segunda-feira, 25 de outubro de 2010

{clube-do-e-livro} Ana seymour - Nos braços do destino.txt

Nos Braços do Destino

Frontier Bride

Ana Seymour

Ela se entregou de corpo e alma a um lindo sonho de amor...
Ohio, 1700.

Selvagem e fascinante como as fronteiras do Oeste, o capitão Ethan Reed marcou o coração de Hannah Forrester com o fogo da paixão. E, quando ele a guiou por terras
repletas de maravilhas, Hannah soube que seu destino estava irremediavelmente traçado : iria ficar ao lado desse aventureiro para toda a vida!


Digitalização: Marina Campos
Revisão e Formatação: Cynthia M.







PRÓLOGO

Filadélfia - Dezembro de 1762.

Priscilla Webster estava às portas da morte. Hannah limpou o suor frio que salpicava a testa da mulher e endireitou-se. Então olhou através dos vidros da janela
para a escuridão da noite, que parecia envolver tudo num lúgubre presságio.
O vento, lá fora, soprava feroz na primeira tempestade daquele inverno, mas, dentro do quarto, o calor era reconfortante. Randolph Webster insistira em manter
o fogo alto, nos últimos dias, enquanto todos ali aguardavam que sua esposa desse o último de seus suspiros de dor.
Hannah respirou fundo. Sentiria falta de Priscilla. Quando chegara àquela casa, quase dois anos atrás, faminta e ainda enfraquecida pelas náuseas causadas pela
viagem marítima de seis semanas, sentira-se um tanto apreensiva, com medo até. Ela e as outras tantas criadas contratadas no navio Constant tinham sido forçadas
a permanecer nos porões da embarcação durante quase toda a viagem.
Priscilla Webster, porém, tratara-a com grande gentileza e atenção, como se fosse uma parenta distante, e não uma simples criada. Insistira para que Hannah descansasse
bastante e se alimentasse muito bem durante as primeiras semanas, a fim de que sua saúde se restabelecesse por completo. Afinal, após meses de injustiça e maus-tratos,
Hannah pudera encontrar alguém gentil e humano o suficiente para tratá-la como gente.
- Está nevando?
A pergunta fez Hannah ter um sobressalto. Priscilla estava inconsciente havia dois dias e era de estranhar que ainda tivesse forças para falar.
Hannah voltou os olhos para a mulher doente e notou que suas pupilas azuis pareciam mais iluminadas agora, como se estivessem febris.
- Não, senhora - respondeu, com voz suave. - Mas acho que irá nevar no Natal.
Os Webster eram uma das poucas famílias de Filadélfia que tinham o costume de comemorar o Natal, e isso agradava Hannah. Nos últimos dois anos, essa festa fora
alegre e farta, e fizera com que se lembrasse das vezes em que a comemorara na Inglaterra, quando pequena. No entanto, nesse ano, o Natal seria triste naquela casa...
- As crianças vão gostar disso - Priscilla comentou, num sussurro.
- Quer tomar um pouco de sopa? - Hannah ofereceu, estendendo o braço para pegar a pequena tigela de sobre o criado-mudo.
Priscilla engoliu com dificuldade. Sua respiração entrecortada movimentava o peito magro, castigado pelos violentos acessos de tosse que a acometeram nos últimos
tempos. Havia, em seus lábios, um sorriso doce e resignado que comoveu Hannah.
- Não, não quero comer - murmurou devagar. - Não precisarei de nenhum... alimento terreno... lá, para onde estou indo...
Os olhos de Hannah se encheram de lágrimas. O Sr. Webster se mudara para o quarto de hóspedes fazia algum tempo, quando a tosse da esposa passara a ser insuportável,
e ela não dissera uma única palavra para queixar-se dessa atitude. E quando, em seus lenços bordados, começaram a aparecer aquelas terríveis manchas de sangue enegrecido,
ela apenas se desculpara com Hannah por estar lhe causando o trabalho extra de lavá-los. Quando, por fim, os lenços foram substituídos pelas toalhas de algodão,
cada vez mais manchadas de sangue, ela tomara as mãos da criada e agradecera por ter vindo de tão longe para tomar conta dela e de sua família. Hannah jamais conhecera
uma pessoa tão boa...
- Vou chamar o patrão - ela disse, erguendo-se. Atravessou o quarto, correndo, e abriu a porta, mas não precisou chamar. Randolph Webster já estava de pé, à espera.
- O que houve? - perguntou, aproximando-se.
- Ela parece ter melhorado um pouco. Até falou comigo.
Hannah voltou-se para a mulher, na cama, sentindo a presença do patrão logo atrás de si.
- Priscilla? - ele chamou, com delicadeza, caminhando até o leito.
- Está nevando... - foi sua resposta suave.
- Sim, meu amor. - Randolph sentou-se na cadeira ao lado da cama e tomou a mão da esposa, indagando: - Como se sente?
Os lábios da doente se moveram, mas não articularam som nenhum. Randolph olhou para a criada. Havia angústia em suas pupilas castanhas. Então aproximou-se ainda
mais de Priscilla para perguntar:
- O que foi, amor?
- Agasalhe bem... as crianças... - Ela parecia perder as forças a cada palavra.
- E a neve, senhor - Hannah explicou. - A senhora quer que agasalhemos as crianças por causa dela.
Randolph assentiu de leve e voltou os olhos para a esposa.
- Não se preocupe, querida. Peggy e Jacob não vão sair de casa com este tempo. Está se formando uma tempestade.
Um sorriso muito suave pareceu passar pelos lábios de Priscilla, enquanto dizia, em meio a um novo acesso de tosse:
- Então... está bem...
Sua mão escorregou por entre os dedos do marido, deixando-se cair sobre o cobertor. Randolph tornou a segurá-la, sentindo um nó apertando-lhe a garganta.
- Quer que eu o deixe a sós com ela, senhor? - Hannah perguntou, indo até a lareira para alimentá-la com mais algumas achas de lenha.
Como não houvesse resposta, ela se voltou e emocionou-se ao ver as lágrimas que rolavam pelo rosto de seu patrão.
- Vou esperar na sala - disse, ajeitando o cobertor que aquecia o corpo fragilizado de Priscilla.
Foi então que notou a ausência de movimentos. O peito da patroa já não mostrava a respiração fraca e irregular causada pela doença.
Hannah sentiu um frio no estômago. Olhou para Randolph, mas ele mantinha a cabeça baixa, abatido. Ainda não percebera o que acabara de acontecer.
Hannah cerrou os olhos e sentiu as lágrimas quentes rolarem por seu rosto. Só então o patrão ergueu a cabeça e, diante da realidade, começou a chamar pelo nome
da esposa, a princípio em voz baixa, depois quase gritando.
- Ela se foi, senhor murmurou num soluço. - Voltou para o Senhor.
Randolph Webster tomou o corpo inerte de Priscilla pelos ombros e abraçou-o, como se acalentasse uma criança, em silenciosa agonia. Era um homem duro, acostumado
a guardar para si os próprios sentimentos. Um homem firme, que jamais permitira qualquer tipo de aproximação de Hannah, nem fizera o menor esforço para ajudá-la
a esquecer que fora comprada como uma mercadoria e que ainda pertenceria a ele, por contrato, por mais três anos.
No entanto, Hannah sabia que ele era um homem bom, que amara profundamente a esposa. Se tivesse coragem para tanto, iria até o outro lado do leito e colocaria
uma mão confortadora sobre os ombros do patrão. Aquele parecia ser o instante em que apenas o contato físico poderia trazer alguma espécie de alívio para o sofrimento.
- Quer que eu vá buscar as crianças? - ela perguntou, após alguns minutos de silêncio e dor.
Randolph negou com a cabeça, ainda abraçando o corpo de Priscilla.
- Não. Eles não devem vê-la assim.
- Quer que eu avise os MacDougall, então?
Os pais de Priscilla tinham uma estalagem algumas casas abaixo, na mesma rua. Randolph Webster não respondeu de imediato à pergunta. Depositou o corpo da esposa
com delicadeza de volta ao colchão e, erguendo os olhos para Hannah, disse em tom autoritário:
- Perdi a esposa, e não o juízo, garota! Não vou deixá-la sair em meio a essa tempestade!
- Mas não é longe, senhor. E quero ir. Ele se levantou.
- Eu irei. Eles quererão vir para cá e ficar com as crianças. Então poderei ir até Newbury.
Hannah arregalou os olhos.
- Vai até Newbury com este tempo?! Randolph olhou de novo para a esposa morta.
- Ela não iria querer que outra pessoa além do irmão se encarregasse da encomenda de sua alma. - Então curvou-se e depositou um beijo na testa de Priscilla,
para depois acrescentar: - Cuide dela.
- Sim, senhor.


CAPÍTULO UM

Filadélfia - Abril de 1763.

Pois eu lhe digo, Hannah: Randolph não está bem do juízo. E acho que você não deve - falava a Sra. MacDougall em seu forte sotaque escocês.
Hannah ajudava-a a secar a louça, na cozinha da estalagem.
- Fui vendida, senhora. Estou presa às cláusulas de um contrato por mais três anos.
- Pois não há nada nesse contrato que diga que Randolph tem o direito de arrastar você para o meio de uma região selvagem, sem ninguém por perto! - A Sra. MacDougall
sempre se dera bem com o genro, mas aquela idéia louca de afastar seus netos da cultura e da civilização de Filadélfia para a incerteza de uma vida na fronteira
deixava-a fora de si.
- Há mais quatro famílias que irão - Hannah respondeu, gentil. - Vamos nos ajudar uns aos outros, tenho certeza.
- E quanto aos selvagens?
- Selvagens... - Hannah repetiu, em voz baixa, apertando o pano de pratos entre as mãos. Já lidara com selvagens antes. Os. credores que haviam tirado a cama
de sua mãe antes mesmo de ela morrer, em Londres; o médico que se recusara a dar a ela uma dose de remédio para acalmar suas dores; o juiz que decretara que uma
garota de dezoito anos, sem parentes, deveria ser aprisionada e transportada para outro país para pagar as despesas com a doença da mãe. - Não tenho medo de selvagens,
Sra. MacDougall - afirmou, com um sorriso amargo.
- Não posso acreditar que Randolph esteja falando sério quando se refere a essa aventura. - A senhora torcia o pano, como se quisesse que ele fosse o pescoço
do genro.
- Sei que é difícil para a senhora ficar longe das crianças, mas devia ouvi-lo descrever as terras que estão abrindo ao longo do rio Ohio: prados verdejantes
cortados por águas prateadas. Ele diz que os peixes praticamente pulam para fora d'água e caem dentro dos barcos, e que as plantações crescem sozinhas!
- Suponho que os gamos também atirem neles mesmos - comentou, irônica. - Acho bom que seja assim porque senão vocês todos vão morrer de fome. Randolph não sabe
nada sobre caça.
- Espero que uns ajudem os outros, pelo menos até que tenhamos passado pelo primeiro inverno lá.
A Sra. MacDougall se arrepiou. Sua voz fraquejava agora:
- Às vezes acho que não vou conseguir suportar... Primeiro perdemos Prissy, e agora também as crianças...
Hannah tocou o braço dela com carinho.
- Vou trazê-los para visitá-la quando eu estiver livre de meu contrato, está bem?
Ela inclinou-se para ver as crianças, que brincavam, além da porta aberta, na estalagem. Nos últimos meses, Hannah e os dois pequenos tinham passado muito tempo
na casa dos MacDougall. A casa dos Webster, que lhe parecera tão acolhedora e aconchegante quando chegara à América, estava agora cheia de sombras e tristezas do
passado. As crianças preferiam ficar na estalagem dos avós. Ainda mais porque o pai quase nunca parava em casa agora.
- Cuidado para que isso não caia sobre seu irmão!
- Hannah avisou, .vendo que os dois brincavam com um barril vazio que Peggy procurava inclinar para se esconder de Jacob. No entanto, Hannah logo se arrependeu
pelas palavras. Afinal, a menina andava tão triste, quase não brincava... Devia ser muito difícil para ela ter perdido a mãe aos onze anos de idade.
- Está bem! Podem brincar! Mas tomem cuidado! - Voltou-se depois para a Sra. MacDougall: - São crianças maravilhosas. Deveria ter orgulho delas, senhora..
- Elas são tudo o que minha Prissy me deixou. É por isso que acho injusto Randolph querer levá-las para tão longe.
- O Sr. Webster diz que precisa recomeçar. Que todos precisam. Ou jamais superarão a morte da Sra. Webster.
A expressão de tristeza de Jeanne MacDougall se transformou.
- Você parece saber muito bem o que meu genro pensa e diz, não?
Hannah sentiu-se enrubescer de imediato.
- É que... eu o ouvi falando com as crianças e com os outros cavalheiros que irão conosco na viagem. Eles têm se encontrado muito nos últimos meses.
A Sra. MacDougall pareceu se acalmar.
- Você tem estado muito sozinha naquela casa, Hannah, sem outra presença feminina com quem possa trocar idéias.
- De fato. O Sr. Webster está sempre fora, e fico só com as crianças. Na verdade, não é tão difícil como...
- Ela se interrompeu, percebendo que o que ia dizer poderia magoar a Sra. MacDougall.
Mas a senhora falou por ela, amarga:
- É. Não é tão difícil como quando tinha de cuidar de minha filha dia e noite, além da casa e dos pequenos.
Hannah sentou-se no banco de madeira, ao lado da lareira, e baixou a cabeça. A Sra. MacDougall veio logo em seguida e, sentando-se também, disse:
- Sabe, eu queria que meu marido conversasse com você, mas você conhece os homens: são tão desajeitados para falar! O fato, querida, é que não é certo.
Hannah ergueu o olhar para ela.
- O que não é certo?
- Quando Randolph contratou-a para cuidar de Priscilla, estava tudo bem, mas... agora ele é um homem viúvo, e você é uma moça bonita. Sabe, não é uma situação
correta vocês dois sob o mesmo teto.
Ela voltava ao mesmo ponto em que tentara tocar instantes atrás com sua conversa. E a observação parecia tão absurda para Hannah que ela mal sabia como responder.
Seu patrão quase nunca lhe dirigia a palavra, mal a olhava. Quando notava sua presença era apenas para dar-lhe alguma ordem em relação às crianças.
- Desculpe-me, Sra. MacDougall, mas está enganada. O Sr. Webster dá a mim a mesma atenção que dispensa a seus cavalos. Ele amava a esposa e garanto-lhe que ainda
levará muito tempo até que se disponha a olhar para outra mulher.
- Eu não estou colocando em discussão a integridade do meu genro, Hannah, e nem a sua. Mas sei que, se vocês continuarem vivendo na mesma casa, as pessoas vão
começar a falar.
- Mas não estaremos sozinhos...
A senhora ergueu a mão, interrompendo o protesto da moça.
- Por isso eu e o Sr. MacDougall decidimos que vamos comprar o seu contrato. Podemos ficar com você aqui na estalagem. Já não somos tão jovens, você sabe. Vamos
precisar de alguém que nos ajude com o serviço. Hannah recostou-se ao banco. A oferta a surpreendia, embora não pudesse dizer que se sentia feliz com ela. Quando
o Sr. Webster comentara pela primeira vez em ir para o Oeste, ficara preocupada, desapontada até. Agora, porém, após ouvi-lo falar tanto com os outros homens sobre
as esperanças e sonhos que tinham com relação à terra nova, uma certa ansiedade agradável começara a brotar em seu coração.
- É muita gentileza sua, Sra. MacDougall... - conseguiu murmurar. Mas interrompeu-se, ouvindo vozes masculinas na estalagem. - Acho que a senhora tem fregueses.
Vou chamar as crianças. - Ela se levantou e pegou uma bandeja com algumas canecas limpas, para levá-las até o cômodo da frente. As palavras da outra mulher tinham-na
deixado um tanto confusa. Era estranho ter a decisão de seu futuro diante de si, daquela maneira. Sua vida já não era sua havia tanto tempo!
Parou ao ver as crianças. Prometera a Priscilla que tomaria conta delas. Poderia deixá-los partir sem sua companhia para um futuro incerto e talvez perigoso?
- Ora, ora, Webster! Você não me disse que, em Filadélfia, as criadas têm cara de anjo!
A voz forte, profunda, fez Hannah voltar-se para o grupo de homens que acabava de entrar. Randolph estava entre eles, bem como outros que ela já conhecia. Mas
foi o homem alto, à frente dos demais, que chamou-lhe a atenção. Apesar do aspecto rude, da barba por fazer, Hannah não pôde deixar de olhá-lo com certa admiração.
- E não é só o rosto! - ele continuava. - Ela toda parece ter vindo do céu! - O sorriso dele mostrava dentes brancos por entre a barba e o bigode.
O homem deu dois passos em sua direção, afastou sua capa de peles e cumprimentou-a, curvando o corpo para a frente.
- Estes cavalheiros querem cerveja, senhorita, por favor. Traga-me um caneco, também, embora eu possa jurar que o mero prazer de olhá-la já seria suficiente para
matar a sede do demônio.
Hannah olhou para o patrão, que observava o recém-chegado com expressão de espanto. Os outros homens riam. Ela reconhecia entre eles Amos Crawford e Hugh Trask,
um homem esquisito, que sempre a deixava pouco à vontade quando visitava a casa dos Webster.
Hannah estava prestes a responder ao estranho quando Trask veio, por entre os outros, e passou um braço por sua cintura, quase fazendo-a derrubar a bandeja que
trazia.
- O capitão está certo - ele disse, inclinando-se sobre ela. - Estamos com uma sede e tanto, doçura!
Sede de cerveja e de algo mais, talvez...
Segurando a bandeja com mãos firmes, Hannah soltou-se do abraço desagradável, que a fazia perder o equilíbrio.
- Desculpe, senhor - disse, numa expressão de desagrado.
De repente, a bandeja foi retirada de suas mãos pelo estranho barbado, o qual, lançando um olhar feroz a Trask, amparou-a com mão gentil.
- Acho que você devia aprender corno tratar uma dama, Trask! - E voltando-se para a Hannah: - A senhorita está bem?
Randolph Webster, então, adiantou-se, colocando-se entre Trask e Hannah. Falou, dirigindo-se ao estranho:
- Ela não é criada do bar, Reed. Hannah... bem... mora comigo.
O homem ergueu de leve as sobrancelhas. Sorriu, então, e ergueu as mãos, numa desculpa.
- Sinto muito, senhorita. Achei que... Bem, disseram-me que você era viúvo, Webster.
- Sim, eu sou. Quero dizer...
Hannah deu alguns passos atrás, até a relativa segurança representada pela cozinha e, de lá, encarou o estranho para falar, alto e claro:
- Meu nome é Hannah Forrester. Sou empregada do Sr. Webster.
O homem olhou rapidamente para Randolph, comentando:
- Então ele é um homem de muita sorte. Aquele estranho era diferente dos outros homens ali presentes. Talvez não tanto na aparência. Hannah não sabia como descrever
o que lhe passava pela mente em relação a ele. Era muito alto e forte, e sua calça não era de lã ou tecido, mas de pele de corça, talvez, e vestia-o com uma elegância
atraente, que ela jamais notara nos homens que costumavam freqüentar a taverna.
Resolveu dar mais um passo para a cozinha. O estranho não parava de olhá-la.
- Acho que... querem cerveja... - ela disse, tentando manter o tom natural da voz.
Randolph Webster já recuperara o autocontrole. Deu alguns tapas amigáveis nas costas do homem.
- Não se preocupe por ter entendido mal a situação, Reed. Tenho certeza de que Hannah não se importará em nos trazer algo para beber se minha sogra estiver ocupada
na cozinha. Você nos faria esse favor, Hannah?
Ela respirou fundo e baixou os olhos.
- Sim, senhor. Com licença... - Esticou os braços para pegar a bandeja que o homem ainda segurava.
- Ethan Reed, moça - apresentou-se. - Ao seu dispor. Tenho muito prazer em conhecê-la.
Ele se inclinou mais uma vez, de modo afetado, como se estivessem num local muito elegante. E seus olhos encontraram os dela de novo.
Hannah voltou-se depressa para a cozinha. A Sra. MacDougall tirara o avental e estava enxugando as mãos. Ouvira o que se passara na taverna e disse apenas:
- Deixe que eu os sirvo. Hannah negou com a cabeça.
- Não. Pode deixar.
Com a ajuda da senhora, ela preparou uma bandeja com queijo, carne de frango e pães. Seu coração parecia ter voltado ao ritmo normal, dando-lhe a sensação de
que reagira ao olhar do Sr. Reed de modo diferente apenas porque estava muito cansada.
- Quem é aquele homem? - Hannah perguntou, quase sem perceber.
- Ora! Aquele é o capitão Reed. Ele estava com os patrulheiros Rogers, sabe? Estiveram por aqui há dois anos, mais ou menos, com alguns selvagens.
- Ele é capitão?
- Bem, acho que não é mais. A guerra já acabou, você sabe. Os franceses retrocederam até o Canadá, e os índios se acalmaram, com exceção, é claro, daquele tal
Pontiac.
Hannah ergueu a bandeja pesada e olhou para a porta que levava à taverna.
- Os... patrulheiros eram todos tão... grandes? A Sra. MacDougall riu.
- O capitão Reed não é grande, querida. E forte. Um belo espécime do sexo masculino, se é que posso dizer assim.
- E o que ele está fazendo junto com o Sr. Webster? O sorriso da senhora desapareceu.
- Bem, talvez você possa perguntar a ele, Hannah, Tenho muito receio de que esteja aqui para levar você, Randolph e minhas crianças queridas para muito, muito
longe daqui!
O sol se pusera havia bastante tempo, e a noite estava fria demais, como se o inverno fosse voltar a qualquer momento. Hannah se levantou para fechar as janelas
da taverna e voltou à cadeira de balanço, bocejando. No outro canto da sala, os homens ainda discutiam e observavam os mapas do capitão Reed. Randolph Webster tinha
Jacob sentado em um joelho, e Peggy abraçada às suas costas. As crianças ficavam tão pouco junto ao pai nos últimos tempos, que não queriam afastar-se dele nem por
um segundo. No entanto, Hannah sabia que os dois estavam cansados. Gostaria de poder voltar com eles para casa. O calor da lareira aquecia-lhe as faces e dava-lhe
sono, fazendo-a querer retornar ao aconchego de sua cama.
- Acho que eles a fizeram trabalhar demais, Srta. Forrester.
Aquela voz forte e profunda surpreendeu-a mais uma vez. Endireitou-se na cadeira e voltou-se para ver o capitão.
- Já é tarde para as crianças... - ela murmurou.
- Mas não são as crianças que estão exaustas diante do calor do fogo, como um gatinho aconchegado. - Os olhos escuros dele pareciam sorrir.
Hannah não conseguia encontrar palavras. Não estava acostumada a conversar com homens. Sua mãe sempre a mantivera afastada deles; tinha seus próprios motivos.
Hannah quase podia ouvi-la dizendo: "Não quero que siga os passos de sua mãe, querida. Não se iluda com o primeiro bonitão que aparecer para depois ser jogada na
sarjeta como eu fui, grávida e sem um centavo no bolso!"
Hannah ouvira isso .durante toda sua infância.
- Eles a alimentam corretamente, senhorita? - A voz do capitão chamou-a de volta à realidade.
Aquela pergunta pareceu-lhe absurda.
- E lógico que sim, capitão Reed! - respondeu, indignada. - Agora, se me der licença, acho melhor eu pegar as crianças e levá-las para casa.
Ele deu alguns passos ao redor da cadeira e aproximou-se mais da lareira, agachando-se. A posição parecia natural para ele, como se estivesse acostumado a ficar
em lugares onde não havia cadeiras disponíveis.
- Achei que talvez pudéssemos conversar, moça. Já faz muito tempo que não falo com uma mulher.
Não foram as palavras, mas o sorriso dele que a manteve sentada. Olhou para os outros homens, entretidos em sua conversa, no outro canto, e perguntou:
- Não devia estar presente à discussão? Parece que estão planejando rotas ou... algo parecido.
- Minhas rotas estão bem aqui - ele apontou a têmpora direita com o indicador. Seus cabelos escuros eram longos, e não estavam presos em trança como era o costume
geral, e as costeletas realçavam a firmeza de seu maxilar.
- Conhece bem as regiões selvagens? - Hannah perguntou após alguns instantes.
Ele tornou a sorrir.
- Olhe, não costumo me gabar, mas, só de olhar uma das margens do rio Ohio, posso lhe dizer quantos ratos estão entocados na outra.
Ela riu. Aquela falta de modéstia irritava-a e fascinava-a ao mesmo tempo. Ali estava um homem que conhecia de fato a terra que o Sr. Webster descrevera com tanto
entusiasmo.
- A terra é tão boa e rica como dizem? E tão linda também?
- O vale do Ohio é mais rico do que qualquer terra conhecida. Logo, logo, as pessoas vão estar implorando para possuir um pedaço de terra por ali. Vocês têm sorte
em serem uns dos primeiros a chegar lá.
- E o senhor? Também já tem suas terras? Ele abanou a cabeça.
- Não sou do tipo que se estabelece, Srta. Forrester. Penso da seguinte forma: por que devo me limitar a um pedaço do paraíso se posso andar por ele todo, à vontade?
- Mas agora, com todas as famílias que estão indo para lá, o senhor não se sentirá tão independente...
- Os pedaços de terra que vocês irão colonizar não mudarão muito o aspecto da região.
- Mas o Sr. Webster disse que as terras a serem ocupadas se estendiam por mais de duzentos acres!
Reed riu alto dessa vez.
- Há centenas de milhares de acres por lá. Sua porção é minúscula diante de tudo.
Hannah voltou os olhos para o fogo.
- Minha porção, não, capitão. Estou indo apenas para cuidar das crianças do Sr. Webster. Dentro de três anos voltarei para cá para procurar emprego.
Reed guardou silêncio por longos momentos. Quando Hannah tornou a encará-lo, ele a fitava com um meio sorriso nos lábios.
- Eu não apostaria nisso - disse, suave. Hannah queria desviar o olhar de novo, mas o dele a atraía demais.
- Por que não? -- perguntou, tendo a boca seca de repente.
- Porque Webster não é tolo.
Era a segunda vez no mesmo dia em que ela ouvia insinuações a respeito de seu relacionamento com o patrão. Segurou com firmeza os braços da cadeira e disse:
- O Sr. Webster é meu patrão, capitão Reed. E acabou de perder a esposa, que amava. E, se vamos viajar todos juntos, eu agradeceria se não o embaraçasse com seus
comentários maldosos. Reed não se deu por vencido.
- Se não for Webster, será algum outro homem, Srta. Forrester. Há escassez de mulheres na fronteira.
Hannah levantou-se de repente, deixando a cadeira balançar.
- Pois não estou disponível, capitão. O Sr. Webster tem um contrato para meus serviços, e é só isso! No futuro, eu gostaria que o senhor guardasse suas especulações
sobre meu destino para si mesmo!
Reed levantou-se também, e seu peito pareceu enorme diante de Hannah.
- Sim, senhorita - respondeu, com um sorriso irônico.
- Obrigada. Boa noite. - Ela se voltou e afastou-se. Reed ficou observando-a cruzar a sala e erguer o pequeno Jacob nos braços, tirando-o, adormecido, do colo
do pai.
Hannah já limpara muitas vezes o pequeno escritório nos fundos da casa dos Webster, mas essa era a primeira vez em que se sentava na cadeira atrás da escrivaninha
de Randolph Webster. Passava pouco da hora do almoço.
Peggy e Jacob estavam brincando com alguns amiguinhos da vizinhança. Ela os estivera observando pela janela, pensando que logo iriam deixar os coleguinhas para
trás. De repente, sentiu a presença do patrão logo atrás.
- Está ocupada, Hannah?
Ela deu um pulo na cadeira, tendo de imediato uma opressiva sensação de culpa. Quase nunca podia desfrutar de um momento de descanso como aquele no meio do dia.
Mas o Sr. Webster não pareceu se importar com isso e não a admoestou.
- Talvez pudesse me conceder alguns minutos... - continuou.
Hannah assentiu. Passou o olhar pelas estantes, onde estavam guardadas contas e documentos do próprio Webster e de amigos e conhecidos. Mais uma vez, ela se perguntou
sobre a decisão daquele homem em abandonar a civilização para se aventurar em uma vida de agruras em meio ao Oeste selvagem. Bem, afinal, também na fronteira contadores
seriam necessários um dia... Randolph olhava-a, quieto, calmo, e isso passou a incomodá-la. Hannah levantou-se da cadeira e baixou a cabeça, à espera do que ouviria.
- Acho que... não tenho sido um patrão muito atencioso - ele começou, pouco depois.
Aquelas palavras surpreenderam-na. Pareciam um pedido de desculpas.
- O senhor está sofrendo muito ainda. Eu entendo.
- Você está sendo maravilhosa para com as crianças. Elas sentem falta da mãe, mas não sei como estariam se você não estivesse aqui.
- Gosto muito deles.
- É. Eu sei. Tenho pensado muito, Hannah, e acho que não estou sendo justo ao pedir que me acompanhe nessa viagem ao Oeste.
- Meu contrato não especifica onde devo prestar meus serviços, Sr. Webster. E acho que o senhor e sua falecida esposa sempre foram muito bons para mim.
Randolph assentiu de leve.
- Meus sogros querem comprar seu contrato. Hannah engoliu em seco. Pensara nisso durante a manhã toda. Não seria ruim viver com os MacDougall; eram pessoas honestas
e agradáveis, e tinha, certeza de que, junto deles, aqueles três anos passariam bem depressa, No entanto, se ficasse em Filadélfia, jamais veria aquela terra maravilhosa
que Randolph já lhe descrevera.
Ele a observava em silêncio. Suas feições endurecidas tinham se suavizado um pouco e agora parecia um garoto fazendo um pedido mudo a alguém para embarcar numa
aventura irresistível.
De repente, Hannah percebeu que sua decisão já estava tomada.
- Sr. Webster, em Londres, quando minha mãe ficou muito doente para poder trabalhar, tivemos de nos mudar para um asilo. Vivi lá, com mais quarenta pessoas, numa
sala que tinha o tamanho de seu escritório. Ao vir para a América, viajei num porão de navio que cheirava mal, junto com mais de cem imigrantes. Quando o senhor
me fala de uma terra vasta e maravilhosa, na qual se pode andar um dia inteiro sem ver outro ser humano, imagine o que sinto! - Os olhos azuis brilhavam. - Se o
senhor e as crianças quiserem, irei com vocês com a maior alegria!
Randolph pareceu aliviado com aquela resposta. Não sorriu, mas a tensão que se percebia em seu rosto desapareceu.
- Queremos que vá, sim, Hannah. Sabe, as crianças... gostam muito de você.
- Então está combinado. Por favor, agradeça à Sra. MacDougall pela oferta e pela preocupação comigo.
Ele assentiu. Nada mais disse, mas continuou olhando-a com atenção.
- Deseja mais alguma coisa, senhor?
- Não, não... Obrigado, Hannah.
Ela voltou-se para sair, mas a voz do patrão a fez parar junto à porta.
- Ah, Hannah, só mais uma coisa: por favor, prepare o quarto dos fundos. O capitão Reed virá para cá esta noite e ficará conosco até a viagem.
Hannah estranhou o que lhe aconteceu ao ouvir o patrão mencionar o nome daquele homem. Seu coração disparou e sua respiração tornou-se mais rápida.
- Certo, senhor.
- Reed pareceu ter gostado de conversar com você ontem na estalagem, não? - Randolph comentou num tom estranho.
- Ele disse que não tem conversado com mulheres ultimamente e, a julgar pelos seus modos, é fácil imaginar por quê.
Randolph sorriu.
- E. Não se pode culpar um homem por se aproximar de uma moça bonita.
Hannah sentiu-se ruborizar. Era a primeira vez que o patrão fazia um comentário sobre sua aparência pessoal. Também os olhos dele tinham uma expressão diferente,
que a fez baixar os seus até o chão.
- Vou preparar o quarto para o capitão - disse e saiu depressa dali.


CAPÍTULO DOIS

Ethan Reed passara o ano anterior com um grupo de patrulheiros, mapeando o território desconhecido ao longo do rio Monongahela, ao norte do Ohio. Estivera, no
inverno anterior, no forte Pitt, construído pelos ingleses no local onde fora um dia o forte francês Duquesne. Como dissera à Srta. Forrester na noite anterior,
já fazia muito tempo que não se aproximava de uma mulher; em especial, de uma tão bonita quanto ela.
Agora, lá estava ele, no limiar da porta, vendo-a fazer velas, uma a uma, muito compenetrada no trabalho para percebê-lo. Ele aproveitou o momento para observá-la
com atenção. Frágil demais, talvez, para os rigores da vida no Oeste; mas graciosa, com certeza. Ela não usava touca, e seus cabelos claros caíam, presos a uma única
trança, por suas costas, chegando-lhe à cintura.
Ao se voltar, em dado momento, Hannah o viu. Seu corpo todo ficou tenso.
Uma garota assustada, pensou Reed. Como a pequena corça que tentara domar no outono passado, e cuja mãe outro patrulheiro matara. Ethan tentara convencer o animalzinho
a confiar nele, com paciência e calma, mas ela sempre o olhava com aqueles grandes olhos cheios de medo e pulava para longe cada vez que ele tentava se aproximar.
Os olhos da Srta. Forrester não mostravam medo, mas estavam carregados de desconfiança. Reed ficava imaginando se ela dissera a verdade sobre Webster. Aquele
sujeito devia ser tolo ou cego para não se interessar por ela.
Era lógico que Webster ainda estava de luto, mas Ethan Reed sabia que, se tivesse uma garota como aquela vivendo em sua casa, faria muito mais do que apenas notá-la...
- O senhor me assustou, capitão.
- Desculpe, senhorita. Eu devia ter me anunciado. Mas a vi rodeada por essas velas, seus cabelos brilhando como ouro à sua luz, e fiquei imaginando que poderia
estar diante de um anjo...
Hannah afastou alguns fios dourados que lhe caíam sobre a testa.
- Capitão Reed, não acho que o senhor deva falar assim comigo. Sou criada do Sr. Webster.
Reed entrou na casa e tirou o chapéu de três pontas.
- Acredito que vá deixar esses rótulos para trás quando chegarmos ao rio Ohio, senhorita. Lá, todos são criados. Quem não trabalha não sobrevive.
Os olhos dela se abriram mais conforme Ethan Reed se aproximava. Ele agora estava barbeado e vestido com roupas de corte mais elegante. Ainda assim parecia incrivelmente
grande aos olhos de Hannah. Daquele jeito, asseado e bem vestido, o capitão Reed passaria com facilidade por um fino cavalheiro da cidade grande, como aqueles que
freqüentavam os clubes elegantes de Londres. Sua mãe sempre a alertara contra esse tipo de homem, cuja bela aparência era um perigo para garotas desavisadas. "Fique
longe deles, meu amor. Só sabem usar palavras bonitas para nos iludir. Depois esquecem de nós e nos jogam à sarjeta!" Havia tanto desespero na voz de sua mãe ao
lhe dizer tais coisas...
- Talvez não saiba que sou criada desta casa por contrato, senhor, e não por opção.
O olhar firme dele parecia poder ver sua alma.
- Os contratos também não significam muito no Oeste, senhorita.
- Mesmo assim. Pretendo honrar meu compromisso com o Sr. Webster.
- Bem, saiba que essa viagem não será nenhum piquenique. - Ele passou os olhos por tudo o que havia ao seu redor para depois acrescentar: - Você não poderá levar
tudo o que há por aqui.
- Acredito que o Sr. Webster irá vender a maioria de seus pertences. Ele tem passado os últimos dias empacotando o que é essencial. Vamos levar poucas coisas.
- Eu vi o que ele separou no estábulo e disse-lhe para diminuir a quantidade de coisas em dois terços. Vamos ter pouco mais de uma trilha para seguirmos até o
forte Pitt, onde poderemos nos abastecer. De lá, viajaremos em barcos.
- Pensávamos em levar a penteadeira de Priscilla para Peggy... - comentou Hannah, numa espécie de queixa.
Ethan Reed negou com a cabeça.
- Diga aos avós dela para guardarem-na em sua casa, para quando ela crescer. Talvez, um dia, as estradas para o Oeste venham a ser melhores, mais largas, mas
não agora.
Hannah concordou. Sentia muito pela garotinha órfã que agora tinha de deixar para trás também os últimos laços com a mãe. Hannah, porém, passara por sacrifícios
maiores em sua infância. Sua mãe sempre lhe dizia que aquilo que não mata torna a pessoa mais forte.
- Vou falar com os MacDougall. Eles têm muito espaço em sua casa para guardar as coisas da Sra. Webster.
Ethan sorriu.
- Gosto de sua atitude, Srta. Forrester. A maioria das mulheres não é capaz de se afastar de seus pertences sem armar uma confusão.
- Eu mesma não tenho nada de precioso para levar, capitão. Falei apenas pela menina.
Não havia amargura, nem auto piedade naquela jovem, Ethan reconhecia. O que parecia haver nela era uma força de caráter que lhe seria muito útil na fronteira.
As costas de Hannah estavam doendo de novo. Passara o dia todo preparando velas para as semanas que viriam, e seus músculos estavam muito doloridos.
- Foi um dia longo e exaustivo, não? - observou o Sr. Webster, pendurando o chapéu ao lado da porta de entrada.
Hannah sorriu para o patrão. Desde aquela conversa, no escritório, as observações dele pareciam mais gentis.
O dia fora como muitos outros: uma mistura de afazeres domésticos e crianças, mas ela notara, mais de uma vez, o olhar de Randolph. No jantar, ele elogiara sua
comida, que, na verdade, nada tinha de especial. A presença do capitão, no entanto, tornara a refeição mais animada do que de costume. Ele contara histórias sobre
o Oeste, e as crianças ficaram tão excitadas com elas que pediram para partir no dia seguinte.
- Pensei que o senhor ficaria até mais tarde na taverna com o capitão e os outros homens - Hannah comentou, querendo parecer casual.
- O barulho estava me dando dor de cabeça. Preferi voltar para casa e pôr as crianças na cama.
Aquilo a fez pensar na injustiça que havia em privar filhos do carinho da mãe. A vida era injusta, com certeza.
- Jacob já dormiu, senhor, mas acho que Peggy ainda está acordada, brincando.
- Vou subir e verificar. Depois... - Ele olhou para a mão de Hannah, que ainda massageava de leve a cintura dolorida. - Está cansada demais ou poderia fazer mais
um pequeno serviço?
Hannah procurou endireitar a coluna.
- Estou à sua disposição. O que quer que eu faça?
- Quero que me ajude. Precisamos rever os objetos que eu pretendia manter e decidir quais terei de deixar aqui. O capitão disse que não posso levar uma carga
muito grande.
- Sim, senhor. Ele me falou a mesma coisa. Webster pareceu aborrecer-se de repente.
- Quando ele lhe disse isso?
- Esta tarde. Eu estava na cozinha quando o capitão chegou.
- Não há necessidade de que ele lhe diga o que fazer, Hannah. O capitão será nosso guia, nada mais do que isso. Se quiser, posso pedir a ele que não fale com
você, a não ser quando necessário.
- Oh, por favor, não! Ele não me aborrece, senhor.
- Se aborrecer, é só me dizer. Talvez eu não devesse lhe dizer isso, mas... o capitão Reed tem uma certa reputação com as mulheres... Entende?
- Mas, pelo que diz, ele passou os últimos dois anos entre ursos, índios selvagens e soldados piores ainda.
- Talvez por isso mesmo seja melhor ele ficar longe de você. O que sei é que foi criado em Boston, veio de boa família e partiu de lá de modo um tanto estranho,
em circunstâncias que envolviam o nome de uma mulher.
Hannah suspirou e endireitou o dorso dolorido mais uma vez.
- Obrigada por se preocupar, senhor, mas não acredito que o capitão Reed represente qualquer tipo de perigo para mim.
- Bem, é minha responsabilidade cuidar de você e, se alguém tentar molestá-la, diga-me de imediato.
Hannah não gostou do tom possessivo que percebeu na voz de seu patrão. Vivia há quase três anos naquela casa, e ele sempre a tratara com certa indiferença; agora,
porém, parecia tão preocupado... O comentário da Sra. MacDougall voltou-lhe, de repente, à memória, mas procurou evitá-lo.
- Cresci nas ruas de Londres, Sr. Webster, e não num convento. Posso cuidar de mim mesma.
Webster assentiu.
- Eu sei. Como sei também que tem cuidado muito bem de nós todos nos últimos meses.
- Faço o que posso, senhor. Acho melhor eu ir para o estábulo e começar a verificar o que já foi empacotado.
- Tem certeza de que não está cansada demais?
- Estou bem.
- Você é muito trabalhadeira. E pretendo cuidar melhor de seu futuro.
Hannah não soube o que responder. Sentia o olhar do patrão seguindo-a conforme se dirigia à porta do escritório.
Hannah não gostava de passar por aquela rua. Fora ali, quase um ano atrás, que o jovem Johnny Baker morrera, quando alguns tijolos se haviam desprendido de um
forno e caído sobre sua cabeça. O rapaz, filho dos donos da padaria, sempre fora muito gentil com ela e até Priscilla fizera alguns comentários a respeito disso.
Hannah, porém, sabia que Johnny flertava com todas as garotas da vizinhança. Mesmo assim, sua morte a abalara muito. A mãe do rapaz, Elisa, quase enlouquecera
de desespero, e Hannah se acostumara a ficar com ela em seus momentos de folga. Johnny era filho único, e sua morte parecia ter posto um fim à vida de seus pais
também.
Hannah passou pela trilha de tijolos que levava à entrada da casa pequena e que era rodeada de flores azuis muito claras e delicadas. Os Baker também viajariam
para o Oeste e sentiriam falta daquela casinha encantadora, com certeza. A oferta de um imigrante alemão pela casa parecera libertar o casal, já de idade, de seu
sofrimento pelo filho. Seth Baker parecera recuperar o antigo entusiasmo pela vida e juntara-se a Webster, Trask e Crawford para a jornada até o Ohio.
- Como está, minha querida? - perguntou a Elisa Baker, aparecendo na janela da frente. - Você veio cedo hoje!
- Trago um recado do Sr. Webster - respondeu Hannah, sorrindo.
A senhora saiu da janela e veio abrir a porta.
- Entre, meu bem. A manhã ainda está muito fria. A cozinha da Sra. Baker tinha um adorável cheiro de ervas e de pão fresco.
- Tire a touca e tome um pouco de cidra - ofereceu a velhinha, pegando uma caneca e enchendo-a com o líquido quente que mantinha num bule sobre o fogão. - Coma
um pouco de pão também. Acabei de fazer.
Hannah tornou a sorrir.
- Não posso me demorar hoje. Preciso ir também à casa dos Trask e dos Crawford.
- Vai poder ficar tempo suficiente para comer e beber algo quentinho.
- O Sr. Baker não está em casa? - Hannah pegou a caneca fumegante.
- Está lá fora com o Sr. Gutmueller. Espero que estejamos fazendo a coisa certa. Seth está sentindo tanto deixar os negócios para um estranho! Mas... como ele
poderia continuar aqui se todos os dias passa pelo local onde Johnny...
Hannah assentiu, antes que a mulher terminasse.
-Vocês agora estão fazendo planos para uma nova vida. Será para melhor, com certeza, Elisa.
- Eu sei. Não vou mais aborrecer você com minhas preocupações, querida.
Hannah colocou a mão sobre a da Sra. Baker.
- Você não me aborrece. Eu apenas gostaria de fazer algo para aliviar sua dor. E a do Sr. Baker também. Vocês me ajudaram tanto quando a Sra. Webster faleceu!
As duas mulheres sorriram, conscientes da amizade que tinham uma pela outra.
- Foi um fardo muito pesado para você, Hannah. Ainda é. As crianças, e Randolph bebendo sempre um pouco além da conta...
- Ele já está bem melhor agora, cheio de planos e preocupações com a viagem.
Elisa cortou uma fatia de pão e ofereceu-a à amiga.
- É. Os homens são assim mesmo. Esquecem tudo por um pouco de aventura. Nós, mulheres, ficamos com a dor e o sofrimento. - Olhou para a parede dos fundos, como
se pudesse ver o marido no quintal, além dela, vendendo o que representava o trabalho de uma vida inteira.
- Talvez a vida seja mais fácil para eles - Hannah concordou. Também ela sofrerá muito com a morte da mãe. Também ela queria pôr um pouco de aventura em sua vida
para esquecer as tristezas.
- Eu não sei... Mas vou fazer o possível para que tudo dê certo para Seth.
- De acordo com o que o capitão Reed diz, vamos todos ter de nos dedicar bastante.
Elisa pensou notar algo diferente no tom de voz da moça. Olhou-a com atenção.
- Ele fala muito, não? - perguntou.
- As crianças ficaram encantadas com as histórias que ele contou. - Hannah levou o pão à boca. - Preciso ir - disse, mastigando-o. - Vim para avisá-la de que
todos se encontrarão amanhã à noite na casa dos MacDougall, para uma festa de despedida.
- Que bom! Vou levar o Sr. e a Sra. Gutmueller. Hannah deu-lhe abraço rápido, despedindo-se:
- Tudo vai dar certo, Elisa. Você vai ver.
A casa dos Crawford era uma construção antiga, malcuidada, que precisava de pintura e reparos. Hannah não conseguia imaginar Amos Crawford trabalhando numa casa,
num local selvagem, já que não tinha habilidade sequer para um pequeno conserto. Bem, ele seria, ao menos, outro homem capaz de proteger as mulheres e as crianças.
Além disso, o pequeno Benjamin Crawford era o melhor amigo de Jacob, e ambos já brincavam de desbravadores da fronteira.
O próprio Benjamin veio abrir a porta, mas logo foi empurrado para longe de Hannah pelo irmão de sete anos, Thomas.
- Eu disse que eu ia abrir a porta, Ben! - ele protestou, e ambos começaram uma luta que os fez rolar pelo chão.
- Mamãe! Tom e Ben estão brigando de novo! - gritou a pequena Patience, enquanto sua irmã gêmea, Hope, pulava e agitava os braços, alegre.
Martha Crawford apareceu à porta que levava à cozinha. Era uma mulher muito bonita e elegante, mas um tanto abatida e castigada pelo excesso de filhos e de tarefas
domésticas.
- Parem com isso! - gritou, mas não foi obedecida. Sem se importar, passou pelos garotos que ainda brigavam e sorriu para a recém-chegada. - Como está, Srta.
Forrester?
Hannah olhou para o chão, onde, agora, as quatro crianças se engalfinhavam, e deu logo seu recado. Quando terminou, Amos Crawford apareceu, vindo da sala dos
fundos. Olhou para os filhos e respondeu:
- Sim, iremos até lá. Já estamos arrumando nossas coisas para a viagem.
- Quer que eu leve algo para a festa? - perguntou sua esposa, num sorriso gentil e cansado.
- Não, não. Será tudo por conta dos MacDougall - Hannah falava alto, para que os gritos das crianças não abafassem sua voz. - Até amanhã, então! Tenham um bom
dia!
Saiu de lá depressa, impressionada com a confusão, e passou pelo portão que caía aos pedaços.
Hannah deixara a casa dos Trask por último. Não queria rever Hugh Trask, após o que ele fizera na taverna, na outra noite. Quase podia sentir a mão embrutecida
daquele homem em sua cintura. E aquela não fora a primeira vez em que ele a fizera sentir-se embaraçada e aborrecida. Sempre que ia à casa dos Webster, Hugh fazia
algo desagradável ou dizia coisas tendenciosas. Era uma pena que os Trask fossem também naquela viagem. Porém Nancy era uma mulher jovem e agradável, e suas duas
filhas, Janie e Bridgett seriam boas coleguinhas para Peggy.
Hannah sentiu-se aliviada ao ver que Hugh Trask não estava em casa. Deu seu recado rapidamente e foi embora logo. Mas seu alívio desapareceu quando chegou ao
pequeno morro antes da estrada que a levaria de volta para casa. Hugh vinha em sua direção e não havia como evitar aquele encontro desagradável.
- Olá, Hannah! O que fazia em minha casa? - Ele parou diante da moça, obstruindo-lhe o caminho.
- Vim para dizer que nos reuniremos todos amanhã à noite. Falei com a Sra. Trask.
- Você não precisava ter saído com tanta pressa. Minha esposa está grávida de novo, seria bom para ela ter alguém com quem conversar a respeito.
Hannah já suspeitava daquela gravidez, mas Nancy era muito reservada, não comentara nada com ninguém da cidade. Como Hugh Trask era capaz de expor a esposa naquele
estado a uma viagem tão perigosa? Se não fosse uma simples criada, Hannah diria a ele o que pensava a seu respeito. Mas, na atual situação, queria apenas ver-se
livre da presença dele.
- Desculpe-me... - Procurou passar. - Tenho muito a fazer ainda.
Trask segurou-a pelo cotovelo.
- Acha, por acaso, que é boa demais para ficar um pouco em minha casa, moça?
Ela tentou se soltar, mas os dedos daquele homem eram tão firmes...
- É claro que não, Sr. Trask. Mas estamos a apenas dois dias da viagem. Estou certa de que o senhor e sua esposa têm também muito a fazer.
O homem puxou-a mais e encostou sua perna às dela.
- Nunca estou ocupado demais para certas companhias - disse, com uma espécie de risada abafada.
Hannah engoliu em seco.
- Por favor, deixe-me ir, Sr. Trask.
Ele baixou a cabeça, e Hannah cerrou os olhos enojada.
- Não sei se devo ou se quero soltá-la.
De repente, a mão de Trask foi afastada do braço de Hannah por um puxão violento. Ele deu alguns passos cambaleantes para trás e voltou-se. Hannah abriu os olhos
e encontrou o rosto sério, zangado e bonito do capitão Ethan Reed.
- O que está havendo por aqui, Trask? - ele perguntou.
O homem massageava o ombro no local onde a mão do outro o puxara.
- Nada - respondeu, de cara amarrada. - Por que está me procurando?!
Ethan voltou-se para Hannah.
- Este homem a estava aborrecendo, Srta. Forrester? Ela olhou para ambos. Queria dizer que sim, mas uma criada não devia reclamar de um homem que apenas a segurara
pelo braço. Muitas já haviam passado por coisas piores.
- Não. Está tudo bem, capitão. Obrigada por se interessar.
- Por que não cuida de sua própria vida, Reed? Está sendo bem pago para nos guiar, não para interferir em nossas vidas.
- Assim que estivermos a caminho, Trask, sua vida e as de todas as outras pessoas do grupo estarão em minhas mãos. Eu ditarei as regras, então. E minhas normas
dizem que é melhor você se comportar.
Trask ia responder algo, mas preferiu dar-lhe as costas e dirigir-se a sua casa.
Ethan viu-o afastar-se e voltou-se para Hannah, sorrindo.
- Agora pode me dizer a verdade. Você está bem? Ela assentiu e procurou retribuir o sorriso.
- Você está tremendo - ele insistiu.
- Não... E que... - Mas as palavras lhe fugiam. Ethan passou-lhe um braço confortador sobre os ombros, depois afastou-se um pouco.
- Quero que me diga, caso ele se aproxime de você outra vez.
- Sim, senhor.
- Quer que eu a acompanhe até sua casa?
- Não, obrigada. Não é necessário.
Ele tocou de leve a aba do chapéu antes de dizer:
- Até a noite, então. - E afastou-se pela estrada. Hannah retomou seu caminho, pensativa. Aquela
situação era irônica: jamais precisara ser protegida por um homem, e agora Ethan Reed oferecia-lhe proteção contra Trask, e Randolph Webster, contra Reed. Mas,
como sua mãe costumava lhe dizer, podia muito bem cuidar-se sozinha. Não precisava aceitar nenhuma daquelas ofertas.


CAPÍTULO TRÊS

Peggy Webster veio para o salão da taverna trazendo uma bandeja com iguarias, orgulhosa por estar servindo os convidados como sua avó e Hannah. Janie e Bridgett
Trask apenas a olhavam, sentadas junto à mãe, caladas como sempre. Ninguém parecia notá-las, exceto Peggy. Seu pai, porém, Hugh Trask, era notado por todos, com
seus modos grosseiros, sua voz forte e sua risada desagradável. Peggy não gostava dele, e ficaria contente se aquela família não participasse da jornada para o Oeste.
- O feijão já está pronto, Peggy - disse a Sra. MacDougall à neta. - Pode trazê-lo para a mesa, mas tome cuidado com a travessa.
Peggy sorriu para suas amiguinhas e voltou à cozinha. Jacob, seu irmão, segurou-lhe a saia quando passou por ele e perguntou:
- Onde estão os Crawford? Eu e Benjie íamos construir um forte lá atrás. Agora já escureceu...
- Não sei deles, Jacob. Talvez ainda estejam ocupados com os preparativos para a viagem.
- Você não quer fazer o forte comigo?
- Não. Estou ocupada agora.
- Posso ajudar também, então?
Peggy era, geralmente,,muito paciente com o irmãozinho. Mas, nessa noite, havia muita agitação, muita ansiedade no ar e em seu coração também.
- Você é muito pequeno! E é menino! - disse, firme, soltando a saia das mãos do pequeno e voltando à cozinha.
Jacob passou olhou à sua volta na sala. Seu pai conversava com as amigos: Trask, Baker e o capitão Reed. Talvez devesse estar ali, entre os homens, pensava o
garotinho. Foi, então, até o grupo, que estava junto à lareira, fumando cachimbos. Havia rolos de fumaça azul subindo e dispersando-se no ar quente da taverna.
Os homens riam de algo que o capitão dissera. Jacob admirava aquele sujeito; ele parecia ter estado em todos os lugares possíveis; lutara contra os índios, contra
os franceses, até contra um urso gigante. Ele era fascinante!
- Há ursos lá?
Os quatro homens olharam para baixo, ao ouvir a pergunta de Jacob. O pai ergueu-o nos braços, mas, já que ia tornar-se um forte menino do Oeste, Jacob achou melhor
espernear até que Randolph Webster o colocasse de volta ao chão.
- Há muitos ursos lá, Jacob - o capitão respondeu, olhando-o de homem para homem, fazendo-o sentir-se muito bem. - Precisaremos estar sempre alertas, porque caberá
a nós, homens, manter os animais ferozes longe das mulheres.
Os outros três sorriam, mas Reed falava sério, e Jacob dirigia-se apenas a ele:
- Vou estar alerta, capitão. Sempre!
Reed assentiu com gravidade e fez um breve movimento com a mão, referindo-se a seu cachimbo.
- Você não fuma ainda, estou certo?
O menino negou com a cabeça.
- É. Não é, mesmo, um bom hábito - concordou o capitão no mesmo tom sério.
Na cozinha, Elisa Baker e Jeanne MacDougall retiravam o enorme peru do forno. Hannah pegou o caldeirão com o feijão e disse a Peggy:
- Deixe que eu levo isso. Está quente demais. Traga a travessa com os nabos.
- Os Crawford não chegaram ainda - observou a menina.
- Bem, o jantar já está pronto. Acho melhor comermos - disse a avó. - Além disso, Amos Crawford nunca chega na hora certa era ocasião nenhuma!
Hannah sentia a agressividade controlada a custo na Sra. MacDougall. Sabia que ela lutara contra a dor da partida iminente de seus entes queridos e compreendia
sua atitude. Procurava conviver com seu constante mau humor, embora tivesse notado que ele piorara ainda mais quando Hannah não quisera que seu contrato fosse vendido
à Sra. MacDougall. Talvez a sogra de Randolph tivesse esperança de que ele desistisse da viagem se Hannah ficasse.
Segurando com força o grande caldeirão de ferro, Hannah voltou ao salão da taverna. Os olhos de Ethan Reed encontraram-na de imediato, o que o fez interromper
o que dizia para ir em seu auxílio.
- Deixe-me carregar isso, senhorita - ele ofereceu, tomando-lhe a panela das mãos. - E pesado demais para uma moça tão frágil.
Hannah sentiu as mãos dele roçarem as suas, e enrubesceu ao perceber que todos os presentes os observavam.
Randolph Webster deixou o cachimbo sobre o aparador da lareira e aproximou-se também.
- Não notei que precisava de ajuda, Hannah - disse, também solícito. - Quer que eu faça algo?
- Não, obrigada, Sr. Webster. Há bastante gente ajudando lá na cozinha. Tudo já está pronto e...
A porta se abriu para, dar passagem à turbulenta família Crawford, interrompendo Hannah. Amos trazia uma das gêmeas no colo. Ben e Thomas vinham logo atrás, e,
por último, Martha, com a outra menina. Jacob foi de imediato até Benjamin.
- Vamos ter de ficar alertas por causa dos ursos! - avisou, sem preâmbulos.
- Boa noite, Amos - saudou Randolph Webster.
- Entre. Já íamos começar a comer.
Nenhum dos Crawford sorriu em resposta àquelas palavras.
- Quero dizer uma coisa a todos, primeiro.
- O que houve, Amos? - Randolph preocupou-se logo. Conhecia o amigo desde a infância.
- Não é fácil o que tenho a dizer. - Ele colocou a filhinha no chão e ergueu o corpo devagar. - Não vamos poder partir com vocês.
Houve um primeiro momento de silêncio, então Hugh Trask falou, em voz alta:
- Você só pode estar brincando! Não pode desistir agora!
Amos não o olhou. Fixava Randolph, e ambos pareciam compartilhar os mesmos sentimentos.
- Qual é o problema, Amos? - Webster perguntou, calmo.
As duas gêmeas tinham corrido para junto de Peggy, de quem gostavam muito, e uma delas falou:
- Mamãe chorou.
- Não podemos - continuava Amos Crawford, com voz trêmula. - Eu apenas me enganei, achando que poderíamos. As gêmeas são pequenas demais, quase bebês; os meninos
também não têm idade para poder ajudar em alguma coisa... Martha diz que anda cansada...
Seth Baker ainda fumava junto à lareira. Disse, tirando o cachimbo da boca:
- Você concordou, Amos, como todos nós. E precisamos pagar o capitão, não podemos cobrir sua parte no dinheiro.
- Nós pagaremos - interferiu Martha. - Mas não iremos. Não vou arriscar a vida dos meus filhos num lugar cheio de índios selvagens.
- É o que eu digo sempre - a Sra. MacDougall concordou, da cozinha.
- E por que não disse isso há meses, quando começamos a fazer os planos? - Hugh Trask perguntou a Martha, zangado.
Ela passou o braço pelo do marido, como em busca de apoio para responder:
- Não pensamos muito na época, eu admito. Por isso estamos dispostos a pagar. Mas não vamos para o Oeste.
- Quase não há mais problemas com os índios agora, Martha - Randolph tentou convencê-la. - Os franceses já não estão mais do lado deles, pagando-os para matar
os ingleses.
- Os franceses podem não estar mais pagando-os - ela retrucou -, mas ouvi dizer que os guerreiros de Pontiac Ottawa tomaram um forte inglês no mês passado.
Ethan ouvira tudo em silêncio. Então, adiantou-se para esclarecer:
- Os ingleses não permitiriam que colonizadores se estabelecessem naquelas terras se não as considerassem seguras, senhora. Embora eu deva reconhecer que sempre
há perigo. Pontiac é o maior líder que os índios já tiveram, e costuma ser imprevisível.
- Eles não podem desistir agora, podem, Reed? - perguntou Trask, ansioso.
- Não vejo como forçá-los a ir - o capitão respondeu com tranqüilidade. - Vamos precisar de pessoas capazes e que queiram, de fato, participar nessa viagem.
Trask olhou para os, outros.
- Minha mulher está grávida de novo, mas nenhum de vocês nos vê reclamar das dificuldades que teremos de enfrentar.
- A senhora está grávida? - Randolph perguntou, surpreso, para a esposa de Trask.
Nancy enrubesceu e baixou os olhos, sem responder.
- E você acha certo continuar? - Randolph voltou-se para Trask. - Tem certeza de que quer afastar sua esposa da civilização num momento como este?! Ela vai precisar
de cuidados médicos!
Trask deu de ombros.
- A criança vai nascer de qualquer modo; lá ou aqui. Randolph meneou a cabeça e voltou a falar com os
Crawford:
- Não há nada que possamos fazer ou dizer para convencê-los a vir conosco, Amos?
Hannah sentia pena daquele homem. Ele parecia abatido, vendo o sonho de sua vida desaparecer diante de seus olhos. E as olheiras de Martha Crawford atestavam
que, para eles, aquela fora um decisão muito difícil de ser tomada.
- Já nos decidimos - Amos Crawford respondeu, com firmeza. - Sinto deixá-los, mas... nossa palavra é final.
Ethan olhou para as pessoas na sala antes de perguntar:
- Querem adiar a viagem até encontrarem outra família? Posso esperar até a primavera.
- Não - Randolph, respondeu. - Estamos todos preparados para ir. Os Baker e os Trask até já venderam suas casas. Vamos agora, de qualquer maneira.
- Desculpem-nos - Amos murmurou, acariciando a mão da esposa, sobre seu braço. Seus meninos tinham as cabeças baixas, estavam muito tristes.
Foi o capitão quem quebrou o silêncio que se seguiu:
- Já que tudo está decidido, vamos comer!
Foi mais difícil deixar aquela casa do que tinham imaginado. Lá ficavam as recordações de Priscilla, a esposa dedicada, mãe amorosa, mulher doce e meiga.
Peggy chorou ao abraçar com força a avó, na despedida. Jacob se manteve calado; seus planos de conquista do Oeste junto ao amigo Ben haviam sido bruscamente desfeitos.
Randolph demorou a deixar o quarto que partilhara com a esposa e, quando o fez, seus olhos estavam vermelhos.
Viajaram quase o tempo todo em silêncio. Randolph comprara uma carroça, um cavalo para puxá-la e duas mulas para levar o restante da carga. Hannah procurava manter-se
longe do animal; achara-o estranho e imprevisível desde que o patrão o trouxera para casa.
A parada para o almoço foi breve e, no final do dia, o capitão permitiu que parassem bem antes do anoitecer, já que todos estavam exaustos.
Hannah olhava para o pequeno riacho, cujo curso vinham seguindo, e puxou o xale de lã sobre os ombros; ele pertencera a Priscilla, e Randolph insistira para que
Hannah o usasse na viagem. Afinal, haveria muitas noites frias pela frente.
O sol se punha devagar no horizonte, muito longe, na outra margem do rio, e a noite seria fria, com certeza. Hannah decidiu trabalhar para se aquecer; precisariam
de lenha para a fogueira, além de comida e barracas para dormirem. No entanto, era agradável ficar ali, olhando para as águas do rio; elas corriam para o Oeste,
para uma terra vasta para onde, por certo, nenhuma mulher branca já fora.
Arrepiava-se ao pensar nisso.
- Hannah, você está bem? Está exausta demais da viagem? - Randolph aproximou-se, sua voz demonstrando cansaço.
Ela sorriu. Estava começando a se acostumar àquele novo lado de seu patrão.
- Um pouco... Afinal, não é fácil passar o dia todo no lombo de uma mula. Mas estou bem. Na verdade, um pouco preocupada com o senhor e os pequenos.
- É. Não foi um dia fácil, as crianças se comportaram até melhor do que eu esperava, mas... é duro, sabe?
Ela assentiu e tocou-lhe de leve o braço.
- Sei que é difícil deixar uma parte de sua vida para trás. Também me senti assim quando saí da Inglaterra. Mas as crianças logo irão se adaptar, e o senhor
também.
- E estaremos tão ocupados que nem teremos tempo para lamentações, certo? - Ele sorria. - É uma pena os Crawford não terem vindo. Jacob sente falta de Ben.
Ambos voltaram a olhar para o acampamento. O capitão ensinava Jacob a pendurar um peru sobre o fogo, para assar.
- Tome conta e apare, com esta caneca, os pingos de gordura que forem escorrendo. Depois jogue o líquido de novo sobre a ave. A carne vai ficar tenra e saborosa,
você vai ver. Sua irmã e a Srta. Hannah vão ficar vermelhas de inveja quando experimentarem o peru que você preparou.
Jacob sorriu e pegou a caneca que o capitão lhe oferecia. Hannah voltou-se para o patrão.
- Jacob parece bem feliz, não?
A expressão de Randolph era um tanto carrancuda.
- Ele vai se queimar, se não tomar cuidado. Hannah surpreendeu-se com o tom hostil que percebeu em sua voz.
- O capitão Reed está observando-o...
- Mas não é tarefa do capitão observá-lo! Hannah calou-se, aturdida. Randolph fora tão gentil instantes atrás, e agora a estava repreendendo. Afinal, era responsabilidade
dela cuidar das crianças.
- Quer que eu diga a ele para se afastar do fogo? - ela perguntou, engolindo a reprimenda.
Randolph olhou-a, como se não compreendesse a pergunta.
- Não! Quero dizer... eu não quis insinuar que você não está fazendo seu serviço, Hannah. Já lhe disse antes: eu e as crianças estaríamos perdidos sem você.
- Pensei que estivesse irritado comigo, senhor.
- Não, não. Estou cansado, apenas. Desculpe-me. Tive um dia muito difícil.
- Tenho certeza de que todos nos sentiremos melhor amanhã.
Randolph sorriu para ela.
- Só o fato de conversar com você já me faz sentir melhor, Hannah.
Na noite do terceiro dia de viagem, as conversas ao redor do fogo eram sobre o aconchego de casa, as tortas de maçã da vovó MacDougall, as camas macias e quentes.
Hannah começava a se perguntar se, com o passar do tempo, a saudade de casa tornaria ainda mais longa e difícil aquela jornada.
Prometeu às crianças que fariam suas próprias tortas, logo que tivessem uma casa. Quanto às maçãs... não sabia ao certo quanto tempo uma macieira levava para
crescer e dar frutos.
A verdade era que, com exceção do capitão Reed e do pequeno Jacob, todos ali estavam muito, muito abatidos e cansados.
Peggy solidificara sua amizade com as meninas Trask, e passava muito tempo junto delas, o que deixava seu irmão quase sempre sozinho.
Seth e Elisa Baker, o casal mais idoso do grupo, de nada se queixavam, mostrando uma afabilidade e uma alegria constantes, apesar das agruras da viagem.
Nancy Trask também não se pronunciava, o que não acontecia com seu marido, já que Hugh sempre que podia fazia algum comentário grosseiro sobre seu cansaço e as
dificuldades da trilha escolhida pelo capitão. Este fazia questão de ignorá-lo, e isso o deixava ainda mais irritado.
Quanto a Randolph, Hannah sabia muito bem o que se passava com seu patrão. Ele nada dizia, mas estava longe de ser o mesmo aventureiro arrojado que planejara
aquela viagem. Todo seu entusiasmo desaparecera, dando lugar a um aborrecimento constante. Hannah já percebera uma certa rudeza dele em relação a Ethan Reed, e suspeitava
que o motivo fosse a atenção do capitão para com ela própria. Isso era difícil de acreditar, já que Randolph sempre a considerara uma simples criada. Pensar que
ele estivesse enciumado era algo absurdo, mesmo porque a atenção, os sorrisos e as piscadas que o capitão dirigia a ela nada significavam. Ele tratava a Sra. Baker
com o mesmo modo gentil, um tanto malicioso às vezes.
- Posso saber no que está pensando, senhorita? Hannah deu um pulo ao ouvir a voz que vinha da escuridão. A maioria das pessoas já se deitara para dormir, mas
ela não conseguira uma posição confortável para suas costas doloridas na pequena barraca que dividia com Peggy e Jacob.
O capitão se aproximou da fogueira, trazendo dois pedaços de tronco bastante grossos.
- Isto servirá para alimentar a fogueira durante a noite toda - ele disse, colocando as toras sobre as chamas. Limpou as mãos na calça e sentou-se ao lado de
Hannah. - Então? Posso saber por que está preocupada?
Ela tentou afastar os pensamentos sobre as atenções de seu patrão e do capitão.
- Eu não sabia que ainda estava acordado - respondeu, desconversando.
- Você também está. Ela deu de ombros.
- Não pude dormir. Acho que estou cansada demais. Nunca fui de cavalgar muito...
- Acho que você está se saindo muito bem. Todos, na verdade, estão. Logo terão calos onde precisam tê-los.
- Não acho essa idéia muito atraente - ela observou, rindo -, mas vou me alegrar quando isso acontecer.
Ele também riu.
- Tenho uma garrafa de uísque, que talvez ajude a acalmar algumas dores, mas acho que, se eu a mostrar, nosso adorável Sr. Trask poderá ficar fora de si.
- Tenho certeza de que o senhor o controlaria, e muito bem.
- Já lidei com tipos parecidos. Não sei como uma mulher tão doce quanto Nancy Trask agüenta um sujeito daqueles.
Hannah sentiu que algo a perturbou nas palavras dele sobre a outra mulher. Nancy era frágil e bonita.
- Ela é muito atraente... - comentou, voltando a olhar para as chamas da fogueira.
- É, sim, mas precisa ser muito mais forte do que parece ser. Espero que não tenha seu bebê antes de chegarmos a nosso destino.
Hannah arregalou os olhos.
- Mas... é lógico que não! Como poderia ter a criança durante a viagem, a céu aberto?!
- Os bebês nascem sem horário previsto, senhorita. -lá ajudou algum a nascer?
- Não. Creio que Elisa Baker é quem deve entender dessas coisas.
- Bem, já que nós, homens, não entendemos do assunto, uma de vocês, ou as duas, terão de ajudar a Sra. Trask, se for o caso.
Agora Hannah reconhecia o que significava estar distante da civilização. Pássara muitas necessidades em Londres, mas, numa emergência, sempre soubera que podia
recorrer a alguém. Também em Filadélfia,
enquanto cuidava de Priscilla, nada lhe faltara para tratar da pobre mulher até sua morte.
Assentiu, de leve, aceitando o fato de sua realidade atual, e murmurou:
- Vou falar com Elisa a respeito.
- Ótimo, senhorita. Gosto de seu modo de agir. Vai se dar muito bem no Oeste. Na verdade... há muitas coisas a seu respeito que me agradam.
Hannah sentiu o rosto se aquecer de repente. Talvez fosse o calor das chamas, ou a proximidade daquele homem e o que havia por trás de suas palavras.
- Acho que o senhor está zombando de mim, capitão. E não gosto disso.
Ele aproximou-se ainda mais, e Hannah pôde ver o brilho das chamas em suas pupilas escuras.
- Gosta de doces, senhorita? Hannah franziu as sobrancelhas.
- O que disse?
Ethan afastou-se um pouco, de repente, e tirou um pequeno embrulho do bolso interno do casaco.
- Balas de cevada - explicou, tirando uma do pacotinho e colocando-a entre os lábios dela.
Após o primeiro momento de surpresa, Hannah sorriu, sentindo o gosto agradável da bala.
- Os Creek dizem que, se você adormece com algo doce na boca, terá sonhos suaves. - O capitão colocou também uma bala na boca.
- O senhor disse que devíamos trazer apenas o essencial nesta viagem, capitão - ela observou, com um leve tom de reprimenda na voz.
- Eu considero estas balas essenciais. É só por causa delas que volto ao Leste uma vez ou outra. Não há muito mais coisas na civilização que me interessem.
- Gosta de doces... Mas deve haver outras coisas das quais sinta falta.
- Na verdade, não, senhorita. Às vezes sinto falta de leitura. Quase não há livros no Oeste, e os jornais vêm sempre com muito tempo de atraso.
- Não sente saudade de sua família? De seus amigos?
- Tenho apenas amigos no forte Pitt. E eles me bastam. - Suas palavras tinham um tom frio, como se quisesse pôr um ponto final naquela conversa.
- Bem, acho que é melhor eu tentar dormir agora. - Hannah levantou-se devagar.
Ethan imitou-a e tornou a oferecer o pacote de balas.
- Quer mais uma? Ela aceitou.
- Obrigada. Quero garantir bons sonhos esta noite. Ethan Reed assentiu, grave. Seus olhos fixavam os
de Hannah, como se quisessem prendê-los para sempre...


CAPÍTULO QUATRO

A viagem era longa e difícil, e o capitão abria que, com o cansaço e as dificuldades, os nervos ficariam cada vez mais à flor da pele. Agora, porém, estavam em
território indígena, e ele queria sair dali o quanto antes.
Os sênecas costumavam ser pacíficos, mas, pouco antes de partir de Filadélfia, Ethan soubera, por um colega rastreador, que Pontiac estava incitando os sênecas
a se aliarem a sua tribo e aos potawatomis para lutarem contra o número cada vez maior de ingleses que chegavam ao vale do rio Ohio. O capitão esperava que tudo
não passasse de boatos e não queria assustar com simples probabilidades as pessoas que guiava. No entanto, não arriscaria a vida de mulheres e crianças, ignorando
a informação, mesmo que fosse apenas um boato. Só diminuiria a marcha quando já estivessem se aproximando do forte Pitt.
Mantinha a espingarda sempre à mão durante o dia e dormia muito pouco à noite. Talvez Hannah Forrester tivesse um pouco mais de insônia e viesse fazer-lhe companhia
junto ao fogo, de novo.
Entretanto, duas noites se passaram sem que isso acontecesse. Ethan considerou que talvez fosse melhor assim. Precisava estar atento, e ela desviaria sua atenção.
Mesmo com as agruras da viagem, Hannah continuava atraente. Seus cabelos brilhavam, seus olhos pareciam conter uma força, uma alegria de viver incríveis. Nunca
a ouvia se queixar. Estava sempre disposta a seguir adiante, a fazer o que ele dizia.
Como se seus pensamentos a chamassem, Ethan viu-a aproximar-se da fogueira. Como sempre, seus lindos cabelos claros estavam presos na trança que lhe descia até
o meio das costas.
- Você nunca dorme? - ela perguntou, sorrindo. O capitão sorriu também, dizendo:
- É necessário estar sempre alerta numa viagem. E raro ter-se uma noite inteira de sono.
Hannah prendia as pontas do xale com as mãos, à cintura, o que evidenciava seus seios fartos, bem-feitos. Ethan notou isso e sentiu um frêmito percorrer-lhe o
corpo.
- Quer se sentar um pouco aqui comigo? - perguntou, apontando para um grande tronco caído próximo ao fogo.
Hannah assentiu e sentou-se, junto a ele.
- Vejo-o sempre acordado, muito depois de todos já estarem adormecidos. Mesmo assim, é o primeiro a se levantar, pela manhã.
- Acredito que temos a eternidade toda para dormir, senhorita.
- Talvez... algo o mantenha sempre tão alerta. Acredita que estejamos passando por algum perigo?
Ethan achou que podia dizer-lhe a verdade. Hannah não parecia ser do tipo histérico, como aquelas mulheres fúteis que conhecera em Boston. No entanto, ela podia
sentir-se na obrigação de contar tudo a seu patrão, e logo Ethan estaria rodeado por um bando assustado e disposto a abrir fogo contra qualquer pequeno animal que
aparecesse na mata.
- Talvez sejam meus sonhos que me deixam acordado - ele respondeu, sorrindo.
- Capitão Reed... - Hannah começou, em tom de reprimenda.
Ethan ergueu a mão, impedindo-a de prosseguir.
- Eu tenho um problema, sim. Minhas balas acabaram. Preciso de algo doce para dormir.
Hannah notava que os olhos dele estavam fixos em seus lábios, e arrepiou-se com aquelas palavras. Na verdade, sentia uma espécie de medo daquele homem; medo do
que ele representava, das sensações que sua presença lhe provocava. Sua mãe a alertara sobre os homens e, desde a morte dela, a situação de Hannah como criada mantivera-a
distante de qualquer envolvimento emocional. Estava agora com vinte e um anos, idade em que a maioria das garotas do Leste já estava j casada e com dois ou três
filhos para criar.
O capitão aproximou-se e beijou seu rosto com suavidade.
-Pronto! - disse, num sorriso. - Isto vai ser suficiente para adoçar meus sonhos desta noite.
Ethan era o primeiro homem que a beijara, mesmo no rosto. Nada havia de mal nisso; fora um beijo inocente, gentil, que a aquecera por dentro.
- Sua pele é suave como a de um bebê - ele observou, cobrindo a mão de Hannah com a sua.
Ela afastou-se, brusca. Não sairia mais da barraca, a noite, para ouvir os galanteios do capitão.
- Por favor... - murmurou, embaraçada. - Eu lhe peço, mais uma vez, que se comporte de modo cor- reto comigo. Não estou acostumada a... a esse tipo de coisa.
- Sua vida tem sido séria demais, Srta. Forrester. Notei isso desde a primeira vez em que nos encontramos, na taverna. Vi que estava vivendo mais para os outros
do que para si mesma.
- Sinto-me satisfeita em servir, capitão. E, mesmo que não fosse assim, estou presa a um contrato ainda por um bom tempo.
- Quanto tempo?
- Três anos.
Ethan assobiou, admirado.
- Já vai estar velha, então - brincou. - Precisa começar a pensar em sua própria vida.
- Gosto da minha vida exatamente como é, capitão Reed.
- Há coisas agradáveis que precisa aprender a apreciar, senhorita - ele continuou, como se não a tivesse ouvido. - Como sentar-se à luz da lua com um bom sujeito
como eu. E perceber a atração que existe entre nós dois. É uma sensação tão antiga quanto o próprio homem, e eu a estou tendo agora com muita intensidade. Não nota
também, Hannah?
Ela prendeu a respiração, diante de tamanha ousadia.
- Capitão, vim até aqui apenas para conversar com o senhor, e nada mais.
Ethan encarou-a. Era difícil acreditar que uma mulher tão bonita, naquela idade, nunca tivesse se envolvido com alguém. Não entendia o medo que via em seus olhos.
Talvez, no passado, algum sujeito inescrupuloso como Hugh Trask a tivesse assustado com seus galanteios grosseiros.
- E sobre o que queria conversar? - perguntou, gentil.
- Sobre Nancy Trask. Acho a jornada muito difícil para ela. Parece cada dia mais fraca, e vai precisar de forças para a hora do parto.
- Eu os avisei de que a viagem seria dura.
- Talvez os Trask tenham cometido um erro em vir, mas isso não muda o fato de que ela está se despistando demais. Precisamos fazer algo a respeito.
Ethan ergueu-se e deu alguns passos até o outro lado da fogueira.
- Não podemos parar, por enquanto. Preciso pensar em todos aqui.
Hannah levantou-se também.
- Pois, então, fale com eles! Eu não me importo em parar. E acredito que o Sr. Webster e os Baker também não.
- Sinto muito. - Ethan negou com a cabeça.
Hannah não acreditava no que estava ouvindo. Instantes atrás, aquele homem parecera tão gentil... Fora até carinhoso. Ela o olhou, através das chamas: era um
homem alto, forte, de aparência até ameaçadora em sua força.
- Não acredito que não possa deixá-la descansar por um dia apenas. Por que está com tanta pressa?
- Eu avisei que minha autoridade, nesta viagem, seria absoluta. Vamos partir amanhã cedo, como de costume.
Hannah assentiu gravemente, indignada.
- A vida dela está em suas mãos, então - disse, firme.
- A vida de todos aqui está, senhorita - Ethan respondeu, com uma calma irritante.
Hannah cruzou os braços, depois descruzou-os, sem saber como agir. O capitão continuava olhando-a, em silêncio, até que ela resolveu dar-lhe as costas e voltar
a sua barraca.
Hannah não pretendia desistir. Ethan Reed podia ser o guia, mas não tinha sensibilidade suficiente para perceber que alguém no grupo estava sofrendo. Aproximou-se
de Randolph, que levava dois cavalos para beberem água no rio, e viu que o patrão lhe sorria com especial atenção.
- Bom dia, Hannah! Você e as crianças dormiram bem?
- Bom dia. Dormimos bem, obrigada, mas tenho um assunto que gostaria de discutir com o senhor.
- Há algo errado? Você parece preocupada.
- É a Sra. Trask. Ela precisa descansar antes de prosseguirmos. Falei com o capitão ontem à noite, mas ele se recusa a parar com a viagem por algum tempo.
Webster franziu as sobrancelhas.
- Você falou com Reed?
- Sim. E ele se recusou a parar.
- Quando falou com ele, Hannah? - Randolph parecia mais preocupado com isso do que com o estado da Sra. Trask.
- Ontem à noite, quando todos já estavam dormindo.
- Não gosto que fique a sós com ele!
- A Sra. Trask está fraca demais para viajar, senhor. Gostaria que me ajudasse a convencer o capitão de que precisamos parar por um dia para que ela descanse.
- Ela está doente?
- Não. Mas a gravidez pode se complicar, a criança poderá nascer prematura!
Randolph pareceu ficar pálido, e Hannah lembrou-se de um aborto que a Sra. Webster tivera, no primeiro ano em que trabalhara para eles. Priscilla já estava doente
na época, e Randolph ficara muito preocupado.
- Então acho melhor pararmos para que ela descanse - ele disse, por fim, num fio de voz.
Hannah apenas sorriu. Deixaram os animais bebendo e foram à procura do capitão. Elisa estava por perto c foi convencida a acompanhá-los.
Ethan Reed estava consertando um arreio quando os viu chegarem e, por suas expressões, percebeu logo do que se tratava.
- Bom dia! - saudou-os, mesmo assim.
- Sei que Hannah conversou com você ontem sobre o estado da Sra. Trask, Reed. E sei também que você se recusou a deixá-la descansar. - Randolph falava com firmeza.
O capitão pôs a sela de lado e se levantou.
- Não é possível atender ao pedido da Srta. Forrester - afirmou, calmo. Tão alto e forte, ele parecia muito bem entrosado ao ambiente selvagem em que se encontravam,
e Hannah sentiu seu coração se acelerar ao perceber todos os detalhes que evidenciavam aquele homem aos seus olhos.
Ethan sorria com os lábios, mas não com o olhar. Randolph, porém, não se deixou abater.
- Acontece, capitão - prosseguiu -, que nós estamos pagando, o que nos dá o direito de decidir se paramos ou não.
Os olhos de Ethan Reed cerraram-se quase imperceptivelmente.
- Está enganado, Webster. Imagine que está numa guerra: vocês são os soldados, e eu, o general.
- Você pode se dar o título de capitão, Reed, mas isto não é uma guerra! Você é o contratado aqui e fará j o que quisermos!
Já não havia sorriso naqueles lábios:
- Não é assim que funciona, Webster. Se pensa dessa forma, não terei escolha a não ser levá-los de volta a Filadélfia.
Hannah pôde perceber que ambos se alteravam, mas, enquanto seu patrão se exaltava, Reed permanecia firme e tranqüilo em sua posição. Não havia dúvidas quanto
a qual dos dois era o mais perigoso ali, e ela achou melhor intervir:
- Senhores, de nada adianta discutirem. Podemos nos sentar e falar sobre o assunto como pessoas civilizadas.
Ethan voltou-se para ela. Falou, calmo, embora fosse óbvio que, agora, sua irritação se estendia a ela também:
- Não há nada a conversar, senhorita. Eu devia í ter deixado isso bem claro ontem à noite, mas acho que estava com minha atenção presa a outras coisas. -
O olhar dele era tão profundo que a fez baixar o seu. - Além disso, eu não queria alarmar o grupo.
- Alarmar?! - Elisa Baker exclamou, se aproximando. - Alarmar quanto a quê?
- Há índios sênecas nesta região, senhora. Eles costumam ser pacíficos, mas tenho ouvido boatos e não quis arriscar.
- Entendo. - Elisa tinha o tom maternal e compreensivo da avó que jamais seria. - Por quanto tempo mais poderemos correr perigo, capitão?
- Vamos sair do território deles em dois dias, talvez três.
- Então, é melhor não perdermos tempo - ela concordou, sem vacilar. - Vou dar a Nancy um pouco de um tônico que eu trouxe e, à noite, lhe farei um chá, para que
durma melhor e descanse bem. Ela poderá agüentar até que o senhor decida onde poderemos parar em segurança.
Ethan sorriu com gratidão para a mulher. Depois, assentindo de leve para Randolph e Hannah, afastou-se sem mais uma palavra.
Randolph não se afastou de Hannah durante todo o dia, a não ser por alguns minutos, quando foi até Nancy Trask para ver como estava. Talvez devido ao tônico da
Sra. Baker ou à sua própria força de vontade, a jovem grávida parecia um pouco mais animada nesse dia.
Hugh Trask mostrava-se um tanto irritado, por achar que os outros o consideravam desatento para com a esposa, e foi grosseiro ao pedir a Randolph para que não
mais se intrometesse em sua vida.
Hannah também se sentia desconfortável devido à discussão daquela manhã e estava esperando uma oportunidade para conversar com o capitão a respeito.
Não queria se desculpar, afinal Ethan não lhe falara sobre os índios. Se soubesse do perigo, ela nem sequer teria envolvido Randolph e Elisa no caso. Notara,
porém, que desde a partida uma certa animosidade se instalara entre Webster e Reed, e ainda não compreendia o motivo disso.
Quando, ao fim do dia, pararam para o pernoite, Hannah notou que o momento oportuno chegara.
Ethan estava amarrando os animais, e, sabendo que o patrão encontrava-se na barraca com as crianças, Hannah aproximou-se do guia.
Ele lhe sorriu assim que a viu, mas não mostrou a mesma amabilidade das outras ocasiões.
- Sinto muito pelos problemas que causei hoje pela manhã - ela começou, direta -, mas o senhor podia ter me falado sobre o perigo que estávamos correndo.
- E. Talvez eu devesse ter falado.
Ela não podia ver-lhe a expressão no escuro, e continuou, um tanto embaraçada:
- Eu... acho que me precipitei.
- E verdade, moça. Mas eu não lhe falei sobre os índios porque é provável que não encontremos nenhum. Peço-lhe, porém, que não questione mais minhas decisões.
O bem-estar do grupo é minha responsabilidade maior e sei o que estou fazendo.
A reprimenda era merecida, mas atingiu Hannah.
- Devo considerá-lo perfeito, então, capitão - replicou, irônica.
- Sou o melhor guia que poderia encontrar por estas paragens, senhorita. E o único, neste caso. Por isso, é melhor agir do modo que digo porque as vidas de todos
aqui dependem de mim.
Hannah guardou silêncio por instantes, considerando as palavras dele. Depois, disse:
- O senhor poderia, pelo menos, ter mais apreço pelo Sr. Webster. Afinal, foi ele quem o contratou.
- Aliás, essa foi a única coisa correta que ele fez, se me permite dizer, já que organizou um grupo de colonizadores que inclui uma mulher grávida e fraca, um
casal de velhos e uma terceira família que desistiu no último instante.
- Ele não poderia imaginar que os Crawford não viriam, nem que a Sra. Trask estaria grávida.
Ethan acariciou o pescoço de um dos cavalos. Em seu rosto havia um ar irônico, divertido. Continuou com as críticas:
- O fato é que ele questionou minha autoridade só porque tenho olhos para ver a beleza de mulher que tem como criada.
A noite, ao redor deles, caía devagar, e os insetos começavam a preenchê-la com seus sons característicos, como numa saudação ao primeiro dia da primavera. Hannah
podia ouvir as vozes que vinham do acampamento, mas não as diferenciava; reconhecia, apenas, as risadas das crianças, que vinham da barraca, a certa distância. Agora
parecia compreender o antagonismo entre Webster e Reed, e isso causava-lhe um frio na espinha.
O capitão parecia ser um homem que notava a presença de qualquer mulher jovem, e Randolph lhe dera uma atenção diferenciada nas últimas duas semanas. Até não
lhe parecia tão absurdo que os dois pudessem estar se confrontando por sua causa.
- O Sr. Webster quer, apenas, que esta aventura lenha sucesso - Hannah conseguiu dizer, por fim. - Não acredito que ele guarde algum sentimento... diferente por
mim.
Ethan aproximou-se. Sua voz agora tinha um tom bem mais baixo:
- Tem certeza de que ele não sente nada por você?
- Absoluta. - Ela tentou dar um passo atrás, mas havia um cavalo logo às suas costas.
- Então acho que ele não vai se importar se eu fizer o que venho querendo desde a noite passada. - Ethan puxou-a num abraço forte e beijou-a, a princípio com
certa suavidade, depois, com uma paixão crescente, que pareceu derreter Hannah por dentro.
Quando se afastou, Ethan perguntou outra vez, num sussurro:
- Acha que ele faria qualquer objeção? Hannah afastou-se, tomada por um embaraço tardio e desconcertante:
- O Sr. Webster nada diria sobre isto. Mas eu digo: sou eu quem faço as objeções, capitão.
Ela deu-lhe as costas e voltou à barraca, sentindo as pernas estranhamente fracas...
Ethan Reed sorria. Não houvera, nos lábios de Hannah, o mínimo traço de objeção a seu beijo.


CAPÍTULO CINCO

O grupo conseguiu atravessar o território sêneca sem nenhum incidente. Nancy Trask parecia ter se adaptado à jornada, afinal, e atribuía o fato ao chá preparado
pela Sra. Baker, da qual se tornara grande amiga. Hannah, porém, não conseguia esquecer que era uma criada quando falava com Nancy, e não compreendia o porquê disso.
Sentia-se um tanto distanciada das outras, portanto, e deixava-se dominar por uma espécie de preocupação constante, incômoda. Na verdade, sua inquietação maior era
para com os sentimentos que se reacendiam em seu peito ao se lembrar do beijo que o capitão lhe dera. Jamais imaginara o poder sedutor dos homens, contra o qual
sua mãe tanto a alertara. Agora, porém, começava a tomar contato com ele e decidiu ficar longe tanto de Ethan quanto de Randolph. Era melhor dedicar-se às crianças,
em especial a Jacob.
A noite, quando o grupo se reunia em torno da fogueira, ela e o menino pareciam dois estranhos ali. Nancy e Elisa conversavam muito; Peggy brincava com Janie
c Bridgett; e os homens, apesar de ainda haver uma certa reserva entre Webster e o capitão, sempre tinham algo importante a conversar com relação à viagem.
Sentir-se isolada era desagradável, mas Hannah preocupava-se mais com o menino. A vida que ela tivera com a mãe fora solitária, não havia crianças com as quais
pudesse brincar, já que era filha de mãe solteira, e isso criava certos estigmas para a sociedade londrina.
Jacob, no entanto, sempre fora uma criança dinâmica, de muitos amigos, e Hannah não queria vê-lo tão só.
Gostava quando o capitão incluía o pequeno na conversa dos homens, mas isso não acontecia sempre, embora Ethan parecesse notar mais a presença de Jacob do que
o próprio pai.
- Quer ir caçar amanhã? - o capitão perguntou na noite em que pararam para descansar.
O rosto do menino se iluminou.
- Vamos caçar ursos?!
O capitão riu e acariciou os cabelos claros do garoto.
- Provavelmente não. Como poderíamos carregar um urso enorme em nossa viagem? Além do mais, Jacob, um bom homem das matas apenas mata o que vai comer ou levar
consigo.
- Posso ir, papai? - Jacob voltava os olhinhos brilhantes para Webster. Depois, voltando-se de novo para Ethan, perguntou, sem esperar a resposta do pai: - O
que vamos caçar, então?
- Aves: patos, perus. E talvez alguns esquilos.
A lista pareceu não entusiasmar muito o menino, mas logo ele estava sorrindo de novo e perguntando:
- Você vai usar o Tiro Certeiro? - ele se referia ao apelido que Ethan dera a seu próprio rifle. O capitão contara inúmeras histórias às crianças sobre como aquela
arma o salvara em diversas ocasiões.
- Eu não sairia para caçar sem ele-Ethan respondeu.
- Posso ir, papai? - Ele se voltava de novo para Webster, puxando-lhe a barra do paletó. - Quero ver o capitão Reed usar o Tiro Certeiro! Talvez eu possa atirar
também!
Randolph hesitou um pouco antes de responder:
- Talvez você possa usar uma arma menor, própria para caçar aves; não aquele rifle enorme.
- E posso carregá-la também? - Jacob era só entusiasmo.
Randolph assentiu e completou.
- Mas, se quiser ser um bom caçador amanhã, tem de ir para a cama cedo hoje.
Hannah levantou-se de imediato.
- Eu o levo, senhor - ofereceu -, mas antes... gostaria de pedir para acompanhá-los na caçada amanhã.
- Quer ir caçar? - Randolph estranhou.
- Quero. Acho que seria bom para mim, já que vamos viver numa região selvagem...
- Caçar é coisa para homens! - Trask interrompeu, definitivo.
Hannah voltou-se para seu patrão.
- Por favor, eu gostaria de tentar.
Randolph vacilava e, antes que pudesse dizer alguma coisa, Ethan falou por ele:
- Não vejo razão para que a Srta. Forrester não vá.
- Está certo --Randolph concordou, ainda um tanto hesitante. - Não tenho objeções.
Era bem melhor caminhar do que montar, pensava Hannah, erguendo a saia para que não arrastasse nas folhas úmidas do chão.
O ar da primavera era fresco e perfumado, e ela o respirava com prazer.
Somente Elisa Baker ficara acordada no acampamento. Tinham partido muito cedo, caminhando rio abaixo até atingirem um penhasco, à beira do qual andavam agora.
Jacob carregava um pequeno mosque-te, que Ethan lhe emprestara, e ia logo à frente de Hannah, animado e confiante.
Não deram a ela nenhuma arma. Parecia que nenhum dos homens levara a sério sua vontade de aprender a lidar com uma. Seth Baker já caçara um pombo, mas Randolph
perdera sua chance ao errar o tiro quando um bando de patos selvagens levantara vôo a certa distância. Hannah lembrava-se do que Jeanne MacDougall dissera sobre
as habilidades de caçador do genro. Era bom que Randolph tivesse mais sorte durante o dia, ou voltaria sem nada para o acampamento.
- Estamos fazendo muito barulho ficando juntos - o capitão comentou ao pararem às margens de um pequeno lago. - Vou dar a volta. Vocês esperam aqui. Procurarei
assustar em sua direção qualquer animal que estiver lá.
Todos concordaram, vendo o capitão afastar-se pela j margem.
- Posso atirar agora, papai?
- Ainda não, Jacob. Vamos primeiro pegar algumas aves. Depois eu o ajudo a caçar a sua.
Ao atingir o outro lado do lago, Ethan pegou um graveto e arremessou-o às águas. Um bando de patos selvagens alçou vôo de imediato, enquanto Seth, Hugh e Randolph
erguiam seus rifles.
- Aquele é meu! - Randolph gritou, atirando contra uma das aves, à esquerda.
- Você errou, papai - comentou Jacob assim que a fumaça dos disparos se dissipou.
Seth e Hugh tinham acertado duas aves e se dirigiam ao local onde estas haviam caído. Randolph baixou a arma, um tanto desapontado, e olhou de relance para Hannah.
- Nunca fui muito bom nisso - comentou, desculpando-se.
- Você pode usar meu mosquete, se quiser, papai. Talvez tenha mais sorte se um pedacinho de chumbo atingir algo.
Randolph sorriu.
- É. Talvez eu tente depois, filho.
O dia foi passando, e Randolph não conseguiu caçar nada, mesmo usando o mosquete às vezes. Em certo momento, Ethan aproximou-se, tentando aconselhá-lo:
- As aves vão voar na direção do vento. Procure mirar pouco adiante delas, e talvez acerte.
O ponto máximo do dia para Jacob foi quando conseguiu acertar um pombo. O menino pulava de alegria com a ave na mão.
Ethan veio até Hannah para conversar:
- A pobre ave está cheia de pedacinhos de chumbo. Talvez nem possamos aproveitá-la, mas o menino está feliz, e é isso que importa.
Já tinham todos caçado várias aves quando, por fim, Hannah encheu-se de coragem para dizer:
- Acho que agora é minha vez. Alguém pode me emprestar uma arma?
Randolph, procurando disfarçar seu mau humor de caçador desapontado, ofereceu a sua, dizendo:
- Use esta.
- Acho que um rifle seria muito forte para a senhorita começar - disse Ethan, vindo de entre as árvores com um faisão na mão. - Use a que emprestei a Jacob.
Enquanto carregava o mosquete, ele prosseguia:
- Já fez isso antes, moça?
Hannah negou com a cabeça. E, antes que pudesse dizer algo, o capitão já passara os braços ao seu redor, ajudando-a a segurar o mosquete. Sem se dar conta, ela
olhou para o patrão, que os observava de longe.
O capitão falava com naturalidade, explicando como Hannah deveria mirar e atirar, mas ela não conseguia se concentrar nas instruções. O corpo dele, forte e quente
junto ao seu, trazia-lhe lembranças da noite em que Ethan a beijara.
- Quer que eu a ajude ou vai tentar sozinha? - Ethan perguntou, junto a seu ouvido.
- Vou tentar sozinha. - Ela esperava que sua voz não mostrasse o tremor interno que a assaltava.
Ethan afastou-se.
- Certo. Há um ganso naquele galho, vê? Procure relaxar os nervos, mas mantenha as mãos firmes.
Livre da proximidade perturbadora dele, Hannah mirou a ave e procurou concentrar-se.
A força do disparo tomou-a de surpresa, fazendo-a dar dois passos para trás. Logo Jacob estava gritando:
- Ela acertou, papai! Ela acertou!
Seth Baker foi até a touceira próxima à árvore e trouxe a ave abatida, dizendo:
- Foi um belo tiro, Hannah!
- Eu sabia que você aprenderia depressa - Ethan sussurrou, muito próximo, tirando-lhe o mosquete das mãos, para recarregá-lo.
- Parabéns, Hannah - disse Randolph. - Parece que, em nossa família, você será a encarregada de trazer a comida para casa.
Hannah jamais fora tratada como parte da família, e percebeu que as palavras do patrão eram direcionadas tanto para ela quanto para o capitão. Mas sabia que Randolph
sentia-se mal por não ter conseguido acertar nenhuma ave, e gostaria de fazer algo para melhorar seu ânimo. Além disso, havia no rosto de Ethan Reed um ar de satisfação
que a desconsertava.
- O senhor foi um ótimo provedor para sua família até hoje - ela disse, aproximando-se de Randolph. - Acredito que o será ainda por muito tempo.
O capitão recarregara a arma e oferecia-a de novo a Hannah.
- Quer tentar outra vez?
- Não. Já foi o suficiente por hoje. Obrigada.
- É. Acho que todos estamos satisfeitos. - Ele apontou para as várias aves mortas. - Vamos ter um belo jantar esta noite e em muitas outras também.
- E eu ajudei! - observou Jacob.
O pai sorriu para o menino e acariciou-lhe os cabelos.
- É. Ajudou muito, sim, filho.
Todos estavam descansados e animados naquela noite, comendo a carne fresca que havia sido trazida para o acampamento. Jacob contara suas aventuras para a irmã
e as amiguinhas mais de uma vez, e estas pareciam aceitá-lo agora em seu pequeno círculo de amizade, deixando-o feliz e orgulhoso de si mesmo.
Hannah olhava para as crianças com satisfação, vendo-as brincarem de fazer sombras, usando a luz da fogueira, que estava mais alta e forte do que de costume.
Até Hugh e Nancy Trask pareciam estar se divertindo nessa noite; ela até sugerira que Seth Baker tocasse seu violino após o jantar. Assim, feliz e animada, Nancy
Trask mostrava a verdadeira beleza de seus traços. E Hugh pareceu perceber isso também, pois Hannah viu-o olhar longamente para a esposa, várias vezes.
Todos pareciam felizes ali, exceto, talvez, Randolph Webster. Ele comeu bem e brincou um pouco com as crianças, mas Hannah tinha certeza de que ele pensava em
algo que o aborrecia. Talvez se lembrasse da esposa, que perdera tão cedo, ao ver a felicidade dos Baker e dos Trask. Pobre homem! Talvez aquela viagem nada mais
fosse do que uma fuga do sofrimento. Hannah sabia, no entanto, que fugas não adiantam. A dor acompanha sempre quem a sente.
Quando o Sr. Baker voltou da carroça com seu violino, as crianças se aproximaram, e Jacob perguntou:
- Como o senhor aprendeu a tocar, Sr. Baker? Acha que posso aprender também?
Seth sorriu, acariciando a madeira brilhante do instrumento.
- No inverno, quando estivermos todos enfiados dentro de casa, eu vou ensinar você, Jacob. E na primavera você já poderá tocar em seu primeiro baile.
Randolph se afastara do círculo junto à fogueira. Hannah percebeu que ele olhava para as águas escuras do rio, quieto, distante, e caminhou devagar para junto
do patrão.
- Não vai querer ouvir a música? - perguntou, suave. Ele se virou para vê-la. Mesmo no escuro, Hannah
percebia que Randolph tinha o olhar triste.
- O que houve? - insistiu.
- Não me sinto disposto a ouvir música esta noite.
- As vezes, quando estou triste, eu me obrigo a fazer algo alegre, e logo me animo.
Randolph sorriu de leve.
- Acho que você nunca fica triste, Hannah.
- Fico, sim. Fiquei muito triste quando minha mãe morreu e achei que jamais seria feliz de novo.
- E você é, agora?
- Acho que sim.
- Mesmo estando presa a um contrato?
- Tenho sido muito feliz em sua casa, Sr. Webster. Adoro as crianças, como sabe. Ainda sinto falta da Sra. Webster e sei que a ausência dela deve ser terrível
para o senhor às vezes.
Randolph deixou de olhá-la para observar a noite.
- É difícil para mim, sim. Eu e ela tínhamos feito planos, íamos ficar com a taverna porque os MacDougall já estão velhos e cansados demais. íamos construir um
albergue na parte de trás; talvez até um pequeno hotel. O país está crescendo, Filadélfia está se desenvolvendo cada dia mais depressa.
- Mas agora o senhor vai ajudar o país a crescer ainda mais, sendo um pioneiro no Oeste.
Ele voltou a encará-la.
- Às vezes me pergunto se tomei a decisão mais acertada. Veja, por exemplo, o que aconteceu hoje. Talvez eu não seja o tipo de homem indicado para viver na fronteira.
- Acho que todos nós vamos ter muito o que aprender por aqui.
- Se não morrermos de fome primeiro. - Havia amargor nas palavras dele, e Hannah sentiu-se um tanto culpada, pois pensara da mesma forma ao vê-lo errar os disparos
naquele dia.
- Tenho certeza de que não gostaria de ficar com a taverna sem a Sra. Webster - disse, para confortá-lo.
- O irmão dela ficará com tudo agora, mas não acredito que ele deixe sua paróquia de lado para ser um negociante.
- Tudo se arranjará, Sr. Webster. O senhor e as crianças serão muito felizes nesta terra nova e maravilhosa.
- Espero que todos nós sejamos, Hannah. - Ele tocou-lhe o braço com mão trêmula. - Eu jamais teria me arriscado nesta viagem se você não tivesse concordado em
vir também. Você nos dá coragem, sabe?
Randolph já a tocara várias vezes, para ajudá-la a subir e descer da carroça, mas, agora, a mão dele parecia arder contra sua pele. Hannah sentiu vontade de afastar-se,
mas conteve-se.
- A força vem de dentro de nós, senhor - disse, calma. - As crianças e o senhor têm sido fortes desde a morte da Sra. Webster, e eu não tive nenhuma responsabilidade
nisso.
- Você está enganada, Hannah. E logo vou mostrar-lhe o quanto.
Randolph permaneceu olhando-a por um longo, intenso momento. Então convidou:
- Vamos ouvir a música de Seth e ver se seu sistema para se alegrar funciona.
Seth tinha talento. Tocava muito bem. Junto aos outros, ao redor do fogo, Ethan aplaudia compassada-mente, num acompanhamento animado da melodia; mas sua atenção
estava em Webster e Hannah, afastados dos demais, junto ao rio. Aquele sujeito estaria, afinal, percebendo o tesouro que tinha em casa? Já fazia meses que ele enviuvara,
devia estar começando a se recuperar da solidão... Não. Randolph Webster não era tolo.
Ethan viu quando o outro tocou o braço de Hannah, que não se afastou. Os dois estavam muito próximos... Já era de se esperar. E seria bom, afinal, para ele próprio.
Poderia concentrar-se na tarefa de guiar aquelas pessoas em segurança e depois partir, tranqüilo, sem mais se lembrar delas, inclusive de Hannah Forrester.
Aquela jovem provocara-lhe emoções estranhas. Quando a sentira junto a si, ensinando-a a manejar a arma, tivera a sensação aflitiva de que sua mão poderia tremer
a qualquer instante, como a de um garoto inexperiente.
Seria ótimo chegar logo ao forte Pitt. E, durante o trajeto, procuraria ficar longe da criada de Randolph Webster.


CAPÍTULO SEIS

O descanso daquele dia foi seguido por mais cinco longos e cansativos dias de jornada ininterrupta, e logo todos do grupo achavam-se exaustos novamente.
Naquela noite, Nancy Trask não conseguira sequer ir até a fogueira para se alimentar. E Hugh trouxera uma garrafa, tentando diminuir ou esquecer, com a bebida,
seu cansaço.
Janie e Bridgett, sempre tão quietas, tinham brigado e, quando Peggy e Jacob tentaram intervir, ambas se voltaram contra eles, terminando tudo numa briga infantil
generalizada.
Hannah foi até a barraca dos Trask, para tentar persuadir Nancy a tomar um pouco de sopa A mulher se negou, até que Hannah lhe disse que Ethan Reed pretendia
chegar ao forte até no dia seguinte. Isso pareceu levantar os ânimos de Nancy, fazendo-a sentar-se e comer um pouco.
- Vou dar uma olhada nas crianças - disse Hannah, pouco depois.
- Mal posso crer que minhas meninas tenham brigado assim - ela comentou, com voz fraca. - Eu gostaria de ir falar com elas.
Havia olheiras profundas ao redor de seus olhos e, à luz do candeeiro, suas feições pareciam até fantasmagóricas.
- Eu faço isso, Sra. Trask. Fique tranqüila. Descanse; ainda temos um longo dia pela frente.
Nancy sorriu com certa tristeza.
- Você tomou conta das crianças de Priscilla; agora das minhas. Tivemos sorte em tê-la nesta viagem conosco, Hannah.
- Gosto de ser útil, senhora.
Nancy. tocou-lhe o braço com suavidade, e Hannah se arrepiou ao pensar que podia sentir cada um daqueles pequenos ossos sob a pele fina.
- Por favor, chame-me pelo nome, Hannah.
- Como quiser... Nancy. Agora, deite-se e descanse. Eu cuido dos pequenos.
Hannah encontrou as duas meninas vindo em direção à barraca da mãe. Levando-as até Jacob e Peggy, sentou-se com os quatro e começou:
- Vocês têm sido corajosos e bonzinhos até agora. Têm, até, nos ajudado muito. Acho que não seria apropriado se estragassem tudo em nossa última noite de viagem,
concordam? Amanhã já estaremos no forte, vocês conhecerão gente nova, verão coisas diferentes e terão muitos dias para brincar antes de prosseguirmos. Posso, então,
contar com vocês por mais um dia?
Aos poucos, todos assentiram em silêncio. Apenas Jacob falou:
- Mas Janie chamou Peggy de boba!
- Quando estamos exaustos, às vezes fazemos ou dizemos coisas que, na verdade, não queremos. Precisamos de uma boa noite de sono. Todos nós. E amanhã tudo estará
bem, vocês vão ver.
As meninas olharam-se por instantes, depois se abraçaram, pedindo desculpas umas às outras. Logo estavam todos sorrindo, e saíram correndo para verificar a armadilha
para esquilos que tinham preparado. Faziam uma todas as noites, mas sempre em vão.
- Você é maravilhosa com crianças.
A observação de Randolph fez Hannah voltar-se.
- Eles são ótimos. Os quatro.
- Gosto de ver que Peggy fez amizade com as meninas.
- E. Estive pensando: seria bom se todos pudessem estudar juntos quando nos fixarmos. Poderíamos ensiná-los, nós mesmos, num revezamento.
Hannah era boa em contas e sabia que Nancy Trask fora professora antes de se casar. Randolph assentiu.
- É uma boa idéia. Vou falar com a Sra. Trask quando ela melhorar.
- Acabei de levar-lhe um pouco de sopa. Acho que agüentará mais um dia. Poderá descansar bastante no forte.
- Não sei como um homem tão rude quanto Trask consegue ter esposa e filhas tão meigas.
- Ele me faz sentir... embaraçada às vezes.
- Ele a importunou, Hannah? Ela hesitou antes de responder:
- Não. Não mais... do que uma criada deveria esperar.
Para surpresa de Hannah, Randolph tomou-lhe as duas mãos, dizendo:
- Não quero que fale assim. Não quero mais que se julgue uma criada.
Hannah não sabia o que dizer. A proximidade repentina do patrão a embaraçava. E as palavras dele, a seguir, deixaram-na estupefata:
- Sei que ainda é cedo para isso. Precisamos nos acostumar à idéia primeiro. Não iremos além disso por enquanto.
Hannah cuidava daquele homem e de sua família havia meses, deveria ser natural que seu relacionamento fosse mais íntimo. Ele era bom, atencioso, e atraente também.
Em seu desespero, antes de embarcar no navio que a traria à América, Hannah jamais pudera imaginar que encontraria uma família na qual seu trabalho seria recompensado
com tanto carinho e gratidão.
- Eu... na verdade, senhor, não penso em mim mesma como criada - conseguiu murmurar.
- Então por que me trata por "senhor"? Ela corou de imediato.
- Não o farei mais, se não quiser.
- Acha que pode me chamar por Randolph apenas?
- E o que os outros poderão pensar?
- Pensarão o que quero que pensem: que as coisas estão mudando entre nós dois. E as pessoas do tipo de Hugh Trask compreenderão que você significa mais para mim
do que uma criada contratada.
- Você me ofereceu sua proteção ao comprar meu contrato em Nova York, e acredito que a esteja me oferecendo de novo. Eu lhe agradeço muito por isso.
A mudança em seu relacionamento parecia afetar bastante a ambos.
Ficaram em silêncio por instantes, como se as palavras lhes fugissem. Foi ele quem falou primeiro:
- Então... teremos ainda um longo dia pela frente...
- Acho melhor eu ir colocar as crianças na cama. Randolph concordou.
- Durma bem também. Nos veremos pela manhã. Ele ficou olhando-a afastar-se. Os cabelos longos e claros de Hannah brilhavam ao luar, caindo numa trança grossa
sobre suas costas. Randolph amara Priscilla mais do que imaginara ser possível, mas ela se fora. E a dor já se acalmava em seu peito, dando lugar a outro sentimento,
que se fortalecera durante aquela viagem. Hannah dissera que era grata a ele. Mas Randolph queria muito mais do que isso...
A última pessoa que ela queria ver após a conversa com Randolph era Ethan Reed. Mas lá estava ele, recostado a uma árvore próxima à barraca que Hannah ocupava.
- Você e Webster estão cada vez mais próximos - ele observou, mascando a ponta de uma haste de feno.
Ela estava sem graça. Ethan a beijara noites atrás e agora a vira de mãos dadas com o patrão. Não queria que ele pensasse nada de errado a seu respeito.
- Desculpe-me, capitão, mas preciso pôr minhas crianças para dormir.
- Suas crianças? - A haste de feno balançava conforme ele esticava os lábios num sorriso maldoso.
- O senhor entendeu o que eu quis dizer.
- E claro. Por favor, não se atrase por minha causa.
Hannah afastou-se com o coração aos pulos. Encontrou as quatro crianças conversando, animadas, mas nenhuma delas protestou ao ser chamada para dormir. Hannah
beijou e abraçou Peggy e Jacob, como de costume, e ouviu o menino perguntar:
- Vai haver índios no forte amanhã?
- Só vamos saber quando chegarmos, certo? Agora, vamos todos dormir.
Quando ela já se voltava, foi a vez de Peggy:
- Hannah?
- Sim, querida?
- Esta viagem seria horrível sem você. Hannah guardou silêncio por instantes. Por que a menina estaria lhe dizendo aquilo?
- Seu pai cuidaria muito bem de vocês, mesmo se eu não tivesse vindo.
- Não importa. Foi ótimo você ter vindo. Posso lhe contar um segredo?
- É claro que sim!
- Às vezes, quando olho para você durante a viagem, eu faço de conta que é mamãe quem está conosco.
Hannah sentiu um nó na garganta. Aproximou-se de novo para abraçar a menina.
- A mamãe sempre vai estar com você, querida.
Aonde quer que vá. Mas fico feliz em poder substituí-la, às vezes, para vocês.
- Eu amo você, Hannah - Jacob murmurou, em voz sonolenta.
- Também amo você, Jacob. Amo os dois. Agora durmam, está bem?
Hannah ficou ali, sentada junto das crianças, até que adormeceram.
Eram suas, sim, de certo modo. Amava muito os dois. E parecia que, agora, teria a oportunidade de ver se esse sentimento poderia se estender ao pai deles também.
Ainda pensava nisso enquanto caminhava pela margem do rio. Queria lavar-se antes de dormir. Havia uma pequena praia com um banco de areia ali perto, e Hannah
pensara em tomar um banho completo. Sabia, porém, que era arriscado; talvez fosse melhor esperar até que chegassem ao forte.
Ajoelhou-se na areia e curvou-se sobre as águas do rio. Já se acostumara com a água fria e não se esquivou quando levou um pouco até o rosto e o pescoço. Ergueu
a saia, para se enxugar, quando, de repente, um arrepio estranho a tomou, fazendo-a voltar-se.
Hugh Trask estava a poucos passos de distância, oculto entre as sombras dos arbustos. Tinha uma garrafa na mão direita e um sorriso estranho nos lábios.
- Não quero interrompê-la - disse, arrastando as palavras. - Eu só estava apreciando a vista...
Hannah levantou-se depressa.
- Eu já ia embora. Boa noite!
- Calma, calma! - Ele se aproximou com passos vacilantes.
O coração de Hannah começou a bater mais rápido quando ela notou que Trask estava bêbado.
De repente, sem que ela pudesse evitar, Hugh agarrou-lhe o braço com a mão livre, perguntando:
- Por que a pressa, doçura?
Hannah sentia a boca seca. Podia não se considerar uma criada, mas era uma, e havia coisas que um homem livre podia fazer com ela sem que a lei lhe oferecesse
proteção alguma.
- Por favor, Sr. Trask...
Mas ele a segurava cada vez com mais força.
- O senhor está me machucando! Por favor, deixe-me ir...
- Que tal tomarmos um banho de luar aqui, na areia?
- Afaste-se dela, Trask! Ou corto sua garganta com os cacos dessa garrafa!
Trask a soltou, e Hannah deixou-se cair de joelhos, sentindo o braço latejar, próximo ao ombro.
Ethan Reed saiu de entre as sombras da mata e aproximou-se. Arrancou a garrafa das mãos de Trask e jogou-a dentro do rio.
- Você está bêbado! - acusou, erguendo um dedo ameaçador. - Esta é a última vez que o aviso para ficar sóbrio durante a viagem!
Hugh piscava seguidas vezes, como se fosse difícil para ele enxergar o outro com clareza.
- Você não tem o direito de me dizer o que fazer, Reed! Nós é que estamos pagando você, e não o contrário!
Ethan agarrou Trask pelo colarinho e aproximou-o de seu rosto. Falou em tom tão baixo que Hannah quase não pôde ouvi-lo:
- Se tocar nela de novo, Trask, vai ver que tipo de direitos eu tenho! Serei capaz de comer seu fígado, entendeu?!
Trask voltou o rosto, para não encará-lo, mas Reed sacudiu-o:
- Entendeu, desgraçado?! - E empurrou-o para longe, fazendo-o cair sobre a areia. Então, voltou-se para Hannah e acocorou-se junto dela, perguntando: - Você
está bem?
- Sim. Graças ao senhor. Já é a segunda vez que me livra de um encontro desagradável com o Sr. Trask.
- Eu deveria escalpelá-lo! Mas... você está tremendo! - E, antes que ela se desse conta do que estava acontecendo, Ethan já a erguera nos braços, carregando-a
como a um bebê.
- Eu estou bem! - Hannah protestou.
- Seu coração disparou! Como pode estar bem? - Ele colocou a mão enorme sobre o peito dela, como para atestar o que dizia.
- Estou bem... - ela repetiu, num sussurro.
Ethan não afastou a mão. Hugh Trask já fora esquecido, e ambos se davam conta de que estavam muito próximos, numa pequena praia, à luz da lua. O capitão escorregou
a mão até o pescoço de Hannah e tocou-lhe o queixo, fazendo-a olhá-lo.
Ela sabia que seria beijada. Procurou lembrar-se de Randolph e do modo carinhoso como as mãos dele haviam apertado as suas. Procurou pensar em Jacob, dizendo
que a amava. Queria pensar em qualquer outra coisa que não fosse o braço forte de Ethan Reed enlaçando-a e aquela boca quente descendo sobre a sua. Tudo, porém,
foi em vão.
Esse beijo foi muito diferente do outro que Ethan lhe dera, e que começara como um carinho regado a paixão. Esse foi forte e faminto desde o princípio, fazendo-a
perder por completo a noção da realidade.
Quando se afastaram, instantes depois, os corações de ambos estavam agitados.
- Sinto muito, mas você me deixa louco - Ethan murmurou. - Pensei em dar-lhe um beijo apenas...
- Mas foi mais do que isso - ela completou. Podia ser inexperiente, mas percebia que algo diferente, especial, os unira.
Ethan respirou fundo antes de dizer:
- Sabe... não sei o que vou fazer a respeito...
Hannah não compreendia o que ele estava dizendo. Parecia que apenas Ethan tinha o poder de decidir alguma coisa ali. Ele falava. Ele sabia o que fazer. E quanto
a ela? Não contava?
- Não deve fazer nada - afirmou, definitiva, afastando-se e encarando-o. - Você me salvou, me... confortou. Só isso!
- Nós dois sabemos que não foi só isso, Hannah. Ela estava tendo dificuldade em controlar seus sentimentos.
Sentia-se agitada, emocionada, tensa. E não sabia qual dos dois homens a deixara mais irritada: Trask ou Reed.
- Eu acho que já lhe disse antes, capitão, que não estou acostumada a lidar com os homens. E nem pretendo me acostumar, pelo menos não enquanto meu contrato durar.
Ethan franziu as sobrancelhas.
- Não acha que deveria me chamar pelo meu primeiro nome, em virtude do que aconteceu entre nós, e que virá a acontecer de novo, com certeza?
Hannah vacilou um pouco, pensando no que ele acabara de dizer. Até que, por fim, respondeu:
- Não, eu não acho que deva, capitão. Admito que não sou indiferente ao senhor, mas acho que seria melhor para todos se ficássemos longe um do outro.
Ethan pensava. Sentira vontade de matar Trask ao vê-lo machucando aquela mulher. Depois, quisera deitá-la na areia e fazê-la esquecer que outro homem a tocara.
Só agora sentia o corpo mais aliviado das sensações que aquele beijo havia provocado. Não conseguia se lembrar de outro momento em que desejara tanto uma mulher,
e procurava explicar isso pelo fato de Hannah não estar, em absoluto, disponível.
- Está certo - concordou, tentando ser complacente. - Vou ficar longe de você.
- Obrigada.
Ela voltou-se para ir embora, mas parou e virou-se ao ouvi-lo:
- Hannah! Prometo ficar longe só se você ficar também.
Na manhã seguinte, Hannah acordou arrependida do que fizera na noite anterior. Não só deixara Ethan avançar demais em seus carinhos, como participara ativamente
daquele beijo escandaloso. Agradecia a Deus pelo fato de o capitão ter refreado seus instintos, porque não queria sequer pensar no que teria acontecido caso ele
não fosse tão controlado. Lembrou-se das palavras da mãe: "Eu sou do tipo que os homens procuram porque gosto de... bem, você sabe... E tenho tanto medo que você
seja assim também, meu amor..."
Hannah sentia-se culpada porque gostara de estar nos braços do capitão. Não lhe parecia haver mal nenhum em sentir o que sentira. No entanto, sabia que era errado.
O capitão não falou com ela durante os preparativos para o último dia de viagem. Notara, porém, que ele a olhara com seriedade ao ouvi-la chamar o patrão pelo
primeiro nome.
Ela o fizera de propósito, mas ninguém prestara atenção à novidade, além de Ethan Reed, nem mesmo o próprio Randolph.
O dia transcorreu tranqüilo, cansativo e longo. Todos estavam ansiosos para chegar ao forte. Ethan lhes dissera que avistariam as torres de guarda assim que atingissem
o ponto onde os rios Monongahela e Allegheny se juntavam para formar o grande Ohio.
Quando, por fim, o dramático instante chegou, houve um silêncio generalizado, quebrado apenas pela voz do capitão:
- Podemos desmontar e descansar aqui por algum tempo. Há ainda uma boa distância até o forte, maior do que parece daqui.
Hannah sentia-se um pouco decepcionada com a visão do forte, que imaginara maior e mais bem guarnecido. Talvez os outros estivessem pensando da mesma forma. Havia
muitas ruínas sobressaindo por entre as torres de vigia, dando um aspecto desolado e triste à construção. Além disso, o entreposto comercial que ficava próximo ao
forte não passava de um grupamento de cabanas caindo aos pedaços, que em nada fazia lembrar o que haviam deixado em Filadélfia. Tinham abandonado seus lares, famílias
e amigos e uma cidade de quase quarenta mil pessoas para chegar a um quase nada.
Hannah voltou a olhar para Randolph e as crianças. A expressão deles também era sombria. Todos ali faziam uma idéia muito diferente do forte Pitt. Viam-no como
um retorno à civilização, um porto seguro em sua viagem para o Oeste. E aquela parecia ser a maior decepção que experimentaram até o momento. Quando o capitão chamou-os
para que reiniciassem a jornada, todos obedeceram em silêncio. Apenas Jacob falou, e parecia que ele era o porta-voz do grupo:
- Eu pensei que fosse maior...
Se o forte não era o que Hannah imaginara, a região, porém, fazia jus a tudo com que pudera sonhar. O vale imenso era rodeado por montanhas verdejantes e cortado
por dois rios de águas cristalinas. Após a junção de ambos, o grande rio Ohio, recém-formado, descia em direção às terras férteis do sudoeste.
Entusiasmado com a visão majestosa do rio, Jacob voltou-se para Hannah, exclamando:
- É maior do que o Delaware!
- E mais extenso, também! - ela respondeu, tomada por uma emoção nova, quase inebriante.
Aquela era a terra da promissão, com certeza. E Hannah esperava que pudessem descansar bastante no forte e usufruir de toda a calma e beleza da região, antes
de começarem a segunda parte de sua longa viagem, que seria pelo rio, em um grande barco.
Já entardecia quando chegaram aos portões do forte. Agora, tão próximo, ele parecia bem maior e mais sólido do que quando o tinham avistado de longe. Podia não
ter a elegância dos prédios de Filadélfia, mas era firme o suficiente para garantir proteção e segurança a quem nele se abrigasse.
O grupo foi recebido por um jovem tenente que, após lançar um olhar apreciativo a Hannah, dirigiu-se a Ethan, dizendo:
- Prazer em vê-lo, capitão.
Ethan apertou a mão que o soldado lhe oferecia, sorrindo.
Hannah estava ocupada, soltando as malas que se encontravam presas à sela de sua montaria, mas pôde perceber que uma mulher cruzava correndo o pátio do forte,
vindo ao encontro dos recém-chegados. Ela se pendurou no pescoço do capitão, num gesto familiar.
- Ethan, querido! - exclamou. - Senti tanto sua falta! Ele a ergueu do chão com um dos braços e deu-lhe um beijo nos lábios, respondendo depois:
- Pois pode ficar feliz, Polly! Estou de volta!


CAPÍTULO SETE

Randolph apresentou Hannah ao comandante do forte como sua governanta. O grupo ia jantar na casa do oficial naquela primeira noite, para comemorar sua chegada.
A caminho, Hannah cruzou o pátio, alegre, despreocupada. Sentia-se, pela primeira vez, livre do estigma de "criada". Elisa e Seth sempre a tinham tratado como uma
igual, e Nancy Trask começava a confiar nela como Priscilla fizera. Hugh Trask fora o único que mostrara uma expressão irônica no rosto quando Randolph mudara o
título de sua criada.
Ethan não fora Visto desde a chegada. Desaparecera junto com os soldados e a animada Polly.
Sempre atenta aos sentimentos dos amigos, Elisa Baker aproximou-se de Randolph e deu-lhe o braço. Vendo que ele já oferecera o outro a Hannah, comentou, sorrindo:
- Sei que quer acompanhar as duas damas mais bonitas do forte, Randolph. - E, esticando o pescoço para Hannah, arrematou: - Temos de ser as mais bonitas, já que
somos, praticamente, as únicas, não é, querida?
Randolph e Hannah riram, quebrando assim a tensão que pairava no ar por estarem indo juntos para o jantar.
As crianças tinham sido deixadas sob os cuidados de uma senhora mestiça, que prometera contar aos pequenos uma história real sobre uma princesa índia, antes de
irem todos para a cama.
O coronel Bouquet era um ótimo anfitrião. Apresentou o grupo a quatro de seus oficiais que também estavam presentes ao jantar.
Pareciam estar todos muito contentes por terem visitantes no forte, e fizeram muitas perguntas sobre o novo imposto do açúcar que o Parlamento votaria em breve.
O coronel falou sobre sua esposa e filhos, que deixara em Bristol, declarando estar ansioso para ser mandado de volta à Inglaterra.
Apesar do bom humor, aqueles homens pareciam solitários, e Hannah deu-se conta de que a vida dos soldados era ainda mais isolada do que a dos colonizadores, que,
pelo menos, tinham suas famílias junto a si.
A comida era farta e muito bem preparada, e a noite teria sido perfeita para Hannah, não fosse pela presença de Hugh Trask, o qual ela surpreendia olhando-a,
às vezes, com jeito malicioso e insolente.
De repente, a pergunta de Randolph para o coronel mencionou um nome que tirou Hannah de suas considerações:
- O capitão Reed não virá se juntar a nós para o jantar?
- Acho que ele atendeu a um convite mais interessante - o coronel respondeu, em tom alegre. - Ele é bastante popular por aqui.
- Eu percebi. Uma mulher veio saudá-lo logo que chegamos - Randolph observou, citando o fato de propósito para que Hannah ouvisse.
- Deve ser Polly McCoy. O marido dela era um rastreador que se juntou aos índios chippewa e nunca mais voltou. Polly ficou no forte e tornou-se comerciante.
As pessoas da baía Hudson não gostam muito de tê-la por aqui, mas os preços de seu armazém são bons, e os rastreadores gostam de fazer negócios com ela.
- Eu posso fazer uma idéia - Seth Baker comentou, malicioso, mas calou-se logo ao sentir o beliscão que Elisa lhe deu no braço.
- Então o capitão Reed e a Sra. McCoy são amigos? - Randolph continuava falando para que Hannah ouvisse.
- Pode-se dizer que sim. Estão sempre juntos quando Ethan está no forte.
Hannah decidira tirar Ethan Reed de seus pensamentos, mas não podia evitar as sensações que a assaltavam com a simples menção daquele nome. E lógico que imaginara
que ele devia ter uma mulher esperando-o em algum lugar; por isso mesmo era bom ficar afastada daquele homem.
Apesar da hospitalidade do coronel, nenhum dos visitantes quis se demorar após o jantar. Estavam todos muito cansados. No entanto, ficaram surpresos quando o
oficial sugeriu um baile em homenagem a sua chegada tranqüila. Para não desapontá-lo, resolveram concordar, e foi Elisa quem falou pelo grupo:
- Ótima idéia, coronel! Ficaremos muito honrados.
- Excelente, senhora! Sabe, temos aqui um tenente chamado Higgins que toca violino como ninguém!
- Podemos organizar um desafio, então, porque meu marido sempre diz ser o melhor violinista das colônias!
Ficou decidido que, na noite seguinte, se reuniriam novamente para o baile. Depois, todos se retiraram para os aposentos que tinham sido preparados para acomodá-los.
Hannah e as crianças Webster ficariam num quarto pequeno, com uma cama de casal, e quando Randolph a acompanhou até lá, os pequenos já dormiam, deixando apenas
uma beirada do leito para ela.
- Vocês três vão ficar bem? - Randolph perguntou, vendo aquilo,
- Estou tão cansada que poderia dormir numa caixa de pregos. - Hannah respondeu, num meio sorriso.
- Amanhã vou pedir para que coloquem outra cama aqui.
- Se tiverem uma, está bem. Senão dormiremos no que já temos, não se preocupe.
- Você nunca reclama de nada, Hannah? - ele indagou, olhando-a com intensidade.
Hannah percebia o brilho diferente em seus olhos, e sabia que o patrão estava muito próximo, como jamais estivera antes.
- Talvez eu reclame, se não conseguir dormir logo - respondeu, procurando ser gentil, mas distante ao mesmo tempo.
- Espero poder beijá-la um dia desses. Ela empalideceu.
- Sr. Webster! - admoestou, mas ele logo a corrigiu.
- Randolph, lembra-se? Você se lembrou, hoje pela manhã, quando Reed estava por perto.
Hannah baixou a cabeça, procurando escapar da suave repreensão que sentiu na voz dele. Mas Webster tocou-lhe o queixo, fazendo-a encará-lo de novo.
- Isso não importa agora. Sou paciente e sei que Reed não é do tipo que se casa. Espero que você seja esperta o suficiente para perceber isso também.
Hannah recordou, pela centésima vez, a cena em que Polly se jogava nos braços do capitão.
- E. Eu sou, sim - concordou.
- Que bom! Escute, será que poderá me dar a honra de acompanhá-la ao baile de amanhã, senhorita? - Havia brincadeira e respeito, ao mesmo tempo, nas palavras
dele.
- E quanto às crianças?
- Irão também, conosco. Afinal, somos uma família, não?
Hannah apenas assentiu. Estava cansada demais para fazer qualquer comentário a respeito.
Já era costume para os civis que moravam no forte agruparem-se em frente à loja de Polly McCoy. Durante o inverno, muitos preferiam o calor da lareira, lá dentro,
mas, numa tarde amena de primavera como aquela, todos ficavam conversando, animados, na varanda e nos degraus.
Ethan Reed estava recostado ao corrimão de entrada, ouvindo mais uma das histórias de Beartooth Carter. Ninguém sabia, ao certo, de onde aquele homem viera, mas
ele afirmava já ter percorrido o continente inteiro e sempre tinha um fato interessante a narrar.
Polly já se recolhera a seu minúsculo quarto, no fundo da loja, depois que Ethan se recusara a acompanhá-la. Mas ela não se importara em ir para a cama sozinha.
Era uma mulher alegre e jovial, que amava demais todos os homens para cometer o engano de apaixonar-se por um deles em especial. No entanto, não passara despercebido
a Polly o jeito como o capitão fitava uma das novas colonas que trouxera até o forte.
- Está de olho nela, não? - ela insinuara, antes de se recolher.
Ethan apenas sorrira, achando haver uma ponta de ciúme naquela indagação. E Polly insistira:
- Ela é casada com aquele sujeito alto?
- Não. É criada dele.
- Ah, sei... Isso tem um novo nome agora?
- Não, Polly. Não é como você pensa. - O tom levemente aborrecido do capitão a fizera desistir das perguntas e retirar-se para o quarto.
Ethan, agora, pensava em Polly e não compreendia por que se recusara a acompanhá-la. Podia estar feliz a seu lado, relaxado da longa jornada, tendo uma bela e
carinhosa mulher entre os braços.
No entanto, estava ali, ouvindo as histórias fantasiosas de Beartooth e tendo todos os sentidos voltados para a casa do comandante, onde as luzes estavam acesas
ainda, e os convidados deviam estar se divertindo muito.
Vira quando Randolph acompanhara Hannah até lá. Ela parecia aceitar bem o papel de nova Sra. Webster.
Hugh Trask já saíra da festa, e, por incrível que pudesse parecer, sóbrio. Estava, porém, sentado junto a Silas Warren, com certeza aceitando alguns tragos do
uísque escocês que o senhor idoso sempre bebia, sentado numa das extremidades da varanda.
Bela combinação, aquela: Trask e Warren. O primeiro era um bêbado sem consideração pela família, e o segundo, um negociante inescrupuloso, cuja maior fonte de
renda vinha de vender uísque aos índios.
Ethan olhou mais uma vez para a casa do comandante. A festa iria longe ainda, mas ele preferia se deitar logo. Já verificara as crianças, as Webster e as Trask;
elas dormiam, tranqüilas, inocentes. Peggy e Jacob eram maravilhosos, e amavam Hannah. E Ethan sabia que ela seria uma ótima madrasta. Na verdade, Hannah já era
maravilhosa com aqueles pequenos, ele reconhecia.
- Não se ganha dinheiro sendo fazendeiro, Trask - dizia Silas Warren. - Você se mata ano após ano e acaba vivendo como um miserável.
O velho mercador perdera um olho numa aventura antiga e não se preocupava em disfarçar o que restara dele. Trask afastou-se dois passos, impressionado, e respondeu:
- Tenho duas filhas e mais um a caminho. E minha mulher não tem muita saúde. O que mais posso fazer?
- A melhor maneira de ajudar sua família é com dinheiro, meu amigo!
- É. E vou colhê-lo das árvores por aqui? Warren ofereceu-lhe a garrafa que vinham partilhando.
- Não. Vai tirá-lo dos índios - falou, em voz baixa.
- Como assim?
- Vou lhe dizer, meu amigo. Na verdade, vou lhe ensinar tudo. Vamos beber para comemorar nossa recente sociedade!
Na noite seguinte, até Nancy Trask era convidada para dançar seguidas vezes, mesmo estando sua gravidez bastante óbvia. Havia poucas mulheres no forte, e as recém-chegadas
eram muito bem-vindas, mesmo uma delas estando grávida e outra tendo idade para ser sua avó.
Elisa dançava com os jovens oficiais e não parecia demonstrar cansaço. Sorria e brincava com eles, fazendo-os lembrarem-se, talvez, de suas mães, das quais estavam
afastados havia tanto tempo.
Apenas Hannah e Seth, que a conheciam bem, sabiam da tristeza que devia haver por baixo daquele sorriso, pois seu querido filho Johnny jamais dançaria com ela
outra vez...
Hannah, é claro, era a mais assediada. Em certo momento, deu-se conta de que já dançara com todos os homens ali presentes. Todos, menos um: Ethan Reed, que mantinha-se
distante como prometera. E Hannah notara que isso não devia ser difícil para ele, já que Polly McCoy estava sempre em seus braços. Além do mais, Ethan fizera questão
de dançar com Elisa e com as três meninas, bem como com todas as outras mulheres da festa, todas viúvas que moravam no forte.
A música alegre vinha dos violinos de Seth e do tenente Higgins, que tocavam com animação. Em dado instante, Randolph aproximou-se de Hannah para tirá-la para
dançar mais uma vez, dizendo:
- Acho que devo dar oportunidades aos outros, mas não gosto de vê-la nos braços deles.
- É apenas uma dança. - Ela sorria.
- Eu sei. Mas não gosto - Randolph repetiu, com uma suavidade que amenizou a firmeza de sua afirmação.
Após alguns minutos, porém, Hannah disse, quase sem fôlego, em meio à dança:
- Acho que não agüento dar nem mais um passo. Randolph ofereceu-lhe um lenço, para que secasse o suor das têmporas e do pescoço. Hannah estava corada e arfante.
- Quer sair um pouco para respirar ar puro? - ele ofereceu.
Ela assentiu e, quando ambos saíam, Jacob chamou o pai:
- Aonde vocês vão, papai? Já temos todos de ir embora?
- Não, Jacob. Vamos ficar o tempo que vocês quiserem. Eu e Hannah só vamos sair um pouco porque estamos com calor.
- Posso ir também?
- Não. Fique aqui com sua irmã.
Hannah surpreendeu-se com o tom duro das últimas palavras de Randolph. Voltou-se para vê-lo e encontrou o olhar do capitão Reed, que a observava a certa distância.
Ele apenas sorriu de leve, acenando-lhe com um movimento de cabeça. Mas Hannah não respondeu ao cumprimento, saindo com Randolph do salão.
- Às vezes as crianças são inconvenientes - ele comentou, como numa desculpa, assim que saíram para o pátio. - Eu... queria ficar um instante a sós com você,
Hannah.
Ela cruzou os braços sobre o peito, numa atitude de defesa.
Achava quedas coisas estavam acontecendo depressa demais entre ela e o patrão, mesmo tendo vivido na casa dele por dois anos. Talvez tudo em sua vida estivesse
mudando muito ultimamente.
- Eu gosto de dançar - ela disse, em seguida, procurando usar o tom menos pessoal possível.
- Acredito que dançar faz bem à alma - foi o comentário de Randolph.
Hannah procurava relaxar a tensão que lhe apertava os ombros, mas isso parecia ser tão difícil...
- Nunca tinha dançado até chegar a Filadélfia - murmurou, apenas para ter o que falar. - Certa vez, eu e minha mãe passamos em frente a um grande salão de baile,
e ela me deixou espiar pelo canto de uma das janelas. Achei tudo tão lindo! Era como mágica ver aqueles casais flutuando sobre o piso brilhante.
- Pois você aprendeu rápido, Hannah. Aliás, como tudo o que faz.
- Eu apenas me deixo levar pela música. - Ela balançava o corpo muito de leve, conforme falava, ouvindo os violinos dentro do salão.
Randolph a observava, com um sorriso nos lábios. Até que murmurou:
- Diz-se que os franceses sempre terminam uma dança com um beijo.
- Já ouvi dizer que são um povo um tanto... escandaloso.
Randolph se aproximou mais.
- Não há nada de escandaloso num beijo, Hannah. Ela parou o suave movimento de seu corpo ao sentir as mãos de Randolph em seus braços. Ele baixou devagar a cabeça
para beijar-lhe com delicadeza os lábios.
- Sinto muito se fui... precipitado - desculpou-se logo em seguida, num murmúrio.
A comparação com o beijo da outra noite foi inevitável para Hannah. Não havia nada de castidade e de respeito na boca sedutora do capitão Reed. Havia, sim, exigência,
paixão.
- Sinto muito - Randolph insistia. - Prometi ser paciente com você e... Desculpe-me.
Hannah meneou a cabeça. Na verdade queria afastar da memória a impressão daquele outro beijo.
- Não precisa se desculpar. Mas acho melhor voltarmos ao baile agora. As crianças devem estar estranhando nossa ausência.
Quando tornaram a entrar no salão, Ethan estava junto à porta, no mesmo lugar onde estivera quando saíram. Polly McCoy dançava com o coronel Bouquet, e todos
os outros pareciam estar se divertindo bastante.
De repente, o capitão veio em direção a Randolph e Hannah.
- Está uma noite agradável, não? - comentou, com certa ironia na voz.
- Está, sim - Randolph respondeu, frio. - E vejo que o senhor está se divertindo bastante, já que a Sra. McCoy é uma mulher muito bonita.
Ethan sorriu.
- E Polly é muito... gentil. Mas ainda não tive o prazer de dançar com a Srta. Forrester.
- Eu acho que já dancei muito hoje... - Hannah começou, desculpando-se.
Mas Randolph a interrompeu:
- Não queremos nos indispor com nosso maravilhoso guia, não é, Hannah? Vá. Dance com ele.
Ethan não perdeu tempo: tomou-a logo nos braços, levando-a consigo para o centro do salão, começando logo a dançar a valsa que Seth e Higgins iniciavam.
- Não... acha que estamos dançando próximos demais? - ela protestou, sentindo o braço forte do capitão puxando-a contra si.
- Nunca dançou uma valsa, senhorita? Em Boston, é o que mais se dança nas grandes festas. É como flutuar com uma bela mulher entre os braços.
Todos os casais dançavam da mesma forma, mas havia um calor entre seu corpo e o daquele homem que deixava Hannah pouco à vontade.
- Pensei que manteria sua distância, capitão - reclamou, baixinho.
- Estou mantendo. Não cheguei perto de você a noite toda, não foi?
- E agora?
- Acho que estou apenas... verificando se você está bem após aquele casto beijo que Webster lhe deu, lá fora.
Ela ergueu a cabeça, encarando-o, indignada, mas o capitão continuou, calmo e indiferente:
- Não pôde haver nada além disso, a julgar pelo tempo que demoraram.
- Por favor, capitão. Quero parar de dançar, sim?
- Ele a beijou, não? - Ethan baixou a cabeça para olhar os olhos claros de Hannah. E acrescentou: - Foi o que pensei.
Então, fazendo-a girar consigo nas evoluções da valsa, levou-a de volta ao local onde Randolph esperava; soltou-a e inclinou-se, numa saudação:
- Obrigado pela dança, senhorita.
- Não tem por que - Hannah respondeu, seca.
- Quer ir embora agora? - Randolph perguntou, tocando-lhe o braço.
Mas Ethan interrompeu-lhe a resposta, dizendo:
- Antes que vá, Webster, quero lhe falar. Eu e alguns dos oficiais estamos planejando uma caçada para amanhã. Se você ou qualquer um do grupo quiser vir...
- Isso me inclui também? - Hannah interferiu, repentinamente ansiosa por poder usar uma arma outra vez.
- Se quiser, Srta. Forrester. Tenho certeza de que meus amigos gostariam muito de sua presença.
- Não posso ir - Randolph interrompeu. - Prometi ao coronel que iria ajudá-lo a rever os livros de contabilidade do forte.
Hannah pareceu ficar desapontada.
- Então não irei também - afirmou.
- Seth também vai. Você estará bem protegida - Ethan rebateu, irônico.
Randolph pareceu pensar um pouco. Olhou para o outro lado da sala, onde Seth guardava o violino no estojo de couro, e depois assentiu:
- Você pode ir, Hannah. Assim, ficará livre das crianças por algum tempo.
Era difícil para ela decidir-se. Ficar um dia inteiro numa região desconhecida junto a Ethan Reed poderia ser arriscado... Mas Seth os acompanharia.
- Está bem, então.
- Que bom. - Não havia emoção nenhuma no comentário do capitão. - Vamos sair assim que o sol surgir.


CAPÍTULO OITO

Seth procurou por Hannah na manhã seguinte. Tinha uma expressão triste no rosto.
- Sinto muito, Hannah, mas não vou poder acompanhá-los à caçada. Elisa chorou muito ontem à noite, quando voltamos do baile. Ela não consegue se conformar com
a morte de Johnny às vezes. Quando consegui acalmá-la, e ela caiu no sono, acordou pouco depois, com pesadelos terríveis... Não quero deixá-la sozinha, compreende?
- Eu entendo, sim, Seth. E sei que, com o tempo, as recordações que vocês têm de seu filho não mais trarão angústia, mas, sim, um sentimento de paz interior que
vai confortá-los. Basta ter fé e confiança no futuro.
- Eu sinto não poder acompanhá-la, mas sei que o capitão Reed tomará conta de você.
Seth afastou-se, então, cabisbaixo, deixando Hannah pensativa. Logo depois, os cinco oficiais que participariam da caçada chegaram, alegres, manifestando sua
satisfação pela decisão de Hannah em acompanhá-los. Um deles, um major muito jovem de nome Edgemont, dançara três vezes com ela na noite anterior. Hannah soubera
que ele vinha de uma família nobre da Inglaterra. Lá, com certeza, não a teria olhado uma segunda vez, devido a sua classe social; aqui, no entanto, tratava-a com
grande deferência.
A animação dos oficiais logo contagiou-a. Aquela era uma belíssima manhã de verão, ensolarada e quente, espalhando vida por toda parte.
O grupo partiu do forte e avançou por um prado verdejante onde, às vezes, era possível ver canteiros de flores multicoloridas, semeadas ao léu pelo vento agradável
e benfazejo. Hannah imaginou que jamais estivera num lugar tão lindo.
Os oficiais tratavam-na com excessiva atenção e gentileza. Eram muito educados e, com exceção do major Edgemont, um tanto tímidos.
Ethan Reed também estava se comportando muito bem, sem sorrisos irônicos ou observações sarcásticas. Parecia tão determinado quanto Hannah a fazer daquele um
dia memorável.
Pararam ao meio-dia para almoçar. Hannah sentou-se no chão, rodeada pelos soldados, sorrindo e ouvindo-os falar.
- Higgins, aquele senhor toca violino muito melhor do que você, sabia? - provocou Edgemont.
Os homens riram. Estavam acostumados às brincadeiras do major. A própria Hannah rira muito, na noite anterior, enquanto dançavam, ouvindo-o dizer coisas engraçadas
sobre todos na festa.
- Aquele senhor? - Higgins retrucou. - Tive de tocar a noite inteira com a mão esquerda para não humilhá-lo.
Todos riram novamente, e Hannah achou que devia fazer um comentário.
- O senhor toca muito bem, tenente. Nunca ouvi alguém tocar tão bem, nem mesmo em Londres.
Ethan mantinha-se calado e distante das brincadeiras. No entanto, todas as vezes em que Hannah o olhava, encontrava-o observando-a com atenção. Ela procurava
ignorá-lo, aceitando a conversa dos demais.
Já haviam caçado várias aves e uma lebre durante a manhã e, após o almoço, seu ânimo para continuar a caçada pareceu diminuir um pouco. Falaram até em voltar
ao forte, mas Edgemont instigou-os a continuar em busca de um animal de maior porte.
Prosseguiram sua jornada, então, e, em certo momento, desmontaram junto a um pequeno lago. Hannah recebeu um rifle das mãos do major, que aconselhou:
- Tenha cuidado. Segure esta arma com firmeza ao atirar, ou ela vai arremessá-la de volta a Filadélfia.
Ethan não estava gostando muito da atenção que o oficial dedicava a Hannah, mas manteve-se quieto, apenas observando.
Enquanto Edgemont ensinava Hannah a mirar com precisão, um gracioso gamo apareceu por entre as folhagens, na intenção de beber água no lago. O animal percebeu
a presença dos humanos de imediato; levantou a cabeça, ficando absolutamente imóvel. Edgemont sussurrou para Hannah:
- Ele está na sua mira. Tenha calma e fique firme. Agora... atire!
O oficial ajudou-a a atirar, apertando seu dedo sobre o dela no gatilho, o que fez com que o cabo do rifle a atingisse no ombro com certa força.
O gamo pulou, assustado, cambaleou e sumiu por entre a vegetação.
- Droga! - Edgemont sussurrou e, logo depois, desculpou-se: - Perdão, moça.
Ela baixou a arma. Suas mãos tremiam.
- O que houve?
- Você acertou, mas não o matou - Ethan respondeu, sério.
Hannah sentia o ombro doer, enquanto seu estômago se revirava, numa náusea repentina.
- Mas... mas eu nem queria atirar... - murmurou.
- Não se preocupe, moça - Edgemont já recuperara o bom humor. - Seu tiro foi ótimo. Vamos apenas ter de seguir o bicho.
Hannah sentia-se infeliz. Aquele animal parecera tão lindo e tão indefeso ali, entre as árvores! Não se perdoava por tê-lo atingido.
Ethan percebeu a amargura no rosto dela. Se queria viver na fronteira, ela teria de se acostumar a matar para poder sobreviver.
Edgemont pegou o rifle de volta e passou um braço protetor sobre os ombros de Hannah.
- Já está ficando tarde. Voltem para o forte. Eu e a Srta. Forrester iremos atrás do gamo.
- Eu vou atrás dele - Ethan interferiu. - E a moça vem comigo. Vocês podem voltar.
Os oficiais se entreolharam. O tom usado por Reed fora bastante definitivo.
- Está bem assim para a senhorita? - Edgemont perguntou a Hannah.
Ela podia perceber a raiva de Ethan por aquele rapaz estar questionando sua autoridade. Não queria ter de entrar na floresta e encontrar o animal ferido, mas
também não desejava que aquele dia tão agradável terminasse numa discussão.
- Estarei bem com o capitão Reed - respondeu, num fio de voz. - Agradeço a todos pelo ótimo dia.
Ethan foi até seu cavalo e montou sem esperar por mais nada, deixando que o major ajudasse Hannah a montar.
- Venha - disse, firme. - Se não nos apressarmos, vamos ter de seguir seu gamo a noite toda.
O sol já se punha, e aquela floresta parecia quieta, sinistra demais para Hannah, embora tivessem passado por muitas outras em seu caminho até o forte Pitt. Deu-se
conta de que seus sentimentos se deviam à apreensão em que estava; não queria encontrar o corpo ensangüentado do animal no qual atirara. Procurou concentrar sua
atenção no cheiro agradável dos pinheiros e no murmurar suave da brisa que passava por eles.
Após alguns minutos, Ethan falou, com voz calma:
- Estamos, com sorte. Lá está ele.
Hannah olhou na direção em que ele apontava e viu o animal caído junto a um tronco velho. Aproximaram-se devagar, até que Ethan desmontou e, observando mais de
perto, constatou:
- Está morto.
Hannah conseguiu apenas murmurar:
- Ele era tão... bonito...
- São animais nobres - ele concordou, erguendo um pouco a cabeça do gamo, segurando-o pela ponta da galhada. - E servem a uma causa justa: nossa sobrevivência.
- Eu gostaria de não ter atirado. - Ela também desmontava agora.
- Se isso a fizer sentir-se melhor, saiba que foi o major quem, de fato, atirou. Ele pensou que seria uma boa desculpa para abraçá-la.
- Eu estava segurando o rifle. Eu puxei o gatilho. E é meu ombro que está doendo agora!
Ethan soltou a cabeça do animal.
- Você se feriu? - perguntou, atencioso.
- Acho que... não estou tão preparada para viver no Oeste quanto imaginei.
Ele aproximou-se e tocou-lhe o queixo.
- Não desanime. Apenas algumas mulheres conseguem manejar uma arma.
Hannah voltou a olhar para o animal morto.
- Acho que nunca mais quero tentar...
- A julgar pelo modo como Webster atira, acho que você vai ter de aprender.
Ela o olhou de imediato. Lembrara-se, de repente, de que ele a acusara de ter sido beijada por Randolph na noite anterior. Aborrecida com a morte do gamo, Hannah
se esquecera de que devia ficar longe do capitão Ethan Reed. Ele lhe provocava sentimentos perigosos...
Ali, junto ao animal que abatera, Hannah ponderava que tudo o que se faz na vida tem suas conseqüências, as quais, às vezes, podem ser terríveis.
Deu alguns passos para trás, então, afastando-se daquele homem.
- Não quero discutir nada sobre o Sr. Webster, capitão. Nem sobre mim mesma.
Ele a presenteou com um daqueles sorrisos irônicos que a irritavam ao extremo.
- Viu? Consegui deixá-la zangada. Pelo menos, agora não vai chorar por um veado morto.
- E o que faremos com ele?
- Vamos amarrá-lo no seu cavalo.
- Vou ter de cavalgar com ele junto de mim? - Uma espécie de pânico a tomava.
- Não. - Ethan se afastava até seu cavalo, para pegar uma corda. - Você vai voltar comigo.
O capitão amarrou as pernas do animal, para rebocá-lo, e voltou-se para Hannah:
- Se quer ser uma verdadeira mulher da fronteira, pode começar agora, me ajudando.
Ela caminhou até o animal, vacilante.
- O que tenho de fazer?
- Vamos tentar erguê-lo por cima daquele galho. - Ele apontava uma árvore próxima.
Hannah ajudou-o a arrastar o animal até debaixo da árvore. Sentia a pelagem morna e macia sob suas mãos e isso a enchia de tristeza.
Quando ajudou Ethan, erguendo o gamo de cabeça para baixo, ele fez um corte na garganta do animal para fazer o sangue escorrer. Hannah sentia o estômago nauseado
de novo.
- Não precisa ficar olhando - disse o capitão.
- Não. Você tem razão: se vou ser uma mulher da fronteira, devo começar agora.
- Ótimo.
Pouco depois, Ethan baixou o gamo e cortou-lhe o ventre, para retirar as vísceras. Hannah observava em silêncio, cada vez mais pálida.
- Traga seu cavalo - Ethan ordenou, ao terminar.
Hannah parecia frágil como uma criança. Ele terminou de prender o gamo à sela e depois amarrou os dois cavalos a uma árvore próxima.
- Vamos nos lavar antes de voltar.
Ainda em silêncio, Hannah o seguiu, por entre a mata, até um pequeno riacho. Aquela sua primeira lição sobre a vida numa região selvagem fora bastante difícil.
Haveria ainda inúmeras outras.
- Então, você matou e carregou seu primeiro gamo - Ethan comentou, enquanto lavavam mãos e braços nas águas cristalinas. Reparava na fragilidade dos braços dela,
finos e delicados, e que, no entanto, suportavam bem o duro trabalho doméstico, a lida com o animal que abatera, o manejo do rifle.
- Foi você quem o limpou e carregou - ela observou, sem olhá-lo. - E, se me lembro bem, disse que foi o major quem o matou.
Ethan sorriu.
- Só queria animá-la. Achei que poderia desmaiar. Hannah olhou-o de pronto.
- Jamais desmaiei, capitão! E não pretendo começar agora!
O capitão sentou-se, vendo-a puxar um pouco o vestido para secar as mãos numa das saias de baixo. Pôde ver parte de sua perna e sentiu logo uma inquietação agitando-lhe
os sentidos.
- Já que nos beijamos duas vezes, não acha que poderia me chamar de Ethan? Pelo menos, quando estamos a sós.
- Eu não pretendia ficar a sós com o senhor e nem quero que isso se repita. - Havia uma certa raiva na resposta de Hannah. E havia algo mais também. Ela parecia
assustada, tensa.
Ethan achou melhor não insistir. Afinal, Webster parecia ter percebido o quanto Hannah era importante em sua vida e logo reclamaria seus direitos sobre ela quando
notasse o interesse do capitão. No entanto, algo o forçava a continuar avançando num terreno perigoso:
- Nosso beijo foi sensacional, na outra noite Hannah. Não consigo me esquecer.
Ela respirou fundo.
- O que quer de mim, capitão? Por que... por que não procura sua amiga no forte para esse tipo de coisa?
Ethan notou-a indefesa e sorriu, sentindo um estranho prazer em provocá-la. Era óbvio que seu relacionamento com Polly desagradava Hannah.
- Eu e ela somos amigos há anos - explicou, em tom casual.
- Ótimos amigos, eu suponho.
- E. Ótimos amigos.
- Então vá falar sobre seus beijos com ela e não me perturbe mais!
Ethan já não tinha mais dúvidas sobre o ciúme que a invadia. Afinal, sentira o mesmo quando a vira regressar ao baile com Webster, após um possível beijo. E sentia
a mesma coisa agora, só em lembrar-se do fato.
- Pois saiba que eu e Polly nunca fomos mais do que isto: amigos - garantiu.
- Isso não é de minha conta, capitão.
Ethan tornou a sorrir. Não a culpava por tentar encobrir a verdade. Hannah era esperta o suficiente para saber que não haveria futuro num relacionamento com um
aventureiro como ele.
- Já entendi. Está interessada em Webster, não? Ela ignorou a pergunta e levantou-se.
- Podemos voltar ao forte agora?
Ethan não pôde resistir a um último comentário; inclinou-se e sussurrou, junto ao ouvido dela:
- Não vou me esquecer daquele beijo, Hannah. E pode estar certa de uma coisa: se Webster não for capaz de fazê-la estremecer em seus braços, você também não vai
esquecer.
- Isso significa que você voltou para me implorar perdão e conseguir ir comigo para a cama? - Polly indagou, sorrindo, bem-humorada.
Ela e Ethan estavam sentados à mesa, e ele acabara de contar as aventuras da caçada, incluindo o que conversara com Hannah.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Polly. Jamais tive ilusões quanto à Srta. Forrester. Ficamos apenas... um pouco íntimos na jornada até aqui.
- Sei, sei. Você já percebeu como começa a falar difícil, como um cavalheiro até, quando fica zangado em relação a alguma coisa?
- Não estou zangado.
- Pois você fica, sempre que fala nessa garota. Acho que ficou de miolo mole, isso sim.
- Ela é atraente, só isso! E é interessante, alegre... Mas não há nada entre nós.
- Ela não é só atraente, meu caro. E linda, todos os homens do forte acham isso.
- E você está com ciúme, não é?
- E claro que não, seu tolo!
Ambos riram. Há tempos haviam decidido deixar de ser amantes para poderem partilhar uma sólida amizade.
A paixão inicial que os unira, anos atrás, já não deixava vestígio nenhum.
- Então, você vai desistir dela em favor daquele contador magrela? - Polly insistia.
- Ele não é um mau sujeito. Mas não acredito que consiga sobreviver num ambiente hostil, entende?
- Ele não é feio, e é um cavalheiro também... Ethan franziu as sobrancelhas e interrompeu-a:
- Você o acha bonito?!
- O que há? Está com ciúme, meu caro?
O capitão respirou fundo e levantou-se. Deu alguns passos até a lareira e disse, sem se voltar:
- Vamos mudar de assunto, está bem? Você falou algo sobre Silas Warren. Ele esteve fazendo perguntas por aí sobre armas baratas.
Polly assentiu.
- E bebida barata, também.
- Acha que isso tudo é para os índios?
- Aposto que sim!
Ethan pareceu pensativo por instantes, olhando as chamas baixas. Então perguntou:
- Você sabe com qual tribo ele pretende negociar?
- Tudo o que sei é que está reunindo uma porção de mercadorias. Muito mais do que poderia carregar sozinho.
- Então ele tem um sócio... Ela deu de ombros, dizendo:
- Só um grande idiota se juntaria a Warren. Mas há muitos deles pelo mundo, você sabe.
- Vou andar um pouco por aí e ver se descubro alguma coisa.
- Mas você partirá em breve com os colonizadores, não? Ethan assentiu, um tanto sombrio.
- A não ser que o comandante Bouquet os assuste, contando suas histórias sobre batalhas sangrentas contra índios ou franceses.
- E você acha que, um dia, poderemos viver em paz por estas paragens?
Hannah, Elisa e Nancy conversavam, animadas, como colegiais despreocupadas, enquanto caminhavam pelo pátio do forte.
- Eu sinto como se estivesse de volta a Filadélfia, indo às compras - Elisa comentou, com um sorriso feliz.
- Não sei se o armazém se parece com uma das lojas de lá - Hannah observou, reservada.
- Se tiverem sabão, será ótimo. Não sei como já usamos todo o que trouxemos!
Os homens tinham comprado muitas coisas no dia anterior, como armadilhas, facas, munição, equipamentos agrícolas, mas nada das pequenas necessidades femininas
que, com certeza, fariam muita falta às mulheres em sua nova morada.
Hannah queria comprar tecidos para costurar roupas novas para as crianças; afinal, elas estavam crescendo tanto! Elisa queria repor seu estoque de chás e ervas.
E Nancy queria sabão. Assim, os homens permitiriam que elas fossem até as pequenas cabanas que formavam o entreposto comercial no lado norte do forte.
Hannah sentia-se muito feliz, sendo tratada como uma igual por todos. Além do mais, Elisa e Nancy haviam elogiado muito o fato de ela ter caçado o veado no dia
anterior. Randolph nada dissera, limitando-se a dar à antiga criada uma quantidade de dinheiro que pareceu enorme a ela, para os gastos no armazém.
- Você vai nos ajudar a pechinchar, não vai, Hannah? - Nancy brincou. - Aqueles mercadores vão dar um preço melhor a você, com certeza.
- Imagine! - ela respondeu, modesta. - Eles nem vão me notar quando virem esse seu rosto de anjo.
- O rosto pode ser, amiga, mas o corpo... - Nancy apontou para a barriga proeminente.
- Ora, ora - Elisa interferiu. - Vocês duas estavam cheias de pretendentes no baile.
- Você também não ficou sem parceiros para dançar - Hannah retrucou com malícia.
E todas puseram-se a rir outra vez, enquanto alcançavam os portões de trás do forte, rumo ao entreposto.
A maior das lojas era toda feita de madeira e tinha um grande alpendre. Quando entraram, as três mulheres viram-se diante de uma quantidade enorme de mercadorias
variadas. Aquela loja bem que poderia fazer frente a qualquer uma de Filadélfia, em quantidade e qualidade de produtos.
- Acho que eles devem ter sabão aqui - Hannah segredou a Nancy, passando os olhos ao redor, e ambas riram, satisfeitas.
Havia de tudo: perfumes, enfeites para os cabelos, porcelanas, colares, rendas.
Numa das extremidades do balcão, Hannah viu um pote grande de balas e lembrou-se daquelas que Ethan Reed lhe oferecera certa noite. Procurou afastar esses pensamentos
e seguiu andando pela loja.
De repente, a voz rude de Hugh Trask se fez ouvir, à porta.
- Dia de compras das madames? - ele brincou, num tom maldoso.
O bom humor de Hannah desapareceu por completo.
Definitivamente, não gostava daquele homem. E hoje, Hugh estava acompanhado de um sujeito ainda mais asqueroso, o qual tinha um olho vazado, cruzado por uma enorme
e horrível cicatriz.
Os dois entraram na loja, e Hugh dirigiu-se logo à esposa:
- No que está gastando meu dinheiro?
Nancy estava pálida e mal conseguiu murmurar:
- Não vou comprar muitas coisas, Hugh. Só algo para as meninas.
- Acho bom. - Hugh voltou-se para o companheiro, acrescentando: - É claro que a Srta. Hannah, aqui, poderá gastar quanto quiser, já que o pobre Webster está de
quatro por ela.
O homem da cicatriz deu uma estranha risada, que fez Hannah sentir náuseas. Ignorando o comentário, ela dirigiu-se a Nancy:
- Vamos olhar as outras lojas antes de decidirmos onde comprar.
Aliviadas, as mulheres deixaram o armazém, enquanto Hugh e Warren as observavam, com sorrisos maliciosos nos lábios.
- Quero apenas que estejam cientes dos riscos que poderão correr - dizia o coronel Bouquet em seu escritório no forte.
A mesa à sua frente estava coberta de mapas, os quais ele já conhecia quase de cor. Continuou, sério:
- Pontiac está tentando convencer as outras tribos de que os colonizadores ingleses serão mais perigosos do que os aventureiros franceses.
- O que você nos diz sobre isso, Reed? - Seth Baker voltou-se para o capitão.
Ethan sabia que aqueles colonizadores teriam de viver por si mesmos quando chegassem a seu destino. E havia apenas três homens naquele grupo. Baker já era velho,
Trask bebia demais e Webster era péssimo no manejo de uma arma.
- Vocês é que devem decidir. Mas é obrigação do exército inglês proteger os colonizadores. Por isso, acho melhor ouvirem o que o coronel diz.
- Está querendo dizer que viemos até aqui apenas para termos de voltar agora?! - Randolph protestou, levantando-se.
- Eu não vou voltar! - Trask afirmou, definitivo.
O coronel pegou um dos mapas e começou, calmo:
- Não quero interferir em seus planos, apenas recomendo que não se afastem demais do forte. Há terras excelentes para colonização aqui por perto, onde o exército
poderá lhes oferecer proteção.
- O que o senhor acha, capitão? - Seth perguntou, mais uma vez. - Conhece bem a área...
Ethan deu alguns passos pela sala, aproximando-se do coronel. Evitava olhar para a mesa, à qual Hannah também estava sentada, junto a Webster.
- Eu... tenho um local em mente, a não mais de uma semana de viagem daqui.
- Onde? - indagou o coronel.
Ethan pegou o mapa que ele segurava e colocou-o sobre a mesa, apontando um lugar.
- Aqui. É a região mais bonita deste território. Chama-se rio do Destino.


CAPÍTULO NOVE

As três famílias partiriam em duas barcaças pelo rio Ohio, até o ponto onde este recebia as águas do pequeno rio do Destino.
Ethan lhes garantira ser mais seguro viajarem pelo rio menor, a fim de evitar qualquer confronto com índios que poderiam estar subindo ou descendo o Ohio, seu
meio de transporte mais comum.
- Então não vamos ver selvagens? - reclamou Jacob, duas noites antes da partida. Ele e as meninas estavam ali, junto ao capitão Reed, enquanto este ensinava
ao menino como limpar a arma que lhe emprestara no dia da caçada, e com a qual agora o presenteara.
- Esperamos que não - Ethan respondeu.
- Mas eu queria ver como eles são...
O capitão parou o que fazia e olhou para o garoto, sorrindo.
- Algumas das tribos não são muito... amigáveis. Eles acham que os ingleses vieram para tomar suas terras.
- Eles nos odeiam? - Jacob falava, mas as três meninas estavam muito atentas.
- Alguns, sim. E se os chefes os mandam lutar, eles o fazem. Como você faria por seu pai, se ele lhe pedisse.
- Ou Hannah - Jacob completou com jeito solene.
- Ou Hannah. - Ethan percebia que as crianças já haviam substituído a mãe por ela. Mais uma vez, achou Webster um sujeito de sorte. Logo, a antiga criada assumiria
o lugar da patroa em todos os sentidos. E Ethan gostaria de já estar bem longe dali quando isso acontecesse.
- Acho que vou guardar minha arma agora, capitão - disse o garoto. - Quer que eu guarde o Tiro Certeiro também?
- Não, obrigado. Um homem da floresta tem sempre de estar com sua arma.
- Capitão, eu ainda gostaria de ver os índios. O senhor acha que, um dia, nós e eles poderemos ser amigos?
- Talvez...
A porta rangeu para dar entrada a Randolph Webster.
- É melhor vocês irem para a cama, crianças. Amanhã será um dia cheio e, depois de amanhã, haverá a festa que o comandante oferecerá, antes de partirmos.
Jacob obedeceu de imediato. Ao passar pelo pai, mostrou a arma limpa:
- Veja, papai, como brilha!
Randolph sorriu. Quando viu-se a sós com o capitão, um silêncio incômodo caiu sobre o local. Após alguns segundos, durante os quais procurava algo para dizer,
Randolph agradeceu:
- Foi muita bondade sua dar a arma ao garoto. Obrigado.
- Gosto muito de Jacob. E acho que ele se dará muito bem no Oeste.
Randolph achou que poderia haver uma insinuação naquelas palavras. Ele próprio tinha consciência de que era um desajeitado com as armas.
- Na verdade, seus dois filhos são ótimos - continuou Ethan. - Acho que você e a Srta. Forrester formarão uma bela família junto deles.
- Obrigado. - Randolph não fez questão de tecer nenhum comentário. Afinal, Reed era um aventureiro, e Hannah talvez tivesse algum interesse por ele.
Seria um alívio quando Reed os levasse até seu destino, pois ele logo partiria para mais uma aventura.
Hannah queria muito chegar a seu destino, mas, ao mesmo tempo, experimentava um sentimento de tristeza por deixar o forte. Divertira-se lá, com todos aqueles
oficiais dando-lhe tanta atenção, e sua amizade com Elisa e Nancy se solidificara. Quanto a Randolph, seria melhor deixar a situação bem clara e definida com ele,
já que o capitão Reed logo sairia de suas vidas para sempre.
Peggy e Janie, que já entravam na adolescência, também relutaram em partir. Alguns dos oficiais do forte tinham chegado a flertar com elas, sem, é claro, ultrapassar
os limites da brincadeira.
Havia muitas pessoas presentes ao jantar que o coronel Bouquet oferecia aos colonizadores. O major Edgemont, cada vez mais audacioso na corte que fazia a Hannah,
acompanhava-a o tempo todo. Randolph tolerava-o apenas porque sabia que partiriam no dia seguinte.
Mesmo tendo o major por companhia constante, e divertindo-se com o jeito ousado dele, Hannah surpreendia-se sempre à procura de Ethan Reed. Seus olhos buscavam-no
pelo salão, pois parecia-lhe estranho ele não estar presente àquela festa de despedida. Também Polly McCoy não viera...
- Já estive no rio do Destino - um major, de nome Blanchard, comentava para o grupo de colonizadores. - Ele fica num vale belíssimo.
Cansadas da conversa dos adultos, as crianças se reuniram ao redor do fogo, observando o milho colocado ali para assar.
Hugh Trask também não se encontrava presente à festa, e Hannah imaginava que ele deveria estar em algum canto do forte, bebendo até cair. Pobre Nancy, cada dia
mais gorda em sua gravidez...
Elisa conversara com o médico do forte sobre o nascimento do bebê, procurando aprender ao máximo tudo o que deveria fazer quando o momento chegasse. Ele até lhe
dera umas ervas, para que fizesse um chá calmante para Nancy durante o parto. Hannah mal conseguia acreditar que ela própria e Elisa teriam de dar conta de um serviço
tão sério e de tanta responsabilidade: trazer uma criança à vida.
Seus pensamentos foram interrompidos de repente, com a menção do nome de Ethan Reed. Era o coronel quem falava:
- Reed disse que viria...
- Deve ter mudado de idéia - Edgemont comentou. - Nós o vimos indo à loja de Polly e ele nos disse que talvez não viesse.
Bouquet riu, com malícia, ao acrescentar:
- E nós todos sabemos o que ele quer nesta última noite no forte, certo? Ah, desculpem, senhoras, pelo comentário.
Hannah percebeu que Randolph a observava com atenção. Ela sabia que seu rosto não demonstrava as sensações estranhas que agitavam seu peito. Não devia se importar
com as atitudes de Ethan Reed, mas não conseguira evitar o que sentia. Ele mentira sobre si mesmo e Polly McCoy. Hannah lembrou-se de que sua mãe sempre lhe dizia
sobre a facilidade dos homens em mentir para obter o que queriam das mulheres.
Sempre considerara sua mãe amarga demais em virtude do que já passara na vida, mas agora começava a dar-lhe razão.
- Gostaria de sair comigo para um pequeno passeio, Srta. Forrester? - o convite inesperado de Edgemont tirou Hannah de seus pensamentos.
O major era um homem bonito e atraente, e parecia óbvio que sabia disso.
Tinha um sorriso confiante, belos olhos azuis, cabelos loiros ondulados. Mas Hannah, intuitivamente, não conseguia confiar nele.
- Não, obrigada, major - respondeu, educada. - Quero ficar aqui e partilhar esta noite com todos os presentes. Afinal, é a última que passamos no forte.
O major pareceu surpreso com a negativa, mas aceitou-a com galantaria.
- Talvez não os deixemos partir, senhorita. O forte ficou muito mais alegre e bonito com sua presença. - Com um sorriso e uma reverência cortês, Edgemont afastou-se,
indo para junto de seus colegas militares.
- Se eu fosse solteira - comentou Nancy, aproximando-se de Hannah -, não deixaria esse oficial escapar. Ele não tira os olhos de você desde que chegamos. Não
notou?
- Eu sei bem o que o major Edgemont quer, Nancy. Ele e os outros soldados também.
Elisa voltou-se. Não pudera deixar de ouvir as palavras amargas de Hannah.
- Não diga isso, minha querida - admoestou com suavidade. - Esses soldados têm sido verdadeiros cavalheiros.
Hannah baixou os olhos. Não contara a ninguém sobre o que acontecera entre ela e o capitão. Murmurou apenas:
- Acho que... estou um pouco irritada e ansiosa porque vamos partir amanhã. Só isso. Sinto muito se pareci rude.
- Todas estamos ansiosas - falou Nancy, compreensiva. - Não se preocupe.
Elisa veio, então, e passou um braço pelos ombros de cada uma das moças.
- Que bom estarmos juntas! Seremos o apoio uma das outras. Devemos agradecer a Deus por nossa amizade.
Ethan trouxera duas garrafas de bebida para a loja de Polly, esperando que, após beberem, alguns homens soltassem a língua. Essa era a última chance que tinha
de descobrir no que Silas Warren estava envolvido agora e quem o estava ajudando. Ele não gostara de perder o jantar de despedida, mas esse assunto parecia muito
mais importante no momento.
Ethan comentou, passando a segunda garrafa às mãos dos presentes:
- Acho que o exército estaria muito interessado em saber no que Silas Warren anda se metendo.
Um sargento, que estava à ponta do balcão, disse logo:
- Seja o que for que aquele verme esteja fazendo, aposto que não é coisa boa.
- Sei que ele anda comprando muitas armas - Ethan prosseguiu, observando os rostos dos homens que o acompanhavam na bebida. Um rapaz, que parecia sonolento devido
ao que já bebera, desviou o olhar.
- Warren poderia ficar rico - o sargento continuou -, já que os índios estão comprando tantas armas ultimamente. Só que ele perderia o escalpo piolhento na troca...
- Se ele estiver vendendo armas aos índios - Ethan falava sem tirar os olhos do rapaz -, o exército poderia até pagar por qualquer informação a respeito, não
acham?
Ninguém teceu nenhum comentário, mas o rapaz lançou um olhar furtivo ao prédio onde ficava o quartel-general.
Ethan levantou-se, então, como se nada tivesse percebido.
- Bem, amanhã estarei indo com os colonizadores para o sul - disse, ajeitando o cinturão - e gostaria muito de saber se alguém está armando as tribos contra os
brancos. Se algum de vocês souber de algo, estarei à disposição para ouvir. E posso garantir que qualquer informação será bem recompensada.
Passou os olhos, uma última vez, por todos os presentes ali e depois saiu. Seus instintos lhe diziam que aquele rapaz sabia de alguma coisa.
Ao aproximar-se do quartel-general, ouviu a voz de Silas Warren.
Aproximou-se do local de onde ela vinha e recostou-se à parede, procurando ouvir melhor.
- Você saberá no tempo certo - Silas dizia. - Fique atento.
Ethan compreendeu que chegara no final da conversa. O outro homem não respondeu, e ele poderia não descobrir sua identidade. Resolveu, então, entrar e pegá-los
de surpresa:
- Boa noite, senhores! - cumprimentou, da porta. Warren voltou-se de imediato, mas o outro homem saiu correndo pelos fundos do aposento, que se encontrava mergulhado
em sombras. Ethan seguiu-o sem vacilar, mas, ao chegar à porta dos fundos, o outro já desaparecera em meio à escuridão do pátio. O capitão voltou-se para Silas,
irritado.
- Seu amigo não parece ser muito sociável...
- E há alguma lei que obrigue as pessoas a isso? - Warren respondeu, rude.
O cômodo estava pouco iluminado. Ethan foi até Silas e inclinou-se sobre ele, ameaçador.
- Não, não há - disse entre os dentes! - Mas existe uma lei que proíbe a venda de armas aos índios. E bebidas também. Conhece essa lei, não, Silas?
- Mas o que há com você, Reed? Não está sequer no exército...
- Já não é mais um problema do exército, Silas. Há mulheres e crianças rumando para esta região atualmente. E se os índios as atacarem com armas inglesas, os
responsáveis serão vermes como você!
- Você não tem provas contra mim! Então vá embora e me deixe em paz!
Ethan procurou acalmar-se.
- Não preciso de provas - respondeu, dando dois passos para trás. - Se eu souber que alguma tribo recebeu armas, virei atrás de você. E, quando eu terminar, vai
lamentar que os índios não o tenham pegado primeiro.
Os suprimentos e animais haviam sido divididos em partes iguais para cada barcaça. Hannah sentira-se aliviada ao saber que o capitão e os Trask iriam numa delas,
enquanto ela, os Webster e os Baker iriam em outra.
No centro de cada balsa havia um pequeno abrigo, para o caso de enfrentarem mau tempo. Na proa e na popa ficavam dois grandes remos, que os barqueiros chamavam
de braços. As barcaças não eram tão grandes quanto aquelas que serviam o forte, mas eram capazes de carregar uma grande quantidade de carga.
Cada família trouxera dois animais, mulas ou cavalos, mais sua bagagem e aquilo que achava necessário para sua viagem. Hugh Trask trouxera bem mais do que os
outros, alegando a chegada próxima do bebê. Talvez, afinal, estivesse se tornando um pouco mais responsável com sua família, a despeito de seu comportamento quase
sempre desagradável e indiferente.
Do convés, Hannah olhava os últimos preparativos para a partida. As despedidas haviam sido feitas na noite anterior, mas o major Edgemont não deixara de ir até
as docas para lhe levar um ramalhete de flores silvestres. Ela as colocara sobre o colo ao sentar-se num barril de sal, que era um dos suprimentos mais preciosos
que carregavam. Sem ele, não teriam como preparar as carnes para o longo e rigoroso inverno. De repente, Peggy gritou da proa:
- Hannah, Jacob vai cair na água!
- Diga a ele para ficar longe da beirada! - ela respondeu, enquanto se encaminhava, por entre caixas, animais e barris, até a parte da frente do barco.
Jacob estava inclinado à beira, tentando tocar a água com as pontas dos dedos.
- Afaste-se daí, Jacob - Hannah disse ao menino, em tom que não permitia teimosia. - Vamos partir a qualquer momento e você poderá perder o equilíbrio e cair.
O menino veio até ela com expressão arrependida.
- Eu só queria ver se a água estava fria, Hannah.
- Você terá outras oportunidades para isso, querido. Tenho certeza de que será obediente e terá juízo nessa viagem. Confio em você. Promete que vai se comportar?
- Prometo.
- Então fique afastado da beirada quando eu ou seu pai não estivermos por perto, está bem?
Jacob assentiu, voltando a observar a água. Logo, com um pequeno balanço, o barco se soltava das amarras, pondo-se em movimento rio abaixo.
- Estamos partindo! - Randolph gritou, de algum ponto na popa. Era bom ouvir sua voz outra vez animada. Ele se deixara abater ao longo da primeira etapa da viagem,
mas agora parecia recuperar-se aos poucos.
O capitão Reed dissera que a viagem duraria mais uma semana, se tudo corresse bem. Parecia inacreditável que, em tão pouco tempo, pudessem ver a terra distante
que tinham vindo habitar.
Randolph apareceu, por trás do abrigo central, sorrindo.
- Dá para acreditar? - disse, entusiasmado. Seus cabelos, em geral bem penteados, moviam-se ao sabor do vento, e Hannah pensou que os companheiros mal poderiam
acreditar que aquele era o mesmo Randolph Webster, circunspecto e quieto, que conheciam em Filadélfia.
A partida parecia ter provocado o bom humor de todos.
As crianças pulavam e dançavam, e Peggy subiu num barril para abraçar o pescoço do pai.
De repente, ouviram alguns gritos vindos do outro barco.
Ethan acenava e gritava, zangado:
- E melhor cuidar daqueles remos, Webster, ou essa barcaça vai se estraçalhar logo!
O sorriso de Randolph desapareceu. Afastou os braços da filha e foi para a proa, fazer o que lhe era mandado, enquanto Seth Baker cuidava do remo de trás.
Jacob murmurou, observando o pai:
- Acho que ele não sabe dirigir um barco, Hannah. Ela sorriu com ternura.
- Mas ele vai aprender, querido. Todos nós vamos. Após o início turbulento, quando Randolph e Seth quase perderam o controle da embarcação, tudo transcorreu muito
bem. O rio abria-se diante deles como um imenso caminho prateado.
No segundo dia, todos já tinham se revezado nos remos, com exceção de Nancy Trask, e os homens conseguiam controlar bem os balanços do barco na correnteza.
Quando pararam, ao final do primeiro dia, não fizeram sequer um acampamento. Exaustos da lida nos barcos, acenderam pequenas fogueiras nas próprias barcas, nas
pequenas caixas de areia trazidas a bordo para esse fim.
Depois, deitaram-se como podiam para passar a noite, tendo sobre eles o mais lindo manto negro do céu, salpicado de estrelas, e a lua brilhando, intensa, iluminando
seu sono tranqüilo.
Hannah dormiu logo, embalada pelo movimento suave do barco e o ruído agradável das águas contra o casco.
Na segunda noite, decidiram acampar. Não estavam tão cansados como no dia anterior, e o descanso aos poucos se transformou numa espécie de festa.
Ao atracarem, Ethan ensinara Jacob a fazer uma vara de pesca e a colocar linha e anzol nela. Pouco depois, ambos haviam sumido rio acima, voltando horas mais
tarde com duas enormes trutas, que ainda se debatiam.
Enquanto os peixes eram colocados para assar, Elisa e Hannah arrumaram sobre uma mesa improvisada as tortas e bolos que ainda sobraram do que tinham trazido do
forte.
Após o jantar, o grupo sentou-se ao redor do fogo, ouvindo o murmurar das águas do rio e a orquestra de insetos noturnos. Seth se recusara a tocar seu violino,
dizendo que nada superava os sons da natureza.
- Estamos seguros aqui, Reed? - Randolph perguntou em dado momento. - Acha que precisamos cobrir os barcos?
- Ainda estamos próximos do forte - Ethan respondeu, brincando com um graveto nas chamas. - Ninguém ousaria nos atacar aqui. Os únicos índios desta região são
wyandots, e eles são amigos.
- Há índios aqui por perto, capitão?! - Jacob se animou.
- Em algum lugar por aí, sim.
- Não podemos dar uma olhada neles?
Ethan riu da insistência do menino.
- Talvez eles possam nos ver, mas não nós a eles, Jacob. São muito tímidos.
- E se algum aparecer, posso falar com ele?
- Acredito que não. A maioria não fala inglês.
- Que língua eles falam?
- Há muitas tribos - Ethan respondia às perguntas do garoto com extrema paciência. - Cada uma fala sua própria língua.
- Então, eles não conseguem falar uns com os outros?
- São melhores do que os brancos para se comunicar, Jacob. Usam sinais, além das palavras, e se entendem.
Agora, todas as crianças o rodeavam.
- É como mágica! - Bridgett exclamou.
- É... é um tipo de mágica, eu acho.
Como sempre, vendo que as crianças estavam fascinadas com a conversa do capitão, Randolph aproximou-se, impaciente.
- Acho que já chega de falar sobre índios - disse, sério, levantando-se.
Ethan o imitou, concordando:
- Sim, acho que falamos o suficiente. E melhor irem dormir agora.
- Papai, posso dormir na barca como na noite passada? Não quero dormir na barraca.
Tentando, talvez, compensar sua interrupção na conversa das crianças com o capitão, Randolph sorriu, condescendente.
- Está bem, Jacob, pode ir. Se tiver medo durante a noite, pule para a margem e vá para a barraca, com Hannah e Peggy.
- Eu não vou ficar com medo! - Jacob afirmou, com convicção.
- Mamãe, posso ir com Jacob? - A pequena Bridgett voltava-se para Nancy Trask. - Quero dormir olhando para as estrelas, como na noite passada.
Nancy olhou para Hugh, e este apenas deu de ombros.
- Está certo - ela consentiu.
Hannah não gostava muito da idéia de ter Jacob e Bridgett longe do grupo, mas resolveu afastar os maus pensamentos.
Afinal, não estavam tão longe assim das barcas. Se algo acontecesse, Jacob poderia gritar por socorro e ser atendido de pronto.


CAPÍTULO DEZ

Hannah acordou com um grito, e logo sentiu a mão de Randolph em seu braço. Ele jamais entrara na barraca enquanto ela dormia, e Hannah sentou-se de imediato,
assustada.
- O que houve? - perguntou com voz sonolenta.
- Jacob e Bridgett sumiram! Hannah sentiu um frio no estômago.
- Como assim? Eles devem ter entrado na mata para... bem, para fazer xixi.
Randolph passou a mão pelos cabelos, aflito.
- Já procuramos - disse, abatido. - Trask ainda está andando pela mata em busca dos dois.
- Eu vou procurá-los! - Hannah afirmou, sentindo uma espécie de pânico brotando em seu peito.
Ao sair da barraca, encontrou Nancy desesperada.
- Minha pequena Bridgett, Hannah! Ela desapareceu!
- Nós vamos encontrá-la, Nancy! - Hannah assegurou com uma convicção que nem ela própria tinha. - Procure acalmar-se, ou vai prejudicar seu bebê.
Randolph aproximou-se das duas mulheres, pálido, nervoso.
- Eles não estão por perto. Reed disse que talvez os índios os tenham levado do barco, durante a noite...
Nancy pareceu ter uma vertigem, pois cambaleou sobre Hannah, que a amparou depressa.
- Ajude-me com ela, Randolph!
Ele pareceu só agora notar o estado de angústia da pobre mulher. Tomou-a nos braços, erguendo-a do chão com facilidade, e levou-a até a margem do rio, onde a
depositou, recostada a uma árvore.
Trask apareceu logo em seguida, mas sua preocupação parecia estar mais voltada para a filha do que para a esposa.
- Por que deixou a menina dormir ao relento?! - ele esbravejou para Nancy.
Randolph afastou-o, empurrando-lhe o peito, gritando também:
- Não vê que ela está passando mal, homem?! Quer matar seu bebê antes mesmo de nascer?!
Trask olhou para o outro com raiva, na intenção de agredi-lo, talvez, mas Hannah interferiu.
- Parem os dois! Devemos pensar nas crianças! O que faremos agora?
Ethan apareceu de trás de algumas árvores e aproximou-se.
- Não consegui encontrar rastros. Randolph voltou-se para ele, enfurecido.
- Que droga de guia é você, afinal?! Como um grupo de índios aparece no meio da noite, leva duas de nossas crianças, e você não percebe nada?!
Ethan meneou a cabeça.
- Eu não entendo o que houve. Não faz sentido... Se foram índios, realmente, não haverá rastros em lugar nenhum. Eles sabem como apagá-los.
Peggy e Janie se abraçavam, chorando, sentadas na beirada de um barco. Hannah respirou fundo e olhou para o casal Baker, sem saber o que dizer ou fazer. Seth
adiantou-se e fez uma sugestão:
- Talvez devêssemos organizar uma busca, já que os pequenos não estão nas redondezas. Elisa ficará no acampamento com a Sra. Trask e as meninas, e o restante
de nós poderá sair e procurar, até encontrá-los.
Ethan assentiu, aprovando a idéia.
- É melhor formarmos dois grupos - acrescentou. - Vou por terra, com Seth, à procura de pistas. Webster e Trask, vocês podem seguir rio abaixo.
- Por que rio abaixo? - Trask questionou. Ethan olhou para Nancy, constatando seu estado de desespero.
- É melhor falarmos sobre isso lá perto dos barcos.
- Não! Quero saber o que vai dizer! - Nancy protestou, sentando-se.
O capitão hesitou por instantes, depois falou:
- Seja quem for que os levou, deve estar seguindo rio abaixo, mas há ainda a possibilidade de que... de que tenham caído na água e sido levados pela correnteza.
- Oh, meu Deus! - A voz de Nancy não era mais do que um lamento dolorido.
Hannah ajoelhou-se ao lado dela, passando os braços por seus ombros.
- Nós vamos encontrá-los, Nancy. Acalme-se, por favor!
- Vá com eles, Hannah - Elisa disse, aproximando-se com um cobertor. - Eu cuido de tudo aqui.
- Vamos, Hannah! - Randolph chamou.
- Ela vem comigo! - interveio o capitão.
- Não vai, não!
- Não seja idiota, Webster! Pense em seu filho. Deve estar assustado, com medo! Ele vai querer ver você ou Hannah primeiro! - Ethan foi até o barco, para pegar
sua arma e munição. Disse, enquanto o fazia: - Não sabemos quem vai encontrá-los. Por isso é melhor nos dividirmos assim.
- Ele deve ter razão, Randolph - Hannah observou, colocando a mão sobre o braço do patrão. - Vá com o Sr. Trask. Eu irei com Seth e o capitão.
O rosto de Randolph mostrava toda a raiva, preocupação e contrariedade que sentia.
- Por favor - insistiu Hannah. - Precisamos pensar em Jacob.
- Façam como quiserem! - ele disse, por fim, com rispidez, pegando seu rifle e dirigindo-se para a margem do rio.
Ethan descobriu uma trilha que seria seguida com facilidade por qualquer um que saísse do rio. Em silêncio, Seth e Hannah o seguiram por ela, confiantes nas habilidades
do capitão na procura de qualquer pista.
- Alguém passou por aqui, com certeza - Ethan disse, após verificar com cuidado a vegetação ao redor.
- Acha que foram as crianças? - Seth indagou, inclinando-se sobre alguns galhos quebrados que Ethan indicava.
- Bem... Veados não seguem trilhas, e deixam pegadas. Seja o que for que costuma passar por aqui, não o faz há muito tempo.
Continuaram avançando pela trilha, com o capitão parando para observar o que ele chamava de sinais.
Hannah começava a desanimar da busca, quando Ethan soltou um murmúrio. A sua frente, a pouca distância, estava o mosquete com que presenteara Jacob.
Hannah procurou adiantar-se, mas o capitão a deteve pelo braço.
- Espere. Deixe-me dar uma olhada primeiro, antes que você destrua qualquer pista.
Aproximaram-se com cautela, e Ethan verificou o local ao redor, principalmente o chão.
- O terreno aqui é firme demais para deixar pegadas, mas a terra está um tanto revolvida... Devia haver algumas pessoas aqui, com certeza.
- Pessoas? - Hannah sentia o medo crescer dentro de si.
Ethan assentiu, taciturno.
- E usavam mocassins - acrescentou.
- Deus do céu! - Seth sussurrou, apavorado.
- Se fosse um grupo de guerreiros - Ethan prosseguiu, analisando -, teriam atacado o acampamento, em busca de armas. Não estariam interessados em duas crianças.
- E se forem os índios amigos de que você falou ontem? - Hannah especulou, sentindo as mãos molhadas de suor.
Jacob e Bridgett deveriam estar apavorados. Isso, se ainda estivessem vivos...
- Não faz sentido - Ethan respondeu. -; índios amigos não roubam crianças.
- Você conseguiria segui-los?
- Não me parece que estejam despistando, Seth.
- Então, não é melhor voltarmos para buscar Trask e Webster?
- Não, eles devem estar bem longe, agora. Se voltarmos para buscá-los, perderemos tempo demais. - Pegou o mosquete do menino e fez um sinal para que Seth e Hannah
o seguissem.
Pouco mais de meia hora depois, saíam da floresta, encontrando diante de si um campo muito parecido com aquele no qual haviam caçado com os soldados do forte.
Havia um pequeno riacho a pouca distância, à margem do qual um grupo de oito ou nove guerreiros índios descansava. Eram como Hannah os imaginara: queimados de sol,
altos, fortes, com longos e lisos cabelos negros. Estavam sentados junto às duas crianças, que riam, fascinadas.
- Graças a Deus! - Hannah suspirou, aliviada.
- Não são wyandots - Ethan concluiu. - Parecem potawatomis.
- E são amigáveis?
- Não sei. - Ethan apontou o rifle para o chão, ergueu a mão e gritou uma palavra que Hannah não entendeu.
Dois dos índios já tinham se levantado e vinham em sua direção. Um deles era velho, com vários fios de cabelos brancos, nos quais havia uma única pena de águia,
usada como enfeite.
Ele respondeu, usando a mesma palavra que Ethan pronunciara.
- Você fala a língua deles? - Hannah perguntou, admirada.
- Algumas palavras apenas.
Agora, Jacob e Bridgett já os tinham visto, e Jacob pulava, alegre, acenando, enquanto a menina, percebendo talvez a gravidade do que fizera, mantinha-se sentada,
de cabeça baixa.
- Posso me aproximar das crianças? - Hannah perguntou ao capitão.
- Espere um pouco. Vamos nos assegurar de que não interpretem errado a nossa presença.
Os dois índios pararam a alguns passos de distância. Ethan apontou para si próprio, depois para as crianças, e os índios assentiram. Um deles começou a falar
e, quando parou, Hannah não pôde evitar a pergunta:
- Entende tudo o que ele disse, capitão?
- Não muito. Mas acho que disseram que encontraram as crianças na trilha e estavam tomando conta delas até que alguém aparecesse para buscá-las.
- Então... eles não as raptaram?
- Acho que não. - Ele depositou o rifle e a munição no chão. Depois, tirou uma pequena bolsa de fumo do bolso e ofereceu-a ao índio mais velho, com uma espécie
de mesura respeitosa.
- O que está fazendo? - Hannah continuava com as perguntas.
- Agradecendo pelo cuidado com as crianças.
O índio aceitou o presente, dizendo algumas palavras; o outro não tirava os olhos de Hannah.
- Não se costuma encontrar potawatomis por aqui
- Ethan segredou a Hannah e Seth, enquanto o índio cheirava o fumo. - Mas eles parecem pacíficos.
De repente, o índio mais jovem fez um gesto brusco para Hannah, como incitando-a a ir até as crianças. Ela obedeceu, evitando olhá-lo, e correu para junto de
Jacob e Bridgett. Abraçou-os, perguntando, preocupada:
- Vocês estão bem? Eles não os maltrataram? Bridgett começava a chorar.
- Estávamos com medo, Hannah. Pensei que nunca mais voltaríamos ao acampamento.
- O que aconteceu com vocês? - Hannah procurava evitar as lágrimas que teimavam em encher-lhe os olhos. - Esses homens tiraram vocês da barca?
Jacob negou com a cabeça.
- Eles não fizeram nada de mal, Hannah. São bonzinhos e falaram conosco através de gestos, como o capitão Reed tinha dito.
- Mas... como vocês chegaram até aqui?
Jacob baixou a cabeça para murmurar, envergonhado:
- Eu queria ver os índios, Hannah.
Foi Bridgett quem terminou de contar a história:
- Acordamos muito cedo, e Jacob disse que podíamos entrar na floresta para ver os índios. Ele afirmou que voltaríamos antes de os outros acordarem. Mas nós...
nos perdemos... - A garotinha começou a chorar, e Hannah abraçou-a mais uma vez.
- Oh, meu amor. Sua mamãe está tão preocupada com você! Nós todos ficamos muito preocupados.
- Eu não queria deixar mamãe triste...
Os índios observavam aquela cena com curiosidade. Hannah tentou sorrir para eles, enquanto abraçava a menina.
- Meu pai vai me bater - Bridgett resmungou, soluçando.
- Deixe que eu falo com ele - Hannah acalmou-a.
- Ninguém vai apanhar. Mas saibam que fizeram algo muito errado. Lembra-se, Jacob, de que lhe falei sobre ter responsabilidade nesta viagem?
O menino assentiu. Parecia envergonhado. Hannah prosseguiu:
- Daqui em diante eu o quero sempre perto de mim ou de seu pai, está bem?
As duas crianças assentiram, e Hannah soltou-as do abraço quando viu que Ethan e Seth se aproximavam, acompanhados dos dois guerreiros.
- Eles estão bem - disse, acariciando os cabelos de Jacob. - Saíram cedo para explorar a região e se perderam.
- Esses índios são bonzinhos, capitão - o menino explicou, com um sorriso tímido, de quem sabe que agiu errado.
Ethan entregou-lhe sua arma e comentou, sério:
- Mas nem todos são, Jacob. E um bom rastreador jamais deixa sua arma.
- É que... ficamos assustados quando vimos os índios, e eu a deixei cair, capitão.
O índio mais novo disse algo ao outro, mas Ethan voltou-se logo, negando com a cabeça. Hannah não conteve a curiosidade:
- O que ele está dizendo?
- Querem saber se você é minha mulher.
Ela sentiu-se enrubescer de imediato, enquanto Ethan respondia algo aos índios. Dessa vez, foi Seth quem perguntou:
- O que respondeu a eles?
- Eu disse "ainda não".
Os índios, agora, estavam todos de pé e observavam os brancos com atenção e curiosidade. Aquele que acompanhara o mais velho aproximou-se de Hannah e ergueu-lhe
a trança loira, dizendo algo aos amigos.
Ela afastou-se, inquieta e preocupada; aquela situação começava a incomodá-la.
- O que ele falou agora? - tornou a perguntar a Ethan.
- Não entendi. Mas acho melhor irmos embora. - Ele voltou-se para o índio mais velho, disse-lhe algo, e apontou em direção à floresta de onde tinham vindo.
A conversa, porém, pareceu se estender mais do que o necessário, o que deixou os nervos de Hannah à flor da pele. Ela voltou-se para Seth, que ergueu as sobrancelhas,
sem saber o que dizer ou fazer.
Ethan gesticulava muito e, de repente, tomou o braço de Hannah, afastando-a das crianças e dos índios.
- Querem nos oferecer uma refeição - ele explicou, com expressão preocupada.
- E isso levaria muito tempo? - Hannah não vira nenhum sinal de fogueira, o que indicava que nada havia sido preparado ainda para que pudessem comer.
- Horas, dias talvez. Os índios têm uma idéia bastante diferente da nossa em relação ao tempo.
- Mas temos de voltar logo para contar a Nancy que as crianças estão bem. E perigoso para ela passar por tanta preocupação.
- Talvez não precisemos ficar todos - Seth opinou. - Um de nós pode voltar para tranqüilizar os outros.
Ethan olhou para Hannah. Estava muito sério ao dizer:
- Eles fazem questão que a mulher de cabelos cor de sol fique.
- Cor de sol? - ela exclamou, sorrindo. Gostara da comparação.
Mas nem Ethan, nem Seth, partilhavam de sua lisonja. Trocaram um olhar significativo, e Seth perguntou:
- O que pode acontecer se tentarmos partir?
- Não sei.
- Eu fico, então - Hannah ofereceu. - Ethan, leve as crianças de volta ao acampamento.
- Não! - Seth protestou. - Eu volto e digo aos outros que tudo está bem. Virei depois, com Randolph e Hugh.
Ethan meneou a cabeça.
- Se eles virem mais homens brancos, podem começar a ficar tensos. - Ele pensou por um momento, depois acrescentou: - Seth, acha que consegue voltar pela trilha
pela qual viemos e chegar aos barcos?
- E claro que sim!
- Mas... e quanto às crianças? - Hannah interferiu, aflita.
- Seria melhor se voltassem com Seth - respondeu o capitão.
- Reed, tem certeza de que não quer que eu venha com Trask e Webster? E se houver problemas? - Seth indicou Hannah com um leve movimento de cabeça.
A maioria dos índios os observava com atenção. Ethan olhou para ele por instantes, depois respondeu:
-Ainda acho melhor que eles não vejam mais homens vindo para nos buscar. Mantenha todos no acampamento. Eu e Hannah voltaremos assim que pudermos.
As crianças protestaram, quando souberam que voltariam sem Hannah. Ela acalmou-as, porém, e as fez prometer que obedeceriam Seth no caminho de volta.
Ethan procurava se comunicar com o índio mais velho, que parecia ser o líder do grupo. Quando este, afinal, concordou com a partida de Baker e das crianças, o
capitão disse logo:
- Vá depressa, antes que ele volte atrás, Seth. Baker apanhou uma criança em cada mão e se foi.
Jacob voltou-se, ainda, dizendo:
- Você vai ficar bem, não é, Hannah?
- Vou, querido! Vá tranqüilo!
Quando os três desapareceram por entre as árvores, ela voltou-se para Ethan. O sorriso que dera ao menino já desaparecera, cedendo à apreensão e ansiedade do
momento.
Logo, os índios tornaram a se aproximar, apontando para os cabelos de Hannah, fazendo comentários em sua língua estranha. Com gestos, o índio jovem, que primeiro
se aproximara, fez Ethan entender que queria ver os cabelos da moça soltos.
O capitão traduziu o pedido a ela, e Hannah desfez a trança enquanto os nove índios a observavam, atentos. Alguns tentaram tocar as mechas douradas, mas Ethan
se interpôs, falando duas palavras no idioma deles.
Com gestos e expressões faciais, uma estranha conversa começou entre brancos e índios. O mais velho se fez identificar como chefe de um grupo, ao qual denominou
"tartarugas". Para que Ethan entendesse a palavra, imitou o animal, o que fez todos rirem, descontraídos. Parecia incrível a Hannah poder partilhar uma espécie de
brincadeira com gente tão diferente.
Os índios acenderam uma fogueira e colocaram algumas raízes para assar, enroladas em palha de milho. Tinham trazido carne defumada, mel e um tipo diferente de
frutas vermelhas, que Hannah jamais vira.
O rapaz que parecia tão interessado nela, fazia-lhe sinais para que comesse mais e mais. Seu nome era Skabewis e, após a refeição, ele foi até seu cavalo, onde
vasculhou uma pequena mochila de couro. Voltou, depois, com um pequeno objeto de madeira, com o qual presenteou Hannah. Era uma pequena caixa, com agulhas de osso
arrumadas em ordem do lado de dentro.
Hannah olhou para Ethan, sem saber como reagir.
- É um belo presente - ele comentou. - Apenas agradeça.
Ela fez como lhe era dito, mas o olhar insistente do índio começava a deixá-la embaraçada.
- Quando acha que poderemos partir, Ethan? - perguntou com certa angústia na voz.
- Não sei... Eles parecem gostar demais de olhar para você. - Ele riu. - E não posso culpá-los por isso.
- Tenho receio de que Randolph queira vir à nossa procura, apesar do que você disse a Seth.
- Vou ver o que posso fazer. - Ethan voltou-se para o chefe, começando a falar devagar, tentando usar as palavras corretas para expor sua intenção.
O índio mais velho ouviu-o em silêncio, depois olhou para Skabewis, que falou muito.
Hannah percebeu que Ethan se agitava, mas que se esforçava por manter a calma. Quando o jovem guerreiro se calou, o capitão falou, alto e bom som, com voz fria,
acentuando as palavras com gestos.
- O que houve? - Hannah já não conseguia conter a inquietação.
Ethan fez-lhe um sinal para que se calasse. A conversa com os índios prosseguiu ainda por algum tempo e, como Skabewis não parasse de olhá-la, Hannah sentiu que
o assunto deveria girar em torno de sua pessoa. Impaciente, ela tornou a perguntar:
- O que ele quer?
O rapaz se levantou, falou alto, e foi até o rio; parecia nervoso. Ethan também estava agitado. Só o velho chefe parecia manter a calma.
Sem agüentar mais aquela situação, Hannah agarrou o braço de Ethan, gritando:
- Diga-me o que estão falando!
Ele se voltou, respondendo, sem rodeios:
- Skabewis quer comprar você.


CAPÍTULO ONZE

Hannah arregalou os olhos. - Que tipo de brincadeira é essa?!
- Não é brincadeira. Eles têm um entreposto de peles aqui perto e Skabewis o está oferecendo por você.
Ela sentiu o sangue gelar em suas veias. O que Ethan poderia fazer para protegê-la? Começava a sentir o desespero tomando-lhe o peito.
- O que vamos fazer? - perguntou, aflita. Ethan via o medo nos olhos dela. Sentia o mesmo temor ao notar os olhos cúpidos do jovem índio sobre Hannah.
- Vou tentar negociar - ele respondeu, sério. Depois, procurando aliviar o pavor da moça, brincou: - Tentarei obter uma oferta melhor.
Mas ela não sorriu.
- Eles... não podem forçá-lo a me vender, podem?
- Não, enquanto eu viver. - Ethan olhou para as árvores distantes, depois acrescentou: - Quero que comece a caminhar de volta à trilha por onde viemos. Acha que
conseguiria voltar ao rio sozinha?
- Sozinha?! Mas...
- Talvez não tenha de fazê-lo - ele a interrompeu. - Mas, caso seja necessário, lembre-se de que o rio fica a leste. Observe onde o sol está se pondo e vá na
direção contrária, o mais rápido que puder.
- Não vou deixar você...
Agora, a interrupção foi mais firme. Ethan puxou-a para si e deu-lhe um beijo rápido nos lábios, dizendo depois:
- Vá. Faça como eu disse. Irei assim que puder. Hannah começou a andar, a princípio vacilante, olhando para trás e vendo que os índios a observavam. Dois deles
fizeram menção de segui-la, mas Ethan colocou-se à sua frente, começando a falar. Ela passou a andar mais depressa, ouvindo o capitão e Skabewis falando aos brados.
Ao atingir a floresta, Hannah parou, sem saber se esperava por Ethan ou prosseguia, tentando se salvar. O sol começava a se pôr, e a escuridão entre as árvores
seria tenebrosa assim que a noite caísse.
Se tivesse uma arma, ela poderia tentar ajudar Ethan, mas o melhor a fazer, no momento, parecia ser voltar ao rio e buscar ajuda no acampamento.
Preocupada e indecisa, Hannah avançara pela trilha que julgava ser a correta, parando às vezes para poder pensar melhor. Talvez devesse ficar com os índios até
que Ethan viesse resgatá-la mais tarde. Mas a idéia fazia-a estremecer. No entanto, nada parecia pior do que o pensamento de ver Ethan morto por sua causa.
Parou, então, decidida a voltar. Não o deixaria. Se não pudesse ajudá-lo, pelo menos estaria a seu lado.
A floresta já estava completamente às escuras agora. Hannah procurava não se perder, tentando reconhecer o caminho por onde viera. Seu coração começou a bater
mais forte, quando já não reconhecia mais o lugar. Seria tão fácil perder-se ali!
Em que direção o sol se escondera? Agora, no escuro, ela se sentia confusa demais.
- Está indo na direção errada - disse uma voz, logo atrás de si.
Hannah voltou-se, aliviada.
- Ethan! - Sem pensar em mais nada, ela o abraçou com força, quase fazendo-o cambalear.
- Para onde estava indo, moça? - o capitão perguntou, sorrindo e retribuindo o abraço.
- Eu ia voltar para ajudá-lo.
- Minha corajosa e tola moça do leste! - Ethan exclamou, ainda apertando-a contra si. - Se tivesse voltado, talvez jamais conseguíssemos escapar.
Hannah deu-se conta, de repente, da proximidade de seus corpos, e afastou-se, prudente, para perguntar:
- E como conseguiu escapar, capitão?
- Com uma boa conversa. Acho que se cansaram de me ouvir e me deixaram ir embora.
- Sei, sei. E onde está seu rifle?
- Decidi deixá-lo com os índios. Hannah arregalou os olhos.
- Entregou sua arma a eles?!
- Acho que você vale o preço, Srta. Forrester. Mas não se preocupe. Tenho outro rifle no barco.
- Mas não o seu Tiro Certeiro.
- É. Tem razão - ele concordou, sorrindo. Hannah olhava-o com atenção. A barba já acentuava seus traços fortes, e os cabelos soltos vinham-lhe até os ombros,
deixando-o com o verdadeiro aspecto do homem desbravador do Oeste, que Hannah já vira representado em algumas gravuras.
- Sinto muito por sua arma - ela murmurou, sentindo os olhos úmidos de repente. Uma única lágrima rolou, sem controle, por seu rosto, e Ethan veio beijá-la com
carinho.
- Não chore, meu bem - ele murmurou. - O importante é que você está sã e salva. Quando notei o jeito como aquele índio a olhava, tive vontade de estrangulá-lo,
sabiá?
- Você me pareceu bastante calmo...
- Mas não estava. Se eles quisessem criar algum tipo de problema, estaríamos perdidos porque eu não permitiria que tocassem num só fio de seus cabelos.,
Hannah engoliu em seco, imaginando o que poderia ter havido.
-Acha que virão atrás de nós? - perguntou, temerosa.
- Não. Partiram em direção oeste.
- Eles foram gentis com as crianças.
- Os potawatomis são, mesmo, de modo geral. Mas as teriam levado para sua tribo, caso não viéssemos procurá-las.
- E jamais as encontraríamos de novo, não é? Ethan assentiu de leve. Depois acrescentou, numa espécie de justificativa:
- A fronteira ainda é uma região perigosa.
- Acho que todos aprendemos uma grande lição hoje, em especial Jacob.
- Ele é bastante curioso, mas não o culpo. Hannah sorriu.
- O pequeno Ethan Reed era bem parecido com ele, eu suponho.
- Ainda é - o capitão acrescentou com um sorriso. Por momentos, ficaram assim, olhando-se, sabendo que tinham escapado ilesos de uma situação perigosa. De repente,
a expressão nos olhos de Ethan mudou, e Hannah pareceu reconhecê-la. Sentiu-se tensa e, ao mesmo tempo, frágil, e deu um passo atrás, dizendo:
- Acho que... é melhor voltarmos para os barcos, não? Ele assentiu, ainda encarando-a.
- Podemos tentar, mas não sei se iremos muito longe.
- O que quer dizer?
- Não temos suprimentos, nada com que eu possa fazer uma tocha. Está escuro demais para encontrarmos o caminho de volta.
- Quer dizer que vamos ter de passar a noite aqui?! - O tom de voz de Hannah mostrava apreensão e medo.
- Não posso sequer ver as estrelas direito com todas essas árvores. - Ele deixou de fixá-la para erguer os olhos para o céu. - Não tenho como me guiar. Quer arriscar?
- Não! É claro que não. Só acho que... podem estar preocupados conosco no acampamento.
- Vamos avançar o máximo que pudermos, então. - Ele não parecia preocupado em passar a noite a sós com Hannah, no meio da floresta.
Começaram a caminhar, mas logo Ethan parou, tentou orientar-se, e abanou a cabeça.
- Não adianta. Não consigo. É melhor marcarmos este ponto para nos orientarmos amanhã e procurarmos um local melhor para pernoitarmos.
A poucos metros de distância, encontraram uma pequena clareira rodeada de pinheiros. O terreno estava recoberto pelas inúmeras folhas mortas das árvores.
- Acho que aqui está bom - o capitão aprovou.
- Aqui? Ao relento?
- Não vamos conseguir encontrar uma hospedaria, meu bem. Com certeza.
Aquela era a segunda vez em que ele a tratava por "meu bem", e, apesar de as palavras agradarem-na, Hannah sabia que seria um erro deixar-se levar por elas.
- Bem, talvez pudéssemos encontrar uma gruta, ou algo parecido...
- Este é o colchão para quem vive nesta região, Hannah - Ethan explicou, apontando com um gesto suave para o chão. - O telhado é o céu, e o vento que sopra por
entre as folhas é a canção de ninar.
- Pode parecer muito poético, mas não temos, nem mesmo um cobertor!
- Se eu não fosse um cavalheiro, poderia dizer que ajudaria você a se aquecer, mas...
- Você não é um cavalheiro. - Hannah não pôde conter o riso, e não soube exatamente o motivo. Afinal, passara por momentos tão tensos durante o dia... Deveria
estar impressionada, ainda, e muito agitada.
Ethan fora até o centro da clareira e empilhava algumas folhas.
- É melhor esperar que eu seja um cavalheiro, moça, porque esta vai ser uma longa noite.
Algo no tom de voz dele a fez perceber que o capitão não estava brincando. Foi até ele, ajeitando também as folhas que lhe serviriam de cama.
- E... você é ou não um cavalheiro? - perguntou, tímida.
Ethan olhou-a por instantes. Então tomou-a pelos braços e puxou-a, sussurrando antes de beijá-la com paixão:
- Acho que não.
Hannah perdeu a noção do tempo enquanto durou aquele beijo. Quando ò capitão por fim a soltou, arfando, tomado de intenso desejo, ouviu-o murmurar com dificuldade:
- Sinto muito, mas eu precisava fazer isso. - Depois, afastando-se um pouco, ele completou: - Não sou um cavalheiro, mas também não sou um canalha. E melhor deitar
e dormir, Hannah.
Ela se sentia atônita, insatisfeita. Deveria estar contente por Ethan ter retrocedido em seus avanços amorosos, mas sentia como se algo tivesse ficado inacabado,
triste. Sua mãe sempre lhe dissera que os homens jamais param quando desejam uma mulher. Mas Ethan parará. E Hannah não sabia se deveria se envergonhar ou se aborrecer
consigo mesma porque gostaria que ele tivesse continuado...
Ele a observava havia horas. Seus olhos já estavam acostumados à escuridão e podiam divisar os contornos do corpo de Hannah com precisão.
Ethan estava sem sono. Seus pensamentos se agitavam. Fazia muito tempo que não tinha uma mulher nos braços e queria convencer-se de que essa era a razão pela
qual Hannah o atraía tanto. Porém, sabia que seus sentimentos iam muito além disso.
Queria demais aquela moça. E, além disso, admirava-a, sentia ternura e uma grande sensação de proteção em relação a ela.
O que mais o intrigava, porém, era o fato de respeitá-la, acima de tudo. Jamais desejara e respeitara uma mulher ao mesmo tempo. E Hannah, com certeza, merecia
essa deferência.
O que ela não merecia era perder a chance de ter uma vida honesta e feliz ao lado de Randolph Webster.
Dias atrás, antes de chegar ao forte, Ethan jurara manter-se afastado dela. No entanto, agora, ali, a seu lado, Hannah lhe parecia a mais bela e a mais desejável
das criaturas sobre a face da Terra.
Ela despertou no meio da madrugada, um tanto assustada por ver-se sobre as folhas secas dos pinheiros. Ouvira um ruído estranho. Procurou por Ethan e viu-o recostado
ao tronco de uma das árvores, na certa adormecido.
O barulho que ouvira devia tê-lo acordado também porque o capitão ergueu a cabeça e levantou-se devagar, fazendo-lhe um sinal para que continuasse em silêncio.
Ethan veio devagar até ela e ajoelhou-se a seu lado. Agora, ambos podiam ouvir um ruído que vinha de dentro da mata à sua direita.
- Acha que são os índios? - Hannah perguntou, o coração aos pulos.
- Não fariam barulho nenhum se estivessem atrás de nós. Deve ser algum animal.
- Lobos?
- Acho que não. Eles sempre vêm em grupos e só há um escondido na mata, pelo que posso distinguir. Mas talvez seja um urso.
Hannah aproximou-se do capitão, num movimento instintivo.
- Vamos ter de subir em alguma árvore? - perguntou, aflita.
Ethan riu.
- Se ele estiver com fome, isso não vai adiantar. - O capitão Reed deu-se conta da proximidade de Hannah. Passou o braço sobre os ombros dela, aconchegando-a
de encontro si. Então acrescentou, para tranqüilizá-la: - Mas, na maior parte das vezes, os ursos têm mais medo dos homens do que nós deles.
De repente, o ruído pareceu ficar mais próximo, e Hannah apegou-se ao peito do capitão, apavorada.
Logo, o animal apareceu, vindo da mata. Ethan riu, aliviado.
- E apenas um guaxinim. Não tenha medo.
O bichinho parou ao ouvi-lo, ficando imóvel por instantes, depois deu meia-volta e entrou, correndo, no meio dos pinheiros.
Hannah afastou-se de Ethan.
- Oh, Deus! Acho que jamais vou me esquecer deste dia! Graças a Deus você estava comigo.
- Estarei sempre.
Hannah ergueu os olhos depressa para vê-lo. O tom baixo, sussurrante, trouxera algo de novo entre ambos.
Ela sentia-se segura, protegida e incrivelmente atraída por aquele homem. Por isso não protestou quando as mãos dele desceram até os botões de sua blusa e começaram
a abri-los, um a um, devagar.
Ethan baixou a cabeça e beijou-a com uma paixão controlada, que acendeu uma fogueira de desejo em ambos.
Depois, ainda muito próximo, ele sussurrou em seu ouvido:
- Tenho lutado contra isso desde o dia em que a vi pela primeira vez, Hannah. Mas há algo forte demais entre nós.
Ethan repetiu o beijo e sentiu, agora, que Hannah correspondia com muito mais ardor. Ela o queria, também, e muito, não havia mais do que duvidar. Não havia nada
mais a esperar. Estavam livres para viver sua primeira noite de amor.


CAPÍTULO DOZE

Hannah jamais pensara que pudesse viver momentos tão maravilhosos nos braços de um homem. Tivera as mais incríveis sensações, experimentara ondas de prazer e
delírio que a transportavam para um outro mundo, distante da realidade e cheio da magia do amor. Ethan fizera com que se sentisse a mais feliz e realizada das mulheres;
mostrara-lhe como era possível amar e ser amada com uma intensidade arrebatadora. E Hannah tivera certeza, entre os braços dele, que aquele era o homem de sua vida;
aquele que amaria para sempre, mesmo que seu destino não tivesse sido traçado junto ao dele.
Apesar de aquela ter sido sua primeira experiência amorosa, Hannah sentia-se desembaraçada, livre de qualquer timidez ou recato, e isso encantou o capitão. Aquela
mulher o surpreendia mais uma vez. E encantava-o também. Seria ótimo se pudesse partilhar toda sua vida com ela. No entanto, nem por um segundo se esquecera de quem
era e da vida sem amarras que gostava de levar. Hannah era maravilhosa, sim. Especial em todos os sentidos. E deixava-o dividido entre o prazer de estar com ela
e o gosto pela aventura e pelo perigo.
Quando os primeiros raios de sol clarearam a manhã, Hannah despertou e esticou os braços, em busca do corpo de Ethan, ao qual se aninhara a noite toda. Ele já
não estava. No entanto, sua jaqueta de couro ainda a cobria, e sua camisa estava no chão, bem próxima.
Instantes depois, ele aparecia por entre as árvores, sorridente, trazendo nas mãos algumas folhas enormes, que pareciam conter pequenas frutas vermelhas. Ajoelhou-se
perto de Hannah para dar-lhe um beijo matinal.
- Bom dia! - saudou e ergueu a bandeja de folhas, acrescentando: - Trouxe nosso desjejum.
Hannah enrolara-se na jaqueta, procurando ocultar sua nudez, de súbito envergonhada por ver-se tão à vontade diante dele, à luz do dia.
- Não faça isso - Ethan disse-lhe, num sorriso gentil. - Sua beleza é ainda maior pela manhã, minha querida.
Hannah conseguiu apenas sorrir de leve. Aprendera muito sobre o amor físico nessa noite, mas, com a luz do sol, o mundo e a realidade pareciam ganhar uma dimensão
nova, carregada de responsabilidades e exigências. Logo vieram-lhe à memória os rostinhos de Jacob e Peggy. Como poderia encará-los novamente depois do que se passara
na noite anterior? E como olhar para Randolph outra vez?
- Não vai comer? - a voz do capitão interrompeu-lhe os pensamentos. Ele lhe oferecia as frutinhas vermelhas.
- Não seria melhor se fôssemos embora logo? Ethan percebeu uma certa frieza na voz dela. Talvez
Hannah estivesse arrependida, apreensiva até, com o que acontecera. De repente, uma estranha sensação de vazio tomou-o, deixando-o perplexo. Jamais vivera uma
noite de amor tão intensa com outra mulher. Algo muito além do prazer físico ligara-os, tornando-os partes de um mesmo corpo, elementos de uma única dimensão. Fora
mágico, inexplicável, impossível de negar ou esquecer. No entanto, agora, Hannah parecia fria, distante.
Talvez ela tivesse razão. Seus mundos eram bastante diferentes, e os instantes de encantamento que tinham vivido já não existiam mais. Precisavam voltar à realidade
de suas vidas, retomar seus caminhos, seus destinos. Afinal, Randolph Webster esperava por Hannah no acampamento. Ele e seus dois filhos órfãos de mãe.
Ethan colocou as folhas junto dela e assentiu de leve. Ergueu-se, devagar, e murmurou, antes de afastar-se:
- Vou deixá-la sozinha para que possa se vestir. Coma algo. Vai precisar, pois temos uma longa jornada pela frente.
- Hannah! Graças a Deus! - Randolph foi a primeira pessoa que encontraram ao regressarem ao acampamento. Era como se ele os estivesse esperando. Veio logo para
junto de Hannah, tomando-lhe as mãos nas suas.
Ela notou, com a consciência pesada, que ele tinha olheiras, como se não tivesse dormido a noite inteira devido à preocupação.
As crianças apareceram logo, rodeando e abraçando Hannah, sem lhe dar tempo ou oportunidade para falar.
Ela se abaixou para abraçar a todos e percebeu que Seth e Elisa vinham também para dar-lhe as boas-vindas.
- Chegou bem, pelo que vejo - o capitão observou, dirigindo-se a Seth.
- E. Acho que já sou um homem do Oeste! - o senhor concordou em tom de brincadeira.
- Pode não ser ainda, meu amigo, mas será em breve, com certeza. - Ethan passou por Hannah, indo até o homem, para dar-lhe tapinhas amistosos nas costas.
- Ficamos preocupados, Hannah - queixou-se Peggy, ainda abraçada a sua cintura. - Por que vocês não voltaram ontem à noite?
Hannah sentiu como se todos os olhos do mundo a focalizassem, acusadores. Sentia o rosto quente e pedia a Deus que ele não estivesse tão corado quanto imaginava.
- Os índios não quiseram nos deixar partir-mentiu. Ethan veio logo em seu socorro, acrescentando:
- Queriam comprar Hannah. Ofereceram-me peles em troca.
- Comprar? - Randolph estranhou, assustado.
- Mas o capitão Reed conseguiu convencê-los a me deixar voltar - ela explicou. - Teve, porém, de deixar seu rifle e a munição com eles.
- O Tiro Certeiro?! - Jacob estava indignado. Ethan olhou para o garoto e ergueu as sobrancelhas, numa expressão resignada.
- O próprio - admitiu. - Acho que terei de chamar minha outra arma de Tiro Certeiro também.
- E! Tiro Certeiro II! - o menino concordou, voltando a sua alegria costumeira. - Na verdade, capitão, é você quem faz o tiro, e não a arma.
Ethan sorriu.
- Você é um garoto esperto, Jacob Webster! - cumprimentou e, voltando-se para os demais, acrescentou: - Os índios me pareceram bastante satisfeitos com o que
lhes dei. Não acredito que venham atrás de nós, mas, apenas, por precaução, acho melhor voltarmos aos barcos imediatamente.
- Devo-lhe muito por ter salvado meu filho e Hannah, Reed. - Randolph agradeceu, oferecendo a mão ao capitão.
Hannah viu-os trocarem aquele aperto de mãos, mas não se convenceu da sinceridade de nenhum dos dois. Pareciam pouco à vontade por terem de conviver em paz. Ethan
evitou o olhar do outro.
- Acho que não poderemos partir de imediato - Elisa comentou com um traço de preocupação.
- Por que não?
- Nancy não está bem, capitão. Acredito que o desespero pelo qual passou fez-lhe muito mal.
Ethan cocou a barba de dois dias, pensativo, enquanto os outros aguardavam sua decisão. Agora, ninguém mais se atrevia a questionar sua autoridade.
- Acho que a situação dela pioraria muito se nos víssemos, de repente, diante de um grupo de índios hostis. É melhor improvisarmos uma cama para ela numa das
barcas.
Randolph e Seth assentiram, e, sem mais tocarem no assunto, todos voltaram para junto dos demais, a fim de prepararem-se para a partida iminente.
Ao passar por Randolph, Hannah sentiu-o retê-la pelo braço.
- Você não pode imaginar como foi terrível para mim pensar que talvez não a visse mais!
Ela tentou sorrir com naturalidade.
- Bem... Estou de volta agora. É melhor não pensarmos mais no que aconteceu.
- Foi uma noite horrível para mim. Queria tanto poder falar com você, tocá-la, estar a seu lado...
Hannah estava quase em pânico. As impressões das últimas vinte e quatro horas agitavam-na.
- Precisamos carregar os barcos - começou, mas Randolph a interrompeu.
- Eu sei. Mas, talvez... mais tarde, esta noite... Prometa que encontrará algum tempo para podermos conversar a sós.
- Está bem. - Ela sentia um frio estranho no estômago. - Prometo que conversaremos hoje à noite.
Randolph quase não se afastou de Hannah durante todo o dia. Solícito, estava sempre por perto para atendê-la nas mínimas necessidades, pronto para fazer-lhe qualquer
favor, prestar-lhe qualquer auxílio. Chegou, mesmo, a servi-la na hora do almoço, não deixando que servisse as crianças como de costume, alegando ser demais para
ela, após o que passara.
Ethan, como antes, seguia no outro barco, e Hannah estava aliviada com isso. Não queria ficar perto dele, ou ter de falar-lhe. Afinal, a noite maravilhosa que
haviam partilhado podia ter sido linda para ela, mas, com certeza, não passara de mais uma experiência como tantas outras para ele. Ethan era um homem vivido, um
aventureiro sem destino e sem raízes. Nada havia a esperar de um homem como ele. Hannah não sabia, ao certo, por que se sentia assim em relação ao capitão, mas tinha
certeza de que sua intuição não falharia no tocante à atitude dele. Como sua mãe sempre a alertara, os homens, depois de terem o que querem de uma mulher, perdem
o interesse. Era uma pena, porém. Porque ela adorara cada momento que vivera entre os braços dele.
Estranho. Ele tentara alertá-la sobre as conseqüências do que sentiam um pelo outro. Logo ao ajeitar a cama de flores, ele a beijara com desejo, e recuara; era
como se soubesse que seria perigoso viverem seu amor, como se a alertasse quanto ao risco de amar um homem que não se prende a nada, nem a ninguém.
Bem, agora já era tarde, e qualquer arrependimento, na intensidade que fosse, seria apenas dela.
Era a vez de Seth Baker pegar o remo, e Randolph aproximou-se para sentar-se junto de Hannah. Aquele trecho do rio era o mais belo pelo qual já tinham passado,
justificando plenamente o nome que os índios lhe davam: Ohio, ou seja, rio bonito. As águas eram claras, brilhantes; as margens, carregadas de uma vegetação exuberante,
de cores e tonalidades incríveis. Pássaros multicoloridos esvoaçavam para todos os lados à passagem dos barcos, dando a impressão de que avançavam em meio ao paraíso.
-Você não me parece assustada pelo que lhe aconteceu ontem - Randolph observou, olhando-a com atenção. Hannah sorriu.
- Acho que foi pior para você do que para mim - disse com voz suave. - Primeiro, a preocupação com o desaparecimento de Jacob, depois nossa demora em voltar ao
acampamento.
- Acho que fui um tanto rude ontem, quando estávamos formando os grupos de busca.
- Todos nós estávamos aflitos por causa das crianças. Não se preocupe com isso.
- Eu... não quero que pense que estava zangado com você. Na verdade, era Reed quem estava sendo inconveniente.
- É melhor não falarmos mais sobre isso, Randolph. Já passou. Estamos todos bem e é melhor apreciarmos este dia maravilhoso.
- Não o vejo assim tão maravilhoso quando penso que pode haver índios hostis nos observando por trás das árvores das margens. Quando me lembro de que Jacob esteve
com eles...
- Aqueles índios não eram perigosos - ela o interrompeu. - Trataram bem as crianças e a nós também. Apenas aquele jovem guerreiro se... interessou um pouco além
da conta por mim. - Hannah sorriu ao se lembrar da insistência do índio.
Mas Randolph não sorria ao dizer:
- Não posso culpar homem nenhum por desejar você. Mas, só em imaginar alguém tocando seus cabelos, seu corpo...
Hannah podia ver, em Randolph, o mesmo olhar possessivo que vira em Ethan, diante dos índios. Sentiu-se, de repente, cansada. Estava feliz por voltar para junto
de sua gente, mas os homens brancos pareciam ter a mesma necessidade de possuí-la que Skabewis tivera.

O jovem guerreiro a admirara e guardara uma distância respeitosa; até oferecera um bom preço por ela. Seria aquela oferta diferente do contrato através do qual
Randolph a comprara havia três anos?
No final daquela tarde, atingiram uma parte do rio onde as águas se voltavam abruptamente para o oeste, dividindo-se e formando uma encantadora ilha. Ethan garantira
que até estariam bem protegidos, e, já que Nancy Trask não estava nada bem, resolveram pernoitar na ilhota.
Prepararam o acampamento e a refeição para o jantar quase em silêncio, pois estavam todos muito cansados e ainda abalados pelos acontecimentos do dia anterior,
inclusive as crianças.
Não houve conversas ao redor do fogo após a refeição, e todos se recolheram logo, em busca do descanso e do sono reparador. Hannah já se preparava para recolher-se
também quando Randolph veio até ela.
- Pensei que poderíamos conversar agora...
- Mas conversamos durante todo o dia... - Hannah estranhou. Na verdade, queria fugir de um contato mais íntimo com o patrão. - Pensei que quisesse apenas se desculpar
por ter sido rude ontem. Ainda está pensando naquilo?
Ele tomou-a pela mão, convidando:
- Vamos andar um pouco, está bem?
Sem saída, Hannah assentiu. Após alguns minutos, porém, passou a apreciar o passeio.
Os sons da noite traziam-lhe uma agradável sensação de paz, que fazia seus nervos relaxarem.
- Sobre o que quer falar? - indagou, quando já se aproximavam de outra margem da ilha.
Ele apontou para uma pedra grande.
- Vamos nos sentar primeiro.
Hannah obedeceu, puxando os joelhos para junto do corpo, para evitar que a água do rio molhasse a barra de sua saia. Randolph sentou-se a seu lado e esticou as
pernas longas, não se importando em mergulhar a sola das botas na areia encharcada da margem.
- Eu não cheguei a perguntar sua opinião sobre o Oeste - ele começou.
- Acho tudo muito lindo - ela se precipitou, antes mesmo de deixá-lo prosseguir. - É selvagem e fascinante!
Randolph pareceu surpreender-se com a intensidade daquela resposta. As palavras dela tinham sido quase que reverentes, como se a beleza da terra já houvesse se
apoderado por completo de Hannah.
- Você não sente medo, não é? - Randolph perguntou, observando-a com atenção. - Mesmo depois do que houve ontem.
Ela pensou por instantes, depois negou com a cabeça.
- Há perigo, é claro. Mas há perigo em toda parte, no mundo todo. Posso encontrar um urso faminto aqui, mas também podia ser atropelada por uma carruagem em Filadélfia,
ou mesmo em Londres.
- Desde que a vi pela primeira vez, no prédio onde a contratei como criada, eu percebi que era uma mulher corajosa.
Hannah estranhou o comentário. Nos primeiros anos de seu contrato, ele parecera vê-la como um animal de carga apenas.
- Pois aquele foi um dia do qual jamais me esquecerei - ela comentou, com amargura. - No entanto, não achei que tivesse prestado muita atenção a mim.
Randolph riu, um tanto sem graça.
- Se você pudesse se ver com os olhos de um homem, Hannah, perceberia que esse seu comentário não tem fundamento. E verdade que, a princípio, não percebi a profundidade
de sua alma, mas fiquei intrigado, sim, desde o primeiro momento.
- Você nunca disse nada...
- É claro que não! - ele interrompeu. - Que tipo de homem acha que sou? Eu tinha uma esposa maravilhosa e dois filhos lindos! Não poderia me deixar envolver por
uma moça linda, fascinante, e deixar as pessoas que eu mais amava arrasadas. Mas houve momentos, Hannah, em que eu quase pus tudo a perder por sua causa. - A voz
de Randolph não era mais do que um murmúrio rouco nas últimas palavras.
Ela estava atônita. Jamais suspeitara de ter provocado tais sentimentos no patrão. E a devoção dele à esposa nunca se abalara, em todos aqueles anos, mesmo nos
terríveis momentos pelos quais ela passara em sua doença.
- Randolph, eu jamais...
- Nem Priscilla. E só eu sei o que passei para que assim fosse.
- E por que está me dizendo isso agora?
- É que ontem, quando pensei que poderia perdê-la para sempre, decidi ser franco e dizer-lhe o que, na verdade, sinto por você.
Os pensamentos de Hannah se confundiam em sua cabeça. Randolph provava ser um homem responsável, fiel e honesto. Muito diferente de Ethan Reed, que não se importara
em dormir com ela dias após ter estado com Polly McCoy.
No entanto, era difícil encontrar palavras diante daquela declaração de amor. Nem mesmo sabia se Randolph queria ou esperava por uma resposta. Afinal, já era
propriedade dele. Para muitos patrões que tivessem o tipo de contrato que ele tinha, este já seria motivo suficiente para exigir quaisquer direitos sobre ela.
- Ainda lhe devo serviços por mais três anos... - Hannah começou, cautelosa.
Randolph tornou a interrompê-la, impaciente:
- Esqueça esse contrato, Hannah! Posso queimar o maldito papel agora, se você quiser, e libertá-la para fazer o que desejar.
Randolph tomou o rosto de Hannah com suavidade. Sua expressão era sincera:
- Mas peço-lhe que não se afaste de mim. Já perdi o amor de minha juventude, mas quero reconstruir minha vida com você. Quero que possamos envelhecer juntos...
Hannah sentiu lágrimas encherem seus olhos.
Ia responder, mas o som de alguém caminhando depressa na mata, logo atrás deles, os fez voltarem-se, de repente. Randolph afastou as mãos do rosto dela e logo
a figura forte do capitão Reed apareceu por entre as árvores.
Randolph deu uma risada tensa, desagradável, e perguntou:
- Mas o que você quer aqui, Reed?!
Hannah não podia ver a expressão de Ethan, mas a voz dele estava calma ao anunciar:
. - A Sra. Baker me pediu para chamá-la, Hannah. Nancy Trask está em trabalho de parto.


CAPÍTULO TREZE

Hannah esfregou os olhos, cansada. Já fazia um dia e meio que não dormia, e sua última noite de sono fora aquela que passara com Ethan, ao relento.
Elisa e ela se alternavam à cabeceira de Nancy Trask. Hannah já se acostumara com esse tipo de vigília. Fora assim durante toda a doença de sua mãe, e depois
com a pobre Priscilla.
Durante toda aquela longa noite, e depois durante o dia, Nancy passara por estados de consciência e delírio, e Hannah sempre estivera a seu lado para limpar-lhe
o suor da testa e segurar-lhe com firmeza a mão frágil quando as contrações voltavam, cada vez mais agudas.
Hugh Trask, como sempre, não estava por perto para dar apoio à mulher. Viera, durante a noite, espiando pela abertura que havia na lona da barraca, mas Elisa
mandara-o embora, já que cheirava a bebida.
Nancy não pedira pela presença dele. Parecia satisfeita por ter Hannah e Elisa junto a si. E sorria para Randolph, quando, às vezes, ele aparecia para perguntar
por seu estado. Chegara até a murmurar um suave "Deus o abençoe" a Ethan, quando ele viera, horas atrás, dizer que estava levando as crianças para pescar, a fim
de distraí-las.
- O que podemos fazer? - Hannah perguntou a Elisa quando, sem mais poder se conter, Nancy passou a gritar ao lhe virem as dores.
O rosto da senhora era, agora, uma máscara de preocupação.
- Não sei... - murmurou. - Talvez o trabalho demore por ele ser prematuro.
-Ainda temos um pouco daquele seu chá calmante?
- Não. Mas acho que não adiantaria muito agora, mesmo se o tivéssemos.
Hannah olhou para Nancy, que se contorcia em dores.
- Ela está tão fraca... Não sei por quanto tempo mais poderá agüentar.
- Acho que ela está fora de si. Não vai sequer se lembrar disso tudo. E depois, uma mulher esquece de todo o sofrimento por que passou quando tem um filhinho
nos braços. E este que vamos ajudar a nascer vai precisar muito de sua mãe, eu creio, pois será bem miúdo.
Hannah levantou-se, procurando aliviar a tensão que pesava sobre suas costas. Colocou a cabeça para fora da barraca, observando.
- Ethan e as crianças já deviam ter voltado. Elisa olhou-a com jeito maroto.
- Está preocupada com quem? Com as crianças ou com o capitão?
Hannah voltou-se de repente.
- O que quer dizer com isso?
Elisa deu-lhe um daqueles seus sorrisos amáveis, maternais, dizendo:
- Você pode enganar os outros, querida, mas eu a conheço muito bem. Já a vi várias vezes olhando para nosso belo guia, desde que partimos de Filadélfia. E quando
vocês dois voltaram da floresta ontem, eu poderia jurar que havia um brilho novo em seu olhar. Hannah deu alguns passos pela barraca e sentou-se junto
de Elisa.
- Isso não tem a mínima importância - sussurrou de cabeça baixa.
- Mas é claro que tem! - insistiu Elisa. - E não pense que a condeno por isso, minha linda. O homem é um pedaço de mau caminho, até eu reconheço isso. O que me
preocupa, porém, é esse seu coraçãozinho. Acho que o capitão Reed não é do tipo que aceita casar-se, estabelecer-se em um lugar, criar família.
- Eu sei disso, Elisa. Acho que não perdi minha cabeça completamente.
- Sei. Só parte dela, certo?
Hannah sorriu de leve. Elisa prosseguiu:
- Você deveria se interessar por Randolph Webster, filha. Ele é um homem capaz de dar uma vida feliz e tranqüila a uma mulher.
- Não estou interessada em ninguém em especial. Afinal, ainda sou uma criada.
- E vai ficar se amarrando nesses papéis de servidão até que o prazo do contrato se esgote? Eles não vão ter valor aqui no Oeste. Randolph não a proibiria, se
quisesse partir agora. E você sabe disso tão bem quanto eu. Mas acha que, enquanto estiver presa a sua condição de criada, não terá de enfrentar as verdadeiras decisões
de sua vida, como nós todos fazemos, não é?
Hannah estranhava as palavras da amiga. Era como se ela soubesse da conversa que tivera com Randolph na noite anterior.
No entanto, Elisa não tinha como imaginar do que haviam falado. Hannah sentia que seus pensamentos estavam sendo lidos por aquela bondosa mulher.
Nancy soltou um gemido longo e profundo, fazendo as duas amigas voltarem-se para vê-la.
- Eu vou morrer? - perguntou numa voz quase imperceptível.
- É claro que não, Nancy - Hannah assegurou. - Não vamos permitir que nos deixe. Nem você, nem o bebê.
Elisa, com sua prática e experiência de longos anos, fez novo exame de toque na parturiente e comentou:
- Tenha fé, Nancy. Acho que, enfim, nosso pequenininho está vindo. E tem cabelos pretos, como a mamãe! Hannah segurava as mãos de Nancy, e esta, num último e
doloroso esforço para o nascimento da criança, crispou seus dedos entre os da amiga. Seu rosto se torceu numa expressão de agonia, enquanto mais um grito de dor
escapava de sua garganta.
Randolph apareceu na abertura da cabana, perguntando, aflito:
- O que está havendo?
- O bebê está nascendo! - Hannah respondeu, numa mistura de pânico e alegria.
- Graças a Deus! Querem que eu vá buscar Hugh?
- Se ele estiver sóbrio o suficiente para saber o que está se passando... - Elisa ironizou.
- Vou dizer a ele - avisou Randolph. - Afinal, Hugh é o pai.
- E as crianças? - Hannah perguntou, antes que ele se fosse.
- Voltaram com Reed há pouco. Estão bem.
Nancy ainda sofreu alguns espasmos violentos, mas, afinal, após um último esforço, Elisa gritou:
- Aqui está ele!
E Hannah olhou para ver a criaturinha arroxeada, banhada em sangue, nas mãos da senhora.
- É um menino! - anunciou, feliz. - Nancy, você teve um menino lindo!
Nancy tentou erguer a cabeça, mas estava fraca demais.
Hannah limpou-lhe o suor do rosto enquanto Elisa cuidava de cortar e atar o cordão umbilical da criança.
Algo, porém, fez com que olhasse para Nancy de novo, preocupada. O silêncio repentino de Elisa e um gesto significativo de cabeça, chamando-a, fez com que deixasse
a cabeceira de Nancy e aproximar-se.
- Algo está errado - Elisa sussurrou, enrolando o bebê em alguns tecidos quentes.
A criança estava quieta e não se movia. Sua pele tinha uma coloração azulada por baixo das manchas de sangue.
- Acho que ele não está respirando - Elisa continuou, no mesmo tom.
Hannah sentiu um aperto no peito. Já conhecia a dor da morte, mas achava injusto que Nancy perdesse seu filhinho após tanto esforço para trazê-lo ao mundo.
- Trask ainda está bêbado. - A voz de Randolph veio de fora da barraca. Ele se aproximou, mas parou assim que viu a criança. - Então, ele já nasceu... - começou,
com alegria.
Elisa balançara o pequeno embrulho entre os braços, e disse, alarmada.
- Ele não está respirando, Randolph!
- Precisamos fazer alguma coisa! - Hannah interferiu, desesperada. - Não podemos deixá-lo morrer!
- É lógico que não! - Randolph apoiou, pegando o bebê e ajoelhando-se com ele. - Ele tem de respirar! Temos de fazê-lo respirar!
Para surpresa de Hannah, Randolph curvou-se sobre o corpinho minúsculo, começando a soprar diretamente na boquinha da criança.
- O que você está fazendo?! - ela começou, num protesto, mas, antes que pudesse prosseguir, viu que o peito pequenino começou a movimentar-se até que o bebê
soltou um gemido agudo e passou a chorar a plenos pulmões.
- Você conseguiu! - ela exclamou, feliz. - Você o fez respirar, Randolph!
O tom azulado logo foi substituído por outro, rosado, enquanto o bebê prosseguia com seu choro convulsivo.
Havia lágrimas nos olhos de Randolph. Ele se levantou e trouxe o bebê para junto da mãe.
- Aqui está seu filhinho, Sra. Trask. É um garoto lindo. E saudável.
Nancy entreabriu os olhos cansados e sorriu de leve.
- Deus o abençoe. Deus abençoe a todos vocês. Ela logo perdeu os sentidos outra vez, assustando Hannah.
- Calma! - Elisa interferiu. - Ela apenas desmaiou. Vá limpar o bebê. Eu cuido de Nancy.
- Vou contar aos outros - Randolph disse, entregando a criança a Hannah. - Vou dizer-lhes que um milagre acabou de acontecer.
Um sorriso brotou de leve nos lábios dele e logo contagiou Hannah e Elisa. Aquele era seu primeiro teste para enfrentarem a vida no Oeste selvagem, e tinham passado
por ele com sucesso.
O bebê era tão pequeno que uma cama tinha sido providenciada para ele numa caixa pouco maior do que os sapatos de Hannah. No entanto, apesar dos primeiros momentos
de angústia, ele parecia bastante bem, a julgar pelo choro alto e forte que substituíra seus primeiros protestos nesta vida.
Já era quase meia-noite, e Elisa procurava convencer Hannah a descansar um pouco. Todos no acampamento estavam agitados com a chegada do novo companheirinho,
principalmente as crianças.
Trask chegou pouco depois do nascimento, mas se recusou a segurar seu filho, dizendo apenas:
- Até que enfim ela me deu um filho homem! Vai crescer igualzinho ao pai! - E então, sem ao menos perguntar sobre o estado de sua esposa, desapareceu de novo.
Elisa deitou-se ao lado de Nancy e logo adormeceu, mesmo com Hannah e Randolph conversando, baixinho, na barraca.
- Eu não entendo esse sujeito - Randolph dizia. - Não se comoveu nem com o nascimento do filho.
- Ele não merece ter uma família tão linda - foi o comentário de Hannah.
- Priscilla, alguma vez, falou com você sobre o bebê que perdemos, Hannah?
- Não. Ela nunca tocou nesse assunto.
- Quando soubemos que íamos ter outro filho, ficamos tão felizes! Mas eu me preocupei porque sabia que ela já estava doente.
Hannah observava-o com atenção enquanto Randolph falava.
Aquelas recordações deviam atormentá-lo, a julgar pela dor que ainda se podia ver em seus olhos ao narrar os fatos. Ele olhava para o bebê adormecido na caixinha.
- Acho que... não tinha que acontecer - disse ele, pouco depois. - Mas Priscilla sofreu muito. Sabe, acredito que esse tipo de coisa está nas mãos de Deus, ou
da natureza, ou seja lá do que for que controla nossas vidas. Talvez se o bebê tivesse nascido, Priscilla não tivesse agüentado mais dois anos.
- E foram dois anos preciosos demais, não? Randolph assentiu.
- Deram a Jacob a chance de poder se lembrar de sua mãe. Também deram às crianças a oportunidade de amar você, e não sofrer tanto depois, com a falta da mãe.
Hannah sentiu seu coração se apertar. Ela era, de fato, muito importante para aquela família.
- Que bom que eu estava lá - conseguiu murmurar, sentindo um nó na garganta.
Randolph apertou-lhe a mão, para acrescentar:
- Que bom que está aqui, conosco. Não tenho palavras para descrever o que sinto, Hannah.
A proximidade dele, porém, começou a incomodá-la. Talvez fosse o cansaço, ou a falta de sono, mas Hannah sentiu que precisava afastar-se de Randolph e dormir
um pouco.
- Bem, foi muito bom tê-lo aqui, esta noite. Acho que, sem sua presença, o bebê teria morrido - disse, para pôr um ponto final na conversa.
Ele negou com a cabeça. Olhou para Nancy Trask, que dormia, calma, e comentou:
- Ela é uma grande mulher. Corajosa, forte. E não merece o sofrimento pelo qual tem passado.
Com cuidado, Randolph pegou o bebê, que se mexia na caixinha, e aconchegou-o junto a si.
- Veja, ele está abrindo os olhos! - exclamou, vendo que a criança parecia querer enxergar o mundo que a rodeava.
Sua expressão alegre despertou Elisa, que se sentou, de repente.
- Por que não está dormindo, Hannah? - ela perguntou, sonolenta. - Você precisa descansar, menina!
Hannah sorriu. Levantou-se, vendo que Randolph exibia a criança à boa senhora, e saiu da barraca onde ficara de vigília por um dia e meio.
Sentia-se aliviada por ter encontrado uma desculpa para sair dali. A conversa com Randolph e a presença do bebê pareciam projetar-lhe uma perspectiva de futuro
onde ela própria poderia ter uma família. Deveria, porém, estar animada com a idéia, e não melancólica. O problema, concluiu ao entrar em sua barraca, era que seus
sonhos para o futuro projetavam a imagem de um bebê forte, robusto, com belos olhos escuros - os mesmos lindos olhos do capitão Ethan Reed.
Permaneceram na pequena ilha por mais três dias, para que Nancy e a criança pudessem ficar fortes o suficiente para prosseguir viagem. O bebê recebera o nome
de Hugh Wallace Trask, e Elisa, Hannah e Randolph passaram a chamá-lo de Wally, dizendo que Hugh era um nome sério demais para alguém tão pequenino. O pai, no entanto,
pouco ou nada se importava com a presença do recém-nascido, e ainda não segurara o filho nos braços.
As crianças ficavam o tempo todo ao redor do pequeno Wally. Bridgett e Janie estavam encantadas com o irmãozinho e ficariam dias inteiros junto dele e da mãe,
caso Elisa não lhes tivesse dito que Nancy precisava descansar.
O capitão, ao contrário de Randolph, que a todo instante fazia questão de estar perto da criança, negara-se a pegá-la no colo, alegando não querer sujá-la. Hannah
notara que ele pouco aparecia, como se procurasse ficar afastado de propósito. No entanto, na tarde do segundo dia, ele se aproximou num momento em que Nancy dormia
e Hannah estava sozinha a seu lado.
- A mãe e o bebê estão bem? - Ethan perguntou de um jeito um tanto formal.
- Está tudo muito bem. - Hannah sentia-se pouco à vontade por estar a sós com ele. Aquela era a primeira vez que conversavam após a noite de amor que tinham vivido.
- Nós não temos nos falado - Ethan começou, após alguns instantes de silêncio. - O que houve entre nós, na outra noite...
- Não há necessidade de falarmos a respeito - Hannah interrompeu, um tanto fria. Sabia que, para Ethan, aquela noite não passara de mais uma de suas muitas aventuras.
Ele era um homem do mundo, sem raízes, sem compromissos.
- Bem... parece que você está, de fato, arrependida do que fez. Eu imaginei que seria assim.
Hannah levantou-se e afastou-se da cama de Nancy. Talvez fosse melhor para si própria e para Ethan se admitisse estar arrependida. Poderia, porém, afirmar que
lamentava o que se passara naquela noite?
- Acho que seria melhor se não falássemos mais sobre o que houve - disse, por fim.
Ethan pensou por segundos. Depois veio até Hannah, ficando muito próximo, mas não a tocou.
- Acha que, se não falar a respeito, vai poder esquecer o que houve? - perguntou, na voz profunda e máscula que mexia com todos os sentidos de Hannah.
- Eu tenho de esquecer - ela respondeu sem pensar muito.
- Porque teve uma oferta melhor? - Ethan insistiu. Sua voz soou áspera, irritada.
- O que quer dizer com isso?
- Que Webster acordou, afinal, e percebeu que quer você na cama dele.
A maneira rude com que o capitão falava atingiu Hannah como uma bofetada.
- Seu palavreado é bastante vulgar... - ela começou, mas parou ao vê-lo afastar-se.
- Sinto muito - Ethan se desculpou com certa ironia. - Webster está apaixonado por você. Qualquer um pode notar isso no modo como ele a olha.
A súbita explosão de raiva que dominava Hannah pareceu ceder espaço à vaga tristeza que vinha sentindo desde o nascimento do pequeno Wally. E ela não sabia explicar
de onde vinha tal melancolia.
- Vai se casar com ele? - Ethan insistia ainda.
- Ele não me pediu.
- Pois eu achei que tivesse pedido, na outra noite, à margem do rio.
- Não.
- Pois pode esperar, porque ele vai lhe propor casamento. Webster é um homem honrado.
- É. Ele é bem diferente de certos homens que conheço.
Ethan sorriu muito de leve.
- Achei que soubesse que não sou do tipo que se casa - disse, calmo. - A vida que levo não me permite constituir família. Por acaso achou que aquela noite mudaria
isso?
Pela primeira vez desde que Ethan começara aquela conversa, Hannah conseguiu erguer o rosto e olhá-lo com firmeza.
- Não achei nada, capitão. Penso que me deixei levar por seu ardor. Só isso.
- E agora está me culpando...
- Não. Não me arrependo do que fiz. Mas quero que entenda, de uma vez por todas, que não quero, e não vou mais falar sobre esse assunto. Acho que já é hora de
pensar em mim mesma, e em que tipo de vida quero ter no futuro.
Ethan a olhava com admiração.
- Você é uma mulher em um milhão, sabia?
- No seu caso, em particular, creio ser uma entre muitas outras, na verdade.
Aquele sorriso maroto passou pelos lábios dele mais uma vez.
- Está enganada, Hannah. Mas talvez seja melhor que pense assim, afinal.
- Assim que chegarmos ao rio do Destino, capitão, pretendo não pensar de maneira nenhuma em sua pessoa.
Já anoitecera quando terminaram de carregar as barcaças e as lançaram outra vez ao rio. Havia pouca conversa entre todos; pareciam estar um tanto taciturnos,
talvez refletindo sobre o silêncio e a escuridão da noite.
Ethan tomara sua posição costumeira no barco da frente, com Hugh Trask e suas filhas, mas Nancy fora colocada na outra barca, junto com o bebê, para que pudesse
ficar sob os cuidados de Hannah e Elisa.
Quando a manhã chegou, todos pareceram ficar mais animados. A paisagem das margens era cada vez mais bonita. Uma espécie de terra da promissão se descortinava
à sua frente, fértil e abençoada: uma esperança de vida feliz e farta para todos que soubessem cultivá-la. Embora ainda houvesse muitas florestas densas e perigosas
pelo caminho, mais e mais planícies apareciam, intercalando-se a elas, cobertas por uma pastagem de um verde incrível, que se espraiava como um manto de veludo.
No nono dia após a partida do forte Pitt, encontraram uma pequena aldeia indígena, num dos enormes bancos de areia ao lado leste do rio.
Os índios se aglomeraram, curiosos, junto à margem, vendo os barcos passarem ao sabor da corrente. As pequenas crianças quase totalmente despidas acenaram, inocentes,
fazendo Jacob e Peggy rirem e acenarem de volta.
- Reed não disse nada sobre essa aldeia - Randolph comentou, franzindo as sobrancelhas, preocupado.
Ele já manejava com habilidade o grande remo na popa do barco.
- Eles não me parecei" perigosos - Seth observou, erguendo o olhar da rede de pescar que remendava. - O capitão nos avisaria se houvesse algum problema.
Hannah sentia-se arrepiar ao ver os guerreiros índios, lembrando-se do que já passara. No entanto, as pessoas que os olhavam, curiosas, da margem, não pareciam
perigosas.
Já que iria viver naquela terra, considerou Hannah, precisava aprender a conviver com os índios. Eram gente, afinal.
E havia espaço naquela terra imensa, para todos que quisessem viver ali. Assim pensando, ela aproximou-se de Jacob e Peggy e passou a acenar também.


CAPÍTULO CATORZE

Parecia inacreditável, após tantos dias de viagem, mas aquela era a última noite antes de chegarem a seu destino.
Tudo correra bem. Apesar do nascimento prematuro de Wally e da fraqueza de Nancy, estariam chegando a seu novo lar no verão, com tempo suficiente para plantarem
as primeiras sementes de milho, que vinham na barca de Trask. Com tempo, também, para erguerem suas cabanas de madeira, que os abrigariam do frio em seu primeiro
inverno na fronteira ocidental.
Havia um clima de ansiedade generalizada no acampamento nessa última noite. Seth fora buscar seu violino para comemorar, Trask já entornara outra garrafa de rum
e Randolph parecia rejuvenescer, ganhar ânimo e vigor. Estava tão ou mais animado do que quando planejara toda aquela viagem.
- Até que ponto do rio do Destino teremos de subir? - ele perguntou ao capitão.
Ethan ergueu de leve os ombros largos.
- Aqui, o território é aberto. Podem ocupar o trecho que quiserem. Mas, se subirem um pouco mais, estarão livres de qualquer atividade do rio que queiram evitar.
- Isso me parece muito bom - Seth opinou.
- Vamos acampar logo na desembocadura do rio do Destino - Ethan prosseguiu. - Vocês poderão subir e descer um pouco para verificar e escolher o ponto onde vão
querer construir suas cabanas e limpar o terreno.
Hannah sentiu um frêmito de alegria ao imaginar que, no dia seguinte, o sonho de todos ali estaria se tornando realidade. Sentia-se, porém, um tanto insegura.
Como seria sua nova vida ali? Desde que tinham deixado a pequena ilha onde Wally nascera, Randolph não lhe falara mais nada sobre o assunto sério e decisivo no qual
tocara após o parto de Nancy.
Na verdade, Hannah não esperara que ele o fizesse. Quase nunca estavam a sós, e havia muitas coisas a serem feitas por todos do grupo. Mas não podia deixar de
imaginar que tipo de cabana Randolph construiria. Haveria um quarto de empregada para ela? Ou ocuparia o mesmo quarto com as crianças?
Havia, também, os pensamentos que a levavam de volta a outra indagação: Ethan. Ele partiria em breve. Seria possível esquecê-lo? Conseguiria ignorar a paixão
que vivera nos braços daquele homem incrível? Ou teria de viver ao lado de Randolph Webster pelo resto de sua vida pensando nos momentos ardentes que partilhara
com Ethan?
- Quanto valem seus pensamentos, senhorita? - A voz baixa de Ethan quase a fez derreter.
Hannah voltou-se depressa, para ver se alguém, em especial Randolph, os observava do acampamento.
Não. Ninguém notara sua ausência. E Ethan a seguira em silêncio, sabendo que também não fora visto.
- Estou pensando no que vamos fazer amanhã - ela murmurou, ainda trêmula pela presença do capitão. - Não consigo acreditar que chegamos.
- Você vai se deslumbrar dia após dia com esta região. - A voz de Ethan se enchia de ardor quando descrevia a terra selvagem que tanto amava. - Eu mesmo escolhi
o melhor trecho do terreno para vocês.
O rio do Destino corre por um dos mais belos vales que já vi. Logo terão as mais ricas colheitas que puderem imaginar.
- Nenhum de nós tem muita experiência na lavoura.
- Vocês aprenderão. E vão se sair muito bem, tenho certeza. Você, em especial, porque possui a força, a tenacidade necessária para abrir uma terra nova e fazê-la
prosperar.
Hannah sentiu-se lisonjeada, mas não gostaria que ele percebesse o quanto suas palavras a agradavam.
- Você me superestima, eu acho. Lembra-se de como me apavorei com aqueles índios?
- Do que me lembro é que você ia voltar para me salvar, mesmo sem ter armas ou reforços. - Ele esboçava aquele seu sorriso maravilhoso outra vez. - E me lembro
também da força que ofereceu à Sra. Trask quando ela mais precisou.
- Foi Elisa quem fez o parto. E Randolph foi quem salvou o bebê.
- Mas seu apoio e carinho foram vitais para Nancy. Hannah notava a proximidade dele a cada instante com mais intensidade. Queria poder recostar-se ao ombro forte
de Ethan, que parecia oferecer-se para ampará-la.
- Nós... já passamos por tanta coisa - murmurou, embaraçada. - Acho que ainda há muito mais pela frente, não?
- Há, sim. Mas você vai vencer todos os obstáculos, tenho certeza.
Fosse o que fosse que ainda estivesse por vir, Hannah sabia que teriam de enfrentar sem o capitão. Ele iria embora em breve.
- Obrigada por confiar em mim - disse, olhando-o nos olhos. - Eu suponho que irá embora assim que nos estabelecermos.
O capitão colocou-se entre Hannah e o acampamento, pouco adiante, de forma que só ela podia ver seu rosto.
- Como eu já lhe disse antes, não costumo ficar muito tempo num mesmo lugar. Mas vou voltar para ver como estão se saindo. - Os olhos dele a percorriam inteira.
De repente, sorriu de modo um tanto forçado e acrescentou: - Talvez você até me convide para seu casamento.
Hannah sentiu uma ponta de raiva brotar de novo em seu coração. O capitão Reed sabia como provocá-la, como deixá-la irritada, zangada até.
- É. Talvez eu o convide, sim. Por enquanto, acho melhor dizer-lhe apenas boa noite.
- Boa noite - Ethan respondeu com voz suave, os olhos seguindo-a, intensos.
Ao voltar para sua barraca, Hannah avaliava a conversa que acabara de ter com o capitão. Uma coisa era certa: sua vida seria muito mais tranqüila quando Ethan
Reed já não fizesse mais parte dela.
Ethan sentiu certo arrependimento quando alcançaram aquele trecho do rio, no dia seguinte. Não sabia o que o levara a escolher exatamente aquele ponto para os
colonizadores de Filadélfia.
Aquele era um de seus lugares favoritos em todo o rio Ohio, o qual explorara em toda sua extensão, até sua junção com o outro rio grande e poderoso, o Mississipi.
A terra banhada pelo rio do Destino sempre lhe parecera especial. Os campos mais ricos, as montanhas mais azuis, as árvores mais nobres. Até já lhe ocorrera a idéia
de que, se tivesse de escolher um local onde construir sua própria cabana para abrigar-se nos longos e terríveis invernos do Oeste, aquele seria o ponto onde se
instalaria.
Agora haveria outras pessoas ali. E ele próprio mostrara-lhes o lugar. Pelo menos, sentia-se aliviado por saber que Hannah faria sua vida ali. Estava sendo difícil
combater os sentimentos que ela lhe inspirava.
Tudo naquela mulher o atraía: sua voz, o jeito como andava, o modo como mordia de leve o lábio inferior quando estava preocupada. Ela cuidava tão bem daquelas
crianças... Como se fosse sua própria mãe. Hannah mostrava força e disposição para cuidar de tudo quando Elisa sucumbia ao peso da idade e Nancy se entregava à fraqueza
crônica que a debilitava. Era uma mulher e tanto.
E tinha sempre palavras amáveis para todos, inclusive para Hugh Trask, cujos olhares insinuantes faziam o sangue de Ethan ferver de raiva às vezes.
Randolph tinha um tesouro nas mãos. A idéia deixou Ethan ainda mais taciturno. Não podia se esquecer dos momentos de desejo que vivera com Hannah naquela noite.
As recordações o assaltavam sempre nos piores momentos. Como agora, quando a via ajudar a descarregar a barca.
Observava-a de longe, admirando cada curva de seu corpo, embora as mais belas estivessem encobertas pelo vestido pesado. AprOximou-se, ajudando-a a levantar um
caixote.
- Não vá se ferir - avisou.
- Não, não. Estou bem. - O sorriso dela era pura alegria, sem nenhuma reserva ou mágoa. Hannah parecia reviver por ter chegado a seu novo lar.
- Então? O que acha do rio do Destino? - ele perguntou, sentindo um aperto no peito que não soube justificar.
- É lindo! E tudo o que você disse. - Ela parou por instantes de descarregar o barco, para olhar ao longe, onde as montanhas azuladas pareciam encontrar o céu
num toque mágico.
- Há um lugar - continuou Ethan, enquanto levavam a caixa -, a um, quilômetro mais ou menos daqui, à margem de um campo bem vasto, que seria perfeito para a
construção das cabanas. Eu já acampei lá algumas vezes.
- Obrigada por nos ter trazido até aqui, capitão. Obrigada por tudo.
Ethan parou de andar ao ouvir o agradecimento, fazendo Hannah parar também, já que ela carregava a outra extremidade do caixote.
- Por tudo? Hannah assentiu.
- É. Por tudo - repetiu, deixando seu lado da caixa cair, fazendo Ethan cambalear para a frente. Depois sorriu, caprichosa, e afastou-se, imitando alguns passos
de valsa por sobre a relva da margem.
O capitão concordou em permanecer com o grupo por mais duas semanas, para ajudar na construção das cabanas. Todos, com exceção de Nancy, trabalhavam sem cessar.
Tinham escolhido o local indicado por Ethan, onde um vasto campo se estendia desde a margem do rio até as montanhas distantes.
Trask e Seth estavam encarregados de preparar o terreno para iniciar uma pequena plantação. No ano seguinte já poderiam ter suas terras organizadas e produtivas,
mas, por enquanto, deveriam cuidar apenas do essencial. Próximo ao rio, onde o solo era escuro è rico, plantariam pessegueiros e macieiras cujas mudas tinham trazido
do forte Pitt.
Hannah quisera plantar as pequenas árvores pessoalmente. Não haveria frutas durante os primeiros anos, mas dava-lhe um prazer enorme pensar que veria as pequenas
árvores crescendo, acompanhando o desenvolvimento da região, a cada ano mais fortes, mais produtivas, como tudo mais ali.
A fé no futuro enchia-a de uma alegria imensa. Randolph e Ethan cuidavam do desmanche dos barcos, cujas longas e fortes toras do piso serviriam de armação resistente
para as cabanas.
Hannah, Elisa e as crianças ajudavam em tudo o que era possível, embora a velha senhora se cansasse com facilidade sob o forte sol do verão.
A própria Hannah acabou sentindo os efeitos do calor. Suas costas doíam mais e mais a cada dia devido ao serviço pesado que, apesar do esforço, fazia com prazer.
Ela procurava disfarçar as dores, mas já notara que Ethan a observava com freqüência, como se percebesse seu desconforto.
Pouco mais de uma semana após a chegada ao rio do Destino, as dores de Hannah já eram mais do que incômodas. Ainda estavam dormindo em barracas, e se esforçava
em não acordar Peggy e Jacob ao se revirar durante a noite, procurando uma posição mais confortável.
Afinal, sem poder suportar mais a insônia causada pelo sofrimento, Hannah resolveu sair da cabana para não acordar os pequenos.
Como sempre, o capitão Reed estava ainda acordado, sentado junto à pequena fogueira.
- Não consegue dormir? - ele lhe perguntou com suavidade.
Hannah esticou as costas doloridas, procurando não deixar que o capitão notasse o que sentia.
- Acho que é essa ansiedade toda...
- Ou essa dor nas costas que você procura esconder, eu não sei por quê?
Hannah não respondeu. Veio até mais perto do fogo e sentou-se diante de Ethan.
Após alguns instantes de silêncio, resolveu falar a verdade:
- É um problema que tenho desde pequena. Às vezes piora um pouco, mas estou acostumada.
- Isso não aconteceria se não ficasse fazendo serviços pesados o tempo todo. Lembre-se de que não está trabalhando nas docas do porto de Londres.
Hannah sorriu.
- Você mesmo disse que é importante trabalhar muito numa região selvagem como esta.
- Trabalhar muito, e não se matar - Ethan corrigiu. - Escute, Elisa não tem algum chá milagroso para aliviar essas suas dores?
- Não. Todas as ervas acabaram. Mas estou bem, é apenas uma dor passageira.
Ethan calou-se por instantes. Depois se levantou e desapareceu na escuridão que cercava o acampamento. Voltou logo, trazendo um pequeno frasco escuro.
- Bálsamo - explicou, erguendo-o na mão.
- Obrigada. Amanhã vou pedir a Elisa que aplique um pouco, logo cedo.
- Sei. E enquanto a manhã não chega, você fica acordada, sofrendo - ele ironizou. Depois completou, em tom casual: - Deixe que eu mesmo o aplico em você.
- Mas... - Hannah começou, sendo logo interrompida.
- Use o bom senso, moça. Não há motivo para sofrer só porque não quer que eu veja suas costas. Afinal, já as vi antes. Aliás, vi muito mais do que isso.
Hannah sentiu-se corar de imediato. Mas, antes que pudesse opor qualquer tipo de resistência, Ethan tomou-lhe a mão, puxando-a consigo pela margem do rio.
- Venha. Aqui está mais escuro - disse, e depois acrescentou, em tom de mofa: - Assim você não ficará tão envergonhada...
Hannah voltou-se para ver as barracas. O acampamento estava em total silêncio. Já passava da meia-noite, com certeza. Talvez o capitão tivesse razão. O bálsamo
faria efeito logo, e assim ela poderia dormir tranqüila naquele resto de noite.
Ethan esperava, paciente. Hannah voltou-se de costas e abriu os botões da blusa, devagar, cheia de um pudor que a ela própria desconcertava.
Ethan soubera, desde que a vira sair da barraca, que estava prestes a cometer um erro. Todas as boas intenções e resoluções definitivas que tomara nas ultimas
semanas sumiram por encanto. E aquele bálsamo fora, apenas, uma boa desculpa.
- E... é logo acima da cintura - Hannah murmurou, fazendo o capitão sorrir de leve.
As mãos dele pareciam operar um milagre sobre sua coluna vertebral. Ethan massageava a pele suave com firmeza e cuidado ao mesmo tempo, aplicando o bálsamo perfumado.
- Relaxe - disse, em determinado momento, com voz rouca.
E sentiu que Hannah, de fato, relaxava os nervos.
Ela começava a ter a mesma sensação que a tomara na noite em que se entregara a Ethan, e começou a achar que não fora uma boa idéia vir até ali com ele.
- Deite-se com as costas para cima - ouviu-o dizer, numa ordem que não aceitava desafios.
Ela obedeceu, sem protestar. Agora, as mãos dele caminhavam por toda a extensão de suas costas, mesmo nas laterais, sob os braços, onde o volume dos seios se
fazia perceber, saliente, provocante.
Ethan procurava controlar-se, ater-se ao bálsamo, mas a realidade começou a fugir a seu controle. Não queria mais pensar em nada, apenas sentir a pele de Hannah,
macia, suave, em suas mãos.
Não importava se estava agindo errado com ela, se Hannah estava ligada a um homem bom e decente que seria um ótimo marido. Nada mais importava a não ser o fato
de estar ali, com ela, e desejá-la mais do que tudo na vida.
Para Hannah, nem mesmo a dor nas costas existia mais.
Jamais sentira algo tão bom, tão sensual quanto o toque daquelas mãos grandes, fortes, espalhando o líquido perfumado e oleoso por seu corpo.
Ethan afastou as roupas que Hannah ainda mantinha, e, em movimentos lentos e circulares, passou a explorar cada centímetro da pele que se oferecia ao toque de
suas mãos.
Completamente fora de controle, esquecendo-se do bálsamo, das dores, do pudor e do mundo, Ethan e Hannah perderam-se num abraço apaixonado, em beijos febris e
carregados de desejo. Como na outra noite, tendo o céu estrelado por teto e a escuridão da noite por abrigo, amaram-se com loucura, entregues à paixão devastadora
que os consumia.
Quando, aos poucos, voltaram à realidade, Ethan apertou Hannah em seus braços e beijou-lhe, com carinho, os cabelos, depois a testa, o rosto e os lábios.
- Como está a dor nas costas? - perguntou, num murmúrio.
Ela apenas sorriu. Não dissera nada, nem fizera o menor movimento para impedi-lo. Entregara-se outra vez, por vontade própria, mesmo sabendo não haver futuro
num relacionamento com um aventureiro como Ethan.
Como sua mãe fizera um dia, entregava-se de corpo e alma a uma paixão ardente, sem pensar no amanhã. Não faria como sua mãe, porém. Não estragaria o resto de
sua vida punindo-se por ter vivido um amor tão maravilhoso, embora fugaz.
Devagar, ela afastou-se de Ethan, esticando os braços para pegar parte das roupas.
- Acredito que eu já esteja curada - respondeu, tentando usar toda a dignidade que lhe era possível no momento. - Obrigada.
Ethan deixou-a afastar-se. A voz dela parecia tão impessoal, tão fria... Ficou observando-a, um tanto confuso, enquanto Hannah se vestia, de cabeça baixa. Ela
não esbravejava, como talvez tivesse o direito de fazer, e Ethan sentia-se como um garoto surpreendido ao agir errado.
Observando as águas calmas do rio do Destino, o capitão deu-se conta de que daria dez anos de sua vida para que Hannah reagisse, fosse como fosse.
No entanto, ela apenas se foi, por entre as árvores, sem dizer uma palavra. E tudo pareceu rompido entre ambos, sem, ao menos, discutirem a respeito.
Em vez de sentir-se culpada por seu sentimento em relação ao capitão, Hannah estava, de certa forma, aliviada. Já admitira para si mesma a natureza sensual que
possuía e contra a qual a mãe tanto a alertara. Mas o mais importante no momento era que conseguia controlar sua vida, saber o que queria em seu futuro. E a melhor
opção para esse futuro era Randolph Webster e seus filhos, com certeza. Até o próprio Ethan reconhecia isso.
A cada dia que passava, Hannah estava mais certa de que Randolph a pediria em casamento. Ele até estava construindo sua casa com três quartos: um para Jacob,
outro para Peggy e outro para ambos.
Ela se indagava se seria necessário contar a Randolph sobre sua intimidade com o capitão, mas achou que ele, por cavalheirismo, jamais perguntaria algo, já que
a maioria das criadas nunca terminava seus contratos ainda virgens. No entanto, Randolph parecia cada vez mais hostil em relação a Ethan, talvez por perceber algo
entre ele e Hannah. Chegara até a proibi-la de carregar pesos ao ouvir Ethan perguntando-lhe sobre suas costas.
O capitão não a interpelou mais, cuidando de seu serviço, ajudando a erguer as paredes das casas. Assim que as três estruturas estivessem prontas, iria embora.
E Hannah esperava por esse dia com impaciência e tristeza. Sabia que jamais encontraria um homem como ele e que também jamais sentiria o que experimentara entre
os braços dele em seus dois rápidos encontros noturnos. Mas trabalharia, junto de Randolph, para construir uma vida nova naquela terra maravilhosa. Apenas nas longas
noites de inverno, quando a família toda estivesse abrigada no calor e aconchego da casa recém-construída, Hannah se permitiria fechar os olhos e lembrar...

CAPÍTULO QUINZE

Setembro de 1763.

O verão se fora, e o outono trouxera consigo uma brisa fria, pintando de tons amarelados as folhas das árvores e os campos plantados durante a estação anterior.
As casas, enormes cabanas, feitas de madeira sólida e resistente, estavam prontas agora. Havia também um chiqueiro e um curral, e a estrutura para um enorme celeiro
já fora levantada.
A terra era, de fato, fértil, fornecendo uma variedade muito grande de legumes e milho em quantidade. Como o capitão Reed previra, tudo o que era plantado ali
crescia como por encanto, mesmo com a semeadura tardia.
Hannah sentia-se em casa. As cabanas dos Webster e dos Baker foram construídas bem próximas uma da outra, mas a da família Trask ficava pouco mais abaixo, junto
ao rio, já que Hugh insistira em ter certa privacidade. Nancy ainda não se recuperara totalmente do parto prematuro, e Hannah sentia pena por vê-la ainda tão fraca
e abatida. Hugh saía para caçadas com muita freqüência, embora não trouxesse quase nada ao voltar. Essas ausências criavam certa irritação em Randolph e Seth, já
que Hugh não fazia sua parte no trabalho com a plantação e deixava a esposa sozinha para cuidar da casa e das crianças. O homem era, de fato, um irresponsável, todos
concordavam.
Randolph se acostumara a discutir todos os problemas com Hannah e mencionou o fato de estar aborrecido com o comportamento de Trask. Na verdade, ela notava que
Randolph fazia visitas cada vez mais freqüentes à casa dele, em especial quando Hugh saía para caçar. Apegara-se muito ao pequeno Wally e quase sempre estava com
a criança, brincando ou levando-o a passear nos braços.
A vida parecia tranqüila para todos ali. Hannah amava sua nova casa, na qual Randolph achara prudente que ocupasse o quarto destinado a Peggy. Hannah não discutira
o que parecia ser uma mudança nos planos dele; afinal, era seu patrão. E, se queria que os filhos dormissem juntos por enquanto, para Hannah não havia o que discutir.
Quando havia necessidade de caça, eram ela e Seth que saíam em busca de algum animal. Randolph desistira de tentar provar que era bom com as armas, já que o suprimento
de pólvora que ainda tinham não era muito grande, e não havia motivos para ficar desperdiçando-o.
Havia um ar de contentamento geral que contagiava a todos.
A promessa de uma vida feliz e segura se concretizava a cada dia. E, não fosse por uma vaga sensação de saudade, Hannah poderia considerar aqueles como os melhores
dias de sua vida.
A saudade vinha sempre que Randolph a convidava para um passeio noturno. Caminhavam pela margem do rio, ele falava sobre seus planos para aquele lugar, descrevia
o futuro, no qual imaginava uma cidade crescendo às margens do rio.
Hannah não partilhava esses sonhos. Não tinha boas recordações das cidades onde vivera. Amava a liberdade do Oeste e não queria ver aquela região tão linda invadida
por uma multidão de pessoas desconhecidas. Durante aqueles passeios, Randolph às vezes segurava sua mão e beijava-a com suavidade nos lábios. Na primeira vez em
que isso ocorrera, ela se afastara, surpresa, e Randolph desculpara-se logo:
- Sinto muito, Hannah. Serei paciente. Estamos num lugar selvagem, mas ainda sou um homem civilizado. Sei que precisa de um tempo para se acostumar com a idéia,
e pretendo, por minha parte, respeitar o ano de luto que Priscilla merece.
Hannah o compreendia muito bem. Deixava-se beijar e, às vezes, chegava a sentir algo um pouco parecido com as sensações que Ethan lhe despertara. Ethan... Havia
dois meses que ele se fora. O tempo passava depressa no Oeste.
Haviam preparado uma festa para comemorar a primeira colheita. Elisa, Hannah e Nancy iriam preparar a comida para a noite.
- Por que não vai até a parte mais baixa da margem do rio e traz algumas amoras, Nancy? - Elisa sugeriu, ao entrar com Hannah na casa dos Trask. - Nós cuidaremos
de Wally.
Hugh estava fora havia dias, e Nancy quase não tinha tempo para sair de casa, a não ser para buscar lenha ou água.
Sorrindo, agradecida, ela pegou uma cesta de vime e dirigiu-se à porta.
- Fique bonzinho! - disse, acenando para o bebê, que a observava, do berço.
Assim que a viram desaparecer pelo caminho que levava ao rio, Elisa comentou, aborrecida:
- Tenho vontade de arrancar a pele daquele irresponsável! A pobrezinha não tem tempo nem para respirar, com tanto serviço; a fazer!
- Concordo com você. E Randolph também. Ele acha horrível o modo como Hugh trata a esposa.
Elisa baixou os olhos para as espigas de milho que debulhava.
-Tenho notado que ele vem aqui com muita freqüência.
- E verdade. Ele procura ajudar como pode e, é claro, adora ficar com o pequeno Wally.
- Mas... isso não a incomoda, Hannah?
- A mim? Por que me incomodaria?
- Por nada. Acho que estou ficando velha, é isso. Não quero ver ninguém magoado. Hannah voltou-se, a testa franzida.
- Está querendo insinuar que Randolph e Nancy...
- Bem, Nancy já foi a garota mais bonita de Filadélfia, e o tempo não conseguiu destruir seus belos traços ainda.
Hannah sorriu.
- Elisa, Randolph me pediu em casamento. Quero dizer... ele não me pediu, exatamente, mas quer esperar um ano de luto por Priscilla e fala disso quase sempre...
- Então, está bem, querida. Esqueça o que eu disse. Randolph é honrado demais para estar cortejando duas mulheres ao mesmo tempo.
- Elisa, que idéia! Nancy é casada!
- E, mas Hugh fica muito tempo fora de casa, e logo ela poderá vir a ser tão casada quanto aquela Polly McCoy, do forte Pitt.
- Não acredito que Randolph fizesse isso.
- Talvez você tenha razão. Ele é um bom homem, vai fazer você feliz. Além disso, as crianças a adoram.
A conversa tomou outros rumos e, quando Nancy voltou com as amoras, Hannah já não pensava na insinuação de Elisa. No entanto, naquela noite, durante o jantar
que prepararam para a comemoração, ela notou que Randolph sentou-se à grande mesa junto de Nancy. Ambos brincavam com o bebê como se fossem um casal feliz. Hannah
procurou afastar os maus pensamentos, tentando convencer-se de que aquilo apenas reafirmava a idéia de que ele seria um ótimo pai, caso um dia viessem a se casar.
As crianças brincavam de cabra-cega e logo vieram à procura de Hannah para partilhar o jogo. Apesar dos protestos iniciais, ela acabou cedendo aos apelos dos
pequenos, que amarraram-lhe uma venda sobre os olhos.
Os gritinhos das crianças desorientavam-na conforme dava passos indecisos à procura deles. Devido ao cansaço, talvez, pois trabalhara muito na colheita e na preparação
da comida, Hannah sentiu uma ligeira tontura que, quando se foi, deixou-a sem noção de direção. Já não sabia sequer se estava próxima às casas, pois as risadas das
crianças tinham desaparecido.
De repente, um ruído seco chamou-lhe a atenção, fazendo-a voltar-se. Sem ter tempo de retirar o lenço dos olhos, Hannah sentiu-se puxada contra um peito enorme
de homem. Quando pôde, afinal, tirar a venda, já assustada, encontrou os olhos brilhantes e alegres do capitão Ethan Reed.
Hannah afastou-se depressa, como se a proximidade daqueles braços a estivessem queimando. No entanto, pela expressão no rosto de Ethan, era óbvio que ele notara
o efeito devastador que sua presença tivera sobre ela.
Randolph aproximou-se de Nancy assim que percebeu o recém-chegado.
- Que surpresa, Reed! - exclamou em tom aborrecido.
A hostilidade, porém, passou assim que Ethan anunciou o motivo de sua visita. Pontiac conseguira convencer todas as tribos a atacar os ingleses, e alguns fortes
já tinham sido tomados. O coronel Bouquet fora forçado a enfrentar os guerreiros indígenas num local chamado Bushy Run, a alguns quilômetros do forte Pitt. Ele vencera
a batalha, mas os soldados estavam avisando a todos os ingleses estabelecidos na região para que voltassem à segurança do forte o mais breve possível.
Já não havia mais alegria no ar. A festa da colheita terminava ali mesmo.
- Parece que não temos outra opção, a não ser obedecer - Seth observou, pensativo.
- Tem razão - Ethan concordou. - Não devem arriscar suas vidas permanecendo aqui.
- E quanto tempo teríamos de ficar no forte? - Randolph indagou.
- Talvez o inverno todo.
- Mas não terminamos a colheita e...
- Esqueça as plantações! - O capitão se alterava. - Elas de nada adiantarão se forem massacrados!
- Trabalhamos tanto... - A frustração de Randolph era evidente. - Mas farei o que o grupo decidir.
- Então já está decidido. - Seth estava firme. - Partiremos pela manhã.
Aos poucos, todos foram se dispersando, de volta a suas casas. Não se preocuparam sequer em guardar o que sobrara da festa. Teriam de deixar tudo o que possuíam
para trás, sem garantia de poder voltar para lá um dia.
Ethan pernoitou na casa dos Trask, por medida de segurança, já que Hugh estava ausente.
Hannah olhava com tristeza para cada objeto que teria de deixar para trás. Estava, na verdade, mais. triste por Randolph do que por si mesma. O sonho que ele
acalentava havia tanto tempo lhe era tirado de modo abrupto, cruel até. Viu-o parado junto à lareira e aproximou-se.
- Nós voltaremos - disse, tentando confortá-lo.
- Sim, e encontraremos tudo destruído.
- Poderemos reconstruir.
Randolph voltou-se e tomou-a nos braços.
- Você nunca se cansa de lutar, não é, minha valente Hannah?
- Só há uma perda irreparável, Randolph: a morte. Temos nossas vidas inteiras pela frente para continuar lutando.
Ele a abraçou por longos minutos, em silêncio. Depois falou:
- Você tem razão. Como sempre.
Hannah sentia-se feliz por poder ajudá-lo a passar por mais esse momento difícil. E não opôs resistência quando Randolph ergueu-lhe o queixo, na intenção de um
beijo.
- Com licença - a voz de Ethan interrompeu-os, vinda da porta.
Randolph deixou que Hannah se afastasse e perguntou, aborrecido:
- O que você quer?
- Falar com você sobre Trask.
Randolph veio até a mesa e sentou-se, fazendo um sinal a Ethan para que fizesse o mesmo. Hannah sentou-se junto do patrão, em silêncio.
- Acabei de falar com Nancy - o capitão Reed começou. - Ela me disse que ele tem ficado muito tempo fora.
- Ele é um bêbado!
- Talvez. Mas bêbados não precisam de carregamento de armas para caçar.
Randolph franziu a testa, surpreso. Ethan continuou, imperturbável:
- Acabei de encontrar um caixote cheio num dos cômodos da cabana dele. Perguntei sobre as armas a Nancy, mas ela não quis me dizer nada. Acho que tem medo de
que eu prenda seu marido.
- Prendê-lo? Sob qual acusação?
- Venda de armas aos índios. Suspeito que Trask seja o sócio de um sujeito odioso chamado Silas Warren.
- Eu vi esse homem com Trask quando estávamos no forte - Hannah interferiu.
- E sabe o que estavam fazendo? - Ethan indagou, olhando-a pela primeira vez nos olhos desde que chegara a casa.
- Não. Sinto muito.
- Não faz mal. Mas precisamos descobrir a verdade. Preciso levar essas informações ao coronel Bouquet o mais rápido possível.
- E poderia, de fato, prender Trask?
- Sim. Estou trabalhando para o exército no momento. Vou entrar em contato com um grupo potawa-tomi para tentar convencê-los a abandonar a aliança com Pontiac.
Mas avisei o coronel de que não o faria antes de vocês todos estarem em segurança.
- É uma bela atitude de sua parte. - Randolph estava sendo sincero, esquecendo, por momentos, a rivalidade que havia entre ambos.
O capitão apenas assentiu. Depois completou:
- Se Trask estiver realmente levando armas aos índios, estamos com um problema bem maior do que imaginei a princípio.
Randolph levantou-se para dizer:
- Vou falar com Nancy. Ela confia em mim, talvez me conte algo.
- Faça isso. Ela parece ter medo de mim. Espero você voltar.
Randolph olhou para Hannah, considerando a situação. Depois foi até a porta, dizendo:
- Eu volto logo.
Assim que ele saiu, Hannah sentiu o olhar do capitão, intenso, sobre si.
- Quer beber algo? - indagou sem olhá-lo.
- Não.
A resposta foi rápida, brusca, e a fez voltar-se para encará-lo.
- Vejo que Randolph, afinal, descobriu seus encantos - Ethan continuou, sério.
- Ele me pediu em casamento. E eu aceitei.
- Que bom. Há um padre no forte. Vocês poderão se casar assim que chegarmos.
O coração de Hannah passara a bater mais forte. Levantou-se, para pôr outra acha de lenha no fogo e acrescentou:
- Vamos esperar até Randolph completar um ano de luto.
Ethan ergueu as sobrancelhas, surpreso.
- De quem foi essa idéia?!
- Dele. É a coisa mais... civilizada a fazer.
O capitão afastou com o pé a cadeira em que se sentava e aproximou-se. Hannah não pôde evitar sua proximidade e viu-se presa quando ele apoiou as mãos ao aparador
da lareira.
- Vai ser um casamento civilizado então... - Ethan comentou, com ironia.
- Não quero discutir meu casamento com o senhor, capitão. Poderia, por favor, afastar-se?
Ethan parecia vacilar. Foram intermináveis aqueles momentos em que ficou olhando-a, em silêncio. Viera até ali sem intenção de interferir na vida de Hannah, pretendendo
afastar-se outra vez dela quando o grupo estivesse em segurança no forte. Mas, assim que a teve junto a si naquela brincadeira de cabra-cega interrompida, soube
que estivera enganando a si mesmo o tempo todo.
Sonhara todas aquelas noites de verão com Hannah, desejando tê-la de novo entre seus braços. Polly até zombara, dizendo que ele estava sofrendo do mal do amor,
e Ethan não negar.
Amava Hannah de fato. O problema era que não sabia como lidar com esse sentimento, com essa situação.
- Por favor, Ethan... - ouviu-a murmurar. Afastou o braço, libertando-a.
Hannah foi até o outro canto da sala, sabendo ser perigoso ficar próxima a ele.
- Não haveria nada de civilizado, se você fosse minha - Ethan disse, em voz baixa. - Seria selvagem, ardente e... magnífico.
- Por quanto tempo? Uma noite? Uma semana, talvez?
- Pelo tempo que quiséssemos.
Hannah sentia a parede rústica logo às suas costas. Havia um nó em sua garganta, mas não iria chorar. Não se permitiria.
Ethan deixou de olhá-la, por fim, sussurrando:
- Desculpe. Não voltei para fazê-la sofrer. Randolph é um bom homem, e quero que sejam felizes.
Hannah assentiu, engolindo em seco.
- Vou até a casa dos Trask para ver o que ele conseguiu com Nancy - Ethan completou, antes de dirigir-se à porta.
Lá, parou e tornou a olhá-la. Depois se foi.


CAPÍTULO DEZESSEIS

Uma chuva fina e ininterrupta caía, entristecendo ainda mais aquela tarde de outono. O capitão concordara em esperar que colocassem o que consideravam de maior
valor numa espécie de galpão. Ele os observava em silêncio, como se soubesse que seus esforços eram inúteis. Se os índios resolvessem atacar, nada restaria. Oferecera-se,
no entanto, para ajudar os homens, enquanto as mulheres, dentro das casas, recolhiam o que poderiam levar consigo de volta ao forte Pitt.
Hannah terminava de arrumar suas coisas quando Elisa Baker apareceu à porta, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Parecia mais velha nesse dia, e mais abatida
também.
- Este é o dia mais triste de minha vida desde que meu Johnny se foi - ela comentou, com voz trêmula. - Sinto deixar nosso lugar, Hannah, porque sei que não voltarei
mais. Eu e Seth já estamos muito velhos...
- Não diga isso!
- É verdade, querida. Mas sei que você vai voltar. Você tem a força e o espírito necessários para buscar novos horizontes.
- Mas o que você e Seth vão fazer se não voltarem para cá?
- Ainda não sabemos. Talvez retornemos a Filadélfia para propor sociedade ao Sr. Gutmueller, que comprou nossa loja.
Hannah sentiu um aperto no peito. Elisa e Seth não voltariam mais e, se fosse verdade que Hugh Trask estava vendendo armas aos índios, Nancy e as crianças também
se veriam forçados a voltar para o Leste. Isso deixava a família Webster sozinha na fronteira.
- Quero que você e Randolph fiquem com as coisas que estamos deixando - Elisa prosseguiu, os olhos marejados. - Considere... como um presente de casamento. E
não aceito um "não" como resposta.
Hannah pensou por instantes. Sorriu de leve ao dizer:
- Vocês ainda estarão no forte na primavera, não? Quero que sejam meus padrinhos.
- Ethan disse que o coronel Bouquet não nos deixará partir antes que os índios estejam apaziguados. Portanto, ficaremos honrados em ser seus padrinhos. Quando
será a cerimônia?
- Bem, eu e Randolph ainda não falamos sobre isso, mas sei que ele está apenas esperando seu ano de luto acabar.
- Ora, a própria Priscilla seria a primeira a não querer tal coisa. Um homem deve viver o presente, e não o passado. Estou surpresa com essa atitude de Randolph.
Essa observação trouxe à mente de Hannah as palavras do capitão na noite anterior. Talvez ele e Elisa estivessem certos. Era estranho Randolph não mostrar o mínimo
sinal de impaciência com relação ao casamento.
Hannah e Elisa terminaram de carregar as últimas coisas que os Webster tinham separado para levar de volta ao forte. Tinham deixado tudo junto aos cavalos, que
seriam preparados para a viagem pelos homens, e estavam voltando para a casa de Hannah, quando ouviram a voz jocosa de Hugh Trask:
- Aonde as senhoras vão?
Ele e outro homem acabavam de sair de entre as árvores, trazendo um cavalo de carga cada um.
- Por onde andou? - Hannah perguntou logo. - Estamos indo embora. Você quase não chegou a tempo de ver sua família partindo!
- Que pena seria, não? - ele ainda zombava.
- Eu lhe disse que você deveria ter comprado aquela índia escrava com quem dormiu a semana passada - disse o outro homem, que Hannah reconhecera logo como sendo
Silas Warren.
Ignorando a observação, Trask perguntou às mulheres:
- Onde estão Seth e Randolph? Deixaram o serviço para as mulheres? - Hugh aproximou-se de Hannah para perguntar, em tom mais baixo: - Porque você é mulher de
Randolph, não?
Ela não respondeu, alertada pelo tom malicioso dele. Trask pegou-lhe o queixo com a mão bruta, continuando, desagradável:
- Achou-se boa demais para mim, não é? Mas não para nosso querido guia! Eu os vi, outra noite, na floresta, sim! Então, logo depois, voltou para a cama de Webster.
Mas é boa demais para mim, certo?
Ele cheirava a álcool, e Hannah tentou soltar-se, enojada.
- Solte-a, ou estouro seus miolos! - A voz de Randolph vinha do caminho que levava ao curral. Segurava seu rifle, mas não o apontava para o outro.
Trask deixou Hannah ir, e sorriu, irônico.
- Ora, vamos, Webster, solte essa arma antes que atire em seu próprio pé!
Warren deu alguns passos adiante, oferecendo:
- Quer que eu acabe com ele, Trask?
- Não, não é necessário. Randolph não consegue acertar em nada que mira.
- Vamos deixar o resto dos rifles e sair logo daqui.
- Warren parecia tenso. Randolph não se movia.
- Vocês não vão a lugar nenhum com as armas. Ou melhor, talvez para a prisão. Agora, soltem-nas.
- Randolph ergueu o cano do rifle devagar. Hugh riu.
- Isso! - instigou, sarcástico. - Mire em mim, e eu saberei que estou a salvo!
- Também estou mirando em você. - A voz do capitão veio de entre as árvores, de onde ele saiu, acompanhado de Seth, ambos empunhando suas armas.
- Você disse que Reed não estaria aqui! - Warren protestou para o sócio.
- Cale a boca! - Hugh respondeu, nervoso. Olhava diretamente para Ethan. - Se não querem ver estas mulheres feridas, é melhor largarem esses rifles!
Num movimento rápido e imprevisível, ele agarrou Elisa, torcendo-lhe o braço para trás. Ela gemeu, e Seth deu um passo à frente, mas Warren foi mais rápido e,
aproximando-se, deu com o cabo da arma em sua nuca, fazendo-o desmaiar.
Elisa gritou, mas estava imobilizada por Trask.
- E então? Vão ou não largar essas malditas armas?! - ele gritou.
Como não houvesse reação por parte dos outros, Hugh tirou uma faca de caça do cinto e encostou a ponta na garganta de Elisa.
- Como é?! - tornou a gritar.
Dessa vez, Ethan e Randolph viram-se obrigados a obedecer. A arma do capitão caíra logo adiante de Hannah, mas ela não ousava se mexer.
- Eu disse que devíamos ter vindo buscar as armas durante a noite - Warren queixou-se mais uma vez para Trask, aproximando-se.
- É. Mas eu não sabia que o cão de guarda de Bouquet estaria aqui. E, se o deixarmos vivo, o exército logo estará atrás de nós!
- Então mate-o! - Silas incitou, com naturalidade. Trask olhou-o com raiva.
- Em frente a quatro testemunhas, idiota?!
- Vamos matar todos então. - A calma daquele homem, ao sugerir tal coisa, fez Hannah sentir um calafrio e acreditar, pela primeira vez, que ele era, de fato,
louco.
- Talvez possamos fazer com que pareça um ataque de índios - Trask analisava. - O que acha?
Havia gotas de suor no rosto de Elisa, e Hannah ousou pedir:
- Eles já largaram as armas. Por que não a solta? Trask empurrou a mulher contra Hannah, e ambas se abraçaram. Então, ele guardou a faca e ergueu o rifle, apontando-o
para o peito do capitão.
Hannah notou os olhos de Ethan para a arma, próxima aos pés dela. Ele não seria tão louco a ponto de tentar jogar-se para alcançá-la. Trask atirava bem, não erraria
àquela distância.
- Se vai atirar nele, quero o direito de escalpelá-lo! - interferiu Warren, com um sorriso ensandecido nos lábios.
Hannah pensava em pular sobre a arma de Trask quando um movimento brusco entre as árvores chamou a atenção de todos.
Nancy aparecia, empunhando o rifle de Seth, apontando-o para o próprio marido.
- Pare com isso, Hugh - ela disse, em voz suave.
- Ora, saia do meu caminho, sua cadela inútil, ou mato você também! - Trask respondeu. - Você mal consegue segurar isso!
A observação era, de fato, correta, já que Nancy tremia dos pés à cabeça, mas ela fechou os olhos e puxou o gatilho sem pensar em mais nada. A bala atingiu Warren
no ombro direito, fazendo-o gritar de dor e cair.
No mesmo instante, Hannah alcançou o rifle de Ethan e apontou-o para a cabeça de Hugh Trask.
- Talvez Nancy não tenha boa pontaria - ela disse, senhora da situação. - Mas posso lhe garantir que não vou errar de tão perto.
- Posso matar Reed antes que você tenha chance de puxar o gatilho, moça - ele replicou, ainda com um trunfo.
- Mas estará morto da mesma forma. - Ela parecia calma demais para o gosto de Trask.
- Está blefando - ele tentou ainda.
- Quer pagar para ver? - Hannah insistiu.
Após mais alguns segundos de hesitação, Trask jogou seu rifle ao chão, com expressão irritada. Ethan foi logo apanhá-lo, dizendo:
- Bom trabalho, senhoras!
Randolph pegou a arma de Warren enquanto Elisa corria em socorro do marido caído.
O capitão foi até seu cavalo e voltou com um rolo de corda, com o qual atou as mãos de Hugh. Hannah não baixou a arma enquanto ele não terminou o serviço. Depois,
de repente, seu corpo começou a tremer sem controle, até que Ethan aproximou-se e, tirando o rifle de suas mãos, abraçou-a.
- Acabou agora - ele murmurou, em seu ouvido. Randolph os observava, impassível. Warren gemia ainda, e se contorcia no chão. Ethan voltou-se para ele e veio até
mais perto, ajoelhando-se para examinar seu ferimento.
- Nada grave - anunciou. - Vamos amarrá-lo também.
Hannah começava a recompor os pensamentos, e lembrou-se das crianças. Deviam estar todas assustadas, dentro das casas. Foi até Nancy, para indagar:
- Precisa de ajuda?
- Não. Estou bem. Mas quero ver como estão as crianças. - Sem lançar um único olhar para o marido, Nancy dirigiu-se a casa, enquanto Hannah voltava para a sua.
Quando já estava na porta de entrada, a ponto de falar com Jacob e Peggy, Hannah viu a expressão de pânico nos rostinhos de ambos e voltou-se de imediato.
Trask conseguira se soltar, provavelmente usando a faca que ainda tinha, e a arremessava agora contra as costas do capitão, enquanto este ajudava Warren a se
levantar.
No mesmo instante, Randolph ergueu o rifle de Warren e atirou, acertando Trask bem no meio do peito.
Hannah soltou um grito desesperado e saiu correndo, em direção a Ethan. A faca estava enterrada em suas costas até o cabo.
Randolph aproximou-se do corpo caído de Trask e, com a ponta do pé, o fez rolar sobre si mesmo. Estava morto, com certeza. Sem vacilar, Randolph disse apenas:
- É. Dessa vez, não errei. - E, vendo os filhos estarrecidos à porta de casa, gritou para eles: - Vocês dois, vão para a casa da Sra. Trask! Digam a ela o que
houve, mas não a deixem vir aqui!
As crianças obedeceram, pálidas. Randolph, então, voltou-se para onde Hannah estava ajoelhada, embalando Ethan nos braços.
- Diga que ele não está morto, Randolph - ela pediu, num fio de voz, tendo o rosto banhado em lágrimas. - Eu não vou suportar, se estiver!
Hannah não sabia o que teria sido de todos sem a calma e diligente liderança de Randolph. Primeiro, ele amarrou Warren, verificando se este ainda tinha alguma
arma escondida, para que o erro anterior, com Trask, não se repetisse. Depois, com calma, retirou a faca das costas do capitão e, junto com Elisa, verificou seu
estado geral. Nenhum órgão vital parecia ter sido .atingido, já que Ethan não estava pondo sangue pela boca, apesar de desacordado.
Elisa costurou o ferimento após limpá-lo com um pouco de uísque. Hannah permaneceu o tempo todo ao lado do capitão, segurando suas mãos úmidas e pedindo a Deus
por sua vida.
Pouco depois, Randolph e Seth vieram para tirar Ethan dali. Hannah quis que ele fosse levado para sua casa e colocado em sua cama. E assim foi feito, sem que
Randolph fizesse nenhum protesto.
Enquanto Elisa e Hannah acabavam de cuidar do capitão, Randolph se dirigiu à casa dos Trask. Nancy estava sentada num dos degraus da frente, abraçada às filhas,
muito tristes e assustadas ainda, e Jacob e Peggy estavam ali também, numa tentativa de dar-lhes um pouco de conforto.
Randolph dirigiu-se às meninas:
- Seu pai morreu, minhas queridas. Ele andou agindo errado e... Bem, mas isso não quer dizer que vocês ou sua linda mamãe tenham qualquer tipo de culpa. O problema
é que ele bebia muito. E a bebida tem arruinado a vida de muitos homens bons, sabem? Acho que foi isso o que aconteceu com seu pai.
As crianças o ouviam com atenção. Ele prosseguiu, um tanto sem jeito:
- Parece que essas três moças estão sem um homem por perto. Quero dizer, Wally ainda vai demorar muito para poder ampará-las. - Ele sorriu. - Mas eu e Jacob estaremos
sempre à disposição para ajudá-las no que for preciso. Não é, filho?
- É claro! - respondeu o menino, sentindo-se importante.
- Eu... - Randolph continuou - vou ajudar o Sr. Baker a fazer o enterro de seu pai. Enquanto isso, vocês podem ir pensando em algo para dizer, depois, sobre sua
sepultura. - E, voltando-se para Nancy, perguntou, gentil: - Você vai ficar bem?
Ela assentiu, tendo o olhar agradecido.
Quando a sepultura ficou pronta, Randolph avisou Seth que ia buscar Nancy e as meninas. Passou, primeiro, por sua casa, para perguntar se Elisa viria também.
Não chamou Hannah, vendo-a, ansiosa e preocupada, ao lado do leito onde o capitão ainda permanecia inconsciente.
O funeral foi rápido. Nancy chorou, avaliando todo o sofrimento por que passara com Hugh, e o fim trágico que ele tivera. As meninas ficaram o tempo todo em silêncio,
como se a realidade do que ocorrera estivesse ainda penetrando devagar em suas cabecinhas.
Quando todos já voltavam às casas, Jacob aproximou-se de Nancy.
- Eu a ajudo a amarrar suas coisas nos cavalos, Sra. Trask - ofereceu.
Ela sorriu, um tanto triste, e acariciou-lhe os cabelos. Então voltou-se para Randolph:
- Quando acha que poderemos partir?
- Não sei, mas não quero ficar por aqui mais tempo do que o necessário. No entanto, Reed não está nada bem e não podemos deixá-lo para trás.
- Há algo que eu possa fazer por ele?
- Não. Hannah e Elisa estão lá agora. - Houve um leve tom de amargura em sua voz, quando acrescentou: - Hannah está muito aflita.
Nancy compreendia perfeitamente a situação e disse apenas:
- Não sei o que teria sido de nós sem você aqui, Randolph.
Ele esboçou um sorriso cansado.
- E não terminou, Nancy. Ainda temos de voltar em segurança para o forte, levando um prisioneiro e um guia bastante ferido.
- Você vai nos conduzir até lá em segurança - Nancy afirmou, convicta. - Tenho certeza disso.


CAPÍTULO DEZESSETE

Apesar de ainda estar fraco e febril, Ethan insistiu para que partissem, rio acima, apenas dois dias após o incidente com Trask. Hannah protestara, dizendo que
era muito cedo para que ele pudesse empreender a viagem, pois a ferida poderia abrir, mas de nada adiantaram suas objeções. O capitão pediu a Randolph que o amarrasse
a um dos cavalos e continuasse, sem parar, até que chegassem ao forte, em segurança. Todos, inclusive Nancy, que ainda se encontrava um tanto abatida pela morte
violenta do marido, pareciam aceitar com resignação e coragem a dura jornada de volta.
E assim fizeram, com firmeza e determinação, até que, numa tarde ensolarada, avistaram a enorme estrutura do forte Pitt, recortada na distância, contra o horizonte
azulado.
Randolph esperou que todos estivessem instalados e Ethan passasse pelo exame minucioso do oficial médico. Aproximou-se, então, para conversar com Hannah, pedindo-lhe
que o acompanhasse até o pátio lateral do forte. Foi direto ao assunto:
- Parece que as insinuações de Trask eram, de fato, verdadeiras: você se envolveu com nosso guia.
Ela o encarou com honestidade no olhar.
- E verdade - murmurou.
- E está apaixonada por ele?
- Eu não sei... Achei que não estivesse, mas... gostaria que acreditasse, Randolph, que, durante todo o tempo em que vivemos no oeste, jamais pensei em rever
Ethan.
- Engraçado... Eu achava que estávamos construindo algo juntos, Hannah. Você e eu.
- Eu também pensava assim. E queria muito que fosse verdade. Fui muito feliz com você e as crianças nestas últimas semanas e até cheguei a pensar que aquela era
a vida que eu queria, que aquele era o lar com o qual sempre sonhei.
- Mas não me amava, não é? - Havia um certo amargor na voz dele.
- Já não sei mais o que pensar, Randolph. Eu sinto muito.
- Ele não é o tipo de homem que poderá dar-lhe uma vida tranqüila, Hannah. Nem o lar com o qual você tanto sonhou.
- Sei disso. E não espero mesmo que aconteça. Randolph parou de andar, obrigando-a a fazer o mesmo. Então assentiu e, num leve sorriso, acrescentou:
- No entanto, você o ama.
Hannah concordou, olhando-o. Não queria mais esconder seus sentimentos, nem de Randolph, nem de si mesma.
- O coração não raciocina, não é? - observou, com os olhos cheios de lágrimas.
Ele tornou a sorrir e passou o braço por sobre os ombros de Hannah, num gesto compreensivo.
- E. O amor não tem muito a ver com a razão. - Recomeçaram a caminhar, e Randolph perguntou: - O que pretende fazer agora?
- Bem, eu... ainda lhe devo mais três anos de serviço. Pretendo honrar meu contrato e voltar com você para o rio do Destino na primavera.
- Pelo que ouvi dizer, o acordo que o exército vai fazer com os índios não permitirá assentamento de colonos a oeste daqui.
- Então, não poderemos voltar?
- Talvez não.
- Bem... então vou voltar com você para Filadélfia, ou segui-lo aonde quer que vá.
- Mas não como minha esposa...
Hannah piscava muito, tentando evitar que as lágrimas escorressem por seu rosto.
- Eu sei que isso não seria justo com você - disse, entristecida. - Talvez, com o tempo, eu...
- Ou talvez Reed não agüente os ferimentos - Randolph interrompeu, subitamente frio. - O médico disse que ele não está nada bem. Talvez eu tenha sorte.
Hannah olhou-o, surpresa e indignada.
- Não acredito que esteja me dizendo isso! Randolph tornou a parar de andar e tomou-lhe o rosto entre as mãos. Olhou-a com atenção por segundos, depois soltou-a
e murmurou:
- Eu também não.
Após uma leve melhora, Ethan voltou a ser dominado pela febre, chegando, mesmo, a delirar. O coronel Bouquet insistiu, então, para que o removessem para um quarto
melhor, em sua própria casa.
Randolph permitiu que Hannah ficasse ao lado do capitão, como sua enfermeira, mas o médico proibiu-a de estar o tempo todo à cabeceira do doente, pois não queria
que ela também se desgastasse demais. Um paciente apenas já bastava, ele argumentou, severo.
Também Bouquet percebia a devoção extrema daquela moça a Ethan, e partilhava da preocupação do doutor quanto a sua saúde.
- Gosta muito dele, não é? - o coronel perguntou, no terceiro dia de vigília de Hannah.
Ethan estava inconsciente ainda.
- Nunca encontrei um homem como o capitão - ela respondeu, sem desviar os olhos do doente.
- Também nunca encontrei um soldado mais corajoso, nem um rastreador melhor. Mas essas não são as qualidades que uma mulher observa, são?
- Não sei onde estaríamos, não fosse por ele - Hannah continuava falando com certa reserva, procurando não mostrar seus sentimentos. - Ethan voltou ao rio do
Destino para nos salvar, e isso quase lhe custou a vida.
O coronel assentiu com gravidade antes de acrescentar:
- Mas ele é forte. Não vai se deixar matar assim tão fácil.
- Espero que tenha razão, senhor.
- Uma enfermeira como você é tudo de que um homem precisa para se recuperar, minha cara.
Hannah sorriu, lisonjeada.
- Acho que ele nem ao menos sabe que estou aqui - comentou, em voz bem baixa.
- Pois não se esgote, moça. Ou não estará aqui quando ele acordar.
Hannah tornou a olhar para Ethan.
- Eu vou estar - afirmou com convicção.
- Está apaixonada por ele, não?
Hannah não respondeu, e nem precisava. Suas emoções estavam estampadas em seu rosto. Bouquet respirou fundo antes de observar:
- Não escolheu um homem muito fácil de amar, moça.
- Não faz mal. Quero apenas vê-lo bem e forte de novo.
- E depois?
Ela deu de ombros.
- Depois... nada, eu suponho. O senhor o conhece. E um homem sem amarras. Vai continuar vagando por seu Oeste maravilhoso até que haja gente demais nele; então
vai procurar outro local, mais para adiante, onde possa continuar desbravando terras selvagens.
- E você?
- Talvez volte a Filadélfia com os Webster. Acho que nem Randolph, nem Nancy Trask vão querer voltar ao Oeste.
O coronel assentiu novamente.
- Ainda não é hora - comentou, sério. - Apesar dos acordos que estamos fazendo com os índios, acredito que o vale do Ohio será colonizado pelos ingleses algum
dia. Isso é inevitável. Por enquanto, porém, precisamos conservar a paz e manter os colonos em segurança.
- É. Talvez um dia eu volte, quando os colonos puderem se fixar de novo às margens do rio do Destino.
- Tenho certeza de que sim, moça. E desejo-lhe sorte.
Ethan estava inconsciente havia mais de dezoito horas. Ao entardecer, a febre subira muito, fazendo-o tremer em convulsões e suar em bicas.
O médico decidiu fazer-lhe uma sangria, embora ele próprio não aprovasse de todo o método. No entanto, o estado do capitão mostrava-se grave demais, e parecia
não haver mais nada a fazer.
Ele saiu do quarto, em busca de seus instrumentos cirúrgicos, deixando Hannah à cabeceira, com o coração apertado.
A sangria parecia-lhe um processo inútil. Vira os médicos aplicarem-na em sua mãe por mais de uma vez, e tinha certeza de que isso apenas acelerara sua morte,
já que a enfraquecera cada vez mais.
Ethan perdera muito sangue quando fora atingido pela faca de Trask. E agora era a febre que o estava consumindo.
Tomando uma decisão repentina, Hannah levantou-se e arrancou as pesadas cobertas da cama, passando a tirar as roupas do capitão Reed com mãos ágeis, aflitas.
Depois, umedecendo uma toalha, começou a passá-la por seu corpo suado, murmurando, enquanto o fazia:
- Vamos, Ethan, ajude-me! Por favor, não morra! Não morra!
- Srta. Forrester! - repreendeu o médico, ao voltar, acompanhado do coronel. - Perdeu o juízo?!
- Ele estava muito quente...
- É claro que estava! Ele tinha uma febre terrível e você acabou de expô-lo ao frio. Vai morrer, com certeza, e será sua culpa!
- Pois já que ele vai morrer, deixe-me, pelo menos, tentar salvá-lo! Isso faz mais sentido do que tirar o pouco de sangue que ainda deve restar em suas veias,
não?!
O médico olhou para Bouquet, em busca, talvez, de apoio, mas o coronel apenas deu de ombros, dizendo:
- O capitão Reed não tem família. Acredito que a pessoa mais próxima dele seja, de fato, a Srta. Forrester. Isso lhe dá autoridade suficiente para aprovar ou
não o tratamento que está sendo ministrado.
Hannah olhou-o, agradecida. Não sabia se estava agindo certo, mas algo dentro de si dava-lhe a certeza de que Ethan já estava melhorando. Apesar de ainda inconsciente,
os tremores em seu corpo haviam parado, e a expressão em seu rosto parecia mais calma.
- Sendo assim - disse o médico, ofendido -, não serei responsável pelo que vier a acontecer. - E saiu do quarto, batendo a porta.
O coronel aproximou-se do leito, avaliando o estado do doente.
- Ele me parece bem melhor do que quando o vi, há duas horas - comentou. - Estarei em meu quarto, se precisar de algo, senhorita.
Quando o coronel se foi, Hannah sentou-se numa cadeira ao lado do leito, e tomou uma das mãos de Ethan nas suas.
- Será que estou curando ou matando você, meu amor? - perguntou, num fio de voz. Depois, sem deixar de segurar-lhe a mão, recostou a cabeça ao colchão e, sem
perceber, adormeceu.
A vela que ardia sobre a mesa-de-cabeceira estava quase no fim quando Hannah despertou, assustada. Olhou, depressa, para Ethan e viu que ele tinha a respiração
normal, tranqüila. Já não transpirava, e sua pele não apresentava o tom avermelhado provocado pela febre alta. Estava pálido, mas calmo, como se dormisse.
Hannah respirou, aliviada, e ergueu a mão dele até fazê-la tocar seu rosto. Ao voltar-se para Ethan, notou que seus olhos estavam abertos e observavam-na.
- Que dia é hoje? - ele perguntou, com voz rouca. Hannah mal podia acreditar. Sorriu, feliz, e respondeu: -- Não tenho a mínima idéia.
- Mas continuo vivo, não?
Ela assentiu. Sentia vontade de chorar. Ethan baixou os olhos sobre o próprio peito.
- Onde estão minhas roupas?
- Eu as tirei. Você estava com muita febre.
- E onde estamos?
- Na casa do coronel Bouquet. Mas acho que você não deveria falar muito. Esteve muito doente nos últimos dias.
Ele fechou os olhos, tornou a abri-los, depois passou a língua pelos lábios secos.
- E você esteve comigo o tempo todo?
- Sim.
- E... o que Webster diz a respeito disso?
- Ele me deu sua permissão. Todos no forte querem que você se recupere depressa.
Ethan parecia querer prosseguir, mas não conseguia. Entreabriu os lábios várias vezes, depois tornou a fechar os olhos. Era como se estivesse a ponto de perder
os sentidos de novo.
Hannah aproximou-se mais, tentando entender o que ele murmurava.
- ... me chamou de meu amor... - ouviu-o dizer, antes de perder a consciência mais uma vez.
Mais três dias se passaram, e Ethan recuperou-se surpreendentemente. Já exigia comida substancial, em vez da sopa de legumes que o médico lhe receitara durante
a convalescença, e, no terceiro dia, gritava por suas roupas, avisando que, se não as devolvessem, ele pularia pela janela e ficaria nu no meio do pátio.
O coronel subiu ao quarto, ao ouvir tais ameaças, e disse a Hannah que tirasse a tarde livre, pois não era obrigada a agüentar o mau humor de um paciente mal-educado.
Ela saiu do quarto, aliviada por poder espairecer um pouco, e foi até as tendas que tinham sido levantadas no pátio para abrigar os colonos durante o inverno.
Agora que Ethan estava fora de perigo, podia pensar um pouco mais em sua própria vida e considerar o que faria no futuro. Não poderia, com certeza, declarar seu
amor por um homem que partiria dali para encontrar alguns índios e explorar um território novo assim que o coronel lhe desse permissão para montar um cavalo.
Quanto ao casamento com Randolph, Hannah também nada podia esperar, já que deixara claro para ele o seu amor por Ethan.
Conforme se aproximava das barracas, um novo pensamento começava a preocupá-la: o que seria de sua vida agora?
Estavam todos sentados ao redor da grande mesa, nos fundos do aposento que servia também de quarto para Randolph, Seth e Jacob. As mulheres e as meninas dormiam
num outro cômodo, contíguo, semelhante a esse.
Tinham terminado o almoço, as crianças já haviam saído para brincar, mas os adultos permaneciam ainda à mesa quando Hannah chegou. Elisa levantou-se assim que
a viu e veio em sua direção.
- O que houve? - perguntou, preocupada. - O capitão está pior?
Hannah negou com a cabeça e sorriu. -Não. Ele está tão melhor, que já é difícil de suportar. Todos riram, menos Randolph, que evitava o olhar de Hannah. Ela prosseguiu:
- Acho que agora posso deixar meu trabalho como enfermeira e voltar a meus afazeres aqui.
- Venha, querida - Elisa a trazia para a mesa. - Você já almoçou? Coma um pouco deste ensopado, ou vai acabar doente também.
- Se Reed não precisa mais de você - Randolph interferiu, em tanto seco -, é melhor cuidar de sua própria saúde. Há quanto tempo não dorme direito?
Nancy aproximou-se, tocando os ombros de Hannah.
- Sei que estão falando por bem - disse a Randolph e Elisa. - Mas é melhor deixarem Hannah cuidar de si mesma. Ela sabe de que necessita, não é, querida?
Hannah olhou-a, agradecida. Notava que havia uma nova vivacidade na voz de Nancy, uma firmeza que era-lhe desconhecida até então.
Hannah começou a comer devagar. Talvez todos tivessem razão: precisava se cuidar.
- Temos novidades, Hannah - Seth anunciou, adiantando-se. - Os franceses recusaram-se a dar apoio a Pontiac, e as tribos indígenas estão se retirando.
Hannah parou com a colher de sopa no ar.
- Isso que dizer que podemos voltar ao rio do Destino? - perguntou, ansiosa.
Um silêncio perturbador pareceu tomar conta de todos. Randolph respondeu pelos outros:
- Nós não vamos voltar, Hannah.
Elisa colocou a mão sobre o ombro da moça, indagando em tom de desculpa:
- Lembra-se do que eu lhe disse sobre mim e Seth? - Mas... se o problema com os índios não existe mais... - Hannah insistiu.
Foi Seth quem falou pela esposa agora:
- Eu e Elisa chegamos à conclusão de que não são os índios os nossos inimigos, mas sim, nossas recordações. Vamos voltar para casa e tentar fazer com que essas
lembranças se tornem nossas amigas, Hannah.
- E eu e as crianças decidimos acompanhar Nancy e as meninas de volta a Filadélfia - Randolph afirmou, sem encará-la.
Algo na maneira como Randolph falou fez Hannah compreender que havia mais significados naquelas palavras do que, a princípio, poderia parecer. Olhou para Nancy
e viu que ela enrubescera.
- Vai desistir de ser um colonizador? - Hannah não conseguia aceitar a idéia.
Ele, afinal, encarou-a.
- Como eu poderia ser um, sem amigos ou vizinhos? As idéias começavam a se encaixar na mente de
Hannah. Tudo já estava decidido para aquelas pessoas; apenas ela sobrara.
- As crianças querem voltar? - perguntou ainda.
- Peggy quer ficar junto de Janie e Bridgett. E Jacob não vê a hora de voltar e contar a seu amigo Ben que viu índios de verdade.
- Entendo...
- É claro que você virá conosco. Nada mudou, Hannah. Mas ela sabia que tudo mudara, sim. E muito. Afastou o prato de sopa, pensativa. Sua opinião não contara
na decisão de todos. Era ainda uma criada.
Deveria ir aonde seu patrão, julgasse melhor. Seria sempre uma criada na casa dos Webster. Isso era óbvio, agora que compreendia o motivo do rubor no rosto de
Nancy. Ela, Nancy, seria a nova Sra. Webster.
Já era noite quando ela voltou à casa do coronel. Esperava que Ethan já não estivesse tão exasperado por sentir-se ainda sem condições de sair daquela cama. Ela
estava triste demais para querer suportar-lhe o mau humor outra vez.
Ele estava aparentemente adormecido quando Hannah entrou no quarto, mas abriu logo os olhos e sorriu daquele modo malicioso e encantador que era só seu.
- Então, decidiu voltar para mim - disse com voz suave.
Ela foi até o leito.
- Depois de toda aquela cena de manhã, por causa de suas roupas, eu deveria nunca mais voltar.
- Se fizesse isso, aí é que haveria uma bela cena!
- Ethan continuava sorrindo.
Hannah sentou-se na beirada da cama. O bom humor do capitão era contagiante agora, e a fez brincar:
- Acho que você foi um garoto mimado, sabia?
- Até que não. Minha mãe era bastante rígida.
- Então, alguém o mimou mais tarde, a julgar por seu comportamento.
- Algumas moças, talvez... - ele provocava.
- Como Polly McCoy, eu suponho. O coronel disse que ela esteve aqui, perguntando por sua saúde. Acho que devo avisá-la de que você já pode receber visitas, não?
- Hannah sentia um certo aborrecimento com aquela conversa e resolveu sair da cama para ocupar a cadeira ao lado.
- Não, não se afaste. Gosto de tê-la perto de mim
- Ethan protestou. - Estou apenas provocando você com essa história de outras moças. Afinal, a maior parte delas sempre me achou indigno de seu amor.
Hannah não pôde deixar de rir. Voltou a seu lugar, na cama, e Ethan segurou-lhe a mão com força, como se não quisesse deixá-la afastar-se outra vez.
- A Sra. McCoy não me pareceu pensar assim - Hannah observou, insistindo no assunto.
- Na verdade, ela até me mandou embora uma ou duas vezes, mas isso já não interessa.
Hannah baixou os olhos para as mãos de ambos, unidas, e perguntou com voz suave:
- E o que nos interessa, capitão?
Ethan puxou-a para si, fazendo-a deitar-se a seu lado.
- Bem, antes de dizer qualquer coisa, quero esclarecer algo: eu ouvi ou não ouvi você me chamar de "meu amor" enquanto eu estava febril?
Hannah pensou antes de responder. Era provável que todos no forte já soubessem sobre o que sentia pelo capitão. Não fazia muito sentido continuar escondendo.
- Talvez eu tenha dito isso... - murmurou por fim.
- Talvez?! - Havia certa irritação na voz dele.
Hannah assentiu, teimosa. Não iria se declarar. Afinal, Ethan nunca fizera a mais leve insinuação sobre o que sentia a seu respeito.
- Está certo - ele concordou, um tanto ríspido. - Suponhamos que você tenha dito. O que quero saber é: quantos homens você chamou de "meu amor"?
Ethan falava com tanta segurança que Hannah começou a se irritar.
- Muitos - respondeu sem pensar.
- Mentirosa! - A voz dele era pouco mais do que um murmúrio e fez Hannah arrepiar-se inteira.
Sem esperar por qualquer reação dela, Ethan puxou-a mais para si e beijou-a com uma paixão ardente, exigente.
Ela lutou entre seus braços, até que conseguiu afastar os lábios para reclamar.
- Como pode estar fazendo isso?! Você mal se recuperou!
- Está enganada, moça. -- E continuou a beijá-la, cada vez com mais ardor.
Hannah já se sentia solta naquele abraço apaixonado. Suas palavras, embora ainda repreensivas, tinham agora um tom complacente:
- Vai acabar se ferindo de novo, Ethan...
- Chame-me de "meu amor" - ele pediu, rouco.
- Vai parar, se eu o fizer?
- Não.
Hannah olhava-o, sem entender. Ethan sorria de novo, calmo, malicioso, muito atraente. Até que completou:
- Nunca mais vou parar de beijá-la. Nunca mais vou deixá-la afastar-se de mim.
Hannah sentia sua cabeça girar. Seu coração batia tão forte que quase podia ouvi-lo. Qual seria o significado real daquelas palavras?
- Ethan, por favor... - começou, mas ele não a deixou prosseguir.
- Vá até a porta e tranque-a - disse, numa ordem agradável demais para ser desobedecida.
Hannah vacilava.
- Vá - Ethan insistiu.
Ela o obedeceu. Depois voltou-se e recostou-se à porta que trancara.
- Agora venha aqui. - As ordens continuavam, firmes e doces ao mesmo tempo.
Hannah deitou-se ao lado dele, sempre vacilante, mas Ethan logo a tomou nos braços outra vez, cobrindo-a de beijos devastadores, famintos, que a deixavam em brasa.
Em dado instante, Ethan afastou-se, arfando, para perguntar, num sussurro carregado de desejo:
- Quer que eu pare, para convalescer melhor?
A resposta de Hannah foi um beijo apaixonado que mostrou o quanto ela o queria também, vencida que estava pela paixão.
Não havia mais no que pensar, não havia hesitação possível agora. Precisavam apenas um do outro, para viver a intensidade total do sentimento que os unia. Amaram-se
com loucura, do modo selvagem e incendiário que Hannah aprendera a apreciar. Aquele era o homem que queria, o homem que a fazia gemer de amor e prazer, e que gemia
junto dela, entregue também à paixão.
- Acredita agora que estou recuperado? - Ethan perguntou, ainda respirando com dificuldade, após o amor.
Hannah sorriu de leve, feliz, satisfeita.
- Talvez....
- E quantos anos acha que vai levar para se convencer? Cinqüenta? Sessenta?
O sorriso desapareceu dos lábios de Hannah. Ela e Ethan não tinham sequer cinqüenta ou sessenta dias... Não tinham nem mesmo o direito de estar ali, juntos. Como
poderia ela manter um romance com o capitão, durante o inverno, tendo Randolph e as crianças por perto? E, depois, era ainda uma criada, com obrigações a cumprir.
- O que foi, querida? - Ethan preocupava-se com o que percebia e não compreendia em Hannah.
- Não posso... - ela murmurou apenas, saindo da cama e se vestindo.
Ethan deixou-a afastar-se, mas não perdia um só de seus movimentos. Pensara muito nos últimos dias, quando não estava tomado pela febre, e chegara a uma conclusão:
queria Hannah mais do que tudo no mundo.
Mas precisava estar com ela sempre, e não apenas ao voltar de uma jornada de aventuras. Queria que Hannah o seguisse em sua vida selvagem, explorando, caçando,
encontrando novas e lindas regiões inabitadas. E, se tivessem filhos um dia, talvez pudessem construir uma cabana aconchegante às margens do rio do Destino e se
fixar, criar raízes.
Ethan já não achava que Hannah estaria melhor ao lado de Randolph Webster. Sabia, com absoluta certeza, que ela não amava o patrão. Isso ficara provado poucos
instantes atrás.
Mas talvez ela não quisesse arriscar seu futuro ao lado de um aventureiro com um passado cheio de mulheres e jornadas desbravadoras...
Só havia um modo de descobrir, porém.
- Onde está minha calça? - ele protestou, em voz alta.
Hannah voltou-se. Parecia tensa, preocupada.
- Acho... que o coronel a levou - respondeu, sem entender o que Ethan pretendia.
Ele se levantou, enrolando um lençol à cintura.
- Que diabo! - praguejou. - Como um homem pode propor casamento a uma mulher sem estar decentemente vestido?!
Hannah arregalou os olhos. Ouvira, de fato, a palavra "casamento"?
- Eu preciso da minha calça! - Ethan insistiu. A cena era engraçada, e Hannah não pôde conter o riso, para o qual, era óbvio, havia uma grande dose de felicidade.
- Gosto de você sem ela - disse, encarando-o. Ethan riu também.
- O sentimento é recíproco, querida. E esse é um dos motivos pelo qual tenho a honra de pedi-la em casamento, Hannah Forrester. Em troca, dou-lhe meu coração,
o qual, na verdade, já é seu.
Hannah sentiu um nó na garganta. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ethan abraçou-a, então, e caíram assim, um nos braços do outro, por longos momentos. Até
que ele perguntou com voz suave:
- Como as mulheres conseguem fazer isso?
- Fazer o quê?
- Rir e chorar ao mesmo tempo.
Hannah riu e chorou ainda mais, meneando a cabeça.
- Não sei.
- Bem, eu ainda não tive uma resposta.
- Você já sabia qual seria, antes mesmo de perguntar, não é?
- De fato, não, meu amor. Digamos apenas que tinha esperanças, a ponto de pedir ao advogado do forte para comprar seu contrato de Webster esta manhã. Não ia
deixar você partir com ele.
Hannah sorriu. Havia mais lágrimas rolando por seu rosto agora.
- Eu já havia falado com Randolph e dito que não poderia me casar com ele. E... não acho que ele ficaria desconsolado por muito tempo. Ele e Nancy parece que
já se acertaram.
- Aquele sujeito é um idiota. Se eu tivesse perdido você, ficaria desconsolado para o resto da vida!
Hannah olhou-o com atenção e acariciou-lhe o rosto. Como podia estar tão apaixonada?
Quase sem sentirem, já estavam envolvidos num novo beijo, ardente como sempre, que logo fez o desejo brotar mais uma vez.
- Não, não... - Hannah murmurou, afastando-se.
- É melhor você se deitar e descansar. E é o que você vai fazer, nem que eu tenha de amarrá-lo!
Ethan ergueu as sobrancelhas, o sorriso malicioso nos lábios outra vez.
- Ora... isso poderia ser interessante... - observou.
- E eu vou falar com Randolph antes do advogado
- Hannah acrescentou, ignorando a brincadeira. Ethan ficou sério então.
- Ele vai liberá-la, não?
- Vai, sim. Quero eu mesma dar-lhe a notícia.
- Está certo. Mas volte logo.
- Só voltarei de manhã. Agora que você está tão... saudável, não posso passar a noite aqui.
- Eu poderia fingir que estou doente - Ethan brincou ainda.
Hannah olhou para o corpo forte, que tanto amava.
- Ninguém acreditaria - disse, e jogou-lhe um beijo, saindo em seguida do quarto.


EPÍLOGO

Abril de 1764.

Hannah pulou do barco antes mesmo que o capitão pudesse ajudá-la a chegar à margem do rio.
- Está tudo aqui, Ethan! - ela gritou, feliz.
O capitão Reed sentiu-se aliviado com a alegria que percebia na voz dela. Receava que, mesmo ao encontrar as cabanas intactas, Hannah se entristecesse pela falta
dos amigos, que agora já estavam a caminho de Filadélfia. Mas os temores tinham sido em vão. Sua esposa era uma mulher otimista e determinada, que quisera voltar
ao rio do Destino para recomeçar sua vida. E fora exatamente pelos amigos ausentes que ela quisera voltar, para que sua pequena contribuição para o desbravamento
do Oeste não fosse esquecida.
Ethan prendeu a canoa e subiu a margem do rio. Hannah entrara na cabana que fora dos Webster. Ela chorara muito, no forte, ao se despedir de Peggy e Jacob, e
talvez o fato de estar ali, de volta, trouxesse muitas lembranças difíceis de suportar. Ethan esperava, ansioso.
Lembrava-se de Webster, que se recusara a aceitar qualquer pagamento pelo contrato de Hannah, e que até fora padrinho de meu casamento, Randolph não era um homem
de guardar rancor, tenho de reconhecer.
Como Hannah demorasse a sair, seguiu-a até a cabana. Ela estava parada no meio da sala, olhando tudo ao redor. Sua expressão, porém, não era triste, mesmo se
estivesse se recordando dos bons tempos que passara ali.
- Parece que está tudo como vocês deixaram - Ethan comentou, passando os olhos ao redor. - Está... triste por voltar aqui?
Hannah foi até ele para abraçá-lo.
- Não. Eu só estava me lembrando que, na última vez em que estive aqui, senti-me desesperada por não saber se você sobreviveria ao ferimento.
Ethan apertou-a contra o peito.
- Sou difícil de matar. E você, moça, agora está amarrada a mim para sempre.
- Que pena! - Hannah brincou. - Achei que, talvez, o major Edgemont fosse me raptar no dia de nosso casamento e me levar para algum castelo na Inglaterra...
Ethan sorriu, mas aceitou a provocação:
- Sabe de uma coisa? Eu devia ter vendido você àquele guerreiro índio quando tive a chance.
- Tarde demais, meu amor. Agora, é você quem está amarrado a mim para sempre.
Juntos, saíram da casa e caminharam pelo pátio que separava as duas cabanas. Tudo estava como havia sido deixado.
- Olhe! - Hannah exclamou, de repente, apontando para as árvores frutíferas que tinham plantado no verão anterior.
As plantas tinham sobrevivido ao inverno e estavam agora cobertas por minúsculas flores brancas.
Ethan sorriu ao ver a alegria quase infantil estampada no rosto de Hannah. Jamais se cansaria de olhá-la. Linda, feliz, corajosa. Aquela era sua esposa querida,
a mulher que escolhera entre todas as outras.
Continuaram caminhando, até alcançarem o local onde tinham se amado entre as árvores. Hannah reconhecia o lugar e indagava-se se o mesmo estaria acontecendo com
Ethan. Os homens costumavam não se apegar a esse tipo de sentimentalismo.
Alguns passos adiante, ele pegou-a pela cintura e a fez voltar-se para seus braços. Devagar, entre beijos apaixonados, fez com que Hannah se deitasse sobre a
relva macia e depois, afastando-se um pouco, perguntou, com a voz carregada de desejo:
- Suas costas ainda doem?
Ela sorriu e puxou-o novamente, para outro longo beijo. Ele se lembrava, sim.
Após o beijo, abraçados lado a lado, ficaram os dois apenas ouvindo o murmurejar do rio, logo abaixo, e os pássaros entoando suas canções eternas por entre as
árvores altas.
No entanto, para Hannah, o som mais doce e calmo do mundo era a voz de Ethan, sussurrando em seu ouvido:
- Bem vinda ao lar, meu amor.

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? Nos Braços do Destino - CH nº 88 - Ana Seymour ?


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