CONTOS DE TERROR DE MIST�RIO E DE MORTE
01 NOTAS PRELIMINARES
02 BERENICE
03 MORELA
04 O VISION�RIO
05 O REI PESTE
06 METZENGERSTEIN
07 ELEONORA
08 O RETRATO OVAL
09 A MASCARA DA MORTE RUBRA
10 CORACAO DENUNCIADOR
11 O ENTERRAMENTO PREMATURO
12 O CAIXAO QUADRANGULAR
13 O DEMONIO DA PERVERSIDADE
14 RELEVACAO MESMERIANA
15 O CASO DO SR VALDEMAR
16 O BARRIL DE AMONTILLADO
1
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA
CONTOS DE TERROR DE MIST�RIO E DE MORTE
NOTAS PRELIMINARES
Se se deve a POE a cria��o do g�nero policial, com seus contos de racioc�nio e
dedu��o,
cabe-lhe tamb�m o m�rito de haver renovado e o romance de terror, de mist�rio e
de
morte, neles introduzindo o fator cient�fico que lhes daria certo cunho de
verossimilhan�a
de verdade. O g�nero j� existia e era fartamente difundido nas letras inglesas,
alem�s e
francesas. J� em 1764, com o seu Castelo de Otranto, Horace Walpole, romancista
ingl�s,
iniciava o g�nero que se chamou �romance negro" ou "romance g�tico� , talvez
porque
a
a��o se situava quase sempre em velhos e mans�es medievais. Clara Reeve
secundou-o.
Mais tarde Anne Radcliffe enchia seus livros de cenas e personagens
aterrorizantes.
Lewis imprimia-lhe a marca do satanismo e Maturin, na Fran�a levava-o �s raias
da
loucura e da fantasmagoria. Na Alemanha com Jo�o Paulo Richter perde-se ele pelo
vago
e pelo po�tico imaginoso, com Hoffmann atinge os limites do maravilhoso
fant�stico.
Na
pr�pria Am�rica do Norte, cuja literatura iniciava, Charles Brocken Brown
transplanta
para as terras do Novo Mundo as fantasmagorias e horrores dos romances de Anne
Radcliffe, completando-os com as obsess�es e os terrores �ntimos de seus
personagens.
A influ�ncia do "romance negro" foi imensa na Inglaterra, Fran�a e na Alemanha.
Pode-
se
encontr�-la em escritores Walter Scott, Byron, Shelley, cuja esposa, tamb�m
escritora,
criou o famoso personagem Frankenstein. O romantismo iria se aproveitar de muito
dos
cen�rios e das emo��es desencadeadas e at� do fant�stico e do maravilhoso de que
os
romancistas abusaram. Nodier, Victor Hugo, Jules Janin, Balzac n�o escaparam �
influ�ncia do g�nero.
Mas deve-se, na verdade, a Edgar Poe t�-lo renovado, e ter feito dele uma obra
de arte e
n�o um meio de desencadear terrores em leitores impression�veis tirando-lhes o
sono.
Deu-lhe em primeiro lugar uma concentra��o de for�a explosiva que n�o existia
nos
demais autores que dilu�am a for�a aterrorizante em romances enormes e por por
demais
atravancados de coisas in�teis, numa acumula��o de crimes e epis�dios pavorosos
que,
pelo pr�prio excesso, perdiam a verossimilhan�a e a possibilidade de
impressionar mais
fundamente o leitor.
Incapaz por natureza e pelas circunst�ncias de sua vida de escrever longos
romances,
Poe
aperfei�oou-se na est�ria curta, no cujo valor reside especialmente na sua for�a
concentrada. Mas o que distingue os seus contos do cl�ssico conto ou romance de
terror
� certa t�nica de autenticidade e de realidade que predomina nas suas est�rias.
Enquanto
os demais autores descreviam um exterior, um medo que provinha do mundo
sobrenatural, da fantasmagoria, um medo de cenografia teatral com al�ap�es,
fuma�a de
enxofre e satanases chifrudos, rasgando risadas arrepiantes, descrevia um medo
real, um
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medo que estava dentro do personagem, um medo que estava dentro dele pr�prio,
autor,
porque eram os seus terrores, as suas fobias, os seus recalques, reais,
aut�nticos e
verdadeiramente existentes, que ele transfundia em seus personagens, que eram
sempre
proje��es dele, Poe, e n�o criaturas tiradas do mundo objetivo. N�o h� conto
algum de
Poe que seja na na terceira pessoa. Ele � quem sempre fala, quem sempre ou quem
est�
presente para ouvir a confiss�o deste ou daquele personagem. E � o seu "eu"
repleto de
terrores, de press�gios, de complexos, de inibi��es, de males f�sicos e morais
que se
revela
nas suas est�rias de terror e de morte.
A morte da m�e, com redobradas hemoptises, deve ter impressionado fortemente a
sensibilidade do menino, que j� carregava consigo a hereditariedade alco�lica do
pai;
sua
condi��o de filho adotivo dos Allan, de futuro incerto, depois da morte de
Frances Allan
e
das desaven�as com John Allan; o v�cio do jogo e da embriaguez e mais tarde dos
estupefacientes; o medo que sempre o dominou, de ficar louco, pois a debilidade
mental
da irm� Ros�lia fazia-o temer que tamb�m ele perdesse a intelig�ncia aguda e
viva que
era
o seu orgulho, os ataques de advers�rios e invejosos; as condi��es de quase
mis�ria em
que quase sempre viveu; os seus complexos de origem sexual; tudo concorria para
exacerbar-lhe a sensibilidade e povoar-lhe a mente de terrores intensos e
alucina��es. O
medo, pois que existe nos seus contos � um medo real, aut�ntico, sentido,
arraigado.
O Prof. Boussoulas escreveu mesmo um trabalho a respeito do medo na obra de
Edgar
Poe. Maria Bonaparte, tamb�m, numa obra compacta e minuciosa, andou, com aquele
encarni�amento t�o pr�prio dos psicanalistas e com todos os exageros da escola
freudiana, a explicar todas as implica��es sexuais que existem nos contos de
Poe, apesar
de haver ele escrito uma obra que prima pela sua aus�ncia de sensualidade, pela
sua
castidade, pela sua avers�o as cenas de amor f�sico.
Mas em Poe sempre existiu uma dicotomia ps�quica. Sua intelig�ncia aguda,
racionalista,
em que se juntavam metaf�sica e f�sica intui��o po�tica em alto grau e
racioc�nio
matem�tico, frio e desapaixonado, sempre procurava manter-se alerta, tornando-o
capaz
de apreciar os desenvolvimentos de seus terrores, de suas fobias, no momento
mesmo
em que se produziam. Era como um m�dico que sentia e diagnosticava os seus
pr�prios
males. Essa dicotomia marca a personalidade de Poe. Foi sempre um dilacerado, um
homem dividido em duas naturezas: uma angelical e outra sat�nica.
Sua luta contra o v�cio da embriaguez, contra a dipsomania, foi luta de longos
anos,
Conhecia a sua fraqueza e condenava-a.Personagens conden�veis, fracos, viciosos,
de
seus contos nunca s�o exaltados ou elogiado, mas lamentados, dignos de d�, e
condenados a pagar com a morte os pr�prios v�cios. Essa luta de seus �eus"
encontra-se
fixada no seu conto "William Wilson", que ele mesmo considerava dos melhores que
produzira.
Os mist�rios da mente, o mist�rio da morte constituem o tema principal dos
contos de
Poe. Os terrores que ele descreve com intensidade e impressionante realismo s�o
terrores
que se geram na mente do personagem, e a realidade ambiente � vista atrav�s
desse
terror e por ele deformada. No seu livro Edgar Poe pour luim�me, o escritor
Jacques
Cabau assinala que "o conto de Poe � contr�rio do conto de terror cl�ssico. Em
lugar de
lan�ar um indiv�duo normal num universo inquietante, Poe larga um individuo
inquietante em um mundo normal. Nada acontece ao her�i, ele � que acontece ao
mundo. N�o � tomado por um horror exterior;n�o � o medo que dispara a neurose,
mas
a
neurose que suscita o medo. O her�i � medusado pela sua pr�pria vis�o. Uma vez
apanhado nos seus pr�prios mecanismos de fascina��o, � arrastado para a
engrenagem
da obsess�o".
3
Numa �poca em que come�aram a desenvolver-se o magnetismo e o espiritismo,
precisamente na Am�rica do Norte, n�o hesitou Poe em valer-se desses novos meios
de
criar sensa��o e n�o faltam em seus contos os casos de reencarna��o, hipnotismo,
ou
mesmerismo, como se costumava chamar na ocasi�o. Mas em todos ou quase todos h�
sempre um mergulho em certas profundezas da alma humana, em certos estados
m�rbidos da mente humana, em rec�nditos desv�os do subconsciente. Por isso os
psicanalistas lan�am-se com af� ao estudo da obra de Poe, porque nela encontram
exemplos a granel para ilustrar suas demonstra��es.
Independentemente, por�m, desses aspectos, o que h� nela � um talento narrativo
eficiente e impressivo, uma for�a criadora, realiza��o art�stica, que explicam o
ascendente enorme que em nossos dias exercem os contos de terror de Edgar Allan
Poe.
O.M.
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EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
BERENICE
Dicebant mihi sodalez, si sepulchrum amicae visifarem, curas meas aliquantulum
fore
levatas. (meus companheiros me asseguravam que visitado o t�mulo de minha amiga
conseguiria, em parte, al�vio para as minhas tristezas. N.T.)
Ebn ZAIAT
A DESGRA�A � VARIADA. O infort�nio da terra � multiforme. Arqueando-se sobre
o
vasto horizonte como o arco-�ris, suas cores s�o como as deste, variadas,
distintas e,
contudo, nitidamente misturadas . Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o
arco-
�ris!
Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da alian�a de
paz, uma semelhan�a de tristeza? E que, assim como na �tica o mal � uma
conseq��ncia
do bem, da mesma realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembran�a da
felicidade
passada � a ang�stia de hoje, ou as amarguras que existem agora t�m sua origem
nas
alegrias que podiam ter existido.
Meu nome de batismo � Egeu. O de minha fam�lia n�o revelarei. Contudo n�o h�
torres
no pa�s mais vetustas do que as salas cinzentas e melanc�licas do solar de meus
av�s.
Nossa estirpe tem sido chamada de uma ra�a de vision�rios. Em muitos pormenores
not�veis, do car�ter da mans�o familiar, nas pinturas do sal�o principal, nas
tape�arias
dos dormit�rios, nas cinzeladuras de algumas colunas de armas, por�m, mais
especialmente, na galeria de quadros no estilo da biblioteca e, por fim, na
natureza
muito
peculiar dos livros que ela continha, h� mais que suficiente prova a justificar
aquela
denomina��o.
Recorda��es de meus primeiros anos est�o intimamente ligados �quela sala e aos
seus
volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha m�e. Ali nasci. Mas �
ocioso
dizer
que n�o havia vivido antes, que a alma n�o tem exist�ncia pr�via. V�s negais
isto. N�o
discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, n�o procuro convencer os demais.
Sinto,
por�m, uma lembran�a de formas a�reas, de olhos espirituais e expressivos, de
sons
musicais, embora tristes; uma lembran�a que n�o consigo anular; uma
reminisc�ncia
semelhante a uma sombra, vaga, vari�vel, indefinida, inconstante; e como uma
sombra,
tamb�m, na impossibilidade de livrar-me dela, enquanto a luz de minha raz�o
existir.
Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que
parecia, mas
n�o era, o nada, para logo cair nas verdadeiras regi�es da terra das fadas, num
pal�cio
fant�stico, nos estranhos dom�nios do pensamento mon�stico e da erudi��o. N�o �
de
admirar que tenha lan�ado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que
tenha
consumido minha inf�ncia nos livros e dissipado minha juventude em devaneios;
mas �
estranho que ao perpassar dos anos e quando o apogeu da maturidade me encontrou
ainda na mans�o de meus pais, uma maravilhosa in�rcia tombado sobre as fontes da
minha vida maravilhosa, a total invers�o que se operou na natureza de meus
pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como vis�es, e
somente
como vis�es, enquanto que as loucas id�ias da terra dos sonhos tornavam-se, por
sua
vez, n�o o estofo de minha exist�ncia cotidiana, na realidade, a minha absoluta
e �nica
exist�ncia.
Berenice e eu �ramos primos e crescemos juntos, no solar paterno. Mas crescemos
diferentemente: eu, de m� sa�de e mergulhado na minha melancolia; ela, �gil,
graciosa e
exuberante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim,
estudos
do claustro. Eu, encerrado dentro do meu pr�prio cora��o e dedicado, de corpo e
alma, �
mais intensa e penosa medita��o . Ela, divagando descuidosa pela vida, sem
pensar em
sombras no seu caminho, ou no v�o silente das horas de asas lutuosas. Berenice!
Quando lhe invoco o nome... Berenice!, das ru�nas sombrias da mem�ria repontam
milhares de tumultuosas recorda��es. Ah, bem viva tenho agora a sua imagem
diante de
mim, como nos dias de sua jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante, por�m
fant�stica
beleza! Oh, s�lfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, n�iade � beira de suas
fontes! E
depois... depois tudo � mist�rio e uma est�ria que n�o deveria ser contada.
Uma doen�a...uma doen�a - uma fatal doen�a - soprou como um s�mum sobre seu
corpo.
E precisamente quando a contemplava, o esp�rito da metamorfose arrojou-se sobre
ela,
invadindo-lhe a mente, os h�bitos e o car�ter e, da maneira mais sutil e
terr�vel,
perturbando-lhe a pr�pria personalidade. Ai! O destruidor veio e se foi, e a
v�tima�onde
est� ela? N�o a conhecia... ou n�o mais a conhecia como Berenice!
Entre a numerosa s�rie de males acarretados por aquela fatal e primeira doen�a,
que
realizou t�o horr�vel revolu��o no ser moral e f�sico de minha prima, pode-se
mencionar,
como o mais aflitivo e o mais obstinado, uma esp�cie de epilepsia, que n�o
poucas
vezes,
terminava em catalepsia, muito semelhante � morte efetiva e da qual despertava
ela,
quase sempre, duma maneira assustadoramente subit�nea.
Entrementes, minha pr�pria doen�a aumentava, pois fora dito que para ela n�o
havia
rem�dio, e assumiu afinal um car�ter de monomania, de forma nova e
extraordin�ria,
que, hora em hora, de minuto em minuto, crescia em vigor e por fim veio a
adquirir
sobre
mim a mais incompreens�vel ascend�ncia. Esta monomania, se assim posso cham�-la,
consistia numa irritabilidade m�rbida daquelas faculdades do esp�rito que a
ci�ncia
metaf�sica denomina �faculdades da aten��o".
� mais que prov�vel n�o me entenderem. Mas temo, deveras, que me seja totalmente
imposs�vel transmitir � mente do comum dos leitores uma id�ia adequada daquela
nervosa intensidade da aten��o com que, no meu caso, as faculdades meditativas
(para
evitar a linguagem t�cnica) se aplicava e absorvia na contempla��o dos mais
vulgares
objetos do mundo.
Meditar infatigavelmente longas horas, com a aten��o cravada em alguma frase
fr�vola,
�
margem de um livro ou no seu aspecto tipogr�fico, ficar absorto, durante a
melhor parte
dum dia de ver�o em contempla��o duma sombra extravagante, projetada
obliquamente
sobre a tape�aria, ou sobre o soalho; perder uma noite observar a chama inquieta
duma
l�mpada, ou as brasas de um fog�o; sonhar dias inteiros com o perfume duma flor;
repetir monotonamente, alguma palavra comum, at� que o som, a repeti��o
freq�ente,
cesse de representar ao esp�rito a menor id�ia; perder toda a sensa��o de
movimento ou
de exist�ncia f�sica, em virtude de uma absoluta quieta��o do corpo, prolongada
e
obstinadamente mantida, tais eram as mais comuns e menos perniciosas aberra��es,
provocadas pelo estado de minhas faculdades mentais n�o, de fato, absolutamente
sem
exemplo, mas certamente desafiando qualquer esp�cie de an�lise ou explica��o.
Sejamos, por�m, mais expl�citos. A excessiva, �vida e m�rbida aten��o assim
excitada
por
objetos de seu natural triviais, n�o deve ser confundida, a prop�sito, com
aquela
propens�o � medita��o, comum a toda a humanidade e mais especialmente do agrado
das pessoas de imagina��o ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princ�pio
supor, um estado extremo, ou uma exagera��o de tal propens�o, mas prim�ria e
essencialmente distinta e diferente dela . Naquele caso, o sonhador, ou
entusiasta,
estando interessado por um objeto, geralmente n�o trivial, perde, sem o
perceber, de
vista
este objeto, atrav�s duma imensidade de dedu��es e sugest�es deles provindas,
at� que,
chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repletos de voluptuosidade,
descobre estar o incitamentum causa prim�ria de suas medita��es, inteiramente
esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente
fr�volo,
embora assumisse, por interm�dio de minha vis�o doentia, uma import�ncia irreal
e
refrat�ria. Poucas ou nenhumas reflex�es eram feitas e estas poucas voltavam,
obstinadamente , ao objeto primitivo como a um centro. As medita��es nunca eram
agrad�veis, e ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista
atingira
aquele interesse sobrenaturalmente exagerado que era a caracter�stica principal
da
doen�a. Em uma palavra: as faculdades da mente mais particularmente exercitadas
em
mim eram, como j� disse antes, as da aten��o, ao passo que no sonhador-acordado
s�o
as especulativas.
Naquela �poca, os meus livros, se n�o contribu�am eficazmente para irritar a
mol�stia,
participavam largamente, como � f�cil perceber-se, pela sua natureza imaginativa
e
inconseq�ente, das qualidades caracter�sticas da pr�pria doen�a. Bem me lembro,
entre
outros, do tratado do nobre italiano, Coelius Secundus Curio de amplitudine
beati regni
dei; da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus; do De Carne Christ�,
de
Tertuliano, no qual a paradoxal senten�a: Mortuus' est Dei filius; credible est
quia
ineptum est; et sepultus resurrex�t; certum est quia impossib�le est, absorveu
meu tempo
todo, durante semanas de laboriosa e infrut�fera investiga��o.
Dessa forma, minha raz�o, perturbada, no seu equil�brio por coisas simplesmente
triviais,
assemelhava-se �quele penhasco mar�timo de que fala Ptolomeu Hefesti�o, o qual
resistia
inabal�vel a quest�o da viol�ncia humana e ao furioso ataque das �guas e ventos,
mas
tremia ao simples toque da flor chamada asf�delo. E embora a um pensador
desatento
possa parecer fora de d�vida que a altera��o produzida pela lastim�vel mol�stia
no
estado
mortal de Berenice fornecesse motivos v�rios para o exerc�cio daquela intensa e
anormal
medita��o, cuja natureza tive dificuldade em explicar, tal n�o se deu
absolutamente.
Nos intervalos l�cidos de minha enfermidade, a desgra�a que a feria me dava
realmente
pena e me afetava fundamente o cora��o aquela ru�na total de sua vida alegre e
doce.
Por
isso n�o deixava de refletir muitas vezes, com amargura, nas causas prodigiosas
que
tinham t�o subitamente produzido modifica��o t�o estranha. Mas essas reflex�es
n�o
participavam da idiossincrasia de minha doen�a, tais como teriam ocorrido em
id�nticas
circunst�ncias, � massa ordin�ria dos homens. Fiel a seu pr�prio car�ter, meu
desarranjo mental preocupava-se com as menos importantes por�m mais chocantes
mudan�as operadas na constitui��o f�sica de Berenice, na estranha e mais
espantosa
altera��o de sua personalidade.
Posso afirmar que nunca amara minha prima, durante os dias mais brilhantes de
sua
incompar�vel beleza. Na estranha anomalia de minha exist�ncia, os sentimentos
nunca
me provinham do cora��o, e minhas paix�es eram sempre do esp�rito. Atrav�s do
crep�sculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia no
sil�ncio de
minha biblioteca, � noite, esvoa�ara ela diante de meus olhos e eu a
contemplara, n�o
como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; n�o como um
ser
da terra, um ser carnal, mas como a abstra��o de tal ser; n�o como uma coisa
para
admirar, mas para ser analisada; n�o como objeto para amar, mas como o tema da
mais
absoluta, embora inconstante, especula��o. E agora.. . agora eu estremecia na
sua
presen�a e empalidecia ao v�-la aproximar-se; contudo, lamentando amargamente
sua
deplor�vel decad�ncia, lembrei-me de que ela me havia amado muito tempo, e, num
momento fatal, falei-lhe em casamento.
Aproximava-se, enfim, o per�odo de nossas n�pcias quando, numa tarde de inverno
de
um daqueles dias intempestivamente c�lidos, sossegados e nevoentos, que s�o a
alma do
belo Alc�one, me sentei no mais rec�ndito gabinete da biblioteca. Julgava estar
sozinho,
mas erguendo a vista divisei Berenice, em p�, � minha frente.Foi a minha pr�pria
imagina��o excitada, ou a nevoenta influ�ncia da atmosfera, ou o crep�sculo
impreciso
do aposento, ou as cin�rias roupagens que lhe ca�am em torno do corpo, que lhe
deu
aquele contorno indeciso e tr�mulo? N�o sei diz�-lo. Ela n�o disse uma palavra e
eu por
forma alguma podia emitir uma s� s�laba.
Um g�lido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensa��o de intoler�vel ansiedade
me
oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma , e recostando-me na
cadeira,
permaneci por algum tempo im�vel e sem respirar, com os olhos fixos no seu
vulto. Ai!
sua magreza era excessiva e nenhum vest�gio da criatura de outrora se
vislumbrava
numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu
rosto.A
fronte era alta e muito p�lida, e de uma placidez singular. O cabelo, outrora
negro, de
azeviche, ca�a-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas
com
numerosos an�is, agora de um amarelo vivo, em chocante discord�ncia, pelo seu
car�ter
fant�stico , com a melancolia que lhe dominava o rosto. Os olhos, sem vida e sem
brilho,
pareciam estar desprovidos de pupilas.
Desviei involuntariamente a vista daquele olhar v�treo para olhar-lhe os l�bios
delgados
e
contra�dos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da
Berenice
transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus que eu nunca os
tivesse
visto, tendo-os visto, tivesse morrido!
O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia
sa�do
do
aposento. Mas do aposento desordenado do meu c�rebro n�o havia sa�do, ai de
mim!, e
n�o queria sair o espectro branco de seus dentes l�vidos. Nem uma mancha se via
em
sua superf�cie, nem uma pinta no esmalte, nem uma falha nas suas pontas, que
aquele
breve tempo de seu sorriso n�o houvesse gravado na minha mem�ria. Via-os agora,
mesmo mais distintamente do que os vira antes.
Os dentes!. . . Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, vis�veis,
palp�veis. diante
de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os p�lidos l�bios
contra�dos
sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terr�vel crescimento. Ent�o
desencadeou-se a plena f�ria minha monomania e em v�o lutei contra sua estranha
e
irresist�vel influ�ncia. Nos m�ltiplos objetos do mundo exterior, s� pensava
naqueles
dentes. Queria-os com fren�tico desejo. Todos os assuntos e todos os interesses
diversos
foram absorvidos por aquela exclusiva contempla��o.
Eles, somente eles estavam presentes aos olhos de meu esp�rito, e eles, na sua
�nica
individualidade, se tornaram a ess�ncia de minha vida mental. Via-os sob todos
os
aspectos. Revolvi-os em todas as dire��es. Observava-lhes as caracter�sticas.
Detinha-
me
em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conforma��o refletia na
altera��o de
sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhe em imagina��o, faculdades de sentimento
e de
sensa��o, e, do mesmo quando desprovidos dos l�bios, capacidade da express�o
moral.
Dizia-se com raz�o, de Mademoisselle Sall� que: tous ses pas �taient de
sentiments, e de
Berenice que: tous ser dentr �taien des id�es! (todos os seus passos eram
sentimentos...todos o seus dentes id�ias N.T.)
Ah, esse foi o pensamento absurdo que me destruiu , des id�es! Ah, essa era a
raz�o pela
qual eu os cobi�ava t�o loucamente . Sentia que somente a posse deles me poderia
restituir a paz para sempre, fazendo-me voltar a raz�o.E assim cerrou-se a noite
em
torno
de mim. Vieram as trevas demoraram-se, foram embora. E o dia raiou mais uma vez
e
os
nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensaram em torno de mim. E ainda
sentado estava, im�vel, naquele quarto solit�rio ainda mergulhado em minha
medita��o,
ainda com o dentes mantendo sua terr�vel ascend�ncia sobre mim, a flutuar com a
mais
viva e hedionda nitidez, entre as luzes mut�veis e as sombras do aposento.
Afinal,
explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consterna��o, ao qual se
seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos
lamentos de
tristeza e pesar.
Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de p�, na
antec�mara,
uma criada, toda em l�grimas que me disse que Berenice havia. . . morrido!
Sofrera um
ataque epil�ptico pela manh� e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta
para
receber seu morador e todos os preparativos do enterro terminados.
Com o cora��o cheio de ang�stia, oprimido pelo temor, dirigi com repugn�ncia,
para o
quarto de dormir da defunta. Era quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a
cada
passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um
criado,
estavam fechados sobre o ata�de e naquele ata�de, acrescentou ele, em voz baixa,
jazia
tudo quanto restava de Berenice.
Quem, pois, me perguntou se eu n�o queria ver o corpo? N�o vi moverem-se os
l�bios
de
ningu�m; entretanto, a pergunta realmente feita e o eco das �ltimas s�labas
ainda se
arrastava pelo quarto. Era imposs�vel resistir e, com uma sensa��o opressiva,
dirigi-me
a
passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas; mas,
deixando-as cair de novo, desceram sobre meus ombros e, separando-me do mundo
dos
vivos, me encerraram na mais estreita comunh�o com a defunta.
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro caracter�stico do ata�de me
fazia mal
e imaginava que um odor delet�rio exalava j� do cad�ver. Teria dado mundos para
escapar, para livrar-me da perniciosa influ�ncia mortu�ria, para respirar, uma
vez ainda,
o ar puro dos c�us eternos. Mas, faleciam-me as for�as para mover-me os joelhos
tremiam
e me sentia como que enraizado no solo contemplando fixamente o r�gido cad�ver,
estendido ao comprido no caix�o aberto.
Deus do c�u! Seria poss�vel? Ter-se-ia meu c�rebro transviado? Ou o dedo da
defunta se
mexera no sud�rio que a envolvia? Tremendo de inexprim�vel terror, ergui
lentamente
os
olhos para ver o cad�ver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um len�o, o qual n�o
sei
como, se desatara. Os l�bios l�vidos se torciam numa esp�cie de sorriso, e por
entre sua
moldura melanc�lica os dentes de Berenice, brancos, luzentes, terr�veis me
fixavam
ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente, do leito,
sem
pronunciar uma palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de
mist�rio, de
horror e de morte.
Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava s�.Parecia que
havia
pouco
despertara de um sonho confuso e agitado que era ent�o meia-noite e bem ciente
estava
de que, desde o p�r do sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, durante esse
t�trico
intervalo, eu n�o tinha qualquer percep��o positiva, ou definida. Sua
recorda��o, por�m,
estava repleta de horror, horror mais horr�vel porque vindo do impreciso, terror
mais
terr�vel porque sa�do da ambig�idade. Era uma p�gina espantosa do registro de
minha
exist�ncia , toda escrita com sombra e com medonhas e inintelig�veis
recorda��es.
Tentava decifr�-la, mas em v�o; e de vez em quando, como o esp�rito de um som
evadido,
parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher.
Eu
fizera
alguma coisa; que era, por�m? Fazia a mim mesmo tal pergunta em voz alta, e os
ecos
do
aposento me respondiam: Que era? a mesa, a meu lado, ardia uma l�mpada e perto
dela
estava uma caixinha. N�o era de forma digna de nota e eu freq�entemente a vira
antes,
pois pertencia ao m�dico da fam�lia; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa,
e por
que
estremecia eu ao comtempl�-la? N�o valia a pena importar-me com tais coisas e
meus
olhos por fim ca�ram sobre as p�ginas abertas de um livro, na senten�a nelas
sublinhada.
Eram as palavras singulares, simples, do poeta Ebn Zaiat: D�cebant m�hi sodales,
si
sepulchrum amicae visitarem, curas meus aliquantulum fore levatas. Porque ent�o,
ao
l�-las, os cabelos de minha cabe�a se eri�aram at� a ponta, e o sangue de meu
corpo se
congelou nas veias?
Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, p�lido como o brilhante de um
sepulcro, um criado entrou, na ponta dos p�s. Sua fisionomia estava transtornada
de
pavor e ele me falou numa voz tr�mula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi
frases
truncadas. Falou-me de um grito selvagem que perturbara o sil�ncio da noite
�todos
em
casa se reuniram. . . sa�ram procurando em dire��o ao som. E depois sua voz se
tornou
penetrantemente distinta, ao falar-me de um t�mulo violado. . . de um corpo
desfigurado,
desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda ainda vivia!
Apontou para minhas roupas; estavam sujas de co�gulos de sangue. Eu nada falava
e ele
pegou-me levemente na m�o; gravavam-se nela os sinais de unhas humanas. Chamou-
me
a aten��o para certo objeto encostado � parede: era uma p�.
Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas n�o
pude
arromb�-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas m�os e caiu com for�a,
quebrandose
em peda�os. E dela, com um som tintinante, rolaram v�rios instrumentos de
cirurgia
dent�ria, de mistura com trinta e duas coisas pequenas, como que de marfim, que
se
espalharam por todo o assoalho.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MISTERIO E MORTE
MORELA
Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e �nico
PLAT�O: Symposf
ERA COM SENTIMENTOS de profunda embora singular�ssima afei��o que eu
encarava
minha amiga Morela. Levado a conhec�-la por acaso, h� muitos anos, minha alma,
desde
nosso primeiro encontro ardeu em chamas que nunca antes conhecera; n�o eram,
por�m
as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu esp�rito a convic��o
crescente
de que eu n�o podia, de modo algum, ouvidar de sua incomum significa��o, ou
regularlhe
a vaga intensidade. Conhecem-nos, por�m, e o destino conduziu-nos juntos ao
altar;
mas nunca falei de paix�o ou pensei em amor. Ela, contudo, evitava companhias
e,ligando-se s� a mim, fazia-me feliz. Maravilhar-se � uma felicidade; e � uma
felicidade
sonhar.
A erudi��o de Morela era profunda. Asseguro que seus talentos n�o eram de ordem
comum, sua for�a de esp�rito era gigantesca. Senti-a e, em muitos assuntos,
tornei-me
seu aluno. Logo, porque verifiquei que, talvez por causa de sua educa��o, feita
em
Presburgo, ela me apresentava numerosos desses escritos m�sticos que usualmente
s�o
considerados como o simples sedimento da primitiva literatura germ�nica. Por
motivos
que eu n�o podia imaginar eram essas obras o seu estudo favorito e constante. E
o fato
que, com o correr do tempo, se tornassem elas tamb�m o meu pode ser atribu�do �
simples mas eficaz influ�ncia do costume do exemplo.
Em tudo isso, se n�o me engano, minha raz�o tinha pouco a fazer. Minhas
convic��es,
ou me desconhe�o, de modo algum eram conformes a um ideal, nem se podia
descobrir
qualquer tintura das coisas m�sticas que eu lia, a menos que esteja grandemente
enganado nos meus atos ou nos meus pensamentos.
Persuadido disso , abandonei-me implicitamente � dire��o de minha esposa e
penetrei,
de
cora��o resoluto, no labirinto de seus estudos ent�o... ent�o, quando,
mergulhado nas
p�ginas nefastas senti um esp�rito nefasto acender-se dentro de mim. Morela
colocava a
m�o fria sobre a minha e extra�a das cinzas de uma filosofia morta algumas
palavras
profundas e singulares, cujo estranho sentido as gravava a fogo em minha
mem�ria.
� Santa Maria! Volve o teu olhar t�o belo, de l� dos altos c�us, do teu trono
sagrado,
para
a prece fervente e para o amor singelo que te oferta, da terra, o filho do
pecado. Se �
manh�, meio-dia, ou sombrio poente, meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria!
S�,
pois, comigo, � M�e de Deus, eternamente, quer no bem ou no mal, na dor ou na
alegria!
No tempo que passou, veloz, brilhante, quando nunca nuvem qualquer meu c�u
escureceu, temeste que me fosse a inconst�ncia empolgando e guiaste minha alma a
ti,
para o que � teu. Hoje, que o temporal do destino ao passado e sobre o meu
presente
espessas sombras lan�a, fulgure ao menos meu Futuro, iluminado por ti, pelo que
� teu,
na mais doce esperan�a! �
E ent�o, hora ap�s hora, eu me estendia a seu lado, imergindo-me na m�sica de
sua voz,
at� que, afinal, essa melodia se maculasse de terror; ent�o ca�a uma sombra
sobre minha
alma, eu empalidecia, tremia internamente �queles sons que n�o eram da terra.
Assim a
alegria subitamente se desvanecia no horror e o mais belo se transformava no
mais
hediondo, como o Hinnon se transformou em Geena.
� necess�rio fixar o car�ter exato dessas inquisi��es que, irrompendo dos
volumes
mencionados, formaram, por longo tempo, quase que �nico objeto de conversa��o
entre
mim e Morela . Mas os instru�dos no que se pode denominar moralidade teol�gica
facilmente o conceber�o e os leigos, de qualquer modo, n�o o poderiam entender.
O
extravagante pante�smo de Fichte; a palingen�sia modificada de Pit�goras; e,
acima de
tudo, as doutrinas de Identidade, como as imp�e Schelling, eram esses geralmente
os
assuntos de discuss�o que mais beleza apresentavam � imaginativa Morela .
Aquela identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo,
como
consistindo na conserva��o do ser racional. E que por pessoa compreendemos uma
ess�ncia inteligente dotada de raz�o, e desde que h� uma consci�ncia que sempre
acompanha o pensamento, � ela que nos faz, a todos, sermos o que chamamos n�s
mesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos e dando-nos nossa
identidade
pessoal. Mas o indiv�duationis, a no��o daquela identidade que, com a morte est�
ou
n�o
perdida para sempre, foi para mim, em todos os tempo quest�o de intenso
interesse, n�o
s� por causa da natureza embara�osa e excitante de suas conseq��ncias como pela
maneira acentuada e agitada com que Morela as mencionava.
Na verdade, por�m, chegara o tempo em que o mist�rio da conduta de minha esposa
me
oprimia como um encantamento. Eu n�o podia suportar mais o contato de seus dedos
l�vidos, nem o grave de sua fala musical, nem o brilho de seus olhos
melanc�licos. E ela
sabia de tudo isso, por�m n�o me repreendia; consciente de minha fraqueza ou de
minha
loucura, e, a sorrir chamava-a Destino.
Parecia tamb�m consciente de uma causa, para mim ignota, do crescente alheamento
de
minha amizade; me dava sinal ou mostra da natureza disso. Era, contudo, mulher e
fenecia dia a dia. Por fim, uma rubra mancha se fixou, firmemente, na sua face e
as
veias
azuis de sua fronte p�lida se tornaram proeminentes; por instantes minha
natureza se
fundia em piedade mas, a seguir, meu olhar encontrava o brilho de seus olhos
significativos e minha alma enfermava e entontecia, com a vertigem de quem
olhasse
para
dentro de qualquer horr�vel e insond�vel abismo.
Poderei dizer ent�o que ansiava, com desejo intenso e devorador pelo momento da
morte
de Morela ? Ansiei; mas o fr�gil esp�rito agarrou-se � sua mans�o de argila por
muitos
dias, por muitas semanas, por meses penosos, at� que meus nervos torturados
obtiveram
dom�nio sobre meu c�rebro e me tornei furioso com a com demora e com o cora��o
de
um
inimigo, amaldi�oei os dias, as horas e os amargos momentos que pareciam
ampliar-se
cada vez mais, � medida que sua delicada vida declinava como as sombras ao do
morrer
do dia.
Numa tarde de outono, por�m, quando os ventos silenciavam nos c�us, Morela
chamou
me a seu leito. Sombria n�voa cobria a terra e um resplendor ardia sobre as
�guas e
entre
as bastas folhas de outubro na floresta, como se um arco-�ris tivesse ca�do do
firmamento.
- Este � o dia dos dias - disse ela, quando me aproximei. O mais belo dos dias
para viver
ou para morrer. � um belo dia para os filhos da terra e da vida... ah, e mais
belo ainda
para as do c�u e da morte!
Beijei-lhe a fronte, e ela continuou:
- Vou morrer e, no entanto, viverei.
- Morela !
- Jamais existiram esses dias em que podias amar-me �mas aquela a quem na vida
aborreceste, depois de morta a adorar�s.
- Morela !
- Repito que vou morrer. Mas dentro de mim h� um penhor desta afei��o - ah, qu�o
pequena! - que deveste sentir por mim, Morela . E quando meu esp�rito partir, a
crian�a
viver� - teu filho e meu filho, o filho de Morela. Mas os teus dias ser�o dias
de pesar,
que
� a mais duradoura das impress�es, do mesmo modo que o cipreste � a mais
resistente
das �rvores. Porque as horas da tua felicidade passaram e alegria n�o se colhe
duas
vezes
numa vida, como as rosas de Paesturo duas vezes num ano. N�o jogar�s mais, com o
tempo o jogo do homem de Teos, mas, n�o conhecendo o mirto e a vinha, levar�s
contigo,
por toda parte, a tua mortalha como o mu�ulmano a sua em Meca.
- Morela! - exclamei. Morela ! como sabes disto?
Ela, por�m, voltou o rosto sobre o travesseiro. Leve tremor agitou-lhe os
membros e
assim ela morreu, n�o mais ouvindo eu a sua voz. Entretanto, como o predissera
ela, seu
filho, a quem, ao morrer, dera a vida, que s� respirou quando a m�e deixou de
respirar,
seu filho, uma menina, sobreviveu. E, estranhamente, cresceu em estatura e
intelig�ncia,
vindo a tornar-se a semelhan�a perfeita daquela que se fora. E eu a amava com um
amor
mais fervoroso acreditava fosse poss�vel sentir por qualquer criatura terrestre.
Mas dentro em pouco o c�u dessa pura afei��o se enegreceu e melancolia, o
horror, e a
ang�stia nele se acastelaram como nuvens. Disse que a crian�a crescia,
estranhamente,
em estatura e intelig�ncia. Estranho na verdade, foi o r�pido crescimento de seu
tamanho
corporal, mas terr�veis, oh!, terr�veis eram os tumultuosos pensamentos que
sobre mim
se
amontoaram, enquanto observava o desenvolvimento de sua mentalidade. Poderia ser
de
outra forma, diariamente, descobria eu nas concep��es da crian�a as energias
adultas e
as faculdades da mulher? quando as li��es da experi�ncia brotavam dos l�bios da
inf�ncia? e quando eu via a sabedoria ou as paix�es da maturidade cintilarem a
cada
instante nos olhos grandes e meditativos? Quando, repito, quando tudo se tornou
evidente aos meus sentidos aterrados, quando n�o o pude ocultar � minha alma nem
repeli-lo dessas percep��es, tremiam ao receb�-lo, h� de que admirar-se que
suspeitas
de
natureza terr�vel e excitante se introduzissem no meu esp�rito, ou que meus
pensamentos
se tenham reportado, com horror, �s est�rias espantosas e �s arrepiantes teorias
da
falecida Morela?
Arranquei � curiosidade do mundo uma criatura a quem o destino me compeliu a
adorar
e, na rigorosa reclus�o de meu lar, velava com agoniante ansiedade tudo quanto
concernia � bem-amada.
E enquanto rolavam os anos e eu contemplava, dia a dia, o seu rosto santo, suave
e
eloq�ente, e estudava-lhe as formas maturescentes, dia ap�s dia descobria novos
pontos
de semelhan�a entre a crian�a e sua m�e, a melanc�lica e a morta. E a todo
instante se
tornavam mais negras aquelas sombras de semelhan�a e mais completas, mais
definidas,
mais inquietantes e mais terrivelmente espantosas no seu aspecto. Porque n�o
podia
deixar de admitir que o sorriso era igual ao de sua m�e; mas essa identidade
demasiado
feita fazia-me estremecer; n�o podia deixar de tolerar que seus olhos fossem
como os de
Morela ; mas eles tamb�m penetravam vezes nas profundezas de minha alma com a
mesma intensa e desnorteante expressividade dos de Morela . E no contorno de sua
fronte elevada, nos cachos de seu cabelo sedoso, nos seus dedos p�lidos que nele
mergulhavam, no timbre musical e triste de sua fala e sobretudo oh! acima de
tudo, nas
frases e express�es da morta sobre os l�bios da amada e da viva, encontrava eu
alimento,
um pensamento horrendo e devorador - para um verme que n�o queria morrer.
Assim se passaram dois lustros de sua vida, e, contudo, permanecia minha filha
sem
nome sobre a terra. "Minha filha" e �meu amor" eram os apelativos usualmente
ditados
por minha afei��o de pai, e a severa reclus�o de sua vida impedia qualquer outra
rela��o.
O nome de Morela acompanhara-a na morte. Da m�e falara � filha; era imposs�vel
falar.
De fato, durante o breve de sua exist�ncia, n�o recebera esta �ltima impress�es
do
mundo exterior, exceto as que lhe puderam ser proporcionadas pelos estreitos
limites de
seu retiro. Mas afinal a cerim�nia do batismo sentou-se a meu esp�rito, naquele
estado
de
agita��o e enervamento como uma liberta��o imediata dos terrores do meu destino.
E na
fonte batismal hesitei na escolha de um nome. E numerosas denomina��es de
sabedoria
e
de beleza, de tempos antigos e modernos, de minha e de terras estrangeiras,
vieram
amontoar-se nos meus com outras tantas lindas denomina��es, de nobreza, de
ventura,
de bondade. Quem me impeliu ent�o a perturbar a mem�ria da sepultada? Que
dem�nio
me incitou a suspirar aquele som e simples lembran�a sempre fazia fluir, em
torrentes, o
sangue das fontes do cora��o? Que esp�rito maligno falou dos recessos minha alma
quando, entre aquelas sombrias naves e no sil�ncio da noite, eu sussurrei aos
ouvidos do
santo homem as s�labas "Morela? Quem, sen�o o dem�nio, convulsionou as fei��es
de
minha filha e sobre elas espalhou tons de morte, quando, estremecendo ao aquele
som
quase inaud�vel, volveu os olhos l�mpidos da terra para o c�u e, caindo
prostrada sobre
as
negras lajes de nosso sol�u de fam�lia, respondeu: "Estou aqui!"?
Distinta, fria e calmamente precisos, esses t�o poucos e t�o simples sons
penetraram-me
nos ouvidos e, depois, como chumbo retido, rolaram, sibilantes, dentro do meu
c�rebro.
Anos e anos podem-se passar, mas a lembran�a daquela �poca, nunca. Desconhecia
eu
de fato as flores e a vinha, mas o ac�nito e o cipreste ensombraram-me noite e
dia. E
n�o
guardei mem�ria de tempo ou de lugar, e as estrelas da minha sorte sumiram do
c�u e
desde ent�o a terra se tornou tenebrosa e suas figuras passaram perto de mim
como
sombras esvoa�antes, e entre elas s� uma vislumbrava: Morela . Os ventos do
firmamento
somente um nome murmuravam aos meus ouvidos e o marulho das ondas sussurra
"Morela!" Ela, por�m, morreu e com minhas pr�prias m�os levei-a ao t�mulo. E ri,
uma
risada longa e amarga, quando n�o achei tra�os da primeira Morela no sepulcro em
que
depositei a segunda.
1
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O VISION�RIO
Fica a esperar-me ali! n�o deixarei de te encontrar nesse profundo vale. HENRY
King,
Bispo de Chichester: Elegia sobre a morte de sua mulher.
MALFADADO E MISTERIOSO HOMEM! Desnorteado no esplendor de sua pr�pria
fantasia
e tombado nas chamas de tua pr�pria juventude! De novo, na imagina��o eu te
contemplo! Mais uma vez teu vulto se ergueu diante de mim... N�o, n�o como te
encontras, no frio vale, na sombra!, mas como deverias estar, dissipando uma
vida de
sublime medita��o naquela cidade de sombrias vis�es, tua pr�pria Veneza, que �
um
Eliseu do mar querido das estrelas, onde as amplas janelas dos pal�cios
paladinos
contemplam, com profunda e amarga reflex�o, os segredos de suas �guas
silenciosas.
Sim, repito-o como deverias estar! H� seguramente outros mundos que n�o
este�outros
pensamentos que n�o os pensamentos da multid�o... outras especula��es que n�o as
especula��es dos sofistas. Quem discutir� ent�o tua conduta? Quem te censurar�
por
tuas horas vision�rias, ou denunciar� aquelas ocupa��es como uma perda de vida,
quando eram apenas a superabund�ncia de tuas energias eternas?.
Foi em Veneza, por baixo da arcada coberta que chamam a Ponte di Sospiri que
encontrei, pela terceira ou quarta vez, a pessoa de quem falo. � com uma confusa
recorda��o que trago � mente as circunst�ncias daquele encontro. Contudo,
recordo...
ah,
como poderia esquecer!. .. a profunda treva da meia-noite, a Ponte dos Suspiros,
a
beleza
de mulher e o G�nio Rom�ntico que palmilhava abaixo e acima o estreito canal.
Era uma noite de ins�lita escurid�o. O grande sino da Piazza havia soado a
quinta hora
da noite italiana. O Largo do Campanile jazia silente e deserto e as luzes, no
velho
Pal�cio Ducal, iam rapidamente morrendo. Voltava eu para casa da Piazzetta,
atrav�s do
Canal. Mas, quando minha g�ndola chegou em frente � boca do canal San Marco, uma
voz feminina irrompeu subitamente os seus recessos, dentro da noite, num grito
selvagem, hist�rico e intermin�vel. Abalado pelo grito, ergui-me, enquanto o
gondoleiro,
deixando deslizar seu �nico remo, perdeu-o naquela escurid�o de breu sem nenhuma
possibilidade de recuper�-lo. Em conseq��ncia, ficamos ao sabor da corrente, que
ali
existe vinda do grande para o pequeno canal. Como um imenso condor de penas de
areia
�ramos vagarosamente levados para a Ponte dos Suspiros quando milhares de
archotes
acenderam-se nas janelas e nas escadarias do Pal�cio Ducal, transformando
imediatamente toda aquela profunda treva num dia l�vido e sobrenatural..
Uma crian�a, escorregando dos bra�os de sua pr�pria m�e, tinha ca�do de uma das
janelas de cima do elevado edif�cio dentro do fundo e sombrio canal. As �guas
tranq�ilas
haviam-se fechado placidamente, sobre sua vitima; e, embora minha g�ndola, fosse
a
2
�nica � vista, muitos nadadores ousados j� se achavam a �gua procurando em v�o,
na
superf�cie, o tesouro que, infelizmente apenas deveria ser encontrado dentro do
abismo.
Sobre as negras lajes de m�rmore, � entrada do pal�cio, e a poucos passos acima
da
�gua, estava de p� um vulto que ningu�m que o visse poderia da� por diante
esquecer.
Era a Marquesa Afrodite, adorada por Veneza inteira, a mais alegre das criaturas
alegres,
a mais bela onde todas eram belas, mas tamb�m a jovem esposa do velho e
intrigante
Mentoni e a m�e daquela linda crian�a, seu primeiro e �nico filho, que agora,
mergulhado
nas �guas l�bregas, pensava cheio de amargura o cora��o, nas doces car�cias de
sua m�e
e exauria sua pequenina vida lutando por cham�-la.
Ela permanecia s�. Seus pequeninos p�s nus e prateados cintilavam no espelho
negro do
m�rmore sobre que pousavam. Seu cabelo, ainda mal desnastrado dos seus enfeites
de
baile para o sono da noite, enrolava-se, entre um chuveiro de diamantes, em
torno de
sua
cabe�a de linhas cl�ssicas, em cachos como os de jacinto em bot�o. Uma t�nica de
gaze,
branca como a neve, parecia ser a �nica coisa que lhe cobria as formas
delicadas; mas o
ar daquela meia-noite de ver�o era quente, soturno e silencioso, e nenhum
movimento,
naquela forma estatu�ria, agitava mesmo as dobras daquele vestu�rio vaporoso,
que a
envolvia como o pesado m�rmore envolve N�obe. Contudo - estranho � diz�-lo! Seus
grandes e brilhantes olhos n�o estavam voltados para baixo, para aquela
sepultura onde
jazia mergulhada sua mais brilhante esperan�a, mas fixavam-se numa dire��o
completamente diversa. A pris�o da Velha Rep�blica �, penso eu, o mais majestoso
edif�cio de toda Veneza. Mas como poderia aquela mulher olhar t�o fixamente para
ele,
quando abaixo dela estava-se extinguindo seu pr�prio filho?
Aquele sombrio e l�gubre nicho tamb�m escancarava justamente diante da janela de
seu
quarto. Que, pois, poderia haver nas suas sombras, na sua arquitetura, nas suas
cornijas solene, cingidas de hera que a Marquesa de Mentoni n�o houvesse
contemplado
antes, milhares de vezes? Absurdo! Quem n�o se lembra qua em ocasi�es como esta,
os
olhos, como um espelho partido, multiplicam as imagens de seu pesar e v�em, em
numerosos lugares distantes, a desgra�a que est� ali pr�xima?
Muitos passos acima da marquesa e sob o arco do port�o que dava para a �gua,
estava
de
p�, em trajes de gala, a pr�pria figura de s�tiro de Mentoni. Ele se achava, na
ocasi�o,
ocupado em arranhar uma guitarra e parecia mortalmente aborrecido quando, a
intervalos dava ordens para o salvamento de seu filho. Estupefato e horrorizado,
eu
mesmo n�o tinha for�as para mover-me da posi��o ereta que tomara ao ouvir o
primeiro
grito e devo ter apresentado � vista do grupo agitado, um aspecto espectral e
sinistro
quando l�vido e de membros r�gidos, flutuava entre eles naquela funer�ria
g�ndola.
Todos os esfor�os resultaram v�os. Muitos dos mais en�rgicos na busca tinham
relaxado
suas dilig�ncias e entregavam-se a um sombrio pesar . Parecia haver pouca
esperan�a de
salvar a crian�a (e qu�o muito menos para a m�e!). Mas ent�o, do interior
daquele
escuro
nicho j� mencionado, como fazendo parte da pris�o da Velha Rep�blica - e
fronteiro ao
postigo da marquesa, um vulto, envolto numa capa adiantou-se para dentro do
c�rculo
de luz e detendo-se por um instante � beira da descida vertiginosa, mergulhou de
cabe�a
para baixo no canal.
Quando, um instante depois, ele se ergueu com a crian�a ainda viva e a respirar
entre
seus bra�os sobre as lajes de m�rmore ao lado da marquesa, sua capa, pesada da
�gua
que a embebia , desabotoou-se, e, caindo em pregas, em volta de seus p�s,
descobriu aos
olhos dos espectadores, tomados de surpresa, a figura graciosa de um homem muito
jovem, cujo nome repercutia na maior parte da Europa. O salvador, nenhuma
palavra
pronunciou. Mas a marquesa... Receber� agora seu filho! Apert�-lo-� de encontro
ao
cora��o, abra�ar-se-� estreitamente ao seu pequeno corpo e o cobrir� de
car�cias! Mas
ai!
3
os bra�os de outrem tomaram-no das m�os do estrangeiro; os bra�os de outrem
tinhamno
levado, tinham-no conduzido para longe, despercebidamente, para dentro do
pal�cio!
E a marquesa?.
Seus l�bios, seus lindos l�bios tremem; o pranto inunda-lhe os olhos, naqueles
olhos
que,
como o acanto de Pl�nio, eram "macios e quase l�quidos". Sim, o pranto inunda
aqueles
olhos e - vede! - aquela mulher treme at� a alma. . . a est�tua recuperou a
vida! O palor
do rosto marm�reo, a marm�rea turgesc�ncia dos seios e a alvura imaculada dos
p�s
marm�reos vemo-los, de s�bito, enrubescidos por uma onda de incoerc�vel
vermelhid�o.
E um leve tremor lhe agita as delicadas formas como a brisa em N�poles agita os
l�rios
prateados que brotam dentre a relva.
Porque enrubesceu aquela mulher? Para esta pergunta n�o h�, resposta, exceto
que,
tendo deixado, com a pressa �vida e com o terror de um cora��o de m�e a
intimidade da
sua alcova, tinha-se esquecido de prender os delicados p�s nas sand�lias e
completamente deixado de lan�ar sobre seus ombros venezianos aquela t�nica que
eles
mereciam. . . Qual outra poss�vel raz�o haveria para que ela enrubescesse? para
o
lampejo selvagem daqueles olhos fascinantes? para o ins�lito tumulto daquele
seio
arfante? para a convulsa press�o daquela m�o tr�mula, aquela m�o que caiu,
acidentalmente, quando Mentoni voltou para dentro do pal�cio, sobre a m�o do
estrangeiro? Que raz�o poderia haver para o som baixo, singularmente baixo,
daquelas
inintelig�veis palavras que a mulher apressadamente murmurou, ao dizer-lhe
adeus?
Venceste - disse ela, ou os murm�rios da �gua me enganaram. - Venceste... Uma
hora
depois do sol nascer... encontraremos... est� combinado!
O tumulto se extinguira. As luzes se apagaram dentro do pal�cio e o estrangeiro,
a quem
eu agora reconhecia, ficara s� sobre as lajes. Tremia inconcebivelmente agitado
e seus
olhos buscavam ao redor uma g�ndola. N�o pude deixar de oferecer-lhe os servi�os
da
minha e ele aceitou o obs�quio. Tendo arranjado um remo perto do port�o,
seguimos
juntos at� sua resid�ncia, enquanto ele rapidamente, recuperava o dom�nio de si
mesmo
e
se referia ao nosso antigo e leve conhecimento, em termos aparentemente de
grande
cordialidade.
H� alguns pontos a respeito dos quais tenho prazer em ser minucioso. A pessoa do
estrangeiro - deixe-me assim chamar quem para todo mundo era ainda um
estrangeiro -,
a pessoa do estrangeiro � um desses pontos. Seu porte era mais abaixo do que
acima da
altura m�dia, embora em momentos de intensa paix�o seu corpo como que se
expandia
e
desmentia o asserto. A fraca e quase delgada conforma��o de seu vulto era mais
adequada � pronta atividade que demonstrara na Ponte dos Suspiros do que � for�a
herc�lea que, se sabe, ele revelara sem esfor�os, em ocasi�es de mais perigosa
emerg�ncia. Com a boca e o queixo de um deus, olhos estranhos, selvagens,
amplos,
l�quidos, cujas sombras variam do puro castanho ao intenso e brilhante azeviche;
bastos
cabelos negros e cacheados, dentre os quais brilhava uma fronte, a intervalos,
toda
luminosa e eb�rnea, uma fronte de ins�lita amplitude; eram fei��es estas, cuja
regularidade cl�ssica eu jamais vira, a n�o ser talvez as fei��es marm�reas do
Imperador
C�modo.
Contudo sua fisionomia n�o era dessas que os homens fixam para sempre . N�o
tinha
express�o caracter�stica, nem predominante, para se gravar na mem�ria; uma
fisionomia
vista e instantaneamente esquecida, mas esquecida com um vago e incessante
desejo de
reevoc�-la � recorda��o. N�o porque o esp�rito de qualquer r�pida paix�o
deixasse, a
qualquer hora, de mostrar sua imagem distinta no espelho daquela face; mas
porque o
espelho, sendo espelho, n�o retinha vest�gios da paix�o quando a paix�o se
dissipava.
4
Ao deix�-lo, na noite de nossa aventura, solicitou-me ele, duma maneira que
reputei
urgente, que o visitasse bem cedo na manh� seguinte. Logo depois do amanhecer,
acheime,
por conseguinte, em seu palazzo, um daqueles imensos edif�cios de sombria por�m,
fant�stica majestade que se erguem por cima das �guas do Grande Canal, nas
vizinhan�as do Rialto. Subindo por uma larga escadaria circular de mosaicos,
entrei
num
aposento cujo esplendor inigual�vel flamejava pela porta aberta, numa verdadeira
cintila��o que me tornava cego e entontecido, pela sua faustosidade.Verifiquei
que meu
conhecido era rico. O que eu ouvira a respeito de suas posses me parecera uma
exagera��o rid�cula. Mas, ao olhar em torno de mim, n�o podia ser levado a
acreditar
que
a riqueza de qualquer s�dito europeu pudesse suprir a principesca magnific�ncia
que
flamejava e resplandecia ali.
Embora, como disse, o sol j� se tivesse erguido, o quarto ainda se achava
brilhantemente
iluminado. Julgo, por esta circunst�ncia bem como pelo ar de cansa�o de meu
amigo,
que ele n�o se deitara durante toda a noite precedente. Na arquitetura e
embelezamentos
do quarto, o objetivo evidente fora o de deslumbrar e espantar. Pouca aten��o se
dera �
decora��o do que � tecnicamente chamado de "harmonia", ou �s caracter�sticas de
nacionalidade. O olhar vagava de um objeto a outro e n�o se fixava em nenhum,
nem
nos
grotesques dos pintores gregos, nem nas esculturas das melhores �pocas
italianas, nem
nas imensas inscri��es do primitivo Egito. Ricas tape�arias, por toda parte do
quarto,
tremiam � vibra��o de uma m�sica suave e melanc�lica cuja origem n�o podia ser
descoberta. O olfato era sufocado pela mistura de perfumes heterog�neos que se
exalavam de estranhos incens�rios retorcidos, juntamente com numerosas e
agitadas
l�nguas flamejantes dum fogo de esmeralda e violeta. Os raios do sol, que
acabava de
nascer, banhavam todo o quarto atrav�s das janelas formadas, cada uma, de
simples
pe�a de vidro cor-de-rosa. Cintilando para l� e para c�, em mil reflexos, das
cortinas que
pendiam de suas cornijas como cataratas de prata derretida, os raios da luz
natural
misturavam-se por fim, caprichosamente, com a luz artificial e rolavam, em
massas
avassaladoras, sobre um tapete de um rico tecido, que parecia o ouro l�quido do
Chile.
- Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! - riu o propriet�rio, apontando-me uma cadeira, quando
eu
entrei no quarto, e lan�ando-se de costas, a fio comprido, sobre uma otomana. -
Vejo -
disse ele, notando que eu n�o podia imediatamente adaptar-me a esquisitice de
t�o
singular acolhida -, vejo que est� at�nito � vista de meu aposento, de minhas
est�tuas,
de meus quadros, de minha originalidade, de concep��o em arquitetura e
tape�amento...absolutamente embriagado, hein, com a minha magnific�ncia?
Mas, perdoe-me, meu caro senhor (e aqui o tom de sua voz encheu-se do verdadeiro
esp�rito de cordialidade), perdoe-me a minha descaridosa gargalhada. O senhor se
mostrou t�o extremamente at�nito! Al�m disso, algumas coisas h� t�o
completamente
rid�culas que um homem deve rir ou morrer. Morrer rindo deve ser a mais gloriosa
de
todas as mortes gloriosas! Sir Thomas More - e que homem inteligente era Sir
Thomas
More! - morreu rindo, como o senhor se recorda. Tamb�m nos Absurdos de Ravisius
Textor h� uma longa lista de personagens que tiveram o mesmo magn�fico fim. O
senhor
sabe, por�m - continuou ele, reflexivamente -, que em Esparta (que � agora
Palaeochori),
em Esparta, como disse, a oeste da cidadela, entre um amontoado de ru�nas
dificilmente
vis�veis, h� uma esp�cie de soco, sobre o qual se l�em ainda as letras "LASM".
Fazem
parte sem d�vida, da palavra "GELASMA". Ora, em Esparta havia milhares de
templos
e
santu�rios dedicados a milhares de divindades diferentes. Como � excessivamente
estranho que o altar do Riso tenha a todos os outros! Mas, na presente
circunst�ncia -
prosseguiu ele, com singular altera��o da voz e das maneiras -, n�o tenho o
direito de
alegrar-me � sua custa. O senhor tinha bem raz�o de ficar admirado. A Europa n�o
pode
produzir qualquer coisa t�o bela como esta, este meu r�gio gabinete. Meus outros
aposentos n�o s�o, de modo algum, da mesma esp�cie; s�o meros de "ultras" de
insipidez
elegante. Isto � melhor do que a moda, n�o �?
5
Contudo, basta o que se est� vendo para provocar o despeito daqueles que s�
poderiam
adquiri-lo � custa de seu inteiro patrim�nio. Tenho evitado por�m, semelhante
profana��o. Com uma exce��o apenas: e � o senhor a �nica criatura humana, al�m
de
mim mesmo e de meu criado, a ser admitido dentro dos mist�rios deste recinto
imperial,
desde que ele foi adornado da maneira que o senhor v�...
Curvei-me, reconhecido, pois a dominante sensa��o de esplendor, o perfume e a
m�sica,
juntamente com a inesperada excentricidade da fala e das maneiras dele impediam-
me
de exprimir, com palavras, aquilo que eu compusera na mente como um cumprimento.
- Aqui - continuou ele, levantando-se e apoiando-se no meu bra�o, enquanto
vagava
pelo
aposento -, aqui est�o pinturas, desde os gregos at� Cimabue, e de Cimabue at� a
�poca
atual. Muitas foram escolhidas, como v�, com pouco respeito �s opini�es da
cr�tica da
arte. Todas, por�m, s�o tape�arias adequadas a um quarto como este. Aqui,
tamb�m, h�
algumas obras-primas dos grandes desconhecidos... e ali, desenhos inacabados de
homens c�lebres na sua �poca e cujos verdadeiros nomes a perspic�cia das
academias
abandonou ao sil�ncio e a mim. Que pensa o senhor - disse ele, voltando-se
bruscamente,
enquanto falava -, que pensa o senhor desta Madonna della Piet�?
- � do pr�prio Guido! - disse eu, com todo o entusiasmo de minha natureza, pois
tinha
estado de olhos atentamente fixos sobre beleza transcendente. - � do pr�prio
Guido!
Como p�de obt�-la? �, indubitavelmente, em pintura, o que V�nus � em escultura!�
- Ah! - disse ele pensativamente. -V�nus.. . a bela V�nus... A V�nus dos
M�dicis? A de
cabe�a pequena e de cabelo dourado? Parte do bra�o esquerdo (a� sua voz se
abaixou, a
ponto de ser ouvida com dificuldade) e todo o bra�o direito s�o restaura��es; e
no
amaneirado daquele bra�o direito se encontra, penso eu, a quinta-ess�ncia de
toda a
afeta��o. Para mim, a V�nus de Canova! O pr�rio Apolo, tamb�m, � uma c�pia...
n�o
pode
haver d�vida... Oh, louco, est�pido cego que eu sou, que n�o posso apreender a
ostentosa
inspira��o do Apolo! N�o posso deixar - pobre de mim -, n�o posso deixar de
preferir o
Antinous. N�o foi S�crates quem disse que o escultor descobre sua est�tua no
bloco de
m�rmore? Por isso Miguel �ngelo n�o foi, de modo algum, original nos seus
versos:Non
ha l'ottimo artista alcun Concettoche un marmo solo in se non circunscriva.(N�o
tem o
�timo artista algum conceito/que um m�rmore s� em si n�o circunscreva N.T.)
Tem sido ou deveria ter sido notado que na maneira dos verdadeiros homens de
gosto
n�s
sempre estamos c�nscios de uma diferen�a do procedimento do homem vulgar, sem
sermos imediata e precisamente capazes de determinar em que consiste tal
diferen�a.
Admitindo que a observa��o se aplicasse em todo o seu vigor � conduta estranha
de
meu
conhecido, sentia, naquela manh� cheia de acontecimentos, que ela era mais
plenamente
aplic�vel ainda ao seu temperamento moral e ao seu car�ter. Nem posso eu melhor
definir aquela peculiaridade de esp�rito que parecia coloc�-lo t�o
essencialmente a parte
de todos os outros seres humanos do que chamando-a um h�bito de intenso e
continuo
pensamento, tomando conta at� mesmo de suas mais triviais a��es, intrometendo-se
seus momentos de �cio e interferindo nas suas explos�es de alegria como
serpentes que
irrompem dos olhos das m�scaras careteantes nas cornijas que cercam os templos
de
Pers�polis.
N�o podia deixar, por�m, de repetidas vezes observar, atrav�s do tom de
misturada
leviandade e solenidade com que ele rapidamente comentava assuntos de pouca
import�ncia, certo ar de trepida��o, um grau de fervor nervoso no agir e no
falar, certa
inquieta excitabilidade de maneiras que a mim me parecia, a todo tempo
inexplic�vel e,
em algumas ocasi�es mesmo, me alarmava.
6
Freq�entemente, tamb�m, parando em meio de uma frase cujo come�o tinha sido, na
apar�ncia, esquecido, parecia estar escutando em meio da mais profunda aten��o,
como
se esperasse, de momento, um visitante ou ouvisse sons que s� deviam ter
exist�ncia na
sua imagina��o.
Foi durante um desses devaneios ou pausas de aparente abstra��o que, passando
uma
folha da bela trag�dia do poeta e erudito Policiano, Orfeu (a primeira trag�dia
original
italiana), que estava ao meu lado sobre uma otomana, descobri um trecho
sublinhado a
l�pis. Era uma passagem, j� no fim do terceiro ato, uma passagem da mais
excitante
como��o, uma passagem que, embora tinta de impureza, nenhum homem ler� sem um
arrepio de nova emo��o; e nenhuma mulher sem um suspiro. A p�gina inteira estava
manchada de l�grimas recentes e, na p�gina oposta, viam-se os seguintes versos
em
ingleses, escritos numa caligrafia t�o diferente da letra caracter�stica de meu
conhecido
que tive alguma dificuldade em reconhecer como de seu pr�prio punho:
Tudo quanto anelei foste, amor,
tudo quanto minha alma queria:
ilha verde nos mares, amor,
templo, fonte que l�mpida flu�a
num jardim de encantado primor
onde a mim cada flor pertencia.
Ah, o sonho fulgiu demais, para
persistir! Foi anseio estrelado
que morreu, mal surgira e brilhara!
Diz-me "Avante" o Futuro em voz clara;
n�o o escuto! Somente o Passado
(triste abismo) � que o esp�rito encara,
mudo, l�vido, petrificado.
Sim, a luz me fugiu desta vida!
Foi-se a chama! Ficaram-me os ais.
Nunca mais, nunca mais, nunca mais
(ah! com essas palavras fatais
fala �s praias a vaga abatida),
fronde ao raio tombada, jamais
te h�s de erguer, nem tu, �guia ferida!
E meus dias em �xtases passo,
e meu sonho procura no espa�o
teu olhar, onde quer que o escondas,
e o fulgor de teus rastros, o tra�o
de teus p�s, em celestes, mil rondas,
junto a eternas, inc�gnitas ondas.
Causou-me pouca surpresa que aqueles versos estivessem escritos em ingl�s,
l�ngua que
eu n�o acreditava fosse do conhecimento de seu autor. Mas tamb�m estava certo da
extens�o de seus conhecimentos e do singular prazer que ele experimentava em
ocult�-
lo
� observa��o, para que me espantasse diante de semelhante descoberta. O lugar da
data,
por�m, devo confessar, causou-me n�o pequeno espanto. Fora originariamente de
Londres e depois cuidadosamente riscado, n�o por�m de modo eficiente para
ocultar a
palavra a um olhar escrutinador. Afirmo que isto me causou n�o pequeno espanto,
pois
bem me recordo de que, em anterior conversa com meu amigo, inquiri
particularmente
dele se havia se encontrado em Londres, alguma vez, com a Marquesa de Mentoni
(que
durante alguns anos, antes de seu casamento, havia residido naquela cidade)
quando sua
resposta, se n�o me engano, deu-me a entender que ele nunca visitara a metr�pole
da
Gr�-Bretanha.
7
Eu poderia, entretanto aqui mencionar que mais de uma vez ouvi (sem
indubitavelmente
dar cr�dito a um boato, que implicava tantas improbabilidades ) que a pessoa de
quem
falo era, n�o s� de nascimento, mas de educa��o, ingl�s.
- H� um quadro - disse ele, sem saber que eu conhecia a trag�dia- , h� ainda um
quadro
que o senhor n�o viu.
E afastando para um lado uma cortina, descobriu um retrato inteiro da Marquesa
Afrodite.
A arte humana nada mais podia ter feito no delinear-lhe a sobre-humana beleza. O
mesmo vulto et�reo que se erguera diante de mim na noite precedente sobre os
degraus
do Pal�cio Ducal ali permanecia � minha frente, mais uma vez. Mas, na express�o
da
fisionomia, toda a cintilar de sorrisos, ali ainda se ocultava (anomalia
incompreens�vel!)
aquela caprichosa sombra de melancolia que sempre se encontra como insepar�vel
da
perfei��o do belo. Seu bra�o direito dobrava-se sobre seu seio. Com o bra�o
esquerdo
apontava para um vaso de formato estranho. Um pequeno e lindo p�, mal vis�vel,
tocava
de leve a terra; e, dificilmente discern�vel, na brilhante atmosfera que parecia
cercar e
aureolar sua beleza, flutuava um par das mais delicadamente imaginadas asas. Meu
olhar desceu do quadro para o rosto de meu amigo e as vigorosas palavras do
Bussy
d'Amboise, de Chapman, palpitaram-me, instintivamente, nos l�bios:
Est� de p� ali
Como uma romana est�tua. E assim ficar�
At� que a morte em m�rmore o transforme!
- Venha! - disse ele afinal, voltando-se para uma mesa de prata maci�a,
ricamente
esmaltada, sobre a qual viam-se v�rias ta�as fantasticamente pintadas, ao lado
de dois
grandes vasos etruscos talhados no mesmo extraordin�rio modelo do primeiro plano
do
quadro, e cheios do que supunha eu ser Johannisberger. - Venha! - disse ele,
bruscamente -, bebamos! � cedo ainda, mas bebamos! � realmente cedo - continuou
ele,
reflexivamente, quando um querubim, com um pesado martelo de ouro, fez o
aposento
retinir com a primeira hora depois do nascer do sol. - � realmente cedo... Mas,
que
importa? Bebamos! Fa�amos uma liba��o �quele solene sol que essas brilhantes
l�mpadas e incens�rios est�o t�o �vidos de dominar!
E, tendo-me feito brind�-lo com um enorme copo, engoliu, em r�pida sucess�o,
v�rias
ta�as de vinho.
- Sonhar - continuou ele, no tom de sua inconstante conversa ao erguer, diante
da viva
flama dum incens�rio, um dos magn�ficos vasos -, sonhar tem sido a ocupa��o de
minha
vida. Armei, pois, para mim, como v�, um camarim de sonhos. Poderia construir um
melhor no cora��o de Veneza? O senhor observa em torno de si, � verdade, uma
mistura
de adornos arquitet�nicos. A castidade da l�nia � ofendida pelas inscri��es
antediluvianas
e as esfinges do Egito se estendem sobre tapetes dourados. Contudo, o efeito s�
�
incongruente para o t�mido. Conveni�ncias de lugares, e especialmente de tempo,
s�o os
fantasmas que afastam a humanidade aterrorizada da contempla��o do magnificente.
Fui
outrora decorador mas esta sublima��o do disparate embotou a minha alma. Tudo
isto �
agora o mais apropriado para meu prop�sito. Como aqueles arabescados
incens�rios,
meu esp�rito se estorce em labaredas e o del�rio desta cena est�-me amoldando
para as
mais insensatas vis�es daquela regi�o de verdadeiros sonhos para onde estou
agora
rapidamente partindo.
8
Aqui parou subitamente, inclinou a cabe�a sobre o peito e pareceu escutar um som
que
eu n�o podia ouvir. Por fim, erguendo o busto, olhou para cima e proferiu os
versos do
Bispo de Chichester:
Fica a esperar-me ali! N�o deixarei
De te encontrar nesse profundo vale.
No momento seguinte, reconhecendo o poder do vinho, lan�ou-se, a fio comprido,
sobre
uma otomana.
Ouviu-se ent�o um leve rumor de passos na escadaria, a que logo se seguiu pesada
pancada � porta. Apressava-me em evitar segunda interrup��o, quando um pajem da
casa de Mentoni irrompeu pelo quarto e gaguejou, numa voz embargada de emo��o,
incoerentes palavras:
- A minha senhora � a minha senhora.. . envenenada... formosa... oh formosa
Afrodite!
Atordoado, corri para a otomana e tentei despertar o adormecido para que
soubesse a
apavorante informa��o. Mas seus membros estavam r�gidos, seus l�bios estavam
l�vidos,
seus olhos, ainda pouco cintilantes, estavam reviradospela morte. Recuei,
cambaleante
para a mesa. Minha m�o caiu sobre uma ta�a partida e enegrecida e a consci�ncia
da
completa e terr�vel verdade brilhou subitamente na minha alma.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA - CONTOS DE TERROR, MIST�RIO
E MORTE
O REI PESTE
CONTO ALEG�RICO
Os deuses suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio � rale.
BUCKHURST: A Trag�dia de Ferrex e Porrex.
Por volta da meia-noite de um dia do m�s de outubro, durante o cavalheiresco
reinado
de
Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripula��o do Free and Easy (Livre
e
Feliz),
escuna de com�rcio que trafegava entre Eclusa (B�lgica) e o T�misa, e ent�o
ancorado
neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria
da
par�quia de Santo Andr�, em Londres, a qual tinha como ins�gnia a tabuleta dum
"Alegre
Marinheiro".
Embora mal constru�da, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros
aspectos,
semelhante �s demais tabernas daquela �poca, estava, n�o obstante, na opini�o
dos
grotescos grupos de freq�entadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a
seu
fim.
Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais
interessante,
se n�o o mais not�vel.O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se
dirigia,
chamando-o pelo caracter�stico apelido de Legs (Pernas) era tamb�m o mais alto
dos
dois.
Mediria talvez uns dois metros e dez cent�metros de altura e a inevit�vel
conseq��ncia
de
t�o grande estatura se via no h�bito de andar de ombros curvados. O excesso de
altura
era , por�m, mais que compensado por defici�ncias de outra natureza. Era
excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir,
quando
b�bedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se n�o
estivesse embriagado. Mas essas pilh�rias e outras de igual natureza jamais
produziam,
evidentemente, qualquer efeito sobre os m�sculos do marinheiro. Com as ma��s do
rosto
salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e
grandes olhos
protuberantes e brancos, a express�o de sua fisionomia, embora repassada duma
esp�cie
de indiferen�a intrat�vel por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava
de ser
extremamente solene e s�ria, fora de qualquer possibilidade de imita��o ou
descri��o.
O marujo mais mo�o era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro.
Sua
estatura n�o ia al�m de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e
arqueadas
suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os bra�os, descomunalmente
curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balou�antes dos lados, como as
barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa,
brilhavam-lhe
encravados fundamente nas �rbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que
lhe
envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso l�bio superior descansava
sobre o
inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfa��o pessoal, mais
acentuada pelo h�bito que tinha o dono de lamber seus bei�os, de vez em quando.
�
evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto,
meio de
zombaria, e, quando, �s vezes, erguia a vista para encar�-lo, parecia o vermelho
sol
poente a fitar os penhascos de Ben Nevis.
V�rias e aventurosas haviam, por�m, sido as peregrina��es do digno par, pelas
diversas
cervejarias da vizinhan�a, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais,
por
mais
vastos que sejam n�o podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos
se
aventuraram a entrar na taberna aludida.
No momento preciso, pois, em que esta est�ria come�a, Legs e seu companheiro,
Hugh
Tarpaulinle [len�o ou chap�u encerado, tamb�m marinheiro N.T], est�o sentados,
com
os
cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida
entre
as
m�os. Olhavam, por tr�s duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as
agourentas
palavras.
N�o se fia, que para indigna��o e espanto deles, estavam escritas a giz na porta
de
entrada. N�o que o dom de decifrar caracteres escritos - dom considerado ent�o,
entre o
povo, pouco menos cabal�stico do que a arte de escrever - pudesse, em estrita
justi�a, ter
sido deixado a cargo dos dois disc�pulos do mar; mas havia, para falar a
verdade, certa
contor��o no formato das letras, uma indescrit�vel guinada no conjunto, que
pressagiava,
na opini�o dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a,
imediatamente na linguagem aleg�rica do pr�prio Legs, "correr �s bombas, ferrar
todas
as velas e correr com o vento em popa".
Tendo, conseq�entemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus
curtos
gib�es, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por
duas vezes,
entrado de chamin� adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim,
com
�xito, a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos her�is
prontos
para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na dire��o da Escada de
Santo
Andr�, encarni�adamente perseguidos pela taberneira do "Alegre Marinheiro".
Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da �poca desta dram�tica
est�ria,
ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metr�pole, o espantoso
grito de:
"Peste!" A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horr�veis
bairros das
vizinhan�as do T�misa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e
imundos,
o
Dem�nio da Peste tinha, como se dizia, seu ber�o. A Ang�stia, o Terror e a
Supersti��o
passeavam, como �nicos senhores, � vontade.
Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob
pena
de morte, de penetrar-lhes a l�gubre solid�o. Contudo, nem o decreto do monarca,
nem
as enormes barreiras erguidas �s entradas das ruas, nem a perspectiva daquela
hedionda
morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgra�ado a quem nenhum
perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habita��es vazias e
desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como
ferro,
cobre
ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro
apreci�vel.
Verificava-se, sobretudo, por ocasi�o da abertura anual das barreiras, no
inverno, que
fechaduras, ferrolhos e subterr�neos secretos n�o passavam de fraca prote��o
para
aqueles ricos dep�sitos de vinhos e licores que, dados os riscos e inc�modos da
remo��o,
muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhan�a tinham
consentido em confiar, durante o per�odo de ex�lio, a t�o insuficiente
seguran�a.
Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribu�am tais fatos � a��o
de m�os
humanas. Os esp�ritos, os duendes da peste, os dem�nios da febre eram, para o
povo, os
autores das fa�anhas. E tamanhas est�rias arrepiantes se contavam a toda hora
que toda
a massa de edif�cios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de
horror
e
os pr�prios ladr�es, muitas vezes, se deixavam tomar do pavor que suas
depreda��es
haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, �s trevas,
ao
sil�ncio, e � morte.
Foi uma daquelas terr�ficas barreiras j� mencionadas e que indicavam estar o
bairro
adiante sob a condena��o da Peste que deteve, de repente a disparada em que
vinham,
beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de
cogita��o e
n�o
havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares.
Para
marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca arma��o de madeira;
exasperados pela dupla excita��o do licor e da corrida, pularam sem hesitar para
dentro
do recinto e, continuando sua carreira de �brios, com berros e urros, em breve
se
perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .
N�o se achassem eles t�o embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral,
o
horror de sua situa��o lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio
e
nevoento.
As pedras do cal�amento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem,
em
meio do capim alto e vi�oso, que lhes subia em torno dos p�s e tornozelos.
Casas desmoronadas obstru�am as ruas. Os odores mais f�tidos e mais delet�rios
dominavam por toda a parte, e, gra�as �quela luz l�vida que, mesmo � meia-noite,
nunca
deixa de emanar duma atmosfera pestilenta e brumosa, podiam-se perceber,
jacentes nos
atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carca�as de muitos
saqueadores noturnos, detidos pela m�o da peste, no momento mesmo da perpetra��o
de
seu roubo.
Mas n�o estava no poder de imagens, sensa��es ou obst�culos como esses deter a
corrida
de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasi�o, repletos
de
coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, t�o eretos quanto lhes
permitia seu
estado, sem temor, at� mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na
frente,
caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com
berros
semelhantes aos terr�veis urros de guerra dos �ndios; e para a frente, sempre
para a
frente
rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gib�o de seu companheiro mais
ativo,
levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esfor�os, � moda de m�sica vocal, com
seus
mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulm�es estert�ricos.
Haviam agora evidentemente alcan�ado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada
trope��o, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horr�vel, as
veredas
mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente
dos
telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura
prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necess�rio imediato
esfor�o para
for�ar passagem atrav�s de freq�entes mont�es de cali�a, n�o era raro que a m�o
ca�sse
sobre um esqueleto ou pousasse num cad�ver ainda com carne.
De repente, ao trope�arem os marujos, � entrada dum elevado e sinistro edif�cio,
um
berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e l�
de
dentro veio uma em r�pida sucess�o de ferozes e diab�licos guinchos, semelhantes
a
risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela
ocasi�o e
pelo
lugar, teriam gelado todo o sangue de cora��es menos irrevogavelmente
incendiados, o
par de b�bados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um
chorrilho de pragas, se viram em meio dum mont�o de coisas.
A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um al�ap�o, a um
canto
do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas
profundezas,
reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas
do
conte�do apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia
uma
enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche.
Garrafas de v�rios vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pich�is e garraf�es
de todo
formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta
via-
se
um grupo de seis indiv�duos sentados em catafalcos. Vou tentar descrev�-los um
por
um.
Em frente � porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um
personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs
sentiuse
confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto
a�afroado, mas nenhum de seus tra�os, exce��o feita de um, era bastante
caracter�stico
para merecer descri��o especial. Aquele tra�o �nico consistia numa fronte t�o
ins�lita e
t�o horrivelmente elevada que tinha a apar�ncia de um bon� ou coroa de carne
acrescentada � cabe�a natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa express�o de
afabilidade horr�vel, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se
achavam em
torno � mesa, tinham aquele humor v�treo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava,
da
cabe�a aos p�s, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe
envolvia,
com displic�ncia, o corpo � moda duma capa espanhola. Estava com a cabe�a cheia
de
plumas negras mortu�rias, que ele fazia ondular para l� e para c�, com um ar
afetado e
presun�oso e na m�o direita segurava um enorme f�mur humano, com o qual parecia
ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse.
Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia n�o
menos
extraordin�ria. Embora t�o alta quanto o personagem que acabamos de descrever,
n�o
tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se,
evidentemente,
no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso
pipote
de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto
do
aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma
peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada � sua fisionomia, que j�
mencionei
no caso do presidente, isto �, somente uma fei��o de seu rosto era
suficientemente
destacada para merecer caracteriza��o especial.
De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observa��o podia ser feita
a
respeito de um dos indiv�duos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar
alguma
por��o particular de fisionomia. Na dama em quest�o, essa parte era a boca.
Come�ando
na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, at� a esquerda. Ela
fazia, no
entanto, todos os esfor�os para conservar a boca fechada, com ar de dignidade.
Seu traje
consistia num sud�rio, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe at�
o
queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia.
� sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa
delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela
l�vida cor
de seus l�bios e pela leve mancha h�ctica que lhe tingia a tez, ali�s cor de
chumbo,
sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distin��o, por�m, dominava
em
toda a sua apar�ncia. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e
bela
mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo ca�a-lhe em cachos sobre o
pesco�o.
Um leve sorriso pairava-lhe nos l�bios, mas seu nariz extremamente comprido,
delgado,
sinuoso, flex�vel e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o l�bio
inferior; e, a
despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, e movia para um
lado e
outro com a l�ngua, dava-lhe � fisionomia uma express�o um tanto quanto
equ�voca.
Do outro lado, e � esquerda da dama hidr�pica, estava sentado um velho pequeno,
inchado, asm�tico e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como
dois
imensos odres de vinho do Porto. De bra�os cruzados e uma perna enfaixada posta
sobre
a mesa, parecia achar-se com direito a alguma considera��o. Evidentemente
orgulhavase
bastante de cada polegada de sua apar�ncia pessoal, mas sentia mais especial
deleite
em chamar a aten��o para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade,
n�o
deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem,
talhado
como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes
�queles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, s�o
ordinariamente
suspensos, em algum lugar patente, nas resid�ncias de aristocratas falecidos.
Junto dele, e � direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias
brancas
e ceroulas de algod�o. Seu corpo tremelicava de maneira rid�cula, num acesso
daquilo
que Tarpaulin chamava "os terrores". Seus queixos, recentemente barbeados,
estavam
estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os bra�os amarrados
nos
pulsos da mesma maneira, n�o lhe era poss�vel servir-se muito � vontade, dos
licores
que
se achavam sobre a mesa, precau��o necess�ria, na opini�o de Legs, gra�as �
express�o
caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de
prodigiosas orelhas, que sem d�vida era imposs�vel ocultar, alteava-se na
atmosfera do
aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das
rolhas
que espoucavam.
Defronte dele, sentava-se o sexto e �ltimo personagem, de apar�ncia r�gida que,
sofrendo
de paralisia, devia sentir-se, falando s�rio, muito mal � vontade nos seus
trajes nada
c�modos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ata�de de
mogno.
Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o cr�nio do sujeito e estendia-se sobre
ele, �
moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescrit�vel interesse.
Cavas para
os bra�os tinham sido cortadas dos lados, mais por conveni�ncia que por
eleg�ncia;
apesar disso, o traje impedia seu propriet�rio de se sentar direito como seus
companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando
um
�ngulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava
suas
apavorantes escler�ticas para o teto, num absoluto espanto de sua pr�pria
enormidade.
Diante de cada um dos presentes estava a metade dum cr�nio, usada como copo. Por
cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas
e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do
corpo em
angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carca�a desconjuntada e chocalhante,
ao sabor
de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O cr�nio daquela hedionda
coisa continha certa quantidade de carv�o em brasa, que lan�ava uma luz
vacilante, mas
viva, sobre a cena, enquanto ata�des e outras mercadorias de casa mortu�ria
empilhavam-se at� o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim
que
qualquer raio de luz se projetasse na rua.
� vista de t�o extraordin�ria assembl�ia e de seus mais extraordin�rios adornos,
nossos
dois marujos n�o se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar.
Legs,
encostando-se � parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda
mais
baixo do que de costume e arregalou os olhos at� mais n�o poder, enquanto Hugh
Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao n�vel da mesa e dando
palmadas
nas coxas, explodiu numa desenfreada e extempor�nea gargalhada, que mais parecia
um
rugido longo, poderoso e atroador.
Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento t�o excessivamente grosseiro,
o
escanifrado presidente sorriu com toda a gra�a para os intrusos, fazendo-lhes um
gesto
cheio de dignidade com a cabe�a empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os
pelos
bra�os e levou-os aos assentos que alguns dos outros, presentes tinham colocado,
enquanto isso, para que eles estivessem a c�modo. Legs nenhuma resist�ncia
ofereceu a
tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh
removendo
cavalete de ata�de do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha
tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande j�bilo, e,
emborcando um cr�nio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais �ntimas
rela��es.
Diante de tamanha presun��o, o cavalheiro teso do ata�de mostrou-se
excessivamente
exasperado, e s�rias conseq��ncias poderiam ter-se seguido n�o houvesse o
presidente,
batendo com o bast�o na mesa, distra�do a aten��o de todos os presentes para o
seguinte
discurso:
- � nosso dever na atual feliz ocasi�o.
- Pare com isso! - interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo-
lhe eu,
e
diga-nos que diabos s�o voc�s todos e que est�o fazendo aqui, com essas farpelas
de
diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado
camarada Will Wimble, o cangalheiro!
� vista daquela imperdo�vel amostra de m� educa��o, toda a esquip�tica
assembl�ia se
soergueu e emitiu aqueles mesmos r�pidos e sucessivos guinchos ferozes e
diab�licos
que
j� haviam chamado antes a aten��o dos marinheiros. O presidente, por�m, foi
primeiro a
retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade,
recome�ou:
- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razo�vel da parte de
h�spedes
t�o ilustres, embora n�o convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes dom�nios,
sou o
monarca e governo, com indivisa autoridade, com o t�tulo de "Rei Peste I�. Esta
sala,
que
supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que n�o
conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, at� esta noite, aos nossos
reais
ouvidos� esta sala, repito, � a Sala do Trono de nosso pal�cio. Consagrada aos
conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.A
nobre dama
sentada � nossa frente � a Rainha Peste, nossa Seren�ssima Esposa. Os outros
personagens ilustres que vedes pertencem todos � nossa fam�lia e usam as
ins�gnias do
sangue real nos respectivos t�tulos de: "Sua Gra�a o Arquiduque Peste-Ifero",
"Sua
Gra�a
o Duque Pest-Ilencial", "Sua Gra�a o Duque Tem-Pestuoso" e "Sua Serena Alteza a
Arquiduquesa Ana-Peste".
- Quanto � vossa pergunta - continuou ele -, a respeito do que nos tr�s aqui
reunidos em
conselho, ser-nos-ia l�cito responder que, concerne e concerne exclusivamente,
ao nosso
pr�prio e particular interesse e n�o tem import�ncia para ningu�m mais que n�o
n�s
mesmos. Mas em considera��o aos direitos de que, na qualidade de hospedes e
estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos no entanto, que
estamos
aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investiga��o, a
examinar,
analisar e determinar, indubitavelmente, o indefin�vel esp�rito, as
incompreens�veis
qualidades e natureza desses inestim�veis tesouros do paladar que s�o os vinhos,
cervejas e licores desta formosa metr�pole. Assim procedemos n�o s� para
melhorar
nossa pr�pria situa��o, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana
sobrenatural
que reina sobre todos n�s, cujos dom�nios n�o t�m limites e cujo nome � "Morte".
- Cujo nome � Davi Jones! - exclamou Tarpaulin, oferecendo � sua vizinha um
cr�nio de
licor e emborcando ele pr�prio um segundo .
- Lacaio profanador! - exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh.
-
Miser�vel e execrando profanador. Dissemos que, em considera��o �queles direitos
que,
mesmo na tua imunda pessoa, n�o nos sentimos com inclina��o para violar,
condescendemos em responder �s tuas grosseiras e desarrazoadas indaga��es.
Contudo,
tendo em vista a vossa profana intrus�o no recinto de nossos conselhos,
acreditamos ser
de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num gal�o de Black Strap, que
bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum s� gole e de joelhos; logo depois
estareis
livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos
privil�gios
de nossa mesa, de acordo com vossos respectivos gostos pessoais.
- Ser� coisa de absoluta impossibilidade - replicou Legs, a quem a impon�ncia e
a
dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de
respeito,
e que se levantara, ficando de p� junto da mesa, enquanto aquele falava.
- Ser�, com licen�a de Vossa Majestade, coisa extremamente imposs�vel arrumar no
meu
por�o at� mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de
mencionar.
N�o falando das mercadorias colocadas esta manh� a bordo para servir de lastro,
e n�o
mencionando as v�rias cervejas e licores embarcados esta noite em v�rios portos,
tenho,
presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na
taberna do "Alegre Marinheiro".
- De modo que h� de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a aten��o como coisa
realizada, pois n�o posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito
menos
um trago dessa repugnante �gua-de-por�o que responde ao nome de Black Strap.
- Pare com isso! - interrompeu Tarpaulin, espantado n�o s� pelo tamanho do
discurso de
seu companheiro como pela natureza de sua recusa. - Pare com isso, seu
marinheiro de
�gua doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco est� ainda leve,
embora,
confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto � est�ria de
sua
parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrum�-la eu
mesmo
no por�o, mas�
- Este modo de proceder - interferiu o presidente - n�o est� de modo algum em
acordo
com os termos da multa ou senten�a que � de natureza m�dia e n�o pode ser
alterada
nem apelada. As condi��es que impusemos devem ser cumpridas � risca, e isto sem
um
instante de hesita��o. . sem o qu�, decretamos que sejais amarrados, pesco�os e
calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-
deoutubro!
- Que senten�a! Que senten�a! Que senten�a justa e direita! decreto glorioso! A
condena��o mais digna, mais irrepreens�vel, sagrada! - gritaram todos os membros
da
fam�lia Peste ao mesmo tempo.
O rei franziu a testa em rugas inumer�veis; o homenzinho gotoso soprava, como um
par
de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado e para o
outro; o
cavalheiro de ceroulas de algod�o arrebitou as orelhas; a mulher do sud�rio
ofegava
como um peixe agonizante, e o sujeito do ata�de entesou-se mais, arregalando os
olhos
para cima.
- Oh, uh, uh! - ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excita��o geral. - Uh,
uh, ... Uh,
uh, uh. . . Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu
bedelho, que a
respeito da quest�o de dois ou tr�s gal�es mais ou menos de Black Strap era uma
bagatela para um barco s�lido como eu que n�o est� sobrecarregado; e quando se
tratar
de beber � sa�de do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me p�r de joelhos diante
dessa
horrenda majestade aqui presente, que eu conhe�o t�o bem como sei que sou um
pecador, e que n�o � outro sen�o Tim Hurlygurly, o palha�o!� Ora essa, � muito
outra
coisa, e vai muito al�m de minha compreens�o.
N�o lhe permitiram que terminasse tranq�ilamente seu discurso ao nome de Tim
Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.
- Trai��o! - gritou Sua Majestade o Rei Peste I.
- Trai��o! - disse o homenzinho gotoso.
- Trai��o! - esgani�ou a Arquiduquesa Ana-Peste.
- Trai��o! - murmurou o homem dos queixos amarrados.
- Trai��o! - grunhiu o sujeito do ata�de.
- Trai��o, trai��o! - berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o
infeliz
Tarpaulin pela traseira das cal�a, o qual estava justamente enchendo outro
cr�nio de
licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerim�nia
no
imenso
barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para l� e para c�, durante
alguns
segundos, como uma ma�� numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilh�o
de
espuma que, no j� efervescente licor, haviam provocado seus esfor�os de safar-
se.
N�o se resignou, por�m, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada.
Empurrando
o
Rei Peste para dentro do al�ap�o aberto, Legs deixou cair a tampa do al�ap�o
sobre ele,
com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto
que
pendia sobre a mesa, com tamanha for�a e vontade que o fez que conseguiu fazer
saltar
os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de
luz
dentro da sala.
Precipitando-se, ent�o, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de
cerveja-
deoutubro
e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dil�vio de
licor t�o impetuoso, violento, t�o irresist�vel, que a sala ficou inundada de
parede a
parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram
uns
por cima dos outros, a tina de ponche foi lan�ada na chamin� da lareira.. . e as
damas
ca�ram com ataques hist�ricos. Montes de artigos f�nebres boiavam. Jarros,
pich�is e
garraf�es confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-
se,
desesperadamente, com cantis tran�ados. O homem dos tremeliques afogou-se
imediatamente. O sujeito flutuava no seu caix�o... e o vitorioso Legs, agarrando
pela
cintura da criatura a mulher gorda do sud�rio, arrastou-a para a rua e em linha
reta, a
dire��o do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo tem�vel Hugh Tarpaulin, que,
tendo espirrado tr�s ou quatro vezes, ofegava e bufava atr�s dele, puxando a
Arquiduquesa Ana-Peste.
.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
METZENGERSTEIN
Pestis eram vivus - moriens tua mors ero. [vivendo era teu a�oite � morto, serei
tua
morte
N.T]
MARTINHO LUTERO
O horror e a fatalidade t�m tido livre curso em todos os tempos. Porque ent�o
datar esta
est�ria que vou contar? Basta dizer que, no per�odo de que falo, havia, no
interior da
Hungria, uma cren�a bem assentada, embora oculta, nas doutrinas da metempsicose.
Das pr�prias doutrinas, isto �, de sua falsidade, ou de sua probabilidade, nada
direi.
Afirmo, por�m, que muito de nossa incredulidade (como diz La Bruy�re, explicando
todas
as nossas infelicidades], �vient de ne pouvoir �tre Seul� [prov�m de n�o
podermos estar
sozinhos N.T].
Mas havia na supersti��o h�ngara alguns pontos que tendiam fortemente para o
absurdo. Diferiam os h�ngaros, bastante essencialmente, de suas autoridades do
Oriente.
Por exemplo: a alma, dizem eles - cito as palavras dum sutil e inteligente
parisiense - ne
demeure qu'une seule fois dans un corps sensible: au reste un cheval, un chien,
un
homme m�me, n'est que la ressemblanc peu tangible de ces animaux. [s� uma vez
permanece num corpo sens�vel, quanto ao resto, um cavalo, um homem mesmo, n�o
s�o
sen�o a semelhan�a pouco tang�vel desses animais. N.T.]
As fam�lias de Berlifitzing e Metzengerstein viviam h� s�culos em disc�rdia.
Jamais
houvera antes duas casas t�o ilustres acirradas mutuamente por uma hostilidade
t�o
mortal. Parece encontrar-se a origem desta inimizade nas palavras duma antiga
profecia:
"Um nome elevado sofrer� queda mortal quando, como o cavaleiro sobre seu cavalo,
a
mortalidade de Metzengerstein triunfar da imortalidade de Berlifitzing."
Decerto as pr�prias palavras tinham pouca ou nenhuma significa��o. Mas as causas
mais triviais t�m dado origem - e isso sem remontar a muito longe - a
conseq��ncias
igualmente cheias de acontecimentos. Al�m disso, as duas casas, ali�s vizinhas,
vinham
de muito exercendo influ�ncia rival nos neg�cios de um governo movimentado. �
coisa
sabida que vizinhos pr�ximos raramente s�o amigos e os habitantes do castelo de
Berlifitzing podiam, de seus altos contrafortes, mergulhar a vista nas janelas
do pal�cio
de Metzengerstein.
Afinal, essa exibi��o duma magnific�ncia mais que feudal era pouco prop�cia a
acalmar
os
sentimentos irrit�veis Berlifitzings, menos antigos e menos ricos. N�o h�, pois,
motivo
de
espanto para o fato de haverem as palavras daquela predi��o , por mais
disparatadas que
parecessem, conseguido criar e manter a disc�rdia entre duas fam�lias j�
predispostas a
querelar, gra�as �s instiga��es da inveja heredit�ria. A profecia parecia
implicar - se �
que
implicava alguma coisa - um triunfo final da parte da casa mais poderosa j�, e
era sem
d�vida relembrada, com a mais amarga animosidade, pela mais fraca e de menor
influ�ncia.
O Conde Guilherme de Berlifitzing, embora de elevada linhagem era, ao tempo
desta
est�ria, um velho enfermo e caduco, sem nada de not�vel a n�o ser uma antipatia
pessoal
desordenada e inveterada pela fam�lia de seu rival e uma paix�o t�o louca por
cavalos e
pela ca�a que nem a enfermidade corporal, nem a idade avan�ada, nem a
incapacidade
mental impediam sua participa��o di�ria nos perigos das ca�adas.
O Bar�o Frederico de Metzengerstein, por outro lado, ainda n�o atingira a maior
idade.
Seu pai, o Ministro G***, morrera mo�o. Sua m�e, Dona Maria, logo acompanhara o
marido. Frederico estava, naquela �poca, com dezoito anos de idade. Numa cidade,
dezoito anos n�o constituem um longo per�odo; mas num lugar solit�rio, numa
solid�o
t�o magnificente como a daquela velha casa senhorial, o p�ndulo vibra com
significa��o
mais profunda.
Em virtude de certas circunst�ncias caracter�sticas decorrentes da administra��o
de seu
pai, o jovem bar�o, por morte daquele, entrou imediatamente na posse de vastas
propriedades. Raramente se vira antes, um nobre h�ngaro senhor de tamanhos bens.
Seus castelos eram incont�veis. O principal, pelo esplendor e pela vastid�o era
o pal�cio
de Metzengerstein. Os limites de seus dom�nios jamais foram claramente
delineados,
mas
seu parque principal abrangia uma �rea de cinq�enta milhas.
O acontecimento da entrada de posse de uma fortuna t�o incompar�vel por um
propriet�rio t�o jovem e de car�ter t�o bem conhecido poucas conjeturas trouxe �
tona
referente ao curso prov�vel de sua conduta. E de fato, no espa�o de tr�s dias, a
conduta
do herdeiro sobrepujou a do pr�prio Herodes e ultrapassou, de longe, as
espectativas de
seus admiradores mais entusiastas. Orgias vergonhosas, flagrantes perf�dias,
atrocidades
inauditas deram logo a compreender a seus apavorados vassalos que nenhuma
submiss�o servil de sua parte e nenhum escr�pulo de consci�ncia da parte dele
lhe
poderia de ora em diante garantir a seguran�a contra as implac�veis garras
daquele
mesquinho Cal�gula.
Na noite do quarto dia, pegaram fogo as estrebarias do castelo de Berlifitzing e
a
opini�o
un�nime da vizinhan�a acrescentou mais este crime � j� horrenda lista dos
delitos e
atrocidades do bar�o.
Mas, durante o tumulto ocasionado por este fato , o jovem senhor estava sentado
-
aparentemente mergulhado em funda medita��o - num vasto e solit�rio aposento
superior
do pal�cio senhorial dos Metzengerstein. As ricas, embora desbotadas, colgaduras
que
balan�avam lugubremente nas paredes representavam as figuras sombrias e
majestosas
de milhares de antepassados ilustres. Aqui, padres ricamente arminhados e
dignit�rios
pontificais, familiarmente sentados com o soberano, opunham os seu veto aos
desejos
de
um rei temporal ou reprimiam com a supremacia papal o centro rebelde do Grande-
Inimigo. Ali, os negros e altos vultos dos pr�ncipes de Metzengerstein - os
musculosos
corc�is de guerra pisoteando os cad�veres dos inimigos tombados - abalavam os
nervos
mais firmes, com sua vigorosa express�o; e aqui, ainda, voluptuosos e brancos
como
cisnes, flutuavam os vultos das damas de outrora, nos volteios duma dan�a
irreal, aos
acentos duma melodia imagin�ria.
Mas, enquanto o bar�o escutava ou fingia escutar a algazarra sempre crescente
que se
erguia das cavalari�as de Berlifitzing - ou talvez meditasse em algum ato de
aud�cia,
mais
novo e mais decidido -, seus olhos se voltaram involuntariamente para a figura
dum
enorme cavalo, dum colorido fora do comum, representado na tape�aria como
pertencente
a um antepassado sarraceno da fam�lia de seu rival. O cavalo se mantinha, no
primeiro
plano do desenho, sem movimento, como uma est�tua, enquanto que, mais para tr�s,
seu
cavaleiro derrotado perecia sob o punhal dum Metzengerstein.
Abriu-se nos l�bios de Frederico uma express�o diab�lica, ao perceber a dire��o
que seu
olhar tinha tomado, sem que ele o houvesse notado. Contudo n�o desviou a vista.
Pelo
contr�rio podia de forma alguma explicar a acabrunhante ansiedade que parecia
apoderar-se, como uma mortalha, de seus sentidos.
Era com dificuldade que conciliava suas sensa��es imagin�rias e incoerentes com
a
certeza de estar acordado. Quanto mais olhava, mais absorvente se tornava o
feiti�o,
mais
imposs�vel lhe parecia poder a arrancar seu olhar do fasc�nio daquela tape�aria.
Mas a
algazarra de fora se tornou de repente mais violenta e, com um esfor�o
constrangedor,
desviou sua aten��o para o clar�o de luz vermelha lan�ado em cheio sobre as
janelas do
aposento pelas cavalari�as chamejantes.
A a��o, por�m, foi apenas moment�nea; seu olhar se voltou quinalmente para a
parede.
Com extremo espanto e horror, verificou que a cabe�a do gigantesco corcel havia,
entrementes, mudado de posi��o. O pesco�o do animal antes arqueado, como que de
compaix�o, sobre o corpo prostrado de seu dono estendia-se agora, plenamente, na
dire��o do bar�o. Os olhos, antes invis�veis tinham agora uma express�o en�rgica
e
humana, e cintilavam com um vermelho ardente e extraordin�rio; e os bei�os do
distendido cavalo, que parecia enraivecido, exibiam por completo seus dentes
sepulcrais
e
repugnantes.
Estupefato de terror, o jovem senhor dirigiu-se, cambaleante, para a porta. Ao
escancar�la,
um jato de luz vermelha, invadindo ate o fundo do aposento, lan�ou a sombra dele
em
n�tido recorte de encontro � tape�aria tremulante. Ele estremeceu, ao perceber
que a
sombra - enquanto se detinha vacilante no umbral tomava exata posi��o e
preenchia,
precisamente, o contorno do implac�vel e triunfante matador do sarraceno
Berlifitzing.
Para aliviar a depress�o de seu esp�rito, o bar�o correu para o ar livre. No
port�o
principal do pal�cio encontrou tr�s cavalari�os. Com muita dificuldade, e com
imenso
perigo de suas vidas, continham eles os saltos convulsivos dum cavalo gigantesco
e de
cor
avermelhada.
- De quem � esse cavalo? Onde o encontraram? - perguntou o jovem, num tom
lamentoso
e rouco, ao verificar, instantaneamente, que o misterioso corcel do quarto
tape�ado era a
reprodu��o do furioso animal que tinha diante dos olhos.
- Ele vos pertence, senhor - respondeu um dos cavalari�os ou pelo menos n�o foi
reclamado por nenhum outro propriet�rio. N�s o pegamos quando fugia, todo
fumegante
e escumando raiva, das cavalari�as incendiadas do castelo de Berlifitzing.
Supondo que
pertencesse � manada de cavalos estrangeiros do velho conde, levamo-lo para
tr�s,
como
se fosse um dos remanescentes da estrebaria. Mas os empregados ali negam
qualquer
direito ao animal, o que � estranho, uma vez que ele traz marcas evidentes de
ter
escapado dificilmente dentre as chamas.
- As letras "W. V. B." est�o tamb�m distintamente marcadas na sua testa -
interrompeu
um segundo cavalari�o. - Supunha, portanto que eram as iniciais de Wilhelm von
Berlifitzing, mas todos no castelo negam peremptoriamente conhecer o cavalo.
- � extremamente singular! - disse o jovem bar�o, com um ar pensativo e
parecendo
inconsciente do significado de suas palavras.
- �, como dizem voc�s, um cavalo not�vel, um cavalo prodigioso�embora, como
voc�s
muito bem observaram, de car�ter, arisco e intrat�vel.. . Pois que me fique
pertencendo -
acrescentou ele depois duma pausa. - Talvez um cavaleiro como Frederico
Metzenterstein
possa domar at� mesmo o diabo das cavalari�as de Berlifitzing.
- Estais enganado, senhor. O cavalo, como j� dissemos, creio eu, n�o pertence �s
cavalari�as do conde. Se tal se desse, conhecemos demasiado nosso dever para
traz�-lo
�
presen�a duma nobre pessoa de vossa fam�lia.
- � verdade! - observou o bar�o, secamente.
Nesse momento, um jovem camareiro veio a correr, afogueado, do pal�cio.
Sussurrou
ao
ouvido de seu senhor a est�ria do s�bito desaparecimento de pequena parte da
tape�aria,
num aposento que ele designou, entrando, ao mesmo tempo, em pormenores de
car�ter
minucioso e circunstanciado. Mas como tudo isto foi transmitido em tom de voz
bastante
baixo, nada transpirou que satisfizesse a excitada curiosidade dos cavalari�os.
O jovem Frederico, enquanto ouvia, mostrava-se agitado por emo��es variadas. Em
breve,
por�m, recuperou a compostura e uma express�o de resoluta maldade espalhou-se-
lhe
na
fisionomia ao dar expressas ordens para que o aposento em quest�o fosse
imediatamente
fechado e a chave trazida �s suas m�os.
- Soubeste, senhor, da lament�vel morte do velho ca�ador Berlifitzing -
perguntou um
de
seus vassalos ao bar�o, enquanto, ap�s a partida do camareiro, o enorme corcel,
que o
gentil-homem adotara como seu, saltava e corveteava, com redobrada f�ria, pela
longa
avenida que se estendia desde o pal�cio at� as cavalari�as de Metzengerstein.
- N�o! - disse o bar�o, voltando-se abruptamente para quem lhe falava- Morreu,
disse
voc�?
- � a pura verdade, senhor, e suponho que para um nobre com o vosso nome n�o
ser�
uma not�cia desagrad�vel.
R�pido sorriso abriu-se no rosto do bar�o.
- Como morreu ele?
- Nos seus esfor�os imprudentes para salvar a parte favorita de seus animais de
ca�a,
pereceu miseravelmente nas chamas.
- De... ve...e...e... ras! exclamou o bar�o, como que impressionado, lenta e
deliberadamente, pela verdade de alguma id�ia excitante.
- Deveras - repetiu o vassalo.
- Horr�vel - disse o jovem, com calma, e voltou sossegadamente ao pal�cio.
Desde essa data, sens�vel altera��o se operou na conduta exterior do jovem e
dissoluto
Bar�o Frederico de Metzengerstein. Na verdade, seu procedimento desapontava
todas as
expectativas e se mostrava pouco em acordo com as vistas de muita mam�e de filha
casadoura, ao passo que seus h�bitos e maneiras, ainda menos do que dantes, n�o
ofereciam algo de congenital com os da aristocracia da vizinhan�a. Nunca era
visto
al�m
dos limites de seu pr�prio dom�nio e, no vasto mundo social, andava
absolutamente sem
companheiros, a n�o ser, na verdade, aquele cavalo descomunal, impetuoso e
fortemente
colorido, que ele de cont�nuo cavalgava a partir dessa �poca, tivesse qualquer
misterioso
direito ao t�tulo de seu amigo.
Numerosos convites, da parte dos vizinhos, chegaram, durante muito tempo:
"Querer� o
bar�o honrar nossas festas com sua presen�a?" "Querer� o bar�o se juntar a n�s
para
ca�ar javali?
- "Metzengerstein n�o ca�a" ou "Metzengerstein n�o comparecer�" eram as
respostas
lac�nicas e arrogantes.
Estes repetidos insultos n�o podiam ser suportados por uma nobreza imperiosa.
Tais
convites tornaram-se menos cordiais, menos freq�entes, at� que cessaram por
completo.
A vi�va do Conde de Berlifitzing exprimiu mesmo, como se diz ter-se ouvido, a
esperan�a
de "que o bar�o estivesse em casa, quando n�o desejava estar em casa, desde que
desdenhava a companhia de seus iguais e que andasse a cavalo, quando n�o queria
andar a cavalo, uma vez que preferia a companhia de um cavalo". Isto decerto era
est�pida explos�o da heredit�ria m�-vontade e provava, t�o-s�, quanto se tornam
nossas
palavras singularmente absurdas quando desejamos dar-lhes forma en�rgica fora do
comum.
As pessoas caridosas, no entanto, atribu�am a altera��o de procedimento do jovem
fidalgo
� tristeza natural de um filho pela precoce perda de seus pais, esquecidas,
por�m, de sua
conduta atroz e dissipada durante o curto per�odo que se seguiu logo �quela
perda.
Alguns havia, de fato, que a atribu�am a uma id�ia demasiado exagerada de sua
pr�pria
import�ncia e dignidade. Outros ainda - entre os quais pode ser mencionado o
m�dico
da
fam�lia - n�o hesitavam em falar numa melancolia m�rbida e num mal dit�rio,
enquanto
tenebrosas insinua��es de natureza mais equ�vocas corriam entre o povo.
Na verdade, o apego depravado do bar�o � sua montaria recentemente adquirida -
apego
que parecia alcan�ar novas for�as a cada novo exemplo das inclina��es ferozes e
demon�acas do animal - tornou-se, por fim, aos olhos de todos os homens de bom-
senso
um fervor nojento e contra a natureza. No esplendor do meio-dia, a horas mortas
da
noite, doente ou com sa�de, na calma ou na tempestade, o jovem Metzengerstein
parecia
parafusado � sela daquele cavalo colossal, cujas ousadias intrat�veis t�o bem se
adequavam ao pr�prio esp�rito do dono.
Havia, al�m disso, circunst�ncias que, ligadas aos recentes acontecimentos,
davam um
car�ter sobrenatural e monstruoso � mania do cavaleiro e �s capacidades do
corcel. O
espa�o que ele transpunha em um simples salto fora cuidadosamente medido e
verificouse
que excedia, por uma diferen�a espantosa, as mais ousadas expectativas das mais
imaginosas criaturas. Al�m disso, o bar�o n�o tinha um nome particular para o
animal,
embora todos os outros de suas cavalari�as fossem diferen�ados por denomina��es
caracter�sticas. Sua estrebaria tamb�m ficava a certa dist�ncia dos restantes,
e, quanto
ao trato e outros servi�os necess�rios, ningu�m a n�o ser o dono em pessoa, se
havia
aventurado a faz�-los ou mesmo a entrar no recinto da baia particular daquele
cavalo.
Observou-se tamb�m que, embora os tr�s estribeiros que haviam capturado o corcel
quando este fugia do inc�ndio em Berlifitzing houvesse conseguido deter-lhe a
carreira
por meio dum la�o corredi�o, nenhum dos tr�s podia afirmar com certeza que
tivesse,
no
correr daquela perigosa luta, ou em outro qualquer tempo depois, posto a m�o
sobre o
corpo do animal. Provas de intelig�ncia caracter�stica na conduta dum nobre
cavalo
�rdego n�o bastariam, decerto para excitar uma aten��o desarrazoada, mas havia
certas
circunst�ncias que violentavam os esp�ritos mais c�pticos e mais fleum�ticos.
E dizia-se que, por vezes, o animal obrigava a multid�o curiosa que o cercava a
recuar
rde
horror diante da profunda e impressionante express�o de seu temperamento
terr�vel e
que, outras vezes o jovem Metzengerstein empalidecera e fugira diante da s�bita
e
inquisitiva express�o de seu olhar quase humano.
Entre toda a domesticidade do bar�o ningu�m havia, por�m, que duvidasse do ardor
daquela extraordin�ria afei��o que existia da parte do jovem fidalgo pelas
ferozes
qualidades de seu cavalo; ningu�m, exceto um insignificante e disforme
pajenzinho,
cujos
aleij�es estavam sempre � mostra de todos e cujas opini�es n�o tinham a m�nima
import�ncia poss�vel. Ele (se � que suas id�ias s�o dignas afinal de men��o)
tinha o
desplante de afirmar que seu senhor jamais montava na sela sem um estremecimento
inexplic�vel e quase impercept�vel, e que ao voltar de cada um de seus demorados
e
habituais passeios uma express�o de triunfante malignidade retorcia todos os
m�sculos
de sua fisionomia.
Numa noite tempestuosa, Metzengerstein, despertando dum sono pesado desceu, como
um man�aco, de seu quarto e, montando a cavalo, a toda a pressa lan�ou-se a
galope
para o labirinto da floresta. Uma ocorr�ncia t�o comum n�o atraiu particular
aten��o,
mas seu regresso foi esperado com intensa ansiedade pelos seus criados quando,
ap�s
algumas horas de aus�ncia, as estupendas e magn�ficas seteiras do pal�cio de
Metzengerstein se puseram a estalar e a tremer at� �s bases, sob a a��o duma
densa e
l�vida massa , de fogo indom�vel.
Como as chamas, quando foram vistas pela primeira vez j� tivessem feito t�o
terr�veis
progressos que todos os esfor�os para salvar qualquer parte do edif�cio eram
evidentemente in�teis, toda a vizinhan�a at�nita permanecia ociosa e calada,
sen�o
ap�tica. Mas outra coisa inesperada e terr�vel logo prendeu da turba e
demonstrou qu�o
muito mais intensa � a excita��o provocada nos sentimentos duma multid�o pelo
espet�culo da agonia humana do que suscitada pelas mais aterradoras cenas da
mat�ria
inanimada.
Ao longo da comprida avenida de anosos carvalhos que levava da floresta at� a
entrada
principal do pal�cio de Metzengerstein um corcel, conduzindo um cavaleiro sem
chap�u
e
em desordem era visto a pular com uma impetuosidade que ultrapassava a do
pr�prio
Dem�nio da Tempestade.
Era evidente que o cavaleiro n�o conseguia mais dominar a carreira do animal. A
ang�stia de sua fisionomia, os movimentos convulsivos de toda a sua pessoa
mostravam
o esfor�o sobre-humano no que fazia; mas som algum, a n�o ser um grito isolado,
escapava de seus l�bios lacerados, que ele mordia cada vez mais, no paradoxismo
do
terror. Num instante, o tropel dos cascos ressoou forte e �spero acima do
bramido das
labaredas e dos assobios do vento, um instante ainda e, transpondo dum s� salto
o
port�o e o fosso o corcel lan�ou-se pelas escadarias oscilantes do pal�cio e,
como o
cavaleiro, desapareceu no turbilh�o ca�tico do fogo.
A f�ria da tempestade imediatamente amainou e uma calma de morte sombriamente se
seguiu. Uma labareda p�lida ainda envolveu o edif�cio como uma mortalha, e,
elevando-
se
na atmosfera tranq�ila, dardejava um clar�o de luz sobrenatural, enquanto uma
nuvem
de fuma�a se abatia pesadamente sobre as ameias com a forma bem n�tida dum
gigantesco cavalo.
EDGAR ALLAN POE � CONTOS DE TERROR, MIST�RIO E MORTE
ELEONORA
Sub conservatione formae specificae salva anima. (sob a conserva��o da forma
espec�fica
salva a alma. N.T.]
RAIMUNDO LULIO
PROVENHO de uma ra�a not�vel pelo vigor da imagina��o e pelo ardor da
paix�o.Chamaram-me de louco; mas a quest�o ainda n�o est� resolvida: se a
loucura �
ou n�o a intelig�ncia sublimada, se muito do que � glorioso, se tudo o que �
profundo
n�o brota do pensamento enfermo, da maneira do esp�rito exaltado, a expensas da
intelig�ncia geral. Os que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos
que
sonham somente de noite. Nas suas vis�es nevoentas, logram vislumbres de
eternidade,
e
sentem viva emo��o, ao despertar, por descobrirem que estiveram no limiar do
grande
segredo. Aos poucos, v�o aprendendo algo da sabedoria, o que � bom, e muito mais
do
simples conhecimento, o que � mau. Penetram, contudo, sem leme e sem b�ssola, no
vasto oceano da "luz inef�vel", e de novo, como nas aventuras do ge�grafo N�bio,
agressi
sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.
Digamos, pois, que estou louco. Admito, pelo menos, que h� duas distintas
condi��es
de
minha exist�ncia mental: a condi��o duma raz�o l�cida, indiscut�vel, pertencente
�
mem�ria de acontecimentos que formam a primeira �poca de minha vida, e uma
condi��o
de sombra e d�vida, relativa ao presente e � recorda��o que constitui a segunda
grande
era do meu ser. Portanto, acreditem no que irei contar do primeiro per�odo, e,
ao que eu
irei relatar do tempo mais recente, d�em-lhe apenas o cr�dito que lhes merecer
ou
ponham tudo em d�vida; ou ainda, se n�o puderem duvidar, fa�am-se de �dipo
diante
do
enigma.
Aquela a quem amei na mocidade, e cujas lembran�as agora descrevo, calma e
nitidamente, era a filha �nica da �nica irm� da minha m�e, h� muito falecida.
Eleonora
se chamava minha prima. Sempre vivemos juntos, sob um sol tropical, no vale das
Relvas Multicores. Nenhum, passo perdido chegou alguma vez �quele vale, porque
jazia
bem distante e elevado, entre uma fileira de gigantescas colinas que se erguiam
em
torno
dele, impedindo que a luz do sol penetrasse nos seus mais doces recantos.
Nenhuma
vereda se abria na sua vizinhan�a, e para chegar ao nosso lar feliz havia
necessidade de
afastar, com for�a, a folhagem de muitos milhares de �rvores da floresta e de
esmagar
de
morte o esplendor flagrante de milh�es de flores. Era assim que viv�amos,
sozinhos,
nada
conhecendo do mundo sen�o o vale, eu, minha prima e sua m�e.
Das sombrias regi�es al�m das montanhas, no mais alto ponto do nosso limitado
dom�nio, serpeava estreito e profundo rio, mais brilhante do que tudo, exceto os
olhos
de
Eleonora; e, enroscando-se furtivamente em intrincados meandros, passava,
finalmente,
atrav�s de uma garganta trevosa, entre colinas ainda mais sombrias do que
aquelas
donde havia sa�do. N�s o cham�vamos o "rio do Sil�ncio", porque parecia haver
uma
influ�ncia silenciante na sua torrente. Nenhum murm�rio se erguia de seu leito,
e t�o
mansamente ele deslizava os seixos semelhantes a p�rolas que gost�vamos de
contemplar
bem no fundo do seu seio absolutamente n�o se moviam, mas jaziam num
contentamento
imoto, na mesma posi��o de outrora, esplendendo gloriosamente para sempre.
A margerm do rio e dos numerosos riachos refulgentes que resvalavam atrav�s de
caminhos tortuosos para o seu leito, bem como os espa�os que se estendiam das
margens para dentro das profundezas das torrentes at� alcan�arem a camada de
seixos
do fundo, esses lugares, n�o menos do que toda a superf�cie do vale, desde o rio
at� as
montanhas que o rodeavam, estavam atapetados por uma macia relva verde, espessa,
curta, perfeitamente igual, cheirando a baunilha, mas t�o pintalgada por toda a
parte de
ran�nculos , amarelos, brancas margaridas, roxas violetas, e as r�bidas
abr�teas, que
sua excessiva beleza falava a nossos cora��es, em altas vozes, do amor e da
gl�ria de
Deus.
E aqui e ali, em pequenos bosques, em torno dessa relva, como sonhos selv�ticos,
erguiam-se fant�sticas �rvores cujos caules altos e esbeltos n�o se
verticalizavam, mas
curvavam-se graciosamente para a luz que assomava ao meio-dia, no centro do
vale.
Sua
casca era mosqueada pelo v�vido e alternado esplendor do �bano e da prata e era
mais
macia do que tudo, exceto as faces de Eleonora; de modo que, n�o fosse o verde
brilhante
das enormes folhas que brotavam do alto de suas frondes em linhas longas e
tr�mulas,
brincando com os z�firos, poder-se-ia imaginar que fossem gigantescas serpentes
da
S�ria
prestando homenagem a seu soberano, o Sol.
Durante quinze anos, vagueamos, de m�os dadas, pelo vale, eu e Eleora, antes que
o
Amor penetrasse em nossos cora��es. Foi tarde, numa tarde, no fim do terceiro
lustro de
sua vida e no quarto da minha, em que nos ach�vamos sentados sob as �rvores
serpentinas, estreitamente abra�ados e contempl�vamos nossos rostos dentro da
�gua
do rio do Sil�ncio. Nem uma palavra dissemos durante o resto daquele dia suave,
e
mesmo no dia seguinte nossas palavras eram roucas e tr�mulas. T�nhamos arrancado
daquelas �guas o deus Eros e agora sent�amos que ele inflamara, dentro de n�s,
as almas
ardentes de nossos antepassados. As paix�es que durante s�culos haviam
distinguido
nossa ra�a vieram em turbilh�o com as fantasias pelas quais tinham sido
igualmente
not�veis e juntas sopraram uma delirante felicidade sobre o vale das Relvas
Multicores.
Todas as coisas se transformaram.
Flores estranhas e brilhantes, em forma de estrelas, brotaram nas �rvores onde
antes
nunca haviam sido vistas. Os matizes do verde tapete ficaram mais intensos, e,
quando
uma a uma, as brancas margaridas desapareceram, e floriram dezenas e dezenas de
r�bidas abr�teas. E a vida despertou nas nossas veredas, porque o alto flamingo,
at�
ent�o invis�vel, como todos os alegres p�ssaros resplendentes, ostentou para n�s
a
plumagem escarlate. Peixes de ouro e prata encheram o rio, de cujo seio
irrompeu,
pouco
a pouco, um murm�rio que foi crescendo, afinal, para se tornar uma melodia
embaladora
mais divina a da harpa de �olo, mais doce do que tudo, exceto a voz de Eleonora.
E ent�o, uma nuvem imensa, que h� muito observ�vamos nas regi�es de V�sper, veio
flutuando, toda rebrilhante de carmim e ouro, e pairou tranq�ila sobre n�s,
descendo,
dia a dia, cada vez mais baixo, at� que suas extremidades descansaram sobre o
cume das
montanhas, transformando-lhes o negror em magnific�ncia e encerrando-nos, como
que
para sempre, dentro de uma m�gica pris�o de grandeza e de gl�ria.
A beleza de Eleonora era ang�lica; era uma mo�a natural e inocente como a breve
vida
que levara entre as flores. Nenhum artif�cio disfar�ava o f�rvido amor que lhe
animava
o
cora��o e examinava comigo os seus mais remotos recantos quando juntos
passe�vamos
no vale das Relvas Multicores, discorrendo a respeito das grandiosas mudan�as
que ali
haviam recentemente ocorrido.
Afinal, tendo um dia falado, entre l�grimas, da derradeira triste mudan�a que
deveria
sobrevir � Humanidade, da� por diante s� tratou desse tristonho tema,
entremeando-o
em todas as nossas conversas, como as imagens que surgem, sempre as mesmas, a
todo
instante, a cada varia��o impressiva da frase, nos poemas do de Schiraz.
Vira que o dedo da Morte lhe calcava o seio e que, como ef�mera, toda aquela
beleza
perfeita lhe fora dada apenas para morrer; mas, para ela, os terrores do t�mulo
consistiam somente numa considera��o que me revelou certa tarde, ao crep�sculo,
junto
�s margens do rio do Sil�ncio. Afligia-a o pensar que, tendo-a sepultado, no
vale das
Relvas Multicores, eu abandonasse para sempre aqueles felizes recantos,
transferindo o
amor que agora t�o apaixonadamente lhe dedicava para alguma mo�a do mundo
exterior
e cotidiano.
Ali, ent�o, lancei-me precipitadamente aos p�s de Eleonora e fiz um voto, a ela
e ao C�u
de que jamais me casaria com qualquer filha da Terra, de que, de modo algum,
seria
perjuro � sua querida mem�ria ou � mem�ria do devotado afeto com que ela me
tornara
feliz. E invoquei o Supremo Senhor do universo como testemunha da piedosa
solenidade
de meu voto. E a maldi��o que para mim pedi a Ele e a ela, santa do Eliseu, se
me
mostrasse traidor a essa promessa encerrava um castigo de t�o excessivo horror
que n�o
me � permitido mencion�-lo aqui. E os brilhantes olhos de Eleonora mais
brilhantes se
tornaram ao ouvir minhas palavras. Suspirou, como se um peso mortal lhe tivesse
sido
tirado do peito, e tremeu e chorou amargamente, mas aceitou o voto ( que era ela
sen�o
uma crian�a?) e isso lhe tornou mais f�cil o leito de morte. E ela me disse, n�o
muitos
dias depois, ao morrer tranq�ilamente, que, pelo que eu fizera para lhe
confortar o
esp�rito, velaria por mim em esp�rito quando morresse e, se lhe permitido,
voltaria a
mim
em forma vis�vel nas vig�lias da noite, mas, se isso fosse realmente superior ao
poder
das
almas no Para�so, ela pelo menos me daria freq�entes indica��es de sua,
presen�a,
suspirando ao meu lado no vento da tarde, ou enchendo o vento que eu respirava
com o
perfume dos tur�bulos dos anjos. E, com essas palavras nos l�bios, entregou sua
vida
inocente, pondo um fim no primeiro per�odo da minha.
At� aqui narrei fielmente. Mas, ao transpor a barreira da vereda do tempo
formada pela
morte da minha bem-amada e continuar a segunda era de minha exist�ncia, sinto
que
uma sombra se espalha no meu c�rebro e n�o confio na perfeita sanidade da
narrativa,
mais vamos adiante. Os anos passaram lenta e pesadamente e eu morava ainda no
vale
das Relvas Multicores; por�m, uma segunda mudan�a operou-se em todas as coisas.
As
flores, em formas de estrela, murcharam nos caules das �rvores e n�o mais
apareceram.
Desbotaram-se os matizes do verde tapete; e, uma a uma, as r�bias abr�teas
feneceram.
E em lugar delas ali brotaram, �s desenas, os olhos escuros das violetas, que se
retorciam inquietas e estavam sempre pesadas de orvalho.
E a Vida fugiu de nossos caminhos, porque o alto flamingo n�o mais ostentou para
n�s
a
escarlate plumagem, mas voou tristemente do vale para as colinas, com todos os
resplendentes p�ssaros que tinham vindo em sua companhia. E os peixes de ouro e
prata
nadaram atrav�s da garganta para a parte mais baixa de nosso dom�nio e nunca
mais
encheram o manso rio. E a melodia embaladora que tinha sido mais suave que a
harpa
e�lia e mais divina do que tudo, exceto a voz de Eleonora, foi pouco a pouco
morrendo,
em murm�rios cada vez menos aud�veis, at� que a corrente voltou, afinal,
inteiramente,
�
solenidade de seu sil�ncio primitivo. E depois, finalmente, a imensa nuvem se
ergueu e,
abandonando os cumes das montanhas ao seu negror de outrora, voltou �s regi�es
de
V�sper, levando consigo todo o seu �ureo esplendor magnificente, para longe do
vale
das
Multicores.
Contudo as promessas de Eleonora n�o foram olvidadas, pois eu ouvia o balou�ar
sonoro
dos tur�bulos dos anjos, e ondas de sagrado perfume n�o cessavam de flutuar por
todo o
vale. E nas horas solit�rias quando meu cora��o batia opresso os ventos que me
banhavam a fronte chegavam at� mim carregados de leves suspiros, e indistintos
murm�rios enchiam muitas vezes o ar noturno.
Certa vez - oh, uma vez somente! -, fui despertado dum sono, semelhante ao sono
da
morte, pela press�o de l�bios espirituais na minha face.Mas o v�cuo em meu
cora��o
recusava-se, mesmo assim a preencher-se. Desejava ardentemente o amor que o
tinha
enchido at� as bordas. Por fim, o vale passou a atormentar-me com a lembran�a de
Eleonora, e eu o deixei para sempre pelas vaidades e turbulentos triunfos do
mundo.
Encontrei-me numa estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para
apagar da mem�ria os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale das Relvas
Multicores. As pompas e faustos de uma corte majestosa, e o louco clangor de
armas, e
a
formosura das mulheres perturbaram e envenenaram-me o c�rebro. Mesmo assim,
minha alma continuara fiel a seus votos, e os sinais da presen�a de Eleonora
eram-me
ainda mostrados nas horas silentes da noite.
De repente, essas manifesta��es cessaram e o mundo se tornou mais negro diante
de
meus olhos. Fiquei horrorizado diante dos ardentes pensamentos que me possu�am,
das
terr�veis tenta��es que me cercavam, porque tinha chegado � alegre corte do rei
que eu
servia, vinda de long�nqua e ignota regi�o, uma donzela, cuja beleza todo o meu
perjuro
cora��o imediatamente se rendeu diante de cujo escabelo eu me curvava sem
relutar, no
mais ardente e no mais abjeto culto de amor. Que era, na verdade a minha paix�o
pela
jovem do vale, comparada com o fervor, o del�rio, com o enlevante �xtase de
adora��o
com
que eu arrojava toda a minha alma em prantos aos p�s da et�rea Hermengarda! Oh,
a
radiosa e ser�fica Herm�ngarda! E nesta cren�a, lugar n�o havia para nenhuma
outra.
Oh, a divina e ang�lica Hermengarda! E ao baixar o olhar para as profundezas de
seus
olhos inesquec�veis somente neles pensava.. . e "nela".
Casei-me, sem temer a maldi��o que havia invocado. E seu rigor n�o se abateu
sobre
mim. E uma vez, mais uma vez ainda no sil�ncio da noite, chegaram-me, atrav�s
das
gelosias, os suaves suspiros que me tinham abandonado, modulando-se numa voz
familiar e doce, que dizia:
- Dorme em paz! Porque o Esp�rito do Amor reina e governa e, afei�oando-te, com
teu
apaixonado cora��o, �quela que � Hermengarda, est�s dispensado, em virtude de
raz�es
que ir�s conhecer no C�u, dos votos que fizeste a Eleonora.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O RETRATO OVAL
O CASTELO cuja entrada meu criado se aventurara a for�ar para n�o deixar que eu
passasse a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses
monumentos
ao mesmo tempo grandiosos e sombrios que por tanto tempo se ergueram carrancudos
entre os Apeninos, tanto na realidade como na imagina��o da Sra. Radcliffe.
Segundo
todas as apar�ncias, tinha sido tempor�ria e muito recentemente abandonado.
Aboletamo-nos em uma das salas menores e menos suntuosamente mobiliadas,
localizada num afastado torre�o do edif�cio. Eram ricas, embora estragadas e
antigas
suas
decora��es. Tape�arias pendiam das paredes, adornadas com v�rios e multiformes
trof�us de armas, de mistura com um n�mero ins�lito de quadros de estilo bem
moderno
em molduras de ricos arabescos de ouro. Por esses quadros, que enchiam n�o s�
todas
as paredes, mas ainda os numerosos �ngulos que a esquisita arquitetura do
castelo
formava, meu del�rio incipiente me fizera talvez tomar profundo interesse. Assim
� que
mandei Pedro fechar os pesados postigos da sala pois j� era noite, acender as
velas de
um
enorme candelabro que se achava � cabeceira de minha cama e abrir completamente
as
franjadas cortinas de veludo preto que envolviam o leito. Desejei que tudo isso
fosse
feito,
a fim de que pudesse abandonar-me sen�o ao sono, pelo menos, alternativamente, �
contempla��o desses quadros e � leitura de um livrinho que encontrara sobre o
travesseiro e que continha a critica e a descri��o das pinturas.Li, li durante
muito tempo
e longamente contemplei aqueles quadros.
R�pida e esplendidamente as horas se escoaram e a profunda meia-noite chegou. A
posi��o do candelabro me desagradava e, estendendo a m�o, com dificuldade, para
n�o
perturbar o sono do criado, coloquei-o de modo a lan�ar seus raios de luz em
cheio
sobre
o livro.
Esse gesto, por�m, produziu um efeito totalmente inesperado. Os raios das
numerosas
velas (pois haviam muitas) ca�am agora dentro de um nicho da sala que ate ent�o
estivera mergulhado na intensa sombra lan�ada por uma das colunas da cama. E
assim
vi, plena luz, um retrato at� ent�o despercebido. Era o retrato de uma jovem no
alvorecer
da feminilidade. Olhei rapidamente para o retrato e depois fechei os olhos. Por
que isso
fizera, eu mesmo n�o o percebi a principio. Mas, enquanto minhas p�lpebras
permaneciam fechadas, revolvi na mente a raz�o de assim ter feito. Era um
movimento
impulsivo, para ganhar tempo de pensar, para certificar-me de que minha vista
n�o me
iludira, para acalmar e dominar a fantasia, for�ando-a a uma contempla��o mais
serena
e
mais segura.
Logo depois, olhei de novo, fixamente. para o quadro.
Do que ent�o vi claramente n�o poderia nem deveria duvidar. Porque o primeiro
clar�o
das velas sobre aquele quadro como que dissipou o sonolento torpor que
furtivamente se
apossava de meus sentidos e sem demora me p�s completamente desperto.
O retrato, como j� disse, era o de uma jovem. Apenas a cabe�a e os ombros,
feitos na
maneira tecnicamente chamada vignette, e bastante no estilo das cabe�as
favoritas de
Sully.
Os bra�os, o colo, e mesmo as pontas do cabelo luminoso perdiam-se
imperceptivelmente
na vaga por�m profunda sombra formada pelo fundo do conjunto. A moldura era
oval,
ricamente dourada e filigranada � mourisca. Como obra de arte, nada podia ser
mais
admir�vel do que a pr�pria pintura. Mas aquela como��o t�o s�bita e t�o intensa
n�o me
viera nem da execu��o da obra nem da imortal beleza do semblante. Menos do que
tudo
poderia ter sido minha imagina��o que despertada de seu semi torpor, teria
tomado
aquela cabe�a pela de uma pessoa viva. Vi imediatamente que as peculiaridades do
desenho, do trabalho do vinhetista e da moldura deviam ter de pronto dissipado
tal
id�ia,
impedido mesmo seu moment�neo aparecimento. Permaneci quase talvez uma hora
semierguido,
semi-inclinado, a pensar intensamente sobre tais pormenores, com a vista fixada
no retrato. Por fim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, deixei-
me cair na
cama. Descobrira que o encanto do retrato estava na express�o de uma absoluta
apar�ncia de vida que a princ�pio me espantou para afinal confundir-me, dominar-
me e
aterrar-me.
Com profundo e reverente temor, tornei a p�r o candelabro em sua primitiva
posi��o.
Afastada assim de minha vista a causa de minha aguda agita��o, busquei
avidamente o
volume que descrevia as pinturas e sua hist�ria. Procurando a p�gina que se
referia ao
retrato oval , li as imprecisas e fant�sticas palavras que se seguem:
Era uma donzela da mais rara beleza e n�o s� am�vel como cheia de alegria. E
maldita
foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era apaixonado,
estudioso,
austero e j� tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma donzela da mais rara beleza
e n�o
s� am�vel como cheia de alegria, toda luz e sorrisos, travessa como uma jovem
cor�a;
amando com carinho todas as coisas; odiando somente a Arte, que era sua rival;
temendo
apenas a paleta, os pinc�is e os outros sinistros instrumentos que a privavam da
contempla��o do seu amado. Era pois terr�vel coisa para essa mulher ouvir o
pintor
exprimir o desejo de pintar o pr�prio retrato de sua jovem esposa. Ela era,
por�m,
humilde e obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto
do
torre�o, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva
tela.
Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, que continuava de hora em hora,
de dia
em
dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em
devaneios;
assim n�o percebia que a luz que ca�a t�o l�vida naquele torre�o solit�rio ia
murchando a
sa�de e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos
para ele.
Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que
o pintor
(que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava,
dia e
noite,
por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste
e fraca.
E, na verdade, alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua semelhan�a
como
de uma extraordin�ria maravilha, prova n�o s� da mestria como de seu intenso
amor por
aquela a quem pintava de modo t�o ex�mio. Mas afinal, ao chegar o trabalho quase
a seu
termo, ningu�m mais foi admitido no torre�o, porque o pintor se tornara rude no
ardor
de seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o
semblante de sua esposa. E n�o percebia que as tintas que espalhava sobre a tela
eram
tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando j� se haviam
passado
v�rias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um
colorido
nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma
l�mpada. E ent�o foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um
instante o
pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida,
enquanto
ainda contemplava, p�s-se a tremer e, p�lido, horrorizado, exclamou em voz alta:
"Isto �
na verdade a pr�pria vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada...
Estava
morta!
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
A M�SCARA DA MORTE RUBRA
DURANTE muito tempo devastara a "Morte Rubra" aquele pa�s. Jamais se vira peste
t�o
fatal e t�o terr�vel. O sangue era a sua encarna��o e o seu sinete: a
vermelhid�o e o
horror do sangue. Aparecia com agudas dores e s�bitas vertigens, seguindo-se
profusa
sangueira pelos poros e a decomposi��o. Manchas escarlates no corpo e sobretudo
no
rosto da v�tima eram o an�tema da peste, que a privava do aux�lio e da simpatia
de seus
semelhantes. E toda a erup��o progresso e t�rmino da doen�a n�o duravam mais de
meia
hora.
Mas o Pr�ncipe Pr�spero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus dom�nios se
viram
despovoados da metade de seus habitantes mandou chamar � sua presen�a um
milheiro
de amigos sadios e joviais dentre os cavalheiros e damas de sua corte,
retirando-se com
eles, em total reclus�o, para uma de suas abadias fortificadas. Era um edif�cio
vasto e
magn�fico, cria��o de pr�ncipes de gosto exc�ntrico, embora majestoso. Cercava-o
forte
e
elevada muralha com portas de ferro. Logo que entraram, os cortes�os trouxeram
fornos
e
pesados martelos para rebitar os ferrolhos. Tinham resolvido n�o proporcionar
meios de
entrada ou sa�da aos s�bitos impulsos de desespero dos de fora ou ao frenesi dos
de
dentro.
A abadia estava fartamente provida. Com tais precau��es, podiam os cortes�os
desafiar
o
cont�gio. Que o mundo exterior se arranjasse por si. Enquanto isso, de nada
valia nele
pensar, ou afligir por sua causa. Providenciara o pr�ncipe para que n�o
faltassem
divers�es. Havia jograis, improvisadores, bailarinos. m�sicos. Havia beleza e
havia
vinho.
L� dentro, tudo isso e seguran�a. L� fora a "Morte Rubra".Foi quase ao t�rmino
do
quinto
ou sexto m�s de sua reclus�o enquanto a peste raivava mais furiosamente l� fora,
que o
Pr�ncipe Pr�spero ofereceu a seus mil amigos um baile de m�scaras da mais
extraordin�ria magnific�ncia.
Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Mas antes descrevamos os sal�es em que
ela
se desenrolava. Era uma s�rie imperial de sete sal�es. Em muitos pal�cios,
contudo, tais
sucess�es de salas formavam uma longa e reta perspectiva quando as portas se
abrem de
par em par n�o havendo quase obst�culo � perfeita vis�o de todo o conjunto .
Aqui, o
caso era bastante diverso, coisa ali�s de esperar do amor do duque pelo
fant�stico. Os
aposentos estavam t�o irregularmente dispostos que a vis�o abrangia pouco mais
de um
de cada vez. De vinte ou de trinta em trinta jardas havia uma curva aguda e, a
cada
curva, uma nova impress�o.A direita e � esquerda, no meio de cada parede, uma
enorme
e estreita janela g�tica abria-se para um corredor fechado que acompanhava as
voltas do
conjunto. Essas janelas eram providas de vitrais, variava de acordo com o tom
dominante
das decora��es do aposento para onde se abriam. O da extremidade oriental, por
exemplo
era azul, e de azul vivo eram suas janelas. O segundo tinha ornamentos e
tape�arias
purp�reos, e purp�reas eram as vidra�as. O terceiro era todo verde, e verdes
eram
tamb�m as esquadrias das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com
laranjada. O quinto era branco, e o sexto, roxo. O s�timo o estava totalmente
coberto de
tape�arias de veludo preto, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em
pesadas
dobras um tapete do mesmo material e da mesma cor. Mas somente nesta sala a cor
das
janelas n�o correspondia � das decora��es. As vidra�as ali, eram escarlates, da
cor de
sangue vivo.
Ora, em nenhum daqueles sete sal�es havia qualquer l�mpada ou candelabro em meio
�
profus�o de ornamentos dourados que se espalhavam por todos os cantos ou pendiam
do
forro. Luz de esp�cie alguma emanava de l�mpada ou vela, dentro da s�rie de
salas.
Mas,
nos corredores que acompanhavam a perspectiva, erguia-se em frente de cada
janela,
uma pesada tr�pode com um braseiro que projetava seus raios pelos vitrais
coloridos e
assim iluminava deslumbrantemente a sala, produzindo numerosos aspectos vistosos
e
fant�sticos. Na sala negra, por�m, o efeito do clar�o dava sobre as negras
cortinas,
atrav�s das vidra�as tintas de .sangue, era extremamente l�vido e dava uma
apar�ncia
t�o
estranha �s fisionomias dos que entravam que poucos eram os bastante ousados
para
nela penetrar.
Era tamb�m nesse sal�o que se erguia, encostado � parede que dava para oeste, um
gigantesco rel�gio de �bano. O p�ndulo oscilava para l� e para c�, com um tique-
taque
vagaroso, pesado, mon�tono. E quando o ponteiro dos minutos conclu�a o circuito
do
mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulm�es de bronze do rel�gio um som
claro,
elevado, agudo e excessivamente musical, enf�tico e caracter�stico que, de hora
em
hora,
os m�sicos da orquestra viam-se for�ados a parar por instantes a execu��o da
musica
para ouvir-lhe o som: e dessa forma, obrigatoriamente, cessavam os dan�arinos
suas
evolu��es e toda a alegre companhia sentia-se por instantes, perturbada. E
enquanto os
carrilh�es do rel�gio ainda soavam, observava-se que os mais alegres tornavam-se
p�lidos e os mais idosos e serenos passavam as m�os pela fronte, como se em
confuso
devaneio ou medita��o. Mas quando os ecos cessavam por completo, leves risadas
imediatamente contagiavam a reuni�o; os m�sicos olhavam uns para os outros e
sorriam
de seu pr�prio nervoso e loucura, fazendo votos sussurrados, uns aos outros para
que o
pr�ximo carrilhoar do rel�gio n�o produzisse id�ntica emo��o. E, no entanto,
passados
os
sessenta minutos ( que abarcam tr�s mil e seiscentos segundos do Tempo que voa),
ou
de
novo outro carrilhoar do rel�gio, e de novo se viam a mesma perturba��o, o mesmo
tremor, as mesmas atitudes meditativas a despeito, por�m, de tudo isso, que
espl�ndida
e
magn�fica folia.
O duque tinha gostos caracter�sticos. Sabia escolher cores e efeitos. Desprezava
os
ornamentos apenas em moda. Seus desenhos muito audazes e vivos, e suas
concep��es
esplendiam com um lustre b�rbaro. Muita gente o julgava louco. Mas seus
cortes�os
achavam que n�o. Era preciso ouvi-lo, v�-lo e toc�-lo, para se estar certo que
ele n�o o
era.
Por ocasi�o dessa grande festa, dirigira ele pr�prio, em grande parte, os
mut�veis
adornos
dos sete sal�es e fora o seu pr�prio gosto orientador que escolhera as
fantasias. Mas n�o
havia d�vidas de que eram grotescas. Havia muito brilho, muito esplendor, na
coisa
berrante e fant�stica - muito disso que depois se viu no Hernani. Havia formas
arabescas, com membros e adornos desproporcionados.
Havia concep��es delirantes, como cria��es de louco; havia muito de belo e muito
de
atrevido, de esquisito, algo de terr�vel e pouco do que poderia causar avers�o.
Na
realidade, uma multid�o de sonhos deslizava para l� e para c� nas sete salas. E
estes
sonhos giravam de um canto para outro, tomando a cor das salas, e fazendo a
m�sica
extravagante da orquestra parecer o eco de seus passos.
Mas logo soava o rel�gio de �bano que se erguia na parede de veludo. E ent�o,
durante
um instante, tudo parava e tudo silenciava exceto a voz do rel�gio. Os sonhos
paravam,
como que gelados. Os ecos do carrilh�o, por�m, morriam - haviam durado apenas um
instante -, e uma leve gargalhada, mal contida, acompanhava os ecos que morriam.
E
logo depois a m�sica explodia, e os sonhos reviviam e rodopiavam mais
alegremente do
que dantes, tingiam da cor das janelas multicoloridas, atrav�s das quais se
filtravam ,os
luminosos raios das tr�podes.
Mas ent�o nenhum dos mascarados se aventurava at� a sala que, entre as sete,
mais ao
ocidente se encontrava, porque a noite estava declinando e ali dimanava luz mais
vermelha atrav�s das vidra�as sang�ineas, e o negrol dos panejamentos tenebrosos
apavorava. E, para aqueles cujos p�s pisavam o tapete negro, do rel�gio de �bano
ali
perto
provinha rumor abafado, mais solenemente enf�tico do que o que alcan�ava os
ouvidos
de quem se comprazia nas alegrias dos outros aposentos mais distantes.
Mas esses outros aposentos estavam densamente apinhados e palpitava febrilmente
o
cora��o da vida. E a folia continuou a rodopiar, at� que afinal o rel�gio
come�ou a soar
a
meia-noite. E, ent�o a m�sica parou, como j� disse; e aquietaram-se as evolu��es
dos
dan�arinos; e, como dantes, houve uma perturbadora parada de tudo. Mas agora o
carrilh�o do rel�gio teria de bater doze pancadas. E por isso aconteceu talvez
que maior
n�mero de pensamentos, e mais demoradamente, se inserisse nas medita��es
daqueles
que, entre os que se divertiam, meditavam. E por isso talvez aconteceu tamb�m
que,
antes de silenciarem por completo os derradeiros ecos da �ltima pancada, muitos
foram
os indiv�duos, em meio a multid�o, que puderam certificar-se da presen�a de um
vulto
mascarado que at� ent�o n�o havia chamado a aten��o de ningu�m, tendo-se
espalhado,
aos cochichos, a not�cia dessa nova presen�a elevou-se imediatamente dentre a
turba um
burburinho ou murm�rio que exprimia desaprova��o e surpresa a princ�pio e,
terror,
horror e n�usea.
Numa assembl�ia de fantasmas, tal como a descrevi, bem se pode supor que tal
agita��o
n�o podia ter sido causada por apar�ncia vulgar. Na verdade, a licen�a
carnavalesca da
noite quase ilimitada; mas o vulto em quest�o excedia o pr�prio Herodes em
extravag�ncia e ia al�m dos limites indecisos de dec�ncia exigidos pelo pr�prio
pr�ncipe.
H� no cora��o dos mais levianos fibras que n�o podem ser tocadas sem emo��o.
Mesmo
para os mais divertidos, para quem a vida e a morte s�o id�nticos brinquedos
assuntos
com os quais n�o se pode brincar. Todos os presentes de fato, pareciam agora
sentir
profundamente que nos trajes e atitudes do estranho n�o havia finura nem
conveni�ncia.
Era alto e l�vido, e envolvia-se, da cabe�a aos p�s, em mortalhas tumulares. A
m�scara
que ocultava o rosto era t�o de modo a quase representar a fisionomia de um
cad�ver
enrijecido que a observa��o acurada teria dificuldade em perceber o engano. E,
contudo,
tudo isso poderia tolerar-se, se n�o mesmo aprovar-se, pelos loucos foli�es, n�o
tivesse
o
mascarado ido ao de figurar o tipo da "Morte Rubra". Seu traje estava salpicado
de
sangue, e a ampla testa, assim como toda a face, borrifada de rendas placas
escarlates.
Quando os olhos do Pr�ncipe Pr�spero ca�ram sobre aquela imagem espectral (que,
em
movimentos lentos e solenes, como se quisesse representar mais completamente seu
papel, rodopiava aqui e ali entre os dan�armos), viram-no ser tomado de
convuls�es, a
princ�pio um forte tremor de p�nico ou repugn�ncia, para logo depois enrubescer-
se de
raiva.
-Quem ousa - perguntou ele, roucamente, aos cortes�os que o cercavam -, quem
ousa
insultar-nos com t�o blasfema pilh�ria? Agarrem-no e desmascarem-no, para
podermos
conhecer quem teremos de enforcar, ao amanhecer, no alto das ameias!
Ao pronunciar estas palavras achava-se o Pr�ncipe Pr�spero no sal�o dourado e
azul, do
lado do poente. Elas atravessaram todas as sete salas, alta e claramente, pois o
pr�ncipe
era um homem ousado e robusto e a m�sica havia silenciado a um gesto de sua m�o.
Era no sal�o azul que se achava o pr�ncipe, tendo ao lado um grupo de cortes�os
p�lidos.
Logo que ele falou, houve um leve movimento de investida por parte daquele grupo
na
dire��o do intruso que, no momento, se encontrava quase ao alcance da m�o, em
passadas firmes e decididas, mais se aproximava do pr�ncipe. Mas em virtude de
um
indefin�vel terror que a todos os presentes causara o louco atrevimento do
mascarado,
n�o se achou que ousasse estender a m�o para agarr�-lo. De modo que.sem
impecilho,
passou a uma jarda do pr�ncipe, e, enquanto toda a assembl�ia, como movida por
um s�
impulso, recuava do centro das salas para as paredes, seguiu ele seu caminho sem
deterse
com os mesmos passos solenes e medidos que o haviam distinguido, do sal�o azul
ao
sal�o purp�reo, do p�rpuro ao verde, do verde ao alaranjado, deste ao branco e
at� o
roxo, sem que um movimento de decis�o se fizesse para det�-lo.
Foi ent�o, por�m, que o Pr�ncipe Pr�spero, enlouquecido de vergonha de sua
pr�pria e
moment�nea covardia, correu precipitadamente atrav�s das seis salas, sem que
ningu�m
o seguisse, pois um terror mortal de todos se apossara. Brandia um punhal
desembanhado e se aproximara, com r�pida impetuosidade, a poucos passos do vulto
que
se retirava, quando este �ltimo, tendo alcan�ado a extremidade do sal�o de
veludo,
voltou-se subitamente e arrostou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo e o
punhal
caiu, cintilante sobre o negro tapete, onde, logo, instantaneamente, tombou
mortalmente
abatido o Pr�ncipe Pr�spero. Ent�o, recorrendo a coragem selvagem do desespero,
numerosos foli�es lan�aram-se sem demora no l�gubre aposento, e, agarrando o
mascarado, cujo alto vulto permanecia ereto e im�vel dentro da sombra do rel�gio
de
�bano, pararam, arfantes de indiz�vel pavor, ao sentir que nenhuma forma
tang�vel se
encontrava sob a mortalha e por tr�s da mascara cadav�rica, quando as seguraram
com
violenta rudeza.
E foi ent�o que reconheceram estar ali presente a "Morte Rubra". Ali penetrara,
como
um
ladr�o noturno. E um a um, foram todos os foli�es, nos sal�es da orgia,
orvalhados de
sangue, morrendo na mesma posi��o desesperada de sua queda. E a vida do rel�gio
de
�bano se extinguiu com a do �ltimo dos foli�es. E as chamas das tr�podes
expiraram. E
o
ilimitado poder da Treva, da Ru�na, e da "Morte Rubra" dominou tudo.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERRO, MIST�RIO
E MORTE
O CORA��O DENUNCIADOR
� verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas,
por
que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me agu�ou os sentidos, n�o os
destruiu,
n�o os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audi��o. Eu ouvia
todas
as coisas, no c�u e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, ent�o, sou
louco?
Prestai aten��o! E observai qu�o lucidamente, qu�o calmamente vos posso contar
toda a
est�ria.
� imposs�vel dizer como a id�ia me penetrou primeiro no c�rebro. Uma vez
concebida,
por�m, ela me perseguiu dia e noite. N�o havia motivo. N�o havia c�lera. Eu
gostava do
velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu n�o desejava seu ouro.
Penso
que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um
abutre. . .
um olho de cor azul-p�lido, que sofria de catarata.
Meu sangue se enregelava sempre que ele ca�a sobre assim, e assim, pouco a
pouco,
bem
lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele
olho
para
sempre.
Ora, a� � que est� o problema. Imaginais que sou louco.
Os loucos nada sabem. Dever�eis, por�m, ter-me visto. Deveria ter visto como
procedi
cautamente! Com que prud�ncia...com que previs�o. . . com que dissimula��o
lancei
m�os � obra!
Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira
antes de
mat�-lo. E todas as noites, por meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu
quarto e
abria-a�oh, bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para
conter
minha cabe�a, eu introduzia uma lanterna com tampa toda velada, bem velada, de
modo
que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabe�a. Oh,
ter�eis rido
ao ver como a enfiava habilmente!
Movia-a lentamente. . . muito� muito lentamente, a fim de n�o perturbar o sono
do
velho. Levava uma hora para colocar a cabe�a inteira al�m da abertura, at� pod�-
lo ver
deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois quando minha
cabe�a
estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente. . -
oh, bem
cautelosamente! Sim, cautelosamente (porque a dobradi�a rangia) . . . abria-a s�
at�
permitir que apenas um d�bil raio de luz ca�sse sobre o olho de abutre. E isto
eu fiz
durante sete longas noites. . . sempre precisamente a meia-noite. . . e sempre
encontrei o
olho fechado. Assim, era imposs�vel fazer a minha tarefa, porque n�o era o velho
que
me
perturbava, mas seu olho diab�lico. E todas as manh�s, quando o dia raiava, eu
penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome
com
ternura e perguntando como havia passado a noite. Por a� vedes que ele
precisaria ser
um
velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente as doze
horas, eu
o espreitava, enquanto dormia.
Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de h�bito ao abrir a porta. O
ponteiro dos
minutos de um rel�gio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais,
antes
daquela noite, sentira eu tanto a extens�o de meus pr�prios poderes, de minha
sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali
estava eu,
a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou
pensamentos secretos�Ri entre os dentes, a essa id�ia, e talvez ele me tivesse
ouvido,
porque se moveu de s�bito na cama, como se assustado. Pensais talvez que recuei?
N�o!
O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se
achavam
hermeticamente fechados, por medo aos ladr�es. E eu sabia, assim, que ele n�o
podia
ver
a abertura da porta; continuei a avan�ar, cada vez mais, cada vez mais.J� estava
com a
cabe�a dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar
deslizou
sobre
o fecho de lata e o velho saltou na cama, gritando:Quem est� a�?
Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, n�o movi
um
m�sculo e, por todo esse tempo, n�o o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava
sentado
na cama, � escuta; justamente como eu fizera, noite ap�s noite, ouvindo a ronda
da
morte
pr�xima.
Depois ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. N�o era um
gemido
de dor ou de pesar.. . oh, n�o! Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo
da
alma
quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar
meianoite,
quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu pr�prio peito, agu�ando, com
seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia.
Conheci
tamb�m o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no
cora��o. Eu
sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara na
cama.
Da� por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imagin�-los sem motivo,
mas
n�o
fora poss�vel. Dissera si mesmo: "� s� o vento na chamin��ou � s� um rato
andando
pelo
ch�o", ou "foi apenas um grilo que cantou; um instante s�. Sim ele estivera
tentando
animar-se com estas suposi��es, mas tudo fora em v�o. Tudo em v�o, porque a
Morte,
ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela
a
v�tima.
E era a influ�ncia t�trica dessa sombra n�o percebida que o levava a sentir -
embora n�o
visse nem ouvisse -, a sentir a presen�a de minha cabe�a dentro do quarto.
Depois de esperar longo tempo, com muita paci�ncia, sem ouvi-lo deitar-se,
resolvi
abrir
um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a - podeis imaginar qu�o
furtivamente - at�, que por fim, um raio de luz apenas, t�nue como o fio de uma
teia de
aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.
Ele estava aberto. . . todo, plenamente aberto. . . e, ao contempl�-lo a minha
f�ria
cresceu. Vi-o, com perfeita clareza, todo de um azul-desbotado, com uma horr�vel
pel�cula
a cobri-lo, o que me enregelava at� a medula dos ossos. Mas n�o podia ver nada
mais da
face ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o
maldito lugar.
Ora, n�o vos disse que apenas � super acuidade dos sentidos aquilo que
erradamente
julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos um som baixo, mon�tono,
r�pido como o de um rel�gio quando abafado em algod�o. Igualmente eu bem sabia
que
som era. Era o bater do cora��o do velho. Ele me aumentava a f�ria como o bater
de um
tambor estimula a coragem do soldado.
Ainda a�, por�m, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter t�o fixamente quanto
pude a
r�stia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal t�-t� do cora��o
aumentava. A
cada instante ficava mais alto, mais r�pido, mais alto, mais r�pido! O terror do
velho
deve ter sido extremo! Cada vez mais alto, repito a cada momento!
Prestais-me bem aten��o? Disse-vos que sou nervoso, sou. E ent�o, �quela hora
morta
da
noite, o bater t�o estranho excitou em mim um terror incontrol�vel. Contudo, por
alguns
minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto.
Julguei
que o cora��o ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia
ser
ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro,
escancarei
a
lanterna e pulei para dentro do quarto.
Ele guinchou mais uma vez.. uma vez s�. Num instante, arrastei-o para o soalho e
virei
a
pesada cama sobre ele. Ent�o sorri alegremente por ver a fa�anha realizada. Mas,
durante muitos minutos, o cora��o continuou a bater, com som surdo. Isto, por�m,
n�o
me vexava. N�o seria ouvido atrav�s da parede. Afinal cessou.O velho estava
morto.
Removi a cama e examinei o cad�ver. Sim, era uma pedra, morto como uma pedra.
Coloquei minha m�o sobre o cora��o e ali a mantive durante muitos minutos. N�o
havia
pulsa��o. Estava petrificado. Seu olhos n�o mais me perturbariam.
Se ainda pensais que sou louco, n�o mais o pensareis, quando eu descrever as
s�bias
precau��es que tomei para ocultar o cad�ver. A noite avan�ava e eu trabalhava
apressadamente, por�m em sil�ncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo.
Cortei-lhe
a
cabe�a, os bra�os e as pernas.Arranquei depois tr�s pranchas do soalho do quarto
e
coloquei tudo entre os v�os. Depois recoloquei as t�buas, com tamanha habilidade
e
perfei��o que nenhum olhar humano - nem mesmo o dele - poderia distinguir
qualquer
coisa suspeita. Nada havia a lavar�nem mancha de esp�cie alguma. . nem marca de
sangue. Fora demasiado prudente no evit�-las. Uma tina tinha recolhido tudo� ah,
ah,
ah!
Terminadas todas essas tarefas, eram j� quatro horas. Mas ainda estava escuro
como se
fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram � porta da rua. Desci a
abri-la, de
cora��o ligeiro, pois que tinha eu agora a temer? Entraram tr�s homens, que se
apresentaram, com perfeita mansid�o, como soldados de pol�cia.
Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita
de um
crime. Tinha-se formulado uma den�ncia � pol�cia e eles, soldados, tinham sido
mandados para investigar.
Sorri, pois. . . que tinha eu a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O
grito, disse
eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior.
Levei
meus
visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem busca completa.
Conduzi-os,
afinal, ao quarto dele.
Mostrei-lhes suas riquezas, em seguran�a, intactas. No entusiasmo de minha
confian�a,
trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para
descansar
de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada aud�cia de meu perfeito
triunfo,
colocava minha pr�pria cadeira propriamente sobre o lugar onde repousava o
cad�ver da
v�tima.
Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam vencido. Sentia-me
singularmente � vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente,
conversaram coisas familiares. Mas dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e
desejei que eles se retirassem. Minha cabe�a do�a e parecia-me ouvir zumbido nos
ouvidos; eles, por�m, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido
tornou-se mais distinto; continuou e tornou-se ainda mais percept�vel.
Eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensa��o; ela, por�m, continuava e
aumentava sua perceptibilidade. . . at� que, afinal, descobri que o barulho n�o
era dentro
dos meus ouvidos.
� claro que ent�o a minha palidez aumentou. Mas eu falava ainda mais
fluentemente e
num tom de voz muito elevada. N�o obstante, o som se avolumava... E que podia eu
fazer
era um som grave, mon�tono, r�pido... muito semelhante ao de um rel�gio envolto
em
algod�o. Respirava com dificuldade... e no entanto, os soldados n�o o ouviram.
Falei
mais
depressa ainda, com mais veem�ncia. Mas o som aumentava constantemente.
Levanteime
e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado e com violenta
gesticula��o, mas o som constantemente aumentava. Por que n�o se iam eles
embora?
Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se
excitado
at�
a f�ria pela vigil�ncia dos homens; mas o som aumentava constantemente. Oh,
Deus!
Que poderia eu fazer? Espumei. . . enraivecido.. . praguejei! Fiz girar a
cadeira sobre a
qual estivera sentado e arrastei-a sobre as t�buas, mas o barulho se elevava
acima de
tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto. . . mais alto� mais alto! E
os
homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria poss�vel que
eles n�o
ouvissem? Deus Todo-Poderoso! N�o, n�o! Eles suspeitavam! Eles sabiam! Estavam
zombando do meu horror! Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer,
por�m,
era melhor que aquela agonia!
Qualquer coisa era mais toler�vel que aquela irris�o! N�o podia suportar por
mais
tempo
aqueles sorrisos hip�critas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora de
novo...
escutai...
mais alto... mais alto... mais alto�mais alto!�
- Vil�es! - trovejei. - N�o finjam mais! Confesso o crime! Arranquem as
pranchas!
Aqui,
aqui! Ou�am o batido do seu horrendo cora��o!
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O ENTERRAMENTO PREMATURO
H� certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horr�veis
para os
fins da leg�tima fic��o. O simples romancista deve evit�-los se n�o deseja
ofender ou
desgostar. S� devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a
impon�ncia
da verdade os santificam e sustentam. Estremecemos, por exempLo, com o mais
intenso
"pesar agrad�vel", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto
de
Lisboa, da peste de Londres, do Massacre de S�o Bartolomeu, ou do asfixiamento
de
cento e vinte tr�s prisioneiros da Caverna Negra em Calcut�. Mas, nessas
narrativas � o
fato, � a realidade, � a hist�ria o que excita. Como inven��es, olh�-las-�amos
com
simples
avers�o.
Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a
hist�ria registra. Mas nelas existe a extens�o, bem como o car�ter, de
calamidade, que
t�o
vivamente impressiona a fantasia.
N�o � necess�rio lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso cat�logo das
mis�rias
humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos
de
sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A
verdadeira
desgra�a, na verdade, o derradeiro infort�nio, � particular e n�o difuso. Demos
gra�as a
um Deus misericordioso pelo fato de serem os espantosos extremos da agonia
suportados
pelo homem-unidade e n�o pelo homem-massa!
Ser enterrado vivo �, fora de qualquer d�vida, o mais terr�fico daqueles
extremos que j�
couberam por sorte aos simples mortais. Que isso haja acontecido freq�entemente,
e
bem
freq�entemente, mal pode ser negado por aqueles que pensam. Os limites que
separam a
vida da morte s�o, quando muito, sombrios e vagos. Quem poder� dizer onde uma
acaba
e a outra come�a? Sabemos que h� doen�a em que ocorre total cessa��o de todas as
aparentes fun��es de vitalidade, mas, de fato, essas cessa��es s�o meras
suspens�es,
propriamente ditas. N�o passam de pausas tempor�rias no incompreens�vel
mecanismo.
Certo per�odo decorre e alguns princ�pios misteriosos e invis�veis p�em de novo
em
movimento os m�gicos parafusos e as encantadas rodas. A corda de prata n�o
estava
solta para sempre, nem o globo de ouro irreparavelmente quebrado. Mas,
entrementes,
onde se achava a alma?
De parte, por�m, a inevit�vel conclus�o, a priori, de que causas tais devem
produzir tais
efeitos, de que a bem conhecida ocorr�ncia de tais casos de interrompida
anima��o
deve,
naturalmente, dar azo, em vez em quando, a enterros prematuros, de parte esta
considera��o temos o testemunho direto da experi�ncia m�dica e da experi�ncia
comum
a
provar que grande n�mero de semelhantes enterros se tem realmente realizado. Se
fosse
necess�rio, poderia referir-me imediatamente a uma centena de casos bem
autenticados.
Um dos mais famosos, e cujas circunst�ncias podem estar ainda frescas na mem�ria
de
alguns de meus leitores, ocorreu, n�o faz muito, na vizinha cidade de Baltimore,
onde
causou uma excita��o penosa, intensa e de vasto alcance. A esposa de um dos mais
respeit�veis cidad�os, advogado eminente e membro do Congresso, foi atacada de
s�bita e
estranha mol�stia que zombou completamente do saber de seus m�dicos. Depois de
muitos sofrimentos veio a falecer, ou sup�s-se que houvesse falecido. Ningu�m
suspeitava, na verdade, nem tinha raz�o de suspeitar, que ela n�o estivesse
realmente
morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomara o usual
contorno
cadav�rico. Os l�bios tinham a habitual palidez marm�rea. Os olhos estavam sem
brilho.
N�o havia calor. A pulsa��o cessara. Durante tr�s dias o corpo foi conservado
insepulto,
adquirindo ent�o uma rigidez de pedra. Afinal, o enterro foi apressado, por
causa do
r�pido avan�o do que se supunha ser a decomposi��o.
A mulher fora depositada no jazigo da fam�lia, que n�o fora aberto nos tr�s anos
subseq�entes. Ao expirar esse prazo, abriram-no para receber um ata�de; mas,
ai!, que
pavoroso choque esperava o marido que abrira - em pessoa a porta. Ao se
escancararem
os portais, certo objeto branco caiu-lhe ruidosamente nos bra�os. Era o
esqueleto de sua
mulher, ainda com a mortalha intacta.
Cuidadosa investiga��o tornou evidente que ela recuperara a vida dois dias
depois de
seu
enterramento; que sua luta dentro do ata�de fizera-o cair de uma sali�ncia ou
prateleira,
no ch�o, onde se quebrara, permitindo-lhe escapar. Uma l�mpada que fora, deixada
cheia
de �leo dentro do jazigo foi encontrada vazia; contudo, poderia ter sido
esgotada pela
evapora��o. No alto dos degraus que levavam � c�mara mortu�ria, havia um grande
fragmento do caix�o, com o qual, parecia, tinha ela tentado chamar a aten��o
batendo
na
porta de ferro. Enquanto assim fazia, provavelmente desfaleceu ou possivelmente
morreu
tomada de terror ao cair, sua mortalha ficou presa a algum peda�o de ferro no
interior. E
assim ela permaneceu e assim apodreceu, erecta.
No ano de 1810, um caso de inuma��o viva aconteceu na Fran�a, cercado de
circunst�ncias que provam plenamente a afirmativa de que a verdade �, de fato,
mais
estranha do que a fic��o . A hero�na da est�ria era Mademoiselle Vitorina
Lafourcade,
mo�a de ilustre fam�lia, rica e de grande beleza pessoal. Entre seus numerosos
pretendentes havia um tal Julien Bossuet, pobre literato ou jornalista de Paris.
Seu
talento e sua amabilidade tinham atra�do a aten��o da herdeira, por quem parecia
ter
sido verdadeiramente amado; mas o orgulho de seu nascimento decidiu-a, por
repeli-lo
e
a casar-se com um certo Monsieur Renelle, banqueiro e diplomata de certa
import�ncia.
Depois do casamento, por�m esse cavalheiro a desprezou e, talvez mesmo mais
positivamente, maltratou-a. Tendo passado a seu lado alguns anos infelizes, ela
morreu;
pelo menos, seu aspecto se assemelhava t�o de perto a morte que enganava a
qualquer
que a visse. Foi enterrada, n�o no jazigo, mas num sepulcro comum, na vila onde
nascera. Cheio de desespero e ainda inflamado pela lembran�a de sua profunda
afei��o,
o
apaixonado viajou da capital para a long�nqua prov�ncia em que se achava a
aldeia, no
rom�ntico prop�sito de desenterrar o cad�ver e apossar-se de suas fartas
madeixas.
Chegou ao t�mulo. � meia-noite desenterrou o caix�o, abriu-o e, ao cortar-lhe o
cabelo,
foi detido pelos olhos abertos de sua amada. De fato, a mulher tinha sido
enterrada viva.
A vitalidade ainda n�o desaparecera de todo e ela foi despertada pelas car�cias
de seu
amado do letargo que fora tomado como morte.
Ele a levou, nervosamente, aos seus aposentos na aldeia. Empregou certos
poderosos
anal�pticos sugeridos por seus n�o pequenos conhecimentos m�dicos. Por fim, ela
reviveu. Reconheceu seu salvador. Permaneceu com ele at� que, gradativamente,
recobrou por completo, a primitiva sa�de. Seu cora��o de mulher n�o tinha a
dureza dos
diamantes e essa �ltima li��o de amor bastou para abrand�-lo. Concedeu-o a
Bossuet.
N�o voltou � companhia do marido; mas, ocultando dele a sua ressurrei��o, fugiu
com
seu amante para a Am�rica. Vinte anos depois, ambos voltaram � Fran�a,
persuadidos
de
que o tempo tinha alterado t�o grandemente o aspecto da mulher que seus amigos
seriam
incapazes de reconhec�-la. Enganaram-se, por�m, porque, ao primeiro encontro,
Monsieur Renelle reconheceu logo e reclamou sua mulher. Ela se op�s a essa
reclama��o
e um tribunal de justi�a apoiou-a, decidindo que as circunst�ncias peculiares e
o lapso
de
anos haviam extinguido, n�o s� eq�itativa, mas legalmente, a autoridade do
marido.
O Jornal de Cirurgia de Lipsia, peri�dico de alta autoridade e m�rito, que
alguns
livreiros
americanos fariam bem em traduzir e republicar, relembra num dos �ltimos n�meros
um
acontecimento bem penoso dessa mesma esp�cie.
Um oficial de artilharia, homem de gigantesca estatura e vigorosa sa�de, tendo
sido
atirado de um cavalo indom�vel, recebeu fort�ssima contus�o na cabe�a que o
tornou
imediatamente insens�vel. O cr�nio ficou levemente fraturado, mas n�o se temia
imediato
perigo. A trepana��o foi executada com pleno �xito. Sangraram-no e puseram-se em
execu��o v�rios outros meios comuns de al�vio. Gradualmente, por�m, foi ele
mergulhando, cada vez mais, num estado de desesperado torpor e, finalmente,
pensou-
se
que havia morrido.O tempo era de calor, e enterraram-no, com pressa censur�vel,
num
dos cemit�rios p�blicos. Seu enterro realizou-se na quinta feira. No domingo
seguinte o
cemit�rio, como de costume, encheu-se de visitantes e, ao meio-dia, produziu-se
intensa
excita��o quando um campon�s declarou que, tendo-se sentado sobre o t�mulo do
oficial,
sentira distintamente um movimento da terra, como se ocasionado por algu�m que
lutasse ali embaixo. A princ�pio, pouca aten��o foi dada � afirmativa do homem,
mas
seu
evidente terror e a afirmativa obstinada com que persistia em sua est�ria
produziram
afinal, natural efeito sobre a multid�o. Procuraram-se, �s pressas p�s, e o
t�mulo, que
era vergonhosamente pouco profundo, foi em poucos minutos t�o depressa escavado
que
a cabe�a do seu ocupante apareceu; ele estava, ent�o, aparentemente morto, mas
sentara-se quase erecto dentro do caix�o cuja tampa, na sua luta furiosa havia
parcialmente soerguido.
Foi imediatamente transportado ao mais pr�ximo declarou-se que ele estava ainda
vivo,
embora em estado de asfixia. Depois de algumas horas, reviveu, reconheceu
pessoas de
sua amizade e, em frases entrecortadas, narrou as agonias que sofrera na
sepultura. Pelo
que ele relatou ficou patente que devera ter estado consciente de perder os
sentidos. A
sepultura fora descuidada e frouxamente cheia de uma terra excessivamente
porosa, e
assim, algum ar podia, necessariamente, penetrar. Ele ouviu o tropel de passos
da
multid�o por cima de sua cabe�a e procurou fazer-se ouvir por sua vez. Foi o
barulho
dentro do cemit�rio, disse ele, que pareceu despert�-lo de um profundo sono, mas
logo
que despertou sentiu-se c�nscio do horror pavoroso de sua situa��o.
Este paciente, conta-se, estava indo bem e parecia achar-se em franco caminho de
completo restabelecimento, mas foi v�tima do charlatanismo das experi�ncias
m�dicas.
Aplicaram-lhe uma bateria el�trica, de repente, expirou num daqueles ext�ticos
paroxismos que ela ocasionalmente provoca.
A men��o da bateria el�trica, ali�s, traz-me � mem�ria um caso bem conhecido e
extraordin�rio, em que sua a��o provou-se eficaz em fazer voltar � vida um jovem
procurador londrino que estivera enterrado durante oito dias. Isto ocorreu em
1831, e
causou, em seu tempo, profund�ssima sensa��o, em toda a parte em que se tornasse
o
assunto da conversa.
O paciente, Sr. Eduardo Stapleton, tinha morrido, parece, de tifo, com seus
sintomas
an�malos que haviam excitado a curiosidade de seus m�dicos assistentes. A
respeito
dessa morte aparente, solicitou-se de seus amigos que permitissem um exame post
mortem mas eles se negaram a consentir nisso. Como acontece muitas vezes quando
se
fazem tais recusas, os profissionais resolveram desenterrar o corpo e dissec�-
lo, com
vagar, por sua conta.
Realizaram-se facilmente os preparativos, com os numerosos grupos de
desenterradores
de cad�veres, ent�o muito encontradi�os em Londres, e, na terceira noite depois
do
funeral, o suposto cad�ver foi desenterrado de uma cova de dois metros e
quarenta de
profundidade e depositado na sala de opera��es de um dos hospitais
particulares.Uma
incis�o de certo tamanho fora j� feita no abd�men, quando a apar�ncia fresca e
incorrupta do paciente sugeriu que se fizesse aplica��o duma bateria. As
experi�ncias se
sucederam e sobrevieram costumeiros sinais, sem nada que, de algum modo, os
caracterizasse exceto, numa ou duas ocasi�es, certo grau um pouco incomum de
vivacidade na a��o convulsiva.
Fazia- se tarde. O dia estava prestes a raiar e achou-se, afinal, que era
conveniente
proceder, sem demora, � disseca��o. Um estudante, por�m, estava especialmente
desejoso de provar certa teoria sua e insistiu em que se aplicasse a bateria num
dos
m�sculos peitorais. Deu-se um grosseiro talho e aplicou-se apressadamente o fio;
ent�o
o
paciente. num movimento ligeiro, mas n�o convulsivo , ergueu-se da mesa, andou
at� o
meio do soalho, olhou inquieto antes em redor de si e depois. . . falou. N�o se
podia
entender o que dizia, mas as palavras eram ditas e as forma��o das distinta.
Depois de
falar, caiu pesadamente no soalho. Por alguns instantes todos ficaram
paralisados de
terror, mas a urg�ncia do caso em breve os fez recuperar a presen�a de esp�rito.
Via-se
que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Com aplica��o de �ter
reviveu, e,
sem
demora, recuperou a sa�de, voltou conv�vio de seus amigos, dos quais, por�m,
todo
conhecimento de sua ressurrei��o fora oculto, at� passar o perigo de uma
reca�da.
Podem
imaginar-se sua admira��o e seu arrebatador espanto.
A mais emocionante particularidade desse incidente, contudo, consiste no que o
pr�prio
Sr. Stapleton afirma. Declara ele que em nenhuma ocasi�o esteve totalmente
insens�vel;
que vaga e confusamente tinha consci�ncia de tudo quanto lhe acontecia, desde o
momento em que foi declarado morto pelos m�dicos, at� aquele em que desmaiou no
soalho do hospital. "Eu estou vivo" foram as palavras incompreendidas que, ao
reconhecer que se achava na sala de disseca��o, tinha tentado pronunciar,
naquela hora
extrema.
Seria coisa f�cil multiplicar est�rias como esta, mas abstenho-me disso porque,
na
verdade, n�o temos necessidade de tal coisa para demonstrar que, efetivamente,
ocorrem
enterramento prematuros. Quando refletimos, dada a natureza do caso, qu�o
raramente
nos � poss�vel descobri-los, devemos admitir que eles possam ocorrer
freq�entemente
sem
que o saibamos. � raro, na verdade que um cemit�rio seja revolvido, alguma vez,
com
qualquer grande extens�o, e n�o se encontrem esqueletos em posi��es que sugerem
as
mais terr�veis suspeitas.
Terr�vel, na verdade, a suspeita, por�m mais terr�vel � tal destino! Podemos
asseverar,
sem hesita��o, que nenhum acontecimento � t�o horrivelmente capaz de inspirar o
supremo desespero do corpo e do esp�rito como ser enterrado vivo. A insuport�vel
opress�o dos pulm�es, os vapores sufocantes da terra �mida, o contato nos
ornamentos
f�nebres, o r�gido aperto das t�buas do caix�o, o negror da noite absoluta, o
sil�ncio
como um mar que nos afoga, a invis�vel, por�m sens�vel, presen�a do Verme
Conquistador, tudo isso com a id�ia do ar e da relva l� em cima, a lembran�a dos
amigos
que voariam a salvar-nos se informados de nosso destino e a consci�ncia de que
eles
jamais poder�o ser informados deste destino, e de que nossa desesperada sorte �
a do
realmente morto, essas considera��es, digo, acarretam ao cora��o que ainda
palpita um
grau tal de horror espantoso e intoler�vel que a mais ousada imagina��o recua
diante
dele.
Nada conhecemos de mais agonizante sobre a terra. N�o podemos imaginar nem a
metade
de coisa t�o horr�vel nas regi�es do mais profundo inferno. E, por isso,
qualquer
narrativa a respeito tem interesse profundo; interesse, por�m, que atrav�s do
sagrado
terror do pr�prio assunto, bem pr�pria e caracteristicamente depende de nossa
convic��o
da verdade do caso narrado. O que tenho agora a contar � do meu real
conhecimento, da
minha pr�pria, positiva e pessoal experi�ncia.
Durante v�rios anos estive sujeito a ataques da estranha mol�stia que os m�dicos
acordaram em chamar catalepsia, na falta de denomina��o mais definida. Embora
tanto
as causas imediatas e pr� disponentes como o verdadeiro diagn�stico desta doen�a
ainda
sejam misteriosos, seu car�ter claro e evidente j� est� bastante compreendido.
Suas
varia��es parecem ser, principalmente, de grau. As vezes, o paciente jaz,
durante um dia
s�, ou mesmo durante um curto per�odo, numa esp�cie de exagerada letargia. Perde
a
sensibilidade e os movimentos, mas a pulsa��o do cora��o � fracamente
percept�vel;
alguns restos de calor permanecem; ligeiro colorido se mant�m no centro da face;
e,
aplicando um espelho � boca, pode-se descobrir uma lenta, desigual e vacilante
a��o dos
pulm�es. Outras vezes a dura��o do transe � de semanas ou mesmo de meses, e a
mais
severa investiga��o, as mais rigorosas experi�ncias m�dicas n�o conseguem
estabelecer
qualquer distin��o material entre o estado do paciente e o que concebemos como
morte
absoluta.
Freq�entes vezes � ele salvo do enterramento prematuro apenas por saberem seus
amigos que fora anteriormente sujeito a ataques catal�pticos, pela conseq�ente
suspeita
suscitada e, acima de tudo, pela apar�ncia de incorrup��o.
Os progressos da doen�a s�o, felizmente gradativos. As primeiras manifesta��es,
al�m
de
t�picas, s�o inequ�vocas. Os acessos se tornam, sucessivamente, cada vez mais
distintos,
prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto faz a principal garantia
contra a
inuma��o.
O infeliz cujo primeiro ataque for de car�ter extremo, como ocasionalmente se
v�,
estar�
quase sem rem�dio condenado a ser enterrado vivo.Meu pr�prio caso n�o diferia,
em
pormenores importantes, dos mencionados nos livros m�dicos. �s vezes, sem
nenhuma
causa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, num estado de semi-s�ncope, ou
semidesmaio;
e neste estado, sem dor, sem possibilidade de mover-me ou, estritamente
falando, de pensar, mas com uma nevoenta e let�rgica consci�ncia da vida e da
presen�a
dos que cercavam minha cama, eu permanecia at� que a crise da doen�a me fizesse
recuperar, de s�bito, a completa sensa��o. Outras vezes, era r�pida e
impetuosamente
surpreendido pelo ataque. Sentia-me doente, entorpecido, frio, aturdido e ca�a
logo
prostrado. Depois durante semanas, tudo era v�cuo, negror, sil�ncio, e num nada
se
transformava o universo. N�o poderia haver mais total aniquila��o. Destes
�ltimos
ataques eu despertava, por�m, com lentid�o gradativa na propor��o da
subitaneidade do
acesso. Da mesma forma por que o dia alvorece para o mendigo, sem lar e sem
amigos,
que vaga pelas ruas, atrav�s da longa e desolada noite de inverno, assim tamb�m
tardia,
assim tamb�m cansada, assim tamb�m alegre, voltava a luz � minha alma.
Exceto aquela predisposi��o para o ataque, meu estado geral de sa�de
apresentava-se
bom; nem mesmo eu podia perceber que todo ele se achava afetado por uma doen�a
predominante, a menos que, realmente, certa rea��o em meu sono comum pudesse ser
olhada como um sintoma. Logo ao despertar, nunca podia de imediato assenhorear-
me
de
meus sentidos e sempre permanecia, durante muitos minutos, em grande confus�o e
perplexidade, com as faculdades mentais em geral, e especialmente a mem�ria. num
estado de absoluta vaguid�o.
Em tudo isso que eu experimentava n�o havia sofrimento f�sico, mas infinita a
ang�stia
moral. Minha imagina��o se tornava macabra. Falava de "vermes, de covas e
epit�fios".
Perdia-me em devaneios de morte e a id�ia do enterramento prematuro se apossava
de
cont�nuo de meu c�rebro. O horrendo perigo a que estava sujeito, assombrava-me
dia e
noite. De dia, a tortura da medita��o era excessiva; de noite, suprema. Quando a
disforme escurid�o inundava a terra, com todo o horror do pensamento eu tremia,
tremia
como as plumas palpitantes que adornam os carros f�nebres. Quando a natureza n�o
podia mais suportar a ins�nia, era com relut�ncia que eu consentia em dormir,
pois me
abalava o pensar que ao despertar, poderia achar-me como habitante de um t�mulo.
E
quando, finalmente, mergulhava no sono, era apenas para precipitar-me
imediatamente
num mundo de fantasmas acima do qual com asas enormes, l�ridas, tenebrosas,
pairava,
dominadora, Id�ia sepulcral.
Das in�meras imagens de tristeza que assim me oprimiam em sonhos escolho, para
ilustrar, apenas uma vis�o solit�ria. Creio que estava imerso num transe
catal�ptico de
dura��o e intensidade maiores que as habituais. De repente, senti uma m�o gelada
pousar-se na minha fronte e uma voz, impaciente e inarticulada, sussurrou-me ao
ouvido
a palavra: "Levanta-te!" Sentei-me. A escurid�o era total. N�o podia distinguir
o vulto
de
quem me havia despertado. N�o podia recordar-me do momento em que ca�ra em
transe,
nem do lugar em que ent�o jazia, enquanto permanecia parado, ocupado em procurar
coordenar o pensamento, a fria m�o agarrou-me, feroz, pelo punho, sacudindo-o
com
aspereza, ao mesmo tempo em que a voz inarticulada dizia normalmente:Levanta-te!
N�o
te ordenei que te levantasses? Quem �s tu? - perguntei.
- N�o tenho nome nas regi�es onde habito - respondeu a voz, funebremente. - Eu
era
mortal, mas sou agora dem�nio. Eu era implac�vel, mas agora sou compassivo. Meus
dentes matraqueiam enquanto falo, embora n�o seja por causa da frialdade da
noite, da
noite sem fim. Essa hediondez, por�m, � insuport�vel. Como podes tu dormir
tranq�ilo?
N�o posso repousar por causa do clamor dessas grandes agonias. Esse espet�culo �
superior �s minhas for�as. P�e-te de p�! Sai comigo para a noite e deixa que eu
te
escancare os t�mulos. N�o � esta uma vis�o de horror? Contempla!Olhei, e o vulto
invis�vel que ainda me agarrava pelo punho, fez com que se abrissem todos os
t�mulos
da
humanidade, e de cada um saiu o fraco palor fosf�rico da podrid�o; e ent�o eu
pude ver,
dentro dos mais absconsos recessos, pude ver os corpos amortalhados nos seus
tristes e
solenes sonos com o verme.
Mas, ai! Os que dormiam verdadeiramente eram muitos milh�es menos do que aqueles
que n�o dormiam absolutamente; e debatiam-se, sem for�a; havia uma agita��o
geral e
confrangedora; e das profundezas das covas incont�veis se elevava o ru�do
ro�agante e
melanc�lico das mortalhas dos sepultos. E entre aqueles que pareciam
tranq�ilamente
repousar vi que grande n�mero havia mudado, em maior ou menor propor��o, a
r�gida e
inc�moda posi��o em que haviam sido primitivamente enterrados. E a voz de novo
me
disse, enquanto eu contemplava:N�o � isto, oh!, n�o � isto uma vis�o lastim�vel?
Mas antes que eu pudesse encontrar palavras para replicar, o vulto largou-me o
punho,
as luzes fosf�ricas se extinguiram e as tumbas se fecharam com s�bita viol�ncia,
enquanto delas se erguia um tumulto de clamores desesperados: e ele disse de
novo: "
N�o � isso, meu Deus!, n�o � isto uma vis�o lastim�vel?"
Fantasias como estas que se apresentavam � noite estendiam sua terr�fica
influ�ncia
muito al�m de minhas horas de vig�lia. Meus nervos se relaxaram inteiramente e
me
tornei presa de perp�tuo horror. Hesitava em cavalgar, em passear ou em praticar
exerc�cio que me afastasse de casa. Na realidade, n�o ousava afastar-me da
imediata
presen�a daqueles que sabiam de minha propens�o � catalepsia, temendo que, ao
cair
num de meus costumeiros ataques, viesse a ser enterrado antes de que minha
verdadeira condi��o fosse certificada.
Duvidava do cuidado, da fidelidade de meus mais queridos amigos. Receava que, em
algum transe de maior dura��o que a habitual, fossem eles induzidos a consider�-
lo
como
definitivo. Eu mesmo cheguei a ponto de temer por causar muito inc�modo,
ficassem
eles
satisfeitos em considerar qualquer ataque muito demorado como suficiente excusa
para
se verem livres de mim de uma vez por todas. Era em v�o que eles procuravam
tranq�ilizar-me com as mais solenes promessas, mais sagrados juramentos de que
em
nenhuma circunst�ncia eles me enterrariam sem que a decomposi��o estivesse
materialmente adiantada, que se tornasse imposs�vel qualquer ulterior
preserva��o. E
mesmo assim meus terrores mortais n�o queriam dar ouvidos � raz�o, n�o queriam
aceitar consolo.
Iniciei uma s�rie de cuidadosas precau��es. Entre outras coisas, mandei
remodelar o
jazigo da fam�lia, de modo a facilitar o ser prontamente aberto de dentro. A
mais leve
press�o sobre uma comprida manivela que avan�ava bem dentro do t�mulo, causaria
a
abertura dos portais de ferro. Havia tamb�m dispositivos para a livre admiss�o
de ar e
da
luz e adequados recipientes para comida e �gua, dentro do imediato alcance do
caix�o
preparado para receber-me.
O caix�o estava quente e maciamente acolchoado e provido de tampa constru�da de
acordo com o sistema da porta do jazigo, com o acr�scimo de molas t�o engenhosas
que
o
mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo .
Al�m de tudo isto, havia suspenso do teto do t�mulo, um grande sino, cuja corda,
como
determinei, deveria ser enfiada por um buraco do caix�o e amarrada a uma das
m�os do
cad�ver. Mas, ah!, de que vale a vigil�ncia contra o Destino do homem? Nem mesmo
aquelas t�o engenhosas seguran�as bastaram para salvar das extremas agonias de
ser
enterrado vivo um desgra�ado condenado de antem�o a essas mesmas agonias!
Chegou uma �poca - como muitas vezes havia chegado antes - em que me achei
emergindo de total inconsci�ncia para o in�cio de um fraco e indefinido senso da
exist�ncia. Vagarosamente. Numa grada��o tardia, aproximou-se a nevoenta
madrugada
do dia psicol�gico. Um torpor inc�modo. Um sofrimento ap�tico de obscura dor.
Nenhuma
aten��o, nenhuma esperan�a, nenhum esfor�o. Em seguida, ap�s longo intervalo, um
zumbido nos ouvidos; depois disso, ap�s um lapso de tempo ainda mais longo, uma
comich�o ou sensa��o de formigueiro nas extremidades; depois, um per�odo
aparentemente eterno de apraz�vel quietude, durante o qual sentimentos despertos
lutam
dentro do pensamento; depois, um breve e novo mergulho no nada; depois, uma
s�bita
revivesc�ncia. Afinal o r�pido tremer de uma p�lpebra, e, imediatamente ap�s, um
choque
el�trico do terror, mortal e indefinido, que arroja o sangue em torrentes das
t�mporas
para o cora��o. E agora, o primeiro positivo esfor�o para pensar. E agora, a
primeira
tentativa de recordar. E agora, um �xito parcial e evanescente. E agora, a
mem�ria j�
recuperou de tal modo seu dom�nio que, at� certa medida consciente de meu
estado.
Sinto que n�o estou despertando de um sono comum. Lembro-me de que estive
sujeito �
catalepsia. E agora afinal, como que inundado por um oceano, meu esp�rito
tr�mulo �
dominado pelo perigo horrendo, por aquela espectral e tir�nica id�ia fixa.
Permaneci im�vel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E
por
qu�? Eu n�o podia armar-me de coragem para mover-me. N�o ousava fazer o esfor�o
necess�rio para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu
cora��o que
me sussurrava que ela era fatal. O desespero - como de nenhuma outra desgra�a
que
jamais salteou o ser humano - s� o desespero me impeliu, ap�s longa irresolu��o,
a
erguer das p�lpebras de meus olhos. Ergui-as.
Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a
minha
doen�a h� muito desaparecera. Senti que me achava agora completamente, em pleno
uso
de minhas faculdades visuais. E contudo, estava escuro, totalmente escuro,
daquela
escurid�o intensa e extrema da noite que dura para sempre.
Tentei gritar, e meus l�bios e minha l�ngua seca moveram-se convulsivamente, em
comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulm�es, que, como
oprimidos
sob o peso de esmagadora montanha, arfavam e palpitavam com o cora��o a cada
trabalhosa e penosa respira��o. O movimento das mand�bulas, no esfor�o de gritar
bem
mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos.
Senti
tamb�m que jazia sobre alguma coisa s�lida e que a mesma coisa tamb�m me
comprimia
estreitamente em ambos os lados. At� ent�o eu n�o me atrevera a mover qualquer
dos
membros; mas agora, violentamente, levantei os bra�os que tinham estado at�
ent�o
sobre o peito, com as m�os cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira
s�lida,
que se estendia sobre uma altura de n�o mais do que seis polegadas de meu rosto.
N�o
podia mais duvidar de que repousava dentro de um caix�o.
E ent�o, entre todas as minhas infinitas afli��es, senti aproximar-se suavemente
o anjo
da Esperan�a, pois pensei nas precau��es que havia tomado. Retorci-me e fiz
esfor�os
espasm�dicos para abrir a tampa: n�o se movia. Tateei os punhos � procura da
corda do
sino: n�o foi encontrada. E ent�o o anjo confortador voou para sempre e um
desespero
ainda mais agudo reinou triunfante, porque clara se tornava a aus�ncia das
almofadas
que eu tinha t�o cuidadosamente preparado, e depois, tamb�m, chegou-me
subitamente
�s narinas o forte e caracter�stico odor da terra �mida. A conclus�o era
irresist�vel. Eu
n�o estava dentro do jazigo. Fora v�tima de um de meus ataques enquanto me
achava
fora de casa e ent�o alguns estranhos, quando ou como n�o me podia recordar, me
enterraram como a um cachorro, trancado dentro dum caix�o e lan�ado no fundo,
bem
no fundo e para sempre, de alguma cova ordin�ria e sem nome.
Quando essa terr�vel convic��o se fixou � for�a nos recessos mais �ntimos de
minha
alma,
esforcei-me mais uma vez por gritar bem alto. E essa segunda tentativa deu
resultado.
Um longo, selvagem e cont�nuo grito, ou bramido de agonia, ressoou atrav�s dos
dom�nios
da noite subterr�nea.
- Eei! Ei! Olha aqui! - respondeu uma voz grosseira.
- Que diabo � isso agora? - disse um segundo.
- Acabe com isso! - gritou um terceiro.
- Que pretende voc� berrando desse jeito, como um danado? - disse um quarto.E
nisso
fui
agarrado e sacudido sem cerim�nia durante muitos minutos por uma turma de
sujeitos
mal-encarados. N�o me despertaram do meu sono, porque eu estava bem desperto
quando gritei mas me fizeram recobrar a plena posse de minha mem�ria.
Essa aventura ocorreu perto de Richmond, na Virg�nia. Acompanhado por um amigo
que
eu tinha avan�ado, seguindo uma expedi��o de ca�a, algumas milhas ao longo das
margens do rio Jaime. A noite se aproximou e fomos surpreendidos por uma
tempestade. O camarote duma pequena chalupa, ancorada no rio e carregada de
terra
pastosa para jardim, oferecia-se como o �nico abrigo dispon�vel. Arranjamo-nos o
melhor
que pudemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois �nicos beliches
da
embarca��o. Os beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase n�o
precisam ser descritos. Aquele que eu ocupava n�o tinha colch�o de esp�cie
alguma.
Sua
largura extrema era de dezoito polegadas. A dist�ncia at� o tombadilho, por cima
da
cabe�a, era precisamente a mesma. Fora com excessiva dificuldade que me apertara
dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente, e toda aquela minha vis�o,
porque
n�o era sonho, nem pesadelo. surgiu naturalmente das circunst�ncias de minha
posi��o,
do meu habitual pensamento impressionado e da dificuldade, a que j� aludi, de
recuperar
os sentidos e especialmente a mem�ria durante muito tempo depois de despertar de
um
sono. Os homens que me sacudiram eram da tripula��o da chalupa e alguns
trabalhadores contratados para descarreg�-la. Da pr�pria carga � que provinha
aquele
cheiro de terra. A ligadura em torno de meus queixos era um len�o de seda em que
havia
enrolado minha cabe�a, na falta de meu costumeiro barrete de dormir.
As torturas experimentadas, por�m, eram, sem d�vida, completamente id�nticas, no
momento, �s duma verdadeira sepultura, eram pavorosas, eram inconcebivelmente
hediondas. Mas do Mal se origina o Bem, porque aqueles paroxismos operaram
inevitavelmente revuls�o no meu esp�rito. Minha alma adquiriu tonalidade,
t�mpera.
Viajei para o estrangeiro. Fiz vigorosos exerc�cios. Aspirei o ar livre do C�u.
Pensei em
outras coisas que n�o na morte. Descartei-me de meus livros de medicina. Queimei
Buchan, n�o li mais os Pensamentos Noturnos, nem aranz�is a respeito de
cemit�rios,
nem est�rias de fantasmas como esta. Em resumo, tornei-me um novo homem e vivi
vida
de homem. Desde aquela memor�vel noite afugentei para sempre minhas apreens�es
sepulcrais e com elas esvaneceu-se a doen�a catal�ptica, da qual, talvez,
tivessem sido
menos a conseq��ncia que a causa.
H� momentos em que, mesmo aos olhos serenos da raz�o, o mundo de nossa triste
Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imagina��o do homem n�o �
Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda regi�o
dos
terrores sepulcrais n�o pode ser olhada de modo t�o completamente fant�stico,
mas,
como os Dem�nios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem at� o Oxus, eles
devem
dormir ou nos devorar�o, devem ser mergulhados no sono ou n�s pereceremos.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O CAIX�O QUADRANGULAR
H� ALGUNS ANOS, segui viagem de Charleston [Carolina do Sul) para a cidade de
Nova
York, no belo navio Independ�ncia, do Capit�o Hardy. Dev�amos viajar no dia 15
do
m�sde junho, se o tempo permitisse; e, no dia 14, fui a bordo para arranjar
algumas
coisas em meu camarote.
Achei que �amos ter muitos passageiros, inclusive um n�mero maior de senhoras do
que
o habitual. Da lista constavam muitos conhecidos meus, e, entre outros nomes,
alegreime
por ver o do Sr. Corn�lio Wyatt, jovem artista a quem dedicava eu cordial
amizade.
Fora meu companheiro de estudos na Universidade de C�, onde and�vamos sempre
juntos. Tinha ele o temperamento comum dos g�nios, formando um conjunto de
misantropia, sensibilidade e entusiasmo. A essas qualidades unia ele o cora��o
mais
ardente e mais franco que jamais bateu em peito humano.Observei que seu nome
estava
afixado em tr�s camarotes e, tendo novamente consultado a lista de passageiros,
descobri
que ele tinha tomado passagem para si mesmo, sua mulher e duas irm�s dele.
Os camarotes eram suficientemente espa�osos, tendo cada um dois beliches, um por
cima
do outro. Esses beliches, para falar a verdade eram t�o excessivamente estreitos
que
neles n�o cabia mais de uma pessoa; contudo, eu n�o podia compreender por que
havia
tr�s camarotes para aquelas quatro pessoas. Encontrava-me justamente naquela
�poca
em um daqueles fant�sticos estados de esp�rito que tornam um homem anormalmente
curioso em quest�o de ninharias e confesso, envergonhado, que me preocupei com
variedade de conjeturas indelicadas e absurdas a respeito dessa est�ria de
camarotes
excedentes. Decerto, n�o era da minha conta; mas com pertin�cia n�o pequena
esforceime
pela solu��o do enigma. Afinal cheguei a uma conclus�o que me provocou grande
espanto por n�o t�-la descoberto antes: "� uma criada, sem d�vida - disse eu. -
Que tolo
fui, por n�o ter mais cedo pensado em t�o evidente solu��o!" E novamente reparei
na
lista; mas ali vi distintamente que nenhuma criada acompanhava o grupo, embora,
de
fato, tivesse sido inten��o original trazer uma, pois as palavras "e criada"
tinham sido
escritas a princ�pio e depois riscadas.
"Oh! muita bagagem, decerto - disse ent�o para mim mesmo. - Algo que ele n�o
deseja
p�r no por�o, algo que deve ficar sob suas vistas�Ah, achei! Uma pintura ou
coisa
semelhante.. . Deve se isso o que ele andou trocando com o Nicolino, um judeu
italiano.
Essa id�ia me satisfez e pus de parte minha curiosidade por essa vez.conhecia
muito
bem
as duas irm�s de Wyatt, e que mo�as am�veis e inteligentes eram elas! Ele havia-
se
casado recentemente, de modo que eu nunca vira sua mulher. Muitas vezes me
falara a
respeito dela, por�m no seu habitual estilo entusiasmado. Descrevia-a como de
uma
beleza surpreendente, muito inteligente e prendada. Sentia-me, por isso,
grandemente
ansioso por conhec�-la.
No dia em que visitei o navio (dia 14), Wyatt e fam�lia ali estavam tamb�m para
visit�-
lo,
assim me informou o capit�o, e fiquei esperando a bordo, uma hora a mais do que
tinha
pretendido, na expectativa de ser apresentado � jovem esposa, mas ent�o recebi ,
uma
desculpa. "A Sra. Wyatt estava um pouco indisposta e desistira de vir a bordo, o
que s�
faria no dia seguinte, � hora da partida."
No dia seguinte, seguia eu do meu hotel para o cais, quando o Capit�o Hardy me
encontrou e me disse que devido �s circunst�ncias (frase est�pida, por�m
conveniente)
achava ele que o Independ�ncia n�o viajaria antes de um dia ou dois e que,
quando tudo
estivesse pronto, ele me mandaria dizer". Achei aquilo estranho porque soprava
uma
constante brisa do sul; mas como as "circunst�ncias" n�o estivessem � vista,
embora eu
as sondasse com a maior perseveran�a, nada tinha a fazer sen�o voltar para casa
e
digerir minha impaci�ncia � vontade.
Esperei quase uma semana pelo recado do capit�o. Chegou, por�m, afinal, e segui
imediatamente para bordo. O navio estava repleto de passageiros e tudo se achava
em
alvoro�o � espera da partida. A fam�lia de Wyatt chegou quase dez minutos depois
de
mim. Eram as duas irm�s, a esposa e o artista - este, em um de seus habituais
acessos
de melanc�lica misantr�pica. Eu, por�m, estava por demais habituado a eles para
darlhes
qualquer aten��o especial. Ele nem mesmo me apresentou a sua mulher, cortesia
deixada por for�a, a cargo de sua irm� Mariana, mo�a muito delicada e
inteligente, que
em algumas palavras apressadas nos tornou conhecidos.
A Sra. Wyatt usava um v�u cerrado e, quando o ergueu para responder ao meu
cumprimento, confesso que fiquei profundamente at�nito. E muito mais teria eu
ficado
se uma longa experi�ncia n�o me houvesse advertido a n�o acreditar, com
confian�a
demasiado impl�cita, nas entusi�sticas descri��es de meu amigo artista, quando
se
comprazia em coment�rios a respeito da formosura das mulheres. Quando o tema era
a
beleza, bem sabia eu a facilidade com que ele remontava �s regi�es do puro
ideal.
A verdade � que eu n�o podia deixar de olhar a Sra. Wyatt como uma mulher
decididamente nada bonita. Se n�o era positivamente feia, penso eu que n�o
estava
muito
longe disso. Trajava por�m, com gosto esquisito, e ent�o n�o tive d�vida de que
ela
dominara o cora��o de meu amigo pelas mais duradoura gra�as da intelig�ncia da
alma.
Ela disse muito poucas palavras e dirigiu-se imediatamente para o seu camarote
com o
Sr. Wyatt.
Minha velha curiosidade ent�o voltou. N�o havia criada, este era um ponto
assente.
Procurei, em conseq��ncia, a bagagem extraordin�ria. Depois de alguma demora,
chegou
uma carro�a ao cais com um caix�o quadrangular de pinho, que parecia ser a
�ltima
coisa que se esperava. Imediatamente ap�s sua chegada, partimos e dentro em
pouco
hav�amos sa�do livremente da barra rumando para o mar.
O caix�o em quest�o era, como eu disse, quadrangular. Tinha quase um metro e
oitenta
cent�metros de comprimento, por noventa de largura. Observei-o atentamente, de
modo
a
poder ser exato. Ora, aquele formato era caracter�stico e, logo que o vi,
louvei-me pela
precis�o de minhas suposi��es. Eu chegara � conclus�o, com se h�o de lembrar, de
que
a
bagagem excedente de meu amigo o artista deveria constar de pinturas, ou pelo
menos
de
uma pintura, pois eu sabia que ele estivera durante v�rias semanas
conferenciando
Nicolino. E agora ali estava um caix�o que, dada sua forma, nada mais no mundo
podia
conter possivelmente sen�o uma c�pia da �ltima Ceia de Leonardo, e uma c�pia
dessa
mesma �ltima Ceia que Rubini, o mo�o, fizera em Floren�a e que desde algum tempo
eu
sabia estar em poder de Nicolino. Considerado, portanto, esse ponto como
suficientemente assente, vangloriei-me bastante ao pensar em minha acuidade. Que
eu
soubesse, era a primeira vez Wyatt me escondia algum de seus segredos
art�sticos; mas
a�
ele evidentemente pretendia lavrar um tento sobre mim e contrabandear para Nova
York
um belo quadro, sob meu pr�prio nariz, esperando que eu nada soubesse a
respeito.
Resolvi logr�-lo bem, ent�o, e para o futuro.Uma coisa, contudo, me aborreceu
bastante.
O caixote n�o foi levado para o camarote excedente. Foi depositado no pr�prio
camarote
de Wyatt, e ali ficou, ali�s, ocupando quase todo o soalho, sem d�vida com
enorme
desconforto para o artista e sua mulher; e isso mais especialmente porque o
piche ou a
tinta com que fora endere�ado, em mai�sculas deitadas, emitia um odor forte,
desagrad�vel e, para minha imagina��o, caracteristicamente repugnante. Na tampa
estavam pintadas as palavras:
SENHORA ADELAIDE CURTIS, ALBANY, NOVA YORK. AOS CUIDADOS DO
SR.
CORN�LIO WYATT. ESTE LADO PARA CIMA. CARREGUE-SE COM
CUIDADO.
Agora sei que a Sra. Adelaide Curtis era a m�e da mulher do artista, mas ent�o
tomei
todo o endere�o como uma mistifica��o preparada especialmente para mim.
Convenci-
me,
sem d�vida de que o caix�o e seu conte�do n�o iriam mais al�m do est�dio de meu
misantr�pico amigo, em Chambers Street, Nova YorK.
Durante os primeiros tr�s ou quatro dias, tivemos bom tempo embora o vento
estivesse
em calmaria pela frente - tendo mudado de dire��o para o norte logo depois que
perdemos
a costa de vista. Os passageiros se achavam, por conseq��ncia, em excelente
disposi��o
de esp�rito e de sociabilidade. Devo fazer exce��o, por�m de Wyatt e de suas
irm�s, que
se
conduziam secamente e, n�o podia eu deixar de pensar, descortesmente, para com
os
demais. Eu n�o me importava muito com a conduta de Wyatt. Estava sombrio al�m do
costume - de fato, estava taciturno -, mas eu j� contava com a excentricidade
dele.
Quanto �s irm�s, por�m, n�o havia desculpa. Conservaram-se reclusas nos seus
camarotes durante a maior parte da travessia e recusaram-se absolutamente,
embora eu
repetidas vezes instasse com elas, a manter comunica��o com qualquer pessoa de
bordo.
A pr�pria Sra. Wyatt era muito mais agrad�vel. Isto �, era loquaz e ser loquaz
n�o �
pequena recomenda��o para quem viaja. Tornou-se excessivamente �ntima da maior
parte
das senhoras e intenso espanto meu, revelou inequ�voca disposi��o de namorar com
os
homens. Divertiu-nos bastante, a todos. Eu digo "divertiu-nos" e dificilmente
sei como
explicar-me. A verdade � que logo descobri que muito mais vezes riam da Sra.
Wyatt do
que com ela. Os cavalheiros pouco falavam a seu respeito, mas as senhoras, em
pouco
tempo, acharam que ela era "uma criatura cordial, de um tanto comum, totalmente
ineducada e decididamente vulgar".
O que causava maior espanto era ter Wyatt ca�do em tal casamento. A solu��o
geral era
o
dinheiro, mas isso sabia eu que n�o resolvia absolutamente nada, pois Wyatt me
dissera
que ela n�o lhe trouxera nem um d�lar, nem esperava ele nenhum dinheiro de sua
parte.
"Casara-se - falou-me - por amor e por amor somente; e sua esposa era mais do
que
digna
de seu amor."
Quando pensava nestas express�es de parte de meu amigo confesso que me sentia
indescritivelmente confuso. Seria poss�vel que ele tivesse perdido o ju�zo? Que
outra
coisa
poderia eu pensar? "Ele" t�o refinado, t�o intelectual, t�o exigente, com t�o
rara
percep��o das coisas imperfeitas e t�o profundo na aprecia��o da beleza! Para
falar a
verdade, a mulher parecia especialmente apaixonada por ele - isso, de modo
particular,
na sua aus�ncia -, tornando-se rid�cula pelas freq�entes cita��es do que fora
dito pelo
seu "amado esposo, Sr. Wyatt". A palavra "marido" parecia estar sempre - para
usar
uma
de suas pr�prias e delicadas express�es - "na ponta de sua l�ngua". Entrementes,
todos a
bordo observavam que ele a evitava da maneira mais saliente e na maior parte do
tempo
fechava-se sozinho no seu camarote, onde, de fato, podia dizer-se que vivia,
deixando
sua
mulher em plena liberdade de divertir-se como achasse melhor na sociedade dos
passageiros do sal�o principal.
Minha conclus�o do que via e ouvia era que o artista, por algum capricho da
sorte ou
talvez num arroubo de entusi�stica e fan�tica paix�o, fora induzido a unir-se a
uma
pessoa inteiramente inferior a ele e que, como resultado natural, n�o tardara em
sobrevir-lhe um desgosto completo. Eu o lamentava do �ntimo do cora��o, mas n�o
podia,
por esta raz�o, perdoar-lhe inteiramente o sigilo a respeito da �ltima Ceia. Por
isso
resolvi
desforrar-me.
Um dia subiu ele ao tombadilho e, pegando-o pelo bra�o como fora sempre o meu
costume, fiquei a passear com ele para l� e para c�. Seu ar melanc�lico (que
considerei
perfeitamente natural nas circunst�ncias do momento) parecia conservar-se sem
diminui��o. Falou pouco e, assim mesmo, tristemente e com evidente esfor�o.
Aventurei
um ou dois gracejos e ele esbo�ou uma amarela tentativa de sorriso. Pobre
rapaz!...
Quando pensava em "sua mulher", imaginei que ele teria coragem para at� mesmo
simular um pouco de contentamento. Por fim, aventurei uma investida direta.
Decidi
colocar uma s�rie do insinua��es ocultas ou indiretas a respeito do caix�o
quadrangular,
justamente para deix�-lo perceber, gradativamente que eu n�o era totalmente o
alvo ou a
vitima de sua pontinha de divertida mistifica��o. Minha primeira observa��o foi
como a
exibi��o duma bateria mascarada. Disse alguma coisa a respeito "da forma
caracter�stica
daquele caix�o" e, enquanto pronunciava as palavras, sorria intencionalmente,
piscando
os olhos e tocando-lhe de leve nas costelas com meu indicador.A maneira pela
qual
Wyatt
recebeu minha inocente brincadeira convenceu-me imediatamente de que ele estava
louco. A princ�pio olhou para mim como se achasse imposs�vel compreender o
chiste de
minha observa��o; mas � medida que sua intencionalidade parecia abrir lentamente
caminho no seu c�rebro, seus olhos pareciam querer saltar fora das �rbitas.
Depois ficou
vermelh�ssimo e horrivelmente p�lido e, em seguida, como se intensamente
divertido
com
o que eu tinha insinuado, desatou numa gargalhada enorme e desgovernada que, com
grande espanto meu, ele manteve, com gradual e crescente vigor, durante dez
minutos
ou
mais. Em conclus�o caiu pesadamente sobre o tombadilho. Quando corri para
levant�-lo
tinha ele toda a apar�ncia de estar morto.
Pedi socorro e, com bastante dificuldade, conseguimos faz�-lo voltar a si. Ao
recobrar
os
sentidos p�s-se a falar incoerentemente durante algum tempo. Por fim, o
sangramos e
levamos para a cama. No dia seguinte estava completamente s�o no que se referia
� sua
sa�de f�sica. Do esp�rito, por�m, n�o digo nada, sem d�vida. Evitei-o durante o
resto da
travessia, a conselho do capit�o que parecia concordar totalmente comigo a
respeito da
insanidade de Wyatt, mas preveniu-me que n�o tocasse nesse assunto com pessoa
alguma de bordo.
Circunst�ncias v�rias ocorreram logo ap�s aquele ataque de Wyatt, as quais
contribu�ram
para aumentar a curiosidade de que j� estava eu possu�do. Entre outras coisas a
seguinte,: eu tinha estado nervoso, bebi muito ch� verde, forte, e a noite dormi
mal; de
fato, durante duas noites, n�o podia dizer propriamente que havia dormido. Ora,
meu
camarote abria-se para o sal�o principal ou sala de jantar, como todos os
camarotes de
solteiro. Os tr�s c�modos de Wyatt achavam-se no compartimento de tr�s, que se
separava do principal por uma pequena porta corredi�a, jamais fechada, mesmo �
noite.
Como quase constantemente estiv�ssemos a favor do vento e a brisa n�o chegasse a
ser
violenta, o navio inclinava-se para sota-vento, mui consideravelmente; e quando
seu
lado
de estibordo estava para sota-vento a porta corredi�a, entre os camarotes,
abria-se e
assim ficava, n�o se dando ningu�m ao cuidado de levantar-se para fech�-la. Mas
meu
beliche se achava em tal posi��o que, quando a porta de meu camarote estava
aberta ao
mesmo tempo que a porta corredi�a em quest�o (e minha pr�pria porta ficava
sempre
aberta por causa do calor), podia eu avistar distintamente o interior do
compartimento
de
tr�s, e justamente a parte dele, onde se achavam situados os camarotes do Sr.
Wyatt.
Pois bem, durante duas noites (n�o consecutivas), enquanto eu jazia acordado,
claramente vi a Sra. Wyatt, cerca das onze horas de cada noite, sair
furtivamente do
camarote do Sr. Wyatt e entrar no camarote extra, onde permanecia at� a
madrugada,
quando era chamada pelo marido e regressava. Era claro que eles estavam
virtualmente
separados. Aposentos separados, sem d�vida na perspectiva de um div�rcio mais
permanente; e ali, afinal de contas, pensava eu, estava o mist�rio do camarote
extra.
Havia outra circunst�ncia tamb�m que me interessou bastante. Durante as duas
noites
de vig�lia em quest�o e imediatamente ap�s o desaparecimento da Sra. Wyatt no
interior
do camarote extra, fui atra�do por certos rumores estranhos, cautelosos e
sumidos de
seu marido. Depois de ter ficado � escuta por algum tempo, com ansiosa aten��o,
consegui por fim apreender perfeitamente a significa��o. Eram sons causados pelo
artista, ao levantar a tampa do caix�o quadrangular, por meio de um form�o e
macete,
este �ltimo com a ponta aparentemente envolta , ou amortecida por alguma
subst�ncia
de algod�o ou de l� macia.
Dessa forma imaginei que podia distinguir o momento preciso em que ele
despregasse a
tampa, bem como que podia determinar quando ele a abrisse completamente e quando
a
depositasse sobre o beliche inferior do seu camarote. Descobri este �ltimo
ponto, por
exemplo, por causa de certas pancadas leves que a tampa deu ao bater contra as
extremidades de madeira do beliche, quando ele tentava deposit�-la bem devagar,
pois
n�o havia lugar para ela no soalho.
Depois disso, houve um sil�ncio mortal e nada mais eu ouvi, em qualquer outra
ocasi�o,
at� quase o raiar do dia, a menos que deva talvez fazer men��o de um leve solu�o
ou
murm�rio, t�o contido que quase se tornava inaud�vel, se � que na realidade esse
�ltimo
ru�do n�o se tinha produzido apenas na minha pr�pria imagina��o. Digo que
parecia ele
assemelhar-se a um solu�o ou suspiro, mas sem d�vida podia n�o ser uma coisa nem
outra. Acho antes que foi um estalido nas minhas pr�prias orelhas. O Sr. Wyatt,
sem
d�vida, de acordo com o costume, estava simplesmente dando r�deas a uma de suas
manias, comprazendo-se num de seus arroubos de entusiasmo art�stico. Abrira o
caix�o
quadrangular a fim de pastar os olhos no tesouro pict�rico que ali se achava.
Nada havia
nisto, por�m, que o fizesse solu�ar. Repito, pois, que deve ter sido
simplesmente um
capricho de minha pr�pria fantasia, destemperada pelo ch� verde do bom Capit�o
Hardy.
Precisamente antes do alvorecer, em cada uma das duas noites de que falo, ouvi
de
modo
distinto o Sr. Wyatt tornar a colocar a tampa sobre o caix�o quadrangular, e
recolocar os
pregos nos lugares por meio do macete empanado.Tendo feito isso ele saiu de seu
camarote, completamente vestido, e come�ou a -chamar a Sra. Wyatt no dela.
Havia sete dias que naveg�vamos e hav�amos passado o cabo Hatteras, quando
sobreveio
um vendaval, tremendamente pesado, do sudoeste. Est�vamos, de certo modo,
preparados para ele, pois o tempo j� se tinha mostrado amea�ador algumas vezes.
Tudo
tinha sido posto em ordem, em cima e em baixo, e quando o vento rapidamente
refrescou,
colhemos as velas, afinal, ficando apenas com a mezena e a g�vea do traquete,
ambas
em
duplos rizes.
Nessa aparelhagem navegamos bem a salvo durante quarenta e oito horas,
demonstrando
o navio ser um excelente barco, a muitos respeitos, n�o fazendo �gua de modo
sens�vel.
Ao fim desse per�odo, por�m, rajadas se tinham transformado em furac�o e a nossa
vela
de popa foi rasgada, levando-nos tanto na cava da vaga que engolimos muitas
ondas
prodigiosas, uma imediatamente ap�s a outra. Com esse acidente perdemos tr�s
homens,
arrebatados pela �gua, com a cozinha e quase todas as amuradas de bombordo. Mal
t�nhamos recuperado a calma, antes que a g�vea do traquete se tivesse
estra�alhado,
quando i�amos uma vela de estai, adequada ao tempo, e com isso conseguimos
manternos
muito bem, durante algumas horas, afrontando o mar muito mais depressa do que
antes.
O temporal, contudo, ainda continuava e n�o v�amos sinais de que amainasse.
Verificouse
que o velame estava mal mareado e grandemente esticado; e no terceiro dia do
vendaval, cerca das cinco horas da tarde, nosso mastro de mezena, numa pesada
guinada
para barlavento, caiu. Durante uma hora ou mais, tentamos, em v�o, desembara�ar-
nos
dele, por causa do fant�stico jogo do navio, e antes de o havermos conseguido, o
carpinteiro veio acima e anunciou que havia mais de um metro de �gua no por�o.
Para
aumento de nosso problema, verificamos que as bombas estavam entupidas e quase
imprest�veis.
Tudo agora era confus�o e desespero, mas um esfor�o foi feito para aliviar o
navio,
lan�ando ao mar tudo quanto se pode encontrar de sua carga e cortando os dois
mastros
restantes. Conseguimos afinal fazer tudo isso, mas ach�vamo-nos ainda
impossibilitados
de utilizar as bombas e entrementes a entrada de �gua aumentava muito depressa.
Ao p�r do sol a tempestade tinha sensivelmente diminu�do de viol�ncia e, como o
mar
foi
serenando, n�s ainda entretivemos fracas esperan�as de salvar-nos nos escaleres.
�s
oito
da noite as nuvens se abriram a barlavento e tivemos a vantagem de uma lua
cheia, dom
da fortuna, que serviu maravilhosamente para soerguer o nosso esp�rito abatido.
Depois de incr�vel trabalho conseguimos por fim lan�ar escaler sem acidente
material, e
dentro dele se amontoaram toda a tripula��o e a maior parte dos passageiros.
Esse grupo
afastou-se imediatamente e, depois de suportar muitos sofrimentos, chegou a
final a
salvo, � ba�a de Ocracocke, no terceiro dia ap�s o desastre.
Catorze passageiros, com o capit�o, ficaram a bordo, resolvendo confiar sua
sorte ao
escaler da popa. N�s o arriamos sem dificuldade, embora s� por milagre
evit�ssemos
que
mergulhasse ao tocar a �gua. Levava, quando posto a flutuar, o capit�o e sua
mulher, o
Sr. Wyatt e fam�lia, um oficial mexicano com mulher e quatro filhos e eu mesmo
com
um
criado negro. N�o t�nhamos lugar, sem d�vida, para qualquer outra coisa, �
exce��o de
poucos instrumentos, positivamente necess�rios, algumas provis�es e as roupas
que
us�vamos. Ningu�m tivera de nem mesmo tentar salvar alguma outra coisa mais.
Qual
n�o foi por�m, o espanto de todos, quando, tendo-nos afastado algumas toezas do
navio,
o Sr. Wyatt, de p� na escota de popa, pediu friamente ao Capit�o Hardy que
fizesse
voltar
o escaler para ir buscar o seu caix�o quadrangular.
- Sente-se, Sr. Wyatt - replicou o capit�o, um tanto severamente. - O senhor nos
far� ir
ao
fundo se n�o se conservar completamente quieto. Nossa amurada est� quase dentro
da
�gua agora.
- O caix�o! - vociferou o Sr. Wyatt, ainda de p�. - O caix�o digo eu! Capit�o
Hardy, o
senhor n�o pode, o senhor n�o poder� recusar-se. Seu peso ser� uma ninharia... �
nada,
simplesmente nada. Pela m�e que o deu � luz, pelo amor de Deus, pela esperan�a
de sua
salva��o. . . imploro-lhe que volte para buscar o caix�o!
O capit�o, por um instante, pareceu comovido pelo fervoroso apelo do artista,
mas
recuperou sua atitude grave e disse simplesmente:
- Sr. Wyatt, o senhor est� louco. N�o posso dar-lhe ouvidos. Sente-se, digo-lhe,
ou far�
virar o bote! Fique a� ....Agarrem-no! Segurem-no! Ele vai cair ao mar. . .
Pronto! J�
sabia. . . caiu!
Enquanto o capit�o dizia isso, o Sr. Wyatt, efetivamente, pulou fora do bote e,
como
estiv�ssemos ainda a sota-vento do navio naufragado, conseguiu, quase que gra�as
a um
esfor�o sobre-humano, amarrar uma corda que pendia das correntes da proa. No
instante imediato achava-se ele a bordo correndo freneticamente para o camarote.
Entrementes t�nhamos sido arrastados para a popa do navio e, estando
completamente
fora de seu sota-vento, ficamos � merc� das tremendas ondas que ainda rolavam.
Fizemos
decidido esfor�o para voltar, mas nosso pequeno barco era como uma pena ao sopro
da
tempestade. Vimos, num relance, que a senten�a do desventurado artista fora
lavrada.
� medida que nossa dist�ncia do navio naufragado aumentava rapidamente, o louco
(pois
como tal somente o poder�amos olhar) saindo da escada do tombadilho, arrastando,
�
custa de um esfor�o que parecia verdadeiramente gigantesco, o caix�o
quadrangular.
Enquanto olh�vamos no auge do espanto, ele passou rapidamente v�rias voltas de
uma
corda de tr�s polegadas, primeiro, em torno do caix�o, e depois, em torno de seu
corpo.
Logo depois, corpo e caix�o ca�ram ao mar, desaparecendo subitamente,
imediatamente
e
para sempre.
Retardamos por um momento, com tristeza, nossas remadas, com os olhos fixos
naquele
ponto. Afinal, afastamo-nos. Mantivemo-nos em sil�ncio durante uma hora. Por
fim,
aventurei uma observa��o.
- Reparou capit�o como eles afundaram repentinamente? N�o foi isso uma coisa
muito
singular? Confesso que entretive certa esperan�a de sua salva��o final, quando o
vi
amarrar-se ao caix�o e lan�ar-se ao mar.
- Era natural que afundassem - replicou o capit�o - e sem demora. Em breve,
por�m,
subir�o � tona de novo, quando o sal se derreter.
.
- O sal! - exclamei.
- Psiu! - disse o capit�o, apontando para a mulher e as irm�s do morto.
- Falaremos a esse respeito em ocasi�o mais oportuna.
Sofremos muito e escapamos por um triz, mas a sorte protegeu-nos bem como aos
nossos
companheiros do outro escaler. Chegamos a terra, afinal, mais mortos do que
vivos,
depois de quatro dias de intensa ang�stia, na praia fronteira � ilha de Roanoke.
Permanecemos ali uma semana, n�o fomos maltratados pelos aproveitadores de
naufr�gios e, por fim, obtivemos passagem para Nova York.
Cerca de um m�s depois da perda do Independ�ncia, encontrei o Capit�o Hardy na
Broadway. Nossa conversa dirigiu-se naturalmente para o desastre e, de modo
especial,
para a triste sorte do pobre Wyatt. Foi assim que vim a conhecer os seguintes
pormenores:
O artista havia comprado passagem para si mesmo, sua duas irm�s e uma criada.
Sua
esposa era, realmente, descrevera, a mais am�vel e mais perfeita mulher. Na dia
14 de
junho (dia em que visitei pela primeira vez o navio) a mulher subitamente
adoeceu e
morreu. O jovem marido ficou louco de dor, mas circunst�ncias imperiosas o
impediam
de adiar sua viagem para Nova York. Era preciso levar para sua sogra o cad�ver
de sua
adorada esposa, e, por outro lado, o universal preconceito que o proibia de
faz�-lo t�o
abertamente era bem conhecido. Nove d�cimos dos passageiros teriam abandonado o
navio, de prefer�ncia a seguir viagem com um cad�ver.
Neste dilema, o Capit�o Hardy resolveu que o corpo depois de parcialmente
embalsamado
e coberto de grande quantidade de sal fosse colocado num caix�o de dimens�es
adequadas e transportado para bordo como mercadoria. Nada deveria ser dito da
morte
da senhora; e, como era bem sabido que o Sr. Wyatt tinha tomado passagem para
sua
mulher, tornou-se necess�rio que, a substitu�sse durante a viagem. A criada da
morta
prestou-se facilmente a faz�-lo.
O camarote extra, primitivamente tomado para essa mo�a, enquanto vivia sua
patroa, foi
ent�o simplesmente conservado. - Naquele camarote, dormia todas as noites, �
evidente,
a
pseudo-esposa. Durante o dia representava ela, o melhor que que podia o papel de
sua
patroa, que como fora cuidadosamente apurado - era desconhecida de qualquer dos
passageiros de bordo.
Meu pr�prio engano surgiu, bastante naturalmente, do meu temperamento por demais
leviano, demasiado curioso e demasiado impulsivo. Mas, nestes �ltimos tempos, �
raro
que eu durma profundamente � noite. H� um rosto que me assombra, por mais que na
cama. H� uma risada hist�rica que para sempre ecoar� nos meus ouvidos.
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O DEM�NIO DA PERVERSIDADE
Ao examinar as faculdades e impulsos dos m�veis primordiais da alma humana,
deixaram os fren�logos de mencionar uma tend�ncia que, embora claramente
existente
como um sentimento radical, primitivo, irredut�vel, tem sido igualmente
desdenhada por
todos os moralistas que os precederam. Por pura arrog�ncia da raz�o, todos n�s a
temos
desdenhado. Temos tolerado que a sua exist�ncia escape aos nossos sentidos
unicamente
por falta de cren�a, de f�, quer seja f� na Revela��o ou f� na Cabala. A id�ia
dessa
tend�ncia nunca nos ocorreu simplesmente por causa de sua superfluidade. N�o
v�amos
necessidade do impulso, nem da propens�o. N�o pod�amos perceber-lhe a
necessidade.
N�o pod�amos compreender, isto �, n�o pod�amos ter compreendido, dado o caso de
ter-
se
este primum mobile introduz�do a for�a, n�o pod�amos ter compreendido de que
maneira
poderia ele promover os objetivos da humanidade, quer temporais, quer eternos.
N�o se pode negar que a frenologia e boa parte de todas as ci�ncias metaf�sicas
tenham
sido planejadas a priori. O intelectual ou homem l�gico, ainda mais que o homem
compreensivo ou observador, se p�e a imaginar projetos, a ditar objetivos a
Deus.
Tendo
assim sondado, a seu bel-prazer, as inten��es de Jeov�, edifica, de acordo com
essas
inten��es, seus inumer�veis sistemas de pensamento. Na quest�o da frenologia,
por
exemplo, primeiro determinamos o que � bastante natural, que fazia parte dos
des�gnios
da Divindade que o homem comesse. Ent�o atribu�mos ao homem um �rg�o de
alimenta��o e este �rg�o � o chicote com que a Divindade compele o homem a
comer,
quer queira, quer n�o.
Em segundo lugar, tendo estabelecido que foi vontade de Deus que o homem
continuasse
a esp�cie, descobrimos imediatamente um �rg�o de amatividade. E assim por
diante,
com
a combatividade, a idealidade, a casualidade, a construtividade, e assim, em
suma, com
todos os �rg�os, quer representem uma propens�o, um sentimento moral ou uma
faculdade do intelecto puro. E nessas disposi��es dos princ�pios da a��o humana,
os
Spurzheimitas, com raz�o ou n�o, em parte ou no todo, n�o fizeram mais que
seguir, em
princ�pio, as pegadas de seus predecessores, deduzindo ou estabelecendo cada
coisa em
virtude do destino preconcebido do homem e baseada nos objetivos de seu Criador.
Teria sido mais acertado, teria sido mais seguro, classificar (se podemos
classificar)
sobre
a base daquilo que o homem, usual ou ocasionalmente, fez e estava sempre
ocasionalmente fazendo do que sobre a base daquilo que supomos que a Divindade
tencionava que ele fizesse. Se n�o podemos compreender Deus nas suas obras
vis�veis,
como ent�o compreend�-lo nos seus inconceb�veis pensamentos que d�o vida �s suas
obras? Se n�o podemos compreend�-lo nas suas criaturas objetivas, como
compreend�lo
ent�o nas suas disposi��es de �nimo substantivas e nas suas fases de cria��o?
A indu��o a posteriori teria levado a frenologia a admitir, como um princ�pio
inato e
primitivo da a��o humana, algo de paradoxal que podemos chamar de perversidade,
na
falta de termo mais caracter�stico. No sentido que deu �, de fato, um mobile sem
motivo.
Sob sua influ�ncia agimos sem objetivo compreens�vel, ou, se isto for entendido
como
uma contradi��o nos termos, podemos modificar a tal ponto a proposi��o que
digamos
que sob sua influ�ncia n�s agimos pelo motivo de n�o devermos agir.
Em teoria, nenhuma raz�o pode ser mais desarrazoada; mas, de fato, nenhuma h�
mais
forte. Para certos esp�ritos, sob determinadas condi��es, torna-se absolutamente
irresist�vel. Tenho certeza de que respiro do que a de ser muitas vezes o engano
ou o
erro
de qualquer a��o a for�a inconquist�vel que nos empurra, e a �nica que nos
impele a
continu�-lo. E n�o admitir� an�lise ou resolu��o em elementos ulteriores esta
acabrunhante tend�ncia de praticar o mal pelo mal. � um impulso radical,
primitivo,
elementar.
Dir-se-�, estou certo, que, quando n�s persistimos em atos porque sentimos que
n�o
dever�amos persistir neles, nossa conduta � apenas uma modifica��o daquela que
ordinariamente se origina da combatividade da frenologia. Mas um simples olhar
nos
mostrar� a fal�cia dessa id�ia. A combatividade frenol�gica tem por ess�ncia a
necessidade de autodefesa. � a nossa salvaguarda contra a ofensa. Seu principio
diz
respeito ao nosso bem-estar e dessa forma o desejo desse bem-estar � excitado,
simultaneamente, com seu desenvolvimento. Segue-se que o desejo do bem-estar
deve
ser
excitado, simultaneamente, com qualquer princ�pio que seja simplesmente uma
modifica��o da combatividade, mas, no caso daquilo que denominei de
perversidade,
n�o
somente o desejo de bem-estar n�o � excitado, mas existe um sentimento
fortemente
antag�nico.
Afinal, um apelo ao pr�prio cora��o ser� a melhor resposta ao sofisma que
acabamos de
observar. Ningu�m que confiantemente consulte e amplamente interrogue sua
pr�pria
alma sentir-se-� disposto a negar a completa radicabilidade da tend�ncia em
quest�o.
Esta tend�ncia n�o � menos caracter�stica que incompreens�vel. N�o h� homem que,
em
algum momento, n�o tenha sido atormentado, por exemplo, por um agudo desejo de
torturar um ouvinte por meio de circunl�quios. Sabe que desagrada. Tem toda a
inten��o
de desagradar. Em geral � conciso, preciso e claro. Luta em sua l�ngua por
expressar-se
a
mais lac�nica e luminosa linguagem. S� com dificuldade consegue evitar que ela
desborde. Teme e conjura a c�lera daquele a quem se dirige. Contudo, assalta-o o
pensamento de que essa c�lera pode ser produzida por meio de certas tricas e
par�ntesis.
Basta esta id�ia. O impulso converte-se em desejo, o desejo em vontade, a
vontade
numa
�nsia incontrol�vel, e a �nsia ( para profundo remorso e mortifica��o de quem
fala e
num
desafio a todas as conseq��ncias) � satisfeita.
Temos diante de n�s uma tarefa que deve ser rapidamente executada. Sabemos que
retard�-la ser� ruinoso. A mais importante crise de nossa vida requer,
imperiosamente,
energia imediata e a��o. Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidez de come�ar o
trabalho, abrasando-se toda a nossa alma na antecipa��o de seu glorioso
resultado. �
for�oso, � urgente que ele seja executado hoje, e contudo, adiamo-lo para
amanh�. Por
que isso? N�o h� resposta sen�o a de que sentimos a perversidade do ato, usando
o
termo
sem compreender-lhe o princ�pio.
Chega o dia seguinte e com ela mais impaciente ansiedade de cumprir nosso dever,
mas
com todo esse aumento de ansiedade chega tamb�m um indefin�vel e positivamente
terr�vel, embora insond�vel, anseio extremo de adiamento. E quanto mais o tempo
foge,
mais for�a vai tomando esse anseio. A �ltima hora para agir est� iminente.
Trememos �
viol�ncia do conflito que se trava dentro de n�s, entre o definido e o
indefinido, entre a
subst�ncia e a sombra. Mas se a contenda se prolonga a este ponto, � a sombra
quem
prevalece. Foi v� a nossa luta. O rel�gio bate e � o dobre de finados de nossa
felicidade.
Ao mesmo tempo � a clarinada matinal para o fantasma que por tanto tempo nos
intimidou. Ela voa. Desaparece. Estamos livres. Volta a antiga energia.
Trabalharemos
agora. Ai de n�s por�m, � tarde demais!
Estamos � borda dum precip�cio. Perscrutamos o abismo e nos vem, a n�usea e a
vertigem. Nosso primeiro impulso � fugir ao perigo. Inexplicavelmente, por�m,
ficamos.
Pouco a pouco, a nossa n�usea, a nossa vertigem, o nosso horror confundem-se
numa
nuvem de sensa��es indefin�veis. Gradativamente, e de maneira mais
impercept�vel,
essa nuvem toma forma, como a fuma�a da garrafa donde surgiu o g�nio nas Mil e
uma
Noites. Mas fora dessa nossa nuvem � borda do precip�cio, uma forma se torna
palp�vel,
bem mais terr�vel que qualquer g�nio ou qualquer dem�nio de f�bulas. Contudo n�o
�
sen�o um pensamento, embora terr�vel, e um pensamento que nos gela at� a medula
dos
ossos com a feroz vol�pia do seu horror. � , simplesmente, a id�ia do que seriam
nossas
sensa��es durante o mergulho precipitado duma queda de tal altura.
E esta queda, este aniquilamento vertiginoso, por isso mesmo que envolve essa
mais
espantosa e mais repugnante de todas as espantosas e repugnantes imagens de
morte e
de sofrimento que jamais se apresentaram � nossa imagina��o, faz com que mais
vivamente a desejemos. E porque nossa raz�o nos desvia violentamente da borda do
precip�cio, por isso mesmo mais impetuosamente nos aproximamos dela. N�o h� na
natureza paix�o mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo �
beira
dum precip�cio, pensa dessa forma em nele se lan�ar. Deter-se, um instante que
seja, em
qualquer concess�o a essa id�ia � estar inevitavelmente perdido, pois a reflex�o
nos
ordena que fujamos sem demora e, portanto, digo-o, � isto mesmo que n�o podemos
fazer. Se n�o houver um bra�o amigo que nos detenha, ou se n�o conseguirmos, com
s�bito esfor�o recuar da beira do abismo, nele nos atiraremos e destru�dos
estaremos.
Examinando a��es semelhantes, como fazemos, descobriremos que elas resultam
t�osomente
do esp�rito de Perversidade. N�s as cometemos porque sentimos que n�o
dever�amos faz�-lo. Al�m, ou por tr�s disso, n�o h� princ�pio intelig�vel, e n�s
pod�amos,
de fato, supor que essa perversidade � uma direta instiga��o do dem�nio se n�o
soub�ssemos, realmente, que esse princ�pio opera em apoio do bem.
Se tanto me demorei neste assunto foi para responder, de certo modo, a pergunta
do
leitor, para poder explicar o motivo de minha estada aqui, para poder expor algo
que
ter�,
pelo menos, o apagado aspecto duma causa que explique por que tenho estes
grilh�es e
porque habito esta cela de condenado. N�o me tivesse mostrado assim prolixo,
talvez
n�o
me houv�sseis compreendido de todo, ou,como a gentalha, me houv�sseis julgado
louco.
Dessa forma, facilmente percebereis que sou uma das incont�veis v�timas do
Dem�nio
da
Perversidade.
Nenhuma outra proeza jamais foi levada a cabo com mais perfeita delibera��o.
Durante
semanas, durante meses, ponderei todos os meios do assass�nio. Rejeitei milhares
de
planos porque sua realiza��o implicava uma possibilidade de descoberta. Por fim,
lendo
algumas mem�rias francesas, encontrei a narrativa de uma doen�a quase fatal que
atacou Madame Pilau em conseq��ncia de uma vela acidentalmente envenenada. A
id�ia
feriu-me a imagina��o imediatamente. Sabia que minha v�tima tinha o h�bito de
ler na
cama. Sabia, tamb�m, que seu quarto de dormir era estreito e mal iluminado. Mas
n�o �
preciso fatigar-vos com pormenores impertinentes. N�o preciso descrever-vos os
artif�cios
f�ceis por meio dos quais substitui, no casti�al de seu dormit�rio, por uma
vela, por
mim
mesmo fabricada, a que ali encontrei. Na manh� seguinte, encontraram-no morto na
cama e o veredicto do m�dico legista foi: " Morte por visita de Deus." (Death
Visitation
of
God � a express�o com que os m�dicos legistas indicam, nos atestados de �bito, a
morte
natural. N.T.)
Tendo-lhe herdado os bens, tudo correu a contento para mim durante anos. A id�ia
de
ser
descoberto jamais penetrou-me o c�rebro. Eu mesmo cuidadosamente dispusera dos
restos da vela mortal. N�o deixara nem sombra de ind�cio pelo qual fosse
poss�vel
provarse
ou mesmo suspeitar-se de ter sido eu o criminoso. � imposs�vel conceber-se o
sentimento de absoluta satisfa��o que no meu intimo despertava a certeza de
minha
completa seguran�a. Durante longo per�odo de tempo habituei-me � deleita��o
desse
sentimento. Proporcionava-me muito mais deleite que todas as vantagens puramente
materiais que me advieram do crime. Mas chegou por fim uma �poca na qual a
sensa��o
de prazer se transformou, em grada��es quase impercept�veis, numa id�ia
perseguidora.
Perseguia porque obcecava. Dificilmente conseguia libertar-me dela por um
instante
sequer. � coisa bem comum termos assim os ouvidos, ou antes a mem�ria,
assediados
pelo do som de alguma cantiga vulgar ou de trechos inexpressivos de �pera. N�o
menos
atormentados seremos se a cantiga � boa por si mesma ou se tem m�rito a �ria de
�pera.
Dessa forma, afinal, surpreendia-me quase sempre a refletir na minha seguran�a e
a
dizer, em voz baixa, a frase: "Estou salvo!"
Um dia, enquanto vagueava pelas ruas, contive-me no ato de murmurar, meio alto,
essas
s�labas habituais. Num acesso de aud�cia repeti-as desta outra forma: "Estou
salvo.
Estou salvo sim�, contanto que n�o fa�a a tolice de confess�-lo abertamente!"
Logo que pronunciei estas palavras, senti um arrepio de enregelar-me o cora��o.
J�
conhecia aqueles acessos de perversidade ( cuja a natureza tive dificuldade em
explicar)
e
lembrava-me bem de que em nenhuma ocasi�o me fora poss�vel resistir a eles com
�xito.
E agora minha pr�pria e casual auto-sugest�o de que poderia ser bastante tolo
para
confessar o assass�nio de que me tornara culpado me enfrentava como se fosse o
aut�ntico fantasma daquele a quem eu havia assinado a acenar-me com a morte.
A princ�pio fiz um esfor�o para afastar da alma semelhante pesadelo. Caminhei
mais
apressadamente, mais depressa ainda. . . pus-me por fim a correr. Sentia um
desejo
enlouquecedor de gritar bem alto. Cada onda sucessiva de pensamento me
acabrunhava
com novos horrores, porque, ai!, eu bem compreendia, muito bem mesmo, que , na
minha situa��o, pensar era estar perdido. Acelerei ainda mais a minha carreira.
Saltava
como um louco pelas ruas cheias de gente. Por fim a popula�a alvoro�ou-se e p�s-
se a
perseguir-me. Senti ent�o que minha sorte estava consumada. Se tivesse podido
arrancar
a minha l�ngua, t�-lo-ia feito, mas uma voz rude ressoou em meus ouvidos e uma
m�o
ainda mais rude agarrou-me pelo ombro. Voltei-me, resfolegante. Durante um
momento
senti todos os transes da sufoca��o. Tornei-me cego, surdo e atordoado; e
depois, creio
que algum dem�nio invis�vel bateu-me nas costas com a larga palma O segredo h�
tanto
tempo retido irrompeu de minha alma. Dizem que me exprimi com perfeita clareza,
embora com assinada �nfase e apaixonada precipita��o, como se temesse uma
interrup��o antes de concluir as frases breves mas repletas de import�ncia que
me
entregavam ao carrasco e ao inferno.
Tendo relatado tudo quanto era preciso para a plena prova judicial; desmaiei.
Que me
resta a dizer? Hoje suporto estas cadeias e estou aqui! Amanh� estarei livre de
ferros!
Mas
onde?
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MISTERIO E MORTE
REVELA��O MESMERIANA
(
Relativo ao �mesmerismo�, doutrina do m�dico alem�o Frederico Ant�nio Mesmer
(1734-
1805. Ele julgava haver descoberto no magnetismo animal a terap�utica para todas
as
doen�as e, sobre sua pretendida descoberta, escreveu v�rios livros. N.T.)
Embora ainda se possa cercar de d�vida a an�lise racional do magnetismo, seus
espantosos resultados s�o agora quase universalmente admitidos. E os que, dentre
todos,
duvidam, s�o simples descrentes profissionais, casta in�til e desacreditada. N�o
pode
haver mais completa perda de tempo que a tentativa de provar, nos dias atuais,
que o
homem, pelo mero exerc�cio da vontade, pode impressionar seu semelhante a ponto
de
conduzi-lo a uma condi��o anormal cujos fen�menos muito estreitamente se
assemelham
aos da morte, ou pelo menos se assemelham mais a eles do que os fen�menos de
qualquer outra condi��o normal de que tenhamos conhecimento, provar que,
enquanto
em tal estado, a pessoa assim impressionada s� emprega com esfor�o, e mesmo
assim
fracamente, os �rg�o externos dos sentidos, embora perceba, com percep��o
agudamente
refinada e atrav�s de canais supostamente desconhecidos, quest�es al�m do
alcance dos
�rg�os f�sicos; provar que, al�m disso, suas faculdades intelectuais s�o
maravilhosamente
intensificadas e revigoradas; provar que suas simpatias para com a pessoa que
assim age
sobre ela s�o profundas; e, finalmente, provar que sua suscetibilidade � a��o
magn�tica
aumenta com a freq��ncia desta, ao mesmo tempo que em id�ntica propor��o, os
fen�menos caracter�sticos obtidos se tornam mais extensos e mais pronunciados.
Digo que seria superfluidade demonstrar tais coisas - que s�o as leis do
magnetismo em
seu aspecto geral. E n�o irei infligir hoje a meus leitores t�o desnecess�ria
demonstra��o.
Sou impelido, arrostando mesmo todo um mundo de preconceitos, a pormenorizar sem
coment�rios, a notabil�ssima ess�ncia de um col�quio ocorrido mim e um
magnetizado.
Por muito tempo eu me acostumara a magnetizar a pessoa em apre�o (o Sr. Vankirk)
e
sobrevieram a suscetibilidade aguda e a intensidade da percep��o magn�tica, como
de
h�bito. Durante numerosos meses viera sofrendo de t�sica bem caracterizada, de
cujos
efeitos mais angustiantes fora aliviado gra�as a minhas manipula��es; e, na
noite de
quarta-feira, quinze do corrente, fui chamado � sua cabeceira.
O enfermo sofria aguda dor na regi�o do cora��o e respirava com grande
dificuldade,
tendo todos os sintomas comuns da asma. Em espasmos semelhantes achara sempre
al�vio com a aplica��o de mostarda nos centros nervosos, mas naquela noite isso
tinha
sido tentado em v�o. Ao entrar em seu quarto o doente saudou-me com carinhoso
sorriso
e, embora evidentemente sofresse grandes dores corporais, parecia estar
mentalmente
sem qualquer perturba��o .
- Mandei cham�-lo hoje - disse-me - n�o tanto para dar-me um al�vio ao corpo
como
para
satisfazer-me relativamente a certas impress�es ps�quicas que, nos �ltimos
tempos,
causaram-me grande ansiedade e surpresa. N�o preciso dizer-lhe quanto sou c�tico
a
respeito da imortalidade da alma. N�o posso negar que sempre existiu nessa
pr�pria
alma, que andei negando, um como que vago sentimento de sua realidade. Mas esse
indeciso sentimento em tempo algum se ampliou � convic��o. Nada havia de comum
entre minha raz�o e ele. Todas as tentativas de uma an�lise l�gica resultaram na
verdade,
em deixar-me mais c�tico do que antes. Aconselharam-me a estudar Cousin.
Estudei-o
em suas pr�prias obras bem como nas de seus ecos europeus e americanos. Esteve
em
minhas m�os, por exemplo, o Charles Elwood do Sr. Browson. Li-o com profunda
aten��o. Achei-o inteiramente l�gico; apenas as partes que n�o eram simplesmente
l�gicas eram, infelizmente, os argumentos iniciais do incr�dulo her�i do livro.
Em seu
resumo pareceu-me evidente que o raciocinador n�o tivera �xito sequer em
convencer-
se
a si mesmo. Seu fim claramente esquecera o in�cio, como o governo de Tr�nculo.
Em
suma, n�o tardei em perceber que, se um homem deve ser intelectualmente
convencido
da pr�pria imortalidade, nunca ser� convencido pela mera abstra��o que por tanto
tempo
foi moda entre os moralistas da Inglaterra, da Fran�a e da Alemanha. As
abstra��es
podem divertir a mente e exercit�-la, mas n�o tomam posse dela. Neste mundo
terreno
pelo menos, a filosofia�estou persuadido, apelar� sempre em v�o para que
contemplemos
as qualidades como coisas.
- A vontade pode concordar; a alma, o intelecto, nunca. Repito, pois, que s�
senti um
tanto, e nunca acreditei intelectualmente. Mas, h� pouco, houve certo agu�amento
dessa
sensa��o at� ao ponto de quase parecer a aquiesc�ncia da raz�o, tanto que eu
achava
dif�cil distinguir entre ambos. Creio-me, pois, capaz de atribuir esse efeito �
influ�ncia
magn�tica. N�o posso explicar melhor o que penso sen�o pela hip�tese de que a
intensifica��o magn�tica me capacita a perceber um encadeamento de racioc�nios
que,
em minha exist�ncia anormal, me convence, mas que, em plena concord�ncia com o
fen�meno magn�tico, n�o se estende, a n�o ser por meio de seu efeito, � minha
condi��o
normal. Estando magnetizado, o racioc�nio e a sua conclus�o, a causa e seu
efeito, est�o
juntamente presentes. No meu estado natural, desaparecendo a causa, s� o efeito
permanece e talvez s� parcialmente.
Tais considera��es levaram-me a pensar que certos bons resultados podem ser a
conseq��ncia de uma s�rie de bem orientadas perguntas, a mim propostas enquanto
magnetizado. Muitas vezes voc� observou o profundo auto conhecimento demonstrado
pelo magnetizado, a extensa consci�ncia que ele tem de todos os pontos relativos
�
condi��o magn�tica em si; ora, desse auto conhecimento podem ser deduzidas
id�ias
suficientes para a organiza��o adequada de um catecismo.
Consenti naturalmente, em fazer tal experi�ncia. Poucos passes levaram o Sr.
Vankirk
ao
sono mesm�rico. Sua respira��o tornou-se imediatamente mais f�cil e ele pareceu
n�o
sofrer qualquer inc�modo f�sico. Seguiu-se, ent�o, a conversa��o abaixo (V., no
di�logo
representa o paciente, e P. representa minha pessoa)
P - Est� dormindo?
V- Sim� n�o ; preferiria dormir mais profundamente.
P- ( depois de poucos passes mais.) Est� dormindo agora?
V- Sim.
P - Como pensa que terminar� sua enfermidade atual?
V- (Depois de longa hesita��o e falando como que com esfor�o.)Vou morrer.
P- A id�ia de morte o aflige?
V - (Muito rapidamente.) N�o.
P- Agrada-lhe essa perspectiva?
V - Se eu estivesse acordado gostaria de morrer, mas agora isso n�o importa. A
condi��o
magn�tica est� bastante perto da morte para me satisfazer.
P. - Desejaria que se explicasse, Sr. Vankirk.
V. - Desejo faz�-lo, mas isso requer esfor�o maior do que aquele de que sou
capaz. O
senhor n�o interrogou adequadamente.
P. -Que perguntarei ent�o?
V. - Deve come�ar pelo come�o.
P. - O come�o? Mas onde � o come�o?
V. - O come�o, como sabe, � Deus. (Isto foi dito numa voz baixa, flutuante, e
com
todos os sinais da mais profunda venera��o.)
P. - Que � Deus, ent�o?
V. - (Hesitando durante alguns minutos.) N�o posso
P. - Deus n�o � esp�rito?
V. - Enquanto estava desperto, eu sabia o que queria dizer com a palavra
"esp�rito",
mas agora parece-me apenas uma palavra tal, por exemplo, como verdade, beleza:
quero
dizer, uma qualidade.
P. - N�o � Deus imaterial?
V. - N�o h� imaterialidade; � uma simples palavra. O que n�o � mat�ria n�o �
absolutamente, a menos que as qualidades coisas.
P. - Deus, ent�o, � material?
V. - N�o. (Esta resposta me espantou bastante.)
P - Ent�o que � ele?
V -(Depois de longa pausa, murmurando.) Vejo... mas � uma coisa dif�cil de
dizer.
(Outra pausa longa.) Ele n�o � esp�rito, porque existe. Nem � mat�ria, tal como
voc�
entende. Mas h� grada��es da mat�ria de que o homem n�o conhece nada, a mais
densa
impelindo a mais sutil, a mais sutil invadindo a mais densa. A atmosfera, por
exemplo,
movimenta o princ�pio el�trico, ao passo que o princ�pio el�trico penetra a
atmosfera.
Estas grada��es da mat�ria aumentam em raridade ou sutileza at� chegarmos a uma
mat�ria imparticulada - sem part�culas -, indivis�vel - una - e aqui a lei de
impuls�o e de
penetra��o � modificada. A mat�ria suprema ou n�o particulada n�o somente
penetra
todas as coisas, mas movimenta todas as coisas, e assim � todas as coisas em si
mesma.
Esta mat�ria � Deus. Aquilo que os homens tentam personificar na palavra
"pensamento"
� esta mat�ria em movimento.
P. - Os metaf�sicos sustentam que toda a��o � redut�vel a movimento e
pensamento,
e que este � a origem daquele.
V. - Sim. E agora vejo a confus�o de id�ias. O movimento � a a��o do esp�rito e
n�o
do pensamento. A mat�ria imparticulada ou Deus, em estado de repouso (tanto
quanto
podemos conceb�-lo ) � o que os homens chamam esp�rito. E o poder do auto
movimento
(equivalente com efeito � voli��o humana) �, na mat�ria imparticulada, o
resultado de
sua
unidade e de sua onipot�ncia; como n�o sei, e agora vejo claramente que jamais o
saberei.
Mas a mat�ria imparticulada, posta em movimento por uma lei ou qualidade
existente
dentro de si mesma, � pensamento.
P. Poder� dar-me id�ia mais precisa do que chama voc� mat�ria imparticulada?
V. As mat�rias de que o homem tem conhecimento escapam aos sentidos
gradativamente.
Temos, por exemplo, um metal, um peda�o de madeira, uma gota de �gua, a
atmosfera,
um g�s, o cal�rico, a eletricidade, o �ter luminoso. Ora, chamamos todas essas
coisas
mat�rias e abrangemos toda a mat�ria numa defini��o geral; mas a despeito disto,
n�o
pode haver duas id�ias mais essencialmente distintas do que a que ligamos a um
metal e
a que ligamos ao �ter luminoso. Quando alcan�amos este �ltimo, sentimos uma
inclina��o quase irresist�vel a classific�-lo como esp�rito ou como o nada. A
�nica
considera��o que nos ret�m � nossa concep��o de sua constitui��o at�mica, e aqui
mesmo temos necessidade de buscar auxilio na nossa no��o de um �tomo, como algo
que
possui, com pequenez infinita, solidez, palpabilidade, peso. Suprimamos a id�ia
do �ter
como uma entidade ou, pelo menos, como mat�ria. � falta de melhor palavra
podemos
denomin�-lo esp�rito. D� agora um passo para al�m do �ter luminoso. Conceba uma
mat�ria como muito mais rarefeita do que o �ter, assim como o �ter � muito mais
rarefeito
do que o metal, e chegaremos imediatamente (a despeito de todos os dogmas da
escola)
a
uma �nica massa, uma mat�ria imparticulada. Pois, embora possamos admitir
infinita
pequenez nos pr�prios �tomos, a infinidade da pequenez nos espa�os entre eles �
um
absurdo. Haver� um ponto, haver� um grau de rarefa��o no qual, se os �tomos s�o
suficientemente numerosos, os interespa�os devem desaparecer e a massa unificar-
se de
todo. Mas, sendo agora posta de lado a considera��o da constitui��o at�mica, a
natureza
da massa resvala inevitavelmente para aquilo que concebemos como esp�rito. E
claro,
que
ela � t�o mat�ria ainda quanto antes. A verdade � que n�o se pode conceber o
esp�rito
sem que seja poss�vel imaginar o que n�o �. Quando nos lisonjeamos por haver
formado
essa concep��o, apenas iludimos a nossa intelig�ncia com a considera��o da
mat�ria
infinitamente rarefeita.
P. - Parece-me haver uma insuper�vel obje��o � id�ia de unidade absoluta, e ela
� a da
bem pouca resist�ncia sofrida pelos corpos celestes nas suas revolu��es pelo
espa�o,
resist�ncia agora verificada, � verdade, como existente em certo grau, mas que
�, n�o
obstante, t�o leve a ponto de ter sido completamente desdenhada pela sagacidade
do
pr�prio Newton. Sabemos que a resist�ncia dos corpos est� principalmente com a
sua
densidade. A absoluta unifica��o � a absoluta densidade. Onde n�o h�
interespa�os n�o
pode haver passagem. Um �ter absolutamente denso oporia um obst�culo
infinitamente
mais eficaz � marcha de um astro do que o faria um �ter de diamante ou de ferro.
V. - Sua obje��o � respondida com uma facilidade que est� quase na raz�o da sua
aparente irresponsabilidade. Quanto � marcha de um astro , n�o faz diferen�a se
o astro
passa atrav�s do �ter ou se o �ter atrav�s dele. N�o h� erro astron�mico mais
inexplic�vel
do que o que relaciona o conhecido retardamento dos cometas com a id�ia de sua
passagem atrav�s de um �ter; porque, por mais rarefeito que se suponha esse
�ter, oporia
ele obst�culo a qualquer revolu��o sideral em um per�odo bem mais breve do que
tem
sido admitido por aqueles astr�nomos que t�m tentado tratar pela rama um ponto
que
eles acham imposs�vel compreender. O retardamento realmente experimentado �, por
outro lado, quase igual �quele que pode resultar da fric��o do �ter na sua
passagem
instant�nea atrav�s do orbe. No primeiro caso, a for�a retardadora � moment�nea
e
completa dentro de si mesma; no outro, � infinitamente crescente.
P. - Mas, em tudo isso, nesta identifica��o da simples mat�ria como Deus, n�o
haver�
algo de irrever�ncia? (Fui obrigado a repetir essa pergunta antes que o
magnetizado
compreendesse plenamente o que eu queria dizer.)
V. - Pode dizer por que a mat�ria seria menos respeitada do que o pensamento?
Mas
voc�
esquece que a mat�ria de que falo �, a todos os respeitos, o verdadeiro
"pensamento" ou
"esp�rito" das escolas, no que se refere �s suas altas capacidades, e �, al�m
disso a
"mat�ria" dessas escolas ao mesmo tempo. Deus com todos os poderem atribu�dos ao
esp�rito n�o � sen�o a perfei��o da mat�ria.
P. - Voc� afirma ent�o que a mat�ria imparticulada em movimento � pensamento?
V. - Em geral, esse movimento � o pensamento universal da mente universal. Esse
pensamento cria. Todas as coisas criadas s�o apenas os pensamentos de Deus.
P. - Voc� diz "em geral".
V. - Sim. A mente universal � Deus. Para as novas individualidades a mat�ria �
necess�ria.
P. - Mas voc� agora fala de "esp�rito" e "mat�ria", como fazem os metaf�sicos.
V. - Sim, para evitar confus�o . Quando eu digo esp�rito, significa a mat�ria
imparticulada
ou suprema; por mat�ria, entendo todas as outras esp�cies.
P. - Voc� dizia que "para novas individualidades a mat�ria � necess�ria".
V. - Sim, pois o esp�rito, existindo incorporeamente, � simplesmente Deus. Para
criar
seres individuais pensantes foi necess�rio encarnar por��es do esp�rito divino.
Por isso o
homem � individualizado. Desvestido do inv�lucro corp�reo seria Deus. Ora, o
movimento
particular das por��es encarnadas da mat�ria imparticulada � o pensamento do
homem,
assim como o movimento do todo � o de Deus.
P. - Diz voc� que desvestido do corpo o homem seria Deus? -
V. - (Depois de muita hesita��o.) Eu n�o podia ter dito isso. � um absurdo.
P. - (Consultando minhas notas.) Voc� disse que "desvestido do inv�lucro
corp�reo o
homem seria Deus".
V. - Isto � verdade. O homem, assim despojado seria Deus, seria
desindividualizado.
Mas ele nunca pode ser assim despojado - pelo menos nunca ser� - a menos que
dev�ssemos imaginar uma a��o de Deus voltando sobre si mesma, uma a��o f�til e
sem
objetivo. O homem � uma criatura. As criaturas s�o pensamentos de Deus. E � da
natureza do pensamento ser irrevog�vel.
P.- N�o compreendo. Voc� diz que o homem nunca se despojar� do corpo?
V. - Digo que ele nunca estar� sem corpo.
P. - Explique-se.
V. - H� dois corpos: o rudimentar e o completo, correspondendo �s duas condi��es
da
lagarta e da borboleta. O que chamamos "morte" � apenas a dolorosa metamorfose.
Nossa
atual encarna��o � progressiva, preparat�ria, tempor�ria. A futura � perfeita,
final,
imortal. A vida derradeira � o fim supremo.
P. - Mas n�s temos conhecimento palp�vel da metamorfose da lagarta.
V. - "N�s", certamente, mas n�o a lagarta. A mat�ria de que nosso corpo
rudimentar �
composta est� ao alcance dos �rg�os rudimentares que est�o adaptados � mat�ria
de que
� formado o corpo rudimentar, mas n�o � de que � composto o corpo derradeiro. O
corpo
derradeiro escapa assim aos nossos sentidos rudimentares e percebemos apenas o
casulo
que abandona, ao morrer, a forma interior, e n�o essa pr�pria forma interior;
mas esta
forma interior, bem como o casulo, � apreci�vel por aqueles que j� adquiriram a
vida
derradeira.
P. - Voc� disse muitas vezes que o estado magn�tico se assemelha muito de perto
�
morte. Como � isso?
V. - Quando digo que ele se assemelha � morte, quero dizer que se parece com a
vida
derradeira, pois quando estou no sono magn�tico os sentidos de minha vida
rudimentar
ficam suspensos e percebo as coisas externas diretamente, sem �rg�os, por um
meio que
empregarei na vida derradeira e inorg�nica.
P.- Inorg�nica?
V.- Sim. Os �rg�os s�o aparelhos pelos quais o indiv�duo � posto em rela��o
sens�vel
com
certas categorias e formas da mat�ria, com exclus�o de outras categorias e
formas. Os
�rg�os do homem est�o adaptados � sua condi��o rudimentar e a ela somente; sua
condi��o �ltima, sendo inorg�nica, � de compreens�o ilimitada em todos os
pontos,
exceto um: a natureza da vontade de Deus. Isto �, mat�ria imparticulada. Voc�
pode ter
uma id�ia distinta do corpo derradeiro concebendo-o como sendo totalmente
c�rebro.
"Ele" n�o � isso; mas uma concep��o dessa natureza aproximar� voc� de uma
compreens�o do que ele "�". Um corpo luminoso comunica vibra��o ao �ter
luminoso.
As
vibra��es geram outras semelhantes na retina; estas, por sua vez, comunicam
outras
semelhantes ao nervo �tico; o nervo leva outras semelhantes ao c�rebro; o
c�rebro
tamb�m outras iguais � mat�ria imparticulada que o penetra. O movimento desta
�ltima
� pensamento, do qual a percep��o � a primeira vibra��o. Este � o modo pelo qual
o
pensamento da vida rudimentar se comunica com o mundo exterior e este mundo
exterior
� limitado, para a vida rudimentar, pelas rea��es de seus �rg�os.
Mas, na vida derradeira e inorg�nica, o mundo exterior comunica-se com o corpo
inteiro
(que � de uma subst�ncia afim da do c�rebro como j� disse), sem nenhuma outra
interven��o que n�o a de um �ter infinitamente mais rarefeito, do que mesmo o
�ter
lumin�fero e com esse �ter, em un�ssono com ele, todo o corpo vibra, pondo em
movimento a mat�ria imparticulada que o penetra. � � aus�ncia de �rg�os
reativos,
contudo, que devemos atribuir a quase ilimitada percep��o da vida derradeira.
Para os
seres rudimentares os �rg�os s�o as gaiolas necess�rias para encerr�-los at� que
estejam
emplumados.
P. - Voc� fala de seres rudimentares. H� outros seres rudimentares e pensantes
al�m do
homem?
V. - A conglomera��o numerosa de mat�ria dispersa em nebulosas, planetas, s�is e
outros corpos que nem s�o nebulosa, nem planetas, tem como �nico fim suprir o
pabulam para a rea��o dos �rg�os de uma infinidade de seres rudimentares. Sem a
necessidade do rudimentar, anterior � vida derradeira, n�o teria havido corpos
tais como
esses. Cada um deles � ocupado por uma distinta variedade de criaturas
org�nicas,
rudimentares e pensantes. Em todas, os �rg�os variam com os caracter�sticos do
habit�culo. Na morte ou metamorfose, estas criaturas, gozando da vida derradeira
da
imortalidade - e conhecedoras de todos os segredos, menos o �nico, operam todas
as
coisas e se movem por toda a parte por simples ato de vontade. Habitam, n�o as
estrelas,
que para n�s parecem as �nicas coisas tang�veis e para conveni�ncia, cegamente
cremos
que o espa�o foi criado, mas o pr�prio espa�o, esse infinito cuja imensid�o
verdadeiramente substantiva absorve as sombras estelares, apagando-as como n�o
entidades da vis�o dos anjos.
P. - Voc� diz que "sem a necessidade da vida rudimentar� n�o teria havido
estrelas. Mas
qual a raz�o dessa necessidade?
V. - Na vida inorg�nica, bem como geralmente na mat�ria inorg�nica, nada h� que
impe�a
a a��o de uma lei simples e �nica: a Divina Vontade. Com o fim de criar um
empecilho,
a
vida org�nica e a mat�ria (complexas, substanciais e oneradas por leis ) foram
criadas.
P. - Mais ainda, que necessidade havia de criar esse empecilho?
V. - O resultado da lei inviolada � perfei��o, justi�a, felicidade negativa. O
resultado da
lei
violada � imperfei��o, injusti�a, dor positiva. Por meio dos empecilhos
produzidos pelo
n�mero, complexidade e substancialidade das leis da vida org�nica e da mat�ria,
a
viola��o da lei se torna, at� certo ponto, pratic�vel. Esta dor, que na vida
inorg�nica �
imposs�vel, torna-se poss�vel na org�nica.
P. - Mas em vista de que resultado bom se torna poss�vel a dor?
V. - Todas as coisas s�o boas ou m�s por compara��o . Uma an�lise suficiente
mostrar�
que o prazer, em todos os casos � apenas o contraste da dor. Prazer positivo �
mera
id�ia.
Para ser feliz at� certo ponto, devemos ter sofrido na mesma propor��o. Jamais
sofrer
equivaleria a n�o ter jamais sido feliz. Mas est� demonstrado que na vida
inorg�nica a
dor n�o pode existir; da� a necessidade da dor para a vida org�nica. A dor da
vida
primitiva da terra � a �nica base da felicidade da derradeira vida no C�u.
P. - Contudo, ainda h� uma de suas express�es que n�o acho possibilidade de
compreender: "a imensid�o verdadeiramente substantiva do infinito".
V. - � provavelmente, porque n�o tem a concep��o suficientemente gen�rica do
pr�prio
termo subst�ncia. N�o devemos olh�-la como uma qualidade, mas como um
sentimento:
� a percep��o, nos seres pensantes, da adapta��o da mat�ria � organiza��o deles.
H�
muitas coisas sobre a Terra que seriam nada para os habitantes de V�nus; muitas
coisas
vis�veis e tang�veis em V�nus que n�o poder�amos ser levados a apreciar como
absolutamente existentes. Mas para os seres inorg�nicos - para os anjos - o todo
da
mat�ria imparticulada � subst�ncia, isto �, o todo do que chamamos "espa�o" �
para eles
a mais verdadeira substancialidade; os astros, entretanto, do ponto de vista de
sua
materialidade, escapam ao sentido ang�lico, justamente na mesma propor��o em que
a
mat�ria imparticulada, do ponto de vista de sua imaterialidade, escapa ao
sentido
org�nico.
Ao pronunciar o magnetizado estas �ltimas palavras em voz fraca, notei-lhe na
fisionomia
singular express�o que me alarmou um tanto e induziu-me a despert�-lo
imediatamente.
Logo que fiz isto, com um brilhante sorriso a iluminar todas as suas fei��es
caiu para
tr�s
no travesseiro e expirou. Notei que, menos de um minuto depois seu cad�ver tinha
toda
a
r�gida imobilidade da pedra. Sua fronte estava fria como gelo. Assim,
geralmente, s� se
mostraria depois de longa press�o da m�o de Azrael. Ter-se-ia, realmente, o
magnetizado,
na �ltima parte de sua disserta��o, dirigido a mim l� do fundo das regi�es das
sombras?
EDGAR ALLAN POE � FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR,
MIST�RIO E MORTE
O CASO DO SR. VALDEMAR
N�o pretenderei, por certo, considerar como motivo de espanto que o
extraordin�rio
caso
do Sr. Valdemar tenha provocado discuss�o . Milagre seria se tal n�o
acontecesse,
especialmente em tais circunst�ncia. O desejo de todas as partes interessadas em
evitar
a publicidade ao caso - pelo menos no presente, ou at� que tenhamos ulteriores
oportunidades de investiga��o - e nossos esfor�os para realizar isto deram lugar
a uma
narrativa truncada ou exagerada que logo se propalou na sociedade, e veio a ser
fonte de
muitas not�cias falsas e desagrad�veis e, bem naturalmente, de grande c�pia de
incredulidade.
Torna-se agora necess�rio que eu exponha os fatos - at� onde alcan�a minha
compreens�o dos mesmos. S�o, em resumo, os seguintes: Nos �ltimos tr�s anos
minha
aten��o vinha sendo atra�da repetidamente pelos assuntos referentes ao
magnetismo e,
h� coisa de nove meses atr�s, ocorreu-me, bastante inesperadamente, que nas
s�ries de
experi�ncias feitas at� ent�o houvera uma lacuna assinal�vel e inexplic�vel:
ningu�m
ainda fora ainda magnetizado in articulo mortis. Restava ver, primeiro, se em
tais
condi��es havia em tal paciente qualquer suscetibilidade � influ�ncia; segundo,
no caso
de haver alguma, se era atenuada ou aumentada por esta circunst�ncia e, em
terceiro
lugar, at� que ponto ou por quanto tempo a invas�o da morte poderia ser impedida
pelo
processo magn�tico. Haviam outros pontos a serem verificados mas estes excitavam
mais
a minha curiosidade; o �ltimo de modo especial, pelo car�ter imensamente
importante
de
suas conseq��ncias.
Procurando em torno de mim algum paciente por cujo interm�dio pudesse eu
certificarme
daquelas particularidades, vim a pensar no meu amigo o Sr. Ernesto Valdemar, o
conhecido compilador da Biblioteca Forense e autor (sob o pseud�nimo de Issachar
Marx)
das tradu��es polonesas de Wallenstein e Gargantua. O Sr Valdemar, que residia
geralmente em Harlem, Nova York, desde o ano de 1839, � (ou era) especialmente
not�vel
pela extrema magreza corporal, parecendo-se muito suas pernas com as de John
Randolph, e tamb�m pela brancura de suas su��as, em violento contraste com o
negro
do
cabelo, que, em conseq��ncia, era geralmente tomado como um chin�. Seu
temperamento
era assinaladamente nervoso e tornava-o um bom instrumento para experi�ncias
mesm�ricas. Em duas ou tr�s ocasi�es, eu o fizera dormir com pouco esfor�o, mas
ficara
desapontado quanto aos outros resultados que sua particular constitui��o me
levava a
prever. Em per�odo algum sua vontade ficava inteira ou positivamente submetida a
minha influ�ncia e, no que toca � clarivid�ncia, nada eu podia realizar com ele
que me
servisse de base. Atribu� sempre meu insucesso, nesse ponto, ao seu prec�rio
estado de
sa�de. Certos meses antes de conhec�-lo, seus m�dicos o haviam declarado t�sico
sem
qualquer d�vida. E, na verdade, tinha ele o h�bito de falar sobre a aproxima��o
de seu
fim como de uma quest�o que n�o devia ser lastimada nem se podia evitar.
Quando me ocorreram, pela primeira vez, as id�ias a que aludi foi sem d�vida
muito
natural que eu pensasse no Sr. Valdemar . Eu conhecia muito bem sua s�lida
filosofia
para temer qualquer escr�pulo de sua parte, e ele n�o tinha parentes na Am�rica
que
pudessem interferir, plausivelmente. Falei-lhe com franqueza sobre o assunto e,
com
surpresa minha, seu interesse pareceu vivamente excitado. Digo com surpresa,
pois,
embora ele sempre entregasse livremente sua pessoa para meus experimentos, nunca
antes manifestara qualquer sinal de predile��o pelo que eu fazia. Sua
enfermidade era de
um tal car�ter que admitia exato c�lculo da �poca em que seu desenvolvimento
conduzia
� morte. Finalmente, combinamos entre n�s que ele me mandaria chamar vinte e
quatro
horas antes do prazo marcado pelos m�dicos como o de seu falecimento.
Faz agora mais ou menos sete meses que recebi, do pr�prio Sr. Valdemar, o
bilhete
seguinte:
Meu caro p�;
Voc� pode bem vir agora. D� e F� concordam em que n�o posso durar al�m da meia
noite de amanh�, e penso que eles acertaram no c�lculo com grande aproxima��o.
VALDEMAR.
Recebi este bilhete meia hora depois que fora escrito, e quinze minutos ap�s
estava eu
no
quarto do moribundo. N�o o via havia dez dias e espantou-me a terr�vel altera��o
que
lhe
trouxera t�o breve intervalo. Sua face tinha uma colora��o pl�mbea, os olhos
completamente sem brilho e sua magreza era t�o extrema que os ossos da face
quase
rompiam a pele. Sua expectora��o era excessiva, o pulso mal podia ser percebido.
N�o
obstante, ele conservava, de modo bem digno de nota, toda a lucidez da mente e
certo
grau de for�a f�sica.
Falava distintamente, tomava sem auxilio alheio alguns rem�dios paliativos, e,
quando
entrei no quarto, ocupava-se em escrever notas num caderno de bolso. Estava
apoiado
na
cama por travesseiros. Cuidavam dele os Drs. D�e F�Depois de apertar a m�o de
Valdemar, chamei aqueles senhores de parte e obtive deles relato minucioso das
condi��es do paciente. O pulm�o esquerdo estivera, durante dezoito meses, num
estado
semi �sseo ou cartilaginoso e se tornara, sem d�vida, inteiramente in�til a
qualquer
fun��o vital. O direito, na sua parte superior, estava tamb�m parcialmente,
sen�o de
todo, ossificado, enquanto a regi�o anterior era simplesmente uma massa de
tub�rculos
purulentos. interpenetrando-se. Havia muitas cavernas extensas e, em um ponto,
se
operara uma ades�o permanente �s costelas. Esses aspectos do lobo direito eram
de data
relativamente recente. A ossifica��o prosseguira com uma rapidez bastante
incomum,
nenhum sinal dela fora descoberto um m�s antes e a ades�o apenas fora observada
durante os tr�s dias antecedentes. Independentemente da t�sica, suspeitava-se
que o
paciente sofresse de aneurisma da aorta. mas, neste ponto, os sintomas �sseos
tornavam
imposs�vel um diagn�stico exato. Era opini�o de ambos os m�dicos que o Sr.
Valdemar
morreria mais ou menos � meia-noite do dia seguinte, domingo. Est�vamos, ent�o ,
�s
sete horas da noite do s�bado.Ao deixar a cabeceira da cama do inv�lido para
travar
conversa comigo, os Drs. D� e F� tinham-lhe dado um definitivo adeus. .n�o
tencionavam voltar, mas, a pedido meu, concordaram em visitar o doente, mais ou
menos
�s dez horas da noite seguinte.
Quando eles se foram, falei francamente com o Sr. Valdemar sobre o assunto de
sua
morte vindoura, bem como, mais particularmente sobre a experi�ncia proposta. Ele
mostrou-se ainda completamente de acordo e mesmo ansioso por sua realiza��o, e
insistiu comigo para que a come�asse imediatamente. Dois enfermeiros, um homem e
uma mulher, cuidavam dele; mas eu n�o me sentia totalmente em liberdade de
empreender uma tarefa dessas natureza sem mais testemunhas dignas de confian�a
do
que aqueles dois que pudessem depor em caso de s�bito acidente.
Conseq�entemente,
adiei as opera��es at� cerca das oito horas da noite seguinte quando a chegada
de um
estudante de medicina com quem eu estava um tanto relacionado (o Sr. Teodoro L�)
libertou-me de qualquer embara�o ulterior. Fora minha inten��o, a princ�pio,
esperar os
m�dicos, mas fui levado a agir, primeiro, em virtude dos rogos prementes do Sr.
Valdemar
e, em segundo lugar, pela convic��o de que n�o tinha um momento a perder, diante
da
evidente aproxima��o r�pida de seu fim.
O Sr. L� teve a bondade de satisfazer meu desejo de tomar notas de tudo quanto
ocorresse, e � dessas suas notas que o que vou agora narrar foi na maior parte
condensado ou copiado verbatim.
Faltavam cerca de cinco minutos para as oito, quando, tomando a m�o do paciente,
eu
lhe pedi que afirmasse, o mais distintamente poss�vel, ao Sr. L, se ele, (o Sr.
Valdemar)
estava inteiramente de acordo em que eu fizesse a experi�ncia de magnetiz�-lo em
seu
estado presente.
Ele respondeu, com fraca voz, por�m completamente aud�vel:
- Sim, desejo ser magnetizado - acrescentando imediatamente depois: - Receio que
voc�
tenha demorado muito.
Enquanto ele assim falava, comecei os passes que eu j� descobrira terem mais
efeito em
domin�-lo. Ele ficou evidentemente influenciado com o primeiro toque lateral de
minha
m�o na sua fronte. Mas, embora utilizasse eu todos os meus poderes, nenhum
efeito
ulterior percept�vel se verificou at� alguns minutos depois das dez horas,
quando os Drs.
D� e F� chegaram, de acordo com o combinado. Expliquei-lhes, em poucas palavras,
o
que pretendia, e como eles n�o opusessem obje��o, dizendo que o paciente j�
estava em
agonia mortal, continuei, sem hesita��o, mudando por�m, os passes laterais por
outros
descendentes e dirigindo meu olhar inteiramente sobre o olho direito do
moribundo.
A este tempo j� seu pulso era impercept�vel e sua respira��o estertorosa, a
intervalos de
meio minuto.
Tal estado conservou-se quase inalterado durante um quarto de hora. No expirar
esse
per�odo, por�m, um suspiro natural, muito profundo, escapou do peito do homem
moribundo e cessou a respira��o estertorosa, isto �, seus estertores n�o mais
apareciam;
os intervalos n�o diminu�ram. As extremidades do paciente tinham uma frialdade
de
gelo.
Aos cinco minutos antes das onze, percebi sinais inequ�vocos da influ�ncia
magn�tica.
O
movimento v�treo do olho mudara-se naquela express�o de inquietante exame
interior
que
s� se v� em casos de sonambulismo e diante da qual � completamente imposs�vel
haver
engano. Com alguns r�pidos passes laterais fiz as p�lpebras estremecerem, como
em
sono
incipiente, e com alguns mais consegui fech�-las de todo. N�o estava, por�m,
satisfeito
com isso e continuei vigorosamente com as manipula��es, com o mais completo
esfor�o
de vontade, at� paralisar, por completo, os membros do dormente, depois de
coloc�-los
em posi��o aparentemente c�moda. As pernas estavam inteiramente espichadas; os
bra�os, quase a mesma coisa, e repousavam sobre o leito, a uma dist�ncia
moderada das
n�degas. A cabe�a achava-se levemente elevada.
Quando terminei isso era j� meia-noite em ponto e pedi aos cavalheiros presentes
que
examinassem o estado do Sr. Valdemar. Depois de alguns exames, admitiram eles
que
se
achava num estado perfeitamente extraordin�rio de sono mesm�rico.
A curiosidade dos m�dicos achava-se altamente excitada. O Dr. D... resolveu logo
ficar
ao
lado do paciente a noite inteira. enquanto o Dr. F� partia, com promessa de
voltar ao
amanhecer. O Sr. L� e os enfermeiros ficaram. Deixamos o Sr. Valdemar
inteiramente
tranq�ilo at� �s tr�s horas da madrugada, quando me aproximei dele e vi que se
encontrava, precisamente, no mesmo estado em que o deixara o Dr. F� ao retirar-
se;
isto
�, jazia na mesma posi��o e o pulso era impercept�vel, a respira��o, ligeira
(mal
distingu�vel, a n�o ser por meio da aplica��o de um espelho aos l�bios) os olhos
fechavam-se naturalmente e os membros estavam t�o r�gidos e frios como o
m�rmore.
Contudo, a apar�ncia geral n�o era certamente a da morte. Quando me aproximei do
Sr.
Valdemar fiz uma esp�cie de leve esfor�o para influenciar seu bra�o direito a
acompanhar
o meu, que passava levemente, para l� e para c�, por cima de sua pessoa. Em tais
experi�ncias com esse paciente, nunca eu conseguira antes �xito completo e
decerto
tinha
pouca esperan�a de ser bem sucedido agora; mas, para espanto meu, seu bra�o bem
pronta. embora , fracamente, acompanhou todos os movimentos que o meu fazia.
Decidi
arriscar algumas palavras de conversa.
- Sr. Valdemar. . . - disse eu - est� adormecido?
Ele n�o deu resposta, mas percebi um tremor em torno dos l�bio, e por isso fui
levado a
repetir a pergunta v�rias vezes. � terceira repeti��o todo seu corpo se agitou
em um leve
calafrio: as pestanas abriram-se, permitindo que se visse a faixa branca do
olho; os
l�bios
moveram-se lentamente e dentre eles, num sussurro mal aud�vel, brotaram as
palavras:
- Sim� estou adormecido agora. N�o me desperte! Deixe-me morrer assim! Apalpei-
lhe
ent�o os membros e achei-os t�o rijos como dantes: o bra�o direito obedecia
ainda �
dire��o de minha m�o. Interroguei de novo o magnetizado:
- Sente ainda dor no peito, Sr. Valdemar?
A resposta agora foi imediata, mas ainda menos aud�vel do que antes:
- Dor nenhuma. . . Estou morrendo!
N�o achei prudente perturb�-lo mais ent�o e nada mais foi dito ou feito at� a
chegada do
Dr. F�, que veio um pouco antes do amanhecer e demonstrou seu ilimitado espanto
ao
encontrar o paciente ainda vivo. Depois de tomar-lhe o pulso e aplicar-lhe um
espelho
aos
l�bios, pediu-me que me dirigisse de novo ao magnetizado. Acedi, perguntando:
- Sr. Valdemar, ainda est� dormindo?
Como anteriormente, alguns minutos decorreram at� que fosse dada uma resposta e,
durante o intervalo, parecia que o moribundo reunia suas energias para falar. �
minha
quarta repeti��o da pergunta, disse ele, com voz muito fraca, quase
impercept�vel.
- Sim. . durmo ainda... estou morrendo.
Era agora opini�o, ou antes, desejo dos m�dicos que o Sr. Valdemar deveria ser
deixado
tranq�ilo, na sua presente situa��o de aparente repouso, at� sobrevir a morte. E
isto,
todos concordavam, deveria realizar-se, dentro de poucos minutos. Resolvi,
por�m,
falarlhe
uma vez mais e repeti simplesmente minha pergunta anterior.
Enquanto eu falava, ocorreu sens�vel mudan�a na fisionomia do magnetizado. Os
olhos
se abriram devagar, desaparecendo as pupilas para cima; toda a pele tomou uma
cor
cadav�rica, assemelhando-se mais ao papel branco que ao pergaminho, e as manchas
circulares h�ticas, que at� ent�o se assinalavam fortemente no centro de cada
face,
apagaram-se imediatamente. Uso esta express�o porque a subitaneidade de sua
desapari��o trouxe-me a mente nada menos do que a id�ia do apagar de uma vela
com
um sopro. Ao mesmo tempo o l�bio superior retraiu-se, acima dos dentes que at�
ent�o
cobria por completo, enquanto o maxilar inferior caia com movimento aud�vel,
deixando a
boca escancarada e mostrando a l�ngua inchada e enegrecida. Suponho que ningu�m
do
grupo ali presente estava desacostumado aos horrores dos leitos mortu�rios mas
t�o
inconcebivelmente horrenda era a apar�ncia do Sr. Valdemar naquele instante que
houve
um geral recuo de todos das proximidades da cama.
Sinto agora ter chegado a um ponto desta narrativa diante do qual todo leitor
passar� a
n�o dar cr�dito algum. �, contudo minha obriga��o simplesmente continuar.
J� n�o havia mais o menor sinal de vida no Sr. Valdemar, e comprovando sua
morte,
�amos entreg�-lo aos cuidados dos enfermeiros, quando um forte movimento
vibrat�rio
observou-se- na l�ngua, o qual continuou durante um minuto talvez. Terminando
este,
irrompeu dos queixos distendidos e im�veis uma voz, uma voz tal que seria
loucura
minha tentar descrever. H�, � certo, dois ou tr�s ep�tetos que poderiam ser
considerados
aplic�veis a ela em parte; podia dizer, por exemplo, que o som era �spero,
entrecortado,
cavernoso; mas o horrendo conjunto � indescrit�vel, pela simples raz�o de que
nenhum
som igual jamais vibrou em ouvidos humanos. Havia duas particularidades, n�o
obstante, que, pensei e ainda penso, podiam francamente ser comprovadas como
caracter�sticas da entona��o, bem como adequadas a dar alguma id�ia da sua
peculiaridade sobrenatural. Em primeiro lugar, a voz parecia alcan�ar nossos
ouvidos -
pelo menos os meus - de uma vasta dist�ncia ou de alguma profunda caverna dentro
da
terra.
Em segundo lugar, dava-me a impress�o (receio na verdade ser imposs�vel fazer-me
compreender) que as coisas gelatinosas e pegajosas d�o no sentido do tato. Falei
ao
mesmo tempo, em "som" e "voz". Quero dizer que o som era de uma dic��o distinta.
. .
maravilhosamente distinta, mesmo e arrepiante. O Sr. Valdemar falava,
evidentemente,
respondendo � pergunta que eu lhe havia feito poucos minutos antes. Perguntara-
lhe,
como se lembram, se ele estava adormecido. Ele agora respondia:
- Sim... n�o. . . estava adormecido. . . e agora. . . agora� estou morto.
Nenhuma das pessoas presentes nem mesmo afetou negar ou tentou reprimir o
indiz�vel
e
calafriante horror que essas poucas palavras assim pronunciadas, bem
naturalmente
provocavam. O Sr. L� ( o estudante ) desmaiou. Os enfermeiros abandonaram
imediatamente o quarto e negaram-se a voltar. N�o pretenderei tornar ileg�vel ao
leitor
as
minhas pr�prias impress�es. Durante quase uma hora ocupamo-nos, calados, sem
dizer
uma s� palavra, em procurar fazer o Sr. L� voltar a si. E, quando isto se deu,
dirigimonos
de novo a examinar o estado do Sr. Valdemar.
Continuava, a todos os respeitos, como o descrevera antes, com exce��o de que o
espelho
n�o mais revelava respira��o. Uma tentativa de tirar sangue do bra�o fracassou.
Devo
mencionar tamb�m que esse membro n�o mais se mostrou obediente � minha vontade.
Tentei em v�o faz�-lo acompanhar a dire��o de minha m�o. A �nica e real
demonstra��o
da influ�ncia magn�tica achava-se, ent�o, no movimento vibrat�rio da l�ngua
quando eu
dirigia uma pergunta ao Sr. Valdemar. Ele parecia estar fazendo um esfor�o para
responder, mas n�o possu�a mais a voli��o suficiente. �s perguntas que lhe eram
feitas
por qualquer outra pessoa al�m de mim parecia totalmente insens�vel, embora eu
tentasse colocar cada membro do grupo em rela��o magn�tica com ele. Creio que
relatei
agora, tudo quanto � necess�rio para uma compreens�o do estado do magnetizado
naquele momento. Foram procurados outros enfermeiros e �s dez horas deixei a
casa em
companhia dos dois m�dicos e do Sr. L�
� tarde fomos todos chamados de novo para ver o paciente. Seu estado permanecia
precisamente o mesmo. Tivemos ent�o uma discuss�o a respeito da oportunidade e
possibilidade de despert�-lo, mas pouca dificuldade tivemos em concordar em que
n�o
havia nenhuma utilidade em faz�-lo. Era evidente que, at� ali, a morte (ou o que
se
chama usualmente morte) tinha sido detida pela a��o magn�tica. Parecia claro a
n�s
todos que despertar o Sr. Valdemar era simplesmente assegurar sua morte atual
ou,
pelos menos, apressar-lhe a decomposi��o.
Desde aquele dia at� o fim da �ltima semana - intervalo de quase sete meses
continuamos a fazer visitas di�rias � casa do Sr. Valdemar, acompanhados de vez
em
quando por m�dicos e outros amigos. Durante este tempo, o magnetizado permanecia
exatamente como j� deixei descrito. Os cuidados dos enfermeiros eram cont�nuos.
Foi na sexta-feira passada que resolvemos, finalmente, fazer a experi�ncia de
despert�-
lo,
ou de tentar despert�-lo; e foi talvez o infeliz resultado desta �ltima
experi�ncia que deu
origem a tantas discuss�es em c�rculos privados e a muito daquilo que n�o posso
deixar
de julgar uma credulidade popular injustific�vel.
Com o fim de libertar o Sr. Valdemar da a��o magn�tica, fiz uso dos passes
habituais.
Durante algum tempo foram eles ineficazes. A primeira indica��o de revivesc�ncia
foi
revelada por uma descida parcial da �ris. Observou-se, como especialmente
not�vel que
este abaixamento da pupila era acompanhado pela profusa ejacula��o de um licor
amarelento (de sob as p�lpebras), com um odor acre e altamente repugnante.
Sugeriu-se ent�o que eu deveria tentar influenciar o bra�o do paciente, como
fizera
antes.
Tentei, mas inutilmente. O Dr. F� expressou ent�o o desejo de que eu fizesse uma
pergunta. Assim fiz, como segue:
- Sr. Valdemar. . . pode explicar-me quais s�o seus sentimentos ou desejos
agora?
Houve imediata volta dos c�rculos h�ticos sobre as faces; a l�ngua vibrou, ou
antes,
rolou
violentamente na boca (embora os maxilares e os l�bios permanecessem rijos como
antes)
e por fim a mesma voz horrenda que eu j� descrevi ejaculou:
- Pelo amor de Deus!. . . Depressa. - . depressa! .. fa�a-me dormir. . . ou
ent�o, depressa.
Acorde-me. . . depressa!... Afirmo que estou morto!
Eu estava completamente enervado e por um instante fiquei indeciso sobre o que
fazer.
A
princ�pio fiz uma tentativa de acalmar o paciente; mas fracassando, pela total
suspens�o
da vontade, fiz o contr�rio e lutei energicamente para despert�-lo.
Nessa tentativa vi logo que teria �xito, ou, pelo menos, logo imaginei que meu
�xito
seria
completo. E estou certo de que todos no quarto se achavam preparados para ver o
paciente despertar.Para o que realmente ocorreu, por�m, � completamente
imposs�vel
que
qualquer ser humano pudesse estar preparado.
Enquanto eu fazia rapidamente os passes magn�ticos, entre ejacula��es de
"Morto!",
"Morto!", irrompendo inteiramente da l�ngua e n�o dos l�bios do paciente, todo
seu
corpo, de pronto, no espa�o de um �nico minuto, ou mesmo menos, contraiu-se...
desintegrou-se, absolutamente podre, sob minhas m�os. Sobre a cama, diante de
toda
aquela gente, jazia uma quase l�quida massa de nojenta e detest�vel
putresc�ncia.
EDGAR ALLAN POE FIC��O COMPLETA � CONTOS DE TERROR, MIST�RIO
E MORTE
O BARRIL DE AMONTILLADO
Suportara eu, enquanto poss�vel, as mil ofensas de Fortunato. Mas quando se
aventurou
ele a insultar-me, jurei vingar-me. V�s, que t�o bem conheceis a natureza de
minha
alma, n�o havereis de supor, por�m, que proferi alguma amea�a. Afinal, deveria
vingarme.
Isso era um ponto definitivamente assentado, mas essa resolu��o, definitiva,
exclu�a
id�ia de risco. Eu devia n�o s� punir, mas punir com impunidade. N�o se
desagrava
uma
inj�ria quando o castigo cai sobre o desagravante. O mesmo acontece quando o
vingador
deixa de fazer sentir sua qualidade de vingador a quem o injuriou.
Fica logo entendido que nem por palavras nem por fatos dera causa a Fortunato de
duvidar de minha boa-vontade. Continuei, como de costume, a fazer-lhe cara
alegre, e
ele
n�o percebia que meu sorriso agora se originava da id�ia de sua imola��o.
O Fortunato tinha o seu lado fraco, embora a outros respeitos fosse um homem
acatado
e
at� temido. Orgulhava-se de ser conhecedor de vinhos. Poucos italianos t�m o
verdadeiro
esp�rito do "conhecedor". Na maior parte, seu entusiasmo adapta-se �s
circunst�ncias do
momento e da oportunidade, para ludibriar milion�rios ingleses e austr�acos. Em
mat�ria
de pintura e ourivesaria era Fortunato, a igual de seus patr�cios, um impostor;
mas em
assuntos de vinhos velhos era sincero. A este respeito �ramos da mesma for�a.
Considerava-me muito entendido em vinhos italianos e sempre que podia, comprava-
os
em larga escala.
Foi ao escurecer duma tarde, durante o supremo del�rio carnavalesco, que
encontrei meu
amigo. Abordou-me com excessivo ardor, pois j� estava bastante bebido. Estava
fantasiado com um traje apertado e listado, trazendo na cabe�a uma carapu�a
c�nica
cheia de guizos. T�o contente fiquei ao v�-lo que quase n�o largava de apertar-
lhe a
m�o.
E disse-lhe:
- Meu caro Fortunato, foi uma felicidade encontr�-lo ! Como est� voc� bem
disposto
hoje!
Mas recebi uma pipa dum vinho, dado como amontillado, e tenho minhas d�vidas.
- Como? disse ele. - Amontillado? Uma pipa? Imposs�vel. E no meio do carnaval!
- Tenho minhas d�vidas - repliquei -, mas fui bastante tolo para pagar o pre�o
total do
amontillado sem antes consultar voc�. N�o consegui encontr�-lo e tinha receio de
perder
uma pechincha.
- Amontillado!
- Tenho minhas d�vidas.
- Amontillado!
- E preciso desfaz�-las.
- Amontillado!
- Se voc� n�o estivesse ocupado. . . Estou indo � casa Luchesi. Se h� algu�m que
entenda
disso, � ele. Haver� de dizer�
- Luchesi n�o sabe diferen�ar um amontillado dum xerex
- No entanto, h� uns bobos que dizem por a� que, em mat�ria de vinhos, voc�s se
equiparam.
- Pois ent�o vamos.
- Para onde?
- Para sua adega.
- N�o, meu amigo. N�o quero abusar de sua boa-vontade. Voc� est� ocupado.
Luchesi...
- N�o estou ocupado, coisa nenhuma... Vamos.
- N�o, meu amigo. N�o � por isso, mas � que vejo est� fortemente resfriado. A
adega
est�
duma umidade intoler�vel. Suas paredes est�o incrustadas de salitre.
- N�o tem import�ncia, vamos. Um resfriado �-toa. Amontillado! Acho que voc� foi
enganado. Quanto a Luchesi, � incapaz de distinguir um xerez dum amontillado.
Assim falando, Fortunato agarrou meu bra�o. Pondo no rosto uma m�scara de seda e
enrolando-me num rocl�, deixei-me levar por ele, �s pressas, na dire��o do meu
pal�cio.
Todos os criados haviam sa�do para brincar no carnaval. Dissera-lhes que s�
voltaria de
madrugada e dera-lhes expl�citas ordens para n�o se afastarem de casa. Foi,
por�m, o
bastante, sabia, para que se sumissem logo que virei as costas.
Peguei dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o atrav�s de
v�rias
salas at� a passagem abobadada que levava � adega. Desci � frente dele uma longa
e
tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado. Chegamos por fim ao sop� e
ficamos
juntos no ch�o �mido das catacumbas dos Montresors.Meu amigo cambaleava e os
guizos de sua carapu�a tilintavam a cada passo que dava.
- Onde est� a pipa? perguntou ele.
- Mais para o fundo - respondi -, mas repare nas teias cristalinas que brilham
nas
paredes desta caverna.
Ele voltou-se para mim e fitou-me bem nos olhos com aqueles seus dois gl�bulos
v�treos
que destilavam a reuma da bebedice.
- Salitre? - perguntou ele, por fim.
- �, sim - respondi. - H� quanto tempo est� voc� com essa tosse?
- Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh!... - p�s-se ele a tossir, e durante muitos minutos
n�o
conseguiu meu pobre amigo dizer uma palavra.
N�o � nada - disse ele, afinal.
- Venha - disse eu, decidido. Vamos voltar. Sua sa�de � preciosa. Voc� � rico,
respeitado, admirado, amado. Voc� � feliz como eu era outrora. Voc� � um homem
que
faz
falta. Quanto a mim, n�o. Voltaremos. Voc� pode piorar e n�o quero ser
respons�vel por
isso. Al�m do qu�, posso recorrer a Luchesi...
- Basta! - disse ele. - Essa tosse n�o vale nada. N�o me h� de matar. N�o � de
tosse que
hei de morrer.
- Isto � verdade� isto � verdade. . . - respondi - e, de fato, n�o era a minha
inten��o
alarm�-lo sem motivo. Mas acho que voc� devia tomar toda a precau��o.
Um gole deste M�doc nos defender� da umidade.
Ent�o fiz saltar o gargalo duma garrafa que retirei duma longa pilhada no ch�o.
- Beba - disse eu, apresentando-lhe o vinho.
Levou a garrafa aos l�bios, com um olhar malicioso. Calou-se um instante e me
cumprimentou com familiaridade, fazendo tilintar os guizos.
- Bebo pelos defuntos que repousam em torno de n�s - disse ele.
- E eu para que voc� viva muito.
Pegou- me de novo no bra�o e prosseguimos.
- Estas adegas s�o enormes - disse ele.
- Os Montresors eram uma fam�lia rica e numerosa - respondi.
- N�o me lembro quais s�o suas armas.
- Um enorme p� humano dourado em campo blau; o p� esmagando uma serpente
rastejante cujos comilhos se lhe cravam no calcanhar.
- E qual � a divisa?
- Nemo me impune lacessit. (ningu�m me ofende impunemente. N.T.)
- Bonito! - disse ele.
O vinho faiscava-lhe nos olhos e os guizos tilintavam. Minha pr�pria imagina��o
se
aquecia com o M�doc. Hav�amos passado diante de paredes de ossos empilhados,
entre
barris e pipotes, at� os recessos extremos das catacumbas. Parei de novo e desta
vez e
atrevi a pegar Fortunato por um bra�o acima do cotovelo.
- O salitre! Veja, est� aumentado. Parece musgo agarrado �s paredes. Estamos
embaixo
do leito do rio. As gotas de umidade filtram-se entre os ossos. Venha, vamos
antes que
seja demasiado tarde� Sua tosse...
- N�o � nada - disse ele. - Continuemos. Mas antes, d�-me outro gole de M�doc.
Quebrei o
gargalo duma garrafa de De Grave e entreguei-lha.
Esvaziou-a dum trago. Seus olhos cintilavam, ardentes. Riu e jogou a garrafa
para cima,
com um gesto que eu n�o compreendi.
Olhei surpreso para ele. Repetiu o grotesco movimento.
- N�o compreende? - perguntou.
- N�o.
- Ent�o n�o pertence � irmandade?
- Que irmandade?
- N�o � ma�om?
- Sim, sim! - respondi. - Sim, sim!
- Voc�, ma�om? N�o � poss�vel!
- Sou ma�om, sim repliquei.
- Mostre o sinal - disse ele.
- � este - respondi. retirando de sob as dobras de meu rocl� uma colher de
pedreiro.
- Voc� est� brincando - exclamou ele, dando uns passos para tr�s. - Mas vamos
ver o
amontillado .
- Pois vamos - disse eu, recolocando a colher debaixo do capote e oferecendo-lhe
, de
novo, meu bra�o, sobre o qual se apoiou ele pesadamente.
Continuamos o caminho em busca do amontillado. Passamos por uma s�rie de baixas
arcadas, demos voltas, seguimos para a frente, descemos de novo e chegamos a uma
profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia a chama de nossos archotes a
brasas
avermelhadas.
No recanto mais remoto da cripta, outra se descobria menos espa�osa. Nas suas
paredes
alinhavam-se restos humanos empilhados at� o alto da ab�bada, � maneira das
grandes
catacumbas de Paris. Tr�s lados dessa cripta interior estavam assim
ornamentados. Do
quarto, haviam sido afastados os ossos, que jaziam misturados no ch�o, formando
em
certo ponto um mont�culo de avultado tamanho. Na parede assim desguarnecida dos
ossos, percebemos um outro nicho, com cerca de um metro e vinte de profundidade,
noventa cent�metros de largura e um metro e oitenta ou dois metros e dez de
altura. n�o
parecia ter sido escavado para um uso especial, mas formado simplesmente pelo
intervalo
entre dois dos colossais pilares do teto das catacumbas, e tinha como fundo uma
das
paredes, de s�lido granito, que os circunscreviam.
Foi em v�o que Fortunato, erguendo a tocha morti�a, tentou espreitar a
profundeza do
recesso. A fraca luz n�o nos permitiu ver-lhe o fim.
- Vamos - disse eu -, aqui est� o amontillado . Quanto a Luchesi...
- E um ignoranta�o! - interrompeu meu amigo, enquanto caminhava, vacilante, para
diante e eu o acompanhava rente aos calcanhares. Sem demora, alcan�ou ele a
extremidade do nicho, e n�o podendo mais prosseguir, por causa da rocha, ficou
estupidamente apatetado. Um momento mais e ei-lo acorrentado por mim ao granito.
Na
sua superf�cie havia dois an�is de ferro, distando um do outro cerca de sessenta
cent�metros, horizontalmente. De um deles pendia curta cadeia e do outro um
cadeado.
Passei a corrente em torno da cintura e prend�-lo, bem seguro, foi obra de
minutos.
Estava por demais at�nito para resistir. Tirando a chave sa� do nicho.
- Passe sua m�o - disse eu - por sobre a parede. N�o deixa de sentir o salitre.
� de fato
bastante �mido. Mais uma vez permita-me implorar-lhe que volte. N�o? Ent�o devo
positivamente deix�-lo. Mas � preciso primeiro prestar-lhe todas as pequeninas
aten��es
que puder.
- O amontillado ! - vociferou meu amigo, ainda n�o recobrado do espanto.
- � verdade - repliquei -, o amontillado .
Ao dizer estas palavras, pus-me a procurar as pilhas de ossos a que me referi
antes.
Jogando-os para um lado, logo descobri grande quantidade de tijolos e argamassa.
Com
estes e com o aux�lio de minha colher de pedreiro comecei com vigor, a emparedar
a
entrada do nicho.
Mal havia eu come�ado a acamar a primeira fila de tijolos, descobri que a
embriaguez
de
Fortunato tinha-se dissipado em grande parte. O primeiro ind�cio disto que tive
foi um
surdo lamento, l� do fundo do nicho.
N�o era o choro de um homem embriagado. Seguiu, ent�o, um longo e obstinado
sil�ncio. Deitei a segunda camada, a terceira e a quarta; e depois ouvi as
furiosas
vibra��es da corrente. O barulho durou v�rios minutos, durante os quais, para
maior
satisfa��o, interrompi meu trabalho e me sentei em cima dos ossos.
Quando afinal o tilintar cessou, tornei a pegar e acabei sem interrup��o a
quinta, a sexta
e a s�tima camada. A parede estava agora quase ao n�vel de meu peito. Parei de
novo e
levantando o archote por cima dela, lancei uns poucos e fracos raios sobre o
rosto dentro
do nicho.
Uma explos�o de berros fortes e agudos, provindos da garganta do vulto
acorrentado,
fezme
recuar com viol�ncia. Durante um breve momento hesitei. Tremia. Desembainhando
minha espada, comecei a apalpar com ela em torno do nicho, mas uns instantes de
reflex�o me tranq�ilizaram. Coloquei a m�o sobre a a alvenaria s�lida das
catacumbas e
senti-me satisfeito. Reaproximei-me da parede: Respondi aos urros do homem.
Servi-
lhe
de eco, ajudei-o a gritar... ultrapassei-o em volume e em for�a. Fui fazendo
assim e por
fim cessou o clamor.
Era agora meia-noite e meu servi�o chegara a cabo. Completara a oitava, a nona e
a
d�cima camadas. Tinha acabado uma por��o desta �ltima e a d�cima primeira.
Faltava
apenas uma pedra a ser colocada e argamassada. Carreguei-a com dificuldade por
causa
do peso. Coloquei-a, em parte, na posi��o devida. Mas ent�o irrompeu de dentro
do
nicho
uma enorme gargalhada que me fez eri�ar os cabelos. Seguiu-se-lhe uma voz
lamentosa,
que tive dificuldade de reconhecer como a do nobre Fortunato. A voz dizia:
- Ah, ah, ah!... Eh, eh, eh! Uma tro�a bem boa de fato�uma excelente pilh�ria!
Haveremos de rir a bandeiras despregadas l� no pal�cio... eh, eh, eh!... a
respeito desse
vinho, eh! eh! eh!
- O amontillado ! - exclamei eu.
- Eh, eh, eh!... Eh, eh, eh!... Sim... o amontillada! j� n�o ser� tarde? J� n�o
estar�o
esperando por n�s no pal�cio? minha mulher e os outros? Vamos embora!
- Sim - disse eu. - Vamos embora.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim - disse eu. - Pelo amor de Deus!
Aguardei debalde uma resposta a estas palavras. Impacientei-me. Chamei em voz
alta:
- Fortunato!
Nenhuma resposta. Chamei de novo:
- Fortunato!
Nenhuma resposta ainda. Lancei uma tocha atrav�s da abertura e deixei-a cair l�
dentro.
Como resposta ouvi apenas o tinir dos guizos. Senti um aperto no cora��o. .
devido
talvez
� umidade das catacumbas. Apressei-me em terminar meu trabalho. Empurrei a
�ltima
pedra em sua posi��o. Argamassei-a. Contra a nova parede, reergui a velha
muralha de
ossos. J� faz meio s�culo que mortal algum os remexeu. In pace requiescat!
Abraços fraternos!
Bezerra
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