Outono da Inocência - Stephen King
Outono da Inocência
Stephen King
O importante é a história, e não o narrador.
Para George McLoed
Outono da Inocência - Stephen King
O Corpo ............................................................................................................................ 3
1 .................................................................................................................................... 3
2 .................................................................................................................................... 3
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4 .................................................................................................................................... 9
5 .................................................................................................................................. 12
6 .................................................................................................................................. 15
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Outono da Inocência - Stephen King
O Corpo
1
As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você
se envergonha, pois as palavras as diminuem - as palavras reduzem as coisas que
pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando
são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto
de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus
inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as
pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por
que eram tão importantes que você quase chorou enquanto estava falando. Isso é pior,
eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de
alguém que compreenda.
Eu tinha doze anos, quase treze, quando vi pela primeira vez um ser humano morto. Foi
em 1960, há muito tempo atrás... embora às vezes não me pareça tanto tempo.
Principalmente nas noites que acordo sonhando. com a chuva de granizo caindo em seus
olhos abertos.
2
Tínhamos uma casa em cima de um enorme olmo que projetava-se sobre um terreno
baldio em Castle Rock. Há uma companhia de mudanças no terreno hoje em dia e o
olmo não existe mais. Progresso. Era uma espécie de clube, embora não tivesse nome
Eram cinco, talvez seis membros assíduos, mais alguns idiotas que às vezes apareciam.
Deixávamos eles entrarem quando havia jogo de cartas e precisávamos de sangue novo.
O jogo geralmente era vinte-e-um, e jogávamos valendo centavos, no máximo cinco.
Mas você ganhava o dobro no vinte-e-um com cinco cartas fechadas... o triplo com seis
cartas fechadas, embora Teddy fosse o único louco a se arriscar.
As laterais da casa da árvore eram tábuas encontradas no monte de lixo atrás da Mackey
Lumber & Building Supply na Carbine Road - estavam rachadas e cheias de buracos
que tapávamos com papel higiênico ou toalha de papel. O telhado era uma chapa de
zinco ondulada que tiramos do despejadouro, olhando o tempo inteiro para trás porque
diziam que o cachorro que tomava conta do lugar era um verdadeiro comedor de
criancinhas. Encontramos uma porta de tela ali no mesmo dia. Era à prova de vôo, mas
estava realmente enferrujada - quero dizer, a ferrugem era demais. A qualquer hora do
dia que se olhasse através da porta de tela parecia o pôr-do-sol.
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Além de jogar cartas, o clube era um bom lugar para fumar cigarros e ver revistas de
mulher nua. Havia meia dúzia de cinzeiros de zinco amassados, CAMEL escrito no
centro, vários posters centrais das revistas pregados nas paredes rachadas, vinte ou trinta
baralhos de moto (Teddy conseguia com o tio dele, que era dono da papelaria de Castle
Rock - quando o tio de Teddy perguntou-lhe um dia que tipo de jogos fazíamos, Teddy
disse que fazíamos torneios de cribbage, e ele achou ótimo), um estojo de fichas de
pôquer de plástico e uma pilha de revistas de assassinato antigas chamadas Master
Detective para folhear quando não havia nada mais emocionante para fazer. Também
construímos um compartimento secreto de 30x25 cm embaixo do chão para esconder a
maior parte dessas coisas nas raras ocasiões em que o pai de algum garoto resolvia que
estava na hora de fazer uma visita rotineira ao clube para ver se éramos mesmo bons
meninos. Quando chovia, estar no clube era como estar dentro de um tambor de aço
jamaicano... mas naquele verão não choveu.
Fora o mais seco e quente desde 1907 - ou assim diziam os jornais, e naquela sexta-feira
antes do fim de semana do Dia do Trabalho e do começo de mais um ano letivo mesmo
as varas-de-ouro nos campos e as valas próximas às estradas secundárias tinham um
aspecto seco e queimado. Ninguém ganhara muito dinheiro com a colheita naquele ano
e as grandes pilhas de enlatados do Castle Rock Red & White ainda estavam lá,
acumulando poeira. Ninguém tinha nada para vender naquele ano, com exceção talvez
de vinho de dente-de-leão.
Teddy, Chris e eu estávamos no clube naquela sexta-feira de manhã reclamando de estar
tão perto a volta às aulas, jogando baralho e trocando piadas antigas e batidas sobre
caixeiros viajantes e franceses. Como você sabe que um francês esteve em seu quintal?
Ora, as latas de lixo estão vazias e a cachorra, grávida. Teddy queria parecer ofendido,
mas era o primeiro a contar uma piada, só trocando francês por polonês.
O olmo dava uma boa sombra, mas estávamos sem camisa para não ficarem
encharcadas. Jogávamos, o jogo mais sem graça que já foi inventado, mas estava quente
demais para pensarmos em algo mais complicado. Tínhamos improvisado um time de
beisebol muito bom que durou até metade de agosto, mas depois muitos garotos
sumiram. Estava quente demais.
Era minha vez e eu tinha muitas cartas de espadas. Começara core treze, recebi um oito
para formar vinte e um e nada mais acontecera depois. Chris passou. Recebi as últimas
cartas, nada que ajudasse.
- Vinte e nove - disse Chris baixando ouros.
- Vinte e dois - disse Teddy com ar desgostoso.
- Estou fora - disse eu, e abaixei as cartas fechadas na mesa.
- Gordie está fora, Gordie levou um ferro e se mandou - buzinou Teddy, e acabou com
sua risada característica de Teddy Duchamp - Eeeee-eee-eee, como um prego
enferrujado sendo lentamente arrancado de uma tábua podre. E, ele era estranho; todos
nós sabíamos. Ia fazer treze anos como todos nós, mas os óculos de grossas lentes e o
Outono da Inocência - Stephen King
aparelho de surdez que usava faziam-no parecer um velho As crianças sempre tentavam
tirar seus cigarros na rua, mas o volume embaixo da camisa era apenas a bateria de seu
aparelho de surdez.
Apesar dos óculos e do botão cor da pele enfiado no ouvido, Teddy não via muito bem e
sempre entendia mal o que as pessoas lhe diziam. No beisebol tínhamos que colocá-lo
perto da cerca, depois de Chris à esquerda do campo e Billy Greer à direita. Só
esperávamos que ninguém jogasse a bola tão longe, porque Teddy ia atrás dela furioso,
enxergando ou não. De vez em quando ficava louco de perder uma boa, e uma vez
entrou de cara na cerca junto da casa da árvore a toda velocidade, feito um dançarino de
boggie. Ficou lá deitado de costas com o branco dos olhos aparecendo durante quase
cinco minutos, e eu fiquei com medo. Então levantou com o nariz sangrando e um galo
enorme e roxo crescendo na testa, tentando dizer que a bola não tinha valido.
Sua vista era naturalmente ruim, mas o que aconteceu com seus ouvidos não era nada
natural. Naquela época, quando era legal ter os cabelos curtos para as orelhas ficarem
aparecendo como um par de alças de vaso, Teddy teve o primeiro corte de cabelo à Ia
Beatles de Castle Rock - quatro anos antes de alguém na América ter ouvido falarem
Beatles. Ele deixava as orelhas cobertas porque pareciam dois bolos de cera quente.
Um dia, quando tinha oito anos, o pai de Teddy ficou furioso com ele porque quebrou
um prato. Sua mãe estava trabalhando na fábrica de sapatos no sul de Paris quando isso
aconteceu, mas quando soube já era tarde.
O pai de Teddy levou-o até um enorme fogão a lenha em brasa de fundos da cozinha e
enfiou um lado do rosto de Teddy numa placa em brasa de ferro fundido. Ficou
segurando por uns dez segundos Depois levantou Teddy pelos cabelos e colocou o outro
lado. Então chamou a unidade de Emergência e disse para virem buscar o filho.
Desligou o telefone, foi até o armário, pegou o .410 e sentou-se para ver televisão com a
arma nos joelhos. Quando a Sra. Burroughs, que morava ao lado, veio perguntar se
Teddy estava bem - ela ouvira os gritos - o pai de Teddy apontou a arma para ela. A Sra.
Burroughs saiu da casa dos Duchamp mais ou menos à velocidade da luz, trancou-se em
casa e chamou a polícia. Quando a ambulância chegou o Sr. Duchamp deixou os
enfermeiros entrarem, foi para a varanda dos fundos e ficou de guarda enquanto
levavam Teddy para a velha ambulância Buick na maca.
O pai de Teddy explicou para os enfermeiros que os oficiais filhos da puta tinham dito
que a área estava livre, mas ainda havia alemães de tocaia por toda parte. Um dos
enfermeiros perguntou a ele se achava que poderia resistir. O pai de Teddy deu um
sorriso contraído e disse ao enfermeiro que esperaria até que o inferno virasse uma
geladeira, se fosse preciso. O enfermeiro cumprimentou-o e o pai de Teddy fez
continência. Alguns minutos depois que a ambulância saiu, a polícia chegou e tirou
Norman Duchamp do serviço.
Ele vinha fazendo coisas estranhas, como atirar em gatos e colocar fogo em caixas de
correspondência há mais de um ano, e depois da atrocidade que fez com o filho,
fizeram-lhe um rápido interrogatório e mandaram-no para Togus, um hospital de
veteranos. Togus é para onde você vai se você foi dispensado das Forças Armadas por
motivos psicológicos. O pai de Teddy tinha participado do desembarque na Normandia,
Outono da Inocência - Stephen King
e era isso que Teddy sempre dizia. Teddy tinha orgulho dele apesar do que tinha feito, e
ia visitá-lo com a mãe todas as semanas.
Era o garoto mais calado com o qual andávamos, eu acho, e era maluco. Fazia as coisas
mais loucas que se podia imaginar. A pior era o que chamava de "escapada dos
caminhões". Corria na frente deles na 196 e algumas vezes não o pegavam por uma
questão de milímetros. Só Deus sabe quantos enfartes não causou, e morria de rir
quando a rajada de vento do caminhão que passava balançava suas roupas. Ficávamos
com medo porque sua vista não prestava, com ou sem os óculos fundo-de-garrafa.
Parecia apenas uma questão de tempo até não enxergar bem um dos caminhões. E você
tinha que ter cuidado para não desafiá-lo, porque Teddy aceitava qualquer desafio.
- Gordie está fora, eeeeeeeee-eee-eee!
- Idiota - disse eu, e peguei uma Master Detective para ler enquanto eles terminavam de
jogar. Virei a página na parte em que dizia: "Ele Matou a Bela Aluna Dentro do
Elevador Parado" e comecei a ler.
Teddy pegou as cartas, olhou-as rapidamente e disse: - Bati.
- Seu monte de merda de quatro olhos! - gritou Chris.
- O monte de merda tem mil olhos - disse Teddy sério, e Chris e eu começamos a rir.
Teddy ficou olhando para nós com a testa meio franzida, como que imaginando o que
nos teria feito rir. O cara tinha outra coisa - sempre se saía com umas coisas estranhas
como "o monte de merda tem mil olhos" e você nunca tinha certeza se ele queria ser
engraçado ou não. Olhava as pessoas com a testa meio franzida, como se estivesse
perguntando: Ah, meu Deus, o que é desta vez?
Teddy tinha feito trinta - valete, dama, e rei de paus. Chris só tinha dezesseis e era sua
vez.
Teddy embaralhava as cartas daquela maneira desajeitada e eu estava na parte mais
horrível da história do assassinato onde o marinheiro louco de Nova Orleans estava
pisoteando a aluna da faculdade de Bryn Mawr porque não suportava lugares fechados
quando ouvimos alguém subindo correndo a escada que ficava presa do lado do olmo.
Bateram na parte de baixo do alçapão.
- Quem é? - gritou Chris.
- Vern! - Ele parecia excitado e sem fôlego.
Fui até o alçapão e puxei a lingüeta da fechadura. O alçapão abriu para cima e Vern
Tessio, um dos membros, entrou no clube. Estava suando em bicas e o cabelo, que
penteava igual ao seu ídolo de rock, Bobby Rydell, estava colado à cabeça.
- Puxa! - disse ofegante. - Vocês não vão acreditar no que eu vou contar.
- O que? - eu perguntei.
Outono da Inocência - Stephen King
- Espera aí deixa eu respirar. Vim correndo desde lá de casa.
- Vim correndo desde casa - tremeu a voz de Teddy num horrível falsete - só para pedir
perdãooo...
- Vai se foder, cara - disse Vern.
- Não enche o saco, macaco - retrucou Teddy espirituoso.
- Você veio correndo desde casa? - perguntou Chris sem acreditar. - Cara, você tá
maluco. - A casa de Vern ficava à mais de três quilômetros na Grand Street. - Deve
estar um calorão iá fora.
- Vale a pena - disse Vern. - Meu Deus. Vocês não vão acreditar nisso. Estou falando
sério. - Passou a mão na testa suada para mostrar que era sério.
- Está bem, o que foi? - perguntou Chris.
- Vocês podem acampar hoje à noite? - Vern nos olhava com intensidade, excitado.
Seus olhos pareciam duas passas enfiadas dentro de círculos escuros de suor. - E se
vocês disserem para seus pais que vamos acampar no jardim atrás da minha casa?
- É, acho que sim - disse Chris pegando uma nova mão de cartas e olhando. - Mas meu
pai anda de mau humor. Bebida, sabe?
- Você tem que ir, cara - disse Vern. - Sério. Você não vai acreditar. Você pode,
Gordie?
- Provavelmente.
Eu podia muito bem fazer essas coisas - na verdade eu era o Garoto Invisível durante
todo o verão. Em abril meu irmão mais velho, Dennis, morrera num acidente de jipe.
Foi em Fort Benning, na Georgia, onde estava em treinamento militar. Ele e um outro
cara estavam a caminho da cooperativa e um caminhão do Exército bateu neles pelo
lado. Dennis morreu na mesma hora, e seu companheiro está em coma desde o acidente.
Dennis faria vinte e dois anos naquela semana. Eu já tinha comprado um cartão de
aniversário para ele no Dahlie's em Castle Green.
Chorei quando soube e chorei mais no funeral e não podia acreditar que Dennis não
existia mais, que a pessoa que me dava cascudos, me metia medo com uma aranha de
borracha até eu chorar e me dava beijos quando eu caía e machucava os joelhos e
sussurrava em meus ouvidos "Agora pare de chorar, querido!" - que uma pessoa que me
tocara podia estar morta. Eu ficava triste e com medo dele... mas parecia que aquilo
tinha partido o coração de meus pais. Para mim Dennis era pouco mais que um
conhecido. Era dez anos mais velho que eu, imaginem, e tinha seus próprios amigos e
colegas de turma. Comemos na mesma mesa durante muitos anos e às vezes era meu
amigo e às vezes meu torturador, mas era, principalmente, apenas um cara. Quando
morreu já tinha saído de casa há um ano, com exceção de algumas licenças que recebeu
Outono da Inocência - Stephen King
para nos visitar. Nem mesmo nos parecíamos. Levei muito tempo depois daquele verao
para perceber que a maioria das lágrimas que derramei foram para minha mãe e meu
pai. Não adiantou nada, nem para mim.
- Então o que você está resmungando aí, grande Vern? perguntou Teddy.
- Bati - disse Chris.
- O quê? - gritou Teddy, esquecendo na mesma hora tudo sobre Vern. - Seu mentiroso
de uma figa! Você não tem vinte e um. Eu não te dei carta nenhuma.
Chris sorriu afetadamente. - Pede as cartas, bundão.
Teddy alcançou a carta de cima da pilha. Chris alcançou o maço de Winston na
prateleira atrás dele. Abaixei-me para pegar a revista de mistério.
Vern Tessio disse: - Vocês querem ir ver um morto?
Todos pararam.
3
Todos nós tínhamos ouvido o caso no rádio, claro. O rádio, um Philco com a caixa
quebrada que também fora pego no despejadouro, ficava ligado o tempo todo.
Ouvíamos a rádio WA LM de Lewiston, que tocava supersucessos da época como:
"What in the World's Come Over You" de Jack Scott, "This Time" de Troy Shondeli,
"King Creole" de Elvis e "Only the Lonely" de Roy Orbison. Quando vinham as
notícias geralmente trocávamos de estação. As notícias eram muitas besteiras sobre
Kennedy, Nixon, Quemoy e Matsu, a defasagem no número de mísseis e a bosta que
Castro estava demonstrando ser. Mas todos nós ouvimos a história sobre Ray Brower
com um pouco mais de interesse, porque era um menino da nossa idade.
Era de Chamberlain, uma cidade que ficava a uns sessenta quilômetros a leste de Castle
Rock. Três dias antes de Vern entrar bufando no clube depois de correr três quilômetros
pela Grand Street, Ray Brower tinha saído com uma cesta de sua mãe para colher
amoras. Escureceu e ele ainda não tinha voltado, então os Brower chamaram o xerife do
condado e iniciou-se uma busca primeiro apenas por perto da casa do menino, depois
nas cidades de Motton, Durham e Pownal. Todos participaram - policiais, delegados,
encarregados de supervisionar as regras do jogo e voluntários. Mas três dias depois o
menino ainda estava desaparecido. Você diria, ouvindo a história no rádio, que nunca
encontraria o pobre coitado vivo; no final a busca não daria em nada. Poderia ter
morrido asfixiado numa cascalheira ou afogado num córrego, e daqui a dez anos um
caçador encontraria seus ossos. Já tinham começado a drenar os lagos em Chamberlain
e na Represa de Motton.
Outono da Inocência - Stephen King
Nada disso poderia acontecer no sudoeste do Maine hoje em dia, a maior parte da área
foi urbanizada e as comunidades de trabalhadores em volta de Portland e Lewiston
espalharam-se como tentáculos de um polvo gigantesco. As florestas ainda estão lá e
tornam-se cada vez mais densas à medida que você caminha para o lado oeste em
direção às Montanhas Brancas, mas hoje em dia se você tiver tempo de caminhar cinco
minutos numa direção só, certamente vai cruzar duas pistas de asfalto. Mas em 1960
toda a área entre Chamberlain e Castle Rock era subdesenvolvida, e havia lugares que
não eram desmatados desde antes da Segunda Guerra Mundial. Naquela época ainda era
possível entrar na floresta, perder-se e morrer ali.
4
Vern Tessio estava embaixo da varanda de sua casa naquela manhã, cavando.
Todos nós entendemos na hora, mas talvez eu precise de alguns minutos para explicar a
vocês. Teddy Duchamp era meio burro, mas Vern Tessio nunca poderia participar de
uma sabatina de conhecimentos gerais. Entretanto se irmão Billy era ainda mais bobo,
como vocês verão. Mas primeiro tenho que contar por que Vern estava cavando
embaixo da varanda.
Quatro anos antes, quando tinha oito anos, Vern enterrou um vidro quase cheio de
moedas embaixo da longa varanda que havia na frente da casa dos Tessio. Vern
chamava o espaço escuro embaixo da varanda de "caverna". Ele estava brincando de
pirata, e as moedas eram o tesouro - só que se você estivesse brincando de pirata com
Vern não poderia chamar aquilo de tesouro, mas sim de "ganho". Mas ele enterrou o
vidro de moedas, cobriu o buraco e colocou folhas velhas que caíram lá embaixo com o
passar dos anos sobre a terra remexida. Desenhou um mapa do tesouro, que guardou em
seu quarto junto com o resto de suas tralhas. Esqueceu completamente do assunto
durante um mês mais ou menos. Um dia, sem dinheiro para ir ao cinema ou coisa
parecida, lembrou das moedas e foi pegar o mapa. Mas sua mãe já arrumara o quarto
duas ou três vezes desde aquele dia e recolhera todos os papéis de deveres de casa,
papéis de bombom, revistas de história em quadrinhos e livros de piada. Queimou-os no
fogão para acendê-lo um dia de manhã, e o mapa de Vern subiu pela chaminé da
cozinha.
Pelo menos foi o que ele imaginou.
Tentou encontrar o lugar e cavou ali. Sem sorte. A direita e à esquerda. Sem sorte de
novo. Desistiu naquele dia mas de vez em quando tentava. Quatro anos, cara. Quatro
anos. Não é uma droga? Você não sabia se ria ou se chorava.
Virou uma espécie de obsessão para ele. A varanda da frente dos Tessio tinha a
extensão da casa, provavelmente doze metros de comprimento, por dois de largura.
Tinha cavado cada droga de centímetro daquela área talvez duas, três vezes, e nada das
moedas. O número de moedas começou a crescer em sua cabeça. Quando contou a
Chris e a mim pela primeira vez tinha talvez três dólares em moedas. Um ano depois
Outono da Inocência - Stephen King
subiu para cinco e ultimamente andava por volta dos dez mais ou menos, dependendo
de estar ele muito ou pouco duro.
De vez em quando tentávamos dizer a ele o que para nós parecia claro - que Billy sabia
do vidro e o pegara. Vern recusava-se a acreditar, embora odiasse Billy como os árabes
odeiam os judeus e provavelmente condenaria alegremente seu irmão à morte por
roubar no supermercado, se a oportunidade surgisse. Também recusava-se
terminantemente a perguntar a ele. Provavelmente tinha medo que Billy risse e dissesse
C/aro que eu peguei, seu babaca, tinha vinte dólares e eu gastei cada centavo de merda.
Ao invés disso, Vern ia procurar as moedas sempre que se inspirava (e sempre que Billy
não estava por perto). Sempre saía de baixo da varanda engatinhando com os jeans
sujos, os cabelos cheios de folhas e de mãos vazias. Sempre zombávamos dele e seu
apelido era Centavo - Tessio Centavo. Acho que foi para o clube tão rápido não apenas
para dar a notícia, mas para mostrar a nós que finalmente tirara algum proveito de sua
caça às moedas.
Acordou naquele dia antes de todo mundo, comeu seus flocos de milho e estava na
alameda da casa jogando basquete numa cesta velha que ficava presa no alto da
garagem, pouca coisa para fazer, ninguém com quem brincar de esconde-esconde, então
decidiu ir procurar as moedas. Estava embaixo da varanda quando a porta de grade
bateu lá em cima. Ficou imóvel, sem fazer nenhum barulho. Se fosse seu pai, sairia, se
fosse Billy continuaria imóvel até que ele e o amigo disc-jóquei, Charlie Hogan, fossem
embora.
Dois pares de pernas cruzaram a varanda, então Charlie Hogan disse com voz trêmula,
de chorão. - Meu Deus, Billy, o que vamos fazer?
Vern disse que ouvir Charlie Hogan falar daquela maneira - Charlie era um dos caras
mais brigões da cidade - o fez ficar de orelhas em pé. Afinal de contas Charlie andava
com Ace Merrill e Eyebali Chambers, e se você andava com tipos como esses, tinha que
ser valente.
- Nada - disse Billy. - E isso que vamos fazer. Nada.
- A gente tem que fazer alguma coisa - disse Charlie, e sentaram-se na varanda perto do
lugar onde Vern estava agachado. Você não viu?
Vern arriscou-se e rastejou um pouco mais perto dos degraus, quase babando. Aquela
altura achou que talvez Billy e Charlie estivessem bêbados e tivessem atropelado
alguém. Vern teve o cuidado de não estalar nenhuma das folhas velhas enquanto se
movia. Se os dois descobrissem que estava embaixo da varanda e que ouvira toda a
conversa, você poderia botar tudo que sobrou dele numa lata de ração de cachorro.
- Agente não tem nada com isso - disse Billy Tessio. - O garoto está morto, também não
faz diferença para ele. Quem é que está ligando se o encontraram ou não? Eu não estou.
- Era sobre esse menino que eles estavam falando no rádio disse Charlie. - Com certeza.
Brocker, Brower, Flowers, sei lá. A merda do trem deve ter pegado ele.
Outono da Inocência - Stephen King
- E - disse Billy. Barulho de alguém riscando um fósforo. Vern viu-o cair na alameda de
cascalhos e sentiu um cheiro de fumaça de cigarro. - Eu vi. E você vomitou.
Silêncio, mas Vern sentiu ondas emocionais de vergonha irradiando de Charlie Hogan.
- Bem, as garotas não viram - disse Billy depois de um tempo. - Ainda bem. - Pelo
barulho bateu nas costas de Charlie para animá-lo. - Iam espalhar para todo o mundo,
daqui até Portland. Mas a gente se mandou rápido. Acha que elas perceberam que havia
algo errado?
- Não - disse Charlie. - A Marie não gosta de descer a Back Harlow Road até o
cemitério, de qualquer maneira. Tem medo de fantasmas. - Novamente a voz chorona -
Meu Deus, era melhor se a gente não tivesse roubado carro nenhum ontem à noite! Só
ido ao show como estava combinado!
Charlie e Billy saíam com um casal de malucos chamados Marie Dougherty e Beverly
Thomas; você só via esses tipos do lado de fora de um baile de carnaval - espinhas,
bigode, tudo. As vezes os quatro - ou seis ou oito, se Fuzzy Bracowicz ou Ace Merrill
também estavam com suas garotas - roubavam um carro em algum estacionamento de
Lewiston e saíam alegremente para o campo com duas ou três garrafas de vinho e um
pacote de seis garrafas de ginger ale. Levavam as garotas para algum lugar,
estacionavam o carro, bebiam Purple Jesus e transavam. Depois largavam o carro em
algum lugar perto de casa. Emoções baratas - como dizia Chris às vezes. Nunca tinham
sido pegos, mas Vern sempre torcia para isso. Realmente adorava a idéia de visitar Billy
aos domingos no reformatório.
- Se disséssemos à polícia iam querer saber como tínhamos chegado em Harlow - disse
Billy. - Não temos carro, nenhum de nós. É melhor ficarmos de boca fechada. Aí não
podem mexer com a gente.
- Podíamos dar um telefonema anônimo - disse Charlie.
- Eles descobrem essas coisas - disse Billy pessimista. - Já vi na Patrulha Rodoviária. E
no Dragnet também.
- Sim, é verdade - disse Charlie angustiado. - Meu Deus. Queria que Ace tivesse ido
com a gente. A gente dizia para a polícia que estava no carro dele.
- É, mas não foi.
- É - disse Charlie. Suspirou. - Acho que você está certo. - Uma ponta de cigarro caiu na
alameda. - A gente saiu e foi mijar perto dos trilhos, não foi? Não podia andar na outra
direção, podia? E eu vomitei no meu sapato novo. - Sua voz caiu um pouco. - A porra
do garoto estava caído lá, sabia? Você viu o filho da mãe, Billy?
- Vi - disse Billy, e uma segunda ponta de cigarro juntou-se à primeira na alameda. -
Vamos ver se Ace já acordou. Quero tomar um pouco de suco.
- Vamos dizer a ele?
Outono da Inocência - Stephen King
- Charlie, não vamos contar para ninguém. Ninguém, nunca. Sacou?
- Saquei - disse Charlie. - Meu Deus, seria melhor se a gente não tivesse roubado a
merda daquele Dodge.
- Porra, cala a boca e vamos embora.
Dois pares de pernas vestidos em jeans justos e desbotados, dois pares de pés em botas
pretas com fivelas laterais desceram os degraus. Vern ficou apavorado (- Minhas bolas
ficaram tão encolhidas que achei que iam sumir - contou-nos depois.) Com certeza o
irmão ia vê-lo embaixo da varanda, arrancá-lo dali e matá-lo - ele e Charlie Hogan iam
chutar os miolos que Deus lhe dera e depois pisá-lo com as botas pretas. Mas foram
embora, e quando
Vern teve certeza que tinham ido saiu engatinhando de baixo da varanda e veio
correndo para cá.
5
- Você teve sorte mesmo - disse eu. - Eles iam matar você.
Teddy disse: - Eu sei onde é a Back Harlow Road. É uma rua sem saída que acaba perto
do rio. A gente ia pescar lá.
. Chris assentiu. - Tinha uma ponte, mas teve uma enchente. Há muito tempo. Agora só
tem os trilhos do trem.
- Um garoto podia ir mesmo desde Chamberlain até Harlow? - perguntei a Chris. - São
trinta ou quarenta quilômetros.
- Acho que sim. Provavelmente encontrou o trilho do trem e o seguiu toda vida. Talvez
tenha achado que ia encontrar o caminho de volta ou que poderia pegar um trem se
fosse preciso. Mas agora só tem trem de carga - até Derry e Brownsville, - mesmo assim
não muitos. Teria que ter ido até Castle Rock para sair. Quando ficou escuro um trem
finalmente deve ter vindo... e pei!
Chris bateu a mão fechada na palma esquerda, fazendo um barulho aberto. Teddy, um
veterano de escapadas na 196 parecia ligeiramente satisfeito. Senti-me um pouco
angustiado, imaginando o garoto tão longe de casa, morto de medo mas seguindo os
trilhos, provavelmente andando na ponta dos pés por causa dos barulhos da noite vindo
das árvores altas e arbustos... talvez até dos canos de esgoto debaixo do leito da
ferrovia. Então vem o trem, e talvez os faróis dianteiros o tenham hipnotizado até ser
tarde demais para pular. Ou talvez ele estivesse deitado nos trilhos morto de fome
quando o trem veio. De qualquer maneira, de uma forma ou de outra, Chris disse tudo: o
resultado fora aquele. O garoto estava morto.
Outono da Inocência - Stephen King
- E então, vocês querem ir ver? - perguntou Vern. Estava se contorcendo todo como se
quisesse ir ao banheiro, de tão excitado.
Todos olhamos para ele por um instante, sem dizer nada. Então Chris abaixou as cartas
e disse: - Claro! E aposto qualquer coisa que vamos sair nos jornais!
- Hã? - disse Vern.
- É? - disse Teddy, e deu seu sorriso de louco fugitivo de caminhões.
- Olha - disse Chris debruçando-se na improvisada mesa de jogo. - A gente pode
encontrar o morto e anunciar. Vamos ser notícia!
- Não sei - disse Vern nitidamente confuso. - Billy vai saber como descobri. Vai me
bater até arrancar minha pele.
- Não, não vai - disse eu - porque nós vamos encontrar o garoto, e não Billy e Charlie
Hogan num carro roubado. Então não vão mais precisar se preocupar. Provavelmente
vão lhe dar uma medalha, Centavo.
- É? - Vern sorriu, mostrando os dentes ruins. Foi um sorriso meio confuso, como se a
idéia de que Billy ficaria satisfeito com alguma coisa que fizesse tivesse o efeito de um
golpe no queixo. - É, você acha?
Teddy também estava sorrindo. Depois ficou sério e disse: Hu-hu... !
- O que foi? - perguntou Vern. Estava novamente se contorcendo, com medo de que
alguma objeção realmente séria tivesse passado pela cabeça de Teddy... se é que alguma
coisa passava por sua cabeça.
- Nossos pais - disse Teddy. - Se encontrarmos o corpo do garoto amanhã no sul de
Harlow eles vão saber que não passamos a noite acampando no jardim de Vern.
- É - disse Chris. - Vão saber que fomos procurar o garoto.
- Não - disse eu. Sentia-me esquisito - ao mesmo tempo excitado e com medo porque
sabia que íamos encontrar. A mistura de emoções me deixou profundamente infeliz e
com dor de cabeça. Peguei as cartas e comecei a embaralhá-las para ter o que fazer com
as mãos. Isso e jogar cribbage era tudo que aprendera com meu irmão mais velho
Dennis. Todos os garotos tinham inveja do meu jeito de embaralhar e todos me pediam
para ensinar como era... todos menos Chris. Acho que só Chris sabia que ensinar para
alguém era como dar um pedaço de Dennis, e eu não tinha tantas coisas dele para sair
dando por aí.
Eu disse: - A gente diz que cansou de acampar no jardim de Vern porque já fizemos isso
muitas vezes. Então decidimos seguir a linha do trem e acampar na floresta. Aposto que
não vão nem nos bater porque todos vão estar muito excitados com nossa descoberta.
Outono da Inocência - Stephen King
- Meu pai vai me bater de qualquer jeito - disse Chris. - Ele anda de mau humor. -
Balançou a cabeça, tristonho. - Dane-se, vale a pena apanhar.
- Está bem - disse Teddy levantando-se. Ainda estava sorrindo feito um louco, pronto
para dar sua risada altamente penetrante como um cacarejo. - Vamos nos reunir na casa
do Vern depois do almoço. - O que vamos dizer a eles a respeito do jantar?
Chris disse: - Você, eu e Gordie podemos dizer que vamos jantar na casa do Vern.
- E eu digo à minha mãe que vou jantar na casa do Chris disse Vern.
Aquilo funcionaria, a menos que houvesse uma emergência ou se nossos pais se
encontrassem. E nem Vern nem Chris tinham telefone. Naquela época muitas famílias
consideravam o telefone um luxo, principalmente as famílias mais humildes. E nenhum
de nós vinha de famílias de classe alta.
Meu pai era aposentado. O pai de Vern trabalhava num moinho e dirigia um De Soto de
1952. A mãe de Teddy tinha uma casa na Danberry Street e recebia inquilinos sempre
que podia. Não tinha nenhum naquele verão; a placa QUARTO MOBILIADO PARA
ALUGAR estava na janela da sala de estar desde junho. E o pai de Chris estava sempre
de "mau humor", mais ou menos; era um bêbado que vivia em boa situação financeira a
maior parte do tempo e passava muitas horas na Taverna Sukey's com Junior Merrill, o
pai de Ace Merrill, e outros bêbados da região.
Chris não falava muito sobre o pai, mas sabíamos que o odiava. Chris aparecia marcado
a cada duas semanas mais ou menos. Escoriações nas faces, nó pescoço e um dos olhos
inchados e roxo como o pôr-do-sol, e um dia chegou no colégio com um enorme
curativo na parte de trás da cabeça. As vezes nem ia ao colégio. Sua mãe telefonava
para lá porque ele não tinha condições físicas de ir. Chris era inteligente, muito
inteligente, mas matava muita aula, e o inspetor externo, Sr. Halliburton, sempre
aparecia na casa de Chris com seu Chevrolet preto com o adesivo NÃO ACEITO
ACOMPANHANTES pregado no quebra-vento. Se Chris estivesse matando aula e
Bertie (como o chamávamos - pelas costas, claro) o pegasse, levava-o de volta para o
colégio e fazia com que fosse suspenso por uma semana. Mas se Bertie descobrisse que
Chris estava em casa porque seu pai o espancara, não dava um pio. Só me ocorreu
questionar essas atitudes cerca de vinte anos depois.
No ano anterior Chris fora suspenso do colégio por três dias. Um bolo de dinheiro do
lanche sumiu quando era sua vez de ser monitor e recolhê-lo, e como era um Chambers
sem importância teve que apanhar, embora sempre jurasse que não tinha pego o
dinheiro. Foi quando o Sr. Chambers o fez passar uma noite no hospital; quando seu pai
soube que fora suspenso quebrou seu nariz e seu pulso direito. Chris vinha de uma
família ruim, está bem, e todos pensavam que fosse ser mau-caráter... inclusive ele
próprio. Seus irmãos cumpriram as expectativas da cidade admiravelmente. Frank, o
mais velho, fugiu de casa quando tinha dezessete anos, entrou para a Marinha e acabou
na cadeia de Portsmouth por estupro e assalto criminoso. O segundo mais velho,
Richard (seu olho direito era estranho e tremia, por isso todos o chamavam de Eyeball)
abandonara o colégio no fim do segundo grau e juntara-se com Charlie, Billy e seus
amigos disc-jóqueis.
Outono da Inocência - Stephen King
- Acho que tudo vai dar certo - disse eu a Chris. - E John e Marty? - John e Marty
DeSpain eram dois outros membros regulares de nossa gangue.
- Ainda estão viajando - disse Chris. - Só voltam segunda-feira.
- Hum. Isso é mau.
- Então, estamos prontos? - perguntou Vern ainda se contorcendo. Não queria estender a
conversa por nem mais um minuto.
- Acho que estamos - disse Chris. - Quem quer jogar baralho?
Ninguém queria. Estávamos excitados demais para jogar baralho. Descemos da casa da
árvore, pulamos a cerca para o terreno baldio e jogamos beisebol com a velha bola de
Vern por um tempo, mas também não teve graça. Só conseguíamos pensar no tal do
Brower atropelado por um trem e como o encontraríamos ou o que havia sobrado dele.
Por volta de dez horas fomos para casa combinar tudo com nossos pais.
6
Cheguei em casa às onze e quinze depois de parar na livraria para olhar as brochuras.
Fazia isso a cada dois dias para ver se tinha algum John D. MacDonalds novo. Ainda
dispunha de quinze minutos, e pensei que se tivesse iria comprá-lo. Mas havia só os
velhos, e já lera a maioria meia dúzia de vezes.
Quando cheguei em casa o carro não estava lá, e lembrei que minha mãe e algumas de
suas colegas tinham ido a Boston assistir a um concerto. Uma grande e antiga
apreciadora de concertos, minha mãe. E por que não? Seu único filho estava morto, e
ela tinha que fazer alguma coisa para distrair-se. Acho que isso soa muito amargo. E,
acho que se você estivesse lá entenderia por que me sentia dessa maneira.
Papai estava do lado de fora regando o jardim arruinado com um fino jato de água da
mangueira. Se você não pudesse dizer que era uma causa perdida, pela sua cara mal-
humorada, com certeza poderia olhando o jardim. O solo era uma poeira clara e
cinzenta. Tudo nele estava morto, com exceção do milho, que só dera uma vez. Papai
dizia que nunca soubera regar um jardim; que tinha que ser a mãe natureza ou ninguém.
Ele regava muito um pedaço e ensopava as plantas. Na ala seguinte as plantas estavam
morrendo de sede. Nunca achava um meio-termo satisfatório. Mas não falava sobre isso
com muita freqüência. Perdera um filho em abril e um jardim em agosto. E se não
queria falar sobre nenhum dos dois acho que era privilégio seu. Só ficava chateado
porque parara de falar sobre tudo mais. Aquilo era levar a democracia longe demais.
- Olá, papai - disse eu parando a seu lado. Ofereci-lhe um chocolate que comprara na
livraria. - Quer um?
Outono da Inocência - Stephen King
- Olá, Gordon. Não, obrigado. - Continuava salpicando a pouca água sobre a
incorrigível terra cinzenta.
- Tudo bem se eu for acampar hoje à noite no jardim atrás da casa de Vern Tessio com
os garotos?
- Que garotos?
- Vern, Teddy Duchamp. Talvez Chris.
Esperava que começasse por Chris - que Chris era má companhia, um sujeito corrupto
moralmente, um ladrão, um aprendiz de delinqüente.
Mas apenas suspirou e disse: - Acho que tudo bem.
- Ótimo! Obrigado!
Virei-me para entrar em casa e verificar o que havia no rádio quando me interrompeu: -
São as únicas pessoas com quem você quer estar, não é, Gordon?
Olhei de novo para ele, procurei um argumento, mas não havia nenhum argumento
naquela manhã. Seria melhor se houvesse, eu acho. Seus ombros estavam caídos. Seu
rosto, apontando para o jardim morto e não para mim, estava deprimido. Havia um
brilho artificial em seus olhos que poderiam ser lágrimas.
- Ah, papai, eles são legais...
- Claro que são. Um ladrão e dois débeis mentais. Ótimas companhias para meu filho.
- Vern Tessio não é débil mental - disse eu. Em relação a Teddy era mais difícil
contestá-lo.
- Doze anos de idade e ainda está no quinto ano - disse meu pai. - E durante todo esse
tempo não aprendeu nada. Quando o jornal de domingo chega, leva uma hora e meia
para ler os quadrinhos.
Aquilo me deixava maluco, porque achava que não estava sendo justo. Estava julgando
Vern como julgava todos os meus amigos, de tê-los visto uma vez ou outra entrando ou
saindo de casa. Estava errado. E quando chamava Chris de ladrão eu sempre ficava
furioso, porque ele não sabia nada sobre Chris. Queria lhe dizer aquilo, mas se o
aborrecesse não me deixaria sair. E ele não estava aborrecido, de qualquer maneira, não
como ficava às vezes na hora do jantar, discursando tão alto que ninguém tinha vontade
de comer. Agora estava parecendo apenas triste, cansado e desgastado. Tinha sessenta e
três anos, e com essa idade podia ser meu avô.
Minha mãe tinha cinqüenta e cinco - também não era nenhuma mocinha. Quando ela e
meu pai casaram-se tentaram constituir uma família imediatamente, minha mãe ficou
grávida e abortou naturalmente. Teve mais dois abortos naturais e o médico lhe disse
que nunca conseguiria dar à luz uma criança. Ouvia toda essa história, do começo ao
Outono da Inocência - Stephen King
fim, sempre que um deles me passava um sermão, sabe? Queriam que eu achasse que
era um presente especial de Deus e que não estava dando valor ao fato de ter nascido
quando minha mãe tinha quarenta e dois anos e estava começando a ficar grisalha. Eu
não dava valor à minha sorte nem às suas tremendas dores e sacrifícios.
Cinco anos depois de o médico dizer que minha mãe nunca teria filhos, ficou grávida de
Dennis. Carregou-o durante oito meses e então ele simplesmente veio, com seus quatro
quilos - meu pai costumava dizer que se ela tivesse dado à luz no nono mês, Dennis
teria pesado oito quilos. O médico disse: "Bem, às vezes a natureza nos engana, mas ele
será o único. Graças a Deus, e dê-se por satisfeita. Dez anos depois ficou grávida de
mim. Ela não apenas deu à luz a mim como o médico teve que usar fórceps para me
tirar. Já ouviu falar de uma família tão complicada? Nasci filho de dois velhos, para não
me estender muito, e meu único irmão já jogava beisebol com os garotos mais velhos no
parque antes mesmo de eu deixar de usar fraldas.
No caso de mamãe e papai um presente de Deus teria sido suficiente. Não vou dizer que
me tratavam mal e nunca me bateram, mas eu fui uma tremenda de uma surpresa, e acho
que quando se está nos quarenta não se é tão apreciador de surpresas quanto nos vinte.
Depois que nasci, minha mãe fez aquela operação que suas amigas de reunião
chamavam de "limpeza". Acho que queria certificar-se de que não haveria mais
presentes de Deus. Quando entrei para a faculdade descobri que por sorte não nascera
retardado... embora eu ache que meu pai tinha suas dúvidas quando via meu amigo Vern
levar dez minutos para decifrar os diálogos dos quadrinhos.
Quanto a ser ignorado: Nunca consegui definir isso bem até fazer um trabalho sobre um
romance no segundo grau chamado O Homem I nvisível. Quando concordei em fazer o
trabalho para a Sra. Hardy achei que fosse a história de ficção científica sobre o cara
enrolado em ataduras.
- Claude Rains fazia o papel no cinema. Quando descobri que era uma história diferente
tentei devolver o livro, mas a Sra. Hardy não me deixou fugir da raia. Acabei ficando
muito feliz. Esse Homem Invisível é sobre um negro. Ninguém o nota, a não ser que ele
faça alguma confusão. As pessoas olham através dele. Quando ele fala ninguém
responde. E como um fantasma negro. Quando comecei a ler, devorei o livro como se
fosse do John D. MacDonald porque o tal do Ralph Ellison estava escrevendo sobre
mim. Na mesa do jantar era Denny, quantas você acertou e Denny quem convidou você
para a festa de Sadie Hopkins e Denny quero falar com você de homem para homem
sobre o carro que vimos. Eu dizia: - Passa a manteiga - e papai dizia: - Denny tem
certeza que é o Exército que você quer? - Eu dizia: - Alguém me passa a manteiga? - e
mamãe perguntava a Denny se queria que ela comprasse uma camisa que estava sendo
vendida com desconto no centro, e eu acabava pegando eu mesmo a manteiga. Uma
noite, quando tinha nove anos, só para ver o que ia acontecer eu disse: - Quer passar a
merda desses tomates? - E minha mãe disse: - Denny, a tia Grace telefonou hoje e
perguntou sobre você e Gordon.
Na noite em que Dennis formou-se com honras no segundo grau na Escola de Castle
Rock fingi que estava doente e fiquei em casa. Pedi ao irmão mais velho de Stevie
Darabont, Royce, para comprar uma garrafa de vinho tinto para mim, bebi metade e
vomitei na cama no meio da noite.
Outono da Inocência - Stephen King
Numa situação familiar como essa presume-se que você odeie o irmão mais velho ou
ame-o desesperadamente - pelo menos é o que ensinam na faculdade de psicologia.
Besteira, certo? Mas quanto a mim não sentia nada disso em relação a Dennis.
Raramente discutíamos e nunca brigamos. Teria sido ridículo. Já imaginou um menino
de quatorze anos tentando encontrar um motivo para bater no irmão de quatro? E nossos
país eram um pouco influenciados demais por ele para sobrecarregá-lo com a custódia
do irmão menor, por isso ele nunca ressentiu-se de mim como outros garotos mais
velhos ressentem-se dos irmãos mais novos. Quando Denny me levava a algum lugar
com ele era por sua livre e espontânea vontade, e foram algumas das ocasiões mais
felizes de que me lembro.
- Ei, Lachance, quem é esse idiota?
- Meu irmão mais novo, e dobre a língua, Davis. Cuidado que ele te come vivo. Gordie
é valente.
Cercam-me por um momento, enormes, insuportavelmente altos, só por um momento
como se eu fosse um raio de sol. Eles são tão grandes, tão adultos,
- Ei, garoto! Esse babaca é mesmo seu irmão mais velho?
Assenti timidamente.
- Ele é mesmo um babaca, não é, garoto?
Assenti novamente e todos, inclusive Dennis, caem na gargalhada. Então Dennis bate
duas palmas vigorosas e diz: - Como é, vamos jogar ou ficar aqui parados como um
bando de idiotas?
Correm para seus lugares já quicando a bola no meio de campo.
- Vai sentar lá no banco, Gordie. Fica quieto. Não incomoda ninguém.
Vou me sentar no banco. Estou bem. Sinto-me insuportavelmente pequeno sob as doces
nuvens do verão. Observo meu irmão jogar. Não incomodo ninguém,
Mas não houve muitas ocasiões como aquela.
As vezes lia histórias para mim antes de dormir que eram melhores que as de mamãe; as
histórias de mamãe eram sobre O Lobo Mau e os Três Porquinhos, uma coisa legal, mas
as de Dennis eram sobre Barbazul e Jack o Estripador. Também tinha uma versão da
história de Billy Goat onde o monstro embaixo da ponte acabava levando a melhor. E,
como já contei, ele me ensinou a jogar cribbage e embaralhar cartas. Não muito, mas
ei!, do mundo se leva o que se pode, certo?
A medida que eu fui crescendo meus sentimentos de amor por Dennis foram
substituídos por uma admiração quase clínica, o tipo de admiração que os meio-cristãos
sentem por Deus, eu acho. E quando ele morreu fiquei um pouco chocado e um pouco
Outono da Inocência - Stephen King
tris,te, da maneira que eu imagino que os mesmos meio-cristãos devem ter se sentido
quando a revista Time disse que Deus estava morto. Deixe-me dizer de outra forma:
Fiquei tão triste com a morte de Dennis como quando ouvi no rádio que Dan Blocker
tinha morrido. Via os dois quase com a mesma freqüência, e Denny nunca foi
represado.
Ele foi enterrado num caixão fechado com a bandeira americana em cima (tiraram a
bandeira de cima do caixão antes de finalmente descê-lo, dobraram-na como um chapéu
de bicos e deram para minha mãe). Meus pais simplesmente ficaram arrasados. Quatro
meses não foram suficientes para recuperá-los; eu não sabia se algum dia iriam
recuperar-se. Sr. e Sra. Deprimidos. O quarto de Dennis, uma porta depois da minha,
ficou com sua vivacidade suspensa, ou talvez parado no tempo. As flâmulas de esportes
ainda estavam na parede, as fotos das garotas que tinha namorado ainda pregadas no
espelho, onde ficava horas penteando o cabelo para trás com o topete igual ao de Elvis.
O porta-revistas com exemplares de True e Sports lllustrated permanecia em sua mesa,
as datas parecendo cada vez mais antigas à medida que o tempo passava. E o tipo de
coisa que se vê em filmes melodramáticos. Mas para mim não era melodramático; era
horrível. Não entrava no quarto de Dennis a menos que fosse obrigado, porque sempre
achava que ele estaria atrás da porta, embaixo da cama ou dentro do armário. O armário
era que ficava mais na minha cabeça, e se minha mãe me mandava ir lá pegar o álbum
de cartões-postais de Denny ou sua caixa de sapatos com fotografias, eu imaginava que
a porta abriria lentamente enquanto eu ficava imóvel e apavorado. Imaginava-o pálido e
sangrando na escuridão, a parte lateral de sua cabeça esmagada, um bolo de sangue e
miolos cheio de veias secando em sua camisa. Imaginava seus braços surgindo, suas
mãos transformando-se em garras e ele rosnando: Devia ter sido você, Gordon. Devia
ter sido você.
7
Cidade da Moda, de Gordon Lachance. Publicado originalmente em Greenspuns Quarterly, número 15,
outono, 1970. Reprodução autorizada.
Março.
Chico está de pé na janela, braços cruzados, cotovelos sobre o parapeito que divide a
vidraça superior da inferior, nu, olhando para fora, a respiração embaçando o vidro.
Uma corrente de ar contra sua barriga. O vidro inferior da vidraça à direita está faltando.
Fecharam com um pedaço de papelão.
- Chico.
Não se vira. Ela não fala de novo. Ele pode ver o fantasma dela no vidro, na cama dele,
sentado, cobertores levantados num aparente desafio à gravidade A maquiagem de seus
olhos derreteu formando profundas olheiras embaixo deles.
Outono da Inocência - Stephen King
Chico desvia o olhar para além de seu fantasma, para além da casa. Chove. Pedaços de
neve derreteram revelando um terreno liso. Ele vê a grama morta do ano anterior, um
brinquedo de plástico - de Billy, - um ancinho enferrujado. O Dodge de seu irmão
Johnny está sobre cubos de madeira, as rodas sem pneus parecendo tocos. Ele lembra
das ocasiões em que ele e Johnny trabalharam nele, ouvindo os super-sucessos e
canções antigas na W LA M de Lewiston no velho rádio transistor de Johnny - várias
vezes Johnny lhe dera cerveja. Ele vai correr muito, Chico, Johnny dizia. Vai comer
todos os carros nessa estrada de Gates Falls até Castle Rock, Espera só até a gente
colocar aquele câmbio!
Mas aquilo fora no passado, e isso era agora.
Depois do Dodge de Johnny estava a auto-estrada. Rota 14 vai até Portland e sul de
New Hampshire, direto até o norte do Canadá, se você dobrasse à esquerda na U.S. 1
em Thomaston.
- Cidade da Moda - diz Chico para o vidro. Ele fuma um cigarro.
- O quê?
- Nada, querida.
- Chico? - Sua voz está confusa. Ele vai ter que trocar os lençóis antes que o pai volte.
Ela sangrou.
- O quê?
- Eu te amo, Chico.
- Está bem.
Mês nojento. Você é uma puta velha, pensa Chico. Nojenta, horrorosa, com os peitos
caros e chuva no rosto.
- Este quarto era de Johnny - diz ele de repente.
- Quem?
- Meu irmão.
- Ah. Onde ele está?
- No exército - diz Chico, mas Johnny não está no exército. No verão anterior trabalhava
numa pista de alta velocidade, e um carro perdeu o controle e foi derrapando em direção
à lateral, onde Johnny trocava os pneus traseiros de um carro de corrida. Alguns rapazes
gritaram para que tomasse cuidado, mas Johnny não ouviu. Um dos rapazes que gritou
foi o irmão de Johnny, Chico.
- Não está com frio?
Outono da Inocência - Stephen King
- Não. Bem, meus pés. Um pouco.
E ele pensa de repente: Bem, meu Deus. Nada do que aconteceu a Johnny deixará de
acontecer a você, mais cedo ou mais tarde. Ele vê a cena novamente: O Ford Mustang
derrapando e deslizando, os nós da espinha de seu irmão aparecendo nas dobras da
camiseta; ele estava acocorado trocando um dos pneus traseiros do Chevy. Houve
tempo de ver a borracha soltando dos pneus do Mustang descontrolado, de ver o cano de
descarga solto arrancando faíscas no meio da pista. Bateu em Johnny quando tentava
levantar-se. Em seguida, a labareda amarela.
Bem, pensa Chico, poderia ter sido lentamente, e pensa em seu avó. Cheiro de hospital.
Enfermeiras jovens e bonitas trazendo a "comadre" O último frágil suspiro. Havia
alguma maneira boa?
Treme e duvida da existência de Deus. Toca a pequena medalha de prata de São
Cristóvão que pende de um cordão em seu pescoço. Não é católico e certamente não é
mexicano; seu nome verdadeiro é Edward May e todos seus amigos o chamam de
Chico, pois seus cabelos são pretos e ele os penteia para trás com Brylcreem e usa botas
de bico fino e salto alto. Não é católico, mas usa a medalha. Talvez se Johnny estivesse
usando uma, o Mustang sem controle não o tivesse pego. Nunca se sabe.
Fuma e olha fixamente pela janela, e atrás dele a garota levanta da cama e corre em sua
direção, talvez com medo de que se vire e a veja. Coloca uma das mãos, quente, em
suas costas. Seus seios comprimem-se na lateral de seu corpo. A barriga toca suas
nádegas.
- Hum, que frio.
- E este lugar.
- Você me ama, Chico?
- Adivinha! - diz ele sem pensar, e depois mais sério: Você era moca.
- Como assim?
- Virgem.
As mãos sobem e um dos dedos percorrem a pele na base do pescoço. - Eu falei, não
foi?
- Foi difícil? Doeu?
Ela ri. - Não. Mas fiquei com medo.
Observam a chuva. Um Oldsmobile novo passa na 14, levantando água.
- Cidade da Moda - diz Chico.
Outono da Inocência - Stephen King
- O quê?
- Aquele cara. Está indo para a Cidade da Moda. Em seu novo carro da moda.
Ela beija o lugar que seu dedo tocava carinhosamente, e ele esfrega o lugar, como se ela
fosse uma mosca.
- Qual o problema?
Vira-se para ela. Seus olhos caem até seu pênis e sobem rapidamente. Ela cruza os
braços em volta de si, então lembra que nunca fazem isso no cinema, e deixa-os cair ao
lado novamente. Seus cabelos são pretos e sua pele é branca como a neve. Seus seios
são firmes, a barriga provavelmente um pouco mole demais. Um defeito para lembrar,
pensa Chico, que isto não é filme.
- Jane?
- O quê? - Ele sente que está ficando pronto, não começando, mas ficando pronto.
- Tudo bem - diz ele. - Somos amigos. - Olha para ela propositadamente, deixando seu
corpo tocá-la. Quando olha seu rosto novamente vê que está corada. - Você se incomoda
que eu te olhe?
- Eu... não. Não, Chico.
Ela anda para trás, fecha os olhos, senta na cama e recosta-se de pernas abertas. Ele a vê
inteira. Os músculos, os pequenos músculos da parte interior de suas coxas... pulam,
incontrolavelmente, e isso de repente o excita mais que seus seios duros em forma de
cones ou a suave pele rosada de sua vagina. A excitação o faz tremer, um palhaço
excitado. O amor pode ser divino como os poetas dizem, ele acha, mas o sexo é um
palhaço pulando cheio de excitação. Como uma mulher podia olhar para um pênis ereto
sem perder o ar de tanto rir?
A chuva bate contra o telhado, contra a janela, contra o papelão encharcado tampando o
buraco na parte inferior da janela. Ele pressiona a mão contra o peito parecendo por um
momento um romano na arena prestes a discursar. Sua mão está fria. Ele a deixa cair ao
lado.
- Abra os olhos. Somos amigos, já disse.
Obedientemente ela abre. Olha-o. Seus olhos agora parecem violeta. A água da chuva
escorrendo pela janela forma sombras onduladas em seu rosto, pescoço e seios. Esticada
na cama sua barriga fica lisa. Está perfeita nesse momento.
- Ai - diz ela. - Ai, Chico, é tão estranho. - Um tremor percorre seu corpo. Curvou os
dedos do pé involuntariamente. Olha o peito de seu pé. É rosa. - Chico, Chico.
Outono da Inocência - Stephen King
Ele caminha em sua direção. O corpo dele treme e os olhos dela estão assustados. Ela
diz alguma coisa, uma palavra, mas ele não sabe o que é. Não é hora de perguntar. Ele
fica semi-ajoelhado em frente a ela por um momento olhando o chão com a testa
franzida, concentrado, tocando suas pernas acima dos joelhos. Ele mede o fluxo dentro
de si. Sua ereção é inconsciente, fantástica. Faz uma pausa maior.
O único barulho é o tique-toque baixo do relógio na mesa-de-cabeceira com os pés de
bronze, sobre uma pilha de revistas em quadrinho do Homem Aranha. A respiração dela
fica cada vez mais rápida. Os músculos dele deslizam suavemente enquanto mergulha,
subindo e descendo. Começam. Desta vez é melhor. Do lado de fora a chuva continua a
levar a neve.
Uma meia hora depois Chico sacode-a para que acorde de um cochilo. - Temos que sair
- diz ele. - Papai e Virginia vão chegar a qualquer hora.
Ela olha seu relógio de pulso e senta-se. Dessa vez não tenta cobrir-se Seu tom - seu
falar entrecortado - mudou. Não amadureceu (embora provavelmente acredite que sim)
nem aprendeu nada mais complexo que amarrar um sapato, mas seu tom mudou mesmo
assim. Ele balança a cabeça e ela sorri tentadoramente para ele. Ele pega os cigarros na
mesa-de-cabeceira. Enquanto ela veste a calcinha ele pensa na letra de uma música
engraçada: Continue tocando até eu parar... toque seu chá-chá-chá. Tie Me Kangaroo
Down, de Rolf Harris. Ri. Johnny costumava cantar essa música. Acabava assim:
Depois lhe sentamos o pau, babau.
Ela fecha o sutiã e começa a abotoar a blusa. - De que você está rindo, Chico?
- Nada - diz ele
- Fecha meu zíper?
Ele vai até ela, ainda nu, e fecha seu zíper. Beija seu rosto. Vá ao banheiro se maquiar
se quiser - diz ele. - Só não demore muito, está bem?
Ela caminha pelo corredor graciosamente e Chico a observa, fumando. Ela é alta - mais
que ele - e tem que abaixar a cabeça um pouco quando passa na porta do banheiro.
Chico encontra sua cueca embaixo da cama. Coloca-a na cesta de roupa suja pendurada
na porta do armário e pega outra na cômoda. Veste-a e quando volta para a cama
escorrega e quase cai numa poça de água que o papelão deixou entrar.
- Droga - murmura chateado.
Olha o quarto que fora de Johnny antes de morrer (por que lhe dissera que ele estava no
exército, meu Deus? pensa ele... um pouco constrangido). Paredes de fibra compensada
- tão finas que pode ouvir papai e Virginia de noite - que não vão até o teto. O chão tem
um ângulo estranhamente inclinado, de modo que a porta do quarto só fica aberta se
você prendê-la - se esquecer ela volta e bate assim que você vira as costas. Numa das
paredes há um poster do filme Sem Destino - Dois Homens Saíram em Busca da
América e Não Conseguiram Encontrá-la em Lugar Nenhum. O quarto tinha mais vida
quando Johnny morava nele. Chico não sabe como nem por quê; apenas essa é a
Outono da Inocência - Stephen King
verdade. E sabe outra coisa também. Sabe que às vezes o quarto tem fantasmas à noite.
As vezes acha que a porta do armário vai abrir e Johnny aparecer, seu corpo queimado,
deformado e negro, sua dentadura começando a derreter e soltar os dentes amarelos; e
Johnny irá sussurrar: Sai do meu quarto, Chico. E se encostar a mão em meu Dodge eu
te mato. Entendeu?
Entendi, mano - pensa Chico.
Por um instante permanece parado, olhando o lençol amassado e manchado de sangue,
então estica o cobertor com um único movimento rápido. Aqui. Exatamente aqui. Que
tal, Virginia? Isso te excita? Veste as calças, as botas, encontra um suéter.
Está penteando o cabelo em frente ao espelho quando ela sai do banheiro. Está elegante.
Sua barriga mole demais não aparece no macacão. Ela olha para a cama, faz algumas
coisas nela e fica parecendo que está arrumada.
- Bom - diz Chico.
Ela ri um pouco inibida e põe uma mecha de cabelo atrás da orelha. É um gesto
evocativo, tocante.
- Vamos - diz ele.
Passam pelo corredor e pela sala de estar. Jane pára em frente à TV com a fotografia
colorida no alto. São o pai dele e Virginia. Johnny no segundo grau, Chico no ginásio e
Billy bebê - na fotografia Johnny está carregando Billy. Todos eles têm sorrisos
forçados e duros... todos menos Virginia, com seu rosto sério e indecifrável. Aquela
foto, lembrava Chico, fora tirada menos de um mês antes de seu pai casar-se com a
puta.
- São seu pai e sua mãe?
- Meu pai - disse Chico. - Ela é minha madrasta, Virginia. Vamos.
- Ela ainda é bonita assim? - pergunta Jane, pegando o casaco e entregando a Chico seu
blusão de couro.
- Acho que meu velho acha - diz Chico.
Saem no alpendre. Está úmido e ventando - o vento uiva entrando pelas fendas da
parede. Há uma pilha de pneus careca, a antiga moto de Johnny que Chico herdou
quando tinha dez anos e que logo destruiu, uma pilha de revistas de detetive, cascos de
Pepsi, uma peça de motor com graxa, um caixote laranja cheio de livros em brochura e
uma antiga pintura de um cavalo sobre a grama verde.
Chico ajuda-a a sair. A chuva cai impiedosamente sem parar. O velho sedã de Chico
está parado numa poça na entrada de carros, parecendo triste. Mesmo sob cubos e com
um pedaço de plástico no lugar do quebra-vento, o Dodge de Johnny tem mais classe. O
carro de Chico é um Buick. A pintura está fosca e cheia de ferrugem. O banco da frente
Outono da Inocência - Stephen King
foi forrado com um cobertor marrom do exército. Um grande broche preso ao protetor
solar do lado do passageiro diz: QUERO TODOS OS DIAS. Há um motor de arranque
enferrujado no banco traseiro; se parar de chover ele vai limpá-lo, pensa, e talvez
colocá-lo no Dodge. Talvez não.
O Buick tem cheiro de mofo e o motor custa muito a pegar.
- É a bateria?
- Só a merda da chuva, eu acho. - Sai de ré na rua ligando os limpadores de pára-brisa e
parando um momento para olhar a casa. É uma aquarela completamente sem graça. O
alpendre destacado tem um aspecto deselegante e popular, papel alcatroado e telhas
descascadas.
O rádio começa a tocar estridente e Chico o desliga na hora. Há uma ligeira dor de
cabeça de domingo no fundo de sua testa. Eles passam pelo Grange Hall, o
Departamento de Voluntários do Corpo de Bombeiros e pela loja de Brownie. O carro
de Sally Morrison está estacionado em frente à loja de Brownie e Chico ergue a mão
para ela ao dobrar na Lewiston Road.
- Quem é aquela?
- Sally Morrison.
- Bonita moça. - Bem natural.
Ele procura os cigarros. - Ela já casou e se divorciou duas vezes. Agora é a puta da
cidade, se você acreditar na metade das histórias que contam nesta cidadezinha de
merda.
- Parece jovem.
- Ela é.
- Você já...
Ele desliza a mão por sua coxa e sorri. - Não - diz ele. Meu irmão talvez, mas eu não.
Gosto de Sally. Tem o dinheiro dela, o grande Bird branco e não liga para o que falam a
seu respeito.
Começou a parecer uma longa viagem. O Androscoggin, à direita, está cinza e soturno.
Toda a neve já saiu. Jane ficou quieta e pensativa. O único barulho é o passar constante
dos limpadores de pára-brisa. Quando o carro passa por depressões na rua a névoa baixa
escondida esperando a noite chegar para subir e tomar toda a River Road.
Cruzam a Auburn, Chico pega um atalho e entra na Minot Avenue. As quatro pistas
estão praticamente desertas, e todas as casas do subúrbio parecem cheias. Vêem um
garotinho com uma capa de chuva amarela caminhando pela calçada e cuidadosamente
pisando nas poças.
Outono da Inocência - Stephen King
- Aí, cara - diz Chico devagar.
- O quê? - pergunta Jane
- Nada, querida. Durma.
Ela ri um pouco em dúvida.
Chico dobra na Keston Street e na entrada para carros de uma das casas cheias. Não
desliga o motor.
- Entre, vou lhe dar biscoitos - diz ela.
Ele balança a cabeça. - Tenho que voltar.
- Eu sei. - Coloca os braços em volta dele e beija-o. - Obrigada pelo dia mais
maravilhoso da minha vida.
Ele sorri de repente. Seu rosto se ilumina. É quase mágico. Vejo você na segunda-feira,
Janey-Jane. Amigos, está bem?
- Você sabe que somos - diz ela, e beija-o novamente... mas quando ele pega em seu
seio por cima do macacão, ela se esquiva. - Não. Meu pai pode ver.
Ele a deixa ir, apenas com um vestígio do sorriso no rosto. Ela salta do carro
rapidamente e corre pela chuva até a porta dos fundos. Um segundo depois desaparece.
Chico pára um segundo para acender um cigarro e então sai de ré da alameda para
carros. O motor do Buick afoga e parece que nunca mais vai pegar. O caminho para
casa é longo.
Quando chega, a camionete de seu pai está estacionada na entrada de carros. Pára a seu
lado e deixa o motor morrer. Por um momento fica parado em silêncio, escutando a
chuva. E como estar dentro de um tambor.
Dentro de casa Billy está vendo TV. Quando Chico entra Billy levanta com um pulo,
excitado. - Eddie, Eddie, sabe o que o Tio Pete disse? Que ele e um grupo afundaram
um submarino alemão na guerra! Você me leva ao show sábado que vem?
- Não sei - diz Chico sorrindo. - Talvez, se você beijar meus sapatos todos os dias
depois do jantar durante uma semana. Puxa o cabelo de Billy, Billy grita, ri e chuta-lhe
as canelas.
- Parem com isso - diz Sam May entrando na sala. - Parem com isso os dois. Vocês
sabem que sua mãe não gosta de casa desarrumada - Ele afrouxara a gravata e
desabotoara o primeiro botão da camisa. Tem um prato com três cachorros-quentes na
mão, os três com pão branco e mostarda. - Onde você andava, Eddie?
- Na casa de Jane.
Outono da Inocência - Stephen King
Puxam a descarga no banheiro. Virginia. Chico pensa rapidamente se Jane deixou
cabelos na pia, ou um batom ou um grampo.
- Você devia ter vindo conosco ver seu tio Pete e sua tia Ann - diz seu pai. Come um
dos cachorros em três mordidas.
- Você está virando um estranho por aqui, Eddie. Não gosto disso. Não enquanto lhe
damos casa e comida.
- Casa até certo ponto - diz Chico. - Cama até certo ponto.
Sam olha para cima na mesma hora, primeiro magoado, depois irado. Quando fala,
Chico vê que seus dentes estão amarelos de mostarda francesa. Fica ligeiramente
nauseado. - Essa sua boca, essa sua boca suja. Você ainda não é grande, pirralho.
Chico dá de ombros, pega uma fatia do pão de fôrma que está na bandeja perto da
cadeira do pai e cobre-a de ketchup. - De qualquer maneira daqui a três meses vou
embora.
- O que você está dizendo?
- Vou consertar o carro de Johnny e vou para a Califórnia. Procurar emprego.
- Ah, sim. Muito bem. - Ele é um grande homem, grande de uma maneira confusa, mas
Chico acha que ficou mais fraco depois que casou com Virginia e mais fraco ainda
depois que Johnny morreu. E em sua cabeça ouve suas palavras para Jane: Meu irmão
talvez, mas eu não. E em seguida: Toque seu chá-chá-chá... - Não vai conseguir chegar
com esse carro nem em Castle Rock, que dirá na Califórnia.
- Acha mesmo? É só me dar a merda da grana.
Por um momento seu pai apenas o olha, depois atira-lhe o cachorro-quente que estava
segurando. Bate no peito de Chico espalhando mostarda em sua suéter e seu cabelo.
- Se falar essa palavra de novo que eu te arrebento a cara, espertinho.
Chico pega o cachorro-quente e o olha. Salsicha barata e vermelha coberta de mostarda
francesa. Traz um pouco de alegria. Joga-a de volta em cima do pai Sam levanta-se, o
rosto vermelho como um tijolo, a veia no meio da testa pulsando. Sua coxa toca na
bandeja e ela vira. Billy está em pé na porta da cozinha olhando-os. Segura um prato de
salsichas com feijão, o prato está inclinado e o caldo do feijão escorre no chão. Os olhos
de Billy estão assustados, sua boca treme. Na TV o programa continua com um carro
correndo em velocidade vertiginosa.
- Você cria os filhos da melhor maneira possível e eles cospem em você - diz seu pai
numa voz abafada. - É assim. - Ele apalpa sem olhar o assento da cadeira e pega o
cachorro-quente pela metade. Segura-o dentro da mão como um falo duro.
Outono da Inocência - Stephen King
Incrivelmente começa a comê-lo... ao mesmo tempo Chico vê que começou a chorar. -
Cospem em você, é assim.
- Então por que você teve que casar com ela? - grita ele, e então tem que ouvir o resto:
Se você não tivesse casado com ela Johnny não teria morrido,
- Isso não é da sua conta! - esbraveja Sam May entre lágrimas. - É problema meu!
- Ah, é? - grita Chico. - Eu simplesmente tenho que viver com ela! Eu e Billy temos que
viver com ela! Vê-la enganar você E você nem sabe...
- O quê? - diz seu pai, e sua voz de repente torna-se baixa e ameaçadora. O pedaço de
cachorro-quente que sobrou dentro de sua mão fechada parece um pedaço de osso
sangrento. - O que eu não sei?
- Você não consegue enxergar nada - diz ele, estarrecido com o que quase deixou
escapar.
- É melhor parar agora - diz seu pai - ou eu arrebento você, Chico. - Ele só o chama de
Chico quando está realmente com muita raiva.
Chico vira-se e vê que Virginia está parada do outro lado da sala consertando a saia
minuciosamente, olhando para ele com seus grandes e calmos olhos castanhos. Seus
olhos são bonitos; o resto não é tão bonito, tão atraente, mas aqueles olhos ainda a
carregarão por muitos anos, pensa Chico, e sente o ódio doentio voltar Depois lhe
sentamos o pau, babau.
- Ela prende você pelo sexo e você não tem coragem de fazer nada!
Toda essa gritaria finalmente é demais para Billy, e ele solta um grito de terror, deixa
cair o prato de salsichas com feijão e cobre o rosto com as mãos. O caldo do feijão
espirra em seus sapatos de domingo e cobre o tapete.
Sam dá um único passo à frente e pára quando Chico faz um gesto breve e abrupto
como se dissesse: É, vamos, vamos resolver isso logo, por que você demorou tanto?
Ficam parados como estátuas até que Virgínia fala - sua voz é baixa, calma como seus
olhos castanhos.
- Você trouxe uma garota para seu quarto, Ed? Você sabe o que seu pai e eu achamos
disso. - Quase como um pensamento tardio: - Ela esqueceu um lenço.
Ele a olha fixamente, iradamente incapaz de expressar o que acha - que ela é sórdida,
que fala dos outros pelas costas e tira sua liberdade.
Você poderia me ferir se quisesse, dizem os calmos olhos castanhos. Eu sei que você
sabe o que estava acontecendo antes dele morrer. Mas é a única maneira que pode me
ferir, não é Chico? E só se seu pai acreditasse em você. E se ele acreditasse seria fatal
para ele.
Outono da Inocência - Stephen King
Seu pai entra no jogo como um baixo investidor: - Você andou fodendo na minha casa,
seu desgraçado?
- Cuidado com sua linguagem, Sam - diz Virgínia calmamente.
- É por isso que não quis vir conosco? Para poder fo... para poder...
- Fala! - grita Chico. - Não deixe ela fazer isso com você!
Falei o que quer!
- Saia - diz ele apático. - E não volte até pedir desculpas para sua mãe e para mim.
- Não se atreva! - grita ele. - Não se atreva a chamar essa puta de minha mãe! Eu mato
você!
- Pare, Eddie! - grita Billy. As palavras saem abafadas distorcidas por entre suas mãos
que ainda lhe cobrem o rosto. Pare de gritar com papai! Pare, por favor!
Sam cambaleia para trás e a parte traseira de seus joelhos toca a ponta da poltrona. Ele
senta pesadamente e cobre o rosto com o braço cabeludo. - Não consigo nem olhá-lo
quando você fala palavras como essa, Eddie. Você está fazendo eu me sentir muito mal.
- Ela faz você se sentir mal! Por que não admite isso?
Ele não responde. Ainda sem olhar Chico, procura outra salsicha envolvida em pão na
bandeja. Procura a mostarda. Billy chora. Na TV os personagens cantam uma música de
caminhoneiro. Minha roupa é velha, mas não quer dizer que não presta, dizem a todos
os telespectadores do oeste do Maine.
- O garoto não sabe o que está dizendo, Sam - diz Virginia educadamente. - Na idade
dele é difícil. E difícil crescer.
Ela o provocou. Pronto, é o fim.
Ele vira e vai em direção à porta que leva ao alpendre e depois à rua. Ao abri-la, olha
para trás para Virginia e ela o observa tranqüilamente quando fala seu nome.
- O que é, Ed?
- Os lençóis estão cheios de sangue. - Faz uma pausa. Eu tirei a virginidade dela.
Ele acha que viu alguma reação em seus olhos, mas provavelmente é apenas seu desejo.
- Por favor, vá embora agora, Ed. Você está amedrontando Billy.
Ele sai. O Buick não quer pegar e ele está quase conformado em ir andando na chuva
quando o motor finalmente pega. Acende um cigarro e sai novamente na 14, dando
socos e xingando o carro quando ele começa a falhar e engasgar. A luz da bateria pisca
Outono da Inocência - Stephen King
desastrosamente duas vezes, e depois o carro começa a andar lentamente. Finalmente
estará a caminho de Gates Falis subindo a rua.
Lança um último olhar para o Dodge de Johnny. Johnny poderia ter tido um emprego
estável no moinho mas só no turno da noite. Não se importava de trabalhar à noite,
dissera a Chico, e o salário era melhor, mas o pai deles trabalhava de dia, e trabalhar à
noite no moinho significaria ter que ficar sozinho com ela, sozinho ou com Chico no
quarto ao lado... e as paredes eram finas. Eu não consigo impedi-la e ela não deixa, dizia
Johnny. Bem, eu sei o que isso seria para ele. Mas ela... ela simplesmente não pára e eu
não consigo parar... ela está sempre em cima de mim, você sabe o que eu quero dizer,
você já viu, o Billy é muito pequeno, mas você já viu...
Sim, já vira. E Johnny tinha ido trabalhar na fábrica de automóveis dizendo ao pai que
era porque podia conseguir peças para o Dodge mais baratas. E foi assim que ele estava
trocando um pneu quando o Mustang veio derrapando e deslizando em direção à lateral
da pista com o cano de descarga arrancando faíscas do chão; assim sua madrasta matara
seu irmão, então continue tocando até eu parar, porque estamos indo para a Cidade da
Moda nesse Buick de merda, e lembra do cheiro da borracha e das ondas que as
protuberâncias da espinha de Johnny formavam no branco brilhante de sua camiseta,
lembra de tê-lo visto chegar a levantar até certo ponto quando o Mustang o atingiu,
imprensando-o contra o Chevy: e houve um barulho seco quando o Chevy caiu do
macaco, e depois o cheiro rico de gasolina...
Chico pisa no freio com os dois pés fazendo o sedã parar com um rangido na beira da
faixa impedida pela água da chuva. Ele se joga violentamente sobre o banco, abre com
pressa a porta do lado do passageiro e derrama um vômito amarelo sobre a lama e a
neve. Aquela visão o faz vomitar novamente, e a situação causa-lhe náuseas mais uma
vez. O carro quase afoga mas ele evita a tempo, A luz da bateria pisca insistentemente
quando ele acelera. Ele senta esperando a tremedeira passar. Um carro passa a toda
velocidade, um Ford novo, branco, levantando grandes leques de água suja e neve
derretida com lama.
- Cidade da Moda - diz Chico. - Em seu novo carro da moda. Deprimente.
Sente o gosto do vômito em seus lábios, na garganta e entupindo seu nariz. Não quer um
cigarro. Danny Carter o fará dormir. Amanhã haverá bastante tempo para novas
decisões. Entra novamente na Rota 14 e segue.
8
Muito melodramático, não é?
O mundo já viu algumas histórias melhores, sei disso - algumas centenas de milhares de
histórias melhores, melhor dizendo. Devia estar escrito em cada página ISSO É
PRODUTO DO CURSO DE COMPOSIÇÃO CRIATIVA DE UM ALUNO... porque
era exatamente isso, pelo menos até certo ponto. Agora me parece ao mesmo tempo
Outono da Inocência - Stephen King
dolorosamente derivativo e dolorosamente imaturo; estilo de Hemingway (com exceção
que está tudo no presente, por algum motivo - muito tendencioso) e tema de Faulkner.
Alguma coisa podia ser mais séria? Mais literária?
Mas mesmo suas pretensões não podem esconder o fato de que é uma história
extremamente sexual escrita por um jovem extremamente inexperiente (na época em
que escrevi Cidade da Moda tinha ido para a cama com duas garotas e ejaculado
prematuramente com uma delas - não como Chico na história anterior, eu acho). Sua
atitude em relação às mulheres vai além da hostilidade, chegando quase a ser
repugnante - duas mulheres em Cidade da Moda são prostitutas, e a terceira é um
simples objeto que diz coisas como "Eu te amo, Chico" e "Entre, vou lhe dar biscoitos."
Chico, por outro lado, é um herói machão fumante da classe operária que poderia ter
saído de um disco do Bruce Springsteen embora não se ouvisse falar em Springsteen
quando eu publiquei a história na revista literária da faculdade (onde saiu entre um
poema chamado Imagem de Mim e um ensaio sobre os estudantes residentes na
universidade escrito inteiramente em letra minúscula). E o trabalho de um jovem tão
inseguro quanto inexperiente.
E no entanto foi a primeira história que escrevi com a sensação de que era a minha
história - a primeira que parecia completa, depois de cinco anos de tentativas. A
primeira que pode ainda ser significativa, mesmo sem seus suportes. Repugnante mas
viva. Mesmo agora quando a leio, sorrindo de sua pseudoconsistência e pretensões,
posso ver o rosto de Gordon Lachance escondido entre as linhas, um Gordon Lachance
mais novo do que o que escreve agora, certamente mais idealista que o escritor de best-
sellers que renova seus contratos de brochuras mais que de livros, mas não tão jovem
como aquele que foi com seus amigos aquele dia ver o corpo de um menino chamado
Ray Brower. Um Gordon Lachance na metade do processo de perda do brilho.
Não, não é uma história muito boa - seu autor estava preocupado demais em ouvir
outras vozes e não ouviu tão bem como devia a voz que vinha de dentro. Mas foi a
primeira vez que realmente usei um lugar que conhecia e coisas que sabia numa ficção,
e tive um enorme contentamento ao ver as coisas que me perturbaram durante anos
saírem sob nova forma, uma forma sobre a qual eu havia imposto controle. Haviam se
passado muitos anos desde que aquela idéia infantil de que Denny estava no armário
como um fantasma em seu quarto mal-assombrado me ocorrera; teria acreditado
sinceramente que a esquecera. Entretanto lá está ela em Cidade da Moda - apenas
ligeiramente mudada... mas sob controle.
Resisti ao ímpeto de mudá-la, de reescrevê-la; de condensá-la - e aquele ímpeto foi
muito forte, pois acho a história muito embaraçosa agora. Mas ainda há coisas nela que
gosto, coisas que seriam diminuídas pelas mudanças feitas por esse Lachance mais
velho, ameaçado pelos primeiros fios de cabelo branco. Coisas como a imagem das
sombras na camiseta branca de Johnny ou o reflexo da chuva escorrendo na vidraça no
corpo riu de Jane, que parecem melhores do que têm direito de ser.
Além do mais, foi a primeira história que nunca mostrei para minha mãe nem para meu
pai. Era claramente sobre Denny. Claramente sobre Castle Rock. E, acima de tudo,
claramente sobre 1960. Sempre se sabe a verdade, pois quando você fere a si ou a
alguém com ela há sempre um sangramento visível.
Outono da Inocência - Stephen King
9
Meu quarto ficava no segundo andar, e devia estar fazendo pelo menos trinta e dois
graus lá em cima. Chegaria a trinta e oito de tarde, mesmo com todas as janelas abertas.
Estava realmente muito feliz porque não ia dormir lá aquela noite, e só em pensar onde
íamos fiquei excitado novamente. Enrolei dois cobertores feito um colchão e amarrei-os
com meu velho cinto. Peguei todo o dinheiro que tinha, sessenta e oito cents. Então
estava pronto para partir.
Desci pela escada dos fundos para evitar encontrar meu pai na frente da casa, mas não
precisaria ter-me preocupado; ele ainda estava no jardim com a mangueira, formando
arco-íris inúteis no ar e olhando através deles.
Desci Summer Street e cortei caminho por um terreno baldio para chegar na Carbine -
onde estão os escritórios do Call de Castle Rock hoje em dia. Estava subindo a Carbine
em direção ao clube quando um carro subiu no meio-fio e Chris saltou. Tinha sua
mochila de escoteiro numa das mãos e dois cobertores amarra-dos com uma corda de
pano na outra.
Obrigado, senhor - disse ele, e veio correndo em minha direção assim que o carro
afastou-se. Seu cantil de escoteiro estava pendurado no pescoço passando por baixo de
um braço, e finalmente terminava balançando na altura dos quadris. Seus olhos
brilhavam.
- Gordie! Quer ver uma coisa?
- Claro, acho que sim. O quê?
- Vem aqui primeiro. - Ele apontou o estreito espaço entre o Restaurante Blue Point e a
farmácia de Castle Rock.
- O que é, Chris?
- Vem cá, já disse!
Desceu correndo o beco e logo em seguida lo tempo suficiente para colocar de lado meu
julgamento) saí correndo atrás dele. Os dois prédios não era bem paralelos, de maneira
que o beco ia se estreitando no final. Passávamos sobre restos de jornais velhos e ninhos
brilhantes e perigosos de garrafas de cerveja e soda quebradas. Chris entrou atrás do
Blue Point e colocou os cobertores no chão. Havia oito ou nove latas de lixo alinhadas,
e o fedor era insuportável.
- Hum, Chris! Espera aí, dá um tempo!
- Preste atenção - disse Chris por hábito.
Outono da Inocência - Stephen King
- Não, sério, eu vou vo...
As palavras sumiram de minha boca e esqueci totalmente as latas de lixo fedorentas.
Chris havia desenrolado os cobertores e pego algo dentro deles. Agora segurava uma
enorme pistola com a coronha de madeira escura.
- Quer ser o Lone Ranger ou o Cisco Kid? - perguntou Chris rindo.
- Caramba, meu Deus! Onde você conseguiu isso?
- Peguei no escritório do meu pai. É um quarenta e cinco.
- E, estou vendo - disse eu, embora pudesse ser um .38 ou um .357 para mim - apesar de
todos os John D. MacDonalds e Ed McBains que tinha lido, a única pistola que vira de
perto tinha sido a do inspetor Bannerman... e embora todas as crianças pedissem para
tirá-la do coldre, ele nunca tirava. - Cara, teu pai vai te matar quando descobrir. Você
disse que ele estava de mau humor.
Seus olhos apenas dançavam. - O negócio é o seguinte, cara. Ele nunca vai descobrir
nada. Ele e aqueles outros bêbados estão todos enfiados no Harrison com seis ou oito
garrafas de vinho. Só voltam daqui a uma semana. Bêbados filhos da mãe. - Seus lábios
contraíram-se. Era o único da turma que nunca bebia, nem que fosse para mostrar que
era valentão. Dizia que não queria se tornar um beberrão como seu pai quando
crescesse. E uma vez me disse particularmente - isso foi depois que os gêmeos DeSpain
apareceram com um pacote de seis garrafas de cerveja que roubaram do pai e todos
zombaram de Chris porque ele não tomou nem um gole - que tinha medo de beber.
Disse que seu pai não tirava mais a boca da garrafa, que seu irmão estava bêbado como
um porco quando estuprou aquela garota e que Eyeball estava sempre entornando vinho
tinto com Ace Merrill, Charlie Hogan e Billy Tessio. Não era certo, me perguntou ele,
que se começasse a beber não conseguiria mais parar? Talvez você ache estranho um
menino de doze anos se preocupar em ser alcoólatra, mas no caso de Chris não era
estranho. De jeito nenhum. Já pensara muito na possibilidade. E já tivera opotunidade
para isso.
- Tem cartuchos?
- Nove - tudo que tinha na caixa. Ele vai achar que foi ele que usou atirando em latas
quando estava bêbado.
- Está carregada?
- Não! Pelo amor de Deus, o que você acha que eu sou?
Finalmente peguei a arma. Gostei de seu peso em minhas mãos. Podia me ver como
Steve Carella do Esquadrão 87, ou perseguindo um herói da TV, talvez escoltando-o
enquanto arrombava o apartamento revirado de algum traficante desesperado. Mirei
uma das latas de lixo fedorentas e apertei o gatilho.
Outono da Inocência - Stephen King
KA-BLAM !
A arma pulou em minha mão. Um fogo apareceu na ponta. Parecia que tinha quebrado o
pulso. Meu coração deu um salto até a boca e parou ali, tremendo. Um buraco enorme
surgiu na superfície de metal enferrujado da lata - trabalho de algum feiticeiro perverso.
- Meu Deus! - gritei.
Chris ria sem parar - não sabia se de prazer ou histeria. Você conseguiu, você
conseguiu! Gordie conseguiu! - buzinava ele. - Ei, Gordon Lachance está dando tiros
em Castle Rock!
- Cala a boca! Vamos sair daqui! - gritei, e agarrei-o pela camisa.
Enquanto corríamos, a porta dos fundos do Blue Point abriu-se e Francine Tupper saiu
em seu uniforme branco de garçonete. - Quem fez isso? Quem está soltando bombinhas
aqui?
Corremos como loucos, entrando por trás da farmácia, da loja de ferragens e do
Emporium Galorium, que vendia antigüidades, sucata e livros baratos. Subimos uma
cerca furando nossas mãos no arame farpado e finalmente chegamos à Curran Street.
Joguei o .45 para Chris enquanto corríamos; ele estava morrendo de rir mas conseguiu
pegá-lo, enfiá-lo na mochila e fechar um dos fechos. Quando chegamos na esquina de
Curran e alcançamos novamente Carbine Street, começamos a andar para não
parecermos suspeitos. Chris ainda estava rindo.
- Você devia ter visto a tua cara! Foi engraçadíssimo. Muito bom mesmo. - Sacudiu a
cabeça, bateu na perna e deu um gritinho.
- Você sabia que estava carregada, não sabia? Seu idiota! Vou me dar mal. Aquela tal de
Tupper me viu.
- Droga, ela achou que fossem bombinhas. Além disso a velha não enxerga um palmo
além do nariz, você sabe. Acha que usar óculos vai estragar seu lindo rosto. - Bateu com
a mão nos quadris e começou a rir novamente.
- Ora, eu não ligo. Mas foi sujeira, Chris.
- Ora, Gordie. - Colocou uma das mãos no meu ombro. Eu não sabia que estava
carregada, juro por Deus, juro pela minha mãe que só peguei no escritório do meu pai.
Ele sempre tira a munição. Devia estar muito bêbado quando guardou da última vez.
- Você não carregou mesmo a arma?
- Não senhor.
- Jura pela sua mãe mesmo que ela vá para o inferno?
Outono da Inocência - Stephen King
- Juro. - Ele fez o sinal-da-cruz e tossiu, o rosto sincero e contrito como o de um menino
cantor de coro. Mas quando entramos no terreno baldio onde ficava nossa casa na
árvore e vimos Vern e Teddy sentados em seus cobertores enrolados nos esperando,
começamos a rir de novo. Chris contou a história toda para eles e depois que todos
tiveram seus ataques de riso. Teddy perguntou a Chris por que achava que
precisaríamos de uma pistola.
- Para nada - disse Chris. - Pode ser que a gente veja um urso. Ou algo parecido. Além
do mais dormir à noite na floresta faz a gente pensar em fantasmas.
Todos concordaram. Chris era o cara maior e mais forte de nossa turma, e sempre podia
se sair com coisas desse tipo. Teddy, por outro lado, seria escorraçado se dissesse que
tinha medo de escuro.
- Você colocou sua barraca no jardim? - perguntou Teddy a Vern.
- Coloquei. E coloquei também duas lanternas piscando para parecer que estávamos lá
quando ficar escuro.
- Grande! - disse eu, e bati nas costas de Vern. Para ele era uma idéia genial. Ele riu e
corou.
- Então vamos - disse Teddy. - Vamos, é quase meio-dia.
Chris levantou-se e nos reunimos à sua volta.
- Vamos atravessar o campo de Beeman e passar por trás daquela loja de móveis de
Sonny Texaco - disse ele. - Depois vamos pegar o caminho dos trilhos do trem perto do
despejadouro e atravessar a ponte até Harlow.
- Qual a distância que você calcula? - perguntou Teddy.
Chris sacudiu os ombros. - Harlow é grande. Vamos andar pelo menos trinta
quilômetros. Tudo bem para você, Gordie?
- Podia ser até cinqüenta.
- Mesmo que sejam cinqüenta vamos chegar lá amanhã de tarde, se ninguém afrouxar.
- Não tem nenhum frouxo aqui - disse logo Teddy.
Olhamo-nos por um momento.
- Ai... - fez Vern, e todos nós rimos.
- Vamos, meninos - disse Chris, e colocou a mochila nas costas. Saímos juntos do
terreno baldio, Chris assumindo ligeiramente a liderança.
Outono da Inocência - Stephen King
10
Quando atravessamos o campo de Beeman e conseguimos subir com muito esforço a
margem cheia de cinzas da estrada de ferro Great Southern e Western Maine já
tínhamos tirado nossas camisas, enrolando-as na cintura. Suávamos muito. Do alto da
margem olhávamos os trilhos lá embaixo, na direção em que iríamos.
Nunca esquecerei aquele momento, por mais que o tempo passe. Eu era o único que
tinha relógio, um Timex barato, uma bonificação que ganhara quando vendi uma
pomada no ano anterior. Os dois ponteiros estavam exatamente em cima do doze, e o
sol batia na paisagem seca e sem sombras com toda sua intensidade. Era possível senti-
lo entrar no seu cérebro e cozinhar seus miolos.
Atrás de nós ficava Castle Rock, espalhada sobre o longo morro conhecido como Castle
View, circundando a praça arborizada e sombreada. Além do Rio Castle viam-se as
chaminés verticais do moinho de lã lançando uma fumaça cor de chumbo contra o céu e
despejando sobras na água. O estábulo estava à nossa esquerda. E bem à nossa frente a
estrada de ferro brilhante e heliográfica ao sol. Ela corria paralela ao rio, que ficava à
esquerda. A direita havia uma grande quantidade de mato (hoje em dia há uma pista de
motocicletas - todos os domingos às duas horas da tarde há competições). Uma antiga e
abandonada torre de água despontava no horizonte, enferrujada e de certa forma
amedrontadora.
Ficamos parados ali naquele momento único do meio-dia, então Chris disse impaciente:
- Vamos, vamos andando.
Caminhamos ao lado dos trilhos nas cinzas, chutando pequenos tufos de poeira preta a
cada passo. Nossas meias e tênis ficaram logo cobertos de poeira. Vern começou a
cantar Roll Me Over in the Clover mas logo parou, o que foi um alívio para nossos
ouvidos. Apenas Teddy e Chris haviam trazido cantis, e toda hora os usavam.
- Podíamos encher os cantis novamente na bica do despejadouro - disse eu. - Meu pai
disse que o poço é seguro. Tem sessenta metros de profundidade.
- Está bem - disse Chris, o valente líder do pelotão. - Será um bom lugar para descansar,
além do mais.
- E comida? - perguntou Teddy de repente. - Aposto que ninguém lembrou de trazer
nada para comer. Eu sei que não lembrei.
Chris parou. - Merda! Eu também não lembrei. Gordie?
Balancei a cabeça, pensando como podia ter sido tão burro.
- Vern?
- Nada - disse ele. - Desculpem.
Outono da Inocência - Stephen King
- Bem, vamos ver quanto temos de dinheiro - disse eu. Desamarrei minha camisa,
estiquei-a sobre as cinzas e joguei meus sessenta e oito cents em cima dela. As moedas
brilhavam incrivelmente ao sol. Chris tinha uma nota velha de um dólar e dois pennies.
Teddy tinha duas moedas de vinte e cinco cents e duas de cinco. Vern tinha exatamente
sete cents.
- Dois dólares e trinta e sete cents - disse eu. - Não está mau. Tem uma loja no final
daquela rua pequena que vai dar no despejadouro. Alguém vai ter que ir lá comprar
hambúrgueres e refrigerantes enquanto os outros descansam.
- Quem? - perguntou Vern.
- Vamos tirar na sorte quando chegarmos no despejadouro. Vamos
Coloquei todo o meu dinheiro no bolso da calça e estava amarrando a camisa na cintura
quando Chris gritou: - O trem!
Coloquei uma das mãos no trilho para sentir, embora já estivesse ouvindo o barulho. Os
trilhos tremiam loucamente; por um momento parecia que estava segurando o próprio
trem em minhas mãos.
- Pára-quedistas para o lado! - gritou Vern, e pulou para a margem fazendo uma
palhaçada. Vern adorava brincar de pára-quedista em qualquer lugar macio - uma
cascalhadeíra, um monte de feno, uma margem como aquela. Chris pulou depois dele. O
barulho do trem estava realmente alto agora, provavelmente vindo em nossa direção a
caminho de Lewiston. Ao invés de pular, Teddy virou-se na direção em que ele estava
vindo. Seus grossos óculos brilhavam ao sol. Seus longos cabelos voavam despenteados
sobre suas sobrancelhas em mechas suadas.
- Vai, Teddy - disse eu.
- Não, ha ha, vou escapar dele. - Olhou para mim, seus olhos atrás das lentes frenéticos
de excitação. - Uma escapada de trem, sacou? Os caminhões não são nada perto dos
trens!
- Está maluco, cara? Quer morrer?
- Como no desembarque na Normandia! - gritou Teddy, e ficou parado no meio dos
trilhos. Estava em pé em cima de um dormente meio bambo.
Fiquei atordoado por um momento, incapaz de acreditarem tamanha estupidez. Então
agarrei-o e puxei-o lutando e protestando até a margem - e empurrei-o. Pulei depois dele
e Teddy tentou me acertar no estômago enquanto eu ainda estava no ar. O vento passou
por mim mas ainda consegui atingi-lo no esterno com o joelho e jogá-lo de costas no
chão antes que conseguisse subir novamente. Caí no chão ofegante e sem apoio e Teddy
me agarrou pelo pescoço. Rolamos até a beira da margem lutando e nos agredindo -
enquanto Chris e Vern nos olhavam perplexos.
Outono da Inocência - Stephen King
- Seu filho da puta! - gritava Teddy para mim. - Seu escroto! Não vem querer mandarem
mim! Eu te mato, seu merda!
Estava voltando a respirar e consegui ficar em pé. Afastava-me à medida que Teddy
avançava, erguendo as mãos abertas para evitar seus socos, meio rindo e meio com
medo. Não era bom zombar de Teddy quando ele estava tendo um ataque de raiva.
Virava um monstro, e se quebrasse os dois braços era capaz de morder.
- Teddy, você não pode escapar de nada antes de vermos o que vamos ver, mas
um soco passou de raspão pelo meu ombro.
- até lá ninguém pode nos ver, seu
outro soco do lado do meu rosto e então teríamos começado mesmo a brigar se Chris e
Vern
- babaca!
não tivessem nos agarrado e nos separado. Acima de nós o trem rugia como um trovão
soltando diesel e produzia um forte barulho das rodas dos vagões sobre os trilhos.
Algumas cinzas caíram da margem e a discussão acabou... pelo menos até que
conseguíssemos ouvir o que falávamos.
Era apenas um pequeno cargueiro e quando acabou de passar, Teddy disse: - Eu mato
ele. Pelo menos lhe dou umas bolachas. Chris segurava-o cada vez com mais força
enquanto ele tentava soltar-se.
- Acalme-se, Teddy - dizia Chris calmamente, e continuou dizendo isso até que Teddy
parou de lutar e ficou ali, os óculos tortos no rosto e o aparelho auditivo balançando em
seu peito quase na altura da bateria, que ele colocara no bolso da calça jeans.
Quando estava completamente calmo, Chris virou-se para mim e disse: - Por que você
está brigando com ele, Gordon?
- Ele queria escapar do trem. Imaginei que o maquinista iria vê-lo e falar. Poderiam
mandar um policial.
- Ahhh, ele não ia nem ver - disse Teddy, mas não parecia mais zangado. A tempestade
passara.
- Gordie só estava tentando agir corretamente - disse Vern. - Vamos lá, paz.
- Paz, meninos - concordou Chris.
- E, está bem - disse eu, e levantei a mão. - Paz, Teddy?
- Eu podia ter escapado - disse ele. - Sabe disso, não é, Gordie?
Outono da Inocência - Stephen King
- Sei - disse eu, embora a idéia me desse calafrios. - Sei.
- Está bem. Paz, então.
- Façam as pazes - ordenou Chris, e soltou Teddy.
Teddy bateu na minha mão com toda força e virou a sua. Bati nela.
- Seu Lachance frouxo - disse Teddy.
- Aiii... - disse eu.
- Vamos, meninos - disse Vern. - Vamos, está bem?
- A qualquer lugar que você queira, mas não faça xixi nas calças - disse Chris sério, e
Vern recuou como se fosse dar-lhe um encontrão.
11
Chegamos no despejadouro uma e meia e Vern foi o caminho todo de descida da
margem gritando Pára-quedistas para o lado! Dávamos grandes saltos e passávamos por
cima dos fios de água salobre que escorriam descuidados dos canos espetados para fora
das cinzas. Depois dessa área pantanosa ficava o começo do despejadouro arenoso e
cheio de entulhos.
Havia uma cerca de proteção de um metro e oitenta de altura em volta. A cada seis
metros um aviso desbotado pelo tempo dizia:
DESPEJADOURO DE CASTLE ROCK
HORÁRIO: 16 ÀS 20 H
FECHADO ÀS SEGUNDAS-FEIRAS
PASSAGEM RIGOROSAMENTE PROIBIDA
Subimos até o alto da cerca e pulamos. Teddy e Vern foram na frente em direção ao
poço, que tinha uma bomba antiga para puxar a água, aquelas que você morre para
conseguir fazer funcionar. Havia uma lata de Crisco cheia de água ao lado da
empunhadura da bomba, e o maior pecado era esquecer de deixá-la cheia para a
próxima pessoa que chegasse. A empunhadura de ferro emperrou num determinado
ângulo, e ficou parecendo um pássaro de uma só asa tentando voar. Já fora verde, mas
quase toda a tinta saíra com o uso de centenas de pessoas desde 1940.
O despejadouro é uma das lembranças mais fortes de Castle Rock. Sempre penso em
pinturas surrealistas quando lembro dele - aqueles caras que estavam sempre pintando
relógios com rostos escondidos languidamente dentro do tronco de árvores, quartos da
era vitoriana no meio do deserto do Saara ou máquinas a vapor saindo de dentro de
Outono da Inocência - Stephen King
lareiras. Para meus olhos infantis nada no despejadouro de Castle Rock parecia estar no
lugar a que realmente pertencia.
Tínhamos entrado por trás. Se você entrasse pela frente, um largo e sujo caminho seguia
portão adentro e ampliava-se numa área semicircular que havia sido Terraplenada,
parecendo uma pista de aterragem, e acabava abruptamente à beira do fosso do
despejadouro. A bomba (Teddy e Vern já estavam lá discutindo quem seria o primeiro a
usá-la) ficava atrás desse grande fosso. Tinha talvez trinta metros e era cheio de todas as
coisas americanas que acabaram, se desgastaram ou simplesmente não funcionam mais.
Havia tanta coisa que meus olhos doíam só de olhar talvez fosse a cabeça que doía, pois
nunca conseguia decidir onde parar os olhos. Então os olhos paravam ou eram parados
por alguma coisa que parecia fora do lugar como os lânguidos relógios com cara ou o
quarto no meio do deserto. Uma armação de cama em bronze reluzindo bêbada ao sol.
Uma bonequinha de criança com expressão espantada e as coisas mais variadas saindo
do meio de suas coxas, como se as estivesse parindo. Um automóvel Studebaker virado
de cabeça para baixo com seu nariz redondo de cromo brilhando ao sol como um míssil
de Buck Rogers. Uma daquelas garrafas d'água gigantes que se usa em escritórios
transformada, pelo sol do verão, numa esplendorosa e escaldante safira.
Também havia muitos animais selvagens ali, embora não do tipo que se vê em filmes de
Walt Disney nem no zoológico, onde os bichos são domesticados. Gordos ratos,
marmotas macias e pesadas de se alimentarem de ração tão rica como hambúrgueres
podres e vegetais bichados, gaivotas aos milhares ciscando como ministros pensativos e
introspectivos, de vez em quando um enorme corvo. Era também o lugar onde os
cachorros vira-lata da cidade vinham procurar uma refeição quando não conseguiam
encontrar uma lata de lixo para derrubar nem um cervo para correr atrás. Eram um
bando de cachorros miseráveis, mal-humorados; de ancas magras e sorrisos amargos,
atacavam-se uns aos outros por um pedaço de salsichão estragado ou um monte de
tripas de galinha defumando ao sol.
Mas esses cachorros nunca atacavam Milo Pressman, o zelador do despejadouro, porque
Milo nunca andava sem Chopper atrás de si. Chopper era - pelo menos até o cachorro de
Joe Camber, Cujo, ter raiva vinte anos depois - o cachorro mais temido e menos visto de
Castle Rock. Era o cachorro mais malvado num raio de sessenta quilômetros (pelo
menos era o que ouvíamos dizer) e tão feio que assustava. As crianças contavam
histórias a respeito da malvadeza de Chopper. Alguns diziam que era mistura de pastor
alemão, outros que era boxer e um garoto de Castle View com o infeliz nome de Harry
Horro dizia que Chopper era um Doberman pequeno cujas cordas vocais haviam sido
removidas numa cirurgia para que ninguém ouvisse seu latido quando ia atacar. Havia
outros garotos que diziam que Chopper era um cão de caça irlandês maníaco e Milo
Pressman alimentava-o com uma mistura especial de ração e sangue de galinha. Esses
mesmos garotos diziam que Milo não ousava soltar Chopper a não ser que estivesse
encapuzado como um falcão de caça.
A história mais comum era que Pressman tinha treinado Chopper não apenas para
morder, mas para morder partes específicas do corpo humano. Assim, um infeliz
menino que ilegalmente pulasse a cerca do despejadouro para pegar tesouros ilícitos
ouviria Milo Pressman gritar: - Pega, Chopper! a mão! - E Chopper pegaria a mão e não
largaria mais, rasgando a pele e tendões, esfarelando ossos entre seus maxilares
Outono da Inocência - Stephen King
salivantes até Milo manda-lo parar. Havia o boato de que Chopper podia arrancar um
olho, uma orelha, uma perna, um pé... e que o infrator reincidente que fosse
surpreendido por Milo e seu sempre leal Chopper ouviria o terrível grito: - Pega,
Chopper! o saco! - E aquece garoto seria um soprano para o resto da vida. O próprio
Milo era visto mais freqüentemente e, assim, considerado uma pessoa mais comum. Era
apenas um trabalhador humilde que completava seu modesto salário consertando coisas
que as pessoas jogavam fora e vendendo-as pela cidade.
Não havia sinal de Milo nem de Chopper naquele dia.
Chris e eu vimos Vern usar a bomba enquanto Teddy rodava a manivela freneticamente.
Finalmente foi recompensado com um fluxo de água clara. Um momento depois
estavam os dois com a cabeça embaixo da tina, Teddy ainda bombeando à velocidade
de quinhentos metros por minuto.
- Teddy é maluco - disse eu tranqüilo.
- É - disse Chris com simplicidade. - Não vai viver mais dó que o dobro da idade que
tem agora, aposto. É o que dá o pai dele queimar suas orelhas. Ele é louco de fugir dos
caminhões desse jeito. Não enxerga nada, com óculos ou sem.
- Lembra aquela vez na árvore?
- Lembro.
No ano anterior Teddy e Chris haviam subido no grande pinheiro que há atrás de minha
casa. Estavam quase no alto quando Chris disse que não podiam mais continuar pois
todos os galhos a partir dali estavam podres. Teddy adquiriu aquela expressão maluca e
obstinada e disse que estava pouco ligando, estava com as mãos muito sujas e ia
continuar subindo até o fim. Nada que Chris dizia o fazia mudar de idéia. Então
continuou e realmente conseguiu - pesava apenas quarenta quilos, lembre-se. Ficou lá,
segurando o último ramo do pinheiro com as mãos meladas de alcatrão e gritando que
era o rei do mundo ou qualquer estupidez como essa, quando houve um estalo de
alguma coisa podre e estragada e o galho em que ele estava sentado cedeu e ele
despencou. O que aconteceu depois foi uma dessas coisas que fazem você ter certeza
que Deus existe. Chris esticou a mão puramente por reflexo e pegou um punhado dos
cabelos de Teddy Duchamp. E embora seu pulso tenha inchado e ele tenha ficado duas
semanas sem conseguir usar a mão direita, Chris segurou Teddy, até que ele, gritando e
xingando, colocou os pés num galho grosso o suficiente para suportar seu peso. Se não
fosse o instinto de Chris ele teria rolado e caído até lá embaixo, de uma altura de
quarenta metros. Quando desceram Chris estava branco e quase vomitando pela reação
de medo. E Teddy queria lhe bater por que puxara seu cabelo. E teriam brigado mesmo
se eu não estivesse lá para separar os dois.
- Sonho com aquilo de vez em quando - disse Chris e me olhou com olhos
estranhamente indefesos. - Só que no meu sonho eu quase deixo ele cair. Pego só alguns
fios de cabelo, Teddy grita e cai. Estranho, né?
Outono da Inocência - Stephen King
- Estranho - concordei, e por um momento olhamos dentro dos olhos um do outro e
vimos algumas coisas verdadeiras que nos faziam amigos. Então desviamos nossos
olhares e vimos Teddy e Vern jogando água um no outro, gritando, rindo e chamando-se
de frouxos
- E, mas você não deixou ele escapar - disse eu. - Chris Chambers nunca deixa escapar,
certo?
- Nem quando uma mulher levanta da cadeira - disse ele.
Piscou para mim, fez um O com o dedão e o indicador e colocou uma bala branca e lisa
no meio.
- Esperto, hem, Chambers - disse eu.
- Mais do que você pensa - disse ele, e sorrimos um para o outro.
Vern gritou: - Venham logo pegar a água antes que ela desça de novo!
- Vamos apostar corrida? - perguntou Chris.
- Nesse calor? Está maluco.
- Vamos - disse ele ainda rindo. - Um, dois, três e...
- Está bem.
- Já!
Saímos correndo, nossos tênis cavando o chão de terra duro e batido pelo sol, nossos
torsos esticados à frente de nossas pernas dentro de blue jeans, as mãos fechadas. Foi
empate. Vern ao lado de Chris e Teddy ao meu levantaram o dedo do meio ao mesmo
tempo. Caímos rindo no lugar tranqüilo e fedorento, e Chris pegou o cantil de Vern.
Quando estava cheio Chris e eu fomos até a bomba e primeiro Chris bombeou e depois
eu, a água fria contrastante tirando toda a fuligem e o calor imediatamente, colocando
nossos couros cabeludos gelados quatro meses à frente, em janeiro. Então tornei a
encher a lata de toucinho e fomos todos sentar à sombra da única árvore do
despejadouro, um freixo atrofiado a dez metros da cabana de papel alcatroado de Milo
Pressman. A árvore ficava ligeiramente inclinada para o oeste, como se quisesse
recolher suas raízes como uma velha senhora recolhe suas saias e simplesmente se
mandar do despejadouro.
- O máximo! - disse Chris rindo e tirando os cabelos emaranhados da frente dos olhos.
- Incrível - disse eu sacudindo a cabeça e ainda rindo.
- É realmente um ótimo dia - disse Vern com simplicidade, e não estava se referindo
somente ao fato de estarmos dentro do despejadouro, enganando nossos pais e subindo
os trilhos da estrada de ferro até Harlow; estava se referindo a essas coisas também, mas
Outono da Inocência - Stephen King
para mim, agora, parece que havia mais alguma coisa, e todos nós sabíamos. Estava
tudo ali à nossa volta. Sabíamos exatamente quem éramos e exatamente para onde
estávamos indo. Era maravilhoso.
Ficamos sentados embaixo da árvore por um tempo tagarelando como sempre fazíamos
- quem tinha o melhor time de futebol (ainda os Yankees com Mantle e Maris, claro),
qual o melhor carro (o Thunderbird 55, Teddy defendendo obstinadamente o Corvette
58), quem era o cara mais valente de Castle Rock que não pertencia à nossa turma
(todos concordávamos que era Jamie Gallant, que tinha xingado a Sra. Ewing e saído da
sala com as mãos nos bolsos enquanto ela gritava seu nome), o melhor programa da TV
(ou Os Intocáveis ou Peter Gunn - tanto Robert Stack como Eliot Ness quanto Craig
Stevens como Gunn eram ótimos), todas essas coisas.
Teddy foi o primeiro a perceber que a sombra da árvore estava ficando mais longa e
perguntou que horas eram. Olhei meu relógio e fiquei surpreso ao ver que eram duas e
quinze.
- Ei, pessoal - disse Vern. - Alguém tem que sair para buscar alimentos. O despejadouro
abre às quatro. Não quero estar aqui ainda quando Milo e Chopper derem o show.
Até Teddy concordou. Ele não tinha medo de Milo, que tinha uma barriga protuberante
e pelo menos quarenta anos, mas todos os meninos de Castle Rock se arrepiavam
quando o nome de Chopper era mencionado.
- Está bem - disse eu. - O cara mais esquisito vai.
- Você, Gordie, - disse Chris rindo. - O mais esquisito de todos.
- Igual à sua mãe - disse eu, e dei uma moeda para cada um. - Vamos tirar na sorte.
Quatro moedas subiram brilhando ao sol. Quatro mãos pegaram-nas no ar e colocaram-
nas tampadas em cima da outra mão. Olhamos. Duas caras e duas coroas. Jogamos de
novo e todos os quatro tiraram coroa.
- Ah, meu Deus, isso é mau agouro - disse Vern sem contar nada de novo para .trás.
Quatro caras era sinal de muita sorte. Mas quatro coroas era muito azar.
- Deixa de besteira - disse Chris. - Isso não quer dizer nada. Vamos jogar de novo.
- Não, cara - disse Vern, honesto. - É mau agouro mesmo. Lembra quando Clint
Bracken e aqueles caras se arrebentaram em Sirois Hill em Durham? Billy me contou
que eles estavam disputando cervejas na moeda e tiraram quatro coroas antes de entrar
no carro. E bang! acabaram com o carro. Não gosto disso. Sinceramente.
- Ninguém acredita nessa história de mau agouro - disse Teddy impaciente. - É coisa de
criança, Vern. Vai jogar ou não?
Vern jogou, mas com óbvia relutância. Dessa vez, ele, Chris e Teddy tiraram coroa. Eu
exibia o rosto de Thomas Jefferson numa moeda de cinco cents. E de repente fiquei com
Outono da Inocência - Stephen King
medo. Foi como se uma sombra tivesse cruzado um sol interior. Os três ainda estavam
com mau agouro, como se um destino silencioso estivesse apontando para eles pela
segunda vez. Abruptamente pensei em Chris dizendo: Pego só alguns fios de cabelo,
Teddy grita e cai. Estranho, né?
Três coroas e uma cara.
Então Teddy começou a me apontar e rir de mim com sua risada maluca de escárnio, e a
sensação passou.
- Ouvi dizer que só "frescos" riem assim - disse eu acusadoramente.
- Eeeee-eeee-eeee, Gordie - ria Teddy. - Vai buscar os alimentos, seu babaca.
Realmente não fiquei lamentando de ter que ir. Estava descansado e não me
incomodava de descer a rua até o Florida Market.
- Não me chame com nenhum dos nomes da tua mãe - disse eu a Teddy.
- Eeeee-eeee-eeee, que babaca você é, Lachance.
- Vai, Gordie - disse Chris. - Vamos esperar você perto dos trilhos.
- Acho melhor vocês não irem sem mim - eu disse.
Vern riu. - Ir sem você é como tomar Slitz em vez de Budweiser, Gordie
- Ah, cala a boca.
Todos cantaram juntos: - Não calo e ninguém me manda senão eu me irrito. E quando
olho para você eu vomito.
- Aí a tua mãe vai lá e lambe - disse eu, e me mandei dali, fazendo um gesto para eles
por cima do ombro quando estava longe. Nunca mais tive amigos como os que tinha aos
doze anos. Meu Deus, e você?
12
Cada macaco no seu galho, dizem hoje em dia, e é um barato isso. Então, se eu falar a
palavra verão para você, você terá um conjunto de imagens pessoais e particulares que
são totalmente diferentes das minhas. Isso é interessante. Mas para mim verão sempre
significará descer correndo a rua até o Florida Market com as moedas tilintando nos
bolsos, quarenta graus de temperatura, os pés calçados com Keds A palavra evoca a
imagem dos trilhos da GS&WM unindo-se num ponto em perspectiva no horizonte,
com um brilho tão intenso ao sol que quando fechava os olhos podia ainda vê-los no
escuro, só que azuis em vez de brancos.
Outono da Inocência - Stephen King
Mas houve mais em relação àquele verão que nossa viagem até O outro lado do rio para
procurar Ray Brower, embora isso permaneça como o mais forte. Sons dos Fleetwoods
cantando Come Softly to Me, Robin Luke cantando Susie Darlin e Little Anthony
estourando no vocal com I Ran All the Way Home. Todos eram sucessos naquele verão
de 1960? Sim e não. A maioria sim. Nas longas noites azuladas em que o rock and roll
da WLAM misturava-se com o beisebol noturno da WCO U o tempo mudava. Acho que
tudo era 1960, e aquele verão continuou por um espaço de anos, mantido magicamente
intacto num emaranhado de sons: o doce zumbido dos grilos, o barulho de metralhadora
das cartas de baralho presas nos aros da bicicleta de algum menino que pedalava até em
casa para o jantar mais tardio, a voz texana aberta de Buddy Knox cantanto Come along
and be my party doll, and I'll make love to you, to you, e a voz do locutor de beisebol
misturando-se com a música e com o cheiro da grama fresca cortada: - A contagem está
três e dois agora. Whitney Ford inclina-se para frente... ultrapassou o sinal... agora
conseguiu... Ford faz uma pausa... atira a bola para o batedor... e agora! Williams pega!
Adeus! RED SOX VENCE POR TRÊS A UM! Ted Williams ainda jogava no Red Sox
em 1960? Pode ter certeza que sim. Lembro claramente. O beisebol tornara-se
importante para mim nos últimos anos, desde que tivera que encarar a realidade de que
os jogadores de beisebol eram de carne e osso como eu. Essa conscientização aconteceu
quando Roy Campanella capotou de carro e os jornais anunciavam manchetes fatais nas
primeiras páginas: sua carreira estava arruinada, viveria o resto de sua vida numa
cadeira de rodas. Aquilo voltou à minha lembrança como um golpe surdo quando
sentei-me à máquina de escrever há dois anos atrás certa manhã, liguei o rádio e ouvi
que Thurman Munson tinha morrido tentando aterrissar de avião.
Havia filmes para ver no Gem, que há muito foi demolido; filmes de ficção científica
como Gog com Richard Egan, filmes de faroeste com Audie Murphy (Teddy via todos
os filmes de Audie Murphy pelo menos três vezes; acreditava que Murphy era quase um
deus) e filmes de guerra com John Wayne. Havia jogos e refeições engolidas às pressas,
grama para cortar, locais para os quais correr, muros para jogar moedas, pessoas para
bater nas costas. E agora estou sentado aqui tentando olhar através de um teclado IBM e
ver aquela época, tentando lembrar o melhor e o pior daquele verão marrom e verde, e
posso quase sentir o garoto magro e com cascas de feridas ainda enterrado nesse corpo
desenvolvido e ouvir aqueles sons. Mas a mais forte lembrança daquele tempo é Gordon
Lachance descendo a rua, correndo em direção ao Florida Market com dinheiro trocado
no bolso e suor nas costas.
Pedi um quilo de hambúrguer e comprei pão, quatro garrafas de Coca e um abridor de
dois cents para abri-las. O dono, um homem chamado George Dusset, pegou a carne,
debruçou-se sobre a caixa registradora, uma das mãos apoiadas no balcão perto do vidro
de ovos cozidos, um palito entre os dentes, sua enorme barriga redonda de urso
enchendo a camiseta branca como uma vela ao vento forte. Ficou parado ali enquanto
eu fazia as compras, certificando-se de que eu não tentava roubar nada. Não deu uma
palavra até pesar o hambúrguer.
- Conheço você. Você é o irmão de Denny Lachance, não é? - O palito andou de um
canto ao outro de sua boca como que sobre rolamentos. Colocou a mão embaixo da
caixa, pegou uma garrafa de soda e bebeu-a até o fim sem parar.
Outono da Inocência - Stephen King
- Sim senhor. Mas Denny, ele...
- E, sei. E uma coisa triste, garoto. A Bíblia diz: "No meio da vida estamos na morte."
Sabia disso? Hem? Perdi um irmão na Coréia. Você parece muito com Denny, as
pessoas lhe dizem isso? Hem? E a imagem cuspida.
- Sim senhor, às vezes - disse eu taciturno.
- Lembro do ano que ele foi campeão. Jogava no meio. Como ele corria! Meu Deus do
céu! Você provavelmente é novo demais para lembrar. - Olhava sobre minha cabeça
para além da porta de grade, para o calor sufocante, como se estivesse tendo uma linda
visão de meu irmão.
- Lembro. Sr. Dusset...
- O quê, meu filho? - Seus olhos ainda estavam distantes com as lembranças; o palito
tremia um pouco entre seus lábios.
- O senhor está com o dedo na balança.
- O quê? - Olhou para baixo atônito, onde seu dedão pressionava firmemente o esmalte
branco. Se não tivesse me afastado um pouco dele quando começou a falar de Dennis,
não teria visto. - Ah, é. Hum. Acho que comecei a pensarem seu irmão, Deus o tenha. -
George Dusset fez o sinal-da-cruz. Quando tirou o dedo da balança a agulha desceu
cento e cinqüenta gramas. Colocou um pouco mais de carne no alto e depois fez o
embrulho com o papel branco de açougueiro.
- Muito bem - disse por entre o palito. - Vejamos o que tem aqui. Um quilo de
hambúrguer, um dólar e quarenta e quatro. Pães de hambúrguer, vinte e sete. Quatro
Cocas, quarenta cents.
Um abridor, dois cents. Dá... - Somou uma sacola em que ia colocar as coisas. - Dois e
vinte e nove.
- Treze - disse eu.
Olhou para mim erguendo a cabeça lentamente e franzindo um pouco a testa. - Hem?
- Dois e treze. O senhor somou errado.
- Garoto, você está...
- O senhor somou errado - disse eu. - Primeiro o senhor coloca o dedo na balança,
depois cobra errado. Eu ia comprar mais alguma coisa, mas acho que não vou mais. -
Coloquei dois dólares e treze cents sem hesitarem cima do balcão em frente a ele.
Olhou para o dinheiro e depois para mim. Sua testa agora estava bastante franzida, as
linhas do rosto parecendo fissuras. - O que você pensa que é, garoto? - disse ele em voz
baixa ameaçadoramente confidencial. - Algum espertinho?
Outono da Inocência - Stephen King
- Não senhor - disse eu. - Mas o senhor não vai me enganar e ficar por isso mesmo. O
que sua mãe diria se soubesse que o senhor engana criancinhas?
Enfiou nossas coisas na sacola de papel com movimentos rápidos e inflexíveis, fazendo
as garrafas de Coca se chocarem. Empurrou a sacola para mim grosseiramente sem se
preocupar se eu ia deixá-la cair e quebrar todos os refrigerantes. Seu rosto moreno
estava ruborizado e apático, esticado e não mais franzido. - Muito bem, garoto. Aqui
está. Agora você desapareça da minha loja. Se eu vir você de novo aqui vou botá-lo para
fora. Hum. Seu espertinho filho da mãe.
- Nunca mais volto aqui - disse eu indo em direção à porta de grade e empurrando-a. A
tarde quente zumbiu sonolenta lá fora, aparecendo verde e marrom e cheia de uma luz
silenciosa. Nem nenhum de meus amigos. Acho que tenho mais de cinqüenta.
- Seu irmão não era tão espertinho! - gritou George Dusset.
- Foda-se! - gritei, e corri feito um louco rua abaixo.
Ouvi a porta de grade abrir como um tiro e sua voz de boi me alcançar: - Se voltar aqui
mais uma vez eu te arrebento, seu marginal!
Corri até passar o primeiro morro, apreensivo e rindo sozinho, meu coração batendo
como uma alavanca dentro do peito. Depois diminuí para uma caminhada rápida,
olhando para trás por cima do ombro toda hora para ter certeza que ele não vinha atrás
de mim de carro, ou coisa parecida.
Não veio, e logo cheguei ao portão do despejadouro. Coloquei o saco dentro da camisa,
subi o portão e pulei do outro lado. Estava na metade da área do despejadouro quando vi
algo que não gostei - o Buick 56 do vigia Milo Pressman estava estacionado atrás do
barraco de papei acaltroado. Se Milo me visse eu estaria perdido. Por enquanto não
havia sinal dele nem do abominável Chopper, mas de repente a cerca de correntes atrás
do despejadouro pareceu muito longe. Senti que queria ter ido pelo outro lado, mas já
estava muito adiantado para virar e voltar. Se Milo me visse pulando a cerca do
despejadouro estaria em dificuldades quando chegasse em casa, mas aquilo não me
apavorava tanto quanto a idéia de Milo gritando para Chopper me pegar.
Uma música apavorante de violino começou a tocar em minha cabeça. Continuava a
colocar um pé depois do outro, tentando parecer natural, tentando dar a impressão de
que meu lugar era ali, com um saco embaixo da camisa, dirigindo-me à cerca entre o
despejadouro e os trilhos do trem.
Estava a quarenta metros da cerca e começando a pensar que tudo ia dar certo quando
ouvi Milo gritar: - Ei! Ei, você! Garoto! Saia dessa cerca! Saia daí!
O mais inteligente seria ter concordado com o cara e dado a volta, mas àquela altura
estava tão nervoso que em vez de tomar a atitude inteligente simplesmente saí correndo
para a cerca com um grito apavorado, meus tênis levantando poeira. Vern, Teddy e
Outono da Inocência - Stephen King
Chris saíram de baixo de uma vegetação do outro lado da cerca e olhavam ansiosos
através dos elos.
- Volte aqui! - berrava Milo. - Volte aqui ou eu mando meu cachorro atrás de você,
droga!
Não achava exatamente que aquela voz era de bom senso e conciliação, e corri ainda
mais até a cerca, meus braços sacudindo vigorosamente para cima e para baixo, a sacola
marrom da mercearia friccionando minha pele. Teddy começou a dar sua risada idiota
de escárnio, eee-eee-eee, como algum instrumento de palheta sendo tocado por um
lunático.
- Vai, Gordie! Vai! - gritava Vern.
E Milo gritava: - Pega, Chopper! Pega aquele garoto!
Joguei a sacola por cima da cerca e Vern empurrou Teddy para o lado para pegá-la.
Atrás de mim podia ouvir Chopper vindo, a terra tremendo, lançando fogo por uma das
narinas e gelo pela outra, soltando gotas de enxofre de seus dentes trituradores. Dei um
pulo para cima até a metade da cerca, gritando. Cheguei ao alto em menos de três
segundos e simplesmente pulei - nem pensei no que fazia, em nenhum momento olhei
para baixo para ver onde ia cair. Quase caí em cima de Teddy, que estava dobrado de
tanto rir. Seus óculos tinham caído, as lágrimas escorriam de seus olhos. Não o acertei
por pouco e caí no aterro de barro à sua esquerda. No mesmo instante Chopper alcançou
a cerca atrás de mim e soltou um uivo de dor misturado com desapontamento. Virei-me
segurando o joelho esfolado e lancei meu primeiro olhar para o famoso Chopper - e tive
minha primeira lição da vasta diferença entre mito e realidade.
Ao invés de um monstro de olhos vermelhos e selvagens e dentes projetados como
canos de um carro envenenado, estava olhando para um vira-lata de tamanho médio,
preto e branco, totalmente comum. Ele latia e pulava infrutiferamente, subindo nas patas
traseiras pata tocar a cerca.
Teddy andava empertigado de um lado para o outro em frente à cerca rodando os óculos
com uma das mãos e incitando Chopper.
- Beija meu traseiro, Choppie! - convidava Teddy, os perdigotos voando de sua boca. -
Beija meu traseiro! Morde, seu merda!
Encostou as nádegas contra a cerca de elos e Chopper fez o possível para corresponder
ao pedido de Teddy. Com todo seu esforço só conseguiu bater o focinho. Começou a
latir sem parar, espumando pelo focinho. Teddy ficava batendo o traseiro contra a cerca
e Chopper investindo contra ela, sem conseguir nada a não ser esfolar o focinho, que
agora estava sangrando. Teddy continuava a incitá-lo, chamando-o pelo nome horrível
de "Choppie", e Vern e Chris estavam deitados no aterro sem forças de tanto rir, e só
conseguiam respirar com dificuldade.
E lá veio Milo Pressman vestido com roupas manchadas de suor e um boné de beisebol
do New York Giants, a boca aberta de ódio.
Outono da Inocência - Stephen King
- Ei, ei! - gritava ele. - Meninos, vocês parem de implicar com esse cachorro!
Entenderam? Parem já!
- Morde, Choppie! - gritava Teddy andando de um lado para o outro do nosso lado da
cerca como um prussiano maluco revistando suas tropas. - Vem, me pega! Me pega!
Chopper ficou louco. Quero dizer, de verdade. Corria em círculos, uivando, latindo e
espumando, as patas traseiras levantando pequenos pedaços secos de terra. Dava umas
três voltas, tomando coragem, acho, e jogava-se de encontro à cerca de segurança.
Devia estar a cinqüenta quilômetros por hora quando se jogava, sem brincadeira - a
boca arreganhada mostrando os dentes e as orelhas voando como se tivesse uma hélice
por perto. A cerca toda fazia um som baixo e musical quando a corrente de elos se
esticava para trás de encontro às colunas. Era como uma nota de cítara
iimmmmmmmmmm. Chopper deu um latido sufocado, revirou os dois olhos e deu uma
cambalhota no sentido contrário totalmente incrível, caindo de costas com um barulho
surdo e levantando poeira à sua volta. Ficou deitado ali por um momento e depois saiu
se arrastando com a língua caída para a esquerda.
Com isso Milo ficou quase louco de raiva. Seu rosto adquiriu uma tonalidade
espantosamente roxo-escura - até o couro cabeludo embaixo dos cabelos eriçados e
curtos ficou roxo. Sentado na terra e atordoado, os jeans rasgados nos dois joelhos, meu
coração ainda batendo por ter escapado por pouco, achei que Milo parecia a versão
humana de Chopper.
- Conheço você! - vociferava Milo. - Você é Teddy Duchamp! Conheço todos vocês!
Vou matar vocês se ficarem mexendo com meu cachorro dessa maneira!
- Quero ver você tentar! - gritava Teddy de volta. - Quero ver você subir essa cerca e me
pegar, sua bunda de vaca!
- O QUÊ? DE QUE VOCÊ ME CHAMOU?
- BUNDA DE VACA! - gritava Teddy feliz. - BUNDONA! BUNDA CAIDA! VEM!
VEM! - Ele pulava, as mãos apertadas, o suor escorrendo por baixo do cabelo. -VAI
APRENDER A MANDAR ESSE CACHORRO ESTÚPIDO PEGAR AS PESSOAS!
VEM! QUERO VER VOCÊ TENTAR!
- Seu canalhazinho narigudo filho de um maluco! Vou fazer a sua mãe ir no tribunal
falar com o juiz sobre o que você fez com meu cachorro!
- De que você me chamou? - perguntou Teddy com a voz rouca. Parara de pular. Seus
olhos ficaram grandes e petrificados, e sua pele da cor de chumbo.
Milo chamara Teddy de uma série de coisas, mas foi capaz de voltar atrás e repetir o
nome que tocara seu ponto fraco sem problemas - desde então reparei como as pessoas
têm inclinação para isso... para encontrarem o ponto fraco lá no fundo e não apenas
tocá-lo, mas martelá-lo.
Outono da Inocência - Stephen King
- Seu pai era maluco - disse ele rindo. - Maluco do hospital de veteranos. Mais louco
que um rato dentro de casa. Mais maluco que um bode com febre. Mais pirado que um
gato de rabo comprido numa sala cheia de cadeiras de balanço. Maluco. Não é de
admirar que você esteja agindo desse jeito, como um p...
- A TUA MÃE COME RATO MORTO! - gritava Teddy. E SE VOCÊ CHAMAR MEU
PAI DE MALUCO DE NOVO EU TE MATO, SEU FILHO DA PUTA!
- Maluco - disse Milo presunçoso. - Tinha encontrado o ponto certo. - Filho de um
maluco, filho de um maluco, teu pai tem uns parafusos a menos, garoto.
Vern e Chris estavam conseguindo parar com o ataque de riso, talvez se preparando
para avaliar a seriedade da situação e tirar Teddy dali, mas quando Teddy disse a Milo
que a mãe dele comia rato morto voltaram a rir, deitados, rolando de um lado para o
outro, batendo com os pés no chão e segurando a barriga. - Chega - dizia Chris sem
forças. - Chega, por favor, chega, juro por Deus que vou estourar!
Chopper andava atordoado em oito atrás de Milo. Parecia o perdedor dez segundos
depois de o juiz dar por encerrada a partida e declarar nocaute técnico. Enquanto isso
Teddy e Milo continuavam a discussão sobre o pai de Teddy com os narizes colados na
cerca de arame que os separavam e na qual Milo não tinha condições de subir por ser
muito velho e gordo.
- Não diga mais nada sobre meu pai! Meu pai participou do desembarque na
Normandia, seu babaca filho da puta!
- É, muito bem, e onde ele está agora, seu monte de merda de quatro olhos? Em Togus,
porque é maluco!
- Pronto, isso mesmo - disse Teddy. - É isso mesmo, chega, vou te matar. - Jogou-se na
cerca e começou a subir.
- Suba e tente, seu canalha magricela. - Milo ficou parado, rindo e esperando.
- Não - gritei eu. Levantei-me, agarrei Teddy pelos fundilhos largos da calça jeans e
arranquei-o da cerca. Nós dois nos desequilibramos e caímos, ele por cima. Amassou
meu saco com força e eu gemi. Nada dói mais que te amassarem o caso, sabia? Mas eu
continuava com os braços em volta da cintura de Teddy.
- Deixa eu subir! - soluçava Teddy torcendo meus braços. Deixa eu subir, Gordie!
Ninguém fala do meu pai. DEIXA EU SUBIR, PORRA, DEIXA EU SUBIR!
- E tudo que ele quer - gritei em seu ouvido. - Ele quer te pegar, te bater e depois te
levar para a polícia!
- Há? - Teddy virou o pescoço para me olhar, seu rosto atordoado.
Outono da Inocência - Stephen King
- Não adianta falar nada, garoto - disse Milo aproximando-se da cerca novamente com
as mãos fechadas do tamanho de um pernil. - Deixa ele resolver os problemas dele
sozinho.
- Claro - disse eu. - Só que você pesa mais cem quilos que ele.
- Conheço você também - disse Milo ameaçadoramente. Seu nome é Lachance. -
Apontou para Vern e Chris, que estavam finalmente se levantando, ainda ofegantes de
tanto rir. - E aqueles são Chris Chambers e um dos estúpidos irmãos Tessio. Os pais de
vocês todos vão receber um telefonema meu, menos o maluco do Togus. Vocês vão
todos para o reformatório. Seus delinqüentes!
Ficou parado com as mãos sardentas esticadas, respirando com dificuldade, esperando
que chorássemos ou pedíssemos desculpas ou talvez déssemos Teddy para servir de
alimento para Chopper.
Chris formou um O com o dedão e o indicador e cuspiu por dentro dele.
Vern fez hum! e olhou para cima.
Teddy disse: - Vamos, Gordie. Vamos nos afastar desse babaca antes que eu vomite.
- Ah, você vai me pagar, seu desbocadozinho filho da mãe. Espera até eu te levar para a
polícia.
- Ouvimos o que você disse sobre o pai dele - disse eu. Somos testemunhas. E você
tentou fazer aquele cachorro me morder. Isso é contra a lei.
Milo pareceu um pouco apreensivo. - Você estava invadindo. - Estava droga nenhuma.
O despejadouro é um lugar público.
- Você pulou a cerca.
- Claro, depois que você colocou o cachorro atrás de mim disse eu, torcendo para Milo
não lembrar que eu tinha pulado o portão também para entrar. - O que você acha que eu
ia fazer? Ficar parado e deixar ele me estraçalhar em mil pedaços? Vamos, pessoal.
Vamos embora. O lugar aqui está fedendo.
- Reformatório - prometeu Milo com a voz rouca e trêmula. - Reformatório para vocês,
espertinhos.
- Não vejo a hora de contar para a polícia que você chamou um veterano de guerra de
maluco - gritou Chris por cima do ombro à medida que nos afastávamos. - O que o
senhor fez na guerra, Sr. Pressman?
- NÃO É DA SUA CONTA! - gritou estridente. -VOCÊS MACHUCARAM O MEU
CACHORRO!
Outono da Inocência - Stephen King
- Põe ele no carro e leva para o veterinário - murmurou Vern, e então já estávamos
subindo novamente a margem da estrada de ferro.
- Voltem aqui! - gritou Milo, mas sua voz estava mais fraca e ele parecia estar perdendo
o interesse.
Teddy fez um gesto para ele quando nos afastamos. Olhei para trás por sobre o ombro
quando chegamos no alto da barragem. Milo estava lá em pé atrás da cerca de
segurança, um homem grande com um boné de beisebol, o cachorro sentado a seu lado.
Seus dedos estavam presos dentro dos elos em forma de losangos quando gritou para
nós, e de repente senti muita pena dele - parecia o maior bebezão do mundo, trancado
por engano no pátio de recreio gritando para alguém tirá-lo dali. Continuou gritando
mais um pouco e depois ou desistiu ou sua raiva passou. Naquele dia não se ouviu mais
falar nem se viu Milo Pressman e Chopper.
13
Conversamos um pouco - num tom de justiça que na verdade soou meio forçado -sobre
como tínhamos mostrado àquele idiota do Milo Pressman que não éramos apenas mais
um bando de imbecis. Contei que o cara do Florida Market quisera nos enganar, e
caímos num silêncio cheio de desalento, pensando no ocorrido.
Quanto a mim achava que talvez aquele negócio de mau agouro tivesse mesmo alguma
relação. As coisas não poderiam ter sido piores - na verdade, pensava eu, era melhor ir
levando e poupar meus pais da dor de ter um filho no cemitério de Castle View e outro
no Reformatório de Meninos de Windham. Não tinha dúvidas de que Milo iria à polícia
assim que o problema do despejadouro estar fechado à hora do incidente se diluísse em
sua cabeça dura. Quando isso acontecesse ele perceberia que eu realmente tinha
invadido, lugar público ou não. Provavelmente aquilo lhe dava todo o direito do mundo
de mandar o seu cachorro estúpido me morder. E embora Chopper não fosse o monstro
que se dizia, com certeza rasgaria os fundilhos do meu jeans se eu não tivesse ganho a
corrida até a cerca. Tudo aquilo colocava uma grande mancha escura no dia E havia
outra idéia sombria martelando na minha cabeça - a idéia de que afinal de contas aquilo
não era nenhuma brincadeira e merecíamos a má sorte. Talvez fosse até Deus nos
avisando para irmos para casa. Afinal o que íamos fazer? Olha um garoto que tinha sido
esmagado por um trem de carga?
Mas estávamos fazendo isso, e nenhum de nós queria parar.
Tínhamos quase atingido a ponte de cavaletes que levava os trilhos por cima do rio
quando Teddy caiu num grande pranto. Foi como se uma grande onda interior tivesse
rompido um conjunto muito bem construído de diques mentais. Não é besteira foi assim
de repente e com a maior violência. Os soluços faziam-no curvar-se como se estivesse
levando socos e pareceu estar liberando muitas coisas acumuladas, suas mãos iam do
estômago aos pedaços de pele mutilados que eram o restante de suas orelhas.
Continuava a ter ataques violentos e intensos de choro.
Outono da Inocência - Stephen King
Nenhum de nós sabia o que fazer. Não era o tipo de choro de alguém que se machucou
numa brincadeira ou caiu da bicicleta na praça. Não havia nada fisicamente errado com
ele. Afastamo-nos um pouco e ficamos olhando-o, as mãos nos bolsos.
- Ei, cara - disse Vern numa voz muito delicada. Chris e eu olhamos para Vern
esperançosos. "Ei, cara" era sempre um bom começo. Mas Vern não conseguiu
continuar.
Teddy inclinou-se sobre os dormentes e colocou uma das mãos nos olhos. Agora parecia
que estava fazendo a saudação a Alá - Salame, salame, como diz Popeye. Só que não
era engraçado.
Finalmente quando a intensidade do choro diminuiu um pouco, foi Chris quem se
aproximou dele. Era o cara mais valente de nossa turma (talvez mais que Jamie Gallant,
achava eu particularmente), mas era também o que conseguia melhor fazer as pazes.
Tinha jeito para fazer aquilo. Já o tinha visto sentar-se perto de um garotinho com os
joelhos arranhados, um garotinho que ele nem conhecia e começar a fazê-lo falar sobre
alguma coisa - o circo que viria para a cidade ou um programa infantil da TV - até que o
garotinho esqueceu que estava machucado. Chris era bom naquilo. Era tão valente que
tinha que ser bom naquilo.
- Escute, Teddy, você vai ligar para o que um monte de merda como ele disse do seu
pai? Hem? É verdade! Isso não muda nada, muda? O que um monte de merda como ele
diz do seu pai? Hem? Hem? Muda?
Teddy balançou a cabeça violentamente. Não mudava nada. Mas ouvir aquilo à luz do
dia, uma coisa sobre a qual deve ter ficado pensando continuamente nas noites em que
não conseguia dormir, olhando a luz no canto da vidraça, uma coisa que tentava
compreender à sua maneira lenta e desalentada até ela parecer sagrada, e de repente
perceber que todos simplesmente desprezavam seu pai por ser maluco... aquilo o
abalara. Mas não mudava nada. Nada.
- Ele participou do desembarque na Normandia do mesmo jeito, não foi? - disse Chris.
Segurou uma das mãos suadas e encardidas de Teddy e deu-lhe leves tapinhas.
Teddy assentiu vigorosamente, chorando. Seu nariz estava escorrendo.
- Você acha que aquele monte de merda esteve na Normandia?
Teddy balançou a cabeça violentamente. - Nã-nã-não!
- Você acha que o cara te conhece?
- Nã-não! Não, m-m-mas...
- Ou seu pai? Ele é um dos companheiros do seu pai?
Outono da Inocência - Stephen King
- Não! - Irado, horrorizado. Pensando. O peito de Teddy estufou-se e mais soluços
saíram. Tinha tirado o cabelo de cima das orelhas e eu pude ver o botão redondo de
plástico marrom do aparelho de surdez dentro da direita. A forma do aparelho fazia
mais sentido do que a forma de sua orelha, se você entende o que quero dizer.
Chris disse calmamente: - Falar é fácil.
Teddy balançou a cabeça concordando sem olhar para cirna.
- E o que quer que tenha acontecido entre você e seu pai, as palavras não podem mudar
isso.
A cabeça de Teddy balançou sem definição, incerto se isso era verdade. Alguém havia
redefinido sua dor, e redefinido em termos chocantemente comuns.
Aquilo teria
(maluco)
que ser examinado
(maluco)
mais tarde. Profundamente. Nas longas noites de insônia.
Chris o consolava. - Ele estava te provocando, cara - disse ele com cadências suaves que
eram quase uma cantiga. - Ele estava tentando te provocar para você pular a droga
daquela cerca, entendeu? Não precisa ficar nervoso. Não precisa. Ele não sabe nada
sobre o seu pai. Só sabe as coisas que ouviu dos bêbados no Mellow Tiger. Ele é um
merda, cara. Está bem, Teddy? Hem? Está bem?
O choro de Teddy diminuiu e ele apenas fungava. Limpou os olhos, deixando dois anéis
de fuligem em volta deles, e sentou-se direito.
- Estou legal - disse ele, e o som de sua própria voz pareceu convencê-lo. - É, estou
legal. - Levantou-se e colocou de novo os óculos - cobrindo o rosto nu, pareceu-me.
Sorriu ligeiramente e passou o braço despido no lábio superior para limpar o catarro.
Choradeira boba, né?
- Não, cara - disse Vern embaraçado. - Se alguém começasse a falar do meu pai...
- Você matava! -'disse Teddy na hora, quase com arrogância. - Enfiava o pau. Certo,
Chris?
- Certo - disse Chris amigavelmente, e bateu nas costas de Teddy.
- Certo, Gordie?
Outono da Inocência - Stephen King
- Totalmente - disse eu pensando como Teddy podia se importar tanto com o pai que
praticamente o matara e como eu podia, de certa forma, não dar a mínima para o meu
que, pelo que eu me lembrava, não me encostava a moo desde os três anos de idade,
quando peguei descorante embaixo da pia e comecei a comer.
Andamos mais duzentos metros ao lado da linha do trem e Teddy disse numa voz mais
calma: - Ei, desculpa se eu estraguei a diversão de vocês. Acho que aquilo lá na cerca
foi a maior estupidez.
- Não tenho certeza se eu quero que seja uma diversão - disse Vern de repente.
Chris olhou para ele.
- Você está querendo dizer que quer Voltar?
- Não, não. - O rosto de Vern contraiu-se com o pensamento. - Mas ir ver um garoto
morto - não devia ser motivo de festa, talvez. Quer dizer, sacou? Quer dizer... - Olhou
para nós meio confuso. - Quer dizer, eu podia ficar um pouco com medo. Não sei se
vocês estão entendendo.
Ninguém disse nada e Vern investiu.
- Quer dizer, às vezes tenho pesadelos. Como... ah, vocês lembram quando Danny
Naughton deixou aquela pilha de revistas em quadrinho antigas, aquelas com vampiro e
gente sendo esquartejada, essas coisas? Caramba, eu acordava no meio da noite
sonhando com um cara enforcado no meio da casa com a cara verde, qualquer coisa
assim, sabe, como isso, e parecia que tinha alguma coisa embaixo da cama e se eu
olhasse a coisa ia, sabe, me pegar...
Nós todos começamos a balançar a cabeça. Sabíamos como eram aquelas coisas Mas no
entanto eu teria rido na ocasião se alguém me dissesse que um dia, não muito distante,
estaria faturando um milhão de dólares com todos esses medos infantis e suores
noturnos.
- E eu não vou ter coragem de falar nada porque a droga do meu irmão... é, sabe, Billy...
ele ouviu no rádio... - Sacudiu os ombros lastimoso. - Por isso que eu tenho medo de
olhar o garoto, porque, sabe, se ele estiver muito horrível...
Engoli em seco e olhei para Chris. Ele olhava sério para Vern e balançava a cabeça para
que continuasse.
- Se ele estiver muito horrível - resumiu Vern - vau ter pesadelos com ele e acordar
achando que ele está embaixo da minha cama todo cortada em cima de uma poça de
sangue como eles mostram naqueles programas da TV, só olhos e cabelo mas andando,
entendeu, andaaando, sabe, pronto para agarrar...
- Meu Deus - disse Teddy com a voz abafada. - Que história horrível para dormir.
Outono da Inocência - Stephen King
- Ah, não posso fazer nada - disse Vern num tom defensivo. - Mas sinto que a gente tem
que ver, mesmo tendo pesadelos. Sabe? A gente tem. Mas... acho que não devia ser
nenhuma diversão.
- É, disse Chris suavemente. - Acho que não.
Vern disse implorando: - Vocês não vão contar para ninguém, vão? Não estou falando
dos pesadelos, isso todo mundo tem - estou falando de acordar achando que tem alguma
coisa embaixo da cama. É muito bobo.
Todos dissemos que não e um silêncio pesado caiu sobre nós novamente. Eram apenas
quinze para as três, mas parecia muito mais tarde. Estava muito quente e muita coisa
tinha acontecido. Ainda não estávamos nem dentro de Harlow. Teríamos que apressar o
passo se quiséssemos realmente adiantar alguns quilômetros antes de escurecer.
Passamos por um cruzamento da estrada de ferro e um aviso num poste comprido e
enferrujado e todos nós paramos para tirar cinzas da placa de aço no topo, mas ninguém
alcançou. E por volta de três e meia chegamos ao Rio Castle e à ponte de cavaletes da
GS&WM que o cruzava.
14
O rio tinha mais de cem metros de largura naquele ponto em 1960; voltei várias vezes
para olhá-lo desde aquela vez e achei que ele diminuiu bastante até hoje. Estão sempre
mexendo com o rio, tentando fazê-lo funcionar melhor para os moinhos, e já fizeram
tantas represas que ele já está muito bem dominado. Mas naquela época havia apenas
três represas ao longo do rio, que cortava todo o estado de New Hampshire e metade do
Maine. O Castle era ainda quase todo livre naquela época e a cada três primaveras ele
transbordava e cobria a Rota 136 na direção de Harlow ou Danvers, ou em ambas.
Agora, no final do verão mais seco que o ocidente do Maine já vira desde a depressão,
ele continua largo. Do lado de Castle Rock, em que estávamos, a densa floresta do lado
de Harlow dava a impressão que era um país totalmente diferente. Os pinheiros e
espruces ficavam azulados sob a bruma do calor da tarde, Os trilhos subiam quinze
metros por cima do rio apoiados num suporte de estacas de madeira e vigas cruzadas. A
água era tão rasa que você podia olhar para baixo e ver os tampões de cimento que
haviam sido plantados três metros abaixo do leito do rio para sustentar a ponte.
A ponte em si era bem chamativa - os trilhos corriam por sobre uma longa e estreita
plataforma de madeira. Havia uma abertura de dez centímetros entre cada par de vigas
por onde se podia ver o rio lá embaixo. Dos lados não havia mais de cinqüenta
centímetros entre os trilhos e a beirada da ponte. Se um trem viesse, talvez houvesse
espaço suficiente para não ser esmagado... mas o vento produzido por um trem de carga
correndo livre e desimpedido com certeza varreria você, fazendo-o cair perigosamente
contra as pedras acima da superfície da rasa água corrente.
Outono da Inocência - Stephen King
Olhando a ponte sentimos o medo começar a mexer nossas barrigas... e misturando-se
estranhamente com ele, a excitação de uma grande audácia, realmente grande, uma
coisa da qual você podia se orgulhar durante muito tempo depois que voltasse para
casa... se voltasse. Aquela estranha luz brilhava de novo nos olhos de Teddy e achei que
ele não estava vendo a ponte, mas uma longa praia de areias brancas, mil tanques
encalhados sob as ondas espumantes, dez mil soldados ocupando a praia, as botas de
combate deixando marcas na areia. Estavam pulando os arames farpados! Jogando
granadas nas trincheiras! Destruindo as casamatas para metralhadoras!
Estávamos em pé ao lado dos trilhos onde as cinzas desciam na direção da margem do
rio - o lugar onde acabava a barragem e começava a ponte. Olhando para baixo eu via
onde a descida começava a ficar mais íngreme. As cinzas davam vez a arbustos
disformes e fortes e lajes de pedras cinzentas. Mais abaixo havia alguns abetos
atrofiados com as raízes expostas contorcendo-se para fora das fissuras na laje de pedra:
pareciam estar olhando seus pobres reflexos na água corrente.
Nesse ponto o Rio Castle realmente parecia muito limpo; em Castle Rock ele estava
entrando no cinturão de moinhos têxteis do Maine. Mas não havia peixes pulando,
embora se conseguisse ver o fundo - tinha-se que subir mais dezesseis quilômetros na
direção de New Hampshire para vê-los no Castle. Ali não havia, e ao longo da margem
viam-se colares de espuma suja em volta de algumas pedras - a espuma tinha cor de
marfim velho. O cheiro também não era especialmente agradável; lembrava um cesto de
roupa suja cheio de toalhas mofadas. As libélulas reuniam-se na superfície da água e
depositavam seus ovos impunemente. Não havia trutas para comê-las. Droga, não havia
nem peixinhos prateados.
- Cara - disse Chris suavemente.
- Vamos - disse Teddy daquele seu jeito brusco e arrogante. - Vamos embora. - Estava
começando a afastar-se, andando na plataforma entre os trilhos brilhantes.
- Vem cá - disse Vern apreensivo - algum de vocês sabe quando passa o próximo trem?
Todos nós demos de ombro.
- Tem a ponte da Rota 136 - disse eu.
- Ei, espera aí, dá um tempo! - gritou Teddy. - Quer dizer que vamos ter que andar oito
quilômetros rio abaixo deste lado - e depois mais oito rio acima do outro lado... vamos
chegar quando estiver escuro! Se usarmos a ponte podemos ir ao mesmo lugar em dez
minutos!
- Mas se um trem vier não há espaço para fugir - disse Vern. - Ele não estava olhando
para Teddy. Estava olhando para baixo, para o rio veloz e delicado.
- Dane-se - disse Teddy indignado. Ele pulou e ficou segurando um dos suportes de
madeira entre os trilhos. Não estava muito alto - seus tênis estavam quase tocando o
solo - mas pensar em fazer a mesma coisa no meio do rio com uma altura de quinze
metros até lá embaixo e um trem berrando acima de minha cabeça e provavelmente
Outono da Inocência - Stephen King
soltando faíscas quentes no meu cabelo e atrás do meu pescoço... nada disso realmente
me encantava muito.
- Estão vendo como é fácil? - disse Teddy. Pulou para o chão, bateu as mãos e subiu de
novo para a ponte.
- Você está me dizendo que vai ficar pendurado assim se for um trem de carga enorme?
- perguntou Chris. - Assim, pendurado pelas mãos durante cinco ou dez minutos?
- Você é covarde? - gritou Teddy.
- Não, só estou perguntando o que você ia fazer - disse Chris rindo. - Calma, cara.
- De a volta se você quiser - esbravejou Teddy. - Quem está ligando? Eu espero você.
Vou tirar um cochilo!
- Um trem já passou - disse eu relutante. - E provavelmente só deve ter mais um, não
deve ter mais de dois trens por dia que passem por Harlow. Olhem isto. - Chutei o mato
nascendo entre os dormentes com um pé. Não havia mato entre os trilhos entre Castle
Rock e Lewiston.
- Olha aí Estão vendo? - disse Teddy triunfante.
- Mas mesmo assim existe uma possibilidade - acrescentei eu.
- É - disse Chris. Estava olhando para mim, seus olhos brilhavam. - Vai, Lachance?
- Vai você primeiro.
- Está bem - disse Chris. Abriu bem os olhos para Teddy e Vern perceberem. - Tem
algum frouxo aqui?
- NÃO ! - gritou Teddy.
Vern limpou a garganta, resmungou, limpou de novo e disse "não" numa voz bem fraca.
Deu um sorriso pequeno e aflito.
- Muito bem - disse Chris... mas hesitamos por um tempo, até Teddy, que olhava
curiosamente de um lado para o outro dos trilhos. Ajoelhei-me e segurei um dos trilhos
de aço com firmeza em minhas mãos sem pensar que podia empolar a minha pele de tão
quente. O trilho estava mudo.
- Está bem - disse eu, e quando disse isso alguém deu um salto com vara dentro do meu
estômago. Colocou a vara no meu saco e acabou sentado escarranchado no meu coração
- foi a sensação que eu tive.
Entramos na ponte em fila indiana: Chris na frente, depois Teddy, depois Vern e eu no
final. Andávamos sobre os dormentes da plataforma entre os trilhos, e tínhamos que
olhar para os pés, tendo medo de altura ou não. Um passo em falso e você caía sentado
Outono da Inocência - Stephen King
com um dormente no meio das pernas e provavelmente um tornozelo quebrado para
completar.
A barragem estava abaixo de mim, e cada passo à frente parecia selar mais a nossa
decisão... e fazê-la parecer mais estupidamente suicida. Parei para olhar para cima
quando vi as pedras darem vez à água muito abaixo de mim. Chris e Teddy estavam
bem na frente, quase no meio, e Vern andava cambaleando atrás deles olhando
fixamente e com cuidado para os pés. Parecia uma velha senhora sobre pernas de pau
tentando andar, a cabeça abaixada, as costas curvadas, os braços esticados para adquirir
o equilíbrio. Olhei para trás por cima do ombro. Longe demais. Agora tinha que
continuar, e não só porque um trem podia vir. Se eu voltasse seria um frouxo para o
resto da vida.
Então continuei a andar. Depois de olhar para baixo para a série interminável de
dormentes por um tempo, avistando a água correndo entre cada par, comecei a me sentir
tonto e desorientado. Cada vez que abaixava um pé parte do meu cérebro me assegurava
que ia mergulhar no espaço, embora eu soubesse que não.
Fiquei perfeitamente consciente dos barulhos dentro e fora de mim, como uma orquestra
maluca afinando os instrumentos para começar a tocar. As batidas contínuas do meu
coração, reverberando nos meus ouvidos como um tambor sendo tocado com pincéis, o
estalar dos tendões como as cordas de um violino que foi afinado muito alto, o sussurrar
constante do rio, o zumbido de um gafanhoto cavando a casca dura de uma árvore, o
cantar monótono de um canário, e em algum lugar distante um cachorro latindo.
Chopper, talvez. O cheiro de mofo do rio estava forte. Os longos músculos de minhas
coxas tremiam. Ficava pensando corno teria sido mais seguro (provavelmente mais
rápido também) se tivesse me ajoelhado eido engatinhando. Mas não ia fazer aquilo
nenhum de nós iria. Se as matinês do Gem nos haviam ensinado alguma coisa, era que
Só os Perdedores Engatinham. Era um dos dogmas do Evangelho Segundo Hollywood.
Os caras bons andam firme, e se seus tendões estão estalando como cordas de um
violino superafinado por causa da adrenalina correndo no seu corpo e se os músculos de
suas coxas estão tremendo pela mesma razão paciência.
Tive que parar no meio da ponte e olhar para o céu um pouco. A sensação de tontura
piorara. Via fantasmas de dormentes que pareciam flutuar na minha frente. Então foram
desaparecendo e comecei a me sentir bem de novo. Olhei para frente e vi que quase
alcançara Vern, que se arrastava, pior do que nunca. Chris e Teddy estavam quase do
outro lado.
E embora desde aquela época eu já tenha escrito sete livros sobre pessoas que podem
fazer coisas exóticas como ler a mente e prever o futuro, foi naquela vez que tive minha
primeira e última premonição. Tenho certeza que foi isso, de que outro modo explicar?
Abaixei-me e segurei o trilho à minha esquerda. Tremeu em minha mão. Tremia tanto
que parecia que eu segurava um monte de cobras metálicas venenosas.
Já ouviram dizer "Minhas tripas viraram água"? Sei o que a expressão significa -
exatamente o que significa. Talvez seja a expressão mais precisa já inventada. Já tinha
sentido medo, muito medo, mas nunca como daquela vez, segurando aquele trilho vivo
e quente. Por um momento pareceu que todo o meu organismo da garganta para baixo
Outono da Inocência - Stephen King
ficou flácido e desfalecido. Um fino fio de urina desceu incontrolavelmente por dentro
de uma das coxas. Minha boca abriu. Não fui eu que abri, ela abriu sozinha, o maxilar
caiu como se de repente tivessem tirado as dobradiças de uma porta de alçapão. Minha
língua colou no céu da boca me sufocando. Todos os meus músculos ficaram presos.
Isso foi o pior. Meu organismo ficou flácido, mas meus músculos ficaram terrivelmente
travados e eu não conseguia me mexer. Foi apenas um minuto, mas pareceu uma
eternidade.
Todas as entradas sensoriais se intensificaram, como se uma onda repentina de energia
tivesse ocorrido na corrente elétrica do meu cérebro, elevando tudo de cento e dez volts
para duzentos e vinte. Podia ouvir um avião passando em algum lugar bem perto e tive
tempo de desejar que eu estivesse dentro dele, sentado perto da janela com uma Coca
nas mãos e olhando ociosamente o curso brilhante de um rio que eu não sabia o nome.
Via todas as lascas e estrias dos dormentes sobre os quais estava agachado. E pelo canto
do olho podia ver o trilho que eu estava segurando brilhando insensatamente. A
vibração daquele trilho entrava tão forte na minha mão que quando a tirei ainda estava
vibrando, as extremidades dos nervos pulando sem parar, formigando como as mãos ou
os pés formigam quando o sangue começa a correr depois que se dormiu em cima deles.
Sentia o gosto da minha saliva que de repente ficou elétrica, ácida e grossa e coagulou
nas minhas gengivas. E o pior, mais terrível de tudo, é que eu não conseguia ouvir o
trem ainda, não sabia se estava vindo da frente ou de trás, ou se estava perto. Era
invisível. E não dava sinal, a não ser os trilhos que tremiam. Só aquilo anunciava sua
chegada iminente. A imagem de Ray Brower terrivelmente esmagado e jogado numa
vala qualquer como um saco rasgado de roupa suja passou na frente de meus olhos.
Iríamos nos juntar a ele, pelo menos Vern e eu, ou pelo menos eu. Tínhamos nos
convidado para nossos próprios funerais.
O último pensamento cortou o choque e eu me levantei. Provavelmente eu estava
parecendo uma caixa de surpresas para quem olhasse, mas eu me sentia como um garoto
em câmera lenta embaixo d'água, não subindo um metro e meio de ar, mas um metro e
meio de água, devagar, movendo-me com terrível languidez enquanto ia abrindo
caminho na água com dificuldade.
Mas finalmente atingi a superfície.
Gritei: - O TREM!
O final do choque me abandonou e comecei a correr.
A cabeça de Vern virou por cima do ombro. O espanto que deformou seu rosto foi
quase comicamente exagerado, tão grande quanto as letras de um livro infantil. Viu que
eu começara a correr desajeitado e com dificuldades pulando de um dormente para o
outro e viu que eu não estava brincando. Começou a correr também.
Lá na frente vi Chris saindo da ponte e pisando em terra firme, e de repente odiei-o com
todas as minhas forças. Estava salvo. Aquele idiota estava salvo. Vi-o cair de joelhos e
segurar um trilho.
Outono da Inocência - Stephen King
Meu pé esquerdo quase caiu no vão. Levantei os braços, meus olhos quentes como
rolamentos de alguma máquina, consegui o equilíbrio e continuei a correr. Agora estava
bem atrás de Vern. Tínhamos passado da metade e pela primeira vez ouvi o trem.
Estava vindo de trás, do lado de Castle Rock. Era um zumbido baixo que começou a
aumentar ligeiramente e passou a um rugido, o barulho sinistro das grandes rodas
encaixadas correndo pesadamente sobre os trilhos.
- Aaaaaaaaaaaaai, merda! - gritava Vern.
- Corre, seu frouxo! - gritava eu, e bati-lhe nas costas.
- Não posso! Vou cair!
- Mais rápido!
- AAAAAAAAAA!, MERDA!
Mas foi mais rápido, um espantalho desajeitado com as costas nuas e queimadas, a gola
da camisa voando e balançando abaixo de suas nádegas. Via o suor nos seus ombros
descascados em pequenas gotas perfeitas, escorrendo pelo cangote. Seus músculos se
contraíam e relaxavam, contraíam e relaxavam, contraíam e relaxavam. Sua espinha
tinha uma série de nós, cada nó com uma forma que ia aumentando - via que esses nós
iam crescendo quanto mais próximos do pescoço. Ainda estava segurando seus
cobertores enrolados e eu os meus. Os pés de Vern batiam com um barulho surdo nos
dormentes. Quase não conseguiu pisar em um, tropeçou, os braços esticados para não
perder o equilíbrio, e eu empurrei-o para que continuasse.
- Gordieeee, não posso, AAAAAAAAA!, MEEEEEEEERDAAA...
- CORRE MAIS, BABACA ! - gritei, e estaria me divertindo?
É, de alguma maneira peculiar e autodestrutiva que desde então só experimentei quando
completa e literalmente bêbado, estava. Guiava Vern Tessio como um vaqueiro levando
sua vaca para o mercado. E talvez ele estivesse se divertindo com seu próprio medo da
mesma maneira, gritando como aquela mesma vaca, berrando e suando, seus quadris
subindo e descendo como os foles de um ferreiro apressado, correndo desajeitadamente,
tropeçando.
O barulho do trem estava muito alto agora, o motor fazendo um estrondo contínuo. O
apito tocou quando ele cruzou o entroncamento onde tínhamos parado para tirar as
cirzas da placa. Eu já estava apavorado, quisesse ou não. Fiquei esperando a ponte
começar a tremer sob meus pés. Quando aquilo acontecesse estaria bem atrás de nós.
- MAIS RÁPIDO, VERN! MAIS RÁAAAAAAPIDO!
- Oh, meu Deus, Gordie, oh, meu Deus, Gordie, oh, meu Deus - oooooooh -
MEEEEEERDA !
Outono da Inocência - Stephen King
O apito do trem rasgou de repente o ar em mil pedaços com urre sopro alto e longo,
destroçando todos os seus sonhos e as coisas que você viu em filmes e revistas em
quadrinhos, mostrando o que os heróis e covardes realmente ouvem na hora da morte:
UUUUUAAAAAAMMM! UUUUAAAAAMWIMM!
De repente Chris estava embaixo de nós á direita e Teddy atrás dele, a luz do sol
refletindo arcos em seus óculos. Os dois tentavam dizer só uma palavra, pulem! mas o
trem havia tirado todo o fôlego deles, e não conseguiram emitir um único som. A ponte
começou a tremer quando o trem passou. Pulamos.
Vern caiu estatelado na terra e eu ao seu lado, quase por cirna dele. Não consegui ver o
trem nem sei se o maquinista nos viu quando mencionei a Chris a possibilidade de não
nos ter visto alguns dias depois, ele disse: - Eles não apitam assim à toa, Gordie. - Mas
acho que sim; acho que ele pode ter apitado só por apitar. Naquela altura esses detalhes
não importavam muito. Coloquei as mãos nos ouvidos e baixei a cabeça sobre a terra
quente quando o trem passou, o guincho de metal contra metal, o impacto do vento
sobre nós. Não sentia vontade de olhar. Era grande, mas não olhei. Antes de ter cruzado
a ponte, senti uma mão quente no meu pescoço, e sabia que era de Chris.
Quando tinha sumido - quando tive certeza que tinha sumido - ergui a cabeça como um
soldado na trincheira depois de um longo dia. Vern ainda estava estatelado na areia,
tremendo. Chris estava sentado de pernas cruzadas entre nós, uma das mãos sobre o
pescoço suado de Vern e a outra ainda sobre o meu.
Quando Vern finalmente sentou, tremendo e lambendo os lábios compulsivamente,
Chris disse:
- O que vocês acham de tomarmos aquela Coca-Cola? Alguém me acompanha?
Concordamos que seria uma boa idéia.
15
Cerca de trezentos metros adiante, do lado de Harlow, os trilhos penetravam
diretamente na floresta. A região densamente arborizada seguia em declive até uma área
pantanosa. Era cheia da mosquitos do tamanho de aviões, mas estava fresco...
abençoadamente fresco.
Sentamo-nos à sombra para tomar nossa Coca. Vern e eu colocamos nossas camisas
sobre os ombros por causa dos insetos, mas Chris e Teddy estavam nus da cintura para
cima, parecendo calmos e recompostos como esquimós num iglu. Estávamos ali não
havia cinco minutos quando Vern teve que ir para o meio dos arbustos se aliviar, o que
foi motivo de muitas brincadeiras quando voltou.
- Ficou com muito medo do trem, Vern?
Outono da Inocência - Stephen King
- Não - disse Vern. - Eu ia fazer cocô mesmo antes de atravessar, já estava com vontade.
- Verrrrn... - gritaram Chris e Teddy em coro.
- Verdade, cara. Mesmo.
- Então você não se incomoda se a gente examinar seu fundilho, não é? - perguntou
Teddy, e Vern riu, finalmente entendendo que estava sendo gozado.
- Vão à merda.
Chris virou-se para mim:
- Teve medo do trem, Gordie?
- Não - disse eu, e dei um gole na Coca.
- Não muito, né, espertinho? - Deu um soco no meu braço.
- Verdade! Não tive nem um pouco de medo.
- É? Não teve medo? - Teddy me estudava cuidadosamente.
- Não. Fiquei completamente morto de medo.
Aquilo acabou com eles, inclusive Vem, e rimos durante muito tempo. Depois nos
deitamos, sem falar bobagens, apenas bebendo nossa Coca quietos. Meu corpo estava
quente, excitado, em paz consigo mesmo. Nada mais se agitava dentro dele. Eu estava
vivo e feliz. Tudo parecia possuir um encanto especial, e embora não tenha dito aquilo,
acho que não era importante - talvez aquela sensação de encanto fosse algo que queria
guardar só para mim.
Acho que naquele dia comecei a entender um pouco o que faz as pessoas se tornarem
audaciosas. Paguei vinte dólares para ver Evel Kneivel tentar pular o canyon do rio
Snake alguns anos atrás e minha mulher ficou horrorizada. Disse que se eu tivesse
nascido em Roma teria ido para o Coliseu comer uvas e ver os leões devorarem cristãos.
Estava errada, embora fosse difícil lhe explicar por quê (na verdade acho que pensava
que eu estava tentando enrolá-la). Não soltei aqueles vinte dólares para ver o homem
morrerem circuito fechado de TV de costa a costa, embora tivesse certeza que era
exatamente o que ocorreria. Fui por causa das sombras que estão sempre em algum
lugar no fundo da mente, por causa do que Bruce Springsteen chama de escuridão no
limite da cidade em uma de suas músicas, e acho que de vez em quando todo mundo
quer enfrentar a escuridão apesar dessa geringonça de corpo que algum deus brincalhão
nos deu, seres humanos. Não... não apesar de nossas geringonças, mas por causa delas.
- Ei, conta essa história - disse Chris de repente, sentando-se.
- Que história? - perguntei, embora achasse que soubesse.
Outono da Inocência - Stephen King
Sempre me sentia mal quando a conversa se voltava para minhas histórias, embora
todos parecessem gostar - querer contar histórias, mesmo querer escrevê-las... era uma
coisa íntima demais para parecer casual, como querer ser inspetor de esgotos ou
mecânico de Grand Prix quando crescesse. Richie Jenner, um garoto que andava
conosco até sua família mudar-se para o Nebraska em 1959, foi o primeiro a descobrir
que eu queria ser escritor quando crescesse, que queria trabalhar com isso em tempo
integral. Estávamos no meu quarto distraídos quando ele encontrou um maço de
manuscritos embaixo das revistas em quadrinhos dentro de uma pasta no meu armário.
O que é isso?, pergunta Richie. Nada, digo eu, e tento pegá-lo. Richie levantou as
folhas... e devo admitir que não tentei muito torná-las. Queria que as lesse e ao mesmo
tempo não queria - uma mistura estranha de orgulho e vergonha, que sinto até hoje
quando alguém me pede para ler o que escrevo. O ato de escrever em si é secreto, como
a masturbação - ah, tenho um amigo que escreve nas vitrines de livrarias e lojas de
departamentos, mas é um cara corajoso demais, o tipo do cara que você gostaria de ter a
seu lado se você tivesse um ataque do coração no meio da rua de uma cidade onde não
conhecesse ninguém. Eu sempre quis que fosse como sexo, mas nunca consegui - é
sempre aquele negócio de adolescente no banheiro com a porta trancada.
Richie passou a maior parte da tarde sentado na beira da minha cama lendo as coisas
que eu havia escrito, a maioria das quais influenciada pelos mesmos tipos de histórias
em quadrinhos que faziam Vern ter pesadelos. Quando acabou, Richie olhou para mim
de uma maneira nova e diferente que fez com que eu me sentisse muito singular, como
se tivesse sido forçado a reavaliar toda minha personalidade Ele disse:
- Você é muito bom nisso. Por que não mostra para Chris?
Eu disse que não, queria que fosse segredo, e Richie disse:
- Por quê? Não é coisa de bicha. Você não é veado. Quer dizer, não é poesia.
Mesmo assim, fiz Richie prometer que não contaria a ninguém, e claro que contou e no
final todos gostavam de ler o que eu escrevia, que eram coisas como ser queimado vivo,
um ladrão que ressuscita e massacra todo o júri que o condenara, ou um maníaco que
enlouquece e corta várias pessoas como costeletas de vitela antes de o herói, Curt
Cannon, "cortar em pedaços os loucos subumanos desesperados em várias rodadas
seguidas com sua .45 automática esfumaçante".
Em minhas histórias havia sempre rodadas. Nunca balas.
Para variar um pouco, havia as histórias de Le Dio. Le Dio era uma cidade da França, e
durante o ano de 1942 um pelotão implacável de exauridos soldados americanos tentava
retomá-la dos nazistas (isso foi dois anos antes de descobrir que os aliados só chegaram
à França erre 1944), tentavam reconquistá-la lutando pelas ruas durante cerca de
quarenta histórias que escrevi entre as idades de nove e quatorze anos. Teddy era
completamente louco pelas histórias de Le Dio, e acho que escrevi as últimas doze só
por sua causa - a essa altura eu já estava cheio de Le Dio e de escrever coisas como
Mon Dieu, Cherchez le Boche! e Fermez la porte! Em Le Dio os camponeses franceses
estavam sempre mandando os soldados americanos fermez la porte! Mas Teddy ficava
preso àquelas páginas, os olhos arregalados, a testa suada, fazendo caretas. Às vezes eu
Outono da Inocência - Stephen King
quase podia ouvir tiros de Brownings refrigeradas a ar e zunidos de 88 disparando em
seu cérebro. A maneira ansiosa como pedia mais histórias sobre Le Dio era ao mesmo
tempo agradável e assustadora.
Hoje em dia escrever é meu trabalho, o prazer diminuiu um pouco, e cada vez mais
aquele prazer culposo e masturbatório associa-se em minha cabeça às frias imagens de
inseminação artificial: devo obedecer às regras e regulamentos de meu contrato de
publicação. E apesar de saber que nunca serei considerado o Thomas Wolfe de minha
geração, nunca tento me enganar: escapo toda vez que posso. Escrever menos seria, de
forma grosseira, como virar bicha - pelo menos o que isso significava para nós naquela
época. O que me assusta é ver que hoje em dia geralmente isso me incomoda. Naquela
época, às vezes me aborrecia por ser tão bom escrever. Hoje, algumas vezes olho para
essa máquina de escrever e me pergunto quando as palavras adequadas vão faltar. Não
quero que isso aconteça. Acho que posso ficar tranqüilo enquanto as palavras adequadas
não faltarem, entende?
- Que história é essa? - perguntou Vern, apreensivo. - Não e história de terror, é,
Gordie? Acho que não quero ouvir histórias de terror. Não quero não, cara.
- Não, não é de terror - disse Chris. - É muito engraçada. Grossa, mas engraçada. Vai,
Gordie. Conta essa pra gente.
- É sobre Le Dio? - perguntou Teddy.
- Não, não é sobre Le Dio, seu maníaco - disse Chris, e deu-lhe um soco de leve. É
sobre o concurso de comer tortas.
- Ei, eu ainda nem escrevi - disse eu.
- É, mas conta.
- Vocês querem ouvir?
- Claro - disse Teddy. - Demais.
- Bem, é sobre uma cidade fictícia. Gretna é seu nome. Gretna, Maine.
- Gretna? - disse Vern, rindo. - Que nome é esse? Não existe nenhuma Gretna no Maine.
- Cala a boca, idiota - disse Chris. - Ele não acabou de dizer que é fictícia?
- É, mas Gretna é tão idiota...
- Muitas cidades de verdade têm nomes idiotas - disse Chris. - Por exemplo, que tal
Alfred, Maine? Ou Saco, Maine? Ou Jerusalem's Lot? Ou Castle-merda-Rock? Aqui
não tem nenhum castelo. A maioria dos nomes das cidades são idiotas. Você não acha
porque está acostumado. Certo, Gordie?
Outono da Inocência - Stephen King
- Lógico - disse eu, mas no fundo achava que Vern estava certo. Gretna era um nome
muito idiota para uma cidade. Só que não consegui pensar em outro. - Bem, então
estavam comemorando o Dia do Pioneiro, como em Castle Rock.
- É, Dia do Pioneiro, isso é o máximo - disse Vern, convicto.
- Coloquei toda a minha família naquela jaula sobre rodas que eles têm, até o idiota do
Billy. Foi só meia hora e me custou toda a minha mesada, mas valeu a pena, só para
saber onde aquele filho da mãe ia...
- Quer calara boca e deixar ele contar? - gritou Teddy.
Vern piscou os olhos.
- Claro. Está bem.
- Vai, Gordie - disse Chris.
- Não é grande coisa.
- A gente não espera grande coisa de um babaca como você - disse Teddy. - Mesmo
assim conta.
Limpei a garganta.
- Então é o seguinte. É Dia do Pioneiro e na última noite acontecem três grandes
eventos. A corrida com o ovo na colher para os menores, a corrida de saco para os
garotos de oito ou nove anos, e o concurso de comer tortas. O principal personagem da
história é um garoto gordo que ninguém gosta chamado David Hogan.
- Como o irmão de Charlie Hogan, se ele tivesse - disse Vern, e se encolheu quando
Chris socou-lhe outra vez.
- Esse garoto tem nossa idade mas é gordo. Pesa uns noventa quilos e está sempre
apanhando e sendo gozado. E todos os meninos, ao invés de chamarem ele de Davie,
chamam ele de Rabo Grande e gozam dele sempre que têm uma chance.
Balançaram a cabeça com respeito, mostrando a natural solidariedade a Rabo Grande,
embora se um cara como esse aparecesse em Castle Rock, iríamos gozar dele o tempo
todo.
- Então ele resolve se vingar porque já está cheio, sabe. Ele só participa do concurso de
comer tortas, que é o último evento do Dia do Pioneiro, e todos estão ansiosos. O
prêmio são cinco dólares.
- Então ele ganha e dá uma banana para todo mundo! - disse Teddy. - Demais!
- Não, melhor - disse Chris. - Cala a boca e escuta.
Outono da Inocência - Stephen King
- Rabo Grande pensa consigo mesmo, cinco dólares, o que isso significa? Depois de
duas semanas só vão lembrar que o porco imbecil do Hogan "papou" todo mundo, e vão
querer ir na casa dele lhe dar uma boa lição, e passar a chamá-lo de Rabo de Torta em
vez de Rabo Grande.
Balançaram a cabeça mais uma vez, concordando que Davie Hogan era um cara esperto.
Comecei a me esquentar para contar minha história.
- Mas todo mundo quer que ele entre no concurso. Até o pai e a mãe dele. Quase lhe dão
os cinco dólares.
- É, isso mesmo - disse Chris.
- Então ele pensa naquilo e sente ódio de tudo, porque ser gordo não é culpa dele. Sabe,
ele tem aquelas glândulas defeituosas, alguma coisa, e...
- Minha prima é assim! - exclamou Vern, excitado. - É verdade! Ela pesa quase cento e
cinqüenta quilos! Acham que é a glândula hibóide, ou qualquer coisa assim. Não sei
dessa glândula hibóide, mas sem brincadeira, ela parece uma baleia, e uma vez...
- Porra, quer calar a boca, Vern? - gritou Chris, irado. Pela última vez! Juro por Deus! -
Tinha acabado a Coca; pegou a garrafa verde em forma de ampulheta, virou-a de cabeça
para baixo e ameaçou acertar a cabeça de Vern.
- Ah, é, desculpe. Vai, Gordie. A história é incrível.
Sorri. Na verdade não me incomodava com as interrupções de Vern, mas claro que não
podia dizer isso a Chris, que se elegera Guardião das Artes.
- Então ele fica pensando a semana inteira antes do concurso. No colégio as crianças a
toda hora lhe perguntam:
- Ei, Rabo Grande, quantas tortas você vai comer? Dez? Vinte? Oitenta?
E Rabo Grande diz:
- Como é que vou saber? Não sei nem de que são feitas. E estão todos muito
interessados nesse concurso porque o campeão é um homem que se chama Bill Traynor,
eu acho. E esse tal de Traynor não é nem gordo. Na verdade é magro como uma vara.
Ele consegue comer tortas como um animal, e ano passado comeu seis em cinco
minutos.
- Inteiras? - perguntou Teddy, impressionado.
- Exatamente. E Rabo Grande é o garoto mais novo que já participou de um concurso
desses.
- Dá-lhe, Rabo Grande! - gritou Teddy, excitado. - Engole essas tortas de uma vez!
Outono da Inocência - Stephen King
- Fala sobre os outros - disse Chris.
- Está bem. Além de Rabo Grande e Bill Traynor, havia Calvin Spier, o cara mais gordo
da cidade - o dono da joalheria,
- Gretna Jóias - disse Vern, e conteve o riso. Chris olhou-o de cara feia.
- E tem esse cara que é disc-jóquei de uma estação de rádio de Lewiston, que não é
muito gordo, só cheinho. E o último candidato era Hubert Gretna Terceiro, o diretor da
escola de Rabo Grande.
Ele ia competir com o próprio diletor? - perguntou Teddy.
Chris abraçou os joelhos e se balançou para frente e para trás, alegre.
- Não é demais? Continua, Gordie!
Tinha conseguido prender a atenção deles. Estavam todos inclinados para a frente..
Senti uma sensação intoxicante de poder. Joguei minha garrafa de Coca vazia no meio
da mata e mexi-me um pouco para ficar mais confortável. Lembro de ter ouvido a
mejengra cantar novamente no meio da floresta, mais longe dessa vez, elevando seu
canto monótono e infindável aos céus: doe-deedee-dee!
- Então ele tem urna idéia - disse eu. - A maior vingança que um garoto já conseguiu
imaginar. Chega a grande noite - o fim do Dia do Pioneiro.
O concurso de comer tortas vem antes dos fogos de artifício. A principal rua de Gretna é
fechada para que as pessoas possam andar, e há uma grande plataforma armada rio meio
dela. Bandeiras penduradas balançam ao vento e a multidão é grande. Há também um
fotógrafo do jornal local, para tirar uma fotografia do vencedor cheio de uvas na cara,
porque naquele ano as tortas eram de uva. E tem outro detalhe que quase esqueci de
contar: eles tinham que comer as tortas com as mãos amarradas para trás. Então,
imaginem só, eles sobem na plataforma...
16
De A Vingança de Rabo Grande, de Gordon Lachance. Publicado originalmente na revista Cavalier,
março, 1975. Reprodução autorizada.
Subiram na plataforma um a um e colocaram-se atrás de urna mesa comprida coberta
por uma toalha de linho. A mesa estava cheia de tortas empilhadas e ficava na beira da
plataforma. De cordões amarrados no alto pediam lâmpadas de 100 watts com bichos de
luz e insetos noturnos pairando suavemente ao redor, como num cumprimento. Em cima
da plataforma, banhada pela luz de spots, uma grande faixa anunciava: GRANDE
CONCURSO DE COMER TORTAS DE GRETNA DE 1960! De cada um dos lados da
Outono da Inocência - Stephen King
faixa havia dois alto-falantes fornecidos pela loja de Chuck. Bill Travis, o soberano
campeão, era primo de Chuck.
A medida que cada competidor subia na plataforma, as mãos amarradas para trás e a
camisa aberta, como Sydney Carton a caminho da guilhotina, o prefeito Charbonneau
anunciava seu nome pelo alto-falante de Chuck e amarrava um grande babador em seu
pescoço. Calvin Spier recebeu apenas modestos aplausos; apesar de sua barriga, do
tamanho de um barril de água de oitenta litros, as pessoas acharam que só perderia para
Hogan (muitos consideravam Rabo Grande uma revelação, mas muito jovem e
inexperiente para conseguir um resultado expressivo naquele ano.
Depois de Spier, Bob Cormier foi apresentado. Cormier era disc-jóquei com um
programa vespertino muito popular na rádio WLAM de Lewiston. Recebeu urna salva
de palmas, acompanha da de gritinhos das adolescentes na platéia. As garotas achavam-
no "uma gracinha". John Wiggins, diretor da Escola Primária de Gretna, veio depois de
Cormier. Recebeu aplausos entusiasmados da ala mais idosa da platéia - e algumas vaias
dos membros rebeldes de seu corpo discente. Wiggins conseguiu parecer paternalmente
radiante e ao mesmo tempo agradecer baixando a cabeça com o cenho severamente
franzido Em seguida, o prefeito Charbonneau apresentou Rabo Grande:
- Um novo candidato do concurso anual de tortas de fluem todos esperam gravides
realizações no futuro... o jovem talento David Hogan!
Rabo Grande recebeu uma grande salva de palmas enquanto o prefeito Charbonneau
amarrava o babador em seu pescoço, e quando os aplausos estavam começando a
enfraquecer, um coro treinado, no alto da arquibancada, gritou com deboche:
- Janta eles, Rabo Grande!
Ouviram-se risadas abafadas, pessoas correndo, sombras que ninguém poderia
identificar, risos nervosos, testas franzidas (a de Hizzoner Charbonneau era a mais
franzida, o mais evidente representante da autoridade). O próprio Rabo Grande parecia
nem estar percebendo. O pequeno sorriso que umedecia os grossos lábios e vincava a
grande papada não se alterou quando o prefeito, ainda com a testa franzida, amarrou o
babador em seu pescoço e lhe disse que não prestasse atenção às besteiras da platéia
(como se o prefeito tivesse alguma noção das monstruosidades que Rabo Grande sofrera
e continuaria sofrendo enquanto se arrastasse pela vida como um tanque de guerra
nazista). A respiração do prefeito era quente e cheirava a cerveja.
O último competidor a subir no palco decorado com bandeiras recebeu os aplausos mais
fortes e longos; foi o legendário Bill Travis, um metro e noventa de altura,
desengonçado, glutão. Travis era mecânico do posto de gasolina próximo à linha do
trem, um cara simpático, pode-se dizer.
Dizia-se na cidade que havia algo mais envolvido no grande concurso de comer tortas
de Gretna além de meros cinco dólares- pelo menos para Bill Travis. Por dois motivos:
primeiro, as pessoas sempre vinham ao posto cumprimentar Bill quando ganhava o
concurso, e quase todos que iam cumprimentá-lo aproveitavam para encher o tanque. E
as duas garagens às vezes ficavam lotadas o mês inteiro depois do concurso. As pessoas
Outono da Inocência - Stephen King
paravam lá para trocar um amortecedor, colocar graxa nos rolamentos das rodas, e
sentavam nas cadeiras de teatro encostadas ao longo de uma parede (Jerry Maling, o
dono do posto, as salvara quando o antigo Teatro Gem foi demolido em 1957), bebiam
uma Coca da máquina e conversavam com Bill sobre o concurso enquanto ele trocava
peças ou sumia embaixo de alguma camionete num carrinho de rolimã para procurar
furos no cano de descarga. Bill parecia sempre disposto a conversar, uma das razões
pelas quais era tão querido em Gretna.
Algumas pessoas se perguntavam se Jerry Maling não daria gordas gratificações a Bill
pelo lucro que sua façanha anual (ou comilança anual, se você prefere) lhe trazia, ou se
recebia enormes aumentos. Como quer que fosse, não havia dúvidas de que Travis
ganhava muito melhor que a maioria dos mecânicos de cidade pequena. Tinha uma
bonita casa de dois andares na afastada rua Sabbatus, e certas pessoas maldosas
referiam-se a ela como "a casa que as tortas construíram". Provavelmente era exagero,
mas Bill conseguiu-a por outros meios, o que nos leva à segunda razão pela qual havia
algo mais envolvido para Travis no concurso além de meros cinco dólares.
O concurso era um evento excitante e lucrativo em Gretna. Talvez a maioria das pessoas
fosse apenas para rir, mas uma boa minoria ia para apostar. Os competidores eram
observados e analisados por esses apostadores tão entusiasticamente como cavalos puro-
sangue por farejadores de barbadas nas corridas. Os apostadores abordavam os amigos,
parentes e até meros conhecidos dos competidores. Pediam todos e quaisquer detalhes
sobre os hábitos alimentares dos competidores. Sempre se discutia muito sobre a torta
oficial do ano - a de maçã era considerada "pesada", a de abricó, leve (apesar de que o
competidor que só comesse três ou quatro tortas de abricó tinha que agüentar alguns
dias de trotes). A torta oficial daquele ano, de uvas, era considerada satisfatoriamente
média. Os apostadores, claro, interessavam-se especialmente pela reação do estômago
dos competidores às uvas. Ele digere bem cachos e mais cachos de uva? Prefere geléia
de uva à de morango?
Era conhecido por comer sempre uvas com cereal no café da manhã, ou era, do tipo que
comia exclusivamente bananas com creme?
Havia outras perguntas de momento. Era um cara que começava comendo rápido e
depois ia diminuindo, ou comia devagar e começava a comer mais rápido quando as
coisas ficavam sérias, ou simplesmente um bom garfo que comia de tudo? Quantos
cachorros-quentes conseguia comer enquanto assistia a uma partida de beisebol da Liga
Babe Ruth no campo de St. Dam? Era bebedor de cerveja, e, se fosse, quantas garrafas
esvaziava numa tarde? Arrotava muito? Acreditava-se que o cara que arrotava muito era
um pouco mais difícil de vencer.
Todas essas informações eram analisadas, as decisões tomadas e as apostas feitas. O
volume de dinheiro que corria de mão em mão durante a semana seguinte ao concurso
não posso precisar, mas se encostassem um revólver na minha cabeça e me obrigassem
a adivinhar, diria que perto de mil dólares - provavelmente parece um .número
insignificante, mas era muito dinheiro para circular numa cidade pequena como aquela
há quinze anos atrás.
Outono da Inocência - Stephen King
E como o concurso era honesto e o período de dez minutos rigorosamente observado,
ninguém se opunha a que um candidato apostasse em si mesmo, e Bill Travis fazia isso
todos os anos. Corria o boato, enquanto ele sorria cumprimentando a platéia com um
gesto de cabeça naquela noite de verão de 1960, de que apostara uma quantia
substancial em si mesmo novamente, e o melhor que conseguira naquele ano fora cinco
para um. Se você não é do tipo que gosta de apostar, deixe-me explicar de outra
maneira: ele teria que arriscar duzentos e cinqüenta dólares para ganhar cinqüenta. Não
era um bom negócio, mas o preço do sucesso - e enquanto estava ali, recebendo os
aplausos e sorrindo com facilidade, não parecia muito preocupado.
- E agora o campeão que vai defender o título - bradou o prefeito Charbonneau, - o
candidato de Gretna, Bill Travis!
- Bill! Bill!
- Quantas vai liquidar esta noite, Bill?
- Dá pra dez, Bill?
- Apostei de novo em você, Bill! Não me decepcione, garoto!
- Deixe uma torta para mim, Trav!
Balançando a cabeça e sorrindo com a devida modéstia, Bill Travis deixou que o
prefeito amarrasse o babador em seu pescoço. Sentou-se na extremidade da mesa, perto
do lugar onde o prefeito ficaria durante a prova. Então, da direita para a esquerda, os
competidores eram Bill Travis, David "Rabo Grande" Hogan, Bob Cormier, o diretor
John Wiggins e Calvin Spier, equilibrando o peso na extremidade esquerda.
O prefeito Charbonneau apresentou Sylvia Dodge, uma figura ainda mais controvertida
que o próprio Bill Travis. Ela fora presidente da Liga de Mulheres de Gretna por tantos
anos que já se perderam as contas (desde o First Manassas, segundo algumas pessoas
espirituosas), e era ela quem supervisionava o preparo das tortas a cada ano,
submetendo todas a seu rigoroso controle de qualidade, o que incluía a formalidade de
pesagem na balança do açougueiro do supermercado, Sr. Bancichek, para ter certeza de
que todas tinham o mesmo peso.
Sylvia sorriu formalmente para a multidão, seus cabelos azuis cintilando sob a quente
camada de luz das lâmpadas. Fez um breve discurso, dizendo como eslava emocionada
em ver grande parte da população da cidade homenageando seus valentes antepassados,
pessoas que fizeram daquele um grande país, que era grande, não apenas a nível do
povo, que o prefeito Charbonneau conduziria à sede abençoada do governo da cidade
novamente em novembro, mas também a nível nacional, em que o time de Nixon e
Lodge levaria a tocha da liberdade do nosso grande e estimado General e a ergueria...
A barriga de Calvin Spier roncou alto - goinnnngg! Houve até aplausos. Sylvia Dodge,
que sabia perfeitamente bem que Calvin era democrata e católico (uma coisa só era
perdoável, as duas, nunca), conseguiu ficar vermelha, sorrir e parecer furiosa ao mesmo
tempo. Limpou a garganta e dirigiu um ressonante conselho a todos os rapazes e moças
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da platéia, dizendo para terem sempre em alta conta o vermelho, o branco e o azul, tanto
em suas mãos quanto em seus corações, e para lembrarem que fumar era um hábito
perigoso e maléfico que fazia as pessoas tossirem. Os rapazes e moças na platéia, a
maioria dos quais continuaria usando medalhões da paz e fumando maconha em vez de
Camel daqui a oito anos, mudaram de posição e esperaram o início do evento.
- Menos conversa e mais comilança! - gritou alguém da última fila, e houve mais
aplausos, dessa vez mais calorosos.
O prefeito Charbonneau passou às mãos de Sylvia um cronômetro e um apito prateado
da polícia, que ela tocaria ao final de dez minutos de comilança de tortas. Então o
prefeito Charbonneau daria um passo à frente e ergueria a mão do vencedor.
Estão pronto, a voz de Hizzoner soou triunfante pelo microfone e por toda Main Street.
Os cinco comedores de torta responderam afirmativamente
- PREPARADOS? - insistiu Hizzoner.
Os comedores resmungaram que sim. No final da rua um menino soltou uma saraivada
de fogos.
O prefeito Charbonneau levantou a mão rechochunda e baixou-a:
- JÁ!
Cinco cabeças mergulharam em cinco pratos de torta. O som foi igual a cinco pés
afundando na lama. Barulhos melosos de mastigação subiram pelo ar suave da noite e
foram abafados quando os apostadores e adeptos no meio da multidão começaram a
incentivar seus candidatos. E apenas a primeira torta havia sido devorada quando a
maioria das pessoas percebeu que alguma coisa estava errada.
Rabo Grande, considerado "pato" por sua idade e inexperiência, comia como um
possuído. Suas mandíbulas destruíram a casca de cima (as regras do concurso exigiam
que se comesse só a casca de cima, não a de baixo) e quando desapareceu seus lábios
produziram um imenso barulho de sucção. Era como um aspirador industrial começando
a funcionar. Então toda sua cabeça sumiu dentro do prato de torta. Levantou-se quinze
segundos depois para indicar que tinha acabado. Suas bochechas e testa estavam
cobertas de creme de uva, e parecia um calouro de um espetáculo de variedades. Tinha
acabado - acabado antes que o legendário Bill Travis tivesse comido metade de sua
primeira torta.
Aplausos espantados ecoaram quando o prefeito Charbonneau examinou o prato de
Rabo Grande e declarou-o suficientemente limpo. Colocou às pressas uma segunda torta
no prato diante do "maestro". Rabo Grande devorou uma torta tamanho padrão em
apenas 42 segundos. Era um recorde no concurso.
Atacou a segunda torta mais furiosamente ainda, sua cabeça
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balançando e ele se lambuzando no macio recheio de uvas, e Bill Travis lançou-lhe um
olhar preocupado quando pediu a segunda torta. Como contou depois a seus amigos,
sentiu estar participando de um concurso de verdade pela primeira vez desde 1957,
quando George Gamache devorou três tortas em quatro minutos e depois caiu duro para
trás, morto. Disse que tinha pensado se estava enfrentando um garoto ou um demônio.
Pensou no dinheiro que havia jogado naquilo e redobrou seus esforços.
Mas se Travis havia redobrado, Rabo Grande havia triplicado. Uvas voavam de seu
segundo prato de torta manchando a toalha da mesa à sua volta como uma pintura de
Jackson Pollock. Havia uvas em seus cabelos, uvas no babador, uvas coladas na testa
como se, na agonia da concentração, tivesse realmente começado a suar uvas.
- Acabei! - gritou ele, levantando a cabeça do segundo prato antes que Bill Travis
tivesse consumido a casca da outra torta.
- Melhor ir mais devagar, garoto - murmurou Hizzoner. O próprio Charbonneau
apostara dez dólares em Bill Travis. - Tem que manter o ritmo se quiser ir até o fim.
Foi como se Rabo Grande não tivesse ouvido. Avançou na terceira torta a uma
velocidade lunática, suas mandíbulas movendo-se com leve rapidez. Então...
Preciso interromper um minuto para contar que no armário de remédios da casa de Rabo
Grande havia uma garrafa vazia. Antes aquela garrafa continha três quartos de óleo de
rícino amarelo-pérola, talvez o líquido mais nocivo que o bom Deus, em Sua infinita
sabedoria, criou na face da terra. Rabo Grande esvaziou a garrafa bebendo até a última
gota e lambendo o gargalo em seguida, sua boca escorregadia, seu estômago acidamente
embrulhado, sua mente cheia de doces idéias vingativas.
Enquanto ia rapidamente devorando sua terceira torta (Calvin Spier, em último lugar
como havia sido previsto, ainda não terminara a primeira), Rabo Grande começou
propositadamente a torturar-se com fantasias pavorosas. Não estava comendo tortas;
estava comendo bosta de vaca. Estava comendo enormes placas de escarro meladas e
imundas. Estava comendo pedaços quadrados de intestino de marmota com creme de
uvas por cima. Creme de uvas rançoso.
Terminou a terceira torta e pediu a quarta, já uma torta à frente do legendário Bill
Travis. A multidão volúvel, sentindo surgir um novo e inesperado campeão, começou a
incentivá-lo vigorosamente.
Mas Rabo Grande não tinha esperanças nem intenção de ganhar. Não conseguiria
continuar naquele ritmo mesmo se o prêmio fosse a vida da sua própria mãe. E, além do
mais, ganhar para ele era perder; vingança era o único prêmio que desejava. Com o
estômago revolvendo-se com óleo de rícino, a garganta abrindo e fechando
freneticamente, terminou sua quarta torta e pediu a quinta. Mergulhou a cabeça no prato
quebrando a casca e aspirando uvas pelo nariz. Uvas escorreram por sua camisa. O
conteúdo de seu estômago pareceu de repente ganhar peso. Mastigou a massa pastosa da
casca e engoliu-a. Aspirou uvas.
Outono da Inocência - Stephen King
E de repente o momento de vingança chegara. Seu estômago, insuportavelmente cheio,
revolvia-se. Estava apertado como uma mão presa dentro de uma luva de borracha. Sua
garganta abriu-se.
Rabo Grande ergueu a cabeça.
Sorriu para Bill Travis com os dentes azuis.
O vômito subiu por sua garganta como um canhão de seis toneladas atirando dentro de
um túnel.
Saiu de sua boca uma imensa rajada azul e amarela, quente. Cobriu Bill Travis que só
teve tempo de pronunciar uma sílaba irrrg - foi o que pareceu. As mulheres na platéia
berraram. Calvin Spier, que observava o imprevisto evento com uma expressão muda e
assustadora, debruçou-se sobre a mesa como que para explicar à platéia embasbacada o
que estava acontecendo, e vomitou na cabeça de Marguerite Charbonneau, a mulher do
prefeito. Ela gritou e pulou para trás, colocando a mão levemente sobre o cabelo, que
estava coberto com uma mistura de uvas amassadas, vagem moída e salsichões
parcialmente digeridos (os dois últimos tinham sido o jantar de Cal Spier). Virou-se
para sua amiga Maria Lavin e vomitou na parte da frente da jaqueta de camurça de
Maria.
Numa rápida sucessão, como uma reprise dos fogos de artifício:
Bill Travis despejou um enorme e possante jato de vômito sobre as duas primeiras filas
de espectadores com uma cara de assustado, como se dissesse: Meu Deus, não consigo
acreditar que eu esteia fazendo isso;
Chuck Day, que recebera generosa parcela do presente surpresa de Travis, vomitou em
cima dos sapatos, e ficou olhando embasbacado para eles, sabendo muito bem que
nunca conseguiria limpá-los;
John Wiggins, diretor da Escola Primária de Gretna, abriu a boca azulada e disse
reprovadoramente:
- Realmente, isso... BLEARRG!! - Um homem de sua posição e cultura vomitou no
próprio prato;
Hizzoner Charbonneau, que de repente percebeu-se presidindo o que mais parecia um
concurso num hospital de disenteria do que um concurso de comer tortas, abriu a boca
para cancelar tudo e vomitou no microfone.
- Deus nos salve! - murmurou Sylvia Dodge, e então seu jantar - mariscos fritos, salada
de repolho, sucrilhos com manteiga e açúcar e uma generosa quantidade de bolo de
chocolate - procurou a saída de emergência e lançou um jato largo e molhado nas costas
do terno do prefeito.
Rabo Grande, no absoluto apogeu de sua juventude, olhou feliz para a platéia. Havia
vômito por toda parte. As pessoas cambaleavam como bêbadas em círculos, segurando a
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garganta e fazendos débeis barulhos. O cachorro pequinês de alguém passou correndo
peio palco latindo descontroladamente, e um homem vestindo jeans e camisa de seda
estilo western vomitou em cima dele, quase afogando-o. A Sra. Brockway, esposa do
pastor metodista, emitiu um longo e grave som seguido por um jorro de carne assada
triturada, purê de batatas e sidra. A sidra parecia ter estado gostosa quando foi tomada.
Jerry Maling, que tinha ido ver seu mecânico preferido sair vitorioso outra vez, decidiu
ir embora de uma vez daquela loucura. Andou cerca de 15 metros quando tropeçou num
caminhãozinho vermelho de uma criança e percebeu que tinha pisado numa poça de bile
quente. Jerry devolveu seus biscoitos sobre si mesmo e contou depois aos amigos que
agradeceu a Deus estar usando seu macacão. E a Srta. Norman, que lecionava latim e
fundamentos de inglês no segundo grau da Escola de Gretna, vomitou dentro da própria
bolsa na ânsia de asseamento.
Rabo Grande observou tudo, seu rosto largo calmo e satisfeito, seu estômago de repente
sossegado com um bálsamo quente que talvez nunca mais sentisse - aquele bálsamo era
uma sensação de extrema e completa satisfação. Levantou-se, pegou o microfone
ligeiramente melado da mão trêmula do prefeito e disse...
17
- Declaro este concurso empatado. - Então deixa o microfone sobre a mesa, anda até o
final da piataforma e vai direto para casa. Sua mãe está lá, pois não conseguiu uma
baby-sitter para ficar com a irmãzinha de Rabo Grande, de apenas dois anos de idade. E
logo que ele entra em casa, coberto de vômito e recheio de torta, ainda de babador, ela
diz:
- Davie, você ganhou?
Mas ele não dá uma palavra. Sobe as escadas, entra no quarto, tranca a porta e deita na
cama.
Virei o último gole da Coca de Chris e joguei a garrafa no mato.
- É, legal, e o que acontece depois? - perguntou Teddy, ansioso.
- Não sei.
- O que você quer dizer com não sei? - perguntou Teddy.
- Quer dizer que é o fim. Quando você não sabe o que acontece depois é o fim.
- O quêêêê? - gritou Vern. Havia uma expressão triste e desconfiada em seu rosto, como
se achasse que linha sido pego jogando bingo na feira de Topsham. Que negócio é esse?
Como termina a história?
- Você tem que usar a imaginação - disse Chris, paciente.
Outono da Inocência - Stephen King
- De jeito nenhum! - disse Vern, com raiva. - Ele é que tem que usar a imaginação dele!
Ele é que inventou a merda da história!
- É, o que acontece com o cara? - persistiu Teddy. - Vai, Gordie, conta.
- Acho que o pai de Rabo Grande estava no concurso e quando chegou em casa deu uma
surra nele.
- É, isso mesmo - disse Chris. - Acho que foi isso o que aconteceu.
- E os garotos - disse eu, - continuaram a chamar ele de Rabo Grande. Só que alguns
começaram a chamar ele de "Vomita as Tripas" também.
- Esse final é horrível - disse Teddy, triste.
- É por isso que eu não queria contar.
- Você podia ter inventado que ele atirava no pai, fugia de casa e se juntava ao time do
Texas Rangers - disse Teddy. - Que tal?
Chris e eu trocamos um olhar. Chris sacudiu um dos ombros quase imperceptivelmente.
- Acho que sim - disse eu.
- Ei, tem mais histórias de Le Dio, Gordie?
- Agora não. Talvez pense em alguma. - Não queria deixar Teddy triste, mas também
não estava interessado em pesquisar o que estava acontecendo com Le Dio. - Desculpe
se essa não foi muito boa.
- Não, foi boa - disse Teddy. - Até antes do final foi boa. Aquela vomitação foi mesmo
legal.
- É, foi legal, bem grotesca - concordou Vern. - Mas Teddy tem razão quanto ao final.
Foi uma espécie de trapaça.
- É - disse eu, e suspirei.
Chris levantou-se.
- Vamos andar um pouco - disse ele.
Ainda estava dia claro, o céu de um azul firme e quente, mas nossas sombras já
começavam a alongar-se. Lembro que quando garoto os dias de setembro para mim
pareciam acabar cedo demais, pegando-me de surpresa - era como se dentro do meu
coração eu esperasse que fosse sempre junho, quando a luz do dia permanecia no céu
até quase nove e meia.
Outono da Inocência - Stephen King
- Que horas são, Gordie?
Olhei meu relógio e espantei-me ao ver que já passavam de cinco horas.
- É, vamos - disse Teddy. - Mas vamos fazer o acampamento antes de escurecer para
podermos pegar lenha e tudo que precisarmos. Estou ficando com fome também.
- Seis e meia - prometeu Chris. - Está bem para vocês?
Estava. Recomeçamos a andar, agora nos guiando pelas cinzas ao lado dos trilhos. Logo
o rio ficou tão longe para trás que mal conseguíamos ouvir seu barulho. Os mosquitos
zumbiam e tirei um do meu pescoço com um tapa. Vern e Teddy subiam na frente, um
contando estórias em quadrinhos para o outro. Chris estava atrás de mim, as mãos nos
bolsos e a camisa batendo nos joelhos e quadris como um avental.
- Eu tenho uns cigarros - disse ele. - Peguei no armário do meu pai. Um para cada. Para
depois do jantar.
- É mesmo? Grande!
- É a hora em que o cigarro cai melhor - disse Chris. - Depois do jantar.
- É.
Caminhamos em silêncio por um tempo.
- Essa história é muito boa - disse Chris, de repente. - Eles é que são meio burros para
entender.
- Não, não é tão legal assim.
- Você sempre diz isso. Não vem com essa. Você vai escrever? A história?
- Provavelmente. Mas não por enquanto. Não consigo escrever depois de contar. Vou
dar um tempo.
- O que foi que Vern disse? Que o final era uma trapaça?
- O quê?
Chris riu.
- A vida é uma trapaça, sabia? Olhe só para nós.
- Não, estamos nos divertindo muito.
- Claro - disse Chris. - O tempo todo, seu bobão.
Ri. Chris também riu.
Outono da Inocência - Stephen King
- Elas saem como bolhas de uma garrafa de soda - disse ele depois.
- O quê? - Mas eu achava que sabia o que estava dizendo.
- As histórias. Isso realmente me intriga, cara. É como se você pudesse contar um
milhão de histórias e só escolher as melhores. Um dia você vai ser um grande escritor,
Gordie.
- Não, acho que não.
- Vai sim. Talvez até escreva sobre nós se estiver sem assunto.
- Tenho que estar sem porra nenhuma para escrever. - Dei de ombros.
Passamos outro período em silêncio, então ele perguntou de repente:
- Pronto para voltar às aulas?
Sacudi os ombros. Quem estava? Ficávamos um pouco animados quando pensávamos
em voltar, em rever os amigos; curiosos para conhecer os novos professores, saber
como seriam - bem jovens, saídos da escola, com os quais se podia conversar, ou
velhacos que lecionavam desde o tempo do Alamo. De uma maneira estranha podíamos
ficar animados com as longas e monótonas aulas, porque à medida que as férias de
verão se aproximavam do fim às vezes ficávamos entediados e até achávamos que
aprenderíamos alguma coisa. Mas o tédio do verão não era nada parecido com o tédio
da escola, que sempre se instalava depois da segunda semana, e no começo da terceira
chegava-se às questões de interesse: você conseguiria acertar bolinhas de papel na
cabeça do cara enquanto o professor colocava no quadro "os principais produtos
exportados pela América do Sul? Quantos guinchos altos você conseguiria produzir na
superfície encerada da mesa se suas mãos estivessem suadas? Quem conseguia soltar os
peidos mais altos no vestiário enquanto trocávamos de roupa para a aula de Educação
Física? Com quantas garotas você conseguiria brincar de Pêra, Uva ou Maçã na hora do
recreio? Ensino de primeira, meu bem.
- Segundo grau - disse Chris. - E sabe de uma coisa, Gordie? Em junho próximo vamos
acabar.
- O que você está falando? E por que isso vai acontecer?
- Não vai ser igual ao primário, é por isso. Você vai fazer matérias de faculdade. Eu,
Teddy e Vern vamos fazer matérias banais, jogando porrinha com os repetentes,
fazendo cinzeiros e casas de passarinho. Vern talvez até tenha que fazer recuperação.
Você vai conhecer muitos caras novos. Caras inteligentes. É assim, Gordie, assim que
eles fazem.
- Conhecer um monte de babacas, você quer dizer - disse eu.
Ele segurou o meu braço.
Outono da Inocência - Stephen King
- Não, cara. Não diga isso, Nem pense nisso. Eles vão entender suas histórias. Não são
como Vern e Teddy.
- Danem-se as histórias. Não vou me meter com um bando de babacas. Não mesmo.
- Então você é um idiota?
- Por que é idiotice querer estar com os amigos?
Ele me olhou pensativo, como se estivesse decidindo se devia ou não me contar uma
coisa. Havíamos diminuído o passo: Vern e Teddy estavam quase meia milha na frente.
O sol, agora mais baixo, chegava até nós pelo meio das árvores entrelaçadas em raios
partidos e empoeirados, tornando tudo dourado - mas era um dourado de mau gosto, um
dourado de moeda de brinquedo, se é que me entende. Os trilhos estendiam-se à nossa
frente na escuridão que começava - pareciam quase cintilar. Reflexos de luz saíam deles
aqui e ali, como se um cara muito rico fantasiado de trabalhador tivesse decidido
incrustrar diamantes no aço a cada sessenta metros mais ou menos. Ainda estava quente.
O suor escorria de nossos corpos, deixando-os escorregadios.
- É idiotice se seus amigos conseguem te botar pra baixo disse Chris, finalmente. -
Conheço seus pais. Eles não ligam a mínima pra você. Gostavam mesmo era do seu
irmão mais velho. Como meu pai, quando Frank foi preso em Portsmouth. Foi quando
ele começou a ficar sempre irritado com os outros filhos e nos bater o tempo todo. Seu
pai não te bate, mas talvez seja até pior. É a indiferença. Você podia contar para ele que
tinha entrado para a shop division e sabe o que ele ia fazer? Virar a página do jornal e
dizer: "Muito bem, Gordon, vá perguntar à sua mãe o que tem para jantar". E não tente
dizer que não. Conheço ele.
Não tentei dizer que não. É amedrontador descobrir que alguém, mesmo um amigo,
sabe exatamente o que se passa com você..
- Você é um menino, Gordie.
- Puxa, obrigado, papai.
- Porra, eu queria ser seu pai! - disse ele, zangado. - Você não ia sair por aí falando
desses cursos estúpidos se eu fosse seu pai! É como se Deus lhe desse uma coisa, essas
histórias todas que você inventa, e dissesse: É o que temos para você, garoto. Tente não
perder. Mas as crianças sempre perdera tudo, a menos que alguém tome conta delas, e
se seus pais estão muito fodidos para fazer isso, talvez eu deva fazer.
Pela expressão de seu rosto parecia que esperava que eu o abraçasse; estava descontente
sob a luz verde-dourada do final da tarde. Havia quebrado a principal regra infantil
daquela época. Podia-se falar qualquer coisa sobre outro garoto, podia-se fazê-lo de gato
e sapato, mas nunca se falava um palavrão com relação à sua mãe ou seu pai. Isso era
automático, da mesma forma que não se convidava amigos católicos para jantar na
Sexta-feira Santa antes de ter certeza de que não iam servir carne. Se um menino falasse
mal de sua mãe e seu pai, você tinha que lhe dar uns sopapos.
Outono da Inocência - Stephen King
- Essas histórias que você conta não são boas para ninguém a não ser para você mesmo,
Gordie. Se você continua saindo com a gente só para a turma não se separar, você vai
acabar outro tapado, tirando C para ficar no meio. Você vai para o científico e continuar
com os mesmos cursos bobocas, jogando borracha e fazendo zona com os outros
tapados. Vai ficar retido depois da aula. A merda das suspensões. E depois de um tempo
você só vai querer saber de ter um carro para levar uma piranha para as festas ou para a
Taverna Twin Bridges. Depois você vai engravidar ela e passar o resto da vida num
moinho ou alguma sapataria de merda em Auburn ou talvez até em Hillcrest cuidando
de galinhas. E aquela história das tortas nunca vai ser publicada. Nada vai ser publicado.
Porque você vai ser mais um espertinho com titica na cabeça.
Chris Chambers tinha doze anos quando me falou tudo aquilo. Mas enquanto falava, seu
rosto contraía-se e adquiria uma expressão mais velha, sem idade. Falava sem tom, sem
cor, entretanto tudo que disse provocou terror nas minhas entranhas. Era como se já
tivesse vivido toda aquela vida, aquela vida em que lhe dizem para subir e girar a Roda
da Fortuna, e ela gira e o cara pisa no pedal e só dá zero e todos perdem. Dão uma
passagem grátis a você e ligam a máquina da chuva, muito engraçado, hã-hã, uma piada
que até Vern Tessio apreciaria.
Segurou meu braço nu e fechou os dedos firmemente. Afundaram em minha pele.
Tocaram nos ossos. Seus olhos estavam fechados e mortos - tão mortos que ele poderia
ter acabado de sair do caixão.
- Sei o que as pessoas nesta cidade pensam sobre minha família. Sei o que pensam de
mim e o que esperam. Ninguém me perguntou se eu tinha pego o dinheiro do lanche
daquela vez. Simplesmente tive três dias de férias.
- Você pegou? - perguntei. Nunca tinha perguntado, e se me dissessem que perguntaria,
teria chamado a pessoa de maluca. As palavras saíram como um tiro de pólvora seca.
- É - disse ele. - É, peguei. - Ficou calado um tempo, olhando para a frente, para Teddy
e Vern. - Você sabia que eu tinha pego, Teddy sabia, todo mundo sabia. Até Vern sabia,
eu acho.
Comecei a negar, depois calei a boca. Ele estava certo. Apesar de ter dito à minha mãe e
meu pai que a pessoa era inocente até que se provasse a sua culpa, eu sabia.
- Então talvez tenha me arrependido e tentado devolver - disse Chris.
Encarei-o, meus olhos arregalados.
- Você tentou devolver?
- Talvez, eu disse. Só talvez. E talvez tenha devolvido à Sra. Simons e dito a ela, e
talvez o dinheiro estivesse lá, mas peguei umas férias de três dias mesmo assim, porque
o dinheiro nunca apareceu. E talvez na semana seguinte a Sra. Simons tenha aparecido
com uma saia novinha em folha no colégio.
Outono da Inocência - Stephen King
Olhei fixamente para Chris, mudo de espanto. Ele sorriu para mim, mas foi um sorriso
forçado e horrível, que não tocou seus olhos.
- Só talvez - disse ele, mas lembrei da saia nova - marrom-clara, tipo rodada. Lembro de
ter pensado que fazia a Sra. Simons parecer mais jovem, quase bonita.
- Chris, quanto era o dinheiro do lanche?
- Quase sete dólares.
- Meu Deus - sussurrei.
- Então vamos dizer que eu tenha roubado o dinheiro do lanche e depois a Sra. Simons
roubou de mim. Vamos supor que eu tivesse contado essa história. Eu, Chris Chambers,
irmão mais novo de Frank e Eyebali Chambers. Acha que alguém teria acreditado?
- De jeito nenhum - murmurei. - Meu Deus!
Ele deu um sorriso horrível, frio.
- E você acha que aquela puta teria ousado fazer isso se um daqueles caras do The View
tivessem pego o dinheiro?
- Não - disse eu.
- É, se tivesse sido um deles Simons teria dito: "Tá bem, tá bem, dessa vez passa, mas se
fizerem outra vez vamos ter que dar uma surra de verdade em vocês". Mas eu... bem,
talvez ela estivesse de olho naquela saia há muito tempo. De qualquer jeito, teve a
chance e aproveitou. Eu é que fui o idiota, tentando devolver. Mas nunca achei... nunca
achei que uma professora... ah, também quem está ligando? Não sei nem por que estou
falando nisso.
Passou a mão com raiva nos olhos e percebi que estava quase chorando.
- Chris - disse eu, - por que você não entra nos cursos da faculdade? Você é inteligente
para isso.
- Eles decidem isso na diretoria. E nas reuniõezinhas inteligentes. Os professores sentam
em circulo e só sabem dizer é, é, certo, certo. O que eles não querem nem sabei é se
você se comportou no ginásio e o que pensam de sua família na cidade. Só estão lá para
decidir se você vai ou não contaminar os queridinhos da faculdade. Mas vou tentar me
interessar. Não sei se conseguiria, mas vou tentar. Porque quero sair de Castle Rock, ir
para a faculdade e nunca mais ver meu pai nem meus irmãos. Quero ir para algum lugar
onde ninguém me conheça e não tenham preconceitos contra mim antes de começar.
Mas não sei se vou conseguir.
- Porque não?
- As pessoas. As pessoas escorraçam você.
Outono da Inocência - Stephen King
- Quem? - perguntei, achando que ele se referia aos professores ou adultos monstruosos
como a Sra. Simons, que quisera uma saia nova, ou talvez seu irmão Eyeball que andava
com Ace, 8illy, Charlie e os outros, ou talvez seus próprios pais.
Mas ele disse:
- Teus amigos te escorraçam, Gordie. Sabia disso? - Apontou para Vern e Teddy, que
estavam parados nos esperando. Riam de alguma coisa; na verdade, Vern estava
forçando uma risada. Teus amigos te escorraçam. São como caras que estão se afogando
e se agarram nas tuas per nas. Você não pode salvar eles. Só pode afundar com eles.
- Andem logo, lesmas de merda! - gritou Vern, ainda rindo.
- Já vamos! - gritou Chris, e antes que eu pudesse dizer alguma coisa, começou a correr.
Corri também, mas alcançou-os antes de eu alcançá-lo.
18
Andamos mais uma milha e então decidimos acampar para passar a noite. Ainda havia
luz do dia, mas ninguém queria usá-la. Estávamos traumatizados com a cena do
despejadouro e com o medo que tínhamos passado com o trem na ponte, mas havia
outra coisa. Estávamos em Harlow agora, na floresta. Em algum lugar mais adiante
havia um garoto morto, provavelmente desfigurado e coberto de moscas. Vermes
também, a essa altura. Ninguém queria chegar muito perto dele com a noite se
aproximando. Eu tinha
lido, em algum lugar - num livro de Algernon Blackwood, acho que o fantasma de uma
pessoa fica pairando sobre o seu corpo até que lhe façam um enterro cristão decente, e
eu não queria nem pensar em acordar no meio da noite e me deparar com o fantasma
desencarnado e reluzente de Ray Brower, gemendo e pairando por entre os pinheiros
escuros e farfalhantes. Parando ali, achávamos que havia pelo menos 15 quilômetros de
distância entre nós e ele, e claro que nós quatro sabíamos que não existiam fantasmas,
mas 15 quilômetros pareciam uma boa distância, caso o que todos nós sabíamos
estivesse errado.
Vern, Chris e Teddy cataram lenha e acenderam uma pequena fogueira. Chris limpou
uma área em volta da fogueira - a lenha estava bem seca, e não queria se arriscar.
Enquanto faziam isso, apontei alguns espetos e fiz o que meu irmão Denny chamava de
"baquetas pioneiras de tambor" - pedaços de hambúrguer enfiados em galhos verdes. Os
três riram e experimentaram suas habilidades em trabalhos de madeira (que era quase
nula; havia um grupo de escoteiros em Castle Rock, mas a maioria dos meninos que
freqüentava o nosso terreno baldio achava que era uma organização formada
basicamente por babacas), discutindo se era melhor cozinhar usando as labaredas ou o
carvão (um ponto discutível; estávamos demasiado famintos para esperar a madeira se
transformar em carvão), se musgo seco funcionaria como cavacos, o que fariam se os
Outono da Inocência - Stephen King
fósforos acabassem antes que o fogo pegasse. Teddy disse que conseguiria fazer fogo
esfregando dois gravetos. Chris, com a voz esganiçada, disse que estava de saco cheio.
Não tiveram que tentar; Vern conseguiu acender o pequeno monte de galhos e musgo
seco com o segundo palito de fósforo. O ar estava parado e não havia vento para apagá-
lo. Revezávamo-nos alimentando as frágeis chamas até começarem a ficar fortes com
pedaços de madeira retorcidos tirados de uma velha armadinha a uns trinta metros
floresta adentro.
Quando as chamas começaram a baixar um pouco, enfiei os espetos com os
hambúrgueres firmemente no chão num ângulo sobre o fogo. Sentamos em volta vendo-
os tostarem e pingarem e finalmente começarem a escurecer. Nossos estômagos
conversavam.
Incapazes de esperar até que estivessem bem cozidos, cada um de nós pegou um espeto,
colocou dentro de um pão e tirou o palito do centro. Estavam torrados por fora, crus por
dentro, e absolutamente deliciosos. Engolimos e limpamos a gordura da boca com o
braço nu. Chris abriu seu pacote e tirou uma caixa de Band-Aid (a pistola estava no
fundo do saco, e como não tivesse contado a Vern e Teddy, achei que era um segredo a
ser mantido entre nós). Abriu-a e deu a cada um Winston amassado. Acendemos os
cigarros com os galhos em brasa e depois nos recostamos, donos do mundo, vendo a
fumaça do cigarro sumir no suave crepúsculo. Nenhum de nós tragava porque
poderíamos nos engasgar, o que seria motivo de um ou dois dias de gozação por parte
dos outros. E era muito agradável apenas puxar e soltar a fumaça, cuspir na fogueira
para ouvir o chiado (foi naquele verão que aprendi como se reconhece uma pessoa que
está começando a fumar: se ela não está acostumada, cospe muito no começo). Sentimo-
nos bem. Fumamos os Winstons até o filtro, depois os jogamos no fogo.
- Nada como um cigarro depois do jantar - disse Teddy.
- É, demais - concordou Vern.
Os grilos haviam começado a zumbir naquela paisagem verde. Olhei para o pedaço de
céu visível através da estrada de ferro e vi que o azul estava começando a ficar roxo.
Vendo aquele acampamento no crepúsculo me senti triste e calmo ao mesmo tempo,
intrépido mas não realmente corajoso, confortavelmente solitário.
Escolhemos um lugar plano sob um arbusto ao lado do barranco e esticamos nossos
sacos de dormir. Então, durante uma hora mais ou menos alimentamos o fogo e
conversamos, um tipo de conversa que você não consegue lembrar bem quando passa
dos quinze anos e descobre as garotas. Falávamos sobre quem era o melhor corredor de
obstáculos em Castle Rock, se o Boston conseguiria ficar fora do porão esse ano, e
sobre o verão que passara. Teddy falou da época em que esteve em White's Beach, em
Brunswick, e quase se afogou quando um menino bateu em sua cabeça ao mergulhar do
barco. Discutimos um pouco sobre os méritos relativos dos professores que tínhamos
tido. Concordamos que o Sr. Brooks era o maior babaca da Escola Primária de Castle
Rock - ele quase chorava se você falasse duro com ele. Por outro lado, havia a Sra. Cote
(pronunciava-se Cody) - era simplesmente a piranha mais vulgar que Deus já colocara
sobre a face da terra. Vern disse que a ouvira bater num garoto com tanta força há dois
anos atrás que ele quase ficara cego. Olhei para Chris, pensando se ele falaria alguma
Outono da Inocência - Stephen King
coisa sobre a Sra. Simons, mas não disse absolutamente nada, e não viu que eu o olhara
- olhava para Vern e balançava a cabeça contritamente ouvindo a história de Vern.
Não falamos sobre Ray Brower quando escureceu, mas eu pensava nele. Há alguma
coisa horrível e fascinante na maneira como escurece na floresta, sem a luz dos faróis,
das ruas, das casas e do neon. A escuridão chega sem a voz das mães chamando os
filhos para entrar, anunciando a hora. Se você está acostumado com a cidade, o
escurecer na floresta parece mais um desastre natural que um fenômeno natural; cresce
como o Rio Castle sobe na primavera.
E enquanto eu pensava no corpo de Ray Brower sob essa luz - ou a falta dela - o que eu
sentia não era desagr adável nem tinha medo de que ele aparecesse de repente na nossa
frente, um espírito verde e balbuciante com intenção de nos mandar de volta antes que
perturbássemos sua paz, mas uma repentina e inesperada sensação de pena por ele estar
tão sozinho e indefeso na escuridão que agora chegava desse lado da terra. Se alguma
coisa quisesse comê-lo, poderia. Sua mãe não estava ali para impedir, nem seu pai, nem
Jesus Cristo e todos os santos. Estava morto e completamente sozinho, jogado para
longe dos trilhos no pântano, e percebi que se não parasse de pensar naquilo ia chorar.
Então contei uma história de Le Dio, inventada na hora e não muito boa, e quando
acabou, como a maioria de minhas histórias de Le Dio, com um buldogue americano
solitário cuspindo uma declaração agonizante de patriotismo e amor pela garota na volta
para casa, sob o olhar do sargento do pelotão com uma expressão triste e sábia, não era
a cara branca e amedrontada de algum soldado de primeira classe de Castle Rock que
via à minha frente, mas o rosto de um garoto muito mais novo, morto, de olhos
fechados, as feições contorcidas, um fio de sangue escorrendo pelo canto esquerdo da
boca. E atrás dele, ao invés das lojas e igrejas destruídas nos cenários de Le Dio, eu via
apenas a floresta escura e alinha do trem coberta de cinzas contra um céu estrelado,
como um cemitério pré-histórico.
19
Acordei no meio da noite, desorientado, imaginando porque estaria tão frio na minha
cama e quem tinha deixado as janelas abertas. Denny, talvez. Estava sonhando com
Denny, alguma coisa em relação a pegar jacaré no Harrison State Park. Mas aquilo tinha
acontecido há quatro anos atrás.
Aquilo não era o meu quarto; era algum outro lugar. Alguém estava me abraçando como
um urso, outra pessoa estava encostada em minhas costas, e uma terceira na penumbra
estava encolhida a meu lado, a cabeça inclinada como se estivesse querendo ouvir
alguma coisa.
- Que diabo é isso? - perguntei com franco atordoamento.
Um longo bocejo como resposta. Parecia Vern.
Outono da Inocência - Stephen King
Aquilo colocou as coisas em foco, e lembrei onde estava... mas o que estavam fazendo
todos acordados no meio da noite? Ou eu só dormira alguns segundos? Não, não podia
ser, pois uma fina tira de lua estava no meio do céu, que parecia pintado a tinta.
- Não deixe ele me pegar! - murmurou Vern. - Juro que vou ser bonzinho, não vou fazer
nada de errado, vou levantar a tampa quando fizer pipi, vou... vou...
Com algum espanto percebi que estava ouvindo uma reza ou pelo menos o equivalente a
uma reza de Vern Tessio.
Sentei-me de uma vez, com medo.
- Chris?
- Cala a boca, Vern - disse Chris. Era ele que estava com a cabeça levantada e
escutando. - Não é nada.
- Ah, é sim - disse Teddy tenebroso. - É alguma coisa.
- O que? - perguntei. Ainda estava com sono e desorientado, deslocado de minha casa
no espaço e no tempo. Senti medo por estar por fora do que estava acontecendo - talvez
atrasado demais para me defender como deveria.
Então, como que respondendo à minha pergunta, um longo e oco grito ergueu-se
languidamente da floresta - era o tipo de grito que se espera de uma mulher morrendo
em extrema agonia e medo.
- Ô meu Deus do céu! - disse Vern, a voz alta e chorosa. Deu-me novamente o abraço
de urso com o qual me acordara, me deixando sem respiração e aumentando meu
próprio medo.
Soltei-o com esforço, mas voltou na mesma hora para o meu lado como um cachorrinho
que não sabe para onde ir.
- É o Ray Brower - sussurrou Teddy, rouco. - O espírito dele está vagando pela floresta.
- Ô meu Deus! - gritou Vern, aparentemente sem medo daquela idéia. - Juro que não
vou mais roubar livros velhos no Dahlie's Market! Prometo que não dou mais minhas
cenouras para o cachorro! Eu... eu... eu...
Parou ali, querendo dar tudo a Deus mas incapaz de pensar alguma coisa de bom no
auge do medo.
- Não vou fumar cigarro sem filtro! Não vou mais falar palavrão! Não vou botar a
minha bazooka no prato de doações! Não vou...
- Cala a boca, Vern - disse Chris, e por trás de sua autoridade usual pude ouvir um quê
de medo. Fiquei imaginando se seus braços, costas e barriga estavam tão arrepiados
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quanto os meus, e se os pêlos atrás de sua nuca estavam querendo ficar em pé, como os
meus.
A voz de Vern transtormou-se num sussurro enquanto continuava a expor as reformas
que pretendia instituir se Deus o deixasse ao menos passar por aquela noite vivo.
- É um pássaro, não é? - perguntei a Chris.
- Não. Pelo menos acho que não. Acho que é um gato selvagem. Meu pai disse que eles
gritam como se estivessem morrendo quando estão prontos para cruzar. Parece uma
mulher, né?
- É - disse eu. - Minha voz engasgou e duas pedras de gelo desceram pela minha
garganta.
- Mas nenhuma mulher consegue gritar tão alto assim disse Chris... e acrescentou
indefeso: - Consegue, Gordie?
- É o espírito dele - sussurrou Teddy novamente. Seus óculos refletiam o luar em raios
fracos e de certa forma sonhadores. - Vou ver o que é.
Acho que não estava falando sério, mas não nos arriscamos. Quando começou a
levantar-se, Chris e eu o puxamos para baixo. Talvez tenhamos sido muito brutos com
ele, mas nossos músculos haviam se transformado em cabos com o medo.
- Me deixem levantar, filhos da mãe! - disse Teddy, lutando. - Se eu estou dizendo que
vou procurar é porque vou procurar! Quero ver! Quero ver o fantasma! Quero ver se...
O grito de lamúria selvagem surgiu no meio da noite novamente, cortando o ar como
uma faca com lâmina de cristal, paralisando-nos com as mãos sobre Teddy - se ele fosse
uma bandeira, nós teríamos ficado parecidos com aquele quadro dos marinheiros
clamando Iwo Jima. O grito subia com incrível rapidez de oitava em oitava, atingindo
finalmente um tom vítreo, penetrante. Ficou sustentado ali e então diminuiu novamente,
desaparecendo com um registro grave impossível que zumbia como uma monstruosa
abelha. A isso seguiu-se uma explosão parecendo uma louca gargalhada... e fez-se
silêncio novamente.
- Santo Cristo Jesus - sussurrou Teddy, e não falou mais em entrar na floresta para ver o
que produzia aquele grito. Nós quatro nos juntamos e eu pensei em sair correndo.
Duvido que tenha sido o único. Se estivéssemos acampados no jardim de Vern - onde
nossos pais pensavam que estávamos - provavelmente teríamos saído correndo. Mas
Castle Rock estava longe demais e a idéia de tentar atravessar correndo aquela ponte no
escuro fez meu sangue congelar. Correr mais ainda para dentro de Harlow e mais perto
do corpo de Ray Brower era igualmente impensável. Estávamos cercados. Se houvesse
um caçador no meio da floresta - o que meu pai chamava de Aeasto - e quisesse nos
pegar, provavelmente teria conseguido.
Outono da Inocência - Stephen King
Chris propôs que ficássemos de guarda e todos concordaram. Tiramos zerinho ou um e
Vern saiu primeiro. Eu por último. Vern sentou de pernas cruzadas perto do calor da
fogueira enquanto nós deitamos novamente. Ficamos amontoados como carneiros.
Tinha certeza que dormir seria impossível, mas dormi - um sono leve e inquieto que
passava pelo inconsciente como um submarino com o periscópio para cima. Meus
sonhos meio acordados foram povoados de gritos selvagens que podem ter sido reais ou
simplesmente frutos da minha imaginação. Vi - ou achei que vi - alguma coisa branca
esgueirar-se por entre as árvores como uma grotesca maca de ambulatório.
Finalmente tive um sonho de verdade. Chris e eu estávamos nadando em White's Beach,
uma saibreira em Brunswick que havia sido transformada num lago em miniatura
quando os cavadores de saibro represaram água. Era onde Teddy tinha visto o garoto
bater a cabeça e quase se afogar.
Em meu sonho estávamos numa boa, andando preguiçosamente ao longo da praia sob o
sol forte de julho. De trás de nós, da bóia, vinham gritos, berros e gargalhadas de
crianças que subiam e mergulhavam, subiam e eram empurradas. Ouvia os tambores de
querosene vazios que sustentavam a bóia baterem uns contra os outros - um barulho
diferente de sinos de igreja, solene e profundo. Na praia de areia e cascalho, corpos
cheios de óleo virados de barriga para cima sobre esteiras, criancinhas com baldes na
beira da água ou alegremente sentadas cobrindo os cabelos de areia com pás de plástico,
adolescentes sorrindo em grupo, olhando as meninas andarem sem parar de um lado
para o outro em pares, trios, nunca sozinhas, as partes secretas de seus corpos
envolvidos em roupas de banho. As pessoas subiam a areia quente na ponta dos pés,
pulando, até o bar. Voltavam com batatas fritas, cachorros-quentes, sorvetes.
A Sra. Cote passou por nós num barco inflável de borracha. Estava deitada, com o
uniforme que usava de setembro a junho na escola: saia e blusa cinza com uma grossa
suéter embaixo da jaqueta, uma flor presa no busto quase inexistente, grossas meias de
sustentação da cor de balas de menta. Seus sapatos pretos de velha de saltos altos
balançavam dentro d'água, formando pequenos "vv". Seus cabelos eram pintados de
azul, como os de minha mãe, e cheios de cachos que pareciam molas de relógio. Seus
óculos refletiam brutalmente o sol.
- Cuidado, meninos - disse ela. - Cuidado senão bato em vocês até ficarem cegos. Posso
fazer isso; o conselho da escola me deu esse direito. Agora, Sr. Chambers, Mending
Wall, de cor, por favor.
- Eu tentei devolver o dinheiro - disse Chris. - A Sra. Simons concordou mas ficou com
o dinheiro! Está entendendo? Ela pegou! Agora o que a senhora vai fazer? Bater nela
até ela ficar cega?
- Mending Wall, Sr. Chambers, por favor. De cor.
Chris lançou-me um olhar desesperado, como que dizendo, Não disse que ia ser assim?,
e começou a entrar na água. Começou: "Alguma coisa lá que não ama um muro, que
manda o solo congelado debaixo dele..." E então sua cabeça afundou, sua boca encheu-
se de água enquanto recitava.
Outono da Inocência - Stephen King
Subiu de novo, gritando:
- Me ajude, Gordie, me ajude!
Então foi puxado para baixo de novo. Olhando para o fundo da água cristalina, via dois
corpos nus segurando seus quadris. Um era Vern e o outro Teddy, e seus olhos abertos
eram brancos e sem pupila, como os olhos de estátuas gregas. Seus pênis pré-
adolescentes flutuavam flácidos longe da barriga como algas brancas. A cabeça de Chris
rompeu a água novamente. Tinha uma das mãos estendida para mim e seu choro era
histérico como o de uma mulher e crescia, crescia na atmosfera quente e ensolarada de
verão. Eu olhava assustado em direção à praia mas ninguém ouvia. O salva-vidas, seu
corpo bronzeado e atlético sentado atraentemente no alto de sua torre de madeira em
forma de cruz, simplesmente continuava sorrindo para a menina em baixo de maiô
vermelho. Chris continuava a gritar. Já engasgado e fazendo bolhas, sendo puxado pelos
corpos novamente. Quando o puxaram para o fundo vi seus olhos esbugalhados virados
para mim implorando em agonia; vi suas mãos brancas tentarem alcançar a superfície
ensolarada da água. Mas ao invés de mergulhar e tentar salvá-lo, nadei
desesperadamente para a beira, ou pelo menos até onde a água não cobrisse a minha
cabeça. Antes de chegar lá - antes mesmo de chegar perto - senti uma mão mole,
apodrecida, implacável, segurar minha panturrilha e começar a puxar. Um grito formou-
se em meu peito... mas antes que conseguisse soltá-lo, o sonho esvaiu-se para um fac-
símile da realidade. Era Teddy com a mão sobre a minha perna. Estava me sacudindo
para me acordar. Era a minha vez.
Ainda meio sonhando, perguntei a Teddy com voz grossa:
- Você está vivo, Teddy?
- Não. Estou morto e você é um crioulo - disse ele, na mesma hora. Aquilo espantou o
resto do sonho. Sentei-me perto da fogueira e Teddy deitou.
20
Os outros dormiram pesadamente o resto da noite. Eu cochilava e levantava, cochilava e
levantava novamente. A noite não foi nada silenciosa; ouvi o triunfante ulular de uma
coruja, o choro mínimo de algum animalzinho talvez prestes a ser comido, alguma coisa
maior se esgueirando atrás das moitas. Abaixo de tudo isso, um tom melancólico, os
grilos. Não houve mais ruídos. E cochilei e acordei, cochilei e acordei, e suponho que se
tivesse sido descoberto com tal descuido em Le Dio, provavelmente teria sido
condenado e executado.
Acordei mais rápido de meu último cochilo e percebi que algo estava diferente. Levei
alguns segundos para descobrir: embora alua tivesse sumido, podia ver minhas mãos
sobre as pernas da calça jeans. Meu relógio marcava quinze para as cinco. Era quase de
manhã.
Outono da Inocência - Stephen King
Levantei, ouvi minhas costas estalarem, afastei-me alguns passos dos corpos
amontoados de meus amigos e fiz pipi num arbusto. Estava começando a me livrar dos
pesadelos noturnos; podia senti-los indo embora. Era uma sensação boa.
Remexi as cinzas dos trilhos e sentei num deles, preguiçosamente juntando cinzas entre
meus pés, sem nenhuma pressa de acordar os outros. Naquele exato momento o dia
estava gostoso demais para ser compartilhado.
A manhã chegou depressa. O barulho dos grilos começou a diminuir e as sombras sob
as árvores e arbustos evaporaram como poças d'água depois de uma chuva. O ar tinha
aquela falta de gosto peculiar do último dia de calor numa série famosa de dias quentes.
Os pássaros que provavelmente tinham passado a noite escondidos como nós
começavam agora a piar cheios de importância. Uma cambaxirra pousou no topo da
árvore de onde tínhamos tirado a madeira para o fogo, compôs as penas e voou.
Não sei quanto tempo fiquei sentado no trilho, vendo a coloração arroxeada sumir
silenciosamente do céu, da mesma forma como havia surgido na noite anterior. Bem, o
suficiente para o meu traseiro começar a reclamar. Ia levantar quando olhei para a
direita e vi uma corça no meio dos trilhos a menos de dez metros de distância.
Meu coração deu um pulo tão forte que acho que se tivesse colocado a mão na boca o
teria tocado. Meu estômago e minha genitália encheram-se de quente excitação. Não me
mexi. Se quisesse não teria conseguido. Seus olhos não eram castanhos, mas de um
preto fosco, da cor do veludo que vem nos mostradores de jóias. Suas orelhas pequenas
eram acetinadas. Olhou serenamente para mim com a cabeça ligeiramente abaixada, o
que interpretei como curiosidade, já que estava vendo um garoto com os cabelos
arrepiados da noite formando topetinhos, vestindo jeans com bainhas e camisa cáqui e
remendos nos cotovelos e a gola virada para cima de acordo com a moda daquela época.
O que eu estava vendo era uma e3pécie de presente, algo dado com um desprendimento
comovente.
Olhamos um para o outro por um longo tempo... acho que foi longo. Então ele virou e
andou para o outro lado, o rabo curto balançando despreocupadamente. Achou grama e
começou a roer. Não olhou mais para mim, e não precisava; eu estava paralisado.
Então o trilho começou a vibrar debaixo de mim e em poucos segundos a corça levantou
a cabeça e olhou para trás, em direção a Castle Rock. Ficou ali, o focinho preto
mexendo de leve. Então foi-se em três lépidas galgadas, desaparecendo na floresta
silenciosamente a não ser por um galho podre que estalou como um tiro de largada.
Fiquei sentado ali, olhando pasmo o lugar onde ela estivera, até que o barulho real do
trem veio rompendo a tranqüilidade. Pulei de volta para o lado onde os outros dormiam.
A passagem lenta e ensudercedora do trem acordou-os, bocejando e se coçando.
Conversaram um pouco, divertidos e nervosos, sobre o "caso do fantasma que gritava",
como disse Chris, mas não muito como você possa imaginar. A luz do dia era mais uma
besteira do que algo interessante - quase encabulante. Melhor esquecer.
Outono da Inocência - Stephen King
Ia contar para eles sobre a corça, mas acabei não contando. Foi uma das coisas que
guardei para mim. Nunca havia falado nem escrito sobre isso até este momento, hoje. E
tenho que dizer que escrito, no papel, parece uma coisa sem significado, quase
inconseqüente. Mas para mim foi a melhor parte do passeio, a mais limpa, e foi um
momento em que retornei, impotentemente, aos problemas de minha vida - meu
primeiro dia no Vietnã, quando um cara chegou na clareira onde estávamos com a mão
no nariz, e quando tirou a mão não tinha nariz, porque tinha levado um tiro; a ocasião
em que o médico nos disse que nosso filho mais novo poderia ser hidrocéfalo (ele
apenas nasceu com a cabeça grande, graças a Deus); as longas e desesperadas semanas
antes de minha mãe morrer. Me pegava voltando em pensamentos àquela manhã, o
acetinado de suas orelhas, a pele branca do rabo. Mas oito milhões de chineses não dão
a mínima, não é? As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar, pois as
palavras as diminuem. É difícil fazer estranhos se importarem com as coisas boas de sua
vida.
21
Os trilhos agora dobravam para o sudeste e corriam por entre emaranhados de pinheiros
e densa vegetação rasteira. De café, tarde, comemos amoras pretas de alguns arbustos,
mas amoras nunca satisfazem; o estômago as consome em trinta minutos e já começa a
roncar de novo. Voltamos para perto do trilho - eram quase oito horas - e começamos a
andar. Nossas bocas estavam roxas e nossos torsos arranhados dos galhos dos arbustos.
Vern dizia mal humorado que queria dois ovos fritos com bacon.
Aquele foi o último dia de calor; e acho que foi o pior. Logo o céu começou a cobrir-se
de nuvens e por volta de nove horas estava cinza-chumbo, dando calor só de olhar. O
suor corria e escorria por nossas costas e peito, deixando rastros limpos na foligem e
sujeira acumulada. Mosquitos e moscas voavam ao redor de nossas cabeças em nuvens
cada vez maiores. Saber que tínhamos longos quilômetros pela frente não melhorava em
nada as coisas. No entanto, o fascínio de tudo nos estimulava e nos fazia andar cada vez
mais rápido do que seria suportável naquele calor. Estávamos loucos para ver o corpo
daquele garoto - não consigo dizer de forma mais simples ou honesta. Mesmo se não
nos fizesse mal ou se tirasse nosso sono com sonhos confusos, queríamos ver. Acho que
passamos a acreditar que merecíamos vê-lo.
Eram quase nove e meia quando Teddy e Chris encontraram água mais acima - gritaram
para mim e Vern. Corremos até onde estavam. Chris ria, encantado.
- Olhem! Foram os castores que fizeram! - Apontou.
Era trabalho de castores, de fato. Uma larga vala corria sob os dormentes da estrada de
ferro mais acima, e os castores haviam feito uma perfeita barragem fechando a saída
com seus galhos e pedaços de pau cimentados com folhas, madeiras e lama seca. Os
castores são bons trabalhadores, é verdade. Atrás da barragem havia se formado uma
piscina natural, limpa e brilhante como um espelho ao sol. As casas dos castores
espalhavam-se por vários lugares ao redor da água - pareciam iglus de madeira. Uma
Outono da Inocência - Stephen King
pequena cascata gotejava no fundo da piscina, e as árvores ao redor estavam cobertas
até uma altura de um metro.
- A estrada de ferro vai varrer isso logo, logo - disse Chris.
- Por quê? - perguntou Vern.
- Não podem ter uma piscina aqui - disse Chris. - Cortaria a preciosa estrada de ferro. É
por isso que colocaram aquele cano ali para começar. Vão matar uns castores, espantam
o resto e destrõem a barragem. Então isso vai voltar a ser um pântano, como
provavelmente era antes.
- Acho que é isso mesmo - disse Teddy.
Chris deu de ombros.
- Ninguém liga mesmo para os castores. Nem o lado sul e ocidental do Maine, isso com
certeza.
- Acha que é fundo o suficiente para nadar? - perguntou Vern, olhando gulosamente
para a água.
- Só tem uma maneira de descobrir - disse Teddy.
- Quem vai ser o primeiro?
- Eu! - disse Chris.
Desceu correndo a margem tirando os tênis e a camisa amarrada na cintura com um
safanão. Abaixou as calcas e a cueca com um único movimento dos polegares.
Equilibrou-se, primeiro numa perna e depois na outra, para tirar as meias. Então deu um
mergulho raso. Subiu balançando a cabeça para tirar os cabelos dos olhos.
- Está uma delícia! - gritou.
- É fundo? - perguntou Teddy. Nunca aprendera a nadar.
Chris ficou em pé e seus ombros romperam a superfície. Vi alguma coisa num deles -
uma coisa cinza-escura. Achei que fosse lama e me despreocupei. Se tivesse olhado
mais de perto teria evitado sérios pesadelos mais tarde.
- Venham, seus frescos!
Virou-se e saiu batendo os braços desajeitadamente pela piscina, mergulhou e voltou do
mesmo jeito. A essa altura estávamos nos despindo. Vern foi em seguida, depois eu.
Tocar na água foi fantástico - limpa e fria. Nadei até Chris, com a adorável sensação de
não ter nada no corpo, apenas a água sedosa. Levantei-me e rimos um para o outro.
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- Que máximo! - dissemos na mesma hora.
- É do caralho - disse ele, jogou água na minha cara e nadou para o outro lado.
Ficamos brincando dentro d'água quase meia hora, até percebermos que o lago estava
cheio de sanguessugas. Mergulhávamos, nadávamos por baixo d'água, dávamos caldos
uns nos outros. Não percebemos nada. Então Vern mergulhou na parte mais rasa e
plantou uma bananeira. Quando suas pernas emergiram, balançando, num triunfante
"V", vi que estavam cobertas de blocos negro-acinzentados, como o que eu vira no
ombro de Chris. Eram lesmas - das grandes.
Chris ficou boquiaberto, e eu senti todo o meu sangue gelar. Teddy gritou, e ficou
pálido. Nós três começamos a nos debater para alcançarmos a margem, o mais rápido
possível. Agora sei mais sobre lesmas aquáticas do que naquela época, mas apesar de
serem quase todas inofensivas, não consegui deixar de sentir um pavor quase insano até
hoje. Elas têm um anestésico e um anti-coagulante na saliva, o que significa que a
vítima nunca sente nada quando elas colam. Se você não as vir, elas continuam se
alimentando até que seus corpos, inchados, horríveis, caem, saciados, ou até
explodirem, literalmente.
Pulamos na margem e Teddy teve uma crise histérica quando se olhou. Gritava
enquanto ia arrancando as sanguessugas do corpo nu.
Vern emergiu e olhou para nós, intrigado.
- Pó, o que vocês estão...
- Sanguessugas! - gritou Teddy, tirando duas das coxas trêmulas e jogando-as o mais
longe possível. - Merdas de sanguessugas filhas da mãe! - explodiu sua voz, estridente
na última expressão.
- Oh, meu Deus, meu Deus - gritava Vern. Cruzou a piscina batendo os braços e saiu
estabanado.
Eu ainda estava gelado; o calor do dia desaparecera. Ficava dizendo a mim mesmo para
manter a calma. Para não começar a gritar, para não ser um fresco. Tirei meia dúzia do
braço e várias do peito.
Chris virou-se de costas para mim.
- Gordie, ainda tem? Tira se tiver, por favor, Gordie!
Ainda tinha, cinco ou seis, descendo por suas costas como grotescos botões pretos.
Puxei os corpos macios e desossados de sua pele.
Esfreguei mais das minhas pernas e pedi a Chris para ver as minhas costas.
Estava começando a relaxar um pouco - foi quando olhei para baixo e vi a maior de
todas presa em meus testículos, seu corpo quatro vezes maior que o normal. Sua pele
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preto-acinzentada estava vermelho-arroxeada. Foi quando comecei a perder o controle.
Não exteriormente, pelo menos não de maneira muito evidente, mas interiormente, onde
importa.
Passei as costas das mãos sobre seu corpo liso e pegajoso. Continuou agarrada. Tentei
de novo e não consegui tocá-la. Virei para Chris, tentei falar, não consegui. Ao invés,
apontei. Seu rosto, já cinzento, ficou mais pálido.
- Não consigo tirar - disse por entre os lábios paralisados. - Você... você pode...
Mas ele recuou, balançando a cabeça, a boca mexendo.
- Não posso, Gordie - disse ele, incapaz de tirar os olhos. Sinto muito, mas não posso.
Não. Ai, não. - Virou-se, curvado com uma das mãos pressionando o diafragma como o
mordomo de uma comédia musical, e ficou enjoado, de pé, no meio de arbustos de
zimbro.
Você tem que se controlar - pensava eu, olhando a sanguessuga que pendia de meu
corpo como uma estranha barba. Seu corpo visivelmente inchava cada vez mais. Você
tem que se controlar e tirá-la. Seja forte. É a última. A última.
Estendi a mão novamente, arranquei-a e ela estourou entre meus dedos. Meu próprio
sangue escorreu pela palma de minha mão até o pulso, num fluxo quente. Comecei a
chorar.
Ainda chorando, andei até minhas roupas e me vesti. Queria parar de chorar, mas não
parecia capaz de fazer pararem as lágrimas. Então começaram os soluços, piorando a
situação, Vern veio correndo, nu ainda.
- Elas saíram, Gordie? Saíram? Saíram?
Rodopiou na minha frente como um dançarino maluco num baile de carnaval.
- Saíram? Hem? Hem? Saíram, Gordie?
Seus olhos me percorriam, arregalados e brancos como os de um cavalo de pau de
carrossel.
Respondi que sim com a cabeça e continuei chorando. Parecia que a minha nova
profissão seria chorar. Enfiei a camisa e abotoei até o pescoço. Vesti as meias e calcei
os tênis. Aos pouquinhos as lágrimas foram diminuindo. Finalmente cessaram, e
ficaram alguns soluços e gemidos, que depois pararam também.
Chris veio andando em minha direção, limpando a boca com um punhado de folhas.
Seus olhos estavam assustados, silenciosos e arrependidos.
Quando estávamos todos vestidos, ficamos parados nos olhando por um instante, e
então começamos a subir a margem da estrada de ferro. Olhei mais uma vez a
Outono da Inocência - Stephen King
sanguessuga morta em cima de um dos arbustos pisoteados sobre os quais havíamos
pulado, gritado e chorado. Tinha um aspecto menos intumescido... mas ainda sinistro.
Quatorze anos depois editei meu primeiro romance e fiz minha primeira viagem a Nova
York.
- Serão três dias de comemorações - disse-me meu editor ao telefone - As pessoas que
só sabem dizer besteiras serão barradas no ato. - Mas claro que foram três dias de pura
besteira.
Enquanto estava lá, queria fazer todas as coisas de quem não mora nas cidades grandes -
assistir a um show no Radio City Music Hall, subir até o último andar do Empire State
Building (dane-se o World Trade Center; o prédio que King Kong subiu em 1933
sempre será o maior do mundo para mim), visitar Times Square à noite. Keith, meu
editor, parecia encantado em me ciceronear. A última coisa de turista que fizemos foi
um passeio de barco até Staten Island, e encostado no parapeito por acaso olhei para
baixo e vi uns vinte preservativos usados boiando suavemente avolumados. Foi um
momento de recordações - talvez na verdade tenha sido uma viagem através do tempo.
De qualquer maneira, por um segundo voltei literalmente ao passado, parando na
metade daquela margem e olhando para trás para a sanguessuga: morta, menos
inchada... mas ainda sinistra.
Keith deve ter visto algo em meu rosto, pois disse:
- Nada bonito, não é?
Apenas balancei a cabeça, querendo lhe dizer que não se desculpasse, querendo lhe
dizer que você não precisa ir a Nova Iorque e passear de barco para ver camisinhas
usadas, querendo dizer: O único motivo pelo qual uma pessoa escreve é para entender o
passado e preparar-se para futuras perdas; por isso todos os verbos dos romances são no
passado, meu caro Keith, mesmo os que vendem milhões de cópias. As duas únicas
manifestações artísticas úteis são a religião e os romances.
Fiquei bastante bêbado naquela noite, como você deve ter imaginado.
O que disse a ele foi: - Estava pensando em outra coisa, só isso. - As coisas mais
importantes são as mais difíceis de expressar.
22
Continuamos a caminhar seguindo os trilhos - não sei quanto mais - e eu estava
começando a pensar: Ora, tudo bem, vou conseguir superar, já está tudo terminado, só
um bando de sanguessugas, e daí? Ainda estava pensando sobre aquilo quando de
repente um branco tomou conta de minha vista e eu caí.
Outono da Inocência - Stephen King
A queda deve ter sido forte, mas cair sobre os dormentes foi como mergulhar num
colchão quente e macio de penas. Alguém me virou. O toque de mãos era indistinto e
sem importância. Seus rostos, balões flutuantes me olhando de grande altura. Tinham a
mesma aparência que o rosto do árbitro deve ter para o lutador que levou um golpe e
está caído se recuperando. Suas palavras oscilavam pacificamente, sumindo e voltando.
- ... ele?
- ...tudo...
- ...se você acha que o sol...
- Gordie, você está...
Então devo ter dito alguma coisa sem sentido, pois pareceram realmente preocupados.
- É melhor levar ele, cara - disse Teddy, e então o branco tomou conta de tudo
novamente.
Quando passou, eu parecia estar bem. Chris estava agachado a meu lado dizendo:
- Está me ouvindo, Gordie? Você está bem, cara?
- Estou - disse eu, e sentei. Milhares de pontos pretos explodiram diante de meus olhos,
e depois sumiram. Esperei para ver se voltavam, e então me levantei.
- Você quase me matou de susto, Gordie - disse ele. - Quer um gole de água?
- Quero.
Ele me deu seu cantil de água até a metade e deixei três grandes goles escorrerem por
minha garganta.
- Por que você desmaiou, Gordie? - perguntou Vern, ansioso.
- Caí na besteira de olhar para a tua cara - disse eu.
- Eeee-eee-eee - cararejou Teddy. - Grande, Gordie! Essa foi ótima!
- Você está bem mesmo? - insistiu Vern.
- Estou. Claro. Foi... ruim por uns minutos. Pensar naquelas sanguessugas.
Balançaram a cabeça sensatamente. Descansamos cinco minutos à sombra e
continuamos a andar, eu e Vern de um lado dos trilhos e Chris e Teddy do outro.
Achávamos que estávamos perto.
Outono da Inocência - Stephen King
23
Não estávamos tão perto como imaginávamos, e se tivéssemos nos dado o trabalho de
olhar dois minutos o mapa da estrada, teríamos visto por quê. Sabíamos que o corpo de
Ray Brower tinha que estar perto da Back Harlow Road, que acaba na margem do Rio
Royal. Uma outra ponte leva os trilhos da GS&WM através do Royal. Então pensamos
assim: Quando chegarmos perto do Royal estaremos perto da Back Harlow Road, onde
Billy e Charlie estacionaram no dia em que viram o garoto. E como o Royal ficava a
apenas dezesseis quilômetros do Rio Castle, imaginamos que seria moleza.
Mas se fossem dezesseis quilômetros em linha reta, pois os trilhos não iam direto do
Castle ao Royal. Ao contrário, faziam uma grande volta para evitar uma região
montanhosa e friável chamada The Bluffs. De qualquer maneira teríamos visto aquela
volta muito bem se tivéssemos olhado o mapa, e percebido que, ao invés de dezesseis,
teríamos que andar vinte e cinco quilômetros.
Chris começou a desconfiar quando passara de meio-dia e ainda nem avistáramos o
Royal. Paramos para ele subir num grande pinheiro e dar uma olhada em volta. Desceu
e nos deu um relatório bem simples: no mínimo às quatro horas da tarde alcançaríamos
o Royal, e isso só se fôssemos rápido.
- Que merda! - disse Teddy. - E o que vamos fazer agora?
Olhamos os rostos cansados e suados uns dos outros. Estávamos com fome e sem
paciência. A grande aventura transformara-se numa longa e estafante caminhada -
sombria e algumas vezes assustadora. A essa altura nos perderíamos também para voltar
para casa, e se Milo Pressman já não tivesse informado a polícia sopre nós, o maquinista
do trem o teria feito. Pensamos em pegar carona de volta para Castle Rock, mas às
quatro horas da tarde faltariam apenas três para escurecer, e ninguém dá carona para
quatro garotos numa estrada secundária no campo ao escurecer.
Tentei evocar a imagem tranqüila da minha corça mordendo a grama verde da manhã,
mas até isso parecia desinteressante e ruim, o mesmo que um bicho empalhado como
um troféu na estante de um caçador, os olhos com brilho falso.
Finalmente Chris disse:
- Ainda é mais perto continuar. Vamos.
Virou-se e começou a andar seguindo os trilhos com os tênis sujos, a cabeça baixa, sua
sombra como uma poça a seus pés. Após um ou dois minutos nós o seguimos em fila
indiana.
24
Outono da Inocência - Stephen King
Nos anos que se passaram entre aquela época e hoje, ao escrever estas memórias, tenho
pensado realmente pouco naqueles dois dias de setembro, pelo menos conscientemente.
As associações que as memórias trazem à tona são tão desagradáveis como cadáveres
boiando há uma semana no rio. Como conseqüência, nunca questionei realmente nossa
decisão de seguir os trilho. Colocando de outra forma, pensei algumas vezes sobre o que
decidimos fazer, mas nunca sobre como fizemos.
Mas agora um cenário muito mais simples me vem à cabeça. Tenho certeza de que se a
idéia tivesse surgido, teria sido contestada - seguir os trilhos seria muito mais legal,
mais quente, como dizíamos naquela época. Mas se tivesse surgido e não tivesse sido
contestada, nada do que aconteceu teria acontecido. Talvez Chris, Teddy e Vern até
estivessem vivos hoje. Não, não morreram na floresta nem na estrada de ferro; ninguém
morre neste conto a não ser algumas sanguessugas e Ray Brower, e se você quiser ser
mesmo justo, ele estava morto antes do começo. Mas a verdade é que, dos quatro que
tiraram cara ou coroa para ver quem ia ao Florida Market, apenas o que foi ainda está
vivo. O velho marinheiro de trinta e quatro anos, com você, caro leitor, no papel de
convidado (nesta hora você não devia olhar a foto da capa e ver se meus olhos
o prendam no seu encanto?1. Se você sente uma certa sacudidela de minha parte você
está certo - mas talvez eu tenha um motivo. Numa cidade em que nós quatro seríamos
considerados jovens e imaturos demais para sermos Presidente, três de nós estão mortos.
E se pequenos eventos realmente crescem com o tempo, sim, talvez se tivéssemos feito
o mais simples e pego uma carona em Harlow, ainda estaríamos todos vivos hoje.
Poderíamos ter pego uma carona até a Via 7 para a Shiloh Church, que ficava no
cruzamento da auto-estrada com a Back Harlow Road (pelo menos até 1967, quando foi
destruída por um incêndio atribuído a uma ponta de cigarro de um mendigo). Com sorte
teríamos chegado ao local onde estava o corpo ao entardecer do dia anterior.
Mas a idéia não teria resistido. Não teria sido derrubada com argumentos bem
fundamentados numa retórica social de debate, mas com resmungos, caras feias, peidos
e dedos em riste. A parte verbal da discussão teria sido composta por contribuições
incisivas e brilhantes como "Vai se foder", "Idéia de merda" e aquele velho e infalível
recurso, "Tua mãe tem algum filho vivo?"
Velada - talvez fosse óbvia demais para ser dita - era a idéia de que aquilo era uma coisa
importante. Não era sair jogando bombinhas nem tentar olhar pelo buraco da fechadura
do banheiro de mulheres de Harrison State Park. Era algo comparável com a primeira
transa, ou ir para o Exército, ou comprar a primeira garrafa de bebida - simplesmente
entrar na loja, se você entende, escolher uma garrafa de bom scotch, mostrar ao
vendedor sua identidade e carteira de motorista e sair com um sorriso no rosto e aquele
saco marrom na não, membro de um clube com certos direitos e privilégios a mais que
nossa velha casa na árvore com telhado de zinco.
Existe um grande ritual para todos os eventos fundamentais, os ritos de passagem, o-
corredor mágico onde a mudança ocorre. Comprar preservativos. Ficar frente a frente
com o ministro. Levantar a mão e prestar juramento. Ou, se quiser, descer o caminho
dos trilhos para encontrar um amigo da mesma idade na metade do caminho, da mesma
maneira que eu descia Pine Street para encontrar Chris quando vinha à minha casa, ou
Outono da Inocência - Stephen King
que Teddy descia até a metade de Gates Street para me encontrar quando eu ia à sua
casa. Parecia certo agir assim, pois o rito de passagem é um corredor mágico e por isso
nós fornecemos um caminho - é por onde você anda quando se casa, o percurso que
você desce ao ser enterrado. Nosso corredor era aquele par de trilhos, e caminhamos
entre eles, esperando, o que quer que aquilo significasse. Talvez não se pegue carona
numa situação dessas. E talvez achássemos que fosse certo ter sido mais difícil do que
esperávamos. Os ventos em torno de nossa carona transformou-a no que sempre
pensamos desde o início: uma coisa séria.
O que não sabíamos quando andamos por Bluffs era que Billy Tessio, Charles Hogan,
Jack Mudgett, Norman "Fuzzy" Bracowicz, Vince Desjardins, o irmão mais velho de
Chris, Eyeball e Ace Merrill estavam todos a caminho, para darem eles próprios uma
olhada no morto - de uma maneira estranha Ray Brower tornara-se famoso, e nosso
segredo transformou-se num teatro nômade. Estavam amontoados no Ford 52
conversível de Ace e no Studebaker 54 rosa de Vince, desde que começamos a última
parte da viagem.
Billy e Charlie haviam conseguido guardar o enorme segredo por apenas trinta e seis
horas. Então Charlie contou para Ace enquanto jogavam bilhar e Billy tinha contado
para Jack Mudgett enquanto pescavam na Ponte Boom Road. Tanto Ace quanto Jack
tinham jurado pela mãe que guardariam segredo, e foi assim que todos os membros da
gangue ficaram sabendo ao meio-dia. Acho que você pode imaginar o que aqueles
imbecis pensavam de suas mães.
Reuniram-se todos no salão de bilhar e Fuzzy Bracowicz adiantou a teoria (que você já
ouviu antes, caro leitor) de que poderiam tornar-se heróis - sem falar em personalidades
imediatas do rádio e da TV - "descobrindo" o corpo. Tudo o que teriam que fazer,
sustentou Fuzzy, era sair em dois carros com muitas varas de pescar na caçamba.
Depois que achassem o corpo, a história ficaria perfeita. Estávamos pensando em tirar
uns peixinhos do Rio Royal, delegado. Ha, ha, ha. Olhe o que achamos.
Estavam subindo a toda velocidade a estrada de Castle Road para a área de Back
Harlow na mesma hora em que finalmente começamos a nos aproximar.
25
Começaram a se formar nuvens no céu por volta de duas horas, mas no começo nenhum
de nós levou a sério. Não chovia desde os primeiros dias de julho, então por que haveria
de chover agora? Mas continuaram a crescer ao sul, cada vez mais, nuvens de trovão
roxas como edemas, e lentamente começaram a se deslocar em nossa direção. Olhei
para elas atentamente, procurando aquela membrana embaixo que significa que já
começou a chover a trinta quilômetros de distância, ou sessenta. Mas ainda não havia
chuva, as nuvens só estavam começando a se formar. Vern estava com uma bolha no
calcanhar, e paramos e descansamos enquanto ele colocava musgo na parte de trás do
tênis esquerdo, tirado da casca de um velho carvalho.
Outono da Inocência - Stephen King
- Vai chover, Gordie? - perguntou Teddy.
- Acho que sim.
- É foda - disse ele, e suspirou. - Que foda difícil.
Eu ri e ele piscou para mim.
Recomeçamos a andar, agora um pouco mais devagar, por respeito ao pé machucado de
Vern. E entre duas e três horas a qualidade da luz do dia começou a mudar, e tivemos
certeza que a chuva se aproximava. Estava tão quente quanto antes, e ainda mais úmido,
mas tínhamos certeza. E os pássaros também. Pareciam surgir do nada e cruzar o céu,
tagarelando e gritando alto uns com os outros. E a luz. De uma claridade firme e
causticante transformou-se numa luminosidade filtrada, quase perolada. Nossas
sombras, que tinham começado a crescer novamente, também ficaram imprecisas e mal
definidas. O sol começara a surgir e a sumir por entre a espessa camada de nuvens, e o
céu a sudoeste adquirira um tom de cobre. Observamos os relâmpagos chegarem mais
perto, fascinados por seu tamanho e ameaça muda. De vez em quando parecia que uma
lâmpada enorme tinha se apagado dentro das nuvens, transformando sua cor roxa
momentaneamente num cinza-claro. Vi um raio com o formato de um garfo dentado sair
de dentro da que estava mais perto. Foi tão forte que deixou uma tatuagem azul em
minhas retinas. Foi seguido de uma trovoada longa e ameaçadora.
Reclamamos um pouco de sermos pegos pela chuva, mas só porque era inevitável -
logicamente estávamos todos esperando ansiosamente por aquilo. Seria gelada e
refrescante... e sem sanguessugas.
Um pouco depois das três e meia vimos uma água corrente por entre as árvores.
- É ele! - gritou Chris, exultante. - É o Royal!
Começamos a andar mais rápido, com ânimo novo. A tempestade estava chegando
perto. O ar começou a se agitar, e a temperatura pareceu cair alguns graus num espaço
de segundos. Olhei para baixo e vi que minha sombra desaparecera completamente.
Andávamos em pares novamente, cada um de um lado dos trilhos. Minha boca estava
seca, pulsando com uma secura tensa. O sol mergulhou atrás de outra camada de nuvens
e dessa vez não voltou. Por um momento as bordas da camada foram bordadas de ouro,
como uma ilustração do Antigo Testamento da Bíblia, e então a barriga estufada da
nuvem cor de vinho bloqueou todos os rastros de sol. O dia ficou nublado - as nuvens
consumiam rapidamente o último azul do céu. Sentíamos o cheiro do rio tão claro como
se fôssemos cavalos - talvez fosse o cheiro da chuva iminente. Havia um oceano acima
de nós, preso por uma bolsa fina que romperia a qualquer momento e deixaria cair a
enchente.
Eu tentava olhar para o mato no chão, mas meus olhos eram atraídos continuamente
para aquele céu turbulento e apressado; em suas cores profundas podia-se imaginar
qualquer previsão: água, fogo, vento, granizo. A brisa quente tornou-se mais insistente,
assoviando por entre os pinheiros. Um repentino raio estourou, aparentemente bem
Outono da Inocência - Stephen King
acima de nós, fazendo-me gritar e colocar as mãos nos olhos. Deus tinha tirado minha
fotografia, um garotinho com a camisa amarrada na cintura, inchaços nos ombros nus e
fuligem nas bochechas. Ouvi uma árvore cair a menos de sessenta metros. O estalo do
trovão fez com que me encolhesse. Queria estar em casa lendo um bom livro num lugar
seguro... como o celeiro de batatas.
- Meu Deus! - exclamou Vern em voz alta e débil. - b meu Deus, olha lá!
Olhei na direção que Vern apontava e vi um bólido azul e branco subindo pelo lado
esquerdo da estrada de ferro GS&WM, estalando e assoviando para o mundo como um
gato escaldado. Passou veloz por nós ao nos viramos para olhá-lo, mudos, pela primeira
vez conscientes de que coisas daquele tipo podiam existir.
A sete metros adiante de repente fez "pop!" e desapareceu, deixando atrás de si um
cheiro denso de ozônio.
- O que eu estou fazendo aqui, afinal? - murmurou Teddy.
- É foda! - exclamou Chris, seu rosto virado ligeiramente para cima. - Vai ser uma foda
como você nunca imaginou! - Mas eu estava com Teddy. Olhando para o céu, sentia
uma sensação de tonteira e vertigem. Era como se estivesse olhando para um
desfiladeiro de mármore profundo e misterioso. Outro raio caiu, fazendo com que nos
encolhêssemos. Desta vez o cheiro de ozônio foi mais forte, mais presente O estouro do
trovão em seguida veio sem nenhuma interrupção perceptível.
Meus ouvidos ainda estavam zunindo quando Vern começou a gritar triunfante:
- ALI, ELE ESTÁ ALI! BEM ALI! ESTOU VENDO ELE!
Posso ver Vern agora, nesse minuto, se quiser - só preciso me recostar e fechar os olhos.
Ele está lá, em pé ao lado do trilho esquerdo como um explorador na proa do navio,
uma das mãos protegendo os olhos do clarão cinza do raio que acabou de cair, e a outra,
esticada, apontando.
Corremos para seu lado e olhamos. Eu estava pensando comigo mesmo: A imaginação
de Vern deixou-o perturbado, só isso. As sanguessugas, o calor, essa tempestade agora...
os olhos dele estão vendo miragens, só isso. Mas não era isso, embora por um segundo
eu quisesse que fosse. Naquele segundo percebi que nunca queria ter visto um cadáver,
nem mesmo um pedaço de madeira pisado.
No lugar em que estávamos em pé, as chuvas adiantadas da primavera haviam destruído
parte da margem, deixando um barranco irregular cheio de cascalhos de cerca de 12
metros. As equipes de manutenção da estrada de ferro ou ainda não tinham passado por
lá em seus amarelos carros de conserto a diesel ou tinha acontecido há tão pouco tempo
que ainda não fora notificado. No fundo do barranco havia um pântano com arbustos
que cheirava mal. E apontando para fora de um espinheiro de uvas-domonte uma mão
pálida e branca.
Algum de nós respirou? Eu não.
Outono da Inocência - Stephen King
A brisa agora era um vento - cortante e desagradável, vindo até nós de nenhuma direção
em particular, pulando e rodopiando, batendo em nossas peles suadas e poros abertos.
Quase nem percebi. Acho que parte da minha mente esperava que Teddy gritasse Pára-
quedistas para o lado! e pensei que se ele fizesse isso iria enlouquecer. Teria sido
melhor ver o corpo inteiro, de uma vez, mas não, só havia aquela mão esticada e imóvel,
horrivelmente branca, os dedos inchados como a mão de um garoto afogado. Contou-
nos a verdade sobre tudo. Explicou cada cemitério do mundo. A imagem daquela mão
me ocorria cada vez que eu lia ou ouvia falar de uma atrocidade. Em algum lugar, preso
àquela mão, estava o corpo de Ray Brower.
Raios faiscavam e estouravam. Trovões explodiam após cada raio como se uma corrida
de arrancada tivesse começado sobre nossas cabeças.
- Meer... - disse Chris, não foi bem uma palavra de praguejamento não a versão caipira
de merda dita com uma haste fina de capim no canto da boca quando o carro de boi
quebra - ao contrário, foi uma sílaba longa e desafinada, sem sentido: um suspiro que
por acaso passou pelas cordas vocais.
Vern lambia os lábios compulsivamente, como se tivesse provado uma estranha e nova
guloseima, pãezinhos de lingüiça tibetanos, escargots interestelares, alguma coisa tão
estranha que excitava e revoltava ao mesmo tempo.
Teddy apenas ficou parado olhando. O vento agitava seus cabelos anelados e oleosos,
deixando as orelhas de fora e depois cobrindo-as. Seu rosto era um vazio. Posso dizer a
você que vi algo ali, e talvez tenha visto, uma percepção tardia... mas não naquela hora.
Formigas pretas andavam de um lado para outro na mão.
Um murmúrio cada vez mais forte começou a crescer na mata dos dois lados dos trilhos,
como se a floresta tivesse percebido que estávamos lá e comentasse isso. A chuva
começara.
Grandes pingos caíram em minha cabeça e braços. Atingiram a margem, tornando o
solo escuro por um momento - depois a cor mudou de novo quando o chão seco e
sedento absorveu a umidade.
Aqueles pingos grandes caíram talvez durante cinco segundos e passaram. Olhei para
Chris e ele piscou o olho ao me olhar de volta.
Então a tempestade chegou de vez, como se um chuveiro tivesse sido ligado no céu. O
murmúrio transformou-se num alto falatório. Era como se estivéssemos sendo
repreendidos por nossa descoberta, e era assustador. Ninguém lhe fala sobre a falácia
patética até que se entra na faculdade... e mesmo naquela época notei que só os
completamente imbecis acreditavam que era falácia.
Chris pulou sobre o lado do barranco, seus cabelos já ensopados e grudados na testa.
Segui-o. Vern e Teddy vieram em seguida, mas Chris e eu chegamos primeiro ao corpo
de Ray Brower. Seu rosto estava virado para baixo. Chris olhou em meus olhos, seu
Outono da Inocência - Stephen King
rosto sério e duro - um rosto de adulto. Balancei a cabeça ligeiramente, como se ele
tivesse falado alguma coisa.
Achou que estava lá embaixo e relativamente intacto e não esmagado no meio dos
trilhos porque tentava sair do caminho quando o trem o pegou, jogando-o de pernas para
o ar. Caiu com a cabeça virada para os trilhos, os braços esticados sobre a cabeça como
um mergulhador prestes a pular. Caíra nesse pedaço de terra lamacento que estava
virando um pequeno pântano. Seus cabelos eram bem ruivos. A umidade do ar os
enrolara um pouco nas pontas. Havia sangue neles, mas não muito, não uma quantidade
brutal. As formigas eram mais brutais. Ele vestia uma camiseta toda verde-escura e
calças jeans. Seus pés estavam descalços, e a alguns metros atrás dele, preso nos
arbustos altos de uva-do-monte, vi um par de tênis de cano curto sujo. Por um momento
fiquei intrigado - por que ele estava aqui e os tênis lá? Depois percebi, e foi como um
soco na boca do estômago. Minha mulher, meus filhos, meus amigos - todos eles acham
que ter uma imaginação como a minha deve ser ótimo; além de ganhar bem, posso fazer
um cineminha interior quando vem a monotonia. Praticamente estão certos. Mas de vez
em quando a situação vira e morde você com esses grandes dentes, dentes pontudos
como os de canibais. Você vê coisas que não veria, coisas que o fazem ficar acordado
até clarear ó dia. Vi uma dessas coisas nesse momento, com absoluta clareza e exatidão.
Tinha sido arrancado dos tênis. O trem o arrancara dos tênis como arrancara a vida de
seu corpo.
Aquilo finalmente me fez cair na realidade. O menino estava morto. O menino não
estava doente, o menino não estava dormindo. O menino não ia mais levantar de manhã
nem levar bronca por ter comido maçãs demais ou por ter pego uma planta venenosa ou
usado caneta que apaga na prova de matemática. O menino estava morto, mortinho. O
menino não ia mais sair com os amigos para passear na primavera, mochila nas costas,
catar coisas que a neve deixava descobertas quando derretia. O menino não ia acordar às
duas da manhã de primeiro de novembro desse ano, correr para o banheiro e vomitar o
doce barato do Dia das Bruxas. O menino não ia puxar a trança de uma menina na sala
de aula. O menino não ia dar nem receber um soco no nariz que fizesse sangrar. O
menino era não pode, não, não vai, nunca, não deve, não deveria, não poderia. Era o
lado negativo da pilha. O fusível queimado. A cesta de lixo da mesa da professora, que
sempre cheira a lápis apontado e cascas de laranja do lanche. A casa mal-assombrada no
campo de janelas quebradas, aviso de NÃO ULTRAPASSE nos campos, o sótão cheio
de morcegos, o porão cheio de ratos. O menino estava morto, senhores, senhoras, jovens
e senhoritas. Eu podia ficar o dia inteiro sem conseguir precisar a distância entre seus
pés descalços no chão e os tênis sujos pendurados no arbusto. Eram mais de metros
infinitos, zilhões de anos-luz. O menino estava desligado dos tênis sem nenhuma
esperança de reconciliação. Estava morto.
Viramos ele de rosto para cima sob a chuva incessante, os raios, os estouros contínuos
de trovões.
Havia formigas e insetos por todo o seu corpo e pescoço. Entravam e saíam rapidamente
pela gola redonda de sua camiseta. Seus olhos estavam abertos, mas terrivelmente fora
de sincronia um estava revirado e só se via um mínimo arco da íris; o outro estava para
cima, olhando a chuva. Tinha uma mancha de sangue ressecado abaixo da boca e no
queixo - do nariz, imaginei - e o lado direito de seu rosto estava arranhado e roxo.
Outono da Inocência - Stephen King
Mesmo assim, pensei, não tinha uma aparência muito ruim. Uma vez eu dei de cara
numa porta que meu irmão Dennis estava abrindo e fiquei com hematomas piores que
os do menino, fora o nariz sangrando, e ainda pude comer de tudo duas vezes no jantar
depois disso.
Teddy e Vern ficaram atrás de nós, e se aquele olho virado para cirna tivesse alguma
capacidade de visão, acho que teríamos olhado para Ray Brower como se estivéssemos
segurando a alça de um caixão num filme de terror.
Um besouro saiu de sua boca, passou pela bochecha imberbe, pisou num pedacinho de
folha e foi embora.
- Viram? - perguntou Teddy, com uma voz alta, estranha e desmaiada. - Aposto que ele
está todo cheio de insetos! Aposto que a cabeça dele...
- Cala a boca, Teddy - disse Chris, e Teddy caiou, parecendo aliviado.
Um raio azul desenhou-se no céu, fazendo o único olho do menino iluminar-se. Quase
se podia acreditar que ele estava feliz por ter sido encontrado, e encontrado por meninos
de sua idade. Seu torso estava inchado e havia um ligeiro odor gasoso ao seu redor,
corno o cheiro de peidos abafados.
Virei-me, certo de que ia ficar enjoado, mas meu estômago estava seco, duro, parado.
De repente enfiei dois dedos na garganta, tentando vomitar, como se pudesse vomitar e
me aliviar. Mas meu estômago só mexeu um pouco e parou novamente.
O murmúrio da chuva e os trovões haviam abafado completamente o barulho dos carros
que se aproximavam pela Back Harlow Road, que ficava a poucos metros desse terreno
pantanoso. Eles também abafavam o barulho da vegetação amassada pelos carros onde
estes estacionaram.
E a primeira voz que ouvimos foi a de Ace Merrill, sobressaindo ao tumulto da chuva,
dizendo:
- Porra, o que vocês sabem sobre isso?
26
Demos um pulo como se tivéssemos levado um susto pelas costas e Vern deu um grito.
Depois admitiu que por um instante pensou que a voz vinha do menino morto.
No final do caminho pantanoso, onde a floresta recomeçava, cobrindo o fim da estrada,
Ace Merrill e Eyeball Chambers estavam parados, um pouco escondidos por uma
cortina cinza de chuva. Ambos usavam uma jaqueta de náilon vermelho da escola,
aquelas que os alunos podem comprar, as mesmas que eles dão de graça para os
esportistas das universidades. Seus cabelos curtos estavam penteados para trás, bem
Outono da Inocência - Stephen King
rente à cabeça, e uma mistura de água de chuva e gomalina descia por seus rostos, como
lágrimas artificiais.
- Filho da mãe! - disse Eyeball. - É o meu irmão menor!
Chris olhava fixamente para Eyeball boquiaberto. Sua camisa molhada, flácida e escura,
ainda estava amarrada em volta de sua magra cintura. Sua mochila, manchada de verde
mais escuro por causa da chuva, estava dependurada em seus ombros nus.
- Vai embora, Rich - disse ele, com a voz trêmula. - Nós o achamos. Nós temos o
direito.
- Foda-se seu direito. Nós vamos notificar às autoridades.
- Não vão, não - disse eu. De repente fiquei furioso com eles, aparecendo assim na
última hora. Se tivéssemos pensado um pouco, teríamos imaginado que algo desse tipo
aconteceria... mas no entanto uma coisa era certa: os meninos mais velhos, maiores, não
iam levar a melhor - pegar o que queriam como que por direito divino, como se a fácil
solução deles fosse a certa, a única. Tinham vindo de carro - acho que foi isso que me
deixou com mais raiva. Tinham vindo de carro.
- Somos quatro, Eyeball. Tenta.
- Ah, vamos tentar, não se preocupe - disse Eyeball, e as árvores balançaram atrás dele e
de Ace. Charlie Hogan e Billy, irmão de Vern, saíram do meio delas, xingando e
enxugando os olhos. Tive a impressão que tinha levado um golpe de boxe na barriga.
Foi mais forte quando Jack Mudgett, Fuzzy Bracowicz e Vince Desjardins saíram de
trás de Charlie e Billy.
- Aqui estamos nós - disse Ace, rindo. - Por isso...
- VERN ! - gritou Billy Tessio, com aquela voz terrivelmente acusadora. Ele fechou as
mãos. - Seu filho da mãe! Você estava embaixo da varanda! Seu bisbilhoteiro!
Vern recuou.
Charlie Hogan acrescentou positivamente lírico:
- Seu bisbilhoteiro de uma figa, chupador de boceta que fode com o dedo, eu devia te
arrancar o couro!
- É mesmo? Então tenta! - esbravejou Teddy de repente. Seus olhos estavam loucamente
acesos atrás das lentes molhadas. Vem, vem pegar ele! Vem, valentão!
Billy e Charlie não precisaram de uma segunda chamada. Começaram a andar e Vern
recuou novamente - sem dúvida vendo dois monstros se aproximando. Recuou... mas
estava confiante. Estava com seus amigos, e nós já passáramos por muita coisa, e não
tínhamos chegado ali em dois carros.
Outono da Inocência - Stephen King
Mas Ace deteve Billy e Charlie simplesmente encostando a mão em seus ombros.
- Agora ouçam bem, meninos - disse Ace. Falava pacientemente como se não
estivéssemos naquela chuvarada. - Nós somos mais que vocês. Somos maiores. Vamos
dar só uma chance para vocês caírem fora. Não quero nem saber para onde.
Simplesmente desapareçam.
O irmão de Chris deu uma risadinha e Fuzzy bateu nas costas de Ace apreciando sua
sabedoria. O rei dos disc-jóqueis.
- Porque nós vamos levá-lo. - Ace sorriu gentil, e você podia imaginá-lo dando o
mesmo sorriso antes de quebrar um taco de bilhar de algum punk mal-educado que
tivesse cometido o terrível erro de esbarrar na mesa enquanto Ace preparava uma
tacada. - Se vocês forem embora, nós vamos levar ele. Se ficarem, vamos arrebentar
vocês e levar ele do mesmo jeito. Além do mais - acrescentou, tentando fazer justiça
daquela sacanagem, - Charlie e Billy o encontraram, por isso o direito é deles.
- Não encontraram! - retrucou Teddy, gritando. - Vern contou para a gente! São uns
fodidos mentirosos! - Fez uma careta horrível imitando Charlie Hogan. - Era melhor não
ter roubado aquele carro! Era melhor não ter ido na Back Harlow Road dar uma
trepada! Ai, Billy, o que vamos fazer? Ai, Billy, acho que acabei de transformar minha
cueca numa fábrica de geléia! Ai, Billy...
- Ah, é? - disse Chris, partindo novamente para cima dele. Seu rosto estava contraído,
com ódio e emburrado de vergonha. Garoto, não sei seu nome, mas se prepara porque
da próxima vez que for tirar meleca vai tirar lá embaixo, do outro lado.
Olhei atordoado para Ray Brower no chão. Ele olhava calmamente para cima com o
único olho, abaixo de nós mas acima de tudo. Os trovões ainda continuavam
incessantes, mas a chuva começara a diminuir.
- O que você acha, Gordie? - perguntou Ace. Segurava Charlie levemente pelo braço
como um bom treinador seguraria um cachorro bravo. - Você deve ter pelo menos um
pouco do bom senso do seu irmão. Diga a esses meninos para irem embora. Vou deixar
Charlie bater um pouco no "quatro-olho" e depois cada um vai tratar das suas coisas. O
que você diz?
Ele fez mal em mencionar Denny. Eu queria argumentar com ele, dizer o que Ace sabia
muito bem que nós tínhamos todo o direito, já que Vern tinha ouvido Charlie e Billy
dispensarem esse direito. Queria contar a ele que Vern e eu quase tínhamos sido
atropelados por um trem na ponte sobre o Rio Castle. Sobre Milo Pressman e seu
inofensivo - senão estúpido - cachorro, Chopper, o cão maravilha. Sobre as
sanguessugas também. Acho que tinha vontade de dizer a ele: "Espera aí, Ace, tem que
haver justiça". Mas ele teve que meter Denny no meio, e o que eu ouvi sair de minha
boca, ao invés de uma sensata argumentação, foi minha própria pena de morte:
- Vem me chupar, seu marginalzinho de merda.
Outono da Inocência - Stephen King
A boca de Ace formou um perfeito O de surpresa - a expressão foi tão inesperada que
em outras circunstâncias teria se formado o maior tumulto. Todos - de ambos os lados
do pântano - me olhavam fixamente, boquiabertos.
Então Teddy gritou exultante:
- Essa foi demais, Gordie! Demais mesmo!
Fiquei mudo, sem conseguir acreditar. Foi como se um extra maluco tivesse aparecido
no palco no momento crítico e declamado falas que não estavam nem na peça. Mandar
um cara chupar era o pior xingamento, sem mencionar a mãe dele. De rabo de olho vi
que Chris tirava a mochila das costas e remexia lá dentro freneticamente, mas não
entendi - não naquela hora.
- Muito bem - disse Ace, devagar. - Vamos em cima deles. Não machuquem ninguém, a
não ser o Lachance. Vou quebrar os dois braços de merda dele.
Fiquei gelado. Não fiz pipi nas calças como acontecera na ponte, mas acho que foi
porque não tinha nada para botar para fora. Ele ia fazer aquilo mesmo, entende? Nos
anos que se passaram desde aquela época mudei de opinião sobre muitas coisas, mas
não sobre aquilo. Quando Ace disse que ia quebrar meus dois braços era porque ia fazer
isso mesmo.
Começaram a andar em nossa direção pela chuva fresca. Jackie Mudgett sacou um
canivete do bolso e puxou a lâmina. Quase um palmo de metal pulou, cinza-chumbo sob
a penumbra do final da tarde. Vern e Teddy de repente se colocaram cada um a meu
lado em posição de briga. Teddy fez aquilo com disposição, Vern com uma careta
desesperada, contorcida.
Os garotos grandes avançavam em fila, pisoteando a lama do pântano, agora uma poça
enorme e cheia de lama por causa da chuva. O corpo de Ray Brower estendido a nossos
pés parecia um barril cheio d'água. Preparei-me para brigar... e foi quando Chris
disparou a pistola que pegara na cômoda do pai.
KA-BLAM!
Meu Deus, que barulho espetacular! Charlie Hogan deu um pulo. Ace Merrill, que me
olhava fixamente, virou-se e olhou para Chris. Sua boca formou aquele O novamente.
Eyeball ficou completamente estupefato.
- Ei, Chris, isso é do papai - disse ele. - Você vai ver a surra que vai levar...
- Isso não é nada em comparação com o que você vai levar disse Chris. Seu rosto estava
terrivelmente pálido, e toda sua energia parecia ter sido sugada por cima, para os olhos.
Estavam quase pulando.
- Gordie estava certo, vocês não passam de um bando de babacas. Charlie e Billy não
quiseram os direitos de merda, e todos vocês sabiam disso. Não teríamos vindo nos
ferrar aqui se eles tivessem dito que viriam. Eles simplesmente foram para um lugar e
Outono da Inocência - Stephen King
contaram a história e deixaram Ace Merrill bolar o plano. - Sua voz elevou-se, e ele
começou a gritar: - Mas vocês não vão levar ele, estão me ouvindo?
- Agora escute aqui - disse Ace. - É melhor abaixar isso antes que você arranque seu
próprio pé. Você não consegue atirar nem num pedaço de madeira. - Ele começou a
avançar novamente, com aquele sorriso gentil no rosto. - Você não passa de um fedelho
nanico mijão e vou te fazer engolir essa pistola.
- Ace, se você não ficar parado vou atirar em você. Juro por Deus.
- Você vai em cana - disse Ace, sem hesitar. Ainda ria. Os outros o olhavam apavorados
e fascinados... do mesmo modo que Teddy, Vern e eu olhávamos para Chris. Ace
Merrill era o cara mais invocado de toda a região e não achei que Chris pudesse
enfrentá-lo. E a que levava isso? Ace não achava que um pirralho de doze anos fosse
realmente atirar nele. Acho que estava errado; achei que Chris fosse atirar em Ace antes
de deixá-lo tomar a pistola de seu pai de suas mãos. Naqueles poucos segundos achei
que teríamos um péssimo problema, o pior que já vira. Problema de assassinato, talvez.
E tudo por causa de quem tinha direitos sobre um garoto morto.
Chris disse tranqüilamente, com muito pesar:
- Onde você quer, Ace? Perna ou braço? Eu não escolho Você escolhe para mim.
E Ace parou.
27
Seu rosto murchou, e vi um medo repentino nele. Acho que foi o tom que Chris usou
mais que suas palavras propriamente; verdadeiro desapontamento pela situação que ia
de mal a pior. Se era um blefe, realmente foi o melhor que já vi. Os grandes estavam
completamente convencidos; tinham uma expressão perplexa, como se alguém tivesse
colocado fogo numa bombinha de pavio curto.
Ace lentamente recobrou o autocontrole. Os músculos de seu rosto contraíram-se
novamente, os lábios apertados, olhou para Chris como você olharia para um homem
que acabou de lhe fazer uma séria proposta sobre um negócio - unir-se à sua firma,
conceder-lhe uma linha de crédito, ou esculhambar com você. Foi uma expressão de
curiosidade e espera, do tipo que faz você pensar que o medo passou - ou está bem
guardado. Ace reconsiderara a fatalidade de não ter levado um tiro e convencera-se de
que a situação não lhe era tão favorável como pensara. Mesmo assim ainda oferecia
perigo - talvez mais do que antes. Aquela fora a demonstração mais crua de
malabarismo político que já vira. Nenhum dos dois estava blefando, ambos estavam
envolvidos num negócio.
- Está bem - disse Ace, mansamente, dirigindo-se a Chris. Mas eu sei como você vai
sair dessa, filho da puta.
Outono da Inocência - Stephen King
- Não sabe, não - disse Chris.
- Seu babaca! - gritou Eyeball. - Você vai se dar mal por isso
- Duvido - disse Chris.
Com um grunhido de ódio, Eyeball avançou e Chris disparou uma bala na água a três
metros dele. A água espirrou. Eyeball pulou para trás, xingando.
- É, e agora? - perguntou Ace.
- Agora vocês entrem no carro e se mandem para Castle Rock. Depois não quero nem
saber. Mas não vão levar ele. - Tocou ligeiramente em Ray Brower com a ponta do tênis
ensopado. - Entenderam?
- Mas vamos te pegar - disse Ace. Estava começando a rir de novo. - Sabia?
- Pode ser que sim, pode ser que não.
- E vamos te pegar de jeito - disse Ace, rindo. - E te machucar. Não acredito que não
saiba disso. Vamos mandar todos vocês para o hospital cheios de fraturas. Mesmo.
- Ah, por que você não vai para casa comer a sua mãe? Ouvi dizer que ela adora o jeito
que você faz.
O sorriso de Ace congelou.
- Vou te matar por causa disso. Ninguém insulta a minha mãe.
- Ouvi dizer que a sua mãe trepa por grana - informou Chris, e quando Ace começou a
ficar pálido, com a pele cadavericamente branca como a de Chris, acrescentou: - Pra
falar a verdade, ouvi dizer que ela dá chupadas em troca de fichas para a vitrola
automática. Ouvi dizer...
A tempestade voltou violentamente, de uma vez. Só que dessa vez era granizo. Ao invés
de murmúrios ou falatórios, a mata parecia viva com tambores na selva dos filmes de
segunda categoria - o barulho era de enormes pedras de gelo batendo nos troncos das
árvores. Pedras pontiagudas começaram a atingir meus ombros - era como se alguma
força malévola e consciente as estivesse jogando. Pior, começaram a atingir o rosto de
Ray Brower com um barulho horrível que nos fez lembrar dele de novo, de sua terrível
e interminável paciência.
Vern sucumbiu primeiro, com um grito de lamento. Pulou para a margem dos trilhos em
passadas largas e desajeitadas. Teddy agüentou mais um minuto e saiu correndo atrás de
Vern com as mãos na cabeça. Do lado deles, Vince Desjardins meteu-se novamente
embaixo de uns arbustos e Fuzzy Bracowicz juntou-se a ele. Mas os outros ficaram
parados, e Ace começou a rir de novo.
Outono da Inocência - Stephen King
- Fica aqui comigo, Gordie - disse Chris, em voz baixa e trêmula. - Fica aqui, cara.
- Estou aqui.
- Vai embora agora - disse Chris a Ace, e conseguiu, por um milagre, manter a voz
firme. Seu tom era de quem dava instruções a um garoto idiota.
- Vamos te pegar - disse Ace. - Não vamos esquecer isso, se está pensando. É uma
grande ocasião, meu chapa.
- Está bem assim. Você vai embora e faz o ganho outro dia.
- Vamos te preparar uma armadilha, Chambers. Vamos...
- Vaí embora! - gritou Chris, e levantou a arma. Ace recuou.
Olhou para Chris mais um momento, balançou a cabeça e se virou.
- Vamos - disse aos outros. Olhou para trás por cima do ombro para Chris mais uma
vez. - A gente se esbarra por aí.
Voltaram para o abrigo de árvores entre o pântano e a estrada. Chris e eu ficamos
completamente parados apesar dos granizos que nos chicoteavam, deixavam nossa pele
vermelha e se amontoavam ao nosso redor como neve. Ficamos parados ouvindo, e
acima do louco barulho de calipso dos granizos batendo nos troncos das árvores
ouvimos dois carros ligando o motor.
- Fica aqui - disse Chris, e foi andando pelo caminho pantanoso.
- Chris! - gritei, em pânico.
- Tenho que ir. Fica aqui.
Parecia que já tinha ido há muito tempo. Convenci-me de que ou Ace ou Eyeball tinham
ficado escondidos e o tinham agarrado. Fiquei sozinho só com a companhia de Ray
Brower e esperei alguém - qualquer um - voltar. Depois de um tempo, Chris voltou.
- Conseguimos - disse ele. - Foram embora.
- Tem certeza?
- Tenho. Os dois carros. - Levantou os braços com a arma nas mãos e sacudiu-os num
gesto de campeão. Depois baixou-os e riu para mim. Acho que foi o sorriso assustado
mais triste que já vi. - "Vem me chupar o pau grosso" - quem te disse que você tem o
pau grosso, Lachance?
- O mais grosso dos quatro cantos do mundo - disse eu. Estava tremendo todo.
Outono da Inocência - Stephen King
Olhamos calorosamente um vara o outro por um segundo e depois, talvez constrangidos
com o que víamos, baixamos a cabeça juntos. Um terrível calafrio de medo me
percorreu e pelo barulho que os pés de Chris fizeram percebi que ele também tinha
visto. Os olhos de Ray Brower estavam arregalados e brancos, petrificados e sem as
pupilas, como os olhos de estátuas gregas. Logo percebemos o que acontecera, mas não
nos amenizou o susto. As cavidades de seus olhos estavam cheias de granizo branco.
Começavam a derreter e a água escorria por suas faces como se estivesse chorando por
sua própria condição grotesca - um prêmio surrado e miserável disputado por dois
babacas provincianos. As roupas dele também estavam brancas de granizo. Parecia
vestido com a própria mortalha.
- Pó, Gordie, ei - disse Chris, tremendo. - Que coisa repugnante para ele.
- Acho que ele não sabe.
- Talvez aquilo que ouvimos fosse o espírito dele. Talvez ele soubesse que isso ia
acontecer. Que merda de confusão. Estou sendo sincero.
Uns galhos estalaram atrás de nós. Virei-me, certo que eles iam nos atacar, mas Chris
fora contemplar o corpo, depois de lançar-lhe um olhar rápido e quase casual. Eram
Vern e Teddy, os jeans ensopados e pretos colados às pernas, rindo como dois cachorros
que acabaram de chupar um osso.
- O que vamos fazer, cara? - perguntou Chris, e senti um arrepio me percorrer. Talvez
estivesse falando comigo, talvez estivesse... mas continuava olhando para o corpo.
- Vamos levar ele, não vamos? - perguntou Teddy, desorientado. - Vamos ser heróis,
não é? - Olhou de Chris para mim e de novo para Chris.
Chris levantou os olhos como que acordando subitamente de um sonho. Seus lábios
curvaram-se. Deu passadas largas até Teddy, colocou as duas mãos em seu peito e
empurrou-o agressivamente para trás. Teddy perdeu o equilíbrio, rodou os braços
procurando estabilidade e caiu sentado no chão encharcado fazendo a água espirrar.
Olhou espantado para Chris, com os olhos arregalados piscando, como um rato de
laboratório. Vern olhava desconfiado para Chris, com medo de uma loucura. Talvez não
estivesse tão errado assim.
- Você fica de bico calado - disse Chris a Teddy. - Vai para o inferno com esse negócio
de pára-quedistas, abrir caminho para o lado. Seu frouxo nojento.
- Foi o granizo! - gritou Teddy chorando, irado e envergonhado. - Não foram eles,
Chris! Tenho medo de tempestade! Bosta! O que é que eu posso fazer? - Começou a
chorar novamente sentado na água.
- E você? - perguntou Chris, virando-se para Vern. - Também tem medo de tempestade?
Vern balançou a cabeça inexpressivamente, ainda assustado com a raiva de Chris.
- Pó, cara, achei que todos fossem correr.
Outono da Inocência - Stephen King
- Então você deve ser vidente, porque você correu primeiro.
Vern engoliu em seco e não disse nada.
Chris encarou-o, os olhos sombrios e enfurecidos. Então virou-se para mim.
- Vamos fazer uma maca para ele, Gordie.
- Se você acha...
- Claro! Como escoteiros. - Sua voz começou a elevar-se atingindo um tom estranho e
esganiçado. - Como merda de escoteiros. Uma maca, com varas e panos. Como no
manual. Certo, Gordie?
- É. Se você quiser. Mas se aqueles caras...
- Fodam-se aqueles caras! - gritou. - Vocês não passam de um bando de babacas! Vão à
merda, idiotas!
- Chris, eles podiam chamar os policiais.
- Ele é nosso e nós vamos levá-lo!
- Aqueles caras podiam falar qualquer coisa para nos humilhar - disse eu. Minhas
palavras soaram fracas, estúpidas, doentes. - Dizer qualquer mentira. Sabe como certas
pessoas trazem problemas para outras. Contando mentiras, cara. Como o negócio do
dinheiro do lan...
- ESTOU POUCO LIGANDO! - gritou e veio para cima de mim com os punhos
cerrados. Mas um de seus pés tocou nas costelas de Ray Brower com um som surdo,
fazendo o corpo rolar. Ele tropeçou e caiu estatelado, e eu esperei que levantasse e
talvez me desse um soco na boca, mas ao invés disso, ficou deitado ali com a cabeça
virada para os trilhos e os braços esticados sobre a cabeça como um mergulhador
prestes a pular, exatamente na mesma posição que Ray Brower estava quando o
encontramos. Olhei confuso para os pés de Chris para me certificar que ele ainda estava
de tênis. Então começou a chorar e a soluçar, seu corpo tremendo na água enlameada
fazendo-a respingar para os lados, dando socos no chão com as mãos fechadas e virando
a cabeça de um lado para o outro. Teddy e Vern olharam para ele nervosos, pois
ninguém jamais vira Chris Chambers chorar. Depois de alguns instantes, andei até a
margem, subi e sentei num dos trilhos. Vern e Teddy me seguiram. Ficamos lá sentados,
mudos, parecendo aqueles macacos das virtudes que se compra em lojas de souvenir
barateiras e desarrumadas que sempre parecem à beira da falência.
Outono da Inocência - Stephen King
28
Vinte minutos se passaram até que Chris subiu a margem veio sentar-se ao nosso lado.
As nuvens haviam começado a dispersar-se. Raios de sol desciam por entre elas. Os
arbustos pareciam ter ficado três vezes mais escuros nos últimos quarenta e cinco
minutos. Estava todo coberto de lama de um lado. Seus cabelos, também enlameados,
estavam arrepiados para cima. O único lugar limpo era ao redor dos olhos.
- Você tem razão, Gordie - disse ele. - Ninguém tem direitos. Eles estão por toda parte,
né?
Assenti. Cinco minutos se passaram. Ninguém falava nada. E por acaso tive uma idéia -
caso eles realmente chamassem a polícia. Desci a margem e fui até o lugar em que Chris
estivera de pé. Ajoelhei-me e comecei a cavucar cuidadosamente a lama e a vegetação
com os dedos.
- O que você está fazendo? - perguntou Teddy, juntando-se a mim.
- Está à esquerda, eu acho - disse Chris, e apontou.
Olhei na direção e depois de alguns instantes encontrei as duas cápsulas do cartucho.
Brilhavam sob a fresca luz do sol. Entreguei-as a Chris. Balançou a cabeça e enfiou-as
num bolso da calça jeans.
- Agora vamos - disse Chris.
- Ei, espera aí - Teddy gritou, realmente agoniado. - Eu quero levar ele.
- Olha aqui, idiota - disse Chris. - Se levarmos ele podemos todos parar num
reformatório. É o que Gordie falou. Aqueles caras podem inventar a história que
quiserem. E se disserem que nós o matamos, hem? O que você acha?
- Estou pouco ligando - disse Teddy, mal-humorado. Depois nos olhou com absurda
esperança. - Além do mais, só vamos pegar uns meses. Como castigo. Quer dizer, só
temos doze anos, não vão nos mandar para Shawshank.
Chris disse tranqüilo:
- Você não pode entrar para o exército se for fichado, Teddy.
Eu tinha certeza de que aquilo não passava de uma mentira deslavada - mas de qualquer
modo aquela não parecia a hora apropriada para dizer aquilo. Teddy ficou só olhando
para Chris por um longo instante, sua boca tremia. Finalmente conseguiu desembuchar:
- É verdade mesmo?
- Pergunte a Gordie.
Outono da Inocência - Stephen King
Olhou para mim esperançoso.
- Ele tem razão - disse eu, sentindo-me um merda. - Ele tem razão, Teddy. A primeira
coisa que eles fazem quando você se alista é checar seus antecedentes criminais.
- Meu Santo Deus!
- Vamos nos mandar para aquela ponte - disse Chris. - Depois vamos sair do caminho
dos trilhos e chegar em Castle Rock pelo outro lado. Se nos perguntarem onde
estávamos, vamos dizer que fomos acamparem Brickyard Hill e nos perdemos.
- Milo Pressman sabe muito bem - disse eu. - Aquele imbecil do Florida Market
também.
- Então vamos dizer que Milo nos assustou e resolvemos ir até Brickyard.
Concordei. Podia dar certo. Se Vern e Teddy se lembrassem de sustentar.
- E se nossos pais se encontrarem? - perguntou Vern.
- Você se preocupa com isso se quiser - disse Chris. - Meu pai ainda vai estar de porre.
- Então vamos - disse Vern, olhando para as árvores entre nós e a Back Harlow Road.
Parecia estar esperando guardas com suas matilhas de pastores despontarem no meio
das árvores a qualquer momento. - Vamos logo enquanto ainda está bom.
Já estávamos de pé, prontos para partir. Os pássaros cantavam como loucos, felizes com
a chuva, o sol, o brilho e os vermes e com tudo no mundo, pensei. Viramo-nos todos ao
mesmo tempo, como que puxados por cordas, e olhamos de novo para Ray Brower.
Continuava lá deitado, sozinho mais uma vez. Os braços dele tinham rolado quando o
viramos, e agora parecia uma águia de asas abertas, como que reverenciando o sol. Na
hora pareceu natural, tudo bem, mais uma cena de morte de um morto para uma platéia.
Então vi os hematomas, o sangue duro no queixo e embaixo do nariz e o corpo
começando a inchar. As moscas varejeiras tinham saído com o sol e começavam a
cercar o corpo, zumbindo preguiçosas. Lembrei daquele cheiro gasoso, podre mas seco,
feito puns abafados num lugar fechado. Era um garoto da nossa idade, estava morto, e
rejeitei a idéia de que qualquer coisa ali pudesse ser natural; afastei-a com horror.
- Muito bem - disse Chris, tentando ser duro, mas a voz saiu da garganta como pêlos
secos de uma escova velha de roupa. - Já está mais do que na hora.
Começávamos quase a correr de volta para onde tínhamos vindo. Não falávamos. Não
sei os outros, mas eu estava entretido demais no meu pensamento para falar. Coisas me
incomodavam no corpo de Ray Brower - incomodaram na época e incomodam agora.
Um grande hematoma, o couro cabeludo esfolado, o nariz sangrando. Nada mais - pelo
menos nada visível. Tem gente que sai de briga de bar em pior estado e vai direto beber.
Mas o trem deve ter pego ele; por que outro motivo então os tênis estariam fora do pé
Outono da Inocência - Stephen King
daquele jeito? E como o maquinista não tinha visto? Não podia ser que o trem o tivesse
batido e jogado longe, sem o matar? Achei que, pela combinação das circunstâncias,
aquilo podia ter acontecido. O trem teria batido nele de lado com violência quando
tentava sair da frente? Batido e jogado seu corpo, como num salto mortal de costas,
naquele buraco. Deve ter ficado acordado tremendo no escuro durante horas, não só
perdido, mas também desorientado, separado do mundo. Talvez tivesse morrido de
medo. Um pássaro com as asas feridas uma vez morreu nas minhas mãos daquele
mesmo jeito. Seu corpo tremeu e vibrou ligeiramente, ele abriu e fechou o bico e seus
olhos escuros e brilhantes me olharam Então o tremor parou e o bico ficou meio aberto
e os olhos tornaram-se opacos e indiferentes. Podia ter sido assim com Ray Brower.
Podia ter morrido simplesmente porque tinha medo demais para continuar vivendo.
Mas tinha outra coisa, que era a que mais me incomodava, eu acho. Ele tinha saído para
colher uvas-do-monte. Parecia me lembrar de ter ouvido no noticiário que ele carregava
um pote para colocá-las. Quando voltamos fui à biblioteca, procurei nos jornais só para
ter certeza, e estava certo. Saíra para colher uvas-do-monte, e tinha um balde ou um
pote - qualquer coisa assim. Mas não encontramos. Encontramos ele, e os tênis. Deve
ter jogado fora em algum lugar entre Chamberlain e o caminho pantanoso onde morreu.
Talvez no início tenha começado a segurá-lo com mais força ainda, como se ele o
ligasse à sua casa, à segurança. Mas quando o medo foi aumentando, e com a sensação
de estar completamente sozinho sem chances de ser salvo por ninguém, a não ser por si
mesmo, quando o pânico realmente se instalou, deve tê-lo jogado na floresta de um dos
lados dos trilhos, sem nem perceber direito.
Pensei em voltar e procurar - acha isso mórbido? Pensei em ir de carro até o final da
Back Harlow Road na minha camioneta Ford quase nova e saltar, numa manhã
ensolarada de verão, sozinho, minha mulher e meus filhos longe em algum lugar onde,
se você aperta o interruptor, as luzes iluminam a escuridão. Pensei como seria. Tirar
minha mochila lá de trás e deixá-la sobre o pára-choque traseiro enquanto tiro
cuidadosamente a camisa e amarro-a na cintura. Passar repelente no peito e nos ombros
e depois me enfiar na mata até o lugar pantanoso, o lugar onde o encontramos. Será que
a grama cresceria amarelada ali, formando o desenho de seu corpo? Claro que não, não
haveria sinais, mas mesmo assim você fica refletindo e percebe como é tênue a divisória
entre suas roupas de homem racional - o escritor com sua jaqueta de veludo cotelê com
couro nos cotovelos - e os alegres mitos da infância. Depois subir a margem, já coberta
de mato, e seguir devagar os trilhos enferrujados com os dormentes podres, até
Chamberlain.
Fantasia idiota. Uma excursão para procurar uma vasilha de uvas-do-monte de vinte
anos, que provavelmente foi jogada longe ou amassada por um trator que preparava um
lote de meio acre de terra para uma casa com toda a extensão de terreno, ou tão coberta
de mato que tornou-se invisível. Mas sinto com certeza que ainda está lá, em algum
lugar ao longo da velha e tortuosa estrada de ferro da GS&WM, e às vezes o ímpeto de
ir e olhar é quase frenético. Geralmente acontece de manhã cedo, quando minha mulher
está no chuveiro e as crianças vendo Batman e Scooby-Doo no canal 38 de Boston, e
sinto-me mais como o Gordon Lachance pré-adolescente que já pisou na terra, andando
e falando e algumas vezes se arrastando como um réptil. Aquele garoto era eu, acho. E a
idéia que tenho a seguir, me congelando como um. jato de água fria, é: de que garoto
você está falando?
Outono da Inocência - Stephen King
Bebendo uma xícara de chá, vendo o sol entrar pelas janelas da cozinha, ouvindo o
barulho da televisão numa ponta da casa e o chuveiro noutra, sentindo os olhos ardendo,
sinal de que exagerei um pouco na cerveja na noite anterior, tinha certeza de que podia
encontrá-la. Veria o metal claro cintilando no meio da ferrugem, o sol claro de verão
refletindo-o em meus olhos. Desceria da margem, afastaria a - grama que crescera
enrolada na alça e então... o quê? Ora, simplesmente revivê-la. Eu a reviraria várias
vezes em minhas mãos, admirado com seu contato, maravilhado com a idéia de que a
última pessoa a tocá-la há muito estava em sua cova. Imagine se tivesse um bilhete.
Socorro, estou perdido. Claro que não teria - meninos não saem para colher uvas-do-
monte com lápis e papel - mas só imagine. Acho que o respeito que sentiria seria como
um eclipse. Mesmo assim, acho que é principalmente a idéia de segurar o balde com
minhas duas mãos - um símbolo da minha vida e da morte dele, uma prova de que sei
que garoto era - qual de nós cinco. Segurá-lo. Lendo todos os anos em sua ferrugem e
no esmaecimento de seu brilho. Sentindo-o, tentando entender os sóis que brilharam
sobre ele, as chuvas que caíram em cima dele e as neves que o cobriram. E pensar onde
eu estava quando cada coisa aconteceu com ele naquele lugar solitário, onde eu estava,
o que estava fazendo, quem estava amando, como ia de vida, onde estava. Ia segurá-lo,
lê-lo, senti-lo... e olhar meu próprio rosto onde quer que haja sobrado brilho. Dá pra
entender?
29
Chegamos de volta a Castle Rock pouco depois das cinco horas da manhã de domingo,
na véspera do Dia do Trabalho. Tínhamos andado a noite inteira. Ninguém reclamou,
embora todos estivessem com bolhas nos pés e com uma fome voraz. Minha cabeça
latejava com uma dor lancinante, minhas pernas estavam doloridas e cansadas. Por duas
vezes tivemos que pular da margem dos trilhos por causa dos trens. Um deles ia na
nossa direção, mas veloz demais para que pudéssemos pegá-lo. Estava começando a
clarear quando chegamos novamente, à ponte sobre o Castle. Chris olhou-a, olhou o rio,
olhou para nós.
- Dane-se Vou atravessar. Se um trem me pegar não vou precisar me preocupar com o
babaca do Ace Merrill.
Atravessamos - nos arrastamos, seria a melhor palavra. Nenhum trem apareceu. Quando
chegamos ao despejadouro, pulamos a cerca (nem Milo nem Chopper, não a essa hora, e
não numa manhã de domingo) e fomos direto até o poço. Vern foi o primeiro, depois
cada vez um de nós colocava a cabeça sob o jato gelado, fazendo a água espirrar em
nossos corpos, bebendo até não agüentar mais. Então tivemos que vestira camisa de
novo, pois a manhã parecia gelada. Andamos - mancando - de volta para a cidade e
paramos um pouco na calçada em frente ao terreno baldio. Olhamos para nossa casa na
árvore para não precisarmos olhar uns para os outros.
- Bem - disse Teddy, por fim - a gente se vê no colégio na quarta. Acho que vou dormir
até lá.
Outono da Inocência - Stephen King
- Eu também - disse Vern. - Estou mortinho.
Chris assoviara desafinado por entre os dentes e não falou nada.
- Ei, pessoal - disse Teddy, sem jeito. - Nada de desânimo, está bem?
- Não - disse Chris, e de repente seu rosto sério e cansado iluminou-se com um sorriso
doce. - Conseguimos, não foi? Pegamos os idiotas.
- É - disse Vern. - Você é o máximo. Agora Billy vai me pegar.
- E daí? - disse Chris. - O Richie vai me pegar e o Ace provavelmente vai pegar o
Gordie e alguém vai pegar o Teddy. Mas nós conseguimos.
- É mesmo - disse Vern. Mas ainda parecia infeliz.
Chris me olhou.
- Conseguimos, não foi? - perguntou com suavidade. Valeu a pena, não valeu?
- Claro que sim - disse eu.
- Que droga - disse Teddy, com seu jeito seco de quem está perdendo o interesse. -
Vocês parecem do programa Encontro com a Imprensa. Toquem aqui. Vou para casa
ver se estou na lista dos Dez Mais Procurados da mamãe.
Todos nós rimos, e Teddy nos lançou aquele seu olhar surpreso e apertamos sua mão.
Então ele e Vern foram na direção deles e eu deveria ter ido na minha... mas hesitei.
- Vou com você - ofereceu-se Chris.
- Claro, está bem.
Andamos mais de um quarteirão sem falar. Castle Rock estava impressionantemente
quieta cedo pela manhã, e tive uma sensação quase sagrada de que o cansaço estava
indo embora. Estávamos acordados e o mundo inteiro dormia, e quase esperei virar a
esquina e ver minha corça parada no final da Carbine Street, onde os trilhos da
GS&WM cruzam o terreno de descarga do moinho.
Finalmente Chris falou:
- Eles vão contar - disse ele.
- Pode apostar que sim. Mas não hoje nem amanhã, se está preocupado com isso. Acho
que vão demorar muito a contar. Talvez anos.
Olhou para mim, surpreso.
Outono da Inocência - Stephen King
- Estão com medo, Chris. Principalmente Teddy, com medo de não ser aceito no
Exército. Mas Vern também está. Vão perder o sono, e às vezes vão estar com aquilo na
ponta da língua para contar a alguém, mas não acho que façam isso. Então... sabe o que
vai acontecer? Parece maluquice, mas... acho que quase vão esquecer o que aconteceu.
Ele balançava a cabeça devagar.
- Não pensei assim. Você vê dentro das pessoas, Gordie.
- Quem me dera, cara.
- É, sim.
Andamos outro quarteirão em silêncio.
- Nunca vou sair desta cidade - disse Chris, e suspirou. Quando você voltar da faculdade
nas férias de verão vai poder visitar Vern e Teddy e eu, no Sukey's depois do turno das
sete às três. Se voce quiser. Só que provavelmente você nunca vai querer. - Deu uma
risada esganiçada.
- Pare de imaginar coisas - disse eu, tentando parecer mais frio do que me sentia - estava
pensando na floresta, em Chris dizendo: E ta/vez eu o tenha entregue à Sra. Simons e
dito a ela, e talvez o dinheiro estivesse lá e mesmo assim fui suspenso por três dias,
porque o dinheiro nunca apareceu. E talvez na semana seguinte a Sra. Simons tenha
aparecido no colégio com aquela saia novinha... O olhar. A expressão de seus olhos.
- Nada de imaginar coisas, senhor - disse Chris.
Esfreguei o indicador no polegar.
- Este é o menor violino do mundo tocando "Meu Coração se Desmancha em Mijo
Roxo por Você".
- Ele era nosso - disse Chris, seus olhos escuros à luz da manhã.
Tínhamos chegado à esquina da minha rua e ali paramos. Eram seis e quinze. Na cidade
vimos o caminhão do Sunday Telegram parado em frente à loja do tio de Teddy. Um
homem de jeans e camiseta jogou um pacote de jornais. Caiu de cabeça para baixo na
calçada com as histórias em quadrinhos aparecendo (sempre Dick Tracy e Belinda na
primeira página). Então o caminhão seguiu, o motorista entregando o mundo exterior às
outras cidadezinhas do caminho - Otisfield, Norway-South. Paris, Waterford, Stoneham.
Queria dizer mais uma coisa a Chris e não sabia como.
- Toca aqui, cara - disse ele, parecendo cansado.
- Chris...
- Toca aqui.
Outono da Inocência - Stephen King
Apertei-lhe a mão.
- Te vejo depois.
Ele riu - o mesmo sorriso largo e doce.
- Não se eu te vir primeiro, otário.
Seguiu, ainda rindo, movendo-se com leveza e graça, como se não estivesse com dores
e bolhas como eu, como se não tivesse mordidas inflamadas de mosquitos, carrapatos e
borrachudos como eu. Como se não tivesse uma preocupação na vida, como se estivesse
indo para um lugar incrível, e não para sua casa de três cômodos (seu barraco; seria
mais próximo da verdade) sem encanamento e janelas quebradas cobertas com plástico
e um irmão que provavelmente o esperava na porta. Mesmo se tivesse sabido o que
dizer, provavelmente não teria podido dizer. As palavras destroem as funções de amor,
eu acho - é horrível para um escritor dizer isso, mas acredito que seja verdade. Se você
diz a uma corça que não vai lhe fazer mal, ela vai embora abanando o rabo. A palavra é
o mal. O amor não é o que esses poetas idiotas como McKuen querem que você pense
que é. O amor tem dentes; morde; as feridas nunca cicatrizam. Nenhuma palavra,
nenhuma combinação de palavras pode fechar essas mordidas de amor. É o inverso, isso
é que é engraçado. Se essas feridas secam, as palavras morrem com elas. Mire-se em
mim, fiz minha vida das palavras, e sei que é assim.
30
A porta de trás estava trancada, então peguei a chave sobressalente embaixo do capacho
e entrei. A cozinha estava vazia, silenciosa, suicidantemente limpa. Ouvi o zumbido das
luzes fluorescentes em cima da pia quando apertei o interruptor. Havia literalmente anos
que não ficava frente a frente com minha mãe; nem me lembrava mais da última vez
que isso acontecera.
Tirei a camisa e coloquei na cesta de plástico atrás da máquina de lavar. Peguei um
pedaço de pano limpo embaixo da pia e passei no rosto, pescoço, axilas, barriga. Depois
tirei as calças e cocei os testículos até começarem a doer. Parecia que não podia ficar
bem limpo naquele lugar, embora a marca vermelha deixada pela sanguessuga estivesse
rapidamente desaparecendo. Até hoje tenho uma pequena cicatriz em forma de lua
crescente nesse lugar. Uma vez minha mulher perguntou sobre ela e eu disse uma
mentira, antes mesmo de perceber que queria fazê-lo.
Quando acabei de usar o pano, joguei-o fora. Estava nojento.
Peguei uma dúzia de ovos e fiz seis mexidos. Quando ainda estavam meio moles,
acrescentei um pouco de abacaxi amassado e meio copo de leite. Estava sentando para
comer quando mamãe entrou, os cabelos grisalhos presos para trás num coque. Vestia
um robe rosa desbotado e fumava um Camel.
Outono da Inocência - Stephen King
- Gordon, por onde você andou?
- Acampando - disse eu, começando a comer. - Começamos no jardim de Vern e depois
subimos o morro de Brickyard A mãe de Vern disse que ia telefonar para você. Ela
telefonou?
- Provavelmente falou com seu pai - disse ela, e passou por mim indo até a pia. Parecia
um fantasma cor-de-rosa. As lâmpadas fluorescentes não lhe eram favoráveis ao rosto;
faziam sua pele ficar quase amarela. Suspirou... quase soluçou. - Sinto mais a falta de
Dennis pela manhã - disse ela. - Olho o quarto dele e está sempre vazio, Gordon.
Sempre.
- É, é uma droga - disse eu.
- Sempre dormia com a janela aberta e os cobertores... Gordon? Disse alguma coisa?
- Nada importante, mãe. e os cobertores puxados até o queixo - finalizou. Então ficou
olhando pela janela, de costas para mim. Continuei a comer. Meu corpo todo tremia.
31
A história realmente nunca foi comentada.
Bem, não estou dizendo que o corpo de Ray Brower não tenha sido encontrado; foi.
Mas nem nossa turma nem a deles levou o mérito. No fim, Ace deve ter achado que
uma chamada anônima era a saída mais segura, pois foi assim que a localização do
corpo foi notificada. O que estava dizendo é que nossos pais nunca souberam o que
fizemos no fim de semana do Dia do Trabalho.
O pai de Chris continuava bebendo como Chris dissera. Sua mãe fora a Lewiston
encontrar a irmã, como sempre fazia quando o Sr. Chamberiain estava de porre. Foi e
deixou Eyeball tomando conta dos irmãos menores. Eyeball cumpriu a ordem saindo
com Ace e os disc-jóqueis, deixando Sheldon, de nove anos, Emery, de cinco e
Deborah, de dois, se afogarem ou nadarem sozinhos.
A mãe de Teddy ficou preocupada na segunda noite e telefonou para a mãe de Vern. A
mãe de Vern, que também não ia se dar ao trabalho, disse que ainda estávamos na
barraca de Vern. Sabia porque tinha visto a luz acesa na noite anterior. A mãe de Teddy
disse que realmente esperava que não estivéssemos fumando cigarros, e a mãe de Vern
disse que parecia a luz de uma lanterna, e além de tudo tinha certeza que nenhum dos
amigos de Vern e Billy fumava.
Meu pai me fez algumas vagas perguntas, ficando preocupado com minhas respostas
evasivas, disse que iríamos sair para pescar juntos qualquer hora, e isso foi tudo. Se os
pais tivessem se encontrado na semana seguinte ou na outra, tudo teria se revelado...
mas não se encontraram.
Outono da Inocência - Stephen King
Milo Pressman nunca falou nada também. Minha suposição é que pensou que seria
nossa palavra contra a dele, e que íamos jurar que mandara Chopper me morder.
Assim a história nunca veio a público - mas não termina aqui.
32
Um dia perto do final do ano, quando voltava da escola para casa, um Ford preto 52 me
fechou em cima da calçada em que eu estava andando. Não tinha dúvidas quanto ao
carro. Pneus tipicamente de gângsters, de banda branca, rodas com o centro de metal
removível, enormes pára-choques de cromo e de lucite com uma rosa encravada presa
no volante. No porta-malas traseiro tinha pintados um diabo e um valete de um olho só.
Embaixo, em letras góticas, as palavras CARTA SELVAGEM.
As portas se abriram; Ace Merrill e Fuzzy Bracowicz saíram.
- Marginalzinho barato, não é? - disse Ace, com seu sorriso gentil. - Minha mãe adora o
jeito que eu faço, não é?
- A gente vai te torturar, bonzinho - disse Fuzzy.
Joguei meus livros no chão e saí correndo. Dei tudo de mim, mas eles me pegaram antes
mesmo de chegar no fim do quarteirão. Ace pulou em cima de mim e eu caí de cara no
chão. Bati com o queixo no cimento e não vi somente estrelas; vi constelações inteiras,
nebulosas completas. Já estava chorando quando me levantaram - não tanto pela dor nos
cotovelos e joelhos, esfolados e sangrando, nem mesmo de medo, mas por uma raiva
enorme, impotente. Chris tinha razão. Ele devia ser nosso.
Me virei e me debati e quase escapei. Então Fuzzy enfiou os joelhos nos meus
testículos. A dor foi absurda, inacreditável, sem igual; ampliou a dor de uma tela normal
antiga de televisão para um VistaVision. Comecei a gritar. Gritar parecia ser a melhor
solução.
Ace me atingiu duas vezes no rosto, dois murros violentos e tonteantes. O primeiro fez
meu olho esquerdo fechar; levei quatro dias para ver alguma coisa por ele de novo. O
segundo quebrou o meu nariz com o barulho que cereais torrados fazem dentro da
cabeça quando você mastiga. Então a Sra. Chalmers apareceu na varanda com a bengala
na mão, torta de artrite e um cigarro pendendo do canto da boca. Começou a gritar para
eles:
- Ei, ei meninos! Parem com isso! Polícia! Políííííícia!
- Não deixa eu te ver por aí, babaca - disse Ace, rindo, e me largaram e se afastaram.
Sentei e me curvei com as mãos nos testículos machucados, certo que ia desistir e
morrer. E estava chorando também. Mas quando Fuzzy começou a me rondar, a visão
Outono da Inocência - Stephen King
das pernas justas de sua calça jeans para dentro das botas de motoqueiro trouxe à tona
toda a raiva. Segurei-o e mordi sua batata da perna por cima da calça. Mordi com toda a
força que tinha. Fuzzy começou também a gemer. E começou a pular numa perna só e,
inacreditavelmente, começou a me chamar de lutador covarde. Estava olhando ele pular
quando Ace pisou na minha mão esquerda, quebrando os dois primeiros dedos. Ouvi
quando quebraram. Não fizeram barulho de cereal torrado. Fizeram barulho de rosca
salgada. Então Ace e Fuzzy voltaram para o Ford 52 de Ace, Ace saltitando com as
mãos nos bolsos e Fuzzy mancando e me xingando por cima do ombro. Fiquei caído
curvado na calçada, chorando. Tia Ewie Chalmers saiu de casa e veio andando, batendo
a bengala no chão com raiva. Perguntou se eu precisava de um médico. Sentei e
consegui parar a maior parte do choro. Eu disse que não.
- Diabos - disse berrando - a tia Ewie era surda e falava tudo berrando. - Eu vi onde
aquele cavalo acertou você. Meu filho, suas bolas vão inchar e ficar parecendo duas
jarras.
Levou-me para sua casa, me deu um pano molhado para o nariz - a essa altura já
começava a parecer uma abóbora - e me serviu uma grande xícara de café com gosto de
remédio que foi até calmante. Ficava berrando dizendo que devia chamar o médico e eu
dizia que não. Finalmente desistiu e eu fui para casa. Caminhei lentamente. Minhas
bolas ainda não estavam parecendo duas jarras, mas iam parecer.
Minha mãe e meu pai me olharam e reclamaram na hora para falar a verdade, fiquei até
surpreso por terem percebido alguma coisa. Quem eram os garotos? Será que eu saberia
identificá-los? Essa foi do meu pai, que nunca perdia Cidade Nua e Os Intocáveis. Eu
disse que achava que não saberia identificá-los. Disse que estava cansada. Na verdade,
acho que estava em estado de choque - e mais que calmo com o café da tia Ewie, que
devia ter pelo menos sessenta por cento de conhaque de qualidade superior. Disse que
achava que deviam ser de outra cidade ou "do norte" uma expressão que todos sabiam
querer dizer Lewiston-Aurburn.
Levaram-me ao Dr. Clarkson na camioneta - o Dr. Clarkson, que está vivo até hoje,
naquela época já podia muito bem estar sentado ao lado de Deus. Colocou meu nariz e
meus dedos no lugar e deu a receita de um analgésico para minha mãe. Depois os fez
sair da sala de exame sob algum pretexto e se aproximou de mim, arrastando os pés, a
cabeça para frente como Boris Karloff se aproximando de Igor.
- Quem fez isso, Gordon?
- Não sei, Dr. Clar...
- Você está mentindo.
- Não, senhor.
Suas bochechas amareladas começaram a tomar cor.
Outono da Inocência - Stephen King
- Por que está protegendo os cretinos que fizeram isso? Acha que vão respeitar você?
Vão rir e chamá-lo de idiota. Vão dizer: "Lá vai o idiota que a gente pegou outro dia.
Ha-ha-ha! Hu-hu-hu!
- Não conhecia eles. É verdade.
Vi que suas mãos coçavam para me sacudir, mas claro que não podia fazer aquilo.
Então me mandou para meus pais, balançando a cabeça branca e resmungando sobre os
delinqüentes juvenis. Com certeza contaria tudo ao seu velho amigo Deus, de noite,
entre charutos e copos de xerez.
Não me importava que Ace, Fuzzy e aqueles outros babacas não me respeitassem e me
achassem idiota ou qualquer coisa. Mas tinha que pensar em Chris. Seu irmão, Eyeball,
tinha quebrado seu braço em dois lugares e o deixara com cara de lutador de boxe.
Tiveram que reduzir a fratura do cotovelo com um pino de aço. A cera. McGinn, que
morava mais embaixo na rua, viu Chris andar mancando com os dois ouvidos sangrando
e lendo uma revista em quadrinhos. Levou-o para o Pronto-Socorro e disse ao médico
que ele caíra na escada do porão escuro.
- Certo - disse o médico, tão aborrecido com Chris quanto o Dr. Clarkson comigo, e foi
telefonar para a polícia.
Enquanto fazia isso de sua sala, Chris foi andando pelo hall devagar, segurando a tipóia
temporária para que o braço não mexesse e os ossos quebrados não se esfarelassem, e
usou uma moeda de cinco centavos para telefonar para a Sra. McGinn - depois me
contou que foi a primeira chamada a cobrar que fez e estava morrendo de medo que ela
não aceitasse pagar, mas aceitou.
- Chris, você está bem? - perguntou.
- Estou, obrigado - disse Chris.
- Sinto muito não ter podido ficar com você, Chris, mas tinha tortas no...
- Tudo bem, Sra. McGinn - disse Chris. - A senhora está vendo o Buick na frente da
porta? - O Buick era o carro que a mãe de Chris dirigia. Tinha dez anos, e quando o
motor esquentava tinha cheiro de fritura.
- Está lá - disse ela, cautelosa. Melhor não se envolver muito com os Chambers.
Espelunca de brancos; casebre irlandês.
- A senhor poderia ir lá dizer à mamãe para tirara lâmpada do bocal do sótão?
- Chris, verdade, minhas tortas...
- Diga a ela - disse Chris, implacável, - agora. A não ser que queira que meu irmão vá
preso.
Outono da Inocência - Stephen King
Houve uma longa pausa e então a Sra. McGinn concordou. Não fez perguntas e Chris
não mentiu. Os policiais realmente foram à casa dos Chambers, mas Richie Chambers
não foi preso.
Vern e Teddy também apanharam, mas não tanto quanto Chris e eu. Billy estava
esperando Vern quando ele chegou em casa. Deu um pulo em cima dele, que caiu e
ficou inconsciente e só recobrou os sentidos depois de quatro ou cinco tapas. Vern só
ficou desacordado, mas Billy teve medo que ele morresse e parou. Três deles pegaram
Teddy quando voltava do terreno baldio para casa certa tarde. Deram-lhe um soco e
quebraram seus óculos. Resistiu, mas eles não iam lutar contra ele quando perceberam
que os procurava como um cego.
Encontramo-nos no colégio parecendo os últimos remanescentes de uma força coreana.
Ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido, mas todos viam que tínhamos tido um
sério encontro com os caras mais velhos e que nos comportáramos como homens.
Alguns boatos correram. Todos completamente disparatados.
Quando os cascões caíram e os hematomas sumiram, Vern e Teddy se afastaram.
Haviam descoberto um novo grupo de meninos da mesma idade deles em quem podiam
mandar. Quase todos uns idiotas - babacas mesquinhos do quinto ano - mas Vern e
Teddy levavam eles toda hora na casa da árvore, dando ordens, andando empertigados
como generais nazistas.
Chris e eu começamos a aparecer cada vez menos por lá, e após um tempo o lugar ficou
sendo deles por desistência. Lembro de ter ido lá uma vez na primavera de 1961 e
percebido que o lugar estava com cheiro de feno abafado. Nunca mais me lembro de ter
ido lá. Teddy e Vern aos poucos foram se tornando mais duas caras conhecidas nos
corredores e nos intervalos das três e meia. Dizíamos "oi" a distância. Era tudo. Isso
acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já
reparou? Mas quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d'água puxando
insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas
afundam, é isso. Não é justo, mas acontece Algumas pessoas afundam.
33
Vern Tessio morreu num incêndio num conjunto habitacional em Lewinston em 1966 -
acho que no Brooklyn e no Bronx chamam esse tipo de apartamento de cortiço. O
Corpo de Bombeiros disse que o fogo começou por volta de duas horas da manhã e
quando clareou o dia só restavam cinzas do prédio. Tinha havido uma festa e muitos
ficaram bêbados; Vern estava lá. Alguém dormiu com um cigarro aceso. O próprio Vern
talvez, desligado sonhando com seus centavos. Identificaram ele e mais quatro pela
arcada dentária.
Teddy partiu num horrível desastre de carro. Acho que foi em 1971, talvez no começo
de 1972. Quando eu era adolescente havia um ditado que dizia: "Se você sai sozinho é
um herói. Se leva .alguém é um imbecil". Teddy, que desde que tivera idade para querer
Outono da Inocência - Stephen King
alguma coisa, só queria se alistar, foi recusado pela Aeronáutica. Qualquer um que visse
seus óculos e o seu aparelho de surdez saberia que isso ia acontecer - menos ele. No
primeiro ano do segundo grau foi suspenso três vezes porque chamou o Conselho de
Supervisores de um saco de merda mentiroso. O diretor o via quase todo dia verificando
o quadro de avisos sobre empregos na sua área. Ele disse a Teddy que talvez devesse
pensar em outra carreira, e Teddy ficou furioso.
Repetiu um ano por faltas constantes, atrasos e notas baixas... mas conseguiu se formar.
Tinha um Chevrolet Bel Air antigo e costumava aparecer nos lugares em que Ace,
Fuzzy e o resto apareciam antes dele: no salão de sinuca, no clube, na Sukey's Tavern,
que acabou, e no Mellow Tíger, que ainda existe. As vezes arrumava trabalho no
Departamento de Obras Públicas de Castle Rock, para tapar buracos com asfalto.
O acidente aconteceu em Harlow. O Bel Air de Teddy estava cheio de amigos (dois
deles daquela turma em que ele e Vern mandavam em 196O1 e fumavam maconha e
bebiam. Bateram num hidrante que foi arrancado e o Chevrolet capotou seis vezes. Uma
garota saiu clinicamente viva. Ficou seis meses no C.T.C.N., como dizem as
enfermeiras do Hospital Central do Maine - Centro de Tratamento de Couves e Nabos.
Então algum fantasma consternado desligou o aparelho respiratório. Teddy Duchamp
recebeu o título póstumo de Imbecil do Ano.
Chris começou a freqüentar os cursos de preparação para a faculdade no segundo ano do
ginásio - ele e eu sabíamos muito bem que se esperasse mais tempo seria tarde demais,
nunca pegaria. Todos o censuravam por isso; seus pais, que achavam que estava ficando
metido a besta, seus amigos, a maioria dos quais o achava um fresco, o orientador, que
não acreditava que ele fosse capaz e quase todos os professores, que não gostavam de
seu jeito de surgir de repente na sala de aula com seu topete, sua jaqueta de couro e
botas. Via-se que aquelas botas e a jaqueta cheia de zíperes os ofendia, num ambiente
de aulas tão nobres quanto Álgebra, Latim e Ciências; aqueles trajes eram só para aulas
elementares. Chris sentava-se entre os meninos e meninas bem vestidos e animados das
famílias de classe média de Castle View e Brickyard Hill feito um monstro silencioso
que a qualquer momento podia devorá-los, com um horrível barulho, com seus
mocassins, gotinhas pequenas abotoadas até em cima e tudo.
Por várias vezes quase desistiu naquele ano. Seu pai principalmente o pressionava,
acusando-o de achar que era melhor que ele, acusando-o de querer "ir para a faculdade e
me levar à falência". Uma vez quebrou uma garrafa de vinho na parte de trás da cabeça
de Chris e ele foi parar outra vez no Pronto-Socorro, onde levou quatro pontos no couro
cabeludo. Seus antigos amigos, a maioria dos quais estava se especializando em Fumo,
o vaiava na rua. O orientador insistia para que freqüentasse pelo menos algumas aulas
básicas para não ser eliminado na primeira fase. O pior de tudo era o seguinte: ele não
estudara nada nos sete primeiros anos na escola pública e agora as conseqüências eram
graves.
Estudávamos juntos quase todas as noites, às vezes durante seis horas seguidas. Eu
sempre saía dessas sessões exausto, e às vezes também assustado - assustado com sua
incrível raiva ao constatar como as conseqüências tinham sido fatalmente graves. Antes
mesmo de começar a entender Introdução à Álgebra, tinha que reapreender fração, já
que ele, Teddy e Vern tinham passado o quinto ano todo jogando porrinha. Antes
Outono da Inocência - Stephen King
mesmo de começar a entender Pater noster qui est in caelis, teve que aprender o que
eram substantivos, preposições e objetos. Dentro de sua gramática, em letras bem
legíveis, estava escrito FODA-SE O GERÚNDIO . Suas idéias para redação eram boas
e não eram mal organizadas, mas sua gramática era ruim e praticamente destruía a
pontuação. Andava sempre com sua gramática e comprou uma outra numa livraria de
Portland - foi seu primeiro livro de capa dura e virou uma espécie de Bíblia para ele.
Mas no nosso primeiro ano do segundo grau ele foi aceito. Nenhum de nós se
classificou entre os primeiros, mas eu fiquei em sétimo e Chris em décimo nono. Nós
dois fomos aceitos para a Universidade de Maine, mas eu fiquei no campus de Orono e
Chris no de Portland. Introdução ao Direito, já pensou? Mais latim.
Nós dois namoramos no segundo grau mas nenhuma garota nos afastou. Parece que
viramos bichas? Parecia para a maioria dos nossos antigos amigos, inclusive para Vern
e Teddy. Mas era apenas uma questão de sobrevivência. Estávamos agarrados um ao
outro embaixo d'água. Falo em relação a Chris, acho; meus motivos para agarrar-me a
ele eram menos definidos. Sua vontade de sair de Castle Rock e afastar-se da rotina me
pareciam minha principal função, e eu não podia deixá-lo afundar nem nadar sozinho.
Acho que se tivesse afundado, parte de mim teria afundado com ele.
Quase no final de 1971, Chris entrou numa lanchonete em Portland para comprar um
sanduíche. Na sua frente dois homens começaram a discutir de quem era o lugar na fila.
Um deles puxou uma faca. Chris, que sempre fora o melhor entre nós para promover as
pazes, entrou no meio deles e levou uma facada na garganta. O homem da faca tinha
cumprido pena em quatro penitenciárias diferentes; tinha saído da Prisão Estadual de
Shawshank na semana anterior. A morte de Chris foi quase instantânea.
Li nos jornais - Chris estava no segundo ano da faculdade. Eu estava casado há um ano
e meio e dava aulas de inglês para o segundo grau. Minha mulher estava grávida e eu
tentava escrever um livro. Quando li a notícia - ESTUDANTE ESFAQUEADO EM
RESTAURANTE DE PORTLAND - disse à minha mulher que ia tomar um milk-
shake. Fui de carro até o campo, estacionei e chorei por ele. Acho que chorei quase
meia hora. Não poderia ter feito aquilo na frente de minha mulher, de tanto que a amo.
Teria sido frescura.
34
Eu?
Sou escritor hoje em dia, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens.
Quase sempre acho que têm razão... mas até hoje acho estranho escrever as palavras
"Escritor Anônimo" no espaço reservado à profissão dos formulários que se tem que
preencher nas compras a crédito e nos consultórios médicos. Minha história parece tanto
um conto de fadas que é absurda.
Outono da Inocência - Stephen King
Vendi o livro, que foi transformado em filme, e o filme recebeu boas críticas e foi um
sucesso absoluto. Isso tudo aconteceu quando eu tinha vinte e seis anos. O segundo livro
também virou filme, como o terceiro. Eu disse - é absurdo. No entanto, minha mulher
não parece se importar por eu ficar em casa e temos três filhos agora. Todos me
parecem perfeitos, e estou quase sempre feliz.
Mas como eu disse, escrever não é mais tão fácil nem divertido como costumava ser. O
telefone toca a toda hora. As vezes tenho dores de cabeça terríveis e preciso deitar num
quarto escuro até passarem. Os médicos dizem que não é enxaqueca; dizem que é
estresse e me mandam relaxar. As vezes me preocupo comigo. Que hábito idiota esse...
no entanto não consigo deixá-lo. E penso se realmente há sentido no que estou fazendo
ou no que devo fazer por um mundo onde alguém pode ficar rico brincando de "faz de
conta".
Mas é engraçado como encontrei Ace novamente. Meus amigos estão mortos, mas Ace
está vivo. Vi-o saindo do estacionamento do moinho depois do toque das três horas na
última vez que levei meus filhos para verem meu pai.
O Ford 52 era agora uma camioneta Ford 77. Um adesivo desbotado no pára-choque
dizia REAGAN/BUSH 1980. Seus cabelos estavam curtos e tinha engordado. As
feições argutas e belas que eu lembrava estavam enterradas numa avalanche de peles.
Eu tinha deixado as crianças com meu pai enquanto ia comprar jornal. Eu estava em pé
na esquina de Maine com Carbine e ele me olhou enquanto eu esperava para atravessar.
Não houve sinal de reconhecimento no rosto desse homem de trinta e dois anos que
quebrara meu nariz em outra dimensão de tempo.
Vi que entrou com a camioneta Ford no estacionamento sujo ao lado do Mellow Tiger,
coçou-se por cima da calça e entrou. Podia imaginar o tipo estrito do caipira ao abrir a
porta, o cheiro meio azedo de bebida no barril, as saudações dos outros freqüentadores
assíduos quando fechou a porta e instalou seu grande traseiro na mesma banqueta que
provavelmente o sustentara pelo menos três horas por dia de sua vida - exceto aos
domingos desde os vinte e um anos.
Pensei: Então é isso que Ace é agora.
Olhei para a esquerda e depois do moinho vi o Rio Castle, não tão largo mas um pouco
mais limpo, ainda correndo sob a ponte entre Castle Rock e Harlow. A ponte mais
acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.
* * *
Para questões Optimus, pedido de cartões Tag, serviço Kanguru, etc, contacte para:
938167474 917401010
Skype:
franklinrebelo
MSN:
franklin.rebelo@live.com.pt
Outono da Inocência, O Corpo - Stephen King.txt
Nota: Para proteger de vírus de computador, os programas de correio de electrónico podem impedir o envio e a recepção de certos tipos de anexos de ficheiros. Verifique as definições de segurança de correio electrónico para determinar como são manipulados os anexos.
Valeu!!!
ResponderExcluirQuem postou este conto merece uma medalha!!!
O filme "Conta Comigo" (Stand By Me, EUA, 1986) é baseado neste conto de Stephen King.