jantar chegaram-me às narinas epercebi que tinha fome. Tinha apanhado um avião que partia bastante cedo
deAtlanta e é evidente que fora obrigada a chegar ao aeroporto muito antes da hora de partida. O serviço de comidas perdão! de bebidas tinha consistido aPenasnuma
chávena de mau café.
Era uma e meia quando desci para a sala de jantar e já havia Pouca gente aalmoçar. Foi fácil arranjar uma mesa perto da lareira.
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Não me dei conta do frio que tinha até o calor começar a aquecer-me as mãos e os pés.
Posso trazer-lhe uma bebida? perguntou-me a empregada de mesa, uma mulhersorridente de cabelo grisalho com o nome numa etiqueta pregada no peito,
«Liz».
Por que não?, pensei, e pedi um copo de vinho tinto. Quando ela voltou, disse-lhe que queria uma sopa de cebola e ela respondeu que era um dospratos
favoritos da casa.
Trabalha aqui há muito tempo, Liz? perguntei.
Há 25 anos. Até me custa a acreditar...
Quer dizer portanto que podia muito bem ter-nos servido à mesa.
Ainda prepara sanduíches com geleia e manteiga de amendoim?
Oh, claro! Costumava comê-las aqui?
Costumava, pois.
Lamentei imediatamente ter mencionado isso. A última coisa que desejava era queos velhos clientes se dessem conta de que eu era a «irmã da rapariga
que foraassassinada há 23 anos».
Mas Liz estava obviamente habituada a ouvir pessoas dizer que tinham jantado naestalagem há muito tempo e, sem mais comentários, afastou-se.
Beberiquei o vinho e, aos poucos, comecei a lembrar-me das ocasiões particulares em que tínhamos estado aqui em família, no tempo em que éramos uma
família. A maior parte das vezes tinha sido para festejar aniversários,ou para jantar depois de termos dado um passeio de carro. A última vez queestivemos
aqui, pensei, foi quando a minha avó veio da Florida, onde vivia háquase um ano, para nos visitar. Lembro-me de o meu pai a ter ido buscar aoaeroporto e
vir depois encontrar-se aqui connosco. Tínhamos encomendado um bolopara ela. As letras cor-de-rosa no creme branco diziam: «Bem-vinda a casa, avó.»
Ela tinha começado a chorar. Lágrimas de alegria. As últimas lágrimas de alegria derramadas na nossa família. Esse pensamento transportou-me para as
lágrimasderramadas no dia do funeral de Andrea e a terrível confrontação pública entre a minha mãe e o meu pai.
CAPÍTULO NOVE
Voltámos a casa depois do funeral. As vizinhas tinham preparado uma refeição ehavia uma data de gente: os nossos antigos vizinhos de Irvington,
as novasamigas da minha mãe da nossa paróquia, os membros do clube de bridge quejogavam com ela às quartas-feiras e as colegas voluntárias dohospital.
Também lá se encontravam muitos amigos de longa data do meu pai ecolegas da polícia, alguns deles fardados e de serviço que só tinham passadopara dar-lhe
os pêsames e manifestar a sua solidariedade.
As cinco raparigas que eram amigas íntimas de Andrea estavam agrupadas a umcanto com os olhos inchados de lágrimas. Joan, em casa de quem Andrea
tinhaestado pouco antes de ser assassinada, tinha sido particularmente afectada eestava a ser reconfortada pelas outras quatro.
Sentia-me separada de todos. A minha mãe, vestida de luto e com ar muito triste, estava sentada no divã da sala de estar rodeada de amigas que lhe
seguravam amão ou insistiam para que tomasse uma chávena de chá.
Vai fazer-te bem, Genine. Tens as mãos tão frias.
Apesar dos olhos se encherem constantemente de lágrimas, tinham uma aparênciacalma e ouvi-a dizer várias vezes: «Não posso acreditar que ela tenhadesaparecido.
»
Ela e o meu pai tinham-se mantido abraçados um ao outro à beira da sepultura,mas, agora, estavam sentados em salas diferentes,
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ela na sala de estar e ele na varanda das traseiras, coberta, que foratransformada numa espécie de gabinete. A minha avó estava na cozinha com algumas
das suas velhas amigas de Irvington, recordando tristemente tempos mais felizes das suas vidas.
Vagueei no meio daquela gente toda e, embora tenham falado comigo e dito que euera uma menina corajosa, sentia-me muito só. Queria Andrea. Queria
subir aoquarto da minha irmã, encontrá-la lá e enroscar-me junto a ela na cama enquantoela falava sem parar ao telefone com as amigas ou com Rob Westerfield.
Antes de lhe telefonar, costumava perguntar-me: «Posso confiar em ti, Ellie?»
Claro que podia. Rob quase nunca lhe telefonava porque ela estava proibida deter alguma coisa a ver com ele e havia sempre o perigo de, mesmo que
fosseAndrea a responder, um dos nossos pais levantar o auscultador no andar de baixoe reconhecer a voz dele.
A minha mãe ou o meu pai? Ou era apenas o meu pai? Incomodaria isso a minha mãe? Afinal de contas, Rob era um Westerfield e tanto a avó como a mãe
delefrequentavam o Clube de Mulheres a que a minha mãe pertencia.
Tínhamos voltado a casa ao meio-dia, e às duas as pessoas começaram a dizercoisas como: «Depois de tudo o que passaram, devem precisar de descansar.»
Sabia o que isso queria dizer. Depois de terem apresentado os seus sincerospêsames, preparavam-se para regressar às suas casas. A relutância em
ir-seembora devia-se ao facto de estarem ansiosos por obterem informações quanto àinvestigação e a eventual captura do assassino de Andrea.
Por volta dessa altura, todos estavam ao corrente da cena de Paulie Stroebel naescola e sabiam que, o mês passado, Andrea tinha estado no carro de
Rob quandoeste fora multado por excesso de velocidade.
Paulie Stroebel. Quem havia de dizer que um rapaz introvertidoe tranquilo como ele estava apaixonado por uma rapariga como Andrea, ou que elatinha
aceite ir ao baile do dia de Acção de Graças com ele?
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Rob Westerfield. Tinha passado um ano na universidade e toda a gente podia verque ele não era parvo. Mas corriam boatos de que ele fora expulso.
Desperdiçara, aparentemente, o primeiro ano. Tinha 19 anos quando reparou na minha irmã. Porque é que ele teve de se meter com Andrea, uma menina que ainda
andava no liceu?
Não se contava que ele esteve envolvido no que aconteceu à avó?
No momento exacto em que ouvi este comentário, a campainha da porta tocou e aSra. Storey, que também era membro do clube de bridge e estavano
vestíbulo, foi abrir. A Sra. Dorothy Westerfield, a avó de Rob e dona dapropriedade com a garagem onde Andrea tinha morrido, surgiu no limiar da porta.
Era uma bela e imponente mulher de ombros largos e peito opulento. Mantinha-semuito direita, o que a fazia parecer mais alta do que era. O cabelo
grisalho,que ela penteava para trás, tinha um tom de aço e era naturalmente ondulado. Aos 73 anos, as sobrancelhas ainda eram negras e chamavam a atenção para
aexpressão inteligente dos seus olhos castanhos-claros. Os maxilares demasiadopesados impediam que fosse considerada bonita, mas, por outro lado, davam maiorforça
ao seu aspecto autoritário.
Estava sem chapéu e usava um elegante casaco cinzento-escuro de Inverno. Entroue os seus olhos percorreram o interior à procura de minha mãe, a
qual tentavaagora pôr-se de pé.
A Sra. Westerfield dirigiu-se para ela.
Estava na Califórnia e só consegui chegar agora. Mas tinha de vir participar omeu pesar a si e à sua família, Genine. Perdi um filho adolescente,
há muitosanos, num acidente de esqui e compreendo assim como deve sentir-se.
A minha mãe acenava a cabeça reconhecidamente quando a voz do meu pai ecoou nasala.
Mas isto não se tratou de um acidente, Sra. Westerfield disse ele. A minha filha foi assassinada. A sua cabeça foi esmagada e quem a matou pode
muito bem ter sido o seu neto. Para dizer a verdade, etendo em vista a reputação dele, a senhora deve
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saber que ele é o principal suspeito. Por isso, por favor, saia desta casa. Temmuita sorte em ainda estar viva. Não me diga que ainda
não acredita que eleesteve envolvido naquele roubo em que a senhora levou um tiro e quase morreu?
Como é que podes dizer uma coisa dessas, Ted? implorou a minha mãe. Queiradesculpar, Sra. Westerfield. O meu marido...
A não ser por eles os três, a casa podia estar vazia. Ninguémse mexia, como no jogo de estátuas a que eu costumava brincar no recreio. |
O meu pai parecia uma personagem do Antigo Testamento. Tinha tirado a gravata ea camisa estava desabotoada no colarinho. O rosto estava tão branco
como acamisa e os seus olhos azuis quase negros de raiva. Tinha uma farta cabeleiracastanha-escura que, nessa altura, parecia ainda mais hirsuta, comoelectrificada
pela sua ira.
Não te atrevas a pedir desculpa em meu nome, Genine gritou. Não há um políciaaqui nesta casa que não saiba que o Rob Westerfield é um
tratante. A minha filha, a nossa filhaestámorta.Agora acrescentou aproximando-se da Sra. Westerfield. Saia já da minha casa eleve
as suas lágrimas de crocodilo consigo.A Sra. Westerfield tinha ficado tão pálida como o meu pai. Nãolhe respondeu, mas apertou a mão de
minha mãe e dirigiu-se lentamente para a porta.Quando a minha mãe voltou a falar, não elevou a voz, mas otom foi como
uma chicotada.Queres por força que o culpado seja o Rob Westerfield, não queres,Ted? Sabes que a Andrea estava louca por ele e isso não
te agrada.Queres saber uma coisa? O que tu tinhas era ciúmes. Se te tivesses mostrado razoável e deixado que ela saísse com ele, ou, jáagora, com qualquer
outro rapaz, ela não teria sido obrigada amarcar encontros às escondidas...E, depois, a minha mãe começou a imitar a maneira do meu pai falar-.
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Só podes ir a uma reunião escolar acompanhada por um rapaz do liceu, Andrea.Estás proibida de entrar no carro dele. Eu é que te vou buscar.
O meu pai corou, não sei se de vergonha ou de raiva.
Se ela me tivesse obedecido, ainda hoje estaria viva disse em voz calma, mas com amargura. Se não tivesses andado a beijar a mão de todos os que se
chamamWesterfield...
Ainda bem que não és tu quem anda a investigar este caso interrompeu-o a minhamãe. E então aquele miúdo Stroebel? E o Will Nebels, o homem que
faz serviçospara toda a gente? E aquele caixeiro-viajante? Já o encontraram?
E a fada benfeitora?
O tom de voz do meu pai era agora desdenhoso. Virou-se e dirigiu-se para o seugabinete onde os amigos estavam reunidos, fechando a porta atrás de
si. E,finalmente, reinou um silêncio absoluto.
CAPÍTULO DEZ
A minha avó tinha planeado ficar connosco naquela noite, ] mas sentindo queseria melhor deixar o meu pai e a minha mãe sozinhos fez as malas e partiu
comuma amiga de Irvington. Passaria a noite em casa dela e tomaria o avião na manhã seguinte.
A esperança que ela tinha de que, após aquela azeda troca de palavras, os meuspais se reconciliariam não viria a acontecer.
A minha mãe dormiu no quarto de Andrea naquela noite e todas as outras noitesdurante dez meses, até depois do julgamento, quando nem todo o dinheiro
e osadvogados de defesa dos Westerfield conseguiram salvar Rob de ser condenado pela morte de Andrea.
A seguir, venderam a casa. O meu pai foi morar em Irvington e a minha mãe e eucomeçámos a levar uma existência nómada que começou na Florida junto
da minhaavó. A minha mãe, que tinha trabalhado como secretária antes de se casar,arranjou um emprego numa cadeia nacional de hotéis. Ainda bastante atraente,
era também esperta e diligente. Foi rapidamente promovida e tornou-se uma espéciede especialista em hotelaria, o que a obrigava a mudar de cidade todos os 18meses.
Infelizmente, aplicava a mesma diligência a ocultar de toda a gente excepto demim o facto de se ter tornado uma alcoólica. Começava a beber assim
que voltavaa casa do trabalho. Conseguiu controlar-se suficientemente durante alguns anospara continuar a fazer o seu trabalho, apenas com alguns acessos
de «gripe»quando precisava de se restabelecer.
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Às vezes, ficava apática e silenciosa por causa da bebida, mas, outras vezes, falava pelos cotovelos. Foi durante um desses períodos que eu meapercebi
de como ela amava apaixonadamente o meu pai.
Apaixonei-me por ele à primeira vista, Ellie. Alguma vez te contei como nos conhecemos?
Uma data de vezes, mãe.
Tinha 19 anos e há seis meses que trabalhava no meu primeiro emprego comosecretária. Tinha comprado um carro, um caixote cor de laranja com rodas
e umdepósito de gasolina, e, um dia, decidi verificar que velocidade aquilo dava naauto-estrada. De repente, ouvi uma sirena e vi pelo retrovisor uma luz
a cintilar atrás de mim. Uma voz ordenou-me através de um altifalante para euencostar à beira da estrada. O teu pai passou-me uma multa e um raspanete, mas,quando
fui convocada ao tribunal, ele apareceu e anunciou que me ia dar liçõesde condução.
Por vezes, queixava-se.
Ele era de tal modo formidável. Tinha um curso superior, boa aparência einteligência. Mas só se sentia à vontade com os amigos e não gostava demudanças.
Era por isso que não queria sair de Irvington. O problema não era onde vivíamos. Era demasiado rigoroso com a Andrea. Mesmo que tivéssemos ficado emIrvington,
ela teria continuado a marcar encontros às escondidas.
Essas recordações terminavam sempre com: «Se ao menos tivéssemos sabido ondeprocurar pela Andrea quando ela não apareceu em casa», querendo dizer
comaquilo, «se ao menos eu lhes tivesse falado do esconderijo».
O terceiro ano do liceu na Florida. O quarto e o quinto na Luisiana. O sexto noColorado. O sétimo na Califórnia. O oitavo no Novo México.
O cheque do meu pai para me sustentar chegava pontualmente no primeiro dia decada mês, mas, ao longo desses primeiros anos, só o vi de vez em quando
e,depois, deixei de o ver de todo. Andrea, a menina dos seus olhos, tinhadesaparecido. Tudo o que restava entre ele e a minha mãe eram remorsos e amorrecalcado,
e o que quer que ele sentisse por mim não era suficiente para ele
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desejar a minha presença. Viver sob o mesmo tecto comigo parecia abrir o tecidocicatrizado que lhe cobria as feridas. Se ao menos eu tivesse mencionado
oesconderijo...
À medida que eu crescia, a minha adoração pelo meu pai foi-se transformando emressentimento. Que tal ele perguntar a si mesmo: se eu ao menos tivesseinterrogado
Ellie em vez de a mandar para a cama? Que tal, papá?
Felizmente, quando já tinha idade para entrar na universidade, já vivíamos hásuficiente tempo na Califórnia para sermos residentes e eu matriculei-me
nocurso de jornalismo da UCLA. A minha mãe morreu de complicações no fígado seismeses depois de eu me formar e, querendo recomeçar de novo, candidatei-me
eobtive o emprego em Atlanta.
Rob Westchester fez mais do que assassinar a minha irmã nessa noite de Novembrohá 22 anos. Enquanto estava sentada na sala de jantar da estalagem
a ver Liz pôr a sopa de cebola a fumegar diante de mim, comecei a perguntar-me o que teriasido as nossas vidas se Andrea ainda fosse viva.
Os meus pais ainda estariam juntos e ainda estaríamos a viver aqui. A minha mãetinha grandes planos para melhorar a casa e o meu pai teria sem dúvidaestabiliza
do. Ao conduzir através das ruas, dei-me conta de que a aldeia ruralde que eu me lembrava tinha mudado consideravelmente. Tinha agora o aspecto deuma cidade
de Westchester desenvolvida, exactamente o que a minha mãe previra. O meu pai já não teria sido obrigado a guiar oito quilómetros para comprar umaembalagem
de leite.
Quer tivéssemos continuado a morar aqui, ou não, não havia quaisquer dúvidas deque, se Andrea não tivesse morrido, a minha mãe ainda estaria viva.
Não teriatido necessidade de procurar conforto e esquecimento no álcool.
E o meu pai poderia até vir a aperceber-se da minha adoração por ele e, com otempo, talvez quando Andrea partisse para a universidade,talvez
me prestasse a atenção que eu ansiava.
Provei a sopa.
Era exactamente como eu me lembrava.
CAPÍTULO ONZE
Liz voltou com um cesto de pão torrado nas mãos. Deixou-se ficar junto à mesadurante uns momentos.
Pelo que disse sobre as sanduíches com manteiga de amendoim e geleia, acho quecostumava vir aqui.
Tinha despertado a sua curiosidade.
Há muito tempo disse, tentando mostrar-me natural. Fomos embora quando ainda era criança. Agora vivo em Atlanta.
Estive lá uma vez. É uma cidade simpática comentou ela, afastando-se.
Atlanta, a Porta do Sul. Foi uma boa decisão da minha parte. Enquanto muitos dos meus colegas do curso de jornalismo estavam interessados em entrar
para atelevisão, eu sempre soube, por uma razão qualquer, que o que me atraía mais era a palavra impressa. E comecei, finalmente, a desenvolver um sentido depermanência.
Os jornais não pagam muito bem aos empregados acabados de sair da universidade,mas a minha mãe tinha um modesto seguro de vida que me proporcionou
a liberdadede mobilar um pequeno apartamento de três divisões. Comprei cuidadosamentemobília nas lojas de segunda mão e, quando o apartamento ficou pronto,
fiqueiconsternada ao ver que tinha inconscientemente recriado o efeito geral da salade estar da nossa casa em Oldham:
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azuis e vermelhos na carpete. Um divã forrado de azul e poltronas. Até mesmo uma otomana, embora mal lá coubesse.
Trouxe-me tantas recordações. O meu pai a fazer a sesta na poltrona, as suaspernas compridas esticadas sobre a otomana; Andrea a empurrá-las sem
cerimónia;os olhos dele a abrirem-se e o terno sorriso lançado à sua linda filhatraquinas...
Eu andava sempre em bicos de pés quando ele estava a dormir, sem quererincomodá-lo. Quando eu e Andrea estávamos a levantar a mesa depois do jantar,escutava-o
atentamente contar à minha mãe o que tinha acontecido naquele dia noemprego, enquanto tomava uma segunda chávena de café. O meu pai, gabava-me,salvava a
vida às pessoas.
Três anos após o divórcio, ele voltou a casar-se. Por essa altura, eu já o tinha ido visitar a Irvington pela segunda e última vez. Não quis ir ao
seu casamento nem me importei quando ele escreveu a dizer que eu tinha um irmão. O seusegundo casamento tinha produzido o filho que eu deveria ter sido. Agora,
Edward James Cavanaugh, Jr. tem cerca de 17 anos.
O último contacto que tive com o meu pai foi para lhe dar a notícia, por carta,de que a minha mãe tinha morrido e que eu gostaria de enviar as suas
cinzas para o cemitério da Porta do Céu, a fim de serem enterradas na sepultura de Andrea.Caso ele não desse o seu consentimento, eu enterrá-las-ia junto dos
pais dela.
Escreveu-me para me dar os pêsames e dizer que tinha tomado as disposições queeu pedira. Também me convidou a visitá-lo em Irvington.
Enviei as cinzas e recusei o convite.
A sopa de cebola aqueceu-me e as recordações agitaram-me. Decidi ir buscar ocasaco ao quarto e guiar à volta da cidade. Eram duas e meia e eu já
estava acomeçar a censurar-me porque não tinha esperado até ao dia seguinte para vir aOldham. Tinha um encontro com um homem chamado Martin Brand, funcionário
dodepartamento de liberdade condicional, às dez horas da manhã, de segunda-feira.Tencionava fazer um esforço para convencê-lo
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a não libertar Rob Westerfield, mas Pete Lawlor tinha-me prevenido de que seriaprovavelmente inútil.
A luz das mensagens do telefone no meu quarto estava acesa. Tinha de telefonarcom urgência a Pete Lawlor. Atendeu ao primeiro toque.
Pareces ter o dom de estar no lugar certo no momento certo Ellie disse-me.Acabei de receber a notícia que os Westerfield vão dar uma conferência
deimprensa dentro de 15 minutos. A CNN vai lá estar. O Will Nebels, o homem quefoi interrogado no caso da tua irmã, declarou há pouco ter visto o Paul Stroebel
no carro do Rob Westerfield na noite em que a Andrea foi morta. Diz que o viuentrar na garagem da Sra. Westerfield com um objecto na mão. Sair a correr dezminutos
mais tarde, meter-se no carro
e arrancar.
Por que é que ele não contou essa história há anos? perguntei.
Diz que teve medo que lhe pusessem as culpas em cima.
Como é que ele viu tudo isso?
Estava em casa da velha Westerfield. Andava a fazer umas reparações e tinha ocódigo para lá entrar. E também sabia que a avó costumava deixar notas
emgavetas pela casa toda. Não tinha cheta e precisava de dinheiro. Encontrava-seno quarto de dormir da Sra. Westerfield cuja janela dá para a garagem, e
quandoStroebel abriu a porta do carro reconheceu-o.
Ele está a mentir disse em tom categórico.
Vai à conferência de imprensa disse-me Pete. E faz uma reportagem. Lembra-te deque és jornalista.
Fez uma pausa.
A não ser que, para ti, seja demasiado perto da tua terra natal.
Não é disse. Telefono-te mais tarde.
CAPíTULO DOZE
A conferência de imprensa tinha lugar no escritório, em White Plains, de William Hamilton, advogado criminal contratado pela família Westerfield para
provar ainocência de Robson Parke Westerfield.
Hamilton iniciou a sessão apresentando-se. Estava ladeado por dois homens.Reconheci um deles pelas fotografias como sendo o pai de Rob, VincentWesterfield.
Andava pela casa dos 60 e tinha uma figura distinta com cabeloprateado e feições nobres. Do outro lado de Hamilton, um indivíduo visivelmentenervoso de olhos
congestionados, que poderia ter entre 60 e 70 anos, abria efechava os dedos entrelaçados.
Foi apresentado pelo nome de Will Nebels. Hamilton fez um resumo breve dos seusantecedentes.
O Will Nebels trabalhou durante muitos anos em Oldham. Executou várias tarefasna casa de campo da Sra. Dorothy Westerfield, a mesma em cuja garagem
o corpo de Andrea Cavanaugh foi encontrado. O Sr. Nebels foi interrogado, juntamente comoutras pessoas, quanto ao seu paradeiro na noite dessa quinta-feira
em que aAndrea perdeu a vida. Nessa altura, declarou que tinha jantado ao balcão de umrestaurante local e que, depois, fora directamente para casa. Foi visto
a jantar no local mencionado por várias testemunhas e não houve motivos para duvidar dasua história.
No entanto, quando o escritor de livros policiais com sucesso, Jake Bern, o qual está actualmente a escrever sobre a morte
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de Andrea Cavanaugh e a presumível inocência de Rob Westerfield, falou com o Sr. Nebels, surgiram novos factos.
E Hamilton virou-se, então, para Will Nebels.
Pode, por favor, comunicar à imprensa o que contou exactamente ao Sr. Bern?
Nebels agitou-se com nervosismo. Parecia pouco confortável enfiado num fato,camisa e gravata que eu tinha a certeza de que lhe tinham posto para
a ocasião.Trata-se de um velho truque dos advogados de defesa que eu vira inúmeras vezesnos tribunais. Vestem o réu, cortam-lhe o cabelo, barbeiam-no e dão-lhe
umacamisa e uma gravata mesmo que ele nunca tenha usado tal coisa durante toda avida. Faziam muitas vezes a mesma coisa às testemunhas da defesa.
Lamento imenso começou ele em voz rouca.
Reparei como estava magro e pálido e perguntei a mim própria se ele não estariadoente. Tinha apenas uma vaga lembrança dele, mas fizera uns trabalhos
em nossacasa e tinha-me deixado a recordação de que era um pouco corpulento.
Tenho vivido com este remorso e, quando o tal escritor veio falar comigo sobre o caso, percebi que tinha de desabafar.
Contou depois a mesma história que tinha chegado por telex às mãos de PeteLawlor. Vira Paul Stroebel a guiar o carro de Rob Westerfield até à garagem
eentrar lá dentro com um objecto pesado na mão. É evidente que a referência aesse objecto era para insinuar que se tratava do macaco usado para espancarAndrea
até à morte, o mesmo que tinha sido encontrado no porta-bagagens do carro de Rob.
A seguir, foi a vez de Vincent Westerfield falar.
Apesar de ter sempre protestado a sua inocência, há 22 anos que o meu filho seencontra encarcerado numa prisão no meio de criminosos da pior laia.
Ele foirealmente ao cinema na noite desse horrível crime. Estacionou o carro na estação de serviço ao lado do cinema onde os carros da minha família são regularmenteafinad
os. Era muito fácil fazer uma cópia da chave do seu carro, pois tinha-o lá deixado por causa de umas amolgadelas pelo menos três vezes nos últimos meses.
O Paul Stroebel estava de serviço nessa noite. As bombas de gasolina tinhamfechado às sete, mas ele estava a consertar um carro60
no interior. O Rob falou com o Paul e disse-lhe que deixara o carro no parque de estacionamento enquanto ia ver um filme. Sabemos que o Paul negou
sempre tertido esta conversa com o meu filho, mas, agora, podemos provar que ele mentiu.Enquanto o Rob estava a ver o filme, o Stroebel pegou no carro dele,
dirigiu-separa o local que as miúdas chamavam o esconderijo e assassinou essa rapariga.
Vincent Westerfield endireitou-se e a sua voz tornou-se mais forte e profunda.
Após todos estes anos, o meu filho tem direito à liberdade condicional e, pelo o que nos foi dado a entender, vai ser solto da prisão, mas isso não
chega. Comesta prova, vamos solicitar novo julgamento e acreditamos que, desta vez, o Robserá absolvido. Temos boas razões para crer que o Paul Stroebel,
o verdadeirocriminoso, venha a ser condenado à prisão perpétua.
Eu estava a ver a conferência de imprensa pela televisão numa pequena sala deestar da estalagem. Sentia-me tão furiosa que queria lançar qualquer
coisacontra o ecrã. Rob Westerfield estava numa situação em que sairia semprevencedor. Se fosse novamente considerado culpado, não poderiam metê-lo outra
vez na prisão. Já tinha cumprido a pena. E, se fosse absolvido, nunca levariam Paul Stroebel a tribunal baseando-se numa testemunha digna de tão pouca confiançacomo
Will Nebels. Contudo, aos olhos do mundo, seria ele o criminoso.
Julgo que outras pessoas sabiam da conferência porque, assim que liguei atelevisão, começou a chegar gente. O empregado da recepção foi o primeiro
afazer um comentário.
Paul Stroebel... Que ideia! Esse pobre coitado não faria mal a uma mosca.
Bem, há quem ache que ele fez muito mais do que isso disse uma das criadas demesa que eu vira na sala de jantar. Não estava cá quando isso aconteceu,
masouvi contar muita coisa a esse respeito. Ficarias espantado com o número depessoas que pensa que o Rob Westerfield está inocente.
Os profissionais dos meios de comunicação que assistiam à conferência lançavamperguntas a Will Nebels.
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Dá-se conta de que pode ir parar à prisão por infracção e falsas declarações? ouvi um deles perguntar.
Permitam-me que responda a essa pergunta atalhou Hamilton. O caso já prescreveu e o Sr. Nebels não corre o risco de ser preso.Apresentou-se
para reparar uma injustiça. Não sabia que a Andrea Cavanaughestava na garagem nessa noite nem o que lhe tinha acontecido. Infelizmente,assustou-se quando
imaginou que o seu testemunho o inculparia e, por isso,calou-se.
Prometeram dar-lhe dinheiro em troca deste depoimento,
Sr. Nebels? perguntou outro repórter.
Era exactamente a pergunta que eu teria feito, pensei.
Foi novamente Hamilton quem respondeu.
É evidente que não.
Será que o Sr. Nebels vai representar o seu próprio papel no filme baseadonesta história?, perguntei-me.
O Sr. Nebels já fez uma deposição ao magistrado federal?
Ainda não. Queremos manter a imparcialidade da opinião pública e dar-lhe aconhecer este depoimento antes que o promotor público o interprete de
maneiradiferente. É terrível dizer isto, mas a questão é que, se a Andrea Cavanaughtivesse sido sexualmente assaltada, teriam sido feitos testes de ADN,
e o RobWesterfield há já muito tempo estaria em liberdade. Mas, dadas ascircunstâncias, foi a sua preocupação com o bem-estar da rapariga que o meteunesta
embrulhada. A Andrea tinha-lhe suplicado que se encontrasse com ela noesconderijo e dissera-lhe ao telefone que tinha aceite sair com o Paul Stroebelsomente
porque pensava que este era a última pessoa de quem um jovem como o RobWesterfield sentiria ciúmes.
A verdade é que a Andrea Cavanaugh andava atrás do Rob Westerfield.Telefonava-lhe frequentemente, mas ele não se importava com quem ela saía. Erauma
namoradeira, louca por rapazes, uma rapariga «popular».
Rangi os dentes perante aquela insinuação.
O único erro do Rob foi ter entrado em pânico ao deparar com O corpo da AndreaCavanaugh. Foi para casa sem perceber que transportava a arma do crime
no carroe que o porta-bagagem estava manchado
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com o sangue da Andrea. E, nessa noite, meteu as calças, a camisa e o blusão namáquina de lavar porque estava assustado.
Mas não suficientemente assustado para, no seu esforço para se livrar dasmanchas de sangue, os ter desbotado.
As câmaras de filmar focaram o apresentador da CNN.
O inspector da polícia reformado, Marcus Longo, está a acompanhar estaconferência connosco da sua casa em Oldham-on-Hudson. Sr. Longo, o que é
queacha do depoimento do Sr. Nebels.
É pura invenção. O Robson Westerfield foi considerado culpado pelo crime porqueé realmente culpado. Compreendo a aflição da sua família, mastentar
inculpar uma pessoa inocente é vergonhoso.
Bravo!, quase gritei.
A lembrança do inspector Longo a falar comigo na sala de jantar para meconvencer de que não fazia mal contar os segredos de Andrea veio-me vividamenteà
memória. Longo devia ter agora uns 60 anos. Era um homem de rosto comprido com sobrancelhas escuras e espessas, e um nariz romano. O cabelo que lhe restavaera
uma franja grisalha à volta da cabeça, mas tinha uma dignidade nata querealçava o efeito do seu óbvio desprezo pela palhaçada que tínhamos acabado deassistir.
Ainda vivia em Oldham. Decidi que um dia destes havia de lhe telefonar.
A conferência de imprensa tinha terminado e as pessoas começaram a sair da sala. O empregado da recepção, um jovem com ar estudioso que parecia ter
saído hápouco da universidade, aproximou-se de mim.
O seu quarto é confortável, Miss Cavanaugh?
Nesse momento, a criada de mesa ia a passar pelo sofá onde eu estava sentada.Virou-se e fitou-me com curiosidade. Percebi logo que ela queria perguntar-me
se eu era parente da rapariga que tinha sido assassinada no caso Westerfield.
Foi a primeira indicação que eu teria de desistir do anonimato que necessitavase quisesse ficar em Oldham.
Que se lixe, pensei. Tenho de levar isto até ao fim.
CAPÍTULO TREZE
A Sra. Hilmer ainda morava na mesma casa perto da nossa. Quatro outras casasseparavam-na de onde tínhamos vivido todos aqueles outros anos. As pessoas
queagora lá viviam tinham realizado o sonho de minha mãe. Fora aumentada em ambosos lados e nas traseiras. Sempre tivera boas dimensões, mas, agora, era
umahabitação realmente encantadora, sólida mas elegante, com tábuas de revestimento brancas e batentes verdes-escuros nas janelas.
Abrandei a velocidade do carro ao passar e depois, pensando que nessa sossegadamanhã de domingo ninguém repararia em mim, parei.
É claro que as árvores tinham crescido. Este ano, o Outono fora quente noNordeste e, apesar de agora estar frio, ainda havia uma grandequantidade
de folhas douradas e vermelhas a brilhar nos ramos.
A sala de estar da nossa casa tinha obviamente sido ampliada. E a sala dejantar?, perguntei-me. Dei por mim ali durante uns instantes a segurar
a caixados talhes de prata ou seriam apenas revestidos por uma camada de prata enquanto Andrea punha cuidadosamente a mesa.
Hoje, o nosso convidado de honra é o Lorde Malcolm Rabogrande.
A Sra. Hilmer tinha estado à minha espera. Assim que saí, a Porta dela abriu-see, um minuto mais tarde, senti o seu abraço
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apertado. Era uma mulher pequenina e rechonchuda de expressão maternal e olhoscastanhos vivos. Agora, o seu cabelo castanho estava completamente
branco etinha rugas à volta dos olhos e da boca. Mas, basicamente, ainda estava como eume lembrava dela. Durante anos enviou-nos um postal no Natal, e a
minha mãe, que nunca enviava as Boas-Festas, escrevia para lhe agradecer, dar-lhe a nossapróxima morada e informá-la do meu bom aproveitamento na escola.
Eu tinha-lhe escrito quando a minha mãe morreu e recebera uma carta calorosa ereconfortante. Nada disse quando fui para Atlanta e julgava assim
que todas ascartas e postais que ela me tivesse mandado lhe tinham sido devolvidos. Hoje emdia, os correios já não fazem seguir o correio para as novas moradas
durantemuito tempo.
Estás tão alta, Ellie! exclamou ela meio sorrindo e meio rindo-se. Eras tãopequenina.
Cresci entre o meu primeiro e o último ano do liceu. Havia café e bolinhos comamoras acabados de sair do forno.
Insisti e ficámos sentadas à mesa da cozinha. Durante uns minutos falou-me dafamília dela. Mal tinha conhecido o seu filho e a sua filha. Já estavam
amboscasados quando tínhamos vindo morar para Oldham.
Tenho oito netos disse orgulhosamente. Mas, infelizmente, nenhum deles vive aqui por perto. Mas vou visitá-los muitas vezes.
Sabia que ela tinha ficado viúva há muitos anos.
Os miúdos dizem que esta casa é demasiado grande para mim, mas é o meu lar egosto muito de cá estar. Acho que acabarei por vendê-la quandojá
não puder mexer-me, mas agora não.
Expliquei-lhe um pouco o que fazia e, depois, falámos do motivo que me tinhatrazido a Oldham.
Ellie, desde o dia em que o Rob foi levado do tribunal de algemas nos punhos que os Westerfield insistem que ele é inocente e têm andado a tentar que
sejasolto. E também conseguiram convencer disso uma data de gente.
A sua expressão alterou-se.
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já que disse isso, tenho de confessar uma coisa. Estou a
começar a perguntar a mim mesma se o Rob não foi condenado
em parte por causa da sua reputação de arruaceiro. Toda a gente achava que ele é um mau rapaz e estava pronta a acreditar em todo o mal que se contava
dele.
Tinha visto a conferência de imprensa na televisão.
Há uma coisa no que disse o Will Nebels em que eu acredito disse categoricamente. Que ele tinha entrado em casa da velha Sra. Westerfield
para roubar dinheiro. Estava ele realmente lá nessa noite? Épossível. Por um lado, pergunto-me quanto lhe estão a dar para ele contar essahistória, e, por
outro, penso no modo como o Paulie reagiu quando foi anunciadona aula que a Andrea estava morta. Ouvi o testemunho da professora no tribunal.Nunca se viu
uma testemunha mais relutante. Protegeu imenso o Paulie, mas tevede confessar que, quando ele fugiu da aula, julgou tê-lo ouvido gritar: «Nãopensei que ela
estivesse morta!»
Como é que está agora o Paulie Stroebel? perguntei.
Está bastante bem. Durante dez ou doze anos depois do julgamento portou-se demaneira muito esquiva. Sabia que muitas pessoas julgavam que ele tinha
morto aAndrea e isso quase deu cabo dele. Começou a trabalhar na charcutaria com ospais e, pelo que vi, não se dava com ninguém. Mas, desde que o pai morreu
e eletem tido que tomar cada vez mais responsabilidades, parece muito melhor. Esperoque esta história do Will Nebels não o prejudique.
Se o Rob Westerfield for novamente julgado e absolvido, as culpas vão cair sobre o Paulie disse eu.
E ele seria preso, seria levado a tribunal?
Não sou advogada, mas duvido. O depoimento do Will Nebels pode ser suficientepara o Rob Westerfield ser julgado outra vez, mas as suas declarações
nuncaserão consideradas suficientemente credíveis para condenar o Paul Stroebel. Omal está feito e o Paulie será apenas mais uma vítima dos Westerfield.
Talvez sim, talvez não. É isso que torna tudo tão difícil. A Sra. Hilmerhesitou, mas, depois, prosseguiu.
Aquele indivíduo que anda a escrever um livro sobre o caso veio ver-me, Ellie.Alguém lhe disse que eu conhecia bem a tua família.
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Senti uma advertência nas suas palavras.
Como é que ele é?
Bem-educado. Fez-me uma data de perguntas. Ponderei cuidadosamente todas aspalavras que disse. Mas tenho de te dizer que esse Bern encara o caso
de umacerta maneira e que vai fazer os factos encaixarem-se no seu ponto de vista.Perguntou-me se o motivo do teu pai ser tão rigoroso com a Andrea era porque
ela via muitos rapazes às escondidas.
Isso não é verdade.
Mas acho que ele vai fazer com que pareça verdade.
Ela tinha uma paixoneta pelo Rob, mas também tinha medo dele.
Não estava à espera de dizer aquilo, mas, quando o disse, apercebi-me de que era verdade.
E eu tinha medo por ela acrescentei baixinho. Ele estava tão zangado com aAndrea por causa do Paulie.
Eu ouvi-te quando testemunhaste no tribunal, Ellie. Nunca lhes disseste que tu,ou a tua irmã, tinham medo do Rob Westerfield.
Estava ela a sugerir que eu estava a inventar uma recordação desonesta a fim dejustificar o meu testemunho? Mas, a seguir, ela continuou.
Tem cuidado, Ellie. Aquele escritor deu a entender que tu eras uma criançaemocionalmente instável. E isso é algo que ele vai insinuar no livro.
Então a táctica dele era essa, pensei: Andrea era uma valdevinas, eu eraemocionalmente instável e Paulie era um assassino. Se eu dantes não estava
bemcerta, sabia agora que tinha uma tarefa à minha medida.
O Rob Westerfield talvez saia da prisão, Sra. Hilmer disse eu.
Fiz uma pausa e acrescentei depois com firmeza.Mas, quando eu terminar a minha investigação e escrever acerca de todos ospodres da
sua vida, ninguém desejará ser visto na sua companhia de dia ou denoite. E se ele for julgado uma segunda vez, nenhum júri há-de absolvê-lo.
CAPÍTULO CATORZE
Na segunda-feira de manhã, às dez horas, encontrei-me com Martin Brand, ofuncionário da comissão de liberdade condicional, em Albany. Era um homem
comcerca de 60 anos e ar cansado, papos debaixo dos olhos e espessa cabeleiragrisalha que já merecia os cuidados de um barbeiro. Tinha o botão do colarinhoaberto
e a gravata um pouco descaída. A sua compleição congestionada indicavauma pressão arterial bastante elevada.
Não havia dúvidas de que, ao longo dos anos, ele tinha ouvido mil vezes váriasversões do meu protesto.
Ms. Cavanaugh, já recusámos liberdade condicional aoWesterfield duas vezes. Mas, agora, acho que lha vão dar.
Ele é reincidente.
Não pode ter a certeza disso.
O senhor também não pode ter a certeza que não.
Há dois anos, prometemos conceder-lhe a liberdade condicional se ele confessasse ter morto a sua irmã, aceitasse a responsabilidade desse crime e exprimisse
osseus remorsos, mas ele não aceitou.
Ora, Sr. Brand. Teria muito a perder se dissesse a verdade. Sabia que não opodiam manter preso durante muito mais tempo.
Ele encolheu os ombros.
Esqueci-me que faz jornalismo de investigação.
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Também sou a irmã da rapariga de 15 anos que não teve apossibilidade de festejar o seu 16.° aniversário.
A expressão de cansaço do mundo desapareceu dos seus olhos durante unsinstantes.
Não duvido lá muito de que o Rob Westerfield seja culpado, Ms. Cavanaugh, mas acho que tem de se resignar perante o facto de ele tercumprido
grande parte da sua sentença e de, tirando um ou dois incidentesdurante o primeiro ano, ter-se comportado bem na prisão.
Adoraria saber quais eram os incidentes a que ele se referia, mas tinha acerteza de que Martin Brand não mos contaria.
Mais uma coisa prosseguiu. Mesmo que ele seja culpado, foi um crime passional e, segundo as nossas estatísticas, as possibilidades de ele voltar a
cometer talacção são quase nulas. A incidência de reincidência declina após os 30 anos equase desaparece depois dos 40.
Mas há pessoas que nasceram sem nenhuma consciência e que, uma vez soltos, setornam bombas-relógio ambulantes.
Empurrei a cadeira para trás e levantei-me. Brand também se ergueu.
Vou dar-lhe um conselho, Ms. Cavanaugh. Tenho a impressão deque tem vivido com a recordação do brutal assassínio da sua irmã toda a suavida.
Não pode ressuscitá-la nem manter o Rob preso mais tempo. Se ele forjulgado novamente e absolvido, tanto pior. A senhora é jovem.Regresse a Atlanta e tente
não pensar mais nessa tragédia.
É um bom conselho, Sr. Brand, e eu talvez um dia o siga retorqui. Mas agora não.
CAPÍTULO QUINZE
Há três anos, depois de eu ter escrito uma série de artigos acerca de JasonLambert, um criminoso compulsivo de Atlanta, recebi um telefonema de
MaggieReynolds, uma editora de Nova Iorque que eu tinha conhecido num debate sobre ocrime, a propor-me um contrato para transformar os artigos num livro.
Lambert era um assassino do tipo Ted Bundy. Frequentava as cidadesuniversitárias fazendo-se passar por estudante e, depois, convidava as «colegas»
para ir dar uma volta de carro com ele. A exemplo das vítimas de Bundy, essasraparigas também desapareciam. Mas, felizmente, ele não tinha tido tempo para se
desembaraçar da última vítima quando foi apanhado. Está actualmente encarcerado numa prisão da Georgia onde lhe faltam ainda 149 anos para cumprir sem qualquer
possibilidade de pedir liberdade condicional.
O livro obteve um sucesso surpreendente e até chegou a estar no fundo da listados livros mais vendidos do The New York Times durantealgumas
semanas. Telefonei a Maggie depois de sair do escritório de Brand.Descrevi-lhe o caso e o curso da investigação que tencionava seguir, ela aceitou imediatamente
contratar-me Para escrever um livro sobre o assassínio de Andrea, livro que, como lhe prometi, provaria conclusivamente que Rob Westerfield era o culpado.
Fala-se muito do livro que o Jake Bern está a escrever disSe-me Maggie. Gostaria de usar o teu livro para competir com
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ele. Após termos gasto uma fortuna com a publicação e publicidade do seu último livro, o Bern rescindiu o seu contrato connosco.Calculei que
seriam necessários três meses de pesquisa e escrita intensa paralevar o meu projecto avante e mais algum tempo além desse se Rob Westerfieldobtivesse um
novo julgamento. Como a estalagem era demasiado claustrofóbica ecara para ficar, perguntei à Sra. Hilmer se sabia de um apartamento na área para alugar, mas
ela insistiu para que eu fosse morar no apartamento vazio por cimada garagem dela.
Mandei-o construir há alguns anos para o caso de eu vir a precisarpermanentemente de companhia explicou-me. É confortável e sossegado, Ellie. Vouser
uma boa vizinha e não te hei-de incomodar.
A senhora foi sempre uma boa vizinha.
Era uma solução excelente. A única desvantagem é que tinha de passar pela nossaantiga casa. Pensei que essa constante rotina acabaria por atenuar
a dor que euagora sentia quando por lá passava.
O meio hectare de Deus tinha-lhe a minha mãe chamado a rir.
Estava toda contente por ter tanto terreno e queria a toda a força fazer umjardim que seria uma das atracções dos passeios do Clube de Jardinagem
de Oldham na Primavera.
Saí da estalagem, instalei-me no apartamento da Sra. Hilmer e, na quarta-feira,regressei de avião a Atlanta. Cheguei ao escritório às seis menos
um quarto.Sabia que não corria o risco de Pete ter voltado para casa. Ele estava casadocom o jornal.
Ergueu a cabeça e lançou-me um breve sorriso.
Vamos conversar enquanto comemos um bom prato de esparguete.
E então os cinco quilos que queres perder?
Decidi não pensar neles nas próximas horas.
Pete possui tanta intensidade que descarrega choques à volta dele. Tinha idotrabalhar para o News, um diário privado, logo que se formarae,
dois anos mais tarde, foi nomeado director-geral. Aos 28 anos já ocupava dois cargos: redactor-chefe e editor, e
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o «jornal moribundo», como então chamavam ao Atlanta New, tinha ganho nova vida.
Uma das suas ideias para aumentar a circulação foi contratar um repórterespecializado na investigação de crimes, e tive imensa sorte em ele me
terescolhido para esse trabalho há seis anos. Fui aceite à experiência atéencontrarem alguém que ocupasse permanentemente aquelas funções. Mas, um dia esem
fazer quaisquer comentários, Pete deixou de procurar quem me substituísse.
Napoli era realmente o género de restaurante de bairro que existe em toda aItália. Pete pediu uma garrafa de Chianti e deu umadentada no pão
quente que tinham posto à nossa mesa. O semestre que tinhapassado em Roma, quando aí era estudante universitária, veio-me à memória. Tinha sido um dos períodos
mais felizes da minha vida adulta.
A minha mãe andava a tentar deixar de beber e não se estava a sair nada mal. Foi lá visitar-me nas férias da Primavera e divertimo-nos imenso juntas.
Explorámos Roma e passámos uma semana em Florença e nas aldeias das colinas da Toscânia,coroando tudo isso com uma visita a Veneza. A minha mãe era uma mulher
muitobonita e, nessa viagem, parecia ter voltado a ser a mesma quando sorria. Poracordo tácito, os nomes de Andrea e do meu pai nunca foram pronunciados.
Agrada-me ter essa recordação dela.
O vinho foi trazido para a mesa, aprovado por Pete e aberto. Dei um gole elancei-me no que tinha para dizer.
Tenho andado a trabalhar que nem uma desalmada. Toda aquela encenação sobre ocaso Westerfield pode muito bem dar resultado. O Jack Bern é bom escritor
e jáescreveu um artigo sobre o caso que será publicado no Vanity Fair no próximo mês.
Pete pegou noutro bocado de pão.
E o que é que tu podes fazer quanto a isso?
Estou a escrever um livro que será publicado na Primavera, na mesma semana emque o livro do Bern vai aparecer.
Contei-lhe a minha conversa com Maggie Reynolds. Pete tinha-a conhecido na festa que ela organizara em Atlanta para promover o meu livro.
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É a Maggie quem o vai publicar, mas, entretanto, tenho de contra-atacar osartigos do Bern e os comunicados de imprensa da família Westerfield.
Pete ficou à espera que eu terminasse. Outra coisa quanto a ele era que não seapressava a ressegurar os outros. E não preenchia os silêncios nas
conversas.
Pete, estou perfeitamente consciente de que uma série de artigos sobre um crimecometido há 22 anos no condado de Westchester, em Nova Iorque, talvez
não sejade grande interesse para os leitores do estado da Georgia e que, de qualquermodo, isto aqui não é o sítio certo para os publicar. A família Westerfield
éidentificada com o estado de Nova Iorque.
Concordo. Então o que é que propões fazer?
Pedir uma licença de férias, se ma deres. Ou, se não for possível,demitir-me, escrever o livro e tentar arranjar outro emprego quando o tiverterminado.
O criado de mesa aproximou-se da mesa. Ambos pedimos cannelloni euma salada. Pete gaguejou durante um minuto, mas
acabou por se decidir pelo molho de queijo Gorgonzola.Guardo-te o lugar enquanto puder, Ellie.O que é que isso quer dizer?Eu
mesmo posso já cá não estar. Estou a considerar umas propostas bastante atraentes que me foram feitas.Fiquei de boca aberta.Mas o News
é o teu mais que tudo.,
Estamos a tornar-nos demasiado grandes para a competição. Fala-se que nos querem comprar por uma data de massa e os donos estão interessados. Esta
geraçãoestá-se nas tintas parao jornal. Só está interessada no salário.
E para onde é que achas que vais?O L.A. Times vai certamente fazer-me uma oferta. A outrapossibilidade é em Houston. Qual
delas preferes?
Até ter uma garantia não vou perder tempo a escolher ] o que talvez não exista.
Pete não esperou o meu comentário e continuou a falar.
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Fiz também umas investigaçõezinhas sobre o teu caso,
Ellie. Os Westerfield estão a ficar bons em estratégia criminal. Têm umaimpressionante equipa de advogados de defesa que só está à espera de ganhar
umafortuna. Têm esse tipo Nebels e, como ele é manhoso, há gente que vai acreditarna sua história. Faz o que tens de fazer, mas, por favor, se o Westerfieldvoltar
a ser julgado e for absolvido, jura a ti mesma que te pões a milhas.
Fitou-me de frente.
Sei no que estás a pensar, Ellie. Aposto que, mesmo que isso aconteça, não vaislargar esse Rob. Quem me dera poder fazer-te entender que, por mais
livros quetu e o Bern escreverem, algumas pessoas irão para a cova a achar que oWesterfield fez um mau negócio, enquanto outras continuarão convencidas
de queele é culpado.
Pete deu-me o seu conselho por amabilidade, mas nessa noite, enquanto fazia asmalas para voltar a Oldham, percebi que até ele achava que, culpado
ou inocente, Rob Westerfield tinha cumprido a sua pena, que as pessoas pensariam o quequisessem do caso e que tinha chegado a altura de eu desistir.
Não há nada de errado em sentir uma ira justa, pensei. Excepto quando dura hámuito tempo.
Regressei de carro a Oldham e, na semana seguinte, Rob Westerfield compareceu no tribunal para solicitar liberdade condicional. Como era de esperar,concederam-lha
e foi anunciado que ele seria libertado no dia 31 de Outubro.
A Festa das Bruxas, disse para comigo mesma. Como era apropriado. A noite em que os demónios se passeiam pela Terra.
CAPÍTULO DEZASSEIS
Paul Stroebel encontrava-se atrás do balcão quando abri a porta da charcutaria e fiz tilintar o pequeno sino preso atrás dela.
A minha vaga lembrança dele estava concentrada na estação de serviço onde eletrabalhara há muitos anos. Enchia de gasolina o depósito do nosso carro
eesfregava o pára-brisas até este brilhar. Lembro-me da minha mãe dizer: «Como oPaulie é um rapaz simpático», palavras que nunca mais voltaram a serpronunciadas
quando ele se tornou suspeito da morte de Andrea.
Acho que a minha lembrança da sua aparência física se devia, em parte ou talvezunicamente, às fotografias que eu tinha visto dele nos recortes de
jornais que a minha mãe guardara, jornais que tinham publicado todos os pormenores doassassínio de Andrea e do julgamento. Não há nada que desperte mais a
atenção do público do que ver o filho de uma família rica e distinta acusado de ter mortouma bela adolescente.
É evidente que o texto era acompanhado por fotografias: o corpo de Andrea a sertransportado para fora da garagem; o caixão a sair da igreja; a minha
mãe, demãos juntas e o rosto contorcido pela dor; a expressão desesperada do meu pai;eu mesma, pequenina e com um ar perdido; Paulie Stroebel, atarantado
e nervoso;Rob Westerfield, arrogante, bonito e trocista; Will Nebels com um inapropriadosorriso insinuante estampado no rosto.
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Os fotógrafos obstinados em captar as emoções humanas ao vivo tinham tido umgrande dia.
A minha mãe nunca me tinha dito que possuía esta colecção de recortes nem astranscrições do julgamento. Depois da sua morte, fiquei chocado ao descobrir
que a volumosa mala que nos acompanhara em todas as nossas mudanças era, realmente, uma caixa de Pandora de desgraças. Suspeito agora que, quando a bebida fazia
aminha mãe cair em depressão, ela devia abrir a mala e reviver a sua crucificação em privado.
Sabia que Paulie e a Sra. Stroebel já deviam saber que eu estava na cidade.Espantou-se ao ver-me, mas, depois, o seu rosto fechou-se numa expressãoreservada.
Respirei o delicioso aroma de carne assada, fiambre e outroscondimentos que pareciam atributos das boas charutarias alemãs e ficámos ali amedir-nos um
ao outro.
A impassibilidade de Paulie era mais adequada num homem maduro do que no adolescente que eu vira nas fotografias dos jornais. As suas bochechas erammenos
rechonchudas e os seus olhos já não tinham aquela expressão desnorteada de há 22 anos. Eram quase seis horas, hora de fechar a loja, e, como eu tinhaesperado,
não havia clientes de última hora à espera de serem servidos.
Sou a Ellie Cavanaugh, Paulie.
Aproximei-me e estendi-lhe a mão. Ele apertou-a com firmeza, de modo atéinconfortavelmente forte.
Ouvi dizer que tinhas voltado. O Will Nebels está a mentir. Não fui à garagemnaquela noite.
A sua voz era um protesto dorido.
Eu sei que não foste.
Não é justo que ele diga isso.
A porta que separava a cozinha da loja abriu-se e a Sra. Stroebel apareceu. Tive imediatamente a impressão de que estava sempre em estado de alerta
para quenada acontecesse ao filho.
Tinha envelhecido e já não era a mulher de faces coradas de que me lembrava.Também estava mais magra. O cabelo era grisalho com apenas uma sugestão
de tomamarelado e andava coxeando ligeiramente. Ao reparar em mim, disse: «Ellie?», equando acenei
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com a cabeça, a sua expressão preocupada iluminou-se com um sorriso deboas-vindas. Precipitou-se para me abraçar.
Depois de eu ter testemunhado no tribunal, a Sra. Stroebel tinha vindo tercomigo para, quase a chorar, me agradecer. O advogado de defesa tinha
tentadofazer com que eu dissesse que Andrea tinha medo de Paulie e acho que eu fui bemclara. «Não disse que a Andrea tinha medo do Paulie porque ela não
tinha nadamedo dele. O que eu disse foi que tinha medo que o Paulie fosse contar ao meupapá que, às vezes, ela se encontrava com o Rob no esconderijo...
É tão bom ver-te, Ellie. Estás uma senhora e eu estou uma velha disse a Sra.Stroebel quando me deu um beijo.
O sotaque da sua terra natal escorria como mel através das suas palavras.
Não está nada protestei.
A afabilidade das suas boas-vindas, como as da Sra. Hilmer, era um raio de luzque atravessava a tristeza sombria que me acompanhava sempre. Tinha
o sentimento de voltar para o pé de pessoas que gostavam de mim. Aqui, na presença delas, eapesar de todo o tempo que tinha passado, não era uma estranha nem
estavasozinha.
Põe o sinal de «Fechado» na porta, Paulie disse bruscamente a Sra. Stroebel.Vens jantar a nossa casa, não vens, Ellie?
Gostaria imenso.
Segui-os no meu carro. Viviam a cerca de quilómetro e meio,numa das partes mais antigas da cidade. As casas eram todas de fins do séculoXIX
e relativamente pequenas. Mas pareciam confortáveis e bem mantidas e eupodia imaginar gerações de famílias sentadas à entrada no Verão.
O cão dos Stroebel, um labrador castanho-claro, recebeu-nos entusiasticamente.Paulie pôs-lhe imediatamente a trela e foi dar um passeio com ele.
A casa deles era exactamente como eu esperava convidativa, asseada econfortável. Não aceitei a sugestão da Sra. Stroebel para me sentar numa dascadeiras
excessivamente acolchoadas da sala de estar e ver as informações natelevisão enquanto ela preparava o jantar. Em vez disso, seguia-a até à cozinhae sentei-me
num
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banco junto à bancada a vê-la trabalhar. Ofereci-me para a ajudar, mas ela nãoquis.
Vai ser uma refeição simples avisou-me. Fiz um guisado ontem, mas sirvo-o sempre um dia depois. Fica melhor, com muito mais sabor.
As suas mãos moviam-se com ligeireza a preparar legumes para os meter noguisado, a rolar massa para fazer biscoitos e a fazer uma salada. Deixei-meficar
ali tranquilamente sentada. Ela queria certamente pôr o jantar ao lumepara, depois, podermos conversar.
Tinha razão.
Quinze minutos mais tarde, ela acenou a cabeça com satisfação.
Bem disse ela. Agora, antes que o Paulie chegue, tens de me contar tudo. OsWesterfield podem fazer isto? Após 22 anos, podem tentar novamente fazer
com que o meu filho passe por um criminoso?
Podem tentar, mas não hão-de conseguir. A Sra. Stroebel deixou cair os ombros.
Ellie, o Paulie fez tantos progressos. Lembras-te como ele era em rapaz, eratudo tão difícil para ele. Nunca foi bom aluno. É um tipo de conhecimento
quenão é para ele. O pai e eu sempre nos afligimos tanto. O Paulie é uma pessoa tão boa e doce. Sentia-se sozinho na escola, excepto quando jogava râguebi.
Era aúnica vez que sentia que gostavam dele.
Era-lhe obviamente difícil continuar.
O Paulie estava na equipa suplente e, por isso, não jogava muito. Mas, um dia,chamaram-no para jogar. A outra equipa marcou um golo e, então...
Não percebonada desses jogos... Se o pai dele estivesse vivo havia de te contar... O Paulie apanhou a bola no último minuto e marcou o ponto que nos deu a vitória.
A tua irmã estava na banda de música. Era a mais bonita delas todas. Foi ela que agarrou no altifalante e correu para o campo. O Paulie não se cansava
de mecontar... A Andrea tinha feito claque por ele.
A Sra. Stroebel fez uma pausa, inclinando a cabeça como se estivesse à escuta,e, depois, em voz baixa mas exuberante, pôs-se a cantar:
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«Viva o Paulie, o melhor de todos. Está todo contente e nós gostamos dele. Vivao Paulie, o melhor de todos.»
Ellie disse com os olhos brilhantes. Foi o momento mais feliz da vida do Paulie. Não sabes o que ele passou quando a Andrea morreu e os Westerfield
tentaramculpá-lo. Acho que ele teria morrido para a salvar. O nosso médico andavapreocupado, receava que ele se matasse. Quando se é um pouco diferente,
um pouco mais lento, é muito fácil ficar deprimido.
Tem-se estado tão bem nos últimos anos. É ele quem toma cada vez mais decisõesna loja. Estás a perceber o que quero dizer... O ano passado decidiu
quedevíamos colocar umas mesas e empregar uma rapariga para servir os clientes. Apenas o pequeno-almoço e sanduíches à tarde. Tem tido muitosucesso.
Reparei nas mesas.
O Paulie nunca há-de levar uma boa vida. Terá sempre de trabalhar mais do que os outros. Mas há-de sair-se bem, a não ser que...
A não ser que as pessoas comecem a apontar novamente para ele e a perguntar a si próprias se não é ele quem deveria ter sido condenado a 22 anos de
prisãointerrompi-a eu.
Ela acenou com a cabeça.
Pois. É isso que eu queria dizer.
Ouvimos abrir a porta da frente, os passos de Paulie e oslatidos do labrador anunciando a sua chegada. Paulie entrou na cozinha.
Não é justo que aquele homem diga que eu fiz mal à Andrea disse e, depois, subiu abruptamente as escadas.
Está a começar a sentir-se novamente deprimido disse a Sra. Stroebel.
CAPÍTULO DEZASSETE
Um dia depois de ter visto os Stroebel, tentei encontrar Marcus Longo, o inspector que investigara o assassínio de Andrea. Mas, como não estava em
casa,deixei uma mensagem no atendedor de chamadas explicando quem era e o número domeu telefone portátil. Não obtive qualquer resposta durante alguns dias.
Senti-me terrivelmente desapontada. Depois de ver a reacção indignada de Longona televisão a propósito de Rob Westerfield, julguei que ele me chamariaimediatam
ente. Já me tinha quase esquecido dele quando, a 30 de Outubro, o meutelefone portátil tocou. Respondi e uma voz perguntou em tom calmo: «Ellie, oseu cabelo
ainda é da cor da areia iluminada pelo sol?»
Olá, Sr. Longo.
Acabei de chegar do Colorado e é por isso que só agora è que lhe estou a telefonar disse ele. O nosso primeiro neto nasceuterça-feira e a minha
mulher ainda lá está. Quer jantar comigo hoje à noite?
Adoraria.
Disse-lhe que estava a morar no apartamento que a Sra. Hilmer reservava para osamigos.
Eu sei onde a Sra. Hilmer vive.
Houve uma ligeira pausa. É claro que ele sabia, pensámos os dois ficava a curtadistância da nossa antiga casa.
Irei buscá-la às sete, Ellie.
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Desci as escadas apressadamente quando vi o carro dele subir o caminho emdirecção à casa. O caminho bifurca e a garagem com o apartamento por cima
ficaao fundo à direita. Outrora, tinha sido um estábulo e ficava ainda a uma certadistância da casa da Sra. Hilmer. E eu não queria que ele se enganasse.
Há pessoas com quem nos sentimos imediatamente à vontade e foi assim que mesenti com Marcus Longo logo que entrei no carro e me sentei ao lado dele.
Pensei muito em si durante todo este tempo disse-me enquanto dava meia volta. Já esteve em Cold Springs desde que voltou?
Passei por lá uma tarde, mas não saí do carro. Lembro-me de ter lá ido quandoera miúda. A minha mãe andava sempre a visitar lojas de antiguidades.
Bem, ainda tem muitas, mas também tem bons restaurantes. Oldham é a cidade docondado de Westchester à beira do rio
Hudson que fica mais a norte, e Cold Springs, à beira do Hudson, faz fronteiracom o condado de Putnam e está mesmo na margem oposta a West Point.
É umacidadezinha particularmente bonita com uma rua principal que lhe dá umaatmosfera do século XIX.
Lembrava-me de ter lá estado com a minha mãe e, ao longo dos anos, ela falava-me por vezes desse sítio. «Lembras-te quando nas tardes de sábado descíamos
a ruaprincipal e entrávamos em todas aquelas pequeninas lojas de antiguidades? Estava a ensinar a ti e à tua irmã a encontrar coisas bonitas. Achas que fazia
mal?»
Regra geral, essas recordações começavam ao segundo ou terceiro uísque. Porvolta dos meus dez anos, metia água na garrafa de Dewar's paranão
lhe fazer tão mal, mas não deu resultado.
Longo tinha reservado uma mesa no Cathryn's, um restaurante de estilo toscanonum pátio perto da rua principal. Sentámo-nos e observámo-nos. Ele
parecia maisvelho do que na televisão. Tinha rugas à volta dos olhos e da boca e, emborafosse corpulento, não dava a impressão de ser fisicamente forte. Perguntei-me
se ele não teria estado doente.
Não sei porque pensei que você tinha aí um metro e meio disse ele. Em criança,era pequena para a idade que tinha
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Cresci bastante no liceu.
parece-se com o seu pai, sabia? Costuma vê-lo?
A pergunta apanhou-me desprevenida.
Não. E não tenciono fazê-lo.
Não queria perguntar, mas tive curiosidade.
O senhor vê-o?
Por favor trate-me por Marcus. Há anos que não o vejo, mas
o filho dele, seu meio-irmão, é um excelente atleta e falam muito dele nosjornais locais. O seu pai reformou-se há oito anos, aos 59 de idade. A
imprensafalou muito bem dele. Fez uma carreira brilhante na guarda nacional.
Suponho que mencionaram a morte da Andrea?
Sim. E publicaram algumas fotografias, recentes e antigas. É por isso que noteique é muito parecida com ele.
Não respondi e Longo ergueu as sobrancelhas.
É obviamente um cumprimento de qualquer modo, como costumava dizer a minha mãe:«Tornaste-te uma rapariga simpática.»
Longo mudou de assunto abruptamente.
Li o seu livro e gostei muito, Ellie. Conseguiu captar o sofrimento das famílias das vítimas de forma notável. Percebi porquê.
Tenho a certeza que sim.
Por que é que veio até cá, Ellie?
Para protestar contra a liberdade condicional concedida ao Rob Westerfield.
Muito embora deva ter desconfiado que não serve para nada disse em tom calmo.
Sabia que era inútil.
Acha que tem necessidade de se sentir como uma voz solitária a pregar nodeserto?
A minha mensagem não é para abrir o caminho a Deus. É para prevenir as pessoas.«Tenham cuidado. Estão a pôr à solta um assassino.»
Continua a ser uma voz no deserto. Amanhã de manhã,
Rob Westerfield sairá da prisão. Agora ouça-me com atenção,
Não há a mínima dúvida de que o julgarão outra vez. O testemunho do Nebels será provavelmente suficiente para o júri ficar
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com dúvidas. O registo criminal do Rob ficará limpo e os Westerfield serãofelizes para sempre.
Isso não pode acontecer.
Tem de compreender uma coisa, Ellie. Os Westerfield precisam de fazer comque isso aconteça. O Robson Parke Westerfield é o último de umalinhagem
que tinha um bom nome e era respeitada. Não se deixe enganar pelaimagem pública do pai. Por detrás daquela fachada filantrópica, o VincentWesterfield, o
pai do Rob, é um ladrão de gado ganancioso, mas anseiarespeitabilidade para o filho. E a velha Sra. Westerfield exige-a.
O que é que isso significa?
Significa que, aos 92 anos, ela ainda mexe e controla a fortuna da família. Se o nome do Rob não for limpo, ela deixa tudo às obras de caridade.
O Vincent Westerfield também é rico.
Claro. Mas nada que se compare com a riqueza da mãe. A Sra. Dorothy Westerfieldtem classe e já não acredita cegamente na inocência do neto. O seu
pai não a pôs na rua no dia do funeral?
Pôs. A minha mãe nunca se recompôs dessa cena.
Aparentemente, a Sra. Dorothy Westerfield também não. O seu pai confrontou-apublicamente com o facto de que o tipo que a roubou e lhe deu um tiro
declarouque o seu cúmplice era o Rob.
Lembro-me realmente que ele lhe disse isso.
E, aparentemente, a Sra. Westerfield também. Claro que ela quer acreditar que oneto foi injustamente condenado, mas creio que as sementes da dúvida
sempreestiveram plantadas no seu espírito e têm crescido ao longo dos anos. Agora queela obviamente já não tem muito tempo, passou a batata quente ao Vincent.
E este tem de provar que o Rob está inocente e limpar a mancha do nome da família.Caso contrário, a fortuna dos Westerfield irá parar às obras de caridade.
Surpreende-me que ela possa dispor do dinheiro tão livremente.
Talvez o marido, o pai do Vincent, tenha deparado com algo no filho que o levoua proceder dessa maneira. Felizmente para ele, não viveu para ver
o netocondenado por assassínio.
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Quer dizer, então, que o Vincent tem de provar a inocência do Rob e, de repente, aparece uma testemunha que viu o Paulie Stroebel a entrar
no esconderijo. A Sra. Westerfield engole essa história?
Ellie, o que ela quer é um novo júri que reveja o caso e dê o veredicto que ela deseja.
E o Vincent Westerfield vai fazer tudo para que isso aconteça.
Deixe-me contar-lhe uma coisa sobre o Vincent Westerfield.
Andou obstinado durante anos a transformar as zonas residenciais do vale doHudson em áreas para negócio. Se pudesse, teria construído um centro
comercialno meio do rio Hudson. Julga que ele se importa com o que venha a acontecer aoPaulie Stroebel?
Vieram trazer-nos a lista e eu escolhi uma das especialidades, espetada decordeiro. Marcus pediu salmão.
Falei-lhe dos meus planos enquanto comíamos a salada.
Quando vi aquela entrevista com o Will Nebels na televisão, decidi, primeiro,tentar publicar uns artigos. Mas consegui um contrato para escrever
um livro afim de refutar o que o Jake Bern está a escrever.
Não só puseram o Bern a escrever um livro como também têm uma máquinapublicitária bem oleada pronta a bombardear os meios de comunicação. O que
viuna televisão foi apenas uma amostra avisou-me Longo. Não me surpreenderia nadase, de repente, eles publicassem uma fotografia do Rob fardado de escuteiro.
Lembro-me do meu pai dizer que ele era má rês. E a história do assalto a casa da avó dele?
Marcus tinha uma memória de chui para crimes.
A avó estava em casa em Oldham e, a meio da noite, foi acordada por um barulho.Havia uma criada a viver lá em casa, mas dormia numa ala separada
e, quando aSra. Westerfield abriu a porta do quarto, dispararam contra ela à queima-roupa.Não chegou a ver quem tinha sido, mas o assaltante foi preso uns
dias mais tarde e disse que o instigador tinha sido o Rob, o qual lhe prometera dez mil dólares se matasse a avó.
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- Escusado será dizer que não havia provas. Era a palavra de um rapazde 21 anos que abandonara os estudos e tinha um longo cadastro contra um Westerfield.
- Qual teria sido o motivo do Rob para fazer tal coisa?
- Dinheiro. Herdaria cem mil dólares directamente da avó. Ela achava que umgaroto de 16 não era demasiado jovem para começar a lidar com dinheiro e aaprender
a investi-lo com inteligência. Não sabia que o Rob tinha problemas comdrogas.
- Acreditou que ele não estava envolvido no assalto a casa dela?
- Acreditou. Mas modificou o testamento e anulou o legado de cem mildólares.
- Então, ela sempre teve as suas dúvidas... Longo acenou acabeça.
- Essas dúvidas, combinadas com o que aconteceu à sua irmã,abriram-lhe os olhos. No essencial, ela disse ao filho e ao neto para aguentarem ou calarem-se.
- E a mãe do Rob Westerfield?
- É outra senhoramuito simpática. Passa a maior parte do tempo na Florida. Tem um negócio dedecoração de interiores em Palm Beach. Registado sob o seu nome
de solteira,acrescente-se. Tem muito sucesso. Tem um site na Internet.
- Eu tambémtenho um. Longo arregalou os olhos.
- É o meio mais rápido para divulgarinformação. A partir de amanhã, vou escrever todos os dias sobre o assassínio da Andrea e implicar o Rob Westerfield no
meu Website. Vou tomar nota de todos osboatos desagradáveis que se contam sobre ele e verificar cada um deles.Entrevistarei professores e colegas do liceu
e do primeiro ano de universidadeem Willow College. Não se é expulso sem razão. É provável que não dê resultado,mas vou tentar seguir a pista do medalhão
que ele ofereceu à Andrea.
-Lembra-se bem dele?
- Agora, não muito bem. Mas, durante o julgamento,descrevi-o lindamente. Tenho a transcrição do meu depoimento e, por isso, seiexactamente o que disse na
altura - era de ouro, tinha a forma de coração comtrês pedrínhas azuis no meio e as letras R A gravadas atrás.
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- Encontrava-me no tribunal quando o descreveu. Lembro-me que acheique devia ter sido caro, mas, provavelmente, era um desses berloques que secompra por
25 dólares em qualquer centro comercial. E, depois, gravam asiniciais por uma ninharia.
- Mas não acredita que eu toquei realmentenele quando encontrei o corpo da Andrea no esconderijo, que ouvi alguém arespirar perto de mim e que o medalhão
desapareceu antes da polícia chegar?
- Depois do choque que apanhou, ficou histérica, Ellie. Disse no tribunalque, ao ajoelhar-se, escorregou e caiu sobre a Andrea. Não acho que, em plenaescuridão
e como devia estar a sentir-se, teria podido identificar o medalhão.Você mesma disse que ela o usava sempre debaixo de uma blusa ou de uma camisola.
- Ela levou o medalhão nessa noite. Tenho a certeza. Por que é que jánão o tinha com ela quando a polícia chegou?
- Uma explicação razoável éque ele lho tirou depois de a matar. A defesa baseou-se no facto do Rob declarar que ela era simplesmente uma miúda apaixonada por
ele e que ele não tinhanenhum interesse nela.
- Deixemos isso por agora - disse-lhe. - Querofalar sobre outra coisa. Fale-me do seu neto novinho em folha. É o seu primeironeto?
- É, pois.
Marcus parecia tão satisfeito quanto eu pormudarmos de assunto. O jantar foi servido e ele falou-me da família.
- OMarx tem a sua idade e é advogado. Casou-se com uma rapariga do Colorado earranjou um emprego numa firma de lá. Adora o seu trabalho. Eu retirei-me há
uns dois anos e fui operado ao coração no Inverno passado. Quando faz frio,passamos agora a maior parte do tempo na Florida e estamos a pensar em vender oque
temos aqui e comprar uma casa pequena em Denver para podermos ver a famíliasem a importunar.
- A minha mãe e eu passámos cerca de um ano em Denver.
- Já vive há uns tempos em Atlanta. Acha que vai lá ficar?
- Éuma cidade formidável. Tenho muitos amigos e gosto do meu trabalho, mas, se ojornal onde trabalho for vendido como
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consta, não sei se continuarei a viver lá. Talvez, um dia, assente e me instalede vez. Mas ainda não me apetece fazer isso. Sinto sempre que ainda
tenho unsassuntos para resolver. Foi alguma vez ao cinema em miúdo quando tinha trabalhos de casa para fazer
Várias vezes.
E não conseguia desfrutar o filme, pois não?
Foi há muito tempo... Mas acho que não.
Eu cá tenho trabalhos de casa para acabar antes de poderdesfrutar o filme disse-lhe.
Não tinha deixado uma luz acesa ao sair e, quando voltámos para casa da Sra.Hilmer, o apartamento por cima da garagem estava às escuras eparecia
lúgubre, Marcus Longo ignorou os meus protestos e insistiu em acompanhar-me até ao andar de cima. Manteve-se ao meu lado enquanto eu procurava as chaves.
Tranque a porta aconselhou-me quando entrei.
Alguma razão especial? perguntei.
Como você mesma disse: «Cuidado, estão a pôr um criminoso à solta.»
Cheguei a tempo para apanhar as informações das dez horas. Rob Westerfield iriasair da prisão na manhã do dia seguinte e seria entrevistado na
casa da família em Oldham ao meio-dia.
Não quero perder isso por nada deste mundo pensei.
CAPíTULO DEZOITO
Nessa noite, o sono não me veio com facilidade. Adormecia e despertava, sabendoque, a cada segundo do relógio, Rob Westerfield estava mais perto
de ser soltoda prisão.
Não conseguia deixar de pensar nele nem no motivo que o tinha mantido atrás dasgrades durante 22 anos. Para dizer a verdade, quanto mais ele se
aproximava daliberdade mais Andrea e a minha mãe estavam vivas para mim. Se ao menos... se ao menos...
se ao menos...
Desiste, gritava uma voz dentro de mim. Vai-te embora. Esquece. Sei o que estoua fazer com a minha vida e não é algo que eu queira que aconteça
Por volta dasduas da manhã, levantei-me e fiz café. Sentei-me junto da janela a bebê-lo. Osbosques que separavam a nossa casa da propriedade da velha Sra.
Westerfieldpassavam pelo jardim da Sra. Hilmer e ainda lá estavam, protegendo a suaprivacidade. Podia atravessá-los como Andrea o fizera naquela noite e,
uma vezdo outro lado, chegar à garagem.
Agora, há uma elevada cerca à volta dos vários hectares da casa dos Westerfield. Tenho a certeza de que existe um sistema de alarme que assinala a
presença dequaisquer intrusos ou de uma garota de 15 anos. Aos 92 anos, as pessoas nãonecessitam normalmente de muitas horas de sono. Perguntei-me se a Sra.Westchester
não estaria acordada neste preciso momento, satisfeita por ver umindividuo do seu próprio sangue e carne solto da prisão, mas temendo
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toda a publicidade à volta do caso. A sua vontade de limpar o nome da famíliaera tão forte quanto a minha de fazer tudo para que Paulie Stroebel
não fossedestruído e o nome de Andrea não fosse arrastado na lama.
A minha irmã era uma rapariga inocente cuja paixão por RobWesterfield se transformara em medo. Tinha sido por isso que ela fora à garagemnessa
noite. Receava não ir ter com ele quando ele mandava.
Sentada ali de madrugada com o medo cristalizado na mente, escutava osubconsciente dizer-me que ela tinha medo dele e que eu também tinha medo delepor
ela. Via nitidamente Andrea como se fosse naquela noite a prender o fio como medalhão atrás do pescoço reprimindo as lágrimas. Não queria encontrar-se comele,
mas encontrava-se entre a espada e a parede. E, assim, acrescentei outro«se ao menos...» à lista. Se ao menos eu tivesse ido ter com os meus pais e lhes dissesse
que ela fora encontrar-se com Rob.
Nesse momento, trocámos de papel e eu tornei-me a sua irmã mais velha. Volteipara a cama e adormeci profundamente até às sete da manhã. Estava
diante datelevisão quando Rob Westerfield saiu de Sing Sing numa limusina que o aguardava à porta. O repórter que se encontrava no local realçou o facto de
Rob tersempre clamado a sua inocência.
Ao meio-dia, voltei a sentar-me em frente do aparelho para ver Rob Westerfieldser mostrado ao mundo.
A entrevista teve lugar na biblioteca da mansão da família Westerfield emOldham. O sofá onde ele se sentava tinha sido colocado diante da estantealinhada
com livros encadernados a cabedal para inferir, assumo eu, que ele eraum intelectual.
Rob estava vestido com um casaco de caxemira ocre, uma camisa aberta no pescoço, calças escuras e mocassinos. Sempre fora bonito, mas tornara-se ainda
mais emadulto. Tinha as feições nobres do pai e aprendera a ocultar a expressãocondescendente que aparecia em todas as suas fotografias. Os cabelos escurostinham
um ligeiro tom acinzentado. De mãos juntas pousadas diante dele, eleestava ligeiramente inclinado para a frente numa pose descontraída, mas atenta.
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- Boa actuação - disse em voz alta. - A única coisa que falta é um cão deitado aos seus pés.
Só de olhar para ele sentia o fel a subir-me àgarganta.
A entrevistadora era Corinne Sommers, apresentadora de TheRealStory, popular programa das sextas-feiras à noite. Fez uma breve introdução:
- Solto após ter passado 22 anos na prisão... sempre protestou a suainocência... vai agora lutar para limpar o seu nome...
Acaba lá com isso, pensei.
- Como é que se sente em liberdade, Rob? Ele sorriu calorosamente.Os seus olhos escuros com sobrancelhas bem desenhadas pareciam quase divertidos.
- É Inacreditável, maravilhoso. Já sou demasiado crescido para chorar,mas tenho vontade de o fazer. Percorri a casa toda e é formidável poder fazercoisas
normais, como entrar na cozinha e beber uma segunda chávena de café. •
- Vai ficar aqui por uns tempos?
- Absolutamente. O meu paiarranjou-me um apartamento maravilhoso que fica perto desta casa e quero trabalhar com os nossos advogados para ser rapidamente julgado
de novo. Olhoudirectamente para a câmara.
- Corinne, ter-me-iam concedido a liberdadecondicional há dois anos se eu tivesse confessado ter morto a Andrea Cavanaugh e dito que lamentava o sucedido.
- Não foi tentado a fazê-lo? ;
- Demodo algum - retorquiu prontamente. - Disse sempre que era inocente e, agora,graças ao Will Nebels, tenho finalmente a oportunidade de o provar.
Nãoconfessaste porque tinhas muito a perder, disse para com os meus botões. A tuaavó ter-te-ia deserdado.
- É verdade que foi ao cinema na noite em queassassinaram a Andrea Cavanaugh?
- É, sim. E fiquei lá até o filmeterminar às nove e meia. O meu carro esteve estacionado na estação de serviçomais de duas horas. Do centro de Oldham a casa
da minha avó demora-se apenas 12minutos. O Paulie Stroebel tinha acesso ao meu carro
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e andava atrás da Andrea. Até mesmo a irmã dela admitiu isso quando foi depor no tribunal.
O empregado do cinema lembra-se de si a comprar o bilhete
Pois lembra. E eu tinha o talão do bilhete...
Ninguém o viu a sair do cinema depois do filme acabar?
Ninguém se lembra de me ter visto corrigiu ele. Há uma grandediferença.
Por uma fracção de segundo, uma explosão de cólera manifestou-se por detrás doseu amável sorriso. Tive um sobressalto.
O resto da entrevista, contudo, prosseguiu como se ele fosse um refém acabado de chegar a casa.
Além de limpar o seu nome, o que é que pensa fazer?
Ir a Nova Iorque. Jantar num restaurante que provavelmente não existia há 22anos. Talvez viajar. Arranjar um emprego...
Fez uma pausa antes de acrescentar com um sorriso.
Encontrar alguém especial. Casar e ter filhos.
Casar. Ter filhos. Todas as coisas que Andrea nunca teria a oportunidade defazer.
O que é que vai comer ao jantar esta noite e quem é que lhe fará companhia?
Só nós os quatro... A minha mãe, o meu pai, a minha avó e eu. Queremosreunir-nos como uma família. Pedi para me fazerem um jantar basicamente simples:
uma entrada de camarões, carne, batatas assadas, uma salada...
E que tal torta de maçã para sobremesa?, pensei.
E torta de maçã concluiu ele.
E também champanhe, imagino.
Certamente.
Parece que tem planos bem definidos para o futuro, Rob Westerfield.Desejamos-lhe sorte e espero que, num segundo julgamento, possa provar a suainocência.
Isto é que é uma jornalista? Exclamei, apagando a televisão e dirigindo-me paraa mesa da sala de jantar onde tinha o computador portátil à minha
espera. Liguei o meu Website e comecei a escrever.
«Robson Westerfield, condenado pelo assassínio de Andrea Cavanaugh, acabou desair da prisão e está ansioso por comer um
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assado e torta de maçã. A canonização deste assassino já começou e será feita àcusta da sua jovem vítima e de Paulie Stroebel, um homem tranquilo
e trabalhador que teve de vencer muitas dificuldades.
Não devia ser obrigado a vencer mais esta.»
Nada mau para começar, pensei.
CAPÍTULO DEZANOVE
O Departamento Correccional de Sing Sing liberta todos os dias presos quecumpriram a sua pena ou que obtiveram liberdade condicional. Quando saem,
é-lhes fornecido calças de ganga, botas de trabalho, um casaco e 40 dólares, e, a nãoser que um parente ou um amigo os venha buscar, são conduzidos à estação
deautocarro ou recebem um bilhete de comboio.
A estação de caminho-de-ferro está localizada a quatro quarteirões da prisão. Opreso solto percorre a pé essa distância e toma um comboio rumo ao
Norte ou aoSul.
A estação do comboio que vai para o Sul é Manhattan e o que sobe o estado deNova Iorque pára em Buffalo.
Calculei que quem saísse de Sing Sing por esta altura teria certamente conhecido Rob Westerfield.
Foi por isso que no dia seguinte de manhã cedo me agasalhei bem, estacionei ocarro na estação e me dirigi a pé até à prisão. Há uma actividade
constantejunto dos portões. Tinha-me informado e sabia que havia cerca de 2300 reclusoslá encarcerados. Calças de ganga, botas de trabalho e um blusão não
são umavestimenta particularmente característica. Como é que eu saberia distinguirentre uma pessoa que talvez fosse um empregado a sair de folga e um presorecentemente
solto? A resposta era que não poderia sabê-lo.
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Antecipando-me ao problema, escrevi num cartaz: «Jornalista procurainformação sobre o preso recentemente solto, Robson Westerfield. Boa recompensa.»
E fui colocar-me ao lado do portão.
Mas, depois, ocorreu-me que uma pessoa que saísse da prisão de carro ou que nãoquisesse ser vista a falar comigo, poderia contactar-me por telefone.Acrescentei
o número do meu telefone portátil 917-555-1261 em números grandesfáceis de ler.
Era uma manhã fria e ventosa. O primeiro de Novembro, Dia de Finados. Desde quea minha mãe morreu que vou à missa no Natal e na Páscoa, quando até
mesmocatólicos pouco praticantes como eu ao ouvir o sino de uma igreja tomamrelutantemente a sua direcção.
Chego lá como um robô. Ajoelho-me e levanto-me como os outros, mas não rezo.Gosto de cantar e sinto a garganta a palpitar quando a congregação se
junta aocoro. No Natal, a música é alegre: Escutai os Anjos Mensageiros a Cantar,ou No Presépio. Na Páscoa, o cântico é triunfal:Jesus Cristo Ressuscitou
Hoje. Mas os meus lábios mantêm-sesempre cerrados. Os outros que cantem em exaltação.
Dantes, ficava zangada, mas, agora, apenas exausta. De uma maneira ou deoutra, apanhaste-os a todos, Senhor. Estás finalmente satisfeito? Quando
vejo na televisão famílias inteiras a ser destruídas embombardeamentos ou a morrer de fome, sei que deveria imaginar como a minha sorte é melhor. Compreendo
intelectualmente isso, mas não serve de nada. Vamosfazer um contrato, Deus. Deixemo-nos um ao outro em paz.
Estive duas horas de cartaz na mão. A maior parte dos indivíduos quepassaram por mim ao entrar, ou ao sair, olhavam com curiosidade. Algunsdirigiram-me
a palavra.
Não tem nada melhor para fazer do que interessar-se por essa besta, minhasenhora? disse-me um homem corpulento com perto de 50 anos e boné enterrado
nacabeça.
Admitiu que trabalhava na prisão, mas recusou dizer o seu nome.
Não reparei, contudo, que alguns, incluindo os que pareciam empregados,examinavam o cartaz como para memorizar o meu número de telefone.
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Às dez horas, com os ossos gelados, desisti e dirigi-me para o carro. Tinhachegado à porta quando um homem me acostou. Era esquelético, olhos de
mau,lábios finos e parecia ter uns 30 anos.
Por que é que anda a meter-se com o Sr. Westerfield? perguntou. Ele fez-lhealgum mal?
Estava vestido com calças de ganga, blusão e botas de trabalho. Teria acabado de ser solto e vindo atrás de mim?
- É amigo dele? perguntei-lhe.
O que é que tem a ver com isso?
Por instinto, recuamos quando se aproximam demasiado de nós. Tinha as costascontra o carro e este tipo estava literalmente quase em cima de mim.
Pelo cantodo olho, vi uma carrinha entrar no parque de estacionamento, Fiquei aliviada. Se precisasse de ajuda, havia pelo menos alguém por perto.
Está a impedir-me de entrar no meu carro disse-lhe.
O Rob Westerfield teve um comportamento exemplar na cadeia. Todos nós oadmirávamos. Deu-nos um bom exemplo. Quanto é que me vai pagar por essainformação?
Peça-lhe a ele.
Virei-me e afastei-o com o ombro. Carreguei depois no controlo à distância paraabrir e entrei. Não tentou deter-me.
Deixe-me dar-lhe um conselho de borla disse-me antes de eu ter tempo para fechar a porta. Tire dali o seu cartaz.
CAPÍTULO VINTE
Quando voltei ao apartamento, pus-me a ler os jornais antigos que a minha mãetinha guardado. Deram imenso jeito na minha investigação da vida de
RobWesterfield. Encontrei o nome de duas escolas preparatórias em que ele tinhaandado. A primeira, a escola preparatória de Arbinger, em Massachusetts, é
umadas mais requintadas do país. Tinha lá estudado durante apenas ano e meio, e,depois, mudara para Carrington, em Rhode Island.
Como nada sabia sobre a escola Carrington, fui informar-me na Internet. Owebsite de Carrington Academy dava a entender que era um clubeonde
os estudos, os desportos e o convívio criavam uma espécie de ambienteparadisíaco. Mas, por detrás da sedutora descrição de tudo o que tinha paraoferecer,
a realidade era óbvia: tratava-se de uma escola para «estudantes quenão tinham conseguido alcançar o seu potencial académico ou social», para«estudantes
que tinham dificuldade em adaptar-se à disciplina».
Por outras palavras, era um lugar para adolescentes com problemas decomportamento.
Antes de enviar o meu inquérito através do website para obterinformação sobre a vida escolar de Rob Westerfield, de colegas ou antigosfuncionários
de Carrington, decidi ir visitar ambas as escolas. Telefonei-lhes a explicar que era jornalista e estava a escrever um livro sobre Rob Westerfield. Em ambos os
casos, liguei directamente para a administração. Em Arbinger,passaram-me imediatamente a Craig Parshall, encarregado das relações públicas.
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O Sr. Parshall informou-me que os regulamentos da escola não permitiam que avida de antigos ou presentes alunos fosse discutida com a imprensa.
Mas não deram uma entrevista ao Jake Bern a respeito do Rob Westerfield?
Houve uma longa pausa e eu soube logo que tinha acertado em cheio.
Concedemos de facto essa entrevista disse Parshall em voz fria e poucocondescendente. Fazemo-lo caso a família de um aluno antigo, ou presente,
dêautorização. Tem de perceber, Ms. Cavanaugh, que os nossosalunos pertencem a famílias distintas, incluindo presidentes e realeza.Há alturas em que o
acesso dos meios de comunicação tem de serprudentemente supervisionado.
E claro que a publicidade aumenta o prestígio da escola atalhei. Por outro lado, se num dado website aparecesse todos os dias que o assassinode
uma rapariga de 15 anos se tinha dado com um desses distintos estudantes, asfamílias poderiam não ficar lá muito contentes. E poderiam vir a pensar duasvezes
antes de enviar os filhos e herdeiros estudarem em Arbinger, não éverdade, Sr. Parshall?
Não lhe dei oportunidade para responder.
Talvez mostrar-se cooperativo sirva melhor os interesses da escola, nãoconcorda?
Quando, após um longo momento de silêncio, Parshall acabou por responder não foi em tom muito alegre.
Ms. Cavanaugh, concedo-lhe uma entrevista, mas previno-a que aúnica informação que lhe daremos serão as datas em que o Rob Westerfield esteveaqui
e o facto que ele solicitou, e obteve, uma transferência.
Oh, não espero que confesse que o puseram no olho da rua disse eu,desdenhosamente. Mas tenho a certeza de que conseguiu descobrir um pouco mais
do que isso para contar ao Sr. Bern.
Concordámos que eu iria ao seu gabinete às 11 horas da manhã seguinte.
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Arbinger fica a cerca de 60 quilómetros a norte de Boston. Localizei acidade no mapa, escolhi o melhor itinerário e calculei quanto tempo levaria.
Telefonei depois a Carrington e, desta vez, passaram-me Jane Bostrom, directorado serviço de admissões. Ela reconheceu que tinham dado uma entrevista
a JakeBern a pedido dos Westerfield e acrescentou que não poderia conceder-me o mesmosem autorização da família.
Ms. Bostrom, a Carrington é uma espécie de escola preparatóriade último recurso fiz-lhe notar com firmeza. Quero ser justa, mas a suaexistência
deve-se ao facto de aceitar e tentar corrigir rapazes com problemas,não é?
Gostei de ela ser franca comigo.
Há muitos motivos para os rapazes terem problemas, Ms. Cavanaugh. A maior parte deles tem a ver com a família. São filhos de paisdivorciados
ou de pais em posições importantes que não lhes dedicam muito tempo. São solitários ou alvo de troça dos colegas. Isso não significa que sejamacadémica ou socialmente
incapacitados. Significa apenas que são infelizes e que precisam de ajuda.
Ajuda que, por vezes por muito que tentem, não conseguem dar?
Posso dar-lhe uma lista de estudantes nossos que tiveram muito sucesso.
E eu posso citar um dos vossos alunos que teve sucesso logo no primeiro crimeque cometeu... ou pelo menos no primeiro que se sabe que ele cometeuacrescentei.
A minha intenção não é dar cabo de Carrington. Quero descobrir oque posso sobre o que o Rob Westerfield andava a tramar na adolescência antes de ter assassinado
a minha irmã. Se deu uma data de informação a Jake Bern e ele,agora, pode fazer extrapolações e escrever coisas boas, deixando as más de lado, eu cá também
quero ter o mesmo acesso.
Como iria a Arbinger no dia seguinte, uma sexta-feira, marquei um encontro comMs. Bostrom para segunda de manhã. Debati comigo mesma sedeveria
passar algum tempo na vizinhança das escolas antes dos encontros quetinha marcado. Pelo que sabia, ambas estavam localizadas em pequenas cidades, oque significava
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que deveriam haver lugares onde a miudagem se reunia para comer pizza e comida servida ao balcão. Sentar-me nos locais frequentados porestudantes
tinha dado resultado quando escrevera um artigo sobre um rapazque tinha tentado matar os pais.
Há já uns dias que não tinha encontrado a Sra. Hilmer, mas, ao fim da tarde, ela telefonou-me.
Ellie, isto é uma sugestão mais do que um convite. Tive hoje uma daquelasvontades que me dá de cozinhar e, agora, tenho um frango a assar no forno.
Senão tiver planos para hoje à noite, quer vir jantar comigo? Mas, por favor, nãoaceite se preferir estar sozinha.
Não me tinha dado ao trabalho de ir às compras nessa manhã e sabia que os únicos produtos que tinha em casa só davam para fazer uma sanduíche de queijo
ou umasanduíche de queijo. E também me lembrei que a Sra. Hilmer era boa cozinheira.
A que horas? perguntei.
Oh, por volta das sete.
Não só aceito o seu convite, como irei mais cedo.
Formidável!
Ao desligar, percebi que ela devia pensar que eu era uma solitária. E claro que, em parte, tinha razão. Mas apesar do meu isolamento interior, ou talvez
porcausa dele, sou uma pessoa razoavelmente sociável. Gosto de ver pessoas e,depois de um dia de trabalho no jornal, encontro-me frequentemente com amigos.Quando
trabalho até tarde, acabo por comer massa ou um hambúrguer com quem querque esteja por perto. Havia sempre dois ou três colegas lá que não seprecipitavam
a correr para casa depois de terem escrito um artigo ou terminadouma coluna.
Eu era uma dessas do grupo, e Pete também. Enquanto lavava o rosto, escovava ocabelo e enrolava-o no alto da cabeça, perguntei-me quando é que ele
me diriaque emprego tinha aceite. Tinha a certeza de que, mesmo que ojornal não fosse vendido imediatamente, ele não permaneceria lá muito maistempo.
O facto dos donos estarem a tentar vendê-lo chegava para ele se irembora. Para onde é que ele iria? Houston? Los Angeles? Onde quer que fosse,havia poucas
possibilidades que os nossos caminhos voltassem a cruzar-se.
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Era um pensamento repentinamente inquietante.
O confortável apartamento era composto por uma grande sala com uma cozinha nofundo e um quarto de dormir de tamanho médio. A casa de banho ficava
a meio deum pequeno corredor entre as duas divisões. Tinha colocado o computador e aimpressora na mesa da área de jantar, perto da cozinha. Não sou muitoorganizada.
Quando estava a vestir o casaco, olhei à volta do apartamento com os olhos da Sra. Hilmer.
Os jornais que tinha estado a percorrer estavam espalhados no chão à volta dacadeira onde estivera sentada. A fruteira e os candelabros de bronze,
que tinham sido primorosamente colocados sobre a mesa de estilo colonial, estavam agora no aparador. O bloco-notas estava aberto ao lado do computador com a caneta
emcima. O espesso volume que continha as transcrições do julgamento com marcasamarelas entre as páginas estava junto da impressora.
Se a Sra. Hilmer voltasse por qualquer motivo a casa comigo e visse esta confusão, pensei. Como é que reagiria? Tinha a certeza de que sabia qual
era aresposta, pois não havia nada desarrumado em casa dela.
Baixei-me, apanhei os jornais e juntei-os numa pilha mais ou menos ordenada. Mas a seguir, pensando melhor, meti-os dentro da grande sacola onde sempre
ostrago.
As cópias das actas do julgamento seguiram o mesmo caminho. Decidi que obloco-notas, a caneta, o computador portátil e a impressora não eramesteticamente
demasiado ofensivos. Repus a fruteira e os candelabros na mesa. Ia pôr a sacola no guarda-vestidos quando me passou pela cabeça que, se houvesseum incêndio,
perderia todo o material. Achei isso pouco provável, mas, noentanto, decidi levar a sacola comigo. Não sei bem porquê, mas foi o que fiz.Chamem-lhe um pressentimento,
uma dessas sensações que se têm, como costumavadizer a minha avó.
Ainda estava frio lá fora, mas, pelo menos, o vento tinha acalmado. Mas, mesmoassim, o caminho do apartamento até à casa parecia bastante longo.
A Sra. Hilmer tinha-me contado que, depois do marido morrer, ela tinha mandado acrescentaruma garagem junto a sua casa porque não queria ter de andar para trás
e para
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diante. Agora, a velha garagem por baixo do apartamento servia para guardarutensílios de jardinagem e móveis antigos.
A caminho da casa da Sra. Hilmer no meio daquele silêncio sombrio, percebiporque ela não queria fazer aquele percurso de noite sozinha.
Não julgue que venho mudar-me para cá disse-lhe quando ela me abriu a porta ereparou na sacola. É só porque costumo andar sempre com ela.
Enquanto tomávamos um copo de sherry, expliquei-lhe o que é que continha e tive então uma ideia. Há quase 50 anos que ela vivia em Oldham.Participava
nos trabalhos da paróquia e nas actividades da cidade o quesignificava que conhecia toda a gente. Aqueles jornais mencionavam pessoas dacidade cujos nomes
nada me diziam, mas ela devia conhecê-las.
Não se importa de ver estes jornais comigo? perguntei-lhe. Citam aqui pessoasque talvez ainda estejam vivas e com quem eu adoraria falar. Por exemplo,
unsamigos da Andrea dos tempos de escola, vizinhos do Will Nebels nessa altura,algum dos tipos com quem o Rob Westerfield se dava. Penso que a maior parte
dascolegas da Andrea está casada e, provavelmente, muitas delas já se foram embora. Se isso não a incomoda, gostaria que lesse estes velhos artigos e me fizesseuma
lista das pessoas entrevistadas que ainda cá estão. Espero, claro está, quetalvez saibam algo que não lhes ocorreu na altura...
Assim, de repente, posso dar-lhe o nome de uma delas interrompeu-me a Sra.Hilmer. A Joan Lashley. Os pais dela reformaram-se, mas ela casou-se com
o LeoSt. Martin e vive em Garrison.
Joan Lashley era a rapariga com quem Andrea tinha estudado nessa última noite! E Garrison ficava perto de Cold Springs, a 15 minutos de carro daqui.
Era óbvioque a Sra. Hilmer ia ser um tesouro de informação acerca das pessoas que eugostaria de conhecer.
Abri a sacola quando estávamos a tomar café e pus os jornais em cima da mesa. Vi a expressão de dor que assombrou o rosto da Sra. Hilmer quando ela
pegou no primeiro. A manchete dizia, «Rapariga de Quinze Anos Espancada até à Morte». O retrato de
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Andrea ocupava a primeira página. Estava vestida com a farda da banda de música: casaco vermelho com botões de latão e uma saia curta da mesma cor.
Tinha ocabelo caído pelos ombros e sorria. Parecia feliz, vibrante e jovem.
A fotografia tinha sido tirada no decorrer do primeiro jogo da temporada em fins de Setembro. Umas semanas mais tarde, Rob Westerfield tinha-a conhecido
quandoela estava a jogar bowling com amigas no centro desportivo dacidade. E, na semana seguinte, ela tinha ido dar uma volta no carro dele e Robfora
multado por excesso de velocidade.
Deixe-me que a previna de uma coisa, Sra. Hilmer disse eu. Não vai ser fácil ler todo este material e, por isso, se acha que é demais para si...
Ela interrompeu-me.
Não, Ellie, quero fazê-lo.
Então, está bem.
Tirei o resto dos jornais. O volume com as transcrições do julgamento ficaramdentro da sacola. Também o tirei cá para fora.
Isto não é uma leitura lá muito agradável...
Deixe-o comigo disse com firmeza.
A Sra. Hilmer insistiu em emprestar-me uma pequena lanterna quando voltei aoapartamento. Ainda bem que a tinha. A noite estava mais clara e, agora,
a Luaera visível. Acho que estava a ter fantasias, mas aquelas imagens da Noite dasBruxas de gatos sentados a sorrir ao luar como divertidos por qualquerconhecimento
secreto não me saíam da cabeça.
Tinha deixado apenas uma luzinha acesa nas escadas por consideração para com aminha anfitriã e não aumentar a conta de electricidade. Mas, ao subi-las,
já não achava uma grande ideia ter sido tão poupada. Estava sombria e os degrausrangiam sob os meus passos. Lembrei-me subitamente que Andrea fora assassinadanuma
garagem muito parecida com esta. Ambas tinham sido originalmente celeirose, nesta, o antigo lugar onde se guardava a palha era, agora, o apartamento.
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Quando cheguei ao alto das escadas de chave na mão, abri a porta à pressa etranquei-a por dentro. Cessei imediatamente de me preocupar com as contas
deelectricidade e pus-me a acender todas as luzes que encontrava: os candeeiros em ambos os lados do divã, o lustre por cima da mesa da sala de jantar, a lâmpadado
corredor e as do quarto de dormir. Soltei, finalmente, um suspiro de alívio e comecei a sentir-me mais calma.
A mesa, com apenas o computador portátil, a impressora, a caneta e obloco-notas, e a fruteira e os candelabros em cima, parecia estranhamente bemarrumada.
Percebi que qualquer coisa tinha sido mudada. Tinha deixado a canetapousada à direita do bloco-notas, junto do computador. Senti um arrepio. Alguémtinha
cá estado. Mas para quê? Para examinar o bloco-notas e ver o que é que euandava a fazer era a única razão possível. Que mais teriam revistado?
Liguei o computador e verifiquei o ficheiro onde guardava informações sobre RobWesterfield. Naquela mesma tarde tinha anotado uma breve descrição
do homem queme detivera no parque de estacionamento da estação dos caminhos-de-ferro. Aindalá se encontrava, mas uma nova frase fora acrescentada. Tinha-o
descrito comotendo altura média, magro e olhos e boca perversos. A nova frase dizia:«Extremamente perigoso. Cuidado.»
Senti os joelhos a tremer. Já era suficientemente horrível alguém ter entrado no apartamento enquanto eu estava com a Sra. Hilmer, mas que ele tivesse
a lata de assinalar a sua presença era deveras assustador. Estava segura de ter trancadoa porta ao sair, mas a fechadura era simples e não representava um grandedesafio
a um ladrão profissional. Teria roubado alguma coisa? Precipitei-me para o quarto de dormir. A porta do guarda-vestidos, que eu tinha fechado, estava,agora,
ligeiramente aberta, mas, no interior, os meus vestidos e sapatos pareciam estar exactamente como os deixara. Tinha um cofre com jóias na gavetade cima da cómoda.
Brincos, um fio de ouro e um longo colar de pérolas são quase tudo o que eu me dou ao trabalho de usar, mas também lá se encontravam dentro o anel de noivado e
a aliança de minha mãe, e os brincos com diamantes que o meupai lhe oferecera pelo 15.° aniversário de casamento, um ano antes da morte deAndrea.
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Todas as jóias estavam no mesmo sítio. Era evidente que quem quer que tinhaentrado não viera para roubar. Procurava informação e dei graças a Deus
por nãoter deixado as transcrições nem os jornais antigos no apartamento. Não tinha amínima dúvida de que teriam sido destruídos se o ladrão os tivesse encontrado.Poderi
a conseguir novas cópias das transcrições, mas levaria imenso tempo;quanto aos jornais, eram insubstituíveis. Não só continham os relatos dojulgamento como
também todas as entrevistas e a identificação dos entrevistados.
Decidi não telefonar imediatamente à Sra. Hilmer. Ficaria certamente acordadatoda a noite se soubesse que um intruso entrara no apartamento. Resolvi
mandarfazer cópias das transcrições e dos jornais na manhã seguinte. Não podia dar-meao luxo de os perder.
Verifiquei novamente a porta. Estava trancada, mas, mesmo assim, empurrei umapesada poltrona contra ela. A seguir, fechei todas as janelas, excepto
a doquarto de dormir pois precisava de ar fresco. Gosto de quartos frios e nãoqueria ser privada desse prazer por causa do visitante desconhecido. Além
disso, o apartamento fica no segundo andar e não há maneira de alguém lá chegar sem aajuda de uma escada. Tinha a certeza de que, se me quisessem fazer mal,
nãoseria fácil transportar uma escada sem eu ouvir. No entanto, depois de terfinalmente adormecido, acordei inúmeras vezes em sobressalto e de ouvido àescuta.
Mas o som que ouvia era simplesmente o do vento a varrer as folhascaídas atrás da garagem.
Só de madrugada, quando acordei pela quarta ou quinta vez, é que percebi o quedevia ter realizado imediatamente: quem quer que tinha examinado o
meubloco-notas sabia, agora, que eu tinha um encontro essa manhã na escola deArbinger e outro, na segunda-feira, na de Carrington.
Decidi partir para Arbinger às sete horas. Como sabia que a Sra. Hilmer selevantava cedo, telefonei-lhe às dez para as sete e perguntei-lhe se podiapassar
por casa dela durante uns instantes. Enquanto bebíamos uma chávena do seu excelente café, contei-lhe o incidente e disse-lhe que ia levar as transcrições e os
jornais para fazer cópias.
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Não, não vai disse-me. Não tenho nada que fazer e trabalho como voluntária nabiblioteca. Tenho as copiadoras que lá há à minha disposição sempre
que quiser.Assim, ninguém vai saber o que se passa. Excepto o Rudy Schell, claro está, masé uma pessoa muito discreta.
Hesitou um momento.
Venha morar para minha casa, Ellie. Não quero que fique sozinha no apartamento.Quem esteve lá ontem à noite pode voltar. Acho que deveríamos chamar
a polícia.
Recuso vir viver para sua casa disse eu. Deveria talvez era sair do apartamento.
Ela pôs-se a abanar a cabeça e eu continuei.
Está bem, não me vou embora. Sinto-me muito bem perto de si. Quanto a chamar apolícia, também pensei nisso. Mas julgo que não é boa ideia.Não
há sinais de arrombamento e as minhas jóias não foram roubadas. Se contar àpolícia que a única coisa que aconteceu foi que alguém mudou a minha caneta deposição
e acrescentou umas palavras a um ficheiro do computador, o que é queacha que eles vão pensar de mim?
Não esperei pela resposta dela.
Os Westerfield já andam a espalhar que eu era uma criança perturbada deimaginação doentia e que não deviam ter dado ouvidos à minha deposição notribunal.
Já imaginou o que eles fariam com uma história destas? Passaria poruma dessas pessoas que enviam cartas ameaçadoras a elas mesmas só para chamar aatenção.
Bebi o resto do café de um trago.
Há uma coisa que pode fazer, se quiser. Telefone à Joan Lashley e pergunte-lhese eu posso ir visitá-la amanhã?
Foi confortável ouvir a Sra. Hilmer dizer-me: «Guie com cuidado», e sentir umrápido beijo na face.
Perto de Boston, fui apanhada num engarrafamento e, assim, já eram quase 11horas quando atravessei os portões bem guardados da Escola Preparatória
deArbinger. Era ainda mais impressionante do que as fotografias no Websitesugeriam. O elegante
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edifício cor-de-rosa tinha um aspecto doce e tranquilo sob o céu de Novembro. Ocaminho através das instalações era ladeado por árvores antigas
que, naPrimavera, deviam formar uma luxuriante cúpula de folhas. Era fácil imaginarporque a maior parte dos adolescentes que se formava aqui saía com um diploma
ea sensação de ter obtido um direito, o sentimento de ser especial e de estaracima dos outros.
Ao fazer manobras para estacionar o carro na área reservada às visitas,lembrei-me dos liceus onde tinha estudado. O primeiro ano em Louisville;
depois, em Los Angeles. Para onde é que tinha ido a seguir? Ah, pois, Portland, Oregon. E, finalmente, de volta a Los Angeles para o último ano do liceu e quatro
anosde universidade, os quais me deram uma certa estabilidade. A minha mãe continuou a trabalhar na rede de hotéis até eu ser finalista. Foi nessa altura que
osproblemas de fígado se acentuaram. Acabou por vir partilhar comigo o pequeninoapartamento até morrer.
Sempre quis que vocês soubessem fazer bem as coisas, Ellie. Para, quandoencontrassem alguém com nível, poderem mostrar-se dignas.
Mas que ideia, mãe!, pensei ao entrar no edifício principal e serdirigida para o gabinete de Craig Parshall.
As paredes ao longo do corredor estavam cobertas de retratos de figuras com araustero, as quais, pelo que percebi através de rápidos olhares, eram
antigosdirectores da escola.
Craig Parshall era menos impressionante de aparência do que a sua voz culta dava a entender. Era um homem perto dos 60 que ainda usava o anel de curso.
O cabelo ralo estava penteado de maneira demasiado perfeita numa vã tentativa paraocultar a calvície no alto da cabeça, e ele não conseguia esconder o facto
de se sentir excessivamente nervoso.
O seu gabinete era espaçoso e muito elegante, com lambris nas paredes,cortinados, um tapete persa suficientemente desfiado para garantir a sua antiguidade,
confortáveis poltronas de cabedal e uma secretária de mogno paratrás da qual ele prontamente se retirou após me ter cumprimentado.
Como lhe disse ao telefone, Ms, Cavanaugh... principiou.
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Sr. Parshall, para quê perdermos tempo? sugeri, interrompendo-o. Estou cientedas suas reservas e aprecio-as. Responda apenas a algumas perguntas
e vou-me jáembora.
Vou dar-lhe as datas em que o Rob Westerfield frequentou...
Sei quando ele estudou aqui. Isso foi divulgado no decorrer do julgamento em que ele foi condenado pela morte da minha irmã.
Parshall piscou os olhos.
A família Westerfield tem um objectivo na vida, Sr. Parshall. Branquear areputação do Robson Westerfield e fazer com que ele seja novamente julgado
eabsolvido. Tal sucesso terá o efeito de fazer crer ao mundo que outro jovem, oqual, devo acrescentar, não possui o dinheiro nem a capacidade intelectual
parapassar por esta escola, é culpado do assassínio da minha irmã. O meu objectivo é fazer tudo para que isso não aconteça.
Tem de compreender... gaguejou Parshall.
Compreendo que o senhor não pode ser citado. Mas pode abrir-me algumas portas.Quero a lista dos colegas de aula do Rob Westerfield. Quero saber
se algum deles era um amigo particular dele, ou, melhor ainda, se havia alguém que não o podia suportar. Quem era o rapaz com quem partilhava o mesmo quarto?
E, a título confidencial, por que é que ele foi realmente expulso?
Fitámo-nos em silêncio durante um longo minuto e nenhum de nós pestanejou.
No meu Website, podia, muito facilmente, referir-me à exclusiva escola preparatória onde andou Rob Westerfield sem a mencionar acrescentei. Oupodia
fazê-lo da seguinte maneira: A Escola Preparatória de Arbinger, almamaterde Sua Majestade, o príncipe Gregory, da Bélgica; de SuaSereníssima Alteza, o príncipe...
Interrompeu-me
Estritamente confidencial?
Absolutamente.
Sem mencionar a escola nem o meu nome?
Absolutamente.
Suspirou e eu tive quase pena dele.
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já alguma vez ouviu a frase: «Não confiem em príncipes»,
MS. Cavanaugh?
Por acaso conheço-a bastante bem... Não só através da Bíblia, mas como me foicitada: «Não confiem em jornalistas que se dedicam à investigação.»
É isso um aviso, Ms. Cavanaugh?
Se o jornalista for íntegro, a resposta é não.
Vou confiar então em si e na sua discrição. Estritamente confidencial?
Absolutamente.
A única razão pela qual admitimos o Robson Westerfield nesta escola foi porque o pai doou às nossas instalações científicas. E sem qualquer publicidade.
O Robfoi-nos apresentado como sendo um estudante perturbado que não se sentia bementre os colegas.
Frequentou a Baldwin, em Manhattan, durante oito anos atalhei. Teve láproblemas?
Nenhum que nós saibamos, excepto, talvez, o facto... que nem os seus professores nem o conselheiro escolar se pronunciaram.
E o laboratório não precisava, por acaso, de ser reconstruído? Parshall ficouembaraçado.
O Westerfield provém de uma família excelente e a sua inteligência é de nívelsuperior.
Muito bem disse eu. Vamos, agora, falar de coisas sérias. Como era ocomportamento desse tipo nesta escola bendita?
Tinha começado a ensinar aqui e, por isso, sou uma testemunha de primeiraapanha. Era bastante mau disse francamente Parshall. Julgo que sabe o que
é umsociopata?
Agitou as mãos num gesto de impaciência.
Desculpe. Como a minha mulher me lembra com frequência, os meus exercícios deaquecimento na aula podem ser bastante irritantes. Estou a referir-me
a umsociopata nascido sem consciência nem consideração por ninguém, constantementeem conflito com o código social como você e eu o entendemos. O RobsonWesterfield
era o protótipo desse género de personalidade.
Quer dizer, então, que teve problemas com ele desde o início?
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Como com tantos outros da sua laia, ele tem boa aparência e inteligência. Etambém é o último de uma linhagem distinta. Tanto o avô como
o pai estudaramigualmente aqui. Esperávamos poder despertar as suas boas qualidades...
As pessoas não têm o pai, o Vincent Westerfield, em grande estima. Como é queele se portou aqui?
No plano académico, razoavelmente. Pelo o que vi, nada que se comparasse com oavô. O Pearson Westerfield chegou a senador.
Por que é que o Robson Westerfield saiu a meio do segundo ano?
Houve um grave incidente relacionado com a equipa de râguebi. Atacou outroestudante. A família deste foi persuadida a não o processar, mas os Westerfieldtivera
m de pagar todas as despesas. Ou talvez ainda mais, masnão posso jurar.
Apercebi-me de que Craig Parshall estava a ser invulgarmente franco e disse-lho.
Não gosto de ser ameaçado, Ms. Cavanaugh.
Ameaçado?
Esta manhã, pouco antes de você chegar, recebi um telefonema de um representante da família Westerfield, um tal Sr. Hamilton, que me avisou que eu
não deveriadar-lhe informações negativas a respeito do Robson Westerfield.
Trabalham bastante depressa, pensei.
Posso perguntar-lhe que tipo de informação deu ao Jake Bern sobre o RobsonWesterfield?
As suas actividades desportivas. O Robson era um jovem de constituição muitorobusta. Aos 13 anos já tinha quase um 1,80 metros. Jogou nas equipas
desquash, ténis e râguebi. Também fazia parte do grupo teatral edisse ao Bern que ele era um actor com talento. Era esse o tipo de informaçãoque o Bern
procurava. Conseguiu arrancar-me algumas frases que, uma vezpublicadas, hão-de parecer muito favoráveis.
Podia imaginar o modo como o Bern escreveria o capítulo sobre Arbinger. Rob iria sair-se lindamente.
Como é que o facto de ele ter saído de Arbinger pode ser explicado?
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Terminou o segundo ano no estrangeiro, mas, depois decidiu mudar.
Sei que já se passaram 30 anos, mas não me pode dar
o nome dos seus antigos colegas?
Fica, contudo, entendido que não fui eu quem lhos deu.
Entendido.
Quando, uma hora mais tarde, me fui embora, tinha em meu poder uma lista doscolegas do primeiro e do segundo ano de Rob Westerfield. Parshall identificoudez
que viviam na área entre Manhattan e Massachusetts. Um deles era Christopher Cassidy, o jogador de râguebi que Rob tinha espancado. Era, agora, dono de umafirma
de investimentos e morava em Boston.
O Chris tinha uma bolsa explicou Parshall. E como está grato por ter tido aoportunidade de frequentar esta escola, é um dos nossos doadores mais
generosos. No caso dele, não me importo de lhe telefonar. O Chris nunca escondeu os seussentimentos pelo Westerfield, mas se a ponho em contacto com ele tem
de ser,mais uma vez, a título confidencial.
Absolutamente.
Parshall acompanhou-me até à saída. Era hora de recreio e o toque discreto deuma campainha foi seguido de pequenos grupos de alunos a emergir das
aulas.
A actual geração de notáveis saídos de Arbinger, pensei ao examinar os seusrostos jovens.
Muitos deles eram destinados a postos de liderança, mas não pude deixar de meinterrogar se não haveria outro sociopata tipo Rob Westerfield a incubar
nointerior desta privilegiada instituição.
Saí das instalações e guiei ao longo da rua principal. Pelo mapa pude ver queesta começava na escola, a sul, e atravessava a cidade em direcção
do norte atéà Academia para raparigas, Jen°a Calish. New Cotswold é uma dessas encantadorasaldeias de Nova Inglaterra construída à volta de escolas. Tem uma
grandelivraria, um cinema, uma biblioteca, várias lojas de roupa e pequenos
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restaurantes. Tinha abandonado a ideia de ficar por aqui na esperança derecolher informações. Craig Parshall dera-me o que eu desejava e eu sabia
queera melhor interrogar os colegas de Rob Westerfield do que desperdiçar maistempo nas vizinhanças de Arbinger.
Mas era quase meio-dia e eu sentia uma ligeira dor de cabeça, em parte por terfome e, em parte, por não ter dormido muito bem na noite anterior.
Passei por um restaurante chamado A Biblioteca, e situado a cerca de trêsquarteirões da escola. O nome pintado à mão atraiu o meu olhar e suspeitei
quefosse o género de lugar onde faziam sopa caseira. Decidi entrar e parei noparque de estacionamento ao lado.
Era o primeiro cliente e a dona, uma senhora alegre e atarefada na casa dosquarenta e muitos, ficou toda satisfeita não só de me dar a escolher
uma meiadúzia de pequenas mesas como também em contar-me a história do estabelecimento.
Há 50 anos que pertence à minha família assegurou-me. Foi a minha mãe,Antoinette Duval, quem abriu este restaurante. Era uma cozinheira maravilhosa
eo meu pai, para lhe fazer a vontade, cedeu. Teve tanto sucesso que ele acaboupor largar o emprego para tratar do negócio. Os meus pais já se reformaram
e,agora, sou eu e as minhas irmãs que nos ocupamos dele. Mas a nossa mãe ainda vem cá umas duas vezes por semana cozinhar pratos especiais. Está neste momento
nacozinha e, caso goste de sopa de cebolas, ela acabou de fazê-la agora mesmo.
Pedi a sopa. Era tão boa como eu esperava. A dona veio saber se eu tinha gostado, e o facto de eu lhe ter assegurado que era divinal encheu-ade
prazer. A seguir, e como ainda havia poucos clientes, ela meteu conversacomigo e perguntou-me se eu vivia ali ou estava apenas de passagem. Decidi serfranca.
Sou jornalista e estou a escrever um artigo sobre o Rob Westerfield que acaboude ser solto de Sing Sing. Sabe quem ele é?
A sua expressão amigável tornou-se instantaneamente agressiva. Deu meia volta eafastou-se de mim.
Credo!, pensei. Ainda bem que já estou a acabar a sopa. Atéparece que me quer pôr na rua.
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Voltou momentos mais tarde, desta vez acompanhada por uma senhora rechonchuda de cabelo branco que limpava as mãos num avental de cozinheira.
Mamã disse ela, virando-se para a mulher mais velha. Esta senhora aqui está aescrever um artigo sobre o Rob Westerfield. Talvez lhe queiras contar
qualquercoisa.
Rob Westerfield repetiu a Sra. Duval quase cuspindo o nome. É uma peste. Por que é que o deixaram sair da prisão?
Não precisou de encorajamento para contar a sua história.
Veio cá uma vez com os pais num fim-de-semana. Devia ter uns 15 anos. Começou adiscutir com o pai e, de repente, levantou-se de um pulo para ir-se
embora. Aempregada-de-mesa ia a passar nesse momento e ele deu-lhe um encontrão. A pobreda rapariga deixou cair o tabuleiro e entornou a comida sobre ele.
Nunca vi umacoisa daquelas. Agarrou-a por um braço e torceu-o até ela desatar aos gritos. Éum autêntico animal.
Chamaram a polícia?
Era o que eu queria fazer, mas a mãe suplicou-me que não. O pai abriu então acarteira e deu 500 dólares à empregada. Ela era apenas uma miúda e
aceitou-os de bom grado. O pai disse-me ainda para adicionar o preço da comida entornada àconta deles.
E o que é que, entretanto, o Rob Westerfield fez?
Saiu porta fora, deixando os pais a tratar do assunto. A mãe ficou muitoenvergonhada. Mas o pai disse-me que a culpa era da empregada e que o filhotinha
reagido daquela forma porque a comida o tinha queimado. Disse-me que eudeveria ensinar as minhas empregadas a não deixar cair tabuleiros.
O que é que a senhora respondeu?
Que nos recusávamos a servi-lo e que ele saísse imediatamente do restaurante.
Não imagina como a mamã fica quando se zanga informou-me a filha. Pegou nospratos que tinham acabado de ser postos diante deles e levou-os para
a cozinha.
Mas tive muita pena da Sra. Westerfield disse a Sra. Duval. Estava tãoincomodada. Escreveu-me depois uma carta muito simpática a pedir-me desculpa.Ainda
a devo ter.
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Saí do restaurante meia hora mais tarde com autorização para contar a históriano meu Website e a promessa de que receberia uma cópia da carta que
a Sra. Westerfield tinha escrito à Sra. Duval. E tinha ainda comigo amorada da jovem empregada a quem Rob torcera o braço. Ela era agora psicóloga evivia
duas cidadezinhas mais longe. Sim, teria muito prazer em falar comigo.Lembrava-se muito bem do Rob Westerfield.
Nessa altura, andava a poupar dinheiro para ir para a universidade disse-me aDra. Fisher. Os 500 dólares que o pai dele me deu pareceram-me uma
fortuna. Maslamento não ter apresentado queixa. O tipo é violento e, caso eu tenha aprendido umas coisas sobre a mente humana, suspeito que os 22 anos que passou
na prisãonão o mudaram absolutamente nada.
Era uma mulher atraente de quarenta e poucos anos, com cabelo prematuramentegrisalho e um rosto jovem. Disse-me que, às sextas-feiras, dava consultassomente
até ao meio-dia e que estava prestes a sair quando eu telefonei.
Vi a entrevista com ele na televisão disse ela. Pôs-me doente. Compreendo muitobem como se sente.
Contei-lhe o que estava a planear fazer no meu Website e quetinha ido para a porta da penitenciária de Sing Sing com um cartaz a pedirinformações
sobre o comportamento de Rob Westerfield na prisão.
Muito me surpreenderia não vir a ter conhecimento de mais incidentes que lá sepassaram disse-me. E então os anos entre o período que ele estudou
aqui e oassassínio da sua irmã? Que idade tinha ele quando foi condenado?
Vinte.
Duvido seriamente que não haja outros casos que não foram abafados, Ellie. Jápensou que, para ele, você representa uma ameaça constante?, disse-me
que a avódele é uma mulher muito alerta. -e Imagine que ela temconhecimento do seu Website e vai vê-lo. Se se ] der conta domal que o neto tem feito,
o que é que a impedirá de mudar o testamento mesmoantes do Rob ser julgado outra vez?
113
Não seria isso formidável! exclamei. Adoraria pensar
que, por minha culpa, o dinheiro da família iria para obras de caridade.
Se fosse a si, teria muito cuidado disse calmamente
a Dra. Fisher.
No caminho de regresso a Oldham, pensei no conselho dela. O meu apartamento fora assaltado e o que equivalia a uma ameaça tinha sido inscrita no meu
computador. Pensei se não deveria ter avisado a polícia, mas, pelas razões que tinha dado à Sra. Hilmer, cheguei à conclusão de que era melhor assim. Não ia correr
o risco de ser considerada maluca. Mas, por outro lado, também não tinha o direito depôr a Sra. Hilmer em perigo. Decidi que tinha de arranjar outro sítio paraviver.
A Dra. Fisher tinha-me dado autorização para citar o nome dela. Outra coisa afazer no meu Website seria convidar pessoas a comunicar-meproblemas
que tivessem tido com Rob Westerfield antes de ele ir para a prisão.
Já era fim de tarde quando parei diante do apartamento. Tinha passado pelosupermercado em Oldham para fazer compras. Planeava preparar um jantar
simples:bife, batatas assadas e salada. Ver depois televisão e ir cedo para a cama.Tinha de começar a escrever o livro sobre Westerfield. Embora o material
queusasse no Website pudesse ser repetido no livro, este teria deser apresentado de modo diferente.
Como a casa da Sra. Hilmer se encontrava às escuras, não sabia ao certo se elaestava em casa. Pensei que o carro dela estivesse na garagem e que
ela ainda não tivesse acendido a luz. Telefonei-lhe ao entrar no apartamento. Respondeu aoprimeiro toque e percebi que estava assustada.
Tenho a impressão de que alguém me seguiu quando fui à biblioteca, Ellie.
Por que é que diz isso?
114
Sabe que esta rua é muito sossegada. Mas, mal saí de casa, vi um carro aseguir-me pelo espelho retrovisor. Manteve-se à distância e só me ultrapassoudepois
de eu ter entrado no parque de estacionamento da biblioteca. E julgo quefui seguida pelo mesmo carro quando voltei para casa.
Continuou em frente quando a senhora virou para aqui?
Continuou.
Pode descrevê-lo?
Tamanho médio, escuro, preto ou azul-escuro. Estava demasiado longe para eudistinguir quem ia ao volante, mas penso que era um homem. Acha que quem
entrouno seu apartamento ontem à noite anda por estas paragens?
Não sei.
Vou chamar a polícia e vou ter de lhes contar o que se passou ontem à noite.
Claro.
Odiei-me a mim mesma pelo tom nervoso da voz da Sra. Hilmer. Até agora, semprese sentira segura em casa. Rezei para que, por minha causa, ela não
perdesseesse sentido de segurança.
Dez minutos mais tarde, um carro da polícia parou diante da casa da Sra. Hilmer. Após reflectir alguns minutos, decidi ir falar com eles. O polícia
com arveterano não levava obviamente muito a sério as suspeitas da Sra. Hilmer.
Quem ia dentro desse carro não tentou detê-la nem contactou consigo?perguntava-lhe ele quando cheguei.
Não. Apresentou-nos.
Há muitos anos que conheço o agente White, Ellie.
Era um homem de rosto talhado à faca que parecia ter passado muito tempo ao arlivre.
E o que é isso acerca de um intruso, Ms. Cavanaugh? Mostrou-secéptico quando lhe falei da caneta e da frase ameaçadora no ficheiro do meucomputador.
Quer dizer então que não tocaram nas suas jóias e que a única prova que tem dealguém ter entrado no seu apartamento é pensar que a posição da sua
caneta foimudada de um lado do
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bloco-notas para o outro e uma frase no computador que não se lembra de terescrito?
Que não escrevi corrigi-o.
Foi suficientemente delicado para não me contradizer directamente, mas virou-separa a Sra. Hilmer.
Mantenha-se atenta durante uns dias. A minha opinião é que, depois de Ms.Cavanaugh lhe ter contado essa história esta manhã, a senhoraficou
um pouco nervosa. É por isso que reparou no carro. Mas penso que não énada.
A minha «história», pensei. Obrigado por coisa nenhuma.
Mas, a seguir, ele disse que queria examinar a fechadura da minha porta.Prometi à Sra. Hilmer que lhe telefonaria e voltei ao apartamento com ele.Examinou
realmente a fechadura e chegou à mesma conclusão que eu: não foraforçada.
Permaneceu ali uns instantes, tentando obviamente decidir-se a abordar-me sobrequalquer coisa.
Ouvimos dizer que esteve em Sing Sing ontem, Ms. Cavanaugh.Fiquei à espera. Estávamos no corredor. Não me tinha pedido para ver o ficheiro
do computador, o que mostrava a credibilidade que dava à minha«história». Não estava virada para o convidar a ignorar as minhas suspeitasainda mais.
Ms. Cavanaugh, estava aqui quando a sua irmã foi assassinada ecompreendo a dor que deve ter sentido. Mas, se o Rob Westerfield cometeu realmente
esse crime, já cumpriu a sua pena e devo dizer-lhe que há muita gentenesta cidade que não o suportava quando ele era um miúdo mal comportado, mas que pensa
que ele foi condenado injustamente.
A sua opinião também é essa?
Para lhe falar com franqueza, é, sim. Sempre achei o Paulie Stroebel culpado.Houve muita coisa que não foi dita no julgamento.
Tal como...
Tinha-se gabado diante de uns colegas da escola que a sua irmã iria à festa doDia de Acção de Graças com ele. Se ela contou a algumas das suas
amigas íntimasque só ia com ele porque, assim, o Rob Westerfield não sentiria ciúmes de umtipo como
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o Paulie e este veio a saber, é possível que tenha ficado furioso. O carro doRob ficou estacionado na estação de serviço e a senhora mesmo declarou
notribunal que o Paulie contara a Andrea que a tinha seguido até ao esconderijo.E, depois, a conselheira escolar jurou que, quando o Paulie soube que o corpo
da Andrea tinha sido encontrado, o ouviu dizer: «Não julguei que estivesse morta.»
E houve um aluno que estava mais perto dele que jurou tê-lo ouvido dizer: «Nãoposso acreditar que esteja morta» atalhei. Há uma grande diferença.
É óbvio que não vamos encarar este assunto do mesmo modo, mas deixe-meavisá-la...
Ele deve ter sentido que eu me crispei porque emendou a frase.
Ouça uma coisa. Perdeu a cabeça ao andar à volta de Sing Sing de cartaz na mão.Os tipos que de lá saem são criminosos endurecidos e você, uma mulher
atraente e jovem, aparece-lhes pela frente a dar-lhes o número de telefone a pedir-lhesque lhe telefonem... Metade desses vadios vão acabar por voltar para
a prisão dentro de uns anos. O que é que acha que lhes passa pela cabeçaao verem uma mulher como você a pedir sarilhos?
Fitei-o com atenção. Parecia sinceramente preocupado. E não deixava de terrazão.
Agente White, é você e gente do seu género que ando a tentar convencerdisse-lhe. Sei que a minha irmã tinha medo do Rob Westerfield e, depois do
quesoube hoje, percebo muito bem porquê. Não me importo de correr um risco com aspessoas que viram o meu cartaz... A não ser, claro está, que estejamrelacionadas
com o Rob e a família dele.
Ocorreu-me então descrever o homem que tinha falado comigo no parque deestacionamento da estação de caminhos-de-ferro. Pedi-lhe para se informar
se umpreso com essas características fora solto ontem.
E o que é que vai fazer com tal informação? perguntou-me.
Está bem. Esqueça o que lhe pedi.
A Sra. Hilmer deve ter estado à espera que o agente White se fosse embora pois,assim que as luzes traseiras do carro da polícia desapareceram na
estrada, o meu telefone portátil tocou.
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Ellie disse ela. Fiz cópias dos jornais e das transcrições. Precisa dosoriginais esta noite? Vou jantar com umas amigas e, depois, vamos ao cinema.
Sóestarei em casa por volta das dez horas.
Odiava admitir que tinha medo de ficar com os originais em meu poder, mas averdade é que tinha.
Vou já aí disse-lhe.
Não. Telefono-lhe quando estiver pronta a partir. Passarei de carro peloapartamento e você então desce para pegar na sacola.
Chegou uns minutos mais tarde. Eram apenas quatro e meia, mas o céu já estavaescuro. Senti que ela estava tensa quando abriu a janela do carro para
me falar.
Aconteceu mais alguma coisa? perguntei-lhe.
Acabei de receber um telefonema, mas não sei quem foi.
Conte lá.
Preveniu-me para eu ter cuidado consigo. Disse que você era uma psicopata que já tinha sido hospitalizada numa clínica psiquiátrica por ter deitado
fogo a umasala de aula.
Não é verdade. Deus meu, desde que nasci que nunca passei um dia no hospital,quanto mais numa clínica psiquiátrica.
Percebi pela sua expressão de alívio que a Sra. Hilmer acreditava em mim. Masisso significava que ela tinha, pelo menos ao princípio, dado ouvidos
ao que odesconhecido lhe contara. Já quando a visitara pela primeira vez, ela tinhasugerido que Rob Westerfield podia estar inocente e que eu andava obcecada
pelamorte de Andrea.
Por que é que alguém anda a contar essas coisas horríveis sobre si, Ellie?protestou. E o que é que você pode fazer para a impedir de as espalhar
por aí?
Estão a tentar desacreditar-me e é evidente que nada posso fazer.
Abri a porta de trás do carro e tirei a sacola. Tentei escolher cuidadosamenteas palavras.
Sra. Hilmer, penso que é melhor eu voltar para a estalagem amanhã de manhã. Oagente White acha que eu vou chamar a atenÇão de gente muito estranha
por causade ter estado à porta de Sing Sing com um cartaz na mão. Não quero que medescubram aqui. Estarei mais segura na estalagem e a senhora voltará a
ficar empaz.
118
Ela era suficientemente franca para não me contrariar.
Julgo que ficará realmente em maior segurança, Ellie disse-meem tom de alívio.
Fez uma pausa e, depois, acrescentou.
E eu também me sentirei mais segura.
E arrancou.
Voltei para o apartamento com a sacola na mão quase aflita. Nos tempos bíblicos, os leprosos eram obrigados a usar guizos à volta do pescoço e gritar:«Intocável!
Intocável!», se alguém se aproximasse deles. Nesse momento, senti-me realmente como uma leprosa.
Deixei cair a sacola no chão da sala e fui mudar de roupa ao quarto. Substituí o blusão por uma camisola larga, descalcei os sapatos e enfiei os pés
numaspantufas forradas. A seguir voltei à sala, servi-me de um copo de vinho einstalei-me na grande poltrona com os pés sobre uma almofada.
A camisola e as pantufas faziam sentir-me confortável. Pensei no meu antigoconforto, Ossos, o cão de pelúcia que partilhava comigo aalmofada
quando eu era criança. Estava agora metido dentro de uma caixa naprateleira de cima de um armário no meu apartamento em Atlanta. Partilhava acaixa com outras
recordações que a minha mãe tinha guardado do passado: um álbum do seu casamento, fotografias de nós os quatro, roupas de bebé e, a recordaçãomais terrível
de todas, a farda da banda de música de Andrea. Senti um certoressentimento infantil por Ossos não se encontrar ali comigo.
Beberiquei o vinho a pensar nas vezes que Pete e eu ficávamos a tomar um copo depois de sair do trabalho enquanto esperávamos pela hora dojantar.
Duas recordações: a minha mãe a beber à procura de sossego, e Pete e eu a falare a trocar piadas sobre o que, por vezes, tinha sido um dia de muito
trabalho ou frustrante.
Há dez dias, desde o nosso jantar em Atlanta, que nada sabia dele. Longe davista, longe do coração, pensei. Está à procura de outro emprego. «À
cata deoutros interesses», como se diz no mundo dos negócios quando alguém é despedido.
Ou quando se decide cortar as amarras. Todas elas.
CAPÍTULO VINTE E UM
O tempo alterou-se subtilmente uma hora mais tarde. O ruído de uma janela abater foi o primeiro indício de que o vento tinha mudado. Levantei-me
e aumentei o aquecimento central. A seguir, sentei-me diante do computador. Dando-me conta de que estava em perigo de sentir pena de mim mesma, pus-me a trabalhar
noprimeiro capítulo do livro.
Depois de vários rascunhos, sabia que deveria começar o livro com a minha última recordação de Andrea e, enquanto escrevia, a memória parecia tornar-se
maisnítida. Via-a no quarto com a colcha de organdi branca e cortinas com folhos.Lembrava-me em pormenor da cómoda antiga que a mãe tinha cuidadosamenteescolhido
num antiquário e visualizar as fotografias de Andrea e das suas amigas presas na moldura do espelho.
Via Andrea em lágrimas a falar ao telefone com Rob Westerfield e, depois, via-aa pôr o medalhão à volta do pescoço. Enquanto escrevia, compreendi
que haviaalgo quanto ao medalhão que ainda me escapava. Sabia que, agora, já nãoconseguia identificá-lo se o visse, mas, na altura, descrevi-o perfeitamente
àpolícia descrição que há anos fora rejeitada como uma mera fantasia infantil.
Mas sabia que Andrea o tinha com ela quando a encontrei e estava segura de queouvi Rob Westerfield na garagem. A minha mãe contou-me mais tarde
que ela e omeu pai levaram dez ou
1
15 minutos a acalmar-me para eu lhes dizer onde estava o corpo de Andrea. Temposuficiente para Rob fugir com o medalhão.
Ele declarou perante o tribunal que tinha estado a correr e que não seaproximara da garagem. No entanto, tinha lavado o fato de treino que traziavestido
nessa manhã juntamente com a roupa suja de sangue.
Fiquei mais uma vez impressionada com o enorme risco que ele tinha corrido aovoltar à garagem. Por que é que tinha tirado o medalhão? Teria receado
que issoconfirmasse que Andrea não era apenas uma miúda apaixonada por ele? Senti asmãos suadas só de pensar na respiração arquejante e no riso nervoso que
elesoltara escondido por detrás da carrinha.
Se eu não tivesse atravessado o bosque sozinha e viesse com o meu pai, Rob teria sido apanhado na garagem. Teria sido o pânico que o fizera regressar?
Seriapossível que ele quisesse provar a si mesmo que o que tinha feito não era umpesadelo? Ou, pior ainda, teria ele voltado para se certificar que Andrea
estava realmente morta?
Liguei o forno às sete horas, meti lá dentro a batata solitária a assar e voltei ao trabalho. O telefone tocou pouco depois. Era Pete Lawlor.
Olá, Ellie.
Havia algo na sua voz que me pôs imediatamente de pé atrás.
O que é que há, Pete?
Não perdes tempo, pois não?
Combinámos que nunca o faríamos.
Pois. O jornal já foi vendido, Ellie. É definitivo e vão anunciar isso nasegunda-feira. O pessoal vai ser reduzido ao mínimo.
E o que é que te vai acontecer?
Ofereceram-me emprego, mas não aceitei.
Era o que estavas a pensar fazer.
Informei-me sobre ti, mas, segundo me disseram a título confidencial, não estãoa planear manter a série de investigação jornalística.
Já aguardava esse género de notícias, mas, de repente, senti-me muitodesamparada.
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E tu já decidiste para onde ias, Pete?
Ainda não sei ao certo, mas estou a pensar ir ver umas pessoas a Nova Iorqueantes de me decidir. Talvez alugue um carro nessa altura e te vá visitar
ou,então, podemos encontrar-nos em Manhattan.
Gostaria imenso. Estava à espera de receber um postal de Houston ou de LosAngeles.
Nunca envio postais, Ellie. Tenho andado a ver o teu Website.
Ainda não há lá muita coisa. É uma espécie de sinal, do género que se põenuma loja alugada. Estás a ver o que quero dizer: «A ser inaugurada brevemente.»
Mas ando a desenterrar muitas coisas desagradáveis sobre o Westerfield. Se oJake Bern tentar descrevê-lo como um americano de gema, o seu livro terá de serpublicado
como um romance.
Ellie, não é meu feitio... Cortei-lhe a palavra.
Ah, deixa-te disso, Pete. Não me vais avisar para ter cuidado, pois não? Já hoje fui avisada por uma vizinha... uma psicóloga... e por um chui.
Então deixa-me juntar ao coro.
Vamos mudar de assunto. Já perdeste esses cinco quilos?
Fiz melhor do que isso. Decidi que estou bem como estou. Telefono-te quandosouber quando vou. Ou tu podes telefonar-me. As chamadas de longa distância
sãomuito baratas à noite.
Desligou antes de eu poder despedir-me.
Carreguei no botão de desligar do meu telefone portátil e pousei-o junto docomputador. Enquanto preparava a salada, a ideia de perder o emprego
começou aentrar-me nos miolos. O adiantamento que me tinham dado quando assinei o contrato para escrever o livro aguentar-me-ia durante uns tempos, mas o que
éque iria fazer quando o dinheiro acabasse e eu tivesse dado o meu melhor paradar cabo de Rob Westerfield?
Regressar a Atlanta? Os meus amigos do jornal estariam espalhados por toda aparte. Outra coisa a ponderar: não era lá muito fácil arranjar trabalho
numjornal hoje em dia. Demasiados jornais tinham sido engolidos ou ido à falência.E, quando o livro estivesse
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terminado e eu me tivesse livrado de tudo isto, onde é que desejaria viver?Continuei a pensar nessa questão ao longo de todo o jantar embora tentasseconcentrar
-me na revista que tinha comprado no supermercado.
O telefone portátil tocou novamente quando estava a levantar
a mesa.
A senhora é a pessoa que esteve ontem à porta da prisão com um cartaz na mão?perguntou uma voz rouca de homem.
Sou, sim.
Fiz mentalmente figas. O código de identificação da origem da chamada dizia«indisponível».
Talvez tenha uma coisa para lhe contar sobre o Westerfield. Quanto é que mepaga?
Depende da informação que me der.
Pague primeiro, e depois ouça.
Quanto?
Cinco mil dólares.
Não tenho esse dinheiro.
Então, esqueça. Mas o que tenho para lhe contar meteria o Westerfield de novo na prisão para o resto da vida.
Estaria ele a fazer bluff? Não tinha a certeza, mas não podiacorrer o risco de perdê-lo. Pensei no adiantamento que me tinham dado.
Vou receber algum dinheiro dentro de uma semana ou duas. Dê-me apenas uma dicado que sabe.
Que tal isto? Quando, o ano passado, o Westerfield estava pedrado com cocaína,contou-me que tinha morto um tipo aos dezoito anos. O nome desse tipo
vale cinco mil dólares, ou não? Pense nisso. Telefono-lhe na próxima semana.
Ouvi um clique.
Margaret Fisher tinha-me dito naquela tarde que, em sua opinião, Rob Westerfield já era culpado de outros crimes antes de ter assassinado Andrea. Pensei
nosincidentes que me tinham contado, como os que tinham acontecido na escola e norestaurante. Mas, se ele tivesse realmente morto alguém...
Isto transformava-se de repente num jogo completamente diferente. Se o tipo quetinha acabado de telefonar estivesse
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a falar a sério e me desse o nome da vítima, eu poderia verificar eseria bastante fácil descobrir factos sobre o caso. É evidente que podia ser
mentira, uma simples vigarice para me extorquir 5000 dólares. Tinhade decidir se estava pronta a correr esse risco.
Estava de pé diante do computador. Ao ler a descrição dos últimos momentos emque passara com Andrea, imaginei que ajudar a pôr Rob Westerfield novamente
naprisão valia todos os cêntimos que eu conseguiria ganhar durante a minha vidainteira.
Havia um copo de água ao lado do computador. Levantei-o numa espécie desaudação, um brinde a Andrea e à perspectiva de fazer com que Rob Westerfieldvoltasse
a ser preso.
Arrumei a cozinha e liguei a televisão para ver as notícias locais. Oapresentador desportivo estava a mostrar extractos de um jogo de basquetebol.
Omelhor marcador era Ted Cavanaugh, e vi o rosto do meio-irmão que nunca tinhaconhecido.
Parecia-se comigo. Era mais novo, claro está, mas os nossos olhos, narizes,bocas e ossos do rosto eram iguais. Ele olhava directamente para a câmara
e eusenti como se estivéssemos a fitar-nos um ao outro.
A seguir, e antes que eu tivesse tempo para mudar de canal, a claque começou aentoar o seu nome num toque de ironia.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
A Sra. Hilmer tinha-me dito que Joan Lashley St. Martin vivia numa casa à beirada estrada perto de Graymoor, mosteiro dos frades franciscanos da
Expiação.Quando passei por lá, tive a vaga recordação de ter subido de carro aquelecaminho cheio de curvas para assistir a uma missa na capela principal
juntamente com os meus pais e Andrea.
A minha mãe tinha por vezes recordado a última vez que lá tínhamos estado; forapouco antes da morte de Andrea. Nesse dia, a minha irmã tinha passado
o tempo asussurrar piadas ao meu ouvido; soltei até mesmo uma forte gargalhada no meio do sermão. A minha mãe separou-nos e, depois da missa, disse ao meu pai
quedevíamos partir directamente para casa e não irmos almoçar, como tantoansiávamos, na estalagem da Montanha do Urso.
Nem mesmo a Andrea conseguiu amansar o teu pai nesse dia lembrava-se a minhamãe. Claro que quando tudo aconteceu, umas semanas mais tarde, lamentei
nãotermos passado alegremente essa última vez juntos.
O dia anterior... a última vez... Perguntava-me se alguma vezhaveria de me livrar desse tipo de observações. Não seria certamente hoje,pensei,
abrandando para verificar a morada de Joan outra vez.
Vivia numa casa de madeira de três andares numa encantadora área arborizada. Astelhas brancas brilhavam ao sol e eram
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complementadas pelos batentes verdes das janelas. Estacionei no pátiosemicircular, subi os degraus da entrada e toquei à campainha.
Joan veio abrir a porta. Sempre me parecera alta, mas percebi logo que não tinha crescido um centímetro nestes últimos 22 anos. O seu cabelo castanho
compridodava-lhe agora pelo pescoço e a sua figura delgada estava mais cheia. Lembrava-me de que era muito atraente. Tal constatação ainda se aplicava, pelomenos
quando ela sorria era uma dessas pessoas cujo sorriso é tão caloroso evivo que todo o rosto se torna bonito. Quando olhámos uma para a outra, os olhos de Joan
ficaram rasos de lágrimas e, depois, ela agarrou-se às minhas mãos.
A pequena Ellie! exclamou. Meu Deus, julguei que fosses mais baixa do que eu.Eras uma miúda tão pequenina.
Ri-me.
Eu sei. É a reacção de toda a gente que me conhecia. Passou o braço pelo meu.
Entra. Estou a fazer café e meti uns pãezinhos no forno. Não garanto que sejambons. Por vezes são óptimos, outras sabem a chumbo.
Atravessámos a sala de estar que ia da fachada da casa até ao fundo. Era ogénero de sala que eu gostava divãs confortáveis, poltronas, uma parede
cobertade livros, uma lareira e amplas janelas de onde se avistava as colinas à volta.
Tínhamos gostos semelhantes, pensei. E, depois, dei-me conta de que isso também incluía o estilo de roupa. Estávamos ambas vestidas casualmente com
camisolas e jeans. Esperava ver uma mulher alta todaelegante e de cabelos compridos. Além de julgar que eu era pequena, tinha acerteza que também pensara
que eu aparecesse com um vestido aos folhos. O gostoda minha mãe em roupas para mim e para a Andrea tinha sido muito feminino.
O Leo saiu com os rapazes disse ela. Entre eles os três, a vida é um longo jogode basquetebol.
A mesa do pequeno-almoço já estava posta para nós as duas e a cafeteira estavaligada. A janela oferecia uma impressionante vista do rio Hudson.
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Nunca me cansaria de olhar por esta janela disse eu ao sentarmo-nos.
Eu nunca me canso. Tantos dos velhos amigos partiram para a cidade, mas, sabesuma coisa? Uma data deles está a voltar. Manhattan fica apenas a uma
hora daquie chegaram à conclusão que valia a pena.
Joan servia o café enquanto falava, mas, de repente, pousou bruscamente acafeteira.
Oh, meu Deus! Já está na hora de salvar os pãezinhos. Desapareceu na cozinha.
Ela talvez não fosse como eu a tinha visualizado, pensei, mashavia uma coisa que não tinha mudado! Continuava a ser muito divertido estar com Joan.
Era a melhor amiga de Andrea e, por conseguinte, estava sempre a entrar e a sair de nossa casa. Claro que eu tinha as minhas próprias amigas, mas, se uma delas
não andasse por ali, Andrea e Joan deixavam que eu me juntasse a elaspara ouvirmos juntas discos no quarto de Andrea. Às vezes, quando estavam afazer os
trabalhos de casa, também me deixavam fazer os meus com elas desde queme portasse bem.
Joan voltou triunfalmente com um tabuleiro de pãezinhos de milho.
Tens de me felicitar, Ellie disse ela. Tirei-os mesmo antes de começarem aqueimar.
Tirei um. Joan sentou-se, abriu outro, barrou-o ligeiramente de manteiga,provou-o e soltou uma exclamação.
Deus seja louvado, estão comestíveis!
Rimo-nos e desatámos a falar pelos cotovelos. Queria saber o que eu tinha andado a fazer e eu fiz-lhe um breve resumo do que me tinha acontecido entre
a idadedos sete anos e o presente. Ela soubera do falecimento de minha mãe.
O teu pai publicou a notícia nos jornais locais disse-me. Muito enternecedor,sabias?
Não ma mandou.
Guardei-a algures. Vou procurá-la se quiseres. Mas talvez demore a encontrá-la.A minha organização é igual aos meus cozinhados.
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Queria dizer-lhe que não, para ela não se maçar, mas estava curiosa de ver o que o meu pai tinha escrito.
Se a encontrares, gostaria de a ver. disse eu tentando parecer natural. Mas, por favor, não te incomodes.
Tinha a certeza de que Joan me queria perguntar se eu me tinha mantido emcontacto com o meu pai, mas devia ter sentido que eu não desejava falar
dele.
A tua mãe era tão encantadora disse-me. E o teu pai era um homem muito bemparecido. Lembro-me que ele me intimidava, mas acho que também tinha uma
paixãopor ele. Tive tanta pena quando ouvi dizer que se tinham separado depois dojulgamento. Vocês os quatro pareciam sempre tão felizes e fizeram tantas
coisasjuntos. Sempre desejei que a minha família fosse aos almoços de domingo naestalagem da Montanha do Urso como vocês faziam.
Há coisa de uma hora estive exactamente a pensar no almoço lá a que não fomosdisse-lhe.
E, depois, expliquei a Joan que Andrea me tinha feito rir durante a missa.
Joan sorriu.
Às vezes também me fazia rir nas reuniões da escola. A Andrea conseguiamanter-se séria e eu era castigada por me rir quando o director estava a
falar.
Fez um ar pensativo enquanto bebericava o café.
Os meus pais são boas pessoas, mas, para te ser franca, a companhia deles não élá muito divertida. Nunca fomos a um restaurante porque o meu pai
dizia que acomida era mais barata e sabia melhor em casa. Felizmente, agora que vivem naFlorida, ele está um pouco melhor.
Riu-se.
Mas, quando jantam fora, a regra é sentarem-se no restaurante às cinco horaspara pagar menos, e se tomam um cocktail, preparam-no em casa e bebem-no
sentados na carrinha diante do restaurante antes de jantar. Não ébestial?
A seguir, acrescentou:
128
Quer dizer, seria diferente se ele não pudesse dar-se a esse luxo, mas pode. Opapá é simplesmente avarento. A minha mãe diz que ele ainda tem o
dinheiro quelhe deram quando da Primeira Comunhão.
Serviu-nos uma segunda chávena de café.
Ellie, como toda a gente que vive por estas bandas, vi a entrevista do RobWesterfield na televisão. O meu primo é juiz e ele diz que há tanta pressão
para ser feito um segundo julgamento que ele está espantado por ainda não teremseleccionado um júri. Sabes como o pai do Rob é manipulador e é claro que aDorothy
Westerfield, a avó, tem feito enormes doações aos hospitais, bibliotecas e escolas destas paragens. Ela quer que o neto tenha um segundo julgamento etem o poder
para o conseguir.
Vais ser certamente chamada como testemunha, Joan.
Eu sei. Fui a última pessoa a ver a Andrea viva. Hesitou e, depois, prosseguiu.
Excepto, evidentemente, o assassino. Ficámos ambas caladas durante unsinstantes.
Joan disse eu então. Preciso de saber tudo o que te lembras sobre essa últimanoite. Li as transcrições do julgamento inúmeras vezes e fiquei surpreendidapelo
teu depoimento ser tão breve.
Ela colocou os cotovelos em cima da mesa, juntou as mãos e pousou o queixonelas.
Fui breve porque nem o promotor nem o advogado da defesa mefizeram as perguntas que deviam ter feito.
Que género de perguntas?
Sobre o Will Nebels, por exemplo respondeu. Lembras-te que ele trabalhava paraquase toda a gente da cidade. Até ajudou a construir a vossa varanda,
não foi?
Foi.
Arranjou a porta da nossa garagem quando a minha mãe embateucontra ela a fazer marcha atrás. Como o meu pai costumava dizer, quando o Willnão
estava com os copos, era um bom carpinteiro. Mas era evidente que nunca sepodia contar com ele.
Lembro-me vagamente disso.
129
Uma coisa de que não te podes lembrar é que a Andrea e eu costumávamos comentar o facto de ele ser demasiado afável.
Demasiado afável? Joan encolheu os ombros.
Hoje, sabendo o que sei, diria que ele estava a um passo de ser um pedófilo.Quer dizer, todas nós o conhecíamos porque ele já tinha ido a nossas
casas.Sempre que o encontrávamos na rua, ele aproveitava-se e dava-nos grandesabraços, mas nunca quando havia adultos por perto claro está.
Mostrei-me incrédula.
Tenho a certeza que mesmo com a minha idade nessa altura eu teria notado se aAndrea se tivesse queixado dele ao meu pai, Joan. Percebi muito bem
quando ele a mandou afastar-se do Rob Westerfield.
Ellie, há 22 anos nós, miúdas, não podíamos imaginar que ele era potencialmentemais do que um simples incómodo. Nessa altura, quando o Nebels nos
abraçavae nos chamava «as suas meninas», dizíamos apenas que era um nojo.«Que tal, gostas da nova varanda que eu construí com o teu papá, Andrea?»,perguntava
com um grande sorriso amigável, ou: «Não consertei bem a tua garagem, Joan?», gania.
Tenta entender o que te estou a dizer. Ele não nos apalpava, e, pensando melhor, era apenas um pobre coitado bêbedo muito atrevido. Mas não tenho dúvidas
de que ele andava de olho na Andrea. Lembro-me até de dizer aos teuspais, a brincar, que a Andrea ia convidar o Will Nebels para o baile do Natal,mas eles
não perceberam.
É espantoso que o meu pai não tenha compreendido!
A Andrea imitava muito bem o Will a tirar cerveja às escondidas da caixa deferramentas e a apanhar uma bebedeira enquanto trabalhava. Não havia
motivo para o teu pai se dar conta de que havia um problema.
Não compreendo por que é que estás a dizer-me isso agora, Joan. É porque julgasque a história que o Will Nebels anda a contar é mentira e que os
Westerfield ocompraram?
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Desde que ouvi o Will Nebels falar na televisão que me pergunto a mim mesma sehá alguma verdade naquilo que ele disse. Encontrava-se ele realmente
em casa daSra. Westerfield naquela noite? Viu de facto a Andrea a entrar na garagem?Depois do que aconteceu, perguntei-me muitas vezes se tinha visto alguém
naestrada quando a Andrea saiu da nossa casa. Mas fui tão incoerente quando faleicom a polícia e os advogados que a minha história foi considerada histeriaadolescente.
E o que eu lhes disse foi considerado imaginação infantil.
O que eu sei de certeza é que, nessa altura, tinham tirado acarta de condução ao Will Nebels e que ele andava sempre a vaguear pela cidade.E
também sei que ele tinha um fraco pela Andrea. Supõe que ela estava tãoansiosa para se encontrar com o Rob na garagem que chegou lá mais cedo. Supõeque o
Will a viu e se atirou a ela. Supõe que ela se debateu e caiu para trás... O chão é de cimento. Tinha um ferimento atrás da cabeça que a polícia dissedever-se
ao facto de ela ter caído depois de lhe baterem com o macaco. Mas não é possível que ela tenha caído antes de apanhar com o macaco?
A pancada na parte de trás da cabeça tê-la-ia apenas atordoado disse eu. Li isso nos registos do médico legista.
Escuta. Vamos assumir só por um instante que a história do Rob é verdadeira eque ele estacionou realmente o carro na estação de serviço, foi ao
cinema e que, depois, passou pelo esconderijo para ver se a Andrea ainda estava à esperadele.
E a encontrou morta?
Sim. E que entrou em pânico, como declarou.
Vendo o protesto formar-se nos meus lábios, Joan ergueu a mão.
Escuta, Ellie, por favor. É possível que toda a gente tenha contado partes daverdade. Supõe que a Andrea lutou com o Nebels, que caiu, bateu com
a cabeça nochão e perdeu os sentidos. Supõe que ele depois fugiu para casa da Sra. DorothyWesterfield. Tinha lá trabalhado e conhecia o código do alarme.
E que viu entãoo Paulie chegar de carro.Por que é que o Paulie teria tirado o macaco do carro?
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Talvez para se proteger caso encontrasse o Rob Westerfield. Lembra-te que aMiss Watkins, a conselheira escolar, jurou que o Paulie tinhadito:
«Não julguei que ela estivesse morta.»
O que é que estás a tentar dizer-me, Joan?
Topa-me esta cena: o Will Nebels seguiu a Andrea até à garagem e atirou-se aela. Houve uma luta. Ela caiu e perdeu os sentidos. O Will refugiou-se
em casada Sra. Westerfield e viu então o Paulie chegar de carro, tirar o macaco doporta-bagagens e entrar na garagem. Um minuto mais tarde, o Paulie voltou
aentrar no carro e arrancou. O Nebels aí não sabe ao certo se o Paulie vai chamar a polícia. Volta à garagem e vê o macaco que o Paulie deixou cair. Sabe que
searrisca a ir parar à prisão se a Andrea contar que ele a atacou. Mata-a, leva omacaco com ele e desaparece dali. Mais tarde, depois do filme terminar, o
Robvai ao esconderijo, encontra a Andrea morta e entra em pânico.
Não percebes que estás a esquecer-te de um pormenor elementar, Joan?
Esperava não parecer tão impaciente como a sua teoria me fazia sentir.
Como é que o macaco volta a aparecer no porta-bagagens do Rob Westerfield?
A Andrea foi assassinada na noite de quinta-feira. Encontraste o corpo dela nasexta-feira de manhã e o Rob só foi interrogado na tarde de sábado.
Não figuranas transcrições do julgamento, mas, na sexta-feira, o Will Nebels estava atrabalhar em casa dos Westerfield. O carro do Rob estava estacionado
no pátio eele deixava sempre as chaves lá dentro. O Will poderia muito facilmente terreposto o macaco no porta-bagagens nesse dia.
Como é que soubeste isso tudo, Joan?
O meu primo Andrew, o juiz, costumava trabalhar no gabinete domagistrado-federal. Encontrava-se lá quando o Rob Westerfield foi julgado econhecia
bem o caso. Sempre o achou agressivo e desagradável, mas, na suaopinião, ele era inocente.
O agente White considerava Paulie culpado da morte de Andrea e a Sra. Hilmerainda duvidava da sua inocência. E, agora, Joan estava convencida de
que ocriminoso era Will Nebels.
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No entanto, eu continuava a ter a certeza de que quem tinha assassinado a minhairmã fora Rob Westerfield.
Não acreditas em nada do que eu te disse, Ellie. A voz de Joan era calma, mastriste,
Não é bem isso. Como hipótese faz sentido, mas, Joan, o Rob Westerfield estavana garagem na manhã em que encontrei o corpo da Andrea. Ouvi a respiraçãodele...
é tão difícil de explicar... e um riso, uma espécie de som arquejante.Já o tinha ouvido soltar esse som...
Quantas vezes é que estiveste com ele, Ellie?
Umas duas ou três vezes. Quando a Andrea e eu íamos dar uma volta na cidadedepois da escola, ou aos sábados, ele aparecia de repente. O que é que
a Andreate contou acerca dele?
Não muito. A primeira vez que me lembro de o ter visto foi num jogo do liceu. AAndrea tocava com a banda e estava linda. O Westerfield veio vê-la
depois dojogo, em princípios de Outubro. Eu estava ao lado dela. Atirou-se logo a ela,dizendo que ela era muito bonita e que não podia afastar os olhos dela...
Essegénero de coisas. Era mais velho e muito bem parecido, e, claro está, ela sentiu-se lisonjeada. E, além do mais, acho que a tua mãe lhe tinhadito uma
data de vezes que a família Westerfield era muito distinta.
Sim.
Ele sabia que nós nos escondíamos às vezes na garagem da avó para fumar. Querdizer, fumávamos cigarros de verdade e não drogas. Pensávamos que
éramossensacionais, mas não fazíamos nada ilegal. O Rob Westerfield disse-nos paraconsiderar aquele lugar como o nosso clube, mas que o avisássemos quandoplaneássemos
lá ir. E, então, ele pedia à Andrea para vir mais cedo. Sabes bemque eles eram amigos... se assim se pode dizer... há apenas um mês quando elamorreu.
Alguma vez tiveste a impressão que ela tinha medo dele?
Tive a impressão que se passava qualquer coisa errada, mas ela nunca me contou o que era. A última noite em que ela me telefonou a perguntar se podia
passarpara estudarmos juntas, devo dizer que a minha mãe não ficou lá muitoentusiasmada. Eu
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estava atrasada em aritmética e ela queria que eu meconcentrasse. Sabia que a Andrea e eu perdíamos imenso tempo a tagarelar em vezde estudar.
E como ia jogar bridge com as amigas, não estariapor perto para nos obrigar a trabalhar.
Terminaram de estudar mais cedo ou achas que a Andrea te usou para sair de casae encontrar-se com o Rob?
Julgo que ela tencionava sair mais cedo e, por isso, penso que ela me usourealmente como desculpa.
A seguir, fiz-lhe a pergunta crucial.
Sabes se o Rob alguma vez ofereceu um medalhão à Andrea?
Não, ela não me disse nada a esse respeito. E se ele lho deu de facto, entãonunca o vi. Mas o teu pai ofereceu-lhe um medalhão que ela usava com
frequência.
Andrea tinha vestido uma grossa camisola com decote em V nessa noite. Por isso é que eu estava certa de a ter visto pôr o medalhão à volta do pescoço.
Estavapendurado num fio suficientemente longo para desaparecer por debaixo do decote.
Então, que te lembres, ela não usava nenhuma jóia quando saiu de tua casa?
Não disse isso. Tinha um fio de ouro, mas era curto e apertado à volta dopescoço.
Era isso mesmo, pensei, lembrando-me de repente outro episódio dessa noite. Ocasaco da minha irmã encontrava-se à entrada e a minha mãe estava
à espera dela. Antes de sair do quarto, Andrea passou o medalhão para trás e deixou-oescorregar pelas costas abaixo, o que dava o efeito de ter apenas um fio
apertado à volta do pescoço.
Tinha meticulosamente lido a descrição da roupa que Andrea usava quando foiassassinada. Não havia menção desse fio.
Saí de casa de Joan uns minutos mais tarde com a sincera promessa detelefonar-lhe breve. Não tentei dizer-lhe que ela tinha involuntariamenteconfirmado
a minha recordação de Andrea a pôr o medalhão.
Rob Westerfield tinha voltado ao lugar do crime naquela manhã para o recuperar.Tinha agora a certeza de que aquele medalhão era demasiado importante
para ele o deixar junto do corpo da minha
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irmã. No dia seguinte, iria descrevê-lo no meu Website como otinha descrito a Marcus Longo há 22 anos.
Era outra linha a lançar, pensei ao passar novamente pelo mosteiro de Graymoor.Se Rob tinha ficado suficientemente inquieto para correr o risco
de ir buscar omedalhão à garagem, alguém poderia estar interessado em explicar-me, em troca de uma recompensa, porque isso fora tão importante para ele.
Os sinos da capela de Graymoor começaram a tocar. Era meio-dia.
Escola primária. Rezar o ângelus. E o Anjo do Senhor anunciou a Maria...A resposta de Maria a Elizabeth. A minha alma engrandece oSenhor...E
o meu espírito alegra-se...
Talvez, um dia, o meu espírito volte a alegrar-se, pensei, ligando o rádio.
Mas ainda não.CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Do balcão de recepção da estalagem Parkinson podia ver o restaurante e repararque, como sempre, estava cheio à hora do almoço nos fins-de-semana.
O grupo dehoje parecia particularmente festivo. Perguntei-me se, após os dias sombrios doprincípio da semana, esta tarde soalheira de Outono não teria um
efeito benéfico sobre as pessoas.
Lamento, mas todos os nossos oito quartos já estão reservados para ofim-de-semana disse o empregado, Todos os fins-de-semana deste Outono têm sido
a mesma coisa. E vai continuar assim até ao Natal.
Não valia a pena ficar aqui durante a semana e, depois, sair ao fim-de-semana.Tinha de encontrar outro lugar. No entanto, a ideia de guiar de uma
estalagem,ou motel, para outra à procura de um quarto não me agradava nada. Decidi queseria melhor voltar ao apartamento e telefonar de lá para ver se conseguiaarranjar
alojamento para os próximos meses. E era preferível que encontrasseinstalações que não me custassem os olhos da cara.
O pãozinho de milho que comera de manhã era tudo o que tinha ingerido até agora. Eram vinte para a uma e não me apetecia particularmente uma sanduíche
dequeijo, tomate e alface, o que, segundo me lembrava, era tudo o que iria encontrar no apartamento.
Entrei no restaurante e arranjaram-me prontamente mesa. Tecnicamente falando,tratava-se de uma mesa para dois, mas quem
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se sentasse no outro lugar teria de ser esquelético, pois a cadeira estavaencostada a uma esquina e não havia muito espaço. A meu ] ladoestava
uma mesa para seis pessoas com o sinal de reservada.
Nas minhas vagueações nómadas tinha estado em Boston apenas uma vez, quandoinvestigava uma história que andava a escrever. Essa breve visita tinha-medeixado
permanentemente apaixonada pela sopa de amêijoas da Nova Inglaterra, aqual constava do menu.
Pedi uma juntamente com uma salada e uma garrafa de Perrier.
Gosto da sopa muito quente, por favor disse à empregada de mesa.
Mordisquei os bocadinhos de pão torrado enquanto esperava e pus-me a pensarporque me sentia inquieta e até mesmo deprimida.
Não era difícil de adivinhar, pensei. Há umas semanas, quando tinha aquichegado, sentia-me como uma espécie de D. Quixote feminino a combater moinhos.Mas
a verdade era que até mesmo as pessoas que eu julgava estarem tãoconvencidas como eu da culpabilidade de Rob não estavam a apoiar-me.
Conheciam-no. Sabiam quem ele era. E, contudo, pensavam que era possível ele ter sido injustamente condenado e ser ele mesmo vítima desse crime. Embora
semostrassem compadecidos, encaravam-me como uma mulher obcecada pela morte dairmã, irracional no melhor dos casos, e desequilibrada e maníaca no pior.
Sei que, às vezes, sou arrogante. Quando julgo ter razão, todas as forças do céu e do inferno não me fazem mudar de opinião. Talvez seja por isso que
meconsidero uma boa jornalista. Tenho a reputação de cortar a direito, fazerpontaria ao que penso ser a verdade e, depois, provar que estou certa. Agora,sentada
neste restaurante onde tinha estado muitas vezes em criança, tentei serhonesta comigo mesma. Seria possível, remotamente possível, que o mesmo impulso que me
fazia uma boa jornalista estivesse agora a virar-secontra mim? Estaria eu a prejudicar não só pessoas como a Sra. Hilmere Joan Lashley mas também o homem
que eu desprezava, Rob Westerfield?
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Estava tão concentrada nos meus pensamentos que tive um sobressalto quando umamão me passou pela frente. Era a empregada com o prato da sopa a fumegar.
Tenha cuidado preveniu-me. Está a escaldar.
A minha mãe costumava dizer-nos que não se devia agradecer os empregados de mesa pelo serviço que prestavam, mas nunca aprendi essa lição. Dizer «obrigada»quando
algo que desejo é colocado diante de mim sempre me pareceu correcto eainda o é.
Peguei na colher, mas, antes de poder provar a sopa, o grupo destinado à mesareservada ao meu lado chegou. Ergui a cabeça e quase me engasguei
Rob Westerfield estava de pé ao lado da minha cadeira.
Pousei a colher. Ele estendeu-me a mão, mas eu ignorei-a. Era um homemimpressionantemente belo, ainda mais em pessoa do que na televisão, e possuíauma
espécie de magnetismo animal que transmitia uma impressão de força econfiança, a marca registada de muita gente poderosa que eu tinha entrevistado.
Os seus olhos eram azuis-cobalto, o cabelo negro ligeiramente grisalho nastêmporas e a cor da sua pele surpreendentemente bronzeada. Conhecia a
palidez da prisão e, por isso, cheguei à conclusão que, desde que fora libertado, eledevia ter passado muitas horas debaixo de uma lâmpada de bronzear.
A chefe de mesa disse-me quem tu eras, Ellie disse-me em tom caloroso como senos encontrássemos de vez em quando.
Ah, sim?
Estava bastante preocupada. Não tinha outra mesa para seis pessoas e pensou queeu não me queria sentar ao pé de ti.
Vi, pelo canto do olho, os companheiros dele sentarem-se. Reconheci o pai,Vincent Westerfield, e o advogado, William Hamilton. Fitavam com ar agressivo.
E não lhe ocorreu que podia ser eu a não querer ficar ao teulado? perguntei em voz calma.
Ellie, estás completamente enganada a meu respeito. Quero que o assassino da tua irmã seja apanhado e punido tanto como tu. Podemos encontrar-nos um
dia parafalar disso calmamente?
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Hesitou uns instantes e, depois, acrescentou com um sorriso.
Por favor, Ellie.
Percebi que toda a gente na sala de jantar se calara subitamente. Todos pareciam querer participar na nossa conversa. Ergui deliberadamente a voz para
pelomenos alguém me ouvir.
Teria muito prazer, Rob disse. Que tal encontrarmo-nos na garagem da tua avó?Era o teu sítio favorito, não era? Mas, se calhar, a lembrança de
teres láespancado uma rapariga de 15 anos até a matar é capaz de ser demasiado dolorosaaté mesmo para um mentiroso como tu.
Atirei uma nota de vinte dólares para cima da mesa e levantei-me.
Sem a mais ligeira indicação de ter ficado perturbado com o que eu dissera, Rob pegou na nota e meteu-a no bolso do meu casaco.
Temos conta neste restaurante, Ellie. Sempre que cá vieres, serás nossaconvidada. Traz quem quiseres.
Fez uma pausa, mas, desta vez, os seus olhos semicerraram-se. Tirei a nota dobolso, entreguei-a à empregada de mesa e fui-me embora.
Meia hora mais tarde, estava de volta ao apartamento. A chaleira chiava e eufazia a sanduíche de queijo, alface e tomate previamente rejeitada.
Nessaaltura, a crise de tremeliques já me tinha passado e somente as minhas mãos,frias e húmidas, reflectiam o choque de ter visto Rob Westerfield cara
a cara.Ao longo dessa meia hora, uma cena repetia-se obsessivamente na minha cabeça.Estou a prestar declarações no tribunal. Rob Westerfield, com o seu advogadoao
lado, está sentado no banco dos réus. Fita-me com ar maldoso. Tenho a certeza de que, de um momento para o outro, ele vai lançar-se sobre mim e atacar-me.
A intensidade do seu olhar quando estava a centímetros de mim no restaurante era tão forte como durante o julgamento, e, por detrás dos seus olhosazuis-cobalto
e o tom cortês, senti e vi o mesmo ódio.
Mas há uma diferença, repeti a mim mesma até me acalmar. Tenho29 anos e não sete. E, de uma maneira ou de outra, hei-de
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fazer-lhe pior agora do que dantes. Depois do julgamento, um jornalistatinha escrito: «A triste e sincera criança que declarou no tribunal que
a irmãtinha medo de Rob Westerfield influenciou imenso o júri.»
Levei a sanduíche e o chá para a mesa, abri a lista telefónica e liguei otelefone portátil. Decidi, enquanto comia, consultar as Páginas Amarelas
emarcar os sítios onde poderia informar-me acerca de um alojamento para alugar ao mês.
Nesse preciso instante, a Sra. Hilmer telefonou. Tentei explicar-lhe que estavaà procura de um sítio onde ficar, mas ela interrompeu-me.
Acabei de receber um telefonema da minha neta mais velha, Janey. Lembra-se de eu lhe ter contado que teve um bebé o mês passado?
Senti a voz da Sra. Hilmer tornar-se tensa.
Espero que o bebé esteja bem murmurei.
Está sim, está óptimo. Mas a Janey quebrou o pulso e pediu-me ajuda. Parto paraLong Island esta tarde e vou lá permanecer uns dias. Reservou algum
quarto naestalagem Parkinson?... Depois do que se passou, aflige-me a ideia de você ficar lá sozinha.
Fui, de facto, à Parkinson, mas já não têm lugar para este fim-de-semana nempara os seis ou sete fins-de-semana seguintes. Estou agora à procura
de outrasolução.
Ellie, espero que compreenda que a minha preocupação é por sua causa. Fique noapartamento até encontrar uma coisa adequada, mas, por amor de Deus,
não seesqueça de trancar a porta.
Prometo. Por favor não se preocupe comigo.
Vou levar os jornais e as transcrições do tribunal. Assente o telefone da Janeyem Garden City para o caso de querer falar comigo.
Anotei o número e, minutos mais tarde, ouvi o carro da Sra. Hilmer a arrancar.Confesso que, depois do choque que recebi ao ver Rob Westerfield,
tinha muitapena que ela se fosse embora.
Vem aí o papão, vem aí o papão! Arreliava-me Andrea quando, naausência dos nossos pais, víamos filmes de terror na
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televisão. Eu fechava sempre os olhos e encostava-me a ela nas cenas que metiammais medo.
Para me vingar, lembro-me que, uma noite, me escondi debaixo da cama dela e,quando ela entrou, lhe agarrei uma perna. Vem aí o papão, vem aí o
papão!,cantarolei quando ela desatou aos berros.
Mas Andrea já não estava aqui para eu me encostar a ela. E, agora, já sou umarapariga crescida, habituada a tratar de mim. Encolhimentalmente
os ombros e comecei a marcar estalagens e pensões locais nas Páginas Amarelas.
A seguir, pus-me a telefonar, o que provou ser uma tarefa desanimadora. Aspoucas que pareciam interessantes eram bastante caras ao mês, sobretudo
tendotambém em conta o preço da comida.
Ao cabo de quase duas horas, tinha uma pequena lista de quatro residenciais.Percorri a secção de «Casas para Alugar» num jornal e encontrei alguns
alugueres razoáveis.
Terminei a minha busca por volta das três e meia; tinha seis lugares para ver no dia seguinte. Estava contente por ter terminado porque queria ir para
o computador escrever sobre o meu encontro com Rob Westerfield.
Havia uma ou duas estalagens na área com um quarto disponívelimediatamente. Qualquer delas me convinha, mas a última coisa que agora meapetecia
era começar a fazer as malas. E também não queria esfregar ofrigorífico e arrumar o apartamento.
A Sra. Hilmer tinha tornado bem claro que a sua preocupação era a minhasegurança e que eu poderia instalar-me aqui até encontrar algo adequado.
Sabiaque ela tinha partido pelo menos por três ou quatro dias e, assim, reflectidurante uns instantes e, depois, tomei uma decisão: por agora, deixar-me-iaficar
por aqui, provavelmente até segunda-feira.
Liguei o computador e redigi algumas notas, mas percebi que era difícilconcentrar-me. A solução era ir ao cinema e, depois, jantar ali por perto.Consultei
a página dos cinemas e reparei com ironia que o filme que queria verestava a passar no cinema Globo, aquele onde Rob Westerfield tinha declaradoencontrar-se
quando Andrea fora assassinada.
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O Globo tinha sido claramente ampliado e modernizado desde os meus tempos de criança. Exibia agora sete filmes diferentes. À entrada havia um grande
balcãocircular onde se vendiam chocolates, pipocas e refrigerantes.
Embora os primeiros espectadores estivessem a chegar, o chão já estava todo sujo de pipocas que tinham caído das embalagens de papel excessivamente
cheias.
Comprei Peanut Chews a minha guloseima predilecta e entrei nocinema 3. O filme não foi tão sensacional como eu esperava. Contava a históriaum
tanto ou quanto desinteressante de uma mulher que é caluniada e que, depois, claro está, acaba por ser bem sucedida e encontrar o verdadeiro amor e a felicidade
no marido que tinha rejeitado três anos antes.
Se têm assim tão poucas ideias, talvez lhes possa vender a história da minhavida, pensei quando comecei a perder a paciência. A minha vida menos
a parteamorosa, é evidente.
Estava sentada entre dois casais, pessoas de idade à minha direita eadolescentes à esquerda. Os adolescentes passavam as pipocas um ao outro e arapariga
comentava constantemente o filme.
Costumava ser a minha actriz favorita, mas, agora, não acho que seja tão boacomo...
Não valia a pena prestar atenção ao que se estava a passar no ecrã. Não eram sóos miúdos, as pipocas e os comentários, e nem sequer o ligeiro ressonar
do homem sentado ao meu lado que, entretanto, tinha adormecido.
Estava distraída pelo facto de Rob Westerfield ter declarado há
22 anos encontrar-se neste cinema enquanto Andrea estava a ser assassinada e que ninguém pudesse verificar se ele tinha realmente assistido ao filme. Apesar
detoda a publicidade dada ao caso, ninguém se apresentou e disse: «Ele estavasentado ao meu lado.»
Oldham era uma cidade pequena na altura e os Westerfield eram muito conhecidos.Certamente que Rob, com o seu belo aspecto e atitude de menino rico,
era bastante conhecido na cidade. Enquanto
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estava ali sentada na escuridão do cinema, imaginei-o a estacionar o carro naestação de serviço ao lado.
Tinha afirmado que dissera a Paulie Stroebel que deixava ali o carro. Paulienegou que Rob tivesse falado com ele.
A seguir, Rob falou com a vendedora dos bilhetes e a arrumadora, dizendo-lhesque queria muito ver o filme.
Mostrou-se muito amigável testemunharam ambas em tribunal, um poucosurpreendidas.
Rob Westerfield não era uma pessoa amigável, sobretudo em relação aossubalternos.
Podia muito facilmente ter-se mostrado no cinema e, depois, sair à socapa. Tinha alugado o filme, O Senhor da Guerrilha da Selva, o qual eleassegurava
ter visto nessa noite. As cenas ao princípio eram tão escuras quealguém já sentado podia facilmente esgueirar-se sem ser visto. Olhei à volta ereparei em
várias saídas laterais que deveriam ser usadas apenas em casos deemergências e decidi experimentar uma coisa.
Levantei-me, murmurei uma desculpa por acordar o meu vizinho, trepei sobre amulher dele e dirigi-me para a saída lateral perto do fundo da sala.
A porta abriu-se sem ruído e dei por mim numa espécie de viela entre um banco eo cinema. Anos atrás, era aqui que se encontrava a estação de serviço
e não obanco. Tenho cópias dos diagramas e das fotografias que os jornais publicaramdurante o julgamento e, por isso, lembro-me bem da localização da estação
deserviço.
A garagem interior onde Paulie estava a trabalhar ficava por detrás da bomba degasolina, diante da rua principal, e a área onde os carros a ser
afinados eramguardados encontrava-se atrás da estação de serviço. Essa área era, agora, umparque de estacionamento para os clientes do banco.
Caminhei ao longo da viela, substituindo mentalmente o banco pela estação deserviço. Podia até visualizar o sítio onde Rob dizia ter estacionado
o carro eonde supostamente ficara até o filme terminar às nove e meia.
Os meus passos tornaram-se os dele e eu estava dentro da sua mente zangado,maldisposto, contrariado porque uma rapariga
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que ele julgava manipular telefonara-lhe a dizer que tinha um encontro comoutro.
Pouco importava que essa pessoa fosse Paulie Stroebel.
Vai ter com a Andrea. Mostra-lhe quem é que manda.
Por que é que ele levou o macaco para o esconderijo?, perguntei-me.
Havia dois motivos possíveis. Um porque receava que o meu pai soubesse queAndrea se ia encontrar com ele. Não duvidava que, na mente de Rob, a figura
domeu pai surgisse de forma assustadora e terrível.
O outro motivo para Rob levar o macaco consigo era porque fazia tenção de matarAndrea.
Vem aí o papão, vem aí o papão! Oh, Deus meu, como a minhapobre irmã deve ter ficado aterrorizada quando o viu aproximar-se dela, erguer o braço
com aquele instrumento na mão...
Virei-me e desatei a correr para onde a viela desembocava na rua. Engolindo o ar às golfadas pois, durante instantes, não conseguira literalmente respirar;tentei
acalmar-me e dirigi-me para o meu carro. Tinha-o deixado no parque deestacionamento do outro lado do cinema.
A atmosfera ainda era límpida, mas, a noite passada, tinha havido vento e atemperatura baixava rapidamente. Tive um arrepio e acelerei o passo.
Quando tinha consultado o horário do filme, tinha reparado no anúncio de umrestaurante, Villa Cesaere, que não ficava longe do cinema. Parecia o
género delugar que eu gostava e, assim, encaminhei-me para lá. Apetecia-me massa, quantomais condimentada melhor. Talvez comesse camarões fra diavolo.
Tinha de me livrar do horrível frio interior que sentia.
Às nove e um quarto, alimentada e sentindo-me um pouco melhor, entrei de carrona propriedade da Sra. Hilmer. A casa dela estava às escuras e a luz
da porta da garagem dava umas boas-vindas pouco acolhedoras.
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Travei bruscamente. Algo me incitava a dar meia volta e ir passar a noite nummotel. Não tinha imaginado como me sentiria insegura aqui esta noite.
Vou-me embora amanhã, pensei. Só mais uma noite aqui não é assim tão mau. Assimque chegar ao apartamento, estarei bem.
Aquela resolução não tinha evidentemente nenhum sentido. Na outra noite,enquanto estava a jantar com a Sra. Hilmer, alguém tinha penetrado no apartamento.
Mas, sem saber bem porquê, achava que, agora, ninguém estaria àminha espera lá dentro. O meu sentimento de pânico provinha de estar sozinha cáfora e tão
perto dos bosques.
Acendi os faróis no máximo e conduzi lentamente. Tinha trazidoa sacola com as transcrições do julgamento, os jornais e as jóias da minha mãeno
porta-bagagens durante todo o dia, mas, quando saíra do restaurante, pusera a sacola no banco da frente de modo a não ter de a ir buscar quando chegassediante
do apartamento.
Perscrutei cuidadosamente a área à volta da garagem. Não vi ninguém.
Respirei fundo, peguei na sacola, saí do carro e subi apressadamente os degrausaté à porta.
Antes de ter tempo para meter a chave na fechadura, ouvi o roncar de um motor eum carro parou junto do apartamento com um guinchar de pneus. Um
homem saltou lá de dentro e precipitou-se na minha direcção.
Fiquei sem pinga de sangue, certa de ver o rosto de Rob Westerfield e ouvir oriso que ele tinha soltado quando eu estava ajoelhada ao lado do corpo
deAndrea.
Mas, então, uma lanterna iluminou-me e, quando ele se aproximou, distingui umafarda e vi que era o agente White.
Disseram-me que se tinha mudado, Ms. Cavanaugh disse ele em tom de poucos amigos. O que é que está aqui a fazer?
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Após uns inconfortáveis momentos, durante os quais lhe expliquei que, de facto,ainda não tinha mudado, insisti para que ele entrasse e telefonasse
para casa da neta da Sra. Hilmer. Tinha deixado o número numa folha de papel junto docomputador. Ele fez o telefonema e, a seguir, passou-ma.
Lamento imenso, Ellie disse ela. Pedi ao agente White para manter um olho nacasa enquanto eu estava fora e disse-lhe realmente que você se ia embora,
masele devia ter acreditado em si e perceber que ainda era minha convidada.
Tem toda a razão, pensei, mas decidi não o dizer.
Ele fez muito bem, Sra. Hilmer.
Não lhe disse que, para dizer a verdade e embora ele se tivesse mostradogrosseiro, eu estava muito contente por ele se encontrar aqui. Não tivera
deentrar no apartamento sozinha e, depois de ele se ir embora, trancaria a porta a sete chaves.
Perguntei-lhe pela neta, despedi-me e desliguei.
Vai então partir amanhã, Ms. Cavanaugh? perguntou White.
Pelo tom da sua voz, mais valia ter dito: «Aqui tem o seu chapéu e, agora,ponha-se a milhas.»
Vou, sim. Não se preocupe.
Já obteve alguma resposta ao pedido que fez à porta da penitenciária?
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Obtive, sim respondi, lançando-lhe o que Pete Lawlor chama o meu sorrisoauto-suficiente e misterioso.
Franziu o sobrolho. Tinha despertado a sua curiosidade, o que era exactamente oque eu queria fazer.
Toda a cidade sabe que, hoje, disse umas coisas bastante desagradáveis ao RobWesterfield na estalagem Parkinson.
Não há nenhuma lei contra a sinceridade e não existe certamente nenhuma que diga que se tem de ser simpático com assassinos.
As suas faces avermelharam e ele levou a mão à maçaneta da porta.
Ms. Cavanaugh, deixe-me dar-lhe um conselho. Sei que o RobWesterfield à custa do dinheiro da família conseguiu fazer muitas amizades naprisão
e alguns desses tipos estão, agora, à solta. Sem mesmo dar contas aoWesterfield, um deles pode decidir fazer-lhe um favor e livrá-lo de alguém que o anda a
chatear, prevendo, claro está, que o Rob demonstre adequadamente a suagratidão.
E quem é que me irá defender da fúria desse padre? perguntei.
Do que é que está a falar?
Trata-se apenas de uma pergunta retórica, Sr. agente. No século XII, o reiHenrique fez esse comentário a um dos seus nobres e, pouco tempo depois,
oarcebispo Thomas Beckett foi assassinado na sua catedral. Sabe uma coisa? Nãotenho bem a certeza se me está a avisar ou a ameaçar.
Uma jornalista deveria reconhecer a diferença, Ms. Cavanaugh.
E, dizendo isto, foi-se embora. Os seus passos pareceram-me desnecessariamentepesados, como se ele quisesse que eu soubesse que ele estava a fazer
uma espécie de saída final.
Tranquei a porta, aproximei-me da janela e viu-o meter-se no carro e partir.
Tomo normalmente duche de manhã e, se o dia correu particularmente bem, tomooutro duche antes de me meter na cama. Acho que é uma excelente maneira
dedescontrair os músculos
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das costas e do pescoço. Esta noite, decidi ir ainda mais longe e enchi abanheira de água quente com óleo de banho. Passados seis meses, o frasco
aindaestava quase cheio, o que prova quantas vezes eu tenho a oportunidade de tomarum banho de imersão. Mas, esta noite, estava precisada, e ficar ali deitadaimersa
na banheira soube-me muito bem. Fiquei até a água esfriar.
Diverte-me ver anúncios de camisas de noite e roupões provocantes e sedutores.Eu cá uso apenas camisas de noite compradas por catálogo nos armazéns
L.L. Bean. São largas e confortáveis e vêm acompanhadas por um roupão de flanela. Pantufas forradas de lã completam este requintado conjunto.
O toucador com um espelho lembrava-me aquele que a minha mãe tinha pintado debranco para o quarto de Andrea. Enquanto escovava o cabelo, pus-me
a pensar noque teria sido feito dele. Quando a minha mãe e eu mudámos para a Florida,levámos pouca mobília connosco. Tenho a certeza de que nada pertencente
aoadorável quarto de Andrea nos acompanhou. Nessa altura, o meu quarto tambémpodia ser considerado giro, mas era de criança com bonecos animados pintados
nopapel de parede.
Veio-me de repente à memória que, um dia, tinha dito à minha mãe que o papel deparede era infantil e que ela me respondeu: «Mas é quase igual ao
da Andreaquando ela tinha a tua idade. Adorava-o.»
Penso que já nesses tempos me dava conta de como éramos diferentes. Não gostavade coisas de meninas e nunca me importei com roupas finas. A exemplo
da nossamãe, Andrea era extremamente feminina.
«És a menina do papá para se ter e abraçar... És o espírito do Natal, a minha estrela no topo da árvore...E és a menina do papá.»
A letra daquela cantilena veio-me involuntariamente à cabeça e, mais umavez, vi o papá agarrado à caixa de música e a chorar no quarto de Andrea.
Era uma recordação que eu tentava imediatamente esquecer.
Acaba lá de escovar esse cabelo, rapariga, e mete-te na cama ordenei a mim mesma em voz alta.
Examinei-me ao espelho com olho crítico. Uso normalmente o cabelo preso no altoda cabeça com uma travessa, mas, agora,
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reparei que estava bastante comprido. Tinha alourado muito no Verão e ainda seviam madeixas claras.
Lembrava-me muitas vezes do comentário que o inspector Longo tinha feito aointerrogar-me pela primeira vez. Dissera que o meu cabelo, assim como
o do filho dele, parecia areia iluminada pelo sol. Era uma imagem tão terna e aplicava-setão bem a como meu cabelo estava agora, que era bom pensar quetalvez
voltasse a ser novamente verdade.
Vi as informações das 11 apenas o tempo suficiente para me certificar de que omundo fora de Oldham ainda estava mais ou menos a funcionar. A seguir,
e depoisde verificar a fechadura das janelas da sala, fui para o quarto. Como o ventosoprava com força, entreabri as janelas apenas uns centímetros. O frio
queentrou foi suficiente para ir refugiar-me a correr debaixo dos cobertores.
No meu apartamento, em Atlanta, adormecia sempre com facilidade, mas lá eraobviamente diferente. Ouvia ruídos abafados vindos da rua e, por vezes,
músicahard rock que o meu vizinho do lado punha a tocar bem alto.
Uma amigável pancada na parede bastava para ele a baixar, mas, mesmo assim,adormecia meio consciente de vibrações metálicas.
Esta noite, não me importaria que houvesse algumas vibrações metálicas só parasentir a proximidade de outro ser humano, pensei enquanto reajustava
a almofada. Parecia que todos os meus sentidos se encontravam em estado de alerta máximaprovavelmente por causa do meu encontro com Rob Westerfield.
A irmã de Pete, Jan, vive perto de Atlanta numa cidadezinha chamada Peachtree e, aos domingos, Pete telefona-me às vezes e diz: «Vamos ver Jan, Bill
e osmiúdos.» Têm um pastor-alemão, Rocky, que é um cão de guardamaravilhoso. Assim que saímos do carro, ele desata a ladrar furiosamente paraavisar a
família inteira da nossa presença.
Quem dera que me viesses visitar agora mesmo, Rocky, meuvelho amigo, pensei.
Acabei, finalmente, por cair num sono agitado, do género que nos faz desejarpodermos acordar. Estava a sonhar que havia um
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sítio onde devia ir. Tinha de encontrar alguém antes que fosse demasiado tarde.Estava escuro e a minha lanterna não funcionava.
A seguir, vi-me no meio de um bosque. O cheiro de uma fogueira chegou-me àsnarinas. Tinha de encontrar um caminho através do bosque, mas não havia
nenhum.Estava certa disso porque já estivera aqui.
Estava muito calor e eu comecei a tossir.
Não era nenhum sonho! Abri os olhos. O quarto estava completamente às escuras echeirava a fumo. Sentia-me a asfixiar. Afastei os cobertores e sentei-me.
Ocalor aumentava à minha volta. Se não saísse já dali, morreria queimada. Onde éque eu estava? Por uns instantes, não conseguia orientar-me.
Forcei-me a pensar antes de pôr os pés no chão. Encontrava-me no apartamento daSra. Hilmer. A porta do quarto ficava à esquerda da cama, directamente
em frente da cabeceira. Depois, havia um pequeno corredor e a porta do apartamento era ao fundo, à esquerda.
Levei provavelmente dez segundos a pensar. Levantei-me e soltei um gemido quando os pés tocaram no soalho a escaldar. Ouvi madeira a estalar por cima
da minhacabeça. O telhado estava a arder. Sabia que restavam apenas uns segundos antesdo prédio desmoronar.
Precipitei-me, a cambalear, em direcção da porta. Graças a Deus tinha-a deixadoaberta. Percorri o corredor encostada à parede e passei a porta da
casa debanho. O fumo não era tão denso, mas uma muralha de chamas ergueu-se de repenteda área da cozinha da sala de estar. Iluminou a mesa e vi o computador,
aimpressora e o telefone portátil. A sacola estava caída no chão junto da mesa.
Não queria perdê-los. Destranquei a porta que dava para as escadas e, a seguir,mordendo os lábios por causa das bolhas nos pés, peguei no computador,
naimpressora e no telefone portátil com uma mão e na sacola com a outra. Fugi,depois, em direcção à porta.
Atrás de mim, as labaredas envolviam a mobília e, à minha frente, o fumo nasescadas era espesso e negro. Felizmente, as escadas eram a direito e
eu desci-as aos tropeções. Ao princípio,
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a maçaneta da porta exterior parecia estar perra. Atirei com tudo que tinha nosbraços para o chão e puxei-a e torcia-a com ambas as mãos.
Estou encurralada, estou encurralada, pensei, sentindo o cabelo começar a chamuscar. Dei um derradeiro e desesperado puxão e a porta abriu-se.Voltei
a pegar nas minhas coisas e saí para o ar livre.
Vi um homem a correr na minha direcção. Agarrou-me antes de eu cair.
Há ainda alguém lá dentro? gritou.
A tremer e ao mesmo tempo sentindo a pele a arder, abanei a cabeça.
A minha mulher foi chamar os bombeiros disse ele, afastando-me da construção aarder.
Surgiu então um carro. Meio consciente, imaginei que devia ser a mulher deleporque o ouvi dizer-lhe: «Lynn, leva-a para casa. Ela não pode apanhar
estefrio. Eu fico aqui à espera dos bombeiros.»
Virou-se depois para mim.
Vá com a minha mulher. Moramos mesmo aqui ao lado. Cinco minutos mais tarde, epela primeira vez após mais de
anos, estava sentada na cozinha da minha antiga casa, embrulhada num cobertor ecom uma chávena de café diante de mim. Através das portas vidradas
que davampara a sala de estar, via o adorado lustre da minha antiga casa suspenso nomesmo lugar.
E via Andrea e eu apormos a mesa para o jantar de domingo.
«Hoje, o nosso convidado de honra é o Lorde Malcolm Rabogrande.»
Fechei os olhos.
Faz bem chorar, sabe? disse gentilmente Lynn, a senhora que agora vive na minha antiga casa. Acabou de passar por uma experiência horrível.
Mas consegui reter as lágrimas. Sentia que, se começasse a chorar, nunca maispararia.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
O chefe dos bombeiros veio a casa dos Kelton e insistiu que eu fossetransportada para o hospital de ambulância.
Deve ter inalado bastante fumo, Ms. Cavanaugh disse ele.Precisa de ser observada, quanto mais não seja por precaução.
Fiquei no Hospital do Condado de Oldham durante a noite, o que mais valia poisnão tinha outro lugar para onde ir. Quando me meteram finalmente na
cama depoisde me limparem o rosto e o corpo, e de me porem ligaduras nos pés aceitei tomarum comprimido para dormir com muito prazer. O quarto ficava perto
da enfermariae ouvia o murmúrio abafado de vozes e passos.
Pensei, ao adormecer, que há apenas uma hora tinha desejado companhia. Nuncaesperei que o meu desejo fosse satisfeito daquela maneira.
Quando a ajudante de uma enfermeira me acordou às sete da manhã, todo o corpo me doía. Ela verificou o meu pulso e a minha tensão arterial e foi-se
embora.Empurrei os cobertores para o lado, pus os pés no chão e, não sabendo bem o queiria acontecer, tentei levantar-me. A planta dos pés estava almofadada
comligaduras e andar era terrivelmente inconfortável, mas, à parte isso, sentia-meem forma.
Foi então que comecei a perceber que tinha tido muita sorte. Mais uns minutos eteria sido asfixiada pelo fumo. Na altura em
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que os Kelton chegaram, já teria sido impossível salvar-me, mesmo queeles soubessem que eu me encontrava lá dentro. ;
Tinha o incêndio sido um acidente? Sabia que não. Embora nunca tivesse láentrado, a Sra. Hilmer dissera-me que a garagem por debaixo do apartamentocontinha
apenas utensílios de jardinagem.
E os utensílios de jardinagem não se incendeiam.
O agente White tinha-me avisado que um antigo recluso poderia querer agradar aRob Westerfield fazendo-lhe o favor de se desembaraçar de mim. Penso
que Whitevia a questão ao contrário. Não tinha a menor dúvida que fora Rob Westerfieldquem mandara um antigo lacaio de Sing Sing pôr fogo ao apartamento.
E não mesurpreenderia nada que o incendiário fosse o tipo que me tinha dirigido apalavra no parque de estacionamento da estação de caminhos-de-ferro.
Tinha a certeza de que, por esta altura, a Sra. Hilmer já fora avisada doincêndio pelo agente White, pois tinha-lhe dado o número de telefone da
netadela em Long Island. Sabia que ela devia estar muito afectada por a garagem e oapartamento terem ardido. Fora originalmente um celeiro e tinha algum valorhistórico.
A Sra. Hilmer tinha 72 anos e o apartamento por cima da garagem era a suagarantia de que, se um dia necessitasse de assistência, poderia lá alojar
alguém em troca.
E também sabia que o acidente da neta a perturbara pois dava-se agoraconta de como era fácil uma pessoa ficar incapacitada.
Poderia ela com o seguro reconstruir a garagem e o apartamento, ou teria atémesmo paciência para mandar refazer a obra? Agora mesmo, a Sra. Hilmer
devia estar a pensar que as boas acções não eram retribuídas, penseitristemente. Havia de lhe telefonar, mas ainda não. Como é que se pede desculpapor uma
coisa destas?Veio-me de repente à cabeça a sacola, o computador, a impressora e o telefoneportátil. Tinha-os trazido para o quarto do hospital comigo,
mas lembrava-me que me disseram que os iriam guardar. Onde é que estavam?
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Havia um armário no quarto. Aproximei-me a coxear, rezando para que estivessem lá dentro. Abri a porta e fiquei toda contente ao vê-losimpecavelmente
empilhados uns sobre os outros.
Também fiquei contente por ver um roupão pendurado num cabide. Estava vestidacom uma daquelas miseráveis camisas de hospital. Era para uma pessoa
com otamanho de uma boneca Barbie e eu tenho 1,73 metros.
A primeira coisa que fiz foi abrir a sacola. A primeira página a desfazer-se doNew York Post com a manchete «CULPADO» estava em cima, na mesma
posição em que a tinha deixado da última vez que a abrira.
Estendi a mão e enfiei-a de lado, tacteando com os dedos. Soltei um suspiro dealívio ao encontrar a caixa de cabedal.
No dia anterior de manhã, no momento em que entrava no carro para ir a casa deJoan, tinha-me ocorrido que o próximo intruso poderia procurar objectosvaliosos.
Subi as escadas a correr, tirei a caixa das jóias da cómoda e meti-ana sacola que já se encontrava no porta-bagagens.
Abri-a. Estava lá tudo, os anéis de noivado e de casamento da minha mãe, os seus brincos de diamantes e a minha modesta colecção de jóias.
Voltei a metê-la na sacola e peguei no computador. Levei-o comigo para a únicacadeira que se encontrava ao pé da janela. Passaria o tempo que tivesse
depermanecer no hospital ali.
Liguei o computador e retive o fôlego, respirando apenas quando o ecrã seiluminou e fiquei segura de que não perdera o material que lá tinha armazenado.
Com a minha paz de espírito mais ou menos restaurada, voltei ao armário, tirei o roupão e fui à casa de banho. Havia um pequeno tubo de dentífríco,
uma escovade dentes selada numa embalagem de plástico e um pente numa prateleira sobre olavabo. Tentei arranjar-me.
Sei que, depois do incêndio, tinha ficado em estado de choque. Mas, agora, aminha cabeça estava a clarear, e eu comecei a dar-me conta da sorte
que tinhatido em escapar não somente com vida mas sem queimaduras graves. Também percebia que tinha de
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ser mais vigilante quanto a futuras tentativas para dar cabo de mim. Uma coisaera certa: tinha de me instalar num lugar onde houvesse empregados
e gente àminha volta.
Quando acabei por desistir de pentear o meu cabelo todo emaranhado, voltei aoquarto, sentei-me na cadeira e, como não tinha papel nem caneta, abri
ocomputador para fazer uma lista das coisas que tinha de fazer imediatamente.
Não tinha dinheiro nem roupa, cartões de crédito, carta de condução tudo issofora perdido no incêndio. Teria de pedir dinheiro emprestado até receber
novoscartões de crédito. Quem seria o feliz contemplado do meu pedido de ajuda?
Tenho amigos em Atlanta e amigos dos tempos de escola espalhados por todo o país a quem podia telefonar a pedir auxílio e recebê-lo logo. Mas risquei-os
daminha lista. Não queria ter de dar longas explicações para justificar o meuestado temporário de pobreza.
Pete era o único em Atlanta que estava a par do que acontecera a Andrea e quesabia porque eu me encontrava aqui. Quando tinha pedido licença para
meausentar, a minha única explicação a colegas e amigos fora: «É por motivos deordem pessoal, malta.»
Tenho a certeza de que a impressão geral foi que Ellie, a qual anda sempre tãoocupada para ter encontros amorosos, envolveu-se com alguém especial
e está atratar do assunto.
Pete? A ideia de ter de representar o papel de mulher indefesa diante do seuherói irritava-me. Seria o meu último recurso.
Sabia que poderia contar com Joan Lashley St. Martin, mas o facto de ela acreditar que Rob Westerfield era inocente causava-me uma certa relutância.
Marcus Longo? É claro!, pensei. Seria ele o meu salvador eeu devolver-lhe-ia o dinheiro dentro de uma semana.
O tabuleiro com o pequeno-almoço chegou e vieram buscá-lo uma hora maistarde, quase sem lhe ter tocado. Já alguma vez estiveram num hospital queservisse
café quente?
O médico chegou, examinou as minhas queimaduras, disse-me que eu poderia ir para casa quando quisesse e foi-se embora. Imaginei-me a coxear à volta
de Oldham apedir esmola. Precisamente
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nesse momento de depressão, o agente White apareceu com um homem de feiçõesangulosas que ele apresentou como sendo o inspector Charles Bannister
do Departamento da Polícia de Oldham. Um servente do hospital estava atrás delescom um par de cadeiras e eu calculei assim que isto não iria ser nenhuma alegree
rápida visita à cabeceira do paciente.
Bannister exprimiu preocupação pelo meu bem-estar, esperando que, depois do queeu tinha passado, me sentisse o melhor possível.
Desconfiei imediatamente que, por detrás de tanta delicadeza, ele tinha qualquer coisa na manga que não devia ser lá muito boa.
Disse-lhe que estava bem e grata por estar viva, comentário que ele aceitou comum aceno de cabeça. Lembrou-me um professor que eu tive no curso
de filosofia da universidade, o qual, após ouvir uma observação particularmente estúpida de umdos alunos, acenava gravemente a cabeça.
Isto significava: «Agora é que já ouvi tudo o que tinha para ouvir.»
Não levei muito tempo a compreender que o inspector Bannister tinha um objectivo em mente: estava resolvido a provar a sua teoria que eu inventara
a história do intruso no apartamento. Não o disse de forma directa, mas o cenário que elemontou era mais ou menos o seguinte: depois de eu ter falado à Sra.
Hilmeracerca do suposto intruso, ela ficara bastante nervosa, pondo-se a imaginar quealguém a andava a seguir, e, mais tarde, tinha-lhe telefonadodisfarçando
a voz para a avisar que eu era uma pessoa perturbada.
Franzi o sobrolho, mas não fiz qualquer comentário.
Segundo o inspector Bannister, fora ainda eu que provocara o incêndio parachamar a atenção, atrair a simpatia geral e, ao mesmo tempo, acusar publicamente
Rob Westerfield de ter tentado matar-me.
Correu o risco de ser queimada viva, mas, na opinião do vizinho que a viu sairde casa, transportava consigo um computador, uma impressora, um telefone
portátil e uma grande sacola. A maior parte das pessoas não se detém para fazeras malas durante um incêndio, Ms. Cavanaugh.
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No momento em que alcancei a porta de saída, a parede do fundo da sala de estartransformou-se numa muralha de chamas que iluminou a mesa onde tinha
deixado asminhas coisas. E, como essas coisas eram importantes para mim, fui buscá-las.
Por que é que são assim tão importantes, Ms. Cavanaugh?
Deixe-me mostrar-lhe porquê, inspector respondi, apontando para o computadorportátil que tinha sobre os joelhos. O primeiro capítulo do livro que
estou aescrever sobre o Rob Westerfield está neste computador. E páginas e páginas deapontamentos tirados das transcrições do julgamento, o Estado versusRob
Westerfield, também aqui se encontram. Não tenho disquetes nem mais cópias.
O rosto dele permaneceu impassível, mas reparei que a boca do agente White secontorcia de raiva.
Assentei o número do meu telefone portátil no cartaz que andeia exibir à porta da penitenciária... Tenho a certeza de que ele lhe contou esseepisódio
acrescentei, fazendo um gesto com a mão na direcção de White. Já recebi um telefonema de alguém que conheceu o Westerfield na prisão e este telefone éo único
contacto que tenho com essa pessoa até comprar outro e transferir onúmero. Quanto à sacola, está naquele armário. Quer ver o que há lá dentro?
Quero, sim.
Coloquei o computador no chão e levantei-me.
Eu vou buscá-lo ofereceu-se.
Prefiro ser eu.
Abri o armário, peguei na sacola, deixei-a cair diante da minha cadeira,sentei-me e abri o fecho de correr.
Senti mais do que vi a espantada reacção dos dois homens ao ler a manchete«CULPADO».
Mais vale não lhes mostrar isto disse, cuspindo as palavras, enquanto ia tirando os jornais um a um da sacola e os atirava para o chão.
A minha mãe guardou estes jornais durante toda a vida continuei sem tentaresconder a minha fúria. São as notícias do assassínio da minha irmã,
desde que o seu corpo foi descoberto
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até o Rob Westerfield ser condenado. Não constituem uma leitura muitoagradável, mas são interessantes e não estounada interessada em perdê-los.
Atirei o último jornal para o chão e, depois, tive de empregar ambas as mãospara tirar as transcrições do julgamento. Mostrei-lhes a capa.
Também é uma leitura interessante, inspector Bannister.
Estou certo disso concordou, impassível. Tem mais alguma coisa aí dentro, Ms. Cavanaugh?
Se está à espera de ver uma lata de gasolina e uma caixa de fósforos, não temsorte nenhuma.
Tirei a caixa de jóias e entreguei-lha.
Examine isto, por favor.
Lançou-lhe um olhar e devolveu-me a caixa.
Anda sempre com as suas jóias juntamente com jornais dentro de uma sacola,Ms. Cavanaugh, ou só estão aí quando suspeita que possa haverum incêndio?
Levantou-se e White pôs-se de pé num pulo.
Há-de receber notícias nossas, Ms. Cavanaugh. Vai regressar aAtlanta ou permanecer nesta área?
Vou ficar e terei muito prazer em dar-lhe a minha morada. Talvez assim o departamento da polícia a vigie melhor do que fez com a casa da Sra. Hilmer.Acha
que será possível?
As maçãs-do-rosto do agente White ruborizaram. Sabia que ele estava furioso eque eu estava a ser má, mas, nesta altura do campeonato, tanto me fazia.
Bannister não se deu ao trabalho de responder, mas virou-se bruscamente e saiudo quarto seguido de White.
Vi-os partir. O servente veio buscar as cadeiras e arregalou os olhos ao ver-mesentada com a transcrição em cima dos joelhos, a caixa das jóias
numa mão e asacola na outra, e os jornais todos espalhados no chão.
Quer que a ajude a apanhá-los, minha senhora? perguntou. Ou precisa de algumacoisa? Está com um ar muito aflito.
Estou, de facto, aflita concordei. E preciso realmente de uma coisa. Há algumacafetaria neste hospital?
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Há, sim. E é bastante boa.
Não se importa...
Detive-me porque estava à beira de uma crise de nervos.
Não se importa de me ir buscar uma chávena de café bem quente?
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Meia hora mais tarde, estava eu saboreava a última gota do excelente café que oservente amavelmente me trouxera quando tive outra visita ainda mais
inesperada. O meu pai.
A porta estava entreaberta, e ele bateu e entrou sem esperar uma resposta.Olhámos um para o outro e senti a garganta seca.
O seu cabelo preto estava agora prateado. Estava um pouco mais magro, masmantinha-se tão direito como sempre. Tinha a testa coberta de rugas e os
óculosacentuavam os seus penetrantes olhos azuis.
A minha mãe a ralhar-lhe: «Sei que não dás por isso, Ted, mas tens de deixarde franzir o sobrolho quando te concentras. Vais ficar como uma ameixa
quandofores mais velho.»
Não se parecia nada como uma ameixa. Era ainda um homem bonito e não perdera aquela aura de força interior.
Olá, Ellie disse.
Olá, papá.
Podia apenas imaginar o que ele estava a pensar ao ver-me vestida com um relesroupão de hospital, o cabelo emaranhado e ligaduras nos pés. Não
era certamentea brilhante estrela da caixa de música.
Como é que estás, Ellie?
Tinha-me esquecido do timbre profundo da sua voz. Tinha ° som de autoridadecalma que Andrea e eu respeitávamos em160
criança. Sentíamo-nos protegidas e eu, pelo menos, admirava-a imenso.
Estou muito bem, obrigada.
Vim assim que soube do incêndio e que tu te encontravas lá.
Não era preciso incomodares-te.
Tinha-se mantido de pé no limiar da porta, mas agora aproximou-se. Ajoelhoudiante de mim e tentou pegar-me nas mãos.
Ellie, por amor de Deus, és minha filha. Como é que achas que me senti quando me disseram que quase tinhas morrido?
Afastei as mãos.
Oh, essa história há-de acabar por ser contada de maneiradiferente. Os chuis julgam que fui eu quem provocou o incêndio para armar.Segundo eles,
quis chamar a atenção e atrair a simpatia geral.
Mostrou-se chocado.
Isso é ridículo.
Estava tão perto de mim que senti o ligeiro odor do creme de barbear. Enganava-me ou ainda era o mesmo cheiro? Estava vestido com um casacoazul-escuro,
calças cinzentas, camisa e gravata. Lembrei-me, então, que eradomingo e que ele já devia estar vestido para ir à missa quando ouvira falar doincêndio.
Sei que vieste ver-me por amabilidade disse eu. Mas preferia que me deixasses em paz. Não preciso de nada e não quero nada de ti.
Ellie, vi o teu Website. O Westerfield é perigoso e estou muito preocupado por tua causa.
Bem, pelo menos eu e o meu pai tínhamos uma coisa em comum. Ambos sabíamos queRob Westerfield era um assassino.
Sei tomar conta de mim mesma. Há muito tempo que o faço. Ergueu-se.
A culpa não é minha, Ellie. Sempre te recusaste a visitar-me.
Acho que sim. Podes, portanto, ficar com a consciência tranquila. Agora já tepodes ir embora.
Vim convidar-te, suplicar-te, para ficares connosco. Dessa maneira, podereiproteger-te. Lembra-te que pertenci durante 35 anos à guarda nacional.
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Eu lembro-me. Ficavas muito bem de farda. Oh, escrevi-te a agradecer teresenterrado as cinzas da mãe na sepultura da Andrea, não escrevi?
Escreveste, sim.
Segundo a certidão de óbito, a causa da morte dela foi cirrose do fígado, masacho que o diagnóstico mais acertado deveria ser «coração destroçado».
E a morte da minha irmã não foi a única razão.
Foi a tua mãe que me deixou, Ellie.
A minha mãe adorava-te. Devias ter ficado com ela até ao fim. Podias tê-laseguido até à Florida e trazê-la para casa... trazer a nós as duas para
casa.Mas não quiseste.
O meu pai meteu a mão na algibeira e tirou a carteira. Esperava que ele não seatrevesse a dar-me dinheiro. Tal não aconteceu. Puxou de um cartão-de-visita
ecolocou-o em cima da cama.
Podes-me chamar a qualquer hora, de dia ou de noite, Ellie.
E, a seguir, foi-se embora. Mas o ligeiro odor do creme de barbear pairava noquarto. Tinha-me esquecido de que, às vezes, me sentava na borda da
banheira afalar com o meu pai enquanto ele se barbeava. Tinha-me esquecido de que, àsvezes, ele se virava de repente, pegava-me ao colo e esfregava o rosto
cobertode espuma ao meu.
Essa recordação era tão vívida que levei a mão à face, esperando quase sentirrestos de espuma. Tinha a face molhada, mas era das lágrimas que, pelo
menosdurante uns instantes, eu não conseguira reter.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Tentei contactar Marcus Longo duas vezes durante uma hora, mas, depois,lembrei-me de que ele me tinha dito qualquer coisa sobre a mulher não gostar
deandar de avião sozinha. Devia, por conseguinte, ter ido a Denver para a trazerpara casa e rever o seu adorado primeiro neto.
A enfermeira enfiou a cabeça no quarto para me lembrar que eu tinha de sair dohospital ao meio-dia. Por volta das onze e meia, pensei em perguntar
se havia um departamento de serviços sociais, mas, nesse momento, Joan telefonou.
Ellie, acabei de saber o que se passou. Valha-me Deus, como é que estás? O que é que posso fazer por ti?
O pudor que sentia em aceitar ajuda porque ela não acreditava que Rob Westerfield fosse um animal feroz evaporou-se. Precisava dela e sabia muito
bemque Joan era tão sincera na sua convicção que ele era inocente como eu era naminha quanto à sua culpabilidade.
Para te ser franca, podes fazer uma data de coisas. respondi.
O alívio por ouvir uma voz amigável fez tremelicar a minha própria voz.
Arranja-me roupa. Vem buscar-me. Encontra um sítio onde eu ficar. Empresta-medinheiro.
Ficas connosco...
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Negativo interrompi-a. Não é uma ideia boa nem segura para nenhuma de nós. Nãoqueres certamente que a tua casa arda...
Não me venhas dizer que julgas que alguém largou fogo com a intenção de tematar!
Julgo, pois.
Considerou a minha resposta durante uns instantes e tenho a certeza que pensounos filhos.
Então onde é que podes ficar em segurança?
Numa estalagem, por exemplo. Não gosto da ideia de um motel porque os quartostêm porta para o exterior. Esquece a Parkinson, está cheia.
Além de ser um lugar frequentado pela família Westerfield, disse para comigomesma.
Estou a pensar num sítio que talvez te convenha disse Joan. E também tenho umaamiga mais ou menos com o teu físico. Vou telefonar-lhe a pedir que
me emprestealguma roupa. Que tamanho calças?
Nove, mas julgo que ainda não posso tirar as ligaduras dos pés.
O tamanho dos sapatos do Leo é dez. Se não te importas de usar os ténis dele,talvez dê.
Não me importava.
Joan chegou dentro de uma hora com uma mala cheia de roupa interior, meias,calças, uma camisola de gola alta, um casaco de Inverno, luvas, os ténis
ealguns objectos de toilette. Vesti-me e a enfermeira trouxe-meuma bengala para eu usar até as bolhas nos meus pés sararem. À saída, afuncionária da administração
concordou relutantemente adiar o pagamento até eulhe enviar por fax uma cópia do meu seguro de saúde.
Entrámos, finalmente, no SUV de Joan. Tinha conseguido pentearo cabelo para trás e prendê-lo com um elástico. Um olhar casual para oretrovisor
mostrava que não estava assim muito mal. As roupas serviam-me e,embora os ténis parecessem demasiado grandes e desajeitados, protegiam-me os pés doridos.
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Reservei um quarto em teu nome na Estalagem do Vale do Hudson disse-me Joan.Fica a cerca de dois quilómetros daqui.
Gostaria de ir primeiro a casa da Sra. Hilmer, se não te importas. O meu carroainda lá está... Ou, pelo menos, assim o espero.
Quem é que to roubaria?
Ninguém, mas estava estacionado junto da garagem. Faço figas para que aindaesteja intacto.
Não havia uma parede de pé. A área do alojamento que a Sra. Hilmer tãogenerosamente me tinha emprestado tinha um cordão à volta e um polícia deguarda.
Três homens com pesadas botas de borracha examinavam os destroços paradetectar a origem do incêndio. Ergueram a cabeça ao ver-nos, mas, depois,continuaram
o seu trabalho.
Fiquei aliviada por ver que tinham afastado o meu carro. Encontrava-se, agora,perto da casa da Sra. Hilmer. Saímos. Era um BMW que eu tinhacomprado
em segunda mão há dois anos o primeiro carro decente que jamais tinhatido.
Claro que estava totalmente coberto de cinzas e a pintura do lado do volantetinha estalado, mas dei-me por satisfeita. Ainda tinha rodas.
O meu saco ficara no quarto de dormir, juntamente com tudo o mais, e a chave docarro estava lá dentro.
O polícia aproximou-se de nós. Era muito jovem e educado. Quando lhe expliqueique não tinha a chave e que teria de contactar a BMW para que me enviassemoutra,
ele assegurou-me que o carro seria bem guardado.
Eu ou um dos meus colegas estaremos por aqui no decorrer dos próximos dias.
Para ver se me põe as culpas em cima pelo incêndio?, perguntei-me enquanto lhe agradecia.
O pouco ânimo que tinha sentido quando me vesti e saí do hospital desapareceuquando voltámos para o SUVde Joan. Era um lindo dia de Outono,mas
o cheiro a fumo pairava no ar à nossa volta. Esperava fervorosamente que sedissipasse antes de a
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Sra. Hilmer regressar. Outra coisa que eu tinha de fazer era telefonar-lhe e falar com ela.
Podia muito bem imaginar a conversa.
«Lamento imenso ser a causa do seu apartamento ter ardido. Garanto-lhe quenão volta a acontecer.»
Ouvia o repicar dos sinos de uma igreja ao longe e perguntei a mim própriase o meu pai teria ido à missa depois de me visitar ele, a mulher e o
filho, aestrela do basquetebol. Tinha atirado fora o cartão-de-visita quando estava atirar as minhas coisas do quarto do hospital, mas reparara que ele continuava
aviver em Irvington. Isso significava que ele ainda era um paroquiano daImaculada Conceição, a igreja onde eu fora baptizada.
Os padrinhos que deviam assistir os meus pais para reforçar a minha educaçãoreligiosa e bem-estar espiritual eram amigos íntimos do meu pai, os
Barry. DaveBarry pertencia igualmente à guarda nacional e provavelmente também se tinhareformado. Perguntei-me se ele ou a mulher, Nancy, alguma vez lhe
perguntavam:«Oh, Ted, a propósito, já tiveste notícias da Ellie?»
Ou seria eu um assunto demasiado inconfortável para ser discutido? Uma pessoa aser afastada com um aperto de mão e um suspiro. «É uma dessas coisas
tristesque acontecem na vida. Temos de a esquecer e prosseguir o nosso caminho.»
Estás muito calada, Ellie disse Joan ao ligar o motor. Como é que realmente te sentes?
Muito melhor do que ousei pensar assegurei-a. És um anjo e, com o dinheiro quevais tão amavelmente emprestar-me, convido-te para almoçar.
Vi logo que a estalagem do Vale do Hudson ia ser o sítio ideal para mim. Era uma mansão cheia de enfeites em estilo vitoriano de três andares e uma
amplavaranda. Assim que entrámos, a velha empregada da recepção mirou-nos atentamente de detrás do balcão.
Joan entregou-lhe o cartão de crédito dela para fazer uma cópia, explicando-lheque eu tinha perdido o meu e que a emissão de um novo cartão levaria
uns dias.Isso uniu a Sra. Willis à minha pessoa para o resto da vida. Depois de seapresentar, revelou-nos que há
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sete anos numa estação de comboio tinha colocado o saco num banco ao lado dela.
Virei a página do jornal recordou. E, nessa fracção de segundo, desapareceu. Foi um aborrecimento. Fiquei tão aflita que, quando finalmente recuperei
a presença de espírito e telefonei ao banco, alguém já tinha levantado 300 dólares com omeu cartão de crédito...
Talvez por termos partilhado a mesma experiência, ela deu-me um quartoparticularmente agradável.
Custa o preço de um quarto, mas é, na verdade, uma pequena suite. Tem uma salade estar separada e uma pequena cozinha. E, ainda melhor, uma bela
vista sobre o rio.
Se há alguma coisa que gosto é da vista de um rio. Não é difícil descobrirporquê. Fui concebida numa casa em Irvington à beira do Hudson e vivi
lá cincoanos da minha vida. Lembro-me que, quando era pequenina, empurrava uma cadeirapara junto da janela e punha-me de pé em cima dela para ver as águas
do rio acintilar lá em baixo.
Joan e eu subimos lentamente dois andares. Visitámos o quarto e concordámos queera exactamente o que eu precisava. Dirigimo-nos com a mesma lentidão
para aelegante sala de jantar na parte de trás da estalagem, mas, por essa altura, asbolhas dos meus pés já tinham duplicado.
Um cocktail Bloody Mary e uma sanduíche fizeram maravilhas para restaurar a minha normalidade. E, a seguir, tomámos um café.
Detesto falar disto, Ellie, mas acho que é necessário. O Leo e eu fomos a umafesta a noite passada, e toda a gente estava a falar do teu Website.
Continua.
Algumas pessoas acham-no escandaloso disse francamente. Penso que é legalregistá-lo em nome do Rob Westerfield, mas muita gente pensa que é injusto
etotalmente desnecessário.
Não te preocupes disse eu. Não tenciono matar o mensageiro que me traz másnotícias, mas estou interessada em provocar reacções. Que mais é que
andam adizer por aí?
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Que não devias ter posto aquelas fotografias do cadastro dele no Websitee que o depoimento do médico legista a descrever os ferimentos daAndrea
é uma leitura bastante desagradável.
Foi um crime brutal!
Foste tu que me pediste para te contar o que as pessoas andam a dizer.
Joan fez uma expressão tão infeliz que tive vergonha de mim mesma.
Desculpa. Sei que isto te custa. Encolheu os ombros.
Penso que foi o Will Nebels quem matou a Andrea, Ellie. Meia cidade estáconvencida de que o culpado é o Paulie Stroebel. E uma data de outras pessoasacha
que, mesmo que o Rob Westerfield não seja inocente, já cumpriu a pena efoi-lhe concedido liberdade condicional. Devias aceitar isso.
Joan, se o Rob tivesse confessado que era culpado e tivesse exprimidohonestamente o seu pesar, eu cá continuaria a odiá-lo. Mas não haveria nenhumWebsite.
Compreendo que as pessoas pensem dessa maneira, mas,agora, já não posso parar.
Joan estendeu o braço por cima da mesa e agarrou-me a mão.
As pessoas também manifestam a sua simpatia pela velha Sra. Westerfield. Agovernanta anda a contar a todos que lhe dão ouvidos que a patroa está
muitopreocupada por causa do Website e que, pelo menos, gostaria que parasses até o novo júri se debruçar sobre o caso.
Pensei em Dorothy Westerfield, essa mulher tão elegante, a dar os pêsames àminha mãe no dia do funeral e lembrei-me da cena com o meu pai a pô-la
na rua.Nessa altura, ele não tinha podido tolerar a simpatia dela e eu, pelo meu lado,não podia agora permitir-me ter simpatia por ela.
É melhor mudarmos de assunto sugeri. Não vamos concordar uma com a outra.
Joan emprestou-me 300 dólares e conseguimos trocar um sorriso sincero entre nósenquanto eu pagava a conta.
É simbólico, mas faz-me sentir melhor disse eu. Despedimo-nos junto da portaprincipal.
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Odeio pensar que ainda vais ter de subir essa escada disse ela com arpreocupado.
Só para lá chegar vai valer a pena. E tenho a bengala para me apoiar.
Bati ligeiramente com a bengala no chão para dar ênfase ao que dizia.
Telefona-me se precisares de alguma coisa. Senão, falo contigo amanhã.
Hesitei porque não queria levantar mais discussões, mas havia mais uma coisa que tinha de lhe dizer.
Joan, sei que nunca viste o medalhão que eu insisto que a Andrea usava naquelanoite, mas ainda te dás com alguma das raparigas que andavam contigo
e a Andreana escola?
Claro. E aposto que, com tudo o que está a acontecer, elas vão telefonar-medentro de pouco tempo.
Podias perguntar-lhes directamente se alguma delas viu a Andrea com o medalhãoque eu te descrevi? É de ouro, tem a forma de um coração, pequenas
pedras azuisno meio e um «A» e um «R», as iniciais da Andrea e do Rob, gravados atrás.
Ellie...
Quanto mais penso nisso, mais acredito que o único motivo que levou o Rob avoltar à garagem foi porque não podia correr o risco de o medalhão serencontrado
no corpo da Andrea. Preciso de saber porquê e seria uma grande ajudase alguém confirmasse a sua existência.
Joan não fez mais comentários e prometeu que iria perguntar. Deixou-me a seguirpara voltar à sua vida normal com o marido e os filhos. Apoiando-me
pesadamentena bengala, subi até ao quarto. Tranquei a porta, tirei cuidadosamente os ténise afundei-me na cama.
O telefone a tocar acordou-me. Fiquei admirada por o quarto estar às escuras.Encostei-me a um cotovelo e procurei a luz. Lancei um olhar ao relógio
quandoatendi.
Eram oito horas. Há seis horas que dormia.
Alo.
Sabia que a minha voz era pastosa.
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É a Joan, Ellie. Aconteceu uma coisa horrível. A governanta da Sra.Westerfield foi à charcutaria dos Stroebel esta tarde e desatou a gritar com
oPaulie. Disse-lhe que ele tinha de confessar que fora ele quem matou a Andrea eque, se a família Westerfield andava tão aflita, a culpa era dele.
Ellie, há coisa de uma hora, o Paulie trancou-se na casa de banho e cortou ospulsos. Encontra-se agora nos cuidados intensivos do hospital. Perdeu
tantosangue que acham que não vai sobreviver.
CAPÍTULO VINTE E OITO
Fui dar com a Sra. Stroebel na sala de espera dos serviços de cuidadosintensivos. Chorava em silêncio e grossas lágrimas rolavam pelas suas facesabaixo.
Tinha os lábios comprimidos como se receasse abri-los e soltar umagigantesca onda de dor.
Tinha um casaco pelos ombros e, embora a blusa e a saia fossem azuis-escuras, vi manchas que deviam ser provenientes do sangue de Paulie.
Uma mulher corpulenta de uns 50 anos e vestida simplesmente estavaprotectoramente sentada junto dela. Olhou-me com uma ponta de hostilidade.
Não sabia ao certo como a Sra. Stroebel reagiria. Fora o meu Websiteque tinha desencadeado a agressão verbal da governanta da Sra.Westerfield
e a reacção desesperada de Paulie.
Mas a Sra. Stroebel levantou-se e veio ao meu encontro.
Tu compreendes, Ellie... soluçou. Tu compreendes o que fizeram ao meu filho.
Abracei-a.
Compreendo, sim, Sra. Stroebel.
Olhei por cima do ombro dela para a outra mulher que entendeu a pergunta que osmeus olhos mudamente faziam e me acenou com a mão, um gesto que devia
quererdizer que ainda era demasiado cedo para saber se Paulie sobreviveria.
Apresentou-se.
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Chamo-me Greta Bergner. Trabalho com a Sra. Stroebel e o Paulie nacharcutaria. Vi logo que a senhora devia ser a jornalista.
Ficámos ali sentadas durante 12 horas. De vez em quando, uma de nós levantava-se e ia pôr-se à porta do quarto onde Paulie se encontrava. Tinha uma
máscara deoxigénio no rosto, tubos nos braços e ligaduras nos pulsos.
No decorrer dessa longa noite em que fui testemunha da agonia da Sra. Stroebel e vi os seus lábios a murmurar uma prece, dei por mim também a rezar.
Aoprincípio foi instintivo, mas depois tornou-se deliberado.
Se salvares o Paulie, Senhor, tentarei aceitar tudo o que aconteceu. Talveznão consiga, mas juro que hei-de tentar.
Raios de luz começaram a penetrar a escuridão lá fora. Às nove e um quarto,um médico veio à sala de estar.
O Paulie está fora de perigo anunciou. Por que é que não vão para casa dormir um pouco.
Tomei um táxi de volta à estalagem e, no caminho, comprei os jornais. Bastou-melançar um olhar ao Westchester Post para dar graças a Deus nãohaver
jornais no serviço de cuidados intensivos.
A manchete era «Suspeito Tenta Suicidar-se».
Os retratos de três pessoas figuravam na primeira página. Will Nebels a pousarpara a máquina fotográfica com um sorriso de auto-satisfação nas
feições moles,uma mulher na casa dos 70 com uma expressão preocupada que realçava os seustraços severos e Paulie, por detrás do balcão, com uma faca de cortar
pão namão.
A fotografia tinha sido cortada, a fim de mostrar apenas a mão a segurar a faca. Não se via o pão a ser cortado, para preparar uma sanduíche, e Paulie,
desobrolho franzido, olhava o leitor de frente.
A minha opinião é que fora apanhado de surpresa, mas o efeito era o de um homemcom ar de poucos amigos e olhos que metiam medo a brandir uma arma.
As legendas eram citações. A de Nebels dizia: «Eu sabia que tinha sido ele.» Ada mulher era: «Ele confessou.» E a de Paulie: «Lamento imenso.»
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A reportagem vinha publicada na terceira página, mas tive de adiar a leituraporque o táxi parou diante da estalagem. Abri novamente o jornal assim
quecheguei ao quarto.
A mulher na fotografia era Lillian Beckerson, governanta da Sra. Westerfield há31 anos.
«A Sra. Westerfield é uma das melhores pessoas que jamais pisou esta terra»,citava-a o jornal. «O marido foi senador dos EUA e o avô, governador
do estadode Nova Iorque. Há anos que vive com esta mácula no nome da sua família e,agora, que o seu único neto está a tentar provar a sua inocência, aquela
mulherque mentiu no tribunal em miúda anda a tentar destruí-lo novamente na Internet.»
Esta aqui sou eu, pensei.
«Ontem à tarde, a Sra. Westerfield viu o Website dessa criatura e desatou a chorar. Não aguentei mais e fui direita à charcutaria falar com oPaulie
e pedir-lhe para, por favor, confessar o que tinha feito. E sabem o queele me disse? "Lamento imenso." Uma pessoa inocente não diria tal coisa.»
No caso de Paulie, diria. Fiz um esforço para continuar a ler. Sou jornalista epodia perceber que Colin Marsh, o tipo que escrevera o artigo, era
um dessesrepórteres sensacionalistas conhecidos por manipular o que as pessoas diziam.
Também tinha entrevistado Emma Watkins, a conselheira escolar que, anos atrás,jurara ter ouvido Paulie soluçar: «Não julguei que ela estivesse
morta.»
A Sra. Watkins tinha dito a Marsh que a condenação de Rob Westerfield sempre aperturbara e que se Paulie, o qual se enervava facilmente, soubesse
que Andreaandava a troçar dele, seria bem capaz de fazer das suas.
Fazer das suas... Que maneira delicada de dizer as coisas, pensei.
Will Nebels, esse pobre pretexto de ser humano, esse desgraçado que gostava deabraçar meninas, era extensivamente citado e, ainda com mais floreados
do que eu vira quando da sua entrevista na televisão, contava a Marsh ter visto Paulieentrar na garagem de macaco na mão na noite do crime. Terminava dizendo
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piamente que nunca poderia compensar a família Westerfield por não ter dito oque sabia mais cedo.
Depois de ler a reportagem, atirei o jornal para cima da cama. O caso estava aser julgado na imprensa e cada vez mais gente havia de acreditar na
inocência de Rob Westerfield. Percebi que, se tivesse lido aquela história a frio, tambémtalvez pensasse que tinham condenado a pessoa errada.
Mas, se o meu Website preocupava a Sra. Westerfield, tambémafectava certamente outras pessoas. Liguei o computador e pus-me a escrever.
«Num deslocado gesto de lealdade, a governanta da Sra. Westerfield precipitou-se para a charcutaria dos Stroebel e atacou verbalmente Paulie Stroebel.
Horasmais tarde, Paulie, pessoa frágil já sob pressão graças a mentiras compradaspelo dinheiro dos Westerfield, tentou suicidar-se.
«A minha simpatia vai para a Sra. Dorothy Westerfield, mulher realmente degrande carácter, pela dor que tem sofrido por causa do crime cometido
pelo neto. Mas creio que, se ela se convencer de que o orgulhoso nome da sua famíliacontinuará a ser respeitado por gerações futuras, há-de encontrar paz deespírito.
«Tudo o que tem a fazer é deixar a sua imensa fortuna a obras de caridade elaboratórios de pesquisa médica para que inúmeras vidas humanas possam
sersalvas. Deixar dinheiro a um criminoso perfaz a tragédia que, há 22 anos, tiroua vida à minha irmã e ontem quase matou Paulie.
«Sei que uma comissão para defender Rob Westerfield foi formada.
«Convido-os a todos para formar uma comissão em defesa de Paulie Stroebel.
«Sra. Dorothy Westerfield, deveria ser a primeira!»
Não estava mau, pensei, copiando o texto para o meu Website.
Quando estava a desligar o computador, o telefone portátil tocou.
Tenho lido os jornais.
Reconheci imediatamente a voz. Era a do homem que me telefonara a dizer quetinha estado na prisão com Rob Westerfield e que este lhe confessara
ter mortomais outra pessoa.
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Estava à espera que me telefonasse disse em tom neutro.
Pelos vistos, o Westerfield anda a fazer um lindo trabalho e a atirar as culpaspara cima desse imbecil do Stroebel.
Ele não é nenhum imbecil retorqui.
Como queira. Mas, agora, vamos mas é falar de negócios. Quero cinco mil dólarese, em troca, dou-lhe o prenome do gajo que o Westerfield se gabou
de ter morto.
O nome?
É tudo o que sei. Não conheço o apelido dele.
Não pode dar-me mais nada? Quando é que isso se passou e onde?
Só sei o nome próprio e preciso do dinheiro sexta-feira. Era uma segunda-feira e tinha três mil dólares numa conta de poupança em Atlanta.
Apesar de não gostar lá muito da ideia, poderia pedir o resto dodinheiro a Pete se o adiantamento para o livro não chegasse na sexta.
Então?
A voz era impaciente.
Sabia que havia uma boa possibilidade de eu estar a ser vigarizada, mas decidicorrer esse risco.
Terei o dinheiro na sexta-feira prometi.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Na quarta, já tudo voltara mais ou menos à normalidade. Tinha recebido oscartões de crédito, a carta de condução e o dinheiro. Um adiantamento
para olivro tinha sido electronicamente transferido para um banco perto da estalagem.A mulher do porteiro do prédio onde morava em Atlanta fora ao meu apartamento
eenviara-me umas roupas. As bolhas nos pés estavam a sarar e até tinha tido tempo para ir ao cabeleireiro.
O mais importante é que tinha um encontro marcado para quinta-feira comChristopher Cassidy, o aluno de Arbinger que, aos 14 anos, fora barbaramenteespancado
por Rob Westerfield.
Já tinha narrado no meu Website o episódio da Dra. MargaretFisher a quem o pai de Rob dera 500 dólares, depois do filho ter-lhe torcido obraço,
para ela não chamar a polícia.
Enviei-lhe o texto por correio e-mail e ela não só o aprovoucomo também deu a sua opinião profissional que a violenta reacção que Rob tinhatido
com ela podia muito bem ter sido do mesmo género daquela que o levara abater em Andrea até a matar.
Por outro lado, Joan tinha contactado com as amigas íntimas de Andrea no liceu e dissera-me que nenhuma delas a vira com outro medalhão que aquele
que o meu pai lhe tinha oferecido.
Publicava todos os dias uma descrição do medalhão no Website epedia informações, mas, até agora, não obtivera quaisquer resultados. Recebiamuitos
comentários por e-mail. Algumas pessoas
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felicitavam-me pelo o que eu andava a fazer e outras objectavam veementemente. Também recebi correio de gente esquisita. Dois indivíduos
confessaram que eram assassinos, e outro disse que Andrea ainda estava viva e queria que eu a salvasse.Houve ainda cartas a ameaçar-me. Uma
delas, que eu acreditei ser verdadeira, dizia ter muita pena por eu ter escapado com vida doincêndio. Acrescentava: «Tem uma camisa de noite
muito gira. Comprou-a nos armazéns L.L. Bean, não foi?»
Tinha a pessoa que redigira a carta estado a observar-me dobosque ou tratava-se do intruso que entrara no apartamento e que,por
acaso, reparara na camisa de noite? Qualquer das hipótesesmetia medo e tinha de admitir que ambas eram realmente assustadoras.Falei
com a Sra. Stroebel várias vezes por dia e, à medida queu Paulie se recompunha, sentia-se pelo tom da sua voz que estavacada
vez mais aliviada. Mas também mais inquieta.Ellie, se há novo julgamento e o Paulie for chamado como testemunha,receio bem que ele tentará novamente
suicidar-se. Já me disse: «Mamã, nãoconsigo responder no tribunal de modo a que me compreendam. Preocupava-me porque a Andrea andavacom o Rob.
Não a ameacei.»E continuou.Recebi telefonemas de amigas que viram o teu Website.Dizem que toda a gente devia ter uma
amiga como tu. Contei ao } Paulie eele gostaria que o viesses visitar.Prometi que iria vê-los na sexta-feira.
Pedi que me servissem no quarto e passava a maior parte do tempo a trabalhar nolivro. Mas na noite de quarta-feira, decidi ir jantar no restaurante
daestalagem. As mesas eram afastadas umas das outras e as toalhas brancas. Aocontrário da Parkinson, havia um pequenino vaso de flores no centro da mesa
enão uma grande vela festiva. Os clientes também eram mais idosos e não se viamgrupos ruidosos.Mas a comida era igualmente boa e, depois de hesitar
entre um assado de borregoe um espadarte, decidi-me pelo que realmente me apetecia e pedi o borrego.177
Tirei do saco um livro que andava há muito para ler e, durante uma hora,desfrutei a minha combinação preferida uma boa refeição e um bom livro.
Estavatão profundamente concentrada na leitura que tive um sobressalto quando aempregada de mesa veio buscar o meu prato e me dirigiu a palavra.
Disse sim ao café e não à sobremesa.
O senhor da mesa ao lado gostaria de lhe oferecer uma bebida.
Acho que sabia que era Rob Westerfield antes mesmo de virar a cabeça. Estavasentado a menos de dois metros de mim com um copo de vinho na mão. Ergueu-o
numbrinde trocista e sorriu.
Perguntou-me se sabia o seu nome. Disse-lho e ele mandou-lhe este recado.
Entregou-me um cartão-de-visita com o nome completo dele, Robson ParkeWesterfield, gravado a relevo.
Meu Deus, ele trata-se muito bem, pensei, virando o cartão.
Tinha escrito- «A Andrea era gira, mas tu és linda.»
Levantei-me, aproximei-me dele, rasguei o cartão e atirei os pedaços para dentro do copo de vinho.
Talvez me queiras dar o medalhão que lhe tiraste depois de a teres morto sugeri.
As suas pupilas dilataram e a expressão trocista dos seus olhos de cobaltodesapareceu. Por uns instantes julguei que ele ia atirar-se a mim como
fizeracom a Dra. Fisher.
Esse colar deu-te muitas dores de cabeça, não deu? perguntei.
A empregada estava especada entre as mesas de boca aberta. Não tinha obviamentereconhecido Westerfield, o que me fez pensar que ela não devia viver
em Oldhamhá muito tempo.
Virei-me novamente para ele.
Traga, por favor, outro copo de vinho ao Sr. Westerfield e ponha-o na minhaconta.
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Durante a noite, alguém desactivou o alarme do meu carro e forçou a tampa dodepósito de gasolina. Um modo muito eficaz de dar cabo de um carro é
deitarareia no depósito de gasolina.
A polícia de Oldham sob a forma do agente White atendeu a minha queixa acerca do BMW danificado. Embora não me tivesse perguntado onde é que eu arranjara
a areia, mencionou que o fogo na garagem da Sra. Hilmer tinha definitivamente sido posto. Também disse que os restos das toalhas empapadas emgasolina eram idênticas
às que a Sra. Hilmer tinha deixado no armário doapartamento.
É uma grande coincidência, Ms. Cavanaugh disse. Ou será mesmo?
CAPÍTULO TRINTA
Aluguei um carro e fui a Boston encontrar-me com Christopher Cassidy. Estavafuriosa por o meu carro estar destruído e preocupada porque sabia que
tinha deenfrentar outro problema. Tinha pensado que a pessoa que entrara no apartamentoandava provavelmente à procura de material que eu pudesse publicar
no Website, mas, agora, perguntava-me se o motivo principal paraele lá se introduzir não teria sido para roubar coisas que, mais tarde, poderiam ser usadas
para provocar o incêndio que quase me custara a vida.
Sabia, evidentemente, que Rob Westerfield estava por detrás daquilo e que eletinha acólitos, como o que me tinha abordado no parque de estacionamento
pertode Sing Sing, para fazer o trabalho sujo. O meu objectivo era provar que ainvestigação da vida dele indicaria um certo padrão de violência ao longo
dosanos que tinha culminado com a morte da Andrea. E acreditava ainda que a próxima vítima de tal violência seria eu.
Mas isso, assim como os cinco mil dólares a serem pagos pelo prenome da anterior vítima de Westerfield, era mais um risco que eu tinha de correr.
Todos os bons jornalistas têm de ser pontuais. O facto de não ter podido usar omeu próprio carro e ser obrigada a aguardar o relatório da polícia
e a alugaroutra viatura, atrasara-me. E, ainda por cima, fazia mau tempo.
180
As previsões meteorológicas eram céu enevoado e talvez neve ligeira aoentardecer. A neve ligeira começou a 80 quilómetros de Boston, e as estradastornaram-se
escorregadias. Os minutos passavam e eu consultava ansiosamente orelógio, enervada pela lentidão do trânsito. A secretária de Christopher Cassidy prevenira-me
para ser pontual, pois ele tinha um dia muito ocupado e partia ànoite para a Europa.
Faltavam quatro minutos para as duas, a hora marcada, quando cheguei,esbaforida, ao seu escritório. Tive de fazer um esforço para me recompor durante
os breves minutos que aguardei na elegante sala de espera. Sentia-me agitada,desorganizada e, ainda por cima, tinha dores de cabeça.
Às duas em ponto, a secretária de Cassidy levou-me ao gabinete dele. Enquanto aseguia, fazia uma revisão mental de todas as informações que obtivera
sobreCassidy. Sabia que ele tinha sido bolseiro na escola de Arbinger e que fundaraesta firma. Quando me informei acerca dele na Internet, soube que se formara
emYale, onde tinha sido o aluno mais brilhante da sua classe, que se licenciara na Harvard Business School e que fazia generosas doações a muitas obras decaridade.
Tinha 42 anos, era casado, tinha uma filha de 15 anos e era um desportistaentusiasta.
Um homem e pêras.
Assim que entrei no gabinete, ele ergueu-se de detrás da secretária e dirigiu-se a mim de mão estendida.
Prazer em conhecê-la, Ms. Cavanaugh. Posso tratá-lapor Ellie? Tenho a impressão de que a conheço há já algum tempo.Por que é que não nos sentamos
aqui? propôs, indicando uma área junto à janela.
Sentei-me no divã e ele sentou-se à beira de uma poltrona diante de mim.
Deseja café ou chá?
Café, por favor respondi com gratidão.
Uma chávena de café desanuviaria a minha cabeça e ajudar-me-ia a pensar.
181
Pegou no telefone pousado na mesinha a seu lado e, enquanto falavacom a secretária, tive a oportunidade de o examinar melhor; gostei do que vi.
O seu fato azul-escuro bem cortado e camisa branca eram de estiloconservador, mas a gravata vermelha com um pequenino estique de golfe sugeria um certo inconformismo.
Possuía ombros largos, um corpo sólido mas esbelto, umaboa cabeça de cabelos castanhos-claros e profundos olhos cor de avelã.
Emanava energia trepidante e sentia-se que Christopher Gassidy nunca perdia umminuto.
Dirigiu-se imediatamente ao assunto que interessava.
O Craig Parshall telefonou-me e explicou-me a razão porque você queria falarcomigo.
Então sabe que o Rob Westerfield foi solto e será, provavelmente, de novojulgado.
E que está a tentar inculpar outra pessoa pela morte da sua irmã. Sim, estou apar disso. Pôr as culpas em cima dos outros pelo que faz é um velho
truque dele. Já o praticava aos 14 anos.
É exactamente esse género de informação que queria publicar no meu Website.Os Westerfield arranjaram uma presumível testemunha ocular e, sehouver
segundo julgamento, têm uma boa possibilidade de conseguir uma absolvição. O Rob ficará então com o registo criminal limpo e será visto como um mártir que passou
mais de anos na prisão por um crime cometido por outrapessoa. Não posso permitir que aconteça tal coisa.
O que é que quer que eu lhe conte?
Sr. Cassidy comecei.
Os inimigos do Rob Westerfield, tratam-me por Chris.
Chris, segundo o Craig Parshall, o Westerfield espancou-o brutalmente quandovocê e ele andavam no segundo ano da escola de Arbinger.
Éramos ambos bons atletas. Competimos numa corrida e eu ganhei. Dias mais tarde, ia eu da biblioteca para o dormitório com uma data de livros nos braços,
quando ele veio por detrás de mim e deu-me um murro na nuca. Atirou-se a mim antes deeu ter tempo para reagir e partiu-me o nariz e os queixos.
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Ninguém tentou detê-lo?
Ele escolheu bem a altura. Atacou-me quando não havia ninguém por perto e,depois, até disse que quem tinha começado a briga fora eu. Felizmente,
um colega mais velho assistiu a tudo de uma janela. A escola não queria escândalos e osWesterfield há gerações que lhe faziam chorudas doações. O meu pai queriaprocessá-los
, mas a escola prometeu que, se ele reconsiderasse o caso, dariamuma bolsa ao meu irmão. Estou agora quase certo que quem pagou essa bolsa foramos Westerfield.
Serviram-nos o café. Nunca nada me tinha sabido tão bem. Ele retomou o fio àmeada.
Para fazer justiça à escola, o Rob foi obrigado a demitir-se no fim do período.
Posso contar isso no Website? O seu nome daria muitacredibilidade ao que ando a tentar fazer.
Certamente. Lembro-me da morte da sua irmã. Li tudo o que os jornais publicaramsobre o caso porque se tratava do Rob Westerfield. Quem deraque
eu tivesse podido prestar declarações na altura para lhes explicar quegénero de animal feroz ele é. A minha filha tem a mesma idade que a sua irmãtinha quando
morreu. Nem quero pensar no que o seu pai passou... no que toda asua família deve ter passado.
Acenei com a cabeça.
Destruiu toda a minha família.
Não me surpreende nada.
Antes de o ter atacado, dava-se muito com ele na escola?
Eu era filho do cozinheiro de um restaurante barato e ele era um Westerfield. Só perdeu tempo comigo porque me meti no seu caminho.
Cassidy lançou um olhar discreto ao relógio. Chegara a altura de lhe agradecer e partir. Mas ainda tinha mais uma pergunta a fazer.
E como é que se passou o seu primeiro ano em Arbinger? Teve muitos contactos com ele?
Não muitos. Seguíamos actividades diferentes. Ele fazia parte do grupo teatral e actuou em várias peças. Devo confessar que era muito bom actor. Nuncarepresentou
o papel principal,
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mas até chegou a ganhar um prémio. Penso, por isso, que ele gostava daquilo.
Cassidy levantou-se e, relutantemente, eu fiz o mesmo.
Foi muito amável em me ter recebido... agradeci-lhe. Mas ele, então,interrompeu-me.
Acabei de pensar numa coisa. O Westerfield gostava obviamente das luzes daribalta e de armar em vedeta. Na peça de que lhe falei em que ele teve
muitoêxito, o Rob usava uma peruca loura. Lembro-me de que, a partir dessa altura ese calhar para não nos deixar esquecer que excelente actor ele era, costumava
às vezes pô-la, comportando-se então com os maneirismos do papel que representarae chegando até a enviar recados a colegas com o nome da personagem.
A exibição de Rob Westerfield na estalagem a noite anterior, dando a impressãode estar a namoriscar comigo à empregada de mesa, veio-me à cabeça.
Ele continua a actuar disse eu a Cassidy.
Almocei rapidamente e voltei para o carro às três e meia. A neve continuava acair e o trajecto até Boston pareceu-me um piquenique comparado com
a minhaviagem de regresso a Oldham. Pus o telefone portátil à mão para não perder otelefonema do tipo que estivera com Rob Westerfield na prisão.
Tinha insistido que queria o dinheiro na sexta-feira. Tinha o pressentimento que essa informação iria ser valiosa e pedia a todos os santos que ele
não tivessemudado de ideias.
Consegui, finalmente, chegar à estalagem às onze e meia. Tinha acabado de entrar no quarto quando o telefone portátil começou a tocar. Era a chamada
queesperava, mas, desta vez, a voz do tipo parecia agitada.
Acho que caí numa armadilha e sou bem capaz de não sair daqui.
Onde é que está?
Se lhe der o nome, posso confiar em si que me pagará maistarde?
184
Pode, sim.
O Westerfield deve ter adivinhado que eu ia dar bronca. Nasceu podre de rico,enquanto eu cá não tenho nada. Se conseguir safar-me desta alhada e
você mepagar, ficarei com umas massas. Mas, se não o conseguir, talvez você possaacusar o Westerfield, em meu nome, de assassínio.
Comecei a ficar convencida de que ele estava a falar a sério.
Juro-lhe que hei-de apanhar o Westerfield.
O Rob contou-me que tinha espancado um tal Phil até à morte e que nunca sesentira melhor. Ouviu-me bem? O nome é Phil...
A linha foi cortada.
CAPÍTULO TRINTA E UM
Rob Westerfield tinha 19 anos quando matara Andrea. Tinha sido preso oito mesesmais tarde, condenado e mandado para a prisão. Embora tivesse pago
uma cauçãopara ficar em liberdade antes de ser condenado, era difícil de acreditar que,durante esse tempo, ele tivesse corrido o risco de matar outra pessoa.
Isso significava portanto que esse primeiro crime fora cometido entre os 13 e os 19 anos. Tive de me informar sobre esses anos da sua vida para tentar
encontrar uma conexão entre ele e uma pessoa assassinada cujo prenome fosse Phil.
Era inacreditável pensar que aos 13, ou 14, Rob já tivesse morto alguém. Ou nãoera? Tinha apenas 14 anos quando atacara brutalmenteChristopher
Cassidy.
Calculei que, ao longo desses anos, ele tinha passado ano e meio em Arbinger,seis meses na escola particular em Bath, na Inglaterra, dois anos na
AcademiaCarrington, no estado de Maine, e mais ou menos um semestre em Willow, umcolégio impossível de descrever perto de Buffalo.
Os Westerfield possuem uma casa em Vail e outra em Palm Beach, o que tornavabastante provável que Rob conhecesse esses lugares E também devia ter
feitoviagens escolares ao estrangeiro.
Era um vasto território a cobrir e sabia que iria precisar de ajuda.
Marcus Longo fora polícia do gabinete do magistrado-federal do condado deWestchester durante 25 anos. Se havia
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alguém que podia obter informações sobre o homicídio de um homem apenas com umprenome como pista, a minha aposta era ele.
Encontrei-o felizmente quando lhe telefonei. Como tinha desconfiado, ele fora de avião buscar a mulher ao Colorado.
Ficámos mais uns dias à procura de casa explicou-me. Acho que encontrámos uma.
O tom da voz dele mudou bruscamente.
Ia contar-lhe tudo sobre o bebé, mas isso pode esperar. Pelos vistos, aconteceram uma data de coisas durante a minha ausência.
Pode crer, Marcus. Posso convidá-lo para almoçar? Preciso que me dê unsconselhos.
Os meus conselhos são gratuitos. Quem paga o almoço sou eu.
Encontrámo-nos no restaurante The Depot, em Cold Springs. Contei-lhe o que sepassara durante a minha agitada semana enquanto comíamos umas sanduíches
ebebíamos café.
Interrompeu-me várias vezes para fazer perguntas.
Acha que o fogo foi posto para a assustar ou realmente para dar cabo de si?perguntou.
Fiquei mais do que assustada. Pensei que não saía dali com vida.
E está a dizer-me que a polícia de Oldham pensa que foi você quem provocou oincêndio?
O agente White já fez tudo, menos algemar-me.
Um primo dele costumava também trabalhar no gabinete do magistrado-federal nomeu tempo. É agora juiz e pertence ao mesmo clube que o pai do Rob.
Para serjusto, ele sempre pensou que o Paulie Stroebel fosse o culpado. Aposto que foiele quem mandou o White chateá-la. O seu Website irrita todosos
que se dão bem com os Westerfield.
Quer dizer, então, que é um sucesso.
Olhei à minha volta para me certificar de que ninguém nos estava a ouvir.
Marcus...
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Ellie, já se deu conta que passa o tempo a olhar à sua volta? Quem, ou oquê, a anda a pôr nesse estado?
Contei-lhe que Rob Westerfield tinha aparecido na estalagem onde eu vivia.
Só lá entrou quando eu tinha quase acabado de jantar expliquei-lhe. Tenho acerteza de que alguém lhe telefonou a dizer que eu estava lá.
Sabia que, a seguir, Marcus iria dizer-me para ter cautela ou pedir para quedeixasse de publicar material provocador no Website.
Recebi um telefonema de alguém que esteve na prisão juntamente com o Rob.
Falei-lhe da combinação que fizera para comprar a informação e do telefonema que recebera na noite anterior. Escutou em silêncio, observando o meu
rosto.
Acredita nesse tipo, não acredita? perguntou-me depois.
Sabia que ele poderia vigarizar-me, Marcus, mas isto é diferente. Este tipoestava com medo. Queria que eu soubesse desse Phil para se vingar doWesterfield.
E referiu-se ao cartaz com que você andou à porta de Sing Sing?
Sim.
Como está a assumir que se trata de um preso, deve ter sido solto nesse mesmodia. Só lá foi uma vez, não foi?
Foi.
Esse tipo também pode ser um funcionário da penitenciária, Ellie. Podia ir aentrar ou a sair quando você lá se encontrava. O dinheiro tanto compra
guardascomo outros reclusos.
Não tinha pensado nisso.
Tinha esperanças que você me pudesse arranjar a lista dos presos que foramsoltos no dia a seguir à saída de Rob Westerfield. E, depois, poderia
ver setinha acontecido qualquer coisa a algum deles.
Posso fazer isso, mas também pode tratar-se apenas da brincadeira de um maluco.
Eu sei, mas acho que não.
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Abri a minha agenda.
Fiz uma lista das escolas que o Rob Westerfield frequentou, tanto aqui como emInglaterra, e dos sítios onde a família tem casas. Há ficheiros que
dãoinformações sobre crimes não solucionados que tiveram lugar entre há 27 e 22anos?
Claro.
O condado de Westchester tem um desses ficheiros?
Tem.
Tem acesso a ele ou conhece alguém que faça isso por si?
Claro.
Então não deve ser muito difícil saber se um homem chamado Phil foi assassinadonessa altura, pois não?
Não, não deve ser.
Que tal verificar se houve algum crime não solucionado nas áreas à volta dasescolas e casas onde o Rob esteve?
Examinou a lista.
Massachusetts, Maine, Florida, Colorado, Nova Iorque, Inglaterra.
Soltou um assobio.
É uma área muito vasta, mas vou ver o que posso fazer.
Mais uma coisa. Sabendo o modo como o Rob Westerfield opera, há algum ficheirode crimes solucionados que dê, por exemplo, o nome de Phil como vítima
e alguémque tenha sido condenado, mas que insista não ter cometido tal crime?
Ellie, 90 por cento das pessoas condenadas e que se encontram agora atrás dasgrades dizem que estão inocentes. Vamos começar pelos homicídios nãosolucionados
primeiro e ver onde vamos parar.
Amanhã, vou contar a história do Christopher Cassidy sobre o Rob Westerfield noWebsite. Ninguém pode questionar a integridade do Cassidy e,por
isso, o seu relato vai ter um certo peso. Ainda não fui à AcademiaCarrington, mas vou marcar um encontro para segunda ou terça-feira.
Verifique a lista dos alunos que frequentaram a escola nos anos em que o Westerfield lá esteve disse Marcus, fazendo sinal à empregada de mesa para
lhetrazer a conta.
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Também pensei nisso. Uma das escolas pode ter tido um aluno chamado Phil queteve uma rixa com o Rob.
Isso abre imensas perspectivas preveniu-me Marcus. Os alunos das escolas preparatórias vêm de todos os estados do país e o Westerfield pode ter seguidoum
deles até casa para ajustar contas.
Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
Quais seriam as pessoas que tinham gostado de Phil?, perguntei-me. Ainda o chorariam? Claro que sim
A empregada de mesa colocou a conta diante de Marcus. Esperei até ela seafastar.
Posso telefonar à pessoa que conheço em Arbinger. Ajudou-me imenso. E, quandofor a Carrington e ao colégio de Willow, vou informar-me sobre os alunos
que láestiveram no tempo do Westerfield. Phil não é um nome próprio muito comum...
Não me contou que, na outra noite, alguém tinha informado o Rob Westerfield quevocê se encontrava a jantar na estalagem?
Contei.
E também não me disse que o seu informador estava com medo de ser morto?
Disse.
O Rob Westerfield receia que o seu Website influencie a avó eque ela deixe o dinheiro a obras de caridade. Ele deve andar agora aterrorizadoque
você descubra outro crime que o possa mandar de volta à prisão. Não percebecomo a sua situação é perigosa, Ellie?
Para ser franca, percebo. Mas não há nada que eu possa fazer.
Bolas, Ellie! Claro que pode. O seu pai era da guarda nacional. Está agorareformado e você poderia instalar-se em casa dele. Seria o seuguarda-costas.
Acredite que vai precisar de um. Outra coisa: se a história desse tipo é verdadeira, ajudar o Westerfield a regressar à prisão, ajudariaigualmente o seu pai.
Acho que você compreende como isto tem sido duro para ele.
Ele tem falado consigo?
Tem, sim.
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Sei que julga que é para meu bem disse-lhe, levantando-me. Mas penso que nãopercebe uma coisa. O meu pai deixou-nos partir e nem sequer levantou
um dedopara que regressássemos. A minha mãe fartou-se de esperar, precisava dele, mas o meu pai nada fez. Da próxima vez que falar com ele, diga-lhe para continuar
air assistir aos jogos de basquetebol do filho e para me deixar em paz.
Marcus deu-me um abraço quando nos separámos no parque de estacionamento.
Telefono-lhe assim que tiver respostas prometeu. Voltei de carro para aestalagem. A Sra. Willis encontrava-se ao balcão da recepção.
O seu irmão está à sua espera disse-me.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Ele estava de pé a contemplar a vista diante da janela, de costas viradas paramim. Tinha bem quase dois metros. Era mais alto do que eu imaginara
quando otinha visto na televisão. Estava vestido com calças cor de caqui, blusão esapatos de ténis. Tinha as mãos metidas nos bolsos e batia com o pé direito
nochão. Deu-me a impressão de estar nervoso.
Ouviu os meus passos e virou-se. Olhámos um para o outro.
Nunca poderás dizer que não é a tua filha costumava dizer abrincar a minha avó à minha mãe a propósito de Andrea. Vai ser igualzinha ati.
Se a avó estivesse agora aqui, ter-nos-ia dito exactamente a mesma coisa.Pelo menos quanto à aparência física, nós dois nunca poderíamos dizer
que nãoéramos irmãos.
Olá, Ellie. Sou o teu irmão, Teddy. Aproximou-se, estendendo-me a mão.Ignorei-a.
Não podemos falar apenas durante cinco minutos?
A sua voz ainda não era completamente adulta, mas era bem timbrada. Pareciainquieto, mas determinado. Abanei a cabeça e virei-me para me ir embora.
És minha irmã prosseguiu. Podias conceder-me, pelo menos, cinco minutos. Se meconheceres, poderás até vir a gostar de mim.
192
Encarei-o.
Teddy, pareces um rapaz simpático, mas tenho a certeza de que tens coisasmelhores para fazer do que estar aqui a falar comigo. Sei que foi o teu
pai quete mandou vir ver-me. Ele não parece entender que nunca mais quero voltar avê-lo nem ouvir falar dele.
Também é teu pai e, quer acredites ou não, nunca deixou de o ser. Outra coisa,não foi ele quem me mandou. Vim porque queria conhecer-te. Sempre
tive vontadede te conhecer.
Havia um apelo na sua voz.
Por que é que não vamos tomar qualquer coisa? Abanei novamente a cabeça.
Por favor, Ellie.
Talvez tenha sido a maneira como ele pronunciou o meu nome ou, se calhar, sou eu que não consigo ser cem por cento grosseira. Este miúdo não me tinha
feito malnenhum.
Há uma máquina de refrigerantes no corredor ouvi-me eu dizer, metendo a mão nabolsa à procura de moedas.
Eu tenho moedas. O que é que queres beber?
Água.
Eu também. Volto já.
O sorriso dele era tímido e, ao mesmo tempo, de alívio.
Sentei-me num sofá de vime garridamente estofado a magicar uma maneira de medesembaraçar dele. Não queria ter de o ouvir a explicar que tínhamos
um paiformidável e que eu devia esquecer-me do passado.
Talvez ele fosse um pai formidável para dois dos seus filhos,Andrea e Teddy, mas, a mim, não me ligava nenhuma.
Voltou com duas garrafas de água. Quando o vi a olhar para o sofá e, depois,para uma cadeira, percebi logo o que lhe estava a passar pela cabeça.
Mas fez aescolha acertada e acabou por se sentar na cadeira. Não o queria ao meu lado.
Carne da minha carne, sangue do meu sangue, pensei. Nempensar. Isso tinha a ver com Adão e Eva, não com irmãos.
Meios-irmãos.
Queres vir ver-me jogar basquetebol um destes dias, Ellie? Não estava à esperadaquela.
193
Quer dizer, não podemos, pelo menos, ser amigos? Sempre esperei que nos viessesvisitar, mas se isso não te agrada, talvez tu e eu nos possamos encontrar
de vez em quando. O ano passado, li o teu livro sobre os casos que investigaste.Gostaria de falar contigo sobre isso.
Teddy, ando terrivelmente ocupada nesta altura e... Interrompeu-me.
Vou ver o teu Website todos os dias. O modo como falas doWesterfield deve estar a dar com ele em doido. És minha irmã, Ellie, e não quero que te
aconteça nada de mal.
«Por favor, não me chames de tua irmã», queria eu dizer-lhe, mas as palavrasmorreram-me nos lábios.
Por favor, não te preocupes comigo contentei-me em dizer. Sei tomar conta de mim mesma.
Não te posso ajudar? Li esta manhã no jornal o que aconteceu ao teu carro. Supõe que, a seguir, alguém desaparafusa uma roda ou prende o travão? Sei
muito decarros. Podia verificar o teu antes de saíres com ele. Podia até levar-te ondequisesses no meu.
Estava a falar de modo tão sério e aflito que não pude impedir-me de sorrir.
Tens de estudar e de ir aos treinos de basquetebol, Teddy. Vais-me desculpar,mas, agora, tenho de ir realmente trabalhar.
Levantou-se ao mesmo tempo que eu.
Somos muito parecidos comentou.
Eu sei.
Ainda bem. Agora vou-me embora, Ellie, mas hei-de voltar. Quem me dera que oteu pai tivesse sido tão persistente como
tu, pensei.
Mas compreendi que, nesse caso, este rapaz nunca teria nascido.
Trabalhei durante umas duas horas, aperfeiçoando o modo como apresentaria ahistória de Christopher Cassidy no Website, e, depois, enviei-o para o
escritório dele por e-mail a fim de ser aprovado.
Às quatro da tarde, Marcus Longo telefonou.
194
Ellíe, os Westerfield tiraram uma página do teu livro. Têm um website:comjus-rob.com.
Deixe-me adivinhar o que quer dizer... Comité Justiça para Rob.
É isso mesmo. Vem anunciado em todos os jornais de Westchester. A estratégiabásica deles é apresentar histórias comovedoras de pessoas injustamentecondenadas
por crimes.
Para associá-las com a do Rob Westerfield, o indivíduo mais inocente de todos.
Certo. Mas também andam a fazer investigações sobre si e descobriram um episódio bastante desagradável.
O quê?
O Centro Fromme, uma clínica psiquiátrica.
Escrevi um artigo sobre eles. Eram uns vigaristas. O estado da Georgiapagava-lhes uma fortuna e a clínica nem sequer possuía psiquiatras ou psicólogos
de jeito.
Esteve lá internada?
Perdeu a cabeça ou quê, Marcus? Claro que não.
Tiraram alguma fotografia no Centro Fromme consigo deitada numa cama com aspernas e os braços amarrados?
Tiraram, pois. Para ilustrar o que lá se passava. Depois de o Governo terfechado a Fromme e transferir os pacientes para outras instalações, escrevemosum
artigo a descrever como eles mantinham os doentes amarrados durante, porvezes, dias seguidos. Por que é que está a fazer-me essas perguntas?
Os Westerfield publicaram isso no website deles.
Sem dar explicações?
Insinuando que você tinha lá estado. Fez uma pausa.
Surpreende-a que esta gente faça um jogo sujo, Ellie?
Ficaria surpreendida se eles não o fizessem. Vou publicar todo o artigo, com asfotografias e o texto, no meu website. Com uma nova manchete:«A
Última Mentira dos Westerfield». Mas é claro que há muitas pessoas que vêem o website deles e não vêem o meu.
E vice-versa. É isso que me preocupa. Está a pensar publicar no websitealguma coisa sobre o outro eventual homicídio?
195
Ainda não sei. Por um lado, quem o vir pode estar disposto a fornecerinformações, mas, por outro, também pode dar uma dica ao Rob Westerfield eajudá-lo
a despistar-nos.
Ou a livrar-se de alguém que possa testemunhar contra ele. Tem de ter muitocuidado, Ellie.
Isso pode muito bem já ter acontecido.
Exactamente. Ponha-me ao corrente da sua decisão.
Liguei a Internet e encontrei o novo website: Comité Justiçapara Rob Westerfield.
Tinha sido lindamente concebido e era acompanhado por uma citação de Voltaire:«Mais vale correr o risco de salvar uma pessoa culpada do que condenar
uminocente.»
A imagem de uma sepultura e um Rob Westerfield com ar contemplativoencontrava-se sob essa citação. Havia várias histórias, bem escritas ecomovedoras,
de gente presa por crimes que não cometera. Não era preciso sermuito esperto para perceber que o autor fora Jake Bern.
A família Westerfield era apresentada como sendo realeza americana: fotografiasde Rob em bebé com o avô, o senador dos EUA, e aos nove ou dez anos
com a avó, a ajudá-la a cortar a fita que inaugurava um novo centro infantil doado pelosWesterfield. Também havia fotografias de Rob com os pais a bordo do paqueteQueen
Elizabeth II, e vestidos com equipamento de ténis noThe Everglades Club.
Julgo que a tentativa era transmitir a ideia que tirar a vida a alguémestava abaixo da dignidade deste jovem privilegiado.
Eu era a vedeta da página seguinte. Mostrava-me estendida numa cama da clínicaFromme com as pernas e os braços amarrados. Estava vestida com uma
dessastúnicas distribuídas aos pacientes e parcialmente coberta por um miserávelcobertor.
A legenda era: «A testemunha cujo depoimento condenou Rob Westerfield.»
Fiquei furiosa. Tenho um tique que herdei do meu pai. Quando ele estavarealmente irritado com qualquer coisa, tinha a mania de morder o canto direitodo
lábio.
196
Dei por mim a fazer exactamente o mesmo.
Fiquei sentada uma meia hora a tentar acalmar-me enquanto passava em revista osprós e os contras, e a pensar no modo como anunciaria a alegada confissão
deoutro crime por parte de Rob Westerfield.
Marcus Longo tinha mencionado o problema de seguir a pista de um homicídio nãosolucionado numa área tão vasta.
Ora o website era internacional.
Estaria a expor alguém se publicasse o prenome da suposta vítima?
O indivíduo anónimo que me tinha telefonado correra um risco, e estava cientedisso.
Acabei por redigir apenas uma pequena notícia.
«Segundo consta, entre há 27 e 22 anos, Rob Westerfield cometeu outro crime.Conta-se que, intoxicado por drogas, disse um dia na prisão: «Matei
Phil àpancada e senti-me lindamente.»
«Quem tiver informações quanto a este homicídio, por favor envie-as pore-mail a ellie 1234 at mediaone, net. Confidencialidade erecompensa.»
Rob Westerfield leria certamente esta notícia, pensei. E seele souber que há alguém, além da pessoa desconhecida que me telefonou, que teminformação
que o poderá prejudicar?
Há duas coisas que um jornalista que se dedica à investigação não devefazer: revelar as suas fontes de informação e colocar pessoas inocentes emperigo.
Re tive a publicação da notícia.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
Não resisti e, sexta-feira à noite, telefonei a Pete Lawlor.
O seu telefonema vai ser dirigido a um serviço de atendimento de chamadas...
Fala a tua antiga colega que se interessa suficientemente pelo teu bem-estarpara querer saber do teu estado de espírito, da tua saúde e oportunidades
quanto a emprego disse eu. Uma resposta seria bastante apreciada.
Telefonou-me uma hora mais tarde.
Deves ter muita vontade de falar com alguém.
Pois tenho. Foi por isso que me lembrei de ti.
Obrigado.
Posso perguntar-te onde estás neste momento?
Em Atlanta. A fazer as malas.
Calculo que tomaste uma decisão.
Tomei, sim. Um trabalho de sonho. Baseado em Nova Iorque, mas com apossibilidade de viajar por todo o mundo um número razoável de vezes para fazerreportagens
onde quer que haja sarilhos.
Que jornal é que é?
Negativo. Vou ser uma vedeta da televisão.
Tiveste de perder cinco quilos antes de ser contratado?
Já não me lembrava que eras muito cruel.
Ri-me. Falar com Pete dava uma ponta de realidade quotidiana divertida à minhavida cada vez mais surrealista.
,
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Estás a brincar ou arranjaste realmente um emprego na televisão?
É verdade. Vou trabalhar para a Packard Cable.
Packard? Boa!
É uma das novas redes por cabo que está rapidamente a desenvolver-se. Estavaquase a aceitar o emprego em Los Angeles, muito embora não fosse exactamente
oque queria, mas, então, a Packard convidou-me.
Quando é que começas?
Quarta-feira. Estou neste momento a meter coisas no carro e, depois, vou tentarsubalugar o apartamento. Parto domingo à tarde. Queres jantar comigoterça-feira?
Claro. É bom ouvir essa tua voz melodiosa...
Não desligues ainda, Ellie. Tenho visto o teu website.
Está porreiro, não achas?
Se esse tipo é o que tu dizes, andas a brincar com o fogo. Pois ando,pensei.
Promete que não me vais dizer para ter cuidado.
Prometo. Falo contigo na segunda-feira.
Voltei a sentar-me diante do computador. Eram quase oito horas e eu tinha estado a trabalhar sem parar. Liguei para o serviço de quarto e, enquanto
esperava,desenhei uns bonecos e fartei-me de pensar.
Falar com Pete tinha-me, pelo menos por agora, tirado as vendas dos olhos.Nestas duas últimas semanas, tinha vivido num mundo onde Rob Westerfield
era afigura principal. Mas, agora, olhava para além desse tempo, para além do seusegundo julgamento e a minha capacidade de provar perante o mundo a profundidade
do seu temperamento violento.
Podia procurar e tornar público todas as coisas horríveis que ele tinha feito.Talvez pudesse até seguir a pista de um crime por esclarecer que ele
cometera.Podia contar a sua história lamentável e suja no livro. E,depois, seria a altura de recomeçar a viver o resto da minha vida.
199
Pete já estava a recomeçar a dele baseado em Nova Iorque com um novo emprego num meio de comunicação diferente.
Entrelacei as mãos atrás da cabeça e comecei a balançar-me de um lado para ooutro. Os músculos do pescoço estavam tensos, e distendê-los fazia-me
sentirbem. O que já não era tão bom era dar-me consternadamente conta de que tinhamuitas saudades de Pete e que não queria regressar a Atlanta se ele já
lá não estivesse.
No sábado de manhã falei com a Sra. Stroebel. Disse-me que Paulie já não seencontrava nos cuidados intensivos e que lhe dariam provavelmente alta
depois do fim-de-semana.
Prometi ir visitá-lo mais tarde, por volta das três horas. Quando cheguei, aSra. Stroebel estava sentada à cabeceira de Paulie. Assim que ela me
olhou,percebi pela expressão do seu rosto que havia um problema qualquer.
A febre subiu à hora do almoço. Tem um dos braços infectados. O médico disse-meque está tudo bem, mas estou preocupada. Aflijo-me tanto, Ellie.
Olhei para Paulie. Tinha ainda ligaduras à volta dos braços e estava ligado avários aparelhos de soro intravenoso. Estava muito pálido e remexia
a cabeça deum lado para o outro.
Estão a administrar-lhe um antibiótico, mais um medicamento para o acalmar disse a Sra. Stroebel. A febre torna-o inquieto.
Puxei de uma cadeira e sentei-me ao lado dela. Paulie começou a murmurar. Abriuos olhos.
Estou aqui, Paulie disse-lhe ternamente a Sra. Stroebel. A Ellie Cavanaugh estáaqui comigo. Veio fazer-te uma visita.
Olá, Paulie disse, levantando-me e debruçando-me sobre a cama para ele me ver.
Tinha os olhos vidrados de febre, mas tentou sorrir.
A minha amiga Ellie!
Podes crer.
Fechou novamente os olhos, mas, uns instantes mais tarde, recomeçou a dizerpalavras incoerentes. Ouviu-o murmurar o nome de Andrea.
0
A Sra. Stroebel retorcia as mãos.
É tudo o que diz. Tem tanto medo que o obriguem a ir outra vez ao tribunal.Ficou tão assustado da última vez...
O tom da voz dela elevou-se e percebi que Paulie estava cada vez mais agitado.Apertei a mão dela e fiz sinal com a cabeça em direcção à cama. Percebeu
o queeu queria dizer.
Graças a ti, Ellie, tudo correrá bem disse-me em voz baixa. O Paulie sabe isso.As pessoas que vêm à loja contaram-me que viram o website ondetu
mostras que o Rob Westerfield é realmente má rês. O Paulie e eu vimo-lo asemana passada e ficámos muito satisfeitos.
Paulie parecia um pouco mais calmo.
Mas, mamã... supõe que me esqueço e... murmurou. A Sra. Stroebel ficou, derepente, muito perturbada.
Não fales mais, Paulie disse com brusquidão. Dorme. Tens de melhorar.
Mamã...
Agora, cala-te, Paulie interrompeu-o ela, tapando-lhe meiga mas resolutamente aboca com a mão.
Tive a nítida impressão de que a Sra. Stroebel se sentia pouco à vontade equeria que eu me fosse embora. Levantei-me.
Mamã...
A Sra. Stroebel ergueu-se de um pulo, interpondo-se entre mim e a cama como sereceasse que eu me chegasse demasiado perto de Paulie.
Não percebia o que estava a perturbá-la.
Diga adeus ao Paulie por mim, Sra. Stroebel disse apressadamente. Telefonoamanhã para saber como é que ele está.
Paulie tentava novamente falar, remexendo a cabeça e soltando murmúriosincoerentes.
Obrigada, Ellie. Adeus.
E a Sra. Stroebel pôs-se literalmente a empurrar-me em direcção à porta.
Andrea... gritou Paulie. Não saias com ele! Virei-me.
1
A voz de Paulie ainda era clara, mas o tom era assustado e suplicante.
Mamã, supõe que me esqueço e lhes falo do medalhão que ela usava? Vou tentar não falar disso, mas, se me esquecer, não vais deixar que me metam na
prisão, poisnão?
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Há uma explicação. Tens de me acreditar. Não é o que estás a pensar soluçou aSra. Stroebel.
Estávamos no corredor diante da porta do quarto de Paulie.
Temos de falar e a senhora tem de ser muito franca comigo disse eu.
Mas não pudémos fazê-lo na altura porque o médico de Paulie se aproximava denós.
Telefono-lhe amanhã de manhã prometeu ela. Agora, estou demasiado aflita.
E afastou-se abanando a cabeça e tentando recompor-se.
Guiei com o piloto automático ligado até à estalagem. Seria possível,remotamente possível, que me tivesse enganado durante todo este tempo? Tinha
Rob Westerfield e toda a sua família sido vítima de um terrívelerro da justiça?
Torceu-me o braço... Veio por detrás de mim e deu-me um murro na nuca...Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
A reacção de Paulie ao ataque verbal da governanta da Sra. Westerfield tinha sido tentar suicidar-se e não fazer mal a alguém.
Não podia acreditar que Paulie fosse o assassino de Andrea, mas tinha a certezade que a Sra. Stroebel o tinha impedido de contar algo que ele sabia.
O medalhão.
3
Quando entrei no parque de estacionamento da estalagem, sentia-me esmagadapela ironia do que estava a acontecer. Ninguém, absolutamente ninguém,acreditava
que Rob Westerfield tinha oferecido um medalhão a Andrea e que ela ousava na noite em que fora assassinada.
Mas, agora, a existência do medalhão tinha sido provada pela única pessoa quereceava admitir publicamente tê-lo visto.
Olhei à minha volta ao sair do carro. Eram quatro e um quarto e o dia já estavasombrio. O que restava do Sol estava encoberto pelas nuvens, e um
vento ligeiroarrancava as folhas das árvores. Restolhavam no chão e, no estado de nervos emque me encontrava, soavam como passos.
O parque de estacionamento estava quase cheio e lembrei-me, então, que tinhareparado nos preparativos para uma festa de casamento quando, esta tarde,
foraao hospital. Tinha sido forçada a estacionar na área mais distante da estalagem. A sensação de que alguém andava a espiar-me estava a tornar-se num estado
deespírito crónico.
Não corri, mas atravessei a passo apressado uma fila de carros em direcção àsegurança da estalagem. Ao passar por uma velha carrinha, a porta abriu-se
derepente e um homem saltou lá de dentro tentando agarrar-me.
Desatei a correr, mas, depois, tropecei no sapato demasiado grande que tinhacomprado para acomodar os meus pés cobertos de ligaduras.
Quando o sapato saltou do meu pé, caí para a frente e tentei freneticamenterecuperar o equilíbrio, mas era tarde de mais. As palmas das mãos e
o corpoembateram no solo e fiquei sem fôlego.
O homem ajoelhou-se imediatamente ao meu lado.
Não grite disse, alarmado. Não vou fazer-lhe mal. Por favor, não grite.
Mesmo que quisesse, não poderia ter gritado. Nem poderia ter escapado dele efugido para a estalagem. Todo o corpo tremia e a boca abria-se para
sorver o araos tragos.
O que é... que quer... de mim? consegui, finalmente, articular.
4
Falar consigo. Ia enviar-lhe um e-mail, mas receei que a pessoa errada o recebesse. Quero dar-lhe uma informação sobre o Rob Westerfield.
Fitei-o. O rosto dele estava muito perto do meu. Era um homem de quarenta epoucos anos com cabelos um pouco sujos. Tinha uma maneira nervosa de
olhar àvolta dele de soslaio como quem se prepara para fugir a qualquer momento. Estava vestido com um blusão aos quadrados e jeans.
Quando me levantei, ele foi buscar o meu sapato.
Não vou fazer-lhe mal repetiu. Mas não posso correr o risco de ser vistoconsigo. Ouça cá, se não está interessada no que tenho para lhe dizer,
piro-mejá daqui.
Não era lá muito racional, mas, por qualquer motivo, acreditei nele. Se eletivesse querido matar-me, já o teria feito há muito tempo.
Está disposta a ouvir-me? perguntou impacientemente.
Conte lá.
Não se importa de se sentar na minha carrinha durante uns minutos? Não quero que me vejam. Há Westerfields por toda a parte nesta cidade.
Estava de acordo com ele, mas não estava disposta a entrar na carrinha.
Diga-me o que tem para me dizer cá fora.
Tenho uma informação que pode implicar o Westerfield num crime que ele cometeuhá anos.
Quanto é que quer?
Mil dólares.
E o que é que tem para me dar em troca?
Como deve saber, pois escreveu sobre isso no seu website, a avó do Rob levou um tiro e quase morreu há 25 anos...
Continue.
O meu irmão, o Skip, foi preso por causa disso. Apanhou
anos de cadeia, mas morreu depois de ter cumprido metade da sentença. Nãoaguentou. Andava sempre meio adoentado.
Foi o seu irmão que assaltou a casa e disparou contra a Sra. Westerfield?
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Foi, sim, mas o Westerfield é que planeou o roubo e nos contratou, a mim e aoSkip, para fazer o trabalhinho.
Porquê?
Devia muito dinheiro. Andava metido em drogas. Foi por isso que abandonou auniversidade... Mas tinha visto o testamento da avó. A velha deixava-lhedirectamente
cem mil dólares. Assim que ela esticasse o pernil, ele embolsaria o cacau. Prometeu-nos dez mil dólares para dar cabo dela.
E acompanhou-os nessa noite?
Está a reinar ou quê? Tinha ido jantar com os pais a Nova Iorque. Sabia comoarranjar álibis.
Pagou ao seu irmão ou a si?
Deu o Rolex dele ao meu irmão como garantia antes do trabalhoser feito. Mas, depois, disse que lho tinham roubado.
Porquê?
Porque, depois de o meu irmão ser preso, encontraram o relógio no bolso dele. OWesterfield declarou à polícia que nos tinha conhecido a jogar bowling
nanoite antes da senhora ter sido ferida. Disse que, como o Skip não tirava os olhos do relógio, o metera no saco quando tinha começado a jogar eque, depois
do jogo, o fora buscar ao saco, mas que já lá não estava. E que nóstambém nos tínhamos pisgado. Jurou que tinha sido a única vez que nos tinhavisto.
Como é que podiam ter sabido da avó sem ele ter falado dela?
Tinham escrito um grande artigo sobre ela no jornal. Fizera uma doação qualquera um hospital.
Como é que você e o seu irmão foram apanhados?
Eu cá não fui, mas o meu irmão foi preso no dia seguinte. Tinha cadastro eestava muito nervoso por ter de dar um tiro na velhota. O Westerfield
queria que aquilo tudo parecesse um roubo. Não nos deu o segredo do cofre porque só afamília dele o conhecia e isso denunciá-lo-ia. Mandou o Skip trazer ferramentaspara
forçar o cofre, como se tivesse tentado abri-lo sem o conseguir. Mas o Skip cortou a mão e tirou as luvas para a limpar. Deve ter tocado no cofre pois,mais
tarde, encontraram as impressões digitais dele.
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E, a seguir, ele foi ao andar de cima e disparou contra a Sra. Westerfield.
Pois. Mas a polícia não conseguiu saber que eu tinha lá estado. Fiquei de vigiae conduzi o carro. O Skip disse para eu me calar e pagou as favas
sozinhoenquanto o Westerfield se safou.
E você também. Encolheu os ombros.
Pois, eu sei.
Que idade tinha nessa altura?
Dezasseis.
E que idade tinha o Rob?
Dezassete.
O seu irmão não tentou implicar o Westerfield?
Claro, mas ninguém acreditou nele.
Não estou assim tão certa disso. A avó dele alterou o testamento e anulou os cem mil dólares que passariam directamente para o neto.
Boa! O Skip foi condenado a anos. Podia ter apanhado
30, mas, como confessou, o promotor da justiça concordou com a sentença a fim de a Sra. Westerfield não ter de ir testemunhar ao tribunal.
O Sol tinha desaparecido completamente por detrás das nuvens. Ainda me sentiaperturbada por causa da queda e, agora, também estava com frio.
Como é que se chama? perguntei-lhe.
Alfie. Alfie Leeds.
Acredito na sua história, Alfie, mas não percebo porque é que me está a contarisso agora. Nunca se conseguiu provar que o Rob Westerfield esteve
envolvido nocaso.
Eu cá tenho provas.
Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel dobrada.
Isto é uma cópia do diagrama que o Rob nos deu para que o meu irmão pudesseentrar dentro da casa sem desencadear o alarme.
Tirou uma pequena lanterna do outro bolso.
O parque de estacionamento, varrido pelo vento, não era o local indicado paraexaminar um diagrama. Lancei de novo um
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olhar ao tipo. Era uns centímetros mais baixo do que eu e não parecia serparticularmente forte. Decidi correr o risco.
Concordo em entrarmos para a sua carrinha na condição de eu me sentar no bancodo condutor.
Como quiser.
Abri a porta e examinei o interior da carrinha. Não havia ninguém lá dentro. Obanco de trás tinha sido baixado e tudo o que vi foram latas de tinta,
unstrapos e uma escada. Alfie deu a volta para se sentar a meu lado. Sentei-mediante do volante sem fechar totalmente a porta. Se fosse uma armadilha, poderia
sair rapidamente.
No meu trabalho de jornalista, tive de encontrar uma data de personagens desagradáveis em lugares onde, normalmente, não iria, e, assim, julgo quedesenvolvi
o meu instinto de sobrevivência. Tendo em conta o facto de estar alifechada com o cúmplice de um crime, sentia-me tão segura quanto possível.
Uma vez sentados na carrinha, ele passou-me a folha de papel para as mãos. Ofeixe de luz da lanterna era suficiente para eu reconhecer a casa dosWesterfield.
Até mesmo a garagem-esconderijo tinha sido desenhada. A planta dointerior da mansão era bastante precisa.
Está a ver... Mostra onde se encontrava o sistema de alarme e indica o códigopara o desactivar. O Rob achava que isso não o denunciaria, pois muita
gente que trabalhava lá em casa também o conhecia. Aqui está o diagrama do rés-do-chão, a biblioteca com o cofre, as escadas que conduziam ao quarto da Sra. Westerfielde
o alojamento da criada ao lado da cozinha.
Havia um nome escrito no fundo da folha.
Quem é o Jim? perguntei.
É o gajo que desenhou esta planta. O Rob contou-nos que ele costumava trabalharlá, mas nunca o conhecemos.
O seu irmão não mostrou isto à polícia?
Ele queria, mas o advogado que lhe deram aconselhou-o a não o fazer. Disse que o Skip não tinha nenhuma prova que fora Rob quem lho dera e o simples
facto deele ter a planta em seu poder só o prejudicaria. Como o cofre era no andar debaixo e as
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escadas para o quarto da Sra. Westerfield estavam tão nitidamente desenhados,isso provava que o Skip fazia tenção de a matar.
O Jim poderia ter confirmado a história do seu irmão. Ninguém procurou saberquem era esse tipo?
Julgo que não. Guardei a planta da casa ao longo de todos estes anos e, quandovi o seu website, pensei que era mais uma coisa que vocêpoderia
investigar para comprometer o Westerfield. Estamos conversados ou quê?Vai ou não dar-me mil dólares por isto?
Como é que posso saber se não foi você mesmo quem desenhou esta planta para mesacar dinheiro?
Então está bem. Passe-me para cá isso.
Alfie, se o advogado tivesse procurado esse Jim e falado ao promotor de justiçasobre ele, a polícia teria levado a investigação mais a sério. O
seu irmãoapanharia uma sentença mais leve e o Westerfield também seria inculpado.
Havia outro problema. O Westerfield tinha-nos contratado, a mim e ao meu irmão,para assaltar a casa, e o advogado disse ao Skip que, se os chuis
viessem aprender o Rob, este poderia contar ao promotor de justiça que eu também estavaenvolvido. O Skip era cinco anos mais velho do que eu e queria proteger-me.
Bem, este caso já prescreveu e tanto você como o Rob estão safos. Mas, espereaí... Se isto é uma cópia, onde é que está o original?
O advogado rasgou-o. Disse que não queria que ele caísse em mãos erradas.
Rasgou-o!
Não sabia que o Skip tinha feito uma cópia e ma dera.
Vou ficar com esta planta disse eu. Dou-lhe o dinheiro amanhã de manhã.
Demos um aperto de mão. A palma da mão dele era calosa, o que sugeria que Alfiese dedicava a um trabalho duro e pesado.
Com uma prova dessas não pude deixar de lhe dizer enquanto ele dobravacuidadosamente o papel e o guardava de novo no bolso. Não consigo perceber
porque é que o advogado do seu irmão não chegou a um acordo com o promotor de
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justiça. Não teria sido muito difícil encontrar esse tal Jim que desenhou odiagrama. Os chuis poderiam depois interrogá-lo e convencê-lo a denunciar
o Rob, e você seria julgado num tribunal juvenil. Tenho cá a impressão que o advogadodo seu irmão foi comprado pelos Westerfield.
Sorriu, arreganhando os dentes amarelados.
Ele ainda trabalha para eles. É esse Hamilton, o tipo que apareceu na televisãoa dizer que vai pedir um novo julgamento e a absolvição do Rob.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
Quando voltei para o quarto, tinha uma mensagem para telefonar à Sra. Hilmer.Tinha falado várias vezes com ela depois do incêndio e ela comportara-semaravilhos
amente comigo. A sua única preocupação era que eu estivesse bem e, aosaber que eu quase tinha morrido queimada, ficara muito aflita. Parecia até queme devia
um favor pelo facto da garagem e do apartamento terem sido reduzidos acinza por minha culpa. Aceitei o convite dela para jantarmos juntas no domingo.
Mal tinha desligado quando Joan telefonou. Também tinha falado regularmente comela, mas não nos tínhamos visto durante a semana e eu estava ansiosa
para lhedevolver o dinheiro e a roupa que ela me tinha emprestado. Tinha mandado limparas calças, a camisola e o casaco, e comprara duas garrafas de champanhe,
umapara Joan e Leo, e a outra para a amiga que tinha o meu tamanho.
É evidente que não era por esse motivo que Joan me telefonava. Ela, Leo e osfilhos iam jantar ao restaurante II Palazzo e queriam que eu me juntasse
a eles.
Os pratos de massa e a pizza são formidáveis e o sítio édivertido garantiu-me ela. Acho que vais adorar.
Não tens de promover o raio do restaurante. Gostaria muito de estar com vocês.
A verdade é que também precisava de me divertir. Depois do meu encontro comAlfie, só pensava em todas as pessoas cuja
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vida fora dramaticamente mudada, ou destruída, por Rob Westerfield e a fortunada sua família.
Primeiro, Andrea, claro está. A seguir, a minha mãe. Depois Paulie, que receavatanto ser levado a revelar que sabia algo sobre o medalhão. Independentemente
do que ele sabia, tinha a certeza de que ele nada tinha a ver com a morte deAndrea.
A Sra. Stroebel, trabalhadora e honesta, também fora apanhada na teia da família Westerfield. Deve ter sofrido horrores quando o filho testemunhou
durante ojulgamento. Suponhamos que, pelo menos, uma pessoa tivesse acreditado em mimquanto ao facto de Rob ter oferecido um medalhão a Andrea e que, depois,
Pauliefosse interrogado a esse respeito no tribunal. Poderia, muito facilmente, ter-se incriminado a si mesmo.
Acreditava em tudo o que Alfie me tinha contado. Não duvidava de que o irmãodele fosse um criminoso em potência. Tinha aceite matar a Sra. Westerfield.
Mas, apesar de ser um assassino, tivera o direito a advogado, mas este tinha sidosubornado pelos Westerfield.
Podia imaginar William Hamilton, juris doctor, encarar o casocomo uma oportunidade única. Tinha provavelmente ido ter com o pai de Rob,mostrara-lhe
o diagrama e fora adequadamente recompensado pela sua cooperação.
Alfie também era uma vítima. O irmão mais velho protegera-o e ele agorasentia-se culpado por não conseguir arranjar uma maneira de inculpar RobWesterfield.
Tinha passado todos aqueles anos com uma prova que não ousavamostrar.
O que me era mais difícil de engolir era saber que, se Rob tivesse sidocondenado por ter planeado matar a avó, nunca teria conhecido Andrea.
Tinha agora outra pessoa na minha lista: William Hamilton.
Era nisto que estava a pensar quando Joan me telefonou. Precisava de uma folga.Combinámos encontrar-nos às sete no II Palazzo.
Ando a atacar moinhos de vento, disse para comigo mesmo enquanto percorria decarro o curto trajecto até ao centro da cidade. Tinha a sensação de
estar a serseguida. Devia, talvez, avisar
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o agente White, pensei sarcasticamente. Preocupa-se tanto por minha causa quevirá salvar-me a toque de caixa.
Oh, deixa-te disso, disse para com os meus botões. Ele crê honestamente que euvoltei a esta cidade para provocar sarilhos e que não consigo suportar
a ideiade Rob Westerfield ter sido libertado.
Muito bem, agente White, posso estar obcecada por isso, mas não queimei os pésnem arruinei o carro para provar que tinha razão.
Joan, Leo e os três filhos estavam sentados numa mesa a um canto quando entreino II Palazzo. Lembrava-me vagamente de Leo. Andava no último ano
do liceuquando Andrea e Joan ainda frequentavam o segundo.
Quando pessoas daqueles tempos me voltam a ver, pensam inevitavelmente na mortede Andrea e, ou comentam o sucedido, ou fazem um esforço para o ignorar.
Apreciei a maneira como Leo me saudou.
Claro que me lembro de ti, Ellie. Foste várias vezes com a Andrea a casa da Joan quando eu lá estava. Eras uma miúda com ar muito solene.
E, agora, sou uma mulher com ar muito solene!
Gostei imediatamente dele. Era alto cerca de dois metros de altura e bem constituído, e tinha cabelo castanho-claro e inteligentes olhos negros. O
seu sorriso era como o de Joan, amável e caloroso. Transmitia logoconfiança. Sabia que ele era agente da bolsa e, por isso, disse para comigomesma que, se
algum dia tivesse dinheiro, iria falar com ele. Tenho a certeza de que me sentiria à vontade ouvindo os seus conselhos e investindo onde eledizia.
Os miúdos tinham dez, 14 e 17 anos. O mais velho, Billy, andava no último ano do liceu e contou-me logo que a equipa de basquetebol dele tinha jogado
contra ade Teddy.
O Teddy e eu falamos muito das universidades para onde queremos entrar, Elliedisse-me. Ambos estamos a tentar ser
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admitidos na Dartmouth e na Brown e esperamos acabar juntos na mesma. É um tipoporreiro.
Pois é concordei.
Não me contaste que te tinhas encontrado com ele atalhou Joan.
Passou na estalagem para me ver durante uns instantes. Vi um sorriso satisfeitoreflectido nos seus olhos. Tive vontade de lhe dizer para
não marcar a data de uma grande reunião dos Cavanaugh, mastrouxeram-nos o menu nesse momento e Leo foi suficientemente esperto para mudarde assunto.
Cuidei um razoável número de vezes de miúdos quando era adolescente e gosto deos ter à minha volta. Mas há muito que não contactava com eles, pois
o meuemprego em Atlanta não me dava certamente essa oportunidade. Foi divertido falar com os três rapazes. Dentro do pouco tempo, e enquanto comíamos massa
emexilhões, contaram-me as suas actividades e eu prometi a Sean, ode dez anos, que, um dia, haveríamos de jogar xadrez.
Jogo muito bem preveni-o.
Eu cá sou melhor assegurou-me.
Havemos de ver isso.
Que tal amanhã? É domingo e vamos ficar em casa.
Tenho muita pena, mas já tenho planos para amanhã. Mas em breve.
Lembrei-me então de uma coisa e olhei para Joan.
Não pus a mala que te queria devolver no carro.
Podes trazê-la amanhã. Faremos, assim, o nosso jogo de xadrez insistiu Sean.
Vem tomar o brunch lá a casa disse-me Joan. Por volta das onzee meia?Boa ideia!
O bar do II Palazzo era uma área rodeada de vidro da sala de jantar directamente em frente da entrada. Ao entrar, não tinha prestado atenção a quem
lá seencontrava, mas reparei que, durante o
OT Combinação de breakfast (pequeno-almoço) e lunch(almoço) feita geralmente aos domingos por volta da horamencionada no texto.
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jantar, Joan olhava às vezes por cima do meu ombro com uma expressão aflita.
Estávamos a tomar café quando compreendi o motivo.
Ellie, o Will Nebels está ali no bar explicou-me finalmente ela. Entrou ainda tu não tinhas chegado. Alguém deve ter-lhe dito quem tu és e, agora,
ele vem aí.Pelo ar dele, aposto que está bêbedo
O aviso não foi suficientemente rápido. Senti um par de braços à volta do meu pescoço e um beijo molhado na face.
A pequenina Ellie! Valha-me Deus! A pequenina Ellie Cavanaugh! Lembras-te que eu consertei o teu baloiço, minha linda? O teu papá não era lá muito
bom aconsertar coisas e a tua mamã estava sempre a chamar-me.
Agora, beijava-me a orelha e a nuca.
Tira as mãos de cima dela disse secamente Leo, levantando-se.
Eu estava literalmente esmagada sob o peso de Nebels. Tinha as mãos nos meusombros e as mãos deslizavam apalpando a minha camisola.
É a linda Andrea. Vi com os meus próprios olhos esse atrasado mental entrar nagaragem de macaco na mão...
Um criado de mesa puxava Nebels de um lado enquanto Leo e Billy o puxavam dooutro. Tentava afastar o rosto dele do meu, mas não havia nada a fazer.Beijava-me
os olhos e a sua boca repelente procurava os meus lábios. No meiodaquela confusão, a minha cadeira começou a inclinar-se para trás. Receava bater com a cabeça
no chão e acabar com ele estendido em cima demim.
Mas clientes vindos de outras mesas aproximaram-se, agarrando na vacilantecadeira antes desta cair no chão.
Nebels foi então afastado à força. Escondi o rosto nas mãos e, pela segunda vezem seis horas, comecei a tremer tão violentamente que não conseguia
responder às perguntas inquietas que me faziam de todos os lados. Os ganchos tinham-sesoltado e o cabelo caía por cima dos meus ombros. Senti Joan a fazer-lhe
féstase queria suplicar-lhe que parasse, a compaixão nessa altura era-me intolerável.Mas talvez ela tivesse percebido o que eu sentia porque retirou a mão.
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Ouvi o gerente desfazer-se em desculpas.
Bem podes pedir desculpa, pensei. Já devias ter recusadoservir esse bêbedo há muito tempo.
A fúria que, de repente, senti foi o necessário para me recompor. Levantei a cabeça e comecei a pentear o cabelo. Olhei à volta da mesa para o rostoinquieto
dos meus amigos e encolhi os ombros.
Já estou bem.
Fitei Joan e dei-me imediatamente conta do que ela estava a pensar. Era como seela mo estivesse a gritar.
Ellie, compreendes agora o que eu te disse sobre o Will Nebels? Confessou que tinha estado em casa da Sra. Westerfield naquela noite e é provável
que tambémestivesse bêbedo. O que é que achas que ele teria feito se visse a Andrea aentrar na garagem sozinha?
Meia hora mais tarde, e depois de ter bebido uma nova chávena de café,insisti em regressar à estalagem sozinha. Mas, a meio do caminho, perguntei-mese
não teria sido parva. Tinha agora a certeza que estava a ser seguida e nãoqueria voltar a ser apanhada sozinha no parque de estacionamento. Passei pelaestalagem
sem parar e telefonei à polícia do meu telefone portátil.
Vamos enviar imediatamente um carro patrulha disse o polícia de serviço. Onde éque está?
Expliquei-lhe.
Muito bem. Dê meia volta e vire no caminho que leva à estalagem, mas não saia do carro em nenhumas circunstâncias até nós chegarmos.
Abrandei a velocidade e o carro que vinha atrás de mim também. Agora que sabiaque vinha aí um carro-patrulha, desejava que aquela perseguição continuasse.Queri
a que a polícia descobrisse de quem se tratava e porque eu estava a serseguida.
Dirigi-me novamente para a estalagem. Virei, mas o carro que vinha atrás de mimcontinuou. Pouco tempo depois, avistei uma luz a cintilar e ouvi
a sirena dapolícia.
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Parei na berma da estrada e, dois minutos mais tarde, um carro-patrulha de luzapagada travou atrás de mim. Um polícia saiu e aproximou-se
domeu carro. Quando desci o vidro da janela, notei que ele estava a sorrir.
Estava a ser seguida, sim senhora, Ms. Cavanaugh. O miúdo dizque é seu irmão e que queria certificar-se de que a senhora chegava a casa sã esalva.
Oh, por amor de Deus, mandem-no embora! disse eu, mas apressei-me a acrescentar. Mas, por favor, agradeçam-lhe por mim.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
Fazia tenção de telefonar a Marcus Longo domingo de manhã, mas ele antecipou-se. Quando o telefone tocou às nove horas, eu estava diante do computador
com umachávena de café ao lado.
Sempre pensei que se levantasse cedo, Ellie disse ele. Espero não me terenganado.
Para dizer a verdade, até acordei tarde esta manhã. Aí por volta das sete.
É mais ou menos o que eu esperava de si. Contactei com a administração de SingSing.
Para ver se eles sabem de algum recluso recentemente solto, ou de um guarda daprisão, que possa ter sido vítima de um acidente fatal?
Exacto.
Disseram-lhe alguma coisa?
Você esteve em Sing Sing no dia 1 de Novembro. Herb Coril, um preso que, a certa altura, esteve no mesmo bloco celular que o Rob Westerfield, foi libertadoprecisa
mente nessa manhã. A morada dele é na zona baixa de Manhattan, mas desdea noite de sexta-feira que ninguém o vê.
Recebi o último telefonema de que lhe falei na sexta-feira à noite. Cerca dasdez e meia. E quem quer que me telefonou receava perder a vida.
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Não sabemos ao certo se se trata da mesma pessoa ou se este Herb Corel não deumuito simplesmente à sola.
O que é que acha? perguntei.
Nunca acreditei muito em coincidências, sobretudo uma como esta.
Nem eu.
Falei a Marcus do meu encontro com Alfie.
Só espero que nada aconteça ao Alfie antes de você lhe apanhar o diagrama disselugubremente Marcus. Não me surpreende nada. Sempre pensámos que
o RobWesterfield tinha planeado o roubo. Sei o que você deve estar a pensar...
Se o Rob tivesse sido preso nessa altura, não teria conhecido a Andrea, não é? É tudo o que consigo pensar e tem sido uma tortura.
Mas compreende que mesmo com a cópia da planta da casa e uma declaração do Alfie ao magistrado-federal, nunca conseguirá que o Rob seja condenado.
O próprioAlfie esteve envolvido e o diagrama está assinado por alguém chamado Jim queninguém conhece.
Eu cá sei quem é.
O caso prescreveu para todos eles: o Westerfield, o Alfie e esse tal Jim...
Jim Hamilton. Se eu conseguisse provar que ele destruiu provas que poderiamdiminuir a pena do seu cliente caso este incriminasse o Westerfield,
a Ordem deAdvogados saltar-lhe-ia em cima.
Prometi mostrar-lhe o diagrama assim que Alfie mo entregasse. A seguirdespedi-me e tentei voltar ao meu trabalho. Mas avançava lentamente e, depois
de ter escrito apenas mais um pouquinho, deduzi que estava na hora de ir aobrunch em casa de Joan.
Desta vez, lembrei-me da mala e do saco da lavandaria com a roupa.
Antes mesmo de chegar ao mosteiro dos frades franciscanos, sabia que iriadeter-me lá por uns minutos. Tinha sentido, durante toda a semana, umarecordação
emergir lentamente do meu subconsciente. Fora visitar aquele lugarcom a minha mãe depois
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da morte de Andrea. Ela tinha telefonado a um padre que conhecia, o irmãoEmil, e, como este ia à estalagem de São Cristóvão naquele dia, combinaramencontrar-se
lá.
A estalagem de São Cristóvão, localizada na área do mosteiro, é o lar dos frades para pobres que são alcoólicos ou drogados. Tinha a vaga recordação
de estarsentada com uma senhora, provavelmente uma secretária, enquanto a minha mãe seencontrava no gabinete do irmão Emil. Mais tarde, o irmão Emil levou-nos
avisitar a capela.
Lembro-me de que havia uma espécie de registo onde as pessoas redigiam pedidos.A minha mãe escreveu qualquer coisa e, depois, passou-me a caneta.
Tinha vontade de lá voltar. O padre que veio à porta apresentou-se como sendo oirmão Bob e não questionou o meu pedido. A capela estava vazia e
ele ficou àporta enquanto eu me ajoelhei durante uns instantes. A seguir, olhei à minhavolta e vi o registo.
Aproximei-me e peguei na caneta.
E, de repente, lembrei-me do que tinha escrito da última vez: Por favor deixa que a Andrea volte para junto de nós,
Não consegui reter as lágrimas.
Foram derramadas muitas lágrimas nesta capela disse o irmão Bob ao meu lado.
Conversámos durante uma hora e, quando cheguei a casa de Joan, já me entendianovamente com Deus.
Joan e eu discordámos respeitosamente uma com a outra acerca do espectáculo queNebels dera na noite anterior.
Ele estava apenas bêbedo, Ellie. Há imensa gente que fala demais quando está com os copos. O que eu quero dizer é que isso não acontece quando mentem.
É maisquando bebem que a língua deles se solta.
Tinha de admitir que Joan tinha razão quanto a isso. Escrevera sobre dois casosem que o assassino nunca teria sido preso se não tivesse apanhado
uma bebedeirade uísque, ou vodca, e contado tudo a alguém que chamara a polícia.
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Eu, no entanto, não vejo a coisa assim expliquei a Joan e a Leo. Para mim, oWill Nebels é um desgraçado, um pobre diabo. É como gelatina, pode-se
dar-lhe aforma que se quer. Não estava assim tão bêbedo... Lembrou-se de que tinhaconsertado o meu baloiço e que o meu pai não tinha lá muito jeito para
essascoisas.
Concordo com a Ellie - disse Leo. O Nebels é mais complexo do que aparenta.
Fez uma pausa.
Isso, claro está, não significa que a Joan esteja errada acrescentou. Se oNebels viu de facto o Paulie Stroebel entrar na garagem naquela noite,
foisuficientemente esperto para perceber que o caso tinha prescrito e que podiaganhar umas massas sem correr riscos.
Mas não percebeu isso sozinho disse eu. Vieram ter com ele. E, depois, o Nebelsconcordou contar a história que eles queriam e foi pago para a contar.
Empurrei a cadeira para trás.
O brunch estava óptimo. Mas, agora, tenho de ganhar um jogo dexadrez ao Sean.
Detive-me por uns instantes para contemplar a paisagem que se desfrutava dajanela. Era a segunda bela tarde de domingo que me encontrava nesta sala
exactamente à mesma hora. Admirei de novo a espectacular vista do rio e das montanhas.
No meu mundo, o qual estava tão longe de ser tranquilo, viver uma tal experiência era como estar num oásis.
Ganhei o primeiro jogo, mas Sean ganhou o segundo. Concordámos jogar o terceiro«muito em breve».
Antes de regressar à estalagem, telefonei para o hospital e falei com a Sra.Stroebel. A febre de Paulie tinha baixado e ele sentia-se muito melhor.
Quer falar consigo, Ellie.
Quarenta minutos mais tarde, encontrava-me à sua cabeceira.
Estás com muito melhor aspecto do que ontem disse-lhe.
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Ainda estava pálido, mas já não tinha o olhar baço. Estava sentado na cama,encostado a duas almofadas. Sorriu timidamente.
A mamã disse-me que tu sabes que eu vi o medalhão.
Quando é que o viste, Paulie?
Trabalhava na estação de serviço. O meu primeiro emprego lá era lavar e limparos carros depois de eles serem consertados. Um dia, encontrei o medalhãoentalado
no banco da frente do carro do Rob. O fio estava partido.
Isso foi no dia em que eu encontrei o corpo da Andrea, Paulie? Não faziasentido, pensei. Se o Rob tinha voltado naquela manhã para recuperar
o medalhão, nunca o teria deixado no carro. Ou era assim tãoestúpido? Paulie lançou um olhar à mãe.
Mamã! suplicou.
Está tudo bem, Paulie disse ela ternamente. Tomaste muitos remédios e é difícillembrares-te de tudo. Contaste-me que tinhas visto o medalhão duas
vezes.
Fitei duramente a Sra. Stroebel, tentando perceber se ela estava a incitar. MasPaulie acenou a cabeça.
Tens razão, mamã. Encontrei-o com o fio partido no carro. Dei-o ao Rob e eledeu-me uma gorjeta de dez dólares. Juntei-o ao dinheiro que andava a
poupar para te oferecer um presente no dia em que fizeste 50 anos.
Lembro-me muito bem.
Quando é que a senhora fez 50 anos? perguntei.
No dia 1 de Maio. O mês de Maio antes da Andrea morrer.
O mês de Maio antes da Andrea morrer! repeti, incrédula.
Estava perplexa. Queria dizer então que ele não tinha comprado o medalhão para a minha irmã, pensei. Devia ter sido um medalhão que alguma rapariga
tinhaperdido no carro dele. Rob, então, mandara gravar as iniciais e oferecera-o aAndrea.
Lembras-te bem do medalhão, Paulie? perguntei.
Lembro-me. Era de ouro, tinha a forma de um coração e pedrinhas azuisincrustadas.
Era exactamente assim que eu o tinha descrito no tribunal.
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E voltaste a ver esse medalhão?
Voltei. A Andrea era tão simpática comigo. Disse-me que eu jogava muito bemrâguebi e que, graças a mim, a nossa equipa tinha ganho o jogo. Foi
então quedecidi convidá-la para ir à festa comigo.
Fui a tua casa e vi-a a atravessar o bosque. Apanhei-a perto da casa da Sra.Westerfield. Reparei que tinha o medalhão à volta do pescoço e calculei
que oRob lho tivesse dado. Ele é mau. Deu-me uma boa gorjeta, mas é ruim. O carrodele anda sempre amolgado porque ele guia muito depressa.
Viste-o nesse dia?
Perguntei a Andrea se podia falar com ela, mas ela respondeu que nessa alturanão porque estava com muita pressa. Fui-me embora, mas vi-a entrar
na garagem.E, uns minutos mais tarde, o Rob também lá entrou.
Diz à Ellie quando foi, Paulie.
Foi uma semana antes da Andrea morrer nessa garagem. Uma semana antes...
Depois, uns dois dias antes de ela morrer, voltei a falar com a Andrea.Disse-lhe que o Rob era má pessoa e que ela não devia encontrar-se na garagemcom
ele. Sabia que o teu pai ficaria muito zangado se soubesse.
Paulie olhou-me de frente.
O teu pai sempre foi muito bom comigo, Ellie. Dava-me gorjetas para eu encher de gasolina o depósito do carro dele e falava comigo sobre râguebi. Era
muitoamável.
Preveniste a Andrea acerca do Rob na mesma altura em que lhe pediste para ir àfesta contigo?
Sim. E ela respondeu que iria, mas pediu-me para não falar do Rob ao pai.
E nunca mais voltaste a ver o medalhão?
Não, Ellie.
E nunca mais foste outra vez à garagem?
Não, Ellie.
Paulie fechou os olhos e percebi que ele estava a ficar muito cansado. Pus aminha mão em cima da dele.
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Paulie, não quero causar-te mais preocupações. Prometo que vai tudo correrbem e toda a gente há-de saber como tu és bom e simpático. E também esperto.Ainda
eras um miúdo, mas percebeste logo que o Rob não prestava. Há uma data degente por estas bandas que ainda não compreendeu isso.
O Paulie pensa com o coração disse baixinho a Sra. Stroebel.
Paulie abriu os olhos.
Tenho muito sono. Falei-te do medalhão?
Falaste, sim.
A Sra. Stroebel acompanhou-me até ao elevador.
Tentaram tanto culpar o Paulie pela morte da Andrea durante o julgamento. Fiquei cheia de medo. Foi por isso que lhe disse para nunca falar do medalhão.
Compreendo.
Espero que sim. Uma criança especial precisa sempre de ser protegida, até mesmodepois de ser adulta. Ouviste o advogado do Westerfield a dizer a
toda genteque, se houvesse um novo julgamento, ele provaria que foi o Paulie quem matou aAndrea. Consegues imaginar o Paulie no banco das testemunhas com
esse homem ainterrogá-lo?
Esse homem. William Hamilton.
Não, não consigo. Dei-lhe um beijo na face.
O Paulie tem sorte de a ter a si, Sra. Stroebel. Ela baixou os olhos paraencontrar os meus.
Ele tem sorte de ter a ti, Ellie.
CAPÍTULO TRINTA E SETE
Às sete horas pus-me a caminho para ir jantar com a Sra. Hilmer, e é evidenteque tive de passar pela nossa antiga casa. Estava profusamente iluminada
e, coma Lua a brilhar por detrás dela, parecia a capa de uma revista de decoração. Era a casa que a minha mãe tinha imaginado, exemplo perfeito de uma casa
de campolindamente aumentada e restaurada.
As janelas do meu quarto davam para a fachada frontal e vi a silhueta de umapessoa a mover-se por detrás delas. Os Kelton, a quem agora a casa pertencia,eram
um casal de cinquenta e poucos anos. Tinham sido as únicas pessoas que vira na noite do incêndio, mas podiam ter filhos adolescentes, os quais, apesar dobarulho
das sirenas da polícia e dos carros de bombeiros, tinham continuado adormir. Perguntei a mim própria se quem agora estava no meu antigo quartogostaria de
acordar cedo e permanecer na cama a contemplar o nascer do Sol comoeu gostava.
A casa da Sra. Hilmer também se encontrava bem iluminada. Os faróis do meu carro iluminaram os destroços carbonizados da garagem e do apartamento.
Os candelabros e a fruteira que decoravam a mesa da sala de jantar vieram-meabsurdamente à cabeça. Não possuíam qualquer valor, mas tinham sido escolhidoscom
cuidado e gosto.
Tudo no apartamento por cima da garagem fora escolhido com cuidado e, se a Sra.Hilmer decidisse reconstruí-lo, os candelabros
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e a fruteira eram o género de objectos que necessitariam de tempo e esforço para ser substituídos.
Entrei a pensar nisso em casa dela pronta a reiterar as minhas desculpas, masela não me quis ouvir.
Deixe de se preocupar com a garagem, Ellie! suspirou, dando-me um beijo. Alguéma incendiou deliberadamente.
Eu sei. Mas não acha que a culpa é minha?
É evidente que não, Ellie. Quando voltei e o Brian White entrou cá em casaacusando-a praticamente de ser uma pirómana, disse-lhe das boas. Caso
isso afaça sentir melhor, lembre-se de que ele até me disse que eu estava a imaginarcoisas quando o avisei que andava a ser seguida. Também o esclareci quanto
aesse assunto. É incrível pensar que quem quer que, na outra noite, tenha entrado no apartamento enquanto você estava aqui a jantar chegasse ao ponto de roubarpremeditadame
nte as toalhas só para a incriminar.
Como tirava toalhas de banho do armário todos os dias, nunca reparei quefaltavam cinco ou seis.
E como é que podia ter reparado em tal coisa? Havia imensas. Atravessei uma fase em que não resistia a saldos e, agora, tenho toalhas que me vão durar
até aodia do Juízo Final. Bem, o jantar já está pronto e deve estar com fome. Vamospara a mesa.
O jantar foi camarões fritos acompanhados por uma salada. Estava delicioso.
Duas excelentes refeições num só dia comentei. Estou a ser estragada com mimos.
Perguntei-lhe pela neta e soube que estava melhor do pulso partido.
Foi maravilhoso passar algum tempo com a Janey, e o bebé é adorável. Mas deixeque lhe diga, Ellie, após uma semana já estava pronta para voltar
para casa. Hámuito tempo que não tinha de me levantar às cinco da manhã para aquecer umbiberão.
Disse-me que via regularmente o meu website e apercebi-me deque a sua simpatia por Rob Westerfield estava a esmorecer.
Quando li a declaração da psicóloga a dizer que o Rob lhe tinha torcido o braço, fiquei muito chocada. A Janey também trabalhou como empregada de mesa
quandoandava na universidade e a ideia de ela poder ter sido brutalizada daquelamaneira indignou-me.
226 MARY HIGGINS CLARK
Espere até ver o que vou tornar público a seguir. Também espancou brutalmente um colega quando andava na escola preparatória.
A situação está cada vez pior. O que se passou com o Paulie também me afligiu.Como é que ele está?
Está a melhorar. Fui visitá-lo esta tarde.
Hesitei. Não tinha a certeza de querer partilhar com ela o que Paulie me dissera sobre o medalhão. Mas, por fim, decidi contar-lhe. A Sra. Hilmer era
deconfiança e um óptimo barómetro da opinião local. Sabia que ela sempreacreditara firmemente que o medalhão era fruto da minha imaginação. Seriainteressante
e útil observar, agora, a sua reacção.
Deixou o chá dela arrefecer enquanto me escutava e a sua expressão tornou-segrave.
Não admira que a Sra. Stroebel não tenha querido que o Paulie falasse domedalhão, Ellie. Essa história poderia muito bem virar-se contra o filho.
Eu sei. O Paulie admitiu ter descoberto o medalhão, entregá-lo depois ao Rob eficar preocupado ao ver a Andrea entrar na garagem com ele aopescoço.
Fiz uma pausa e fitei-a.
Acha que foi realmente isso que aconteceu, Sra. Hilmer?
O que eu acho é que, apesar de todo o dinheiro dos Westerfield, o Rob se portoude forma reles e viciosa. Deu à Andrea o que provavelmente outra
rapariga perdeu no carro dele. Aposto que gastou apenas uns dois dólares para mandar gravaras iniciais dele e da Andrea e que, depois, se armou em generoso.
Pensei em tentar encontrar quem fez a gravação, mas, passados tantos anos, équase impossível...
Quer dizer, então, que não sabe o que há-de fazer quanto a essa nova informação?
Não, não sei. Fiquei tão contente por ver a minha recordação do medalhãoconfirmada que nem sequer pensei mais nisso. O medalhão é uma espada de
doisgumes e, caso haja outro julgamento, o Paulie pode vir a ser incriminado.
Falei à Sra. Hilmer de Alfie e da planta da casa dos Westerfield.
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Todos nós desconfiámos que se tratava de um plano concebido por alguém da casacomentou ela. A Sra. Dorothy Westerfield é uma pessoa amável e delicada.
Pensarque o único neto dela pudesse planear matá-la é inconcebível. Vi-a muitas vezescom o Rob antes de ele ser preso. Ele mostrava-se sempre tão atencioso
com ela.
Se o Alfie mo permitir, vou publicar essa história na Internet disse eu. Talveza Sra. Westerfield fique convencida ao ver o diagrama.
A descrição de Will Nebels a apalpar-me e a beijocar-me no restaurante deixoudurante uns instantes a Sra. Hilmer muda de indignação.
E um homem como esse seria considerado uma testemunha de confiança num novojulgamento? articulou finalmente.
Não necessariamente, mas podia causar imensos estragos e fazer com que a opinião pública se virasse contra o Paulie.
Apesar dos protestos dela, ajudei-a levantar a mesa e a arrumar a cozinha.
Está a pensar reconstruir a garagem e o apartamento? perguntei-lhe.
Sorriu enquanto metia os pratos dentro da máquina de lavar a louça.
Não quero que a companhia de seguros me ouça, mas o incêndio foi uma boa coisa.Tenho um bom seguro e, agora, tenho um lote vazio onde posso construir
o quequiser. A Janey adoraria vir viver para cá. Acha que é um sítio magnífico paracriar uma criança. Se eu lhe oferecer esse lote, ela vai construir uma
casa e eu terei a minha família a morar mesmo ao meu lado.
Soltei uma gargalhada.
Está a fazer sentir-me muito melhor. Dobrei o pano de limpar os pratos.
Tenho, agora, de me pôr a caminho. Amanhã vou à Academia Carrington paradescobrir mais coisas sobre o passado glorioso do Rob Westerfield.
A Janey e eu lemos os recortes de jornais e as transcrições do julgamento.Trouxe-me à memória os horríveis momentos que todos vocês devem ter vivido.
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A Sra. Hilmer foi buscar o meu casaco de cabedal. Enquanto o abotoava,lembrei-me de que não lhe tinha perguntado se o nome «Phil» lhe dizia
algumacoisa.
Na prisão, e sob o efeito de drogas, o Rob Westerfield contou a um companheirode cela ter morto à pancada um homem chamado Phil. Alguma vez ouviu
falar dealguém com esse nome que tenha desaparecido ou sido vítima de homicídio porestas bandas?
Phil... repetiu fazendo um esforço para se concentrar. Houve um Phil Oliver queteve uma desavença terrível com os Westerfield porque eles não lhe
renovaram oaluguer de uma propriedade qualquer. Mas ele foi-se embora.
Sabe o que é que lhe aconteceu depois?
Não, mas posso informar-me. Ele e a família tinham aqui bons amigos e, secalhar, ainda mantêm relações.
Não se importa de lhes perguntar?
Claro que não.
Abriu hesitantemente a porta.
Li qualquer coisa sobre um jovem chamado Phil que morreu há uns tempos... Não me lembro bem, mas era bastante triste.
Veja lá se se recorda, Sra. Hilmer. É muito importante.
Phil... Phil... Oh, Ellie, não consigo lembrar-me.
É evidente que tive de me conformar. Mas, ao despedir-me da Sra. Hilmer unsminutos mais tarde, insisti para ela não pensar mais no assunto e deixar
osubconsciente funcionar.
Sentia no fundo de mim que estava quase a apanhar Rob Westerfield.
O carro que esta noite me seguia era muito mais discreto do que o de Teddy.Tinha os faróis apagados. Só reparei na sua presença quando tive de
me deter num semáforo antes de entrar no parque de estacionamento da estalagem e ele teve de parar mesmo atrás de mim.
Virei-me para tentar ver quem era. O interior do carro estava escuro, maspercebi que não se tratava de Teddy.
Surgiu então outro carro vindo da estalagem e os seus faróis iluminaram o rostodo motorista.
229
Hoje era o meu pai que queria certificar-se de que eu chegava sã e salva àestalagem. Fitámo-nos durante uma fracção de segundo e, depois, eu virei
àesquerda e ele seguiu em frente.
CAPÍTULO TRINTA E OITO
Alfie telefonou-me na segunda-feira de manhã.
Ainda está interessada?
Estou, sim. O meu banco fica em Oldham-Hudson, na rua principal. Podemos encontrar-nos no parque de estacionamento às nove e cinco.
Está bem.
Ao sair do banco, vi-o estacionar junto do meu carro. Da rua, ninguém podiaaperceber-se do que se estava a passar. Abriu a janela.
Passe para cá o dinheiro. Entreguei-lho.
Tome lá a planta da casa disse-me depois de o ter contado.
Examinei-a atentamente. À luz do dia, e tomando em consideração que tinha sidodesenhada pelo neto de 17 anos da vítima potencial, parecia ainda
maisarrepiante. Estava disposta a pagar o que Alfie pedisse paraele me autorizar a publicá-la no meu website.
Sabe que o caso prescreveu, Alfie, e que, mesmo que os chuis viessem a saber que foi você quem me passou este diagrama, não poderiam comprometê-lo.
Mas, seeu a mostrar no meu website e escrever sobre o que me contou, a Sra. Westerfield poderá muito bem deserdar o Rob e deixar o seu dinheiro aobras de
caridade.
231
Mantinha-me de pé ao lado da carrinha enquanto Alfie estava sentado lá dentrocom as mãos no volante. Ele tinha exactamente o aspecto da pessoa em
que setinha tornado: um tipo trabalhador que nunca tivera muitas oportunidades.
Prefiro correr o risco do Westerfield vir atrás de mim do que o ver a viver àgrande. Faça o que quiser.
Tem a certeza?
Absoluta. É de certo modo uma compensação pelo o que Skip sofreu.
Depois da experiência de ter guiado até Boston no meio de um tráfego intenso,dei-me bastante tempo para me deslocar a Maine ao marcar um novo encontro
comJane Bostrom, a directora do departamento de admissões da Academia Carrington.
Foi por isso que cheguei a Rockport com tempo suficiente para comer uma tosta de queijo e beber uma coca-cola num café a quilómetro e meio daescola
o que me fez sentir preparada para ter uma conversa com ela.
Recebeu-me de forma cordial, mas reservada, quando me introduziram no seugabinete. Tive logo a impressão de que ela não iria mostrar-se muito cooperativa
e dar-me a informação que eu necessitava. Convidou-me a sentar na cadeiradiante da sua secretária. Como muitos executivos, tinha uma área reservada avisitas
com um sofá e várias poltronas, mas não insinuou que nos fôssemos lásentar.
Era mais jovem do que eu esperava. Tinha cerca de 35 anos, cabelo escuro egrandes olhos cinzentos que lhe davam uma expressão atenta. Pela conversa
quetínhamos tido ao telefone, era óbvio que ela se orgulhava da reputação da escola e não admitiria que uma jornalista a destruísse por causa de um aluno.
Permita-me que lhe fale com toda a franqueza, Dra. Bostrom disse eu. O RobWesterfiel passou dois anos em Carrington. Veio para cá depois de ser
expulso,aos 14 anos, de outra escola preparatória por ter espancado brutalmente umcolega.
Aos 17, planeou assassinar a avó. A pobre senhora levou três tiros e é ummilagre ela ter sobrevivido. Aos 19, matou a minha
232
irmã à pancada. Estou actualmente a investigar a possibilidade de ele ter mortooutra pessoa.
Vi a consternação estampar-se no rosto dela. Demorou um certo tempo a recuperara fala.
O que me está a dizer sobre o Rob Westerfield é horroroso, Ms. Cavanaugh. Peço-lhe, por favor, para compreender uma coisa. Tenho a ficha do Rob
diante de mim e não existe absolutamente nada nela que indique ter havidoqualquer problema de comportamento grave enquanto ele cá esteve.
Acho difícil de acreditar que, com todos os episódios violentos que tenho vindoa descobrir, ele tenha passado aqui dois anos sem cometer algo de
grave. Possoperguntar-lhe há quanto tempo trabalha nesta academia, Dra. Bostrom?
Há cinco anos.
Então, claro está, a única coisa em que se baseia é um registo que pode ter sido manipulado.
Tenho-o aqui à minha frente.
Posso perguntar-lhe se os Westerfield fizeram alguma doação significativa àAcademia Carrington?
Na altura em que o Rob estudava aqui, ajudaram a renovar e a equipar o centro de atletismo.
Estou a ver.
Não percebo o que está a ver, Ms. Cavanaugh. Tente, por favor,compreender que muitos dos nossos alunos passaram emocionalmente por mausmomentos
e precisam de compaixão e orientação. Foram, umas vezes, meros peões em desagradáveis processos de divórcio e, outras, um dos pais abandonou-os pura esimplesmente.
Ficaria espantada com o que isso pode causar a uma criança.
Oh, não, não ficaria nada espantada, pensei. Para dizer averdade, até compreendo perfeitamente.
Alguns deles não conseguem dar-se bem nem com os colegas nem com os adultos.
Parece ter sido esse o caso do Rob Westerfield comentei. Mas, infelizmente paranós, a família dele tentou sempre protegê-lo à custa de dinheiro.
233
Tem de entender que dirigimos esta escola com firmeza. Acreditamos que um passoimportante para curar problemas emocionais é ajudar a construir um
sentimento de auto-estima. Esperamos que os nossos alunos mantenham boas notas, participem em desportos ou outras actividades e se ofereçam, como voluntários,
para programas comunitários patrocinados pela nossa escola.
E está a querer dizer-me que o Rob Westerfield cumpriu de boa vontade ealegremente todos esses objectivos?
Quase mordi a língua. Jane Bostrom tinha tido a amabilidade de me conceder umaentrevista e estava a responder sinceramente às minhas perguntas.
Era óbvio quequaisquer incidentes graves causados por Rob Westerfield na escola não constavam da ficha que ela tinha em sua posse.
Aparentemente, o Rob Westerfield cumpriu de forma satisfatória para a nossaescola tais objectivos.
Tem uma lista dos alunos que frequentaram a escola enquanto ele cá esteve?
Evidentemente.
Posso vê-la?
Para que propósito?
Quando estava na prisão, e sob o efeito de drogas, o Rob declarou a outrorecluso ter morto à pancada um certo Phil e que isso o tinha feito sentir-semuito
bem. É provável que tenha conhecido aqui um aluno chamado Phil, ou Philip.
Os olhos dela assombraram-se e a expressão do seu rosto tornou-seprogressivamente mais preocupada à medida que absorvia as implicações do que eutinha
dito. Levantou-se.
O Dr. Douglas Dittrick é professor da Carrington há 40 anos. Vou convidá-lo ajuntar-se a nós e pedir igualmente que me enviem as listas dos alunos
que aquise encontravam durante esses anos. Penso que é melhor irmos para a sala deconferências pois teremos assim mais espaço para examinar as listas.
O Dr. Dittrick mandou dizer que estava a meio de uma palestra e que viria terconnosco dentro de um quarto de hora.
234É um excelente professor disse-me Jane Bostrom enquanto desdobrávamos as listas. Acho que ele não se mexeria até terminar a palestra
mesmo que o tecto estivesse a cair.
Parecia, agora, sentir-se mais à vontade comigo e via-se que estava a quererajudar.
Temos muitos alunos que são conhecidos pelo segundo nome e não pelo primeiropreveniu-me.
Na altura em que Rob tinha estado em Carríngton, o número de estudantestotalizava os seiscentos. Percebi rapidamente que não havia muitos Philip.
Osnomes mais comuns, James, John, Mark e Michael, apareciam regularmente naslistas.
E muitos outros: William, Hugo, Charles, Richard. Henry, Walter, Howard, Lee,Peter, George, Paul, Lester, Ezekiel, Francis, Donald, Alexander...
E, a seguir, Philip.
Aqui está um disse eu. Era aluno do primeiro ano quando o Rob andava no segundo
Jane Bostrom levantou-se e veio espreitar por cima do meu ombro.
Faz parte do nosso conselho de administração disse ela. Continuei à procura.
O professor Dittrick veio, finalmente, ter connosco.
O que é que há assim de tão urgente, Jane? perguntou. Ela apresentou-me eexplicou-lhe o que se passava. Dittrick
tinha cerca de 70 anos, altura média, um rosto erudito e um firme aperto de mão.
Claro que me lembro do Westerfield. Formou-se dois anos antes de ter mortoaquela rapariga.
Era a irmã da Ms. Cavanaugh interrompeu a Dra. Bostrom.
Lamento imenso, Ms. Cavanaugh. Foi uma tragédia horrível. E,agora, está a ver se encontra alguém chamado Phil que tenhasido vítima de homicídio?
Estou. Dou-me conta de que possa ser um bocado difícil, mas tenho de exploraressa possibilidade.
Claro.
Virou-se para Bostrom.
235
Jane, por que é que não vai ver se a Corinne está livre? Se assim for, peça-lhepara vir até cá. Há 25 anos, ela não era a directora do teatro,
mas fazia partedo pessoal. Peça-lhe para trazer os programas dos espectáculos em que oWesterfield entrou. Parece que havia algo de esquisito na forma como
ele eraapresentado no programa.
Corinne Barsky chegou minutos mais tarde. Era uma mulher esbelta e animadacom cerca de 60 anos, olhos negros vivos e uma voz calorosa e sonora.
Traziaos programas que tinham sido solicitados.
Por essa altura, já tínhamos dois alunos cujo primeiro nome era Philip e outrocom Philip como segundo nome.
Um deles, como Jane Bostrom me tinha informado, pertencia ao conselho de administração da escola, e o Dr. Dittrick lembrava-se que o que tinha o segundonome
de Philip assistira ao vigésimo aniversário do curso há dois anos.
Restava apenas um a verificar e a secretária do professor consultou o computador. Vivia em Portland, Oregon, e contribuía anualmente para o fundoescolar.
A última contribuição tinha tido lugar em Junho passado.
Lamento tê-los feito perder tempo para nada desculpei-me. Deixem-me dar umarápida olhadela aos programas e prometo que me vou logo embora.
Rob representava o papel masculino principal.
Lembro-me bem dele disse Corinne Barsky. Era bom a valer. Muito cheio de simesmo e extremamente arrogante em relação aos outros alunos, mas um
óptimoactor.
Quer dizer, então, que não teve quaisquer problemas com ele? perguntei-lhe.
Oh, recordo-me de que ele armou uma grande zaragata com odirector. Queria usar o seu nome artístico em vez do nome do protagonista. Mas o director
recusou.
E que nome era esse?
Só um minuto. Vou tentar lembrar-me.
Não se passou qualquer coisa com o Rob Westerfield e uma peruca, Corinne?perguntou o Dr. Dittrick. Lembro-me de algo assim.
236
Queria pôr uma peruca que tinha usado durante um espectáculo na escola ondedantes andara, mas o director também não permitiu isso. O
Robsaiu do camarim com a peruca dele e só a trocou pela que tinha de usar na peçano último segundo. Ouvi dizer que também costumava andar por aí com essa
perucaenfiada na cabeça. Foi repreendido inúmeras vezes por causa disso, mas continuou a fazê-lo.
A Dra. Bostrom olhou para mim.
Isso não consta da ficha dele disse-me.
É evidente que a ficha do Westerfield foi limpa disse impacientemente o Dr.Dittrick. Por que é que acham que o centro de atletismo foi completamenterenovado
nessa altura? Bastou o Egan, o presidente da administração, sugerir aopai que o Rob talvez se sentisse melhor noutra escola.
A Dra. Bostrom voltou a olhar para mim com ar alarmado.
Não se preocupe. Não vou publicar isso sosseguei-a. Fui buscar o telefoneportátil à bolsa.
Vou-me já embora, mas tenho de fazer um telefonema antes de partir. Tenho estado em contacto com o Christopher Cassidy, a pessoa em quem o Westerfield
bateuquando ambos estudavam em Arbinger. O Sr. Cassidy contou-me que o Westerfieldusava por vezes o nome de uma personagem que tinha representado no palco.Prometeu
que ia tentar descobrir de que nome se tratava.
Marquei o número.
Companhia de Investimentos Cassidy disse energicamente a telefonista.
Estava com sorte. Christopher Cassidy tinha regressado da viagem à Europa epassaram-mo imediatamente.
Fartei-me de procurar, mas acabei por descobrir o nome que o Westerfield usavadisse-me em tom triunfante. É de uma personagem de uma das peças que
elerepresentou.
Já me lembro do nome estava Corinne Barsky a dizer, toda excitada.
Cassidy encontrava-se em Boston e Barsky estava a poucos metros de mim no estado de Maine. Mas ambos pronunciaram
o mesmo nome.
237
Jim Wilding.
Jim! pensei. Fora Rob quem desenhara a planta da casa.
Tenho de atender outra chamada, Ellie desculpou-se Cassidy.
Faça favor. Era tudo o que precisava de saber.
O que escreveu no seu website sobre o que lhe contei éformidável. Tem todo o meu apoio.
Desligou.
Corinne Barsky tinha aberto um dos programas.
Isto deve interessá-la, Ms. Cavanaugh. O director costumavapedir a todos os membros do elenco para assinar os programas.
Estendeu-mo e apontou com um dedo.
Com desafiadora arrogância, Rob Westerfield tinha assinado, não o nome dele maso de Jim Wilding.
Fiquei a olhar para a assinatura durante um longo minuto.
Preciso de fazer uma cópia disse. Cuidem bem do original, por favor. Atégostaria de lhes pedir que o guardassem num cofre.
Vinte minutos mais tarde, estava sentada no meu carro a comparar a assinatura na planta da casa e a do programa.
Não sou perita em grafologia, mas, ao comparar a maneira como o nome «Jim»estava assinada em ambos os documentos, pareceu-me que as assinaturas
eramiguais.
Regressei a Oldham exultante perante a perspectiva de as mostrar lado a lado naInternet.
A Sra. Dorothy Westerfield seria obrigada a encarar a verdade. O neto tinhaplaneado assassiná-la.
Devo confessar que desfrutei o benevolente sentimento de estar prestes a dargrandes alegrias a um dado número de obras de caridades, hospitais,
bibliotecase universidades.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
Quando me deito, tenho o hábito de colocar o telefone portátil na almofada aolado da minha. Desatou a tocar na terça-feira de manhã e acordou-me.
Enquantoarticulava um sonolento «Alo», lancei um olhar ao relógio e fiquei chocada aover que eram nove horas.
Deves ter feito uma noitada.
Era Pete.
Vamos lá a ver disse eu. Guiei de Maine a Massachusetts e atravessei o estado de Nova Iorque. Foi a noite mais excitante de toda a minha vida.
Talvez estejas demasiado cansada para vires até Manhattan.
Talvez estejas a tentar safar-te do convite para eu ir a Manhattan insinuei.
Por esta altura já estava completamente acordada e à beira de ficar desapontadae zangada.
A minha sugestão era eu ir buscar-te a Oldham e, depois, descobrirmos umsítio onde jantarmos juntos.
Isso é diferente disse alegremente. Estou a pensar num lugar óptimo a apenas 15minutos da estalagem.
Assim é que é falar. Dá-me as direcções. Foi o que fiz e ele felicitou-me.
És uma das poucas mulheres que conheço que sabe dar direcções precisas. Fui euque te ensinei? Não vale a pena responderes. Chego aí por volta das
sete.
239
Clique.
Chamei o serviço de quartos, tomei um duche, lavei o cabelo e marquei lugar numsalão de pedicura perto da estalagem para as quatro horas. Partira
várias unhasquando tinha caído no parque de estacionamento e queria tratar do assunto.
Até demorei a examinar o meu reduzido guarda-roupa e acabei por escolher ascalças e o casaco castanho com punhos e gola de caracul. O fato compradoimpulsivamen
te no fim da estação do ano passado e, mesmo a metade do preço,tinha sido caro e eu ainda não o usara.
Exibi-lo diante de Pete pareceu-me uma boa ideia.
Era confortável antecipar algo ao fim do dia. Sabia que não ia ser fácil passara tarde a escrever a história de Alfie sobre o assalto e associar
o diagramaincriminatório à utilização do nome de Jim por Rob Westerfield.
Quando digo não ser fácil refiro-me à parte emocional, por causa da insuportável certeza de que, se Rob Westerfield tivesse sido condenado por esse
crime,Andrea nunca o teria conhecido.
Estaria na prisão. E ela teria crescido e ido para a universidade, como Joan;talvez mesmo se casasse e tivesse filhos. Os meus pais ainda viveriam
naquelacasa maravilhosa; o papá acabaria por gostar de lá morar tanto como ela e, poresta altura, já se teria dado conta da boa compra que fizera.
Eu teria crescido num lar feliz e ido igualmente para a universidade. Terescolhido a carreira de jornalista nada tinha a ver com a morte de Andrea,
e,assim, eu trabalharia provavelmente no mesmo género de emprego. Era umaprofissão que naturalmente me atraía. Continuaria solteira.Penso que sempre preferi
uma carreira a um compromisso.
Se Rob tivesse sido condenado, eu não teria passado a vida a lamentar a morte da minha irmã e a ansiar o que perdera.
Agora, mesmo que consiga convencer a avó de Rob e o resto do mundo da suaculpabilidade, ele ainda pode escapar pois o crime de que ele é acusado
jáprescreveu.
E, mesmo que a avó altere o testamento, o pai é rico e, assim, Rob há-de viverbem.
240
Mentiroso como ele é, a história que Will Nebels irá contar num segundojulgamento pode criar suficientes dúvidas no espírito dos jurados
para que estes absolvam Westerfield.
E, então, o seu cadastro criminal ficará limpo.
Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
Havia apenas uma maneira de voltar a pôr Rob Westerfield atrás das grades:seguir a pista de Phil, essa outra pessoa a quem ele tirara a vida. Felizmente,os
casos de homicídio não prescreviam.
Estava pronta a transferir tudo para o website por volta dastrês e meia: o espancamento de Christopher Cassidy na escola preparatória; amania
de Rob usar o nome de Jim por causa da personagem que ele representara nopalco; o papel dele no plano para matar a avó.
Expliquei que William Hamilton, o advogado nomeado pelo tribunal, tinhadestruído o diagrama original que implicava Westerfield e terminei o artigomostrando
a planta da casa e o programa lado a lado. No ecrã, a semelhança entre as duas assinaturas de «Jim» era impressionante.
Beijei a ponta dos dedos para me despedir do artigo, carreguei na tecla adequada do computador e, instantes mais tarde, a história que tinha escritoencontrava-se
no meu website.
CAPÍTULO QUARENTA
Era um quarto para as cinco quando regressei à estalagem. A indústria decosméticos iria à falência se dependesse de pessoas como eu. O pouco demaquilhagem
que possuía perdera-se no incêndio. Um dia ou dois mais tarde, tinha comprado uma caixa de pó-de-arroz e baton, mas chegara aaltura de passar meia hora a substituir
produtos tais como máscara e rouge.
Apesar de, nessa manhã, ter dormido até às nove, ainda tinha sono e queriafazer uma sesta antes de me vestir para ir encontrar-me com Pete.
Perguntei a mim própria se um maratonista se sentiria assim ao ver a meta final. Um corredor sabe que o fim da corrida está próximo. Ouvi dizer que
há ummomento, que dura fracções de segundo, em que o atleta abranda, toma fôlego elança-se a toda a velocidade a caminho da vitória.
Era assim que eu me sentia. Tinha encostado Rob Westerfield às cordas e estavaconvencida de estar quase a saber a verdade do que ele fizera a Phil
e onde isso tinha acontecido. Se eu estivesse certa, mandá-lo-ia de novo para a prisão.
Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
E, a seguir, quando fosse feita justiça de verdade, quando o comité a favorde Rob Westerfield tivesse sido dissolvido e esquecido, só então eu
daria osmeus próprios passos hesitantes rumo ao futuro como um pintainho acabado denascer.
242
Esta noite, iria encontrar-me com alguém que eu desejava ver e que também queria ver-me. Onde iríamos? Não sabia e não procurava tão longe, mas, pela
primeiravez na minha vida, antecipava o futuro com a minha dívida em relação ao passadoquase paga. Era um sentimento cheio de esperança e gratificante.
Entrei na estalagem e o meu meio-irmão, Teddy, estava à minha espera.
Desta vez, não sorria. Parecia sentir-se pouco à vontade, mas determinado ecumprimentou-me abruptamente.
Temos de falar, Ellie.
Convidei o seu irmão a esperar por si na sala de visitas, mas ele teve receio de não a ver passar disse a Sra. Willis.
Tem toda a razão, eu cá não o teria visto, pensei. Teriasubido as escadas como um relâmpago se soubesse que ele estava à minha espera.
Não queria que ela ouvisse o que quer que ele me tinha a dizer e, assim,dirigi-me para a sala de visitas. Ele fechou a porta e ficámos a olhar
um para o outro.
Tens de me ouvir, Teddy comecei. Sei que tu e o teu pai não fazem isto por mal,mas não podem andar constantemente a seguir-me. Estou bem e sei tomar
conta demim mesma.
Não sabes, não.
Os seus olhos cintilavam e, naquele momento, parecia-se tanto com o meu pai quesenti ser transportada para a sala de jantar da nossa antiga casa.
O papá diziaa Andrea que estava proibida de ter alguma coisa a ver com o Rob Westerfield.
Vimos o que escreveste esta tarde no website. O papá estámuito preocupado. Explicou-me que, agora, os Westerfield têm de pôr termo a esta situação
e que hão-de fazê-lo. Disse que te tornaste uma ameaça para eles e que corres um grande perigo. Não podes fazer isso ao papá nem a ti mesma, Ellie.Nem a mim.
Mostrava-se tão aflito, tão veemente, que tive pena dele. Pousei a mão no seubraço.
Não quero afligi-los, Teddy. Estou a fazer o que tenho de fazer. Não sei comodizer-te, mas, por favor, deixa-me em paz. Viveste toda a tua vida
sem mim e oteu pai viveu sem mim desde
243
que eu era pequenina. O que é que se passa? Tentei explicar-te o outro dia...Não me conheces. Não deves preocupar-te por minha causa. És um miúdo
simpático,mas deixemos as coisas como estão.
Não sou apenas um miúdo simpático. Sou o teu irmão. Quer queiras ou não, sou teu irmão. E pára de dizer «o teu pai». Pensas que sabes tudo, mas não
sabes,Ellie. O papá nunca deixou de ser o teu pai. Falou sempre de ti e eu sempre quis ouvir o que ele tinha para dizer a teu respeito. Contou-me que eras uma
miúdaformidável. Nem sequer deste por isso, mas ele foi assistir à cerimónia daentrega de diplomas quando te formaste. Passou a assinar o Atlanta Newsquando
lá começaste a trabalhar e leu todos os artigos queescreveste. Por isso deixa de dizer que ele não é teu pai.
Recusava-me ouvir e abanava a cabeça.
Não percebes nada, Teddy. Quando a minha mãe e eu fomos para a Florida, eledeixou-nos partir.
Ele contou-me que é isso que tu julgas, mas não é verdade. Não as deixou partir. Queria que voltassem. Tentou reavê-las. As raras vezes em que o visitastequando
a tua mãe se separou dele, não lhe dirigias uma palavra e nem sequercomias. O que é que ele deveria ter feito? A tua mãe disse-lhe que haviademasiado pesar
debaixo do mesmo tecto, que ela só queria lembrar-se dos bonsmomentos e seguir uma nova vida. E foi o que fez.
Como é que sabes isso tudo?
Porque lhe perguntei. Porque julguei que ele ia ter um ataque cardíaco quandoviu o último artigo que escreveste no website. Tem 67 anos,Ellie,
e pressão arterial muito elevada.
Ele sabe que estás aqui?
Disse-lhe que vinha ver-te. Peço-te que venhas para casa comigo, mas, se nãoquiseres, sai pelo menos daqui e vai para um sítio onde ninguém, a não
ser nós,saiba onde estás.
Era tão sincero e carinhoso que quase o abracei.
Há coisas que não compreendes, Teddy. Eu sabia que a Andrea talvez fosseencontrar-se com o Rob naquela noite, mas não disse nada. Tenho carregado
essaculpa toda a minha vida. E, agora, se for novamente julgado, o Westerfield vaiconvencer uma
244
data de gente que quem matou a Andrea foi o Paulie Stroebel. Não salvei aAndrea, mas tenho de tentar salvar o Paulie.
O papá disse-me que o culpado por a Andrea ter morrido era ele. Chegou tarde acasa. Um dos tipos com quem trabalhava ia-se casar e o papá foi tomar
umacerveja com ele. Andava preocupado porque desconfiava que a Andrea continuava aver o Westerfield às escondidas. Contou-me que, se tivesse chegado a casa
maiscedo, nunca a teria deixado ir estudar a casa da Joan naquela noite... Em vez de ir à garagem, a Andrea ficaria sã e salva em casa.
Via-se que acreditava plenamente no que estava a dizer-me. Estava a minhamemória assim tão distorcida? Não totalmente. Não era assim tão simples.
Mas era o meu constante sentimento de culpa «Se pelo menos a Ellie nos tivesse dito»apenas parte de um todo? A minha mãe deixava a Andrea sair depois do anoitecer
e o meu pai suspeitava que a minha irmã continuava a ver Rob Westerfield, masainda não tinha tido uma conversa a sério com ela. A minha mãe tinha insistidopara
que nos mudássemos para o que era então uma comunidade rural e isolada. Omeu pai pode ter sido demasiado rigoroso com Andrea; a sua necessidade de aproteger
pode tê-la feito revoltar-se. Eu era a confidente que estava a par dosencontros em segredo.
Tínhamos nós os três escolhido viver com a culpa e a dor dentro das nossas próprias almas ou tínhamos tido outra escolha?
A minha mãe é uma mulher muito simpática, Ellie. Era viúva quando conheceu opapá. Sabe o que significa perder um ente querido. Quer conhecer-te
e tu vaisgostar dela.
Prometo que, um dia, hei-de conhecê-la, Teddy.
Em breve.
Quando isto tudo acabar. Não vai demorar muito mais tempo.
E vais falar com o papá? Dás-lhe uma oportunidade?
Quando isto acabar repeti. Iremos almoçar juntos ou uma coisa assim. Prometo.Hoje à noite vou sair com o Pete Lawlor, uma pessoa com quem trabalhei
emAtlanta. Não quero que nenhum de vocês me siga. Ele vem buscar-me e, depois, vem cá trazer-me novamente.
245
O papá vai ficar aliviado por ouvir isso.
Agora, tenho de ir ao meu quarto, Teddy. Tenho de fazer uns telefonemas antes de sair.
Já disse o que queria dizer. Ou talvez não. Há mais uma coisa que o papá medisse que tu devias saber... Perdi uma menina, não posso perder outra.
CAPÍTULO QUARENTA E UM
Se estava à espera de um toque romanesco no nosso encontro, tinha-me enganadoredondamente.
Estás com óptimo aspecto saudou-me Pete, dando-me um rápido beijo na face.
E tu estás tão bem vestido que até parece que ganhaste um concurso para fazercompras no Bloomimgdale's durante 15 minutos.Vinte minutos
corrigiu ele. Estou a morrer de fome, tu não?
Tinha reservado uma mesa no Cathryn's.
Tenho um grande pedido a fazer-te disse-lhe quando íamos a caminho do restaurante.
Força.
Esta noite, não me apetece falar do que tenho feito nestas últimas semanas. Como tens visto o meu website, estás de qualquer modo ao correntedo
que se passa. Mas preciso de me desligar de tudo isso durante umas horas.Esta noite é tua. Fala-me de todos os sítios por onde tens andado desde que tevi
em Atlanta. Quero saber todos os pormenores da entrevista que tiveste. E, aseguir, explica-me por que é que estás tão contente com o emprego quearranjaste.
Podes até dizer-me se te foi difícil escolher essa tua bela eobviamente nova gravata.
247
Pete tem uma maneira muito especial de erguer a sobrancelha. E foi o que fez.
Estás a falar a sério?
Absolutamente.
No minuto que vi esta gravata, soube logo que tinha de serminha.
Muito bem encorajei-o. Quero que me contes mais.
No restaurante, percorremos o menu e pedimos salmão fumado, esparguete commariscos e concordámos beber uma garrafa de Pinot Grigio.
Dá jeito o facto de ambos gostarmos das mesmas entradas comentou Pete. Torna a escolha do vinho mais fácil.
A última vez que aqui estive, comi uma espetada de cordeiro disse-lhe.
Fitou-me.
Adoro irritar-te admiti. Vê-se.
Abriu-se mais comigo durante o jantar.
Sabia que o jornal estava nas últimas, Ellie. É o que acontece a maior parte das vezes com negócios de família. As novas gerações só estão interessadas
emdólares. Para te ser franco, estava a ficar nervoso. Na nossa profissão, e a não ser que se tenha um bom motivo para ficar numa empresa deste género, tem
de seandar à coca de outras oportunidades.
Então por que é que não te foste embora mais cedo? Olhou para mim.
Sem comentários. Fiquei ciente de duas coisas quando tudo se tornou inevitável.Queria ir trabalhar para um bom jornal... The New York Times, o L.A.
Times,o Chicago Tribou o Houston Chronicle...ou tentar algo completamente diferente. Podia arranjar emprego num jornal, mas foi então que surgiu «esse algo
completamente diferente» e euatirei-me de cabeça.
Uma nova estação de notícias por cabo.
Exactamente. Estou a começar do zero. Tem riscos, claro está, mas grandesinvestidores estão empenhados no seu sucesso.
Disseste que vais ter de viajar muito...
248Muito, quer dizer, tantas viagens quantas um coordenador de notícias tem defazer para seguir uma história importante.
Vais ser coordenador de notícias?
Talvez isso soe demasiado grandioso. Estou no serviço de informações. Breves eincisivas. Talvez dê resultado e talvez não.
Reflecti sobre o que ele acabava de me dizer. Pete era esperto, veemente perspicaz.
Acho que te vais sair muito bem disse-lhe.
A tua maneira de me elogiar é tão enternecedora, Ellie. Não exageres, por favor. Pode dar-me voltas à cabeça.
Não fiz caso.
Quer dizer, então, que a tua base será em Nova Iorque e que tevais mudar para lá?
Já mudei. Encontrei um apartamento no Soho. Não é grande coisa, mas é um começo.
Não vai ser uma grande mudança para ti? Toda a tua família vive em Atlanta.
Os meus avós, de ambos os lados, são nova-iorquinos. Costumava visitá-los imenso em miúdo.
Estou a perceber.
Calámo-nos enquanto o empregado limpava a mesa e, depois, pedimos doisexpressos.
Acabou-se a brincadeira, Ellie. Já jogámos o jogo segundo as tuas regras. Agora, quero saber tudo o que tens andado a fazer.
Por esta altura eu já estava disposta a falar e, assim, contei-lhe tudo,incluindo a visita de Teddy.
O teu pai tem razão disse Pete quando terminei. Tens de ir para casa dele ou,pelo menos, desapareceres de Oldham.
Talvez ele tenha, de facto, razão admiti com relutância.
Tenho de ir a Chicago amanhã de manhã para me encontrar com o conselho daadministração da Packard Cable. Vou estar ausente até domingo. Vai, por
favor,para Nova Iorque e fica no meu apartamento. Podes manter-te em contacto com oMarcus Longo, a Sra. Hilmer e a Sra. Stroebel de lá e continuar a enviarmaterial
através do teu website. Mas estarás em segurança.Fazes-me esse favor?
249
Sabia que ele tinha razão.
Está bem. Mas só durante uns dias. Até decidir para onde vou. Quando voltámospara a estalagem, Pete deixou o carro à porta e acompanhou-me até lá
dentro.
Alguém veio à procura da Ms. Cavanaugh? perguntou Pete aoempregado da recepção.
Não, senhor.
E também não há nenhum recado para ela?
O Sr. Longo e a Sra. Hilmer telefonaram.
Obrigado.
Ao pé das escadas, ele pôs as mãos nos meus ombros.
Sei que tinhas de ir ao fundo disto tudo, Ellie, e compreendo. Mas, agora, jánão podes continuar sozinha. Precisas de nós.
Nós?
Sim. Do teu pai, do Teddy e de mim.
Tens falado com o meu pai, não tens? Fez-me uma festa no rosto.
Claro que tenho.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
Sonhei imenso naquela noite. Sonhos ansiosos. Andrea a correr pelo bosque fora.Tentei chamá-la, mas não conseguia que me ouvisse e, desesperada,
vi-a passarpela casa da Sra. Westerfield e entrar na garagem. Tentei avisá-la aos gritos,mas, então, Rob Westerfield apareceu e fez-me sinal para eu me ir
embora.
Acordei ao som da minha própria voz a tentar pedir socorro. Rompia a madrugada e vi que iria ser mais outro daqueles dias cinzentos e frios de princípios
deNovembro.
Já em criança achava as duas primeiras semanas de Novembro tristes, mas, a meiodo mês, o ambiente festivo do dia de Acção de Graças pairava no
ar. Só aquelasduas semanas me pareciam longas e lúgubres. Após a morte de Andrea, tal épocaficou para sempre associada com a recordação dos últimos dias que
passámosjuntas. O aniversário da sua morte era dentro de uns dias.
Era nisso que pensava deitada na cama e a querer dormir mais uma hora ou duas. O sonho não era difícil de analisar. O aniversário iminente da morte
de Andrea eo facto de eu saber que Rob Westerfield deveria estar furioso pelas últimasinformações no meu website perturbavam o meu espírito.
Tinha de ter muita cautela.
Telefonei para o serviço de quartos às sete horas e, a seguir, pus-me atrabalhar no livro. Às nove tomei um duche, vesti-me e telefonei à Sra.
Hilmer.
251
Esperava que ela me tivesse telefonado para me dizer que se lembrava porqueé que o nome de Phil lhe era familiar. Mas, ao fazer-lhe a pergunta,
imagineique era pouco provável que algo relacionado com Rob Westerfield lhe viesse àcabeça.
Esse nome é a única coisa em que consigo pensar, Ellie disse ela com um suspiro. Telefonei-lhe ontem à noite para lhe dizer que falei com o amigo que
está emcontacto com o Phil Oliver, o homem que teve uma grande desavença com o pai doRob. O meu amigo contou-me que ele continua a viver na Florida, mas
que aindaestá muito zangado pela maneira como foi tratado pelos Westerfield. Adora o seuwebsite. Disse que, se quiser apregoar aos quatro ventos no seu
website dados sobre o mau carácter do filho da Sra. Westerfield, terá muito prazer em falar consigo.
Interessante, pensei, mas, de momento, não tinha qualquerutilidade.
A única coisa que tenho a certeza é que o que ouvi, ou li, sobre esse Phil é bastante recente. E, se isso a ajuda, lembro-me de que fiquei triste.
Triste?
Sei que estou a dizer disparates, mas vou concentrar-me mais. Assim que melembrar, telefono-lhe.
A Sra. Hilmer telefonava-me para a estalagem, mas eu não queria explicar-lhe que ia sair de lá nem entrar em pormenores sobre Pete e o apartamento
dele em NovaIorque.
Tem o número do meu telefone portátil, não tem, Sra. Hilmer?
Tenho, sim.
Como vou andar num rodopio, peço-lhe que me telefone antes para esse número.
Está bem.
A seguir, telefonei a Marcus Longo. Achei que tinha uma voz inquieta e tinharazão.
O que você pôs no seu website é um convite para que oWesterfield e o advogado dele, o William Hamilton, a processem.
Óptimo. Deixe-os lá fazer-me um processo.
252
Ter razão nem sempre é uma defesa legal com muito sucesso. Alei pode ser muito complicada. A planta da casa que você diz ser prova dacumplicidade
do Rob Westerfield na tentativa para assassinar a avó foi-lhe dadapelo irmão do homem que disparou contra ela. E ele mesmo confessou que tinhaguiado o carro
até à casa dessa senhora. Esse tipo não é lá uma grandetestemunha. Quanto é que lhe pagou pela informação?
Mil dólares.
Sabe como é que isso seria considerado em tribunal, não sabe? Caso não saiba,deixe que eu lhe explique. Andou com um cartaz na mão à porta da penitenciária
a pedir informações e chegou até a pôr anúncios no seu website que diziam mais ou menos assim: «Quem tiver conhecimento de algum crime queRob Westerfield
possa ter cometido será devidamente recompensado.» O tipo quelhe passou o diagrama pode ser um grande aldrabão.
Acha que sim?
O que eu acho não interessa.
Interessa, pois, Marcus. Acredita, ou não, que o Rob Westerfield planeouassassinar a avó?
Acredito, mas sempre pensei que tinha sido ele. Isso nada tem a ver com oprocesso por difamação que lhe podem instaurar...
Quem dera que o façam. Tenho uns dois mil dólares no banco e um carro com areiano depósito de gasolina que, muito provavelmente, vai precisar de
um motor novo, e posso ganhar uma boa maquia com o meu livro.
É lá consigo, Ellie.
Tenho duas coisas para lhe dizer, Marcus. Saio daqui hoje e vou-me instalar noapartamento de um amigo.
Espero que não seja por estas bandas.
Não, é em Manhattan.
Isso alivia-me imenso. O seu pai está a par disso? Caso contrário, aposto quelhe vai dizer, pensei.
Quantos dos meus amigos em Oldham estariam em contacto com o meu pai?,perguntei-me.
Não sei disse sinceramente.
253
Que eu soubesse, Pete podia ter-lhe telefonado ontem à noite logo que me deixou.
Ia perguntar a Marcus se ele tinha descoberto alguma vítima de homicídio chamada Phil, mas ele antecipou-se.
Até agora não encontrei nada que comprometa o Westerfield noutro crime disse.Mas ainda há muito a fazer. Também estamos a seguir a pista daquele
nome que oRob usava na escola.
Jim Wildinng?
Sim.
Concordámos manter-nos em contacto.
Não falava com a Sra. Stroebel desde domingo à tarde. Telefonei para o hospital esperando que me dissessem que Paulie tinha tido alta, mas eleainda
lá se encontrava.
A Sra. Stroebel estava a fazer-lhe companhia no quarto.
Está muito melhor, Ellie. Passo por aqui por volta desta hora todos os dias. Vou depois para a charcutaria e volto ao meio-dia. Abençoada seja a Greta.Conheceste-
a no dia em que trouxeram o Paulie para o hospital. É tão boa...Tem-me ajudado imenso.
Quando é que o Paulie regressa a casa?
Penso que amanhã. Ele quer ver-te outra vez, Ellie. Está a tentar lembrar-se deuma coisa que lhe disseste e que ele acha que não é assim. Quer explicar-te,
mas não consegue lembrar-se. Deram-lhe tantos remédios, estás a perceber...
O coração caiu-me aos pés. Algo que eu tinha dito? Valha-me Deus! Estava Paulienovamente confuso ou ia negar o que me tinha dito? Ainda bem que
não tinhapublicado a história dele relacionando Rob Westerfield com o medalhão nowebsite.
Posso ir vê-lo agora propus.
Por que é que não vens à uma hora? Estarei aqui e julgo que isso o faz sentir-se mais à vontade.
Mais â vontade... pensei. Ou quer certificar-se de que elenada dirá que o incrimine? Não, não era isso.
Muito bem, Sra. Stroebel. Se chegar antes da senhora, esperarei por si.
254
Obrigada, Ellie.
Parecia tão agradecida que tive vergonha de mim mesma por pensar que ela estavaa tentar impedir Paulie de me contar a verdade. A vida dela estava
agora dividida entre a charcutaria e as visitas ao filho convalescente. Deus ameniza o vento para que este não fustigue os cordeiros tosquiados. E dá a alguém
como Paulie uma mãe como Anja Stroebel.
Consegui trabalhar durante duas horas e, depois, fui ver o website de Rob Westerfield. Ainda tinha a fotografia da minha pessoa amarrada à cama
e, no comité de apoio a Rob Westerfield, figuravam mais nomes. Mas não havianenhuma refutação à história do seu envolvimento na tentativa para matar a avó.
Interpretei isso como sinal de consternação geral. Ainda estavam a discutir oque haviam de fazer.
O telefone tocou às onze horas. Era Joan.
Queres almoçar rapidamente comigo à uma hora? perguntou-me. Tenho coisas parafazer e dei-me conta de que vou para os teus lados.
Não posso. Prometi ir visitar o Paulie ao hospital à uma disse, mas, a seguir,hesitei. Joan...
O que é, Ellie? Estás bem?
Estou óptima. Disseste-me que tinhas um recorte com a notícia necrológica que omeu pai mandou publicar no jornal...
Pois tenho. Até quis mostrar-ta.
Achas que a podes encontrar com facilidade?
Certamente.
Então, se passares pela estalagem, não te importas de a deixar na recepção?
Com certeza.
Havia uma grande actividade à entrada do hospital quando lá cheguei. Virepórteres e operadores de câmara agrupados ao fundo da sala e virei-lhesrapidamente
as costas.
255
A mulher que estava ao meu lado na bicha para obter um passe de visitantecontou-me o que acontecera. A Sra. Dorohty Westerfield, a avó de Rob, tivera
umataque cardíaco e fora transportada de urgência para o hospital.
A noite passada, o seu advogado tinha declarado à imprensa que, em memória dofalecido marido, o senador Pearson Westerfield, a Sra. Westerfield
mudara o seutestamento e deixava a sua fortuna a uma fundação encarregada de a distribuirpor obras de caridade e outras instituições ao longo de um período
de dez anos.
A declaração dizia ainda que as únicas excepções seriam pequenas somas ao filho, alguns amigos e empregados antigos. O neto receberia apenas um dólar.
Ela foi muito esperta, está a perceber confiou-me a mulher. Ouvi jornalistasdizer que, além do advogado, ela mudou o testamento na presença de um
padreprotestante, um juiz amigo e um psiquiatra para servirem de testemunha que elaestava em seu perfeito juízo e sabia perfeitamente o que estava a fazer.
Fora provavelmente o meu website que tinha provocado o ataquede coração e a mudança do testamento. Era uma falsa vitória. Lembrei-me daquelaelegante
e imponente mulher a dar os pêsames à minha mãe no dia de funeral deAndrea.
Um jornalista reconheceu-me, mas consegui escapar pelo elevador.
A Sra. Stroebel encontrava-se no corredor à minha espera. Entrámos juntas noquarto de Paulie. As ligaduras à volta dos pulsos eram agora muito menosespessas.
Os seus olhos eram vivos e o sorriso doce e caloroso.
A minha amiga Ellie! exclamou. Posso sempre contar contigo.
Podes crer.
Quero ir para casa. Estou farto daqui estar.
Isso é bom sinal, Paulie.
Quero voltar ao meu trabalho. Havia muitos clientes para almoçar quando saíste,mamã?
256
Bastantes respondeu ela com um sorriso satisfeito.
Não devias vir visitar-me tantas vezes, mamã.
Agora já não porque em breve estarás em casa, Paulie. Olhou para mim.
Temos um pequeno quarto na charcutaria ao lado da cozinha. A Greta instalou láum divã e uma televisão para o Paulie. Assim, ele vai poder trabalhar,
se lheapetecer, e descansar quando quiser.
Parece-me uma boa ideia comentei.
Paulie, explica agora o que te preocupa acerca do medalhão que encontraste nocarro do Rob Westerfield encorajou a mãe.
Eu cá não sabia o que esperar.
Encontrei o medalhão e entreguei-o ao Rob disse lentamente Paulie. Contei-teisso, não contei, Ellie?
Contaste, sim.
O fio estava partido.
Também já me tinhas dito, Paulie.
O Rob deu-me uma gorjeta de dez dólares e eu juntei-o ao dinheiro que andavaa poupar para comprar um presente à mamã no dia dos seus anos.
Exactamente, Paulie. Isso foi em Maio, quando fiz 50 anos, seis meses antes daAndrea morrer.
Pois. O medalhão era de ouro e tinha a forma de um coração com pedrinhas azuisno meio.
Sim disse eu para o encorajar.
Vi a Andrea com ele ao pescoço. Segui-a até à garagem e vi o Rob ir atrás dela.Mais tarde, preveni a Andrea que o pai dela iria ficar muito zangado
com aquiloe, a seguir, pedi-lhe para vir à festa comigo.
Foi isso mesmo que me contaste, Paulie. Foi assim que aconteceu, não foi?
Foi, mas há qualquer coisa de errado. Ellie, tu disseste uma coisa errada.
Deixa-me cá pensar disse-lhe.
Tentei reconstituir a conversa que tinha tido com ele.
A única coisa que me lembro e que tu não mencionaste é que eu disse que o Robnem sequer tinha oferecido à Andrea
257
um medalhão novo. Limitara-se a mandar gravar as iniciais dele e dela nummedalhão que outra rapariga tinha deixado no carro. Paulie sorriu.
É isso mesmo, Ellie. Era disso que eu precisava lembrar-me. O Rob não mandounada gravar as iniciais no medalhão. Já lá estavam quando o encontrei.
É impossível, Paulie. Tenho a certeza que a Andrea só conheceu o Rob em Outubroe tu encontraste o medalhão em Maio.
Paulie fez uma expressão contrariada.
Eu lembro-me, Ellie. Tenho a certeza. Vi bem que já haviam iniciais gravadas nomedalhão. Não era um R e um A, era A e R. A R em letras muito bonitas.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
Deixei o hospital com a sensação de que estava a perder o controlo dosacontecimentos. A história de Alfie e a planta da casa que tinha publicado
nomeu website tinham tido o efeito desejado: Rob Westerfield fora deserdado pela avó. Tal gesto correspondia a ela dizer alto e bom som:«Acredito que o meu
único neto planeou matar-me.»
A dor sentida e a decisão que fora obrigada a tomar tinham-lhe sem dúvidaprovocado o ataque de coração. Aos 92 anos, parecia-me pouco provável
que elasobrevivesse.
Voltei a lembrar-me da calma dignidade com que ela tinha saído depois que o meupai a pusera fora de nossa casa. Ele fora a primeira pessoa a humilhá-la
porcausa do neto. Ou não era bem assim?
O marido, o senador, tinha frequentado a escola de Arbinger e parecia-me duvidoso que ela desconhecesse a razão pela qual o neto foraexpulso de
lá.
O facto de ter alterado o testamento e tomado todas as precauções para que elenão fosse legalmente contestado significava, a meu ver, que ela não
sóacreditava que ele tinha planeado matá-la como também estavaconvencida de que Rob era responsável pela morte de Andrea.
Isto fez-me evidentemente voltar a pensar no medalhão.
O medalhão já tinha as iniciais «A» e «R» gravadas antes de Rob ter conhecido Andrea.
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Esse facto era tão espantoso, tão exasperantemente fora de contexto com o meuraciocínio, que, depois de sair do hospital, tive de o deixar assentar
no meuespírito até me habituar.
A manhã cinzenta tinha-se transformado numa tarde igualmente parda. O meu carroencontrava-se no fundo do parque de estacionamento do hospital e
caminhei na sua direcção a passos rápidos com a gola do casaco levantada para me proteger dovento frio e húmido.
Meti-me no carro e arranquei, sentindo que tinha o princípio de dor de cabeçacausada pelo facto de ser uma e meia e eu não ter comido desde as sete
e umquarto da manhã.
Enquanto conduzia olhava para todos os lados para ver se descobria um café ou um restaurante. Vi vários que me pareceram bastante bons. O motivo de
eu não medeter tornou-se evidente quando rejeitei mais um. Ir a um lugar público emOldham fazia-me sentir vulnerável.
Voltei à estalagem, satisfeita por ali estar e também ansiosa por me encontrarno anonimato de Manhattan. A Sra. Willis estava na recepção e entregou-me
umenvelope. Sabia que era a notícia necrológica que Joan me deixara.
Levei-a para o meu quarto, pedi uma sanduíche e chá, e, depois, sentei-me numacadeira diante da janela que dava para o rio Hudson. Era o género
de paisagemque a minha mãe teria adorado, com falésias elevando-se na neblina e a águapardacenta e irrequieta.
O envelope estava fechado. Abri-o.
Cavanaugh: Genine (Reid, nome de solteira). Nascida em Los Angeles, Califórnia,51 anos de idade. Ex-mulher amada de Edward e carinhosa mãe de Gabrielle
(Ellie) e da falecida Andrea. Participava nas actividades da igreja e da comunidade ecriou um lar feliz e maravilhoso para a sua família. Sentiremos sempre
a suafalta e será sempre amada e lembrada.
Queria dizer então que a minha mãe não fora a única a lembrar-se dos anosfelizes que tínhamos passado, pensei. Escrevera
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a meu pai uma carta impertinente para o informar da morte de minha mãe e paralhe pedir que as suas cinzas fossem enterradas na sepultura
de Andrea.
Estava tão envolvida no meu próprio pesar que nunca me passou pela cabeça que anotícia da morte dela o poderia afectar profundamente.
Decidi que iria almoçar com o meu pai, conforme prometera a Teddy, quanto antes. Guardei o recorte. Queria começar a fazer as malas imediatamente e
partir omais depressa possível. Foi então que o telefone tocou.
Era a Sra. Hilmer.
Ellie, não sei se a informação que tenho é útil, mas já sei onde li a referência a uma pessoa chamada Phil.
Onde foi, Sra. Hilmer? Onde é que a viu?
Num dos jornais que me passou.
Tem a certeza?
Absoluta. Lembro-me de que a li quando me encontrava em casa da minha neta. Obebé estava a dormir e eu percorria os jornais à procura de nomes de
pessoas que ainda viviam por estas lados e com quem você poderia desejar falar. Como lhedisse quando jantámos juntas, ler as transcrições do julgamento trouxe-me
tantas recordações que desatei a chorar. A seguir, li algo sobre esse tal Phil quetambém era muito triste.
Mas não se lembra do que dizia?
É por isso que, mesmo que volte a encontrar a notícia, pode ser que tenha apessoa errada em mente.
O que é que a leva a pensar isso?
Porque você anda à procura de um homem chamado Phil e eu li uma coisa sobre umamenina que morreu a quem a família tratava por Phil.
Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
Queria dizer, então, que ele estava a falar de uma rapariga?
A vítima era uma menina.
Vou reler todos esses jornais linha a linha, Sra. Hilmer.
É o que estou a fazer neste momento, Ellie. Telefono-lhe assim que encontrar anotícia.
261
E eu faço a mesma coisa.
Desliguei, pousei o telefone sobre a mesinha-de-cabeceira e peguei na sacola.Abri-a, virei-a ao contrário e as páginas amarelas e meio desfeitas
dos jornaiscaíram em cima da cama.
Peguei na primeira que me veio à mão, sentei-me na janela diante do rio ecomecei a ler.
As horas passavam e, de vez em quando, levantava-me para me espreguiçar. Àsquatro, telefonei ao serviço de quarto para me trazer chá. O chá espevita.
Nãoera esse o slogan publicitário de uma marca de chá?
E, de facto, espevitou-me, ajudando-me a concentrar-me.
Li os jornais linha a linha e voltei a ler os horríveis pormenores da morte deAndrea e o julgamento de Rob Westerfield.
«A R» eram, afinal de contas, as iniciais do medalhão assim tão poucoimportantes? Não. Claro que não. Se o fossem, Rob nunca se arriscaria a voltar
à cena do crime para o ir buscar.
Eram «A R» as iniciais da dona do lindo medalhão e teria sido ela mais umavítima das fúrias assassinas de Rob?
Às seis horas, larguei os jornais e liguei o noticiário. A Sra. DorothyWesterfield tinha morrido às três e meia. Nem o filho nem o neto tinhamaparecido.
Voltei à minha leitura dos jornais. Às sete, descobri a notícia. Encontrava-sena página necrológica do jornal publicado no dia do funeral de Andrea.
Dizia oseguinte:
Rayburn, Amy P.
Recordamos-te hoje e todos os dias. Feliz 18.° aniversário no céu, querida Phil.
A tua mamã e o teu papá.
«A R». Seriam as iniciais do medalhão as de Amy Rayburn? A inicial do meio eraP. Poderia ser Phillys, ou Philomena, abreviada para Phil?
Paulie tinha encontrado o medalhão em princípios de Maio. Andrea estava morta há 23 anos. Se a dona do medalhão era Amy Rayburn, teria morrido há vinte
e trêsanos e meio?
262
Telefonei a Marcus Longo, mas ninguém respondeu. Estava em pulgas para que eleprocurasse o nome de Amy Rayburn nos relatórios de homicídiodesse
ano.
Sabia que havia uma lista telefónica de Westechester na gaveta damesinha-de-cabeceira. Tirei-a e abri-a na página R.
Havia apenas dois Rayburn. Um vivia em Larchmont e o outro em Rye Brook.
Marquei o número do que morava em Larchmont. A voz modulada de um homem de idade respondeu. Tinha de falar de forma directa.
O meu nome é Ellie Cavanaugh disse. Preciso de falar com alguém da família daAmy Rayburn, a rapariga que morreu há vinte e três anos.
Porque motivo?
A voz tornou-se bruscamente ríspida. Tive a sensação de que estava a falar pelomenos com um parente da rapariga morta.
Por favor, responda-me a uma só pergunta disse eu. Responderei depois a todas as suas perguntas. A Amy foi assassinada?
Se já não sabe isso, não devia incomodar-nos. Desligou brutalmente.
Voltei a telefonar, mas, desta vez, foi o atendedor de chamadas que respondeu.
Chamo-me Ellie Cavanaugh repeti. Há vinte e três anos, a minha irmã foi morta àpancada. Creio que posso provar que o homem que a matou é também
responsávelpela morte da Phil. Por favor, telefone-me.
No momento em que ia deixar o número do meu telefone portátil, o auscultador foi levantado do outro lado.
Sou tio da Amy Rayburn disse-me. O que é que está para aí a dizer?... O homemque a assassinou passou 18 anos na cadeia.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
A pessoa a quem tinha telefonado, David Rayburn, era tio da rapariga de 17 anos, Amy Rayburn, que fora assassinada seis meses antes de Andrea. Falei-lhe
daminha irmã, da confissão de Rob Westerfield a outro recluso, da descoberta domedalhão feita por Paulie no carro de Rob e do facto de o medalhão ter sidotirado
do corpo de Andrea.
Ele ouviu-me, e depois interrogou-me.
O meu irmão era pai da Phil, o diminutivo por quem a família e os amigos íntimos a tratavam. Vou agora telefonar-lhe e dar-lhe o seu número de telefone.
Ele vai certamente querer falar consigo.
E, a seguir, acrescentou.
A Phil estava prestes a terminar o liceu e ia estudar para a universidade. Onamorado dela, Dan Mayotte, sempre clamou a sua inocência e, em vez
de ir para a universidade de Yale, passou
18 anos na prisão.
O meu telefone tocou 15 minutos mais tarde. Era Michael Rayburn, o pai de Phil.
O meu irmão disse-me para lhe telefonar. Não vou tentar descrever a emoção queeu e a minha mulher sentimos neste momento. O Dan Mayotte frequentava
a nossacasa desde o jardim-de-infância. Confiávamos nele como num filho. Tivemos de nos resignar com a morte da nossa única filha, mas pensar que o Dan foiinjustamente
condenado pela morte dela é mais do que
264
podemos suportar. Sou advogado, Ms. Cavanaugh. Que prova é quetem? O David falou-me de um medalhão...
Sr. Rayburn, a sua filha tinha um medalhão em forma de coração com pedrinhasazuis no meio e as iniciais dela gravadas atrás?
Vou passar-lhe a minha mulher.
Admirei o domínio cheio de dignidade da mãe de Phil assim que ela começou afalar.
Lembro-me da morte da sua irmã, Ellie. Tínhamos perdido a nossa filha há somente seis meses.
Descrevi-lhe o medalhão.
Tem de ser o da Phil. Era um desses berloques baratos que se compram nos centros comerciais. Ela adorava esse género de bugigangas e tinha várias.
Costumavausar duas ou três coisas dessas ao mesmo tempo. Mas não sei se usava o medalhãona noite em que foi morta.
É possível que tenha uma fotografia da Phil com ele ao pescoço?
Era a nossa única filha e, por isso, estávamos sempre a tirar-lhe fotografiasdisse a Sra. Rayburn com voz embargada pelas lágrimas. Gostava muito
dessemedalhão e foi por isso que mandou gravar as suas iniciais. Tenho a certeza queposso encontrar uma fotografia dela com o medalhão ao pescoço.
O marido voltou a pegar no telefone.
Pelo o que você disse ao meu irmão, desconhece-se o paradeiro do recluso quegarante ter ouvido o Rob Westerfield confessar que matou a minha filha.
Correcto.
Nunca acreditei que o Dan pudesse ter atacado de forma tão brutal a Phil. Nãoera uma pessoa violenta e eu sei que ele a amava. Mas não há nenhuma
provaconcreta que relacione o Westerfield com a morte da Phil.
Não, não há. Pelo menos, ainda não. Talvez seja demasiado cedo para participarao magistrado federal que sabemos, mas, se me contar as circunstâncias
doassassínio da sua filha e por que é que o Dan Mayotte foiacusado e condenado, posso publicar
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isso no meu website para ver se arranjamos mais informação. Não se importa de me dizer tudo o que sabe.
Há 23 anos que vivemos esse pesadelo, Ellie. Posso recapitular todos ospormenores.
Pode crer que eu compreendo. O pesadelo que a minha família teve de viverdestruiu o casamento dos meus pais, acabando por matar a minha mãe de desgosto,e
há 23 anos que me tortura. Sei muito bem que o senhor e a sua mulher continuam a viver um verdadeiro inferno.
Tenho a certeza que o sabe. O Dan e a Phil tinham-se zangado e não se viam háuma semana. Ele era ciumento e a Phil contou-nos que, na semana anterior,
umtipo tinha metido conversa com ela à porta do cinema e que o Dan ficara furioso. Ela nunca nos descreveu esse tipo nem mencionou o nome dele.
Ela e o Dan não se falaram durante uma semana. Um dia, a Phil estava a comer uma pizza com umas amigas quando apareceu o Dan e se aproximoudela.
Falaram, e acho que acabaram por fazer as pazes. Eram loucos um pelooutro.
Nessa altura, o Dan viu o tal tipo que se tinha metido com a Phil no cinema.Estava de pé encostado ao balcão.
O Dan descreveu-o?
Sim... Um rapaz bonito com cerca de anos e cabelocastanho-escuro. Contou-me que, no cinema, tinha-o ouvido dizer à Phil que sechamava Jim.
Jim f, pensei. Devia ter sido numa dessas alturas em que Rob Westerfield usava uma peruca castanha escura e se fazia passar por Jim.
Ver esse tipo na pizzaria enraiveceu novamente o Dan. Acusou Phil de tercombinado encontrar-se com esse tal Jim, mas ela negou e disse que nem sequertinha
reparado que ele se encontrava lá. E, depois, levantou-se e foi-se embora. Toda a gente notou que se tinham zangado de novo.
Quando o cadáver da Phil foi descoberto, a polícia encontrou pêlos do cão doDan, um setter irlandês, no casaco novo que ela usava naquelanoite.
Claro que ela tinha estado no carro dele muitas vezes, mas, como o casaco tinha sido acabado de comprar,
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os pêlos constituíam prova de que ela tinha entrado no carro do Dan depois de sair da pizzaria.
E o Dan negou que ela tivesse estado no carro dele?
Nunca. Disse que a convenceu a entrar para falarem calmamente da situação, masque, quando comentou que achava uma grande coincidência que esse Jim
tivesseaparecido na pizzaria por acaso, ela se zangou novamente e saiu do carro,mandando-o à fava. Segundo o Dan, a Phil bateu com a porta e encaminhou-se
parao restaurante. Dan admitiu que ficou furioso e que arrancou a toda a velocidade.
A Phil nunca chegou a esse restaurante. Quando começou a fazer-se tarde e elaainda não tinha chegado a casa, telefonámos às amigas com quem saíra.
A mamã e o papá tinham telefonado às amigas de Andrea...
Disseram-nos que ela estava com o Dan. Ao princípio, ficámos descansados,claro. Gostávamos muito dele e estávamos satisfeitos por terem feito as
pazes.Mas as horas foram passando e, quando o Dan finalmente chegou a casa, disse-nosque tinha deixado a Phil no parque de estacionamento e que ela voltara
para orestaurante. No dia seguinte encontraram o corpo dela.
A voz de Michael Rayburn embargou-se.
Morreu de múltiplas fracturas no crânio. O rosto dela ficou irreconhecível.
Matei Phil à pancada e senti-me lindamente.
O Dan admitiu que tinha ficado furioso e perturbado quando ela saíra docarro. Disse que andou às voltas de carro durante uma hora e que, depois,estacionou
à beira do lago e permaneceu lá imenso tempo. Mas ninguém confirmou a sua história. Ninguém o vira e o corpo da Phil foi encontrado no bosque a cerca de dois quilómetros
do lago.
Mais alguém viu o Jim na pizzaria?
Houve pessoas que se lembravam de ter visto um tipo com cabelo castanho-escuro,mas, aparentemente, ele não falou com ninguém e ninguém notou quando
se foiembora. O Dan foi preso, o que deu cabo da mãe dele. Tinha-o criado sozinha e,infelizmente,
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morreu ainda muito jovem e não teve a felicidade de o ver de novo em liberdade.
A minha mãe também tinha morrido demasiado jovem, pensei.
Onde é que o Dan está agora? perguntei.
Formou-se na prisão em vez de ter sido na universidade de Yale. Ouvi dizer quetrabalha como conselheiro de antigos reclusos. Nunca acreditei realmente
que ele tivesse morto a Phil. Se a sua teoria estiver certa, devo as minhas maisprofundas desculpas ao Dan.
Rob Westerfield deve-lhe muito mais do que desculpas, pensei. Deve-lhe 18 anos e a vida que ele deveria ter vivido.
Quando é que vai publicar o que lhe contei no seu website, Ellie? perguntou-me Michael Rayburn.
Assim que o escrever. Cerca de uma hora.
Então não a vou demorar mais. Avise-me se receber alguma informação.
Sabia que a minha vida estava em perigo e que este novo assalto contra osWesterfield era imprudente, mas não me importei.
Quando pensava em todas as vítimas de Rob Westerfield ficava furiosa.
Phil, filha única.
Dan, a vida destruída.
Os Rayburn.
A mãe de Dan.
A avó de Rob.
A minha família.
Dei o seguinte título à história de Phil: «PROMOTOR DA JUSTIÇA DE WESTCHESTER,PRESTE ATENÇÃO!»
Os meus dedos voaram sobre o teclado e, às nove horas, tinha terminado. Reli-oe, com triste satisfação, publiquei-o no website.
Tinha de abandonar a estalagem. Fechei o computador, fiz as malas em cincominutos e desci.
Estava a pagar a conta na recepção quando o meu telefone portátil tocou.
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Pensei que fosse Marcus Longo, mas era uma mulher com sotaque hispânico.
Ms. Cavanaugh?
Sim.
Tenho visto o seu website. Chamo-me Rosita Juarez. Fuigovernanta dos pais do Rob Westerfield. Desde o tempo em que ele tinha dez anosaté ir
parar à prisão. É um indivíduo muito mau.
Apertei o telefone e encostei-o ainda mais ao ouvido. Esta mulher trabalhava emcasa dos Westerfield na altura em que Rob tinha cometido ambos os crimes.
O queé que ela teria para me contar? Parecia assustada. Deus permita que não desligue supliquei.
Tentei acalmar a voz.
Sim, o Rob é realmente um indivíduo muito mau.
Tratava-me mal. Troçava do meu sotaque. Portou-se sempre de forma desagradável e grosseira comigo. É por isso que quero ajudá-la.
E como é que me pode ajudar, Rosita?
Você tem razão. O Rob costumava usar uma peruca castanha-escura. Quando a punha, dizia-me: «Chamo-me Jim, Rosita. Esse nome não deve ser muito difícil
mesmopara uma pessoa como tu...»
Viu-o pôr a peruca?
Essa peruca está em meu poder.
Havia um tom matreiro e triunfante na sua voz.
A mãe do Rob ficava muito aflita quando ele punha a peruca e dizia que sechamava Jim, e, um dia, atirou-a para o caixote do lixo. Guardei-a. Sabia
quetinha sido cara e pensei que a poderia vender. Metia-a dentro de uma caixa eesqueci-me dela até ver o que você tinha escrito no website.
Gostaria de ter essa peruca, Rosita. Terei muito prazer em comprá-la.
Não, não tem de ma comprar. Vai ajudar a fazer com que as pessoas acreditem queele matou essa rapariga, a Phil?
Creio que sim. Onde é que mora, Rosita?
Em Phillipstown.
Phillipstown fazia parte de Cold Springs, a 16 quilómetros de distância.
9
Posso ir buscar a peruca a sua casa agora, Rosita?
Não tenho bem a certeza. Estava a começar a ficar inquieta.
Porquê, Rosita?
Porque o meu apartamento é num prédio de dois andares e a senhoria está sempre à espreita. Não quero que ninguém a veja por aqui. Tenho medo do Rob
Westerfield.
De momento, tudo o que eu queria era pôr as mãos naquela peruca. Mais tarde, ecaso Rob fosse acusado de ter morto Phil Rayburn, tentaria convencer
Rosita atestemunhar.
Vivo perto do hotel Phillipstwon disse ela antes de eu ter tempo para tentarfazê-la mudar de opinião. Se quiser, posso guiar até lá e encontrar-me
consigona porta das traseiras.
Posso lá chegar dentro de minutos disse-lhe. Não, digamos antes meia hora.
Lá estarei. A peruca vai ajudar a meter o Rob na prisão?
Tenho a certeza que sim.
Óptimo!
Rosita soltou um suspiro de satisfação. Tinha arranjado maneira de se vingar doadolescente desagradável cujos insultos tinha suportado durante quase
dez anos.
Apressei-me a pagar a conta e meti as malas no carro.
Seis minutos mais tarde, estava a caminho da prova tangível que Rob Westerfieldcostumava usar uma peruca castanha escura.
Esperava que ainda se pudessem detectar vestígios do ADN de Rob. Isso seria aprova definitiva que a peruca lhe pertencia.
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO
Pouco depois de escurecer, a ligeira neblina tinha-se transformado numa fortechuva fria. Os limpa pára-brisas do carro que tinha alugado precisavam
de sersubstituídos e, antes de eu ter percorrido um quilómetro, quase não via aestrada.
o tráfego tornou-se menos denso quanto mais subia a estrada
9 rumo a norte. Podia ver pelo mostrador no tablier que atemperatura exterior baixava e, dentro de poucos minutos, via a chuvatransformar-se em granizo.
À medida que o gelo se ia amontoando, era cada vezmais difícil distinguir mais do que alguns metros da estrada. Fui obrigada amanter-me na pista da direita
e a guiar lentamente.
O tempo passava e eu tinha medo de perder Rosita. Ela parecia tão nervosa quetinha a certeza de que não iria esperar por mim se não chegasse a horas.
Despendia toda a minha energia para me concentrar na estrada diante de mim e sógradualmente imaginei que subia uma colina. Dei-me conta de que há
já bastantetempo não via faróis vindos em sentido contrário.
O hotel Phillipstown não ficava a mais de 16 quilómetros da estalagem do Vale do Hudson, mas eu já percorrera 12 e ainda não o via. Tinha obviamente
saído daestrada 9- Onde eu me encontrava não era nenhuma auto-estrada e estava a ficarcada vez mais estreita.
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Lancei um olhar ao retrovisor para ver se via faróis. Nada. Frustrada eexasperada comigo mesma, travei gesto estúpido pois o carro começou a derrapar.Consegui
endireitá-lo e comecei cuidadosamente a dar meia volta. Nesse precisoinstante, uma luz vermelha surgiu atrás de mim, encandeando-me. Parei o carro eo que
parecia um veículo da polícia parou ao meu lado.
Graças a Deus!, pensei. Baixei o vidro da janela a fim de pedir direcções para o hotel Phillipstown.
O condutor da carrinha também baixou o vidro e o homem sentado ao lado delevirou-se para mim.
Embora não visse o rosto dele, imaginei imediatamente que era Rob Westerfieldcom uma peruca castanha-escura na cabeça.
Era muito desagradável comigo. Troçava do meu sotaque e dizia para eu o tratarpor Jim disse-me em tom trocista com perfeito sotaque hispânico e
esganiçando avoz como uma mulher.
O meu coração quase parou de bater. Horrorizada, percebi que Rob fizera-sepassar por Rosita e tinha-me preparado uma armadilha. Distingui com dificuldadeo
rosto do condutor era o homem que me tinha ameaçado no parque deestacionamento da estação de caminho-de-ferro perto da prisão de Sing Sing.
Olhei à minha volta procurando freneticamente um meio de escapar. A carrinhabarrava-me o caminho. A minha única esperança era conseguir endireitar
o carro,carregar no acelerador e continuar a guiar em frente às cegas. Acelerei e vi que havia arvoredo de ambos os lados e que a estrada estreitava cada vez
mais. Ospneus derrapavam.
Sabia que não podia distanciar-me deles. A única coisa a fazer era rezar paraque este caminho tivesse saída e me conduzisse a uma auto-estrada qualquer.Tinham
apagado a luz do tejadilho, mas os seus possantes faróis continuavam abrilhar em cheio no meu retrovisor. E, depois, começaram a brincar comigo.
Encostaram-se à minha esquerda e embateram de lado contra o meu carro. Ouvi obarulho de metal a ser esmagado. O meu carro deu um pulo para a frente
e eu bati com a cabeça no volante.
Abrandaram enquanto eu derrapava de um lado para o outro, tentando manter-me nomeio da estrada. Sangrava de um corte na testa, mas consegui segurar
o volante e equilibrar o carro.
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De repente, ultrapassaram-me e meteram-se diante de mim arrancando-me opára-choques. Ouví-o a arrastar no chão enquanto me debatia para
não sair daestrada, rezando para chegar a uma intersecção ou, pelo menos, ver outro carro.
Mas não havia outros carros. Aguardei o terceiro assalto. Era óbvio que iriamfazer para que fosse o golpe final. Abrandaram a velocidade numa curva
daestrada e passaram para a pista da esquerda. Hesitei uns segundos e, depois,acelerei esperando passar-lhes à frente. Mas eles apanharam-me facilmente
epuseram-se outra vez a meu lado.
Lancei-lhes um breve olhar. A luz do interior estava acesa e vi Rob a acenar-mecom qualquer coisa na mão.
Era um macaco.
O carro deles abalroou-me novamente, obrigando-me a sair da estrada. Tenteivirar o volante, mas os pneus já não obedeciam. O carro deu uma reviravolta
erolou pela berma da estrada abaixo direito a uma muralha de árvores a uns dezmetros de distância.
Agarrei-me ao volante. O carro capotou várias vezes enquanto eu protegia o rosto com as mãos e foi embater contra as árvores. O pára-brisas estilhaçou-se.
O som de metal a retorcer-se e de vidro a partir-se tinha sido ensurdecedor, mas o silêncio que se seguiu era fantasmagórico.
Tinha uma dor num ombro e as mãos cheias de sangue. A cabeça latejava. Massentia que, por milagre, não estava gravemente ferida.
O choque final tinha aberto a porta do lado do condutor e o granizo batia-me norosto. O frio ajudou-me a não perder os sentidos. Tudo à minha volta
estavacompletamente às escuras e, de repente, senti um alívio extraordinário. Penseique, ao verem o meu carro cair pela ribanceira abaixo, eles deviam ter
julgadoque eu estava morta e tinham-se ido embora.
Mas dei-me então conta de que não estava sozinha. Ouvi uma respiração ofeganteperto de mim e o som rouco que, em criança, tinha-me parecido um risinho.
Rob Westerfield andava por ali à minha espera como tinha esperado, na escuridãoda garagem, por Andrea há quase 23 anos.
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O primeiro golpe que me deu com o macaco falhou e bateu nas costas doassento. Puxei o cinto de segurança e consegui soltar-me.
Tentei fugir de rastos pela outra porta e o segundo golpe passou tão perto que o senti roçar pelos meus cabelos.
Andrea, Andrea, foi isto que te aconteceu. Oh, meu Deus, porfavor... por favor ajuda-me.
Penso que ambos ouvimos o motor de um carro a contornar a última curva daestrada. Os faróis devem ter iluminado os destroços do meu carro porque
deu avolta e desceu até ao fundo da ribanceira onde nos encontrávamos.
Rob Westerfield, de macaco na mão, foi apanhado em cheio pelo clarão dos faróis. Mas eu também e, agora, ele sabia exactamente onde eu estava.
Precipitou-se na minha direcção com um grunhido. Enfiou o corpo pela janelaaberta e debruçou-se dentro do carro até o seu rosto ficar a poucos
centímetrosdo meu. Ergueu o macaco para me esmagar a cabeça. Tentei empurrá-lo.
Ouvi uma sirena a fender o ar enquanto cobria a cabeça com os braços e espereipela pancada. Queria fechar os olhos, mas não conseguia.
Ouvi o choque antes de ver o rosto de Rob contorcer-se de dor e surpresa. Omacaco caiu-lhe das mãos e ele tombou para a frente. Olhei sem poder
acreditar.
O carro que tinha descido a ribanceira, enquadrado pela janela, ocupava agora oespaço onde ele tinha estado. O condutor vira o que estava a acontecer
e tinhafeito a única coisa possível para me salvar a vida. Tinha acelerado e lançado ocarro sobre Rob Westerfield.
As cintilantes luzes dos carros da polícia transformaram aquela escuridão emdia. Olhei para os meus salvadores.
O meu pai guiava o carro que tinha atropelado Rob e o meu irmão encontrava-se aseu lado. Vi novamente a expressão desesperada do meu pai, a mesma
que tinhavisto quando ele perdera a sua outra menina.
UM ANO MAIS TARDE
Penso muitas vezes nessa noite horrível e percebo como estive perto de partilhar o destino da minha irmã.
Assim que eu partira da estalagem, o meu pai e o meu irmão tinham-me seguido àdistância. Viram o que lhes pareceu uma carrinha da polícia e assumiram
que eutinha acabado por pedir a sua protecção.
Perderam-me contudo de vista quando saí da auto-estrada e o papá telefonou àpolícia de Phillipstown para se certificar de que a carrinha me acompanharia.
Foi então que veio a saber que eu não tinha nenhuma escolta policial. A políciadisse-lhe que eu devia ter-me enganado no caminho e prometeu agir
sem demora.
O meu pai contou-me que, ao chegar à curva, tinha visto a carrinha a arrancar.Quase a seguira, mas Teddy viu os destroços do meu carro.
Teddy o irmão que nunca teria nascido se Andrea fosse viva salvara-me a vida.Penso muitas vezes em tamanha ironia.
Rob ficou com ambas as pernas partidas, mas trataram-nas a tempo para ele poderentrar no tribunal pelo seu próprio pé a fim de ser julgado por dois
crimes.
O Promotor da Justiça do condado de Westchester reabriu imediatamente ainvestigação sobre o assassínio de Phil. A polícia revistou o novo apartamentoonde
Rob vivia e encontrou os seus
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trofeus, recordações dos seus crimes horrendos. Só Deus sabe é onde ele ostinha escondido quando estava na prisão.
Tinha um álbum com recortes de jornais sobre as mortes de Andrea e Phil;fotografias de ambas, da cena do crime, do funeral e de outras pessoasenvolvidas
na tragédia, incluindo as de Paul Stroebel e de Dan Mayotte.
Rob tinha escrito comentários em todas as páginas comentários cruéis esarcásticos sobre o que fizera e as pessoas que magoara. Havia uma fotografia
de Dan Mayotte sentado no banco dos réus a jurar que um tipo chamado Jim, decabelo castanho-escuro, se metera com Phil à entrada do cinema. Ao lado, Robtinha
escrito: «Ela ficou louca por mim. Jim conquista todas as raparigas.»
Rob tinha a peruca na cabeça quando me tentou matar, mas a prova mais convincente de ele ter assassinado Phil foi que ele guardara o medalhão entre
as páginas do álbum. Por baixo, Rob escrevera: «Obrigado, Phil. A Andrea gostoumuito do teu presente.»
O promotor da justiça solicitou ao tribunal criminal a anulação da condenação de Dan Maoytte e acusou formalmente Rob Westerfield de homicídio.
Vi o medalhão durante o julgamento e recordei o último dia no quarto de Andreaquando, à beira das lágrimas, ela o pusera à volta do pescoço.
O meu pai e eu sentámo-nos lado a lado e de mãos dadas no tribunal.
Afinal de contas, tinhas razão quanto ao medalhão, Ellie sussurrou-me ao ouvido.
Pois tinha.
Fiz as pazes comigo mesma por não ter dito imediatamente aos meus pais queAndrea tinha ido encontrar-se com Rob Westerfield na garagem. Já erapossivelmente
demasiado tarde para a salvar; mas também já era tempo para deixar de me culpabilizar pela possibilidade de que talvez não fosse.
Rob Westerfield foi condenado pela morte de Amy Phyllis Rayburn. E, num segundojulgamento, ele e o motorista foram condenados de tentativa de homicídio
contraa minha pessoa.
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MARY HIGGINS CLARK
As condenações foram acumuladas. Se Rob Westerfield viver mais 113 anos, terádireito à liberdade condicional. Ao ser levado para a prisão sob escolta,
eledeteve-se uns instantes para acertar o seu relógio pelo relógio do tribunal.
Não te dês a esse trabalho disse cá para comigo. O tempo deixou de ter qualquersignificado para ti.
Will Nebels, confrontado com as provas contra Rob Westerfield, acabou porconfessar que tinha sido contactado por Hamilton que lhe ofereceu dinheiro
paraele mentir e dizer que vira Paulie a entrar na garagem naquela noite. Hamilton,expulso da Ordem de Advogados, também se encontra agora na prisão.
O meu livro foi publicado na Primavera e vendeu-se muito bem. O outro livro aversão esterilizada da vida criminosa de Rob Westerfield foi retirado.
Peteapresentou-me aos directores de Packard Cable e eles ofereceram-me um emprego:jornalismo de investigação. Era uma boa oportunidade. Há coisas que nunca
mudam. O meu chefe é Pete Lawlor.
Mas, tudo bem. Casámo-nos há três meses na capela de São Cristóvão, em Graymore. O meu pai é que me acompanhou ao altar.
Pete e eu comprámos uma casa em Cold Springs com vista para o Hudson. Vamos para lá nos fins-de-semana. Nunca me canso de contemplar a paisagem do
majestoso rio enquadrado pelas falésias. O meu coração encontrou, finalmente, o lar que andou à procura todos estes anos.
Vejo regularmente o meu papá. Ambos sentimos o desejo de compensar o tempoperdido. A mãe de Teddy e eu tornámo-nos grandes amigas. Às vezes, vamos
todosvisitar Teddy à universidade. Está na equipa de basquetebol de Dartmouth e eutenho muito orgulho nele.
O círculo demorou muito tempo a fechar. Mas fechou e sinto-me profundamentegrata.--
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