segunda-feira, 25 de outubro de 2010

{clube-do-e-livro} Ana Seymour - O anjo do lago (Angel of the lake) (.txt

O Anjo do Lago

Ana Seymour

Clássicos Históricos nº 9


Copyright (c) 1993 by Mary Bracho
Publicado originalmente em 1993
pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Título original: ANGEL OF THE LAKE
Tradução: Cristina Sangiuliano
Copyright para a língua portuguesa: 1993
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: Gráfica Círculo


Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.


Digitalização: Palas Atenéia
Revisão: Kátia Regina

Perdidos nas águas revoltas


Foi um verdadeiro milagre Josh Lyman ter sobrevivido ao naufrágio do S.S. Atlantic no imenso e traiçoeiro lago Eire! Na tragédia morreu sua jovem e frágil esposa,
mas ele conseguiu salvar uma imigrante norueguesa - feito que enchia Josh de culpa cada vez que fitava com ternura os confiantes olhos azuis de Kari Aslaksdatter...
Durante o desastre, Kari sofreu um golpe na cabeça e perdeu a memória. No entanto, em seu íntimo sabia que jamais havia conhecido um homem como o americano alto
e moreno que salvara sua vida. Só não suspeitava que Josh Lyman se tornaria seu maior desafio na nova pátria...


"Ah, minha pequena viking, não chore."
Josh não foi capaz de conter-se. Com duas passadas largas, deu a volta à mesa da biblioteca, ergueu Kari da cadeira e tomou-a nos braços.
- Não chore - ele repetiu e encostou de leve os lábios nos dela.
Foi um beijo suave, leve como uma pluma, mas foi o bastante. Josh sentiu o corpo incendiar-se de desejo. Todos os sentimentos que haviam permanecido adormecidos,
durante o ano em que estivera casado com Corinne, despertaram de uma vez.
Kari fechou os olhos. Sua cabeça girava. Depois dos dias que passara, carregando o fardo da incerteza e da solidão, os braços de Josh ofereciam-lhe um conforto
irresistível.
- Josh... - murmurou quando ele se afastou.





CAPÍTULO I

Lago Erie

20 de agosto de 1852



Sob o luar pálido e silencioso, uma névoa sinistra pairava sobre a água. O céu parecia sólido, a ponto de se poder tocá-lo. Josh Lyman estendeu a mão para
a escuridão densa, como se fosse agarrá-la. Então, com um sorriso, voltou a abaixar o braço.
- A noite está quieta demais, senhor.
Apesar de amigável, a voz o assustou. Virou-se e reconheceu o rosto marcado pelo sol e sal marinho. Era o capitão Garrity.
O leve sorriso provocado pelas fantasias infantis de Josh transformou-se em um sorriso genuíno e natural.
- Estava justamente apreciando a noite, comandante. O ar parece tão denso que nem sei como ainda podemos respirar.
Garrity colocou-se a seu lado, pernas afastadas, os joelhos vergando-se automaticamente ao balanço do barco. Com olhos experientes de velho marujo, esquadrinhou
a escuridão que se estendia além da amurada.
- Não me agrada a sensação de morbidez da noite - comentou com voz soturna. - Sinto que há algo pouco natural... assustador se entende o que quero dizer.
Josh assentiu em concordância. Tivera a mesma impressão, enquanto remoia pensamentos pouco agradáveis no convés. No entanto, atribuíra a sensação ao estado
de espírito sombrio em que se encontrava.
O SS Atlantic era o melhor dos barcos movidos por rodas propulsoras laterais que cruzavam os Grandes Lagos, carregando uma curiosa mistura de turistas abastados
na primeira classe e imigrantes paupérrimos na terceira. Os primeiros buscavam luxo e conforto, enquanto os últimos acalentavam sonhos de uma nova vida na nova terra.
As grandes embarcações eram apelidadas de "palácios flutuantes", uma vez que seus interiores eram decorados com madeiras raras, pisos de mármore e candelabros de
cristal. As suítes da primeira classe constituíam-se de aposentos suntuosos, com camas cobertas de cetim e seda e banheiros que contavam com diferentes torneiras
para água quente e fria.
Para Josh, a excursão através dos lagos até Montreal parecera perfeita para a tentativa de construir um verdadeiro casamento com Corinne. Além de satisfazer
sua necessidade de aventura, a viagem os afastaria das atenções, às vezes sufocantes, dos bem intencionados pais de sua esposa.
Afinal, essas mesmas atenções o haviam impedido de sequer suspeitar dos problemas que enfrentaria ao tentar estabelecer um casamento "normal" com Corinne.
A união das fortunas dos Lyman e dos Pennington havia sido o grande assunto da sociedade de Milwaukee durante meses. Mas, uma vez formalizado o noivado, Josh não
ficara um só minuto a sós com a noiva. Nem sequer a beijara no rosto, uma vez que a mãe dela passava o tempo todo a vigiá-los de perto.
Assim, havia preferido passar seus últimos dias de solteiro em companhia dos lenhadores. Depois da morte do pai, durante a epidemia de cólera de 1849, Josh
havia dedicado toda a sua energia, bem como o tino comercial que se tornara sua característica principal, na administração dos negócios da família. Dono de excelente
visão do futuro previra o que agora era do conhecimento de todos: as minas de chumbo tinham seus dias contados. A partir de suas conclusões acertadas, investira
todo o dinheiro da família na indústria madeireira, ganhando mais em três anos do que seu pai, em quinze.
Josh controlava seu pequeno império dos escritórios em Milwaukee, mas, quando chegava o inverno, partia para os acampamentos na floresta e trabalhava lado
a lado com os lenhadores.
Todos o adoravam. E, quando a última tora flutuava rio abaixo, ele comemorava junto aos seus homens.
Se tais comemorações incluíssem mulheres, ele também participava. Embora pretendesse tornar-se um marido fiel, uma vez que se casasse com Corinne, decidira
tirar o máximo proveito dos últimos meses de liberdade.
- Espero que não esteja com problemas, senhor- a voz rude do marujo arrancou-o das divagações. - Já é tarde para estar acordado.
Josh refletiu antes de responder. Talvez, devesse contar seu drama ao velho capitão. Poderia dizer: "Não há nada errado, exceto pelo fato de hoje ser o
primeiro aniversário do meu casamento. E, a estas horas, minha esposa deve estar deitada na cama, apavorada pela possibilidade de seu marido chegar a qualquer momento,
reclamando seus "direitos conjugais"."
Em vez disso, falou:
- Estou sem sono, só isso.
- Ninguém disse que tem passar a noite toda dormindo, filho - o capitão corrigiu-o com uma piscadela. - Há passageiros que desaparecem em suas suítes durante
a viagem inteira!
Josh recuou um passo, colocando-se à sombra quase negra da imensa chaminé do navio.
- Alguns são afortunados - comentou em tom pensativo. Garrity afastou-se dele e voltou a observar a água escura.
- Uma coisa que aprendi vivendo sobre a água, Sr. Lyman, é que cada coisa vem a seu tempo. A pressa não leva ninguém a lugar nenhum. - Retirou um cachimbo
e uma bolsinha de fumo do bolso, antes de continuar: - Se deixar as coisas seguirem seu rumo, em seu ritmo natural, acabará chegando onde deseja.
Josh sorriu na escuridão. O velho capitão lembrou-o de seu avô. Vovô Lyman fora um mestre em dar conselhos, sem nunca precisar conhecer o problema sobre
o qual falava. Ainda garotinho, Josh sentira muita falta dele quando a família mudara-se para o novo porto de Milwaukee.
A mudança trouxera benefícios. Seu pai duplicara a fortuna da família nas minas de chumbo. A vitalidade da fronteira já fazia parte do sangue de Josh, mas,
havia momentos em que daria tudo para estar de volta a Filadélfia, ouvindo as histórias de vovô Lyman, sentado na varanda.
- Paciência. É o que está tentando me dizer? - finalmente perguntou ao capitão.
- Isso, paciência: o castigo dos jovens e a bênção dos velhos.
- Tratarei de me lembrar disso, capitão - Josh concordou com um sorriso. - Acho que vou me deitar agora mesmo.
Garrity assentiu satisfeito e ocupou-se com o cachimbo.
- Tenha bons sonhos, filho.
O velho marujo observou a caminhada dura do jovem passageiro. As passadas largas de Josh não se acomodavam ao balanço da embarcação. Ele parecia ansioso
demais para alcançar seu destino, e pouco disposto a permitir que o vai e vem das águas lhe retardasse a marcha.
Ao chegar ao tombadilho que levava às suítes mais luxuosas, sua velocidade diminuíra e o bom humor havia se desintegrado. "Paciência", dissera o velho.
Fazia um ano que a sociedade de Milwaukee testemunhara sua união com a filha de Vemon e Myra Pennington. Um ano se passara desde a desastrosa noite de núpcias que
se seguira à cerimônia.
Atravessou o tombadilho, ignorando a porta dupla que se abria para a primeira classe e caminhou lentamente em direção à parte dianteira do navio. Havia
algo estranho na noite. Não era apenas uma questão de estado de espírito. O ar tornava-se mais e mais pesado. Quando deu por si, estava apoiado à amurada que se
estendia por sobre o convés da terceira classe. Teria sido esse o seu destino desde o início? Sem procurar resposta para a própria pergunta, estreitou os olhos e
esquadrinhou a névoa espessa.
Lá estava ela de novo.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Podia divisar apenas a forma do corpo feminino na neblina escura, uma aparição quase sobrenatural, os cabelos claros
como o luar. Se não a houvesse visto várias vezes à luz do dia, com seus brilhantes olhos azuis e faces coradas e cheias de vida, teria jurado tratar-se do fantasma
de uma sereia residente no lago que o navio atravessava.
Josh sacudiu a cabeça intrigado. O que uma mulher fazia sozinha àquela hora, em meio à brisa fria da noite? Sabia pouco sobre ela. Era imigrante e viajava
junto ao grupo de noruegueses.
Estava sempre ali fora, debruçada sobre a amurada, ou recostada ao sol, com um sorriso que deixara Josh sem fôlego na primeira vez em que a vira. Fora no
porto, em Montreal. Ela estivera sentada sobre uma pilha de bagagem, rindo e brincando com um garoto, cujos cabelos exibiam a mesma tonalidade loiro-prateada dos
dela.
Aquela altura, Josh não poupava esforços para animar Corinne. Estava determinado a não permitir que aquela viagem se transformasse em mais um desastre em
seu casamento.
- Então, onde foi parar todo aquele francês que a Srta. Duvalier esforçou-se tanto para ensiná-la? - ele provocara, brincando com as fitas que enfeitavam
o chapeuzinho de Corinne.
- Nem parece a mesma língua, quando falada por essa gente - ela protestara, fazendo beicinho.
Houvera um tempo em que Josh havia adorado o beicinho de Corinne... Desde a primeira vez em que haviam estado juntos, ainda crianças. Ele colocara uma rã
na limonada da bela garotinha dos grandes olhos castanhos. Então, os lábios dela haviam se comprimido num círculo perfeito, enquanto as lágrimas rolavam soltas por
suas faces alvas.
Em sua noite de núpcias, Josh vira aquelas mesmas lágrimas e sentira-se mais culpado do que no dia em que fizera a brincadeira com a rã.
Com algum esforço, voltou os pensamentos para o presente. Imaginou o que a jovem loira faria se ele a chamasse. Abriu a boca, mas a quietude da noite desencorajou-o.
Ela provavelmente não compreendia inglês, pensou.
Como se ouvisse o chamado silencioso, a moça virou-se de repente e ergueu o rosto em sua direção. Embora estivesse escuro demais para que ele distinguisse
suas feições, Josh não encontrou dificuldades em imaginá-las. Cada traço estava impresso em sua memória, desde o primeiro dia em que a vira: os olhos azuis repletos
de vivacidade, os cabelos loiros, longos e sedosos, soltos a brisa do lago. Ele se perguntou se ela podia vê-lo através da névoa densa.
Permaneceram assim durante um longo momento, duas figuras imóveis na escuridão. Então, um súbito estalido quebrou a imobilidade da noite, seguido de imediato
por um choque violento que levou a embarcação a uma guinada inesperada e assustadora. Josh agarrou-se à amurada e manteve-se de pé, o coração aos saltos. O que teria
acontecido?
Recuperando o equilíbrio, notou que o navio voltara à posição normal e parecia avançar adiante. Pôde, também, reconhecer o ruído reconfortante dos motores
da embarcação.
Algo os atingira. Josh não tinha meios de saber a extensão dos danos causados, mas estava certo de que um choque como aquele deixaria suas marcas. Olhou
em volta à procura do que provocara a colisão. Tudo o que viu foi a densa escuridão que envolvia o lago.
À medida que seu coração recuperava o ritmo normal, ele se inclinou sobre a amurada. Não havia o menor sinal da moça loira. Esquadrinhando o convés envolto
pela névoa, finalmente avistou a figura esguia caída no chão, deitada sobre o ventre, os cabelos loiros espalhados em torno de si como um véu.
O solavanco do navio devia tê-la derrubado. Josh estreitou os olhos, à procura de algum movimento. Nada. A moça estava inerte. Devia estar ferida. Por um
instante, ele considerou a possibilidade de pular da amurada para a terceira classe.
- Não serei de grande ajuda, se tiver as duas pernas quebradas - disse em voz alta e irritada, tentando imaginar como seria possível chegar lá embaixo.
Virou-se e correu na direção da parte traseira do navio. À medida que se aproximava das portas que levavam ao convés inferior, deparou com membros da tripulação,
todos se dirigindo apressados à ponte de comando. Alguns metros adiante avistou o capitão Garrity conversando com dois marinheiros, que ouviam suas ordens com atenção.
Josh aproximou-se.
- O que está acontecendo? - perguntou, mantendo a voz calma.
Ainda se podia ouvir o ritmo reconfortante dos motores.
- O navio foi atingido, Sr. Lyman - explicou o capitão. - É melhor ir buscar sua esposa e procurar pelo seu bote salva-vidas.
- Quer dizer que o navio está afundando? - Josh sentiu uma pontada de pânico.
- É possível, senhor. Não devemos nos arriscar.
Garrity voltou a dirigir a atenção a seus homens, mas Josh agarrou-lhe a manga do casaco.
- Espere! Há uma mulher no convés da terceira classe... Parece ferida.
Nesse instante, o navio deu uma guinada violenta, fazendo as tábuas rangerem sob seus pés.
- Apresse-se, homem! - Garrity gritou ao mesmo tempo em que se afastava em companhia dos marujos.
Josh agarrou-se à amurada, procurando manter o equilíbrio, enquanto a embarcação fazia movimentos rebeldes, como um cavalo selvagem sendo montado pela primeira
vez.
Respirou fundo e pôs-se a descer a escada. No corredor da primeira classe, diversos passageiros emergiam de suas suítes, a maioria em trajes de dormir.
Em meio à confusão, ele avistou a Sra. Hennessey, uma simpática senhora baixinha e roliça, que fizera companhia a ele e Corinne durante as refeições no
navio. A amável velhota conseguira diminuir em muito a tensão entre o casal durante a viagem.
- Sr. Lyman! - ela chamou o rosto muito pálido. - O que vamos fazer?
A essa altura, os reflexos de Josh haviam voltado ao normal e seus pés encontravam-se firmemente plantados no chão escorregadio. Num movimento rápido e
forte, ele passou um braço em torno dos ombros gorduchos da Sra. Hennessey e guiou-a na direção da escada.
- Vá para os botes salva-vidas, Sra. Hennessey. A tripulação irá ajudá-la.
O navio deu outra guinada, atirando-os contra a amurada. Com a mesma facilidade com que carregava pesadas toras de madeira na serraria, ergueu a companheira
nos braços e, com duas passadas largas, colocou-a no primeiro degrau da escada.
- Acha que consegue chegar lá sozinha? - perguntou em voz alta, tentando superar os gritos dos passageiros, já tomados pelo pânico.
Ela assentiu trêmula.
- Viu Corinne? - Josh inquiriu.
- Oh, pobrezinha! Não a vi sair da suíte.
Depois de empurrar a Sra. Hennessey na direção em que a multidão se dirigia apressada, Josh virou-se para voltar. O corredor que levava à sua suíte começava
a esvaziar. Portas batiam com estrondo, enquanto a embarcação continuava a sacudir e girar de um lado para outro.
Ao chegar à suíte, descobriu que a porta não estava trancada, mas algo muito pesado a mantinha fechada.
- Corinne! - gritou e esmurrou a porta. - Corinne!
De repente, uma estranha quietude encheu o ar. Josh demorou alguns segundos para dar-se conta de que os motores haviam, finalmente, parado de funcionar.
No instante seguinte, foi atirado contra a parede oposta. O navio dera mais uma guinada, desta vez colocando-se em posição perigosamente inclinada.
Numa tentativa desesperada, apoiou as costas na parede e desferiu um chute violento contra a porta. Ao entrar na suíte, tropeçou no grande baú que estivera
bloqueando a porta.
Apesar de pressentir que não havia ninguém ali, pôs-se a tatear na escuridão, à procura da esposa.
- Corinne? - chamou.
Era óbvio que ela abandonara a suíte. Uma onda de inquietação o envolveu. Não podia imaginar Corinne, sozinha, abrindo caminho pela multidão histérica.
Talvez, alguém a estivesse ajudando. Sendo a única filha entre quatro irmãos, ela sempre tivera alguém para ajudá-la em tudo.
Esgueirando-se com dificuldade pela parede, Josh buscou a saída da suíte luxuosa, de que tanto gostara. Precisava encontrar! Corinne. Ao ouvir os gritos
desesperados lá fora, admitiu que a viagem no Atlantic fora um grande erro. Corinne não queria sair de Milwaukee. Mesmo assim, ele ignorara os desejos da esposa,
convencido de que, uma vez longe dos pais, ela o deixaria fazê-la feliz.
Josh sacudiu a cabeça. Era absurdo preocupar-se com problemas pessoais, quando se encontrava em meio a um naufrágio! A cena que avistou no convés superior
arrastou-o de volta à realidade. Pessoas gritavam e empurravam-se. O desespero era total.
Com sua estatura elevada e constituição forte e robusta, Josh não encontrou dificuldade em abrir caminho entre a multidão. À medida que caminhava cambaleante
pelos corredores, procurava o rosto de Corinne entre as tantas expressões aflitas.
Então, deu-se conta de que também procurava pelos cabelos loiro-prateados. Mas isso era loucura, pensou. A bela imigrante não se encontraria entre os passageiros
da primeira classe.
Não havia mais dúvidas de que a embarcação estava condenada a ser engolida pela água escura do lago Erie. Muitos dos botes haviam sido despachados e os
passageiros que ainda se encontravam no navio começavam a buscar outras alternativas, antes que fosse tarde demais. As pessoas agarravam-se a bóias, baús, qualquer
coisa que pudesse boiar.
Josh alcançou a extremidade de onde eram lançados os salva-vidas sem avistar Corinne. O bote no qual ele e a esposa deveriam embarcar já estava na água,
superlotado. Corinne não estava dentro dele.
Espremida entre dois homens, a Sra. Hennessey acenou e gritou:
- Corinne não está aqui, Sr. Lyman. Não a vi em lugar algum.
- Vou encontrá-la - ele respondeu, sem ter a menor idéia de como o faria.
Talvez Corinne não houvesse conseguido chegar ao convés superior. Mas, se não estava na suíte, onde estaria?
Ignorando os gritos aterrorizantes que cortavam o ar, à medida que mais e mais passageiros caíam na água, Josh retomou o caminho de volta. O navio encontrava-se
em posição quase vertical, agora, inclinando-se sobre a proa. Quanto tempo levaria para que a gigantesca embarcação submergisse por completo?
Notando um grupo de pessoas que acenava com vigor para a escuridão do lago, Josh deu-se conta de que outro barco se aproximava. Foi invadido por um forte
sentimento de esperança. Não seriam abandonados em meio à água escura e ameaçadora. Agora, só lhe restava encontrar Corinne.
Um jovem marujo segurou-o pelo braço.
- Está indo na direção errada, senhor. Vá para a popa e fique lá, ou encontre um bote para abandonar o navio.
- Não consigo encontrar minha esposa.
O marujo sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, senhor. A parte dianteira do navio está toda debaixo d'água. Se sua esposa ainda se encontra por lá, não há muita chance de estar viva.
Sentindo o pânico apertar-lhe a garganta, Josh libertou-se do marujo e correu na direção da escada. Abrindo a porta, preparou-se para saltar no convés inferior.
No entanto, foi impedido pela visão aterradora da água que cobria toda aquela parte do navio.
Fechou os olhos, percebendo que a água subia mais alguns centímetros. Tinha de encontrá-la. Afinal, fora por sua causa que ela embarcara naquele navio.
Pobre e frágil Corinne que, pela primeira vez em sua vida, fora forçada a fazer algo contra a sua vontade.
Se ela não estava no convés inferior, só podia estar do outro lado, nos corredores laterais. Josh mal começara o caminhado difícil pelo convés escorregadio
e completamente inclinado, quando a embarcação deu mais uma de suas guinadas violentas. Ele tentou agarrar-se à amurada, mas uma onda imensa o atingiu, arrastando-o
para as profundezas do lago.
Num primeiro momento, o choque e a surpresa deixaram-no inerte, à mercê das águas devoradoras. Então, suas habilidades naturais assumiram o comando e, um
instante depois, ele nadava com vigor, em direção à superfície. Afinal, crescera entre lagos e, mais tarde, enfrentara a correnteza dos rios, sempre que ele e seus
homens despachavam as imensas toras que cortavam.
Quando, finalmente, conseguiu colocar a cabeça para fora da água, sua preocupação foi a posição do navio. A embarcação pairava oscilante acima de sua cabeça,
como um monstro na escuridão da noite. Forçando-se a respirar fundo, deu braçadas vigorosas na direção oposta. À sua volta, flutuavam os restos do que fora uma viagem
de alegria e prazer.
Livrou-se dos sapatos e do casaco. Nadando com maior facilidade, voltou a pensar em Corinne. Parecia que, mais uma vez, ele falhara como marido.
Foi atacado por um forte sentimento de derrota. Sabia que não se esforçara para se aproximar dela durante os meses que haviam antecedido o casamento. Assim
como as duas famílias, bem como os amigos, Josh encarara a união como predestinada desde que ambos eram crianças. Estivera certo de que tudo correria bem entre eles.
E fora esse o seu maior erro.
Era dono de um corpo bonito e saudável. Pelo menos, fora o que haviam lhe dito algumas mulheres em posição de opinar a respeito. Sempre achara Corinne bonita
e atraente, com seus cabelos castanhos claros e os enormes olhos castanhos, delineados por cílios longos e espessos.
Jamais lhe passara pela cabeça que os anos de proteção e mimo excessivo fariam de Corinne uma mulher incapaz de estabelecer um relacionamento adulto com
um homem.
Josh ergueu os olhos para o navio, cada vez mais mergulhado na água. Teria sua esposa conseguido escapar? Encontrara alguém para ajudá-la? Onde, diabos,
estaria ela agora?
Com braçadas mais fortes, nadou na direção do outro navio que avistara do convés. Lá estava ele, com suas luzes reconfortantes, aproximando-se a oeste.
Era como se trouxesse esperança de salvamento para todos.
Olhou em volta, à procura de algo para se apoiar. Embora nadasse muito bem, temia que o movimento constante do navio naufragado o arrastasse para o fundo.
Avistou, a poucos metros de distância, um grande baú de viagem, aberto, flutuando sobre as águas revoltas.
Nadou até ele e notou que o baú parecia cheio de roupas. Estendeu o braço para agarrar-se a ele, disposto a sacrificar o conteúdo, a fim de garantir sua
segurança.
Teve um choque profundo quando sua mão atingiu o interior do baú. Em vez de roupas, seus dedos tocaram num braço, mais frio que as águas do lago. Com dificuldade,
ergueu o corpo para espiar dentro do recipiente de madeira. Uma mulher inerte encontrava-se encolhida no fundo. E os cabelos prateados, longos, a cobrir-lhe o corpo
até a cintura... Era ela! A aparição mágica que enfeitara suas noites no navio. Josh sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha ao constatar que ela poderia estar
morta.
Seus braços cansados cederam e, mais uma vez, ele mergulhou na água. Ao ouvir um grito atrás de si, virou-se. Um dos salva-vidas aproximava-se. Josh acenou
e, uma vez certo de que o bote vinha em sua direção, reuniu todas as forças e içou o corpo para dentro do baú. Com cuidado, tomou a figura inerte os braços. Ela
estava encharcada e gelada.
Com horror crescente, ele temeu estar segurando um cadáver. Como podia um ser vivo tornar-se tão frio? Encostou o ouvido ao peito dela. Nada.
Sua mente repassou os acontecimentos da última primavera, no acampamento dos lenhadores, quando Lucky Gibson fora retirado do rio Chippewa, depois de uma
busca que lhe parecera interminável. Holstein Ericssen, o capataz, o arrastara para fora da água, deitara-o de costas na margem e, literalmente, soprara ar para
dentro de seus pulmões. Josh e seus homens jamais haviam visto nada parecido.
Deveria tentar o mesmo com a mulher em seus braços? Hesitante, tentou apertar-lhe o peito, mas não obteve qualquer reação. Então, abrindo-lhe a boca com
a mão fria, colou os lábios aos dela e soprou. A princípio, foi um sopro suave. Entretanto, logo passou a fazê-lo com vigor.
Como não houvesse resposta, afastou-se e fitou o rosto pálido. Continuava inerte, embora tão lindo quanto na primeira vez em que a vira, no porto em Montreal.
A visão das feições alegres e risonhas encheu sua mente.
Determinado, Josh pensou que, se funcionara com Lucky Gibson, haveria de funcionar com a linda imigrante. Voltou a baixar a cabeça e colar os lábios aos
dela.
Em seu desespero para salvar a moça, Josh não se dera conta de que o bote havia se aproximado e, agora, encontrava-se bem atrás de si.
- Sr. Lyman? - chamou a voz hesitante da Sra. Hennessey.
Num recanto de sua consciência, Josh reconheceu que o tratamento que dispensava à estranha poderia parecer um tanto peculiar aos olhos dos outros passageiros.
Mas ele não podia parar. Teria sentido um leve movimento da moça em seus braços, ou teria sido apenas produto de sua imaginação?
- Sim, sim, é o Sr. Lyman! - a Sra. Hennessey vibrou. - Quem ele está segurando? Será sua esposa?
De repente, a moça começou a tossir convulsivamente e, após alguns segundos, a água que se alojara em seus pulmões foi expelida. Sentindo o coração disparar,
Josh esforçou-se para erguê-la numa posição ereta.
Os lindos olhos azuis se abriram, vidrados e confusos. Para Josh, foi como se a noite se tornasse mais clara, mais quente.
- Acalme-se - ele sussurrou ao ouvido dela. - Está tudo bem agora. Pode compreender o que digo? Fala inglês?
- Sim - ela murmurou em voz rouca.
Josh foi invadido por uma onda de alívio e gratidão. Ela estava viva!
- Deixe-nos ajudá-lo! - gritaram vozes vindas do bote. Quando Josh voltou a fitar a moça em seus braços, ela voltara a fechar os olhos, embora respirasse
regularmente. Apertando-a contra o peito, virou-se para o bote.
- Há espaço aqui. Será mais seguro. - Várias mãos estenderam-se na sua direção e, ainda inebriado pela vitória contra a morte, Josh permitiu que a tomassem
de seus braços. Em seguida, forçou o próprio corpo a cooperar com aqueles que o puxavam para dentro do bote.
- Ela está ferida - disse alguém.
- Não estava respirando quando a encontrei - Josh explicou ofegante. - Mas acho que ficará bem.
- Sim, está respirando, mas está sangrando. Parece que foi atingida na cabeça.
- Ela falou comigo... - ele balbuciou.
Ela tinha de estar bem.
Um senhor idoso segurava a cabeça da beldade loira entre as duas mãos.
- Há um corte bastante grande aqui. É sua esposa, senhor? Foi então que Josh sentiu as energias se esgotarem. Sacudiu a cabeça desanimado e apoiou-a nos
joelhos.
- Não. Não consegui encontrar Corinne... Perdi minha esposa.








CAPÍTULO II







Horas depois, seco e aquecido em suas novas roupas, Josh ainda não conseguia acreditar no que acontecera. De tantos turistas despreocupados e imigrantes
ansiosos que haviam partilhado a viagem a bordo do Atlantic, apenas um pequeno número de afortunados sobrevivera. Ele havia revistado os abrigos improvisados repetidas
vezes, mas não encontrara Corinne entre os sobreviventes.
Então, dera início à dolorosa busca pelos mortos, também improvisados. O número de corpos resgatados era inacreditavelmente pequeno. O SS Ogdensburg, o
mesmo navio movido a hélice que atingira o Atlantic, transformara-se no navio de salvamento. A tripulação, horrorizada pela tragédia que sua embarcação provocara,
trabalhara sem descanso pelo resto da noite. No entanto, haviam concentrado seus esforços nos sobreviventes, deixando que a maioria dos mortos fosse tragada pelas
vastas profundezas do lago de águas calmas.
Josh esfregou os olhos cansados. Parecia estar vivendo um pesadelo. A sensação doentia que se instalara em seu estômago no momento em que entrara na suíte
vazia, permanecia ali. Ele não comera e não podia se lembrar se havia bebido alguma coisa.
Os moradores de Erie haviam se dedicado a ajudar as vítimas do naufrágio com incrível eficiência. Josh recebera uma muda de roupas secas e limpas, poucos
minutos após sua chegada. E a imigrante que salvara fora imediatamente levada para o hospital, ainda inconsciente. Agora, abalado pela tragédia que se abatera sobre
sua vida, Josh perguntava-se como a moça estaria passando.
Então, pensou na sua família e na de Corinne. Devia telegrafar, informando-os de que estava a salvo. Mas, o que lhes diria sobre Corinne?
Foi a Sra. Hennessey quem o acordou do sono agitado em que mergulhara, em um dos abrigos próximos às docas.
- Pobre Sr. Lyman. Eles arrumaram camas na taverna. Por que não vai até lá e se deita um pouco? Vai ficar dolorido, dormindo nesta cadeira dura.
- Preciso procurar Corinne - ele respondeu com voz engrolada.
- Eu sei meu querido. Mas, no momento, não há nada que se possa fazer. Eles disseram que trarão mais... mais pessoas...
- Estou procurando por ela, não por seu corpo! Ela não estava na suíte. Pode estar em qualquer lugar - ele insistiu com determinação.
A simpática senhora grisalha deu-lhe um tapinha amistoso no ombro.
- Sim, Sr. Lyman, ela pode estar em qualquer lugar. - Depois de sentar-se, a Sra. Hennessey voltou a falar em tom maternal: - Eles dizem que... Bem, ao
que parece, a maioria dos passageiros não conseguiu salvar-se. Fala-se em trezentos mortos.
Ela fez uma pausa para secar uma lágrima que escorria pela face redonda. Josh descobrira, ao longo da viagem, que o coração da Sra. Hennessey era tão grande
quanto ela. Comovido, tomou-lhe as mãos entre as suas.
- Eu tentei - falou com voz entrecortada. - Fiz tudo para encontrá-la. Tentei voltar à cabine... Não consegui.
- Eu sei querido. Não se culpe pelo que aconteceu.
Josh sentiu o coração apertar-se ainda mais.
- Ela não pode estar morta!
A essa altura, as lágrimas rolavam soltas pelo rosto gorducho da Sra. Hennessey.
- Há algo que eu possa fazer Sr. Lyman?
- Nem sei o que eu devo fazer. Acho que devia telegrafar para casa... Devia... Ah, eu não sei!
Como se despertasse da letargia, a Sra. Hennessey empertigou-se na cadeira.
- Como pode uma coisa dessas acontecer? - perguntou indignada. - Como podem dois barcos simplesmente se chocarem no meio daquele lago imenso? É horrível!
Alguém deveria responder por isso!
Josh ergueu a cabeça das mãos, motivado pela demonstração de energia da mulher que tinha o dobro da sua idade.
- Não dá para acreditar. A água estava calma como um espelho.
- Foi culpa daquele capitão Garrity. Deviam enforcá-lo. Ouvi dizer que ele se feriu, enquanto lutava com passageiros, a fim de garantir seu lugar em um
dos primeiros botes salva-vidas. Ele abandonou o navio!
Josh descobriu que não conseguia sentir raiva. Se Corinne estivesse mesmo morta, nem toda a fúria do mundo a traria de volta.
- Por um momento, depois da colisão, pensei que os danos haviam sido leves - falou distraído.
- O Ogdensburg já se afastara mais de três quilômetros, quando a tripulação recebeu a mensagem pelo rádio, informando as proporções do estrago que haviam
provocado. Tivemos sorte por conseguir alcançá-los. Eles poderiam ter ido embora, deixando-nos a todos perdidos na escuridão.
- Quer dizer que alguns de nós tivemos sorte - Josh corrigiu-a desanimado.
- Bem, eu... Não quis dizer... - A Sra. Hennessey estava evidentemente embaraçada pelas palavras impensadas.
- Está tudo bem. Fico contente que a senhora tenha conseguido. Milwaukee jamais seria a mesma sem a sua presença. - Depois de presenteá-la com um sorriso
forçado, ele se levantou: - Vou fazer outra ronda.
A Sra. Hennessey levantou-se também.
- Vou com o senhor. Dois pares de olhos enxergam mais do que um.
- É melhor descansar um pouco, Sra. Hennessey. Foi um dia difícil para todos nós.
Depois de enfrentar uma enxurrada de protestos, Josh conseguiu instalá-la em uma das camas improvisadas na taverna. Então, foi caminhar pela margem, parando
a todo instante para saber notícias sobre mais vítimas do naufrágio - vivas ou mortas.
Como não descobrisse nada de novo, foi para o moderno hospital, instalado num grande edifício de tijolos. Na agitação que se seguira ao desastre, imigrantes
e milionários haviam sido atendidos juntos, sem qualquer distinção de classe. Agora, na terceira visita de Josh desde o amanhecer, as enfermarias encontravam-se
lotadas de imigrantes, enquanto os passageiros da primeira classe haviam sido transferidos para quartos particulares.
Foi na segunda enfermaria que ele avistou a moça cuja vida salvara. Não encontrara dificuldade em reconhecê-la à distância, uma vez que os cabelos longos
e quase prateados eram inconfundíveis.
Devagar, Josh atravessou o corredor formado pela fileira interminável de camas. Quando se aproximava, ela virou a cabeça e seus vividos olhos azuis encontraram
os dele. Já não se mostravam vidrados e confusos, como ele os havia visto no lago.
Josh respirou fundo. Como ela era linda! Embora suas feições, normalmente rosadas, ainda se apresentassem pálidas, os cabelos cobriam-lhe os ombros, parecendo
fios de seda. E desciam em cascata até a altura dos seios perfeitos, cobertos apenas pelo algodão fino da camisola de hospital.
Sem querer, Josh deixou que seus olhos se demorassem na visão tentadora por alguns instantes. Perturbada, a moça apressou-se a puxar o cobertor quando o
viu aproximar-se da cama. Por um instante, os olhos azuis voltaram a demonstrar confusão.
- Não tive a intenção de assustá-la, senhorita - ele falou depressa e sorriu com esforço visível. - Sua aparência é bem melhor do que ontem à noite.
Josh estava perto da cama. Perto o bastante para acariciar as faces suaves. Suas mãos formigaram diante da lembrança de como ela estivera gelada quando
a encontrara no baú flutuante.
- Compreende inglês, não é? - perguntou com delicadeza. Alguns momentos se passaram, antes que ela respondesse com suavidade:
- Sim.
Desta vez, não se tratava de um murmúrio rouco, mas sim da voz melodiosa, cuja cadência denunciava sua condição de estrangeira.
- Veio com os noruegueses? - ele perguntou, mal acreditando que estava mesmo conversando com ela.
- Sim.
Josh deu-se conta de sua postura rígida e tensa. Imaginou que não devia estar causando uma impressão agradável a alguém que passara pelo que ela passara
há tão pouco. Esforçou-se para relaxar o corpo, bem como a voz.
- Queria saber como está passando. Soube que sofreu um grande corte na cabeça. - Se pudesse sentar, ele pensou, seria mais fácil relaxar. Olhou em volta
à procura de uma cadeira.
- Foi você quem me salvou, não?
O inglês dela era perfeito. Havia apenas aquela entonação levemente exótica.
Os olhos dela brilharam de gratidão e admiração. Para sua própria surpresa, Josh corou.
- Muita gente ajudou. Tiraram-nos da água e trouxeram-nos no bote salva-vidas.
- Sim, mas... Você me salvou. Eles me contaram. Disseram que soprou...
Ao mesmo tempo em que tentava levantar-se, ela levou um dedo aos lábios e, então, foi sua vez de ficar vermelha.
Num gesto automático, Josh estendera a mão para ampará-la. Ao segurar-lhe o ombro, seu rosto chegou muito perto do dela. Ambos ficaram imóveis. Ele não
sentira medo das águas do lago Erie, na noite anterior. No entanto, percebeu com um choque, que corria o risco de afogar-se naqueles olhos azuis.
No mesmo instante, endireitou-se e afastou-se.
- Encontrei você dentro de um baú de viagem. Não estava respirando. Uma vez, meu capataz salvou um homem afogado, soprando ar para dentro de seus pulmões.
Decidi tentar com você.
- Não sei como lhe agradecer, senhor.
- Josh - ele falou sem pensar. Afinal, talvez não fosse de bom tom permitir tanta intimidade à desconhecida.
- Sou muito grata, Sr. Josh.
Diante do som musical da voz adorável, Josh deu o primeiro sorriso genuíno daquele dia.
- Apenas Josh. Josh Lyman.
- Ah, desculpe... Não conheço muitos nomes americanos.
- Não se desculpe... Nem agradeça. Fico contente por ter conseguido ajudar. Você estava em péssimas condições. Nunca senti alívio maior do que quando você
cuspiu metade do lago Erie.
- Meu Deus - ela voltou a corar. - Que coisa horrível.
- Não, não foi horrível - ele a corrigiu e pousou a mão de leve sobre a dela. - Foi maravilhoso, um milagre.
Ela sorriu, e foi como se Josh houvesse esperado por aquele sorriso durante toda a sua vida. Uma onda de calor varreu seu corpo e seus sentidos.
- Como se chama? - perguntou abalado.
O sorriso desvaneceu e um brilho úmido apareceu nos cantos dos olhos azuis.
- Não tenho certeza - ela confessou num sussurro.
Estava quase certa de que se chamava Kari, mas sua cabeça latejava cada vez que ela tentava concentrar os pensamentos, encontrar a certeza que lhe faltava.
Seu próprio nome!
- Acho que é Kari - respondeu, observando o sorriso dele desaparecer.
Sentiu-se miserável. Sem o sorriso, ele parecia muito cansado e triste. Ela gostaria de devolver-lhe o sorriso a qualquer preço.
- Bem - ela disse com uma risada forçada -, agora sabe em que condições me encontro. Nem tenho certeza se é este mesmo o meu nome.
- Não se lembra?
Ele era alto, forte e musculoso. Deixaria muitos camaradas de sua terra com vergonha, pensou ela. Sua terra... onde? O nome estava ali, envolto por uma
espécie de nuvem que turvava sua mente. O olhar grave do visitante estava fixo nela, como se ela fosse louca.
- Estou enfrentando algumas dificuldades. Os médicos dizem que, provavelmente, trata-se de uma confusão passageira, provocada pela pancada na cabeça. Devo
melhorar logo.
A expressão de Josh permaneceu tensa. Ele parecia tão cansado, Pensou Kari, o homem que havia lhe devolvido a vida.
- 0 que consegue lembrar? - ele perguntou.
Kari sorriu desta vez, com naturalidade.
- No momento, tudo é muito confuso. Sinto-me como se tivesse tomado muito akevitt. Conhece akevitfl
Josh sacudiu a cabeça, mais uma vez fascinado por aquele sorriso.
- Meu onkel Einar costumava beber muito às vezes, e se punha a falar coisas loucas. É como me sinto agora. - O sorriso diminuiu de intensidade. - Lembro-me
de meu onkel Einar e do akevitt... mas não me lembro de meu próprio nome.
Josh passou a mão sobre o rosto, num gesto cansado. Embora Kari parecesse recuperada do golpe sofrido no lago, era evidente que estava com sérios problemas.
Onde estaria sua família? Certamente, se houvessem sobrevivido ao naufrágio, a teriam encontrado e estariam ali, junto dela, ajudando-a a lembrar-se, a descobrir
quem era.
- Sua família? - ele perguntou.
Ela sacudiu a cabeça devagar.
- Não sei. Você foi a primeira pessoa que reconheci. E, quando o vi, pensei que fizesse parte de um pesadelo.
Josh não reprimiu uma risada.
- Este não foi o maior elogio que já ouvi de uma mulher. Kari estendeu a mão, segurando a lapela da jaqueta que ele vestia.
- Ò, por favor. Não tive a intenção... Só me lembro de ter aberto os olhos e deparado com você olhando para mim. Estava escuro, eu acho. Lembro de ter achado
você alto e... muito bonito.
Josh riu mais uma vez.
- Acho que também nunca ouvi isso de uma mulher.
- Eu não sei... - Os olhos de Kari estavam sérios. - Talvez, tenha sido só um sonho.
- Não foi um sonho - Josh corrigiu-a com seriedade. -. Deve estar se lembrando da noite passada, no convés. Vi você, pouco antes do outro navio atingir
o nosso.
- Não me lembro da colisão. Não me lembro de nada do naufrágio.
- Acho que foi derrubada no momento do choque. Vi você caída no convés. Queria descer para ajudá-la... - então, ele parou. Estivera prestes a socorrer a
imigrante, mas tivera de sair à procura da esposa. E era o que deveria estar fazendo agora.
- E me ajudou - Kari falou com o mais puro dos sorrisos.
- Não pude descer até lá. Só a encontrei mais tarde, na água.
__Gostaria de me lembrar.
__Se os médicos dizem para não se preocupar, é melhor seguir seu conselho. - Josh sorriu distraído. Acabara de lembrar-se de sua obrigação. - Tenho de ir
andando.
Os olhos de Kari turvaram e voltaram a exibir confusão. Josh teve vontade de tomá-la nos braços, como fizera à noite, no lago.
- Sinto muito - falou hesitante. - Eu... preciso cuidar de umas coisas.
Não queria sobrecarregá-la, contando-lhes seus problemas.
- Você vai voltar? - ela perguntou num murmúrio medroso.
- Se você quiser - ele respondeu, após um instante de silêncio.
- Por favor, volte. Não conheço mais ninguém.
Parada no convés do navio, ela parecera forte e resistente. Mas, deitada no leito branco do hospital, sua aparência era de extrema fragilidade.
- Vou voltar - Josh garantiu com convicção.
O sorriso dela permaneceu impresso em sua mente, muito depois dele haver deixado a enfermaria.


Já anoitecera quando Josh voltou. Desta vez, não havia nem sequer um indício de sorriso em seu rosto cansado. Cada hora que se passava, sem que qualquer
notícia chegasse, tornava o veredicto mais inevitável: Corinne estava morta. Seu corpo jazia nas profundezas do lago Erie, juntamente com mais cerca de trezentos
outros corpos, além dos restos do "palácio flutuante", no qual haviam dançado e se divertido.
Josh aguardara até poucos minutos antes do horário de fechamento da agência do correio para enviar um telegrama à mãe e ao irmão, Davey. Embora não sentisse
a menor pressa em mandar as más notícias, sabia que os jornais logo publicariam artigos sobre a tragédia, uma vez que contavam com as facilidades da tecnologia moderna
na transmissão de informações à distância. Pedira a seus familiares que comunicassem os Pennington sobre o ocorrido, pois ele não saberia colocar as palavras no
papel.
Depois de cumprida a terrível missão, planejou dirigir-se a um dos abrigos improvisados, a fim de dormir um pouco. Estava exausto. No entanto, sem se aperceber
do que fazia, encaminhou-se para o hospital. Quando se deu conta do rumo que tomara, encontrava-se na porta da enfermaria.
Bem, a garota norueguesa lhe parecera tão solitária e vulnerável... E, afinal, fora ele quem a trouxera de volta à vida. Por isso, sentia-se responsável
por seu destino. O mínimo que poderia fazer seria cuidar para que ela reencontrasse sua família.
Josh estava certo de que ela não era casada. Todas às vezes em que a vira no navio, ela se encontrava na companhia de um garoto crescido demais para ser
seu filho. Era, provavelmente, um irmão mais novo. Mas, onde estaria o garoto, agora? E os pais? O que seria da pobre moça se eles, também, não houvessem conseguido
salvar-se do naufrágio?
Josh hesitou ao vê-la dormindo placidamente. Quando começava a virar-se para partir, os magníficos olhos azuis se abriram e, mais uma vez, brilharam ao
vê-lo. Ele sentiu o coração mais leve, quase alegre.
- Você voltou - ela falou com voz mais firme do que antes.
- Eu lhe disse que voltaria. Como está se sentindo? Lembrou-se de mais alguma coisa? - ele perguntou, tentando sorrir, mas sem obter o menor sucesso.
- Estou bem, só que minha cabeça parece girar quando tento me movimentar.
- Como quando se bebe akevitfl - Apesar de sentir-se tolo por usar uma palavra que não sabia como pronunciar, Josh foi recompensado pelo sorriso puro que
iluminou as feições delicadas de Kari.
- Ya, como akevitt, como onkel Einar! - ela riu.
Josh sentiu o coração apertar-se. Daria tudo para poder rir com a bela norueguesa diante de si. Gostaria de esquecer a dor horrível que lhe dilacerava o
peito, a infelicidade de Corinne, seu fim trágico...
- Teve notícias sobre sua família? - perguntou.
- Não. Você é a única pessoa que procurou por mim.
Com uma pontada de frustração, Josh chamou o enfermeiro que atendia um paciente do outro lado do corredor.
- Sabe o que está sendo feito para identificar essa paciente? - perguntou ao homem, cujo uniforme manchado e barba por fazer, comprovavam longas horas de
trabalho ininterrupto.
O enfermeiro dirigiu um olhar simpático à moça deitada na cama, antes de responder:
- Mal pudemos cuidar dos ferimentos de todas as vítimas, senhor. Mas alguns funcionários da companhia de navegação estiveram aqui, há algum tempo, à procura
de nomes. Disseram que o comissário perdeu a lista de passageiros no naufrágio.
- Não há outros pacientes noruegueses que poderiam identificá-la?
- Para mim, são todos corpos necessitados de cuidados, senhor. Acho que não sou capaz de distinguir um norueguês de um chinês.
- Não ouvi ninguém falando minha língua por aqui - a voz melodiosa interrompeu-os.
- Onde posso encontrar os funcionários da companhia de navegação? - Josh insistiu com o enfermeiro, que começava a ficar impaciente para continuar seu trabalho.
- Parece que estabeleceram um escritório de emergência, próximo às docas.
- Consegue lembrar-se de sua língua? - Josh virou-se para Kari.
- Claro! Posso falar norueguês tanto quanto engelsk... inglês. Estranho, não é? - Mais uma vez, os olhos azuis embaçaram-se pela sombra de confusão e dor.
- Não se preocupe. Vou até as docas. Talvez descubra alguma coisa. Tente descansar. Voltarei assim que tiver novidades.
Ela sorriu hesitante.
- Mais uma vez, muito obrigada, Josh Lyman.
Sentindo o peito prestes a explodir, e sem saber bem o porquê, Josh virou-se e saiu.
Até sua noite de núpcias, a palavra "fracasso" nem sequer fazia parte do vocabulário de Josh. Em Milwaukee, dizia-se que, uma vez decido a fazer fosse o
que fosse Josh Lyman atingia seus objetivos - depressa e com sucesso total. Agora, ao sair do escritório da companhia de navegação, ele começava a acreditar que
nada mais em sua vida voltaria a dar certo.
Primeiro, enfrentara o choque de encontrar o nome de Corinne na lista intitulada "CORPOS NÃO RECUPERADOS". Apesar da perda das listas de passageiros, a
companhia possuía os nomes dos ocupantes das suítes da primeira classe. E, informara o funcionário, não havia a menor esperança de encontrarem mais sobreviventes.
Toda a área fora cuidadosamente inspecionada por equipes de resgate. Não havia mais ninguém no lago... ninguém com vida.
Então, tivera de suportar a indiferença com que a companhia encarava a situação da jovem internada no hospital. Os sobreviventes noruegueses haviam sido
transportados de trem para Chicago. Dali tomariam outro vapor para Milwaukee, uma vez que a maioria se dirigia para o Estado de Wisconsin, ou para os novos acampamentos
em Minnesota.
- Se a garota tivesse familiares, certamente eles teriam perguntado por ela - o funcionário concluíra com impaciência.
- Acredita que uma jovem daquela idade viria sozinha para os Estados Unidos? - Josh questionara furioso.
O funcionário limitara-se a dar de ombros, ocupando-se de suas listas horríveis. De repente, Josh teve a impressão que o destino da humanidade era decidido
pela caneta do sujeito parado à sua frente. Vidas humanas haviam se transformado em sinais escritos numa folha de papel: a lista de sobreviventes determinava quem
poderia levar sua vida adiante e trabalhar, rir e amar. Ao mesmo tempo, a lista de mortos, onde se encontrava o nome de Corinne, determinava o fim dos sonhos e esperanças
de três centenas de pessoas.
Com grande esforço, Josh conteve o ímpeto de agredir o funcionário da companhia de navegação e deixou o escritório de cabeça baixa e ombros vergados.


Kari Aslaksdatter. Ao menos o nome estava claro. Ela havia despertado com uma certeza inquestionável. O sol entrava pelas janelas altas da enfermaria e,
por um momento, os acontecimentos terríveis de dois dias atrás pareceram parte de um pesadelo terminado.
Mas, ao sentar-se, a tontura voltou acompanhada pela sensação de confusão. Um medo indefinido apoderou-se do seu ser. Devagar, ela se deitou e forçou-se
a respirar fundo.
Estava a salvo, repetiu para si mesma. Encontrava-se no hospital, na América. Levara uma pancada na cabeça e logo começaria a lembrar das coisas.
Não demorou a acalmar-se. Em poucos minutos as feições naturalmente serenas haviam tomado lugar do ar confuso e, quando o médico se aproximou para examiná-la,
ela sorriu com facilidade.
- Como vai a sua cabeça, senhorita? - ele perguntou.
- Melhor, eu acho doutor. E consegui lembrar meu sobrenome. É Aslaksdatter. Isto quer dizer que o nome de meu pai é... ou era Aslak. Acha que, agora, poderei
encontrar minha família?
O médico inclinou-se sobre ela a fim de examinar o corte em sua nuca.
- Creio que sim, Srta. Kari. - Então, endireitou-se e sorriu. - O ferimento está cicatrizando sem maiores problemas. Se conseguisse lembrar-se de algo mais,
talvez pudéssemos dar-lhe alta.
Kari baixou os olhos.
- Eu gostaria de sair daqui, doutor, mas não tenho para onde ir.
- Quem sabe consiga ajuda da companhia de navegação. Mandaram avisar que arcarão com as despesas do hospital.
Os olhos de Kari encheram-se de lágrimas. Estivera tão ocupada em lembrar-se do próprio nome, que não pensara no que o futuro lhe reservava. Agora, lá estava
o médico, dizendo-lhe que estava livre para partir, para voltar à vida da qual não se lembrava, num país que não conhecia.
Por cima do ombro do médico, ela avistou a figura alta e familiar. Fechou os olhos, suspirando de alívio. Era Josh. Embora só o houvesse conhecido na véspera,
tinha certeza de que ele a ajudaria. Ele saberia o melhor caminho a seguir. Talvez, até houvesse conseguido notícias sobre sua família. Kari sentou-se com esforço.
Pela expressão cuidadosamente neutra dos olhos castanho-escuros, Josh não trazia boas notícias.
- Conhece esta senhorita? - o médico perguntou-lhe.
Josh fitou os olhos azuis, cheios de esperança e sorriu.
-Nos conhecemos há pouco tempo, mas em circunstâncias um tanto íntimas.
- O Sr. Lyman salvou minha vida.
Como sempre, era maravilhoso ouvir a voz musical de Kari.
Num impulso, Josh estendeu a mão e segurou a dela. Com um sorriso benevolente, o médico declarou:
- Bem, fico contente em saber que uma moça tão simpática tem alguém que cuide dela.
Josh largou a mão de Kari e afastou-se da cama. Parecia estar agindo sem pensar. Estava dando ao médico e, talvez, à garota também, a impressão errada.
- Tentei conseguir informações a respeito dela. Infelizmente, todos os registros do Atlantic se perderam no naufrágio. Ninguém parece saber qualquer coisa
sobre uma norueguesa jovem e sozinha. Os outros noruegueses que sobreviveram já deixaram a cidade.
Kari empertigou-se na cama e bateu o punho cerrado contra o colchão duro.
- Por que não me lembro de nada?
Josh voltou a fitar o médico.
- Pode responder essa pergunta, doutor?
- Há poucas coisas que a ciência desconhece, atualmente. Receio que a memória seja uma delas. Por que nos lembramos de determinadas coisas? Por que nos
esquecemos de outras? Simplesmente não sabemos. Tudo o que posso dizer é que a Srta. Kari não parece ter sofrido um trauma mais profundo e suas habilidades mentais
não foram afetadas. Ela fala inglês com perfeição.
- Talvez aí esteja uma pista - Josh considerou animado. - Sabe dizer por que fala inglês tão bem, Kari?
Ela fechou os olhos, como se tentasse sugar as lembranças apagadas da memória. Finalmente, sacudiu a cabeça.
- Parece uma coisa natural para mim.
- Na maioria dos casos de pancadas na cabeça, a perda de memória não dura muito tempo - o médico tentou reconfortá-la.
- Quanto tempo? - ela inquiriu aflita.
- Alguns dias, ou semanas. É difícil dizer.
- E o que devo fazer enquanto espero? Não tenho para onde ir. Não tenho dinheiro. Acho que nem tenho roupas, para vestir!
O médico mostrou-se embaraçado.
- Vou conversar com a diretoria do hospital. Talvez possa ficar aqui por mais algum tempo.
- Oh, por favor, desculpem-me. Vocês dois já fizeram muito para me ajudar. Acho que o problema é só meu e tenho de resolvê-lo sozinha.
Josh havia se surpreendido diante da curta explosão de Kari. Era como se o seu anjo houvesse se tornado de carne e osso. A cor retornara às faces pálidas,
provocando nele uma sensação desconhecida e perturbadora. A mesma que o invadira quando a vira pela primeira vez, no porto em Montreal.
- Talvez... - ele começou a falar. Estava prestes a fazer uma loucura. Já tinha problemas demais para enfrentar: a morte de Corinne, o casamento infeliz...
- Talvez você possa viajar comigo até Milwaukee. Os outros imigrantes foram para lá. Quem sabe encontre alguém que a reconheça.
Kari demonstrou esperança contida.
- Tenho certeza de que se conseguir encontrar gente da minha terra... Mas não posso pedir-lhe que...
- Eu moro em Milwaukee - Josh explicou. - Vou para lá de qualquer maneira.
- Mas nem tenho dinheiro para a passagem... - Virando-se para o médico, ela perguntou a queima-roupa: - A companhia de navegação pagaria a minha viagem?
- Não se preocupe com isso - Josh tranqüilizou-a. - Tenho dinheiro bastante para as duas passagens.
Kari apertou os lábios, mas, em vez deles adquirirem um aspecto rígido, pareceram tornar-se ainda mais cheios e sensuais. Josh sentiu uma onda de calor
revirar-lhe as entranhas.
- Não posso aceitar que pague minha passagem - ela afirmou com convicção.
- Quando encontrarmos sua família aceitarei meu dinheiro de volta.
O médico abriu um sorriso largo para o belo casal à sua frente. A solução encontrada soava perfeita a seus ouvidos.
- Bem, creio que está tudo ajeitado - comentou com alegria.
Josh ergueu as sobrancelhas para Kari, numa interrogativa muda. Ela recostou-se nos travesseiros e suspirou satisfeita.
-Sr. Lyman, como dizem os americanos, acabamos de fazer um trato.





CAPÍTULO III



Era loucura, Kari pensou, mas sentia-se verdadeiramente feliz. Encontrava-se em um país estranho, sem dinheiro e sem memória. Não fazia idéia do que havia
acontecido à sua família. Aliás, nem sequer sabia se tinha uma família. Ainda assim, sentia uma irresistível vontade de cantar.
Olhou em volta, para a enfermaria quase vazia, com uma pontada de dúvida. Josh viria buscá-la a qualquer momento. Seria a primeira vez em que a veria usando
um vestido, os cabelos penteados e o rosto lavado. De repente, ela desejou ter um espelho e, ao mesmo tempo, deu-se conta de que suas reações não eram as usuais.
Em Stavanger, ela nunca fora o tipo de mulher que se preocupa com a aparência.
Kari arregalou os olhos. Stavanger Lembrara-se do nome e... Uma torrente de imagens atravessou-lhe a mente: a casa de pedras cinzentas e telhado vermelho,
as galinhas ciscando entre as flores do jardim, um garoto chamando-a pelo nome... e a escuridão das águas...
A vertigem obrigou-a a sentar-se na beirada da cama. A água escura a engolia, impedindo-a de respirar.
- Kari! - A voz de Josh soou distante, ao mesmo tempo em que suas mãos fortes a sacudiam pelos ombros. - Você está bem?
A água desapareceu e ela deparou com as belas feições do rosto preocupado diante do seu. Respirou fundo.
- Eu... Estou bem - murmurou, deixando-se apoiarmos músculos fortes e reconfortantes que ele lhe oferecia.
- Você estava tão pálida. Pensei que fosse desmaiar.
Josh abraçou-a com força. Levara um susto e tanto ao entrar e vê-la naquele estado. Embora houvesse jurado manter distância da bela jovem que lhe despertava
emoções até então desconhecidas, a necessidade de protegê-la mostrara-se totalmente incontrolável.
- Estou bem, de verdade. Acabo de lembrar o nome da minha cidade, na Noruega. Não é bom?
Josh baixou os olhos para fitá-la. Sem se afastar do abraço, Kari havia se virado para ele, comprimindo os seios firmes e rijos contra seu peito. Sem querer,
Josh comparou-os aos de Corinne, que eram cheios e ligeiramente flácidos. No momento em que se deu conta do rumo dos próprios pensamentos, afastou-se de súbito.
Tentou concentrar a atenção no que Kari acabara de lhe dizer.
- Sua cidade? Ah, isso é ótimo. Parece que o médico tinha razão: logo vai se lembrar de tudo.
Só então, reparou que ela usava um vestido novo, cuja saia em forma de sino acentuava a cintura delgada. Os cabelos encontravam-se presos numa trança elaborada,
como ele jamais havia visto antes, emoldurando o rosto delicado como uma grinalda dourada.
A facilidade com que ele a comparara a Corinne abalara sua consciência. Por isso, quando falou, sua voz soou mais rude do que pretendia:
- Está pronta? Podemos partir?
Kari levantou-se. Fora tão bom passar alguns segundos nos braços dele. Mas Josh tornara-se frio de repente. Lembrando-se do modo como ele retirara a mão
da sua, na véspera, ela calculou que talvez os americanos não gostassem de chegar perto das pessoas. Trataria de ter mais cuidado para que ele não se zangasse.
- Estou pronta - murmurou em voz baixa.
Nenhum dos dois falou até chegarem à carruagem alugada por Josh para levá-los à estação de trem. Kari ficou surpresa ao deparar com uma senhora mais velha
sentada no banco traseiro.
- Esta é Kari Aslaksdatter - Josh falou à mulher, pronunciando o sobrenome complicado com muito cuidado. - Kari, esta é a Sra. Hennessey, outra sobrevivente
do naufrágio. Viajará conosco para Milwaukee.
Embora presenteasse a gorducha senhora com um de seus sorrisos resplandecentes, Kari foi recebida com um olhar de surpresa e desconfiança.
- Esta é a imigrante que o senhor está ajudando, Sr. Lyman? - a Sra. Hennessey finalmente perguntou, depois de observar Kari por alguns momentos.
- Exatamente - ele respondeu em tom de leve desafio.
A Sra. Hennessey estendeu a mão a Kari, a fim de ajudá-la a subir na carruagem. Então, devolveu-lhe o sorriso.
- Desculpe querida. Eu não esperava que fosse tão jovem. - Com outro olhar para Josh, acrescentou: - Nem tão bonita.
Kari aceitou a ajuda da mais velha e riu, produzindo um som musical.
- É um prazer conhecê-la, Sra. Hennessey. Mas não acho que mereça seus elogios, depois dos últimos dois dias. Sinto-me como se houvesse envelhecido muitos
anos em poucas horas.
- Pois pode acreditar que é a coisinha mais linda que vi nos últimos tempos. E sua voz é maravilhosa. Agora, quero que me conte exatamente o que os médicos
disseram sobre suas condições.
Josh subiu na carruagem e fez um sinal para o cocheiro dar início à viagem. Conteve um gemido ao lembrar-se do quanto a Sra. Hennessey podia ser solícita
e... falante! Só agora lhe ocorria que deveria haver discutido algumas questões com Kari, antes da viagem.
-... e vamos tomar conta de você direitinho, não vamos Sr. Lyman? - dizia a Sra. Hennessey, já assumindo o ar maternal que se tornara familiar a Josh.
Ele não se deu ao trabalho de responder, sabendo que não seria necessário. Sentia-se terrivelmente cansado, como se não dormisse há semanas.
Kari também se sentia cansada. Gostaria de poder sentar-se perto de Josh. Ele não parecia bem. Queria poder cantar para ele. Seu pai sempre gostara de ouvi-la
cantar. Ou teria sido seu avô? As lembranças ainda se apresentavam como fragmentos espalhados de um imenso quebra-cabeça.
Embora houvesse simpatizado com a senhora a seu lado, não se sentia disposta a continuar conversando. O esforço de concentrar-se nas palavras pronunciadas
em inglês começava a tornar-se excessivo.
-... e foi por isso que fiquei surpresa ao vê-la, querida... depois do que aconteceu com a esposa do Sr. Lyman...
Kari sobressaltou-se ao ouvir a palavra "esposa". A Sra. Hennessey interrompeu a frase, notando o olhar de espanto da outra. Josh virou-se para ambas com
expressão perturbada. E o alegre mundo novo que se apresentava diante de Kari começou a desvanecer.
Chicago. O nome parecia provocar um eco por trás da cortina densa que ainda lhe toldava a memória. Kari pressionou os dedos contra as têmporas, tentando
lembrar-se o que sabia de Chicago.
Dirigiu um olhar ansioso para fora da janela da carruagem, como se esperasse que o movimento das ruas lhe dissesse alguma coisa. Tratava-se de um lugar
fervilhante de vida. Todos pareciam apressados para chegar a algum lugar.
O Livro da América! Fora como soubera de Chicago. Em Stavanger... O Livro da América, de Ole Rynnig. Todos haviam lido o livro e sonhado com a nova terra
ali descrita.
Agora se lembrava de haver lido tal livro, sentada no banco de pedra próximo à lareira. Haviam sido muitas horas de leitura. Teria lido sozinha?
Ao perceber o sentimento de frustração que se aproximava, desistiu de tentar lembrar-se de mais coisas. Seria melhor concentrar-se no que viria pela frente,
pensou. Estavam chegando ao porto. Kari pôde sentir no ar o cheiro característico da água. No mesmo instante, seu estômago contorceu-se, e ela soube que a sensação
fora provocada pela idéia de aproximar-se da água e subir a bordo de um navio.
Respirou fundo, tentando a todo custo dominar o pânico. Pare com isso, disse a si mesma. Afinal, não se lembrava de jamais haver sentido tanto medo em sua
vida. O pensamento trouxe-lhe um sorriso aos lábios. Como podia saber se sentira medo ou não, quando mal se lembrava do próprio nome?
Josh foi invadido por imenso alívio ao notar o sorriso nos lábios de Kari. Ela estivera tão quieta durante a viagem de trem até Chicago. Bem era verdade
que, uma vez em companhia da Sra. Hennessey, ninguém conseguia falar muito. Embora Josh houvesse adorado a companhia da mulher eloqüente durante seus jantares com
Corinne, a bordo do navio, agora se ressentia pelo fato dela dominar a conversa o tempo todo. Gostaria de ter mais tempo para conversar com Kari. Quem sabe, pudesse
até ajudá-la a lembrar-se de algo importante.
No entanto, agora que se via sozinho com ela, pois a Sra. Hennessey fora visitar alguns amigos residentes em Chicago, não sabia o que dizer.
- Por que sorriu? - perguntou.
- Estava pensando que não me sinto ansiosa para subir a bordo daquele vapor e, então, imaginei se sempre fui... Em norueguês, diz-se en reddhare. Acho que
vocês dizem "covarde"!
Josh riu. O simples fato de vê-la sorrir novamente renovava-lhe as energias. Ainda não recuperara o sono perdido. Não haviam conseguido leitos no trem e,
o pouco que conseguira dormir, fora um sono agitado, repleto de sonhos perturbadores. Ora Corinne o fitava com lágrimas nos olhos, ora gritava seu nome, pedindo
por socorro. E ele não conseguia alcançá-la, pois a água os afastava mais e mais.
Mas a risada de Kari possuía um efeito mágico.
- Não consigo imaginá-la como sendo covarde.
- Eu não sei... - ela murmurou com voz trêmula. Decididamente, havia algo errado, Josh pensou. O silêncio de Kari não se devera apenas à descoberta de que
ele acabara de perder a esposa.
- Está se sentindo bem? - perguntou alarmado.
Jamais em sua vida sentira tamanha necessidade de proteger alguém. Por outro lado, jamais salvara uma vida antes.
- Não sei se serei capaz de embarcar no navio. Sinto-me estranha só de pensar em chegar perto da água de novo.
Sem pensar no que fazia, ele passou um braço em torno de seus ombros.
- A viagem será curta. Chegaremos a Milwaukee em seis horas. - Abraçou-a com mais força, antes de continuar: - Ora, viajou tanto para chegar a este país
e, agora que pode estar a poucas horas de encontrar sua família, não pode desistir.
Ela se endireitou, tomando o cuidado de não se afastar.
- Tem razão. Talvez eu seja mesmo um pouco covarde.
- Não diga bobagens. Eu costumava observá-la no convés, durante ventanias e tempestades. Parecia um de seus antepassados vikings, pronta a conquistar a
nova terra. Você não tinha medo de nada.
- Costumava me observar? - ela inquiriu surpresa.
A pergunta não formulada pairava entre os dois: "Onde estava sua esposa, enquanto me observava?"
Kari forçou-se a abandonar o conforto do braço forte e escorregar para o outro lado do banco de couro frio da carruagem. A confissão inesperada de Josh
havia, ao menos, distraído seus pensamentos da viagem iminente.
- Costumava me observar... antes daquela noite? - insistiu.
- Gosto muito de ficar ao ar livre e não pude deixar de notá-la. Era a passageira mais bonita - Josh falou com deliberação.
Não tinha importância se ela ficaria embaraçada, pois o medo que havia turvado as feições delicadas desaparecera no momento em que ele admitira que a notara
antes. Ao mesmo tempo, a conversa trouxera à tona seu próprio sentimento de culpa e, ao perceber que a carruagem se aproximava da entrada do porto, ele se sentiu
aliviado.
Como não tivessem qualquer bagagem para carregar, decidiram caminhar até o navio.
- Está se sentindo melhor? - Josh perguntou.
- Acho que sim.
E era verdade. A proximidade de Josh, seu braço quente e forte, a suavidade de sua voz ao provocá-la, chamando-a de viking, haviam eliminado toda a tensão
que ela sentira. Agora, Kari sentia-se relaxada, alegre... completa. Pela primeira vez, desde que deixara Stavanger, tinha a sensação de estar em casa.



Vernon e Myra Pennington eram respeitados em Milwaukee. A fortuna dos Pennington tinha suas raízes no leste e já era história. Vernon soubera como multiplicá-la,
sem perder uma oportunidade sequer, tirando o máximo proveito do franco desenvolvimento da cidade portuária que não parava de crescer.
Além de possuir grande parte do comércio de Milwaukee, também era dono de inúmeros terrenos nos arredores da cidade. Com a necessidade de novas casas para
a população sempre crescente, suas terras eram vendidas a preços excelentes, cada vez mais altos. Contava também com ações de companhias de navegação e investira
pesado na mineração de chumbo no Wisconsin. Havia tempos que Josh tentava convencê-lo a entrar para o negócio de madeira, mas, até então, Vernon ainda não se mostrara
disposto a assumir o risco para aumentar seus lucros.
Três dos quatro filhos dos Pennington trabalhavam com o pai. A única exceção era Phineas que, aos quinze anos, ainda estudava. E Myra quisera mandá-lo de
volta para o leste, uma vez que o sistema de ensino em Milwaukee ainda tinha muito que melhorar. Mas, num raro momento de oposição, a ala masculina da família havia
se rebelado e, como conseqüência, o garoto fora, autorizado a continuar na escola pública, onde Davey, irmão de Josh, também estudava.
Os dois meninos não viam a hora de se verem livres da escola. Phineas implorava ao pai que o deixasse trabalhar em suas lojas, como os irmãos, Emmett e
Chester. Vivia dizendo a Davey que; preferia se matar de trabalhar a continuar estudando. Davey, no entanto, sabia que o amigo não conseguiria ficar muito tempo
trancado nos escritórios Pennington, fazendo contas, como seu irmão Thaddeus. Afinal, concordavam que haviam feito contas demais nas aulas da Srta. Throckton.
A profissão com que ambos sonhavam era a de capitão de navio. Phineas fizera algumas tentativas para que o pai lhe arranjasse um emprego na companhia de
navegação. Davey infernizara Josh para que conversasse com os capitães que conhecia. Os dois meninos passavam horas admirando a extensão do lago Michigan, imaginando
o que fariam quando seus horizontes deixassem de se limitar a Milwaukee.
Agora, seus planos teriam de ser adiados por causa do que acontecera a Corinne. Eram estes os pensamentos de Davey, enquanto esperava por Josh no porto.
Phineas lhe contara que a mãe não parara de chorar um instante, desde que recebera a notícia. Davey e a mãe haviam ido à casa dos Pennington, assim que receberam
o telegrama de Josh. Sua mãe descera da carruagem; e permanecera parada diante da família da nora, oscilando em sua fraqueza constante. Então, as duas mulheres haviam
se abraçado e chorado sem parar. Fora horrível.
Davey e Phineas haviam conseguido escapar, afinal, e se dirigido automaticamente ao porto. Nenhum dos dois mencionou que o fato de Josh haver saído ileso
do naufrágio era muito estranho. Não deveriam salvar as mulheres e crianças primeiro? E o capitão deveria ser o último a deixar o navio. Davey esperou que Phineas
comentasse sobre a regra que envolvia mulheres e crianças. O amigo, porém, só falara na atitude do capitão. Ambos haviam jurado solenemente que, se viessem a se
tornar capitães, seriam os últimos a abandonar a embarcação em caso de naufrágio.
Os Pennington haviam levado Davey consigo ao porto, uma vez que sua mãe encontrava-se doente demais para sair de casa. Aliás, pensou Davey sombrio, ela
estava sempre doente demais para qualquer coisa. Sabia que o amigo Phineas sentia pena dele por isso. Sua mãe era muito diferente da Sra. Pennington. Enquanto o
Sr. Pennington cuidava dos negócios, trabalhando até tarde da noite muitas vezes, ela cuidava da casa e dos quatro filhos. Jamais ficara doente.
A maioria dos garotos da escola tinha medo da professora, exceto Phineas. Ele havia confessado ao amigo que a Srta. Throckton era "bolinho" se comparada
à sua mãe. A Sra. Pennington era rígida e exigente com os filhos. Só agia de modo diferente com relação a Corinne, porque esta era mulher.
Como sempre, Phineas foi o primeiro a avistar o navio. Davey sempre brincava, dizendo que, se não conseguissem navios para os dois, ele designaria o amigo
para ser vigia de gávea. Phineas era capaz de localizar um trevo de quatro folhas em meio a milhares de outros, de três folhas, sem grandes esforços.
- Lá está ele- Phineas falou em voz baixa.
Em condições normais, os dois amigos teriam pulado e gritado Para saudar o navio que chegava. Naquela tarde, porém, nenhum dos dois se sentia disposto a
qualquer tipo de manifestação. O ar parecia pesado em torno do pequeno grupo reunido no porto. Os Pennington do sexo masculino usavam ternos marrom-escuros, com
uma tarja negra na manga direita. A Sra. Pennington tinha o rosto inchado e, a intervalos regulares, secava as lágrimas com um lencinho já encharcado.
Davey tentou colocar-se no lugar dos Pennington. Como seria se estivessem ali à espera de Corinne, sabendo que Josh jamais voltaria? Depois de conter as
lágrimas com grande esforço, passou um braço em torno dos ombros estreitos de Phineas.


Josh estava nervoso. Nos campos onde se encontravam as serrarias, ele enfrentava problemas e crises, resolvendo-os todos num piscar de olhos. Agora, no
entanto, não sabia o que dizer quando se visse frente a frente com os Pennington.
Kari enfrentara a viagem com bravura. Embora evitasse baixar os olhos para a água, manteve-se firme no convés, deixando que o vento lhe despenteasse os
cabelos.
- Muito bem, viking, você conseguiu. Já estamos chegando - Josh falou com um sorriso.
Kari virou-se para fitá-lo. Estivera devaneando, ou se lembrando, talvez, de montanhas verdejantes, pontilhadas de pinheiros. À medida que deixava a mente
vagar, esquecia-se da tortura de se ver em meio a tanta água. Embora não pudesse lembrar-se do passado, tinha certeza de que não fora medrosa antes.
Tentou retribuir o sorriso de Josh:
- Já viu algum viking com medo de água?
Josh soltou uma gargalhada.
- Acho que não.
- Então, devo ser a primeira.
Josh estava prestes a fazer outra brincadeira, quando o sorriso congelou em seus lábios. Avistara os Pennington e Davey. E, pior, eles o haviam visto, também.


- Com quem ele está conversando? - Josh pressentiu a pergunta de Phineas a Davey.
Todos deviam estar repetindo a mesma pergunta, ele pensou, sentindo-se culpado. Devia ter pensado nisso antes e pedido a Kari que esperasse na cabine, até
que ele houvesse explicado a situação aos Pennington. Agora, era tarde. Eles o haviam visto com ela, rindo com ela!
As manobras do navio para atracar pareceram intermináveis, embora menos de meia hora depois os passageiros fossem autorizados a desembarcar. Kari hesitou
ao ver Josh subir o degrau alto para a prancha de desembarque. Ela percebera a mudança em sua expressão no momento em que avistara os parentes da esposa. Ele lhe
explicara quem era cada um deles. Os Pennington: uma família de luto por seu membro mais querido.
Observou-o atravessar a prancha, os ombros erguidos, em direção ao grupo que o esperava.
Ela não pertencia àquele lugar, Kari pensou com tristeza. Talvez devesse se misturar à multidão e seguir seu caminho sozinha a partir de então. Agora, que
se encontrava em Milwaukee, certamente descobriria o paradeiro de algum conterrâneo capaz de ajudá-la. Os demais passageiros passavam apressados, enquanto ela se
agarrava à amurada, indecisa.
Assim que desceu da prancha, Josh ignorou a frieza nos olhos da sogra, bem como a marca das lágrimas em suas faces, e dirigiu-se diretamente para ela.
- Myra, eu sinto muito - murmurou.
Até mesmo para seus próprios ouvidos, as palavras soaram vazias. Depois de beijá-la na face, virou-se para Vernon, que lhe apertou a mão sem reservas. Então,
um a um, os cunhados o cumprimentaram. Foi só então que Josh notou as tarjas negras nas mangas de seus paletós. Como pudera simplesmente ignorar a necessidade de
usar o símbolo de luto?
Os cumprimentos formais e desagradáveis terminaram quando Josh chegou ao final da fila, onde Davey o esperava, parecendo jovem e vulnerável demais. Os dois
irmãos abraçaram-se com força, escondendo as lágrimas no ombro um do outro.
Foi Phineas quem interrompeu a manifestação emocionada:
- Quem era a moça que estava com você no convés, Josh? Josh afastou-se de Davey e voltou a encarar os Pennington.
Respirou fundo. Teria de explicar-lhes a presença de Kari. Então, olhou em volta em súbita confusão. Onde estava Kari? Após um instante de pânico, avistou-a
agarrada à amurada do navio. Ergueu uma das mãos e fez um sinal para que ela viesse juntar-se a ele.
- É uma imigrante norueguesa, uma das sobreviventes do naufrágio.
Myra empertigou-se, indignada. Seus olhos tornaram-se frios e cruéis. Enquanto falava, Josh dirigia-se a ela, tentando despertar-lhe alguma simpatia maternal
pelo destino da pobre garota.
- Ela perdeu a memória e, ao que parece, a família também. Ninguém procurou por ela no hospital e ninguém sabe quem ela é.
- Lamentável - Vernon comentou, parecendo comovido.
- Perdeu a memória de verdade, como nos romances? - Phineas perguntou as feições iluminadas pela curiosidade.
Ele e Davey observavam fascinados o anjo de cabelos prateados junto à amurada.
- O que ela está fazendo aqui, Josh? - Myra inquiriu a voz um tom mais estridente que o normal.
- Eu... Ela espera encontrar alguém da família ou, ao menos, alguém conhecido. Todos os imigrantes noruegueses foram mandados para cá, logo após o naufrágio.
- Então, é melhor levá-la para a Casa Henrik. A maioria dos imigrantes encontra-se lá - disse Vernon, com seu senso prático de sempre.
- Ela devia voltar para onde é o seu lugar. Já vieram estrangeiros demais e essa gente nem sequer sabe falar inglês - Myra opinou em tom maldoso.
Josh fitou-a com olhar surpreso. Sempre soubera que a sogra possuía uma língua ferina, mas a falta de caridade que acabara de demonstrar não era comum.
Pensou, então, que ela devia esta se sentindo arrasada pela perda de Corinne. Talvez jamais se recuperasse daquele golpe.
- Kari fala inglês muito bem - ele a corrigiu com delicadeza.
- Kari?
- A garota... seu nome é Kari Aslaksdatter.
- Não dá nem para pronunciar - Myra comentou com desprezo.
Josh sacudiu a cabeça de leve. Pobre Myra. Com um suspiro, virou-se para o navio. Kari não se afastara da amurada. Depois de pedir licença, dirigiu-se para
a prancha com passadas largas.
Percebeu de pronto que ela atravessava mais uma daquela estranhas crises. Seus olhos encontravam-se fixos na água, seu rosto estava pálido e seu peito arfava
em movimentos rápidos, como se ela não conseguisse respirar.
Por um momento, Josh esqueceu-se dos Pennington e de tudo mais a seu redor.
- Kari! Está tudo bem. Estou aqui.
Com esforço, conseguiu soltar os dedos que a prendiam à amurada e puxou-a para a prancha. Os olhos dela arregalaram de terror quando ela se viu rodeada
de água por todos os lados.
Josh puxou-a com firmeza, apressado em levá-la para a terra firme. Ao sentir a mão dela ficar frouxa na sua, deu-se conta de que ela perdera os sentidos,
e começava a desabar sobre a prancha estreita.
Juntando toda força e agilidade de que dispunha, Josh tomou-a nos braços e encaminhou-se para a terra.
Um instante depois, ela abriu os olhos e perguntou num sussurro:
- O que aconteceu?
- Você desmaiou viking.
- Eu nunca desmaio.
Josh não discutiu. Estava consciente de que a cena na prancha os transformara no centro das atenções de todos no porto. Queria afastá-la do navio e da água,
que a deixavam tão nervosa. Queria levá-la para casa.
- O que está fazendo com ela, Josh? - Myra havia se plantado na extremidade da prancha.
- Ela desmaiou. Ainda não está totalmente recuperada de uma pancada que levou na cabeça, durante o naufrágio.
- Vai levá-la para a Casa Henrik?
- Talvez... mais tarde. Agora, ela precisa descansar. Vou levá-la para minha casa.
- Para a sua casa? Ora, eu nunca imaginei...
Josh passou pela sogra e gritou para Davey:
- Vamos embora, Davey. Alugaremos uma carruagem.
Kari começava a recobrar os sentidos e murmurou um protesto.
Josh deu-lhe uma leve sacudidela, como faria a uma criança, obrigando-a a calar-se.
Quando Davey se afastou de Phineas, este lhe sussurrou ao ouvido:
- Apareça quando puder.
- Obrigado por virem me esperar - Josh dirigiu-se ao grupo em voz alta. - Voltaremos a conversar depois que estivermos, todos, nos sentindo um pouco melhor.
Antes de encaminhar-se para a fila de carruagens de aluguel, virou-se mais uma vez para Myra Pennington. Os olhos castanhos escuros da sogra mostravam tristeza
e recriminação. Eram os mesmos olhos de Corinne.







CAPÍTULO IV






-Ah, Sr. Lyman, é tão bom tê-lo de volta!
Daisy, a empregada, abrira a grande porta que o pai de Josh mandara entalhar em pinho do Wisconsin. 0 rosto alegre e jovial, emoldurado pelos cachos castanhos
rebeldes trouxe um sorriso aos lábios de Josh, embora ele não sentisse a menor vontade de sorrir.
O encontro no porto fora mais desastroso do que ele havia calculado. Por que não pensara num meio de tornar a chegada de Kari menos traumática para todos?
Por que não se lembrara de conseguir uma tarja de luto para pregar à manga do paletó? 0 último olhar que Myra lhe lançara, não lhe saía da cabeça.
Kari estava quieta e ainda muito pálida. Ele não tentara conversar com ela durante o trajeto até sua casa. Exceto por algumas palavras trocadas por ela
e Davey, o silêncio tomara conta da carruagem de aluguel. Josh sabia que Kari sentia-se indesejada e embaraçada, depois do encontro com os Pennington, mas seu remorso
era tão grande que não podia oferecer-lhe conforto.
O sorriso de Daisy era como um raio de sol emergindo detrás das nuvens. Mas, até mesmo a alegria da criada desvaneceu diante da expressão sombria do patrão.
- Sinto muito, senhor, sobre a Sra. Lyman - Daisy cumprimentou-o.
Josh assentiu. O que deveria dizer, quando as pessoas lhe dessem os pêsames pela perda da esposa? Uma esposa que fora sua por um ano e que ele falhara completamente
em agradar, em todos os aspectos.
- Onde está minha mãe, Daisy?
- Acho que está dormindo, Sr. Lyman. Tem estado ainda mais fraca, desde que recebeu a notícia...
A essa altura, Davey passou pela porta, acompanhando Kari. Ao ver o espanto no rosto de Daisy, Josh suspirou e falou:
- Daisy, esta é a Srta. Kari Aslaksdatter, da Noruega. Ficará hospedada aqui, até encontrarmos sua família.
Os olhos de Daisy saltavam de Josh para a bela moça a seu lado e, então, voltavam ao patrão.
- Srta. Asslaag... - gaguejou.
- Pode me chamar de Kari... Se não se importar que eu a trate por Daisy.
Como sempre, o sorriso gentil e a voz musical de Kari produziram seus efeitos benéficos. A expressão preocupada de Daisy deu lugar a um sorriso de boas
vindas.
Kari forçou-se a relaxar a tensão dos ombros. Nem todos por ali lhe dirigiriam olhares de censura, como os que recebera no porto. Afinal, não era culpada
pela morte da esposa de Josh, nem pela perda da própria memória. Não havia desejado nada do que acontecera nos últimos dias. Mas, já que chegara até ali, estava
determinada a descobrir quem era e levar adiante os planos, fossem quais fossem, que a haviam levado àquele país distante. E não se tornaria um fardo para Josh.
Sairia da vida dele no dia seguinte. Assim, ele ficaria em paz para prantear a esposa e consolar a família dela.
Uma vez decidida, Kari voltou a sorrir para Daisy. Então, virou-se para Josh.
- Quero que saiba que compreendo perfeitamente o quanto deve ter sido difícil para todos no porto, hoje. Não pretendo causar-lhe mais problemas. Amanhã,
gostaria que me levasse até a tal Casa Henrik, que sua sogra mencionou. Talvez eu possa ficar hospedada lá.
A declaração não pareceu alegrar Josh nem um pouco.
- Conversaremos sobre isso mais tarde.
- Não pode partir tão cedo, Kari! - Davey interrompeu-os com sua voz grossa demais para o rosto de menino. - Quero saber tudo sobre o naufrágio!
- Deixe Kari em paz, Davey - Josh ordenou. - Ela precisa descansar.
Os dois fitaram-se com olhares de desafio, esquecendo que pouco antes, haviam derramado lágrimas nos ombros um do outro.
- Por favor, não se preocupem comigo - Kari pediu com suavidade. - Estou bem, agora, Josh. Gostaria muito de conversar com Davey.
Josh olhou para os olhos azuis que o fitavam e para a boca que pronunciava as palavras suaves e maternais. No entanto, os lábios cheios e úmidos não o fizeram
pensar em sua mãe,
- Faça como quiser - falou em tom seco. - Tenho negócios a tratar em meu escritório. Voltarei para o jantar.
Sem mais uma palavra, ele se virou e saiu, batendo a porta de pinho atrás de si e deixando Kari, Davey e Daisy com expressões confusas.


A sopa borbulhava, espalhando pela cozinha o aroma apetitoso de galinha e cebola. Kari sorriu satisfeita ao colocar o último bolinho de massa na panela.
Depois dos dias no hospital e da longa viagem, sentia-se bem por ter o que fazer novamente.
Depois da saída abrupta de Josh naquela tarde, um Davey envergonhado murmurara algo sobre ter de encontrar-se com Phineas e também saiu. E Kari viu-se sozinha
com Daisy, que parecia não saber o que fazer com a hóspede.
- Não se preocupe comigo, Daisy. Volte ao que estava fazendo quando chegamos.
- Estava começando a preparar a sopa da Sra. Lyman. A pobrezinha come tão pouco, que nem consegue se manter de pé.
- Posso ajudar?
Daisy hesitou.
- O Sr. Lyman disse que a senhorita devia descansar.
- Ah, por favor, deixe-me fazer alguma coisa útil. Acho que descansei demais naquela cama de hospital.
A "sopa da Sra. Lyman", não passava de um caldo ralo e pálido, com uns poucos pedaços de galinha. Com seu jeitinho amável, Kari acabou por convencer Daisy
a deixá-la preparar "uma sopa diferente".
- Como uma pessoa pode ter apetite, comendo a mesma coisa todos os dias? - Kari desafiou, colocando um ramo de salsinha na panela.
Em poucos minutos, o caldo transformara-se em uma sopa grossa e saborosa. Ao mesmo tempo, a admiração de Daisy pela hóspede, transformara-se em adoração.
Um sininho tocou ao lado do número três, no quadro pregado a uma das paredes da cozinha.
- É ela - Daisy falou, pulando do banquinho onde estivera sentada, observando Kari preparar os enroladinhos de carne de porco que ela se oferecera para
fazer para o jantar.
A empregada encheu uma tigela de sopa e colocou-a sobre uma bandeja.
- Importa-se se eu for levar a sopa para a Sra. Lyman? - Kari perguntou-lhe.
- Se é o que quer...
- Sim, por favor.
Embora não conseguisse lembrar-se, os instintos de Kari lhe diziam que ela já fizera aquilo antes. Cuidara de outra pessoa doente. Teria sido alguém da
família? No momento, só sabia que sentia uma urgência incontrolável de conhecer e ajudar a mãe de Josh.
Ao abrir a porta, Kari reconheceu a doença no ar pesado que enchia o quarto. O aposento estava tão escuro, que ela mal pôde distinguir a figura frágil deitada
na cama imensa. À medida que se aproximou, viu um rosto de traços bonitos, ainda que maltratados pela doença.
- Quem é você? - a enferma perguntou num fio de voz.
- Espero não tê-la assustado, Sra. Lyman. Estou ajudando Daisy.
- Você não parece americana.
- Sou da Noruega. Vim no mesmo navio que seu filho, Josh.
- Josh! Ele está em casa?
A Sra. Lyman tentou sentar-se. Kari depositou a bandeja sobre a mesinha de cabeceira e foi ajudá-la.
- Sim, mas, como a senhora estava dormindo, ele foi resolver alguns assuntos no escritório.
A outra sorriu com benevolência.
- Ah, o meu Josh... Trabalha tanto! Cuida tão bem de todos nós.
Kari não se sentia à vontade para discutir a personalidade de Josh com a mãe dele.
- Vai tomar a sopa na cama? - perguntou.
- Sempre tomo. A esta hora, já não tenho forças para me sentar à mesa - a Sra. Lyman explicou com resignação.
Kari olhou para a poltrona confortável, colocada ao lado da grande janela fechada.
- Que tal tentar comer ali, hoje? - sugeriu.
- Tem uma voz maravilhosa, querida. Quem é você, afinal? - a mais velha perguntou com um sorriso.
- Meu nome é Kari. Eu... perdi contato com minha família no naufrágio. Seu filho foi muito gentil em se oferecer para me ajudar a encontrá-los aqui, em
Milwaukee.
- Ficará aqui em casa? - lentamente a Sra. Lyman tomava consciência das implicações da presença da hóspede inesperada.
Kari sorriu.
- Só até amanhã. Tenho certeza de que encontrarei acomodações junto aos outros noruegueses que se encontram na cidade. Agora, vou ajudá-la a sentar-se na
poltrona e servir-lhe a sopa, antes que esfrie.
Não foi fácil convencer a Sra. Lyman a instalar-se na poltrona. Por outro lado, não houve dificuldade em convencê-la a deixar Kari abrir a janela. A brisa
da tarde era morna e agradável. As folhas do grande carvalho situado diante da janela farfalhavam alegremente.
- Todos dizem que devo manter a janela sempre fechada, a fim de evitar as correntes de ar - disse a enferma.
- Bobagem - Kari falou sem cerimônias. - Na minha terra, costumamos dizer que o ar fresco cura todos os males.
As faces da Sra. Lyman apresentavam-se mais rosadas quando ela se inclinou sobre a tigela de sopa.
- Hum... O que é isso?
- Daisy deixou que eu preparasse a sua sopa. Espero que não se importe.
- Me importar? O cheiro está uma delícia. - Sem perder tempo, a Sra. Lyman tomou a primeira colherada. - Maravilhosa!
- Gosto de cozinhar - Kari explicou com um sorriso que logo morreu em seus lábios. - Acho que gosto de cozinhar.
Como a Sra. Lyman houvesse parado de comer e a fitasse com olhar interrogativo, ela sentou-se na beirada da cama e pôs-se a explicar:
- Parece que perdi a memória por causa de uma pancada que levei na cabeça durante o naufrágio. Lembro-me de meu nome e algumas coisas da minha terra, mas
não é muito. Não consigo lembrar nada sobre minha família.
A Sra. Lyman fitou-a por um longo momento. Então, com um sorriso amável, declarou:
- Bem, certamente não esqueceu como cozinhar. Esta é a melhor sopa que já tomei em toda a minha vida.
Sentindo-se agradecida pela aceitação da outra, Kari retribuiu-lhe o sorriso.
- Agora, conte-me sobre a senhora. Que doença é essa que a mantém na cama?
- Tudo começou logo depois da morte de meu marido, Homero. Meu coração parece fraco. Sinto dores terríveis quando tento, fazer qualquer esforço. Pôr isso
fico o tempo todo deitada neste quarto. E, ainda assim, às vezes ainda sinto as dores.
- Bem, se as dores atacam de qualquer maneira, parece que não adiante ficar fechada aqui.
- Talvez não. O problema é que, ultimamente, não tenho tido forças para tentar coisas diferentes.
Kari permaneceu em silêncio por alguns minutos. Parecia óbvio que, se a Sra. Lyman ficasse deitada o dia todo, alimentando-se apenas de caldo ralo de galinha,
jamais recuperaria as forças. Seu apetite mostrava-se ótimo: ela devorara a tigela de sopa em poucos minutos. Kari decidiu tentar convencê-la a aceitar uma dieta
mais consistente.
- Se comesse melhor, talvez se sentisse mais disposta.
- Ah, criança, às vezes tenho a impressão de que minha vida se resume em comer e dormir!
Kari ajoelhou-se diante da Sra. Lyman e, num gesto impulsivo, tomou-lhe as mãos entre as suas.
- Quer que eu cante para a senhora?
Embora não soubesse de onde viera tal impulso, Kari estava certa de que já proporcionara o mesmo tipo de consolo antes. O sorriso da Sra. Lyman serviu-lhe
de resposta. Abriu a boca e, para sua própria surpresa, começou a emitir notas afinadas e melodiosas, numa voz pura como cristal.
Logo lembrou de que a canção era uma vandringsvise, uma de suas baladas favoritas. Cerrou os olhos e deixou que a melodia tocasse dolorosamente sua memória
obscurecida. Apesar da falta de imagens, ela foi invadida pela sensação de amor, carinho e união familiar.
Ao emitir a última nota, abriu os olhos e surpreendeu-se com as lágrimas que derramara.
- Meu Deus, garota! Nunca ouvi nada tão lindo!
Agora, as faces da Sra. Lyman estavam definitivamente coradas. Satisfeita pelo conforto que conseguira dar à enferma, Kari presenteou-a com um sorriso resplandecente.
- Obrigada - disse, simplesmente.
Antes que qualquer das duas mulheres pudesse dizer mais alguma coisa, a porta do quarto abriu-se com estrondo. Davey entrou ofegante, seguido de perto por
Phineas.
- Era você quem estava cantando, Kari? - Davey perguntou. - Eu sabia que era você... podíamos ouvi-la lá da rua! Estava cantando em norueguês? Sabe muitas
canções como essa? Nossa, mas você canta como um anjo!
Então, Davey parou de falar, notando pela primeira vez que sua mãe parecia feliz, corada e... saudável! Tanto ele, quanto Phineas ficaram ainda mais surpresos
ao ouvi-la falar com voz firme:
- Tenham modos, meninos! Se pretende afogar nossa hóspede com perguntas, dê-lhe ao menos a chance de respondê-las, Davey!
Kari pôs-se de pé.
- Não se incomode Sra. Lyman. Terei imenso prazer em conversar com dois jovens tão atraentes.
Os dois ficaram vermelhos e sem jeito. Kari virou-se para a Sra. Lyman e piscou, provocando uma risada da outra.
- Agora, acho melhor descansar um pouco, senhora - ela sugeriu em tom sério.
- Sabe de uma coisa, querida? Acho que vou ficar sentada aqui por mais algum tempo, apreciando o meu carvalho. Já havia me esquecido do quanto é bonito.
Kari apanhou a bandeja e, chamando os dois garotos, saiu do quarto, fechou a porta atrás de si e não conteve um sorriso ao ouvir a Sra. Lyman cantarolando
a vandringsvise norueguesa.


O cavalariço não se encontrava por ali e Josh suspirou desanimado ao retirar a sela do seu cavalo negro. Estava exausto e ainda perturbado pelo encontro
com os Pennington no porto. Agora, pensou, teria de cuidar da administração doméstica, como sempre. A cada dia que passava, sua mãe tinha menor condição de desempenhar
o papel de dona de casa, desde a morte do marido e o começo de sua doença. E a vinda de Corinne, logo após o casamento, não ajudara em nada. Sua esposa passava a
maior parte de seu tempo na casa dos pais, onde a vida girava em torno da sua existência. Era, sem dúvida, mais agradável do que cuidar das necessidades de uma enferma
e da organização de uma casa. Josh jamais fizera objeções ao estilo de vida de Corinne. Ao menos na casa paterna, ela era feliz, o que não acontecia ao lado do marido.
No entanto, tal atitude deixava a responsabilidade doméstica, bem como os negócios da família, a cargo de Josh. Daisy não era perfeita, mas cuidava muito
bem da Sra. Lyman. Todas as lareiras da casa podiam estar apagadas, Davey podia estar comendo qualquer coisa que encontrasse nos armários da cozinha, mas Josh ficava
sossegado por saber que sua mãe estaria sendo bem cuidada, tomando o caldo ralo, que parecia ser a única coisa que conseguia engolir ultimamente.
Josh saiu do estábulo e encaminhou-se para a casa. Já era tarde. Esperava que Davey houvesse cuidado dos deveres da escola.
Daisy estava na cozinha. Ao contrário do habitual, não escapara mais cedo para encontrar-se com o motorista dos Fulton, Charles. Portanto, havia alguma
esperança de encontrar um prato de comida quente. Assim que entrou, Josh notou a panela sobre o fogão e o aroma delicioso.
- Boa noite, Daisy. O que está preparando para o jantar?
- Que bom que já chegou, Sr. Josh - Daisy lhe sorriu. - O jantar será servido daqui a pouco.
Josh limitou-se a fitá-la incrédulo. Habituara-se a encontrar a casa escura e fria, Davey faminto, Corinne trancada em seu quarto e sua mãe revirando-se
num sono agitado, sempre que chegava depois do anoitecer.
- Onde está a Srta. Aslaksdatter? - A bela norueguesa não lhe saíra da cabeça a tarde toda.
- Está na sala, ajudando Davey com os deveres de casa. E sua mãe está dormindo como um bebê, depois de tomar uma tigela enorme da sopa que a Srta. Kari
preparou para ela.
Josh sacudiu a cabeça confuso e saiu da cozinha. Ao dirigir-se para a sala, notou que as lareiras haviam sido acesas e a casa encontrava-se iluminada e
aquecida.
Ficou paralisado pela cena que o surpreendeu ao entrar na sala: junto à lareira, Davey e Kari estavam enrodilhados como dois gatos no chão, as cabeças quase
se tocando, inclinados sobre um dos livros de escola de Davey.
- Josh, veja! - Davey chamou-o, ao vê-lo entrar. - Aqui está a cidade de Kari... Stavanger. Está bem aqui, no meu mapa. Ela teve de atravessar o oceano
inteirinho e demorou um tempão para chegar aqui. E, provavelmente, nunca mais voltará para casa, nunca mais verá sua terra. Pode imaginar? Ela esteve me contando
tudo isso!
Kari endireitou-se. O brilho do fogo disfarçou o intenso rubor que se espalhou por suas faces.
- Conseguiu lembrar-se de mais coisas? - Josh perguntou-lhe.
- Pouca coisa. Lembro-me de Stavanger, das montanhas, fazendas. Nossa fazenda, eu acho. Só isso.
- Kari não se lembra de muita coisa, Josh, mas é muito inteligente. Mais inteligente do que a Srta. Throckton.
Josh sorriu. Já fazia algum tempo que Davey demonstrava, sem saber, a paixão adolescente que sentia pela jovem e bonita professora.
- Pensei que fosse descansar - falou com um olhar terno para Kari.
Ela se levantou e alisou o vestido.
- Não estava cansada.
Davey pôs-se de pé a seu lado.
- Kari não estava cansada, Josh - confirmou. - Ela fez sopa, enroladinhos de carne de porco e uma torta para o jantar. E ainda ajudou Daisy a lavar a cozinha,
cantou para mamãe e... Meu Deus, Josh, precisa ouvi-la cantar! Então ela me ajudou e a Phineas também, com a lição de geometria e...
Josh ergueu a mão, interrompendo a torrente de palavras do irmão.
- Está bem, Davey, já entendi: Kari não estava cansada. Agora, o que acha de guardar seus livros e ir para a cama?
O sorriso desapareceu do rosto de Davey, mas, ainda assim, ele virou-se para Kari com olhar de adoração.
- Boa noite, Kari - despediu-se e saiu da sala.
Kari sentiu um impulso de dar-lhe um beijo de boa noite, mas conteve-se, pois não sabia qual seria a reação de Josh. Ele continuava parado na porta, fora
do alcance da luz. Tudo o que ela podia ver era a figura alta e forte e os cabelos despenteados caídos sobre sua testa.
- Boa noite - ela se limitou a dizer com um sorriso para o garoto.
O silêncio que se seguiu à saída de Davey logo se tornou pesado. Kari teria preferido que Josh dissesse algo, em vez de fitá-la com a intensidade que ela
notara duas ou três vezes.
- Separei o seu jantar - ela falou, afinal.
Josh deu um passo à frente.
- Parece que lhe devo alguns agradecimentos - falou em voz baixa.
Seus olhos brilhavam a luz do fogo e Kari prendeu a respiração diante da beleza do rosto másculo.
- Eu... Não foi nada - foi tudo o que ela conseguiu dizer.
Ele estendeu a mão e tocou-lhe uma das faces afogueadas.
- Está se sentindo bem, agora?
- Ah, sim. Não sei o que aconteceu lá no porto. Estou bem. Seu rosto ardia sob o toque delicado dos dedos fortes.
Josh sentiu o sangue latejar em suas veias. Baixou os olhos dos dela, até pousá-los no ponto em que o vestido aderia aos seios redondos e rijos. O decote
comportado dava-lhe apenas um pequeno, vislumbre do pescoço suave e alongado.
Embaraçada pelo olhar intenso, Kari afastou-se um passo.
- Acho que minhas condições melhoraram o bastante para que eu resolva meus problemas sozinha - disse. - Amanhã, irei embora. Não quero causar-lhe mais embaraços,
como o que hoje, no porto.
Ao terminar a frase, Kari moveu os lábio numa expressão de desagrado, que os fez parecer ainda mais tenros e tentadores. Josh sentiu um forte desejo de
beijá-la.
- Está com fome? - ela perguntou sem jeito, ao perceber que ele continuava a fitá-la, sem dizer nada.
Josh riu baixinho.
- Estou, sim, viking. Mas, agora, é melhor jantarmos.
Kari ficou perplexa pelo jogo de palavras, incompreensível para ela. Porém, não fez comentário algum, limitando-se a acompanhá-lo à sala de jantar.
Josh não podia lembrar-se da última vez em que vira a mesa posta com tamanha sofisticação. Assim que se sentou, apanhou a garrafa de vinho e serviu dois
copos. Ao perceber que sua mão tremia, disse a si mesmo que era resultado do cansaço excessivo.
As palavras que Kari pronunciara na sala finalmente registraram seu sentido.
- Que história é essa de ir embora amanhã? - perguntou.
- Sinto que devo ir, Josh. Você tem sido maravilhoso, mas devo encontrar meus conterrâneos, tentar descobrir algo sobre minha família.
- Claro. Afinal, é por isso que veio para cá. Amanhã, sairemos à procura de informações. Enquanto isso, você fica aqui, em casa.
- Esta casa está de luto, Josh. Não é certo eu ficar aqui. Além disso, acho que já causei mais dor à família de sua esposa.
- Luto ou não, esta é a minha casa. Eu digo o que é bom por aqui.
Sem saber a razão, ele acabara de mudar de idéia quanto à decisão tomada durante a tarde em seu escritório. Havia prometido a si mesmo encontrar um lugar
para Kari hospedar-se no dia seguinte. Agora, nada o faria permitir que ela partisse.
Kari sorriu, provocando-lhe aquela sensação hipnótica de sempre.
- Você é um homem muito especial, Josh Lyman.
Josh não se sentia especial, apenas cansado, confuso e perturbado pelo desejo que lhe queimava as entranhas. Estaria louco ao insistir que ela ficasse?
Seria capaz de viver na mesma casa com aquela mulher que lhe despertava todos os sentidos e, ao mesmo tempo, respeitar a memória de Corinne?
- Então, está combinado. Amanhã, iremos até a Casa Henrik e veremos o que se pode descobrir.
Talvez, ele pensou, encontrassem as respostas de imediato. Quem sabe, na noite seguinte, Kari estivesse junto da família, feliz e satisfeita. E ele estaria
livre para prantear o fantasma de um casamento que jamais deveria ter acontecido.








CAPÍTULO V







A Casa Henrik era uma construção de madeira que causava impressão bem melhor quando vista por dentro. A sala apresentava-se impecavelmente limpa, o chão
de pinho quase branco, coberto por diversos tapetes pequenos, exibindo alegres figuras escandinavas.
A mulher de meia-idade que os recebeu observava-os com mal disfarçada curiosidade. Depois de ouvir o breve relato que Kari lhe fez em norueguês, sorriu
e fez sinal para que os dois sentassem e esperassem.
- O que disse a ela? - Josh perguntou.
Não lhe passara pela cabeça que as pessoas ali não falassem inglês. Estava tão acostumado a assumir o controle de todas as situações em sua vida, que se
sentiu impotente ao deixar Kari encarregar-se de tudo.
Kari sorriu e deu-lhe uma tapinha no braço, como se pressentisse seu desconforto.
- Ela foi chamar um tal de Sr. Grindem. Ele mora aqui e parece ser um tipo de líder da comunidade norueguesa.
De cabelos brancos e bochechas rosadas, o Sr. Grindem parecia um retrato de Papai Noel. Ele sorriu com simpatia para Kari e apertou a mão de Josh, acrescentando
um cumprimento jovial em norueguês. Josh sentiu-se envergonhado por não ser capaz de sequer responder ao simples cumprimento.
Durante alguns minutos, sentiu-se tão perdido quanto estivera nas águas geladas do lago Erie. Kari e o Sr. Grindem conversavam animadamente e tudo o que
Josh conseguia perceber era que Kari fazia uma porção de perguntas ao conterrâneo.
Finalmente, o homem ergueu uma das mãos, a fim de interromper o interrogatório de Kari. Então, virou-se para Josh e falou em inglês:
- Não fala norueguês, senhor?
- Não. Eu lamento.
- Não há o que lamentar meu jovem. Este é o seu país. Nós é que temos de aprender - o Sr. Grindem declarou com sotaque carregado.
- Eu gostaria muito de aprender um pouco de norueguês. Nunca havia pensado nisso antes.
Os olhos do Sr. Grindem brilharam.
- E está pensando nisso agora? Preciso perguntar por quê? - ele sorriu e piscou para Kari. - Bem, de volta ao nosso problema, esta linda senhorita acaba
de me dizer que precisa de informações sobre sua família.
O sorriso morreu nos lábios vincados.
- Uma tragédia terrível, aquela do Atlantic. Muitas famílias perderam entes queridos naquele navio. Foi uma tragédia terrível.
Por um momento, o homem pareceu perdido num sonho distante, enquanto sacudia a cabeça devagar. Josh começou a ficar impaciente.
- Mas, o que foi feito dos sobreviventes? Soubemos que foram trazidos para Milwaukee. Onde podemos encontrá-los?
- Pelo que sei, foram direto para Madison e alguns acampamentos na região.
- Nenhum deles ficou em Milwaukee?
- Acho que sim, só não conheço nenhum. Tenho certeza de que não há sobreviventes aqui, na Casa Henrik. A maioria recebeu as doações e apressou-se em instalar-se
em suas novas casas.
- Doações?
- O senhor não sabia? A cidade de Milwaukee deu onze dólares a cada sobrevivente. Foi um gesto generoso, pois os pobres diabos perderam tudo no naufrágio.
Mais uma vez o homem começou a sacudir a cabeça e seu olhar se perdeu na distância. Eles esperaram pacientemente por alguns minutos. Então, Kari empertigou-se
na cadeira e uma expressão determinada brilhou em seu rosto.
- Sou uma das pessoas que perderam tudo, Sr. Grindem. Tenho direito a essa doação, também?
- Creio que sim.
- E seria suficiente para a minha viagem até os acampamentos?
- Não seria necessário gastar seu dinheiro. Os sobreviventes do Atlantic foram autorizados a viajar para o oeste de graça no trem a vapor.
Kari já não podia conter o entusiasmo.
- Então, já sei o que devo fazer!
Josh segurou-lhe uma das mãos.
- Espere um pouco. Ainda não sabe para onde sua família foi, e nem mesmo se... se sobreviveram. Não pode simplesmente sair correndo para o oeste, sem conhecer
ninguém por lá, sem saber exatamente para onde está indo.
- Bem, não estou encontrando resposta alguma aqui - ela insistiu obstinada.
O Sr. Grindem interrompeu a discussão:
- Talvez pudéssemos enviar uma mensagem aos acampamentos, contando o seu caso. Se alguém souber de alguma coisa, certamente nos responderá.
Josh lançou um olhar de gratidão para o velhinho.
- Excelente sugestão.
Com a calma que lhe era peculiar, o Sr. Grindem anotou todas as informações que Kari podia lhe dar e prometeu que, até o final da semana, teria enviado
mensagens a todos os acampamentos noruegueses que pontilhavam o caminho de Milwaukee até o Estado de Minnesota.
Com as garantias do Sr. Grindem e de Josh, de que tal procedimento daria resultado, Kari aceitou com certa relutância voltar para a residência dos Lyman
e esperar. Na carruagem, durante o trajeto de volta, os dois permaneceram em silêncio. Josh sabia que Kari estava desapontada por não haver descoberto nada significativo
e, quando chegaram em casa, decidiu fazer o possível para animá-la.
- Eu me senti como um idiota, no começo - falou, tentando imprimir um tom bem humorado à voz. - Às vezes, alguns lenhadores falam norueguês entre eles,
mas eu nunca faço parte da conversa. É desconcertante ouvir alguém se dirigir a você com naturalidade, quando você não pode compreender uma palavra sequer.
- Eu sei. Tenho certeza de que muitas das pessoas que imigram para cá sentem a mesma coisa. É como se houvessem entrado em outro mundo.
A voz de Kari já não apresentava a determinação que ela mostrara na Casa Henrik.
- Teremos notícias logo, Kari - Josh falou com ternura.
Partia-lhe o coração vê-la ali sentada, os ombros erguidos num fingimento de bravura, enquanto os olhos azuis enchiam-se de lágrimas. De repente, uma lágrima
rompeu a barreira e rolou por sua face.
- Ah, minha pequena viking, não chore.
Josh não foi capaz de conter-se. Em duas passadas largas, deu a volta à mesa da biblioteca, tirou Kari da cadeira e tomou-a nos braços.
- Não chore - ele repetiu e tocou de leve os lábios nos dela.
Foi um beijo suave, leve como uma pluma, mas foi o bastante. Josh sentiu o corpo incendiar-se de desejo. Todos os sentimentos que haviam permanecido adormecidos
durante o ano em que estivera casado com Corinne, despertaram de uma vez.
Kari fechou os olhos. Sua cabeça girava. Depois dos dias que passara, carregando o fardo da incerteza e da solidão, os braços de Josh ofereciam-lhe um conforto
irresistível. Então, quando os lábios dele colaram-se aos dela, seu corpo foi tomado por sensações desconhecidas, ao mesmo tempo assustadoras e maravilhosas.
Sem perceber o que fazia, enlaçou-o nos braços e acariciou-lhe os músculos rijos das costas.
- Josh... - murmurou quando ele se afastou.
Ela abriu os olhos e deparou com o fogo intenso nos olhos dele. Fitaram-se por um breve instante para, então, entregarem-se à magia de mais um beijo, este
ainda mais ousado.
Desta vez, Kari respondeu à invasão com ardor. Não podia lembrar-se se já havia beijado alguém, ou amado alguém. Mas, de uma coisa estava certa: a devastação
que assolava todo o seu ser era tão nova quanto o sol nascente e tão velha quanto estrelas.
Josh, por sua vez, sabia com a mais absoluta certeza, que jamais em sua vida experimentara o que sentia naquele momento. Conhecera o desejo, a paixão e
o prazer. Mas, o que vivia agora, era algo completamente diferente, um misto de ternura, ardor, carinho e... paz.
Deslizou os lábios pelas faces de Kari, beijando-a na testa, no rosto, no queixo...
- Meu Deus!
Kari e Josh pularam de susto.
Daisy estava parada na porta, o rosto vermelho.
- Eu... Desculpe Sr. Josh, srta. Kari. A porta estava entreaberta e eu...
Dos três, Josh foi o que recuperou a compostura primeiro. Deixou os braços cair, afastou-se de Kari com um passo largo e dirigiu-se a Daisy com voz inexpressiva:
- O que foi Daisy?
- O senhor tem um visitante... na sala.
Josh desviou o olhar para Kari, que mantinha a cabeça baixa, tentando esconder o embaraço. Ficou aflito por não poder ver-lhe os olhos, pois sentia uma
necessidade desesperada de saber o que ela sentia. Apesar das sensações arrasadoras que haviam se apoderado de ambos, ele sabia que cometera um erro grave ao beijá-la.
Havia se aproveitado de um momento de tristeza, em que ela estava vulnerável. Não tivera a intenção de magoá-la... Fizera tudo sem pensar... E errara.
Sentiu o desejo intenso de aproximar-se, segurar-lhe o rosto e fitá-la nos olhos. Queria vê-la sorrir e certificar-se de que tudo continuava bem entre eles.
- Quem é? - dirigiu-se a Daisy com impaciência.
- É o seu so... o Sr. Pennington.
Josh fechou os olhos. Sabia muito bem o que seu sogro viera fazer em sua casa. Josh havia planejado visitar os Pennington aquele dia, a fim de desfazer
o clima tenso que se criara no porto, na véspera. No entanto, achara mais importante levar Kari a Casa Henrik e decidira deixar a visita para mais tarde. Agora,
Vernon encontrava-se em sua casa, a poucos metros de onde ele estivera prestes a desonrar a memória de Corinne da maneira mais direta possível.
- Diga-lhe que já vou atendê-lo - Josh instruiu a empregada. A essa altura, Kari endireitara os ombros, assumindo a postura que ele aprendera a conhecer
como sinal de esforço para enfrentar um momento difícil. Os olhos azuis, porém, continuavam dirigidos para o chão.
- Peço que me desculpe Kari... Foi minha culpa. Eu não devia... Sinto muito - apesar de lutar com as palavras, ele não conseguiu expressar o que se passava
em seu íntimo.
Era verdade que estava arrependido e que se sentia culpado. Mas queria poder contar a ela sobre a sensação maravilhosa que se apoderara dele ao beijar-lhe
os lábios macios. Queria dizer-lhe que jamais em sua vida sentira algo parecido, que ela fazia seu mundo girar. Entretanto, não tinha o direito de dizer tais coisas
e, muito menos, de tocá-la.
- É melhor eu ir ver o que meu... visitante deseja - falou em voz baixa. - Por favor, Kari, não fique chateada.
Esperou mais alguns segundos, à espera que ela erguesse os olhos e lhe mostrasse seus sentimentos. Kari, porém, continuou, imóvel, os olhos fixos no chão.
Num súbito ataque de exasperação, Josh virou-se e deixou a biblioteca. Só não sabia a quem se dirigia o sentimento irado: a Kari ou a ele mesmo.
Alguns minutos mais tarde, Kari trancara-se na privacidade de seu quarto - o quarto que pertencera a Corinne. Sentada na beirada na cama, os ombros vergados
sob o peso de sua tristeza, não conseguia livrar-se das sensações provocadas pelo beijo inesperado.
Fora maravilhoso. Ela jamais esqueceria as carícias que recebera... Jamais esqueceria Josh. Mas, pelos próximos doze meses de luto, Josh, sua casa, sua
família, todos pertenciam à memória de outra mulher. Não havia lugar para Kari ali ou, ao menos, um lugar honrado. Sentiu-se corar ao lembrar-se da facilidade com
que se entregara aos beijos e carícias e, até, como retribuíra a paixão de Josh.
Chegou a perguntar-se se teria sido uma mulher fácil, antes de vir para a nova terra. Mas logo afastou a possibilidade. No fundo de seu coração, sabia que
sua reação ocorrera porque fora Josh. Sabia que jamais experimentara nada parecido com qualquer outro homem. Tentou convencer-se de que tudo acontecera porque ela
se sentia triste, deprimida e vulnerável. Ao mesmo tempo, lembrou-se de que nada disso importara quando os lábios de Josh haviam tocado os seus.
E ela não seria capaz de prever o que poderia acontecer se ele a beijasse de novo.
Pulou da cama com expressão determinada. A decisão que tomara na véspera fora a mais acertada. Não podia ficar naquela casa. Era fácil imaginar a cena que
se desenrolava naquele mesmo instante na sala, entre Josh e seu sogro. Josh tinha suas obrigações, sua família, seu mundo... E Kari tinha de encontrar a sua família,
seu mundo.
Andou de um lado para o outro, tentando decidir qual a melhor maneira de levar seu plano adiante. Seu primeiro impulso fora voltar a Casa Henrik e pedir
que a ajudassem a conseguir a doação e uma passagem de trem para o oeste. O problema era Josh, provavelmente, a procuraria lá. E ela não queria criar mais problemas.
O melhor seria desaparecer por completo da vida dele, deixando-o em paz para cumprir seu período de luto. .
Finalmente decidiu ir até a prefeitura e pedir pela doação. Com onze dólares poderia alugar um quarto de hotel para passar a noite e comprar os poucos itens
de uso pessoal de que precisaria até chegar a seu destino. Afinal, tudo o que tinha era o vestido que haviam lhe dado em Erie.
Desceu a escada na ponta dos pés e atravessou o vestíbulo em silêncio. Ficou parada diante da porta por vários minutos. Talvez, pensou, acalentasse o desejo
secreto de que Josh a surpreendesse e a impedisse de partir. Nesse instante, as vozes masculinas abafadas pela porta da sala fechada tornaram-se mais altas e intensas.
Sem perder mais tempo, Kari abriu a porta e saiu.
- Você amava minha filha, Josh?
Josh foi pego de surpresa pela pergunta, embora o sogro não fosse homem de medir palavras.
- Claro - respondeu.
Não faria sentido elaborar uma resposta que chegasse mais perto da verdade. Ele amara Corinne... de certa forma. Ela fora I parte de sua vida desde a infância.
Ah, a bela Corinne. Todos os homens da cidade dirigiam-lhe olhares de cobiça. E Josh orgulhava-se em saber que somente os seus olhares recebiam atenção.
Quando fora que tudo começara a dar errado? Teria sido naquela primeira noite, quando ela o expulsara do quarto? O que ele poderia ter feito? Teria errado
ao permitir que ela trancasse sua porta todas as noites, enquanto ele dormia no divã do quarto de vestir, a fim de impedir que a família descobrisse seu pequeno
segredo? Quem sabe, se ele houvesse arrombado a porta e forçado Corinne a reconhecer a relação marital em que se envolvera...! Mas, não. Limitara-se a encontrar
uma porção de desculpas para passar a maior parte do inverno nos acampamentos de lenhadores.
- Acontece que... às vezes, fico pensando... Corinne era uma garota delicada, especial e... - a voz de Vernon falhou. - Às vezes penso algumas bobagens.
Josh olhou para as mãos calejadas, das quais Corinne fugira tantas vezes.
- Corinne não foi feliz como eu gostaria que houvesse sido Vernon. É um peso que carregarei comigo pelo resto da vida. Mas, uma coisa posso afirmar: gostei
dela e fiz o melhor que pude.
O Sr. Pennington levantou-se do sofá com dificuldade, parecendo muito mais velho que seus cinqüenta e dois anos.
- Acredito em você. Mesmo porque, se não acreditasse, nem sei do que seria capaz. Mas, se gostava mesmo de Corinne, que diabos está fazendo com a estrangeira
que trouxe para casa?
- Eu não a trouxe para casa - Josh afirmou na defensiva. - Expliquei a vocês, no porto. Ela está à procura da família e precisava de um lugar para ficar.
Só isso.
Vernon permaneceu em silêncio, fitando-o com olhos tristes e acusadores. Josh sentiu-se corar, lembrando-se do que acontecera na biblioteca minutos antes.
Era como se o sogro pudesse ler seus pensamentos.
- A Srta. Aslaksdatter ficará aqui só até descobrirmos onde seus parentes ou amigos se encontram. Então, ela se juntará a eles, no oeste. Não tenho a intenção
de magoar Myra, ou o Senhor. Simplesmente, achei que ajudar a garota era uma questão de decência e humanidade.
Sem perceber, tocou a tarja negra que se lembrara de pregar na manga pouco antes de receber Vernon.
- Esta casa está de luto por Corinne. E, até o dia de minha morte, lamentarei o fato de não ter conseguido salvá-la do naufrágio.
Pennington pareceu encontrar alguma satisfação nas palavras do genro, embora sua voz ainda apresentasse um toque de reprovação.
- Myra está de cama, desde que voltamos do porto, ontem.
- Eu sinto muito. Planejei visitá-los esta tarde.
- Gostaríamos muito que fosse. Ainda o consideramos como um de nossos filhos.
- Posso acompanhá-lo até lá agora, se não for incômodo.
Pela primeira vez em dois dias, os lábios de Vernon curvaram-se numa tentativa de sorriso.
- Será um prazer, Josh.


Kari sentia-se exausta. Tinha de admitir que Josh estava certo: a pancada na cabeça e a aventura do naufrágio haviam drenado boa parte de sua energia. Embora
houvesse caminhado a tarde toda, algo lhe dizia que se esforçara muito mais em Stavanger, sem nunca sentir tamanho cansaço.
Fora um dia desencorajador. Os generosos moradores de Mil-waukee, que haviam prontamente ajudado os sobreviventes do Atlantic, haviam retomado suas vidas,
como era de se esperar. O acidente, agora, só era discutido nas tavernas próximo às docas.
Na prefeitura, depois de repetir sua história uma porção de vezes, foi encaminhada a um balcão, onde um funcionário jurou não saber nada a respeito de doações
para os sobreviventes do Atlantic. Na verdade, ele chegou a sugerir que sua presença em Milwaukee, desacompanhada, poderia criar problemas legais. Deixou claro que
ela deveria procurar por um guardião, de preferência um marido, que se responsabilizasse por ela.
Sua última esperança era o jornal. Se lá não soubessem informá-la sobre as doações, seria obrigada a desistir. Então, voltaria a Casa Henrik, onde poderia
ficar hospedada, até que o Sr. Grindem encontrasse um meio de ajudá-la. E, se Josh fosse procurá-la paciência. Na verdade, depois de uma tarde sozinha, sentindo-se
uma estrangeira deslocada, a lembrança do sorriso afável de Josh trazia lágrimas a seus olhos.
Como faltassem algumas horas para a próxima edição do jornal, o prédio do Milwaukee Daily Sentinel estava calmo. O homem-sentado na recepção ergueu os olhos
com indolência ao ouvir a porta se abrir. Então, endireitou-se na cadeira ao ver a loira alta e bonita, sem chapéu que lhe escondesse o penteado incomum.
- Posso ajudá-la, senhorita?
- Estou à procura de algumas informações.
- Isto aqui não é uma biblioteca - ele respondeu com um sorriso cínico. - O que quer saber?
- Bem... é sobre o naufrágio... - Kari havia começado sua história, pelo que lhe parecia à centésima vez naquela tarde, quando a porta atrás do recepcionista
se abriu e um garoto saiu correndo, seguido de perto por um homem careca.
- Thompson, é aquele garoto de novo. Apanhei-o escondido atrás das impressoras. Pegue-o!
Kari ficou imóvel, enquanto a cena se desenrolava ao seu redor. Os dois homens tentavam capturar o garoto franzino, cujos cabelos loiro-prateados escapavam
em desalinho para fora do boné de marinheiro surrado.
O jovem esgueirou-se por trás da prateleira que exibia os jornais publicados na semana, rumo à porta da frente. Kari assistia a tudo aquilo, com uma intensa
sensação de vertigem.
O sujeito careca passou por ela apressado e colocou-se no único ponto de fuga do garoto. Quando suas mãos fortes agarraram os ombros frágeis, ele gritou:
- Eu o pequei!
Ao passar por Kari, o homem tirou-lhe o equilíbrio e ela oscilou. Seus olhos turvaram ao pousar no garoto assustado. Ela se sentiu confusa, como sentira
no hospital em Erie e, também no navio para Milwaukee. Sua cabeça latejava.
O garoto esperneava frenético, tentando livrar-se das mãos que o mantinham preso. Então, seus olhos pousaram na jovem parada ao lado da recepção e ele ficou
imóvel. Um segundo depois, gritava desesperado:
- Kari! Kari!
O nome soou distante aos ouvidos de Kari. Por um momento interminável ela fitou os grandes olhos azuis arregalados para ela. Então, não teve mais forças
para impedir a escuridão que se fechava ao seu redor e desmaiou.



A vida bem organizada de Josh, que havia começado a desmoronar um ano antes da noite fatal no lago Erie, parecia haver virado de cabeça para baixo nos últimos
dias. Ele se encontrava parado no meio da rua, despercebido do tráfego intenso do centro da cidade. E viu-se obrigado a admitir que, pela primeira vez, não sabia
o que fazer.
Estivera certo de que encontraria Kari na Casa Henrik. Mas, mesmo com a barreira da língua, a velha senhora que os atendera naquela manhã, conseguira deixar
claro que a garota não voltara lá.
Então, num impulso inexplicado, decidira buscar informações no jornal. Embora todos falassem inglês no Daily Free Demçcrat, sua comunicação fora mais difícil
do que com a senhora norueguesa. Os repórteres o examinavam de alto a baixo, com sorrisos amáveis e olhares cínicos. Ah, ele procurava por uma estrangeira que...
fugira de sua casa? Ah, e ela era atraente?
Diabos! Onde ela se metera? E a culpa era toda dele. Havia praticamente forçado o que acontecera horas antes, aproveitando-se dela num momento difícil.
O Milwaukee Daily Sentinel ficava a um quarteirão do concorrente, mas Josh não acreditava que fosse conseguir informações lá. Mesmo assim, encaminhou-se
para lá, jurando que se encontrasse Kari, não chegaria perto dela até encontrarem seus familiares.
Perdido em pensamentos, Josh demorou alguns segundos para compreender que algo acontecia diante do prédio do jornal. Um Policial encontrava-se diante da
porta, ouvindo pacientemente o relato de um homem careca, que parecia irado. Do lado de dentro, outro homem estava ajoelhado de um grande volume ao mesmo tempo em
que tentava afastar um garoto sujo cujo rosto encontrava-se banhado em lágrimas.
- Mi-nha ir-mã... mi-nha ir-mã - ele balbuciava.
O sotaque e a entonação do garoto chamaram a atenção de Josh.
Ao lado do homem ajoelhado, ele conseguiu vislumbrar um vestido azul claro e, no mesmo instante, compreendeu o que se passava. Correu na direção do estranho
grupo.
Lá estava Kari, deitada no chão, o rosto pálido. Josh empurrou o homem e ajoelhou-se em seu lugar. Em seguida, tomou-a nos braços e apertou-a contra o peito.
Ela desmaiara de novo, mas respirava. A cor parecia começar a voltar às faces acetinadas.
O homem careca havia interrompido seu monólogo e, juntamente com o policial, observava o recém-chegado. O garoto, ainda preso pelas mãos fortes do recepcionista,
renovou seus esforços, para soltar-se e, com uma manobra rápida do corpo franzino e ágil, escapou e foi para cima de Josh.
- Largue a minha irmã! - o garoto gritou, esmurrando sem sucesso as costas do estranho.
Josh sorriu. As peças começavam a se encaixar e sua vida começava a voltar ao normal. Kari estava em seus braços e, evi dentemente, encontrara seu irmão.
Agora, todo o mistério seria resolvido.
Virou-se para o garoto, ainda sorrindo:
- Calma rapaz. Sou amigo de sua irmã.
Qualquer dúvida quanto ao parentesco dissolveu-se quando Josh se viu diante de um par de grandes olhos azuis. Os mesmos olhos de Kari, que haviam perseguido
seus pensamentos desde o dia em que os vira no porto de Montreal. E aquele era o garoto que Josh vira junto dela, seu irmão.
- Kari é minha amiga - repetiu.
Os socos cessaram e a hostilidade no olhar cedeu, embora apenas um pouco.
- O que há de errado com ela?
- Ela desmaiou, mas vai ficar bem. É só uma conseqüência da pancada que ela levou na cabeça durante o naufrágio.
- O que está acontecendo aqui? - inquiriu o sujeito careca, voltando a segurar o braço do garoto. - Esse moleque anda rondando o jornal, dormindo lá nos
fundos. Queremos que seja entregue as autoridades
O policial assistia à cena em silêncio. Demonstrava a paciência de quem lida com o mesmo tipo de problema várias vezes, todos os dias.
Josh havia voltado a concentrar a atenção em Kari, que abriu os olhos, parecendo confusa.
- Arne? - ela murmurou em voz rouca.
Um sorriso iluminou o rosto do garoto, que começou a falar em norueguês. Os quatro homens ouviram surpresos, e Kari esforçou-se para sentar-se.
- Arne! - ela repetiu.
O garoto escapou mais uma vez das mãos que o prendiam e atirou-se nos braços da irmã.
Josh afastou-se, a fim de permitir que os dois festejassem o reencontro. Exibia um sorriso de satisfação, como se houvesse resolvido o maior dilema do século.
Após alguns instantes, Kari afastou-se do irmão e disse:
- Josh, este é meu irmão, Arne.
O sorriso radiante em seus lábios provocou arrepios de prazer em Josh.
- O que está acontecendo aqui? - o careca insistiu.
Josh virou-se para ele com um sorriso tolo:
- Ele é irmão dela!
Quando os três conseguiram levantar-se, o policial assumiu o controle da situação e ouviu atentamente à versão de cada um dos envolvidos no episódio.
Diante da insistência do funcionário do jornal em que o garoto deveria ser entregue às autoridades, Josh desafiou:
- O garoto é responsável por algum prejuízo?
- Bem... Na verdade, não. Ele apenas dormiu nos fundos...
- Nesse caso - Josh dirigiu-se ao policial -, creio que estou livre para levar a Srta. Aslaksdatter e seu irmão para a minha casa, onde ambos estão hospedados.
O policial deu de ombros e assentiu. Antes que alguém pudesse Pronunciar mais algum protesto, Josh segurou o braço de Kari em uma das mãos e o de Arne na
outra e guiou-os rua abaixo. Só parou quando teve certeza de que não poderiam ser ouvidos Pelos outros.
- Está se sentindo bem, Kari?
- Ah, Josh estou ótima! Encontrei meu irmão e me lembrei de tudo!
A voz melodiosa transbordava de alegria.
Arne libertou o braço da mão de Josh e, ao passar por ele, deu-lhe um empurrão surpreendente, a fim de abraçar a irmã mais uma vez.
Por um instante, Josh ficou irritado. Então, compreendendo a importância do momento, deu um passo para trás, permitindo que os dois continuassem abraçados,
sem a sua interferência.
Depois de uma breve, porém séria conversa em norueguês, os dois se separaram e Arne virou-se para Josh e estendeu-lhe a. mão.
- Minha irmã diz que devo agradecê-lo por ter salvado a vida dela.
Josh apertou-lhe a mão com firmeza, sem sorrir. Apesar do sotaque carregado, o garoto o fez lembrar-se de Davey, que também atravessava momentos de seriedade
exagerada, típicos da adolescência.
- Não precisa agradecer Arne. Foi um prazer ajudar sua irmã. E estamos muito contentes por tê-lo encontrado. Kari tem estado muito sozinha.
Tendo cumprido sua obrigação, Arne assentiu e, deliberada-mente, colocou-se entre Josh e Kari, segurando com firmeza o braço da irmã.
Josh absteve-se de qualquer comentário. Kari parecia bem para caminhar sem ajuda e, mesmo que não estivesse, encontrara um novo protetor.





CAPÍTULO VI





Kari não sabia se o cansaço excessivo que sentia era resultado do desmaio, ou da avalanche de lembranças que desfilavam em sua memória. Mal pôde subir os
degraus para entrar na casa dos Lyman.
Depois de pedir permissão a Arne, Josh a tomara nos braços e a carregara até o quarto.
- Terá tempo de sobra para conversar mais tarde - ele havia declarado num tom que impedia discussão.
E, por mais que desejasse estar ao lado do irmão, Kari não resistiu à maciez confortável do colchão de penas.
Sentia-se bem melhor, agora. Lembrava-se de tudo. Logo descobriu que as lembranças eram, em grande parte, dolorosas. Reviveu os meses passados à cabeceira
do pai agonizante e seu último pedido, para que os filhos realizassem seu sonho de mudar-se para a América. Fora ao lado dele que ela havia lido o livro da América
durante horas a fio. Seu pai que insistira para que ela aprendesse a falar inglês. Afinal tinha facilidade de aprender música e tudo que exigisse um bom ouvido.
Era famosa em Stavanger, aprendera com perfeição Então, ensinara aos outros também fascinados pela descrição maravilhosa que Olé Ynig fizera da terra onde a liberdade
e a riqueza estavam ao alcance de todos.
Kari sentou-se na cama e, no mesmo instante, a porta do quarto se abriu e uma cabeça loira esgueirou-se pela fresta. Ao vê-la acordada, Arne deu um grande
sorriso e correu para junto da irmã. Era óbvio que ele estivera esperando do lado de fora pelo menor ruído para entrar. Kari sentiu-se culpada por tê-lo deixado
sozinho numa casa estranha. Afagou-lhe os cabelos com ternura, notando que não haviam sido penteados nos últimos dias.
Um instante depois, Josh entrou no quarto devagar. Teria ele também, ficado esperando que ela acordasse? Ele sorriu e Kari sentiu o coração dar um salto
em seu peito.
Arne pôs-se a falar norueguês e ela o interrompeu com um gesto.
- Estamos na América, Arne. Deve falar inglês como ensinei. Foi para isso que nos preparamos durante todos aqueles meses. - Puxou-o para si num abraço terno.
- Estamos aqui, meu irmão! Finalmente, estamos na América!
O sorriso morreu nos lábios de Josh. Embora estivesse contente por haver encontrado o irmão de Kari, não conseguia impedir os sentimentos de perda que o
atormentava. Kari já não era a criatura mágica que ele trouxera de volta à vida, em meio às águas do lago Erie. Já não era a garota sem passado que pertencia somente
ao presente... e a ele. Ela era um dos tantos imigrantes que, com suas famílias, tinham planos e aspirações para uma nova vida na nova terra.
- Como está se sentindo? - perguntou de repente, movido pela necessidade desesperada de refazer a ligação entre eles.
Kari relaxou o aperto nos ombros de Arne e virou-se para Josh com um sorriso radiante.
- Sinto-me muito bem. Consegui lembrar-me de tudo. É como se houvesse nascido de novo.
O entusiasmo dela era contagiante.
- Estou muito feliz por você, Kari.
Poucos minutos mais tarde, Kari descobriria que Arne já começava a sentir-se em casa com os Lyman. Davey, apenas um ano mais velho, fora descrito como um
"esplêndido companheiro". Arne tinha o rosto e as mãos limpas e Josh contou a Kari que ele havia comido o suficiente para alimentar um batalhão.
O último comentário provocou intenso rubor nas faces do menino.
- Não comi muita coisa nos últimos dias - ele explicou, olhando para o chão.
Josh arrependeu-se de suas palavras no mesmo instante, embora sua intenção fosse apenas deixar o garoto à vontade.
- Onde conseguiu comer? - Kari perguntou com preocupação maternal.
- Aqui e ali - foi tudo que Arne conseguiu dizer.
Ele havia contado que os outros sobreviventes haviam insistido que ele seguisse viagem, como os outros, para Minnesota. Kari e Arne haviam planejado juntar-se
aos tios na fazenda que os dois possuíam há dois anos, perto de St. Paul, colônia de imigrantes conhecida como "Olho de Porco", para surpresa de todos os noruegueses
que lá chegavam.
- Eu disse a eles que sabia que você não estava morta, mas ninguém me acreditava. Eu ia todos os dias ao lago e conversava com você, pedindo que voltasse
para mim...
Kari abraçou-o com os olhos cheios de lágrimas. Foi Josh quem quebrou o silêncio emocionado.
- Como conseguiu convencer seus amigos a deixá-lo para trás?
- Eu... não disse nada a ninguém. Eu fugi. Assim que o trem se pôs em movimento, disse que queria ver a paisagem. Fui até o último vagão e pulei.
- Oh, Arne - Kari censurou-o -, eles devem estar tão preocupados. Quem estava com você? Os Pedersen e os Johansen?
- Só os Pedersen e Jacob Haugen. Os Johansen desapareceram... todos eles.
- As crianças também? - Kari perguntou num fio de voz.
- Todos. Assim como Harold, primo de Jacob, Eric e Maria Steinmark... Tantos Kari. Foi horrível. E me disseram que você também havia morrido... Mas, eu
nunca acreditei neles.
Kari abraçou-o em silêncio. Estava muito abalada pela enormidade da tragédia. Pensou naquelas famílias jovens e cheias de esperanças, que haviam terminado
sua longa jornada no fundo de um lago imenso... Era triste demais.
Josh sentia o mesmo. O luto dos dois irmãos trouxera à tona o seu próprio. O melhor a fazer seria sair dali e deixá-los sozinhos, para que pudessem consolar
um ao outro. Deveria sair e ir jantar com os familiares de Corinne. Era o luto deles que devia partilhar.
Lembrou-se da visita desagradável horas antes. Acompanhara Vernon, conforme prometera. Ninguém mencionara Kari, mas sua existência havia pairado na sala
de visitas como um espectro assustador. Ao chegar, Josh dirigira-se para a sala dos fundos, onde a família costumava se reunir. No entanto, Myra o levara à sala
da frente, e ele fora recebido com toda a formalidade dispensada a um estranho.
Recusara o convite para almoçar, alegando que tinha negócios a resolver no escritório. Quem sabe outra hora... Talvez no jantar...
E era para lá que deveria ir agora, repetiu para si mesmo. Sua perda era tão distinta e distante da perda dos dois imigrantes sua frente, quanto à primeira
classe estivera da terceira, durante a viagem fatal.
Mas Kari voltara a sorrir por entre as lágrimas que faziam seus olhos brilharem ainda mais.
- Nunca os esqueceremos, Arne - ela dizia. - Viveremos seus sonhos por eles. Construiremos uma vida maravilhosa nesta nova terra, por todos os que não tiveram
a mesma sorte que nós... e por papai.
- Especialmente por papai - Arne concordou com olhar determinado.
Kari olhou para Josh.
- A América era o sonho de nosso pai, uma obsessão - Kari explicou. - É por causa dele que estamos aqui. Ele planejou esta viagem durante anos, mas, no
final, seu coração não resistiu. Ele morreu no ano passado.
- Prometemos a ele que iríamos para Minnesota - Arne declarou em desafio, lançando um olhar frio para Josh.
- E cumprirão a promessa, Arne - Josh garantiu com simpatia. - Assim que sua irmã estiver totalmente recuperada, cuidarei para que cheguem lá.
Minnesota pensou Kari. A palavra soara quase mágica quando pronunciada por seu pai, em Stavanger. Agora, parecia fria e distante. Longe de Milwaukee, longe
de Josh.
Percebera a hostilidade do irmão com relação ao americano que salvara sua vida, e desejou poder dizer-lhe algo que o fizesse relaxar a guarda.
Enquanto cada um se ocupava com seus próprios pensamentos, a porta se abriu num estrondo e Davey enfiou a cabeça pela fresta.
- Arne, venha! Vou apresentá-lo ao meu amigo Phineas. Vamos levá-lo até a casa dos Fulton. Subiremos na árvore de onde costumamos espiar Daisy com o namorado,
Charles.
- Davey! - Josh repreendeu-o, embora seus lábios se curvassem num sorriso.
- Vá com ele, Arne - Kari encorajou o irmão. - Nos veremos mais tarde.
Satisfeito pela oportunidade de escapar à emoção que pairava no quarto, Arne passou as mãos pelo rosto, eliminando os últimos resquícios das lágrimas e
correu ao encontro de Davey.
- É um bom garoto, Kari - Josh falou depois que os meninos desapareceram.
- Davey também. Parece que nós dois criamos nossos irmãos mais novos.
- É verdade. Nos últimos dois anos, Davey tem sofrido com a falta do pai e da mãe. Pensei que as coisas se tornariam melhores com a vinda de Corinne, mas...
- Josh interrompeu-se de súbito. Não entraria naquele assunto por nada. - E quanto à sua mãe, Kari?
- Morreu quando Arne nasceu. Eu só tinha sete anos, mas lembro-me de ter pensado: "Muito bem, sou a mãe, agora".
- É responsabilidade demais para uma garotinha.
- Ah, não! Eu adorava! Realmente gostava de cuidar de meu irmão e de meu pai. Cozinhar e administrar a casa eram como brincadeiras para mim. E eu sempre
podia cantar enquanto trabalhava. Viva cantando - disse ela, com um de seus sorrisos resplandecentes.
- Minha mãe ficou muito impressionada com sua voz e perguntou se não se importaria em cantar de novo para ela, esta noite.
- Eu adoraria.
Josh aproximou-se da cama, querendo certificar-se de que ela havia mesmo se recuperado. A cor retornara as suas faces e os cabelos formavam uma grinalda
reluzente em torno do rosto querido. Estendeu a mão e segurou a dela.
-Antes disso, precisamos conversar Kari. Tem idéia da tolice que fez ao fugir daqui, hoje?
-Eu não fugi Josh. Estava apenas tentando seguir meu cadinho para o oeste... para onde devo ir.
Josh apertou a mão dela com mais força e seus olhos tornaram-se embaçados, mas ele permaneceu em silêncio.
- Nada mudou Josh - Kari continuou. - Não há lugar para mim, aqui e o fato de haver recuperado a memória e encontrado Arne só tornou mais fácil a realização
de minha missão, que é reunir-me à minha gente.
Josh sentou-se na cama a seu lado.
- E quanto ao desmaio que teve hoje? Imagine se houvesse acontecido em outro lugar. Imagine se Arne e eu não a encontrássemos.
Os músculos em torno do queixo de Josh ficaram tensos, mostrando que ele estava contrariado. Kari passou a mão de leve por seu rosto, como se pudesse apaziguá-lo
com o toque de seus dedos. Enquanto isso pensava no quanto se sentiria perdida depois que o deixasse.
O toque dos dedos delicados tornou mais intensas as emoções confusas de Josh. Sentia-se furioso por ela não reconhecer o perigo que seus desmaios representavam,
magoado pelo tom casual em que ela mencionara a necessidade de partir e cheio de ciúmes da felicidade que ela encontrara ao lado do irmão. Disse a si mesmo que não
estava agindo com dignidade, que deveria sair da vida dela, antes que um dos dois se magoasse ainda mais. Ao mesmo tempo em que os pensamentos se atropelavam em
sua mente, ele se inclinava sobre ela, movido por uma força desconhecida e irresistível.
Envolto apenas pela fina camisola que sua mãe lhe emprestara, o corpo de Kari apresentava-se macio e quente, moldando-se ao dele com perfeição. Os lábios
dela se abriram ao primeiro toque dos seus, sem hesitação, como se houvessem sido amantes desde o início dos tempos.
- Não faz idéia do que senti ao vê-la estendida no chão, esta tarde - ele murmurou, sem descolar os lábios dos dela. - Precisa se cuidar... por favor...
Então, parou de falar, concentrando-se em beijá-la com ardor e acariciá-la com paixão. Seu corpo parecia incendiar-se, num arrebatamento completo.
Kari não saberia explicar por que se sentia tão à vontade nos braços de Josh. Agora, com todas as lembranças de seu passado sabia que não era a experiência
que a fazia responder tão intensamente às sensações que ele lhe despertava. Fora beijada antes por Per, o filho do pastor de Stavanger, que a cortejara, até que
a doença de seu pai passara a tomar-lhe todo o tempo. Mas ela e Per eram crianças, então. Seus beijos haviam sido apressados, inexperientes, pequenas tentativas
de duas pessoas que só tinham em comum a idade e a proximidade, de estabelecerem algum tipo de laço. E ela havia sentido culpa depois de deixá-lo beijá-la.
Com Josh, não havia culpa, apenas a torrente de sensações eróticas. Os lábios dele clamavam os seus com delicada autoridade, enquanto suas mãos passeavam
pelo corpo jovem e vibrante. Os dedos ágeis haviam afastado a camisola e acariciavam um de seus seios, provocando-lhe ondas de um prazer quase doloroso.
Ela gemeu baixinho. Embora não se tratasse de um protesto, a mão de Josh imobilizou-se de pronto. Um segundo depois, já não a tocava.
Ele continuou de olhos fechados por alguns instantes, esperando que a respiração voltasse ao normal. Não havia jurado nunca mais tocá-la? O que havia naquela
mulher, que o fazia perder a noção de decência, prudência e responsabilidade?
Abaixou a cabeça para não ter de fitar os luminosos olhos azuis. Então, deparou com o cobertor amarelo... o cobertor de Corinne. Diabos! Estava na cama
de Corinne, dias após sua morte, a um passo de perder-se por completo no corpo de outra mulher!
Afastou-se de Kari, sem esconder a culpa que o perturbava.
- Desculpe.
Não era o que Kari esperava ouvir. A palavra fria provocou-lhe um intenso rubor nas faces, algo muito diferente do calor que as carícias haviam lhe provocado
há pouco. Agora, ela se sentia culpada, envergonhada, embaraçada.
- Eu... - Não sabia o que dizer. Queria dizer-lhe que não se desculpasse, pois havia lhe proporcionado os momentos mais felizes de sua vida. Mas era óbvio
que não poderia fazer tal confissão. Ele estava evidentemente mortificado pelo que acabara de acontecer. Não era o que ele queria. Josh não tinha a menor intenção
de envolver-se com uma imigrante pobre. Precisava concentrar energias na reconstrução de sua vida, na reparação de sua ação com os Pennington, tinha de cuidar da
própria família.
Com esforço, voltou a falar:
- Talvez, agora, você compreenda por que eu preciso partir. Amanhã, falarei com o Sr. Grindem. Tenho certeza de que ele poderá me ajudar a ir para Minnesota
com Arne.
- Eu sinto muito, Kari. Meu... comportamento animal foi imperdoável. Mas quero que você e Arne fiquem aqui, até que esteja totalmente recuperada e saiba
exatamente onde encontrar seus parentes. Prometo que não haverá repetição deste... erro.
Os olhos dele apresentavam-se indecifráveis e suas palavras doíam como um golpe físico. Ele chamara de "comportamento animal" os momentos maravilhosos que
haviam partilhado! Um erro! Então, fora só isso, para ele? Uma pontada de raiva sacudiu-a.
- Tomei minha decisão, Josh. Arne e eu partiremos amanhã.
Josh levantou-se e olhou para Kari. Seus cabelos estavam desalinhados e a camisola pendia solta, revelando parte de seu corpo escultural. Os olhos azuis
faiscavam. Ele tinha de sair do quarto, pois não confiava no autocontrole para permanecer ali por mais tempo.
- Conversaremos sobre isso amanhã, Kari. Você precisa descansar. Direi à mamãe que ainda não está em condições de cantar para ela.
Antes que ela pudesse protestar, Josh já deixara o quarto com seus passos largos.


A cabeça de Kari latejava. Ela fora despertada pela dor, antes do amanhecer, e passara o resto da madrugada num sono agitado. Sonhara com imagens terríveis,
de corpos boiando nas águas negras.
Depois de vestir-se, desceu a escada devagar. De repente, a porta da cozinha se abriu e três figuras borradas dispararam pelo corredor. Kari demorou alguns
segundos para reconhecer o irmão e seus dois amigos americanos. Eles pararam diante da porta da frente, empertigando-se ao vê-la.
- Bom dia, Kari.
- Bom dia, senhorita...
- Bom dia, Kari.
O último a cumprimentá-la foi Ame e o sorriso em seu rosto levou-a a lembrar-se dos tempos em que seu pai era vivo, e os três viviam felizes. Arne fora
um garoto feliz, dócil, sem preocupações. Os últimos meses haviam sido difíceis para ambos, especialmente para ele, que fora obrigado a amadurecer depressa demais.
- Bom dia, meninos - ela sorriu. - O que andaram aprontando?
- Nada, senhorita - Phineas respondeu depressa demais. Arne e Davey abaixaram a cabeça a fim de esconder o riso. Kari esperou que um deles falasse. Então,
deu-se conta de que um pacto de silêncio unia os três.
- Bem, Arne, vejo que já tem amigos.
O irmão fitou-a com olhos luminosos.
- Eles vão me levar para a escola!
Kari sentiu uma pontada de culpa. Lá estava mais uma coisa que fora tirada de seu irmão. Após a morte do pai, os dois haviam concordado que deveriam economizar
todo o dinheiro que pudessem para a viagem para a América. Arne deixara a escola e passara a trabalhar nas fazendas vizinhas. O dinheiro que ele recebia, somado
o que Kari conseguia com suas aulas de inglês, era guardado na bolsa de couro, que permanecia escondida sob uma tábua do assoalho do quarto vazio do pai falecido.
- Não entendo o entusiasmo de Arne em ir para a escola! - Davey declarou, apanhando os livros.
Nesse instante, um grito ecoou na cozinha.
Kari adiantou-se para lá.
Daisy encontrava-se em cima da mesa, gritando e apontando Para o lado oposto do aposento. Seguindo a direção de seu dedo, Kari encontrou a minúscula criatura
rosada, que gritava sem parar, competindo com Daisy em volume. Quatro perninhas, quase escondidas pelo corpo gordo e disforme, lutavam para manter o equilíbrio sobre
o chão escorregadio.
Assim que compreendeu o que se passava, Kari atravessou a cozinha e apanhou o pequeno intruso. Sua pele era lisa e macia, coberta apenas por uma finíssima
camada de penugem.
- Está tudo bem, Daisy. É apenas um leitãozinho recém-nascido.
Os gritos de Daisy cessaram, bem como os do bichinho, mais calmo ao sentir o calor dos braços de Kari.
Esforçando-se para assumir um ar severo, ela chamou:
- Meninos!
A porta se abriu devagar e três rostos sorridentes apareceram.
- Venham aqui! - O sorriso mal disfarçado traía o tom ameaçador de sua voz. - O que sabem sobre isto?
- É um leitão - Davey respondeu, fingindo inocência.
- Isso eu sei. O pobrezinho quase morreu de medo.
Os três sorrisos perderam um pouco do brilho ao último comentário. Davey lançou um olhar embaraçado para Daisy, que continuava sobre a mesa.
- Desculpe Daisy. Não pensei que ia ficar tão assustada.
- De onde veio este animal? - Kari interrogou-os.
- Johnny Hofmeier o levou para a escola, ontem - Davey explicou - Eu o troquei pelo meu estilingue, mais vinte bolinhas de gude.
- Vocês deveriam ir para a cadeia! - Daisy balbuciou ainda muito abalada pelo susto.
Kari suspirou.
- Peçam desculpas a Daisy e, então, quero que levem este pobrezinho para o estábulo. Tratem de arranjar boas acomodações para ele.
Os três desculparam-se com falsa contrição e desabalaram numa corrida maluca pela porta dos fundos.
Assim que ficaram sozinhas, Kari ajudou Daisy a descer da mesa.
- Eles não fizeram por mal, Daisy.
A empregada não costumava deixar que o mau humor lhe estragasse o dia e sorriu.
- Eu sei, mas que susto me deram! Imagine o que pensei quando dei de cara com aquela criatura na minha cozinha?
Kari devolveu-lhe o sorriso e, segundos depois, as duas encontravam-se às gargalhadas. Foi assim que Josh as surpreendeu, ao entrar na cozinha.
- Posso tomar o café da manhã, ou estou pedindo muito? - perguntou em tom seco.
- Não, a menos que pretenda comer bacon, senhor - Daisy respondeu de pronto, provocando outra crise de gargalhadas nas duas.
Josh retirou-se para a sala de jantar, perguntando-se se o mundo inteiro enlouquecera.


Kari ainda sorria no final daquela manhã. Ficara feliz em ver o irmão agir de acordo com sua idade, coisa que não acontecia há tempos. Arne fora privado
de muitas coisas e até seu crescimento sofrerá com isso. As refeições reduzidas durante a viagem e os dias que passara sem comer, enquanto procurava pela irmã, faziam
as roupas dançarem em torno de seu corpo, dando-lhe um aspecto de espantalho.
Ah, como era tentadora a idéia de aceitar o convite para ficar ali por uns tempos. Deixar que Arne fizesse amizades, freqüentasse a escola e se alimentasse
bem. E, tinha de admitir, não era só por Arne que se sentia tentada a aceitar. Mas era justamente esse o problema.
Lembrou-se do que acontecera em seu quarto na noite anterior. Se Josh não houvesse parado, ela não sabia como teria reagido. Como poderia ficar naquela
casa, conhecendo o poder ilimitado que ele exercia sobre ela?
Continuou a debater-se no dilema, enquanto acabava de limpar a pia da cozinha. Em Stavanger, sua casa brilhava sempre impecavelmente limpa, assim como as
casas de seus vizinhos. Kari ficara chocada com a sujeira acumulada na casa dos Lyman. Sabia que, doente como estava, a mãe de Josh não poderia cuidar de tais coisas.
Mas, e a esposa dele, o que fazia?
Quando eliminou a última mancha de gordura da cozinha, Kari tirou o avental e dirigiu-se à biblioteca. Tomara uma decisão e precisava conversar com Josh
a respeito.
Quando a sorridente Daisy lhe serviu o café da manhã, Josh encontrava-se de péssimo humor. Dormira mal, o corpo ressentido pelo despertar de necessidades
não satisfeitas e a mente perdida em pensamentos. Kari dormia no quarto ao lado... Corinne estava para sempre perdida nas profundezas do lago imenso.
Ao amanhecer, havia chegado à conclusão de que Kari estava certa. Ele a fazia infeliz e ela o fazia infeliz, também. Além disso, a presença dela em sua
casa, fazia os Pennington mais que infelizes. O melhor seria cuidar para que ela e o irmão ficassem hospedados na Casa Henrik, até obterem maiores informações do
paradeiro de seus parentes e amigos, no Estado de Minnesota.
Poderia levá-los até lá pela manhã e, por volta do meio-dia, seus problemas estariam resolvidos. O sol banhava os móveis da biblioteca e, uma vez tomada
à decisão, ele sentiu que um grande peso lhe fora tirado dos ombros. Assobiando, pôs-se a anotar os números de suas vendas no diário de contabilidade.
A batida na porta foi tão leve, que ele não tinha certeza de tê-la ouvido.
- Tem alguém aí? - perguntou.
A porta se abriu devagar e Kari entrou no aposento, o rosto sério e bonito à luz do sol da manhã. Josh sentiu toda a determinação cair por terra.
- Sobre ontem à noite... - ela parou, sentindo o rosto corar. Então, enchendo os pulmões de ar e coragem, continuou: - Estive pensando sobre nossa conversa
de ontem à noite.
Josh passou a mão pelos cabelos, lembrando-se de que não pensara em outra coisa a noite toda.
- Sim?
Agora, que se via sentada diante dele, as sensações perturbadoras voltavam a atacá-la. Perguntou-se se estaria cometendo um erro. Como não encontrasse resposta,
decidiu ir adiante.
- Decidi aceitar sua oferta e ficar aqui, até que possamos ir para Minnesota. Pelo bem de Ame - apressou-se em acrescentar.
- Pelo bem de Arne - Josh repetiu atordoado.
- Sim. Ele foi para a escola com Davey e Phineas e os três pareciam felizes juntos. Fazia muito tempo que eu não o ouvia rir como hoje, pela manhã, quando
os três colocaram o leitão na cozinha...
- Leitão? - Josh não estava acompanhando a torrente de palavras.
Kari conseguiu acalmar-se, enquanto lhe contava a história do leitão. Quando ela terminou, Josh também sorria.
- Assim - ela concluiu -, gostaria de ficar aqui, mas com uma condição.
Josh recostou-se na cadeira. Não seria capaz de definir o que estava sentindo. De uma coisa estava certo: ficara contente ao constatar que Kari não estaria
fora de sua vida por volta do meio-dia e, talvez... por um longo período.
- Que condição?
- Que eu possa cuidar da casa, de sua mãe, das refeições... Josh não escondeu a irritação.
- Eu disse que você e seu irmão são bem vindos a esta casa como hóspedes. Você não precisa "pagar" pela estadia!
- Só quero me sentir útil. Por favor, Josh, é o que estou acostumada a fazer.
Os olhos azuis cintilaram em súplica. Os mesmos olhos que haviam flamejado de paixão na noite anterior. Uma paixão que Josh tinha o dever de esquecer.
- Está bem. Faça como quiser. Não vou incomodá-la. Tenho trabalho demais esperando por mim no escritório.
Kari assentiu. Apesar do tom frio das palavras doerem em seu coração, ela sabia que seria melhor assim. Enquanto Josh permanecesse distante, ela poderia
dar um lar a Arne, sem ter de carregar um enorme peso na consciência.
- Então, está tudo acertado - ela declarou e levantou-se. Josh observou-a alisar o velho vestido de organdi amarelo que sua mãe lhe dera na noite anterior,
quando Kari teimara em cantar para ela. A graça inconsciente com que ela se movia provocou-lhe um aperto no peito.
- É claro que ficarei grato pelos cuidados que puder dispensar à minha mãe - falou.
- Fique tranqüilo. Gostaria que me fizesse o favor de informar o Sr. Grindem dos últimos acontecimentos e pedir-lhe que continue tentando obter informações.
- Farei isso.
Tratava-se de um acordo de negócios e era assim que seria dali por diante, Josh disse a si mesmo.
- Mais alguma coisa?
- Não - Kari respondeu com firmeza e saiu.




CAPÍTULO VII




Josh só chegava à noite, como se a escuridão pudesse protegê-lo contra o sol que invadira sua casa. Mas as mudanças eram muito óbvias para passarem despercebidas.
A comida constituía a diferença mais dramática. Ele havia se habituado aos padrões alimentares dos campos de madeira, onde só importava a quantidade de
comida, que devia ser suficiente para produzir a energia necessária a um corpo masculino dedicado ao trabalho pesado. Agora, mal entrava em casa e ficava com água
na boca ao sentir os aromas apetitosos que emanavam da cozinha.
Kari preparava os mais variados pratos típicos de seu país, todos saborosos e irresistíveis.
O corpo de Davey já mostrava as saudáveis conseqüências da nova dieta, enquanto Arne perdera completamente a aparência pálida e faminta que tinha no dia
em que o haviam encontrado. Mas, a principal mudança se operara em sua mãe. Agora, ao chegar a casa, Josh a encontrava vestida, sentada no sofá bordando, enquanto
Kari ajudava Davey e Arne com os deveres da escola. A lareira sempre acesa na sala emprestava à casa um ar familiar que há muito desaparecera da bela mansão.
Josh não costumava juntar-se aos outros. Jantava sozinho, uma vez que sempre chegava tarde e, então, fechava-se na biblioteca com seus livros de contabilidade.
Embora as noites houvessem se tornado frias, ele nunca acendia a lareira da biblioteca. O frio e as risadas ocasionais que atravessavam a porta serviam-lhe como
perversa penitência por tudo o que dera errado em sua vida.
Outra penitência eram as visitas regulares que fazia aos Pennington. Três vezes por semana ele almoçava com os sogros e cunhados. A conversa sempre girava
em torno de Corinne e, quando tinham sorte, conseguiam terminar a refeição, sem que Myra se retirasse da mesa aos prantos.
Aquela noite estava particularmente fria, ele pensou, fitando os números que acabara de escrever. Naquela manhã, havia nevado pela primeira vez. Talvez
ele devesse acender a lareira. Começava a levantar-se, quando uma leve batida na porta levou-o a afundar novamente na cadeira.
- Entre - falou.
A porta se abriu devagar e Kari entrou. Josh reconheceu um velho xale de sua mãe em torno dos ombros delicados. Pensou que gostaria de comprar-lhe roupas
novas e bonitas, mas logo concluiu que Kari não aceitaria que ele o fizesse.
- Está frio aqui dentro.
Como mal falara com ela nos últimos dias, Josh quase havia se esquecido do efeito relaxante de sua voz musical.
- Ficou melhor depois que você entrou - disse com um sorriso.
- Vim perguntar-lhe se não gostaria de juntar-se a nós, lá na sala.
Ela parecia hesitante. E por que não estaria? Afinal, noite após noite, ele se trancava na biblioteca, sem lhe dirigir a palavra, nem ao menos para agradecer
o que ela vinha fazendo por sua família.
- Por quê? - perguntou, deixando que a irritação consigo mesmo transparecesse em sua voz.
Kari aproximou-se da mesa.
- Davey e sua mãe queriam mostrar a mim e a Arne... Acho Que se chama "pipoca".
- Pipoca?
- Sim. Contaram-nos que vocês costumavam fazer isso na lareira, nas noites de outono.
Josh sentiu uma pontada de nostalgia ao recordar as noites alegres, quando a família se reunia em torno da lareira para fazer pipoca. Lembrou-se de quando
seu pai lhe concedera a honra de estourar o milho. Embora fosse mais novo do que Davey era agora, ele se sentira adulto. Nunca mais haviam feito pipoca depois da
morte de seu pai.
- Vocês não têm pipoca na Noruega? - perguntou, hesitando em afastar-se dos livros frios. Temia que o calor e a alegria reinantes na sala minassem o tênue
controle que vinha mantendo.
O rosto de Kari iluminou-se.
- Não. Nunca ouvi falar disso. Vai nos mostrar como é?
A verdade era que ela não se importava nem um pouco com a tal da pipoca, embora estivesse intrigada a respeito. O que a excitava era a idéia de arrancar
Josh de sua solidão impenetrável. Kari estava adorando estar junto dos Lyman. Desenvolvera um grande carinho por Davey e pela Sra. Lyman. Mas a ausência constante
de Josh nas reuniões familiares pesava em seu coração. Por mais que tentasse se convencer que assim seria melhor, que seria mais fácil na hora de partir, não pôde
evitar o desejo de tê-lo perto de si, ao menos naquela noite.
- Está bem - Josh concordou. - Você tem preparado todos os pratos deliciosos que aprendeu a fazer na Noruega. Está na hora de lhe oferecermos algo tipicamente
americano.
O sorriso atenuava-lhe as feições e ele pareceu anos mais jovem. Kari gostaria de afastar com os dedos a onda de cabelos rebeldes que lhe caía sobre a testa.
- Então, vamos - ela convidou alegremente, estendendo-lhe a mão.
Após um momento de hesitação, Josh aceitou a mão estendida e acompanhou Kari para fora da biblioteca gelada.
A entrada dos dois foi saudada por gritos entusiasmados de Davey e Phineas, que passara a visitar os Lyman com freqüência cada vez maior. Arne foi mais
discreto, lançando um olhar perturbado para as mãos unidas de Josh e Kari. Helen Lyman também ergueu uma sobrancelha, antes que Josh largasse depressa a mão de Kari
e se afastasse dela.
- Vai fazer pipoca, Josh? Já faz tanto tempo... - Davey falou com olhar de súplica.
Josh sorriu, satisfeito por ver o irmão tão entusiasmado.
- Acho que já está na hora de você fazer as honras, irmãozinho. Um homem tem de saber como estourar pipoca.
- Mesmo? Phineas pode fazer também?
__Claro. Só tomem cuidado com o fogo.
Josh sentou-se no chão, ao lado da cadeira da mãe e observou Davey e Phineas ocuparem-se com as espigas secas. Depois de mais um olhar sombrio para o dono
da casa, Arne juntou-se aos dois amigos.
- Como está se sentindo, mamãe? - Josh perguntou, fitando os serenos olhos castanho-claros de Helen. Havia neles um brilho desaparecido havia muito tempo.
- Já era tempo de você se lembrar de perguntar, filho - ela o censurou de leve, deixando claro que sua ausência constante fora notada. - Sinto-me ótima.
As dores não me atormentam há dias. -- Depois de um terno sorriso para Kari, acrescentou: - Acho que é porque, agora, a música voltou à minha vida.
Davey ergueu os olhos para Kari.
- Por que não canta enquanto trabalhamos? Por favor! Cante uma vandringslide.
Josh mostrou-se surpreso.
- Kari está nos ensinando norueguês - o garoto explicou cheio de orgulho.
- Parece que não sei muito bem o que tem acontecido em minha casa - Josh comentou com certa amargura.
- É verdade, filho - disse Helen com ternura. - Venho lhe dizendo isso há algum tempo.
Decidiram deixar a canção para mais tarde, uma vez que a pipoca começava a estourar. Em poucos minutos, a sala estava repleta de pipocas, que pulavam para
todos os lados. Kari ria como uma criança e Arne parecia não acreditar no que via.
- O barulho é o mesmo que faço quando caço esquilos! - disse ele fascinado.
E a diversão aumentou quando todos se puseram a comer, fazendo a maior sujeira, ao misturar a manteiga aos saborosos flocos brancos. Ninguém se preocupou
com isso. A alegria compensaria qualquer trabalho que tivessem mais tarde.
Depois que todos haviam comido até não poder mais, os três meninos estenderam-se no chão e Josh sentou-se no sofá, na extremidade oposta a Kari.
- E então? Não vai cantar? Parece que todos nesta casa já a ouviram , menos eu.
O rosto afogueado pelo calor e pelas muitas risadas, as trancas soltas, caindo em tomo de suas faces, ela o fitou com olhos brilhantes.
- Terei o maior prazer em cantar para você, Josh.
A atmosfera mudou no momento em que ela emitiu a primeira nota. Embora não pudesse compreender as palavras, Josh deixou-se levar pela pureza da melodia
e da voz cristalina. Era como se Kari enviasse vibrações nascidas em sua alma, diretamente ao seu coração.
Quando ela terminou, somente o crepitar do fogo quebrava o silêncio na sala.
- Nossa! - Davey foi o primeiro a se manifestar. - Como você consegue cantar tão bem? Cante mais uma.
Os olhos de Kari estavam fixos em Josh e, como ele assentisse em concordância, ela cantou outra canção, esta mais animada. E, quanto terminou, iniciou uma
terceira, pedindo que Helen a acompanhasse em norueguês. Josh, mais uma vez, mostrou-se surpreso.
- Também estive aprendendo - a mãe explicou com um sorriso tímido.
Então, todos cantaram juntos, em inglês, Arne lutando para acompanhá-los. Finalmente, Kari riu e disse:
- Agora, chega. Meninos é hora de ir para a cama. Phineas, você devia ter voltado para casa há horas.
Para mais uma surpresa de Josh, os três levantaram-se imediatamente, sem esboçar o menor protesto.
- God natt - Davey despediu-se da porta.
- Boa noite, meninos - Kari respondeu.
Ela começou a arrumar a bagunça deixada pela festa da pipoca. Josh pulou do sofá para ajudá-la. Helen levantou-se e sorriu para os dois. Parecia cansada,
porém feliz.
- Também vou me retirar - anunciou. - Obrigada por haver se juntado a nós, Josh. Foi quase igual aos velhos tempos, não foi?
Josh aproximou-se e deu-lhe um beijo no rosto.
- Sim, mamãe. Como nos velhos tempos.
Embora tivesse muitas outras coisas para lhe dizer, as palavras lhe escaparam.
- Boa noite - ela se despediu com um sorriso para os dois.
Quando ficaram sozinhos, Josh apanhou os pratos das mãos de Kari.
- Deixe que eu os leve para a cozinha - ofereceu. - Já trabalhou demais por hoje.
Ela aceitou a oferta e entregou-lhe os pratos.
- Foi uma noite maravilhosa, Josh.
- Também achei. Você canta extraordinariamente bem. Nunca vi minha mãe tão feliz, desde a morte de meu pai. Davey, também. Gostaria de agradecer-lhe por
tudo o que tem feito por minha família.
Kari ficou surpresa com o elogio. Nas últimas semanas, Josh parecia nem notar que ela existia muito menos o que ela fazia na casa. Sua primeira tarefa,
fora uma faxina completa. Com um pouco de incentivo, Daisy concordara em ajudar e, depois de vários dias de trabalho árduo, a casa brilhava. Então, a cada dia, Kari
usava a imaginação na preparação de pratos diferentes. Procurava combinar à culinária que aprendera em sua terra natal, com os ingredientes à disposição em Milwaukee.
Na maioria das vezes, o resultado fora mais que satisfatório. Ficara contente ao ver Davey e Arne devorarem seus pratos, com o típico apetite de adolescentes. Os
dois e Helen elogiavam muito sua comida, mas Josh não fizera o menor comentário.
- Tenho encontrado prazer no que faço. Você tem uma família maravilhosa.
Josh a examinava com olhar atento.
- Eu sei. Sua boca está suja de manteiga.
Kari fechou os olhos ao senti-lo passar um dedo por seus lábios. A já familiar sensação de fogo nas entranhas se apossou de seu corpo. Josh ainda segurava
a grande tigela de madeira, onde a pipoca fora acondicionada. Se ele vai me beijar, Kari pensou, terá de soltar a tigela. Deu um passo à frente, de maneira que o
recipiente se transformasse no único empecilho a separá-los.
- Bem - Josh abaixou-se para apanhar a canequinha de manteiga -, mais uma vez, obrigado.
Kari não precisou ver-lhe os olhos para reconhecer que ele voltava a bater em retirada. Sentindo-se desapontada e tola, tomou de volta os utensílios que
ele apanhara de suas mãos.
- Deixe que eu faça isso - falou com voz rude. - Certamente, você precisa voltar para os seus livros.
Sem esperar pela resposta, entrou na cozinha e bateu a porta atrás de si.


Kari só vira a Sra. Hennessey uma vez desde que a simpática senhora retornara de Chicago. Por haverem sido vítimas da mesma tragédia, cumprimentaram-se
como se fossem parentes. A mais velha ficara radiante ao saber que a linda norueguesa havia recuperado a memória e encontrado o irmão. E, embora se esforçasse para
manter a discrição, não conseguira esconder a curiosidade a respeito do relacionamento de Kari com Josh. Também não escondera a decepção ao saber que o jovem viúvo
passava pouquíssimo tempo em casa.
Depois daquele encontro, Kari ficara contente pela constatação de que possuía mais uma amiga de verdade em Milwaukee. Assim, não se surpreendeu quando Daisy
veio avisá-la de que a Sra. Hennessey a esperava na sala de visita, na manhã seguinte à festa da pipoca.
A mulher roliça estava entusiasmada.
- Kari, tenho ótimas notícias para você!
Kari já trabalhara um bocado desde o amanhecer, limpando e cozinhando. Sua disposição não era a mesma dos outros dias, pois o fato de haver passado parte
da noite com Josh produzira o efeito contrário ao esperado. Ainda assim, sorriu para a amiga com carinho.
- Por favor, conte-me, Sra. Hennessey.
- Encontrei um casal que conhece seus tios, em Minnesota. Vão partir para lá ainda esta semana e concordaram em levar você e Arne com eles.
O sorriso morreu nos lábios de Kari.
- Vão nos levar para Minnesota?
- Sim! Levarão vocês diretamente para a fazenda de seus tios. Não era o que você queria?
A Sra. Hennessey mostrava-se confusa. A reação de Kari era o oposto do que ela havia esperado.
- Sim, claro. Queremos nos estabelecer em Minnesota. Foi o último desejo de papai. O problema é que... os Lyman têm sido tão bons para nós... A Sra. Lyman
melhorou muito seu estado de saúde nos últimos tempos. E sempre diz que suas dores vão embora quando canto para ela.
Só então Kari deu-se conta do quanto se sentia relutante em deixar aquele seu primeiro lar na nova terra. Em poucas semanas, aquela casa passara a fazer
parte de sua vida, tornando-se tão querida quanto a outra que fora realmente sua, em Stavanger.
A expressão da Sra. Hennessey suavizou-se, à medida que ela compreendia os sentimentos da garota.
- Minha querida, você me contou como as coisas estão se passando entre você e o Sr. Lyman. Aqui não é lugar para você... Não se encontra numa situação respeitável.
Kari fechou os olhos, a fim de conter as lágrimas. Lembrou-se da noite anterior, quando ela e Josh haviam ficado frente a frente, separados apenas pela
grande tigela de madeira. Ela dera um passo à frente, esperando que ele a beijasse, querendo ser beijada. Lembrou-se também da maneira como ele se afastara. A Sra.
Hennessey tinha razão. Não havia lugar para ela naquela casa.
Respirou fundo, pondo um fim à ameaça das lágrimas. Então, abraçou a Sra. Hennessey e fitou-a com expressão determinada.
- Tem razão, minha amiga. Esta é a oportunidade que eu estava esperando. Agora, conte-me mais sobre esses camaradas que levarão a mim e meu irmão...
Desde que Kari assumira o comando da casa, Josh nunca voltara para o almoço e raramente chegara cedo para o jantar. No entanto, a noite passada junto da
família mudara algo dentro dele. Havia passado a manhã inteira relembrando os momentos alegres que haviam partilhado e, principalmente, sua despedida de Kari. Havia
sentido vontade de beijá-la, de tomá-la nos braços, de esquecer tudo o que o dera errado em sua vida. Devido às circunstâncias que viviam, ele não poderia mudar
a situação, mas decidiu que poderia ao menos vê-la, conversar com ela, provocar-lhe aquele sorriso radiante, capaz de iluminar o mais escuro dia de inverno.
Sua primeira reação ao deparar com a Sra. Hennessey sentada no sofá da sala foi de decepção. Imaginara que teria muitos momentos a sós com Kari. Então,
lembrando-se do quanto era difícil Para os dois manter o autocontrole quando se encontravam sozinhos, abriu os lábios num sorriso amigável e cumprimentou a amiga
mais velha com carinho.
As duas mostraram-se surpresas ao vê-lo entrar. A Sra. Hennessey corou ao receber um beijo no rosto e pôs-se a responder com entusiasmo os cumprimentos
de Josh. Mas ele só ouviu suas primeiras palavras, pois seus olhos pousaram no sorriso de Kari, obscurecido pela tristeza. Sem rodeios, perguntou-lhe a queima-roupa:
- O que houve?
Ela sacudiu a cabeça de leve e torceu as mãos, mas não respondeu.
Josh desviou o olhar para a Sra. Hennessey, numa interrogação muda.
- Está tudo bem, Sr. Lyman - ela respondeu. - Acabei de contar a Kari que conheci um simpático casal de noruegueses que conhecem os tios dela e sabem onde
fica sua fazenda. Eles concordaram em levar Kari e Arne com eles.
Josh deixou-se cair em uma cadeira.
- Ah... - foi tudo o que conseguiu dizer.
A Sra. Hennessey lançou um olhar confuso para os dois.
- Pensei que fosse o que todos queriam! - defendeu-se.
- E é - Kari respondeu. - Arne e eu estamos ansiosos para encontrar nossos parentes e lhe ficamos muito gratos.
- Então, está tudo resolvido. Direi aos Olsen que vocês estarão prontos para partir... Amanhã está bem?
- Amanhã? - Josh não conseguiu disfarçar a ansiedade. - Tem certeza de que é isso o que quer Kari?
Kari fitou-o por um longo momento, antes de responder:
- Este foi o último desejo de meu pai. Arne sonha em estabelecer-se em Minnesota e eu também.
Ela jamais lhe contaria a verdadeira razão pela qual precisava ir embora. Se ele não fora capaz de perceber até então, não perceberia nunca.
- Talvez eles possam esperar até a próxima semana... - a Sra. Hennessey sugeriu aflita pela evidente irritação de Josh.
Kari sorriu para ela.
- Amanhã está bem, Sra. Hennessey. Quanto antes partirmos mais cedo Arne e eu poderemos recomeçar nossa vida.
Josh levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
- Quem são essas pessoas? - perguntou carrancudo.
- Bem... Como já disse, são noruegueses, como Kari.
- E você não os conhece? - ele dirigiu o interrogatório a Kari.
- Acho que não, mas Olsen é um nome bastante comum em meu país.
- Pois não vou permitir que viaje com estranhos!
- Josh, até poucas semanas atrás, você era um estranho. Essas pessoas são meus conterrâneos.
- Talvez seja melhor assim, Sr. Lyman - a Sra. Hennessey interveio com simpatia.
Sufocado pela agonia e frustração, ele falou em tom rude:
- Pois bem... Faça o que achar melhor.
Em seguida, virou-se e saiu da sala.


Davey bateu a porta da biblioteca atrás de si e encaminhou-se até a mesa de Josh com expressão irada.
- O que você fez a Kari? - perguntou quase aos berros.
- Do que está falando?
- Arne me disse que eles vão embora amanhã, porque você faz Kari infeliz.
Josh suspirou.
- Sente-se, Davey.
- É verdade? - o mais novo insistiu, antes de obedecer.
- É verdade que vão partir amanhã. Vão para Minnesota, como planejaram antes de deixar a Noruega. Eles nunca pretenderam ficar em Milwaukee.
- Por que Arne diz que você fez Kari infeliz?
Josh examinou o irmão com atenção. Os quilos que Davey ganhara nas últimas semanas o faziam parecer mais velho. Pela primeira vez, Josh notou a penugem
escura no queixo do garoto. 0 pequeno Davey estava se transformando num homem. E depressa.
- Kari e eu temos enfrentado alguns momentos difíceis porque ela é uma jovem muito atraente e eu ainda estou de luto pela morte de Corinne.
Davey mudou de posição na cadeira, visivelmente embaraçado.
- Quer dizer que... você e Kari...
- Quero dizer que não pode haver nada entre Kari e eu, agora. Tenho responsabilidades e obrigações a cumprir.
Davey permaneceu em silêncio por alguns instantes, refletindo sobre a nova condição do relacionamento do irmão com a linda norueguesa que mudara a vida
de todos naquela casa. Para ele, a idéia de Josh e Kari apaixonarem-se um pelo outro soava perfeita.
- Mas, Corinne está morta - declarou sem rodeios. - É claro que ninguém desejou que isso acontecesse, mas, já que aconteceu, não vejo por que você e Kari
não possam ficar juntos.
Josh sacudiu a cabeça desanimado.
- As coisas não são tão simples, Davey.
- Por que não?
Impossível! Se ele não conseguia encontrar explicações que convencessem a si mesmo, como poderia pretender que um garoto de quinze anos compreendesse?
- Sinto muito, Davey, mas terá de aceitar o fato. Será melhor para todos se Kari e Arne forem embora.
Davey estreitou os olhos.
- Está sendo egoísta. Pode ser melhor para você, mas não para mamãe. Ela está alegre e saudável pela primeira vez em anos.
Como não possuísse argumentos para discutir o ponto de vista do irmão, Josh recorreu à resposta típica de um adulto confrontado com a lógica irrefutável
da juventude:
- Você é jovem demais para compreender.
- Mamãe está feliz. Daisy, também. E Arne e eu. Até Kari está feliz. Ela canta o dia todo, enquanto transforma esta casa em um verdadeiro lar. Você é o
único infeliz aqui e... Acho que isso devia ser problema só seu, não nosso.
Josh recostou-se na cadeira pensativo. Seria ele o único a considerar a situação precária? Não. Sabia que Kari pensava o mesmo. Ela lhe dissera, ainda naquela
manhã, que queria ir embora. A necessidade de sua partida ficara evidente na noite anterior. Não era possível para eles viverem sob o mesmo teto. A menos que ele
conseguisse não chegar perto dela. Talvez Davey tivesse razão. Talvez o problema fosse só seu.
- Conversarei com Kari - finalmente falou. - Mas não posso prometer nada. Eles terão de partir, mais cedo ou mais tarde.
- Talvez não - Davey respondeu com o sorriso de um vencedor. - Diga a Kari que o inverno torna as estradas perigosas. E, então, quem sabe se não teremos
um longo inverno pela frente?
Josh permaneceu imóvel, observando o irmão deixar a biblioteca cheio de satisfação. Davey tinha razão em uma coisa: se Kari continuasse a viver naquela
casa, os dois teriam um longo, longo inverno pela frente.
Os Olsen vieram e partiram. Formavam um casal sério e honesto, cheio de boas intenções. Kari sentira o coração dividido: queria partir, mas o pedido de
Josh para que esperasse o inverno terminar abalara sua determinação. E ela não pôde evitar a culpa por adiar, mais uma vez, a realização do sonho de seu pai.
O comportamento de Arne fora incompreensível. Inicialmente, mostrara-se relutante em abandonar os novos amigos e a escola, de que tanto gostava. Então,
passara a fazer oposição veemente à idéia de ficar em Milwaukee.
Com um olhar preocupado para Kari e outro irritado para Josh, declarara solenemente:
- Levarei minha irmã para Minnesota. Lá é o nosso lugar.
No final, fora a Sra. Hennessey quem resolvera o impasse.
Depois de observar com atenção o casal à sua frente, declarou:
- O Sr. Lyman tem razão. O inverno é a pior estação para se viajar. Afinal, ninguém sabe o que se pode encontrar pela frente... nevascas, ursos...
Josh conteve o impulso de explicar que, se houvesse nevasca, certamente não haveria ursos. No entanto, não se sentia disposto a entrar numa discussão fútil.
Havia se dado conta de que sofreria igualmente se Kari partisse ou ficasse. Fitou-a nos olhos e foi atacado, no mesmo instante, pela atração irresistível que os
unia. A sensação foi tão palpável que ele se perguntou se ninguém mais percebera o que se passava. Estariam todos cegos?
E, assim, ficou decidido. Josh prometeu levar Kari e Arne pessoalmente, no final do inverno, quando viajasse para inspecionar os campos de madeira. Os Olsen
partiram, depois de ouvirem agradecimentos e pedidos de desculpas. Estavam confusos pela mudança no rumo dos acontecimentos, mas eram reservados demais para discutir
a decisão dos outros.
Kari levou Arne para o seu quarto para uma conversa em particular. Garantiu-lhe que, na primavera, estariam junto dos tios, em Minnesota. Enquanto isso
passariam o inverno aquecidos, bem alimentados e protegidos. E ele não deveria se preocupar com Josh. Estavam na América, hospedados na casa de uma família maravilhosa,
e ela não poderia estar mais feliz.
Resolvidas as suas dúvidas, Arne voltou a exibir o ar alegre de menino e correu ao encontro dos amigos. Kari desceu a escada devagar. A Sra. Hennessey partira
e a sala encontrava-se vazia. A porta da biblioteca estava fechada. Kari hesitou. Devia agradecer Josh pela hospitalidade e pela oferta de levá-los pessoalmente
para o oeste. Ergueu a mão para bater na porta, mas imobilizou-a no ar. Haviam enfrentado emoções demais naquela manhã. Ela poderia passar à tarde com Helen e falar
com Josh no dia seguinte.
No entanto, na manhã seguinte, Josh se fora. Havia partido ao amanhecer, comunicando sua viagem apenas à sonolenta Daisy, que lhe preparara um apressado
café da manhã.
- Ele disse que ia para o campo de Greenwood - Daisy informara a Kari e Helen, quando as duas haviam descido para o café.
O sorriso morreu nos lábios de Helen ao ouvir a notícia, embora ela não estivesse surpresa. As viagens repentinas de Josh haviam se iniciado logo após seu
casamento com Corinne. Aparentemente, a morte da esposa não havia curado sua inquietação.
- Pobre Josh - murmurou.
Kari estava desolada.
- Foi minha culpa - disse. - Ele teve de deixar esta casa porque eu e meu irmão continuamos aqui.
Helen sacudiu a cabeça e segurou a mão de Kari com ternura.
- Josh tem de lutar com seus próprios demônios, minha querida. E eles o atormentam desde muito antes de você haver entrado em sua vida. O problema é com
ele, não com você.
- Tudo se tornaria mais fácil se eu partisse.
- Então, por que ele insistiu tanto para que ficasse?
- Sente-se responsável por mim porque salvou minha vida.
- Joshua precisa ficar em paz consigo mesmo. Quando conseguir, terá forças para ficar em paz com o resto do mundo, inclusive você. Dê-lhe algum tempo.








CAPÍTULO VIII








- Good ye-wel.
- Não! Preste atenção - Ame falou com seriedade. - God Jul.
Davey fez uma careta.
- Por que sua língua tem tantos sons engraçados?
Ame deu-lhe um empurrão e ambos caíram na neve fresca, que chegara bem a tempo de cobrir a cidade de Milwaukee para o Natal.
- O inglês é pior - defendeu com veemência.
- Não é não! - Davey soltou uma gargalhada.
- Bem, seja como for, God Jul, feliz Natal... Meu primeiro Natal na América!
A porta da frente se abriu e Kari chamou-os:
- O que estão fazendo aí? Deveríamos estar saindo para a igreja e vocês estão rolando na neve!
Os dois levantaram-se e passaram as mãos pelas roupas, a fim de tirar os flocos de neve que os cobria de branco.
- Estamos prontos, Kari. Arne estava me dando mais uma aula de norueguês.
Kari sorriu.
- Não me parece que estejam tomando uma aula de línguas! Venham. A carruagem está à nossa espera nos fundos.
Assim que Kari voltou a desaparecer dentro da casa, Davey deu uma tapa nas costas de Arne, a fim de tirar-lhe os flocos de neve restantes. Sem querer, fez
com que alguns flocos escorregassem para dentro do colarinho de Arne que, com um grito de fúria fingida, atirou-se sobre o amigo. E lá foram os dois de novo para
o chão coberto de neve.
- Davey, apresse-se! Vamos nos atrasar para a missa! - Helen gritou do vestíbulo.
Davey ergueu os olhos surpreso. Fazia muito tempo que não ouvia sua mãe falar tão alto e com tanta energia. Um sorriso largo enfeitou-lhe o rosto.
- Estou indo, mamãe.
Levantou-se e estendeu a mão para Arne, que o fitou desconfiado.
- Chega de truques, Davey! - ele falou com a expressão séria que o fazia parecer bem mais velho que os seus treze anos.
- Sem truques - Davey concordou com um sorriso.
Sentia-se ótimo. Tinha um amigo para brincar o tempo todo, sua mãe voltara a gritar com ele, como nos velhos tempos e o chão estava coberto de neve. Aquele
prometia ser o melhor Natal de sua vida.
Isso, se Josh conseguisse vencer sua depressão, ele pensou ao avistar o irmão parado carrancudo ao lado da carruagem que os levaria à igreja.
Josh chegara de viagem na noite anterior, quando a neve começara a cair. Ao entrar, fora envolvido pelo aroma tentador de gengibre e canela.
Sua mãe viera até a porta da sala para recebê-lo. Ele se inclinara para beijá-la no rosto, mas seus olhos estavam fixos nos ramos de pinheiros que enfeitavam
a lareira.
- Foi Kari quem fez isso - Helen explicara, animada. - Disse que, na Noruega, eles decoram a casa toda com ramos de pinheiro para o Natal.
- O cheiro me faz pensar que estou de volta ao acampamento - Josh comentara sem entusiasmo.
Helen recusou-se a permitir que o filho estragasse seu bom humor.
- Se não quer sentir o cheiro do pinho, basta entrar na cozinha. Aposto que nunca sentiu aromas tão deliciosos em toda a sua vida.
Nesse instante, a porta da cozinha se abriu e Davey, seguido Por Arne e Phineas, passaram por ela aos tropeços. Quando estavam juntos, os garotos pareciam
incapazes de se movimentarem de maneira normal.
- Josh, você voltou! - Davey inclinou-se e deu uma cabeçada no estômago do irmão, num cumprimento que, há algum tempo, era costumeiro entre os dois.
Pego de surpresa, Josh quase tombou para trás.
- Ei, irmãozinho! Está crescido demais para isso!
Davey sorriu.
- Vou ficar do seu tamanho. Já estou mais alto que a mamãe, e tenho quase a mesma altura de Kari. Quer dizer, nem tanto. Kari é muito alta para uma mulher.
- Na Noruega, todas as garotas são altas - Arne comentou sombrio.
Seu sorriso desaparecera no momento em que pusera os olhos em Josh.
- Bem - Davey prosseguiu, ignorando a súbita seriedade do amigo -, você devia experimentar as delícias que estão na cozinha, Josh. Kari fez... - com um
olhar para Arne, pronunciou os nomes devagar: - krum kake, sandbaakels e fattigmann. E mamãe fez pudim de leite!
Josh lançou um olhar surpreso a Helen, que sorria orgulhosa.
- Passei dias preparando as passas - disse ela.
Davey puxou Josh pela manga do casaco, levando-o para a cozinha. Kari estava parada diante do fogão, preparando mais guloseimas. Usava um vestido azul-claro,
da cor de seus olhos. Um avental todo sujo cobria a frente do vestido, acompanhando a curva dos seios. Suas faces apresentavam-se coradas pelo calor. Josh sentiu
o coração saltar no peito.
Nas semanas que passara longe de casa, quase se esquecera da beleza excepcional de Kari. Mesmo ali, na cozinha, usando um avental sujo, as mangas arregaçadas
acima dos cotovelos, ela ainda parecia uma visão, vinda de outro mundo. Ele respirou fundo e começou a desabotoar o casaco.
- Seja bem vindo, Josh - ela cumprimentou.
Davey trouxe uma bandeja repleta de docinhos delicados.
- Estão ótimos, Josh. Prove um.
- Olá, Kari - ele cumprimentou-a em voz baixa.
Recuperando a compostura, após um instante de hesitação, ela voltou a concentrar a atenção no fogão.
- O que está fazendo? - Josh perguntou depois de tirar o casaco e aproximar-se dela.
Seu coração batia tão alto, que ele teve medo de que toda a família ouvisse.
Kari fitou-o com o sorriso que preenchera seus sonhos todas as noites que passara longe de casa.
- Chama-se krum kake. Acho que vai gostar. É doce e muito leve.
Josh observou-a preparar os pequenos cilindros de massa finíssima e depois passá-los no açúcar.
Ao terminar de preparar o último, ela apanhou um que já esfriara e ofereceu-lhe.
- Experimente.
Josh inclinou-se e deixou que ela colocasse a guloseima em sua boca. Mal sentiu o gosto, pois seus sentidos haviam se concentrado no aroma de temperos e
pinho que ela exalava.
- E então?
- Então, o que? - Josh sabia que estava olhando fixamente para ela como um tolo, mas não conseguia evitar.
Ela se mostrou exasperada.
- Gostou do krum kakel
- É muito bom - ele respondeu seco. - Obrigado.
Aquilo era ridículo! Ele já nem era capaz de conversar naturalmente! Fora por isso que passara as últimas semanas longe de casa. E deveria ter ficado onde
estava.
Virou-se para sair. Faria uma visita aos Pennington. Deixara a cidade sem se despedir deles e esse fora um dos motivos pelo qual decidira voltar. O Natal
seria muito difícil para a família de Corinne. Mas... Talvez a visita pudesse esperar até o dia seguinte.
De repente, sentiu-se muito cansado. Olhou para Kari e viu que os olhos dela exibiam a dor que ele passara a conhecer tão tem. A dor que ele pusera ali.
Ela jamais exibia aquele olhar, quando em companhia de qualquer outra pessoa. Respirou fundo e caminhou até a porta.
Helen Lyman colocou-se em seu caminho, fítando-o nos olhos.
- Vai à missa de Natal conosco, Joshua?
- Claro. Mas, agora, acho melhor descansar. Foi uma viagem muito longa.
Sem mais uma palavra, ele desapareceu pela porta. Helen virou-se para Kari com um sorriso.
- Ele está apenas cansado, querida. Acredite amanhã de manhã, tudo será diferente.


Nada havia mudado, Kari pensou. Josh fizera questão de tocá-la de leve e muito rapidamente, ao ajudá-la a subir na carruagem. Além disso, Davey e Ame foram
os únicos a quebrar o silêncio durante todo o trajeto até a igreja. Josh permaneceu o tempo todo quieto e taciturno, sentado a um canto.
Para Kari, era óbvio que ele pensava na esposa. Afinal, era natural nessa época do ano. Ela mesma havia se lembrado do pai enquanto decorava a casa e preparava
os pratos natalinos. Embora Josh não houvesse passado muitos Natais com Corinne, devia estar pensando que, um ano antes, àquela hora, estivera com a esposa. Mas,
fosse o que fosse que ocupava seus pensamentos, ele não se mostrava disposto a partilhar com ela. Na verdade, ele nunca se mostrara disposto a conversar com ela
sobre seu casamento. Kari já se habituara, embora detestasse, à frieza com que ele impedia todo tipo de comunicação.
Os Lyman, acompanhados de seus hóspedes noruegueses, chegaram à igreja poucos minutos antes do início da missa. O velho prédio de madeira seria usado para
os serviços religiosos por mais um ano ou dois, somente até a imponente construção de tijolos, à entrada da cidade, ficar pronta.
Josh sentiu-se reconfortado ao entrar na velha igreja. O lugar não era bonito, mas trazia-lhe boas recordações da infância e juventude. O cheiro das velas
misturado ao de umidade era-lhe muito familiar.
A missa estava prestes a começar e o primeiro banco à esquerda, informalmente reconhecido pelos demais fiéis, como propriedade dos Pennington, continuava
vazio. Josh tentou livrar-se da tensão que lhe endurecia os ombros.
O sermão do reverendo Patterson foi breve e logo se iniciaram os rituais natalinos tradicionais. Davey juntou-se a uma fila de garotos engomados, que recitavam
em jogral a história do Natal.
Finalmente, a missa foi encerrada com o coro de vozes jovens e velhas que, juntas, entoaram os hinos de Natal. Todos se levantaram para partir e Josh surpreendeu-se
ao perceber que sorria. Sentia-se em paz pela primeira vez em muitas semanas.
Afagou os cabelos de Davey e falou:
- Fez um bom trabalho, irmãozinho.
Davey sorriu satisfeito e correu à frente para alcançar o amigo Arne. Josh tomou o braço de sua mãe, e deixou Kari caminhar logo atrás deles, ao longo do
estreito corredor da igreja. No entanto, assim que saíram para a rua, ele esperou que ela estivesse ao seu lado e tomou-lhe o braço também.
A neve voltara a cair e grandes flocos traçavam caminhos irregulares em sua descida ao vento. As crianças corriam de um lado para o outro, de boca aberta
e língua de fora, tentando engolir os flocos brancos. Kari, Josh e Helen pararam diante da igreja para observar a brincadeira infantil.
- Nada como ser criança e brincar na neve - Josh falou com um suspiro feliz.
Kari retribuiu-lhe o sorriso. A trança elaborada que emoldurava seu rosto começava a ficar toda salpicada de branco.
- O que seria do Natal, se não nevasse?
Inconsciente do que fazia, Josh largou o braço da mãe, embora continuasse segurando o de Kari com firmeza. Era bom sentir o calor do corpo dela tão perto
do seu.
Como seria de se esperar, um grupo de crianças mais velhas juntara-se diante da igreja e iniciara uma guerra de bolas de neve. Davey e Arne faziam parte
do grupo. Josh desejou ardentemente poder voltar a ter quinze anos e brincar despreocupado na neve. Puxou Kari para mais perto e fitou-a nos olhos.
- É melhor voltarmos para casa - falou, notando afinal que sua mãe já se encontrava ao lado da carruagem, envolvida numa conversa surpreendentemente animada
com Theo Pratt, dono do moinho situado nos limites da cidade.
Mas foi só um bom tempo depois que eles tomaram o caminho de casa. Primeiro Kari teve de ser apresentada ao Sr. Pratt. Então, Josh fora convocado para
decidir um impasse entre os dois times de guerreiros da neve e acabara, sem saber como, envolvido na disputa. Quando ele finalmente voltou à carruagem, seu casaco
azul-marinho mais parecia branco. E ele estava rindo! Riu tanto que sua alegria contagiou a todos durante o trajeto de volta para casa.
- Ei, Josh, você acertou uma bem no rosto de Johnny Hofmeier! - Davey elogiou-o.
Olhando de canto de olho para a mãe, Josh passou um dedo pelo colarinho ensopado.
- Acho que ele revidou muito bem - confessou com um sorriso maroto.
Helen riu deliciada.
- Vocês três estão encharcados! Vão acabar pegando pneumonia!
Kari recostou-se no banco da carruagem e apreciou a cena familiar. Arne e Davey recontavam, pela décima vez, cada detalhe da grande guerra de neve. Seu
irmão parecia tão feliz com seu novo amigo, seu novo lar. E Josh... Ah, era a primeira vez que ela o via relaxado, rindo de verdade, brincando com os meninos, como
se fosse um deles. O sorriso lhe caía muito melhor que a carranca que lhe marcara o rosto por tanto tempo. Feliz e satisfeita, ela sentiu o coração leve e aquecido.
Durante a ceia de Natal, houve uma discussão acalorada sobre quando os presentes deveriam ser entregues. Kari e Arne votavam pela noite de Natal, enquanto
os Lyman mantinham-se firmes na opinião de que os presentes deveriam ser trocados na manhã de Natal. Davey recitou um verdadeiro tratado de democracia e poder da
maioria, mas, no final, Helen e Josh acabaram decidindo fazer a vontade dos hóspedes. Assim, ficou determinado que entregariam os presentes, logo que acabassem de
lavar a louça, trabalho que seria divido por todos, uma vez que Daisy fora passar o feriado com a família.
Como não tivesse dinheiro para comprar presentes, Kari usara restos de lã dos trabalhos de Helen para tricotar cachecóis idênticos para Arne e Davey. Para
a dona da casa, ela escrevera as letras de várias das canções norueguesas que costumavam cantar juntas. Então, prendera as diversas folhas de papel num lindo laço
de fita e decorara as páginas com desenhos de pássaros cantores. Seu talento para desenho e pintura igualava-se ao talento para a música.
Enquanto confeccionava a bela coleção musical, pensara que aquela seria uma lembrança que Helen poderia guardar depois que Kari fosse embora. E fora o mesmo
impulso que a levara a gastar horas e horas na confecção do presente de Josh. Encontrara uma caixa de charutos e a lixara e polira até a madeira exibir um brilho
imaculado. Então, pintara toda a superfície, produzindo desenhos florais alegres e coloridos. O resultado era uma verdadeira obra de arte.
Durante a ausência de Josh, Kari perguntara-se várias vezes se teria coragem de entregar-lhe o presente. Agora, depois do dia agradável que haviam passado
juntos e notando que o humor de Josh apresentava-se cada vez melhor, decidiu que não haveria nada de errado em entregar-lhe a bonita caixinha. Assim, ele também
teria uma lembrança sua depois que ela e Arne partissem para sua nova vida em Minnesota.
- Arne e eu fizemos nossos presentes juntos - Davey anunciou festivo.
- E o que estão esperando para mostrá-los? - Josh provocou-os.
Os dois meninos levantaram-se e, segurando juntos cada um dos pacotes mal embrulhados, distribuíram as lembranças. Josh foi o primeiro a abrir o seu presente
e assobiou baixinho.
- Vocês mesmos fizeram isto?
Tratava-se de um cachimbo esculpido em madeira, cujo fornilho fora moldado na figura de um velho, ou algum tipo de duende.
- É um troll norueguês - Davey explicou. - Arne ensinou-me como fazê-lo. Na verdade, ele fez as partes mais difíceis.
Josh agradeceu e sorriu para Arne, que desviou os olhos e foi sentar-se junto à irmã. Kari e Helen ganharam pentes esculpidos em madeira. O de Kari tinha
o cabo em forma de um ramalhete de rosas, enquanto o de Helen assemelhava-se a um cacho de uvas.
- São lindos, meninos - Kari elogiou com sinceridade e abraçou o irmão.
O sorriso que abandonara o rosto do garoto loiro voltou a brilhar no mesmo instante.
Josh apanhou uma pilha de pacotes que esperava ao lado da lareira.
- Estes são de mamãe e eu - anunciou, entregando o de Arne em primeiro lugar.
- Oh! - o menino não escondeu a felicidade. Eram três livros de escola, iguais aos que vinha partilhando com Davey desde que chegara a Milwaukee. - Agora,
sim, vou aprender inglês direitinho.
Os olhos de Kari encheram-se de lágrimas. Ela olhou para Helen e Josh.
- Muito obrigada. Vocês têm sido muito bons para nós.
Josh estendeu-lhe um pacote.
- Este é para você.
Ela desembrulhou o papel devagar, encontrando três cortes de tecido. O primeiro era de algodão verde; o segundo, de musselina cinza e o terceiro, uma linda
seda azul. Deslizou os dedos sobre os cortes com reverência.
- Será bom demais voltar a ter roupas minhas.
Helen pousou a mão sobre a sua.
- É o mínimo que podemos fazer, querida, depois de como cuidou de todos nós.
Emocionado, Josh limpou a garganta e estendeu um pacote a Davey, que se pôs a rasgar o papel que envolvia a caixa longa. Era um rifle. O cabo de madeira
envernizado refletia o fogo da lareira e o brilho dos olhos de Davey.
- Ah, Josh... É meu... de verdade?
Josh sorriu, lembrando-se de quando ganhara seu primeiro rifle, com a mesma idade de Davey. Havia ficado tão alegre quanto o irmão se mostrava agora.
Arne largou os livros e juntou-se a Davey, examinando a arma com reverência.
- Em Stavanger, eu tinha uma espingarda - falou, correndo os dedos de leve pelo cano. - Mas tivemos de vendê-la, antes de vir para a América. Nunca tive
um rifle.
Josh observou o garoto e decidiu que, antes de levá-lo para Minnesota, ele teria seu próprio rifle.
Kari levantou-se do sofá e apanhou os quatro pacotes que deixara sobre a mesa. Os dois meninos afastaram-se do rifle apenas pelo tempo necessário para abrir
seus pacotes, colocar os cachecóis em torno do pescoço e agradecer. Em seguida, voltaram a debruçar-se sobre a arma. Foi Helen quem comentou:
- Você tricota muito bem, Kari.
Ao abrir o seu presente, ela arregalou os olhos surpresa.
- Você mesma fez isso, minha querida?
Estendeu o livro para que Josh o visse. Ele ficou impressionado com a qualidade do trabalho, bem como com o entusiasmo de sua mãe ao folhear as canções.
- Não vai abrir o seu? - Kari perguntou-lhe com timidez. Aquela era a primeira vez em que ela dava um presente a um homem, que não fosse seu pai. Talvez
Josh não gostasse. De repente, passou a achar que as flores coloridas não combinavam com um sério e bem sucedido homem de negócios. Afundou-se no sofá aflita.
Josh abriu o pacote devagar. Não esperava ganhar um presente de Kari. Na verdade, mal se lembrara de que era Natal, até pouco antes. Havia decidido ignorar
a data, em deferência ao luto. Sua mãe, porém, considerara injusto para com os garotos, privá-los da festa mais importante do ano. E fora a pedido dela que Josh
fora até a cidade para comprar presentes para Davey, Arne e Kari.
Ao abrir o papel, as cores vibrantes saltaram à sua vista e ele ficou ainda mais impressionado com o talento de Kari.
- Você fez este, também? - perguntou-lhe maravilhado.
Kari assentiu, sentindo-se relaxar. Pelo menos, ele não estava rindo. Ao contrário, seus dedos percorriam os contornos do desenho, com a mesma reverência
com que Arne e Davey haviam tocado o rifle.
- É apenas uma lembrança - ela murmurou sem jeito. - Uma caixinha para guardar coisas miúdas.
Josh sentiu um calor intenso percorrer seu corpo. Imaginou Kari trabalhando no pequeno objeto e sentiu como se segurasse em suas mãos uma parte do espírito
vibrante da mulher mais maravilhosa que já conhecera.
Lembrou-se do último Natal, quando Corinne lhe dera um par de botas espanholas. Eram caríssimas, confeccionadas do melhor couro, mas muito desconfortáveis
para que ele pudesse usá-las. A nota aparecera sobre sua mesa uma semana depois. Ele pagara a conta, usara as botas uma ou duas vezes, apenas para agradar a esposa,
e as guardara no fundo do armário, de onde nunca mais haviam saído.
Corinne parecera feliz naquele Natal. Ele lhe comprara uma porção de presentes, na intenção de trazer de volta a criança alegre que conhecera. E quase conseguira.
O dia fora agradável. Sua mãe conseguira deixar o quarto por tempo bastante para juntar-se a eles na tradicional ceia de Natal com os Pennington. Corinne era toda
sorrisos. Mas, assim que sua família se despediu, a alegria desapareceu. Com olhar indiferente, ela ignorara a sala de jantar repleta de pratos e copos usados e
se trancara em seu quarto. A recém contratada Daisy saíra mais cedo para comemorar o Natal com a família e, assim, Josh e Davey haviam terminado a noite limpando
e arrumando os restos da festa.
Josh olhou mais uma vez para caixinha em suas mãos e forçou-se a afastar as lembranças desagradáveis.
- É linda, Kari. Além de todos os seus talentos, ainda descobrimos que é uma artista.
Kari corou de prazer e orgulho.
- Estou longe de ser uma artista, mas adoro desenhar e pintar. Em nossa casa, em Stavanger, costumava pintar tudo o que tínhamos em casa. Às vezes, quase
deixava meu pai louco.
- Papai adorava os seus desenhos, Kari - Arne olhava fixamente para Josh, desafiando-o a magoar sua irmã.
Josh dirigiu-lhe um sorriso paciente. Gostaria de poder fazer alguma coisa para convencer o garoto de que ele não tinha a menor intenção de fazer mal à
sua querida irmã. Mas, talvez Arne tivesse razão. Ao não conseguir controlar seus sentimentos por Kari, Josh estava lhe fazendo mal. Afastou o pensamento para o
mesmo recanto de sua consciência onde guardara as lembranças amargas de Corinne. Era noite de Natal e ele havia decidido que, ao menos uma vez, deixaria de lado
as mágoas e recriminações. Passaria a noite alegre em companhia de sua família e da linda mulher que entrara misteriosamente em suas vidas, transformando a casa
fria num verdadeiro lar.
- Acho que é hora de termos um pouco de música - anunciou
O entusiasmo em sua voz espalhou-se pelo aposento, trazendo sorrisos aos lábios de Kari e de Helen. Quando Josh estava feliz, o mundo parecia mais colorido.
- Nós ensaiamos algumas canções de Natal enquanto esteve fora, Josh - Davey informou-o. - Algumas em inglês, outras em norueguês.
Josh colocou a caixinha de Kari sobre a mesa, com todo cuidado e, então, sentou-se no chão ao lado da lareira.
- Muito bem. Gostaria de ouvir todas elas.
A hora seguinte passou depressa em meio à mistura de canções de Natal dos dois lados do oceano. Então, Helen levantou-se e anunciou que já era hora de irem
para a cama.
Arne virou-se para Kari com olhar ansioso.
- Kari, nós esquecemos de colocar o mingau lá fora, para o nissenl
Kari sorriu.
- O que é nissenl? - Davey perguntou.
Helen voltou a acomodar-se na cadeira.
- Acho que temos mais uma daquelas deliciosas histórias norueguesas por trás desse tal nissenl - ela provocou.
- É apenas um costume, nada importante - Kari explicou, mas, diante dos olhares curiosos, decidiu contar a lenda: - Cada fazenda da Noruega tem um duende,
o nissenl, que vive no celeiro. No Julaften, a noite de Natal, ele faz um inventário completo, uma avaliação de tudo o que foi produzido na fazenda ao longo do ano.
Então, decide se o fazendeiro fez um bom trabalho.
- Por isso, Davey - Arne continuou a história -, devemos tratar bem os animais nos dias que antecedem o Natal, pois, à meia-noite do Julaften, eles podem
falar. Se contarem coisas ruins ao nissenl, ele pode ir embora para outra fazenda.
- Quando um nissenl vai embora, ele leva a boa sorte consigo - Kari completou o brilho em seus olhos contrastando com o tom solene de sua voz. - Algumas
pessoas ficam tão desesperas que se mudam para a América.
Todos riram, exceto Josh, que manteve a mesma expressão de Kari.
-Temos de oferecer uma boa tigela de mingau para o nosso amiguinho. Nós, americanos, queremos que todos os nossos visitantes noruegueses tenham um Natal
feliz.
Kari presenteou-o com um sorriso animado.
- Muito bem, Arne - dirigiu-se ao irmão -, vá com Davey até o estábulo e deixe uma tigela de mingau por lá. Depois disso, os dois vão para a cama.
Arne apanhou seus livros e Davey, o rifle. Os dois correram para a cozinha com o entusiasmo das crianças que decidem adiar por um pouco mais a chegada da
vida adulta, a fim de aproveitar de mais alguns momentos de magia.
Helen despediu-se e foi para seu quarto. Uma vez sozinhos Kari e Josh evitaram que seus olhos se encontrassem. Foi Josh quem falou primeiro:
- Que tipo de avaliação acha que o nissenl vai fazer esta noite, Kari? Acha que ele vai querer continuar conosco?
- Acho que fará uma boa avaliação.
- E vai querer continuar conosco?
Kari hesitou, antes de falar com cautela:
- Sim.
Josh observou o fogo refletir-se nos incríveis olhos azuis, então se virou.
- Não sei como teve tempo para confeccionar presentes tão lindos, com todo o trabalho que faz por aqui.
- Estou acostumada a trabalhar o dia todo. E, os presentes... Não foi trabalho. Fiz todos eles com o coração.
Josh ocupou-se em remexer as brasas na lareira.
- Mamãe está muito feliz pelo que você tem feito por nós. Kari assentiu, mas não fez qualquer comentário. Não era sobre os sentimentos de Helen que ela
queria discutir no momento.
- Eu... Também estou muito feliz. É bom ver minha mãe sorrindo de novo, sentindo-se tão bem. E Davey parece outro garoto. Ele até cresceu, depois que você
começou a alimentá-lo.
Kari riu.
- Ele disse que já começaram a chamá-lo de "calça-curta", na escola, pois todas as suas calças estão acima dos tornozelos.
- Por que ele não comprou calças novas?
- Bem, você não estava na cidade. Talvez ele não soubesse exatamente o que fazer a respeito.
Josh sacudiu a cabeça num gesto de impaciência.
- Ele sabe muito bem que pode comprar qualquer coisa em Milwaukee e colocar na minha conta. Mamãe também sabe disso. - Depois de um suspirou, acrescentou:
- Acho que eu deveria ter pensado nisso antes de viajar.
- Não - Kari corrigiu-o com firmeza. - Você tem razão. Davey já tem idade para cuidar de certas coisas. E sua mãe também se encontra em condições bastante
boas para se responsabilizar por alguns detalhes da administração familiar. Nem todos os problemas da família deveriam ser jogados nas suas costas, Josh, por mais
largas que sejam.
Josh não saberia dizer se Kari havia corado ao pronunciar as últimas palavras, ou se fora apenas o reflexo do fogo nas suas feições delicadas. Sorriu ao
notar a linha obstinada de seus lábios. Para ele, a sensação de ter alguém a defendê-lo era totalmente nova. E muito boa.
Abriu a boca para fazer uma brincadeira, mas, sem saber como, as palavras soaram sérias.
- Depois que papai morreu, minha mãe pareceu desabar. Davey e eu tínhamos a sensação de que havíamos perdido os dois. E, como ele era jovem demais para
resolver a maioria dos problemas... - parou de falar e deu de ombros.
- Você assumiu toda a responsabilidade - Kari completou a frase inacabada, ao mesmo tempo em que se juntava a ele diante da lareira. - Tornou-se mãe, pai,
irmão mais velho, provedor, empresário e chefe da casa, tudo ao mesmo tempo.
Josh sorriu.
- Do jeito que você fala, parece que é muita sorte ter costas realmente largas!
Numa atitude involuntária, Kari pousou os olhos no peito largo, envolto pelo casaco de lã. Então, colocou uma das mãos no braço dele. Mesmo através do tecido
grosso, os músculos faziam-se sentir, firmes e fortes.
- Sei como se sente, Josh. Lembre-se de que me tornei "mãe de família" aos sete anos. Você fez um bom trabalho. Davey é um garoto inteligente, saudável
e adorável.
Josh concordou com um aceno de cabeça.
- Acho que consegui fazer o melhor por Davey - falou pensativo. - Mas nunca consegui ajudar mamãe. Você foi a primeira pessoa que obteve algum sucesso com
ela.
- Talvez ela só tenha se sentida pronta a se deixar ajudar agora. E, por coincidência, eu estava no lugar certo, na hora certa.
- Você subestima as próprias capacidades, Kari, Seu poder sobre as pessoas é imenso. Posso senti-lo sempre que entro nesta casa. Mamãe, Davey e até Daisy...
São pessoas diferentes do que eram.
Josh segurou a mão que ela pousara em seu braço. Então, levou-a aos lábios e beijou-a. Kari sacudiu levemente a cabeça, num protesto silencioso que ele
não sabia se era contra suas palavras, ou contra sua atitude.
- É você quem subestima as próprias capacidades, Josh. Veja o bem que fez à sua família. Conseguiu em três anos o que muitos homens não realizam durante
toda uma vida.
Josh largou a mão dela. Ganhara dinheiro, era verdade, mas não fora capaz de substituir o pai. E não fora capaz de fazer sua família feliz. Não conseguira,
sequer, fazer sua esposa feliz. Baixou os olhos para Kari. Os olhos azuis examinavam suas feições atentamente. Embora desejasse explicar-lhe uma porção de coisas,
Josh não pôde encontrar as palavras. Não estava acostumado a se abrir para alguém como acabara de fazer. Jamais em sua vida sentira tamanha facilidade em conversar,
como sentia quando estava junto de Kari. Exceto, talvez, pelo vovô Lyman, em Filadélfia. Mas isso fora há tanto tempo, que mais parecia um sonho distante.
Afastou as lembranças do passado e voltou a sorrir.
- Boa noite, Kari... Feliz Natal - falou em voz baixa e suave e, então, inclinou-se para beijá-la no rosto.
Kari sentiu o calor dos lábios dele em sua face e fechou os olhos. No instante seguinte, a sensação agradável deu lugar à brisa fria que soprou na sala,
quando a porta se abriu. Ao abrir os olhos, viu que Josh se fora.








CAPÍTULO IX









Davey, Arne e Josh levantaram-se ao amanhecer. Os meninos queriam testar o novo rifle e Josh insistira que o lugar seguro mais próximo era Johnson's Wood,
um bosque afastado da cidade. Assim, eles partiram na penosa caminhada, quando o sol lançava seus primeiros raios pálidos de inverno.
Os três voltaram enregelados, falando todos ao mesmo tempo sobre as aventuras da manhã. Kari envolveu-os em seu sorriso angelical. Adorava aqueles raros
momentos em que Josh não se distinguia dos meninos mais novos. Seu sorriso tornava-se mais límpido e sua voz mais suave.
- Então, o que os grandes caçadores trouxeram para o café da manhã? - ela perguntou, tentando parecer séria.
- Só atiramos em alvos - Arne apressou-se em explicar.
Kari sacudiu a cabeça.
- E eu aqui, imaginando um belo assado de urso!
- Com um pouco mais de prática, trarei o seu urso, Kari - Davey afirmou com segurança.
O garoto parecia haver crescido mais alguns centímetros desde a véspera.
- Bem, enquanto esperamos pelo urso, que tal algumas panquecas de framboesa? - Kari ofereceu com um sorriso.
Os dois meninos começavam a correr para a sala de jantar, quando Josh segurou Davey pelo braço.
- Só terão panquecas depois que guardarem o rifle e lavarem as mãos.
O sorriso quase infantil deixara seu rosto, mas ele ainda se mostrava descontraído e à vontade consigo mesmo. A pequena chama que se acendera no coração
de Kari ao vê-lo participar da guerra de neve na véspera tornou-se mais intensa. Era bom conviver com aquele lado da personalidade de Josh. Naquele estado de espírito,
ele era capaz de agir como amigo e guardião para o irmão mais novo. E não se mostrava consumido pelo remorso e pela culpa, a ponto de não se permitir apreciar os
prazeres mais simples da vida.
Ela havia despertado pela manhã, ainda sentindo o calor dos lábios dele em seu rosto. Ao contrário das outras vezes em que ele a beijara, com o desespero
da culpa e da paixão contida, desta vez o beijo significara apenas o símbolo da aliança entre duas pessoas que se gostavam.
- E você? - ela perguntou em tom de provocação, ao vê-lo tomar o rumo da sala de jantar. - O irmão mais velho não precisa lavar as mãos antes de tomar seu
café da manhã?
Josh segurou sua mão, sorriu e puxou-a para a mesa.
- Escute viking, se estas panquecas estiverem tão boas quanto à torta que você fez ontem, não posso me atrever a esperar que aqueles dois estômagos ambulantes
as ataquem.
Kari riu da brincadeira, ao mesmo tempo em que seu coração saltava no peito. Fazia tempo que Josh não a chamava pelo apelido que lhe dera a bordo do vapor
para Milwaukee. Agora, aquela viagem lhe parecia muito distante no tempo.
Josh parecia mais bonito que o habitual, sentado à cabeceira da mesa, quando Kari voltou da cozinha, trazendo uma bandeja de panquecas. As faces morenas
apresentavam-se coradas em conseqüência do exercício matinal. Ele vestia uma blusa de lã vermelha, que lhe realçava os cabelos castanhos revoltos e lhe emprestava
uma aparência totalmente diferente do rígido homem de negócios de sempre.
Ao vê-lo sorrir, Kari sentiu-se ainda mais radiante. Depois de servi-lo, ela colocou a bandeja no centro da mesa e ia sentar-se em seu lugar, quando Josh
voltou a segurá-la pela mão.
- Faz muito tempo que esta família não tem uma alegre manhã de Natal, Kari. Mais uma vez, obrigado.
- Fico contente por haver... - ela começou a falar, mas sua voz desapareceu na balbúrdia da chegada de Arne e Davey.
Cuidadosamente lavados e penteados, os dois tomaram seus lugares à mesa e, sem qualquer cerimônia, atacaram a bandeja de panquecas, como se a comida fosse
o urso do qual haviam falado minutos antes. Kari sentou-se e, junto a Josh, observou divertida a montanha de panquecas desaparecerem num piscar de olhos.
Por uma vez, Arne parecia haver esquecido seus ressentimentos contra Josh. Ele e Davey revezavam-se para contar com detalhes os exercícios de tiro no bosque.
Pelo que ouvia, Kari pôde concluir que, embora mais baixo e mais magro, Arne vencera o amigo no tiro ao alvo, graças à orientação de Josh. Davey estava tão maravilhado
com o novo rifle, quem nem havia se importado em perder a competição. Assim, o bom humor dos dois contagiava quem quer que entrasse na sala de jantar.
Até Daisy, que chegara cedo, depois de passar a noite de Natal com os pais, deixou-se levar pelo clima de festa. Riu como criança quando Josh provocou-a
com comentários sobre a corrente de prata que pendia de seu pescoço.
- Não me lembro de tê-la visto usando esta corrente antes, Daisy - ele dissera com fingida severidade. - Será que Charles finalmente declarou suas intenções?
- O Natal desperta a boa natureza dos homens, Sr. Josh - Daisy respondera com olhar sonhador, segurando a corrente entre os dedos.
- Pois trate de garantir que ele continue a se comportar bem depois que o espírito natalino se for - ele advertira.
- É exatamente o que pretendo fazer, senhor! - Daisy assegurou.
Então, apanhou a bandeja vazia de panquecas como se fosse o colarinho de seu namorado e marchou decidida para a cozinha. Josh e Kari entreolharam-se e caíram
na gargalhada. Como não houvesse mais comida na mesa, Arne e Davey levantaram-se, agradeceram Kari pelo delicioso desjejum e correram para o jardim, a fim de brincar
na neve.
Kari recostou-se em sua cadeira, suspirando satisfeita ao vê-los sair.
- Daisy tem razão: o Natal desperta o que há de melhor em todos nós.
- Quando era criança, durante o outono, eu contava os dias que faltavam para a chegada do Natal - Josh contou-lhe. - Então, juntava aquele mesmo número
de pedrinhas e as colocava num balde, num canto do estábulo. Todos os dias eu retirava uma pedrinha e via o Natal aproximar-se. Lembro-me de um ano em que um dos
cavalos assustou-se com alguma coisa e escoiceou o balde. As pedrinhas espalharam-se por todos os lados e eu fiquei em pânico. Se eu não pudesse contar as pedrinhas,
tinha certeza de que o Natal não chegaria.
- Mas o Natal chegou.
- Claro.
- Você parece mais jovem quando sorri - Kari falou sem pensar.
Josh pareceu não importar-se com o comentário.
- Bem, isso nem sempre é bom - ele disse, transformando o sorriso em pura provocação. - Como espera que eu comande um acampamento de lenhadores, repleto
de brutamontes que têm duas vezes o meu tamanho?
- Duas vezes? - Kari perguntou, arregalando os olhos, ao mesmo tempo em que examinava a extensão dos ombros largos escondidos sob a lã vermelha.
- No mínimo - Josh afirmou solenemente. - Espere até conhecer Baby Olav. Sua sopa é servida na banheira todas as noites.
Kari riu alto.
- Não acredito! Em Stavanger, temos homens muito, muito grandes. Mas todos comem em pratos, como nós.
- Baby Olav é diferente - ele insistiu.
- Você gosta dos acampamentos, não é?
- Lá, a vida parece muito mais simples. Trabalha-se muito, come-se muito, diverte-se muito. Não há tempo ou energia de sobra para se gastar com preocupações.
Aqui, na cidade, as pessoas gastam grande parte de seu tempo preocupando-se com coisas que nem sempre são importantes.
- Bem, é o que você faz a maior parte do tempo. Tem sido tão bom vê-lo divertir-se com os garotos nesses últimos dois dias, Josh.
Josh estendeu as pernas debaixo da mesa. O café forte já exercia um efeito agradável sobre seu corpo. Sentia-se aquecido, relaxado e satisfeito pelas panquecas
deliciosas. Não permitiria que qualquer tipo de preocupação sequer se aproximasse de sua mente. Algo lhe dizia que seria capaz de passar o resto da vida ali, sentado
à mesa vazia, ouvindo o som musical da voz de Kari, conversando e rindo.
Voltou a fitar Kari e notou que sua trança apresentava um novo arranjo. Quantas maneiras diferentes ela conhecia para arrumar os cabelos sedosos, quase
prateados? Estava usando o vestido amarelo, que lhe emprestava a aparência de um luminoso raio de sol. Ou...
- Um botão-de-ouro - falou em voz alta.
- O que disse? - Kari perguntou.
- Você... com este vestido. Parece uma das delicadas flores amarelas que se vê nas montanhas, logo após o final do inverno. Linda e cheia de vida.
Kari sentiu as faces arderem.
- Ora, Josh... Que palavras mais bonitas!
- Também sei dizer coisas bonitas - ele falou com um sorriso maroto. Então, levantou-se e estendeu-lhe a mão. - Venha. Vamos ver se os botões-de-ouro murcham
na neve.
Kari sentia um cansaço agradável ao afundar-se entre as almofadas do sofá. Desde que chegara à América, aquele era o primeiro dia verdadeiramente feliz
em sua vida. E também era o primeiro dia, em um período ainda mais longo, em que ela rira como criança. Sentia os efeitos da descontração na musculatura dolorida
em torno do estômago, pois rira até não poder mais. Josh acendia a lareira e ela o observava contente. Ele havia trocado de roupa, depois de mais uma guerra de neve
com Davey e Arne, mas, ao contrário do habitual, deixara o colarinho da camisa branca desabotoado e não pusera gravata. Seus cabelos agitavam-se em ondas rebeldes,
sem a brilhantina que costumava mantê-los no lugar.
Todos haviam rido tanto durante o almoço, que Daisy viera da cozinha para passar-lhes uma descompostura pela falta de modos à mesa. No entanto, fora ela
mesma quem dera início às gargalhadas, quando trouxera o pernil de porco assado, com um sorriso maligno dirigido a Davey.
- Tenha um bom almoço de Natal, meu jovem - falara em tom sugestivo.
No mesmo instante, Davey pulara de sua cadeira, acompanhado por Arne, e correu para o estábulo, a fim de verificar as condições de Porky, o leitãozinho
que os meninos haviam usado para assustar Daisy. Agora, o animal já bastante crescido, fazia parte da família.
Uma vez assegurados de que as quatro patas de Porky continuavam firmemente acopladas a seu corpo gorducho, os dois meninos haviam retornado a seus lugares,
com expressões envergonhadas. A essa altura, Josh, Kari, Helen e Daisy, estavam prestes a explodir em gargalhadas.
Enfim, fora um dia maravilhoso Kari refletiu. E a melhor parte fora observar Josh divertir-se de verdade. Quem sabe, finalmente o peso do luto e da culpa
que o haviam consumido e contagiado a todos na casa estivesse começando a se dissipar. Talvez, o espectro da esposa falecida desaparecesse de sua vida e eles pudessem
relacionar-se como os dois jovens saudáveis que eram naturalmente atraídos um pelo outro.
Aquela altura, Kari já não tinha dúvidas quanto à atração que sentia por Josh. E, às vezes, tinha certeza de que ele sentia o mesmo. Mas, então, ele voltava
a fechar-se em si mesmo, reassumindo a expressão sombria e atormentada que o fazia parecer velho e cansado. Felizmente, tal mudança não ocorrera durante todo o dia
de Natal. E, apesar dos temores de Kari de que a data festiva se transformasse em fonte de lembranças dolorosas, ninguém sequer mencionara o nome de Corinne. Kari
havia pensado muito no pai e estava certa de que Helen acalentara muitas lembranças do marido. Mas, como se estivessem de comum acordo, nenhuma das duas ameaçou
a alegria reinante com conversas sobre a perda dos entes queridos.
A lenha fresca estalou quando Josh acendeu o fogo. O odor pungente misturou-se ao aroma do pinho usado por Kari na decoração da sala, enchendo o ambiente
de lembranças da floresta. Josh virou-se e olhou para a família reunida.
Sua mãe estava sentada na cadeira de balanço, seu lugar favorito. Ele se lembrou do último Natal, quando ela se sentara no mesmo lugar, pálida e abatida.
Na ocasião, Josh havia se perguntado se ela estaria com eles no Natal seguinte. Agora, depois de um dia movimentado, lá estava ela corada e animada, retirando seu
bordado da antiga caixa de costura.
Davey e Arne estavam deitados no chão, de barriga para baixo, jogando cartas.
Kari havia trocado o vestido amarelo por outro, cor de vinho, também dado por Helen. A tonalidade escura realçava-lhe a compleição clara e suave. Sentada,
as mãos cruzadas sobre as pernas, ela era o retrato da seriedade e dignidade, uma figura muito diferente da que o empurrara na neve do jardim, com o brilho da infância
nos olhos. Agora, os cabelos encontravam-se cuidadosamente penteados, trançados e presos em torno do rosto tranqüilo. O vestido era enfeitado por uma fina renda
cor de marfim e o decote era baixo, somente o bastante para insinuar a perfeição dos seios rijos. Ela olhava fixamente para o fogo, seu perfil assemelhando-se a
um camafeu. Josh deu-se conta de que prendera a respiração desde que pousara os olhos nela. Abalado pela própria reação, exalou o ar lentamente, como quem procura
o controle perdido, e foi sentar-se no sofá, ao lado de Kari. De sua cadeira de balanço, Helen o observava com olhar sábio.
Kari despertou do devaneio e virou-se para Josh com um sorriso, ao vê-lo sentar-se a seu lado.
- Nosso primeiro Natal na América foi maravilhoso - falou com sua voz suave. - Obrigada.
- Bem, o Natal ainda não terminou - Josh corrigiu-a. - Você me prometeu algumas canções norueguesas e eu prometi pipocas aos garotos.
Kari pousou a mão sobre o estômago.
- Depois de tudo o que comemos? Não acredito que ainda tenham apetite para pipocas! Mas, cantar... Bem, isso podemos fazer.
Ela se levantou e foi postar-se ao lado da lareira. Não estava acostumada a cantar em posição tão formal, mas decidiu que assim seria mais fácil encontrar
a voz. Afinal, não seria capaz de emitir uma nota sequer, sentada tão perto de Josh, que não desviava os olhos dos seus nem por um instante. Uma vez estabelecida
à distância necessária, não teve dificuldades em entoar uma canção simples, que falava sobre a magia do Natal. Embora somente Arne lhe compreendesse as palavras,
os outros ocupantes da sala logo se viram envoltos na lenda.
Estavam todos tão concentrados na canção, que não perceberam a chegada de visitantes no vestíbulo. Assim que Kari encerrou a última nota, Daisy abriu a
porta da sala.
- Os Pennington estão aqui, Sra. Lyman - anunciou apressada.
Josh deu um pulo, como se houvesse sido queimado por uma fagulha da lareira. Seu rosto ficou pálido.
- Os Pennington estão aqui?
Os Pennington e os Lyman haviam passado o Natal juntos, desde que Josh era criança. No entanto, não lhe ocorrera que eles haveriam de querer manter a tradição
daquela vez. Afinal, a tragédia que abalara suas vidas era ainda muito recente. E eles nem haviam comparecido à missa, na véspera. Recriminou-se por não tê-los visitado,
conforme planejara, logo após seu retorno a Milwaukee. Se houvesse passado algum tempo com eles, quem sabe a visita inesperada e indesejada pudesse ter sido evitada.
Helen inclinou-se para guardar o bordado na caixa de costura.
- Eles sempre nos visitam no dia de Natal, Joshua - ela falou serena. - Mande-os entrar, Daisy.
Kari não se moveu. Ao contrário, permaneceu parada ao lado da lareira, como uma estátua de pedra.
Davey atirou as cartas do baralho no chão.
- Venha, Arne - chamou o amigo. - Phineas chegou. Vamos mostrar-lhe o rifle.
Os dois puseram-se de pé e se dirigiram para a porta, ao mesmo tempo em que o casal Pennington entrava. O Sr. Pennington deu passagem aos meninos e, um
instante depois, as três vozes adolescentes eram tudo o que se podia ouvir na casa.
Na sala, o clima era tenso. Josh demorou alguns instantes para quebrar a imobilidade que o assaltara ao deparar com os sogros parados à porta da sala. Levantando-se,
convidou-os:
- Vernon, Myra, entrem. É bom tê-los conosco.
- Não deixamos de visitá-los um Natal sequer, desde que Homero e eu nos tornamos sócios - Vernon falou em tom seco. - Não deixaríamos de vir agora. Feliz
Natal, Helen, senhorita...
Por um instante, seus olhos encontraram o de Kari, que continuava petrificada junto à lareira. E, por mais estranho que pudesse parecer, o brilho neles
indicava sentimentos bondosos, e não a hostilidade esperada.
Então, o momento foi quebrado por Josh, que cumprimentou o sogro com um forte aperto de mão e, sem seguida, abraçou Myra com sentimentos sinceros.
- Fico contente que tenham vindo - falou surpreso ao perceber que dizia a mais pura verdade.
Os três filhos mais velhos dos Pennington entraram na sala e, depois de cumprimentar a Sra. Lyman, fitavam boquiabertos a beldade loira parada junto à lareira.
Emmett e Chester apenas a fitaram, sem encontrar palavras. Thaddeus, porém, sendo o mais velho e mais experiente, atravessou a sala e estendeu-lhe a mão.
- Não fomos formalmente apresentados, senhorita. Sou Thaddeus Pennington.
Kari aceitou a mão estendida e recompensou-lhe o gesto com um de seus mais doces sorrisos.
- É um prazer conhecê-lo.
Todos os olhos voltaram-se para ela, encantados pela tonalidade de sua voz.
Emmett e Chester acotovelaram-se na tentativa de dar a volta no grande sofá e imitar o gesto do irmão mais velho.
- Eu sou Emmett.
- E eu sou Chester.
Os dois jovens disseram seus nomes e estenderam as mãos ao mesmo tempo, provocando uma das risadas melodiosas de Kari. Imediatamente, os três Pennington
passaram a agir como se estivessem enfeitiçados pela bela norueguesa.
Recuperando-se da emoção causada pela chegada do sogro e da sogra, Josh observou a reação dos três irmãos com surpresa e uma sensação estranha na boca do
estômago.
Myra também assistia à reação dos filhos à estrangeira presente. Embora satisfeita pela sinceridade dos cumprimentos de Josh, ainda não havia superado a
mágoa de ter uma intrusa a invadir seu período de luto. E não permitiria que seus filhos esquecessem a posição duvidosa da moça.
- Helen, querida - ela falou em voz alta e determinada. - É tão bom vê-la bem disposta, principalmente depois dos momentos de aflição que todos passamos
há tão pouco tempo.
Os três filhos viraram-se para a mãe. Aquela altura, cada um sabia exatamente qual era o seu papel no drama familiar. Os sorrisos morreram em seus lábios
e Thaddeus apressou-se em aproximar-se de Myra e envolvê-la com um de seus braços fortes.
- Ora, mamãe, você prometeu não transformar o Natal em uma data de tristeza.
- Estou apenas partilhando meus sentimentos com minha amiga Helen, Thaddy. Afinal, Corinne era como uma filha para ela.
Bem, o nome fora finalmente pronunciado. Corinne. E trouxera consigo a presença espectral que assombrava cada recanto de sua vida. Afastando-se de Myra,
Josh virou-se para Vernon.
- Sente-se. Vou pedir a Daisy que nos traga alguns drinques. Com alívio, ele deixou a sala e parou no vestíbulo frio. Respirou fundo. Exceto por um breve
momento, na noite anterior, enquanto abriam os presentes, Josh afastara Corinne de seus pensamentos por completo nos últimos dois dias. Assim, permitira-se o luxo
de sentir-se em paz, de apreciar o Natal junto da família. E sentira-se verdadeiramente feliz ao lado da mãe saudável e sorridente, do irmão entusiasmado e... Kari,
alegre e serena, a melhor companheira que um homem poderia desejar. Mas chegara o momento de permitir que Corinne voltasse a ocupar o lugar que era seu por direito.
Não seria justo manter sua memória afastada por mais tempo. Ela nunca emergiria das águas do lago Erie, mas poderia ao menos emergir em seus pensamentos naquele
primeiro Natal que passaria Separada de sua família.
Com passos lentos, encaminhou-se para a cozinha, à procura de Daisy. Lembrou-se da cena dolorosa no quarto de Corinne no Natal anterior. Depois de lavarem
a louça, Davey fora se deitar e Josh fora ao quarto da esposa, esperando compreensão ou, quem sabe, uma esperança.
E a encontrara em sua cama, aos prantos. Ao tomá-la nos braços e tentar convencê-la a contar-lhe o motivo de sua aflição, ela se limitara a encolher-se
e afastá-lo. Ainda podia sentir a dor que o impedira de dormir naquela noite. Mas ele não derramara as lágrimas que o haviam sufocado. Jamais chorara por Corinne...
Nem naquela ocasião, nem na noite terrível no lago Erie... nem agora.
Os ânimos haviam mudado quando ele retornou à sala. Vernon e Myra estavam sentados ao lado de Helen e envolvidos em uma conversa sobre o péssimo estado
de conservação das docas, quando Milwaukee tornava-se uma das mais importantes cidades portuárias.
Kari havia sentado no sofá, cercada por Thaddeus à sua esquerda, Chester à direita e Emmett praticamente ajoelhado a seus pés. Suas faces apresentavam-se
mais coradas que o normal, devido à atenção masculina exagerada. No entanto, Josh pôde perceber que ela não parecia nem um pouco contrariada pela situação. Na verdade,
havia um brilho de interesse em seu olhar, que o fez ranger os dentes de raiva.
- Nós a ouvimos cantar quando chegamos - Thaddeus dizia. - Tem uma voz maravilhosa, Srta. Kari.
Foi um choque para Josh ouvir Thaddeus chamá-la pelo primeiro nome, mesmo reconhecendo que Aslaksdatter era difícil de se pronunciar e que Kari, provavelmente,
os autorizara a usar seu nome de batismo. Afinal, os Pennington podiam ser tudo, menos mal educados.
Josh olhou em volta. A menos que quisesse juntar-se a Emmett no chão, o único lugar disponível era o divã, situado na outra extremidade da sala. Taciturno,
dirigiu-se para lá. Todos os bons sentimentos que haviam florescido nos últimos dois dias desapareceram como que por encanto, em menos de dez minutos.
- Cante uma canção para nós - Chester pediu seguido pela insistência de Emmett.
Josh percebeu os olhos de Kari à procura dos seus, numa interrogação silenciosa.
- Cante para nós, se estiver disposta, é claro - ele incentivou de má vontade.
Kari olhou para os dois jovens sentados a seu lado e falou um tanto embaraçada:
- Preciso me levantar. Não conseguirei cantar com vocês tão perto de mim.
Josh respirou fundo quando viu os dois irmãos levantarem-se de um pulo e estenderem as mãos para ajudá-la. Rindo, ela aceitou as duas mãos estendidas e
levantou-se com toda a graça que lhe pertencia. Se não a conhecesse tão bem, Josh teria jurado que a inocência de Kari não passava de puro fingimento. Ela voltou
a postar-se ao lado da lareira.
- A maioria das canções que conheço são norueguesas - falou com certa timidez.
Os três Pennington não tiravam os olhos gulosos de Kari, como se ela fosse um sorvete ou algo parecido. Então, Josh concluiu que nunca gostara muito dos
irmãos Pennington.
- Tenho certeza de que gostaremos de qualquer coisa que cante - Thaddeus assegurou-a com um sorriso gentil.
Era o mais alto dos três e sua experiência nos negócios do pai haviam lhe dado a confiança e o polimento social que ainda faltava aos outros dois.
O casal Pennington e a Sra. Lyman haviam interrompido a conversa e, agora, concentravam a atenção em Kari. Helen sorria com afeição; a expressão de Vernon
era indecifrável; Myra, porém, nem se esforçava para esconder a contrariedade.
Por um instante, Josh temeu que a animosidade de Myra pudesse deixar Kari nervosa e afetar sua bela voz. Mas não demorou a perceber que seus receios não
tinham o menor fundamento. Como sempre, ao começar a cantar, Kari parecia penetrar em outro mundo. Seus olhos adquiriam um ar sonhador e sua voz carregava a canção
para dentro do coração de cada um que a ouvia.
Quando a canção terminou, Josh desviou os olhos de Kari e observou os demais. Thaddeus fitava Kari com verdadeira fascinação. Vernon exibia um sorriso triste
e Myra tinha os olhos fechados e lágrimas rolavam por suas faces.
Estava tudo errado, Josh pensou nervoso. Quantas vezes haviam se sentado na sala de música dos Pennington para ouvir os recitais de piano de Corinne? Devia
ter pensado nisso antes e impedido Kari de cantar. Ela não deveria estar ali. Ou, quem sabe, os Pennington não devessem estar ali. Ele já não sabia. De qualquer
maneira, a cena que se desenrolava em sua sala de visitas não poderia estar acontecendo.
Kari também percebeu de imediato que cometera um grave erro. Como pudera ser tão insensível? Lá estava uma pobre uma pobre mulher, que perdera a filha recentemente,
enquanto Kari cantava como se nada houvesse acontecido, como se aquela casa não estivesse de luto.
Ignorando os elogios dos três irmãos, Kari encaminhou-se para a senhora Pennington, tomou-lhe uma das mãos entre as suas e falou:
- Em meu país, dizemos que a música é a expressão da alma. Talvez sua linda filha, cuja alma foi libertada para a eternidade, possa nos ouvir. Quem sabe
ela esteja aqui, agora, e saiba que as lágrimas que a senhora derrama são de amor por ela.
Myra já não podia conter os soluços, mas retirou a mão das de Kari e endireitou-se na cadeira, sem responder. Foi Vernon quem pousou a mão gentil no ombro
de Kari e falou com um sorriso paternal:
- Você tem a voz de um anjo, criança.
Josh levantou-se. Era óbvio que sua sogra jamais se deixaria envolver pelos encantos de Kari. Aquele encontro fora um erro e, quanto mais cedo ele pusesse
um fim àquilo tudo, melhor.
- Foi muita gentileza de vocês terem vindo nos visitar, Vernon - declarou, dando a visita por encerrada.
Aliviados, todos se levantaram, com exceção de Helen, e deu-se início à despedida. Myra recuperara o controle. Inclinou-se para beijar Helen no rosto, deixou-se
abraçar por Josh, mas ignorou Kari. Tal atitude passou despercebida, uma vez que seus três filhos cobriam a moça de atenções. Thaddeus levou a mão de Kari aos lábios,
num gesto sofisticado, despertando a inveja de Chester e Emmett, bem como a profunda irritação de Josh.
- Tenho certeza de que não tardaremos a nos ver novamente, Srta. Kari - disse Thaddeus, com um brilho estranho no olhar. Então, virou-se para Josh: - Obrigado
por nos receber - agradeceu em tom seco.
- Vocês são sempre bem vindos, Thaddeus - Josh respondeu.
Assim que Phineas juntou-se a resto da família, os Pennington deixaram a residência dos Lyman. E Kari teve a impressão de que a alegria do Natal também
fora embora, junto com os visitantes.
A sala permaneceu mergulhada no silêncio por alguns momentos, até Kari falar, cheia de esperança:
- Podíamos terminar nossas canções, agora.
Josh sacudiu a cabeça, a expressão sombria e dura como pedra.
- Não. Ouvi canções demais por hoje. Tenho trabalho a fazer. E, com isso, trancou-se na biblioteca.
Kari lançou um olhar desolado para Helen, que torceu os lábios de desgosto. Davey e Arne, que haviam descido com Phineas quando os Pennington estavam de
saída, mostraram-se confusos.
- O que aconteceu? - Davey perguntou.
Kari não respondeu. O que acontecera, afinal? Num instante, a família divertia-se alegremente, desfrutando o clima mágico do Natal. No momento seguinte,
a casa parecia fria e vazia.
- Os Pennington ainda não superaram a dor da perda de Corinne - Helen explicou. - Foi difícil estarmos todos juntos, sem ela, no dia de Natal.
Davey lançou um olhar preocupado na direção da biblioteca.
- Josh também ficou triste?
- Claro. Afinal, ela era esposa dele.
- Sim, mas... - Davey parou de falar. Começava a aprender que nem sempre é sensato dizer tudo o que se pensa. - Bem, parece que o Natal terminou. Vamos,
Arne.
Depois de olhar para a irmã, também demonstrando preocupação, Arne seguiu o amigo escada acima.
- É tudo muito recente, Kari - Helen comentou, assim que ficaram sozinhas.
- Eu sei. Está tudo bem. Pelo menos, tivemos um Natal alegre por algum tempo.
- É verdade. Tivemos um Natal maravilhoso. E, agora, vou estudar aquele livro lindo que você me deu. Terei aprendido todas as canções quando você partir
para Minnesota.
- Obrigada por tudo, Helen. Jamais esquecerei meu primeiro Natal na América. E nunca me esquecerei de vocês.
As lágrimas rolaram soltas pelas faces de Kari quando ela entrou em seu quarto. Chorava por seu pai, pelo Natal, pelos Pennington, mas, acima de tudo, chorava
por Josh. No entanto, poucos minutos depois, ela enxugava o rosto com as mãos, num gesto nervoso.
Tudo estivera perfeito, desde a missa de Natal, na véspera. Haviam partilhado a festa como se formassem uma verdadeira família. Josh mostrara-se alegre,
brincalhão, carinhoso, tudo o que ele parecia fazer questão de não mostrar a ninguém.
Agora, era como se os últimos dois dias não houvessem existido. O olhar frio e taciturno retornara às feições de Josh e ele voltara a refugiar-se em sua
maldita biblioteca. Pois bem, ela não permitiria que ele estragasse o seu Natal! O almoço estivera delicioso, os presentes, lindos... Arne mostrara-se feliz como
há anos não se sentia. Ele nem sequer falara no pai ou em sua obsessão pelo Estado de Minnesota! Se Josh preferia trancar-se e afundar-se em tristezas e culpas...
Bem, isso era problema dele!
Sentou-se na cama e alisou o vestido. Nem precisara ver a expressão de admiração estampada no rosto dos três irmãos Pennington, para saber que o traje cor
de vinho lhe caíra muito bem. Tanto o corte simples, quanto a cor valorizavam seu corpo esguio. Ora, afinal de contas, havia uma porção de homens interessantes na
América. Sua felicidade não dependia exclusivamente de um viúvo, que alterava o estado de humor com a mesma facilidade com que trocava de roupa!
Aliás, disse a si mesma, sentindo a indignação crescer, talvez devesse informar o Sr. Josh Lyman sobre isso.









CAPÍTULO X







Josh somou pela quarta vez a coluna de números e obteve o quarto resultado diferente. Definitivamente, sua concentração não era das melhores para cuidar
da contabilidade. Os registros estavam atrasados, em função de sua viagem, mas os dias passados com a família haviam tornado difícil pensar em trabalho.
Por um lado, estava convencido de que deveria ter voltado para sala e continuado a comemoração do Natal. A decepção fora evidente no rosto de Kari, bem
como a resignação nos olhos de Helen. Por outro lado, a visita dos Pennington o levara a dar-se conta de que estivera muito perto de esquecer Corinne e suas responsabilidades
para com ela e seus familiares. Era como se ele houvesse deixado a esposa para trás e dado início a uma nova vida, junto a uma nova família. O que não era verdadeiro.
Kari e Arne não faziam parte de sua família e, em breve, partiriam para Minnesota.
Espreguiçou-se e bocejou. Havia acordado antes do amanhecer para levar os garotos ao bosque. Mas, em vez de sentir-se cansado ao longo do dia, sentira-se
ótimo, cheio de energia. Até poucos minutos antes. Agora, era como se o cansaço de toda uma vida pesasse em seus ombros.
De repente, a porta se abriu e Kari entrou sem pedir licença. Josh endireitou-se na cadeira, a fadiga desaparecendo num passe de mágica.
As faces de Kari exibiam a mesma tonalidade do vestido cor de vinho, enquanto seus olhos faiscavam o mais puro azul. Josh esqueceu a tristeza e observou-a
com imenso prazer. A beldade serena que assumira o controle de sua casa com eficiência e tranqüilidade voltara a ser a sua adorada viking, com seu imbatível espírito
de luta e cheia de vida. Ele sorriu e perguntou:
- Posso ajudá-la?
- Pode! - ela respondeu e sentou-se diante dele. - Pode parar de fazer sua família infeliz.
O sorriso morreu nos lábios de Josh.
- Não havia me dado conta de que estava fazendo alguém infeliz, além de mim mesmo.
Agitada demais para permanecer sentada, Kari levantou-se. Durante os anos em que cuidara do pai e criara o irmão, ela sempre confiara no bom senso para
a solução de qualquer problema. Não estava acostumada a confrontos e, muito menos, às emoções turbulentas a que vinha se expondo nos últimos tempos.
Respirou fundo, esforçando-se para manter a voz baixa e controlada.
- Pois é esse mesmo o problema. Você acha que pode se fechar em seu mundo particular, trancar-se em seu escritório ou fugir para os acampamentos, sem que
ninguém mais sofra por isso. Está se esquecendo de pensarem sua mãe... ou no seu irmão...
Ou em mim, ela gostaria dizer. Mas não tinha o direito de esperar que ele pensasse nela. Afinal, se ela havia se apaixonado, isso não queria dizer que...
Kari sentiu a força da constatação abater-se sobre ela como se fosse um golpe físico. Sim, era verdade, estava mesmo apaixonada por Josh. E que Deus a ajudasse,
pois ele ainda tinha muito que superar e resolver, antes que pudesse sequer pensar em amar de novo.
- Você só tem pensado na sua própria dor, Josh. Os outros também sofrem, com você e por você. E tudo o que sabe fazer é fechar-se para o mundo. Pensei que
o Natal alegre que tivemos pudesse fazê-lo perceber que tem participar da vida de sua família, não somente suprir suas necessidades. Mas, bastou que os Pennington
passassem alguns minutos aqui, para você mudar. Tudo mudou.
Ela parou de falar com um suspiro desanimado.
Josh vira Kari confusa, lutando para recuperar a memória. E também a vira indignada, em diversas situações. Mas jamais presenciara aquela mistura de emoções
que a deixava trêmula. Levantou-se e aproximou-se dela. .
- Não tive a intenção de magoar ninguém, Kari. Muito menos você.
A voz dele expressava arrependimento e ternura. Kari teve vontade de tomá-lo nos braços, afagar-lhe os cabelos, e assegurar-lhe que tudo ficaria bem. Mas
não podia fazer nada disso. Entrara na biblioteca determinada a sacudi-lo e arrancá-lo de sua letargia, e não podia demonstrar qualquer fraqueza agora.
- Às vezes, Josh tenho a impressão de que, se você houvesse enterrado... realmente enterrado Corinne, teria sido mais fácil superar a culpa que consome
o seu coração.
- Eu não consegui encontrá-la - ele falou num fio de voz.
- Você não pôde encontrá-la, como ninguém mais poderia. Assim como não encontraram outros trezentos corpos. Foi horrível, Josh, mas não foi culpa sua. Não
havia mais nada que pudesse fazer naquela noite. E não há mais nada que possa fazer por Corinne, agora. Ela tem sua sepultura, o SS Atlantic, no fundo do lago Erie.
A voz de Kari tornara-se trêmula. Eles permaneceram alguns instantes parados, frente a frente, imóveis e silenciosos. Então, num movimento único, os braços
de Josh a envolveram, enquanto os dela o enlaçaram.
- Ah, Kari... - ele murmurou e beijou-a com ardor.
Kari sentiu uma onda quente, quase dolorosa varrer seu corpo, enrijecendo os mamilos pressionados contra o peito largo e musculoso. Sem afastar-se nem um
centímetro, Josh levou-a até a mesa, onde ela podia apoiar-se e colou o corpo ao dela, revelando-lhe todo o desejo que o incendiava.
Josh teve a impressão de que havia esperado por aquele momento desde a primeira vez em que vira Kari, no porto em Montreal. Nada em sua experiência com
as mulheres se assemelhava ao desejo louco que aquela deusa nórdica lhe despertava. O sangue pulsava em suas veias, fazendo seu corpo todo latejar de paixão.
- Kari - murmurou, pressionando ainda mais o corpo contra o dela. - Quero você...
Suas mãos desceram pelo tecido fino do vestido, encontrando a firmeza das coxas cobertas pelos saiotes.
Kari estava quase sentada sobre a mesa, às costas apoiadas na estante de livros. Ao sentir o corpo de Josh afastara-se do seu, as mãos dele erguendo-lhe
a saia, ela recobrou a consciência.
- Josh! - sussurrou assustada, ao mesmo tempo em que cravava as palmas das mãos em seu peito, na tentativa de empurrá-lo.
Por um momento, seus protestos não surtiram efeito. Então, quando ela repetiu seu nome, ele se afastou num gesto brusco e deu um passo para trás.
- Desculpe - murmurou com voz baixa.
O desejo desaparecera de seus olhos, dando lugar à culpa que Kari já se habituara a encontrar neles.
Kari levantou-se e pôs-se a ajeitar o vestido.
- Sinto muito, eu não sei o que aconteceu... Agi como... - Agora, ele já voltara a assumir a expressão fechada e distante de sempre. - Perdoe-me, Kari.
Não sei o que me deu.
- Sinto muito, desculpe perdão... É só o que sabe dizer! - ela falou entre dentes. - Não quero que sinta muito, Josh. O seu problema é que está sempre se
desculpando!
Como sempre acontecia quando Kari ficava irritada, seu sotaque tornou-se mais carregado. Josh sentiu os músculos relaxarem. Ela era linda, mesmo quando
seus olhos faiscavam de indignação.
- Nós apenas nos beijamos - ela continuou. - Não há do que se desculpar. Um beijo não quer dizer nada. Já beijei uma porção de homens.
Kari mal podia acreditar que acabara de proferir tamanha mentira. Josh tinha mesmo o dom de despertar o pior lado de sua personalidade. Mas ela ficara tão
furiosa ao ver a expressão sombria tomar conta de seu rosto...
- Eu beijo... sempre que tenho vontade - insistiu.
Josh ergueu as sobrancelhas surpreso. Estaria ela dizendo a verdade? Kari sempre lhe parecera à própria encarnação da inocência. No entanto, ele vira com
os próprios olhos a reação que ela despertava nos homens, quando os três Pennington a cercaram de atenções.
- Muito bem - ele falou com voz macia, reprimindo a súbita pontada de ciúmes. - Já que você é tão... experiente, retiro minhas desculpas. Está contente,
agora?
Sua irritação aumentou ainda mais, quando ela o presenteou com um sorriso cínico e presunçoso. E não ajudava em nada o fato de seu corpo protestar contra
o afastamento abrupto, que lhe frustrara o desejo insano.
- Sim, estou muito contente! - ela respondeu e virou-se para a porta.
- Ah... Ótimo! - ele falou entre dentes.
Kari sentia-se exultante. Conseguira arrancar Josh de sua letargia e, quando ele ameaçara afundar-se em seu mundo novamente, ela o deixara furioso. E seus
instintos lhe diziam que a fúria era muito mais saudável que a culpa, o isolamento e a auto piedade. Embora não soubesse exatamente qual seria o próximo passo naquele
relacionamento, tinha certeza de que um sentimento mais positivo nasceria da raiva. Talvez, até, uma possibilidade de futuro para os dois.
Antes de sair, voltou a fitá-lo com um sorriso ainda mais largo.
- Foi tão bom quanto akevitú
- O que disse?
- Lembra-se de meu onkel Einar e do akevitf?
Josh assentiu com olhar confuso.
- Seu beijo me fez sentir como se houvesse bebido muito akevitt... Foi delicioso.
Então, saiu da biblioteca, deixando Josh perplexo a fitar a porta fechada.



- Quero ir agora mesmo - Arne falou em norueguês.
Fitando o rostinho molhado pelas lágrimas, Kari não teve coragem de repreendê-lo. Ao contrário, passou os braços em torno dos ombros franzinos e colou a
testa à dele.
- Ora, irmãozinho, você está magoado porque Davey e Phineas se uniram contra você. Mas foi só uma discussão. Sua amizade com eles não terminou.
- Eles são dois filhos da p...!
- Arne! Que horror! Onde aprendeu uma coisa tão feia?
Ele ergueu os olhos para fitá-la. Havia um brilho de triunfo nas profundezas azuis.
- Aprendi com Josh. Ontem, o homem lá nas docas disse a ele que não lhe cederia o espaço para embarcar a madeira. Quando o homem se foi, Josh o chamou de
filho da p...
O sorriso de Arne era límpido, as lágrimas esquecidas. Afinal, não perderia por nada no mundo a grande oportunidade de denegrir a imagem de Josh diante
dos olhos apaixonados da irmã.
- Sei... Bem, não é uma coisa que você deva repetir. Nunca mais quero ouvi-lo usar esse nome.
- Josh falou três vezes: filho da p..., filho da p..., filho da p...
- Muito bem, Arne. Já chega.
Kari observou o irmão com olhar perspicaz. O menino ainda não superara a hostilidade que sentia pelo dono da casa. A única situação em que se comportava
com naturalidade diante de Josh, era quando saíam em companhia de Davey para praticar tiro ao alvo. Nessas ocasiões, Arne chegava a demonstrar respeito e admiração
pelo mais velho.
- Não pensei que havia passado a gostar tanto de Josh, a ponto de querer imitá-lo em tudo - falou com uma pontada de ironia.
- Não quero imitá-lo em nada! - o menino apressou-se em protestar.
- Josh tem sido muito bom para nós, Arne - Kari insistiu com um suspiro.
- Então, por que ele faz você chorar? Eu ouvi...
- Não posso explicar o que se passa entre Josh e eu. Mas, seja o que for você não tem com o que se preocupar. Não estou infeliz. Dentro de poucas semanas,
iremos embora para Minnesota e acabaremos esquecendo Josh.
Arne lançou-lhe um olhar cético.
- Promete?
- Prometo. Agora, por que não sai e mostra a seus amigos que os noruegueses não aceitam opressão?
- O que é opressão?
- É quando gente grande se aproveita de gente menor.
Arne endireitou os ombros e respirou fundo.
- Está bem. Mostrarei a eles.
Kari observou-o sair da cozinha com um sorriso.
- Faço você chorar, Kari? - a voz macia perguntou da outra porta.
Ela se virou assustada. Josh estava parado na porta.
- Seu irmão disse que faço você chorar - ele insistiu.
- E por que seria verdade? Não me ouviu dizer a Arne que nós, noruegueses, não nos deixamos oprimir? - ela falou em tom de desafio e voltou a ocupar-se
com o fogão, dando-lhe as costas.
Desde o encontro na biblioteca na noite de Natal, Kari mal vira Josh à semana toda. Ele alegava ter muito trabalho atrasado em seu escritório e ela chegara
a acreditar, uma vez que ele havia passado várias semanas no acampamento. Seu coração, porém, lhe dizia que ele voltara a evitá-la. A pequena chama de esperança
que havia se acendido em seu peito naquela noite morrera, como uma flor frágil sobre a neve do inverno.
Josh observou-a ocupar-se com a comida que preparava e, por um instante, sentiu o mesmo desejo que o assaltara na noite de Natal. Sentia-se assustado com
aquilo, pois, jamais em sua vida, fora incapaz de controlar os próprios impulsos.
- Quando pedi que ficasse aqui, a última coisa que desejei foi fazê-la infeliz.
- Não estou infeliz.
- Então, do que Arne estava falando?
Ela deu de ombros, sem virar-se para fitá-lo.
- Não sei. Ele acha que deve agir como meu protetor...
- E está ansioso para tirá-la daqui e levá-la para Minnesota. Observá-la cuidando da cozinha de sua casa fazia Josh sentir um aperto no peito. Era muito
mais que desejo. Era a sensação de plenitude, de um mundo em pedaços voltando a assumir sua forma original.
Depois de apagar o fogo, Kari virou-se.
- Estamos ambos ansiosos para chegar a nosso destino - ela o corrigiu, fitando-o nos olhos.
Josh cruzou os braços sobre o peito.
- Você, também?
- Sim.
- Bem, o inverno não foi rigoroso. As estradas encontram-se em boas condições. Creio que poderemos seguir viagem dentro de um mês.
Um mês. Kari pensou que jamais um mês lhe parecera tão pouco tempo.
- Ótimo - mentiu.
- Minha mãe sentirá sua falta.
- Eu também sentirei falta dela. Helen tem sido como uma mãe para mim.
Josh parecia prestes a dizer mais alguma coisa. No entanto, limitou-se a descruzar os braços, virar-se e deixar a cozinha. Kari virou-se devagar para o
fogão, embora sua mente continuasse a vagar por Minnesota, pelas estradas cobertas de neve e pelos poderosos olhos castanhos sob cabelos ondulados, também castanhos.
As pessoas diziam que aquele era o ano sem inverno. Exceto pela pouca neve que caíra por volta do Natal, o clima mantivera-se ameno. No início de fevereiro
a grama verdinha já mostrava seus brotos. Na sala de aula da Srta. Throckton, as janelas eram mantidas entreabertas, pois o calor do velho fogão de ferro tornara-se
excessivo. Lá fora, o ar já carregava aquela ligeira umidade típica da primavera.
Para o alívio de Arne, a data da partida para os acampamentos de madeira já fora marcada. Ele havia atormentado a irmã durante o mês inteiro e tornara-se
absolutamente mudo sempre que Josh se encontrava por perto. Na verdade, tais encontros aconteciam com pouquíssima freqüência, uma vez que Josh passava o tempo todo
em seu escritório. Saía de casa, todos os dias, antes dos meninos irem para a escola e só retornava quando a louça do jantar já fora lavada.
Duas vezes por semana, Josh almoçava com os Pennington, além de visitá-los todas as tardes de sábado, como fizera durante seu noivado com Corinne. No sábado
que antecedia a sua partida, sentou-se com Vernon e Thaddeus na sala da frente, onde se realizavam as visitas formais. Chester e Emmett haviam saído para seus passeios
costumeiros e Myra retirara-se para seu quarto, alegando uma de suas constantes enxaquecas.
Talvez estivesse enganado, mas Josh tinha a impressão de que as enxaquecas de Myra não lhe dariam sossego, enquanto "aquela garota norueguesa" não fosse
embora de sua casa.
- Se a produção não aumentar este ano, teremos de fechá-la - Vernon dizia.
Apesar de sua voz soar calma e controlada, Josh pressentia a preocupação excessiva do sogro com a diminuição da produção nas minas de chumbo. Fora um negócio
muito lucrativo durante anos, mas ninguém esperava que, em apenas duas décadas, os ricos depósitos de chumbo do Wisconsin estariam se esgotando.
- É o que venho lhe dizendo nos últimos três anos, Vernon - Josh aproveitou a oportunidade. - Madeira é o grande investimento do futuro. Se tivesse um capital
maior, eu estaria abrindo novos campos de corte. Infelizmente, já investi tudo o que tinha.
Já haviam discutido o assunto antes. Até então, Vernon recusara as propostas de Josh para uma sociedade no ramo madeireiro.
- Josh mostrou-me seus livros de contabilidade e fiquei impressionado com os lucros que vem obtendo - Thaddeus dirigiu-se ao pai, contendo o entusiasmo.
- É difícil imaginar tanto dinheiro vindo de um amontoado de árvores sem vida - Vernon comentou pensativo. - Com chumbo, o negócio é diferente. Trata-se
de algo palpável, de grande valor.
- Mas o chumbo está se esgotando, Vernon - Josh corrigiu-o com paciência -, enquanto todo o oeste continua coberto de árvores, esperando para serem tombadas.
- Acho que deveríamos examinar o negócio mais de perto, papai. - Sendo o filho mais velho, Thaddeus era o único Pennington com liberdade para expor suas
opiniões.
Josh assentiu em concordância e os dois jovens aguardaram pacientemente, enquanto Vernon consultava o relógio de corrente, como se consultasse seu oráculo.
- Está quase na hora do jantar. Fica para comer conosco, Josh?
- Não, obrigado. Tenho muitas providências a tomar antes de seguir viagem.
Os três se levantaram Vernon por último. A idade começava a deixar suas marcas no grande empreendedor do passado.
- O que acha de um companheiro a mais em sua viagem para o acampamento? - o velho perguntou a queima-roupa.
Josh fitou-o com olhar cheio de dúvidas. Embora o inverno houvesse sido ameno e as estradas estivessem em boas condições, Vernon estava velho demais para
arriscar-se numa viagem daquelas.
Vernon sorriu e seus olhos ficaram cercados pelas inúmeras rugas que vincavam seu rosto.
- Não eu! Estou me referindo a Thaddeus. Ele me parece muito interessado no negócio de madeira e, talvez, já esteja na hora de vermos exatamente como tudo
funciona.
Josh foi pego de surpresa. Em condições normais, não haveria, qualquer inconveniente em levar Thaddeus ao acampamento. Mas, naquela viagem em particular...
- Sabe que vou levar os noruegueses comigo?
- Sim... - o sorriso de Vernon desapareceu. - Há algum problema?
A imagem de Thaddeus inclinado sobre a mão de Kari na noite de Natal cruzou a mente de Josh.
- Não, creio que não. - Virando-se para Thaddeus, tentou parecer jovial: - Está disposto a trocar seus livros de contabilidade por umas férias na floresta?
- Não tente me impedir! - o outro respondeu com um sorriso.
- Então, está combinado. Pretendemos partir na quarta-feira, se não for inconveniente para você.
Com o entusiasmo estampado no rosto, Thaddeus podia ser considerado um homem de boa aparência, Josh pensou. Suas feições traziam os traços aristocráticos
do leste e seus olhos eram sempre vividos e brilhantes. Sem perceber que o fazia, Josh franziu o cenho ao lembrar-se da longa viagem que teriam pela frente.
- Quarta-feira está ótimo... Quer dizer, se papai puder me substituir no escritório.
Vernon riu e deu um tapinha amigável no ombro do filho. -- Parece que não tenho escolha.
Thaddeus acompanhou Josh pelo caminho de ladrilhos até a cerca baixa e branca que distinguia a residência dos Pennington das outras na vizinhança. Pela
primeira vez, desde que haviam se conhecido, ainda meninos, Thaddeus apertou a mão do ex-companheiro de escola com verdadeiro entusiasmo.
- A propósito - falou com uma piscadela ao abrir o portão -, ficarei contente em entreter a sua hóspede norueguesa ao longo de todos aqueles quilômetros
entediantes...
- A Srta. Aslaksdatter não precisará de entretenimentos - Josh interrompeu-o em tom seco. - Ela está ansiosa para juntar-se a seus parentes em Minnesota.
Thaddeus empertigou-se e lançou um olhar especulativo para Josh.
- Compreendo.
- Bem... Então, nos vemos na quarta-feira.
- Sim, até quarta.



Kari havia decidido não pensar no momento em que tivesse de dizer adeus a Josh. A despedida de Helen, porém, não podia ser adiada. Partiriam ao amanhecer,
deixando Milwaukee para trás... para sempre.
Havia terminado de confeccionar os vestidos dos cortes que ganhara dos Lyman como presente de Natal e os empacotara juntamente aos poucos pertences que
possuía. A bagagem de Arne também era um tanto limitada. Contavam com pouco para iniciar sua nova vida. Kari pensou nos baús cuidadosamente arrumados que, agora,
jaziam em algum ponto nas profundezas do lago Erie. Bem, não havia nada a fazer. Teriam de começar do nada. Afinal, fora para isso que haviam vindo para a América.
Fora esse o sonho de seu pai durante os últimos anos de sua vida. Cabia a ela e a Arne transformá-lo em realidade.
Mas, primeiro, tinha de despedir-se das pessoas que passara a amar do fundo de seu coração. Havia abraçado Daisy depois de ajudá-la a lavar a louça do jantar
e as duas haviam chorado. Agora, seria a vez de Helen.
Kari encontrou-a sentada em seu quarto, diante da janela que dava para o velho carvalho. Ao ouvir o som da porta, a outra se virou e sorriu.
- Kari, minha querida. Estava aqui pensando que não sei como vou viver nesta casa sem você. - Estendeu a mão para Kari e puxou-a para perto de sua poltrona.
- Depois que meu Homero morreu, a casa ficou grande demais e completamente vazia. Às vezes, eu me trancava no meu quarto porque não suportava a frieza que reinava
em todos os outros cômodos. Então, você chegou e trouxe calor e alegria.
Kari ajoelhou-se ao lado da poltrona, os olhos cheios de lágrimas.
- Casas não têm vida, Helen. São as pessoas que as tornam quentes e alegres. Agora, que está se sentindo mais forte, vai poder manter sua casa sempre aquecida
e cheia de vida. Não precisará de mim para isso.
- Ah, mas vou sentir tanta falta...
- Também sentirei sua falta. Eu mal posso me lembrar da minha mãe... Nessas semanas que vivi aqui, senti como se houvesse encontrado uma parte de mim que
sempre estivera faltando.
As duas se abraçaram e ficaram assim por um longo momento.
- Se eu tivesse uma filha, gostaria que fosse igualzinha a você - Helen confessou entre soluços.
Após mais alguns minutos de silêncio, Helen voltou a falar:
- Ora, mas que tolas somos! Estragando a sua última noite com lágrimas. O que eu queria era cantar com você. Aprendi todas as canções que você escreveu
para mim. Nunca deixarei de cantá-las.
Kari aceitou o lenço que Helen lhe estendeu e secou os olhos, que pareciam ainda mais azuis pelo brilho das lágrimas.
- Fico contente em ouvir isso, pois vou me lembrar de você todos os dias da minha vida - murmurou.
- Muito bem, então vamos cantar juntas.
Kari ergueu-se do chão e foi sentar-se na cadeira diante de Helen.
- O que você gostaria de cantar? - perguntou.
- Vamos começar pela primeira. Gostaria de cantar todas elas - Helen confessou, abrindo o livro que Kari lhe dera.
Apesar de ter a garganta apertada pela terrível vontade de chorar, Kari conseguiu cantar e, após as primeiras notas, começou a sentir-se relaxada, graças
à serenidade que alcançava sempre que cantava.
Em poucos minutos, a música levantou os ânimos de ambas e as duas riam da dificuldade de Helen com algumas palavras norueguesas. Foi somente depois de haverem
cantado todas as canções, que seus sorrisos voltaram a ser forçados.
- Sabe Kari... É Josh quem vai sentir mais a sua falta - Helen falou após um instante de silêncio.
Kari sacudiu a cabeça.
- Não acredito nisso. Acho que Josh ficará aliviado quando eu estiver longe. Minha presença só serve para criar-lhe mais problemas. E ele já tem muita coisa
para resolver sozinho.
- Acontece que ele não está resolvendo nada. Continua sendo um homem de negócios cada vez mais eficiente, ganhando mais dinheiro do que Homero ganhava.
Mas meu filho nunca mais foi feliz, desde o dia em que trouxe aquela pobre criança mimada para esta casa.
Kari fitou-a com olhar interrogativo.
- Estou falando de Corinne. Joshua não teve um dia feliz em sua vida depois casar-se com ela.
- Mas, certamente... Bem, ele não a amava?
- Josh é o tipo de pessoa que sempre faz o que se espera dele. E correto, competente, sensato. Jamais algum de nós parou para pensar se era a coisa certa
ele casar-se com a única filha dos Pennington. Parecia-nos a coisa mais natural do mundo.
- Mas, ele a amava - Kari insistiu, tentando compreender o que Helen tentava lhe dizer com aquela revelação inesperada.
- Não sei... Acho que sim. De uma coisa tenho certeza: ele ficou arrasado quando ela deixou claro que era infeliz aqui. De qualquer maneira, ele não está
conseguindo superar a morte de Corinne, da mesma forma que não superou o fracasso de seu casamento. Eu gostaria de poder ajudá-lo... Ou, então, que alguém mais pudesse.
Nestas últimas semanas, pensei que... Bem, dizem que não existem tolices maiores que as esperanças de mãe.
As duas se abraçaram mais uma vez.
- Ah, minha criança - Helen voltou a falar -, desejo-lhe toda a sorte em Minnesota. Que seus dias sejam cheios de alegria. Você merece isso e muito mais.
Desta vez, Kari conseguiu conter as lágrimas. Com um último adeus, deu um longo abraço em Helen. Então, deixou-a sentada em sua poltrona, fitando o carvalho
agitar-se à brisa da noite. Foi só depois de trancar-se em seu quarto, que ela deu vazão às lágrimas que a sufocavam.









CAPÍTULO XI







Como a carruagem dos Lyman fosse frágil demais para enfrentar viagem tão longa, Josh havia comprado uma carroça resistente, construída para o uso em fazendas.
Durante uma semana inteira, ele e Davey haviam feito diversas modificações no veículo. Agora, ela se parecia com os transportes usados pelos pioneiros que cruzavam
as Grandes Planícies com freqüência cada vez maior. Toda a parte traseira fora coberta com lona, de maneira que passageiros e bagagem ficassem firmemente protegidos
contra o vento.
O grupo de viajantes aumentara. Com persistência irritante, Phineas havia implorado ao pai que o deixasse acompanhar Thaddeus ao acampamento de madeira.
Como Josh houvesse permitido que Davey perdesse alguns dias de aula, a fim de viajar junto a Ame, Vernon viu-se forçado a ceder aos pedidos do filho mais novo, desde
que Josh não tivesse objeções.
Apesar de suas dúvidas quanto à presença de Thaddeus na viagem, Josh não viu inconveniente algum em levar Phineas consigo.
Os três garotos haviam se levantado antes do amanhecer e se dedicado com grande energia à tarefa de carregar a carroça. Josh desconfiava que toda aquela
energia diminuiria consideravelmente após algumas horas na estrada tortuosa.
Thaddeus chegou pontualmente às sete horas, carregando uma mala de couro nova em folha. Josh apanhou-a e, sem comentários, atirou-a com descuido para dentro
da carroça.
Kari saiu da cozinha abraçada a Daisy, carregando um livro de gravuras que Helen lhe dera como presente de despedida. Usava a velha capa de lã azul, também
dada por Helen. O capuz era orlado de pele de coelho, emprestando-lhe um ar ainda mais doce. Thaddeus apressou-se em caminhar até ela, tirou o chapéu e curvou-se
diante de Kari. Como se estivessem em um baile, e não de partida para uma dura viagem, Josh pensou irritado.
- Bom dia, Srta. Kari. Permita-me carregar este pesado volume.
Thaddeus retirou o livro de suas mãos, antes que ela tivesse tempo para responder. A maneira como a fitava provocou-lhe intenso rubor.
- Obrigada, Sr. Pennington.
Na verdade, ela teria preferido manter consigo o presente precioso. No entanto, por cima do ombro de Thaddeus, Kari notara a expressão de profunda irritação
no rosto de Josh e não pudera deixar de sentir uma pontada de perverso prazer. Começava a descobrir que era muito bom receber atenções masculinas, principalmente
depois da culpa que se vira forçada a sentir, cada vez que se aproximava de Josh.
- Está na hora de partir - Josh anunciou em tom pouco amigável.
Ele mal podia acreditar que o simples fato da mão enluvada de Thaddeus haver tocado de leve a de Kari no momento em que ele apanhou o livro, houvesse lhe
despertado uma onda de ciúmes quase incontrolável. Estava agindo de maneira ridícula! Afinal, Kari e Thaddeus eram dois jovens bonitos, saudáveis e sem qualquer
compromisso. Portanto, um pequeno flerte não faria mal a ninguém.
O problema era Kari haver chegado de outro país há tão pouco tempo, pensou ele, enquanto verificava os arreios dos cavalos presos à carroça. Ela podia não
estar acostumada às cortes rápidas, tão comuns na nova terra. Na fronteira, os jovens apaixonavam-se e casavam-se em algumas poucas semanas. Não que Kari pudesse
interessar-se por um janota com Thaddeus Pennington, Josh afirmou para si mesmo, puxando o arreio com tanta força, que o cavalo resfolegou em protesto.
Sentindo o humor tomar-se cada vez pior, virou-se para os companheiros de viagem.
- Alguém pode viajar na frente, a meu lado.
- Ora, há espaço bastante na dianteira. Garotos, por que não se acomodam com Josh, a fim de apreciar a paisagem? Ele lhes ensinará como dirigir esta coisa
- Thaddeus apressou-se em sugerir.
Os três meninos aceitaram a sugestão de pronto. Thaddeus virou-se para Kari, que dava um último abraço em Daisy.
- A Srta. Kari e eu iremos na traseira. Assim, teremos oportunidade de nos conhecermos melhor.
O sorriso de Thaddeus iluminou-lhe as feições aristocráticas. Ao ver Kari retribuir o sorriso, Josh também notou que os olhos dela brilhavam. Sem uma palavra,
ele se virou e subiu para o banco dianteiro da carroça.
- Mal posso acreditar que vou conhecer um acampamento de madeira - Davey falou excitado. - Acha que vão me deixar cortar uma árvore, Josh? Vai mesmo nos
ensinar a dirigir a carroça?
Josh sacudiu as rédeas, incitando os cavalos a iniciar a jornada.
- Veremos Davey - respondeu sem tirar os olhos da rua.
A voz de Thaddeus podia ser ouvida, embora abafada pela lona:
- Srta. Kari gostaria que contasse tudo sobre a Noruega. De todos os imigrantes que passam por aqui, acho os noruegueses os mais inteligentes... e vocês
são um povo muito bonito, também. Isto é, se me perdoa o atrevimento de dizer-lhe tal coisa.
Josh mordeu o lábio e sacudiu as rédeas com impaciência. Os cavalos, porém, mantiveram o seu trote constante. Aquela seria, sem dúvida, uma longa viagem.




Elizabeth Stanley era uma mulher bonita. Os três filhos, mais o rigor dos invernos na fronteira do Wisconsin haviam apenas começado a deixar leves marcas
em sua bela aparência. Enfrentara com bravura os desafios de estabelecer-se na fazenda que ela e o marido Tom haviam construído em meio à floresta virgem. E ainda
possuía orgulho bastante para querer arrumar-se ao saber que Josh Lyman estava para chegar.
Josh era amigo de Tom desde os tempos em que eram todos eles jovens e despreocupados moradores de Milwaukee. Elizabeth sempre acalentara um interesse secreto
no bonito filho mais velho dos Lyman. No final, seu coração escolhera Tom, mas Deus lhe dera um bom par de olhos, e ela não sentia a menor culpa de deixar que eles
cumprissem seu dever, sempre que Josh aparecia. E, verdade fosse dita, ele era um homem para mulher nenhuma colocar defeito!
Josh mostrara-se muito diferente em suas duas últimas visitas. Por mais que se esforçasse, não conseguira entregar-se às brincadeiras das crianças, como
sempre fizera. E, também, parecera mais sério e preocupado. Claro que a tragédia da morte de Corinne teria seus efeitos, embora Elizabeth jamais houvesse conseguido
compreender aquele casamento. Conhecera Corinne Pennington quando esta era uma adolescente mimada e cheia de caprichos, sem maiores perspectivas de amadurecimento.
De qualquer maneira, devia ser terrível perder a esposa em circunstâncias tão anormais e Elizabeth supôs que Josh precisasse de mais tempo para recuperar
a energia e bom humor habituais.
Não deixara de pensar nele nem por um instante a manhã inteira. Guiada pelo sexto sentido desenvolvido ao longo dos muitos meses vividos na região isolada,
ela sabia que ele deveria chegar naquele dia. Ficou contente por haver usado seu último sabonete de óleo de coco para lavar os cabelos na noite anterior. E não se
surpreendeu quando, ao terminar de lavar a louça do almoço, ouviu o som inconfundível da carroça que se aproximava pela estrada.
Elizabeth e Tom estavam diante da confortável casa construída por eles mesmos e receberam a carroça com um grande sorriso de boas vindas. A seu lado, encontravam-se
três crianças loiras, muito parecidas entre si.
- Olá, Stanley! A civilização chegou! - Josh gritou, saltando para o chão.
- A última coisa que Josh Lyman pode trazer é civilização - Elizabeth falou com um sorriso, observando o amigo erguer seu marido do chão, num abraço de
urso. - As únicas ocasiões em que Tom se comporta como selvagem, é,quando você está por perto.
Josh e Tom riram, sem se preocupar em responder. Então, Josh virou-se para ela.
- Sei que morre de saudades de mim, Elizabeth - falou e inclinou-se para beijá-la.
Em seguida, ele voltou para a carroça e ajudou Kari a descer. Com uma pontada de inveja, Elizabeth examinou a beldade loira de traços perfeitos à sua frente.
- Esta é Kari - Josh apresentou-a, puxando-a pela mão com expressão ansiosa. Fitou o casal de amigos, como se esperasse por sua aprovação. .
Surpreso, Tom não sabia o que dizer à visitante inesperada. Elizabeth, porém, deu um passo à frente e, sorrindo, estendeu a mão à garota.
- Seja bem vinda à nossa casa, Kari.
Josh mencionara a hóspede norueguesa, em sua última visita. Agora, Elizabeth confirmava suas suspeitas de que ele guardara seus comentários com cuidado.
Era óbvio que a moça significava muito mais do que ele estivera pronto a admitir.
- É bonito, aqui - Kari elogiou, olhando em volta e apreciando o semicírculo de pinheiros que cercava a grande casa de madeira recortada por janelas de
vidro. - Parece um pouco com o lugar em que morávamos, na Noruega.
A essa altura, Tom havia se recuperado da surpresa e se adiantara para cumprimentar Kari e Thaddeus.
- Na última vez em que vi vocês, os dois batiam no meu joelho - falou com uma risada para Davey e Phineas.
Então, acenou para Arne, que permanecera ao lado da carroça, assistindo aos cumprimentos com olhos solenes.
Elizabeth apresentava os filhos a Kari.
- Este é Thomas Joshua - apontou para o mais alto. - Recebeu este nome em homenagem ao pai e seu melhor amigo. Esta é Mary Elizabeth, mas o pai a chama
de Marigold, e o apelido está pegando.
- Marigold -- a menininha loira confirmou, fitando Kari com um sorriso meigo.
- E este é Jonathan, o caçula.
Elizabeth não escondia o orgulho pelos filhos e Kari foi invadida por um sentimento de grande simpatia pela nova amiga.
- Tem uma bela família - elogiou. - Mas já esqueci quem é quem! Eles são tão parecidos, que passariam por trigêmeos.
Elizabeth riu.
- Nasceram com exatos dez meses de diferença um do outro. Tommy tem cinco anos, Marigold quatro e Jonny, três.
- E o que aconteceu depois? - Josh perguntou, com um tapa no ombro de Tom. -- Está ficando velho amigo?
- Ora, vejam quem fala! - Tom fingiu-se indignado. - Ainda não me mostrou nenhum descendente! - Mal pronunciara as palavras, Tom deu-se conta do erro que
cometera. - Desculpe Josh. Não tive a intenção...
Embora o sorriso morresse em seus lábios, a voz de Josh soou tranqüila.
- Não se preocupe Tom. Está tudo bem.
- Bem, acho que devemos entrar e beber alguma coisa - Elizabeth convidou a todos.
Mesmo sendo espaçosa, a casa pareceu pequena quando todos tomaram seus lugares na sala, para beber a cidra que Elizabeth lhes servira. Mas, o que mais chamou
a atenção de Kari, foi a sensação de que ali vivia uma família feliz. Era como se alegria aderisse às paredes, garantindo a presença constante de sorrisos e palavras
carinhosas. Sentiu-se relaxar, reconfortada pelo calor humano inesperado, depois de tantas horas na estrada.
A conversa animada só era interrompida por gritos ocasionais de uma das crianças. Mas não eram gritos desesperados. Tratava-se apenas dos protestos naturais
de crianças seguras de que seus pais não tardariam a atender seu chamado.
A pequena Marigold parecia fascinada por Kari e, a todo instante, interrompia suas brincadeiras para fitar a visitante. Finalmente, aproximou-se com passos
hesitantes e tocou de leve as trancas de Kari.
- Bonita - falou com sua vozinha fina. - Você é muito bonita.
Kari ficou encantada. Era uma família como aquela que desejava ter um dia. Sem querer, comparou os Stanley aos Lyman e ao clima que envolvia sua casa. Mesmo
quando Davey e Phineas estavam alegres e animados, faltava calor humano naquela casa. E Kari sabia que tal fato se devia, ao menos em parte, à ausência constante
de Josh. Perguntou-se se as coisas teriam sido diferentes quando Corinne era viva. Como Josh se comportava então?
Ele, certamente, não se mostrava distante agora, conversando animado com Tom. Seus olhos brilhavam como ela vira poucas vezes. Doía-lhe o peito só de olhar
para ele.
- Seus homens ainda estão empilhando as toras, Josh - Tom lhe dizia. - Terá de esperar umas duas semanas, antes de transportá-las rio abaixo. Que tal ficar
e ajudar na colheita da seiva dos bordos?
- Devo admitir que, só de imaginar as panquecas de Bethy cobertas de xarope de bordo fresquinho, me dá água na boca! - Josh respondeu com um sorriso. Virou-se
para os três garotos que, numa rara demonstração de boas maneiras, estavam sentados quietos num banco de madeira. - E então? Gostariam de ficar para ajudar a colher
a seiva?
Davey e Phineas assentiram com vigor, mas Arne sacudiu a cabeça com firmeza.
- Kari e eu vamos para Minnesota.
Apesar das repreensões de Kari, Arne tornara-se mais hostil a Josh durante a viagem.
- Todos sabem que você e Kari vão para Minnesota, Arne - Josh falou devagar. - Mas concordamos que vocês esperariam que a madeira fosse despachada, para
que eu pudesse levá-los. Se tivermos de esperar duas semanas, podemos ficar aqui, com os Stanley, ou esperar no acampamento. É o que estamos tentando decidir.
- Queremos ficar aqui! - Davey afirmou, dando uma tapa amigável no ombro do amigo. - Ora, Arne, estamos falando de xarope de bordo... Não seja desmancha-prazeres!
Arne remexeu- se no banco e olhou para a irmã, que lhe sorriu.
- Está tudo bem, Arne. Ficaremos aqui até a colheita da seiva. Então iremos para Minnesota.


O entusiasmo dos garotos diminuíra um bocado, depois de haverem subido e descido a montanha atrás da casa dos Stanley, pelo que lhes parecia ser a centésima
vez, carregando os pesados baldes de seiva de bordo. Rindo de seus gemidos, Josh mandou-os de volta para mais uma viagem.
- Precisamos de cinqüenta litros de seiva para cada litro de xarope - ele explicara. - E vocês praticamente bebem o xarope! Portanto, se pretendemos deixar
os Stanley abastecidos, depois de nossa partida, temos de trabalhar muito;
Josh, Kari e Thaddeus revezavam-se nos cuidados com o enorme caldeirão, colocado a vários metros de distância da casa. A fogueira que ardia por baixo seria
mantida acesa pelo resto da semana. O aroma adocicado permeava o ar de toda a área.
- Podemos experimentar Josh? - Davey perguntou, depois de despejar mais um balde de seiva no caldeirão. Os meninos já haviam provado da mistura e se decepcionado
ao constatar que, por enquanto, só se podia sentir uma leve indicação do que seria o sabor rico do xarope, quando pronto.
- Ainda não, Davey. Devemos deixar a mistura ferver por muitas horas.
Josh voltou a mexer a seiva com a longa pá de madeira. Era mesmo um trabalho entediante, mas ele sabia que Tom levava vários galões de xarope para Milwaukee
quando ia comprar sementes no início da primavera. O dinheiro extra obtido com a venda permitia aos Stanley certos luxos, como o moderno fogão de Elizabeth.
Tom emergiu do bosque, os braços carregados de pequenas toras, que serviriam para alimentar o fogo sob o caldeirão.
- Ora, Josh! Por que não deixa o xarope aos cuidados da moça bonita que trouxe com você e me ajuda a carregar a lenha? A vida da cidade está deixando você
mole como geléia!
Josh sorriu e virou-se para Kari. No momento em que ela segurou a pá que ele lhe estendia, Thaddeus aproximou-se apressado e pousou a mão ao lado da dela.
- Cuidaremos disto, Josh. Pode ajudar Tom - ele ofereceu. Josh observou os dois, lado a lado, mexendo a pá na mistura grossa. Formavam um belo casal...
Kari com sua pele e cabelos claros, Thaddeus de cabelos escuros e sagazes olhos castanhos. Sua expressão tornou-se sombria. Tom ajeitou a lenha na fogueira.
- Vem comigo, Josh?
- Claro - Josh respondeu e, lançando um ultimo olhar ao casal diante do caldeirão, seguiu Tom com passos largos e duros.
- O cheiro é delicioso, não é? - Kari ergueu os olhos para Thaddeus, com um de seus sorrisos cativantes.
Ele deu um passo, aproximando-se ainda mais.
- Sim, delicioso.
- O Wisconsin é muito bonito - disse ela, observando mais uma vez os pinheiros ao redor da casa.
- Não sei por que você tem mesmo de ir para Minnesota, Kari. Poderia ter uma vida muito boa em Milwaukee.
Subitamente consciente da proximidade excessiva de Thaddeus, Kari deu uma risada nervosa.
- Prometemos a meu pai que iríamos para lá. Foi o grande sonho dele antes de morrer.
Soltando o cabo da pá por um instante, ela se afastou dele.
- Seu pai não está mais com você - Thaddeus falou com voz gentil. - Agora, tem de fazer o que for melhor para você.
Kari assentiu e seus músculos relaxaram. Gostava de Thaddeus e ele estava se transformando num bom amigo.
- Eu sei, mas tenho de pensar em Arne, também. Ele sonha com a fazenda em Minnesota com a mesma intensidade que papai sonhava.
- Ele se dá muito bem com Phineas e Davey.
- Tivemos sorte em encontrar bons amigos como os Lyman... - ela hesitou por um instante, antes de acrescentar com timidez: -... e você e seu irmão.
Era raro ver o sorriso de Thaddeus estender-se aos seus olhos. Mas foi o que aconteceu e Kari devolveu-lhe o sorriso satisfeita.
- Nós é que temos sorte, Kari.
Ele parou de mexer o xarope, largou a pá e estendeu a mão na direção da dela. Antes que pudesse segurá-la, os três garotos emergiram do bosque. Desta vez,
em vez dos grandes baldes, cada um trazia uma tigela de madeira.
- Thad, Kari! - Phineas chamou. - Encontramos neve! Embora a maior parte da pouca neve do inverno já houvesse derretido, eles haviam conseguido encontrar
alguns restos, escondidos entre as árvores, no alto da montanha fria. Davey corria ao lado de Phineas.
- A Sra. Stanley nos deu as tigelas e disse que podíamos experimentar o xarope, mesmo que ainda não tenha engrossado - explicou entusiasmado.
- Já tomou xarope de bordo com neve? - Thaddeus perguntou a Kari, após desistir de tomar-lhe a mão.
Ela sacudiu a cabeça em negativa. Arne estava parado a seu lado, equilibrando sua tigela de neve.
- Pois vai experimentar a guloseima mais deliciosa do Wisconsin - Thaddeus garantiu-lhe.
Seu sorriso era quase infantil, muito diferente do contador sério que Kari conhecera na casa dos Lyman. Sem perder tempo, ele apanhou a concha que se encontrava
pendurada na armação metálica que sustentava o caldeirão, mergulhou-a no xarope e despejou seu conteúdo nas tigelas de neve.
- Precisamos de colheres - disse a Phineas.
Mas os garotos já haviam esperado demais. Sem uma palavra, os três mergulharam os dedos na mistura e os lamberam com apetite.
Com um sorriso bem humorado, Thaddeus passou o controle da pá a Kari e foi à cozinha, à procura de colheres. Poucos minutos depois, voltou trazendo duas
enormes colheres, usadas para cozinhar.
- Foi tudo o que consegui encontrar - disse.
Kari riu e experimentou da mistura na tigela de Arne.
- É uma delícia! - exclamou.
- Seria ainda melhor se o xarope estivesse mais grosso - Davey comentou com ar experiente.
- Está gostoso assim mesmo - ela afirmou, apanhando outra colherada e colocando na boca.
Ao sentir a mistura escorrer pelo queixo, ela soltou uma gargalhada.
Thaddeus esquecera a própria colher e observava Kari. Vendo a neve derreter-se de encontro à pele clara, estendeu a mão para limpar-lhe o queixo. Ela deixou
de sorrir ao sentir o toque suave. Os dedos de Thaddeus eram lisos e macios, ao contrário dos Josh. A comparação fora instantânea e involuntária.
Josh ouviu a risada de Kari antes mesmo de sair do bosque, carregando uma pilha de lenha. À medida que se aproximou, avistou-a parada muito perto de Thaddeus,
que parecia acariciar-lhe a face com ternura. Apertou as toras com mais força, tentando livrar-se da sensação de vazio que se apoderou de seu peito. Em vão. Sentindo-se
atordoado, viu o cunhado colocar uma colherada de xarope e neve na boca da sorridente Kari.
- Não posso comer mais, Thaddeus - ela protestou, sem parar de rir. - Estou começando a ficar gelada.
- Isso faz parte da experiência, Kari - ele insistiu, continuando a pressionar a colher contra seus lábios.
Josh chegou mais perto, a tempo de ouvir Thaddeus chamá-la pelo nome. Sentiu o sangue ferver nas veias.
- Josh, venha comer um pouco - Kari chamou. - Está uma delícia!
- Pensei haver dito que o xarope ainda não estava pronto.
O sorriso abandonou as feições de Kari.
- Sim, eu sei, mas Elizabeth disse aos garotos que...
- Pois eu acho que está ótimo - Thaddeus interrompeu-a. Olhando deliberadamente para Kari, acrescentou: - Não me lembro de nada mais doce.
Josh atirou a lenha na fogueira sem o menor cuidado. Fagulhas voaram e várias toras rolaram indo parar de encontro à perna de Thaddeus.
-Ei! Veja o que fez! -Thaddeus gritou, pulando para escapar das brasas. Sua calça estava suja de cinza e a bota parecia queimada.
- Sinto muito - Josh falou com calma, sentindo-se muito melhor. Então, tirou a colher da mão do cunhado e acrescentou: - É melhor você tratar de limpar
sua bela calça.
Furioso, Thaddeus dirigiu-se para a casa e Josh virou-se para Kari. O sol da tarde tornava-se fraco, transformando as tranças douradas num festival de luz.
Ela usava um dos vestidos feitos dos tecidos que ganhara no Natal. Como sempre, suas mãos habilidosas haviam operado maravilhas e o vestido de algodão verde lhe
assentava muito bem, valorizando o corpo esguio e perfeito.
- Então, está gostando do nosso xarope com neve? - ele perguntou com voz terna.
Kari estivera observando a retirada de Thaddeus com olhar preocupado. No entanto, ao ouvir o tom suave da voz de Josh, esqueceu por completo do homem que
lhe fizera companhia até há pouco. Josh a fitava com a mesma intensidade da noite de Natal.
Davey, Phineas e Arne, satisfeitos depois de comer mais do que deviam, haviam voltado para o bosque, a fim de colher mais seiva. Josh abaixou-se, apanhou
uma das tigelas abandonadas no chão, retirou dela uma colherada de xarope com neve derretida e ofereceu a Kari.
Ela aceitou e falou:
- É muito gostoso... Acho que Thaddeus ficou nervoso porque você sujou sua calça.
Josh deu um sorriso cínico.
- Não vou perder o sono por isso.
- Pensei que vocês fossem amigos.
- Nunca fui amigo de Thaddeus como sou amigo de Tom. Os Pennington sempre se consideraram superiores a todos os outros. Não é fácil ser amigo de verdade
de gente assim. E, também, sempre houve Corinne...
Com ar distraído, ele comeu uma colherada de xarope. Fora mesmo impossível manter uma relação normal com qualquer dos Pennington, a partir do momento em
que Corinne deixara claro que desejava Josh para marido. Desde então, ele fora considerado propriedade de Corinne. Quanta ironia do destino! Ela o desejara durante
tantos anos e, quando finalmente o tivera, não soubera o que fazer.
- Thaddeus e eu nunca fomos amigos de verdade, Kari - ele concluiu. - E não me ajuda em nada vê-lo bajular você o tempo todo, pôr as mãos em você...
Kari foi pega de surpresa pelo tom rude com que ele pronunciou as últimas palavras.
- Ele não pôs as mãos em mim! - defendeu-se indignada.
- Não? E o que estava fazendo quando voltei com a lenha?
Foi então que Kari reconheceu a fonte de tamanha zanga. Lembrou-se de uma vez, quando Per, o filho do pastor de Stavanger, vira Ole Halstensen acompanhá-la
da escola para casa, carregando seus livros. Per exibira o mesmo olhar que ela via agora no rosto de Josh. Foi invadida por um profundo prazer e sorriu.
- Thaddeus estava apenas me mostrando como vocês, americanos, comem esta mistura estranha.
- Parece que Thaddeus está disposto a mostrar-lhe como nós, americanos, fazemos uma porção de outras coisas.
- Toda mulher gosta de receber as atenções de um homem, Josh Lyman.
Os olhos azuis brilharam como diamantes, refletindo os raios avermelhados do sol poente. Ela respirou fundo. Os olhos de Josh baixaram para o ponto em que
o vestido se fechava sobre seus seios. Ele sentiu o sangue disparar nas veias e teve a sensação de que, se não tomasse uma atitude, acabaria explodindo.
Colocou a tigela e a colher no chão e segurou a mão de Kari.
- Venha - foi à única palavra que conseguiu pronunciar.
Com determinação, levou-a para o galpão de ferramentas. Sem uma palavra, puxou-a para o interior frio e escuro da construção de madeira e fechou a porta
atrás de si. Sem soltar-lhe a mão, obrigou-a a virar-se para ele. Puxou-a para si e beijou-a com ardor e paixão, deixando-a tonta.
- Se alguém tem de ensinar-lhe os costumes americanos, então que seja eu - ele falou com voz rouca.
Kari sentiu as toras grosseiras da parede do galpão contra suas costas. Josh pressionava o corpo contra o dela, tornando-a cativa de seu desejo. Ao mesmo
tempo, com as mãos agora livres, soltou-lhe as tranças e enroscou os dedos entre os fios sedosos. Em momento algum, seus lábios se afastaram dos dela, envolvendo-a
na sensação mágica da paixão que nenhum dos dois era capaz de negar.
Kari gemeu baixinho e Josh imobilizou-se por um breve instante. Ao constatar que o gemido fora de puro prazer, voltou às carícias com energia renovada.
O corpo de Kari estava todo colado ao seu, firme, quente, maduro. O xale que ela usava para proteger os ombros da brisa fria escorregou para o chão, sem que nenhum
dos dois percebesse.
- Sonho todas as noites com seus cabelos, viking - Josh murmurou, puxando a massa loiro-prateada para a frente, deixando-a cair como um manto sobre os seios
rijos.
A viga mestra que sustentava o telhado do galpão ultrapassava os limites da parede, deixando assim aberturas que garantiam a ventilação do ambiente. Os
raios vermelhos entravam pelas frestas, refletindo-se no teto, mas não desciam pelas paredes grosseiras. Mesmo assim, Kari podia ver as feições de Josh, o olhar
intenso com que ele a fitava, enquanto alisava com delicadeza os cabelos que lhe cobriam os seios.
- Tenho sonhado com isso desde a primeira vez em que a vi, Kari - ele murmurou num fio de voz.







CAPÍTULO XII







Josh sentia a cabeça girar. Na fria escuridão do galpão, a única fonte de calor eram seus corpos unidos. Ele chegou a pensar que se encontrava em meio a
mais um dos sonhos que lhe agitavam o sono todas as noites. Mas, desta vez, o calor era real e vinha do corpo feminino que estremecia sob seu toque.
- Josh... - Kari murmurou, fechando os olhos e deixando a cabeça cair para trás.
Ele sentiu o mamilo enrijecer sob seus dedos, a respiração dela acelerar. Deslizou a outra mão por toda a extensão do corpo pulsante de desejo, até pousá-la
logo abaixo do quadril arredondado. Puxou-a para si, moldando cada curva de seus corpos, unindo-os num só.
Os lábios dela buscaram os seus, ávidos de um prazer ainda desconhecido, mas intensamente desejado. Uma das mãos delicadas de Kari acariciava-lhe a nuca,
enquanto a outra pousava em seu peito, no ponto exato onde seu coração ameaçava explodir.
Josh esforçou-se para raciocinar com clareza. Apesar do clamor primitivo de seus instintos, ele sabia que havia embarcado numa aventura impossível. A mulher
em seus braços não era uma daquelas que os lenhadores levavam para o acampamento. Esta era Kari, cuja vida ele salvara, quando não pudera salvar a de Corinne. Kari,
que estava a caminho de uma nova vida em Minnesota e que, sem dúvida, ficaria satisfeita em ver-se livre daquele americano viúvo, inconstante e contraditório. Ele
podia não saber ao certo o que estava fazendo, mas sabia o que não podia fazer. Não podia fazer amor com ela no galpão escuro, frio e úmido, onde poderiam ser surpreendidos
a qualquer momento pelo irmão de sua falecida esposa. Se não parasse naquele exato momento, era justamente o que acabaria fazendo.
Num movimento súbito, afastou o corpo do de Kari e, no mesmo instante, a umidade gelada os envolveu. Sentiu-se grato pela escuridão impedi-lo de ver os
olhos azuis luminosos, que lhe diziam muito mais que todas as palavras.
- Não podemos fazer isso aqui, Kari - falou num tom distante, que nada tinha a ver com o fogo que ardia em seu peito.
Em questão de segundos, Kari começou a tremer de frio. Na verdade, era o frio que se instalara em seu coração que a fazia sentir-se enregelada. Abaixou-se
e tateou o chão à procura do xale.
Era a última vez que se deixava rejeitar, disse a si mesma com amargura. Parecia que, tudo o que Josh precisava fazer, era estalar os dedos para que ela
se derretesse em seu abraço, retribuindo seus beijos com um abandono que ela não sabia existir dentro de si. Até conhecê-lo. E ele só a procurava quando se sentia
sozinho, como na noite de Natal, ou como agora, atacado pelo ciúme irracional de Thaddeus. Mas ele sempre conseguia conter-se, antes de envolver-se demais, ou de
se comprometer. Mesmo no auge da paixão, quando Kari sentia-se incapaz de pensar, tornando-se inteiramente vulnerável, Josh ainda era capaz de bater em retirada,
controlar-se e fechar-se em seu mundo de culpa e recriminações.
Seus dedos finalmente tocaram o xale e ela se ergueu. Agora, a figura de Josh não passava de um vulto na escuridão. Kari respirou fundo.
- Josh Lyman, se tentar me beijar de novo, partirei para Minnesota, nem que tenha de caminhar até lá.
Com isso, passou por ele e saiu do galpão.
Josh deixou-a sair sem pronunciar uma palavra. Compreendia o que ela sentia e partilhava sua mágoa. Por outro lado, sentia-se arrasado, o coração aos pedaços.
A escuridão no galpão era total. Ao dirigir-se para a porta, ele bateu o queixo em uma ferramenta que não conseguiu identificar. A dor despertou-o da apatia
provocada pela frustração.
- Você é um grande tolo, Lyman - falou em voz alta.




O xarope de bordo ainda fervia sem parar no caldeirão, mas os garotos haviam se cansado do processo e, ao serem chamados para colher mais seiva, protestaram
com gemidos dolorosos. Haviam construído um forte na montanha atrás da casa e partiam para lá logo após o café, seguidos por seu mais novo aliado, o pequeno Thomas.
Marigold juntara-se a eles no primeiro dia, mas, algumas horas depois, voltara chorando para casa, dizendo que eles a haviam transformado em princesa índia e amarrado
a uma árvore. Dali por diante, a menina devotara toda a sua atenção à moça bonita, de voz suave e cabelos de anjo.
Estavam sentadas à sombra de um grande bordo, Marigold no colo de Kari. A menina arregalou os olhos, ouvindo atentamente à história que Kari lhe contava,
sobre o gigante malvado que lançara um feitiço sobre uma vila inteira. Como era de se esperar, o garoto Askeladden, mais uma vez, enganara o gigante, que explodira
quando atingido pela luz do sol. A Noruega parecia o país da magia.
- Snipp, snapp, snute. Sa er eventyret ute - Kari concluiu.
O rostinho angelical de Marigold iluminou-se e ela riu dos sons engraçados da língua estranha. Pressionou as mãozinhas gorduchas contra as faces de Kari
e deu-lhe um beijo molhado.
- Mais história - pediu. Kari deu-lhe um abraço.
- Tenho de ver se sua mãe precisa da minha ajuda.
- Outra história! - a menina insistiu.
- Assim vai cansar a Srta. Kari, pequena - a voz masculina assustou-as.
Ambas ergueram os olhos e depararam com Thaddeus recostado a uma árvore. Ele endireitou o corpo e, num gesto automático, limpou a manga do casaco. Ele mais
parecia estar saindo de seu escritório de contabilidade, do que dos bosques na fronteira, pensou Kari.
Depois de olhar em volta à procura de um local onde houvesse mais grama que terra, ele sentou ao lado das duas e estendeu os braços para transferir Marigold
do colo de Kari para o seu.
- Se a Srta. Kari contar todas as histórias que sabe, não sobrará nenhuma para a festa desta noite - falou com fingida seriedade.
- Festa? - os olhinhos azuis brilharam.
- Sua mãe disse que teremos uma festa esta noite, com pães de milho e xarope de bordo fresquinho. Mas, para isso, ela precisa da sua melhor ajudante. Quem
será?
- Marigold é a melhor ajudante da mamãe - a garotinha respondeu depressa.
- Tem certeza? Pensei que ela estava falando de Thomas Joshua.
A menina pôs-se de pé.
- Marigold é a melhor ajudante da mamãe! - repetiu indignada, antes de sair correndo na direção da porta da cozinha.
Thaddeus observou-a partir com um sorriso divertido.
- Ela é uma gracinha.
- Você leva jeito com crianças - Kari falou com uma pontada de admiração.
Após hesitar por um instante, ele falou:
- Ela me faz lembrar de Corinne. Eu era o único capaz de lidar com seus caprichos. Sempre dei um jeito de fazê-la pensar que tudo era idéia dela.
- Lamento muito o que aconteceu, Thaddeus. Deve sentir muita falta dela.
- Todos nós sentimos... Mas às vezes, penso que sua morte precoce estava predestinada. Corinne foi uma criança bonita... Mimada e bonita. E parecia querer
continuar a ser criança para sempre. Em algum ponto de "sua vida", ela se esqueceu que devia crescer. Jamais consegui imaginá-la como mãe de família. Não sei como
administrou a casa dos Lyman, depois de ter se casado com Josh. Ela nunca estava lá, estava sempre em nossa casa.
Kari ouviu em silêncio. Thaddeus parecia falar mais para si mesmo do que para ela.
- Talvez Corinne não tenha amadurecido porque o destino, ou Deus - ele continuou -, soubesse que ela jamais teria de ser adulta. E ela continuará a ser
a menininha bonitinha para sempre.
- Mas ela cresceu - Kari corrigiu com delicadeza. - Tornou-se esposa de Josh.
- Sim... - ele pronunciou a palavra em tom de dúvida, mas logo se pôs de pé e estendeu-lhe a mão. - Venha. Vamos buscar mais alguns baldes de seiva. Parece
que nossos irmãos desistiram de vez do trabalho.
Ela aceitou a mão estendida, levantou-se e seguiu-o para o bosque.


Da janela da cozinha, Elizabeth observou os dois jovens desaparecerem em meio às árvores e sacudiu a cabeça. A história era mesmo um enigma. Onde Josh estava
com a cabeça para levar um jovem solteiro e atraente como Thaddeus Pennington em sua viagem ao acampamento, quando era óbvio que ele mesmo estava mais que interessado
na bonita norueguesa? E por que diabos parecia tão determinado a levá-la para Minnesota e deixá-la lá? Por que simplesmente não lhe dizia o que sentia por ela? Os
dois mal haviam se olhado desde o jantar da véspera.
Talvez eles precisassem apenas passar algum tempo sozinhos, Elizabeth pensou. Com três filhos, ela mal se lembrava do luxo chamado privacidade. Como um
eco de seus pensamentos, a porta se abriu num estrondo e Tom entrou falando alto:
- Estou morto de fome!
Atrás dele, vieram os três meninos mais velhos, seguidos pelo pequeno Thomas. O barulho repentino despertou Jonathan, que dormia no berço. Ao ouvir os choramingos
do irmãozinho, Marigold começou a gritar aflita:
-Eles acordaram o bebê, mamãe! Eles acordaram o bebê!
Elizabeth massageou as têmporas por um instante, então afagou os cabelos dourados de Marigold.
- Não tem importância, querida. Já está quase na hora do almoço.
Quando terminaram o almoço, o sol já iniciava sua curva descendente. Davey, Phineas e Arne haviam concordado em entreter as crianças no quintal, depois
de Josh haver lhes permitido optar entre aquela tarefa, ou lavar os pratos. Tom levara Kari e Thaddeus para um passeio de carroça. Queria mostrar-lhes a parte ainda
não cultivada da fazenda e contar-lhes seus planos para cultivar a terra no ano seguinte. Josh declinara o convite para acompanhá-los.
- Alguém tem ajudar Elizabeth a limpar esta bagunça - dissera, apontando para a mesa em desordem.
Lá estava uma característica de Josh que Elizabeth apreciava. Ele estava sempre pronto a ajudar, independente do que precisava ser feito. Tom não era capaz
de tirar o próprio prato da mesa!
Trabalharam em silêncio por alguns instantes, até Elizabeth tocar no assunto:
- Então, quando é que vamos conversar sobre a sua norueguesa?
- Ela não é a minha norueguesa.
Elizabeth ergueu uma sobrancelha e fitou-o com cinismo. - Não é - Josh repetiu.
- Tudo bem, tudo bem. Ela não é sua. E você está disposto a deixá-la ser de Thaddeus?
Josh deu de ombros.
- Não é da minha conta.
- Sempre admirei você por considerá-lo mais esperto que a maioria dos homens, Josh Lyman. Mas acho que me enganei.
- Não acho que Kari esteja interessada em Thaddeus, Bethy. Ela e o irmão estão ansiosos para encontrar os tios, em Minnesota.
- O irmão, concordo. Mas aquela menina voltaria para Milwaukee a pé, se você lhe pedisse para ficar.
- Acho que não.
- Já perguntou a ela?
- Perguntar o que? - ele começava a ficar irritado.
- Não se faça de tolo comigo, Josh! Nós nos conhecemos há anos. Alguma vez perguntou a Kari se ela queria ficar em Milwaukee?
Josh sacudiu a cabeça e a expressão beligerante em seu rosto deu lugar a uma dor tão intensa, que Elizabeth sentiu o coração apertar-se.
- Como poderia pedir-lhe para ficar, Bethy, se Corinne morreu há apenas seis meses?
- Seis meses ou seis anos, tanto faz. Corinne está morta, Josh. Você não pode deixar a vida passar, não pode deixar de viver!
Josh sabia que Elizabeth estava certa. No entanto, sentia-se relutante em tomar uma atitude. Na verdade, temia não poder ser para Kari um marido melhor
do que fora para Corinne.
- Acho melhor deixar as coisas como estão - ele falou afinal.
- Engraçado - Elizabeth não escondeu a irritação. - Em todos esses anos em que temos sido tão amigos, nunca desconfiei que você pudesse ser covarde.
Josh rangeu os dentes por um instante e, então, deixou o rosto relaxar num sorriso.
- Ora, Bethy, você sabe muito bem que meu coração partiu-se em dois quando você preferiu casar-se com Tom, em vez de ficar comigo. Agora, não posso oferecer
meio coração a garota alguma, posso?
Elizabeth deu uma gargalhada.
- Não me venha com essa! Você nem sabia que eu existia até Tom me levar para o altar!
- Está vendo. Aí está o meu problema. No que diz respeito a mulheres, parece que fui um idiota durante a maior parte da minha vida.
- Bem, talvez seja esperto o bastante para deixar de ser idiota daqui para a frente. E podia começar, tendo uma conversa muito séria com aquela norueguesa
bonita, cuja vida você salvou, se não estou enganada.
- Se eu fizer isso, promete me deixar em paz?
- Só quero que seja feliz Josh.
- Sei disso, Bethy. Agora, saia de perto de mim, antes que eu me esqueça que tamanho tem o seu marido e lhe dê um beijo.
Elizabeth corou, apanhou um cesto cheio de roupa suja e saiu. Como o tempo estivesse ótimo, e o agradável aroma da primavera pairasse no ar, lavaria a roupa
no riacho e deixaria que o sol a secasse. Josh resolveria seus problemas, pensou. Era um homem sensato, além de ser o mais atraente de todos os que ela conhecera.
Com uma risadinha marota, desceu a trilha para o riacho.



Dois dos convidados da festa haviam caído num sono profundo e seu pai os levara para a cama. Thomas Joshua esforçava-se para não seguir o exemplo dos irmãos
mais novos, embora seus olhos apresentassem o brilho exagerado dos olhos de uma coruja e sua cabeça tombasse para a frente a intervalos regulares.
- Alguém quer comer mais alguma coisa? - Elizabeth perguntou.
Os três garotos mais velhos, deitados no chão ao lado da lareira, cobriram o estômago com as mãos e gemeram em coro.
- É sorte sua estarmos de partida, Elizabeth - Josh falou, apontando para os três estendidos no chão. - Estes três seriam capazes de comer em uma semana,
toda a sua provisão para o ano.
- Gosto de ver as pessoas comendo o que faço - Elizabeth afirmou. - Podem ficar por quanto tempo quiserem.
- Foi uma noite maravilhosa - Kari falou com um sorriso. E era verdade. Haviam comido os pãezinhos de milho feitos por Elizabeth, besuntados com o xarope
de bordo fresquinho. Então, Kari cantara diversas canções norueguesas, impressionando os Stanley com sua voz maravilhosa. Agora, como estivessem todos começando
a sentir-se sonolentos, Tom fora buscar sua harmônica.
- Se estes três preguiçosos saíssem do caminho, poderíamos dançar um pouco - ele sugeriu ao voltar do quarto.
Thaddeus, que estivera sentado ao lado de Kari à noite toda, levantou-se de um pulo, puxando-a pela mão.
- Excelente idéia! Levantem-se, garotos. Vamos dançar.
Os três obedeceram com relutância, mas, ao ouvirem os primeiros acordes da música animada, puseram-se a dançar, permitindo que o pequeno Thomas os acompanhasse.
Thaddeus não perdeu tempo e passou os braços em torno de Kari, arrastando-a num passo ligeiro e complicado. Como era esperado, Josh convidou Elizabeth com um sorriso,
embora seus olhos dardejassem para o ponto em que a mão de Thaddeus pousava, um pouco abaixo da cintura de Kari.
- É como eu lhe disse - Elizabeth sussurrou-lhe ao ouvido. - Você não pode deixar a vida passar.
- Esqueça isso, Bethy - Josh retrucou exasperado, mas não deixou de lançar olhares ciumentos na direção do jovem casal.
Ao terminar a primeira música, Tom deu início à outra, ainda mais animada. Os meninos transformaram sua dança numa confusão, que terminou com os quatro
caídos no chão, num verdadeiro nó de braços e pernas. Thaddeus, porém, conseguiu acompanhar o ritmo rápido, arrastando Kari pela sala e segurando-a mais próxima,
desta vez.
Josh e Elizabeth mantiveram uma postura mais circunspecta, embora quase perdessem o fôlego na tentativa de acompanhar o ritmo.
- Chega Tom - ela pediu rindo, quando ele terminou e se preparava para começar outra. - Dê-nos a chance de respirar.
Thaddeus ainda segurava Kari nos braços. Como fosse uma noite de festa, ela decidira usar o vestido feito da seda azul que ganhara no Natal. A tonalidade
suave realçava ainda mais a cor de seus olhos, especialmente agora, que eles brilhavam de alegria no rosto corado.
Josh retirou a mão do ombro de Elizabeth e, esforçando-se para manter o tom de voz neutro, falou:
- Elizabeth tem razão, Tom. Mais uma música como esta, e terá de nos carregar para a cama, como fez com Marigold e Jonny.
Tom sorriu e colocou a harmônica sobre a mesa.
- Lembro-me dos dias em que você podia dançar uma noite inteirassem se cansar, meu velho - dirigiu-se a Josh com uma risada.
- Bem, o tempo alcança todos nós - Josh respondeu um tanto distraído. Thaddeus ainda não largara Kari e ela não parecia nem um pouco perturbada por isso.
- Acho que é hora de irmos todos para a cama - acrescentou em voz alta.
Finalmente, Thaddeus afastou-se de Kari. Seus olhos passearam rápida e discretamente por toda a extensão do vestido de seda azul. O brilho predatório que
os iluminou foi breve, mas Josh pôde notá-lo do outro lado da sala.
Vendo Josh estreitar os olhos e apertar os lábios, Elizabeth falou alto, dirigindo-se ao grupo amontoado no chão:
- Vamos, meninos. Todos para a cama.
Com a eficiência de mãe experiente, em poucos minutos ela fez com que os quatro meninos fossem para o quarto das crianças, acompanhados por Thaddeus. Este
último fechou a porta atrás de si, com um bem humorado "Boa noite", desapercebido dos olhares sombrios que o ex-colega de escola lhe lançava. Josh dormia no sofá
da sala, enquanto Kari dormia numa cama improvisada ao lado do fogão, na cozinha.
Tom também se despediu e dirigiu-se para seu quarto. Eliza-beth demorou-se mais um pouco.
- Será que vocês dois poderiam me fazer um favor? - pediu com inocência estudada.
Josh lançou-lhe um olhar desconfiado, mas Kari respondeu de pronto:
- Claro Elizabeth. No que podemos ajudá-la?
- Ontem à noite, um dos cavalos escapou do estábulo e tivemos de caminhar até a fazenda dos Farrington para encontrá-lo, esta manhã. Eu pretendia verificar
as trancas, mas acabei me esquecendo. Poderiam me acompanhar até lá?
- Quer que eu chame Tom? - Josh perguntou surpreso pelo pedido fora de hora.
- Não, acho que nós três daremos conta - ela respondeu em tom casual, acendeu um lampião e saiu seguida por Josh e Kari.
O grande estábulo adquiriu aparência assombrosa quando a luz do lampião produziu sombras alongadas nas paredes altas. Os animais pareciam tranqüilos e mal
ergueram a cabeça à entrada dos três.
- Acho que está tudo sob controle - Josh falou.
- Poderia verificar as baias, Josh? Veja se estão todas trancadas.
- Claro - ele respondeu e pôs-se a atender ao pedido de Elizabeth.
Kari acompanhou-o na inspeção.
- Na Noruega, não fechamos as baias, mas os animais não fogem.
- Talvez os animais noruegueses não sejam tão independentes quanto os americanos - Josh sugeriu em tom de brincadeira, enquanto testava a última tranca.
- Bem, não há nada errado por aqui.
Virou-se para informar Bethy de que estava tudo trancado. Sentiu os músculos ficarem tensos ao ver o lampião no chão, diante da imensa porta de madeira
fechada.
- Bethy?
- Onde está ela? - Kari perguntou.
Josh segurou-a pelo braço e guiou-a em direção à porta.
- Bethy! - chamou furioso. - Não estou achando graça nenhuma!
Não houve resposta. Quando chegavam à porta, ouviram o barulho da tranca sendo fechada. Josh atirou-se contra a porta, tentando abri-la. Nada.
- Maldita Bethy - murmurou num fio de voz.
- O que está acontecendo, Josh? - Kari perguntou confusa. Josh virou-se e encarou-a.
- Parece que estamos trancados aqui, viking.
- Trata-se de uma brincadeira americana? - Ela parecia mais perplexa do que preocupada.
- Não estou achando a menor graça.
- Por que Elizabeth faria uma coisa dessas?
- Ela acha que precisamos conversar.
- Seria mais fácil conversar em um lugar menos frio, não acha? - ela perguntou estremecendo.
Com um suspiro, Josh apanhou o lampião e ergueu-o acima da cabeça, a fim de ter uma melhor visão do estábulo. Junto à parede oposta às baias, avistou uma
pilha de cobertores, sobre o que parecia ser um monte de feno recém-arrumado. Ao lado dos cobertores, encontrava-se uma das jarras de cerâmica, onde Elizabeth costumava
servir cidra.
- Bethy cuidou de tudo - ele falou, indicando os utensílios. Tentou abrir a porta mais uma vez. Estava definitivamente trancada. Kari permaneceu parada
a seu lado, tremendo de frio em seu fino vestido de seda. Ele estendeu-lhe a mão. - Venha. Não há motivo para morrer de frio.
Depois de estender os dois cobertores mais grossos sobre o feno, improvisando uma espécie de colchão, Josh sentou-se e indicou o lugar a seu lado para que
Kari fizesse o mesmo.
Ela sentou-se e, mesmo depois de Josh haver coberto seus ombros com um dos cobertores, não conseguiu parar de tremer.
- Desculpe. Não sei por que estou sentindo tanto frio.
- Estes cobertores estão gelados, mas logo se aquecerão em contato com o calor de seu corpo.
Na verdade, Josh já sentia o próprio corpo aquecer-se. Maldita Bethy, pensou pela décima vez. Estendeu as mãos e pôs-se a esfregar os ombros de braços de
Kari com vigor. Devagar, sentiu que ela parava de tremer e que seu corpo relaxava sob o toque de seus dedos.
- O que ela quer que conversemos?
- O que disse? - Josh estivera concentrado em impedir que a sensação provocada pelo contato de suas mãos com o corpo de Kari tomasse conta de seu corpo.
- Você disse que Elizabeth acha que precisamos conversar.
- Sim... É isso. - Ele respirou fundo, afastou-se de Kari e começou a brincar com o feno próximo a seus pés. Finalmente, falou: - Tem certeza de que quer
ir para Minnesota?
Kari fítou-o com olhar confuso.
- Que tipo de pergunta é essa? Foi para chegar a Minnesota que minha família lutou nos últimos anos.
- Eu sei. O que quero dizer é... Bem... Bethy disse... - O que estava acontecendo com ele? Nunca tivera a menor dificuldade em conversar os assuntos mais
delicados. Mesmo assim, via-se gaguejando como uma criança, incapaz de formular uma frase sequer. Mudou de posição sobre o cobertor e tentou novamente: - Alguma
vez pensou que poderia ser feliz se ficasse em Milwaukee?
A expressão nos olhos de Kari mudou de confusão para desconfiança.
- O que está realmente querendo saber, Josh Lyman?
Josh deu-se conta de que seria capaz de dar tudo o que possuía para apagar aquela desconfiança e colocar em seu lugar um daqueles sorrisos puros que ele
aprendera a amar. Estendeu a mão e acariciou-lhe a face.
- Estes últimos meses foram difíceis para nós dois, Kari. Você conhece minha situação. Ainda tenho de guardar luto por Corinne, mas, além disso... bem,
talvez um dia você compreenda a culpa que venho carregando. Talvez, um dia eu mesmo possa compreender tudo isso com maior clareza. Tudo o que sei é que, quando penso
em deixá-la em Minnesota, sinto que meu mundo vai desmoronar como aconteceu naquela noite, no Atlantic.
Kari estremeceu.
- Ainda está com frio - a voz de Josh continha a preocupação de um amante. Ele apanhou a jarra de cidra e retirou a rolha. - Beba um pouco disto. Vai ajudar
a aquecê-la.
Kari tinha a impressão de estar sonhando. Quantas vezes desejara ouvir aquelas palavras de Josh? Com que freqüência não imaginara aquela ternura em sua
voz?
Bebeu um gole da cidra e deixou que o líquido quente lhe aquecesse as entranhas. Nada daquilo era um sonho. Estavam no estábulo dos Stanley, no meio da
noite e Josh a fitava com aquele olhar faminto que ela vira outras vezes em seus olhos.
Haviam chegado àquele mesmo ponto antes. Haviam deixado que a paixão os arrastasse ao abandono para, então, Josh afastar-se e isolar-se em sua melancolia.
- Seja claro, Josh - falou com voz firme. - Está dizendo que quer que eu fique em Milwaukee?
Josh tirou a jarra de suas mãos, bebeu um longo gole, recolocou a rolha e depositou-a no chão.
- Estou dizendo, Kari Aslaksdatter, que Bethy tem razão... Tenho sido um grande tolo.
Sem o menor esforço, ele a ergueu nos braços e aconchegou-a em seu colo.
- Estou dizendo que, se Thaddeus houvesse deslizado a mão um centímetro para baixo, durante a dança de hoje, eu o teria matado.
Parou de falar para beijá-la de leve nos lábios, na testa e nos olhos.
- Estou dizendo... que o que estamos prestes a fazer foi predestinado pelos seus deuses nórdicos no momento em que pus os olhos em você pela primeira vez.
Não podemos lutar contra a vontade dos deuses, minha adorada viking.








CAPÍTULO XIII







Seus lábios se encontraram num toque suave a princípio. Então, a paixão foi crescendo e, com ela, o beijo foi se tornando mais e mais intenso. Kari sentia
as ondas quentes de prazer irradiar-se de sua boca para o resto do corpo. Já não sentia frio, apenas o abandono e o calor dos braços de Josh.
Ela afastou o cobertor dos ombros e Josh, num gesto impaciente, atirou-o para o lado. Sem parar de beijá-la, pôs-se a lutar com os botões minúsculos que
fechavam o corpete do vestido, numa linha interminável que ia do pescoço à cintura. Kari apoiou o peso do corpo no braço forte que suportava suas costas, permitindo
que as mãos dele continuassem a provocar-lhe arrepios com seus toques suaves e, ao mesmo tempo, impacientes.
- Ajude-me, Kari - ele finalmente pediu com voz rouca. E havia em sua voz um toque de carinho, ternura e promessa, que apagou as últimas dúvidas da mente
de Kari. Devagar, ela pousou as mãos sobre as dele e, juntos, desabotoaram o vestido leve.
Josh interrompeu o beijo para examinar com olhos famintos a pele clara e firme como alabastro, revelada por entre a seda.
- Quer que eu apague o lampião? - perguntou num fio de voz.
Ela sacudiu a cabeça e, então, sorriu... O sorriso que Josh esperava ansioso. Um sorriso puro, sensual, fascinante. Por um momento, ele fechou os olhos
e respirou fundo de pura felicidade. O coração parecia querer saltar do peito, provocando-lhe um aperto na garganta.
Então, ele a fitou por um longo instante, apreciando a umidade dos lábios vermelhos e cheios, o tom corado das faces perfeitas, os olhos azuis que brilhavam
como nunca. Mas seu corpo ardia de desejo, clamando para si o cumprimento da promessa implícita no calor das formas femininas. E Josh deitou-se no cobertor, agora
aquecido, levando Kari em seus braços. Ainda completamente vestidos, seus corpos moldaram-se um ao outro, eliminando qualquer distância, enquanto suas pernas se
enrascavam, transformando-os em cativos da paixão.
Com gestos lentos e delicados, Josh abriu ainda mais o corpete do vestido e acariciou os seios firmes com suas mãos calejadas. A princípio, a carícia foi
suave, mas, ao sentir Kari estremecer sob seus dedos, não resistiu e substituiu as carícias por beijos.
Kari havia enrascado os dedos nos cabelos rebeldes de Josh e massageavam-lhe a nuca. Ao sentir a pressão dos lábios quentes sobre o mamilo enrijecido de
um desejo que jamais experimentara, ela teve a impressão de que seu corpo poderia explodir na tensão do prazer. Seus sentidos turvaram-se e, por um momento, ela
foi tomada pelo pânico.
- Josh, o que devo fazer?
Josh afastou-se com relutância. Embora se esforçasse para não apressar as coisas, para não esquecer a inexperiência de Kari, havia muito que não sentia
o prazer de ter uma mulher nos braços. Apesar da recusa de Corinne em aceitá-lo como marido, ele lhe fora fiel. E, além disso, aquela era Kari, sua viking e não
era mais possível negar que a desejara desde o primeiro momento. Os outros sentimentos que o ligavam a ela haviam se desenvolvido deforma lenta e gradual, mas o
desejo quase selvagem de possuí-la fora instantâneo.
Colocou-se de joelhos e puxou-a para a mesma posição, de maneira que seus corpos ficassem colados. Envolvendo-a num abraço possessivo, cobriu os lábios
dela com os seus, mais uma vez. Suas mãos deslizavam em carícias suaves e sua boca expressava o clamor de seu corpo. E beijou-a até sentir que ambos tremiam de desejo.
Só então se afastou e, depois de livrar-se das próprias roupas, despiu-a.
O corpo de Kari era lindo, esguio e firme. Josh posicionou-se sobre ela e, devagar a penetrou. Por um breve instante, ela se encolheu de dor. Então, seus
músculos foram relaxando devagar, à medida que o prazer tornava-se maior que tudo mais. Em pouco tempo, Josh esqueceu-se da determinação de agir com calma e lentidão.
Seus movimentos foram se tornando mais rápidos, até que ele explodiu em êxtase, sentindo a terra girar ao seu redor. Kari imobilizara-se em seus braços, mas ele
demorou alguns segundos para dar-se conta de que a compulsão a que havia sucumbido a impedira de alcançar a satisfação plena. No mesmo instante, Josh foi invadido
pelo familiar sentimento de culpa, trazido pelas lembranças de suas tentativas frustradas de fazer amor com Corinne. Talvez houvesse sido mesmo sua culpa o fato
dela jamais haver conseguido conciliar-se com os aspectos físicos do casamento. Mas, assim que o pensamento se formou, ele o descartou. Nada em sua relação com Corinne
se comparava ao que sentia por Kari. As reações de sua viking haviam sido intensas, apaixonadas. Era só o final que precisava ser melhorado. E ele pretendia cuidar
disso agora mesmo.
- Você me fez perder a cabeça, viking - falou com voz tema.
Os olhos de Kari estavam cheios de lágrimas. Ele os beijou com carinho.
- Não se preocupe. Temos todo o tempo do mundo.
- Não fiz o que devia fazer Josh? - ela perguntou com timidez.
Josh beijou-a na boca.
- Você fez tudo direitinho, meu amor. Eu acabei me atrapalhando um pouco. Mas vamos resolver isso agora mesmo.
Kari sentiu um aperto no peito ao ser chamada de amor. A idéia de ser o amor de Josh encheu seu peito de alegria. Por um momento, a emoção a fez esquecer
os protestos de seu corpo excitado. Mas, logo, a excitação cresceu, à medida que Josh se dedicava à exploração de cada recanto de seu corpo, despertando-lhe sensações
cada vez mais embriagantes.
Ele interrompeu a trilha incandescente que seus beijos vinham traçando desde os lábios de Kari até o vente liso. Erguendo os olhos, sorriu satisfeito ao
deparar com os sinais inconfundíveis da paixão no rosto angelical.
- Há diversas maneiras de se resolver estas coisas, viking-
Kari parou de respirar quando Josh recomeçou a exploração erótica de seu corpo, atingindo o centro de sua feminilidade. Ela sentiu como se despertasse para
um mundo novo, desconhecido e fascinante, onde nada mais importava, senão os resultados do amor entre duas pessoas. Seu corpo passou a movimentar-se independente
de sua vontade. Já não era mais dona de si, mas sim, uma escrava da paixão. E, quando as ondas cresceram, atingindo os limites da dor, ela agarrou o cobertor estendido
sob seu corpo e liberou o grito que a sufocava.
Quando, finalmente, voltou a ter consciência de si mesma, descobriu-se novamente nos braços de Josh. Ele a segurava contra o peito, em silêncio, dando-lhe
tempo para recuperar-se do êxtase arrasador a que se entregara.
- Foi melhor agora? - ele perguntou feliz como um garoto em sua primeira vez.
- Humm... - Kari não se acreditava capaz de falar, ou de fazer qualquer movimento.
Josh acomodou-a nos braços e puxou um cobertor sobre seus corpos satisfeitos.
- Descanse. Durma um pouco se quiser.
Kari fechou os olhos e relaxou. Aos poucos, sentiu a letargia dissipar-se, dando lugar à consciência clara do que acabara de acontecer. Abriu os olhos e
sentou-se.
- Josh, não podemos ficar aqui. Temos de voltar para casa. O que vão dizer? Meu irmão...
Josh puxou-a para si.
- Não se preocupe. Voltaremos antes do amanhecer, mesmo que eu tenha de derrubar aquela porta.
O que ele não disse, foi que ouvira a tranca ser tirada da porta alguns minutos antes.
Kari fitou-o com olhar cheio de dúvida.
- Tem certeza?
- Prometo. - Depois de beijá-la mais uma vez, acrescentou: É claro que não precisa dormir se não estiver cansada. Agora, já sabe como as coisas podem acontecer
entre um homem e uma mulher... Da próxima vez, quero chegar ao final, junto com você.
- Da próxima vez? - ela perguntou com um brilho inconfundível no olhar.
- E na outra, na outra...




A primavera parecia haver chegado durante a noite. A brisa fria se tornara agradável, carregando consigo o cheiro da terra fértil. A princípio, Kari pensou
que a mudança ocorrera dentro dela, e não no clima. Mas foi Elizabeth quem puxou o assunto, enquanto as duas estendiam a roupa lavada para secar.
- Com este clima quente, as flores logo cobrirão as montanhas.
- O dia está mesmo lindo - Kari concordou, inspirando profundamente.
Elizabeth lançou-lhe um olhar maroto.
- Fico contente em ouvir isso. Pensei que estaria de péssimo humor, depois de passar a noite no estábulo.
Kari sentiu o rubor espalhar-se em suas faces. Ela e Josh haviam voltado para casa, pouco antes do amanhecer. Depois de breves momentos de sono e longos
interlúdios de amor, ambos sentiam-se cheios de energia.
- Não vou conseguir dormir - Kari confessara, pouco antes de entrarem na casa.
- Vai, sim - Josh lhe assegurara, tomando-a nos braços para um último beijo apaixonado, antes dos dois entrarem na ponta dos pés.
- Josh ficou muito zangado com você, a princípio, Elizabeth.
- Só a princípio?
- Acho que... Eu... - Kari parou de gaguejar, respirou fundo e encarou Elizabeth. - Ele não parecia zangado com ninguém quando voltamos para casa.
Notando que Kari continuava vermelha, Elizabeth riu.
- Não precisa ficar envergonhada comigo, Kari. Se eu não tivesse certeza do que se passaria entre vocês, não teria arriscado despertar a ira de Tom, para
não mencionar a de Josh, trancando vocês dois lá dentro. Josh sempre disse que meu maior defeito é ser intrometida.
Kari sentiu-se grata pela maneira como Elizabeth a colocara à vontade. .
- Josh tem sorte por ter uma amiga como você. - Josh foi muito infeliz nos últimos tempos, Kari. Tom e eu ficamos satisfeitos ao ver o sorriso radiante
em seu rosto, esta manhã.
- Tive medo que todos pudessem perceber... - Kari confessou com uma risada nervosa.
- Sei como se sente. A sensação de felicidade é tão grande, que é difícil acreditar que os outros não a vejam estampada em nosso rosto.
Como não tivesse mãe, ou irmã mais velha, Kari não estava habituada a trocar confidencias com outra mulher. E descobriu que era extremamente reconfortante,
apesar da dificuldade em encontrar as palavras adequadas.
- Só espero que Josh não venha a se arrepender. Várias vezes, antes, ele se aproximou de mim. Mas, então, voltou a afastar-se, agindo com frieza. Parece
que tem medo de ser feliz.
- Bem, ele não me pareceu nem um pouco frio, esta manhã. Os olhares que ele lançava para você já estavam derretendo a manteiga sobre a mesa.
Kari sorriu.
- Que tipo de olhares eu estava lançando para ele?
- Pensando bem... eu nem deveria ter deixado a manteiga sobre a mesa!


Os últimos dois dias com os Stanley foram cheios. Tom havia pedido a ajuda de Josh e Thaddeus em uma porção de trabalhos que ele não poderia fazer sozinho.
Elizabeth e Kari mantiveram-se ocupadas, engarrafando xarope de bordo, de manhã à noite. Não houve tempo para momentos de intimidade no estábulo, ou em qualquer
outro lugar. Não fosse pelos sorrisos ternos e sensuais que Josh lhe lançava, cada vez que seus caminhos se cruzavam, Kari teria pensado que a noite de erotismo
no estábulo não passara de um sonho.
Para o alívio de Kari, e apesar das observações de Elizabeth, ninguém parecera notar qualquer mudança em seu relacionamento com Josh. Thaddeus continuava
a puxar sua cadeira na hora das refeições e a lançar-lhe os olhares derretidos de sempre. Arne mantivera a mesma atitude truculenta com relação à Josh, que apresentara
em Milwaukee. Enfim, a incrível transformação ocorrida em seu mundo, passara desapercebida a todos, exceto Elizabeth.



Davey examinou as caixas que ainda estavam no chão.
- Tem de caber, Kari.
- Qual é o problema? - Josh perguntou, aproximando-se e provocando um leve estremecimento em Kari.
- De onde surgiu toda esta bagagem, Josh? - Davey perguntou ao irmão. - Não consigo colocar tudo isto na carroça.
Josh sorriu. Da maneira como se sentia, nada seria problema. Especialmente tendo Kari por perto, a fitá-lo com aquele novo sorriso, tão especial, nascido
no estábulo dos Stanley, duas noites antes.
- Suprimentos para o acampamento - ele respondeu distraído, sem tirar os olhos de Kari. - Por que vocês, garotos, não vão cuidar de proteger o forte que
construíram? Assim, quando voltarmos, ele ainda estará de pé. Enquanto isso, eu cuido da bagagem. Kari me dará a ajuda de que preciso.
A sugestão foi aplaudida pelos três que, sem perder tempo, correram para a montanha.
- Enfim, sós - Josh declarou em voz baixa e sugestiva. Kari riu. Elizabeth estava sentada diante da porta da cozinha, descascando batatas para o almoço.
Seus filhos brincavam alegremente a poucos metros de distância da mãe. Tom e Thaddeus encontravam-se diante do estábulo, ocupados com o acabamento de uma nova carroça
para transportar feno.
- Não acha que está sendo otimista demais? - perguntou. Josh saltou para dentro da carroça e, antes que ela se desse conta do que estava acontecendo, tomou-a
nos braços e carregou-a para o fundo da parte coberta pela lona. Sentou-se num barril de farinha e puxou-a para si, beijando-a com paixão.
O desejo contido pelos dois últimos dias roubou de Kari a capacidade de raciocínio e foi só alguns instantes mais tarde que ela se afastou com um protesto:
- Josh! Não podemos... Vão perceber!
A resposta de Josh foi puxá-la para ainda mais perto, colando todas as partes de seus corpos.
- Que vão todos para o inferno!
Os beijos tornaram-se mais intensos e, mais uma vez a atenção de Kari focalizou o calor que a união de seus corpos irradiava. Num gesto involuntário, pressionou
o corpo contra o dele, sentindo-o estremecer.
- Veja o estado em que você me deixa, viking! - ele falou com irritação fingida. - Como pode um homem, nestas condições, cuidar de seu trabalho?
- Eu também tenho encontrado dificuldade em me concentrar - ela admitiu.
Sentindo a reação intensa de Kari, Josh falou com voz rouca:
- Quando chegarmos ao acampamento tomarei a cabana do capataz para mim.
- Sim... - As mãos de Kari deslizavam pelas coxas musculosas de Josh, sem receios. - Logo, alguém vai querer saber o que estamos fazendo aqui.
- Se não tirar suas mãos de mim, eles logo vão saber o que estamos fazendo.
- Assim? - A voz dela estava carregada de inocência fingida, enquanto suas mãos deslizavam com maior atrevimento.
Com um gemido, Josh ergueu-lhe a saia.
- Eu avisei viking...
Voltou a beijá-la com paixão, acariciando-lhe as pernas nuas. Ao sentir que ela já não podia manter-se de pé, puxou-a para si e guiou-a de maneira a penetrá-la
devagar. Colocando as mãos com firmeza em sua cintura, mostrou-lhe como mover-se para aliviar a tensão de ambos. Depois de dois dias afastados, nenhum dos dois demorou
a atingir o êxtase. Após uns poucos instantes, Kari soluçou e agarrou-se a Josh com desespero, carregando-o consigo na explosão de prazer que se seguiu.
O barril de farinha balançava sob o peso dos dois.
- Nossa! - Josh murmurou, ainda sem fôlego.
Kari recobrou a consciência de vez.
- Meu Deus, Josh! E se alguém ouviu? O que vão pensar de mim?
Afastou-se depressa e pôs-se a ajeitar o vestido amarrotado. Josh a fitava com um sorriso lânguido enquanto abotoava a calça sem pressa.
- Eu avisei viking.
O rosto de Kari estava em chamas.
- Acha que alguém ouviu?
- Dizem que haviam noruegueses nestes bosques, muito antes dos primeiros ingleses chegarem aqui. Vão pensar que ouviram os ecos dos antigos guerreiros vikings!
- Ora, Josh!
Ele abraçou-a com ternura.
- Não se preocupe amor. Ninguém está prestando a atenção a nós. Se quiser, podemos começar tudo de novo...
- Josh Lyman! Fique longe de mim, seu... geitl
- O que é geitl
- É... sem-vergonha.
- Ah, sem-vergonha... - Josh adiantou-se para ela com ar predatório. - Não me lembro de tê-la ouvido reclamar há alguns minutos.
- Josh...
- Tio Josh! - A cabecinha loira de Marigold apareceu na entrada da carroça.
Josh levou um susto, mas recuperou-se de imediato.
- O que é doçura?
- Já terminou o seu cochilo?
Josh saltou para o chão.
- O que disse querida?
- Papai mandou dizer que, se já terminou o seu cochilo, ele precisa da sua ajuda.
- Ah, sim - Josh virou-se para o estábulo, de onde Tom o fitava com um sorriso malicioso.
Depois de piscar para Kari, que estava sentada no meio dal bagagem, o rosto vermelho, foi ao encontro do amigo.
- Você também tirou um cochilo, Kari? - Marigold perguntou.
- Mais ou menos.
- Eu não sabia que gente grande tirava cochilos.
Kari tomou-a nos braços e ajeitou-a em seu colo.
- Quando estamos muito cansados, às vezes, tiramos um cochilo.



A primeira vista, o acampamento não era nada promissor. As cabanas que abrigavam os lenhadores eram construções de madeira muito mal acabadas. Depois do
conforto na fazenda dos Stanley, Kari ficou desapontada com os edifícios toscos. Mas, pensou, finalmente haviam chegado. Os últimos quilômetros de estrada haviam
sido terríveis, pois a carroça teve de passar pelo caminho escorregadio usado para arrastar as toras até a margem do rio, onde ficavam empilhadas até a primavera,
quando seriam despachadas rio abaixo.
Kari aceitou a mão oferecida por Thaddeus para saltar da carroça. Tinha a impressão de que vários de seus ossos encontravam-se fora do lugar.
Davey, Phineas e Arne pareciam não haver notado nada de errado na aparência do acampamento. Seu entusiasmo só crescera.
- Podemos ver a serraria, Josh? - Davey perguntou, antes mesmo de saltar da carroça. - Phineas e eu queremos aprender tudo sobre madeira, porque um dia...
- Calma meninos. Nós mal chegamos! - Josh pediu.
Kari espreguiçou-se, certificando-se de que nada em seu corpo estava quebrado. Nesse instante, Josh aproximou-se, ignorando Thaddeus, que insistia em continuar
segurando o braço dela.
- Você está bem, viking? O último trecho de estrada não foi fácil.
- Sim, estou bem - ela respondeu com um sorriso.
Respirou fundo e sentiu o forte aroma de pinho. As árvores majestosas erguiam-se muito acima das pequenas cabanas, produzindo uma sombra gigantesca, num
dia em que não havia uma nuvem no céu.
Josh dirigiu um olhar hostil, primeiro para a mão de Thaddeus pousada no braço de Kari, então, olhou-o nos olhos. Embora Thaddeus fosse menos robusto que
Josh, os dois tinham a mesma altura. E, embora Kari fosse alta, ficava muitos centímetros abaixo dos dois. Por um instante, sentiu que eles lançavam sobre ela uma
sombra intensa, parecida à que os pinheiros lançavam sobre o acampamento. Com um gesto delicado, retirou o braço da mão de Thaddeus e afastou-se de ambos.
- Vamos descarregar a bagagem? - perguntou com voz cautelosa.
Josh e Thaddeus continuaram a fitar-se.
- Olá, Josh! Seja bem vindo!
Um homem enorme aproximou-se de braços abertos. Tudo nele parecia vermelho, a camisa de flanela xadrez, a pele rosada e os caracóis ruivos em desalinho.
Josh desviou os olhos de Thaddeus e um sorriso iluminou suas feições.
- Holstein! - Abraçou o outro com evidente prazer. - Kari, este é Holstein Ericssen, o melhor lenhador que já conheci.
Holstein estendeu a mão a Kari, que lhe sorria.
- Muito prazer, senhorita.
- E este é Thaddeus Pennington - Josh apresentou sem o mesmo entusiasmo.
- Prazer em conhecê-lo, Sr. Ericssen - Thaddeus apertou a mão do lenhador com formalidade exagerada.
Aquela altura, vários outros lenhadores haviam se aproximado e Josh cumprimentava todos eles, chamando-os pelo nome, e os apresentava aos recém-chegados.
Eram todos homens grandes e fortes, bem humorados e evidentemente impressionados pela beleza de Kari. Ela teve a impressão de estar de volta a uma das festas em
seu país, quando os jovens noruegueses faziam de tudo para impressionar as moças solteiras presentes.
Vários lenhadores eram noruegueses e ficaram satisfeitos em saber que ela falava sua língua. Arne também recebeu atenção especial. Kari riu ao vê-lo conversando
entusiasmado em norueguês. O menino parecia feliz por, ao menos uma vez, levar a melhor sobre Davey e Phineas.
- Onde está Olav? - Josh perguntou aos outros.
- O Baby não está passando muito bem, hoje - Holstein respondeu.
- Espero que não seja nada sério - Josh mostrou-se preocupado.
As doenças eram sempre encaradas com gravidade nos acampamentos. Longe da civilização e de cuidados médicos, os homens morriam das moléstias mais corriqueiras.
Mas Josh notou que seus homens esforçavam-se para conter o riso. Foi Holstein quem explicou: - Baby Olav e Cookie tiveram uma discussão há dois dias. O
chefe da cozinha não gostou quando descobriu que Olav havia entrado na despensa e comido todas as maçãs. Então, ontem, Cookie preparou um ensopado de peixe "especial"
para Baby... Usou um vidro inteiro de óleo de fígado de bacalhau. Josh fez uma careta.
- Acha que Olav vai se recuperar?
Holstein não pôde mais conter uma gargalhada.
- Ah, sim... Está apenas muito ocupado no bosque, arejando o traseiro! - Virando-se para Kari com uma piscadela amigável, desculpou-se: - Não leve a mal,
senhorita.
Josh sorriu.
- Pobre Olav.
- Se conheço o Baby, ele será o primeiro a chegar para o jantar, esta noite - Holstein assegurou.
O poder de recuperação de Olav não correspondeu às expectativas dos demais lenhadores. Assim, foi somente no café da manhã do dia seguinte, que Kari o conheceu.
Como ele se movesse com graça e leveza, ela só se deu conta de seu tamanho descomunal, quando ele se aproximou para cumprimentá-la. Seus braços tinham a grossura
de toras.
- Prazer em conhecê-la, madame - ele falou com sua voz profunda.
Kari ergueu os olhos e notou que a cabeça de Olav quase tocava as vigas do teto. Ela respondeu o cumprimento em norueguês e foi recompensada com o sorriso
mais largo que já vira.
- Espero que esteja se sentindo melhor - acrescentou em inglês.
Olav abaixou a cabeça e, apesar do tamanho, lembrou-a de Arne, quando se sentia envergonhado.
- Estou bem, obrigado.
Então, a expressão de menino desapareceu e ele lançou um olhar ameaçador para Cookie, que servia mingau de aveia para os lenhadores sentados do outro lado
do refeitório. Vendo a transformação no rosto dele, Kari não pôde deixar de pensar em Thor, o poderoso deus dos antigos nórdicos.
O café da manhã foi a primeira oportunidade de Kari para conhecer todos os lenhadores do acampamento. Foi uma refeição muito divertida. A maioria dos homens
não via uma mulher havia mais de seis meses. Assim, todos perguntavam sobre sua saúde e sua vida na Noruega. E ela ouviu mais "madames" do que ouvira em toda a sua
vida.
A princípio, Josh estava encarando as atenções de seus homens para com Kari de bom humor. Mas, quando Thaddeus sentou-se ao lado dela e Holstein ocupou
o banco do outro lado, deixando para Josh apenas um lugar na outra extremidade da mesa, ele ficou irritado. E a situação não melhorou ao longo da refeição. Os homens
nem comeram direito, todos preocupados em servir a beldade que enfeitava o acampamento. O xarope de bordo foi passado para ela umas dez vezes. Cada vez que ela bebia
um gole de café, alguém corria a encher a xícara novamente. Foram tantos os pedaços de pão com manteiga colocados à sua frente e fatias de bacon empilhadas em seu
prato, que ela ficaria comendo até o anoitecer, se decidisse aceitar tudo o que lhe davam. A cada nova oferta, ela agradecia com um de seus sorrisos cativantes e,
ao final da refeição, estavam todos apaixonados por ela.
Quando as verdadeiras montanhas de comida haviam desaparecido de sobre a mesa, foi com evidente relutância que Holstein afastou-se de Kari e chamou os homens
para o trabalho. Antes de sair, ele se despediu:
- Srta. Kari é um grande prazer ter uma dama como a senhorita em nosso acampamento.
Ela riu. Talvez fosse a descendência norueguesa que a fizesse sentir-se tão à vontade em meio aos lenhadores. Era como nas festas em Stavanger, onde ela
se sentia bonita e bem vinda.
Thaddeus, porém, parecia sentir-se mal ali. Kari notara o olhar de horror com que ele presenciara Baby Olav engolir seu café da manhã num piscar de olhos.
Ela pousou a mão de leve em seu braço e sussurrou:
- Primeiro, tenho de me acostumar ao novo mundo da América. Agora, tenho de me acostumar ao novo mundo dos lenhadores. Nem parece que estamos a poucos quilômetros
de casa, não é?
Thaddeus sorriu consciente de que ela só pretendia fazê-lo sentir-se à vontade.
- Esta refeição teria alimentado minha família por três meses.
- Só a refeição de Olav me alimentaria por três meses!
- Nunca vi um homem tão grande.
Josh interrompeu-os para perguntar-lhes, ainda com expressão fechada, se estavam prontos para a excursão pelo acampamento. Parecia ainda não haver se conformado
por ter sido impedido de sentar-se ao lado dela. No entanto, os sorrisos cheios de cumplicidade que Kari lhe lançava logo restauraram seu bom humor.
O tempo voltara a esfriar durante a noite. Os visitantes agasalharam-se para o passeio, embora os lenhadores parecessem imunes aos ventos gelados, uma vez
que trabalhavam sem casaco, vestindo calças cortadas logo abaixo dos joelhos, para se molharem na neve.
Holstein assumiu o papel de guia, explicando toda a organização do trabalho.
Primeiro, vinham os desbastadores, que escolhiam as árvores a serem cortadas. Com orgulho profissional, Holstein mostrou-lhe algumas árvores de mais de
trezentos anos.
- Vejam esta - apontou. - Tem quase dois metros e meio de diâmetro na base.
Thaddeus, Kari e os três meninos inclinaram a cabeça, na tentativa de enxergar o topo da árvore, enquanto Holstein e Josh dirigiam-se para a próxima estação.
Ali, os serradores desnudavam a terra, tombando cada árvore marcada pelos desbastadores.
- Teremos uma nevasca de primavera - Holstein anunciou, depois de examinar o céu por alguns instantes.
O grupo apressou-se na direção do rio, passando pelos lenhadores encarregados de cortar os galhos das árvores tombadas e tirar a casca dos troncos, o que
faziam com incrível rapidez, com a ajuda de uma ferramenta chamada escardilho.
Quando chegaram ao rio, a neve começava a cair. Ali, os homens empilhavam a grandes toras, preocupados com o tempo.
- Se a neve continuar a cair - Holstein gritou para eles -, interrompam o trabalho. - Então, virando-se para o grupo que o seguia, explicou: - Este é o
trabalho mais perigoso do acampamento. Se aquelas toras começam a rolar...
Não havia necessidade de dizer o que aconteceria.
A neve cobria de branco as toras, árvores e homens. Davey, Phineas e Arne, como sempre, divertiam-se com os flocos brancos e úmidos.
Holstein disse a Josh que ficava contente pela neve, pois a primavera precoce arruinara os caminhos gelados por onde as toras eram arrastadas. Agora, poderiam
levar mais madeira para o rio. No entanto, sugeriu que voltassem às cabanas, antes que a tempestade se tornasse mais densa.
Assim, passaram a maior parte do dia no refeitório, ouvindo histórias de lenhadores.
A neve cessou no meio da tarde e os homens voltaram ao trabalho. Davey, Phineas e Arne, que já começavam a ficar inquietos pelo confinamento, os acompanharam.
- Não atrapalhem o trabalho dos lenhadores - Josh advertiu-os.
Ele, Kari e Thaddeus, haviam decidido ficar no refeitório, descansando ao calor do grande fogão de ferro e bebendo cidra. O ambiente fazia Kari lembrar-se
de casa, do pai e do irmão chegando, depois de um dia duro de trabalho na neve... Começava a cochilar sentada, quando ouviu um grito irado, ao lado do refeitório.
Em seguida, a porta se abriu e Cookie entrou furioso.
- Onde está aquele gringo ladrão? - perguntou aos berros. Irlandês, Cookie jamais abandonara o gênio brigão de sua terra.
Holstein, que se juntara ao grupo para beber uma caneca de cidra, pôs-se de pé.
- Calma Cookie. O que aconteceu?
- Onde está Olav? Desta vez, vou mostrar àquele... - ninguém jamais soube das intenções de Cookie, pois, naquele exato momento, ele se apercebeu da presença
de Kari e, interrompendo a frase, voltou a perguntar em voz mais controlada: - Onde está ele?
- Do que o está acusando, desta vez? Ele ainda nem voltou da floresta! - Holstein falou em tom conciliatório.
- Bem, "alguém" roubou meu último barril de manteiga.
- O que Olav faria com um barril de manteiga? O que qualquer pessoa faria?
Como resposta à pergunta, a porta se abriu e três figuras cobertas de neve entraram correndo.
- Uau, Josh! Você devia vir conosco! - Davey mostrava-se no auge da agitação. - Arne nos ensinou a coisa mais incrível!
- Só um minuto, garotos - Josh falou, pensando em resolver o problema de Cookie.
Mas Phineas continuou a contar a grande aventura:
- É só colocar uma tábua de barril, daquelas meio curvadas, debaixo de cada pé... Saímos deslizando pela neve e fomos até a beira do rio.
Josh olhou para Kari, que empalidecera.
- As crianças fazem isso, na Noruega... Chama-se skiloping. Josh virou-se para Davey.
-- Onde conseguiram a tábuas curvadas, irmãozinho?
Os sorrisos eufóricos desapareceram do rosto dos três meninos, à medida que eles se deram conta da presença do cozinheiro, que os fitava com olhos irados.
- Bem... - Davey lançou um olhar nervoso para Phineas e Arne. - Nós as encontramos...
- Aonde?
- Foi... num barril.
Josh sacudiu a cabeça.
- Eu lhes disse para não criar qualquer tipo de problema. Agora, Cookie ficará sem manteiga até o fim da estação.
- Mas o barril estava quase vazio, Josh.
A expressão de Cookie já não apresentava a mesma fúria. Depois de examinar os meninos envergonhados por alguns minutos, falou.
- Meu Deus, não basta ter de lidar com um bando de lenhadores famintos, agora tenho crianças para me preocupar!
Os garotos abaixaram ainda mais as cabeças. A última coisa que desejavam era serem chamados de crianças, em meio a todos aqueles homens enormes.
- Desculpe senhor - Davey falou, depois de encher-se de coragem. - Não sabíamos que seria tão grave.
Embora ficasse triste ao ver a alegria dos meninos desaparecer, Josh sabia da dificuldade de se obter suprimentos para o acampamento. Não podia culpar Cookie
por sua ira.
- Está bem, garotos. Acabam de ser oficialmente escalados como os novos lavadores de pratos. Podem começar depois do jantar de hoje. Quem sabe, assim, fiquem
ocupados o bastante para se manterem longe de encrencas.
- Sim, senhor - Davey e Phineas responderam em coro, aliviados por considerarem o castigo tolerável.
Arne manteve-se calado, mas o olhar que lançou para Josh foi terrível.
Satisfeito, Cookie voltou à cozinha e Josh convidou os garotos a juntarem-se a eles perto do fogão. Mas, como os homens já estivessem voltando para o jantar,
o refeitório transformou-se em uma grande confusão durante as duas horas seguintes.
Os meninos já haviam esquecido a vergonha e, entusiasmados, contaram aos lenhadores a aventura da tarde.
- É melhor tomarem cuidado com o que comerem amanhã - advertiu Baby Olav com uma risada. - Cookie é um sujeito vingativo.
Depois do jantar, os lenhadores convidaram Thaddeus e os três meninos para jogar pôquer em seus alojamentos. O único relutante foi Thaddeus, que não viu
como recusar o convite, uma vez que fora instalado junto aos lenhadores.
- Quer que eu a acompanhe até seu quarto, Kari? - ele ofereceu.
Uma cama fora levada para a despensa de Cookie. À noite, o aposento servia de quarto para Kari. Josh instalara-se na cabana de Holstein, que também servia
de escritório para o acampamento.
- Não é preciso, obrigada - Kari respondeu com um sorriso. Podia sentir a fúria de Josh, provocada pelo tom proprietário com que Thaddeus se dirigia a ela.
Quando ficaram sozinhos, ela falou:
- Gostei muito do acampamento, Josh.
Josh deu uma gargalhada.
- Temos neve na primavera, um cozinheiro que tenta envenenar meu melhor lenhador, um capataz que não consegue tirar os olhos de você...
Kari sentiu-se corar.
- Não é verdade, Josh. O Sr. Ericssen tem sido um perfeito cavalheiro.
- Quando não é Holstein, com seus olhos de lobo, é Pennington, com seus olhos de cordeiro!
Kari riu.
- Pois são somente os seus olhos que me interessam.
Josh sentiu o corpo reagir imediatamente à declaração inesperada.
- Venha cá, viking - ele chamou, puxando-a para o seu colo. - Estou precisando de um beijo.







CAPÍTULO XIV






A neve da véspera dera lugar a um vento forte, provocando reclamações até mesmo dos lenhadores, que pareciam nunca sentir frio. Josh e Holstein haviam planejado
visitar as terras que pretendiam explorar na estação seguinte, rio acima. Ignorando a sugestão de vários homens, que insistiam que deveriam esperar que o rio baixasse,
os dois embarcaram no pequeno bote.
Como eles não retornassem para o almoço, Kari começou a preocupar-se. Não era um dia indicado para passeios pelo rio.
- Onde acha que eles estão Thaddeus? - perguntou o medo aparente em sua voz.
Thaddeus mostrou-se irritado.
- Até o grandalhão do Olav recomendou que ficassem, mas Josh sempre foi metido a valentão!
Kari levantou-se.
- Acha que devemos fazer alguma coisa?
- O que podemos fazer? Estão no rio...
No rio... Kari fechou os olhos e a imagem da água ameaçadora fechando-se à sua volta invadiu-lhe a mente.
- Tenho de ir, Thaddeus - falou atordoada. - Vejo você mais tarde.
Antes que Thaddeus conseguisse levantar-se, ela já saíra do refeitório.
- Kari, espere! Aonde vai? - ele chamou, mas o vento bateu a porta e ela se fora.



O medo tomou conta de Kari, enquanto ela descia a trilha para o rio.
- Josh - ela repetia sem parar. - Volte para mim, Josh. Só interrompeu a caminhada desesperada quando chegou à margem. A água do rio adquirira uma tonalidade
quase negra sob o céu cinzento. Ela observou o movimento rápido da correnteza, sentindo o estômago contorcer-se em náuseas. O som da água cedeu lugar ao zumbido
insuportável em seus ouvidos. Seus olhos estavam fixos na correnteza implacável. Ela oscilou e agarrou-se a um galho de árvore, tentando recuperar o equilíbrio.
Então, seus dedos gelados escorregaram, e ela caiu no rio. A água fria envolveu-a. Kari tentou respirar, mas sua garganta encheu-se de água. O rio transformou-se
num monstro devorador e, em pânico, ela se rendeu à sua força e entregou-se à escuridão da inconsciência.
- Kari! - Thaddeus gritou com toda a força de seus pulmões. Havia saído atrás dela, pela trilha, mas, ao chegar à margem do rio, não havia o menor sinal
de Kari. Seus gritos atraíram os lenhadores que trabalhavam nas imediações.
- O que aconteceu? - Olav perguntou.
- Kari... Acho que ela veio à procura de Josh e do Sr. Ericssen. Não sei onde ela está.
Olav esquadrinhou o rio, então gritou:
- Ali! - Apontava para um aglomerado de toras alguns metros abaixo de onde estavam.
A princípio, Thaddeus só distinguiu o amontoado de toras. Então, avistou a lã azul do casaco de Kari.
- Meu bom Deus!
Antes que Thaddeus sequer pensasse no que fazer, Olav entrara no rio e encaminhava-se apressado para onde o corpo de Kari jazia inerte. Com a água pela
cintura, ele desafiou a força da correnteza e, um instante depois, voltava, trazendo Kari nos braços.
- Ela está viva? - Thaddeus perguntou da margem. Olav não respondeu. Era óbvio que, mesmo para um homem com a força de Olav, a correnteza era um grande
desafio. Mesmo assim, não demorou a atingir a margem.
Thaddeus e os outros o ajudaram a sair da água e tiraram Kari de seus braços, colocando-a no chão. Knud Knudsen, um dos noruegueses que haviam ficado radiantes
com a presença da bela conterrânea no acampamento, ajoelhou-se e pousou a mão na garganta de Kari.
- Ela está respirando!
Thaddeus fechou os olhos, aliviado.
- Graças a Deus. Temos de levá-la para as cabanas. Precisamos aquecê-la.
Olav, que desabara ao lado de Kari, tentou erguer-se, mas Thaddeus o impediu.
- Você não, Olav. Já fez sua parte. - Uma vez superado o medo inicial, a voz do jovem Pennington reassumiu o tom de comando usual: - Vocês... ajudem Olav
até sua cabana e vejam que ele tome um banho quente. Vocês dois, digam a Cookie que precisaremos de muito café bem quente.
Kari continuava inconsciente. Thaddeus começava a erguê-la do chão, quando ouviu gritos vindos do rio. O bote aproximava-se da margem, trazendo Holstein
e Josh, que gritou mais uma vez:
- O que está acontecendo?
Com uma manobra do remo, Holstein levou o barco até a margem, na direção do grupo de homens reunido em torno de Kari.
- Kari! - Josh gritou e, saltando do bote ainda em movimento, subiu correndo pelo barranco.
Thaddeus empurrou-o e tomou Kari em seus braços.
- Deixe-a em paz - falou irritado. - Nada disto teria acontecido se você não se metesse a sair pelo rio num dia como o de hoje!
Josh parecia não ter ouvido suas palavras. Com expressão sombria, estendeu os braços para pegá-la.
- Deixe-me levá-la.
Thaddeus segurou-a com mais força e tirou Josh do caminho com o ombro.
- Já disse para deixá-la em paz, Lyman. - repetiu irado. Então, fitando Josh nos olhos, acrescentou: - Não basta haver matado uma mulher?
Josh reagiu como se houvesse levado um forte golpe. O sangue abandonou-lhe as faces, dando lugar à palidez mortal. Thaddeus ignorou-o e dirigiu-se para
as barracas, levando Kari consigo.
Holstein amarrou o barco e aproximou-se de Josh, que continuava imóvel. Segurando o ombro do patrão e amigo, o capataz falou em voz grave:
- Ele não falou por mal.
Josh virou-se para fitá-lo, mas seus olhos estavam vidrados. Holstein segurou-lhe o braço e levou-o para as barracas.
Kari sentia-se como se houvesse bebido toda a água do oceano. Sua cabeça latejava e o estômago revirava-se em náuseas. Felizmente, sua mente estava clara
e ela logo se lembrou de que fora até o rio à procura de Josh. Abriu os olhos e deparou com Thaddeus sentado ao lado da cama.
- Josh voltou? - perguntou com voz fraca.
- Ele está bem - a resposta soou irritada.
Ela suspirou aliviada e voltou a fechar os olhos.
- O que aconteceu comigo?
- Você caiu no rio. Olav salvou sua vida. Não fosse por ele...
- Onde ele está?
- Os homens o levaram para a cabana, deram-lhe um banho quente e bastante café. Mas você conhece Olav, ele vai...
- Não, Olav não... Josh. Onde ele está?
Como Thaddeus não respondesse, Kari abriu os olhos novamente e, desta vez, eles mostravam imenso pânico.
- O que foi Thaddeus? Está me dizendo a verdade? Está tudo bem com Josh?
- Juro que ele e Holstein voltaram sem um arranhão.
Ela fez um esforço para sentar-se.
- Então, por que não está aqui? Algo está errado... ele está ferido...
- Acalme-se - ele falou, desviando os olhos. - Josh deve estar magoado por que... Bem, eu lhe disse o que não devia. Estava tão preocupado com você, que
acabei dirigindo minha raiva contra Josh.
- O que disse a ele?
Thaddeus corou.
- Acusei-o pela morte de Corinne.
- Oh, Thaddeus, como pôde fazer isso?
- Sinto muito, Kari.
- Tenho de encontrá-lo. Preciso falar com ele - ela declarou decidida e pôs-se de pé.
Mas descobriu que ainda estava muito tonta e fraca.
Thaddeus segurou-a e ajudou-a a sentar-se na cama.
- É melhor descansar, Kari. Não está em condições de levantar-se. Além do mais, Holstein disse que, assim que Josh soube que você estava fora de perigo,
saiu para uma caminhada pela floresta. Disse que gostaria de ficar sozinho.
Kari sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.
- Pobre Josh - murmurou.
Voltou a deitar-se. Sentia-se muito cansada. Mas tinha de levantar-se e encontrar Josh. Precisava conversar com ele, garantir que tudo voltasse ao normal.
Só precisaria conversar com ele... Seus olhos se fecharam.
Ao despertar, sozinha no quarto improvisado, Kari deu-se conta de que dormira durante horas. Seu primeiro pensamento foi para Josh. Apesar de seu corpo
não parecer disposto a cooperar, ela precisava levantar-se e procurá-lo.
Sentou-se devagar, sentindo a força retornar gradualmente. Então, pôs o velho vestido amarelo de Helen, que se tornara seu favorito e, como não encontrasse
o casaco, embrulhou-se no cobertor e saiu.
O sol voltara a brilhar, derretendo a neve e formando pequenos fios de água que recortavam a paisagem. O vento da véspera ainda soprava, embora não tão
forte.
Kari encontrou Josh fechado na cabana de Holstein, trabalhando sobre a mesa de pinho. Foi invadida por uma sensação de desespero ao vê-lo sentado ali, os
ombros tensos, a atenção concentrada no maldito livro de contabilidade. Era como se houvessem sido transportados de volta à biblioteca da casa dos Lyman, em Milwaukee.
Teriam voltado ao ponto de partida? Tudo o que se passara entre eles nos últimos dias perdera o significado?
Ao vê-la entrar, ele ergueu os olhos e sorriu sem alegria.
- Graças a Deus, você está melhor - falou, embora sua voz não apresentasse o entusiasmo que ela esperava.
- Estou preocupada com você - ela falou, aproximando-se da mesa. - Achei estranho não ter ido me visitar, ontem.
- Thaddeus eslava cuidando de você.
- Não era Thaddeus que eu esperava encontrar quando acordei.
Josh suspirou e recostou-se na cadeira.
- Ele seria uma escolha melhor.
Kari sentiu a raiva aquecê-la. Como ele se atrevia a fazer aquilo de novo? Como podia recolher-se, mais uma vez, ao seu mundo de culpa e auto-piedade?
- Fiz minha escolha na fazenda dos Stanley. Ou você já se esqueceu?
- Não me esqueci.
- Uma mulher só faz essa escolha uma vez. Eu fiz a minha por amor e não me arrependo, nem mudei de idéia. Se você mudou... fale de uma vez, em vez de agir
como um reddhare... um...
- Um covarde - ele terminou por ela.
- Isso mesmo, como um covarde! - ela confirmou e saiu, batendo a porta atrás de si.
Josh ficou olhando para a porta fechada e, pela primeira vez em vinte e quatro horas, sorriu.



Kari ainda estava furiosa, quando foi para o refeitório. Não podia acreditar que Josh se afastaria dela, como fizera tantas vezes em Milwaukee. Era verdade
que, exceto pelo pedido inicial para que ela ficasse em Milwaukee, nenhum dos dois falara em compromisso. Ela achara que ainda era muito cedo para ele pensar em
casamento, uma vez que fazia apenas seis meses que Corinne morrera. Assim, Kari decidira esperar pelo momento certo para ele. Agora, ela se perguntava se Josh havia
mesmo pensado em casar-se com ela. Mesmo sem ter uma mãe para orientá-la, Kari sabia que a maioria dos homens encarava o sexo de maneira muito mais casual do que
as mulheres.
Perdida em pensamentos, não prestou atenção ao seu redor. Assim, foi pega de surpresa quando Arne a abraçou.
- Kari, você está bem, de verdade?
- Sim, querido, estou bem.
- Disseram que você quase se afogou e Thaddeus disse que foi culpa de Josh. Então, Davey ficou louco da vida com Thaddeus e disse a Phineas que o irmão
dele é um burro. Agora, está todo mundo com raiva de todo mundo.
Kari sacudiu a cabeça exasperada.
- Nada foi culpa de Josh. Eu fiquei tonta e caí no rio. Como alguém poderia ser culpado disso?
Arne afastou-se e fitou-a nos olhos.
- Mas Josh fez você infeliz de novo - acusou com amargura.
- Arne, já lhe disse que estou bem.
- Eu o odeio!
Embora alarmada pela veemência das palavras, Kari decidiu atribuir o comportamento do irmão ao grande susto que levara ao saber que ela, mais uma vez, chegara
muito perto da morte.
- Arne... Sabe que não está dizendo a verdade. Não odeia Josh.
Os olhos de Arne encheram-se de lágrimas e, por um instante, Kari lembrou-se do menininho pequeno e chorão em Stavanger.
- Odeio, sim. Ele faz você infeliz e faz você chorar... E você quer ficar com ele, em vez de ir para Minnesota, como papai sonhava.
Kari tentou puxá-lo para si, mas ele escapou e saiu correndo para a floresta. Ela pensou em segui-lo. Era óbvio que ele estava sofrendo e eles precisavam
ter uma longa conversa. No entanto, ainda sentia os efeitos do mergulho involuntário no rio e sabia que não conseguiria alcançá-lo. Decidiu que conversariam mais
tarde, quando Arne estivesse mais calmo, e ela se sentisse mais forte. Agora, tudo o que queria era um pouco de paz, longe de todos os homens de sua vida. Virou-se
e voltou para o seu quarto.



Josh havia decidido não seguir Kari de imediato. Bastara vê-la de pé, cheia de saúde, linda e furiosa. O sorriso voltou a seus lábios junto com a lembrança.
Desde que ouvira as palavras cruéis de Thaddeus, passara longas horas revivendo os momentos que vivera com Kari: a frustração causada pelas tentativas de afastamento
em Milwaukee e a sensação de felicidade e realização, depois das maquinações de Elizabeth, na fazenda.
Não havia conversado sobre o futuro. Ele ainda estivera carregando a culpa pelo fracasso com Corinne. Mas, com Kari, ele se descobrira capaz de dar amor
a uma mulher e fazê-la feliz. Tentara oferecer o mesmo tipo de relação à Corinne, mas algo dentro dela a impedira de aceitar. Ele jamais poderia voltar atrás e remediar
aquela parte da sua vida. Mas podia aceitar o presente que o destino lhe dera, naquela noite trágica, no lago Erie, e reconstruir sua vida.
Josh começava a sentir-se pronto a partilhar esses sentimentos com Kari, a pedir-lhe que sacrificasse o sonho de seu pai, em prol de uma realidade sua,
ali mesmo no Wisconsin. Então, ocorrera o acidente no rio... e as palavras ásperas de Thaddeus, como um lembrete do luto que a família Pennington carregaria para
sempre.
Caminhara pela floresta até o anoitecer, pensando sobre tudo isso. No entanto, ao retornar ao acampamento, sua mente parecia ainda mais confusa. Fora somente
quando erguera os olhos e deparara com Kari, os olhos faiscantes durante aquela declaração de amor irada, que tudo havia ficado claro. Pela primeira vez em sua vida,
Josh estava apaixonado. E a constatação fez com que tudo mais se encaixasse.
Levantou-se, sentindo-se leve, como nunca mais sentira, desde seu noivado com Corinne. Tinha vontade de gritar sua descoberta para todos ouvirem. Claro
que não faria isso. Afinal, dois dos irmãos de sua falecida esposa estavam no acampamento e ele faria o possível para não piorar ainda mais a sua dor. Mas havia
uma pessoa com quem ele tinha de partilhar sua felicidade. Esperara demais. Estava na hora de dizer-lhe tudo. Com passos largos, saiu.
Kari seria obrigada a admitir que havia esperado por ele. Ao chegar em seu quarto, em vez do descanso que prometera a si mesma, pusera-se a escovar os cabelos,
até que eles readquirissem o brilho de sempre. Mesmo assim, sobressaltou-se ao ouvir a batida na porta.
- Quem é?
- O reddhare.
O cuidado com que Josh pronunciou a palavra norueguesa provocou-lhe intensa vontade de rir. Quando falou, porém, esforçou-se para soar séria:
- O que você quer?
- Posso entrar?
Ela abriu a porta e deparou com Josh empunhando uma florzinha minúscula e murcha.
- Para você - ele falou, estendendo-lhe o presente peculiar.
- A primeira flor da primavera. Encontrei a pobrezinha quase totalmente coberta pela neve. - Ele entrou e fechou a porta atrás de si. - Talvez seja um sinal,
viking. O inverno acabou e devemos receber a primavera juntos.
Era mesmo Josh? Kari estava surpresa. Josh Lyman, dando-lhe flores e usando frases poéticas? Mal podia acreditar.
Ele a puxou para o meio do quarto e virou-se para a porta, à procura de uma tranca. Como não encontrasse, arrastou um pesado barril de farinha e usou-o
como barricada.
- O que está fazendo? - ela perguntou confusa.
Josh tomou-a nos braços e tirou-a do chão.
- Estou garantindo que não seremos interrompidos.
- Por quê?
- Porque eu vou fazer amor com você, viking. E, desta vez - ele beijou-lhe o pescoço -, enquanto estivermos fazendo amor - colocou-a na cama e beijou-lhe
os lábios de leve -, vou lhe dizer com todos os beijos e todas as carícias - ajoelhou-se ao lado dela e deslizou a mão ao longo das pernas alongadas -, que eu te
amo.
- Precisamos levantar Josh.
- Sim...
- Acorde! - ela o sacudiu de leve. - Acho que perdemos a hora do jantar.
- Não estou com fome - ele balbuciou.
- Mas o que vão dizer? Passamos a tarde toda aqui.
Josh sacudiu a cabeça, como para clarear os pensamentos. Então, virou-se para abraçá-la.
- Quem pode dizer o que, viking? Ainda não percebeu que você e eu somos as únicas pessoas no mundo?
Kari riu do absurdo.
- Estou falando sério, Josh. Todos os seus homens... e Thaddeus... e, ah, meu Deus, meu irmão! - Então, lembrou-se de Arne, da última vez que o vira, nervoso
e infeliz. - Ele ainda não aceita você, pois acha que me faz infeliz.
Josh pressionou o corpo nu contra o dela.
- E eu faço você infeliz, amor?
- Fiquei furiosa quando vi que estava tentando me evitar de novo - ela admitiu -, mas, depois... Acho que compensou.
- Acha?
Ele deslizara a mão por debaixo das cobertas e acariciava-lhe as coxas.
- Acho...
- Não tem certeza? - a voz de Josh já era quase inaudível. Quando despertaram de novo, horas haviam se passado e o acampamento estava mergulhado em silêncio.
Depois de acordar ao amanhecer e trabalhar duro o dia todo, os homens iam cedo para a cama.
Kari sentiu-se como uma fugitiva, sendo levada por Josh para o refeitório. Estremeceu, embrulhada no cobertor que, mais uma vez, servia-lhe de agasalho.
- O que Cookie fará se descobrir que sua cozinha foi assaltada no meio da noite? - perguntou, lembrando-se do temperamento terrível do cozinheiro.
- Cuidarei disso - Josh respondeu com tranqüilidade. Apertando-lhe a mão, acrescentou: - Engraçado, depois da tarde que passamos, sinto-me capaz de enfrentar
um exército inteiro de irlandeses mal humorados.
- Bem - ela falou com uma risada alegre -, já provou ser capaz de enfrentar uma viking!
Josh interrompeu a caminhada para beijá-la.
- E pretendo continuar a enfrentá-la pelo resto de minha vida.
Ao chegarem à cozinha, empanturraram-se de pão e os restos de um ensopado de origem duvidosa, acompanhando a refeição com cidra.
Sentaram-se ao lado do fogão, que ainda mantinha a brasa acesa. Durante uma hora, comeram e conversaram, fazendo deliciosos planos para o futuro.
- Prometo levar você e seu irmão para visitar seus tios em Minnesota - Josh afirmou. - Quero que conheça a terra com a qual seu pai tanto sonhou.
- Acho que seu verdadeiro sonho era a idéia que a América representava, muito mais que o lugar em si - Kari falou pensativa. - Ele queria que iniciássemos
uma vida nova em um país onde ainda existe o espírito da aventura... E pessoas como você.
Josh deu-lhe mais um beijo e levantou-se, obrigando Kari a fazer o mesmo.
- Venha. Está precisando de um banho.
- Um banho?
Josh fez um sinal, indicando-lhe que não fizesse barulho. Saindo do refeitório, rumaram por uma trilha estreita que começava atrás das cabanas, e que não
fora notada por Kari antes. O caminho seguia por entre as árvores e levava a uma minúscula cabana, construída de toras.
- Que lugar é este? - ela perguntou num sussurro.
- Você devia saber viking. Pelo que sei, é um hábito comum entre a sua gente.
Ele abriu a porta e Kari reconheceu o distinto odor de madeira aquecida.
- É um badstuel Que nome os americanos usam?
- Simplesmente, banho de vapor. - Josh puxou-a para dentro e fechou a porta. - Deve haver um lampião e alguns fósforos em algum lugar por aqui.
Em poucos minutos, o lugar estava iluminado pela chama do lampião e aquecido pelo fogo que Josh acendera no forno metálico quadrado, situado no centro do
aposento. Uma larga plataforma de cedro ocupava toda uma parede. Josh sentou-se e puxou Kari para sentar-se a seu lado.
Ela retirou o cobertor dos ombros e colocou-o sobre uma das extremidades da plataforma. O calor começava a aumentar. Josh aproximou-se dela e começou a
desabotoar-lhe o vestido. Kari afastou-se, embaraçada.
- O que está fazendo?
- Costuma tomar banho de roupa?
Kari olhou em volta. Em Stavanger, ouvira falar daqueles banhos de vapor, mas só os homens os tomavam. Uma mulher decente jamais pensaria numa coisa dessas!
- Não há trinco na porta.
- Meu amor, estamos no meio da noite. O único candidato a um banho de vapor a esta hora, seria um urso sonolento!
- Existem ursos por aqui?
- Querida, estou brincando. - Enquanto conversavam, os dedos de Josh trabalhavam com habilidade, abrindo todos os botões.
Kari ainda mostrou-se hesitante.
- Vai tirar a roupa, também? - perguntou desconfiada.
- Não - Josh sorriu. - Você vai tirar a minha roupa.
Ele acabou de despi-la e esperou que ela retribuísse o favor.
Kari não demorou a perder a hesitação e tirou-lhe a camisa. Uma gota de suor descia pelo peito largo e, num impulso, ela inclinou-se e lambeu-a.
Josh sobressaltou-se e, lançando-lhe um olhar faminto, puxou-a para si, obrigando-a a sentar-se em seu colo. Então, com movimentos ansiosos, eles se livraram
do resto das roupas e entregaram-se a mais uma seção de carícias. Desta vez, a pele coberta de suor provocava sensações desconhecidas a ambos.
- Costuma tomar estes banhos sempre? - Kari perguntou a voz entrecortada.
- Viking, eu nunca tomei um banho como este.
- Na Noruega, dizem... - parou de falar ao sentir que ele a penetrava devagar. Então, depois de recuperar a voz, falou num sussurro: - Dizem que estes banhos
fazem muito bem à saúde.
- Posso jurar que nunca me senti mais saudável em toda a minha vida!
Josh estava deitado de costas na plataforma de cedro, e Kari o cavalgava com a experiência recém-adquirida. As mãos dele a guiavam num movimento circular
que provocava calor maior que o forno da sauna. Então, ele abriu os olhos, puxou-a para si, e segurou seus quadris com firmeza. Ao sentir as ondas que lhe sacudiam
o corpo, Kari perdeu o controle sobre os próprios impulsos, e gemeu alto, atingindo o clímax junto a seu amado.
Permaneceram deitados, quietos, por alguns instantes.
- Tem certeza de que este costume veio dos países antigos? - Kari quebrou o silêncio.
- Acho que só aperfeiçoamos a técnica - Josh respondeu, depois de beijá-la.
Ela riu e voltou a apoiar a cabeça no peito dele. Após alguns instantes, ele chamou.
- Vamos querida. Está na hora de terminarmos nosso banho.
- Pois acho que terminamos muito bem.
- Ainda não. Falta a melhor parte. - Olhou mais uma vez para as curvas do corpo de Kari e corrigiu-se: - Quase a melhor parte.
Antes que Kari tivesse tempo de protestar, ele a puxou pela mão, nua, para a floresta.
- O que está fazendo? - ela perguntou aflita.
Josh apanhou um grande punhado de neve com as mãos. Kari pôde ver o sorriso diabólico em seu rosto.
- Josh Lyman, não se atreva!
Ele deu de ombros.
- Faz parte do tratamento. E foi o seu povo que inventou isto, não o meu.
No momento seguinte, a neve gelada deslizava pelo corpo quente de Kari. A princípio, ela ficou imóvel, chocada demais para falar. Mas logo percebeu que
a sensação era maravilhosa.
- Josh!
- Não é uma delícia?
- Sim, é maravilhoso.
Josh puxou-a para si e deixou um punhado de neve escorrer por entre seus corpos, ainda quentes.
- Vai ser bom por mais uns dois minutos. Então, começaremos a ficar roxos.
E era verdade. Logo depois, os dois começaram a tremer.
- Venha. Vamos nos vestir e voltar para o quarto.
Ele abriu a porta, apanhou as roupas e saiu.
- Não podemos correr nus pela floresta, Josh. Vamos, no mínimo, congelar nossos pés!
Apesar dos protestos, Kari jamais se sentira tão feliz. Seria capaz de correr nua até Milwaukee ao lado de Josh.
Josh assentiu, calçou suas botas, entregou o amontoado de roupas a Kari e tomou-a nos braços.
- Assim, chegaremos mais depressa - declarou e dirigiu-se às pressas para o quarto improvisado na despensa.











CAPÍTULO XV







Na manhã seguinte, Kari despertou envolta em felicidade. Antes mesmo de abrir os olhos, lembrou-se dos acontecimentos do dia anterior e de todas as sensações
que experimentara pela primeira vez.
O pequeno quarto improvisado estava aquecido e, embora Josh houvesse insistido em passar a noite ali, ela o convencera a ir para a sua cabana.
- A primeira coisa que farei depois do café, será anunciar o nosso noivado, viking - ele havia argumentado. - Portanto, não vejo que diferença faz...
- Não vai fazer isso, Josh - ela lhe dera um beijo, a fim de amenizar as palavras. - Sabe muito bem que, primeiro, temos de conversar com Davey e Arne,
principalmente Arne.
- Tenho uma coisa que vai facilitar meu relacionamento com seu irmão - Josh falara reticente.
Pensava no rifle que havia comprado antes de partirem de Milwaukee. Havia planejado entregá-lo ao garoto antes da viagem, mas, o ressentimento de Arne se
mostrara tão intenso, que Josh decidira guardá-lo para usá-lo como presente de despedida, quando deixasse os dois noruegueses em Minnesota. Agora, poderia usá-lo
como uma oferta de paz de um cunhado para outro.
- Arne sempre foi uma criança fácil. No entanto, os meses que seguiram à morte de papai foram duros para ele.
- Lembre-se de uma coisa, meu amor. Um acampamento de lenhadores é pequeno demais para que segredos permaneçam guardados por muito tempo. E melhor procurar
Arne e explicar-lhe o que está acontecendo, antes que ele descubra de outra fonte.
Ela assentiu os olhos refletindo tristeza.
- Tem razão. Falarei com ele pela manhã.
Kari colocou-se na ponta dos pés para beijar-lhe o rosto e Josh tomou-a nos braços. Ela se afastou de pronto e tentou imprimir um tom de advertência à voz:
- Enquanto isso, Sr. Lyman, faça o favor de sair do meu quarto.
- Acho que não gosto muito da minha viking tão civilizada - ele resmungara, mas, afinal, fora para a cabana.
Kari dormira profundamente até muito depois da aurora e, ao acordar, temeu haver perdido a hora do café. Apressou-se em vestir-se e dirigir-se para o refeitório,
rezando para que Josh mantivesse a promessa de adiar a comunicação de seus planos. A luz da manhã, a tarefa de convencer Arne a desistir da viagem para Minnesota
parecia ainda mais árdua.
Como havia calculado os homens já estavam comendo. Ela correu os olhos pelo salão, à procura de Josh. Ele não estava lá. Talvez, ainda estivesse dormindo,
ela pensou com um sorriso terno.
Thaddeus e Holstein também não se encontravam à vista e não havia o menor sinal dos garotos. Avistando Olav sentado à ponta da mesa, dirigiu-se a ele:
- Sabe onde está Josh? - perguntou.
Como estivesse de boca cheia, ele fez um movimento com a cabeça, indicando a porta do refeitório. Naquele instante, Josh abriu a porta e espiou para dentro.
Através do grande salão, Kari pôde perceber que algo estava muito errado. Correu para ele, que a puxou para fora, onde Holstein e Thaddeus se reuniam a
outros dois lenhadores. Todos pareciam muito preocupados.
- O que aconteceu? - ela perguntou, tentando manter a calma.
- Os garotos desapareceram - Thaddeus respondeu.
Josh segurou-lhe a mão, antes de dizer:
- Knud ouviu-os conversando, ontem à tarde, sobre irem para Minnesota.
O lenhador fitou Kari contrito.
- O seu irmão, senhorita... Parecia nervoso por alguma coisa. Não dei muita atenção porque sei como as crianças são nessa idade...
Ontem à tarde... Kari fechou os olhos, sentindo-se atordoada. Por que não fora conversar com Arne na tarde anterior, quando sabia que ele estava magoado?
Em vez disso, passara a tarde e parte da noite nos braços de Josh. Ergueu os olhos para ele e viu a própria culpa refletida nos olhos castanhos.
- Mas, como eles poderiam ter partido sozinhos?
- Cookie disse que dois pacotes de provisões desapareceram. As coisas deles não estão nas cabanas, inclusive o rifle de Davey - Holstein explicou.
O outro lenhador mostrou-se aflito.
- Eu não sabia que eles estavam planejando fugir, quando vieram fazer perguntas...
- Que perguntas? - Josh interrompeu-o com impaciência.
- O mais alto, seu irmão, senhor... Queria saber como ir daqui para Minnesota.
- O que disse a eles, Jackson? - Holstein perguntou a voz desprovida que qualquer censura.
- Disse que, se seguissem o rio, chegariam ao Mississipi.
- Ah, aqueles idiotas! - Josh gemeu nervoso.
Kari estava pálida.
- Quando acha que partiram?
Holstein abriu a porta do refeitório.
- Alguém viu os três garotos no jantar de ontem? - gritou e, como todas as cabeças sacudissem em negativa, voltou para fora. - Parece que estão mais de
meio dia à nossa frente.
Kari dominou a vontade de chorar. Não podiam perder tempo, tinham de agir. Talvez, fosse apenas uma questão de segui-los e trazê-los de volta. Mas, o que
mais lhe doía, era a expressão vazia nos olhos de Josh. Ela havia pensado que nunca mais o veria assim.
- Bem, vamos procurá-los - falou com determinação.
Os homens a fitaram como se estivesse louca.
- Não vai ser uma tarefa fácil, senhorita disse Jackson. - São quilômetros e quilômetros de mata...
- Se eles partiram à pé - Josh falou, ignorando o olhar de Kari -, a maneira mais rápida de os alcançarmos é pelo rio.
-Levaremos dois barcos. Holstein quero o melhor de seus rastreadores comigo e mande um grupo seguir o rio por terra, para o caso de passarmos por eles,
sem vê-los.
- O melhor rastreador do acampamento sou eu - Holstein declarou com simplicidade. - Mandarei Knud guiar o grupo que seguirá por terra.
Josh olhou o bem vestido Thaddeus de alto a baixo.
- Será uma viagem dura, Pennington.
A expressão de Thaddeus manteve-se impassível.
- Meu irmão, Phineas, está perdido por aí. Não vou voltar para casa de informar meus pais que acabam de perder mais um filho.
Josh empalideceu, mas manteve a voz impassível.
- Está bem. Você e eu iremos no primeiro barco. Holstein, você e um de seus homens seguirão logo atrás.
- Eu também vou - Kari falou com firmeza surpreendente.
A simples idéia de aproximar-se do rio fazia sua cabeça girar.
No entanto, se encontrassem Arne... Quando o encontrassem, ela se corrigiu, precisava estar lá.
Josh passou um braço em torno de seus ombros.
- Não desta vez, viking - falou com ternura. - Você não está em condições de viajar pela água. Prometo que os traremos de volta.
Kari sacudiu a cabeça e fitou-o com olhar determinado.
- Vou com vocês, Josh. Não vamos perder tempo discutindo.
- Sinto muito, Kari, mas não podemos arriscar levá-la. E se tiver outro daqueles desmaios?
- Não vou desmaiar.
Josh baixou os olhos para a linha firme dos lábios dela. Por um instante, o brilho de um sorriso atravessou seus olhos.
- Está bem, viking. Vamos nos apressar, então.
Nos minutos que se seguiram Josh esteve ocupado demais, organizando os dois grupos, para lembrar-se de Kari. Quando voltou a vê-la, ela estava sentada em
um dos barcos, em meio aos pacotes de suprimentos.
- Está se sentindo bem? - perguntou com expressão séria.
A preocupação com Arne e Josh ajudava Kari a vencer sua própria batalha. Rezou para ter forças e ajudar as duas pessoas que mais amava. Olhou para a água.
O rio mostrava-se mais benevolente agora, que o sol voltara a brilhar.
- Kari, perguntei se está se sentindo bem - Josh repetiu com uma pontada de irritação.
- Estou bem, Josh. Vamos embora.
Josh entrou no barco e, quando estava pronto a soltar as amarras, Thaddeus aproximou-se.
- Antes de partirmos, Lyman... Gostaria de pedir desculpas pelo que lhe disse ontem. Não é realmente o que penso.
Josh fitou-o nos olhos.
- Todos nós dizemos bobagens quando estamos nervosos, Thaddeus. Só quero que saiba de uma coisa: se eu pudesse, teria dado minha própria vida em troca da
vida de Corinne, naquela noite.
- Sei disso, Josh. É que, às vezes... é difícil superar a dor.
- Sim, é difícil. Agora, vamos tratar de encontrar aqueles malucos dos nossos irmãos.
Thaddeus assentiu e entrou no segundo barco, onde Holstein já assumira seu lugar.
A princípio, foi uma jornada lenta. Desceram o rio rente à margem, parando a todo instante para Holstein procurar pegadas. Depois da terceira parada, o
capataz de um grito de alegria:
- Eles passaram por aqui! E parece que estão caminhando bem ao lado do rio. Se mantiverem a rota, não será difícil alcançá-los.
Kari, Josh e Thaddeus respiraram um pouco mais aliviados e a viagem tornou-se menos tensa. No entanto, quando Holstein os informou de que teriam de parar
ao anoitecer, seus espíritos desanimaram.
- Não há como seguir a trilha durante a noite, Josh - Holstein explicou. - Poderíamos passar por eles sem perceber. Retomaremos as buscas ao amanhecer.
- Quanto tempo acha que levaremos para encontrá-los? - Kari perguntou.
Holstein estendeu-lhe a mão para ajudá-la a sair do barco.
- São garotos fortes e saudáveis. Têm muita energia. Acho que levaremos mais um dia ou dois.
Enquanto Holstein saía em busca de lenha, os outros três ficaram parados à margem do rio, pensando em seus respectivos irmãos.
- São bons meninos - disse Thaddeus.
- Vai dar tudo certo - Josh falou em seguida.
Kari permaneceu em silêncio. Estremecendo, afastou-se do rio, a fim de ajudar Holstein a acender a fogueira.
Ao amanhecer, o tempo voltara a esfriar. Ninguém falou enquanto desmontavam acampamento e recomeçavam a viagem.
- Sabemos que eles passaram por aqui - disse Holstein. -. Vamos aproveitar a correnteza do meio do rio por alguns quilômetros, antes de pararmos de novo
para verificar as pegadas. Assim, será mais rápido.
Josh concordou e eles levaram os barcos para o meio do rio. A paisagem mudara. Em lugar da floresta de pinheiros, agora passavam por penhascos e rochas.
- Terão de fazer algumas escaladas, neste trecho - Holstein informou. - Isso deverá atrasá-los.
Pela metade da manhã, Holstein fez sinal para que se dirigissem à margem. Então, retirou um pequeno vidro de sua bagagem.
- A senhorita e eu precisamos tomar alguns cuidados.
- Cuidados?
Ele apontou para o próprio rosto, que se apresentava mais vermelho que o normal. Kari sentira o sol arder em sua pele clara, mas estivera tão preocupada
com Arne que não dera maior atenção ao incômodo.
Agora, Holstein passava uma substância oleosa, de cheiro forte, em seu rosto.
- Nossa Holstein - Josh queixou-se ao sentir o odor forte. - O que é isso?
- Gordura de urso. Sei que o cheiro não é bom, mas é melhor do que as bolhas que o sol provoca em nossa pele clara - explicou o capataz, com uma de suas
piscadelas para Kari.
- Obrigada, Holstein - Kari agradeceu, sorrindo pela primeira vez desde que haviam deixado o acampamento.
Depois de passar a gordura no próprio rosto, Holstein voltou a barco e eles reiniciaram a viagem.
Agora, cobriam distâncias cada vez maiores entre as paradas. Da última vez, Holstein demorou mais que o normal. Kari, Josh e Thaddeus trocaram olhares preocupados.
Quando finalmente voltou, Holstein sacudiu a cabeça.
- O trecho é tão pedregoso que fica difícil afirmar, mas não há o menor sinal de que alguém caminhou por aqui recentemente.
Embora não pudesse ver o rosto de Kari, Josh percebeu a tensão em suas costas.
- Isso quer dizer que passamos por eles? - perguntou.
- Pode ser... Ou, então, eles se afastaram da margem e seguiram viagem pela floresta. Talvez eu, simplesmente, não tenha conseguido encontrar as pegadas...
E, ainda, há a possibilidade de haverem atravessado o rio a nado. Podemos verificar a outra margem.
Josh sentiu uma forte náusea. A lembrança súbita do naufrágio do Atlantic atravessou-lhe a mente. Naquela noite, ele também não soubera para que lado correr,
ou o que fazer. No final, não conseguira encontrar Corinne. Bem, ao menos desta vez não estava sozinho.
- Holstein, você e Thaddeus continuarão a descer o rio, tentando encontrar alguma pista em uma das margens. Kari e eu voltaremos por terra. - Ninguém questionou
suas ordens. - Nos encontraremos neste mesmo ponto, ao anoitecer.
Kari e Josh arrastaram o barco para terra. Deixaram a maior parte das provisões ali, levando apenas o rifle e um pequeno saco contendo comida.
- Prefere esperar aqui, Kari? Teremos de escalar alguns dos penhascos que vimos no caminho.
- Não conhece a Noruega, Josh. Eu nasci escalando penhascos.
Josh sorriu e, após um breve instante de hesitação, voltou ao barco e apanhou o segundo rifle.
- Acha que pode carregar isto?
- Claro, mas, para que vamos precisar de rifles?
- Espero não precisar, mas é sempre bom estar prevenido em um lugar como este.
Jogando o saco de munição sobre um ombro e o de comida no outro, Josh pôs-se a caminho, seguido de perto por Kari.
- Acha que vamos encontrá-los, Josh?
Ele virou-se para fitá-la. Então, deu-lhe um abraço e um beijo rápidos.
- Nós vamos encontrá-los, viking.
Caminharam devagar, tentando encontrar alguma pista da passagem dos meninos, embora Josh admitisse que suas habilidades de rastreador não se comparavam
às de Holstein.
- Tropeçaremos neles, antes que eu encontre alguma pista - Josh tentara brincar, mas nenhum dos dois foi capaz de sorrir.
Apesar da caminhada difícil, Josh sentiu o ânimo elevar-se ao perceber que ninguém passara por ali. A menos que os meninos houvessem se afastado da margem,
não demorariam a encontrá-los.
- A primeira coisa que farei quando os encontrarmos será torcer o pescoço de Davey - falou com evidente animação.
- Você não seria capaz - Kari duvidou também mais entusiasmada.
- Espere e verá.
O sol já cruzara o zênite e iniciava seu longo declínio. Kari e Josh caminhavam em silêncio havia mais de uma hora, concentrados na jornada difícil.
- Vamos parar e comer alguma coisa - Josh sugeriu, quando alcançaram uma rocha que se projetava sobre a água.
Kari sentou-se. Estava exausta. Devagar, colocou o rifle no chão e massageou o ombro. Quanto mais caminhavam, mais pesada à arma se tornava.
Josh ajoelhou-se a seu lado e estendeu-lhe um grande pedaço de pão duro e escuro.
- Isto é o que Cookie chama de biscoito de viagem. Cai no seu estômago como pedra, mas você não sente fome pelo resto do dia. - Olhando para o céu, acrescentou:
- Podemos caminhar por mais duas horas. Acha que pode agüentar?
- Só quero encontrá-los.
- Eu sei... - Josh interrompeu a frase. Apontou para uma rocha mais acima e falou num sussurro: - Olhe!
Kari virou-se e deparou com um par de olhos redondos e negros, a fitá-los.
- Que coisinha linda! - exclamou.
Sua voz não perturbou o pequeno animal. Pouco depois, outra criaturinha peluda juntou-se à primeira para observá-los.
- Eu nunca tinha visto um urso antes. São lindos - Kari murmurou.
Os dois ursinhos não era maiores que o leitão que os garotos haviam colocado na cozinha, para assustar Daisy. Josh apanhou um rifle e estendeu o outro para
Kari.
- Pegue.
- Não seja ridículo, Josh - Kari riu. - Acha que eles vão nos atacar?
Josh levantou-se devagar. Mesmo assim, os ursinhos se assustaram e correram de volta para a floresta.
- Ah, Josh, você os assustou! - Kari falou desapontada e também se levantou.
A expressão de Josh era tensa e ele examinava os arredores com olhos preocupados.
- São apenas filhotes, Kari. Nessa idade, eles nunca se afastam da mãe.
Kari sentiu-se estúpida. Os bichinhos eram tão bonitinhos, que ela não conseguira associá-los ao perigo. Josh, porém, levara a ameaça a sério.
- Os filhotes nascem durante o período de hibernação - Josh explicou sombrio. - Aqueles dois devem ter saído pela primeira vez. A mãe deve estar faminta,
mal humorada e definitivamente sem disposição para visitantes por perto de seus filhos.
- O que vamos fazer? Josh olhou na direção do rio.
- O melhor seria voltarmos. Ursos costumam ficar em seus territórios. Quanto antes sairmos do território dessa mamãe urso, melhor.
- Mas, e os meninos? - Kari perguntou, estremecendo.
As nuvens haviam coberto o céu. O casaco de lã azul ficara no acampamento, ainda molhado depois de sua queda no rio. Kari vestia apenas a camisa de lã e
a calça que tomara emprestadas de um lenhador.
- Vamos continuar - Josh decidiu e entregou seu rifle a Kari, enquanto carregava o que ela trouxera. - Mantenha-se alerta.
O cenário adquiriu um toque mais sinistro, agora que Kari via sombras movendo-se em todos os lugares. O sol continuava escondido pelas nuvens que se tomavam
mais e mais densas. Até o rio parecia mais ameaçador.
Escalaram a rocha de onde os filhotes os haviam observado e quase desanimaram ao encontrar outra, ainda mais íngreme. Não trocaram mais nenhuma palavra,
a fim de poupar energias.
Logo após atravessarem a formação rochosa, chegaram a um ponto onde o rio tomava-se mais largo e os penhascos afastavam-se da margem, dando lugar a uma
campina pantanosa. Embora o chão cedesse sob suas botas, à caminhada tomou-se bem mais fácil.
Kari mudou o rifle de um ombro para o outro e olhou adiante. Na outra extremidade da campina, uma forma colorida moveu-se.
- Josh, olhe!
Virando-se na direção em que ela apontava, Josh avistou os movimentos e as cores que, definitivamente, não faziam parte da Natureza.
- Tem alguém ali - concluiu, contendo o entusiasmo. Começaram a correr na direção das formas que se tomavam mais distintas. Agora, podiam ver Davey e Arne.
- Davey!
- Arne!
Josh e Kari gritaram ao mesmo tempo. Os dois meninos acenavam e corriam ao seu encontro. Mas eram só dois.
Quando finalmente se aproximaram, o medo e a tensão eram evidentes no rosto dos dois. Josh sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe a espinha.
- Onde está Phineas? - perguntou.
Davey atirou-se em seus braços.
- Josh! Estou contente que esteja aqui!
Kari também abraçava o irmão. Lágrimas abundantes corriam pelo rosto de Ame.
- Eu não quis criar problemas... Fiquei zangado e queria ir para Minnesota... Eu não queria criar problemas...
- O que aconteceu? - Josh segurou o irmão pelos ombros. - Onde está Phineas?
Davey apontou para uma grande rocha.
- Ele está lá. Encontramos um abrigo na rocha. Phineas está muito doente, Josh.
Josh olhou para Kari alarmado.
- Conte-me o que aconteceu - pediu ao irmão, tentando controlar-se.
- Ontem à noite, decidimos acampar por aqui. Arne e eu fomos até o rio para apanhar alguns peixes e Phineas ficou acendendo a fogueira. Nós estávamos no
rio... Phineas começou a gritar... Foi horrível! - Agora, Davey também chorava.
Arne secou as lágrimas e completou a história:
- Foi o urso negro.
Ele agarrou Phineas.
- Meu Deus! - Kari empalideceu.
Com um esforço supremo, Josh continuou lutando pelo controle.
- Então, o que aconteceu?
- Eu atirei nele. Acho que errei, mas ele se assustou e correu para a floresta. Passamos a noite inteira acordados, com medo que o urso voltasse.
- E Phineas?
- O urso feriu sua perna. Nós o arrastamos para as pedras, onde achamos que o urso não nos alcançaria. Mas, hoje de manhã, a perna dele estava muito inchada
e ele está falando uma porção de bobagens.
Josh respirou fundo e soltou os ombros de Davey.
- Leve-nos até lá.
Os quatro caminharam apressados até a rocha. Ao chegarem lá, notaram a fenda onde Phineas se encontrava. Josh entregou seu rifle a Kari e começou a subir.
- Nós arrastamos Phineas para lá... Não sabíamos o que fazer. Achamos que o urso não conseguiria subir na rocha.
- Ursos são muito bons em escaladas, Davey. Se ela quisesse, teria apanhado vocês.
- Ela?
- Kari e eu encontramos dois filhotes no caminho. Se foi a mãe deles, está explicado por que atacou Phineas.
Ao chegar na fenda, Josh deparou com Phineas estendido no chão. Seu rosto estava vermelho e, na altura da canela, sua calça se transformara em tiras ensangüentadas.
Quando Josh ajoelhou-se a seu lado, Phineas fitou-o com olhos vidrados.
- Como vai, Josh? - falou com voz fraca.
Ao menos, o garoto o reconhecera, Josh pensou aliviado. Apertou-lhe a mão, antes de falar:
- Vamos levá-lo para casa, camarada.
Afastou o tecido da perna de Phineas e quase gemeu de aflição ao ver os cortes fundos provocados pelas garras do urso. O sangue coagulara sobre o ferimento
e toda a perna apresentava-se inchada e escura.
- O urso veio tomar chá, Josh. Está na sala - Phineas anunciou com uma gargalhada e Josh concluiu que o garoto estava delirando.
- Vou ter de carregar você lá para baixo, Phineas. Segure-se em mim. Você vai ficar bom... - E Josh continuou falando durante a descida, tanto para manter
Phineas acordado, quanto para afastar a apreensão que o invadira.
Lá embaixo, Davey e Arne ajudaram-no a colocar o amigo no chão.
- O urso vai sentar no sofá da mamãe...
O menino os fitava com um sorriso tolo. Kari olhou para Josh alarmada.
- A febre está alta. Precisamos levá-lo ao rio e tentar baixar sua temperatura.
Ajudado pelos outros dois meninos, Josh carregou Phineas até a margem. Ensopou um lenço na água fria do rio e entregou-o a Kari.
- Mantenha isto na testa dele. Quando começar a esquentar, molhe de novo no rio.
Então, acabou de rasgar a perna da calça de Phineas e mergulhou sua perna no rio, deixando que a água banhasse o ferimento horrendo.
- Ele vai ficar bom, Josh? - Davey perguntou com voz apreensiva.
- Os ferimentos não são profundos, mas a febre é perigosa. Mais uma vez o rosto de Arne cobriu-se de lágrimas.
- Não tive a intenção, Kari... Não sabia que poderíamos ter problemas. Eu só queria chegar a Minnesota.
Quando Kari estendia a mão para afagar os cabelos do irmão, Josh levantou-se e aproximou-se do menino.
- Acho que aprendeu uma lição, Ame. Às vezes, é melhor enfrentar o que quer que o esteja perturbando, do que fugir.
Arne fitou-o com olhos cheios de remorso.
- Phineas vai morrer?
- Faremos tudo para evitar isso. Mas vou precisar da sua ajuda e de Davey, para levar Phineas de volta ao acampamento. - Josh abaixou-se e apanhou o rifle
que Kari depositara no chão. - Este rifle lhe pertence, Arne. Acha que você e Davey podem ficar de olho naquele urso, enquanto carrego Phineas?
De olhos arregalados, Arne balançou a cabeça com vigor, enquanto apanhava o rifle das mãos de Josh.
- Estou com frio, mamãe - Phineas murmurou, estremecendo.
Kari manteve o lenço molhado em sua testa, embora erguesse os olhos preocupados para Josh.
- Não acha que toda esta água fria pode piorar a febre?
- De acordo com Holstein, é o melhor remédio. No acampamento, é comum termos homens feridos com machados. Holstein sempre os cura com água fria. Diz que
é o remédio dos deuses.
Josh ajoelhou-se ao lado de Phineas. Seu tom autoritário emprestava segurança aos outros, mas ele ainda estava muito preocupado.
- O mais difícil será levá-lo até o ponto de encontro com Holstein e Thaddeus - falou.
- Posso ficar aqui, com Phineas, enquanto você e os meninos voltam lá. Então, podem trazer os barcos até aqui.
- Não vou deixar você sozinha, com aquele urso rondando. Ainda estamos em seu território. Vamos todos juntos. Carregarei Phineas.
- Ajudaremos você, Josh - Davey ofereceu. - Arne e eu o carregamos ontem... - Bateu a mão na testa, interrompendo a frase. - Já ia me esquecendo. Deixamos
nossas coisas lá em cima.
- Vá buscá-las. Depressa - Josh ordenou. - Quero sair daqui o quanto antes.
Davey pôs-se a correr na direção da rocha. Estava a vários metros de distância de seu destino, quando a figura negra saiu correndo da floresta, bem na sua
direção. Josh levantou-se e gritou para Davey, que parecia não ter visto o urso. O animal corria como um gigante. Josh apanhou o rifle.
Ao ouvir o grito do irmão, Davey virou-se e viu o urso. Por um momento, ficou petrificado. Então, olhou para o grupo reunido próximo à margem e, numa decisão
súbita, voltou a correr na direção da rocha. A essa altura, o urso encontrava-se a poucos metros, avançando mais e mais depressa para ele.
Josh empunhou o rifle e atirou, mas o animal continuou a correr no mesmo ritmo. Davey conseguira subir na pedra, mas o urso já quase o alcançara. Suas garras
passaram a centímetros da perna do menino. Josh atirou de novo. O rifle falhou.
Josh jamais esqueceria os momentos seguintes. Petrificado pelo pânico, ele assistiu à tentativa do urso em agarrar Davey, que escorregou e quase caiu. Quando
o animal erguia a pata enorme novamente, desta vez à altura da cintura do menino, um tiro espocou bem ao lado de Josh. Ele viu o urso imobilizar-se no ar, rugir
enfurecido para, então, tombar da rocha, transformando-se numa escura e imensa massa disforme.
- Arne! - Davey gritou e, tendo cuidado para não se aproximar do urso caído, desceu da rocha e correu na direção da margem do rio.
Virando-se, Josh deparou com Arne parado a seu lado, o rosto pálido como cera, o rifle em punho. A fumaça ainda saía do cano da arma.
Davey aproximou-se, também pálido.
- Você o matou, Arne!
Kari havia deixado Phineas na margem e se aproximara dos três.
- Como fez isso, Arne? - perguntou incrédula.
O menino baixou os olhos para o chão.
- Josh nos ensinou a atirar... Eu tinha de salvar Davey.
Kari abraçou os dois meninos entre lágrimas. Josh recarregou o rifle, foi até onde o urso agonizava e, sem hesitar, disparou. Desta vez, sua arma funcionou.








EPÍLOGO





Milwaukee, Wisconsin 20 de agosto de 1853


- Você nem devia estar aqui, Josh!
Kari usava um vestido novo, cor de pêssego, que realçava sua pele clara e os olhos azuis. Em torno do rosto perfeito, algumas trancas finas formavam uma
delicada coroa, enquanto o restante dos cachos dourados Caíam numa cascata que lhe cobria as costas.
- Não pode me ver pronta antes da cerimônia. Pode dar azar.
- Vou lhe dizer o que dá azar - Josh resmungou, fechando a porta do quarto com determinação. - Azar é viver um verão inteiro sob o mesmo teto que uma loira
linda, de olhos azuis, pernas alongadas...
- Josh! - ela protestou.
- Pernas alongadas, tentadoras, sem poder... - as palavras morreram no beijo impaciente que ele pousou em seus lábios, sem esconder o desejo que o incendiava.
Kari retribuiu o beijo com entusiasmo por alguns instantes, antes de afastar-se. O sorriso se fora e seus olhos faiscavam do mesmo desejo que impelia Josh.
- Por favor, Josh - pediu com voz rouca. - Já estou nervosa demais... Percebeu como meu sotaque está pior?
Josh puxou-a para si.
- Viking, eu lhe garanto que, depois desta noite, não vai nem lembrar como se fala inglês... Vai esquecer até o seu nome.
Apesar do arrepio de antecipação, ela deu uma risada e empurrou-o com mãos gentis.
- Já me esqueci uma vez. Lembra-se? Nesta mesma época, há um ano...
Há um ano... Ambos baixaram os olhos ao lembrar-se da tragédia ocorrida no lago Erie, há exatamente um ano. Haviam marcado o casamento para aquela data,
no acampamento, depois de uma longa discussão, seguida de uma reconciliação mais longa ainda.
Kari insistira em que deviam esperar que se completasse um ano da morte de Corinne, quando o período de luto se encerraria. Depois de muitos protestos,
Josh havia concordado, embora se recusasse a esperar um dia a mais. O que ele não previra fora a atitude de Kari quando, finalmente, eles retornaram do acampamento
para Milwaukee. Com seu sotaque ligeiramente arrastado e entonação musical, ela o lembrara de que deveriam respeitar os princípios de decência até que o casamento
se realizasse.
- Você aprendeu isso com minha mãe! - ele a acusara.
- O que não muda nada - ela respondera com firme tranqüilidade.
E fora assim durante mais de dois meses. E ele já estava prestes a explodir de paixão e desejo.
- É bom que o noivo esteja ansioso no dia do casamento - Kari lhe dissera com um sorriso malicioso, na véspera, quando se despediam antes de ir dormir,
cada um em seu quarto.
As palavras suaves haviam transformado o sangue de Josh em lava incandescente.
- E quanto à noiva? - ele lhe perguntara?
Em vez de responder, Kari limitara-se a sorrir e dar-lhe um beijo longo e sensual, antes de fechar a porta do quarto.
Agora, a espera havia terminado. Em menos de uma hora, seriam marido e mulher. Com insistência, ele a puxou para si mais uma vez.
- Kari? - A batida na porta sobressaltou-os e Josh deu um gemido irritado. - Kari, já está pronta?
Kari afastou-se, passou as mãos pelo rosto fechado de Josh e foi abrir a porta.
- Entre, Elizabeth - convidou com um sorriso.
- Obrigado pela interrupção, Bethy - Josh fingiu-se zangado, apesar de inclinar-se para beijar a amiga no rosto e afagar os cabelos das três crianças que
a seguiram para dentro do quarto.
- Eu não disse para esperarem por mim na sala? - Elizabeth perguntou aos três. Então, com gestos delicados, colocou-os para fora do quarto e fechou a porta.
Virando-se para Josh, falou: - Sinto muito se interrompi alguma coisa, mas está na hora do seu casamento, Josh Lyman. Vocês dois terão o resto da vida para... fazer
essas coisas!
Kari riu do tom maternal de Elizabeth.
- Estamos muito felizes por você e Tom estarem aqui.
- Não perderíamos este casamento por nada! Viemos garantir que este grandalhão faça tudo direitinho desta vez. Chega de... - Dando-se conta de que pisava
em terreno perigoso, Elizabeth mudou de assunto no meio da frase: - Chega de ursos e aventuras parecidas!
Kari estremeceu.
- Tivemos sorte.
Josh sorriu.
- Arne diz que não foi sorte, mas habilidade. Ele carrega o rifle para cima e para baixo, como se fosse seu terceiro braço. E, quanto à habilidade, o garoto
tem razão. Provou ser um exímio atirador.
A lenta aceitação que se iniciara entre Arne e Josh no dia da quase tragédia provocada pela fuga dos garotos transformara-se em respeito e afeição. Kari
sentia o coração apertar de felicidade, cada vez que os via juntos.
- Foi muita gentileza sua pedir-lhe que fosse seu padrinho - ela falou.
- Nunca vi um noivo ter tantas testemunhas - Josh comentou em tom de falsa queixa. - Davey e Arne recusaram-se a aceitar o convite, sem a companhia de Phineas,
que já pode andar. E, como nenhum deles tem idade, Tom ofereceu-se para assinar os papéis. Não querem mesmo deixar qualquer dúvida quanto a este casamento.
As duas riram.
- Bem, é melhor descermos - Elizabeth insistiu.
Josh e Kari haviam concordado com uma cerimônia simples e íntima. No entanto, a sala estava cheia quando desceram. Charles, o namorado de Daisy parecia
pouco à vontade no colarinho alto. A seu lado, uma alegre Daisy balançava os cachos rebeldes, como se eles tivessem vida própria. A Sra. Hennessey ocupava o resto
do sofá.
Josh surpreendeu-se ao ver Theo Pratt, sentado junto de sua mãe. E surpreendeu-se mais ainda pelos olhares lânguidos que Helen lançava ao antigo amigo de
Homero Lyman.
Mas, a maior surpresa, foi a presença de Vernon Pennington, parado a um canto da sala, acompanhado por Thaddeus, Chester e Emmett. Josh deixou Kari conversando
com sua mãe e foi cumprimentá-los.
- Vernon, estou feliz em vê-lo aqui.
- Não deixaríamos de vir, Josh... Gostamos muito de você e desejamos que seja feliz. E, também... queria agradecer-lhe, mais uma vez, por ter trazido meu
filho de volta.
- Nós o trouxemos de volta - Josh corrigiu. - Thaddeus estava conosco.
Vernon assentiu.
- Thaddeus contou-nos que, não fosse pelos seus cuidados, Phineas teria morrido naquela floresta.
- Estamos todos contentes que ele esteja bem.
Thaddeus estendeu a mão para Josh.
- Parabéns, Josh. Acho que venceu o melhor.
Josh sorriu.
- Desculpe Thaddeus, mas nunca houve uma verdadeira disputa. - Depois de apertar a mãos de Chester e Emmett, Josh correu os olhos pela sala. - E Myra?
- Ficou na cama, com sua enxaqueca - Chester respondeu. Vernon fitou Josh nos olhos.
- Dê-lhe mais tempo, filho. Ela me pediu para agradecê-lo por tudo o que fez por nosso Phineas.
Josh concordou com uma aceno de cabeça. Suas visitas aos Pennington se tornariam mais escassas, mas, com a sociedade que ele, Vernon e Thaddeus haviam acabado
de formar, para a exploração de madeira, o antigo relacionamento entre as duas famílias estava longe de terminar.
- A presença de vocês significa muito para mim - ele repetiu, apertando a mão de Vernon entre as suas. Então, virou-se à procura de sua noiva.


- Você foi rude com o Sr. Pratt, Josh - Kari falou com uma risada alegre, aconchegando-se a ele na maciez do colchão de penas.
- O sujeito teria passado a noite aqui, se eu não o convidasse a se retirar - Josh respondeu, também sorrindo.
Na verdade, não ficara tão contente, quando o proprietário do moinho decidira continuar na festa por duas horas, depois de todos os outros convidados haverem
se retirado.
- Acho que ele está apaixonado por sua mãe.
- Fico feliz em saber, mas hoje foi o meu casamento, não o de mamãe!
- Mal passava das nove quando ele saiu Josh.
- Mas eu estava esperando para ficar sozinho com você desde as nove da manhã. Aliás, esperei durante dois longos meses!
- Você estava mesmo... ansioso!
- Está reclamando? - ele perguntou com voz lânguida, puxando-a para si.
- Nem um pouco - ela aceitou o abraço e o beijou de leve. - Só achei um tanto... indecente, a maneira como me arrastou para o quarto. Os meninos ainda nem
haviam ido dormir.
- Aquelas pestes! Um dia, ainda vou torcer o pescoço dos três!
Ambos ficaram em silêncio, lembrando-se da entrada dos meninos durante a cerimônia. Kari e Josh estavam diante do juiz. Tom começara a tocar uma melodia
suave em sua harmônica e Elizabeth colocara-se ao lado de Kari, ocupando seu lugar de madrinha, quando Helen perguntara num sussurro:
- Os estão os garotos?
Naquele instante, a porta se abrira e Davey, Arne e Phineas entraram, puxando a ponta de uma corda que terminava presa ao pescoço de Porky. O pobre animal
envergava um dos paletós do falecido Homero Lyman.
Josh virou-se para Kari, na cama, e riu.
- Casamentos podem se tornar enfadonhos, não é mesmo?
- Não com aqueles três por perto! Mas foi uma cerimônia bonita.
- Prefiro a lua-de-mel. - Josh apoiou-se num cotovelo e afastou o cobertor para, mais uma vez, admirar o corpo nu de Kari. Deslizou a mão pela pele macia,
do pescoço aos quadris. - Vamos começar tudo de novo.
Desta vez, não tiveram pressa. Entregaram-se à paixão com a calma de quem tem toda uma vida pela frente. E cavalgaram nos limites do êxtase, alcançando
sensações ainda mais intensas do que já haviam experimentado. Então, veio o clímax intenso, duradouro... o calor, a felicidade, as lágrimas.
Josh abraçou-a, aconchegando-a em seus braços.
- Não sabia que vikings choravam.
- Não estou chorando.
Josh sorriu e beijou as lágrimas que rolavam por suas faces, sentindo-se fascinar pelo brilho intenso dos olhos azuis que o fitavam com paixão.
- Amo você, Josh Lyman - Kari murmurou.
- E eu amo você, Sra. Lyman.
- Agora, tenho um nome americano.
- Não existem nomes americanos, querida, exceto os dos índios. Todos nós trouxemos nossos nomes de outras terras.
- Mas, agora, meu nome soa americano.
- Para mim, você será sempre Kari Aslaksdatter. Adoro esse som. Mas, o garotão que continuaremos tentando fazer dentro de poucos minutos - ele falou com
uma piscadela -, este sim, vai ser americano.
- Ou ela.
- Ou ela - Josh concordou.
Kari ficou em silêncio, fitando o vazio.
- O que foi amor? - ele perguntou.
- Sei que é tolice pensar nisso, agora... Mas, às vezes, penso nos dois ursinhos que vimos na margem do rio. O que terá acontecido a eles?
- Nós matamos. a mãe deles, Kari. Eles não tinham grandes chances de sobrevivência.
- Oh...
- Não tivemos escolha. Era o urso ou Davey.
- Eu sei, mas parece uma injustiça para com os filhotes.
- Muitas coisas são injustas na vida... Mas temos de seguir adiante, fazendo o melhor que podemos com aquilo que temos.
Kari sorriu. Aprendera essa lição quando sua mãe morrera tantos anos antes. Mas, para Josh, tal aceitação exigira uma luta árdua. E ela sabia que ele lutaria
pelo resto da vida, sempre tentando mudar o destino. No entanto, deitado a seu lado, ele estava em paz. E ela estaria junto de seu amado, tanto nos momentos de paz,
quanto ao longo das tempestades que viriam. Nada, nem ninguém poderia abalar a felicidade conquistada com tanto esforço.



ANA SEYMOUR foi criada em Minnesota, EUA, cercada pelas lembranças de seus antepassados noruegueses; na verdade, sua mãe nasceu no Syttende Mai, o Dia da
Independência da Noruega. Hoje, Ana vive com as duas filhas adolescentes em uma casa de cem anos de idade, às margens de um dos dez mil lagos existentes no Estado.



NOTA DA AUTORA

Meu Estado natal de Minnesota desenvolveu-se amplamente, graças à energia e fé do povo vindo dos países escandinavos. Aqui, eles encontraram uma terra coberta
de pinheiros e água, muito parecida com a terra que haviam deixado para trás.
Quase todas as famílias de Minnesota têm histórias a contar sobre o incrível movimento dos nórdicos, que começaram a atravessar o mundo por volta de 1830
e não pararam até hoje. Agradeço à recém-chegada Synnõve Bakke, pela ajuda que me prestou com as palavras da língua norueguesa usadas neste romance.
Este livro nasceu de um episódio da saga de minha própria família. Um de meus antepassados, Holstein Isaccson, veio da Noruega ainda jovem, a fim de estabelecer-se
na fronteira do Wisconsin. Sua família seguiu seus passos algum tempo depois, mas, tragicamente, a última etapa de sua jornada ocorreu a bordo do SS Atlantic, em
sua última viagem. Kari, mãe de Holstein, seu pai Aslak, seu irmão e irmã mais novos, todos pereceram nas águas do lago Erie, na terrível madrugada de 20 de agosto
de 1852.
Apesar de sua dor, Holstein prosperou como proprietário de terras no Wisconsin e, mais tarde, Minnesota. Como tantos outros imigrantes que fizeram a história
deste país, ele fez o que tinha de fazer... enfrentou os desafios e o sofrimento de iniciar uma nova vida em uma nova terra... e triunfou.




NÃO PERCA NAS PRÓXIMAS EDIÇÕES


10 - PROMESSAS DE CASAMENTO
Laurie Paige


Dentro de poucos dias, Beauregard St. Clair será executado na forca. Mas antes de morrer, ele quer satisfazer dois desejos: arranjar uma esposa - a quem
deixar sua fortuna - e gerar um filho. Quando Roselynne Moreley é trancafiada na sombria prisão de Newgate, em Londres, Beau jura conquistar-lhe o amor. Esse homem
só pode ser louco! É o que Roselynne pensa ao ser pedida em casamento pelo companheiro de cela. Como pode se casar com um estranho, atrás das grades de um cárcere?
Mas, por outro lado, como recusar o pedido, se ele promete lutar para conseguir sua liberdade? Poderá Roselynne manter sua parte no acordo com esse desconhecido
vindo da colônia americana... e, ao mesmo tempo, preservar a dignidade de lady inglesa?





11 - A FILHA DO PIRATA
Elizabeth August


Nenhum homem conseguiu conquistar Kathleen James. Porém, ao permanecer altivo, esperando ser "justiçado" por seus captores piratas, Jonathan Ashford tocou-lhe
a alma e inflamou seu coração. Ele não podia morrer! Com a coragem nascida de repentina paixão, Kathleen arriscou a própria vida para livrá-lo da morte. Uma linda
pirata com as mãos manchadas de sangue: foi o que Jonathan pensou de Kathleen. Mas tudo o que a jovem fazia para salvar-lhe a vida provava que ele não estava lidando
com uma prostituta impiedosa. Por que, então, ela se recusava a dar-lhe a maior prova de seu amor?
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