A. REGO CABRAL
JAMBA
UMA SEMANA DE OUTUBRO
SOCIEDADE DE EXPANSÃO CULTURAL
LISBOA
A
Orlando Vitorino
Meu perturbante Amigo:
Tenho o mais profundo respeito pela sua
inteligência. As pessoas muito inteligentes perturbam-me. Sinto por elas algo daquilo que os
passaritos sentem pelas najas. Desculpe. Mas é assim ... Não passo de uma ave ... De uma ave sem penas!... - Sou um bicho muito estranho ...
Permita-me que o plagie quase na íntegra, e
lhe acrescente dois sublinhados. Não seria capaz de me exprimir pragmaticamente sem a muleta de tais recursos. E mesmo assim ... Adiante:
Muitas vezes me acontece fugir da atenção para as realidades da imediata existência e mergulhar bruscamente no recolhimento próprio de toda a meditação e ter de me interrogar se tudo aquilo em que a filosofia nos abisma não constitui um lúdica e irreal devaneio em que os homens andam inutilmente ocupados e consumidos.
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E perdoe agora que o transcreva e abuse dos farolins do sublinhado:
"Logo, porém, reflectindo sobre a interrogação, ela se esvanece, pois isso que por um momento representou como lúdico devaneio" "é, precisamente, o que só pode manifestar-se no
signo da necessidade, que é o que está ausente das representações do ir vivendo, das imagens do ir agindo, dos símbolos do ir sonhando."
E deixe-me agora fazer pior: que misture: A filosofia será, melhor, é uma necessidade. concorda que é ... E se não concordasse ... continuaria a ser. Mas..., por via disso, deixa de ser inútil? ... (Inútil no sentido daquela sua minha inutilidade.) Não será só uma necessidade? ... Só, mesmo só? ...
A filosofia nem tem objecto... - Não! (dirá), "não constitui a actividade de um sujeito dirigida
a um objecto que lhe é alheio", "não terá, pois, objecto no mesmo sentido em que não suporta um abjecto", e até constituiria a negação de si mesma se se encerrasse nos limites de uma actividade separada." Concordo de novo, ai de mim! Não obstante, onde?, a não inutilidade? ... 0 Todo é inacessível; e o Nada (fátuo absurdo) - absoluto quimera também ... Valha-me Deus! Vejo
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uma crença, inelutável: os olhos da naia! que, afinal, está a dormir de boca escancarada ... e me deixa fugir incólume desta vez ainda ...
A filosofia (replicará) "esta para além da crença"; onde o conhecimento da realidade tem
* forma de uma crença, é aí que também reside
* dúvida".
Lá estão os olhos da cobra ... Lembro-me das experiências anteriores ... Onde? ' dúvida maior? ... A filosofia mesmo filosofia, o pensamento do pensamento, é dúvida da própria dúvida e do pensamento também ... Parece-me uma supercrença!! ... Mas, afinal, como não me sujeita - a naia dorme... - continuo livre..., e digo a sorrir: não, é uma subcrença. Porém..., não acredito.
Não sou capaz de romper este ciclo ... Lá está a cobra, outra vez! ... Não, não, não! ... Não sou livre: lá vou eu para as suas fauces:
Terrível, pobre filosofia! ... Fé e desfé... que levas a nade... além daquela experiência Inútil. Olhos de nalel
Não se ofenda nem desdenhe, Orlando Vitorino. Você nunca vê a naia? ... Se calhar ri-se
A. REGO 'CABRAL
dela ... Onde eu plagiei consumidos, você minimiza com entretido...
Sou uma triste ave sem penas, incapaz de voar para Deus. Que n'Ele não crê... mal Ele deixa de ser Dúvida: Uma nela dormente colossal! ... tão grande! ... que nem posso ter consciência de que é, De que não dou fé ... De que ...
Valha-me Deus! Contradisse-me mais de três vezes. Não me chamo Pedro... - Onde?, lugar para a dúvida de si em si, ao menos? ... G45del, Gõdel, Gõdel! ...
Neste livro Orlando Vitorino, só há aves como eu. Seja compreensivo! Não podem voar ... Vivem também agrilhoados ao ciclo irrompível. Não têm penas. Quem dera ter penas!..., ser águia! ... - Ai dana* @
Veio o que velo...
0 que se vê..., que é visto pelos mais, visto por mim, visto pelos olhos.
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E veio o que não velo ... Que velo sem olhos ... mos e há.
Quero ver mais!
0 que penumbra do não ver ao ver, do ver ao não ver, para ser ... que 61 ...
mas não há.
Tundava-la, 10 de Maio de 1970.
'ÃLVARO ~ CABRAL
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Corre corre, meu carro de pau pináculo das minhas mãos, prodígio do meu saber ...
Aos tropeções, ladeira abaixo, carnes ao vento! ... e a minha alma em festa, com asas de luz, a correr, a correr, a correr ...
CORRE CORRE, MEU CARRO DE PAU ...
0 "tê-éme-nove" - (TM-9) - um motorscraper gigante, acavalou a torva norte de recepção da imponente lavaria das minas da Jamba e desbarrigou a carga em menos de dez segundos. Nada de catedral ... Apesar de se tratar de um minério terroso de aluvião, por vezes muito barrento (hematites secundárias), enquanto não estivesse encharcado laborava-se bem. Depois ... era quase uma argila magra - ou saibro gordo com grânulos lamelares: - pequenas plaquetas com poucos milímetros de espessura. Dir-se-ia pois que os motorscrapers (ou secreipares, se me dão licença) andavam empenhados numa terraplanagem comum: num desaterro tipiquíssimo a
favor da lavaria. - A atulhar o "mastodonte" com terra vermelha!
Ainda o TM-9 mal tinha esvurmado, já ia de volta, roncando a 30 quilómetros por hora, rumo
ao bloco-215, de onde se estava a extrair minério excepcionalmente puro e rico em èfié - (Fe) 1 -
1 Èfié: Fe: ferro, na gíria dos clãs.
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para compensar deficiências do bloco-104, onde o teor não satisfazia e o fósforo era excessivo. (Um "bloco" era apenas uma das muitas células em que o jazigo fora tipograficamente retalhado, para efeitos de estudo e exploração
- (lavra - no dialecto mineiro). Isto é, cada uma das malhas de uma quadrícula arbitrária de 100 por 100 metros de lado, no centro da qual se cavara um pequeno poço para amontar da espessura da camada ferrosa, sua profundidade
* concomitantes características físicas, químicas
* tecnológicas - jazigo além).
0 ritmo da exploração, naquela hora - e naqueles dias - era de 4 carradas do bloco-104 contra 1 do 215, por cada 7 .... 8 minutos. Qualquer coisa para além das 1500 toneladas por hora, ou 25 000 por dia - e mais de oito milhões por ano. Isto, de minério bruto! Minério tal qual Deus no-lo deu. Depois de lavado, isto é, limpo de terra, cascalhos e mais "porcarias", sofria uma redução oscilando entre menos de 30, até ligeiramente mais de 40 por cento: - Passava sob jactos de água por uns crivos de vai e vem muito sui generis, e por uma série de "geringonças" arrevesadas, até ficar ao "gosto" de cada cliente. Quer dizer: nos tamanhos e nas constituições prescritas nos vários contratos de venda. E tudo isto, claro está, sem ninguém lhe pôr a mão.
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(De resto, que diabo se pode hoje validamente fazer à mão, além de obras de arte, vestidos de senhora e colheres de páu? ... )
*/*
João Correia, o operador do TM-9, olhou para o relógio e sorriu. Esperava que aquela viagem fosse a última da sua jorna. Faltavam 12 minutos para as 5 da tarde: 2,5 minutos para ir, 1 para manobra e carga (visto o buldozer de apoio ao
carregamento estar folgado) e 3, ou pouco mais, para o regresso. "Se o Ilídio já lá estiver em cima, antes das 5 estou livre", pensou, enquanto corria, desenhando o caminho bem trilhado com núvens de poeira cor de fogo. Mal avistou o buldozer a ruminar à espera dele, mediu o terreno com os olhos, e num só golpe de volante alinhou 20 me-
tros à frente do monstro, de, lâmina em terra, pronto para a carga. 0 aguardante bramiu e cresceu ... Depois encostou: um baque no tardoz. Motores a fundo .... desencosto .... e de caixa a transbordar, eis o TM-9, outra vez aos galões ...
- carreando terra vermelha há milénios esquecida, condenada a refazer-se, depois de contrafeita e plasmada em tractores, bisturís, armas, berços e charruas.
Quando subia de novo para a tremonha da recepção, João Correia avistou Ilídio Soareso camarada que o ia render. "Porreiro!", exclamou em voz alta. "Se o Freixo não demorar,
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quando ela bater à porta já eu lá estou", deduziu, em sequência, de si para si.
Fez a manobra de aproximação e descarregou. Em seguida saiu da "entrega", deu vez ao TM-12 (que vinha do 104), arrumou 30 metros à frente, reduziu o motor, freiou..., e depois desceu.
- Hé! ... - baliu na direcção do camarada, erguendo um braço à laia de saudação.
- Hé ... -devolveu Ilídio Soares, avançando a passo mole. - Caramba, parece que estás com pressa!
- Estou mesmo, pá. Inda bem que chegaste adiantado. 0 Freixo disse que passava ali, por volta das 5, e que me levava - e apontou para o lanço imediatamente inferior da lavaria. - Convinha-me estar lá em baixo o mais cedo possível.
- 0 Freixo?! ... Então ele não anda a tratar da instalação dos quartos do hospital?
-Anda. Mas houve para aí uma avaria qualquer nas separadoras; parece que um curto-circuito; o electricista de serviço, pelos vistos, ainda não mata bem aquilo e não foi capaz de se bater com a encrenca. Como tinham pressa, foram por -ele. Parece que foi o Engenheiro quem o mandou chamar! ... Como ele está muito calhado nas separadoras ... É assim ...
- e encolheu os ombros, como a dar a entender que não havia outro remédio.
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Bem .... vou à vida. Até logo. -Até logo - respondeu João Correia, fazendo meia volta, pronto para descer. Nã o deu porém mais de três passos. Algo lhe acudiu de repente e voltou-se:
- Ilídio!
0 outro parou: -Que é?
- Já se sabe quem vai prà cama do Júlio Pinto?
- Parece que é um mestre-de-obras. Vem para encarregado-geral. Disse-me o Rodrigues. Chama-se Miranda. Qualquer coisa ... Miranda. Vamos a
ver como é ... Uma boa chatice! ...
- Pode ser que seja um tipo fixe... - animou Correia, predisposto para o pior.
- Oxalá ... Fizeram um pequeno aceno e prosseguiram, cada um vivendo para si.
Ilídio Soares repôs o M9 em serviço e João Correia desceu para a passagem onde ficara de esperar pelo amigo - o alentado e sempre bem disposto Freixo - um electricista que viera das minas de Cuima (uns centos de quilómetros para norte) onde principiaram as actividades industriais da empresa.
Freixo era um profissional muito competente, apesar de relativamente novo. Ele, João Correia
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e Ilídio- Soares constituiam um miniclã bastante unido, de que fora clarim Júlio Pinto - um monitor que se despedira na antevéspera. Isto é: findou o contrato de um ano e não quis renová-lo. Preferiu a falsa continuidade de um empreiteiro de estradas, onde não ganharia mais e era preciso morar em barracas provisórias, de obra em obra, mas - dizia ele - o trabalho nunca findava e havia boas gratificações no fim do ano para quem fizesse por elas.
Júlio Pinto fora e era um manobrador insuperável. Dizia-se que "brincava" com todas as máquinas. Transformara-se por isso num monitor excepcional, cuja substituição havia de ser muito difícil. Mas o seu caso não diferia de muitos outros, em todos os sectores da empresa, onde nevoava um bafo de insatisfação, cujos males se traduziam em perdas constantes de elementos qualificados e perturbações de mil ordens - com ameaça directa à estabilidade, ao futuro, à fé no empreendimento. E tudo, afinal, devido à falsa honradez dos honorários estratificados. Às remunerações com castal ... (Para se ganhar mais que um dado tanto ... só noutra função! ... - por melhor que se fosse naquela em que se atingira o bom). E a agravar este quadro: nenhum incentivo de prêmios, regalias apetecidas, continuidade de emprego - e carência asfixiante de comuni-
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cações rodoviárias dignas de tal nome, a alongar desmoralizadoramente as lonjuras dos centros urbanos mais desenvolvidos, e, sobretudo, do litoral.
João Correia e os amigos andavam preocupados com a identidade e, principalmente, o modo de ser do novo companheiro de habitação. Embora se tratasse de um problema não-básico (empresarialmente nulo 'ou secundário) para eles era fundamental, pois não é fácil ajustar criaturas humanas sem afinidades miscíveis a um recinto comum durante períodos de vida significantes. Ansiavam, por isso, saber do sucessor de Júlio Pinto - como companheiro de camarata. 0 que ele fizesse ou valesse profissionalmente, para eles não tinha grande significado. 0 que lhes interessava era o que ele fosse ou pudesse vir a ser como companheiro. Como camarada. Como amigo.
Mercê de um temperamento diferente (porventura dos seus antecedentes também) João Correia não media como Júlio Pinto. Dava-se bem na Jamba e acreditava no futuro das minas, sobretudo após ter ouvido, semanas atrás, dois engenheiros novatos dizer que dali a cem anos ainda se havia de extrair minérios dos jazigos de Cassinga. Para ele, "aquilo" não era, pois, como tantos balofavam, "negócio para meia dúzia de anos apenas, ou pouco mais". Era "coisa"
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para sempre! Portanto ... ia ficar. Mas, ao contrário da maior parte, não estava interessado numa habitação definitiva da Companhia, e muito menos em fazer por si, como tantos outros, uma casa dentro dos planos de construção da empresa -aproveitando as facilidades de fornecimento gratuito dos materiais. Não. Pelo menos por ora, isso não lhe quadrava. Tão-pouco porém havia -de ficar muito mais tempo na camarata. Na aldeia natal, na falda norte da Serra da Estrela, fora pastor de ovelhas e agostara-se ao ar livre, ao isolamento, e a dormir em choupanas, junto do gado. "Era melhor que na camarata... Muito menos peado! Mais à feição! ... "-
apesar de sem camas, nem móveis, nem balneário, ou quem lhe tratasse da roupa e do mais! ...
Fizera a tropa e regressara à Metrópole; mas estava desafeito: não se resignara e conseguiu voltar. Sofrera, contudo, imenso! ... Em Luanda até fome tivera. Arrependeu-se mil vezes. Depois de sacrifícios e humilhações sem conta, adregara um dia, graças a Deus!, ser admitido na Junta das Estradas, como simples ajudante, e partira de novo para o Norte com uma "brigada, de con-
servação". Começou então a treinar-se nas máquinas, e subiu. Um pedido do abade para o presidente da Junta permitiu-lhe fazer a "escola de tractoreS" -e hoje era um homem. Viera depois
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para ali, onde ganhava mais ... e tudo parecia seguro. Antes queria ajeitar-se numa casa de páu-a-pique do lado de lá do Cului, abaixo da Sanzala ... Era o que lhe convinha. Ficava independente. Se não fosse por vergonha até já se teria mudado para uma palhota. Além disso, se a
Alzira quisesse juntar-se a mais ele ... estava governado. Aquilo não era vida. Uma preta de cada vez não tinha jeito. Bem ... de começo até gostara. Mas começava a estar farto. E depois aquele cheiro das unturas já lhe fazia nojo. A Alzira era diferente. Já nem se lhe podia chamar uma preta! ... Sabia de cozinha, de casa, da roupa ... Até se lhe afigurava que sabia ler ...
0 pai educara-a por casas de engenheiros e tipos assim... Esteve até uns dois para três anos como criada de dentro dum guarda-livros-principal ... Viera também de Cuima, como o Freixo. Pelos vistos ... era viúva. Viúva dum mulato que morrera há coisa dum ano, segundo dissera, num
desmonte de minério. Parece que da explosão dum tiro retardado. Mas era uma mulher a sério: capaz de ajudar um homem a fazer casa e trepar!
Olhou para o relógio e viu que já tinham decorrido mais de dez minutos. Retomou o fio das cogitações:
Com o que forrava ... havia de comprar gado. Daqui a um par de anos podia ter uma boa
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manada. Quanto forrasse, quanto havia de meter em bois ... Mais e mais cabeças, até fazer um
"rebanho" maior do que o das ovelhas que levava prà Serra! E eram uns bons centos delas! ... Mas tinham dono ... Ainda chegara a ter umas cabras ... Aquilo não era governo de vida. Agora, sim!, ia ser gente. E entã o se o negócio das minas era mesmo coisa de dura ... até havia de ter uma fazenda! Coisa que se visse! ... Onde coubessem todas as quintas do concelho! ...
- Hé! ... 0 João! -chamou Freixo do outro lado, com a porta da carrinha toda aberta, farto já de lhe fazer sinais.
Apesar de voltado para o amigo, João Correia não o via.
- João! ... 0 João Correia! -insistiu o electricista, cheio de pressa, batendo na porta, disposto a abalar sózinho.
- EM Espera aí! ... - gritou Correia aflito, acordando e correndo para a viatura.
- Estavas a dormir? Vamos! ... Passam vinte das cinco ... Deixei a corrente desligada, lá em baixo, e daqui por uma hora já mal se vê ... Para onde estavas a olhar? Fartei-me de te fazer sinais ...
- Pra nenhures ... Estava a pensar cá numas coisas ... Demoráste-te! ? ... Houve mais alguma encrenca?
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-Aquilo estava feio! ... Mas ficou bom. Prà próxima o Almeida já sabe como é; ah, ah, ah ...
- e riu, no seu rir sem-jeito, muito característico.
Foram até ao fundo dos parques e junto à estação de carregamento mecânico dos vagões enfiaram para a vila.
-Sempre arranjaste lavadeira? -quis saber o electricista.
- 0 que há de melhor! Tanto pra lavar, como
engomar, e mesmo coser! Ficou de ir lá hoje. Sempre queres que lhe dê a tua roupa?
- A minha e a do Ilídio. Ele não te disse? Também quer mudar. A que tem, diz que dá cabo das camisas. Dizes que é uma branca?
- É. Quer dizer ... é como se fosse. Mas uma branca esmerada! Costura e tudo! Fez umas calças ao Filinto que são um luxo!
-Ao Filinto?! ... Quem é o Filinto? -Aquele tipo russo, com quem me viste no* domingo passado. Trabalha no açude. É o mestre daquilo do ferro. Um tipo fixe. Mora do lado de lá do rio. Costumamos jogar à bisca no tasco da outra banda.
- No tasco!? Ah, ah, ah ... Aquilo é lá um
tasco ! Vende vinho e mistelas à sucapa! Não há-de tardar que o Comandante Serrão lhe limpe o sebo ...
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Bem..., aquilo não é um tascol A gente chama-lhe assim .... mas é uma casa particular! Um sítio onde fazem uns petiscos e a gente se ajunta. Mas olha que ela é que nos faz favor! E não entra lá quem quer! ... Tem uns garrafões de reserva e dispensa-nos uns copos ... Só nos
faz jeito. E olha que não leva muito mais do que a cantina!
-Mesmo descontando a água? -Ela pouca lhe põe ... Lá nisso é a BaIbina séria! ... E até no mais! Ela no fim de contas só tem um homem ...
- Ah, ah, ah ... Ela pouca lhe põe! ... Sempre me saíste um ponto! João, João, João! Aí anda coisa! ... Foi lá que tu arranjaste a lavadeira que fez as calças ao Filinto?
- Não! Essa não vai lá. É uma mulher séria! É viúva. Andam mais de quantos atrás dela, e
olha que não liga meia a nenhum!
-Nem a ti, meu maráu? -insinuou Freixo
com ar brejeiro.
- Já te disse que é uma mulher séria! -
repontou João Correia abespinhado, encarando o amigo com dureza.
- Está bem, pá. Não vale a pena zangares-te. Se ela é séria, tanto melhor. 0 que me interessa é que trate bem da roupa! Que não me dê cabo
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das camisas, sobretudo ... E que lhes dê os pontos que elas precisarem, como tu dizes. - Vais'ver. É por isso que leva mais caro. Mas a roupa, por as mãos dela, dura dois dobros! E olha que não aceita avios dum qualquer. Ou que é que tu pensas? ... Eu é que estive a queixar-me do que nos tem sucedido, e vai daí perguntei-lhe se quando tivesse folgas não se importava de ficar com a nossa ... Ela disse-me que no fim do mês talvez pudesse ... Logo que se fossem embora aqueles tipos do empreiteiro do açude, que vieram só por seis meses. Ontem foram dois. Amanhã vão os outros. São uns cinco ou seis. É a altura! ... Se não quiseres, pra ela vale o mesmo. Freguesia não lhe falta ...
-Quero, pá! Já te disse que sim. Tanto mais que trago a roupa toda a pedir agulhas e botões. Calaram-se e foram rolando em silêncio. Chegados ao hospital, Freixo afrouxou e despediu assim o colega:
- Bem ... agora tens de ir a pé. Tenho de acabar isto enquanto não se faz noite... -e apontou para o topo norte do edifício, pensando nos quartos hospitalares. -Tem paciência. Chegam amanhã os Administradores ... Tem de estar tudo a ponto ... .
- Está bem. Daqui lá é um pulo. -Fixe. Então até logo.
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Até logo. Freixo bateu a porta da carrinha e enfiou pelo "banco". João Correia não olhou sequer para trás: abriu o passo e desceu para a camarata - uns centos largos de metros mais à frente -procurando com os olhos o vulto da Alzira. Ela dissera que tinha de ir à cantina e que depois passava pelo apartamento: "Das cinco e
meia para as seis passo por lá e trago a roupa". Eram cinco e trinta e oito ... Malavistou. o alpendre que protegia as entradas, sossegou. "Inda não veio", concluiu com satisfação. "Hoje vou falar-lhe de vez. Ela- já percebeu ... Pode ser
até ... Como não está mais ninguém ... Que diabo!, fechávamos a porta ... Mas se ela não quíser..., não senhor! Será para outra vez.
0 ponto é a gente chegar a acordo ... E chegando a acordo ... Que ela sempre é uma mulher! "Alzira!, isto é pra sério! Se a gente se der bem até nos podemos casar! 0 ponto é a gente dar-se bem! ... Ou ter filhos ... Se tivermos filhos tem de ser! ... " É uma sorte não lhe ter vingado nenhum, dos dois que teve do outro. Era uma
chatice ... Até talvez nem a quisesse ... Mas era uma pena! Aquilo é que é uma mulher! Aviada! ... É mesmo branca! Mas uma branca das boas! Trabalhadeira! ... "
Meteu a chave na porta e entrou. As trouxas
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da roupa dos camaradas jaziam sobre as camas de cada um. Fez a dele no mesmo estilo e dispô-Ia como as mais: a meio do leito - também. Segundos depois, contudo, engodado por esperanças mais risonhas, pegou nela outra vez e depô-la no chão, junto à parede onde abria a
porta para a casa-de-banho. Mediu em seguida o quarto de ponta a ponta. E parecendo-lhe que algo nele nã o estaria lá muito bem, foi-se às outras trouxas e arrumou-as a par da sua. Deu uns passos atrás e à frente ... e decidiu tomar um duche. Abriu o armário que lhe pertencia, serviu-se de roupa lavada, e segundos depois estava debaixo do chuveiro. Cinco, seis minutos mais tarde era outro. Fresco e limpo, decidiu ficar em pijama -indumentária para ele ainda com "ar" e "cheiro" de luxo. Estirou-se depois no leito. De repente, porém, ergueu-se e foi buscar uma caixa alongada ao roupeiro. Abriu-a e tirou dela uma flauta com toda a aparência de nova, pondo-se a remirá-Ia embevecido. (Era a sua maior extravagância de sempre). Sentou-se na beira da cama, levou-a aos lábios, e deu início a uma canção pastoril. Via-se que não estava calhado com o "brinquedo": enganava-se a par e passo; não extraía do instrumento os efeitos que desejava: -aquela "maravilha" reluzente não obedecia às suas técnicas. Repetiu no entanto
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a balada ..., mas continuou insatisfeito. Poisou então a flauta e foi buscar outra muito rude; velha; obra porventura das suas próprias mãos, esmurrada até, e com aspecto de muito uso. Sentou-se de novo e repetiu a melodia.
Era uma áría de amor, dulcíssima, amargurada, em queixumes, sugerindo verdes sem fim, céu distante, ribeiros cristalinos ... e uma brisa mansa afagando quebradas e planuras. Apesar da sua rusticidade, o instrumento possuia um timbre admirável, duma frescura cortante -e ele tocava com um sentido profundo, de todo inesperado. Repetiu a canção e depois derivou para um silvar aberto, repleto de alegria. Um sopro de alvorada: o milagre da luz! ..., a benção do ser! .. . -a força da própria vida: lutas, frémitos ..., amor!
Alguém batia à porta pela terceira vez. João Correia, porém, não ouvia. Esquecera-se da Alzira, da roupa, dos bois, da fazenda que havia de possuir ... Mas o bater cresceu e desterrou-o de novo para o "reino dos mortais". Mal reentrou em si desfez-se da flauta e correu para a entrada -o coração em alvoroço, a alma em nova festa!
Uma rapariga dos seus dezoito anos aguardava no patamar: esbelta - preta-fula! - ataviada e vestida com o esmero de uma costu-
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reirinha lisboeta (um ar doméstico pelo todo,
e um capricho, um sorriso a rescender ... ) e aquela graça, aquela beleza muito própria que só -algumas pretas exaltam -e impressiona europeias e asiáticas.
-Custou! ...
- Desculpe ... Que quer?... - inquiriu João Correia atarantado@
- A roupa ... - Havia mofa na sua voz; quase riso, no olhar da rapariga.
- A roupa?! ...
- Sim! ... Ou mudou de ideias? -Mas... Como... Foi a Alzira que ... ? -Foi. Pediu-me que passasse por cá e lha levasse. A sua e a dos seus colegas. Já a tem à feição?
-Mas a Alzira não vem? ...
- Não. Já lhe disse que me pediu para vir na
vez dela.
-Bem ... Entre, faça favor. A rapariga avançou dois ou três passos e ele foi buscar as trouxas -que o esperavam no outro extremo do apartamento, irónicas, juntinhas, deitadas lado a lado, humilhadas no chão.
- Pronto ...
- Está marcada?
- Está. -Fez os roles?
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Não. Isto é ... eu não fiz. Não sei se os outros ...
-Então é melhor fazer. Tem papel? -Tenho -e encaminhou-se para o armário-roupeiro donde retirara as flautas, que dormiam esquecidas, juntinhas também, na cama onde ele sonhara ver a Alzira naquela tarde.
Não levou muito a encontrar o que buscava: um bloco de papel de carta de formato normal, próprio para avião. Parecia intacto. Aproximou-se de novo da rapariga e ficou a olhar para ela, que nunca deixara de sorrir. Como ele não se
desatasse, baixou-se, pegou nas trouxas e depÔ-Ias em cima,da cama de Freixo, logo à entrada. Em seguida abriu uma delas, apartou as várias peças, e depois interrogou:
-Esta de quem é? -Do Ilídio. -Tome nota: 4 camisas, 4 cuecas ... -Espere! Não tenho com que escrever! -e
correu de novo para o armário, regressando com uma caneta de tinta permanente. Sentou-se na cama a seguir, e apoiando o bloco na mesinha de cabeceira, voltado para a rapariga, foi espremendo na sua caligrafia trôpega, de mal digerida instrução primária, aquilo que ela lhe foi ditando.
Embora a Alzira não lhe saísse do pensamento e as dificuldades da redacção exigissem dele
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enorme esforço -visto só na tropa haver consolidado a arte de figurar a palavra em símbolos gráficos - não pô de impedir-se de ir admirando a desenvoltura, a beleza e a própria sedução da moça, que parecia divertida com o embaraço dele.
Quando principiou a refazer as trouxas, perguntou-lhe sem se interromper:
- Que músicas eram aquelas que estava a tocar na flauta
Foi como se lhe dessem uma alma nova. Sorriu, e respondeu com o rosto já iluminado, ufano!
- certo de ter acendido o interesse dela, porventura a própria admiração:
- Umas modas lá dos meus sítios.
- Modas?
- Sim. Cantigas.
- A primeira era muito bonita.
- Pois era... Quer dizer, é! Tem muita pausa ... A duas vozes é um luxo!
Ela não disse mais nada. Prosseguiu na tarefa como quem quer despachar-se quanto antes.
- Contava que a Alzira viesse... -adiantou ele, quase a medo.
-Não pôde. -Precisava de lhe falar ... -Ficou de volta da roupa daqueles homens que vão embora amanhã. Mas diga-me o que é ... que eu digo-lhe.
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Bem ... É que eu... queria que ela me fizesse umas calças como as que fez ao Filinto.
0 encarregado que trabalha no açude. Queria que ela me tirasse as medidas ...
-Mas ela não sabe fazer calças -desiludiu a moça, afirmando-se nele meio séria, como a procurar para além das palavras o sentido exacto das intenções.
- Ai isso sabe! Então eu não vi as que ela fez ao Filinto?!
-Essas fi-las eu ...
- Fê-las você? Então ele não me disse que foi a Alzira! ?
- Não lhe teria dito que foi na Alzira? ... João Correia ficou desbaratado: Como se, no auge de uma refrega, lhe manietassem as próprias mãos:
- Talvez ... Não sei ... Mas parece-me que ele disse que foi a Alzira ...
-A minha irmã não sabe fazer calças. Não sabe fazer calças nem sabe talhar. Tem jeito. ---
e prática. Mas falta-lhe o melhor... -e encarou-o como quem diz: "Falta-lhe aquilo que eu
tenho. A teoria!"
-Você é irmã dela? ... -Sou. Mas se quer fazer as calças não é preciso tirar medidas. Empreste-me umas que lhe estejam bem, e pode ficar descansado que
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aquelas que eu lhe fizer não hão-de ficar a dever ao modelo. Já tem pano?
-Não, ainda não tenho... Julguei que a sua irmã ...
-Não, a gente não tem panos. E como as trouxas ficassem completas, foi à porta e gritou:
- Luzia! Uma preta ainda tribãl, mas já com ares de emancipação, aproximou-se da porta a correr.
-Pega naquela roupa e leva-a. Amanhã de de manhã distribúis uma trouxa dessas a cada mulher, de modo a ficar tudo pronto antes do meio-dia. Percebeste?
- Percebeu. -Olha que é serviço de pressa.
- Sim. Percebeu, menina. - E desandou com a roupa à cabeça.
João Correia estava abismado. Perplexo. A Alzira, afinal, era muito mais "branca" do que ele imaginava! Encarou de novo a calceira e perguntou-lhe com transparente respeito, e cómica, ingénua admiração:
-Você é mesmo irmã da Alzira?!... -Sou. Porquê? Então já não lhe disse que era.
Hesitou um bom par de segundos, e por fim respondeu:
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A. REGO CABRAL
- É que não me lembro ... de a ter visto.
- Não me admira nada... - comentou a rapariga de novo a sorrir, quase a mofar, encaminhando-se para a porta.
-Não lhe admira nada, porquê? ... Parou e voltou-se. E encarando-o bem de face, abriu de todo o sorriso e esclareceu:
-Porque você só tem olhos prà minha irmã! E desandou pela varanda fora, a rir e a mofar.
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Sonhar é fdcil ... quando o peito é mar, * alma é vento, * mão é vela, * amor é onda! ...
Mão altaneira! ... que trabalha, que fere, que rouba, que mata ... Sob o céu do sonho, mão padroeira! ... que afaga ... semeia ... exalta ... resgata!
SONHAR É FÁCIL ...
0 Sul-Poente, em Angola, é sobretudo miragem: vazio seco da terra escutando silêncios do mar. E oásis ... Oásis em formação: searas de cristandade! ...
Caseada na bainha do deserto - esse esquecido encantado - Moçâmedes é um grito ao porvir - ara de sabedoria, alvor de amanhecer!
Onde tudo foi já vazio sem alma, desolação, só aridez!, enfeita-se uma cidadezinha caseira
- colmeia familiar - ufana do seu pescado, das suas hortas, das promessas do Namibe, das certezas do seu porto: - baía reluzente, verde-cristal, talhada a cinzél. Mansa como as sestas, é um plano de águas generoso, longo e ovoide, embutido no Continente: ao sul o cais comercial, seus mil afins... - e depois o deserto amarelo, e a
poente o mar; ao norte o majestoso porto mineiro, seus apêndices... - e depois o deserto amarelo, e a poente o mar; a leste, cerzida ao topo de uma praia dourada, arco de três léguas!, o burgo recticulado... - e depois o deserto amarelo, ele só, terra além ... até às raízes
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A. REGO CABRAL
da Chela, cento e muitos, muitos quilómetros de sono; e a oeste o mar... -só mar! ... - águas sem termo, moendo moendo, dia após dia ... E na
terra o mesmo insistir: ondas paralelas de casario multicolor, certas - muito alinhadas! - de crista vermelha encardida, avançando pelo Namibe empurradas por aquele moer.
Aqui, ali, além... - mimos de verdura, asseios de arvoredo. Mais sobre a borda... - galas de cafés, lojas, hoteis, esplanadas. De ponta a ponta... - gente, viaturas e animais. Vida. E luz. Muita luz! E cor também:
Um oásis na fímbria do deserto! ... Uma ilha fora do mar!
Quem chega de barco e nada viu de semelhante, perturba-se. A maioria fecha-se. Muitos, porém, sentem ... e expandem-se: largueza dourada na terra, azul no céu, verde no mar - glabra! - rubra, rosa na alma!
Um paquete no porto. Homens pingam do portaló: um deles, atarracado, com o à-vontade, a quase indiferenç a do muito-ver, grisalho, bigode e pera quase brancos, seguro nos passos e nos modos; outro, logo atrás, jovem, face rapada, os olhos chispando em tudo, um pasmo curioso nos
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JAMBA
gestos e um temor indecifrável no descer. São companheiros. Vê-se ... 0 mais novo - ora atrás
ora a par - exala saúde e possança; o outro, sobretudo experiência.
Abordam um funcionário do porto: -Pode dizer-me para que lados fica o escritório da Companhia das minas de ferro? - indaga o mais idoso.
-Das minas de Cassinga?
- Dessas mesmo.
0 funcionário informa. (Numa terra caseira todos sabem de tudo - quanto mais de uma
Companhia assim!).
Horas mais tarde sobem para o aeródromo local, no exterior amarelo: - uma tira de asfalto, um hangar velho, três barracas e lagedos toscos em pleno deserto. Cães, moscas e galinhas prospectando o chão, frente à casota do vigilante.
Um aero-táxi de "estirpe", ultracivilizado, avia-se para largar. 0 piloto (Comandante! - se me dão licença) vigia o abastecimento e um quarentão de calções, forte e direito, pinha pré-calva ao sol, aguarda impaciente: mãos atrás das costas (cigarro a arder! ... ) dali para acolá, de acolá para ali. A dada altura pára:
- Corte Real!, tenho de estar na Jamba antes das cinco!
- Não me parece que seja às de hoje, senhor
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A. REGO CABRAL
Engenheiro - desanima o piloto, mirando a rodovia do acesso. - São quase três e meia ... Mas por que raio de carga de água esses tipos ... Olhe! Devem vir acolá... - e apontou um jipe que um apendiculado à empresa do ferro impelia a toda a força para o aeródromo.
Alívio ... Vibrações de octanas cantando vitória, engolindo o espaço ...
Uma travagem brusca. Os recém-desembarcados do paquete saltam quase a par. Abrindo-se para o Engenheiro, o mandante da viatura advogou-se:
- Impossível vir mais cedo, senhor Engenheiro. Estes senhores são as pessoas a que se referia o rádio de ontem à tarde. A bagagem pesada vai de comboio. Amanhã está lá. Desculpe ... Convinha que fossem neste avião ... Os Administradores não chegam à Jamba antes das seis. Há tempo. E estes senhores ...
- Bem bem - cortou o engenheiro.'- Quanto mais depressa melhor. Claro. Arrume as maletas.
E voltando-se para os recém-vindos, sereno já - o sorriso em pleno meio-dia - refrescou para o grisalho:
- É o geólogo Dr. Castro Raposo? ...
- 0 próprio - anuiu o interpelado, rese-
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nhando o aparelho, o aguardante, a afabilidade movediça da recepção.
-Muito prazer Dr. Raposo. 0 meu nome é Serra de Oliveira.
- Muito prazer ... engenheiro Serra de Oliveira.
- 0 prazer é todo meu. Estávamos ansiosos pela sua vinda ...
E voltando-se para o mais novo:
- É o construtor-civil Miranda, não é verdade?
- Exactamente, senhor Engenheiro.
- óptimo. Muito prazer. Trabalhará comigo.
- Muito prazer, senhor Engenheiro. Chegando-se depois ao piloto, e em seguida aos outros dois, fez as apresentações do estilo:
- Comandante Corte Real ... Doutor Castro Raposo ... mestre-de-obras Anacleto Miranda.
Apertos de mãos selaram os conhecimentos. Minutos depois o avião descolava.
De Moçàmedes para o interior, num táxi-aéreo, Namibe além, ao assalto da Huíla, o planalto da Humpata - dois mil e tantos metros de altura -
é uma campina fantasma: uma perfeita miragem espalmada no céu:
Planura garbosa altíssima, a perder de vista
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A. REGO CABRAL
-sul, norte, leste- interrompida abruptamente, em diedro recto cortante, ao longo de todo o seu bordo ocidental. Degrau ciclópicol ... cutelo miraculado! ..., muralha apocalíptica gigante, dominando montanhas e savanas ... emparedando o deserto - prolongamento seco do mar.
Chamam-lhe Chela. Serra da Chela!
0 bordo é a Escarpa - uma vertigem, um vácuo!, uma autêntica alucinação! ...
Dos vários mirantes confortàvelmente acessíveis (ao alcance "choutado" de rodas e pneus), cutelo fora..., Leba, Bimbe e Tundavala são os de maior nomeada. Os mais vistos e discutidos -
apesar de igualmente belos, surpreendentes, colossalmente abissais.
Leba é o mais mulher; Bimbe o mais estentório; Tundavala o mais monacal. 0 primeiro deslumbra; o segundo assombra; e o último dilui, converte ... e por fim redime. Convida à humildade, à renúncia, à oração. Impõe silê ncio. Evoca salmos, hinos, cânticos ao sublime.
Do ar, contudo, de tão mais alto (daquele fretado parapeito vibrante, prodígio metálico suspenso) perde transcendência - proletarizado na
igualdade majestática jacente, esquinada lá em baixo. Deixa de ser um púlpito ... Um verdadeiro altar!
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JAMBA
Um precipício de mil e quinhentos metros ... dois mil e trezentos acima do mar!
Os motores da avioneta zumbem na imensidão ...
Cruzada a Escarpa, tudo tende a banalizar-se: terras como outras terras. Sã da Bandeira afirma-se por fim, Senhora do Monte abaixo, aos pés do Cristo-Rei - esse omnipresente esquecido - cruzeiro antropomórfico disforme, desterrado, na grimpa do Lubango.
-Alô Sã da Bandeira, alô Sã da Bandeira, alô Sã da Bandeira... - clama o piloto, bafejando o microfone. - Delta Zulo chama, Delta Zulo chama, Delta Zulo chama.
Escuta uns segundos, repete, e escuta de novo ...
-Delta Zulo, transmita! - ordena a torre do aeródromo.
-De Moçâmedes para Jamba; pessoas a bordo, quatro; autonomia trrrês horas ... etc., etc.
E o voo prossegue mansamente, a cerca de trezentos quilómetros por hora e dez mil pés de altitude, sob cúmulos, mil e quinhentos pés mais acima, rareando para nordeste.
Um bom quarto de hora mais tarde, espantando a monotonia interior, o piloto alerta e aponta:
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Cunene à vista! Só ele o via. Três pares de olhos mais, contudo, dardejam para vante, decifrando o horizonte indeciso, azul-fumado, que circunda o nascente.
- Optimo - resmunga Serra de Oliveira, fitando o cronógrafo, como a estimar a chegada.
- Dentro de vinte e seis, vinte e sete minutos estamos na Jamba, senhor Engenheiro - antecipa Corte Real sorrindo.
- Não será sem tempo - reponta o outro.
- E que hei-de dizer? ... Já nem sequer poderei regressar a Moçâmedes! Uma chatice. Tenho de dormir nas Minas.
-Fica em boa companhia, deixe lá. -0 pior é o resto. Com um cliente amanhã de manhã para Nova Lisboa ... Vamos a ver se consigo descolar às seis ... Se assim não fosse, palavra que até gostava. Gosto daquilo. Eu cá gosto da Jamba. Não sou dos que dizem mal.
-Dá-se o mesmo com todos quantos lá vão de visita - ironizou Serra de Oliveira. E como quem fala só para si: - Mais ou menos como ... com os jardins zoológicos ... E os sanatórios ... E certos bairros nada desejáveis, pitorescos!, tidos por encantadores, típicos, folclóricos, etc. e tal. A opinião dos que lá vivem é diferente.
- Não diga isso, senhor Engenheiro. A Jamba
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está uma cidade. Olhe, disse-me há dias o Comandante Serrão, o director de lá com quem eu tenho sempre de me entender, que já é o terceiro centro urbano do sul da Província. Em gente e até no resto.
-Raciocinando sobre o papel, parece não haver qualquer dúvida. Será até mais importante que algumas capitais de distrito. Populacionalmente, de facto, aqui no Sul, só Moçâmedes e Sã da Bandeira lhe levam a palma. 0 pior é o resto ...
-E a indústria, não conta? A indústria e o
mais! Tudo aquilo que vai por ali?! ...
-Olhe, Corte Real, admito que debaixo de certos pontos de vista o conjunto Jamba-Tchamutete (Cassinga-Norte e Cassinga-Sul) não tenha uma dezena de centros que o suplantem ...
-Ai isso não tem - cindiu o piloto. - Seis, ou sete, no máximo, em toda a Província! Conheço Angola de lés a lés.
-Isso é outra história, Corte Real. Não misture sal com açúcar. Olhe: o núcleo petrolífero que os franceses estão a desenvolver no meio do Sara, se calhar (não faço a menor ideia) é econ6micamente mais importante do que a Jamba. Apesar disso, creio bem que, para vivefl, será muitíssimo pior.
- Não desfaça. A Jamba está uma vila estu-
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penda. Tem um riquíssimo clima ... Cinema, futebol ... E já não se pode considerar uma terra isolada. Então agora com os aviões a escalarem-na regularmente ... E tem os comboios. E qualquer dia a estrada.
- Ah! ... a estrada. Diga-me dessas Corte Real.
0 avião dá para o correio, para as emergências, e, vá lá ... para o pessoal superior. Não todo. Algum. Para os favorecidos! Depois do correio e das emergências ... serve sobretudo para as deslocações de serviço que não se compadecem com a ronceirice dos outros meios de transporte! ... E para a eva-
cuação dos feridos e doentes, diga-se também ... -E segundos mais tarde: - Quem ganha para utilizar o avião como meio corrente de transporte? Enquanto o asfalto não chegar às Minas, ou
passar ao pé, os que lá vivem hão-de continuar a sentir-se desterrados e ser pasto, ao fim de maior ou menor número de meses, ou anos, de jambite crónica, ou mesmo aguda.
- Jambite?! ... Que diabo é isso? -Olhe, é a psicose que mais se consola de fazer estragos na Jamba e em Tchamutete, sobretudo entre os solteiros e as mulheres dos funcionários não ocupadas nas actividades da Companhia.
- Percebo ... Jambite! Tem piada ...
- Quem a baptizou assim foram os médicos.
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É algo de muito característico, e real, portanto, debaixo do ponto de vista patológico. Ninguém lhe escapa. É uma questão de tempo. Claro que na maioria dos casos não vai além do nervosismo, irritação surda ou aberta, ou tédio. Mas de vez em quando é pior.
- Se calhar é de serem todos funciondrios. Como não há público para lhes cortar na casaca ... desfazem e cortam uns nos outros - e desferiu uma risada magana, piscando atrás e ao lado, como a engajar os outros dois, recostados nas cadeiras posteriores.
0 geólogo bateu as pálpebras e sorriu, como quem adere tàcitamente. Mas o mestre-de-obras, que até ali não deixara escapar uma só frase do cavaco, enrugou um esgar amarelo, rasgando a
boca e fendendo os olhos, pouco antes quase desorbitados. Serra de Oliveira condescendeu:
-É possível ... Pelo menos em parte. Quem não tem que fazer faz colheres de páu ... ou tesoura na vizinha! - e abriu e fechou o index contra o médio, avançando a mão, como quem corta fazenda num fanqueiro.
- Se deixassem lá abrir lojas particulares, cafés ... e outras actividades independentes da Companhia, era capaz de não ser assim. Há por aí terreolas bem mais isoladas, pràticamente desprovidas de quase todos os recursos, onde isso
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não acontece. Ou pelo menos não se nota. Claro ... é outra gente. São voluntários! ... É como nos colonatos. É raro o que presta. Pelo menos
de entrada. Medem-se e pintam-se funcionários! ... Funcionários sem curso. Sem curso, nem concurso, nem recurso: de discurso! - E riu de novo, mirando os de trás.
- Essa gente é outra gente. Tipos sólidos. Sólidos e determinados. Só contam com eles. Têm programas de vida que chegam de sobra para os
atiçar e encher. Só medem canseiras. Levam uma
vida pior que a dos escravos ... Mas são escravos da própria independência! ... Quando se sentem em baixo, uma farra! Ou vão arejar até à cidade mais próxima ... Mais próxima ou mais afastada. Para onde lhes dá. "E depois de recauchutados", como eles dizem, "amoja outra vez!". Ali não é assim. Na Jamba, há que aguentar!
- Com o tempo tudo muda. E as pessoas adaptam-se. Olhe, senhor Engenheiro, os que lá nascerem ou forem criados, hão-de gostar daquilo como cada um de nós gosta da terra onde vingou.
- Grande consolação, não há dúvida. Até cura a jambite! ...
-Caramba, senhor Engenheiro, há pouco mais de três anos ainda tudo aquilo era mato!
0 que já lá se fez deixa uma pessoa de boca aberta. Chiça! ... Ando há mais de vinte anos
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aqui pelo Sul e tudo isto, tudo isto senhor Engenheiro - e fez um gesto largo, circulando o território desde o mar ao Cuando e aos confins raianos do Cubango e do Cunene- era mato, pràticamente só mato! E tirante a Matala e as estações ao longo do caminho de ferro, o resto quase não mudou. Serpa Pinto não era nada. Começou ontem a fazer-se, por assim dizer. Depois de a crismarem capital de distrito. E agora? Eu do ar é que vejo: gado, gente, car-
ros, chitacas a surgir por todos os lados. E foi com isto do ferro. Assim que começou o movimento das minas, viu-se tudo a crescer. Nunca pensei. E então os comboios do minério? Eh, rapazes, aquilo sempre é cada gibóia! A semana passada fui com a minha mulher mais o meu sócio e a mulher dele até ao Giraúl. Levámos um farnel e tanto. Acampámos num sítio estupendo, donde se via a ponte e um bom bocado da linha. Cada vez que passava um comboio punha-me a contar os vagões. Quer saber que não fui capaz de dar conta do recado? Enganava-me sempre. Disse aos outros e pusemo-nos todos a
contá-los, a ver quem acertava. Pois não houve dois que chegassem ao mesmo número. Ficámos só a saber que eram para cima de cinquenta!
-Creio que por ora são 53, mais o furgão e
as máquinas. É pelo menos o que tenho ouvido
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A-. REGO CABRAL
por lá, aos mineiros e aos ferroviários. Como só trato de obras e não arranjo tempo sequer para dormir ... Mas sei que daqui a alguns meses cada composição há-de integrar mais de 60 unidades de carga.
- É formidável. E então aquilo é cada lontra! ... Sabe quantas toneladas carrega cada vagão daqueles?
- Penso que perto de 60. Mas andam só com
45. A linha não dá para mais. É ver os descarrilamentos: volta meia volta, pum! ... Mesmo assim já estão a transportar uns 5 milhões de toneladas anuais de minérios tratados. E vão subir para os
6, segundo também já ouvi discutir. É bonito!
6 milhões de toneladas por ano, a 600 quilómetros de distância, é qualquer coisa, seja onde for. Olhe, em toneladas-quilómetros é capaz de dar mais do que a soma daquilo que prefazem todos os outros caminhos-de-ferro portugueses. Metr& pole e Ultramarl
- É formidável. Por esse correr acabam com as minas em poucos anos, como aconteceu no Cuima, não?, senhor Engenheiro ...
- Julgo que no ritmo dos 5 milhões de toneladas anuais de produtos tratados, as reservas conhecidas, desde que não exploradas ambiciosa. mente, darão para oito, dez ... doze anos, no
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máximo, se não houver surpresas, aliás muito pouco prováveis.
-Então e depois?! ... Os hotéis, os hospitais, as escolas, as cantinas, os armazéns, as centenas e centenas de casas dos funcionários, as próprias chitacas que se esta`o a desenvolver, as oficinas, as lavarias ... eu sei lá! ..., tudo quanto por ali vai ... e de dia para dia parece crescer mais depressa? Morre? ... Abandona-se? ... Deixa-se apodrecer?
- Tenho feito essas perguntas a mim mesmo, e por lá, dezenas de vezes. Esperemos que não, Corte Real. Mesmo que as contas de base do empreendimento de Cassinga batam certas, e portanto a exploração dos chamados minérios ricos (aqueles que se estão a laborar: uns 120 milhões de toneladas virgens, ao fim e ao cabo) seja ne-
gócio (como dizem ser), isto é, pague tudo quanto se fez e vai fazer ainda, não só nas Minas como no caminho de ferro e no porto mineiro do Saco, mesmo que seja assim, repito, aquilo que mais vale é o resto: o que vem, o que está vindo já, o que há-de vir, inevitàvelmente, por acréscimo: as chitacas, o gado, as lojas, as demais indústrias, etc. Numa palavra: as pessoas; o povoamento! Aquilo que o minério promove, ou estimula, indirectamente, vale muitíssimo mais do que tudo quanto dá ou venha a dar sob formas directas.
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A. REGO CABRAL
Ora se as minas parassem ... tudo definharia, de certeza! E a maior parte morria, visto oito, ou mesmo dez anos, não ser tempo bastante para consolidar a existência do que vai por aí ... e de dia para dia parece crescer mais depressa, como
você disse. Há pelo mundo fora exemplos flagrantes do gênero, mais que elucidativos: cidades fantasmas; espectros daquilo que o espírito do lucro, por si só, a cada passo tumuliza. Gera e
depois estiola. Não faz parte da nossa maneira de ser, e muito menos dos nossos ideais, agir assim. É por isso que permanecemos em África. De modo algum, essencialmente, pelo lucro! Não creio que seja em Cassinga que nos venhamos a retratar ou trair.
Silêncio escutando a prece dos motores ... Na catedral da imensidão, as núvens alvas, agora em
cacho, eram como fumo de incenso evolando-se profèticamente do crisol da Jamba.
Corte Real foi o primeiro a reabrir: -Mas se o minério acaba ... o futuro de tudo isto... - E estalou a unha do polegar direito nos
incisivos superiores, rodando a mão para diante,
como a profetizar que tudo aquilo se fanaria em cinzas e ruina.
-Acaba, Corte Real, o chamado minério rico. Sóessei
- E o outro ... presta? Isto é: é bom? ... Eu
só-
JAMBA
cá não sei ... Diz-se tanta coisa, senhor Engenheiro ...
- Pois claro que é bom. Olhe, é melhor, bastante melhor!, do que aquele que serviu de base para o lançamento da siderurgia metropolitana. E incomparàvelmente superior a muitos que se exploram por esse mundo fora. Mas exige investimentos de tal vulto, contra margens de lucro tão baixas, que se tivéssemos principiado por ele não ganharíamos sequer para os,juros dos em-
préstimos. Não será assim Dr. Castro Raposo? ...
- Mais ou menos... - admitiu o geólogo, em tom incolor.
-E há fartura desse minério? ... Ou ao fim de outros cinco ou dez anos também acaba? -avançou de novo o piloto.
-Isso é dos pontos que o Dr. Castro Raposo vem esclarecer, segundo creio. Será verdade Dr. Raposo9
-Mais ou menos... - repetiu o interpelado, fechando-se na concha.
Mas em face da expectativa escaldante que emanou do silêncio em redor, reabriu:
- Pelo que já me foi dado ver, espero que
nos Cassin daqui a cem a ga esteja ainda em cres-
cimento, e os seus minérios de ferro (longe da exaustão) contribuindo não só para a prosperidade das populações de todo o sul de Angola mas
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A. REGO CABRAL
da totalidade do território e de milhões de criaturas mais, por esse mundo além.
Mutismo activo dilatado. Segundos mais tarde, o piloto (homem de mil negócios) voltou à carga, acicatado por temores e anseios menos universais:
-Mas se os encargos da exploração do minério pobre não cobrem os juros do investimento ...
-Qual não cobrem, qual carapuça - repontou Serra de Oliveira. - Não cobririam se para ela tivéssemos de partir do zero. Se tivéssemos de pedir dinheiro não só para as exigências da respectiva exploração e consequente tratamento, como também para construir e equipar o porto mineiro, erguer e apetrechar as centrais de energia, as oficinas, os laboratórios, os hóteis, as casas, as escolas, os hospitais, etc., etc.; e ainda para adquirir as locomotivas e os vagões que por aí andam, para melhorar o traçado do caminho de ferro, substituir as travessas e os carris, balastrar a plataforma, implantar novos cruzamentos, erguer estações, etc., etc.! Percebe? ...
-Caramba, não é caso para se zangar! ... Serra de Oliveira ignorou o remoque: -0 futuro de Cassinga depende dos minérios pobres, Corte Real! E não só o futuro de Cassinga, mas também, em boa parte, o de todo o Sul de Angola, como há pouco admitiu o
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Dr. Castro Raposo. Os minérios ricos devem considerar-se: uma dddiva de Deus para principiarmos! Para vencer as mil dificuldades inerentes ao arranque de um empreendimento desta grandeza, sem dinheiro, nem amigos, nem ajudas para tanto!
- Diga-me dessas ... Agora sim. Agora percebo. A concentração do piloto raiava pelo cómico. Serra de Oliveira (já refeito) resolveu incendiá-lo mais: atraí-lo para a sua fé de pioneiro:
- Pois é, Corte Real. Oxalá o Dr. Raposo confirme tudo quanto já se, apurou, e defina como se deve ir para diante, em pleno êxito.
- Oxalá, caramba! - suspirou Corte Real com emoção. - Se isto pára de crescer... é uma desgraçal
- Espero não desiludir ninguém - aqueceu * geólogo, tocado pelo idealismo do engenheiro, * pelo que interpretou como "sonho de negócios" do piloto.
Um silêncio vibrante encheu o acanhado espaço do bimotor, dilatando os anseios para além das mais coloridas aspirações de cada um.
Pouco depois Corte Real explodiu: -Nunca supus, caramba! Sabe que mais?..., vou comprar outro avião!
- Sério, Corte Real? - atiçou o engenheiro.
- É o que lhe digo! 0 meu sócio tem andado a moer-me o juízo para a gente ficar com mais
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um aparelho destes (melhor!, do último modelo!) que os representantes nos querem entregar em condições estupendas. E eu a dar-lhe para trás: "Não, Pinto, já temos três unidades. Pensa no
dinheiro. Isto das Minas é capaz de afrouxar ... e depois vemo-nos à rasca. É melhor ir aguentando ... até acabarmos de pagar estes". E ele sem-
pre a moer: "Olha que não, Corte Real. Deita os olhos ao que por aí vai: está tudo a crescer. Lembra-te de quando comprámos o primeiro. Estavas com medo de não termos serviço, e passados seis meses tivémos de mandar vir outro. E também não tínhamos as coroas! Aquilo das Minas é como o resto: há-de ir sempre a mais.
0 Cuima foi o primeiro passo. E atrás das Minas ... o fim do Mundo! " Caramba!, tal e qual o
senhor Engenheiro e o senhor Doutor pintaram! Vou comprar o aparelho. 0 Pinto tem razão. Já com os outros foi assim. E logo um bimotor daqueles ... Raios me partam! Vou comprá-lo!
-5orça! - incitou Serra de Oliveira.
- 0 pior é os pilotos.
- Pague-lhes bem. A mola real de tudo é o dinheiro.
- A dúvida não está no pagar. Se calhar pago-lhes melhor do que as Minas a alguns funcionários doutorados. Pago-lhes mais do que o
Estado paga aos engenheiros, aos médicos, aos
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professores ... e até aos governadores de distrito!
-Não tenho a menor dúvida. Por isso, nos cargos de rotina, quase só têm sucata.
-E encontrá-los? Já contratámos dois, mas não chegam ... Na Aeronáutica só empatam e
complicam. Se tratassem de fazer pilotos em vez de complicar os exames... Exigências. Só exigências. Isto sempre está uma gaita! ... Olhe, aqui onde ninguém nos ouve, se eu tivesse de ir amanhã fazer exame, ficava chumbado. E já voo há mais de dez anos, nunca tive a menor caipora, gozo da fama de ser um piloto seguro, e até competente!, e desafio o mais pintado para voar por Angola inteira, com qualquer tempo, a par de mim. E para descer e sair, por esse mato fora, das pistecas dum certo número de fazendas e
Postos, como eu faço há uma data de anos, sei lá quantas vezes por mês. E se fosse a exame ficava chumbado! Sobretudo em meteorologia. Como se alguém seja capaz de me ensinar como é o tempo em Angola! Queria vê-los era cá em cima! Exigem tanto ... e volta meia volta um desses novos, que sabem tudo, quina!
-De facto nos últimos tempos tem havido uns desastres chatos -concordou Serra de Oliveira.
-Tudo com os novos. Os velhos, como eu,
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sempre em forma! E se lá fosse, chumbava! Como há-de haver pilotos? E tanto rapazinho por aí, cheio de jeito e vontade ... Isto sempre está uma gaita! ...
-Não se impressione, Corte Real. Se eu tivesse de ir amanhã fazer exame de pesados e ligeiros, também chumbava. Dois chumbinhos garantidos! E já fui instrutor e examinador em ambas as modalidades. Mais: nessa altura era infinitamente menos apto, e até sabedor, do que sou hoje - tanto nos pesados como nos ligeiros. Os exames são o que são: a válvula de escape de um certo número de azémulas e aleijados, que não foram capazes de vingar na acção de facto. É o mesmo que nas escolas. Olhe para os realmente grandes-professores - simultaneamente grandes na escola e fora dela: quase não têm, ou não tiveram, de todo, reprovações! Não se impressione, Corte Real. Os exames são o que são, como já disse. Valem isso que se vê! E como não podem ser impugnados, os funcionários que comandam as alavancas, quer sejam burros ou inteligentes, honestos ou venais, são, e serão!, quem decide. Dessoramento e burocracite! Olhe: a jambite é a peste das minas, por falta de arejamento e concorrência: mas quanto à burocracite, peste das pestes nacionais, estou inteiramente de acordo consigo, e creio, de verdade, que se
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nutre, essa sim!, da falta de arejamento e concorrência válida, dessorando tudo, para glória da incompetência, e, piofl, da irresponsabilidade! Eu também chumbava, Corte Real. E guio há perto de 30 anos, nunca tive um acidente sério, nem tão-pouco fui autoado. Note bem: nunca fui autoado!
-Eu não direi outro tanto -galhofou o geólogo. -Estou farto, refarto!, de ser autoado. E também guio há bons trinta anos, fui igualmente instrutor e examinador de ligeiros e pesados, e não tenho a menor dúvida de que sei e
valho hoje, nesses domínios, bastante mais do que então. Não obstante (desculpem-me!) custa-me a admitir a hipótese do chumbo, caso tivesse de fazer hoje os exames da lei. Se o examinador fosse dos tais ... desconfio que havia de arranjar forma de o pegar. De fazer com que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro. Quero com isto dizer que a minha opinião sobre os exames é mais severa que a vossa: não os tomo a sério. Mas como são coisas de facto, acho que devemos enfrentá-los no plano dos factos, e batê-los nesse mesmo terreno -e depois rir. Mas enfim..., como a experiência não está feita, tenho de admitir a hipótese contrária: a eventualidade de ser chumbado também.
Foi um duche de água fria. 0 piloto e o enge-
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nheiro entupiram. Este não era contendor fácil. Não obstante, em vez de objectar, como seria mais da sua veia, escorreu o "banho>@ durante frios segundos, e em seguida perguntou, rumando noutro sentido - sem dúvida para não "agredir" o visitante.
-Foi examinador? ...
- Fui. Na Guiné, onde desempenhei com rela. tivo êxito o cargo de director de Obras Públicas e Minas.
-De director de Obras Públicas?
- Sim. Antes de me licenciar em Geológicas fui agente-técnico de obras públicas e minas. Isto é: engenheiro-auxiliar, como então se dizia, com justa propriedade. Andei pela Lunda, nos
diamantes, estive depois em Timor e em Moçambique, e entrementes dediquei-me à geologia ... e cá estou.
-Não fazia a menor ideia. Nesse caso ... formou-se muito tarde, não?
- Nem por isso. Com 18 anos já era engenheiro-auxiliar. Entrei com 14 para o Instituto e com 9 para o liceu. Licenciei-me aos 30. Fiz o curso com uma perna às costas, como se costuma dizer. Pouco nele aprendi de realmente significativo, em relação ao que já sabia. Fui sempre um apaixonado pelos "calhaus". Pude por isso
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fazer o curso em 3 anos e classificar-me particularmente bem, sem qualquer dificuldade.
- Admira não ter ficado pelo ensino ...
- Não fui nisso..
- Eu queria referir-me ao ensino superior.
- Foi o que eu entendi. Materialmente não me convinha. (A velha questão do dinheiro!). E profissionalmente não me agradava. Prezo mais os factos do que os livros, que estão sempre um pouco atrasados para quem deseja andar em dia. E no entanto ... também já escrevi alguns. Mas fi-lo sobretudo para me ensinar. É por isso que estou certo de que este meu
jovem amigo, companheiro de viagem -e olhou para Miranda- vai ser um seu auxiliar precioso. Posso garantir-lho!
- Sim?... -0 interesse de Serra de Oliveira animou o geólogo:
-Começou por carpinteiro, subiu a encarregado, e já era mestre-de-obras prático quando foi tirar o curso respectivo. Um pouco como eu.
Com a diferença apenas de que a escola, para ele, foi um verdadeiro manancial de teoria; e
para mim, nesse domínio..., como as fontes da planície no fim do Verão.
- Folgo imenso ... Isso é realmente estupendo - confessou Serra de Oliveira voltando-se para Miranda. - Exactamente aquilo de que
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eu estava mais precisado: Um prático a sério, com sólidos conhecimentos teóricos. Tem experiência de estruturas e edifíc1@0---'>
-Julgo que nos edifícios não há segredos para mim. Quanto às estruturas, como todos os dias aparecem coisas novas ... é difícil responder. Espero que aquelas que tiver de executar aqui não me embaracem. Tive a sorte de uma experiência muito variada. Creio que só nunca trabalhei em barragens e aeródromos, de forma significativa.
-Então como veio parar aqui? Se calhar nunca esteve em África ...
-Nunca tinha saído da Metrópole, realmente.
-Que diabo lhe aconteceu? -Estava a trabalhar por conta própria e tudo parecia correr sobre esferas, o que no referente aos trabalhos traduzia de facto a verdade, mas havia um sócio ... Deixou-me entalado até ao pescoço. Paguei o que pude ... e "fiquei de tanga", como parece se diz por cá. Ainda por cima estava para casar. Claro, já não-casei -e sorriu com amargura.
- Mas como foi isso? -0 meu sócio era quem tratava das compras e dos pagamentos, e até quem fazia a escrita. Quem lidava na administração. Era guarda-livros,
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mas também sabia de obras. Passou-se para a Argentina pràticamente com tudo quanto era nosso, dos clientes e até dos fornecedores. Um golpe de mestre. Deixou-me os encargos e as dívidas. Fui a terra! Não tive coragem para recomeçar, apesar das ajudas que alguns amigos, e, até clientes, me ofereceram. Não passaria de mero empregado. Preferi mudar de ambiente. Foi quando vi o anúncio da Companhia. Como as condições me pareceram tentadoras ... cá estou. Coisas da vida ... E verduras também, pois tinham-me avisado, e eu não acreditei. Confiei nele como se fosse meu pai ... Tratante! Se um dia lhe deito as mãos... -e endureceu repentinamente, assumindo um todo feroz imprevisível, verdadeiramente chocante, que impressionou Serra de Oliveira e o piloto.
Decorridos pesados segundos de silêncio comprimido, Corte Real praguejou:
- Merda! Sempre o dinheiro. A porcaria do dinheiro! Quando raio se inventará uma forma do trabalho de cada um deixar de se traduzir em papéis à mercê do primeiro sacana sem escrúpulos? ... Bem diz o Pinto: "Não há nada como ter dívidas e trabalhar para elas, e dessas para outras, e assim por diante".
Ninguém fez comentários. 0 geólogo, no entanto, sorriu da ingenuidade. Serra de Oli-
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veira, mais emotivo, porventura mais temperamental ainda que o piloto, reagiu nesta feição:
-Quantos anos tem você, Miranda? -32, feitos há dias. Silêncio outra vez. Com o propósito evidente de aliviar a atmosfera, o engenheiro abriu-se mais:
-Espero que não se arrependa, Miranda. De acordo com o meu modo de ver, isto é o que lhe convém. Adapta-se e depois irradia. Angola é generosa para quantos se lhe dedicam, ou apenas nela se esforçam. Entretanto, a Companhia não paga mal. Todos têm possibilidades de fazer economias. E pelo lado que me toca, estou certo de que nos vamos entender muito bem. Você deve justamente ser a pessoa de quem estava à espera, para me aliviar, a fim de meter o problema das casas no são. A jambite já me passou dos nervos para o sangue, e qualquer dia fura-me os próprios ossos. Estes últimos dois anos têm sido arrasantes. E ainda não temos sequer metade das casas indispensáveis! Era por onde se devia ter começado ... Mas a velha história do dinheiro, isto é, da falta dele, impôs uma disciplina diferente. Foi preciso dar prioridade às instalações industriais para que o minério começasse a sair o mais cedo possível! Os encargos do capital eram asfixiantes. Só de juros, por dia,
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segundo tenho por lá ouvido aos @esponsáveis pela administração, o suficiente para garantir a
independência de qualquer de nós! Ou para com-
prar dúzia e meia de bons automóveis! Isto, por dia, como disse, e só de juros!
-Bolas! ... -exclamou Corte Real.
- É verdade! Cada dia de atraso na produção era um acréscimo assustador da montanha dos débitos. Felizmente, o maior perigo passou. A Companhia está a honrar todos os compromissos, e o futuro do empreendimento já não oferece dúvidas a ninguém. Assim haja juízo! Mas o
pessoal foi terrivelmente sacrificado. 0 que nos
valeu foi a espantosa capacidade de sacrifício da nossa gente. Não acredito que alguém mais, nas
nossas condições, tivesse feito melhor, ou até conseguido vencer. Oxalá os que vierem sejam continuadores ... pois o dinheiro é um veneno. Uma arma estupórada. Ai, pois, de quem não for capaz de o superar! ...
-Olé olá! ... -Olharam uns para os outros, sem atingir a observação de Corte Real. ' Apertem os cintos! Vou' iniciar a descida para a aterragem. Estamos na Jamba.
Obedeceram. Sobre um chão vermelho de cólera, ora negro ora esbatido, aqui e além sanguíneo -esfolado! -uma nuvem cor de tijolo asfixiando o casario.
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Diques térreos dos mesmos tons, a norte e a oeste, represando águas cansadas -lagoas adorinecidas afilando para montante, viçosas, descrevendo vales. Ao centro, apertada entre dois taludes avantajados, erguidos a par, outra menor, de risco geométrico, toda de sangue -rebotalho de uma lavaria imponente. Verdes sujos em redor, sem fim, da floresta nativa ofendida. Barracões de onde em onde. Estaleiros quase ao
acaso. Oficinas corridas. Parques industriais, camiões, jipes, buldozeres, secreipares, basculadores gigantes, mastõdontes em acção. No sopé de um jazigo esventrado, para leste, uma chana repousante cortada a meio por uma pista carnosa debruada a amarelo-sujo e capim. Era o aeródromo da Jamba -capital do ferro de Angola.
Três ou quatro jipes, dois pequenos automóveis, uma ambulância e dúzia e meia de pessoas aguardando o bimotor. Ainda os passageiros mal tinham saltado já um sujeito meão, de cabeça prussiana e ar decidido, abordava o piloto:
-Corte Reafi, tenho um ferido em estado muito grave, que tem de ir para Nova Lisboa.
0 nosso avião foi a Luanda. Não sabemos a que horas chega. Foi buscar dois administradores da Companhia. Não podemos chamar outro taxi. É muito tarde. 0 acidente ocorreu há bocado e
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o homem está em perigo de vida, Pode levá-lo já? ...
-0h senhor Comandante Serrão! ... podem cancelar-me a licença de voo!
- Se o homem não vai, diz o médico que não se salva ...
-Ora a minha vida! ...
- A sua e a minha. Mas a do homem é muito pior. Se não lhe acudimos, apaga-se! ...
- Só se eu inventar uma aldabrice qualquer ... Mas arrisco-me de verdade! Bem ... logo que esteja no ar dou a saída como ainda em tempo, e depois informo que um dos motores se foi abaixo. Não tenho outra safa para justificar o atraso à chegada. Vou descer ainda com
dia, mas, pela certa, -com o Sol já no horizonte. Como sabe, devemos aterrar meia hora antes do sol-pôr. Seja o que Deus quiser! Lá por mim não há-de o tipo morrer. Mande avançar a maca! Um momento, senhor Comandante! Preciso de auxiliares para desmontar as cadeiras. Não sendo assim a maca não cabe.
Já ali tenho gente para isso. Obrigado, Corte Real. -E desandou para a ambulância fazendo avançar os ajudantes.
Minutos depois o bimotor voltava a subir, agora com um ferido em coma, um enfermeiro, e o velho Corte Real -piloto de mil aventuras,
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antigo chofer de camião, funante, e até candongueiro. Um fruto genuíno daquelas terras, daquele viver, daquela civilização cristianíssima.
A aguardar os recém-vindos, além do Comandante Serrão (uma espécie de ministro local do interior, dos abastecimentos e dos transportes -e chefe de segurança) o engenheiro Falcão Mena, director-chefe das Minas, quatro ou cinco técnicos mais, e pessoal adestrito ao ministério do Comandante -garboso oficial da reserva, com longa e muito experiente carreira africana, desde a guerra no mato às funções burocráticas e à própria chefia da segurança pública de Luanda, nos dias sombrios de 61.
Serra de Oliveira fez as apresentações e confiou Miranda aos cuidados de um colaborador esteta -meio secretário meio oficial de public relations- que por sua vez o despachou para outro dependente, a fim de poder borboletear na atmosfera de três beldades garridas, uma delas morena de formas rumorosas, jeitos de embalar e olhos rutilantes -ao palor de cuja cintilação ele trovava xácaras, endechas e rimanCCS.
Repartidos os cumprimentos e as frioleiras do bom uso (câmbio de vacuidades) Falcão Mena, Serra de Oliveira e o geólogo tomaram
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lugar na mesma viatura, rumo à vila, seguidos pelos mais.
À entrada do aglomerado, um pomposo letreiro garrido, grimpando estes dizeres: VILA DO JAMBA.
-Porquê, do Jamba? -quis saber Castro Raposo.
-Graves congeminações filológicas dos nossos técnicos! -ironizou Falcão Mena com um sorriso dourado. -Como "jamba", na língua indígena, é "elefante", concluiram que a vila devia ser masculino.
-Não lhes gabo o gosto -castigou o geólogo. -Aprendi há muito que uma tradução filológicamente correctíssima é, a cada passo, uma enormidade filosófica. Isto é: de pensamento pensado. Numerosos espíritos o salientaram já. Mas um deles, recente ainda, bem conhecido (dos mais profundos de todos os tempos) fê-lo de forma tão definitiva, que a questão ficou arrumada.
Ninguém retorquiu. Dir-se-ia até que um ar de fria reserva congestionara a viatura. Castro Raposo não se deixou vencer. Manteve o tom e deu outro passo:
-Na tradução de conceitos, o que está em causa são os conceitos. Jamais os símbolos, a própria simbologia da tradução -oral, ou
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escrita! Jamba, agora (vocábulo da nossa língua), não quer dizer elefante. Escreve-se com um jota maiúsculo. É um substantivo próprio. Traduz tudo isto que os senhores ergueram, a partir do nada, e de que devem sentir legítimo orgulho. É uma terra. Uma vila, pelos vistos. - E sorrindo para os companheiros: - Esperemos que seja cidade muito em breve.
- Oxalá! - agradeceu Mena. Serra de Oliveira baixou a cabeça.
- Como tal - prosseguiu o geólogo - a meu ver, seria mais comunicativa, mais acolhedora! ... se fosse feminina. Era mais aliciante! ... Na minha opinião, ficaria melhor se permanecesse como até aqui tenho ouvido, e, creio, principiou. Sábia intuição a do povo, que elegeu o feminino!
Um sorriso de concordância pensada aflorou aos lábios de Serra de Oliveira.
-De resto -insistiu Castro Raposo, no tom agora de quem pretende justificar-se .- uma vez que a palavra faz já parte da nossa expressão ... seria mais natural que se regesse por ela. E como é de textura feminina ... prefiro-a no gênero que lhe quadra, tanto mais que em português (como nas restantes línguas) abundam exemplos deveras edificantes de vocábulos que mudaram de gênero no processo de assimilação. Para mim, consequentemente, se não se importam, conti-
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nuará sendo: a Jamba. ]É mais suave ... Mais mulher! Além de (segundo o meu modo de ver, claro está) mais apropriado, e lógico!, portanto. -E abriu um -largo sorriso prazenteiro, carteando para os outros dois, como aliciá-los desportivamente à controvérsia.
-Bem... -compôs Falcão Mena, a sorrir também, vencendo a neutralidade, no seu jeito cortês, muito característico e afável: -Eu, pessoalmente, simpatizo mais com a Jamba. Não por dela extrair, como afectou, qualquer sentimento maternal. Porque penso nela como se de uma filha se tratasse. Contribuí com o melhor do meu esforço, e até saúde, para que ascendesse ao ser. Ãquilo que é; que nada tem a ver com elefantes, como muito bem observou.
-Eu voto pelo feminino: a Jamba! É assim que digo, e assim direi, pintem por aí o que pintarem - trunfou Serra de Oliveira, entre sarcástico e mangão.
- Apoiado! -aplaudiu Castro Raposo a sorrir.
- Para masculino, sobretudo aqui (cá para mim!) basto eu. Já o tenho dito e redito. E sempre que me apontam o facto de a cidade do Porto ser masculina, machona!, nunca deixo de repontar que as excepções são fraco material para construir regras. E Porto sugere (de resto com
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legitimidade) Portugal. Ora Portugal acho mUl-
tíssimo bem que seja, e permaneça, viril! Masculino, portanto. De resto se, tirante o Porto, até Castelo Branco (dois nomes masculinos) por ser cidade, é feminina, porque raio de carga de água a Jamba há-de virar macho?
- Bem observado - aplaudiu o geólogo outra vez. - Oxalá pois, Jamba e Cassinga, por bem de todos nós, apesar deste "atentado", permaneçam femininas ... a dar frutos por longas décadas! Se virarem machos ... será uma tragédia. Oxalá não mudem ... apesar desta inversão postiça.
- Oxalá! - apoiaram Falcão Mena e Serra de Oliveira, irmanados de todo, por fim.
- A masculinização de Jamba - continuou o geólogo - é tão artificiosa, além de pedante, que foi preciso escrever "Vila do Jamba", em vez de simplesmente "Jamba", como seria próprio. Não acudirá a ninguém gravar na coleira de um canídeo cujo nome é Gaita "Cão Gaita", em lugar de "Gaita" apenas. Se não, à entrada de Lisboa e de Ovar, por exemplo, teríamos de escrever "Cidade de Lisboa" e "Vila de Ovar".
-Bolinhos para os autores! -mangou Serra de Oliveira. -Estarão eles para desovar?! ... -e despediu uma risada ratona.
A brejeirice de Serra de Oliveira contagiou os
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companheiros. Animado pelo êxito, o quarentão aproveitou a sota para farpear na garupa:
-"Vila Real", "Vila da Feira- e "Vila Nova de Tazem" (a minha luminosa parvónia) escre-
vem-se de tais jeitos por serem aqueles os seus
nomes próprios. Tanto assim que a primeira é cidade, a segunda vila, e a terceira aldeia. Bem ... Vila Real já foi vila. Vila do Rei. Há quem sus-
tante (com Henrique Galvão, Abel Pratas, etc.) que o elefante é o rei dos animais. Juro-lhes que não sei se é ou não é! (Não falo a língua deles). Tenho porém a certeza de que o cobardíssimo do leão jamais o foi, apesar de no aplomb se
parecer imenso com certos monarcas, monarquinhas e monarquetas de dois pés. Dar-se-á o caso
dos autores da machificação de Jamba não só acreditarem em Abel Pratas e Galvão, mas também nos cafres! .... e quererem restaurar a soberania e o próprio culto dos trombudos?
0 sarcásmo do engenheiro fez explodir um
arrebol de gargalhadas.
Estavam junto do hotel. Castro Raposo foi conduzido ao apartamento que lhe estava destinado e os engenheiros abalaram para as suas obrigações.
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Grandes e pequenos, bons e maus, pretos e brancos, cães sapos efémeras ... tudo animais! Somenos ...
Coisas com ser!
Incêndios outonais prestes a falecer.
GRANDES E PEQUENOS ...
Mal se viu só, Castro Raposo desfez a maleta e enfiou-se debaixo do chuveiro. 0 calor húmido começou a penetrá-lo ... - e ele foi deixando a água correr, intensa e mordente, até sentir os nervos e os músculos renovados.
Como a luz da casa de banho era mortiça, os filetes do chuveiro (mercê da própria finura e do vapor que - deles se desprendia) não lhe denunciaram a nojosa coloração da água, que, longe, muito longe de ser límpida, era da cor do chá forte, ou mesmo do café brando. A toalha em que se envolveu, por ser de tom queimado, contribuiu também para a sua impercepção daquela bastardia. Mas, quando ia para vestir-se, notou uma estranha aspereza na pele, e verteu um pouco de álcool no copo dos dentes, juntando-lhe água, a fim de se friccionar.
A mistura pareceu-lhe uísque. Convicto de ter trocado os fracos dos espíritos, sorriu - e o sentido do humor deu-lhe para se desfrutar com o próprio engano:
-Vem a propósito ... Deus escreve direito
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por linhas tortas! - e levou o copo à boca, ingerindo um trago generoso.
Ainda tentou sustar a ingestão -porém, sem resultado. Fez uma careta, cuspiu uma praga e
atirou com o resto da mistura para o chão. Avançou depois outra vez para o lavatório (com o propósito de lavar a boca dos efeitos da mistela) e abriu de novo a torneira fria - agora de olhos já bem abertos:
- Céus! ... Esta gente lava-se com isto?!
0 fluxo era da cor do café. Muitíssimo mais escuro do que no chuveiro, e, sobretudo, do que
* pequena porção de que pouco antes se servira,
* qual, por ter decantado, aclarara. Mas atrás dela jorrou um verdadeiro lamaçal hematítico, negro e espesso, sugerindo café autêntico.
-Merda! ... -berrou revoltado. Pouco a pouco, no entanto, à medida que os depósitos da canalização foram sendo expelidos, o enxurro foi clarificando até se normalizar no tom do chá, do uísque... - ou daquilo que de facto era: genuína, autêntica, honestíssima água suja. Água da lavaria!
0 líquido oficial das canalizações urbanas da Jamba não era todos os dias assim - é bom salientá-lo. Mas, de ora em quando ... era pior!
Castro Raposo estava azul. A sua longa e muito
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variada experiência africana já o tinha experimentado, e até vacinado, contra práticamente todas as eventualidades próprias do mato e dos lugarejos primários do sertão, neles incluídos os
de palhotas e até de furnas. Mas a Jamba - santo Deus! - era uma vila hodierna, com mais de seis, sete, ou oito mil habitantes! ... 0 terceiro núcleo urbano do sul de Angola! ... Um centro industrial florescentíssimo, pejado de engenheiros e técnicos de quase todas as modalidades -além de médicos enfermeiros, sacerdotes, operários e contabilistas - e um quase-ministro do interior!
A estupefacção do geólogo não tinha limites: raiava pelo desespero, acidulada até à revolta. Levou tempo a amornar e diluir. E como era
profundamente humano (dotado de vera compreensão e raro senso de humor) acudiram-lhe à mente, um a um, aqueles passos da peroração de Serra de Oliveira, quando, a bordo da avioneta, procurara consolar Miranda: "Foi preciso dar prioridade às instalações industriais para que o minério começasse a sair o mais cedo possível. Os encargos do capital eram asfixiantes". "A Companhia está a cumprir todos os seus compromissos e o futuro do empreendimento já não oferece dúvidas a ninguém". "Mas o pessoal foi terrivelmente sacrificado. 0 que nos valeu foi a espantosa capacidade de sacrifício da nossa gente".
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E a seguir os precedentes comentários do piloto: "A Jamba está uma cidade". "... há pouco mais de três anos ainda tudo aquilo era mato! 0 que já lá se fez deixa uma pessoa de boca aberta". E em voz alta para si mesmo:
-Há pouco mais de três anos tudo isto era mato..., mas a água era melhor!
Deu volta ao manípulo e sustou o fluxo. Continuava nú, e, apesar de tudo, sob o domínio de uma sensação agreste de sujidade.
-E agora?! ... -suspirou desolado. Traçou a toalha nos rins e voltou à maleta. Abriu um pacote de algodão em rama, desfê-lo em pedaços, e juntando-os num maço, como se foram compressas, dirigiu-se de novo para a casa de banho -sentando-se num banco esgaIgado, que dormia sob o lavatório. Ensopou depois as
compressas em álcool puro e pôs-se a "lavar-se", meticulosamente, centímetro a centímetro (a pera
e o bigode objecto de cuidados especiais) espalhando a esmo, pelo chão em redor, pachos acastanhados, até esgotar o suprimento.
Praguejou três ou quatro vezes (sob o ardor das escorrências por "arrabaldes" mais sensíveis) e por fim, exausto de todo, enfiou-se na cama e
tentou dormir. Não foi bem sucedido. Desesperado, ergueu-se de jacto e voltou à maleta, virando-a do avesso - até descobrir um pequeno
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frasco paralelepipédico, donde extraiu três cápsulas de gelatina com um pó amarelo no interior. Juntou-as na palma da mão esquerda e atirou com elas violentamente para a garganta, esforçando-se por assim mesmo (a seco) as deglutir. Uma ou mais, ou mesmo as três, devem ter-lhe aderido à mucosa, desesperando-o. Meio sufocado, fez esforços para se desembaraçar do precalço, mas os frutos foram medíocres: as cápsulas desceram um pouco, aliviando-o da aflição, mas sem deixarem de o incomodar. Irritado, avançou para a porta do exterior, disposto a
reclamar o que quer que fosse -porventura água bebível. Foi quando viu sobre a cómoda, logo à entrada, uma bem-aparecida garrafa de quarto, cheia de água cristalina; a par, um termos de boca larga - qu,@se um feitiço! - denunciando gelo. Fez as pazes com a Sorte: a perspectiva do gelo enterneceu-lhe o coração. Sentiu uma alma nova, e, quase a sorrir, foi buscar o "patife" do frasco do uísque: cheirou-o profundamente..., repetiu a inalação ... e, agora sim! com água, gelo e aquele "bom-amigo", absolveu-se apostólicamente:
-Ah! ... Deus sempre escreve direito por linhas tortas! ...
Esgotou a poção e meteu-se na cama outra vez. Um torpor insidioso começou a invadir-lhe
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o corpo, o sangue, o próprio pensamento. Estendeu um braço para a mesinha de cabeceira, como quem vai por algo, mas o movimento não chegou a completar-se: a mão descaiu .... e a cabeça tombou.
Cassinga-Norte -a nóbil Jamba- quase se despovoou para receber os nobilíssimos administradores da empresa:
Quem não estava de turno e tinha automóvel, ou conseguiu lugar fácil nos camiões postos ao serviço dos transportes entre a vila e o aeródromo, não ficou em casa. Numerosíssimos operários e trabalhadores - homens e até mulheres - não obstante, em face do afluxo às viaturas livres da Companhia (e ao zelo esculcado na defensão das atribuídas aos dirigentes e funcionários de maior destaque), meteram-se ao caminho a pé, gozando o esvair aliciante do entardecer, em grupos e aos pares, enfeitando os carreiros e a estrada com a alegria festiva da cor e da vibração das romarias serranas.
Os casacos e as gravatas - galas de fastos solenes - desafeitos da vivência, desforravam-se de clausuras com esgares de pudícia e ressaibos insecticidas, aqui tesos, além engelhados, anémicos ou contrafeitos.
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Serrão -o Comandante laureado - activo e fugaz, não tinha mãos a medir: ordens para aqui, berros para acolá, raspanete à direita, sorriso à esquerda, esbanjava táctica nos embarques e
estratégia na recepção - girando a plena potência por todo o campo de operações.
Na rotina exaustiva do dia a dia, a visita era um banquete de tranquilizantes e revivificações. Os jogos, as charlas, os bailinhos e os proprios namoricos (pratos de múltiplos agrados) desceram por horas até à insignificâ ncia de meros tapa-fomes de ementas desprezadas.
É bem possível que aos visitantes, por não-dali, toda aquela euforia rescendesse a vénias e mesmo estima. É bem possível, é. As galas do céu também compareceram, feéricas, rubras como
na véspera -mas para os de lá, só naquele dia tiveram tal riqueza e tais cores.
0 avião surgiu, curvando nas alturas, quando o Sol, quase a despedir-se, perdeu de todo o brilho e se recatou num enorme disco de sangue
- dessorado - esfriando sobre as matas de além Cului.
Falcão Mena, Serra de Oliveira, Serrão e demais pontas-de-lança de todos os naipes da técnica, da saúde, da administração e do ensino cassinguenses, em fila aprumada - lustrosa,
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vénio-opinante - aguardavam penteadíssimos os mandarins do Velho Continente.
- Serrão! Você mandou avisar o Dr. Raposo?
- inquiriu preocupado Falcão Mena, soletrando em redor.
-Três vezes! Bateram, bateram... e nada!, segundo me comunicaram agora. Até despachei há minutos (logo que vim!) o meu ajudante para lá! ... Não percebo. Pode ser que, ainda chegue a tempo ... Já lhe distribuí uma viatura: o ALA-75-75!
-Terá ficado a dormir? ... -Ora ora... -escarneceu Serra de Oliveira. -Ele quase que não dorme! Já me disseram que é capaz de passar semanas a fio só com duas a três horas de sono por noite, sem perder a forma.
-Então não sei... -A inquietude de Mena contrastava com a descontracção de Serra de Oliveira, realçando a segurança de Serrão. - Terá ele ido ver a lavaria e dar uma espreitadela à mina'> ...
- Certo! - interpretou balisticamente o militar. - Por isso ninguém respondeu. Bem podiam ficar a bater-lhe à porta até à meia noite.
-Deve ser isso -aderiu Mena. -Quis dar uma olhadela sózinho... -e arrepanhou a pálpebra inferior do olho direito com o indicador
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da mão esquerda, inclinando o tronco e a cabeça, numa atitude por demais sugestiva. - Raposo! ...
- Raposão! ... - rosnou Serra de Oliveira, -Cágado!... -reforçou Mena.
- Se perguntarem por ele diz-se isso mesmo
- arrumou o estratega Serrão, aderindo à "má-língua" com espírito conclusivo.
- E o Miranda? - quis saber Mena a seguir.
- Veio com o Rodrigues - informou o Comandante. - Parece que são conhecidos. Olhe, estão além, ao pé da AlbIna e da Clotilde.
- Máu - resmungou Serra de Oliveira. - Se ele se junta ao Rodrigues, qualquer dia arma para aí em Casanova, também.
-Ou Pinga-Amor... -contribuiu um ponta-de-lança afecto à lavaria.
0 avião, cumprido um largo círculo sobre a vila, a mina e as instalações industriais, apontou por fim à pista, em voo suave.
-Aí está o Sete-Meses -@-- avisou Serra de Oliveira.
Sete-Meses era a alcunha da magnífica aeronave da Companhia. Como se tratava de uma quase-réplica, em tamanho reduzido, dos bimotores das carreiras provinciais, diziam que era um fruto de "parto prematuro": um Friendship de sete meses. (Friendship era o nome de catá-
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logo dos aviões mais evoluídos do organismo responsável pelas carreiras regulares).
Mal o aparelho estacionou, devidamente orientado na plataforma do aeródromo, o pequeno grupo dos responsáveis regionais, com Falcão Mena à frente, aproximou-se da portinhola de saída a fim de cumprimentar os visitantes e proceder às apresentações do programa.
A primeira personagem a assomar foi o Professor Sereia: um catedrático da plena confiança do Governo, que (dizia-se) sacrificara a carreira para se dedicar à Companhia. Era o administrador mais graduado. Escaparático!, cabelos lisos, fronte invulgarmente ampla (muito alta e larga -quase excessiva), olhos negros enormes, nariz romano, boca rasgada e queixo agudo, era uma figura imponente. Aceitou os cumprimentos de boas-vindas com afabilidade, sorrindo, e foi generoso nas apresentações -talvez por nunca ter estado ali, ou em África sequer. Apertou quantas mãos lhe estimaram o alcance (beijando as femininas) e por sua livre iniciativa viajou pelos vários grupos de operários e trabalhadores em redor, e repartiu, universitàriamente, sem discriminações, os favores da sua presença: mão por mão, olhos nos olhos - o sorriso a correr e esta tríade a rodar: "Uma honra ... ", " É um prazer ... ", "Muito feliz ... "
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Atrás do Mestre (à saída do Sete-Meses) o mais recente e mais jovem de todos os membros da administração superior da empresa: o engenheiro Eurico Corvo: um sorriso engravatado assistido, posando em ponto de cruz. (Era recente ... apenas como administrador! Como engenheiro era dos mais antigos, se não o mais antigo até, e, sem sombra de dúvida, dos mais válidos e que mais contribuíram, ao seu nível -director técnico do Projecto Mineiro de Cassinga- para dar espinha, e membros, ao empreendimento). Meão, de rosto impressivo, exprimia-se numa aliciante voz de baixo, derramando simpatia aprumada -envolvente e pedante. Era contudo fácil -aberto-. e deveras vertical. De todos bem conhecido (porventura amigo) há muito que não vinha a Angola. Talvez por isso, e apesar da sua magnífica e já extensa folha de serviços à Província, dir-se-ia reimprimido: algo mudado. Deixou correr o cerimonial do Professor Sereia, moderado (sempre composto) tributando apertos de mão e abraços -contra chistes e farófias.
Como acompanhante dos dois, o médico-chefe da empresa - Dr. Pinto de Castro-, que foi o último a sair. Comum ... dissolveu-se quase logo na plebe, auscultando vísceras e humores. Era um clínico habilíssimo, poeta de rimas brancas
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-pediatra por intuição e psicólogo por rotarismo. Humano e inteligente, enfim. Chamavam-lhe Doutor Alergia -por tanto propender para este sortilégio cazumbí- reino encantado da ignorância médica.
Eurico, o Corvo, era algarvio - e lisboeta por osmose e liofilização. Tão lisboeta, tão seguro da sua ulissiponê ncia, que para dar cor e perfume ao cidadismo que dele rescendia, por tudo e por nada falava do Algarve e do seu algarvismo
- sem a verborreia mourisca, típica de lá. Pausado e solene (isto é: pedante), modelando cortesias na sua bela voz de baixo, poisou a mão no ombro de Serra de Oliveira e declamou:
- Então? ... - (parecia um acorde). - Que é feito do Dr. Raposo? ...
- Parece que foi dar uma volta de carro, pela mina, e ver as instalações. (A mina, como já se viu, era a céu aberto: um conjunto de colinas capeado -à pele ou perto dela - por um manto mais ou menos espesso de plaquetas de hematite aluvionar, de elevado teor).
-0 quê?! ... Já? ... Quando chegou ele ao Jamba? (Corvo, o Eurico, muito compreensivelmente, era dos que aderiram, em Lisboa, à recrismação da Jamba. Preferia: o Jamba).
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Há pouco mais ou menos um a hora - estimou Serra. E mirando a seguir o cronógrafo, matematicou: - Há sessenta e oito minutos, para ser exacto. Por acaso fixei. Como foi a hora da chegada do avião de Moçâmedes e eu também vim nele ...
- Santo Deus! - incendeu Corvo. - Não era caso para tanto! ... A Administração da Companhia pediu-lhe de facto a maior urgência na sintetização de um relatório (que se espera seja um
ponto final), sobre o volume, a qualidade e as
perspectivas técnico-económicas dos jazigos de ferro tanto de Cassinga-Norte como de Cassinga-Sul ... mas, por amor de Deus!, nunca esteve no nosso espírito exigir tanto do senhor Enfim, o melhor é não o contrariar. 0 prestígio da sua
indiscutível autoridade, e a própria força da sua dinâmica, e até do seu carácter, são-nos de todo indispensáveis, para acabar de vez com os boatos e a atitude de certas esferas sobre a hipotética inexistência de ferro em Cassinga. É ver-
dadeiramente incrível, como, numa altura destas, em que já estamos a exportar minério a
uma cadência nunca entre nós suspeitada, haja ainda responsáveis capazes de manter que não temos ferro, precisamente agora, que estamos prestes a fechar novos contratos de financiamento, em condições magníficas de juros e
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prazo, para anular os existentes - alguns dos quais (verdade se diga) são estampas da mais pura agiotagem! Mas, enfim ... foram aquilo que na altura nos concederam. Onde?! ... quem faria melhor? ... se hoje ainda, tantos responsáveis nacionais persistem na propalação de que não há ferro dentro das nossas concessões e de que somos um organismo insolvente?
- Parece que eles agora já não dizem que não há ferro... - esclareceu Serra de Oliveira.
-Eu sei, eu sei ... Agora, para não se atolarem no ridículo (em face das exportações) dizem que há; mas que não presta. Apenas no
Jamba e em Tchamutete haveria de facto umas ocorrências( descobertas à última hora!) de que nos estamos a servir para deitar poeira nos olhos do Governo, que é o avalista dos contratos mais importantes que firmámos. Porém (dizem eles) essas ocorrências milagrosas não dão para mais de três a quatro anos, veja lá!
-Essa é boa ... Mas os tipos dizem isso a sério?
-Serra de Oliveira, meu caro amigo, trata-se de afirmações escritas, oficiais! Uma delas (já um pouco ultrapassada, bem sei) em pleno Conselho Superior de Obras Públicas do ministério, segundo me garantiu um dos seus membros natos, que esteve presente. Está escrito em acta. Afirma-
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-se lá que em Cassinga nada ocorre que permita concluir da existência de minérios de ferro válidos, em quantidades industrializáveis!
-Mas então ... -Por amor de Deus, Serra de Oliveira! As maiores sumidades da Terra não forçaram Galileu a retratar-se? Não queriam que a Terra girasse! ... Estes não querem que haja ferro nas
nossas concessões! ... Por isso nos vimos forçados a recorrer ao Dr. Raposo... É melhor não o contrariar. Deixemo-lo à vontade. Se ele quer andar sózinho ... tanto melhor.
-Disse-me o Mena que ele vasculhou tudo sobre a Companhia, em Luanda.
- Já fez o mesmo em Lisboa, graças a
Deus! ... Estudou todos os relatórios e pareceres dos nossos técnicos e consultores, tanto nacionais como estrangeiros, coisa que os nossos simpáticos inimigos de cá, e de lá, nunca fizeram. Foram sempre por partes, a fim de inferirem como lhes quadrava, e depois não terem de dar o dito por não dito.
- Mas se o Dr. Raposo já viu tudo ...
- Nós também pensámos assim, meu caro
Serra de Oliveira - atalhou Corvo. - Mas quando lhe pedimos que redigisse o seu parecer, atirou-nos com esta: "Agora quero ver tudo in loco. Tratem de me arranjar passagem de avião para
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Luanda, quanto antes. Hoje mesmo! Não tenho tempo a perder".
-Mas ele veio de barco! -Veio de barco, de Luanda para Moçâmedes. Quis aproveitar estes dois dias de mar para pôr em ordem a documentação que recolheu na Província. Olhe, para ele vir, até protelámos o embarque daquele engenheiro que você nos pediu, para as obras do Sul. De contrário nem daqui a duas semanas cá estaria. Os aviões andam à cunha.
- Pois é; com essas e outras é que a gente se amola. Então você não sabe que isto aqui está num cáos e eu já não tenho para onde me virar?
- repontou Serra de Oliveira, irritado, ao saber que uma vez mais o tinham preterido, retardando a vinda do colaborador que ele tanto reclamara.
- Eu já não aguento mais! Qualquer dia rebento, Corvo!
- Calma, Serra de Oliveira. Mandámos pelo mesmo avião o Miranda. Aquilo de que você mais precisa neste momento é de bons auxiliares ao nível médio.
-Corvo! ... Por amor de Deus, não me chateie! Aquilo de que eu mais preciso, só eu o sei! Isto já é demais! ... Sinto-me exausto! Arrombado! ... E você é talvez o principal responsável, pois sempre que planeia um trabalho para 10
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meses, quando chega a data do respectivo início, nunca há meios, nem, a maior parte das vezes, elementos; para começar! E o tempo vai passando..., eu reclamo, insisto, barafusto, faço ver as consequências ... e você ou não responde ou diz que "no próximo correio seguirão os primeiros desenhos". Mas isso nunca acontece. Ou aquilo que vem é insuficiente para se arrancar. E quando, finalmente, se pode dar o ponta-pé-de-saída, já lá vão três ou quatro meses do prazo, ou mesmo cinco! E ainda por cima, um ou dois dias mais tarde, chega um telegrama do Coordenador Geral, em estilo de quase ameaça, a recordar que por isto e mais aquilo " a obra tem de ficar concluída, impreter)Ivelmente, dentro do prazo previsto". Porra! Isto não é método! Estou farto! Refarto! Merda, merda, merda, merdal
-õ Serra de Oliveira, por favor! ... Você sabe perfeitamente que não está nas minhas mãos, nem muitas vezes nas da própria admínistração da Companhia, ou até nas do Coordenador Geral, decidir quando se pode arrancar. Por nós tudo se processaria de acordo com o que se planeou. Sabemos o que isso representa. Mas há os ministros, os bancos, os financiadores, as leis, a burocracia .... cujas resistências somos nós quem tem de vencer. Exigem mil explicações, por vezes inconcebíveis, que temos
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de minudencíar. Fazem perguntas, as mais inesperadas, que têm de ser respondidas. E tudo isso queima tempo. E os juros ... sempre a cair! E como há contratos firmados .... ai de nós no dia em que deixarmos de cumprir o primeiro. Falhamos irremediàvelmente! ... De nada nos valerá invocar o que se passou. Os fornecedores, sendo também financiadores, se nas datas previstas para as montagens não têm as obras de base conforme o ajustado, sobrecarregam-nos com penalidades tais, que de modo algum sobreviveremos. Leia os contratos. Chega-se ao ponto de termos de pagar a quase totalidade das encomendas, perdendo o direito às mesmas. As fábricas têm também os seus compromissos. Trabalham dentro de programas escalonados por vários anos. Qualquer atraso nosso, determina perturbações, e portanto prejuízos, que nenhum deles está disposto a suportar.
-E que culpa tenho eu disso, Corvo? -martelou Serra de Oliveira no mesmo tom agreste.
-Nenhuma, bem sei. Mas a única forma de compensarmos os desvios provenientes das ...
-E os projectos? -cortou Serra de Oliveira ainda mais agressivo. -Os desenhos de construção? Por que merda de merda nunca chegam a tempo Não se trata do gastar! Trata-
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-Se do perder! Do deitar-à-rua! .... amolando a vida dos que por aqui ...
-Serra de Oliveira! -interrompeu Corvo com secura. Você sabe muito bem que há uma interdependência inalienável entre todos os elementos de cada convenção, os projectos que os objectivam, e, de igual modo, todos aqueles passos e diligências que já lhe referi. Fábricas, Governo, bancos, fornecedores ...
-Deixe-se disso! -zurziu, Serra de Oliveira, cortando sarcàsticamente a explicação do antagonista. -Há muita coisa que não chega a
tempo por culpa sua, ou da administração, ou dos fazedores' dos projectos, ou de quem quer que seja, lá, em Lisboa!
-Calma, Serra de Oliveira. Tenha calma! -preveniu Corvo com azedume. @Calma, calma, calma! Tenho calma mas é o tanas! Vocês, lá em Lisboa, estão junto da família, não lhes falta nada, comem a horas, dormem quando devem, não apanham sol, nem frio, nem chuva, nem filária, nem paludismo...
-Serra de Oliveira! -urrou Corvo, fora de si também -Você está a ser faccioso. Faccioso e injusto! É raro o dia em que eu saio do meu gabinete ou das dependências da Companhia antes das onze, ou mesmo da meia-noite! Não pretendo apoucar o vosso esforço aqui. Mas
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quanto a horas de comer, meu caro!, vocês são muito mais felizes do que nós. Passamos semanas a fio, semanas!, Serra de Oliveira!, em que nenhum de nós, responsáveis, lá, em Lisboa!, se pode dar ao luxo de jantar. Passamos a copos de leite e sandes! É certo que temos o conforto da família; que não somos forçados a sofrer as Intempéries nem as patologias daqui; mas vocês deitam-se, levantam-se e comem com muitíssimo mais regularidade que nós!
- Coitadinhos! ... Nós levamos vida, de príncipes! ... - escarneceu Serra de Oliveira, patêticamente, reflectindo sobretudo ofensa.
-Eu não disse isso, Serra de Oliveira! Tão pouco pretendi diminuir o seu esforço, ou o de qualquer dos que trabalham aqui! Quis, apenas!, repôr as coisas nos seus devidos lugares. Essa história de que em Lisboa todos levamos vida flauteada, para mim, não pega! Tenho mais experiência de cá, do que de lá! E olhe, por aquilo que tenho passado, sobretudo nos últimos tempos, preferiria mil vezes estar em Angola. De resto, se isto lhe pode servir de conforto, antecipo-me a participar-lhe aquilo que só amanhã fazia tenção de lhe dizer: vou ficar consigo, e com os outros, pois você não é o único sacrificado, quatro, cinco, seis meses ... 0 tempo que
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for preciso!, para vos ajudar! Mas só agora me
foi permitido agir assim.
-Ora aí está uma boa notícia -feriu Serra de Oliveira sem arrefecer. -Há pelo menos um ano que você devia ter vindo.
-E quem fazia aquilo que pesava sobre os meus ombros?
Serra de Oliveira não teve tempo de replicar.
0 engenheiro-chefe de Tchamutete, Agostinho Roxo, que há um bom pedaço assistia à con-
tenda, ansioso por uma acalmia e sedento por expor o seu problema (e até as dificuldades que massacravam Cassinga-Sul) cansado de esperar; interrompeu a disputa neste seu jeito característico:
-õ Corvo, dá-me licença? E você, Serra de Oliveira, desculpe-me também. Eu não posso ficar aqui mais tempo. Vim à Jamba, de fugida, só para lhe apresentar cumprimentos, e ao Professor Sereia, claro está. Não posso demorar-me mais. Creia. Tenho de partir quanto antes para Tchamutete. Os trabalhos ...
-Não janta connosco? -cindiu Corvo, já recomposto, o sorriso logaritmado a afinar pela quinta decimal. -0 Professor vai ficar desolado! E eu também. Como está a Maria Adelaide? Boas notícias dos filhos?
-Obrigado. Estamos bem. E os filhos,
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segundo as últimas notícias, bem igualmente, graças a Deus. Mas desculpe, tenho de partir já. Temos de acabar esta noite uma série de montagens na lavaria do minério maciço, que foram interrompidas a meio da tarde para se proceder
a uma betonagem essencial. Se não fosse isso
eu nem poderia'ter vindo. Lá para as oito ... nove da noite, devem ter tudo em condições de se prosseguir. Mas, de acordo com as minhas instruções, enquanto eu lá não estiver não se
'retomam as montagens. Tenho de ver se aquilo fica devidamente afinado. Qualquer pequeno desvio dá lugar a avarias constantes, logo que se retome a produção.
-Bem..., se assim é, tenho imensa pena ... Mas venha connosco até lá cima, à vila. Bebe um uísque, e explicamos ao Professor a razão da sua não-comparência à pequena festa que hoje oferecemos a todo o pessoal. Bem vê que não será muito fácil convencê-lo de que o engenheiro-director de Cassinga-Sul não assiste à recepção porque os imperativos do serviço lho impedem.
-Não posso, CorvQ. Desculpe; mas não posso. E peço-lhe encarecidamente que explique ao Professor o que se passa. Quando forem a
Tchamutete espero ter ocasião de lhes mostrar pormenorizadamente como aquilo funciona, e
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nessa altura compreenderão a minha relutância em deixar de assistir às montagens que estão
em curso.
-Tenho imensa pena, Roxo. Mas depois do que me disse ... faça como entender. Apresente os meus cumprimentos à Maria Adelaide, e diga-lhe que eu continuo à espera daquela cachupa genuinamente cabo-verdiana que ela me prometeu.
-Muito obrigado. Não me esquecerei da recomendação. Mas não se trata só daquilo que já lhe expus. Preciso de levar uma viatura daqui.
-Então como veio? -Vim na minha station. Mas à chegada notei que estava a perder óleo. Devo ter batido numa pedra, e o carter estalou. Felizmente quando dei conta o motor ainda não tinha gripado. Foi uma sorte. Pedi ao engenheiro Daniel que ma reparasse hoje mesmo, se possível, mas
não há carters sobressalentes. Estão pedidos há mais de três meses e ainda não chegaram, nem
se sabe se já foram embarcados.
-Fale com o Serrão.
- Já falei. Mas como há imensa falta de carros, ele descartou-se. Disse que só com uma ordem sua autorizaria a saída de qualquer viatura daqui.
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Diabo ... Eu não posso dar uma ordem dessas.
-Bem sei. Ele disse aquilo porque também está aflito. 0 que ele pretende, segundo suponho, é que você saiba, duma forma objectiva, que o problema dos transportes, tanto aqui como lá em baixo, é desesperado. Suponho que aqui, na Jamba, a situação é ainda mais grave do que em Tchamutete. E como apesar disso eu pretendo levar-lhe uma unidade ...
-Mas se não há o@tro remédio! ... Ele que resolva como entender. Você tem de seguir. Logo, precisa de uma viatura. 0 Serrão que decida qual a que lhe- deve ser entregue.
- Eu não posso, de maneira nenhuma, ceder qualquer das unidades que estão ao meu serviço - avisou Serra de Oliveira. - Já andamos a fazer turnos com os carros. E mais dia menos dia, ficamos sem transportes, e depois não se queixem. Há mais de um ano que estou à espera das carrinhas que me pertencem.
- Quando saí de Lisboa tinham embarcado as primeiras seis, das doze novas que foram pedidas - informou Corvo. E voltando-se para o colega Roxo: - 0 Serrão que sacrifique a unidade que fizer menos falta.
Obrigado. Agostinho Roxo despediu-se e foi procurar
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* Comandante, que, muito generalado, rondava
* acompanhamento do Professor. Atraiu-o e
discutiram: aquilo e mais aqueloutro, e Serrão acabou por ceder. Inspeccionou em redor, e resolveu mobilizar um dos seus guardas-auxiliares. Ao cabo de uns quantos segundos indecisos optou por um moço de pera e bigode, atarracado, que, num dos extremos da platafonna do aeródromo, pingando sacolas e mais imbambas, dava ao pedal de uma motoreta, pronto para partir.'
-Salviano! -gritou Serrão com energia.
0 rapaz desmontou. E despindo cansadamente as encomendas (com o ar de quem espera voz de prisão -o rabo entre as pernas, bigode murcho e pera no peito) arrastou-se até junto do superior.
- Para onde ias tu? -Para o Dongo, @ senhor Comandante. Ia ter com a minha mulher. Foi Vossa Excelência que autorizou. Fazemos hoje um ano de casados e a minha sogra e a minha irmã chegaram anteonte, consoante disse ao senhor Comandante. Era para ter ido às duas, como manda a guia ... mas por causa do ferido Vossa Excelência mandou-me ...
1 -Está bem, está bem -travou Serrão, lembrando-se do romance do rapaz e da licença especial que lhe havia concedido. - Tem paciên-
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cia. Não foste às duas mas irás. Olha, leva o
senhor engenheiro.Roxo lá cima e dá-lhe a chave de uma daquelas carrinhas que vieram ontem da oficina. Se não estiverem no Redondo, vai ao Parque, ao Jango, aos hoteis .... e apanha aquela que primeiro encontrares (desde que não seja de nenhum dos senhores engenheiros, nem
dos médicos, nem dos encarregados principais) * entrega-a aqui ao senhor engenheiro Roxo. .-E posso depois seguir para o Dongo?
- Podes. Vê se ajeitas as imbambas de forma * dar uma boleia ao senhor Engenheiro. Agostinho Roxo não estava nada satisfeito com o que ouvira. Não pôde por isso furtar-se à incómoda sensação de que o amigo estaria apenas a querer descartar-se dele (apesar de o
julgar incapaz disso), pois com a chegada dos administradores as viaturas possíveis deviam estar todas no aeródromo. Mas lembrou-se de que Serrão guardava sempre um ou dois carros nos seus domínios, como reserva especial de segurança, para emergências, rondas anómalas * imprevistos de natureza equivalente. E como * seu caso era uma emergência ... Além disso, como o rapaz tinha instruções que lhe permitiam, por assim dizer, apoderar-se de uma viatura qualquer (desde que fosse da empresa)
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não objectou. De mãos nos bolsos não havia de ficar. Agradeceu:
-Muito obrigado Serrão. Até à vista. -Até à vista. Boa viagem. Cumprimentos à Esposa. .
-Obrigado. Serão entregues. Não foi difícil acomodar imbambas, engenheiro e guarda-auxiliar na.motoreta -dado o
caminho ser bom, a viagem curta e a boa-vontade sem reticências. Mal atingiram o coração do aglomerado avistaram uma carrinha apetitosa, que luzia perto do Hotel Nf 1. 0 seu
número de matrícula era: ALA-75-75.
Salviano não perdeu tempo: -Quer aquela, senhor Engenheiro? É a
75-75! Veio ontem da oficina. Está como nova.
-Se puder ser, vinha mesmo a calhar.
- 0 pior é se não tem chaves - agoirou Salviano.
-Isso é o menos. Esteja ela em ordem.
- Está. Inté levou um motor novo. É da emergência!
-Vamos vê-Ia. As chaves estavam no devido lugar, o tanque de combustível cheio, o óleo e a água a nível, a
caixa de ferramentas em ordem, os pneus de socorro (tinha dois) convenientemente atestados, e, ainda por cima, num gradeamento da caixa,
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dois tamboretes de 20 litros: um com gasóleo e outro água; e à frente, sobre o para-choques, dois feixes de molas: um traseiro e outro frontal.
-Caramba! -exultou Agostinho Roxo -só falta a caixa do farnel e o saco da lona para a água de beber! Até guincho duplo tem! Salviano, parece que podes ir ter com a tua mulher. Parabéns pelo aniversário e felicidades.
Salviano tinha-se acocorado do lado oposto, junto à roda posterior esquerda. Ergueu-se e preveniu:
- Senhor Engenheiro, este pneu está a vazar ...
Diabo ... Num faz mal. Eu mudo a roda num estante. Inda fica outra de reserva. - E sem esperar por mais, deitou mãos à obra.
* noite principiava a adormecer a Terra ...
* solicitude do guarda comoveu Agostinho Roxo. Sabendo quanto ele devia estar ansioso por se reunir à família, e que o Dongo ficava a umas três dezenas de quilómetros por maus caminhos de matas, esteve para recusar a assistência e desistir até do regresso a Tchamutete. Mas não'podia. Tinha pela frente cerca de uma centena de quilómetros de estrada péssima e obrigações inadiáveis à espera. Não interferiu na actividade do ajudante.
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Salviano estava há 5 meses na Companhia. Deixara pouco antes o serviço militar, onde se
distinguira brilhantemente e fora condecorado com a Cruz de Guerra de 1.11 classe -por feitos excepcionais em combate. Aquando da desmobilização, não quis regressar a Trás-os-Montes, onde fora recrutado e nascera. Inscreveu-se no rol dos que optaram pela permanência na Província, e calhou-lhe vir para a Jamba. Fora uma sorte -segundo'ele. Como era trabalhador rural sem qualificações profissionais dignas de tal crisma, aquilo que aprendera até ir para a tropa de nada valia: era saber de escravo -moeda vã, ultrapassada.
Serrão escolhera-o pelo que dele dourava a
sua heróica folha de combatente, e tinha-o no mais elevado apreço - razão porque, numa altura daquelas, lhe concedera, a puro título de favor, a licença invocada. Era em tudo o mais, além de guarda, um colaborador verdadeiramente exemplar. Estava por isso proposto para promoção, louvor, e prêmio de serviço, em cerimó nia para dali a dias, sob a presidência do Professor Sereia.
-Porque não vives na Jamba, Salviano? Isto é, porque não tens cá a tua mulher? - quis saber Agostinho Roxo.
- Ela está com uma gente lá dos nossos
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sítios. Come, trabalha, e inda lhe pagam dois contos de reis por mês. E quando entrei era solteiro. Depois ... como ainda num temos filhos (falta pouco ... ) inda num tivénios vez pra-casa. Só daqui a uns seis meses nos calhá, se as
obras adiantarem de modo. Mas o meu cunhado é estucador. E também se ajeita muito bem de pedreiro e carpinteiro. É mesmo um artista! Vem pra cá maila minha sogra e a minha mulher e a minha irmã. Fui eu que lhes arranjei pra virem. Quer dizer: foi o senhor Comandante Serrão. Vamos fazer uma casa. Num mês fica' pronta. A Companhia adianta os materiais e a gente põe o trabalho. Já tenho uma data de gente prà ajudar. Também já ajudei a umas
seis! ... Assim, é um consolo. E se nos quisermos ir embora a Companhia fica-nos com tudo pelo custo real. Até podemos passá-la... (Em Tchamutete o problema era diferente, visto ser um "acampamento", bastante mais antigo, que estabilizara. Só naquela altura se preparava para retomar o crescimento e fazer face aos múltiplos problemas que caracterizam uma expansão acelerada).
- Vai ser uma casa que dá para todos continuou Salviano. - São duas casas juntas: ageminadas! A minha mulher, a minha cunhada e a minha sogra lavam e ingomam.
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A minha sogra até costura! A dar horas nas casas dos senhores engenheiros e dos mais, as três vão forrar tanto como nós. Como eu e o meu cunhado, queria eu dizer. Num tarda que a gente compre um bom lameiro lá na terra. Até já falamos ó dono, e ele espera, pois aquilo que lhe ofereceram é uma dor d'alma. E ele é um lameiro e tal ... Mas com a crise da guerra e dos engajamentos prà França e prà Alemanha, as terras já nem dão senhoria. Só pagam a pena quando são os próprios a fazerem-nas. Há delas por lá que já andam a mato! ... Pronto. Já está, senhor Engenheiro. Pode ir à confiança.
- E pôs-se a firmar o pneu que vazava, no sítio próprio da caixa.
A noite, prestes a reinar, estrangulava os
últimos suspiros da tarde, abafando incêndios sobre o poente. Agostinho Roxo contemplava a
motorizada, ponderando sobre a viagem do guarda.
- Ora agora está tudo pronto - concluiu Salviano, arrumada a tarefa, sacudindo as calças, como a preparar-se para abraçar a motoreta e largar, "mailas imbambas".
- Obrigado Salviano mas o engenheiro não se decidia a partir.
-Vou meter ao caminho dos parques, atra-
vesso o dique da lagoa das lamas, e pela picada
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da albufeira acima, pranto-me no Dongo num ar que lhe dá.
-E passas bem -Cum isto?... -e bateu na motoreta como se afagasse o pescoço de um cavalo ou de um macho de trote -, cum isto vai-se a toda a
parte! Quando o caminho fica pior, por via dum pego, ou duma vala( na areia num há azar) agarro nela às costas, passo-me para o lado de lá ..., e aí vou eu outra vez.
-Mesmo agora, de noite? ...
Conheço bem o caminho. E tenho uma luz que e um luxo. Não se incomode senhor Engenheiro. Conheço estas picadas todas a palmos.
- E fez um gesto largo, como a descrever o território.
Salviano estava cada vez mais ansioso por partir. Mas Agostinho Roxo, incompreensivelmente, ainda a retê-lo:
-Bem, se assim é ... Olha, Salviano, não te importas que eu me associe à vossa festa de hoje ... e contribuia para ela, pedindo-te que faças um brinde, por mim, em vossa intenção? ...
SaIviano não atingiu logo o alcance da pergunta. Mas quando viu Agostinho Roxo de car-
teira nas mãos, hesitante, compreendeu o embaraço do superior:
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Oli ... oh! Não se incomode, senhor Engenheiro ... Então que lhe fiz eu?! ... -E vendo clarões dos carros do cortejo dos administradores a deslumbrar na orla da vila, acelerou, antecipando a despedida com este comentário sem intenção: - É melhor eu ir já, senhor Engenheiro; antes que me encarreguem de mais alguma coisa. -E riu, erguendo o pé do chão, para dar início ao movimento.
Agostinho Roxo agarrou-lhe no ombro, sustando-o, e meteu-lhe no bolso da camisa uma lembrança generosa.
-Faz-me este favor mais, Salviano. Aceita. Deixa-me participar da vossa festa. Felicidades. -E afastou-se para a carrinha.
0 rapaz sentiu-se tocado: agradeceu e sorriu. E fazendo estardalhar a traquitana (como ele em
festa) abalou a todo o gás. Roxo fez girar o motor da 75-75 e meteu para Sul (evitando o cortejo) de luzes apagadas até sair da vila.
A noite, entretanto, sufocara o dia. As estrelas furaram a abóbada e a Terra escureceu. 0 vermelho dos caminhos, das minas, dos terreiros, dos diques, das próprias coberturas confundiu-se com
os verdes da floresta, o sujo das palhotas, o ne-
grume das bissapas. Só as águas se enfeitaram. Libertas da soalheira, despiram-se de molezas para
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reflectir as estrelas, lavando-se - polindo-se como metal.
Gralheira e trepidante, a motoreta de Salviano rolava, dominadora, reduzindo ao silêncio, ralos, sapos, rãs ..., assustando os primeiros aldrabões poisados de onde em onde - olhos de fogo a balizar o caminho. Quando atingiu o dique fez uma curva larga e meteu pelo bordo sul, aproveitando o sulco virgem de um secreiper. Era um cone-de-luz a cuspir fogo e trepidações pelo vértice, diluindo a escuridão, crista além, rumo à outra margem. 0 sulco do secreiper deu volta e regressou. Dois aldrabões, à frente, junto à borda, engodaram-no... - e o escape enraiveceu. Súbitol -
o cone-de-luz traçou um arco pela imensidão, e o
motor praguejou ... Foi um apelo aflitivo - directo ao Céu. A luz sumiu-se ... Ruídos abafados de carne, roupas, imbambas e metais descendo sobre terra. Baques apressados franzindo as águas. Deus nas alturas! ... E o silêncio repousou.
Vozes da noite ... - ecos da eternidade.
0 banho das estrelas, frio e indiferente, enrugado por ondas concêntricas humildes, não tardou em espelhar outra vez.
0 cortejo atingiu os hóteis e desfolhou. Uma hora mais tarde a recepção floria. E a Jamba, princesa em festa, comendo e bebendo... - trabalhava e sofria.
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A tua beleza não é tua ... É dos meus olhos.
0 brilho das estrelas não é delas ... Deve-se à noite.
Os fortes só são fortes com os fracos. A força é uma sombra. A tua sombra não é tua!
As estrelas são belas ... Ama a noite!
Pensa em Deus ... n'Ele até! ...
e se ninguém, ninguém 0 adorasse ...
A TUA BELEZA NÃO É TUA ...
Após a aterragem, Serra de Oliveira confiou Miranda aos cuidados de Rodrigues, que era o secretário-polimorfo do departamento de obras da Companhia. Como ' falava inglês e alemão fluentemente, a cada passo arvorava também em menager e interpreter. Alto, magro, bem parecido e solteiro, era um como galã perpétuo (sempre em leilão) cobiçado e fugidio como os prêmios da lotaria. Com pouco mais de 30 anos e o curso dos liceus (ou equivalente) andara pela Alemanha, mas pouco fizera, vencido por razões de natureza sobretudo económica. Alegre por fora, e mesmo folião, vivia com a mãe - amargurado por não ter ido mais longe, e mais longe ainda se poder achar dali.
- Senhor Anacleta Miranda - principiou mal ficaram sós - vamos ver o que se lhe pode arranjar a respeito de alojamentos. Estamos bastante mal no capítulo, não sei se sabe ...
- Já me preveniram em Lisboa de que nas
primeiras semanas teria de me contentar com
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o que houvesse. Creio que não haverá novidade. Sou pouco exigente.
-Semanas ! ... Falaram-lhe em semanas? Ah, ah ... Isso também eu queria - escarneceu Rodrigues, um tanto ou quanto decepcionado com a adaptabilidade do companheiro. - Era bom, era. Meses! Se não for um ano ... ou mais! Começaram tudo pelo fim. Tudo quanto se refere a habitações está atrasadíssimo. Pela sua categoria (já estudei o seu caso) competia-lhe um apartamento em qualquer dos hoteis, até lhe distribuirem uma casa. Mas está tudo cheio. Pode ser que por estes dias vague um quarto numa das vivendas de três cómodos, onde estão uns mecânicos de
1.' classe, visto o mais antigo ter já direito a férias. Resta saber se o engenheiro Daniel o díspensa. Para hoje, o melhor que se lhe pôde arranjar foi uma cama num dormitório de operários classificados.
- Quantos são?
- 0 quê? Os dormitórios?
- Não, os operários. -Naquele que mandei arranjar para si, são três. Consigo quatro. 0 Comandante daqui a umas duas semanas pode arranjar-lhe coisa um pouco "superior". Mas eu, no seu lugar, não mudava! É a saIa-comum duma casa de três cómodos, ocupada por dois agentes-técnicos. Vale mais
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JAMBA
estar numa camarata de quatro pessoas, todas
nas mesmas condições, do que numa sala daquelas, por onde os outros passam, entram e saiem. Quando se trata de família ... vá lá! ... Agora ali! Isto, na minha opinião ... Cá estamos. Este dormitório, cá para mim, é muitíssimo melhor. É mesmo dos melhores.
- Dos melhores porquê?
- Na gente. No resto quase não há diferenças. Mobílias, banheiros, roupas, etc., é tudo pràticamente igual. Nos desta categoria, bem entendido!, pois há muito pior: camaratas para seis pessoas com armários-roupeiros só para três! Um por cada dois! E sem mesinhas de cabeceira! Tudo em ferro: feio, mau, e sujo! ... Asqueroso.
- Sujo porquê? -Junte seis pessoas num cubículo e verá o
que acontece.
Entraram. Era uma célula de uma construção relativamente comprida, térrea, sem jactâncias, como todas as demais (hotéis incluídos) assambarcada por uma sala enriquecida com um aIpendre cimentado. Como instalações sanitárias: um
lavabo completo, com chuveiro. Quatro boas camas, quatro armários-guarda-fatos, cadeiras e
alguns quadros simples nas paredes, constituiam o recheio. Miranda esperava pior. Isto é,
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não esperava tanto: aquela honestidade, e o próprio asseio.
-Qual é o meu lugar? -0 penúltimo. 0 armário em frente, pertence-lhe. Além do bom aspecto exterior, posso garantir-lhe que por dentro está impecável. Já lhe passei revista. É pena não se encontrar aqui nenhum dos seus companheiros para eu o apresentar.
- Não faz mal ...
- Olhe, aqui tem a chave do exterior. As do armário estão na gaveta de cima. Não valem um caracol. Entram em quase todas as outras fechaduras, e vice-versa. Uma vigarice. A maior parte já não funciona. A culpa foi de quem fiscalizou isto. 0 construtor fartou-se de ganhar dinheiro nesta porcaria.
Anacleto Miranda aceitou a chave e agradeceu. De si para si Rodrigues era uma vítima característica de "jambite", porventura crónica, porém benigna. Mas como não pôde deixar de simpatizar com ele, não fez qualquer comentário às suas observações afrivoladas. Arrumou a maleta na parte inferior do armário-roupeiro e libertou-se do casaco.
-Não sei se sabe que hoje não há jantar! ... -ambiguou Rodrigues, mal o viu livre, jambi-
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tando pela entoação a inócuidade da sentença, a que pretendera imprimir sabor.
-Não há jantar?! ... -Haver, há. Mas não é no hotel... Serviço livre: cada um trata de si. Costuma ser bom. Bebe-se e come-se à discrição. Não há nada como a vinda dum graúdo. É no Jango.
- Jango?! ...
- Um coberto ao ar livre. Coberto e não coberto. Hoje funciona por dentro e por fora. Cada qual onde melhor lhe quadra. É mesmo ao fundo dos hotéis. Bem ... Quer ficar ou vir comigo? Passo pelo escritório (só para ver se veio algum rádio) e, sigo logo para o Campo. Os Administradores não tardam aí.
-Se não se importa vou consigo. -Só me dá prazer. Mas lá em baixo tem de passar para a caixa. Fiquei de levar duas pequenas (por sinal muito giras!) e mais quatro ou cinco rapazes. Elas têm de ir à frente ...
-Muito bem. Fechou o armário e saíram juntos.
Apesar da água ter entrementes melhorado um pouco, o Professor Sereia não sofreu qualquer impregnação, visto haverem-no prevenido
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(com desculpas) de que o líquido oficial das canalizações da vila, naquele dia, jorrava particularmente turvo. Mas tinha dois garrafões com água potável na casa de banho, "boa para beber e lavar as mãos". 0 Professor sorriu: achou piada. (A referência às mãos era um tranquilizante contra os receios da bilhargiose, que -diziam- "penetrava só pela pele" e "só se dava com águas claras, de preferência correntes"!!!) Como tomara banho de manhã..., "apenas desejava refrescar o rosto e refazer a barba". (A água "boa para beber" ia de Sã da Bandeira, a longos 300 quilómetros de distância. Era cristalina e muito gostosa -e volta meia volta, tanto ou mais inquinada que a honradíssida "putreia" da Jamba. Como era muito ácida, corrigiam-na com calcáreos do Namibe, transportados para a Huíla nos vagões que desciam com suínos vivos -e bois!) '.
Apesar da afluência ao Jango ter começado logo após a chegada do cortejo, a festa só alvorou depois da reaparição do Professor (em fato branco -único porventura em toda a Jamba e arredores) escoltado pelos engenheiros Corvo e Mena - mais o Comandante Serrão.
1 As condições actuais de higiene melhoraram.
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Depois dos primeiros drinks, de umas quantas charlas inofensivas e de alguns petiscos,
ereia teceu fartos elogios ao serviço, ao ambiente, ao próprio conforto do hotel, e, sobretudo, ao "sentido" da recepção no aeródromo.
Apesar de ninguém se ter cansado de o ouvir, a certa altura, lembrando-se do geólogo, ciou sobre Falcão Mena:
- 0 Dr. Castro Raposo? ... Ainda está em Luanda?! ...
-Não, senhor Professor. Aterrou cerca de uma hora antes de Vossa Excelência. Foi dar uma volta pela mina, sózinho, e ver as instalações. Já mandei saber se tinha regressado, mas
disseram-me que ainda não: que a carrinha dele não estava aí, nem tão pouco no parque, e
que o apartamento onde se alojou permanecia fechado à chave, não se encontrando esta por dentro, como parece verificaram.
- Mas ... disse sózinho?
- Exactamente, senhor Professor... -0 sorriso fisgueiro de Falcão Mena dizia bastante mais do que as palavras. -Nada de influências! ...
- e o timbre da voz passou de violino para rabecão.
- Percebo ... Mas de noite, por aí ... sèzinho ... Não será arriscado?
-Não... -tranquilizou Mena, seguro de si,
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abrindo o sorriso. -Os caminhos da mina estão todos em bom estado, como de resto é vital para a exploração. E com as luzes da vila, da lavaria, das próprias máquinas em serviço, não é possível uma pessoa perder-se. Sobretudo uma pessoa como ele. 0 mato é o seu elemento.
- Bem ... Eu não queria referir-me a esses aspectos. Sim... Compreende ...
Mena ficou sem saber onde o Professor queria chegar:
-Só se teve alguma avaria ... Mas não é crível. 0 Serrão disse-me que lhe tinha distribuído uma carrinha pràticamente nova, apetrechada para todas as emergências correntes, tanto da estrada como do mato!
- Não é isso ... - insistiu Sereia. E como ninguém o entendesse, baixou a voz e purgou-se de vez: - Não é perigoso andar por aí..., sózinho!, sobretudo de noite? ...
- Ah! ... - (Mena lobrigou por fim o alvo do Mestre) - Não ... Isto por aqui ... está tudo ,calmo! A segurança e a tranquilidade são absolutas. Não é verdade Serrão?
- Pode-se dormir ao ar livre, em pleno mato!, como de resto acontece, uma vez por outra, com alguns dos nossos funcionários, até por recreio
- garantiu o Comandante, atirando para a balança com todo o peso da sua autoridade,
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prestígio, e comprovada experiência anti-bandoleira.
- Bem ... antes assim. No entanto... - Via-se que o Professor não fora vencido. Mas, claro!, ao notar a poeira, reabriu asas e trocou o terreno pela atmosfera, reassumindo a altura pomposa da sua elevada hierarquia: - Informaram-no de que eu e o senhor engenheiro Corvo chegávamos hoje? ...
- Informámos, sim, senhor Professor - reverenciou Mena, de novo em fase com a emissão. -Mas ele já sabia. Como veio de Moçâmedes com o engenheiro Serra de Oliveira, este pô-lo * par do programa.
0 Professor não teve élan para ir mais longe ... * desistiu do "filão". No espírito de Mena e -dos restantes instalou-se a dúvida sobre qual o "minério" que de facto preocupava o Mestre: a segurança física do geólogo? ... ou a sua herética não-comparência ao rendez-vous?! ...
Sereia fez no entanto a conversa por fim cintilar, à máxima grandeza, por latos domínios intelectuais -seu foro dilecto: escopo verdadeiro do academicismo que o enobrecia! Foi uma delícia: todos se concentraram nos prazeres da audição ... A dada altura, porém, Serra de Oliveira e Pinto de Castro, até ali arredios, engros-
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saram a audiência. 0 Mestre perorava sobre os autóctones nómadas mais atrasados, nomeadamente Mucancalas, Mucuísses, Mucubais, etc. Rematou a tirada com este exórdio: . -Visitar Angola foi desde sempre uma das minhas mais ardentes aspirações. Gostaria, por isso, de poder ficar largos meses ... Contactar ínflimamente as variadíssimas tribus do território, em especial as daqui, do Sul e Sueste, por serem, como salientei, aquelas que menos influências estranhas têm sofrido. Quem dirá que estamos nas "terras do fim do mundo"? ... Sou, de facto, um apaixonado fervoroso da etnografia.
0 homem primitivo, então, seduz-me ... Mas falta-me o tempo. Aquela vida de Lisboa esgota-nos ... E como, ainda por cima, ando às voltas
com o problema da moral, esse fruto transmutável das civilizações ... (Pinto de Castro deu uma cotovelada em Serra de Oliveira e segredou: "É altura de você defender o que prega: que a moral enraiza naquilo que em nós é primário e age por adenda, ou complemento. Que o altruismo se adita ao egoismo. Que os actos morais vêm depois dos outros terem vindo!". "Cale a boca!", rosnou Serra de Oliveira. "0 tipo não está a falar para nós. É só para a gente ouvir"). _... Como sabem - ensinou o Professor, pas-
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sos adiante-, aquilo que sentimos, que designamos por senso moral, começou por não existir. Primitivamente não nutríamos, não sentíamos!, obrigações para com o que quer que fosse ... exterior ao nosso limitado âmbito individual, sem reserva para os nossos próprios semelhantes! E, seguidamente, para com o que quer que fosse ... exterior ao nosso grupo familiar ... Ao clã! Matar, ferir, destruir, roubar ... fora do grupo, não só fornecia proveito e grangeava honras, como comprazia aos poderes sobrenaturais! ... Ora hoje, para nós, criaturas civilizadas, já não é assim. Bem ... não é assim, definitivamente, nos domínios do consenso individual e
familiar, e ao nível do clã. Clã, para nós, é Pátria. Nação! Mas fora daí, à escala dos grandes-grupos, ainda não'mudou de todo, como as guerras que ardem por esse Mundo fora, e aquela que nos movem, ínsofismàvelmente demonstram, apesar de todos os rebuços; de todos os seus disfarces!, a denunciar o fundo primevo real de quantos pretendem ser civilizados, não o sendo!
0 meu vizinho lisboeta, do rés-do-chão, tem dois frigoríficos e três automóveis, e suponho que até se formou. É no entanto um autêntico selvagem!
Um hiato de apoteose. Serra de Oliveira apro-
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veitou a maré para formular a seguinte pergunta:
-Vossa Excelência, senhor Professor, está realmente seguro de que o senso moral é um ganho da civilização?
- Seguríssimo. A moral e a própria felicidade: Aquilo que nós concebemos como implicito nestes vocábulos. -E logo a seguir, como quem esclarece um aluno do liceu, directamente para o interpelante: -0 conceito de felicidade das criaturas humanas começou por se resumir à plena satisfação dos desejos e impulsos naturais, apesar de desde o princípio só fug@Idiamente ser alcançada. Foi a nossa primeira quimera! ...
-Mas os que já fartaram aqueles desejos e impulsos continuam ...
-Eu sei. Eu explico: As nossas primeiras interpretações da Natureza, engenheiro Serra de Oliveira, arrastaram-nos, pela força das evidências (pela razão!) para o pluralismo cósmico: múltiplos poderes, numerosos deuses (um para cada fim, por assim dizer), em oposição ao Deus universal das chamadas religiões civilizadas, que são recentes, como sabe. Têm escassos milénios! Ora para os nossos antepassados (tal como nas tribus a que me referi) aquilo que designamos por alma, ou espírito, era algo que eles cedo associaram com um duplo sobrenatural de natu-
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reza quase-física, intrinsecamente relacionado com o corpo, a vida e a morte da cada um: com necessidades, hábitos e tendências de natureza corporal! ... Sabemos que não é como eles pensavam.
-Mas não sabemos de facto muito mais, não lhe parece senhor Professor? -alvitrou Serra de Oliveira, pisando com força o pé do médico-chefe.
-Como assim? -Ainda não deixámos de crer, e de descrer, nas interpretações, e mesmo revelações, dos que julgamos mais esclarecidos ...
-Não será por isso, senhor Professor -
interveio Pinto de Castro sem dar tempo ao Mestre para replicar- que tantos espíritos, dos mais eminentes, sustentam que "saber que não sabemos" é sabedoria, e "saber do que não sabemos" filosofia? ...
0 Professor não gostou. Mas como todos sorriram e o médico não perdeu a compostura muito própria do seu humor, sorriu também, e farpeou sem enfado:
-E o que é ciência, meu caro Doutor? ... -A nossa interpretação daquilo que pensamos que sabemos, por se ajustar à natureza dos factos, tal como hoje os aceitamos.
-Perdão! -acudiu Serra de Oliveira. -
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Estamos a desviar-nos das proposições em causa: das teses do senhor Professor Sereia. - E directamente para este: - Os nossos presentes conceitos de felicidade (nossos, de pessoas civilizadas) segundo depreendi, não sendo já o que foram, identificam-se com algo que nos transcende. Algo que está para além das nossas necessidades e tendências primárias, e que, portanto, consagraria obrigações entre os "grandes-grupos", usando a terminologia de Vossa Excelência. Pergunto: harmonizam-se tais quids, chamemos-lhes assim, com o princípio universal da responsabilidade em relação a todos os homens pelo simples facto de serem homens? ...
- Mas sem dúvida. São a própria substância daquilo que em todas as religiões evoluídas exprime a universalidade comum dos seus conceitos morais -brindou o Mestre, sem no entanto ter deixado escapar a manobra do engenheiro para calar Pinto de Castro.
- Traduz-se pois, nas várias fórmulas de sintetização dos vários credos, a mais bela das quais seria "amai-vos uns aos outros", e a mais lúcida e humana, porventura, "sêde compreensivos?" ...
- Sim ...
- Mas como Vossa Excelência afirmou que as nossas determinantes primitivas ainda nos
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comandam, isto é, que à escala dos "grandes-grupos" as coisas ainda não mudaram, de facto (apesar de todos se arrougarem defensores, ou, pelo menos, adeptos da lei moral universal), as nossas raízes ancestrais nã o foram extirpadas. Julga-as Vossa Excelência passíveis de extirpação ...
-Sim. Embora não faça ideia de quando. -As próprias grandes religiões civilizadas, ou evoluídas, conforme prefira -continuou Serra de Oliveira- como é do conhecimento comum, só muito recentemente iniciaram os primeiros passos, tímidos quiçá .... no sentido do seu entendimento facial, pondo termo às guerras mútuas e exautorando os ódios que as opunham, apesar da sua milenária moralidade equivalente, isto é, concordante. Será isto sinal de um verdadeiro progresso nosso, como homens? ...
-Mas sem a menor dúvida, meu caro engenheiro Serra de Oliveira. (Via-se que o Mestre estava impressionado. Mas como podia ele adivinhar que um "pobre-diabo" de um engenheiro que gasta o melhor da sua vida no mato não é necessàriamente um matumbo?)
-Oxalá Vossa Excelência tenha razão. É que eu, sinceramente, só vejo progresso facial. Receio
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que se trate de uma simples revisão de interesses. De modo algum de uma vitória de nós mesmos sobre eles, ou. seja, sobre nós próprios. Como somos, no Globo, quase já um só clã ...
serra de Oliveira sabia perfeitamente que deitara por terra a teoria do Professor. Mas fizera-o de forma tão súbtil que ele não poderia sequer ofender-se. Dir-se-ia que o facto passara desapercebido. 0 Mestre, contudo, sentira-o bem. Mas não acreditou que os demais o tivessem alcançado. Para ele, Serra de Oliveira seria uma excepção. "Há excepções por toda a parte", disse para si mesmo. "Paciência. Como ele fechou pelo equacionamento de uma dúvida, deixemo-la pairar". E voltando-se para o engenheiro, comentou:
- É uma posição filosófica bastante curiosa... Pinto de Castro, porém, não estava satisfeito. Franco-atirador da pele até à medula, abriu outra vez fogo, por conta própria:
- Senhor Professor, se bem entendi, Vossa Excelência crê firTnemente na ascensão (não sei qual seja o termo adequado) da própria natureza espiritual (chamemos-lhe assim) do homem como homem. Isto é, daquilo que em nós supera os demais seres da Criação ... ?
- Exactamente. Duvida que nós, como homens, tenhamos de facto progredido? ...
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-Debaixo do ponto de vista moral ...
1 Façamos uma pausa. Nos mais aspectos, tem dúvidas?... -A pergunta de Sereia revestiu aquele tom de subtileza agudíssima, própria dos mestres completos.
- Não ... Não tenho -admitiu Pinto de Castro, alongando os lábios num jeito muito seu.
- Não posso deixar de reconhecer que o mais genial dos médicos de há um século atrás, ou até menos,'pouco valia ao pé de mim, que não passo de um clínico como tantos outros ...
-Muito bem. - (" Parece a táctica do Serra de Oliveira", segredou Serrão para Eurico, o
Corvo -sagazmente recatado no seu poleiro de neutralidade). -Muito bem- repetiu o Mestre. -0 simples facto de termos passado, como referi, dos estreitíssimos interesses do indivíduo para os da família; e depois do clã; e de, a seguir, nos havermos aproximado do estádio vizinho de um só clã universal (como disse, e
muito bem!, o engenheiro Serra de Oliveira) não traduz um alargamento enorme das nossas obrigações? Um progresso indiscutível? ...
-De ordem espiritual e moral? -insistiu o médico.
- E porque não ... Se é de ordem sócio-política, racional!, e mesmo religiosa? ...
- Vossa Excelência está a confundir ...
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Perdão, senhor Dr. Pinto de Castro! - cortou o Professor com secura. - Eu ainda não concluí! ...
0 médico baixou a cabeça, abrindo um pouco os braços, numa cortesia simpática, própria de quem pede desculpa e confessa uma falta.
- Como ia dizendo - continuou o professor
- se o indiscutível progresso verificado é de ordem sócio-política (racional, portanto!) e também religiosa (um só Deus, em lugar dos sem
conta primitivos!) o dito progresso é, consequentemente, de ordem racional e moral!
Serra de Oliveira fez um gesto vago (porventura apenas de assombro) e o Mestre voltou a erguer as mãos, prosseguindo com firme professorança:
-0 Sol, a Terra, os elementos, os animais ferozes, os próprios répteis deixaram de ser temidos e reverenciados, e até de fazerem parte das nossas preocupações dominantes. Porquê?... Graças aos progressos da nossa crescente compreensão a partir da tomada de conhecimento da nossa fragilidade primária. Da nossa dependência terrífica das forças e dos poderes exteriores. Compreendendo sucessivamente melhor os condicionalismos que nos subordinavam, conseguimos líbertar-nos da maioria deles e minorar substan-
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cialmente o furor dos restantes. Que significa isto, meus caros senhores? ...
Sereia voltara ao princípio: ao canto por onde começara! 0 exemplo de Corvo alastrava... Mena, contudo, incapaz da menor irreverência, gostaria de aplaudir. Mas o médico, não querendo talvez ficar atrás de Serra de Oliveira, perante a inusitada extensão do silêncio, arriscou este passo, com brandura:
- Para mim ... significa tecnologia. É um
assunto que eu e Serra de Oliveira temos debatido àrduamente. 0 quadro moral do homem não mudou. 0 Sol, a Terra, os elementos e os
animais ferozes foram substituídos por duendes mais terríficos ainda. Não é necessário enumerá-los. Todos sabemos deles tràgicamente. Na sua
essência, o panorama do homem é o mesmo.
Continuamos a chocar com limitações, acorrentados à mesma existência precavida, que Vossa Excelência chamou racional. Nunca tivemos outra. Os frigoríficos, os foguetões e os autom6veis não alteraram a nossa substância humana.
0 Professor acusou o golpe. Mas sorriu ... Não atinou com melhor saída do que esta:
-Então como concilia o Doutor a razão (razão no sentido filosófico mais corrente, sobretudo entre nós: capacidade de compreender:
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cum-prehendere!) com aquilo a que chamamos consciência! ...
-Sou mau filósofo, senhor Professor. Sei vagamente que depois de Kant o idealismo germânico distinguiu razão de intelecto; que Hegel levou a destrinça até às últimas consequencias (ao pensamento de Deus antes da criação do mundo -segundo ele próprio); e que os filósofos franceses e ingleses não navegaram nos mesmos oceanos até Bergson cindir definitivamente a inteligência da intuição, etc., etc., e que há quem afirme que a consciência é algo de mais profundo que a razão, sendo-lhe por isso anterior .... mas, para mim, homem comum, além de médico, fazendo tudo parte de nós mes-
mos, somos uma e caçla- coisa ... mais o corpo! A conciliação está feita por natureza. Somos o
que somos não sabendo o que ser seja, cônscios de uma vaga pluralidade -fundida em um só.
- Até Serra de Oliveira arregalou os olhos. Mas o Professor sorriu ... Sorriu superiormente. E o médico, face ao êxito, ergueu as mãos (como pouco antes o Mestre) a reclamar silêncio, e desferiu este bote caseiro:
-Não mudámos. Mais ainda: Creio que a
consciência é responsável pelas nossas tendências para a harmonia; por todos os nossos sentimentos morais de ordem superior, hoje de âmbito uni-
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versal, como ontem, pois o universo da época era o âmbito dela. E que à razão se devem todos os fracassos colectivos e individuais das tentativas de consecussão dos objectivos da cons-
ciência. Da permanência daquelas tendências, da objectivação daqueles sentimentos, e da realidade dos fracassos ... urdimos a filosofia. E como desta, em boa verdade, nenhuma contribuição positiva para o aperfeiçoamento da natureza humana resultou já..., ou se pode esperar que resulte... - não vejo, honestamente, o que quer que seja que dela possamos em tal sentido esperar.
Ninguém retrucou. Pinto de Castro invadira o
próprio imo da sabedoria do Mestre. Ia fatalmente ser aniquilado. (Heresias daquela dimensão nutrem-se de "insuficiência". De "superficialidade". Da própria "ignorância"). Sereia man-
teve por isso, aquela, muito dele, superior com-
postura olímpica. Iam no entanto decorridas mais de duas horas e Serrão tinha desaparecido. A ausência de Castro Raposo começara a preocupá-lo. Mandou averiguar de novo se a carrinha do geólogo não regressara de facto, e em seguida se parava por qualquer ponto da mina ou das instalações industriais -indo ele próprio bater à porta do apartamento do desaparecido. Derrotado em todas as frentes, mil apreensões a flan-
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quearem-lhe a tranquilidade, decidiu comunicar o facto ao Professor. Entrou justamente no momento em que ele se preparava para retomar a palavra e diluir Pinto de Castro. Aproximou-se do Mestre, e em meia dúzia de frases, quase ao ouvido, pô-lo ao corrente do sucesso.
- Eu bem disse ao Menal -explodiu com indignação, antes que o oficial tivesse tempo de expor os seus planos de contra-réplica. - Os senhores têm a mania de que sabem tudo! De ver facilidades nas aparências daquilo que as não tem! De facilitar! ... -E deixou-se cair na poltrona, visivelmente abalado, suspirando: - Infantilismos. Pura infantílidadei
à excepção de Mena (que ficou encabuladíssimo, apesar de não fazer ideia exacta daquilo por que o Professor o quisera atingir), os mais, assarapantados, remiraram-se de alto a baixo. Dir-se-ia, perguntarem uns aos outros se aquela prótase era a réplica do Mestre para o médico (tendo aquele baralhado nomes), ou a consequência de algo novíssimo, ainda não equacionado, que, entrando na dialéctica, dessorara a olimpicência de Sereia.
-E agora? ... Não seria melhor dar já o alarme? -sugeriu desbaratado, logo a seguir, fazendo a luz penetrar os crâneos de quantos o rodeavam.
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-De modo algum, senhor Professor! -A voz de Serrãó, apesar de ainda abafada, subira de tom e alcançara todos os do grupo, sem no entanto lhe trespassar as fronteiras. - Isso podedia dar lugar... sabe-se lá ao quê!
Corvo (que nome bem ajustado!), bico à banda e olho de esguelha, desceu então do poleiro:
- Perdão! ... E se Vossa Excelência, num gesto de carinho para com o pessoal dos turnos da noite, manifestasse o desejo de ir ver a lavaria a funcionar agora mesmo, em vez de amanhã, conforme está programado? ...
0 Professor desabriu os olhos. Mas Corvo (Passarão-Negro-de-Lisboa, como tantos lhe chamavam, devido à sua lisbonência, à sua sagacidade, e à circunstância do símbolo heráldico da urbe de Ulisses exibir dois corvos face a face), Corvo, dizia eu, não se impressionou. Fez até de conta que não ouviu a reacção do Mestre. Adoçou mais ainda o vozeirão bem timbrado, aliciando com pausa, magistralmente: ,
- 0 Comandante Serrão organizaria dois ou
três grupos eficientes, para baterem os terrenos da mina, e, se necessário, até os dos restantes jazigos. Mercê dos alardes inerentes ao luminoso interesse da comitiva de Vossa Excelência, esta, muito naturalmente, não poderia deixar de atrair
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as atenções, e os movimentos do Comandante passariam desapercebidos, ou, na pior das hipóteses, seriam levados à conta de medidas adequadas à circunstância. Imunes desta sorte contra suspeitas de natureza alarmante (ele, Comandante Serrão, e sua gente) poderiam aplicar-se a fundo e agir em plena eficácia. Vossa Excelência, entretanto, daria uma volta pela mina; observaria os bulIdozers e os scrapers gigantes a extrair e transportar minério virgem das jazidas naturais para as grandes tremonhas primárias da lavaria; e, por fim, para mais se dignificar a
autenticidade da visita, abandonar-se-iam os carros e percorreríamos as intalações industriais a pé, tal como consta do programa, galvanizando toda aquela gente magnífica, que tem coração! Estou certo de que não ficariam insensíveis; de que vibrariam até!, perante tão inusitada atitude de interesse, e respeito, pelo seu duro labor.
- Hum! hesitou o Mestre.
0 sorriso aflorara de novo aos lábios de Sereia. Um mar vivo de novas emoções (novas ondas!) agitava-lhe a alma, embalando-lhe o coração ...
- Seria magnífico!
- Esplêndido!
- Oportuníssimo!
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Ouviu-se dos vários quadrantes, irmanados sem reservas.
Via-se que o Professor estava prestes a capitular. Apesar de por vezes fátuo, e gregàriamente pedante, no fundo era um homem bom. Um ser com alma e coração, como todos nós.
Corvo não perdeu tempo:
- Há mais de duas horas que Vossa Excelência se digna honrar, com a sua presença, este nobilíssimo grupo de funcionários da grande Família Obreira de Cassinga.
E num gesto largo (magnífico, bem medido!) envolveu todos os presentes, dentro e fora do Jango.
- Se lhes dissermos - prosseguiu Corvo -
que o senhor Professor Sereia quer, com a sua presença, demonstrar àqueles que por força das suas obrigaçõ es não puderam vir até aqui, que deles se não esqueceu .... estes compreendê-lo-ão!
0 Professor já não escondia o júbilo. Corvo exordiou:
-E se me for permitido informá-los de que Vossa Excelência lhes pede o favor de não interromperem a festa, permanecendo aqui, até ao
nosso regresso (enquanto Vossa Excelência vai honrar e cumprimentar os camaradas dos turnos da noite) estou certo de que ninguém arre-
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dará pé, e todos lhe ficarão profundamente gratos. Por fim, se estivesse de acordo, senhor Professor, dir-lhes-ia que, após o regresso da zona industrial, Vossa Excelência estimaria despedir-se de todos os presentes: agradecer ... e desejar boas-noites a cada um, individualmente.
Foi uma vitória integral. Sereia emergiu de todo:
-Não me parece mal pensado, não senhor... Tenho. de concordar que além de muito competente, você é, também, muito hábil, engenheiro Corvo! Hábil ... e sagaz! ... Muito sagaz! Não quero privá-lo, nem privar-me, dos frutos, e até das delícias da sua bela oratória. Pode, pois, informar os presentes de que nos vamos ausentar. Quanto tempo será necessário? ...
-Hora e meia. Não fazendo grandes paragens, chega para uma visita quase completa. Mas não podemos demorar-nos mais do que alguns minutos nos vários pontos do trajecto -informou Falcão Mena, transbordando felicídade.
-Bem... -continuou o Professor, dirigindo-se a Corvo outra vez: - Diga-lhes que nos demoraremos cerca de hora e meia. - E voltou a sorrir abertamente para quantos o rodeavam, que sorriam e sentiam quase como ele.
0 discurso de Corvo foi um êxito estrondoso.
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Se havia alguns senões contra a fatuidade empolada do Professor, a aliciação do engenheiro desfê-los por completo. Soube ir tão ao fundo do coração daquela gente, que uma salva de palmas vibrante, verdadeiramente apoteótica, reboou do Jango para os hóteis, repercutindo-se nas cozinhas, invadindo os próprios quartos e
as enfermarias do hospital. E a seguir às palmas: hips e hurras inflamados, esmagando os dirigentes de emoçã o e remorsos, purificando-os por tudo, e de todo .... de momento.
Nunca o Professor Sereia se sentiu tão verdareiramente feliz. Jamais, em toda a sua já longa vida assistira a coisa assim. Nas centenas e centenas de manifestações em que participara, de que fora alvo, ou simples observador, jamais aquele fogo ardente, aquela verdade, aquela alma, aquele coração. Em síntese: aquela espontaneidade agradecida!
A visita às instalações industriais e à mina foi um prolongamento desvanecedor (muito natural) daquele áureo triunfo grimpante. A emoção chegou a toda a parte primeiro que ele. Brotava das próprias coisas, do chão, do ruído dos motores, do ronronar das correias transportadoras, da trepidação dos crivos, dos jactos de água que os filtravam. Respirava-se. Era o espírito do próprio ar. As lágrimas vieram-lhe aos olhos nume-
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rosas vezes. Invocou Deus ... e lamentou muito do que fizera. Do que deixara de fazer. E mais ainda: -daquilo que pensara!
Serrão teve assim o campo livre. Só no regresso, contudo, e por acaso, Sereia voltou a pensar em Castro Raposo. Uma patrulha aproximou-se-lhe do carro e fê-lo reentrar na realidade. Até àquele momento não se detectara qualquer rasto do geólogo. Ninguém o vira. Ninguém dera conta dele. E como as carrinhas eram quase todas da mesma marca, da mesma cor, e de modelos muito semelhantes, os indicios de ter passado nuns quantos sítios não inspiravam a menor confiança,
No Jango, entrementes, a festa prosseguia com animação: dançava-se, bebia-se, charlava-se, e comia-se até, ainda, com verdadeiro prazer.
0 regresso do Professor foi carinhosamente festejado -e por via da desaparição do geólogo, apesar de ser perto da meia-noite, Sereia não
iniciou as despedidas, como prometera. Apesar de fatigado, decidiu esperar mais: até pelo menos (segundo informou) haver notícias directas do Comandante.
Como a animação da festa ia no seu melhor, ninguém estranhou aquela decisão. Não contando os favorecidos do seu pequeno grupo, todos pensaram que ficara porque isso o comprazia. Agra-
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deceram-lhe a presença duplamente: primeiro, porque enquanto não se retirasse a música, os petiscos e as bebidas não sofreriam restrições; segundo, porque vendo-o ali (após uma viagem esgotante de Lisboa até Luanda, e, logo a seguir, por Nova Lisboa até Cassinga, mais a sobrecarga da recepção e da visita à mina) as ressonâncias da alocução de Corvo, vivas ainda, enriqueciam a atmosfera de compreensões fraternais.
Mas a verdade é como o fumo e o pó: insinua-se incontrolàvelmente onde menos se espera; sobretudo onde se não deseja. Nada consegue detê-la. Nada, de facto, a detém. 0 pó e o fumo, com técnicas aperfeiçoadas podem travar-se. Isto é: impedir que penetrem onde não se queiram. Contra a verdade, nenhum filtro, nenhuma barreira é eficaz. No máximo: -pode-se feri-Ia; até mutilá-la; jamais extingui-Ia. E como a sua capacidade de recuperação não destoa da força cósmica da sua sobrevivência, cedo ou tarde ressurge igual a si mesma.
As pesquisas de Serrão não tardaram a ser interpretadas pelo que de facto eram: pesquisas autênticas. E embora nenhum dos componentes das patrulhas se tivesse aberto, fosse com quem fosse, as perguntas que iam fazendo foram espalhando a notícia -que não tardou a atingir o Jango, onde recebeu confirmação decisiva: Ana-
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cleto de Miranda, apesar de pouco ter falado no
companheiro de viagem, estranhava a sua ausência desde o primeiro minuto. E à medida que a noite foi avançando mais a estranhou. Quando Corvo dirigiu a palavra aos subordinados acendeu nele a primeira suspeita de que algo de muito sério (sem qualquer dúvida anormal) acontecera aCastro Raposo. As versões que lhe chegaram de fora diziam-lhe contudo menos do que a suspeição que o habitava.
A meia noite expirou... -e a festa prosseguiu.
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Porque não cantam as aves quando a chuva cai, arrulham as pombas quando os filhos nascem, geme o vento quando é mais forte ...
e o amor vem quando quer, vai ... quando lhe dá?! ...
PORQUE NÃO CANTAM AS AVES ...
Depois de tratar da instalação de Miranda, Rodrigues passou com ele pelo escritório, deu uma olhadela aos papéis e enfiou para o bairro habitacional, a fim de embarcar os companheiros e as moças a quem prometera transporte para o aeródromo. Esperavam-no um pouco adiante, em frente da moradia onde elas deviam residir, pois mal a carrinha estacionou, alguém, que vigiava a porta, correu para dentro, como quem vai avisar da ocorrência de um sucesso importante, ansiosamente aguardado. Em vez dos "quatro ou cinco rapazes" previstos, apenas três estavam à vista.
-0 Ruy? -perguntou Rodrigues mal atingiu a fronteira da voz.
-Já foi - respondeu o mais alto e mais forte dos aguardantes. -0 Freitas passou por aqui e levou-o. Trazia instruções. Parece que tem de entrar de turno por causa do Andrade. (0 Andrade era o ferido que pouco antes seguira para Nova Lisboa; e o Freitas, o chefe da secção).
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Okay. Miranda saiu da cabine e trepou com os mais para a caixa da carga. Rodrigues esticou o tronco atravé s da janela da viatura e dirigiu-se ao que falara:
- Freixo! Esse amigo é o construtor civil Anacleto Miranda. Apresenta-o aos colegas, se
fazes favor. Chegou há bocado e não conhece nin-
Freixo era o já nosso conhecido electricista: rapagão de feições abertas e gestos seguros, que viera de Cuima -jazigo cuja exploração já não era rentável, por razões várias, delas avultando a queda substancial dos preços dos minérios de ferro. Solteiro, como Rodrigues, mas bastante mais novo e sem depressões da mesma espécie, falava com alegria transbordante, entremeando as
frases de risadas exclamatórias, como se tudo quanto dissesse ou acontecesse fosse cómico ou brejeiro. Espremeu a mão do mestre-de-obras com prazer vizível, gabando-lhe o físico e risando a seu modo: _ Muito prazer, amigo Miranda. Você também é dos pesados! Ali, ali, ali ... Olhe, estes par-
ceiros são operadores de bulIdozers, scrapers, dumpers e coisas assim. Maquinaria bruta! Bons tipos, não desfazendo. Ali, ali ... Este -e apontou para o mais franzino - é o Ilídio Soares;
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e este, o João Correia. Creio que dormimos todos juntos, salvo seja! Ah, ah, ah ...
Apertos de mãos e frases convencionais. (Freixo quis dizer que tanto ele como João Correia e Ilídios Soares viviam na camarata onde Anacleto Miranda ia dormir -como já se deixou ver).
Rodrigues, entretanto, à vista do atraso das raparigas, fez soar a buzina do carro, como quem não está satisfeito: um ronco alongado, enervante, seguido por uma série de apitos curtos.
-Aposto que a Clotilde ainda não acertou bem o soutien. Ah, ah, ah... -mangou Freixo, aludindo aos cuidados manifestos da visada com a toilette, e, em especial, com as audácias do busto, que, de tão atrevido e franco, gozava de lauto respeito: -lúbrico prestígio!
-Oh, oh... -escarneceu Ilídio. -Isso já lhe nasceu certo. Se fosse preciso pintá-lo ... estava bem. Está mas é a lambuzar a cara. Enquanto a pintura dos beiços, dos olhos, do rosto ... eu sei lá!, não estiver bem a ponto, ninguém a arranca do espelho. Há-de ser pior do que afinar um motor!
- Mas olha que vale a pena! ... Ela apura aquilo que nem uma artista, caramba! -Aprovou Freixo sem gargalhar. -Ai isso vale! E se
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já é boa ... melhor fica! É como os bolos: os enfeites também ajudam ao paladar! Ah, ah, ah . . .
- Oh ... Pinta-se de mais! - desdenhou Correia. - Até se estraga. Cá para mim é muito mais gira quando não se empasta ... Não devia pôr tanta droga na cara.
-vê-se bem que só percebes de tractores e
mandioca, João. Aquilo não é artigo de sanzala, nem jogo de meia bola e força! Manda arte! É como quem apura uma alta-fidelidade. Já lhe reparáste bem para os amplificadores? São estereofónicos! Ah, ah, ah ... E sempre têm uma classe! Ah, ah, ah... -Ã medida que falava as
mãos e os braços foram "esterebscopando" a píntura.
-Amplificadores? Oh, ho ... Diz mas é bombas-de-injecção! - mecanizou o outro. - E que bombas!
- Quais bombas, nem meias bombas. Granadas! Granadas de mão! ... -assobiou Ilídio Soares, desta vez a enaftecer as prendas da rapariga, extasiado com a imagem mental daqueles "parachoques" explosivos. - E que granadas, caramba! -e assobiou de novo.
Rodrigues insistiu outra vez na buzina (quem sabe se pensando nas "granadas" também), agora por golpes curtos sobrepostos.
A pessoa que Miranda julgou divisar à porta
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quando a viatura chegou, abriu a janela daquele lado e fez sinais a pedir paciência.
-Aquela não perde tempo com as granadas nem com a pintura - gabou João Correia, só para desfazer nos cosméticos.
-Pois olha que bem precisava. E quanto a granadas ... vou ali e venho já. Está cada vez mais anêmica. Lembra-me a bainha dum cabo de baixa! Ah, ah, ah ...
-Não digas isso! - contrariou Soares. -A Albina, apesar de tudo, ainda é mais bonita do que a Clotilde! Lá por não ser farfalhuda nem se pintar, isso não tira: tem mais classe! Muito mais linha! É mais aerodinâmica! ...
- Não gosto do gênero - desdenhou Rodrigues, curvando-se de novo para trás. - Para magro basto eu. Quase nem tem por onde se lhe agarrei Nem sequer enche as mãos1 ...
- Ah, ah, ah ... Diz mas é que ela é que não te deixa agarrar! - E desta vez Soares e Correia gargalharam tanto ou mais que o próprio Freixo. Miranda sorriu. Mas Rodrigues não se desmanchou:
- É seca de mais. Seca e sisuda. Para se rir é preciso pedir-lhe por favor. E então a dançar? ... Põe a gente a meio quilómetro de distância!
-Eu cá também prefiro a Clotilde. Aquilo é
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realmente outro material! A AIbina parece insossa. Insossa e deslavada! Lembra-me uma tripa por encher. Ali, ali, ali ...
- Tu preferes a Clotilde mas é o tanas!
- brandiu Rodrigues, com ares de quem é dono da "praça". E amaciando a voz, armou em generoso: -De resto entre uma e outra não há com- paração possível. São tipos diferentes. Mas franqueza franquezinha!, aqueles olhos da Clotilde, aquela pele morena, muito macia!, aquelas curvas intrometidas!, aquelas "papaias"! ..., ah! ... Belzebu, Belzebu, Belzebu! ... Ao pé daquilo a AIbina é um fantasma. Já nem é mulher nem macieira! Por mais que se tente agarrá-la, mordê-Ia! ... não se sente.
- Diz-lhe que sim. Diz mas é que ela não te dá> avanço. Ali, ali, ali ... Bem te conheço, meu pau de laranjeira! Quando chegou acháva-la um mimo! Uma orquídea de estufa! Não era o que dizias? Ali, ali, ali ... E olha que ela já estava assim. Com que então um fantasma Uma tampa! Uma tampinha! Ali, ah, ah ...
Rodrigues não repontou: premiu de novo a buzina e fê-la soar durante quinze a vinte infernais segundos consecutivos.
-Não te vingues na buzina, pá! -protestou Ilídio Soares, batendo no janelo da cabina. - Há tempo de sobra.
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Há tempo mas é uma gaita. Devia estar no aeródromo meia hora antes da chegada do avião, e dez minutos já se foram por água abaixo. As gajas estão a abusar! - e pôs o motor em marcha.
As raparigas galgaram a porta a correr. À frente, a Albina: alta, loira, simples - olhos cor de mel silvestre, bem esculpida (apesar de esguia), deslizava sem esforço visível, por passos curtos muito rápidos, mal flectindo os joelhos. Atrás, a Clotilde: quase do mesmo porte, morena, de longos cabelos sedosos, olhos nocturnos e geometria afrodisíaca (sem ser gorda) tinha um correr ondulante, que deliciou os rapazes e deu cabo da tarde a umas quantas vizinhas em esculca, preparadas para sair, que, mais adiante, aguardavam transporte para o aeródromo há largos minutos - sem ter conseguido puxar a atenção de Freixo ou dos outros.
Quando alcançou a carrinha, Clotilde fez um aceno aos da caixa, tantalizando o pobre do condutor:
- Desculpa ... Rodrigues! E estendeu os lábios hipnóticos, no jeito de quem beija, meigando olhinhos. - Nã o pôde ser mais depressa... querido!
-Está bem, está bem... -amoleceu o moço, derrotado por tanta blandícia. - Há doze minu-
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tos que eu devia estar no campo! Que desculpa hei-de eu vender? 0 Comandante Serrão a estas horas está que nem uma fera. Queres que lhe lhe diga que foi por tua causa? ...
Via-se'que a preocupação de Rodrigues não era fingida. Clotilde, não obstante, fez beicinho e abanou a cabeça como quem está prestes a
chorar e diz que não quer.
Face ao clima, enquanto as raparigas se acomodavam, Miranda sugeriu ao interpreter esta escapatória:
- Diga-lhe que andou à minha procura. Como ainda- não conheço isto, podia muito bem ter-me despistado.
Olharam-no brunidos de curiosidade. Rodrigues, mais consequente, achou o gancho oportuno e não moeu cerimônias: pendurou-se logo:
-Você não se importa mesmo?
- Tenho as costas largas. Resta saber se pega! Não vejo que eu valha a demora. Mas isso é consigo.
- 0kay! - E a carrinha partiu a todo o gás. Ao torcerem para a rua principal as moças acenaram para uma senhora de muita idade, toda branca, que debruçada no extremo da varanda por onde elas saíram, muito serena, espiava atentamente a largada. - Também era funcionária ... além de tia de um dirigente.
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A pressa de Rodrigues tornou-se tão dolorosa que nem se peneirou durante o percurso: remordeu. Assim que atingiu o aeródromo foi advogar-se à barra do Comandante - e daí a pouco, gaiteiro e risonho, girava de um lado para o outro retransmitindo estratégia e unção. Só largos minutos mais tarde pôde espanejar para as raparigas, mais o Freixo e a sentinela de Miranda.
Correia e Soares, mal puseram pés no aérodromo, aderiram a um bando particularmente domingueiro, pilotado por chaufeurs e tractoristas -apinocados como eles.
A espera e o regresso decorreram sem remorsos.
Após a deposição de Albina e Clotilde no hospital, a pedido das duas, Rodrigues aliciou Miranda -para emparelhar com ele, quando, dali a pouco, conforme o justado, fosse buscar "as pequenas" para a festança do Jango. "Você podia encarregar-se da loira!" (Ele, Rodrigues, ficaria com a morena: a bela e incendiária Clotilde!) "Não terá problemas. A Albina é muito reservada". E como o outro se limitasse a sorrir (o sorriso de quem está por tudo) foi mais longe: "Fala pouco, é raro dançar e, ainda por cima, é uma grande chata, pois quando menos se espera atira-nos com cada sabonete que a gente fica de cara à banda. Mas como você tam-
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bém não parece de grandes falas, pode ser até que se entendam!" E gargalhou a imitar o Freixo. "Assim eu escusava de perder o meu
rico tempo em cerimônias com ela" ...
Miranda não pôs entraves. Como não sentia vocação para "conquistador" nem tão-pouco se impressionara com as moças, limitou-se a encolher os ombros e sorriu outra vez. Mas face à insistência dos olhos do companheiro teve de ser mais explícito:
-Está bem. Não será por minha causa que
os seus planos hão-de ir por água abaixo, meu caro Rodrigues. Fique descansado. De resto, como não faço tenções de dançar, nem sou de facto dado a "grandes falas", espero que não haja razões para queixas.
A festa enrubesceu ardores à gente nova, diluiu reservas, desfez cansaços, amordaçou demóníos. Velhos, maduros e jovens, sem destrinça de sexos ou galões, ancoraram sem calemas naquela rada franca e farta, comungando o
mesmo pão.
Apesar de todo o seu empenho em reter Clo. tilde só para si, Rodrigues teve de se contentar com uma vaga preferência da morena, que, sem-
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pre muito em foco, parecia não querer desiludir qualquer dos seus numerosos vassalos, todos muito atentos. Com Albina dava-se precisamente o contrário: apesar de muito correcta - sempre delicada- criou em volta de si uma espécie de vácuo inacessível, onde permaneceu distante, luzindo embora, como se fora um ídolo intocável. Freixo, forte e audaz, esgrimiu farroncas com ela - mas não ousou convidá-la: ergueu a lança e foi atacar outro forte. Miranda limitou-se a deixar a azáfama, o tempo, o cenário, a própria quietude de Albina aureolar, fluir, arder ... Proletarizou-se na pacatez de sóbrio espectador.
Saciada a curiosidade, adormecido o interesse@ restaurado o cismar, Anacleto Miranda evadiu-se dali revendo castelos desfeitos, raivas, traições, o noivado em chamas, a ruína, a aventura do exílio, a viagem .... e por fim o encontro com o geólogo: o saber e a simpatia que dele irradiavam; a amizade que os atraíra, apesar de tantas diferenças... -e deu consigo a procurá-lo com os olhos, sem conseguir descobri-lo. Não estava junto dos administradores ou em qualquer dos grupos que os rodeavam, nem tão pouco dentro ou fora do recinto. Achou aquela ausência bastante estranha; mas não passou dai.
0 recato de Miranda deve ter sossegado, senão mesmo intrigado Albina. Estando ambos há lon-
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gos minutos uni ao pé do outro, e tendo vindo juntos, não haviam. despendído entre si mais do que duas ou três frases insulsas. Não, que ele fosse menos-amável! Como ela se envidraçara naquela redoma de ausência, dir-se-ia que ele não só lhe respeitava o gosto, a táctica, ou a
decisão, como a aprovava.
Foi ela -talvez por isso- quem quebrou o marfim:
-Chegou hoje, não chegou? -Exactamente: esta mesma tarde. Vim com o Dr. Castro Raposo e o engenheiro Serra de Oliveira, com quem vou trabalhar.
-Vem da Metrópole -Directamente de Lisboa. E a conversa caiu. Minutos mais tarde ela fez novo esforço de aproximação, invertendo a estratégia:
-Já conhecia Angola? -Nem Angola nem qualquer outra província ultramarina. Nunca tinha saído de Portugal; tudo isto, para mim, é novidade. -E sorriu-lhe despretensiosamente. -Nunca fui a Espanha sequer.
Perante naturalidade tão esmaltada, ÃIbina desistiu de lhe chamar a atenção para o facto de tudo isto ser também Portugal -algo a
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conhecer antes da Espanha. Perguntou-lho apenas, como em casos tais é inevitável:
-E gosta? -Pelo menos não desgosto. Veremos como de facto é ... Fazia no entanto uma ideia diferente. Errada, sem dúvida. Sempre julguei, por exemplo, que Luanda não passasse de uma cidadezinha como Santarém, Leiria, Braga..., quando muito Coimbra. Afinal não se parece com nenhuma delas, nem com nada daquilo que eu já conhecia.
-Não lhe encontrou ares de Setúbal?
- Não ... Pelo menos não dei por isso.
- Quando vim, há perto de quinze anos, achei-a parecidíssima. A baía, a parte alta, a Ilha ... A Ilha era Tróia. Mas Luanda cresceu tanto que a semelhança é muito capaz de já não ser tão evidente como naquela altura me pareceu. Eu gostava imenso de Setúbal. íamos todos os anos passar umas semanas à banda de lá: a Tróia! --- -E calou-se por instantes. -Dizem que estão a modificar aquilo tudo. Já não vou à Metrópole ... há mais de doze anos, meu Deus! ...
Emudeceu extasiada, fugindo!, sem contudo irradiar distância ou ausência. Recordava, sem dúvida, a última visita; aquelas férias lembradas;
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Tróia, Setúbal, a infância -a riqueza desses tempos de flores.
Miranda quis então ser gentil. Contagiado pela doçura triste da voz dela, pelo tom de magoada sinceridade que parecia impregná-la, pela singeleza natural do que ouvira, perguntou-lhe a racia, voz, docemente també m:
- É de Setúbal? -Não. Sou de Lisboa. Nasci em Campo de Ourique. Mas já me sinto de Angola. Quando viemos ainda não tinha dez anos... - E tomou a cair naquele reviver remoçante.
Anacleto Miranda surpreendeu-se a fazer contas: "Quando vim, há perto de quinze anos ... ", "... ainda não tinha dez ... ". Teria pois 24. No máximo 25. E no entanto não parecia. Dava-lhe quando muito... 20! Ou, vá lá, agora... 22. "Já sofrerá pavores de ficar para tia?", pensou a seguir, lembrando-se da ex-noiva, seu pináculo salgado. .
Para não deixar a conversa morrer abriu-se também: . -Eu sou da Graça. Mas conheço Campo de Ourique de ponta a ponta. Campo de Ourique e pràticamente todos os bairros de Lisboa. E os novos, claro está, pois sã o bem mais fáceis de conhecer. Trabalhei em todos eles. Primeiro, corno servente; depois, como artista (foi quando
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comecei a estudar); a seguir, como encarregado. E por fim por conta própria.
-E não se deu bem?
0 tom de interesse da voz dela era tão flagrante que ele acampou com refrescado prazer:
-Lá dar bem, dei. A vida até me estava a correr "às mil maravilhas": fartura de trabalho, preços razoáveis, clientes bons ... Mas houve um azar- e foi tudo por água abaixo. - Entressorriu durante alguns segundos. - Talvez não lhe devesse chamar azar ... Falta de calo!, como se diz entre nós. Falta de experiência! Experiência dos homens, bem entendido. Nanja da profissão. Fui muito ingénuo, Deus do céut
-Deve ter sido um choque muito grande ... Mas parece muito novo, para ter já passado tudo isso!
-Não me julgo nem me sinto velho. Muito pelo contrário. Começo a ter a impressão de que, verdadeiramente, ainda não principiei. -E assumindo um ar de bem disposta decisão: - 0 meu verdadeiro princípio ainda não chegou! Mas enfim .... também j à não sou um rapaz! ... Fiz
32 há pouco.
- Curioso --- Dava-lhe 26 ou 27. Cheguei até a pensar em 25.
-Com 25 anos, para mim, o mundo era uma campina de piso difícil, sem dúvida!, mas sem
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surpresas. Só com as dificuldades próprias do terreno, que, julgava eu, com um pouco de jeito e pertinácia, acabaria por vencer sem precalços. Ainda não tinha chocado com montanhas; nem acreditava em abismos; e menos ainda em atoleiros!... -E voltou a sorrir, deixando o mutismo de novo envolvê-los. Era porém um mutismo diferente: sem reservas já; não-precavido; orvalhado pelo seu quê de intimidade: um elo de simpatia a irmanar sentires.
No correr deste pequeno diálogo, Miranda observara melhor a companheira: a sua voz era doce, muito macia; o brilho dos olhos magnífico; as feições de uma correcção imprevista: -tão regulares que se apagavam; isto é, não atraíam; não chamavam a atenção. E esta circunstância aliada à falta de contraste entre a brancura da pele e o loiro dos cabelos, o próprio mel cristalizado que lhe dulcificava as iris, fazia da sua beleza uma beleza velada; etérea; difícil de alcançafl, mas que, uma vez descoberta, não era fácil esquecer. Lembrou-se das observações de Ilídio Soares: "A Albina, apesar de tudo, ainda é mais bonita do que a Clotilde. Lá por nã o ser farfalhuda nem se pintar, isso não tira. Tem mais classe!" (Pareceu-lhe, de facto assim). "Mas apesar de tudo ... Que tudo?..., bonita como de facto é?! .... embora triste ... Será infeliz?... Parece
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derrotada. Se fosse homem diria que passou por qualquer experiência do género da minha e desistiu de combater. Que se adaptou à cómoda situação da dependência e não está para mais aventuras". -Enquanto assim cogitava, os seus olhos iam pespontando o recinto em busca do geólogo. Desiludido, soergueu-se... -e através dos janelões praticados na vedação esteirada em redor, pontuou depois os grupos da zona exterior, tudo naquele dia organizado como se fora uma assembleia só, num átrio único. 0 resultado foi igual: o Dr. Castro Raposo não parava, não estivera ainda ali! "Porquê?", inquiriu de si mesmo. (Albina de vez em quando observava-o). Decidiu fecundar o mutismo:
-Admira-me não ver o Dr. Castro Raposo. -Quem é? Não conheço!... -animou a moça, esquecida já do começo do diálogo.
- 0 geólogo com quem fiz viagem. Um homem extraordinário, segundo parece... Pelo que me foi dado ouvir, é pessoa de que a Companhia muito espera. Vem fazer um estudo que, pelos vistos, será decisivo para o prestígio da empresa, e até para o futuro de Cassinga: Supoponho que a avaliação definitiva das possibilidades e da própria valia das minas, não só quanto ao presente, mas também quanto ao futuro. Muito me admira por isso não o ver aqui. Isto é,
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além!, junto dos Administradores. Há pedaço também não o vi no aeródromo., Acho estranho ...
-Não teria ficado a descansar? -Não me pareceu cansado. Pelo menos até ao ponto de não poder vir a esta ... Como se chama isto?..-Uma reunião? ... É mais do que uma simples reunião, não é? ...
-Creio que não tem qualquer nome especial ... É uma festa. Se tem outro nome ... também o desconheço. Talvez seja um jantar-volante. Não sei. Como há música e baile ... Confesso que não estou muito familiarizada com estas coisas.
- É nova aqui?
- Assim assim. Estou na Jamba desde Janeiro passado. Há uns dez meses portanto.
- E como se tem dado?
- Não tenho grandes razões de queixa ...
- Não sei porquê ... quis-me parecer que também era nova nestas paragens. Isto é, aqui, na Jamba.
Não teve coragem de lhe perguntar o que fazia. Pensou no entanto que se a "jambite" era
de facto a doença que Serra de Oliveira descrevera, ainda não a molestara, pois a falta de alegria que nela dominava era algo de mais profundo, talvez intrínseco, a que o "afastamento"
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seria porventura mais benéfico do que hostil. Optou por um voto de optimismo:
-Também espero dar-me bem! -E sorriu-lhe como num cumprimento. -Pelo menos
durante um ano. Até concluir o contrato! Depois... veremos. Para já, graças a Deus!, confesso que estou a gostar. É uma experiência nova. 0 Doutor Castro Raposo diz que "isto" me vai "abrir novos horizontes". Começo a convencer-me de que pode muito bem ser como ele diz. Como ele profetiza! - E sorriu sem reservas.
Os criados competiam na distribuição de chávenas de vidro fumegantes, cheias de um líquido espesso que lhe pareceu sopa de carne ou algo do mesmo tipo; perguntou à companheira:
-Não lhe apetece uma sopa?
- Acho que vinha muito a propósito. - E sorriu-lhe também, desta vez abertamente, surpreendendo-o para alé m de quanto ele poderia imaginar.
É que Albina, ao sorrir, transfigurava-se. Aquilo que nela havia de suave e discreto, fluminava-se como por encanto: a sua beleza res-
plandecia. Meio deslumbrado, ergueu-se, e em meia dúzia de passadas flexíveis, barrando o caminho a um dos serventes, sem lhe dar tempo de parar, arrebatou a um outro, logo adiante,
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duas chávenas do tabuleiro e voltou para junto dela, passando mais por detrás.
Albina já não sorria: esforçava-se por travar o riso, ardendo em beleza; confundindo-o; murando-o de perplexão.
- Que aconteceu? - perguntou interdito, frio já, as chávenas à altura dos ombros, os olhos nos olhos dela, e um desconforto gelado a despi-lo de alto a baixo.
- Então não me dá a sopa?... - e o riso abrandou para uma quase carícia: as mãos estendidas, os olhos nos olhos dele também.
- Desculpe ... Entregou-lhe a chávena e sentou-se. Foi sorvendo o caldo aos poucos e olhando em frente. 0 primeiro dos criados apanhava chícaras do chão, e uns quantos dos assistentes, em redor limpavam calças, casacos, camisas, o próprio corpo. Na precipitação da manobra Miranda nem dera por "resistências": com aquilo que muito vagamente lhe parecera "um raspão ao de leve", provocara aquela sementeira de risos, chávenas, sopa, indignação e desconforto - mergulhando o rapaz na cratera do pandemónio. Convictos de que o servente fora incauto e tropeçara, os atingidos vazavam sobre o infeliz catadupas abafadas de vinagre, fel e impropérios. Mas Albina viu tudo. E Miranda, ocupado por
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inteiro com o riso dela, não decifrou o mistério da confusão. 0 martelar dos segundos, entrementes, acabou por lhe abrir a cortina do segredo: por o pôr na pista da verdade. Sentiu-se aniquilado. Não querendo porém acreditar na própria evidência dos factos, volveu os olhos para a companheira em muda, cómica, aflitiva interrogação. Ela baixou à cabeça duas vezes; e não podendo mais sustar a onda que dentro de si borbulhava, estourou de vez -destroçando-o num abismo de vexame.
Miranda glaciou: -Olhos vidrados no vácuo (sorvo a sorvo goela abaixo, lentamente -coágulos de fogo nas entranhas) arrependido, revoltado até, por se ter interessado por ela, enfureceu-se contra si mesmo -incapaz no entanto de qualquer réplica salutar.
Não tardou em reviver outra humilhação maior:
Apesar de toda a sua desenvoltura, do seu
incontestável espírito de empreendimento, da sua pertinácia, da sua inteligência, da própria força física fora do comum -fora sempre um
tímido perante as mulheres.
Não obstante os seus princípios humildes, vingara na vida e estava muito longe de se considerar um vencido. Sofrera apenas um enorme
revés. Mas no roteiro da sua existência, o hori-
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zonte, facho de promessas, recomeçava a madrugar.
Por volta dos 20 anos desfrutava já de uma situação material invejada -e não lhe faltavam (muito naturalmente), os rodeios, os assédios, as fintas das aduladoras. Manteve-se porém arredio, cauto, medindo com justeza o quilate daqueles ademanes intrometidos, queimando a vitalidade no trabalho e por cadinhos onde sabia o dinheiro ditava, sem reservas -contra relógio emboraa vontade ... e o mais vital, do sentir sensível.
0 caso da noiva confirmava o empirismo da sua filosofia. Tudo aquilo, hoje, para ele, não passara de uma cilada: de um golpe chão, burguesíssimo! -Moralíssimo para os mais, portanto:
Conluiado com a mulher, o sócio convidara-o para um jantar de festa: bodas-de-prata do casamento distante. Sem filhos, reuniram na função amigos e parentes, e uma sobrinha-afilhada com fama de teres, "instruída" e tão ambiciosa como flamante -por todos muitíssimo gabada. Por tanto exigir, fora rejeitando oportunidades e certezas -e acabara por dobrar os 29 sem arrumo visível, em pânico já, ante uma perspectiva de tia ou remedeio humilhante. Como ele ganhava bem e tudo predizia que dentro em pouco estava rico, um conciliábulo de famílias conspirou para
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o seu enlace com a beldade. Não seria exactamente o que ela sonhara ... "mas era um belo homem, e um bom partido já! ". E como, por assim dizer, jamais tivera um namoro, ou, que se soubesse, qualquer ligação está vel sequer, pareceu-lhes um alvo ideal - a verdadeira sorte dela! - fácil para tantíssimas "prendas", tanto charme, tanto glamour, tanta sedução!
Assim foi - pois a moça (Lucila Rosa) era de facto atraente e "meiga", e "ficara deveras apaixonada".
Tudo lhe pareceu liso, puro, cheio de boas intenções, pleno de amizade até: "Miranda!, o
que tu deves fazer, é casar. Já estás em muito boa idade. Precisas de ter casa. Só se não gostas da Lucila! ... Nesse caso, não! 0 casamento deve fazer-se por amor. Tu já tens de teu ... Quem me dera a mim! Ela... é bom partido!, bem sabes. Gosta de ti ... Mete-se pelos olhos dentro! - Só se não gostas dela !?". "Gosto! ... Então não havia de gostar? ... "
E ficaram noivos. Miranda acreditou em tudo, principalmente porque no fundo -sabia bem- desejava casar-se: imprimir outra ordem ao viver; montar casa; pôr ponto final naquela vida maninha de pensões, bares, prostíbulos e hotéis. Mas este facto (a ausência de um amor exaltado por
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Lucila) não lhe amorteceu o choque nem tão pouco adoçou a amargura da separação. Muito pelo contrário -pois a ocorrência do desastre (do roubo e da fuga do sócio) mergulhou-o num
estado de espírito jamais sentido, em que o conforto de outrem (o conforto sobretudo da mulher) se lhe desvendou como a bênção mais válida que o homem pode encontrar. Como o
próprio fim, a verdadeira justificação da existência.
Correu para junto de Lucila com o sentimento profundo (pela primeira vez) de precisar, de necessitar dela! Foi um sentir tão belo, tão doce, tão deslumbrante! ... -que pouco faltou para entre si agradecer ao sócio, e de feito lhe perdoar.
As perdas materiais não o destruíram. Arruinaram-no, apenas, por uns tempos. Estava tão seguro dos passos que percorrera até chegar onde chegara, que dentro de si não havia lugar para dúvidas sobre a sua capacidade em os repetir: -em se refazer sobre melhores bases, num sen-
tido mais apropriado, e por um rumo mais directo. Além disso não podia libertar-se de uma
convicção granítica de que, cedo ou tarde, acabaria por recuperar (não fazia ideia como) boa parte do que perdera ou lhe fora roubado. Os
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dois, Lucila e ele, venceriam a crise sem grandes dificuldades.
Quando chegou junto da noiva quase sorria. A reserva que nela topou, apesar de o surpreender, não o feriu. Como era sobrinha do "tra- tante" ... era natural que não se sentisse bem. Procurou sossegá-la. Fez-lhe ver que o mundo não ia acabar, Apenas por uns anos teriam de viver pior. Mas que importância tinha isso ante as promessas do futuro? ... _ Estou cansada de promessas! -explodiu com desdém, a data altura, mostrando-se tal como era- como já não podia deixar de sermesquinha, egoísta, ilusóriamente ambiciosasem a mais ligeira sombra de interesse nele por ele mesmo.
Foi um golpe rude. Começou por não acreditar. Por não querer acreditar! Aquilo eram destemperos devidos ao desastre; à humilhação perante a nojeira, a ordinaríce, os crimes do padrinho. Mas quando (sem ao certo saber bem como, nem para quê -visto não traduzir, não concorrer com o que sentia) arriscou a hipótese de uma suspensão do noivado, ela tomou-lhe a palavra e descartou-se dele com alívio, sem pejo nem demora.
Pouco faltou para sucumbir. Anos atrás guardara certa intimidade com
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uma rapariga de vida fácil, com quem se entendia sem atritos, de quem gostou até, e a quem esteve para completamente se unir -admitindo a própria hipótese de mais tarde com ela casar.
Afastou-se exactamente por assim sentir: por ter "visto" quão inclinado estava para "descer".
Apesar do afastamento, aquela mulher-só-mulher permaneceu dentro de si como altar fiel da sua alma -quimera de anseios, refúgio do coração. Só últimamente, com o noivado, aquele nicho principiara a desfazer-se. Eí-lo, porém, de repente!, iluminando as trevas -portais abertos, clamando por si. Recordou a sua ternura espontânea (baldia embora!), a dedicação pura, o asseio sem projectos, a própria nobreza -
aquela autêntica honestidade! ...
Sabia, isto é, sentia que ela o amara deveras: sem alardes nem esperanças de recompensa.
Quando decidiu deixá-la... -nem um rogo!, um só queixume! Apenas mudas lágrimas abissais deslizando-lhe pelo rosto -e um sorriso triste, muito triste, de aureolada compreensão.
Procurou-a por Lisboa inteira. Sumira-se. Constava que fora para o Ultramar, como girl de um night-elub. E o Ultramar chamou-o.
A sua determinação de reconstruir, de ultrapassar o galarim económico desmantelado, constitui-se então no escopo da sua vida. Mas não
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querendo, entretanto, suportar os desdéns, os olhares, porventura o próprio ódio de Lucila, decidiu-se por aquele recomeço promissor, que lhe permitiria, ao fim de um ano, dar outro passo maior e em seguida, de facto, reprincipiarl Não obstante, só porque Albina lhe parecera infeliz, vencida, uma autêntica destroçada, caíra na patetice de nela confiar; no quixotismo de lhe querer transmitir um pouco de apoio ... -E ei-la, sádica e viperina, como as mais, rindo-se dele.
Albina, entretanto, vendo e sentindo a transformação que bronzeara aquele homem enorme, de alma transparente e fundo bom, recolheu-se também -pois dentro de si havia agruras maiores. Tendo rido por rir (porque tudo se conjugara para que um travo de comicidade burlesca mascarasse o incidente) não se sentia merecedora daquela dureza repentina, alheada e fria. Mas não teve a menor dúvida, a sombra sequer de uma incerteza, de que fora ela quem a desabara, ferindo-o, embora sem intenção. Que fazer? ... Sorria apenas -de novo aquele sorriso triste indecifrado- quando Rodrigues e
Clotilde se aproximaram dos dois.
-Com que então, muito divertidos!? ... -comentou o rapaz enquanto Clotilde aceitava uma chávena de sopa que outro criado, junto deles, naquele momento oferecia.
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Albina e Miranda não responderam. Não deram com, não acharam o que quer que fosse que valesse a pena dizer. Sorriram: ela, como quem confirma a sentença e aceita, e sente, que nela se encerra muita verdade; ele, como quem a admite, para não ter de a contestar.
Clotilde pareceu deleitada com a sopa:
- Hum! ... 0 consommé está delicioso!
- Está de facto muito bom - confirmou Albina, sorrindo ainda, aquele sorriso sem sol que Miranda logo de entrada lhe surpreendera, sem contudo nele entrar.
- Também quero! - chamou Rodrigues, fazendo sinal ao criado.
Serviu-se de uma chávena e juntou o seu aos votos das companheiras:
- Estupendo! Gado de Cuima! explicou em unção, gabando a excelência da pecuária que, na zona daquele jazigo pioneiro, sucedera à extracção do minério e prometia resultados por si só compensadores, sob certos ângulos espectaculares. Após um sorvo guloso voltou-se para Albina e galanteou: - Queres mais? ...
- Não ... Muito obrigada.
- E você, Miranda?
- Também não, obrigado.
0 silêncio pareceu agasalhá-los por instantes
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* fundi-los no mesmo sentir. Foi Rodrigues quem * rasgou, interpelando a loira e o companheiro:
- Vocês não dançam? Só AIbina respondeu:
- Ainda não tive a sorte de agradar a ninguém ... - ironizou em tom repleto de intenções. -Ninguém até agora deu por mim .. -, ou me quis dar a honra de por mim se interessar.
Rodrigues olhou para Miranda. E este, mantendo a compostura exterior, como se nada de especial se houvera passado, recordou-lhe, meio a rir -nitidamente a desfazer:
-Não se lembra de eu lhe ter dito que não dançava? ...
- Sim ... Isto é, tenho a impressão de lhe ter ouvido que era raro dançar. Mas se é assim ... AIbina!, queres dançar comigo?
- Com todo o gosto. Há um bom pedaço que esperava que alguém se lembrasse de mim.
- E sorrindo abertamente, a pleno alvor outra vez, ergueu-se para acompanhar o rapaz.
Miranda seguiu-os com os olhos, remoendo nas respostas de Albína. Era evidente que ela pretendera visá-lo. Mas não se percebia porquê
- pois não mostrara até ali qualquer interesse pela dança. E como pela posição, sobretudo pela atitude que assumira, afastara deliberadamente as possibilidades de convite, o remoque era bas-
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tante estranho, tanto mais que a ele, Miranda, ainda não lhe passara pela cabeça dançar -e
o facto não lhe devia ter escapado, a ela.
Clotilde, sempre em silêncio, acabada a sopa, renasceu: pôs-se a rever, a corrigir, a estudar a pintura do rosto. De repente ergueu-se: e
pegando em ambas as mãos de Miranda soprou -lhe com dilatada excitação:
-Venha dançar comigo, por favor! Vem acolá o Freixo e eu já não posso aturá-lo. É um
realejo insuportável. Aquelas risadas idiotas dão-me cabo dos nervos.
Miranda não pôde fugir. Se chegou a ter qualquer ideia de se descartar da rapariga, quando pretendeu pô-la em prática já era tarde. Ela não lhe deu tempo para hesitações. A declarada ansiedade de se ver livre da ameaça de Freixo precipitou o cerimonial do começo: mal ficaram de pé deram início à dança.
Apanhado assim de supetão, quando pôde falar foi para timidamente prevenir a parceira de que estava muito longe de ser um dançarino -ou de saber, sequer, corno se dançavam estas e aquelas peças modernas, a começar pela que naquele momento o conjunto restrugia.
- Não faz mal. Desde que me salve do Freixo e não me pise, para mim dançará como um anjo
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-tranquilizou a rap ariga no seu estilo envolvente, todo mel, orquídeas e cardos.
Miranda não sabia que os anjos dançavam bem. Remirou por isso a companheira (olho em
riste) pesquisando o alvo da seta. Clotilde, ante o espiar dos olhos dele, retractou as garras -toda flores, Abril a sorrir:
-No fim de contas você não dança tão mal como isso! Pelo contrário... Há quem dance bem pior e esteja convencido de ser Fred Astair.
-Antes assim -agradeceu sem convicção. E esforçando-se cautelosamente por guardar o
compasso, acrescentou semi-solene: -Continuarei a esforçar-me por não a pisar. Mas logo que se sinta em segurança..., deixe-me onde lhe convier.
Clotilde despiu-o: lúdica, um ar de escandalizada confiança a escarnecer da inconfidência dele:
- Está a correr comigo!? ... .Era no entanto difícil decidir se a expressão do rosto dela era de escândalo, raiva, surpresa
- ou apenas reinação. Miranda fez um esforço desesperado para não se afundar; e curvando uma vénia camarada -toda masculina compreensão- bruniu com certo humor:
-Que ideia! ... Se veio dançar comigo para
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atingir determinado fim ... não seria leal, da minha parte, aproveitar o facto para a reter.
Clotilde sorriu. Começava a simpatizar com ele. Fez-se amável e declarou-lhe sem afectação:
- Estou a gostar bastante de si, e mais ainda de dançar consigo, sabe? - E como ele fizesse um trejeito de descrença, insistiu: - Dançar com grandes apuros é quase sempre uma enorme estopada. Uma vez por outra, de longe em longe, vá lá ... Mas sempre? .... só de castigo! As pessoas 1não se divertem, não riem, não vêm o que vai em volta ... nem sequer podem conversar. Ufe! Só por capricho. Ou então de castigo -e
soltou uma gargalhada sadia, fresca, luminosa, que o brindou por dentro e por fora.
- Folgo ouvi-Ia - agradeceu pacificado. E segundos a seguir avançou com esta confissão:
- Estava bem longe de supor que ainda hoje havia de dançar. Não só não me apetecia, como nem tal me passara pela cabeça.
- Sério? .. . Não gosta de dançar? - No tom da voz dela, de novo aquela nota de zombaria; o tal ar de provocação.
-Não gosto nem desgosto... -negaceou, matreiro também, à cautela. -É como com o tabaco: não fumo; mas quando faço parte de um grupo que em dada altura resolve fumar por brinde, ou por outro motivo qualquer relacio-
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nado com o objecto da reunião, nunca me contento com um cigarro: exijo um charuto da melhor marca que houver.
-Isso é um cumprimento? -Não sei ... Gostaria que fosse. Mas a verdade é que eu estou apenas a pretender justificar-me: a explicar porque "não gosto nem desgosto" ... nem tão-pouco sei-se lhe fiz um cumprimento. É que vejo um obstáculo insuperável: na dança não se pode dizer ao criado: "Rapaz! Traz lá uma garota das melhores para eu dançar! "
Clotilde estourou a rir - fazendo-o rir também.
-Nunca esperei que você tivesse humor!
- Juro-lhe que o não tenho. Pode crer que me surpreendi tanto, como, pelo que vejo, a diverti.
Uns passos adiante os olhos de Miranda esbarraram nos de Albina. Os dela estavam a remirá-lo. Desviou os seus e continuou a girar
- pensando nela sem remédio, apesar de não o querer. Clotilde, num tom agora de pura simpatia, o ar mais natural deste mundo, cauta!
- a desarmar pruridos e reservas - perguntou-lhe a meia voz, o próprio sorriso muito sério:
- Ouvi dizer que você já foi muito rico, é verdade?
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Miranda escrutou-a atentamente, e por fim sorriu também:
-Não! Não é verdade. Se tivesse sido muito rico, fàcilmente suportaria os prejuízos que me castigaram, os quais, ao fim e ao cabo, não indo além de três mil contos, foram mais do que suficientes para me arruinarem. Não. De modo algum. Nunca passei de "aprendiz de feiticeiro".
-Três mil contos?! ... E diz você que não era rico, heim!? -sobrestimou Clotilde, sem fazer caso das jactâncias dele.
Miranda não retorquiu. E passeando os olhos em redor, deu com os de Albina de novo fitos em si, menos seguros agora -pois fugiram mal espelharam os dele. Clotilde, sagaz!, farta de cabra-cega, deixou-se de cerimônias, e, cravando-lhe esta directa, desmascarou-se:
-Porque não foi você dançar com a Albina?
- Porque não fui eu dançar com a Albina?! ...
- contra-interrogou precavido, a tentar descobrir onde ela pretendia de facto bater.
- Sim! ... Sabe muito bem que era a si que ela estava a chegar, há bocado, quando disse que há não sei quanto tempo aguardava que a convidassem ...
- Olhe que não! - desconversou Miranda, fazendo-se desentendido. - Foi para o Rodrigues
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que ela disse isso. Estava quase de costas para mim e a olhar para ele! ...
-Deixe-se de fitas. Foi para si que ela falou.
- E no tom da voz dela havia uma nota severa de magoada censura.
-Acho a sua conclusão muito audaz - teimou depois, lúdico ainda. Mas esfriando a seguir a voz, desarmou, e abriu-se com firmeza: - Enquanto estive sózinho com ela, não dei conta de que estivesse interessada, ao de leve sequer, em
dançar ... fosse com quem fosse! E como eu nem nisso pensei, nem tão-pouco me atreveria a convidá-la (ou a si, dançando como danço), estou convencido, melhor, tenho quase a certeza de que a vontade de dançar lhe veio apenas quando você e o Rodrigues chegaram ao pé de nós.
Clotilde não respondeu. E segundos depois, ressabiado ainda, Miranda forçou a nota com este sarcasmo pouco justo:
- De resto não admira que assim tenha acontecido. Dançar com o Rodrigues é uma prova de bom gosto.
-Hum... -fungou Clotilde, cada vez mais séria, passando por cima das'quiromâncias dele, rumo ao seu crisól: -Que diabo disseram vocês um ao outro? ...
- Nada de especial. Menos, vinte vezes menos do que aquilo que entre nós, você e eu, foi
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dito já ... Posso ter alguns "parafusos" desajustados ... Admito. Ela tem pelo menos o dobro.
-Seja! -cortou Clotilde entre fria e austera, impondo silêncio.
Só então Miranda principiou a reentrar verdadeiramente em si. Estava, como não podia deixar de ser, admirado, espantado até, com a morena. Pelo que de tarde tinha visto e dela ouvira, tecera ideias, juízos profundamente errados: julgara-a frívola; superficial; sexy apenas, ou pouco mais. Via que se enganara, apesar de Clotilde ser tão sexy quanto uma rapariga honesta, extravertida e muito atraente, pode ser, ou inevitàvelmente é -por natureza.
A austeridade de Clotilde arrefeceu mais, e por fim cristalizou:
-Miranda!, já lhe disseram que ela sofre de leucemia? ...
A sua voz era abafada, claustral, fortemente impressiva, e, não obstante, quase neutra.
Miranda estava assombrado: -Diz você que ... -Sim, que sofre de leucemia. A última anã- lise acusou setenta e oito mil glóbulos brancos. A anterior indicava cincoenta e quatro mil. Devia ter cinco, seis, sete ... vá lá, oito mil!
Apesar de sempre igual a si mesma, dir-se-ia que a transfiguração da morena fora tão grande
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que Miranda já não sabia que mais o esmagava:
se a revelação do mal terrível, ímpio!, em bacanal no sangue de Albina, se a mágoa austera, a serenidade impressiva da companheira.
-Ela não costuma de facto dançar... - ame-
nizou Clotilde quase a sorrir. -Julgo até com-
preender porquê .... se acaso é possível alguém compreender o que nela realmente se passa ... Foi por isso que lhe perguntei o que disseram e porque razão não quis você dançar com ela. Desculpe. Sei muito bem que nãá fui leal. A lealdade não é, nunca foi moeda-padrão de nenhum mercador a sério. Fechemos as contas: Acredito que tudo se tenha passado como disse, e até que a vontade de dançar a tenha atacado quando eu e o Rodrigues chegámos ao pé de vocês. Mas foi a si que ela quis punir. Porquê? ... Não sei! Supunha que você soubesse ...
Miranda estava cada vez mais perplexo. Aniquilado, perguntou com timidez quase infantil:
-Quer dizer que o Rodrigues foi dançar com ela para ... ? -e suspendeu-se: olhos de medo fitando os olhos dela, e estes, gaiatos, de novo a mangar:
- Não ... 0 Rodrigues é boa pessoa, apesar de ter, segundo a sua giria, uns quantos "parafusos" também desajustado. Não. Não pense nisso. Limitou-se a aproveitar a deixa. Olha
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quem, o Rodrigues! Tomara ele que ela dançasse mais ... sobretudo com ele! 0 que ele quis foi namorá-la.
Os tropeções de Miranda eram choques em cadeia:
- Mas não é a si que ele faz a corte? ... Clotilde sorriu. A pergunta revestira-se de tanta ingenuidade, e soara num tom de tal modo patético, que a rapariga quase se comoveu:
-0 Rodrigues faz a corte a todas as mulheres atraentes que estejam dispostas a aturá-lo, sejam elas quem forem. Também sofre de morbos incuráveis. De leucemias morais, coitado. E não sei porquê. Para ele a cura é fácil .... desde que ele acredite e colabore a sério.
Silêncio activo. Pouco depois Miranda exibiu outro retrato seu:
-Estou confundido consigo, sabe? -Porquê? Por causa da minha arenga sobre doenças, ou..., como lhe havemos de chamar?..., da minha insimulação?
-Por isso ... e muito mais. -Está a fazer-me a corte? -Não entre comigo! Você confundiu-me! Confunde-me! - Vexa-me! Bem, é melhor eu calar-me.
Clotilde afastou-o ligeiramente de si, e
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batendo-lhe maternalmente na face segredou-lhe à puridade:
- Confia em mim? ... -Confio! -Mas ainda não acabara de pronuncíar esta verdade, sentiu-se de tal modo embaraçado que enrubesceu.
- Deixe-se disso! - ralhou Clotilde ternamente. - Pense em mim como enfermeira. Ou como mãe, se quiser.
- Enfermeira?! - 0 espanto de Miranda era cómico.
- Enfermeira, sim! Então que esperava você que eu fosse? Dactilógrafa, amanuense?, secretária?..., ou apenas um "pastelinho-de-nata", uma "boneca", um...
-Por favor, Clotilde! -rogou Miranda, cor-
tando-lhe o discurso.
Ela sorriu e voltou a galhofar com a verdade:
- Fique-se com esta, Miranda: fiz o 7.1 ano de Ciências no Maria Amália com média de 15; fui o número 1 do curso de enfermagem; e na minha família somos todos um bom bocado "pilulas", mas sabemos onde se deve pôr os pés e, sobretudo, trazer a cabeça!
-Mas eu não pretendi de modo algum diminuí-la, por amor de Deus! Juro-lhe que não me
passou pela cabeça que fosse enfermeira nem
tão-pouco pensei no que pudesse ser ou deixar
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de ser. Tenho pensado mais em mim do que nos outros, creia! Quando perguntei se era enfermeira também era capaz de lhe perguntar se era almirante. Bastava que você tivesse dito que o era! 1
- Está bem, não se zangue - orvalhou ela a sorrir, desarmando-o.
A música entretanto parara e recomeçara, e eles a dançar. Miranda nem deu pelo facto - tal o grau da sua turbação após o conhecimento do que se passava com Albina. Mas Clotilde, com outro estofo psíquico e uma filosofia mais sólida, revestíu-se do ar frívolo que parecia caracterizá-Ia e desferiu sobre o companheiro esta alfinetada coquette:
-Com que então você não sabe nem gosta de dançar, nem tão-pouco pensa na dança. Mas já dançou pràticamente de tudo e durante a paragem da orquestra nem sequer de mim se arredou! Hum, hum ... Vá lá a gente fiar-se nos homens!
Apanhado mais uma vez de surpresa, Miranda meteu os pés pelas mãos e saiu-se com esta muleta, que ele próprio viu estar rachada:
-Quer que a leve ao lugar? ... -Quero que continue a dançar comigo, se isso não lhe desagrada!! -E assumiu aquele ar de momice tema que ele já lhe vira, antes de
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irem para o aeródromo, quando chegou ao pé da carrinha e decidiu desbaratar Rodrigues.
Míranda pôs o jogo na mesa: -Você confunde-me. Concordo que me atrapalha. Mas conseguiu que eu passasse a gostar de dançar. Não espere que eu me canse ou desista. Já -vi que para a bater tenho de me servir do físico. Da única arma em que sou mais forte do que você, se é que o não sou também na pertinácia. Prepare-se para me pedir misericórdia!
Ela sorriu, sem dúvida tocada, mas fez fogo doutro ângulo, para o ar, flanqueando-o sem remissão, outra vez ainda:
-Você é muito modesto, não lhe parece? A pergunta foi articulada num tom de tal modo sério, tão rica de simpatia e conteúdo, que Miranda ficou de novo sem norte -pois acabara de se enaltecer. Clotilde, claro está, passou por cima da jactância. Mas como ele, apesar disso, ficou a oscilar, ela acudiu-lhe:
-Escusa de responder. É, de facto, bastante modesto. Penso que é também uma boa pessoa. Um homem puro, isento de maldade. Atrevo-me por isso a pedir-lhe um favor. Pode ser?
-Desde que esteja nas minhas mãos ... -jurou Miranda. Mas como ela não prosseguisse imediatamente, sentiu-se invadido por uma
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sensação dolorosa de ansiedade, receando não sabia ao certo quê. (Como não lhe passara pela cabeça que a enfermeira pudesse ter dançado com ele para atingir este vértice promissor, interpretou erradamente o ar de mistério que parecia nimbar a expressão dela -julgando por instantes ver Lucila diante de si). Estremeceu. Clotilde fitou-o então nos olhos, sorriu ternamente, e segredou-lhe com doçura:
- Quando a música parar, pegue-me no braço ao de leve, fale, sorria, diga o que lhe vier à cabeça, enfim ... mostre-se o mais divertido que puder. Mas uma vez no lugar, aproveite a primeira deixa e meta conversa com a Albina. Proceda como se entre nós apenas se houvessem discutido bugiarias: dança, má-língua, frioleiras. E mal a orquestra recomece convide-a para dançar. Mostre-se alegre. Que ela não suspeite do que eu lhe disse. Caso contrário não dançará mais. Lembre-se de que é novo na Jamba e ainda não conhece os nossos podres. Para si todos nós somos arcanjos, sereias, querubins ... Entendido?
Miranda limitou-se a baixar a cabeça. Nenhum deles abriu mais a boca por minutos. Mas apenas a música se extinguiu deram início à comédia, qual deles mais bobo, mais frívolo, mais desmiolado.
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Tudo correu pelo melhor. AIbina aceitou o convite de Miranda e Clotilde foi dançar com Freixo.
A conversa do metropolitano com a loira foi assambarcada por ele. Retomou o tema da sua "falêncía" em ar de troça, atribuindo tudo à sua patetice (o que de certo modo era de facto verdade mas ele só então o reconhecia em toda
a sua profunda nudez) e narrou-lhe depois, vírgula por vírgula, a catástrofe do noivado. Não admira que tenha atraído a simpatia, o interesse, toda a atenção de Aibina. A verdade tem poderes sobrenaturais. É cósmica e incorruptível -por mais que isso fira, acidule, traia aqueles que outra coisa não fazem além de traí-Ia, tentando corrompê-la, degradando-se- corrompendo os mais. É não querer sol no pomar, só para não ter de o regar.
As peças foram-se sucedendo às peças e eles nos braços um do outro.
Quando por fim Miranda se calou AIbina fez este comentário:
-Foi tudo realmente mesquinho, reles, sórdido até, e portanto doloroso. Mas há um ponto que você não esclareceu, Miranda. Um ponto sobre o qual me parece ainda não fez verdadeira luz. Diga-me, com toda a franqueza, a mão na
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consciência e os olhos em Deus: você amava-a? ... Amava-a de facto? ... A ela por ela? A ela só? ...
0 primeiro impulso de Miranda foi para protestar: para lhe dizer que sim; que em toda a sua vida jamais amara a alguém como a Lucila. Mas a sombra da outra, daquela que nada pedia, que nada pediu a não ser amor, perpassou silenciosa entre os dois e os seus lábios não se abri-
ram.
Os olhos de Albína, pousados nos seus, eram como orvalho de Outubro sobre chanas queimadas. E os segundos foram ardendo ...
-Já concluiu?... -volveu ela num sopro quase maternal.
-Parece que sim ... -E então? ... -Creio que nunca, de facto, a amei.
0 silêncio não se admirou. Nenhum deles se comoveu. Mas era tudo tão "absurdo" que ele teve de ir mais além:
- Juro-lhe, contudo, que não sabia. E no entanto eu estava certo de que a amava! ...
Albina sorriu: um sorriso triste, despido, nú!, rico de compreensão. Iluminou-o assim:
-Acha que vale a pena acorrentar-se a um destino de vingança? ... De ódio, no fim de con. tas, quando o Senhor nos diz que único fim da vida é amar?
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Miranda não respondeu. De olhos nos olhos dela foi-se aferindo e dançando. Lucila, a outra, todas as outras, eram fantasmas. Meros fantasmas! ... Quimeras passadas, fogos-fátuos de todo irreais.
A música interrompeu-se e alguém anunciou que o administrador da Companhia, senhor engenheiro Eurico, Gonçalves Corvo, ia usar da palavra. Pedia-se a máxima atenção.
0 silêncio alastrou e por fim uniu. Corvo, muito solene, fez então o discurso a que atrás se fez referência, com o êxito e as repercussões mencionadas.
Foi a vez de Albina escorregar: -Muito simpático, o Professor, não acha? Miranda assentiu. Mas a ausência do geólogo voltou a instalar-se-lhe no pensamento e aliciou-o nesta suspeita que os lábios traíram a meia voz:
-Oxalá por detrás de tudo isto não agonize outra verdade ...
AIbína mirou-o com surpresa. Vislivelmente chocada não teve mão em si, e lamentou:
- Não o supunha capaz de má-fé ... -Não se trata de má-fé, creia. Sob muitos aspectos sou incorrigIvelmente crédulo e ingénuo. Mas nuns quantos, em que me desiludiram de todo, nã o é fácil enganarem-me. Estou cansado de ler e ouvir palavras assim. A verdade
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tem outro estilo. Creia! Não acredite que um programa de tamanho aparato, com tanto cerimonial, tão discutido e revisto (como ouvi) fosse alterado de um momento para o outro só "por amor dos nossos camaradas dos turnos da noite". Amor de quando!? ... Albina, diga-me, com toda a franqueza, a mão na consciência também, acredita no amor à primeira vista? ...
E como os olhos dela, boiando nos seus, oscilaram por instantes, batidos pelo sopro de não sei que brisa imaterial, ele mergulhou na
pergunta e estremeceu. Os olhos de Albina, muito sérios agora, puros, ternos, muitíssimo suaves, pareciam reflectir silêncios de abóbadas, vozes da terra, hinos do mar ... E abrindo-se em mais luz, iluminaram, cegando-o:
- Acredito, Miranda.
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Batuques, batuques! ...
Tange-ta-tangue, tange-ta-tangue, tange-ta-tangue, tange-ta-tangue ...
Vozes da Eternidade ... do céu, da terra, do mar.
Hip!, híp@' hip! ... Urra! ... Ué-ué...' ué-ué...' ué-ué ...
Minhas Senhoras e meus Senhores, façam favor de se sentar.
BATUQUES, BATUQUESI ...
Depois de terem esquadrinhado toda a margem direita do Cuanja a partir da foz até à mulola da nascente, Januário mandou subir pelo jazigo Cateruca, dar a volta, descer, e atravessar para o vale do Cului, fazendo o jipe contornar a albufeira da barragem até próximo do êncontro dos dois rios. 0 terreno foi todo espiado palmo a palmo, ao longo e ao largo das picadas, em busca de rastos da 75-75, sem o menor resultado positivo. Olhos vítreos de gaselas, pequenos felinos, canídeos e mais passeantes da noite quebravam de quando em quando a monotonia da busca. Os aldrabões eram já raros. Fartos, porventura, teriam voado para as árvores ou escolhido outros poisos, abandonando os caminhos.
Era tarde. Começavam a estar exaustos. Sobretudo desanimados. Januário ordenou então ao condutor que avançasse de novo pelo Cuanja, a fim de atravessarem no dique-norte do Laranjeira e se dar a pesquisa por finda.
Quando dobravam para a albufeira o lan-
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ternim, de bombordo imobilizou-se num objecto flutuante, que pairava à tona da água, junto ao talude.
- Que é aquilo? - perguntou Almeida, o condutor, chamando a atenção do chefe do grupo.
- Hum! ... - fungou Januário Santos, fazendo tremer o facho luminoso sobre o alvo. Após longos segundos de quase indiferença e fatigada hesitação, acabou por ordenar ao 2." ajudante (um negro atlético) que fosse ver o que era: -Quissonde! Desce, e vê se consegues deitar a
mão àquílo.
Ágil como um gato, Quissonde pulou e escorreu pelo talude abaixo com a segurança e a ligeireza dos caprinos. Ao aproximar-me da linha de água, no entanto, sentindo os pés a afundar, hesitou, e depois imobilizou-se.
-Está mole... -gemeu para cima, dando um passo à rectaguarda, contrariado, a sacudir lama cor de sangue ora duma ora doutra bota, empapadas até ao cano.
-Descalça-te! -ordenou o chefe. Pés e mãos à compita, Quissonde subiu num ápice e tirou as botas. A seguir despiu as calças. E armando-se depois com a pá do jipe, desceu outra vez, de novo a escorrer. Chegado ao fundo, entrou na água -lama por cima das rótulas e
líquidos vermelhos até à cinta -, e ao fim de
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aturados esforços lá conseguiu :varar o objecto na borda.
- Imbamba! ... -grunhiu, à vista da "coisa". -Que tem? Quissonde jogou fora a pá e estendeu a mão: -Um saca! -e apalpando o conteúdo anunciou o resto: - Tem um bola ... e latas ... e mais. Coisas de branco! (0 volume continha efectivamente conservas
e uma grande bola de borracha: avios para o banquete e um presente de Salviano para o filho esperado: -um rapaz, segundo ele. dizia! A bola impedira a imersão).
Ao deslocar-se para agarrar a saca, Quissonde pisou o que quer que fosse, alongado, simultâneamente duro e mole, que por pouco não o fez cair. Desembaraçou-se por isso da presa, e
recuando um pouco mergulhou os braços na lama e ergueu o que pisara. Mal viu o que era, fugiu, talude acima, desvairado, sem fala -um pavor fúnebre a esgasear-lhe os olhos e o corpo húmido a tremer.
Os farolins acompanharam todos os seus movimentos. Ninguém, contudo, os interpretou devidamente.
-Que foi, Quissonde?!... Giboia?... Jacaré?...
- interrogou Januário, surpreendido com as
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reacções do auxiliar, que era dos mais valentes * experimentados dos seus homens.
-Aqui não há jacaré! -explicou Raimundo, * outro ajudante da viatura, um transmontano seco, de falas mansas e ossos quadrados. - Aquilo é mais lama do que água. 0 jacaré não gosta disto ...
Imóvel na borda do talude, entrementes, Quissonde não descongelava os olhos do atoleiro donde se escapulira. Nú da cinta para baixo, todo ele era lama vermelha. o próprio sexo mal se lhe notava.
-Que foi, Quissonde! -berrou Januário, obrigando o rapaz a acordar.
- Cazumbil ...
- Qual cazumbi, qual minha avó torta! Que viste tu, Quissonde
- Cazumbi, sô Januário! ... Um pau ... e virou perna de gente com bota no pé! ... Acolá! ... Eu viu! -E com o braço estirado, preso ao chão pelo terror do sobrenatural, estarreceu mais ainda, apontando para a água.
-Raimundo! Descalça-te e vai ver o que é! -ordenou Januário para o transmontano. -
Espera. Passa um cabo pela cinta ... Não vá o diabo tecê-las.
Raimundo assim fez. Almeida largou o volante e deu uma ajuda ao camarada. Quando o trans-
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montano principiou a descer, Januário espetou os dois farolins nos olhos do preto, e com meia dúzia de impropérios forçou-o a acompanhar o
parceiro. Dois passos à rectaguarda, Quissonde lá foi escorrendo.
- Em que sítio é, Quissonde? - interrogou Raimundo ao aproximar-se da base.
-Ali!... No fundo ... Raimundo deu mais uns passos e mergulhou as mãos ... Mal sentiu o que procurava, ergueu-o com jeito -pois no seu espírito luzira já o pior. Uma bota primeiro, e uma perna a seguir, vermelhos, da cor da lama, ficaram à vista dos quatro. Soltou um assobio e deixou tombar o achado. Mergulhou depois as mãos em busca do par. Lá estava. "Ê ele!", exclamou a meia voz, pensando no geólogo.
-Januário! -rouquejou para cima. -0 tal doutor está aqui. Tiramo-lo?! ... ou vai-se avisar?
- Diabo! ... E se ele ainda não morreu? ... Dizem que há quem se salve mesmo depois de estar ... sei lá quanto, debaixo de água... _ Se ele aqui fica ... amanhã é o diabo! -agravou Raimundo. -Se fosse a ti levava-o já para o hospital. Num há nada a perder ... Vai ser preciso tirá-lo ... 0 melhor era já.
Januário hesitava. A determinação de Rai-
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mundo, entretanto, fortaleceu-lhe aquela ideia absurda (que lhe pareceu luminosa) de tentar a recuperação do afogado. Desfez-se de hesitações * deu ordens com firmeza:
- Puxai-o pra fora! Depressa! Almeida! Larga * corda e vai ajudar. -Vamos! ... Gtizol Almeida desceu como estava. Da base do talude, melhor, da linha que parecia sê-lo, subiu nova confirmação do transmontano:
- ]É mesmo o doutor, Januário. Barbas, bigode, cabelo, fato, cabeça grande ... É ele todo!
A lama transfigurara o sinistrado. Embora o geólogo fosse grisalho e Salviano um homem novo, como eram de compleição semelhante e
usavam barbas do mesmo tipo, além de botas, calças e camisas por assim dizer iguais, a confusão era inevitável, dado suporem o guarda com a família, e o cientista "ter desaparecido". Não pensaram sequer na carrinha em que ele "saíra". Não obstante, se em vez de ter ficado aos lanternins, Januárío tivesse também descido, por certo não alimentaria optimismos sobre as possibilidades de salvamento do afogado. Só quando o viu em cima, na borda do talude, e foi ajudar os companheiros a carregá-lo na viatura, mediu a situação: da boca do morto escorria um líquido vermelho espesso: -papa rala de hematite, água, sílica ... e pouco
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mais! Era todavia- tarde para recuar. Redobrou de afinco e frenesi. Quanto mais depressa chegasse ao hospital, melhor. Que desse por onde desse! Ele pensara que fosse ainda possível salvá-lo!
0 médico de serviço, Dr. Raul Lezaola, mal viu o sinistrado, não teve a sombra de uma dúvida sequer: "Está morto e bem morto", disse de si para si. Mas em face da narrativa de Januário, do seu ar preocupado, da expectativa envolvente e de razões bastante mais fortes para si, como homem e cidadão, além de médico, promoveu a escrupulosa observância das medidas que o caso requeria -a mais eficaz das quais foi a limpeza do " geólogo".
Como o jipe havia chegado ao hospital com todo o recato, e ninguém mais, lá fora, além dos componentes da patrulha, conhecia a "verdade", fixou ali o pessoal de serviço e dirigiu-se a toda a pressa para o Jango.
A consternação e a própria surpresa, apesar dos receios preexistentes, foram enormes - e
Sereia não escondeu o abalo. Serrão havia estado ali, pouco antes, a informá-lo da total ausência
e rastos suspeitos, e que o facto devia querer dizer, pura e simplesmente, que o Dr. Castro Raposo se ausentara por estrada, dentro de qualquer plano muito seu, pelo que teria comido em
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Vila da Ponte, no Dongo, em Cassinga, ou mesmo Tchamutete, visto conhecer gei@èricamente a região e ter declarado que desejava andar "sem apêndices". Parecia-lhe, pois, não haver lugar para receios sérios - o que não impediria que as pesquisas continuassem até ele ser localizado. Isto confortara o Professor. E de repente
- a verificação da morte do cientista!
Mena deu ordens para irem procurar o Comandante e perguntou ao administrador se quena ver o cadáver. Sereia declinou o convite. Fatigado, demolido como estava, disse que preferia deitar-se quanto antes. Fez por isso as despedidas e recolheu aos aposentos.
Ninguém pensou mais na 75-75. Só quando Serrão apareceu e perguntou por ela o facto ganhou relevância. Não foi todavia necessário tomar providências para a sua pesquisa na lagoa: os médicos, entretanto, haviam verificado que o morto era um homem novo; que não se tratava do geólogo; que, segundo o testemunho dos enfermeiros, seria um guarda-auxiliar a quem havia sido concedida uma licença especial de três dias.
- 0 Salviano! - concluiu Serrão, já presente, correndo emocionado para o hospital.
Os demais suspiraram de alívio.
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Não seria bom informar o Professor?
- sugeriu alguém, no acume da descontracção.
- Acho que sim. Ele ficará contentíssímo!
- E se já está a dormir?...
- Calma! - ponderou Corvo. - Ainda não sabemos do Dr. Raposo.' A situação é "exactamente a mesma" de há meia hora atrás. As buscas têm de prosseguir sem descanso.
Olharam uns para os outros. 0 reparo apunhalou todas aquelas euforias, -de facto precipitadas. E Corvo, medindo melhor ainda a parcela "significativa" da conjuntura, perguntou ao director-chefe das minas:
- Alguém viu se o Dr. Raposo estava, ou não estava, efectivamente, no seu apartamento?
- Bem..., eu não posso jurar! ... Disseram-me que verificaram "que a chave não estava por dentro"! Deduzi que teriam aberto a porta ...
- abonou Falcão Mena.
-0 Serrão? -Deve ter ido para o hospital. 0 Salviano, isto é, o guarda que morreu afogado, era um dos seus predilectos. Ele e a D. Guilhermina creio que até já foram aliciados para padrinhos de um filho dele, que está para nascer ...
- Quem tem as duplicatas das chaves dos apartamentos? - cortou Corvo, repondo eficiên-
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cia na conversa e afastando para longe o sentimentalismo.
-0 encarregado do hotel.
- Mande chamá-lo, Mena, se faz favor. E que traga a chave do Dr. Raposo.
Corvo, Mena, Serra de Oliveira, médicos e mais componentes do grupo aguardaram em silêncio o regresso do mensageiro. Foi uma pausa curta:
- Mas é lá possível que ele esteja no quarto?!
- aventou alguém, da parte menos iluminada do grupo, interpretando o sentir da maioria.
- Pode estar a dormir... -sugeriu outro, aderindo à defecção.
- 0 Serra de Oliveira diz que ele mal dorme! ...
- Essa lhes posso eu garantir. -E então a carrinha? ...
0 encarregado do hotel surgiu, e o diálogo secou.
-Vamos ver o apartamento. Era por onde deviam ter começado! -censurou Corvo a sorrir, moendo receios imprecisos, sereno, contudo,
nos ares e na voz.
0 pequeno cortejo deslizou em silêncio. Uma vez no destino, o encarregado do hotel recebeu ordem para abrir a.porta. Nenhuma chave por
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dentro, efectivamente, e ninguém na divisão da entrada.
-Bem, vamos passar uma'revista... -decidiu o mesmo engenheiro a seguir, muito sério já. -Acompanhem-me, façam favor.
Entraram. Castro Raposo jazia de bruços, meio-atravessado na cama, sem nada sobre si. Olharam uns para os outros com interrogações, desculpas e vanglórias disfarçadas.
-Dr. Lezaola, faça favor... -articulou Corvo, convidando o médico a avançar e apontando para o geólogo.
-Está quente..., e, segundo creio... -a
pausa arrastou-se por demorados segundos opressivos- a dormir!
-Mas... -ouviu-se alguém estranhar.
0 médico observava agora os olhos do cientista, sem fazer caso dos seus movimentos desconexos. Pinto Castro, entretanto, avançando pelo outro lado da cama, foi direito à mesinha de cabeceira, atraído pelo frasco paralelepipédico de onde o geólogo havia retirado as cápsulas que tanto lhe custaram a engolir, conduzindo-o embora, em compensação, à descoberta da água potável e do gelo que lhe permitiram confortar-se com o uísque.
-Deve estar sob os efeitos disto -declarou
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Pinto de Castro, exibindo a droga para os acompanhantes.
-0 que é? -Nembutal. Um suporífero ... Resta saber quantas cápsulas engoliu. Em doses pequenas é inofensivo ... Mas a Mary1in Monroe suicidou-se com este pózinho amarelo!
-0 coração está em ordem -ouviu-se Lezaola tranquilizar. -A respiração é normal ... Mas a boca cheira a uisque de verdade!
-Então não há perigo! -mofou Pinto de Castro. -Dorme a dois carrinhos. -E soltou uma risada galhofeira.
Lezaola sorriu também, baixando e erguendo a cabeça, em sinal de confirmação.
Alívio ensolarado. Sorrisos e comentários em voz alta.
Castro Raposo entreabriu os olhos e pôs-se a remirar a assembleia, como quem não está bem certo do que vê nem seguro de ter acordado:
-Que raio de coisa é esta?! -Descanse! -sossegou o médico. -Como o senhor Doutor não apareceu para jantar, e já passa das duas da madrugada, viemos saber se estava bem.
-Tivémos de lhe forçar a porta! -gracejou Corvo.
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Já passa das duas da madrugada?! ...
- contra-interrogou o geólogo, com ar incrédulo.
- ]@ verdade! - confirmou Pinto de Castro. -Passa mesmo das duas e meia. São duas e trinta e cinco. Veja!
- Eh! ... Como diabo foi isto?!
- 0 senhor não tomou este pózinho amarelo antes de se deitar?
Castro Raposo fixou os olhos no frasco que o médico lhe pôs na frente do nariz.
- Tomei ... Estava nervoso..., e como durmo mal ... Mas foi um médico amigo que me aconselhou isso ... E garantiu-me que era inofensivo!
- Depende. Quantas cápsulas lhe aconselhou? -Uma a duas ...
- E quantas tomou o doutor?
- Deixe-me ver ... Três! Foi isso: três cápsulas! Como estava excitado .... pareceu-me que seria melhor reforçar um pouco a dose... -e fitou em Pinto de Castro uma interrogação penetrante.
-Descanse. Não houve qualquer novidade. Mas para a próxima tome só duas, como lhe recomendou o seu amigo.
Sorriram, trocaram algumas explicações mais,
e o geólogo narrou o que se passara com o banho, o álcool, as cápsulas, a água potável, o gelo ..., e por fim o uísque. Houve risos, gracejos, lara-
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chas de parte a parte -e manifesto embaraço dos clínicos, visto não terem sido capazes de engendrar qualquer explicação convincente para
* adormecimento repentino do cientista (de que
* nembutal não era responsável), tanto mais que Raposo rejeitara vigorosamente as "culpas" que os médicos pretenderam atribuir ao cansaço, ao uísque, aos pachos de álcool, e a não sei que sinuosos desencadeamentos psíquicos, mais ou menos obscuros, tão fugidios como falazes. Os leigos, por outro lado, chegaram à conclusão de que não fora devido às manchas do Sol, nem tão-pouco ao minério da água do chuveiro -ou sequer do daquela que bebera por engano - antes de saber que era imprópria. Mas ninguém se atrigou. Pelo contrário: ficaram excelentemente dispostos - galhofando quase sem parar.
Quando iam para se despedir Castro Raposo fez ver a Falcão Mena que o seu "dia" não estava "completo": que ainda não tinha "acabado":
-Meu caro, avenha-se como quiser. Estou cheio de fome. Quero comer! Se não tivesse a "beleza" da água no "carnaval" em que se encontra, eu não teria faltado ao banquete! 0 culpado é o senhor! Tinha obrigação de, pelo menos, prevenir os amigos; ou mandar pôr avisos de precaução nas portas das casas de banho: "Cuidado!
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Se deseja lavar-se, sirva-se dos garraf6es ..., ou vá à sanzala! "
-ou: "Use pachos de álcool! " -contribuiu Serra de Oliveira.
Riram de novo, e Mena descarregou as culpas para cima do colega, que era o responsável directo por tudo quanto dizia respeito à engenharia civil! Serra de Oliveira fez como ele: atirou com a "batata" para as mãos de Corvo, juntando-lhe "calor" da sua própria cozinha:
- Há mais de dois anos que ando a barafustar e rebarafustar com o Corvo por causa da estação de tratamento. Mas como ele está em Lisboa, e a água de lá é de confiança a gente que se amole!
Corvo sorriu. Um sorriso da cor do líquido das canalizações: aguado, ferroso, e amarelo também. Mas como lhe pareceu que não valia a pena alijar as responsabilidades mais para "cima", modulou o vozeirão e entrou em cena pela via da farsa:
- A culpa, meus caros amigos, é de Gil Vícente!
Ninguém lhe encontrou piada... - mas sorriram. Falcão Mena aproveitou a sota para se pôr ao largo: disse que ia mandar fazer um bife com batatas fritas e ovos, para o Dr. Castro Raposo.
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-Com vinho branco gelado, pão!, e azeitonas de Moçâmedes!, -acrescentou o geólogo em ar de exigência.
Mena disse que sim, e o aguaceiro passou. Chistaram e riram de novo (sem pesadelos nem mais gindungo) e a seguir despediram-se, indo os "assaltantes" para o jardim fronteiro, onde a conversa reanimou, agora a desfrutar as facetas cómicas dos banhos de Castro Raposo -muito em especial as "tragédias" dos pachos com álcool. Quatro ou cinco minutos mais tarde, Mena estava de volta. Na primeira deixa jogou contra a corrente, reabrindo com o seu naipe dilecto:
-E o Professor? Não seria melhor a gente ir avisá-lo? Como o "morto" "ressuscitou"! ... E o "desaparecido" não desapareceu! ...
- Não ... ]É melhor deixá-lo dormir ... Ele estava arrasado! Além disso, imaginem que ele também tomou nembutal, ou outra droga do gênero! - contrabateu Menezes, o outro médico das minas.
Nembutal ... ou banho de pachos! - fintou Serra de Oliveira.
Novas risadas e mais chistes com intenção. A certa altura Corvo espreitou para o relógio e crucitou a recolher:
-Passa das três horas! ..., meus caros ami-
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gos! Vamos mas é à deita ... que o programa de amanhã é pior que o de hoje. E quanto ao Professor ... deixá-lo dormir.
-Amanhã, vírgula! -pontuou Pinto de Castro.
-Está bem ... De hoje! .... seu puritano! Despediram-se e recolheram aos apartamentos.
Serrão, entretanto, depois de verificar que o morto era realmente o pobre Salviano (seu quase-compadre) deu ordens para a interrupção das pesquisas, e, logo que fosse dia, para a
recuperação da motoreta. Despachou também um rádio para Tchamulete (a fim de confirmarem se a carrinha em que o engenheiro Roxo lá chegara era de facto a 75-75) e depois encaminhou-se para os seus aposentos.
Ia desolado. 0 drama do auxiliar atingira-o duramente. Por mais esforços que fizesse não conseguia libertar-se de um torturante sentimento de culpa insidioso, naquela hora deveras opressivo: Se tivesse deixado o rapaz seguir conforme autorizara, e fizera registar na guia (acusava de si para si), o acidente não teria ocorrido.
Quando abriu a porta quase arrastava os
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pés. A mulher esperava-o, recostada num cadeirão. Mal ouviu o ruído da fechadura, ergueu-se e foi ao seu encontro:
-Sempre é ele?... -quis saber D. Guilhermina.
-É ... Só a mim é que acontecem coisas destas1 Só a mim! ... Se o tenho deixado ir às duas horas, como devia, ainda estava vivo.
-0 homem!, que culpa tens tu de ter precisado dele? Não o retiveste por razões pessoais! ... Por conveniência tua! Que culpa tens tu do que lhe aconteceu?! ...
-Tenho. Tenho toneladas!, montanhas de culpa! ... Se ele fosse um azelha!, uma azêmola!, um estupor! ... como há tantos para aí! .... eu
não o teria retido. Percebes? Não o teria retido! -explodiu com veemência.
0 homem, não digas isso! Se ele fosse uma azêmola tu nunca lhe terias dado a licença. -É o destino ...
E como Serrão não descongelasse da postura em que se imobilizara, D. Guilhermina empurrou-o para a casa de banho:
-Estás coberto de pó. Vai mas é tomar um duche. A água está quase boa. Vamos... -e continuou a empurrá-lo docemente.'
Serrão deixou-se conduzir. D. Guilhermina mal o viu de novo em si paramentou o diálogo:
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-Coitada mas é da mulher ... Vai ser pr4-, ciso olhar por ela. E logo agora ... 0 filho não pode tardar ... Se é que já não nasceu! LemL bra-te de que o miúdo é nosso afilhado! ... Desta vez não me venhas lá com os teus escrúpulos do costume. Vais ter de lhe arranjar uma
ocupação na Companhia '! Na Companhia ... ou
onde quiseres! Onde ela possa olhar para o futuro com relativa segurança. Pobre Maria do céu! ...
Serrão sorria. A mulher falava como o Salviano: como se ele (pobre de si, também) fora um mago, e o bebé que estava para nascer .... alguém, já deste mundo! ... Um ser com vontade, alegrias, dores, anseios, desilusões... -Ela também (e disso o marido não sabia) tinha comprado uma bola de borracha para lhe oferecer!
Anacleto Míranda não pôde acreditar que o afogado fosse o Dr. Castro Raposo. Não sabia explicar porquê. Sentia que não era ele! ... Primeiro, de uma forma obscura, porém dominadora; depois, com uma certeza quase plena, ao
ver o cadáver:
Apesar de tantas semelhanças flagrantes, faltava-lhe algo: um quid indefinível, fluido miste-
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rioso..., halo familiar... - não obstante a sujidade que o conspurcava, as transfigurações, o seu estado patético repugnante.
Ainda lhe ocorreu se tal "ausência" não seria a própria "vida". Esse "nada" transcendente que nos irmana e destrinça; que nos faz "ser" e "não-ser"; que não fazemos ideia do que seja, do que é! ..., e porque existe! ... - se acaso existe.
Afastou porém tais pensamentos. Mil pormenores do vestuário, do todo, do próprio rosto,
- apesar de infiel e desabitado - consolidaram o seu pressentimento, as suas suspeitas, conferindo-lhe aquela certeza consoladora, de certo modo pungente. Não ousou, contudo, transmiti-Ia a ninguém. 0 receio de um engano traiçoeiro (ainda possível), fê-lo encerrar-se numa ensimesmação angustiada - até os efeitos da limpeza testemunharem decisivamente a favor do que sentia. Só então se abriu de todo com Clotilde, e, eufórico, esquecendo os mais, partiu aliviado.
Não foi longe, porém. Aquele rebutalho humano, graças a Deus!, não era o seu amigo. Mas, então .... que seria feito dele realmente? ...
AIbina - a quem transmitira aquela primeira suspeita avassaladora, e prometera dar parte do que descobrisse, sumira-se-lhe do pensamento. Rodrigues ficara de levar Clotilde a casa e de
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o conduzir à camarata. Fora encarregado por Serrão de um avio urgente e prometera não se demorar. E ele, Miranda!, abalava sem dizer "água vai!"
Regressou ao hospital e perguntou à enfermeira se não se importava de ficar só. Ele iria a pé. Apetecia-lhe passear ... Espairecer um pouco. Tinha esperanças de que, entretanto, houvesse noticias do amigo .... e preferia esperar.
Clotilde ouviu-o em silêncio. Meditou ... E fitando-o bem nos olhos deu voz ao coração:
- Vou consigo. No fim de contas eu vim aqui só para lhe facilitar a entrada. Importa-se de me acompanhar? Quando o Rodrigues vier saberá que eu já parti. Mas veja lá! ... Não o incomodo? ...
- Por amor de Deus, Clotilde! Só me dá prazer ...
- Então espere aí. É só um minuto. Vou deixar um recado ao meu colega Magina. -E correu para o interior.
Saíram. Por sugestão de Miranda principiaram a descer, de modo a contornarem os hoteís, na esperança de que algo mais, entrementes, houvesse lançado luz sobre o paradeiro do cientista. Quando subiam avistaram um grupo silencioso marchando para os apartamentos. Tiveram a premonição do que ia acontecer. Para
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não darem nas vistas subiram um pouco mais e depois desceram. Não tardou quQ adivinhassem o essencial:
Os "assaltantes" entraram e ficaram! ... Castro Raposo estava, pois, ali! -Mas, como? ... Que lhe teria acontecido?
Como os minutos se sucedessem aos minutos, e ninguém, lá de dentro, arredasse pé, foram-se aproximando. Outros curiosos, entretanto, rondavam também as proximidades.
0 facto anímou-os. Um pedaço mais tarde Clotilde deu um chuto na vergonha e foi espreitar. Aproximou-se da janela, pé ante pé, e colou o rosto à vidraça. Não viu Castro Raposo. Mas, pela atmosfera, pelo todo, pelo ar dos "assaltantes", deduziu o principal: o geólogo estava ali, possivelmente no leito - e não devia encontrar-se muito mal, pois todos, lá dentro, riam a bom rir.
Quando ia a retirar-se alguns curiosos menos afoitos abordaram-na com interrogações. Deu-lhes parte do que observara. Entrementes, Miranda havia acorrido também e não precisou que ela repetisse o que já contara. Clotilde, no entanto, não teve mão em si:
Olhe, estavam todos a rir. Como se o tivessem apanhado numa ratonice qualquer ... Talvez
a cozer uma piela..., ou coisa assim! - e riu com prazer. Como o riso de Miranda lhe soasse
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a rachado, temperou a garridice: - Ou talvez não..., pois era ele, ou alguém junto dele, quem falava! Deve ter adormecido ... Ou não esteve para se ralar com a festa ... Eu sei lá! Olhe!, morto não estava. Nem por certo doente.
-Ainda bem -suspirou Miranda por fim. Subiram depois em silêncio. De repente o mestre-de-obras lembrou-se dos antecedentes que a levaram ao hospital e a seguir ali. Fez alto e perguntou com ansiedade:
-Não quer voltar à enfermaria? Pode ser que o Rodrigues ainda não tenha chegado ...
-Não. Prefiro ir a pé. Também,preciso de espairecer. Vamos indo. A noite está abafada ... Ufei Desconfio que a chuva não tarda aí.
-A chuva?! ... Com este calor? -Exactamente por isso. Retomaram a marcha em silêncio. As vozes da noite enchiam a atmosfera e no céu não luzia uma estrela. Ao longe, no entanto, a sul, a norte, * leste... -relâmpagos intermitentes descreviam * horizonte, pincelando nuvens carregadas. Ao virarem para o bairro 'onde ela morava, Clotilde pôs termo à meditação:
- Estou-lhe muito grata pelo que fez pela AIbina, Miranda. Há muito que a não via tão alegre; tão feliz; tão satisfeita! Você foi muito gentil. Muito compreensivo! ... Ela merecía-o. É uma
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rapariga excelente: uma rara amiga verdadeira! Nunca vi criatura assim: mulher tão desprendida e leal!
Miranda ia também a pensar na loira. Aquela comunhão de pensamentos perturbou-o. Parecendo-lhe que devia dizer qualquer coisa também, retribuiu desta maneira:
-Acredito que seja como diz. Mas, quanto a
mim, você engana-se Clotilde. A Albina é que foi amável comigo. Quase lhe contei a minha vida, mês a mês, desde que nasci... - E após uma suspensão, reforçou: -Não me lembro de serão como este..., nem de pessoas assim! ... Sobretudo como você e a Albina!
- Deixe-se disso! -escarneceu Clotilde, para não trair a emoção.
-Não estou a fingir, Clotilde. Nem sequer a
exagerar. Gostei imenso de as conhecer. E também, devo confessá-lo, do Rodrigues ... Sabe?, este, nas primeiras impressões, enganou-me. Por baixo daquela frivolidade superficial há um mundo insuspeito de compreensão. É um rapaz generoso. Talvez um pouco infantil ... Mas bom, segundo creio.
A resposta dela confundiu-o: -Gostou realmente assim .... da Albina? A pergunta foi de tal modo inesperada que
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ele não teve tempo de pensar: exteríorizou o
que sentia:
- Imenso! -Ainda bem. - E segundos a seguir, esta revelação inesperada: - Ou eu me engano muito, ou ela apaixonou-se por si ...
E não disse mais. Miranda ficou mudo. Sentiu-se atordoado e nem protestou - como lhe pareceu desejar. Sabia que tinha agradado à companheira, mas, nem de longe nem de perto, lhe passara pela mente semelhante possibilidade. Não encontrou que dizer. E medindo o alcance da afirmação de Clotilde, que (não sabia porquê) de repente lhe pareceu verdadeira, mergulhou na realidade, e viu que algo daquele fogo também o tocara. "Que fazer? ... ", ouviu? dentro de si, perguntar a si mesmo. Mas o mais perturbante não era ainda isto: o conhecimento da doença de AIbina chocara-o; quase o demolira; fora, sem a menor dúvida, o que o levara a dançar com ela. Mas, a seguir, esquecera-se do facto. Esvaira-se-lhe por completo do pensamento. Perdera de todo o conteúdo emocional que o subjugara. E agora, olhando bem para si, auscultando-se .... era como se "aquilo" não existisse
- apesar de existir. Apesar de ser uma realidade. Uma sentença irrevogável sobre o destino de tão suave, tão doce, tão enternecedora
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mulher! ... Sim..., uma sentença cruel! -que ela parecia ter aceítado com resignação. Mas se tudo isto o confundia, mais confuso se tornara, ao notar, ao sentir que em vez de escurecer a sedução que dela rescendia, a iluminava
- engrandecendo-a. Sublimando-a! ... Exaltando em si, com veemência, o desejo, a loucura de lho agradar! -Quebrou assim o silêncio:
-Que faz ela? -Trabalha no laboratório. Na secção de análises ... P, agente-técnica de química.
Uns passos adiante, parou. E encarando a
amiga, perguntou-lhe a meia voz:
-Porque me disse você ... isso, Clotilde?
- Se quer que lhe diga ... não sei. Fugiu-me. Ocorreu-me ... -E ficou-se pela suspensão, retomando a marcha com os olhos perdidos em frente.
Silêncio outra vez. Os relâmpagos fusilavam agora a meia altura, desafiando-se por todos os
quadrantes. Era um espectáculo feérico; um festival só de luz; um sobreluzir alucinante! -Algo que Miranda nunca vira..., nem parecia impressioná-lo! Descerrou os lábios e franziu este comentário:
- Não creio que tenha respondido à minha pergunta. Muitas outras coisas lhe devem ter
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ocorrido ... além daquela, Porque só essa lhe fugiu?
-Porque sou amiga da Albína. A resposta foi quase violenta. Ele emudeceu. Não obstante, algo depois, Clotilde, mais intensa ainda, rouquejou:
-Por favor! ---, não me faça mais perguntas! Pare. Não vá mais longe! ... Não estou segura de ter feito bem .... ou maD, em lhe ter dito o que disse! ... Como você me pareceu..., como direi? ... um homem sério! ..., quis acabar com dúvidas.
-Confesso: não percebo onde quer chegar.
- Sabe o que ela tem, não sabe? - (Míranda baixou a cabeça). - Assim ... poderá orientar o
seu comportamento. Nunca a vi como esta noite. E fui eu, eu!, lembre-se disto!, quem o empurrou para os braços dela.
- Está a aconselhar-me a fugir?
- Por favor, Miranda! Pedi-lhe que não me fizesse mais perguntas. Não será você capaz de me compreender?
-Não tenho a certeza, Clotilde. Prometo no entanto meditar no que me disse e não lhe fazer mais perguntas.
- Obrigada. -Obrigado eu, também, Clotilde. Você é uma
criatura extraordinária. Admito que a Albina seja
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a pessoa e a amiga que descreveu. Não duvido. Você, no entanto, Clotilde, no mínimo, é, como ela ... Uma mulher como eu julgava que não existisse.
Não pronunciaram mais palavra. Os incêndios da abóbada afastavam-se pouco a pouco, desertando por todo o horizonte. As cigarras, os ralos, os grilos, os sapos - eternos cantores da noite principiavam a adormecer - e turbilhões apressados, de quando em quando, revolvendo os capins, zumbindo nos caminhos, corriam em rodopio, erguendo colunas de pó e detritos pelo campa fora.
Velada na penumbra da janela, Albina esperava-os. Viu-os antes de ser vista, 0 seu primeiro impulso foi correr para eles. Aguardava notícias do geóloga. Não por ele em si, apesar de lamentar sinceramente o que se dizia ter-lhe ocorrido -e Miranda não acreditara. Mas porque a sorte dele importava àquele homem sereno, que tanto lhe tocara o coração.
À medida porém que Míranda e Clotilde se iam aproximando, sós, mudos, lado a lado - sem o Rodrigues - ÃIbina foi imergindo noutros oceanos, e um frio espectral franziu-lhe o coração. Não foi capaz de se mexer. Seguiu-os, contudo, mais àvidamente ainda. Aquele mutismo, aquela
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quebreira, aquele sem-alma que os trazia ... -não era deles! ... Não.
0 pensar e o sentir voaram-lhe de repente, outra vez, para escolhos mais sanguíneos: para aquilo que os levara ao hospital.
- Morreu! ... Era ele... - ouviu-se articular em pleno silêncio.
Tomada por outros ventos, alma nova!, largou a janela e correu ao encontro dos dois.
Mal a viram, Clotilde e Miranda compreenderam-na. Os pensamentos fundiram-se e os olhares cruzaram: " Julga que o Dr. Castro Raposo morreu", disseram um ao outro sem gestos nem palavras.
Albina alcançou-os:
- Então? ... Era ele? -Não... -antecipou Clotilde, meio séria, como desfrutando aquela ansiedade pelo desconhecido.
-E não o encontraram ...
- Encontraram... - sossegou Miranda a sorrir.
- Onde? -A voz de Albina perdera a ansiedade. Dir-se-ia envergonhada já de se ter despido e mostrado como era.
-Na cama... -mofou a enfermeira sem rebuço. - Parece que estava a dormir!
- oh! ...
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Fechou-se. Desatou depois as mãos e deixou escorrer os braços. A casa era mesmo ali. Escudada pela amiga - do lado oposto ao lado dele
- repetiu em silêncio os passos do regresso e sofreu o remoer da narração. Mal a ouviu. Já não lhe interessava. 0 pensamento carpia, sofrendo com os fantasmas anteriores. Porquê
* mutismo deles? ...
A despedida foi incolor. Miranda agradeceu
* auxílio da enfermeira e desejou-lhes "boas-noites de mel". Corresponderam-lhe sorrisos desiguais. DeixoÚ_se ficar onde estava e foi olhando ora uma ora outra, sem sombra já da timidez que sempre o tolhera. E abrindo por fim de todo e em todo o seu melhor sorriso, disse-lhes com doçura:
- Sínto-me verdadeiramente feliz por as ter encontrado. AIbina!, lembra-se da minha última pergunta, a seguir ao discurso do engenheiro Corvo?
Ela cravou os olhos nos olhos dele, muito séria, e respondeu com frieza:
- Não. -Pois eu lembro ... Lembro-me da pergunta e da sua resposta. A conversa parou aí. Isto é, interrompeu-se... Vou concluí-Ia, AIbina: Eu também acredito ... Não acreditava. Mas agora acredito!
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Desejou-lhes novamente boas-noites, fez uma vénia ligeira -e partiu,
Ia com a alma cheia. E, tal como sucedera em relação ao geólogo, não acreditando também que Albina estivesse perdida: sentenciada já para morrer.
Não era porém aquela sensação que o assaltara no Jango, vaga, profundamente obscura. Era a quase-certeza plena, consoladora -de igual modo pungente- que o avassalara no hospital.
Ao aproximar-se da camarata sentiu cair os primeiros pingos. Eram gotas esparsas, enormes, que duraram alguns segundos apenas. Não fez caso. Foi meditando na dimensão espantosa daquele dia. Nas pessoas que conhecera, no que vira, no que passara, sobretudo no que vivera ... -e não pôde libertar-se da sensação de que já era dali. De que chegara há muitos, muitos meses atrás - e que aquela camarata, mesmo em frente, era o refúgio onde, desde então, sempre dormira e sonhara.
Abriu a porta com o à-vontade próprio dos hábitos caseiros muito arreigados.
Freixo estava a despir-se; e Ilídio Soares,
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estendido na cama, lia atentamente. Olharam-no como se olha um velho amigo.
- Boa-noite - repartiu à temperatura do melo.
- Boa-noite - ecoaram os móveis, o chão, o tecto, o ar ... e as pessoas também.
-0 Correia? Freixo trocou olhares com Ilídio e sorriu:
1 À hora do duche está aí! Ah, ah, ah... Miranda olhou para o outro. Ilídio Soares deu um passo mais:
-Deve andar pelo lado de lá. Na outra margem do rio ... De contrário já estava a dormir. De vez em quando faz assim. É um tipo muito romântico! ... Ou se deita antes das dez e dorme como um justo, sem se importar com a luz, com as conversas, com um tremor de terra até! ..., ou faz assim ..., e só aparece lá para as tantas. Bom tipo. Quase nem se dá por ele. Quando você amanhã for tomar banha, vai ver que ele já anda a pé, fresco e enxuto!
Miranda sorriu. Como não tinha sono desfez-se do calçado e sentou-se na beira da cama. Ilídio retomou a leitura. Seco e franzino, o seu todo era inteligente e decidido. 0 tom da pele e o ondulado dos cabelos, quase passavam por os de um mediterrâneo escuro; o nariz, porém, e sobretudo a curvãtura do lábio superior, mos-
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travam que pelo menos um dos avós era negro. Miranda reparou depois no livro do companheiro: era um compêndio de aritmética elementar. Cheio de curiosidade aproximou-se para ver
melhor. Como o outro notasse o movimento perguntou:
-A estudar?! ...
- Que remédio.
- Que remédio!? ... Pode saber-se porquê? -Parece que vão abrir uma escola técnica...
- Aqui?! ... na Jamba? - A admiração de Míranda não tinha limites. Se na Europa havia terras multiceiatenárias que não possuíam tal luxo, como é que uma vila de três anos, por assim dizer, ia alcançá-lo?
-É coisa assente! Quando cá veio o secretárío.provincial, falaram-lhe, e ele prometeu! ... Ficou tão admirado de já haver quatrocentos miúdos nas escolas, que disse logo que sim!
-Quatrocentos miúdos nas escolas?! repetiu Miranda assombrado.
-Sim. E diz a D. Fernanda Naique, a professora principal, a mulher daquele engenheiro escuro, baixinho, com que o Professor esteve uma data de tempo a discutir. Lembra-se?...
-Tenho uma ideia... -desculpou-se Miranda.
-É um engenheiro formidável, segundo
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dizem. Parece que é quem sabe mais daquilo do minério!
- Acredito, Mas o que é que diz a D. Fernanda Naique?
- AM, já me esquecia. Diz que pró ano vai ser preciso arranjar mais salas. As que há não vão chegar!
- E o secretário-provincial é homem para fazer o que promete? Sabe ... isto de promessas de políticos ...
-Não. É coisa assente, como lhe disse. Não vê que o governo não gasta nada com estas escolas? E com a técnica..., também lhe vai ficar barato. Olhe! A Companhia dá as salas! ... E os professores parece que se arranjam todos aqui. Os engenheiros, os médicos, os agentes-técnicos, os da secretaria, as mulheres deles, e por aí fora ..., dizem que chegam; e até que sobram!
- Percebo ...
- Só por isso é que eu não saí com o Pinto. -0 Pinto?! ...
- o camarada que dormia na sua cama, aí! ...
- Ah!, sim, já ouvi falar.
- Não foi só por isso, Ilídio! - corrigiu Freixo. - Não foste com ele porque estás convencido que hás-de chegar a monitor. Bem .... se abrirem a escola técnica, chegas lá ..., não
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haja dúvidas. Com a saída do Pinto deves ser o melhor operador da Companhia. 0 pior é o resto ...
Com grande espanto de Miranda, Freixo não gargalhou.
-Sabe?, o que mais me custa é a matemática. Foi por causa dela que eu saí da escola industrial de Nova Lisboa. 0 professor queria que a gente soubesse tanto como ele! E depois humilhava-nos ... Não pude aguentar aquilo ... Fiz só o segundo ano. Isto é, não fiz ... ele chumbava-me sempre ... Sacana! ... Mas aqui não vai ser assim. Os professores já são nossos amigos! ...
Ilídio poisou o compêndio na mesinha de cabeceira e deíxou-se cair para trás, varando os
olhos no tecto. 0 silêncio envolveu-os num halo de compreensão. A sisudez de Freixo, contudo, era o que mais impressionava Miranda. A certa altura Ilídio soergueu-se, poisou os olhos ávidamente no recém-chegado, e perguntou-lhe como a medo:
-Você sabe bem de matemática? Apesar da surpresa, Miranda teve a intuição do que se passava naquele cérebro inquieto:
-Dessa sei! E até um pouco mais. No meu curso aprende-se um bocado ... Temos de saber calcular vigas, lages, colunas, paredes, muros
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de suporte ... Tanto de betão simples, como armado .... e de alvenaria ... Elementos de construção ... e até estruturas simples: de ferro, madeira, alumíneo ... E eu tive. mais sorte do que você: calharam-me sempre bons professores. Bem .... eu também dava um jeito na coisa ... Umas gorjetas na secretaria..., e ficava nas turmas dos mestres melhores! ... -E sorriu com intenção. -Além disso, não é para me gabar, mas sempre tive queda para números, contas e problemas ...
Deixou fluir longos segundos impregnados
- sumo de recordações - e refez o tempo assim:
- Se não tenho apanhado duas ricas obras a fio, logo a seguir ao curso de construtor civil, tinha ido para o Instituto ... Era o mais classificado 'e andava cheio de fé ... Com um entusiasmo como nunca mais senti! ... Hoje era engenheiro ... Ou, pelo menos, agente-técnico! ... Mas o dinheiro ... Deixava de ganhar mais de mil contos! ... Convenci-me de que o curso não os valia ...
-Mais de mil contos?! ... -assobiaram Freixo e Ilídio.
-Sim. E ganhei-os, de facto. Ganhei depois bastante mais. Mas descansem: não tenho por assim dizer um tostã o.
Seguiu-se o rosário das confidências. Freixo
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não gargalhou uma só vez. Apesar de diplomado com um 4@urso equivalente ao de Miranda (e de ser um electricista de rara competência) os seus dotes intelectuais, sobretudo a sua cultura, eram muitíssimo inferiores.
A conversa não se limitou a cristalizar aquela camaradagem nascente. Dignificou-a. Miranda revelou-se um inesperado sucessor de Júlio Pinto, * companheiro que partira - oráculo do grupo -
* cresceu na consideração e na própria estima do electricista e do operador.
Ilídio aproveitou uma pausa do recém-chegado para fundir o seu problema:
- Se você quisesse ... eu findava o curso industrial.
-Sério?! -animou o construtor. -Sabe?, às vezes vejo-me à rasca. Mesmo, mesmo à rasquinha de todo! E esse tipo... - o indicador de Soares acusou Freixo- esse tipo, não me liga! Ou então diz que já não se lembra daquilo que eu estou a estudar. Só por milagre, de longe em longe, se chega ao pé de mim (quase sempre quando menos eu conto) e me dá uma ensaboadela.
- ô pá!, sabes muito bem que eu não tenho tempo. -E voltando-se para Miranda: -Para lhe explicar o que ele me pergunta, é bom de ver!, tenho de dar uma vista de olhos à matéria.
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São coisas que já me passaram. Coisas pra mim sem interesse nenhum. E sabe, Miranda, comigo dá-se isto: aquilo que não me interessa passa-me! Num sei como é. Só sei aquilo que tenho de saber ... E nunca me esquece! Além disso levo uma vida dos diabos: sempre a correr dum lado pró outro ... Como sou dos que tem mais prática disto ... Quando largo o serviço apetece-me lá estudar ... Tomara eu saber tudo quanto vem no manual do ofício.
0 protesto de Freixo revestiu-se de um ar de seriedade quase pungente. 0 risadas-tolas que Miranda conhecia, não estava ali. Estranha criatura, o electricista! Mas Ilídio não se conformou:
- Não é tanto assim. Se não fosses quase todas as noites para o futebol, tinhas tempo de sobra.
Futebol?! - interrompeu Miranda. Sim! - confirmou o primeiro. - Temos aqui uns pares de equipas de futebol-de-salão, de muita categoria! Jogamos três vezes por semana. Ainda não viu o nosso recinto?! ... Coisa fina! Boa em qualquer parte! Bem ... eu gosto daquilo. É a distracção que tenho ... É raro ir ao cinema. Passa-se meses, veja lá! ... E fazem umas quatro sessões por semana, se não erro.
-Três! -corrigiu Soares. -E as matinées?
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-Também há dias que falha. 0 avião não traz o filme ..., e fica-se a ver navios. Que a mim, pouca diferença faz. É raro lá ir mais que uma vez por semana. Prefiro estudar. E se me ajudassem ...
- 0 pá, mas que culpa tenho eu disso? Gosto do futebol... 0 Míranda, você acha que este tipo é justo? Caramba! Hei-de pôr de lado aquilo de que mais gosto, só porque lhe deu na telha estudar? ...
Miranda não respondeu. Fez um trejeito e
franziu um sorriso inigmático. 0 silêncio voltou a rodeá-los - desta vez isolando cada um em seu crisol. 0 mestre-de-obras deixou-os aquecer, e
fez a sangria assim:
- Ilídio!, eu tenho um certo jeito para ensinar. Dois ou três colegas do meu curso, segundo eles mesmos confessam, chegaram ao fim porque eu os ajudei. Não fiz qualquer sacrifício. Pelo contrário. Como tinha de estudar e aprendia mais fàcilmente do que eles (tenho boa memória) as minhas revisões eram sempre a explicar. A ensíná-los! 0 que lucrava mais era eu: amassava melhor as coisas, e aquilo ficava-me cá dentro sem uma falha! Se não fosse assim, isto é, se não fossem eles, eu nunca teria sido o bom aluno que fui. Havia pormenores, e até coisas importantes, que só durante as explicações me
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feriam a atenção e se aclaravam. Ora, como já lhe disse, tenho boa memória. Aquilo que estudar ... raro me passa! Com o tempo, e falta de uso, pode delir um pouco. Mas é questão de lhe dar uma areadela. Fica novo outra vez! Penso por isso que não terei grandes dificuldades com os seus enrascanços, Ilídio. E corno nunca liguei muito ao futebol ...
-Você está a falar a sério, Miranda? Ilídio tinha-se posto de pé. Havia tal ansiedade na sua voz, tamanho fulgor no seu olhar, semelhante júbilo nele todo! -que Miranda comoveu-se. Impregnou a voz de convicção, e
jurou como num voto;
-Conte comigo, Ilídio! Tenho a certeza de que você vai. acabar o curso. Com essa alma e a sua determinação! ..., não pode haver dificuldades que a gente não vença. Estou convencido de que vai ser um bom aluno. Juro-lhe que estou! Isso da matemática é muito mais simples do que lhe parece. Eu, no princípio, também andei assim. Juro-lhe que é verdade!
Ilídio ficou pálido: - imóvel - os olhos fixos no amigo e um tremor febril convulsionando-lhe todas as fibras. Abriu os braços e apertou Miranda contra o peito, num amplexo vigoroso. Apesar de seco e franzino, era rijo e forte-. Miranda correspondeu-lhe com emoção quase
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igual, sem contudo romper a compostura aparente. Quando se apartaram esperava-os um espectáculo chocante:
Freixo, o risadas-tolas a galhofa personificada!, chorava convulsivamente. As lágrimas esbagoavam-se-lhe pela cara abaixo como sangrias de palmeiras no acto da incisão. E ao ver o pasmo dos amigos - de olhos varados em si- crucificou os braços com desespero, num patético sublime!, e desfez-se em pranto e amargura:
- Ô pá! ... eu até já tenho passado horas e
horas no serviço a estudar lições para te ensinar! ... Mas quando chego aqui já não sou capaz de as dizer! ... Passam-me! ... Vi-me à rasca para fazer o curso! ... Se não fosse a minha mãe ajudar-me todos os dias..., quase até à meianoite .... nunca teria passado do primeiro ano! ...
E rompeu num choro tão dorido, que os sucumbiu. Era a dor personificada. Atirou-se para cima do leito, quase a gritar!, e escondeu o rosto no travesseiro. -Chocante! Pungente! Quase brutal! ... Se o patético existe, é assim.
Ilídio e Miranda ficaram sem reacções. Quando se reencontraram, quiseram confortá-lo. Repeliu-os! Chorou depois com desespero maior! E de repente, corno tomado por fúria possessa,
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ergueu-se e fugiu porta fora, deixando-os gomados-ao chão.
Após o regresso do aerádromo, João Correia, Ilídio Soares e o seu grupo domíngueiro acamparam nas redondezas do Jango -dente afiado e goela a arder- feitos para a manduca batida a chinchins, com charla de garotas, bailinhos e
rebítadas. Depois de comidos e bebidos, os não propensos a comer-por~comer, ou libações em
cadeia, principiaram a sentir fastio do serão e foram desertando para gaudios, freimas e lazeres de cada um -gastos da "novidade".
Ilídio Soares meteu-se na camarata e depois de uma hora com a Geografia, a fim de fazer coragem, torturou-se na Matemática. Já vimos o que se passou, e que ele meditava os números como quem descobre rios, escala serras, namora capitais - escorrido no leito.
João Correia não moía aqueles terrores nem
viajava em rotas fictícias. - Pelo menos daquele cariz! ... "Aquilo do Ilídio querer findar o curso" era mania. Sandice! Um monitor pouco mais tirava do que ele. "0 ser coisa mais certa", era um engano. Por muito que se forrasse, nunca se passava da forra. Favas contadas! Com o gado
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não era assim. Crescia, dobrava, redobrava, tresdobrava..., e por aí além, sempre de mais a
mais. -Quanto mais se tivesse mais se podia ter! Aquilo era tonteira. Sal sem tino! ... Inda se ficasse agente-técnico ou engenheiro! .... vá lá! -Era como passar a oficial. Agora cabo!? ... Ou até sargento!?... Tonteiras! Sal sem tino! ...
Como era véspera de domingo .... João Correia ia "à vidinha". "Um homem é um homem! Um reco é um bicho! ".
Bebera-lhe bem e comera-lhe do melhor. Naquela noite não ia ao tasco. De resto, não tinha parceiro. 0 Filinto não quisera ir. Ficara no Jango. Enquanto dessem de beber, era escusado contar com ele: havia de beber! Só arredava quando o vinho acabasse. Lá para as tantas! ..., e mal bateram as nove. Que mania a dele! ... Não tendo de pagar, pronto! Dava-lhe que havia de beber enquanto bondasse! Pancada ... Estapor de prosa! Só pra fazer ver que ninguém aguentava como ele: -Que era capaz de se bater com um aImude! ... Um homem bebe até atestar ... Depois, pronto! Bonda. Um pipo é um pipo! ... De mais ele não se podia dizer que se batia com o aImude! ... Sempre que ia mijar, gomitava! Dizia que era um arroto ... Um arroto o catano! ... Ia pra dentro: mais um litro! Que favores! ... Canada dentro, canada fora! ... Brutidade. Só pra
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dizer que se batia com um aImude! Aquilo é lá beber ... Beber é pôr gosto! Raio de mania aquela! ... Antes a do Ilídio. Ao menos não dava perca. E daí ... talvez desse. Aí dava, dava! Nã ... Um homem deve medir o que faz! ... Que mija e bebe! ... Gomita e bebe! Gomita! ... Gomíta, sim senhor! Mija mas é uma porra ...
Ao subir para o açude, o ronco de uma locomotiva, seguido pelo barulhar de um comboio. "Vai pra Moçâmedes". Encostou-se à guarda da ponte para ver a "giboia" passar. Era das coisas de que mais gostava. Ouvira anos e anos falar de comboios. Quando viu o primeiro já era homem. Andou um punhado de léguas só por causa "daquilo". Era uma ideia que tinha. Queria ver com os olhos dele. Até sonhava! ... Disseram-lhe que era medonho! ... De meter medo! ... Rodas e mais rodas! -e uma enfiada de vagões do tamanho de uma procissão de treze andores! ... E uma grande máquina a vapor a deitar fumo, a resfolgar!, ufa, ufa..., com um apito em cima que se ouvia de terra para terra! ... E o barulho? ... Uma restolhada maior que dez arraiais! ... Nem tanto cá, nem tanto lá. Bonito era... -Mas ao pé destes! ..., não passava dum brinquedo, Isto sim! Coisa fidalga! ... Via-os todos os dias e nunca se cansava de os ver! Deitavam mais longura que as irmandades dum
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concelho! ... De três concelhos! Ou mais! ... -Mais, sim senhor!
0 comboio atingiu a ponte e João Correia remoçou. A contemplação do "monstro" afagava-lhe emoções benzidas. Vozes, coros, luzes de tempos distantes - dos anos fadados, longos como séculos!
Era uma formação de três locomotivas com mais de sessenta vagões. Contava-os sempre. Nunca se enganava! Era um consolo infantil; um deleite sem pecado; uma vaidade sem orgulho! ...
0 comboio passou e ele deíxou-se ficar a admirá-lo, a vê-lo subir do outro lado, torcer..., e mais à frente lurar na trincheira da sanzala.
"Bem, vida vidinha! A Alzira é capaz de estar à porta. Ou então em casa ... Oxalá não tenha saído ... Não! Ali só há pretos. Pretos e pretas. E brancos ... Ela não é de sanzalas! Nem de se dar com pretos! ... Só com tipos como o 1@uas, e o Pedro, e o Vílar ..., e o pai dela! Gente evo. luída!"
-Eh! ... João! Pra onde vais? -atirou um camarada que vinha atrás, em passo batido, ao ultrapassá-lo. Era o Ruy, aquele que ficara também de esperar pela carrinha do Rodrígues, à porta de AIbina e Clotilde.
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-Por aí... -velou Correia, amolecendo mais o passo, tentando furtar-se à conversa.
-Disseste ao Rodrigues que o Freitas me pôs na vez do Andrade? -quis saber o outro, parando adiante.
-0 Freixo disse-lhe. -A sanzala?... -insistiu Ruy, como em busca de parceiro, num desafio camarada.
-Não. Uma volta ... -Anda daí! -Não me apetece. Não estou bem disposto. -Bem te entendo ... Boa sorte... -atirou Ruy, pensando na vidínha, seduzido pelo reboar do batuque.
-Igualmente... -desejou Correia, parado já, as mãos nos bolsos, pronto para a resistência.
10 outro seguiu e João mergulhou de novo em si:
Ir à sanzala, ir à sanzala ... Pra quê? ... Pra se arranjar uma não é preciso ir à dança ... Que dancem elas! Farta-se um tipo de estar para ali .... com sinais..., e só quando muito bem lhes dá é que vão nisso! ... Se não há um bocado de sorte, vem-se de lá a zero... Máu!, João, João! ..., quando menos se conta..., põe-se uma ali na frente a rebolar, a rebolar..., e então dá gosto! Lá isso dá! ... Mas quê? ... quando se vai pró capim estão todas suadas! --- É como se saíssem
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dum duche... Como se saíssem, não! Quando se sai dum duche não se cheira assim! ... OM ... Mais vinte menos cem... ]@ muito melhor marcar encontro. Se não pega ... vai-se Ó tasco. É só combinar. Tão boas são umas como as outras ... Tanto há estragadas num lado como noutro. Nisso é que um tipo tem de pôr atenção! Se um homem se descuida! ..., está tramado! Mijar bem ..., três ensaboadelas com asepso ... , e é
garantido! Lá isso é. Bem dizia o doutor ... Num há mal que se pegue! E mal um tipo chegue a casa..., asepso pelo corpo..., roupinha de molho..., senão! ... chatos, piolhos e o raio. Grandes putas! ... E já estão a querer a cincoenta páus! ... Putas de merdai Inda há pouco ... vinte já lhes chegava! Quero lá saber que tenham de dar percentagem! ... Mas também não sendo assim ... às vezes fica-se a águas ... E depois um
homem nem dorme! Paciência ... o pior de tudo é já andarem estragadas ... João! ..., limpeza, límpezinha! -E apalpou o bolso das calças a
fim de se assegurar de que não esquecera o
sabonete mercurial.
A casa de Alzira era uma construção de pau-a-pique, com divisórias, traça e apuros do estilo. Respirava um ar civilizado. Havia luzes lá dentro e um petromax no terreiro da frente. Uma pequena multidão. faIazava em torno de uma
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fogueira. Tudo pretos e pretas. Em lugar de destaque, sentado numa cadeira baixa, um homem grisalho - de porte, ser e atitudes patrícias. Era o Tomé. 0 pai da Alziral
Surpreendido pelo inusitado da assembleia, João parou de largo e quedou-se a escrutiná-la. "Que raio será aquilo?! ... Ela não se ajunta com pretos! ... "
Foi-se aproximando. Nem ela nem a irmã estavam ali. Fez um desvio e deu uma volta por largo - de modo a não ser visto - animado pelas luzes do interior. Aproximou-se depois pelas tra- seiras, passo a passo, flauteando com os beiços uma balada montanheira, em surdina... -como quem vai por ir, ou divaga sem rumo.
A porta aberta de par em par deu-lhe um ânimo novo. Sentada num banco rasteiro Alzira parecia alheia do mundo. Sonhava ...
- Boas-noites. Alzira estremeceu. Depois sorriu:
- Boa-noíte ... É você?... Vem por causa da roupa
Ele fez um gesto vago. Alzira insistiu: -Faltou alguma peça?
- Não ... Estava tudo em ordem. Os meus camaradas é que ficaram admirados! ... Ia tudo na perfeição.
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Mas não pense que daqui em diante lhe posso dar a roupa de um dia para o outrol
-Bem sei ... Isto foi só para lhes mostrar. Alzira continuava a olhá-lo, mais fechada que aberta, e João embaraçou-se. Ficou sem atinar no que dizer. Isto é, como prosseguir. Ela deu-lhe uma ajuda:
-A minha irmã disse-me que você queria umas calças ...
-Pois quero. Umas calças como as do Filinto!,
-E já tem pano? -Não, não tenho. Queria que você me dissesse quanto devo comprar.
-Um metro e vinte e cinco, chega. 0 resto ponho eu. Está incluído no feitio.
A conversa tornou a cair. Perante o enleio dele Alzira tomou a ajudá-lo:
-Já falou com o meu pai? -Porquê? -perguntou ele, de repelão, com as ideias a baralharem-se.
-Por causa dos bois. Já não os quere? -Quero! Então não havia de querer!?... Estava a pensar noutra coisa ...
-Também já lhe arranjou pastor. Foi o mais difícil. Diz ele que se for daqui acaba por lhe dar cabo dos animais, ou até dar caminho aos melhores. Vem de Cuima. Dos nossos sítios.
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-É algum dos que estão lá fora? do outro lado?
- Não. Aquilo é tudo gente de cá. Gente que veio de Cuima!
-Não são da sanzala? -Não. Vieram todos do Norte. Trabalham nas obras e na Companhia. São do acampamento de lá de baixo. Não gostam desta gente daqui.
-E que estão a fazer ali todos juntos? Alzira sorriu. Ele sentou-se na soleira, uma perna dentro e outra fora, e esperou que ela contasse o resto.
- Estão a resolver uma endaka. Não querem nada com o soba de cá. Só se entendem com o meu pai ... É boa gente. Já ali estão há mais de três horas... -e sorriu de novo. -Lá para daqui a mais duas ... deve estar tudo arrumado.
-Então é endaka séria!?...
- Não. Estão fartos de saber, mais ou menos, qual é a sentença do meu pai. Mas é assim. Cada um tem de falar de tudo quanto sabe. Vão passando o tempo ... Pra eles é melhor do que ir ao cinema. Vão comendo e bebendo..., e quando forem embora levam conversa para um mês..., e vão satisfeitos.
João Correia compreendeu aquela palestra familiarizada. Nos seus tempos de pastor, quando os rebanhos se fundiam na Serra, novos e velhos
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também se juntavam assim, horas e horas, em volta de uma fogueira, falando só pelo prazer de falar. Eram tardes, serões, manhãs até, de cavaco delicioso. 0 melhor daquela vida montanheíra! Contavam-se histórias de lobos, de santos, de fantasmas, de princesas..., e tragédias, gozos, façanhas... -numa comunhão que os
irmanava, fortalecendo os elos que os prendiam.
0 círculo da fogueira era o lar; um templo; sobretudo uma escola. Nunca, porém, um tribunal assim -com um juiz por todos aceito, e
a certeza antecipada de que as sentenças que ele proferisse morassem já no coração de cada um. Quis saber como era a endaka:
-0 homem da Filipa foi para a África do Sul. Para as minas. Eram dois anos, mas valia a pena. Juntava para comprar uns dez a vinte bois, para ter motoreta, bom rádio, e coisas assim. Já tinham alguns bois, mas queriam mais. A Filipa achou bem. E o Tentão partiu. Em vez dos dois anos combinados, esteve mais de três. A Filipa, era bom de ver, enquanto o homem andou por lá, pelas minas, esteve sempre com um primo, o Segunda. Fazia-lhe jeito: tomava conta do gado ..., era bom para ela .... fez-lhe um filho..., e- por aí fora. A Filipa até já nem contava com homem! ... Nunca mais se soube dele. Mas o Tentão veio agora ... Não velo no
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tempo, mas veio. Também não trouxe o que esperava, mas isso é o menos. É preciso resolver a endaka.
-E resolve-se? -quis saber João Correia, não sem uma certa angústia, com transparente ansiedade.
-Então não se havia de resolver?! ...
- A bem'>' ...
- Parece-lhe que havia de ser a mal? A mal não se resolve nada ...
João Correia não achou resposta. Mergulhou no mar das suas confusões, de vaga em vaga, cercado pelo nevoeiro. A tranquilidade de Alzira confundia-o. Depois'de estrénuos esforços tentou rumo a outras radas:
-Você disse que sabia como vai ser resolvida a endaka, não disse?
-Disse. -E calou-se muito séria a olhar para ele. Como João Correia não despregasse os olhos dos olhos dela, crispado de emoção, ávido pela sequência, todo ele ansiedade, Alzira retomou o discurso por esta bolina hesitante:
- n preciso ver que eles entendem que assim é que está certo. Que é justo! Que deve ser
assim! ... Percebe? ...
- Bem ... Você ainda não disse Alzira meditou durante largos segundos e por fim decidiu-se:
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-Depois de muita conversa, de cá e de lá, da família, do gado, das colheitas, deste e daquele, o meu pai perguntou à Filipa: "Filipa, qual é o teu homem?". "0 meu homem é este", respondeu ela apontando para o Tentã o. "0 Tentão é que é o teu homem, Filipa?", continuou o meu pai. "Ê!". Com o Tentão passou-se o mesmo: que a Filipa era a mulher dele e ele o homem dela. Meu pai voltou-se depois para o tio da Filipa e falou-se do casamento dela com o Tentão. Muita conversa, muitos pormenores, e o meu pai voltou à rapariga: "0 Tentão é o teu homem mas tu tens vivido com o Segunda, não tens?". "Tenho. Eu tinha de ter um homem. Tenho multa canseira, e pra fazer tudo como deve ser feito, precisava dum homem. Sem um homem não podia fazer o arimo, a fuba, o sambo ... ", e foi contando o que seria dela a lidar com o gado, os filhos, a agricultura, o celeiro, o arranjo e a
conservação da palhota, do curral do gado, do próprio gado, e por aí fora. A alturas tantas o meu pai fez esta pergunta: "Tu sabias que o teu homem, o teu homem mesmo, o Tentão, estava pra vir?". "Sabia. Agora pensava que já não viesse. Pensava até'que o Segunda já era o meu homem mesmo", e assim por diante, até o meu pai chegar à pergunta maior: "Mas agora, Filipa, qual é afinal o teu homem?". "0 meu homem é
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este, o Tentão, porque foi com ele que casei", mais isto mais aquilo, conversa com ela, com o Tentão, com o Segunda, com os tios, e os vizinhos, o que fizeram, o que deixaram de fazer, e os mais a ouvir, a ajudar, horas e horas ... -e carne, lume, vinho, tabaco, fuba, boa disposição ..., e lá para daqui a duas ou três horas mais, está tudo como deve.
Alzira voltou a emudecer. Não própriamente para descansar ou recompor as ideias, visto haver falado com serenidade, sem laivo de emoção, nem interesse aparente, sequer. Por outras razões muito dela, pois guardou a postura repousada em que ele a encontrara, e pousou os olhos suavemente nos olhos ansiosos do visitante. João Correia não se conteve:
-E depois? ... Como vai ser?
- A Filipa volta para o Tentão e o Segunda terá de pagar um boi por cada ano que viveu com ela.
João Correia uniu o seu silêncio ao silêncio de Alzira. Deixaram no entanto de olhar um para o outro. Cada um perdeu os olhos no vácuo, mergulhando dentro de si -em busca de um túnel, uma ponte, um canal que conduzisse aos mundos do outro. Mas apesar de tudo neles ser luta e esforço, nela dominava a passividade: um confiar nas correntes da natureza; um seguir
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ao sabor das brisas, entregue à maré. E assim durante longos minutos revoltos para Correia, até chocar com outro acidente da rota:
-E o filho do Segunda?
É filho da Filipa. E dele também! Acredito ... Mas é dela. Disso ninguém pode duvidar. Ninguém tem dúvidas. 0 mais ... depende daquilo que se pensa. E há tantos modos de pensar! ... 0 filho é filho da Filipa. E se é dela ... e o homem dela é o Tentão, é do Tentão também. Tinha dois ... e agora tem três. Está mais rico. Não trouxe dinheiro, mas tem mais filhos, mais bois, mais cabras ...
-Mas... -interrompeu Correia o Segunda... -e não completou a frase. Caiu no mutismo anterior e vazou de novo o olhar na escuridão, lá de fora.
Alzira, agora a olhá-lo suavemente, a mesma calma confiante: aquela entrega serena aos quereres da natureza invencível. Não era uma atitude cega. De modo algum. Era um sentir iluminado. Lúcido portanto. Como se visse através dele e o inspirasse. Descerrou os lábios e foi ao encontro dos mares que o agitavam:
-0 Tentão terá de indemnizar o Segunda por causa do filho ...
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João Correia cravou de novo os olhos nos olhos dela. Alzira satisfez-lhe a curiosidade:
- Deve ter de lhe dar um porco..., e talvez três cabras.
-E você acha bem? ...
- Eles acham bem. E vão ficar amigos. Quer ir lá para fora ouvir a conversa?
-Não. Demais ... eu não os entendia! -Eu vou-lhe dizendo o que eles disserem.
- Não. Não me interessa. 0 que me interessa ... é saber se você acha bem!
- Eu acho que um homem nunca deve abandonar a sua mulher ...
- Mas ... a Filipa concordou! -Pois concordou. Já lhe disse que vão ficar todos amigos.
-Não era isso que eu queria dizer... - e
de braços no ar, ficou às voltas com os sentimentos e as meias-ideias, em busca de expressão para umas e outros. -0 que eu ... 0 que eu ...
Alzira atingiu as águas dele: -Se a mulher concorda que o homem se ausente, eu entendo que deve esperar por ele. É por isso que não estou lá fora.
João Correia deixou cair os braços. Foi como se ela dissera o que ele desejava dizer.
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De um e outro lado da albufeira, a batida ritmada, o fogo, o sangue, a afrodisia dos batuques, excitando corpos e almas, convidava à união, à dança, à euforia, ao amor!
Ruy apertou mais o passo, e de cubata em cubata foi aquecendo por dentro e à flor, refazendo-se da própria fadiga do turno, catalizado por aquelas vozes, aquele ressoar, aquele sobreviver.
Uma grande fogueira e gente em volta, ao perto, ao largo... -batendo, moendo, gingando..., dormindo aqui e além!, sentados, de cócoras, de borco, de pé! .... vivendo a eternidade, revesando-se na euforia, indo e vindo, perdendo-se na escuridão .... dela renascendo a cada passo. E um canto de melopeia, reboando, sofrendo pelos ares, unindo o céu e a terra -espírito e corpo!- refervente, incessante, sempre, sempre, sempre -sem parar: Ué-ué ... ué! Ué-ué ... ué! Ué-ué ... ué! ... Tang-ta-tang, tang-ta-tang, tang-ta-tang ...
Ruy acercou-se do fogo e fundiu-se ao Espírito imanente. Outros como ele -e pele de menos sol, crestada e não- irmanados naquela prece, obedeciam também ao Criador: -Tang-ta-tang, tanga-ta-tang, tang-ta-tang ...
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Decorridos poucos minutos estava no centro: olhos perdidos, telúrico! -célula daquele Todo!-, cadeiras em fú ria, todo ele em frenesi ... -torrentes do ar para o chão, da terra para a abóboda .... tang-ta-tang, tang-ta-tang, tang-ta-tanga ...
Foi rodando, sofrendo, sofrendo, sofrendo... A dada altura uma sílfide em transe -alma com sangue! - evolada do próprio fogo, reverteu-o para o alvor do Paraíso, clamando pelo mundo da alegria: - corte das nossas lágrimas! ...
E o suor correu ... Pranto da Terra - incenso do Céu! ...
Ué-ué ... ué! Ué-ué... ué! Ué-ué... Uê! ... Tang-ta-tang, tang-ta-tang, tang-ta-tang ... Noite fora, mundos além, sem fim... -até à Eternidade!
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Monção, eis a monção! ...
Frémitos púberes da argila ... Volúpias do mar ... Raivas amarelas do Sol ... Incandescência infernal ...
Luz, luz, luz! Explosões sem dimensão ... Bacanais de água sexuada ... Partos do Mar-chuva estival.
MONÇÃO, EIS A MONÇÃO! ...
Sobre a madrugada, quando mais se dormia -salvo nas centrais, na mina, no hospital, nas rondas, nos comboios, pelas estações do percurso, no porto mineiro, na lavaria, nos lares inquietos ... - as trovoadas bandearam-se na Jamba aterrorizando bichos e homens -as sanzalas e a vila. Nesta, porém, assim como nos polos de toda aquela indústria,' os pára-raios ionizantes cumpriram escravamente, cavando luras de segurança no seio da própria tempestade. Mas, pelos arredores além, o pavor, a luz e a prepotência cósmica ceifaram vergéis, cegando orgulhos e inocências. 0 ar vitalizou-se de morte, gargalhando infernos: cubatas, sambos, celeiros, berços, arados e sepulturas foram reduzidos a cinzas: árvores de belo porte estarreceram de horror, gritando esfaceladas ... - chorando velhos e crianças, homens e mulheres, gado, bichos! ..., esperanças interrompidas.
As colinas em redor, sem excepção! - mon-
tanhas de ferro imanente - eram autênticos vulcões aberrantes, sorvendo rios de fogo: - Raios
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de quilómetros, grossos como torrentes, em desvario! - segundos e segundos consecutivos -vasando catadupas sem fim de luz asfixiante!
- a fio, a eito, aos pares, em feixes! ...
0 tempo sucumbiu. Parou! ... - contemplando estupefacto a Natureza a parir! ...
Os próprios cães - mastins e rafeiros -
eram vermes só de medo:
Mais tímidos que rolas, mais pávidos que a derrota, mais reles que a própra lama! - escorriam triturados, ganindo para debaixo das coísas mais incríveis: móveis, pessoas, semelhantes deles, galinhas, lixo!, jornais até! ...
E a chuva! -o esteio da vida: A monção por meses aguardada, rasgou o fogo e desceu. Sangueira incólume dos céus! vingança de ausências! ..., fúria de atrasos!
- Cordas líquidas espessas, em formação compacta, restrugindo e avançando! Muralhas fluidas em marcha. Água, água, água! - Mares dessalados viajando! ...
Água e mais água! ... Um, dois, três segundos só àquele desabar .... e ficava-se como extraído das profundas do Atlântico.
Minutos, muitos minutos seguidos assim ... E pouco a pouco, a serenidade fecunda que prevalece a todos os partos: quietação, vagidos, pere. nidade.
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A temperatura caiu. 0 calor sufocante suara frescura; e depois frio; e chuva boa por fim. Chuva divina: -Lágrimas repesas! ... - horas e horas em penitência carpida, velando o Sol, lambendo sal ..., ungindo, ungindo ...
Ravínas de metros pelos caminhos; ribeiros transviados; rios a encher ...
Bois nas enxurradas; arimos desfeitos; asas partidas ... corações a sofrer!
Arrasado pelo cansaço, pelo suor, pelas emoções de todo aquele dia inesquecivel .... pelo serão, pela suposta morte do geólogo, Sereia reforçou a dose do seu tranquilizante habitual e dormiu nú. As explosões da tempestade não o acordaram. De manhã todo ele era tosse, espirros, lágrimas, coriza. E depois febre. -E com ela: frio, medo, torpor.
0 domingo foi escorrendo mortiço, deslavado, feio - meditabundo.
Passava muito do meio-dia quando o Sol brindou. Foi um hino ao renascer. A terra abriu-se uma vez mais -rasgada agora por biliões e
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biliões de insectos, e miríades incríveis de seres rastejantes. A atmosfera inundou-se de reflexos alados nupciando para a eternidade.
Euforias de amor. Asas, asas e mais asas! ... No ar, nas paredes, no chão, nos copos, nos pratos, nos bolsos, pelo corpo todo... - na boca, nos ouvidos, nos olhos até!
Apesar das redes que protegiam todas as janelas, asas e bichos por todos os sítios, todos os refúgios, todos os recantos. Nas cozinhas, nos hospitais, nos quartos, nas camas, nos móveis, nas malas -dentro dos frigoríficos também.
Asas decepadas aos montes. Corpos sem elas por toda a parte. Insecticidas a esmo, conspurcando o ar, a voz, os alimentos, a pele... - e pàzadas e pàzadas de cadáveres nubentes.
Quando as primeiras luzes se abriram, velaram-se em poucos segundos. E os sapos, como paridos pela própria chuva -a esmo, pululando pelo campo, em volta das casas, nos terraços, nos jardins, de porta em porta, insaciáveis, banqueteando-se até inchar!
Foi um domingo inumano: sem alma, sem paz, sem amor -em guerra contra a luxúria dos insectos, os cheiros dos pesticidas, a náusea dos mortos, a inclemência da insatisfação.
Velórios, cansaços, ruínas, nojo! ... -prenúncios de vida renovada.
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Mas pouco depois do reaparecer da noite..., de novo a chuva prometida: um rumor de fritar, certo e firme, horas e horas renovadas, até o Sol reabrir e o meio-dia incandescer.
Segunda-feira mungida: luz irisadal - e a chuva outra vez ...
0 açude não estava ainda concluído. Ia a
muito mais de meio na altura, e a menos de um quarto na possança -apesar de há muito, em cima dele, esbelta e obreira, a placa da via -ponte vital- orgulhosamente servir, hora sim hora não, dando passo aos comboios.
Precária e provisbriamente, um dique sentenciado, de terra recalcada, cerca de um quilómetro para montante, aprisionava reservas líquidas essênciais, muito minguadas -bloqueando o rio. A seca mirrara-o perigosamente: fanara-o num triste ribeirinho -cuja água de todo um
dia não dava para os gastos de uma hora só. Temia-se a falta dela: que os comboios e a exploração mineira paralisassem! 0 receio das con-
sequências, por tão ruinosas, amargurava os responsáveis - destemperando os dirigentes. As chuvas, mercê de Deus!, curaram o medo
- sanando a impaciência. Mas ... se ao vigor da
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chegada viesse juntar-se destempero -muito improvável na infância da estação - algo pior que a própria seca faria em breve estarrecer.
Toda aquela tarde choveu: água, água .... sempre aquela água!
Ao cair da noite acordaram os primeiros temores. Consultas; cálculos; previsões; palpites
- apostas, até!
Se o dique fosse galgado, desmoronar-se-ia Milhões de metros cúbicos sem freio, em catadupa mortal, devastariam casas e aldeias a jusante, pondo em risco as próprias obras definitivas. Apreensões asmáticas. Prenúncios de asfixia.
0 nível das águas atrás da barragem provisória (do dique condenado) queimava os pensamentos. Angústias ... Medo brutal por fim!
Noite cerrada. Sentinelas por todas as escalas de inundação. Leituras de hora a hora ... Explorações para montante. Despachos; telegramas; mensagens para os pontos cruciais da bacia hidrográfica -a norte, a leste, a poente ...
Anseios de bom tempo, de sol .... de secura até!
Apesar da capacidade de armazenagem da albufeira crescer imenso à medida que o nível subia, e de, antes da chuva, o mesmo ter beirado o seu extremo limite inferior, os caudais afluen-
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tes, sempre a inchar, empurravam-no para a zona vermelha dos índices ameaçadores! ...
Escuridão ... Chuva. Chuva incessante! ... Lanternas aqui e além..., estáticas, oscilando, correndo ...
A chuva transformara-se, por fim, quase em orvalho. Mas os níveis, de todo indiferentes!, a subir, a subir, a subir... -sempre a subir!
Ao romper da madrugada soou o alarme: É imprescindível dar curso às águas! A capacidade da albufeira vai ser excedida!
Terça-feira de aflições. Ar e sol primaveris ... Tempo radioso! ... -Mas os níveis, inexoràvelmente, a crescer, a crescer .... sempre a crescer!
Chuvas de muitos quilómetros para montante só então principiavam a chegar ...
É preciso abrir, a toda a pressa, vastas passagens laterais, afastadas dos flancos do dique, e inundar a bacia inferior, entre ele e a obra definitiva! 0 açude terá de ser posto à prova ... -e depois galgado! Todos os recursos para o rio!
Tempo de acção. Homens, máquinas e ínteligência. Almas e músculo. Coragem! ...
Buldozeres poderosos, de um e outro lado, roncando à compita. Martelos pneumáticos e
compressores, rompendo rochas ... Dinamite. Ter-
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ras em rodopio ... Granitos desfeitos ... Couraças partidas ... Pedregulhos rebolando ...
Canto infernal de tractores, camiões, basculadoras, picaretas, pás-mecânicas, grúas, jipes e
explosivos! Enxadas ... Corpos nús ... Suor ... Almas em ebulição.
E no açude febre igual: cimento às toneladas para fundir defensas, guias, reforços, protecções; máquinas fervendo; mãos em sangue modelando alvenarias, agregados de pedra, de tijolos, de cacos, de lixo até! ...
As primeiras águas raivando a descer. De ambos os lados da barragem, rios caudalosos escavando a par dos homens e das máquinas. Materiais e ferramentas perdidos. Banhos, quedas, fracturas, luxações inesperadas. Berros e
pragas. Gritos e correrias. Preces também...
E atrás do dique, indiferente e sereno, o nível a empolar..., sempre a empolar! ...
Sob aquele céu de anil, aquele sol radioso, fulgindo nos verdes lavados, tenros, luzidios ...
- duas praias fluviais agitadíssimas ..., e banhistas calçados, meio-nús, ou de todo vestidos! Ora na lama, ora na água; ora em seco, ora em risco; sós e aos pares; com máquinas e sem elas -de todas as cores, todos os graus, todas as condições: artífices e rurais; escribas e enge-
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nheiros; topógrafos e monitores; mulheres até! ...
E no meio de todos eles, sempre na brecha! -aqui, ali, além... - de botas altas e calção à Estoril, pinha ao sol e voz rompante .... Corvo! o pedante!
Ao cair da noite a catástrofe raivava algemada: as águas lambiam a crista do dique, mas o nível cessara de subir. 0 açude resistiu. Compressores, basculadoras, grúas, camiões, ferramentas, cimento, aços, relógios, saúde, isqueiros e berloques - sepultados sob águas! ...
Só duas semanas mais tarde principiou a recuperação.
Serra de Oliveira ficara arrasado ... Corvo, porém, fresquíssimo! Os mais, como Deus quis. -Nenhum, contudo, baixou à cama! Ninguém ao hospitall ...
Sereia, combalido ainda, não autorizado a deixar o leito, seguiu dali, hora a hora, toda aquela estrénua batalha fluvial.
Na quarta-feira voltou a chover. 0 dique era uma ilha à flor das águas, com o formato de um
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haltere. E o açude, mais abaixo, um degrau líquido rapidíssimo, enorme, amarelo, tonítruante!
Castro Raposo trabalhou sem descanso. Bateu, um por um, todos os jazigos de Cassinga-Norte, as instalações industriais, os laboratórios, os
núcleos de estudo. Vasculhou arquivos, registos, formulários, ordens, confidenciais, espíritos e
concretizações. Os dramas do rio, na aparência, não o tocavam. Só às refeições mergulhava na
aflição .... ouvindo! Quase não falava: sorvia! As suas visitas ao Professor não passaram de cortês formalid;@de.
Na quinta-feira foi como feriado. A lavaria parou para manutenção, e a maioria pÔde dormir.
Apesar da noite haver sido só de água, e a
manhã acordar aos aguaceiros, Castro Raposo quis ir a Tchamutete, conforme de há muito programara, a fim de ver "em primeira apanha" o essencial de Cassinga-Sul.
Corvo ofereceu-se para o conduzir. Aceitou. Largaram num pequeno bólide com motor à rectaguarda, "garantido contra todas as avarias".
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Eurico não quis levar mecânico ou ajudante -o que não deixou de surpreender o geólogo. Nos seus bons tempos do mato, o ajudante era uma "peça de rotina". Algo quase tão indispensável, tão essencial, como a água para beber. Acordara porém bem disposto ... Não repontou! Além disso, o prestígio, a juventude relativa, e, porque não dizê-lo?, a irradiante hiperautoconfiança facíal do companheiro, fizeram-no aceitar que os tempos fossem outros. E como sentia já, amargamente, que principiava a estar gasta, admitiu que naquelas andanças se encontrasse ultrapassado. Deixou correr ... "Pacíência", lamentou de si para si, "quem ardeu não tem para arder, como dizia o Manuel Antunes". (Manuel Antunes tinha sido o seu melhor auxiliar. Apesar de quase iletrado e já velho, fora o mais sapiente de todos os seus colaboradores na Guiné).
Na travessia passaram por uma longa bicha humana, abraçada a um abarracamento administrativo.
-Que é aquilo? -perguntou Castro Raposo, dado ser quinta-feira. -Também fazem pagamentos no meio da semana?
-Aquilo é um contributo para a eficiência: distribuição dos prêmios pela estafa do rio. Extras são extras! Promessa, cumprimento...,
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paga! -pontificou Eurico, amável> pronto e seguro.
Castro Raposo sorriu. Segundos mais tarde, na sequência já doutras ideias, articulou a meia voz, para si mesmo, evocando as conversas do avião-
- Dinheiro ... Sempre o dinheiro! ... Corvo, cuja agudeza de ouvido superava a
mais arguta de todas as raposas, tomou a expressão por um remoque e desceu à arena:
-Mola real da vida, Dr. Castro Raposo! -Para aqueles cujo Rei é o oiro ...
- Nós. Todos nós! E não só Reí, apenas, Deus! ... 0 mais persuasivo de todos os Senhores! A força da sua convicção é irresistivel. Pode quanto quiser, 0 que não demonstrar por dez, evidencia por mil; ou cem mil; ou um milhão; ou um milhar de milh5es!... É um facto. Todos sabem que é assim, embora a par e passo digam o contrário. É tão inelutável, tão axiomátíco, tão escravizante!, que chega a ser necessário negá-lo! ... Muito, muito pior que no caso das solteironas amarguradas por não terem conse-
guido casamento -visto não consentir opções, nem tão-pouco derivativos, ou fugas sequer. Tem de ser ele! Nada, absolutamente nada o pode substituir!
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Como o geólogo não retrucasse, Corvo filosofou mais:
- Essa coisa de vida-simples é fábula, Doutor Raposo, A própria simplicidade custa dinheiro. E a pobreza também. Nem vale a pena falar dela ... 0 princípio dos princípios passou: as pedras, as plantas e os animais já não falam; os deuses não percorrem os caminhos da Terra; a felicidade e o bem-estar, ou, pelo menos, os ópios da satisfação, deixaram há muito de ser fruto espontâneo, se acaso algum dia o foram.
0 Paraíso, se existiu, morreu!
-Não haverá em tudo isso uma enorme confusão? -flanqueou Raposo, mais divertido que impressionado. - Há quem não seja ainda escravo desse deus ...
-Só se aínda o não conhece ... Nesse caso reverencia precursores.
- E nós, como dizemos que o dinheíro é oiro . .., sucedâneos!
-Claro. Mas como o ouro é um deus, para não destoar dos outros, abandonou também o convívio dos mortais. Recolheu aos santuários: às casas-fortes austeríssimas! ..., templos seus
- ultra-reverendos!
- Altares de potentados! - zombou o geólogo.
- Não seria melhor ... de sumos-sacerdo-
A. REGO CABRAL
tes? ... 0 dinheiro, como outro deus qualquer, prima pelos mistérios da ausência e da essência. Se assim não fosse... adeus prestígio! Não seria um deus. Seria um Senhor apenas. Falível, e portanto mortal ..., e sujeito a ser deposto. Se fosse fácil, e se visse todos os dias ... não deslumbrava!
-Confesso que a analogia é sugestiva ... A essência do dinheiro é realmente insondável ...
-Escapa aos próprios sumos-sacerdotes!
0 dinheirismo, Dr. Castro Raposo, é o credo dos credos. A única religião verdadeiramente universal, e irresistivel. A mais pura até. Nem precisa de pompas! ... 0 seu Poder é incontestável.
-Tem ritos, sacerdotes, guardiões, fanáticos..., detractores até... Aquém e além todas as fronteiras ...
- Escravos confessos ou não-confessos da mesmíssima "lei-moral"!
Castro Raposo sorriu de novo. Segundos depois soltou uma pequena risada e mordeu:
-Que diria o Professor se o ouvisse? Pelo que me contaram da peroração da chegada, ele devia gostar imenso de o ouvir, engenheiro Corvo! Ali, ali, ali ...
Corvo torceu o pescoço -olho de banda, bico apontado ao céu... -e crucitou:
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Não costumo falar com o Professor ... sobre filosofias.
-Aplica-lhas? -pistolou o geólogo, abertamente no desfrute.
-Falávamos de dinheiro, Dr. Castro Raposo. Do ouro. Do deus-moeda!
-Está bem -condescendeu Raposo. -Do ouro que não é ouro.
-Como queria o senhor que ele fosse ouro?! ... Não seria transcendente nem actual. É papel. Hoje em dia tudo quanto é de facto importante, reduz-se a papel. Nos governos, nas igrejas, nos tribunais, nas escolas, nos sindicatos, nas maçonarias, nas cadeias, nos próprios santuários, e até na batota! ... Papel. Tudo papel! ... Papel-moeda, papel legal, papel de jogo, papel secreto, papel de crime, papel de graças, papel ...
- Notas, cédulas, letras, bulas, cheques, leis, cautelas, promissórias, recibos, contratos, diplomas, cartas, mercês...
- Claro! Papelosa canónícamente avalizada!
- Encarnação autêntica da divindade, que neta permanece tão real como os deuses nos altares! Você sempre mo saiu um passarão, amigo Corvo! Mas que passarão! ... Sabe como lhe chamam? ...
- Sei. E digo-lhe mais: acho a alcunha muito
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espirituosa. Passarão Negro de Lisboa, quer dizer muito, Dr. Castro Raposo!
- Nesse ponto estou cem por cento de acordo consigo, amigo Passarão.
-Mas olhe que para o se"or nem sequer foi preciso inventar alcunha ...
- Raposo não é nada mau, concordo. Gostava no entanto muito mais de Raposão. Ou até Raposa: Castro Raposa! Os raposos não têm prestígio. Ao passo que os corvos! ... Imagine que eu era Raposa: uma raposa felpuda!
-Deus me livre! ...
E assim foram espremendo o tempo, rodando bulidosamente, sob chuva teimosa, fintando os buracos da estrada, as pedras, as ravinas, as poças, a lama .... até darem boleia ao silêncio e cada um mergulhar em si.
A certa altura, num fuganço mais vadio, Corvo deixou o bólide ir à valeta, garlopando velozmente no talude, que, por ser de barro e estar mole ... não repontou.- bruniu ... e, ainda por cima, uns metros adiante, o devolveu ao leito da via!
-Ufe! ... -Castro Raposo não tugiu nem mugiu.
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JAMBA
A umas três dezenas de quilómetros de Cassínga a chuva tomou-se rala, e depois intermitente. Raposo, apesar da murça, da pera, do bigode, da "pelagem" reforçada que o revestia, era friorento. Encolheu-se no seu canto e deixou-se embalar pelos solavancos da viatura, afundando-se noutras cogitações -tanto mais que Eurico desemproara, tornando-se cauto.
A paisagem era cediça, como quase todo o Leste e Sueste na estação pluvial: floresta rala entremeada de mulolas escorridas e chanas vazias (de longe em longe) pasmadas de tédio...
Decorrida uma hora e tal de viagem, rumo
ao Sul, sempre a descer, a chuva atrasou-se, o Sol despiu-se..., e a Natureza corou!
A floresta, as mulolas, os buracos e a própria lama irradiavam luz e beleza. E os balanços da marcha, apesar de sempre arrenegados, douraram de ritmo, fantasiando cortesias.
A alturas tantas atravessaram o povoado principal da região: Cassinga. A terreola que deu nome aos minérios e às minas. Pouco ou nada parecia ter chovido ali! Não muito depois de Cassinga, o bólide entrou a falhar: pôs-se aos soluços ..., e por fim emudeceu.
Raposo mirou Corvo pela frincha do olho.
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Parecia uivar à carcaça do Passarão: "Garantido contra todas as avarias, não é verdade? ... "
Após uma dúzia de arremetidas infrutíferas do motor de arranque, o engenheiro Negro de Lisboa virou-se para o confrade e pingou:
-Agua no distribuidor! -Oxalá seja... -verteu o parceiro. Novos esforços inúteis -e o remirar agolrento de Raposo. Corvo sentiu-se depenado, Fez da filáucia oração: olho de banda, figa na esquerda - e um esgar de sorriso como a esconjurar o mau-olhado:
- 0 doutor percebe de mecânica? ... Raposo lembrou-se de novo da conversa a bordo do taxi-aérco - e pôs-se em guarda. Há pelo menos duas décadas que não olhava para um motor.
-Bem..., aqui há umas dezenas de anos atrás, percebia ... Mas depois deu-me para só embarcar nestas andanças acompanhado por quem percebesse de ofício, e guardei a jeiteira, as energias e os cuidados para desportos mais consentâncos ... Além disso esta "traquitana" é capaz de ser rabichosa ... e a minha ciência ínfusa de antigo examinador de pesados e ligeiros ... está dessorada.
-Ora bolas... -ambiguou Corvo. -Estou mais ou menos na mesma ... Mas, apesar de
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"podão", como já mo deve ter catalogado, aqui onde me vê, graças a Deus!, nunca fui examinador.
Raposo sorriu de gozo: em jeito de provocação. Mas Corvo não foi ao jogo: penachou mais:
-Vai ver... Isto resolve-se! -Abriu a porta e atirou-se de cabeça para o touro. Digo: para os mistérios da motorança bolidal:
Ferramenta lá para fora .... braços ao léu..., motor ao sol... -e ei-lo daqui para ali, dali para acolá, busca que busca .... à procura do distribuidor.
-Cá está o bicho! -anunciou dois ou três minutos mais tarde, eufórico, o bem-fadado Passarão Negro de Lísboa.
Raposo seguiu-o, e teve de se render: aquilo tinha de facto todo o aspecto de um distribuídor.
Viram melhor ..., e era mesmo! Mas estava seco, Sequinho de todo!
- Caramba ... Afinal não é água no distribuidor! ...
-Pois não! ... -mordeu Raposo, entre irónico e resignado, ao ver tudo aquilo enxutinho.
-Que chatiche! ... -chorou Corvo de rabo caido.
-Podia ser pior ...
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Pior5 1 -Quando há pedaço meteu a "traquitana" pela valeta, se não houvesse aquele talude cooperativo ... estávamos agora de rodas no ar, em plena chuva! ... Ao menos aqui há sol. Até já me passou o frio ...
Corvo não ouviu nem se rendeu. Espetou o bico de novo no galinheiro do motor, e foi penicando aqui e alé m, atrás e à frente, à esquerda e à direita..., mas por fim descaiu:
- Quem me mandou a mim ser generoso? ... Para mais o Tavares até se ofereceu para vir ... Como fizemos feriado..., não quis estragar o dia ao rapaz. Fica-me de emenda!
Raposo ia para lhe dizer que o que ele quis foi deitar figura. De modo algum ser generoso. Mas, ante a expressão daquela derrota, sentiu-se generoso de facto, e nem sequer lhe disse que a ele também lhe ficava de emenda, que o seu dia de trabalho é que pagava as favas, e que o dele, Corvo, embora fosse a Companhia quem o pagasse, valia bem uns "extras" mais, para o Tavares, ou outro acompanhante qualquer, devidamente qualificado. (0 Tavares era o motorista habitual: um mulato fuleiro com ares de embaixador e artes de mecânico - além de manhas à prova de todas as avarias. Era imperdoável que não tivesse ido.
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Quem saía com ele chegava a ter gosto de apanhar um furo. Mudava uma roda em cento e oitenta segundos! E se perdesse o carburador punha uma lata esburacada na crista do bloco, metia-lhe trapos dentro com um tubo no fundo, e o carro seguia. Mal, é certo; mas seguia! A sua
capacidade de improvisação derrotava todas as
pannes. Ora tendo-se oferecido para os acompanhar, não obstante a roda-viva dos dias da véspera, era indesculpável não o ter levado. Ainda se Corvo fosse sózinho... - Isso sim1 Se ele fosse "sóÚnho" levava o Tavares!)
-Bem... -animou Raposo de orelha a pintar de murcha e um travo de gozo a @ebolar-se-lhe lá por dentro. - Deixe lá! Se não resolvermos a encrenca, quando passar muito da hora prevista para a chegada, mandam alguém ao nosso encontro.
Não lhe disse que tinha na maleta sandes, bananas, chocolate e duas garrafas com água de Sã da Bandeira. (Para Castro Raposo, tal como para a maioria, a água de Sã da Bandeira
era um produto de confiança. Ignorava também que a desacidulavam - como atrás se disse -
com calcáreos do deserto, transportados para o Lubango nos vagões que desciam com gado!) Limitou-se a perguntar simpàticamente:
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_Quantos quilómetros faltam para Tchamulete.
-Uns doze. Talvez nem tanto... Dez, no máximo!
Raposo ficou desiludido. Esperava cerca do triplo. Decidiu vingar-se:
-Diga-me uma coisa: o carro tem gasolina? -Por quem me toma o senhor? -repontou o Passarão abespinhado.
Castro Raposo não garantira que era aquela, a "avaria". (Não dissera que se tratava da clássica panne de burro). Fez-se por isso desentendido e passou ao item seguinte, rememorando a ladainha da sua velha cartilha de examinador de pesados e ligeiros:
-Vejamos se a bomba trabalha ... Procura aqui; busca além, apalpa acolá..., acabou por descobrir a maldita bomba. "Irra!", praguejou entre si. "Não há direito de se disfarçar uma coisa essencial desta maneira! Não digo que se ponha um letreiro em cada peça. Mas que diabo! ... Que as ponham à vista e não lhes adulterem o feitio! ... Bem, por onde entra o combustível? ... Pronto: por aqui! E por onde sai? ... Sai por ali ... Está-se mesmo a ver".
Fez as manobras recomendadas pelo manual dos "bons tempos" e resultou! (A bomba cumpría na ponta da unha: de cada vez que a orde-
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nhava saía de lá um esguicho que nem o repuxo daquele menino de Bruxelas..., que não tem vergonha na cara de repuxar em público naquele despudor.)
-A "traquitana" tem gasolina e a bomba trabalha, amigo Corvo! - cantarolou Raposo, de soslaio para o Passarão. -Agora o passo seguinte: "ver se há corrente nas velas"!
E foi desbobinando a ciência de há um quarto de século.
Corvo estava a ficar impressionado. Havia corrente em todas as velas: chispavam melhor que um isqueiro de marca. Raposo con-
venceu-se ... e corvejou:
-Se a gasolina chega ao carburador e as velas chispam, ou o motor trabalha ou o busilis está aqui! - E pôs a manápula emporcalhada no corpo do delito: o carburador.
Fez uma experiência, e outra, e outra... -e espera aí que eu já venho: o motor não tossiu nem espirrou!
Carburador cá para fora. Abre, analisa, sopra, limpa, desmonta, analisa outra vez -e torna a montar. Arranque ... e o motor, nada! Se embirrento era, mais embirrento ficou.
Uma hora e tal mais tarde estava tudo na mesma. 0 carburador fora aberto, revisto e montado, sei lá quantas vezes; a bomba testada,
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antes e depois; as velas revistas, limpas, medidas e aparafusadas; o distribuidor cuspido, soprado, batido..., o diabo a quatro! Estava tudo, absolutamente tudo em ordem. Mas o
motor ... "moita carrasco!". Quando muito, de longe em longe, um suspiro ou dois .... e pronto! Raio de enguiço aquele! ...
Esbodegado, esvaído de toda a sabedoria, o
cientista (o velho examinador, o incomparável Raposo!) entregou os tentos e desistiu.
Eurico Negro de Lisboa retomou o comando das operações - convicto de ter aprendido (naquele comenos!) o bastante para dar um bigode ao Raposão. Fez de modesto e pipilou:
- Deixe-me cá fazer uma tentativazinha mais ...
- Faça mil. Estou chateado que nem um perú! - E foi estender-se à sombra de uma árvore convidativa.
Ia tão remoído que nem se lembrou dos lacraus, do quissonde, das cobras, das tarântuIas ... de todas as mais bichezas matumbas!, nem tão pouco fez caso das moscas. (Aos mos-
quitos já estava habituado). Tinha os nervos em tal desordem que deu consigo a repetir, uma vez atrás de outra, a expressão do remate da experiência mecânica: "Estou chateado que nem um perú! Chateado que nem um perú! Cha-
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teado ... " -e o seu inesgotável senso de humor veio à tona: "Caramba! ... nunca vi um perá chateado! ... E porquê um perú? ... Ainda se fosse um corvo ... Ou uma raposa ... E chateado porquê? ... Tenho de comer e de beber ... Estamos perto ... Ora ... Façamos de conta que é um piquenique!" -e sorriu, gozando a sombra e o calor.
0 tempo, para ele, foi-se arrastando cortêsmente ... Deu-se ao mornaço gostoso, "passou pelas brasas", fez as pazes consigo ... e invadiu o reino de Morfeu. Quando vogava no melhor do cochilo, deslizando sobre nuvens de espuma..., acordou: Corvo explodia de júbilo:
- Eureca! ... Eureca! ... Até que enfim! Passarão Negro de Lisboa esbracejava de alegria.
- 0 que é, afinal?! ... 0 carburador? - inquiriu Raposo estremunhado, sacudindo as formigas e correndo para o bólide.
- Um ciclista! - uivou Corvo no auge da euforia.
-0 quê?! E de si para si: " Estará ele doido? ... Pobre Eurico! E logo um ciclista! Ainda se fosse a Hermengarda! ... Pode lá ser?! ... Como diabo pôde "um ciclista" encafuar-se no motor da"traquitana"? ...
-Um ciclista! Um ciclista! Um ciclista!
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1 A. REGO CABRAL
-repisava Corvo duas oitavas acima do seu melhor.
Castro Raposo sacudiu a cabeça e deu um lambada em cada uma das faces, para se certíficar de que tinha acordado. Não havia dúvida! Não estava a sonhar.
Perante o insólito dos gestos do cientista, a
pasmaceira que lhe estrelava os olhos, a folga do queixo, a eloquência do todo, Passarão de Lisboa, apesar de despenado, sujo, e com o bólide a rir-se dele!, crucitou à fadista:
-Sim, um ciclista! Vem acolá! -e apontou para as bandas do destino, o arrenegado couto mineiro de Tchamutete.
Castro Raposo acabou por entender: Uma bicicleta muito mal enjorcada, empenadíssima, uma roda a cambar para oeste e
outra a fugir para nascente, quase a desfazer-se!, puxa que tira, vai que não vai..., ziguezagueava rumo ao bólide, equilibrando prodigiosamente um preto faceiro, todo janota, cento e tantos por cento endomingado.
- Por aqui... tem de ser um dos meus trabalhadores! - sentenciou o camarada de Lisboa, ungido já de paternal confiança (ferramenta para o chão) avançando para o subordinado, feito para a mandice.
Raposo foi atrás dele, comovido pelas acro-
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bacias do pedalísta, ansioso pelo sprinte final. Não sprintou. A um gesto firme, de comando bem medido!, todo paternaP, do Negro de Lisboa, o caipira fez um viranço repentino, e zás!
- desmontou.
Por um triz que não se estendeu. Era um principiante convencido, madurão, de tacha arreganhada e ar feliz.
- Bum.> dia! - grunhiu de gosto, sorrindo de lés a lés.
-Bom dia -rosnou, condescendente, o
também convencido Passarão.
Estava-se mesmo a ver que o ciclista apreciara a paragem, e queria umas braçadas largas de corda. Há lá coisa melhor do que falar? ... Mas o camarada Negro de Lisboa não lhe deu um metro de guita sequer. Solene! -paternalíssimo embora- fez honra aos galões:
-Donde vens tu, meu rapaz? -Vem do Chatete. Dos trabalho... -Todo ele era satisfação.
-Com quem trabalhas tu? -Trabalha no sô Parrana. -Muito bem... - (uma pausa de general). -Olha!, eu sou fulano assim assim, frito e cozido, assado e de caldeirada, etc., e tal, e tal! ... Conheces, não é verdade?
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Ah! ... - exclamou encantado; e riu, batendo palmas. - Conhece! ... Comestá Comestá? ...
Estendeu a manápula, iluminou a expressão e fez luzir a dentuça:
- Ah, ah, ah! ... -Muito bem... -correspondeu Corvo professoralmente. -Como vês, meu rapaz, estou empanado. - E apontou para a viatura em geral, para a ferramenta semeada pelo chão, para o motor, e por fim para o geólogo.
Este não gostou. Fez um gesto de quem pretende sair à estaca, mas o de Lisboa não lhe deu tempo. Quando ia a abrir a boca já os
tímpanos lhe vibravam em sintonia atrasada com a emissão de Eurico para o pedalista:
-Olha! Preciso que me leves um recado ao senhor Parrana. Quero que ele venha aqui ter comigo imediatamente, com um jeep, ou uma carrinha, para me socorrer. Percebes?
-Ah, ah! ... -exclamou o outro, batendo outra vez as palmas, numa desmontração de pura alegria.
-Percebes o que eu te disse? -Ah, ah! ... Percebeu ... E de palmas a abrir e a encostar, esquecido já do biciclo, estendido na terra, foi contemplando as desgraças "dos branco", a porcaria das mãos, o desalinho das vestimentas, o bólide,
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o ferramental .... e rematou com ar felicissimo, transparentemente reinadio:
-Eu vai nos Cassinga, patrão.
- Está bem. Mas eu dou-te matabicho'
- Eu vai nos Cassinga, patrão. Pode levar mukanda nos Cassinga. Vai lá ... Faz bilhete!, Eu leva. _ Não é, isso. Não me interessa mandar "mukanda nos Cassinga". 0 que eu quero é que me leves um recado a Tchamutete. Que me leves um bilhete ao senhor Parrana. Percebes?
- Percebe ...
- Pago-te bem. Um dia de ordenado!
- Ah, ah! ... -e voltou a bater as palmas, agora já menos aberto, fitando mais uma vez o bólide, o todo sebento dos "artistas", e, sobretudo, a ferramente espalhada em redor, tornando-se sério.
-Vais então?... -insistiu Corvo, meio desprofessorado.
- Ah, ah! ... -e o sorriso voltou a luzir-lhe nos dentes. -Não, patrão. Eu vai nos Cassinga. Pode levar bilhete nos Cassinga. No Chatete num pode. Vem memo, memo, de lá! Num pode.
- Mas eu dou-te dois dias de ordenado .... ou mesmo três, e mando a carrinha depois levar-te a Cassinga.
- Não, patrão. Num pode. Vai nos Cassinga.
A. REGO CABRAL
Mas ouve lá, tu quase não perdes tempo! De bicicleta chegas a Tchamutete num instante; vens para cá de carrinha, mais o senhor Parrana; a seguir, eu mesmo vou levar-te a Cassinga! E no fim dou-te uma semana de orde. nado! Está bern? ... Não perdes mais de uma hora! ... Urna hora e um quarto, no máximo!
- Ah, ah! ... Três hora, Chatete aqui!
- 0 quê?! ... Gastáste três horas de Tchamutete aqui?
- Ah, ah ... Corrente num estar bom. Sair muito.
Castro Raposo, já divertido com o negócio da conversa, olhou melhor para a bicicleta e viu que a desafinação da maquineta não se circunscrevia apenas às rodas. A corrente estava de facto larguíssima. Devia, sem dúvida, saltar a cada passo. Porventura de cada vez que o
"fadista" deixasse de pedalar ou alterasse o ritmo dos pedais. Mas, quanto às três horas (disso sabia ele muito bem) uma vez que estaríam a cerca de uma dezena de quilómetros de Tchamutete, pelo que ouvira, tanto podiam ser três, como seis, ou dez, ou duas apenas, ou nem uma sequer. Tempo e dinheiro, era evidente, para aquele patrícío, eram mercadoria de preço mais que vário, sempre aleatório -nunca fundamental. Mesmo que o homem tivesse largado
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de Tchamutete depois das nove e consumisse três horas na viagem, o tempo tanto podia ter sido gasto a pedalar e repor a corrente na posição de rodagem, como, sobretudo, a divertir-se, a lazer, a dar à língua, a ir atrá s de um enxame---, ou simplesmente a pavonear-se, a pé, de máquina à mão, para que o admirassem melhor.
Mas Corvo -o Passarão Negro de Lisboaapesar da sua experiência africana, lisboado como estava, teria esquecido já, ou deixado de sentir, aquilo que para certas criaturas é tantas vezes mais alviçareiro, e até significante. Tei- mosou por isso na dele. Em ser, e se mostrar: Passarão de Lisboa.
Seguro da sua força, da validade das suas razões, do seu poder, dos seus dons de convicção, da hierarquia julgada em causa, daquilo que o geólogo pudesse pensar, não cedeu. Não quis atender a mais ninguém -além de si. Argumentando sempre com lógica, lisura, clareza, e até cordialidade..., ainda por cima foi fazendo ofertas sucessivamente maiores! -Tudo em vão ..., como não podia deixar de ser. Só para ele, Eurico de Lisboa, as ditas ofertas eram cada vez mais generosas e tentadoras - e a con-
versa tinha lógica.
Não conseguiu pois, demover - e portanto impressionar - aquele pinoca tranquilo, peda-
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lista de exibição. Absorvera-se de tal modo consigo, que nem sequer notara que o paleio, a conversa por si só -sem a menor dúvida - valia para o outro muitíssimo mais que todas as ofertas. E quanto mais oferecesse, mais valia a pena resistir. Que horas e horas de gozo, de orgulho, o pinoca estava a "amoedar", para depois vender, revender, tresvendeÈ! ... Que "falar" bom aquele, para depois falar, falar, falar ...
0 escorrer do tempo venceu o de Lisboa -que deixou transparecer a derrota e o próprio despeito. Que inferno escaldante não devia queimar-lhe as entranhas! ... E o camarada ciclista, sempre calmo e a rir, a enriquecer, a enriquecer, a enriquecer ...
Castro Raposo gozava também. Não só esquecera o malogro da sua exibição mecanicista como até quase o abençoava. Se tivesse posto o bólide em marcha teria perdido "aquilo". Que lição! ... E que "filosofia do dinheiro! ... "
É certo que o sofrimento do amigo foi por vezes tão humilhante que chegou a sentir ganas de pregar um chuto na pedaleira do janota e inverter os papéis aos farsantes. Foram assomos fugazes. 0 preto estava na dele, sem ponta de má-fé, cheio da sua razão - e oferecera-se para levar o recado onde lhe pareceu que podia servir o
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outro -que era um branco, apenas. 0 trato de patrão ... era uma senhoria. 0 mais, conversa. E o sim e o não, exactamente como para nós, nem sempre aquilo que, formalmente, os vocábulos implicam.
0 geólogo deixou por isso a ladainha correr. Das meditações sobre os últimos dias, a chuva, o dinheiro, os dramas do rio, etc., foi derivando para outras experiências suas, para os triunfos de Corvo, para aquele "fracasso" desastroso -e
reviu-se com pouco mais de vinte anos, em plena Guiné, aquando do seu primeiro contacto com trabalhadores negros como aquele, ainda não destribalizados, quase puros, e refugiou-se consigo:
Incubiram-no certo dia, algures naquela Províncía, de acelerar a todo o custo determinada tarefa muito urgente. Como já tivesse vencido "enrascadas" no género, embora noutras ambiências, estava cheio de si e considerava-se "um tipo despachado". Aceitou o encargo não apenas sem reservas. Com prazer -convencidí ssimo de que não tardaria a enfeitar-se com um brilharete mais. Dispunha de carta-branca, e, segundo lhe parecia, dos meios necessários para levar a dele avante, embora no jeito daquele amigo de Lisboa. Foi também lógico e generoso: ofereceu mundos e fundos: a Lua, as pró-
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prias estrelas, para que uns "almas de cântaro" (como então lhes chamava) dessem um pedaço mais de si, em rendimento, e ganhassem prémios e salários como até ali nunca tinham auferido. Mas nem tudo é como se pensa ou nos parece. Não convenceu ninguém. Desanimado, amaldiçoou a profissão, as artes, os homens, os bichos, o mar, a "Porca da vida" -e sobretudo a hora em que se deixara atrair para "tão estúpídas e derrancadas paragens". Trabalhava desalmadamente; montara em todos os sectores da obra unia orgânica revolucionária, estupendíssima! -muito superior a tudo quanto já vira e fizera noutros ares e com outros mortais, sempre com resultados garantidos. Não dera por isso ouvidos fosse a quem fosse -e muito menos aos desfasados e ignorantes capatazes do sítio. Se ele ponderara todos os pormenores, tinha a
certeza de tudo estar em ordem! Mas nem a "experiência,> nem o "saber" resultaram. Desíludido também, apesar de ter ainda na manga certos cartuchos de grande efeito, aprendidos no outro lado da fronteira (de que não queria lançar mão -visto haver-se comprometido a usar sômente os seus métodos) viu-se de repente em face dum fiasco ruinoso. 0 pesadelo do desaire enegreceu todos os seus sonhos, ameaçando-lhe os horizontes do futuro. Quase deixou de comer;
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e por fim, de dormir. Sugado pelas insônias, vitima já de cogitações sombrias, viu aproximar-se dele o velho Manuel Antunes, o capataz-geral que tempos antes "reformara" diplomàticamente, a pretexto de mal saber ler e não aguentar o ritmo trepidante das suas técnicas hípereficientes.
- 0 senhor Raposo dá-me licença? - apalpou Manuel Antunes compadecido.
-Diz lá ... -Se o senhor Raposo me deixasse amanhã orientar o pessoal cá na minha feição, com os meios de que agora dispomos, e a pagar como o senhor Raposo quer, garanto-lhe que fazia diàriamente mais ainda do que aquilo que está marcado para cada grupo. Acredite, senhor Raposo! Eu conheço esta gente. Falo as línguas deles há mais de trinta anos.
Não acreditou. Mas por descargo de consciência, e para se ver livre do "pobre diabo do Antunes", cedeu. Perdido por cem, perdido por mil!
-Está bem Manuel Antunes. Amanhã podes fazer um ensaio na Ala do Norte. Mas só te dou um dia, Estou farto de experiências.
- Posso ir ao acampamento combinar com o pessoal prà gente pegar às seis?
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-Mas o horário manda pegar às oito, Manuel Antunes!
- Eu sei, senhor Raposo. Mas como vamos trabalhar à compita, quanto mais cedo se pega mais cedo se larga, e menos sol se apanha. 0 que a gente quer é despegar cedo.
- Faz como entenderes. Conheces bem as tarefas que eu estipulei, não conheces?
- Conheço, senhor Raposo. Trinta por cento mais do que se fazia na jorna. Pra facilitar as
contas e cá por umas coisas vou ter de puxar prbs cincoenta por cento. Já matutei no caso.
Tarefa duma jorna e mais metade de outra, e cá uns pagos como vai ver, senhor Raposo.
-Está bem. Depois se farão as contas para liquidar os prêmios dos vinte por cento de acréscimo, se vocês cumprirem ...
- Cumprimos! Garanto-lhe que cumprimos. Matutei em tudo. Vai ver.
-Está bem... -suspirou desoladamente. -Vai à tua vida, Manuel Antunes. E oxalá tenhas sorte.
-Muito obrigado.
0 capataz desandou com um luaceiro no rosto.
Castro Raposo soube depois que o Antunes se dirigiu ao pessoal mais ou menos assim!
- É gente! Os que trabalham na Ala do Norte
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e quiserem amanhã pegar às seis, terão de fazer isto e aquilo e mais aqueloutro. Mas assim que findarem, o que deve botar lá prà uma da tarde, arreiam e vão à cantina receber uma dose reforçada de carne, ou de peixe, e um quilo de farinha e mais meio litro de vinho inteiramente de borla! (Os extras cabiam à vontade nos prêmios atribuíveis aos vinte por cento de acréscimo de produção - meta julgada impossível, pois traduzia mais do dobro daquilo que se estava a produzir).
Toda a gente se pôs de pé - e ouviram-se comentários de aplauso. Indiferente, Manuel Antunes foi por diante:
- Salários e prêmios como diz o regulamento. E também, bom é de vefl, uma tarde inteirinha de folga! ... Quem não quiser... pega e despega no horário, ganha na moda do costume, e não se lhe leva a mal. Isto é só para os melhores!
Pegou tudo às seis, na Ala do Norte. E ao bater do meio-dia não havia vivalma nas bandas do Manuel Antunes.
Castro Raposo fez um vistão. Só faltou condecorarem-no. Não houve tempo... Foi despachado à pressa para outra encrenca, noutra Província, onde molestava um sarilho pior. Os maiorais, no entanto, deram a medalha ao sucessor!!!
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Raposo levou consigo Manuel Antunes e só o "reformou" quando ele pediu que o deixassem descansar.
0 geólogo às voltas com estas recordações e
o janota do ciclista a chegar-se para ele. Estava encostado à traseira do bólide, como quem olha para o embirrento do motor, mesmo em cima do arraial da ferramenta.
0 marau do preto ia de olho feito para as chaves-de-porcas. Raposo cortou-lhe o jogo. Disse para consigo: " 0 que tu queres, meu pinoca, é esticar a corrente da pedaleira ... Pode ser que as pagues todas juntas". E com toda a pachorra, no mais ostensivo desplante, fitando-o bem nos olhos, pôs uma das botas em riba das chaves e arreganhou-lhe a tacha a preceito. 0 outro matou a charada.
- Ali, ali ... Patrão, presta ferramenta ... Se não se tivesse lembrado do Manuel Antunes, Castro Raposo era muito capaz de lhe ter dado uma corrida: um berro que o janota nem em Cassinga havia de parar! Mas a meditação inspirara-o. Optou por uma faena à Manuel Antunes -até para arrumar o Negro de Lisboa. "Prepara-te para aprender, meu alfacinha duma figa! " Tirou a bota das chaves e carteou para o ciclista:
- Serve-te da que quiseres... - E pôs-se a
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rezar à Virgem para que o marau não se entendesse com a chave nem tão-pouco com a "avaria".
Foi exactamente o que sucedeu. 0 janota começou a pagar as favas com juros dobrados. Quanto mais mexia na máquina, pior ficava. Quando a corrente parecia firme, as rodas não buliam; se rodavam, o empeno crescia e tornava a "pasteleira" incapaz. E assim por diante, tempo
carpir, deixando o biciclo sem préstimo, nem aparências de afinação possível. Desistiu. Embora a máquina fosse sobretudo para vista, o facto de não a poder exibir repimpado no selim, ou levar à mão sequer, humilhava-o. Mas como não havia remédio, dispôs-se a carregá-la no ombro. Castro Raposo jogou então para a vaza fatal:
-Quanto me dás para eu te compor a bicicleta, Bé?
0 preto deitou a máquina outra vez e pôs-se a mungir o miolo.
-Num sabe. Num tem pra pagã, patrão.
- Tem, 'tem ... Se num tem pode ter ...
0 caipira mergulhou os olhos nos olhos de Raposo. E depois nos de Corvo. Escorreram segundos ansiosos ... De repente, deu-lhes as costas e preparou-se para desandar. Preferia gemer com toda aquela "sucata" às costas. "Ai o
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melro!", disse Castro Raposo entre s@. E amenizou a derrota do preto com uma trunfada a puxar resposta:
-Espera, lá, Bé ...
0 preto ficou a olhar para ele. 0 geólogo tirou-lhe os restos da maquineta das mãos ,, depô-los aos pés. Arreganhou-lhe depois a tacha, e assumindo um ar de soba, acorrentou-o sem remissão:
- Vais ver como se faz ... Queres, Bé 5 ...
- Quer! E sem mais paleio pôs-se a compor-lhe o brinquedo. Para aquilo ainda tinha ciência de bonda. Decorridos poucos minutos o biciclo estava remelosamente em ordem. De rodas no ar, assente pelo guíador e pelo selim, parecia renovado. Castro Raposo deu aos pedais e a roda motora girou que era uma lindeza. Parecia um milagre! ... Os olhos do pedalista falavam. Riam, riam! ... de orgulho e gratidão. Mas quando ia a agarrar na maquineta o geólogo impediu-o ... Assombro, revolta e desânimo, por todo ele! -Raposo deixou-o sofrer largos@ segundos. A seguir sangrou-o:
-Falta compor a roda da frente, Bé! ... Não vez que também não está em ordem. Queres ir assim? ...
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Ah! ... Sim, sim, patrão... Compõe, Compõe! ...
Depois do susto, o alegrão assumiu proporções de batuque por óbito de sèculo.
Passarão Negro de Lisboa, imerso todo aquele tempo em si, cogitava profundamente. Mal porém a maquineta ficou em ordem, ergueu a mão e apossou-se do diálogo. Raposo não reagiu: sen-
tou-se e deixou as águas correrem: "Vejamos!", disse entre dentes, preparando-se para os actos seguintes. " Espalha-te mais ... pra levares a
trepa que mereces. Já viste que meteste por caminho errado, bem sei. Veremos se és capaz de acertar na órbita justa. Vá! Estende-te mais uma vez! "
0 Passarão entrou assim: -Olha lá, Bé! ... Castro Raposo ficou varado: o lisboeta aprendia depressa! Até já chamava o janota de Bé1 ...
- Corvo prosseguiu:
-Olha lá, W, Que vais tu fazer nos Cassinga?
Conversa é moeda universal. Não sendo falsa é sempre bem aceite. Aquela parecia de lei.
-Comprar uns camisa, patrão. -Comprar uns camisa?! ... -Sim. Uns camisa! -E levantou um dedo,
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para que não restassem dúvidas de que se tratava ae uma camisa apenas.
-Uma camisa como esta? -quis saber o Passarão de Lisboa, apontando para a balalaica vistosa que trazia no corpo. Uma lisboeta apeti. tosa, a puxar para fadista!
- Ah! ... Não ... Essa muito bom! -Gostas dela? ...
- Ah, ah, ah! ... Gosta. Gosta muto, patrão.
0 janota quase se babava a remirar a bala- laica alfacinha. Mas o espertalhão do Negro de Lisboa cortou-lhe as voltas:
-Olha lá, Cassinga é muito longe? - Pôco longe.
- E Tchamutete? ... É muito longe?
- Muto longe. -Muito, muito, muito, muito longe?
- Ah ... Não. Menos longe. -Pouco longe?
- Pôco longe. -Pouco mesmo?
- Pô ... - e suspendeu a resposta, mirando o Negro de Lisboa, o qual, pardalão como era, deu nova voltinha ao paleio, levando o coitado para outra curva:
- Diz-me cá, Bé!, tu não vais a Cassinga só por causa da camisa, pois não?
- Ah, ah, ah! e riu e bateu palmas como
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ainda não fizera até ali. Dir-se-ia ter sido caçado numa ratada, e gozar com o próprio enleio.
- Vais aos copos! ... Não vais, meu caipira?! ... -mangou Lisboa, fazendo pasmar Castro Raposo de verdade. (Teria havido comunicação de pensamento?)
- Vai ... Vai nos cuca!
- Ah! ... Vais à cerveja?! ... Muito bem. Olha, já agora, para festejar o arranjo da bicicleta, vou oferecer-te meia dúzia de eucas ... e esta camisa! Queres? ...
- Sim! Sim, patrão! Dir-se-ia, que lhe faltara o ar. Parecia sufocado pela fartura. 0 choque foi tão violento que a voz acabou por se lhe estrangular. Os olhos saíam-lhe das órbitasvidrados na camisa do alfacinha, quase a comiam.
Passarão Negro deixou o tempo correr... Ultraladinamente, com a mais velhaca das inocências, repisou na sua aliciante voz grave, prenhe de engodo, com pausa -muita pausa e compunção:
-Seis cucas ... Seis cucas e esta camisa ... Esta. Esta mesmo ... Bé! ...
- Sim, patrão! ...
- Bem ... a camisa posso dar-ta já -e fez menção de a despir. A meio, contudo, hesitou: -Que chatice! ... Não senhor! Quero dar-ta jun-
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tamente com as cucas. Tudo junto! Mas .... diabo!, não tenho cucas aqui!
- Ah! ...
- Não faz mal, Bé. Logo que chegue a Tchamutete, compro doze cucas, dozel, doze é melhor! ... e dou-tas. Mais esta camisa! Está bem? ...
- Sim patrão!
- Vou esperar que chegue o senhor Parrana. Quando o senhor Parrana chegar..,, dou-te a camisa e as doze cucas.
E dito isto foi-se deitar à sombra onde o geólogo cochilara.
Até Castro Raposo estava de boca aberta.
0 ciclista voltou-se para ele (entre os dois, lá na dele, a diferença não devia ser de monta) e grunhiu embasbacado, escorrido que nem limão já gasto:
- AM ...
- Ah! ... -grunhiu o geólogo, camaradamente, encolhendo os ombros e compondo um ar de resignação. -Pois ...
- Pois?...
- Pois repetiu Raposo em face da evidência.
0 pedalista hesitou apenas escassos segundos. Foi direito ao bisnáu do Passarão de Lisboa e fez o pano descer:
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- Patrão! Faz bilhete. Eu vai no Chatete. Vai já. Memo, memo já no sô Parrana. Mukanda patrão!
Corvo fez o bilhete e o ciclista partiu.
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Ademanes, ademanes! . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma brisa descalça tacteia a escuridão, afagando a nudez concupiscente do areal ...
Ademanes, ademanes! . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Perdoai-lhes Senhor. Compadecei-Vos de nós
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amen.
ADEMANES, ADEMANES! ...
Durante todo aquele dia (aquela quinta-feira assinalada) Serra de Oliveira sentiu-se esvaído, meio agoniado -incapaz de comer.
Nem por isso, contudo, amoleceu nos seus afazeres, apesar de por eles, estranhadamente, experimentar um como-tabágico fastio torturado por apelos e desdém.
Miranda -é tempo de referi-lo -revelara-se o auxiliar de que o engenheiro se julgava carecido: um colaborador inestimável, deveras ao vértice da situação. De quantos anteriormente com ele pugnaram, poucos ou nenhum o irmanaria. Castro Raposo não se iludira: -Anacleto Miranda era de facto um elemento precioso.
"Vale mais do que mu itos engenheiros! ", comentou Serra de Oliveira entre si, no regresso dos trabalhos, mirando com simpatia o construtor - ao volante, muito sereno, atento aos obstáculos do caminho. , Algo depois, presa daquelas impressões cruas
(e da acidez que o minava) Serra de Oliveira
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cardou o pensar com nova límalha, calcínando a conjuntura:
"Engenheiros?! ... Ilusões! Em cada três só um vale a rabiça! ... Um ... ou dois ... no máximo! Dois?! ... Qual dois, qual aiveca romba? Uma coisa é ser engenheiro ... e outra, muito diferente, seco diplomado em engenharia! ... "
Deixou o pensamento lavrar, e um pouco adiante sulcou fundo:
"E o pior, o mais grave!, é que os deveras inteligentes, tal qual os mais classificados, promovidos pela falência, raro depuram no que redime ... e destilam bolores, ferrugem, salitre... -besuntando-se de fedorência! Cebol ..."
Salgou e remoeu na ideia até sangrar con-
clusões sombrias:
"Sem tacto depois, nem senso das responsabilidades em si, perspectivas correctas dos valores humanos, límpida capacidade de decisão..., afundam cada vez mais o desastre: a decadência que nos dessora!"
Atirou o cigarro pela janela e acendeu outro maquinalmente, alheado por completo do com-
panheiro, da própria ambiência, de si mesmo até -mergulhando mais na descrença.
"Refractáríos da tarimba das obras, foragidos de empresas sem maleitas, inválidos na acção directa basal.... nutrem-se de burocracias e
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fumos de laboratório, de cambulhada com ordenAdores ... e acoitados em arremedos de política e cientismo vão retorcendo mais e mais, sempre para pior!, os astrabismos porretas mandantes, codilhando-nos a vida! Pobres de nós! ... "
Exalou um suspiro acético e aduziu: "São zangões sem nervo nem ferrão! ... Mas grimpam! Sarna! ... E mandam!... -escudados por fanfarras de jograis ... ao clangor de trombetas cangalheíras! ... Os resultados estão à vista: atrasos progressivos! E loucuras, 1 peneiras, despudor... -e este maldito improviso em que nos fizemos mestres, capaz de operar milagres (sem dúvida!), mas que nos impede o acesso às craveiras decisivas. Nunca, por isso, chegamos a 100% seja do que for. Até aos 90, ou mesmo 94, por vezes 95 ... - vá lá, vá lá ... Mas como os 5% finais é 'que depuram, revelam e definem a qualidade, vamos progredíndo ... para a cauda! -industriando escórias: rebutalhos tècnopolíticos! Resultado?... -0 que se vê! ... Bolas! "
Fez um gesto brusco, descendo o punho como quem despede um murro no tampo de um estirador, esquecido mais ainda, se possível, tanto de Miranda como de si. E cerrando fortemente o queixo, desabou:
"Porque raio de carga de água hei-de eu
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querer endireitar o mundo? Merda para tudo isto! Tecniqueira, burocracite, política, políticos, mandarins, mandaretes ... e mais todos os raios que os partam!"
Miranda não resistiu ao impulso para o despertar. Voltou-se para ele, e assim que os olhos se cruzaram, tacteou:
-0 senhor Engenheiro está hoje com mau parecer ...
-Há?! ... -rouquejou Serra de Oliveira ainda ausente.
-Disse eu que o senhor Engenheiro estava hoje com mau parecer!
- Ali! ... Não estou nos meus dias felizes, não. Não sei que tenho ... nem verdadeiramente o que sinto. Sinto-me ... esquisito! Mais esquisito do que mal. Deve ser a porcaria da jambite: essa merda que vampira por aí ... Oxalá o Pinto de Castro venha hoje ... Só me entendo com ele ...
E a conversa descaiu. Miranda não achou como prosseguir. Desejava de todo o coração confortar aquele homem torturado, chefe lealissimo, aberto, cem por cento exemplafl, seu
amigo já. Mas conio?... - Há lá busca mais cega, escalada mais traiçoeira, salto mais ao-incógnito que o voo, o mergulho no dédalo dos sentires
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esse mundo fugaz, omnipresente e avassalador, das realidades impalpáveis? ...
Serra de Oliveira, não obstante, dir-se-ia tê-lo compreendido: interpretado os sentimentos, as intenções e o próprio embaraço do companheiro. Apartou-se de si, contemplando-se embora, e
franzindo um sorriso palustre abordou-o com irmandade:
- E você, Miranda..., que tal se vai dando por cá?
-0 melhor possível, senhor Engenheiro ... Apesar da azáfama e dos sarilhos dos últimos dias, e de todas estas endiabradas transições de clima, sinto-me fino. Completamente em formal Remoçado até! ... Chego a ter a impressão de que nunca me senti tão bem.
A serenidade, o vigor, a saúde de Miranda, tiveram o dom de abrolhar Serra de Oliveira:
-Você devia estar necessitado de ares novos, como este. A pedir esta mudança radical .... ou
outra qualquer, em forma! Os corpos..., o espírito..., as próprias instituições, quando não mudam ... definham, e depois fenecem. Começo por isso a convencer-me de que para os meus males (esta insatisfação, o nervosismo, a impaciência, a quebreira que àltimamente decidiram parasitar-me) o remédio será uma desclimatização em forma, também. Outros ares! Bons ou
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maus ... pouco importa. Para mim, que já saturei, que atingi quase o limiar da improficuidade, a própria fronteira da ineficiência .... serão benéficos. Salutares! ... Pelo menos por uns tempos. Quando vim para aqui, apesar da precaridade das condições, dei-me também admiràvelmente. Não me admiro por isso da sua euforia... Oxalá ela dure o que deve. Aquilo que lhe convém ... * nos convém--a nós, claro está.
- Há-de durar ... Pelo menos para aqui, para * Jamba. Um ano passa depressa, senhor Engenheiro.
- Lá isso é verdade. Sobretudo se o ambiente agrada e os companheiros não são todos "amigos de Peniche" ..., ou coisa pior, como às vezes sucede. Que tal os seus camaradas?
- Gente magnífica! Então os da camarata são estupendos. Do melhor que topei em toda a minha vida. E além de estupendos, curiosos. Isto é, interessantes! Muito diferentes entre si e no entanto qual deles melhor! ?
-Quem são?
- Um electricista de nome Freixo, e dois operadores-mineiros igualmente hábeis e pundo. norosos, sem nada mais de comum entre si. Um deles, angolano-mestiço, Ilídios Soares (de alma inquieta e propensões ao subjectivo) com ânsias e vocação de natureza técnica. Outro, João Cor-
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reia, beirão-serrano, calmo, telúrico (todo confiança e bom-senso) com fibra de rancheiro e mente de agricultor. Todos, contudo, verdadeiros camaradas. Amigos, na melhor acepção da palavra. Não sei se os conhece ...
- Conheço! ... Conheço-os até muito bem.
0 Freixo, desde há um bom par de anos. E os outros por serem dos meus preferidos quando preciso de ajuda mineira em domínios terraplenágicos. São bons moços, de facto. E debaixo do ponto de vista profissional, muito competentes. Mas... - o tom da sua voz mudou - pelo menos à hora das refeições, você arrancha sobretudo
com o Rodrigues ...
-Dou-me de facto bastante bem com ele.
- Não admira. Ele dá-se com toda a gente e parece beneficiar de tendência manifesta para com recém-chegados. Não sei se por impulso ... ou cálculo! Funciona como um dom. A Compa nhia devia mandá-lo especializar-se, tanto mais que fala bem línguas. Dava uma riquíssima "utilidade", além de "ornamento", em public relations. - (Sorriu, gozando uma pausa). - Conhece mais de meio-mundo: metade dos homens e a totalidade das mulheres!
Bem disposto já, e até mangão, riu abertamente, tesourando a seguir:
- Tem no entanto, o que também é deveras
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manifesto!, um fraco muito especial pelas Evas mais novas, quando bonitas. Mas .... deixe-me que lho diga!, você, Miranda, parece que não está disposto a ficar-lhe atrás ... _ Sério. ! ... Porque diz isso? -interrogou o construtor, enleado, visto nunca o terem aferido assim, nem como tal se pensar.
-Ora porquê?! ... Mal chegou fez logo amizades com as moças mais jeitosas da vila!
Miranda enleou-se mais: tufou. os ombros... e cerzindo a fronte à laia de protesto, desculpou-se:
-Só conheço as que o Rodrigues me apresentou ...
- Diga-lhe que é o Rodrigues ... Sempre que o vejo lá em baixo, está com escolta feminina! E da melhor. Da mais raffinée!... Quando não é a Albina, é a Clotilde; quando não é esta, é aquela ..., ou outra qualquer, das pinocas do "grupinho da entrada". Parece-me no entanto que é sobretudo para a Albina que você se perfila mais, Miranda ... E enfim, tenho de reconhecer que manifesta bom-gosto ...
Apesar da entoação francamente camarada, um cibo reinadia, de Serra de Oliveira, Miranda perdeu todo o à -vontade, deixando transparecer o embaraço que o despira. Prurido até ao imo, velou-se num mutismo sorridente, que, não obs-
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tante os seus esforços, retratava a-cores o desconforto e a confusão que o rasgaram -perturbando o engenheiro. Não estava nos propósitos deste feri-lo, ou sequer, no mau pendor, desfrutá-lo. Mudou por isso de tom, procurando varrer a clareira:
-A propósito, você sabe o que se passa com ela, não sabe?
Miranda compreendeu a mensagem. Fez um esforço para corresponder, mas oscilou:
Pretende ... referir-se à doença? ... Exactamente. Sei ... Estavam de novo irmanados. 0 silêncio prolongou a conversa, isolando cada um em seu claustro de meditações.
Açoitado por vislumbres da verdade, Serra de Oliveira ungiu-se, ardeu ... e por fim peregrinou -rumo aos rumos do amigo - votado a confortá-lo, embrenhando-se nas florestas do sentir: quase como quem fala só para si, pendulou a meia voz:
-Uma rapariga tão válida ... Tão nova
Tão sensata! ...
Silêncio de penedias... Decorridos áridos segundos gangrenados, a luz daquela mesma voz orvalhou:
-Oxalá o Pinto de Castro esteja no caminho
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da verdade ... Estou ansioso que chegue ... Não só por mim, como já referi, mas também para saber se os resultados das últimas análises confirmam as promessas dos exames clínicos. Sabe?, parece que há casos em que o mal pode ser travado ... E o Pinto de Castro pareceu-mQ decididamente convencido de que a droga que lhe receitou ... esteja de facto a produzir efeitos mais que passageiros! Não se trataria apenas de esperanças... - (Apesar do tempo decorrido não ir além de umas quantas semanas, e de as doses ensaiadas serem das mais baixas, dir-se-ia tudo levar de facto a crer que Albina estivesse a reagir muito favoràvelmente). -É verdade. Pelos vistos, os médicos estariam mas é com receio das terapêuticas radicais. Principalmente de doses elevadas do ingrediente por onde come-
çaram. Não me lembro do nome ... Há vários já. Suponho que até muito diferentes entre si, visando embora, cada um lá de sua maneira, controlar a proliferação desenfreada dos glóbulos brancos ... 0 Pinto de Castro, pelo menos, parece confiar sobretudo no fortalecimento de virtualidades da natureza, cuja capacidade, se
assim se pode dizer, estaria apenas debilitada .... porventura comprometida. Não se trataria por isso de a substituir (o que seria vão), mas de a coadjuv ar, ou estimular .... na esperança de
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a não comprometer mais. Isto é .... de a recom-
por; de a reavivar! Não sei bem. Olhe, ele estava animadíssimo! As sugestões, os resultados, ou lá o que é ..., do último exame clínico, seriam de tal modo animadores, promitentes!, que os médicos acharam que nem convinha dar-lhos a conhecer, veja lá! ... Guardaram tudo com eles. Claro, você compreende..., isto é estritamente confidencial ...
- Perfeitamente... - sussurou Miranda, como num voto, só olhos e ouvidos, esquecido já de si, do próprio companheiro!, de todo em todo engolfado no drama da paciente.
Serra de Oliveira deixou então o silêncio falar... A carrinha ultrapassara já o destino e rodava para norte, subindo a via exterior. Fez o circuito completo e depois voltou, descendo pela lavaria, de novo em direcção ao centro urbano. Por alturas do bairro ferroviário, frente à estação de passageiros, Serra de Oliveira reatou o
diálogo, guardando o tom anterior, no fio do assunto -como se a conversa não fora interrompida:
-Claro!, em face do que se lhes deparou, os
médicos foram unânimes quanto à conveniência de se repetirem as análises simultâneamente em Luanda e Nova-Lisboa. Se forem concordantes, e confirmarem as melhoras (se melhoras se lhes
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pode chamar), a Albina poderia ter ainda ... anos de vida para viverl Poderia até, em não sei que hipóteses mais favoráveis (que só tempo identificaria), durar o suficiente para adquirir sérias probabilidades de não morrer do mal.
Novo silêncio descalço -tacteando incógnitas num lusco-fusco de auroras: -Corações a orar..., olhares perdidos .... sopros suspensos ... uma voz sumida... e esta pergunta ansiosa:
- Quando é que os médicos a viram pela última vez ...
A interrogação de Miranda foi tão sangrenta que Serra de Oliveira não respondeu logo. Tinham chegado ao recinto fronteiriço à construção onde funcionavam os serviços técnicos, e o construtor, sem dar por isso, estacionara a viatura logo à entrada, barrando por completo os acessos ao parque. 0 protesto de uma buzina, vibrando à rectaguarda, cindiu-o em alvoroços. Meiocá meio lá, repôs o motor em marcha atabalhoadamente, .gaguejando desculpas. Avançou. Premiu o travão e fez alto no rectângulo devido, reservado ao engenheiro. Este, contudo, não saiu: permaneceu onde estava, recostando-se para trás. Miranda refez-se ... De olhos nos olhos do amigo esperou pela resposta retardada.
Serra de Oliveira, entretanto, perdera o fogo da unção. Os incidentes da manobra e os ralhos
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da buzina haviam-no desencantado. 0 rogo daqueles olhos, porém, refizeram a magia: perguntou docemente:
- Onde ficámos? ...
- Tinha-lhe perguntado quando é que os médicos viram a Albina pela última vez.
- Ah! ... Isso mesmo. No dia em que você chegou. Mas o caso vem de trás. Cada um tinha lá a sua preferência por certa droga, determinadas dosagens, etc. Mas como tiveram de assentar numa trajectória concreta, começaram por um
esquema baseado nas ideias do Pinto de Castro, e este ficou, ipso facto, por assim dizer, "o res-
ponsável principal", além de "chefe" do grupo.
0 tratamento principiou: Menezes e Lezaola, sempre atentos..., mas a leucemi'ã, segundo as análises, a progredir: cada vez mais glóbulos brancos, e o estado geral dela a descer. A certa altura, porém, as condições físicas da moça pareceram evoluir para melhor. Vigilância mais apertada. As melhoras acentuaram-se..., e Menezes e Lezaola deixaram de ter dúvidas: admitiram que o ensaio tivesse desencadeado um processus favorá vel! (Foi, salvo erro, no princípio da semana passada). Observaram-na, tornaram a
observá-la, conferenciaram..., e escreveram ao colega. No dia em que você chegou examinaram-na exaustivamente outra vez, reforçando as
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convicções a que já haviam aderido. 0 Pinto de Castro vinha eufórico! Ponha-se no lugar dele: são os colegas a admitir que teria acertado em cheio! ... Chegou em brasas. Viu-a também, claro está. Impunha-se repetir as análises! ... E se elas confirmarem os resultados da observação clínica ... - e ficou-se pela reticência, deixando ao amigo glabros descampados para dedução.
-Mas eles admitem que ela não esteja definitivamente condenada?
-Bem..., penso que admitem ... Pelos vistos, como já referi, há várias formas de leucemia. Umas, por assim dizer, galopantes ... contra as quais pouco ou nada se pode, pelo menos por ora. Outras, menos ferozes, passíveis já de certo amordaçamento, consentindo apreciável extensão da vida. E por fim, se bem os entendi, as de evolução lenta, das quais, algumas, segundo parece, poderiam ser já de tal modo retardadas (se não travadas ... ) que a vida dos pacientes quase deixaria de estar sob ameaça... Mas há mais! ... Creio que se têm descoberto últimamente drogas e processos de combate à leucemia de tal modo promissores, que os médicos acreditam que a batalha contra o mal está prestes a ser ganha. Todavia, mesmo que a vitória tarde um pouco, ou muito até! ... (sabe-se lá?...) os casos menos malignos (eles até já lhes cha-
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mam benignos!), com os meios actuais ... teriam, porventura, deixado de constituir o espectro inelutável contra o qual até há pouco nada se podia... -e puxou por um cigarro, com todos os vagares, ficando-se por aqui, como à espera da reacção do companheiro.
Apesar da cautela, da própria ambiguidade, da nenhuma-certeza das confidências de Serra de Oliveira, Anacleto Miranda sentiu uma paz, um conforto, um consolo imenso expandir dentro de si. Dado como era a pressentimentos e fé no sobrenatural -o que, ao fim e ao cabo, a cada passo, transcendentemente, parece envolver superlúcidas intuições da verdadeira verdade- viu explodir, cósmicamente, fora de si também, aquela convicção obscura que já o
tomara ... e esta certeza raiar: "Albina não está condenada! De modo algum prestes a morrer!" Não fez por isso qualquer esforço para velar a aurora: -Fitou o companheiro ternamente, invertendo as "realidades", e consolou-o com doçura:
- Meu bom amigo ... os resultados das análises vão confirmar as esperanças dos médicos. A Albina não vai deixar este mundo!
Subjugado pela voz, pelo olhar, pelo dito do colaborador, Serra de Oliveira nem soube que dizer. Abriu e fechou uns quantos gestos des-
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conexos, sorrindo -acendendo e apagando a expressão - e, muito a custo, pudicamente, forçando as nuvens, tremeluziu:
-0 ... xalá ... Foi a vez de Miranda sorrir: -Um sorriso cálido, inspirado, envolvente..., que desabrochou o silêncio, fundindo-os no mesmo sentir.
E assim ficaram, longos, muito longos segundos pacíficos -até Miranda (ele desta vez!) impôr a realidade:
Disse que o Dr. Pinto de Castro chega hoje? ...
Sim ... Isto é, hoje ou amanhã de manhã, para se despedir do Professor Sereia. Deixe-me ver... -e consultou o relógio. -Já são horas! Mas não dei pela chegada de qualquer avião! ... Se já veio, está de certeza no hospital. Ou com o Professor ... 0 Rodrigues deve saber. Vamos perguntar-lhe?
Vamos lá. Abandonaram a carrinha e encaminharam-se para o departamento de obras fronteiro. Rodrigues foi explícito:
- Não ... 0 senhor Dr. Pinto de Castro não veio. Chega amanhã de manhã, por volta das oito horas, a bordo de um taxi especial. Do avião que há-de levar o senhor Professor Sereia a Tchamutete, onde almoçará.
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-A bordo de um taxi especial? -estranhou Serra de Oliveira.
-Sim. 0 Sete-Meses está com qualquer deficiência na rádio. Estão de volta dele. 0 Nogueira disse que o "brinquinho" não estava em condições de voar. Sabe como ele é, não sabe? ... Cem por cento meticuloso. É o mal dos profissionais de escola. Se fosse o Corte-Real ...
-E para que horas fixou o "senhor Profes-
sor" a partida? -quis saber Serra de Oliveira, passando das insinuaçães de Rodrigues sobre os
pilotos "de escola", interessado apenas na viagem a Cassinga-Sul, que lhe dizia respeito, visto cum-
prir-lhe estar em Tchamutete quando Sereia passasse por lá.
- Para as dez e trinta. Como sabe (é do programa), o senhor Engenheiro, o senhor engenheiro Mena e o senhor comandante Serrão, além do senhor engenheiro ' Corvo, claro está!, vão com o senhor Professor. Terão de regressar por terra ... Excepto o senhor engenheiro Corvo, que acompanhará o senhor Professor a Moçâmedes (a fim de lhe mostrar o porto mineiro) e depois a Luanda, onde devem chegar ao fim da tarde (conforme também o programa inicial), segundo me informou há bocado o senhor comandante Serrão, para se alertar Moçâmedes e Luanda.
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-Há-de ver muita coisa, não há dúvida!
- escarneceu Serra de Oliveira, de novo sob a acidez da jambite. - Com um programa desses ...
- Tem de ser assim - temperou Rodrigues, fazendo honras à função. - 0 Senhor Professor tem de apresentar cumprimentos de despedida ao senhor Governador Geral na manhã seguinte. No sábado. A audiência está marcada para o meio-dia. E não se pode alterar! ... Consta do programa elaborado em Lisboa ...
-Fixe! -rematou Serra de Oliveira. -Mais alguma coisa, senhor Engenheiro? -Não, obri 'ado. Isto é, o "senhor Profes-
9 sor" vai jantar à sala, ou ainda come no apartamento?
- Ah! ... Já me esquecia. Valha-me Deus! Vai à sala. Oito e meia em ponto ... Tem de levar casaco e gravata! Estamos aflitos por causa do senhor engenheiro Corvo e do senhor Dr. Castro Raposo. Receia-se que não possam chegar a
horas. Como só há pedaço se soube que o senhor Professor ia jantar à sala, e eles mandaram dizer que jantavam em Tchamutete, não se sabe o que sucederá. Saíram com o senhor engenheiro Roxo ... não estão certos para onde. Se para o
Mavulo..., se para o Ouro..., se para outro jazigo qualquer. Mas o Palhota despachou jeeps
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e carrinhas com emissários para todos os lados. Não sabe porém se os encontrarão... Eles ficaram de regressar ao acampamento só à noite ... E tanto podem seguir as picadas ... como os trilhos da prospecção, ou mesmo andar a corta-mato! ... Perderam muito tempo na viagem para lá, Parece que o senhor engenheiro Corvo deixou ir o carro à valeta e bateu num talude. Mas conseguiu safar-se! ... A pancada e o raspão, no entanto, fizeram mossa. Aquilo não é carro para estes caminhos! ... Uns quilómetros adiante, cedeu! ... Passava das duas quando chegaram a Tchamutete. 0 Parrana é que os foi rebocar. Só lhes ficou um bocado da tarde ... Está-se mesmo a ver que não vai ser possível chegarem a tempo ... Mesmo que dessem com eles!
0 senhor engenheiro Mena parece muito preocupado.
-Catita... -trauteou Serra de Oliveira com ar gozão. -0 Professor é muito capaz de julgar que se trata de outro escapanço do nosso amigo Castro Raposo: outra deixa, mesmo a propósito, para não vir ao jantar! ... Quando foi da chegada não escondeu a gastrite, "0 Doutor Castro Raposo tinha obrigação de prever que tomando um suporífero podia não acordar a tempo do banquete! Além disso, sabía perfei-
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tamente que havia de estar a dormir quando o meu avião chegasse!". Catita ...
É o que pensa o senhor engenheiro Mena ...
- aditou Rodrigues com máscara de compunção.
- Mas está-se mesmo a ver que não há qualquer propósito de ...
-Diga-lhe que não há -cortou Serra de Oliveira divertido. -Isso é o que lhe parece, meu caro Rodrigues! Essa opinião corresponde ao juízo de qualquer mortal. Se você algum dia chegar a Professor, passa a ver os factos, os homens e o mundo com outros olhos. As coisas não são o que são. São o que se pensa que sejam! Bem ... logo à noite casaco e gravata, não é verdade?
- Às oito e meia em ponto.
- Fixe ... Até logo, Rodrigues.
- Até logo, senhor Engenheiro. Anacleto Miranda e Serra de Oliveira abandonaram o escritório, despediram-se e cada um recolheu aos seus domínios - a fim de tomar banho e se lisboar para a função das "oito e meia em ponto".
Trinta minutos precisos depois das oito, o Professor emergia na sala do hotel para de novo
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honrar e luzir ao seu público. Olímpico e sereno, o seu todo não se alterara. Parecia no entanto mais fresco, e, se possível, mais professoral ... desta vez: mais patrício do que na tarde festiva da sua memorável chegada.
A refeição decorreu sem nota digna de registo, além da ausência de Corvo e de Castro Raposo, cujos lugares de honra, de um e outro lado de Sereia, penalmente vazios, acusaram pelo repasto fora a heresia da não-comparência. Mas um e outro, contudo, timbraram em vir. Chegaram tarde, porém - apesar de não terem comido nem utilizado o bólide na viagem de regresso. Vieram em duas carrinhas de tracção total, timona das por "sàcristas encardidos", vezeiros nas andanças do sertão.
Assistiram à sobremesa e ao café. A sua "odisseia" filtrou sortilégios. E o Professor (não fosse ele lusitano!), acabou por levedar, panificando (fadista já!), o coração numa viola! -todo ele sensibilizado! Não falou de etnografia, nem de moral, ou tão-pouco de minérios. Mas riu a bom rir, quando o geólogo, no seu estilo cáustico muito pessoal, narrou a despistagem do bólide, a avaria consequente, as professoranças mecanófilas, as fintas ao ciclista
- e a dialéctica da camisa, das cucas e do dinheiro.
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Serra de Oliveira fingiu que comeu. 0 mal-estar que desde aquela manhã o esvaía não deixou um instante de o sangrar. Fez coro, apesar disso, e farpeou a duas mãos, do rabo à cabeça, a propósito da aselhice de Corvo nas faenas da condução. 0 Negro de Lisboa sorriu:
- Meu caro Serra de Oliveira, você é dos que pensam que "quem tem unhas é que toca guitarra". Está muito enganado. É quem a tem! (Claro! -a "guitarra" liça era o bólide).
Clotilde, AIbina e duas amigas mais, com Freixo, Miranda, Rodrigues e um analista recente, à mesma mesa, fizeram quanto puderam para honrar - a cozinha e a copa - e a atmosfera de brio que radiava das gravatas, dos casacos, dos vestidos-de-sair, dos paramentos da função. Todos muito alegres, desfrutando-se e encarecendo-se, eram criaturas "felizes": homens e mulheres "sem problemas".
Ilídio, contudo, comeu e saiu. Tinha um encontro marcado: um longo serão com ginásticas de fracções e regras-de-três.
Correia, de relações cortadas com o "tasco", foi tratar de bois com o pai de Alzira.
Os mais ... como Deus quis. No céu ... uma Lua exangue. Fogueiras nas sanzalas. Tange-ta-tangue, tangue-ta-tangue ...
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Muito depois da meia-noite, Marques da Silva, o topógrafo-chefe -um dos colaboradores mais directos de Serra de Oliveira e seu vizinho de apartamento- ouviu rumores estranhos do lado de lá da parede, nos cómodos do engenheiro. Como este morava só (a família em
Nova Lisboa) e era de bom-sono, Marques da Silva, recordando o mal-estar que durante o dia da véspera macerara Serra de Oliveira, suspeitou que o vizinho estivesse com insônias, ou porventura pior. Entrou em alerta ...
Aos rumores, pouco depois, juntaram-se gemidos!
Marques da Silva acordou a mulher e pediu-lhe que escutasse também. Queria certificar-se de que não se enganara.
Não havia dúvidas! - Serra de Oliveira estava em dificuldades.
0 topógrafo-chefe levantou-se e foi-lhe bater à porta:
Truz-truz ...
- Senhor Engenheirol ... Está doente? ... Precisa de alguma coisa? ...
Por resposta -rumores mais estranhos ainda, sons esquisitos, meios-ais e roncos abafados, como de apelo, relativamente perto da
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entrada (longe do leito!) como avançando sobre a portal
Marques da Silva entrou em pânico. Chamou mais alto, mais forte, gritando quase... -uma angústia fria a gelar-lhe a alma, e um tremor convulso pelo corpo todo:
- Senhor Engenheiro! Senhor Engenheiro! Responda! ... Que tem? ... -e batendo com os punhos na almofada superior, gritando já, atroou a noite, fazendo a porta vibrar.
Um encontrão. Outro mais forte! Um terceiro mais forte ainda! ...
Resistência calma de parafusos e ferraria. Marques da Silva afastou-se - a fim de tomar balanço e derrotar pela força aquela obstinação.
- Antônio - gritou D. Alchía (a esposa) alarmada pela perspectiva do arrombamento.
- Vê lá o que fazes! ... - e travou-lhe o impulso com desespero. - Espera! Eu vou lá dentro buscar a chave do pessoal. Deve estar no chaveiro da copa ...
-Vai então. Mas corre! Depressa! ... D. Alcina partiu. Não deu porém vinte passos. A voz do marido, rompendo lá de trás, quase a sufocou:
- Olha! ... $e não estiver lá acorda o pessoal! Mas corre! ... Se não arrombo a porta!
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A pobre senhora abalou outra vez. Ia sem fala.
Marques da Silva tentou decifrar o mistério através da janela. 0 reposteiro mal corrido abria uma seteira tentadora. A ausência de luz, porém, cegava totalmente o interior ...
Os rumores e os gemidos atingiram a porta ... Sons abafados na couceira .... um rocegar mais em cima .... um baque.
Nova tentativa esfacelada ... Fantasmas na fechadura..., outro baque. Portas abrindo, à esquerda e à direita ... Vozes cruzadas ... Vultos em redor.
Em desespero já... -Marques da Silva pronto de novo para o arrombamentol Não teve tempo de recuar: -A fechadura estalou e a porta cedeu -ouvindo-se outro urro e um baque mais forte:
1 Cinco dedos em sangue, apontados para fora, junto ao chão, cunhando uma fresta!, impediram a porta de refecharl
Marques da Silva empurrou-a brandamente ... e recolhendo aqueles dedos, arrastou o fardo humano prostrado.
Sem fala, de borco, sem movimentos quase ... -Serra de Oliveira moribundo!
Todo ele era sangue. Sangue pela cara,
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pelo tronco, pelas mãos, nas roupas, pelo chão além! ...
Marques da Silva pegou-lhe em peso e estendeu.o no sofá.
Vozes, gente, atropelos, tumulto ... Correrias para os 'médicos, à toa..., para o hospital!
Sangue escorrendo lentamente da boca do moribundo ...
A rotura de uma úlcera gástrica, e a perda de vários litros de sangue, puseram aquele gigante nos umbrais da Eternidade.
Transfusões sobre transfusões. Medo, lágrimas, ansiedade ...
Já era dia -e o Sol raiava - quando a primeira esperança alvorou.
Eram oito horas precisas quando Corte Real, aos comandos do seu novo avião, muito sério, deslizou na pista da Jamba. Trazia Pinto de Castro. Durante a viagem quase não falaran-i. A rádio fizera-os calar. Velhos amigos de Serra de Oliveira, atemorizava-os o pior.
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Sereia foi a Tchai rcgressOu. Decidiu tr< -e sair dali na man) * parte final do progr * fez só Pelo engenb sábado, assistir à mir.,
Estava-se no fim dc diferira muito, das out Ção ... E teve um POUC 1
tudo mais sangue. Ma@ vando esperanças, est@ glóbulos brancos assas,@
gens psicológicas, sob uma arquitectura vasta e s611da,"
FERREIRA DE CkSTRO
"... um romance triste que me comoveu."
JOS2 BLANC ]DE PORTUGAL
Sobre "Tundavala>@".
"Tundavala é um livro singular não só na nossa literatura como em qualquer outra pela expressão tridimensional da, sua arquitectura literária, em que as figuras autênticas convivem com as fíguras imaginárias, e em que os factos realmente acontecidos se prolongam numa atmosfera de sonho que paradoxalmente lhes confere o seu verdadeiro sigiiificado>.
DOMINGOS MONTEIRO
"Da vida como experiência directa, vivida até ao pescoço, A. Rego Cabral entreteceu, novarnente com imaginação, um bom livro. E que livro!" ... "Flá um forte sabor a verdade nas páginas que lhe saiem. das mãos. Há também isto, que ainda hoje se charna dignidade literária. Escreve bem, escreve correctamente, escreve mesmo brilhanternente."
GuEDEs DE AMORIM
"Que belo título e que belo livro!" ... "é escritor nato, e artista da palavra nascido para escrever".
JoXo DE ARACio OoRREiA
"... tem sabor amargo de recordações, tem profunda sinceridade e apresenta-nos páginas de alto valor literário. Z respira Africa. Ãfríca, Angola e o arquipélago das crises e da sede; Af rica e o homem lá nascido ou cimentado, o seu génío ... >
J. de P., DIÁRIO POPULAR
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