segunda-feira, 25 de outubro de 2010

{clube-do-e-livro} Jane porter - a desobediente noiva do xeique.txt

Domaria aquela ferazinha... quer ela quisesse quer não!
O xeque Tair vivia segundo as estritas regras do deserto. Quando descobriu que Tally infringira uma dessas normas sagradas, pondo em perigo o seu povo, Tair
viu-se obrigado a agir... Tally transformara-se numa espécie de escrava, contudo o seu instinto dizia-lhe para fugir... ainda que de cada vez que tentava, o deserto
a impedisse. E, a cada ato de desobediência, Tair tornava-se cada vez mais firme. Como dirigente, tinha de a domar. Como homem, desejava-a com todas as suas forças...
Título original: The Sheikh's Disobedient Bride.
Sobre a digitalização desta obra:
Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam
de meios eletrônicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância.
A generosidade é a marca da distribuição, portanto:
Distribua este livro livremente!
Digitalizado por Isabel Chainho
Revisado por Ártemis
Agradecimento especial à Palas Ateneia, sem a sua ajuda seria impossível a disponibilização deste e-book. Obrigada.
CAPÍTULO
Tally ouviu os gritos mesmo antes dos disparos. Atirou-se ao chão, abraçou a máquina fotográfica e tentou proteger a cabeça.
- Soussi al-Kebir - gritou o guia, enquanto se afastava dela a correr.
- Soussi al-Kebir?
Tally não entendeu. Sabia muito pouco árabe. Achava que soussi eram uns berberes do sul e que al-Kebir queria dizer "grande". No entanto, o que queria dizer
soussi al-Kebir? Ouviram-se mais disparos de metralhadora na pequena praça da vila e o barulho de cascos de cavalo contra o chão. Era uma emboscada? Um saque?
Tally, com o coração acelerado, apertou-se mais contra a calçada sem largar a máquina fotografia. Uma bala perdida podia alcançá-la a qualquer momento. Ouviu
o grito de um homem e o barulho surdo do seu corpo contra o chão. Instantes depois, teve de levantar a cabeça para evitar o sangue.
Então, uma sombra enorme caiu sobre ela e tapou o sol abrasador de Baraka. O medo paralisou Tally. Quis gritar, mas não conseguiu. Quis ser valente, mas o medo
impediu-a. Ficou com os olhos cravados na sombra e nos pés que tinha a centímetros da sua cabeça. Eram pés grandes e cobertos com as botas que usavam os homens do
deserto.
Pareciam do couro mais delicado para os proteger do calor da areia e ao mesmo tempo eram leves. Um tecido branco tocava na parte superior das botas. Era a bainha
da túnica. Então, compreendeu. Soussi al-Kebir queria dizer "Comandante do Deserto".
Umas mãos puxaram-na pelos braços e puseram-na de pé. As mesmas mãos arrebataram-lhe a máquina fotográfica enquanto lhe tapavam a cabeça com um tecido preto.
A sua máquina e a mala com o material eram toda a sua vida. Sem ela e as fotografias não conseguiria sobreviver.
- Devolva-me a máquina! - exclamou, com a voz abafada pelo tecido.
- Silêncio! - ordenou-lhe, uma voz áspera e masculina.
Repentinamente, deu por si no lombo de um cavalo. Alguém montou atrás dela e agarrou nas rédeas, enquanto batia nos flancos do animal com os calcanhares e saíam
a galope. Tally, assustada, agarrou-se à sela enquanto tentava tirar o tecido da cabeça, mas estava bem preso aos seus ombros.
- Ash bhitil - perguntou ela, no seu desajeitado árabe de Baraka. - O que quer?
Um braço agarrou-a com mais força como única resposta. Era um braço forte e musculado.
- Tenho dinheiro - acrescentou ela, com desespero. - Dar-lhe-ei. Dar-lhe-ei todo. Acompanhe-me ao hotel e...
- Shhall Quanto? - interrompeu ele bruscamente.
- Quase quinhentos dólares americanos.
Ele não disse nada. Tally disse para si que tinha de manter a calma, mesmo que o tecido não a deixasse respirar. Tinha de chegar a um acordo.
- ShhaH - repetiu ele.
Ele queria saber se ela conseguiria mais dinheiro. Então, Tally percebeu que estava a negociar com um mercenário.
- Mil dólares; talvez dois mil.
- Não é suficiente.
- Então, o que quer?
- Que esteja calada.
-Eu...
-Basta!
Tally calou-se. O medo impedia-a de respirar. Lera algo sobre os seqüestros no Médio Oriente. Disse para si que não devia provocá-lo, nem a ele nem aos seus
homens. Pensou que se se mantivesse calma, correria tudo bem. Tinha de cooperar e mostrar-se digna de confiança para que a soltassem.
Para se acalmar, começou a pensar no seu dia. Começara como todos os dias. Preparara a máquina fotográfica, tapara a cabeça com um lenço e saíra para tirar fotografias.
Nunca viajava sozinha, aprendera que contratar guias, guarda-costas e tradutores podia ser essencial. Sabia deixar cair umas moedas nas mãos indicadas para conseguir
o que queria. Naqueles países, os guias ou intérpretes facilitavam-lhe o acesso a lugares que ela não podia visitar sozinha: templos, mesquitas, cemitérios sagrados...
tinham-na avisado que ser uma mulher seria um perigo para ela, mas fora ao contrário. As pessoas sentiam curiosidade e percebiam logo que ela não era uma ameaça.
Conseguira sair de situações muito difíceis com apenas algumas moedas. Não era suborno, era gratidão. Porque não havia de poder usar o dinheiro?
Pensara que aquela vila do deserto era como as outras que visitara e só ouvira os zurros dos burros e os balidos das ovelhas e das cabras. Era dia de mercado
e a vila estava a abarrotar de gente desde muito cedo para evitarem o calor abrasador. Nada pressagiara que algo mau ia acontecer. Com a máquina preparada estivera
a observar os jogos das crianças e as mulheres com véu que faziam as suas compras. Acabara de focar quando ouviu os gritos e os disparos. Não era correspondente
de guerra nem nunca trabalhara para um jornal, mas passara por mais de uma situação perigosa. Sabia esconder-se e foi o que fez assim que ouviu os disparos. Deitada
no chão, junto do poço, tentara evitar o líquido vermelho que corria entre a calçada e, então, o bandido do deserto capturara-a. Se não se tivesse mexido, talvez
ele não a tivesse visto... Se não se tivesse mexido, talvez estivesse a salvo na vila e não presa no meio do deserto.
Tally tentava respirar debaixo do tecido preto. Começava a sentir pânico, apesar dos esforços por manter a calma. Tinha o coração acelerado e a respiração entrecortada.
Sentia que a asma a ameaçava. Ia ter um ataque. Tossiu várias vezes. O pó asfixiava-a. Não conseguia ver e sentia-se no meio da nuvem de pó e areia que os cascos
do cavalo levantavam. Com os olhos cheios de lágrimas, abriu a boca para respirar fundo. Começava a sentir-se dominada pelo pânico e isso não era nada bom para a
asma, mas não conseguia evitá-lo com o calor, os saltos na sela, o vento, o pó...
Estendeu a mão e esbracejou no ar antes de encontrar as costas do bandido. Estava quente e muito duro, mas era o único que podia ajudá-la naquele momento. Agarrou-se
desesperadamente ao tecido da túnica enquanto os seus pulmões se esvaziavam. Puxou violentamente o tecido e torceu-o para expressar o pânico.
"Não consigo respirar... Não consigo respirar... Não consigo..."
Tair sentiu os puxões até a mão cair sem forças e ela desmaiar. Chamou os seus homens com um assobio e parou o cavalo antes de destapar o rosto da estrangeira.
Estava imóvel e de uma cor azulada. Segurou-a por um braço e virou-lhe a cara para ele para verificar se respirava, mas não conseguiu ver nenhum rasto de vida. Tê-la-ia
matado? Inclinou a cabeça dela para trás, tapou-lhe o nariz e cobriu a boca dela com a sua para lhe dar ar.
Os seus homens, a cavalo, rodearam-no como uma barreira protetora, embora estivessem seguros ali. Estava na sua terra, com a sua gente. No entanto, todos sabiam
que a qualquer momento poderia acontecer alguma coisa.
Ele percebeu o silêncio de todos, a sua quietude, a sua preocupação. Nunca o julgariam. Ele era o seu chefe, mas ninguém queria carregar um cadáver às suas costas
e muito menos o de uma jovem estrangeira. Sobretudo quando Ouaha lutava pela sua independência e o poder e a política mantinham um equilíbrio muito instável.
Voltou a fazer respiração boca a boca, voltou a soprar sem afastar o olhar do peito dela com a esperança de a ver respirar. Pediu-lhe em silêncio que respirasse.
Quase lhe exigiu que vivesse. Repetiu a operação e ela tossiu, pestanejou e olhou para ele.
Tair verificou que a palidez dava lugar a um leve tom rosado.
- Graças a Deus - sussurrou ele.
Talvez não fosse um bom homem, mas não gostava de matar mulheres. Ela tinha uns olhos que não eram nem verdes nem castanhos e, embora a expressão fosse nebulosa,
a cor chamava a atenção, parecia a de um bosque ao amanhecer, parecia o bosque que ele conhecera em criança quando visitara a família da sua mãe em Inglaterra.
Ela levantou bruscamente as sobrancelhas e todo o seu rosto se contraiu. Tentou respirar sem parar de olhar para ele com uns olhos carregados de pavor. Levou
a mão à boca com os dedos curvados.
-... alador...
Ele abanou a cabeça com impaciência por não a entender e por verificar que a palidez voltava a apropriar-se dela. Continuava sem conseguir respirar. Ela olhava
para ele com os olhos esbugalhados e assustados.
- O que precisa? - perguntou-lhe, enquanto lhe dava um leve soco para a manter atenta.
Ela continuava com os dedos curvados como se formasse a letra "C" e fazia esforços desesperados por respirar fundo. Ele, subitamente, percebeu.
- Tem asma?
Ela, para alívio de Tair, assentiu.
- Onde está o seu inalador?
- Má... quina...
Ele levantou uma mão e indicou o que queria. Imediatamente, entregaram-lhe a mala. Tair abriu o fecho e rebuscou lá dentro até encontrar o inalador. Agitou-o
e pô-lo na boca dela. Tally agarrou-o, apertou o aerossol e encheu os pulmões. Tair, que continuava a segurá-la com um braço, observou como o seu peito subia e descia
cada vez com mais naturalidade. Estava viva. Não a matara.
Alguns minutos mais tarde, ela voltou a alterar-se. Tally não soube exatamente quando percebeu que estava nos braços daquele bárbaro, mas quando o fez e percebeu
como a segurava, ergueu-se bruscamente, escapou dele e tentou saltar do cavalo. No entanto, caiu no chão. Resmungou para si, levantou-se, alisou a camisa branca
de algodão e limpou as calças caqui.
- Quem é você? - perguntou ao seu captor.
O homem, sem descer do cavalo, tapou toda a cara exceto os olhos e o nariz e olhou para ela fixamente, como a meia dúzia de homens que o acompanhavam.
- O que quer de mim? - insistiu ela.
- Falaremos mais tarde.
- Quero falar agora.
- Pode falar, mas não vou responder-lhe - replicou ele, enquanto encolhia os ombros.
Tally respirou fundo e sentiu que os pulmões lhe ardiam. Não podia acreditar no que estava a acontecer. Um grupo de homens tinha-a raptado, mas porquê? Quem
eram? Olhou para as botas que tinha à frente dos seus olhos. Eram de uma cor levemente mais escura do que a túnica branca. Levantou o olhar para os adornos das selas
e das rédeas. Ambos eram de prata com ônix e pedras azuis. O olhar de Tally continuou a subir até se fixar no homem. Ele, em comparação, ia sobriamente vestido.
Vestia uma túnica, umas calças brancas e um lenço escuro sobre a cabeça que lhe tapava a cara desde o nariz até ao pescoço. Ela conseguia ver os seus olhos escuros,
penetrantes e quase tão firmes como a ponte do seu nariz.
- Quem é você? - perguntou-lhe ela.
- Falaremos mais tarde - ele virou-se e dirigiu-se aos seus homens. - Em frente.
- Não.
- Não?
- Quase me matou! - exclamou ela, num tom de voz mais rouco do que era normal.
- Felizmente, também a salvei.
- Espera que lhe agradeça?
- Naturalmente. Se não fosse eu, teria morrido.
- Se não fosse você, eu estaria a salvo na vila.
- Isso é outro assunto. Agora está aqui - deu uma olhadela à paisagem árida. - Quer ficar aqui? Quer ficar sozinha no meio do deserto?
Tally olhou para a esquerda e para a direita e só viu dunas e areia.
- Estamos a duas horas a cavalo da população mais próxima - acrescentou ele. - Tem um cavalo?
- Não.
- Oh, não tem cavalo!
Ele inclinou-se até a sua cara ficar sobre a dela.
- Acho que terá de vir comigo.
Antes de ela poder dizer alguma coisa, ele agarrou-a e deixou-a sobre a sela à frente dele, no lugar de onde ela acabara de fugir. Tally gemeu. Ele era grande
e duro. Evidentemente, era Soussi al-Kebir, o comandante do deserto.
- A que bando pertence? - perguntou ela, que já queria saber tudo.
- Bando?
Ele segurou-a mais firmemente e rodeou-a com o braço esquerdo. Ela sentiu-se mal com o contado.
- Com quem está?
- Com quem estou?
Era o momento de ser diplomática, mas não era fácil encontrar a palavra e o tom adequados.
- Pertencerá a algum bando ou tribo...
- Fala demasiado - redargüiu ele, enquanto retomavam o caminho. - Fique em silêncio.
Cavalgaram o resto do dia em silêncio e andaram no deserto durante horas. O tempo já não importava... Nada, nem ninguém podia ajudá-la.
Só podia permanecer alerta,
manter-se acordada para tentar fugir. Ao entardecer reduziram a velocidade ao aproximarem-se do acampamento dos bandidos, um oásis cheio de tendas e camelos. Uma
vez no acampamento, os homens desmontaram rapidamente. Tair saltou do cavalo e estendeu os braços para ajudar Tally, mas ela soltou-se e desceu sozinha. Já estava
cansada do contato com ele e não queria saber mais nada dele.
- Venha! - ordenou-lhe ele, estalando os dedos. - Siga-me.
Abriram caminho entre um grupo de homens que limpava as suas armas. Ela olhou para eles com severidade. As armas não indicavam nada bom. A situação não pressagiava
nada bom. O bandido parou e apontou para uma tenda.
- Entre ali.
Ela olhou para a tenda e para os homens que os rodeavam.
- É uma tenda.
- Claro que é uma tenda - confirmou ele, com impaciência. - Nós vivemos em tendas.
Ela voltou a olhar para a tenda e o medo embargou-a. Sentiu que lhe custava respirar.
- E uma paragem no caminho?
- Uma paragem? A que se refere?
- Amanhã seguiremos viagem?
- Não.
- Então, o que fazemos aqui?
- Acampar - ele voltou a apontar para a tenda. - Entre. Trar-lhe-ão o jantar.
Tally ficou à frente da tenda desarrumada, feita com peles de cabra. Estava imunda. Passara seis meses a viajar pelo Norte de África e Médio Oriente e nunca
vira um acampamento tão hostil. Não era um acampamento hospitaleiro e também não era uma tribo nômade. Não havia crianças, mulheres ou idosos. Só havia homens armados
até aos dentes. Não sabia quem eram e também não queria saber. A única coisa que lhe importava era sobreviver.
Virou-se para o seu captor. Era alto, rude e indolente. Ela conteve todas as emoções. Não podia chorar nem mostrar nenhum sinal de fraqueza.
- Até quando vai reter-me aqui?
- Até quando vai continuar viva?
Ela sentiu um nó na garganta e mordeu o lábio. Estava cansada e sentia-se imunda.
- Tenciona... matar-me...?
Ele semicerrou os olhos e cerrou os dentes. Tinha um nariz imponente, uma testa muito larga e, na sua expressão, não havia compaixão nem ternura.
- Quer morrer?
- Não!
- Então, entre na tenda.
Ela não se mexeu. Não podia. O medo embargava-a. Embora detestasse que estalasse os dedos para lhe dar ordens, o arrepio gélido de pavor que sentia nas entranhas
fazia com que se sentisse muito mal. Não suportava aquele pavor porque fazia com que se sentisse como se já nada voltasse a ser como antes.
- Como posso chamar-lhe? - perguntou-lhe ela, com um esforço enorme.
Ele olhou para ela fixamente durante um instante carregado de tensão. Tally afastou o olhar dele e viu o grupo de homens barbudos que continuava a limpar as
suas armas minuciosamente.
- Tem um nome? - insistiu ela, num tom de voz fraco.
- Visto que você é ocidental, pode chamar-me Tair.
- Tair? - repetiu ela, confusa.
Ele captou que ela franzia a testa com perplexidade, mas não se incomodou em explicar-lhe o seu nome. Para ele, não fazia sentido explicar-lhe que o seu verdadeiro
nome era Zein-el-Tayer. Que era o mais velho de três irmãos e o único que continuava vivo. Que sobrevivera às guerras fronteiriças e a dez anos de tensões e confrontos
graças a uma mistura de astúcia e sorte. Em árabe, Zein significava "bom", mas ninguém lhe chamava assim porque ele não era bom. Todos em Baraka e Ouaha sabiam quem
era e o que representava: perigo e destruição. Talvez a sua cativa também devesse sabê-lo.
- Não te acontecerá nada se fizeres o que te digo.
Tair pensava que já falara mais do que gostava de falar. A conversa parecia-lhe uma perda de tempo. As palavras criavam confusão e distraíam a mente. Era muito
melhor agir e fazer o que tinha de fazer.
Como fizera naquele dia na vila. Afastara a ameaça que pendia sobre o seu povo. Manteria aquela mulher isolada até saber o que ela fazia nas suas terras. Em
Ouaha não se viam mulheres sozinhas com máquinas fotográficas. Se uma mulher ocidental aparecia em Ouaha, algo pouco freqüente, fazia parte de uma visita turística
organizada por alguém de confiança.
- Como chegaste a Ouaha? - perguntou-lhe abruptamente, sem parar de olhar para o seu rosto.
Ela parecia cansada, mas a sua expressão não indicava submissão. Pelo contrário, indicava veemência, fúria, como um animal selvagem encurralado.
- Fui de avião até Atiq e depois de jipe e camelo.
- Alguém terá organizado o itinerário...
- Organizei-o sozinha. Porquê?
O brilho ardente dos seus olhos coincidia com o tom desafiante da sua voz. Se tinha medo ou estava preocupada, não deixava que se notasse. Parecia preparada
para oferecer resistência e isso fascinava Tair. No entanto, o seu rosto quase o intrigava mais. A testa, as maçãs do rosto e o queixo eram fortes e a boca surpreendentemente
delicada e com uns lábios cor-de-rosa e carnudos. O olhar era direto e sem rasto de timidez. Parecia uma mulher segura que não se conseguia influenciar ou enganar
facilmente, o que fazia com que se perguntasse o que fazia em Ouaha.
- Eu faço as perguntas e tu respondes. Entra na tua tenda. Falaremos mais tarde.
Tair virou-se e afastou-se, mas antes vira o brilho de raiva nos olhos dela. Era uma mulher que não gostava que lhe dissessem o que tinha de fazer. Esboçou um
sorriso enquanto voltava para ao pé dos seus homens. Ela aprenderia em breve a disfarçar os seus sentimentos se não quisesse dar-lhe essa vantagem.
CAPÍTULO II
Tally observou Tair enquanto se afastava. Nem sequer esperara que ela respondesse. Dera-lhe uma ordem e fora-se embora. Sabia que ela não tinha outra alternativa
senão obedecer. Praguejou e disse para si que tinha de fazer alguma coisa. Viu que um dos homens que limpava uma espingarda olhava para ela com reprovação. Sentiu
um calafrio e meteu-se rapidamente na tenda. No entanto, uma vez lá dentro, Tally não soube o que fazer. Era desoladora. Só havia uma cama no chão, uma espécie de
manta, uma arca e alguns almofadões na cama, nada remotamente decorativo. Nem um armário para a roupa, que não tinha, nem cadeira nem espelho, nada.
Teria sido fácil deixar-se levar pelo pânico, mas Tally agüentou. Não fazia sentido ficar histérica. Nem sequer havia alguém que soubesse que ela desaparecera.
Para a sua família, ela passara anos desaparecida. Suspirou, passou a mão pela testa e sentiu a areia e o pó. Soltou o rabo-de-cavalo e passou os dedos pelo cabelo
para soltar os caracóis. O que seria dela? O que podia fazer? Fugir? Roubar um cavalo? Lançar ameaças vãs sobre os direitos humanos e as relações diplomáticas? Tinha
medo e calor e sentia-se pegajosa. O que fazia ali? Pediriam um resgate por ela? Involuntariamente, lembrou-se de Tair e sentiu um vazio no estômago. Ele era diferente
dos outros. Era maior, mais rude e mais imponente. Quando tinham cavalgado, ele segurara-a de uma forma possessiva. Recordou o seu braço ao redor dela e a sua mão
sobre a barriga dela e sentiu uma onda de espanto. Foi como se ele tivesse deixado claro que ela lhe pertencia. No entanto, não lhe pertencia nem nunca o faria.
Sentiu um arrepio e esfregou os braços compulsivamente, como se quisesse livrar-se da descarga de adrenalina.
Ele não a deixara morrer no deserto. Quando ela teve o ataque de asma, fez-lhe respiração boca a boca e encontrou o seu inalador. Era evidente que não queria
que ela morresse. Então, o que queria? Além disso, será que alguém em Seattle se importaria se ela nunca voltasse? Tentou convencer-se de que não podia ser pessimista
e acalmou-se um instante, até a entrada da tenda se abrir e ela ver uma sombra.
Sentiu um aperto no coração. O bandido voltara. Ela alisou a camisa branca de algodão e olhou para ele fixamente. Ele teve de se baixar para entrar e, uma vez
lá dentro, deu uma olhadela como se fizesse um inventário do que via. Tally engoliu em seco e pôs as mãos na cintura.
- Podes dizer-me porque me reténs? - perguntou-lhe ela, num tom coloquial.
Alguns raios do crepúsculo entraram pela entrada da tenda. Ele trocara de roupa e vestia uma túnica aberta sobre uma camisa larga e umas calças justas.
- Tens amigos interessantes - indicou ele, depois de uma pausa bastante tensa.
- Não entendo. De que amigos falas?
- Os amigos que viajam contigo.
- Estou sozinha - replicou ela, com a testa franzida. - Não viajei com ninguém.
- Esta manhã estavas com uns homens.
- Ah! - exclamou ela, com alívio. - Contratei-os. São de Baraka. Um é o meu intérprete e o outro, o guia.
Ele não disse nada e ela continuou com a esperança de parecer segura e confiante.
- Contratei-os em Atiq e eles sabiam que eu queria ir às kasbahs do outro lado das montanhas do Atlas.
- Quanto te pagaram?
Tally sentiu uma pontada atrás dos olhos que lhe recordou as enxaquecas que tinha na universidade.
- Eles não me pagaram. Eu paguei-lhes. Deram-me os seus nomes no hotel e estavam muito bem recomendados.
- Fizeram o que querias?
- Sim. Não houve nenhum inconveniente até esta manhã.
Ele olhou para ela em silêncio durante um instante.
- Porque querias vir para Ouaha?
- Estou em Ouaha?
- Não finjas estar surpreendida.
- Estou surpreendida. Não sabia que tinha saído de Baraka. Não atravessei nenhuma fronteira...
- O deserto separa os países, mulher.
Ela pestanejou pelo tom dele ao dizer "mulher", mas respirou fundo e conteve a raiva.
- Não tinha pensado vir a Ouaha. Eu só disse o que queria ao guia e ele fez o itinerário com a condição de estar de volta em Casablanca a um de Outubro.
- Porquê um de Outubro?
- Porque é nesse dia que expira o meu visto para Baraka e tenho de estar de volta a Marrocos.
Ele semicerrou os olhos e cerrou os dentes.
- O que fazes exatamente aqui, tão longe do teu lar? - perguntou, num tom grave e espantado.
- Nada. Vim ver coisas.
- Com uns rebeldes como guias?
O coração dela acelerou e sentiu que tinha as mãos úmidas.
- Não sei as suas tendências políticas. Nunca falamos de...
- Mas pagaste-lhes.
- Sim. Precisava deles. Esta zona é muito isolada e pode ser complicado para uma mulher. Precisava de guias com experiência.
- Tens a certeza de que não te pagaram?
Tally ter-se-ia rido se a situação não tivesse sido tão incerta.
- Porque haviam de me pagar?
Ele baixou-se lentamente até ficar à altura dos olhos dela e olhou para ela fixamente com um ar pouco amistoso.
- Porque não me dizes tu?
Ele tinha uns olhos tão escuros e uma expressão tão intensa, que ela sentiu o seu coração acelerar, não só de medo, mas também devido à sua presença. Ela sentia-se
muito confortável entre homens, mas Tair não era como os outros homens que conhecera. Tinha algo indômito, uma virilidade primitiva que fazia com que ela se sentisse
pequena, frágil e feminina. Ela não queria sentir-se nem pequena nem frágil porque não era. A vida ensinara-a a não se assustar facilmente.
- Não faço idéia do que queres de mim. Sou apenas uma turista...
- Não és só uma turista. Passaste duas semanas com aqueles homens. Duas semanas a tirar fotografias e a reunir documentação. Voltaremos a tentar - replicou ele
lentamente. - Aviso-te, não tenho muita paciência, ainda que esteja a fazer um esforço. Não me ponhas a prova. Entendeste?
Ela assentiu. Entendera que as coisas não estavam bem e que, se não chegasse a algum tipo de acordo em breve, estaria em verdadeiro perigo.
- Sim.
- Fala-me dos homens com quem viajavas.
- Não sei grande coisa deles. Eram muito calados e achei que eram bons homens.
- Estiveste duas semanas com eles e isso é tudo o que sabes dizer-me?
Como sabia que estivera a viajar com eles durante duas semanas? Fosse como fosse, vigiara-a.
- Lamento - desculpou-se ela, que tentou escolher bem as palavras. - Não falamos muito. Eram homens e eu era uma mulher estrangeira. Havia diferenças culturais.
- Diferenças culturais...
- Eu gostaria de poder dizer-te mais. Não sabia que estava a fazer alguma coisa mal. Sempre quis ir a Baraka...
- Mas já não estás em Baraka. Estás em Ouaha. É um território independente, é a minha terra e estes são os meus homens. Tu entraste no meu país com rebeldes
de Baraka. Homens que semearam a violência e a destruição entre a minha vila.
- Não sei de que falas. Cheguei a Atiq, contratei aqueles homens e viajei com eles porque sou uma turista que estava sozinha. Precisava de guias locais e eles
estavam muito bem recomendados.
- E as fotografias? - perguntou-lhe ele, com os olhos semicerrados.
- O que têm as fotografias?
- Estavas a tirar fotografias para eles, não é?
- Não. Eram para mim. Não trabalhei para aqueles homens, eles trabalharam para mim.
- Porque queres fotografias de um país que fica tão longe do teu?
Tally não soube o que responder. Será que ele não tinha interesse em ver o mundo e conhecer lugares longínquos?
- Porque sou curiosa - respondeu ela, pouco depois.
- O que te produz curiosidade?
- Tudo. A comida, a cultura, o idioma, a forma de vida. As pessoas fascinam-me. Fascinam-me as diferenças que há entre nós e o que temos em comum.
- Não temos nada em comum.
Ela não conseguiu disfarçar o seu desprezo. Aquele era um dos motivos pelos quais saíra da sua casa para viajar. Odiava a ignorância e a rigidez.
- É possível, mas em vez de ficar em casa, decidi sair e procurar a verdade sozinha.
- As mulheres têm de ficar em casa.
- Na tua opinião...
- Exatamente. Na minha cultura, a mulheres têm a missão essencial de cuidar dos filhos e da família, de fazer com que o seu marido esteja bem alimentado e descansado.
Devem certificar-se de que esteja bem.
- E quando é que ela se alimenta e descansa? Quando está bem?
- Está bem quando a sua família está saudável e em paz.
- Oh! - exclamou ela, com uma certa ironia. - Algo me diz que isso nunca acontece...
Ele disse algo em árabe que ela não entendeu, mas soube pelo tom que não era algo muito amável. Zangara-o. Percebeu que a raiva se apoderava dele e também reparou
que ele não sabia o que fazer com ela. Tally compreendeu que forçara as coisas, que falara demasiado.
- Lamento - desculpou-se ela, num tom conciliador. - Sou apenas uma pessoa curiosa e estou em Baraka...
- Em Ouaha.
- Em Ouaha - corrigiu ela, - porque esta parte do mundo me desperta curiosidade. Não quero ser uma ignorante.
- Então, és apenas uma turista.
Tally reparou que estava a pô-la à prova e sentiu uma pontada de receio no estômago. Não era só uma turista, era uma fotógrafa profissional, mas pensou que era
melhor não tocar no assunto naquela altura. Ele já desconfiara dela. Será que mudaria de opinião quando lhe dissesse que estava no país dele para tirar fotografias
para um livro sobre crianças?
- Sim, uma turista - repetiu ela.
- Essa é a verdade?
Ela olhou para ele fixamente enquanto analisava todas as alternativas. Não era totalmente mentira. Era uma turista e gostava de viajar e conhecer lugares remotos.
Porque ia ter de lhe falar do seu trabalho? Porque não podia viajar com uma máquina fotográfica?
- Sim - afirmou ela, sem hesitação.
- Veremos, não é? - perguntou-lhe ele, enquanto uma voz o chamava de fora da tenda.
Tair respondeu com um grito e um homem entrou com a máquina fotográfica de Tally. O homem deu a máquina a Tair e saiu sem olhar para ela.
O bandido tirou a máquina da mala e olhou para ela. Tally sentiu as pernas fracas, mas não se atreveu a mexer-se. Observou como ele carregava nos botões e olhava
pela objetiva. Ficou nervosa ao vê-lo mexer na máquina. Era uma máquina boa, embora não fosse a mais cara do mercado. No entanto, as fotografias eram muito importantes
e o cartão de memória estava cheio. Pensara pôr outro cartão quando saísse do mercado.
- Diz-me o que procuras - interveio ela, num tom de voz muito tranqüilo. - Eu mostro-te.
Não lhe fez caso e abriu a tampa da ranhura onde estava o cartão de memória. Tally cravou as unhas na palma das mãos ao ver que ele o tirava. Era minúsculo,
mas continha todo o seu trabalho, a sua vida, o seu futuro.
- Isso é como o rolo - explicou ela. - É uma máquina digital e usa-se um cartão de memória em vez de um rolo.
Ele levantou o cartão azul e olhou para ele por todos lados. Ela tinha um nó na garganta. Era como se ele tivesse a sua vida entre os dedos.
- Sei que é muito pequeno, mas contém centenas de fotografias - acrescentou Tally.
- Há centenas de fotografias aqui? - Ela assentiu.
- Tens mais cartões?
Ela mordeu o lábio. Não queria dizer-lhe que tinha meses de trabalho, centenas e centenas de fotografias, noutros cartões de memória. Alguns estavam na mala
e outros no quarto do hotel.
- Sim.
- Onde estão?
- Porque queres sabê-lo?
- São apenas fotografias - ele encolheu os ombros. - Não precisas delas. És uma turista. Vieste pelas experiências, não pelas fotografias.
Tally sentia vontade de chorar, mas fez um esforço para manter a calma.
- As fotografias são importantes. Ajudam-me a recordar o que vi.
- Pareces nervosa - declarou ele, enquanto voltava a pôr o cartão de memória no seu lugar.
- Posso recuperar a máquina?
- Talvez quando tiver acabado, mas vou dar-te sem o cartão de memória.
- Sem cartão não funciona.
- Podes comprar outros.
- Mas perderia tudo o que fiz.
- Na vila vendem postais. Compra alguns quando te fores embora.
Tair virou-se para se ir embora, mas ela foi atrás dele.
- Por favor! - exclamou ela, sem chegar a tocar-lhe. - Por favor, não apagues as fotografias. Eu mostro-as. Explicar-te-ei como funciona a máquina...
- Não tenho tempo - interrompeu-a Tair. - Em breve trarão o jantar. Até amanhã.
- Até amanhã?
Tally sentiu o coração acelerado devido ao medo e à fúria. Era uma mistura horrível e tremiam-lhe as mãos.
- Vais deixar-me aqui até amanhã? O que se passará então? Devolver-me-ás a máquina com as fotografias?
- Em breve trarão o jantar - repetiu ele, inexpressivamente.
Ela não estava disposta a ser despachada sem mais nem menos. Não entendia o que se passava. Pagara bem aos seus guias e, no entanto, quando se ouviram os disparos
na vila, eles fugiram. Um deles levou um tiro. Tally sentiu um calafrio ao lembrar-se.
- O que queres de mim?
- Falaremos depois de eu ver as fotografias.
- Não apagarás nenhuma, pois não?
- Depende.
- De quê?
- Do que vir - Tair fez um gesto com a cabeça. - Boa noite!
Tally deixou-se cair na cama e tapou a cara com os almofadões para gritar de fúria. Ele não podia fazer-lhe aquilo nem ela aceitá-lo.
Tair, na sua tenda, sentou-se numa cadeira muito baixa e fechou os olhos para tentar abstrair-se da mulher americana que vociferava numa tenda próxima. Ela tinha
de aceitar o seu destino com mais elegância, render-se com dignidade. Esteve tentado a dizer-lo, mas talvez ela o aceitasse como uma vitória e não ia dar-lhe esse
prazer. Primeiro, ela cederia e, depois, ele mostrar-se-ia compassivo. Além disso, o seu pai raptara a sua mulher, a mãe de Tair, e o seu pai era um homem bom, íntegro
e suficientemente justo. No final, a mulher americana perceberia que ele era igualmente íntegro, mesmo que não fosse tão justo.
Tally não se lembrava de ter adormecido, só recordava ter chorado sem parar devido ao desespero. No entanto, já amanhecera. Espreguiçou-se. Ainda tinha os olhos
inchados devido ao choro e custou-lhe abrir os olhos e perceber que, efetivamente, continuava na tenda, no mundo de Tair. Não fora um sonho.
Agarrou um almofadão e o pô-lo debaixo da face. Na noite anterior falhara, mas esse dia utilizaria a cabeça. Recuperaria a máquina e as fotografias. Eram dela.
Vestiu as calças caqui e a camisa branca e saiu da tenda para encontrar algumas respostas, como quem mandava em Ouaha. O sol do deserto cegou-a e queimou-a imediatamente.
- Senhora! - um idoso berbere correu para ela. - Senhora! - repetiu ele, enquanto apontava para a tenda.
Tally esboçou um leve sorriso irônico. Ela devia voltar para a tenda e esperar como uma menina bem comportada. Continuou a sorrir com ironia. Era uma pena que
já não fosse uma menina bem comportada. O idoso virou-se e correu noutra direção. Tally supôs que iria à procura de Tair. O que lhe pareceu perfeito porque ela queria
vê-lo. Contudo, fora de uma tenda viu uma arca com uma mala de couro em cima que se parecia muito com a mala da sua máquina fotográfica. Tally olhou em redor. Não
havia ninguém por perto. Foi até lá. Era a sua mala e estava meio aberta. Conseguiu ver a máquina fotográfica lá dentro. Tally susteve a respiração. Tinha-a ao alcance
da mão. Tinha de a recuperar. Pelo menos, tinha de recuperar o cartão de memória antes de o bandido apagar as fotografias. Baixou-se junto da arca, pegou na máquina,
tirou o cartão de memória e voltou a deixar a máquina na mala. Levantou-se para voltar para a sua tenda. No entanto, repentinamente, encontrou o idoso berbere à
frente dela. Trazia uma roupa no braço. Tally não entendia, mas quando ele estendeu a túnica, compreendeu que queria que se tapasse.
- Não, obrigada - resistiu ela, enquanto abanava a cabeça. - Estou muito bem assim. Além disso, já vou voltar para a minha tenda.
Ele insistiu e, quanto mais insistia, mais depressa tentava andar Tally, mas ele não parava de falar e estava a chamar a atenção de todos. Tally pegou na túnica
e vestiu-a.
- Obrigada - agradeceu ela, secamente. - Já posso voltar para a minha tenda?
Porém, o idoso não parava de falar e de gesticular. Tally agarrou no cartão de memória com todas as suas forças. Tinha de o esconder antes de Tair aparecer.
Conseguiu escapar do idoso, entrou na sua tenda e deitou-se na cama. Estava a tremer de medo e de alívio. A única coisa importante era que recuperara o cartão de
memória. Onde o esconderia? Ainda não decidira, quando ouviu vozes fora da tenda. Pôs o cartão de memória no sutiã exatamente quando a sombra de Tair se projetou
no chão.
- Mentiste-me e roubaste-me - o tom de voz profundo encheu a tenda. - Se fosses um homem, cortar-te-ia a língua e uma mão.
Tally abraçou-se aos seus joelhos.
- Onde está o cartão de memória? - perguntou-lhe ele.
- De que estás a falar? - perguntou ela, enquanto abraçava com mais força os seus joelhos.
- Sabes perfeitamente.
- Não sei.
Ele ficou a olhar para ela com um ar implacável. Tinha uns olhos escuros como o café e um sulco abria-se entre as suas sobrancelhas.
- Eu vi-te. Estava a observar-te.
Ela encolheu os ombros. Notava a sua fúria e o seu sarcasmo, mas não ia permitir que ele percebesse a sua angústia. Não ia comportar-se como alguém desamparado
e indefeso.
- Quero-o - insistiu ele. - Agora.
- É meu - replicou ela com firmeza, embora baixasse a cabeça.
- Antes de voltares a recusar - continuou ele, num tom tranqüilo, - antes de voltares a mentir-me, quero que saibas que, no meu mundo, os ladrões perdem uma
mão e os mentirosos ficam sem língua. Pensa um instante e decide se essas fotografias valem o sacrifício.
Tally já não conseguia olhar para ele. A sua intenção de ser forte estava a desmoronar-se.
- Por favor - sussurrou ela, - deixa-me ficar com o cartão, já tens a máquina.
- E muito estranho que uma turista diga isso. - Tally levantou lentamente a cabeça e engoliu o nó que tinha na garganta.
- Disseste-me que eras uma turista - continuou ele, com um olhar penetrante. - Mentiste-me e roubaste-me. Qual é a tua profissão?
Ela abanou a cabeça cheia de medo.
- Se calhar colaboras com os insurgentes, com quem quer livrar-se de nós, com quem nos roubou a nossa terra.
- Não colaboro com ninguém...
- Porque havia de acreditar em ti?
- Porque não me dedico à política. Sou fotógrafa, mas não política. Nem sequer conheço a história das fronteiras de que falas.
- Demonstra-o.
- Como? - perguntou-lhe ela, olhando para ele sem pestanejar.
- Dá-me o cartão de memória. Verei as fotografias e verificarei se dizes a verdade.
Ela não conseguia afastar o olhar daqueles olhos hipnotizadores.
- O que acontecerá se não gostares das minhas fotografias?
- Apagá-las-ei - respondeu ele, enquanto encolhia os ombros.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas e detestou ser tão fraca, mas estava desesperada. Aquelas fotografias significavam meses de trabalho em condições horríveis.
Um trabalho que até pusera a sua saúde em risco.
- Por favor, não apagues o meu trabalho. Esse cartão de memória contém muitas semanas de trabalho. Ainda não as descarreguei.
Ele estava muito quieto e olhava para ela sem piedade.
- Porque me mentiste?
Ela procurou um rasto de compaixão no seu rosto.
- Achei que não entenderias.
- Na verdade, não entendo.
Tair saiu da tenda e ela ficou imóvel até sair atrás dele.
- Espera! - gritou ela, enquanto corria para o alcançar. - Espera, por favor.
Agarrou-o pela manga. Tremiam-lhe as pernas e o seu coração estava acelerado. Tally pôs a mão no sutiã, tirou o cartão e deu-lhe tremulamente.
- Toma. Vê as fotografias. Se alguma te ofender, apaga-a, mas suplico-te que não apagues tudo - o seu tom de voz estava impregnado de emoção. - Passei meses
no deserto, longe da minha família.
Ele aceitou o cartão em silêncio. Tally olhou para ele nos olhos e pestanejou para conter as lágrimas. Só lhe pedia que fosse justo.
Tally voltou para a sua tenda e deixou-se cair na cama. Acontecera o que a sua mãe sempre receara, o que os seus amigos tinham previsto, o que o seu editor lhe
avisara que aconteceria cada vez que ela saía para uma expedição. No entanto, passara anos como fotógrafa e nunca tivera um problema grave. Até àquele momento.
CAPÍTULO
Tally não esteve muito tempo sozinha. O seu captor voltou pouco depois com a mala e a máquina. Deixou-as na cama junto dela e Tally agarrou-as como se fossem
o seu único vínculo com o mundo exterior.
- Porque me dás isto? - perguntou ela, olhando para ele com perplexidade.
- Disseste que a máquina não funciona sem cartões de memória.
Ela procurou na mala, embora soubesse que não encontraria nenhum cartão. Ele ficara com ele. O prazer de recuperar a máquina desvaneceu-se.
- Não devia ter-te dado. Devia ter protegido as minhas fotografias.
- Era indiferente se o devolvias ou não. O cartão que tiraste da máquina estava vazio. Era novo. Troquei-os antes de deixar a máquina lá fora.
Tally afastou o cabelo da cara. Tinha tanto calor que queria gritar.
- Não é verdade. É uma história.
- Uma história? - olhou para ela fixamente nos olhos. - Imaginava que dirias isso.
Ela manteve o seu olhar para lhe demonstrar que não a intimidava.
- Efetivamente, é o que digo. Uma história.
- Não tenho tempo para histórias. Estava a pôr-te à prova - os seus olhos pretos eram como brasas. - Não passaste o teste.
- Não é de estranhar. Para que saibas, é difícil perceber-te ou a tua causa quando desprezas completamente o trabalho e os sentimentos dos outros.
- Não sabes bem com quem estás a lidar, pois não?
Ela sabia muito bem. Era um bandido e um seqüestrador e não seria sensato provocá-lo demasiado, mas estava tão furiosa, que não conseguia pensar com clareza.
- Não se deve pôr as pessoas à prova.
- Claro que deve. E uma boa estratégia. Temos de conhecer os pontos fortes e fracos dos outros.
- Achas que conheces os meus?
- Acho que não és digna de confiança - ele fez uma careta. - Embora haja pouca gente que seja.
Ela desviou o olhar. Tinha vontade de chorar e aquela artimanha magoara-a muito. Ele brincara com ela, mas o que mais a magoava era a sua atitude.
- Tens uma forma espantosa de entender a vida.
- É eficaz. Desta forma protejo a minha vila e a mim próprio.
Ouviu-se uma voz e o idoso da noite anterior apareceu com uma bandeja cheia de frutas, pão ázimo e umas chávenas fumegantes com chá de menta. O homem deixou
a bandeja no tapete e desapareceu.
Tair sentou-se no tapete.
- Acompanhar-me-ás - não foi um convite, mas uma ordem.
- Não tenho fome.
- Tens de comer - replicou, enquanto apontava para o tapete.
- Nunca conheci um berbere tão grosseiro - balbuciou ela, num tom de voz baixo, mas soube que ele a ouvira.
- Há piores - replicou ele, enquanto pegava num dos pães.
Ela também tinha de comer e beber, mas receava ficar doente.
- O que tenho de fazer para recuperar as minhas fotografias?
- Não quero voltar a falar desse assunto.
- É importante...
- Já não é. Não vais usar as fotografias aqui.
- O que vou fazer enquanto estiver aqui? - Olhou para ela inexpressivamente durante um bom bocado.
- Nada.
- Nada?
- Não vou obrigar-te a fazer nada. Estou satisfeito por ter os cartões e posso esperar.
- Esperar? Para quê?
- Para saber a verdade. Descobrirei. Descubro sempre.
- É possível, mas pode demorar muito tempo.
- É verdade. Nesse caso, terás de aprender a desfrutar da vida no deserto durante um tempo indefinido.
- Indefinido...
- A não ser que queiras dizer-me a verdade neste momento, mulher.
- Já te disse a verdade e não me chamo "mulher". Chamo-me "Tally".
- Nunca tinha ouvido esse nome. Não é um nome - um brilho perverso iluminou os seus olhos e esboçou algo que parecia vagamente um sorriso. - Chamar-te-ei "mulher".
Ela sentiu uma raiva sem limites e não soube se foi devido às palavras, ao tom ou ao brilho dos olhos dele.
- Não responderei.
- Fá-lo-ás.
- Não o farei.
- Fá-lo-ás - os seus olhos eram ardentes. - Mesmo que demore dias ou semanas - pela primeira vez olhou para ela de cima a baixo. - Ou anos.
Ela sentiu-se corar. Era o mesmo calor que percorria as suas veias.
- Anos... não.
- Algum dia responderás, mulher. Quanto mais depressa o aceitares, mais depressa melhorará a tua vida.
Ela quis atirar-lhe alguma coisa. As chávenas de chá, a bandeja, um almofadão... Era insuportável.
- Então, eu vou chamar-te "homem".
- És muito impertinente para uma mulher - ele parou de sorrir. - Podes chamar-me Tair.
- Porque é que tu tens um nome e eu sou "mulher"?
- Porque eu te trouxe para cá e sou responsável por ti. Isso transforma-te na minha mulher.
- Isso não faz sentido.
- Para mim, faz e com isso basta, visto que estás na minha tribo e és minha.
- Por favor, podes parar de dizer que sou a tua mulher? Não sou. Não sou mulher de ninguém e não estava a espiar-te nem nada parecido na vila de Saroush. Porque
havia de te espiar? Nem sequer sabia quem eras. Além disso, que sentido teria espiar um grupo de homens imundos montados em cavalos.
- Homens imundos? - perguntou ele, entredentes.
- Até os teus cavalos são imundos - insistiu ela, com os braços cruzados.
- Não é verdade - contradisse ele, ardentemente. - Os nossos cavalos são dos melhores cavalos árabes do Norte de África. Criamo-los nós próprios.
- Estão sujos. Estão todos sujos...
- Devias ver-te ao espelho.
- Tomaria um banho se me deixasses! Também adoraria ter roupa limpa, mas receio que não tenhas raptado também um pouco de roupa para mim.
- Vou cortar-te essa maldita língua agora mesmo. - Ela devia ter tido medo, mas não teve. Ele era enorme e assustador, mas não parecia cruel nem um homem que
cortasse línguas impulsivamente.
- A verdade é que eu nem sequer teria reparado em ti quando estavas na vila. Só me interessavam as crianças que estavam a brincar e só quero que me deixes ir
a Casablanca.
- Porquê Casablanca?
- É a etapa seguinte do meu itinerário.
- Tens amigos lá? - perguntou-lhe ele, com receio.
- Não. Estou sozinha.
- Casablanca é um bastião dos rebeldes.
- Estás um pouco obcecado com terroristas, não estás? - perguntou-lhe ela, com um suspiro.
Ele olhou para ela fixamente durante um instante, agarrou na cara dela e levantou-lhe o queixo.
- Quantos anos tens? Trinta? Mais?
Ela tentou soltar-se. Não gostava que ele lhe tocasse. Fazia com que sentisse um formigueiro.
- Acabei de fazer trinta anos - respondeu ela fracamente.
- Não tens aliança - comentou ele, sem parar de olhar para ela na cara. - O teu marido morreu?
- Não estive casada.
- Nunca?
- Não quero um marido.
Ele largou-a e baixou o olhar para esconder a sua expressão. Estava a avaliá-la.
- Não és virgem, pois não?
O tom dele mudara e ela não soube se era devido ao choque ou ao respeito, porém, fosse o que fosse, indignou-a. A sua vida, o seu passado, as suas relações e,
sobretudo, a sua vida sexual, eram assunto dela e de mais ninguém. E muito menos de um bárbaro do deserto.
- Tenho trinta anos, não treze. Claro que tive relações e experiências, mas escolhi continuar solteira. Assim posso viajar e fazer o que quero.
Tair continuava a olhar para ela como se fosse um extraterrestre ou alguém fascinante por algum motivo. Tally não sabia se gostava daquela expressão. Deixava-a
nervosa e fazia com que se sentisse vulnerável.
- Os teus pais... estão vivos?
Ela assentiu com certa rigidez. Não sabia onde ele queria chegar e também não queria saber.
- Não se preocupam contigo? - insistiu ele.
- Não - corou e olhou para ele nos olhos. - Talvez um pouco, mas já estão habituados. Sabem que sou assim e trabalho nisto. Além disso, têm outros filhos que
lhes deram netos e essas coisas.
Tair serviu uma chávena de chá.
- Procurar-te-ei um marido.
- O quê?
Ele assentiu antes de beber um gole de chá.
- Precisas de um marido. É o correto. Encontrar-te-ei um. Alegrar-te-ás.
-Não.
Tally tinha a cabeça às voltas. Ele estava completamente errado e não lhe saíam as palavras. Só conseguia respirar fundo.
- As mulheres são como a fruta - declarou ele, enquanto pegava numa tâmara e a espremia delicadamente. - As mulheres precisam de um marido e filhos ou secam.
Tally pensou que era impossível que ele tivesse dito que as mulheres secavam enquanto espremia uma tâmara. Era um pesadelo. Tinham-na raptado, tinham-lhe tirado
as fotografias e queriam casá-la com algum bárbaro do deserto.
- Por favor, deixa-me ir para casa. Emenda isto antes que acabe mal.
- Ocupar-me-ei de encontrar o teu marido ideal. Não te preocupes - esboçou o que ele considerava um sorriso e ela conseguiu ver os seus dentes perfeitamente
brancos. - Come. Os homens berberes gostam das mulheres com um pouco de carne. Com formas, não esquálidas como tu.
Tally reparou que o pânico se apoderava dela. Não podia continuar ali.
- Pelo menos, tens de beber o chá - Tair franziu o sobrolho. - Estás desidratada. Nota-se nos teus olhos e na tua pele.
Tally não era chorona, mas estava prestes a começar a chorar. Não conseguia agüentar mais.
- Não gostas de chá? - insistiu ele, com algum desespero. - Preferes água?
- Água engarrafada?
- É água do poço - respondeu ele, com perplexidade.
- Está tratada?
Acabara de passar uma semana a tomar antibióticos para combater um vírus. Sentia arrepios só de pensar nas quarenta e oito horas que passara no hospital de Atiq.
- Não posso beber água que não esteja depurada. Tive alguns problemas...
- És a mulher mais delicada e melindrosa que conheci.
- Não sou melindrosa nem especialmente delicada...
- Asma, sufocos de calor, problemas de estômago, desidratação...
- Eu não te pedi que me raptasses! Se não gostas que seja tão delicada, para a próxima vez que vás raptar uma mulher pergunta-lhe como é.
- Não vais facilitar-me a tarefa de te encontrar um marido - Tair abanou pesarosamente a cabeça. - Os homens não gostam de mulheres teimosas.
Tally esteve prestes a dar uma gargalhada. Ele chamava-a teimosa...
- Sabes que tens muito bom vocabulário para um bandido do deserto?
- Eu gosto de ler quando não estou a saquear uma vila - Tair estalou os dedos. - Agora, bebe. Nenhum dos meus homens se casaria com uma mulher moribunda.
- Não me interessa nenhum dos teus homens.
- Gostas muito de discutir.
- Tenho opiniões próprias e, ainda que não acredites, não costumo ser complicada. Tu dás ênfase ao pior em mim. Há anos que não tinha um ataque de asma. Tive-o
porque quase me asfixiaste com aquele capuz horrível. Foi uma crueldade.
- Já percebi - ele arqueou as sobrancelhas, - mas pelo menos ficaste calada.
Ela tapou a cara com as mãos e tentou respirar fundo para não cheirar a menta do chá nem o cheiro a sândalo e fumo da pele de Tair. Não conseguia passar outro
dia no deserto com aquele homem.
- Importavas-te de sair? - pediu a Tair quase a chorar. - Importavas-te de me deixar sozinha?
Ele não respondeu. Ficou tão calado que, ao fim de um minuto, ela pensou que ele se fora embora, mas ao levantar a cabeça viu que ele continuava sentado em frente
dela. Não tinha uma expressão compassiva, mas tinha os dentes apertados e o ar de condescendência e de análise que ela já conhecia.
- Bebe o chá - insistiu ele, com cansaço. - Estamos no deserto e o calor é muito traiçoeiro. Tens de estar hidratada se queres viver para tirar outra fotografia
ou para chegares a Casablanca - os seus olhos brilharam enquanto lhe dava a chávena de chá, - que na minha opinião está sobrevalorizada.
Ela arqueou as sobrancelhas. Era uma brincadeira? Aquela expressão seca e impassível era o seu conceito de uma brincadeira?
- Não confio na água - replicou ela, enquanto recusava a chávena de chá. - Na verdade, tenho sede e beberei, mas água engarrafada.
- Água engarrafada?
Ela não fez caso do seu tom de incredulidade. Ele não entendia os problemas que ela tivera por ter bebido água em Atiq.
- Sim, água engarrafada. Vende-se nas lojas.
Olhou para ela com uns olhos que deixavam muito claro que se sentia zangado e ofendido.
- Vês alguma loja aqui perto?
- Não, mas há lojas em Saroush.
- Estás a propor que mande alguém para te comprar água engarrafada?
- Estou a propor que mandes alguém deixar-me lá.
Ele suspirou e esfregou as têmporas com os dedos.
- E uma lengalenga muito aborrecida.
- Acabei de começar - replicou ela, entredentes.
- Devia ter-te cortado a língua.
- Não acho que te convenha - respondeu ela. - Se calhar o meu novo marido não gostaria disso...
- Tens razão. Podia baixar o teu preço como noiva. Portanto, cala-te e bebe o chá ou obrigar-te-ei a fazê-lo.
Pôs-lhe a chávena à frente da cara e Tally aceitou-a.
- Se beber o chá, vais-te embora?
Ele olhou para ela nos olhos com um sorriso que indicava satisfação pela batalha que estavam a travar.
- Sim.
- Se morrer de disenteria, prometes-me que me enterrarás como cristã?
- Não posso prometer-te isso, mas levarei as tuas cinzas para Casablanca.
Tally não sabia se devia tranqüilizar-se ou preocupar-se mais com o sorriso de Tair.
- Está bem, beberei o chá, mas depois tens de te ir embora.
Bebeu o chá. Não gostou do sabor amargo, mas agradeceu o líquido. Tinha a garganta seca e uma chávena não seria suficiente, mas era um princípio.
- Já está.
Ela levantou-se. Tair também se levantou e olhou para ela.
- Na verdade, é possível que sejamos uns bárbaros e uns bandidos imundos, mas fervemos sempre a água. A água da cidade pode ter parasitas, mas a minha não.
Tair saiu com um sorriso. Tally agarrou num almofadão e pô-lo na cara para gritar de desespero. Não podia retê-la ali e muito menos procurar-lhe um marido. Tremeu
de medo. Não podia comunicar com ninguém e ninguém se preocuparia se ela desaparecesse da face da terra.
Fora criada numa pequena vila junto das montanhas Cascade, no Estado de Washington. Ficou em North Bend mais tempo do que teria gostado, mas quando se foi embora,
foi para muito longe. A sua mãe costumava dizer que as únicas notícias que tinha dela eram os postais de Natal que lhe mandava e onde lhe contava todas as suas viagens.
Nessa altura, Paolo teria sido o único que se teria preocupado. Ensinara-lhe a escalar e a navegar, assim como a não ter medo e a enfrentar os seus receios.
Mas depois de tantos anos sem ele, ela não tentara substitui-lo. O amor era um assunto complicado para ela e já lhe chegara uma experiência. Não queria dizer que
se casasse com Paolo, mas se se tivesse casado, algo quase impossível, teria sido com ele.
Tally deixou o almofadão na cama e fez um esforço para comer enquanto tentava recordar com quem falara pela última vez e a quem mandara os últimos e-mails em
Atiq. Será que alguém sabia que continuava no Norte de África? Talvez o seu editor soubesse, mas há semanas que não falavam. A comunicação não era a sua especialidade.
Adorava tirar fotografias, mas não gostava de escrever e os seus e-mails limitavam-se a algumas linhas para dizer onde estava. Ficou a olhar para a bandeja com comida.
Ia pagar caro por aquele abandono.
O idoso apareceu na entrada da tenda e disse-lhe algo que ela não entendeu. No entanto, ele entrou na tenda com uma banheira de cobre relativamente grande. Deixou
a banheira sobre o tapete e indicou-lhe que se iria embora, mas que voltaria. Quando voltou, acompanhavam-no três homens com cântaros cheios de água.
Podia tomar um banho. Tair aceitara algo que ela pedira. Emocionada, observou o idoso que enchia a banheira com água quente e que lhe deixou sabão antes de sair.
A banheira não era muito funda, mas a água estava quente e tinha um sabão com cheiro a azeite e cítricos. Lavou o cabelo e ensaboou-se. Quando tirou o sabão, a água
já estava quase fria, mas ela sentia-se maravilhosamente bem, até perceber que só podia vestir a sua roupa suja. Vestiu-a com resignação e passou os dedos pelo cabelo
para o afastar da cara. Olhou em redor e compreendeu que estava farta da tenda. Só passara um dia lá e já a detestava. Sairia para percorrer o acampamento.
Assim que saiu, Tally reparou que todos os homens olhavam para ela. Era evidente que censuravam que andasse por ali, mas nenhum lhe disse nada nem se dirigiu
a ela.
O acampamento era maior do que parecia à primeira vista. Havia mais de uma dúzia de tendas e as maiores estavam abertas e com tapetes e almofadões no chão. Tally
supôs que seriam as tendas onde se reuniam os homens para comer e socializar.
Um cão vadio e coxo começou a segui-la. Ela pensou afastá-lo, mas decidiu que agradecia a companhia. Era o seu primeiro amigo. Baixou-se e acariciou-o atrás
de uma orelha.
- Se pudesse usar a minha máquina, tirar-te-ia uma fotografia. Pobrezinho, tens um aspecto tão mau como este acampamento.
O acampamento era pobre, desolado e deprimente. Voltou a sentir saudades da sua máquina porque teria gostado de o fotografar. Teria tirado fotografias incríveis
das tendas com o fundo das dunas do deserto e os camelos. Naquele momento, ouviu uma voz que já conhecia. Era o idoso que corria para ela com um tecido de algodão
enrolado no braço. Tally não entendia, mas quando ele estendeu o tecido e mostrou uma túnica, ela compreendeu que queria que se tapasse.
- Não, obrigada - ela abanou a cabeça e as mãos. - Estou bem assim.
Ele, contudo, insistiu e quanto mais insistia, mais Tally resistia a vestir a túnica e a tapar a cabeça.
- Não - recusou-se ela com firmeza, enquanto se perguntava onde estaria Tair, que ela não vira por lado nenhum. - Tair? - perguntou ao idoso.
O homem olhou para ela sem entender e voltou a levantar a túnica.
- Tair - repetiu ela, que se pôr em bicos de pés e levantou a mão para indicar a altura de Tair.
O homem pareceu mais confuso e Tally quis arrancar o cabelo de desespero.
- Tair! - gritou ela, enquanto abria os braços para indicar o seu tamanho.
O homem olhou para ela atônito e ela, nesse preciso momento, viu um cavalo selado e abandonado. Podia fugir. Era uma insensatez, mas só queria fugir, acontecesse
o que acontecesse. Montou, agarrou nas rédeas e esporeou o cavalo. Ele olhou para ela de uma forma curiosa antes de sair disparado. Galoparam pela areia. Tally tinha
o coração acelerado. Era um disparate, mas não voltou a olhar para trás nem desacelerou. Sentia-se como se estivesse a dirigir-se a toda a velocidade para a sua
própria vida ou, melhor dizendo, como se estivesse a fugir a toda a velocidade da vida que a esperava. Não permitiria que ninguém controlasse a sua vida ou o seu
destino. Passara anos a renunciar às suas fantasias e à espera de alguma coisa, mas já não podia continuar à espera. Cega pelo sol e cheia de calor, tentou segurar-se
melhor. Não estava habituada àquela sela e uma parte da sua cabeça dizia que tinha de ir mais devagar, mas a outra parte estava desenfreada e continuou à mesma velocidade.
Talvez se o seu passado tivesse sido diferente, se as suas experiências tivessem sido diferentes, pudesse ter ficado no acampamento a esperar, mas já não sabia esperar,
sobretudo quando passara toda a vida à espera.
Não era filha única, era a mais velha de cinco irmãos. Tivera muitas responsabilidades. Na verdade, fora a responsável por quase tudo.
Desde muito pequena, levara e fora buscar os seus irmãos e irmãs mais novas à escola, dera-lhes de comer e vestira-os desde que a sua mãe tivera de começar a
trabalhar depois de o seu pai ter uma grave lesão de costas que o deixou acamado. Tally fiscalizava as tarefas dos seus irmãos, comida, compras e a roupa. Já como
adolescente, Tally sonhava fugir de casa, fugir da pressão e das responsabilidades, mas quando acabou a escola, a saúde da sua mãe foi piorando e Tally compreendeu
que não podia ir-se embora. Não podia abandonar os seus irmãos mais novos nem os seus pais que precisavam dela. Ao não poder fugir na vida real, fugia mentalmente
graças aos livros, aos filmes e às fotografias.
Até o seu irmão mais novo, Jude, ir para o liceu, ela não se permitiu sonhar com a possibilidade real de se ir embora. Quando Jude fez dezesseis anos, ela percebeu
que o pequeno já era suficientemente grande e forte para cuidar de si próprio.
Os seus pais suplicaram-lhe para que ficasse, disseram-lhe que ainda precisavam dela, mas ela tinha vinte e seis anos e, durante os últimos dez anos, não fizera
outra coisa senão tratar dos outros. Ia-se embora, ia dar aquele passo decisivo, mesmo que fosse a última coisa que fizesse.
Tally, ao ver a enorme extensão de areia que tinha à sua frente, pensou que aquele passo decisivo podia matá-la. Além disso, o que fazia ela em Baraka, Ouaha
ou como quer que se chamasse aquele lugar?
Não percebeu se escorregou ou se o cavalo tropeçou, mas de repente, deu por si no chão enquanto o cavalo se afastava. A queda deixou-a com falta de ar, mas o
calor da areia fez com que se levantasse de um salto. Trêmula e com os olhos cheios de lágrimas, limpou a areia da cara. Sentiu um arrebatamento de pânico, mas conteve-o.
As lágrimas não iam resolver nada. Usou todas as suas forças e começou a andar na mesma direção que o cavalo. Era relativamente fácil seguir os seus rastos. Caminhou
sob o sol abrasador. Fora o que fizera durante os últimos cinco anos. Desde que deixara a sua casa, vivera com uma mochila às costas e percorrera os cantos mais
inóspitos do mundo. Tally nunca se perguntara porque se tornara fotógrafa de crianças. Foi o primeiro trabalho que conseguiu em Seattle, mas porquê bebês e crianças
pequenas? Porquê meninas e meninos entre a infância e a adolescência? Entre rajadas de areia, Tally percebera que não fora um acaso. Fotografava caras de crianças
para aprender. Ela não tivera uma infância verdadeira. Não tivera tempo para brincar, não tivera vestidos bonitos, não tivera aulas de ballet nem patinara no gelo.
Os seus pais não tinham dinheiro e, além disso, precisavam dela a toda a hora. Sentiu um nó na garganta, mas não lhe deu muita importância, nem sequer quando observou
que o horizonte escurecia depressa. Pouco antes, o horizonte já estava escuro devido à areia que formava redemoinhos, mas não era tão assustador. Percebeu, com medo,
que se dirigia para uma tempestade de areia.
CAPITULO
Tally virou-se e olhou para trás enquanto se perguntava como podia proteger-se. A nuvem de areia crescia como se o céu se tivesse tornado castanho. Sentiu o
perigo, o silêncio espantoso que pressagiava a fatalidade. Não se ouvia nada à exceção do silêncio do deserto, que para ela era um estrondo. Pensou que era como
um monstro que respirava. Também pensou que era o seu fim e que nem sequer tinha a máquina. Tentou rir, mas a gargalhada ficou presa na garganta ao ver o muro de
areia que se aproximava dela a toda a velocidade.
Subitamente, ouviu os cascos de um cavalo. Virou-se e viu a sombra de um cavalo preto com um homem como Tair que se inclinava, a agarrava e a punha na sela à
frente dele. Nunca travou, limitou-se a empurrá-la contra o pescoço do cavalo e a tapá-la com o seu corpo, enquanto corriam para salvarem as suas vidas e fugirem
do monstro de areia. Cavalgavam para as rochas. Tally vira-as ao longe, mas não as tivera em conta. No entanto, ao aproximar-se, viu que entre as rochas havia aberturas
como pequenas grutas. Tair dirigia-se para lá. A areia começava a cortar-lhe a pele e Tally tapou a boca e o nariz.
- Entra! - gritou Tair.
Quase a atirou contra a entrada de gruta e, embora tivesse medo de escorpiões e de cobras, pensou que preferia isso à tempestade de areia. Tally arrastou-se
para dentro e Tair seguiu-a enquanto agarrava com força nas rédeas para que o cavalo não fugisse. Tally, aprisionada entre a rocha e o corpo de Tair, fechou os olhos
e ouviu o bramido da tempestade. Se Tair não tivesse ido atrás dela... Sentiu vontade de chorar e, apesar de ter as pálpebras fechadas, sentiu que derramava algumas
lágrimas. Não queria viver daquela maneira. Queria ver o mundo e ter aventuras, mas sem ser controlada. Sem depender de ninguém. Sem precisar de nada de ninguém.
O cavalo estava muito inquieto.
- O teu cavalo está aborrecido - comentou ela.
- Não é o único - replicou Tair.
A gruta estava escura, mas conseguiu distinguir os traços de Tair. Não estavam contraídos, mas transmitiam firmeza. Tally engoliu em seco ao sentir a proximidade
do corpo dele. Ele apoiava-se nos braços para não a esmagar e, embora não lhe tocasse, ela imaginou as suas mãos sobre o seu corpo, os seus dedos que lhe percorriam
as costas. Seria ardente. Sentiu uma pontada de desejo e o calor que lhe percorria todo o corpo. Tremeu e perguntou-se se Tair teria percebido. Cerrou os punhos
e tentou racionalizar o que sentia. Tinha de distinguir entre atração e mera adrenalina. Aquelas coisas podiam acontecer. O próprio Paolo dissera-lhe que muitos
homens e mulheres se apaixonavam em situações perigosas devido a uma alteração das hormonas. Tally disse para si que se sentia assim devido ao perigo, à tensão entre
Tair e ela, à tempestade, ao barulho e ao calor na gruta.
- Como dormiste ontem à noite? - perguntou-lhe Tair aos gritos.
Ela ficou rígida.
- Muito mal e tu sabes.
Ele esboçou um sorriso e afastou-lhe o cabelo da cara.
- Deste um bom espetáculo ontem à noite. Os meus homens estavam maravilhados.
Ela deu um salto ao sentir o contacto dos seus dedos.
- Fico contente por os ter entretido.
Ele sorriu mais. Barbeara-se. A sua cara parecia de bronze e realçava as suas maçãs do rosto altas e o seu nariz firme e aristocrático.
- O teu futuro marido estará muito preocupado contigo.
- Não me interessa.
O cavalo mexeu-se e empurrou Tair contra ela. Tally tremeu ao sentir as suas ancas e o seu peito.
- Tenho a certeza de que encontraremos um homem que saiba lidar contigo. Precisarás de um homem muito especial...
- Não acho graça.
Ele era sólido e quente e isso perturbava-a. Tal como a atração que sentia. Não podia desejá-lo. Era um disparate, tal como toda a situação. Ela queria liberdade
e aquilo não era liberdade, pensou enquanto o corpo dele tocava onde menos devia. Não podia viver no seu mundo, nem sequer podia sentir-se atraída por ele. Com uma
mão tremula, tapou os olhos para o ignorar. A gruta era pequena e ele atormentava-a com o seu corpo, mas passara por situações mais perigosas do que aquela. Só tinha
de manter a calma.
O cavalo voltou a mexer-se e daquela vez o joelho de Tair avançou e ficou entre as pernas dela. Sentiu uma coxa dura e quente contra aquele ponto tão sensível.
Era aterrador e excitante. Abriu a boca para balbuciar. A sua cabeça recusava aquela intimidade, mas o seu corpo queria mais. O estrondo apagou qualquer som.
Levantou o olhar e encontrou os olhos de Tair. Estava a sorrir.
- Talvez, se encontrar o homem certo, acabes por desfrutar. Talvez não queiras voltar para o teu país...
Tally não conseguiu responder. Abanou a cabeça e olhou para outro lado. Não ficaria ali. Nunca pertenceria a um berbere.
Tally não soube o tempo que esteve naquela gruta ardente, com gotas de suor entre os seios e toda a pele molhada, mas o barulho parou e Tair largou as rédeas
do cavalo para que recuasse lentamente. Tally vislumbrou um pedaço de céu azul. A tempestade passara.
Saíram da gruta e Tally espreguiçou-se. Tair montou-a no cavalo e depois montou atrás dela. Saíram disparados em direção ao acampamento.
- Os teus homens estarão bem? - perguntou-lhe Tally, ao ver as tendas meio cobertas pela areia.
- De certeza - respondeu ele laconicamente, enquanto parava o cavalo. - Tu foste a única que esteve em perigo.
Os homens rodearam-nos quando desmontaram. Tair respondeu a algumas perguntas enquanto a arrastava para a sua tenda. Uma vez na tenda de Tair, sentou-a numa
cadeira que havia à frente de uma mesa muito simples.
- Ficaste louca?! - gritou ele, com as mãos na cintura. - O que tencionavas fazer?
- Fugir.
- Foi uma estupidez!
- Reter-me aqui é pior.
- Reter-te aqui é manter-te a salvo. Não vou consentir que fujas, que corras perigos e que tenha de te procurar. Porta-te como uma mulher da tua idade.
- Porque não paras de falar da minha idade?
- Porque não és uma criança. És uma mulher em idade de ter filhos...
- Não fales da minha idade!
- Não posso parar de falar.
- Porquê? Não te diz respeito. Nada do que faço te diz respeito.
- Enganas-te. Tudo o que fazes no meu país me diz respeito - Tair sentou-se num banco em frente dela. - Além disso, para onde ias?
Ela tentou recostar-se na cadeira para evitar a sua proximidade. Ele tinha o cabelo e as sobrancelhas cobertas de areia o que lhe dava um ar indômito. Como um
pirata do deserto.
- Ia procurar ajuda - respondeu ela.
- Ajuda?
- Polícia, proteção...
- Proteção de quem?! - gritou ele.
- De ti!
- Eu protejo-te. Eu salvei-te dos rebeldes. Salvei-te de pessoas muito violentas.
- Lamento muito, mas tu és o único homem perigoso que conheci no Norte de África.
- Quem vai proteger-te de mim? - perguntou-lhe ele, num tom de raiva.
- O governo de Ouaha.
- O governo - repetiu ele, com um olhar indecifrável. - Eu sou o governo.
- És um comandante do deserto.
- Sim.
- Tem de haver alguém acima de ti, com mais autoridade.
Ele limitou-se a olhar para ela.
- Não há um sultão ou um rei? - perguntou ela. - Alguém acima de um xeque...
- Há um que tem o título de sultão de Ouaha, mas não é um dos nossos. E um xeque berbere de Baraka e ele e a sua família ofereceram a sua amizade a Ouaha, mas
não têm autoridade aqui.
- Não respondes perante ele?
- Não respondo perante ninguém.
- No entanto, se eu fosse ter com esse sultão, ele ajudar-me-ia, não é? Não permitiria que tivesses uma refém americana.
- Primeiro, não conseguirias falar com o xeque Nuri porque vive em Londres e, segundo, se conseguisses falar com ele de alguma forma, nunca iria contra os meus
desejos. Lutamos muito juntos. Ele confia no meu julgamento e eu, no dele.
- Então, quanto tempo tencionas reter-me aqui?
- Para sempre? - Tair encolheu os ombros.
- Vais vestir-me e alimentar-me para sempre? És muito generoso.
- Não sou assim tão generoso. E possível que não vivas muito tempo. O deserto é um lugar perigoso.
- É uma ameaça?
- Não preciso de ameaças. Aqui, a minha palavra é a lei. Consigo tudo o que quero.
- Deve ser uma sensação maravilhosa.
Ele sorriu, mas o seu olhar manteve-se hostil.
- Não é uma fanfarronada. É a realidade.
- O que fazes exatamente? Quais são as funções de um xeque?
- Imagina um reino pequeno.
- Tu és o rei.
- Exatamente. Tenho a última decisão e agora decido que voltes para a tua tenda, toma um banho e porta-te como uma mulher.
Quando ficou sozinho na sua tenda, Tair tomou banho, lavou o cabelo e vestiu umas calças limpas e uma camisola larga. Teria de fazer alguma coisa com aquela
mulher. Depois do que se passara, havia muitos falatórios no acampamento e quase todos dela. Não gostava dos falatórios nem das conjecturas sobre o tipo de mulher
que era ou como seria na cama. Na sua cultura, os homens não falavam de mulheres, a não ser que fosse estrangeira e, então, assumia-se que estava disponível para
qualquer um. Na sua cultura, as mulheres casavam-se cedo para salvarem a sua reputação. Tair percebia que ela não era da sua cultura e ele conhecia a educação ocidental,
mas naquele momento, ela estava a viver ali, entre os homens dele. Ele tinha de a proteger e sabia como fazê-lo.
Tally andava de um lado para o outro da tenda. Não tomaria banho nem mudaria de roupa. Não faria nada que ele ordenasse. Só faria o que ela quisesse. Ele podia
ameaçá-la e dizer que a mataria de fome, tanto fazia. Talvez algum dia escrevesse um livro que fosse um sucesso de vendas. Olhou para a entrada da tenda, que estava
bem fechada para que não pudesse fugir. Tanto lhe fazia se Tair era o imperador de todo o deserto, acabaria por detestar tê-la prendido. Far-lhe-ia a vida impossível.
Estava furiosa e isso era melhor do que estar assustada. Há anos fizera a promessa, com ajuda de Paolo, de enfrentar o medo com a ação. Assim escalou montanhas e
aprendeu a pilotar. Se conseguisse estar realmente calma... Por dentro estava furiosa, mas isso, às vezes, ajudava. Suspirou. Talvez naquele caso a fúria complicasse
mais as coisas. Deitou-se na cama e olhou para o teto.
Passaram alguns minutos que lhe pareceram horas. O sol ainda não se pusera. A noite seria interminável. Estaria sozinha e voltaria a enlouquecer. Se lhe devolvesse
o cartão de memória, se pudesse tirar fotografias... Precisava manter a mente ocupada, se não, acabaria por perder a cabeça. Estava aborrecida e sozinha. Detestava
estar sozinha e o vazio que sentia por dentro. Até preferiria a companhia de Tair.
- Devias tentar meditar - o tom de voz profundo de Tair, com algum sarcasmo, quebrou o silêncio.
- Meditar? - Tally sentou-se bruscamente.
- Faz bem - esclareceu ele, com amabilidade. Ela sentiu um formigueiro no estômago que lhe pareceu detestável. Estava contente por o ver!
- Porquê?
- És a pessoa menos sossegada que alguma vez conheci - declarou ele com um sorriso, como se desfrutasse da desgraça dela.
- Não quero ser sossegada, quero ir embora.
- Não te vais embora, portanto podias relaxar - ele olhou para a banheira. - Não tomaste banho.
- Não tinha vontade.
- Gostas de estar suja?
Tally esteve prestes a fazer outro comentário sobre a sujidade do seu acampamento, mas pensou melhor.
- Se me deixares sozinha, tomarei banho agora.
- Dou-te cinco minutos.
- Porquê tão pouco tempo?
- Porque o jantar está pronto e esta noite vou jantar contigo.
Tally tomou banho rapidamente. Sobretudo porque a água estava fria. Estava a pentear-se quando apareceu o idoso com o jantar.
Tally sentou-se em frente de Tair. Três velas bastante grosas tinham substituído o candeeiro. A comida era simples, um guisado com cuscuz e um pouco de pão ázimo,
mas estava faminta e comeu quase tudo. Levantou o olhar e verificou que ele olhava para ela com um sorriso.
- Fico contente por te ver comer.
- Claro, achas que estou esquálida.
- Não achaste graça, pois não? - ele fez uma careta como se gozasse consigo próprio.
- Não.
- És muito susceptível - daquela vez riu-se ligeiramente.
- Tenho opiniões próprias.
- Já notei - ele não estava zangado, parecia indulgente.
Entreolharam-se e ela sentiu que as faces coravam. Inclinou-se para a frente, sobre a mesa com as velas.
- Podemos começar novamente? - perguntou ela. Tair encostou-se sobre os almofadões.
- Porquê havíamos de começar novamente?
- As coisas não correram bem e pensei que no que concerne...
- Concerne...? - interrompeu-a ele, com uma sobrancelha arqueada. - Há anos que não ouvia essa palavra. Pensava que já não se usava.
Tally cerrou os dentes. Ele era especialista em estragar a boa disposição.
- Não sei porque não se usaria. É uma palavra linda.
- Exatamente, é.
Tally apertou a chávena de chá que tinha na mão com força. Porque tinha a sensação de que desfrutava da sua companhia? Porque é que sentira falta dele?
- A questão é que não começamos bem e acho que seria boa idéia voltar a tentar - Tally escolheu cuidadosamente as palavras. - Formarmos uma primeira impressão
nova.
- Porquê?
Ela tinha a sensação de não conseguir fugir à intensidade e insistência dos seus olhos escuros. Embora não lhe tocasse, ela voltava a sentir a intensidade que
brotava entre eles.
- Não te entendo - Tally engoliu em seco para tentar acalmar o seu coração acelerado. - Não te entendo mesmo.
- O que queres entender?
- Disse-te que sou fotógrafa - olhou para ele fixamente e com impotência. - Disse-te que não trabalho para ninguém. Tiveste a oportunidade de ver as minhas fotografias,
mas parece que não te interessa. Recusaste-te a ajudar-me e só tu podes fazê-lo.
- Ajudei-te - replicou ele, sem se alterar. - Sempre o farei.
- Como? - Tally não conseguiu evitar a perplexidade.
- Além disso - continuou Tair sem responder à pergunta dela, - porque havíamos de formar uma impressão nova se a que temos pode ser acertada?
- Se calhar não é. Podes pensar algo de mim que não é...
- Duvido.
Ela franziu o sobrolho. Era incrível a facilidade que ele tinha para lhe dar uma dor de cabeça. O problema de Tair era que estava demasiado seguro de si próprio.
Ainda por cima, o seu físico era imponente, como se estivesse esculpido numa pedra do deserto, inexpugnável. Não só era alto, era grande e forte, como os guerreiros.
As suas mãos também eram enormes e a sua pele parecia de bronze. No entanto, parecia um bárbaro devido ao seu cabelo denso, preto e comprido. Devia cortá-lo ou,
pelo menos, afastá-lo da cara, mas ele não se incomodava em fazê-lo, ainda que se tivesse barbeado.
- Tair, não sou o que pensas que sou - declarou ela, num tom quase suplicante.
- O que acho que és?
- Uma espiã!
Tair riu-se entredentes e com a cara tapada pelo cabelo.
- Tens alguma coisa para alegar?
- Claro que não sou espiã. A minha máquina é boa, mas nem sequer é o último modelo!
Detestava-o, embora também o achasse alarmantemente atraente. Se pelo menos não adorasse os homens altos e morenos... Se Paolo tivesse sido loiro e magro...
No entanto, Paolo era brasileiro, rude, forte e atraente. Embora Tair fosse um pouco mais rude e musculado.
- Porque tens um vocabulário tão bom? - perguntou-lhe ela, com desespero. - Falas inglês perfeitamente.
- Vou aprendendo por aqui e por ali. Mas fala-me mais das primeiras impressões. Porque achas que são erradas?
Tally percebeu que mudara de conversa, que voltara a concentrar a atenção nela. Ele não falava de si próprio, embora houvesse muitas coisas que ela gostaria
de saber. Era casado? Tinha filhos? Desde quando era xeque?
- Queres que te conte a minha vida, mas tu não falas de ti.
- Eu já me conheço, mas não te conheço.
- Eu também não te conheço.
- É melhor assim - ele sorriu e mostrou uns dentes branquíssimos. - Desde quando és fotógrafa?
- Há cerca de sete anos.
- Como começaste?
- No liceu, eu gostava de fotografia e participei no anuário, mas deixei-o durante a universidade. Depois, com vinte poucos anos consegui um trabalho num estúdio
fotográfico. Fazia muitos retratos familiares e de bebês, mas eu gostava de preparar as sessões, eu gostava do lado fotográfico. Uma coisa levou a outra e aqui estou.
- No Norte de África.
Ele parecia divertido e Tally voltou a perceber que ele tinha um certo sentido de humor.
- O trabalho no estúdio tornou-se aborrecido e cansativo. Eu não gostava de trabalhar num lugar tão fechado. Eu gostava de ser livre para ir de um lado para
o outro.
- Eras muito livre quando eras criança?
Tally lembrou-se da sua infância e o seu estado de espírito mudou imediatamente. Não queria lembrar-se do lugar que a enclausurara e limitara as suas oportunidades.
- Não - respondeu num tom gelado, mas depois mudou de tom. - Era a mais velha de uma família numerosa e não tive muita liberdade, só tive responsabilidades.
- Fala-me da tua família.
Tally não queria falar da sua família. Fora uma família pobre e sem recursos, mas ensinara-lhe muitas coisas. Os pobres detectavam a fome, sentiam o cansaço,
cheiravam o medo e ouviam o desespero.
Tally não queria voltar a ser pobre nem desamparada. Talvez não fosse rica como fotógrafa, mas sobrevivia sozinha.
Pensar na sua família deprimia-a, era melhor olhar para a frente.
- Fui criada no Estado de Washington, perto das montanhas Cascade. Chove muito e vê-se sempre alguma montanha, algum lago ou um rio. É lindo e impressionante.
- Então, porque te foste embora?
- Porque fui criada lá, mas não me parece o meu lar...
- Porquê? - interrompeu-a ele com insistência.
- Porque não.
- Porquê?
- Preciso... quero... - ela suspirou com cansaço. - Preciso sempre de mudanças.
CAPÍTULO
- No entanto, estava tudo bem lá - olhou para ela com os olhos semicerrados.
- Não - ela fez uma careta devido à insistência de Tair. - Há anos que não estava bem. Por isso comecei a viajar, está bem?
- Vais a casa da tua família quando voltas para Washington?
- Nem pensar. Tenho um apartamento em Seattle, na Pioneer Square. Um bairro com muitas galerias de arte.
- Tens uma galeria?
- Tive.
- O que aconteceu?
- Vendi-a para vir para cá.
Tivera algum sucesso comercial e de crítica como fotógrafa, mas não gostava do trabalho no estúdio. Precisava de mais dificuldades e de riscos. Paolo dizia que
precisava das dificuldades e dos riscos porque fugia de si própria, algo que a incomodava muito, mas tinha alguma razão. Continuava a tentar entender o significado
da felicidade e, às vezes, era um conceito muito complicado.
- Quero que me devolvas os cartões de memória - afirmou ela secamente e com lágrimas nos olhos. - Sei o que me disseste, mas não aceito. Não posso permitir que
fiques com as fotografias ou as apagues. Passei semanas no Egito, Marrocos e Baraka a fotografar crianças. Não estou disposta a perder meses de trabalho só porque
não aprovas - respirou fundo e limpou as lágrimas antes de caírem. - Se não me deres antes de sair daqui, direi a todos o que fizeste. Contá-lo-ei em todas as revistas
e páginas de Internet. Direi que me raptaste, me ameaçaste, me intimidaste, me tiraste as fotografias...
- Sabes que a minha cultura não aprova as representações de pessoas? - perguntou-lhe ele, num tom tranqüilo.
Ela ficou em silêncio e ele inclinou-se para a frente com um olhar intenso.
- Isso é extensivo às fotografias - continuou ele. - A maioria da nossa gente sente aversão pelas fotografias e pelas máquinas.
- Ninguém se importou que lhe tirasse uma fotografia - replicou ela, num tom de voz fraco.
- Tens a certeza? Não os subornaste para conseguires as fotografias que querias? Não deste dinheiro a uns e outros?
- O meu trabalho não explora ninguém...
- Fotógrafas crianças e jovens.
- É um livro sobre a infância.
- O que te faz pensar que podes vir aqui e fotografar as nossas crianças? As famílias não têm fotografias dos seus filhos. As poucas fotografias que temos são
retratos que comemoram ocasiões especiais.
- Não sabia. De qualquer forma... - Tally afastou o cabelo da cara e prendeu-o atrás da orelha. - Tair, entendo o teu receio por mim e pelas crianças do meu
livro, mas há quase trezentas fotografias nesse cartão. Essas crianças não te pertencem e dediquei mais de um ano a esse trabalho. Tenho de acabar o livro.
Ele não disse nada e fez-se um silêncio interminável.
- Porque não dizes nada? - perguntou-lhe ela.
- Não tenho nada para dizer.
- Podes dizer que me devolverás os cartões de memória. Podes dizer que mudaste de idéias. Podes dizer que em breve poderei continuar com o meu trabalho...
- Mas não é verdade, porque havia de te dizer isso?
- Não podes estar a dizer que vais reter-me aqui! - Tally fechou os olhos e tapou a cara com as mãos para ocultar as lágrimas iminentes. - Não quero ficar aqui.
- Algumas vezes, precisamos exatamente daquilo que não queremos.
- Continuarei a fugir!
- E eu continuarei a trazer-te de volta.
- Porquê?
- Se calhar é porque te quero para mim. - Aquelas palavras foram como um balde de água fria. Ela pestanejou e ficou boquiaberta. Tair levantou-se lentamente
e Tally olhou para ele com o coração acelerado ao perceber que ia segurá-la. Ela cerrou os punhos, embora um desejo estranho se apoderasse dela. Não podia fazê-lo.
Era um disparate. Tudo aquilo era um disparate.
- Por favor, vai-te embora - balbuciou ela, enquanto se levantava de um salto e recuava. - Por favor, vai-te embora.
Mas ele não saiu, Tally esquivou-se e foi para o lado da mesa onde ele estivera. Tropeçou num dos almofadões onde Tair estava encostado. Ele aproximou-se e ela
afastou-o com um pontapé. Então, ela viu um resplendor prateado e percebeu que era uma adaga que devia ter-lhe caído. Não era muito grande e tinha um punho incrustado
de jóias, mas a lâmina era muito brilhante e afiada. Olhou para Tair e depois para a faca. Podia ser a sua salvação. Pisou na adaga para a esconder, dava-lhe coragem.
- Não sei o que queres de mim. Acho que nem tu sabes o que queres de mim. Reconhece que cometeste um erro e liberta-me antes de ser demasiado tarde.
- Não foi um erro - respondeu ele, cruzando os braços e com os olhos semicerrados.
- Mas foi. Não sou um objeto que possas possuir. Não viverei aqui, ainda que seja possível que morra aqui.
- Tal como estás a comportar-te, efetivamente, é possível, mas também podias viver muito bem.
- Nunca!
Se morresse ali, seria porque não houvera outra alternativa. No entanto, ainda tinha alguma possibilidade. Podia lutar. Naquele momento, só se importava com
a sobrevivência. Tally, esporeada pela adrenalina, baixou-se, agarrou na adaga e escondeu-a atrás dela.
- Pareces incomodada. Passa-se alguma coisa com o teu braço?
Ela apertou com força o punho. Aquilo podia acabar muito mal, mas tinha de tentar. Tinha de fazer algo, não podia ficar de braços cruzados. Ele enganava-se muito
se pensava que ela ia render-se documente e renunciar aos seus sonhos, às suas metas e à idéia que tinha de si própria. Os seus olhos ardiam. Nunca magoara ninguém,
mas magoá-lo-ia se tivesse de o fazer e tinha de o fazer entender que falava a sério. O que aconteceria se o matasse? Sentiu um aperto no coração. Ele era o culpado
daquele pesadelo. Ele capturara-a. Se tinha de morrer, que assim fosse. Engoliu em seco com a esperança de que ele percebesse que aquilo podia acabar muito mal para
ambos.
- Não se passa nada no braço, só seguro uma arma - respondeu ela, sem se alterar.
- Uma arma? - sorriu levemente. - Entendo. Encontraste a minha faca.
Ela compreendeu que ele sabia que lhe caíra a arma. Paolo ensinara-a a usar uma faca.
- Não te mexas.
Ele deu a volta à mesa para se aproximar dela.
- O que podia acontecer?
- Matar-te-ei - apoiou a ponta da faca no peito dele com uma mão trêmula. - Se voltares a mexer-te, juro-te que te matarei.
Tair não pestanejou e limitou-se a olhar para ela com presunção.
- Afasta isso.
- Não.
- Vais magoar alguém.
- Sim, a ti.
Ele agarrou-a pelo pulso tão rapidamente, que nem o viu e, com um movimento brusco, fez com que ela largasse a faca. Tair largou-se e ela baixou-se para apanhar
a faca do chão. Tair suspirou e abriu a túnica.
- Se queres assim tanto magoar-me - ele desabotoou lentamente a camisa, - tornarei isto mais fácil.
Tremeu-lhe o pulso ao ver a sua pele bronzeada atravessada por uma cicatriz que ia desde o esterno até ao seu mamilo esquerdo.
- Já alguém tentou matar-te - sussurrou ela.
- Exatamente, não és a primeira - replicou ele, olhando para ela fixamente. - Tenta. A pele está curtida, mas consegues.
Tally não conseguia afastar o olhar da cicatriz e os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Vai-te embora - pediu, enquanto lhe entregava a faca. - Deixa-me sozinha.
Tair mantivera a calma na tenda, mas uma vez lá fora sentiu-se dominado pela raiva. Tirou a túnica, tirou a camisa das calças e abriu-a completamente para que
o ar fresco da noite lhe acariciasse a pele. Estava furioso. A fúria queimava-o por dentro. Estava à beira do acampamento a olhar para a imensidão do deserto iluminado
pela lua.
Quando viu a tempestade de areia no horizonte, pensou que não alcançaria Tally a tempo. Ordenou aos seus homens que voltassem para o acampamento e continuou
a procurá-la sozinho. Não tinha medo de morrer, sabia que morreria mais cedo ou mais tarde, mas receava por ela. Ela não conhecia o deserto. Estaria sozinha e sofreria
muito. Se ela ia correr um perigo, o mínimo que podia fazer era estar com ela. Nenhuma mulher devia morrer sozinha e assustada. Ia contra as suas crenças. Aquela
americana não entendia. Ele pertencia a um mundo primitivo onde a justiça e a morte eram imediatas. No deserto, a justiça aplicava-se com mão firme e implacável,
se a natureza não o fizesse antes. Aquele era o seu deserto, a sua terra, a sua gente... O seu pai governara ali, assim como o seu avô e muitas gerações anteriores.
Tair sabia que para a americana era um delinqüente que não teria direitos no mundo dela, mas não estavam no seu mundo. Ela habituar-se-ia aquele mundo mais cedo
ou mais tarde.
Tally não conseguiu dormir naquela noite. Estava espantada por ter achado Tair atraente. Não era um homem bom nem amável nem generoso. Seria um xeque, mas sobretudo
era um seqüestrador e um ladrão. No entanto, mesmo sabendo isso, não conseguira feri-lo. Por isso tinha de fugir. Estava a perder o juízo e a perspectiva. Não podia
permitir que um bárbaro do deserto a perturbasse e já estava muito perturbada.
Tally levantou-se mesmo antes do amanhecer. Fugiria enquanto todos dormiam. Iria a pé. Levaria todos os frutos secos que guardara das refeições e um jarro de
água que havia junto da arca. O sol nascia no horizonte quando saiu da tenda. Todos dormiam e o cão aproximou-se. Deu-lhe um pedaço de pão antes de ele começar a
ladrar.
- Voltou a fugir, senhor - anunciou o idoso berbere da entrada da tenda de Tair. - Lamento muito. Deve ter fugido quando todos dormíamos.
Tair fechou os olhos e passou um dedo pelo nariz.
- Há rastos?
- Sim, para oeste, para os wadi, senhor.
Tair esforçou-se para não praguejar de impaciência e de raiva.
- Obrigado.
Tair não se levantou da mesa onde estava a redigir um documento que ia enviar para o palácio real de Atiq para Malik Nuri, o sultão de Baraka.
- Quer que mande alguém à sua procura? - perguntou-lhe o empregado.
- Não.
- Não seria nenhum inconveniente - insistiu o idoso, com hesitação. - Neste momento há homens nativos...
- Não é necessário, mas obrigado - replicou Tair, sem levantar a cabeça.
O empregado sussurrou umas palavras de respeito e deixou-o sozinho. Então, Tair levantou a cabeça com a testa franzida devido à exasperação. Tally era mais insensata
do que uma criança. Devia desejar morrer para entrar no deserto. Tinha de saber que não sobreviveria nem vinte e quatro horas. Tair suspirou e olhou em redor. Se
a raptara para a tornar dele, era porque não tinha intenção de fingir nem fazer de parvo. Ele não tinha tempo para cortejar uma mulher. Além disso, isso só era feito
por homens que não confiavam na sua capacidade para conseguirem fazer com que uma mulher se adaptasse a eles. Ele nunca tivera esse problema. Por sorte ou desgraça,
as mulheres gostavam muito dele. Amavam-no. Ele não lhes correspondia sempre, mas isso era porque não amava, não sabia amar como as mulheres queriam que as amasse.
Reconhecia esse defeito na sua personalidade, mas também conhecia as virtudes que compensavam as suas deficiências. Era fiel e forte e entendia e respeitava o compromisso.
Também era bastante rico e, apesar das cicatrizes que lembravam tantas batalhas, não estava deformado. Na verdade, as mulheres pareciam gostar daquelas cicatrizes.
As mulheres eram incompreensíveis, mas isso não era nenhuma novidade. Talvez tivesse de atar Tally ao poste da sua tenda. Tair decidiu acabar a carta antes de sair
à procura daquela mulher que ia ser dele.
Tally compreendeu que a esperava uma morte horrível. A areia acabaria por a sufocar. Sempre tivera medo de se afogar, mas aquilo podia ser pior.
Tentou subir, mas o movimento fazia com que voltasse a cair. Ouvira dizer que lutar contra as areias movediças era uma sentença de morte, mas aquelas não tinham
de ser umas areias movediças. Abanou as pernas e enterrou-se mais, até ter metade do corpo enterrado na areia. Pensou que não podia deixar-se levar pelo pânico.
Até compreender que estava presa e que não conseguiria libertar-se. Então, tranqüilizou-se e já não se afundou mais. Tinha os braços livres e conseguia respirar.
Isso era suficiente. Descansaria e pensaria. Olhou em redor, mas não viu nada para se agarrar. Respirou fundo e a areia cedeu um pouco, uns centímetros, mas inexoravelmente.
Morreria numas areias movediças. Voltou a sentir o deslizamento da areia. Afundava-se lentamente. No entanto, o que havia lá em baixo? Porque cedia a areia? Tally
tremeu e isso acelerou o movimento da areia, que já pressionava ardentemente no peito e nos pulmões dela. O seu coração acelerou e sentiu uma descarga de adrenalina.
Não queria morrer daquela maneira, nem de nenhuma outra.
- Pára de te mexer! - exclamou uma voz conhecida.
- Tair...
Sentiu lágrimas nos olhos e um alívio imenso. Tentou virar-se para olhar para ele, mas enterrou-se um pouco mais.
- Não te mexas! - ordenou ele, enquanto dava a volta ao buraco de areia à distância.
- Podes tirar-me daqui?
- Sim, mas antes temos de falar.
Tally mexeu instintivamente e sentiu que a areia entrava na sua camisa.
- Falar? Quase não consigo respirar.
- Então, não fales e ouve - Tair ajoelhou-se. - Estou a perder a paciência. É o segundo dia seguido que tenho de salvar a tua pele.
- Vais dar-me um sermão?
- Estás a complicar a vida a todos. Tens de aceitar o teu destino com mais resignação...
- Aceitar que me raptaste? Nunca! Esse não é o meu destino. O meu destino não é ficar presa no deserto contigo.
- Tens razão. Aparentemente, o teu destino é morrer hoje engolida por umas areias movediças.
- Tair!
- Escolhe. Pensa bem, mas não tens o dia todo. No entanto, o que me importa? A vida é tua...
- Pára de me ameaçar e tira-me daqui.
- Essa é a forma que tens de pedir ajuda?
- Sabes que quero que me ajudes.
- Não me agradeces tudo o que faço por ti.
- O que fazes por mim? Tair, estou a enterrar-me. Tira-me daqui.
- Pede-me amavelmente.
- Para ti é um jogo!
- Eu não lhe chamaria um jogo, mas é interessante. Pedirás ajuda ou acabarás por morrer?
- Tair...
- Pede ajuda, Tally.
- Não é justo.
- A vida não é justa - olhou para ela nos olhos. - Aprende a pedir ajuda, Tally.
- Já te pedi para me tirares daqui.
- Não pediste cortesmente.
Tally sentia a areia pelo pescoço e que continuava rodeada de grãos de areia que deslizavam a pouco e pouco.
- Odeio-te!
- Porque és tão teimosa? - perguntou-lhe ele, com um suspiro.
- E tu? - Tally sentiu lágrimas nos olhos, mas nem sequer conseguia limpá-las. - Sabes que não posso sair daqui sem a tua ajuda, mas obrigas-me a suplicar e
é uma crueldade...
- Porque te recusas a pedir ajudar? Isso é desejar morrer e é uma tolice.
- O que queres ouvir? Tair, és maravilhoso. Tair, és o meu homem. O que queres?
- Isso não está mau, mulher - Tair esboçou um sorriso, - mas só queria que me pedisses, por favor.
Tair levantou-se de um salto e foi até ao cavalo com a túnica ao vento. Agarrou numa corda, atou-a à sela e voltou para ao pé dela. Deitou-se na areia, fez um
laço com a corda e lançou-o para os ombros dela. Assobiou ao cavalo, que começou a avançar até tirar Tally da areia.
- Obrigada.
Tally engasgou-se e limpou as lágrimas misturadas com areia das faces.
- De nada - Tair montou no cavalo, inclinou-se e estendeu um braço. - Vamos para casa.
Ela não se mexeu nem agarrou na mão de Tair.
- Essa é a questão, Tair. Não é a minha casa.
- E insistes... - balbuciou ele, num tom de voz baixo.
- Não é.
- A areia continua instável devido à tempestade de ontem. Certamente, há mais armadilhas de areia. Se quiseres que te deixe, parece-me muito bem, mas eu vou
para casa.
- Não quero ficar aqui - replicou ela, com cansaço e desespero.
- Então, aceitas a minha proteção?
- Não.
Tally, quase a chorar, olhou em redor. Não podia continuar a fugir. Estava destruída, mas como podia renunciar à sua vida, ao seu mundo e aos seus sonhos? Sabia
que, se aceitasse, seria irreversível.
Tair praguejou, agarrou-a e sentou-a à frente dele. Segurou-a com força.
- Começa a ser uma situação muito habitual - comentou ele, enquanto a apertava contra si.
Tally tremeu ao sentir o peito duro e quente contra as suas costas.
Foi um trajeto bastante curto e, quando chegaram, todos os homens olharam respeitosamente para outro lado enquanto Tair discutia com o que eles considerariam
uma mulher que perdera o juízo. Para ela, no entanto, tanto lhe fazia o que pensavam porque não ia resignar-se a aceitar a sentença que Tair ditara.
Os homens olharam para Tair quando o cavalo parou, mas nenhum olhou para ela. Tally pensou que não era um bom sinal.
- Não podes reter-me aqui - sussurrou ela. - Aproveitarei a primeira ocasião para fugir outra vez...
- Estiveste quase a morrer numa tempestade de areia e passaste uma tarde aterradora numa armadilha de areia. O que queres mais?
- Não sei, mas começo a achar que prefiro ser devorada por uma cobra do que continuar contigo.
- Vá lá... - Tair desceu-a do cavalo. - Isso é injusto. Ainda nem sequer foste para a cama comigo. Podias gostar de ser a minha mulher.
- Nunca!
Ele riu e dirigiu-se para a sua tenda, agarrando-a com força pela cintura.
- O mínimo que te peço é que reserves o julgamento até te ter possuído - entraram na tenda. - Algo que penso fazer assim que tomares banho - olhou para ela de
cima a baixo. - Cheiras mal, minha querida mulher.
- Cheiro mal? Bom, és muito amável se tivermos em conta que me retiveste numa tenda repugnante e durante dias só comi carne de cabra velha e bebi leite quente
de cabra. Além disso, não tens uma casa de banho em condições nem shampoo nem loções nem nada. Eu achava que os xeques viviam em palácios lindos com casa de banho
de azulejos no chão e arcos com mosaicos. No entanto, eu fui raptada por um xeque que vive como um camponês e só tem uma dúzia de tendas desarrumadas.
- Esqueceste-te do meu cavalo - replicou ele, com os dentes cerrados.
- E verdade, mas um cavalo não é um reino, xeque al-Tayer...
- El-Tayer - corrigiu ele. - Estás no norte de África, não no Médio Oriente.
- A questão é: onde está Aladino quando preciso dele? Onde está o gênio que tornará tudo maravilhoso? És o xeque El-Tayer, mas isto não se parece nada com a
minha fantasia.
- Chega! - Tair puxou-a para si. - Talvez não seja a tua idéia de paraíso, mas já chega de fugas, ameaças com facas e perigos. Isso acabou. Entendeste?
Não lhe deu a oportunidade de responder. Apertou-a contra o seu corpo e ela adaptou as ancas contra as dele e encostou os seios contra o peito dele. Tally sentiu-se
corar de excitação e de vergonha. Desejava-o, desejava aquele contato com ele, embora todo ele fosse mortífero e destrutivo.
- Solta-me - suplicou ela. Passou-lhe a mão pelo cabelo.
- Não.
Ela tentou soltar-se, mas não conseguiu. Tair baixou a cabeça com os olhos ardentes. Tally sentiu os joelhos tremer e soube que ele ia beijá-la, quer ela quisesse,
quer não.
Beijou-a em sinal de posse. Ela ficou rígida ao sentir o contato da boca, ficou rígida de choque e de prazer. Os lábios de Tair fizeram com que a sua boca ganhasse
vida devido à paixão e ela tremeu. Ela estava a arder e ele tinha uma barba áspera, mas os seus lábios eram firmes e provocantes. Tally abriu os lábios, arqueou-se
contra ele e sentiu uma pontada de desejo na barriga. Desejava-o, mas não podia ir para a cama com ele. Tinha de saber que não podia entregar-se àquele homem. Mas
mesmo sabendo, não conseguia pôr fim ao beijo.
Foi Tair que afastou a cabeça e agarrou na cara dele.
- Diz-me, quando vai acabar esse comportamento absurdo e perigoso?
CAPÍTULO
Tally quase não conseguia respirar e tinha o coração acelerado. Ouviu a pergunta, mas não conseguia responder quando só conseguia pensar no que acabara de acontecer
e na forma quase carinhosa como ele lhe segurava na cara.
- Tem de acabar - insistiu ele. - Não só estás a pôr a tua vida em perigo, mas também a minha e a dos meus homens.
- Então, deixa-me ir-me embora.
- Isso não é possível...
- Porquê?
- Porque agora és minha - respondeu ele, simplesmente.
A resposta de Tair foi como um balde de água fria nas suas sensações. Tally afastou-lhe as mãos e recuou dois passos. Dissera que era dele... Nunca fora de ninguém.
Nem de Paolo quando lhe entregou o seu corpo. Paolo não era um homem que pretendesse casar-se e ela sabia que nunca constituiria uma família nem nada parecido com
ele. No entanto, Tair era muito diferente. Era forte, intenso e dominante. Desde o começo agira como se ela fosse dele e isso, às vezes, enfurecia-a, mas outras
vezes desarmava-a e emocionava-a. Tally levou as mãos à cabeça para tentar pensar.
- Continuarei a fugir, Tair.
- Para onde irás, mulher? - Tair levantou o tom de voz. - Estás no meio do Sahara. Não entendes? Queres mesmo morrer? Se for assim, diz e deixarei de ir a correr
atrás de ti.
Tanta insensibilidade e arrogância fizeram com que Tally tivesse as idéias mais claras.
- Correr atrás de mim? Parece-me que esperas até ao último momento para apareceres como o grande salvador.
- Não posso largar tudo cada vez que decides fugir.
- Largar tudo? Desculpe, xeque Tair, mas aqui ninguém faz nada a não ser beber chá e jogar aos dados.
- Não são jogos de dados nem estamos a beber chá a toda a hora. Todos os homens têm tarefas concretas.
- É verdade. Limpar as espingardas - Tally deu uma palmada na testa. - Como posso ter-me esquecido...
- Cada vez que foges, os meus homens acompanham-me até lhes ordenar que regressem. Cada vez que foges corremos riscos. Se não me agradeceres, podes agradecer
a eles.
- Continuas a agir como se tivesse de te agradecer por me teres raptado - Tally limpou as lágrimas dos olhos, - mas eu não te pedi. Nem sequer te pedi proteção.
- Isso não é verdade. Tu vieste para o nosso mundo, nós não fomos para o teu.
Tally, triste, pensou que era um bom argumento. Afastou-se com um punho na boca ao perceber, pela primeira vez, como interpretava ele tudo aquilo. Ele não era
ocidental e as suas regras eram muito diferentes. Se, como lhe dissera, ela estivesse a viajar com homens perigosos, Tair fizera o que pensava que tinha de fazer
e protegera-a.
- Porque me deixaste tanto tempo nas areias movediças? - perguntou-lhe Tally, num tom de voz emocionado. - Podia ter morrido.
Tair não respondeu imediatamente e ela fechou os olhos. Então, sentiu a sua mão quente e firme nas costas.
- Trata-se disso? - perguntou-lhe ele. - Do fato de te obrigar a pedires ajuda?
- E possível - ela limpou uma lágrima. Tair pôs-lhe as mãos nos ombros e virou-a.
- Só tinhas de pedir ajuda. Meteste-te em problemas com impulsividade. Tiveste sorte que decidisse ir buscar-te.
- Se tivesse sorte, eu não teria estado na vila quando tu apareceste. Se tivesse sorte, terias raptado outra pobre ocidental. E a isso que eu chamo sorte.
Ele encolheu os ombros com um leve brilho brincalhão nos olhos.
- Talvez seja uma diferença cultural, mas é boa sorte que por duas vezes conservasses a vida.
- Referes-te às duas vezes que me salvaste?
- Três.
Ela olhou para ele fixamente. Tinha uns traços rudes e arrogantes, mas surpreendentemente bonitos. Odiava-o e desejava-o. Também se odiava por o achar atraente.
- As contas não batem certo - replicou ela, tentando parecer tranqüila. - Da primeira vez quase me mataste, não acho que conte.
- Para te demonstrar que sou um homem justo, conceder-te-ei isso segundo a tua definição - Tair esboçou um sorriso. - Só te salvei a vida duas vezes.
Tally disfarçou um sorriso involuntário e pigarreou.
- Já que estamos a tentar ser precisos, acho que devíamos esclarecer que o teu resgate de hoje teria sido mais heróico se não tivesses esperado até ser quase
engolida pela areia.
Ele suspirou, mas com um brilho de calor nos olhos.
- Nunca conheci uma mulher que exigisse tanto e expressasse tão pouca gratidão.
- Estamos a falar da minha vida, xeque Tair!
- Então, pede ajuda, mulher. Não esperes até que os grãos de areia entrem pelo teu nariz.
Naquele momento, ele voltou a beijá-la com uns lábios sedutores, mas ela não precisava de muito estímulo. A sua boca adorava a dele e o seu corpo desejava o
dele. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e retribuiu o beijo.
Um grito de alarme fora da tenda interrompeu-os.
Tair afastou-se e virou-se para sair, mas antes deu-lhe um beijo fugaz na testa.
- Voltarei para jantar. Espera por mim.
Tally espreitou e viu os homens que rodeavam Tair. Ele gesticulava e dava ordens. Alguns homens montaram nos seus cavalos com as armas. Tally sentiu um vazio
no estômago e quis sair a correr para perguntar a Tair o que se passava, mas não se atreveu. Ficou a observar como Tair e mais vinte homens saíam a galope.
Tally tomou banho e vestiu uma túnica preta que o idoso lhe dera. Acendeu as velas e tentou passar o tempo até Tair voltar, mas ele fora-se embora há muito tempo
e as horas passavam lentamente. À noite, o idoso levou-lhe o jantar e ela recusou, ainda que tivesse fome.
- Estou à espera de Tair.
- Asi?
- Estou à espera de Tair.
O idoso olhou para ela fixamente sem entender o que dizia.
- Tair - repetiu ela, enquanto se punha em bicos de pés e levantava os braços. - Tair.
O homem olhou para ela ainda mais confuso. Tally pensou que era um pesadelo. Como era possível que Tair pensasse que podia ficar ali?
- Não faz idéia do que estás a dizer - comentou uma voz, num tom brincalhão.
- Desde quando estás aí? - perguntou-lhe ela, soprando.
- O suficiente para desfrutar da tua tentativa.
- Muito engraçado - Tally, no entanto, sabia que era e teve de sorrir. - Já voltaste. Capturaste os maus?
- Quase todos - respondeu ele com um sorriso muito fugaz que não se refletiu nos seus olhos.
Tally compreendeu que ele estava abatido e perguntou-se o que teria acontecido no deserto.
- Tens fome? - perguntou-lhe com amabilidade.
- Sim. Vou lavar-me e volto já.
Voltou pouco depois recém-barbeado e com o cabelo molhado e penteado para trás.
- Estás... muito bem... - elogiou Tally, baralhada pela timidez.
- Pareces surpreender-te - Tair riu-se.
- Não, eu... Não - Tally corou e foi para a mesa da comida. - Não - repetiu ela antes de se ajoelhar ao lado da mesa. - Vamos comer.
Durante o jantar, Tally perguntou-lhe porque o idoso não a entendia quando perguntava por ele.
- Ninguém me chama Tair - respondeu ele, enquanto molhava um pedaço de pão no guisado.
- Então, como te chamam?
- Xeque Zein El-Tayer ou Soussi al-Kebir.
- Como passou de Tayer para Tair?
- Boa pergunta. Tayer não é difícil de pronunciar, mas quando fui para um internato em Inglaterra, o diretor nunca o pronunciava completamente bem e logo todos
os meus colegas começaram a chamar-me Tair.
- Foste para um internato inglês? Agora entendo algumas coisas. Incomodava-te que não dissessem bem o teu nome?
- Não. Um nome é um nome. Há coisas mais importantes.
- Por exemplo?
- A política. A sobrevivência. Não conheces a nossa história e não posso esperar que entendas os problemas desta região, mas a política deixou-nos um legado
de violência. Lutamos para manter a nossa independência, mas tivemos de pagar um preço elevado.
Tally, pelo tom ou pela expressão, percebeu que ele sofrera. Não era um conflito só da sua vila, mas pessoal.
- Essas cicatrizes... são o resultado do legado de violência? - perguntou-lhe ela.
- Sim. - Ela olhou para ele atentamente e viu rugas nos olhos e nas comissuras dos lábios.
- Foste à guerra?
- Vivo em guerra.
Ela não soube o que queria dizer. Uma parte dela queria saber o que queria dizer, mas a outra não queria sabê-lo. Ele era imponente. O seu corpo estava cheio
de cicatrizes e feridas, a sua força era descomunal e a sua coragem era incomparável. Nunca conhecera ninguém que pudesse fazer o que ele fazia. Porém, também tinha
um lado obscuro. Não era um homem bom. Não podia dizer-se que fosse atencioso, amável e compassivo.
- O que é viver em guerra?
- Atacar, saquear, ferir e matar.
- Entendo. Mataste em defesa própria?
- Se quiseres chamar-lhe assim...
- E se não quisesse?
- É o que é.
Ele esboçou um sorriso lento e brincalhão ao reparar na perplexidade de Tally.
- Vingança - acrescentou ele.
- Vingança, porquê?
- Para recuperar o que era meu.
- Como o dinheiro, a terra...
- Como mulheres e filhos.
Ela engoliu em seco, largou o pão e limpou os dedos.
- Estiveste casado?
- Sim.
Ela não soube o que dizer. Por algum motivo, não queria perguntar pela sua mulher. Sabia que em Baraka e Ouaha havia homens com várias mulheres, mas não queria
imaginar Tair com mulheres, não queria imaginar que tinha uma mulher legal em algum lado. Mexeu-se com desconforto, perdera o apetite.
- O que se passa? - perguntou-lhe ele.
Tally abanou a cabeça. Parecia-lhe absurdo dizer-lhe.
- Já te contei que o meu pai raptou a minha mãe? - perguntou-lhe ele, num tom desenvolto.
- Não - Tally arqueou as sobrancelhas.
- Hum - Tair bebeu um gole de chá. - Uma vez perguntaste-me porque falava tão bem inglês. A minha mãe era inglesa. Era professora. Dava aulas na escola internacional
de Atiq até o meu pai a ver, raptar, levá-la para kasbah e torná-la dele.
- A tua mãe odiou o teu pai pelo que fez?
- Não. Amou-o. Ainda eram muito unidos quando o meu pai morreu. A minha mãe nunca voltou para Inglaterra. Ficou aqui, em Ouaha, e recentemente mudou-se para
Baraka. Tem uma casa em Atiq. Tem mais de sessenta anos e voltou a dar aulas.
- A tua mãe voltou a trabalhar? - perguntou-lhe Tally, entre admirada e preocupada.
- Era o que queria fazer. Adorava ensinar e sentia falta do meu pai e dos meus irmãos. Agora está melhor em Atiq. Tens de a conhecer. É quase tão decidida como
tu.
Tally notou o carinho daquelas palavras. Olhou para ele nos olhos e verificou que resplandeciam com um carinho tão grande como o das suas palavras. Ela sentiu
um aperto no coração e um formigueiro no corpo. Lembrou-se do beijo, do contato da sua boca e do das suas mãos sobre a pele dela.
- O teu pai não raptou a tua mãe? - perguntou-lhe ele, com um sorriso.
Tally recordou a caravana colorida e o parque de caravanas onde crescera e sentiu-se humilhada. Lembrou-se do seu pai, que não conseguia agüentar num trabalho
por causa da bebida e da sua mãe, que tentou vários, mas sem muito sucesso. O seu passado era uma lição de mediocridade. Só aprendera a não fazer aquilo se quisesse
que as coisas corressem bem.
- Não, não houve nenhum seqüestro.
Reparou que ele olhava para ela com muita atenção.
- Já tens aquela expressão outra vez. Ficas assim sempre que falas da tua família. É implacável e crítica. Da primeira vez pensei que era imaginação minha, mas
ficas assim cada vez que falas deles.
- A minha vida não foi como a tua - esclareceu ela, depois de um silêncio demasiado longo.
Incomodavam-na aqueles silêncios em que ele olhava para ela fixamente, como uma cobra do deserto.
- Não fui criada com comodidades - continuou ela. - Não tínhamos dinheiro. Nem sequer fomos para boas universidades. A minha irmã mais nova, Mandy, recebeu uma
bolsa por ser boa atleta e foi para a universidade de Washington, como outro dos meus irmãos. O outro foi para a Califórnia. Mas conseguiram porque eram desportistas.
Eu não.
- O que fazias?
Olhou para ele com os olhos semicerrados e os dentes cerrados. Não suportava as perguntas estúpidas. Ele era um xeque e ela vivera numa ratoeira. Em North Bend,
onde chovia tanto que quase não se via o sol. Suspirou. Doía-lhe a cabeça e achou que era por causa da tensão, mas também não estava muito certa.
- Fui para a universidade de Bellevue City - Tally engoliu em seco. - Fiz alguns cursos e comecei a trabalhar.
- Ouvi falar de Bellevue. É onde fica a Microsoft de Bill Gates, não é?
- Mais ou menos.
Tally fechou os olhos. Sentiu-se enjoada. Talvez fosse por recordar aqueles anos. Porque havia de lhe contar a verdade do seu passado? Engoliu em seco. Não seria
melhor fingir que era outra pessoa? Não seria preferível fingir uma vida na elegante cidade de Bellevue em vez de na vila úmida e nebulosa ao pé de uma montanha?
- Não fazias desporto? - insistiu Tair.
- Não, a verdade é que não - Tally cravou o olhar num ponto da mesa. - Bom, no liceu joguei voleibol. Eu adorava voleibol e jogava bem - inclinou a cabeça como
se ouvisse vozes do passado. - Também passava horas a trabalhar com a minha irmã Mandy. Ela jogava muito bem. Alegrei-me por darem aquela bolsa a Mandy. Pelo menos
pôde ir para uma boa universidade.
Tair olhou para ela inexpressivamente.
- Mas tu também eras boa...
- Sim - Tally tentou sorrir, mas não pôde.
- Então, porque não te deram uma bolsa? - Tally voltou a desviar o olhar.
- Eu era a mais velha.
- E então?
- Precisavam de mim em casa.
- Deram-te uma bolsa? - perguntou-lhe ele, com as sobrancelhas arqueadas.
Tinham-lhe dado uma bolsa para a UCLA, uma magnífica universidade, mas não pudera aceitar.
- Os meus pais... - não conseguiu continuar. - O meu pai... Ele não estava bem e a minha mãe trabalhava a todas as horas. Alguém tinha de tratar dos pequenos.
- Tiveste de o fazer.
- Era a mais velha - confirmou Tally, ao fim de um instante.
- E rapariga...
- Suponho que ser rapariga tem os seus inconvenientes em todas as culturas.
Tair pensou que tinha razão. Não se tratava dele e dela, tratava-se da discriminação.
Tally inclinou-se sobre a mesa. Sentia-se cada vez mais enjoada e fraca. Algo estava mal. Sentia-se como se lhe tivessem posto azeite a ferver nas entranhas.
A dor queimava-lhe as veias. Caiu sobre a mesa e atirou uma tigela ao chão.
- Mulher! - exclamou Tair.
Ela só conseguia sentir o fogo, mas a voz de Tair pareceu-lhe forte e imperiosa. Tally olhou para ele confusa. Algo da comida ou da bebida lhe assentara muito
mal.
- Tally...
Via a dobrar. Pestanejou com um esforço enorme.
- O que fizeste? - balbuciou ela, antes de cair no chão.
CAPÍTULO
Tair chamou imediatamente o médico. Não era uma intoxicação alimentar normal. Fora um envenenamento intencionado e fosse o que fosse que lhe tinham posto na
comida ou na bebida podia ser mortal.
Tair fez o antídoto universal que a sua mãe costumava fazer naqueles casos: duas partes de carvão vegetal, uma parte de leite com magnésio e outra parte de chá
muito forte. Deu-lhe duas colheres com um pouco de água. Fez com que o tomasse com ajuda do idoso antes de a obrigar a vomitar. Depois de vomitar, deu-lhe outra
dose de antídoto e introduziu-lhe todo o líquido que pôde pela garganta, uma tarefa complicada porque ela estava quase inconsciente. Enquanto tentava salvá-la, quis
juntar todas as peças e saber o que se passara. Não fora um acidente. Mas qual dos seus homens o teria feito e porquê?
O médico chegou ao amanhecer, menos de sete horas depois de envenenarem Tally e mesmo no momento em que Tair descobriu que Ashraf cometera o crime. Ashraf estava
isolado e vigiado, mas Tair não podia tratar pessoalmente dele até o médico ter examinado Tally.
- É a erva-do-diabo - opinou o médico, depois de examinar Tally e enquanto preparava uma injeção.
Tair levantou o frasco de vidro para verificar o remédio.
- É o antídoto mais rápido e eficaz - explicou o médico.
Tair assentiu. A erva-do-diabo ou beladona era muito tóxica e muitas vezes mortal.
- Ficará doente durante algum tempo - continuou o médico, enquanto lhe dava a injeção. - Verá que está inquieta, terá algumas alucinações, delírios e tremores,
mas deverá superá-lo.
- Deverá... - repetiu Tair enquanto deixava Tally ao cuidado do médico para tratar de Ashraf. Tair permitiu que Ashraf tivesse a oportunidade de justificar porque
o fizera. Ashraf, feliz por poder explicar-se, disse que se tratava de uma bruxaria. Tair escondeu a sua indignação. Não podia acreditar. A sua vila era supersticiosa,
mas Ashraf não estava arrependido.
- Não lhe dei veneno - defendeu-se Ashraf. - É uma poção para a afastar e o olho do diabo. Se não o fizermos, ela trará a destruição. Tem de se ir embora.
- O que fumaste, Ashraf?
Tair estava atônito por ter sido Ashraf, que o servira fielmente durante anos.
- Ela não é Aisha Quandisha - prosseguiu Tair em referência a uma figura mítica que seduzia os homens para os escravizar.
- A sehirra deu-me algo para pôr na comida e bebida da mulher ocidental. Disse-me que ela seria uma maldição para nós e tinha razão. Trouxe problemas - insistiu
Ashraf.
- Ela não está bem...
- Retorce-se. Está amaldiçoada...
- Porque a envenenaste! - gritou Tair. - Retorce-se de dor física, não por nenhum espírito maligno. Envenenaste-a para a matar e tens sorte por não te dar o
mesmo.
- Dás-me razão. Observas o que nos fez. Vais matar-me e ela... viverá contigo? Isso é justiça? Proteger-te-á como eu? Não. Ela é perversa. Aviso-te, de irmão
para irmão, de homem para homem, não fiques com ela. É um perigo para todos.
Tair ordenou que o levassem. Estava errado, não ia matar Ashraf nem Tally lhes traria destruição. No entanto, as coisas estavam a complicar-se.
Tally percebia que estava muito doente. Via tudo impreciso e as vozes pareciam surgir de debaixo da água. Fechou os olhos para tentar dormir.
Tair observou a mulher adormecida. A febre baixara e já não tinha convulsões, mas foram uns dias muito críticos, uns dias em que chegara a pensar em evacuá-la
de avião para o hospital de Atiq. Chegara a duvidar do médico e a ameaçá-lo fisicamente se acontecesse alguma coisa à sua mulher. A sua mulher... Sentiu uma pontada
ao aceitar uma verdade que ainda não assimilara. Chegara a considerá-la sua, apesar das tempestades de areia, das facas, das areias movediças e dos ataques de asma.
Era responsabilidade dele, era o seu destino.
Uma vez fora de perigo, teria de lhe contar o que se passara e ela não gostaria. Nem do envenenamento nem da captura do culpado e do seu castigo. Não gostaria
da decisão que ele tomara de a levar à sua pátria, de a apresentar à sua gente e de a tornar dele. Não sabia se iam aceitá-la, mas tinha de o fazer antes de ser
demasiado tarde.
Dois dias mais tarde, Tally olhou para Tair sem sair do seu espanto.
- Vamos para a tua pátria para conhecer a tua gente? Pensava que esta era a tua pátria e a tua gente.
- É apenas um acampamento militar.
- O quê?
- Um dos três postos estratégicos que protegem a minha vila e o meu território.
Tally tentou endireitar-se, apesar de se sentir muito fraca.
- Retiveste-me num posto militar porque...?
- Não sabia se podia confiar em ti.
- Já podes?
- Sim.
- Porquê? Porque sobrevivi à beladona?
- Não. Porque vi as tuas fotografias. As quinhentas. Tinhas razão. São de crianças - fez uma pausa. - Além disso, são muito boas.
Tally levou a mão à testa como se verificasse se tinha febre.
- Estou a alucinar ou a sonhar, não é?
- Não. Estás sentada e tens os olhos abertos. Estás muito acordada.
Tally voltou a deitar-se lentamente e fechou os olhos.
- Gostaste das fotografias?
- Sim.
- E por isso que vais levar-me para o teu feudo?
- Já sei que não é uma espiã.
- Então, porque não me deixas voltar para o meu país em vez de me levares para um sítio horrível para onde não quero ir?
- Gostarás.
- Tair...
- Está-se muito bem lá.
- Tair...
- Está decidido. Poupa as forças para a viagem. - Tally pensou que quase preferia as alucinações àquela realidade assustadora. Tair não tinha intenção de a libertar.
Viveria sempre em Ouaha?
- Terei de te matar - confessou ela, num tom de resignação e cansaço. - Não será fácil, mas terei de o fazer.
A tenda ficou em silêncio e Tally esperou a reação.
- Boa sorte! - desejou ele, com uma gargalhada.
Passaram três dias antes de Tair lhe comunicar que sairiam na manhã seguinte.
- Sei que não estás completamente recuperada...
- Estou bem - interrompeu ela.
- Farás a viagem comigo, no meu cavalo. Será uma viagem longa. Sairemos cedo e chegaremos a Bur Juman antes de anoitecer.
- Bur Juman...
- A minha terra de origem.
- Pensava que esta era a tua terra - replicou ela, com perplexidade.
- Era um teste - Tair esboçou um sorriso brincalhão.
- Um teste?
- Agora saberás onde vivo.
Tair tinha razão. Foi uma viagem longa e sentir-se perto dele no cavalo alterou-a mais do que a febre e os delírios. Os vaivens do cavalo faziam com que se esfregasse
contra Tair até sentir todas as terminações nervosas à flor da pele. Quando pensou que já não conseguiria agüentar mais um minuto de tanta intimidade, viu algo no
horizonte. Não era uma nuvem, não era uma tempestade de pó nem nada sinistro, era uma montanha.
- Dirigimo-nos para lá? - perguntou a Tair.
- Espera - respondeu ele.
Foi uma longa espera, mas a montanha foi-se tornando cada vez maior e Tally verificou que na verdade era uma rocha gigantesca que saía da terra. Tair e os seus
homens deram a volta à rocha até encontrarem um desfiladeiro muito estreito. Desmontaram e entraram.
- Para onde vamos? - perguntou-lhe Tally impressionada com a rocha que tinha sobre a sua cabeça.
- Vais ver.
O que viu foi o mundo secreto que poucos ocidentais teriam visto, um mundo fantástico esculpido pelo deserto, o vento e o tempo. Tally tentou disfarçar a sua
emoção enquanto a montanha se abria à frente dos seus olhos. Havia janelas com venezianas, terraços, varandas, pátios e escadas. Escadas de madeira, grandes degraus
de pedra e escadinhas em curva. Era um mundo de fantasia e um refúgio, um lar. Era incrível.
- Gostas? - perguntou-lhe Tair.
- É... interessante - respondeu ela, enquanto encolhia os ombros.
- Devias aprender a mentir melhor. Sobretudo quando mentes tanto.
- Porque é que ninguém terá metido uma cobra na tua cama? - perguntou-lhe ela, com doçura.
- Já tentaram.
- Quantas vezes tentaram matar-te? - perguntou-lhe ela, num tom entre brincalhão e desesperado.
- Umas dez ou quinze.
- Vá lá, falo a sério.
- Tens razão. Foram mais. Certamente, umas vinte, mas prefiro não pensar nas coisas negativas.
Tally olhou para ele com incredulidade e captou um sorriso nos seus olhos. Era espantoso que ele o conseguisse. Tinha a cara rígida, como esculpida em mármore,
e os olhos intensos e expressivos, mas aqueles olhos tinham sorrido.
- Não é de estranhar - brincou ela, enquanto uns homens abriam uma porta e se aproximavam para cuidar dos cavalos.
Tair cumprimentou-os e depois virou-se para Tally.
- Estás cansada? Queres sentar-te?
- Passei horas sentada.
- Sim, mas és uma mulher fraca e doente... - calou-se bruscamente quando Tally lhe deu uma cotovelada.
- Só fiquei doente quando me envenenaram.
- E a asma?
- Queres que te bata mais? - perguntou-lhe ela, mostrando-lhe o cotovelo.
- Não, por favor. E uma arma muito perigosa - Tair levou-a para uma grande escada de pedra. - Isto é Bur Juman. A minha família e a minha gente vive aqui há
cem anos - parou no topo da escada. - Bur Juman significa "a pérola no lado oculto".
Tally percebeu imediatamente o significado do nome. Aquilo era um mundo maravilhoso que se escondia do deserto perigoso que acabavam de abandonar, um deserto
dominado por bárbaros muito parecidos com Tair. Era um mundo de beleza, mulheres, jóias e enfeites. As mulheres estavam cobertas de braceletes, colares e brincos
de ouro e cheiravam a algum perfume árabe que rivalizava com a doçura das laranjeiras e limoeiros em flor. Estava inquieta pela beleza sensual do lugar, uma beleza
também rodeada de mistério.
- Também será o lar dos teus homens, não é? - perguntou-lhe ela, ao lembrar-se do acampamento desolador onde tinham estado.
Tair virou-se para ela e olhou para ela um instante em silêncio.
- Os meus homens escolhem viver parte do ano longe das suas famílias para as protegerem melhor. Eu nunca o impus. Fazem-no porque sabem que devem fazê-lo.
- Fazem turnos?
- Periodicamente. É muito penoso para eles e para as suas famílias, mas não pode ser de outra maneira. Tens sede?
- Muita.
- Beberemos chá no meu jardim de laranjeiras - declarou, enquanto apontava para uma escada. - Fora do jardim há um quarto e uma casa de banho. A tua aia estará
à tua espera.
Um quarto com casa de banho e um jardim? Tally pensou que morrera e fora para o paraíso.
- Isto é maravilhoso! Se além disso pudesse recuperar a minha máquina e o cartão de memória...
- Poderás. Dar-tos-ei esta noite.
- A sério? - Tally olhou para ele com os olhos esbugalhados. - Vais devolver-me a máquina e todas as minhas fotografias?
- Sim.
- Poderei tirar fotografias aqui?
- Sim.
- É maravilhoso! - Tally esteve prestes a abraçá-lo. - Não sabes como fico feliz. Obrigada.
- Foi um prazer.
- Então, acreditas em mim... Sabes que sou fotógrafa e digna de confiança.
- Tally...
- Eu adoraria tirar fotografias aqui, mas se não quiseres que fotografe as crianças, entenderei. Mesmo que não me deixes fotografá-las, mandar-te-ei cópias de
todas as fotografias quando voltar para casa...
- Tally...
O tom conclusivo foi como um balde de água fria. Tally olhou para ele e viu o seu olhar sombrio e o seu ar sério. Parecia o antigo Tair, que parecia mais um
monstro do que um homem.
- Tally, estás em casa.
Ela olhou para ele fixamente e parou de sorrir.
- Foi o que disseste no acampamento.
Ele não respondeu. Tally sentiu a boca seca e engoliu em seco.
- Disseste que confias em mim, que sabes que sou fotógrafa e que gostas das minhas fotografias. Disseste que são boas.
- É verdade.
- Então, o que significa "estou em casa"? O que queres dizer?
- Quero dizer que agora vives aqui comigo. Bur Juman é a tua casa.
- Não é possível que queiras dizer isso - replicou Tally apaixonadamente. - Tu dirás que és brutal, vingativo e violento, mas eu não vejo isso. Os teus homens
adoram-te.
- Por favor, não digas que os meus homens me adoram. Incomoda-me muito.
- Sabes que os teus homens te apreciam.
- Confundes gosto com respeito. Eles receiam-me.
- Porque haviam de te recear?
- Sabem como são as coisas. Não penses que vais tornar-me melhor. Não vou mudar.
- Não quero mudar-te. Só quero voltar para minha casa.
- Não vou permitir isso.
- Vamos ver se entendo. Não tencionas ser mais amável e tenho de ficar aqui...
Tair esteve prestes a sorrir. Finalmente, parecia surpreendida e ele gostava disso.
- Efetivamente. Nunca serei amável e tu nunca voltarás para o teu país.
- Queres dizer que só voltarei quando aceitar apagar a memória da minha máquina.
Tair não respondeu e ficou a olhar para os seus olhos com reflexos cinzentos e verdes. Recordavam-lhe a Europa que ele adorava, os bosques e rios. Faziam-no
lembrar-se da sua mãe, da sua infância, da inocência.
- Se te der todos os meus cartões de memória e deixar que os apague, deixar-me-ás ir-me embora?
Ela disse-o com tom firme, mas Tair percebeu a sua hesitação. Ela voltava a duvidar dele. Como devia ser. Tair passou a olhar para os seus lábios. Eram grandes
e carnudos e, em contraste com a sua pele, eram como uma rosa sobre marfim. Aquela era a cor da sua mulher. Ela era a sua mulher e seria a sua esposa. Já a cortejara
mais tempo do que a sua primeira esposa. Chegara o momento de anunciar que a estrangeira seria a sua mulher.
- Tair - o tom de Tally era premente. - Destrói as fotografias e acaba com isto de uma vez.
- Não.
- Não?
Ele compreendera que se tratava do destino. Ao vê-la pela primeira vez soube, sem motivo aparente, que tinha de ser dela.
- Ficarás aqui comigo.
- Não o farei, Tair. Já me conheces, fugirei.
- E eu encontrar-te-ei - Tair encolheu os ombros.
- Não me faças isto - pediu ela, num tom de voz fraco.
- Já está feito. Anunciarei o nosso casamento...
- Casamento?
- Serás a minha segunda esposa.
- E a primeira?
- Está morta.
Ficou boquiaberta e levou a mão à cabeça. Estava enjoada.
- Nunca me casarei contigo.
- Não é uma cerimônia. Tu não tens de fazer...
- Não se trata disso.
- ...eu anuncio à minha gente e acabou. Já és a minha esposa.
- A tua esposa.
- Não há muita diferença. Todos sabem que és minha.
Tally achou realmente que ia desmaiar, mas não podia desmaiar. Tinha de conservar a calma e procurar uma escapatória. Não ia ser a mulher do xeque.
CAPÍTULO
No final, não beberam chá juntos. Ela estava furiosa e ele não estava disposto a acalmá-la. Ela tinha de entender qual era o seu poder e a sua reputação. Tinha
de saber o que fizera e o que faria sem o mínimo remorso. Estava orgulhoso de ser um guerreiro, um bandido e um rei. Passara por demasiadas coisas para ser amável.
Também não era generoso, paciente ou sensível. Ainda que tivesse prometido proteger Tally uma vez que era dele. Tally faria bem em aceitar os fatos o mais depressa
possível.
Tally, cansada devido à viagem, esperara adormecer quando caísse na cama, mas passou horas às voltas pelo seu quarto no mais alto da torre de Tair. Não se sentia
mal por se casar, aborrecia-a a forma que ele tinha de fazer as coisas. Era autoritário e insensível. Empenhava-se em fazê-las. Além disso, sabia que o casamento
não era a solução. Vivera o suficiente para saber que o amor era importante. O casamento implicava compromisso e sacrifício. Talvez algum dia estivesse disposta
a renunciar a alguns sonhos, mas esse dia ainda não chegara. Ainda queria fazer muitas coisas. Também sabia que seria uma boa mãe... algum dia.
Impulsivamente, vestiu um robe. Sabia que o quarto de Tair ficava no mesmo andar e foi até lá. Bateu suavemente à porta.
- Tair...
Disse-lhe que entrasse. Tinha o candeeiro aceso e estava deitado na cama, sem camisa, e a ler jornais. As janelas estavam abertas.
- Não consigo dormir - reconheceu ela, sem conseguir afastar o olhar do seu peito musculado e cheio de cicatrizes. - Incomodo-te?
- Não - respondeu ele, enquanto pegava no jornal.
Ela deu a volta à cama. Não havia cadeiras, só havia duas mesas-de-cabeceira repletas de livros em francês, inglês, árabe e italiano. Tally pegou num dos livros
e olhou para o título: Teoria Econômica da Oferta e Procura em Sociedades Agrícolas.
- Uma leitura muito amena... - comentou ela. - Todos os livros são assim?
- Há uma mistura de história, política e economia. - Ela mordeu o lábio sem saber como começar.
- Estás a pensar em alguma coisa? - perguntou-lhe ele.
- Sim.
- Diga. Ou melhor, deixa-me adivinhar. Estás zangada devido aos meus planos de casamento. Não queres casar-te comigo nem passar aqui o resto da tua vida. Tudo
bem?
- Muito bem.
- Senta-te - Tair deu uma palmadinha na beira da cama.
Tally sentou-se aos pés da cama. O mais longe possível dele.
- Então, sabes porque não posso fazê-lo...
- Sei porque não podes ir-te embora - olhou para ela nos olhos. - Sabes demasiado de nós.
- Demasiado?
- Sabes onde vivemos, conheces os aspectos mais secretos das nossas vidas.
- Eu não sou um perigo para vocês. De certeza que percebes. És um líder. Tens de saber distinguir a verdade. Não sou perigosa. Sou boa.
- Até os bons podem transformar-se em maus.
- Eu não. Se tivesse de me tornar má, tê-lo-ia feito há muito tempo. Eu gosto de arte, da natureza, dos livros e de aventura, porém, sobretudo, da paz.
- Tens a certeza de que não és uma política? - perguntou-lhe ele, com um sorriso.
- Sei que não me terias salvado a vida três vezes se achasses que sou má. Arriscaste a tua vida e isso significa algo.
Tair baixou o olhar, mas pareceu ainda mais rude.
- É possível que não sejas uma ameaça, mas se te deixar ir para Baraka...
- O que se passa em Baraka?
- Serias perigosa se caísses nas mãos erradas.
- O que queres dizer com isso?
- Tenho inimigos e eu tenho de defender a minha gente. Crianças, mulheres, idosos...
- Eu nunca vos faria mal...
- Claro que não, mas o risco já não está na tua máquina, está em ti. Na tua cabeça, na tua memória. Se te pressionassem, podias revelar coisas que nos prejudicariam
muito.
Tally foi até à janela. Só se viam algumas sombras difusas da cidade.
- Não posso viver aqui para sempre - sussurrou Tally. - Para mim seria a morte, uma espécie de prisão.
Ela não o ouviu levantar-se, mas sentiu as suas mãos firmes sobre os ombros.
- Então, não sabes o que é a morte. Bur Juman não é a morte. Nem sequer a prisão é a morte. A morte é a morte e mais nada.
- Passei a vida a viajar - Tally sentiu os olhos a arder. - Vivo em hotéis. Nunca passo mais de uma semana na mesma cidade.
- Se calhar chegou o momento de assentares - Tair afastou as mãos.
- Não! - Tally virou-se para olhar para ele com fúria. - Não estou preparada para renunciar à minha vida e ao meu trabalho.
- Já não és uma criança. És uma mulher. Tens trinta e um anos. Tens de ter filhos.
- Comecei agora a minha carreira profissional - Tally mal conseguia falar. - Recuso-me a dar por acabada a minha vida!
- Casar comigo e ter filhos não é acabar a tua vida. E começá-la comigo aqui.
- Quase nem gostamos um do outro - Tally afastou-se dele.
- Não é preciso.
- Não é preciso? Estás a falar de casamento.
- Não é preciso que os maridos gostem das esposas. A obediência é suficiente.
Tally levou as mãos à cabeça. Era a conversa mais absurda que alguma vez tivera. Não só queria que tivesse filhos dele, mas também que lhe obedecesse.
- Não me conheces, pois não? - respondeu ela. - Não sou das mulheres que ficam em casa e têm filhos. Eu gosto de escalar, nadar e correr, não ter filhos nem
obedecer - olhou para ele fixamente. - Não obedeço.
- Não muito, é verdade.
- Nem pensar! Podes poupar-nos esse desespero interminável. Leva-me a uma cidade grande e eu apanharei um vôo internacional. Ir-me-ei embora sem olhar para trás...
- Bur Junam é um lugar lindo para viver.
- Para osvberberes ou os beduinos ou o que sejam.
- Tenho de te ensinar muitas coisas - Tair fez uma careta.
- Não quero que me ensines nada. Já aprendi bastante contigo, com a minha família e com todos os que pensavam que sabiam o que me convinha. Ninguém sabe o que
me convém.
Tair suspirou e fez-se um silêncio horrível.
- Sim - afirmou ele finalmente. - Vai ser um casamento árduo e uma vida muito longa, receio.
Tair foi tomar o pequeno-almoço com ela no terraço do seu quarto.
- Sabah-ul-kher - cumprimentou-a ele, enquanto se sentava num banco. - Como dormiste?
- Não especialmente bem - respondeu ela, com um olhar abatido, - obrigada.
- Se calhar apetece-te descansar um pouco mais. Ainda estás fraca...
- Tair...
- Minha flor delicada - os olhos dele brilharam. Tally não entendia porque a desgraça dela o divertia tanto.
- Porque estás tão contente? Pareces outro homem desde que estamos no teu palácio.
Tair cortou uma tangerina, comeu um gomo e ofereceu outro a Tally. Ela recusou.
- Preferes alguma túnica concreta para o teu casamento?
- Não podes obrigar-me a casar-me.
- Posso, sim. Sou o xeque e fazes parte do meu harém.
- Não faço.
- O harém não significa que sejas uma bailarina. Simplesmente que fazes parte do enxoval.
- Então, sou como uma baixela, não é?
- Mais ou menos - ele esboçou um sorriso. - Casares-te comigo é o melhor para ti.
- Não. É o melhor para ti.
Ele fez o ar arrogante de sempre e encolheu os ombros.
- Será.
Tair olhou para a empregada que lhes trouxera o café quente e agradeceu. Ela corou de prazer. Tally resmungou. Todos o adoravam menos ela.
- Ainda não me disseste o que preferes para a cerimônia. Certamente, quererás escolhê-lo sozinha.
- Não sabia que as tuas maravilhosas túnicas tinham cores ou formas diferentes - replicou ela, com ironia. - Eu só vi brancas e pretas.
- Há um azul lindo.
- Marinho.
- Vês?
- Estás a perguntar-me se quero casar-me de branco, negro ou azul-marinho?
- Sim - Tair cerrou os dentes.
Era incrível como a irritava. Era impossível que ele pensasse que podiam casar-se, passar algum tempo juntos e muito menos ainda na cama. Não era uma virgem
recalcitrante, mas também não considerava o sexo uma mera diversão. Era algo íntimo e ligado ao amor. Como ia fazer amor com um homem que não a respeitava?
- Surpreende-me -replicou ela. - Assim, o dia do casamento será mais excitante.
Tair, repentinamente, agarrou-a pelo pulso, levantou-a e aproximou-a dele.
- És uma noiva muito desobediente.
- Porque não és o noivo que quero - ripostou ela, enquanto tentava soltar-se.
- Porquê? - perguntou-lhe ele, sentando-a sobre o seu colo.
Tair acariciava-lhe o pulso com o polegar. Era um contato perturbador. Uma labareda percorria-lhe o braço e dava-lhe prazer. Não podia permitir que a excitasse.
Era um homem pouco civilizado.
- Sabes porquê? - perguntou ela com um gemido.
- Porque sou um xeque?
- Não. Não é uma questão religiosa ou cultural. É por ti. Raptaste-me. Porque havia de querer casar-me contigo?
Ela tremeu porque aquela leve carícia a alterava. Era impossível que ele fizesse com que se sentisse assim. No entanto, voltou a arrepiar-se. Era uma reação
que não conseguia evitar devido ao toque do seu polegar naquele ponto tão sensível. O problema era que todo o seu corpo começava a vibrar. Como ia respeitá-lo se
ele não a deixava respeitar-se? Não podia permitir que um homem derrubasse as suas defesas daquela maneira. Tinham de falar ou jogar xadrez, mas era injusto que
a acariciasse.
- Se não te tivesse raptado, gostarias de mim?
- Talvez - Tally não conseguiu olhar para ele nos olhos.
- Não acredito, mulher - gozou ele.
Ela cerrou os dentes. Porque continuava a chamá-la "mulher"? Sabia que ela detestava.
- Tens razão. Eu não gostaria de ti nem que te conhecesse num cocktail de uma embaixada. E algo completamente pessoal. Representas tudo o que eu menos gosto
num homem. Es rude, mesquinho e brutal. Um homem não devia tentar dominar uma mulher, mas é o que tu fazes comigo.
Ele aproximou-se e ela conseguiu sentir o calor da sua pele.
- Também te salvei.
Ele tinha os lábios quase sobre os dela e Tally sentiu um arrepio por todo o corpo.
- Tu puseste-me em perigo - indicou ela, num tom de voz rouco.
- Não te pus em perigo - ele baixou os lábios e beijou-lhe a face e a comissura da boca. - Puseste-te sozinha em perigo com a tua conduta irracional.
Ela quis fugir, mas o toque dos lábios dele sobre a sua pele era demasiado bom e fazia com que quisesse mais. Como era possível que a sua cabeça o rejeitasse
e o seu corpo o desejasse?
- És perverso - sentenciou ela, num sussurro.
- Parece-me que gostas da perversão - passou-lhe delicadamente os dedos pela face.
- Não.
- Hum...
Ela fechou os olhos ao sentir uma onda de sensações que lhe percorria a espinha.
- Sou boa!
Ela sentiu que o peito de Tair subia e descia com uma gargalhada surda.
- E o que tu dizes.
Tally ia responder quando ele segurou no queixo dela e lhe levantou a cara. Susteve a respiração e olhou para ele nos olhos cheios de paixão. Ela, como um veado
desorientado pelos faróis de um carro, esperou a culminação do desastre. Tair beijou-a e, nesse instante, ela expirou e rendeu-se ao calor da sua pele. Foi um beijo
perfeito. Talvez ela não pudesse casar-se com ele nem viver com ele, mas ele sabia como beijá-la. Foi um beijo incrível. Sentiu que ele a agarrava pela cintura e
a apertava contra si. Também foi um gesto perfeito, excitante e reconfortante ao mesmo tempo. Fez com que ela pensasse que, por algum motivo, se sentia acolhida,
que naquele momento se encontrava no único sítio onde precisava de estar.
No entanto, a crua realidade abriu caminho e Tally afastou-se. Olhou para ele penetrantemente, mas tinha os olhos confusos.
- Não.
- Não, o quê?
- Não a tudo - inexplicavelmente, Tally sentiu as lágrimas caírem. - Não podes possuir-me! Não vou ficar! E não vou casar-me contigo!
Ele olhou para ela um instante sem se alterar e encolheu os ombros.
- Então, queres uma túnica azul para a cerimônia?
- Tair!
Ele já chegara à porta e saiu sem olhar para trás. Ela ficou sozinha com a lembrança do beijo. Não só sentia os lábios a arder, mas também o coração.
CAPÍTULO
"As mulheres querem que tomes café com elas esta manhã".
A voz de Tair retumbava na sua cabeça enquanto ia para o terraço da torre destinada às mulheres. Tally entrou hesitantemente pelo arco da porta. Ouviu umas vozes
ao fundo do corredor e seguiu-as até uma divisão muito grande com bancos muito baixos repletos de almofadões de seda. Todas se calaram e se viraram para olhar para
ela. Ela não sabia como a receberiam, mas todo o círculo de mulheres lhe deu as boas-vindas carinhosamente enquanto lhe arranjavam espaço entre os almofadões. Tally,
um pouco nervosa, sentou-se e afastou o véu da cabeça para que o cabelo lhe caísse sobre os ombros. Uma mulher exclamou que era lindo e outra aproximou-se para tocar
nele.
- Salaam - cumprimentou-as Tally, tentando disfarçar os nervos.
Não tinha razão para estar nervosa, mas sabia que também não a aceitariam, que o casamento adequado para um homem tão poderoso com Tair era com uma mulher da
sua tribo. As mulheres continuavam a sorrir, à espera, e o sorriso de Tally hesitou. Retê-la-iam ali? Olhou atentamente para as caras de curiosidade que a rodeavam
até reparar numa das mais jovens que estava claramente grávida.
Podia ser feliz ali? Podiam aquelas mulheres ser as suas amigas? Com um sorriso, aceitou uma chávena de café turco. Tally mordeu o lábio com dúvidas, mas sabia
muito bem que aquelas mulheres mereciam algo melhor do que um terraço que as impedia de se relacionarem com os outros.
Não conseguia parar de se sentir furiosa. Talvez houvesse momentos incríveis entre Tair e ela, mas eram apenas momentos e a realidade impunha-se para lhe recordar
a verdade e a justiça, já para não falar do respeito. A verdade era que os homens podiam raptar as mulheres e que ela não podia respeitar um homem que não lhe permitia
tomar as suas próprias decisões. Tinha de haver um limite que ninguém atravessasse, tinha de haver princípios. Mas Tair não os tinha. Tair enfurecia-a e alterava
todo o seu mundo.
Olhou para o teto com a cabeça sobre um almofadão da cama e pensou que tinha de raptar Tair. Também pensou no seu apartamento em Pioneer Square onde tinha a
sua cozinha e podia fazer o que quisesse sem depender de ninguém, onde podia ir buscar comida ou fazer o que quisesse sem que a enclausurassem no seu quarto porque
era tarde e as mulheres decentes tinham de estar nos seus quartos. Porque não ia buscar comida? Sabia que a cozinha ficava perto e tinha fome.
Levantou-se, vestiu um robe escuro sobre a camisa de dormir e saiu à procura de comida e bebida. Não foi muito longe antes de encontrar um homem que se limitou
a olhar para ela. Ela continuou, desceu para o outro piso onde encontrou mais homens. Seriam guardas de Tair? Nenhum lhe dirigiu a palavra nem a incomodou. Tally
compreendeu logo porquê. Alguém, certamente o primeiro guarda, avisara Tair e este esperava-a ao fundo das escadas.
- Vais fugir? - perguntou-lhe ele, suavemente.
- Tenho fome - ela olhou para ele fugazmente. - Posso, meu senhor?
- Se era só isso... - fez-lhe um gesto para que o acompanhasse. - Vamos ver se encontramos alguém que possa fazer-te alguma coisa. Bastará acordares uma cozinheira.
- Não quero acordar uma cozinheira.
- Mas tens fome...
- Sim, mas consigo fazer comida sozinha.
- Receio que a nossa cozinha não seja como as americanas.
- Chega uma torrada e um chá.
- Chamarei a cozinheira...
- Esquece.
Tally virou-se e levantou o cabelo da nuca. Tinha calor e fome. Não queria a companhia de Tair, queria algo tranqüilizador.
- Voltarei para o meu quarto - afirmou ela sem entusiasmo, enquanto se virava.
- O que se passa? - perguntou-lhe Tair mesmo atrás dela.
- O que achas? Tenho calor e fome, não tenho livros nem nada onde escrever nem a minha máquina para me entreter. Estou aborrecida e presa.
- Tens calor - repetiu Tair, enquanto começavam a subir a escada.
- Sim.
- Fome e calor - insistiu ele.
- Sim.
- Estás cansada?
- Não. Aborrecida.
- Inquieta.
- Exatamente - Tally parou no patamar. - Esta noite sinto-me como uma gata enjaulada e odeio sentir-me assim. Estive muito tempo a viajar e não suporto esta
sensação.
Ele, pela primeira vez em muito tempo, fez um ar de certa compaixão.
- Fazes-me lembrar de alguns dos meus homens quando passam demasiado tempo aqui. Ficam desassossegados.
- Desassossegados... Usas umas expressões muito precisas.
- A minha educação inglesa.
Tally olhou para ele fixamente para tentar ver por cima do muro que escondia todas as suas emoções e os seus pensamentos.
- Nunca falas da tua educação em Inglaterra.
- Eu sei - Tair apontou para o seguinte lance de degraus. - Continuamos?
Tally, resignada, começou a subi-los. Olhou para ele algumas vezes para lhe tirar mais informação. Fascinava-a aquele lado ocidental dele, mas encontrava sempre
um muro que o tornava misterioso e distante. Tally detestava esse muro. Detestava-o tanto, que ia derrubá-lo. Chegaria a conhecê-lo, mesmo que fosse a última coisa
que fizesse.
Uma vez no terceiro andar, Tally foi para o seu quarto, mas sentiu a mão de Tair nas suas costas.
- Espera - pediu ele, num tom profundo. - Há algo espetacular que quero mostrar-te.
Tally seguiu-o com curiosidade. Tair chegou à porta do seu quarto e ela parou. Ele sorriu com um ar divertido.
- O que achas que vou mostrar-te? Uma parte da minha anatomia?
- Não - respondeu ela, com as faces coradas.
- É espetacular - insistiu ele, com um brilho atrevido nos olhos, - mas não te trouxe para isso. Só receberás essa lição no dia do casamento.
- Quer dizer, nunca - replicou ela, em voz muito baixa.
- Não acredito - corrigiu ele. - No entanto, está noite vamos concentrar-nos nisto...
Tair abriu a porta e levou-a até umas portas de vidro. Ela supôs que dariam para um balcão, como o do seu quarto, com vista para o deserto. No entanto, levavam
a um pátio privado enorme, a um jardim amuralhado que resplandecia à luz da lua. No jardim havia uma piscina no chão de pedra. Ela sentiu-se aliviada e olhou para
ele. Sorria.
- Tens a tua própria piscina.
- Sou o xeque.
Aquela era a vida que ela não conhecera, uma vida que pensava que não existia. O mundo de Tair era mais sedutor e erótico do que qualquer outro que ela vira
em Seattle. No entanto, disse para si que ele não a compraria, que tinha os seus princípios, que tinha de seguir o seu caminho. Embora o seu caminho fosse menos
interessante do que o que se apresentava à frente dos seus olhos. Era um caminho árduo e solitário e ela daria tudo por flutuar naquela água tranqüila, fresca e
reconfortante.
- Posso tomar banho? - perguntou-lhe, agarrando-o impulsivamente pelo braço. - Não tenho fato-de-banho, mas está escuro e tu não verás... - calou-se ao perceber
a situação. - A não ser que tu tenhas um.
- Não tenho nenhum à mão.
- Então, as tuas amigas não guardam um fato-de-banho aqui...
- Não.
Tair fechou as portas para preservar a intimidade do jardim.
- Tomam banho nuas?
Tair aproximou-se dela, tirou-lhe o robe, deixou-o cair no chão e olhou para ela de cima a baixo sem perder nenhum pormenor do corpo que se escondia debaixo
da camisa de dormir de seda.
- Sim, tomam banho nuas.
Tally susteve a respiração e voltou a sentir todo o corpo a arder. Afastou-se dele e aproximou-se da beira da piscina. Baixou-se e pôs a mão na água. Não estava
nem fria nem quente, estava perfeita. Olhou para o fundo, mas não conseguiu distingui-lo, era profunda e suficientemente grande para poder nadar e fazer exercício.
- Estás a molhar a camisa de dormir - avisou ele da escuridão.
- Não tenho fato-de-banho - replicou ela, com um sorriso.
- Então, o que vais fazer?
Ela sorriu mais ainda e sentiu-se repentinamente desinibida. Lançou-se à piscina. A água estava muito fresca e Tally nadou de costas. Nunca se sentira tão livre.
- Tantas estrelas!
Tair aproximou-se e sentou-se numa cadeira baixa junto da piscina.
- Já estás melhor?
- Sim - ela virou-se. - Que felicidade...
- Felicidade? - Tair arqueou as sobrancelhas. - Conformas-te com pouco.
- Não, mas isto é maravilhoso. Tens de reconhecer. Tens uma piscina no meio de uma montanha.
- Um homem tem de fazer o que tem de fazer. - Tally riu com toda a sua alma.
- Nunca te vi tão contente.
- Sinto-me livre.
Tally nadou outra vez de costas com os olhos cravados no céu azul-escuro enfeitado de estrelas. Quando era criança, em North Bend, sentava-se no pátio, olhava
para o céu e sonhava com a vida que não tivera porque a sua família era pobre, queria viajar e ter aventuras.
- Quando era criança queria ser princesa. Contava as estrelas e fazia promessas. Algum dia seria bonita, famosa e rica. Imaginava que era princesa, que seria
feliz se me casasse com Alberto do Mônaco ou um dos filhos da princesa Diana...
Tair não parava de olhar para ela na escuridão.
- Continuas a pensar que ser princesa serviria de alguma coisa?
- Não. Já não quero ser princesa, mas continuo a querer muitas coisas, quase tudo.
Tair observava a sua pele à luz da lua. Enfeitiçara-o com aquela personalidade indômita. Estava cheia de paixão e parecia que nunca se abateria. Além disso,
também gostava que ela não fosse submissa, queria uma mulher, não um empregado. Precisava de uma mulher como Tally, uma mulher que fosse sincera e que desse a sua
opinião. Tally recordava-lhe uns tempos que passaram para sempre, um passado em que fora alguém divertido, despreocupado e sem problemas. Quando o mandaram para
Inglaterra com seis anos, ele nunca imaginou que voltaria como xeque e líder. Nunca quisera liderar. Ele adorava desportos, o estudo e a diversão. Esboçou um sorriso
ao ver o corpo resplandecente de Tally. Fazia com que quisesse tirar a túnica e ignorar as responsabilidades e ir para junto dela. Esquecer-se das obrigações e viver,
sentir; esquecer-se dos sofrimentos do passado e do homem que era.
No entanto, não podia. Tair tinha de estar preparado para qualquer eventualidade, tinha de estar acordado e alerta.
A primeira lição foi a morte do seu pai. Ele estava na universidade de Cambridge e teve de voltar para um mundo muito diferente, um mundo onde o ocidente era
o mal; um mundo onde um franco-atirador matara o seu pai. O franco-atirador assumira que o pai de Tair era uma ameaça e precipitara-se ao disparar. Os governos estrangeiros
desculparam-se, mas as desculpas não ressuscitavam os mortos.
Como se a morte do seu pai não tivesse sido suficiente, além disso, havia as guerras fronteiriças, um derramamento de sangue sem sentido para Tair. Porque é
que os árabes lutavam entre si? Tair fez o que pôde para ser imparcial e justo, até a guerra alcançar a sua terra quando estava em Baraka em trabalho. A guerra não
devia tê-los alcançado, mas Ara fora orgulhosa, bonita e implacável. Além disso, tinha a certeza de poder lidar com tudo o que a vida lhe trouxesse.
Cerrou os punhos de raiva e dor. Continuava a lembrar-se daquilo depois de tantos anos, continuava a sentir o mesmo choque e tristeza. Se Ara não tivesse aberto
as portas, se tivesse feito o que sempre lhe dissera que fizesse, se tivesse ouvido, se não tivesse sido tão valente... Sentia falta dela. Tinha saudades da sua
mulher e do seu filho mais do que podia suportar e estava disposto a reconhecer. Tair fechou os olhos.
- Tair...
Uma voz suave e carinhosa acariciou-o e por um momento teria jurado que era Ara.
- Tair. Em que pensas?
Abriu os olhos e, embora soubesse que Ara morrera, por um instante esperou vê-la.
- Tair - Tally, nua e resplandecente, saíra da piscina. - Estás ausente. Em que pensas?
Tair estendeu uma mão e ela aproximou-se como se fosse o mais natural do mundo. Talvez fosse. Tair sentou-a no seu colo para lhe dar o calor do seu corpo. Ela,
instintivamente, levantou a cara para receber o beijo que desejava. Os homens eram simples e complicados; rudes e arrogantes, mas ternos por dentro e precisavam
do contacto de uma mulher, do seu amor.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas e sentiu um nó na garganta quando Tair apertou o seu corpo nu contra si. Ela devia ter sentido pudor e estranheza por estar
nos seus braços, mas pareceu-lhe normal estar perto do seu coração. Tinha cicatrizes no peito, mas também tinha outras feridas que ela desconhecia e que lhe importavam.
Ela importava-se. Talvez mais do que com a sua própria liberdade.
CAPÍTULO
Tair pegou nela ao colo e levou-a para o seu quarto enquanto a beijava no pescoço. Ela não conseguiu reprimir um arrepio de prazer. Sabia para onde a levava.
- É sensato? - perguntou-lhe ela, enquanto se agarrava a ele.
- Sim - sussurrou Tair, sem parar de a beijar. - Muito sensato. A espera por te fazer minha está a deixar-me louco.
O tom de voz grave e profundo retumbou por todo o interior de Tally. A cabeça dava-lhe voltas e sentia-se cheia de desejo e de excitação. Sentia com deleite
o contato das suas mãos e da sua boca. Tally susteve a respiração quando ele segurou nos seios dela. As suas carícias tinham algo de sedutor, mas eram muito delicadas.
Reconheceu-o num grau que não podia explicar, mas conheceu-o num aspecto muito primário, conheceu-o como um homem, o seu homem. Além disso, pensou Tally enquanto
lhe rodeava o pescoço com os braços e todo o seu corpo vibrava, ela também era dele.
Tally desabotoou-lhe a camisa para lhe beijar a pele quente do peito. Ela nunca fora atrevida com os homens, mas Tair dava-lhe coragem, fazia com que quisesse
apoderar-se de tudo o que lhe oferecia: da vida, até do sexo, já que não podia apoderar-se do amor. Beijou-lhe as cicatrizes e pensou que ali era onde queria estar,
no seu coração. Aquele espantoso coração bárbaro. O coração que ela queria mais do que qualquer outra coisa.
- Sabes que és minha - Tair olhou para ela nos olhos. - Sabes que não podes abandonar-me. Já sabes que o teu lugar é aqui.
As palavras não saíam. Não conseguia pensar noutra coisa senão em tê-lo mais perto, eliminar a mínima distância que havia entre eles. Precisava dele, não só
da sua boca e da sua mente, mas também do seu corpo poderoso, os músculos tensos sob a pele de guerreiro.
- Es minha - continuou, enquanto lhe pousava as mãos no rabo e a apertava contra a sua ereção. - Já não podes mudá-lo. Já não podes fugir.
Ela fechou os olhos ao sentir as mãos quentes dele sobre a pele. Queria que aquelas mãos a acariciassem por todo o corpo.
- Não fugirás - repetiu, enquanto lhe passava as mãos entre as pernas.
Ela tremeu e assentiu. Não assimilara nada do que ele dissera e assimilara tudo ao mesmo tempo. Ele era tudo: primário, sexual e viril. Ele fazia com que se
arrepiasse e desencadeara aquele redemoinho de desejo. Arqueou-se para que os seus seios se encostassem contra o peito dele, para que as suas ancas lhe transmitissem
o apetite que ele tinha de saciar.
- Sim - balbuciou ela.
- Sim, o quê? - perguntou-lhe ele, enquanto olhava para ela nos olhos.
- Não fugirei - respondeu ela, enquanto os seus mamilos endureciam.
Tair sentiu a reação e olhou para os seios dela rematados por dois mamilos cor-de-rosa. Outros homens tinham olhado para Tally, mas nunca como daquela vez. Aquilo
era domínio. Ele inclinou a cabeça, abriu os lábios e beijou um mamilo dela. Ela gemeu. Provocou-a até ela ficar a tremer. Estava a derreter-se. Apertou-se mais
contra ele. Precisava dele. Tinha de encher o vazio que sentia. Todo o seu corpo ardia e cada vez se sentia mais vazia.
Foram até à cama e Tair deitou-a sobre a colcha de seda. Tally agarrou-o pela camisa e puxou-o para si.
- Espera, quero olhar para ti - declarou ele, enquanto se afastava.
- Mas eu quero sentir-te - Tally puxou-o pela nuca baixou-lhe a cabeça.
Ela fechou os olhos e sentiu uma descarga elétrica.
Os beijos de Tair não se pareciam com nenhum outro beijo. Tair acariciou-a por todo o corpo e, quando ela já não agüentou mais, puxou-a pela túnica e pelas calças
para que as tirasse.
Viu-o despir-se com os olhos semicerrados e com falta de ar. Ele era mais impressionante do que ela imaginara. Era puro músculo. Tally vira homens com corpos
trabalhados no ginásio, mas o corpo de Tair estava modelado pela vida, pelas batalhas, pelo vento e pelo deserto. Então, soube que o amava como nunca imaginara que
podia fazer. Era o homem que ela procurara. Era o amor que procurara durante aqueles anos. Pestanejou para limpar as lágrimas.
- Anda - Tally estendeu uma mão.
- És uma mulher muito complicada - comentou Tair, num tom de voz profundo. - No entanto, quando te abraço como agora, és muito simples.
- Podia dizer o mesmo de ti.
Ele levantou-a um pouco para poder olhar para ela na cara.
- És muito bonita. Sempre me maravilhará a tua beleza. Este queixo, este nariz, as maçãs do rosto, os olhos claros, grandes e inteligentes. Tens de saber o efeito
que tens nos homens.
- Não tenho nenhum efeito nos homens.
- Nenhum efeito? Puseste a minha vida de pernas para o ar, mulher. Persegui-te tantas vezes pelo deserto que nem me lembro...
- Duas vezes.
- Gostas de ter a última palavra.
- Olha quem fala...
- Vês?
Tally sorriu, segurou na cara dele e beijou-o para que ele soubesse que ela só queria ser dele.
- Se calhar tens um pouco de razão - sussurrou ela.
- Finalmente percebeste - Tair riu levemente. Tally adorava estar recostada contra o seu peito e com as pernas entrelaçadas. Só queria sentir-se abraçada e querida.
- Eu acho que fizeste com que perca a razão. - Tair voltou a rir e Tally pensou que devia rir com mais freqüência.
- Faz amor comigo - olhou para ele nos olhos e sorriu levemente, - por favor.
Tally dormiu junto dele, com o braço de Tair segurando-a firmemente pela cintura. Era uma situação estranha, mas maravilhosa. Era o tipo de estranheza reconfortante,
que dava paz. A vida estava muito bem e só podia melhorar.
Aquela sensação não durou muito. Quando Tally acordou, verificou que Tair se fora embora. Alguns homens e ele foram a Saroush e voltariam daí a uns dias, talvez
uma semana.
Tally voltou para o seu quarto. Porque não lhe dissera que se ia embora? Estava furiosa e andou de um lado para o outro do quarto. Fizera amor com ela e deixara-a
sozinha. Era um animal e odiava-o. Era impossível amar um homem que não comunicava com ela. Recusava-se a amar um homem que ia e vinha e contava que ela estivesse
à espera. Ele tinha uma mãe inglesa e fora educado em Inglaterra. Tinha de saber que as mulheres ocidentais não se limitam a esperar. Levou a mão à boca para conter
a tristeza que a dominava. Não gostava de se sentir esquecida. Fora por isso que deixara a sua casa e fora por isso se tornara uma aventureira. Era melhor arriscar
a vida do que ficar sentada e passiva com o coração partido.
Tentou convencer-se de que ele voltaria em breve, de que não demoraria uma semana, mas não serviu de nada. Podia perfeitamente passar alguns dias sem ele, até
agradeceria não ter de suportar os seus sarcasmos, mas ele devia ter-lhe dito pessoalmente, se se importasse com ela. Ficou pensativa. Talvez fosse isso que a incomodava.
Queria que ele se importasse com ela. Dissera-lhe que a desejava, dissera que a possuiria, mas nunca falara nada de amor ou de carinho. O que podia esperar de um
homem que preferia raptar uma mulher em vez de a cortejar? Ficou a olhar pela janela sem distinguir nada. Só conseguia ver a sua desolação, a solidão e a tristeza.
Os homens como ele não comunicavam os seus sentimentos, simplesmente, tomavam decisões. Não permitiam que ninguém se aproximasse deles, pois não gostavam de se sentir
vulneráveis. Paolo, o seu amigo e amante brasileiro, fora igual. Até acabar por morrer no Evereste numa das suas aventuras arriscadas.
Tally soprou. Também se apaixonara por ele. Apaixonara-se e cairia como com Paolo, sem rede de segurança. Como se passava naquele momento, estava a cair no vazio.
Como pudera descer a guarda? Como permitira que Tair entrasse no seu coração? Será que a morte de Paolo não lhe ensinara nada? Porque não se teria apaixonado por
um homem sensível que a tratasse com consideração? Talvez porque um homem assim fazia com que sentisse que tinha de ganhar o seu amor. Como o seu pai. Será que ficara
tanto tempo em sua casa para demonstrar ao seu pai que era fiel? Que ela o respeitava e amava mais do que todos os seus irmãos?
Tally abanou a cabeça. Isso era impossível. Não era a mesma situação. Não aceitara a bolsa para ir para a universidade porque precisavam dela, não porque queria
ser a menina dos olhos do seu pai. Pestanejou para limpar as lágrimas. Não fazia sentido renunciar a uma bolsa numa das melhores universidades para ser a favorita
do seu pai. Mandy era a favorita ou os rapazes. Não ela, a asmática com óculos, cabelo castanho e olhos castanhos que tinha um ar tão sério Agarrou-se à cortina
de seda. Fazer tudo bem fora inútil. Fora inútil renunciar aos seus sonhos para que os dele se tornassem realidade. Se ela tivesse sido mais egoísta... Os sentimentos
eram enganosos. Passava-se o mesmo naquele momento.
Voltou a soprar com força. Sentisse o que sentisse, não ia influenciar as suas decisões. Ia sair dali. Ia viver as aventuras que quisesse. Não ia permitir que
ninguém a privasse dos seus sonhos.
No segundo dia, desejosa de ocupar o tempo e de se esquecer de Tair, Tally aceitou acompanhar as mulheres à casa de banhos e tomou um banho de leite. No terceiro
dia, permitiu que as mulheres lhe decorassem as mãos, os pulsos e as plantas dos pés com hena. Demoraram um dia e parte do seguinte. As mulheres riam-se ao ver como
os desenhos iam ganhando forma e ela teve de reconhecer que gostava. Era como uma tatuagem, mas acabaria por se apagar.
No dia seguinte, o estado de espírito de Tally mudou completamente ao descobrir que Tair voltara à noite. Foi Leena, a sua aia, que lhe disse quando lhe levou
o pequeno-almoço.
- Sua senhoria voltou. Chegou ontem à noite com muitos homens.
Tally sentiu um aperto no coração. Sentiu um arrebatamento de alegria que se dissipou rapidamente ao lembrar-se que estava furiosa. Tinha de recordar que não
era uma mulher que ia ficar em casa à espera do seu homem.
- Fico contente - replicou Tally, num tom de indiferença.
Tally obrigou-se a tomar o pequeno-almoço, apesar de o seu coração estar acelerado.
Não se surpreendeu muito quando a sua sombra surgiu no pátio. Era a sombra de um homem enorme.
- Bom dia - cumprimentou Tair, enquanto agarrava numa cadeira, embora não se sentasse.
Tally não soube o que esperava ele. Um beijo? Um abraço carinhoso?
- Já voltaste... - replicou ela, com uma frieza que tentava disfarçar as suas emoções.
- Efetivamente, não morri - retorquiu ele, com um sorriso.
Tally deu uma trinca no bolo, mas quase não conseguiu engolir.
- Correu tudo bem? - perguntou ele, enquanto aceitava uma chávena de café de Leena.
- Otimamente.
Ele baixou o olhar para disfarçar a sua expressão, mas Tally percebeu que estava a rir dela. Esta cerrou os dentes.
- O que se passa? Estás aborrecida por estares presa...
Estava furiosa por ter ido para a cama com o homem mais arrogante do mundo.
- Estás muito bonita - acrescentou ele. - Foste aos banhos?
- Sim - respondeu ela, olhando para ele fixamente.
- Tomaste um banho de leite?
- Sim - olhou para ele mais fixamente ainda.
- Fico contente.
- Porquê?
Ele encolheu os ombros e segurou-lhe as mãos. Ela deu um salto devido à onda abrasadora que lhe percorreu as mãos, os pulsos e os braços. Tair arqueou uma sobrancelha.
- O que se passa? - perguntou ela à defesa.
- Nada.
Tally notou o tom sarcástico da resposta. Como se ele soubesse algo que ela não sabia e que não ia gostar.
- Acho que as tatuagens são lindas - indicou ela, sem abandonar o tom defensivo.
- São.
- São artísticas.
- Sem dúvida.
- Então, porque sorris assim?
- Não sorrio.
- Sorris, sim.
Tair abanou a cabeça com um sorriso muito leve e Tally tentou largar as mãos, mas ele não deixou.
- Diz-me - insistiu Tally.
- É que o desenho das tuas mãos significa algo.
Tally sentiu um vazio de horror no estômago. Sabia o que ele ia dizer e ela não ia gostar. Ele levantou as mãos de Tally como se estivesse a lê-las.
- Pertences-me - deu a volta às mãos para que Tally as visse. - Diz aqui.
Ela fechou os punhos.
- Não é verdade!
Ela sabia que era verdade e que fora por isso que as mulheres se riram enquanto lhe desenhavam as mãos.
- Onde? - perguntou-lhe Tally, com impaciência.
- Este - Tair mostrou-lhe um dos desenhos com a ponta do dedo, - é o símbolo árabe de amor...
Tally tentou soltar-se outra vez, mas sem sucesso.
- Amor?
- Só estou a ler o que diz aqui - Tair encolheu os ombros.
Tally voltou a cerrar os punhos.
- Apagá-la-ei imediatamente.
- Agüenta algumas semanas, mesmo que esfregues com todas as tuas forças.
- Semanas... - repetiu ela.
- Normalmente, meses.
- Meses...
- Vai durar toda a lua-de-mel.
- Não estamos em lua-de-mel.
- Enquanto não nos casarmos, não, mas haverá uma lua-de-mel. É o costume.
- Tanto me faz. Não vamos casar-nos nem ir de lua-de-mel.
- Vamos casar-nos. Os documentos estão redigidos.
- Rasga-os!
- Impossível. Resigna-te, desta vez não vais ganhar.
CAPÍTULO
- Não estás a falar a sério - sussurrou Tally.
- Claro que estou. Para onde achas que fui? - perguntou-lhe ele, enquanto a largava.
Tally empurrou a cadeira para trás para se afastar dele.
- Não sei e como tenho a certeza de que não tem nada a ver comigo, não quero saber.
- Na verdade, tem muito a ver contigo. Fui procurar o mullah da cidade, o juiz. Ele casar-nos-á.
- O que ganho se me casar contigo? - perguntou ela, num tom brincalhão.
- O meu nome e a minha casa - Tair estendeu os braços.
- Não os quero.
- A minha proteção.
- Também não quero.
- Mas precisas dela - olhou para ela pensativamente. - Há quatro noites parecias ansiosa por te casares comigo. Porque mudaste de idéias?
Ela corou ao recordar a noite que passaram juntos. Fora muito intensa.
- Foi um erro. Um arrebatamento de loucura.
- Um arrebatamento de loucura - repetiu ele.
- Sim. Não podemos casar-nos. Não me casarei quando tantas diferenças nos separam.
- Diz-me uma.
- A religião.
- Diz-me outra.
- A política.
- Outra.
- Divergências culturais quanto à consideração dos sexos.
Ele deixou-se cair contra as costas da sua cadeira com os olhos semicerrados.
- É só isso?
Tair ergueu o queixo e o sol iluminou a sua barba incipiente, a textura da sua pele e as rugas nas comissuras dos lábios. Tally teve de fazer um esforço para
não o beijar e cerrou os punhos sobre o seu colo. Queria que ele dissesse as palavras que ela precisava ouvir, queria que lhe desse o carinho que ela desejava. Precisava
que ele a amasse.
Tally levantou-se e atravessou o pátio a correr.
- Isto não é Seattle ou Bellevue ou de onde quer que sejas - recordou-lhe Tair. - É o deserto, um mundo diferente com regras diferentes. És minha e proteger-te-ei,
quer queiras, quer não queiras.
Tally virou-se e deu um passo cheio de fúria para ele.
- Não podes obrigar-me a fazer isto...
- Posso, sim. Posso fazer as promessas em teu nome. Nem sequer é necessário que assistas à cerimônia, embora eu gostasse que lá estivesses. Mesmo assim, seríamos
marido e mulher.
- Seria a tua propriedade.
- Digamos a minha mulher.
Tally abanou a cabeça com raiva. Sabia que estava a provocá-la. Sabia que ele estava furioso devido à sua recepção tão pouco entusiasta, mas não ia ceder.
- Odeio a idéia de me obrigares a casar-me contigo. Odeio o fato de poderes fazer algo tão brutal.
- Não acho que odeies tanto. Já me conheces bem e sabes que não digo uma coisa e faço outra. Se declarei que és minha, não vou mudar de idéia só porque o tempo
passa. Amanhã serás minha legalmente.
Ele conseguiria convencê-la. Sabia enrolá-la, mas não estava disposto. Era um bruto insensível.
- Não me casarei contigo por imposição. Se me casar contigo, será por amor.
- E não me amas.
Amava-o? E será que ele a amava? Estava a ficar com ela por orgulho? Queria demonstrar que a conquistara?
- Não - afirmou ela, com um nó de amargura na garganta.
Tair levantou-se da cadeira com uma expressão sombria e aterradora.
- A tua mão direita diz que me amas.
- Um grupo de mulheres velhas desenhou na minha mão direita com hena. A minha mão direita não sabe o que diz...
- Acho que sabe.
- Eu sei que não sabe.
- Então - Tair encolheu os ombros com uma indiferença absoluta, - se calhar devias dizer à tua mão direita e ao teu coração que aprendam a gostar de mim, já
que não me amam, porque dentro de pouco tempo vamos unir-nos para sempre.
Tally ficou a olhar para ele com o coração acelerado.
Não encontrava palavras para o contradizer, mas tinha de o fazer. Sabia que não podia permitir que isso acontecesse, sabia que Tair fazia tudo o que dizia. Tally
tentou pensar em algo que tivesse sentido.
- Porquê eu? Eu não gosto de ti e tu não gostas de mim. Somos completamente diferentes. Os nossos princípios estão em conflito. Porque não te casas com uma mulher
que queira estar contigo em vez de o fazeres com uma que está disposta a fugir?
- Tu estás aqui.
- Como centenas de mulheres.
- Tu precisas de mim.
- Não.
- Sim, mas como não aceitas esse argumento, dar-te-ei outro.
Aproximou-se e só parou quando ficou a uns centímetros dela. Tally teve de levantar a cabeça para olhar para ele nos olhos. Susteve a respiração e sentiu-se
arrebatada por ele, arrebatada por um ardor que não conseguia explicar. Só sabia que, quando ele olhava para ela, se derretia por dentro e os seus ossos fraquejavam.
Ele esboçou um sorriso. Sabia o efeito que tinha nela e adorava.
- Quero-te como esposa porque adoro a forma como olhas para mim.
Sorriu um pouco mais, como se soubesse como ela aceitaria aquelas palavras e como iam ofendê-la.
- Também gosto de como me beijas - continuou ele lentamente. - Além disso, entusiasma-me o teu sabor.
Tally tentou olhar para outro lado, mas sentia-se apanhada nos seus olhos ardentes e cheios de desejo. Ele já não escondia nada.
- Há muito poucas mulheres com o teu sabor - continuou ele, - e, se vou casar-me, quero uma mulher que possa beijar e saborear.
- Tens um sentido de humor horrendo.
- Nem pensar - Tair sorriu e mostrou os seus dentes branquíssimos.
Cravou o olhar na sua boca e beijou-a até ela se sentir completa. Tally cerrou os punhos como se protestasse pela sua destreza na sedução. Não era justo que
ela se sentisse daquela maneira só por um olhar e quatro palavras. Sentia-se ofegante e com o coração acelerado. Não era justo que ele a alterasse tanto e ela quisesse
que saciasse aquele desejo.
- Ninguém se casa com uma mulher só porque beija bem.
- Claro que se casam...
- Tair...
- Pensa como um homem. Se beija assim, consegues imaginar a maravilha que será na cama?
Tair voltou a beijá-la e abriu-lhe os lábios para saquear toda a doçura do seu interior. Tally agarrou-o pela túnica com todas as suas forças. Não queria desejá-lo,
não queria ceder, mas à medida que ele a apertava contra si, ela sentia que o ansiava cada vez mais.
Ele acariciou-a por todo o corpo e parou nos seios antes de continuar até às ancas. Passou-lhe os lábios pelo pescoço e ela sentiu que as suas pernas fraquejavam.
Ele continuou a derrubar todas as suas defesas. Tally encostou a cara no peito de Tair quando sentiu uma mão sobre o centro da sua feminilidade. Ele não introduziu
os dedos, nem era preciso. Ambos sabiam que ela o desejava e para ele aquilo era outra vitória.
- És minha - ele olhou para ela com os olhos como brasas devido ao desejo. - O teu corpo sabe, mesmo que a tua mente o negue.
- É algo físico - contradisse ela, enquanto tentava organizar os seus pensamentos.
- Muito bem. Aceitarei o que puder - afastou-se para sair, mas virou-se ao chegar à porta. - Para que saibas, o banho do outro dia e a cerimônia da hena são
rituais pré-nupciais - Tair endureceu a expressão. - É possível que não queiras ser uma noiva e que também não queiras casar-te comigo, mas o mullah está cá e tu
estás preparada. Ver-te-ei dentro de algumas horas.
Tally ficou petrificada.
- Vamos casar-nos hoje?
- Sim. Leena tem o teu vestido. Não é nem negro nem branco nem azul.
Tair tinha razão. O vestido, em parte uma túnica e em parte um vestido de noite ocidental, era de seda dourada com bordados verdes e enfeites de prata e pérolas
no decote de veludo.
Leena quis maquiá-la e pintar-lhe os olhos, mas Tally recusou-se. Queria ser ela própria. Além disso, não sabia se ia chorar e não queria ter uns carreiros pretos
nas faces. Tally, com umas pulseiras de ouro muito grandes e um diadema também de ouro que segurava um véu de seda, foi até à sala do edifício principal.
Sentou-se enquanto Tair e o mullah comentavam o contrato matrimonial até chegar o momento de começar a cerimônia.
O mullah olhou para Tair.
- É Zein Hassim El-Tayer?
- Sim.
O mullah dirigiu-se a Tally.
- É Talitha Elizabeth Devers?
- Não.
- Sim, é, senhoria - replicou Tair, com um olhar penetrante para Tally.
- Não sou, senhoria - insistiu Tally, olhando para Tair com uns olhos igualmente penetrantes. - Sou Tallis Elizabeth Devers.
O mullah pareceu não gostar da interrupção, mas continuou com a cerimônia.
- Tallis Elizabeth Devers, casa-se coagida? - perguntou firmemente e sem desviar o olhar de Tally.
- Sim.
- Não - interveio Tair.
- Sim - repetiu Tally.
O mullah levantou o olhar do livro.
- Sim - insistiu Tally.
- Xeque El-Tayer? - perguntou o mullah a Tair.
- Não - respondeu Tair. - Ela disse que não está coagida.
- Não! - exclamou Tally, com impotência. - Não disse que não...
- Então, é não? - continuou o mullah.
- Sim, é que não... - Tally abanou a cabeça. - O que está a perguntar-me?
- Desejas casar-te com o xeque Zein El-Tayer ou foste coagida?
- Sim - respondeu ela.
- Sim, desejas casar-te?
- Sim, fui coagida.
- Perfeito. Desejas casar-te. Sim - o mullah mexeu nos papéis. - Assim seja.
Tally transformou-se na esposa do xeque Tair. Depois houve um copo-d'água descomunal, mas Tally não teve forças para comer. Sobretudo quando Tair lhe disse que
estariam sentados em zonas separadas durante as celebrações. Porque estariam em zonas separadas? Tair não sabia ainda quem ela era, continuava sem entender que a
arrastara para algo tão diferente do seu mundo que estava assustada. Como ia ela viver ali? Amava-o, mas não o entendia, como não entendia a sua cultura.
A multidão formou redemoinhos ao redor deles depois da cerimônia, os homens levaram Tair numa direção e as mulheres levaram Tally noutra, mas ela conseguiu escapulir
e refugiar-se no seu quarto. Conteve as lágrimas, levantou a bainha da saia, prendeu-a à cintura e andou de um lado para o outro. Sentia-se presa. Não tinha para
onde ir nem ninguém que a ajudasse. Foi ao terraço e conseguiu ouvir a música do festejo. Em breve começariam os cantos e as danças. Olhou para o deserto. Como era
possível que amasse e também fosse infeliz? Onde estava a paz?
- O que fizeste com o teu vestido? - perguntou-lhe Tair atrás dela.
Tally secou as lágrimas e encolheu os ombros.
- Tens as pernas nuas - continuou ele.
Ela captou o tom de censura e sentiu-se ainda mais magoada.
- Disseste-me que em privado podia vestir-me como quisesse.
- Sim, mas este terraço não é privado. Muita gente consegue ver-te.
- Estão todos a festejar.
- Baixa a saia.
- Não - olhou para ele fixamente e com um leve sorriso desafiante, - obrigada.
- Por favor... - mostrou os dentes num sorriso.
- Eu gosto do vestido assim. Sinto-me mais livre.
- Mais exposta.
- Exatamente.
- É inadequado.
- Tanto me faz o que seja adequado.
- És a minha esposa.
- Contra a minha vontade.
- Mesmo assim, és a minha esposa.
- Eu gostaria que parasses de te repetir.
- Eu gostaria que fizesses o que te digo.
Tally, dominada pela raiva, olhou para ele fixamente e levantou mais a saia.
- Queres uma discussão? - perguntou-lhe ele, com os dentes cerrados.
- Quero que aceites que nunca serei a mulher que queres como esposa.
- Já és a minha esposa e, como tal, deves agradar-me.
- Acho que te enganaste na esposa, Tair.
- É a tua obrigação, esposa.
Tally aproximou-se dele com a cara erguida e levantou ainda mais a saia. Ela sabia que aquilo era uma tolice e era infantil, mas a arrogância de Tair enfurecia-a.
Tudo o que lhe exigia ia contra a sua dignidade.
- Tair, é possível que te tenhas casado comigo, mas não me compraste. Não te pertenço. Posso vestir a roupa como eu quiser, tal como posso conservar o meu nome,
a minha personalidade e a minha identidade.
- Não vais levar a tua avante, esposa.
- Mas vou lutar, marido.
Tair inclinou-se sobre ela até ter a boca a escassos centímetros da dela. Tally sentiu que os seus músculos ficavam tensos e que sustinha a respiração. Conseguiu
cheirar a fragrância dele, sentir o calor do seu corpo e recordar claramente o contato da sua boca na dela, assim como o prazer doloroso e intenso.
- Devias ter-te casado com uma rapariga berbere - sussurrou ela, numa tentativa de ignorar o desejo que a embargava.
Ele baixou mais a cabeça e beijou-a. Tally sentiu uma chama em todo o corpo. Fechou os olhos e deixou-se arrastar. Era um beijo tão delicado, que fez com que
ela desejasse mais, com que desejasse que fizesse amor com ela ali mesmo.
Tair levantou a cabeça, indicando que percebera.
- Acompanha-me - voltou a beijá-la e baixou-lhe a túnica até lhe cobrir as pernas. - Esta noite acabaremos esta batalha, esposa, mas agora não é o momento.
No entanto, naquela noite, quando os convidados se foram embora e Tair a levou ao colo até à cama, Tally não teve vontade de batalhar. Só o queria a ele, de
corpo e alma.
Fizeram amor de forma pouco delicada. Tair fez amor com ela com uma intensidade carnal e ela respondeu com a mesma voracidade. Ele enfurecia-a, mas também fazia
com que ardesse de paixão, com que o desejasse e com que precisasse do seu amor.
Ele agarrou-a pelas mãos e pôs-lhe os braços por cima da cabeça enquanto a penetrava implacavelmente, mas ela desejava-o e, com as pernas ao redor da cintura
dele, recebeu o seu corpo e a sua paixão desenfreada.
Tally dormiu nos braços dele, cansada e só em parte satisfeita. Teve um sonho vivido e intenso onde homens armados irrompiam no quarto, entre cânticos de mulheres
e barulhos de tambores, e levavam Tair para longe dela.
Tally acordou assustada e estendeu a mão para apalpar a cama, mas encontrou uma pele quente. Então, percebeu que estava em Bur Juman com Tair. Pousou a mão no
seu peito e olhou para ele na escuridão. Sentiu um redemoinho de emoções como nunca sentira. Amava-o. Amava aquele homem espantoso como nunca imaginara que amaria
alguém.
CAPÍTULO
Na manhã a seguir ao casamento, Tair não estava localizável enquanto Tally e Leena organizavam toda a roupa nova que ele encomendara. Leena estava entusiasmada
com o novo guarda-roupa, mas Tally não conseguia olhar para o amontoado de túnicas e de vestidos. Pelo contrário, ficou na janela a olhar para o deserto e com vontade
de ir embora. Não de deixar Tair, mas de sair dali, de sair da sua prisão e do mundo repleto de túnicas e véus. Precisava de ação. Dali a areia do deserto parecia-lhe
mística e até tinha saudades das tempestades de areia e da asma. Tair salvara-a em ambas as vezes. Salvara-a e montara-a no seu cavalo branco e cinzento.
O sonho da noite anterior assustara-a e fizera-a aperceber-se do pouco controle que tinha. A vida era efêmera.
- Gosto de si, senhora - declarou Leena inesperadamente.
Tally virou-se com um sorriso. Sentiu-se comovida.
- Eu também gosto de ti. Dás-te muito bem comigo e agradeço-te por isso.
Leena alisou uma das túnicas de seda que estava a guardar cuidadosamente numa arca enorme.
- Eu gostaria de ser como você. Forte e valente.
- Não sou assim tão valente - respondeu Tally, enquanto se sentava na beira da cama.
Na verdade, era covarde. Tinha medo por si própria e por Tair. Fora apenas um sonho, mas deixara-a inquieta.
- Acho que só gosto de discutir com o senhor -acrescentou Tally.
- Porque o ama - afirmou a rapariga com um sorriso.
- Não o amo.
- Ele ama-a.
-vNão.
- Então, por que razão lhe permite falar-lhe como fala? Ninguém pode dirigir-se a ele dessa maneira, mas quando você abre a boca, ele escuta-a.
- Talvez seja porque sou ocidental.
- Ele teve outras estrangeiras e nenhuma falava com ele como você.
Tally esbugalhou os olhos. Outras mulheres ocidentais tinham passado por ali? No entanto, não seria correto interrogar Leena...
- Esteve... com outras mulheres aqui?
- Bom... - Leena encolheu os ombros. - Não era um harém, mas você deve entendê-lo, é um xeque e teve muitas mulheres.
- Mulheres ocidentais?
- Francesas, britânicas, uma canadiana...
- Passaram por aqui? - Tally esteve prestes a cair da cama.
- Sim, senhora.
- E foram-se embora? O xeque deixou-as irem-se embora?
- Claro, senhora - Leena olhou para ela hesitantemente. - Porque não havia de o fazer?
- Vou trocar umas palavras com o meu marido, o xeque.
- O teu marido está aqui - Tair fez um gesto a Leena para que se fosse embora. - De que querias falar comigo?
Tally virou-se para olhar para aquele homem impressionante que era o seu marido. Era um xeque, mas o que importava? Tally esteve prestes a sorrir devido à situação
desastrosa. Estava casada há um dia e já estava perdida. Como correria aquilo?
- O que querias perguntar-me, mulher? - perguntou-lhe Tair.
Tally tentou pensar na forma de lhe perguntar o que sabia sem revelar que Leena lhe dissera.
- É verdade que estiveste com outras mulheres aqui, em Bur Juman?
Ele hesitou e olhou para ela fixamente.
- Poderia fazer-me de parvo.
- Sim, podias.
- Mas não vou ofender a tua inteligência.
- Obrigada.
- Sim, estive com outras mulheres aqui.
Tally engoliu em seco ao sentir como lhe doía imaginar Tair com outras mulheres. Embora fosse evidente que sabia tratar uma mulher com muita destreza e isso
tinha de ser aprendido de alguma forma.
- Mulheres européias, americanas, canadenses...? - Tair fez uma careta.
- Alguém deu com a língua nos dentes.
- Foram todas amantes tuas?
Ele inclinou a cabeça e franziu a testa. Pareceu cansado.
- Sim.
- O que são agora?
- Já não estão cá.
- Estão mortas?
- Nunca faço mal a uma mulher - respondeu ele, com um sorriso forçado.
- Então, deixaste-as irem-se embora depois de estarem aqui...
- Claro.
Tally esboçou um sorriso hesitante que indicava que o apanhara numa mentira. Uma mentira deliberada para a prender.
- Disseste-me que eu não podia ir-me embora porque sabia muito da tua vida, porque tinha muitas imagens na cabeça...
Tally calou-se à espera de uma explicação ou de uma desculpa, algo que esclarecesse aquele mal-entendido. Queria que ele fosse sincero com ela, que se importasse
o suficiente para fazer o melhor para ela.
No entanto, Tair não disse nada, pareceu indiferente.
- Não era verdade que tinhas de me reter, pois não? - perguntou-lhe, olhando para ele nos olhos.
Durante um minuto, ela pensou que ele não ia responder.
- Não - respondeu ele, - não tinha de te reter. Podia ter-te deixado ires-te embora, mas não queria.
- Mentiste-me!
- Sim.
- Porquê? - perguntou-lhe ela, num tom de tristeza infinita.
- Vale tudo no amor e na guerra.
- E tu és um guerreiro. Soussi el-Kebir.
- O comandante do deserto - replicou ele, num tom brincalhão.
Tally levantou-se e foi para o pátio. Precisava de ar.
- Leena fez-te a mala? - perguntou-lhe ele quando Tally chegou à porta. - Dentro de uma hora vamos de lua-de-mel.
- Lua-de-mel? É uma brincadeira? Não quero ir a lado nenhum contigo
- Eu sei, mas já está tudo organizado e não quero decepcionar a minha mãe.
- Vamos a Atiq?
- A minha mãe está desejosa de conhecer a minha esposa.
- Ela sabe que me obrigaste a casar-me? Sabe que me raptaste e me enganaste?
- Sim.
- O que pensa?
- Que sou como o meu pai.
Uma hora mais tarde, abandonavam Bur Juman a cavalo. Seria uma viagem de dois dias. Naquela noite dormiriam perto da fronteira e de manhã trocariam os cavalos
por um jipe. Ao meio-dia, em Fez, deixariam o jipe e apanhariam o avião privado de Tair.
Tair não parava de olhar para Tally enquanto cavalgavam. Sabia que os seus homens os rodeavam, mas não queria que lhe acontecesse alguma coisa. Estava furiosa
e ele não o reprovava. Ele usara-a. Para ela era imoral, mas no mundo de Tair ele fora ardiloso. Encontrara a mulher que queria e conseguira-a. Ela tinha razão ao
dizer que os seus mundos eram diferentes, embora ele tivesse a vantagem de conhecer o mundo dela. A mãe dele, por exemplo, não tinha voltado para a Inglaterra depois
de se casar com o pai dele, outro seqüestro, e também era uma mulher forte, bonita, educada e orgulhosa.
Ara, a sua primeira mulher, era de Baraka, mas ela e a mãe dele eram como duas gotas de água e Ara chegou a ser como a filha que ela nunca tivera. Depois da
matança no deserto as suas vidas mudaram completamente. Então, a mãe dele foi viver para Atiq em busca de alguma segurança e anonimato.
Vivia perto do palácio de Nuri e o sultão Malik Nuri e a sua esposa Nicolette contavam com a mãe dele para múltiplos acontecimentos oficiais e sociais. No entanto,
Tair sabia que a sua mãe tinha saudades de Ara e sentia uma dor imensa pelo neto que perdera. Zaki fora o seu único neto.
Tair esperava que Tally gostasse da mãe dele. Sabia que a sua mãe adoraria Tally. Também sabia que a sua mãe esperava ter mais netos.
Tair olhou para Tally, que continuava tão zangada que não lhe dirigia a palavra e respondia-lhe com monossílabos. Naquela noite, quando estivessem na cama, ela
mudaria e seria muito mais carinhosa.
Chegaram a Saroush mesmo antes de anoitecer. Passariam a noite no palácio da família El-Tayer. Tair mostrou o seu quarto a Tally e disse que serviriam o jantar
em breve. Encorajou-a a ir ver os jardins interiores, mas disse-lhe que não saísse do palácio. Tally estava feliz por passear pelos jardins. Estava cansada de cavalgar
e os jardins pareciam-lhe maravilhosos.
O ataque foi tão rápido, que Tally só soube o que acontecera quando tudo acabou. Ela baixara-se para ver o mosaico do fundo de uma fonte quando um homem a agarrou
por trás, tapou-lhe o nariz e a boca e pôs-lhe algo afiado nas costelas. Foi como quando Tair a raptara. Mordeu a mão que lhe tapava a boca, mas o homem agarrou-a
pelo pescoço com o braço.
- Se fizer um barulho, mato-a - ameaçou uma voz rouca ao ouvido dela. - Entendido?
Falava um inglês perfeito e ela reconheceu a voz do intérprete que teve desde Atiq até Saroush.
- Sadiq?
- Esteja em silêncio e não acontecerá nada.
Ela assentiu. Sentia a faca nas costas, mas não tinha tanto medo como devia. Tair dissera-lhe que aqueles homens eram rebeldes de Baraka que não reconheciam
Ouaha como um território independente.
- O que quer? - sussurrou ela que estava convencida que Tair a salvaria.
- Quantos homens o acompanham?
- A quem? - perguntou ela, fazendo-se de parva.
- Não seja estúpida - o homem apertou o braço em redor da sua garganta.
- Acho que não entendo.
O homem não gostou da reação e continuou a apertar o braço até lhe cortar a respiração. Tally sentiu a cabeça às voltas e ficou tudo escuro.
Quando voltou a si, já não estava no jardim. Estava numa divisão nua, sentada numa cadeira e com os pés e mãos atados. Estava tudo muito escuro e sentiu medo.
Embora também soubesse que Tair a salvaria.
Conseguiu dormir um instante e, quando acordou, o sol filtrava-se pelas ranhuras das venezianas de madeira. Tally deu uma olhadela e verificou que não estava
sozinha.
- Já acordou... - afirmou o homem.
Não era o mesmo homem da noite anterior.
- Dói-lhe a garganta? - perguntou-lhe ele.
Ela assentiu e olhou para ele nos olhos.
- Sadiq não tinha de te fazer mal. Castigamo-lo. - Tally não afastou o olhar dos olhos do homem e mostrou-lhe as mãos para lhe indicar que não gostava de as
ter atadas.
- É para sua segurança - explicou-lhe ele, num tom quase de desculpa. - Assim estará protegida.
- De quem? - perguntou ela, num tom de voz rouco. - Eu não vou magoar-me. Quem pode magoar-me?
Ele não respondeu à pergunta e encolheu os ombros com um sorriso afável.
- Sou Imran e quero ajudá-la. Diga-me onde quer ir e eu levá-la-ei lá.
- Primeiro diga-me o que quer.
- Informação sobre o xeque El-Tayer. As suas viagens, os seus planos para o futuro... Essas coisas.
- Eu não sei nada. Ele não fala comigo...
- É a sua esposa, não é?
- Sim, mas ele é o xeque e não fala dessas coisas com as mulheres.
Imran olhou para ela fixamente.
- Só o queremos a ele. Não queremos magoá-la. - Contudo, ela sabia que fariam tudo para apanhar Tair. Estava em perigo e ela, involuntariamente, ia complicar
mais as coisas. Ela sabia que Tair a procuraria e que tentaria salvá-la. Ela tinha de fazer alguma coisa para o proteger.
- Se o ajudar, deixar-me-á ir para o meu país?
- Eu próprio a levarei ao aeroporto - respondeu ele, com um sorriso.
Ela pensou que, efetivamente, levá-la-ia num caixão. Já sabia com quem estava a lidar. Tair tivera razão. Eram homens que fariam tudo pela sua causa.
- Amanhã, à noite, voltaremos para o deserto. Para Bur Junam.
- Sabe o caminho?
- Claro, passei umas semanas lá.
- Pode mostrar-nos.
- Sim.
- Espero que sim, porque se tentar enganar-nos, pagará caro.
Tair respirou fundo. Estava prestes a rebentar de raiva. Os seus homens não tinham protegido o palácio nem Tally. Os seus homens descuidaram-se, como ele. Tinham
raptado Tally e ele não estivera preparado. No entanto, sabia onde ela estava, sabia que os guias que Tally contratara eram amigos de Ashraf, o homem que a envenenara.
Não podia confiar em ninguém, mas as recriminações teriam de esperar, primeiro tinha de salvar Tally.
Na casa onde mantinham Tally, a porta abriu-se de repente e Tair apareceu.
- Estás bem? - perguntou-lhe ele, enquanto cortava as cordas que a atavam.
Ela assentiu e deixou-se cair contra o peito dele. Tair pegou nela ao colo e, ao sair da divisão, ela viu um corpo no chão. Tally sentiu um calafrio e olhou
para o outro lado.
- Não te ouvi chegar...
- Sou muito silencioso.
- Obrigada.
Ele emitiu um som que ela não conseguiu entender, mas sentiu que a apertava contra si. Sabia que ele a protegeria e pensou que a amava à sua maneira e que isso
era suficiente.
- Sabia que virias - sussurrou ela, com um nó na garganta.
- A sério?
Ela assentiu, com um redemoinho de sensações. O amor entre duas pessoas como eles era muito complicado. Não era o amor romântico da cultura ocidental. O amor
no deserto era áspero, brutal e complicado. O amor em Ouaha era perigoso, quase tão perigoso como o próprio Tair.
- Põe-me no chão - disse a Tair quando chegaram à rua e os homens os rodearam. - Consigo andar.
Tair pô-la no chão. Tinha um problema. Não podia cumprir a sua missão enquanto se sentisse como se sentira nas quarenta e oito horas passadas, as piores desde
que encontrara os corpos da sua mulher e do seu filho. Não podia ser o xeque El-Tayer enquanto Tally estivesse ali.
Os rebeldes de Baraka rondavam por ali e não só se dedicavam à pilhagem, também tinham assassinado mulheres, idosos e crianças. Ara e Zaki tinham estado entre
os mortos da matança de há sete anos, mas sete anos não eram nada quando se lembrava do horror que sentira quando voltou para a sua casa e encontrou o cadáver do
seu filho de cinco anos. Sabia no mais profundo do seu coração curtido que não podia voltar a passar por uma perda assim e não conseguia pensar, guiar ou liderar
ninguém enquanto Tally estivesse ali. Uma coisa era ter uma amante e outra ter uma esposa amada. Não podia correr o risco de ser um homem normal e mortal. Tinha
de continuar a ser um monstro.
Tinha de devolver Tally à sua casa, não à dele, mas à dela.
Tally agarrou-o pela mão enquanto se aproximavam dos carros blindados que os esperavam. Ele cerrou os dentes e não olhou para ela. Uma vez que tomara uma decisão,
já não a mudava.
Lutara contra a morte e a dor e aprendera que a força chega com a perda, o poder chega com o medo e a coragem com a falta de esperança.
As lágrimas de uma mulher não o comoviam se assim salvasse a sua vida, mesmo que não conseguisse salvar a dele.
CAPÍTULO
- Tair - sussurrou Tally.
- O quê? - apertou-lhe a mão com força.
- Estás furioso comigo?
- Não.
- Perfeito!
Porém, enquanto abriam caminho entre os homens armados para chegarem até ao todo-o-terreno, Tally lembrou-se do sonho que tivera na noite do seu casamento. O
sonho dos homens que arrebataram Tair. Contudo, estava com ela ali, dentro do carro, e tudo correria bem.
No caminho para Fez nada correu bem. Durante uma hora, Tair quase nem olhou para ela e não disse uma palavra. Ela sabia que não estava zangado com ela, estava
incomodado.
- Lamento - desculpou-se ela. - Lamento o que se passou.
- Não foi culpa tua.
Tally sabia que ela tivera parte de culpa, que a tinham usado para atrair Tair e que este tivera de voltar a salvá-la.
- Não ia levá-los a Bur Juman. Não teria...
- Eles matam as mulheres, Tally. Isto não é bom - o tom de voz de Tair foi gelado, como o de um desconhecido. - É o momento de voltares para os Estados Unidos.
Ela sentiu-se magoada e ofendida, mas não demonstrou.
- Não entendo.
Ele olhou para ela com uns olhos gélidos.
- Então, ouve-me. Não te quero aqui.
- Aqui... - ela agarrou-se à palavra como se fosse a sua salvação. - Mas amas-me...
- Não - a expressão de Tair endureceu ainda mais. - Não te amo. Já... me cansei de ti.
Era impossível. Ela era dele. Fora dele desde o primeiro dia. Tally sentia pânico, dor e incredulidade.
- Tair... - sussurrou ela, num tom de voz baixo de suplicante.
- Levo-te a Atiq e pôr-te-ei num avião. Iremos hoje.
- Hoje?
Tally não conseguia entendê-lo. Tinham passado uma noite a fazer amor, sem necessidade de palavras, onde as carícias diziam mais do que qualquer palavra que
pudessem dizer...
- Tair...
Tally nem sequer conseguia olhar para aqueles olhos gélidos que ela amava. No entanto, também não estava disposta a ceder.
- Não acredito. Algo te enfureceu. Devo ter feito algo que...
- Não. Tally, não fizeste nada. Trata-se de mim. Estou... aborrecido.
Tally sentiu falta de ar.
- Nunca te aborreci - replicou ela, com raiva. - Nunca!
- Agora estou aborrecido.
- Não é verdade. É possível que tenhas percebido que não consegues controlar-me.
- E tu podes indignar-te - olhou para ela outra vez com aquelas olhos impassíveis, - mas sei o que quero, o que sinto...
- O que sentes? Quando começaste a sentir?
- ...e está acabado. Quero outra coisa que não podes dar-me.
Foi como uma punhalada que atravessou o peito de Tally. Ficou sem ar nos pulmões e recuou dois passos com os olhos cheios de lágrimas.
- Tu quiseste que nos casássemos. Tu...
- Foi um arrebatamento, um erro. Anularei o casamento.
- Anulá-lo...
- Exigirá alguma papelada e algumas dádivas, mas em breve voltarás a ser solteira.
Tally teve de se agarrar ao pilar do quarto de Tair. Precisava de apoio.
- Digas o que disseres, fizemos votos e promessas que tenciono cumprir.
- Isto não é Hollywood - replicou ele implacavelmente, - não exige um final feliz. Isto é a realidade. Enganei-me ao pensar que podias viver aqui e que eras
a mulher certa para mim. És tão diferente, tão... complicada...
Tally olhou para ele sem encontrar as palavras.
- Não quero que tudo seja uma discussão - continuou ele, sem clemência. - Posso discutir com muitos homens. Não ages como uma mulher. Tentas sempre impor-te
e estou cansado. Aborrecido. É melhor acabar com isto agora, antes de tudo se complicar. Faz a mala. Naturalmente, recuperarás a máquina e todos os cartões de memória.
Naquela tarde, em silêncio, atravessaram as ruas buliçosas e jardins murados com palmeiras que se recortavam contra o céu azul. Ao chegarem ao aeroporto privado
destinado para os signatários, Tair acompanhou Tally até ao seu avião. Tentou agarrá-la pelo cotovelo para a ajudar a entrar, mas ela afastou-o. Tair também entrou
no avião para se certificar de que estava tudo em ordem e deixou a mala dela no carpete.
Tally conteve as lágrimas e pensou que até a sua mala parecia desolada.
- Chegarás a tua casa antes de dares por isso - declarou Tair. - Em breve, tudo te parecerá um pesadelo.
Ela abanou a cabeça. Não conseguiu dizer nada. Tair inclinou-se para lhe dar um beijo de despedida, mas ela recuou.
- Simplesmente, não era possível - sentenciou ele.
- Não me amas? - perguntou-lhe ela para, finalmente, dizer as palavras que a afligiam.
- Não - respondeu ele, depois de um longo silêncio.
Tally virou-se para não o ver ir-se embora, mas quando a portinhola do avião se fechou, sentiu que lhe tinham arrancado o coração.
Não a amava. Saber isso destruía-a.
Tally não conseguiu chorar durante o vôo, quando o táxi a levou do aeroporto para sua casa ou quando teve de lutar para abrir a porta do apartamento. No entanto,
quando entrou, acendeu a luz e deu uma olhadela àquele sítio onde não entrava há quase seis meses, perdeu o domínio de si própria.
Ele não a amava nem nunca amara. Fora um grande erro.
Durante a primeira semana não conseguiu pensar nem fazer nada. Passou quase todo o tempo na cama e a chorar. Não conseguia comer nem dormir, só conseguia chorar.
Como era possível que se tivesse livrado dela com aquela tranqüilidade? Ela chegara a pensar que ele a amava, talvez não fosse um amor eterno, mas era o suficiente
para a tornar dele.
Depois decidiu que tinha de parar de chorar e de sofrer. Tally levantou-se da cama e saiu para comprar comida. No dia seguinte, obrigou-se a ver um filme na
televisão. No fim-de-semana, saiu para dar um passeio, ainda que estivesse a chover. Passeou para evitar que lhe caíssem as lágrimas e conseguiu. Dez dias depois,
agarrou na máquina e foi tirar fotografias. No entanto, no décimo sétimo dia, Tally começou a ver as fotografias que imprimira e chegou à última que tirara em Ouaha.
Era uma fotografia perto do poço onde se escondera antes de Tair a capturar e a levar consigo. Tally olhou para ela com atenção e viu as crianças, mas no fundo via-se
um cavaleiro num cavalo. Era Tair. Sentiu-se em Ouaha, na sua terra de pedra e areia, com as noites intermináveis e o calor abrasador. Fechou os olhos e rasgou a
fotografia. Não queria recordar. Para o evitar, mandou um e-mail ao seu editor e disse que tinha algumas fotografias e que as enviaria. Depois, fechou-se no quarto
escuro para revelar as outras fotografias a preto e branco no estilo tradicional. O editor respondeu-lhe imediatamente. Queria ver as fotografias, estava ansioso
por ver o que ela fizera durante quatro meses no Norte de África e no Médio Oriente.
Tally entregou-se ao trabalho e encontrou consolo nas muitas horas que dedicou à sua arte. A noite e aos fins-de-semana, voltava a ter a sensação de perda. Não
sabia o que fazer e parecia-lhe estranho estar em casa. Depois de quase um ano a andar de um lado para o outro transformara-se numa verdadeira nômade. No entanto,
o que lhe parecia estranho não era Seattle, mas estar sozinha. Ela, a rapariga que decidira estar sozinha, já não queria isso. Tair conseguira, mas isso não significava
que tivesse de chorar por ele. Já parara de sofrer e já perdera demasiado tempo com um homem que não a amava nem a amaria.
Estava prestes a sair para tirar umas fotografias na praia quando chegou um mensageiro com um embrulho de Baraka. Sentou-se no último degrau e abriu o envelope.
E a caixa de veludo que estava lá dentro. Um brilho cor de esmeralda deslumbrou-a. Era um colar de esmeraldas e diamantes. Sobre o fundo de cetim havia um cartão.
Era do detestável Tair. Tally fechou a caixa. Não ia ficar com aquilo. Ainda que houvesse um problema. Ninguém devolveria aquele colar. Nenhuma empresa quereria
saber nada de um colar que valia mais de um quarto de milhão de dólares. Sobretudo, se a morada do xeque ficasse no meio do deserto do Sahara.
Tally, repentinamente, voltou a enfurecer-se. Em vez de afugentar as lembranças, todas, uma atrás da outra, foram passando pela sua cabeça. O seqüestro, o ataque
de asma, a tempestade de areia, as areias movediças, a faca, o veneno, Bur Juman e a primeira noite em que fizeram amor. Tally, para não chorar, engoliu o nó que
tinha na garganta.
Ao princípio, ela pensou que o odiaria para sempre e que nunca o entenderia, mas tudo mudara e muito. Deixou-se cair no sofá velho e confortável enquanto limpava
uma lágrima. Não queria saber dele. Não precisava de alguém que não a valorizava. Já passara demasiados anos sem se estimar. Não voltaria a fazê-lo. Não sentiria
pena de si própria. Ele não merecia. Ainda que fosse o seu marido e o homem por quem se apaixonara. Tally deu um murro no almofadão. Se ele não fosse tão arrebatador,
tão bonito, tão inteligente e um amante tão bom...
- Odeio-te, Tair! Odiar-te-ei toda a minha vida!
Não deviam ter-se divertido e muito menos ter uma relação sexual tão maravilhosa. É possível esquecer um homem aborrecido e tosco, mas não um sexy, misterioso,
poderoso, interessante e carinhoso.
Tinha de parar de pensar nele. Tinha de imaginar que não adormecera com o braço dele ao redor dela e com a face no seu peito, que não conhecia cada cicatriz
que ele tinha no peito, que não passara noites em branco preocupada com ele, com a sua temeridade quando se tratava de proteger alguém. Ele nunca pensava em si próprio
quando alguém estava em perigo e ela estivera em perigo.
Tally sentiu um formigueiro que ia crescendo no seu interior até o seu coração acelerar. Não sabia o que pensar. Seria possível que Tair a tivesse mandado para
longe não porque não a amava, mas antes pelo contrário? Sentiu arrepios. Tinha de ouvir o seu coração e o seu instinto. Ele amava-a. Levantou-se de um salto com
os olhos cheios de lágrimas. Tair afastara-a dali porque não queria que ela se magoasse, porque receava não conseguir protegê-la. Como não percebera antes?
Tally ficou a olhar pela janela. Era domingo e havia pouco trânsito. O sol do entardecer filtrava-se entre as nuvens e tingia de dourado os edifícios de tijolos.
Estava a salvo em Seattle, mas como estava ele? Onde estava? O que estava a fazer?
Ficou a olhar pela janela e, quando o sol se escondera, Tally soube o que fazer. Soube para onde tinha de ir. Soube que não seria fácil, mas era a mulher de
Tair e tinha de estar onde ele estivesse.
Dois vôos intermináveis, uma aterragem de helicóptero e uma viagem de camelo. Tally teve de reconhecer que as coisas não correram muito bem. Só estava há vinte
e quatro horas em Ouaha e já a tinham roubado e perdera-se entre a areia. Não era o regresso que imaginara e, além disso, Tair nem sequer sabia que ela estava lá.
Ninguém a salvaria. Tally soprou, afastou uma madeixa de cabelo da cara e endireitou a camisa que a protegia dos grãos de areia. Tinha tanta sede, que já via miragens.
Via palmeiras, bailarinas e guerreiros com armas. Pestanejou e olhou para o homem armado que tinha à sua frente. Tapou os olhos com a mão para afastar a miragem.
- Vai-te embora, não és real.
Tally ouviu um suspiro de desespero. O suspiro que daria um homem que sofre.
- Sou real e não me vou embora.
Tally tentou dar um salto, mas quase caiu de fraqueza.
Tair praguejou, pegou nela ao colo, sentou-a no seu cavalo e montou atrás dela. Cavalgaram mais de uma hora até chegarem ao acampamento mais lamentável que Tally
alguma vez vira.
- Este sítio continua a ser penoso - afirmou ela, enquanto Tair a descia do cavalo.
- Não tivemos tempo para plantar flores nem para pendurar as cortinas novas - replicou ele, enquanto rodeava a cintura de Tally com o braço.
Uma vez na tenda dele e sentada nos almofadões que havia sobre o tapete, Tair pediu-lhe uma resposta.
- O que raios fazes aqui?
Ela podia ter-se ofendido, mas conhecia Tair.
- Trouxe-te uma coisa - respondeu ela, enquanto tirava o colar do sutiã.
Tair olhou para as esmeraldas e para os diamantes.
- Vieste para me devolver isso.
- Sim.
- Porque não mandaste pelo correio?
Fora da tenda, os homens tinham acendido uma fogueira para preparar o jantar. Tally olhou para a cara aterradora de Tair à luz do fogo.
- Queria ter a certeza de que chegava - respondeu ela.
- Devo interpretar que não gostas de esmeraldas?
- E um colar lindo, mas não vou aceitar um presente assim. Rejeitaste-me e destruíste-me o coração, achas que vou aceitar um colar de um quarto de milhão de
dólares?
- Como sabes o seu valor? - Tair esboçou um sorriso.
- Mandei-o avaliar. Os correios não aceitariam um colar desse valor, pelo menos se a morada ficar no meio do deserto do Sahara. Imagina-os a explicar que o mensageiro
tem de ir a cavalo quatro horas para leste de Saroush e depois outras seis de camelo até encontrar o leito de um rio, depois, chegar até um pequeno palmeiral e,
uma vez lá, virar à direita e, ao fim de uma hora, conforme a velocidade, ir para norte e, se tiver sorte, verá uma fortaleza na rocha?
- As distâncias são exageradas, mas as referências são muito boas - Tair sorriu abertamente.
Daquela vez, o seu sorriso não ia servir de nada.
Conhecia-o muito bem. Fanfarronice, poder, intimidação e atração sexual. Era uma mistura mortífera.
- O problema é que não podes dar presentes como este às tuas ex-mulheres e esperar que não fiquem furiosas.
- Pareces zangada.
- Estou furiosa.
- Estás sempre furiosa.
- Porque pensas que sou tola!
- O que fiz desta vez?
- Tentaste comprar-me. Usas as esmeraldas para aliviar a tua culpa. Mandaste-me um colar, disseste-me que me divertisse e achas que vou ficar contente? Achas
que vou pensar que é um colar lindo, que o meu marido não me ama, mas manda-me umas jóias maravilhosas.
- Estás a dizer-me que não deu resultado?
- Estou a dizer-te que... - Tally olhou para ele e abanou a cabeça com incredulidade. - És um mentiroso, um manipulador, um...
Tally nem sequer tentou acabar a frase. Aproximou-se dele, segurou na cara dele e beijou-o apaixonadamente. Demoraram a afastar-se. A boca dele era arrebatadora
e tivera muitas saudades dele. No entanto, Tally afastou-se.
- Amas-me - disse a Tair, olhando para ele nos olhos.
- Não.
- Sim - Tally hesitou um instante. - Tair...
- O quê? - perguntou ele, num tom de inocência. Antes de Tally poder responder, ele estendeu uma mão e afastou-lhe umas madeixas da cara.
- Sim - afirmou ele.
Tally susteve a respiração sem parar de olhar para os seus olhos e para a estranha expressão do seu rosto.
- O que se passa? - perguntou-lhe Tally.
- Muitas coisas.
- Mas estou aqui, Tak.
- Eu sei e não consigo suportá-lo. Não conseguia suportar se te acontecesse alguma coisa. Posso perder os meus braços, as minhas pernas ou a minha vida, mas
não conseguiria perder-te.
- Nem o farás.
- Pode acontecer.
- Tair, sou mais forte do que parece. Não voltei a ter um ataque de asma desde que nos conhecemos.
- Tenho medo por ti. Tê-lo-ei todos os dias enquanto estiveres aqui.
- Não entendo, Tair...
- Ara morreu aqui. A minha esposa e o meu filho... Zaki estava nos meus braços enquanto morria, mas não consegui salvá-lo. Não conseguiria voltar a passar por
isso. Matar-me-ia e o que seria do meu povo?
- Tair.
- Achei que podia proteger-te, mas raptaram-te no meu jardim...
- Mas encontraste-me e salvaste-me.
- Tinha a certeza de que haveria sangue - Tair abanou a cabeça com ar de dor. - Sabia o que podiam fazer-te. Tinha a certeza de que chegaria tarde. És demasiado
bonita. Prefiro viver longe de ti e saber que estás viva do que ter-te aqui e saber que sofres.
- Eu sofro quando estou longe de ti.
- A morte é pior - Tair semicerrou os olhos e cerrou os dentes.
- Mas estar longe de ti também é uma morte.
- Não é justo arriscares-te tanto. É egoísta da minha parte...
- Egoísta é que me afastes de ti quando te amo e quero estar contigo. E egoísta que me peças que seja covarde e temerosa. Sou ousada e gosto de mudanças.
- Tally...
- Tair não tenhas medo por mim nem tomes decisões por mim. Conheço os riscos e sei o que me espera, mas prefiro estar um mês contigo do que toda uma vida sem
ti.
- Isso é ridículo - insistiu ele, num tom sombrio. Ela estendeu a mão para lhe tirar uma lágrima que tinha nas pestanas.
- Mas romântico.
- E uma tolice.
- E emocionante.
- Acabarás por te matar.
Tair segurou na cara dela e olhou para ela fixamente durante alguns instantes, como se procurasse a verdade, a resposta que não encontrava.
- Eu gosto de emoções, Tair - sussurrou ela.
- És impossível.
- Também gostas disso...
Ele inclinou a cabeça e beijou-a na testa, na face e na boca.
- És muito bonita. És perfeita, Tally.
- Chamaste-me Tally.
- E verdade. Em que estaria a pensar? - Ela precipitou-se sobre ele.
- Não sei, mas deixa-me ficar perto de ti, Tair. É a única coisa que peço.
- Pensava que eras uma mulher que não podia ficar muito tempo no mesmo sítio...
Ela pestanejou para conter as lágrimas. Aquele bárbaro fazia com que o seu coração acelerasse.
- Isso era antes de te conhecer.
- Es uma mulher diferente, não és?
- Hum...
- O que significa isso?
- Talvez não sejas assim tão diferente.
- Então, porque queres ficar aqui comigo?
- Porque é a prova definitiva, como o Evereste e o Amazonas juntos. Como poderia cansar-me de ti? Nunca conseguirei entender-te, mas prometo que tentarei sempre.
Os traços implacáveis de Tair tornaram-se incrivelmente amáveis e no seu olhar conseguia ver carinho. Acariciou-lhe a face, a boca e o queixo.
- Amo-te e preciso de ti. Estou perdido... - Tair calou-se como se não conseguisse acabar a frase, - sem ti. Vamos para casa.
Tally abraçou-o.
- Estou em casa.
Bjos!
 
Edilma
http://blogdosamigosdaedilma.blogspot.com/
--

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

Nenhum comentário:

Postar um comentário